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ALBERTO PIMENTEL

Seara em flor

VOLUME J

o verde da mocidade pouco e leve tempo dura; e aquella alegre verdura, vista depois de outra idade, parece sombra escura.

D. Francisco M.vkuel Obras métricas.

LISBOA

LIVRARIA EDITORA VIUVA TAVARES CAROOSO

3 LABQO DE CAMÕKS 6 IQO5

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Seara em flor

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O Auctor em 1869

ALBERTO PIMENTEL

Seara em flor

VOLUME I

o verde da mocidade pouco e leve tempo dura ; e aquella alegro verdura, visía despi ii do outra idade, parece sombra escura.

I). Francisco -Aíani-kl -Ofiras nií-fjicas.

LISBOA

LIVRARIA EDITORA VIU\/A TAVARES CARDOSO

5 LARQO DE CAMÕES 6 1905

Typ. a vapor da Emproza Littcraria e Typographi»:;! 178, Rua de D. Tcdro, 184 Porto

pa

V.l

A

TORRE DOS CLÉRIGOS

Arrojoifa bitola dos pensamentos altos e inipjilsos revolitciona- tíos que por vezes agitam o cérebro e o coração do Porto, ininlia /erra natal ; balisa formidável que de longe orientas os navegan- tes e indicas a cidade aos olhos saudosos que a procuram n^unui <jvidez nostálgica de pátria ; dominador campanário que durante vinte annos regeste a minha vida, florente de mocidade, com a t7ia voz lesoante e solemne badalando lentamente as horas de cada dia ; gigante de pedra que pela tua audaciosa altura me convidaste a subir d região dos sonhos e das chimcras, pela tua solida muscula- 17/ ra me aconselhaste a ser perseverante e firme, pela tua elegância esculptural puzeste no meu cihiriío a primeira noção do poder do homem na expressão linear das concepções artísticas :

cu te ofereço por gratidão este li- vro, que tu viste nascei' outr'' ora, e cobriste Id de cima com a tua longa sombra protectora, ó cinzento roble arborisado em granito, a cuja raiz labuta ttma cidade activa, que me ensinou a trabalhar sem desfdlle- cimcntos nem intermittencias.

Lisboa iQoS

PREFACIO

K osía uma segunda edição doR meus i)ri- meiros ensaios em prosa, agora reunidos sob um titulo commum.

Reuni-os e corrigi apenas uma ou outra l)hrase mais ingénua, cerceei na linguagem al- guma aresta mais viva ; mas não toquei na traça geral da composição, que era para mim sagrada, embora fosse defeituosa e inexperiente.

No desenho de uma obi-a liiteraria reside, prin-cipalmente, a individualidade psychica do auclor. \\ toda a sua alma, n'um determinado jnomento biographico, é toda a sua physionomia

inteilectual, trouxa ou pujante, saudável ou ra- chitica, antiga ou moderna, que se retrata ali.

Esse desenho insjjira respeito ao seu próprio auctor, que se reproduzido n'um espelho se- vero e que, para esíimular-se e corrigir-se, a si mesmo se vai observando, como em photogra- [vliias que assignalassem as diiíbrentes oi)Ocas da sua existência.

N'isso não ha pôr mão relbi-madora ; seria um desacato, quasi um sacrilégio.

Limpar a tela, sacudi i^-hie o pó, desempas- tiii as mancíias do tem|)0 não é alterar o dQ<o-

iiho, antes aclaral-o para que melhor se possa reconhecer na sua primitiva identidade.

Os quatro livros, que se fundiram n'este único, representam para mim a madrugada da vida litteraria, a alegria de compor, a pressa de publicar, a anciã de vencer. Elles nào tive- ram maior publico que o dos estudantes do meu tempo e da minha terra, dispostos ao favor áii camaradagem e, portanto, ao applauso immere- cido. Tão verdes e generosos como eu próprio, faltava-lhes a competência para condemnar o, sobretudo, faltava-lhes a vontade de fazel-o.

Um ou outro julgador idóneo, a cujas mãos alguns d'esses livrinhos foram parar, preferi- ra, deante das primicias de um novo, usar da longanimidade que fecha os olhos, não por os trazer vendados como a justiça implacável, mas para absolver e dar estimulo.

Castilho e Camillo acolheram-me com |)a- ternal bondade ; Júlio César Machado mandou- me carinhosas palavras ; de Coimbra, os ra|)a- zes da Folha foram tão amoraveis para mim como os estudantes do Porto.

Adeus timidez d.e principiante ; adeus medo

do publico, pavor da critica ; metti-me denoda- damente ao caminho, cantando, como os intré- pidos camponezes minhotos que não sabem tra- balhar senão com uma canção a esvoaçar-lhes nos labi, s.

Foi bom ? foi mau ? Foi o destino. Sinto a consciência lavada e o animo alegre. Amo o trabalho como uma fonte de consolações, que pagam bem os desgostos da protlssão das let- tras. Um ódio pode sahir-me á estrada como salteador ; deixo-o despejar o seu arcabuz e sigo na plácida consciência de que o não mereci.

Outro caminheiro abraca-me cora bondade ; agradeço-lhe a benevolência e prosigo com igual placidez. Devo á natureza o favor de desconhe- cer a ambição, a inveja e a vinganra ; serena a alma, o ti*abalho não pesa, ó mais uma can- ção do que uma cruz.

Frederico Laranjo, escrevendo a respeito de alguns dos meus primeiros livros, dizia que elles se faziam querer pelo «seu ar mocinho».

A apreciação,' comquanto indulgente, ex[)h'ca tudo o que n'esses livros i)ode haver de estimá- vel : a mocidade.

.

Peciuenos volumes em 16, elles levavam a outros corações juvenis a flor da primeira seara do meu espirito, a ingenuidade, o senti- mento espontâneo, a impericia inevitável n'uma estreia, o contentamento de ver florir a prima- vera sobre a messe que se cultivou afanosa- mente.

Estas palavras bastam a explicar o titulo que serve de traço de união aos quatro volu- mesinhos agora reimpressos.

Dál-os novamente ao prélo não é uma vai- dade ser,òdia, mas apenas um como desejo de

renascença, de regresso ao passado, que os .velhos comprehendem muito bem, e os moços hão de comprehender algum dia. adverte o Apocahjpse: « Não te maravilhes de eu te dizer: laiporta-vos nascer outra vez.» Sim, importa renascer, ao menos imaginariamente, para ca- minhar com firmeza e tranquillidade para o extremo cabo da vida. A saudade é um goso dulcilicante, apenas obscurecido pela sombra '|ue, no conceito de D. Francisco Manuel, om- pallidece as visões retrospectivas. Comtudo, es.sa mesma sombra é suaye ; não amedronta.'

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somente convida a evocar o passado, para re- vi vel-o.

E o que eu faço nos dois volumes da «Seara em flor».

E assim ficam plenamente justificados, creio il eu, tanto a apparição d'esta obra como o titulo que lhe puz.

Lisboa, Janeiro de 19(]5.

Alberto Pimentel.

17

' Ricíirdiíia. Desejo que meu tio determine dia para o casamento. . .

Sempre se realisa então, senhor morpido?

Duvidas as podia ter o padre Dominf!;os, que 6 um espirito fraco e vacillante ; um homem que níío derruba um ninho !

São modos .de ver replicou o capellão.

Pois vá-me continuou o morgado. Vá- me lá. Diga a meu tio que não posso ir eu mesmo, porque esta barafunda que revolve toda a casa está pedindo o meu constante vigiar. Tome o seu café e vá.

Irei, senhor morgado, irei respondeu o padre, erguendo-se da mesa do jantar.

IV

Foi padre Domingos ao solar dos Xoronhas desem- penhar a missão de que o incumbira o morgado de

Santa Eulália. Foi e encontrou Ricardina sentada n'um dos bancos de pedra, que guarneciam o lago do jardim. Tinha a desditosa menina o rosto escondido entre as mãos e via-se-lhe arquejar o seio violenta- mente. Padre Domingos queria fallar-lhe e não ousa- va. Ricardina, porém, como ouvisse agitarem-se as fo- I lhas de uma roseira próxima, a que se tinha encostado o capellão, ergueu subitamente a cabeça. Deu com os olhos chorosos em padre Domingos e exclamou :

Ainda bem que não 6 meu pae ! Posso chorar á vontade . . .

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Chore, senhora D. Eicardina, chore, porque eu comprehendo as suas lagrimas...

Ricardina entreabriu os lábios n'um instantâneo sorriso d'agradecimento e convidou o padre a sentar- se ao lado d'ella.

A que vem, padre Domingos? Seja franco para commigo.

Yenho saber, por ordem do senhor morgado, qual é o dia marcado para o casamento. Yenho, porém, com a dor no coração, minha senhora. Diz-me uma voz interior que grandes desgraças vão cahir sobre o Paço de Santa Eulália. Depois que entra por uma porta a ambição, sahe por outra a alegria : é o que está succedendo agora. Y. exc.^ tinha direitos para gosar a felicidade, que sonhava o seu coração ; e o po- bre senhor Fernando Tavares não merecia também que o despenhassem tão do alto das suas esperanças. . .

Tem-n'o visto, padre Domingos ? interrogou precipitadamente Ricardina.

Yi-o e fallei-lhe, poucos dias ha. Pareceu-rae verdadeiramente desgraçado . . .

E é. Pobre Fernando I murmurou Ricardina. E ó. Meu pae postou criados de confiança a todas as portas. Não encontrou um no portão de entrada?

o vi, minha senhora.

devia estar a olhar com os cem olhos d 'es- pião. Pessoa que não seja de Santa Eulália, não en- tra. Deu motivo a esta vigilância a apparição d 'um menáigo que, ha dias, instou por fallar commigo to- mando o pretexto de me pedir esmola.

19

E esse mendigo era ... ?

Uni lioniem que me trouxe uma carta de Fer- nando — disse Ricardina abaixando a voz. Quei- mei-a, padre Domingos, depois de a ler, de a reler, de a decorar. Se meu pae a visse, matal-o-ia. Oiça, meu padre, oiça. Dizia assim :

^ « Ricardina. Creio no teu amor como creio em Deus. Vejo-te de longe a luctar entre a prepotência de teu pae e a ambição de teu primo e não te posso salvar, pomba querida, d'esse dilemma infernal com que te despedaçam o coração. Para onde quer que fugissemos, havia de correr atraz de nós a tyrannia, a persegui- ção, a crueldade; e haviamos d'ouvirpor toda a parte os clamores da justiça, que nos seguiria de perto, pro- vocada por teu pae . . . Depois o escarneo da sociedade cahiria sobre mim, porque tu és muito rica, muito opu- lenta, muito nobre, e todos veriam no meu amor excepto tu, bem sei a tentação que leva o homem a praticar um roubo. E depois as tuas lagrimas valem mais do que isso. Como tu não havias de chorar, quando ouvisses trovejarem-te nos ouvidos as primei- ras palavras de maldição paterna ! Xão, Ricardina, não terás que chorar de remorsos. Tu ficas no Paço de Santa Eulália, mimosa no leito de teu primo e bemquerida de todos. Eu vou-me por esse mundo além, fugido dos homens, a pedir á arvore mais copada da serra que estenda ao longo do caminho sete palmos de sombra onde me deixe dormir o somno eterno. Mas que somno atroz não será! Adormecerei no silencio da

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morte, sentindo no coração as garras do ciúme. E tu sa- bes o que é o ciúme, Ricardina? E a perdição, o deses- pero, a loucura. Emprestei ao morgado de Santa Eu- lália, pouco ha, os Ckunes do Bardo^ de Castilho. Quiz mostrar-lhe intencionalmente o que é o ciúme, essa la- bareda infernal do coração. Ai do biltre, se não com- prehendeu esse livro e mandou preparar de cambraia e rosas o leito que te aguarda na noite do noivado. . . Adeus, Ricardina. Yêr-nos-hemos no eco, se Deus sabe perdoar aos martyres do amor. Adeus.

Fernando.»

Tremo por elle, senhora D. Ricardina bal- buciou o padre. O final d'essa carta deixa entrever um doloroso estado d'excitação. . .

Olá ! padre Domingos, olá ! gritou de longe Sebastião Noronha, pae de Ricardina Yenha cá, homem. Não me gaste o tempo todo em cumprimentos á noiva. Deixe isso para depois.

Padre Domingos obedeceu á voz do fidalgo, aper- tando a mão de Ricardina e deixando fugir, muito a medo, estas palavi-as :

Que Deus oUie por nós.

O que se passou entre Sebastião Noronha e padre Domingos, ninguém o ouviu. O que ó certo é que o capellão do Paço de Santa Euhilia sahira triste e pro- nunciando distrahidamente, de momento a momento, estas palavras :

D'aqui a trez dias, d'aqui a trez dias. . .

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Kiitrou em oasu e teve conferencia com o morga- do. Depois veio para a janella do seu quarto esperar as andorinhas, com os olhos absortos nas charamas que i)rincipiavam a purpurear o occidente.

Pouco tempo tinha decorrido, ouviu padre Domin- gos um chih'ear álacre de passarinhos, a distancia, que o fez estremecer e levantar subitamente a cabeça.

Eram ellas, as andorinhas, que chegavam em tro- pel. Tornavam alegres como um batalhão que volta da campanha. Iam ficando algumas pelos sitios seus co- nhecidos, quando viam ondular era baixo as comas das arvores suas amigas. Vinha aproximando-se a tumultuosa caravana e ao passar com a rapidez do vento pelo Paço de Santa Eulália, duas andorinhas se apartaram, batendo as azas em direitura ao portão da quinta.

São ellas ! murmurou o padre, gelado de medo.

E eram. Era o casal que voltava a procurar a sua habitação antiga. Quando as duas andorinhas deram pela falta do ninho, começaram a esvoaçar de um lado para outro, com o desespero de quem aproximar-se a noite sem ter um tecto hospitaleiro que lhe de gua- rida. Gastaram n'isto alguns momentos. Depois fo- ram pelo céo fora, á procura de qualquer abrigo provisório, soltando uns pios doloridos.

Bem disse eu pronunciou padre Domingos de si para si. Desgraça certa. Bem disse eu.

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Trez dias depois das scenas descriptas no anterior capitulo, celebrou-se na capella do Paço de Santa Eulália, ao fim da tarde, o casamento do morgado com Kicardina.

Concorreram á festa os mais nobres fidalgos de sete léguas em redor, e era muito para admirar o vêl-os apearem-se garbosos á porta do Paço, coalhada de camponezes. Celebrou-se o casamento, como disse, na capella da casa, cuja entrada era ladeada, da direita e da esquerda, por alas de criados e raparigas do campo. Quando a noiva sabia da capella, com os olhos embaciados de pranto, pelo braço do morgado, as po- bres camponezas entornaram-lhe sobre o véo alvís- simo uma chuva de flores. Kicardina, ao sentil-as, pa- receu despertar d'um longo somno para uma horrorosa realidade. Soltou um grito estridulo, e cahiu desmaiada nos muitos braços que se estenderam para amparal-a. Levaram-n'a á pressa para o leito e rodearam-n'a de cuidados. Passados momentos, Kicardina voltava a si e adormecia prostrada n'um marasmo profundíssimo. As festas, interrompidas por este incidente, recomeçaram, e o morgado de Santa Eulália veio debruçar-se n'uma das janellas do Paço para lisonjear os camponezes, que armavam danças no terreiro. Yinha subindo a lua, a esse tempo, de traz das arvores verdenegras da quinta.

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llaviji ali;uns momentos que o morgado estava á jaiiella, quando estalou subitamente no ar a detona(;iío d*um tiro ; e lo^^o se ouviu também um grito agudis- simo. Era que o morgado tinha cabido, no pavimento da sala, ferido de morte. A turba dos camponezes in- vadiu de roldão a entrada do Paço e espraiou-se cu- riosa ao longo dos corredores, em vez de procurar nas sombras da quinta o emboscado assassino. Na onda dos camponezes vinha um homem que não tinha assistido á festa : chamava-se Fernando Tavares.

O desventuroso moço, com o olhar chammejante e o cabello desgrenhado, correu precipitadamente todas as salas como á procura d' uma pessoa que ainda não tinha visto. A pessoa que Fernando Tavares pro- curava era o capellão da casa. Quando o viu, á en- trada d'uma sala, soltou uma gargalhada sêcca, que era indicio claro de loucura e articulou estas palavras com desvairada rapidez :

Matei-o, padre, matei-o.

Deus meu ! exclamara o padre com os olhos rasos d 'agua Era certa a desgraça ! Era certa a desgraça ! Chegaram as andorinhas e o morgado ti- nha-lhes roubado o ninho. . .

Porto - Julho de 1869.

UM ANJO

A Margarida era, ii'esse tempo, a flor dos namo- rados d'aldeia.

Requestavam-n'a muitos, e um tinha a preferen- cia; o escolhido era o Luiz de Travanca. í]ra e é. Hoje, oito annos depois do seu casamento, a Marga- rida, que ainda está uma fresca mocetona, ama-o com os extremos apaixonados de uma esposa carinhosa. O Luiz vi-o hontem. Está bem conservado.

Cuido que um beijo da mulher lhe basta para dis- sipar qualquer nuvem com que o horisonte se euturbe. Mas se lhe fallarem da filha, da Izabelita, que lhes morreu ha dois annos, o Luiz enternece-se a lagri- mas e pede pelo amor Deus que lhe não fallem mais d'ella. A morte da pequena, minha afilhadinha, foi indubitavelmente o primeiro desgosto que entrara fundo n'aquelles extremosos corações de pães. Se foil Os outros dissabores passam por elles e não deixam vestigio; este deixou-o de lagrimas.

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Margarida era, pois, ha oito anu os, como eu ia a dizer, o aijesii do logar. Os rapazes faziam-se en- contrados com ella, á volta d' uma quelha, para te- lem a felicidade de fallar-lhe.

E o caso é que ella se quedava de boa sombra a ouvil-os. Não havia moça mais palreira em toda a fre- guezia ; mas também ainda se não viu rapariga mais fiel ao seu namorado.

Os rapazes tomavam-lhe o passo e fallavam-lhe ; ella parava e ouvia-os.

Conversavam da romaria que estava próxima, do serão em casa de fulano, da esfolhada em casa de sicrano. Mas se alludiam ao abrayo que lhe dera o Luiz, de Travanca, quando achou o milho rei, Mar- garida voltava-lhes as costas e despedia-se ligeira com o pretexto d'ir segar milha ou lavar á presa.

Os pobres moços ficavam-se de cara ao lado, e pasmavam d'aquillo.

Um dia espalhou-se n'aldeia que a Margarida ia casar brevemente com o Luiz.

Os rapazes acreditaram e entristeceram -se.

Acertou, porém, de haver uma esfolhada por aquelles dias: a Margarida teve convite e accei- tou-o. appareceu ella com toda a sua alegria do costume.

Os serandeiros estavam receiosos de fallar-lhe; a Margarida, porem, desafiava-os á garrulice. Era isto n'um sabbado á noite. Depois da esfolhada, começou a dança em plena eira. A Margarida bailava louca^ mente ; nunca a viram t^o alegre,

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Ao outro (iiíi. . . leu-se na i^rejiio primeiro bunlio o d'alii a um mcz certo celebrou-se o casamento.

Como os noivos eram felizes !

^íargarida fez-se mais trabalhadeira e não menos alegre; o Luiz revia-se n'ella e julií^ava-se o mais di- toso dos homens.

Xem eu sei que haja maior felicidade do que esta, este abraçar-se de duas almas irmãs, que vivem con- tentes uma da outra, que não se importam do mundo e. . . que até não sabem se o ha.

Como estou agora na aldeia, deixo-me convencer d'esta verdade: a felicidade acha-se em toda a parte.

Quantas existências não deslisam suavemente n'esta vida socegadissima do campo !

Chega para viver aqui uma choupana ; não ó pre- ciso mais.

Da jaqueta ao frah^ vai um abysmo.

O camponez gasta exactissimamente aquillo de que precisa ; não lhe chega o dinheiro para superflui- dades. De que lhe serviriam umas abas de panno co- sidas á ourella da jaqueta ? Faziam-n'o gastar mais e estorvavam -n 'o no trabalho.

A camisa não se engomma.

Para quê? Lava-se simplesmente. Na limpeza ó que está o aceio do corpo e no aceio do corpo o res- peito de nós mesmos. Isto satisfaz cabalmente.

A vida ociosa da cidade traz a necessidade d 'um homem se divertir com alguma coisa, quando sahe a passeiar.

Com que se ha de, pois, distrahir um homem ?

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Leva a bengala na mào para florear com ella. Hoje leva-se a hadinc^ que 6 uma espécie d'esquírola extrahida da bengala ...

O lavrador, quando sahe, leva comsigo a enxada ; nada mais.

Se tem de se apegar n'uma ladeira, abordoa-se n'ella ; se tem d'encarreirar uma agua que andava desviada da presa, rapidamente o pode fazer.

Duplicada commodidade a da enxada !

E acham que elles não vivem felizes ?

Muitos dos lavradores d 'aqui nunca foram ao Porto, e não lhes peza isso.

Se fossem, e vissem uns homens de luva cor de flor d'alecrim, direitos como um cypreste, e de chapóo á Beiíoiton^ mandavam dizer á familia que tinha começado o carnaval e. . . que o não achavam grande coisa.

Por fim de contas o systema d 'elles parece o único racional.

Yamos, agora, em santa paz com lavradores e ci- dadãos, á nossa historia.

Uma filhinha, galante como poucas creanças, foi o complemento da felicidade conjugal de Luiz e Mar- garida.

Estonteavam d'alegria os ditosos pães.

Uma mulher que não tem ainda filhos dizia o Luiz tem uma divida em aberto com o homem. Quando uma pessoa se casa, vai buscar familia ; e onde não ha filhos, não ha familia.

D'aqui se pode inferir o contentamento do Luiz.

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Por essa occiísiíto cheguei ii quinta do Villa Verdo e fui convidado pjira padrinho da pequerrucha.

É de notar que nMsto me quiz fazer um obsequio o bom do Luiz; suppunha elle que ser padrinho da sua filhinha, que tão bonita nascera, seria um conten- tamento para qualquer.

Eis aqui ainda uma felicidade dos pães, que não deixa de fazer inveja.

Baptisou-se a pequena e chamou-se Izabel, em homenagem á avó materna, que foi madrinha e tinha o mesmo nome.

Crescia a creança e cresciam as graças com ella.

Diga- se a verdade.

Poucas creanças levavam as lampas, n'aldeia, á minha afilhadita. Até me julguei realmente obse- quiado com o convite do Luiz, attenta a formosura da pequena.

No outono, quando eu chegava a Yilla Yerde, a rapariguinha surdia de qualquer parte a pedir- me a benção e a chamar-me senhor jjadrinho. Ha trez annos, porem, comecei a estranhar o amarellido doen- tio da Izabel, e vi que os pães se inquietavam também com isso.

Os olhos de Margarida e Luiz choraram as primeiras lagrimas de dor, que d'alegria muitíssimas tinham chorado já.

Regressei ao Porto e não soube mais da pequena.

No anuo seguinte voltei a Yilla Yerde, e, como não visse a minha afilhada, perguntei por ella. Res- ponderam-me com lagrimas.

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A pequenita tinha morrido !

Faz uma pena saber que as creanças morrem | Quem ha ahi que resista cl'olhos enxutos á impressão pungente de vêr desfeita no chão uma casinha de musgo ou folhas sêccas onde um pardalinho se tinha ido aninhar e que, momentos antes, adheria ao ramo de uma arvore da encosta ? . . .

Pois o berço 6 também um ninho onde se implu- mam as aves do futuro ; quando ellas morrem, fica vasio o berço e é como se se desfizesse a casinha verde d' um passarinho qualquer.

Pobres creancinhas ! Quando morrem e passam para a igreja no seu caixãosinho vermelho, ficam di- zendo as estrellas :

« Irmãsinhas, adeus I Quando a sombra d'um des- g'osto fazia noite no coração de vossas mães, éreis a única estrella que lhes luzia na cerração interior. Agora morreis vós e quem sabe se nós morreremos breve. . . Um dia, se a mão poderosa do Senhor nos despegar d'este tecto de saphira, cahiremos na terra e converter-nos-hemos em lagrimas.. . »

E murmuram, ao mesmo tempo, as flores do ca- minho :

« Pobresitas, adeus ! Morreis como nós ! A mão destruidora da morte roubou- vos ás caricias de vossa mãe, como o vento da tempestade nos rouba também á haste em que nascemos ! Adeus, pobresitas ! . . . »

E chilriam os passarinhos :

« Pobre irmãsinha ! Ainda foste feliz ! Morreste a cantar e não chegaste a conhecer as afílicções do

31

mundo. So crescessos, haviam ellas de perseguir-<c, como nos persoí^^ucm os homens, a nós, que lhes nílo fazemos mal nenhum ! Vai cm paz ao seio do Se- nhor. . . »

Morreu, pois, a Izabelinha; cxplicaram-me assim o caso da sua morte :

Certa manhã, chamou a pequenita pela mãe para lhe contar um sonho, que tivera de noite, dizia ella.

Acercaram-se a mãe e o pae e Izabelinha contou- Ihes :

Querem saber? Sonhei esta noite com a Senhora dos Remédios, que está no altar da igreja. E eu estava ao d 'ella, cercada de lindos meninos, que me cha- mavam— sua irmã. E ouvia-se uma musica tão do- ce, que me fazia chorar d^alegria ! Ah, minha mãe, como havia de gostar, se visse todos aquelles meninos a dançar ao redor da Senhora! E querem saber uma coisa? Eu também dancei com elles. Se o meu pae e a minha mãe vissem, admirar-se-iam até ! Entrava o dia pela igreja dentro, quando eu de sahi. E Nossa Senhora viu-me sahir e chamou-me outra vez para dizer-me : Vem cá, Izabelinha. O minha mãe, como 6 que Nossa Senhora sabe o nome de toda a gente?

Eu sei lá, filha ! respondeu a pobre Marga- rida com os olhos brilhantes de lagrimas e o coração alanceado por um triste presentimento.

Luiz arquejava d'afflicção e inclinava-se todo so- bre o leito da creança, como para ouvil-a melhor, e entender o sentido de todas as suas palavras.

Izabelinha continuou :

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Olhem que a Senhora disse-me que me vinha buscar esta noite, se eu quizesse ir com EUa para um logar encantador. E disse-me lambem que fosse colher açucenas, porque queria que eu levasse flores, para ir muito bonita, e que vestisse a minha sainha cor de rosa, que a mãe me deu pelo Natal. E olhem que eu desejo vestir-me assim para fazer a vontade á Senhora. . . »

Foi um dia de lagrimas n'aquella casa. Margarida e Luiz sentaram-se á mesa do almoço com os olhos vidrados de pranto.

Encararam um no outro . . . e não puderam comer bocado.

A pequenita andava toda atarefada a colher as açucenas ; os pães andavam a olhar para ella e nem podiam fallar.

Chegou a noite.

Izabelita estava aceiadinha como uma boneca !

E quiz dormir assim, a segurar cuidadosa n'um ramalhete d 'açucenas, que tinha entre as mãos.

Luiz e Margarida velavam. Estiveram accordados ató alta noite ; depois, Luiz, querendo dominar com um esforço de homem um presentimento de pae, aconselhou Margarida :

Yai deitar-te, mulher. Tu nunca ouviste dizer que os sonhos não valem nada ? Olha a pequena como está a dormir descançada ! E ouve-se-lhe a respiração tão bem ! Yai deitar-te, anda.

Vendo que Margarida se deixava ainda ficar, tor- nou-lhe o homem :

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Anda lá, que eu tambom vou. A gente ás vezes tom scismas!. . . Anda lá. . .

E foram.

Sobre a madruíj^ada, Mari;'arida acordou afflicta ; levantou-se do leito em sobrcsalto e foi ver a íilha.

Achou-a a dormir. Quiz beijal-a e, quando lhe to- cou a face, recuou de golpe.

Estava fria !

Margarida abriu a janella, chamando em altas vozes pelos visinhos.

Quando o sol inundou a casa, Margarida conhe- ceu que sua filha dormia para sempre e viu um rancho de borboletas brancas, que esvoaçavam sobre a pe- quena. As açucenas tinham emmurchecido.

Não sei descrever-lhes a dor de Margarida- e Luiz ; os corações de mãe hão de, porem, comprehendel-a.

Quizeram os desventurados pães que a pequenita fosse a enterrar vestidinha como estava ; e foi.

Mandaram ao carpinteiro fazer um caixãosinho de pau. O armador cobriu-o de panninho vermelho e guarneceu-o d'espiguilha doirada. Estava tudo tão bonito !

E a pobre Margarida a chorar, ao do caixão- sinho da filha, e Luiz, do outro lado, a limpar as lagrimas ao canhão da jaqueta e a soluçar constante- mente, faziam muito dó.

Quando anoiteceu, vieram quatro rapazinhos d 'al- deia buscar a pequena.

A pobre mãe, coberta de lagrimas, rompeu n'este delirio :

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Oh ! ide embora, ide embora ! Quem vos ensi- nou a serdes maus e a roubar uma filha a sua mãe ? Com que direito m'a levaes, meus meninos ? Ide em paz e dizei a vossas mães que não sejam severas commigo, porque a mesma desgraça lhes pode succe- der amanhã. Eu nunca fiz mal a ninguém ; nem te- nho animo para isso. Deixai-me com a minha filhinha, meus meninos. Ella está fria, bem sei ; mas os meus beijos hão de aquecel-a, vereis. . .

.E depois, como cahisse prostrada nos braços de Luiz, roubaram-lhe a filhinha n'um momento.

Quinta de Villa Verde, 18 d' outubro de 1868.

DOIDA PELAS ROSAS

Não sabe ? A Nini vai casar.

Quando ? respondi eu.

Casa para maio, que ó o itiez das rosas.

E não sabe mais nada?

Mais nada.

Até á vista.

Adeus.

Olhe tornei eu, chamando o alviçareiro. Se souber do dia marcado para o casamento, avise-me. Queria mandar á Nini um ramo de flores.

Fique certo. Adeus.

II

Nini era o diminutivo com que as pessoas mais intimas a costumavam chamar. O nome, que lhe puze-

*

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ram na pia do baptismo, era Leopoldina. Tinha ella mais quatro annos do que eu. Quando comecei a af- frontar as difficuldades grammaticaes do D. João de Castro, frequentava a Mni o collegio francez. Yia- mo-nos quasi todos os dias. Na primavera era quando eu mais gostava de vêl-a. Entrava a Nini para o col- legio com o seu grande chapóo desabado, de pallia de Itália, e o seu vestido de cassa branca com guarnições cor de rosa. O criado transportava na sacca de velludo carmezim a grammatica franceza q o La Place, e a Nini precedia o criado, quasi sempre acompanhada d'alguma menina do collegio que encontrava no ca- minho, mas também quasi sempre afadigada com um ramo de flores que distribuía pelas condiscípulas e pe- las mestras.

Era que a Nini tinha uma predilecção extrema pelas flores, especialmente pelas rosas.

Muita vez lhe ouvi dizer :

A rosa é a rainha das flores.

A ideia não era nova, como sabem, porque a poetisa de Lesbos tinha dito o mesmo, seiscentos an- nos antes de Christo.

Nini, porém, sabia dizer isto com uma tão ma- viosa inflexão de voz, tão natural e tão ingenuamente, que deliciava ouvil-a fallar da mais bolorenta velha- ria.

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III

Nini tinha razHo.

A rosa 6 inquestionavelmente a primeira das flores. Não se sabe ainda bem a sua historia, mas cre-se que seria uma das flores dos jardins de Semiramis ; e está fora de dúvida que os gregos a cultivaram, visto dizer Homero que eram cor de rosa os dedos da Aurora.

Os romanos coroavam de rosas as estatuas de Yenus e Flora, e averiguou-se que os casquilhos de Roma costumavam oííerecer ás suas namoradas as primeiras rosas que a primavera desabotoava.

Os turcos acreditam que o nascimento da rosa é devido a uma baga de suor de Mahomet, e conservara a tradição de ser a flor predilecta do rouxinol.

Os romanos juncavam as ruas com rosas nas festas publicas, costumavam tapetar com ellas os triclinios nos banquetes faustosos, e engrinaldavam d'estas flo- res os cyathos a trasbordar de Phalerno, porque Baccho amava as flores, como disse Ovidio.

A rosa tem sido sempre a flor querida dos poetas e das mulheres. Yirgilio diz-nos que a boca de Vénus era de rosas e que as faces de Lavinia tinham a mesma cor que os lábios da deusa de Cythera. Sei que desde Yirgilio até hoje os poetas teem abusado da rosa nas suas composições. Todavia o que for bel- lo, embora seja commum, é sempre bello. O amor é de todos os dias e nem por isso deixa de merecer

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menos apreço. Se a esposa de Luiz xiii, por uma no- tável aberração nervosa, tinha pronunciada antipathia por esta flor, regosijerao-nos de ver a princeza Clotil- de, irmã da rainha de Portugal, toda vestida de galas e enfeites cor de rosa, n'um dos bailes das Tulherias ; postoque Alphonse Karr lamente o ver adornada de rosas contrafeitas quem tão mimosas as tem nos ale- gretes da pátria.

Vivere in rosa, dor mire in rosa. É assim que se deve viver e dormir. O' Nini, quem sabe quantas ve- zes adormecerias tu confundindo os teus lábios com as pétalas de uma rosa?. . .

lY

Aos dezoito annos, Nini tornou-se scismadora. Ficava devaneiando á janella, todas as noites, cora os olhos cravados no eéo, como se estivesse lendo poemas ethereos n'aquelle infinito azul. Emquanto a noite não chegava, Leopoldina passeava no jardim, a namo- rar as suas rosas, se tinham desabrochado, a trocar com as flores palavras mysteriosas que ninguém mais entendia, porque sabiam dos lábios d'ella em suspiros maviosos e vinham dos cálices das flores em perfumes suavíssimos. , .

Leopoldina amava.

O coração materno ó um ninho de pombas; 6 que se aprende a voar. Ninguém como Leopoldina tão estremecida pelas caricias de sua mãe, e n'essa escola d'amor aprendeu ella a bater as azas para onde quer

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(|uo íi (•hamasso um sentimento sem macula. Alóm d 'isso, o coravAo, aos dezoito annos, 6 como o rouxi- nol (lue prefere cantar nos valles onde lhe possa res- ponder um ecco. O coração 6 como o rouxinol : quer ouvir e responder.

E Leopoldina ouvia também protestos calorosos que sabia pa^ar com doces juramentos.

CoraçHo, tu és como o rouxinol. Tens harmonias, quando o amor te inspiração. És o rouxinol que nos cantas no seio poemas dulcissimos.

Absorve-te nos teus poemas, coração. . .

Y

Era um bom coração e uma nobre intelligencia o Frederico; eis aqui por que Leopoldina o amava.

Frederico era filho natural d'um velho capitalista d 'America, que o mandara a Portugal doutorar-se em leis.

Desembarcou o moço brazileiro em terras de Por- tugal, saudoso das auroras esplendidas dos trópicos, das sestas calmosas que dormira na rede, da natureza opulenta do novo continente, que era a sua pátria, o seu berço. Frederico trazia o coração a trasbordar saudades da pátria, da terra onde ficaram chorando por elle os olhos de sua mãe, olhos que lhe não deram nunca um raio de sol e d'esperança, de felicidade e d'amor, por isso que profundo mysterio envolvia o nome da mulher que lhe dera a vida.

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Estava o moço em Portugal desamparado de aífe- ctos, que nunca tivera, longe das plagas da America e mal encaminhado para o futuro esplendido a que porventura chegaria, se alguém lhe desse esperanças e conforto e quizesse compartilhar das suas aspirações de gloria.

Foi então que Frederico viu e amou Leopoldina.

Como elle havia d'amar !

recolhestes no vosso lar por noite velha e tem- pestuosa o caminheiro exhausto a quem permittistes enxugar as vestes húmidas ao rescaldo da fogueira ?

Yistes a alegria com que elle se aproximou das chammas azuladas e cor de rosa que se levantavam da pedra do lar, em formas irregulares, crepitando suavemente ? Ah ! Então adivinhaes de certo com que Íntimos júbilos não buscaria Frederico o ineffavel conchego do primeiro seio que se abria para elle, o encanto irresistivel do primeiro sorriso que lhe davam, das primeiras palavras d'alegria que entravam na sua alma... Então comprehendeis de certo o amor de Frederico.

VI

Estava concluído o curso universitário. Tinham de- corrido cinco annos d'estudo e de vigilias, consumidos na esperança de chegar a possuir uma carta de bacha- rel.

Leopoldina fora o anjo da guarda em tão longo tempo ; morria d 'amores por ella o moço estudante.

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Km toda a parte a via. Nas horas silenciosas do estu- do, (luando lhe entrava o reflexo saudoso da lua pela janella do quarto, via elle desenharem-se-lhe diante dos oliios os contornos vaporosos d'uma imagem phan- tastica que lhe parecia a de Leopoldina.

Fada da noite dizia elle de si para comsigo desceste do azul ethereo e vens suspensa n'um raio da lua, enfeitiçar-me d 'amores I Bem hajas tu, fada da noite !

Pelos sinceiraes do Mondego apparecia-lhe ella ás vezes n'uma nuvem de perfumes e harmonias, que subia até se perder nas alturas confundi ndo-se, aos olhos de Frederico, com o véo azulado que toldava o mundo inteiro.

Foi d'estes sonhos d'amor que elle vivera. Che- gara, emíim, o momento de despertar de tão iuef- faveis sonhos para uma realidade não menos ven- turosa.

A este tempo, porém, recebe Frederico uma carta do velho capitalista d'America que, ao sentir cerrar- se-lhe a noite do tumulo, chama á beira do leito o filho que deseja legitimar com a benção paterna.

Era preciso partir sem demora. Mas Leopoldina?

Não havia tempo para pensar, e o paquete estava a levantar ferro.

Yai disse Leopoldina a Frederico vai assis- tir aos últimos momentos do velhinho que é teu pae. Pede-lhe a sua benção para ti e . . . para mim. Não duvides de mim nem um instante, Frederico. A dú- vida é o gelo e o teu coração tem chammas. vês

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que o não pode saltear a dúvida. Ama-me, Frederico, que eu fico-te esperando para o noivado. Ania-me.

VII

Pude ver, depois do re^-resso de Frederico, o seu T diário escripto desde o dia da partida até ao dia da . ciiegada.

Copio ao acaso uma das muitas paginas do diário.

A bordo do Extremadure,, ás 9 horas da noite.

« O mar ó tamanho como a esperança do homem, Leopoldina. Nunca o mar descança nem o coração deixa d'esperar. Quando uma esperança se apaga, vem outra; quando uma vaga expira, outra rebenta. O homem lucta com a esperança como lucta com o mar. As vezes uma onda absorve o batel, mas outra onda o restitue á praia. Ai do homem que não tem forças para luctarl Tenho a esperança de que has de ser minha, Leopoldina. Se me não acalentasse esta es- perança, entregava o meu corpo a uma vaga para que outra vaga restituísse o cadáver, amanhã. »

A meia noite.

«O relógio da camará bateu doze badaladas. Toda- via parece-me que estou vivendo uma vida eterna.

«Dizem que o tempo 6 medido pela successão dos acontecimentos, o tempo finito, que principiou e ha

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de acabar. No mar 6 tal a uniformidade dos aronteci- mcntos, a regularidade dos movimentos, a monotonia . ! dos liorisontes, que nos clieg'a a parecer o tempo im- I movei como a eternidade.

«Amanhecemos hontem no mar largo, cercados de montanhas d'espuma, descobrindo vastíssimos horison- ' tes. Hoje, quando rompeu a aurora, parecia estar o paquete no mesmo sitio e á vista dos mesmos horison- tes, apesar da chaminé fumegar constantemente e de termos galgado uma boa porção de milhas.

«O tempo aqui parece-me sem fim e lá, ao p6 de ti, Leopoldina, como as horas se escoam rápidas em sonhos d'amor e em devaneios de felicidade. . . «Não te esqueças de mim, Leopoldina.»

YIII

Eegressára Frederico depois d'uma ausência d'um anno. Yi-o chegar.

Trazia a alegria no rosto e a felicidade no cora- ção. Quando apertava a mão de Leopoldina, dir-se-ia que tinha enlouquecido de jubilo. O velho capitalista d'America, ao despedir-se do mundo, abraçou Frede- rico e abençoou de longe Leopoldina.

Foi no momento solemne do passamento que o moço bacharel ouviu pronunciar pela primeira vez o nome de sua mãe. Estava ainda viva. Era uma se- nhora brazileira que o velho capitalista desposou á hora da morte.

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Has de conhecel-a, Leopoldina dizia Fred rico e verás que riqueza de sentimentos enthesoi rada n'aquel]e coração. Casaremos em maio, que ó o\ mez das rosas, as flores tuas dilectas. Partiremos J depois. Si

Pois sim, partiremos respondia Leopoldina. Yiverei feliz onde tu estiveres. Quero abraçar tua mãe e mostrar-lhe que tu, longe d'ella, tiveste um seio amigo onde reclinasses a fronte. Partiremos, Fre- derico.

IX

Yai ha um anno. Na véspera da partida do pa- quete e vinte dias depois do casamento, entregava eu a Leopoldina um bouqiiet de rosas d'Alexandria.

Ah ! disse ella, ao vêl-as Não se esqueceu de mim. Obrigada, meu amigo, muito obrigada.

Era justo, minha senhora tornei eu. Sei que a mulher conserva ainda as predilecções da creança.

E conserval-as-hei sempre. Quando se é feliz, como eu sou, não ha motivo para esquecer as flores. Obrigada, meu amigo, obrigada. Praza ao céo que seja muito feliz.

Oiça-a Deus, minha senhora.

E depuz nas suas mãos delicadas d hoiiquet de rosas d 'Alexandria.

Porto junho de 1869.

MORRER A VALSAR

Estamos no solar dos fidalgos de Santo Adrião, em dia d'annos da morgada, senhora quarentona, que, á similhança de seu marido, passa n'este mundo sem ; deixar de si lembrança de meia dúzia de bagatellas para uma historia qualquer. í^ão e, pois, d'estes fidal- gos que nos vamos occupar.

Esplende o solar de Santo Adrião, todo por dentro c fora illuminado, sobranceiro ás veigas extensíssi- mas, que se lhe deitam aos pós e que a primavera de 1867 começa a infiorar alegremente. Pela porta envi- draçada, que abre sobre o terraço, espreitemos para a sala do baile e deliciemos olhos e ouvidos no vertigi- noso revolutear das valsas e nas ondulações da har- monia, que se espraiam ao longo da casa e vão mur- murando festivamente por essas pradarias além.

Está alli, no solar de Santo Adrião, a flor da fidalguia beirôa. São muito para admirar as gentis valsistas, que se requebram nos braços dos garbosos

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morgados e passam no redemoinlio da dança, touca- das de rosas e cobertas de pérolas, que são as rosas do mar. Referve estrepitosa a valsa e, n'este momento, sahem para o terraço, de braço dado, conversando affavelmente, Affonso Briteiros e Jeronymo Yallada- res.

Escondamo-nos n'uma das sombras do terraço e prestemos ouvidos ao dialogo dos dois fidalgos beirões, dialogo .que se me antolha interessante a julgar pelo espirito faceto d'estes dois cavalheiros da província.

Queres um charuto, primo Briteiros ? disse Jeronymo Yalladares, puxando da charuteira de ma- drepérola e abrindo-a diante do outro.

Sabes que não fumo, primo Yalladares, e que sou persistente nos meus hábitos. Agradeço mas não quero.

Anda lá, homem, fuma. Uma noite de baile ó uma noite de festa em que a gente deve despir a sua individualidade rotineira para remoçar por algumas horas n'este jardim de suavissimas fragrâncias.

Não quero, primo Yalladares; positivamente não quero. Detesto o tabaco como detesto a valsa. Os pas- tores de Yirgilio não fumavam e foi por isso que ne- nhum d'elles chegou a morrer. . . envenenado. houve um papa que lançou excommunhão a quem cheirasse tabaco nas igrejas e teve razão que farte. O uso do tabaco ó um suicídio lento e seria crime im- perdoável o praticar-se em logar sagrado. Que de consequências mórbidas provenientes do uso do tabaco I

Do uso, não, primo; do abuso. Eu fumo sóbria-

i

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mente c não me sinto prejudicado com isso. Pelo contrario. Acho que o uso do talKico facilita conside- ravelmente o desenvolvimento da faculdade pensante.

Queres dizer com isso que te sentes intellectual- mente melhorado... Admiro a modéstia, primo Yal- ladares !

Não farás espirito. Tenho contra mim o fumar pouco, bem vês. Senta-te e conversemos placidamente. Temos aqui á nossa disposição estes graciosos cana- pés de cortiça, que aformosentam elegantemente o terraço.

Conversemos. Estou aqui bem melhor do que na sala. A valsa tem para mim o único merecimento de me fazer dormir. É uma semsaboria que detesto. Nunca pude comprehender a delicia proveniente da valsa, este doidejar pernicioso, que se não justifica de maneira alguma e que tem o cunho selvagem das bacchanaes romanas.

Não c tanto assim. Eu gosto da valsa, d'esse febricitante ondular de borboletas, que se espanejam ao longo das salas no turbilhão veloz. Gosto de valsar, primo Briteiros. A nossa alma é como o oceano, que nas marés gigantes, se não tem extenssimos areaes por onde a bel-prazer se espreguice, investe arro- gante contra as ribas escarpadas que se levantam aos ares diante d'elle. N'uma noite de festa parece que nos não cabe a alma dentro de nós : é o plenilúnio do enthusiasmo, do delirio. Então é que o mar dos nossos sentimentos trasborda e precisa d'espraiar-se. O corpo cede á influencia da vertigem do espirito. N*esses mo-

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mentos de suprema felicidade é que a valsa é um doi- dejar sublime, um alar-se a gente para outros mundos, 1 um borboletear alegre nas ondulações da harmonia. Ha naturezas tão delicadamente sensíveis, que se deixam arrastar pela vertigem da valsa até ao supremo can- çaço, ao desfallecimento, á morte. Lembra-me contar-te agora a historia lamentosa d 'uma valsista estrangeira.

Conta lá, primo Yalladares. Quero ver até onde- chega o excesso do romanticismo por fora. N'estes abençoados reinos de Portugal sei eu que ha muitas imaginações derrancadas pela leitura perniciosa d'uns certos livros resaibados de sabor nocivo, que, actual- mente, se dizem românticos. Do estrangeiro sei pouco a este respeito e acolho de boa sombra os teus informes. Conta . . .

O que tu deves querer saber, primo Briteiros, é até onde nos pode levar um temperamento perigoso. Deves saber isto, para que possas agradecer á Provi- dencia uma fleugma inalterável com que ella te quiz obsequiar. Ora ouve. Tu, primo Briteiros, que detestas as imaginações românticas com uma pertinácia igual, n'este caso, á de D. Francisco Lobo, bispo de Yizeu, poderás comprehender o que será uma festa esplendo- rosa, onde as mulheres teem uma formosura etherea como os anjos e desmaiam na valsa até á pallidez marmórea das estatuas ?

Comprehenderei.

Muito bem. Imagina agora, se podes, uma d'essas mulheres formosíssimas, que nós prescntimos aproximar-se pelo frémito das saias o por uns olhares

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curiosos que de todos os lados a esperam, como as andorinhas e os rouxinoes esperam a clie^ada festiva da piimavera. Ima^ina-a ainda vestida de côr de rosa, para que mais possa enganar os rouxinoes e as ando- rinhas da sala : os namorados e as coqnettes,

«Arredonda-llie o seio e vela-lh'o com rendas finís- simas de Bruxellas ate onde não permitte o pudor que os olhos alcancem. Sobre o relevo das rendas, que estremecem com o arquejar do seio, engasta delicada- mente uma camélia de Constantino, tão perfeita e rescendente, que pudera enganar as borboletas. . . Do relevo para cima, deixa o collo a descoberto para que os olhos, namorados de tamanha alvura, possam adivi- nhar o que anda recatado na espuma das rendas, o qnod intrinsecus latet, dos Cânticos de Salomão.

«Polvilha finalmente as tranças doiradas com uma chuva de pérolas, á similhança das nereidas, essas creações esplendidas da poesia pagã. Agora envolve esta imagem etherea n'uma nuvem de sons e perfu- mes e fal-a apparecer no salão, recamado de flores e coberto d'espelhos, como o sol do estio que entra por uma floresta dentro, inundaudo-a de luz, d'alegria, de vida. . .

Bellissimo ! primo Yalladares. Estou a pique de me enthusiasmar pelos românticos e pelo romanticis- mo. . .

Ouve, primo AfFonso. A nossa concepção é verdadeiramente um mytho e reúne á formosura etherea um temperamento delicadíssimo. Dil-a-ias a sensitiva, que precisa de sol para viver. Abre, porém, o salão

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de baile, u^uma noite de festa, desencadeia o vendaval da harmonia, descerra as urnas dos mil perfumes ori- entaes, enche a casa de lumes e flores, e deixa-a de- J pois espanejar-se, a ella, á nossa visão, como borbo- leta que brinca, doidejando, entre os alecrins do canteiro. à

«A valsa para ella é a felicidade suprema, o ante- gosto d'outra vida. Se tivesse duas azas brancas cora que pudesse subir a conversar com as estrellas, não voaria mais, de certo, nem mais ligeira, nem mais tentadora. É uma valsista infatigável como poucas e formosa como nenhuma.

«Aqui tens, primo Affonso Briteiros, a nossa ima- gem, como eu a sonhei e tal qual devia de ser. Nota que estamos na Áustria. . .

Na Áustria, primo Yalladares ! Não estava pre- venido para a viagem e confesso que me sobresaltou a surpreza ! Todavia, se as mulheres austríacas corres- pondem a esse ideal de belleza que tu sonhaste, vamo- nos nas muito boas horas, primo Jeronymo. . .

É pois certo que estamos na Áustria e n'um dos mais esplendidos bailes do mundo. Tem-se valsado perdidamente e interrompe-se agora a vertigem da dança, porque vai abrir-se a sala da ceia, uma sala deslumbrante onde parece dever servir-se o néctar dos banquetes olympicos. Keferve nas taças doiradas o vinho generoso de Tokai. Reflecte-se nos mil crystaes da sala o brilho esplendoroso dos candelabros, que pendem dos florões do tecto em numero infinito.

«As mulheres chilreara alegreraente uraas cora as

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outras e os moços namorados segredam mysteriosa- mento ao ouvido da sua dama palavras amorosas.

«Começam a levantar-se da mesa os primeiros con- vidados e ou voltam á sala do baile, ou descem pela escada tapetada ató ao átrio onde os está esperando a carruagem.

«A nossa fada ia a retirar-se depois da ceia, pelo braço do esposo, quando eccoou de repente por toda a casa a musica voluptuosa d'uma valsa.

Por que me não tinhas dito que era casada a heroina do teu conto, primo Yalladares ?

Para quê V Dar-se-ia o caso de te haveres na- morado d'esta visão seductora ? Eis-te romântico, primo Briteiros, e o romanticismo aos trinta annos 6 uma moléstia sem cura !

Dize o resto.

Continuarei. A nossa gentil valsista não pôde resistir á tentação da musica e, soltando-se da capa d'arminhos em que se envolvia, deixou-se cahir nos braços do cavalheiro, que a tinha convidado.

«Reaccendeu-se o enthusiasmo, o delirio, a loucura !

As formosas austríacas, poisando os seus bouquets no

mármore das mesas, atiravam-se, ébrias d'alegria, ao

r marulhar da valsa, como a um oceano revolto. No

I momento porém em que a musica attingia a máxima

i celeridade, sentira o cavalheiro pender-lhe mais lan-

; guidaraente nos braços a gentil valsista e, quando quiz

continuar a acompanhar a vertigem da orchestra, tinha

um cadáver abraçado. Vibrou em toda a sala um

. grito doloroso, que soltara o cavalheiro austriaco.

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«Emraudeceu instantaneamente a tempestade so- nora e affluiu á volta d'elle a gente que enchia o sa- lão. Resta-me dizer-te agora qae o esposo d'esta des- venturosa dama, Teschenberg, director da Gazeta de Vienna, enlouquecera n'esse momento.

Desçamos aos jardins, primo Yalladares. A tua historia entristeceu-me e não me sinto com grande disposição de entrar na sala.

Desçamos pois e fica de sobre-aviso para não zombares do romanticismo, quando te contarem histo- rias como a da des venturosa esposa do director da Gazeta de Vienna.

Pobre anjo, que morreu a valsar ! concluiu Aífonso Briteiros.

Porto julho de 1869.

í

NA VÉSPERA UE «. JOÃO

Ha uma noite no anno em que o relento põe vir- tude ao corpo : c na véspera de S. João. Ninguém, n'esta noite, se teme da viração, ninguém se arreceia do orvalho. Os velhos e as creanças não teem somno e dão-se as mãos amigavelmente. As raparigas sahem para a rua, porque as está namorando de fora o cla- rão das fogueiras e porque é de tradição apanhar as orvalhadas da meia noite. Ninguém deixa de ser des- envolto, para que não pareça triste. É preciso ir saltar as fogueiras e colher as alcachofras. E depois ó indispensável que, ao bater da meia noite, vão as raparigas beber um gole d'agua á fonte encantada onde as está esperando o Santo ; fonte cujas aguas teem o brilho esplendoroso da prata como diz a tra- dição :

S. João por ver as moças Fez uma fonte de prata.

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Estremece o coração de jubilo e de incerteza, n'esta noite. Qual será o namorado preferido pela sorte ? ficou, no peitoril da janella, o copo d'agua coalhado de bilhetinhos mysteriosos. Cada bilhetinho tem uma palavra; cada palavra é... um nome. Ao i- nascer do sol, ha de estar aberto um dos bilheti- nhos : o nome que elle contiver, será o nome do es- | poso. M

Ninguém se deita n'esta noite para que o sorano ^ o não prostre antes de repontar a aurora. Quem tem cuidados não dorme, e é preciso ir á janella recolher o copo d'agua, mal que o sol ande fora. . .

Era também n'esta mesma noite. Para além da igreja d'aldeia, ha uma alameda copada. ^!

A lua doirava as cimas do arvoredo e illuminava poeticamente o quadro. Os rapazes da aldeia tinham-se | deitado na relva a tanger as suas violas e a cantar as trovas da noite. As raparigas, despeitadas talvez da indolência dos namorados, bailavam de mãos da- das, cantando, á volta da laranjeira secular que deter- mina o centro d'alameda.

Yêde que vos cançaes disse um camponez, dirigindo-se ás raparigas e fazendo parar a roda. Tendes bailado toda a noite ; d'aqui a pouco c sol nado.

Bem hajamos tornou-lhe uma. Os rapazes da freguezia teem quebranto nos joelhos. Deu-lhes mofina damninha e não se levantam do chão. E' bai- lar, raparigas, é bailar.

E recomeçaram a dança interrompida por este

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incidente, f^^inindo voltas vertio^inosas cm redor da la- ranjeira.

Kram dezoito as raparigas o todavia faltava no rancho Rosália, a ramilheteira do sitio. Kosalia era uma creatura angélica. Tinha uns bonitos olhos cas- tanhos e uns fartos cabellos negros. E depois sempre tão aceiadinha, sempre um lenço de cassa tão bem posto a recatar o seio túrgido e virginal ! Dava gosto vêl-a d'açafatinho no braço a vender flores nos dias de festa, á porta da igreja, quando os rapazes do sitio queriam offerecer ramilhetes ás moças namoradas.

O pae de Rosália tinha sido um trabalhador hu- milde, que vivera e morrera pobre, legando á filha um casebre ensombrado pelas trepadeiras e alguns palmos de terra, poucos eram, em redor do casebre. Fora uma doença prolongada a do pobre trabalhador, <e succedeu não haver um vintém em casa no dia em que rendeu a alma a Deus.

Rosaiia enxugou as lagrimas que lhe cahiam a rodos, cobriu a cabeça com o seu lencinho preto e foi contrahir uma divida a fim de comprar a morta- lha e o caixão para o enterro do pae.

No dia seguinte ao dos funeraes, Rosália ficou a scismar no futuro e lembrou-se de que tinha uma di- vida sagrada. Em ultimo caso^ poderia vender o ca- sebre e pagal-a. Mas o casebre tinha-lhe sido berço e queria-lhe ella tanto que morreria na hora em que tivesse de vendel-o.

N'este momento entrara um raio de sol pela ja- nella dentro ; parecia uma inspiração ! Yira Rosália

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espanejarera-se fora, á laz do dia, algumas pobres flores que tinha cultivado em derredor da choupana.

Yiu-as e lembrou-se de que uma occasião a se- nhora morgada de Pedrouços lhe dera algumas prati- nhas por um ramo de violetas. Fez-se luz na alma de Rosália. Apegou-se com as flores para que lhe protegessem a sua innocencia. m

Ha mulheres que por ambiciosas precisam de muito ouro para ser felizes. Rosália tinha sido edu- cada na pobreza e não acalentava ambições. Emquanto outras desejavam sedas, Rosália aspirava a pagar a sua divida e a ganhar o sufficiente para a alimentação quotidiana. Desde esse dia a pobre rapariga tornou-se ramilheteira. %

Yendia flores pelas casas nobres das freguezias mais próximas. As senhoras morgadas, quando viam assomar á porta a innocencia coberta de flores, rece- biam-n'a alegremente.

Parece-me que seriam felizes as raparigas des- protegidas que pudessem seguir o exemplo de Rosá- lia. Em Portugal não se estimam as flores e não ha ramilheteiras. No estrangeiro e não quero fallar na Hollanda criam-se sociedades tendentes a proteger a floricultura e ha mercados especiaes para flores.

Em Londres enxameiam por toda a parte as floiver- girls^ mulheres que vendem ramilhetes, e 6 fácil en- contrar pelas ruas um carro de pau, cheio de vasos com plantas e puxado por um jumentinho. Além d'isto o Palácio de crystal, a Royal society of horticidture

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e a Hot/al Uotnnical societij ostcndem a sua protecçlío, a todos os floricultores.

Em Pariz, uo tempo em que Paulo de Kock escre- via aquelle bonito romance da Jenny^ havia nada menos de trez mercados de flores. Estava um perto do Palais de Justice, que se abria ás quartas feiras e aos sabbados e era frequentado pelas costureiritas pobres, pelos operários e ainda pelos estudantes do bairro Latino. Havia outro ás segundas e quintas, no Boulevard Saint-Martin, defronte do Chatean d^Eaii ; e finalmente outro, ás terças feiras e aos sabbados, ao da igreja da Magdalena, que era o mercado da gente fashionahle.

p]is aqui as flores ao alcance d'uma algibeira bur- gueza, visto que «ellas, como diz Paulo de Kock, são o único supérfluo que os pobres se permittera comprar. Um supérfluo que um momento de feli- cidade, poderia ter quasi o direito de passar por um necessário. »

Izabel, a ramilheteira do Jockey-Chih^ essa provê de flores a aristocracia, apesar de não faltarem ellas por em qualquer parte que seja. Em Itália, sobre- tudo em Milão, o difficil que um viajante atravesse uma praça ou entre n'um café, sem que se veja cer- cado d'um enxame de raparigas que lhe offerecem ramilhetes. « Os ramos, escreve Júlio C. Machado, não são notáveis nem pela abundância nem pela varieda- !de, mas são leves e bonitinhos.» É justamente como os eu quero.

Deixemos que os reis se troquem houqitets valio-

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sissimos, como o que, ha pouco tempo ainda, oífere- ceu o imperador da Rússia á imperatriz Eugenia.

A ostentação é própria dos reis ; deixemos a elles : o avaliarem tudo pelo seu valor.. . real. (

Aqui no Porto, onde tanto abundam as flores, não ha ramilheteiras como eu disse e como todos sabem, ^ a não ser pelo carnaval á porta do Palácio de crystal, \ que ó então que nos apparecem algumas rapari- guitas a vender violetas n'uns açafatinhos de verga. Faz pena ver engeitar com tanto desamor o que a natureza nos com tamanha abundância, que chega a parecer prodigalidade!

Yoltemo-nos, porém, á nossa pobre Rosália, que tem pago a sua divida e continua a vender rami- : Ihetinhos. f

Adoram-n'a os pintalegretes da aldeia; Rosália nem por isso. O Joaquim da Portella foi um rapazito da sua educação, que embarcou para o Brazil aos quinze annos. Rosália acostumou-se a vêl-o, e chorou muito quando o pobre rapaz sahiu d'aldeia com a sua troi- xinha á cabeça. Tinham passado oito annos depois da partida de Joaquim e o certo e que elle nunca se es- quecera de escrever ao pae de Rosália.

Depois que a rapariga ficou orphã, Joaquim es- creveu apenas uma vez. Rosália entrisieceu-se com isto. Pensou porém maduramente sobre o caso e disse de si para comsigo :

Ainda me estima. Mas como eu fiquei sósinha no mundo, não quer dar rebate á freguezia com a sua correspondência. Não tem dúvida.

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E entretanto a pobre raparÍG:a ia moirejaiido

'na sua vida sempre a cuidar das flores, sempre bonita

e alei]:re. Ultimamente, pelo S. João do anno passado,

dizia-se na aldeia que Joaquim voltava, mas ninguém

sabia ao certo quando chegaria.

Eis-nos outra vez na alameda. A^em rompendo o dia e Rosália ainda não appareceu.

Anda colhendo flores, porque o dia de S. João ó um dia de festa e ella terá de vender innumeros rami- Ihetes. Levantou-se ainda de noite para trabalhar. As outras raparigas, que tinham posto os copos cora os bi- lhetinhos no parapeito da fonte, ao fundo d^alameda, correm a abril-os e vêem saltando e dizendo :

Manoel, és o meu noivo!

António, venceste !

Luiz, ganhaste tu !

E n'este comenos aproximava-se Rosália cora o seu açafatinho de flores.

Eu esqueci-me ! apostrophou ella.

Mas não me esqueci eu tornou-lhe uma rapa- riga. — Deitei bilhetes por ti e esperava que chegasses para os ires tirar do copo por tua própria mão.

Obrigada respondeu Rosália.

Yaraos vêr accrescentaram as outras rapari- gas. E foram.

Joaquim ! gritaram vozes era coro O bi- llhete diz Joaquira !

As raparigas derara-se as raãos e começaram a bai- lar á volta de Rosália, pronunciando tumultuosaraente:

Joaquim!

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Joaquim !

Kosalici não pôde dominar a alegria qne sentia e sorria-se para as outras com ineífavel doçura.

Eosalia ! disse alguém de súbito Kosaliu ! Era uma pequenita que a chamava.

Que me queres ?

Está alli, á beira do caminho, um homem que vem de mando da senhora morgada não sei d'onde e qne te quer comprar flores.

Esperai disse Rosália ás raparigas esperai, que eu venho já.

D'ahi a nada ouviu-se um grito. A raparigada aííluiu ao fundo d'alameda precipitadamente e, como se todas as vozes se conglobassem n'uma só, ouviu-se exclamar :

Joaquim ! E o Joaquim !

Era elle. Mal desembarcara, pôz-se a caminho para chegar á aldeia.

Inda 6s o mesmo ! diz Rosália.

Mas parece um fidalgo 1 accrescenta outra..

O que tu não terás soffrido ! profere de novo Rosália.

Muito I responde Joaquim Muito ! Esteve o navio quasi perdido. O vento era desabrido e o mar levantava-se em montanhas. Era ao fim da tarde. Apesar de ser tão bonito ver pôr o sol, no mar, d'aquella vez não se lobrigava pedaço de cóo. Uma rajada mais forte soou. O navio rangeu, nós estremecemos todos e o capitão, que era um homem animoso, descorou. Ti- uha-se quebrado um dos mastros. . , A tempestade cou-

Gl

tiiiuava o nós contavíimos morrer uíi:ari\ados ás taboas do navio. Chamaram todos por Nossa Senhora e eu que nossa Senliora me perdoe cliamei por ti, Rosá- lia! O certo ó que pouco depois o mar foi serenando e as sombras fugindo. D'ahi a uma hora via-se a lua no céo e batia o reflexo nas aguas. Depois continua- mos a viagem com felicidade e agora aqui estou, ao p6 de ti, minha Rosália. . .

Para seres muito feliz, não ó verdade ? inter- rogou ella E me ia esquecendo que me tinhas encommendado flores ! Olha Joaquim, como soubeste tu que a tua Rosália era ramilheteira, se apenas me escreveste uma vez, depois da morte de meu pae e me não perguntavas nada? "Porque me uão escrevias?

Não queria respondeu elle, que a gente da freguezia te accusasse de receberes cartas amorosas. Escrevi ao Luiz Rego a perguntar por ti e soube que vendias flores. Respondi-lhe logo e disse-lhe que com- prasse todas as semanas, em seu nome e por minha conta, uma boa porção de ramos. . .

Ah! Eras tu que mandavas!... Eu scismava com a devoção do Luiz Rego, que enchia de ramos a igreja, todos os sabbados ! Abençoado dinheiro ! foi com elle que paguei a mortalha de meu pae. Agora é justo que não compres mais flores ; aqui tens este ramo.

Quero-o com a tua mão respondeu elle.

Porto junho de 1869.

I

A FOLHA VERDE

Havia no pequeno quintal uma laranjeira copada por onde ia trepando a hera sempre verde.

Ao do tronco estava o banquinho de pedra em que se recostava ao fim da tarde aquella gentil mulher de cabellos negros. Quando o sol começava a incli- nar-se para o mar e os barcos de pesca desciam placi- damente a corrente do rio, quando os pescadores velhos, impossibilitados do trabalho, fumavam pensa- tivos no seu cachimbo denegrido, alguém atravessava o areial, a passos largos, em direcção á porta verde que vedava a olhos profanos aquelle jardimsinho en- cantado.

A porta estremecia levemente ao entrar um vulto escondido pelo veo mysterioso da noite.

D'ahi a instantes chilreavam de manso os dois inamorados ao da laranjeira. , .

Calava-se então o mar como para lhes não inter- romper o dialogo mavioso. Da pai*te do levante subia

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a lua raeio-velada por uma faclia de pinheiros irregu- lares. Descahia a natureza inteira na suavissima mor- bidez d'uma noite estiva.

Era então que se trocavam protestos, que se reno- vavam sonhos de felicidade. Nada ha, ii'este mundo d'invejas e ambições mesquinhas, que chegue a fazer- nos esquecer, no decurso da vida, esses dulcissimos devaneios d'um coração em flor.

Permitta-se-me o recatar mysteriosamente os ver- dadeiros nomes dos dois personagens d'este drama dos vinte annos.

O nome é uma palavra e as palavras fogem na aza do vento ...

Fallemos pois d'essas duas almas embriagadas na vertigem sublime do amor e vejamol-as a bater des- cuidosas as azas brancas pelo céo da felicidade, para as contemplarmos depois n'aquella separação a que obrigam as convenções da sociedade e que me quer parecer a suprema desventura d'este mundo.

Ha uma coisa peor que a indifferença : 6 a ne- cessidade de se mostrar a gente indifferente.

Quer a sociedade levantar uma barreira de gelo entre duas almas que nasceram uma para a outra. E levanta-se a barreira. . . Ai ! mas debaixo d'essa neve immensa referve suffocado o vulcão escandecente.

E se um dia se despega a massa enormissima do gelo, ai d'aquelle que tentar apagar as lavas que se arrojam para cima como em diluvio de fogo !

Não me digam que se deixa morrer assim o amor que nasceu hontem.

I

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Não dipim. Ativela-se a mascara da indiíferença sobro o rosto, mas se a mascara nos calio uma vez no tripudiar vertiginoso do carnaval perpetuo a que se chama vida vcem-se ainda nas faces os signaes das lagrimas que se choraram lia pouco. . ,

. K os dois namorados segredando amores debaixo da laranjeira. . .

Algumas vezes, porem, interrompia-se o myste- rioso dialogo. N'essa occasião uma nuvem sombria velava a face da lua, e um presenti mento de desgraça escurecia por momentos a melancólica alma do moço scismador.

Que tens ? perguntava a carinhosa amante.

Nada. Passou . . . Era uma nuvem negra que toldava o disco da lua. . .

Depois recomeçava o dialogo apaixonado como d'antes. Aquelle segredar dos dois era como que uma tempestade d'ideias a referver n'um mar de palavras.

Se te amo ! dizia elle. Amo-te, sim. É por ti que eu desejo ser grande, é para ti que eu vivo, que eu trabalho, que eu estudo. Quizera ter os loiros da gloria para tapetar com elles o caminho que tu pizas. Oh ! se te amo, luz eterna dos meus olhos, flor per- petua da minha alma. . .

Que Deus nos abençoe murmurava ella. Sim. Seremos felizes com as graças do céo. E de- pois arrancando uma folha de hera, tornou vehemente: Aqui tens esta folhík Quando ella seccar algum dia, o teu amor lhe dará nova seiva para que rever- deça logo. D'este modo será eternamente verde e

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conservar-se-ha para sempre como o symbolo eterno do nosso tão puro amor.

Ah! sim, dizia elle recebendo a folha. Deixa-me beijal-a, ó anjo, porque teve a suprema felicidade de receber o calor dos teus dedos de fada. Deixa-me beijal-a, porque ha de ser para mim uma recordação preciosa, e Deus sabe se uma saudade. . . talvez.

E ao pronunciar a palavra s— saudade descahia- Ihe a cabeça e cerrava os olhos como para não ler o futuro no livro negro do Destino.

Depois . . . quando as estrellas desmaiavam no céo, fechava-se cautelosamente a porta verde do jardim.

Decorreram os dias uns após outros em sonhos de felicidade; era um viver de rosas que não podia durar muito.

Uma noite, ao fechar-se a porta do jardim, sonha- ra o moço namorado que se fechava atraz d'elle a porta do paraizo.

E realisou-se. . . o sonho.

Quando ia atravessando a praia, rompia a manhã e voltavam do mar algumas lanchas. Em uma d'ellas vinham os pescadores cantando.

De repente interrompeu-se o coro saudoso dos ho- mens do mar, mas fora breve a interrupção, porque romperam as- vozes pouco depois n'esta lenda tristís- sima da praia;

I

I

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Era uma noito de lua, Das noites d;i beira mar. Nâo ha noites mais saudosas, Nem mais saudoso luar.

Diziam amor os astros Doirando as ondas do niar. Amor diziam as ondas. Namoradas do luar.

Descobria-se na praia, Como estatua erguida ao ar, Um vulto em sobre as fragas Embebecido a scismar. . .

Ciiamou a terra uma lancha, Que do noite ia a pescar, « Levai-me também, que eu pago, Mas quero hoje ir ao mar. »

Decorreram-se momentos, Fizera-sc a lancha ao mar. Os remos cortando a agua E o vulto sempre a cantar.

Foi cantando toda a noite A.té morrer o luar. Depois ergueu-se na proa, Deixou-se cahir ao mar. . .

Quedara o moço a escutar o canto dos pescado- res e sentiu, n'esse momento, um braço de ferro a di- lacerar-lhe o coração fibra a fibra.

E as lanchas vinham aproximando-se, e as vozes

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accordes dos pescadores repetiam perto de terra os dois últimos versos da lenda :

Depois ergueu-se na proa, Deixou-SG cahir ao .mar.

Ao entardecer d'esse dia o mesmo vulto atraves- sava a praia. As filhas dos pescadores conheciam aquelle homem de passar por alli todas as tardes e, quando elle se aproximava, diziam baixinho umas ás outras: Olha! ahi vem o namorado...

A porta do jardim, porem, não se abriu n'essa noite... Era profundo o mysterio ! Decorreram as horas, e o vulto permaneceu encostado á ombreira da porta^, como se a mão de Satanaz o houvera chumbado alli.

A lua tinha rompido de traz do pinheiral linda como na véspera. Da parte de fora do muro via-se so- bresahir á laranjeira illuminada pelo reflexo saudoso do luar. E a porta não se abria... nem se abriu mais.

Eu não sei como o homem tira da fraqueza do barro a coragem precisa pai"a resistir a magoas tacs como esta !

Ver desfazer-sc o paraizo sonhado cm tantas noi- tes de felicidade, ver desfolhai'-se para sempre a gri- nalda florida dos vinte annos, e não ir pedir á morte o descanço eterno da matéria que ella aniquila !

Abençoado o raio d'amor que nos suspende á beira do abysmo.

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Esse homem. . . tinha mãe.

Bemdito mil vezes o coração materno, urna de bál- samos para toda a ferida, cofre de thesoiros para toda a pobreza, sacrário de consolações para toda a desven- tura.

Bemdito o amor que não morre, bemdito o amor que não encana, bemdito o amor que não mente.

Ó coração de mãe, abre o teu seio ás lagrimas d'um filho e enxug*a-lh'as no sudário do teu amor, que são muitas e muitas. . .

Havia n'uma aldeia um coração de mãe a chamar por esse homem desgraçado. Partiu emfim o moço desventuroso, dizendo adeus ao bulicio da cidade onde lhe ficavamx para sempre a mocidade e a esperança, na tarde em que a mulher dos seus sonhos, diante do altar, estendia a outro homem a mão ainda quente do contacto da sua.

Que será partir para não voltar mais ? pergun- to eu áquelles que andam chorando por longe e para sempre saudades de tudo o que lhes era mais caro. Os que nunca sahiram da beira do seu lar, de ao da sua esperança, esses, são tão felizes que nem che- gam a comprehender tamanhas desventuras. E nos lá- bios d'elle nem uma palavra d'azedume, nem uma queixa amarga, nem um rugido de vingança.

Todavia a folha de hera estava . . . ainda verde I

k hora saudosa em que costumava abrir-se a porta do jardim, partia elle, caminho d'aldeia, cheio o co- ração d^immensas amarguras.

Ficaram a choral-o os amigos Íntimos, como que

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lamentando em commum a perda que era de todos elles.

Quando começaram a apparecer as primeiras arvo- res d 'aldeia, então é que foi o despeitorar suspiros abafados e lagrimas represadas. Esperavam-n'o aber- tos, na casa onde nasceu, os braços de sua mãe. Ahi quiz Deus que se identificassem na mesma amargura aquelles dois corações, que se misturassem na mesma torrente as lagrimas da mãe e do filho.

Era um coração a chorar pranto de dois.

Entretanto a folha de hera estava . . . ainda verde.

N'uma noite de lua debruçava-se o moço pensa- tivo na janella do seu quarto sobranceira ao pomar.

Tinha a carteira aberta e contemplava ao clarão saudoso do luar a folha verde que guardava como recordação eterna. Deu tento a mãe do longo scismar do filho. Entrou ao quarto despercebida e chegou á janella no momento em que uma sombra ligeira enco- bria a lua.

Lagrimas, meu filho! murmurou ellan'ura tom doloroso.

não ó nada respondeu elle. Passou . . . Era uma nuvem que velava a lua. . .

Porto março de 18G9.

A LENDA DA BARCA

Xão terão cabimento, n'este livrinho de prosas correntias, algumas paginas em verso ? Por que não ?

A lenda da barca é uma tradição que eu desejei co7itar ao correr da ijen7ia e que, encarada por este lado, não offende a Índole dos esboços despretenciosos a que vem associada.

Quasi me não lembrava do publico, quando a com- puz. Escrevi-a para o snr. Thomaz Ribeiro, a quem é offerecida, convencido de que havia d'encontrar ecco saudoso no coração do cantor do D. Jayme e da Delfina a historia do pobre barqueiro que se deixou morrer d'amores. Quiz o snr. Thomaz Ribeiro que me não enganasse. Adiante verá o leitor o canto mavioso com que o distincto poeta se dignou respon- der aos meus pobres versos.

Ahi vai pois a le7ida da barca com as poucas pa- lavras que a precederam, quando em abril d'este anno appareceu no Jornal do Porto :

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lamentando em commum a perda que era de todos elles.

Quando começaram a apparecer as primeiras arvo- res d 'aldeia, então é que foi o despeitorar suspiros abafados e lagrimas represadas. Esperavam-n'o aber- tos, na casa onde nasceu, os braços de sua mãe. Ahi qaiz Deus que se identificassem na mesma amargara aquelles dois corações, que se misturassem na mesma torrente as lagrimas da mãe e do filho.

Era um coração a chorar pranto de dois.

Entretanto a folha de hera estava . . . ainda verde.

N'uma noite de lua debruçava-se o moço pensa- tivo na janella do seu quarto sobranceira ao pomar.

Tinha a carteira aberta e contemplava ao clarão saudoso do luar a folha verde que guardava como recordação eterna. Deu tento a mãe do longo scismar do filho. Entrou ao quarto despercebida e chegou á janella no momento em que uma sombra ligeira enco- bria a lua.

Lagrimas, meu filho! murmurou ellan'um tom doloroso.

não e nada respondeu elle. Passou. . . Era uma nuvem que velava a lua. . .

Porto março de 1869.

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A LENDA DA BARCA

Não terão cabimento, n'este livrinho de prosas correntias, algumas paginas em verso ? Por que não ?

A lenda da barca é uma tradição que eu desejei contar ao correr da pe^ina e que, encarada por este lado, não offende a índole dos esboços despretenciosos a que vem associada.

Quasi me não lembrava do publico, quando a com- puz. Escrevi-a para o snr. Tiiomaz Ribeiro, a quem é offerecida, convencido de que havia d'encontrar ecco saudoso no coração do cantor do D. Jayme e da Delfina a historia do pobre barqueiro que se deixou morrer d'amores. Quiz o snr. Thomaz Ribeiro que me não enganasse. Adiante verá o leitor o canto mavioso com que o distincto poeta se dignou respon- der aos meus pobres versos.

Ahi vai pois a lenida da barca com as poucas pa- lavras que a precederam, quando em abril d'este anno appareceu no Jornal do Porto:

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« Fallaram-me dos amores desventurosos do bar- queiro Ramiro n'umas paragens tristes do Douro. A velha tradição d'estes amores atravessou a barreira do tempo e com o decorrer dos annos revestiram-n'a de certo caracter lendário os camponezes do sitio, que ensinaram aos filhos a lição herdada dos pães. Existi- ria o barqueiro Ramiro ou não passará a tradição d'estes amores d'uma phantasia devida á penna ob- scura d'algum antigo bardo d'aquellas serras? Não sei. A ribeira e os rouxinoes, a que se allude na len- da, lá estão ainda e devem de estar como no tempo do barqueiro Ramiro : a ribeira florida ; os rouxi- noes palreiros como d'antes. Que importa que não se- jam os mesmos d'entãoV

No tempo de Ramiro cantavam uns que morreram já, é verdade. Esses, porém, ensinaram aos filhos o thema mavioso dos seus descantes nocturnos, e a tra- dição transmittiu-se de rouxinol para rouxinol. São outros os rouxinoes ; os descantes os mesmos. Deve de acontecer com as aves o que succede com os homens: cada familia tem a sua tradição, assim como cada povo tem a sua historia.

Diz a lenda que os rouxinoes cantavam de sau- dade no tempo de Ramiro; ainda assim 6 hoje. O the- ma e o estylo são os mesmos. Todavia o correr do tempo modifica a tradição popular de uma lenda qual- quer n'um ou n'outro verso e ó de suppor que tenha corrompido n'uma ou n'outra nota a partitura legen- daria dos rouxinoes.

Ainda está na ribeira a pedra lisa em que as

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lavadeiras do sitio batem as suas roupinhas. Alli de- veu Rosa lavar os seus bordados. E nHo fallar a pe- dra ! O (jue ella nílo diria d'aquellas rendas alvíssimas costumadas ao suave conchego d'um seio virginal !

Ramiro ó o typo dos namorados desventurosos. Deixou-se o pobre moço entrar de fundas melancolias, quando olhou em si e lobrigou a sua barca a boiar nas aguas com a pobreza dentro... Que importava sentir-se bom e honrado e nobre ? Tinha apenas de seu quatro taboas e dois remos. Isto era muito para elle e pouco... para o mundo. Cançou-se de sonhar venturas, que não pudera ver realisadas e atirou com o fardo da vida ás aguas da corrente. Dar-lhe-ia lagri- mas de saudade a sua Rosa ? Xão sei. Quero ató que Ih 'as não desse, para se me affigurar maior o sacri- fício.

Tentei aproveitar a lenda da barca, como lhe cha- mam n'aldeia. Vejo, porém, que não corresponde a obra aos meus desejos. V. exc.*, que se digna acolher- me com extrema benevoleiícia, animará ainda d'esta vez os meus justos receios.

Entro no palácio hospitaleiro de Parada de Gonta com a alegria do camponez que vai offerecer ao cas- tellão um cabaz de flores silvestres, embora os mais opulentos se riam da mesquinhez do presente. Vou alegre porque sei que hei de achar abertos os braços d'um mestre que me inspira a máxima dedicação.»

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A LENDA DA BARCA

f

baixo onde ha os salgueiros, Quasi ao d' agua, depois Que o sol transmonta os oitoiros. Vem cantar uns rouxinoes.

Entretanto a lua rompe E mostra o disco saudoso.. . Ninguém os interrompe No seu cantar mavioso.

D' entre as gentis lavadeiras Não ha uma que se affoitc . A vir lavar nas ribeiras Áquellas horas da noite.

Mal sobe a lua, n' aldeia, Ninguém se fica por fora. em casa espera a ceia, Apenas chegar esta hora.

o barqueiro Ramiro Ficou inda á beira d' agua. Prende-o n'aquelle retiro A sua perpetua magua. ..

Guardou cuidadoso os remos, Prendeu a barca e depois Sontou-se e disse : « Escutemos As maguas dos rouxinoes. »

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n

Vinfannos contava Rosa, A mais gentil lavadeira, Talvez a mais cuidadosa Quo lavava na ribeira.

Sempre na beira do rio Cortava na vida alheia O fallador mulherio Reunido cm assembleia.

Rosa não dava ouvidos Por ser mais trabalhadeira. Mal que apanhava os vestidos, Era lavar com canceira.

Batendo a saia de folhos, Ensaboando os bordados. Muito a medo erguia os olhos. . Pareciam na agua cravados.

Se ás vezes os levantava Com seu olhar feiticeiro, Sempre a miral-a encontrava O namorado barqueiro.

Ella baixava-os corando E então lavava e lavava. . . Mas depois de quando em quando Outra vez os levantava. . .

Vinha a noite, a lavadeira Voltava a casa. Depois. . . Enchiam toda a ribeira As vozes dos rouxinoes.

■\

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III

Dize, Ramiro, o segredo Do teu suspirar maguado. Pois não vês erguer-se a medo Aquelle olhar namorado ?

Olhar tão puro e tão santo !' Tão expressivo e tão dooe ! Onde viste igual encanto N'um olhar d' anjo que fosse ?. . .

Em que scismas longas horas Na solidão da ribeira? Sonhas talvez a deshoras Ver lavar a lavadeira?

Ou ficas d' olhos pregados N'aquella pedra um thcsoiro ! Onde firma os pés nevados, Se lava no lavadoiro ?

Os rouxinoes das ribeiras Cantam bom ao desafio. Mas ficar noites inteiras. para os ouvir, ao frio !

IV

Sei no que pensas, Ramiro ; Não estranho a tua magua. Cantai-lho n'esse retiro, Rouxinoes da beira d' agua. .

Ai ! 80 to ama a pobre Rosa ! Ama-to muito, bom vojo Como, ao vòr-to, do medrosa \A\(i assoma o rubor do pejo.

Es pobre, Ramiro, és pobre, Arrostas o sol o o frio Feia moeda do cobre. Que to quem i)assa o rio.

E a lavadeira é formosa ! Qualquer lhe dará bem oiro Para beijar pobre Rosa I . . . Os seus cabellos côr d'oiro. . .

Sei no que pensas, Ramiro ; Não estranho a tua magua. Cantai-lhe n'esse retiro, Rouxinoes da beira d' agua.

Queres fugir á desgraça, Que te espera qualquer dia. . . Por isso a noite se passa Na mesma melancolia.

V

Até que emiim resolveste Não voltar ao teu retiro. Veio a noite e não prendeste A tua barca, Ramiro !

Rio abaixo vaes remando, Sem que te cancem os braços ! paras de quando em quando E fitas mudo os espaços . . ,

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Suspiram tristes as aguas, Que leva o rio palreiro, Como a juntar suas maguas Ás tristezas do barqueiro...

Passou-se a noite ; ao ser dia Um pescador da ribeira Achou a barca vasia Encalhada na pesqueira.

Que tu, Ramiro, deixasses A barca, o teu companheiro ! O' barca, se tu fallasses, Que dirias do barqueiro ?. . .

Porto março de 1869.

Dias depois da publicação d'esta lenda^ escrevia- me o siir. Tlioraaz Kibeiro o que se segue:

«... Sabe? intristeceram-me aquelles versos por- que eu posso também dizer :

Amante fui triste e absorto como Ramiro o barqueiro, e achei-me afogado e morto nas maguas do amor primeiro.

Á beira d' agua assentado

csp'rci como ello ! . . . o depois V ! . .

passei noites enlevado

no canto dos rouxinoos I , . .

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Dopois disse á pòdrc calma : ahi tens meu corpo ! lia quem remo ?. barca em quo andava a mi nh' alma emquauto o amor lhe foi Icmo ;

emquanto a esp'ran(,'a foi vela e nas trevas do aguaceiro a lhe mostrava a estrella ! . . . e hoje. . . barca sem romeiro !

Sem presente e sem passado, sobre o mar longe d' um porto sou barco desarvorado : pareço vivo e estou morto.

Meu presado amigo. Sahiii-me isso ao correr da penua, quando acabei de ler os seus versos. Isso não presta e o escrevi n'esta carta para lhe provar que a sua lenda me inspirou.»

D'aqui renovo os meus agradecimentos ao snr. Thomaz Ribeiro, contente por lhe ter suggerido a ideia de escrever tão suaves endeixas e por mostral-as aos leitores d'este livrinho, que verão n'ellas a única coisa valiosa que se encontra em tudo isto.

Porto— julho de 1869,

AS DUAS FITAS

COR DE ROSA

Marmier, na introducçtão á Solitude de Zim- mermann, escreve o seguinte: «Buftbn, n'um dos seus melhores tratados, fez notar a acção diversa dos climas sobre a organisação physica e moral do homem. Um sábio e respeitável escriptor, M. de Bons- tetten, consagrou um livro inteiro ao mesmo assumpto. »

O certo é que Marmier inclina-se muito á opinião de Buffon e Bonstetten ; e eu vou também d'accôrdo, n'este parecer, com o biographo de Zimmermann.

Estou n'aldeia, ha dois dias, n'uma aldeia solitá- ria das margens do Douro, defronte do convento de S. João de Alpendurada onde morreu aquelle desgra- çado bispo do Gran-Pará, Frei João de S. Joseph de Queiroz. O snr. Camillo Castello Branco escreve, nas Memorias do bispo, com referencia ao convento de S. João de Alpendurada, o que se segue: «É aquelle

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mosteiro triste, empinado n'uns rochedos que se de- bruçam sobre o Douro. É em cima no monte Ara- dos, onde as neves hybernaes requeimam as raizes do bravio para que alli não íloreçam os gestaes em abril, nem as tojeiras no dezembro se dourem com os seus festões amarellos.»

Não sei se o snr. Camillo veio a S. João de j Alpendurada ou se escreveu por informações; o que sei é que foi exacto na descripção.

Ora a aldeia em que estou, freguezia de Santo André de Sozello, resente-se da visinhança do monte Arados ; quero dizer, é triste e solitária como elle. O certo ó que me fiz aldeão, cuido que por influencia do clima, que actuara subjectiva e objectivamente so- bre a minha organisação moral e physiologica.

Para me não deixar, pois, entrar de tristezas pró- prias do sitio, fui-me hontem por brenhas e atallios fora a espairecer o espirito cançado da viagem. Che- guei insensivelmente a meio d'um cerro e rodeei a Casa dos olivedos, propriedade d' um rapaz que fora meu condiscipulo em 186G. Sahiu-me da revolta do quinchoso o caseiro da quinta, de enxada ao hombro e chapco na mão.

Santas tardes, meu homem. Você é caseiro da quinta ?

Saiba V. S.^ que sim.

Seu amo está em casa ?

Meu amo, senhor! Ha dois annos que não veio á (piiiita. Vive em Leça da Palmeira, ^cho que 6' perto do Porto. .. O senhor deve saber onde tica. O

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certo ó ({uc casou por c por vive, hii dois aniios.

Pois seu unio vive em Le^a, lia dois annos, sem que eu o tenha visto, durante esse tempo, uma vez sequer ! Com quem casou elle ? Conte-me tudo o que sabe.

Ahi vai, pois, tudo o que me contou o caseiro de Rodrigo Sotto-Maior e o mais que eu sei a este res- peito.

O estylo fragoeiro d 'estas paginas deve claramente resentir-se do meu rusticar com a gente do campo, do perfume agreste dos mattos, e da visinhança do mos- teiro de Alpendurada, solidão tristissima, onde agoni- sou o bispo do Gran-Pará.

I

O senhor conheceu, por acaso, em Leça, a viuva do capitão Mathias ? interrogou o caseiro.

Do capitão Mathias. . . repizei eu Conheci. Tinha uma filha rasoavelmente bonita, a quem nós, os banhistas de 1866, chamávamos a menina do tope ver- vicUw.

A menina de quê, senhor ? atalhou o caseiro com a palavra tope entalada nos gorgomilos.

Do tope vermelho, homem. Chamávamos assim ao laço de fita, que ella usava no cabello com uma galanteria indisivel. Mas a que vem isso?

Pois foi ella. . .

A que casou com o Rodrigo ? Ora essa ! Pois o Rodrigo casou com a menina do tope vermelho ?

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Ha de ser a mesma. Foi com a snr.^ D. Júlia Mathias que o snr. Rodriguiiilio casou, ha dois aniios. Esteve a banhos em 1866 e acho que tomou os trez da igreja. Casou e não veio mais. E como diz a cantiga :

Quem'stá bem, deixa-se estar.

E que sabe mais ?

Quasi nada. O que lhe posso dizer 6 que teem um filho e que dizem que hão de vir á quinta na primavera. . . Então o senhor era amigo d'clle?

Amigo ! Amicissimo. Conheço-o desde 1866. Foi meu condiscípulo nas aulas e depois acompanhei-o, frequentes vezes, em Leça.

Pois aqui está o que eu sei.

Bem. You-me por aqui abaixo, surprehendido com a noticia. se vai fazendo tarde. Adeus.

Adeus, meu senhor.

Desci por uns atalhos tortuosos ató á estrada. Vi- nha a scismar na menina do tope vermelho e no ca- samento de Rodrigo Sotto-Maior, o meu condiscípulo de 1866. I

No setembro d'esse anno a formosura da filha do capitão Mathias deu rebate aos mais galliardos banhis- tas de Leça. Distinguia-se a requestada senhora, en- tre o rancho das mais feiticeiras nereidas da praia, por um tope de fita vermelha, artisticamente pregado 110 cabello, como borboleta d 'escarlata, que continua- damente estivesse osculando a trança d*ebano.

E depois tinha uma graça no andar, uma certa

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elepuu'i;i no apíiiilmr dos vestidos e, dipimos tudo^ uma desenvoltura, que lhe era natural e nao ehe^ava a ser liceneiosa !

Kstanceavam debaixo das janellas de Júlia os pin- taleí^i-etes da praia ; era um eonstante arremetter de mi- lhafres namoradií^os á timida andorinha, que se esqui- vava ainda.

Uma tarde sahi eu a passeiar com Rodrigo Sotto- Maior. Assomamos á volta d'uma rua e vimos, n\ima janella, uma mulher negligentemente pensativa. O ruido dos nossos passos despertou a contemplativa senhora, que levantara a cabeça para ver, indubita- velmente, quem commettia a indiscreção de lhe pertur- bar os poucos momentos livres de Narcisos importu- nos. Ao tempo que a visão da janella ergueu a cabeça, fizemos reparo na fita vermelha que lhe cingia a fronte. Não havia que duvidar. Era ella! Era ella, cujo nome circulava de boca em boca, porque nenhu- ma das banhistas de Leça tinha ousado ainda derru- bar a realeza do tope vermelho, imitando Júlia. Não havia que duvidar. Era alli a habitação encantada d'aquella mulher scismadora, que se deixava embalar nas harmonias tristes do mar.

Cobrira-nos Júlia d'um olhar descuidado, mas de tal modo reprehensivo, que parecia acoimar-nos d'in- discretos. O certo, porém, é que Rodrigo Sotto-Maior estremeceu, como um cadáver impellido por uma pilha galvânica.

Dei tento da impressão de Rodrigo e nno pude deixar de o apodar de namoradiço ridículo, capaz de

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correr parelhas com uns sujeitos que se andam nar- cisando pelas praias diante das ondinas que- sahem do banho, entrajadas de baeta negra.

Pobres anjos! Nem eu sei para que as mulheres tomam banhos do mar. Pobres anjos ! repetirei ainda. Anti,2;amente os mais rispidos e tambefn os mais estúpidos pães de familia negavam ás íilhas a ins- trucção elementar do bastardo e do cursivo, com re- ceio de que as meninas, doutoradas em primeiras lettras, viessem, n'um dia, a sustentar correspondên- cias amorosas !

Isto era o mesmo que dizer ás pobres meninas :

« Minhas filhas : O cora(,íão está dependente de uma coisa que se chama o alphabeto ; quem não sou- ber o a-b-c não pode amar. É por meio da combinação das lettras que se escreve, formando palavras ; mas com as palavras se fazem cartas e com as cartas se faz muita coisa má, por exemplo : escrever ! As cartas são uma espécie d'abanador assoprando con- stantemente ao fogareiro do coração. Casai; mas casai por interesse e por calculo. Sede estúpidas e contai o numero de vossos filhos pelos dedos.»

Isto era o que os pães de ha sessenta aunos pre- leccionavam ás filhas analphabetas em vez de lhes dizerem categoricamente :

«Meninas: Prohibo expressamente que minhas filhas tomem banhos do mar. Arriscava-me a que vocês ficassem eternamente solteiras como Minerva. Sim, como Minerva. diz o meu Virgilio: Innupta Minerva. Quer dizer: Minerva, que costiunava tomar

I

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/x/hIíos </() itnir iodos os onnos. V] a tradnci,'ão á lettra para um pae oxiiorionto. Mulher que toma banhos do mai- não casa, K uma (iòr do coração vêr-vos enfar- dclaíhis n'um sacco de baetaj com os cabellos empas- tados na cabeva, verpidas ao peso da saia húmida, a tropeçar, a escabujar com as ondas, a arrastar-vos, emlim, como salamandras. Nada! Quem se sentir mo- lestado do nervoso, faça uso de anti-hystericos e dei- xemo-nos de mar. »

Isto veio aqui por incidente. É que eu vi uma vez, em Leça, sahir do banho a menina do tope ver- )))clho, e tive pena de que as prescripções da medicina fossem severas ao extremo de a despoetisarem, a ella, a elegante, a graciosa, a coqitette!

Como eu ia a dizer, Rodrigo Sotto-Maior sentiu-se fulminado com o olhar de Júlia.

Ha mulheres cujo olhar, por mais indolentemente vibrado que seja, tem o condão fatal de produzir uma impressão rápida mas profunda. O olhar de Júlia era assim.

Peço licença para abrir um parenthesis : Não sei se virão serôdias algumas explicações sobre a pes- soa de Rodrigo Sotto-Maior; todavia julgo que serão indispensáveis e vou dal-as.

Rodrigo Sotto-Maior era filho d'um dos mais di- nheirosos proprietários de Sinfães, que morrera em 1865 apopleticamente, deixando o filho com vinte e quatro annos d'idade e com uma casa no valor de quasi outros tantos contos de reis. Fallecido o pae, veio o rapaz matricular-se nas aulas do Porto com o

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propósito tirnio de iiào ostiidai; nada. As aulas eram para (^llo um pretexto com (|uo procurava desculpar a si mesnu) os ócios d\ima vida livro o abastada. Ainda assim frequentava i-oí^ularmente as aulas, com as al- gibeiras providas de charutos e esquecido dos com- pêndios que nào che£;*ára a comprar. Kste desamor ao estudo pode redundar, na opinião de muitos, em desabono da intelli,i;encia de Kodrii;'o. Dipi-se a ver- dade. Kodrii;-o Sotto-jMaior tinha larga capacidade in- tellectual apurada na leitura dos melhores livros, que |; lhe fornecia a casa Moro todos os mezes. Quando os i livros lhe chegavam a Sinfães, o moço, sedento de novas leituras, lia-os, decorava-os ; e quando não tinha mais que lòr, esperava nova remessa, batendo as moitas, á pista de coelho, de clavina aperrada. j

Lombra-me agora contar-lhes que indo eu um dia procurar Kodrigo, em Lei^a, pude surprehender sobre a mesa de trabalho um álbum intimo onde elle archi- vava os devaneios mais queridos do seu coração.

Kodrigo estava ainda recolhido, quando o procu- rei. Esperei, pois, na ante-camara e logo se me de- parou o álbum aberto na pagina em que se liam os versos que eu, abusando da nossa velha amizade, pu- blico. Li-os e para logo fiquei namorado da singeleza suave da composição, que era indubitavelmente dirigida á meti hm do tope vcnneUio.

Como Rodrigo se demorasse o tempo preciso para eu não poder resistir á tentação de copiar os seus versos, copioi-os. Perdòa-me tu, nobre amigo, o ter devassado os mistérios do teu coração. Em nome dos

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laços sa;2:rados que nos prenderam e que ainda nos prendem, perdua-me.

Diziam assim os versos:

CÓR DE RUSA

Ail se me desses a fita

Com qae prendes o toucado . . .

Côr de rosa I tão bonita I

Dá-me esse lar-o encarnado Com que seguras a tranca. Foi bem escolhida a cor! Verde significa esp' rança ; Koixo exprime auzencia e dòr. Mas a fita cor de rosa Diz tão bem no teu cabello ! Pois que a rosa em si resume Quanto uma flor tem de bello, Côr, linguagem, perfume, Sois irmãs ! A mão bemdita Do Senhor fez-te tão rica D'aquella graça infinita. Que se e não se explica I

Vós ambas tendes perfumes, Ambas a mesma innocencial Escugaes de ter ciúmes , . . Não ha entre vós preferencia. .

Foi a côr bem escolhida I . Mas se me desses a fita. . . Deixando a trança cahida. Talvez fosses mais bonita I

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propósito firme de não estudar nada. As aulas eram para elle um pretexto com que procurava desculpar a si mesmo os ócios d'uma vida livre e abastada. Ainda assim frequentava regularmente as aulas, com as al- gibeiras providas de charutos e esquecido dos com- pêndios que não chegara a comprar. Este desamor ao estudo pode redundar, na opinião de muitos, em desabono da intelligencia de Rodrigo. Diga-se a ver- dade. Rodrigo Sotto-Maior tinha larga capacidade in- tellectual apurada na leitura dos melhores livros, que lhe fornecia a casa More todos os mezes. Quando os livros lhe chegavam a Sinfães, o moço, sedento de novas leituras, lia-os, decorava-os; e quando não tinha mais que ler, esperava nova remessa, batendo as moitas, á pista de coelho, de clavina aperrada.

Lembra-me agora contar-lhes que indo eu um dia procurar Rodrigo, em Leça, pude surprehender sobre a mesa de trabalho um álbum intimo onde elle archi- vava os devaneios mais queridos do seu coração.

Rodrigo estava ainda recolhido, quando o procu- rei. Esperei, pois, na ante-camara e logo se me de- parou o álbum aberto na pagina em que se liam os versos que eu, abusando da nossa velha amizade, pu- blico. Li-os e para logo fiquei namorado da singeleza suave da composição, que era indubitavelmente dirigida á menina do tope vermelho.

Como Rodrigo se demorasse o tempo preciso para eu não poder resistir á tentação de copiar os seus versos, copiei-os. Perdôa-me tu, nobre amigo, o ter devassado os mysterios do teu coração. Em nome dos

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laçOvS sagrados que nos prenderam e que ainda nos prendoni , perdòa-nie.

Diziam assim os versos:

CÔR DE ROSA

Ai! se me dósscs a fita

Com que prendes o toucado . . .

Côr de rosal tão bonita!

Dá-me esse laço encarnado Com que seguras a trança. Foi bem escolhida a côr ! Verde significa esp' rança ; Roixo exprime auzencia e dôr. Mas a fita côr de rosa Diz tão bem no teu cabello ! Pois que a rosa cm si resume Quanto uma flor tem de bello, Côr, liiignagevi, perfume, Sois irmãs ! A mão bemdita Do Senhor fez- te tão rica D'aquella graça infinita, Que se e não se explica I

Vós ambas tendes perfumes, Ambas a mesma innocencia ! Escusaes de ter ciúmes . . . Não ha entre vós preferencia. ^

Foi a côr bem escolhida ! . Mas se me desses a fita. . . Deixando a trança cabida, Talvez fosses mais bonita I

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E eu faria d'ella algeDia, Que mais a ti me prendesse. . Côr de rosa ! tão bonita I Quem não daria um poema, Se tu lhe desses a fita V. . .

Dá-me esse laço o diadema Com que tu cinges a fronte, Coroa própria de rainha. Pois se não teus uma ideia, Que não seja tua e minha, Não digas que te não peça Essa fita côr de rosa, Que te circumda a cabeça. . .

Dá-m'a. boa e formosa.

Ai ! se me desses a fita Côr de rosa ! tão bonita!

Os versos de KodrÍ2:o nasceriam e morreriam na obscuridade, se os não tivesse offerecido á minha cu- riosidade um feliz acaso.

Conheci então que Rodrigo estava verdadeiramen- te namorado.

Feche-se agora o parenthesis.

No dia seguinte áquelle em que viramos Júlia, encontramol-a de tarde casualmente, se não foi prophecia do coração namorado de Rodrigo, na Ponte de Leça. N'um dos bancos, que se encostam ao para- peito da ponte, estanceavam meia dúzia de leões em- pertigados, despedindo sobre Júlia tão flammantes olhares, que ella teria morrido n'uma fogueira d'in- quisiçào amorosa se os raios visuaes dos moços na-

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nioradi(,'os nào diniiniiissem a iiitensidtide caloriíica ao atravessar as lunetas sem ^rau.

Fizemos reparo nos leões e os leões tizeiam reparo em nós, porque Júlia dignára-se volver um olhar ex- pressivo para Kodri<i:o Sotto-Maior.

Queres íicar ? perg-untei eu, dando tento do olhar de Júlia.

Não respondeu seccamente Rodrigo. Ficar era ridículo.

Atravessamos a ponte, ladeamos o monumento de Manoel Passos, e fomos sentar-nos n'um dos bancos que lhe íicam próximos.

O certo é que Júlia havia-nos seguido com a vista e não desfitava Rodrigo, accendendo a indigna- ção dos leões despeitados com tão evidente preferencia.

Quando Júlia sahiii da ponte, Rodrigo Sotto-Maior nào quiz seguil-a. Vimol-a desapparecer na extremi- dade opposta e vimos também desfilar pacificamente, em seguida a ella, a cohorte dos galanteadores offi- ciosos.

Atravessamos a ponte, passado tempo.

Na esquina d'uma das cangostas tortuosas de Leça topamos os leões reunidos em assembleia geral. Yiram- nos e fizeram-nos cerco, isto é, montearam -nos como a lobos damninhos. Choveu sobre Rodrigo Sotto-Maior uma alluvião de epigrammas, que se resentiam da ridiculez dos sujeitos que os dirigiam.

Rodrigo arrostou a firme as iras dos monteiros indignados e, quando pôde escapar-se dignamente da malha, segredou-me ao ouvido ;

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Vamos d'aqiii, que me sinto nauseado.

Na manhã seguinte, encontrei-me na praia, á hora do banho, com Rodrigo Sotto-Maior.

N'essa occasião sahia Júlia do banho, e em.quanto eu lamentava que a medicina obrigasse uma mulher bonita e elegante a parecer feia e cambaia, Kodrigo Sotto-Maior confiava á banheira n'uma folha de papel, fechada em enveloppe, as primeiras palavras do seu amor. Aguardamos a occasião em que Júlia sahisse da barraca; vimol-a sahir e corar.

Ao ensejo de corar a menina do tope vermelho ajustam uns dizeres bonitos do snr. Mendes Leal: «Dirieis que o paniculo róseo da flor da bromelia, des- pegada dos seus braços vegetaes, cahira sobre as pé- talas tegumentosas d'um cacto branco das selvas. »

N'essa noite uma lindissima noite de luar passamos, Rodrigo e eu, debaixo das janellas de Júlia; ouvimol-a tocar piano. Escondemo-nos na sombra d'um muro e quedamos a ouvil-a. Os seus dedos deviam de correr vertiginosamente sobre as teclas do piano, porque as notas afloravam em turbilhão com a rapi- dez do relâmpago.

Ouvimol-a passar do Hernâni^ com uma veloci- dade eléctrica, para o Roberto^ e do Roberto para o Trovado?'.

Pouco depois o piano emmudeceu. Yimos Júlia aproximar-se da janella e descer a vidraça; cuido que Rodrigo lhe mandara um beijo n'um raio da lua.

A sala ficou por momentos ás escuras ; pouco de-

f

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pois, poróm, uma claridade ahpivQ se coou atravós dos vidros, reflecti ndo-se na rua.

Quem poderia duvidar de que Júlia estivesse, n'esse instante, respondendo a Rodrigo ?

EUe adivinhou-o e eu presenti-o.

Demoramos ainda meia hora a coberto do muro ; depois fugiu a luz e a janella fechou-se de vez.

Ao outro dia faltei na praia, mas veio Rodrigo pro- curar-me e mostrar-me confidencialmente a resposta de Júlia. Era apenas um bilhete, com quatro linhas, de calligraphia elegante e grammatica escorreita.

O jubilo interior de Rodrigo irradiava-lhe no sem- blante e resaltava-lhe dos olhos em chispas luminosas.

És feliz, Rodrigo ? perguntei eu.

Cala-te atalhou-me elle violentamente. Ca- la-te, que chego a ser egoista da minha felicidade.

Desde esse dia rarearam as visitas que Rodrigo Sotto-Maior me fazia ; percebi o motivo que o impedia de procurar-me, e desculpei-o.

Decorrida uma semana, entrou Rodrigo uma ma- nhã, em rainha casa, de semblante demudado e com ares d'inquietação.

Que tens tu, homem ?

Eu sei o que tenho ! Tenho o inferno no co- ração. A viuva ]ííathias lobrigou as minhas relações com a filha e ameaçou-a d 'entrar n'um recolhimento do Porto. Parece-me que não tornarei a fallar-lhe! E tu ainda me perguntas o que eu tenho ! Tenho o inferno no coração, bem te disse eu. Fallava-me todas as noites da janella abaixo. Que bonita, meu amigo,

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quaudo a lua lhe batia de frente ! Que bonita ! Adeus, adeus.

E desceu as escadas precipitadamente.

Fiquei d'espectativa alguns dias, findos os qnaes Kodrigo me procurou de novo. Vinha completamente socegado e jovial.

Serenou a tormenta, meu amigo disse-me elle. Post tejiehras sol liicet. Logramos engodar a pers- picácia da viuva Mathias. Falíamos todas as noites no quintal. Mal sabes tu o que eu passo para fallar-lhe. Tenho de me engalfinhar n'uma cancella, de saltar um muro e de me esconder depois n'uns pardieiros, que te fariam estremecer de horror, se os visses. Queres tu ver?— E foi abrindo a carteira. Queres tu ver? Sabes o que isto é ?

Isso é o tope vermelho! acudi eu simulando surpreza Isso é o tope vermelho !

Tal qual. É o tope vermelho de Júlia. Quiz pos- suil-o ; e obtive-o. É elle. . . o tope vermelho.

E Rodrigo dizia isto beijando-o sofregamente.

Fizeste mal em pedir-lh'o, Rodrigo. Usurpaste- Ihe, privando-a d'esse laço, a coroa da realeza. Foi egoismo da tua parte.

Não ha tal ! Júlia não precisa de pedir á toiletie o esplendor com que deslumbra. O seu prestigio está na sua belleza; ó d'ella, como eu sou. P]ste laço ó uma recordação, uma lembrança, uma saudade talvez. E meu 1 Felizmente posso chamar-lho meu ! Adeus. São horas d 'ir fallar com ella.

Rodrigo abandonou completamente a sociedade

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banliista ; vivia para Júlia. Os leões despeitados con- tinuavam a verberal-o com epigrammas pouco menos de tolos, e elle nem dava por isso.

Abençoado o amor que nos sobe a ecos tão plá- cidos e tão acima do charco immundo onde coaxam as rãs da maledicência.

Começava a despovoar-se a praia de Leça. Entrou- xei e dispuz-mè a recomeçar os meus trabalhos esco- lares. Procurei Rodrigo em casa e não o encontrei ; vi-o depois casualmente.

de marcha ! disse-me elle.

Que remédio! Está o inverno comnosco res- pondi eu. Ainda ficas ?

Ainda fico. Adeus. Estimo que sejas feliz respondeu elle querendo obstar a alguma pergunta importuna.

Os receios, porém, de Rodrigo, eram infundados ; não devia esperar indiscreções da minha parte.

Voltei para o Porto e, quando me lembrava do caso, suspeitava que o namoramento não podia vingar muito tempo nas condições em que estava. Agora vejo que me enganei redondamente.

Rodrigo Sotto-Maior não voltou de Leça. vive, pois, ha dois annos, n'aquellas solidões da beira mar, a estreitar a esposa d'enconti-o ao peito e provavel- mente a rever-se nas graças infantis do filhinho.

Os poucos momentos, que puder roubar á crean- cinha e á mulher, quem sabe se elle os consumirá a tratar do plantio do quintal ou dos casaes de perus, que gluglurejam na capoeira? Não admira nada. O ge-

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iieral AValrave eiitretinha-se, na solidão d'aldeia, cora a creação das gallinhas. Muitos deixam o socego dos campos por o bulicio da cidade ; outros, como Publio Scipião, dizem que nunca estão menos sós do que quando estão verdadeiramente sós.

E demais Eodrigo Sotto-Maior tem ao lado a es- posa e o filhinho a sorrirem-lhe e a affagarem-u'o.

Perdoa tu, meu amigo, se eu corri o vôo mj^ste- rioso da tua vida intima, occultando todavia o teu verdadeiro nome.

Na primavera que vem, mostra a tua esposa o tor- rão abençoado em que nasceste. Que a madre-silva dos vallados perfume a atmosphera, que as aves da ramaria te enlevem com as suas toadas alegres, que teu filho te sorria e que tua mulher te abrace.

Quinta de Yilla Yorde 16 do setembro de 1868.

CÒR DO CÉO

Procurei Rodrigo Sotto-Maior em Leça. Achei-o n'um paraizo d'amor, sorrindo de verdadeira felicidade á esposa estremecida e embellczado na contemplação do filhinho, que passa metade do dia no collo da mãe e outra metade nos braços de Rodrigo. Fez-me inveja o socego suavíssimo d'aquella casa onde encontrei ainda um resto do viver patriarchal dos tempos que

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iiHo voltam. Rodn.e;o vive quasi exclusi vãmente para a família o para aliz^um raro amigo, (|U0, de lon^^e a loiíí^e, vai lavar nas ai^Mias d'aqiielle milagroso Jor- dão a lepra das miiudanidades estultas.

Poucos livros entram no gabinete de Rodrigo, e esses que entram são escolhidos e puros; aos periódi- cos ó de todo em todo defesa a entrada. Ha dois annos que Rodrigo não sabe quantos ministérios tem havido, quantas pessoas do seu conhecimento casaram ou mor- reram, e quantos lavradores da sua aldeia estão barões ou conselheiros. Não se interessa, como vêem, por estas coisas attinentes ao movimento politico da nossa terra, nem lhe sobra tempo para lamentar as incon- veniências do sijstema que nos rege, por isso que se deixa absorver nas profundezas d'um oceano d 'amor, onde não ha systemas possíveis além do que manda o corarão.

Rodrigo acolheu-me affectuosamente. Subimos ao gabinete de leitura que tem duas largas janellas : uma que deita para o jardim e outra que olha para o mar. Sentamo-nos e começamos a fumar com excellentes disposições d'espirito para larga conversação.

Auctoriso-te a accusares-me da minha ingrati- dão— disse Rodrigo. Estou disposto a ouvir a lei- tura do libello, apesar de não ter provas que me favo- reçam.

Tens a teu favor respondi eu este reman- çoso viver que te absorve o coração e que faz inveja a quem anda por esse mundo a luctar constantemente com os vagalhões da fortuna. Ha dois annos que te

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perdi de vista, e encontro -te lioje tão feliz como sup- ponho que terás sido desde o dia em que te deixei de ver. E' uma felicidade que sorri a pouca gente, meu Rodrigo. O mundo não falia de ti, porque o mundo não se occupa das alegrias serenas. Es rico e ainda assim vives obscuramente. Xão te intromettes com a politica nem incommódas os periodistas com a noticia de teres offerecido um jantar aos presos ou aos pobres. A tua mão, se exerce a caridade, exerce-a segundo o preceito do Evangelho. Yives feliz, Rodri- go. Yejo que tens as tuas portas fechadas, mas re- commendo-te que as mandes trancar cautelosamente para que te não possam assaltar, n'esta solidão, os malsins da sociedade. Olha que também andam as ambições pela aldeia. Venho de ao das montanhas que te viram nascer, e achei por vestigios de cor- rupção. Os lavradores dos teus sitios estenderam a vista para além dos seus campos, e diffamam-se mutua- mente por causa das eleições. Ha por quem tenha esbanjado a casa para comprar votos e commendas. Um teu visinho está commendador ; outro sahiu, ha dias, deputado.

E é muito de suppor que o meu caseiro esteja a chegar ás alturas d'um baronato, segundo o que tu dizes atalhou Rodrigo.

Ainda não aconteceu assim por felicidade tua. O teu caseiro continua a trabalhar no amanho das terras e a viver para a lavoura. o vi, arremim- gado, de enxada ao hombro, na direcção do pomar. Foi elle que me deu noticias tuas. Por elle osube eu

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que tu tinliiis casado o que Deus te coroara a felici- dade conjui;al com as i^raças infantis d' um íilhinho estremecido. Surprehendeu-me a noticia do teu casa- mento, Rodrigo ! Despedi-me do teu caseiro e vim por uns atalhos a scismar nos bons tempos de lia dois annos, que foram o prologo da tua felicidade; —pro- logo em que eu também indirectamente collaborei. Dois dias depois, sentava-me á mesa do trabalho e escrevia a historia feliz dos teus amores, recatando ii'um pseudonymo o teu verdadeiro nome e recamando, aqui e além, de ficções românticas a tela onde dese- nhava o quadro . . .

Pois fallaste ?

Fallei. Has de perdoar este abuso de confiança ; todavia confesso a verdade. Contei a tua historia e, como o mundo se não lembra de ti, nenhum alvi- çareiro se deu ao trabalho de farejar o teu rasto. A sociedade interessa-se simplesmente pelos grandes es- cândalos dos altos personagens. E preciso que um sujeito, que enriqueceu no tráfico da escravatura, saiba a chronica, quasi similhante, d'um outro que chegou á opulência pelo fabrico das notas falsas. Isto ó preciso para que a sociedade se «respeite» e para que se fechem umas bocas com medo das iras d'outras muitas. D 'aqui a necessidade do romance escandaloso, o único que tem leitores e compradores em Portugal. A tua historia era uma historia simples e honesta, uma liistoria que podia correr desde o collegio até ao convento, duas casas onde a corrupção não é permit- tida por lei . . . Fallei em ti e na menina do tope ver-

*

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melho, que ó hoje tua esposa. Contei a historia do laço com pequeno desvio da verdade, e a(;abei por di- zer que era muito de suppor que, á hora em que eu escrevia, andasses tu a cuidar do quintal ou dos pe- rus. Yejo que me encanei. O teu quintal sahiu-me nm jardim, a julgar pelo que descubro d'esta janella. Supponho-me em Montmartre á beira dos alegretes de Alphonse Karr. Nem as flores te faltam n'este paraizo !

São os melhores livros, as flores disse Rodri- go. — Livros que a natureza escreveu em paginas de mil cores e com mil diversas tintas. Amo as flores pelo que ellas são e não pelo que os homens querem que ellas sejam. Tenho alli na estante livros de botâ- nica, comprados em outro tempo ; escuso de te dizer que nunca os abri. Estão ao d'outros de mathema- tica, que folheei uma vez, como sabes, e que fechei para sempre, quando o professor, que era um sujeito de muitas philosophias, declarou do alto da sua repu- tação que a minha negação para os algarismos impor- tava absoluta inaptidão para tudo. Anda visitar as minhas flores, todas as que eu tenho, porque minha mulher, com o nosso filhinho ao de si, deve estar a esta hora no jardim. Has de jantar comnosco e, depois do café, iremos sentar-nos ao da capellinha de SanfAnna. V) lá, diante d'aquolle panorama deli- cioso, que eu te quero contar o pouco (pie tu ignoras da minha vida.

Descemos ao jardim.

Encontrei a esposa de Rodrigo, sentada á sombra d'um caramanchel, trabalhando em crochet. Tinha a

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seu líido o filhinho, todo vestido de branco, sentado n'unia cadeira de brados. Kra um quadro de família que inspirava respeito.

Júlia estava modestamente vestida. Tinha um ves- tido de chita alegre e clara, guarnecido nos punhos e no pescoço por uma renda fina mas estreita. O cabello dividia-se em duas tranças, que livremente cabiam pelas costas abaixo. Não ha vestir mais modesto com tamanha elegância, e, permitta-se-me o substantivo, com tamanha frescura, palavra que usam as mulheres com grandissima propriedade, quando querem fallar de certos vestidos graciosos e humildes.

A esposa de Rodrigo era ainda a creatura formosa que eu vira debruçada na janella, dois annos antes. Tinha o mesmo colorido nas faces, a mesma alegria nos olhos, e a mesma serenidade no semblante.

Passei algumas horas felizes n'aquelle santuário ; conversamos de tudo o que nos lembrava, borbole- teando d'assumpto para assumpto.

Depois de jantar, acorapanhou-me Rodrigo á ca- pellinha de SanfAuna. Sentamo-nos no banco de pedra que se encosta ao oratório, e ficamos por algum tempo embellezados na paizagem que a natureza nos desdobrava diante dos olhos.

Foi Rodrigo o primeiro a quebrar o silencio.

Olha disse-me elle. Quando te chegar ás mãos um livro impregnado de philosophia, não o leias. Nota, porém, que designo por philosophia esta corrupção desbragada que começava a envene- nar a sociedade nos meus tempos de solteiro, e que

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actualmente, segundo dizes, ameaça absorver a huma- nidade inteij"a. Não creias no progresso que principia por insultar a mulher, por aniquilar a familia, por offender a igreja e por zombar de tudo o que ha de mais casto e santo n'este mundo. se podes fugir da lepra que vai lavrando, e onde a Providencia te mostrar uma alma cândida e boa fica ahi, meu amigo, embebecido n'esse templo sacratissimo, sem saudades do mundo exterior, das suas tempestades e dos seus tumultos. Eu sahi da minha aldeia com a alma fechada para os maus sentimentos. Queria conhecer o mundo e tinha, ao mesmo tempo, um certo medo de o conhecer de perto. Quando do alto d' um monte vi de longe os pinheiros da minha aldeia, tive saudades d'elles e estive para retroceder, mas animou-me uma esperança vaga que me enchia o coração e que era indubitavelmente o prenuncio da felicidade. Atravessei o mundo sempre a pensar nos pinheiraes da minha terra, e fui cami- nhando até encontrar um sitio que me fizesse lembrar da serenidade austera do meu Douro e onde encon- trasse alguém que me faltava lá. Aqui achei esse sitio e aqui fiquei ; aqui encontrei o paraizo e o anjo que me aguardavam lia muito. O anjo, bem sabes tu, era a menina do tope vermelho. Foi verdadeiramente uma vaga da fortuna que nos ajuntou. Vi-a e amei-a. Has de lembrar-te d'ella, meu amigo, d'e]la, aquella visão (la fita encarnada, fita que eu ainda conservo no meu relicário intimo. Nunca eu soube vasar na palavra o sentimento. D'essa vez, poróm, senti-rae poeta. Escrevi uns versos a Júlia e mandei-lh'os ; os versos eram

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simj)losmento um podido. A resposta foi o topo ciicar- iiiido ([lio lho prendia a trança. Júlia tinha attendido a um oaprioho de namorado.

Aproveito a oceasião atalhei eu para to pedir perdão d'uma deslealdade que me pesa. Possuo os teus versos.

Nflo te acredito replicou de golpe Rodrigo.

Acredita e perdoa. Copiei-os ha dois aunos, do teu álbum, emquanto esperava na sala. Doeu-me que ficassem para sempre na obscuridade e quiz possuil- os, confiando na tua amizade, Rodrigo.

Pois bem continuou elle. Deves então sa- bei' o resto. Júlia substituiu o laço encarnado por ou- tro azul. Tive a velleidade de o querer possuir também. Escrevi-lhe ainda estes versos disse-me elle tirando do bolço o seu album-carteira.

Li e copiei, com assentimento de Rodrigo, os ver- sos que se intitulavam :

COR DO CÉO

Olha, a fita cor de rosa, Que te pedi, era linda. Mas talvez que seja ainda Mais bonita a que puzeste. Cor do céo, azul celeste!

Tinha aquella a corda rosa, Era d' uma cor tão fina, Que enganara a mariposa, Se a encontrasse na campina

N

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Suspensa sobre uma haste. Tinha a cor que tu mostraste, Quando eu te pedi a fita E tu, dando-m'a, coraste...

Vê, pois, como era bonita!

Todas as urnas cheirosas Que o mez de abril nos descerra Teem aquolla cor. Na terra São assim todas as rosas.

O azul ó raro nas flores ; Que o Pae que tudo nos deu Variou no mundo as cores Mas quiz o azul para. . . o céo.

Pintor, quanto mais tu pintas Dando ao quadro um quê d'ethereo. Na combinação das tintas Não attinges o mysterio Com que o Divino Pintor Preparou tão linda cor !

Não sei, ó anjo, se tenho Diante dos olhos um véo ; Ou se a cor que tem a fita Tanto a cor do céo imita Que as não discrimino ou ; Ou se n'uma noite o vento. Descendo do firmamento. Trouxe um retalho. . . do céo 1

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Dá-iii'a. Sabes quo mo faltam As azas d' um chorubim. Tu pódos subir ao cóo, Trazer do mais setim, Mas eu não posso, mas eu...

Querem uns o céo inteiro Para si ; tenho-o ouvido. Sou menos interesseiro, Limito mais o pedido. Eu. . . dava o prazer mais doce Por um retalho . . . que fosse.

A belleza do pedido assegurava d'ante-mao um óptimo resultado, meu Rodrigo.

A belleza não ; deves dizer a sinceridade. Júlia deferiu ainda e euviou-me a fita cor do cóo, perfu- mada com os aromas dulcíssimos das suas tranças negras. Depois tive pena de ver despida d'enfeites aquella cabeça gentil, e enviei-lhe uma grinalda de flores de laranjeira, na véspera do dia marcado para o casamento. . . Foi ao declinar da tarde que se celebrou a cerimonia religiosa. Affluiu á porta da igreja a po- voação inteira. O pae de Júlia foi um homem do mar, um capitão de navios, que era bemquisto de todos, e esta boa gente da beira-mar continua a consagrar á filha a dedicação que tributou ao pae. Eram rapazes e raparigas, homens e mulheres por toda a parte. Foi um dia de festa em Leça. A tarde estava serena e a noite vinha plácida. Quando sahimos da igreja, o tio Paulo, um pescador velho e agradável, chegou-se a

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nós e (iisse-nos : Boa viagem os espera. O céo está limpo e o mar 6 de rosas. Com tão bons prenúncios nunca eu receei tempestades. Hão de ser muito felizes, que m'o diz o coração. Yão em paz.

O tio Paulo foi um vidente exclamei eu.

Se foi ! acrescentou Rodrigo Se foi ! Por aqui ficamos n'estas solidões da beira-mar, que para logo se povoaram de fadas encantadas. Era o cortejo que precedia a chegada do nosso filhinho. Hei de ii* agora com minha mulher e meu filho visitar as mon- tanhas da minha terra. Quero dizer a Júlia, quando chegar : Detraz d*aquelles pinheiros ha uma casa de campo onde também não entrou ainda a corrupção da cidade. Alli foi o meu berço.

Em março d'este anno partiu a familia de Rodrigo para Sinfães. devem de estar a esta liora, na Casa dos olivedos, sem que Rodrigo tenha dado ainda pela falta do visinho commendador e do visinho deputado.

Porto junho de 1869.

NO HluSSAOO

Em 18G6 fiz eu parte d'uma tumultosa caravana de romeiros que partia da qare das Devezas, por uma formosa tarde de junho, em direcção ao santuário ve- nerando do Bussaco. Esta nossa divertida romagem tinha quasi o caracter d'uma emio-ração d'andorinhas que se fossem deliciar u'aquella primavera eterna do Libano portuo*uez, tão copada de sombras e c^orgeada de cantares festivos. Chegamos de noite á Mealhada e, como quizessemos adiantar caminho, partimos para Luso. Alii pernoitamos nós na

HOSPEDARIA LUZITANNA

NAS GAZAS

DE \ASILI0 FERNANDES lORZE

como constava textualmente da taboleta estampada na fachada do hotel.

A orthoo-rapliia irregular do nosso hospedeiro

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corria parelhas, segundo experimentamos e segundo eu pregoei para desengano dos incautos n'um folhe- tim do Camjjeão das Provincms, com a irregulari- dade culinária do serviço da casa. Deram-nos, pois, os da hospedaria uma desastrosa ceia que faria o de- sespero do doutor Yéron.

Nós todos, os romeiros da caravana e um académi- co de Coimbra, cujo nome sou obrigado a occultar, fo- mos as victimas expiatórias da inexperiência culinária do cosinheiro de Luso.

Não ha meio para estreitar relações d'amizade como a similhança de destinos em pessoas até alii desconheci- das. Foi exactamente o que nos aconteceu a nós e ao académico de Coimbra. No fim da dissaborida refeição não estávamos conhecidos, senão também amigos.Logo traçamos em commum o roteiro da nossa peregrinação. Ficaram peitados os criados para que levantassem ce- leuma ao desabrochar da manhã. Aquelle de nós que se quedasse refocillado no leito, depois do aviso es- tridulo, incorria na pena de madraço exarada no có- digo que para logo formulamos, reunidos em areópago.

Ao entreluzir da primeira aurora, espertaram-nos os criados. Nenhum de nós incorreu na pena estatuída; houve completo respeito ao código.

Os Índios não acatam de certo mais religiosamente os seus Vedas.

Quando sahimos do hotel, começava a animar-se a natureza e a pompear as suas galas esplendidas. Do Luso ao Bussaco foi verdadeiramente um passeio bu- cólico.

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O aradomico de Coimbra tiiilia vindo alli innumo- ras vozes o para loí^-o se oneroccii como riccrotic. (riiia- (los por elle subimos a montanha sem esbarrarmos por raminhos travessios. Ale^c;res marinhamos a coberto (l^aqueUas immensas abobadas de verdura, que se nos alVii:;uram suspensas no ar como os jardins de Baby- lonia, até que defrontamos com o humilde cenóbio dos carmelitas descali,'OS.

A respeito do mosteiro do Bussaco escrevia eu a um amigo intimo, em 186G, no Canipeão das Provín- cias, as palavras que se seguem :

«Subindo a um terrapleno assombreado de fron- dosas arvores, entramos ao mosteiro por um zagão calçado de seixos e forrado a cortiças, aberto em trez arcos de cantaria sobre os quaes assenta a fabrica hu- milissima da casa. Em frente do arco central do zagão de rosto a porta do claustro : eis que nos ap pare- cem logo, como para iniciar-nos nos segredos da clau- sura, os painéis mal allumiados de dois religiosos da ordem. « O da mão direita, ua expressão de frei João do Sacramento, está abraçado d'uma cruz, mj^sterioso indicio de que ó, o que dentro unicamente se abraça. O da esquerda está, como fechando a boca com dois dedos, aceno claro de silencio, que alli inviolavelmente se observa. » O que te não posso explicar, meu amigo, é a impressão suavemente dolorosa, que nos assalta a alma no meio d'aquella simplicidade extrema e serena melancolia do mosteiro. Mal acredita a gente que vai entrar em domicilio de frades, ao ver a pobreza do

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Zcigão que, se não foram os seus trez arcos de canta- ria almofadados a picão com frisos de escopro, faria apenas lembrar a entrada para a gruta d'algum des- conhecido eremita, que fizesse vida de penitencia no retiro d'aquelle monte.

Mas ao entrarmos no claustro, meu amigo, onde se respira em tudo um perfume de tristeza, ao vermos pendentes das paredes os retratos li vidos dos monges mal allumiados da escassa claridade que alli entra, no meio d'aquelle frio silencio de casa deshabitada, que- brado apenas pelo som monótono dos nossos passos, então, como dizia, sentimos os olhos humedecidos de lagrimas e os pés como que chumbados ao lagedo do pavimento. Ficamos alli como que petrificados, in- decisos, absortos, sem saber se devemos continuar a visita áquella casa, que tem os ares d 'um tumulo de vivos, se devemos sahir para respirar desafogada- mente no meio da montanha. Custou-nos, de certo, muito mais o entrarmos alli, porque vínhamos de fora com os oUios affeitos ao alegre espectáculo d'a- quella festa bucólica, que a natureza nos apresenta em todo o monte, e com os ouvidos costumados aos cantares dulcíssimos das aves. E' por isso que nos foi muito mais sensivel e oppressivo o contraste. »

Depois de termos visitado demoradamente o mos- teiro o a igreja, caminhamos para o norte, descendo ao valle, e chegamos á Fonte fria, cuja agua, !io dizer de frei João do Sacramento, clironista da ordem, sendo tein2Je?'ada de inverno, escusa neve de verão.

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Alii, n'ess{i sohibni deliciosissimii dii Iuj)tl(t fria, acampou a nossa caravana. Travoíi-sc conversa(,'ão animada, c nem ou sei como viemos a fallar dos ho- mens políticos que as tempestades civis da nossa terra deportaram para o Bussaco. Citaram-se os nomes do cardeal D. Carlos, que alli esteve por ordem do govei-no (^m 1821, do arcebispo de Braga D. Frei Miguel da Madre de Deus, do bispo de Pinhel D. Bernardo Bel- trão e de Galvão Palma, prior da freguezia de Mon- saraz, ([ue alli estiveram retidos por motivos politicos '>m diíierentes épocas.

E quantos disse-me o académico de Coimbra não teem vindo esconder n'estas sombras do Bus- saco o segredo das muitas lagrimas em que deixaram afogar o coração ! D'um sei eu, que deveu morrer n'este sitio em que estamos. A vida d'esse pobre i"apaz dava matéria que farte para um livro. Hei de contar- llra, antes de nos separarmos.

Pode ser hoje de tarde i-epliquei eu.

Seja respondeu-me elle. Vamos descançar para o mosteií-o doestas calmas do meio dia. De tarde voltaremos aqui e contar-lhe-hei a historia. Está pa- ctuado.

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Estávamos, o académico e eu, na Fonte fria^ á hora saudosa do sol-pôr ; elle deixava entrever no semblante uma sombra de tristeza, e eu mal podia comprimir a anciedade que me excitava.

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O heroe da historia que lhe von contar dis- se-me elle era um rapaz da minha aldeia, que fre- quentava o quarto anno juridico, e a quem eu fui re- commendado, quando entrei para a Universidade. Como sabe, tiro este anno carta de bacharel; vai, pois, isto ha cinco annos. Era um rapaz de mão cheia, como se costuma dizer. Chamava-se. . . Quero eu que se chame Eugénio da Silveira. Tinha elle uma grande intelligencia e um grande coração. Veja que era uma d 'estas creaturas que nascem para a desgraça como certas flores que desabotoam de noite, sempre cober- tas d 'orvalhos, que são lagrimas, e sempre saudosas do sol, que ó a felicidade. E uma verdadeira desgraça nascer um homem com um coração cuja delicadissima sensibilidade se não pode afferir pelo padrão commum da humanidade. Eugénio da Silveira tinha alguns raros momentos d'alegria em que lograva conversar com ver- dadeira jovialidade, borboleteando da facécia á satyra e da satyra ao epigramma. De repente, porem, descahia n'uma tristeza profiindissima e, n'esses momentos de concentração, não havia arrancar-lhe palavra. Poucos dias depois d'elle ter concluido brilhantemente os seus actos, dava eu de mão aos trabalhos do primeiro anno juridico. Sahimos, pois, ambos de Coimbra em direcção á nossa aldeia.

Eugénio da Silveira tencionava, porem, ir a ba- nhos do mar para a Foz, em agosto. Sahiu de Coim- bra n'esse propósito e chegou a realisal-o.

Quando eu" voltei a Coimbra para matricular-me nas aulas do segundo anno, vi-o lá.

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Tom estudo na Foz? porfiou ntei-llic eu.

Vim de liontem e para volto, lo^í^o que mo matricule. Ainda não sei bem quando se abrirão as aulas. Se fica por aqui, avise-me do dia da abertura.

Avisal-o-hei. Fique certo.

b]screvi a Eugénio da Silveira, quando começaram as aulas. Ficamos a habitar na mesma casa e ate no mesmo quarto. Notei, porém, alguma differença no Eugénio. Pareceu-me mais triste ou mais alheado. Rai-as vezes entrava n'um cavaco de rapazes e raríssi- mas n'uma questão scientifica, que se ventilasse á hora do jantar. Nas ferias do Natal sahiu de Coimbra o disse-me que seguia para o Porto.

Quer alguma coisa para ? perguntou-me elle, no dia da partida.

Se o não incommódo, queria.

O que era ?

Uma carta para a viuva do negociante Teixeira Pinto.

Conhece-a ? atalhou de golpe Eugénio, re- cuando e fitando em mim os seus grandes olhos cas- tanhos.

Conheço. Foi uma das companheiras da meni- nice de minha mãe. Esta carta leva o meu retrato e o por isso que eu desejava entregal-a a portador de con- fiança.

O seu retrato ? insistiu Eugénio.

O meu retrato. Quando vim para Coimbra, vi- sitei-a por ordem de minha mãe. Quasi me não lem- brava d'ella. O certo 6 que se reataram as relações

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antigas. Instou a viuva pelo meu retrato para o seu álbum e eu prometti-o, com a condição de o mandar de Coimbra porque me tinham esquecido todos os re- tratos que tenho. E tempo de cumprir a minha promessa.

Que sentimento lhe inspiraram as filhas da ve- lha amiga de sua mãe, se ó licito perguntar ?

^ O do respeito simplesmente. Achei-as dignas de estima e de felicidade. Oxalá que ellas a encontrem. A mãe deu-me a entender que estava próximo o ca- samento da Maria do Carmo com um sujeito endi- nheirado.

Não pode ser exclamou Eugénio, mostrando nas faces uma pallidez cadavérica. O senhor está abusando da minha curiosidade sincera. Maria do Carmo ama-me concluiu elle, accentuando as pala. vras gravemente.

Perdão tornei eu entre humilde e pesaroso. Mil perdões. O senlior Eugénio da Silveira sabe que me inspira a máxima estima e que sou incapaz de abusar da sua sinceridade.

Tem razão amaciou elle com os olhos mare- jados de lagrimas. Eu sou que devo pedir perdão. Excitei-me n'um momento d'angustia, mas de verda- deira angustia, acredite. Agora absolva-me. Eu amo Maria do Carmo desde os últimos dias d'agosto d'este anno. Tinha-a visto uma vez na minha vida, no Porto, o desde então conservei uma lembrança vaga, mas suave, d'a(iuclla mulher. Em agosto quiz Deus que nos encontrássemos e cuido que nos ficamos amando

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para toda a vida. 8e Maria do Carmo vai casar não o sabe ; estou certo d'isso. K incapaz de me en^^anar aquelle anjo. Tenho aqui uma carta d'ella em (juo me pede que vôl-a nas ferias. Hei de ir. (^uero saber a verdade e... morrer depois. Dè-me a sua i'arta ; ii'ei entre^"al-a pessoalmente.

Apertamo-nos as mãos e separamo-nos.

m

Quando Euí;"enio da Silveira voltou a Coimbra continuou o académico pareceu-me vellio. Disso-me que tinha entregado a minlia carta e que encontrara em casa da viuva Teixeira Pinto o sujeito indigitado para noivo de Maria do Carmo.

o vi disse Eugénio. O senhor tinha ra- zão. Cuido que a viuva está inclinada para este casa- mento e que levará a sua crueldade* ate o extremo de sacrificar o coração e a vida da fillia. Pudemos, eu e Maria do Carmo, disfarçar as nossas relações diante da viuva. Apresentei-me como um homem ver- dadeiramente desconhecido e trocamos apenas pala- vras cerimoniosas. Estou todavia no propósito d'ir pedil-a em casamento nas ferias da Paschoa ; será minha no fim do anno lectivo.

Decorreram-se mezes sem que Eugénio da Silvei- ra recebesse carta de Mai-ia do Carmo. Escrevia-lhe regularmente e não recebia resposta. Offereci-me para saber por minha mãe a verdade do que se passava.

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x^ào quiz. O pobre moço tinha medo de se desenganar.

Estão próximas as ferias disse-rae um dia. Irei eii mesmo. Maria do Carmo ainda não casou; cstá-m'o dizendo o coração. Comtudo receio por ella, que é crédula e pode dar ouvidos ás infâmias que levantarem a meu respeito, se 6 que suspeitaram das nossas relações.

Eugénio da Silveira veio ao Porto e não viu Maria do Carmo. Dizia-se que casava com o sujeito indigi- tado. Eis tudo o que pôde colher. Quando voltou a Coimbra, lançou-se nos meus braços e desatou a cho- rar. Fazia pena vel-o. Era preciso que eu o acompa- nhasse para que fosse ás aulas ; de contrario não ia.

Entretanto definhava consideravelmente e tinha cabido n'uma melancolia perigosa. Fazia annos por esse tempo, o Eugénio. No dia natalício brindára-o a velha esposa do seu correspondente, que era amiga de sua mãe, com um ramo de flores.

Em agradecimento ás flores escreveu Eugénio es- tes versos, que eu decorei e que não chegaram a ser lidos pela pessoa para quem tinham sido escriptos.

AGKADECENDO AS FLORES

(no dia dos meus annos)

Mandaes-mo, senhora, ílôros Bom sabeis quanto as eu amo. Tão variadas nas coros ! Lindas rosas I hndo ramo !

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Foi bom acertada a escolha, Quo os tem|)oraos do janeiro Desfizeram folha a folha As galas do meu jardim. . , Está viuvo o jardineiro. . . Olhai o pobre de mim !

Y\ chegar o abril florido, Que vem sempre prazenteiro, Sempre lindo e bem vestido. Ai ! mas não chegaram ainda As flores do meu canteiro ! Vejo que chega e que finda Este mez de tantas flores Sem que me traga comsigo Os meus tão queridos amores ! . . Nem abril é meu amigo !

A vossa offerta, comtudo, Engana a minha pobreza. . . Tenho flores sobre a mesa, E ó bem mais suave o estudo Quando as tenho ao de mim ! Pobres flores ! sou assim !

Mas ai ! quando eu vir pendido O vosso ramo, senhora ! Yêr que está tudo perdido ! Não ter o que tive outr'ora ! Baldada toda a canceira ! Toda a seara desfeita ! De risos. . . a sementeira ! De maguas. . . toda a colheita !

Senhora, vivo captivo De mil lembranças passadas. É de saudades que eu vivo. . . Esp'ranças, essas., , mirradas!

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Estou pobre e pasmo agora De ver tamanha pobreza ! Olho toda a redondeza . . . Não vejo nada de meu ! Tantas ílôres na montanha ! Tantas estrollas no céo ! Ai ! que pobreza tamanha !

O mundo tão opulento E eu me vejo assim ! Ha astros no firmamento. Tem flores qualquer jardim. Nada é meu, pobre de mim !

Ai ! quanto me não penhora A vossa oííerta, senhora !

Mas eraquanto estas viçarem Não serei pobre. . . de flores. Depois, mal que descorarem, Adeus rosas ! meus amores ! Comtudo inda espero tel-as **

Das mais tristes e singelas, Boninas d'inculto chão, Ao d'aquelle cruzeiro Onde tanto caminheiro Pára a fazer oração . .

Que triste seria o somno ]

De que níío se acorda mais,

Sc as pobres ílôres da serra

Deixassem ao abandono

Os sete palmos de terra

Onde todos são iguaes ! . . .

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l)'ossas esporo indíi tol-as . . líom hajaos, ílòros singelas, Pobres ílôros, bem hajaos I

Vi quo se aggravavam os padecimentos de Eugé- nio e não avisei o correspondente mas noticiei para a minha aldeia.

Yeio a Coimbra o irmão mais velho de Eugénio, que era o senhor da casa e quiz trazel-o para o Bus- saco, ainda com o risco de perder o anno.

Teimou o doente que não sahiria sem concluir o curso e o certo 6 que, com grave sacriíicio da sua pouca saúde, terminou a formatura. A esse tempo cliegou a Coimbra uma carta de Maria do Carmo para elle. O pobre moço mostrou-m'a. Dizia-lhe que tinha conseguido apiedar a mãe, que tinha soffrido muito e que entrevia de novo a felicidade, que julgara perdi- da. Percebi que o Eugénio não podia escrever sem grande esforço e disse-lhe que escreveria em seu nome

Xão respondo volveu-me elle. Eu morri para o mundo. A mulher que eu amava, morreu tam- bém para mim. Não me falle no nome d'ella para não evocar recordações dolorosas. Esperei muito tempo que me escrevesse ; vi finalmente que não tinha que- rido roubar á sua felicidade um momento em que tra- çasse duas palavras. A sua felicidade disse eu; e disse bem. Ella deve ter sido feliz com os sorrisos do es- poso promettido. Como o senhor vai para ferias concluiu elle ordem em casa para queimarem todas as cartas que me sejam dirigidas.

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Os irmãos Silveiras sahiram de Coimbra commigo. Eu viuhà para o Porto e elles ficaram na Mealhada ; d'alli vieram para o Bussaco.

Na véspera da nossa partida, pediu Eugénio ao irmão que o deixasse fazer a mala. O irmão annuiu, suppondo que elle quereria guardar cautelosamente as cartas de Maria do Carmo. Como o visse, porém, lançal-as ao fogo, suspeitou do caso e foi remexer na mala.

Encontrou um reivolver escondido entre uns casa- cos e uns livros.

Eugénio ! disse-lhe o irmão com gesto repre- hensivo Procuravas enganar-me ! Não te queiras dar em holocausto aos teus algozes. O mundo diz que o suicídio é filho da loucura, e tu deves querer que o mundo saiba que morreste em teu juizo para conde- mnares até o ultimo momento a deslealdade trai(;oeira da mulher que amaste.

Eu não condemno ninguém respondeu Eu- génio.

IV

8eparei-me de Eugénio da Silveira na Mealhada ' com a convicção profunda de não tornar a vôl-o disse-me o académico com os olhos húmidos de lagri- mas. — Quando cheguei ao Porto puz todo o meu empenho em não perder um momento, antes de pro- curar a viuva Teixeira Pinto. Fui visital-a ; ao subir as escadas senti uma vertigem, que me fez demorar

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no patamar ali^uns monientus. Anniinciuu-me o criado e Maria do Carmo, ouvindo o meu nome, correu í\ sala. Achei-a demudada, cm verdade. Tinha os olhos roixos de chorar e as faces cobertas d'uma pallidez marmórea.

Onde está o Eugénio ? interrogou ella anciosa- raente, ao entrar na sala.

No Bussaco, minha senhora, e cuido que não voltará.

Está doente? Morre ?

Penso que não resistirá ao desgosto incom men- surável que o vai matando lentamente. Para vossa excellencia, porém, morreu ha muito tempo.

Julga-me então criminosa ? disse ella, dando á phrase a vehemencia do desespero.

Julga.

Sabe Deus que o não sou.

E vossa excellencia que provas tem em seu favor ?

—^0 testemunho da consciência.

Todavia a consciência é um tribunal cuja de- cisão não chega ao mundo exterior. . .

É infelizmente verdade isso. Deus sabe, porém, que amei sempre o Eugénio.

Por que lhe não escrevia então ?

Porque m'o prohibia minha mãe. Porque me tinha vigiada a toda a hora. Porque me tinha encer- rada iresta casa como em clausura onde mal entrava o sol.

Por que não reagiu ?

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E podemos nós reagir contra a vontade de nossa mãe ? perguntou ella com uma timidez adorável.

Que dúvida ? Quando a superioridade chega ao extremo d'impôr deveres ao coração, quando nos que- rem levar para um futuro que nos repugna, quando usam da força em vez da brandura, a reacção 6 legi- tima, porque a obediência era o servilismo mais in- digno d'este mundo.

Cale-se, que nos podem ouvir murmurou ella timidamente.

Que oiçam, muito embora. Eu sei que sua mãe ó boa, minha senhora, e é por isso que lamento que tenha o espirito ainda eivado d'estes preconceitos so- ciaes. Cada alma procura o seu rumo, como a agulha procura o norte. As almas não se subjugam ; é um crime tentar subjugal-as. Todos nós caminhamos para o nosso fim, desenvolvendo as nossas faculdades. Ha em nós uma faculdade d'amar; amemos, pois. Querer abafar em nós a sensibilidade, 6 querer dominar a nossa natureza. O que é o amor? O amor, como diz Ale- xandre Herculano, aquelle grande pensador do Eurico, ó «o mais profundo e enérgico dos affectos humanos, o amor, que une dois espíritos como dois fragmentos de um todo, os quaes a Providencia separou ao lan- çal-os na terra, e que devem buscar-se, unir-se, com- pletar-se, até irem depois da morte formar talvez uma existência de anjo no seio de Deus. » Não queira- mos nós neutralisar esta força de cohesão que tende a identificar duas almas na suprema harmonia dos espíritos. Sei bom que a mãe de vossa excellencía ó

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um coraçHo nobilíssimo. Leva talvez a pobre scnliora as suas horas a pensar no futuro das duas pombas do sou lar, que desde meninas ató moças lhe toem sido delicias e cuidados. Sonhou de certo, n'uma d'essas horas de profundo cogitar, que entreviu a felicidade d'uma das suas filhas dilectas, e acenou de longe á imagem que sonhara e que não passava d'um phan- tasma.

É verdade disse ao entrar na sala a mãe de Maria do Carmo, que ouvira as minhas ultimas pala- vras. — E verdade. Imaginei que a affeição de minha filha fosse apenas um capricho dos vinte annos, que se vencesse facilmente com uma opposição temporária. Enganei-me, porém, e Deus sabe que profundas amar- guras me estão dilacerando o coração n'esta hora d 'expiação suprema.

Pobre Eugénio ! murmurou Maria do Carmo, abafada em la2:rimas.

Pobre Eugénio repeti eu. Está irremedia- velmente perdido. A vida do desventuroso moço é apenas o bruxolear extremo da lâmpada que se ex- tingue. E que importava que uma força sobrenatural o salvasse? O Eugénio tem o caracter dos grandes pensadores: é propenso á dúvida. As lagrimas d'estas duas pobres senhoras que me escutam, não poderiam desfazer a nuvem tenebrosa que lhe escurece a alma. A duvida é fria como o gelo, sombria como a noite: e o Eugénio duvidou uma vez, o que equivale a dizer que duvidaria toda a vida.

Meus Deus ! exclamou Maria do Carmo

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Quero vêl-o. Quero vêl-o e dizer-lhe que sempre o amei, embora elle não acredite nas minhas palavras. Se morremos meus braços, pedirei á sua alma que me perdoe e jurar-lhe-hei que não serei de mais ninguém n'este mundo. Oh ! minha mãe, deixe-me vêl-o uma vez . . .

Vêl-o-has, minha filha. Yel-o-has disse a po- bre senhora abraçando-se em Maria do Carmo.

Comprehendi concluiu o académico que a minha presença era importuna n'aquelle momento solemne, e sahi de casa da viuva Teixeira Pinto com o coração alanceado de tristeza.

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Contou-me o irmão de Eugénio da Silveira tudo o que se passou desde a minha visita á viuva Teixeira Pinto até ao desfecho lutuoso d'este drama dis- se-me o académico.

O pobre Eugénio tinha cahido n'uma melancolia profunda e vivia, se 6 própria esta palavra, completa- mento absorto no seu único pensamento. Pouco dor- mia e quasi não fallava, o desgraçado moço ; ao aba- timento moral succedôra uma lethargia que tinlia aniquilado a immensa robustez da sua compleição

Ao Hm da dardo costumava vir, pelo braço do ir- mão, sentar-so aqui ao da fonte, quem sabe se n'este mesmo banco em que nós estamos, se n'aquelle que

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nos fica fronteiro. Aqui se quedava esquecido a scis- mar |3or loni;'o tempo, com os olhos fitos n'um ponto (jue seria ditficil determinar, e onde Deus sabe se elle veria sorrir-se-lhe o anjo da morte ou delinear-se-llie a imai;em saudosa de Maria do Carmo ainda contor- nada d'uma luz suave como a dos últimos clarões d'um crepúsculo do estio.

Vèl-a-ia elle n'aquelle meditar de todas as tardes ? Quem sabe? Eu inclino-me para ahi. O nosso coração 6 assim. Morremos a beijar a mão que nos vibrara no seio a punhalada e que, momentos antes, diri^í^ia, no mar da vida, o leme da arca santa da nossa alma.

Xunca ninguém viu que o Eugénio chorasse. Ti- nlia os olhos sêccos e o coração cheio de lagrimas. O irmão senta va-se por aqui, perto d'elle, a contem plal-o com a vista embaciada de pranto. Para esse 6 que era o chorar.

Quando se apagava no occidente o ultimo raio de sol, levantava-se o Eugénio, como se não tivesse luz para ver a imagem querida, ou como se o amedron- tassem a escuridade e a solidão, que o faziam lembrar talvez da noite do tumulo, que estava próxima.

Então os dois irmãos davam-se o braço e voltavam ao mosteiro, calcando as folhas soltas no chão e ca- minhando por entre as sombras que se abraçavam aos troncos seculares.

Devia de ser magestoso aquelle grupo !

Aqui interrompeu o moço académico a narração como para desenhar na imaginação os vultos dos dois

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irmãos e, n'esse momento, vi-lhe os olhos brilhantes de lagrimas.

Pouco depois continuou :

Devo tel-o fatigado com a minha historia, mas prometto abrevial-a.

Uma tarde estavam aqui os dois irmãos Silveiras; o Eugénio a scismar, o outro a contemplal-o.

O Eugénio accordou n'esse dia muitíssimo peior e - custára-lhe até chegar ao seu pouso de todos os dias. Estava, pois, o irmão a contemplal-o, quando ouviu perto o rumor de passos. Ergueu a cabeça subitamente e viu, a pequena distancia, duas senhoras que se aproximavam.

Uma d'ellas, n'esse momento, correu precipitada- mente para Eugénio e, ajoelhando-se-lhe aos pés e apertando-lhe os braços para que levantasse a ca- beça, exclamou com anciã :

Eugénio! Eugénio! Sou eu que te venho dizer que sempre te amei e que estou innocente. Eugénio! Ycs-me? Conheces-me? Olha para mim sequer...

Então elle, como que despertando d'um somno profundo, empregou um esforço supremo para se sol- tar dos braços d'ella, e levou as mãos aos olhos para sacudir uma nuvem que lhe turbava a vista.

Encarou em Maria do Carmo e, fazendo menção de se levantar, exclamara apenas :

Ah ! E' pois certo !

Quiz levantar-se e não pôde. Cahiu extenuado nos braços do irmão e da viuva Teixeira Tinto. Houve uma pausa de silencio entre os trez espectadores.

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Passados momentos, ergueu a fronte lentamente e fitou de novo Maria do Carmo.

Perdôa-me murmurou ella. Perdôa-me que estou innocente.

O Eugénio qui/ falUir e não teve vida para tanto. Meneou a cabeya atfirmati vãmente e cahiu morto no regaço de Maria do Carmo.

O académico e eu ficamos largo tempo calados.

Maria do Carmo disse-me elle momentos depois está n'um convento de Braga, d'onde jurou não saij-. O cadáver de Eugénio da Silveira repoisa no cemitério da minha aldeia, que também era d'elle, em caixão de chumbo. Se o senhor for algum dia visitar as montanhas da minha terra, e eu estiver, verá como ha-de achar coberta de flores a sepultura do Eugénio. Sou eu que liras vou pôr. Tenho ainda muito viva no coração a saudade d'aquelle homem e a memoria d'este drama.

Porto— 18G9

o MORGADO DO URGAL

Fui visitar, ha dias, os pardieiros do Urgal. Vi- sitar não 6 a expressão própria. Da lomba do outeiro próximo é que eu avistei a casa em ruinas, sotoposta a um souto de castanheiros seculares.

A Ludovina, uma lépida pequerrucha que tem sido o meu fidus Achates n'estas peregrinações pela aldeia, acompanhou- me ao sitio onde cheguei e mos- trou-me a casa, de longe, com a sua pequenina mão queimada do sol, dizendo-me : E acolá.

Senti apertar-se-me o coração diante d'aquellas ruinas. O telhado está desmantelado, os caixilhos des- conj unctados, e as janellas cuido que trancadas para sempre. Algumas trepadeiras foram marinhando pelas paredes e calafetando providencialmente as juncturas abaladas da frontaria.

Pedi á Ludovina que me levasse d'alli ; estava-me fazendo mal aquillo.

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Descemos o outeiro, embetesgarao-nos por uns atalhos pedregosos e fomos dar ao casebre da Laiza. da Grranja. O pae de Ludovina, avisado pelo estré- pido dos passos, sahiu ao quinteiro a receber-me.

Guarde-o Deus, sor fedalgo disse elle. E ha de perdoar o modo como appareço. Isto são nódoas de vinho novo continuou, indicando as manchas arroxeadas da camisa. Temos andado na vindima^

Essa é boa, Manoel 1 Yocê está em sua casa.

Mas como diz o outro, a gente deve andar limpa. Ora ó verdade. O caso é que se não fosse a. curgidade de saber a historia do morgado do Urgal, como me disse a pequena, ficávamos d'esta vez sem ver o fedalgo!

É de notar que a palavra fidalgo, em boca de ho- mem do campo, é synonyma de cidadão. E não deve estranhar-se que elles nos concedam voluntariamente ^ôro de nobreza, n'uma época em que os governos o estão barateando abel-prazer. O que me admira ó que se não anteponham a quaesquer outros no gozo d'estas e quejandas honrarias ; sobejavam-lhes razões de pre- ferencia. . .

É verdade, Manoel, vamos á historia, se tem occasião para isso.

Sim, senhor, vamos lá. Está-me fervendo o vinho no lagar; agora não ha que fazer.

Sirva isto d'introducção á biographia do morgada do Urgal.

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O pae de Miguel Soares, de quem se trata, era Cosme Soares, lavrador activo, intelligente e laborioso, que frequentara em tempo as aulas de Lamego e que, lembrado ainda d'umas regras de latim que apren- dera, incitava os caseiros e os criados ao trabalho dos campos apontando-lhes esta máxima : Dulce post la- Ijorein.

Tinha Cosme Soares, quando rapaz, ura tio abbade na freguezia, velho e rheumatico, irmão do pae, que dera de conselho ao irmão mandar o sobrinho ordenar-se a Lamego no intento de que, por sua morte, ficaria o rapaz provido na abbadia. Foi Cosme Soa- res para Lamego, a despeito da mãe que o não queria fora de si, pelo muito que o amava. Vencidas as difficuldades da lingua pátria, viu-se Cosme Soa- res a braços com a sphinge medonha da litteratura d'aquelles tempos o latim.

Pôde vencel-a, porém, e preparar-se quasi ma- chinaímente para as aulas de theologia, quando um accidente inesperado veio pôr em sobresalto o coração do pae afflicto e dar rebates de alegria no seio aman- tíssimo da mãe.

Cosme Soares estava namorado. Era uma senhora de Lamego, formosa e rica, a mulher seductora que logrou prender nas algemas sua- víssimas do amor o coração do moço estudante.

Soube-o o pae de Cosme e dispunha-se a resistir violentamente á vontade do filho, dias antes de lhe chegar ás mãos uma carta d'elle em que o moço de- clarava renunciar reflectidamente, segundo dizia, a

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uma vida para que não tinha vocação natural. O pae regoiigou de cólera ; acudiu-lhe, porém, ao escabujar violento a carinhosa esposa. Parecia que o velho per- sistia no propósito de ordenar o filho. Mas era diffe- rente o parecer da mãe, que soube vencer a repu- gnância do marido e do cunhado, o abbade, aformo- sentando na phantasia d'arabos o quadro exuberante de poesia domestica em que Cosme Soares apparecia ao lado da esposa formosissima e dos filhos peque- ninos, que sorriam de felicidade aos avós e ao tio abbade.

Pôde a mãe de Cosme Soares vencer o pleito a favor do filho. Fecharam-se os livros e casou-se o rapaz. Houve completa alegria na casa do Urgal, quando Cosme Soares e a esposa apontaram á porta ladeada de caseiros e criados.

Não veio sombra de temporal graças a Deus ! escurecer o firmamento alegre d'este hymeneu.

O caso é que d'ahi a dois annos realisavam-se as| prophecias da mãe de Cosme : era avó de dois netos.

Chamavam-se os pequenos Miguel e Manoel ; Miguel era o mais velho.

O tio abbade quasi não sentia o rheumatismo de contente que andava. O pae de Cosme Soares re- via-se nas graças seductoras das creanças, e a esposa, mais solícita do que elle, levantava-se, noite velha, para ir espreitar os netos e achegar-lhes das cabeças loiritas a coberta d'algodão.

O tio abbade e o irmão não lograram chegar, po-

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róm, á maioridade dos rapazes; morreram com pe- queno intervallo de um a outro.

N'esse tempo tinha Miguel dezesete annos e Ma- noel dezeseis.

Cosme Soares, a mãe, e a esposa vieram ao accordo de que Miguel se formasse em cirurgia, favorecendo d'este modo a posição de Manoel, que ficaria olhando e vigiando as propriedades. Eram causa doesta resolu- ção o génio, a intelligencia e o desamor de Miguel á agricultura.

Foi o rapaz estudar para o Porto e Manoel come- çou a orientar-se na direcção da casa e nos trabalhos do campo.

Ao tempo que Miguel Soares sabia victorioso das suas primeiras lides litterarias, dava a alma ao Creador a velhinha septuagenária, que era sua avó. Por esta occasião escrevia Manoel Soares ao irmão, dizendo-lhe:

« Se estás arrependido, apesar dos teus progressos e da tua intelligencia^ da posição que escolheste, vem.

« A casa tua é ; eu sou apenas administrador e com isso me contento. Sabes que não ^enho aspirações. »

Miguel Soares leu a carta do irmão e não veio ; respondeu simplesmente:

« Eu estou bem. Vive tu a teu modo e vela por nossos pães. »

Yamos nós agora esmiunçar qual era o bem-es- tar do estudante, no Porto.

O leitor, vesado a quejandos enigmas, deslinda-se-

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magistralmente d'este. Succedêra a Miguel Soares o que, annos antes, acontecera era Lamego a seu pae.

Amava também.

Ai ! o amor ! E quem haveria ahi que pudesse resis- tir ao labutar constante da intelligencia, ás noites des- veladas sobre os livros, se n 'estas agruras do estudo lhe não entreluzisse, a espaços, o vulto luminoso da mulher querida ?!

Miguel Soares amava; e n'esta phrase se resume um céo de felicidades e esperanças, raro aguadas por uma chuva de lagrimas, a qual, na peior hipothese, servia para fazer brotar e reverdecer novas felicidades e novas esperanças.

As lagrimas que seccam, que esterilisam, que re- queimam o coração, essas deviam chegar mais tarde; e chegaram.

Acompanhemos Miguel Soares n'um dos dias mais angustiados da sua mocidade, até á porta da aula. E de notar que Miguel Soares vai de luto ; morreu-lhe o pae, o velho Cosme Soares, o honrado e laborioso proprie- tário.

Morreu elle, abraçado á esposa, abençoando o des- tino dos filhos, á hora em que Manoel cahia no leito enfermo d'uma ascite, que o levou á sepultura d'ahi a oito mezes e quinze dias antes de Miguel, alanceado ■de saudades e de mágoas suas, longe do torrão em que nascera, chorar as primeiras lagrimas torrenciaes da sua vida.

Miguel Soares tinha um amigo intimo ; era um seu •condiscípulo. Acompanhemol-o, pois, n'esse dia até á

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porta da aula, durante o curto espaço da parlanda nos corredores.

Que soubeste tu ? perguntou a Miguel Soares o condiscípulo precipitadamente.

Está peior; muito peior respondeu tristemente Miguel.

Quem t'o disse ?

A criada, esta manhã.

N'este momento entrava o professor ; o dialogo íicou interrompido.

Elucidemos o leitor.

Desaninhára-se a serpente da desgraça do seu antro d 'escuridão e viera empeçonhar com a baba immunda os roseiraes floridos do paraizo de duas almas.

Grassavam a esse tempo, no Porto, as febres vario- losas. A mulher que Miguel Soares amava do intimo d'alma, a única que elle entrevia, na solidão do seu quarto, nas horas do estudo, essa, digo eu, cahira no leito, moça e formosa, para se levantar d'elle desfigu- rada com as marcas profundas que lhe crivavam a face.

Diziam os moços conhecidos de Miguel Soares, com grave injustiça ao seu caracter e á sua alma d 'elle, que abandonaria, n'aquelle estado, a mulher que tinha amado bella e formosa entre as outras que mais o eram.

Não aconteceu assim.

Foi longa a doença e longa a convalescença tam- bém. Miguel Soares escrevia todos os dias á doente para saber do seu ^estado ; a resposta, porém, vinha quasi sempre escripta.

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Instou por fallar-lhe, quando viu que poderia obter o que pedia.

Conseguira elle que a senhora assentisse, emfira.

Escreveu-lhe ella indicando a hora da entrevista; o papel, porém, vinha húmido de lagrimas.

O homem da Luiza da Granja, que me referiu a historia de Miguel Soares, substituiu, n'este lance, as palavras por lagrimas. Eu não sei pintar tamanha dor; imagine o leitor o que seria aquella entrevista.

Foi, supponho eu, um chorar anciado e afflictivo,. um soluçar magoado da mulher que perdeu para sem- pre a mocidade e a belleza, e do homem que procura certifical-a de que para elle a belleza e a mocidade eram exiguos attractivos.

Não vingaram, porém, razões.

Entrou-se a consternada senhora de desgosto pro- fundíssimo. Nunca mais se avistou com Miguel Soares ; entretanto escrevia-lhe e fallava-lhe do céo e do hyme- neu de duas almas, que veriam alvorecer a sua au- rora de felicidade.

Uma d'essas cartas foi a ultima;» a mulher, que Miguel Soares amava, voou para o mundo dos espíritos.

Elle, o desgraçado moço, fugiu com a sua dor e com os seus livros para o regaço de sua mãe, que cho- rava, a esse tempo, saudades eternas d'outro filho.

De dia, Miguel Soares assistia compadecido e ca- rinhoso ao declinar da infeliz velhinha; de noite, liaj ou velava, entrevendo a imagem saudosissima nas vi- gílias da leitura e nas insomnias^da febre.

Miguel Soares viveu assim seis mezes.

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A coiisumpçíío foi lenta. Ao cabo d'esse tempo, poróm, a alma de Miguel Soares foi realisar no paraizo o hymeneu aprasado.

Sahiu da quinta do Urgal a viuva de Cosme Soa- res amparada ao braço d'um criado. Dizia ella que ia morrer a Lamego no seio de dois irmãos que tinha, tragando saudades dolorosissimas do marido e dos filhos.

E morreu.

Os irmãos da defunta senhora, herdeiros d'ella, respeitaram e respeitam ainda a casa fatal, que foi tumulo d'uma familia inteira. Não lhe puzeram mão reformadora ; seria doloroso para elles o remexer n'aquelle acervo de cinzas e ruinas.

Quinta de Villa Verde 11 de setembro de 1868.

II

PEREGRINAÇÕES N'ALDEA

Este livro é verdadeiramente aldeão. Nasceu d' uma saudade a saudade dos occasos e das alvo- radas d' uma aldeã e anima-se d'uma esperança a de ser lido nos alegres serões d'aquellas serras, que o Í7ispirarani. Costumei-7ne a viver no campo desde peque- no. Soxello^ uma aldeiola que se não encontra, talvez, na calota de Portugal^ era tudo o que podia haver de suavemente delicioso para a minha infância, «mea regna», como diria qualquer estudantinho de latini- dade.

Sol fora, quando as aves davam rebate nas rama- gens do pomar, levantava-me para ir ter com os camponexes tneus amigos e mais madrugadores do que eu. os encontrava na safra alegres e ififati- gaveis. Conversávamos todos os dias. Eu escutava-os, sentado a vêl-os trabalhar, e elles, sempre cuidadosos na tarefa, contavam casos de bruxas, historias d'amores e tradições do sitio.

Admirava-me eu de que ne7ihum dos ceifeiros aproveitasse uma aberta para se queixar da sorte que os obrigava ao rude trabalho de todos os dias, e

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de que tão pequena povoação nos pudesse dar assumpto de sobra para tão estiradas palestras. A verdade era que trabalhavam contentes e que sempre tinham que dixer e contar. Invejei-lhes a sorte muitas vexes Cj quando entrei na safra das lettras, lembrei-me dos ceifeiros de Soxello e senti alegria. Era um exemplo que dava confoi^to.

Ao anoitecer ia esperal-os a estrada e aconipa- nhava-os até que cada um tomasse pelo caminho de casa. D' este peregrinar pela aldeã, ao repontar do dia e ao cahir da noite, é que nasceu o livro que hoje se publica. A rusticidade do nascimento não lhe azo para largas ambições, e sou eu o primeiro a dizer que não as te^n. Que me leiam em Soxello e dar-me- ' hei por bem pago. Que me leia o nosso regedor., um mocetão intelligente, que faria rir os meus amigos do Porto, se ouvissem discretear reflectidamente de litteraturas antigas e modernas a um homem de botas de montar, jaqueta de caçador e am,plo chapéu desabado. Afflz-me a medir os regedores por aquclla^ bitola e confesso á puridade que não pude ainda topar

outro regedor que servisse, . . para cabo de policia, O que é certo é que o «nosso regedor » , como se dix, é um lavrador de boas lettras, que passa as noites d'inverno sentado á sua baiica d'estudo.

Que me leia o professor. . .

Desconfio do êxito d\im livro que principie por daguerreotfjpar notabilidades niontanhexas. Seja como for, PEREGRINAÇÕES N' ALDEÃ é o titulo; sirva isso de desculpa.

O j^rofessor é um homem chão, que ensina pelo ntethodo do snr. Castilho e que se delicia com ouvir cantar os rapazinhos na sua escola. Não discursa philosophias ás creanças, porque nunca lhe paliaram u'essas coisas, e empenha-se por ensinar a ler e escrever correctamente o que, segundo penso, deve ser a suprema condição d' um professor dHnstrucção primaria.

Esse quer-me parecer que hade abrir este livro e lembrar-se d' um rapazinho de sete annos que peregri- nava por aquellas serras com os camponezes do sitio o qual rapazinho era eu.

Vão passados quatorxe aimos depois dHsto e durante tão longo período tenho continuado a visitar a aldeã de longe a longe.

Não encontro nunca diff crença : a mesma sereni- dade e o mesmo remanço. Muitos dos camponezes do logar, que eram velhos ha quatorze anrios^ morreram já. Escuso de ijerguntar por iim que falte; é olhar para o cemitério e ver uma cruz, a mais. . .

De resto está tudo como era : Os m.esmos tectos colmados, o mesmo presbyterio voltado ao occidente e, 6771 opposição ao preshyte7'io^ a 77iesma casa de escola^ pequena como qualquer cohiiea^ a olhar para o levante, que é d'o7ide apparecem os ast7^os , . . Sem- 27re se 7ne affigurou que devera ser esta a verdadeira posição das escolas. E, de manhã ou de tarde, os mes7nos murmúrios nas ra7naxje7is, a mesma festa 7io ar e a mesma t7^anquillidade 7io coração!

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Ju7iho de 1870.

os SINOS D'ALPENDUIIADA

(ao snr. j. j. rodriguí:s de freitas)

Os sinos, collocados em campaná- rio de parochia aldeian ou de mosteiro solitário, são uma coxisa poética e santa ; os sinos, pendurados nas torres garridas de garridissimas igrejas das cidades de hoje, são uma cousa estú- pida e mesquinha.

ALEXANDRE HERCULANO.

Solidão, tu és para o nosso espirito o espelho do passado, o eterno livro das saudades eternas. Dos teus cerros desertos o homem perpetuamente aberto diante de si o livro angustioso da sua vida passada e sente sobre o peito o enorme peso do tempo que tem vivido. A tristeza e a saudade são tuas filhas, ó •solidão. Não ha sentimentos que mais pareçam irmãos, porque não ha tristeza sem a consolação da saudade, nem saudade sem o travor da tristeza.

É pelas horas mortas da noite, no maior silencio

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Suspensa sobre uma haste. Tinha a cor que tu mostraste, Quando eu te pedi a fita E tu, dando-m'a, coraste. . .

Yê, pois, como era bonita!

Todas as urnas cheirosas Que o mez de abril nos descerra Teem aquolla cor. Na terra São assim todas as rosas.

O azul ó raro nas flores ; Que o Pae que tudo nos deu Variou no mundo as cores Mas quiz o azul para. . . o céo.

Pintor, quanto mais tu pintas Dando ao quadro um quê d'ethoreo. Na combinação das tintas Não attinges o mysterio Com que o Divino Pintor Preparou tão linda cor !

Não sei, ó anjo, se tenho Diante dos olhos um véo ; Ou se a cor que tem a fita Tanto a cor do céo imita Que as não discrimino ou ; Ou se n'uma noite o vento, Descendo do firmamento, Trouxo um retalho. . . do céo !

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Dá-in'a. Sabes quo mo faltam As azas d' um chcrubim. Tu podes subir ao cóo, Trazer do mais sotim, Mas eu não posso, mas eu...

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Querem uns o céo inteiro Para si ; tenho-o ouvido. Sou menos interesseiro, Limito mais o pedido. Eu. . . dava o prazer mais doce Por um retalho . . . que fosse.

A belleza do pedido assegurava d'ante-mao um óptimo resultado, meu Rodrigo.

A belleza não ; deves dizer a sinceridade. Júlia deferiu ainda e enviou-me a fita cor do cóo, perfu- mada com os aromas dulcissimos das suas tranças negras. Depois tive pena de vêr despida d'enfeites aquella cabeça gentil, e enviei-lhe uma grinalda de flores de laranjeira, na véspera do dia marcado para o casamento. . . Foi ao declinar da tarde que se celebrou a cerimonia religiosa. Affluiu á porta da igreja a po- voação inteira. O pae de Júlia foi um homem do mar, um capitão de navios, que era bemquisto de todos, e esta boa gente da beira-mar continua a consagrar á filha a dedicação que tributou ao pae. Eram rapazes e raparigas, homens e mulheres por toda a parte. Foi um dia de festa em Leça. A tarde estava serena e a noite vinha plácida. Quando sahimos da igreja, o tio Paulo, um pescador velho e agradável, chegou-se a

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DÓS e disse-nos : Boa viagem os espera. O céo está limpo e o mar o de rosas. Cora tão bons preniincios nunca eu receei tempestades. Hão de ser muito felizes, que m'o diz o coração. Yão em paz.

O tio Paulo foi um vidente exclamei eu.

Se foi I acrescentou Rodrigo Se foi ! Por aqui ficamos n'estas solidões da beira-mar, que para logo se povoaram de fadas encantadas. Era o cortejo que precedia a chegada do nosso filhinho. Hei de ir agora com minha mulher e meu filho visitar as mon- tanhas da minha terra. Quero dizer a Júlia, quando chegar: Detraz d'aquelles pinheiros ha uma casa de campo onde também não entrou ainda a corrupção da cidade. Alli foi o meu berço.

Em março d'este anno partiu a familia de Rodrigo para Sinfães. devem de estar a esta hora, na Casa dos olivedos, sem que Rodrigo tenha dado ainda pela falta do visinho commendador e do visinho deputado.

Porto junho de 1860.

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Em 1866 fiz cu parte d'nma tumultosa caravana de romeiros que partia da f/are das Devezas, por uma formosa tarde de junho, em direcção ao santuário ve- nerando do Bussaco. Esta nossa divertida romagem tinha quasi o caracter d'uma emigração d'andorinhas que se fossem deliciar n'aquella primavera eterna do [ Libano portuguez, tão copada de sombras e gorgeada de cantares festivos. Chegamos de noite á Mealliada e, r como quizessemos adiantar caminlio, partimos para Luso. Ahi pernoitamos nós na

HOSPEDARIA LUZITANNA

NAS GAZAS

DE VASILIO FERNANDES lORZE

como constava textualmente da taboleta estampada na fachada do hotel.

A orthographia irregular do nosso hospedeiro

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corria parelhas, segundo experimentamos e segundo eu pregoei para desengano dos incautos n'um folhe- tim do Campeão das Provinci'às, com a irregulari- dade culinária do serviço da casa. Deram-nos, pois, os da hospedaria uma desastrosa ceia que faria o de- sespero do doutor Véron.

Nós todos, os romeiros da caravana e um académi- co de Coimbra, cujo nome sou obrigado a occultar, fo- mos as victimas expiatórias da inexperiência culinária do cosinheiro de Luso.

Não ha meio para estreitar relações d'amizade como a similhança de destinos em pessoas até alii desconheci- das. Foi exactamente o que nos aconteceu a nós e ao académico de Coimbra. No fim da dissaborida refeição não estávamos conhecidos, senão também amigos. Logo traçamos em commum o roteiro da nossa peregrinação. Ficaram peitados os criados para que levantassem ce- leuma ao desabrochar da manhã. Aquelle de nós que se quedasse refocillado no leito, depois do aviso es- tridulo, incorria na pena de madraço exarada no có- digo que para logo formulamos, reunidos em areópago.

Ao entreluzir da primeira aurora, espertaram-nos os criados. Nenhum de nós incorreu na pena estatuída; houve completo respeito ao código.

Os Índios não acatam de certo mais religiosamente os seus Vedas.

Quando sahimos do hotel, começava a aniniar-sc a natureza c a pompear as suas galas esplendidas. De Luso ao Bussaco foi verdadeiramente um passeio bu- cólico.

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O aradomico de Coimbra tinha vindo alli innumc- ras vozes c pai'a \oq:o se oftbreccii como riccroiir. (Iiiia- dos por elle subimos a montanha sem esi^arrarmos por caminhos travessios. Aloí^res marinhamos a coberto d'aqiienas inmiensas abobadas de verdura, que se nos aHii^uram suspensas no ar como os jardins de J^aby- lonia, ate que defrontamos com o humilde cenóbio dos carmelitas desça l(,'.os.

A respeito do mosteiro do Bussaco escrevia eu a um amigo intimo, em 186G, no Campeão das Provín- cias, as palavras que se seguem :

«Subindo a um terrapleno assombreado de fron- dosas arvores, entramos ao mosteiro por ura zagão calcado de seixos e forrado a cortiças, aberto em trez arcos de cantaria sobre os quaes assenta a fabrica hu- milissima da casa. Em frente do arco central do zagão de rosto a porta do claustro : eis que nos ap pare- cem logo, como para iniciar-nos nos segredos da clau- sura, os painéis mal allumiados de dois religiosos da ordem. «O da mão direita, na expressão de frei João do Sacramento, esttá abraçado d'uma cruz, mj^sterioso indicio de que ó, o que dentro unicamente se abraça. O da esquerda está, como fechando a boca com dois dedos, aceno claro de silencio, que alli inviolavelmente se observa. » O que te não posso explicar, meu amigo, c a impressão suavemente dolorosa, que nos assalta a alma no meio d'aquella simplicidade extrema e serena melancolia do mosteiro. Mal acredita a gente que vai entrar em domicilio de frades, ao ver a pobreza do

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zagão que, se não foram os seus trez arcos de canta- ria almofadados a picão com frisos de escopro, faria apenas lembrar a entrada para a gruta d'algum des- conhecido eremita, que fizesse vida de penitencia no retiro d'aquelle monte.

Mas ao entrarmos no claustro, meu amigo, onde se respira em tudo um perfume de tristeza, ao vermos pendentes das paredes os retratos lividos dos monges mal allumiados da escassa claridade que alli entra, no meio d'aquelle frio silencio de casa deshabitada, que- brado apenas pelo som monótono dos nossos passos, então, como dizia, sentimos os olhos humedecidos de lagrimas e os pós como que chumbados ao lagedo do pavimento. Ficamos alli como que petrificados, in- decisos, absortos, sem saber se devemos continuar a visita áquella casa, que tem os ares d'um tumulo de vivos, se devemos sahir para respirar desafogada- mente no meio da montanlia. Custou-nos, de certo, muito mais o entrarmos alli, porque vínhamos de fora com os olhos affeitos ao alegre espectáculo d'a- quella festa bucólica, que a natureza nos apresenta em todo o monte, e com os ouvidos costumados aos cantares dulcíssimos das aves. E' por isso que nos foi muito mais sensível e oppressivo o contraste. »

Depois de termos visitado demoradamente o mos- teiro e a igreja, caminhamos para o norte, descendo ao vaUo, e chegamos á Fonte fria, cuja agua, no dizer de frei João do Sacramento, chronista da ordem, sendo tetnpcrada de inverno, escicsa neve de verão.

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Alii, i/essa soíiihni deliciosíssima da Finite fria, acampou a nossa caravana. Travoíi-se conversa(,*ão animada, c ncMn ou sei como viemos a fallar dos ho- mens políticos (^ue as tempestades civis da nossa terra deportaram para o Bussaco. Citaram-se os nomes do cardeal D. Carlos, que alli esteve por ordem do governo em 1821, do arcebispo de Braga D. Frei Miguel da Madre de Deus, do bispo de Pinhel D. Bernardo Bel- trão e de Galvão Palma, prior da freguezía do Mon- saraz, que alli estiveram retidos por motivos políticos em difterentes ópocas.

E quantos disse-me o académico de Coimbra não teem vindo esconder n'estas sombras do Bus- saco o segredo das muitas lagrimas em que deixaram afogar o coração ! D\im sei eu, que deveu morrer n'este sitio em que estamos. A vida d'esse pobre rapaz dava matéria que farte para um livro. Hei de contar- lh'a, antes de nos separarmos.

Pode ser hoje de tarde repliquei eu.

Seja respondeu-me elle. Vamos descançar para o mosteiro d 'estas calmas do meio dia. De tarde voltaremos aqui e contar-lhe-hei a historia. Está pa- ctuado.

II

Estávamos, o académico e eu, na Fonte fria^ á [hora saudosa do sol-pôr ; elle deixava entrever no ^semblante uma sombra de tristeza, e eu mal podia [comprimir a anciedade que me excitava.

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O heroe da historia que lhe von contar dis- se-me elle era um rapaz da rainha aldeia, que fre- quentava o quarto anno juridico, e a quem eu fui re- commendado, quando entrei para a Universidade. Como sabe, tiro este anno carta de bacharel; vai, pois, isto ha cinco annos. Era um rapaz de mão cheia, como se costuma dizer. Chamava-se. . . Quero eu que se chame Eugénio da Silveira. Tinha elle uma grande intelligencia e um grande coração. Yeja que era uma d 'estas creaturas que nascem para a desgraça como certas flores que desabotoam de noite, sempre cober- tas d 'orvalhos, que são lagrimas, e sempre saudosas do sol, que ó a felicidade. E uma verdadeira desgraça nascer um homem com um coração cuja delicadissima sensibilidade se não pode afferir pelo padrão commum da humanidade. Eugénio da Silveira tinha alguns raros momentos d 'alegria em que lograva conversar com ver- dadeira jovialidade, borboleteando da facécia a satyra e da satyra ao epigramma. De repente, porem, descahia n'uma tristeza profiindissima e, n'esses momentos de concentração, não havia arrancar-lhe palavra. Poucos dias depois d'elle ter concluído brilhantemente os seus actos, dava eu de mão aos trabalhos do primeiro anno juridico. Sahimos, pois, ambos de Coimbra em direcção á nossa aldeia.

Eugénio á^x Silveira tencionava, porém, ir a ba- nhos do mar para a Foz, cm agosto. Sahiu de Coim- bra n'iesse propósito e chegou a i-calisul-o.

Quando eu' voltei a Coimbra para matricular-me nas aulas do secundo anno, vi-o lá.

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Tem estudo na Foz? per^untei-lhc cu.

Vim de hontem e pani volto, lo.t:^o qiio me matricule. Ainda n?ío sei bem quando se abrirão as aulas. Se fica por aqui, avise-me do dia da abertura.

Avisal-o-hei. Fique certo.

Escrevi a Eugénio da Silveira, quando começaram as aulas. Ficamos a habitar na mesma casa e ate no mesmo quarto. Notei, porém, alguma difFerença no Eugénio. Pareceu-me mais triste ou mais alheado. Raras vezes entrava n'um cavaco de rapazes e raríssi- mas n'uma questão scientiíica, que se ventilasse á hora do jantar. Nas ferias do Natal sahiu de Coimbra e disse-me que seguia para o Porto.

Quer alguma coisa para ? perguntou-me elle, no dia da partida.

Se o não incommódo, queria.

O que era ?

Uma carta para a viuva do negociante Teixeira Pinto.

Conhece-a ? atalhou de golpe Eugénio, re- cuando e fitando em mim os seus grandes olhos cas- tanhos.

Conheço. Foi uma das companheiras da meni- nice de minha mãe. Esta carta leva o meu retrato e 6 por isso que eu desejava entregal-a a portador de con- fiança.

O seu retrato ? insistiu Eugénio.

O meu retrato. Quando vim para Coimbra, vi- sitei-a por ordem de minha mãe. Quasi me não lem- brava d'ella. O certo 6 que se reataram as relações

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antigas. Instou a viuva pelo meu retrato para o seu alburn e eu pronietti-o, com a condição de o mandar de Coimbra porque me tinham esquecido todos os re- tratos que tenho. É tempo de cumprir a minha promessa.

Que sentimento lhe inspiraram as filhas da ve- lha amiga de sua mãe, se ó licito perguntar ?

O do respeito simplesmente. Achei-as dignas de estima e de felicidade. Oxalá que ellas a encontrem. .A mãe deu-me a entender que estava próximo o ca- samento da Maria do Carmo com um sujeito endi- nheirado.

Não pode ser exclamou Eugénio, mostrando nas faces uma pallidez cadavérica. O senhor está abusando da minha curiosidade sincera. Maria do Carmo ama-me concluiu elle, accentuando as pala- vras gravemente.

Perdão tornei eu entre humilde e pesaroso. Mil perdões. O senhor Eugénio da Silveira sabe que me inspira a máxima estima e que sou incapaz de abusar da sua sinceridade.

Tem razão amaciou elle com os olhos mare- jados de lagrimas. Eu sou que devo pedir perdão. Excitei-me n'um momento d'angustia, mas de verda- deira angustia, acredite. Agora absolva-rae. Eu amo Maria do Carmo desde os últimos dias d'agosto d'este anno. Tinha-a visto uma vez na minha vida, no Porto, e desde então conservei uma lembrança vaga, mas suave, d'aquella mullier. Em agosto quiz Deus que nos encontrássemos e cuido que nos íicamos amando

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para toda a vida. Se Maria do Carmo vai casar iiHo o sabo ; estou certo d 'isso. K inca])az de me enganar aquelle anjo. Tenho aqui uma carta d'ella em que me pede que vôl-a nas ferias. Hei de ir. (Juero saber a verdade e... morrer depois. Dô-me a sua carta ; irei entregal-a pessoalmente.

Apertamo-nos as mãos e separamo-nos.

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Quando Eu2,'enio da Silveira voltou a Coimbra continuou o académico pareceu-me velho. Disse-me que tinha entregado a minha carta e que encontrara em casa da viuva Teixeira Pinto o sujeito indigitado para noivo de Maria do Carmo.

o vi disse Eugénio. O senhor tinha ra- zão. Cuido que a viuva está inclinada para este casa- mento e que levará a sua crueldade- até o extremo de sacrificar o coração e a vida da filha. Pudemos, eu e Maria do Carmo, disfarçar as nossas relações diante da viuva. Apresentei-me como um homem ver- dadeiramente desconhecido e trocamos apenas pala- vras cerimoniosas. Estou todavia no propósito d'ir pedil-a em casamento nas ferias da Paschoa ; será minha no fim do anno lectivo.

Decorreram-se mezes sem que Eugénio da Silvei- ra recebesse carta de Maria do Carmo. Escrevia-lhe regularmente e não recebia resposta. OfPereci-me para saber por minha mãe a verdade do que se passava.

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Não quiz. O pobre moço tinha medo de se desenganar.

Estão próximas as ferias disse-me um dia. Irei eu mesmo. Maria do Carmo ainda não casou; está-m'o dizendo o coração. Comtudo receio por ella, que é crédula e pode dar ouvidos ás infâmias que levantarem a meu respeito, se o que suspeitaram das nossas relações.

Eugénio da Silveira veio ao Porto e não viu Maria do Carmo. Dizia-se que casava com o sujeito indigi- tado. Eis tudo o que pôde colher. Quando voltou a Coimbra, lançou-se nos meus braços e desatou a cho- rar. Fazia pena vel-o. Era preciso que eu o acompa- nhasse para que fosse ás aulas ; de contrario não ia.

Entretanto definhava consideravelmente e tinha cahido n'uma melancolia perigosa. Fazia annos por esse tempo, o Eugénio. No dia natalício brindára-o a velha esposa do seu correspondente, que era amiga de sua mãe, com um ramo de flores.

Em agradecimento ás flores escreveu Eugénio es- tes versos, que eu decorei e que não chegaram a ser lidos pela pessoa para quem tinham sido escriptos.

aCtEadecendo as flores

(no dia dos mrus annos)

Mandaos-mo, sonhora, ílôros

Bom sabois quanto as cu aino. . .

Tão variadas nas coros !

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Foi l>ein acertadíi u escol lia, Quo os teinporacs do janoiro Desfizeram folha a folha As galas do meu jardim. . . Está viuvo o jardineiro. . . Olhai o pobre de mim !

Vi chegar o abril florido, Que vem sempre prazenteiro, Sempre lindo e bem vestido. Ai! mas não chegaram ainda As flores do meu canteiro ! Vejo que chega e que finda Este mez de tantas flores Sem que me traga comsigo Os meus tão queridos amores ! . . Nem abril é meu amigo !

A vossa offerta, comtudo, Engana a minha pobreza. . . Tenho flores sobre a mesa, E ó bem mais suave o estudo Quando as tenho ao de mim !, Pobres flores ! sou assim !

Mas ai ! quando eu vir pendido O vosso ramo, senhora ! Ver que está tudo perdido ! Não ter o que tive outr'ora ! Baldada toda a canceira ! Toda a seara desfeita ! De risos. . . a sementeira ! De maguas.. . toda a colheita !

Senhora, vivo captivo De mil lembranças passadas. É de saudades que eu vivo. . , Esp'ranças, essas... mirradas!

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Estou pobre e pasmo agora Do vèr tamanha pobreza ! Olho toda a redondeza . . . Não vejo nada do meu ! Tantas flores na montanha ! Tantas estrollas no céo ! Ai ! que pobreza tamanha !

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O mundo tão opulento E eu me vejo assim ! Ha astros no firmamento. Tem flores qualquer jardim. Nada é meu, pobre de mim !

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Ai ! quanto me não penhora A vossa oíferta, senhora !

Mas cmquanto estas viçarem Não serei pobre. . . de flores. Depois, mal que descorarem, Adeus rosas ! meus amores ! Comtudo inda espero tel-as Das mais tristes o singelas. Boninas d'inculto chão, Ao d'aquelle cruzeiro Onde tanto caminheiro Pára a fazer oração , .

(^uo triste seria o som no Do que não se acorda mais, Se as pobres flores da serra Deixassem ao abandono Os sete palmos do terra Onde todos são iguaes ! . . .

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D'cssas espero iiula tel-as . . liem hajaes, ilòros singelas, Pobres ílòrcs, bom hajaes!

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Vi que se aggravavam os padecimentos de Eugé- nio e não avisei o correspondente mas noticiei para a minha aldeia.

Veio a Coimbra o irmão mais velho de Eugénio, que era o senhor da casa e quiz trazel-o para o Bus- saco, ainda com o risco de perder o anno.

Teimou o doente que não sahiria sem concluir o curso e o certo 6 que, com grave sacrificio da sua pouca saúde, terminou a formatura. A esse tempo chegou a Coimbra uma carta de Maria do Carmo para elle. O pobre moço mostrou-m'a. Dizia-lhe que tinha conseguido apiedar a mãe, que tinha soífrido muito e que entrevia de novo a felicidade, que julgcára perdi- da. Percebi que o Eugénio não podia escrever sem grande esforço e disse-lhe que escreveria em seu nome

Não respondo volveu-me elle. Eu morri para o mundo. A mulher que eu amava, morreu tam- bém para mim. Xão me falle no nome d'ella para não evocar recordações dolorosas. Esperei muito tempo que me escrevesse ; vi finalmente que não tinha que- rido roubar á sua felicidade um momento em que tra- çasse duas palavras. Â sua felicidade disse eu; e disse bem. Ella deve ter sido feliz com os sorrisos do es- poso promettido. Como o senhor vai para ferias concluiu elle ordem em casa para queimarem todas as cartas que me sejam dirigidas.

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Os irmãos Silveiras sahiram de Coimbra commigo. líu vinha para o Porto e elles ficaram na Mealliada ; d'alli vieram para o Bassaco.

Na véspera da nossa partida, pediu Eugénio ao irmão que o deixasse fazer a mala. O irmão annuiu, suppondo que elle quereria guardar cautelosamente as cartas de Maria do Carmo. Como o visse, porem, lançal-as ao fogo, suspeitou do caso e foi remexer na mala.

Encontrou um reivolver escondido entre uns casa- cos e uns livros.

Eugénio ! disse-lhe o irmão com gesto repre- hensivo Procuravas enganar-me ! Não te queiras dar em holocausto aos teus algozes. O mundo diz que o suicídio 6 filho da loucura, e tu deves querer que o mundo saiba que morreste em teu juizo para conde- mnares até o ultimo momento a deslealdade traiçoeira da mulher que amaste.

Eu não condemno ninguém respondeu Eu- génio.

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Separei-me de Eugénio da Silveira na Mealhada com a convicção profunda de não tornar a vôl-o disse-me o académico com os olhos húmidos de lagri- mas. — Quando cheguei ao Porto puz todo o meu empenho em não perder um momento, antes de pro- curar a viuva Teixeira Pinto. Fui visital-a ; ao subir as escadas senti uma vertigem, que me fez demorar

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no ])íit{ini;ir ali^iins monientos. Annunciou-me o criado o Mariii do Curmo, ouvindo o meu nome, correu á sala. Achei-a demudada, em verdade. Tinha os olhos roixos de chorar e as faces cobertas d'uma pallidez marmórea.

Onde está o Eugénio ? interrogou ella anciosa- mente, ao entrar na sala.

No Bussaco, minha senhora, e cuido que não voltará.

Está doente? Morre ?

Penso que não resistirá ao desgosto incommen- suravel que o vai matando lentamente. Para vossa excellencia, porem, morreu ha muito tempo.

Julga-me então criminosa? disse ella, dando á phrase a vehemencia do desespero.

Julga.

Sabe Deus que o não sou.

E vossa excellencia que provas tem em seu favor ?

-^ O testemunho da consciência.

Todavia a consciência c um tribunal cuja de- cisão não chega ao mundo exterior. . .

É infelizmente verdade isso. Deus sabe, porém, que amei sempre o Eugénio.

Por que lhe não escrevia então ?

Porque m'o prohibia minha mãe. Porque me tinha vigiada a toda a hora. Porque me tinha encer- rada n'esta casa como em clausura onde mal entrava o sol.

Por que não reagiu ?

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E podemos nós reagir contra a vontade de nossa mãe ? perguntou ella com uma timidez adorável.

Que dúvida ? Quando a superioridade chega ao extremo d'impôr deveres ao coração, quando nos que- rem levar para um futuro que nos repugna, quando usam da força em vez da brandura, a reacção 6 legi- tima, porque a obediência era o servilismo mais in- digno d'este mundo.

Cale-se, que nos podem ouvir murmurou ella timidamente.

Que oiçam, muito embora. Eu sei que sua mãe ó boa, minha senhora, e é por isso que lamento que tenha o espirito ainda eivado d'estes preconceitos so- ciaes. Cada alma procura o seu rumo, como a agulha procura o norte. As almas não se subjugam ; é um crime tentar subjugal-as. Todos nós caminhamos para o nosso fim, desenvolvendo as nossas faculdades. Ha em nós uma faculdade d'amar; amemos, pois. Querer abafar em nós a sensibilidade, 6 querer dominar a nossa natureza. O que é o amor? O amor, como diz Ale- xandre Herculano, aquelle grande pensador do Eurico, ó «o mais profundo e enérgico dos affectos humanos, o amor, que une dois espirites como dois fragmentos de um todo, os quaes a Providencia separou ao lan- çal-os na terra, e que devem buscar-se, unir-se, com- pletar-se, até irem depois da morte formar talvez uma existência de anjo no seio de Deus. » Não queira- mos nós neutralisar esta força de cohesão que tende a identificar duas almas na suprema harmonia dos espirites. Sei bem que a mãe de vossa excellencia 6

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nm corarão nobilíssimo. Lcvji talvez a pobre scnliora as suas lioras a pensar no futuro das duas pombas do seu lar, que desde meninas ató mo(,*as lhe teem sido delicias e cuidados. Sonhou de certo, n'uma d'essas horas de profundo coíj^itar, que entreviu a felicidade d 'uma das suas filhas dilectas, e acenou de longe á imagem que sonhara e que não passava d'um phan- tasma.

K verdade disse ao entrar na sala a mãe de Maria do Carmo, que ouvira as minhas ultimas pala- vras. — E verdade. Imaginei que a afPeição de minha filha fosse apenas um capricho dos vinte annos, que se vencesse facilmente com uma opposição temporária. Enganei-me, porcm^ e Deus sabe que profundas amar- guras me estão dilacerando o coração n'esta hora d 'expiação suprema.

Pobre Eugénio ! murmurou Maria do Carmo, abafada em lagrimas.

Pobre Eugénio repeti eu. Está irremedia- velmente perdido. A vida do desventuroso moço c apenas o bruxolear extremo da lâmpada que se ex- tingue. E que importava que uma força sobrenatural o salvasse ? O Eugénio tem o caracter dos grandes pensadores: 6 propenso á dúvida. As lagrimas d'estas duas pobres senhoras que me escutam, não poderiam desfazer a nuvem tenebrosa que lhe escurece a alma. A duvida ó fria como o gelo, sombria como a noite: e o Eugénio duvidou uma vez, o que equivale a dizer que duvidaria toda a vida.

Meus Deus ! exclamou Maria do Carmo

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Quero vêl-o. Quero vêl-o e dizer-lhe que sempre o amei, embora elle não acredite nas minhas palavras. Se morremos meus braços, pedirei á sua alma que me perdoe e jurar-lhe-hei que não serei de mais ninguém n'este mundo. Oh I minha mãe, deixe-me vêl-o uma vez . . .

7êl-o-has, minha filha. Yêl-o-has disse a po- bre senhora abraçando-se em Maria do Carmo.

Comprehendi concluiu o académico que a minha presença era importuna n'aquelle momento solemne, e sahi de casa da viuva Teixeira Pinto com o coração alanceado de tristeza.

Contou-me o irmão de Eugénio da Silveira tudo o que se passou desde a minha visita á viuva Teixeira Pinto até ao desfecho lutuoso d'este drama dis- se-me o académico.

O pobre Eugénio tinha cabido n'uma melancolia profunda e vivia, se 6 própria esta palavra, completa- mente absorto no seu único pensamento. Pouco dor- mia e quasi não fallava, o desgraçado moço ; ao aba- timento moral succedèra uma Icthargia que ti n lia aniquilado a immensa robustez da sua compleição

Ao Hm da darde costumava vir, pelo braço do ir- mão, sentar-se aqui ao da fonte, quem sabe se n'este mesmo banco em (\{\g nós estamos, se n'aquello que

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nos íicii fronteiro. Aqui se quedava esquecido a scis- inar por loni»-o tempo, com os olhos litos n'um ponto que seria ditticil determinar, e onde Deus sabe se elle veria sorrir-se-lhe o anjo da morte ou delinear-se-lhe a imagem saudosa de Maria do Carmo ainda contor- nada d'uma luz suave como a dos últimos clarões d'um crepúsculo do estio.

Vèl-a-ia elle n'aquelle meditar de todas as tardes ? Quem sabe? Eu inclino-me para ahi. O nosso coração 6 assim. Morremos a beijar a mão que nos vibrara no seio a punhalada e que, momentos antes, dirig'ia, no mar da vida, o leme da arca santa da nossa alma.

Nunca ninguém viu que o Eugénio chorasse. Ti- nha os olhos sêccos e o coração cheio de lagrimas. O irmão sentava-se por aqui, perto d'elle, a contemplal-o com a vista embaciada de pranto. Para esse 6 que era o chorar.

Quando se apagava no occidente o ultimo raio de sol, levantava-se o Eugénio, como se não tivesse luz para ver a imagem querida, ou como se o amedron- tassem a escuridade e a solidão, que o faziam lembrar talvez da noite do tumulo, que estava próxima.

Então os dois irmãos davam-se o braço e voltavam ao mosteiro, calcando as folhas soltas no chão e ca- minhando por entre as sombras que se abraçavam aos troncos seculares.

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Aqui interrompeu o moço académico a narração como para desenhar na imaginação os vultos dos dois

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irmãos e, n'esse momento, vi-llie os olhos brilhantes de lagrimas.

Pouco depois continuou :

Devo tel-o fatigado com a minha historia, mas prometto abrevial-a.

Uma tarde estavam aqui os dois irmrios Silveiras; o Eugénio a scismar, o outro a contemplal-o.

O Eugénio accordou n'esse dia muitíssimo peior e custára-lhe até chegar ao seu pouso de todos os dias. Estava, pois, o irmão a contemplal-o, quando ouviu perto o rumor de passos. Ergueu a cabeça subitamente e viu, a pequena distancia, duas senhoras que se aproximavam.

Uma d'ellas, n'esse momento, correu precipitada- mente para Eugénio e, ajoelhando-se-lhe aos pós o apertando-lhe os braços para que levantasse a ca- beça, exclamou com anciã :

Eugénio! Eugénio! Sou eu que te venho dizer que sempre te amei e que estou innocente. Eugénio! Vês-me? Conheces-me? Olha para mim sequer...

Então elle, como que despertando d'um somno profundo, empregou um esforço supremo para se sol- tar dos braços d'ella, e levou as mãos aos olhos para sacudir uma nuvem que lhe turbava a vista.

Encarou em Maria do Carmo e, fazendo menção de se levantar, exclamara apenas :

Ah 1 E' pois certo !

Quiz levantar-se e não pôde. Cahiu extenuado nos braços do irmão e da viuva Teixeira Pinto. Houve uma pausa de silencio entre os trez espectadores.

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e fitou de novo Maria do Carmo.

Perdôa-me murmurou ella. Perdôa-me que estou innocente.

O Eugénio quiz fallar e não teve vida para tanto. Meneou a cabeça aífirmativamente e cahiu morto no regaço de Maria do Carmo.

O académico e eu ficamos largo tempo calados.

Maria do Carmo disse-me elle momentos depois está n'um convento de Braga, d'onde jurou não sair. O cadáver de Eugénio da Silveira repoisa no cemitério da minha aldeia, que também era d'elle, em caixão de chumbo. Se o senhor for algum dia visitar as montanhas da minha terra, e eu estiver, verá como ha-de achar coberta de flores a sepultura do Eugénio. Sou eu que lli'as vou pôr. Tenho ainda muito viva no coração a saudade d'aquelle liomem e a memoria d'este drama.

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o MORGADO DO URGAL

Fui visitar, ha dias, os pardieiros do Urgal. Vi- sitar não é a expressão própria. Da lomba do outeiro próximo 6 que eu avistei a casa em ruiuas, sotoposta a um souto de castanheiros seculares.

A Ludovina, uma lépida pequerrucha que tem sido o meu fidus Achates n 'estas peregrinações pela aldeia, acompanhou- me ao sitio onde cheguei e mos- trou-me a casa, de longe, com a sua pequenina mão queimada do sol, dizendo-me : E acolá.

Senti apertar-se-me o coração diante d'aquellas ruinas. O telhado está desmantelado, os caixilhos des- conjunctados, e as janellas cuido que trancadas para sempre. Algumas trepadeiras foram marinhando pelas paredes e calafetando providencialmente as juncturas abaladas da frontaria.

Pedi á Ludovina que me levasse d'alli ; estava-me fazendo mal aquillo.

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Descemos o outeiro, embetesgarao-nos por uns atalhos pedregosos e fomos dar ao casebre da Luiza. da Granja. O pae de Ludovina, avisado pelo estré- pido dos passos, sahiu ao quinteiro a receber-me.

Gruarde-o Deus, sor fedalgo disse elle. E ha de perdoar o modo como appareço. Isto são nódoas de vinho novo continuou, indicando as manchas arroxeadas da camisa. Temos andado na vindima.

Essa é boa, Manoel ! Yocê está em sua casa.

Mas como diz o outro, a gente deve andar limpa. Ora é verdade. O caso é que se não fosse a curgidade de saber a historia do morgado do Urgal, como me disse a pequena, ficávamos d'esta vez sem vêr o fedalgo!

É de notar que a palavra fidalgo, em boca de ho- mem do campo, é synonyma de cidadão. E não deve estranhar-se que elles nos concedam voluntariamente ^ôro de nobreza, n'uma época em que os governos o estão barateando abel-prazer. O que me admira é que se não anteponham a quaesquer outros no gozo d'estas e quejandas honrarias ; sobejavam-lhes razões de pre« ferencia...

É verdade, Manoel, vamos á historia, se tem occasião para isso.

Sim, senhor, vamos lá. Está-me fervendo o vinho no lagar; agora não ha que fazer.

Sirva isto d'introduc(;ão á biographia do morgada do Urgal.

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O pae de Miguel Soares, de quem se trata, era Cosme Soares, lavrador activo, intelligente e laborioso, que frequentara em tempo as aulas de Lamego e que, lembrado ainda d\imas regras de latim que apren- dera, incitava os caseiros e os criados ao trabalho dos campos apontando-lhes esta máxima : Dulce post la- l)Orem.

Tinha Cosme Soares, quando rapaz, um tio abbade na freguezia, velho e rheumatico, irmão do pae, que dera de conselho ao irmão mandar o sobrinho ordenar-se a Lamego no intento de que, por sua morte, íicaria o rapaz provido na abbadia. Foi Cosme Soa- res para Lamego, a despeito da mãe que o não queria fora de si, pelo muito que o amava. Vencidas as difficuldades da lingua pátria, viu-se Cosme Soa- res a braços com a sphinge medonha da litteratura d'aquelles tempos o latim.

Pôde vencel-a, porém, e preparar-se quasi ma- chinaímente para as aulas de theologia, quando um ' accidente inesperado veio pôr em sobresalto o coração do pae afflicto e dar rebates de alegria no seio aman- tíssimo da mãe.

Cosme Soares estava namorado. Era uma senhora de Lamego, formosa e rica, a mulher seductora que logrou prender nas algemas sua- víssimas do amor o coração do moço estudante.

Soube-o o pae de Cosme e dispuuha-se a resistir violentamente á vontade do filho, dias antes de lhe chegar ás mãos uma carta d'elle em que o moço de- clarava renunciar reflectidamente, segundo dizia, a

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uma vida para que não tinha vocação natural. O pae regoLigou de cólera ; acudiu-lhe, porém, ao escabujar violento a carinhosa esposa. Parecia que o velho per- sistia no propósito de ordenar o filho. Mas era diffe- rente o parecer da mãe, que soube vencer a repu- gnância do marido e do cunhado, o abbade, aformo- sentando na phantasia d'ambos o quadro exuberante de poesia domestica em que Cosme Soares apparecia ao lado da esposa formosissima e dos filhos peque- ninos, que sorriam de felicidade aos avós e ao tio abbade.

Pôde a mãe de Cosme Soares vencer o pleito a favor do filho. Fecharam-se os livros e casou-se o rapaz. Houve completa alegria na casa do Urgal, quando Cosme Soares e a esposa apontaram á porta ladeada de caseiros e criados.

Não veio sombra de temporal graças a Deus ! escurecer o firmamento alegre d'este hymeneu.

O caso é que d'ahi a dois annos realisavam-se as prophecias da mãe de Cosme: era avó de dois netos.

Chamavara-se os pequenos Miguel e Manoel ; Miguel era o mais velho.

O tio abbade quasi não sentia o rheumatismo de contente que andava. O pae de Cosme Soares re- via-se nas graças seductoras das creanças, e a esposa, mais solícita do que elle, levantava-se, noite velha, para ir espreitar os netos e achegar-lhes das cabeças loiritas a coberta d'algodão.

O tio abbade e o irmão não lograram chegar, po-

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rém, á maioridade dos rapazes ; morreram com pe- queno intervallo de um a outro.

N'esse tempo tinha Miguel dezesete annos e Ma- noel dezeseis.

Cosme Soares, a mãe, e a esposa vieram ao accordo de que Miguel se formasse em cirurgia, favorecendo d'este modo a posição de Manoel, que ficaria olhando e vigiando as propriedades. Eram causa doesta resolu- ção o génio, a intelligencia e o desamor de Miguel á agricultura.

Foi o rapaz estudar para o Porto e Manoel come- çou a orientar-se na direcção da casa e nos trabalhos do campo.

Ao tempo que Miguel Soares sahia victorioso das suas primeiras lides litterarias, dava a alma ao Creador a velhinha septuagenária, que era sua avó. Por esta occasião escrevia Manoel Soares ao irmão, dizendo-lhe:

« Se estás arrependido, apesar dos teus progressos e da tua intelligencia, da posição que escolheste, vem.

« A casa tua é ; eu sou apenas administrador e com isso me contento. Sabes que não ^enho aspirações. »

Miguel Soares leu a carta do irmão e não veio ; respondeu simplesmente:

« Eu estou bem. Vive tu a teu modo e vela por nossos pães. »

Yamos nós agora esmiunçar qual era o bem-es- tar do estudante, no Porto.

O leitor, vesado a quejandos enigmas, deslinda-se

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magistralmente d'este. Succedêra a Miguel Soares o que, annos antes, acontecera em Lamego a seu pae.

Amava também.

Ai ! o amor ! E quem haveria ahi que pudesse resis- tir ao labutar constante da intelligencia, ás noites des- veladas sobre os livros, se n'estas agruras do estudo lhe não entreluzisse, a espaços, o vulto luminoso da mulher querida ?!

Miguel Soares amava; e n'esta phrase se resume um céo de felicidades e esperanças, raro aguadas por uma chuva de lagrimas, a qual, na peior hipothese, servia para fazer brotar e reverdecer novas felicidades e novas esperanças.

As lagrimas que seccam, que esterilisam, que re- queimam o coração, essas deviam chegar mais tarde; e chegaram.

Acompanhemos Miguel Soares n'um dos dias mais angustiados da sua mocidade, até á porta da aula. E de notar que Miguel Soares vai de luto ; morreu-lhe o pae, | o velho Cosme Soares, o honrado e laborioso proprie- tário.

Morreu elle, abraçado á esposa, abençoando o des- tino dos filhos, á hora em que Manoel cahia no leito enfermo d'uma ascite, que o levou á sepultura d'ahi a oito mezes e quinze dias antes de Miguel, alanceado de saudades e de mágoas suas, longe do torrão em que nascera, chorar as primeiras lagrimas torrenciaes da íjua vida.

Miguel Soares tinha um amigo intimo ; era um seu «condiscípulo. Acompanhemol-o, pois, n'esse dia ató â

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Que soubeste tu ? perguntou a Miguel Soares o condiscípulo precipitadamente.

Está peior; muito peior respondeu tristemente ! Miguel.

Quem t'o disse ?

A criada, esta manhã.

X'este momento entrava o professor : o dialogo íicou interrompido.

Elucidemos o leitor.

Desaninhára-se a serpente da desgraça do seu antro d'escuridão e viera empeçonhar com a baba immunda os roseiraes floridos do paraizo de duas almas.

Gi-rassavam a esse tempo, no Porto, as febres vario- losas. A mulher que Miguel Soares amava do intimo d'alma, a única que elle entrevia, na solidão do seu quarto, nas horas do estudo, essa, digo eu, cahira no leito, moça e formosa, para se levantar d 'elle desfigu- rada cora as marcas profundas que lhe crivavam a face.

Diziam os moços conhecidos de Miguel Soares, com

grave injustiça ao seu caracter e á sua alma d 'elle, que

abandonaria, n'aquelle estado, a mulher que tinha

U amado bella e formosa entre as outras que mais o

eram.

Não aconteceu assim.

Foi longa a doença e longa a convalescença tam- bém. Miguel Soares escrevia todos os dias á doente para saber do seu estado; a resposta, porém, vinha quasi sempre escripta.

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Instou por fallar-lhe, quando viu que poderia obter o que pedia.

Conseguira elle que a senhora assentisse, emíim.

Escreveu-lhe ella indicando a hora da entrevista; o papel, porém, vinha húmido de lagrimas.

O homem da Luiza da Granja, que me referiu a historia de Miguel Soares, substituiu, n'este lance, as palavras por lagrimas. Eu não sei pintar tamanha dor; imagine o leitor o que seria aquella entrevista.

Foi, supponho eu, um chorar anciado e afflictivo, um soluçar magoado da mulher que perdeu para sem- pre a mocidade e a belleza, e do homem que procura certifical-a de que para elle a belleza e a mocidade eram exiguos attractivos.

Não vingaram, porém, razões.

Entrou-se a consternada senhora de desgosto pro- fundíssimo. Nunca mais se avistou com Miguel Soares ; entretanto escrevia-lhe e fallava-lhe do céo e do hyme- neu de duas almas, que veriam alvorecer a sua au- rora de felicidade.

Uma d'essas cartas foi a ultima;» a mulher, que Miguel Soares amava, voou para o mundo dos espíritos.

Elle, o desgraçado moço, fugiu com a sua dor e com os seus livros para o regaço de sua mãe, que cho- rava, a esse tempo, saudades eternas d'outro filho.

De dia, Miguel Soares assistia compadecido e ca- rinhoso ao declinar da infeliz velhinha; de noite, lia ou velava, entrevendo a imagem saudosíssima nas vi- gilias da leitura e nas insomnias^da febre.

Miguel Soares viveu assim seis mezes.

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A consumpviío foi lenta. Ao cabo d'esse tempo, poróm, a alma de Miguel Soares foi realisar no paraizo o hymeneu aprasado.

Saliiii da qiíinta do Urgal a viuva de Cosme Soa- res amparada ao braço d'um criado. Dizia ella que ia morrer a Lamego no seio de dois irmãos que tinha,

tragando saudades dolorosíssimas do marido e

dos

filhos.

E morreu.

Os irmãos da defunta senhora, herdeiros d 'ella, respeitaram e respeitam ainda a casa fatal, que foi tumulo d'uma familia inteira. Não lhe puzeram mão reformadora; seria doloroso para elles o remexer n'aquelle acervo de cinzas e ruinas.

Quinta de Villa Verde 11 de setembro de 1868.

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Este livro é verdadeiramente aldeão. Nasceu d' uma saudade a saudade dos occasos e das alvo- radas d'uma aldeã e anima-se d' uma esperança a de ser lido nos alegres serões d'aquellas serras, que o inspirariam. Costumei-me a viver no campo desde peqite- 710. Soxello^ uma aldeiola que se não encontra, talvez^ na carta de Portugal^ era tudo o que podia haver de suaveme7ite delicioso para a minha infância, «mea regna», como diria qualquer estiidantinho de latini- dade.

Sol fora, quando as aves davam rebate nas rama- gens do pomar, levantava-me para ir ter com os camponexes meus amigos e mais madrugadores do que eu. os encontrava na safra alegres e infati- gáveis. Conversávamos todos os dias. Eu escutava-os, sentado a vêl-os trabalhar, e elles, sempre cuidadosos na tarefa, contavam casos de bruxas, historias d'amores e tradições do sitio.

Admirava-me eu de que nenhum dos ceifeiros aproveitasse uma aberta para se queixar da sorte que os obrigava ao rude trabalho de todos os dias, e

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de que tão pequena povoação nos pudesse dar assumpto de sobra para tão estiradas palestras. A verdade era que trabalhavam contentes e que sempre tinham que dizer e contar. Invejei-lhes a sorte muitas vexes e^ quando entrei na safra das lettras, lembrei-me dos ceifeÍ7'os de Sozello e senti alegria. Era um exemplo que dava conforto.

Ao anoitecer ia esperal-os á estrada e acompa- nhava-os até que cada um tomasse pelo caminho de casa. Doeste peregrinar pela aldeã, ao repontar do dia e ao cahir da noite, é que nasceu o livro que hoje se publica. A rusticidaãe do nascimento não lhe azo para largas ambições, e sou eu o primeiro a dizer que não as tem. Que me leiam em Sozello e dar-me- hei por bem pago. Que me leia o nosso regedor^ um mocetão intelligente, que faria rir os meu.s amigos do Porto, se ouvissem discretear reflectidamente de litteraturas antigas e modernas a um homein de botas de montar, jaqueta de caçador e amplo chapéu desabado. Afflz-yne a ynedir os regedores por aquella bitola e confesso á puridade que não pude ainda topar

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oídro regedor que servisse, . . para cabo de policia. O que é certo é que o «nosso regedor » , como se dix, é um lavrador de boas lettras, que passa as noites d'inverno sentado á sua banca d'estudo. Que me leia o professor. . .

Desco7ifio do êxito d' um livro que principie por daguerreotypar notabilidades m,ontanhex,as. Seja como

I for, PEREGRINAÇÕES N' ALDEÃ é o titido ; sirva isso de desculpa.

O jyrofessor é um homem chão^ que ensina pelo methodo do snr. Castilho e que se delicia com ouvir cantar os rapazinhos na sua escola. Não discursa philosophias ás crea?iças, porque nunca lhe faltar am n'essas coisas, e empenha-se por ensinar a ler e

|| escrever correctamente o que., segundo penso, deve ser a suprema condição d'um professor d'instrucção

« primaria.

Iv Esse quer-me parecer que hade abrir este livro e lembrar-se d' um rapazinho de sete annos que peregri- nava por aquellas serras com os camponezes do sitio o qual rapazinho era eu.

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Vão loassados quatorxe annos depois d'isto e durante tão longo período tenho continuado a visitar a aldeã de lojige a longe.

Não encontro 7iunca diff crença: a tnesnia sereni- dade e o mesmo remanço. Muitos dos camponexes do logar, que eram velhos ha quatorze annos^ morreram já. Escuso de perguntar por um que falte; é olhar 2mra o cemitério e ver uma crux a mais. . .

De resto está tudo como era : Os m£smos tectos colmados, o mesmo presbyterio voltado ao occidente 6, em opposição ao presbyterio.^ a mesma casa de escola.^ pequena como qualquer colmea^ a olhar para o levante, que é d' onde apparecem os astros, . . Sem- 2)re se me affigurou que devera ser esta a verdadeira posição das escolas. E, de manhã ou de tarde, os mesmos murmúrios nas ramagens, a inesma festa no ar e a mesma tranquillidade no coração!

Junho de 1870.

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os SINOS D'ALPEN1)URAUA

(ao SNR. J. J. RODRIGUES DE FREITAS)

Os sinos, collocados em campaná- rio de parochia aldeian ou de mosteiro solitário, são uma cousa poética e santa ; os sinos, pendurados nas torres garridas de garridissimas igrejas das cidades de hoje, são uma cousa estú- pida e mesquinha.

ALEXANDRE HERCULANO.

I

Solidão, tu és para o nosso espirito o espelho do passado, o eterno livro das saudades eternas. Dos teus cerros desertos o homem perpetuamente aberto diante de si o livro angustioso da sua vida passada

§e sente sobre o peito o enorme peso do tempo que tem vivido. A tristeza e a saudade são tuas filhas, o 'solidão. >Tão ha sentimentos que mais pareçam irmãos, porque não ha tristeza sem a consolação da saudade, tJttem saudade sem o travor da tristeza. '^ É pelas horas mortas da noite, no maior silencio

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do maior dezerto, que o nosso espirito anda a pairar, como abutre esfaimado, sobre os mil cadáveres das gerações que foram.

Com ruinas recompõe o homem cidades, com ca- dáveres reorganisa sociedades e, fazendo estancar a curso da existência para o reatar depois, volta sobre o caminho do passado e segue com os olhos do espi- rito as mil evoluções das sociedades na área de mil cidades, que se levantam do tumulo, como corpos reanimados por milagre da sciencia.

E que sciencia é esta? O' saudade, ó filha da solidão, és tu e tu, que és um como sentido interna do homem e vales mais do que todos os cinco sentidos do corpo És tu e tu, ó saudade. O corpo humano é uma machina d'abstracções, disse um philosopho, por- que cada sentido tem aptidão especial para determina- das percepções, e ó o nosso espirito que chega á syn- these reunindo em grupo os conhecimentos abstractos. Apaguem o sol e digam aos olhos que vejam ; não dê- em ao homem a possibilidade de transpor as distancias e mandem-n'o tactear os objectos remotos. Tu, porém, vês na escuridão, ó saudade, ouves tudo, tudo sentes e de tudo te aproximas. Embora sejam imperfeitos e pouco desenvolvidos os sentidos, sempre tu sabes desenhar intimamente o quadro das nossas recordações com a mesma clareza. Não, tu não estás dependente da matéria. Como o homem n'um. sonho ou n'um delirio, tens sempre a mesma sensibilidade, sem a intervençãai dos órgãos externos e sem a acção de objectos i-eaes Saudade, tu és a consciência... do passado. Por ti s6

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adquires conliecimentos, por ti chegas á synthese das cousas, por ti operas milagres. És um senti- mento ou uma ideia, vives no coração ou no cérebro, dize-me quem tu és, ó saudade?

Sinto que te aproximas de mim e adivinho a tua mão invisivel a apontar-me para as solidões do monte grados, que se debruçam sobre o Douro, namoradas da corrente. Vejo d'aqui alvejar a velha casa dos pa- dres de S. Bento, uma legoa acima de Eiitrnnbolos Rios^ como dizem as chronicas, entre as arvores fron- dosas da cerca e ao lado do campanário magestoso do templo. Os últimos clarões do sol coroam de fogo as montanhas do occidente. Tudo 6 silencio e saudade. . .

Embaixo, no valle, deslisa sereno o rio. Em fren- te, na margem esquerda, ergue-se o rústico presbyte- rio de Sozello, olhando para o poente. D'um lado e d'outro do Douro fumegam as cabanas e as casas de campo. Aproxima-se a noite e morre o dia.

Ouvem-se os sinos d'Alpendurada. . . Trez vezes soaram vagarosos e sonoros. Ave-Maria^ dizem os tra- balhadores que voltam da safra, descobri ndo-se e pa- rando . . .

II

Tinha desabado sobre as margens do Guadalete o colosso da monarchia visigótica arreigado ao chão das Hespanhas pelo lento decurso de muitos annos. Estre- meceu a Península ao desabar do gigante, que expel- lia o derradeiro alento pela garganta do moribundo

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Ruderico e que sentia, sobre o corpo exhausto, refer- ver a onda tumultuosa da soldadesca musulmana. Es- praiou-se a turba ambiciosa ao longo do terreno con- quistado, não sem frequentes luctas travadas entre vencidos e vencedores, não sem derrubar as barreiras que empeciam a marcha triumphante. Havia, porém? um ponto de defeza, que não tinha sido vencido ; uma selva de franskisks o resguardava. O baluarte inven- cível eram as montanhas das Astúrias. Era que um punhado de godos mettia hombros á molle gigantesca da multidão agarena.

Onde não appareceu o braço de Pelagio, fácil foi a conquista. Grande era a matança e grande era a mi- na. Serenada, porém, a febre da victoria, a tolerância árabe deixou respirar menos anciosamente a popula- ção christã. Todavia a raça germânica preparava na obscuridade a guerra da reconquista para expulsar da Península o leão do dezerto, a raça semítica, que tinha arrastado comsigo o luto e a desesperação. Então os árabes, conhecendo a reluctancia da sociedade roma- no-goda, faziam pesar sobre as cidades, que domina- vam, o seu jugo de ferro, immenso e oppressor.

III

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Era uma formosa dama aquella por quem se mor- ria d'amores o namorado Munio Viegas. N'ella pen-. sava, a ella queria. Senhor de vastas propriedades nos terrenos próximos d' Alpendurada, estava prestes

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a desposar a sua noiva, e cada dia mandava arreiar de novos brocados a alcova nupcial, que preparava para o noivado.

Quantas noites de luar não passou elle a olhar para a corrente saudosa do Douro, que se espreguiçava no valle, como que a perguntar ás aguas do rio se não se realisaria emfim o hymeneu desejado !

O verdadeiro amor tem d'estas maguas e d'estes doloridos receios. Parece que lhe foge o mundo e o tempo, porque para o verdadeiro amor todo o mundo é pequeno, toda a eternidade ó breve. . .

A esse tempo o sacerdote Yelino tinha recebido, em sonhos, inspirações celestes. Uma voz sobrenatu- ral o avisara para que levantasse, entre a Agoa de irez Sequeyros e das Lagoas, como refere o tomo se- gundo da Benedictina Lusitana um templo votado a S. João Baptista.

Sentiu-se Yelino fraco de mais para tamanho com- mettimento e chamou em seu auxilio a Arguirio, homem honesto e reverente a Deus. Foram-se os dois a des- cobrir o sitio marcado pelo dedo da Providencia. Yelino não conhecia o logar designado como por si mesmo o confessa n'um pergaminho do cartório do mosteiro de Alpendurada :

« Ignorava eu qual fosse o logar marcado. Sol fora, ergui-me e fui-rae a Campanellas em demanda d'Ar- guirio. »

Conchavaram-se os dois no segredo revelado pelo ceu a ambos elles, por isso que o bom Arguirio tinha .recebido inspiração igual á do sacerdote Yelino. Des~

150

coberto o terreno, começaram os trabalhos da edifica- ção do oratório, que no mesmo anno se concluiu, de- baixo da protecção do bispo do Porto, D. Sesnando, primeiro do nome. Imaginai agora o que seria aquelle templosinlio rústico quasi escondido entre sarças e continuadamente guardado pela vigilância piedosa do sacerdote Veliuo.

A' hora do sol-pôr, alguém ia ajoelhar-se nos de- graus do oratório e fazer oração por longo tempo. Alli se ficava esquecido o cavalleiro Munio Yiegas a pra- ticar com Deus. Era aquella uma oração de todos os dias em que o moço namorado repetia sempre a mesma supplica : desposar a sua dama. E uma chuva de lagrimas, que pareciam sempre as mesmas, por iss que eram sempre abundantes e ardentes, vinha rocia a quotidiana prece. Quando o sacerdote Yelino se aproximava para accender a lâmpada que allumiava o altar da sua ermida, erguia-se o cavalleiro e se ia pelo caminho fora entregue aos mesmos pensa-| mentos da véspera e do dia seguinte. . .

D'ahi a pouco a campa sonora da ermida de S. João Baptista trez vezes soava compassada as badala- das da oração da tarde.

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Um dia um cavalleiro árabe contemplara coi olhos apaixonados uma dama formosíssima, Elle, guerreiro indomável, que se não temia das hostes

151

('hristàs, sentiii-se fulminado pela belleza esplendida d^aqiiella angélica mulher. E foram-se-lhe os olhos no feminil enranto das formas vaporosas. P] anciava-lhe o peito por arrancar ao dominio paternal a creatura formosa que seria leve de mais para a garupa d'um cavallo acostumado ao retinir das batalhas.

Resolvera o cavalleiro árabe possuir a dama en- cantadora como a fada das lendas orientaes. Tel-a e não a possuir, era o supplicio de Tântalo. Chegara a occasião em que o guerreiro das hostes musulmanas defrontíu-a cora o velho christão, pae da formosa se- nhora. Fora solemne a conferencia. Ura abysmo pro- fundo, iraraenso, insondável, separava, na raesraa sala, os dois interlocutores.

Essa barreira que os distanciava a arabos era a desigualdade das raças, a differença enorrae do san- gue, a sobranceria do vencedor e o orgulho do ven- cido, a crença religiosa e a crença politica, tudo quanto podia emfim separar o cavalleiro christão, de san- gue godo, do guerreiro agareno, usurpador das Hes- panhas. E depois os castos amores da timida donzel- linha cora o castellão Munio Viegas ? E o dia aprasado para as núpcias? E as flores que a noiva tinha re- cebido? E os protestos que tinha feito em paga? E o coração que estalava d'araores ? E os olhos que chora- vam de esperança ? E as supplicas na erraidinha de S. João Baptista? E. .. o amor, o amor, com estes encantos que tem, cora estas alegrias que traz, com todo este mundo que é seu ?

Gil ! não, mil vezes não ! dissera o cavalleiro

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christão em resposta á petição calorosa do guerreira árabe.

V

Fora memoranda esta liicta travada entre dois ho- mens de crenças e raças differentes. Não teria sido de- certo mais perigosa e menos encarniçada, se se hou- vessem arremessado nm contra o outro com a fúria sanguinária de dois leões do dezerto. Para ambos de- cidia da vida. O guerreiro agareno daria a existência por possuir a dama. O cavalleiro christão, se ficasse vencido, cahiria fulminado de morte com o peso da deshonra.

Oh, não, mil vezes não ! repetiu ainda embra- vecido o velho, aprumando-se solemne e magestoso. \

Oh, não, mil vezes não ! dissera de novo, se a í morte lhe não viesse interceptar a voz na garganta.

E cahira no chão, morto ás mãos do cavalleiro da Islam, sem poder puxar da espada curta e larga, que tinha herdado de seus avós nobilissimos.

Ao baque do cadáver acudira a turba dos criados e a filha lacrimosa, espirito archangelico, que, se nãa visse seu pai morto, fugiria do sangue que espadanava das feridas como a pomba deve fugir d'um banquete de tigres. |

O guerreiro árabe, ao vel-a, recuou como por um movimento instinctivo e, passados alguns momentos, xjuando queria estreitar nos braços a visão formosa,

1Õ3

seiítiii-se petriticado diante de um espectáculo me- donho. A dama cliristã, tirando da sua fraqueza fe- minil o supremo esfor(,'.o do desespero, havia arrancado do seio paterno o ferro ensanguentado para o cravar heroicamente no próprio seio.

Quando a noticia da catastrophe chegou aos apo- sentos de Munio Yiegas, recebeu-a elle de olhos en- xutos, sem descorar nem tremer.

Lançou mão das suas armas, embraçou o escudo dos Viegas, que tem quatro bandas de prata sobre campo axid e por timbre um leão pardo picado de prata, e relanceou saudosamente os olhos ao redor do aposento.

Volvidos momentos, alguém o viu sahir em di- recção á capelliuha de S. João Baptista.

Que supplicas dirigisse a Deus, ninguém o soube. Ao afastar-se, sahiu-lhe ao encontro o sacerdote Ve- lino.

As palavras que Munio Viegas lhe dirigiu, foram estas :

A vingança chama por mim, padre. Quizera empoçar no chão das Hespanhas todo o sangue das tribus agarenas para afogar n'elle o assassino infame. Ora por mim e vai accender a lâmpada da tua er- mida. Adeus, Velino.

Pouco depois soavam Ave-Marias na campa da ermidinha. Munio Viegas ouviu, a curta distancia, as trez badaladas e por muito tempo julgou ouvil-as ainda.

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YI

O peregrinar de Munio Yiegas seria o voo compas- sado e doloroso da andorinha, que vai ferida, ou a carreira impetuosa do leão sedento e faminto ? Uma e outra cousa era.

Ora parava para descançar e então se ficava a chorar e a scismar por longo tempo, ora caminhava velozmente, como se a terra tentasse fugir-lhe e elle a quizesse reter debaixo dos pés. Que saudade e que tristeza, quando sentia ainda nos ouvidos o som ex- tincto dos sinos da ermidinha ! Que ferocidade selva- gem, quando um pensamento de vingança lhe incen- diava o cérebro e o coração !

Onde Munio Yiegas se encontrou com os mouros, não dizem as chonicas. Sabe-se apenas que muitas vezes tingira a sua espada no sangue dos soldados agarenos e que ficara prisioneiro em uma das refregas. '

Estava, pois, no captiveiro, como refere o per-| gaminho do cartório de Alpendurada. Oh! longas, noites de luar em que se ficava a espreitar o ceu íizul pelas grades estreitas da prisão, quantas vezes a vossa serenidade lhe não vinha embalar a alma nas harmonias dos coros angélicos em que distinguia a voz dolorida da sua noiva?... Dias de viuvez, horas de captiveiro, que ha de infernal e horroroso que se vos possa comparar? E, no meio d'estas tribulações de martyr, ainda um pensamento de doçura Deus ,

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aindii uma aurora o ccu , ainda uma esperança o noivado d 'além da campa !

Ouvira Munio Viegas contar, no captiveiro, os milagres do santo da ermidinha e para logo, dia e noite, prometteu servil-o reverentemente, se voltasse livre e lograsse morrer em sitio onde se derramassem as harmonias do pequeno sino, que tantas vezes escu- tara, á hora do sol pôr.

Consummou-se o milagre, e voltou Munio Viegas. Demudado vinha, porém. Quando o sacerdote Velino olhou n'elle, desconheceu-o. Munio Viegas vinha velho, triste, alquebrado.

Largo espaço praticou com Velino e com o monge Exameno, que a esse tempo auxiliava o sacerdote, sobre os prodígios do santo e as tribulações do cap- tiveiro. Revelou-lhes o intento em que estava e, poucos dias depois, fazia doação de todos os seus bens, que muitos eram, a S. João Baptista, orago da capellinha.

VII

O oratório levantado pelo sacerdote Velino é hoje o mosteiro de S. João de Alpendurada ou Pendurada, derivando-se o nome, como escreve o padre Carvalho na sua Corographia, de um alpendre da porta^ ou do despenho que fax para o Douro. Não sei por qual das duas origens me decida.

Parece-me boa a primeira, que confirma a anti- guidade do mosteiro, por isso que o padre João Chrj-

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sostomo da Yeiga, no tomo primeiro da Historia universal^ escreve o seguinte : « Os templos tinham um alpendre á porta principal para os penitenciados; e aquelles, aonde ainda hoje ha vestigios d'estes tectos, são os mais antigos.» Antolha-se-me também acceitavel a segunda origem, pois que o mosteiro fica pendurado das rochas do monte Arados sobre o rio Douro.

Seja como for. O que é certo é -que eu, ao escu- tar os sinos de Alpendurada, sinto reviver-me na memoria a historia dolorosa do cavalleiro desventuroso. Pode dizer-se dos sinos d'este mosteiro o que um chrouista escreveu dos sinos do Bussaco : São igual- mente sonoros e saudosos.

HISTORIA AZUL

A quelque tcuips de lá, une âme saiote vit deux formes lunii- ueuses raonter vers le ciei. . .

Lamennais.

Joãosinho, meu querido irmão, vou escrever esta historia para a tua pequenina pessoa. Gosto muito dos meninos da tua idade que são puros como um raio de sol. Muito mais gosto de ti, porém, que és a alegria da nossa casa, a felicidade do nosso lar. Quando a gente te colhe nos braços, sente-se ufana como se tivesse cingido o globo d'um novo mundo, que mais tarde hade mover-se nos espaços com as suas tre- vas e com os seus crepúsculos. Consola a alma ou- vir-te pipitar esse dialecto misterioso dos dois se- res mais irmãos da creação os passarinhos e as creanças. . .

Jesus Christo morria-se d'amores pelos meninos, porque sabia que innefPavel doçura ressumbra d'aquel- las almas. Fico-me muitas vezes a contemplar o quadro de Benjamim West, que representa o Senhor acolhendo as creanças, conforme a passagem do evan-

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gelho de S. Matheus. E' um delicioso poema d'amor aquelle quadro I Encanta ver como o Homem-Deus se desentranhava em affectos ao receber, á porta da vida, as pequeninas creaturas ainda não maculadas pelo contacto dos homens.

Joãosinho, meu pequenino irmão, faze por não desplumar nos silveiraes da vida as azas brancas que te deu a innocencia. Quando um passarinho desce á terra, deve evitar a traição dos maus rapazinhos d'aldea, que andam armando no prado. Se pôde fugir incólume, recebeu um aviso. Se, ao esqui var-se, deixou uma penna nas sebes insilveiradas, sentiu a primeira dor. Se os rapazinhos o aprisionaram, perdeu a felicidade e melhor seria ter perdido a vida. Perder a felicidade 6 viver a vida da tristeza, do silencio e da solidão. Depois que está presa a pobresinha da ave, que impor- ta que seja doirada a sua gaiola ou que lh'a cinjam de folhagens verdes para provocar o canto? São tudo primaveras fingidas, opulências de vegetação tecidas pela mão do carcereiro. A gaiola 6 uma prisão, por isso 6 triste e odiosa. . .

Esta historia, que te vou contar, é um aviso. O que acontece com os passarinhos acontece com os homens. De sentir a primeira dor a perder a felici- dade vai o tempo preciso para a nossa alma percor- rer toda a escala dos soffrimentos humanos: um momento. Se forem doiradas as algemas que nos ro- xeam os braços, somos duplicadamente desveuturosos. Perder a felicidade 6 mau ; ter a consciência de que se perdeu, c peior. O sol, ao espelhar-se no metal doirado

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das nossas cadeias, niostra-as claramente aos olhos marejados de lagrimas.

Este quer-me parecer o máximo supplicio da vida.

Absorve-te no trabalho, que ó o paraíso ; põe de parte a ambição, que ó o inferno. E' ainda a ambição de ter duas pátrias, a do ceu e a da terra, o que perde os passarinhos. Se não descessem das alturas, evita- riam as redes que lhes armam.

Ouve-me agora ; mais tarde pensarás n'isto. Quero ensinar-te a respeitar as dores alheias, para que respeitem as tuas, se acontecer rasgares as azas nos espinhaes da tua carreira,

Chama-se Historia azul o que te vou contar. Por que?

Porque é uma historia mais do ceu que da terra, mais das estrellas que dos homens ...

Tinha o Julinho sete annos, quando a mãe o levava ao adro d'aldea, á hora do sol pôr, para o ensinar a resar diante da cruz de pedra, que defronta com o templo. Era triste e doente aquella senhora fidalga da quinta de Covas, casada com um homem que passava os dias a conversar com os feitores sobre projectos de novas plantações, porque nunca se viu proprietário mais ambicioso ou mais trabalhador.

A casa de Covas fica entre dois montes cobertos de pinheiraes, que projectam sombras na corrente do-

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Paiva, um rio triste e negro, que banha o pomar da quinta e vem desaguar no Douro.

Por alli tenho peregrinado vezes sem conto e sempre me sinto opprimido, quando do cimo do monte olho para as aguas escuras e tumultuosas do rio e vejo ao lado a casa de Covas afogada em pinhei- raes, n'aquelle dezerto medonho . . .

A senhora D. Maria das Dores vivia triste, como dissemos. Momentos d'alegria, mas deixem-me dizer assim, d'a]egria melancólica, os tinha, quando apertava contra o seio o filhinho de sete annos, que estranhava ver lagrimas nos olhos de sua mãe, cujas faces cobria de beijos. Por que chorava aquella pobre senhora ? Estes mysterios do coração são impenetráveis para a razão fria do homem, que procura explicar todos os segredos da creação por uma sciencia frivola, que para si creou. O' philosophos, que gastaes a vida a tentai' resolver os phenomenos da terra sobre que andaes e de que vos julgaes senhores, dizei-me por que razão nasce o lirio pendido para o chão com geito de tristeza em vez de se erguer, orgulhoso de si, como as outras flores suas irmãs ? Não quero pedir-vos que me expliqueis as maravilhas celestes, nem que me falíeis da pluralidade dos mundos, por que me apavora até saber que ha tantos planetas na immensi- dade dos espaços, quando attento na humanidade e a vejo commodamente n'uma nesga de um único planeta. .^ Não vos peço que me digaes d'essas coisas, que hão-de ser para vós uma duvida eterna, uma anciã de saber comparável á sede afílictiva do viajante no dezerto.

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Fallae-me do que ó terreno, do que todos os dias tacteaes, por assim dizer; de tudo o que estudaes desde que a terra se move e os homens a povoam. Níío sabeis ; que bem vos vejo disfarçar a commum ignorân- cia com palavras arrevesadas do vosso vocabulário. A sciencia que vós apregoaes, ó sábios do mundo, não nasceu de vós mesmos, não partiu d'um raio lumi- noso do vosso espirito.

Sois navegadores, é verdade, mas dizei-me se não aprendestes a navegar com essas grandes ilhas fluctuan- tes, pequenos mundos de verdura, que pairam á flor dos oceanos, e com e5sas enormes montanhas de gelo, que sulcam os mares dos pólos e fazem lembrar aber- tas em arcarias, abobadas de cristal doiradas pelo sol.

Sois aeronautas ? Confessae com franqueza que as avesinhas, menos vaidosas que vós, vos ensinaram a devassar os ares, remando com as suas pequeninas azas; exemplo que vos deu também grandíssimo auxilio para a navegação dos rios e dos oceanos.

Sois exploradores ? Devassaes o seio da terra para desentranhar metaes preciosos ? Dizei-me, porém, se não aprendestes nada da toupeira e do coelho, que mi- nam a montanha para se esconderem dos discípulos ingratos. *

Sois architectos ? Levantaes ao ar as vossas con- strucções trabalhosas ?

Déclarae-me então, sem fumaças de vaidade fátua, se não aproveitastes com o exemplo do castor, que edi- fica a sua casa consoante os conhecimentos d'uma geometria instinctiva e natural.

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Não invejo a vossa sciencia, ó sábios do mundo. Pergiuitei por que chorava aquella pobre senhora da quinta de Covas ; e sei que ninguém cabalmente me poderia responder.

Não a festejava o marido com sincera ternura, aa almoço, á hora do jantar e quando á noite recolhia de andar nos campos a espionar os quinteiros ? Não o amava ella como se ama uma alma que é um comple- mento da nossa, uma vida que nos pertence e qual dependemos também ?

Não era aquelle filho o filho do seu amor, o alli- vio dos seus desalentos, o luar saudoso das noites do seu coração ? Por que chorava, pois, D. Maria das Dores lagrimas que não tinham justificação possivel? Não sei, não sabe ninguém. Melancolias dos espíritos fracos, que uma alma confidente pode dissipar.

Manoel de Noronha era ambicioso, e esta tendên- cia da sua alma aggravava as tristesas da esposa me- lancólica, que se via com o filhinho. Detesto, abor- reço a ambição dos homens, que me parece a causa primaria de se infamarem uns aos outros, como se não fossem irmãos.

Seria a melancolia de D. Maria das Dores um pre- sentimento aliitientado pela solidão e pela visinhança lúgubre do rio Paiva ? Quem^sabe ! Mas os presenti- mentos são extravios da imaginação, dizem os sábios, *j e os sábios passam pelo que mostram sei*. . .

i

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II

O adro da aldeã ó d'ama simplicidade solemiie. Fechado por uma sebe de flores silvestres para impe- dir a invasão das manadas que pastam nos lameiros próximos, não tem mais do que uma cruz de pedra, que domina os cômoros arrelvados leitos mortuários de muitos camponezes do sitio. O quadro, como vêem, não pode ser mais singelo nem mais tocante.

Sou grande respeitador do culto devido aos mortos e inclino-me a pensar com Michelet no seu livro = Nos fils = que esta adoração pelos mortos depende directamente do amor pela familia.

Não sei como o homem possa viver feliz longe do remanço dos lares e da (,'ompanhia das pessoas que o viram nascer.

Um dia a vida d'uma d'essas pessoas extingue-se nos nossos braços, e quando ha um logar vasio á nossa mesa enche-se mais uma campa no cemitério, que também nos espera a nós.

Por que razão não havemos de ir visitar á sua ultima morada a pessoa que nos falta e que nos iria visitar também ao mesmo logar, se nos sobrevivesse ? Quem não faz isto não paga o que deve, creio eu, e revela uma alma dura como a rocha e fria como o .gelo. Estas cousas, quando se sentem, dizem-se sem rebuço, embora os meticulosos as tomem á conta de próprio encarecimento.

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« O cemitério, escreve Michelet, é um órgão essen- cial da cidade, uma potencia de moralidade. Uma terra sem cemitério é uma terra barbara, árida e selvagem. » Quer-me isto parecer sublime verdade.

Uma cidade que se levantando sobre cadáveres que não venera, affigura-se-me que cedo deve ruir em terra, porque é uma cidade edificada apenas sobre cinzas ...

Este anno, no dia em que se celebrou a festa da Lapa, entrei no cemitério com Souza Yiterbo, o meu amigo de infância. Passamos por entre as campas co- bertas de flores e de luzes e fomos visitar o tumulo de Soares de Passos, que transbordava de bouquets e folhas soltas.

Estávamos em muda contemplação diante d'aquelle tumulo venerando, quando se aproximou uma senho- ra que, escondendo o rosto na marquezinha azul-ce- leste, pousou o seu ramilhete na pedra tumular do poeta do = Firmamento. ■■= Ficamos extáticos diante d'essa veneração espontânea, rendida a um homem que não vive.

Souza Yiterbo, despertando de um como sonho, arrojou para dentro da grade, com um movimento ^ febril, uma rosa franceza que trazia. i

Esta visita ao cemitério da Lapa deixou-nos recor-* dações para sempre, supponho eu.

Ponhamos poróm de parte estas cousas, que se não devem dizer com similhante franqueza; e voltemos a fallar da senhora fidalga da quinta de Covas.

Costumava ella visitar o cemitério todas as tardes.

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Alli se demorava com o Hlhinlio, sentada nos degraus do cruzeiro, a olhar para os cômoros que escondiam os cadáveres das pessoas da sua familia pai e mãe. Ás vezes voltava-se para o Juliuho e dizia-lhe com ineffavel doçura :

Julinho, meu íilho, quando eu morrer, has de vir rezar por mim a esta mesma hora, pois não has de ?

O menino chorava, passava a mão pequenina pela face pallida da mãe e respondia convulso :

Não diga isso, mamã, que me faz ter vontade de chorar.

Um dia D. Maria das Dores senti u-se mais triste do que nunca, chamou a si o filhinho, cobriu-lhe as faces de beijos e apertou-o contra o éeio com doloro- síssima anciã.

Momentos depois iam mãe e filho em caminho do cemitério. Declinava a tarde. E' preciso ter vivido n'aldea para comprehender a suave melancolia d'aquella hora. Parece que toda a vida orgânica se suspende n'um extasi, e quando momentos depois despertamos para a realidade da vida, sentimos tédio do contacto dos homens. D. Maria das Dores sentou-se n'um de- grau do cruzeiro. O Julinho teve a lembrança de co- lher flores silvestres e pediu a mãe que lhe entrete- cesse uma coroa.

Para que? perguntou D. Maria das Dores. Para pendurar no cruzeiro, como fazem as ra- parigas, quando é dia de romagem.

Vibraram as badaladas da Ave-Maria. Tinha expi- rado o dia ; era aquelle o signal.

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D. Maria das Dores parou muitas vezes no cami- nho a olhar para o adro, como se tivesse saudades da coroa que entretecera e orvalhara de lagrimas... estava, a distancia, essa grinalda singela pendente d' um braço da cruz, n^aquella immobilidade que nós estranhamos em certos objectos, quando os havemos tacteado, convulsos e deslembrados de que a matéria inanimada não pode partilhar e receber as nossas próprias sensações.

III

N''essa mesma noite disse Manoel de Noronha, á mesa da ceia, estas palavras, que dilaceraram o coração de D. Maria das Dores :

Sabes uma cousa ? E' preciso mandar o Júlio para a cidade.

Para a cidade ? atalhou ella sobresaltada.

Sim. Está era idade de entrar n'um collegio. Sou lavrador e não gosto de vida que não seja a dos campos. Conheço, porém, que me corre obrigação de mandar educar o pequeno, de modo que possa entrar á companhia dos fidalgos seus parentes. Não sou egoista. Trabalhei e trabalho ainda para evitar que meu filho

rabalhe. Este entendo eu que ó o verdadeiro amor sem tintura de cousa estranha a um coração de pai.

Dizes bem, respondeu D. Maria das Dores repri- mindo na garganta um grito de afflicção.

Depois, dolorosamente salteada por uma ideia horri- vel, perguntou de súbito :

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E quando tencionas que ?

Por estes dias. O primo Gaspar de Paiva vai ao Porto ; eu vou com elle e levo o pequeno. Sei que has dg ter saudades, mas não imponlio ao teu coração um sacrifício que não tenha sido experimentado pelo commum das mães. Estes ^'olpes são para todas. Pouco tempo me demoro ; trez ou quatro dias, apenas.

D. Maria das Dores não respondeu. Momentos depois sahiu da sala, correu ao quarto do filho, debru- çou-se sobre o leito onde elle dormia o plácido somno da infância, e pôde chorar livremente.

Trez dias passados, havia na casa de Covas o silen- cio lúgubre dos túmulos. Tinha partido o Julinho. Não posso descrever o que fosse aquelle quebrar de amoro- síssimas cadeias na hora da partida. O que sél é que as criadas de Covas trouxeram a fidalga desmaiada para o leito, e que os criados partiram para Sinfães e Castello de Paiva a procurar os médicos d'estas loca- lidades.

Xão era preciso, porém, tamanho alvoroço. D. Maria das Dores voltou a si, e com a turbada memoria de quem desperta d'um somno profundíssimo, perguntou placidamente o que tinha acontecido. Receiaram as criadas aggravar a conjunctura com palavras Indiscre- tas, e calaram-se. A fidalga passou a mão pela testa, afastou as tranças negras que lhe cobriam os hombros e disse com tranquillidade :

sei. Roubaram-me o meu filho. Quiz encostar-se á travesseira e não pôde. Ajudaram-n'a a deitar-se ; e sentiram-n'a cahir em

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somno. Quando D. Maria das Dores acordou, volvidas horas, viu ao lado do leito o medico de Castello de- Paiva, amigo da casa.

Um criado velho, que tinha quasi as honras de mordomo pela antiguidade do serviço, esperou o doutor no pateo e inÇiiiriu da saúde da fidalga.

Está gravemente doente, disse o facultativo. perguntei em cima quando o fidalgo viria e disseram-me que tencionava voltar dentro de trez dias.. Foi gravissima indiscreção tirar o filhinho a esta pobre senhora, cujo temperamento é extremamente delicado. O que .julgo melhor é mandarem ao Porto chamar o fidalgo. Os criados que soltem rédeas aos cavallos e que se não demorem nas estalagens. O snr. D. Manoel de Noronha que se não demore também e que traga o filho comsigo.

O doutor cavalgou, estimulou a égua com os aci- cates e, ao transpor o portão, tornou a dizer :

Que traga o filho comsigo. Pode ser um remé- dio efficaz.

Ao outro dia de manhã chegaram ao Porto dois criados da- quinta de Covas. Criados e cavallos vinham extenuados d'aquelle jornadear por serras da beira Douro.

Costumava Manoel de Noronha hospedar-se na rua do Sol em casa d'uns parentes nobres, quando vinha ao Porto.

Foram os criados á rua do Sol e perguntaram pelo amo. A resposta que lhes deram orçou por isto :

O primo Noronha e o menino chegaram hontem

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á meia noite. O menino vinha doente; foi preciso chamar facultativo. O primo passou toda a noite em claro ; de madrugada, quando viu o filho ^nenos delirado, recolheu-se.

Pois o menino esteve delirado ? perguntou subitamente um dos criados.

Esteve. Entrou aqui nos braços do snr. Gaspar de Paiva, que a pobresinha creança não tinha forças para guiar o seu cavallo. O primo ííoronha vinha triste, que fazia I

N'isto abriu-se uma porta que dava para a escada. D. Manoel de Noronha ouviu do seu quarto a voz do criado, conheceu-a e levantou-se n'um ímpeto.

Que ha ? perguntou elle anciosamente.

A snr.^ fidalga está em perigo de vida. Cha- mou-se o doutor de Castello de Paiva e por sua or- dem viemos trazer aviso a v. ex.^ e ao menino, res- pondeu um dos criados.

O doutor disse mais, acrescentou o outro cria- do, que v. ex.* devia partir immediatamente e levar comsigo o menino o menino que podia ser o único remédio para a snr.» fidalga.

Que desgraça eu fiz ! exclamou D. Manoel de Noronha. A pobresinha creança não pode ir, que está cheia de febre e passou toda a noite a pronunciar o nome da mãe. O facultativo recommendou a maior discreção.

Disse e pareceu meditar alguns momentos ; depois, como assentando n'uma resolução, exclamou :

Eu vou com vocês. O menino fica entregue aos

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cuidados d 'esta família, que é sua parente e ha de ve- lar por elle como eu. Não ha outro meio de sahir d'esta rede de desgraças, que involuntariamente teci.

lY

Deixemos em silencio os acontecimentos de qua- renta e oito horas.

Dois dias depois de D. Manoel de Noronha encon- trar a esposa gravemente enferma, recebeu noticias do Porto e soube que o menino peiorava de hora a hora. Na noite d'esse dia D. Maria das Dores encostou-se nos braços do marido e disse em anciãs, que pare- ciam de morte, que estava a ver o filho, envolto em roupagens luminosas, a charaal-a do cóo.

Dizia isto, e sorria com ineffavel doçura.

A' meia noite tornou a fallar do filho, que conti- nuava a chamal-a das alturas ; e fez menção de se levantar, como a ave que tenta desferir voo. N'este movimento impotente foi-se-lhe a vida. D. Maria das Dores cahiu adormecida para sempre nos braços do esposo angustiado.

É-nos dado vêr o que se passava, uma hora depois, na casa da rua do Sol,, no Porto.

Contorcia-se o menino em dolorosos soffrimentos. Queixava-se de que lhe faltava o ar.

Fallou com extrema difficuldade em sua mãe e disse que ella estava no cóo. Depois acrescentou que

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desejava vel-a, e pediu que o abeirassem da janella. As senhoras da casa accederam.

Oh ! está a mamã ! exclamou elle indicando uma estrella brilhante que luzia na direcção da ja- nella.

E morreu a contemplar essa estrella.

As primas de D. Manoel de Noronha, que tinham os olhos postos no céo, viram que uma estrella ca- dente correra ao longo da tela azulada do firmamento como que em demanda d'aquella que o menino tinha indicado.

Era o filho que procurava a mãe. . .

O Julinho estava no céo ; e ainda não tinha ama- rellecido a coroa de flores silvestres pendente do cru- zeiro do adro.

Joãosinho, meu irmão, respeita estas dores immen- sas da vida e crê n'estes mysterios de Deus, que os homens motejam, se queres attingir a verdadeira feli- cidade. De mim te declaro que me julgo venturoso, por- que respeito tudo o que ha de sublime e que a razão humana não pôde comprehender. A duvida é a febre da vida ; mata lentamente.

Que a Historia azul te sirva de conselho. Aos que te disserem que é imprópria a denominação da narrativa, porque este quadro revela angustias verda- deiramente terrenas, dize-lhes que ha em tudo isto, para os que não duvidam, um raio de luz divina eja- culado do azul puríssimo do céo.

A' BEIRA D'UM BRRCO

(ao snr. A.vroxio Feliciano de c\stilho)

Deixae os meninos e não embaraceis que venham a mim, porque d'estes taes é o reino dos céus.

Evang. de S. Matheus.

Quando OS meninos riem, alegra-se o céo ; quando elles choram, entristece-se Deus. Faz pena vel-os chorar, a elles, que nos dão alegria quando chilriam á volta da mesa do jantar, a elles, que nos pagam com beijos um gesto d'aborrecimento. Na casa onde ha creanças, ha bençans e alegria. Preservam a familia das iras do céo; são como uns anjos da guarda, ioiritos e rosados, que nos cercam d'um ambiente de felicidade. Os me- ninos parecem-se com as flores e com as aves. Afíligí-os e dar-vos-hão sorrisos. Roubae uma flor á hastea em que brotou, á terra em que nasceu ; a pobre- sinha, em vez de chorar saudades e mostrar resenti- mentos, perfuma-vos o ar e alegra-vos a casa. Mos- trae que sois' maus, dando caça aos passarinhos que

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são livres, prendei-os, encarcerae-os ; os captivos, em paga da vossa crueldade, hão de encher-vos a casa de musicas e alegrias.

Hontem ia eu a meio d'um caminho e topei com um rancho de creanças, que sahiam da escola e vi- nham pipilando pela estrada fora. Senti-me contente de vel-as. Pobres rapazitos, que mal entraram ainda no mundo pela porta da innocencia e andam trabalhando todos afadigados para a obra do futuro !

Ao ouvil-os chilrear como um bando de pardalitos joviaes, lembrei-me de Yictor Hugo e de Castilho conj respeito e admiração. Almas sublimes de poetas, que sabeis entender as palavras de Christo e vos des- entranhaes em effectos para as creanças, abençoadas sejaes.

Castilho, o poeta infeliz, que tem os olhos eterna- mente annuveados pela escuridão eterna, olhaô como é solicito em fazer alvorecer auroras brilhantes nas ca- becinhas loiras das creanças, levando-lhes a instrucção embalada na suavidade da musica ! Bem sabe elle que o cantar 6 dos passarinhos e que os rouxinoes dos sinceiraes ensaiam novas volátas estudando em communidade nas noites de primavera. Que as ben- çans do céo, meu prosado mestre, chovam a esmo so- bre a vossa cabeça de poeta, porque sois amigo das creanças e bafejaes as pobresinhas que se andam a implumar para futuras empresas.

Yictor Hugo, o proscripto saudoso, vede como espairece as tristezas do desterro acoUiendo as crean- cinhas que o rodeiam d'alegrias e suavidades ! E de-

I

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pois notae como lhes prepara as festas infantis, a consoada e o folar, para lhes dar contentamentos.

Lembrei-me ainda de Victor Hugo porque, ao ver os pequenitos que vinham de sacca ao hombro pelo caminho fora, occorreram-me de prompto e a ponto os versos do poeta exilado :

Je ris quand chaquo soir de l'ecole voisine Sort et s'echappe en foule une troupe enfantine.

Iam, pois, enchendo a estrada d'uma toada alegre, depois de terem polido uma pedra para o edifício d'amanhã. Eram como uns trabalhadorsitos, que hou- vessem despegado do labor quotidiano e fossem des- cançar pai-a recomeçar a tarefa no outro dia, até que emfim chegue o sabbado do futuro em que hão de receber a feria.

Bem sei eu que lhes ha de custar aquelle traba- lhar de todos os dias, a elles, que são fraquitos como a haste d'um lirio e pequenos como um pintasilgo.

Bem sei isto. Mas os está esperando em casa o seio flácido da mãe, que lhes tem prompta a me- renda e que lhes vae fazer ella mesma a cama tão clara e bonita como se fora de um principe...

Nos versos de Victor Hugo, o professor reprehende os pequenos que se demoram ao sahir da eschola, dizeudo-lhes :

Hátez-vous, il est tard, vos mères vous attetideat, . Bem sabe, pois, o poeta com que extremo cuidado

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está a pobre mãe a olhar para a porta, a contar os minutos, a estremecer, a duvidar. , . e a delirar de jubilo, quando o filho assoma ao limiar a pedir-lhe a bençam e a sorrir-se para ella !

O ver as crianças fez-me lembrar da Quinta da Primavera onde, ura anno antes, eu tinha assistido, n'uma das vastas quadras da casa, ao mais suave espectáculo d'este mundo.

Acompanhae-me áquella sala onde se respirava amor.

Sentia-se a gente bem n'essa atmosphera ! Eu estava alli tão identificado com as personagens do quadro, que me sentia entristecer quando me lem- brava de que não fazia parte da familia.

O berço de uma creança loira, absorta em sonhos do céo, estava sendo, n'essa occasião, o foco calorífico em torno do qual as nossas almas se* aqueciam todas a um raio d'amor. Havia alli um certo conchego, um certo bem-estar, que é o verdadeiro contraste da atmos- phera corrupta das grandes salas onde as mãos trocam officialmente cumprimentos cerimoniosos e os olhos cruzam, ao mesmo tempo, olhares envenenados de malquerença.

Estávamos como que revendo na nossa imagina- ção uma aurora que ha de surgir, um sol que lia de brilhar, um rouxinol que ha de ter voz, uma flor que se ha de abrir aos primeiros clarões do dia de áma^ihã.

Era um ninho afofado de cambraias, o berço d'a- quella creança. Poucas vezes, como n'essa noite, chega a gente a lembrar-se tanto a fundo de que o berço é

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mais do que ura leito e uma creança mais do que um ser que chega ao limiar da vida.

« Pelo filho, diz Paulo Janet, se prende a familia á humanidade. »

Eis aqui o papel importante da creanya de hojej que ha de ser homem amanhã.

E o bergo? O que será elle, pois?

Pode dizer-se do berço o que diz Michelet a res- peito do ninho das aves :

«O berço é uma creação d'amor. »

E* pelo sentimento da maternidade que as aves são artistas, quando fabricam o ninho onde se ha de ir abrigar a prole. E' também por este mesmo sentimento que as mães attingem o artificio das aves, quando pre- param o berço ao filho que ha de nascer.

Sente-se a ave mãe trabalhada das dores da ma- ternidade. Lá vai o esposo, solicito e cuidadoso, pro- curar os raateriaes para a construcção da casinha aérea. Que trouxe elle ? Linho ou crina.

Nada d'isto serve. A pobresinha da ave parece dizer, n'um extremo de amor, ao esposo querido, que o linho é frio e a crina é dura.

Parte de novo o esposo. Yolta, passado tempo, trazendo o cotão de certos vegetaes, que pode servir para um colchão macio. Isso sim que é flácido e agradável. Jubila a futura mãe ; e o esposo fica con- tente de si. '■

Trata-se agora de ser artista na construcção do ninho. Mas é precisa uma precaução : a defeza e se- gurança dos ovos. Como ha de ser? No modo por que

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a ave garante aos filhos a segurança do berço é que se revela o seu instincto artístico. E não devem estra- nhar se lhes eu disser que não é raro dividir-se o ninho de modo que fiquem mãe e filhos n'uma como alcova independente do vestíbulo, onde o macho vigia pela defeza da casa e da família.

jS^otemos agora o que fazem as mães.

Oh ! Ninguém como ellas para saber de que maté- ria se ha de fazer o colchão para o bercinho. E' pre- ciso que seja molle e brando para não molestar a creança. Que altura ha de ter o colchão ? E' necessário que não seja tão alto que exponha ao ar o recemnascido, nem tão baixo que o deixe soterrado no berço. o coração materno é que discrimina o meio termo n'esta conjunctura, E atravesseirinha? Torna-se indispensá- vel que não offenda o craneosinho delicado. E' ainda a mãe que ha de escolher a matéria para se fazer a travesseirínha ! E a coberta do berço ? Importa que a mãe, por um instincto inimitável, escolha o único estofo conveniente.

Eis aqui o berço sendo mais alguma cousa do que um simples leito e apparecendo-nos agora como uma verdadeira creação d'anior. E pelo que toca ao bem estar da creança ! E' ainda a mãe igual á ave que procura garantir a segurança dos filhinhos. Ninguém como a mãe para saber em que sítio do quarto se ha de coUocar o berço. Mais para aqui, na direc- ção da porta, ficaria exposto a uma corrente de ar. Mais para acolá, quasi ao meio da sala, estaria mal collocado pela excessiva claridade das janellas. Nem

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aqui nem acolá. E' preciso que o berço fique n'este sitio, exactamente n'este, diz a mãe, para que o me- nino esteja bem.

Faz rir e chorar a um tempo esta anciedade ex- trema de uma mãe dedicada: e eis aqui resolvida a questão dos philosophos Proethes e Cyestris, philoso- phos que, seg'undo diz algures Victor Hugo, discuti- ram a possibilidade d 'uma pessoa rir e chorar simul- taneamente.

Até aqui creio que a ave está á altura da mulher e que o berço das creanças ó tanto uma creação d'amor como o ninho dos passarinhos. A mãe exige para o filhinho uma cama flácida, e ella e nin- guém como ella ! sabe preparar o leito que deve re- ceber o seu mimo d'amor.

Se a mãe desconfiasse de que uma caminha de ' flores era mais macia de que ura colchão de sumahu- ma, colmaria de rosas, todas as noites, o berço do filhinho e viveria contente arrulando o anjo que dor- misse n'esse jardim em miniatura.

E as aves não fazem o mesmo ?

Poderia referir milhares d 'exemplos, mas conten- to-me com fallar aqui do pendidino^ que tem o cui- dado de acolchoar o ninho com o cotão das flores do salgueiro, e de o pendurar a um ramo por uma fibra de cânhamo para que o vento embale aquelle berço aéreo e adormente a ninhada.

Comparemos a mulher com a ave na restante edu- cação dos filhos d'ambas.

Apparece-nos a ave no trabalhoso periodo da incu-

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bação e a mulher na demorada tarefa de amamentar o filhinho.

Rejeitemos a hypothese de não querer acumular as funcções de ama e de mãe. Pois se Deus fez brotar d'um seio o néctar que deve alimentar uma vida, como é que a mulher, excepto o caso d'impossibilidade or- gânica, quer inutilisar o jorro que lhe rebenta do peito, roubando o que era de seu filho ?

Deixemos isto, que é feio e desconsola ; e continue- mos no cotejo da ave com a mulher.

Ahi temos nós a ave aquecendo o ovo no periodo da incubação. Ella ahi está immovel, presa, solicita, para o não deixar resfriar e atravessando-o com a vista, por assim dizer, como quem deseja devassar um se- gredo, que lhe absorve a vida. . .

Estudemos agora a mulher que se inclina cuida- dosa sobre o berço, entregando aos lábios do filho o botão róseo do seio, sem pensar em mais nada, esque- cendo tudo e concentrando todas as suas faculdades n'esta tarefa tão espinhosa como suave. . .

Mas o passarinho quebrou agora o inii7'o da sua jjrisão, como diz Michelet, e a creança chegou á occa- sião d'abandonar o berço.

A ave começa a querer ensinar o filho a voar.

Abre as azas e desfere voo como para lhe mostrar que o infinito das regiões ethereas não 6 o abysmo, mas a pátria. Provo ca-o, dasafia-o a voar. O passari- nho treme, vacilla, duvida.

A mãe insta, o filho recusa. Mas quando a mãe insta, o filho não pode recusar por muito tempo...

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O passarinho voou.

Vejamos ag"ora a niae a esforvar-se para que o tilho comece a andar.

Promette beijai- o, se ello arriscar um passo.

O pequenito quer andar e receia ; esforça-se e cae... Mas a mãe não desanima e procura dar-lhe alento com o exemplo: anda também.

O pequenito deseja, mas teme. E a mãe insta, e espera-o com os braços abertos...

E o pequenito anceia cahir nos braços da mae ([ue são feitos de ternura, como nota Victor Hugo nos Miseráveis. E a mãe anhela estreitar o corpo d' oiro de seu filho, o corpo d'oiro^ como diz a canção d'Eo^as Moniz. E a creança treme e a mãe anima-a.

E o pequenito começou a andar.

Ha todavia um ponto na educação dos filhos com que as aves se afadigam muito mais do que a mulher: a educação da voz. E' preciso attendermos a que o can- to, como Buffon nol-o diz, «é uma qualidade em parte da natureza e em parte adquirida. » A ave nasceu para cantar, é verdade; mas a sua voz pode ser modificada por mil influencias estranhas.

As aves teem também as suas escolas de canto, os seus conservatórios de musica. Os pães e as mães costumam ser os preceptores n'estas escolas, mas ha todavia casos dos passarinhos serem ensinados uns pelos outros e ainda pelos homens.

Conta Michelet que nos palácios da Rússia ha escolas de canto oiide os rouxinoes novinhos vão

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ensaiar as suas volatas na presença d'outro que passa por ser musico di cartello.

E escreve Bufibn que a maior parte das cotovias modificam admiravelmente o seu canto natural sendo auxiliadas por qualquer instrumento musico; ha casos de chegarem algumas a cantar árias inteiras!

Eu não sei por que as mães não acostumam as creanças, desde a primeira infância, a certa educação musical.

A musica dulcifica os génios ásperos, amenisa lentamente as Índoles que não são boas, apura a sensibilidade e prepara a alma para as concepções grandiosas.

E' tempo de voltarmos á sala onde estávamos. Despertara a creança que dormia, saudando a todos com um sorriso em que brotavam graças infantis. Como não havia receio de perturbar o somno da innocencia, abriu-se o piano e uma senhora percorreu com as mãos o teclado, fazendo ouvir as primeiras notas da Valsa das flores.

Era uma musica alegre a que enchia a sala, e a creança sorria-se ainda como enlevada n'uma suspen- são celeste. Depois cerrou as pálpebras como para se concentrar na impressão dulcíssima da musica e, ó in- fluencia magnética d'essa linguagem dos anjos I adormeceu sorrindo-se e cuido que sonhou. É ainda um milagre da musica o fazer cerrar as pálpebras para se poder sonhar.

Ao outro dia, enviava eu á mãe d'aquella fornio- 8issima creança os seguintes versos :

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Não acordeis o anjo alvo e rosado,

Qiio dorme entre cambraias cor de neve. . .

Vinde vèl-o a dormir tao socegado !

Mas não o desperteis ; entrae de leve. . .

Descerram-se-lhe os lábios n'um sorriso. Não ha sonhos mais lindos, mais serenos I Entrevê os irmãos do paraíso, Anjos, também, rosados c pequenos.

A sonhar ! Vede agora que se move. . . Affastai mansamente o cortinado... Quem é que ao vel-o assim se não commove ? Perturbar este somno era peccado.

As madeixas do sou cabello loiro Esparzidas, n' alvura, uma por uma. Fazem lembrar á gente fitas d' oiro Enastradas n'algum rolo de espuma, c .

Que formoso a dormir I E ao do leito Um coração de mãe, cheio de vida. Aquecendo no fogo do seu peito O porvir da creança adormecida. . .

Inclino-me ante o berço das creanças. Como se fosse o ninho alegre e obscuro, D'onde, um dia, n'aurora das esp'ranças Hão de voar as águias do futuro . .

D'ali hão de sahir novos Atlantes Que sustentem a nova architectura. . Águias, hão de subir como gigantes. Seguindo o voo da águia á mesma altura.

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Yel-as-hemos suspensas no infinito, Medindo, no seu voo, a profundeza Do poema de Deus que está escripto Nos abysmos sem fim da natureza. . .

E quando uma roçar a poeira d' oiro Dos astros que são fachos do universo, Quem dirá que era ella o anjo loiro. Que vimos a dormir hontem no berço?

Pois se as aves aquecem cuidadosas, Nas sombras do seu ninho, a cada ovo, E sem descanço escondem anciosas Debaixo d'uma aza um mundo nov^o;

(Um mundo que se esmaga com dois dedos, Mas que nos furta á vista o ser implume Que ha de amanhã soltar nos arvoredos Um cântico d' amor ou de ciúme. . .)

Pois se as aves nos dão sempre este exemplo De desmedido amor, cheias d^esperanças, O' mães, sabei que o berço é como um templo,. Em cujo altar se adoram as creanças.

Velai por ellas sempre, noite e dia. Não deixeis apagar no vosso seio A lâmpada do amor que as allumia. .. Sede mães, sede luz e sede esteio.

Deixemos as aves e as mulheres a aprenderem ex- tremos de mãe umas com outras. Kespeitem-se as mulheres que se inclinam sobre o berço do homem

18Õ

(Vammihã e iiào enipevamos o voo da ave, que vae cruzando o espado em caminho do ninho de seus fillios.

Matar uma ave é talvez roubar a vida de qualquer mãe ; e roubar a vida da mãe 6 levar a morte aos filhi- nhos. Para que havemos d'atirar aos pombos, como se fazia em Pariz, ha poucos annos, apostando um luh pela vida de cada um, se os pobresinhos vivem no seu paraizo d'amor, sem se intrometterem comnos- co !

O que admira é que as senhoras da melhor socie- dade parisiense fossem as mais denodadas apologistas do tiro aos pombos, uotando-se entre ellas a duqueza de A^alezay, que difficilmente errava a pontaria da sua pequena clavina.

Fecho por aqui estas recordações da Quiiita da Primavera. Pouco disse em relação ao muito que de- sejava dizer. Receba o snr. António Feliciano de Cas- tilho, o poeta amantíssimo das creanças e das aves, estas linhas que dizem respeito ás aves e ás creanças e saiem da peuna obscura do mais obscuro rabiscador portuguez.

I

I

:

O CATRE DO BISPO

( AO SXR. CAMILLO CASTELLO BRANCO )

Toinette

Mais. monsieur, mettez la maiu à la consciea- ce : est-ce que vous étes malade ?

Argan

Corament, coquine, si je suis malade ! si je suis malade, impudente !

MOLiERE. Le malade imaginaire.

Podem servir de introducção a esta narrativa os fragmentos d'algumas cartas que vamos publicar.

Do auctor ao snr. Cainillo Castello Branco :

« Postas estas palavras, vou consultar v. ex.* sobre um caso que prende, talvez, com a biographia do bispo •do Grão-Pará, fr. João de S. Joseph Queiroz. Falia v. ex.* do Mosteiro d^Alpendurada, na introducção ás Memorias, com muita verdade descriptiva, e quer-me parecer que peregrinou em terras visinhas do hos-

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picio benedictino. Se sim ou não, ignoro. Na margem esquerda do Douro, parallela ao mosteiro d'AlpendQ- rada, estende-se a freguezia de Sozello. É ahi que, entre meia dúzia d'arvores de boa sombra, ha uma choupana, que abrigou os meus antepassados e que ainda hoje hospeda frequentes vezes a minha família. Quero áquella aldeia e áquella choupana como se me fossem pátria e berço. Tenho pena de ter nascido na cidade. Queria poder dormir o somno da morte n'um cemitério aldeão, visinho do alpendre onde tivesse nas- cido. Na casa da quinta de Yilla Verde, denomi" nação verdadeiramente bem cabida a propriedade, havia, ha poucos annos, um leito de pau preto, com insígnias episcopaes gravadas na cabeceira. Era de tradição na familia o chamar-se áquelle leito o leito do bis-po d' Alpendurada. Na resfcricção d' Alpendurada havia manifesta mentira. Nem que o mosteiro fosse diocese ! Contava a lenda que costumava dormir n'aquelle leito um bispo velho e triste, que d'Alpen- durada ia de visita ao nosso alpendre. D'aqui veio o dizerem os quinteiros, por ignorância, bispo d' Al- pendurada. Permitta v. exc* que não attribua este erro aos meus antepassados que, posto fossem boas pessoas de poucas lettras^ não eram completamente analphabetos.

Seria este bispo o pobre Queiroz que, por minorar as maguas do seu desterro d' Alpendurada, passasse na barca para o outro lado em demanda do tugúrio hos- pitaleiro de pessoas piedosas? Mas se elle tinha sido desterrado por ordem d'aquelle severíssimo conde d'Oei-

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ras, será licito sappôr que consentissem os frades n 'estas diíj^ressões, postoqiie breves, frequentes ?

Eis aqui o que não sei. O leito desconjuntou-se de velho. Guarda-se, hoje, apenas a cabeceira na casa de Yilla Verde. Tenho vivido tranquillos dias n'aquel- las paragens e quero-lhes como o Júlio Machado, creio que posso dizer nosso commum amigo, quer á sua Durruivos.

Queira v. exc* dizer-me do caso o que pensar, com a franqueza indefeza ao seu mais reconhecido admirador e discípulo

Alberto Pimentel

Do snr. Camillo Castello Branco ao auctor :

« O bispo do G-rão-Pará, sem embargo de ter sido desterrado pelo Pombal, é bem de crer que sahisse do mosteiro quando bem quizesse, porque era prelado insigne, porque era benedictino e estava entre os seus. Quanto ao leito, se tem o espaldar de columnas em rosca, sem duvida era coevo do bispo, porque esse feitio de catres é o da renascença, que principiou no começo do século xviii. Mas quem man- dara abrir as insígnias episcopaes? Os antepassados de V. em honra do seu hospede ? Ou elle mesmo?

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Não é natural a segunda hypothese. Se bem me recordo, o desterrado viveu alguns mezes escassos em Alpendurada. De certo não cuidaria em com- modos de cubículo, e menos em pompas nobliar- chicas. Seria mais acceitavel que os hospedeiros amigos Âe Yilla Verde o honrassem com essa prova de reverencia. Mas a brevidade do bispo em Alpen- durada daria tempo a isso? Ha sêllos de segredos que nunca se abrem. Eu tenho tido horas de aftlicção a scismar em bagatellas d 'esta natureza. Quando era novo passava dias a interrogar umas pedras amon- toadas no viso d'uma serra, que sobranceava a aldeia onde passei a infância em Traz-os-Montes. Eu queria que fossem antas célticas o que não passava d'uns calháos sobre os quaes uns pastorinhos jogavam o Rapa.

Estive á porta do Mosteiro d'Alpendurada com José Augusto Pinto de Magalhães, da casa de Lodei- ro, em Sancta Cruz do Douro. E' o personagem d 'um fragamento de um livro que intitulei: No Bom Jesiis do Monte, Era em dezembro de 1850. Ha 20 annosi A minha alma de hoje comprehende melhor o frio aspérrimo e o local onde estivemos uma hora a" apos- trophar o barão que substituiu o frade.

Seide— Abril 70.

(\ Castello Jii^anco.

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Do aiictor ao snr. Camillo Castello Branco:

i

O leito do bispo 6 perfeitamente da renascença. Aventemos agora hypotheses sobre o caso das insigni- as do espaldar. E' de sappôr que houvesse o catre na casa de Yilla Verde, e que talvez, depois da pri- meira visita do bispo, mandassem ao Porto abrir os emblemas nobiliarchicos a qualquer samblador. O bis- po viveu em Alpendurada, segundo v. exc* diz nas Memorias, cerca d'oito mezes. Do cães de Foutellas saiem barcos de carreira para o Porto todos os domin- gos. A facilidade do transporte e o pouco trabalho artístico das insígnias do catre auctorizam o suppôr-se que os meus avoengos quizeram honrar o seu illustre hospede com esta distincção.

Este leito, onde o prelado do Gão-Pará dormiu as longas noites de Yilla Yerde, tem ainda uma histo- toria que eu desejo contar em folhetim. Peço vénia a V. exc* para publicar a sua carta no prologo da mi- nha narrativa, por isso que v. exc* corroborou a sup- posição da fidalguia do leito.

Li até em Yilla Yerde, o anno passado, o livro No Bom Jesits do Monte e conhecia o caracter sympathico de José Augusto. Pareceu-me um grande espirito o d'aquelle homem e um grande anjo aquella Fanny Owen. O livro impressionou-me e se as nossas visitas de Yilla Yerde entendessem boa litteratura

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(salvas algumas poucas excepções) ter-lhes-ia lido as maviosas paginas nos serões d 'aldeia.

De V. exc.a

Discipulo, admirador e criado

Alberto Pimentel

Ahi vai, pois, a historia que anda ligada ao catre do bispo, seja ou não seja o do Grrão-Pará, Frei João de S. Joseph Queiroz.

I

Não aventuremos hypotheses sobre as causas que, no principio d'este século, obrigaram Martinho de Teive a abandonar temporariamente a casa solarenga de Castro-Daire para vir tractar de perto com Silves- tre da Cunha, proprietário no concelho de Bouças.

Negócios attinentes ao tracto commercial deveram ser, que ambos estes nomes representam duas das não muitas casas que, a esse tempo, mais semeavam e co- lhiam na província.

Os Teives de Castro-Daire eram nobres e dinhei- rosos. Penso que essa familia deveu proceder d 'algum varão romano das hostes conquistadoras da penín- sula;— talvez um dos que edificaram sobre um ou-

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teiro, lavado dos ventos, o castro que deu nome áquellas paragens. Mas se ao fidalgo appellido de Teive se pode assignalar com certeza origem romana, não n'o sei eu, nem isso faz ao meu propósito.

Martinho de Teive era, pois, no principio d'este século, um dos mais acatados senhores de Castro Daire, e o mais querido das donas da sua terra.

Era uma alma sem refolhos aquelle homem, posto que muito propenso a melancolias e ao remanso la- reiro da sua casa solarensra.

No inverno, quando os ventos açoitavam as arvo- res da serra. Martinho de Teive mettia-se na cama, pregoando aos criados soffn mentos gravissimos, que, em verdade, não tinha.

A ideia da morte, que era o galardão da vida para Santa Catharina de Sensi e ganho e (?tferesse para. Sam Paulo, apavorava o fidalgo de Castro Daire. Muito devia contribuir par.i estes terrores imaginários a solidão a que o obrigava o celibato.

Aconselharam-n'o a casar-se. Martinho de Teive tinha anciãs d'uma esposa solicita, que fosse boa amiga e boa enfermeira, mas salteava-o o receio de se lhe mostrar excessivamente ridículo n'aquelles lances entre cómicos e melodramáticos em que dizia estar prestes a ser victima de um . . . aneurysma. ^ Os cuidados da administração da casa valiam-lhe m ainda para espairecer o espirito cançado de visualidades tétricas. Havia trez annos que Martinho de Teive viera |B ao Porto consultar os médicos ; por essa occasião ^Ltrouxe comsigo um grande receio e uma grande es-

I

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peraoça. Vinha com o propósito de saber ao certo se os médicos dissipariam ou confirmariam as suspeitas do aneurysma.

Sujeitou-se á auscultação. Os médicos portuenses olharam-se d'uma maneira significativa. Martinho de Teive esteve a ponto de cahir fulminado. Perguntou- Ihes anciosamente se em. verdade era aneurysmatico. Os médicos soltaram um frouxo de riso e disseram- Ihe que estava mais perto da monomania que da aneur3^sma. O fidalgo de Castro-Daire remunerou-os generosamente e recolheu serenado ao remanso dos lares.

Passados dias, porém, succedeu abrir ao acaso um livro, que era a vida de D. Frei Bartholomeu dos Martyres, por Frei Luiz de Sousa. Acertou de ler o relanço em que o arcebispo está enfermo d'um tabardilho. Ora o prelado bracharense costumava dizer, quando os médicos entravam: «Já vem os trampOes e bem trampões.»

Declarava-se depois, escreve Frei Luiz de Sousa, e dizia que trampões eram uns advogados que com manhas e astúcias dilatavam as demandas e entre- tinham a justiça.

Martinho de Teive fechou subitamente o livro; para logo se sentiu despenhado do ceu da sua felici- dade.

Os médicos ou não sabem ou enganaram-me !... Disse elle de si para comsigo. E os receios voltaram.

195

II

Era Silvestre da Cunha o verdadeiro tyi^o do la- vrador portuguez, iraquelles tempos.

A sua casa de Bouças tinha nomeada de riqueza em todo o Porto. Parte d 'esta riqueza fora herdada d*avoeng'os enriquecidos; outra parte amontoára-a elle na faina constante da agricultura. Segundo, pois, conjecturamos, foram negócios de gravidade os que obrigaram Martinho de Teive a vir ao Porto tratar com o lavrador de Bouças.

Silvestre da Cunha, dias antes de sahir de casa com o intuito d'esperar no cães da Ribeira o de Castro-Daire, disse á mulher :

Xão quero que o fidalgo fique sósinho na esta- lagem do Porto. Consta-me que é doente e triste. Havemos d'hospedal-o, emqiianto se quizer demorar. Além d'isso, temos uma filha que está casadoira e o fidalgo não ó noivo que se desprese.

Silvestre da Cunha era homem de largos espíri- tos. Sabia-o perfeitamente a mulher. O elogio do de Castro-Daire, na sua bocca, queria dizer : É pre- ciso prendel-o nas redes esponsalicias, la por onde der.

Poucos dias depois, entrava Martinho de Teive na casa de Bouças. Teve uma recepção digna do hos- pede.

Silvestre da Cunha apresentou chanmente a sua família, quer dizer, a mulher e a filha.

196

Aqai tem o osso do meu osso, disse elle indi- cando a mulher. E depois, chamando a filha : Anda cá, Yirginia. Yem cumprimentar um fidalgo de sete costados e o mais guapo moço das serras do Douro.

A rapariguinha tremeu d'acanhamento, e cumpri- mentou timidamente. Martinho de Teive diga-se em abono da formosura da filha do lavrador esque- ceu-se, ao contemplal-a, do aneurysma.

Não sei se aquella terra de Bouças é logar azado para ninho de amores.

Averiguando a etymologia da palavra Bouças topo com duas opiniões differentes, que não auxi- liam o meu propósito.

Uns a derivam do grego Bossis que signi- fica — pasto ; outros do phenicio Boses ^ que é a denominação d'uns penedos da Palestina. Dos ro- chedos e do ervaçal não vem cousa que ao ter- reno o que quer que seja de paradisíaco.

Appello para a visinhança poética do rio Leça, sem cuidar de tirar a limpo se este, e não o Cávado, éo Gelando ou, como outros querem, o ^ Le- thes.

Por alli fica, não longe, a quinta de Santa Cruz, propriedade dos bispos do Porto, que tantos desvelos mereceu a D. Rodrigo Pinheiro. Ahi deveu o prelado portuense ler a interessante correspondência do poeta Cadabal Gravio, que lhe mereceu amizade e a quem, em 1568, mandou imprimir, em Lisboa, uma grave e elegante descripção d'esse suave retiro episcopal de Santa Cruz.

11)7

Nao ó preciso, poróm, procurarmos poesia em redor de Martinho de Teive e de Virgínia. Tinham-n'a, qiio farte, aqiielles dons corações. Quando o amor accende, no peito, auroras interiores, não cuidamos de cousa que seja material e estranha, porque ó chegada a hora de nos divinisarmos, alheando o quebradiço do barro primitivo. D'aqui infira o leitor que dulcíssimos júbilos alvorejaram para aquelles dous corações.

Martinho de Teive e Yirgina. . . amavam-se.

III

Silvestre da Cunha via coroados os seus desejos. Concluídas as transacções com o hospede, convidou-o a um passeio pelos campos e ageitou o dialogo de maneira e dizer :

Que lhe parece minha filha, snr. Martinho de Teive ?

Parece-me uma boa e interessante menina.

E mais nada? perguntou o de Bouças com rústica simplicidade.

Olhe, snr. Silvestre da Cunha, devo-lhe a verdade. Eu amo sua filha . . .

Isso suspeitava eu.

Era natural.

E que tenciona fazer ?

Quereria desposal-a, mas sou um homem ex- cessivamente doente e receio infelicitar a mulher com quem casar.

198

Deixe-se d'isso, fidalgo, disse Silvestre da Cunha. Verdade é que a sua appareiícia não ó de robus- tez, mas também não vejo motivo para tamanhos receios.

Sofíro muito, snr. Silvestre da Cunha. Tenho um aneurysma, meu amigo, e presinto que o mal vai adiantado.

O de Bouças esbugalhou os olhos. Ouvia simi- Ihante palavra pela primeira vez e perguntou :

O que vem a ser isso ?

Aneurysma, propriamente, é um temor devido á dilatação d'uma artéria, mas exprime-se também por esta palavra a dilatação de uma ou de todas as cavidades do coração.

Silvestre da COnha sentiu-se pouco melhorado com esta explicação pathologica e reperguntou :

E' de perigo essa moléstia ?

O aneurysma ! Morte certa.

Então também a tenho, disse com jovialidade zombeteira o lavrador.

Por que?

Porque hei de morrer sem remissão nem aggra- vo. . .

Não graceje, snr. Cunha. Esta ó a minha mo- léstia embora os médicos digam que não.

Silvestre da Cunha comprehendeu que a enfermi- dade do seu hospede não passava d'uma apprehensão e disse:

' Qual lorisma nem meia lorísma ! Coma, beba divirta-se, fidalgo. Não ande a chorar o landum.

199

Diz-nio isso, siir. Cunha! ex''lcun()ii u Teive com iissomos d'aleíi'ria.

- Sim senhor, digo-lhe" isto.

Pe(,*o-llie a mão de sua filha,

Da meliior vontade, snr. Martinlio de Teive. O peior ó que minha íilha não tem nobreza. para a ceia ha de ella levar.

Não procuro íidalg-uia nem nobreza. Quero uma mulher que, simplesmente, me estime.

E a Virgínia ha de estimal-o de veras, por que o ama.

Assim o creio, snr. Silvestre da Cunha. Eu também a amo e. . . muito.

lY

Cuidou-se desde logo nos apercebimentos do noi- vado. Martinho de Teive andava ' alegre e absoluta- mente esquecido da sua imaginaria lesão. Yirginia deixava adivinhar no semblante o muito amor que ti- nha no coração enamorado. Silvestre da Cunha e súa mulher deliravam de contentamento.

Chegou o dia das núpcias. Foi a melhor festa de Bouças, n'aquelles tempos. As raparigas do sitio prepararam festas e descantes. Os pintalegretes do concelho sahiram a terreiro com as suas violas.

Silvestre da Cunha mandou fazer ao Porto balões de cores para illuminar as arvores do pomar.

200

Concorreram ás bodas muitos convidei dos, das visinhanças de Bouças ; outros vieram de Castro-Daire por honrar Martinho de Teive.

Permitta o leitor que reatemos o fio da narrativa um mez depois do dia das bodas para lhe uão darmos tratos á paciência.

Martinho de Teive parece triste. Yirginia na tristeza do marido aborrecimento temporào, chora e occulta de todos as suas lagrimas.

O fidalgo de Castro-Daire manda buscar ao Porta o medico mais em voga, porque a ociosidade fel-o lembrar dos antigos padecimentos e diz que não pode viver muito tempo.

Foi o medico. Auscultou-o e ouviu-o com a máxi- ma attenção.

Não tem nada, concluiu o doutor. O senhor deve tudo o que soffre á imaginação. viajar, divirta-se, e não pense mais n'isso.

Silvestre da Cunha esperava á porta do quarto.

Que tem meu genro V perguntou com anciedade ao medico que sahia.

Padecimento real não o tem. Soífre apenas . . , da cabeça, que é um mau soífri mento. Está a meio caminho da loucura, se se não dominar. Receitei leves tónicos. E' apenas uma grande desafinação nervosa e mais nada.

Quando o medico descia as escadas, dizia Martinho de Teive á esposa, pondo os olhos amortecidos n'um painel da Virgem :

Sinto-me morrer, Yirginia. Que infelicidade !

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Que Nossa Senhora me mais alguns dias de vida para ir morrer á casa onde nasci...

Ha de dar, meu amigo. Tu não tens nada dizia em anciãs a carinhosa e dedicada menina. Olha o que disse ainda agora o doutor. Mas vamos para Castro-Daire, vamos para onde tu quizeres. O que eu desejo é vêr-te tranquillo.

E n'isto entrava no quarto a mãe de Virgínia. Abeirou-se do leito e apalpou os pés do imaginário doente.

Jesus, como os tem frios ! disse a indiscreta e anafada creatura. Que será isto ! Os médicos ás vezes- sabem tanto... como nada! Yai buscar uma botija^ Yirginia.

Estou a morrer, gritava Martinho de Teive. tenho os pés frios ! Agora é certo. Não saias, Yir- ginia, não saias.

E passou uma hora... dois dias, muitos dias e ainda estava vivo e a dizer que sentia roçar pela garganta a foice implacável da morte.

Quinze dias depois da visita do medico, desem- barcaram no cães de Fontellas, que defronta com o mosteiro de Alpendurada, Martinho de Teive e Yir- ginia. Tinha sido triste e longa a viagem pelo Douro acima, n'um d'aquelles ronceiros barcos d'espadella,

L

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que vemos a toda a hora amarrados no ancoradouro da Ribeira.

Estavam prevenidos os criados para trazer •as ca- valgaduras ao cães. Era, porém, quasi noite, quando -^ o barco abicou á gandra. Martinho de Teive não quiz ,, metter-se ao caminho. Virginia tinha o coração dila- |j cerado de soífrimento e sentia medo do silencio e da solidão d'aquellas agrestes paragens. Lembrou-se Mar- tinho de Teive de pedir gazalhado na casa de Yilla- Yerde. Yirginia approvou.

Foram. Os caseiros dos meus antepassados re- ceberam-os bem, logo que reconheceram Martinho de Teive, que era visita da casa. Prepararam-lhes camas. O íidalgo disse que se sentia mal, pediu agua e la- mentou ter de morrer em casa estranha. De repente reparou Yirginia no catre de emblemas prelaticios.

De quem é este leito? perguntou-lhe ella. Era ahi que costumava dormir, ha cerca de cin-

coenta annos, o bispo cV Alpendurada, quando vinha visitar os nossos amos, disse a mulher do caseiro.

Seria virtuoso ? interrogou com curiosidade Yirginia.

Mal me lembro d'elle. Era pequena, quando o vi. Mas pareceu-rae triste e doente.

Eaça-me um favor. Deixe deitar meu marido n'aquella cama.

Pois sim, minha senhora. Apezar de que nin- guém ainda se deitou n'ella; nem as pessoas da casa.

Martinho de Teive deitou-se no catre do bispo.

203

dormiu tranquillameiíte. Entretanto Vir^^inia ajoelhou, cheia (i'esperani,*a, e invocou a alma do prelado. Le- vantou-se confortada. Sento u-sc n^uma cadeira ao lado do leito e adormeceu.

Ao romper da manhã, Martinho de Teive acordou jovial e despertou Virgina. Dizia que se sentia melhor. Sahiram de Afilia Yerde em direcção a Castro-Daire, que fica distante trez léguas, se tanto.

Nunca mais fallou no seu aneurysma. Viveu so- cegadamente mais quinze annos e morreu do que nunca pensou morrer .... de um ty pho. Yirginia morreu ha cinco annos. Era uma velhinha que eu ainda conheci e que me obsequiava, frequentes vezes, com um cestinho d'alperches do seu pomar, em atten- ção a ser eu da familia de Yilla Yerde.

Aquillo foi um milagre ! dizia a pobre senhora. Foi um milagre manifesto ! Não que dizem que os não ha !

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HERBARIO--. FUMA FLOR

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SCENAS INTIMAS

(a. J. FREDERICO LÂRANJO)

Pour exprimer ramour ses fleurs semblent eclore, Leur langage est ua raot, mais il est plein d'appas. Dans la main des amaats elles disent encore: «Aimez moi, ne iu'oubliez pas.»

AnrÉ Martin.

Rosinha bordando á janella. Ouve-se o chilrar festivo das andorinhas nas arvores do pomar. Toda a aldeia parece saudara chegada da primavera. O dr. Cornelio, um rapaz gentil, impeiliudo a porta meio-cerrada :

Xão serei indiscreto, Rosinha ?

Pode entrar, sr. doutor.

Venceu a cotovia com tamanha madrugada !

Despertaram-me as andorinhas...

Veja, porém, que as andorinhas ainda não trabalham. Por emquanto cantam o hymno da manhã.

Também o snr. doutor me parece mais jtraba-

206

Ihador qae as descuidosas avesiiihas. Levantoií-se- cedo I

Os meus doentes, l^siuha. . .

Tem algum em perigo ?

A Mariannita, de Fontellas, com mal de amores e quasi tysica.

Pobresinha Marianna !

Talvez a salve, ( Aproximando-se do bastidor ) Deixa-me ver o que está bordando ?

Se não deixo! É uma flor do campo, um não-me-esqueças azul como o firmamento.

Bonito deveras ! Chamam-lhe na cidade myó- sotis. Namorou-se do azul, não é verdade, Rosinha? As estrellas. . .

Inverta o galanteio. Diga antes as ando- rinhas. Também ellas se namoram do azul.

E verdade ! Formoso azul o d'este ceu da primavera que as chamou de louges terras ! Um pedido. Rosinha. . .

Diga, sr. doutor.

Dá-me este myosótis, que lhe serve de modelo ?

Aqui o tem

Obrigado. Não quero recebel-o sem que conclua o bordado.

Como quizer. O snr. doutor gosta muito de flores ?

Se gosto !

Ah I também eu. Nem que a gente se esmere no bordado chega a imitar as flores do campo, e com- tudo são as mais singelas !

207

E' que ii singelesa do campo 6 inimitável. Exemplo. . .

As flores.

Não, ii Rosinha. .

( Ouve-se chamar da alcova: Rosiniia ! Rosinha!)

vou, minha mãe.

E' venlade ! Tinha-me esquecido a minha doente.

II

Trez dias depois.

Rosinha e o dr. Oornelio debruçados á janella. Esmorece a tarde. A suavidade d'aquelle formosíssimo occaso convida á meditação.

Chora, Rosinha ?

Xão choro, sr. doutor. Era uma nuvem negra que passava e rociava as flores d "alma com ligeiro or- valho . . .

Pensava, talvez, no futuro ?

Eu^ .

Com francjueza, minha amiga. Ha meia hora que lhe lia no rosto as tempestades do espirito. Res- peitei o seu doloroso recolhimento, esperando que chorasse. Yi-lhe os olhos marejados de pranto e per- cebi que queria esconder as lagrimas. Estava salva! Chorar ó converter bagas de fel em estrellas de cr^^s- tal... Chore, Rosinha. É sol-posto no seu coração de filha. Sua mãe, a boa e santa velhinha, não pode es-

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perar a luz de muitas alvoradas. Kesvala para o tumulo <?ada dia com a rapidez d'uma existência que se ex- tingue de cansaço, hora a hora. Vamos vel-a, Rosinha. Enxugue o seu pranto e venha comigo.

E' que realmente não posso abeirar-me do leito ^ reprimir as lagrimas. Minha mãe, quando me chorar, tem momentos d'uma anciã agitadíssima. Chega a delirar. Corre as suas mãos tremulas ao longo das minhas tranças e diz que lhe custa morrer por ter de me deixar sósinha no mundo. Depois, muito -excitada, solta palavras desvairadas, que não com- prehendo. Pobre mãesinha ! Fico sósinha no mundo, é verdade, mas fica também comigo o meu anjo da guarda. Meu pae morreu pobre ; ainda o sr. doutor não tinha vindo para a nossa aldeia. Era um homem verdadeiramente lionrado. A sr."" morgada da Quinta d'Azenlui era minha amiga ; ensinou-me a ler e dava-me livros tão lindos ! cuja leitura me conso- lava. Um dia... meu pae succumbiu ao trabalho. Quiz minha mãe substituil-o na faina dos campos. Moirejou e trabalhou como poucas. Os nossos campi- nhos não valem nada, mas nas mãos de minha mãe rendiam muito. Agora a pobresinha sente que vai mor- rer. Vê que eu não sei nada do amanho das terras e conhece que fico desamparada. . .

Nunca pensou em Deus? atalhou o dr. Cornelio passando a mão pelo rosto para apagar o vestigio de algumas lagrimas.

Se tenho pensado, sr. doutor ! Deus ha de pro- teger-me. Nunca fiz mal a ninguém e o meu anjo da

201)

liuardii ha de cobri r-ino com us suas azas. Irei pedir abrigo a a lignina pobro faniilia do lo^^ar, que se encar- regará do olhar pohis nossas terrinhas. Esta casinha, que me foi ber(,*o, ha de o sr. doutor recebel-a, não como i-ecom pensa dos seus desvelos, mas como penhor da orphã aí^radecida.

Cale-se, Rosinha, cale-se que me dilacera o coração.

Perdoe, sr. doutor. Ha muito que lhe queria dizer isto e não tinha animo para tanto. ,.

Por Deus, Rosinha. Cale-se por Deus. Yenha comigo. En^^ugue as suas lagrimas e seja forte. Olhe, n'estes momentos de atribulação, lembre-se que ha uma palavra que resume um mundo. Eleve o seu pensamento a Deus,

Que Deus me proteja.

Ha de protegel-a, minha amiga, ha de prote- gel-a.

in

Na alcova da doente.

O -doutor Cornelio sentado á cabeceira. Rosinha debruçada aos pés da cama e occultando o rosto en- tre as mãos.

Snr. doutor, pronuncia dolorosamente a pobre velhinha, não tenho palavras com que possa agrade-

Icer-lhe. Tem sido um verdadeiro amigo. Se não fosse ler compaixão de nós, não sei quem nos havia de

210

valer. E' triste morrer, snr. doutor, quando a alma tem de se partir em duas metades : uma que fica e outra que vai. Não me põe medo a morte por ter de ser julgada no tribunal de Deus. Rosinha era o meu único mundo. . .

Não falle, que se cança.

Perdão, snr, doutor. Creei Rosinha como se cria uma flor que a gente tem á janella para ver a

i

toda a hora. Lia e gostava que lesse, porque a snr.* ^ morgada d'Azenha não havia de lhe dar livros maus. E olhe que eu nem pensava em morrer, absorvida como andava no trabalho de todos os dias. As vezes vinha uma nuvem ao coração. Era um momento ; dissipava-se. A Rosinha sabia coisas bonitas. Não sei se as lia ou se as botava da sua cabeça. Uma vez ^ disse o Manuel do Açude, na nossa cozinha, que não havia outro mundo. Rosinha corou e respondeu : «Olhe era volta de si, snr. Manuel.» Não foi assim, Rosinha? Lembro-me agora muito bem, e poucas vezes me acontecia isto ! Mas disse-lhe ella : « Olhe em roda de si. Não é preciso tanto. Ponha os olhos j n'este castanheiro. D^onde nasceu elle ? D'outro. E esse? D'outro. E o primeiro de todos? E a terra d'onde 6 que sahiu O Manuel deitou a vista ao cas- tanheiro e disse muito passado : « E' verdade. Ro- sinha!» De Deus é que veio tudo, continuou ella., J^ois Deus, snr. Manuel, ha de premiar os bons e cas- tigar os maus. Ha muita gente que não faz mal ninguém e que não ó feliz, e ha outra que faz ma ao próximo e ó venturosa. Em alguma parte hade ha

211

ver verdadeira jastiça, porque existindo Deus n'Elle devem estar todas as virtudes e todos os merecimen- tos. Se Deus não ó bom e justo, clai-o parece que não pode ser Deus.» Não pensa assim, snr.. doutor? A Rosinha disse a verdade, pois não disse?

Rosinha disse o que era.

Assim me queria parecer.

E, como prova do que Rosinha disse ao Manuel do Açude, vou eu dizer uma cousa. A felicidade do parai- zo faz-se muitas vezes sentir aos que foram bons ainda áquem dos umbraes da eternidade. A snr.^ Margarida fez bem a toda a gente. O seu mundo era Rosinha, como nos disse lia pouco. Mas sempre viveu pobre e pobre morrerá. Pouco é o que tem e menos terá para o futuro. Deus, porém, inspira-me para lhe an- nunciar a felicidade, que a espera ainda. Se que eu saberei estimar a que tanto adorou na terra, se vê- que eu saberei ser marido bom e dedicado, conceda- me a mão de Rosinha e não atormente com essa an- ciã estas lioi"as dolorosas de sofírimento.

-- Senhor doutor ! exclamou a velhinha, tentando sentar-se no leito e sorrindo um sorriso mais do céu que da terra.

Senhor. . . balbuciou Rosinha, sem poder repri- mir uma expansão de intimo jubilo ; mas detendo-se logo n'um anceio de commoção.

Rosinha é boa e dedicada, continuou placida- mente o doutor: amei-a.

Também eu. . . o amo, atalhou Rosinha, escon- dendo, de medrosa e timida, o rosto entre as mãos.

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A velhinha enferma sorria enlevada em extasis.

Amei-a. Sondei as profundezas d'aqiiella alma e achei escondido muito oiro de subido quilate. Sou pobre como Rosinha. Vivo do meu trabalho honrado e constante. Devo á benevolência d'um tio rico a posição que hoje tenho. Foi elle quem me formou, dois annos antes de esposar uma formosa me- nina da província. Tem dois filhos, que são her- deiros de muitas quintas. Quer-me parecer, porém, que sou mais feliz do que para o futuro hão de ser meus primos. Tenho necessidade de trabalhar. . . Nasci no Porto. Meu pae era ne^^ociante. Foi um homem cujo natural pundonor não lhe permittiu mor- rer rico. í^o coramercio, quem quizer levantar-se em pedestal doirado, precisa pôr de parte certos prin- cípios de honra. Os que não transigem, morrem des- graçados. Foi o que succedeu a meu pae. Minha mãe ficou a^viver era companhia de uma filha, casada com um empregado publico. É a única irmã que tenho. Yivo e, devo dizel-o, vivo triste. Parecem- me longas as horas da noite, depois que recolho de ver os meus doentes. Kosinha será o anjo do meu paraizo, a minha companheira, a miaha felicidade su- prema . . ,

lY

Disse a doente que se sentia anciada. P]ra por noite a dentro.

Fez-me mal esta alegria ! murmurou ella com

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difHculdade. Deus teve piedade de mini. Quero a^iTa- dccer-LIíe. Se não fosse tão tarde, mandava pedir o Vi a ti CO.

Nunca ó tarde para cumprir um dever, obtem- perou o doutor. You eu mesmo avisar o abbade. D'aqui a pouco tempo lia de receber a desejada visita.

Como o bom! como Deus liro ha de agradecer, sr. doutor! disse a velhinha, estendendo os braços para Cornelio.

Também eu cumpro um dever, replicou elle. Reconheço a superioridade do medico que vou cha- mar e, sem abandonar o meu posto, delego a missão em quem melhor a pode desempenhar.

Mal que o doutor Cornelio sahiu. Rosinha encostou ao peito a cabeça da doente e cobriu-a de beijos. Era aquelle um despedir-se extremoso de dois corações costumados a sentir como um só.

Minha mãe ! minha mãe !

Morro feliz, Rosinha. Xão chores ; não tens razão para chorar. Mereceste a Deus o noivo que en- contraste. O doutor Cornelio é um coração como poucos .

Se é, minha mãe ! Quero que viva para ser testemunha da nossi,; felicidade. Sente-se anciada, não sente ? E' que lhe fez mal esta alegria tamanha, que não esperava. Eucoste-se bem para mim e descance DO meu seio.

214

y

Hora e meia depois checava o Yiatico A velhinha parecia sorrir-se para alguém... que se iicão via. Rosinha e Cornelio ajoelharam aos lados do catre.

Fora solemne aquelle momento. Quando o abbade entrou no quarto, expiravam á porta da casa as der- radeiras notas do cântico sagrado. Toda a aldeia se tinha alvoroçado para vir prestar a ultima prova de dedicação á honrada velhinha. Apoz o padre entraram homens e mulheres. Rosinha levantou-se para amparar a cabeça da moribunda quando o abbade se abeirou do leito com o vaso das partículas. Tremera m-lhe, porém, os braços e Rosinha vacillou. N'este momento assomou á porta do quarto um vulto de mulher. A multidão abriu caminho respeitosamente. Era a sr.* morgada d'Azenha, que chegava. A boa senhora, afastando docemente Rosinha, colheu a doente nos braços. O dr. Cornelio ergueu-se de golpe e pronun- ciou com voz firme :

Aproveito este momento solemne para declarar que sou o noivo de Rosinha. A sr.* morgada d'Aze- nha ser-lhe-ha mãe até que o sr. abbade nos de a benção nupcial. Não ó verdade que tudo isto 6 da sua vontade ? perguntou o doutor á doente.

A mãe de Rosinha respondeu, sorrindo, com um movimento affirmativo. O sacerdote ministrou o sacra- mento. Pouco depois ouvia-se ao longe o Bondiio despertando os ,eccos do valle.

Sinto-me descançada, murmurou a doente.

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Yenluim cá, meus filhos, deixem-me beijal-os. A sr.* moipida ha de permittir que também lhe beije a mno. K' tão doce morrer entre pessoas que nos estimam ! Agora descansarei um bocadinho. Parece- me que vou dormir.

YI

Meia hora depois dizia Rosinha á morgada d'Aze- uha :

Está a dormir, não está ?

É provável que não acorde, Rosinha. . .

Minha senhora !

Ajoelhe-se comigo e rezemos todos trez. A boa alma não é da terra. . .

YII

Oito dias depois do passamento de sua mãe, sahia Rosinha da quinta d'Azenha para desposar o doutor Cornelio. Yamos encontrar os noivos, volvido um mez, na casinha do valle, escondida na sombra das arvores do pequeno pomar. Rosinha escolhe algumas flores, ■das muitas que estão espalhadas sobre a mesa, para '._ -compor um ramo. Cornelio entretem-se a collar n'uma folha da sua carteira o myósotis que serviu de modelo ao bordado de Rosinha, concluído.

Olha, como está bonito. Rosinha ! disse Cornelio mostrando a flor deseccada e artisticamente disposta no cartão.

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Bonito deveras !

Muito inferior, poróm, ao teu bordado.

Estás lisonjeiro, Coi-iielio !

Estou penliorado por não teres esquecido O' meu pedido.

E eu estou reconhecida por te haveres lembrado da minha felicidade. . .

Estimo sinceramente esta flor. Orvalhaste-a com as tuas lagrimas, na manhã em que t'a pedi, e, como as tuas lagrimas eram ardentes, desbotaram o azul das pétalas. Dias depois sahiste d'esta casa coberta de luto. Tiveste, poi-ém, o cuidado de guardar o 7ião me esqueças, como tu dizias, dentro de um dos teus mais queridos livros. A chave do enigma 6 um livro de amores; foi acertada a escolha. i\qui está a pagina sobre que deixaste o myósotis. (Pondo o livro^ ainda aberto, diante de si e correndo a lauda com a vista.) Notável coincidência, Rosinha ! Ouve : « Quem- sabe até o que ii-á de mysterios nas flores e nas ar- vores ! que idillios, que elegias, que divinos poemas não correrão nas florestas com o murmurinho doS" ventos em ostrophes de aromas, intelligiveis ás ar~ vores congéneres, e ás flores da mesma espécie!. . Ha aqui verdade sublime. Esta flor possuia o segredO' da nossa felicidade. As flores devem ser como as estrellas : nascem umas pai*a chorar, outras para sor- rir. As hj/ades são as estrellas que choram ; por isso um poeta romano, Horácio, disse que eram tristes. As flores que partilham o destino das hyades são a perpetua e o goivo, as flores do cemitério. Lncifer

217

como quem diz ii estrella que mais brillui, precede a manliã e entremostra-se no ceu ás tlôres que se bem- querem. Inclino-me a acreditar que as estrellas da terra desempenham missões difterentes como as suas irmãs do ceu ; ha flores que nascem unicamente para o coração. Ora o amor nasce d'um sorriso e d'uma lagrima, d'uma tlôr e d'um espinho. Succede, pois, orvalharmos de pranto a flor que encerra o segredo- da nossa felicidade. Por isso tu choraste sobre este myósotis, Rosinha.

Meu amigo...

Era eu ainda estudante no Porto, quando li um livro de versos francezes, publicado trez mezes antes da morte do auctor, que se chamava Hégésippe Moreau. Um verdadeiro poeta que morreu tysico, de vinte e oito annos, no hospital da Caridade, em Pariz ! Adivinhas como se chamava esse livro, Rosinha ?

Xão adivinho . . .

Mijósotís. O nome d 'esta flor.

Ah !

Durante a leitura senti abrir-se a minha alma a sentimentos dulcissimos. Admirei-me até ! Estava lendo poemas de um talento des venturoso e sentia-me alegre. Era um presentiraento de felicidade. . .

P Se era !

Encontrei-te ao bastidor n'aquella manliã. Bor- L davas um myósotis. Era a flor do poeta francez. Reno-

varam-se-me as sensações da leitura. Pedi-te a flor e jubilei no intimo da alma, quando tu pronunciaste não me esqueças. que tanto o myósotis significa.

21^

Eucantas-me, Cornelio !

Hei de trazer esta flor na minha carteira sobre o coração. Âs vezes, ao lado d' um moribundo, é pre- ciso que o medico tenha um braço mysterioso e invi- sivel que o ampare para não cahir. São espectáculos que dilaceram o coração. Valer-me-ha então esta carteira, herbario. . . d'uma ílôr que guarda o segredo da nossa felicidade. . .

YIII

Tens o teu ramo prompto, Eosinha. Eu estava esquecido a fallar dos nossos amores. Yamos depor esta recordação de cada domingo na campa de tua mãe.

Custar-me-ia deixar de fazei- o.

Tens rasão. Consola ir TDresentear os mortos. Quando Yirginia morreu ó isto uma das mais bo- nitas passagens do livro de Saint-Pierre as indias de Bengala deram liberdade sobre a campa, ainda mal fechada, ás avesinhas que tinham reclusas em gaiolas. Nós, imitando as indias de Bengala, vamos render liomenagem á memoria de tua mãe o levamos-lhe flores.

Homenagem de dois filhos. . .

Que se amam para sempre.

Olha, Rosinha disse Cornelio, pondo a mão direita sobre o coração tenho aqui o meu herbario... d' uma flor.

ARMANIJINHA

(a JÚLIO CESAU MACHADO)

Nilo sabe o que é padecer, Quem o filhinho que adora Nao viu ainda morrer !

Bulhão Pato.

A tia Leonarda sabia historias de fadas como niii- gLiem. Foi uma pena morrer, que não ha n'aldea •quem divirta os camponezes nos serões d'inverno. Parece-me ainda ouvil-a contar este caso sobrenatu- ral, que me prendeu a curiosidade por algum tempo. IJI Era d'uma vez um anjo. .. Mandou-lhe o Senhor •que descesse á terra a buscar a alma d'um justo, que estava em artigos de morte. Ha sempre um cherubim para acompanhar um espirito bom, que se parte d'este mundo. Quando o anjo poisou na terra, achou-se n'um valle ameno, copado d'arvores, onde corria uma veia d'agua tão brilhante, que parecia coberta d'aljo- fares. . .

b

220

E ouvia-se um concerto longínquo de passannhos| que fazia lembrar o assobiar do oriolo e o chilrear da *■ andoiinha. . .

Sentiu o anjo tentação de se banhar e, despindo as azas brancas, pendurou-as nos ramos d'um salgueiro da margem. Metteu-se á agua e deixo u-se ir a sara' cotear pela corrente abaixo. Parecia-lhe que estava ainda no mesmo sitio, porque sempre havia arvores que se lhe affiguravam as mesmas e sempre via as sombras a tremerem na superfície do rio . . . Depoi ouvia também o mesmo pipilar de passarinhos, a dis tancia . . .

Se se tivesse lembrado de olhar para o salgueir onde pendurara as azas, havia de conhecer que s deixara ir sem reparar que estava longe. Mas s tudo era tão bonito e tão doce ! Yinha descendo noite e o anjo teve medo da própria agua, que lhe parecia negra. Procurou as suas azas. Não as viu. Foi correndo pela margem acima, triste que mettia dó,. a vôr se encontrava o salgueiro. . .

Tudo era escuro ; não podia ver. Levantou os olho para o ar e descobriu as estrellas. Lembrou-se da pa tria. Conheceu então que se havia esquecido de des-; penar o justo e que tinha desobedecido ao Senhor dái alturas. Sentiu um pezo no coração e teve vontade d chorai'. O Senhor condoeu-se e restituiu-lhe as azas.j Pouco depois entrava no ccu a alma de um justo qu deixara a terra, e um anjo que tinha recebido orde para acompanhal-a.

Eis aqui a historia que me contou a tia Leonarda,

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Lembrei-me d'esto caso outro dia, (juando pensei lia morte da Armandinlia. A vida da snv^ morgada d'Azenha não thema para longo escrever. Tem amado e soffrido aquella boa senhora. Casou aos de- zoito annos e ama ainda o marido como no dia em que noivou. Teve uma tilha; era a Armandinha. Olhava a gente para tão formosa creança e lembra- va-se dos anjos. Era bonita? Talvez não fosse. Tinha as faces desmaiadas e os cabellos loiros. A verdade é que parecia do ceu. Por que ? Diz a gente isto c não sabe por que. ..

Entra-se para a casa d'Azenha por uma longa avenida toldada de trepadeiras, as qiiaes se atira iam do muro da quinta para as arvores que formam uma alêa parallela ao muro. VJ um tecto levantado pela mão da natureza. A's vezes vai a gente a passeiar poi" aquella rua fora e parece que lhe poisou na ca- beça uma borboleta. Não é borboleta, não. E" uma pétala da glycinia do toldo, que se despegou do cacho e veio, tremendo, cahir sobi-e uós. I Ao fim da avenida ha um lago circulai", que tem au centro uns rochedos tapetados de musgo, sobre os quaes se levanta uma casinha coberta de coimo, que faz lembrar uma azenha. Doesta similhança veio o nome á propriedade.

Quando a Armandinha tinha seis mezes d*idade, veio ao Porto o morgado d'Azenha comprar sedas e rendas para o enxoval da menina. Aconteceu ter d"ir procurar á rua do Brejner uui negociante inglez, seu conhecido desde que entraram em transacções com-

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merciaes. Era ao declinar da tarde e o inglez rece beu-o no jardim onde se recreiava a ver os filhos cor rerem uns arcos de madeira que iam rodando ao long das ruas.

Gostou o morgado d'Azenha d'aquelle divertiment infantil, e não sahiu do Porto sem comprar um are com que a sua filhinha se devia entretrer quand crescesse.

Foi-se desenvolvendo a Armandinha e chegou idade de poder brincar.

o pai acompanhava-a nos jogos infantis e a mã.é. sentava-se á beira do lago a contemplar o marido e^- a filha.

A Armandinlia ora rodava o arco ora se divertiar^, a passar por elle d'um lado para o outro. . .

Quem soubesse a historia do anjo que me contoi^ a tia Leonarda, havia de receiar pela vida d'aquell creança. Como parecia do ceu, era licito suppor qu descera das alturas para desempenhar uma diviíi missão e que se tinha esquecido a brincar com o se arco do madeira. . .

A mãe vestia-lhe todos os dias uma sainha de sed cor do ceu e traçava-lhe sobre o peito um capotilh de rendas brancas. Parecia uma senhora. . . peque nina. Os cabellos, cahidos em anneis, fluctuavam mercê da viração.

Das azas. . . ninguém sabia.

jN'uma suavissima tarde d'outomno sentiram febr na menina. A mãe teve um presentimento. . . Veio poróm, á janella, olhou em roda de si e viu tudo

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sereno que niío pôde acreditar que se preparasse iirriít tempestade.

O niarinlieiro, quando a procellária não poisa na verga, não receia pela boi'rasca.

De noite a Armandinha pediu agua e não teve força para se levantar e beber. A morgada molhou o lenço no copo e humedeceu os lábios da creança queimados da febre.

A recompensa doesta maternal solicitude foi um sorriso triste, que não parecia próprio dos cinco annos.

Quando a morgada olhava para o vestidinho azul pendurado aos pés do leito da creança, sentia subir do coração uma anciã que lhe estrangulava a voz na garganta.

Seriam còr do ceii as azas da Armandinha ? Se eram, tinham-se transformado n'uma sainha recortada e esperavam o momento de engastar-se no corpo pe- quenino. . .

Durou trez dias a febre da Armandinha e, ao cabo do quarto, serenou a excitação febril... porque a menina tinha arrefecido. O frio da morte !

Estava cumprida a missão.

Era preciso, porém, amortalhal-a.

Que mais havia de levar do que as suas próprias azas ? Vestiram-lhe a sainha azul celeste, puzeram-lhe o capotilho de rendas brancas.

Fizeram um arco de vime, cobriram-n'o de flo- res do campo liadas com fitilhos e penduraram-lh'o nas mãos geladas e immoveis. Paiecia que se pre-

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partiva para ir brincar na quinta, e comtiido estava morta. . .

Tinha subido ao ceu o anjo expatriado na terra.

Desde esse dia, a njorgada d'Azenha, coração atravessado por um espinho, é o bálsamo de todas as chagas que sangram, o remédio de todas as enfermi- dades que não teera cura. . .

AS FLORES

(ao SXR. AUCrUSTO LUSO DA SILVa)

Flores dão côr á terra e cheiro ás auras ; Flores são mães da fructa

A. F. Castilho

Toda a família do velho e nobre solar d'Espada- nedo se limita a trez pessoas : Sebastião Pinheiro, madame Faastine e mademoiselle Jeannette.

Convém dizer, porém, alguma coisa d'ans amores que, ha vinte e cinco annos, prenderam em Lisboa um provinciano portuguez á mais gentil franceza que passeiava Cintra e andava charlando, entre um ran- cho de patrícias e senhoras lisbonenses, n'um gracioso dialecto meio lusitano e meio francez, ou, se antes querem, n'um idioma meio de passarinho e meio de mulher, idioma que não tinha nada de nação algu- ma. . .

O provinciano portuguez era Sebastião Pinheiro ;

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a formosa coquette de Cintra era, a esse tempo, made- moiselle Faustine.

Sebastião Pinheiro tinha fama de ser em 1845 um guapo provinciano, que disputava elegância e riqueza com os mais narcisados e dinheirosos senho- res de Portugal. Andavam as morgadas de Eiba-Doira empenhadas na conquista d'este homem, que, em sete léguas ao redor, se affigurava o melhor casamento d'aquelles tempos.

O certo 6 que Sebastião Pinheiro pareceu enjcar- se com a porfia amorosa das ambiciosas dryades, que o andavam namorando d'entre as florestas druídicas dos solares de seus pais, e annunciou o propósito de sahir para o estrangeiro em viagem de recreio.

No estio d 'esse mesmo anno de 1845 entrou em Lisboa, d'onde devia seguir para França.

Cintra, o paraiso de Portugal, convidou-o a retem- perar a alma em tão deliciosas sombras para se habili- tar a viajar em terra estranha.

As mulheres, que lhe passavam deante dos olhos em alegres ranchadas, pareceram-lhe menos ambicio- , sas e muito mais tentadoras que as provincianas de \ Portugal, as quaes andavam ageitando ensejo de se mos- : trar, como que pavoneando-se da própria belleza. As coquettes de Cintra iam pipilando, como descuidosas .' andorinhas, sem fazerem reparo em nenhum homem e nomeadamente em Sebastião Pinheiro. Isto que pu- dera dizer-se calculo, attigurou-se-lhe desambiçào e modéstia.

Uma das rof/uettes^ que trajava d'azul, foi a que

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%

mais lhe despertou a curiosidade no primeiro relance d'ollK)S. Se^íuiu-a e, uma hora depois de a ter visto, é que madcmoiselle Faustine reparou n'elle.

Sebastião Pinheiro deu-se pressa em saber quem era a formosa senhora.

Kesponderam-lhe que se chamava madcmoiselle Faustine e era filha de Mr. Arnold, negociante francez em Lisboa. Esta circumstancia não foi embaraço a Sebastião Pinheiro. Que importava que a vaporosa vi- são de Cintra não fosse portugueza ? O amor não tem pátria.

Paris era troyano e amou Helena, que era grega.

Além d 'isto, tinha encontrado Pariz em Portugal, felicidade que não sorri a todos os viajantes.

Ignoro quando e como o nosso provinciano foi apresentado á familia Arnold, nem é meu propósito dizer como se urdiram, no tear do amor, as relações com madcmoiselle Faustine. A verdade é que, dentro de seis mezes, casaram.

Mr. Arnold consentiu no casamento depois de ter colhido informações das qualidades e haveres de Se- bastião Pinheiro.

Faustina poz todavia uma condição continuar a viver em Lisboa.

O provinciano acceitou a clausula.

Yiveram alguns mezes na capital e, ao cabo d'esse tempo, resolveram visitar o solar de Espada nedo. Fo- ram. O coração de madame Faustine confrangeu-se deante do espectáculo medonho das serras alcantiladas.

Succedeu, porém, ser mãe na quinta d'Espadanedo.

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O amor da filhinha absorveu-lhe o espirito; não fazia reparo nas serras. Foi ficando e aclimando-se. A pátria de nossos filhos é também a nossa. . .

Cresceu e desenvolveu-se mademoiselle Jeannette.

Era assim que sua mãe queria que se lhe cha- masse. O nome portuguez correspondente, comquanto a esse tempo fosse maviosamente poetisado por Gar- rett, não soava tão bem ao ouvido d'uma mulher que tinha nascido em França e procedia de estirpe ver- dadeiramente franceza.

II

Mademoiselle Jeannette era doida por flores. D'uma vez, quando eu principiei a deletrear a Eneida e an- 1 dava cheio de lendas mythologicas, contei-lhe a histo- ria de Narciso transformado em flor. Lembro-me bem; era na manhã d'um dia em que-eu tinha d'embarcar para o Porto. Mademoiselle Jeannette gostou d'aquelle lance do paganismo dos jardins e pediu-me que lhe escrevesse do Porto, quando me sobrasse tempo para contar-lhe lendas de flores.

Poucas vezes tive a felicidade de escrever-lhe ; ahi vai, porém, o que lhe dizia :

A Mademoiselle Jeannette.

17 d' outubro de 18..

«Yeja que me não esqueci do seu pedido. Começai-ei hoje por fallar-lhe da violeta, que ó aTÍ

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flor da minha prodilecçiío. Quantas vezes não terá fi- xado os seus olhos, minha amiga, n'uma estrella (pio lhe parece ter contemphido na vóspera e que ainda procura no dia seguinte, sem se demorar a olhar para as outras que não são menos formosas talvez? Com as flores acontece quasi a mesma coisa. Todos nós temos uma flor que nos enamora em qualquer jardim. A minha, a que me encanta, é a violeta. Fallar-lhe-hei d'ella hoje. Nunca se esqueça de colher violetas para o seu toucador. Vulcano pôde vencer a indifferença de Yenus coroando-se, e adornando com ellas o boudoir da deusa de Cythéra.

Veja que milagres opera a minha querida violeta !

Vous vous caehex timide violette^

Mais c'est en vain^ le doigt sait vous trouver.

II cous arrache á Vobscure retraite

Que receia it vos appas inconnus;

Et destinée au boudoir de Cyihére^ Vous renaissex, sur un trone de rerre^ Ou vous mourex sur le sein de Vénus.

No paganismo dos jardins, na mythologia das flo- res, as violetas rebentara da terra aos pés da desditosa Io para consolal-a, a cada passo, nas solidões que atra- vessa, postoque digam alguns ter sido esta nympha convertida em violeta por não corresponder aos extre- mos apaixonados d'Apollo.

Seja como for. No primeiro caso li violeta é o symbolo da dedicação compassiva, da amizade que

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consola, da companhia que satisfaz ; no ultimo, é o emblema da virgindade que se esconde, da innocen- cia que se resguarda, da virtude que se occulta.

Oh ! e nós sabemos isto e havemos de consentir que Alphonse Karr insulte a pobresinha, taxando-a de hypocrita por se esconder, e que a verbere com phrases tão indelicadas como esta :

La violette n'est pas modeste !

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«Por que dissestes que a violeta era modesta? es- creve Alphonse Karr. Porque se occulta entre a relva. A violeta não se occulta entre a relva ; occultou-a a natureza. Não se é modesto por se ter um nascimento humilde e obscuro. Por que não dizeis ser o oiro modesto, o oiro, que se esconde nos veios da terra e que, ainda quando se encontra, procura disfarçar-se em outro mineral que não tenha apparencia de oiro ? Por que não dizeis que os diamantes são modestos, elles que se occultam na terra mais ainda do que o oiro e precisam de ser quebrados e lapidados para se lhes descobrir o brilho ? »

Na espirituosa comedia de um poeta portuguez, João de Lemos, intitulada (Jm susto feliz uma das personagens, fallando casualmente do detractor das violetas, exprime-se assim :

«E' Alphonse Karr, que fallando d'ellas n'um livro que intitulou Voynge au tour de mon jardin sacrificou a verdade ao desejo de ter uma opinião singular, ou de fazer o que hoje se chama espirito » .

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E pouco depois continua:

« Diz que a violeta n?ío 6 modesta, porque não 6 ella que se occulta entre a herva, mas sim a natureza que alli a occultou. »

E responde reílectidamente a interlocutora da per- sonai^em :

«E como se dissesse Jque a violeta não ó ver- melha porque a natureza a fez roxa.»

Penso eu ser este o melhor commentario ao des- propósito d'Alphonse Karr. Yalha-lhe Deus !

E quer elle que a violeta não seja modesta, porque tem visto na Opera duzentas mulheres com ramos de violetas na mão !

Pois se a procuram na sombra em que nasceu, se a natureza quiz que a denunciasse o perfiyiie, como o talento denuncia ás vezes um homem obscuro, o que ha de fazer ella, a pobresinha, senão resignar-se com o destino a que a sujeitam ! ?

E não contente com isto, diz-nos ainda Alphonse Kari' que a violeta abriga debaixo da sua folhagem espessa uma quantidade infinita d'insectos, como se quizesse deslustral-a aos nossos olhos com esta cir- cumstancia. Embora!

A violeta hade ser sempre a fior predilecta das mulheres bonitas e dos homens namorados. Parece que nasceu para se consagrar á formosura e ao amor, e por si própria indicar que a verdadeira formosura e o verdadeiro amor devem de ser modestos e humildes.

Os Athenienses consagravam a violeta a si mes- mos ; consagremol-a nós ao culto do coração.

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E o próprio Alphonse Karr parece arrepender-se no seu livro intitulado Les fleiírs do desamor com que fallou da violeta n'uma pagina da Voijage autour de mon jardin^ se é que não chega a des- mascarar-se completamente n'estas palavras : J^aiíne heaiicoup la violette ; j'en ai, vous savez^ une peloiise il y e7i a dix kuit variétés /

Mas ha mais ; abramos o livro Les femmes :

« Gosto ainda muito das violetas^ apesar de, ha longo tempo, lhes ter .censurado aquelle seu intro- metter-se em muitas coisas que lhes não dizem res- peito e o nunca perder occasião de sahirem hy- poeritamente da pretendida modéstia, que lhes attri- buem. »

Como é, porém, que se pode gostar d'aquillo que parece tão impertinentemente vaidoso ou tão hypocri- tamente modesto?

Esqueçamos o delicto d' Alphonse Karr e julgue- mol-o rehabilitado pelas confissões ingénuas que nos fez.

Desçamos ao jardim a respirar livremente o aro- ma das violetas. Convido-a, minha amiga, a entrar commigo no camarim perfumado d'estas viuvas sau- dosas, eternamente vestidas de roxo, que se inclinam para o chão tristes e scismadoras. Separa-nos apenas do canteiro uma cancellinha de pau verde.

Chama-nos de dentro esse palácio de verdura ondulante e movediço. Entremos. Aberta a cancella, estaremos no jardim e no jardim encontraremos nós uma sombra para conversarmos. Converse-se para

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matar o tempo. SHo palestras debaixo das arvores e á beira das violetas. Não vejo ahi melhor assum- pto nem melhor logar para uma pratica de gente mova.

Deletrcemos o idillio da natureza sem abrirmos as Floras ; suppra a reverie o estudo.

Escusamos de saber que os botânicos chamam á nossa querida flor viola odo?'afa e não precisamos também de rastear a lenda mythologica da nympha Io. A botânica intromette-se com famílias que não são do nosso conhecimento ; a mjthologia anda a descor- tinar vidas alheias. Importar-se cada um compôs ou- tros, mais do que comsigo mesmo, creio que passa por mau costume.

Deixemos isto. Aspiremos o aroma dulcíssimo d'es- tas flores e occultemos no seio o ramo perfumado com que nos presenteara alguém ...

Eu quero as flores para as aspirar, para me faze- rem companhia, para as amar emfim.

Nunca me dei ao trabalho de procurar uma flor rara e, confesso a minha ignorância, acho esquisito que um homem tenha o capricho de comprar a peso de oiro um bolbo de tulipa, a não ser para fazer nego- cio com elle, como os floristas hollandezes. Gosto das flores no jardim ou no toucador ; um camarim per- fumado faz lembrar um jardim que se não vê.

Por fim de contas as flores querem-nos tanto, que chegam, na impossibilidade de viver eternamente, a conceder-nos a sua essência durante todo o anno, e cada pessoa pode ter no seu toucador, na estação me-

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nos florida, os perfumes de mil diversas flores. Graças, pois, a mr. Piver e a todos os perfumistas em voga, ■que nos dão, a troco d'alguns «francos», um frasco de ijommade au jasniín^ á la violette des bois^ â rheliotrope^ â la reine des fleurs e mil outras essên- cias que seria fastiento enumerar.

Amemos sempre as flores, sem nos lembrarmos dos insectos que nos occultam.

Também nós temos igual destino e comtudo amamo- nos uns aos outros. Compare-se a alma á flor: a vir- tude seja o perfume ; os vicios os insectos. Prepa- remo-nps para a vida como para cantar uma ana- chreontica : coroemo-nos de flores. A poetisa de Lesbos cantava na sua lyra as rosas d'Amathunta, porque se sentia morrer de amores por Pháon ; e consagraram- se as flores a Yenus por ser a deusa dos amores.

Para que nos havemos de rir da corcova d'ura sujeito que passa ou do joanete de um outro que vai atravessando ? Não ha tempo para isso : ó todo pouco para amar.

Coroemo-nos, pois, de rosas para viver e, quando morrerem nossas irmãs ou nossas filhinhas, enfeite- mos de violetas os seus esquifes, como se costuma ainda fazer em algumas povoações d'Allemanha no funeral das donzellas.

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ITI

A Mademoiselle Jeannette. 25 d'abril de 18

« Era uma vez uma fada que fez os prados e as arvores expressamente para os namorados » escre- ve Yictor Hugo. E assim foi. Psyché pediu as estrel- las; Chlóris as flores. Eólo solicitou as virações so- noras da manhã e da tarde ; Cybéle e Sylvano as arvores e os bosques. Pomoua obteve fructos para as arvores; Príapo ajuntou as flores e fez jardins. E Hebe, a loira, a alegre, a descuidosa, disse aos mo- ços que perpassavam atirando-lhes com flores : « Co- roai-vos e ide alegres. O amor é o néctar que eu sir- vo nos banquetes dos deuses ; enchei a taça e bebei. Ide alegres, ó moços » .

E Cupido dizia a quantos encontrava: «Amai e sede felizes. Psyché pediu as estrellas ; haverá- luz de noite para as vossas serenatas e para as vossas confidencias. Chlóris obteve as flores ; offerecei-as ás namoradas. As arvores que Cybéle solicitou darão som- bra para vós e para as vossas amantes ! »

E assim era. E assim foi. Amanhecia. A paiza- gem era esplendida. Um raio de sol abria os corações. Os ventos da manhã roçavam nas arvores, que são as lyras verdes da floresta, e tiravam sons dulcíssi- mos. As náyades brincavam nas fontes, os faunos

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lios bosques e Echo repetia, nos recôncavos da serra, as palavras das náyades e dos faunos. Pan, o feio, apparecia deante d'este sublime espectáculo, simi- Ihando a encarnação d'uma poética ironia e fazendo ouvir ao longo das planicies os sons da sua frauta campezina. E os namorados sorriram-se e amaram-se. As estrellas deram luz ; das floi-ès vieram perfumes ; as arvores estenderam sombras sobre os caminhos e os caminhos atapetaram-se de relvas.

Entardecia. A manhã é mais esplendida, mas a tar- de é mais suave ; gosa-se mais.

As borboletas adormeciam nas flores e os amantes nas florestas. As arvores cobriam-os de sombras e de musicas. E depois os sonhos! Os sonhos são os dul- císsimos momentos em que se gosa tudo o que se não pode gosar. A ultima réstea de sol doirava as cumia- das. A esta hora de suavíssimos mysterios, os dois vi- sinhos Pyramo e Thisbe segredavam amores através da fenda aberta na parede commum das casas. Morria o praso dado ao languor das sestas, quando a lua che- gava. Endymion namorava Diana e ella sorria-lhe do céo. Pygmalião sonhava com a estatua de Galatea. O rouxinol trinava nos sinceiraes, os astros fluctua- vam no seu leito d'azul, e aqqellas namoradas pagãs escutavam as serenatas dos amantes, debruçadas na ventana.

ApoUo 6 loiro! Gosto d'elle! dizia uma.

Pan 6 feio, mas engraçado, acrescentava outra.

Narciso 6 a formosura I chilreavam muitas. E elles diziam ;

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Veiuis ó loira; seduz-nie.

Daphne não o 6 meuos; agrada-me.

Diana é pallida, mas tenta.

Foi, pois, pelos devaneios dos namorados pagãos que se aferiu o rythmo amoroso de nossos dias. Acceitaram-se os costumes e conservaram-se as tradi- ções. Tliisbe 6 Virginia ; Pyramo 6 Paulo ; dois vi- sinhos.

Eu quiz prolongar a phantasia de Victor Hugo e mostrar que os prados e as arvores são dominio do amor e dos namorados.

Um dia de sol é um dia para os amantes ; uma noite de luar é uma noite para o amor. Os campos chamam por nós: a primavera ou o estio tentam-nos. As borboletas andam aos beijos ás flores e roubam-lhes o mel; fazem-nos inveja. As .flores furtam amoro- samente ás borboletas o polvilho d'oiro das suas azas e fazem-nos ciúmes.

Todo o paraiso suavíssimo d'aldeia, ninho d'amor engrinaldado agora com as flores da primavera, está aberto para quem, como a minha amiga, sabe alliar aos enc^antos da natureza a felicidade do coração. . .

Sei que ama e que toda a sua vida c de esperança. Mais uma razão para se lhe fallar de flores. . .

Hade lêr de certo esta carta á sombra do velho loi- reiro, que faz guarda ao solar d'Espadanedo.

O que a minha amiga não sabe, porém, é que a origem do loireiro prende com uma historia d 'amo- res.

Os extremos amorosos d'Apollo não conseguiram

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abrandar a indifferença de Daphne, que, chegada a perseguição violenta, se arremessa ás aguas do rio Penêo, seu pai. E' n'este momento que a mulher se metamorphosea em arvore e que o deus namorado en- grinalda a fronte e a lyra com as franças do loireiro. O cabello de Daphne recorta- se em folhagem e o corpo arredonda-se em tronco. . .

Quantas vezes, sob esse velho loireiro, não hade a minha amiga ter ouvido correr ao longo das ramas um frémito suave, que tanto pode ser a linguagem mysteriosa das arvores como o roçar da viração pelas folhas J

Não serão murmúrios de Daphne, que se lamente da própria crueldade ao vêr-se ainda tão amada como no primeiro dia em que o dedicado Apollo coroou de loiros a lyra e a fronte dos seus sacerdotes predesti- nados á gloria ?

E depois quem sabe! .

Eu não, mas quando em noites de luar vou por uma aldeia adeante, e oiço um rumor que sae das plantas e das arvores, cuido que são ellas a conta- rem-se as aventuras amorosas do dia e íico-me, por muito tempo, embebecido a escutal-as. Não sei tam- bém, mas parece-me que devem de ter sua voz. . . Pois, Deus, que fez brotar duas folhas do mesmo pe- ciolo, duas flores do mesmo pedúnculo, não lhes havia de dar palavras com que segredassem umas ás outras os seus protestos e as suas confidencias?... Havia de deixal-as mudas como a rocha, sem que pudessem conversar baixinho por essas noites de primavera, em

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que a lua tanto cobre com a sua luz opalina as dhalias do alegrete, como as malvarosas dos vallados, como os sargaços da beira-mar ?. . . Pois Elle que deu voz ás aves, que vão pendurar os ninhos nas escarpas das montanhas ; ao rio, que murmura no valle, por baixo das avelleiras; aos ventos azues do espaço, que desferem as suas harpas vaporosas em cima ; ao mar que brame ao longe coroado de nevoeiro e co- berto com os arminhos da espuma, Elle, que deu voz a tudo que tem vida, havia d'exceptual-as aellas, que são tão humildes que se curvam ao vento e lançam de si um vapor de fragrância?. . .

As arvores, que cobrem com os ramos os amantes nas horas calmas da sesta e envolvem na sua sombra os segredos d'uma confidencia ; as plantas, que dão as flores com que elles se toucam na noite festiva das núpcias, arvores e plantas, que soltam da aresta de cada folha um rolo vaporoso de poesia, não haviam de ter voz?. . . Não me digam que não. Esse frémito^ que eu oiço em roda de niim n'uma noite de luar, é o rumor das suas conversações nocturnas, das lendas amorosas que sabem, dos cânticos que entoam ao longe, dos monólogos de cada uma e do concerto suavíssimo de todas. . .

E' o murmúrio das harpas aéreas da poesia, que pendem de cada ramo e modulam dulcissimos idyllios d'amor e saudade. . .

Ó poesia ! Ó amor ! Aves do mesmo ninho, pé- rolas da mesma concha, flores da mesma vergontea, hóstias do mesmo sacrário, deuses do mesmo templo.

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eu sei que vós sois irmãos e filhos da mesma ideia, ó amor e ó poesia.

Notas do mesmo cântico, cânticos da mesma harpa, harpas do mesmo anjo, anjos do mesmo céo, eu sei que vós sois isto, ó amor e ó poesia ! . . .

lY

A Mademoiselle Jeannette 12 de maio de 18...

Não consagrei a primeira carta á rosa, que passa por ser a rainha das flores, porque me fugiu o coração para a violeta, . . São caprichos que se não explicam e que a minha amiga comprehende de certo. Não quero, porém, deixar de fallar-lhe agora da rosa, que os romanos consagravam a Yenus e os gregos á Aurora, ás Graças e, finalmente, a Harpócrate, o deus do silencio.

Não é para estranheza o dedicar-se a rosa á deusa da formosura: quer dizer, consagrar-se a suprema bellezadas flores, compendiada n'um poema de pétalas, á suprema perfeição esthetica, encarnada na divindade que tinha gerado o amor. . .

O que, porém, admira á primeira vista ó que se votasse na Grécia ao deus do silencio o que se vo- tava en Roma á deusa da formosura.

Mas, em verdade, não se devem esconder, no veu

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do mysterio, todas as ternissimas doçuras do amor, todas as palavras que se trocaram ao luar, todos os poemas que se disseram cora os olhos? Náo 6 certo que o amor nos torna meditativos e calados, porque nos absorve em nós mesmos e nos delicia com a pró- pria musica da nossa alma ?

Da tradição grega de se dedicar a Harpócrate a flor consagrada a Yenus pelos romanos, veio o costume, conservado em alguns paizes do norte, de se pendurar uma rosa á- porta da sala de jantar como para indi- rectamente avisar os convivas de que não devem re- velar nada do que se disser á mesa.

A rosa branca, a flor querida de Soares de Passos,

Eu amo a rosa branca das campinas,

nasceu, como cantou Anachreonte, no momento em que Yenus surgiu á flor das vagas engrinaldadas de flocos d'espuma. ísr'esses tempos suavemente deliciosos faltavam á rosa os espinhos, que foram despontando, depois, a pouco e pouco.

Os orientaes crêem que a rosa não feria, antes d'entrar no mundo Ahriman, o génio do mal. San Bazilio, inspirado talvez d'esta tradição oriental, es- creveu que os espinhos da rosa foram consequência da corrupção da humanidade. Tinha a rosa nascido para o amor. Era branca e pura como a espuma das vagas que foram berço de Yenus.

Os homens corromperam a obra dos deuses e

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derrancarum a iiuiocencia do amor; cobriu-se d'es- pinhos a rosa desde então.

Quer-me parecer que não ha muitas allegorias tão formosas como esta.

Pondo de parte a interpretação mystica da fa- bula, a verdade é que os espinhos são apanágio da rosa e que a intelligente formiga, para os evitar, sobe pela roseira descrevendo trabalhosas spiraes.

Yimos que primitivamente era branca a rosa ; ve- jamos como se tornou purpurina.

O Amor, bailando um dia no Olympo, entornou uma taça de néctar, o qual, cahindo sobre a terra, coloriu a rosa.

Qnem se der ao trabalho de esmiunçar estas e que- jandas tradições poéticas, tem assumpto que farte para muitas paginas. A minha boa amiga sabe, porém, que lhe vou escrevendo ao capricho do acaso e que não posso dar ao assumpto o desenvolvimento que de- sejava.

Deixe-me todavia fallar-lhe d'um costume nor- mando, em virtude do qual cada pai dotava a filha, na véspera do casamento, com uma simples capella de rosas. Não acha que similhante dote seria hoje razão mais que bastante para afugentar meia dúzia de pre- tendentes? Em pleno século xix conservam-se ainda, pelo que respeita á rosa, algumas tradições. O que a índole dos tempos modernos não permitte ó acceitar-se uma noiva que tenha ura dote. . . de flores.

Os namorados romanos costumavam brindar a dama dos seus pensamentos com esta maviosa expressão :

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Mea rosa. Hoje ainda se escreve minha /lor nas car- tas de galanteio, o que prova que a epistolo^raphia amorosa conserva as formulas sediças dos romanos.

Disse-lhe que se conservavam em pleno século XIX tradições devidas á rosa e quero mostrar-lhe que disse a verdade. S. Jeronymo escreveu algures que os antigos cobriam de rosas as urnas cinerarias e orde- navam em seus testamentos" que lli'as renovassem d'anno em anno. Um homem que tinha enviuvado, colmava de rosas, de violetas e de lirios a urna que guardava as cinzas da esposa estremecida. Não será um reflexo d'esta tradição o costume de enfeitarmos, pelo menos uma vez cada anno, as campas das pessoas da nossa familia ? A festa annual em honra de Flora, que se celebrava entre os últimos dias d'abril e os primeiros de maio, á parte a desenvoltura dos cos- tumes romanos, não seria a origem de consagrarmos á pureza da Mãe de Deus as rosas da primavera ?

Muitas foram as tradições que do paganismo re- cebeu o christianismo e, pelo tocante á rosa, seria in- teressante estudal-a era ambas as religiões sempre ale- vantada no throno da realeza, sempre rainha das flores.

Se me fosse permittido fallar-lhe da França, minha amiga, que é a pátria de seus avós, havia de contar- Ihe a festa da Rosière de Salency, instituída pelo bispo Médard, graciosa prática de premiar solemne- mente as virtudes d'uma rapariga do sitio com uma grinalda de rosas. . .

Não lhe devo, porém, fallar da França. Sua mãe

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que lhe conte, em linguagem resaibada de recorda- ções da pátria, as poéticas tradições que sabe de cor desde os primeiros annos da vida. Eu seria de certo menos vigoroso e menos delicado ao fallar-lhe do que apenas aprendi dos livros. Ella que lhe conte, pois, a festa da Rosière, que ainda hoje se conserva em Nanterre, Montreuil e Suresnes. Cedo a palavra a sua mãe ; corre-me obrigação de concluir.

Os cavalleiros andantes tinham no escudo uma rosa, que parecia symbolisar que se batiam pela bel- leza. Qual preferiria eu se fosse armado cavalleiro : a branca ou a encarnada ? Nenhuma.

A Inglaterra brigou longos annos por causa d'uma. . . rosa.

Os Lancastre e os York são impossíveis n'este sé- culo, mas, que os houvesse, e eu a mandar gravar no escudo. . . uma violeta, para não ser de nenhum dos dois partidos e seguir unicamente. . . o meu.

y

A Mademoiselle Jeannette

•»

20 de maio de 18. . .

Lembra-se de me ter perguntado o anno passado, á ourela do regato que banha o pomar da quinta d'Espadanedo, como se chamavam as pequeninas flores que polvilhavam de azul o chão ? Lembra-se também

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de que eu lhe respondi que eram as flores do mijóso- tis, a que os botânicos acrescentam o epitbeto de jj«- histris por nascer á beira d'agua?

Recordo-me ainda perfeitamente. Que formosissi- ma tarde de maio não era essa ! Viemos passeando pelo pomar, como duas abelhas que saltam de flor em flor. Chegamos ao regato e, ainda como as abelhas, quizemos ficar alli. Creio que lhe disse, minha ami- ga, que os allemães conheciam o myósotis pela mavio- sa linguagem de Wergiss-mein-nicht que diz o mes- mo que não me esqueças.

O que lhe não contei, porém, foi a poética lenda do mjósotis , lenda que se dulcifica na singela poe- sia d'uns amores ethereos e não tem nada que vêr com as allegorias da mythologia botânica, deixe-me dizer assim. Imagine dois namorados, almas incendi- das na chamma suavíssima do amor, que passeavam á beira do Rheno na véspera do dia aprasado para o casamento. Iam ambos compondo, de certo, estrophes do mesmo poema, sonhando esperanças que tanto eram d'um como d'outro. . .

O sol declinava e as aguas do rio scintillavam em palhetas de oiro e prata n 'alguns sitios. Que esplen- dido espectáculo, miiíha amiga ! Quantas vezes não ha de ter sonhado sonhos d'esperança a essa mesma hora ! O sonhar é de quem ama. Eu sonho e a minha amiga sonha também ; a verdade, diga-se com fran- queza, é que não sonhamos um pelo outro.

Iam, pois, passeando os dois namorados pela mar- gem do Rheno. De repente, descobriu a noiva um

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como natural houquet de myósotis, que se balouçava á beira cragua. Colhel-o era ficar com uma grata recordação da ultima pagina d'um poema, que seria o prologo d'outro poema, não menos formoso, talvez. Quem havia de colher o myósotis ? Elle, o noivo. Que importava não haver muita luz e ser preciso marinhar por um plano inclinado ?

O amor dista um passo da indiscreção. A luz ia fugindo, fugindo... Ouviu-se o baque d'um corpo que tinha cahido ao rio e fizera levantar a agua. Era elle, o noivo, que resvalara. Quiz luctar. Luctou ainda por algum tempo, sem largar o houquet que tinha colhido. Faltaram-lhe as forças. Teve apenas vida para o arremessar á margem e depois . . . desappareceu para sempre.

Desde essa tarde, a flor do myósotis significa não me esqueças^ ultimo pensamento d'um amor desven- turoso.

Os poetas, estas boas creaturas que vivem de cho- rar as próprias e as alheias dores, aproveitaram a lenda e cantaram-n'a. A Magdalena do Sous les til- leuls d'Alponse Karr pronuncia, n'uma das paginas do romance, com referencia ao myósotis, estas palavras : «Os wergiss-mein-nicht são as minhas flores favori- tas; sinto apenas que os nossos poetas allemães não fallem d'elles senão para insulsamente jogar com palavras. Goethe foi o único que muito de leve os descreveu :

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^Vcrgiss-mein nicht^ pequenina planta, amante das aguas solitárias, quanto cu gosto do vôr como as tuas folhas mcudinhas o as tuas pótalas do puro azul seguem o curso da levada quo faz dobrar os juncos, cujo aro verdejante cinge a onda dos valles I >

Quem sabe também, minha boa amiga, se depois de ter lido esta carta será tão pouco piedosa para cora- migo como a Magdalena do romance d'Alphonse Karr para com os poetas allemães ? Perdôe-me se lhe mo- lestei a paciência e, quando passar á ourela do regato, colha o myósotis, a pequenina flor da primavera, para o offerecer á pessoa que se não deve esquecer um momento de quem alli o foi colher.

YI

A Mademoiselle Jeannette 4 de julho de 18. . .

Escrevo-lhe ao declinar da tarde. As boas-iioiteSy presentindo a hora saudosa do occaso, abrem as co- rollas ás tépidas virações. Encantador destino o de to- das as njctagineas, que segredam amores emquanto dura o luar! As flores diurnas, menos scismadoras e mais coquettes^ expandem-se ao sol e remiram-se no ramal de prata, que lhes emperla as hastes.

Da balsamina e da sensitiva sei eu que parecem cahir em somno, espécie de morte apparente, quando

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a noite chega. Vaidosas ! Queriam luz para se mos- trar ! ^ Não me inculpe de ser severo para com as flô~ res diurnas.

Deseja enganar a sensitiva? Quando o sol esmore- cer, feche-a n'um recinto pequeno e rodeie-a de lâm- padas, que espalhem em^ torno uma claridade alegre e viva. Yerá que não tem somno, que não dorme, que toda se pavonea.

Ao romper da manhã, roube-lhe a luz. Adormece- rá, pensando que chegou a noite.

Para quem desabrocham as flores nocturnas ?

Não para nós ; para si mesmas. São como a vio- leta, apesar d'abrir de dia : escondem-se. Amam-se e noivam mysteriosamente.

Fallemos das òoas-noites. Esperam por esta hora solemne para abrir e, tendo por sacerdote a lua e por testemunhas as estrellas, celebram seus consórcios até que reponte no ceu a luz do dia. . .

Não quiz a Providencia privar a noite do frémito dos insectos, das volatas das aves e dos aromas das flores. Quando na escuridão scintillam as pequenas lanternas dos vagalumes, quem se não lembra de os comparar a mensageiros amorosos, que vão, allumia- dos pela sua própria luz, transmittir confidencias de flor para flor?

1 Estas c outras pobres plantas obedecem a phenomenos chimicos cellulares dependentes da irradiação solar; taes s5o os chamados movimentos nyctitropicos, isto é, de vigilia e de fiomno. Muito as calumiiiei eu ! Nota da presente edição,.

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O rouxinol 6 o menestrel encarregado de cantar o epitlialamio dos amores nocturnos. Quando elle começa a vibrar o timido preludio, introducçáo d'um canto mavioso e docemente cadenciado, estremecem na haste as ílôres da noite, porque chegou o momento dos seus extasis e dos seus amores.

Linneu, sabendo que cada planta tem determinadas horas de repouso e de animação, compoz o poético relógio das flores, encantadora ideia, que se en- carrega de mostrar ao homem que da natureza partiu a inspiração de todas as grandes concepções artís- ticas.

Crê-se que foram os mathematicos que inventaram o kaiendario. Engano ! Nas differentes épocas de florescência destinadas ás plantas, estava o gérmen da ideia a que mais tarde se attribuiu a vantagem da divisão scientifica do tempo.

Esperemos que desça a noite e que a& vaporo- sas fadas do ar accendam as estreilas na cúpula azul dos céus. Então, quando a natureza preparar o fes- tim da noite para receber a lua, veja, minha amiga, que se Deus cravejou no firmamento milhares d'es- trellas, que são as flores do ceu, semeou por toda a parte cardumes de flores, que são as estreilas da terra ...

E quem não ha de acreditar que na mesma hora se creáram flores e estreilas, umas para o ceu e outras para a terra?

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Venhaes em tal hora, illustres senhores Formosas senhoras, ó damas mui bellas, Como aquella em que as estrellas Foram creadas e também as flores. ^

Deus viu que o ceu era lindo de dia, todo azul e sereno, retratando-se na vastidão dos mares, illumi- nado com a luz da grande alampada de oiro. Mas apagou-se o facho do dia na extrema do occidente e do levante subiu a lua, triste e pallida, como quem teme ser rainha em throno que não guardam cortezãos. Appareceram as estrellas, para fazer companhia á lua e dar mais claridade ao cen de noite.

íí'essa mesma hora se crearam as flores, porque Deus havia conhecido a tristeza da terra por não ter vestido nem enfeites.

Eu vi d' este campo as varias flores As estrellas do ceu fazendo inveja. 2

E fazem. São brilhantes as estrellas, mas nunca variam a cor doirada, que mostraram na primeira noite do mundo.

As flores umas são azues como o agapantho, bran- cas como a açucena, rubras como a papoila, doiradas como o malmequer, roxas como a violeta, verdes como a flor da hera. Uma imita a saphyra, outra o jaspe, esla o rubim, aquella o topázio, algumas a amethysta, outras a esmeralda, e ha-as também que

^ Nau d'amorcs tragicomedia do Gil Vicente. 2 Camões. Écloga l.-''

I

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reúnem em si uma variedade admirável de cores. As estrellas, aos nossos olhos, apresentam invariavelmente a forma circular. Não assim as flores. A fraxinella nasce em cachos, a açucena em calis, a calandrina em umbella, a persicaria em espigas encarnadas, a hortênsia em novellos azues, o lilaz imitando thyrsos.

E depois, que delicadeza verdadeiramente artistica no trabalhoso recorte e no mimoso tecido das pétalas, que, na máxima parte das flores, parecem de seda como as azas das borboletas ! Quem não dirá que 6 de velludo a flor do liz ?

E alem de todas estas bellezas que nos deliciam os olhos, de todos estes primores artísticos que se não podem imitar ^, todos os órgãos indispensáveis ao desenvolvimento e á conservação, antheras cheias de vida futura, folhas que respirara e são os verdadeiros pulmões dos vegetaes, raizes que bebem nas entra- nhas da terra os suecos nutritivos, e hastes cheias de vasos indispensáveis á circulação da seiva absorvida pelas raizes !

- E' como se cada planta se dividisse em dois cor- pos que mutuamente collaboram para a vida com- mum. Um, que vive enterrado na terra, outro que se espaneja no ar, as raizes e as folhas.

«Parece, em verdade, diz um escriptor francez, que as raizes são dotadas de sentimento e, para assim

^ Que a memoria do nosso grande Constantino perdoe esta asserção demasiadamente categórica, Nota da presente adição.

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dizer, de intelligencia : por si mesmas sabem discer- *nir o terreno que lhes convém e por si mesmas pro- curam o rincão onde o alimento é mais fácil e abun- dante.»

Ha n'isto solicitude de mãe doida d 'amor pela filha.

As folhas, que são as raizes do ar, correspondem assiduamente ao labor da vegetação subterrânea e não se esquecem um único momento de que também são mães . . .

Absorvem os gazes e vapores derramados na atmosphera, alteram-n'os e estudam-n'os para rejei- tar todos os que não aproveitem a nutrição vegetal.

Depois, um dia, desabotoa a ílor, primeira es- perança d'este commum trabalhar, e mais tarde ap- parece o fruto, que é o premio de tão suadas fadigas.

Ha em verdade tantos pontos de similhança entre as mães e as plantas, entre os cuidados e os destinos d'umas e outras, que não duvidei comparal-as, minha amiga, n'esses pobres versos que lhe mando e escre- "vi recentemente :

MATER

( A UMA SENHORA, MÃE DE DUAS ESTIMÁVEIS MENINAS )

Náo sei so algum dia contemplaste, No teu canteiro alegre e recendente, Dois nevados botões na mesma haste, Que verga de mimosa o de indolente ? . . .

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Mais tarde dos botões rebentam flores E vel-a-has então rever-se n'ellas, De dia, por mirar os seus amores, Do noite, por mostrar suas estrellas.

Não tem braços a haste e ergue ao collo Os seus dois filhos lindos e felizes, Porque vai de rastos pelo solo Bebendo seiva, onde metteu raizes.

E' um sonho d' amor o vel-as todas N'um abraço gentil, lindas nas cores, Sempre noivas, toucadas para as bodas, Todas três rindo e todas ellas. . . flores !

Yem o sol a nascer. As borboletas Sobrenadam nas vagas luminosas, Doidas, subtis, alegres, inquietas, Buscando amores onde encontrarem rosas,

Então a mão d'alguem que sonha amores E devaneia á luz da madrugada, A"eio colher as nossas lindas flores Para coroar a moça namorada.

E tu agora, ó mãe, que as procreaste, Oonfia-as á visão encantadora. Eis cumprida a missão, curva-te, ó haste. Morre feliz, deixa ceifar- te agora.

O' mãe, és como a haste. A mesma sorte, A mesma lida, eguaes as vossas dores.

Que Deus vos faça, pois, irmãs na morte,

Se a paz do céu cobrir vossos amores.

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Quem havia de dizer, minha boa amiga, que de maravilhas estão enthezouradas na mais singela flor das montanhas ! E que de mjsterios também ! Anda o homem a devassar estes segredos da natureza e ven- turoso d'elle se adquirisse a certeza de ter chegado á verdade. Na impossibilidade de os decifrar, cria uma sciencia para estudar cada grupo de phenomenos e perde-se n'um labyrintho de duvidas como a formiga por entre as pétalas enconchadas d'uma dhalia. O estu- do d'uma flor pode absorver uma vida inteira.

0 histologista que metter o escalpello no tecido vegetal para o decompor e estudar, tem de trabalhar e suar longo tempo desde que partir da cellula, o ele- mento simples, o laboratório microscópico como diz Lecoq, até chegar á flor, pequeno mundo de bellezas infinitas.

E depois quem sabe explicar todos os caprichos da sensibilidade vegetal?

Por mais que se tenha dito e escripto sobre este thema, por que razão se contrae a sensitiva, quando se lhe toca ao de leve n'uma folha ?

Certa planta (oh ! prodígio !) a seus encantos

Liga os melindres do virgíneo pejo.

Se com dedo indiscreto ousas tocal-a,

Quer esconder-se a pudibunda folha,

E ás mesmas leis fiel, o móbil ramo

Se inclina para o tronco e cinge a elle ^.

Por que se furta ao contacto da mão a delicada

1 «As plantas » poema de Gastei, trad. de Bocage.

!

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planta, que tem tanto de iiiimosa^ como de inidicaf^ O povo olha para a sensitiva e cliama-lhe erva viva.

Não quero pensar na ignorância do povo ; sei que diz bem, sem se empenhar na lucta dos sábios.

Vivem as rosas o espaço d'uma manhã, como es- creveu Malherbe e dura a perpetua tanto como a ver- dadeira saudade. Que de inexplicáveis segredos ! Cahiu a noite, minha boa amiga. Leia esta carta e contemple por um momento uma flor, que o mesmo será levantar o seu pensamento a Deus.

YII

A niademoiselle Jeannette 21 de julho de 18...

São quatro horas da tarde. Sebastião Pinheiro está de certo, n'este momento, como é costume, a tomar caffó no terraço da casa d'Espadanedo.

Yejo d 'aqui pelo prisma da saudade as graciosas cauequinhas doiradas, o taboleiro de xarão, a pequena jardineira de mogno, tudo o que em sua casa, minha amiga, constitue o delicado e opulento serviço do caífé.

1 O illustre botânico Van Tieghem, reduzindo a «sensibi- lidade » vegetal ás suas justas proporções, faz depender este phenomeno de uma simples contractilidade do protoplasma cellular. Em 20 annos a sciencia deu cabo da « alma vegetal.» Nota da presente edição.

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Sebastião Pinheiro um habito velho e agradável este de tratar assim se a pai) reclinado no canapé de cortiça, reparte caricias e palavras pelas duas únicas flores do jardim da sua vida, madame Faustine e mademoiselle Jeannette.

alegria ver esse amantissimo quadro de familia emmoldurado nos festões da trepadeira que guarnece o terraço.

Seu pai é o mais denodado apologista de caffé que tenho conhecido. Falle~lhe de Simão Paulo, medico do rei da Dinamarca, e verá como troveja impropérios contra o rebelião detractor do tabaco, do cafPé e do chá I

Se o uso do tabaco é nocivo, seu pai ultrapassou CS limites do perigo substituindo o uso pelo abuso; quer dizer, accendeado o cachimbo pela manhã para o apagar á noite.

me não admira isto, depois que li algures que Mithridates, rei do Ponto, se habituara a beber vene- no diariamente . Com o caffé creio que se o mesmo phenomeno que com o tabaco : o uso faz mal ; o abuso não prejudica ninguém ! Massieu, poeta que não conhe- <;o, escreveu um poema denominado O caffé ; não lhe quero dizer que tanto desconheço o poema como -o poeta. . . ^ Eu, se me quizesse inspirar do caffé, ia

1 O medico portuguez José Pinto Kebello de Carvalho traduziu este poema de Massieu (Jornal de Coimbra, vol. viii, Tl." 37, part. 2.^^) Quanto ao tabaco, outro portuguez, Miguel Augusto de Ohvoira, verteu cm 1844 o poema do Barthelemy O cachimbo e o tabaco. Os cabellos brancos vão interessando a gente por estas velharias bi bliographicas.— iVoía rfaj^resewíe edição.

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tomal-o u Espadanedo por uma das canequinlias de loiça fina que a minha amiga tempera d'assucar ordi- nariamente. Depois sim, que poderia escrever com ver- dadeiro enthusiasmo. Quer saber a que época re- monta o uso da bebida saborosissima que delicia o pala- dar de seu pai? Um dia, no século nono da era dos ára- bes, amanheceu destinado á gloria do caífó. O céo era azul e formoso ; a natureza mostrava-se languida como a mulher que desperta cansada das danças vertigi- nosas da noite e precisa de libar um philtro que a reani- me; as harpas eólias jorravam pelas escarpas umas mu- sicas voluptuosas e alegres, o hymno da glorificação do cafPó. N'esse dia os derviches d'Yemen beberam pela primeira vez caffé, antes das suas rezas, e pro- clamaram aos quatro ventos do universo a excellencia de similhante bebida. Pouco tempo volvido, corria mundo a «fava arábica», denominação primitiva do

Como não estou em Espadanedo, deante da pe- quena jardineira de mogno, permitta-me dar de mão a este desvio que me vai avivando lentamente re- cordações das minhas visitas ao solar dos Pinheiros.

Deixe-me, porém, fazer-lhe uma pergunta.

Com quantos frasquinhos d^essencias aromáticas a tem presenteado seu avô desde a ultima vez que nos vimos ? Sinto pena do bom velho, que não conhece a gentil neta e a mimosea de longe com bijoux para o houdoir.

Sempre as flores ! Em toda a parte as encontra- mos, minha amiga. Que lamentáveis homens são os

17

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botânicos, que estudam as flores e nSo as sabem comprehender ! Para elles a mais singela florita da monte tem um nome e uma família ; é como se fosse ura homem. A botânica, tirante o que diz respeito á physiologia vegetal, é um vocabulário árido e pesado^ que pode competir com a nomenclatura da chimica e com a technologia da mathematica. ^

Para os geómetras tudo são linhas que ou se prolongam indefinidamente ou se bifurcam em ângulos ou se enclavinham em polygonos ; tudo são lettras e al- garismos que se encastellam em columnas, pelas quaes os profanos não podem marinhar sem que previamente comprem óculos azues e se tornem insociáveis.

Para os botânicos tudo são palavras arrevesadas que incommodam tanto os ouvidos quanto os mosai- cos de mau gosto incommodam os olhos. Para estes enfadonhos apóstolos da sciencia a haste d'uma flor é a maromba traiçoeira com que equilibram a sua reputação de sábios. Nem olham para a flor com os olhos do philosopho, que o dedo de Deus em tudo o que a natureza produziu de admiravelmente formoso ; nem com os olhos do medico que descobre nas flores as qualidades de agentes therapeuticos ; nem com os olhos do pintor, que se embellesa na contem- plação do modelo que debalde tenta reproduzir fiel-

1 Isto era o ódio tradicional do estudante iitterato con- tra os compêndios escolares o os professores especialistas Yai á conta de rapaziada, perdoada indulgentemente pelos pro- fessores que depois foram meus amigos, excepto um, e por mim próprio. Nota da presente edição.

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mente ; nem cora os olhos do parfumeur^ que põe de parte as meditações do philosopho, as investigações do medico e os arroubos do pintor para destillar a es- sência da rosa, que morreu exlialando-a.

Como não sou botânico, minha amiga, posso dizer- Ihe sinceramente que me delicia entrar n-um boudoir perfumado, cheio d'estatuetas, de quadros, de jarras, de crjstaes. Ha certas salas em que a gente entra e respira com encanto o perfume suave que se exhala dos moveis, das cortinas, do piano que sentiu na véspera o contacto d'uns dedos delicados de tudo emfim o que está de portas a dentro. O seu quarto, minha amiga, acha-se nas condições d'estas salas. Da ultima vez que seu pae me mostrou, a occultas, uma corbelha de flores silvestres, a que a minha amiga dava os últimos retoques, teimando em recatal-a de olhos profanos como eram os meus, confesso á puri- dade que não quiz olhar para os innumeros frascos do toucador com o propósito de me persuadir de que o perfume suavíssimo, que se respirava ali, partia das flores pendentes do cavalete. . .

Data de longe o uso dos perfumes.

Em Athenas e em Corintho a tanto chegou a an- ciã de essências aromáticas, que o logar marcado para as conversações de todos os dias, em vez de ser, como hoje, o botequim ou o caffè, era a loja d'um perfu- mista notável. Em Roma, de tal -modo se banhavam em perfumes as opulentas patrícias^ que se promul- garam leis reprimindo o abuso, com receio' de que se extinguissem para sempre os depósitos da Arábia.

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Os nobres senhores da eclade-raédia lavavam em agua de rosa os lábios tocados das viandas de seus esplendidos banquetes, e os mais poderosos tinham em seus paços fontes d'agua perfumada para embal- samar as salas em noites de festim.

Sua mãe que lhe conte da corte de Luiz xv, que se denominava corte perfumada^ em razão de cada dama de honor adoptar cada dia uma essência diffe- rente. Ella lhe contará também como, a contar d'essa época, lavrou vertiginosamente em França a febre dos perfumes.

Uma coisa curiosa d'estudar é a acção das essên- cias aromáticas na economia animal. Ha pessoas que se incommodam extremamente com determinados per- fumes.

De mim lhe declaro que me incommodam os demasiadamente activos e violentos.

Ás vezes, porém, tem grande parte a imaginação n'estas antipathias que ordinariamente se attribuem a uma irritável delicadeza de nervos. Conta-se o caso d'uma dama romana, que não podia supportar o aroma das rosas.

Certo dia visitou-a uma das sua amigas que trazia na cabeça uma grande e formosíssima rosa.

A susceptibilidade nervosa da dama visitada levou-a a desmaiar subitamente mal entrou a imprevidente amiga.

Foi motivo de se chamar o medico um tão ines- perado spasmo.

A que attribuil-o, porem ?

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 rosa, simplesmente áquella rosa, disse uma das criadas da casa que, por experiência, podia deter- minar as diversas causas de tão frequentes exacerba- ções nervosas.

E' verdade ! considerou o medico. Não me lembrei da antipathia que leva a minha gentil cliente a repellir o cheiro da rosa !

É verdade ! Se me tivesse lembrado também, desfolhava a maldita ílor antes d'entrar, ponderou a dama em visita arrancando-a das tranças, com sorriso irónico.

Surpresa ! gritou o medico, acceitando a rosa que lhe oíferecia a dama e fitando um olhar expres- sivo na mimosa cliente que a pouco e pouco ia recu- perando os sentidos.

Que é ? Que foi ? Que surpresa ? Perguntavam todas as pessoas agglomeradas na camará.

A rosa não 6 natural ! perorou o medico, sol- tando uma gargalhada estrepitosa.

You concluir.

Fallei-lhe de perfumes, que é o mesmo que fallar de flores. Victor Hugo escreveu algures esta profunda phrase : « Fui a rosa, diz o perfume. » É que na ver- dade o aroma, deixe-me dizel-o, é a alma da flor. A rosa, ceifada da haste, deu ainda ao mundo o que de immaterial havia n'ella.

Seu avô, minha amiga, velho aff'ectuoso e deli- cado, manda-lhe de longe as essências das flores qua mais o namoram decerto. Aposto que se elle alguma vez invejou o throno de Napoleão ni foi por não poder

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comprar todos os perfumes da França para os man- dar á neta.

S. Luiz, que tinha predilecção pelos perfumes, dizia nos campos da Palestina : «O' delicioso paiz <l'Arabia! ambiciono conquistar-te para offerecer ao Senhor a tua myrrha e o teu incenso ^ .

Mr. Arnold dirá também, paraphraseando a ex- clamação do rei-santo : « O' delicioso paiz da França 1 ambiciono possuir todos os teus perfumes para of- ferecel-os á minha Jeannette».

YIII A mademoiselle Jeannette. 8 d'agosto de 18 . . .

Quizera eu, minha amiga, que todas as mulheres seguissem o seu exemplo e substituíssem os diamantes pelas flores naturaes. A belleza deve de ser modesta. Os reflexos cambiantes dos collares quantiosos des- lumbram e cegam.

D'aqui procede que muitas vezes o esplendor da moldura, incommodando_a vista, prohibe o contemplar- se o quadro com a minuciosidade devida e com o es- crúpulo indispensável. Para que hade a belleza ir procurar ás cryptas sombrias o que pode encontrar á superfície da terra ?

É preciso cavar para extrair o minério ; basta

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alongar o braço para colher a tlor. E depois a belleza do diamante é fria, muda, inanimada ; apenas des- lumbra quando llie bate a luz em cheio. A belleza das ílores tem vida, tem animação e, podemos dizel-o, tem linguagem e sentimento. Tanto isto ó verdade, minha amiga, que podemos substituir as palavras pelas flores e transmittir a expressão da nossa alma no mais ap- parentemente despretencioso bouquet d'este mundo. €ada flor resume uma ideia ou um sentimento e cada ramilhete é uma espécie de livro deslumbrantemente encadernado, que pode affectar mil formas diversas e tomar mil cores differentes.

Os floristas francezes, pergunte-o á sua boa mamã, variam prodigiosamente os nomes dos bouquets con- soante a forma caprichosa que lhes dão. Teem o boiíquet-real^ o botiquet-daqiiesa^ o bouquet-pavêa, o òouqaef -abanico e não sei quantos outros que encheriam volumes sem conto. Xão é tão fácil, como parece, o sa- ber compor um ramilhete, abstraindo da forma arbi- traria que se lhe pode dar.

Eu acredito piamente na predestinação das crea- turas. As raparigas francezas, aliem ãs, inglezas e italianas que andam pelos passeios com os seus aça- fatinhos de ílores no braço, nasceram exclusivamente para raniitheteiras. Tiral-as d'aquillo, era emendar a obra da natureza. Quem ensinou a ave a fabricar o ninho? Quem ensinou a ramilheteira a compor bou- quets f Ginguem; uenhum mestre; nenhuma escola.

E todavia um bouquet é tão difficil de compor como um livro de escrever.

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N'iim é preciso combinar as cores; no outro ordenar as modalidades do pensamento. Para fazer um ramilhete não basta reunir flores ; assim como para escrever um verso não basta juntar palavras. Para tudo a inspiração.

Toda a gente sabe fazer um ramo ; nem todas as pessoas sabem compor um bonito ramo. O segreda pertence aos predestinados. Como é que as ramilheteiras dispõem as flores ? Como nós, como toda a gente. Principiam o houquct^ ordinariamente, por uma flor grande, camélia ou rosa, ou por um feixe quer de violetas quer de botões que formem o centro ; em redor uma zona de verdura esmaltada de pequeninas flores e ainda depois uma galeria de flores variadas. Está o bouquet meio prompto ; é preciso concluil-o.

Uma nova zona de verdura deve contornar esta primeira galeria de flores. Ainda não basta.

E' preciso formar uma segunda galeria de flores matizada de folhas pequeninas e para terminar o boitqiiet convém adaptar-lhe uma ultima zona de- folhagem que não amarelleça dentro de poucas horas. Está completa a obra. Ponhamos o nosso ramilhete aa lado do bouquet da mais obscura ramilheteira. Que' difterença I N'um os preceitos aristotélicos da poética das flores e mais nada ; no outro a inspiração vasada nos moldes da correcção artística. N'um o quid divi- num que soube liarmonisar graciosamente as mais delicadas nuances; no outro a monotonia com pretenções a bom-gosto, que 6 a monotonia mais cáustica e des- saborida da terra inteira.

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Os botânicos e as ramilheteiras I Eis aqui duas classes verdadeiramente differentes, comquanto vivam ambas das flores e para as flores.

Era injustiça coroar de loiros os botânicos e deixar na obscuridade as ramilheteiras. Do lado d'elles está Linneu e não sei quantos mais, porque, em verdade nunca travamos conhecimento intimo. Do lado d'ellas está Glycéra, a ramilheteira d'Athenas, notabilidade que bastou para cobrir de gloria todas as ramilheteiras do mundo. Quem era pois Glycéra?

Uma mulher formosa que sabia compor boiíquets. N'isto estaria de certo o máximo titulo do seu reno- me, ainda que o pintor Pausias a não houvesse re- tratado, sentada entre montões de flores, a compor ramilhetes, e ainda que Lucullo não tivesse comprado este quadro duas vezes notável.

Ninguém como Glycéra para entretecer grinaldas e hoiiquets ; ninguém como o pintor Pausias para os quadros de flores. Entre estes dois talentos, que be- biam o fogo da mesma inspiração, devia vir sentar- se a rivalidade. Assim aconteceu.

Pausias começou a deixar-se vencer e quiz retra- tar a ramilheteira. Fazel-o, era ficar completamente vencido.

O pintor atheniense retratou-a e teve de acceitar as consequências d'esta indiscreção : amou-a.

Adeus, minha boa amiga. Vejo-me obrigado a sair do Porto por alguns dias e a privar-me do prazer de lhe escrever. Quando voltar, dir-lhe-hei, como até hoje, o que me for lembrando a respeito das flores.

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EPILOGO

Quando voltar, escrevi eu. A verdade é que, quando voltei, vi em cima da minha banca de trabalho uma carta cujo enveloppe denunciava a calligraphia de mademoiselle Jeannette.

Abri-a precipitadamente ; dizia assim : « Depois d'amanhã vou receber a benção nupcial na igreja d'Espadanedo. O noivo... sabe quem. Desceu sobre as flores do meu coração o orvalho da felicidade.

Jeannette. »

O noivo da filha de Sebastião Pinheiro era o ho- mem que ella amava havia trez annos ; um dos mais nobres rapazes de Santa Cruz do Doiro.

Mr. Arnold morreu. Madame Faustine conserva ainda as graças e o espirito d'outros tempos. Sebas- tião Pinheiro, apesar de fumar por dia mais uma onça de tabaco e beber mais uma chávena de caffe, des- fruta a melhor saúde do mundo. Jeannette é feliz e tem um filhinho. Quem ousaria agora desviar por um momento o amor materno do alvo constante dos seus cuidados, .escrevendo-lhe de flores?

^

UMA PAGINA TKISTE

Ai ! flor das mallogradas primaveras. Thomaz Kibeibo.

Devem ser breves as historias que se escrevem com lagrimas.

Simão Pereira era um rapazinho baixo, d'aspecto doentio, que tinha vida nos olhos, porque os olhos denunciavam n'elle o scintillar das labaredas do cé- rebro.

Era natural de Sozello, filho de lavradores e foi meu condiscípulo, ha quatro annos, nas aulas publicas.

Os rapazes do nosso curso tinhara-n'o á conta de scismador imbuído em leituras romanescas. Os mestres, ao avesso dos discípulos, viam n'elle uma intelligencia robusta apenas prejudicada por um temperamento ex- tremamente mórbido.

Simão Pereira passeava só, e quando a gente se abeirava d'elle encontrava- o umas vezes febrilmente

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eloquente, outras esquecido e como que absorto n'um pensamento que o dominava a ponto de não ouvir o que se lhe estava dizendo.

Estas intermittencias seriam razão de sobra para corroborar as injustas accusações dos nossos condis- cipulos, se elle não tivesse dito d'uma vez, a pro- pósito de romances :

O que por via de regra os torna inverosímeis é o imaginarem os auctores creações monstruosas que se apartam do commum da humanidade, tola ou feliz, como quizerem. ISTão é preciso procurar mons- tros fora da natureza. Falíamos todos os dias com cer- tos homens que nos parecem vulgares e que toda- via poderiam figurar n'uma historia tenebrosa como os romances de Ponson du Terrail.

Os condiscípulos riram-se da apologia do romance rocamboliano feita por Simão Pereira e eu eiitristeci- me subitamente, porque me atravessou o espirito a suspeita de que elle alludia a si mesmo.

Antes de terminado o anno lectivo correu voz de ter enlouquecido Simão Pereira. A causa que lhe apa- gara subitamente a luz da razão era desconhecida para nós, mas os médicos asseveravam que estava no seu pró- prio temperamento. Os condiscípulos ouviram e dis- seram :

De romântico a doido vai um passo. Deu-o. Os cora(;ões de vinte annos, que geram sentimentos

nobilissimos, são ás vezes brutalmente injustos.

Procurei Simão Pereira n'uma casa da rua Chã, onde liabitava.

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Encontrei-o sentado á banca com a fronte apoiada nas mãos. Sentiu rumor de passos e voltou-se; viu-me e arrazaram-se-lhe os olhos de lagrimas.

Faça-rae um favor, disse-me elle com certa excitação nervosa. Escreva a meu pai e peça-lhe em meu nome que me venha buscar. Não sei es- crever.

N'essa mesma noite escrevi ao lavrador de Sozello e, em vez de pedir, intimei-o a vir ao Porto buscar o desgraçado rapaz que estava a braços com a loucura longe do tecto que o tinha visto nascer. O lavrador deu-se pressa em chegar.

Yi-os partir, pai e íilho, n'um dos barcos da car- reira. O lavrador tinha envelhecido dentro de trez dias; Simão Pereira olhava para o pai com o olhar indeciso de quem perdeu a razão.

Chegaram as ferias. Fui a Sozello e, como sabia que o meu condiscípulo ainda vivia, perguntei por elle.

Na mesma, foi o que me responderam.

Na mesma! Isto era extremamente doloroso para quem sabia que ficava occulta a palavra loucura. Na mesma loucura, queriam dizer.

A casa de Simão Pereira vê-se da quinta de Yilla Yerde. Â noite cheguei a uma janella e puz-me a olhar para lá. Momentos passados, ouvi notas dulcís- simas de flauta. Estremeci. Devia ser Simão Pereira quem tocava.

«Nasci n'aldea, disse-me elle da primeira vez que o ouvi executar umas variações da Norma, nasci n'aldea e a flauta é a lyra dos pastores» .

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Um dos criados da nossa casa ouviu os sons lon- gínquos da flauta e veio dizer-me :

Agora está elle socegado. A musica chama-a á razão ; n'estes momentos conhece o pai e a mãe.

Um anno depois havia completo silencio na casa do lavrador. Simão Pereira tinha morrido n'um accesso de loucura, mezes antes. Quiz ainda enganar- me e fiquei á janella a esperar a canção saudosa da flauta. Nenhum som, nenhuma voz. Á loucura sue- cedera a morte.

AZAS BRANCAS

(a AUíiUSTO MARQUES PlNTO)

tinha umas azas brancas . Gabrbtt.

Chama-se Val-de-Rouxinoes o logar. É uma cam- pina extensa, coberta de verdura por todos os lados, banhada ao norte por um ribeiro, tudo aquillo for- moso, suave e alegre, n'uma palavra. Diz-se que a pastora Bérthola, (provavelmente corrupção de Ber- tha), que tinha uma voz doce e melodiosa, e que sof- fria mal de saudades, vinha sentar-se a olhar pelo re- banho á sombra das arvores do valle e começava a cantar por tempos esquecidos.

Os rouxinoes, que os ha muitos no sitio, ouviam- n'a, tomavam por desafio o que era desfadigar de tris- tezas e começavam a cantar á porfia que era um céo aberto escutal-os.

A pastorinha Bérthola comprehendia-os e não tan- to para matar o tempo, que lhe era pesado, como pa-

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ra 03 ouvir, o que era um consolo, sustentava a lucta dignamente. Constou isto. Ao fim da tarde vinha mui- ta gente escutar a occultas a pastorinha e os rouxi- noes. Suspendiam-se as respirações e embriagavam-se os ouvidos n'aquella musica dulcissima.

Diz a lenda porque a imaginação do povo tem ás vezes extravios romanescos que era difficil sa- ber-se em alguns momentos quem cantava : se Bér- thola se os rouxinoes. Prolongava-se por noite a den- tro a porfia. A pastorinha esquecia-se das suas ove- lhas, que procuravam o caminho do curral, como se comprehendessem que não deviam esperar por quem se não lembrava d'ellas. . .

Com a noite vinha o socego e a solidão ; era me- lhor para se ouvir. Então os rouxinoes e a pegureira desdobravam todo o volume da sua voz e deliciavam- se com ouvir a repetição das notas que tinham trina- do momentos antes. Eram os éccos do valle que re- petiam o canto.

E os namorados do sitio a escutarem estes con- certos nocturnos, contentes por haverem encontrado vozes estranhas que soubessem gorgear o que elles -queriam dizer e não podiam... Morreu nova a pas- tora. Venceram os cantores do valle. Cansou-se de cantar e morreu. Ficou vingado o rouxinol de Bernar- dim Ribeiro.

*

O morgado de Yal-de-Rouxinoes, Gaspar da Sil- veira, representa a velhice ditosa. Quando a gente

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o entro um p^rupo de formosas visões, tlores que enchem de perfume e de vida aquellas ruinas de ses- senta annos, sente pena de não ser tão alegre, ou o que parece menos verosimil e comtudo não deixa de ser menos verdadeiro, sente pena de não ser tão. . . velho e tão feliz como elle.

O morgado passou a mocidade em toda a parte aonde o arrastou a sua romanesca imaginação e onde os seus muitos recursos lhe permittiram demorar-se. A casa onde nasceu, escondida n'uma bacia de ver- dura, era pequena para os seus instinctos de touriste.

Ás vezes vinham poisar algumas borboletas nas flores dos canteiros sotopostos ás janellas da casa, como se viessem trazer um recado, e fugiam logo a esvoaçar, a esvoaçar... Para onde? Quem sabe lá! para onde houvesse flores. Gaspar da Silveira reparou nas mariposas e conheceu que a natureza o fizera irmão d'ellas collocando o seu ninho entre moitas de ver- dura. Elias voavam ; elle quiz seguil-as.

Preparou-se para partir. As borboletas iam voando sempre ; imitou-as. Quando olhou em si estava muito longe de Val-de-Rouxinoes, e todavia pareceu-lhe que o mundo era ainda muito grande.

Teve desejos de vêl-o, todo se fosse possível.

«Fui por Hespanha, diz hoje Gaspar da Silveira, porque senti nos ouvidos o repenicar provocador das

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castanholas alternado com o frémito vertiginoso dos petulantes abanicos. A Hespanha é um paiz que se comprehende depois que se vê. A França adi- vinha-se. Em Yal-de-Rouxinoes presentem-se os valles da Suissa. A Inglaterra imagina-se n'um dia de nevoeiro e a Rússia n'um dia de frio. Da Hespanha falla-se e ninguém sabe o que ella é antes de a ver. A mulher representa o paiz a que pertence. A voz d 'uma italiana resume toda a musica d'Italia ; todos os mystérios da Hespanha estão no coração d'uma andaluza. E' a Hespanha um paiz especialmente mi- litar, commercial, cavalheiresco? Nada d'isto e tudo isto. A hespanhola tanto se deixa arrastar pelo ry- thmo cadenciado da hahanera, como pela vertigem fe- bril do ciúme.

Na tertúlia agita a ventarola; no desespero o punhal.

Quando lhe não trespassam o coração com um es- pinho, e pomba. Quando lhe apontam uma frecha en- venenada de mal-querença, é indomável. Os olhos é que podiam denunciar estes sentimentos differentes, mas os olhos esconde-os ella com a mantilha, quando quer.

A Hespanha é como a hespanhola. Tanto descanta hoje na serenata^ como briga amanhã na venta; tanto se recrea hoje no bolero como amanhã na corrida.

Ninguém sabe comprehender os seus mystérios, senão estudando-a passo a passo e dia a dia. Depois, o que 6 menos sério e não deixa de ser mais tentador, imaginei-me a saborear uma taça de chocolate e a

I

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fumar um charuto havano. Fui. Escrevi, com um em Hespanha e outro em Portugal, a minha irmã Jeronyma, que íicou a olhar pela casa de Yal-de-Rou- xinoes, a chorar as lagrimas da viuvez e a apertar contra o seio duas formosas creanças.

Escrevi-lhe, como ia a dizer, n'este sentido : «You a Hespanha. agora hei-de fumar um puro e ouvir um sereno. Adeus. »

«De Pariz, diz Gaspar da Silveira que merece comparar-se ao cavallo de Troya, tudo é traição. a ^QYiiQ aquelle grande mundo, aquella Babylonia immensa, desvaira-se, estontea e... perde-se. Por quem ? Por uma mulher loira dos boidevards^ que vai á ópera todas as noites e não falta ás corridas de Longcharaps, deslumbrante de riqueza e formosura.

Quem vem a ser esta creatura ? Uma rapariga de maus instinctos, que deshonrou para sempre a velhice de seus pais, que desperdiça todos os dias os rendi- mentos de muitas famílias e que se touca de pérolas á hora em que se cobrem de lagrimas as esposas dos seus amantes.

O fundo é este. O povo francez embriaga-se com todos estes ouropéis, com todas estas opulências vans, com todas estes esplendores mentidos. E' vário como todos os nevropathas. Se vem a republica e lhe falia em liberdade, torna-se republicano. Mas se no mesmo

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dia vier o império, e o deslumbrar com uma parada e ura fogo de artificio, ajoelha deaute do throno e suf- foca na garganta as ultimas notas da Marselhexa. Fugi de Pariz porque me assustou a grandeza ficticia da- quelle mundo ; a traição está escondida dentro como os gregos no bojo do cavallo de Trova. »

«Foi á Suissa, áquelle pittoresco templo da ver- dadeira liberdade. Quem sae de França cuida que a Suissa é um punhado de terra escondido entre mon- tanhas. Mas quando se lembra da Suissa de hontem, acha-a grande ; quando attenta na Suissa de hoje, acha-a maior. A Suissa de hontem são todos os patriotas de 1308, é essencialmente Guilherme Tell. A Suissa de hoje é a suprema liberdade, a suprema independên- cia e, podemos dizel-o também, a suprema harmonia. O povo da Suissa vive do amor pelo passado e do amor pelo futuro.

«Respeita as tradições dos seus antepassados e. não obstante, empenha-se com enthusiasmo pela causa das novas ideias.

«As cartas geographicas continuam a marcar í Suissa com uma pequenina gotta de tinta, mas a verj dade é que entre o Jura, os Alpes e o Tyrol ha um nação grande pela sua constituição politica, pela snjl educação civil e militar, pelas artes, pela industria por tudo emfim o que constituo a individualidadl

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de um povo. E depois á beira dos seus lagos sente-se a amenidade que se respira em Val-de-Rouxinoes. Eii- cautou-me a Suissa, devo confessal-o. »

«Segai para lialia ; fui á Itália por causa de Ve- neza. Quiz adormecer u'uma gôndola ao som d'uma barcarola. A verdade é que os gondoleiros do Lido não conservam a individualidade legendaria d'outros tempos. Todavia foi-me delicioso ir deitado na gôndola

Ia olhar para aquelle formoso côo d 'Itália capaz de fazer accordar n'um momento todas as harmonias do coração humano.

«A Itália nasceu para as artes. Quando a gente che- ga a Veneza reconhece immediatamente que está em Itália e que a Itália é a pátria de Verdi, de Petrar- cha e de Paulo Veroneso. E' licito até deixarmo-uos ^ enlevar, comtanto que tenhamos previamente o cui- dado de acautelar as algibeiras, porque os rufiões aproveitam-se frequentes vezes dos extasis dos viajan- tes incautos.»

«Voltei a Portugal depois de ter estudado o mundo em quatro ou cinco paizes diversos. As mulheres da minha terra entremostraram-se-me a distancia com merecimentos dignos do respeito de um viajante. Nãa

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as quiz comparar com as outras que vi. As de Hespa- nha tinham salerOy as parisenses eram coquettes, mas as portuguezas, avaliei-o por minha mãe e por minha irmã Jeronyma, eram mais dedicadas á beira do berço de seus filhos. Minha irmã ficou viuva aos vinte e trez annos, com duas meninas no collo.

« Quando eu parti, tinha a Júlia um anno e a Lu- dovina dois. Quando regressei, chamei um dia a mana Jeronyma e disse-lhe :

« Minha irmã. Fatiguei-me de andar por esse mundo de Christo e todavia não passei de um retalho da Europa. Estou resolvido a casar ; mas has de pro- metter-me que não saes d'esta casa, que administraste durante a minha ausência, no dia do meu casamento. Se eu tiver filhas, quero que ellas brinquem com as tuas. Não receies, porém, que esta nova phase da minha vida venha perturbar a tranquillidade da nossa casa ; socega, porque eu casarei com a mulher que tu me designares. Olha que isto é positivo, Jero- nyma.»

«Minha irmã mostrou-se surprehendida.

« Dize cá, continuei eu, para atalhar a admiração de Jeronyma. Tu tens uma amiga intima, que conta hoje a tua idade e que foi a confidente dos teus amores...

« Christina I

<!. —Christina, exactamente, ozí/ra tua irmã^ como dizia a gente do logar quando vos encontrava ambas, de mãos enlaçadas, a passear pela aldeia. E comtudo bem sabiam os camponezes que tu eras a menina de

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Yal-de-Rouxinoes e Christina a morgadinha do Paço- Yerde.

« Que saudade !

« Affasta as tuas tristezas, Jeronyma, que não 6 occasiào de despeitorar maguas intimas. Ora dize-me cá. Sabes se ainda se conservam no coração de Chris- tina aquelles assomos de affeição que ella dizia sentir por mim?

«— Christina não te ama vertiginosamemte, respon- deu minha irmã, mas sente por ti um poucochinho de respeito e um poucochinho d'estima, o que é mil vezes preferivel a uma paixão que dure a vida de uma flor.

« E sabes se Christina amou alguma vez outro homem ?

« Não amou ninguém. Ás vezes dizia-me de ti : Gosto de teu irmão, Jeronyma, mas scismo que elle antipathisa comigo. Não quero desenganar-me ; tenho medo que me aborreça deveras.

« Muito bem. Ficas encarregada de concluir o negocio. Quero ver como te saes d 'esta missão diplomática.

« Gracejas, Gaspar !

« Não gracejo. A minha idade de gracejar pas- sou.

Cinco annos volvidos depois do casamento de Gaspar da Silveira, descobriam-se reverentemente os

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camponezes, ao declinar da tarde, deante d'um grupa pittoresco que ora parecia recortar o céo levantado- n'uraa eminência ftorida, ora surgia como por encan- tamento n'uma gruta de verdura em qualquer sitio do valle.

Gaspar da Silveira, de largo chapéo desabado e semblante a ressumbrar alegria, era quem ficava exa- ctamente ao centro do quadro. D'um lado a estatua da saudade, entre doce e melancólica, entre triste e resignada, Jeronjma. Do outro a mulher que se arrouba na suprema felicidade da terra e sabe ser compadecida perante os infortúnios que comprehende,

Christina.

Tsíão longe, ao sopé do rochedo ou á beira do al- pendre de folhas verdes, quatro creanças ora baila- vam de mãos enlaçadas, ora desfolhavam flores sil- vestres e assopravam as pétalas para vel-as cahir^ ondulando, como outras tantas mariposas.

A mais velha d'estas crianças tinha sete annos

Ludovina. Pomba, que mal abre as azas e se arroga a missão de velar pelo bando infantil! Júlia, a outra filha de Jeronyma, pode chamar-se lhe a in- fância mais inquieta d'este mundo e com pretensões a rebellar-se contra a protecção fraternal de Ludo- vina.

As outras duas creanças são ambas filhas de Gas- par da Silveira e de Christina; são tão irmãs, tão uma da outra, que se poderiam dizer gémeas, comquanto Leonor tenha quatro annos e Sophia trez.

Formoso quadro era este em que suavemente se

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confundiam as alegrias da infância, as lagrimas da saudade e os sorrisos da felicidade suprema.

E os camponezes passavam e tiravam respeito- samente o seu chapéu, menos por ser aquella a família de Val-de-Kouxinoes do que por se sentirem tomados de respeito deimte d'aquelie grupo sublime de ma- gestade.

* *

Encanta-me ver este bando de creanças que Deus nos concedeu como para nos dizer que somos felizes ! exclamava Gaspar da Silveira. Que seria do teu coração, Jeronyma, se lhe faltassem, não digo as con- solações da nossa amizade, mas aquellas duas azas pequeninas que a Providencia lhe engastou e se estão agitando acolá V A Ludoviua substitue-te dignamente nos carinhos maternaes que dispensa á irmã. A minha Leonor tem alguma cousa de coqiiette e alguma cousa de campoueza. Olha como ella se vai meneando senhorilmente após as outras, com a sua arregaçada de flores do monte. A Sophia é o beija-flor, os trez annos que tropeçam a cada momento, mas que não desanimam e vão proseguindo sempre no vertiginoso adejar ! Que felicidade a nossa, Christina ! Que felici- dade a minha, Jeronyma !

E evocando recordações das suas viagens :

Ha na Suissa um costume em verdade encanta- dor e útil, porque exerce uma notável influencia na harmonia das gerações futuras. As sociedades do do-

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mingo, como se diz, consistem em reunir n'esse dia as creanças da mesma idade e do mesmo sexo para deixal-as brincar em plena liberdade. E' assim que os pequenos se suppoem todos irmãos porque não sabem brincar uns sem os outros ; raparigas com rapari- gas, rapazes com rapazes. E n'esta communidade de brinquedos vão-se insensivelmente estreitando os laços que devem prendel-os para toda a vida. Oh! que se vocês vissem a Suissa haviam de gostar e mui- to I .. .

D'outras vezes dizia Gaspar da Silveira, á cerra- dinha da noite:

A esta hora ouve-se nas povoações dos Alpes a busina dos pastores. Parece impossível que d'uma pequenina flauta de pau, tangida por um pegureiro rude, saiam as suaves modulações que se vão repe- tindo de quebrada em quebrada. E as cantigas do Ba7iz das Vaccas que os pastores cantam melodiosa- mente a esta hora !

Parece que tens amores na Suissa I replicava Christina entre amorosa e amuada.

E' verdade ! obtemperava Jeronyma. Olha que é para ter ciúmes !

E' que não me comprehendem ! Quando se está bem, tão bera como eu aqui estou, parece que a me- moria se delicia em reproduzir tudo quanto conhece de suave e formoso ! E depois ? . . .

E depois? perguntavam simultaneamente Chris- tina e Jeronyma.

E depois ha na Suissa um lago do qual se diz

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que se agita quando se lhe deita alguma cousa dentro. . .

E que tem ? dizia Christína.

E que tem ? repetia Jeronyma.

Bem sabem que deitei ás aguas do lago o celi- bato ; que voltei as costas para não ouvir a tempestade ; e que vim casar á minha terra natal.

Ah! conclamavam Christina e Jeronyma sor- rindo amavelmente.

*

Corridos quinze annos depois do casamento de Gaspar da Silveira, ainda podia vêr-se, ao declinar da tarde, o mesmo grupo, ou antes os mesmos grupos, nos mesmos legares e á mesma hora. O morgado de Yal-de-Rouxinoes não inculcava maior velhice : ha uma consolação, a de ser pai, que parece furtar-nos á acção sensivel do tempo. Christina partilhava das ale- grias do marido, que tanto eram suas como d'elle, e respirava na mesma atmosphera de felicidade. Jero- nyma sem estar menos ágil estava comtudo mais venturosa, porque em vez de duas, como outr'ora, tinha quatro azas a levantarem-n'a dos espinhaes da terra. Morria-se d'amores pelas sobrinhas tanto como pelas filhas ; queria-lhes realmente muito.

E ellas, as quatro pombas de Yal-de-Rouxinoes, onde estão que não bailam de mãos enlaçadas nem assopram as pétalas das flores do monte ?

Eil-as ali, ao lado, constituindo um outro grupo,

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ora segredando-se os nadas mysteriosos e bonitos da mocidade, ora lendo Feuillet, que 6 o romancista que- rido de Gaspar da Silveira, ora, se as acompanhava a mestra que viera do Porto, discorrendo e ás vezes galhofando sobre pontos de geographia e historia. Eil-as, as quatro formosas donzelinhas, que parecem todas irmãs e deixam perceber ideias e sentimentos também irmãos.

Olhae para ellas, dizia Jeronyma a Gaspar e a Christina. Olhae para ellas, como estão alegres e ami- gas! A Ludovina é o anjo da guarda; é sempre irmã de todas, sem deixar de ser mãe, quando é preciso. A Júlia e o aijesú que de mimoso reclina a cabeça no seio fraternal. A vossa Leonor, reparae : apresenta- se compostinha como uma senhora de. . . quatorze annos ! E a Sophia, o beija-ílor, como tu.dizes, Gaspar, sempre a bater as azas e a sorrir !

Olha, exclamava Gaspar da Silveira, que tem graça esta graduação de idades: A Ludovina tem de- zesete annos, a Júlia dezeseis ; a Leonor quatorze e a Sophia treze. De maneira que a Ludovina ó mais velha um anno que a Júlia, e a Leonor mais velha um anno que a Sophia.

Assim como também, acrescentava Christina, » Ludovina é mais velha que a Leonor trez annos e a Júlia mais velha que a Sophia outros tantos.

O' Christina, perorava Jeronyma, Deus quiz ir- manar tanto os nossos destinos, que nos deu a cada uma duas filhas I Irmanar, disse eu ! Tu és bem mais...

Toca a levantar o acampamento, dizia Gaspar

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da Silveira com seus assomos de militar reformado. Se tu, Jerouyma, começas a desafo^^ar maguas, sen- sibiliso-me também e ou choro ou rendo a praça. Va- mos vér o que estão a dizer as pequenas. O que ellas não terão gracejado com a mestra !

Que fazem vocês, pequenas ?

Perguntamos á snr.* D. Francisca uma cousa, respondia Sophia.

E ella ainda não respondeu I replicava Júlia.

E' porque não e fácil responder ! acrescen- tava Leonor.

Não faça caso, meu tio, concluía Ludoviua. Ellas enlouqueceram todas.

Diga lá, D. Francisca, diga lá, atiçava Gaspar da Silveira.

Digo eu . . .

Cala-te, Sophia, reprehendia Christina.

Deixa dizer a tua mestra, ralhava Jeronyma.

Perguntei á menina Sophia onde ficava a Rús- sia, dizia, finalmente, D. Francisca.

E ella respondeu ?

Respondeu. Depois perguntei que forma de go- verno havia na Rússia.

E, . . respondeu ? inquiria Gaspar da Silveira.

Respondeu.

Depois?. . .

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Depois perguDtou-me a menina Sophia, que ê sempre a revolucionaria, o que queria dizer a palavra Russo. E eu respondi. . . que natural da Rússia.

Bem respondido ! exclamava Gaspar da Silveira suffocando um frouxo de riso. E ella que liie objectou?

Por que se chamaria então ruço a um burro esbranquiçado que nào era russo?

Diabrete ! exclamava Gaspar da Silveira, des- fechando uma gargalhada sonora.

Os serões corriam alegres e divertidos na casa de Yal-de-Rouxinoes. Gaspar da Silveira ora lia para to- dos ouvirem, ora contava episódios das suas viagens na Europa. Havia duas mesas de trabalho todas as noites; n'uma costuravam Christina e Jeronyma e lia Gaspar da Silveira ; na outra seroava o rancho das donzellinhas commandado pela grave pessoa da pro- fessora D. Francisca, que conservava dos tempos da mocidade saudades doloridas.

Gaspar da Silveira havia lido n'um periódico do Porto o annuncio d'uma senhora, que se offerecia para ensinar musica e instrucção secundaria na provincia. Escreveu immediatamente á redacção do periódico pedindo esclarecimentos. Recebeu-os, e como lhe pa- receram lisonjeiros, mandou ir a mestra em questão. Nos primeiros tempos, sondou Gaspar da Silveira com certa habilidade a profundeza dos conhecimentos lit- terarios de D. Francisca. Conheceu que eram pouco

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sólidos, mas como ella soubesse tocar piano correcta- mente e esboçar a lápis uns desenhos leves, transigiu e estipulou-lhe um ordenado farto.

A ^rave professora, quando conheceu que tinha de arrostar com as negaças prováveis de quatro moci- nhas sobremodo estimadas, teve um momento de he- sitação, mas lembrou-se de que leccionava quatro discipulas e recebia por oito: ficou.

Eram pois alegres e divertidos os serões, como se disse. Aos domingos e quintas feiras as meninas tocavam, cantavam e bailavam umas com as outras. Nas restantes noites costurava-se simplesmente.

Mas que vontade de rir por qualquer cousa! que alegrias por um todo-nada ! que suavissima tranquil- lidade em tudo aquillo !

Na tarde, por exemplo, em que se suscitou a questão da palavra russo encontraram as alegres meninas assumpto de sobra para gracejar todo o serão d'essa^noite.

D. Francisca abancou á mesa de costura agasa- lhada n'um chaile, que não se poderia dizer se era preto por estar consideravelmente desbotado.

Sophia, a mais espirituosa traquina da casa, lem- brou-se de dizer a D. Jeronyma :

O' ti-ti, sabe de que cor é o chaile da snr.* D. Prancisca ?

Cala-te, menina.

O' ti-ti, mas repare. . .

Pois não é preto, mamã ? perguntava ironica- mente Júlia.

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Nao é tal, replicava Sophia. E' cor... de habi- tante da Rússia.

Entre o bando das meninas de Yal-de-Rouxinoes havia uma que desde o principio mereceu especial consideração a D. Francisca : era Ludovina. As outras tinham alguma cousa de anjos maus para com ella nos seus Ímpetos d 'alegria. Quando a topavam em descaso riam-se e gracejavam a propósito ; Ludovina conhecia o lapso e calava-se. O silencio da mais idosa das discípulas, silencio mais para recear do que as impensadas expansões das outras, lisonjeava extre- mamente a vaidade de D. Francisca, que, se não se julgava infaHivel em seus conhecimentos litterarios, pensava de si para si que tinha attingido a máxima sabedoria entre as pessoas do seu sexo.

Ludovina não era menos alegre do que as outras ; tinha mais um poucochinho de descrição correspon- dente, por assim dizer, á pequena differença da sua idade. As outras tanto eram severas para com os erros da mestra como para com as rusticidades dos campo- nezes; desfechavam, quando o ensejo se ageitava, uma gargalhada estrepitosa e unisona.

D'aqui provinha que era também Loduvina o anjo querido da gente do sitio. Quem esmolava os pobres, era ella ; quem intercedia a favor dos quinteiros em todos os negócios pendentes da vontade de Gaspar da Silveira, era ella. Sophia, especialmente Sophia, che-

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gava a ser um pouco rude cora a gente do campo. Se tinha de saltar um muro pequeno, que obstruía a passagem, chamava um camponez, que ia passando e dizia-lhe :

Olá ! abre a tua mão ; quero firmar o e saltar.

Uma tarde sahiram a passear as quatro meninas de Yal-de-Rouxinoes. Gaspar da Silveira, Christina e Jeronyma ficaram esperando na sala de jantar que passasse o sol, para sahirem também.

Foi o alegre rancho andando, andando por aquellas pradarias fora. Subiram o monte que domina a igreja. Encontraram uma pedra coberta de musgo, que podia servir de canapé, e sentaram-se. Decorrida meia hora começou a repicar o sino ; ia sahir o Yiatico. Yieram saltando pelo monte abaixo, umas após outras, em direcção á igreja. Quando chegaram, a porta estava aberta e reunia-se gente. D'um angulo do caminho sahiram dois homens que as cumprimentaram respei- tosamente.

Quem eram ? Os dois morgados do Souto, o mor- gado velho e o morgado novo, como diziam. Luiz de Serpa, o morgado novo, frequentava em Coimbra o terceiro anno jurídico e tinha vindo passar as ferias ao solar de seu pae. O morgado e o filho cumprimen- taram e passaram ; as meninas entraram no templo para fazer oração.

19

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*

*

Ludovina, ao ajoelhar-se, segredou á irmã :

Eeparaste no Serpa ?

Keparei.

Fez-se corado ?

Tanto como' tu. . .

E Sophia, o diabrete cheio de graça e de vida, aproveitou o ensejo para cochichar ao ouvido de Júlia :

Dize a tua irmã que ver ao espelho da sa~ christia como a romã é vermelha. . .

«

D'onde era que Ludovina e Luiz de Serpa se co- nheciam ?

Perguntem aos pássaros que fizeram o ninho na mesma arvore d'onde é que se conhecem.;. Luiz de Serpa e Ludovina nasceram na mesma aldeia. Viam- se, pelo menos, todos os domingos á hora da missa e tinham vergonha um do outro, que é sempre como as creanças principiam a amar-se. . .

Elle encostava-se ao pai; ^Ua queria esconder-se no chaile da mãe. E eram tão pequenitos ainda, que dava graça vêl-os como dois pombos que se querem beijar e têem medo um do outro. . .

Um dia o morgado novo do Souto faltou á missa

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do domingo. Correu que tinlia ido começar a sua educação litberaria no seminário de Coimbra. Ludovina soube isto á porta da igreja, corou, tremeu e atreveu- se a dizer á mfie :

O Luizinlio foi e não nos disse adeus!

Pouco depois abeirava-se João de Serpa, o mor- gado velho, e motivava com estas razões a partida precipitada do filho:

As creanças são como as aves, morrem-se d'amo- res pelo ninho em que nasceram. O meu Luiz foi fi- cando, ficando, até que não podia demorar-se mais. Levei-o a Coimbra e não fui homem que não cho- rasse. . . Quando lhe dei o ultimo beijo, o pequeno conheceu que o tempo lhe fugia e não teve mão em si que não dissesse :

Ó papá, visitas á Lú-lu.

*

Foram correndo os annos. Ludovina lembrava-se ás vezes do morgadinho do Souto e sentia saudades. O estudantinho de Coimbra lembrava-se dos seus amo- res e tinha pena de não ser rouxinol para vir cantar á janella do quarto de Ludovina não sei que trovas bonitas . . .

Quando elle vinha a ferias, viam-se na igreja. As faces de Ludovina purpurejavam-se intensamente. O rapaz, com certo denodo bebido nos ares de Coim- bra, não se fartava de olhar e nem dava pela missa. O

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morgado velho achava graça a isto e dizia a D. Jero- nyma, ao sahir da igreja :

O meu rapaz nem sabe de que cor era a vesti- menta !

A irmã de Gaspar da Silveira comprehendia-o e sorria-se também.

*

Quando sahiu o Yiatico, estavam as meninas de Yal-de-Kouxinoes ajoelhadas na igreja. Os morgados do Souto, convidados pelo repique do sino, iam en- corporados no préstito.

No momento em que Luiz de Serpa passava, Lu- dovina levantou os olhos e encontrou o seu olhar cora o d'elle. . .

Sophia inclinou-se sobre o hombro da prima e disse com graciosa zombaria :

Olha que não vás perder a conta aos Padre- Nossos. . .

Seguiram as meninas após o préstito. N'aldeia, acompanhar o Yiatico é um dever do nobre e do cam- ponez. Foram pois cantando o Bemdicto até á porta da choupana, que esperava a visita do Senhor.

João de Serpa entrou com o padre para deixat uma esmola á cabeceira do moribundo, como eraj seu costume. O morgado novo entregou a lanterna, que levava, a um camponez e veio cumprimentar aE meninas de Yal-de-Rouxinoes. Foi breve e cerimoniosa a entrevista. Todavia Luiz de Serpa, ao separar-se d(

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Ludovina, podo dizer-lhe baixinho, de modo que as outras íi Ilidiram .. . nSo ouvir:

A'manhã de tarde, suba á Pedra-Aguda para me vêr no Crasto.

* *

Na tarde seguinte sahiram sós as meninas em ca- minho da Pedra-Aguda. Sophia, Leonor e Júlia sen- tarara-se a meio do monte, pretextando fadiga. Ludo- vina foi subindo, subindo até que venceu o cume. No momento, porém, em que ia sentar-se viu um papel mettido n'uma das fendas do marco, que se le- vanta no alto da serra e nome ao logar. Compre- hendeu tudo n'um momento, porque o coração adivi- nha quando quer. Leu. O bilhete dizia assim :

« Por que não nos havemos de vêr todas as tardes ? Acaso não será isso uma necessidade para o seu coração ?

«Suba á Pedra-Aguda, que eu subirei ao Crasto. Yêr-nos-hemos a distancia, mas ao menos vêr-nos- hemos. Eu escreverei o que quizer e deixarei o papel 110 marco. Faça o mesmo, se o seu coração não se oppuzer. »

Durante todas as ferias d'esse anno, ao declinar da tarde, quem erguia os olhos para o marco da Pedra- Aguda via Ludovina, a fidalguinha de Yal-de-Eouxi-

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noes, como diziam os pobres, sentada a ler n'ans livros que viviam de Sonho e Esperança, comquanto fre- quentes vezes desviasse a attenção do que estava lendo para alongar o olhar pelas alturas do Crasto . . . As outras meninas, que ticavam sentadas a meio da serra, asseveravam que ella não lia ; os campo- nezes, ou por ignorância ou por intenção, diziam que a fidalguinha de Yal-de-Rouxinoes gostava de lêr sentada no alto da Pedra-Aguda. G-aspar da Silveira, que perfeitamente conhecia o motivo dos passeios vespertinos da sobrinha, disse d'uma vez ao serão :

O Ludovina ! olha se vais estragar a vista a ler no alto da Pedra-Aguda. . .

Eu?..

Anda lá. Olha que não algum caçador do Crasto tomar-te por uma rola e ferir- te.

Os caçadores teem geralmente boa vista, pro- feriu Christina para valer á confusão de Ludovina, cujas faces se tinham carminado.

D. Jeronyma ouviu tudo e descerrou os lábios n'um sorriso ligeiro.

* *

No alto da Pedra-Aguda estava todos os dias uma carta de Luiz de Serpa. Ludovina, escusado será dizel-o, escrevia também todos os dias. O morgado subia de noite ao Crasto e recolhia a mysteriosa cor- respondência, não sem perguntar ás flores do monte

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que doces monólogos tinlia suspirado iraquella tarde a menina de Val-de-Rouxinoes.

Nos bilhetes que Ludovina recebia vinham ás vezes uns versos suaves e simples, que sobremodo lhe deliciavam o coração amoroso. Na véspera do dia em que Luiz de Serpa devia partir para Coimbra, achou ella, ao lado d'uma carta de attribulada despedida, um álbum, encadernado em folhas de hera habilmente en- nastradas, em cujas paginas estavam escriptas umas canções que ressumbravam amor e saudade... Uma d'ellas dizia assim :

Revoltos os elementos Contra o império do Amor, Granizes, mares e ventos Silvam medonho fragor.

Foge o Amor espavorido Do coro mephistophehco. Lucta, resiste. . . é vencido No meio do estrondo bellico.

Quebra-lhe o vento uma aza, Solta as pennas uma a uma. Foi cahir em cada casa Do mundo inteiro uma pluma.

D'então Amor tem apenas uma aza, e é veloz! Mas cahiram tantas pennas, Que ha penas p'ra todos nós. .

Ainda por noite, á hora em que Ludovina conche- gava ao coração o álbum de folhas de hera, ia ^alo-

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pando pela estrada um cavalleiro que parecia querer fugir depressa ao encanto que o prendia áquella aldeia. \

Era Luiz de Serpa que partia.

Não permitte a Índole d'este livro que me demore por longo tempo a colorir os episódios de tão singela narrativa. Comprehendem-se de sobra as saudades que dimanavam em lagrimas furtivas dos olhos de Ludo- vina durante os dous últimos annos da formatura de Luiz de Serpa, e as tristezas que o namorado acadé- mico recatava no intimo do coração, fugindo de bandear-se com os condiscípulos menos amorosos e menos tristes do que elle.

Quando o morgado do Souto entrou n'aldeia para não voltar mais a Coimbra, correu com insistência o boato do seu próximo casamento com a fidalguinha de Yal-de-Rouxinoes. O certo é que o boato tinha razão de ser; em casa de Gaspar da Silveira anda- vam as meninas todas afadigadas a preparar o enxo- val de Ludovina.

* *

Mais animados ainda eram os serões depois que se trabalhava em apercebimentos de noivado. Na mesa

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onde as meninas costuravam n'umas cambraias e sedas de subido preço, que segredar de palavras mysteriosasl que gargalhadas estridulas! que ale- gria a envenenar um chiste apontado á infallibilidada litteraria da velha mestra !

Não acabava o serão sem o piano responder com notas dulcissimas aos júbilos que alvoroçavam toda a casa. Tinha-se alterado o antigo regime. Até então havia musica duas vezes por semana; mas desde que se fallava em casamento, a felicidade de Ludo- vina precisava de espraiar-se em maviosos concertos. Era ella quem, terminado o serão, ia sentar- se ao piano e fazia vibrar as teclas n'um hjmno alegre como alvoradas de rouxinoes. Sophia, em ouvindo os prelúdios d'uma valsa, não tinha mão na sua alegria que não enleiasse o braço na cintura de Leonor ou de Júlia e não levasse uma ou outra pela sala adeaute em rodopio vertiginoso. Gaspar da Silveira que deveras se sentia contente, como se lhe casasse uma filha, di- zia todas as noites em que Sophia valsava :

Este beija-flor é infatigável!

*

Chegava finalmente o dia -tão anciosamente espe- rado em toda a aldeia. O casamento devia celebrar-se ao romper da manhã. Ninguém se deitou na casa de Val-de-Kouxinoes. Estavam todas as meninas á volta da mesa de costura completando o véo da noiva, que^

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era branco como as neves que, ao chegar o inverno, cobrem os cimos da Pedra- Aguda e do Crasto.

Acabem com isso e vão passar pelo sorano, di- zia de instante a instante Gaspar da Silveira.

E de todas as vezes lhe respondia a mesma can- ceira e o mesmo esvoaçar da agulha sobre as telas delicadas.

Ás duas horas da madrugada principiou a noiva a toucar-se. Que marulhar de braços, á volta d'ella, a offerecerem-lhe um alfinete, uma jóia, uma flor! Gas- par da Silveira andava a passear na sala das visitas e dizia de si para si :

Ainda ha quem pragueje contra o casamento ou quem queira andar a viajar por esse mundo em com- panhia da sua. . . mala !

Estava longe a primeira aurora, quando se ouvi- ram uns sons longínquos de flautas e rabecas. Era o sol-e-dó dos camponezes que vinha acompanhando o noivo por aquellas serras fora. Então ó que se alvoro- tou n'um Ímpeto de alegria o quarto de Ludovina. So- phia, o beija-flôr, apanhou graciosamente o sendal e começou a mesurar pelo quarto adeante um minuete que foi saudado com palmas e gargalhadas estrepitosas e longas . . .

Ao romper da manhã sabiam os noivos de Yal-de- Rouxinoes. Não se conheciam ainda bem as pessoas

í

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áquella meia-claridade que procede o dia, NjIo obs- tante, o véo de Ludovina, fluctuando livremente, de- nunciava a noiva entre a turba-multa de toda a gente do. sitio que tinha vindo, com a sua philarmonica, a acompanhar o noivo, segundo o estilo.

Gaspar da Silveira, que ia na rectaguarda do prés- tito cora o pae do noivo e com não sei quantos outros morgados, n'um momento em que o vóo de Ludovina se alongara fluctuando, parou, deitou a mão ao braço do morgado velho do Souto e apostrophou :

O seu íilho leva um anjo ! Veja bera as azas brancas ...

Yão passados trez annos depois do casaraento de Ludovina.

Leonor, Júlia e Sophia são ainda outros tantos an- jos que enchera de musica e alegria a casa de Yal- de-Rouxinoes.

Júlia, o lirio rairaoso que estreraece ao raenor beijo d'uma viração suave, é a actual ledôra de Yal-de-Rou- xinoes, a que lê, depois de jantar, os periódicos rece- bidos do Porto, desde que a vista de G-aspar da Sil- veira o obrigou a ter óculos, como elle diz, referindo- se aos bonitos olhos negros da sobrinha. . .

Leonor, que tera alguraa cousa de uraa palraeira a remirar-se n'um lago plácido, passa as raanhãs deante do cavallete a retocar os seus quadros cora uraa pa- ciência e um enthusiasrao de verdadeiro pintor.

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Sophia borboleteia do bastidor para o piano e do piano para a pequenina mesa onde recorta as pétalas de umas flores de seda e papel, que lhe saiera das mãos coloridas e bonitas como se nascessem no prado.

As vezes, quando D. Francisca se aproxima, vem uma ironia, um epigramma, um chiste...

Gaspar da Silveira, se está perto, costuma dizer:

Diabrete! São os espinhos... das tuas flores!' E elle, Gaspar da Silveira ?

Yai-se deixando ficar na sua cadeira de braços to- das as tardes e diz com alegre ironia:

O Christina, ó Jeronyma, vocês não acham que temos passeado muito? Fiquemos no quartel-ge- neral e deixemos ir as guardas avançadas a ver se descobrem caçadores no Crasto. Ide, raparigas, ide vós.

Quando Ludovina, a morgadinha do Souto, visita a casa de Yal-de-Eouxinoes, Gaspar da Silveira senta-a nos joelhos e diz-lhe:

E as tuas azas brancas ?

Ainda as tem, responde Luiz de Serpa.

Ainda ?

Ainda, porque continua a ser. . . um anjo-

o EPISODIO DO BURRlxNHO

O burrinho morreu.

J. César Machado,

O festejado auctor dos « Quadros do campo e da cidade» não poz duvida em pegar da penna e historiar o passamento doloroso do burrinho branco no sitio das Marés.

Hoífmann não usou de rebuços para levantar o gato Murr ao apogeu da gloria e o nome do contista allemão associou-se, por assim dizer, ao nome do pobre animal que lhe foi amigo e companheiro nos últimos aunos da vida.

Confesso que não sympathiso cora a estupidez do gato, do gato que tem tanto de bronco como de volu- ptuoso, — mas declaro que me captiva o burrinho tí- mido, humilde e quasi tão dedicado como o cão. Cer- cam-me, porém, certos receios de ir fallar de um pobre burrinho, que não valia trez moedas e não tinha nada de bonito. . .

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Se eu houvesse de fallar de um cavallo árabe, ura ca- vallo de raça, que se deixa dominar generoso pelos caprichos d'uma amasona de vestido roçagante, como a Margarida Laroque do =i Romance d'tim rapaz po- hre==^^ de certo me não veria agora salteado d'estes escrúpulos.

O progresso, como hoje se diz, baniu o jumenti- nho e deu importância ao cavallo. O jumentinho é mais solícito, rçais trabalhador e talvez não menos amigo do que o cavallo ; mas o cavallo é mais fidalgo e pode chegar a ser cônsul quando em mãos como as de Calígula.

Moins vif, moins valeureux, moins beau que le chevat L'âne est son suppléant et noii pas son rival,

escreveu Delille, ao mesmo tempo philosopho e poeta.

Não quero roubar a primasia ao cavallo, mas não queria também que se fixassem n'elle as attenções to- das. E costume dizer-se que o jumento ó estúpido, mas não é tanto como parece. O pobre animal não é rombo, nem esquecido, nem indifferente. Percebe que o seu dono está em miséria e vem trazer cuidadoso á feira a carga que lhe puzeram, embora tenha de marinhar costa arriba pelo mais trabalhoso das serras 6 dos atalhos.

Se o dono se perdeu no tumulto das praças, vai seguindo caminho e não precisa de tio d'Ariadna :

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Reconnait son chemin, son maitre et son hospice,

como também observou Delille.

Quando alguém o toma de rédea, sujeita-se e hu- milha-se, não sem festejar muitas vezes quem o apri- sionou. O cavallo é mais impaciente e, se 6 generoso, quer mostrar que podia deixar de o ser. . .

A missão do cavallo é pois mais nobre. O cavallo tem mais perspicácia, mais valentia, mais elegância de formas. O jumentinho é serviçal, cuidadoso e paciente. O cavallo nasceu para as batalíias, para os torneios e para as caçadas. O jumentinho nasceu para o trabalho inglório e obscuro das aldeias.

O dominio do cavallo vai, porém, a diminuir. De- pois da descoberta do vapor, o cavallo reconhece-se inferior á locomotiva. A necessidade do jumentinho data de longe e permanecerá em quanto no mundo houver serras cortadas a pique, por onde elle se pen- dura paciente, com grave risco de vida.

Refere a Biblia que Jesus Christo entrara em Jeru- salém montado n'um jumentinho. Diz o texto: Ite in castelhim, qnod contra vos est, et statini invenietis asinam alUgatam et pidlum cum ea : solvite et addu- cite mihi; palavras que Jesus Cristo dirigiu aos após- tolos, quando se preparava para entrar na cidade. So- bre a interpretação d'esta passagem divergem as opi- niões, por isso que falia de jumenta e jumentinho. S. Jeronymo, porém, é de parecer que Jesus Christo entrou em Jerusalém montando o jumentinho.

Diz a tradição que fallara o cavallo d'Achilles, se-

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gnndo refere Grocio, mas também nos diz a Biblia, a respeito da barrinha de Balaam, que aperuit Domi- nus os asinae et lúcida est, apesar de sua humilde condição, em relação ao cavallo.

Teve Alexandre Magno o seu Bucéphalo, cavallo de valentia tal, que foi digno de gemer debaixo dos acicates doirados do grande conquistador, mas vamos encontrar Horácio, de jornada para Tarento, bifurcado n'um burrinho cuja anca vergava com o peso da mala e do cavalleiro. Escreve o poeta venusino:

, . ,Nune mihi curto Ire licet inido, vel, si libet usque Tarentum, Mantiea eui lumbos onere ulcerei, atque eques armos.

Sem desconsiderarmos a fidalguia do cavallo, attentemos com bons olhos em qualquer burrinho chouteiro, que pode conduzir Horácio para Tarento e Garrett para Santarém.

O jumentinho que figura n'este episodio interessa- se affectuosamente pelas pessoas da casa e chega a morrer de saudades... De saudades! Ha tantos ho- mens que nem sequer as sentiram nunca !

Se se tomasse o jumentinho á conta de estúpido e indifferente, pareceria haver falta de verdade na his- toria que vamos contai*.

O cavallo conhece a mão amiga que lhe poisou na anca, 6 certo, mas não consegue imitar a dedicação do jumentinho, e na vingança attinge a ferocidade indomável do leão.

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Basta uni exemplo. E' um caso referido pela Li- berte^ periódico francez, de 25 de março de 1870 :

'^Yjngança d'dm cavallo É sabido que os cavallos sào susceptiveis d'affeição ou de ódio, que guardam a lembrança dos mimos que recebem e que poucas ve- zes se esquecem dos maus tratos que lhes dão, apro- veitando-se sempre da occasião opportuna da vin- gança.

«Ahi vae um novo exemplo.

«Um carreteiro chamado R. . ., de trinta annos de idade, ao serviço da companhia geral dos omnibus, tinha maltratado seriamente um cavallo que puxava a sua carroça.

« De volta á estrebaria do deposito, na avenida de Orleans, em Montrouge, o cavallo, notando que havia muita gente, conservou-se tranquillo. A' noite, porém, ás nove horas, vendo que o carreteiro vinha só, cahiu sobre elle, agarrou-o pelo ventre com os dentes, dei- tou-o por terra, e furiosamente o escouceou.

«Aos gritos d'este desgraçado, correram em soc- corro alguns cocheiros, e foi a muito custo que o puderam livrar. Estava coberto de contusões e tinha trez dedos da mão esmigalhados.

Depois de lhe serem prestados os primeiros soccor- ros, conduziram-n'o ao hospital Cochin.»

Que animal haverá mais dedicado e mais leal do que o burrico em que monta o Martinho da Horta, quando volta das feiras e das romarias ?

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O Martinho é o Sileno do sirio, vem sempre a cahir de bêbedo, e o burrinho, com receio de que o dono se despenhe e magoe, caminha aos zig-zagues pela estrada fofa a procurar equilibral-o com estes movimentos desencontrados. A.s vezes o Martinho zanga-se com elle e castiga-o desapiedadamente sem que para isso precise de estar embriagado. O burrico contenta-se com mostrar-se resentido e metter-se a ura canto na corte. . .

Posto isto, venha finalmente o episodio.

A noite é d'inverno, cachopas d' aldeia

Sentai-vos ao lar. Do pobre engeitado que errante vagaea A historia singela desejo contar. Topei-o na serra tremendo de frio, Sósinho, perdido, tão triste, a chorar! Chamei-o. escutou-me; tremia, cobri-o.. Palavras que disse vos quero lembrar I

« Ser engeitado e mendigol Não ter a gente um abrigo, Ir de caminho em caminho Quer de noite ou quer de dia Sem p3o. . . e sem companhia ! Chegar ao cimo do monte E vêr que o mundo é tamanhol Sempre sósinho e pedindo Vou caminhando, vou indo Como se eu fosse um estranho Que não conhece ninguém!

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Do noite sento-nie o scismo ; Lenibra-mo então... minha mâo, Nào a conheci no mundo, Nunca tive um beijo d'ella. Quem sabe se a sua alma Me sorri n'alguma cstrella, Que mais saudosa scintilla?

Seria triste ou alegre ? Teria negros cabellos ? Bocca pequena e de rosas ? Faces lisas e mimosas ? Grandes os olhos e bellos ? Seria pobre ou senhora ? Seria rica ou mendiga ? Eu não tenho quem m'o diga !

Hontem no paço dos Paivas Eram annos da morgada. E eu das sombras da floresta Via a casa illuminada, Bonita, linda, asseada, Toda luz e toda festa...

Abriram quantas janellas A casa dos Paivas tem. dentro havia senhoras, Todas cobertas de rosas, Tão lindas e tão formosas ! Quem sabe se uma d'aquellas Era, talvez, minha mãe ?

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Quem sabe. . . E bailar na dança A estontear d' alegria Sem se lembrar da creança Que mandou expor um dia Sobre as pedras d'um caminho Para que alguém que passasse Lhe desse conforto e ninho !

Passou um pobre, um mendigo, Que me quiz levar comsigo. Oh ! e salvou-me da morte O tio Ignacio, o coitado, Que era também desgraçado..

Yiu-me frio e quasi morto, Aconchegou-me no seio E foi-me poisar nos braços Da sua neta formosa, Que era o seu único esteio, O seu bordão, seu conforto ! Pobre irmã ! ai pobre Rosa !

Tenho saudades agora Da nossa pobre cabana. » Calou-se e n'isto dimana Dos seus olhos ennublados O pranto triste que chora Quem tem os dias contados Pelos ais de cada hora.

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Concentrou-se alguns momentos, Como a pedir á memoria Os traídos da sua historia :

«Sempre comnosco foi mesquinha a sorte Era uma casa pobre, apenas tinha Uma sala, uma alcova, uma cosinha; E por cortejo ao nosso pardieiro

Coroado de colmos,

Uma pequena corte

Ao centro do quinteiro

N"o meio de dois olmos.

Dormia o tio Ignacio na saleta,

Quasi á porta d'alcôva, Como para melhor guardar a neta. Que repoisava o corpo delicado Sobre uma enxerga nova, N'um leito envernizado.

Era a cama melhor da casa inteira ! Dormia a nossa Rosa Em leito de princeza ! Pois era tão formosa I Um mimo de belleza, ..

Eu tinha... o preguiceiro Onde dormia, e como um rei... talvez I Que um resto da fogueira Ficava na lareira Como a aquecer-me os pés.

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Tinha comprado o velho um jumentinho, Na hora em que melhor sorriu a sorte. Quando me presentia abrir-lhe a corte, Era tal o prazer do animalzinho, Tal era emfim o seu contentamento, Que eu nEo sei se elle tinha entendimento

E que valia ao velho sem provento Um burrinho a comer a toda a hora ?

Perguntareis agora. Valeu muito; que o pobre do j amento,

Mal chegava setembro. Vinha á cidade todas as manhãs Carregado com cestos de maçãs. Atrás da nossa Rosa, bem me lembro 1

Quando de noite ella voltava á aldeia,

Levava da cidade Algum vintém com que fazer a ceia.

E que felicidade 1 Este negocio dava algum infresse. Pois se era nosso o lucro que viesse !

Um dia. . . voltou o jumentinho, D'orelha baixa o cheio d'azcdumo, Porque Rosa, bem fora do costumo. Não o veio a guardar pelo caminho !

Larga o velho a chorar muito o tão alto. Que poz a freguezia cm sobresalto.

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Desditosa velhice ! De facto nâo voltou a nossa Rosa ;

E muita gente disso Que todo o mal vinha de sor formosa,

E que faria o pobre do jumento '?

Estirou-se na corte, Como que se tivesse entendimento

E desejasse a morte ! Pobre burrinho, nunca mais comeu ! « E depois o que fez ? »

Depois... morreu!

« O tio Ignacio inda durou seis mczes,

Ralado de saudade

E cheio de revezes ! A final succumbiu o pobre amigo ! Fitando em mim os olhos sem brilho, Chamou-me e disse : « Amei-te como a filho E pésa-me deixar-te sem abrigo. Devem-se os alugueis ao senhorio. Vende tudo, mas paga ; não lh'os negues. Depois irás soffrendo a fome e o frio onde a sorte queira que tu chegues. . . Se vires algum dia a nossa Rosa, Quero que tu lhe dês o meu perdão. Era tão innocente e tão formosa, Que se deixou cahir na perdição ! E dize-lhe que, á volta da cidade, Morrera o jumentinho .. de saudade! »

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Disse e passou. Eu fiquei no mundo, Como á beira do mar, sem vêr-lhe o fundo. »

Não mais mo contara. . .

Termina o serão. Passou a tormenta ; metter a caminho. Que sempre na mente tenhaes este conto Do triste engeitado, do pobre burrinho.. .

FIM DO 1.0 VOLUME

índice

Pag.

I o ninho das andorinhas 5

II Um anjo 25

III Doida pelas rosas ,.:....

IV Morrer a valsar 45

V Na véspera de S. João 53

VI A folha verde 63

VII A lenda da barca 71

VIII As duas fitas 81

IX No Bussaco 107

X O morgado do Urgal 129

XI Os sinos d' Alpendurada l-tõ

XII Historia azul 157

XIII A beira d'um berço 173

XIV O catre do bispo 187

XV Herbario. . . d' uma flor 205

XVI Armandinha 219

XVII As flores 225

XVIII Uma pagina triste 267

XIX Azas brancas 271

XX O episodio do burrinho 301

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PQ 9261

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Pimentel, Alberto Seara em flor

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UNIVERSITY OF TORONTO LIBRARY

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