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JOSÉ VIEIRA

(Chronica da Beira Alia)

... a mais portugueza e a mais bella de todas as nossas provindas.

FIALHO D' ALMEIDA

Revisto, dos Tvibunoes

Bua Juiio Cczar, 55 - Capital Federal

191 3

Do autor :

A-Cadeia Velha 1 vol

A publicar:

rviaria cio Amparo (romance)

Historia de Pedro Malasartes

THE LÍBPvARY «

BRIGHAM YOUNG UNIVERSITífi PROVO, UTAH

Cl aaoaz/kpi^e* <x& Caz/oavrto

NA QUINTA DO GIESTAL

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( Carta a H. Castriciano )

E desejei ouvir falar o portuguez ■— Vinha can- sado da Torre de Babel em que se transformam os hotéis da Suissa no inverno, com o francês na bocca de russos, inglezes, hollandezes, polacos, allemães, sérvios, gente de quinze paizes diversos, como verifi- cámos em Château d'Oex.

Depois da confusão de gostos, idéas, alegrias, e queixas de sanatório expressadas por physionomias tão exquesitas, pezar da neve è do doce sol da mon- tanha, entrar numa aldeia onde se falava a lingua de* minha infância, de minha cidadesinha longínqua do> Brasil, foi-me corno uma resurreição. O Sud-Express parou numa estação. Defronte da nossa carruagem dous garotinhos de calça comprida e boina brinca- vam com a agua dum repuxo. Logo que nos viram correram para nós extendendo as boinas nas miãosi- tas molhadas :

Ah, senhor, dêJm'um* esmulinha.

Era triste. Tive saudade das paragens de cami- nho de ferro suissas, onde, ás vezes, alguma mulher

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nos offerece um raminho de narcisos da primavera para que lhe demos um sou e ha quem chame a isso vexar o viajante...

Descemos na alfandega. Como não pude dar no figado de alguém a facada aduaneira que, o Eça acon- selhava a quem houvesse de saltar em Portugal, e os sicários de Villar Formoso não acertaram em abrir- me a mala, arrombaram-na, e mãos pesadas e pei- tudas, uma das quaes sangrando, porque o bruto ar- rombador se feriu com o martello, remexeram e su- jaram a minha roupa. O conductor do Sud-Express olhou-nos, a todos, apiedado. Seu olhar recordava as alfandegas de França. Em qualquer estação de Paris, venha-se da America ou do norte da Europa, abre-se um volume de bagagem, de dez que, por- ventura, traga o passageiro, e nada mais. Em Lo- sana, ignoro o processo alfandegário, por ter entre- gue o conhecimento ao commissario do hõ-tel.

Eis, meu Henrique, como comecei a ouvir a nos- sa lingua desejada por creanças mendigando e por gente de aduana, de ganância e desconfiança •não comparáveis, de certo, ao que contas dos tur- cos na alfandega da Terra Santa.

Mas estou em Vizeu, numa quinta formosissi- ma, entre cantigas. E' em Abril. Ha flor e gorgeio por toda parte. Divirto-jme em seguir a um melro que descobri ao da casa dos bois. O pandego é negro, tem o bico amarello, parece uma graúna, e canta nos buxeiros do tanque, nos ramos da noguei- rá, pelos penedos da matta. Ouço-o e, como elle me delicia pela novidade e belleza do seu canto, quero velo mais perto, approximjo, Henrique, o melros,

g

creio, desde que o padre cura do Guerra Junqueiro lhe engaiolou os filhos, entrou a descrer dos homens. Pois eu nada mais desejo senão contemplai- 0, e elle parece vêr nos meus dedos pendurados, traços d'al- guma gaiola traiçoeira. Terá talvez razão, o jovial ma- drugador. Antes de eu vir, morrera outro a mi- nha espera. Pretenderam que eu o tivesse, escraviza- do para meu goso, e, uma manhã, foi encontrado morto o pobrezinho sem que eu o visse. O melro faz pensar sempre na gaiola. Porque não haverá pás- saro mais oommunicativo quando canta.

Ouvimol-o e falamos delle como dum camarada. E' um gorgeio largo, franco, humano. Na quinta do Giestal, de manhã á noite cantam pássaros. Se nos abeiramos do pinhal, emquanto aspiramos a resina bemfazeja, ouvimos além o cuco annunciador do bom tempo. Se nos distrahimos olhando alguma paiza- gem, um pinheiro fêmea ao do cemiteriozinho de Vil-de-Moinhos, os malmequeres da estrada, o centeio ondulante ao das ervilhas do campo, o pomar todo rebentado em flores, a vinha a reverde-, cer, os lirios roxos florindo sobre o muro, logo nos muda a attenção o rouxinol, pequeno, pardo, deli- cado, indomável, com um fôlego mais amplo que o Caruso. O rouxinol não canta á noite, como costu- ma. Porém, pelo dia, canta ao desafio, e são sempre dois ou três. Canta o primeiro num galho de ma- cieira. O outro responde embalando-se num galho de marmello. E, por fim, sobe terceiro canto como vindo do seio da terra. Porém não é, vem dos bu- xeiros do tanque, onde elle sonha esquecido saudando a primavera. Has de vêr que isso é bello. Mas, quan-

10- do sobe o canto do melro, uma quasi gargalhada bobemia, porque o melro tem ares de rir do lyrico rouxinol, aquella variação que nos puzera era rever ie, dfesapparece, e ficamos repentinamente regosijados como da vinda imprevista de alguém que nos ale- gra e endominga a vida. Quer-se entãoi vêr o feiti- ceiro, corre-se aonde elle poisa, e oi melro, jovial do Guerra, esbelto, primaveril, acovarda-se, foge espa- vorido riscando na manhã limpa um célere voo ne- gro.

Ah ! meu Henrique, que suave «retiro» seria Vi- zeu, a quinta do Giestal, com os seus melros e rou- xinoes, os caminhos cobertos de trevo e malmeque- res, os lyrios florindo entre as couves, os velhos car- valhos portuguezes reverdendo, o cantarolar das ca- chopas pela estrada e mesmo o glu-glu deste peru tmeu vizinho e condemnado á morte, que protesta ou, inconsciente, festeja o sol, que seria toda esta paizagem maravilhosa de Portugal, se não fora o vento. E' preciso ca vir para conhecer ventos da, Beira-Alta. Nem Ouchy em fins d'inverno. E' uma ventania desolada, plangente, cortante, sob um céo claro e azul, numa cidade onde inda ha reminiscên- cias dos romanos.

A flor da giesta

No oitão duma antiga casa de pedra, entre os mtiros baixos de duas quintas, corre uma immunda azinhaga onde a gente das aldeias defeca olhanda. a quem passa na estrada. A' direita, sobre os pene- dos redondos, refloresce agora o giestal.

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A giesta é um arbusto que lembra o relógio dos campos do norte no Brasil, mas de ramagem menos tenra e flor toais delicada e cheirosa. A flor é pequenina e branca. Abre sobre o rochedo e ali esplende e aromatiza o ar. Durante o inverno mirra e fenece nas negras pedras ; porém, voltando a pri- mavera, os cabeços ásperos rejuvenescem e ella tor- na a branquejal-os.

Pelos penedos redondos dentre as duas quin- tas, ha malmequeres, a roxa assoagem brava, pa- poilas tão lindas que as mudam para jardins; a her- va cresce seivosa multicolorindo-se com formosas corollas; mas coisa alguma sobreleva eto belleza simples essa florinha branca prodigamente espalha- da nestes montes pedregosos da Beira. Eu conhecia a giesta apenas como flor de rhetorica, sem perfu- me e sem cor, muito poética embora nos poetas ly- ricos de Portugal. Ao pisar aquelles penedos, por uma clara, doce manhã, primejro olhei a encostai onde as camponezas cavavam a terra cantando. Vi- nha do valle um marulhar surdo de agua corrente. Era a Azenha, baixo, um desvio, do Pavia riachan- do entre pedroiços. Além a egreginha d^bravezes, muito alva em meio da casaria caiada, recortava- se na faixa verdejante dos pinheiros* sob o ceu azul da primavera. ~

E começava de cheirar tudo aquillo. Era qual se a agua a descer entre as pedras, ou o canto das raparigas cavando a vinha acordasse os perfumes mais suaves daquelle alto abandonado. Baixo a vis- ta. A meus pés erguiam-se as mimosas flôrinhas e vinha delias, delias, o perfume do monte. Na]

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èua simplicidade e modéstia de flor de rochedo, dava a giesta uma tão repoisante idealidade ao extranho sitio, que sahi a procurar quem ma explicasse. Adean- te uma velhinha empunhava uma podôa. Tinha ao lado um velho canastro esburacado, cheio d'erva. Que flor era aquella ? perguntei.

E' a flor da giesta, meu senhor.

E a velhinha curvou-se novamente para cortar a flor da giesta. Naturalmente a flor da giesta ia enfeitar alguma mesa d 'oratório, para, com outras flores da primavera, dar perfume aos santos e ás preces, pensei. E comprehendi então a poesia da giesta nos poetas ly ricos de Portugal.

E está a cortar p'ra vender ?

E' sim, meu senhor.

Eu continuei a olhar e aspirar; ella continuou a ceifar. SubitOi ergueu-se :

Meu senhor, não é o dono destes sitios, não ?

Não, não era... Ella se sentiu á vontade. E con- tou que cortava a giesta, a flor da giesta, a minha flor ideal daquella esplendida manhã, para estrume. Levava-a, espalhava-a na loja dos bois, os animaes cortia:m-na a urinal-a, a pisal-a, e, uma vez bem cor- tida, ia a giesta a vender, para estrume... Fiquei ain- da a olhar e a aspirar silenciosamente. Creio que a velha comprehendeu a minha decepção ; porque, er- guendo a poHôa na mão callosa, accrescentou, como um consolo:

A giesta também serve para os cavallos co- merem, meu senhor. \ é

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A Primavera

Em fins de Fevereiro, quando o sol puzera grandes manchas de pedfa na neve da montanha, chegou á Suissa e correu todo o continente um vento de tempestade. Depois choveu. Dois dias a chover ; em seguida, a ventania. O vento era o f oennf um sopro ruidoso e quente, o simaun, o siroco, tor- cendo ás arvores os ramos, espedaçando as vidra- ças e tangendo a recolher os passeadores da rua e do campo. Em tal aldeia elle desmontara um wa- gon contava-se ; adeante rolara, precipitara um penedo. O fcíenn, onde passava, devasta. En- tretanto, os hoteleiros e os médicos acalmavam-nos : <<E' mudança de estação, é a primavera que vem...» A estação mudou, a primavera veiu, afinal. Nesse dia desejado da sua vinda, a manhã limpa clareou os cimos nevados, illuminou os galhos nús e ondulou em saphira nas aguas do lago Leman. Ao dia seguin- te, porém, o mesmo vento terrível regressou, com a chuvarada e, na taassa d'agua tranquilla da véspera, ergueu essas grandes vagas borrascosas que um poe- ta suisso baptisou de «leões verdes»... Desde então, por toda esta Europa reflorescente, a intervallos três^ quatro dias de bom tempo, chove e venta. Fal- ta menos que uma semana para findar a primavera, e, hoje mesmo, mal pude abrir a janella sobre os caminhos alagados. A natureza cumpriu, de facto, a sua funcção de renovar em verde folhagem e co- rollas frescas r amarias e terrenos. Quando o sol ap- parece e conseguimos, na scintillação e alegria da luz, palmilhar as estradas ou simples carreiros, aonde

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vai a nossa vista, alcançamos extendaes magníficos de malmequeres, campos de trevo repontando em espigões vermelhos, corymbos amarellos e roxos a emergir das moitas verdes, a terra toda abrindo em flores e as flores, sob o canto das aves resurgidas, a oscillar aninhando borboletas.

E' a época do plantio. As quintas enchem-se de raparigas e cavadores, cava-se a vinha", ceifa-se a erva, o arado sulca as terras descampadas, e é can- tando que as cachopas curvam ao sol para mondar o trigo. Maio. Nas sortes lavradas brotam os ba- tataes. A ervilha acama as vergonteas, numa como indolência, florida em branco e em roxo. pen- dem os cachos pequeninos á sombra das parras pro- tectoras. Nas cerejeiras despetaladas vão- se colorindo os botões dos fructos lindos. Mostram as ginjas man- chasinhas sanguíneas crescendo para a maturidade. Em baixo, nos polmares, as macieiras cobriram o chão de flores alvas. Também se desfloraram os mar- mellos, também ias pereiras. No chão, as flores emur- checem, está em cima a fructa a apontar. Quanta côr, que extranho oiro* abriu o tremoço entre as vi- deiras por empar ! passa na estrada um carro. Vai cheio de mulheres, que batem castanholas; nos fueiros ha ramos de mimosas. A' frente, um labrego guia os bois vestindo carnavalescamente um saiote encarnado. E todos a rir, todos, sob a soalheira, a cantar o fado em coro.

A alegria emana das coisas e, brilhando e vi- brando, comlmunica-se. Aquelle rochedo> que o in- verno molhara e resfriara, anda a aquecer no seu jevestimento róseo de musgo florido. A penedia co- briu-se de giestas em flor e papoilas setinosas. Cada

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mattagal se transformou num jardim. O eucalypto floriu. Seu vizinho o carvalho, annoso, grave e ve- nerado, enramou, remoçou. não tem flor o pi- nheiro. Mas o pinheiro, mesmo assim, comprido e esguio, com a sua pantalha de carumas sussurrantes, ostenta-se como uma enorme, estupenda rosa verde que cheira a therebentina.

Vêem-se nos aguaçaes, nas poças e nos tanques, em reflexos, as cores características da estação : uma figueira verde-escuro balançando-se para a agua quieta; a assoagem, roxinha, a tremular; os malme- queres amarellos; corollas rubras, azues e brancas, e, ao canto, um grande lyrio perfumoso emurche- cendo a amethista das pétalas. Até a couve floriu. De em meio ás grossas folhas levanta-se um rami- Ihete de cândidas florinhas delicadas. A quadra loi- ra que alli ondeia, é a cevada a amadurecer. Os pin- tasilgos la poisam e, poisando, parecem mergulhar num lago áureo. Ao lado está outro indolente on- dear, menos velludoso, menos basto, esverdeado, qua- cinza. Como cresceu o centeio! Vistas de cima, as espiguinhas buliçosas fazem pensar numa nuvem de gafanhotos baixando sobre algum campo de arroz. Tudo é cor e revivescência, é perfume e é musica.

Meio dia. O sol côa-se através as ramagens. Sen- to.-m.-e a uma pedra ao do carvalho. Abro ura poe- ma, vou a ler, leio dois versos. canta o rouxinol no ramo da espinhosa. Que poeta valerá este minús- culo cantor da primavera ? Fecho o poema, ponho- me a ouvir. Como agora te entendo, Jean Jacques vagabundo, como agora te comprehendo, oh scis- mativo enamorado da paizagem! Se tu ouviras, Rous-

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seau, os melros de Portugal... Estes negros músicos

alados, com as suas maravilhosas «risadas de crvs-

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tal», a sua canora e franca jovialidade, poderiam abrir

aulas de melodia humorística. Eil-os a rir na luz plena do dia. Passa o lavrador, sachola ao hombroi, cantarolando. E o melro, sem o ver, debocha-lhe o chapeirão acabanado. Porque o melro, a assobiar, debocha até o sol. O cuco, este, marca as horas. Tão solitário, ninguém o ; mas como: que doçura elle annuncia as estiadas ! Está no espesso da pinheira a rola brava! Eil-a a gemer. E' uma saudade talvez. O pardal, ao contrario, pula alegre. Embora feio, mJettediço, faz-se sympathico. Sempre a caçar, sem- pre a comer, o glutão. Que differença da alvéola, altinha, azas cinzentas, um collar preto! A alvéola tem certo arzinho de mulher elegante, se não pia e não salta, se descansa contemplativa na hera dos arre tos. Voltasse hoje a Portugal o nosso Casimiro, teria por que repetir que a Primavera é «a estaçãjo das flores», e também dos gorgeios. Chove tanto, porém... Quando nos queremos embriagar, num go- so pantheistico, da poesia das coisas, e projectamos um passeio pelo pomar, ou sob o pinhal, com o> nosso poeta, o nosso mystico preferido, o ceu carrega-se de nuvens pardas, a ventania entra-nos em casa e enclausura-nos.

Dentro em pouco a primavera findará, e sem- pre a chuva, sempre o vento. A's vezes ha sol, quer- se sair, o vento não o permitte. Ha dois dias seguidos 3e vento brutal. Quando se crê que vai terminar, cai uma chuva de pedra, ou troveja. E é assim por toda a Europa. Em Pariz, máo tempo.

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Na Itália, na Hespanha, na Allemanha, chove. Henrique Castriciano escreve-me de Ems : «Ha

oito dias, preso pelos aguaceiros. Que saudades do Brasil». Quero crer que mademoiselle Débora, tão pallida e sentimental na sua capa de pelles sobre a neve, não terá gosado as magnificas noites azues de primavera na sua frigida Rússia. Porque mesmo os lagos de Tell se agitam em revolta, e os sinistros «leões verdes» do vate suisso, era vez dos barquinhos a dois remos, percorrem ainda, em tropa desordena- da, as famosas aguas lyricas.

O luxa das meias

E' hoje dia de feira em Vizeu. Veiu gente da aldeia, a vendas, a compras, e quem pôde metteu o seu par de meias, os seus tamancos ou as suas san- dálias. Nos dias ordinários, estas mesmas mulheres de lenço á cabeça e longos chailes caindo dos om- bros sobem com o almoço de seus homens, o cabaz cheio, as mãos sujas, os pés descalços. Nasceram as- sim, assim se criaram, assim vão .vivendo. Sapato para ellas é luxo, como carne. Usam-n'os em dias de festa, em dias de feira. Commumente, as plan- tas resistentes calcam a terra quente do verão e mo- lham-se no riachar das chuvas, pelo inverno, ainda quando o frio gela a agua nas fontes. E' invejável, no entanto, a saúde dessa gente. Cavam1 a terra de sol a sol, ou sob a chuv^ada, ou á ventania, ti- ram-se da areia quente para entrar nos córregos la- macentos das regas, e nem lhes doe o corpo. Ao

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contrario, ganham em vigor e em cores a ponto de serem sempre rosados de cara e de pés. Apenas esta vida meio. animalisada' os faz grosseiros d'aspecto, demasiadamente musculosos, as mãos grandes e cur- tas, os pés* largos com grossos dedos e calcanhar chato. As pernas das camponezas perderam o en- canto das linhas, a naturalidade das curvas. Por isso talvez as raparigas mostram-nas despreoccupadas, como se trouxessem desnudas simplesmente as mãos ou o rosto. Para furtar a saia á lama e a erva dos caminhos, sungam-na. prendem-na, á altura dos rins.. Ficam pittorescas e menores nesse arranjo económi- co. Quando alguma traz a saia descida e os pés meia- dos mettidos em sapatos ou tamancos., ou se trata duma princezinha d'aldeia muito mimada, ou duma pequena proprietária a negocio na cidade. Todas, porém, possuem meias. As medas são o adorno di- gnificador nos domingos de romaria. Ha sempre ao fundo da arca um tostãosinho reservado para colo- rir de rosa ou azul essas grosseiras pernas aldeias. Nos dias de feira, nem as princesinhas ou pe- quenas proprietárias calçam meias. Velhotas vaido- sas, que vêm a vendas, com o canastro repleto, nã-oi dispensam as suas meias. Na vinda, eil-as pisando forte na estrada com os tamancos usados, uns ta- mancos bicudos com palmilha de lã. vermelha. De regresso- a elegância ,acompanha-as somente até o èxtremoi da cidade. Acabada a rua, dizem adeus áquelle barato luxo de pés, ficam mulheres da aldeia, falantes, apressadas e descalças. De minha janella -tenho assistido, á volta da feira, a esse des- calçar de meias e tamancos cheio d 'imprevistos. O

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cimo da estrada abre- se numa quelha, entre um por- tão de ferro e o muro baixo duma quintarola sob oliveiras. Em frente, começa a Avenida, que tem á esquerda a antiga rua da Cruz de Pedra. Elias des- cem da «praça», o mercado, pela Avenida e pela Cruz de Pedra, lentas, pensativas, ao sol. Debaixo da oliveira mais próxima, descalçam-se em grupo. Hontem choveu. La vem uma, livre, devagarinho, limpando os tamancos. Outra, nova, de esplendidas cores, pôz ura no arreto, ergueu despreoccupada- mente o vestido, desatou a liga, uniu as meias por um e, com este atilho, sungada a saia, amarrou-a á altura dos rins. Chegaram as conhecidas e. foram libertando-se de meias e tamancos, do mesmo gei- to. Agora a^ primeira quer ir-se. Inda uma está-se a amarrar^ Detem-se. Promptas todas, afinal. E, como não hão tie conduzir nas mãos os tamancos até a aldeia, põem-nos no cesto, o cesto da camp;onia de Portugal, sempre coberto com uma toalha d'al- .godão branco. E' sobre a toalha, muitas vezes a toa- lha que cobre o almoço do marido, que, de torna - viagem, conduzem os tamancos, mesmo, como hoje acontece, os tamancos jcobertos de lama.> Quando se havia posto a caminho a maioria, aquella que chegara limpando os seus, nervosa, gritou. Olá! Esperem, raparigas.

Ella demorava apenas por isso : esforçava-se por enfiar os tamancos nas meias, o que por fim conse- guiu. Concluida a operação, guardou os dous boju- dos saquinhos pretos na canastra sobre a alva toa- lha. *

20 Historias de cobra

O pinhal, que, nos dias de sol, era o meu gabi- nete de leitura, mudou agora num pequeno bosque sinistro. Uma destas manhãs, ia eu a subir, quando ouvi bolir na erva. Attendi, reparei. Num claro doi lagedo, á beira dum tojal, mexia-se uma grossa co- bra negra malhada de verde. Fugimos ambos ra- soavelmente medrosos um do outro. A' noite conta- va-se o encontro, e uma senhora que ás vezes joga comnosco a bisca, sisuda, ar de quem instrue e certo vagar methodico de professor, virou-se para mim, tomou a palavra e discorreu assim :

«A cobra ataca de preferencia os homens. O lagarto não; o lagarto ataca ás mulheres. A cobra é um bicho de muita vida. Por exemplo : corta-se aqui o rabo a uma cobra; o rabo cortado salta com tanta força, que vai cair no tanque. (O tanque dista da sala uns trinta metros). Muitas vezes uma cobra está morta e ainda bole. Uma occasião eu oassava

m

por baixo duma cerejeira. O caseiro disse :

Por ahi não, minha senhora.

Olhei. Estava a cobra pendurada num galho, apodrecendo. Pois dava cada guinada, que até me arrepiaram as carnes. O lagarto é menos veneno- so. Um lagarto evitou que uma cobra se enrolasse na perna dum homem. Pois não sabia ? A cobra ati- ra-se a uma pessoa e procura -logo a perna. Enrola- se então duma maneira, que sae a fogo, ou ferro em braza. A mãe da Mariana de que morreu ! Mor- reu duma cobra se lhe enrolar na perna. Aquillo aperta, que é uma dor ver.

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E o* caso do homem, o lagarto ?

- Foi assim. O homem estava dormindo, e a cobra chegava-se em busca da perna. Nesse mo- mento, o lagarto picou-o no dedo do> pé. Elle acordou com a picada, deu um salto, e a cobra fugiu. E nin- guém sabe se ella queria a perna ou a bocca> Porque quando se está dormindo com a bocca aberta, ella entra pela bocca e sae quando acaba de comer o figado.

Mas comer o figado ? !

-7- Comer o figado, sim. Pois se eu vi !

Era um sujeito aqui da Cruz de Pedra. Foi pre- ciso matal-o; porque a cobra não sahiu nem a fogo. Quando acontece um caso destes, mata-se logo o homem, porque é preferivel matal-o a assistir áquella desgraça. Que horror, meu Deus ! Ella mette-se de bocca a dentro, fica com o rabo balançando do lado de fora e vai direitinho ao figado.b

Dizem que se pode formar uma cobra dum ca- bello de mulher. E1 até muito simples. Arranca-se um cabello com a raiz. E' indispensável ser arranca- do com a raiz. Mergulha-se-o depois numa bacia d'agua e muda-se a agua todas as manhãs até que o cabello se vire em cobra. Em Penacova aconteceu uma desgraça por causa de cobra de cabello. Isso eu não- vi, isso não; mas contam. Deu-se assiim. Uma senhora de Penacova arrancou o cabello da cabeça, pôl-o dentro da bacia dagua e todas as ma- nhãs lá ia vasal-a e deitar outra nova. Ao cabo de .três semanas o cabello se movia e no sitio da raiz formava-se a cabeça com dois olhitos verme- lhos, bocca e dentes. Um dia a senhora esqueceu-

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se de mudar a agua. Na outra manhã, quando ap- pareceu, a cobri ta olhou- a e saltou-lhe na cara. Foi uma dentada. Ao anoitecer, a pobre senhora mor- ria».

Ella ia continuar; mas, da mesa redonda, per- guntou-se :

Entãoi ? Não vai hojie a bisquinha ?

Abancámos para a sueca. Um calçamento memorável

Acabaram de desmontar o talvez centenário cal^ çamento da pequena ladeira que passa em frente á casa da quinta. E' uma subida de trinta metros, ■e foram precisas duas semanas ao desmonte, em- pregando-se nesse serviço muitos homens e muitos bois. Era um calçamento de penedosr á moda an- tiga, calçamento para durar até a consummação dos séculos, e a força dos homens e dos bois o pode remover. Os homens deslocaram as pedras a alvião, braços rijos, empuxões hercúleos e bovina paciência. Os bois, num trenó em forma de forquilha, grande e grosso, a velha zorra portugueza, conduziam as pe- dras, ás duas, ás vezes uma so, para além, aonde mu- lheres as reduzem agora a brita para calçar a nova avenida. Tão grandes eram as unidades desse calça- mento singular, que um proprietário exigiu da muni- cipalidade, como pertencente á sua casa, a lagea re- tirada de ao duma soleira. Quando os trabalha- dores, ás duas horas, recomeçavam a faina, porque aqui ha um repoiso de meio dia ás duas, os gemi- dos correspondentes aos primeiros arrancos dispen-

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savam Oi relógio da Sé, tão alto os sopravam cllcs impellindo os penedos. Saia-lhes um uai! puxado e tão demorado, que, por elle, se adivinhava o esforçoj de cada peito. Para chamar um alvião* apenas, fa- ziam-se indispensáveis quatro^mãos. Do lado. opposto, outras quatro sustentavam o pedrão no deslocamento vencido, e desta maneira mourejavam todos até vi- ral-o. Vinha então a zorra. À alvião> e pulsos va- lentes, punham-lhe em cima as duas massas, e la: iam os míseros bois a arrastal-as, vagarosos,' pesar de aguilhoados, até o. planai to onde se instalaram as britadeiras. Uma manhã, voz de camponez rudemen- te berrou :

Bai fogo!

E não tardou, em' frente á casa, um estrondoí de tiro de canhão. Sustos, correrias e mais um' vi- dro da janella partido. Bai fogioi queria dizer dy- namite. Porque fora necessário* recorrer á dynamite para reduzir a resistência d 'um' dos penedos.

A menor das pedras desse calçamento pesava arrobas. Vai elle brevemente ser -substituído. Não sei se por effeitos da Republica, se para não occu- pàr e suar demasiado aos futuros reformadores de Vizeu, o novoi calçamento será de brita, pedrinhas de quinhentas grammas ou pouco mais. E vê-se que será isso bastante a esta pobre ladeira secular e indai pagã, r

A carreteira de Farminhão

Quem vir a Constança arfando sob a canastra de queijos, não adivinhará o esforço, o> heroismo*

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obscuro que representa essa mulherzinha magra e triste. Constança é a carreira de Farminh;ão.

Eis tudo para quem conheça esta profissão nas povoações de Portugal. As carreteiras como Cons- tança são empregadas* de casas ricas, que vão ás cidades vender ovos, gallinhas ou fructa e fazem compras, recados e colhem informações. Esta via- ja duas léguas; aquella quatro, aquelFoutra seis. O salário das extraordinárias creaturas regula um1, dois vinténs fortes por légua. Ha carreteiras de verduras, de pão:, de batatas. Eu as vejo passar todas as tar- des na estrada, bamboleando os quadris, conduzindo a enorme canastra transbordante, suadas, resfole- gando, os seios num1 desesperado vai-e-vem de can- saço. Se levam! couves, ou alface, parecem cobertas de monstruosos chapéus de folhagem. E esses ex- tranhos chapéus variam. Agora ha alguns tão lin- dos ! Sião as cerejas, que começam, chapéus verme- lheis. Mas a chamar-lhes chapéus,' vêem-se chapelões de batatas, chapelões de broas, todos alto,s e todos pesadíssimos.

A rapariga que faz esses carretos, ganha trinta réis, um! vintém, conforme a distancia, mas, não obs- tante, na volta, caminham ás cinco, ás seis, de bra- çoj íd:ado, cantando o fado alegremente pelas, ruas.

Ser carreteira ae quinta é funeção- mais im- portante, uma espécie de emprego- effectivo, que pode passar de mães a filhas por herança. E' O; caso de Constança, que vem de Forminhão, a Vizeu, duas léguas distante, por caminhos velhos, obrigada á ladeira grande que segue da ponte de João Mutelloi a Serzedello, qom uma arroba de queijoi á cabeça,

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vende o queijo e torna pesada de encommendas, para ganhar um pataco. No tempo das queijadas, como a producção é abundante e os queijos de Far- minhão limito procurados, faz varias viagens por semana. Um dia mesmo traz ovos, outro frangos, ha- vendo sempre o que levar da cidade. Escasseando oi queijo, reduz-,se o trabalho a uma venda semanal, e, o que mais surprende, ella consegue viver com os dois vinténs, contente te (invejada no seu «povo».

O dia certo da venda é a terça, o grande dia commercial de Vizeu, o dia da feira. Nas familias que a conhecem, a esperam. E' o dia de vir a Constança e guardam-lhe alguma coisa de comer. Porém offereçam-lhe maior soldada num sobrado* da rua Direita, ou em Maçorinho, offereçam-lhe passa- gem para o Brasil, que ella preferirá continuar em Farminhão.; porque o pataco de Farminhão é o seu destino, é a sua conquista na terra pedregosa da Beira. Sua miãe era carreteira; sua avó, carreteira. E filha e neta de carreteira, que sorte melhor que continuar a profissão dos antepassados na terra do berço, mesmo que essa sorte a faça palmilhar qua- tro léguas, duas de vir, duas de voltar, por um pa- taco !

Constança, quando nasceu, achou-se ao pés da casa dos Barros de Farminhão; entendeu-se vendo a mãe , sair para Vizeu, embrulhada no seu chaile de lã, com o pesado carrego á cabeça; e a velha, para lhe contar, lembranças de menina, guardava a mesma curta e simples recordação : a mãer< saindo de madrugada, envolvida no chaile, com um canastro á cabeça. Apenas avó, filha e neta, respectivamen-

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te aos Barros, cada qual presenciara sua historia, dif- ferente.

A avó conhecera um casarão com horta3 pomar e cinco fidalgos solteiros filhos dos mesmos pães. A mãe encontrara um dos fidalgos, Francisco de Barros, casado, reproduzindo-se saudavelmente numa filharada bem nutrida. Constança vira já, na casa, a velhice de Francisco Barros, a velhice- da esposa, alguma fartura e a alegria das filhas solteiras do casal. Francisco de Barros morreu num dos últimos invernos, e Constança, agora, serve a uma das herdeiras, que, envelhecendo, se adaptou aos mis- teres sertanejos da nobre casa. Nos dias de feira, ella chega manhã cedo embrulhada no seu chaile á casa de Farminhão. Dão-lhe uma desjejua de pão com aguardente, e eil-a a caminho, os pés descal- ços, os seios a arfar. Nas famílias frequezas, fez-se uma creatura sympathica, meio victima, meio heroi- na, boa sobretudo. Porque, o trabalho, a profissão a accommodou numa seriedade e simplicidade commo- ventes. Por isso arranja novas rações de pão e aguardente, pequenos obséquios, jantares, casacos, saias usadas e vestidinhos para os filhos;* pois Cons- tança, como toda portugueza da aldeia que se pre- sa, e ainda as que se não presam, vai arranjando uma descendência robusta, que possa resistir ás chu- varadas e ventanias da Beira Alta.

E você vai fazer d 'alguma dessas creanças carreteira, para vir de Farminhão^ a Vizeu por um pataof. Oh Constança ? perguntaram-lhe um dia na quinta.

Si Deus quizer, minha senhora.

27 Carpus-Christi

Maria Biquinha, uma velha que tem as palpe- bras roídas de sapiranga, apanhava, na rua, bosta de boi para vender, e na janella, em cima, as senhoras conversavam sobre se, na verdade, aqueila quinta- feira era dia de Corpo de Deus. Pois se os calce- teiros continuavam os trabalhos da avenida, o çom- mercio abrira e não houvera missa cantada! /

E' sim, minha senhora esclareceu a ve- lha erguendo os olhitos vermelhos Em Vil de Moinhos guardaram o dia, ninguém trabalhou.

«Ora, faíou-se em seguida, como a Republica mudou os costumes! Noutro tempo, que festa era a de hoje ! Fazia-se a maior procissão de Portugal, em Lisoôa, no Porto, em Vizeu, por toda parte.» E, a três vozes, recordaram a soíemnidade dessa pro- cissão famosa. Vinham a Vizeu as cruzes de sete freguezias. Cada freguezia procurava triump.iar das outras no adorno da sua cruz, pendurando-líie aqunlo que de mais raro se encontrava na estação : milho, cachos, figos, peras, maçãs. Ninguém sabe onde iam des cobrir fructa entre Maio e Junho para enfeitar as cruzes. Uma semana antes da quinta-feira, o ca- vallo mais possante deixava o serviço ordinário e passava a ser alimentado a ração dobrada, para con- duzir São Jorge. Na grande tarde, o santo, uma imagem de bronze, enormíssima, montava vigo- roso corcel. As casas todas se enfeitavam ; punham-se ás janellas colgaduras de damasco, flores, e as da- mas appareciam trajadas pelos figurinos de Paris. São Jorge cavalgava á frente, ladeado por quatro es-

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cudeiros, que eram os dos fidalgos mais ricos da redondeza, seguindo atraz um pagem, também mon- tado, trajando saio, com arnez, escudo e lança. De- pois, a cavallaria, as cruzes enfructadas, irmandades e os corpos todos do -exercito estacionados na cida- de. Soldados presos eram postos em liberdade para acompanhar a procissão. Ao recolher, no adro. da Sé, as tropas formavam. E São Jorge, acompanha- do do seu pagem medieval, passava revista segundo os usos militares. Eram-lhe prestadas homenagens extraordinárias terminando por salvas que estron- deavam bellicosamente em toda Vizeu. São Jorge não, entrava na egreja. Enfiava por uma larga porta entre a e o Lyceu, ficando guardado ali, respei- tosamente, o anno inteiro. Quando ia a guardar-se, era que se feriam as descargas. Que differença, las- timavam-se as senhoras, dessa festa assim grandiosa para a quinta-feira occupada que findava naquelle occaso húmido ! Na avenida rodava o cylindro< de pedra monstruoso, q4ue, puxado a duas juntas de bois, calca a brita do novo calçamento. E Maria Bi- quinha, abraçando o canastro de bosta para o pôr á cabeça, olhava a janella dizendo:

O dia hoje é tão grande, que, nalguns sítios, as aves nem vão ao ninho.

As moscas

De volta da romaria da Senhora da Saúde, apa- nhei uma pharingite, que me deitou cinco dias. Quan- do> a febre cedeu, puz-me a reparar no largo apo- sento onde começava de convalescer, e nada se me

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apresentou mais preponderantemente que as moscas do verão vagabundando na claridade. A' primeira vista, o espectáculo interessou-me, porque ellas. zum- biam nuto voo vagaroso* que distraía e dava somno. Eram, porém, em tamanho numero, os bandos on- deavam-me tão espessos sobre o leito, que, aborre- cido, cheguei a pensar em coisas tristes. Pois se era um immenso mosquedo revoando rumorosoi por so- bre um! doente. Fiz vir duas folhas de papel pega- mosca. Em1 menos de meia hora ficaram cobertos. E era um1 puxar de patas, um bater d 'azas doloroso. Inda assim, as revoadas, o rumorejo, pareciam não diminuir. Ellas haviam ennegrecidoí com o ponto escura da sua bosta o forro e a vidraça, não- poupan- do o caixilio da oleographia de S. António pendu- rada á parede. Si me encontravam de mãos desco- bertas, picavam-m'as. Eu me enrolava nos lençóes, deixava apenas a cabeça ao ar. Pois, como se o fi- zessem deliberadamente, preferiam a tudoí meu ros- . to para assentar. Entravamos então em lucta, enxo- tava-as, mas, assim que eu mettia o, braço- sob a< colcha, tornavam, procurando-me, íem1 irritante sem- vergonhice. Mandei vir mais papel. O resultado não mudou : n;ão deixei de ter que me defender, nem ellas de enxamear por cima de mim picando-me ou simi- plesmente zumbindo. De resto, foi impossivel evitar que almoçassem1 comtnigo, contra minha vontade, impedindo que e*i acabasse a canja, pois me cahi- ram( no prato duas duma vez.

Houve conselho de familia. uma resolução podia ser tomada com proveito certo;: fechar as! pioitas.' , i j . . - i . , ; , \ \

30.—

Tornava-se imprescindível manter no quarto a escuridão/ quando eu precisava de ar e de luz, quan- do conservar as janellas abertas era a recommenda- ção principal do medico. Tranquei-me por causa das moscas. Pois bem : livrei-me das ferroadas, mas o ruído continuou, embora surdo, mas constante. A' tardinha, quando reabrimos as janellas, pude ver que se aggrediam umas ás outras e, por toda par- te, no soalho, nos portaes, na capa dos livros, na; minha cama, amavam perdidamente. A volta da luz dera-lhes .a phantasia de amar voando. Com que lentidão voluptuosa os pares agarrados iam doi guar- da-vestidos aos vidros de remédio, do meu joelho ao ombro; de S. António!

Quando me podia demorar pela quinta, ex- tendi a minha cadeira de viagem á sombra da par- reira e abri O paiz das Uvas. Então uma mosca azu- lada, tão linda que parecia uma pequenina borbo- leta, «tirou-se da toiça d 'aveia onde a brisa a emba- lava e poisou-me no livro. Misturava eu as impres- sões da leitura com as da visita, quando senti na mão uma picada cruel; Era outra mosca, também* azul, também mui linda. Continuei a leitura. As picadellas iiepetiam-se. Mudei de sitio, abriguei -me adeante, debaixo dum castanheiro. La . as havia, eguaes na bellesa e na aggressividade.

Acho -me impedido- de ler á sombra das arvo- res, nestes dias mortnaçosos e calados, sem a ty- rannia das moscas azues que parecem borboletas pequeninas. Mas aqui vos digo que a perseguição inconsciente que me fazem, as de çasaj como as. do campo, é apenas uma caricia' de máo gosto» ante &

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perseguição! que infligem', na estrada, aos jericos e aos bois.

Os pobres animaes não- trazem á vontade ou- tra defesa além1 da cauda, que, chicoteando-as, não attinge senão as ancas descarnadas. Aos burros, prolonga- se-lhes nas costas a albarda com as taleigas ou as canastras, e esta lhes é uma protecção; provi- dencial. Quantoi aos bois, ao contrario, nada os abri- ga ou protege; caminham como despidos, abandona- dos á gula dos insectos. Horrorisa vel-os passar com a barriga, ò pescoço, as pernas revestidas de mos- cardos. A aguilhada do carreiro, furando-lhes o va- sio, levanta um pequeno bando sussurrante, porém, a dois passos, elle volta a poisar.

A's vezes, burro ou boi não tem pellos na cau- da, e é de ver-se, emquanto o moleiro grita a sua algarada de commajidoí, dous cotos cinzentos pon- teagudos, erguidos como dous fueiros animados, os- cillando inutilmente cerca da mesa do carro. Esses tavões besteiros parecem iríbrar ço coiro das alimá- rias. Nada os afasta de vez. Acontece morrerem al- guns menos espertos sorprehendidos pela correia do látego. Succede também o cachaço arremetter e ras- par na malhêlha esmagando outros tantos. Quando, porém, á torreira do sol, a fadiga emmudece o> car- reiro e elle se vai com a cara lustro,sa, quasi tonto* batendo ps sóccos pelo saibro-, o> animal, de súbito, desespera e estremece brutalmente. Esse estremeção desesperado é o seu protesto contra o* tremendo* supplicio que o acompanha o verão inteiroi no estú- pido labor. O guia assusta-se. A moscaria despega-se. Mas segue o desgraçado. Levanta-se uma nuvem

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d'azas minúsculas e pontos negros, mas prosegue de- pois com o misero, env!olvendoí-|Oi, sussurrando, até de novo o dominarem.

Vixente

No meu giro da manhã pela matta, vi de longe um garoto segando erva, com uma comprida corda colgada ao homb.ro-. Havia de ser ladroo. Sãoi tantos os que vêm á quinta ! No muro que para a que- lha, já os seus pés buiram e embranqueceram uma larga pedra.

Mal avermielha a cereja, melra nãoi pisa na cerejeira, porque está sempre ladrão escondido entre a folhagem, catando, sacudindo as gigas. Pelo» tem- po da fructa, quando os cachos começam a pintar, é precisa correl-os, dia e noite, homens, mulheres, meninos, do poímar te da ♦vinha. A figueira, que fica á borda do caminhp., é varejada, apedrejada a toda hora, basta que inchem ps figos. raramente sej consegue fazer um magusto em ternOjS, pois os cas- tanheiros, Ciomoi lestão distantes e dominam a quelha, são desfruotados á vontade pelo povoléo. Mas os la- drões não investem 30 contra a fructa. Furtam as silvas da cerca, furtam a varinha que apruma a vi- deira, a çaruma resequida, o palhiço crestadoi do er- vaçal. E, nas luas, quando ninguém1 da quinta s,e aventura pela matta, esses modestos ladrões vão amar-se na sombra dos penedos, ;silenciosiOs como animaes. , i ! 1 t ! !

Eu prosegui com o meu livro, e esquecera o

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extranho segador, quando vislumbrei baixar-se uma cabecita ruiva escondendo-se rente á lágea visinha. Sentei-me, puz-me á espreita. Setembro vem vin- do. No chãoi da matta, anda a brisa a acanalar as giestas, ondulando a relva amarella sobre as bo- lotas e pinhas. O para-sol dos pinheiros, verdejando no alto, rumurejava ao compasso, da corbacha, que gemia preguiçosa no seu galho. O murmúrio da ven- to nas ramas, longo., espraiado, morrente, lembrava o mar, alguma praia onde as vagas, quebrando, marulhassem. A cabecita ruiva reappíareceu, mas pendeu rápido;. Depois tornou-se a erguer e a es- conder. E assim:, reparando e caindo, comi a li- geiresa dum coelho», passou uns dez minutos, até que eu, impacientado, fui ter com ella. Era uma cre- ança de cinco annos, a camisinha azul toda rota, ata- da na cintura, os pés descalços le crostas de sujo carepento pelas pernas, nos braços e no rostoi. Junto ào penedo jazia um saquinho abarrotada.

Donde é você, pequeno?

Xou da Balsa. Í

Que traz ahi ?

Xão pinhas. E também1 trago bulo tas.

Como se chama ? Vixente.

Vixente confessou, muito pallido, que viera mais o irmão, aqu>elle que andava além; e aquillo era para os porcos.

E porque o menino se escondeu quandb me viu ?

Foi porque eu penxei que \o\ xinhor me ra; lhava. * ' ]< i

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O irmão descia d 'entre os carvalhos, comi a cara afogada num grosso feixe d'erva.

Ora, você ensinando esta creança a furtar ! O garoto contou que vinha mandado peio pae.

Mas, algumas vezes, quando, eu sou pegado, se os donos querem, não levo nada...

Deixei-o ir-se coim a erva, porém trouxe cota'- migo o pequenito. Como eu mesmo lhe puzera a, mu- xila á cabeça, accommodou-sê, e foi risonho e fa- lante que seguiu a mieu lado, carreiro, em fora, aos gemidos da corbácha. Chegado á meia-laranja, Vi- xente repetiu que as bolotas, levava-as para os por- cos, uns porcos do Cid, que o pae creava, e as pi- nhas, estas, eram para o lume.

A porca pariu accrescentou como- uma novidade que o encantava Oh, os bácoros estão ainda pequenititos, mas xão muito lindos. Dois delles são brancos. Os outros xairam todos pretos.

Indicava a casa ao fundo da Balsa, apontando com a mãosita immunda para o oitão do> Cid, quando, chegámos ao páteo. Chamei para dentro. Accudiram as senhoras á varanda. Manoel do Arai, que sahia da loja dos bois, interveiu logo, gago. de raiva :

Isto é uma raça de ladrões. Pae, mãe, filhos, tudo é ladrão!

Na verdade, o pae de Vixente, o Sessenta, vi- via ás voltas com a policia, de casa para a esquadra e da esquadra para a cadeia. A mãe, não^ ha mez^ fora presa na quinta, por andar a furtar as estacas- da vinha.

Vixente choramingava. Manoel do^ Arai esfregou irado as miãos queimadas, a tremer:

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As estacas da vinha! Olhe, que uma coisa! destas... raça!

E defendendo, a um tempo, o, interesse dos pa- trões ie a ordem social :

Nem no deixe levar essas blotas, minha coi- madre, que até seria um máo. exemplo.

Não! Não leva!

Vixente largo» o furto. E la se foi, descorçoado, a soluçar, numa horrível angustia, arrastando- a mu- xija pela rua.

O rouxinol doi tanque

Os buxeiros do* tanque são uns velhos buxeiros de tronco carcomido e musgoso, que vivem á borda d'agua, sob a biqueira do alpendre da mina, dando guarida aos trabalhadores, , pelo. estio, nas horas de sesta. Conta-se que os plantara um p&dre amador d'arvores de fr.ucto ou sombra, que suppria com o amanho da horta a ausência de afilhados e lia o Breviário ,ao ar livre, ouvindo o (melroi assobiar. Quan- do os bucheiros deitaram1 as arborencias bemfazejas d'agora, o bom padre se finara numa sala da casa, sem ter visto que a poesia suprema dos seus buxos queridos não; é a protecção! das ramagens, a brandura vegetal das franças baloiçando- se sobre ax agua, a luz macia que aclara o bucólico sitio-, mas a hospedagem dada peto mais frondosoi deli es a um rouxinol durante ã primavera.

O tanque abre numa vasta quadra de pedra. Tem no meio um poço, lavadoirO' de fronte aos bu- xeiros e, dos lados, á direita, mais buxos, ramalhan-

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do estes para â loja' dos bóis, á esquerda, seguindo os irnuro, que aperta um pesado» penedo redondo, o jardimzito, protegido' pior um arreto, cooi1 um1 loureiro, ao centro das flores, alto, esguio, emergindo dentre pionias, malmequeres, rosas, lírios e erva tenra. Quasi rente ao loureiro, alonga- se a nora em' descampo: não tem alcatruz e o calabre está podre; pois o poço/ cavado por se pensar havi$ nascente la baixo, resultou coisa inútil, recebendo somente a aguai que corre da fonte e sobra do tanque. Eml Dezembro1», viceja no lodoí o limlo, que sobe e se espalha á su- perfície, bastamente, como se sobrenadasse uma ca- belleira verde immensa desnastrada. Havendo sol, vêm mulheres lavar roupa. Arrimam-se ás joalhei- ras, as pernas nuas fora da saia sungada, indo; e vin- do oom o labor dos braços também nus. Entãoi a es- puma alvinitente ondêa entre a lage do lavadoiro e a verdura do limio. Largada a faina, ao; crepúsculo^ entram as trabalhadeiras a molhar a couve. A agua faz-se ludra, e o cosido, talos, folhas crestadas, resta boiando á toa, que a cachopa p recolha para o ceiote dos porcos. >

O tanque nãoi tem tradições amorosas. Sabe- se apenas que duas sopeiras, a Paixão e a Palmira, como esta furtasse á outra um sabonete que lhe dera o namoro, se agarraram1 cerca do lavadoiro, aos mur- ros, ás dlentadas, findando a rusga por atirar Paixão a ladra dentro d'agua. i

D-e inverno, pois que abundam! as chuvas, o tanqu-e reduz- se a um logar lamacento, e doentio-, que, pela visinhança do folhêdo, gravetos e tonas ensopa- das, chieira mal. E' visto de passagemí e lembrado

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com tiembr. Em voltando- o "bom tempo, a,o( contrario, oi lameiro, seccoí ie aquecido, muda numa paragem saudável, e, como canta io< rouxinol escondido! no bu- xeiro, o tanque fica sendo» o recanto mais aprasivel da quinta, um refugio de suave bellesa e encanta- dora melodia.

E' em fins de Abril que elle chega. Habitante fiel daquella umbrosa hospedaria, installa-se num galho bem discreto e põe-se a cantar. Coimo todos o conhecem desde a infância, ninguém1 se admira da sua chegada, recebe- se naturalmente a lyrica appa- rição. Porém, um dia, depois do almoço, D. Cacilda, que cose na sala de mesa diante doi jardim, tira, de repente, os olhos da costura e fala para oi corredor, onde a mãe O Século num! banco- de castanho:

O' minha mãe! Está ouvindo o rouxinol?

Estou, sim. Estava aqui a ouvil-oi. Emquanto, na sala, com' um tom1 d'intimidade,

roda monótona a machina, á beira do tanque, dor- meto lextendidos ois calceteiros da Camará, tendo os braços por almofada. Jahtaram' ao pinoi doi sol. A fer- ramenta com quje desempedram a ladeira em frente á quinta, poisa no arreto-.embaixo dos malmequeres. Uma rapariguinha de cara redonda e repas atrigadas guardou no, amieiroi a padella do arroz, desceu aoi pa- teo com os olhos fitos no portão. Mal se perdeu a sombra da pequena pela sombra da loija, um bando de pardaes caiu piando sobre as migalhas de broa. Da rama do buxeiro cae sobre elles O' canto doi rou- xinol misturado ao> aroma dumas pernadas de pinhei- ro em destroço, pelo alpendre. Ora parece que o per- fume gorgeia; ora é como se o cbçiro: do pinhal im1-

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pregnasse o canto do rouxinol. Finda a sesta, quan- do os homens acordaram e forato1 estremunhados apanhar os alviões e as Marretas, um1 delles, de es- cassa barba e bioccarra emmurehecida, voltou- se para o buxo:

Olé... O gajo cai anda...

O companheiro olhou p'ra cima:

E ca lindo qu'êll canta!

As raparigas de trabalho passam gemendo* ao peso da canastra d 'estrume, lavam1 os pês na taboa levadiça onde a Ceu bateu roupa a manhã toda, fa- lam os seus amores e as suas revoltas, ouvíndo-pi de ouvidos moucos. Manoel* do Arai faz outroí tanto,1. Jun- je, roçando os troncos, os bois ao cairo-, grita aoi An- tónio para abrir o bueiro e soltar a agua, mas nada que occorra acima das abas doi seu chapéu, afora os trovões, lhe chega ás oiças.

A's vezes, meio dia soado, ha pelo tanque, no vasio do alpendre, um silencioi profundo, uma calma grande ;e luminosa. A agua miontou ás bordas da pa- rede. Adormecida com a sua cabelleira de limoi em desalinho, retrata a vara da nora com' o calabre pen- dente, a ramagem dos buxos, retrata oi loureiro, in- vertido e esf olhado. A menina senta- se no banco de pedra e faz meias, cruzando pelo fioi duas compridas agulhas brancas. Ah ! como nos basta, a nós, essa luz, essa doçura de natureza quieta'! Mas sente-se tre- mer uto ramio. Irrompe um gorgeio. E' o rouxinol. O seu canto traduz florescência e fulgor. Da sua cella verdejante, elle procrama a primavera de Portugal, recita o seu poema de perfumie e cor á gleba rever- decida. Eu quiz ver nesse meigo lusíada Schumann,

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transfigurado' em pássaro, cantando, com o* vir das rosas e dos lírios, saudades de Clara enamorada, a saudade do tempo, como fizera nas Scienas dia crean- ça. Paizes desconhecidos... Noivos que se encon- tram... Borboletas... Rêvêrie... O poeta fala,,, Melan- colia dsitante apagando- se nos estos da vida reflores- cente... Mas o canto- doi rouxinol é um themai desen-

k

volvido com variações. Elle canta a primavera: a fes- ta dos brotos novos, do,s arbustos em rebento, das* corollas desabrochadas; canta a terra florida, í^um! gorgear transbordante doi gosto de viver. Mais re- corda um pequíeninoi Mendelssohn alado fazendo a apotheose da estação e influindo, noi canto, feliz, q colorido, a sonoridade dois campos em1 flor* Mettido no seu recolhimento^ inaccessivel, abre o> liquinhoi par- do e esquece o< mundo, em que vive, o mundo quej se mata, em baixo, entre a esperança e Oi desespero. Quem passe, quem fale, quem brigue aoi doi tan- que; riao- lhe merece sentido. A lavadeira bate uma camisa de virgem, com a voz, á cabeça perdida noi sonho e volúpia do fado. Moreira descavalga, prende aoi Jpuxeiro o burrico, negocioso, importante, berra: o preço doi gado na Ribeira, lucros, prejuisos, pla^ nos. A* tarde, uma moçoila namoradiça colhe um1 ra- miíhete de carvalhas, abanca no assento de granito, ri de saúde mirando-se no espelho liquido. Os bois ruminan pacificamente, com os olhos cheios de man- sidão, enternecidos para a agua. António, subindo, da horta, magricella íe terroso, grulha, de laracha, as suas malandrices sensuaes á creada, a Gloria, quej pica abóbora na varanda. E o rouxinol, no; seu ramjol sombrio, canta, canta, canta... j . h : j , | ,j

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Anoitece. As outras aves passam pipilando) em despedida, voando aos ninhos, agasalham-se, dor- mieín. Elle, não. Deixa- se, no seu buxo» discreto e fica -se a cantar dentro da noite. Para o- rouxinol não ha bom tempo, máo; tempo, nem claridade, nem1 es- curidão. Tudo: é tempo de cantar. Uma noite acor- dei pelas três horas. Chovia, ventava. No angulo da casa, no telhado, zunia clamoroso- um1 ventoi de tor- menta. Quando, emfim, a galharia da nogueira cessou de se arremessar contra a janella, a vibraçãoi que se distinguiu, foi o canto do rouxinol, impassível no seu galho molhado, rompendo a bátega, como um hymno. de bonança. No quarto contíguo, raspou um phosphora. Travou-se conversa de quarto a quarto-.

Está ouvindo o> rouxinol ?

Estou...

Antigamente dizia-se que elle canta assim sem parar é p'ra reter a fêmea no choco. Emquantq não saem1 do pvo os rouxinolinhos, não deixa de cantar.

Passámos a olhar com respeito^ aquelle buxeiro annoso do tanque, onde, possivelmente, havia um ninho de rouxinoes. E o rouxinol cantou até o; fim da primavera. o trigo aloirava pela seara e as cei- feiras buiarn na pedra as suas setoiras recurvas, quan- do, uma tarde, ao accaso, se notou que elle partira.

A ceifa

Entre o caminho da matta e os castanheiros do muro, a seara semelha, sob o céu de verão, uma enseada dbiro pallidp onde medram papoilas seje-

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taes rubras e cor de rosa. Chegou o dia da ceifa. Ma- nha cedo, quatro raparigas, tia Rosa, a Belmira, a Gloria e outra, uma corpulenta e vermelha, que ellas trouxeram de Repezes, entram o trigal, de lenço á cabeça, canellas nuas, empunhando/ em silencio cada qual sua foice ceifeira. Uma brisa suave sopra nas espigas maduras. Os grãos tatalam surdamente, e as praganas, finas mas eriçadas como agulhas, scin- tillam ao sol. Calcando os talos resequidos, os gros- sos pés fazem como se fossem pisando^ a agua dum córrego. O trigo murmura-lhes nas plantas e, desa- fogado, vai-lhes rascando as pernas cabelludas.

As raparigas, ao entrar, rumaram diversamen- te. Distanciadas, as quatro pequenas foices erguem- se. A sombra de quatro novilunios vadeia por sobre as loiras ondas. Toca a segar. Toca a ceifar. Tia Ro- sa, a Gloria, a Belmira, semearam aquelle triga, um.1 entardecer húmido, na primavera. Cahiram as chuvas d' Abril. O trigo medrou. Depois, ellas mesmas o mondaram, pensativas, pela época em que o Mantas,, guiando o arado além dosfc marmelleiros, tirava os olhos dos bois para as fitar de longe.

Hoje a seara é pão, é vida, é esperança, é con- solo. Ellas, n»ó entanto, ceifam indifferentes. Ceifam como outrora espalharam os grãos, sem1 cuidado, sem carinho. Porém essas raparigas da Beira cresce- ram ouvindo cantar durante a ceifa, e é cantando que cortam o trigo. A de Repezes, bisonha na sua corporatura gigantesca, trabalha calada. Tia Rosa e a Belmira cantam baixinho, cantam para si, misturan- do a cantiga ao ruido da palha a tombar. Mas a Glo- ria, que tem a voz estridente como! o melro, canta

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sempre, canta por todas no vae-vem1 da sega, e é preciso quíe canse, para ouvir-se na matta o grito das corbachas. *

Ao meio dia ellas jantaram. Agruparam-se no alpendre do palheiro e comieraim1 de vista cabida. Após a sesta voltaram á seara. Quando, as quatro mu- lheres defrontaratn os castanheiros, um bando de pombas brancas voou do trigo ceifado, alvoroçada- mente. A faina recotoeçou. A voz da Gloria recome- çou tambetn, rompendo* ,o cheira morno, doi trigal. Do pomar, da parreira, da quadra dos milhos noivos, vê-se-lbe subir e descer a cabeça redonda envolvida num lenço amarellado. O canto ouve-se de toda par- te. A voz da ceifeira cobre a seara, difunde-se na cla- ridade, vibra na soalheira. Anda um caso d'amor com viagem ao Brasil, nesse fado estriduloso', fado de paixão e saudade. Embora. Partindoí de em meio as espigas áureas, o fado enche a quinta de bem-es- tar, como se a tristesa da musica saudosa, matasse-a a alegria da colheita, a ventura do trigoj amadurado, o trigo vida, esperança, contentamento.

Agora a foice cae abandonada. As raparigas apanham no trigo segado mancheias de palha. Atam- nas, arranjam os vincêlhos, anertam*as paveias/ A seguir, juntam os molhos em feixes enormes, amar- ram-nos com atilhos mais 'fortes, põem-nos á cabeça e conduzem-nos á eira. A' tardinha, para que não fique trigo exposto' aos gatunos, vai mais o carro buscal-o. E algum que resta, gavelas esquecidas, has- tes respigadas aqui além, acartam-nas as raparigas.

Vindo, ao crepúsculo, revistar o trabalho, o pa-

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trao índa as marchando á luz mortiça, cabisbai- xas'por entre os sulcos da rilheira. A malha

Desde a véspera, tia Rosa, a Gloria, Belmira, tiradas ao amanho da quinta, se empregayam em ar- ranjos para a comesaina dos malhadores. Belmira, o nariz branco e chupado» fungando pela horta, gas- tara a tarde a cavar no cebolal. Manhã cedo, inda teve de correr novamente ás hortaliças e apanhar uma canastra de couves. Gloria, ganhou ao forro com outra canastra e desceu com ella cheia de batata.

Este dia da malha, dia luminoso, de verãoi, esco- lhido para a pesada tarefa, os trabalhadores ganham em dobro, e comem e bebem á vontade e do me- lhor. Habituados a essa custosa faina, amando-a mes- mo, pela fartura que offerece, andam, rogados, de quinta em quinta, ao termo das colheitas. Hoje, como nos annos passados, lhes coube a quinta do Giestal. Por isso amanheceram no. portão, tendo vindo de Repezes e do Arai, com uma légua de caminho, para lidar sem descanço até o occaso.

Pelas visinhanças da eira, por toda a velha casa de pedra, mormente na cosinha, vai uma carinhosa è brava azáfama. Como as trovoadas de S. Joiãoj ma- tafem a uva e, na adega, ha vazioj e mofo, vierajn da venda da Augusta, que espichou pipa nova, nume- rosos quartilhos de vinho. Pela escada do'pateo, su- biram três espraiados bacalháos, muita triga-milha, grandes broas alambreadas. E matou se um carneiro. A cosinheira é tia Rosa; as duas outras, ajudantes. De cócoras, dando as costas ao fogão e á lareira, as três tiram as fonas ás cebolas, picam batatas e des-

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talam a couve rios fundos alguidares. Tia Rosa anda doente, anda «palheta.» As suas sobrancelhas lus- trosas curvam para umas pálpebras olheirentas, e ella toda é pallidez e magresa. Porém qu'importa ? O vigor dos músculos sadios que se retezam na lage ao som das cantigas, reanima-lhe os braços descar- nados, accelera-lhe o fraco sangue indolente. Uma destas manhãs encontrei-a cahida entre os bacellos da vinha, livida, anafragada, com o sacho aos pés «Uma cólica, um horror!» contou depois a Gloria. A pobre mulher, assim que me viu, 'solevantou- se, as mãos sobre o ventre, para me saudar com o> seu ar serio e respeitoso. Mas nem se lembra que definha, tia Rosa. A longa colher de páo empunhada cornoi uma arma de oommando, vai de panella em panella, mexe, prova, revê e, a voltear do fogão ao fogareiro, o rosto amarello avermelhandorse no calor, nada esquece, não perde um passo das moças. «Tu puzeste a mesa. oh Gloria «São oito 'os homens, não te esqueças», «fira a almotoiia da ponta do banco, mulher»... Sem murmurar, Gloria faz tudo, attenck> sa, humildemente. De vez em quando, tia Rosa abre o forno do fogão, puxa a pingadeira, calca o, carnei- ro com a concha da colher. Depois, relanceando pela cosinha, o nome de Gloria torna a reboar d'encorlf;ro ás paredes fumarentas.

A manhã passa cálida e limpa.

Na eira, ladeando a «camada», defrontam-se as duas alas de malhadores. Os pirtigos nas suas mãos robustas, erguem- se e descem alternados. Antes de bater o trigo, os mangoaes dansam no ar por sobre os chapeirões. Manoel do Arai e o Mantas, em man-

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gas de camisa e collete, revolvem a palha com; forca- . dos de pontas buidas. Os homens labutam gemendo um gemido consolador, que sae com a respiração, acompanhando a queda dos Ipirtigos. Uai.. E é com- passadamente que parte dos rijos peitos esse saudá- vel Uai... ;e sobe do trigo< o ploic dois mango s !maj lhando na morna claridade.

Meio dia. Manoel do Arai á frente, os malhado:- res marcharam para o jantar. Manhâsinha, aoi che- gar, receberam uma des jejua de pão e aguardentje. A's oito horas almoçaram. Sopa secca verdura, carne p pão. (Mas & des jejua, o almoço digeriram tudo rapidamente nas lages da eira. Ao transpor a grade do jpateo, via-se-lhes no> aspecto um appettite. devo- rador. A mesa, junto á janellinha quadrada que do- mina o tapume de buxos á beira do jardim, estava coberta com utna toalha de linho ampla e alva. Sob o olhar previdente da tiavRosa, as copeiras improvi- sas Gloria e Belmira iam e vinham 'da varanda paca o fogão. Trouxeram primeiro o calejo verde, fume- gando e cheirando nos pratarrões pintados de rama- gens azues. Depois, veiu o bacalháoi, o arroz de car- neiro, as batatas cosidas. O arroz e as batatas foram postos em bacias. O bacalháo espaçava-se nas tra- vessas, atulhado de couve e cebolas grandes como: laranjas. Inda a chiar na padella, o lomboi revestia- se duma côdea de febras oleosas, assentandoí num lago de graxa, com uma cercadura de batatas meuclas e doiradas. Os malhadores sentaram de face á ja- nellinha e á parede. Servido o caldot, 'a Gloria appa- receu com a cabaça de vinho, que correu de bocca em bocca, esvasiando-se em gargalaçadas formida-

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veis. Tia Rosa, com as repas luzindo-lhe na testa suo- renta e um leve sorriso suavisando-lhe o rosto, grave, fiscalisava, de no: batente da cosinha, mostrando- compreender, recompensada, a gula contente dos ho- mens. Penso que, em época d'appettite inda maior, houve bulha por comida em jantares semelhantes. Mais tarde, como se repetissem os pugilatos, hão- de ter achado o meio fácil de os evitar. De maneira que, hoje, levam todos o garfo á bocca ajo) mesmo tem- po, não podendo nenhum comer mais do que outro. Ha elegância nesses fortes pulsos costumados á en- xada e ao pirtigo, quando levantam! os leves trin- chantes num movimento vagarosoi e uniforme. Re- cebido oi boiccado, os garfos descansam1 á 'bprda dos pratos até findar a mastigação, que é saboreada e lenta. O primeiro! a retomar o> seu garfo» apressa os retardatários. Elles comem sentindoí nos companhei- ros os concorrentes perigosos numa conquista em que os direitos se equivalem. O jantar 'terminou sem que nenhum fosse logrado. Comeram todos egual e brutalmente. E levantaram-se em paz risonha, após um derradeiroi giro da cabaça para molhar o resto das fritas. Porém antes de descer, sobraçando" bs chapeirões, juntaram as mãos e resaram dandoí 'gra- ças a Deus deante dos pratos vasios. '

A malha tem que aproveitar o ardente e demo- rado, sol de verão; não, admitte sesta, nem conversa. Por isso' os homens desceram da varanda e enoami- ínharam-se directamente á eira. Manoel doi Arai e o Mantas, escorando- sie no cabo dos forcados, espera- vam-nos á sombra dos seus chapéus d'aba larga. As. raparigas, tendo jantado, lavaram a loiça atabalhoa-

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das, aplanharam os gadanhos cahidos no alpendre "e galgaram também a lage. O sol aquecera. Pelas medas, os talos crepitavam de secura e calor. Quan- do ioi vento soprava, formíavam-se na estrada ondas altas de poeira, que transpunham o muro, cobriam1 os milhos, as ervilhas, o alfobre e findavam por envol- ver o rude labor. As pombas brancas da quinta, visi- nha passavam, a espaços, procurando grãos- perdidos ou desguardados. E para os lados da Azenha, uma névoa esbranquiçada encandeante cobria colinas e pinhaes, apagando, ao; fundo, numa forma vaga e distante, a egrejinha d'Abravezes. os pardaes se aventuravam ás visinhanças da feira, chilreando e sal- tando. Os homens, entretanto, malhavam1 a cantar. O gosto do< fado>, parece, preservava-os da fadiga, e, como a alegria delles lera sadia e máscula, as rapa- rigas venciam de vez a sua timida postura, para can- tar também. Na occasião do «vai-vem», feita a de- bulha duma camada, irrompia o «bemdito'». O «bem- dito» é uma cantata d'indole pagã, na qual se agra- dece aos céus ioi trabalho realisado, mas que disfarça uma exigência malandra de mais vinho... Quando echôa o «bemdito», no> intervallo da malha, homenís e mulheres ajudantes vão, de forcado e gadanho, se- parar em sliencio 01 feno do trigo. Mal, p;orém, bri- lham os ganchos sobre a palha, ha-de correr alguém á cosinha a buscar vinho. Vai a «paqueta», a Micas, que é filha dum f aquista de Lisboa e, de fugida, anda a namorar o movimento. Micas torna resfolegando, accesos os enormes olhos pretos e a bocca desgo- vernada num sorriso, com uma cabaça transbordan- te. A toada suspende-se. A cabaça corre de mãoi em

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mão, como no jantar, e as boccas sequiosas, volta- das para a luz, descommedidamente gargalaçam. Manoel do Arai e 01 Mantas, as raparigas, bebiam' tendo os homens retomado os mangoaes. A Micas reconduzia a cabaça, devagar, inda a sorrir, olhando o vinho pingar.

Assim passaram a tarde, batendo, chuchurrean- do, cantando na crua soalheira. Ao vir da noite, as mulheres, de vassoura e ancinho, juntavam o- tri- go, esse trigo sem1 joio da quinta do» Giestal, amon- toando-o nos cantos da eira, e inda as vozes vibra- vam, voluptuosas e quentes, ao ploc dos mangos ma- lhando nas ultimas espigas.

Os mendigos

Amanheceu terça-feira na estrada, debaixo da figueira da quinta, um sujeito em cabello, mangas de camisa e collete, segurando o cabresto dum burro preto que trazia nas costas uma como barraca de panno branco. Quando passaram os primeiros cam- -ponezes, irrompeu de dentro uma voz chorosa, quasi rouca; e o guia, coim o peito encostado á cabeça do burro, levantou a toalha que servia de porta á barraquinha. Então appareceram duas pernas esque- léticas e vermelhas levantadas, cruzando-se na al- tura dos joelhos, servindo de supporte ao lençol, formando, emfim, a armação daquella extranha ten- da. Pelo angulo das pernas descobria-se, ao fundo, de onde partia a voz lamentosa, uma enorme cara chupada. Era uma expressão monstruosa da defor- midade humana, uma creação sinistra da mendican-

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cia portugueza, o corpo que alli jazia deitado numa velha albarda. O burro parecia educado, ou cúmplice no horrendo caso. Não se movia. Dava-lhe o sol nas ancas e na cabeça, o guia, para correr o mísero pan- no de boeca, ia-lhe com o estômago de encontrão ás ventas, e elle, quando muito, abanava a cauda para enxotar as moscas...

A dois passos, sobre a sacola poisada no chão, estava um piresinho de folha de Flandres, espécie de cinzeiro, conservando os restos duma pintura. es- carlate. A cara do homem haviam-na queimado as soalheiras, tornara-se uma cara morena, suja, co- berta de pellos grossos como cerdas, a suar sob o basto cabello negro empoeirado inteiramente em de- salinho. E elle mal pestanejava. Exercia o seu ofíi- cio, de olhar duro, um olhar velado d'esquecimento de tudo quanto não fosse calculo. O seu gesto de contra- regra fizera-se preguiçoso, automático e frio. Lia-se-lhe no aspecto, não resignação, mas identifi- cação e a subserviência animal do burro. A' approxi- mação dos transeuntes, tirava-se da sombra, sem olhar a quem vinha, subia a cortina de listras en- carnadas, e recebia as lesmoias corm a\outra mão, tam- bém sem olhar. Descobrindo a alimária com a barra- quinha ás costas, nestes dias de feira franca, circo, cosmorama na Ribeira, os camponezes julgavam aquillo alguma fantochada e estugavam o passo. a voz supplicante os acordava para á realidade terrível. Desanimavam, embora o panno branco ar- mado no alto os mannvesse em espectativa. E quan- do, em face do homem, viam erguer- se a toalinha, o ar delles era de horror. Estacavam aterrados e,

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sem racionar, â alma forreta abria-se-lhes num1 frou- xo de caridade, (mettiam os dedos nos bolsos, nas mochillas, nos cestos, davam do que tinham1, broa, sardinha, pão, até dmheiro.

A barraca veiu a ser, na estrada, uma armadilha inevitaviel á piedade dos calmpoinios. .

* * #

Via-se, no emtanto, que n;ão> a piedade os decidia. Os miendigos, em Portugal, encontram-se por toda parte, são ardilosos e, choramingas ou can- tores, attraem indifferença, tanto pela vulgaridade, como porque dar, cá, mesmo pouco, é, para a maio,- ria, tirar do indispensável. De resto, o miendigo por- tuguez, se não é cego ou aleijado, incapaz de andar, acompanha-nos, persegue-nos, a ponto de aborrecer. Elle procura os logares mais frequentados, os logra- douros, os sítios festivos, as occasiões de regosijo publico, todas as inopportunidades imagináveis para" se apresentar embuçado em remendos e pedir in- sistentemente. Põe-se deante dos cavallos nas estra- das ; se não lhe dão, sai correndo atrás do carro cen- tenas de metros, sempre a repetir a sua cantilena, o seu «dê-me, senhor...» Nas estações de caminho de ferro, nos jardins, na calçada dos hotéis, na proximi- dade das cadeias, a primeira pessoa que nos dispen- sa um pouco de intimidade, é o mendigo. Nas ro- marias e feiras; aluga uma família o seu banco, está a ver os romeiros, a conversar, a comer a sua meren- da alegre, a esquecer as suas próprias misérias, quan- do a sorprehende o pequeno esfarrapado, com uma

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viola, a cantar, para pedir. Se não. é o- mendigo mu- sico e cantor, cujo typo ooimmum é Oi velhote atar- racado, sanguíneo, de voz estrondosa, chegam ve- lhos, mulheres em molambos e creanças. As crean- ças muitas vezes suspendem os seus brinquedos para atacar o transeunte, e, como os outros, não oi dei- xam senão ameaçadas. *■

Acontece muito> que uma velha vai a algum re- cado e encontra um homem ou senhora bem vesti- da. Se, por accaso, a olham, a creatura oocupada transforma-se imtnediatamente em mendiga, -exten- de a mão, encolhe os hombros, mascara-se duma physionomia dolorida e começa : «Cinco reisinho para pão, meu senhor, que ainda hoje não comi.» Ha men- digos que contam historias horríveis de pobreza do- mestica, se fazem aleijados, inventam mortes de fi- lhos (estes últimos são característicos das praias), sendo que todos, finalmente, mentindo ou soffren- do, chorando ou cantando, espalham uma longa, la- muriosa chronica de fome nas velhas cidades por- tuguezas.

Somente os cegos, os peores aleijões sensibili- zam a solidariedade nacional. Os extrangeiros dão, mas sentem-se constrangidos pelo numero, pela va- riedade, pela tristeza que as vozes mendicantes so- brepõem á porcaria das ruas, ao vetusto da archi- tectura.

Guerra Junqueiro devia pensar nesta penúria vagabunda do seu paiz de cantigas, quando disse, em Berna, maravilhado, que, na Suissa, não se er- guem mãos para pedir. Perisando-se, depois disso, na obra doi insigne philoisopho-poieta da Oração á

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Luz, fica-se na duvida se ío exercito: mendicante, dis- tribuído em aldeias, villas e cidades de Portugal, im- pressionou ou não sympathicamente a Guerra Jun- queiro. Porque os seus versos não o cantam. E' como se elle o não commovesse, ou terminasse por indjf- ferental-o, como succede aos mais.

Em Portugal, a miséria que commove, não é a dos mendigos, é a miséria dos que trabalham. E' o professor primário, ganhando cinco tostões por dia para alimentar e vestir mulher e filhos ; o trabalha- dor d' enxada, que cava das seis da manhã ás oito da tarde, comendo ao meio dia uma malga de caldo com batatas e, ás cinco horas, duas sardinhas ardi- das com uma côdea de broa, para ganhar dois tos- tões; o criado de servir, sujeito a uma espécie de escravidão mais humilhante que a escravidão legal, porque sobre elle se exerce a auctoridade cheia de despeito e inveja dos que não podem mandar so- bre outrem e não comprehendem a vida sem mando-; as pobres raparigas tratadas a bofetões e ponta-pés, emquanto lavam, esfregam, correm, da madrugada às onze da noite, comendo mal, dormindo num mon- te de trapos húmidos e ganhando por mez mil e quinhentos ou menos. Miséria tal, quasi infinita nas suas modalidades trágicas, anonyma, desconhecida, desprezada, sim, commoverá a quantos, de sorpre- sa, a defrontem. E' a miséria sem recurso, sem es- perança, que se eterniza silenciosa, num rude tra- balho inglório, do qual não sobra tempo ao me- nos para o desgraçado se queixar. Esta, mal a voem. Se a deparam, é nalguma classe de representação social mais elevada, no exercito, no magistério : lan-

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çam-lhe duas palavras de pena passageira, se a não invejam1; pois muitos a diesejalm e acoeital-a-iam qomo a fecilidade completa sobre a terra. . .

A miséria mendicante passa, repassa, clama,, choreja á vista de todos. E todos a deixam passar e repassar, insensíveis, como usurários. Exemplo: na cerca da quinta visinha, a rapariga, que vem da al- deia, poisa a canastra das uvas. A' soleira do por- tão, um pobre homem aleijado, que passou o dia a pedir, vendo -a trepar e descobrir a canastra, diz- lhe:

Dê-me a menina um cachinho, que tenhq muita sede.

Ella desce, com dous enormes cachos* roxos :

Diga-me cá: se eu não passasse agora aqui, vossemecê não se ficava com a sua sede ?

Sim, ficava; mas se a menina soubesse comQ eu tenho sede...

Pois tome E. atirou-lhe uns quatro ba- gos empoeirados que levantou do chão, emquanto mastigava gulosamente.

Mas o aleijado do burrinho preto era um caso extraordinário. -Bastava verem-no, para aterrorisar- se. E, por medo religioso, e também por espirito de transacção com a justiça divina, pois que vinham a negocio, desfaziám-se de pequenas moedas, de nacos de pão, batata, cebola, maçães verdes. No momento em que se achavam diante das duas per- nas cruzadas em V, torcidas e vermelhas no fundo claro do lençol, tomava-os, a esses camponezes pal- reiros, um tremendo pavor. Estacavam, com os olhos esbugalhados sob o carreto e, depois, as mãos

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se imo viam, para cas caviar, tretaulas, no> bolso uma migalha do que traziam. Durante esse míovimento instinctivo, sahia de dentro- a voz do aleijado, voz gemida, meio rouca, emittindo-se com intervallos de respiração anciosa : i

Dê-lne, minha senhora, alguma coisa pelo amor de Deus. Dêem alguma coisa ao aleijadinho.

E não se calava até sentir silencio na estrada. O homem ficava de lado, com o braço erguido, sus- tendo a toalhinha, cabeça ao sol, o olhar duro.

Ai, como é triste...

Punha-se a contar. Eram' sete pçssôas de famí- lia. Veiu um dia o raio, matou cinco, pae, mãe, três filhos, deixando os dous outros entrevados, iqimo- bilizados para sempre.

* * *

O dia aquece. Não se pode fitar o saibra da es- trada. Os camponezes tiram-se de ante o> espectá- culo assombroso com os olhos semi-cerrados e ca- minham incertos, a voltas entre os dous muros. E' este o dia maior da mendicância na cidade e, para mais, de baixo-, da Ribeira, spjbem' os rumores da feira franca, promessas de giente a passar com o saldo dos negócios. A' esquina, defronte um do outro; estão o Manuel Marceneiro e a Conceição. Manuel Marceneiro tem a mulher e a filha ao lado, e, junto ao portal, a cântara com agua e o saquinho das esmolas. Conceição sentou- se no» meio» das mu- letas deitadas em angulo. Anda pallida, traz os olhos num constante mover-se, fazendo- se muito brancos

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de vez em vez sobre o casaco coberto de remendos cor de sangue. Vê-se além balançar a cabeça ner- vosa da Ernestina, uma que nasceu cega e mendiga, á mesma sombra de muro, naquelle desespero de cabeça, abanando com as mãos, ha trinta annos. Os de Vil de Moinhos, os d'Orgeus, os de S. Salvador, homens de paletó ao hombro e chapéu braguez, dão- Ihe aos cinco e aos dez réis, para serem! felizes na feira, e Ernestina prornette-lhes responsos ao» dei- tar. Ella os conhece ja, pelo falar : «E' senhor João Marques, de Tondellinha...» «Sou eu, sim1; tome lá...»

A voz de Ernestina gastou-se nesse pedir de trinta annos. Na de Conceição vibra uma musica de mocidade amortecida, onde impera a resignação qua- si inconsciente dos que vãp envelhecendoí em' infor- túnios sem remédio. Manuel Marceneiro) fala para agradecer, e fala baixo, com dignidade, porque foi um honesto artista e ainda deseja trabalhar. Porém as duas vozes femininas enchem coto o seu clamor, a claridade. Passa a carroça doi quartel, aos sola- vancos, a dorna vasia cheirando' azedo, oscillando e batendo; passa a tropeada dos burros, pequeninos, gingando ao peso> das taleigas ; passam mulheres con- versando, cantando ou brigando, e o que se ouve SjObre tudo, ás terças-feiras, dando uma alma de sof- frimento á vida ambulante, ás coisas, á paisagem1 á luz, é aquella mieloldia tormentosa das duas velho- tas virgens píeidindo1 pião.

Desta vez, ellas etoimudeoerato1. A barraquinha branca erecta nas costas Ido burrinho, a outra voz mendiga ímysteriosa, que tantos se apressam' em ou- vir, dominou-as, fechou-lhies a bocca murcha. Nota-

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se unicamente a cabeça ide Ernestina, as suas ma- gras mãos terrosas baloiçando-se á beira do cami- nho, e os olhos redondos de Conceiçãoi, olhos que talvez ninguém contemplou jamais com um pensa- mento |d amor, esbranquiçando -se para o vácuo.

A' tarde/ a sombra da figueira recolheu, alon- gou-se, parte pelo muro, parte sobre q alfobre da quinta. Então Orguia desatrelou a barraca, desmon- tou p aleijado, deitou a albarda na erva e accom1- mlod;Ou-iO com! palcos nos ombros e nas cadeiras. Defronte, amarellecia uma vinha, os cacbois raros mirradios, a diminuta garrulha deste annoi Qolmi as suas parras .doentes de nódoas rubras. Adeante, nos declives cultivados, sobresaiam as vastas quadras loi- ras dos milhos maduros. No horizonte, os pinheiroiS) da serra fundiaim-se na brumía cinzenta que precede o< pôr do sol nestes começos dputoimno. Sentia-sej na estrada o< aromla dos figos inchados. Um' banda de pardaes piava debaixo dum marmielleiro, E a luz que lenviolvia a tarde, era dum1 doirado ténue, sua- víssima.

Neste scenario tranquillo, as duas pernas ossu- dos do aleijado, agora visíveis inteiramSente, erguiam o seu angulo vermelho. Do que elle era, viam-se ape- nas essas pernas retorcidas," ois pés tortos, cujas plan- tas nunca assentaram no chãoi, e a cabeça, onde cres- cia um cabello ralo cor de linho e brilhavami dois olhos esverdeados, expressando fadiga, sob a pen- nugem dos supercilios. O guia afastara-se, a passa lento, beirando, as pliveiras. O burro, livre, descan;-*

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cava em com' as orelhas mergulhadas numa res- tea de sol. Chegaram1 mulheres e garotos, as mu- lheres a falar, os meninos olhando calados. Uma delias, de queixo comprido e argolas d 'oiro., appro- idmou-se mais e submetteu o aleijado- a Interroga- tório;. Sem o- apparato da 'barraca, o terror que elle infundia, misturava-se de curiosidade : . Você donde é ?

Sou de Gouveia.

Você ?

Não, (minha senhora, sou cego. Dê-me algu- ma coisa... J

Os pequenos olhar ató-lhe ps olhos.

Coitadinho. Que annos tem ?

Trinta e seis. Tenho trinta e seis annos. Dá- me alguma coisa, bein, minha senhora ?

Trinta e seis annos... E como se chama?

Paulino. Châmo-me Paulino-. Então, não me nada ?

se for um pedaço' de pão, que é o- que eu trago aqui. Quer ?

Quero. Tudo é esmola.

Ella metteu a mão tio bolso da saia, deu -lhe mte- tade do seu pão e foi embora semi mais palavra. Fi- caram os pequenos, sós, continuando a fital-o sem nada dizer. Houve um minuto* de silencio na estra- da. O aleijado! falou afinal, comi raiva.

Tirem-se dahi, meninos, tirem-se d'ahi ! Um dos garotos, vestindo um Gasácjá de mulher

que lhe ia até os pés, protestou:

Você não disse que era cégoi ? Si fosse cego,, não via.., , i . ,' í ,

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A voz ido aleijado' alteou-se, cansada, mas irada :

Tirem-síe dahi!

E' cego e vê...

Tirem-se dahi, meninos !

O homem apontou na curva do muro. Os garo- tos olharam inda um momento o aleijado! e re- tiraram-se para o do mirante, onde havia um res- to de nozes verdes. Paulino,, vendo- se só, a ouvir os passos do guia, que se aproximava, abriu a bocca, recomeçou ,a clamar, com as pernas tolhidas apon- tando o céu azul :

Ai, quem1 tem pena do jx^bre aleijadinho' E anciou Ait foi um1 raio que o poz assim. Foi um raio que caiu na casa, matou pae e mãe, matou mais três pessoas, e ficaram dous irmãos, ambos queima- dos, ambos entrevados, pela graça, de Deus e de nos- sa mãe Maria Santissima. Ai, quem me alguma coisa...

Dtomiinígc firiste

i Amanheceu um domingo clareado pelo sol me- nos frio. destes primeiros dias de verão-, um domingp de junho em Portugal, morno e vasio. O domin- go, em toda parte, em Paris como em1 Mamangua- pe, assume este ar de festa e repoiso, uma grande calma nas coisas e yxn mais fundoí sentimento! da, vida tios seres. Queremos, por isso, o> nosso domingo cheio de silencio, se precisamos descansar, movimentado, folgazão, se preferimos divertir-nos. Eu, porém, á sombra desta parreira patriarchal, nãoi desejo nem a folia ingénua das creaturas alvorotadas, nem1 minha

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rede do Brasil. Desejo tmíatar o, tempo coem1 a leitura ou com a paizagem, piara tirar-me de mim.

E' tmieio dia, com uma vasta curva de céoi pallido e quente. No horizonte fez -se azul a serra doi Ca- ramulo; o,s pinheiros também mergulharam numa névoa azulada. O vento sopra as macieiras e levanta do caminho p palhiço seccoí doi centeio. Descanç.aàn na eira os gastos mangoaes ie(m féria. Uma boirbor leta voga noi morangal em flor. Canta á distancia, um cuco. Pela estrada deserta ergue- se d'oira em quando uma nuvem de poeira. O toais é vácuo, monotonia. Retomo As desencantadas, de Pierre Loti, para con- cluir. Este livra excessiva de colorido: e minúcia, cor- rendo trezentas paginas sem acção entre os cemitérios e as mesquitas de Constantinopla, fecha tragicamen- te. Vira-se a ultima pagina malquerendo o romancis- ta pela impressão profunda de tristeza que elle nos influe ao. findar. Agora o dia peorou: é-me preciso, esquecer as três jovens circassianas de véo, negro. Es- forço-me eto ouvir canto do cucio. A luz tornoiu-se; mais intensa ; o céo esbranquiçado' encandeia ; ba- tem as folhas ventiladas sobre a minha cabeça. Olho o pinhal, e o que vejo na penumbra, é a figura in- feliz da pobre rapariga envenenando -se com! um toxi- co árabe que mata dando a illusão do amor. Que dia longo! j ; ,

Não vai á Sé, tsnr. doutor ? Ha hoje gran- de festa, com três bispos.

As duas torres negras da recortam-se no> céo alvacento. O sino grande badala solennemente. E' verdade, dentro estão- três bispos, a quem o- povo festeja pensando que glorifica á Virgem Maria; e

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elles mesmos, concorrendo; á ceremonia, se servem do culto-, da credulidade do povo para affrontar a Republica. Todos se illudem. E' uma festa politica, uma festa monarchica com a intenção, em parte, as apparencias, a pompa commovente das festas da Egreja. »

Não, não vou, snra. Maria.

O sino continua a vibrar. Cala-se emfim, mas fica no ar um! som demiorado, ondulando, e' amorte- cendo lentamente. Entãoi o silencio cresce, a hori- zonte é mais largo., o Brasil mais distante. Surgem lembranças, nitidas, actuaes, no domingo^ aquecido:: um quadro da infância, pi rio, rolando, a agua ludra entre as ribanceiras, sob o velho: ingá sombrio; um episodio da Academia, o collega que achou café mol- do na sua caixinha de tabaco-; amigos, cidades, via- gens; a bahia de Guanabara, tão tranquilla e azul, um transatlântico; entrando' vagaroso em meio< ás for- talezas e a bandeira auriverde tremulando; á venta- nia no cimio do Pão d'Assucar. Tudo., porém, finda por afastar-se e fundir na idéa da circâssianazita be^ bendo p toxico árabe que mata dando; a illusão. do amor. A visão- triste domina todas as mais, Que mal nos fazem os romancistas quandoí nos tentam agra- dar expondo' os aspectos dolorosos da vida, como se a vida fosse somente tristeza, decepçãoí^vicio! e m;orte !

Da banda d'Abravezes, onde a capella caiada brilha ao sol, vem' a pancadaria rithmada dum1 bom- bo. E' a romaria, são- as raparigas a dançar debaixo das carvalheiras. Bumba! Bumba! Bum! O calor au- gmenta, o tempo* vai preguiçosoi, as folhas bplem| de- vagar. Bumba! Bumba! Bum! Entardece. As coi-

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sas, que, pela m'anhã, se accusavam mais patentes,, mais vivas "no seu traje de luz dominical, parecem! agora apagadas e distanciadas. O pinhal fez- se uma! mancha irregular no eéo esbranquiçado ; a serra, uma barra nevoenta aproximando o horizonte; Oi saibro da estrada tem1 pontos scintillantes. Prefere-se fe- char os olhos. Mas não' se dorme. Bumba! Bumba! Bum! O boinbiOí enche cioto o batuque longínquo; a redondeza, a cidade somnolenta, os «povos» apazi- guados. Com1 rejpetir-se, monotoniza-se. Ora se Oiuve, ora se não, puve. Toca setapre, passa minutos esque- cido, e, como pôde accentuar a monotonia da tarde, produz uma calma resignada, quasi doce. Bemdicto sejas tu, bombo de romaria, que me consolaste com1 o teu som1 duro de coifo batido. Bemdicto, porque, fazes esquecer e adormecer. Bemdictoi, porque! a tua musica não é triste nem alegre e te afunda, ás vezes, tu mesmo, no> esquecimento. Esse continuado za- bumbar afoga as próprias fortes imagens da leitu- ra 'de Loti. Não é mais a 'rapariga, desmaiada na sua cadeira, apertando, nos gesto final, uma, carta pai- xão. Vejo- a, ao contrario, descendo a corrente num1 caique, a face tmysteriosámente escondida no1 véo1 caracteristico das mulheres turcas. Como é bonita no> dia em que rompe o< incógnito; e mostra os olhos castanhos intelligentes ! Que riso: saudável o da sua bocca vermelha! \

Um 'guincho agudo na vizinhança. Outro. Mais outro. Aquillo não para. E' o Cid que mata um ppr- co. O desgrãçadiQ grunhe desesperadamente. E nãiOí ha imais bombo que se sobreponha aos gritos do! mi- sero animal esfaqueado'. Parece que o proprioi bom-

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bo de Abravezes grunhe. O grunhido' ganha a paíza- gem, penetra a luz, esp!alha-se. na tarde cálida. Não rotape de sobre um' banco do oitãoi do Cid de- gradado em porqueiro. Sobe do pinhal, da Serra, das macieiras, da torrezinha branca, da agua quieta do tanque, d& toda parte. Generalizou-se, invadiu-me. Que saudade do Brasil !

A VELHA CIDADE

A ferra de Viriato

A' vista das serras verdejantes do Caramulo), de Santa Luzia e da Estrella, que as névoas da manhã e do .anoitecer qobrem perennemente de espsso véu azulado, a velha cidade vive uma vida de recordações, agitada, no trabalho e na politica, pelo rumor dos ro- mances locaes, que o gosto., o habita do commentariq transfiguram em melodrama ou comédia. Desde as aldeias distantes, da portinhola do1 comboio, dos au- tos, dos carros da Carneira, vêem- se as duas torres da Sé, curtas, encardidas, projectando.- se no péu des- maiado; aproximando, por sobre ps cabeços e matta- gaes, as da Misericórdia, as de Fontello e S. Sebas- tião, mais esguias e novas, surgem de permeio aos sobradões pardacentos cujas vidraças deslumbram! nas horas do sol.

E' Vizeu. A demora noi cimo dumi outeiçoi <e é o centro da antiga povoação, que cobre a encosta de ruasinhas construídas á moda medieval, assobra- dadas e estreitas, como se obedecessem á intenção de encurtar a cidade para não> alongar a muralha. Esse bairro contrasta côm o bairroi moderno dei Ma- çorim, pnde se abriram avenidas, e as moradias, ajar-

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ídinadas, corridas lide janellas e varandas floridas, olham as hortas e quintas dos arredores, aspirando! o aroma dos jardins.

Nas visinhanças da Sé, o. piso das ruas tem no mleiò, jabrandajido io empedraíiiento e, supprindo as calçadas, um largo passeio de lages, que os tran- seuntes preferem, maldizendo, em1 defesa dos sapa- tos, a brita grossa dos lados.

Deixando- se as alamedas amplas, claras, areja- das de Maçorkn, a cidade velha espanta pielo aca- nhado e escuridão das suas quelhas, a extravagân- cia da architectura, a porcaria e máoi cheiro de tudo.

De quando em1 vez depara- se com uma ruina de casa senhorial ; as f rontarias com: b razão mostram- se numerosas ; resiste, numa curva de ladeira, o paço onde nasceu el-rei D. Duarte, uma torre quadrangu- lar, pintada a ocra, comi uma janella gothica na al- tura do segundo andar e, ao que corre, semi entrada certa. Na rua Direita, que é, segunçloi a regra, tor- tuosa e ladeirenta, está um1 sobrado de frente abau- lada, capaz de desafiar a engenharia que discute a torre de Pisa. Outros sobrados, doi. segundo pavimen-, to para cima, saem doi nivel um1 metro, como para simples sacada, e, nesta linha, sobe galhardamente a parede até o< algeroil. Est'outro abre por uma porta de aroo ogival talhado no granito. Aquelle f,oi apenas fenestradoí temi três janellinhas de tama- nho diverso, a primeira quasi rente ao angulo! dq edifício, e as duas mais, pequeninas, irregulares, ca- vadas á toa. Conservam-se ruas, sujas, húmidas, sem luz, das quaes se poderá tocar nas paredes fronteiras alongando os braços para os lados.

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Aqui se encontram três andares na altura em que hoje se oonstrue um! só. Uma fachada contem1 um nicho, com o santo pintado a cores vivas dominando os telhados visinhos. Adiante, um muro, altíssimo, sustenta um relevo de pedra formando cruzes enor- mes. Este solar termina pela capella. Perto do lar- go da Sé, ha um prédio de cinco andares affrontan- do outros, muitos, que fazem pensar em casas adap- tadas para uma raça de anões. Em certas vielas as portas figuram antes entradas de antros. Desembo- cam para uma negridão de quartos calçados a lage- dos, baixos e churdos, com. grosseiras escadas de pedra levando aos insalubres aposentos superiores onde a claridade entra egualmente escassa. Pelo cal- çamento as crostas da sujeira se eternisam, a par das manchas de bagulho^ e despejos que, nas de- pressões, empoçam como algares. Na terra dia he- róico pastor parece escolberem-se os sitias tradicio- naes, cantos de muros seculares, os arcos contempo- rajneos das pugnas mais honrosas da cidade, os tra- ços architectonicos dum passado digno da poesia evo- cadora de Herculano, para as utilidades mais sórdi- das. Não ha lagar destes que não tenha sidoí promo- vido a latrina. Os campoinezes, a arraia-miuda defe- ca pelo das paredes com a maior semcerimonia. E tresanda por tudo, conjunctamierite, um pesado fedor d 'excremento humano* e bosta d'animaes. Po- rém, abandonando a meada de beccos e vielas, in- da na encosta, para as bandas da Cava, da trinchei- ra histórica de Viriato, para os lados dAbravezes, e, ao contrario, desandando sobre o Rocio, os ca- sarões quadrados eternizam-se num cerco de flores

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e perfufrites ao ruido da agua das fontes caindq pelos tanques de granito, com os mirantes saudáveis a espiar, da sombra dos buxeir.os, os descampados do. valle e os cabeços dos montes cobertos de pinhal.

A i _

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No cimo do monte mais altoi da cidade a envelhece dominando as estreitas ruas do bairro me- dieval, que cobre a encosta. A sua torre da esquerda conta sete séculos. A outra concluiu- se quatrocentos annos depois. A frontaria, que apresenta, coimo- toda a construcção, uma alliança sem bellesa dos estylos gothico e manuelino, gastou três decennios em' ser restaurada : recorta-se no céu distante em1 pedra en- negrecida cavada de nichos que ostentam estatuas, de mármore, e abre por uma larga porta coimJ grade de ferro, terminada num arco redondo acaçapado. No sitio do claustro pequeno.', tão elegante com1 a sua arcaria, os seus capiteis, cimialhas e o rejmate de columnas jónicas, erguia-se, outrora/ a residência do conde D. Henrique e sua mulher, que fundaram o templo primitivo numa das capellas de em volta. O claustro grande, edificado em 1534, assenta em alicerces do paço dos reis de Leão e das Astúrias. E a sala do Cabido, dois séculos mais nova que o claustro, cobre o lpgar da casa que habitou S. Theo- tonio.

Começada pior uma simples egreja piedosamen- te levantada pelos pães do fundador da monarchia, a foi ganhando terreno e magestade, á medida que crescia, sobre ot récup! da hiqirisma % mais tar-

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de, ío de Castella, cii poder da christandade. Primeiro se desdobrou em outras egrejas menores. Depois re- surgiu adeante com as proporções monumentaes duma obra extraordinária. Subiu, alargou, coroou o morro histórico e, como lhe era preciso mais espaço, pois a se tornava mais pomposa, extendeu-se pelo poiso dos reis, dos herpes e dos santos.

O templosinho do conde de Borgonha acom- panhou Portugal nas suas conquistas, desenvolveu- se com tellas. Ao, tempo do Condadoí Portucalense! consistia numa egreja modesta plantada num cerro da Beira Alta, animando e eonsagrandoí ois feitos das hostes christãs victoriosas sobre os moiros. Quando o filho de D. Tareja se fez o rei de Portugal inde- pendente, também cresceu o templosinho votivo do Conde D. Henrique. E não< mais deixou de au- glmentar a então pequena de Vizeu emquanto a aventurosa Lusitânia se engrandecia. As conquistas em1 Africa, íia Ásia, na Oceania, ó oiroi do Brasil, a dilatação do dominio nacional, assignalaíidio eras de gloria e prosperidade, dffereceram a oss recursos materiaes.

Uma a uma, as épocas notáveis de1 Piortugal, triumphos, os accrescentamentos de gloria e de ri- quesas reflectem-se nos progressos dessie monumen- to de pedra religiosa. O reinado de D. Jo,ãoi I, quan- do mestre Affonso Domingues corporificava o seu sonho magnifico do mosteiro da Batalha, levou-lhe, com o animo dos empreendimentos congratulatorios, arcadas, relevos e sumptuosidades de arte gothica á sua severa architectura. Nos dias venturosos do rei D. Manuel; reeíiificou-se o coro; e a abobada.

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A phase dos descobrimentos inspirava os bis- pados: Depois das reformas de D. Diogo Ortiz de Villegâs, D. Nuno de Noronha espraiava, descen- do a encosta, o paço episcopal e (o, .seminário num grave casarão. Assim, até a dominação de Castella e, para além, até á dominação- de Pombal, a de- senvolveu-se, enriqueceu, i Quando desappareceu o illustre ministro, represientava o esforço das gera- ções numerosas que pelejaram pela unidade e in- dependência nacional, envelhecendo, na sua postura definitiva, como um symbolo da pátria. Ao; lado de Collegio e da columlnata da varanda livre, a fron- taria sombreava o adro arenoso, mirando as duas torres da Misericórdia. Dentro, a nave cruciforme alinhava enormes columnas sobre os túmulos dos bispos e dos bravos. Debaixo desse piso de sepul- turas um1 lençol d 'agua era contido em! funda cis- terna, sem ao menos comprometter a segurança da miassa monstruosa. As columtias projectavam-se, entre azulejos esplendidos, até a arcaria doi tecto, em! cujos ângulos corriam grossas cordas de granito que nós artísticos, aqui e além, (enredavam. Aos fundos, um alcácer gigantesco, com1 sacadas, mirantes e custosa escadaria [exterior talhada em! altos blocos de pedra, hospedava os reis. Nas capellas, nos altares, no coro, por toda parte, a mlagnif iqencia dos doirados, os lavo- res de talha refulgentes, bordaduras, minúcias que a arte christã da Edade Média espalhou nas cathe- draes da península, faziam1 pensar era! raras energias, nas grandes raças que produziram o Infante, Vas- co da Gama e Luiz de Camões.

A's invasões mioiriscas, ás gftierras, saques, in-

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cendios, a tudo, pela imponência doi seu prestigio! espiritual, resistira a de Vizeu. O bispado1, que Affonso! Henriques restaurara, durante séculos accu- mulara preciosidades nos pbjectos do culto: adqui- rira tecidos raros do Oriente, pjaramentojs de grande pontifical, imagens de marfim maravilhosas, cotóo o Christo da altura dum' metro íesculpturado numa peça única, a cruz de prata talacissa três vezes mais alta que o Christoi; cpínes, cálices, relicários, coroas, tudo de prata ou de oiro*; a custodia do século XVI, deslumbrante no seu acabamento gothico; missaes valiosíssimos, livros de canto-chão iem pergaminhoi; a estante de bronze fundido, .que o côroi retém, a par da bancada de castanho, figurando um1 pelicano*; o orgam a alongar ps seus pistões brancos de em meio a duas eolumnasj um quadro doi século» XIII, e mais de trinta taboas geniaeis de Grão1 Vasco.

No miomento em que as tropas de Napoleão entraram na cidade ávidas de rapina e saque, mui- ta dessa riquesa houve de ser escondida. Duas co- lulmtias de nave são vasadas. Quanto foi possivel conduzir e passar nas discretas aberturas, metteu-se' nessas columnas providenciaes. A possuía um se- gredo, segundo se sustentava e inda hoje refere a crendice beirã. Aquilk> que passasse as columnas e chegasse ao subterrâneo, estaria guardado e inat- tingivel, com a condição de ser fechada a portinha do segredo.. Um!a vez trancada essa portinha myste- rosa, ser vivoi não. penetraria o subterraneiO, visto não chegar la o ar... Arrecadadas as alfaias princi- cipaes, o sachristão da puzera no bolso a chave do segredo, fechára-se coto ella na escura nave e?

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fielínente, puzera-se a guardar as doze estatuas dos após tolos, que lerami <áe prata, com corporatura de homens. Mas os soldados franceses arrombaram a larga porta da Sé, 'mataram o sachristão e, sem ati- nar com as riquesas, pois que as restantes jaziam iem outros esconderijos protectores, levaram-lhe os apóstolos de prata. A chave desappareceu com1 o cadáver. E inda hoje la estão sepultadas no sub- terrâneo as famosas alfaias...

A imaginação beirã dá-lhies proporções phantas- ticas.

[ Quando o pintor Almeida e Silva dirigia, ha vinte annos, a limpeza interior das naves, cujas co- lumhas um bispo extravagante fizera caiar de bran- co, brocando a pedra para melhor imprimir a caia- dura, lembrou-se de devassar o subterrâneo. Era mais uma tentativa dizia jelle ao cura... O cura concordou. O pintor ergueu uma alta escada e su- biu até a bocca duma das columnas, com1 um giatoi amarrado a uma 'guita. Assistiam estudantes do Ly- ceu. Almeida e Silva deitou o gíato. Poucos segundos depois ,a guita deixou de estremfecer-lhie na mão. O giato havia morrido. O insuccessoi dessa tentativa confirmou a lenda da ausência de ar no subterraneoi e mesmo no Vácuo das columnas até que se encoíi- tre ,o segredo da Sé. |

Hoje, a de Vizeu, menoscabada pela reacção republicana, não passa dum1 'negra monumento^ de cantaria evocativa. Deplois de serem1 despedaçadas m'esmo as cruzes toscas dos cemitérios das aldeias, a bandeira verde e vermelho, nos dias de commie- moraçãio cívica, affronta-a tremulando; defronte entrç

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as duas torres da Misericórdia. Do valle, das estra- das, dos povos próximos vê-se aquelle panno revo- lucionário batendo, ao sopro dos ventos da serra, no ferro sagrado de uma cruz secular. Os democratas victoriosos desdenham transpor a larga porta vene- randa. As soletnnidades catholicas realisam-se no recolhimento dos cultos prohibidos. Pela porta prin- cipal já não entram os bispos trajando as suas ves- tes roxas impionentes. A Republica impoz-lhes o tra- jo civil : elles atravessam o adro a pé, empacotadois num casacão de preta, como qualquer velho rheu- matioo. as mulheres, associando o- sentimfentoi re- ligioso ás theatralidades da moda, vão. impavidamen- te resar e ser vistas nas missas dominicaes. Issqí con- corre para a prisão dos maridos ao fim das conspi- rações. Porém1, á tarde, quando o sol começa a descer - por traz das mattas de pinheiro, uma longa sombra pacifica deita-se no pateo areiento. Os occasois de ve- rão doiratn-1'he as torresinhas tisnadas. A luz derra- deira do crepusculq deixa-lhe, acariciando-lhe a ne- grura dos ângulos, um doce brilho rosado fugitivo, emquanto o velho relógio, apagando-se nas primei- ras sombras da noite, marca as horas de irreverên- cia e esquecitaento. E' nessa hora sentimental que eu prefiro subir o miorro historiao e atravessar o adro< deserto. Então a Sé, coeva da naçã;o, olhando a ci- dade medieval e os campos socegatdos sob Oi fulgor das estrellas, rocorda-me o Portugal dos Lusíadas melancolicamiente perpietuadioi.numa illustre; saudosa memoria.

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Grão Vasco

Segundo as investigações pacientes do historio- grapho sr. Maximiano d'Aragão, o grande Vasco Fernandes, o maior pintor portuguez de todos os tempos, nasceu em Vizeu, trabalhou trinta annos a sua nobre arte e morreu obsouroi em Thomar, sem que ao menos lhe ficasse a memoria duma sepultura conhecida, Seu nome andou confundido! ao do fi- dalgo Vasco Fernandes do» Casal. Deram-lhe vários appellidos : ora Car valho-, ora Manoíel, ora Casal, e a mesma insigne individualidade do artista, real- çando a- obra vastíssima de pintura christã espalha- da nas egrejas e conventos portuguezes, dous sé- culos após a morte delle, ennevoava-se num m!ytho, que os estudos completados por seu illustre con- terrâneo vieram definitivamente esclarecer.

Remexendo, nos armários do archivo da Sé, a papelada dos livros de praso, o sr. Aragão desco- briu, sobre a vida de Grão Vasco, o com' que provar o nascimento e permanência delle na terra do ber- ço. Grão Vasco casou com Joanna Rodrigues, uma senhora do Almargem, povoação á direita do Vou- ga. Teve dous filhos, Beatriz e Miguel. Foi emphy- teuta duma casa sita á rua da Regueira, "no lqgar da residência de D. Júlia. Brandão, filha dum heroe do cerco do Porto, Manoel Joaquim1 Brandão. Caiu ainda em seu poder a vinha do Pesseguido, trazida pela esposa, na possesão d'Orgens. A- sua casa da Regueira pagava ao Cabido da o foro an- nual de 6o réis e dous capões. Depois de morto Grão Vasco, em meados do século XV, piQir a viuva não

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tet com que pagar os três vinténs é os doiíS cá* pões, tomou-o a sua conta o cónego Touraes, e a casa passou emfim a Amadiz Tavares, meirinho da Correição.

Mas, esbatida embora nos longes duma lenda carinhosa, a tradição, ,que o mesmo arguto pesqui- sador çoiheu, resa que Grão Vasco era filho dum moleiro, nascera numa choupana, ao dos moinhos paternos inda agora 'conhecido por Moinhos do pin- tor, vivera pobre a aponto de não poder pagar ao Ca- bido o foro dos três vinténs e dois capões, morara cerca da egreja de S. Miguel, em cuja nave fora sepultado o ultimo rei godo, e fizera, na sua arte, prodígios que emparelham com outros semelhantes do génio de De Vinei.

A bemíadada choupana erguia-se no fruído dum valle, cercado de rochas e pinhaes, á beira da tor- rente que empurrava a do moinho de pedra. O moleiro moía trigo para numerosa freguezia de Vi- zeu, especialmente para certo fidalgo. Era o pequeno Vasco o almocreve que todas as manhãs ia, tangen- do um burro carregado de taleigas, entregar o tri- go aos freguezes do pae. Suppõe-se que havia em Vizeu uma escola de pintura. Os quadros existentes nas egrejas impressionavam-no. Vasco prendia o bur- rico e folgava da recovagem indo, coberto de pó, es- tudar e namorai- os. Com a migalha das gorgetas comprava tintas; nos vagares do trabalho, pintava. Nesse penoso alvorecer do seu genioi fez coisas ma- ravilhosas. Pintou, numa adega, um Baccho pançu- do escanchado numa pipa. Certa vez pedira-lhe es- mola uma mendiga: elle pintou nacos de pão e ce-

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bolas num pedaço de panno e entregíou-lhio dizen- do que o. vendesse e tomasse para si o dinheiro. As cebolas e os vnacos de pião deram dez moedas á men- diga. O professor de Vasco habituara- se a jantar des- calço. Uma tarde em que mais sentiu andar sempre descalço, aproveitou, no atelier, a ausência do mes- tre, bifou-lhe os chinellos e pintou outros no liogar delles. A* volta do jantar, indo apanhar ,os. sapatos, sem havíer dado pelo engano (tãô perfeita era a pin- tura), o mestre apenas melou o numa pouca de tinta fresca...

Mas o moleiro não concordava com essa mu- dança do filho. Qmeria-o almioereve e moleiro., como elle, entre a choupana do valle e os freguezes de Vizeu, e zangava-se com o desleixo em que ia o, ra- pazelho desmedrando. Porém um dia Vasco pintou- lhe um burro á porta do moinho. Ao ver a pintura, tomou-a o moleiro pela realidade : viu nella simples- mente o burro das taleigas lexpostOi ás moscas e, irritado, ralhando, foi tangei -o para a loja, quando viu, espantado, que a vergasta apenas flagellava as taboas da porta. então comprehendeu talento do filho. Correu ao paço do fidalgo e oontou-lhe o caso extraordinário. O fidalgo tomou conta de Vas- co e mandou-to estudar pintura no extrangeiro.

Durante a viagem, Vasco achou-se um dia na miséria, como succedera ao peregrino de? Perugia. Foi ter á casa dum pintor. Pediu-lhe trabalho. Aquel- le desconhecido esfarrapado mereceu-lhe a mínima attenção. por piedade lhe deu o que fazer. In- da como outro \pintor fizera ao Perugino, deu-lhe tintas a moer. Em eferta oiccasião' entrou no> ate-

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íier e pintou utriã mosca em pleno rostioi d'uma fi- gura. Quando o pintor descobriu a mosca, tentou, enxotal-a... E não pode abraçar ou castigar o hos- pede engenhoso, porque Vasco havia fugido...

O pequeno almocreve, o humorista do burro, dos chinellos e da mjosca, tornado á terra natal, en- riqueceu, sua pátria de quadros notabilissimos, en- grandeceu com a bellesa das suas taboas as egre- jas, os conventos, a Academia de Bellas Artes dei Lis- boa, as gíalerias da nobresa, e, na serie das trinta p quatro composições valiosas conservadas na cathe- dral da cidade, deixou as taboas de castanho' do S. Pedro1, que honram Portugal bem mais que a fa- ma das conquistas de seus navegadores e guerrei- ros. Eu vi o S. Pedro* uma manhã, incitado pelos olhos azues duma creança, que brilhavam simulta- neamente de admiração e pavor quando ella me fa- lava do «bispo» da sachristia. Essa creança confes- sou-*me que o%«bispo», com aquelle olhar vivo, e fito, lhe fazia medo. Conta-se um episodioj romanesco do pintor António José Pereira com1 o S. Pedro, de Grã,o Vasco. António José Pereira fizera-se um conhecedor meticuloso dos segredos picturaes. Nos seus pas- seios pelas antiguidades de Vizeu encontrou e ad- quiriu uma taboa «(encardida, breada de crostas es- curas em cujos intervallos se descobriam signaes duma velha pintura. Empreendeu revelar o myste- rio daquelles seis pés de castanho centenário. E re- velou-o. Da taboa desvalorisada resuscitou a comi- posição dramática do Calvário, com esta assignatura tão preclara Vasco F. R. Z. Pereira não se dava ferias. edoso^ tendo tolhida a mjãoi direita, pintpu

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corri a esquerda os retratos doi letrado Manoel José d/Almeida, do sábio Oliveira Berardo e de João Mendes, que Thomaz Ribeiro classificara typo de bellesa appolinoa. Mas o seu sonho maior, a tarefa imagina da sua finalidade artística, foi copiar o S. Pedra, tal qual pi acabara Grão Vaiscíou A. J. Pereira tinha um filho padre, que era fiel do Cabido. A pai- xão do pintor, dia a dia, augímentava. E tão forte, fervorosa se lhe arraigou na alma, que irradiou e se Ciommunicou (aio ministro de Deus. Então pae e filho, combinados, servindo-se dum processo que fa- zia reproduzir o quadro com as suas dimensões, dif- ficeis traços e pormenores, applicando-se lhe uma tela embebida em substancias chimicas apropriadas, obtiveram1 a copia. A brava tentativa satisfez o so- nho do pintor. Algufri tempo corrido, expunha elle outro S. Pedro, onde se reflectiam os encantos do S. Pedro primitiyo. Mas, depois do contacto da /tela impression aviei, o S. Pedro de Grão Vasco apre-, sentava manchas que a depreciavam, tornando pre- ciso recorrer a um retoque, que, mais tarde, outro illustre pintor, Oliveira e Silva, beirão também1, ma- gistralmente rlealisou. O caso, entretanto, divulgou-se pela cidade como, um sacrilégio1. A maledicência apa- nhou-iO nas primeiras tímidas murmurações, deu-lhe vulto, e os estudantes do Lyceu, inspirados num! mo- vimento vingador, espíeraram a filho de A. J. Pereira á porta da Sé, vaiaram-no, atroaram o bairro, de pro- testos e apressaram-lhe a demissa^ de fiel do» Ca- bdo.

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'Atravessando a arcaria da nave para vier o, S. Pedro, lembrava-me a exclaímação a Racsir^ki, au- tor de L'es Ars en Portugal, e um1 juizo arrebatado do critico Natouche. Ao defrontar o quadro de Grão Vasco, pi fidalgo prussiano estacara, resumindoi a sua' admiração neste vjerso dos Lusíadas :

Gesse tudo que a antiga musa canta*

E Natouche, tendo escripto, com1 uma eloquência divinisadora, que «nem na presença da Madona de Raphael, nem das grandes pinturas do Vaticano-, ou dos frescos da Capella Sixtina, sentirá com tanta for- ça que estava iem presença dum génio raro e pode- roso», concluirá que o S. Pedlrot, é «um dos seis ou sete principaes primores de arte do. Mundo». Mas, quandio me vi diante do; olhar do< S. Pjeídroi, olhar hu- mano e {palpitante para a minha* visão extasiada, pen- sei na ereança d 'olhos azues, a quem aquelles pUios de tinta feitos ha quatro séculos infundiam terror.

Os olhos de S. Pedlro lencaram-nos duma face do árabe moreno, com severa doçura. O chaveiro do ceu está enthronisado!. Pesa-lhe na cabeça, bem cin- gida e geitosa, a tiara papal. Caie-lhe dos hombros a casula riquíssima do sacerdote míaximoi da Egre« ja. Desoançam-lhe sobríe os joelhos os santos evan- gelhos. Tem, á mã(o .esquerda, erguida, a chave da celeste morada, e a dextra detem-se parada, nuim; gesto d^esqueicimentO', completando a serenidade im- perativa da physionoimia.

Considerada historicamente!, a compbsição de Grão Vasco* <e paradoxal. Na sua phantasia,

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o plescador de Tíbleriadía apiparece trajando as vestes sumptuic^as do> papa ; (a potestade explende-lhe duma curul pontifical^ cujos ornatos, pior culmiilo de de- sencontro chroniologieoí, são nada menos quie; os an- jos montados em1 dragões da cadeira principal . inda existente no- coro da Sé. A cidade, vista ao fundo, lado direito, é flamenga, mostra as lempenas trian- gulares, á maneira de degráos, que ainda se vêm1 eto Bruges. Nas columnas/que $&o corinthias, facilmente se notam irregularidades, despjroporções considerá- veis. A paisagem é Idle Flandres, isto é, transplanta- da da pintura flamenga quinhentista. E S. Pedro calça luvas.

Diante da obra prima de Grãoi Vasco, cònsidera- se tudo isto e fioa-se, no entanto, sem animo para a abandonar, parado, enlevado^.

E quando se reflecte que o S. Peçlro foi pintado no século- XV,' numa *ép oca em quíe s/ santidade do- minava espiritualmiente a Europa, e Perugino<, não influenciadio ainda pelo sieu discipuloi Rafael, nem combatido por Miguel Angelo, dominava a arte coto a sua pintura sagrada cheia também1 de contradições, tudo se justifica ao pintor portuguez. De resto, os seus contemporâneos da península foram attrahídos pelo estyllo, a tjechnica flamenga, que entali fazia escola em todas as Hlesparihas.

A figura de S. Pedro rlepresenta ti poíder papal, destacando-se da cidade áiegrumosa, das finas colum- nas, da paisagem, do próprio thronoi; os detalhes secundários apagam- se, numa colmjoí píejiutobrâ, por traz da tiara, je o que avulta, é 0 santo, ou papa, om symbolo, imtoortalisado no seu extraoírdinarioí explen-

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dor. Porque, S. Pedro, papa, arablé trajando^ vestes piontifioias, seja qual for a significaçãoi convencional, é bello. Tioda avpaixãio esthètica do inda agora mys- teriosoi Grãoi Vasco se produziu níelle. Ha um sonho magno de ereação no grande quadro, e eioimpirehende- se que, querendo objectivar esse sonho, toda a pa- ciência e affecto do; artista ereador se esmeraram', como para attingir o ideal supremo, definitivo dum génio. No olhar, onde, com assolmbro, estacam' os mais ingienuos, sente-se palpitar a visãOi profunda de certas figuras de Rembrandt, descobre-se uma an- ciã infinita d'expressãiO-, quie fosse a synthese, a fi- nalidade dum espirito ^excepcional. A chave salien- ta-se admiravelmiente, parece esculpida; a sua som- bra rivalisa com a realidade. O clariOi-escuro, leve, suave, natural, ganha o trabalhla inteiro, insinuando- se ainda nas imperfeições architectonicas. Noi pane- jamento, realçam minúcias delicadíssimas. Ha tre- chos, na casula, que se confundiriam1 talviez com1 o tecido.

O pintor muito se exercitara nessas particulari-* dades paramentaes. Quando CiOimeçamos a observai - as, queremos afastar a illusão, descobrir os traços do pincel, o segredo scenographico engainador, e nada mais se nos accusa que um primior de tecidos raros, uma harmonia de colorido encantadora.

Demorava eu a minha deslumbranda impressãiO ante as taboas felizes da sachristia. Entrou um padre magro e alto. Abeirou-se da comimioda, pioz-se a des- paramentar-se. Entrou depois uma rapariga, alta, Ma- gra também, e pallida, com olheiras. Cochichou na orelha ido padre. Elle ouviu de vista baixa, e, imime-

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diatamente, ambos desandaram para o corpo do tem- plo. S. Pedro, que tudo olha, via-ois sair. E os seus olhos severos síeguiram o nervoso' par até que' as duas esguias oreaturas diesappareoeram na abside.

Eviocação

Uma noite, ao luar, contemplando, no mirantie da quinta, sob a nogueira que sotmbrêa a estrada, a cidade silenciosa, tão -escura díe encontro ao- céu des- maiado, evoquei os feitios antigos dos serranos da Beira.

Das cercanias da Cathedral, daquelles paços es- quecidos e .arruinados, sahiram os cavalleiros da Eda- de Média para as pugnas sangrentas da pátria e da fé. Por estes valles e cerros adormecidos, nos sou- tos sombrios e nos descampados dos arrabaldes, du- rante séculos o tropel dos ginetes ajaesados sorpren- deu e espantou a matinada. As sombras onde o al- deão agora dorme a sua sesta de pobresa resigna- da, acoitaram homens d 'armas, estandartes que voa- vam por cima de armaduras e mornões, lutadores moiros e christãos, suevos, romanos, gente de Leão e Castella, resfolgando o .cansaço das batalhas. O oi- teiro de quelhas mal cheirosas foi o bairro, f idalglo de Ordoínhoi II, que, num dos solares certo de- sapparecido, installou sua corte faustosa arrebatada mais tarde pelo famoso Almansor, o< capitão^ dos moi- ros castelhanos. As muralhas, de que pouco resta além 'da chronica vangloriosa, detiveram outro rei de Leão, Affonso V, que uma setta matou na tro- pelia dum cerco. Os ventos da Beira sopraram, pelos

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penhascos e faldas de entre o Caramulo é a Serra da Estrella, na ponta de lanças ensanguentadas, nas capas, nos pelotes desfarçando cotas de malha que resguardavam o ipeitoi dos guerreiros, assobiando com a fúria dos zagíaloites e pel oiros. Por noites estrella- das, a via-lactea, que, neste anno de ventaneira e trovão, se espelha na aguas quietas do Pavia, pas- sou, em reflexos, sobre as laminas tolortiferas.

Os carreiros, os ervaçaes, a urze, o tojo, eram' familiares das esporas doiradas e repoisavam dos contactos do sol com a forma dos sapatos de ferro e das grevas, aqui calcados na pata de corcéis, a- deante molhandoi-se no sangue das victin^as.

Toda a verde serrania convisinha a Vizeu é o antigo scenarioi épico de guerrilhas em que os pró- prios soldados romanos se vieram bater e pela traição e o assassinato, puderam triumphar de um simples pastor de quem1 a paixão do solo» onde nas- cera fez heroe.

Pelo te!mpo da moirisma e, depois, nos dias máos das invasões d'Hespanha, os seus muros não dormiam tranquilloá, a espada dos cavalleiros não se embainhava segura de uma féria duradora.

A setta que matava Afíonso V, influia em! seu genro Fernando*, o Magno> Uma sede de conquista e de vingança crudelissima, e suas hostes afinal, arremessando-se em nome da Cruz, tomavam a ci- dade. '; i |

As vietiorias, os triutaphadores, conquistadores., reconquistadores succediam-se. Cada um delles cui- dava de reconstruir as fortificações destruídas no ultimo combate. E fcLesta sorte, a cidade, gloriosa,

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saqueada, inciendiada, 'miais resistindo .sempre, via escoarem-sse gerações de fidalgos nas suas quadrellas e trincheiras temerosas.

Um dia, os hespanhocs corridos de Aljubarrota,, encontrando-a meio abandonada, porque os nobres vassallos d'el-rei se tinham piartido para a guerra, sa- ciaram nos habitantes de Vizeu jaquelle furor car- niceiro que, noi campo da honra, não puderam reali- zar as suas espiadas fugitivas. Mas D. João1 I, o De- fensor do Reino, soube recompensar em1 liomenageins o que a terra de Viriato perdera nas vietimas imtao- ladas á sanha de Castella. Reuniu dtaas vezes as cor- tes portugufezas deante \áa, eathedral, e, quando lhe aprouve [galardoar o grande infante D. Henrique, foi Vizeu 01 ducado que imaginou condigno dos ser- viços e merecimentos daquelle que creára, em' Sagres, a escola de navegação donde as primeiras timidas caravellas se avienturaram aos mares desconhecidos.

O desastre fem Africa, que, com as lembranças tristes de D. Slebastiãoi desapparecido, arrefeceu no paiz os surtos arrojados, trouxe á valente cidade a de- cadência le o desanilno. Mais tarde, a dominação d'- Hespanha ve^gou-lhe o resto d'impeto varonil assi- gnalado em tantas lutas. Q orgulho das nobres fa- çanhas definhou 'nas humilhações da dominio extran- geiro. As espadas ienferrujaram-se nas quadras em- pobrecidas, e a lembrança dos seus feitos, repe- tidos nos serões 'plelo inverno, lhes dava o fulgor1 e a força de brandir e cortar nas carníes mtoiras e cas- telhanas.

Na hora íefr/qufe' as tropas de Napoleão lhe tran- spuseram as portas desgu^rnlecidas, havia noi bairro

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medieval sobras die1 fidalga vaidade a fermentar or- gulhos de familia, e as derradeiras alfaias da traço de um bispado< muitas vezes secular, eram1 es- condidas sob a campa dos guerreiros.

* Vizeu d!'.ajgjoir,a !

A Vizeu onde lestou, cidade de reminiscências e contrastes, viviendoí entre formosas serras verdes, abriga uma populaça© conservadora animosa na po- litica e no amor, inesgotável d'imaginação: phantas- sista, mais disposta aos prazeres que á tristeza.

E' Republicana. A bandeira verde- encarnado; tre- mula, nos dias de gala, junto á cruz das egrejas se- culares. O seminário e o> antigo- conventoi dos Ter- ceiros alojam1 batalhões de infantaria e cavallaria. Quem lhes passe pleas cercas ou lhes defronte tos clássicos portões, debalde evocará as tertúlias d'es- tudantes ou de frades merendando, e folgando era1 baixo dos carvalhos. Nos pateos, nas sombras do arvoredo, cavallos lespojam-se rinchando; pelos ban- cos de pedra, segundo a tradição! inda saudosos das orações vesperaes ciciadas ao toque das ave-marias, repotreato-se galuchos chalaceando namoros, e á noi- te, á hora das preces, a corneta serviçoi sopra coim! um estridor marcial sob o clarão das estrellas.

Coím a Republica, a família dividiu-se; em1 nfionar- chicos e republicanos. A tropa invasora dois templos, que as mulheres, apesar de devotais, amam1 implaca- velmente, proteje as instituições. Quando rebenta uma conspirata, das muitas, e truculentas, que en- sanguentam' a politica e a ecloinomia pprtugueza, a ca-

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deia de Vizeu recebe grande porção! de cjonspiradores,, e, na leva de toionarchistas que visitam e alimjenitiató os presos, marcha sempre pessoa de confiança d'al- guma farda. #

A soldadesca barafusta dia e noite pela Praça, pelos jardins e ruas, concorrendo, indefectivel, sobre- tudo nas festas e sarilhos; envolve- se !na vida ur- bana tão intimamente, que, nos ajuntamentos, quer profanos, quer religiosos, parece ser tudo; um1 e sol- dados e paisanos aguardarem 'apenas a oocasião de trocar a fardeta peto jaleco.

Dua.s vezes na semana, ás quintas e domingos, a banda dfa 14o retreta no coreto do Rocio, que é 0 centro civido- da (cidade A gente moça— senhori- nhas trajando segundo OíS figurinos de Paris, estudan- tes com longas capas negras esvoaçando, vão dum extremo a outro dio passieiío., á noite, de verão e, pelo inverno, de uma ás três da tarde, por entre os renques de bancos, onde as mães e os homens gra- ves conversam olhando-os passar. As iexhibições faus- tosas fazem-se no Theatro Viriato, na Sé, nas toira- das e nos bailes do Grémio», dos Bombeiros, do Montepio, nos quaes, os velhotes se agglomerani1 no bufete ou nas bancas de jogo e as mães de família, vestidas rigorosamente de preto, se assentam1 ao lon- go do salão emquanto as filhas dansam'. A aristocra- cia costuma ir aos domingos, á missa dò> meto dia, na Sé. A' sahida os estudantes formiam1 alas nos d!e- gráos da entrada, cota' a cabeça &o> sol, e assistem descer >e esmadrigar-se para as ruas esconsas uma multidão de olhos pretos mystèriosois e encantadb-

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res. Essas lindas mulheres beiras gostam1 de appare- cer bem trajadas. i

E' habito social que lhes herdou talvez a pas- sada riqueza e prestigio cidaide. Poupam, reco- Ihem-se um anno, para que, nas grasndes festas, a simples burguezinha possa emparelhar ;o. seu traje com 01 da fidalga mais rica.

Em Setembro abre-se na Ribeira, ao da Cava de Viriato, a Feira Franca instituída por D. João I. Armam-se barracas, em que se vende tudo, desde a panella de barro e a albarda grosseira até a jóia mais fina.

A* terça-feira, o Rocio, a rua Formosa e a Pra- ça transbordam Ide pioyo das aldeias. Os homtens, com o casaco pendurado ao hombro, falam alto e muitíssi- mo debaixo, dos seus beirudos chapéus. As mulhe- res, com crucifixos de oiro sobre o peito» e enormes argolas nas orelhas, agitadiças, attenciosas para os soldados, falam também1 ínnuito e alto, te prolongam1 o final das phrases numa agudeza aflautada, tãpi for- te, que o, coro das vozes fica vibrando, por cima dos negócios. E, sem dispjensar o carago! hespanhol, usam todos uma rude pronuncia emj que o c branda soa tch. Depois 'das onzje, as carreteiras reerguem' as suas canastras, traçam p dhaile e distribuem-s^ pelas quatro estradas poleirentas de Vizeu. Em meio aos grupos que se vão descem, cj.e regresso, famílias inteiras, endomingadas, cada plessôa com1 o, seu ra- mo tangendo para a aldeia a porca e os bacorinhos

não vendidos.

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E' uma volta penosa. Ao começo a marcha correi bem'; mas, de repente, em: plena rua, a porca em'-;

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perra. O 'maridp puxa para a lestrada, a duas mãos, a corda que a prende pjor uma perna. Mãe, filhos, ás vezes uma ninhada dos doze aos cinco ajinois, açoi- tam p animal, quando três bácoros rompem Oi cer- co. La correm todos, desesperadas, apertando os ra- mos, vergastandiOí e gritando afflicta(mente. Assim até a aldeia. ; , ; [t, . [ ; [ ..'■<

Nps dias comtoiuns Vizeu é quieta e repoisan- te. Ao amnahecer, os padres e as beatas sobem1 len- tamente as ruas Íngremes, caminho das egrejas. A's nove 'horas, um cura inda jovíen galga a sineira de S. Sebastião e toca á missa. Defronte, num sobrado de caiadura limpa, os doentes de tochas as classes es- peram a consulta do dr. Cortez ; depois da qual o illustre clinico accende: um cigarro-, abre o guarda- sol e, saudado por quantos o vão encontrando, ca- minha para pi Hospital, que a sua direcção traz me- recedor dos maiorjes elogios. Deppis das missas, a casa da Camará enche-se de advogiados, escrivães e partes interessadas na faina do tribunal e dos car- tórios. Damas dai alta, 'caprichosamente enchapela- das, saem a compras. Algumlas delias, seguidas da creada, param ante as canastras da Praça, indagam preços, regateiam. Quando, relógio da badala meio dia, a Praça, o Rocio, a rua Formosa e as mais ruas melhores caem1 num grande silencio. í

Até as duas, a espaços a calma dessa sesta; de província é ferida pfelo raspar dalgum sapato fer- rado nas lagles doi calçamento, ou o martello do la- toeirp isolado, batendo na sua tenda.

Entre o almoço e o jantar, píessôas gradas, offi- ciaes je. letradps conversam1 tia livraria! coisas da, terra,

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pbKtfeá é lavoíra, éftlqír^rífô o comboio do. Vai Vouga, apitando no valle, lhes não traz as folhas do Porto com assuíS^tiós novos para as mjesimas conver- tas. A' tardinha, um Sujeito magro apregoa os jor- nâés Lisboa pela avenida, e é quasi assaltado: jun- to aos quíôêqWQs do Rocio. Cae a noitle. Vizeu como que adprmeeie. ÍJ;0 interior das casas vem uma luz parca. Pelas quelhas, n⧠visinhanças da Sé, attraen- tes pela sua cumplicidade lúgubre, juntam-se em1 na- moro estudantes e Qostureirinhâs desvalidas. Nos bancos" ido Rocio, con versa- se; mas os individues mais qualificados, os da justiça, do comm!ercioi e da industria, se param nos bancos do logradoiro, aguar- dam a 'hora de affluir para o Grémio, onde pa'ssajra a noite noi cavaco. Alguns se recolhem á casa pela madrugada. Ha em Vizeu um estimável senhor que se não deita jamais no dia ieim que acorda. Uma noite, noi Grémio, depois da ceia, o doutor delegado, por troça, disse que perderia vinte mil réis se elle bebesse vinte ovos. Firmou-se a aposta, acercaram* se os amigos, ,e o heroicoí noctívago bebeu os vin- te ovos.

A' noite, a cidade míedieval terá encanto somen- te para quem lhe quizer recordar o< passado belli- coso. Mas, então, sentirá, avolumando- se nas ruas ermas, nas vielas, nos terreiros, sob os arcos histó- ricos, partindo, dos solares, soprando da própria egre- ja da Misericórdia, um cheiro activo, «envolvente, doí- minador de sardinha assada-

88 As festas de Santo António

Portugal vem de festejar seu santo- nacional, o milagroso santo António de Lisboa. Em Vizeu, ape- sar das chuvas e dos ventos, os festejos foram ex- cepcionaes. Doente da garganta, não pude assistil-os. Mas sempre vi e ouvi com que contar alguma coisa. De festa religiosa, houve apenas uma missa cantada e sermão. Talvez seja a exaggeração, muito- com- ímim neste paiz, para o bem1 còsnioi para o mal, porém dizem que nunca ouviram ao? bispo pratica assim1 elo- quente ie profunda.

A* celebração da Egreja concorreram as damas vizienses o mais galantemente possível. As senhoras de Vizeu são famosas por seu esmero e luxo* no ves- tir. Contam que a rainha D. Amélia, que costumava dar esmolas para os pobres em1 todas as cidades onde demorava, de|piois de examinar-lhes em' silencio a toiliette, uma tarde de recepçãoi, dissera:

Uma cidade onde as mulheres se vestem! as- sim, nãoi temi pobreza, não precisa de esmolas.

A rainha engahava-se assim julgando as se- nhoras de Vizeu. Em Vizeu ha fortunas, gente que passeia tio extrangieiro ; mas aquelle primor de ves- tuários, as sedas, os vidrilhos, as rendas finas, eram a exhibição dum dia extraordinário, a chegada de sua magestade, tão magna !e tão grata á capital deste districto então, como outrora e ainda hoje, o dia de Santo António. Aqui se diz : «Quem não põe vesti- do novo dia íde Santo! Antoínio, é porque não> pode». E quando se vêieto taes vestidos novos : «Os brincoís, os anneis dçv|em estar em^erihadps.» A1 viziease pp-

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bre passa iiesignadaimleinte ;emi casa o anno inteira, poupando, para appareoer bem nas festas de Santo António. E si nas festas nao tem economizado p necessário para um vestido conforme o. uitimo gosto, possuindo alguma jóia, põe-na no prega e vesie-se, embora o resto dio anno passe -o comendo mal, semi sair, para juntar com que ,a desempenhar. Algumas levam assim a vida, empenhando e desempennaindoí braceletes paira se ap-çesentarefri distinctamente uma vez nos doze mezes. Nesse dia nao de encomrai-as trajando segundo o memor tigurino pariziense no que elie temia de mais viscoso, cnapeo moderno a moda da estação e sapatos finos. E' por isso. que as ruas estreitíssimas de Vizeu, ordinariamente são* tran- sitadas apenas pp-r mulheres da aldeia que vêm a compras, de lenço a cabeça e chaile aos hombros. Pensa- se serem ruas abandonadas, essas ruas mudas, escuras, frias, húmidas, cujos pprtaes fronteiros quasi se podem tocar abrindo -se os braços. Ao tempo das festas, não: ellas se repovoam/ se alegram de olhos negros espiando das janellas, e, nalgumas, ha, ás vezes, mais bandeirolas que cabeças. Essas bandeiro- las são hoje republicanas.

No Rocio, as bandeiras penderam mesmo dos palanques, donde familias assistiram á batalha de, flores. E que satisfação em todo este povo !

Os que vivem no Brasil, pensativos, caseiros* queixando-se da politica, não sonham como- estas po- pulações da Europa se divertem. O divertimento é uma condição da vida. Ninguém comprehende vi- ver sem se recreiar. Festas como as d 'agora desper- tam, exaltam essa capacidade grande de alegria, que

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é em todos uma das feições humanas mais patentes e irradiantes.

Quando- me falaram a primeira Viez no Santa António, pensei numa novena, missa cantada, T,e- Dieulm, e procissão; dentro da Sé. Quanto se illudira a minha supiposiçãp. ! As festas começaram por uma toirada. Cerimonias religiosas, houve-as, e muito, con- corridas e splemnies, mas as boecas ppuquissimo delias publicaram, subindo pi enthusiasmo somente até ao sermão. Ao contrario, os toiros fpram1 recebidos na estrada de Repezes por milhares de pessoas, anima- das todas de um regosijo parecido áquelle com que antigamente leram recebidos os grandes do reino. Logo que Vizeu tieve por hospedes os bois da toirada, as creaturas enchíeram-se de um contentamento que nem as chuvas, nem as névoas de junho puderam: arrefecer. Desceram aos toiros por uma tarde fresca,, com chuviscos, molharam-se na volta, miolharam-se nas passeiatas nocturnas da rua da Commercio, sob os fogos chinezes da Cava de Viriato e, ainda em baixo de grossas nuvens íe juizos ameaçadores, en- cheram o Rocio para a batalha. Não se poderia me- dir então o contentamento popular. Avaliemol-o por isto : o notário, homem de cabellos brancos, cheio de filhos e de achaques, foi de automóvel a Coim- bra, á noite, reentrando pela madrugada, para solici- tar ao director do theatro coimbríense mais um1 es- pectáculo da companhia em que anda Palmira Bas- tos. Vieram romeiros do Porto, de Coimbra, de toda a margem do caminho de ferro da Beira. As aldeias próximas „despovoaram-se. não havia comtoodos nos hotéis, e os <bilhietes de theatro, estando, duas

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companhias trabalh&ijdia. diariamente, eramf adquiri- dos por favor, í

As quinze mil almas de Vizeu, com umas duas mil de fora, fartaram-se de «gu^ar». Tiveram1 piara issoi duas toiradas, a missa cantada da Sé, seis es- pectáculos, fojgjos chinezes na Ribeira, na segunda, de nove da noite até uma da manhã, exposições no hos- pital, na casa da Camará, festejos nojs quartéis, mu- sicatas nas ruas illuminadas, uma tarde de batalha de flores, !e tudo coube em quatro dias chuvosos.

A batalha de flores íesteve desanimada, piara: batalha. Mas sempre rodaram uns seis carros m'a- gnificois. Dentre lelles destacavam-se dois pela origi- nalidade : um aeroplanoí e um moinho de vento. O moinho, levava moleirinhas que atiravaniS rosas dos postigos. O -catavento nãpi rodava. Effeitava, no emtanto-, lexeellentemente. O aeroplano marchava so- bre um carro de bois. Porém a ímjesa desap^piareciaj colmo simlples succubo para um'a cobertura díe hera nova, e o cabresto* da cajn|gia lera tirado pior uma camí- poneza muito bonita, vestida, á mioída djoi Minhoi. De cima, os aviadores atiraViaim bombioins e coinfetti á multidão. Deram-lhe o* primieiroi premio. Premiaram também um carro de chiniezas. As carinhas beiras que* iam, ficaram muito bem» achiniez:ando-se. Para: que nãoi faltasise a pjolitica níess,a tarde de flores e lindas raparigas, um automóvel conduzia cincK) me- ninas vestidas de azul íe brancoi. Chamaram- lhes ta- lassem as. ;

A praça em que os carros p&ssqaram!, é peque- na. Ha no centro um coretío!, omicfe a musica toitíava o tango argentino; ppr fora, rente; ás arvores, umai

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rua ide oito inteiros, qu|e foi jói câmjpjot da batalha ; mas, dos lados, sobrados e rampas que oj povo encheu completamtente. Famílias ide sócios dioi Grémio*, pu- deram ver tudo do alto, recostadas a um largo gradil. La estavam1 as tojlettieis custosas que ellas mostravam coím orgulho. Outra gente formigava na praça, em torno aoi coreto, qu, estacada nas ladeiras, reparava. Elm ímeio< aos chapiéois novissimois idas senhoras, aos côoos e abas largas dos homens, sioforiesahiatml os boi- netsi militares cintados de encarnado. Onde se do- brava p tagal dos platleaus e dos canotiers, descoj- bria-se uma pasta de cabiellos negros luzidios cahin- doi sobre um1 roístoi trigueiro ou miorteno pallkkx as loiras são< raras. O moreno, uta migrenioi díe trigbi miaduro, pnde brilham dois plhbis pretos ou casta- nhos, é que aformoiseia a fadei da poírtugtieza, ser- rana, encantadora de reminiscências castelhanas e árabes. Se é rica, oís tenta um1 toique vindoí de Pa- riz, se não arranjado no; Grandella, em1 Lisboa. Se pobre, a cabelljeira farta desapparece encapuzada no lenço, cujas poiritas aperta, |em volta díoi pescoço, o. chaile píeninsular. Muitas vtezes nãoi se lhes vêm as mãos. As (mãos seguram' as djoíbras do chaile, com- primem' cojm' ellje o trjoncjo, Idiescendioí até os quadris, donde com o andar, as duas pontas franjadas ficam baloiçando ao longo da alrga saia. Nesse1 comjprimir dot chaile ha talvez uma preocícupaçãoi de belleza,, porque lelle acompanha rente a forma perfeita gros- samente eímbuçada. O lenço é, ení regra, ama- rello, azulado ou escuro cotai flores ainarellas., O, chaile, azul tmarinhoi. Na subida, ao> fundo1 da^ praça, essas mulheres de lençoi e chaile se apinha-

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ram, fieando-lhes sobranceiras, no igradil do Grémio, as elegantes de ehapiéo. Estas, porém,, não passavam1 das figuras femininas de todas as plequenas cidades vaidosas da Europa e da America. Queim* se desta- cava, naquelles milhares de pessoas, eram' as dte len- ço. Elias, sim1, lemlbravaiji! o verdadeiro Portugal de todos os tempjos, míeiío' moiras, (mteio hespanholas, fortes, sadias, a cara eniergica, entre mysteriosa e sentimental, olhando, eomio duma edade relriloi-a, es- quecidamente, aquella comedia ingénua da raça en- fraquecida e civilizada atirandp.-ee malmequeres da caixa dos autoimoíveis. /

i i H* íf*

V ;.

Na manhã seguinte, findos os festejos, uma banda de musica desceu a rua do> Comímercio, com a bandeira social ao centro, acomípanhada de garo- #tos e assistida, nas calçadas, pelos camponezes vin- dos á feira. A banda dobrou a rua Formosa, enfiou pela rua Direita, parando aqui, além», sempre a to- car. Disseram-me que andava a cumprimentar as soj- ciedades recreativas e benteficienties de Vizeu. Na rua Direita, estorvou uma vacca. Ficou adeante a bater, emquanto o animiaí arremessava da corda, que o vaqueiro mal cion tinha, bem* que a segurasse com as tajãos ambas. ,Entãoi Mané pa Bouga, mendigo ve- lhote um tanto philosophoí, aproveitou a presença das meninas que surgiam nos sobrados, para piedir. Era o único indifferentíe áquelle pittoresco, fim! das fes- tas. Durante a tocata, os fpinotes da vacca, a curiosi- dade das raparigas, estíeve coifi o |canapu,çío( e o;s lolhos piscos para cima.

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A cavalhada

A's quatro; horas, rompeu a névoa, uéti! ba;rida de vadios cantandoí o fado. Forniu os primeiros en- thusiastas da cavalhada, descendo a Vil-de-Moinhos ao encontro» dos romeiros ie acordando ai cidade coim a berraria da cantata. Depois de ouvir esteí desper- tador lyrico ambulante, ningueM tm;ais doitmiu. Ama- nhecia. Noi calor dos aposentos, cpinsultava-se o re- lógio. Cinco horas. Mais (madrugadores, carros, ri- sadas. O aborrecimento, porquie a cavalhada su- biria ás sete, crescia em raiva contrai os fadistas, mas tam)bem os rumiores da rua inoitavato 0 desejo de assistir ao espectáculo sempre novo da cavalgata, dos moleiros.

Vil -dei- Moinhos é um «povo» numeroso de mo- leiros, operários íe pequenos lavradlores, afundado n,o valle ao. de Vizeu, com1 egreja, seu parodio, ca- saria de pedra, alguns priedios de dojs1 aiadares e mui- tos taoinhos. Atravessa-o um braço dói Pavia, tran- sitado sobre ponte, com1 quedas dagua varias cap- tadas em baixo? para mover ,a lage das mós na tritura do milho. A igiente é activa, andeja e dejs- boecada. os dentes, os que lavrámi a terra, a professora, ot padre, os velhinhos, não. sobem diaria- mente á cidade. Pela írríadrug&da, são os trabalhado- res da Camíara e das fabricas, galgandoí a ladeira, desembocando ha Cruz de Pedra, gralhando! ou, can- tarolando. Ao imieioi dia, as mulhereis, rapjarigasí e ve- lhotas, de pés descalçois, com í> cestio do» jantar para

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os homens. A' tardinha, tambemi gordas campbnezas d'idade e cachopas vêm carr!ejg!ada;s, os seios a tre- mer, desnaljgando os quadris, riesfolegandoí suoren- tas ao peso dos canastrões. S,ãp poirtadoiras satisfeitas de legumes, verduras para o mercado, mercadoras de broa, de triga-milha, de sêmia. No correr do dia, vão e vêm carros, pjuchadios por dois boizinhois ful- vos, o carreiro- á frente, de carapiuço: á cabeça, ta- mancões e a agiuilhada aot hombro. Die violta, leva moçoilas carreteiras, qu;e cantaím^ elnfeixadas entre os fueiros. O carneiro, pachorrento, joga-lhes cho- carrices.

A população de Vil-de-Modnhos celeb rizou -se em Vizeu le na f anila das aldeias convizinhas, pelo seu desregramíento de linguagem1. Não haverá talvez em* todo o planeta creaturas assim1 pornographicas. Os palavrões obscenos mais grosseiros caemt da bocca dois homens, das casadas, das solteirinhas a das creanças comi a espontaneidade, a naturalidade diíma saudação. Tudo que a sexualidade depravada pôde inspirar de torpe á linguagem1, a gente de Vil-de- Moinhos recolheu com ardor e usa com uma volú- pia bravia. Avalie-se que a expressão, das expres- sões sujas, mais innocente naquelles lábios sadios e, porisso, a única que ouso aqui divulgar, é esta: «Olha que eu dou-tie um pontapjé na maça da albarda, alma do diabo».

Nestas paragens, ha pessoas distinctas cuja lin- gya é assaz porca, creaturas de apparencia sensível, suave, que, conversando coisas d 'amor e vida alheia, empregam termos indecentíssimos. Mas os de Vil-de-Moinhos contam1 maneiras particulares,

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mais fortes, mais livres, incomparáveis de sabor vi- cioso e caracter gallego. Vi já, na avenida nova, es- tando graves senhoras ás sacadas, uma velha poi- sar no calçamento a canastra de couves piara descom- por a um sujeito. Conrprehendo-lhe a intenção», o sujeito entrou numa alfaiataria te escondeu -se. As da- mas recolheram'. E ella, bracejando furiosa, batendo os pés redondos, em toda liberdade, escandalizou as próprias regateiras. Um cano d'exgotto rebentando para falar.

Vil-de- Moinhos possue typos que são< conhecidos em Vizeu coimo se fossem typps da cidade. E' Mané pa Bcuga, que vai mendigar todas as manhãs á rua Direita e regressa de tarde, baixote, franzino, corcun- da, cosido num casaco coberto de remendos, a mão no bolso» da calça, vagaroso, desconfiado', um1 com- prido cigarro fumegando nos beiços e os olhos meio scismaticos volvendo- se lentos para tudioi. E' Oi tolo cantor, da Rita, bem' trajado, alvo, infantil, es- cancarando a bocarra, a cantar sempre que desco- bre uma janella piovoadja. E' o silencioso irmão* da esposa dum eomfmerciante, que a sua entolecera dan- do-lhe certa beberagem maligna, para se escapulir com1 o amante. E' o Constantino, o musicjo, comi a clarineta no sovaco., a repetir maniaco: «Ai, Je- sus ! Ai, que se acaba o mundo. E é por minha cau- sa. Ai, Jesus!» E' emfim a Rita Comboio, peque- na, grossa, a gracejar imimundataente com os ho- mens e, incansável, caminhando carregada mais que qualquer um..

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5JC, 5jC íJC

Trezentos e sessenta e três dias do anno, os fo- gos de Vil-de-Moinhos aeeendemLse para coser o cal- úo verde, as batatas, algum feijão1, e os habitantes, se bem tagarellani e 'desootm^õemi, são afinal os tra- balhadores submissos de todas «estas terras humilha- das por nove séculos de preponderante fidalguia. As mulheres desandam o caminho coto os tamancois na amieira e os píães da ceia, ás vezes, dentro do(S tai- mancos; os miaridois recolhem á noitinha, ás garga- lhadas, aos empurrões, embora jnoddos de fadiga; e se perguntarem ao garoto dlonde é, elle responderá tirando a boina rota : «Sou de Vil-de-Moinhos. Dá- me cinca reisinhos, mleu senhor Porém1, na véspera e dia de S. João, Vil-de;- Moinhos remoça e se en- grandece.

Alguém que se lembre de interrogar o mesmo humilde garotinho da boina rota, vel-oj-á voltar a ca- ra, sem se descobrir, galhofeiro, atrevidoí, para di- zer : «Sou de Vil-de)- Moinhos. Quer alguma coisa

Nos dois grandes dias, o adro amplo» da capella prommove-se a arraial dias festas joaninas, apinha- se ide romeiros. Chegam os ratuctuois qoimi a meren- da em saquinhos, pendurada no cabo< do guarda-chu- va, espessos copos e garrafões cheios para a vinha- ça. Come-se, bebe-se, dança-se o vira-e, á noite, ean- ta-se e dança-se ainda pulando- em roda das foguei- ras, í

Economizara-se mezes e mezes para os gastos da romaria. Tem-se um S. João gordo, farto, bem regado. Saem da arca as jaquetais de saragoça, en-

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gomtoam-se as saias brancas; hísfram-se os acotur- nadiOíS de coiro de vitella, e meia Vizeu, â £êíftàj d automóvel, a oaviallo, a pé, vai rondar a egreja,, ver dançar a canin!ha>-vlerde, puvir os descantes.

Depois da cavalhada, ençhe-se a «praça», toca a comprar. De S. Salvador, de Orgens, de Marzo- vellos, subiram «datas» de bacorinhos, de gallinhas, de cabritos. Pelas calçadas, ás nove horas, no rioa dia, estãoi ainda restos de espectadores. Vêmol-aaí passar, as carreteiras^ mpariguinhas e carcassas, so- braçando leitões, frangos, pesos de vacca, quartos de carneiro. Malhoa não reparou ainda, quem crer, nestes quadros, iemfim tristes, glutonaria portu-- gueza. E' um lortgú desfilar diè barrigudas cosiflhsí- ras e bonitas meninas, cadia qual com o Seu leitão únho loiro, manso, quieto, movendo a cabecita do- cemente. Alguns guincham com desespero. Mas qua- si todos são levados tão ealmjos, que vontade de os affagar. Vi um gallo, que me pareceu a figura representativa daquelle despreoccupado oonduzir-se para a faca. Annunciou-se á distancia com um coí- coricó estrondoso. E não deixou de cantar, em1 meio aos bácoros, pela avenida a fora, por toda a estra- da. Pareceu-mle a alegria das almias communicada; uma reproducção viajeira do gallo de Rostand, esse gallo da Vizeu, mais vaidoso, miais [Iludido que o> outro, coooricandjoi como' allucinado, em' pleno sol^ com os esporões no; ar.

* * ífc

Um tambor troou na curva da estrada, Os mo- radores da Balsa., agglomerado§ na quelha, debaixo

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das oliveiras, alvoroçaram-se, correram] a vèr. Troa- va o tambor na boléa d'um cháf-á-fcàncis, junto ao cocheiro, e íera a caixa dia. musica, a bater do- lado de -fora, isolada como se os toais instrumentos, que vinham' dentro, no carro, não tocassem1 também1. Aquém do tejadilho!, panriejava uSnlai bandeira vermelho ie verde, estandarte da irmandade. De- pois, manchas multicores, a ondular, adeantando-se na poeira. A multidão, soffrega, avisou, : «Os mor- doimos»! Sim; 'trazendo o estandartíe p reitor da mordomia, a cabeça enfiada ;n'um chapep de dois bicos, vinham' os mordomos, de cartola, casaca, lu- vas brancas, mointando pequenos cavallos magros. Deseobrindo-lbes, ao longe, os peitilhos brilhantes, os altos chapéos de pello, as luvas díe camurça!, nin- guém diria que leram os moleiros de Vil-de-Moinho^, vistos na tarde passada a guiar a carroça de taleigas, cpm os enormes pés sujos mettidos em: immensos ta- mancos. O S. João1 vestira-lhes roupa de etiqueta, aristocratizara-os, e se appro'ximava,m, eneasacadòs, cotmmentados, ridiculizados e felizes. Apenas a ca- saca tornara-os mal geitosos, de naturaes que são nos remendosios factos de coitar. O da esquerda, arqueava um grande folho sobre o peito, apparecia- lhe a ceroula; o porta-bandeira mal via o caminho, com o panno' a tapar-lhe os olhos. se lhe descoí- bria a ponta do queixo', o que nem sempre acontecia. Um desesperol : o bico do chapéoi a afunilar o estan- darte, e elle a afastar as dobras para o hombro. O da direita, por ser pequeno, rnenino< de feições, qua- si se enterrava, inteiro na cartola*, e notavam1- se-lhe as luvas, tão longas tinha as mangas da casaca, por-

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que segurava as rédeas e o chicote. A cartola cobria- lhe as orelhas je" apoiava-se-, atraz, no1 eollarinho, mos- trando o rostoi do nariz para baixo.

Os da Balsa são gente paupérrima, que vive quasi escondida num angulo da cidade entre quinta- rolas, !mas consideram os de Vil-de-Moinhos lín- guas tetaivieis, se .bem que trabalhadores, simples typos d 'aldeia nascidos, para dar pabulo á galhofa, Era galhofeiros que apontavam: «Olha os molei- ros». A cavallada é-lhes constante e edosa comoi o. en- tendimento. Todavia, repetiam- sem) cessar:: «E os moleiros de casaca...» Elles, se ouviamj, não se mo- lestaram; proseguiram picando os cavallinhos, im- perturbáveis na sua gloria ephemera de mordiolmos.

O cliar-á-bancs passou atacando um1 «dobrado», seguindo os moleirps, que abriam! o> préstito,. Depois, dominando o. falarioj, vinha um troptel de muares ca- valgados pior sujeitos de mascara;, coto' griande acom- panhamento. Marchavjam íandaus conduzindo senho- ritas e críeanças, autos, cavalleiros, -povoléo, tudo( a passo, numa nuvem de pó. Para as ptessôas amantes da boa pandega, onde haveria miais pittoresqo!, mais razão de franco riso saudável que na cavalhada dos moleiros ? Em Vizeu le nas aldeias proximlas canta- se uma quadra que bem lhes retrata o prazer pela ruidosa cavalhada.

Eu hei de ir ao S. JiQfãO', Ao S. João da Carreira, Ou a pé, ou a cav^llpi, Ou tia barca da Ribeira.

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A cavalhada plartira da ejgjcieja; díe S. João1, em Vil-de-Moinhos, para ir, de romagem1, atravessando a cidade,, á capella de S. Joiãioi da Carreira, que al- veja á borda da estrada, com1 um' arraialzinhioi defroln- té, sob as arvíores. Entre os mloirdotmiois e o acom- parihataento, zigtiezaguie&vaJrn', cptm olhadelas aoi po- vo, ás sacadas, aois mirantes, ois imprevistos masca- rados. Os mascarados de Vil-derMpinhois letabra^ ram-írie o atitigloí inicio dei carnavial dei Mamtanguape tembora .não sjoprajssdrri, colmoi la, pis trombonleis e pistões clarinaWdo marcialmietntte na miadruglada de dominglo. Cota^ que saudade ois vi passar, extrava- gantes na sua bizarria de calças avessadas', a masca-, ra mal posta, a Vergiastar ios jericíois ie vira:nd!o-se iná sella para responder tolices com a vjcw churumeloisa ! Este cavalgava enfiado numa cafrifea die mulher. Ou- tro se satisfizera com qj casaoot d!e cotim1, ;o infalli- vel colletão- aplertandío a camisa encardida. Havia cri- ticas. Como de Vil-de-Moinhos vêm1 as carreteiras com canastras, uln delles cobriu de ganga a arma- ção diurna grandissimja canastra!, prendeu-a ao» raí- bicho, e se apresentou abrigiadoí na sua tenda ver- melha. O companheira foi mais imag!in|osoi e comple- xo. Montou no burra os petrechos todos d'umia cosi- nha. Armou nas costas ido animal um' cavallete e pendurou -lhe nas taboas a pladella, dio' arroz, a certa, a vassoura de giesta, a almotolia dio azeite, facas, trinchantes, uma balança, ferros velhos e oi panno dos pratos. Os mais eram papangjús d'aldeia, escan- chados iios burricos, seguidíos djos risoínhos peregri- nos ide Vizeu. E' tradicoional iríeíri pis cidade bus- car a cavialhladia a Vil-de-MoinhiQS, levai a a: S. Joiãio!

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da Carreira e rieconduzil-a ao adro donde partiram1. GomJo caminhavam1 dte vagar, quando chegaram^ á ci- dade traziam1 de mistura as carrleteiras e as regjattei- ras que demandavam a «praça». E podia-sie notar, no meio de duas victorias, dois cíestos de repolho; ao lado dum p;atêg]o vestido de tmulhíer, com o lenço beirão a segurar a mascara;, dois canais trotes de bata- tas, e, mesmo aio» dos imlordomtois, tufos die! cou- ves e pilhas de broa. Mas era tudo cavalhada... (

Eíitrajnldo a cidade, a caixa rufou mais forte na boléa, sem1 íse imípiortar se aquillo era on nãoi da par- titura. Um alegrão para tioidos 103 esp!ectad'ores, uma esplendida niainhã aquielle S. Joãpi carnavalesco,, a mascarada dois mjoleiros, coto a sua musica, a sua felicidade aldjeã, aoi trote dos burricos, nas escuras ruas seculares.

Iamjos a •entrar1, qua;nd|o se ouviu uml g&lioiple na testrada. Eram retardatários : mieias de mulher, cal- ção de chita, colletíe em1 mangas de camisa;, chapéu braguez e uma prlessa desesperada. Eil-os a galopar perdidos na avenida, o braguez abanando!, em' busca da cavalhada. Então a Virgínia cabreira, que afinal pode pasisar com1 as chibas, voíciferoju tangendo* a vergasta : ; \

Vocês tatoferfí querem ir a S. João da Car- reira ? j | , í

O S, João | í . i

*

A's nove horas, inda uma v;ag;a claridade mos- tra ao longo do horizonte o> pallio escuros dos pinhei- ros. O nevojeiro de Ju;nhb,, adensado eto' miototões no

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fim1 da tarde cálida, encheu os valles, subiu nas en- costas, cobriu os bioisques de carvalho e os reduziu a# manchas azuladas monumentaes na verdura dos campos. Neste resto de luz mortiça, termo do dia, esvaindo-se num1 alvor impreciso de luar, erguie-se uma pequena chamlmia, fe logo se apaga, no terreiro da casnihota de pedra, E' noite de Sãoi João na Bei- ra Alta. Aos reflexos do sol quadrando em1 oiro as vidraças da velha cidade, sucfcedeu o clarão* das salas illuminadas. Luzem por sobre as cumieiras ba- las de pistoletas riscando no crepúsculo largas cur- vas brilhantes (verdes e vermelhas. Num terceira andar afastado, rodinhas vertiginosas irradiam as chispas doiradas. Accendem-sie as fogueiras. Erra no ar quente o aroma do rostalanoi. Velm1 da Balsa um] coro de vozes fracas. São meninas em' descantes. A este momento, Portugal todo canta. O velho reino navegador e jaylentureiro, transformado hoje numa republica de 'emigração e conspira ta, esquece glo- rias, infortúnios, saudades, para cantar pela bocca das suas creanças e moças (enamoradas.

. A noite de S. João Tem1 taes feitiços e encantios, Que endoidtece 6 coração E até faz peccar os santos.

Começaram as orvalhadas de S. João». A né- voa que cobre as searas nesta noite de Junho, en- volve o espirito do Baptista, é uma névoa religiosa e sagrada, vae fundir por milagre, decifrando' desti- nos. Aquillo que pernoitar sob 9. ioryalhada, posto

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com a intenção, fortificada na fé, de desvendar o, fu- turo, senidio recolhido antes do. amanhecer, ficará abençoado, & agua, a semíente, folhagem, syffibo-A los, tudo. Deita-se a clara dum ovo no copo. Leva- se o copo ao senenio. Pela madrugada, a clara have- rá tomado uma forlmía que representa a destinação de quem a deitou. A' meia noite, colhe-se agua nos tanques. Agua bemdieta, aquelle que nella banhar ao menos as mãos, será protegido! coAtra a doença e contra a maldade. Ao da leira, junto' a, alcôrca da régia, cresce a erva de Nossa Senhora, erva san- ta, que resiste aos temporaes e nãoi precisa de sol para medrar. Vai -se, no tesouro, quebrar-lhe os re- bentos, um para cada pessoa amíada, filho, marido, amiga, noivo-, namorado. Extendem-sie os galhinhos destinados sobre uma piedra, ao relentou

Aqui deito esta ervinha Em louvor de S. João, P'ra ver se mie queres bem', Ou n,ão.

A' hora da revelação;, a vergontea que se hou- ver conservado verde, provará affecto, correspondi- do; a que tiver murchado, affecto morto, ou falso. Acoende-s>e na sala, em1 meio ás solteiras, uma candeia de azeite, para a queimía das alcachó- fas. Estão unidas todas as meninas. O morrão sinho fumega em cima da míesa. Ha nos olhares uma con- centração abalada de temor. Uma avança, muda, e chega a alcachófa ao lume, chamusca-a duvidosa, a tremer. Depois outra, toais putra, até a ultimia. Apa-

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gà-se a candeia, descem ao quintal, supersticiosas, sisudas, expõem as alcachófas á orvalhada. Ante-ma- nhã, correm a buscal-as. Sp a alcachófa reverdeceu da queimadura, é o amior fiel; se continua chamus- cada, comjo sahiu da labareda, não ha amior noi co- ração para quem foi.

Aquelle que desconfiar da firmesa de certas ami sacies, 1 es põe os nomes num papel, que, dobra- do, se deita a uma bacia d'agua. A bacia dormi- rá á orvalhada. Si pelfo alvorecer, o papelinho hou ver aberto, apoios realmente queridos.

Querendo-se saber como se chamará' o. noivo de- sejado e nãoi conhecido, queima-se uma moeda de cinco-réis, que se leva em seguida á orvalhada. De manhã, chega-se á janella com1 a moeda empalmada. Ao primeiro mendigo, que pedir, dão-se-lhe os cin- co-reisinhos e pergunta-se-lhe a graça. Antojikx Será António.

Ao tempos que se prescruta o destino, em' amor, sorprende-se também a fortuna sobre haveres. Traz- se da horta uma vagem díe fava, escolhem -se os três. grãos maiores. O primeiro, descasca-se totalmente;: o segundo, metade; o terceiro, não- é descascaido. Mettem-se os três grãos debaixo' do travesseiro. Ao> despertar, no dia seguinte, enfia-se a mão e retira- se um dos três. Si for o prim'eiro, ser-sej-á pobre até a morte; o segundo indicará mteia pobresa; oi tercei- ro, riquesa.

* * *

Estas consultas á sorte se fazem no intervallor dos descantes. Em frente á pjorta, está a fogueira

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âccesa. E' pequena. Não se quer fogo, basta a fu- maça. U'm< monte de rostóaninho espera aoi lado, para a alimentar. Sobre o rostaijamo. queimado ele- va.se uma eolumna azul de fumo onduloiso-. No affl- biente morno espalha-se p cheiro provocador. O ar, pesado |e aromático, influe esquecimento e volúpia. As raparigas sapateiam, dão-se as mãos e assim, en- cadeadas, num arrebatamlento d 'alegria communica- tiva, dançam cantando em' volta da fogueira:

No altar de S. João, Nascem rosas ata&rellas. As rosas estão calcadas Do sapato^ das dionzellas.

Param de dançar. Dissolve-ae a roda, extendeiri- se em linha, uma atraz da outra. A da frente salta a fogueira. Crê-se que o aroma do rosmaninho, eirt noite de S. João, felicidade. E' preciso» defumar - se a gente com elle. Pulando, pois, o defumador be- néfico, mergulhando na fumarada, é que nos santi- ficaremos contra o mal. Toca a saltar. Mas uma la- bareda irrompeu dos ramos seccos. Precipitam-se to- das sobre a fogueira, matam a flamma a pés. Ago- ra vem mais rosmano para animar a columna de fu- mo azul. Tantas vezes se alteia p fogo, quantas o vão extinguir, numa fúria jubilosa, os sapatões de vitella. Quando de novo se ennovela a fumaça, as mãos pro- curam-se instintivamente, arfam os seios, movemi-se os quadris no- voltear choreantie e recomeçam as c^ji- tigas:

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CV mteu santo S. João, O' meu santo pequenino, Has de ser o m'eu compadre, No meu primeiro mfeniao.

» Dança-se, cánta;-se até cangar. Afinal, a fadiga afrouxa os dedos ás dançadeiras, cessa o> alaridoí, se- param-se, deixam de dançar. Para repoisar, come-se, bebe-se, fala-se por três regimentos em' folga. Po-, rém, na moradia defronte, arde uma fogueira. Arde outra adeante. Ardem' fogueirinhas por toda parte:, a crepitar fumegando e cheirando. O bando* dança- dor eoncerta-se, C!onstituie;-se em1 ralndho para as vi- sitar, o sai cantando rua afora: , «

Si tu fores ao S. João, ; Traze-me utn1 S. Joãosinho, Si não trouxeres um grande, Traze-me um pequenininho.

está a fogueira extranha. Sempre a cantar, as raparigas circumvagam-na rompendiO', ás vezes, uma nuvem1 de fumo. Que im!porta ! A fumaçai é per- fumosa, é betadicta. Fprma-se a roda. Umia piequena d 'olhos pretos articula, meio musicada, para signal, a palavra de inicio. As mais conhecem os versas, ouviram a splfa desde ;o berço. Cantata1:

S. João, p/ra ver as moças,

Fez uma ponte de prata,

As ruoças não' v;ãp á fonte. j

S. Joãoi todo* se mata.

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'Nenhum1 folguedo lhes lexcita mais a jovialida- de franca de solteiras. O S. João é uma festa d' es- perança. Vão a cantar, eil-as; vai um bandoí de futu- ras mães, a maternidade em flor pedindo marido, ao santo casamenteiro.

Meu S. João casai-me cedo, i

Emquantd sou rapariga; i

l Que o milho, sachadjoi tarde,

í Não palha nem1 espiga.

A correr as fogueiras, p grupo nãoi sabe, nem] pensa Inas horas: 'Anda a vagar, para, cantar e dan- çar, para casar. Não sei io> que lhes acontece, emi casa, ao reg'resso<. Vi, cpmtudio, um bando em ea- bello, que recolhia, tarde, cansadas as vozes, mas que cantava pelo mevoeirio, numa toada de marcha, ironicamente : ; ! j < :

1 !• ] Na noite de S. João, Muita pancada levei, Por causa das alcachoías Que por meu amor deitei.

 feira franca ,

Desço á Ribeira, á noite, attraido pela musica extranha duma trompa acompanhada a bombo, e tambor, que me Vem de la baixo;, e pelo clarão dum nevoeiro rosado que paira sobre a praça. O que é, bem o sei; pois se me aventuro á humidade e aoi das ruas mal cuidadas, é para ver a feira franca, a

iog

feira (de S. Mathèus, a feira annual de Vizeu, érea- da por D. Joião I, restabelecida por D. Affonso V e continuada nos tempos prósperos e nos dias de- sanimosos de Portugal.

Deante dos dois socalcos da Cava de Viriato, no campo onde se fazem1 as toiradas, construiu-se uma rua provisória de barracas de pinhoi e estabele- ceu-se o commericio urbano., com: outros negócios,, especialidades industriaes, fantochadas e cosmora- mas, vindos de fora. Um|a espessa friultidãoi de famí- lias, gente die todas as classes da cidade e da aldeia, mercadores, pregões, ao estrépito de orchestras, cam- panhinhas e gramophones, vai íe vem, passeandK} na extensa rua sob uma fila de enormes globos eléc- tricos. As senhoras edosas, ,as pessoas oomimodistas alugam1, ,a vintém1 por assento, íos bancos expostos ao longoi das barracas. Os mais coMem, bebemi ou andam.

A^ feira franca é uma exposiçãp! dos productíos nacionaes, objectos de luxo e de uso Ciora-imim1, de que quasi íodot o Districto, principalmente os lavra- dores, vendidas as colheitas, se vae munir, mas que todos, afinal, com um1 profundo^ amor aos gosos e folganças, procuram para se divertir. Concoirrem1 cutelleiros de Guimarães, ourives do Porto, fanquei- ros, lanifícios da Covilhã, loiças das Caldas, docei- ros de Lisboa, peixeiros de Estarreja, quantos têm que vender e lobrigam comprador es no Campoi da Feira. De quinze a trinta de Setembro, o commer- cio da cidade abre succursaes nas barracas de ma- deira. Lojas de modas, lojas de peso, casas de cha- péu e sapato, joalheiros, taverneiros, latpeiros, ai-

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bardeíros, csvasiam mostruários ie depíositos e, um frio amanhecer, são vistos na Ribeira, a cabeça qua- si tocando d tectosinhoi das barracas, a chamar aos camponezes.

Encontra-se tudo nas barracas da feira. Jóias, preciosidades de oiro e prata, que se vêem1 nas mon- tras de Lisboa, Coimbra e Porto, brilham agora nas cabanas amarellas garridas de Vento- e poeira. As quinquilherias mais interessantes foram trazidas de suas prateleiras civilisadas para as aspíeras taboas. Impro visar am-se papelarias, bazares de crystal e loiças finas, outros de brinquedos, como o celebre Bazar dos três •Vinténs, onde sie vendem1 bonecos, rea- lejos, rodas, miudezas graciosas de creanças pelo preço fixo de sieis centavos.

Installou-se uma cutilaria em cujos cartões es- pelham1 as facas mais ricas e originaes de Guima- rães. Num angulo da rua, abriu-se um> barracão de albardas, alto, com três faces á leseanclara e grossas varas passadas de lez a lez sustentandoí pesados al- bardões de forro branco. Dientro ha sellas, freio,s, esporas, estribos de metal nickeladoí e muita, pra- ta alvejando no coiro dos arreios.

Esta barraca vende roupas feitas. A vizinha, ob- jectos de moda. Na outra, além, festáoi somente fer- ragens. E nas duas pontas da rua : do ladoí d'Abrave- zes, deparam-se mesas e carros ambulantes com1 be- bidas em roda dum gramophone que replete hym- nos de nações divtersàs; do lado da cidade, uma se- rie de barracas de comedoria e divertkníenU/, claras, álacres, retumbando para o pateo, ojnde o mulherio

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de lenço e cliaile canta, dansa, comfe ou repoisa pelo chão guardando saccos e panellas.

Ao tundo dessas barracas festivas, installou-sie um1 circo Russo, oo;m ursos de tinta na coberta e um cavallo amestrado, no picadeiro. A' entrada, uma fa- mília, marido, 'mulher e filho, faz o reclamo tocan- do a extranha musica que desci a ouvir. O .marido so- pra na trompa uma eterna polka de corridas ; a mu- lher, queimada, suja, as repas caindo-lhe pela cara, bate o bombo e os pratos, e o glaroto, completando! o acompanhamento, surra um velhk> tambor com du,as baquetas grosseiras, tremendo de contente.

Pela praça, em frente ao circo, vende -se o pei- xe. E' um mercado oleoso de barracas baixinhas, illuminadas apenas pelo lamipjeão1 de petróleo, que deita uma luz vermelha e fumacenta sobre as barri- cas de enguia. Pereorre-se o pateo até a ponta da rua onde o gramophone miorfanha os hymnos, pelo meio de caixas vasias, moíites de telhas, destroços d'emballagens e pares de sopeiras e soldados, que aproveitam o escuro para encontros d' amor.

Da outra banda, á borda da estrada, alonga-se a exposição das loiças. Os mercadores extenderam) em mesas baixas o que tinham de melhor, terracot- tas, pastores, cavalleiros, saloios, gaites palitei- ros, pucarinhos e cântaros lavorados. Pel,oi chão amontoaram1 alguidares, pingadeiras e umas panellas quasi negras que mal são> vistas na penumbra.

A animação da feira recomeça adiante coto os tascos improvisos ao fundo da rua, os compartimen- tos reservados, que regorgitam dos comedores falas-

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troes idas aldeias £ sisudos senhores da cidade be- bendo discretamente sua garrafa de vinho branco.

Para os fins económicos a que a destinaram D. João I e D. Affonso, a feira corre principalmente, de dia. Pela manhã realisa-se, nos claros da barraca- ria do peixe, o negocio de gado. Conglomeram-se, ás juntas, os pequenos bois fulvos da Beira, carnei- ros, chibas, porcos, perus e gallinhas. As transacções fazem-se com gravidade, ajustami-se comi o ar sér-io que reclamariam casos de honra, e as mais avultadas findam sempre em vinhaça. Crê-se que pela feira franca se vende tudo mais barato. Os cam^onezesi aguardaln-na e accorrem de todo o Districto com o dinheiro amealhado. Depois de sortidos, procuram as sombras, sentam-se íe comem. Si é domingo, es- peram a noite parando pelas joalherias, pelas quin- quilherias, pelas barracas de passamaneria, senão dormindo ao das arvores da Cava.

Damas da cidade costumam, durante a feira, vestir de novo- as creadas. Descem demanhã e, como os da aldeia, demoram diante as jóias vindas de Lis- boa e do Porto.

Nos domingos á noite a espaçosa rua não com- porta a gente da cidade e os eamponezes confundi- dos entre as barracas amarellas. As senhoras vizien- ses vão á feira corno vão ás festas de SantOi An- tónio, trajando seda, calçando caro, comi o luxo pos- sível. E' preciso uma infinita modéstia associada a uma invencivel pobresa, para se mostrar três vezes o mesmo» vestido sobre aquelle piso irrigado. Algu- mas damas, contradizendo suas maneiras simples e naturaes, assumem' ares de distincção aristocrática,

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Outras, porém, constituindo maioria, palpitantes de cores vivas, se satisfazem coto passear sem descan- so, recebendo e distribuindo adeuses e galantes sor- risos. Por isso, camponezes, lavradores de jaqueta e varapáo, caminhando' deslumbrados, roçam, mui- tas vezes, a aba poenta do seu chapéu braguez pelas fitas e plumas dos toques parisienses.

Certas famílias, quando acontece estarem' acom- panhadas pelos seus chefes, vão* a alguma barraca respeitável cear vitella com1 vinho» verde. Os feiran- tes da aldeia chegam com1 a enfiada de enguias á barraca, pedem o vinho e pião e abarrotaim-se tra- lhoando' coisas de lavoira e de coito.

Oh senhora Maria, olhe que assim1 vai afo- gar o morgado.

A senhora Maria está gravida. Entrou sorriden- te, com a testa imolhada de suor. Antes de entornar a caneta, virou-se para os conhecidos:

Oh ! Dei ali duas voltas á francesa, que foi um regalo.

O protector da creança é um sujeito, de quei- xo agudo* e olhos pequenos :

Cuidado, senhora Maria; olhe que isto- de ereanças...

Sabes tu que mais, oh m!o trolha, eu aguen- taria cá mais uma abora, sabes ? pari dois num' dia. Bem o sabes tu. Ca o imeu barbas não é ho- mem p'ra brincadeiras.

O to barbas...

Não no troco por três comioi 01 senhor da Travanca.

Nisto ergueu a cortina d^algodão» [e penetrou o

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compartimento um lavrador, tomem possante, bar- bado, carrancudo-.

Ao canto da mesa, como ao canto d'outras mesas em que abancavam, comendo, esvasiando garrafas, os da aldeia, cavalheiros de Vizeu «enaipavam», em' copos espiessos, certo vinho branco delicioso. Pelo<$ corredores enoontravam-se conhecidos dos dous se- xos, e dum compartimtento cheio d'estudantes sa- iam uns versos de piobresa, numa voz magoada^ e tre- mente unida ás queixas duma guitarra sentimental.

Minha taãe é pobresinha, Não tem nada que me dar... Dá-me beijos, coitadinha... Quando os dá, põe-se a chorar.

O corredor dos «reservados» desemboca no pa- teo, sobre as dansas e o remoinho dos passeantes voltando-se; á claridade, á* alacridade dos jogos e patuscadas. A barraca maior annuncia com luz! «farturas» de Lisboa, das que se vendem na feira d' Alcântara. A outra, contigua, é a do tiro ao alvo, a do Pim-pam^pum. Esposas de officiaes e quan- tas senhoras se enthusiasmaram na tarde cruel da tiro aos pombos na quinta de S. Caetano, vão dis- parar dúzias de chumbo grosso contra o ovo equili- brado na agua do repuxa.

O animatographo enche-se. Nos quinze minu- tos d'intervallo, o caixeiro duma confeitaria distri- bue bon-bons ás creanças. Os rapazes chamami-no. por appellidos, ha gritaria, bater de bengalas, risa- das. As raparigas das aldeias, invadem as fantocha-

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das e o cosmòrama, as «vistas». Contaram-me que um anno se exhibiu, na feira, a tragedia de Igne2 de Castro, em cera. Foi um extraordinarioi successo urbano e rural. Mas a attracção máxima são os fan- toches, o indefectivel Roberto esmocando as irmãs de caridade e destroçando á pancada, até um enterro. Os fantoches recordam-lhes, a essas folionas ceifei- ras, os entremesses das suas romarias, os moços tra- balhadores vestidos de mulher, dansando no, palaii-' que do adro da capella sob arcos de flores. E pre- ferem, segundo- ouvi a uma declarar, ainda os entre- meies do Roberto, á^ própria musica de pancadaria. Que gargalhadas, que expansões de saúde e pra- zenteira mocidade saem das suas boccas rasgadas ! A satisfação dos camponios é tamanha, que repre- senta, por Éi só, também1 um espectáculo no terreiroi dos theatrinhois. Porém a tausica doi circo» chama com a sua polka barulhenta. Entra-se. O palhaço defron- ta o cavallo e pergunta-lhe quem1 é a senhora miais bonita da funcção-, e o animal vai balançar oi foci- nho sobre os joelhps duma menina bem trajada. Em pouco, circula na feira a opinião do cavallo, e é de ver-se o bom hutaòr dos conhecidos repetindo-a en- tre piadas. Porque, depois das nove, ai feira-f rança se converte numa estupenda pagodeira.

Quando eu regrjessava, as torres da Sé, os ân- gulos do Lyceu, os contornos da architectura seve- ra da cidade, recortaram-se no luar de outomno, ve- ladas numa grossa névoa azul. Era bem1 o> seculoi do Mestre de Aviz, mergulhando numa doce cor de sonho, a rever, atraviez òs rumores da Ribeira, lem-

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brancas ida Edade Média, semptrle presentes na pro- víncia pjortugueza.

Henrique Castriciano em Vizeu

Henrique Castriciano tielegraphou-me de Lisboa : «Amanhã Vizeu». Fui íesperal-O! á estação! no. comboio das quatro, e elle não viera. A' noitinha um' autoímp- vel parou em frente á casa da quinta rodeado de garotos. Era o poeta. Para vir de Lisboa a Vi- zeu, deve-se mudar duas vezes de comboio, na Pam- pilhosa e em Santa Comba Dão. O conductor es que - cera-se de avisar-lhe a descida em Santa Comba, e elle, siem conhecer estas paragens, se viu chegar, pior uma tarde neblinosa e friorenta, a uma estação donde trem não passaria. «Aqui é Mangualde disse-lhe o conductor com o ar toais natural da pie- ninsula Se vossencia quer ir a Vizeu, tem1 que ir d'autom!0.vel ; si não quizer, dormie p'ra pegar o> car- ro da carreira, amanhã...» Henrique escolheu vir im- mediatamente e chegou, após quarenta minutos de solavancos, na vertigem do auto, por ientre os pinhei- ros e carvalhos da estrada.

A casa da quinta cheira aglora a maçã bravo do esimôfo, a 'mais cheiorosa le gostosa míaçã de Por- tugal. As folhas amarellecem1. Vem 0 fria chegan- do, e os nevoeiros do» outomnoi cobrem1 as serras e pinhaes. Sahimos pouco: Apanhaim)OiS algum sol nos declives da matta, mas contentamo-nos com a velhice perfumosa da casa de pedra e a vista, dos montes ne- voentos, além do valle.

Entre os livros que me trouxe o. Henrique, vem

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o novo livro de Paul Adam Les visages du BrésiL

Mas nós preferimos ler o Brasil na nossa meímoria, na nossa saudade, com a nossa própria critica. O que- rido immerisoi paiz de palmeiras, recuado, á outra banda do Atlântico, abocanhado pela gula politica e o commercio extrangeiro de certas cidades, appa- receu-nos, assim longe, tão bello, tão frágil, tão* ca- recente cie trabalho e carinho...

Henrique Castriciano passara na Suissa um1 anno pelas mãos dos médicos, pesadas mãos nem' sempre hygienicas, nem sempre milagrosas ou consoladoras. Quem não houver passeado os nervos doentes nas alamedas de abetos, sobre a neve dos Alpes, sacu- dido pelas contradicções ie explorações de certos mé- dicos suissos, deve dar graças á boa sorte por mais este motivo' de socego e ventura. Henrique Castri- ciano, peor que eu, foi victima desses encontros máos. Pouco faltou para que o anniquilasseta os diagnós- ticos fazedores de neurasthenia, contr adie tórios e terríveis. Pois, no embate dessas graves doenças imaginarias, preoceupavam-no, paralellamente, as coi- sas do Brasil, a educação da mulher no Brasil, que é o seu problema essencial e de que o Rio Grande do Norte, guiado por governos intelligentes, obtém óptimas vantagens. Uma vez, ao termo do inverno, descia eu de Château d'Oex a Losana, e fui encon- trai-o, no seu aposento do Hotel du Pare, á beira do lago, gripado e febril, perdido numa alta cober- tura de lãs e linho. A' borda da cama, por cima do creado mudo, em cadeiras e na mesa, estava, a maior livraria de viajante e doente que hei visto. Haviai vo- lumes de Historia, Litteratura, tratados de Hygiene,

1 1 ô

livros sobre moléstias te tratamento do nariz, que era então um dos seus cuidados primordiaes ; porém, cobrindo os romances, os poemas, as obras de cri- tica mais recentes, dotninayam os compêndios de educação, estatísticas, mappas escolares, prospectos de offioinas, amostras de rendas, exemplares de ca- dernos de escripta e tiras e tiras de apontamentos.

Mas com tamanha serie de exames e resfria- mentos, tu podes pensar nestas coisas ?

Ora meu velho ! Que hei-de fazer, sósinho por estes hotéis ?

Agora, tendo viajado atravez a Itália e Hespa- nhà, onde assistiu á tragedia de uma toirada á an- tiga, e lhe mostraram, no Escurial, dois leitos onde Filippe II recebeu, ao mesmo tempo, a noticia da victoria de Lepanto, Henrique Castriciano chega-me a estes sympathioos penhasoois da Beira Alta, nos quaes a guerra me prendeu. Quando, á noite, nos reunimos no casarão, sentindo a ventania arreme- ter contra os vidros da janella, o nosso assumpto não é a Suissa, nem Paris; o nosso assumplto é o Brasil. Ah ! Como Henrique sonha um Brasil culto, activo, previdente, honesto, conformado nas praticas da or- dem e do progresso verdadeiro-!

Cinco dias, conhecendo a cidade em trabalho ou em descanso, conversámos livros, paizes, paisa- gens, viagens. Porém, antes e depois de tudo, con- versámos do Brasil, irmanados por essa força de es- tima consolidada «nu'm mesimo consentimento! de von- tades, e estudos, e sentenças».

119 Scenarios do «Amtoir de Perdição» j

Nessa manhã doirada, fui mostrar a Henrique Castrioiano as reminiscências da cidade medieval, a Sé, os arcos, egrejas, frontarias, brazões e o> resto das muralhas. Depois, havendo transposto as rua- sinhas friorentas do bairro historiCiO, entrámos um largo banhado de sol, com p theatro, um1 sobrado manoelino, uma egrejítiha caiada, ao fundo, um casa- rão vermelhaço, da outra banda, e horizontes de céo azul poisando em montanhas de verdura ondulada.

Naquella praça, que os ventos do outiomno açoi- tavam com altas ondas de poeira, passára-se uma lar- ga parte sentimental e dramática do «Amor de per- dição». Foi com profunda estima pela memoria de Camillo que* caminhámos para a casa onde vivera Thereza cTAlbuqu^rque, a formosa e infeliz Julieta de Portugal. O convento perdera os dois lanços de janellas gradeadas, o ar cozinho que levava, a uma plaçuela onde se fizeram as antigas toiradas, a es- cura cerca, toda a remota solemnklade dos dias da tragedia. Um dos lanços, a pedreira da cerca, o ma- terial aproveitado num renque de cellas destruídas, foi tudo convertido no edifício das officinas de Santoj António, que dão hoje pão, instrucção e trabalho a dezenas de orphãos. O outro lanço, demolirafoi-n^o. Resta a egreja, muito branca e acanhada naquella prodigalidade de luz e contemplativa paisagelm, de- frontando-lhe o caio do oitão.

As senhoras de Vizeu faliam1 desses logares com um doce respleito á menina lacrimosa que os perlustrára entrfe intrigas de freiras e a alcovitico

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duma falsa mendiga, a escrever escondido cartas de paixão. Dentfle as que leram o «Amor de perdi- ção»^ poucas o conhecem de uma leitura. A n,o- vella de Camillo é a biblia amorosa da cidade. Elias tratam das personagens como de pessoas familia- res, amparando numa sympathia carinhosíssima, os dois namorados, io ferrador com a inigenua Mariaíma, a própria alcoviteira mascarada em mendiga, ao pas- so que repellem o pobre pae brutal, comi palavras de ódio e vingança para o primo de Castroi d'Aire, a victima do desprezo e rancor de Thereza, o- qual veiu a findar sob o bacamarte de Simão, num afirontjo- so assassinato. Uma dessas senhoras dise-me, uma tarde, textualmlente :

Dignos é que elles eram, Thereza e Simão. O outro é (que era um bandido. Pois si a t apãriga não n'o *queria, p'ra que andava elle ainda a perseguil-a. A critica das senhoras de Vizeu creio se gene- ralisa nas leitoras de romances portuguezes. E' uma suggestão natural dessa novella de amor e de morte. Mas o romancista próprio* a incita com a maneira de narrar os episódios, tão fundamente os repassa dos seus affectos pessoaes, cad^a vez menos isentos de parcialidade. Simão Botelho era urn nevropatha vi- cioso, truculento e ainda mais desgraçado. Camillo, entretanto, sem attender ás reservas de hereditarie- dade em !que tumultuavam os pensamentos máos, re- salva-o com attribuir-lhe, orgulhosamente, «sangue! do melhor de Traz-pSi-Montes»... Estudante, Sitaãoí aproveita as férias em Vizeu para esbordoar os hu- mildes aguadeiros, porque esses aguadeiros, do- nos das vasilhas c(ue os machos do corregiedor dei-

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taram abaixo do parapeito de um1 chafariz, se indi- gnavam ante os destroços dos seus cântaros quebra- dos. A sua sociedade attrahente era a arraia-meujda;. Aos dezeseis annos, em Coimbra, rebenta a, uim tem- po demagogo, agitador politico, clavinoteiro e vaga- bundo, que se mistura «a Ínfima vilanagíem». De re- pente muda num solitário scismatico, por ter a en- feitiçal-o os olhos de uma bonita mienina. Então o campo, as arvores, os sitios mais sombrios e «ermos se tornam1 o seu recreio. Mas, quando uma carta de Therezá lhe conta que o rival se interpõe, insis- tente, nos sieus amores, o primfeirpi míovimiento de Simão é preparar-se para apunhalar o rival em sua própria casa. E assassina, por fim, o fidalgo; de Cas- tro d'Aire, mettendo-lhe uma bala na cabeça. Thbí- reza, aos quinze annos, na !edade em que Camillo capitula o amor coimo a «tentativa da avezinha quie ensaia o voo fora do ninho», a manifestiaçãoi derra- deira «do apego ás bonecas», arma-sie do fingimen- to de uma namorada experimentada, e e falia a Simão três mezes seguidos, «sem dar rebate á vi- sinhança ev nem siquer, suspeita ás duas famílias». Depois 'mente, disfarça, engana, ora a tremer pranto, ouvindo,, as supplicas do pae, ora a transbor- dar de solicitude pielo primo, que detesta, aítié o| cumu- lo de, no moemhto iem que a fidalguia, de Vizeu lhe festeja o natalício, .aercándo-a de finezas, damas e cavalheiros «á competência», fugir da sala para fal- lar ao namorado fify fundo do quintal. Porém1 essa creaturinha, i representativa do espirito' de simulação que o árabe e o frade ensinaram1 á alma peninsular, morreu de amor; o arruaceiro, que, «em Cofcnbra,

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abarrotadoí de vinho, andava pelas ruas armado como um salteador de estrada», o oontr adie tório, o san- guinário Simão, cuja violência de caracter o levava a «confessar soberanamente» o seu crime de assas- sínio, é deportado para a índia, e morre tambeml de amor.

Um desembargador do» Porto considera Simão «um1 doido com1 sentimentos nobilíssimos». Lê-se a novella te sente-se ser esta a opinião de Camillo. Sem! dar sentido ás taras lamentáveis que determinarajm* as altitudes e rebeldias de Simão Botelho, não* sobe além do juízo do velho desembargador o> juizo das senhoras de Vizeu. Lêem1 e relêem a novella, sem ver, na horrível tragedia, sinão motivos para lagri- mas. Uma dessas sensíveis senhoras, assitindòi ao drama do «Amor de Perdição», no theatro, enlou- queceu. Lá lesta ainda no hospital do Conde Ferrei- ra, tolinha de todo.

Camillo, na verdade, entrechou o triste caso de um1 modo tão envolvente e empolgante (ou é, de si, esse caso infortunado que envolve e empolga pela sua terrível complicação!), que, m^símio depois de lhe haver analysado com frieza as personagens, se é conduzido^ ao horrior das consequências derradeiras, sem que, no iemlbate das emoções, nada mais aocuda que a queixa dolorosa d!e Figaro em presença da fa- talidade. Sim: por que lestes successos, e não! ou- tros Idiff erenttes ?

Parámos um momento, Henrique Castriciano e ieu, na fonte onde Simão quebrara os cântaros. não desdém aguadeiros, aos trinta, a apanhar agua nessa fonte mJemoravel. Nem machos de corregedor

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avançam o focinho pelo parapeito e derribam as va- silhas dos miseráveis. Nem estudantes insolentes de- sancam* a fueirada as moças, as raparigas, por conjurarem contra ereados malvados ou descuido- sos dos grandes senhores. A agua da fonte é salo- bra, ganhou fama de má. Dizem uns que faz bem1 ao estômago ; querem outros que seja uma agua cal- carea, malsaboroísa e pesada. o povoléo do. Arqa se vae sqpprir ás torneiras seculares, soíb o olhar mpir- to da imagelm de ptedra que os domina de ura poial.

'A' tarde abancam á solmbra do casarão, que é hoje o Correio Geral, puvindo a agua pingar, ve- lhas cuseuvilheiras, mendigos e soldados.

Quando entrámos o solar dos Albu quer quês ^ evoquei a filha desse fidalgo rixoso que contava trin- ta annos de libertinagem e se sentia morrer por ver um namoro de creanças. Evoquei Thereza sa- hindo a larga porta, caminho do convento, coto tin- teiro, papel, p macete de cartas de Siimâo mettido no seio virgem. A entrada estava deserta. Havia no saguão silencioso lageas frias, hutnidade e bolor. Passámos ao- «guichet» dos sellos. Como levávamos cartas *para o Brazil, deitámol-as á caixa. O milagre

Noite de S. João, rebentou na cidade forte tro- voada; toas isso não- impediu que os sócios do^ Grémio reunissem nos festivos salões e as famílias dansassem até tarde. O Grémio funcciona num' so- bradão bem cuidado, que domina o Rocio, fendo em frente um jardim', e, rente ao logradoiro, uma íngreme rampa com o para-peito de uma grade de ferro que a segue de alto a baixo. Pelas dez horas,

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continuandoí a tempestade, foram as dansas arrefecen- do. Toda vez que os trovões abrandavam1, senhoras e meninas, embrulhadas em capas d 'inverno, aper- tando |0 cabo do guarda-chuva, esgueiravaml-se pela parede te ganhavam a rua Formosa,, se nãoi subiam! ao Soar de Cima, caminho das ruelas centenárias. Outras, porém, as que moram distante, houveram] de ir-se (embora a carro. E' uma diffiouldade tamaj- nha galgar um carro aquella rampa do Grémio ! Po- rém la subiam, a heróicos empurrões dos animaes e inda maiores chicotadas dos cocheiros. Da feifca em' que um carro descia com a sua carga gentil -de valsistas, um horrendo trovão estrondíou sobre o Grémio. Os oavallois, espavoridos, desnortearam; em vez de descer, voltaram-se para o Rocio e, sem que força humana os detivesse, precipitaram-se na pra- ça levando de roldão um bom lanço da grade. Os passageiros, o cocheiro, os cavallos, nada soffreram senão o susto. As rodas do. carro cahiram inteiras : como succedera ás pessoas, o carro nada soffreu..

Ao dia seguinte, a cidade enchera-se do es- pantoso caso. Estiara. No sitio do desastre começa- ram de appareoer.os curiosos. Foi Vizeu emi peso] que se deslocou para ver a grade por terra, ajram!- pa nua e pedaços de pedra pelo chãoi. Os campone- zes, antes te depois dos negócios, paravam ali embas- bacados. Como se para offerecer mais dilatadamen- te á popuação o effeito do grande drama, a Camará demorou em retirar os destroços. Senhoras da alta, a boa sociedade viziense quiz ver; fez-se romaria aoi recanto do passeio. Commtentou-se com muita palavra e muito gesto o acontecimento. Nos commentarioiS

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repetia-se o facto. A narrativa desandam para os lai- res, viajou para as aldeias, cresceu, transformou-se. A' tarde, eram1 tantas !e tão assombrosas as ver- sões, que nem sei se a que acima registei seja a verdadeira. Porque, ao jantar, soubemos, com1 os (mes- mos visos de authentieidade, que o carroi não con- duzia menina nenhuma: rodava em baixo» quando estalou o trovão.; mas, como eahira um raio» sobre a grade, o lanço visto po^terra desabára-lhe em ci- ma, batendo na capota/ nos joelhos do cocheiro, na cabeça dos cavallois, até cair, sem fazer o minijmo) estrago...

Uma certesa, porém, ficou, knais ou Menos arrai- gada, nas casas e choupanas da Beira Alta, e é que aquillo fora milagre...

O VERÃO DA GUERRA

■ia,

As th ermas de S. Piedro do Sul fluem! numa co- va, entre montes cobertos de pinheiro, comi moradias brancas pelas faldas. Corre, ao fundo, pontuadoí de penedos, o rio Vouga, que bordam velhas videiras verdejantes, a par de milharaes espessos vicejando- lhe nas margens.

Duma banda e da outra, em sentadas estrei- tas, ha casas, sobradões, hotéis pintados de verme- lho escuro. O rio é atravessado por uma ponte de pedra, sob cujo ultimo olhai a agua é profunda ie? negra. As mulheres lavam roupa acocoradas noi sai- bro grosso. Ha barracas azues, para banhos, á bei- ra da corrente, 'ãobe-se. A' direita, demora o casai- rão sujo dos primitivos banhos, com janellinhas de cella gradeadas de ferro e um escudo. d'armas á en- trada. Em cima, ao fufado duina pequena praça onde, sob uma arvore, se víebdem toieias e missangas, está o novo estabelecimento, grande, quadrado e branco. Por uma subida, ao lohgoi da frontaria, vai -se ter á nascente, á casita das inhalações.

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Vê-se de longie a fumarada a crescer no ponto em que a agua, irrompendo' duma rocha vulcânica, ferve ha sieculos na temperatura de 66 gráos. A cap- tação fora feita em 1689, e está, sobre a parede de granito, a inscripção' comme;morativa encimada duma cruzinha de pedra a que falta um braço.

A impressão primeira das thermas é que alli reside uma farta fointe de saúde e mais farta ainda de riqueza. Ehtra-se. Na bilheteria, ha bilhetes pos- taes da villa, cartões de banhos, de pulverisações, de duchas, de inhalações.

O meu companheiro< de viagem disse-me de- solado :

Venho aqui ha dezoito anno;s e nunca vi a analyse destas aguas.

Fomos correr o estabelecimento1. A' primeira sala, no alto da parede, emergia, emi mármore, o busto da rainha D. Amélia, grande como um enor- me camafeu. A rainha estivera em S. Pedro varias vezes, a tratamiento da garganta. Das suas estadias subiu na municipalidade um1 orgulho realista cheio de gratidão, e mudaram1 o nome das thermas para Thermas d!a rainha D, Amélia. A fim de que a mu- dança se publicasse ie perpetuasse, metteram por cima das janellas uma nova denominação gravada em pedra. Porem veiu a Republica, e a municipali- dade, que explora as thermas, passou por sobre o nome da rainha uma tira de grosso papel. Veiu ain- da, depois da Republica, como vinha antes, o sol. Queimou, estalou, rompeu o papel. Hoje reappare- cem as lettras, e ^ode-se bem descobrir líinha» a, e, lia. E' tudo.

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A installação das duchas, concluída ha pouco, é boa. As banheiras, péssimas.

Ha também a outra, a velha casa. Está ainda o quartoi onde dormia D. Affonso Henriques.

Nesse antigo estabelecimento, tomou -se banho num tanque vasto, onde, ao que contam, entravajnj muitas pessoas para a mesma agua, ao mesmo tem- po. Pela única vez lastimei D. Affonso Henriques, embora a piscina em que se banhou fosse feita es- pecialmente para lhe receber a perna ferida em' Ba- dajoz. Também lastimei el-rei D. Manuel, o ventu- roso, que se banhou na mesma piscina.

V. exc. não quer ver os banhos mixticois? Banhos mysticos, pensei desorientado. Emfitn...

Quero, sim.

Eram bahhos mixtos, os taes das barraquinhas azues á borda do Vouga. O meu companheiro, que, na qualidade de portuguez, lamentava toda aquella falta de ordem e asseio, confidenciou -me :

Falta é direcção, reclamo.-

Sahimos para Oi Chafariz. Na praça, em volta das missangas, varinas de chapéu redondo-, aos ban- dos, remexiajm caixas de Imedalhas, meias, fitas e bonecas.

De volta, desanimado, quando o meu compa- nheiro, frequentador das thermas ha dezoito annos, me noticiava ali pretender demorar até setembro, fui sentar-me ao mirante do- hotel, num banco- que- brado, ao da grade, onde floriam cravos verme- lhos. Em baixo, o rio deslizava na areia clara, Os derradeiros reflexos do occaso punham na correnteza immensas manchas róseas e azuladas. Um vento mor-

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no soprava as parras verdes á beira d' agua. Duas aves flechararn esse maravilhoso' fim de tarde, voan- do longamente contra os pinheiros da encosta. Meu companheiro falou do Rio de Janeiro, do- Rio díe 1882, que elle encontrara, rapazinho.

Pela manhã, tomado o café, dava eu caça ás pulgas do hotel na minha calça, quandoí parou o au- tomóvel. Corremos para S. Pedro e Vizeu, por vin- te e tantos kikxmetros de ampla estrada, pinhaes, curvas do Vouga, quintas, aldeias, lavradores em' trabalho, céu limpo, sol quente e gorgeiois. A' noi- te, em Vizeu, accordou-se que S. Pedro do Sul é a Cintra da Beira.

Noite de arraial

Na véspera da Senhora da Saúde, á noite, o povo de Paradinha diverte-se com o supplicioi de um gato, que, corrido das chammas, tem de saltar do topo dum mastro plantado no arraial.

O dia da Santa, como é feita a romaria pelos donos da quinta, passam-no a dansar, a cantar, co- mendo e bebendo embaixo dos carvalhos ; mas essa folia aldeã limita-se numa revivescência do respeito dos couteiros medievos pelos .senhores da terra.

Outrora, o velho Sebastião. Carvalho, hoje, a sua prole numerosa preside aos festejos. Enfeitam a capellinha armoriada, que fora do fidalgo doi Arco. Levam a banda dos Capacetes ou a dos Milhun- dros ; fazem cantar missa, com três padres, ser- inãõ, foguetoriò *e morteiros. Umá procissão das ima-

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gens ide S. António^ S. João, a Rainha Santaa a Pa- droeira e anjinhios que ostentam' trajos faustosos vin- dos de Coimbra entremeando ois andores, passeia a rua de choupanas e a rua de carvalhos. A cidade vai merendar em1 volta á casa patriarchal, nas som- bras do arvoredo. Proimittentes piedosos enchem' de moedas uma salva de prata. Convalescentes resara horas seguidas ao< do altar depois de percoirrerelm de joelhos a capellinha de pedra. E uím1 grande jan- tar de família reúne, ao> cair da tarde, na sala de mesa, que abre sobre valle, os descendentes doi honrado* lavrador. _ |

Os ímjoradpres recebem estes festejos, a concor- rência, a presença dos proprietários, a banda, coimo uma dádiva celeste, pois essa gente é gratíssima a quem quer que a divirta. Porém: na véspera á noi- te se entrega aos folguedos ttadicionaes, coim1 a b rai- ves a instinctiva posta a serviço da sua expansividade zombeteira.

O pinheiro vem da matta a gingar no lombo dos moços lenhadiories, acompanhado de garotos é crean- ças, todos em' algazarra pela erva atrigadá, a;o sol quente de Agosto. Deitado; no. arraial, num1 limppi do terreno, á distancia das arvores, vestenr-no de ramas iseccas, silva e carumla, mettdm1 gatoi na i la ta' preso a urri vincelhp, e, emi breve, o rude troinco, levanta-se direito á vista dps m|ontes azulados. Ao; escurecer, as raparigas pulam cantando em1 roda do pinheiro, ap batuque dum bombo. Para o cercar, também tíe dansas e cantares, ceifeiras, carreteiras, trabalhadores da 'malha, das colheitas, das obras de; Vizeu, todo p povo de Paradinha, e Repezes se, arran-

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ca alvoroçado a eanceira das fainas. As lanternas do arraial m!ostra:m q grosseiro mastro, illumina- do, apontando o céu de verão, longínquo e azul sob a faixa esfellar da Via- Láctea. N,ão se ouve O' gato mexer. O ruido que o, bichano produz, confunde-se ao falatório e á pancadaria da mu- sica. Mal se bulir a lata no cimo doi pihheiroi.

Queimado p fogo preso, inda aoi troar dos fo- guetes, um Velhote aproxima-se e atêa lum;e á pa- lha. A folhagem! crepita, umía lingua ignea rebenta e tremula. Immiediataímente param as dansas e as cantigas. Alarga-se o cerco. Os olhos erguem-se ari- ciosos. E o foigloi abraça o tronco, queima-o, escoi- dêa-o, vai subindo e estralando, fe se escuta baru)- lho na lata, que uma labareda tnais alta começa de tostar. Agiora o vinc-elho se parte. Ninguém' pesta- neja. De repente, o* gato cae sobre o piovoléo e, sem1 que o possam1 agarrar, atira- se furiosamente para o matto. I í '

Esse espectáculo enche ioj doraçãoi dos campone- zes. A gargalhada, os pinchos, as palmas colm que vêem o animal correr derribando ias giestas, picando- se nos tojos, é tudb tão forte ie sadio- cotooi os seus penedos !nataes, os ares bons das suas verdes serras,

O sorteio

Agora, eixu Julho, os jovens conscripjtos, os man- cebos, sobeni das aldeias a tirar a sorte para oi ser- viço tmilitar. Esse serviço^ toilitar obrigatório, elles o detestam. Sobeín; n<o elmtanto^ a cantar. Nãói sei se

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é de contentamento que cantam caminho, da inspec- ção. Cantam talvez pior vicio, porque cantar, na fe- licidade ou na desgraça, é habito de todo. portuguez do campo. Em1 Portugal inda se foge para o Bra- sil com1 passaporte falso e passagem1 paga pólos en- gajadores, por fugir á tarimba. Mas o dia em que os mancebos vêm á sorte para soldado, é um dia de ferias na soalheira das searas. E' por isso' talvez que vão ao accaso do sorteio, complicar provavelmente a vida piara sempre, com' oi mestao expansivo pra- zer com que saem1 ás romarias, em1 ramaldas. Elles reúnem na aldeia, á sombra dum carvalho, trajan- do a andaina domingueira, a melhor, comi cráyo en- carnado á lapella, a muchila do- farnel ás costas, o guarda-sol numa mão e a viola na outra. Contami-se então todos ; põem-sie em jmaroha. Entram! na cida- de aos bandos, os guarda-sóes pretos abertos, vioi- las, guitarras, vibrando o fado, a cantar perdidamen- te em plena luz e calor do verão.

Quem tiver filhas no mUridò Não ria das míalf adadas ; Que as filhas do triste facto Também' nasceram honradas.

. íAccodem1 famílias ás j ancilas. Quando se no- tam olhados, batem castanholas comi os dedos e miet- tem-se a dançar ino tnleio da rua. De volta, os sortea- dos trazem a (guia na fita do chapóo, dobrada aoi com- prido, tremulandp ao vento. E é a Itiiesmia jovial ra-*

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malda, em descantes,- castanholando e dançando pela rua ao tinir dos instrumentos. O único desses homens que vi cabisbaixo e isolado, não trazia guia. Porém uma rapariga que mexia a tina díe sulfato na vinha do yisinho, vendo-o defrontar o portão, ergueu(-se agitada e gritou para fora, indifferente ao' sulfata- dor, que esperava com a miachina ás costas :

O' Manuel! sahiste livre? Manuel olhou-a aborrecido, sem parar :

Sahi.

Ella ficou a seguil-oi dom os olhos ao longo do muro.

Avia- te, rapariga!

A rapariga metteu de novo o mexedor na tina; e mexia falando1:

Pois se eu testou mais contente doi que se ti- vesse um conto de réis na mâo, carágo!

Voltava outro bando, outra raimialdla. Que festa a da guitarra e da viola fadeando- á frente das guias tremulas ! Mas, atraz da raníalda, uma mulher se- guia as cantigas chorando' alto. E respondia a quem lhe falava:

Pois não hei de chorar ? Ha três annos que meu irmão ficava esjpleradoí, e hoje foi sorteadta!

A Emigração

Tem-se mantido ultimamente em Portugal de- sabrida campanha contra o Brasil. O elemento offi- cial, que a sustenta mandando desacreditar a econo- mia e finanças brasileiras em escriptos á ppirta de |

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Câmaras munieipaes, (i) a entender que pretende com isso evitar que partam para o extrangeiro os camponezes, contendo -os epn suas terras. Não obs- tante, os camponezes embarcam aos magotes. Na

(l) Essa campanha de descrédito passou-se ao Brasil, e está sendo exercida, ora com disfarce, ora declaradamente, assumin- do, nos dois últimos annos, proporções que,, noutro paiz de con- dencender.cias menos desmarcadas, haveriam levado o povo e o poder publico á reacção. Constrangidos pelo exclusivismo das conspiratas, com immensas levas de agricultores, que, ao contra- rio dos italianos, dos polacos, dos allemães. dos russos, etc, aqui chegados, desdenham o campo e ficam na cidade, têm-se transpor- tado á nossa terra homens de letras, alguns dentre os mais pre- sados pelos intellectuaes brasileiros. Esses escriptores. com ou- tros tantos políticos exilados, vêm erguendo, em conferencias, em commemorações, uma algarada, cada vez mais ruidosa, na qual se proclamam, por sobre omissões e allusões deprimentes da nossa individualidade nacional, incomparáveis feitos portuguezes.

Certos jornaes ditos brasileiros, que, na realidade, não o são, têm concorrido sobremodo para isso. Rebaixando nossas aspirações nacionaes, os próprios destinos do Brasil, não ad- mittem por collaboradores aquelles jocosos missionários, como os auxiliam com inedictoriaes seus. Mesmo hoje (12 de Junho de 918), quando inda echoam as commemorações da batalha do Ria- chuelo. que foi verdadeiramente um grande feito da marinha bra- sileira, um sr. Alexandre de Albuquerque o mais grosseiro de todos , depois de alardear o pasmado histórico de Portugal, re- duz-nos a. . . um simples presente geographico . Saiba-se que esse importuno começou a escarnecer o Brasil depois que uma Fa- culdade de Direito nossa lhe confirmou a carta de bacharel tra- zida de Portugal, permittindo-lhe assim advogar na Republica como os filhos do paiz. Eis as mimosas palavras do terribil cam- peão :

«Passou hontem o dia do grande épico, que é a synthcse mais extensa da Pátria Portugueza, e a mais alta encarnação do

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Beira A tia, que mie inforiniam, ha aldeias onde se não encontram imais homens, outras inteiramen- te despovoadas. E o jornal em que leio as noticias da emigração, coimo emigrante para oi Brasil até um brasileiro...

O único brasilieiro

Quando o comboio, deixou de vez, atraz do pi- nheiral, as torres da cidade, o meu companheiro, de wagon metteu o braço embaixo do> banco, levantou uma gaiola de folha de Flandres e encostou-a no almadraque visinho, á ilharga da mulher.

Maroto!

*E ella, uma senhora gorda, amarellenta, o Ga- fo ello ralo aberto para as orelhas, os olhos meudos e bondosos afundando- se nas pálpebras inchadas :

Filhinho...

Que seria ? Ergui-me. Fui ao extremo do carro para voltar -me, ver de frente «o miaroto», «oi filhinho». Rodávamos a descer para as thermas de S. Pedro do Sul, por entre encostas cobertas de pinheiro), com1 um céo baixo e esmaecido cobrindo, a soalheira. De vez em quando, nalgum rincão pedregoso, verdeja- vam milhos curtos, mas viçosos, pendoandoj por

génio da lingua commum ás duas grandes nacionalidades Por- tugal e Brasil.

E digo duas grandes nacionalidades, porque Portugal o é, não pelo seu vasto dominio colonial, mais principalmente pelo seu passado histórico, como o Brasil pelo seu presente geogra- phico . >

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sobre as folhas cabidas. Os lavradores dormiam1 no chão, á sombra d,o arvoredo. O vento* sacudia as agu- lhas, remexia as earumlas. Fugiam mlelros espanta- dos e, aqui, além1, toulheríes de lenço; vermelhjoi es- còravam-se ao qabp ido sachpi pjara ver a passagem.

Papá ! I

Era utn papagiaio. Um1 papagaio que chamava papá aos dojios, Marido e mulher. Gojmb mld relacio- nei com elljes antes de chegar, soube que haviam! es- tado noi Brasil, residiam1 em! Lisboa, não< tinhaim' fi- lhos e era brasileira ia ave. Pa|p|á marido, ao> saber - me brasileiro, coto' a doçura, a aniabiildade emi que abrandam os portuguezes !no Brasil, indicou-míe o ho>- tel mais cómlmodo', o hotel para onde ia, e, depois do jantar, em1 que, pior disposição da hoteleira, fo- mos ainda companheiros de meza, teve a gentileza: de mostrar-lne oi lestabeleciinento, a nascente, as di- versas espiecies de banhos, terminando comi um pas- seio pela lestrada de Vouzella, estrada larga, clara, cheirosa, com1 o valle tem1 baixo e a ermida da Se- nhora do Castello muito branca no alto da serra.

Deitei-míe pensando no» papagaio. Pela manhã, ao café, D. Maria entrou com elle no salão. Trajava, uma kinatiiíge listrada com as cores monarchicas, frouxa, de mangas largas, caseira.

Eu gosto d'este hotel porque nãpi ha luxo. Anda-se comp se quer. Não é, filhinhoí ?

E cingia o papagaio ao seio, punha-lhe as mãos á cabeça, beijava-o, tornava a bieijal-o, comfc» se; fosse uma creança.

E' muito mansinho^, ímuito, miuito...

Nem1 pensava a imleiga senhora que eu também]

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gostaria ide acariciar o papagaio. Elle era ú\ uniooi brasileiro vistpi por meus olhois lem; três mezes de Portugal, p único patrício encontrado em1 três m!ezes de ventania le 'trovoada. A (menina entrava; coimf o. ca- fé. D. Maria poisou o papagaio na janella. Elle marchou, arrastando a cadeia pel,o poial. Depois pa- rou e fitou-me. O ventp no rio soprava-lhe a pienu-r gem dos encontros. Cora os invernos de Lisboa, tor- nara-se um papagaio escuro, magro-, de unhas cin- zentas. Mas os olho-s que lhe rolavam! nas orbitas re- dondas, eram1 pis Imestnos, 'dois olhos aloirados, con- templativos íe límpidos. D. Maria spprava o café, á mbda do, Brasil, np< pires.

Lôro fitava-me. Um1 minuto estivíemtos assim, olhando-nos um1 ao. outro. O seu olhar paradoj demo- rava com' preguiça. Como, poréto, quiz eu vêr, nas suas pupilas abstractas, reminiscências da nossa pá- tria longínqua ! Como, por mpimentos, me pareceu elle levocar, em! saudade, p mjeu sertão distante e combusto, as revoadas verdes, ao sol do meio dia, por sobre os roçados ! E as jgrandes arvores, o ban- do em reppiso nos rateios, quebrando o silencio da tarde com a gralhida, o tutoulto dos gritos selváti- cos, a lingua negra e grossa batendo no bicoí recur- vo como ensaiando! falar... Mas o; que, sobretudo, me lembrou 10 velho> papagaio' Magro, foi, afinal, o Bra- sil. Quanto p> amei, no* breve encontro; dos nosstois olhos, á brisa fresca do* Vouga! Verde, amarello, a floresta, pi oiro, as cores da bandeira, 01 sonho, a es- perança, elle próprio, papagaioí brasileiro1, symbolo alado da pátria, unicoí piatricio1 meu jem Portugal!

139 O analphabetismo |

O sr. Faustino da Fonseca acaba de publicar no «Século» um artigo sobre a instrucção 'em Portugal. O analphabetismo europeu, nessa publicação, é par- camente definido; mas fica-se sabendo* que na Suer cia, Noruega, Dinamarca, Allemanha e Suissa, toda gente sabe ler. Na Inglaterra, a percentagem d!e; anal- phabetos regula 2 por cento; na França, Itália, Hol- landa, Bélgica, Áustria, entre 2 e 17 por centot; em! Portugal, 91 por cento. Segundo recenseairijento, havia em Portugal em 191 1, uma pppulaçãoi escolar (de 5 a 10 annos) de ^03.153 creanças. Dessas crean- ças sabiam' ler apenas 68.964, ou sejam 91 por cen- to de analphabetos, como acima se refere. O cuida- dosio pedagogOi estuda partieularmjente o analpha- betismo de alguns districtos do paiz, demorando! e comínentando' mais quando trata das três cidades, prineipaes : Lisboa, Porto e Coimbra.

No Piorto, em1 19.163 creanças de edade esco- lar, sabem ler apjenas 2.221; em Coimbra, de 6.729 creanças de 5 a 10 annos, sabem ler 818, e em Lis- boa, na capital, de'72,819, sabem ler 14.260. O bairro de Lisboa chamado* p «coração da cidade», a Baixa, conta 3.721 creanças analphabetas.

Registando, segundo» as conclusões estatísticas, o analphabetismjO' de putros districtos, o sr. Faus- tino da Fpnseca comsigíia o seguinte : em1 Valpaços, de 3>°77 creanças, sabem' ler 206; em Montalegre!, de 2,463, sabem ler 84; etn1 Ponte do Sor, de 1.435 sabem ler 46; |em! Ribeira da Pena, de 1.188, sa- bem ler 43. Etn1 todp p cpíTSjelhpí de Porto Moniz,

14Q

não são analphabetas 12 creanças de edade escolar. Na ilha de Santa Maria, sabem ler 35, e na de Por- to Santo, 8. í

O artig!o do sr. Faustino da Fonseca está ur- dido de conclusões lamentosas e patrióticas. Nada disso me apraz analysar, pois que me proponho aqui levar estas informações ao meu plaiz, para onde Portugal, a contra gosto dps seus estadistas e soció- logos, envia todos os annos milhares de individuos, dois terços dos quaes, como provam ias resenhas quo- tidianas do «Diário de Noticias», s,ão analphabetas.

O sr. Faustino da Fonseca não, responsabiliza ninguém pela crescida percentagem1 de analphabetos encontrados na sua terra. Seria injusto- se o fizera, Porque, desde o governo João Franco, ha em Por- tugal fortp campanha contra o analphabetismo. O infortunado1 ultimo ditador da mionarchia instituiu a instrucção obrigatória, ciomimettend.Oí aps professo- res primários p dever de fazerem1 annualmente um recenseamento escolar, mediante o qual seriam' cha- madas ás escolas officiaes todas as creanças de cin- co a dez annos de edade.

Uma das obras da Republica miais notáveis ha sido o interesse pela reducçao 'do analphabetismo. Ultimamente quasi todos os professpres primários portuguezes deram opinião sobre a centralização ou descentralização do ensino, havendo, precedidoí á en- quête dioi Sacutoi um1 congresso em que excellentes idéas de reforma foram' (expendidas. Entretanto, o numero de analphabetos, se não augmenta, decres- ce mui lentamente.

Será, por certo, vicio antigioi da 'naçãoi, principal-

141 ,

mente idas populações ruraes esta resistência á carta de A. B. C. Uma professora da província da Bei- ra Alta conta-me o facto seguinte:

- Quando eu estive na aldeia, para attrahir as creanças pobres, as que trabalhavam já, ajudando aos pães, sobretudo: ois pastores, dava-lhes aula mais cedo, duplicando o meu trabalho. Mesmoi assim, fal- tavam constantemente ás licções. «Mas porque vo- cês não vêm á escola, meninos perguntava-lhes eu. «Porque p. pae não deixa, minha senhora res- pondiam. Elle diz que, guardando as ovelhas, nós lucramos taais do que vindo á casa da mestra».

Isto ao tempo da lei João Franco ; p<orque, antes, havia com que Camillo> Castellp Branco botar na bocca dum personagem1 do> seu romance Mystericts de Fafe: «Ja quiz ensinar taieu pae a ler. Diz que ain- da njãio teve precisão de saber ler, nem pode distrahir oi seu tempo com coisas inúteis».

P. S. O portuguez de nome José da Graça Fernandes, comtoerciante no* Rio de Janeiro, vem1 de pedir, pelo Século, ao< governo de seu paiz, o es- tabelecimento de escolas primarias na capital do Bra- sil. Pede José da Graça escolas publicas para oi Rio, porque, diz elle penalisado, «milhares de creanças nascidas em1 Portugal frequentaM as escolas publi- cas e particulares do Brasil». ,

A guerra ;

Estavam oomleçando as colheitas, e a Áustria conduziu canhões seils ás aguas 4°: Danúbio e dis- parou-os sobre Belgrado; três dias depois a Rússia

142 -

mobiiísou o seu exercito; o Kaiser mobilísou tami- bem, invadiu dois piaizes neutros, invadiu a Fran- ça; a Inglaterra aprestou-se para proteger a Bél- gica; a Itália negou-se a acompanhar a Allemanha na aventura imperialista, e uma destas manhãs a Europa acordou conflagrada.

Esta guerra veiu encontrar Portugal ern! pleno lusiadismo isto é, cantando heroes, sagrando bravos, glorificando- se. Romancistas, poetas, publi- cistas de toda sorte revolvem archivos, resuscitami guerreiros, reconstroem épocas, e. oi que se são feitos comua não ha-die ter tido. outros maiores ainda o mundo. No livro recente doi sr. Júlia Dantas Pátria Portugueza a consagração da bellipotencia de Portugal attinge um enthusiasmo! superior ao dos Lusíadas. Sente-se que Portugal eistá satisfeita ooim' o- seu destino- no planeta. Organisando uma forma nova de governo, inda com honra, Ioga que se coin- firmou a conflagração, a Republica pensou nas suas colónias de Africa, que vêm sendo, ha séculos, sce- nario de muita da valentia ora exalçada. Os chefes políticos conferenciaram sob o ando branca dosr.Ber- nardino Machado e declaram depois, publicamente», no Congresso, confiar ao illustne estadista a defesa da Nação. Nessa sessão* extraordinária ergueram-se vivas á Inglaterra, á França, baterami-se palmas em mieio aos discursos, le o numero seguinte do> Século abria cota testas palavras Uimi dia de gloria- piara Portugal.

Infelizmlente, pois que nem tudo é pensamíen- to e idealismo', mesmio- entre os povos de mais de- cantada historia, ap passo que o pjarlamlentoi e a

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imprensa (excitavam o aímior pátrio- nacional com tan- to talento celebrado' ^pelos esoriptores, Oi commercioi de Lisboa augimentou o> preço: dos géneros alimen- tícias.'A noticia desse augmento! correu célere o paiz, e não houve taverna que se eximisse de lucrar mais, porque as tropas de Guilheitme II assassinavam e destruíam templos e biblio,theoas na Bélgica e na França.

Como era natural, o povo- de Lisibôa indignou," se com o açambarçamentoi: assaltou uma mercearia, A noticia dessa indignação também correu célere o paiz. O ministério ,reuniu-se. E resolveu defender o população^ da ganância do comlmferciío. Medidas tã(o decisivas e enérgicas foram1 teimadas, que não é possivel Modificar q preço a género alímenticio al- gum sem cotntnunicação antecipada á autoridade.

Em Vizeu, como as regateiras começavam a abu- sar da situação, a Camará Municipal tomou a' si a venda dos ovos e de muita coisa mais.

Assim1, vãoi sendo lidos os telegramtnas da guer- ra tranquillamente nos occasos vermelhos da Re- publica, j

No valle doi Vouga

Saio de Espinho, rompendo a névoa, no com- boio do Valle do Vouga, o mais novoi do3 caminho de ferro de Portugal e celebre pelas voltas que corre entre a beira-mar e a Beira Alta. Esse com- boio, que ora sobe, ora desce,, ganhando», em seis horas, uma altitude de quinhentos e quarenta metros^ realisa to milagre de parecer passar duas vezes dean-

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te de S. Pedro doi Sul, caminhando' sempre piara a frente. Percorre, noi entanto, muito do que estas ter- ras possuem melhor cosmo paisagem. Há* um trecho de montes Intuis, quasi negros, que desola; mas, dei- xando a ultima vela perdida na bruma da mlanhã, as mattas de pinheiro, os valles, riacho^ o Vouga>, as estradas á margem do rio, villas, campos de cultura, é tudo variedade1 e bellesa encantadora.

Logo ao» sair ide Espinho, quando, passadas as derradeiras casas, ise vai perdendo a lembrança do mar, um bando de gaivotas, ríevoarido sobre o pi- nhal, torna a evocal-o. Cuida-sie que são as despedi- das da praia aquellas brancas azas doirandoi-se ao sol. Não. As gaivotas, parece, amlami o sitio dos pe- quenos pinheiros. São numerosas, são centenas, uma grossa nuvem alva d'azas inquietas, voando juntas no imtesmo iespaço» sobre as ramas verdes.. A loco- motiva silvta; a engrenagem produz um1 ruido> brutal no matto ties.hiabitado«. O fumo que sae da chaminé, irrompe "jein' grossos novelhos infindáveis, e ellas, as aves, indifferentes, continuam o seu limitado pas- seio aéreo, num como somnolento. vagar. Galga-se a primeira eminência. As voltas succedeta-se dia- bolicamente. Vai-se adormecendo a lembrança das gaivotas, irias, ao longe, baixa ainda um1 revoo" d'azas áureas, emquanto a fumaça invade a carruagem1.

Quando* chegamos a Sarnada, outro comboio' partia. Entraram oamponezes de chapéu largo), toiío- xila e varapáo. Havia três horas, viajávamos. Afora umJ castello, que desappareceu, na curva seguinte, atraz dum monte, e io nome das estações, Olivei- ra d^zemeis, Albergaria a Velha, Albergaria a No-

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va, pinheiraíes, carvalhedios:, rincões cobertos de troncos incLa sangrando resina, fazia-se tudo miomoto- no«. Ergui-ane para desentorpeeer e ver os campo- nezes de varapáo. vElles se denunciavam1 aos es- pectadores da gare ^cptoi o seu reboliço, e falato,ri,0) nos carros de terceira. Apesar de calçados, da jaque- ta, do indefectivel ^cOíllete portuguez, da calça de ca- seffiira, traziam por tudoí poeira, nódoas, porcaria. O varapáo dalguns era pintado< de amarelLo*. Repelli- dos, pela ienchente, dos bancos ej -do corriedoir, vie- ram uns seis até a íentrada do carro e puzeram-se a queixar da companhia. «Não, tinhain' accommo- dações, não vendessem passagens. Quem comprava o> seu bilhete era para ter o seu logar de seu». Um! delles, de face pallida ie barba pjor fazer, tendo con- cordado nas queixas sempre em galhofa, disse em conclusão:

O que nos deviamlois fa,zeri era iriei p'ra segun- da, vucês inulm acham?

Destacava-síe do grupo, pela altura e míagnesa^, um1 rapaz de pelle amarellenta, nariz finoi e olhos pe- quenos. Uma cara dle rato pintada a ocra. Quando o outro acabou 'de galhofar, a ponta doi nariz tremia- lhe. O varapau também lhe tremia na^mão ossuda. Elle ouvira calando.

De repente, deu de hombrois, numl arremesso de revolta e, com; voíz de commando, gritoiu abrindo caminho' entre1 os camaradas : ! ,

E' entraria !

Sem palavra, os mais seguiram-noí, invadir;amj a carruagem de segunda onde teu viajava, e occupa- ram todos os logar es vagos. Nas duas estações se-

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guintes, houve nova invasão1. Por fim, era a car- ruagem de primeira a assaltada, e ps conductores recebiam com utn1 ris® resignado, mas de solida- riedade também, os bilhetes de terceira. Por so- bre o encosto' dos bancos via-se a ponta dos va- rapáos e copas de chapéos manchadas. Os primei- ros minutos depois de invadirem as carruagens fo- ram de concentração. Haviatn commettido uma vio- lência, !e pensavam, repoisavam da arrojada acção. Mas, nas estações, ehegava-se gente ás porti- nholas para os ver, íe, em breve, comer ninguém os reprovassfe, sacudiu-os utaa alegria de conquista, met- teraim-sje a falar, espontâneos como nos serões da aldei^. Falaram de valentia. Ficou assentado que, muitas vezies, o 'mais fraco é o que vence,; tem1 me- do e logo golpe de taatar. Tratou-se dos effeitos da trovoada nas vinhas, da viagem ao Brasil, da fei- ra, aonde iam!, te< nenhuma voz se levantou a contes- tar um velho d 'olhos azues e lenço ao* pescoço, quan- do disse, dominando' a assembléa com1 a respeitabili- dade ídà sua barba suja:

Conselhoi de mulher não se toma.

Em Villa de Frades entrou um garoto com1 os jornaes do Porto, do dia, ie jprnaes velhos de Lis- boa. O homemi de face pallida, o galhofeiro', que propuzera a invasão, dirigiu a escolha :

O melhor é eompral-os díe Lisboa, porque Lisboa está mais perto da guerra que o. Porto.

E compraram A Republica, preferindo- a ao; Sé- culo, uma das folhas mais noticiosas da Península Ibérica. Antes de ler o diário, o* eam!piO;n;ez fez-se si-

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sudo e realizou a seguinte pçqueij^ cohfereincia so- bre as forças allemjães :

,— Os allemlães têm cinco; milhões de soldados.

E' objecto obsíervou o velho( da, barba suja.

Sim, cinco milhões de soldados E calmo», com os olhos noi visinhoí Cinco milhões são... Um! milhão tem dez mil : cada inil tem dez centos ; cada cento, ciem soldados. Ora, cinco milhões são, seis- centos mil. E' soldado1 que ta parta!

Os ouvintes quedaram1 em silencio, coimo esma- gados pelos cinco! milhões de bárbaros das hostes germânicas, ou seiscentos (mil, que era tudoí a mes- ma coisa. Foi quando- o sujeita magro da cara dei rato, io chefe da revolta, que se; oojnservava cabis- baixo, extranho', tarado(, 'ergueu o nariz para o ora- dor. Não proferiu palavra íe tecahia no seu mutisimia doentio. Veiu a chuva. Pelos telhados curtiam; enor- mes abóboras cor á& gemina d 'ovo. Pelas Voltas da estrada via-s!e, na cimio> da mOíntaijha, a ermidinha da Senhora do» Castjelkx

Expedição á Africa

Portugal acaba de mlandar forças militares a' Angola e Maçambique. Não é restabelecer a ordem por ventura pjerturbada nessas provincias, que as for- ças vão. CoimquantO' haja a Republica pietmittido ao governo das colónias denoíminaçã;Oi mais liberal que a da Monarchia, antes parece ser de revolta que de estima a attitudje delias relativamlente á metrópole1: segundo^ referem' ios jornaes, ha escravidão, inda hoje;, em1 S. Thomé, |e a ultima rebeldia típl Congo portu-

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guez, ímiotivou-a, aleita de putros pesadissitaos, um impostoi lançado sobre ps defuntos. Porém* nãpi é isso que inspirou a iexpediçãp. Portugal envia tropas á Africa, porque os allem.ães lhe estão beirando» ,as possessões. A desconfiança dois aggressores da Bél- gica livre, trabalhadora, culta, prospera, pacifica, é, pois, que o obriga a despender alguns mil contos de réis, despovoa, a par da (emigração, as velhas cida- des ie abre por todo- o pjaiz correntes de lagrimas queixosas. \

!A mobilisação fez-se, cotatudo, calmamente, du- rou um toez. O retrato de muitos expedicionários foi publicado na imprensa. Receberam todos soldo tri- plicado, com1 promessa de pensão de sangue ás fa- mílias; e, posto que a Republica os solicitasse, in- corporar am-s e iespon taneafrien te .

Pela voluntariedade cota que se constituiu, a expiediçãoi mais está parecendoí um! passeio* de férias que um riscoí de inorte, miais expedição! de .recreio, que íexp edição de guerra.

Si, para completaiento de eotahiodidade, houve quem' levasse até lençóes, cobertores, travesseirois, fronhas de rlenda.

Todavia, de face á visão trágica das campanhas de França, ante a approximação< dos allemães, que estão quasi ás portas de Pariz, esta caminhada á Africa ás mães portuguezas, aos filhos, irmãos, esposas le noivas, a perspectiva de que os queridos parentes marcham realmente para o campo» de bata- lha. Debalde o governo^ publica que as tropas apenas vão guardar as colónias; debalde repete que os por- íuguezeis entrarão em1 combate se, a Inglaterra for-

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mular um pedido, que, asseguram', annunciou; de- balde tudo. ,

O que estas senhoras sensíveis de Portugal crêem, o que lhes enche a dorida imaginação, é p drama terrível de milhares de cadáveres que a me- tralha da Alletnanha íe a artilharia dos alliados ex- tendem, noite e dia, ha cinco semanas, nos campos ensanguentados. E? a Bélgica invadida, num1 arrojo de brutalidade sem' exemplo, contra todos os prin- cipois do direito das gentes, contra compromissos de honra assignados pelo> próprio governo de Berlim; é Lovaina destruída porque os seus habitantes ou- saram resistir aos invasores da pátria; as aldeias in- cendiadas ; mulheres, oreanças, velhos fuzilados pelo crime único de serem esposas, filhos e pães dos guer- reiros de França e cia Bélgica. E' a barbaria germâ- nica, orgulhosa, poderosa,, desvairada, que ameaça a Europa ido seu pan- germanismo terrível, com a Prússia núcleo da Alldmanha e a Allemanha núcleo doi continente. São todas essas trágicas visões que tumultuam na pobre cabeça da mulher de Portugal precisando-se simiplesímente noi perigoi que corre o seu filho, irmão, lesposo, pae ora a caminhoi da re- gião desconhiecida.

Uma rapariga, hontem, na gare de Vizeu, agar- rou-se a chorar á tóãoi do^ namoradoí tão desesperan- çadamente, que se esqueceu de si e, sem* ouvir o sil- vo da locomotiva, se ia arrastada pelo comboio. U!m official doi 14o, tendo a mulher dado á luz á meia noite, partiu ás. quatro da manhã. Outros casaram! na véspera do embarque, como fizeram os franoezes, in- glezes, allemíães, russos e austríacos. E nas estações,

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contatri, a hora da partida, as vozes chorosas, os ar- dentes adeuses faziam como um immenso clamor.

Espalhou-se entre certas píessôas da provinda que a expedição é uma aventura em' que o governo trae a confiança da família dos que partem ; que nin- guém sabe «aonde vai; que o< Moçambique é o Cabo Verde levam, elm ímãos do commandante chefe, «car- ta de prego», para ser aberta eui alto mar...

Portugal na conflagração

A Inglaterra formulou ç seu annuneiado pedido de homiens a Portugal. Não terminando a guerra brevemente e não faltando a Republica ao» comproi- misso que, asseguram, assumiu, sessenta mil por- tuguezes se incorporarão ao exercito inglez e irão bater-se com1 os hunos nos campos da França.

No seio das famílias, por todo 01 paiz discute-se o pedido da Inglaterra. «Batermo-nos, porque ? pergunta-se quando ninguém nos ataqoíu e mesmo a Africa ainda está tem paz»? (i) Entretanto, o go- verno publica um tratado de alliança feito- piek> Mes- tre de Aviz, em1 que ficou Portugal obrigado! a servir á Gran Bretanha, ie!m guerra, oolm1 armiaa e galés, e a sua custa.. Nestas condições, desde que a Gran Bretanha recorre a Portugal, o dever da Nação é cumprir o tratado do Mestre de Aviz.

A crer nos chroniistas de Lisboa e do< Porto,

(l) Por essa época refere um relatório do governo, officiaes portuguezes propuzeram, num almoço, em Africa> a officiaes al- lemães que se. porventura, recebessem de seus paizes ordem de ataque, tanto uns como outros deixassem de cumpril a, mantendo- se todos em paz. Os allemães, porém, não cumpriram a promessa.

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a participlação de Portugal no conflicto europeu, além de alguns frequentadolres de dous cafés da capital o Martinho e a Brasileira, não conta enthusiastas em parte algumia do paiz. O coirrespiondente do Pri- •mieiro d|e Janeiro pergunta : «Porque não vãiOi elles (os do Martinho e da Brasileira) enfileirar-se» ? E os frequentadores dos cafés nãp se vão enfileirar1, nem ninguém] Unais em Portugal quer ir para a guerra.

Si partirem afinal os sessenta mil homens, guial- os-á, por certo-, o espirito de sacrificio que a fatali- dade politica temi determinado e anda, em.1 migração, pela Europa, alliciando multidões para as carnificinas da Bélgica q da França; porem partem1 porque o Estado quer e agora! é p Estado quem dispõe da vida de todos...

Tenho lido e tenho ouvido que em' todo o< Por- tugal se considera o envio de forças para o frant» ainda sob a protecção da bandeira ingleza, uma des- graça para o paiz. .Quem pode falar publicamente, aconselha que ninguém va la. O autor da Pátria Portuguesa, acaba de declarar-se, por tudo, contrario á collaboraçãoi dos soldados portuguezes. Acha o sr. Júlio Dantas loucura expol-ois á fúria dos canhões de Guilhermie II. Diante dos armamientos modernos sustenta o insigne prosador nada vale a coragem pessoal; (marchar para os campos sangrentos de França será ir morrer quasi sem luta, quasi sem gloria, (i)

(l) Depois de dois annos de grande esforço, conseguiu a governo da Republica reduzir a resistência da nação.

152 A S^nta Eufemia

A romaria de Santa Eufemia faz-s-e á noite, em quinze de Setembro, no povo de Ranhados, povo de lavradores e operários, que fica n'uma descida, a meia légua de Vizeu, mas ostentando excellentes m,o- radias com jardim, quintas e hortas bem1 grangea-. das, a par das casinhas escuras olhandoí o campia- nario. Os romeiros apinham- se no adro, espalham-se na rampa arborisada que praça ao arraial niOi oitão d'um sobrado, e enchem um largo terreiro- aoi lon- go d'um muro de pedra solta, cuja negra esquina guia á cidade.

De em torno cinco léguas mais ou menos, a pretexto de 'preces e promiessas, k>s trabalho suspende- se dois dias, enfardelam-;se nos sacoois de chita fran- gos, presunto, salpição e chouriços, tudoí feito e guar- dado para o grande mjomento, e ramaldas, aldeias inteiras põem-se em jornada, bebendo, cantandoí, zan- gar reando ao toque das guitarras e violas. Velhos que mal podem cavar nas leiras, mulheres gravidas,, outras com os filhos de mama embrulhados na pon- ta* do chaile, pastores, serranas que desertam1 os ca- saes !e se apresentam1 miettidas nas suas capuchas de de burel, semelhantes a freiras, mendigos doentes, aleijados e cegos de sacola, são.» todos pe- regrinos da famosa romagem. Na sua viagem1 de volteios e cantigas, esses romíeiros topam! os phaetons, os breacks e os automóveis do resto de fidalgos do Districto, e 'miais os carros dei bois das herdades, cu- jos robustos senhores se enfeixam entre os fueiros coim1 a mulher, a filharada, parentes e visinhos, se1-

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guidos por uftia recua de creadoB e raparigas do ciajuS po, que marcham cantando pi fado n'uma onda dd poeira.

Os da cidade, comb v;ão ao S. Joãpi de Vil-de- Moinhos, á Santa Luzia, á Senhora da Saúde, são arrastados pelo rumíor dos cantares e, mal engoletn o jantar, despresaim tudo- mais, cavacos, o anima- tographo, pi Grémio, pielas seducções da rpmaria. Os abastados do, oommercioi e da lavoira mettem regaladamlente a família em viotprias d'aluguel. Mas a maioria, trabalhadores, artífices, pequenos nego- ciantes, incluindo os «taludos», off iciaes da tropa, fun- ccionarios doi Estado, gente de gosoi e desporto, vae a pé, sobraçando ps bengalões, coM o cigarrpi entre os dentes nos intervallos da piada.

Na distancia da egreja á estrada, á beira doi arraial, installam-se as barracas, as mezas de doces e bebidas, cada uma com seu lampeãp de petrpleo ou «gazometro» de carbureto-. No vão dos balcões, por baixo das gavetas, resguardaim-ise as ca;natstra(s re- pletas, ao ladoí das «chocolateiras», onde ferve a ce- vada molda que se vende ppr café. Na toalhinha d'al- godão, circumdando' as garrafas e as chávenas, ps doces ICmpilham-se, emí rimas altas, esmaecendo! ® castanho das côdeas na luz do- acetylenp.

. São sequilhos, fartas, rebuçados, sêmias, ca- vacas e tprtas ditas cie Tondella, que as doeeiras apre- goam voiciferandpi colnfusamente. Por baixo* dos car- valhos, assentam1, lem' carros de bois, as pipas de vi- nhoi espichadas de fresco:, com! as torneiras pingan- do nas cantaras vidradas. Os mercaidores, tabernei- ros de Vizeu e de outras terras, míuneXn-se mais de

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bacalhau frito, bolos de bacalhau, sardinha e trigo «p'ra fazer bocca», e, empunhando asr canecas, dis- putam a freguíezia, que cantarola e dansa deante das pipas ;n'uíri clamor de folia. Mulheres da beira-mar, varinas, d'Estarreja jeí de Aveiro, a cabeça enfiada nos pelludos chapjeus pretos, abrem', ao cheiro doí vi- nho, grossas barricas de peixe fritoi conservado; eim1 molho d 'escabeche. Ciomo é da tradição, apparecem1 pela Santa Eufemia, as primeiras castanhas doi annq, mexlem-se nos assadores de barro que hão de aver- melhar, á noite, em vinho o outomno1, nas calçadas de Vizeu umías castanhas imeudas e verdosas, que O; rapazio', as senhoras da cidade comlpram a cinco e síeis por vintém1. Por sobre a multidão^ erguidos nos braços dos vendilhões, passam, trincolejandjo engradados triangulares, com1 brinquedos, gaitas, bo- necos, bolas íe! guizos.

Um panelleiro habilidoso conseguiu engendrar no barra vermielho, gallos e cornetins de duas vol- tas, com campânula e bocal. Os vendedores annun- ciam-nos soprando* na cara dos romeiros os toques do quartel. Das paredes da egreja, pendem lençóes crivados de broehos suspendendo rosas de papel, que occultam papeluchos com1 «a sorte» em1 quadri- nhas mal rimadas.

Toda essa lexibiçãoi de fluxo ingénuo e «comes e bebes», rumloreja n'uma illuminação de lanternas coloridas pendulando- lem cordões ao loingo do arraial. Rematando os negócios, vê-se ainda, junto á egreja, a «cascata», uma faldasinha de monte coberta de musgo com um repuxo a jorrar dominandoí a man-

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gedoira ondie io> menino Jesus attrae as creanças je as raparigas no toeioi de chalets e choças de cartão.

O cansaço da viagem derreia sob o< arvoredo as creaturas alquebradas. Deitam-se na rampa ao das carvalheiras, agarradas aos farnéis e, esperando os parentes e a comesaina, expedem para o vai-vem dos romeiros um olhar de sonho, taelancolicoi. Os ga- rotos de Vizeu divertem-se com' pisar e chalacear essa pobre gente em repoiso'. E a reacção, que pro- víocam, irrompendo em simples descomposturas, ao envez de os conter, incita-os a novas sortidas mais arriscadas ; pois descem, envolvem-se nos ajunta- mentos le desandam aos beliscões, ao;s empurrões, apalpadelas |e esoarneos.

Aos alegres romeiros é que as grosserias dois rapazes nãoi irritam'. Quando calha, despedem um bioim murro ou pontapé e passam além com a su^ rosa de papel na botoeira e a sua cachopa bem* á vis- ta. Param1 nas mezas dos doces, enchem1 os bolsos de tortas, chuchurreiam1' o café com! galhofas e ri- sadas e, cantando!, reentram no vagalhão!. Os bebe- dores agglomieram-se á volta dos carros de vinhoi, emborcando, as canecas, grulhando;, sapateando e ati- rando ás mulheres cantigas sensuaes. vez em1 quando, surde uma bulha. O taberneiro intervém. Os soldados' acoorrem, ie mal o chanfalho, scintila ao cla- rão das luminárias, os luct adores se apaziguam)*.

Pouco- depois, podem ser vistos a beber de par- ceria com os da tropa. Estão ali todos, «p'ra guzare». Haja «guzare»!... De frente á Santa, num' coreto enfeitado de escudos e bandeiras que fulgura entre

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as arvores, a banda ataca rapsódias de mlotivos na- cionaes. ; j . ; j ' \ j '; | \ \ ,

O rebolana-bola, a canininha-vieirde, o fado de Rey Colaço, as melodias populares mais queridas, excitam nas cachopas ie nos mancebos o gosto do mlovimento, uma expansão primaveril dos músculos sadios, que elles reduzem a cantigas e dansas vo- luptuosas. O próprio andar, o mesmo enlaçar dos braços nas saudações d^amizade, é uma forma de bailado. O vinho desencadeou o enthusiasmo bac chioo nessas naturezas primitivas e fortes.

Todos elles, os do campo, os da cidade, os mo- ços, os velhos, os mesmos guardas dos farnéis der- reados pela rampa, estremecem' de prazer e se agi- tam1 communicados na bebedeira collectiva. Nessa turba cantarpleira repontam1 revivescências das jo- gralidades !e ímomices de outros tempos. Velhotes borrachos pinoteara versejando' coisas d' amor ani- mal em toadas miono tonas. Adeante, desfazem- se em tregeitos, assacando' allusões e ditos piccarescos. Um tolo, sem chapéo, passa valsando silencioso. Defron- te do arraial, um zangaralhão bêbedo, magro, míol- lengo, as pernas ossudas mleneando-se entre duas muletas, a cabeça a oscillar sobre o casaco cinzen- to, vomita obscenidades contra as fêmeas, enxova- lhando amores imaginários. Um coxo, eínj mangas de camisa, com1 o seu tamborsinho amarrado á barriga, passa e repassa, apressado, vibrando as baquetas es- trepitosamiente. As 'gaitas,^- íos gallos, as cornetas de barro, soprando de envolta ao alaridoí e ás can- tatas^ sobresaem' como berros. No claro; do terrei- ro, as raparigas e os raptares, bem1 postos e felizes

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nos seus trajes festivos, agrupato-se em ranchos, unem-se aos apres, ordenami-Sfe numa larga roda. A harmónica começa a follear á toa. Sãoi as conhe- cidas musicas dos folguedos portuguezes que essa, harmónica folleia. Remexem-se os quadris. Move-se" a roda. E as cantigas, soando numa poesia apaixo- nada e langorosa, misturam- se ooim a musica nas voltas da contradança.

Os cavallos, os bois cruzam' o terreiro. E' re- volvendo' o excremento que os grossos sapatos pisam e se deslocam. Aquelles corpos jovens e amorosos palpitam da felicidade de se verem estreitados e saccudidos na vertigem dos redopios, ao so<m da har- tmonica, ao rithmo dos versos. O cheiroi da bosta re- volvida envolve-lhes as vozes, e elles nem o sentem!, enlevados na volúpia dos Mornos contactos sob o luzir das estrellas. Pelas dez horas, entra no arraiai a tuna dos Choradeiras, a tuna dos artistas de, Vi- zeu. As dansas redobram de animáçãoi.

Os romeiros abrem passagem; á tuna. E as ra- parigas do^ alto, orgulhosas, enamoradas, alçam-se na ponta dos pés, para ver, por cima das cabeças, o filho do Choco tocando a pandeireta com' ademanes hespanhoes.

A romaria é festa nos estômagos comioi é festa por todo o povo de Ranhados. Sequilhos, sêmias, as tortas manducadas á borda das mesas com! o fedor do carbureto, foram' gulodices insignificantes para a funda fome romarinheira. Enganaram! a bocca e perderam- se num vácuo insaciável. O que os enter- nece e contenta, a esses camíponezes viandemos, é a carne, sjão ias febras de porco desepultadas da salga-

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deira, p chouriço, b salpiqão, afpigado no& pioíes de azeite, desde o natal, para as soberbas merendas ao ar livre debaixo dos carvalhos. Na hora de comer, as cachopas, ooim duas manchas rosadas na face morena te as ramagens do< lenço- de seda brilhando ás luminárias, ganham, a rampa, aneiosas, suadas, mor tinhas de dansar. Os homens trazem o vinhio em cangirões e garrafas, e a família, numa desor- dem de comímentos e risadas, deita cerao ao farnel sob a folhagem. Esses descendentes de tantos po- vos arrojados e eomilões,dansando, merendando á vista da torresinha árabe de Santa Eufemia, pesar da fama de velhice attribuida a sua raça sempre re- novada, ali concorrem para uma glorificação. E' a terra da Beira alcantilada e verdejjante, a terra que o vinhoi e o pão, a alegria e a saúde; é ^ juventude, vigor que o sol, o trabalhjo, os ares na- taes lhes influem1 nos peitos suspirosos, a divinda- de invisível a quem todos orgiacajmente festejam! na imagem da padroeira.

Quando, tarde, eu scismiava nos regosijos que elles, sem o pensar, repetiam num recanto de Portugal, e evocava os hierophantes pelagios vesti- dos de branco abandonando as dansas, os camtos, a embriaguez, mas incendidos nessa Mesma embriaguez e enthusiasmo para romarinhar, no cimo da monta- nha, em torno ao templo do deus, um1 troço de mu- lheres dirigiu-se á egreja. Era o bando das promitten- tes da aldeia e da cidade que iam: a cumprir. Crêm essas mulheres que a santa faz milagres nos casOiS perigosos de ferida e cirurgia. Os ex -votos consis- tem, por isso, em. pernas, pés de cera, braços, cabe-

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ças, mãos, simples joelhos e dedos. Comjoi também' usam prometter em cereaes o pese das creanças que adoecem; algumas conduzem no- bolso 01 valor de arrobas de trigo, de milho ou de centeio:. A dádiva primeira fazem-na á chegada: ao passar pela ar- fyueta, depositam moedas de cobre, vinténs, dez, cin- co réis. Na sachristia, têm -se organisada a parte com!- miercial das promessas. A contar1 dos primeiros mi- lagres, a confraria recolheu, e artnazenou ex-votos para os males communs aos camponezes. A pro- mittente figura uma compra, paga a importância da offerenda e sae abraçando-a compungida, resando: emf voz baixa, para andar três vezes em! redor da egreja. Depois entra, vai direito aoi altar e depõe aos pés da santa o braço, a cabeça ou perna de cera ama- rellecida. Duma parede a (Outra da nave, extendetn^ se fios de arame em que cada devota prende a sua candeia votiva. A' meia noite é penoso atravessai a nave e attingir ,o> altar Imor. Pendem dos fios deze- nas de candeias, accesas por cima da cabeça. das mu- lheres, como' se 'descesse sobre as suas preces uma estirada nuvjem de morcegos ,iem fogo.

Na outra banda doi povo, envelhece, de frente á serrania, quasi esquecida, a capellinha de Santa Eufemia a velha. A's vezes, á entrada de Ranha-- dos, no ponto em que o caminho! se bifurca, as fa- mílias dividem-se em dois. ramos: uns, os edosos„ tolmam á esquerda, vão jesar á ermidinha, como faziam outrora; os moços seguem direito á Santa Eufemia a mova, onde todos emfim se tornam a ver, passada a ceia. As donas das candeias, haven- do-as pendurado, ajoielham e oram, algumas até que

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â fadiga, o sotaíio as prosta. Deitam- se ali mesmo e dormiem, com'0' no chão das choupanas, até o ama- nhecer. Os gaiatos de Vizeu costumam soarprendel-as no seu soimno' !e cosem-nas umas ás outras, pelas saias, oolm, guita e agulha de coser albardas. As que despertam, distraem- se, e, como se as atacassem1 na feira, proromipíem em insultos. Mas nenhuma deixa sósinha a sua candeia, comi 'medoí qúe as mais as fur- tem.

Com iq vir da tnanhã, tiram-se da egreja estre- munhadas, vão -se ajuntar aos que dormir ata1 no ar- raial, e regressam todos á aldeia, com1 rosários de do- ces ao pescoço, rosas de papel no peito, e nos cha- péus, envaidecidos, satisfeitos, inda cantando» e dan- sando pela lestrada ao rojão das guitarras.

O verão d|ei 5. Martinho

Novembro! passa, frio, com um1 sol de prima- vera doirando! o cair das folhas. Estes dias suaves do loutomno ganharam nas serranias da Beira fama de verão e chamam-lhes por isso o verão de S. Martinho. Ataam-n^os como a, um adeus graciosa do bom tempoi e aprioveitam-n^os para estrear o vjnhpi novo, cotor a castanha nova, nos magustos assados á sombra dos pinhaes, numa -embriaguez álacre, pal- pitante de mioc idade e de saúde.

Não sei por que transfiguraçãoi pagodista da alma portugueza, S. Martinho, de serio e caridosa bispo que fora nas terras de França, passou a ser também, nos campos íe cidades de Portugal, o pro- tector dois vinhíediois, um' Baecho Christão patrono

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dos borrachos. Terá S. Martinho repetido na pe- nínsula a triste lenda de S. Winoch de Tours ? Será o próprio peregrino' piedosp, vestido de, pelle de ove- lha, comendo ervas selvagens, aquelle que levava a principio o vaso de vinho á bocca somente para p; tocar e depois bebeu tanto que entoleceu ? Será S. Martinho um S. Winoch transportado?

Ha séculos iedificou-se em Vizeu uma igreja sob a invocação de S. Martinho. Da navesinha modesta partiam os prelados para fazer a sua entrada trium- phal na velha 'Sé. Grão: Vasco pintara a imagem» do santo numa taboa de castanho, por sobrei um dos altares, ao lado* do Evangelho da Senhora da Pie- dade. A igreja caiu. A taboa de Grão Vasco desap- pareceu nas ruinas. Porém a invoícaçãoi religiosa re- nasceu nalgumas freguezias <e terreolas destes valles e destas encostas, continuou nos votos de boa for- tuna para os cachos verdoiengos e, agradecidamien- te, se glorifica na abundaritia das cavas, no derra- deiro sol ie calor do outamno.

Inda em fins da míonarchia, pela morte de só- cio das irmandades do Carmo,' dos Terceiros oju, do Santíssimo, um empregado da Sé, de opa e cam- panhinha, andava pelas ruas, badalando, badalando, para avisar os confrades. No- dia de S. Martinho, es- tudantes, rapazes trocistas imitavam ó fúnebre con- vite é percorriam a cidade meneando, campainhas, com demoras perversas á piorta dos bebedores. A Republica extinguiu a praxe das confrarias, e a ga- rotagem dos rapazes -não passeia as viellas de Vi- zeu. Mas o,S. Martinho não mudou, nas; quintas, nos corações, ;na gula feliz do ppvo. Amanhece em! onze

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de Noviembro, luminoso, rejuvénesaente, assobian- do! nos galhos do pomar, animíandjo; a velhicei das ar- vores ie dos homens. Desde Outubro, sob 03 tam- pos de barro, o vinho ferve, gorgoleja nos toneis. Pelo S. Martinho, o caseiro toma uma grossa chave ferrugenta, desce, e, a porta da adega, que dormia esquecida aoi canto do< saguão, range afinal nos ve- lhos gonzos. Cinco toneis bojudos soibrei pranchões de pinho alinhados ao' longo da parede, rumbrejáimi na penumbra. Dos barrotes do soalho pendem' teias d 'aranha veladas de poeira em que moscas mortas oscillam. O piso é macio, parece ir cedendo embai- xo dos tamancos. Um ar de subterrâneo gela-nos as mãos. E a luz que cobre as largas aduelas, é uma* escassa luz que mal transpõe a rombuda fenestra. Manoel do> Arai põe-se a espichar. A Micas chega - se coto a cantara. Motivo- para beber é ver se está claro 01 vinho, se está bom..., Este viriho da quinta vale o néctar dos deuses. E' limpo, claro, transpa- rente, saboroso. A ^experiência reduz-se a pirovas len- tamente sorvidas, lentamente -pensadas. Está ópti- mo o vinho. Manoel ido. Arai decreta-oi semi muita pa- lavra, os olhos baixos, a bocca frouxa.

Abençoado sol que 'creaste este vinhoi nas videi- ras decennaes, sobre as pedras da quinta. Bemdictas mãos de moças namoradas que o colhestes cantando 01 fado nas vindimas. Bemvindios pés lavados que o calcastes, íemquanto gemiam ^cantigas sensuaes, no tanque do lagar. O vinho< agora vai dar força, ale- gria, boto humor, ^felicidade. Na clareira da matta, por aldeia íe cidade, ate que chegue o inverno, subi- rá o. fumo 'dos magustos. Os beirões despedejm-se

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dos dias bellos, lentram nas chuvaradas de Dezem- bro, festejando o céu limpo, a doçura dos montes, com barrigadas de castanha, vinho verde e o fado. Sacoo repíeto ao hombro, o piposinhoi abarrotado, os phosphoros no bolso, busca a família o pinheiral ie atira- se aos magustos. Nos domingos saem de ro- magem, comendo o dos caminhos num confuso falario-, até o arrabalde, até a aldeia. Passam garra- fões, borrachas, cestos acogulados, na cabeça das paquetas le, mais saudável que o fructo, mais forte que o vinho, o prazer das marchas ao ar livre pelo sol cie S. Martinho.

As ventanias de outubro arrancaram as agulhas seccas dos pinhaes. Cobriu o chão uma camada es- pessa de caruma e folheio donde o tojo inda irrom- pe, espinhento e tostado, np meio dos barrocos. Des- pejam-s»e as castanhas. As raparigas, desafogada a cabelleira, caem sobre a caruma e o folheio, «ras- pam-n'os» com as lindas mãos rosadas e, cobrindoí as castanhas, atêam o lume. A labareda vadêa entre os troncos annosos. A fumarada sobe em novellos buscando os galhos nus. A castanha entra a estalar, a bufar, a saltar. Quando a castanha estala, sabem- n'o friulheríes e homens, é que alguma senhora se sente incommodada... Os tnagusteiros galhofam1. Ha cochichos, risadinhas, alegres maldades nos decli- ves da matta. Então os rapazes, fazendo-se sisudos, vêm desarrolhar as borrachas. E o vinho novo jorra a espumar nas caniecas de loiça.

* è v

índice:

NA QUINTA DO GIESTAL

Carta a H . Castriciano 7

A flor da giesta 10

A Primavera 13

O Luxo das meias , 17

Historias de cobra 20

Um calçamento memorável . . . 22

A carreteira de Farminhão 23

Corpus Christi 27

As moscas 28

Vixente 32

O rouxinol do tanque 35

A ceifa 40

A malha 43

Os mendigos 48

Doming-o triste 58

A VELHA CIDADE

A terra de Viriato 63

A 66

Grão Vasco 72

Evocação . 80

Vizeu d'agora 83

As festas de Santo António 88

A cavalhada Q4

O S. João i\ 102

A feira franca ......... ? 108

H . Castriciano em V izeu , 116

Scenarios do «Amor de Perdição» 118

O milagre. . J23

168 O VERÃO DA GUERRA

Em S . Pedro do Sul i 127

Noite de Arraial . . '. . . 130

O Sorteio \ 132

A Emigração 1 34

O único brasileiro. 136

O analphabetismo. 139

A guerra 141

No valle do Vouga , 143

Expedição á Africa > 147

Portugal na conflagração. 150

A Santa Eufemia 1 62

O verão de S . Martinho 160

*??? s

ERRATA

Na pagina 40, onde se : •<<>, leia-se ao na

pag. 77. leia-se de árabe, em vez de do árabe ; na pag. 135, tdu

toriaes e não inedictoriaes ; na pag. -142, declararam depois, não declaram depois. Outros erros escaparam á revisão.

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