PURCHASED FOR THE UNIVERSITY OF TORONTO LIBRARY FROM THE HUMANITIES RESEARCH COUNCIL SPECIAL GRANT FOR BRAZIL COLLECTION e”, a* TA ED VIAGENS E CAÇADAS EM MATTO-GROSSO f Lg! ui» [Rr Ao VIAGENS E CAÇADAS EM MATTO-GROSSO É “Tres semanas em companhia de Tu. ROOSEVELT RIO DE JANHKIRO Officinas Graphiças da Livraria 1922 Francisco álves o A a +" AS k 4 A LEAR parado 0 à qeu PIANO dE Vcs = TN aa f o = A RR A a A h A' imperecivel memoria de meu irmão, O Dr. Soaguim Navier Jereira da Gunha tão illustre profissional quão provecto caçador. Homenagem de infinda saudade do AUTOR ç Lo BRO ” AT," de ti ts Aa A Lado e] INTRODUCÇÃO No presente livro não ha nem póde haver pre- tenções litterarias: primeiro, porque não houve pre- occupação de litteratura; segundo, porque se tivesse havido tal preocceupação não poderia existir o livro... As caçadas de féras em todos os continentes têm sido abundantemente descriptas: os leões, como os tigres, bufalos, elephantes, rhinocerontes e ursos têm tido quem lhes exalte o valor, descreva as ma- nhas e astucias, mostre o perigo em enfrental-os, narre, emfim, as caçadas que lhes tem movido; só o nosso nobre jaguar, forte como poucos e agil como nenhum, ignorado nas brenhas da nossa ignorada terra, ainda não encontrou quem dissesse o bastante das maravilhosas emoções da sua caçada, a mais pe- rigosa d'entre todas (quando o animal é acuado no bamburro), e a que requer os auxiliares mais inte- ressantes, mais originaes e mais corajosos que se possam desejar: os “zagaieiros”. Tendo feito algumas cacadas de onça na região dos pantanaes de Matto-Grosso, onde taes caçadas são, quasi sempre, das mais interessantes e arrisca- das, animei-me a tentar descrevel-as, taes como me foi dado sentir e observar. Como, por cireumstancia de mero e felicissimo acaso, houvesse, no curso de minhas viagens e ca- cadas, tido o grande prazer de gozar da honrosa De companhia do illustre e notavel estadista e explo- rador Mr. Theodoro Roosevelt, trago a este livro o grande interesse de suas palestras e, sem indiscre- ção, o picaresco de suas intimidades. Finalmente, como fosse preciso formar um con- junto menos desharmonico, e como não sejam muito conhecidas certas paragens por onde passei, addi- cionei um resumo das minhas viagens tanto de ida como de volta, e descrevi as caçadas, como disse, taes quaes se desenrolaram. Outro merito não póde almejar este livro senão o da originalidade do assumpto, e da absoluta vera- cidade do que conta. OQ Commandante Pereira da Cunha CAPITULO 1 Do Rio de Janeiro a Corumbá Caçador apaixonado, era para mim um dos so- nhos dourados poder caçar uma onça pintada, esse animal que reina nas florestas de nossa terra, cheio de astucia e de força, ladino, ousado e feroz. Muita vez repeti que esperava não morrer antes de ir a Matto-Grosso cacar oncas, e quiz a minha sorte que não só me fosse dado ir a Matto-Grosso tentar a realização de tão ambicionado sonho, como, juntando uma surpreza, tão inesperada quanto agra- davel, tivesse ainda a rara felicidade de caçar e con- viver ahi, durante algum tempo, com o eminente americano Theodoro Roosevelt. A minha viagem para esse Estado, ainda tão pouco conhecido dos brasileiros, foi a mais suave, facil, agradavel e commoda que é possivel; e, a co- meçar pela felicidade de ter como companheiro de viagem o meu collega e amigo H., tudo correu admi- ravelmente bem em tão bella viagem. “No paquete “S. Paulo”, do Lloyd Brasileiro, le- vando a minha Greener calibre 12, minha excellente arma de tres canos (2 cal. 20 e 1 raiado 9 m/m 72), q (o ROSA meu mosquetão Mauser regulamentar, minha Re- mington 22, modelo 1912, e abundante munição, dei- xámos o Rio e a sua bella bahia na manhã de 6 de Setembro de 1913; tocámos em Paranaguá, meu ve- lho conhecido, onde, ha annos, ia deixando a vida: e, ao amanhecer de 11, graças ás bellas qualidades marinheiras do amigo Delamico, lobo que comman- dava o “S. Paulo”, entrámos, apezar da densa cer- ração que nos perseguia desde o Rio Grande, no porto da sympathica Montevidéo, sempre asseiada e faceira, com uma temperatura adoravel. Eu e o meu amigo H. empregámos todo o dia 11, e ainda o dia 12, em comprar uma série de consas indispensaveis para a nossa futura installação de campanha; e, na tarde d'esse dia 12, embarcámos no paquete “Mercedes”, tambem do Lloyd Brasi- leiro, achando-nos, com agradavel surpresa, a bordo de um navio muito confortavel, asseiado, commodo, e tripulado por gente extremamente gentil. Um nosso antigo collega devia, em commissão de fiscalização determinada pelo cargo que exercia em Montevidéo, seguir comnosco até Corumbá, e, por sua causa, só á noutinha deixámos o porto, em com- pensação, esse ligeiro atrazo, que aliás em nada influin em nossa viagem, trouxe a vantagem de pro- porcionar-nos um alegre e irrequieto companheiro, relacionado com todo o pessoal de bordo, e mais ainda, conhecedor de toda a região que iamos na- vegar, pois que, durante quatorze annos, comman- dára navios, fazendo a viagem que encetavamos. À noute e o bom somno que dormimos não nos privaram de espectaculo que valesse a pena obser- var: o vasto estuario do Prata, alargando-se como um oceano, nada tem que interesse a quem o olha, ou pelo menos descreve, como simples “touriste”, pois que é ontro o interesse que desperta Martim ; Pra DA SAcCAMORE HUME Ce (= 36 AB PA MAS JE ) Vaio dade, passára entre nós, ou por detraz de um de nós, e penetrára na sala. Comtudo, a morada no Ladario poupava-nos o trabalho da viagem obrigatoria a Corumbá, dava- nos a liberdade completa de roça, e permittia uma proximidade muito commoda dos nossos navios. in- clusive do meu “Oyapock”, que já havia deixado a | carreira. 4 Como disse, a enchente do rio Paraguay, em 1912 para 1913, foi das grandes cheias que, de tem- pos a tempos, cobrem immensas areas de campo, assolando todo o valle d'esse rio e de quasi todos os seus afiuentes, zona essa que constitue o que se chama o pantanal de Matto-Grosso; e como grande tivesse sido esta cheia, em meiados de Setembro de 1913, epocha em que chegámos a Corumbá, muito altas estavam ainda as aguas do caudaloso rio, e cobertos estavam os pantanaes. Em frente ao Ladario, existe uma extensa zona de pantanal, em meio da qual surge isolado o morro do “Sargento”; entre esse morro e o rio Paraguay corre o “Bracinho”, braço d'esse rio, que durante as cheias, liga dois pontos distantes de seu curso, e que, nas epochas normaes, só accessivel a embarcações de diminuto calado, communica com o grande rio ape- nas na parte inferior. Entre o Bracinho e o Para- guay, as aguas, baixando pouco a pouco, foram dei- xando ver, hoje os cimos dos arbustos, amanhã as pontas da macéga, e, emfim, quando a agua já tinha deixado de dar ao pantanal o aspecto de “mar” e o tinha transformado em lodaçal, bandos incontaveis de marrecas, irerês, frangos d'agua, carões, coricá- cas, tabuyáyás, cabeças-seccas, tuyúyús, colhereiros, garças, socós e biguás cobriam todo aquelle panta- Na porta de casa. — Ladario A bordo do Riquelme, Roosevelt passa em frente ao Ladario O autor conversando com Th. Roosevelt a bordo do Nyoac nal, fervilhavam n'aquelle charco, e para chegar até essa região, tão rica em caça, bastava atravessar o rio! A um tiro que se disparasse, bandos e bandos de irerês e marrecas erguiam o vôo e, em verdadei- ras nuvens, atordoavam o caçador com o seu inin- terrupto assobio. As garças, voando com lentidão e majestade, muito alto, cruzavam o espaço em longas filas, brancas, alvas, luzidias; e, ao cahir da tarde, como se accorressem a um signal de commando, che- gavam ellas de todos os pontos do horizonte para, dentro em pouco, cobrir de um lençol branco um longo renque de arvores que margeiam o Bracinho. Durante o dia, das alturas do Ladario, via-se o campo coberto de largas manchas brancas, constitul- das por colossaes bandos de garças; além, uma re- voada de enormes tuyúyús dava o aspecto de um “meeting” de aviação; e, principalmente ao começo, e mesmo durante a noute, os bandos de irerês não in- terrompiam a musica do assobio que lhes dá o nome. Muita vez, descendo um pouco o Paraguay e en- trando pelo Bracinho, gozavamos do bellissimo espe- ctaculo que offereciam as suas margens, crivadas de todas essas aves aquaticas que, á nossa approximção, erguendo o vôo, nos deixavam boquiabertos ante scena tão bella. Destacavam-se, d'entre todos os co- lhereiros côr de rosa, que voando em bandos com- pactos sob um sól brilhante, produziam um effeito cuja descripção não póde sequer dar uma ideia da enorme belleza. Infelizmente, por ser recem-chegado, e só ter relações com os collegas, entre os quaes não ha- via caçadores, muito pouco aproveitei, d'essa vez, d'aquella occasião magnifica e que raro dura mais de quinze dias, no começo e no fim das cheias; ainda assim, dei que fazer á minha (Greener, que abateu um grande numero de peças. RIA! a CAPITULO II Projectos de caçada — Encontro com Theodoro Roosevelt e viagem a Palmeiras—Na Fazenda das Palmeiras— Regresso das Palmeiras. O meu fito principal era a caçada de onça, ideal que suspirava, havia tanto, e que deveria alli rea- lizar; mas, quem conhece o interior do Brasil e os “caipiras” ou “caboclos”, sabe que não é a peso de ouro que se póde obter d'elles a bôa vontade, a co- adjuvação e coparticipação nas caçadas, e, mais do que isso, os seus cães de caça. Hlssa gente bôa e sim- pes foge ás regras estreitas do egoismo que avas- salla os habitantes das grandes cidades, e mesmo de outros paizes, e não vê no dinheiro a unica cousa apreciavel, o unico bem tangivel na terra. Mais gene- roso, mais altruista, mais cavalheiro do que os que se dizem civilizados e falam em igualdade, mas não a admittem de facto, o caboclo brasileiro e nosso ser- tanejo, despoja-se dos seus bens mais caros, sacri- fica seus interesses e arrisca mesmo a sua vida, para ajudar, para servir, para defender um amigo. E” commum que um d'esses nossos bons patricios, sem bem algum, que mora, sem conforto, numa casa de sapê, sem um colchão para lhe abrandar a rijeza do leito de varas, e sem ter quasi o que comer, rejeite por um cão de caça quantias grandes, para elle avul. tadissimas, e dê esse mesmo cão, sem o menor cons- ga) o trangimento, com satisfação, com prazer, sem o mi- nimo interesse, a alguem que lhe tenha dispensado consideração e amizade, e que se tenha mostrado digno de sua estima! Assim, pois, só com algum tempo de permanen- cia no lugar ser-me-ia possivel tentar uma caçada, em que era indispensavel o auxilio dos caboclos. Estava n'esse terreno de approximação, quando, em meiados de Novembro de 1914, isto é, cerca de dois mezes depois de ter eu ahi aportado, chegou a Matto-Grosso Theodoro Roosevelt. Graças a algumas amizades que já então havia feito em Ladario e Corumbá, fui convidado a tomar parte na primeira caçada de Roosevelt, caçada que deveria realizar-se na “Fazenda das Palmeiras”, de propriedade do Capitão de Mar e Guerra Alves de Barros, veterano do Paraguay e ex-Presidente do Estado de Matto-Grosso. Foi assim que, na manhã de 17 de Dezembro, no porto de Corumbá, com viva alegria, saltava a bordo do vapor “Nyoac”, onde deveria embarcar, momen- tos depois, o caçador, explorador e estadista Theo- doro Roosevelt, a quem o seu grande paiz tem dis- tinguido tanto e o mundo prestado tão grandes “homenagens. Cerca de duas horas após a minha chegada, atra- cava ao navio a embarcação que conduzia o illustre americano e varias pessõas que o acompanhavam. Apresentado que fui ao Coronel Mariano Rondon, este apresentou-me logo ao Sr. Roosevelt, com quem, na confusão do momento, não pude palestrar como desejava. Pouco depois, assentavamo-nos á mesa para o chá da manhã, terminado o qual tive occasião de entabolar conversação com o ex-Presidente dos Estados Unidos. Suppunha que Roosevelt viera ao Brasil na unica intenção de caçar e, como caçador que sou, en- caminhei a conversa para esse ponto. Só então soube que havia um fim scientifico em sua viagem, e que tinham sido formadas duas commissões: uma de norte-americanos, chefiada por elle, e outra, de bra- sileiros, dirigida pelo Coronel Rondon. Não tardou a estabelecer-se grande intimidade entre mm e o Sr. Roosevelt, o qual, levando-me ao seu camarote, desencapou a sua “Springfield”, mos- trou-me o acondicionamento das munições, e discutiu as vantagens d'esses sobre aquelles projectis. Depois, conversámos sobre as nossas caçadas e separámo-nos muito camaradas. Ás 4 horas da tarde d'esse mesmo dia 17, dei- xámos o Paraguay e entrámos no Riozinho, braço do rio Taquary, transformado hoje em verdadeiro rio; e como tivesse naufragado a lancha destinada a subir esse rio até um dos portos da Fazenda das Palmei- ras, tentavamos agora subir com o proprio “Nyoac”. Bandos enormes de tuyúyús, garças, colhereiros e outras aves orlavam as margens do pittoresco rio; campos extensos, ainda alagados da cheia, esten- diam-se além; os jacarés pullulavam por toda a parte... Dentro em breve o navio transformou-se em corpo de atiradores contra esses animaes; appa- reciam armas de todos os systemas e calibres, e era uma fuzilaria continua, ininterrupta, entrecortada de risadas, applausos, troças e vaias. Já ao cahir da tarde, avistámos, em um campo de macéga alta, um animal que parecia anta, mas que logo foi reconhecido como um tamandná-ban- | Det deira, que procurava fugir para o campo. Roosevelt tinha vivo empenho em matar um tamanduá, pois, com a onça, o queixada, o catetú, a capivara e a anta, formava elle o grupo de peças que mais desejava para o museu de Nova-York. Parado que foi rapida- mente o navio, saltou o grupo de caçadores que, auxi- liado por dois cães argentinos presenteados a Roose-. velt, cercaram o tamanduá. “Chenzi” e “Trigueiro”, que assim se chamavam os cães, postaram-se bem, e foi diffieil a Roosevelt achar um momento em que pu- desse atirar no tamanduá, o que afinal conseguiu. Seguimos novamente rio acima e, ás 7 horas da noute, chegámos ao porto de destino. Ao jantar, o ex-Presidente dos Estados Unidos deliciou-nos com uma variada e interessante palestra sobre a politica do seu paiz, a intervenção na Repu- blica de S. Domingos, as suas caçadas no centro da Africa, etc. No dia seguinte, pela manhã, ensilhámos os ani- maes e partimos, pois já tinha seguido a nossa ba- gagem em carro de bois. Desde a sahida, e durante mais de legua, a viagem foi feita atravez de panta- naes, com grande difficuldade. A meio caminho fize- mos alto para esperar o Coronel Rondon que, com o Capitão Amilcar, vinha fazendo um levantamento expedito dos nossos caminhos. O sól era ardente, e o grupo de cavalleiros apeava e procurava as sombras. Roosevelt e eu recostémo-nos por terra, á som- bra de uma arvore, e ahi continuámos as nossas pa- lestras politico-sociaes; e como alguem fizesse refe- rencia ao seu papel na paz Russo-Japoneza e ao orgulho que deveria ter d'isso, elle retrucou dizendo não ver n'isso grande valor; que o papel por elle desempenhado o seria facilmente por outro qualquer, pois que, quer de uma parte, quer de outra, embora por motivos differentes, havia necessidade de fazer a paz, e que, se alguma gloria pudesse ter, seria a de “< ar q a ET Us DAP q CELIO a" [ rr GaUa*a A O Sato ras pd Tamanduá bandeira rree cpra o o a x N + “ y 1,0004009, 0º8,., : “3 dy a q as o Bim tADodanntãa Nota. — Esta photographia foi tirada, dois annos depois, nos | sertões de Minas Geraes e aqui figura, apenas, para mostrar o animal | — Tamanduá bandeira. | med Es E e A :4 E ru FESrA dec Disrad pare e --recostamo-nos nor terra, à sombra de uma arvore, ahi continuando as nossas palestras... do Rem haver trabalhado sózinho, salvo um pequeno auxilio do Imperador da Allemanha, que foi o unico a aju- dal-o. Os dous factos do seu Governo que o enchiam de orgulho, continuou Roosevelt, eram: a abertura do canal de Panamá e a viagem da esquadra ameri- cana em torno da terra. Sobre o canal, estava bem ao alcance de todos avaliar da sua enorme importancia, e sobre a viagem da esquadra, não só os factos poste- riores vieram demonstrar o alcance diplomatico e o acerto de tal resolução, como o successo nautico e as lições tiradas de tal viagem foram de grande pro- veito. Chegando o Coronel Rondon, novamente montá- mos a cavallo e, por cerca de 2 horas da tarde, che- gámos á casa d'essa vasta Fazenda das Palmeiras, que tem trinta leguas quadradas e mais de trinta mil cabeças de gado vaccum. Mais de metade d'essas terras alaga durante as cheias, mas uma enorme su- perficie não é attingida, ainda que se trate das maio- res enchentes do Paraguay. Além do gado vaccum e da grande variedade de caça, povôam os campos d'essa fazenda cerca de cinco mil porcos montados, cousa de que pessõa al- guma pensa aproveitar. No dia seguinte, em grupos esparsos, começou a caçada que foi quasi infructifera. Roosevelt, Ker- mit, Rondon e dois “zagaieiros” (1) tinham ido ás (1) Zagaieiro é o homem que, armado de “zagaia”, acompanha (geralmente em numero de dous) o atirador e o defende, como veremos adeante. Zagaia é uma lança cujo ferro, forte e afiado, regula ter perto de trinta centimetros de comprido sobre oito na maior largura, e cujo cabo, de madeira de lei, bastante grosso, re- gula dar à lança um comprimento total de cerca de dous metros. . À gravura junto é destinada a mostrar o que é uma zagaia, MÁ EO coma onças, e eu, apezar do desejo que mantinha de en- frentar o nosso grande e astuto felino, tive que dei- xar aos illustres hospedes esse glorioso tentamen, pois que isso exigia a nossa gentileza. Os vastos pantanaes matto-grossenses eram para mim, até então, conhecidos apenas de vista; na vespera, pela primeira vez, havia atravessado uma pequena parte, vindo do porto á casa da fazenda, mas, hoje, emquanto o grupo Roosevelt se destaca com a cachorrada á busca das onças, eu, ás 5 horas da manhã, acompanhado de um “camarada”, parto a enfrentar os grandes pantanaes, à procura dos ma- jestosos cervos, cujo nome scientifico (caricacus pa- ludosos) bem indica o seu habitat. Atravez dos vastos espaços verdejantes de alta macéga, ora com agua pela barriga da cavalgadura, ora pisando terra firme, avistando aqui e além ca- pões de matto e “carandazaes” (1), penetrámos nºum grande “pirizal”, pantanal mais profundo, mais lo- doso e coberto de “piriri” (rhynchospora storea), verdadeiro labyrintho em que todos os cuidados são precisos para evitar os atoleiros e os “corichos” (2) profundos. Sem almoço e sem termos trazido “ma- tula”, pensámos, já depois de meio dia, em regressar á casa, que estava longe, embora não tivessemos con- seguido ver, sequer, um unico cervo; mas, nem sem- pre o desejo da realização de um projecto determina a sua execução immediata. E foi o que succedeu. Theodoro, que assim se chamava o “camarada”, não era bem “vaqueano” daquella zona da fazenda, e o (1) Carandazal é um bosque de “carandá”, bellas pal- meiras de Matto-Grosso, como mostra a gravura. (2) Corichos, poder-se-á dizer, resumindo, que são cor- regos de existencia ephemera, creados pelas cheias. Alguns perduram mesmo na vazante, com as aguas estagnadas, con- forme o terreno que encontram. O aspecto uniforme do pantanal em geral, e do pirizal principalmente, exige uma pratica especial para o seu conhecimento. À duas ou tres leguas da casa da fazenda, em lugar inteiramente deshabitado, sem comida e sem bussola, estavamos perdidos no meio d'aquelle grande mar de verdes campos alagados! Depois de penosas e desencontradas caminhadas no pirizal, conseguimos alcançar um pedaço “firme” em bôa hora seguro como taboa de salvação. Conti- nuámos as tentativas, agora mais suaves, e, contra o que é commum a meus habitos de facil desorien- tação, fui eu quem percebeu o caminho de volta e, assim, depois de onze horas de cavalgada em tão ingratos terrenos, chegámos á casa das Palmeiras ás 4 horas da tarde, com muita fome e sem termos visto um cervo. Diz-se que um dia é da caça e outro do caçador, e, a ser verdadeiro o adagio, positiva- mente esse dia era da caça... Roosevelt voltára mais cêdo do que eu, sem ter passado os máus quartos de hora de apprehensões por que passei, com menos fome, mas com o mesmo resultado cynegetico — zero. Quem é caçador não estranha esses contratem- pos, pois conta com elles; Roosevelt não caça de car- tola: sabe bem o que são essas cousas e, quando al- guem lastimou o seu insuccesso do primeiro dia de caçada, respondeu com o seu bom humor de sempre: “Meu caro, só consegui matar o meu primeiro “orizzle” ao cabo de quatorze dias; ficarei muito con- tente se, dentro da semana de que posso dispôr, con- seguir matar uma onça”. E Roosevelt pronunciava “onça” com o seu sutaque “yankee”, acompanhando com gesto energico o que já havia dito com energia. No dia seguinte, 20, Roosevelt não caçou; ficou escrevendo seus artigos e esperando noticias de rasto fresco de onças, incumbencia que foi dada especial- Viagens e Caçadas 3 mente a um camarada. Kermit, mais feliz do que eu, conseguiu matar um cervo; eu, porém, só matei uma capivara, apezar de ter percorrido grande zona de pantanal. Quer n'esse dia, quer na vespera, eu já tinha encontrado rasto de onça, mas rasto velho; o cama- rada a que me referi, porém, teve a felicidade de en- contrar rasto fresco e, no dia seguinte, com espe- ranças de bom exito, cêdo partiu Roosevelt á caça da cobiçada onça. Não fui testemunha, mas sei que, logo após á solta dos cães no rasto, a onça, correndo muito pouco, trepou n'um páu á beira de um capão, e com facilidade e sem sensação, Roosevelt, mesmo do campo, atravessou-lhe o coração com uma bala dum- dum da sua “Springfield”. Era uma onça pintada, femea, medrosa e de fra- cas dimensões; pena é que o nosso illustre hospede não tivesse assistido ao combate de um “macharrão” malcreado, acuado no matto sujo, e não tivesse visto as proezas dos caboclos zagaieiros em taes occasiões. Se esta narrativa fôr por deante, tentarei dar uma ideia do que é esse espectaculo empolgante, arreba- tador e fascinante, o mais bello, estou certo, que é dado a um caçador presencear, e cuja impressionante majestade perdurará para todo o sempre em sua me- moria. Eu, persistentemente, voltei aos fugidios cervos; acompanhou-me, n'esse dia, o Dr. Soledade, e tinha como guia um camarada bom vaqueano da fazenda, o preto Faustino, crioulo reforçado e um dos melho- res zagaieiros da região. Como nos dias anteriores, cavalgámos longamente atravez de campos e panta- naes, até que, emfim, avistámos um dos tão desejados quão arredios cervos, n'uma depressão de terreno que formava um pequeno alagado. Apeámo-nos e, procurando escondermo-nos por detraz da macéga mais alta e de alguns arbustos, eu flanqueando pela Zagaieiro (nota da pag. 31) Roosevelt e a sua 1.º onça Boi cargueiro que acompanhou Roosevelt nas cacadas de onças Montaria original (nota da pag. 37) - Ep Ba mis esquerda e o Dr. Soledade em linha recta, fomo-nos approximando do cervo; este já dava evidentes de- monstrações de inquietação quando, antes que per- dessemos a presa de tão difficil encontro, apontei a minha tres canos e, apezar de estarmos ainda bem distantes, disparei o cano de bala, visando a paleta. O meu companheiro, que envidára esforços para ati- rar antes de mim, vendo-me apontar, imitou o meu movimento, e o tiro do seu mosquetão Mauser partiu quasi ao mesmo tempo. Ao estampido dos tiros, quasi simultaneos, cahiu o animal, e o camarada, que se conservava montado e no local em que nos tinhamos apeado, galopou em direcção á nossa victima; esta, porém, ao sentir-lhe o tropel, ergueu-se e, mostrando ter uma perna partida, disparou campo a fóra, ape- zar de ter o Dr. Soledade atirado novamente e no momento em que o animal se levantára. Eu, com a espingarda aberta, procurando carregal-a, corri com todo o esforço de que era capaz, e, sem pretender igualar o vencedor do meu homonymo troyano, corri ainda assim bastante para que, logo que o cervo pa- rou, me fosse possivel, como foi, atirar sobre elle immediatamente. À esse tiro o animal cahiu e, d'esta vez, para não mais se levantar. Examinando o bello galheiro, verificámos que a minha primeira bala havia attingido um pouco mais baixo do que era para desejar e, em lugar de pene- trar a caixa thoracica ferindo orgãos vitaes, tinha-lhe apenas partido a perna; a primeira bala do Dr. So- ledade, ao contrario da minha, fôra muito alto e, pas- sando por cima da columna vertebral, na altura das espaduas, mal ferira o couro, pois fizera dous ori- ficios que se tangenciavam quasi; a segunda bala do mosquetão Mauser apanhára a parte trazeira do ani- mal e, tão perto andou do ponto central do alvo que, por pouco, não seria possivel perceber por onde teria entrado. .., emfim, a minha segunda bala, apezar da o pp carreira que dei, atravessára a cabeça do cervo, e de vez, tirára-lhe a vida. A galhada d'esse cervo não primava pelo tamanho, em compensação, muito re- gular e bem proporcionada, prestou bons servicos, como cabide de chapéus, em nossa casa do Ladario. Tirado o couro do cervo, fomos almocar á beira de uma pequena lagõa, onde matámos uma grande quantidade de jacarés e algumas capivaras; e é tão grande a quantidade de piranhas n'essa pequena, mas profunda lagõa, que os jacarés não mortalmente feridos por nós, e que procuravam refugio mergu- lhando, eram obrigados a voltar apressadamente á margem, apezar da nossa presença, tal era a perse- guição que lhes moviam as piranhas avidas de san- gue, e cujo numero e ferocidade levavam de vencida a força, a corpulencia e as bem guarnecidas mandi- bulas dos jacarés. Para melhor dar ideia da quantidade é primei- palmente da ferocidade d'essas vorazes piranhas, contarei que, tendo atirado n'uma das capivaras antes de ter ella ganho a terra firme, se afundou o animal na lagõa; mas, qual não foi a nossa surpresa ao vel-a, quasi que immediatamente depois, como que correndo á tona da agua! Corremos a pescal-a com um galho de matto, apanhado na oceasião, é conse- guimos trazer para a margem metade da capivara que um cardume de piranhas fizera boiar e empur- rava á tona d'agua! Esse facto, com menos detalhe, é citado no livro de Roosevelt, “Through the Brasilian wilderness”, excursões nas quaes tomei parte durante cerca de um mez. No dia 22, tendo sido encontrado na caçada da vespera rasto de onça, cêdo, com a mesma organiza- cão da ante-vespera e acompanhado de um boi car- / gueiro (1), o grupo Roosevelt deixou a casa da fa- zenda, e Kermit, a quem tocava d'esta vez o tiro, matou, do mesmo modo que seu pae, uma onça macho de grandes dimensões, que foi atravessada de lado a lado por uma bala dum-dum da sua “Winchester”, bala que partiu os dous braços do animal, tendo na passagem feito os estragos faceis de imaginar. Essa onça foi por nossos hospedes comparada a uma leõa, e constituirá um bello trophéu, apezar de, como suecedeu com a outra, não ter dado a impressão que era para desejar. Infelizmente, d'essa onça, não sei por qual mo- tivo, não foi aproveitada a carne, como da outra; d'aquella provámos as deliciosas costellas (eu pela primeira vez) e achámos todos um prato de primeira ordem, apezar da sua qualidade de carnivoro não nos ter dado essa esperança; e Roosevelt, que até então havia limitado os seus conhecimentos de portuguez á palavra “obrigado” e à phrase “mais café”, am- plhou a applicação do nosso idioma reclamando por duas vezes “mais onça”. Mas, ia sendo injusto, quer quanto aos conhecimentos de portuguez por parte de Roosevelt, quer quanto ao cozinheiro do Comman- dante Alves de Barros. Certa vez, Kermit, que fala muito bem o portu- guez e que já estava entre nós havia mais de dois annos, applicou mal a palavra “legitima”, e da troça que lhe fizemos, Roosevelt, observador como poucos, guardou bem a significação do termo e o sentido erro- (1) A utilização do boi como animal de carga e de sella é originalidade de que, segundo creio, Matto-Grosso goza o privilegio. Ahi, entretanto, esse animal presta grandes ser- viços como cavalgadura, pois que serve, como se um cavallo fôra, para serviços de campo, para viagens e, como se isso não bastasse, até para corridas, o que constitue um sport par- ticular áquella região. O escriptor d'estas linhas, como se vê adeante, utilizou tal montaria c n'ella deu bons galopes de corrida. da. RE ee neo que lhe havia dado Kermit; assim, uma vez que, de volta da caçada, lhe offereciam, com insistencia, agua de Caxambú, elle enfiou a caneca de folha na talha de barro e, depois de ter bebido a agua não filtrada do pantanal, que outra não era a da talha, apontou para o liquido e disse: “legitima”. Excusa dizer que a pilheria fez effeito e todos rimos a bom rir. De outra feita foi a nossa saborosa canja que trouxe interesse á lingua (é claro que me refiro á lin- gua idioma...); Roosevelt não conhecia esse prato, que pela primeira vez provou na Fazenda das Pai- meiras, e provar foi gostar e interessar-se tanto que, aprendendo logo o nome do prato, reclamou “mais canja”, tal como lhe permittia o seu sutaque; e tal foi a impressão deixada pela canja, que Roosevelt asseverava introduzir a moda nos Estados Unidos, se fosse cozinheiro, e que, dentro de um anno, seria com certeza o prato predilecto dos americanos. Passaram-se assim os dias de que Roosevelt dis- punha para permanecer nas Palmeiras e, a 23, tendo já cêdo partido os carros de bois com as bagagens, deixámos, pelas 2 horas da tarde, cheios de sandades, a casa da hospitaleira e vasta fazenda que, sem que eu previsse, ainda me reservava dias cheios dos maiores encantos. À caça meuda, os veados e os porcos eram encon- trados um pouco por toda a parte, atravez dos pan- tanaes e dos majgestosos carandazaes, mas, quando tinhamos talvez dous terços de caminho feito, o nosso hospede quiz atirar n'um tuyúyú que destinaria ao museu de Nova-York; apeou-se, ajoelhou-se como de costume, fez fogo e errou o alvo a uns trezentos e cincoenta metros; mais dous ou tres tiros foram fei- tos com o mesmo resultado, até que, pouco mais adeante e para o outro lado do caminho, Roosevelt abateu um d'esses enormes pernaltas. Corremos em 38) nossas montadas para o local em que se abatera o animal, mas, oh! surpresa! o valente tuyúyú, erguido, de azas abertas e bico ameaçador, enfrentava irado o grupo de cavalleiros! Foi preciso que um camarada mais déstro conseguisse dar uma paulada na cabeça do resistente bicho para que tivessemos terminada esta scena, tão extraordinaria quão interessante, e na qual o instincto de conservação mostrava bem o seu poder. A” tardinha, chegámos ao porto do Riozinho, e lá encontrámos novamente o “Nyoac”, que tinha ido a Corumbá e que já estava de volta; dormimos a bordo, bem abrigados pelos nossos mosquiteiros e, ás 7 da manhã do dia seguinte, deixavamos o porto do Riozinho, aguas a baixo, entrando ás 8 horas e 20 minutos no Paraguay e por elle subindo em busca de Corumbá. Estavamos na vespera do Natal, esse dia que a humanidade inteira, com ou sem ideia de religião, dedica ao aconchego do lar, ás doçuras da familia. e principalmente ás creanças; e nós, todos nós alli reunidos, distantes dos lares e das familias, tinha- mos, insensível, involuntariamente, pensamentos que voltejavam em torno d'isso. Ao almoço, Roosevelt, que desde o primeiro dia tinha-me sempre como seu vizinho, encaminhou a conversa para a religião; eu descorri larga e francamente sobre o que penso a respeito: a grande vantagem da sua acção sobre as massas, o apoio para os crentes, o consolo para os que soffrem, e a difficuldade que sentia na adopção de qualquer d'ellas, embora me sentisse perfeita- mente equilibrado, pautando meus actos por uma sã moral, fructo principal de qualquer religião bem for- mada. Estendi-me ainda sobre o dificil problema de encaminhar os filhos na religião, a escolha que fizera para os meus depois de muito reflectir e, após todo o meu discurso, algumas vezes interrompido para Sei 1 discussão de um ou outro ponto, ficámos de pleno accôrdo, como em geral succedia com as nossas con- stantes palestras. Eu ia terminar n'esse dia a minha excursão e deixar, com pezar, tão agradavel companhia, mas Roosevelt insistia para que eu continuasse e, de accôrdo com o Coronel Rondon, tudo ficou arranjado de modo que fosse satisfeita a sua vontade, que bem se casava com a minha. Realmente, durante os poucos dias d'essa pri- meira parte da excursão, as nossas relações eram cada vez mais estreitas e amistosas, e dir-se-ia que, a cada sessão de prosa, que correspondia, em geral, a cada refeição, mais intenso tornava-se esse senti- mento reciproco. Aliás, pouco após a apresentação em que, como sempre, não se trocam mais que pa- lavras banaes, a primeira vez que tive occasião de conversar com o ex-Presidente dos Estados Unidos, na manhã em que partiramos de Corumbá, facil foi sentir atravez da sua conversa, do seu olhar, da sua expressão, o homem forte, energico, prompto e intel- ligente. A intelligencia de Roosevelt não é d'essas que se percam em especulações philosophicas vazias, so- nhos chimericos de cerebros inuteis que se divertem em tecer palavras em torno de hypotheses; não; Roo- sevelt, como elle proprio diz, não vê importancia al- guma nas palavras, uma vez que ellas não represen- tam acções ou factos; ama e defende a liberdade, mas não faz d'essa “palavra” um idolo intangível, pois que, para que todos gozem com ordem d'essa mesma liberdade, é preciso regularizal-a e não con- sentir que cada um tome a porção que lhe aprouver; esse é que é o facto real e é isso que tem importancia e cunho pratico; a palavra liberdade em si nada vale, e utilizal-a sem peias é querer a anarchia. Bellas presas! ; Th. Roosevelt e o autor Dr. Soledade, Kermit Fazenda S. João ate Roosevelt é o typo do forte, de energia sã e acção prompta, e a prova era a viagem que ia emprehender atravez do Brasil: descer um rio desconhecido, e isso com 55 annos de idade. Mas, como ficou dito, e sem accrescentar mais elogios ao meu novo e distincto amigo, uma vez deci- dido que prolongaria a minha excursão, foi preciso tratar de pôr em ordem o que me pertencia, ver o que era mistér addicionar para a nova empresa e prepa- rar-me para saltar no Ladario, onde necessitaria to- mar e ordenar providencias. Ás 2 horas da tarde, passámos pela foz do Para- guay-mirim, braço que liga ao rio S. Lourenço e ce- lebre na retomada de Corumbá pelo General José Maria Coelho, que por ahi desceu de Cuyabá, para retomar Corumbá com tropas por elle organizadas; e, emfim, ás 4 horas da tarde, tomava eu o escaler do meu navio, deixando o “Nyoac” seguir para Co- rumbá. a x» in a Êo e 6 IS Hplu-á Ela Ad ( PODA - pé UNA f E p= Ê h » ê DE Res a A é + É E Md 4 + e qui Í Rom 1% CAPITULO IV Viagem à Fazenda de S. João — Na Fazenda de S. João — Caçadas no rio S. Lourenço Se o prazer da agradavel companhia e o genero de sport já constituiam para mim encantos dos quaes um bastaria para arrastar-me, calcule-se como não seria intensa a minha alegria, ao juntar-se ainda o ignorado do rumo da excursão que iamos em- prehender ! Correndo o mais que me era dado, só ás 7 horas da noute estava prompto e embarcava na lancha do meu navio, o “Oyapock”, para apanhar o “Nyoac”, em Corumbá, quatro milhas de rio acima. Com ancia, esperei que o motor da lancha qui- zesse acabar com um d'esses caprichos que os moto- res de explosão reservam para desesperar e muitas vezes matar os homens, se d'elles depende, como nos aeroplanos, a vida dos mortaes; o motor em movi- mento e embarcado que fui, mal nos tinhamos afas- tado porcas dezenas de metros do costado do navio, e eis de novo o recalcitrante motor parado, em plena correntada do rio Paraguay... Oh raiva indizivel! Oh desespero! Oh destino cruel e maldito! Já se ha- via esgotado uma hora de trabalho incessante e inutil e de irritação improficua; a lancha descia placida e serena pela tranquilla correnteza do rio, emquanto o “Nyoac” ficava cada vez mais distante e suspendia ferro ás 10 horas! Amargurados momentos Quando passámos a contrabordo pelo meu navio, eu pedi soccorro, mas, aquella hora, só estava arriado um pesado bote a dous remos, e foi elle o enviado em nosso auxilio; mas, se a esse bote já era dificil fazer vencer a correnteza, calcula-se o que seria a dar re-. boque á nossa lancha, aliás bem pequena. Avançava- mos aos centimetros e com esforços incriveis; Oo tempo corria vertiginoso, e a esperança de apanhar o “Nyoac” fugia com a mesma velocidade. Quasi ás 9 e meia, conseguimos attingir o monitor “Pernam- buco” e, ahi conseguindo uma outra lancha, nc seu motor, tambem á explosão, embarquei todas as mi- nhas esperanças. Os quarenta minutos de subida do rio foram, como sempre succede em circumstancias analogas, de uma lentidão esmagadora; as luzes dos vapores fun- deados em Corumbá não permittiam que eu distin- guisse o “Nvoac” d'entre elles e, assim, só ao termo da attribulada viagem, ou antes, a uns cincoenta me- tros do navio, consegui verificar que o “Nyoac” ainda não tivera deixado o porto; mas era bem tempo. Faltavam cinco minutos para as 10 horas da noute, e essa tinha sido a hora fixada para termo da minha espera. O allivio que senti ao saltar a bordo e a satis- fação demonstrada por Th. Roosevelt, ao abraçar-me, fizeram dissipar o máu humor que havia bem explo- dido contra os motores de explosão, que tantos e tão bons serviços nos prestam... quando funccionam bem. Ás 10 horas da noute, deixámos o porto, aguas a cima; o rio Paraguay dá ahi tres compridas voltas das quaes se avista, por longo tempo, a cidade de Co- rumbá, cujo effeito é realmente bello com a sua pro- fusa e intensa illuminação electrica, scintillante na elevação em que é construida, debruçada sobre o rio, pittoresca e garbosa como é difficil imaginar a quem nunca tenha visto essa longinqua cidade. Por detraz d'ella, ao longe, recortando o céu limpido, avista-se a massa negra da serra do Urucúm, que encerra as ri- cas minas de manganez, a serra de S. Domingos e a de Piraputanga; e, emquanto de um lado tem-se esse espectaculo, do lado esquerdo, apertando o rio em que navegavamos, o pantanal immenso, sombrio e triste na escuridão da noute, estende-se sem fim. O dia seguinte, Natal, foi todo de navegação no rio Paraguay; a monotonia das margens baixas, ala- gadiças, despovoadas e tristes, augmentava as tris- tezas do Natal fóra de casa, mas, a conversa animada e o bom humor de alguns souberam vencer ou abafar a melancolia dos outros. A”? tardinha, para o jantar, o “salão” do “Nyoac” estava enfeitado com palmei- ras e flores agrestes, e assim, não faltou a esse dia a pompa que era possivel dar-lhe n'aquellas con- dições. A “sala de refeições” d'esse nosso vaporzinho, bastante ampla para que sejam armadas as rêdes, quando funcciona como dormitorio, fica a dous pal- mos d'agua, e finos varões de ferro, largamente espa- cados, cercam-n'o sem nenhuma outra antepara; duas grandes lampadas a petroleo, penduradas ao centro, intervalladas no séntido de pôpa á prôa, iluminam essa peca ao rez do chão, perdão, ao rez d'agua, cuja ausencia de anteparas tanto a refresca quanto per- mitte a franca e livre entrada dos mosquitos, motu- cas, mariposas, cascudos e toda a especie de insectos que os pantanaes de Matto-Grosso têm por bilhões de bilhões, e que, salamandras aladas, ardem pela luz. Ora, a Roosevelt, sempre meu vizinho à mesa, foi designado um lugar bastante proximo a um d'esses lampeões, embora mais proximo ainda, bem em frente, tivesse então de ficar este seu modesto vi- “zinho; a cortezia fica bem mesmo quando nos possa Ea 7 trazer algum proveito, e foi assim que não tive du- vidas em aconselhar Roosevelt a tomar outro lugar mais distante do fascinador de insectos. O meu vizi- nho da esquerda não deve ter ficado muito contente com o conselho que a minha cortezia e hôa previsão fizeram o nosso hospede acceitar, pois que, d'ahi em deante, a elle coube a “melhor” porção dos impor- . tunos insectos. Roosevelt e eu ficámos um pouco me- nos atormentados durante o jantar, mas, em compen- sação, de quando em vez, olhava para o prejudicado vizinho e para o lampeão, e exclamava: “le rusé commandant...” | Apezar dos turbilhões de insectos que esvoaca- vam em torno dos lampeões, certa noute encontrei o nosso amigo e illustre hospede, sob uma d'essas lam- padas, muito vermelho, suando por quantos póros ti- nha, envolvido por uma nuvem de insectos que, sem conta da fidalguia da hospedagem, irreverentemente cahiam sobre a cabeça, pescoço, mãos e papeis em que escrevia Roosevelt. Este limitava-se a soprar continuamente o papel em que corria o seu lapis- tinta e, se não fôra essa necessidade de desobstru- cção a sopro, dir-se-ija que aquella avalanche que o envolvia e atormentava não lhe causava o menor transtorno. Ao vel-o trabalhando assim, não me foi possivel deixar de perguntar como podia elle escrever d'aquella fórma; e Roosevelt, interrompendo um mo- mento o seu trabalho, disse-me: “meu amigo, eu te- nho um contracto; devo dar TANTOS artigos até TAL epocha, e é preciso cumprir”. E, como se estivesse escrevendo em sua secretária de Sagamore Hill, con- tinuou, imperturbavel, rubro, suando e soprando, a escrever o seu artigo. Roosevelt escreve sempre a lapis-tinta e, inter- calando dous “carbonos” entre as folhas do blóco de papel, tem sempre duas copias, além do original; este elle conserva, remette uma das copias (do primeiro e VE ponto em que isso é possivel), guarda a segunda e re- mette-a de outro lugar. Com tal systema, diz elle, um, ao menos, ha de salvar-se. Mas, ainda que não tenha artigos para escrever, ou mesmo que os tenha, Roo- sevelt trabalha sempre porque, emquanto viaja, es- creve o livro que tem de publicar, e de modo tal que terminada a viagem está terminado o livro. Eu bem conheço a necessidade d'essa precaução, dizia elle; se não tivesse feito assim na África, não teria escripto livro algum, pois, após a minha che- gada a Kartum, nunca mais fui senhor de mim, e muito menos teria tido tempo para escrever um li- vro; e, agora, quando terminar esta viagem, só me restará o trabalho da revisão das provas, pois tudo já estará por mim escripto. Sempre crescendo a nossa intimidade, Roosevelt ora nos dizia as suas impressões sobre o que vira e via na America do Sul, ora contava passagens de seu governo nos Estados Unidos, ora discutia questões sociaes e theses philosophicas. O nosso hospede mostrava-se seguro do nosso rapido progresso, e, assim, asseverava ter certeza de que, dentro de cincoenta annos, as margens do Para- guay estariam como estão hoje as do Mississipe; di- zia que estava farto de ouvir dizer que não havia energias sob os tropicos e, no emtanto, tinha en- contrado a cidade do Rio de Janeiro, que sabia re- formada em curtissimo prazo, e que era mais bem iluminada, mais limpa, mais bem calçada e me- lhor policiada do que Nova-York, Paris, Londres, Chicago, ou Berlim, só exceptuando esta ultima quanto ao policiamento; que vira a Avenida Beira- Mar, feita pela mão do homem, e que desafia qual- quer outro passeio no mundo; que vira o Instituto Oswaldo Cruz e o colossal resultado da campanha contra o mosquito; vira ainda o Instituto de Bu- tatan, onde se enthusiasmára deante dos trabalhos LE, ga e resultados obtidos pelo Dr. Vital Brasil sobre o sôro anti-ophidico, e deante o bem cuidado appa- relhamento d'aquelle Instituto, unico no mundo, apezar da grande Inglaterra possuir as Indias e ahi ser a cobra um verdadeiro flagello; que vira, finalmente, além de outras cousas, o caminho aereo do Pão de Assucar, concebido por brasileiros, construido por operarios e engenheiros brasileiros, com capital brasileiro, e que, se fosse em S. Francisco da California, todo o mundo diria: “veja o genio, a audacia dos americanos!” Como suspeitasse poder pairar duvidas em nossos espiritos sobre a sinceri- dade do que dizia, Roosevelt, cuja sagacidade é extra- ordinaria, accrescentou: “e isso que lhes estou di- zendo não é para ser agradavel; já escrevi”. E, de facto, no numero da revista americana “The Out- look”, publicada a 20 de Dezembro desse anno, os maiores elogios são feitos á nossa capital. Quando despertámos, no dia seguinte, já viaja- vamos em aguas do rio S. Lourenço, por cuja foz pe- netrámos às 4 horas da madrugada. De agua mais suja ainda do que o Paraguay, não differe o aspecto de suas margens do que se tinha encontrado até en- tão; mais tarde, pelo correr do dia, uma ou outra extensão de matto (cordilheira, como se chama em Matto-Grosso) é encontrada pela barranca do rio, mas, ainda assim, pouca ou nenhuma será a vanta- gem que possa levar sobre as que tambem se encon- tram no rio Paraguay. Durante todo esse dia e toda a noute navegámos pelo S. Lourenço acima e, na ma- nhã seguinte, cêdo, paravamos em S. José Velho, uma pequena roça em meio d'aquellas extensões enormes e deshabitadas, “estação” onde os navios se abaste- cem de lenha, e onde se encontra, ás vezes, um pouco de leite, carne e uma ou outra gallinha. Duas horas depois, continuámos viagem e, com cerca de uma hora de caminho, ás 9 e pouco da ma- Em aguas do rio S. Lourenço és no Rio S. Lourenço Jacar Photographando jacarés e sendo photographados CAIO nhã d'esse dia 27, entravamos no rio Cuyabá, nome que Roosevelt invariavelmente estropiava, pois dizia sempre Caiubá... Ao nosso hospede estavam reservados alguns máus quartos d'hora de troça que lhe fizemos, pois, continuando a subir o tortuoso Cuyabá, encontrámos um vaporzinho, que vinha da capital do Estado em que estavamos, e cujos passageiros, ao passarem pela Fazenda de S. João, disseram que lá estava o presi- dente do Estado com uma grande comitiva, á nossa espera, pois esse era o nosso ponto de destino no mo- mento. Roosevelt, embora sem entender bem, perce- beu que, parados os dous paquetinhos, conversava- mos sobre a Fazenda de S. João; e, nós aproveitando o ensejo para uma pilheria, começámos a inventar o luxo com que o esperavam, pois era isso que nos te- riam contado aquelles que por lá acabavam de passar. Roosevelt havia trazido sómente até Corumbá as suas roupas de civilizado; e o traje habitual do hos- pede excursionista consistia, d'aquella cidade em deante, em uma camisa de flanella amarello-esver- deada, calças verde-pallidas com joelheiras de couro, e botas de atacar; para os “grandes dias de festa” possuia um casaco da mesma fazenda e côr da calça, e, se bem me recordo, nunca o vi em posse de uma gravata... Ora, caleulem, pois, a afflicção do nosso amigo quando lhe dissemos que nos esperavam: o Presidente do Estado, Ministros, a Força Militar es- tadual em grande uniforme, que o programma das festas já estava estabelecido, e que o dia da chegada seria consagrado a banquete e recepção. Com essas pilherias e sob os protestos de Roose- velt, que achava muito amaveis e cortezes aquelles que o queriam homenagear, mas que o deixavam com isso em sérios apuros, continuámos a subir o rio, até que umas choças de palha sobre um trecho mais alto Viagens e Caçadas 4 E | de barranca, na margem direita, chamaram a nossa attenção. Era um pequeno aldeamento de indios já meio incorporados na civilização (coitados; que para a sua felicidade nunca o sejam completamente...) e que all viviam de pequenas plantações, peixes e al- gum commercio, n'um lugar bastante pittoresco; pa- rámos, photographámos o pouco que era visivel de fóra, e alguns companheiros saltaram para observar os nossos puros patricios e photographar as suas choças, e a elles, se possivel (1). Reembarcades que foram os companheiros, con- tinuámos a viagem. À zona em que navegavamos era de pleno pantanal; era o quasi infinito alagadiço cha- mado “pantanal de S. Lourenço”, por causa do rio d'esse nome, e cujas margens, como grande parte das do Cuyabá, ficam submersas durante as cheias. Ora, os indios, quer d'essa região, quer do resto do pan- tanal, recorriam a um estratagema que assombra pela energia de que dependia, pela quantidade de esforço, pelo enorme trabalho de sua execução. Esses infatigaveis aborigenes, com a propria terra do pan- tanal, construiam enormes aterros, com seis e mais metros de altura e com superficie bastante para n'elles estabelecerem as suas malócas, terem suas plantações e enterrarem seus mortos. Quem já esteve no Perú e viu, ao longo da majestosa estrada de ferro que galga os Andes, os admiraveis trabalhos dos Incas, nem por essa razão deixa de pasmar á vista de um d'esses “aterrados” dos nossos indios, demons- tração viva do esforço e da ousadia de que são ca- pazes. Ás 8.30 da noute, chegámos e fundeámos em frente ao local denominado Aterradinho, e que outra ] (1) No livro que Roosevelt escreveu sobre a sua excur- são atravéz do Brasil, encontra-se a pro aphia dos indios d'esse aldeamento. cousa não era senão um velho e abandonado aterrado de indios, provavelmente de “Guatós” ou “Boróros”, tribus que eram domiciliadas n'aquellas paragens. Ás 6 e tanto da manhã seguinte, 28, deixámos o Aterradinho, e continuámos a subir o rio com des- tino á Fazenda de S. João, á cerca de duas horas de caminho; antes, porém, de a termos attingido, encon- trámos o vaporzinho “Matto-Grosso”, no qual vi- nham ao nosso encontro: o Presidente do Estado, comitiva e convidados, mas todos em trajes simples, como convinha, o que muito agradou a Roosevelt, que, perspicaz como é, logo lançou os maliciosos olhos para mim, repetindo: “le rusé commandant...” Comboiados pelo “Matto-Grosso”, chegámos, pouco depois das 8 da manhã, ao barranco da bella fazenda, onde, antes, já saltára o Presidente do Es- tado, que veio a bordo dar as bôas vindas ao visi- tante illustre. Logo saltámos todos e, ao pormos pé em terra e ao ser Iicada a nossa bandeira em um dos mastros para isso preparados, uma banda de musica entoou o hymno nacional; todos a isso assistimos pa- rados, de chapéu na mão ou em continencia, e, uma vez a ceremonia terminada, dispunhamo-nos a. cami- nhar, quando em outro mastro, sobe a estrellada ban- deira “Yankee” ao som de uma musica desconhecida para os meus ouvidos; fizemos todos o que já ha- viamos feito para com a nossa bandeira, mas, ao ter- minar a nova ceremonia e ao encaminharmo-nos para a casa da fazenda, perguntei a um dos da comitiva, que musica era aquella e se por acaso seria o hymno do Estado de Matto-Grosso? O homem olhou-me es- pantado e respondeu: “não, Senhor, é o hymno norte- americano, e foi cousa que obtivemos com grandes difficuldades; graças a um disco de grammophone é que nos foi possivel fazel-o hoje executar, mas foi uma trabalheira enorme para escrever as partes e organizar, emfim, esse conjnneto. DR = TE Tive dó do homem no qual, pelo carinho com que falava d'aquelle “tour de force”, se descobria o au- tor; mas, eu, que conhecia tão bem o bello e impo- nente hymno americano, não podia deixar persistir aquelle engano, e, contando antes, como consolo, a historia veridica de um nosso navio de guerra que, em um porto do Japão, executou uma musica qual- quer, com todas as continencias e salvas da pragma- tica, na supposição de que fosse o hymno japonez, desfiz o engano do pobre homem, cuja explicação é tão interessante quanto a “gaffe”. Naturalmente, o disco do grammophone tinha, indicando uma musica ou canção americana — “american song” -— os ho- mens traduziram a cousa como — Hymno americano — e, com enthusiasmo e segurança, applicaram-no ao içar da bandeira... E eu sempre queria saber o que teria pensado Roosevelt a respeito de tal extrava- gancia... Com o mosso hospede em “grand tenue”, isto é, de paletot vestido, penetrámos na bôa e confortavel casa da vasta Fazenda de S. João, pertencente ao Sr. João Epiphanio da Costa Marques, fazenda com cerca de quarenta leguas quadradas de terras e 40.000 cabe- cas de gado vaccum. Além do Presidente, lá encon- trámos um dos Secretarios do Estado, Dr. João da Costa Marques, filho do fazendeiro; o Commandante da Força estadual, Coronel Paraná; o aprumado Te- nente Rogaciano, official do nosso Exercito, e talvez mais umas oitenta ou cem pessõas, que duas vezes enchiam, em cada refeição, a muito longa mesa da enorme sala de jantar d'aquelle casarão antigo; e quem conheceu as nossas fazendas no tempo da es- cravatura, ou quem já leu as descripções das suas festas, póde fazer ideia da sala e da mesa a que me refiro. Após o almoço, apezar de tarde (mais de 2 horas da tarde) eu, o Dr. Soledade e o Tenente Firmo Du- E tra, acompanhados de um vaqueano, montámos a ca- vallo e sahimos a caçar cervos. Pouco nos haviamos afastado de casa, e logo avistámos um d'esses bellos animaes; entretanto, não só porque não contassemos com a caça tão proxima e, portanto, tendo o cervo nos avistado antes, corresse a bom correr, o caso é que, com essa ou aquella desculpa, a bôa presa esca- pou-nos, pois, apenas, nos deu ensejo a que admiras- semos, por um curto momento, o seu bello galope atravez da macéga. A estação das chuvas tinha começado e, nas ves- peras da nossa chegada, já alguns “diluvios” haviam desabado, felizmente sobre a tolda do “Nyoac”; agora, porém, estavamos em pleno campo, distante de qualquer abrigo, e os pesados aguaceiros amea- cavam desabar a todo o instante. Às ameaças não tardaram muito em transformar-se em dura reali- dade, e, ao começo fraca, e depois copiosa, ininter- rupta, pesada, a chuva cahia e molhava-nos até os ossos; os animaes, de cabeca baixa, as orelhas mur- chas, passo lento e arrastado, caminhavam a custo; mas, ainda assim, defendendo do melhor modo as nossas armas, continuámos a cacada. E fizemos bem, porque, com um pouco mais de trabalho, avistâmos o objectivo da nossa campanha, muito escondido no meio da macéga alta, a mostrar apenas pouco mais que a cabeça. O Firmo Dutra e o Soledade apearam e, como julgasse que tres atiradores eram demais para um unico cervo, fiquei a cavallo, apreciando a scena que se desenrolava, já então sem chuva: aos tiros dos dous caçadores tombou o animal, que era um cervo, mas cujos chifres haviam cahido, o que lhe tirou toda a belleza; destripámos o animal para alli- viarmos o mais possivel o peso, engarupámol-o na montada do vaqueiro e, como a chuva meuda reco- meçasse e a grauda estivesse prestes a desabar, deli- berámos desfazer as duas leguas que haviamos ear aa trilhado e voltar á casa, no intento de só interrom- permos a marcha se encontrassemos um bonito exem- plar, que estaria destinado ao meu tiro, pois não havia eu tomado parte na morte do primeiro. Não ha- viamos caminhado meia legua quando, de repente, avistámos, a menos de cento e cincoenta metros, bem a descoberto, um enorme cervo possuidor de bellis- sima galhada, que, estacado, nos olhava firme; não havia um segundo a perder, e, com medo que tão bella presa me escapasse, apontei-a mesmo de cima do ca- vallo; logo verifiquei, entretanto, que iria perder tão precioso tiro e, então, juntando á cautela a rapidez, apeei e visei o coração do bello exemplar, que me apresentava o flanco, embora tivesse a bem ornada cabeça voltada para mim. Tinha o dedo na tecla do gatilho quando vi junto a mim, um pouco para traz, já de arma apontada, o Soledade, mas se algum tempo tenha gasto n'esta narrativa, n'um relance foi que tudo se passou, e antes que o nosso companheiro fizesse partir o tiro, já o cervo cahia fulminado pela bala do meu mosquetão Mauser, que lhe havia atra- vessado o coração. Apezar de destripada, foi uma dif- ficuldade enorme para engarupar-se a nova victima; eu, o Soledade e o vaqueiro, sob a chuva torrencial que então cahia, fizemos varias tentativas antes de conseguir pôr o cervo na garupa do animal em que montava o Firmo, pobre montada que só a passo con- seguiu caminhar até á casa, onde chegon em estado de não prestar serviços tão cêdo. Já era bastante tarde quando chegámos, e, ás pressas, fomos mudar a roupa completamente en- charcada, bem como as botas, e o meu grande capa- cete que adquirira uma espessura de uns tres centi- metros e um peso de, seguros, cinco kilos. Ao jantar recebi os cumprimentos pelo bello trophéu, aliás já entregue ao preparador do nosso museu e a elle destinado, e, logo após a refeição, Roo- dar E sevelt, dizendo tambem querer admirar o tão gabado cervo, tomou-me de parte para que o fossemos ver. A visita ao cervo fôra apenas um pretexto para con- versar sobre as aventuras daquelle dia e sobre as que lhe estavam reservadas para o dia immediato, e Roo- sevelt, com ar de lastima, dizia: “ah, como o meu amigo é feliz! pôde ir caçar o seu cervo tranquilla- mente, em companhia de um ou dous amigos, e con- seguiu o seu intento! Eu tambem sahi, dizem que para caçar onça, mas, meu caro amigo, não era uma caçada, era uma procissão; calcule que eram talvez umas sessenta pessõas atraz de mim, pelo campo a fóra, e felizmente os cães nada acharam, pois caleulo o que seria uma caçada em taes condições! Mas, ha cousa peior, e é d'isso que eu quero falar, a ver se o “rusé Commandant” arranja um meio de modificar as cousas; amanhã deve haver, pela manhã, um ro- deio (e Roosevelt dizia —rodeu —) e, depois desse rodeio, a caçada de onça; ora, o rodeio será muito interessante, mas eu não tenho tempo a perder e pre- feriria, portanto, que se fizesse a caçada antes, e o rodeio depois; não será isso possivel?” Era bem claro que um rodeio dependendo da finalização de uma caçada incerta, e em pleno calor, seria um par de botas, mas, como o essencial era agradar a Roosevelt e fazel-o caçar onças, disse-lhe que iria immediatamente empregar a minha “ruse” e elle ficaria contente. Procurei logo o Coronel Rendon, e tudo ficou assentado como desejava Roosevelt: devia o rodeio ser após a caçada, ao meio-dia, em local que foi de- terminado. Roosevelt alojára-se em terra, em um quarto da sala de visitas, e nós, com o nosso “Nyoac” atracado á barranca, ficámos alojados a bordo, em nossas rê- des e camas de campanha, bem abrigados com os nossos mosquiteiros, e sempre fóra dos camarotes dA SRA A onde o calor era totalmente insupportavel. A noute continuou chuvosa, e, no dia seguinte, cêdo, montá- mos a cavallo, reunimo-nos ao grupo que pernoitára na fazenda, e seguimos juntos para a caçada. Era um grande bando de cerca de oitenta cavalleiros onde a diversidade de trajes, de arreios e de armas formava um conjunto impagavel; o Presidente do Estado jul- gou-se na obrigação de acompanhar Roosevelt; va- rias pessõas vindas de Cuyabá, sem habito de montar, davam espectaculo para hôas risadas; Roosevelt, com cara de martyr, seguia na frente, e eu, tocando um pouco o meu cavallo, approximei-me do meu pobre amigo dizendo-lhe maldosamente: “meus cumprimen- tos; não podia ser mais brilhante a procissão; nem mesmo lhe falta o S. Jorge...” e indiquei o santo ca- valleiro. O meu amigo, apesar de ter achado graça na pilheria, exprobrou a minha maldade para com elle e indagou: “mas isso vae durar todo o dia, assim?” Eu poderia ter respondido de um modo consolador, o que não fiz por troça; mas, pouco tempo depois, che- gados ao local onde nos deveriamos separar, desta- cou-se o pequeno grupo de Roosevelt, a quem, de longe, cumprimentei de modo que fosse entendido, e o seu cumprimento de resposta, despercebido dos ou- tros, foi bem claro para mim. Outros grupos forma- ram-se e tomaram rumos diversos; mas deviam todos, ao meio-dia, encontrar-se em local determinado, para o rodeio e respectivo churrasco. O meu grupo era o mesmo da vespera accrescido do sympathico Capitão Amilcar e de um senhor gordo, que se dizia caçador, e que deveria ter qualquer liga- ção atavica com mestre Tartarin. Propunhamo-nos, como na vespera, a caçar cervos, e, segundo dizia o vaqueano que nos acompanhava, facil seria essa ca- cada, pois estavamos em local por elles muito fre- quentado; apezar d'isso, caminhavamos já havia al- gum tempo sem avistarmos uma bella galhada que fosse, quando, divulgando uns tuyúyús, quiz atirar em um d'elles, pois isso me havia pedido o nosso taxi- dermista. Estavamos a uns duzentos metros do bello per- nalta, e o Soledade insistia para que eu não atirasse, pois, dizia, era absurdo querer acertar a tal distancia; mas, desprezando os conselhos d'este, apeei do ca- vallo e, de pé, um pouco afastado do grupo, fiz fogo eo tuyúyú cahiu; voltei-me para montar e, entre ova- ções e pilherias, seguimos todos para o local onde cahira a minha presa. Eu e o Soledade cavalgavamos na frente, mas, ao nos approximarmos do tuyúyú, este levanta-se, e as nossas cavalgaduras refugam assustadas; novas risadas, e cerco identico ao que ti- nhamos feito nas Palmeiras, responderam á attitude aggressiva do valente tuyúyú, e ninguem pensava em atirar novamente em um animal que até então esti- vera cahido por terra e ferido por um projectil Mau- seu. Preparava-me para photographar aquella inte- ressante scena, quando, deante de um oh geral e com grande pasmo para todos, o meu tuyúyú levanta o vôo e singra o azul sem fim!... Tal foi a surpresa, que ninguem teve tempo ou lembrou-se de atirar; além de que, todos nós, de olhos fixos no enorme implumado, esperavamos a todo in- stante vel-o tombar; mas, cansados de esperar e de admirar aquelle milagre, continuámos a nossa pere- grinação, commentando o caso interessante e nos mo- lhando sob a chuva que já cahia. Um dos nossos companheiros tinha deixado cahir não sei que objecto, e, alguns haviam voltado para procural-o, emquanto o vaqueiro, continuando a ca- minhar, seguia na frente e era por mim acompa- nhado, a passo lento, para esperarmos o resto do grupo, quando, de repente, o cavallo em que ia o va- queiro refuga, e um enorme e atrevido cachaço passa junto a mim como uma flecha. Ainda que não estives- PER = pe semos despreoccupados e distrahidos como estava- mos, seria difficillimo ter atirado n'aquella verdadeira bala; disparámos os nossos cavallos, mas, tendo o porco entrado na parte mais alagada do pantanal, onde atolava, tivemos de desistir da perseguição e continuar a marcha, agora dirigida para o local do rodeio, com o qual não mais contavamos por causa da chuva, mas para onde iamos levados pelo compro- misso e alguma esperança de churrasco... Já esta- vamos bem proximos do ponto da reunião quando avistáâmos um cervo, cujo tiro, como era justo, não me competia; o Soledade e o Firmo Dutra, a pretexto do perigo que haveria em atirar na direcção em que estava o animal, seguiram a contornal-o... e a appro- ximar-se. Ficámos eu e o Amilcar apreciando a ma- nobra; com isso, porém, o cervo, na intenção de fugir do inimigo que se approximava, afasta-se d'elle e vem para o nosso lado, como a tentar a minha pon- taria; e, porque o Amilcar não devesse ter os eseru- pulos que eu tinha e nem para isso tivesse motivos, passei-lhe o meu mosquetão que, apezar de ter despe- jado os seus cinco tiros, deixou pastar em paz o bello cervo... Com mais uns dous kilometros de marcha chegá- mos ao local onde deveria ser o rodeio que, conforme previramos, não foi realizado; e, como ouvissemos vozes em um capão proximo, para lá dirigimos as es- peranças de nossos estomagos, isto é, para lá fomos á busca de churrasco. Encontrámos alguns peães ou vaqueiros, como se diz em Matto-Grosso, que espe- ravam os retardatarios constituidos pelo nosso grupo, pois que os demais, muitissimo antes e desencoraja- dos pela chuva torrencial, já haviam passado para a casa, sem ter comido o churrasco, cousa em que fomos obrigados a imital-os, pela forte razão de que o tal churrasco não existia. Com a triste decepção da au- sencia do churrasco, e com o estomago a dar horas, gi Ra partimos, acompanhados pelos peães, com a maior velocidade que nos permittiam o terreno alagadiço, os cavallos fatigados e a chuva que nos encharcava, em demanda da casa e de um reconfortante almoço que aquecesse os nossos corpos tão molhados. Ao cabo de menos duas horas de marcha estavamos chegados, tão molhados por fóra quanto esfomeados por den- tro, e, lepido, corri para bordo na intenção de mudar roupa e botas, ás pressas, para devorar o almoço. Infelizmente, as minhas botas, molhadas da ves- pera, não tinham ainda seccado, e, como estivesse esgotada a minha provisão de calçado, foi sómente á amabilidade do nosso companheiro Dr. Cajáseiras que devi a possibilidade de calçar botinas enxutas; mas, como a roupa que me restava, tambem a unica enxuta, tivesse calças de montar, continuei em apu- ros, até que umas perneiras salvadoras vieram pôr termo á minha afílicção. Mas não havia negar, algum máu genio perseguia-me n'esse dia, pois maior infe- licidade me aguardava, e, como fosse um mal que tivesse tocado a todos, verifiquei, embora com pezar, que, pelo menos no caso em questão, o mal de muitos não serve e não é absolutamente consolo algum. Foi o caso que, depois de ter vencido as dificuldades de ves- tuario e conseguido, emfim, apromptar-me para o almoço, tendo ainda augmentado o appetite, tive a noticia triste, desagradavel, surprehendente, desani- madora, de que não havia almoco! Pois que, senho- res, seria possivel que depois d'aquellas caminhadas e chuvas, d'aquelle exercicio todo, tivessemos de ficar de estomago vazio?! Era; era perfeitamente possivel e desgraçada- mente certo que não teriamos almoço, e não havia outra cousa que fazer senão entreter os estomagos, a bordo, com chá e biscoutos, que foram uma verda- deira salvação; esperámos com isso o jantar que a todos parecia em atrazo, e, depois que a fome des- ER e appareceu e as linguas foram mais livres, soube, con- fessado em segredo pelo nosso hospede, que fôra elle o causador da desgraca que affligiu os nossos esto- magos durante todo aquelle dia, pois foi elle proprio quem comera todo o almoço... por adeantamento! Não vão pensar que o meu amigo fosse capaz de, só- zinho, comer o almoço destinado a tanta gente; não, e, ainda que o fizesse, eu não seria capaz de denun- ciar uma fraqueza... tão forte. O caso é mais simples do que parece, embora nada simples tivesse sido aguentar a fome d'aquelle dia; mas, é que, nós, a bordo do nosso “Nyoac”, man- tendo os bons e salutares habitos de Roosevelt e de seus patrícios e companheiros, tomavamos, cêdo, logo depois de nos termos levantado, o nosso confortante e solido breakfast, composto de frios, chá, hiscoutos, dôce e queijo; almoçavamos ao meio-dia, tomavamos chá ás 5 e jantavamos ás 7 e meia; e, para quem está habituado a fortificar o seu estomago logo cêdo, o nosso costume de contentar-se com uma canequinha de café, pela manhã, e assim esperar o almoço, de modo algum póde convir. Ora, tendo o nosso hospede alojado em terra, levaram-lhe, bem cêdo, com muita solicitude e amabilidade, a classica e simples cane- quinha de café, mas, como não apparecesse mais nada e como a amabilidade e a solicitude não pudessem substituir a solidez do breakfast, Roosevelt chamou seu filho Kermit e expoz-lhe a situação difficil em que se encontrava. Kermit, atravessando a sala de visitas e o corredor, foi até a sala de jantar, e, na meia obscuridade que ainda reinava, pois não era dia, con- seguiu ver algumas iguarias sobre a mesa e voltou ao quarto do pae com essa bôa nova. Foi o nosso amigo em pessõa que nos contou esta scena e as consequencias que se lhe vão seguir, e era de rir a bandeiras despregadas ouvil-a do proprio protagonista: “A” vista do que me noticiava Kermit, Pt dizia Roosevelt, compellido pela necessidade, atraves- sei a sala de visitas, como um menino que vae furtar uma gulozeima, esgueirei-me pelo corredor, e, com grande contentamento por não ter encontrado nin- guem e por ter encontrado um delicioso perú frio, adeantei cautelosamente uma cadeira, sentei-me sem rumor e, auxiliado por Kermit que me fazia bôa com- panhia, ataquei o perú e o mais que havia por perto, com a maior rapidez que me era possivel, pois não queria ser apanhado; mas, qual! mal havia encetado com avidez e gula o meu precioso breakfast, e logo apparece um outro hospede que, vendo aquelle máu exemplo, senta-se tambem á mesa com a mesma dis- posição que eu... Mas, oh! vergonha, são agora os proprios donos da casa que me pilham em flagrante! Outros hospedes surgem e sentam-se tambem á mesa, pois, vendo-me fazer aquella refeição, entendem que a mesa estava posta para aquelle fim, e, dentro em pouco fica a mesa cheia de gente e vazia de comida !” E ahi está como Roosevelt comeu o nosso almoço, e como terminou a prosa da segunda e ultima noute da estadia na Fazenda de S. João. No dia seguinte, antes, das 8 da manha, partimos aguas abaixo, acompanhados por uma lancha em que tam o Dr. João Costa Marques, Major Paraná, Te- nente Rogaciano, zagaieiros e cães, visto como de- viamos caçar no Rio S. Lourenço, acima da foz do Cuyabá. Por cerca de hora e meia chegámos á foz d'esse rio e, deixando-o, começámos a subir o S. Lou- renço, até que, com perto de duas horas de marcha, tendo o pessoal da lancha avistado rasto de onça em uma praia, parámos e saltámos para tentar a caçada. Apezar do rasto não ser fresco, soltámos os cães, mas, sem obtermos resultado algum, reembarcámos, pelas RS 7 pe 5 horas, e, continuando a subir o rio á procura de um bom ponto para pernoitar, atracámos, depois das 6 horas da tarde, a uma bella praia e E passámos- a noute. , é prio Ao clarear do outro dia, ou seja aa 4 horas EE madrugada, deixámos o pouso e subimos novamente o rio; mas, pouco depois, seriam 6 horas, já de novo paravamos para iniciar a caçada d'aquelle dia, que, por má sorte, deveria ter, como teve, o mesmo resul- tado da vespera. As piranhas são em tão grande numero n'esse rio, que mal ha tempo para o pescador jogar n'agua o anzol e logo tem que retiral-o com uma piranha. Serve a mesma isca innumeras vezes, pois que, no seu excesso de voracidade, a piranha ferra-se por si mesma, e raramente estraga ou come a isca tenta- lora; mas, não são as piranhas os unicos hospedes que em abundancia povôam este rio, e a prova era a desfaçatez com que dous enormes jacarés vieram pes- tar-se entre a margem e o nosso navio, ficando talvez a menos de dous metros d'este, e zombando das pe- quenas cousas que arremessavamos para pôr em prova a sua ousadia. A apparição d'esses dous sau- mos deu lugar a uma scena bastante interessante e que, com muita felicidade, foi apanhada pelo nosso bom companheiro Tenente Reis, em seu apparelho cnematographico: é que, quasi todos nós munidos de machinas photographicas, a todos occorreu o mesmo pensamento e, em dado momento, encontrámo-nos uns quatro ou cinco no mesmo local, de machinas em pu- nho. Aguardavamos ou procuravamos um momento favoravel para um bom instantaneo comprovador da temeridade dos crocodilos; mas, mal sabiamos nós que, servindo ao Tenente Reis como os jacarés nos serviam, este nosso bom companheiro aproveitava o momento e apanhava em ecinematographia aguento perseguição photographica. Ear | O 1º de Janeiro de 1914 reservava ao nosso hos- pede uma prova de resistencia com a qual elle não contava. Ás 6 horas da manhã d'esse dia, Roosevelt, seu filho Kermit, o Coronel Rondon, o Major Paraná, o Tenente Rogaciano e dous ou tres camaradas, com cães, partiram para a caçada de onça, e encontraram rasto fresco, o que não era dificil, pois, todos nós achámos um pouco por toda a parte. Mas, como fos- sem ruins os cães, embora tivessem levantado uma onça, corriam mal e sem vigor, de sorte que, tomando ella bastante deanteira, em lugar de dar acuação, se- guiu sempre atravez de pantanaes e corichos pro- fundos, obrigando os caçadores aos mesmos cami- nhos. Nós, que não tinhamos feito parte da caçada de onça, já haviamos voltado das nossas caçadinhas e, como já fosse perto de 1 hora da tarde, começámos a ter preoccupações pelos que, até aquelle momento, não tinham voltado. Em vão apitámos e esperámos; a lancha desceu e, depois, durante uma hora subiu o rio, apitando, sem nada saber do grupo Roosevelt, que nos parecia perdido. Só depois de 4 horas da tarde, quando era grande a anciedade de todos, ou- vimos gritos e um camarada appareceu na barranca; mandámos buscal-o e, ás 4 e meia, começámos a subir o rio, para receber os caçadores, que deveriam estar muito acima, pois calculava o camarada os haver dei- xado antes do meio-dia, para vir trazer o recado em virtude do qual subiamos o rio. Depois de 5 horas, ouvimos gritos que responderam aos nossos apitos, e, logo depois, nitidamente, a voz de Roosevelt que perguntava, em ar de troça, pelo almoço. Essa gente não havia levado alimento algum, e, como a onça ti- vesse caminhado sempre, forçou-a a um exercicio vio- lento, sendo os caçadores muitas vezes obrigados a nadar nos corichos e andar quasi sempre no panta- nal; afinal, chegaram a bordo o Tenente Rogaciano e Roosevelt que, apezar dos seus 55 annos e seu peso, ERA resistiu perfeitamente áquella dura prova. O Dr. João e o Major Paraná haviam ficado a uns dous kilome- tros, prostrados no caminho, e de tal modo extenua- dos que declararam preferir morrer onde se achavam a dar um passo que fosse. Faltava ainda o infatigavel Kermit; esse mais resistente do que os proprios cães, seguia na frente d'elles, rastejando e animando-os, quando todos haviam abandonado a partida cansa- dos e desanimados; por fim, os proprios cães fatiga- ram-se e recusaram seguir o rasto que o persistente Kermit os fazia cheirar, e só então este resolveu vol- tar, indignado com a fraqueza dos cães. Levaram algum alimento e agua mineral para os invalidos, e a chalana que os reconduziu para bordo trouxe tam- bem Kermit e a cachorrada. Todos nós gabámos a resistencia de Roosevelt, realmente invejavel em um homem d'aquella idade, e este, aproveitando o mo- mento, disse ao Coronel Rondon: “Creio que agora estão convencidos de que poderei descer o rio da Du- vida”. Roosevelt, muito observador, havia notado as preoccupações que todos tinham sobre a sua pessõa na arriscada empresa em que se mettera; pois, tendo partido de seu paiz com intenção de subir o rio Pa- raguay, ganhar o Arinos, descel-o a encontrar o Ta- pajoz, e por este chegar ao Amazonas, ao saber que esse era um caminho já muito trilhado e feito com- mummente, d'elle desistiu para arriscar-se ás incer- tezas e aos perigos que apresentava a descida do rio da Duvida, rio assim chamado pela duvida em que estavam os membros da Commissão Telegraphica sobre a direcção que tomaria a corrente que haviam encontrado, nas immediações de José Bonifacio, cerca de 500 kilometros de Tapirapoan. CAPITULO V Viagem a S. Luiz de Caceres — Fazenda do Descalvado — Caceres. Descemos com o “Nyoac” até um bom pouso, e, ao clarear do dia seguinte, começámos a descer o rio, d'esta vez com intenção de retomarmos o Paraguay, pelo qual deveriamos subir ainda muito. Com duas horas de viagem encontrámos o Cuyabá, em cuja foz nos despedimos dos companheiros que, seguindo na lancha, deveriam voltar a S. João; algum tempo de- pois, atracavamos em S. José Velho, d'onde, depois de alguma demora, largámos aguas abaixo até que, depois de navegarmos todo o dia, entrámos, ás 7 da noute, no caudaloso Paraguay. No dia seguinte soube que, durante a noute, ha- viamos parado no lugar denominado Acuryzal, onde recebemos o Tenente Vieira de Mello, commandante do destacamento que acompanharia a expedição, official que, além de trazer os chronometros da com- missão, trouxera tambem uma carta para mim. Tratava-se, nada mais nada menos, do meu re- gresso ao Ladario, para assumir o commando da nossa Força Naval, regresso que deveria ser urgente e, se possivel, feito na conducção que era portadora da carta. Ora, já tendo a lancha regressado á Co- rumbá, havia dous dias, e não havendo meio de trans- Viagens e Caçadas 5 Eva do porte para mim, só me restava um recurso: continuar a viagem até S. Luiz de Caceres, agora nosso ponto de destino. Assim fiz, e agora subindo o rio entre suas mar- gens chatas, baixas, ladeadas sempre de renques de “aguapés”, tinhamos a impressão, quasi, de navegar em uma vareda fluida atravez de uma baixa campina, pois, já tinhamos deixado por nosso bombordo, na margem direita, as montanhas que formam os fun- dos das grandes bahias de Mandioré e de Guahyva, esta tão vasta talvez como a nossa Guanabara, e onde, ao longe, se avistava um dos marcos divisorios dos nossos limites com a Bolivia. Pelas 3 ou 4 horas da tarde, o nosso “Nyoac” atracou à barranca para limpar fogos; a tempera- tura dºesse dia, das mais altas que supportámos, era talvez de mais de 40 gráus centigrados á sombra; e o sól, causticante como fogo, elevava essa tempera- tura a muito mais de 60 gráus! Como o navio atra- casse, todos nós pensámos em aproveitar a occasião para caçar; eu, porém, reflectidamente considerando a ardentia do sól e a quasi nenhuma probabilidade de exito, deixeiime ficar a bordo, “gozando do fresco” que nos proporcionava o abrigo da coberta. Quasi todos saltaram; e até mesmo o louro e vermelho Commandante do navio, resolvendo n'ºesse dia cultuar Santo Huberto, saltou com o Dr. Sole- dade. Roosevelt, mal transpoz a prancha que se lan- cava para o barranco, desistiu e achou que mais valia seguir o bom exemplo do “rusé Commandant”. Cerca de cinco minutos depois, o robusto Dr. Soledade com a roupa encharcada de suor, e o Commandante do navio transformado em lagosta cozida, regressaram | exhaustos e abatidos pelo sól realmente insupporta- vel. Todos regressaram, emfim, salvo Kermit que, ao que parecia, não soffria as influencias da canicula. dobrado E Aa Já alli estavamos, havia mais de uma hora, e, como estivessem limpos os fogos, e Kermit não appa- recesse, fizemos apitar o navio para prevenir de que estavamos promptos. O nosso signal foi comprehen- dido, e não tardou que vissemos apparecer no bar- ranco o infatigavel companheiro, tal como se tivesse sahido de um banho, tão encharcadas de smor esta- vam as suas roupas. Quando Kermit appareceu nós estavamos sen- tados á mesa do lunch, e qual não foi a nossa sur- presa vendo que, desprezando a prancha, o nosso Kermit atirou-se ao rio para galgar o navio. Vencendo a distancia, aliás curta, que nos separava de terra, o nosso bom companheiro, agora enchar- cado d'agua, sentou-se fleugmaticamente á mesa, fez lunch em nossa companhia, e só depois d'isso foi mu- dar a roupa... À viagem, n'esse trecho de rio, talvez se tor- nasse monotona se não fosse a agradavel palestra dos bons companheiros; tranquilla, porém, não po- deria ella ser, porque, como se não bastassem os mosquitos, bandos de mutucas (enormes moscas ouro-negras de ferrão acerado) perseguiram-nos ter- riveis e importunos, sem nos dar um instante de so- cego; e já era com impaciencia e ancia que espera- vamos a hora dos mosquitos, isto é, a nonte, unico remedio contra as terríveis mutucas. Os photographos não tinham agora muito que fazer, ainda assim, e talvez por isso, conseguiram uma photographia original. Roosevelt não se confor- mava com a dormida em rêde, e nem mesmo della se utilizava para repousar ou ler durante o dia, mas, lá uma vez, ou por não ter á mão uma cadeira, ou porque quizesse ensaiar, deitou-se a ler, e foi quanto bastou para ser apanhado pelas objectivas. Outra vez, estando o ex-Presidente dos Estados Unidos, de agulha em punho, a remendar as calcas, corri para a Eres + VE minha “Góôerz”, mas não fui bastante feliz para ter essa interessante prova photographica das habilida- des do notavel estadista. Durante as refeições as nossas palestras conti- nuavam sempre e, certa occasião, dizendo o nosso hospede que não dava importancia alguma à questão de tarifas, que tanta celeuma sempre levantava, objectei-lhe que, de facto, isso visava os interesses internacionaes; o meu interlocutor, porém, que ha- via julgado a questão sob um ponto de vista mais geral, respondeu-me com esta pergunta: “acredita que a Inglaterra livre cambista, e a Allemanha pro- teccionista, teriam deixado de attingir o ponto em | que estão, se tivessem trocado os systemas? E, con- tinuando no seu ponto de vista, Roosevelt accrescen- tou: “ha uma série de questões theoricamente muito importantes, que apaixonam as massas e até os diri- gertes, que são mesmo, ás vezes, causa de luctas desastradas, e que, na pratica, não têm a menor im- portancia, isto é, que a adopção do methodo preco- nizado por um ou por outro é de resultado perfei- tamente identico. O direito de voto ás mulheres por exemplo, é uma questão que tem sido muito debatida em toda a parte; pois bem, nos Estados Unidos, nós temos Estados em que as mulheres têm os mesmos direitos politicos dó que o homem, ao passo que, em | outros Estados, esses direitos não são a ellas exten- sivos. Ora, não póde haver um melhor campo de. observação do que esse, offerecido dentro de um mesmo paiz, de uma mesma raça e sob a influencia, portanto, dos mesmos habitos e costumes. Pois bem: quer n'um, quer n'outro caso, as mulheres que sabem ter e manter um lar o fazem igualmente com qual- quer dos dous systemas, ao passo que as transviadas da missão de mães de familia, que não sabem e não querem ser procreadoras e educadoras de seus filhos, tambem não mudam de proposito. quer tenham, quer EUA não tenham os direitos politicos, do homem. Um dos problemas mais sérios que eu vejo, dizia Roosevelt, é o do capital; e uma das cousas que eu mais admiro em nosso paiz é a ausencia de anarchistas”. E, como nos parecesse que nosso hospede estivesse, a julgar por esta phrase, no mesmo pensamento que nós, re- torqui-lhe dizendo que julgava a inexistencia de anarchistas no Brasil proveniente do que imputavam como um dos nossos principaes defeitos, isto é, a nossa desmedida liberalidade ou nenhuma ideia de economia. Com o nosso systema de gastar tudo, sem pensarmos em juntar reservas, e com a nossa na- tural generosidade, o capital subdivide-se, espa- lha-se, e desapparecem a fome e as necessidades pre- mentes, que são os alicerces do anarchismo. Se, em vez d'isso, fosse a indole do povo a cau- sadora d'esse phenomeno que, com justa razão, en- thusiasmava Roosevelt, os máus elementos, uma vez importados, germinariam e progrediriam; entre- tanto, a planta ruim, transportada para o nosso sólo bom e fertil, logo se transfórma, pois que não mais mergulha as suas raizes na dura necessidade, lugar, aliás, onde florescem os grandes capitaes. De pleno accôrdo, deixámos a mesa de jantar e, só no dia seguinte, cêdo, antes das 6 da manhã, nos encontravamos, ao enfrentar com o nosso “Nyoac” um aldeamento de Guatós, esses grandes canoeiros e caçadores. Um velho e um rapazinho, cada um em sua canôa, correram para o navio assim que o viram parado, e aquelle, já viciado pela civilização, e Já tambem conhecedor e escravo d'esse grande flagello que é o alcool, pedia instantemente que recebessemos um remo em troca de meia garrafa de cachaça. Mias, seguindo adeante, deixámos sem cachaça o in- consolavel Guató, destinado, como a sua grande tribu, a rapido desapparecimento. Esses indios são grandes caçadores de oncas, e, em taes cacadas, ado- GL Pe , “s ne . at é ptam um processo que tem tanto de original quanto de ardiloso e arrojado: aproveitando que o pantanal cheio transforme alguns capões de matto em ilhas, o nosso Guató observa em qual d'estes terá urrado uma onça ciosa de amores ou de combates, e, con- forme a epocha, de um outro capão julgado proprio, o ardiloso Guató provoca o animal ao combate, ou o attrahe aos desejos, imitando o urro que fôr con- veniente; a mulher do indio acompanha-o na peri- gosa empresa, e quando a onça, illudida pelo arre-. medo do indio, procura a nado ganhar o capão de onde a chamam, o casal de indios lança-se na canõa ao encontro da féra, e o vasto e deserto pantanal é testemunho d'esse combate em que, o indio armado de zagaia e a india de espingarda ou flecha, nem sem- pre levam de vencida o nosso valente felino, que tem na agua quasi que a mesma assombrosa agilidade com que em terra faz prodigiãos. Já deixámos para bem longe o pequeno aldea- mento de Guatós: subimos sempre, e agora, quasi sem aguapés em suas margens, o rio corre entre immensas campinas cobertas de macéga alta onde, de longe em longe, rareiam pequenas ilhas de vege- tação mais alta, ou pequenos capões. N'essas vastas planicies abunda o nosso bello galheiro, o cervo, e já viramos, distante, o majestoso galopar d'esse gar- boso animal; no dia seguinte, porém, tão proximos appareceram tres d'esses cervos que, sem reflectir na maldade e só ouvindo o instincto de caçador, corri ao meu mosquetão Mauser e alvejei o mais bello exemplar. O nosso vaporzinho trepidava bastante, o que muito difficultou a precisão do tiro; e, por Isso ou porque tivesse mal visado, o caso é que, feliz- mente, errei o tiro, e os tres cervos, galopando velozes e soberbos, desappareceram na campina immensa. | Aldeiamento dos indios “Guatós”, no rio Paragua: , Na fazenda “Descalvado” Chegada a S. Luiz de Caceres LIA À Antes das 4 horas da tarde d'esse mesmo dia 4, atracavamos ao trapiche de madeira da enorme fa- zenda “Descalvado”, na margem direita do Para- guay, com mais de duzentas leguas quadradas, e ses- senta mil cabeças de gado. Apezar do fundo d'essa fazenda ser linha de limite com a Bolivia, pertence ella ao estrangeiro—a “Brasilian Packing and Cattle Company”, — que, por sua vez, a comprou de uma companhia belga, que ahi fabricava extracto de carne. Esse colosso possuia quinhentas mil cabeças de gado! mas, os Belgas, no afan de fabricar o seu producto, estupida e criminosamente, abatiam tudo quanto repontava o rodeio, sem olharem sexo nem idade; juntava-se a isto o roubo que, constantemente, praticavam na fronteira da Bolivia, e que, segundo nos informaram o administrador e outras pessõas, chegava a ser de mil cabeças por mez; pois, ainda assim, após trinta annos de dominio belga e manu- tenção de tal regimen, a nova companhia encontrou sessenta mil cabeças, que não serão facilmente dizi- madas, pois que, além de não proseguirem na ma- tança estupida, mantêm os novos proprietarios, se- gundo ouvimos, uma policia activa e numerosa, e ca- paz de evitar a continuação dos roubos. N'essa co- lossal fazenda vimos pilhas de couros de onça, na maioria mortas pelos indios Guatós; mas, outras pi- lhas de couros seguiam-se ás de couros de onça, e eram essas fornecidas pelos cervos, cuja matança barbara e destruidora vae a mais de mil animaes por anno!... Antes das 6 horas, deixámos Descalvado e, como de costume, pouco depois das 9 fui deitar-me. Ha um grupo que faz dormitorio, em um espaço livre, que fica em cima, na tolda do navio, avante, entre E; RL os primeiros camarotes e a roda do leme. Durante o dia é ahi que sempre estamos todos, mas, á noute, uns de um bordo e outros de outro, vão armando as suas camas ou rêdes, sempre cêdo e sempre na mesma ordem: a boreste, e mais para a prôa, dorme, em cama, Padre Zham; logo depois, tambem em cama, durmo eu; e, mais para ré e mais proximo da antepara dos camarotes, em rêde, dorme Kermit; mas, ao longo de toda a antepara d'esses camarotes, voltado para a prôa, existe um banco, e sobre elle ha pilhas de pesadas malas, cuja firmeza não é grande, pois que assentam em muito estreita base. Desde Descalvado, o rio, alargando muito, fazendo innumeras ilhas, torna-se extremamente baixo, cheio de bancos movediços e canaes caprichosamente in- constantes; as suas margens são agora sempre orla- das de vegetação alta, as montanhas apparecem e succedem-se, e os pantanaes desappareceram. Nave- gavamos n'essa zona de bancos e baixios, e o somno Já a todos tinha ganho, quando, pelas 10 e meia da noute, estando o navio a toda forca, sente-se um vio- lento choque e somos atirados para vante; infeliz- mente, porém, não eramos sómente nós, sêres vivos, que estavamos animados de movimento relativo; a velocidade restante — restava — tambem para as malas que estavam empilhadas sobre o banco e, ao forte choque, degringolam ellas e desabam sobre Kermit e sobre mim; a rêde, afastando-se ao embate de uma das malas, salvou Kermit e, graças ainda a um dos punhos d'essa rêde, a mala que vinha em cheio sobre mim raspa-me apenas a cabeça e cae pe- sadamente sobre o meu travesseiro, vergando os pés da cama de ferro... O choque fôra devido a ter o navio batido em um banco de talude a pique, de sorte que, não encalhando, logo seguimos viagem, parando esta mesma noute em Barranco Vermelho, onde de- morámos duas horas recebendo lenha. Ás 4 da ma- Pat A drugada, novo encalhe vem surprehender-nos; d'esta vez, porém, sem choque violento: mas, por esse mesmo motivo, tendo o navio entrado muito pelo suave declive do banco, só após duas horas de rude e constante trabalho foi possivel safal-o e continuar a viagem para Caceres, em pleno dia 5. Passámos a foz do rio Jaurú, antiga divisa do dominio hespanhol; perto d'ahi existia um marco de marmore e cantaria, felizmente ainda hoje conser- vado, pois que ornamenta a praça principal de São Luiz de Caceres. N'esse mesmo rio Jaurú avistámos sobre a barranca da margem direita e junto á foz, um barracão de zinco, antigo deposito de cargas des- tinadas ao rio Guaporé, e de borracha vinda d'esse mesmo rio. Esse entreposto soffreu as consequencias da construcção da Estrada de Ferro Madeira-Ma- moré, visto como o escoamento da borracha e o apro- visionamento dos seringaes do Guaporé são hoje fei- tos com o aproveitamento de tal estrada. Ás 5 horas da tarde d'esse dia 5, chegámos a Caceres, velhissima marginante do extenso Para- guay e escala forçada da outrora Capital da Pro- vincia, a velha e abandonada cidade de Matto- Grosso. Ao longo de todo o alto barranco em que re- pousa a velha cidade apinhava-se quasi toda a sua população. As gyrandolas de foguetes, indispensa- veis e classicos nos acontecimentos do nosso interior, subiam annunciando a nossa chegada, e o “Nyoac”, atracando á ladeira de barro que, á guisa de cáes e escadaria, dá accesso ao barranco, ahi encontrou a officialidade da guarnição de Caceres e representan- tes da Camara, que vieram trazer as bôas-vindas a Roosevelt, não tendo sido esquecida a banda de mu- sica, companheira inseparavel dos foguetes. CER A a Desembarcámos e seguimos atravez de algumas ruas da vetusta S. Luiz, e, apezar da falta de calça- mento e estreiteza das mesmas, da casaria baixa e do pequeno movimento da cidade, logo nos sentimos presos pelo “nacionalismo” que ahi se respirava, pelo cunho caracteristico de cidade brasileira do im- terior, pela lhaneza de sua bôa gente. Uma das cou- sas Interessantes que me despertaram a attenção na cidade a que acabavamos de aportar, foram as vene- zianas: são feitas de sarrafos de madeira, estreitos e cruzados em diagonal, formando pequenos paralle- logrammos, e quiz eu ver n'essa insignificancia uma reminiscencia hespanhola, oriunda, por sua vez, da influencia mourisca do “muchrabieh”. Quem, pelas estreitas viellas, foi ao cáes de Bulah, aos mercados, ou emfim, já viu o velho Cairo, não póde deixar de ser tomado por esse sentimento de approximação entre o artistico “muchrabieh” e as interessantes venezianas da nossa longinqua cidade patricia; mas, não são apenas as originaes persianas que despertam a nossa attenção. A Caceres antiga ainda nos offe- rece á vista a imponente ruina da grande igreja, e, na praça principal, o artistico e historico marco a que já fiz referencia, todo de marmore, assente em base de alvenaria, encimado pela cruz de Malta, e apresentando, nas quatro faces, inseripções que transcrevo, sem a menor alteração, por ter achado o assumpto devéras interessante: Face W (Sob as armas de Hespanha, a seguinte inscripção, em lettras maiusculas “de imprensa): . Sus FerpINANDO VI Hispanig REGE (CaTHOLICO; Face E (Sob as armas portuguezas, a seguinte inscripção): Sus Joang V LusrranoruM REGE FiDE- LISSIMO ; | Face N. — Ex pacris FrsioumeE (GHUNDARUM Conventis Mapeiri Ibis. Ianvar MDCCL; Face S. — Jusrtiria Er. Pax OscurataE SUNT. As venezianas de Caceres Ruinas da egreja — Caceres quarta Praca de Caceres mento na manu O marca K fica-se pasmo ao pensar no esforço, na somma colossal de energia e de trabalho destinados ao transporte d'aquellas, talvez, quinze toneladas, em epocha tão remota, com tão deficientes meios de transportes, atravez de tão rudes, longos e penosos caminhos; pois que, pela éra nelle inscripta, deveria esse marco ter vindo pelo Amazonas e, depois talvez e provavelmente, pelo Madeira, Guaporé, e Jaurú, a menos que tivesse subido o Tapajoz e o Arinos, atravessado por terra as muitas leguas que separam este rio das cabeceiras do Paraguay, e por elle des- cido até o Jaurú. Mas, seja como fôr, e ainda mesmo que tivesse subidc ao Jaurá pelo Prata, Paraná e Paraguay, é mistér render homenagem á maseula energia dos nossos avoengos, infatigaveis luctadores, cuja fibra, igualando em rijeza ao caracter, era capaz até de construir o celebre forte Principe da Beira! Acompanhámos Roosevelt até a casa do Tenente Lyra, um dos membros da expedição que ahi a aguar- dava, e dispersámo-nos pela cidade, uns percorrendo suas ruas, outros comprando mais uma ou outra cousa que lhes faltava para a investida do sertão, pois estavam no ultimo mercado onde seria possivel prover-nos; e essa praca ultrapassou de muito a nossa espectativa, pelos grandes recursos commer- ciaes de que dispõe, apezar do extremo afastamento dos centros commerciaes e chamados civilizados. Roosevelt, na celebre caçada de 1º de Janeiro, tendo sido diversas vezes obrigado a nadar, teve, em consequencia, parado o seu relogio, velho compa- nheiro da guerra de Cuba que elle muito estimava; e, como não houvesse tempo para fazer funccionar de novo tal relogio, estava eu, depois de ter feito alguns passeios, em uma casa de negocio, com Ker- mit, onde este escolhia um relogio novo para seu ilustre pae, quando recebi um chamado urgente do Coronel Rendon. Rapido em attendel.o, fui á casa A em que se hospedára Roosevelt, e ahi encontrando o nosso Coronel, d'elle recebi uma missão diploma- tica originada por uma interpretação erronea de um seu telegramma, que o deixava um tanto tolhido junto de Roosevelt. Para satisfazer o justo desejo do nosso hospede, que, como já dissemos, não estava preparado para solemnidades e pompas, Rondon te- legraphou para Caceres pedindo que o não constran- gessem com recepções e banquetes, para o que elle não estava preparado; e, tendo sido tal recommen- dação attendida demasiado ao pé da lettra, soube Rondon, já bastante tarde, que não havia jantar al- gum para Roosevelt... nem para nós. Foi n'essas cir- cumstancias que me chamou o nosso chefe, para que eu manobrasse de modo tal que houvesse jantar para todos a bordo do nosso salvador “Nyoac”, e para que Roosevelt fosse prevenido com bastante diplomacia, afim de evitar qualquer máu effeito. “Le rusé Commandant” sahiu-se perfeitamente da sua missão, mas, á sobre-mesa do nosso magico jantar, tomando a taça de champanhe e um ar de grande seriedade, offereci, nos termos vulgares usa- dos nessas occasiões, aquelle jantar a Rocsevelt, em nome do Intendente de Caceres... No meio das ri- sadas que despertou o inesperado offerecimento, cuja malicia sou forçado a confessar, o nosso distincto hospede, tomando esse mesmo ar de solemnidade official, entrou a responder-me com a chapa do cos- tume, chapa tão batida que Kermit auxiliava a sua emissão intercalando phrases já suas velhas conhe- cidas. Tiveram assim pleno successo o jantar e as pi- lherias, e, como estivessemos em tão bôa disposição de animo, Roosevelt, que tem o grande merito da franqueza e não esconde as suas “gaffes”, contou-nos o que lhe succedera, n'aquella tarde, relativamente ao disparate de uma sua observação: A banda de A (5 musica, que havia figurado na nossa recepção, ti- nha-nos acompanhado e, por algum tempo, tocado em frente á casa de Roosevelt; o mestre de tal banda de musica, regendo-a e tocando com desembaraço, era um homem de estatura regular, solidos musculos, tez fortemente bronzeada, pouco bigode, nenhuma barba, olhos negros e cabellos tambem negros, escor- ridos, bem lisos e luzidios. Ora, se bem descrevi o typo do mestre da banda, todos viram n'elle um nosso bugre ou um mestiço com forte dóse de sangue de indio; e Roosevelt, grande observador, logo no- tando esse facto, começou a reflectir sobre a tão per- feita adaptação, se o homem era bugre, ou sobre a nenhuma influencia da sua origem, se fosse mestiço. Justamente curioso com aquelle caso observado em larga escala no tão distincto Coronel Rondon, Roo- sevelt chamou o mestre da banda e, interrogando-o por meio de um interprete, soube que aquelle homem de tez bronzea, olhos negros e cabellos escorridos, era pura e simplesmente... italiano. No dia seguinte, passeando durante a manhã pe- las tranquillas ruas de Caceres, daparei com um edi- fício em construcção, de grandes proporções e magni- fica apparencia, e, indagando qual seria o destino, soube, com vivo prazer e não sem algum espanto, que era destinado a uma grande escola publica, que es- tava sendo edificada sob os moldes paulistas, e que uma missão de professores, tambem paulistas con- tratada pelo Estado, estava espalhada por algumas das principaes cidades, tendo sido Caceres contem- plada n'esse numero. Fui bastante feliz por ter en- sejo de travar conhecimento com o joven educador que ahi se achava e, com elle visitando as antigas escolas, tive conhecimento do progresso obtido am e em outras cidades de Matto-Grosso. Roosevelt que, como homem intelligente e experimentado estadista, liga uma grande importancia ao magno problema da ERRO a instrucção, teve palavras muito elogiosas para com o professor, a quem apresentei e, á pagina 127 do seu interessante livro, cita com elogio o facto que ahi fica exposto e que tanto me satisfez. CAPITULO VI Viagem a Porto do Campo — Em Porto do Campo — Regresso ao Ladario. Caceres deveria ser o termo da minha viagem e ahi era mistér deixar os bons companheiros que, tomando uma pequena lancha, tinham que subir ainda o Paraguay, e tomar o Sepotuba; quiz, porém, a bôa-sorte que tão cêdo não fosse privado d'aquella companhia, e que conhecesse maior trecho navega- vel do rio Paraguay e ainda o Sepotuba. De facto, não estando no porto a lancha para conduzir a expe- dição, resolveu-se que o “Nyoac” subisse mais o Pa- raguay e penetrasse no Sepotuba, até Porto do Campo, onde Roosevelt aguardaria a lancha, ca- cando antas e porcos; e como não houvesse para mim conducção de regresso, continuei a viagem com os antigos companheiros e mais alguns outros, que nos esperavam em Caceres e ahi completaram a expe- dição. Iamos partir, e, sendo forçada a permanencia por alguns dias em Porto do Campo, embarcaram comnosco, para que fosse possivel fazer Roosevelt caçar, dous ou tres caçadores, todos com matilhas, mas, um d'elles, o Sr. João Ribeiro, com uma cachor- rada que entre todas sobresahia pelo numero e pela qualidade; e, como tudo e todos estivessemos prom- ptos para partir, deixámos, Caceres na tarde d'esse dia, em demanda do Sepotuba. EE AD O extenso Paraguay, já de ha muito correndo entre terras mais altas, estreitava-se agora sempre entre renques de matto, e era bem outro o aspecto do grande alagador de pantanaes; subindo sempre, encontrámo-nos, á tardinha, em uma posição inte. ressante e pittoresca, pois que com o nosso navio estavamos ao centro de uma perfeita cruz formada pelas aguas em que navegavamos. Para quem se en- contrasse pela primeira vez n'esse ponto do rio, e na intenção de continuar a subil-o, difficil seria a sua orientação, pois que, como tudo indica, o natural seria seguir para frente, tomando como affluentes os dous rios que ahi vêm desembocar de um e outro lado. Mas enganosa, quão apparentemente certa, seria tal solução, visto como a cruz é assim formada: a parte inferior, pelo trecho do Paraguay já por nós navegado; o braço direito, pelo proprio Paraguay que ahi deflecta em angulo recto; a parte superior, pela entrada de uma “bahia” (grande lago ou ala- gado); e o braço esquerdo, pelo rio Sepotuba. Entrá- mos pelo Sepotuba, e logo foi a nossa primeira obser- vação a limpidez de suas aguas, e a sua forte correntala que a custo era vencida pelo pequeno “Nvyoac”; estavamos na poaia, como lá se diz, e que exprime estar nas regiões das mattas ricas em ipe- cacuanha, como são as das terras que margeiam o bello rio que agora navegavamos, correndo em asseiado leito de pedras, entre margens bem altas e cobertas de forte orla de matto. A noute clara e en- luarada permittia ver o soberbo panorama, e a ma- gia do astro de luz suave, tocando como sempre almas e corações, recrudescia a saudade d'aquelles que de nós distavam, e fazia-nos pensar n'estes que de nós distariam, dentro em breve, na ousada em- presa em que não nos era dado tambem aventurar. ERR O ne rea Antas mortas no Paranapanema Nota. — Essas antas foram mortas em Maio de r9r3, em uma das caçadas que, annualmente, costumo fazer no rio Paranapanema: ellas aqui figuram, apenas, para mostrar o animal que Roosevelt pro- curava caçar. O CGacador João Ribeiro, em Porto do Campo Em Porto do Campo — O primeiro abarracamento A manhã de 7 encontrou-nos em Porto do Campo e, logo cêdo e bem atracado que foi o “Nyoac”, co- meçou a descarga de tudo quanto pertencia á expe- dição, emquanto a turma de soldados, em terra e di- rigida pelo infatigavel Capitão Amilcar, estabelecia o primeiro abarracamento. Na tarde d'esse dia, partiram alguns membros americanos da expedição, aproveitando a lancha, que subia com uma chata levando bagagens e carga para Tapirapoan; era esse o ultimo ponto attingivel por via fluvial, sobre o proprio rio Sepotuba, base e ponto de apoio escolhido pelo bravo Coronel Rondon, para as suas extraordinarias explorações, e d'onde deveriam seguir por terra, atravez do sertão, Roo- sevelt e mais membros da expedição, até as cabecei- ras do rio da “Duvida”, nome que exprimia bem o ignorado de seu curso e a magica attracção que o mysterio, fascinador como a esphinge, exercia sobre a alma sempre ardente e viva do antigo cow-boy. Tal como desde 17 de Dezembro do anno ante- rior, ainda n'esse dia, apezar do abarracamento, jan- tei ao lado de Roosevelt e com elle troquei ideias, como de costume e quasi diariamente succedia, sobre problemas sociaes e politicos; e, como já nos hou- vesse elle dito que nós, no Brasil, haviamos resolvido problemas que ainda estavam insoluveis nos Esta- dos-Unidos; embora o inverso tambem fosse verda- deiro, tentei ainda uma vez sondar o espirito do expe- rimentado estadista, no intuito de conhecer quaes seriam esses problemas, e saber, principalmente, quaes teriam sido as soluções dadas aos que nos res- tavam ainda insoluveis. Ou fosse porque o Destino — (que os primitivos já consideravam immutavel até pelos Deuses) — não permittisse, ou fosse porque o nosso hospede não quizesse desvendar o seu pensa- mento, o caso é que, só a respeito do problema rela- tivo ao perpetuamento on desapparecimento do ne- Viagens e Cacadas e e 10D cum, gro entre nós e entre os americanos foi que se expandiu o meu vizinho de mesa. Condemnava elle o processo norte-americano que, fazendo a completa separação de raça, só conseguia com isso desenvol- vimento sempre crescente do numero de negros, arredando assim a solução do problema e tornando-a cada vez mais dificil e grave; e, dizia, então, em- quanto nos Estados-Unidos é cada vez maior o nu- mero de negros, succede no Brasil o facto inverso, desapparecendo a difficuldade da solução e a gravi- dade do problema com o desapparecimento do pro- prio problema, pois que, diluída no sangue branco a. pequena porção de sangue negro ainda existente, dentro de um futuro não muito remoto estará a po- pulacção do Brasil isenta de negros. Mais tarde soube porque razão não tivera segredo para com esse pro- blema o forte explorador; lendo os artigos por elle escriptos no Outlook, lá deparei, no numero de 21 de Fevereiro de 1914, com um d'esses artigos sob o ti- tulo: “The Brasil and the negro” — e que nada mais era do que o desenvolvimento d'essas ideias. Desde alguns dias, Kermit soffria de accessos palustres, velha infecção que adquirira no Mexico e que o havia aborrecido e acompanhado em Africa; e agora, reentrando em regiões em que a palustre é endemica, reapparecia-lhe essa maldita compa- nheira. Esse terrivel mal, sério bastante em qualquer outro, era ainda mais preoccupador em Kermit, pois. que o medicamento indicado e indispensavel em tal caso, o quinino, não podia ser ministrado ao nosso Kermit, visto que outra molestia isso provocaria, como já lhe tinha succedido; e foi pensando no pe- rigo a que estava exposto seu filho, perigo que só poderia augmentar com o internamento pelo sertão, que, sériamente preoccupado, Roosevelt revelou-me nessa noute as suas apprehensões. Porto do Gampo — O autor, entre Kermit e Roosevelt, em frente á barraca deste Partida para a caçada de anta E | “Ha de ter notado, dizia o grande americano, que falo muito de Kermit; mas elle merece; sei o que elle vale e a sua dedicação por mim, e, se ten- tasse qualquer esforço para fazel-o retroceder, co- nheço bem quanto seria isso inutil, pois não me aban- donaria; entretanto, além de ser elle meu filho muito querido, está na flor da idade; é noivo, já estaria casado se não fosse esta viagem, e seria uma cala- midade transbordante de injustiça se viesse a morrer na travessia que vamos emprehender”. Pela primeira vez eu via Roosevelt ter apprehensõse sobre a arris- cada einpresa, mas eram ellas todas pela sorte de seu filho e não pela sua, e, continuando, a respeito d'isso assim se pronunciava: “Tendo dedicado as mi- nhas energias à exploração scientifica que encetámos, nella perderia a vida com gloria, como certamente gostaria o meu amigo de perder a sua em um com- bate naval; accresce amda que, mesmo tendo em conta a minha hôa saude, não posso esperar viver senão mais uns quinze annos; a minha preocceupação, portanto, é toda por Kermit”. Assim terminava a nossa conversa daquella noute, emquanto, no acampamento, eram dadas as providencias para a primeira caçada de anta, a reali- zar-se na manhã seguinte. N'essa manhã de 8 de Janeiro, depois de sermos photographados, das sentidas despedidas, e de ter Roosevelt, com alguns companheiros embarcado para a caçada, despedi-me dos que não tomavam parte em tal caçada, embarqmei por meu turno no “Nyoace”, e, com um prolongado adeus aos que ficavam em terra, e, depois, aos que ainda vimos nas canôas, deixámos, cheios de saudades, Porto do Campo e os bons com- panheiros, sentindo, com amargor e tristeza, não po- der compartilhar-lhes a sorte na bella e arriscada exploracão atravez do Brasil. Non = E A impetuosa correntada do Sepotuba e as aguas do Paraguay, ajudando o pequeno “Nyoac”, fizeram com que na tarde d'esse mesmo dia tornassemos a aportar a Caceres, Na descampada praca em que, como em todas as cidades de nosso interior, se acha a igreja, o dia findava n'um d'esses crepusculos sem fim em que a alma se extasia ante a magnitude da natureza; o sino da pequena e modesta capella tangia, plangente como um soluço que recorta o espaço; as estrellas a medo surgiam pontilhando o céu; e a lua, quasi cheia, ilu- minava com meiguice a velha cidade tranquila. A nostalgia latente, a saudade immensa dos entes caros que estavam distantes, irrompia vehemente na solidao em que nos deixava a falta dos companhei- ros, e deante do espectaculo cheio de melancolia d'aquella hora triste. Tentámos alguns passos pela cidade, mas, isolado, redobrando a tristeza, fui em busca do velho companheiro, o navio, onde o habito de estar só deveria amenizar o triste estado dºalma. Infelizmente, não era o navio, ahi, o unico compa- nheiro que encontrava, apezar de só a elle ter ido procurar; em quantidades incriveis, os mosquitos tiravam qualquer esperança de repouso e tranquilh- dade, e, á vista de tão importunos quanto inoppor- tunos companheiros, foi preciso vagar pelas ruas de Caceres até a hora de dormir, que não tardou. No dia seguinte, o “Nyoac” deixou Caceres e, com tres dias de viagem a favor da corrente, che-. gámos a Corumbá, d'onde, em lancha, desci até o Ladario, retomando o Commando de que me havia ausentado por espaço de quasi um mez, despendido em tão agradavel e bella excursão. O capitão tenente Nelson de Mello CAPITULO VII Sr. Janjão de Barros — Primeira caçada de onças. Pouco tempo depois do men regresso, tive a fe- licidade de receber como Immediato, a bordo do “Oyapock”, o meu amigo Nelson Augusto de Mello, excellente companheiro e grande caçador; e data d'ahi a “epocha de ouro” da minha vida sportiva de caçador, epocha positivamente inesquecivel, tantas. tão bellas, grandiosas e agradaveis foram as im- pressões por ella deixadas. Uma das maiores, senão a maior diffculdade para a realização de uma cacada de onça consiste, em Matto-Grosso, ou em qualquer parte, na obtenção da cachorrada; esses cães onceiros, não constituindo uma raça fixada como a dos nossos veadeiros, ou como as diversas raças de cães estrangeiros, são de obtenção assás dificil e trabalhosa e, se considerar- mos o numero dos que morrem “em combate”, facil tornar-se-á avaliar das dificuldades a que alludo. No rio Taquary, afluente da margem esquerda do Paraguay, existe um fazendeiro, Sr. “Janjão” de Barros, cujos cães onceiros têm fama tradicional, fama tão grande que para dar ideia da excellencia de qualquer cão onceiro basta que se diga: é raça do “Janjão”. Eu já conhecia dous dignos represen- tantes d'essa cachorrada, “Coxé” e “Pombinha”, que 7 As foram emprestados para a Fazenda das Palmeiras, e que trabalharam nas onças da caçada Roosevelt; e, como estivesse demorando uma outra cacada que nos estava promettida, tratâmos de fazer conhecimento e amizade com o Sr. “Janjão”, o que conseguimos por intermedio do infatigavel amigo Botto. A figura sympathica do nosso novo amigo “Jan- jãao” era bem a do antigo fazendeiro: forte e corpu- lento, barba crescida, trajando “riscado”, usando um grande, desabado e grosso chapéu de chile; era sim- ples, affavel, communicativo e franco, como sabe ser a bôa gente do interior do nosso paiz. Fizemos logo bôa camaradagem e ouvimos varias historias de ca- cadas de onças que, infelizmente, a minha memoria não pôde conservar; comtudo, em todas ellas resal- tava, bem evidente, a cautela e prudencia indispen- saveis, qualidades apezar das quaes, como se veri- ficava das narrativas, muitos caçadores tinham caça- do... pela ultima vez. O nosso novo e bom amigo já tinha morto uma grande quantidade d'esses astutos e atrevidos felinos; agora, porém, como lhe fosse fal- tando a vista, não cacava mais. Isso não impediria, dizia elle, de acompanhar-nos na caçada que seria realizada em sua fazend e que então combinavamos ; sentia, porém, profundamente, que não nos pudesse fazer acompanhar pelo “Bugre”, um indio “tereno”, seu empregado, cuja habilidade como zagaieiro con- stituia uma bem regular segurança para o atirador; mas, esse forte, valente e muito pratico zagaieiro estava ainda em tratamento em Corumbá e, segundo o prognostico dos medicos, não poderia mais fazer grandes esforços depois do desastre que lhe aconte- cera na ultima caçada. Esse bugre tinha ido caçar em companhia de um vizinho, um bahiano que viera do seu Estado natal atravez da serra de Maracajú e se fixára no Taquary, E o A e, como a onça estivesse acuada no “bamburro” (1) o bugre, na qualidade de zagaieiro, foi, ao lado do atirador, batendo e afastando o matto com a zagaia, na direcção em que a onça urrava no meio da acua- ção; a féra, porém, ladina e velhaca, deixou de urrar, fez uma meia volta que não podia ser percebida pelos caçadores, e, quando menos esperavam, a onça saltou sobre o Bugre, derrubando-o por terra. Estaria morto o valente zagaieiro se bravo tambem não fosse o atirador que, n'uma emergencia d'estas, deante de um tal quadro e de tão grande perigo, sem perder a calma e aproveitando o azado momento em que lhe fosse possivel atirar na cabeça da onça, sem ferir o zagaieiro, desfechou o tiro libertando o valente Bu- gre, que, emquanto subjugado pela féra, e apezar d'isso, não cessava de recommendar ao atirador que tivesse cuidado em não atirar sobre elle. Era por essa razão “simples” que não poderia- mos contar com os serviços de tão experimentado zagaieiro, cujo maior mal produzido pela féra não consistia, como será licito suppôr, nem pelas garras nem pelas presas que, apezar de o terem ferido muito, não lhe causaram o abalo produzido por um sôeco que recebera sobre o coração... Apezar das outras narrativas e d'esta mais re- cente, todas do mesmo genero, poucos dias depois, eu, o Nelson, o nosso collega Luiz Junqueira, o Botto e o Janjão, em uma lancha calando quatro pés, des- (1) “Bamburro” — é, em Matto-Grosso, um emmara nhado de matto muito fechado e baixo, geralmente entre- meado de espinho, cipó e macéga, dentro do qual não é pos- sivel enxergar a onça, ainda que se esteja, às vezes, a tres metros de distancia. O pe cemos o rio Paraguay, tendo partido muito cêdo do Ladario. O nosso amigo Janjão viajava sempre em canôa ou “batelão” (1), e gastava tres dias, quando era bôa a viagem e fazia bôas madrugadas, para chegar á sua fazenda; não lhe era possivel, pois, calcular o tempo que gastariamos com a lancha até esse ponto, mas, a julgar pelo tempo expendido por elle em dis- tancias já nossas conhecidas, calculámos chegar ao anoutecer. Com duas horas de descida pelo Paraguay, che- gámos à foz do Taquary, já nossa conhecida pelas ca- cadas de patos, que tinhamos feito em um coricho nesse rio, pouco acima de sua foz; mas só esse dimi- nuto e insignificante trecho era o que conheciamos d'esse tortuoso, baixo, correntoso e longo Taquary. A navegação n'esse rio é tão escassa quão difiicul- tosa, e as duas unicas lanchas e os barcos que ahi navegam calam pouco mais de um pé. À remota ci- dade de Coxim é o termo d'essas viagens, em que, contando ida e volta, gastam as lanchas um mez, e os barcos tres, quando não se espatifam n'algum dos muitos “passos” de tão traiçoeiro rio. Tive occasião de assistir ao regresso de um d'esses barcos ao Ladario. Com as suas grandes la- tinas enfunadas, subia elle o Paraguay e, ao appro- ximar-se do Ladario, canticos alegres dos seus tri- pulantes diziam o contentamento que lhes ia n'alma; os homens, vestindo saiotes, de pernas e pés nús, corriam ás velas e ás varas, abafando aquellas e lan- cando estas á agua para a manobra da atracação; (1) Em Matto-Grosso, chama-se “batelão” a uma grande canôa em que adaptam taboas sobre as bordas, e nas quaes corre ou anda o homem que empurra o “batelão” com a vara. Chamam zinga a essa vara e é o que em S. Paulo chamam varejão. E qc e dir-se-ia estarmos assistindo a espectaculo de ha seculos, vendo o aspecto, ouvindo os cantos e apre- ciando o ceremonial do termo d'aquella tão longa e trabalhosa viagem. Mas, a nossa lancha, levando como pratico o proprio amigo Janjão, subia o Taquary vencendo a sua correntada; o rio, porém, foi augmentando os seus caprichos de curvas, reduzindo a sua profundi- dade, e, dentro em pouco, estavamos forte e firme- mente encalhados. Saltando á agua, recorrendo ás varas, trabalhando e luctando com tenacidade, con- seguimos, depois de algumas horas, desencalhar a lancha; mas, como tivessemos reconhecido a impos- sibilidade de continuar a viagem em embarcação de tal calado, tornámos a descer o rio, entrámos nova- mente no Paraguay e, já noute, em vez de chegarmos à fazenda do amigo Janjão, arribámos ao Formi- gueiro, um porto e “retiro” da Fazenda das Palmei- ras, à margem do Paraguay e pouco abaixo da foz do Taquary. Apezar de tão inesperado e desagradavel con- tratempo, não desanimámos; e o aportarmos ao For- migueiro representava a resolução de ahi pernoitár- mos, emquanto a lancha subiria ao Ladario e mandaria uma substituta, de menor calado, embora muito incommoda. Assim aconteceu, e, depois de uma noute em que os mosquitos tentaram retirar-nos todo o sangue, partimos, na manhã seguinte, “como sar- dinha em tigela”, mas n'uma lancha que calava ape- nas um pé. Tal lancha era menos resistente e menos veloz que a outra e, assim, para vencer a correntada forte, livrar-se dos barrancos nas curvas caprichosas e manter velocidade e governo nos “passos” ruins, o foguista activava os fogos com o maximo que lhe era possivel, maximo esse que ultrapassava o da re- sistencia das grelhas, como tivemos a infelicidade de constatar algum tempo depois. po a Já tinhamos, felizmente, vencido os passos mais dificeis e com os suggestivos nomes de “Québra pôpa”, “Chupa-Chupa”, “Bodoque”, ete., quando di- minuindo a velocidade da lancha, foi chamada a nossa attenção para a quéda da pressão, a despeito do carvão que era consumido em grande excesso; eram as grelhas que se haviam queimado, o que, pela segunda vez, far-nos-ia ficar... a ver navios. Não era possivel; insurgimo-nos todos contra a sorte adversa, mas, em vez de perdermos o tempo em preoceupa- ções inuteis, resolvemos ir, a todo o custo e E qual- quer modo, ao termo da viagem. Já eram mais de 3 horas da tarde, faltava-nos ainda muito caminho a vencer, a lancha estava sem grelhas, o carvão não era bastante para a viagem, e a corrente ia ser mais forte depois que passassemos o braço de rio que, cortando a Fazenda das Palmei- ras, vae desaguar muito abaixo. Tudo isso eram grandes difficuldades e obstacules a vencer, mas, a “sêde” nas onças era tão grande que para nós não havia barreiras. Bem encostados á margem, ora pa- “rando e fazendo lenha, ora interrompendo a marcha para conseguirmos um pouco mais de pressão afim de vencer um lugar mais correntoso, fomos, com muita paciencia e indiziveis trabalhos, nos arras- tando vagarosamente, até que, à meia-noute, vimos coroados os nossos esforços com a chegada á fazenda do nosso amigo Janjão. A nossa chegada deveria ter sido' precedida de uma carta que o fazendeiro escrevera ao filho, carta em que eram determinadas providencias capazes de garantir, c quanto possivel, o successo da caçada, e, como fosse preciso tempo para tomal-as, tal carta fôra enviada de modo que nos precedesse de uma se- mana. Acontece, porém, que, com a incerteza e es- cassez de communicações com a fazenda, só na ma- — 91 — nha do dia que findára com a nossa chegada tinha sido recebida a carta. O veterano e mestre onceiro “Visconde”, cuja grande prole fazia-lhe gloria, estava, com outro cão mestre e seu descendente, “Mestrinho”, na Fazenda “Firme”, a umas quinze leguas de pessimos cami- nhos atravez do pantanal; “Coxé”, tambem cachorro mestre, meu conhecido das caçadas com Roosevelt, tinha sido presenteado a um fazendeiro ainda mais distante; “Tubarão” e “Pombinha” estavam perto, em S. Francisco, a quatro leguas d'ahi. Resta- vam-nos, pois, uns tres ou quatro cães novos, unicos de que poderiamos dispôr no momento, mas que não poderiam prestar servico algum. Grande foi o nosso desapontamento, mas, sem desanimo, esperámos que um dos filhos do nosso amigo fosse buscar os cães que estavam no “Firme” e em S. Francisco, e, em- quanto esperavamos, iamos matando o tempo ma- tando outros bichos. À casa do amigo Janjão, a umas duas centenas de metros da margem do extenso Taquary, estava quasi invadida pelas aguas do pantanal, ainda em cheia; a parede externa da sala em que nos alojámos, uma das duas unicas pecas que constituiam a casa, estava quasi reduzida ao arcabouço de madeira, tal era a quantidade de barro, ou melhor, de terra que se havia desaggregado e cahido; o chão, de terra batida, era rico em formigas; e de um forte e grande esteio quasi central partiam as nossas rêdes, formando raios de um circulo. A” noute, os mosquitos ataca- vam, como de costume, com impetuosa furia e em avultado numero; mas, um de nós, como sábia pre- caução, à noutinha, fechava a porta que existia na rendada parede, e, com isso, ficavamos livres de que os malditos insectos penetrassem pela tal porta, e certos de que entrariam livremente... pela parede. 92 — De casa, e até mesmo de dentro de casa po- der-se-ia atirar em tuyúyús, garças, colhereiros, etc,, tão proximo era o pantanal e tão pequeno era o ter- reno firme em que estava ilhada a casa; e, como fosse forçoso esperar pelos cães, mais ou menos n'isso, isto é, no tiroteio a esses pernaltas consistiu a nossa oceupação no primeiro dia. | | No outro dia, acompanhados pelo infatigavel filho do nosso amigo Janjão, seu Chico, chegaram os pobres cães. Coitados! tiveram de fazer leguas e le- guas atravez dos pantanaes; e, como esses estivessem muito cheios, grandes foram as travessias que hou- veram de fazer a nado. Quando o nivel d'agua lhes permittia caminhar, o fundo dos pantanaes, que não podiam ver, coberto de caramujos, cortava-lhes os pés; estavam fatigados e estropiados os pobres ani- maes, e o velho e valente “Visconde”, que desde De- zembro estava na Fazenda “Firme”, viera magro, cheio de bichos, gafeirento e tropego. Foi preciso deixar que os cães repousassem n'esse dia, e só no dia seguinte, terceiro de nossa estadia, partimos, bem cêdo, com muito poucas esperanças, atravez dos pan- tanaes. José Maria, o bahiano que fôra companheiro de Bugre na terrivel caçada, era um dos nossos zagaiei- ros; outro zagaieiro tambem nos acompanhava, e o Botto, eu, o Nelson, o Junqueira e o amigo Janjão, formavamos a caravana de que iam zombar as onças. O pobre “Visconde”, como se já não bastasse estar | tão estropiado, foi pisado por um dos 'animaes, logo após a partida; os outros cães, nenhum dos quaes era mestre, ainda estavam fatigados e estropiados; e os pantanaes, tão cheios que nos obrigavam a via- jar com as pernas dentro d'agua, ou ajoelhados nos arreios, fatigavam ainda mais os cães e reduziam enormemente a area em que poderia ser encontrado o rasto. O veterano “Visconde” não conseguiu acom- SEO E A panhar-nos, e ficou em caminho; e, assim, desfalca- dos d'esse precioso companheiro e luctando com tantos contratempos, buscavamos, de um a outro ca- pão, o rasto promissor da desejada onça. O dia in- teiro passámos n'essa procura, de ilha em ilha, isto é, de capão em capão; mas, bem depressa verificámos que infructiferas seriam as nossas penas e, ou por- que os pantanaes muito alagados, não permittindo a permanencia de gado, não favorecessem ás onças um campo para as suas presas, e as tivessem afastado, ou porque a sorte não nos tivesse levado a um capão em que estivesse refugiada alguma d'ellas, o caso é que, depois de muito caminharmos, voltámos para casa tal como haviamos sahido. A” vista das condições do terreno e do estado da cachorrada, julgou-se inutil o continuar em uma tentativa, cujo resultado, negativo, era de antemão conhecido; e assim, no dia seguinte, pela manhã, mais contando com a correnteza do que com a ma- china da nossa lanchinha, deixámos a fazenda do Sr. Janjão, amigo que nos acompanhou desconsolado com o insuccesso da caçada e fazendo questão da re- novação da mesma em epocha mais opportuna. Uma vez descido o Taquary, a subida do Para- guay foi rica em peripecias, como havia sido a su- bida do primeiro, mas, arrastando-nos do melhor modo, conseguimos chegar, á nonte, ao Ladario, in- dignados com o insuccesso da nossa primeira caçada de onças. CAPITULO VIII Caçadas em «Urucâm» — Sr. Jenú — Segunda cagada. Emquanto projectavamos uma outra caçada de onças, eu e o amigo Nelson enchiamos o tempo com outras caçadas menos importantes, mas bastante di- vertidas; os jáos, por exemplo, cuja abundancia é extraordinaria em Matto-Grosso, e cuja carne é sa- borosisima, eram por nós perseguidos e caçados con- stantemente; e a caca ás antas, aos veados e aos porcos, levaram-nos, mais de uma vez, a pequenas excursões até Urucúm e S. Domingos, onde fizemos algumas que tiveram tanto de fatigantes, como de improficuas. Em uma d'ellas, depois de termos su- bido cerea de dous terços da serra de Urucúm, tive- mos de descer, em vertiginosa carreira, para acudir a uma corrida que suppuzemos ser de anta levantada pelo “Leão”; mas, já tendo a corrida atravessado a picada, e tendo a cachorrada “perdido”, de novo su- bimos e, depois de chegarmos á altura das minas de manganez, seguido por muito tempo um velho ca- minho á altura das mesmas e começado a descer, o “caboclo” que ia comnosco começou a andar devagar, ou porque estivesse cansado, ou porque nos Julgasse fatigados. Nós haviamos sahido ás 5 horas da manhã e, caminhando sempre a pé, já tinhamos bôas nove horas de marcha, pois eram mais ou menos 2 da tarde: e, como um de nós tivesse reclamado do ca- Eng Ar bloco que elle estava andando de vagar, este, que- rendo pregar uma peça aos “moços da cidade”, des- envolveu toda a sua velocidade. Mal sabia o pobre “camarada” que estava lidando com dous caçadores de porcos e macucos da abrupta serra dos Orgãos, habituados aos caminhos ingremes e ás longas car- reiras atraz dos catetús, e que o tiro ia sair-lhe pela culatra. De facto, como tivessemos ainda uns trinta ou quarenta minutos de viagem, marchei nos calca- nhares do nosso falso pregador de peças, e, sem dei- xar cahir a velocidade, forçámol-o a marchar assim até a casa. O homem, que percebera bem a nossa pl- lheria, sumiu-se, e tão envergonhado ficou que não mais conseguimos vel-o emquanto lá estivemos. Mais uma ou duas vezes tornámos a caçar no aprazivel Urucúm, e, n'uma d'essas caçadas, acom- panhados de um francez encarregado das minas de manganez, encontrámos rasto fresco de uma pintada. Muito alegres com tal achado, esperavamos, a todo o momento, que a cachorrada, em vez da anta que procuravamos, corresse aquella onça, que vinha tão ao encontro dos nossos desejos; certos ficámos de que ia ella ser “levantada” quando ouvimos o “Leão” “dobrar no rasto”, infelizmente, porém, o valente “Leão” achou mais prudente abandonar o rasto e, em lugar de onça, ou mesmo da anta, só conseguimos uma terrivel carga de carrapatos, cuja infernal co- ceira deu para uns vinte dias... de divertimento. Por esse tempo, o infatigavel amigo Botto, que já me proporcionára as relações com o amigo Janjão, e que me havia apresentado ao Sr. Jenú, insistia com este para que se conseguisse uma caçada em que mor- resse, pelo menos, uma onça; e assim foi que, um bello dia, appareceu em nossa casa, no Ladario, para combinarmos uma cacada, o proprio Sr. Jená. EQ dl Esse homem, rude e trabalhador, tinha uma pe- quena fazenda entre os rios Miranda, Paraguay e Aboboral, n'um confm longinquo e deserto dos pan- tanaes que se estendem até a margem direita do Mi- randa; e, n'essa fazenda, constantemente, com auxi- lio dos filhos e com alguns cães, matava onças cujos couros vendia em Corumbá; era, pois, para elle, uma “industria extractiva” a caçada de onças em suas terras; mas, como não nos fosse possivel ir á sua fazenda, achou um meio de conciliar as cousas, e veio á nossa procura esse valente e experimentado caçador. Póde-se dizer com toda a propriedade — expe- rimentado — porque, conforme ainda se podia ver, as cicatrizes que lhe marcavam a testa, cabeça e nuca, mostravam a experiencia de que falo. Essas cica- trizes eram devidas ás garras de uma onça que, por pouco, teria acabado com o nosso novo amigo, se não fosse um seu filho, e o seu sangue-frio. N'essa ca- cada, em que ia perdendo a vida, seu Jenú fôra como atirador, e um dos seus filhos como zagaieiro; a onça não trepára, déra acuação no chão n'um gravatazal, e, depois de terem rompido aquelle baluarte de espi- nhos, chegado ao lugar da acuação e avistada a féra, o atirador procurou detonar a arma, mas, no melhor dos momentos, esta lhe falha. O zagaieiro avançou a defender 6 atirador que era seu proprio pae, mas, com um forte quão rapido sopapo, a onça “rebateu” a zagaia e saltou sobre o valente Jenú. O nosso amigo, sem perder a calma em tão critica cireum- stancia, saltou para traz, ao mesmo tempo que esco- rava a onca com a espingarda, mas, ainda assim, as garras afiadas do agil animal alcançaram-lhe a ca- beca; o zagaieiro, seu filho, novamente arremetteu contra a onca, mas, naturalmente emocionado com semelhante lucta, só conseguiu atravessar o couro da onça que, embora por terra, sob o choque da zagaia, Viagens e Caçadas 7 Beto - pa estava prestes a escapar-se; e foi então que o nosso amigo Jenú, invertendo os papeis de defendido para defensor, atirou na cabeça da féra e ficaram livres do atrevido inimigo. Às cicatrizes do amigo Jenú, e as do Bugre do amigo Janjão, eram uma bôa advertencia para os caçadores novatos, mas, como eu insistisse em com- binar a caçada, seu Jená declarou-me que, d'essa vez, ia levar-nos — “no cumulo da onça” — ; que se tra- tava de um lugar inteiramente deshabitado e só fre- quentado pelos caçadores de garças que, durante dous ou tres mezes em cada anno, na epocha propria, ahi iam á cata das “aigrettes”. Um d'esses caçadores, seu vizinho, que partia para lá dentro de poucos dias, serviria de guia; e elle, Jená, com dous filhos e a cachorrada, estava ás ordens para essa grande ca- cada. Logo desenvolvi toda a minha actividade para resolver, com os companheiros, a realização de tão tentadora empresa, e, uma vez reunidos, o nosso amigo Jenú, achando talvez fraca a expressão “cumulo da onça”, fez com enthusiasmo a seguinte declaração: “Seu Commandante, póde estar certo de que vou levar-lhe no “fox” da onça!...” Não havia duvida que, pelo menos a julgar pelas expressões do nosso amigo, haveriamos, tal como Juan Pisarro, de “mirar algo nuevo”. Ton d Para dar ideia do que foi essa caçada, escrevi n'esse sentido uma carta á minha mulher. E” essa carta que, sem alteração, ahi vae transcripta. Ladario, 7—6—1914. Minha adorada... Estou de volta da minha annunciada caçada de onças e, já barbeado, lavado, recivilizado, bom, e sem ter sido comido por onça alguma é que te escrevo, RO. embora a tua correspondencia esteja a chegar e te- nha de respondel-a. A nossa excursão deveria durar mais tempo, mas uma série de incidentes determinou um regresso mais rapido. D'ahi partimos, ás 2 da madrugada de 27 do passado, em uma lancha, e, cousa que estra- nharás, sentindo muito frio, pois deveriamos ter uns 12º! Começámos a descer o Paraguay e, como ahi seja grandemente franca a navegação para uma lan- cha do porte da nossa, deixámos o leme ao patrão e nos deitámos á ré, no paineiro, eu na bancada de B. B., o Nelson a B. E., e o Junqueira, por mais pre- guiçoso e não querer retirar os volumes que estavam à ré, deitou-se em baixo, no paineiro propriamente. Com a noute fria os mosquitos desappareceram e, sem esses importunos companheiros, facil e agrada- vel foi conciliar o somno. Subito, sente-se um forte choque, e a lancha encalhára no caudaloso Paraguay, com um cochilo mais forte do patrão; mas, emquanto isso se dava, deparo com o Junqueira, sentado, com as mãos no rosto e gemendo como um desesperado; a seu lado debatia-se um grande peixe e, só depois de alguns momentos, soubemos que tal peixe havia cahido justamente sobre o olho direito do nosso com- panheiro, contundindo-o fortemente e ferindo-lhe bastante a palpebra. Verificado que o homem não es- tava cégo (do que escapou por pouco), fizemos os curativos de occasião e continuámos a viagem. Ás 8 horas da manhã estavamos na foz do rio “Aboboral”, onde nos esperavam os caboclos com quem iamos caçar; elles haviam alli acampado e es- tavam já embarcados e promptos: dous em uma pe- quena chalana com a bagagem e quatro cães, e os outros, que eram tres, em uma ape canõa, tambem com bagagem e cinco cães. — 100 — Recebidos os novos companheiros, continuámos a descer o Paraguay até encontrarmos o rio Miranda, pelo qual entrámos, ás 9 horas; um dos homens que vinham na chalana, unico que conhecia a zona de- serta em que iamos caçar, tomou a direcção da lan- cha como pratico do rio e, após termos deixado al. gum carvão depositado em uma das margens, subi- mos o Miranda até o anoutecer, quando parámos à busca de pouso. Só quando o rio está muito cheio, ou em embarcações de muito pequeno calado, é que se navega à noute n'esse rio; em condições normaes, os seus bancos movedicos e inconstantes posições de ca-. naes fazem com que a navegação se torne penosa e dificil. O pessoal estava todo fatigado da madrugada da vespera; assim, a madrugada que tencionavamos fa- zer, deixando o primeiro pouso foi madrugada de lagarto. Partimos depois de 7 da manhã, e cerca de meia hora depois estavamos encalhados no mais baixo trecho do Miranda, entre a sua foz e a do Aqui- dauana; foi um trabalho infernal em que todos to- mámos parte, uns saltando á agua para suspender e empurrar a lancha, outros de varas ao peito a afas- tar um ou outro extremo da embarcação, e, final- mente, todos alando um cabo que se passou para uma das margens, conseguimos, após tres horas de traba-' lho, safar a lancha e continuar rio acima. Desde a vespera que, pelas margens, os jacarés e capivaras, aquelles principalmente, iam soffrendo a nossa fuzilaria, fraca aliás, pois, com sentido na ca- cada de onças, só n'isso pensavamos e anciavamos pelo primeiro encontro. Já avistámos a serra da Badoquena, longe e azu- lada no horizonte d'aquelle immenso oceano verde e, ás 3 horas da tarde, passavamos por junto do morro do Azeite, na margem esquerda do Miranda, ingreme / eo 7) e aguçada elevação que se encontra isolada no meio de centenares de leguas de pantanos e bamburraes. Ás 8 da noute, parámos para pousar no primeiro lu- gar habitado que encontravamos desde que haviamos deixado o rio Paraguay, era o “retiro” do Alegre, “retiro” de uma vastissima fazenda de criação, cujas terras seguiamos desde o Paraguay, pois, com suas cento e tantas leguas, ella se estende da serra da Bo- daquena ás margens d'aquelle rio. Pela manhã do dia seguinte, depois de termos tomado leite no curral, partimos em busca da foz do Aquidauana, que estava proxima, e começámos a su- bir esse rio estreito e muito tortuoso, abundante em peixe e caça, principalmente em pernaltas e palmi- pedes. Após um pequeno percurso em que fomos di- versas vezes sobre a barranca, soltámos os cães em um capão de matto, mais para que satisfizessem suas exigencias physiologicas, de que estavam privados havia mais de vinte e quatro horas, do que para ca- car, pois, como esperavamos, era cêdo ainda para en- contrarmos o inimigo, que alli não se achava. Presa a cachorrada, continuámos a viagem até que, por cerca de 3 horas da tarde, chegámos á foz do rio Aniáli (é nome indigena e não sei como se escreve), ponto em que deveriamos estabelecer o nosso acampamento permanente, o que logo tratámos de fazer. Assim, depois de tres dias de viagem, chegavamos ao “fox” da onça, como dizia seu Jenú. Desbastada a cipoada emmaranhada e feito o fogo do acampamento, sahi em uma chalana para tomar banho n'uma praia, a uns cem metros de dis- tancia; pareceu-me logo que estavamos de facto no fóco das onças, pois, alli, junto do acampamento, an- tes de subirmos o Aniáli, já encontravamos rasto de onça em todas as direcções. Que bom prenuncio ! Na manhã do outro dia, 30 de Maio, o sol já nos encontrou a caminho da “solta”: en, o Nelson, o José — 102 — Bastos (o caçador de garças), seu companheiro Piré, e quatro cães, embarcados na pequena chalana, e o Junqueira, Sr. Jenú, seus filhos Nicoláu e Americo, e cinco cães, na grande canôõa, subiamos lentamente aquelle rio quasi ignorado, em pleno sertão, cheios de esperanças e presos de real emoção. As grandes araras, barulhentas que desde a vespera pos ator- mentavam com a sua desgraciosa musica, passavam em bandos luzindo ao sól o bello azul da sua pluma- gem; quantidade de jacarés, dorminhocos e repellen- tes, estendia-se pelas margens, pelos bancos de areia, e em pleno rio, e alguns, tão atrevidos, ou tão inno- centes, não se arredavam do caminho da embarcação e eram castigados a pá de remo, respondendo com fortes rabanadas, tão barulhentas quanto inoffensi- vas... na occasião; os tuyúyús, cabeças-seccas e ou- tras aves, quasi tão confiantes quanto os jacarés, alinhavam-se nas praias, em bandos enormes, ora ahi permanecendo á passagem das canôas, ora se elevando em vôo lento e formando sobre nossas ca- beças uma abobada de azas do mais bello effeito. Na primeira praia a que abicámos e onde saltá- mos não era possivel andar, sem pisar sobre um rasto de onça: era extraordinario o que viamos! pe- gadas de varios tamanhos annunciavam a existencia de muitas onças n'aquelle lugar, e uma d'essas pe- gadas, enorme, profunda, dizia-nos que por alli tam- bem andava o dono e senhor d'aquelle sertão o “ma- charrão”, como chamam os caboclos á grande onça macho que as outras respeitam. A cachorrada, assa- nhada, corria, farejava, gania e saltava na maior alegria; valentes e dedicados amigos que vão pressu- rosos adeante do perigo, embora rara seja a caçada em que um ou mais não tenham que pagar com a vida tão indomita bravura. | O “macharrão” tinha saltado sobre uma enorme capivara e, sem arrastal-a, a havia conduzido a uns — 103 — quinhentos metros e ahi feito o seu festim; o rasto que trilhámos e a carnica. que encontrámos conta- ram-nos, sem palavras, essa historia; depois, a ma- céga alta, mais alta que um homem, apagando os traços da continuação d'essa historia, como as vagas apagam a esteira do navio, ter-nos-ia, por certo, dei- xado ás tontas, se entre nós não existisse um bugre; esse homem de bronze acobreado, musculoso e forte, afastou-se um pouco procurando a macéga mais baixa, e, em meio da grande planicie, de pé, zagaia em punho, com sagacidade e um instincto quasi so- brehumanos, investigou, não sei se com o olhar, não sei com que sentido, e voltou dizendo singelamente — “eruzou ali” — e apontou adeante. Andámos, e, quando chegámos ao local indicado, afastando a ma- céga mais alta que as nossas cabeças, o bugre mos- trou-nos o rasto da grande onça macho! N'essa campina ha varios capões esparsos, e a elles nos dirigimos à busca da féra; mais de uma vez, ao abordal-os, o fizemos com a maxima cautela, pois que, sendo orlado de cipcal denso e macéga alta, nada se enxerga ao atravessar esse “bamburro” para pe- netrar no capão; e é justamente ahi que as onças, manhosas e atiladas, se escondem e fazem, ás vezes, surpresas pouco agradaveis. De uma feita, como a cachorrada mestra viesse “dando rasto” no meio da macéga e se dirigisse para um dos capões, eu e o ca- cador das garças (José Bastos), correndo mais, nos adeantámos sobre os outros caçadores e chegámos sós á orla do capão; e a cachorrada mestra, conti- nuando a latir, arrepiou-se toda, e assim os demais cães que alh estavam, latindo muito, e mesmo arre- piados, tiveram medo e recusaram-se a varar o bam- burro e entrar no capão. Estavamos sós, entreolhá- mo-nos e, eu de espingarda e José Bastos de zagaia, varámos o bamburro antes dos cães... Realmente, foi o que se póde dizer “por honra da firma”, pois eu BR; é que sei como atravessei aquelle emmaranhado, onde não poderia defender-me de qualquer animal que fosse. Felizmente, n'esse ponto do bamburro não ha- via onça alguma e, infelizmente, apezar de tão posi- tivos signaes da cachorrada, ainda n'esse capão não encontrámos a que buscavamos. De capão em capão atravessámos extensas zonas de campos, nos fatigavamos atravez da macéga alta, penosa de romper, e assim chegámos a um d'esses oasis onde, n'aquella noute, algumas onças tinham pernoutado; os lugares em que se haviam deitado e espojado, o rasto fresco, a forte catinga que todos nós sentiamos, tudo fazia com que estivessemos cer- tos de que era chegada a hora de tão desejado en- contro. Puro engano; ainda d'esta vez a sorte adversa não permittia a realização do nosso sonho. Já tarde, desanimados, buscámos as canôõas; junto a ellas, na praia, fizemos fogo, nos acocorámos em torno do churrasco e da cuia de melado, cuia unica em que todos molhavamos o nosso pedaço de queijo... e, assim, “bem” almoçados, retomámos o caminho do pouso, transferindo para o dia seguinte a esperança de melhor sorte. Nas margens d'esse rio Aniáli viviam os indios “Terenos”, para os quaes Rondon conseguiu e de- marcou uma grande área de terra; e para os lados da cidade de Miranda, que fica n'essa zona, encon- tra-se um ou outro representante d'esses indios, Já civilizados. Das roças que plantavam esses indios, resta ainda, longe, subindo muito o ÁAmiáli, um velho bananal que, a julgar pela altura da barranca, pa- rece estar indemne das cheias; e diziam-nos que ahi morava um “macharrão malcredo” que atemorizava os caçadores de garça e fazia ouvir, longe, pela noute, seus urros formidaveis. Decretada a guerra ao insolente inimigo, prepe- rámo-nos para acampar no “Bananal”, um ou dous — 105 — dias se fosse preciso, e, ás 2 horas da madrugada, na pequena chalana e na grande canôa, com a mesma divisão de pessoal e de cães da vespera, começámos a subir o rio para attingir, pela manhã, o ponto de destino. O tempo, que estava incerto, começou a enfar- ruscar-se e a ameaçar-nos; distante, muito longe, um relampago rasgou a treva densa, e o trovão reboou soturno, baixo, pesado; essa musica ia augmentar, mas, como passassemos por perto de uma grande ar- vore de que mal se adivinhava o vulto, talvez como prologo da bulhenta opera celeste, um grande bando de magoaris, garças e socós, com suas vozes roucas e desgraciosas, deu-nos um interessante e originalis- simo concerto que durou mais de dez minutos. Os re- lampagos succediam-se com frequencia illuminando o caminho, os trovões ribombavam mais perto e, den- tro em pouco, despejava-se sobre nós um tremendo aguaceiro; eu e o Nelson, já sabidos, zombámos do tempo sob os nossos abrigos; mestre Junqueira e o resto do pessoal, porém, tiveram agua até os ossos. O Bananal era realmente longe e, apezar do con- stante remar dos infatigaveis homene, só o abordá- mos depois de 9 horas da manhã; pressurosos, per- corremos o capão onde ainda existia um resto de bananal dos Terenos, e, se rapida foi a pesquisa, tão rapida foi tambem a desillusão. Do “macharrão mal- creado” não achámos nem rasto velho; as cinzas de um fogo relativamente recente e as pennas de alguns passaros mostravam-nos a passagem de caçadores, e só faltava saber se teriam elles conseguido o que tentavamos nós. Mais tarde soubemos que sim. Não era possivel ser mais caipora, pois, n'um lugar em que existem onças em tão grande quanti- dade, já haviamos gasto um dia e meio sem encon- trarmos uma só que fosse. Quem porfia mata caça. — 106 — Será muito verdadeiro o rifão, mas... é duro de pratical-o quando a sorte se mostra tão pouco amiga; emfim, era preciso paciencia, e, após pequeno descanso e havermos tomado café, reembarcámos e começámos a descer o TIO. Haviamos desfeito talvez um quarto do caminho, quando vimos, na margem direita do rio, a meio da barranca em desmoronamento, uma caveira (1) hu- mana; dirigi-me para lá e foi-me possivel verificar, pela posição da ossada, que estava completa, tra- tar-se do esqueleto de um velho Tereno; sobre essa sepultura havia uma figueira brava que, se não é se- cular, deve andar perto d'isso, e as suas raizes ha- viam envolvido quasi toda a ossada e até mesmo penetrado no craneo do velho bugre. Sem imitar Hamleto nem parodiar Shakespeare, não me foi possivel furtar ás reflexões a que sempre impelle um craneo, maximé nas condições d'aquelle, cujo mysterio do além-tumulo era augmentado pelo desconhecido da vida e dos habitos do selvicola a que pertencera. Cacique poderoso, ou escravo submisso, cahido sob a flecha guerreira, ou sob a garra do ja- guar bravio, a morte o havia igualado aos que maior renome deixaram entre os civilizados. Como é pe- quena a vaidade humana! Mas nós estamos caçando! E” verdade. Embarquei na chalana o craneo mysterioso e ve- lho, e continuámos a descer o rio. Ão chegarmos ao local em que haviamos saltado na vespera, abicámos novamente á praia e por ella andámos á busca de rasto fresco; em vão; a grande quantidade de pe- gadas que viamos era já nossa conhecida, e, sabe- (1) Esse craneo acha-se hoje no: Museu Nacional, tendo a particularidade de encontrar-se n'elle o osso inca- rico. No rio Aquidauana radores Ati Zagaieiros EE dO — dores como eramos do habito que têm as. onças de fazer grandes caminhadas, o desanimo, que já havia começado, augmentou com o que acabavamos de con- statar. 7 Com as caras compridas, falando pouco, nos aco- corámos em torno do churrasco e da cuia de melado; almoçámos e retomámos as canôas. Ê Mas, senhores, seria possivel que as onças tives- sem desertado, ellas que até a vespera haviam estado alli?! Não, não era possivel. Um raio de esperança sempre existe, mesmo fraco, no meio do desanimo, e, um d'entre nós, creio que o Nelson, propoz a visita a um capão que estava pouco abaixo, na outra margem. Acceita a ideia, para lá fomos, mais por desen- cargo de consciencia do que por outra cousa. Saltámos, abordámos o pequeno capão, e o Sr. Jenú e o Junqueira já se dispunham a ir em busca de umas aracuás, quando, um cão, o “Leão”, deu rasto de um modo especial e diverso do que até en- tão ouviramos nos outros lugares. O caçador de gar- cas, proprietario do cão, estacou e chamou a nossa attenção para o latido do seu cão; todos nós estacá- mos onde nos achavamos, e, subitamente, o desanimo desappareceu para dar lugar ás maiores esperanças, tal havia sido o modo pelo qual José Bastos tinha chamado a nossa attenção. Seria mesmo a onça? Estariam pagos os nossos esforços? O “Leão” dobrou no rasto e “barruou”, outro cão, outro mais, latem, correm, acodem e ajudam a acuação. “E” o bicho”, grita o José Bastos, e corre para a acuação; o meu enthusiasmo vae ao auge, não vejo mais cipós nem espinhos, corro junto ao caçador de garças, e a minha alegria augmenta com a proxi- midade da acuação. Os outros companheiros. se- guem-me, a acuação está proxima, é grande o baru- — 108 — lho que fazem os cães; mas, outro rumor, novo para mim, forte, dominador, que abafa o latir dos nove cães, ouve-se imponente e majestoso: é o rugir do “canguçú”. Fimbora quasi todos juntos, como houvesse che- gado antes do Nelson e do Junqueira, fui eu quem formou a linha dos zagaieiros para atirar no animal; approximámo-nos com cautela, indo os zagaieiros cortando e afastando o matto com as proprias za- galas e, assim, conseguimos chegar a uns cinco ou seis metros do local em que se achava a onça e da qual só percebiamos os grandes rosnados e rugidos. Parece impossivel que um animal d'aquelle porte não seja visivel a tão curta distancia, apezar de se estar movendo, mas, tão emmaranhado era o bam- burro em que estava que não era possivel enxergar cousa alguma. Como fazer? O Nelson, vendo-me na linha de fogo, correcta- mente collocou-se um pouco á nossa esquerda, prom- pto para o que succedesse, mas deixando a mim o appetecido tiro; o Junqueira, ao lado do Sr. Jenú, ficou a uns dous metros atraz de mim e, assim pos- tados, tratava-se agora de fazer a féra saltar do lu- gar onde estava para um outro onde fosse visivel. O José Bastos propoz que fossemos “onde estava o bicho”; mas tal proposta era absurda e louca, pois, se onde estavamos a manobra já não era facil, im- possivel mesmo seria entrar no mais sujo do bam- burro. Então, no meio dos rugidos e latidos, um za- galeiro instigou um cão preto, o “Desengano”, fraco e debil, para que, assim provocada para o nosso lado, para nós saltasse essa onça, que não havia dado um passo ante a approximação dos cães. Como nas minhas caçadas de perdiz, em que só engatilho e levo a arma á cara quando a ave já vôa, ahi, embora se tratasse de uma perdiz bem menos Og =. mansa, conservei a minha tres canos na posição ha- bitual e esperei. Que espectaculo imponente então eu assisti! Creio que poderei viver um seculo e não esquecerei a grandiosidade empolgante do que vi. Só uma ba- talha, penso, poderá ser mais emocionante. O valente “Desengano” obedecera á instigação; entretanto, mal havia tentado penetrar no bamburro, que a onça, n'um rugido mais forte, saltára para o nosso lado. Tão violento, tão rapido foi o movimento da féra, que só a vi já de pé, a menos de dous metros de mim, a enorme bocca escancarada, rolando um rosnado rouco, os braços abertos, as garras aguça- das, sublime de belleza e de força. Visando um lngar mortal, o coração, rapido levo a arma á cara; não a havia ainda detonado, porém, quando ouvi um tiro que partira detraz de mim. Fosse porque os nervos não lhe permittissem a calma indispensavel em taes momentos, ou fosse por qualquer outro motivo, imprudentemente, pondo em perigo as nossas vidas, um companheiro havia ati- rado por detraz de nós, e a chumbo. Ao estampido, os zagaieiros partiram sobre a onça; e, felizmente, havia mais de um; porque, o primeiro, tendo pegado a onça muito atraz, junto ao quarto trazeiro, o animal volton-se, e o teria apa- nhado se os outros não o tivessem secundado. Alanceada e mantida por terra por tres fortes za- gaieiros, dous dos quaes renovaram seus golpes mu- dando as zagaias para melhores pontos, a féra lu- ctava com tanta bravura e força que a todos ia arrastando. A onça sob a zagaia enrosca-se toda, descon- junta-se, arredonda-se em contorsões de serpente, escorrega, e, ás vezes, consegue escapar; se algum cão tenta atacal-a, ainda encontra tempo, meios e força para matal-o; e foi isso o que se deu com um — 10 — dos nossos valorosos e fieis amigos. “Rompe”, o mais franzino dos cães, approximou-se da féra, mas pagou caro esse acto de imprudencia: foi degolado de um só golpe. A onça cada vez mais arrastava os zagaieiros para o mais sujo do bamburro, e elles gritavam pelo atirador, pedindo que atirasse na cabeça; approxi- mei-me e detonei a minha arma, por baixo da arti- culação do maxilar direito, em dice à nuca, e foi ibstantaneo o resultado. Apezar de contrariado com a bliadáda do com- panheiro, vinha satisfeito e enthusiasmado com a grandeza da scena a que assistira, velho sonho de caçador cuja realidade de muito ultrapassou o ideal. As onças menos bravas, como a “malha larga” e a mestica d'esta com o canguçú, correm dos cães como, em geral, todos os animaes; trepam na pri- meira arvore que encontram a geito, e, a propria onça canguçú, quando em capão limpo, fóra do seu meio que é o pantanal e o bamburro, tambem sobe e dá acuação no páu; entretanto, estando nos sitios que costuma frequentar, busca o bamburro mais sujo e ahi espera os seus inimigos que, em tal caso, são mui- tas vezes victimas do temivel felino. Contavam-me “o caso de um .estrangeiro ' que, vindo: caçar onça em uma fazenda, insistiu com ofa- zendeiro para que o não fizêsse seguir pelo zagaieiro, pois que era uma desnecessidade; o fazendeiro insis- tiu, acharam a onça, o homem atirou, mas grande fôra o seu espanto. ao vêr o animal morto aos seus pés; pelo zagaieiro... pois que elle havia errado 'o tiro. Eu não aged n'essa historia. Relata- vam-me historias e mostravam-me homens. zagaiel- ros e atiradores, que já haviam sido feridos pela onça acuada; citavam-me outros mortos pelo animal acuado, e eu não podia comprehender. Realmente, só vendo é que se póde fazer ideia do que seja uma onça / * — 11 — acuada no sujo; então comprehende-se tudo... e tem-se mais cautela. | Quem tenha lido as caçadas de féras nos deser- tos africanos, tem sabido como é considerada alta- mente perigosa a perseguição ou procura de um ani- mal que se tenha refugiado “dans les hautes herbes”, isto é, na macéga alta ou, emfim, em lugar em que se o não veja a uma certa distancia; lá, se bem que não haja cães para denunciar a presença do animal, o caçador que se dispõe a arriscar a vida em tal em- presa persegue um animal já ferido, ou com algum membro inutilizado, já enfraquecido, portanto; aqui, muito embora.seja precioso o indispensavel auxiho dos cães (pois não ha rasto de sangue a seguir), nem sempre é possivel prever de onde vae saltar a onça que, ardilosa e ladina, muitas vezes finta de um lado para saltar justamente do opposto. Tudo isso apenas quanto ao risco que se póde correr atacando um ani- mal, aliás em plena posse de suas forças, o que con- stitue a caçada normal, e não a perseguição ou pro- cura a que rarissimamente se arrisca um caçador na África. “Se compararmos as caçadas Africanas e Ásia- ticas com as nossas, concluiremos forçosamente pela supremacia das nossas em belleza e emoção: lá avista-se o animal á distancia, visa-se com 0 tempo e calma e, se hão foi bom ó tiro, ha tempo para re- “petil-o; ao passo que aqui (é claro que me refiro á onça acuada no sujo), se ás vezes não ha tempo de dar um unico tiro, como pensar em repetição? Não só as desvantagens para o nosso caçador são grandes, como a importancia do espectaculo é outra: a féra rugindo enraivecida com o latir dos cães, soltando urros de combate, forte como poucas, agil como ne- nhuma outra, está tão próxima do caçador que de um salto o attingirá; este voltou a frente para o ponto onde partiu o ronco selvagem e, subito, em “ Y% — 112 — local bem diverso, ganiu um cão ferido ou morrendo sob as garras da féra que o desorienta com a sua ignorada mobilidade; a musica imponente que se ouve em tal acuação, a incerteza do ponto em que surgirá a onça, rapida como o relampago, a proxi- midade a que fica o animal, o seu aspecto feroz e sa- nhudo, tudo isso, por certo, ultrapassa, e de muito, a sensação que se possa ter nas tão decantadas ca- çadas africanas e asiaticas, descriptas por tantos exploradores e caçadores de nomeada. Mas, voltamos, com a nossa preciosa onça, para o pouso, conduzindo tambem o valente “Rompe” que ainda vive. Em viagem, soube que um outro tiro ha-. via sido disparado contra a onça, e ao mesmo tempo que o meu; esse tiro, porém, como verificámos depois, apezar de ter sido dado tão proximo que queimára o pello do animal, varára-lhe apenas as bochechas, e de pouco teria valido; fôra o companheiro de José Bastos, o impagavel Piré, sempre de bom humor e a todos fazendo rir, que o havia dado. O resto da tarde foi empregado na trabalhosa operação de tirar e preparar o couro da onça; no entretanto, uma grande surpresa, representando um grande castigo, estava preparada; — ao tirar-se o couro da onça, não encontrámos um unico bago de chumbo do tiro imprudente. Os intricados bamburros e a macéga alta das: margens do Aniáli esfriaram o enthusiasmo da cabo- clada; ciosos de seus cães, elles diziam que “continuar: a caçar all era dar comida ás onças”, o que signi- ficava o grande perigo ou a morte certa destinada á cachorrada, sem falar na nossa preciosa pelle, cousa com que os caboclos se importam menos... Eu tinha muita vontade de continuar a caçada n'aquella zona que, sem duvida, era o “fox” da onca, como dizia seu Jenú; não era possivel, entretanto, negar razão aos homens que não queriam sacrificar — 113 — mais a cachorrada; e assim sendo, resolvemos deixar o pouso no dia seguinte, depois de terminado o tra- balho do couro da onça, o que demanda tempo, pa- ciencia e habilidade. Em geral, tira-se o couro da onça no local em que ella é morta, trazendo com elle a cabeça e as pa- tas, porque, não sendo habitualmente aproveitado o resto, não vale a pena o trabalho de carregar um fardo inutil; nós, porém, como a onça tivesse sido morta proximo á margem do rio, trouxemol-a em uma das canôas, e só no pouso foi feito esse serviço, aliás despido de importancia. A primeira operação para o preparo do couro consiste em disseccar as pa- tas e a cabeça, revirando o couro ao mesmo tempo que é descarnado, e enchendo com capim secco as patas, bem como a cabeça, sendo n'esta conservado o craneo completo. Trata-se, depois, de fazer as cos- turas dos cortes produzidos pelas zagaias, mas, como as onças têm sempre uma espessa camada de gor- dura adherente ao couro, é preciso, antes de proceder á costura, retirar das bordas dos talhos essa gor- dura, ás vezes com mais de pollegada de altura; e é necessario que a costura, além de bastante perfeita para não ser percebida do lado do pello, seja bas- tante forte para supportar o estaqueamento do couro, operação que se segue á da costura. Em todas as fazendas do pantanal de Matto- Grosso existe, pelo menos, um “quadro” para esta- quear couro de onça; e esse quadro consiste em um grande caixilho rectangular, medindo, mais ou me- nos, dous e meio por dous metros, e feito, geral- mente, com quatro “carandás” bem aprumados. E” claro que nós não possuiamos um quadro, mas, depois de procurarmos, em falta de carandá, alguns páus direitos, cortámol-os e construimos o nosso in- dispensavel quadro. Viagens e Caçadas co « — 14 — Antes do estaqueamento, procede-se á furação do couro e, como para as costuras, retira-se, com afiadas facas, toda a gordura junto á orla do mesmo e, em toda essa orla, fazem-se pequenos furos, com intervallo de cerca de dez centimetros, furos que vão permittir a passagem de ganchos, ou do cabo dis ctamente. Uma vez isso feito, amarra-se o couro pela cauda a um dos lados mais estreitos do quadro, e, por um cabo que se prende aos dentes, tesa-se o couro para o outro extremo; amarram-se as patas com cabos curtos, tesam-se as mesmas para os angulos do qua-. dro, e está feita a primeira e menos cacete parte do estaqueamento. Depois, tomando quatro cabos finos e longos, dous para os lados maiores e dous para os menores, fixa-se a extremidade de cada um a cada angulo do quadro, e começa-se a enfiar os cabos nos furos do couro, passal-os por fóra do quadro, reen- fial.os nos furos, e assim até que o couro esteja como que cosido aos lados do quadro; isso feito, molha-se um pouco o couro e tesa-se-o igualmente para os quatro lados, até que fique em condições de ser “ba- ptizado” e “grosado”. Quando o couro chega ao ponto desejado, co- meça a operação mais difficil e delicada, que é a de “orosar”, se não falarmos do “baptismo”, que não é adoptado por todos, pois não é essencial. Esse ba- ptismo, de facto, auxilia bastante a operação que lhe segue, e consiste em dar dous talhos sobre a gordura, um desde o pescoço até a cauda, e outro, perpendi- cular ao primeiro, dividindo-o ao meio e formando cruz, fórma que é a razão do nome de baptismo. Esse baptismo tem a vantagem de permittir grosar o couro sem amontoar a gordura toda nas mães do operador, pois, com a divisão feita pelos talhos, fica ella separada em quatro porções; mas, é de tal modo delicado e perigoso que poucos são aquelles que se — 115 — aventuram a fazel-o; e é facil imaginar a dificuldade de dar esses dous longos talhos, que devem cortar tão sómente a gordura, pois que, se tocarem o couro, de leve que seja, lhe produzirão grandes rasgos, visto estar elle esticado fortemente para todos os lados. Quando o habilissimo Nicoláu, enfiando uma das pernas entre os cabos que estaqueavam o couro e apoiando uma das mãos sobre o quadro, assentou uma faquinha afiada por baixo do pescoço da nossa onça, todos nós trememos; mas, com pericia e fir- meza, invejadas talvez por algum cirurgião de no- meada, de um só golpe deu o grande talho longitu- dinal, sem que de leve molestasse aquelle precioso trophéu. À operação de grosar consta da retirada com- pleta da gordura e exige uma grande habilidade: é á faca que ella é feita e, como se tratasse de fazer a barba, o grosador vae com uma das mãos afastando a gordura e com a outra passando a faca bem junto ao couro, de modo a não deixar gordura alguma; Isso, que só póde ser feito com facas muito afiadas, expõe o couro a ser inutilizado a cada golpe, pois que, como no baptismo, qualquer pequeno talho será logo transformado em enorme rasgão, pela distensão a que está sujeito o couro; e se julgo o baptismo o mais perigoso é porque, ahi, os talhos são dados per- pendicularmente ao plano do couro, ao passo que no grosar inclina-se a faca, tal como se faz com a na- valha para barbear, o que diminue o risco. Depois do couro grosado, novamente molhado e esticado definitivamente, procede-se á lavagem do pello, com agua e sabão, e deixa-se que o sól se in- cumba de seccal-o bastante, tendo o cuidado de ter o quadro o mais verticalmente possivel e com a ca- beça da onça para cima. Se ha veneno na cccasião, faz-se o envenena- mento, e, se não ha, trata-se de envenenar o mais A is depressa possivel, sem o que, devido à maldita “pu- nilha”, estará o couro sem pello, em pouco tempo. No dia seguinte ao que matámos a nossa onça, Nicoláu teve occasião de mostrar, ainda uma vez, suas pericias atavicas executando, com extrema per- feição, todas as operações que acabámos de mencio- nar, e, hoje, quem olhar para esse couro não será capaz de suppôr que elle tem costura alguma, embora sejam ellas varias e de bom tamanho. Chegára a hora de deixarmos o Anidli, e o nosso pouso do Aquidauana, afim de voltarmos ao Miranda e subirmos outros rios; e, como já fosse epocha da caçada de garcas, José Bastos e seu companheiro Piré ahi se separariam de nós para retomar o Aniáli, mternar-se pelos pantanaes, descobrir os “viveiros” de garças, e, emfim, na pequena chalana que a photo- graphia mostra, com quatro cães, reduzidissima ba- gagem, sem uma barraca ou outro abrigo qualquer, ficar como ficaram, para, durante tres mezes de pri- vações, soffrimentos e riscos, conseguir um ou dous kilos de “aigrettes”. Quanta cabeça vazia vae utilizar sacrificio ta- manho... Fistou começando a achar (quando não compro, está claro) que as “aigrettes” custam muito pouco dinheiro... Partimos; aos trancos pelos barrancos das vol- tas estreitas do rio correntoso, conseguimos chegar: ao Miranda e, descendo um pouco mais, aportâmos ao já conhecido retiro do “Alegre”, onde não faltou o leite na manhã seguinte, Tratava-se agora de descer o rio Miranda, até o rio Negrinho, onde deveriamos reencetar as nossas caçadas; José Bastos, porém, que nos havia trazido como pratico, ficára no Aiáli. Como fazer? Já disse que estou convencido de que os bugres têm mais um sentido além dos cinco de todos nós: Nicoláu viera comnosco, e esse homem extraordinario, que havia A || o ge subido o Miranda pela primeira vez, e que, portanto, deveria conhecel-o tanto quanto qualquer de nós, to- mou a direcção da lancha e veio como pratico! Sob a direcção de Nicolán, deixámos o Alegre, descemos o Miranda, e fomos ao rio Negrinho; a exploração, porém, d'esse rio, onde diziam existir tantas onças, deu resultado negativo, pois nem rasto velho encontrámos. Deixámol-o n'esse mesmo dia, e, graças ainda a Nicoláu, fomos dormir na foz do rio Vermelho, rio que deveriamos subir no dia seguinte, em canõa, e dispostos a pousar. Dizia-se que a ca- cada ahi era certa. Com essas disposições, ao romper do dia, subi- mos o rio de justificado nome; se o chamassem rio do peixe tambem o fariam com muita propriedade, pois é tal a quantidade de peixe nesse rio que, mais de uma vez, acordei com o barulho feito por elles, embora tivessemos dormido essa nonte em barranca alta. Subimos muito o rio, e só fomos encontrando vestigios de caçadores, presença que já nos havia sido denunciada pelos ranchos, aliás hem feitos, que encontrámos na foz; e foi em vão que buscâmos o precioso rasto de um macharrão que houvesse recen- temente visitado as margens do rio, ou os capões. Longe, deparou-se-nos rasto muito velho; o desanimo foi grande; desistimos de pousar por all, sem uti- lidade, e, regressando á lancha, voltámos ao Miranda e por elle descemos. Tinhamos de atravessar o passo onde haviamos encalhado, na subida, durante mais de tres horas, e, apezar das habilidades de Nicoláu, estavamos todos anciosos pela sorte que nos aguardava; felizmente, ao enfrentarmos o estirão, vimos uma lancha, das que navegam para Miranda e Aquidauana, que, já tendo atravessado o passo, trabalhava para que ou- tro tanto fizesse uma chata que trazia. — 118 — Às vezes, é preciso retirar todo o carregamento d'essas chatas, leval-o para a barranca, fazer passar a chata e tornar a carregal-a, e isso em alguns pas- sos; d'esta vez, porém, com o auxilio de um cabo de arame passado no guincho da chata e o esforço de uns vinte homens, alguns de varas ao peito e outros que, despidos, saltaram á agua para empurral-a, a chata conseguiu atravessar e deixar-nos livre o ca- minho. Enfrentámol-o por nossa vez, mas, como já es- tivesse elle escavado pela chata e ainda tivessemos tido a precaução de sondal-o, atravessámos bem esse “passo... indo encalhar mais adeante... Com cerca de meia hora de trabalho estavamos livres e conti- nuámos a descer o rio, até que, ás 8 horas da noute, o sagaz Nicoláu, na maior escuridão, descobriu o pouso que procuravamos e que ninguem mais acharia. Cêdo deixámos esse pouso; mais tarde entrámos no Paraguay, e, na foz do Aboboral, deixámos com saudades os tres ultimos companheiros, que só no outro dia chegariam á casa; continuámos a viagem e ás 10 e meia da noute, recolhiamos á casa... para projectar outra caçada. Isso que começou como carta, a 7 d'este, Já d'isso perdeu o feitio; tem sido escripta aos pouquinhos, e se hoje termino é graças á temperatura que desceu a vinte gráos. Adeus e arde «então voltavamos carregados de caça Navegando com um motor de 6 bois... não sei de quantos cavallos... = pia PTE MP 88 ss = CAPITULO IX Marrecas e jacarés — Terceira caçada de onças. Chegára novamente o tempo em que o pantanal, em frente ao Ladario, offerecia ao caçador uma excellente occasião para o tiro ao vôo, e, como agora já fosse conhecedor do terreno e tivesse o Nelson como bom companheiro, muitas foram as vezes que perseguimos os irerês e marrecas. Bem cêdo, antes de clarear o dia, com algum alimento nas nossas bol- sas de caça e dispostos a ter agua até a cintura, atravessavamos o rio envoltos em nuvens de mos- quitos; mas, felizmente, d'elles immunes graças ao oleo com que nos besutavamos, saltavamos na outra margem e, sem fazermos grande caminhada, logo começavamos o tiroteio cerrado nos bandos de ire- rês. Ás vezes, como tardassem a apparecer esses irrequietos animaes, davamos a esmo um tiro, e era quanto bastava para que o campo se cobrisse de uma nuvem de azas; os bandos cruzavam-se e, se a sorte permittia que passassem ao alcance das nossas ar- mas, então voltavamos carregados de caça. Certa vez, encostado a um espinheiro que emergia do pan- tanal e disfarçando o meu vulto ao olhar arguto dos atilados irerês, tive a felicidade de ver um bando de patos bravos que voavam ao meu encontro, e, tão bem escondido estava que, apezar da proverbial desconfiança d'esses animaes, pousaram elles á pe- q“ — 120 — quena distancia de mim; como não os avistasse, mar- chei na direcção em que deveriam estar e, como levantassem elles o vôo, isso permittiu que abatesse dous bellos exemplares. Emquanto cruzavamos o pantanal á cata de um bom ponto, ou na intenção de fazer levantar as mar- recas e irerês, os jacarés, que ahi são abundantes, nos proporcionavam concertos pouco harmonicos com seus roncos de fanfarrões. Não raro era que, de junto a nós, um d'esses feios saurios se escapasse espadanando a agua e roncando, mas, ou porque tivessemos sorte, ou porque fossem tas bichos ar- mados de fortes dentes e coragem fraca, o caso é que, apezar dos constantes encontros, nunca tive- mos uma recepção propriamente hostil por parte d'aquelles habitantes do pantanal. Era tal a abundancia de caça n'esse local, que, coricacas, carões e frangos d'agua, que por centenas se contavam a facil alcance das nossas armas, não mereciam os nossos tiros; mas, por divertido e bom que fosse esse genero de caçada, o nosso pensamento estava sempre nas onças, e anceavamos por novos encontros. O pantanal de Matto-Grosso é o paraiso dos caçadores. Depois da caçada do rio Amiáli, isto é, depois de ter visto o que era uma caçada de onça acuada no chão, o meu enthusiasmo por esse sport redobrou, diminuindo, em consequencia, o que tinha por outras caçadas; assim sendo, tão depressa quanto me: foi possivel, um mez depois partia á procura de repro- ducção de scenas tão empolgantes e arrebatadoras. — 121 — Na tarde de 4 de Junho de 1914, eu e o meu amigo Nelson de Mello, embarcavamos em uma lan- cha que ia buscar bois ao Formigueiro, porto da Fa- zenda das Palmeiras, e, em companhia do adminis- trador d'essa fazenda, o Sr. Gomes CGuahyba, com quem fizera bôas relações, quando cacei com Roose- velt, descemos o rio Paraguay e, à tardinha, chega- vamos ao porto de Formigueiro. Ahi encontrámos os filhos do fazendeiro, Commandante Alves de Barros, já nossos conhecidos e camaradas, que, com toda a peonada da vasta fazenda, haviam trazido a ultima “ponta” de gado que esse anno era desti- nada ás xarqueadas e que se compunha de quinhen- tas cabeças. O dia seguinte era um domingo; mas, apezar d'isso, cêdo começou o embarque do gado, serviço que, embora brutal e fatigante, é para os peães um divertimento como o são os de marcar e outros. Assistimos ao embarque de trezentas e oitenta ca- beças, e era esse o final de um penoso serviço que começára em Fevereiro ou Março e consistira na entrega de milhares de bois. “Apezar da renovação da tropa, os cavallos es- tavam tão fatigados que, conduzindo essa ultima ponta, só chegaram tres pessõas montadas, entre mais de quinze empregadas em tal trabalho; já os animaes vinham afrouxando pelo caminho, e os peães, deixando os arreios no melhor lugar que en- contravam, vinham a pé tocando o gado atravez do pantanal. Realmente, só quem já viu o terreno em que trabalham esses animaes póde avaliar do esforço que elles precisam empregar; são enormes extensões de pantanal a atravessar, onde o nivel das aguas tem os maiores caprichos, e tão depressa o animal tem agua pelo joelho como é forçado a nadar ou des- envencilhar-se de um atoleiro. Addicione-se a isso o pouco tempo de repouso, e o campo como unico alimento, e têm-se sobejas razões para ver os ca- vallos deixando a pé os cavalleiros. O Dr. João e o Mario (os filhos do fazendeiro) partiram n'esse dia acompanhando o gado, e nós, Já impacientes pelo inicio da caçada, esperámos a madrugada proxima para seguir em demanda da casa da fazenda, distante d'ahi pouco mais de sete leguas, e onde seria o nosso quartel-general. No Formigueiro, á margem do Paraguay, lugar sempre muito alagado, é raro que se encontre onça; isso não quer dizer que ellas ahi não façam das suas, e, ainda na vespera da nossa chegada havia uma d'essas atrevidas féras morto um jumento, á pe- quena distancia da casa; sem cães, porém, não era possivel tentar vingar o jumento, ou melhor, o seu proprietario, que o havia comprado, dias antes, por 200000. Cêdo, protegidos pelos nossos mosquiteiros, já estavamos deitados em nossas rêdes, pois que deve- riamos partir, ás 2 horas da madrugada, em uma grande canôa (batelão), que navegaria a remos e a varas, conforme o fundo. Mas o extraordinario é que os peães, que deveriam trabalhar n'esses remos ou n'essas varas, que haviam feito durante o dia o serviço fatigante de laçar, apartar e embarcar o gado, esses, em vez de irem deitar-se como nós, fica- ram a noute inteira a tocar viola e sanfona (gaita), como se o somno e a fadiga não tivessem acção so- bre elles. De facto, é extraordinario como essa gente passa, facilmente, sem sacrificio, muitas vezes volun- tariamente, como no caso presente, sem dormir, bem como sem comer! Em compensação, essa mesma gente é capaz de dormir um dia inteiro e de comer de modo incrivel; e para julgar melhor da capaci- dade d'esses estomagos privilegiados, basta dizer que, trazendo a ponta de gado a que me referi, dez bi jo peães, no porto do Riozinho, churrasquearam e co- meram, em uma noute, dous capados!... Ás 2 horas da madrugada, emfim, largava o nosso batelão, Paraguay abaixo, guarnecido - por quatro homens. Momentos antes da partida, quando juntavamos a pequena bagagem para fazel-a embar- car no batelão, senii, ao apanhar os meus alforges, que tinham elles, em certo ponto, como que uma ca- mada de terra; apanhei uma lanterna e verifiquei que o cupim, em menos de uma noute, tinha feito o seu tunel de terra ao longo dos alforges e n'elles peneirado em grande numero. Nunca eu tinha ou- vido narrar um facto que me autorizasse a imaginar tão grande actividade por parte de tão nocivos in- sectos; felizmente, porém, descobri-os a tempo e não me deram prejuizo maior que o da nova arrumação dos alforges. Cerca de duas horas depois da partida toma- vamos um braço de rio, que tem o nome de “Negri- nho”, e depois, por corichos e campos alagados, che- gámos ao “Taquary Velho”, ou Riozinho, atraves- sado o qual chegámos, pouco depois das 8 da manhã, ao porto desse nome, o mesmo ao que aportára com o “Nyoac”, em Dezembro de 1913, em companhia de Roosevelt. O chimarrão augmentára a fome que era grande, e foi com essa disposição que nos acocorá- mos em torno do churrasco, cujo espeto ficou des- pido em pouco tempo. Logo depois chegavam á outra margem os peães que haviamos deixado no Formigueiro e que, chefiados pelo Faustino, vinham atravez de corichos e pantanaes, arrebanhando arreios e os animaes que tinham afrouxado. Os peães em canôa, e os animaes a nado, atraves- saram o rio, e todo o grupo se achou reunido no porto do Riozinho, onde já haviamos encontrado o — 12d — carreiro e duas “saias”, como diziam os peães, é que eram duas companheiras de dous d'entre elles. Deveriamos seguir para o retiro de Tarumã para d'ahi ganharmos a casa da fazenda, a tres le- guas mais; era forçoso fazer essa volta devido à cheia dos pantanaes, e trilhariamos, assim, caminho diverso d'aquelle que fizemos em companhia de Roo- sevelt, mais recto e mais curto, e que deixava Ta- rumã á direita. Ainda assim, até cerca de meia Je- gua de distancia havia muita agua, e o carro de hois não podia vir tomar a bagagem que estava no ba- telão. Organizou-se então uma navegação origina- lissima, que consistia em fazer rebocar o batelão por quatro juntas de bois, até o lugar em que estava o carro. Tudo estaria muito bom havendo agua. para o batelão, mas, entre a margem do rio e o pantanal, existia uma lombada de barranco com cerca de cento e cincoenta metros de extensão e perfeitamente a secco. Não discutimos o caso; atrelou-se a boiada ao pesado batelão e, sem grandes trabalhos, vimol-o, em breve, navegando gualhardamente em secco, e utilizando esse motor de nova especie em navega- ção: — o bol. Transposta a terra firme, o batelão deslison suavemente para o seu elemento e, d'ahi por deante, até attingirmos o carro, tão suave quão pittoresca foi a navegação. Arreiados que foram os nossos ani- maes, descalçámos as botas e montámos a cavallo. Poderá parecer que devessemos fazer o contrario, isto é, calçar as botas para montar, como fazem to- dos: mas seria errado no caso presente. Havia muita agua a atravessar e, se não tomassemos essa provi- dencia, ou teriamos de molhar as botas e os pés, ou seriamos forçados a penoso exercicio de acrobacia, ajoelhando-nos sobre os arreios, e que seria dema- siado fatigante em tão grande distancia. set (Pop Como sómente o Paraguay estivesse cheio, á proporção que nos iamos afastando d'esse rio o ter- reno apparecia menos alagadiço; os cães já podiam correr, os cavallos caminhavam melhor e a caça já se mostrava aqui e alli. Patos, tuyúyús e tabuyayás surgiam por todos os lados e voavam em todas as direcções; os cães correram e apanharam um lobi- nho; as manadas de porcos já se mostravam á dis- tancia. Pouco antes de chegarmos a Tarumã, como um gordo capado não estivesse muito longe e nos ti- vesse despertado o appettite para um churrasco, o Nelson apeou-se e, approximando-se a uns oitenta metros, fez partir a bala da sua tres canos que, com grande magua para nossos estomagos, não attingiu o alvo, que, n'esse caso, era preto. Ás 4 horas da tarde, chegámos ao retiro de Ta- rumã, em cujo rancho acampámos; desencilhámos os animaes, esperámos o carro de bois, que não tardou, tomámos banho e matteámos. Um dos peães, tendo salvo a situação de nossos estomagos, compromettida pelo Nelson, trouxe á ga- rupa um gordo capado. Anouteceu, e, tendo como “plafonnier” as bellas estrellas engastadas ao azul puro e profundo, sem outra luz, com a satisfação que communica a singeleza dos campos e com a fome que desperta o seu ar leve e o exercicio, fizemos honra ao delicioso churrasco de porco. Os peães tocaram e cantaram e, depois de lhes termos feito um pouco de companhia, deitâmo-nos e dormimos até a manhã de 7. Cêdo, partimos para a casa da fazenda; as ara- ras perseguiam-nos com a gritaria do costume; ban- dos de perequitos de todas as especies voltijeavam e entravam no concerto; os porcos mostravam-se em maior numero, e tanto nos tentaram que eu atirei n'um cachaço, o Nelson atirou n'ontro... e ambos — 126 — errámos os tiros. Um cervo passou em disparada, deixando-nos agua na bocca; uma ema, arisca como sempre, correu, a mais de um kilometro de nós, como se estivesse perseguida de perto; e, emfim, como de- sejassemos porco para o jantar, approximámo-nos cautelosamente de uma bôa manada, mas tanto se discutiu qual era o porco mais gordo e no qual eu deveria atirar, que a porcada correu, só ficando o cachaço, que não teme caretas. A” vista do insuc- cesso, o (Gomes, que não havia apeado, disparou atraz da porcada e, algum tempo depois, voltava com uma porca... a reboque. Durante esse tempo, um leitãozinho, que se perdera da manada e foi apa- nhado por nós, soffreu, pelas mãos de Nelson, a ope- ração que concorrerá para o seu futuro engorde e consequente desprezo das porcas faceiras... O cachaço, apezar de tedo esse barulho, não se afastou de nós, e, como não tivesse atacado, deixei-o em paz n'este mundo, com vivos protestos do Go- mes, que não os poupa e que já tem levado mais de uma quéda devido acs buracos que esses animaes fazem nos campos. Continnámos a viagem e, por cerca de 2 horas da tarde, tendo supportado um calor exhaustivo, chegámos ao quartel-general de onde deveriamos di- rigir as nossas operações contra as onças. De Tarumã haviamos enviado um proprio a um fazendeiro do rio Taquary, nosso amigo Janjão de Barros, pedindo que viesse com seus cães onceiros ajudar-nos na caçada, pois são os cães mais afa- mados na região dos pantanaes de Matto-Grosso. Como até a manhã de 8 não houvesse noticia do amigo Janjão nem de seus cães, já um pouco tarde, sahimos, eu, o Nelson e dois camaradas, á procura de cervos. | | Em vão cavalgámos durante longas horas por pantanaes immensos á busca de um cervo, animal Guayba, no retiro de Tarumã Gomes O nosso amigo É 1ras da fazenda das Palme A hospitaleira casa Na beira de um coricho eg — 127 — que, de resto, existe em abundancia nas Palmeiras. Já tarde e com fome, regressámos e, como quizesse algumas pennas de arara azul, facil nos foi matar oito d'ellas, deixando maior numero ainda a gritar no mesmo local em que haviamos morto as outras. Emquanto campeavamos cervos, encontrámos dous catingueiros, ambos os quaes escaparam ás nossas balas; encontrámos patos bravos em grandes lotes, mas, como tivessemos deixado para a volta essa ca- cada, succedeu que, ao tornarmos, já os patos esta- vam na “sésta”, e ficámos sem elles. A” nonute, chegou um dos filhos do amigo Jan- jão, trazendo os dous cachorros mestres, “Visconde” e “Mestrinho”, aquelle com 14 annos, e este descen- dente do primeiro e mestre como elle. Na viagem de S. Francisco (fazenda do Janjão) para as Pal- meiras, esses cães haviam feito trepar uma onça parda; mas, como seu Chico (o filho do Janjão) só tivesse um revólver, e o “proprio”, que lá fôra, ape- nas uma faca, aquelle atirou de revólver, mas, tendo errado, a onça desceu e, como já anoutecia, tiraram os cães e continuaram a viagem. 1 Como os cães tivessem caminhado sete leguas, resolvemos deixal-os repousar e, no dia seguinte, 9, cêdo, partimos novamente á procura de cervos; e não haviamos cavalgado meia legua quando vimos uma ariranha em um alagado, onde, segundo o ha- bito d'esses animaes, de instante a instante, punha fóra d'agua a cabeça e um terço do corpo. Apeei e, escondendo-me o mais que era possivel, approxi- mei-me do animal e, n'um dos momentos em que elle emergia, disparei a minha tres canos. O meu intuito tinha sido atirar á bala, mas, com grande surpresa minha, fizera partir o cano direito, em que havia um cartucho de chumbo fino destinado às aracuãs... A ariranha mergulhou para não mais emergir, e, co aiogo e bem por minha culpa, ficámos privados de uma bo- nita pelle. Ao cabo de algum tempo, como chegassemos até a beira de um riacho, aproveitámos os jacarés, que ahi se mostravam em grande numero, para exercitar as nossas pontarias, e offerecemos nove d'estes ani- maes ao banquete dos urubús. . Ora a trote, ora a passo, caminhando sempre e examinando campos e banhados, para descobrir a galhada de um cervo, avistámos dous enormes ca- chaços solitarios; approximámo-nos, apeámos e o Nelson atirou no maior d'elles, um cachaço meio ruço, mas ambos correram após o tiro; o alvejado, . porém, não podia acompanhar o outro, e isso nos indicava “avaria nas machinas”. Visando o coração, atirei por meu turno; o Nelson atirou de novo, mas, não obstante o bombardeio, o animal não cahia; os camaradas insistiam para que montassemos e asse- veravam que o cachaço ia atacar-nos (1), mas, ao envez d'isso, elle seguiu a trote e foi esconder-se atraz de um pequeno accidente de terreno onde a macéga era mais alta. Montei a cavallo e, com a ma- xima cautela, caminhei à procura do animal ferido. Ao avistarmo-nos, o resistente bicho sentou-se e fixou-me com firmeza; a custo contive o cavallo em tranquillidade bastante para deixar-me atirar e, isso mais ou menos conseguido, alojei uma bala na ca-. beça do cachaço que, d'esta vez (não era sem tempo), cahiu por terra. | Examinando o animal, vimos que as quatro ba- las o haviam ferido, sendo uma no meio do corpo, duas na paleta e a ultima na cabeça. Parece incrivel (1) Os cachaços atacam mesmo sem que estejam feridos, e cavallos e homens já têm sido victimas de seus fortes dentes. Em Tarúmã vimos um velho entrevado em consequencia do ataque de um cachaço. cu 120. — a resistencia d'esse animal, bem como é de notar a extraordinaria espessura do couro na altura da pa- leta, espessura que não póde andar longe de um cen- timetro. Não tinhamos andado cincoenta metros, e os urubús já pcusavam para o festim: aqui, os corvos seguem os caçadores pelo campo e, tal como referem os caçadores d'Africa, mal se deixam os despojos de um animal e logo um bando de corvos precipita- se esfaimado. | Continuámos a caminhada, ora montados natu- ralmente, ora ajoelhados sobre os arreios afim de atravessármos corichos e banhados mais profundos, até que, muito longe, a um kilometro talvez, avis- támos o desejado cervo, mas em pessimas condições para approximarmo-nos d'elle. Do nosso lado, a ma- céga, embora um pouco mais baixa, poderia enco- brir-nos abaixados ou caminhando EE quatro, mas, entre o limite d'essa macéga protectora e o cervo, havia uma extensão, com cerca de duzentos metros, cobertas apenas de relva rasteira e onde ficariamos inteiramente á mostra. Avançámos na direcção do cervo, a principio de quatro e depois de rasto, até que attingimos a zona descoberta; o cervo pastava para além da orla d'essa zona, apresentando-nos a parte. posterior, e, com justa impaciencia tivemos de esperar que a nossa victima se apresentasse em po- sição mais decorosa. A demora não foi grande. e, como eu desejava que o Nelson atirasse, instiguei-o a isso e elle o fez, apezar dos seus vivos protestos contra a grande distancia. Tal como succedeu commigo ao atirar na eo ranha, o nosso amigo Nelson fez partir um tiro de chumbo, á vista do que, ambos nós, fizemos disparar os canos de bala visando a: paleta do cervo, e este partiu galopando em tres pernas, percebendo-se que Viagens e Caçadas 9 duos JO == havia parado perto de uma grande figueira que ficava á pouca distancia. Corremos para os cavallos, montámos e parti- mos a galope, indignados com a existencia de um ba- nhado que nos obrigava a fazer uma não pequena volta. O Nelson, por mais que eu chamasse, tomou uma direcção má e passou adeante de onde havia ficado o cervo, e eu, apeando-me precipitadamente, approximei-me da figueira e logo deparei com o ga- lheiro, deitado sobre as patas, a cabeça bem erguida, a uns sessenta metros de mim: visei a cabeça, o tiro partiu... e o cervo não se moveu; e até hoje per- gunto a mim mesmo como foi que errei; mas o caso é que errei e bem errado. O Nelson acudiu ao meu tiro; fui ao seu encontro e, levando-o ao local de onde eu havia atirado, mostrei-lhe o cervo que, com o tiro do nosso amigo, foi d'esta vez pastar no campo azul lá de cima. As facas sahiram das bainhas e tratámos logo de retirar o couro e a cabeça da nossa presa, que havia recebido tres balas, sendo duas na paleta, e uma, a ultima, no pescoço. Terminado o serviço e engarupado o couro, montámos e seguimos rumo de casa. Eu tinha esgotado a minha munição de bala; o Nelson possúia um unico tiro e, como n'essas con- dicõer é que, de ordinario, se encontra a caça. em cuja perseguição se perdem dias, presentia que, de um momento para outro, encontrariamos cervos ou, quem sabe, talvez alguma appetecida onça. De volta para casa, a caça meuda e destinada 4 cozinha não era desprezada, e foi assim que, de um tiro, matei um casal de patos bravos. Pouco adeante encontrámos um cervo; o Nelson apeou-se e tratou de approximar-se, ficando eu como espectador, visto estar fóra de combate, com os paióes vazios. Ainda d'esta vez, o Nelson enganou-se e fez partir o cano e o direito, que estava carregado com bala, mas que não tinha a precisão necessaria para um tiro á distancia, e, como tivessemos podido verificar que se tratava de uma côrça, alegrámo-nos com o insuecesso e dei- xámol-a em paz. Continuando o regresso, matámos ainda algumas aracuás e jacutingas, chegando á fa- zenda com uma caminhada de nove horas, com uma bella caçada, e muita fome. O dia seguinte era destinado á rainha das ca- cadas, a qual considero a primeira, não só entre as do Brasil como entre as melhores e mais arriscadas do mundo; as zagaias tinham sido cuidadosamente examinadas e afiadas, os cães tinham descansado, e só faltava que Santo Huberto nos favorecesse. Cêdo já estavamos a cavallo, d'esta vez acom- panhados pelo amigo Gomes Guahyba, dois zagaiei- ros e um camarada. Pouco depois de deixarmos a casa, como tivessemos de atravessar um banhado profundo, ajoelhei-me, como de costume, sobre os arreios; havia, porém, muitas plantas aquaticas que se enleavam nas pernas dos animaes, e o meu ca- vallo, que não era dos mais fortes, embaraçou as mãos e cahiu. Rapidamente, desci as pernas, reto- mando a posição normal, para evitar cahir eu tam- bem, e com isso tive agua até acima dos joelhos, « indignação contra o pobre cavallo, muito acima da razão. Essa indignação não durou muito, porque, poucos instantes depois, tendo os cães (os dous mes- tres iam presos) corrido e acuado em um lugar muito proprio para onça, apeámo-nos e acudimos á acua- ção; apenas, como para chegar até aos cães, fosse preciso atravessar um banhado e dous corichos com agua pela cintura, rapidamente foi esquecido o mo- lho a que me forçára o cavallo. Os cães tinham corrido e acuado uma anta, cujo rasto fresco vimos junto de rasto velho de onça. Ra Não sei como os cães largaram a acuação, o caso é que, bem ensopados e desapontados, tivemos de reatravessar os banhados e corichos e continuar a jornada. Atravessámos innumeros banhados e corichos, uns com agua pela barriga dos cavallos e outros quasi dando nado, levando-nos o Gomes a um dos menos frequentados recantos da fazenda, ao qual, segundo elle dizia, nunca pessõa alguma se arriscava sózinha, e muito menos sem arma de fogo, pois que all era “ninho de onca”. Apezar disso, a sombra já havia passado por baixo dos cavallos, o calor crescia, e as probabilidades de exito diminuiam; con-- tinuámos a caçada, mas já procurando rumo da casa, que estava a bôas duas leguas e, n'esse perambular pelos campos, chegámos a um coricho que era for- coso atravessar e que, por muito cheio que estava, só a nado poderia ser transposto. Já tinha navegado em secco e em batelão pu- xado a bois, ia agora, pela primeira vez, navegar a cavallo. O coricho era bastante largo (uns cincoenta metros talvez) e, como era mistér aprender, deixei que dons dos companheiros passassem antes de mim, suspendi bem alto, na mão direita, a espingarda e o relogio na previsão de um aceidente, afrouxei as rédeas do “matungo” e metti-lhe as esporas. Que sensação agradavel! Posifivamente é o melhor de: todos os systemas de navegação: não ha trepidação; não se sente fedor de graxa, nem de gasolina, não ha carvão pela chaminé, o cavallo não joga, uma de- licia emfim. Logo que o animal passa de cavallo a navio, isto é, logo que deixa de tomar pé, afunda um pouco e parece que vae mergulhar, a agua sobe até a cintura do cavalleiro, mas, em seguida, o animal vem um pouco mais á superficie e deslisa suavemente como não faz o melhor hydroplano. Essas-embarca- ções, porém, têm um defeito grave: -de quando em ago — vez vão a pique, mesmo. sem. agua aberta no cos- tado... € Felizmente, o meu cavall era um bom navio, e valentemente atravessou aquelle tempestuoso oceano. Assim, chegámos do outro lado a salva- mento, encharcados, e dando eu gracas a Deus em usar cartuchos de metal.. Sem mais incidentes Ee ou terrestres, ga- nhámos a casa da fazenda sem termos conseguido descobrir o que nos havia trazido a essas paragens. Haviamos morto uns catetús acuados pelos cães; mas, aqui se dá tão pouca importancia a esse bichi- nho, que nem se usa arma de fogo para matal-o, nem mesmo se lhe aproveita a carne, aliás saborosa. No dia seguinte, 11, era sabbado; havia, por- tanto, uma semana que deixaramos o Ladario, e as onças ainda estavam no tinteiro; esforcemo-nos por tiral-as. | Ao amanhecer d'esse dia já estavamos a cavallo e com a mesma organização da vespera: além do “Visconde” e do “Mestrinho”, todos os cães da fa- zenda figuravam na matilha, inclusive dous cãezi- nhos, — um que deveria ser tetraneto de Basset, e outro descendente de Foxterrier em igual distancia. Eu e o Gomes cavalgámos na frente, e, não nos ti- nhamos afastado uma legua da fazenda, quando, pa- receu-me ver rasto fresco de onça. O capim não dei- “xava perceber o rasto com bastante nitidez, e o Gomes e mais não sei quem acharam que não era rasto; mas, quando “Mestrinho”, que vinha preso, passou perto do local em questão, farejou, levantou o nariz e “falou” (latiu dando rasto). Havia perto um capão de matto para o qual a cachorrada se dirigin; soltâmos os dous mestres, e “dentro em pouco “fervia” a acuação... de um cá- 134; — chaço, no meio de um acuryzal (1) alto; eu e o Nel- son nos apeámos, e o Gomes, montado n'um burro, acompanhou-nos pelo acuryzal a dentro para assis- tirmos a acuação, cujo barulho era grande. Tendo notado desde a vespera um certo enfra- quecimento nas molas recuperadoras da minha es- pingarda, resolvi mantel-a descarregada, só prepa- rando-a quando tivesse de acudir á acuação de onça; assim, pois, apenas de facão em punho, por causa das duvidas, approximei-me da acuação. Logo de- pois chegou o Nelson e, por troça, disse-lhe que fosse atirar no cachaço, pois que os zagaieiros o estavam esperando; o nosso amigo enfrentou o bicho, de arma prompta, mas, como alguns cães estivessem de permeio impedindo o tiro, esse não pôde ser imme- diato. Subito, vejo uma nuvem de poeira, o Gomes grita e procura afastar o burro, e eu, refugiando-me atraz de um acury, aponto, em vez de espingarda, o facão para o lado da carga; o cachaço passou por Junto do meu protector acury como uma flecha, gra- cas a cachorrada que o seguia acochando, mas, o nosso amigo Nelson só livrou-se dos fortes dentes do bicho gracas á presteza e á agilidade com que saltou para o lado, salto que seria ainda maior se não tivesse sido interrompido por um importuno acury, sobre o qual foi bater em cheio com as costas. De facto, o atrevido cachaço havia partido sobre o Nelson, depois sobre o Gomes, e depois sobre mim, naturalmente porque estavamos quasi de enfiada; comtudo, fosse como fosse, e embora dessemos bôas gargalhadas depois do caso passado, o que é fóra de duvida é que nos livrámos de bôa. Sahindo do (1) Acuryzal — matta de acurys. Acury — palmeira basta, de pequena altura e grandes folhas, como as que 'se vêem em algumas das photographias adeante. — 135 — acuryzal e atravessando um pequeno campo, o ca- chaço, perseguido pelos cães, entrou em outro capão onde os zagaieiros o seguiram, afim de matal.o. Eu e o Nelson buscámos as nossas montadas e, como ouvissemos, para o lado do campo, um gra- nhido fino e a acuação de um cão só, sendo isso mais ou menos no caminho que deveriamos seguir, fomos até lá e assistimos a uma scena das mais engraça- das: um leitãozinho, com menos de um mez de nas- cido, apezar de ferido, fazia frente a um dos peque- nos cães que nos haviam acompanhado e, a despeito da sua Juventude e do sen tamanho, era tão impe- tuoso no ataque que o cãozinho recuava. Divert- mo-nos um peuco com o pirralho enfurecido, e. como chegasse o Gomes, demos liberdade ao valente porquinho e seguimes para o capão em que os za- galeiros acabavam de matar o cachaço atrevido. Mal tinhamos chegado á orla d'esse capão, e anda um dos zagaieiros não tinha sahido para o campo, quando ouvimos uma acuação: o velho mes- tre “Visconde” vinha acudindo, demos mais alguns passos, e um dos zagaieiros gritou: “é o macharrão, seu Commandante”, —e a féra, como para confirmar a phrase, soberbamente rugiu. Que sensação indizivel! Que emocionante mo- mento! A ninguem é dado prever o que se vae pas- sar, um mixto de alegria e preoecupação nos em- polga, e ao prazer de saber que vamos enfrentar o inimigo que buscamos mistura-se a certeza de que a scena póde tornar-se das mais patheticas. Apeámo-nos, preparámos as nossas armas com o seu melhor, e, como fosse eu quem devesse atirar, formei na linha de frente entre os dous zagaieiros; o Gomes e o Nelson vinham logo em seguida, e um camarada fechava a retaguarda; abeirámo-nos da orla do capão, no ponto mais proximo da acuação, -e, com o coração apertado, o espirito tenso, cautelo- a — 136 — samente afastando as folhas de acury e os galhos de arvore, fomo-nos approximando | d'aquella musica sem par. Um dos zagaieiros já nos havia afirmado que a onça era mansa e, agora, já percebiamos que ella “estava trepada, ccmo elle previra; as cautelas não foram menores por causa d'isso, não só porque, ás vezes, ha engano nas previsões, como porque, outras vezes, a onça desce de repente e não ha que fiar. A distancia a percorrer foi muito pequena, e o mesmo zagaieiro, apontando para cima, exclamou: “está all ella, Commandante”; eu nada via, mas, afastando-me um pouco, divulguei o animal, que nos apresentava a anca esquerda; demos alguns passos | -mais e, oh espectaculo magnifico! deparámos com um enorme macharrão, soberbo de belleza e de força, fitando do alto a cachorrada que lhe entoava um-en- +thusiastico hymno de victoria. - O possante animal havia trepado bem uns seis metros por uma arvore acima e, de lá, abracando um galho e como que sentado contra um outro menor, fazendo ouvir um ronco soturno e muito baixo, com os labios contrahidos e mostrando as enormes pre- sas, movia com lentidão e altivez a colossal cabeça, ora olhando para os cães e ora para nós. Que quadro admiravel e que felizes encantos para um caçador! Logo que avistei bem o animal, a despeito da belleza do quadro, quiz atirar; os zagaieiros, porém, pediram-me que esperasse, pois iam Jimpar “um “pouco o terreno, affm de poderem trabalhar livre- mernite, se isso fosse necessario; e, como tivesse n'isso tanto interesse quanto elles, aguardei ancioso é im- paciente a operação, sem, comtudo, abandonar a “pontaria. A esse tempo, o macharrão, visivelmente incomíodado, voltou a enorme cabeça para o outro "lado do galho, mudou a mão esquerda mais para STE do meme CU Op a ep Sp taa Cervo abatido Tirando o couro ao cervo os cacadores Ç morta aos pés A onça a ! victin e sua O autor — 137 — “cima, e era fóra de duvida que tencionava descer; dirigi a pontaria para o coração e, por questão de um segundo mais, teria feito partir o tiro, quando naturalmente querendo melhor sondar o terreno, a féra voltou novamente a cabeca para o nosso lado. “São momentos esses que é difficil manter com calma uma pontaria perfeita e apertar o gatilho da arma de modo tão natural e seguro quanto em um exercicio de tiro, e tão mais necessaria é a calma n'essas occasiões quão perigoso se sabe ser um “d'esses animaes mal feridos. Era para a cabeça do “animal que voltava agora a minha attenção, e, apro- veitando um momento em que a féra abaixou-a um pouco mais para fitar os cães, deixei partir o tiro de bala da minha tres canos. O pessoal estava formado em ordem de batalha: os zagaieiros attentos a meu lado, o Gomes e o Nel- son formando a reserva e promptos a intervir em caso de lucta. Todas essas precauções são necessa- rias porque, na maioria dos casos, a onça não sendo fulminada, quando menos faça, mata e fere um ou “mais cães, e, se tem força ainda bastante, aggride os caçadores; de sorte que, e seja como fôr, é sempre prudente e necessario tomar esses cuidados. D'esta vez, porém, o caso não passou de exer- cicio: ao choque da minha bala bem atirada entre os olhos do animal, um pouco mais para o sobr'olho esquerdo, sem um movimento, fulminado, o grande macharrão abateu no lugar em que estava; um rio de sangue correu pelo nariz e pela bocca e, com as “pernas e a desmesurada cabeca pendidas, o rei dos nossos sertões nem mesmo cahiu da arvore em que - estava trepado. - Dizer a minhã alegria n'esse momento não é facil tarefa; uma grande aspiração de caçador es- “tava alli realizada de um modo perfeito; o exemplar “era dos mais bellos, os cães tinham trabalhado BS — admiravelmente bem, e o tiro não podia ter sido feito com maior successo e maestria (pede-se desculpa da falta de modestia, são restos de enthusiasmo). Foi preciso que um dos zagaieiros trepasse na arvore e empurrasse para baixo o corpo do animal, para que tomassemos posse de tão bello trophéu; ao cahir no chão aquella grande massa, os cães atira- ram-se ao bruto com a maior sêde de vingança, e era interessante ver como os dois pequenos cães se encarnicavam em morder com raiva tão grande ini- migo; aliás o faziam em perfeito direito, porque, a despeito do tamanho, os cãezinhos acuaram com bra- vura e firmeza dignas de louvor. Na mais franca alegria, arrastámos o machar- rão para a orla do campo, afim de fixarmos em pho- tographia tão grandioso e festivo acontecimento e, uma vez fóra do capão, tirâmos o grupo em que figu- rámos, victoriosamente ao lado da victima, eu, o Nelson, o Gomes e dous zagaieiros. Eu, isoladamente com o macharrão, cujo peito e braços dão bem ideia da sua força, e depois, o Nelson, na mesma feroz companhia, nos fixámos nas photographias que sempre vemos com viva satis- fação. Retirou-se o couro da onça com a cabeça e pa- tas, o que constitue um trophéu magnifico; retirou-se um lado das costellas, o que constitue um saboroso petisco; e com essa preciosa carga voltâmos conten- tes para a casa da fazenda. Nós já sabemos o trabalho que dá o preparo de um couro de onça; todo o resto do dia foi tomado por esse serviço em que trabalharam quatro homens e, apezar do empenho em que estavam de terminal-o, a noute surprehendeu-nos antes de finda a tarefa. O couro era dos mais bellos, entretanto, o machar- rão, velho e brigador, tinha uma cicatriz recente no dorso, perto do pescoço; tinha dous ferimentos na ARO parte deanteira do corpo, do lado direito, e, final- mente, na cabeça e um pouco em toda a parte arra- nhões que as garras inimigas haviam sulcado. No dia seguinte, 12, domingo, terminou-se o trabalho do couro, que, afinal, não ficou bem esticado, como não ficára bem descarnada, nem bem cheia a cabeça; o mestre de tal serviço, o capataz da fazenda, ainda não havia chegado, e, assim tive de contentar-me com o trabalho em que aliás applicaram toda a hôa vontade aquelles que o fizeram. Tratámos das nossas armas, procurei, sem re- sultado, o mal da minha, vadiámos o resto do dia e, com impaciencia esperámos o dia seguinte para continuar as cacadas. Eu estava sériamente pre- occupado com o exito d'essa caçada, pois, já tendo atirado num bello macharrão, receava que o Nelson fosse menos feliz e, não dispondo de muito tempo, não encontrassemos outra onça, que a elle agora cabia atirar; foi, portanto, com grande alegria que recebemos a noticia de ter sido encontrado rasto fresco de um grande macharrão, apenas á meia le- gua da fazenda. No dia seguinte, cheios de esperança e de enthu- siasmo, ás 7 horas da manhã, com o mesme sequito da ante-vespera, cavalgámos em busca do rasto pro- missor. Teriamos caminhado talvez durante meia hora e logo encontrámos rasto fresco, d'aquella ma- drugada, rasto de um casal de onças, cujo represen- tante masculino, a julgar pelas pegadas, não era propriamente um gato... e, ao contrario d'isso, de- “veria ser um macharrão de grandes dimensões, com o qual o amigo Nelson teria de medir-se. O rasto era tão fresco que a cachorrada seguiu “rasto atraz”, isto é (a explicação é necessaria para os profanos), seguiu em direcção contraria áquella que as onças haviam tomado; com pouco trabalho, porém, voltaram os cães e, agora bem encaminhados, e ED dentro em pouco, levantaram, e correram uma das onças. Atropelámos então os matungos por dentro de um acuryzal, sahimos no campo e, ahi, a galope, procuravamos seguir a direcção do latido dos cães, quando, subito, ferve uma acuação em um capão proximo. Eu havia perdido a ultima espora de um velho par que vira muitos campos, ainda assim, embora a custo, consegui acompanhar os zagaieiros que, ar- mados de enormes “chilenas”, fustigavam com furia as suas montadas. O Nelson, tambem sem espora, e montando n'um cavallo mais lerdo, surrava indi- gnado o matungo, empregando debalde taes esfor- cos; emquanto isso o Gomes crava as esporas no burro, e já o Nelson entristecia com a idéa de ficar bagageiro e, quem sabe, não chegar a tempo de assis- tir á festa, quando roda o burro em que montava .o “Gomes, e burro e cavalleiro rolam por terra. Afinal, mais ou menos juntos, todos nós chegá- mos esbaforidos á orla do capão e, oh decepção! o patife de um cachaco se atravessára na corrida, e era elle que os cães estavam acuando... Com raiva e por unanimidade foi decretada a morte immediata do intruso; a calibre 16 do amigo Gomes passou às mãos de um dos zagaieiros, e dentro de cinco mi- nutos estavamos livres do importuno cachaço. Foi uma injustiça, pois, se não fôra o intromettimento de tal cachaço, é bem provavel que a caçada tivesse perdido muito de seu brilho futuro. Quando os cães encontraram o patife que nos pregou tão grande -logro, estavam elles correndo “madame” onça que, com o ardil e habilidade pro- prios do seu sexo (com esta eu arranjo uma descom- postura), aproveitou o sacrifício do bode expiatorio “(o bode no caso presente é porco), para esgueirar-se, e livrar-se dos cães, subindo talvez, quem sabe, n'al- guma arvore bem proxima. Fosse como fosse, o caso + o ar ao o = mete po a qprdeve DAS et ad eps mg Guns [o O contentamento de meu amigo Nelson Um bello exemplar (2.m0 sem contar a cauda) E 7 qu é que, morto o cachaço e retirada a cachorrada, esta logo apanhou o rasto do macharrão e seguiu-o com ardor enthusiastico; novamente fustigámos os ani- maes acompanhando os cães e, instantes depois, nova acuação alegrava os nossos ouvidos. Salvo o Gomes, que se havia apartado para con- tornar o capão onde agora ouviamos a acuação, logo. chegámos á orla do acuryzal, onde se ouvia a orches- tra, augmentada d'esta vez com um instrumento novo e cujo som dominador não deixava duvidas a respeito. O acuryzal afastava-se em certo ponto em reconcavo por onde penetrava o campo, como se afasta a costa formando enseadas em seus regaços, e foi na entrada d'essa “enseada de campo” que nos apeámos apressadamente. O zagaieiro que previra a “mansidão” (para o diabo tal mansidão) da primeira onça, antes, acom- panhando o rasto da que agora corriamos, já nos ha- via avisado que este macharrão era bravo, e, de facto, a uns vinte metros de nós, fazendo frente á ca- chorrada que, muito heroica, denodadamente, sitiava o inimigo, o macharrão, com rugidos successivos, nos dizia o seu máu humor e a resolução de não sahir do chão, onde estava acuado. Faltava entre nós o Go- mes, a quem não queriamos privar -do grandioso es- pectaculo; puzemo-nos a. gritar por elle com todas as forças de nossos pulmões, mas, mestre Gomes não respondia, tardava, e a acuação atroava os ares com o latido dos cães e os bramidos da féra. Subito, percebemos que a onça abrira caminho por entre a cachorrada, dirigindo-se para o nosso lado, e, esparramados como estavamos, poderia ser das mais graves consequencias um encontro em taes condições; o macharrão, porém, ou devido aos nossos gritos chamando o Gomes, ou porque a cachorrada o acochasse fortemente, deu novamente acuação pous | cos metros adeante; mas, a esse tempo chegava o Gomes. Nós já nos tinhamos encontrado com uma onça acuada no chão; é verdade que era uma onça de extraordinaria bravura e que o local era dos mais desfavoraveis para o caçador; aqui o lugar não era sujo, era um acuryzal baixo e onde se podia ver o animal a uma certa distancia; em compensação, o macharrão que iamos enfrentar era muito maior. Creio que, se ficassemos bem attentos, teriamos ouvido o bater dos nossos corações... Com a maxima cautela, os dous zagaieiros à frente, o Nelson entre elles, eu e o Gomes logo atraz, o camarada fechando a retaguarda, n'essa ordem de cunha inversa, penetrámos no acuryzal. Não andá- ramos muito quando um zagaieiro, como da outra vez, mas agora dirigindo-se ao Nelson e apontando para o chão, indicou o animal acuado e raivoso. Mais dous passos para a frente e um espectaculo sublime offerecia-se aos olhos dos caçadores. À de- nodada cachorrada, com os pellos eriçados, os dentes à mostra, latindo com furia e raiva, acuava um enorme macharrão que, entre sentado e de pé, com as costas protegidas por um acury, a bocca escan- carada d'onde partiam urros de guerra, as presas ameaçadoras a descoberto, os braços abertos e as fórtes garras saltadas, fazia frente aos valentes cães. A féra não nos dava a frente, e o Nelson, sem perder tempo, procurando attingir à columna verte- bral perto do craneo, visou um pouco atraz do ma- xillar e um pouco acima, fazendo partir o tiro; o animal rolou por terra e a cachorrada avançou; ra- pido, porém, uma nuvem de poeira levanta-se, os cães afastam-se, e o macharrão reerguendo-se pro- cura apanhar um d'elles; mas, o nosso grupo tam- bem tinha avançado, e o macharrão, deparando com elle, salta sobre um dos zagaieiros. — 143 — À enorme força e o grande peso do animal en- furecido deveriam dominar o valente zagaieiro Co- riango; este homem já havia morto muitas onças como zagaieiro, e a sua grande pratica de muito lhe valeu n'esse momento critico; assim, com grande calma e pericia, elle recebeu o macharrão na ponta da zagaia, e por tal fórma que o derrubou por terra. O outro zagaieiro cravou, por seu turno, a sua za- gaia no peito do animal, esforçando-se ambos por manter a féra de encontro a um acury novo. À ca- chorrada, assanhada, mordia raivosa o terrivel ini- migo que, ainda assim ferido e subjugado, apanhou um dos cães e quasi o mata. Durante toda esta scena, tão emocionante e forte quanto rapida, nós nos con- servámos unidos e promptos para intervir em qual- quer emergencia; assim, quando a onça abraçou um dos cães, o Comes, para salval-o, atirou na cabeça do macharrão, acabando de matal-o. . No fim da festa, não sei bem se nos beijámos; sei com certeza que nos abraçámos, saltando de ale- gria, e não era para menos: o macharrão tinha sido bravo e denodado, a cachorrada heroica, e os caça- dores dignos da empresa. Com bastante trabalho, arrastámos para o campo o bello animal, tirámos algumas photogra- phias e, como da outra vez, extrahiu-se o couro com a cabeça e as patas, cortou-se um lado das gostosas costellas e, engarupada que foi a cubicada carga, voltámos radiantes para a casa da fazenda, que ficava proxima. O Nelson foi mais feliz do que eu quanto ao pre- paro do couro e sua perfeição; o enorme macharrão tinha perfeito o seu bello couro. O capataz da fa- zenda, pratico no serviço, já havia chegado e tomou a direcção do delicado trabalho, e, assim, na tarde d'esse dia, cheios de orgulho, podiamos photogra- phar os esplendidos trophéus de tão bella caçada. — 144 — Muito embora não nos devessemos queixar da sorte que nos havia proporcionado tão brilhante re- sultado, ainda assim, de bom grado teriamos con- tinuado a perseguição das onças; infelizmente, po- rém, não ha bem que sempre dure, e, como não quizessemos distrahir nossas lanchas do servico, era forçoso partir, no dia 15, para apanhar, na manhã de 16, no rio Paraguay, uma lancha que deveria. passar subindo o rio. O dia 14 foi empregado no preparo da renda e no repouso sobre os louros da campanha, e, a 15, precedidos de um carro de bois com a bagagem e os couros, deixámos, cheios de saudades, a casa da fa- zenda e tomámos rumo de Tarumã, acompanhados pelo - Gomes. Para o caçador é sempre triste a volta da ca- cada, por melhor e mais fructifera que tenha ella sido, e, assim, conversando pouco e pilheriando ainda menos, seguimos macambuzios pelo campo, sem mesmo fazermos caso da caca que viamos em abundancia. Durante mais de quinhentos metros, acompanhámos o rasto fresco de uma onca com um filhote peoueno, e a certeza de que a podiamos cacar com faciiidade, se não fosse a falta de tempo, ainda mais augmentou a nossa melancolia. Para espan- tala, como -uma vara de porcos corresse de,nós-a mais - de -cem “metros, apeei-me, acompanhei um cachaço com a pontaria e, a mais de cento e cincoenta metros, attingi o animal em meio da corrida. Afinal, por cerca de 1 hora da tarde, chegámos a Tarumã, tendo pouco antes encontrado duas onças, que fu- giram. Matteámos: o amigo (Gomes havia preparado um farnel com uma gallinha assada, um pedaco de lombo de porco e um “virado” de carne com farinha, e, como se approximasse a hora da partida, fizemos juntos a ultima refeição comendo a gallinha-e-bôa ea tr tros eo eme autor em feroz companhia O veterano “Visconde” repousa Couros seccando ao sol — 145 — parte do lombo de.porco. Ás 3 e meia horas da tarde, bem a contragosto, reciprocamente saudosos, despe- dimo-nos do nosso bem amigo Gomes Guahyba, e deixámos Tarumã com destino ao porto do Riozinho. Ora espantando um bando de patos bravos, ora admirando a revoada dos tuyúyús e tabuyáyás, ca- minhavamos á. frente com dous camaradas, seguidos do carro de bois que a pouco e pouco ia ficando dis- tanciado. Uma cadella que nos acompanhava diver-: tiu-nos durante muito tempo perseguindo uma ema: os trovões rolavam longe e nos ameaçavam de forte banho; o dia esmorecia triste no silencio profundo do immenso sertão. ie Com cerca de legua e meia de caminhada, che- gámos ao ponto em que tinhamos abandonado a in-. teressante navegação “moto-bovina” e, agora, pri- vados de canôa e de bois, era mistér fazer a cavallo. todo aquelle trecho. Sem botas, ccm as calças bem arregacadas, fusticámos os animaes e encetâmos a travessia sobremodo incommoda. A permanencia. das aguas tornára o fundo molle, transformando-o. em atoleiro em certos pontos; os animaes faziam in- gentes esforços para avançar, o que só conseguiam com lentidão; a chuva ccmecava a tombar em gros- sos pingos e, nesse mcmento, quando mais precisa- vamos avançar, o cavallo em que vinha o Nelson recusou-se peremptoriamente a continuar o cami- nho. O nosso amigo, no auge da indignação, appli.. cava surras temiveis á cavalgadura; um chicote, cujo cabo era um verdadeiro cacete, foi-lhe emprestado. e, com esse cabo, a surra redobrou de forca. A chuva augmentava, o temporal approximava-se, anoutecia, e o cavallo não desencalhava. Afinal, um camarada, . que estava armado de fortes chilenas, trocou de montada com o Nelson, o cavallo desencalhou, fize- mos o resto do penoso trajecto, chegámos ao rancho, eo temporal desabou. : Hs ARE e Caçadas to Neri fo Muito mais tarde, noute fechada, sob a aguacei- rada, por cerca de 8 horas, chegou o carro de bois, que havia feito o mesmo caminho com grandes dif- ficuldades; a agua ia-lhe acima do estrado, e, para que não galgassse a bagagem, foi esta suspensa ás varas do carro e abrigada da chuva por meio de couros; ainda assim, o resto do farnel que, por in- stancias do Gomes, acompanhára a bagagem, chegou bastante molhado, o que não impediu de ser quasi todo comido. Não durou muito a conversa que mantinhamos atravez dos mosquiteiros, deitados nas nossas rêdes; dentro em pouco o somno reparava a fadiga da jor- nada; o temporal amainava e, quando nos levantá- mos de madrugada, já estavamos livres d'elle. Tinhamos decidido que do Riozinho tomariamos caminho diverso do que fizeramos na vinda e, ao em vez de atravessar o pantanal e subir até ao Formi- gueiro, deveriamos descer o Taquary Velho (o mesmo que havia subido e descido com o “Nyoac”), afim de tomar a lancha perto de sua embocadura, no rio Paraguay. Assim, embarcados em uma canôa que se achava no porto do Riozinho, e que fôra tri- pulada pelos dous zagaieiros que nos haviam se. guido, com toda a nossa bagagem e os couros, come- cámos a descer o Taquary. Eu me havia sentado com a frente para a prôa e, logo ao sahir, estando o vento contra, comecei a sentir um máu cheiro insuppor- tavel. Depois de algum tempo, certo de que o máu cheiro partia de dentro da propria canôa, tratei de verificar de onde provinha e descobri que o couro de cervo, arrumado á prôa da canôa, era a causa de tão repugnante fetido. Em uma pequena canôõa, como aquella em que estavamos, não era possivel abusar do equilibrio; eramos obrigados a manter a arru- mação feita antes do embarque e, contentando-me com a providencia de voltar as costas para a prôa, MARES navegámos mais de duas horas mimoseados com tão agradavel perfume. A descida do Taquary Velho foi feita sem inci- dentes dignos de nota para quem está habituado com a abundancia de caça nos rios de Matto-Grosso, e, antes das 7 da manhã de 16, aportavamos á margem esquerda do Paraguay, em frente e um pouco abaixo da embocadura do rio que desceramos, e onde existe a choça de um vigia da linha telegraphica, perto da Manga, porto da Fazenda Firme. Pelas nossas contas, e pelas informações que co- lheramos, só de 8 para 9 horas da manhã passaria a lancha que nos deveria levar ao Ladario, subindo o Paraguay. Calcule-se, pois, a nossa decepção e o nosso desespero ao sabermos que a lancha já havia passado durante a noute!... As lanchas que navegam de Porto Esperança para Corumbá são semanaes; era essa a lancha que haviamos perdido; não tinhamos viveres; subir o Pa- raguay na canôa que nos tinha trazido até all seria penosissimo e far-nos-ia gastar quatro dias, durante os quaes não poderiamos passar sem comer. O caso era realmente complicado; emfim, fizemos saltar as nossas bagagens para a terra e, saudosos, despe- dimo-nos dos zagaieiros Coriango e Martins, que, reembarcados na mesma canôa que nos trouxera, atravessaram novamente o Paraguay, retomando o rumo da fazenda, d'aquella bôa fazenda que nos sorria ainda como um verdadeiro paraiso para os caçadores. Felizmente, na Manga, a linha telegraphica atravessa o rio em cabo sub-fluvial; ha duas gua- ritas nos extremos e, de uma d'ellas, era possivel telephonar para Corumbá, utilizando a linha tele- graphica; estavamos salvos. Decididamente a sorte não nos havia abandonado, pois, um restinho do far- nel, apezar de reduzido quasi a zero, ainda nos havia E + acompanhado, e, recalcando o appetite, nos reduzi- mos a um quarto de ração e comemos, cada um de nós, um punhado do virado como opiparo almoço... Só ao meio-dia poderiamos falar para Corumbá, e, graças à amabilidade do chefe da estação telegra-. phica dessa cidade, a essa hora logo nos foi possi- vel falar para o Ladario; infelizmente, porém, não conseguimos ter resposta immediata sobre a vinda de conducção e, com certa anciedade, foi necessario esperar para as 6 horas da tarde. Estendemos as nossas rêdes sob algumas arvo- res que felizmente all havia, e, apezar do cheiro pouco ameno produzido pela recente matança de uma rez, esperámos grande parte de tempo do melhor modo que é possivel esperar: dormindo a sésta.. Dizem que o somno alimenta, comtudo, sem querer contestar semelhante asserção que parece apoiar-se na sciencia, posso garantir que, não obstante o somno da sésta, a fome começava a lembrar-nos que tinhamos estomagos. Não hesitámos: sentámo- nos deante da nossa bem guarnecida matula e, heroi- camente, como bons gastronomos, comemos o penul- timo punhado de paçóca, e jantámos bem... Pouco antes das 6, naturalmente preguiçosos devido á fartura do jantar, embarquei na canôa que me transportou à Manga e, conseguindo novamente communicar-me com o Ladario, soube que só no dia seguinte poderiamos ter a lancha. Retrocedi pen-. sando no almoço do dia seguinte; os mosquitos, em nuvens, atacavam a canôa e, quando cheguei ao nosso acampamento, era tal a quantidade d'esses malditos insectos que foi humanamente impossivel supportal-os. Recorremos aos salvadores mosquitei- ros, o que nos obrigou desde logo a permanecer dei- tados nas rêdes; mas, só assim se conseguia a tran- quillidade. Alta noute, por duas vezes, saltámos das rêdes e arrostámos a mosquitada, por causa do ba- / 149 rulho da lancha que ouviramos; infelizmente, porém, nem d'uma nem d'outra vez a lancha subiria para Corumbá. Bem cêdo despertámos; apezar d'isso, porém, conservámo-nos nas rêdes, sob os mosquiteiros que “ainda se achavam cobertos de mosquitos, quando, pouco antes das 7 horas, ouvimos rumor de lancha e, com enorme alegria, vimos approximar uma das lanchas do Arsenal, com a qual só contavamos mui- tissimo mais tarde. Em um quarto de hora as rêdes foram ferradas com os mosquiteiros, a bagagem e os couros transportados, e a lancha partia; o ultimo banquete, isto é, o ultimo punhado de paçóca, foi de- liciado já em viagem, e, assim, o farnel feito para uma unica refeição servira para tres dias. E” facil de imaginar, portanto, como chegámos famintos ao Ladario, ás 4 horas'e meia d'esse dia 17. Estava terminada a nossa excursão e a minha terceira caçada de onças em Matto-Grosso, caçada coroada do melhor exito e que deixará para sempre inapagavel na minha memoria scenas e emoções que são o enlevo do caçador e que só a elle é dado gozar. eo rampa mma a temem mem Os dois ultimos companheiros da bella caçada O bellissimo exemplar de Victoria Regia em frente ao Ladario A lancha do Oyapock entre a Victoria Regia CAPITULO X Victoria Régia — Ainda jacarés — Quarta caçada de onça. Os intervallos das caçadas de onça eram sempre tomados com a perseguição aos gostosos jaós, aos patos, marrecos e irerês, e com as pequenas excur- sões ao aprazivel Urucúm. Quando iamos ao pantanal fronteiro ao Lada- rio, juntavamos, quasi sempre, á nossa caçada, uma ou mais flores de uma bella Victoria Regia, que se ostentava em sua pujante belleza bem proximo á margem do Paraguay; mas, se agradavel era o as- pecto d'essas flores de mais de trinta centimetros de diametro, brancas e perfumadas, bem difficil era co- lhel-as entre as espinhosas folhas enormes, chatas como bandejas, e grandes como bacias em que um homem poderia facilmente deitar-se. Nos alagados e corichos, ao longo do Paraguay, entre Ladario e Corumbá, existiam alguns outros exemplares d'essa bella rainha das aguas, mas, se algumas cobriam su- perficies enormes, nenhuma d'ellas ostentava folhas e flores com o viço da que por nós era sempre vi- sitada. Esse trecho do rio, de bastante movimento. era por nós navegado com assiduidade e frequencia, pois que, sendo o Ladario despido de recursos, forçosa se fazia a ida constante a Corumbá; pois, apezar da — 152 — intensidade da navegação, muitas vezes, em certas epochas do anno, os jacarés, estirados nas margens ou emergindo a cabeça, offereciam excellente alvo aos nossos revólveres. Uma das vezes, em dia que atirámos n'uns qua- tro ou cinco jacarés, trouxemos um d'elles para bordo e, depois de içado em um dos turcos do “Oya- pock”, foi photographado, sendo depois degolado, para que mais facilmente fosse possivel extrahir- se-lhe -os.dentes, sem ser necessario a applicação de qualquer anesthesico... Estavamos assim passando o tempo, quando, por essa epocha, em meiados de Setembro, fui cha- mado ao Rio de Janeiro, o mesmo acontecendo ao meu amigo Nelson, o que permittia regressarmos juntos. Por esse tempo, a Estrada de Ferro que liga- ria Matto-Grosso ao Rio de Janeiro, em vias de ter- “minação, embora com o trafego ainda não inaugu- rado e com trechos de construcção provisoria, já tornava possivel fazer por ella o nosso regresso. e, “como nos fosse possivel fazer ainda algumas caçadas ao longo d'essa nova linha, logo resolvemos que por esse meio regressariamos ao Rio. Mas, embora feli- zes tivessemos sido com a nossa ultima caçada de onças, e talvez por isso, deliberámos fazer ainda “uma outra nas Palmeiras, caçada que, com outra por nós projectada na Bodoquena, já em trecho da via- “ferrea, seriam as despedidas ás onças do adoravel “pantanal de Matto-Grosso. “ Deixei o commando do meu “Oyapock” e. a 4 de Outubro, domingo, por cerca de 1 hora da madru- gada, embarcámos em uma lancha do Arsenal, aban- donando, em companhia do Nelson, definitivamente, o Ladario, e tendo ainda por companheiro o nosso “collega Junqueira, que regressaria da Fazenda das Palmeiras, uma vez terminada a caçada de onças que ahi fariamos juntos. 4 Rm ; Um bello exemplar içado em um yapock” turco do “O Decapitação da victima — 153 — Tendo partido cêdo, entrámos, ao clarear, no braço inferior do Taquary, pelo qual subimos sem dificuldades, graças à praticagem do imperturbavel seu Chico, o paciente encarregado do retiro do For- migueiro. A fleugma do nosso pratico não poderia desper- tar admiração, nem mesmo chamar simplesmente a nossa attenção, pois que, em outra occasião, já tinha- mos podido observar a calma do nosso heróe, em cir- cumstancias que reputo mais dificeis. Seu Chico era casado, e, certa vez como tivessemos pousado no Formigueiro, para seguir não sei mais para que ca- cada, desembarcámos a nossa bagagem e com ella “uma garrafa de aguardente. Tinhamos chegado á tardinha e, perseguidos pelos mosquitos e desejosos de fazer bôa madrugada, cêdo recolhemo-nos ás nossas rêdes, abrigados sob os protectores mosqui- teiros. Provavelmente, alguns entre nós logo dormi- ram, emquanto outros, ainda alertas, conversavam quando a todos surprehendendo e despertando, uma forte altercação é ouvida atravez da parede que nos separava dos aposentos de seu Chico. E” claro que a nenhum de nós, maximé aos que já dormiam, agra- dou aquella musica, mas, apezar d'isso, dentro em pouco desatámos a rir, taes, tão engraçados eram os termos da descompostura com que o seu Chico era mimoseado pela cara esposa; e, como esses termos - possam ser aproveitados em certa agremiação onde tudo se pretere para dar largas á descompostura mu- tua, direi que o nosso pacato homem era xingado de: peste de cadeira, desgraça pellada (eu supponho que a virtuosa xingadeira apreciava as cabelleiras), troya (?!), fumo de nove aguas, e outras cousas que, por serem correntes na agremiação a que me referi, não vale a pena citar. No dia seguinte a esta scena, pela manhã, reembarcámos com tudo que nos per- 154 — tencia, salvo a garrafa de aguardente, que tinha des- apparecido... Mas, o caso é que, não obstante todos esses epi- thetos, agora, graças a seu Chico, chegavamos, pouco depois das 8 da manhã, ao porto do Riozinho, onde encontrámos o nosso amigo Mario de Barros com o Gomes e toda a peonada. Infelizmente, o amigo Go- mes, occupado como estava com a conducção do gado para o Formigueiro, não poderia acompanhar-nos na caçada, e, assim, com o Mario de Barros e dous zagaieiros (Bernardo e Faustino), deixámos o porto do Riozinho e tomámos o rumo da fazenda, seguindo o mesmo caminho que haviamos trilhado em com- panhia de Roosevelt, de quem nos lembravamos com saudades. A soalheira de Outubro e o pouco que tinhamos dormido na ultima noute faziam-nos cochilar sobre os cavallos, e, como algum de nós pudesse cahir de camas tão pouco firmes, apeámos, após cerca de duas horas de marcha, sob uma copada figueira, e dormi- mos uma reparadora sésta. De novo a caminho, teriamos feito metade do trajecto que nos faltava quando, avistando um veado que pastava, o Nelson, apeando e cautelosamente approximando-se até uns cem metros do animal, deixou partir a bala da sua tres canos, e o veado tombou; corremos para lá, mas, ante a nossa appa- rição, o veado começou a dar saltos e cambalhotas de grande altura e parecia louco. Foi preciso san- gral.o e, hoje, me arrependo de não ter verificado o local attingido pelo projectil, causa unica de tão extravagante acrobacia. Pelas 4 horas da tarde entravamos no potreiro da fazenda, e logo chegavamos à casa, já nossa co- nhecida, pois que era essa a terceira vez que ahi nos hospedavamos, sempre na intenção de dar combate ás onças. de ro pa Surpresa, porém, bem desagradavel e perturba- dora de nossos planos ahi nos aguardava: a cachor- rada que, valente, alegre e ligeira, tinha sido nossa fiel e leal companheira na ultima caçada, havia tres mezes antes, fôra dizimada pela peste, e, dos dezeseis ou dezoito cães que a compunham, restavam apenas “Carioca”, ainda doente, e “Leão”, quasi curado. Nós tinhamos escripto ao amigo Janjão pedindo que nos enviasse “Visconde”, o veterano onceiro, avô de tantos bravos, e, felizmente, lá o encontrámos e nelle depositámos as nossas esperanças. Na manhã seguinte, sahimos com “Leão” e “Vis- conde” á procura de rasto fresco e, não haviamos feito meia hora de caminho, quando avistei um lobo, que trotava despreoccupadamente em direcção per- pendicular á que levavamos; apeei e, tendo esperado que o lobo viesse ao meu encontro e chegasse a dis- tancia conveniente, attingi-o com a bala da minha tres canos; o animal cahiu, mas logo se erguendo e ainda correndo, foi tombar pouco além para não mais levantar. Realmente, a caçada não se annunciava sob os mesmos auspicios que a anterior, pois que, já tendo constatado o grande desastre da perda da cachor- rada, viamos agora que o pantanal, muito secco, iria trazer outras dificuldades ao bom exito da nossa empresa, mas, infelizmente, não ficavam ahi os con- tratempos e, n'esse primeiro dia de caçada, tivemos o desgosto de verificar que o veterano “Visconde”, o decano dos onceiros, talvez de todo o Matto-Grosso, ou de todo o Brasil, dava evidentes signaes de cadu- quice. O pobre e velho cão entrava nos capões e, dei- tado ou sentado junto a alguma arvore, acuava á tõa e persistia teimoso n'essa phantasia; sonhava talvez antigas pugnas e revia combates que a idade não mais permittia recomeçar, mas, por maior que fosse o respeito que nos inspirasse o velho luctador, o facto. é que verificâmos, com duplo pezar, que o decrepito “Visconde” não nos poderia mais prestar serviços e, ao contrario d'isso, era um impecilho á nossa caçada. Embora tivessemos cavalgado toda a manhã, não encontrámos um unico rasto de onça; e as nossas armas, destinadas a tiros tão mais nobres, funccio- navam apenas para abater aracuãs e araras, aquel- las para termos carne para o almoço, e estas desti- nadas á vaidade das mulheres, isto é, para que fossem aproveitadas as suas pennas em enfeites de chapéus. Aº vista da caduquice de “Visconde”, o Mario mandou pedir “Mestrinho” ao amigo Janjão, mas, ainda assim, no dia seguinte, 6, bem cêdo, sahimos novamente acompanhados de “Visconde” e “Leão”, e cruzámos campos e aguadas até que, já tarde, en- contrámos o desejado rasto fresco. Os zagaieiros, trabalhando quasi como se cães fossem, rastejavam e faziam os mais ingentes esforços para que “Vis- conde” e “Leão” trabalhassem, mas, este, doente e preguiçoso, e aquelle no “mundo da lua”, juntaram os seus defeitos para tornar inutil o trabalho de Faustino e Bernardo. Não honve forças humanas ca- pazes de fazer com que esses cães seguissem o rasto, e, á vista de tal obstinação, fomos forçados a aban- donar as preciosas pegadas. N'esse dia, vimos duas novidades: uma foi um . bugio que encontrámos com o respectivo sequito, ou melhor, com seu harem, n'um capão limpo, bugio que, em vez de vermelho como o que já conhecia, é negro retinto e de pello bastante longo; a outra no- vidade foi o espectaculo que julgavamos menos im- portante e que só a sua contemplação nos pôde dar uma ideia justa, pois que, só agora podemos avaliar das difficuldades e perigos que existem em “escorar”, no campo, um porco na zagaia. Foi esse o especta- SR [ye culo que presenciámos e que devemos ao zagaieiro Bernardo, unico capaz de tal “africa”, no meio de tantos zagaieiros déstros na caçada JE onças. Uma terceira novidade estava reservada para esse dia: ao regressarmos, encontrámos “Mestrinho” em casa. Esse cão, alvo agora das nossas esperanças um tanto combalidas, tinha feito um longo trajecto, e foi assim que, para deixal-o descançar, não caçámos onças no dia seguinte á sua chegada; contentámo-nos em sahir tarde para fazer uma matança de jacarés e, depois de termos morto mais de vinte, detivemo- nos longo tempo a apreciar os tuyúyús e garças “em familia”, e regressámos á casa, que ficava perto. No outro dia, estavamos de pé ás 4 horas da madrugada, e cêdo partimos, a cavallo, deixando preso o pobre “Visconde”, e levando “Mestrinho”, “Leão” e “Carioca”. Essa pequena e reduzida ma- tilha estava mais animada e, haviamos feito um pe- queno percurso, quando os cães, após uma curta corrida, acuaram firme em um acuryzal. Grande foi o nosso contentamento, como grandes foram os elo- gios que logo romperam em louvor de “Mestrinho” e, cheios de enthusiasmo e alegria, corremos ao local onde fervia a acuação. Nós não tinhamos visto rasto algum, de sorte que, não sabiamos se se tratava de uma onça parda ou de uma pintada, nem se era ella medrosa ou zangada; mas, fosse como fosse, corre- mos pressurosos e encontrámos os cães acuando... um coaty!... Bastante desapontados, e depois de ter o coaty sido morto, a dente, pelos cães, continuámos a nossa marcha e, pouco adeante, o “Leão” farejou com ha- bilidade e firmeza acuando logo depois. Eu, que tinha seguido “Leão” de perto, vi logo do que se tratava, mas, como o Junqueira estivesse muito afastado, aproveitei para pregar- “lhe um logro e alegrar um pouco a caçada: comecei a chamal-o com insistencia, — 158 — gritando que era uma onça parda que estava acuada, e o nosso Junqueira, galopando até onde eu es- tava, encontrou acuado... um tamanduá-mirim, que, assim, matou. Mais adeante foi a vez de um catetú que, tam- bem acuado pelos cães, foi morto pelo Nelson; entre- tanto, apezar da bôa vontade dos cães, não tendo encontrado rasto de onça, tivemos de voltar com o mesmo máu resultado dos outros dias, embora longa tivesse sido a caminhada. O dia seguinte, 9 de Outubro, era o sexto após a nossa partida do Ladario, e o quinto em que, firme e persistentemente, procuravamos encontrar uma pintada; muito cêdo, com a mesma organização da vespera e com os mesmos cães, partimos, já um pouco desanimados com tantos contratempos; no emtanto, com menos de uma legua de caminho, en- contráâmos rasto fresco e, logo após, carniça muito recente e constituida por um porco. Contentissimos com tão precioso achado, ficámos logo certo de que os cães acuariam uma onça dentro em breve; e os rastos que partiam da carniça foram logo seguidos por “Mestrinho”, que “falou” ao sentil-os. Anciosos, seguimos os cães, mas, tão abundantes e entrecruzados eram os rastos que, confundindo e perturbando, “Mestrinho” perdia-os, de quando em vez, para achar mais adeante, succedendo algumas vezes vir ter ao mesmo local. Era um emmaranhado de rastos que se cruzavam pelos pantanaes, pelos caminhos, nos capões e entre a macéga alta, a todos nós intrigando e não achando explicação, nem mesmo entre os zagaieiros; e, uma vez, tão estranha e ori- ginal era a situação que, estando nós a fazer zig- zags atraz dos cães, no meio da macéga alta, o nosso Faustino obtemperou, com o seu interessante e oril- ginal modo de falar; “Isso até tá perigoso; bitcho iras iozinho Fazenda das Palme Gado no curral — R Pequeno carandazal . x » ” ALAÉ DD ta .. 3 emas PES Ve SE vária Eve aa A caminho para a caçada de Onças Onça empuleirada (Photographia unica no mundo) ds pn póde tá ahi djunto da gente, deitado na macéga, e nós nun entxergu'elle”, Não obstante isso, continuámos sempre a acom- panhar os cães, que foram auxiliados por Faustino e Bernardo, incansaveis quanto habeis em rastejar, e, graças, ainda, a esses dous experimentados e de- dicados zagaleiros, depois de muito trabalho e já algum desanimo, vimos uma onça trepada n'uma arvore secca, á desusada e grande altura, e á beira de um pequeno capão. Os cães tinham atravessado e já haviam sahido desse capão, dando tres ou quatro latidos sem im- portancia e que, quando muito, poderiam indicar rasto que não fosse dos mais frescos; e, assim, foi para nós uma surpresa grande quando, olhando o que apontava um dos zagaieiros, vimos a onça empo- leirada, fazendo um zagaieiro a consideração de que deveria tratar-se de onça muito medrosa, pois que, aos poucos latidos dos cães, que nem a perceberam, já estava ella no páu á tão grande altura. Rapidamente, dirigimo-nos para a beira do ca- pão, apeámo-nos e, como tivessemos combinado per- tencer ao Junqueira o tiro à primeira onça da ca- cada, formou elle entre os zagaieiros, e logo todos partiram em direcção á arvore em que estava a cobi- cada presa. Como eu não tivesse de atirar e, porque, princi- palmente, visse uma occasião rara, talvez unica, de photographar uma onça em semelhantes condições, atrazei-me um pouco retirando a minha Gõerz, que viajava presa aos arreios, e, quando entrei no capão, um pouco após o primeiro grupo, procurei tomar outro caminho, a uns vinte metros do que era se- guido pelos zagaieiros, ra intenção de tomar posição favoravel e bôa para a minha original photographia. Tinha, porém, pouco penetrado no capão, quando o Mario de Barros, com muito acerto e prudencia, gri- — 160 — tou-me que seria mais conveniente irmos todos jun- tos. Acceitando a ponderada observação, pois sabia que, em taes caçadas, o auxilio mutuo é muitas vezes de grande necessidade, resolvi tomar a direcção dos outros companheiros. Havia de permeio, proximo de mim, uma moita de matto fechado; para atraves- sala, levei as mãos á frente, tendo n'uma d'ellas a espingarda, com a qual afastaria um tucum cheio de espinhos, e, iniciando assim a operação, sem ou- tro intuito que não fosse o de livrar-me dos espi- nhos, abaixo-me um pouco, levo o pé á frente, e, oh! estranha e desagradavel surpresa! — bem Junto a mim, quasi sob o pé que levo á frente, ergue-se e salta uma onça soltando um formidavel urro... Como um relampago, saltei, apromptando a arma ao mesmo tempo que gritava para os companheiros: — “olha o macharrão junto de mim”. O Nelson logo acudiu-me, gritando tambem zagaieiros, e todos, ou- vindo o urro da féra e o meu appello, correram ao meu soccorro; o macharrão, porém, saltára para o lado, fugindo em rumo opposto e deixando-me illeso. Livre d'esse “pequeno” susto, corremos para a onça do páu, a qual, indifferente a todo aquelle rebo- liço, lá se conservava impassivel; e, depois de conter a custo o ardor do Junqueira e tirar a photographia. — que não sahiu muito tremida, apezar do meu re- cente encontro — partiu finalmente o tiro. Era evi- dente que a bala do atirador não tinha attingido a onca, pois que, com todos os movimentos livres e sem dar mostras da menor perturbação, o animal come- cou a descer; e, como os zagaieiros gritassem pe- dindo rapidamente outro tiro, o que aliás era uma necessidade imperiosa, fiz-lhes a justa vontade deto- nando a minha arma, e à onça degringolou e veio abaixo. Sem saber e sem querer, eu tinha atirado ao. mesmo tempo á bala e a chumbo grosso; pois, apezar. — 161 — de ter este ido achatar-se de encontro a uma das pa- redes do craneo do animal, e ter a bala atravessado a base d'esse tão resistente craneo, essa onça, que havia cahido como um fardo pesado, teve ainda força bastante para erguer-se e affrontar-nos. O lugar era máu para o trabalho de zagaia, mas, apezar d'isso, á vista da attitude da féra, os zagaieiros avançaram; pois, parece incrivel, o animal teve ainda força para, com um sopapo, desviar para longe a primeira za- gaia! Outro zagaieiro acudiu rapido; tão rapido que não me deu tempo para livrar o cabo de sua zagaia, que me fez enorme gallo na testa; e dominada a re- sistente onça, acabaram de matal-a o Nelson e Jun- queira. Morta a onça do páu, logo tratámos de tentar descobrir a que me havia poupado a vida, mas não o susto; chamámos os cães, mostrámos o rasto fres- quissimo, estumámos, animámos, instigámos, mas qual, tudo era em vão; os pestes dos cães recusa- vam-se absolutamente a seguir e, por fim, já aborre- cidos com aquelles máus companheiros, resolvemos prescindir d'elles e, com o Nelson, a quem cabia o tiro, na frente, entre os dous zagaieiros e nós tres logo atraz, começámos a procura. O macharrão tinha entrado por um gravatazal fechado, onde não era possivel descobrir-lhe a batida; o matto em torno era extremamente sujo e, não tinhamos adeantado muitos metros, quando o Faustino, zagaieiro mestre e velho caçador de onça, parou e disse: “Dgente, mió dexá o bitcho; matto tá munto sudjo, catchorro num qué trabaiá, bitcho já tá zangado, vamo dexá...” De facto, seria uma insensatez proseguir n'aquella empresa em que, além da pouca probabilidade de descobrir-se o animal, podia elle, de um momento para outro, saltar sobre nós e, fosse, embora, depois subjugado, ai d'aquelle que fosse colhido em seu pri- meiro bote; e assim, todos vendo o inutil perigo que Viagens e Caçadas II EEN corriamos, ouvimos as judiciosas palavras do Faus- tino e nos retirámos em ordem. Uma vez que não conseguiamos descobrir o macharrão e que já tinhamos morto a onça empo- leirada, fiz questão de reconstituir a scena do meu intempestivo encontro, não só porque desejava que testemunhassem a distancia a que me havia appro- ximado da onça, como para verificar com calma o modo pelo qual o facto se passára. Tomando pela minha batida, facil foi chegar ao ponto do inespe- rado encontro, e lá, vendo-se o meu rasto e o da onça, sobre o qual poder-se-ia dizer ter eu pisado, todos (eu inclusive) pasmámos, e o Faustino, sem- pre mais expansivo, abanando a cabeça, exclamou: “Nossa Senhora! Floi Deus que não quiz?” O Jun- queira, que na occasião do encontro estava distante de mim, declarou que, ao ouvir o “arroto” da onça (é como se diz em Matto-Grosso) e o meu grito, nunca suppoz encontrar-me ainda vivo; e, até hoje, eu pergunto a mim mesmo como é que pude cami- nhar para tão grande animal, a ponto de pisal-o, por assim dizer, sem absolutamente tello visto. Outra cousa que eu não explico é o ter escapo ás garras d'aquelle animal que, sem o menor esforço, até mesmo sem erguer-se, ter-me-ia subjugado, an- tes que eu tivesse tempo para qualquer defesa pro- pria, ou qualquer soccorro, e, a não ser que me ti- vesse achado muito magro para o almoço, só explico o facto (tão agradavel para mim) pelo susto que talvez tivesse levado a despreoccupada onça, susto que, a julgar pelo meu, explica de sobra a abstenção da aggressão... E, para provar a possivel influen- cia do susto, direi que, como já narrei, procurava, na occasião do encontro, atravessar, cautelosamente entre um arbusto e um espinhoso tucum; pois bem, no momento, ou o tucum recolheu os espinhos (o que é pouco provavel) ou eu não os percebi; porque, — 168 — como ficou provado no exame pericial a que proce- demos, eu atravessára entre o arbusto e o tucum, o que agora não conseguia repetir devido aos espi- nhos, que na occasião não encontrei... No fim das notas que tomei nºesse dia ha a se- guinte phrase: “O que não resta duvida é que nasci hoje outra vez”. — Com a devida transposição de data para o dia occorrido, é de justica que conserve a phrase. Entre os commentarios que um caso desses suggere, arrastámos a onça morta para fóra do ca- pão, e, depois das photographias, tirámos-lhe o couro e as gostosas costellas, e recolhemos á casa da fazenda, para o trabalhoso preparo do couro. Agora, achavamos a explicação do emmara- nhado de rastos, do facto de estar a onça trepada tão alto, e da presença do macharrão: Madame onça estava na epocha do “flirt”, e, seguida por tres ou “quatro ferozes D. Juans, fel-os acompanhar sua ca- prichosa vagabundagem durante um ou mais dias; banquetearam-se com o porco cujos restos encontrá- mos e, fiel aos caprichos do seu sexo, astuta e mal. dosa, subiu aos galhos mais finos de uma arvore, inaccessiveis aos conquistadores, oppondo sua ma- licia á arrogancia do sexo forte. Os admiradores fica- vam cá em baixo, talvez fazendo serenata, sendo bem possivel que o amoroso encontrado por mim esti- vesse, felizmente, a “ouvir estrellas...” N'esse mesmo dia ficou estaqueado o couro; parte das costellas da nossa victima foi deliciada ao jantar, reclamando todos nós, como Roosevelt, “mais onça”; o outro lado das costellas, porém, fôra pre- parado em banha, e enlatado, para acompanhar-me ao Rio de Janeiro. Deitámo-nos absolutamente certos de que, no dia seguinte, o macharrão enamorado seria nossa presa; essa convicção redobrou pelo facto de ter Seia chovido até às 3 da madrugada, o que tornava facil reconhecer com segurança o rasto depois d'essa hora, e foi assim que, bem cêdo, partimos animados para o capão do encontro. De facto, ou porque o macharrão tivesse pas- sado a noute a preencher algumas formalidades ri- tuaes desconhecidas dos homens, ou porque não hou- vesse perdido a esperanca de rever a eleita do seu coração (2), o caso é que lá estava, em abundancia, o rasto fresco do meu amigo. (Parece que seria in- gratidão tratal-o de outro modo). Os cães, sem enthusiasmo, tomaram o rasto e logo perderam; retomaram adeante para de novo perder. Agora seguiam firme e, ás vezes, tinhamos a impressão de que a acuação estava immimente, mas os cães, de repente, emmudeciam surgindo além, e não encontravam o macharrão que, forçosamente, estaria n'aquellas cercanias. Nós, e principalmente os zagaieiros, comecámos a rastejar ajudando os cães; mostravamos o rasto, seguiamos, instigava- mos, tudo em vão. Por fim, nós mesmos trilhámos; penetrámos n'um acuryzal, onde nos parecia impos- sivel não estar o macharrão, batemol-o todo e com assás cuidado, mas qual; depois de muito trabalho, os zagaieiros decidiram que “o bicho tinha parte com o Diabo”, e resolvemos tomar o rumo de casa. Para não chegarmos com as mãos abanando e ter- mos carne para o jantar, matei algumas araras, um pato e um cachaço, este a bala e a mais de cento e cincoenta metros. N'esse dia, à tarde, chegou um “proprio” com uma carta chamando o Junqueira com urgencia: o Governo tinha resolvido inaugurar o trafego da Es- trada, por aquelles dias; já um ou mais Ministros e respectivas comitivas estariam em viagem; uma lancha aguardava o Junqueira no porto do Riozinho, e era necessaria a sua presenca no Ladario. o +> Leo! [5] (o) (o) “o Eae) E A q [oo] s fon] +> q + k: o [e] E E| ad An o o E) E Ss [o q 1 S o E « «q ) o A | b E n . R / , + “a - Em ] À p 4 b ER l a as o « " A a) á “ , A ; ] baia CNP DV Pr pie dd ! 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O amigo Gomes ainda estava com a peonada no Riozinho, no penoso trabalho de apartar e conduzir o gado; e nós, para podermos gozar a companhia do Gomes e d'essa bôa gente, deixámos partir a lan- cha, resolvendo descer o Taquary no outro dia, em canõa, até ao Paraguay. O resto do dia da nossa chegada foi tomado em apreciar o exhaustivo e perigoso trabalho do aparte do gado semi-selvagem, utilizando os peães, para tal serviço, cavallos ainda chucros; vimos a peonada laçar os cavallos, amarral.os a palanques, arreial-os, montal-os e, só depois d'isso, mandar desamarral-os do palanque e sahir com elles campo a fóra; e era com esses animaes, completamente desobedientes, exigindo talvez mais attenção de que o proprio gado, velhacos e manhosos, que a peonada ia trabalhar, como presenciámos. Não era, pois, para admirar que, como succedera na vespera, um touro matasse um ca- vallo, só não matando o cavalleiro graças ao prom- pto soccorro dos seus companheiros. Depois de apar- tado o gado que deveria seguir para o Formigueiro, foi elle trazido para a mangueira, onde ficou encer- = BG = rado; a peonada desencilhou os cavallos e, á tardi- nha, saboreámos todos o delicioso churrasco. Esmaecia aquelle dia de vida simples no meio de gente simples; os patos bravos passavam em pe- quenos grupos á busca do pouso, que era constituido por cinco bellos cambarás, quasi em frente ao porto; os tordos despediam-se do dia que findava, e os grillos saudavam a noute que já vinha; estrellas e pyrilampos surgiam na vastidão sem luz; e os peães tiravam as primeiras notas da gaita de foles, em-. quanto o primeiro matte espumava na cuia... À conversa triste de quem se separava foi aos pou- cos perdendo vigor, as rêdes já se immobilizavam, e não tardou que o silencio reinasse soberano, no galpão do Riozinho e por sobre a vastidão do pamn- tanal. No dia seguinte, muito cêdo, começou o servico de atravessar o rio com a boiada: um grupo de peães atravessou-o em canôa, levando arreios; depois, acompanhados e guiados pela canôa, atravessámos os cavallos, em viagens successivas. Jásse primeiro grupo, já na outra margem, encilhon os animaes e, uma vez isso concluido, comecou o outro grupo de peães a forçar o gado a transpôr o rio, e emquanto alguns peães obrigavam um certo numero de bois a cahir n'agua, outros, na canôa e despidos, agui- lhoavam, guiavam e forçavam os animaes a seguir para outra margem, onde já a cavallo, o primeiro grupo de peães mantinha rodeio. Acontecia, porém, que, muitas vezes, um ou mais bois, desviando-se do grupo que, a nado, atravessava o rio, não podendo ser seguidos pela canõa, que era unica, obrigavam os peães a atirar-se á agua e, tambem a nado, for- car os recaleitrantes a entrar no bom caminho. Terminado esse serviço que, comquanto rude e pe- noso, deu ensejo a bôas risadas, dissemos um pro- longado adeus á peonada e ao amigo (Gomes que, 167 com todos reunidos na outra margem, seguiram to- “cando a boiada campo a fóra. Logo embarcados no batelão, em companhia de tres peães, partimos por nosso turno, rio abaixo, deixando deserto o retiro de Riozinho. Não tinha- mos descido trezentos metros, quando ouvimos vozes na margem que haviamos deixado, e, logo após, com grande surpresa, avistámos gente da lancha que tinha partido na vespera; gritâmos por esses ho- mens, atracámos ao barranco, recebemol-os no ba- telão, e soubemos que, tendo a lancha encalhado desde a vespera, mnito abaixo do retiro, tinham elles sido mandados em busca de auxiho, para o que ti- nham partido, ao clarear, em uma chalana, por elles deixada pouco abaixo de onde estavamos. Como não houvesse mais ninguem no Riozinho e fossemos nós os unicos a poder prestar algum auxilio, continuá- mos a descer o rio, reembarcámos os homens na cha- lana que encontrámos instantes depois, e, por fim, ao cabo de bastante tempo de viagem, encontrámos a lancha fortemente encalhada, e o Junqueira no auge da raiva com o retardamento de seu regresso e o divertimento d'aquellas ultimas doze horas... Eramos mais cinco para o trabalho de safar a lancha, e depois, bem dispostos e de bom humor, animámos o pessoal, rennimos os esforços, traba- lhámos forte e insistentemente, e, ao eabo de muito tempo, muito trabalho e muita tenacidade, a lan- cha continuou encalhada... Felizmente, dentro em pouco, chegaram duas lanchas com material e pes- soal para o desenealhe, e, como não fosse mais ne- cessario o nosso auxilio e precisassemos chegar ao rio Paraguay, retomámos o nosso batelão, deixâmos a lancha, e proseguimos na descida. Nós tinhamos planejado matar um ou dous ja- carés para tirar uma photographia original, que ha- viamos imaginado; mas, como esses animaes eram MT pe encontrados em abundancia por toda a parte, fomos sempre deixando para mais tarde a execução do | plano, e, agora, já quasi abandonando a zona dos jacarés e a possibilidade de matal-os, achámos que era chegado o momento de pormos em pratica o que planejaramos. Assim, de revólver e carabina, fomos espreitando e atirando nos jacarés que se apresen- tavam, mas, com tal caiporismo que, ou porque fos- sem ao fundo, ou porque se não pudesse chegar até onde estavam, ou, finalmente, porque errassemos, o facto é que, já estavamos quasi no rio Paraguay e não tinhamos conseguido a photographia. Por fim, Justamente na foz do Taquary, em um espraiado que fórma a juncção da sua margem direita com a es- querda do Paraguay, vimos um grande jacaré e, pro- ximo, duas ou tres cabeças de outros d'elles, emer- gindo do rio. Um de nós visou o jacaré que estava em terra, e o outro, escolhendo a maior das cabeças que surgiam imprudentes, os tiros partiram; o pri- meiro dos jacarés ficou onde o desejavamos, mas, o outro, tendo afundado no local em que se achava, foi a custo laçado e rebocado para a terra, ainda com vida. Uma vez em terra o segundo jacaré, o fino e aguçado facão do Bernardo traspassou-o varias vezes sem conseguir matal-o e, como fosse indispen- savel a absoluta immobilidade dos jacarés para o arranjo que desejavamos, outra bala foi encravar-se na cabeça do animal, outras tantas facadas o atra- vessaram e, parece incrivel, não conseguimos vel-o immovel. O sól já se escondia atravez da muralha que, n'esse tempo de queimadas, vae á grande altura acima do horizonte, impedindo uma bôa photogra- phia, e como ainda coincidisse com isso a apparição das lanchas, com ellas nos dirigimos para a choça do Gregorio, onde tinhamos estado havia dous me- zes, na outra margem do Paraguay, abandonando os jacarés sem a photographia. a aa prece aEz ate Garandazal visto através da janella do wagon de Carandazai ão Na estaç Ç de Cuaycurus Uma das onças da estação CAPITULO XI Das margens do Paraguay ao Rio de Janeiro, por terra. Despedimo-nos do pessoal das lanchas e do ba- telão que partiram subindo o rio, e nós, á espera da lancha que deveria descer para Porto Esperança, alh ficavamos para seguir esse destino. A lancha cos- tuma passar á tardinha pelo local em que estavamos e, como havia jantar a bordo de tal lancha, não trou- xemos matula, fiados n'esse jantar. Aquelas para- gens do rio Paraguay tinham, não ha que duvidar, o máu vezo de torturar-nos á fome, e, como se não bastasse o quasi jejum a que fôramos obrigados tres mezes antes, agora, com desapontamento e tristeza, vimos chegar a noute e os mosquitos, e não viamos chegar a lancha... nem o jantar. Revolvemos os meus celebres alforges onde, outr'ora, alguem Já dissera só não ter encontrado um guarda-chuva e um pouco de toucinho, e, retirando d'esse bazar ambu- lante uma lata de pecegada por lá perdida, jantámos admiravelmente bem... Já era noute fechada; passavam-se os minutos e as horas, e a lancha, n'um atrazo que nos deixava cheios de inquietação, não dava nenhum signal de gos que, nas lanchas, subindo o rio, encontrariam a vida. Tinhamos, por precaução, incumbido os ami- que esperavamos, de prevenir que aguardavamos a e E sua passagem na choça do Gregorio, onde deveria- mos embarcar; comtudo, apezar d'essa medida, aguardavamos anciosos e alertas a passagem da atrazada conducção, que deveria parar pelo aviso que teria recebido e ao signal que fariamos, signal que consistia em agitar uma luz na barranca, e que é convencional entre todos os navegadores d'aquelles rios. Finalmente, depois de 10 horas da noute, ou- vimos o barulho da lancha, acompanhado de outro rumor estranho, que parecia de algazarra. Logo que | avistámos as luzes de bordo, começámos a agitar a nossa lanterna e, embora notassemos que a lancha descia um pouco além de onde estavamos, attribui- mos a natural necessidade da manobra, e esperámos tranquillamente. Logo pareceu-nos, porém, que, no meio da enorme gritaria, incomprehensivel para nós, de um grande grupo de homens que viajava n'um saveiro ao lado da lancha, esta não se dispunha a atracar e descia o rio. Começámos a gritar com to- das as nossas forças e sacúmos de nossos revólveres e, com mais vontade de atirar na gente da lancha do que lhe chamar simplesmente a attencão, fizemos va- rias detonações, para o ar; mas qual; aos gritos, vivas e berros dos “alegres” passageiros, a lancha descia tranquilamente o placido e sereno Paraguay, deixando-nos a espumar de raiva e nas mais criticas condições. Perdida aquella conducção unica, só teriamos trem para o Rio d'ahi a uma semana! e isso em con- dições normaes, sem contar com as complicações e alterações que, forcosa e indubitavelmente, traria a inauguração da Estrada; e nós estavamos sem re- cursos, absolutamente desprevenidos para permane- cermos onde estavamos, e sem meios de transporte, quer para Porto Esperança, quer mesmo para Co- rumbá. À nossa situação era das mais afflictivas; er: mesmo d'aquellas cuja solução só poderia ser AM o achada, se fosse, com muita reflexão e calma; mas, uma vez que o rio Paraguay não nos cedia a calma das suas aguas, como encontral-a n'aquelle mo- mento de tanto furor? Precisavamos dormir, pois que, embora não nos fosse possivel aconselharmo-nos com o bom conse- lheiro que dizem ser o travesseiro, e isso pela razão simples de não o possuirmos, ainda assim, a calma trazida pelo somno indicar-nos-ia, por certo, um bom caminho. Mas, estavamos ainda extaticos no bar- ranco, fuzilando com o nosso olhar toda a gente da lancha, quando ouvimos que da mesma partia um apito. Que seria? A lancha começou a manobrar como que para subir o rio e. ainda por alguns mo- mentos, tivemos a vaga esperanca de que poderia ser para vir ao nosso encontro; mas não tardou essa illusão; percebemos que ella ia atracar na “Manga”, na margem opposta e cerca de um Kilometro abaixo, na Fazenda Firme. Então, passando por nós o ultimo raio de espe- rança, com a resolução, a energia e a força dos que se agarram á taboa de salvação, corremos a uma canõa e remámos, com furia, em direcção á lancha. Ajudados pela correnteza, desciamos celeres o rio; mas, seriamos capazes de alcancar a lancha ainda atracada ao barranco? Curtos, mas anciosos, esses momentos em que a esperança alternava com o desanimo; ao menor baloicar das luzes da lancha, logo concluímos que ella estava em marcha, e renascia a esperarica quando, por entre o vozerio, constatavamos que nenhum ru- mor se ouvia que indicasse movimento da machina. A canda fendia sempre rapida o rio calmo; já esta- vamos muito proximo, e eis que ouvimos e vemos lancha e saveiro largando do barranco! A lancha teria de subir um pouco o rio para poder manobrar, e, como tivesse de vencer, além da inercia, a corren- de) teza do rio, o seu movimento era muito lento; e en- tão, fazendo voar a nossa pequena canôõa e recor- rendo a um alvitre desesperado, abordámos a nossa presa mesmo em movimento. Estava, felizmente, salva a nossa situação; e fazendo a lancha subir até onde estava a nossa bagagem, recolhemol-a a berdo, despedimo-nos do bravo Gregorio, graças ao qual conseguiramos aquella victoria, e começámos a des- cer o Paraguay, com destino a Porto Esperança. A inauguração official da Estrada já fazia sen- tir, como esperavamos, os seus máus effeitos: só pelo acaso, e pela nossa energica resolução, conseguira- mos estar viajando para Porto Esperança e não ficá. mos na barranca do Paraguay, e isso devido a alga- zarra dos “muito alegres” passageiros que iam á inauguração. Agora, já a bordo e com os estomagos reconfortados, ficámos sujeitos á barulheira infernal da gente da inauguração, e, se esse grupo tivesse de viajar comnosco, o que ignoravamos, seria a conti- nuação do supplicio. No meio do alarido, armámos as nossas rêdes em dous varões da tolda, como os demais passageiros, e como sempre acontece, pois que, nos pequenos vapores que viajam pelos rios de Matto-Grosso, tal como succede no Amazonas, não ha camarotes, e muito menos beliches; mas, ainda assim, apezar d'esse alarido e do nenhum conforto das rêdes, não tardou que dormissemos. Antes do clarear, chegámos a Porto Esperança, onde encontrámos fundeado o ex-meu “Oyapock”, que all estava á espera da comitiva ministerial; logo baixámos á terra e, ao clarear, fomos ao en- contro do amigo que nos convidára para a caçada na Bodoquena, e que, como previramos, estava ata- refadissimo com a nossa inimiga —a inauguração. Percebemos claramente que seria de todo impossivel realizar tal cacada n'aquelle momento e, pondo á vontade o pobre homem que estava em sérios apuros, a dj d'ella desistimos e resolvemos partir incontinente para Campo Grande, onde descontariamos nas per- dizes as onças da Bodoquena. Alguns camaradas de bordo do “Oyapock”, tendo sabido da nossa presenca, vieram ainda uma vez dizer-nos adeus; lancámos um ultimo olhar sobre o nosso navio e sobre o majestoso Paraguay, des- pedimo-nos dos collegas, e saltámos para o trem que ia partir atravez do pantanal. A primeira etapa da viagem seria principal- mente constituida por quarenta kilometros de linha semi-permanente, construida toda ella sobre aterro, atravessando o pantanal de caprichoso regimen de aguas; estava elle agora inteiramente a secco, e pas- savamos, ora por extensões cobertas de macéga, ora cobertas de “para-tudo”, essa arvore commum no pantanal e que, perdendo as folhas em certa epocha do anno, cobre-se inteiramente de flores amarellas, formando extensas manchas de rara belleza. Mais além, atravessámos um campo que poder-se-ia dizer de cupins, tal era a quantidade de monticulos que recebem o nome do insecto que os constróe e habita, monticulos que, n'esse local estendendo-se a perder de vista, accumulavam-se distando uns cinco metros entre si. Vinham depois os interminaveis caranda- zaes, cujos vultos erectos avistavamos, ininterruptos, atravez das janellas do wagon. Caminhámos, cami- nhámos muito; passámos a Estacão de Bodoquena, que nos tirou um suspiro de tristeza pela caçada que perderamos, devido á maldita inauguração; atraves- sámos acuryzaes que nos lembravam as nossas bôas e agradaveis caçadas de onça, das quaes já começa- vamos a ter saudades; passámos, com um pouco mais de caminho, pela Estação de justificado nome — Ca- randazal —e seguimos sempre. Estavamos ainda vestidos com os nossos trajes de cacada, com que sahiramos das Palmeiras, pois, ERRA ri: tendo de continuar essas caçadas, tal como conta- vamos até chegar a Porto Esperança, não tivemos, com a brusca resolução em contrario, tempo nem occasião de abandonar aquelles trajes, que nos des- figuravam um pouco e nos davam ares de matutos. FEstavamos assim viajando, e tranquillamente pa- rava o nosso trem a uma Estação, quando, com sur- presa tão grande quão agradavel, vejo chegar, em sentido opposto, e parar, um trem de inspecção con- duzindo um dos meus bons amigos do Rio de Ja- neiro. Salto ao encontro de quem não abraçava havia tanto, mas, tão “acaipirados” estavam os meus tra- jes que, apezar de tratar-se de pessõa da maior inti- midade, só fui reconhecido ao abracal-a. .. No inter- rallo de poucos segundos que o men trem permittiu estarmos juntos, combinámos que nos tomaria esse amigo em Campo Grande, e que nos manteriamos em companhia até o Rio. Logo partimos em rumos oppostos e, algum tempo depois, chegavamos a Guaycurús, onde duas onças enjanladas pareciam trazer-nos as despedidas das nossas sempre lembra- das caçadas. Já noute, chegámos a Aquidauana; ahi pernou- tâmos e, pela madrugada, de novo rodavamos sobre os trilhos à busca de Campo Grande. N'este acanha- dissimo resumo de viagem não ha a menor intenção de detalhar o que vi, mas, é forcoso notar a gar- ganta por onde atravessámos a serra de Aquidauana, interrupção natural d'essa alterosa massa, onde pa- recia existir o determinado proposito de deixar uma passagem franca ás communicações que, dia viria, certamente seriam exigidas pela civilização, como realmente agora acontecia; e a via-ferrea, aproveil- tando a grandiosa previsão da sábia natureza, sem tropeços, nem difficuldades, sem uma obra d'arte, se- quer, conduziu-nos victoriosa atravez da altaneira muralha, por essa grande e majestosa porta. Ainda cêdo, chegámos a Campo Grande, e pas- mámos deante do resultado de sementeira tão nova que tão rapidamente produzira aquelles magníficos rebentos. Campo Grande, sertão imeulto, havia qua- tro annos, já era um centro de febril movimento, onde até a industria já penetrára; o lugarejo se alar- gára em villa, e a villa, dilatando ininterruptamente as suas fronteiras, multiplicára seus habitantes, se aformoseára, attrahira e creára fóros de cidade. O sólo que pisavamos, como aliás toda a vasta região sul-matto-grossense, é de uma uberdade inconcebi- vel; e dar-se-á uma ideia d'essa fertilidade se disser- mos que vimos: um cará com sessenta kilos (o que não constituia excepção), e repolhos de nove kilos. Tinhamos reservado o dia seguinte para conhe- cimento da futurosa e pequena cidade, e para nosso repouso, e só no outro dia deveriamos começar a caça ás perdizes. Tinhamos sahido a passeio, nesse dia que se seguiu ao da nossa chegada, quando, ao regressarmos á casa do amigo que nos havia aco- lhido com a proverbial gentileza do interior, rece- bemos um telegramma do amigo que encontraramos antes de Aquidauana; e n'esse telegramma, elle nos prevenia da sua passagem por Campo Grande, den- tro de poucas horas, e pedia-nos que. estivessemos, promptos para acompanhal-o. Não tinha entrado nos nossos calculos um tão rapido regresso, mas, não só porque houvessemos combinado, como porque nos fosse muito agradavel a companhia dos amigos, de- veriamos desistir da caça ás perdizes e abandonar Campo Grande. Foi com gigantesco esforço das la- vadeiras, e graças ao sól de Matto-Grosso, que con- seguimos ter as nossas roupas, senão limpas, ao menos seccas, dentro de pouco tempo; e assim, remo- vido esse que era o maior obstaculo, já nos encon- traram na Estação os amigos que nos buscavam. TO O meu amigo Weinschenck viajava em compa- nhia do Dr. O. Guimarães, engenheiro da Estrada que trilhavamos; a elles juntámo-nos, eu e o men amigo Nelson, e assim, em alegre companhia, dei- xámos Campo Grande, viajando na varanda do carro de inspecção, na frente da machina, o que trans- forma a viagem de trem, de fastidiosa e incommoda, em deliciosa. A Estrada, ainda em muitos trechos correndo sobre linhas provisorias e pontes de “fo- gueira”, não permittia um trafego isento de surpre- sas; e foi assim que, tendo deixado Campo Grande na intenção de pernoutarmos muito além, parámos, depois de um pequeno percurso, deante da impos- sibilidade de atravessar uma ponte, que ameaçava ruir, e na qual já trabalhava com ardor uma grande turma de operarios. Como chegasse a noute e não estivesse terminado o trabalho de estaqueamento da ponte, regressámos a Campo Grande, onde jantâmos, e resolvemos dormir no proprio trem. O carro só tinha dous leitos, mas, eu e o Nelson, apparelhados para as nossas caçadas, tinhamos rêdes, mosquitei- ros e cobertas á mão, e tudo se arranjaria perfeita- mente bem, quando o guarda do carro, na intenção de ser amavel, dirige-se ao Guimarães e diz-lhe: “Mas, tem a cama do Sr. Dr. Weinschenck, que póde servir para um dos mocos”. O meu Weinschenck, re- velando pela physionomia e pela entonação da voz um grande espanto, pergunta admirado e surpreso: “Minha cama?!” “Sim senhor, senhor doutor, a sua cama de campanha veio aqui no carro e está guar- dada”, responde o guarda. “Mas, eu não tenho cama alguma”, retruca o meu amigo. E já começavamos a rir com a trapalhada, quando, tendo o guarda se retirado por um instante, volta com uma cama de campanha, e as nossas risadas explodem. Eram ainda fructos da inauguração, d'essa vez, porém, favoraveis a mim, pois que me apossei da cama; ella Sho es pertencia, como verificámos depois, a um amigo meu, tambem engenheiro da Estrada, e que, acompa- nhando a comitiva da inauguração, não sabia expli- car onde andaria semelhante cama, e bastantes sau- dades d'ella sentiu... No dia seguinte, 15, pela manhã, deixámos de- finitivamente Campo Grande e começámos a atra- vessar uma das mais ricas e futurosas zonas do nosso paiz: campos de magnificas pastagens estendem-se por toda parte, uns em planicies ininterruptas, taes como as da “Vaccaria”, outros em suaves ondula- ções e cortados de regatos, outros ainda salpintados com o verde escuro dos capões que surgem agul e além, e tudo, emfim, offerecendo-se ao homem na plena manifestação da generosidade da natureza, convidando a um trabalho facil e seguro, nobre e fecundador. Depois de alguns dias de viagem, muitas vezes interrompida para pousar, jantar com um amigo ou visitar uma fazenda, chegámos á joven e florescente “Tres Lagõas”, a poucos kilometros do majestoso rio Paraná, isto é, a poucos kilometros do Estado de S. Paulo. Tres Lagôas tinha, então, tres annos de existencia, mas, sendo a séde de officinas, escri- ptorio e administração da Estrada, embora tivesse começado a existir como simples acampamento dos exploradores da mesma Estrada, já contava, quando lá chegámos, com regulares recursos; possuia as suas ruas bem alinhadas, hotel, bôas casas de commercio, e sobretudo um risonho futuro deante de si. Como tivessemos de ahi demorar tres dias, fo- mos convidados para uma pequena excursão pelo rio Paraná, passando pelo estreito canal do Jupiá, que deverá ser transposto pela futura ponte. Acceitámos gostosamente o amavel convite e, depois de vencer- mos os poucos kilometros que nos separavam do grande rio, lá encontrámos um pequeno vapor, que Viagens e Caçadas = Pub Sa faz a carreira entre o porto de Jupiá e Rio Pardo, e n'elle embarcámos. O rio, que ahi corre em leito todo de pedra, estava em grande vazante; comtudo, - a sua profundidade, no canal que será transposto pela ponte, era de quarenta e cinco metros! A explicação, porém, é facil, pois que, por esse canal, que tem apenas cem metros de largura, passa todo o grande rio, em vertiginosa carreira, para loge desembocar n'um meandro de ilhas e pedras, por en- tre as quaes, só a habilidade de alguem, com muita pratica, poderá conduzir uma embarcação. O nosso pequeno navio, de roda á pôpa e dimi- nuto calado, não poderia ter bôa velocidade; e logo se me afigurou a dificuldade em conseguir-se gover- nal-o, e talvez a impossibilidade de vencer a corren- teza do rio, quando tivessemos de subir. Largámos; começámos a descer, e logo entrámos no canal, onde as aguas vertiginosamente arrastavam o nosso pe- quenino vapor; e eu via que iamos deixar esse canal e que, perigosas, surgindo de todos os lados, umas a descoberto e outras visíveis atravez das aguas crystallinas, as pedras nos cercavam pela prôa, n'um lugar em que a correnteza era fortissima e onde me parecia impossivel qualquer manobra. Dentro em pouco estavamos em pleno labyrintho de pedras; a agua borbulhava espumante, formando ondas que chegavam a galgar o convez, aliás baixo, do nosso vaporzinho: era a travessia de uma “corredeira”, e das mais vertiginosas, com todas as suas difficulda- des; e o homem do leme, calmo, sereno, como se não tivesse de vencer obstaculo algum, zombava, sem o saber, de toda a minha proficiencia maritima... Depois de percorrermos um certo trecho do rio, encostámos a uma das interessantes ilhas, que são bancos durante as cheias, e que são inteiramente co- bertas de pedras roladas. Logo nos puzemos á cata das mais bellas: mas, em menos de um minuto, veri- — 179 — ficâmos que, ou teriamos de renunciar ao desejo de levar todas as bellezas com que deparavamos, ou te- riamos de fretar outro vapor para leval-as ao porto... Ainda assim, tendo apanhado um grande numero d'ellas depois de tirarmos um grupo conser- vador de tão agradaveis impressões, reembarcámos, e comecei logo a dar tratos à imaginação para des- cobrir como seria possivel, mesmo com a habilidade que já testemunhára, fazer o nosso barco subir o rio. Se as minhas preoccupações já existiam ao re- embarcar, maiores e mais intensas foram ao enfren- tar as aguas revoltas da impetuosa corredeira; era todo o caudaloso rio, que, sacudindo o jugo do es- treito canal em que a terra o apertára, surgia, ral- voso, espadanando as suas aguas com furia, espu- mante e veloz; e o nosso pequeno vapor teria de vencer essa correntada, manobrando por entre o in- trincado labyrintho das pedras que nos cercavam. Em cima, todos nós tinhamos os olhos fixos nos esco- lhos que nos ameaçavam e, em certo momento, como o vaporzinho não pudesse vencer as catadupas d'agua que lhe assoberbavam, foi violentamente arrastado pela correnteza, para cima de umas pedras em que a agua quebrava com violencia. Todos nós viamos, n'aquelle instante, o risco imminente do na- vio avariar-se de encontro ás pedras, em violento choque, sendo, provavelmente, arrastado depois pela correnteza. Segurei-me fortemente a um estay, pars resistir ao choque, e os outros companheiros, segu- rando-se do melhor modo, todos esperavamos o mo- mento do violento encontro, quando, com a mais im- - perturbavel calma, o pratico encostou suavemente o navio á ameaçadora pedra, como se se tratasse de uma bem manobrada atracação propositadamente feita n'aquelle ponto... O vaporzinho estava agora fortemente imprensado pela agua de encontro ás pe- dras; mas, depois do que acabava de ver, foi sem — 180 — admiração que assisti a pôlo ao largo, vencer as catadupas da corredeira, subir o canal, e, por fim, deixar-nos sãos e salvos no porto de onde haviamos partido. Regressámos a Tres Lagõas, caregados de pedras e com a impressão de que as d'aquelle rio não furam casco de navio; e, depois de termos dei- xado passar, no dia seguinte, o comboio da inaugu- ração, preparámo-nos, por nosso turno, para deixar o immenso Estado de Matto-Grosso, saudosos das “acadas magnificas que ahi fizeramos. Partimos, emfim, de Tres Lagõas, e logo chegá- mos á margem do Paraná. Já na vespera tinham atravessado o rio os carros que fariam parte do com- - boio, e agora, felizmente, só restava transpormos o r1o com a nossa bagagem; deixámos, pois, a margem direita do Paraná e o Estado de Matto-Grosso, e, após curta travessia, atracavamos á margem es- querda, no progressista e adeantado Estado de S. Paulo. O comboio poz-se em marcha, mas, poucos kilo- metros após, na Estação de Itapura, apeámos, to- mámos um trem de lastro puxado por uma pequena locomotiva, e chegámos, depois de curto trajecto e pequena marcha a pé, ao majestoso salto de Itapura. Antes de entrar no Paraná, o Tieté, grande- mente largo, despeja-se em bello salto, ou melhor, em tres grandes saltos, que se unem, ou se separam : por saliencias mais fortes do leito do rio, conforme a cheia, ou a vazante. Era com este ultimo aspecto ' que o admiravamos e, depois de eu tirar algumas photographias, retrocedemos e ganhámos a Estação que recebeu o nome de tal salto. Reencetámos a nossa viagem e, agora, que não mais estavamos em Matto-Grosso, penetravamos na grossa matta do Estado de S. Paulo, atravez da qual corria o nosso comboio, floresta tão extensa, tão ma- jestosa, e que fórma um flagrante contraste com as O auctor e alguns amigos em uma das ilhas do alto Paraná Wagons transportados para a margem paulista pa Trecho da cachoeira de Itapura, e o meu amigo O. Weinschenck (TS campimas de Matto-Grosso, que haviamos deixado. Sempre em marcha, iam os traços da civilização apparecendo, como os degráus de uma escada; era o sertão, o solitario e imponente sertão empolgante que desapparecia, e a fascinante e seductora civili- zação que surgia: já despontam os arruados café- Zzaes, apparecem as casas cobertas de telhas, vêem-se estradas cuidadas, emergem as cidades illuminadas, e OS carros cruzam as ruas... Amanhecemos em Baurú e tomámos um trem da E. F. Paulista, mais confortavel, mais limpo, cor- rendo em leito lastrado de pedra, e com wagon restaurante; ha flores na mesa e vêem-se jardins atravez das janellas do carro; apparecem as cha- minés dos engenhos, e depois as das fabricas; as es- tações são agora mais amplas e mais limpas; avis- ta-se um agglomerado compacto de casas que se perflam como militares, automoveis circulam pelas ruas, muita gente cruza e passa, apregoam-se jJor- naes — é Campinas. | Anda-se mais, ainda mais, e um clarão, que o céu reverbéra, annuncia um grande conjunto de lu- zes; ellas já surgem agora como pyrilampos esparsos pelos campos, juntam-se mais e ainda, rebrilham e cercam-nos por toda a parte n'uma área immensa; silvam outras locomotivas e a nossa, automoveis bu- zinam de todos os lados; passam velozes e repletos de gente os bondes illuminados; torres e abobadas projectam-se na noute; um borborinho de vida in- tensa estúa nos ares — é uma grande cidade: São Paulo. Embarcámos agora em confortavel nocturno da E. F. €. B,, na grande estação da Luz; deixámos a Capital Paulista, e, sonhando com os bellissimos pa- noramas que d'essa Estrada se descortinam na Serra dos Orgãos, despertámos em Belém, início da grande baixada que se estende até o mar. À pressa, — 182 — essa noção do tempo exacto e escasso, essa inimiga acerba da liberdade e companheira inseparavel da civilização, lá estava, despotica, irritantemente im- periosa, movendo os homens submissos que, — tal é a força do habito — nem se apercebiam da servidão a que estão sujeitos. A estação, repleta de passa- geiros dos dous comboios que ahi se cruzavam, fer- vilhava de gente e de estonteante barulho; uns engulindo o café, outros correndo ás gulozeimas, ou- tros, ainda, procurando os jornaes, todos se entre- chocam e cruzam em confusão e pressa; e, ao apito da locomotiva, galgando o trem com soffreguidão, to- dos retomam os seus lugares, carregados de jornaes. Mas o carro rola e corre; e da vasta cidade e da enorme bahia, as montanhas que a ambas ornam, cercam, azuladas ha pouco no horizonte, tomam vulto, avolumam-se, approximam-se. Ficam pr'atraz os campos semi-incultos e as casas de sapé, onde se abrigam moradores de iden- tica cultura. Surgem, distante, chamimés de fabricas, e o fumo, que em roldão cavalga os ares, sem o per- fume da offerenda antiga, é ainda o de um outro sacrificio onde a moderna victima é o homem, e o ouro o Deus que se cultúa e adora. Tange teu gado às rudes soalheiras, vaqueiro do sertão! Moureja, e cava, e planta, e ceifa e colhe, oh! matuto feliz das nossas selvas! Eº livre o teu correr pelas campinas! ensombreja-te a casa a ra- maria da virente floresta! E” teu o céu profundo e constellado, e o rio que te serve, e o bosque, e o campo, e a fonte, e a estrepitosa cachoeira! Rebrilha o sól nos vidros das janellas, nas cupo- las, nas torres, nos zimborios; as casas juntam-se SME em grupos e, em pouco, já se agglomeram; são as ruas, agora, já calçadas; as casas se acotovelam; bondes, trens, caminhões e automoveis, correm, sil- vam, circulam, atordôam. Nas estações a multidão se apinha; regorgitam de gente as plataformas, atu- lhadas de povo; os trens, repletos, e mesmo trans- bordando, vão ficando para atraz, em marcha tarda, emquanto nós passamos os suburbios. Visão fugaz que a retina mal colhe, passa pela ganella do wagon um pequeno recanto da bahia: ao longe, a serra, azul e alcantilada, fórma o fundo im- ponente e majestoso; da Guanabara a nesga esver- deada reflecte o sól de chispas d'ouro fino; e as canõas, e os barcos, e os navios, baloiçando ou sin- grando as suas aguas, movimentam o quadro que nos foge. Mal se foi elle, e a quadrnpla carreira de co- lumnas esbeltas, encimadas de rendilhados capiteis de folhas, empolga a nossa vista; é rapido e é so- berbo! Mas o trem continúa, e lá deixámos as pal- meiras bellissimas do Mangue, pois que chegado estamos ao destino. Resfolegante, a machina soffreia a rapidez da marcha que trazia, d'outros comboios as escuras filas abrem alas ao rapido paulista; cada vez mais suave rola o carro; na plataforma já se reconhece um amigo, e mais outro, e outro e todos. O trem pa- rou, chegámos finalmente, após tão longo caminhar em trilhos. A braços com os abraços, que são muitos, a sau- dade, que o tempo tanto augmenta, afogâmos nos peitos que apertamos, e, quasi sem saber como, se- guimos, caminhamos e estamos já na rua. O auto- movel lá está, partamos n'elle; a explosão fez a ma- china mover-se, e os gazes empestaram o ambiente — oh saudoso perfume das florestas! — Umas ás outras juntas são as casas, e a terra, e a terra amiga — 184 — que sustenta, onde a seára cresce e o gado pasce, é coberta de asphalto, não respira, nem da noute re- cebe o doce orvalho. O automovel é rapido; que serve? de instante a instante pára, porque o transito impede a liberdade nos caminhos; e a multidão, que sofírega se agita, é como o gado preso na mangueira, que só passa quando se abre a porteira. Que liberdade estreita a das cidades!.. Pelas ruas, bem amplas, asseiadas, ladeadas de palacios onde o homem, enclausurado, vive contra- feito, rolamos sem rumor nem solavancos. Agora, penetramos na Avenida que é a principal arteria da cidade; mas é cêdo demais para vel-a cheia, pois, nas cidades, centro de vadios, ninguem desperta com “as sete estrellas”. Abrindo-se aos pulmões de quem respira, ha tanto, o ar liberrimo dos campos, surge a Avenida Beira-Mar, o encanto, o enlevo, a gloria justa d'esta terra: para um lado a tranquilla Guanabara que o ar agitado levemente encrespa, a cidade fronteira, a morraria, as ilhas verdejantes e o oceano, as serras que se azulam no horizonte, a vastidão do espaço e firmamento; e aqui, sob a copada ramaria das arvo- res, entre a relva dos canteiros, entre os bosques e as flores que perfumam, sentimos a caricia do ar mais leve que ora se encontra á solta nos caminhos. Embebidos na magna belleza d'esse sitio sem par, vamos seguindo as curvas caprichosas: da muralha, aos pés da qual o mar soluça e geme; e quando, n'um momento interrompido esse engaste da fulgida esme- ralda, irrompemos na curva graciosa da sublime en- seada— em Botafogo—um mundo de poesia nos empolga e parece-nos sonho. N'um céu azul, puris- simo, sem nuvens, destacam-se as montanhas majes- tosas da Gavea, o Corcovado, a Babylonia; montes — 185 — mais baixos descem d'esses montes, todos vestindo o verdejante manto das mattas, dos capões, das ca- poeiras; as casas, todas de jardins ornadas, desta- cadas no fundo verde-negro, haurem do mar a brisa sussurrante e acompanham a curva graciosa da pre- guiçosa e languida enseada; e lá, plantado á beira do caminho, erguendo ao céu a massa de granito, o monolitho immenso, o — Pão de Assucar — marco que ao longe o marinheiro avista indicando-lhe o porto desejado. Se, muita vez, o homem, no seu vezo de tudo aproveitar, mutila e enfeia tanto mimo gracil da Na- tureza, outras vezes, ao seu trabalho e engenho é que se deve o gozo inebriante de panoramas que, avara e egoista, a Natureza a todos occultava. Como um pesado e vagaroso passaro, vimos um carro, parecendo, ao longe, estar solto no ar, deixar o sólo e, conquistando a altura em marcha lenta, gal- gar o cimo abrupto da Urca; e depois, como tendo repousado d'aquelle esforço ingente, e inda sedento de mais altura e d'ar, deixar a Urca, e agora peque- ninho aos nossos olhos, destacando no azul o vulto negro, subir mais e attingir o pico agudo do solitario marco de granito. Que panorama soberbo se deve de lá gozar! Em baixo, o oceano azul, profundo, immenso, ao ca- pricho dos ventos farfalhando a cabelleira em cara- cóes de espuma; segue ao nascente a costa alcanti- lada em recortada serra caprichosa; para os lados do sul — Copacabana — a clara e bella praia que se encurva em voluptuoso dorso de felino, qual sensual ilharga feminina que a onda sem cessar acaricia; e a contemplar o longo, eterno beijo em que se estira a onda preguiçosa, se estende e se agglomera o ca- sario onde vitraes e cupolas rebrilham. Pelo poente andemos para o norte: reflecte o sól o espelho da La- — 186 — gôa; e até chegar à beira da bahia, recortado de ruas, Botafogo ostenta as casas e os jardins viçosos; Fla- mengo, Russell, Gloria, o Corcovado, a altaneira Tijuca e, finalmente, toda a vasta cidade e a morra- ria se deixa contemplar, como se fôra um gigantesco e primoroso quadro. E a Guanabara, placida, serena, em amoroso gesto abrindo os braços, descortina o contorno pittoresco do litoral immenso que elia ba- nha: ao fundo, altiva, majestosa e negra, os picos elevados recortados como agucados dentes de uma serra, jaz a Serra dos Orgãos; mais perto e para éste, pachorrenta, a somnolenta Nitheroy se avista; e longe do bulicio das cidades, e mais perto do céu, como que a alma se sente mais liberta e mais tran- quila. Mas, porque pára assim nosso automovel? Eº verdade que um som, que os ares córta, os meus ouvidos fere — não tem elle o langor da trova inge- nua que o sertanejo canta na viola — é o toque estri- dente, agudo e forte, da corneta de guerra. Passa a tropa, e em redor o chão resõa ao passo regular, ca- denciado, dos soldados que, em linha, perfilados, marcham ao toque agudo da corneta. Pesam-lhe aos hombros longas carabinas aos extremos das quaes, ao sólo doirado, reluzem aguçadas baionetas. E onde vae tanta gente assim armada? Contra que féras vão que, tão temiveis, exigem tanta força e tanta gente? Contra outros homens vão. Contra outros homens?! Sim; e na Europa, a muito culta Europa que dicta as leis da civilização, é por milhares, por mi- lhões que, agora, os homens se entrechocam e se ma- tam nos campos de batalha, e fóra d'elles... Foram Pa a rotas as leis da humanidade, e a barbaria antiga é rancorosa, à sciencia roubando os sãos progressos, como o genio do mal, sanhudo, horrivel, incendeia, destróe, mutila e mata. Bemdito sejas para todo o sempre oh! tranquillo sertão da minha terra! » e € LA E mede a “ O autor, tendo ido ao pan- tanal de Matto-Grosso em prin- cipios de 1919, e tendo tido a sorte de fazer, dentro de curto praso, magnificas caçadas, re- solveu, principalmente por causa de duas photographias verda- deiramente extraordinarias, es- crever um pequeno appendice onde narra, na presente edição, em resumo, essas caçadas. N. DO EDITOR. , de TH. ROOSEVELT nemoria saudosa homenagem do Es Ns 2 E ad TRE ERRATA Não tendo o autor podido rever esta ultima parte do livro, alguns erros escaparam e, entre elles, se destacam os seguintes que prejudicam o sentido do texto : PAG. LINHA ONDE SE LÊ: LEIA-SE : 191 12 em rememorar um rememorar 194 22 Araçatuba; Araçatuba, 198 30 Sebastião Bastos Sebastião Botto 214 28 "e que o que 234 6 | quasi se dormir quasi sem dormir » 33 | como louco, para como louco, saltou para 234 26 que elle ficava que lhe ficava 235 12 não comemos; não comemos Não comemos, nem 239 1 que inda o solo colóre que inda o sol colóre CAPITULO XII Seis onças mortas em seis dias! Os inglezes que vão ás Indias e gozam, durante algum tempo, o sól, a luz, o céu azul, o grande ar livre, a floresta e as bellas caçadas, sentem, quando de volta à nevoenta Londres, triste, brumosa e bu- lhenta Londres, uma grande saudade dos tempos de vida indiana, e chamam elles a isso: “The call of the East”. Quem tem alma de caçador e já teve a bôa sorte de caçar oncas no pantanal de Matto-Grosso, amda que em vez da fumarenta Londres esteja a viver no radioso Rio de Janeiro, sente uma attracção conti- nua, em rememorar perenne de impressões inesque- cíveis, uma saudade intensa d'aquellas scenas e emoções — “The call of the West” —, como então diriam os inglezes. E tantas e tão fortes foram as chamadas da sau- dade que, em 1918, escrevemos para os nossos amigos do pantanal e organizámos, para Setembro desse anno, uma caçada de onças em que seriamos compa- nheiros: eu, o Nelson, e o Luiz de Castro Guimarães, isto é, grupo da caçada cujo quartel general fôra Pirapóra, no anno anterior. Não quiz o destino que tal caçada se realizasse porque nenhum de nós conseguiu ficar bastante livre — 192 — para uma ausencia de, pelo menos, um mez; e quiz ainda o destino, cruel e implacavel, que o nosso bom e excellente amigo Luiz Guimarães perdesse a vida nesse mesmo anno, na terrivel epidemia de grippe que tantas vidas ceifou. Em fins de 1918 pareceu-nos que seria possivel arranjar as cousas de modo a podermos realizar o nosso sonho, privados embora, com grande saudade, do nosso Luiz. Os ultimos, como os primeiros mezes do anno não são indicados para caçadas no pantanal, pois, não só elles correspondem á epocha das grandes chuvas, como, o que é inconveniente ainda maior, a enchente, tudo alagando, difhculta, e mesmo im- possibilita a caçada de onças; estas, podendo fazer grandes travessias a nado, uma vez perseguidas, não hesitam em lançar mão de tal defesa, onde nem cães nem cavalleiros serão capazes de alcançal-as. Só em uma hypothese poderá a caçada ser bôa nessa epo- cha: será o caso da sua coincidencia com o começo da enchente. Então, vindo o gado, acoçado pela agua, refugiar-se, aos poucos, nos lugares “firmes” (sec- cos), as onças vêm acompanhando o gado, que é o seu pasto, e, se a caçada é feita ainda a tempo dos cavallos moverem-se livremente sem “nados” a fa- zer, então o momento é maravilhoso. Sem contarmos muito com as consequencias e resultados, escrevemos e telegraphámos para o pantanal, e tudo preparámos para partir em Janeiro de 1919. A 20 desse mez to- mava eu o nocturno paulista, sem outros companhei- ros que a minha arma de tres canos, a minha Remington 11, os meus alforges e o meu poncho. Ta só. Por minha grande infelicidade, o meu amigo e companheiro Nelson de Mello não podia acompa- nhar-me; mas, em S. Paulo, contava com deus bons companheiros para a extensa viagem: os meus ami- gos caçadores Epaminondas Martins e David Alves de Araujo. Antes das 7 da manhã estava em S. Paulo, Estação Presidente Penna Margem do Tieté Saltando do trem na margem paulista Passagem para a chata — 193 — e, logo na estação tive o prazer de ver o amigo Epa- minondas. Então, prompto? Podemos seguir? Não, não era possivel contar com o Epaminondas, nem tampouco com o David; mas, como eu teria todo o dia para resolver, pois deveria seguir no nocturno para Baurú, seria capaz de reflectir e voltar, para não ter de enfrentar sózinho uma tão longa e exte- nuante viagem. A mudança de horario de trens fez com que eu não tivesse esse tempo de reflexão, pois, tendo sido reduzidos os nocturnos, e não havendo um nesse dia, tive de partir tres horas após a minha, chegada, o que me deu tempo ainda para perceber que tinha esquecido o meu rewolver e, em bôa hora, levar o do Epaminondas, que esteve, como veremos, empunhado durante alguns minutos e a ponto de salvar-me a vida, no decorrer dessa campanha. Viajando sempre na confortavel E. F. Paulista, che- gámos pelas 9 da noute a Baurú, e logo fomos abra- car o nosso amigo Oscar Guimarães, que chegára, momentos antes, de outro local. Depois de matarmos saudades numa bôa prosa, fomos reparar as fadigas num profundo somno, e, pouco depois de 6 da ma- nhã do dia seguinte, 22, despedimo-nos do nosso amigo e partimos para Araçatuba. » Como é grato a um coração brasileiro ver os progressos rapidos do interior da nossa terra! Havia quatro annos e tres mezes que passaramos, vindo de Matto-Grosso, por aquellas mesmas paragens; e que differença, santo Deus! que differença! Localidades que tinhamos deixado em maito, encontravamos agora cobertas de cafézaes, de lavouras de cereaes, de algodão, ou cheias de habitações; estações que mal poderiam ter tal nome, eram agora verdadeiras cidades como Presidente Penna; os trens trafegavam cheios de viajantes que iam vender ou comprar mer- cadorias; e era gente que sabia apresentar-se, falar, convencer, persuadir; era a vida intensa, a permuta Viagens e Caçadas 13 e que traz a ambição e o conforto; era o progresso da agricultura e da pecuaria, era a riqueza do sertão! É, terra abençoada essa por onde passavamos, era preciso que nos indicassem os cafézaes damnificados pela geada de ha seis mezes, pois, inteiramente rever- decidos, dir-se-ia que nunca teriam soffrido mal algum! E foi com essas alegrias que, á tarde, chegámos a Aracatuba. Constatei ahi que a minha velha. machina pho- tographica tinha soffrido uma avaria grave e, apezar do progresso já ter feito surgir ahi uma série de bôas casas de negocios, não era licito esperar a pos- sibilidade de um concerto em regra, mesmo porque não haveria tempo; dispuz-me a procurar um carpin- teiro habil e, juntando essa habilidade á nossa bôa vontade, arranjámos um concerto feio, mas que per- mittia o funccionamento da machina: — foi uma sorte grande. Com o fim de atravessar o rio Paraná e ganhar Tres Lagõas, deixámos, bem cedo, no dia immediato, Aracatuba; não tendo tido, n'esse trecho de viagem, a felicidade de constatar os mesmos progressos vis- tos no dia anterior, pois que a má ideia de desviar o traçado da estrada, tirando-a do espigão para tra- zel.a para a margem do rio Tieté, equivaleu a trazel-a para uma zona grandemente insalubre, que jaz e ha de por largos annos permanecer inculta, devido á febre palustre; e, a menos que se creia num negro pernetta, que encontrámos na estação de Anáã- gahy, e que, mostrando-nos um bóde, dizia que “gra- cas à permanencia d'aquelle animal, tinha d'ahi desapparecido a maleita”; a não ser assim, só com muito longos e dispendiosissimos trabalhos poderá, em futuro remoto, ser saneada aquella zona. À nossa viagem tem sido sempre acompanhada de agradavel chuva, que nos tem amavelmente livrado do pó; Travessia do Paraná em. cheia Garganta da Bodoquena — 195 — agora, porém, que vamos dentro em pouco atraves- sar o Paraná, ella cessou, o que nos vae permittir uma baldeação commoda, e o poder bem apreciar aquelle rio em cheia, isto é, com o aspecto opposto ao que conhecemos quando o atravessámos em 1914. A hôa sorte que nos acompanhava consentiu que, além de termos feito uma travessia muito commoda e livre de chuva, fosse possivel photographar as di- versas phases dessa travessia, de modo a poder re- produzil-a quasi que cinematographicamente, como ahi está; e, para quem viu aquelle colosso que ora alh se avoluma, espremido n'um canal de apenas cem metros de largo, durante a secca, o espectaculo de agora era verdadeiramente de assombrar; é verdade que a cheia que presenciavamos era das maiores, e tanto assim que, segundo era então previsto, seria muito possivel a suspensão da travessia dentro em poucos dias. Cedo estavamos em "Tres Lagõas, cujos pro- gressos eram positivamente estupendos : illuminação electrica, ruas largas, grande praça, cinemas, jor- naes, e um commercio em que já se contava mais de uma casa com mais de um milhar de contos de ca- pital! A partida de Tres Lagõas não é das mais agra- daveis, pois, sendo o percurso n'ºesse dia muito longo, para alcançar Campo Grande é preciso deixar Tres Lagõas ás 4 horas da madrugada, o que não é das cousas mais agradaveis, maximé para quem, como nós, tem o habito de tomar banho, barbear-se, etc., antes de embarcar; mas como não era possivel alte- rar o horario, lá partimos nessa madrugada de 24 para a primeira etapa em terras de Matto-Grosso, pois que os oito kilometros da margem do Paraná a Tres Lagõas não são contaveis como viagem. Zona inteiramene diversa da que atravessara- mos em 8. Paulo, surge agora aos nossos olhos a ale- 196 gre e movimentada vida pastoril, e os vaqueiros e gaúchos já fazem parte da paysagem com seus typos característicos. Depois de uma extenuante viagem de quinze horas chegámos a Campo Grande: seria pos- sivel o que viam nossos olhos? Carros e automoveis em quantidade, uma grande estação, illuminação, grande movimento, annuncios de varios hoteis; mas seria mesmo aquelle Campo Grande de ha quatro annos? Era outro, positivamente outro, tão grande e tão rapido fôra o salto. Corremos ao hotel mais proximo para aplacar a fome e a fadiga, e fomos bastante felizes para achar commodos, o que não era facil á vista do movimento; mas, por grande embora que fosse a nossa curiosidade em percorrer a cidade, aqui confessamos que a “surra” d'aquelle dia e a perspectiva da partida ás 4.30 na madrugada se- guinte, fizeram com que preferissemos procurar a cama. Na madrugada seguinte encetavamos o ultimo trecho da viagem terrestre, e já não era sem tempo, pois que, sendo então 25, desde o dia 20 que não fa- ziamos outra cousa senão viajar em estrada de ferro. Lembro-me que o comeco da viagem desse dia foi feito ás escuras, pois, tendo-se partido o lampeão do nosso compartimento, não havia outro para substi- tuil-o, e, como nenhum dos passageiros do compar- timento tivesse tido a má sorte de tomar um banho de kerozene do tal lampeão, achámos que tudo ia ás mil maravilhas, e que o sól nasceu cêdo. Antes do almoço passámos pela bella garganta que a natureza talhou na serra — para a passagem dos trens —,e foi com viva alegria que notámos a proximidade do pantanal. Nas visinhanças de Miranda vimos, a uns du- zentos metros da linha, um veado que parecia já estar familiarizado com os trens, pois só muito lentamente procurou o mais proximo capão. O pantanal, que agora atravessavamos, trazia-nos, pelo sen aspecto, 197 as melhores esperanças de uma bôa cagada; como supponho já ter dito, grande parte do exito das ca- cadas de onça depende do nivel das aguas do pan- tanal; e agora o que viamos era o comeco da enchente, e, portanto, uma occasião excellente para as nossas caçadas. A” tardinha chegavamos a Porto-Espe- rança, na margem esquerda do magestoso Paraguay, e lá estava o navio “Brasil”, que deveria condu- zir-nos rio acima. Pelos telegrammas que passára, deveria encontrar em Porto-Esperancça carta on tele- gramma com instrucções do amigo Mario de Barros, sobre o ponto em que deveria desembarcar e encon- tral-o; celere, procurámos por toda a parte essas instrucções, mas, bem contrariados, notámes que fo- ram baldados os nossos esforcos. Estavamos deante da primeira dificuldade, mas quem se aventura numa empreza como a nossa sabe muito bem que precisa de uma forte dóse de paciencia, expediente, energia e tenacidade, e que essa não seria, com cer- teza, a unica nem a maior das dificuldade a vencer. Logo telegraphámos ao Mario, para Corumbá, pre- venindo que iriamos ao seu encontro, pois que, se lá elle estivesse, já ficaria avisado; e como um passa- geiro tivesse no porto uma lancha veloz que parti- ria immediatamente tambem para Corumbá, pedi- mos-lhe o favor de communicar ao Mario a nossa chegada, e vimos partir essa lancha, rio acima, envol- vida n'um desses occasos de empolgante e phantas- tica belleza, como não lhe valem os decantados ere- pusculos do Mar Vermelho ou das margens do Nilo. Só á noute deixou o porto o nosso navio que, depois de ter tocado em um “saladero” (xarqueada), atracou, ás 2 horas e meia, na “Manga”, onde talvez estivessem á minha espera; corri pressuroso á busca de noticias, mas, só tendo encontrado couros mal cheirosos que, duxante talvez uma hora, embarcaram como carga para Cornmbá, torne a deitar-me. SEDE kestava agora o porto da fazenda, o Formigueiro, como ultima esperança; e assim foi que, já pre- occupado com o tempo que iria perder com algum possivel desencontro, avistámos os cambarás, depois a casa de seu Chico, e, ás 6 horas, o proprio seu Chico, que nenhuma noticia deu-nos do Mario. Era o diabo, mas, agora só havia um remedio: ir a Co- rumbá. À questão é que, não contando pôr os pés em Corumbá nem em cidade alguma, estava sem roupa civilizada para apresentar-me, principalmente em casa dos meus amigos. Emfim, como não havia ontro remedio, procurei nos meus alforges as mais apura- das elegancias, e preparei-me (que chic!) para “épa- ter” Corumbá... Approximámo-nos do Ladario, ahi pairámos um pouco sob machinas, e o pessoal da lancha do Ar- senal, que atracou ao costado;, muito espantado ficou com a minha extraordmaria apparição. Seguimos viagem, e, já viamos o casario da cidade que busca- vamos, quando, estando eu no passadico, avistámos o Mario em uma lancha ladeada por duas chatas, que descia o rio. Veio elle ao meu encontre em uma cha- lana, e, mal parado que foi o navio, saltei com a mi- nha bagagem para a pequena embarcação, seguindo o “Brasil” a sua róta. Entre abraços e explicações ganhámos a lancha que nos conduziria ao Riozinho e que de lá deveria trazer as chatas carregadas de bois, mas, como precisassemos lenha, aportámos ao Ladario, onde matei saudades do bom amigo Sebas- tião Bastos, e de alguns collegas. Não poderiamos prever que esse caro amigo, trabalhador e honesto, leal e prestativo como poucos, valente e energico como ninguem o era mais, extre- moso pae de numerosa prole, dava-nos abraços de despedida da vida. Moço, forte, lutando pela vida, cheio de coragem e esperanças, não poderiamos pre- ver que, pouco tempo depois do nosso encontro, ban- Uma lancha, ao pôr do sol, deixa Porto-Esperança Entre a V. Brazil e a lancha do Mario de- Barros Apanhando areia para a chata Riozinho 198) didos assalariados por alguns que nunca se atreve- ram a enfrental-o, iriam, como foram, roubar essa preciosa existencia n'uma emboscada covarde e mi- seravel. Victimado por um tiro partido de dentro do matto que margeia a estrada que liga Ladario a Co- rumbá, esse mesmo amigo, que muita vez nos pre- veniu da imprudencia que faziamos em fazer essa travessia á noute, cahin sem vida e sem poder, ao menos, castigar o infame bandido. Depois de recebermos apenas quinhentas achas de lenha, a custo, por empenho, e caras, partimos, tomámos mais lenha um pouco adeante, atracámos ainda afim de tomar areia para que o gado não escor- regasse nas chatas, e, finalmente, ás 10 da noute, fundeavamos na fóz do Riozinho, por onde passa- ramos por cerca de 4 da madrugada, quando vinha- mos de Porto-Esperança. Eu dispunha apenas de trinta dias para fazer a caçada e estar de volta ao Rio de Janeiro; já havia consumido uma semana, e nem sequer estava ainda na fazenda onde deveria caçar. Foi, pois, com prazer que soube da intenção de aproveitar a lua, que nascia tarde, para subir o Riozinho. Assim foi, e, ás 2 e meia da madrugada, gracas ao luar e á enchente, começámos a subir aquelle rio que nos recordava tanta peripecia. Durante a viagem no Paraguay, o Mario me falára n'um lobo que tinham apanhado no Riozinho, que fugira e fôra novamente capturado, e estava destinado a este rabiscador; n'isso tive um grande prazer, pois embora se trate de um animal da fauna brasileira que existe em relativa abundan- cia, conhecido em Minas tambem com o nome de “Guará”, ha muita gente que não só ignora, como duvida da existencia do lobo no Brasil. Esse animal é realmente pouco conhecido e differe muito dos seus irmãos europeus, quer pelos habitos, quer pelo as- pecto; geralmente isolados, e só por excepção em — 200 — casal, não apparecem elles como na Europa, em ma- tilhas e bandos e, ou por indole, ou por abundancia de caça, não têm tampouco a ferocidade de que os outros são dotados. E", no entretanto, o nosso lobo um animal maior, mais forte, e muito mais bello. Imagine-se um animal de pello liso e mais longo do que curto, amarello queimado (côr de veado ou onça parda), focinho, lombo, canellas e cauda pretos, esta bem pelluda e embandeirada, orelhas direitas, foci- nho muito comprido, um pouco mais alto dos quartos posteriores, e bem maior do que qualquer dos nossos maiores cães veadeiros, e ter-se-á a ideia do nosso lobo. Não sendo feroz, embora, é valente, defende-se com energia, e os cães onceiros temem-n'o, como de ordinario todos os cães, que só em matilha e estu- mados pelos caçadores perseguem o lobo. Levantados antes do sól, assistimos o amanhe- cer entre as margens do Riozinho, sempre pittoresco e coberto de caça, e além dos patos e da infinidade de aves aquaticas que all pullulam, vimos veados, porcos, etc. Antes das 7 horas aportavamos ao Rio- zinho, cujo galpão desapparecera para dar lugar a um confortavel chalet muito bem concebido para o local a que se destinava. Construido sobre esteios e pilastras, tinha, em baixo, um grande saguão ladri- lhado, destinado aos peães, bagagens, etc., emquanto a cheia não lhe alcançasse, e, em cima, a uns tres metros do sólo, rodeado por larga e espaçosa va- randa assoalhada, quatro aposentos bem arejados e todos com venezianas. Era um progresso muito no- tavel sobre o alpendre que all deixáramos havia pouco mais de quatro annos, maximé se consideras- semos as dependencias, ainda em construcção, e que seriam ligadas por passadiços ao corpo principal já Carneando no Riozinho . TE DES ATO PIU A NEAR MT AV Rd gua a À / A aa DRE o o Rar ATO A RAM PNETS PEC ESPE EAD EIN ETA 2 PELAS Sa RE RETRO POLAR 6; CPE TO ADDED. e e pa Embarcando gado Ra ERERO quasi todo construido. Esse progresso era resultado da animação existente devido a alta do preco do gado que, no momento, valia 1104000 por ca- beça; ora, quando deixámos o pantanal, em Outu- bro de 1914, o gado começava a valer 404000, e já os fazendeiros achavam que o preço animava-os. Vem a proposito chamar a attenção para esse movi- mento de progresso, contra o qual costuma-se dizer que é avesso o nosso sertanejo, sem que se indague qual a razão que o faz não progredir; agora, que a installação de xarqueadas no rio Paraguay, no pro- prio pantanal, portanto, resolvera o problema do transporte, e que a guerra concorrera para a alta do preço do gado, agora, já o fazendeiro podia pro- curar conforto e progresso, que se não adquire ape- nas com palavras. Ahi no Riozinho encontrámos alguns vaqueiros, velhos conhecidos, pois que outros estavam em Ta- rumã. Logo após á nossa chegada carneou-se uma rez, começando-se em seguida o embarque do gado, que desde a vespera estava preso nas mangueiras, onde a cheia lhes punha agua pelos joelhos; esse ser- viço é moroso, não só pela sua natureza, como pela escolha do gado que então é feita, e por isso só por perto das 2 horas haviamos embarcado cento e qua- renta cabeças, que logo desceram o Riozinho, com destino a Corumbá. Mais ou menos ás 2 e meia da tarde, tendo feito a paradoxal operação a que uma vez já alludi, isto é, tendo tirado as botas e arrega- cado as calças para montar a cavallo, montámos e partimos com destino á casa da fazenda. Logo ao partir, tendo visto no campo alagado, bem perto de nós, um jacaré, mesmo de cima do cavallo atirei com a minha carabininha 22 e, o que não foi surpreza ne- nhuma, á vista da respiração do cavallo que impede uma bôa pontaria, a bala não acertou na cabeça do animal que, n'uma rabanada desappareceu; com a 2002 bulha do jacaré, porém, um enorme jararacussú sa- hiu de uma moita, nadando aliás muito airosamente; mais por troça, levei a arma ao rosto e atirei; a cobra, assustada, desenvolveu toda a velocidade (que não é pequena) e, n'essa occasião, toda desfavoravel, dei segundo tiro e matei o jararacussú, já se vê que por puro acaso; esse facto teve logo explicação, porém, para um vaqueiro que estava perto, que assim se exprimiu: “tô sempre dizendo que esse bitcho trahe (attrahe) a bala”. Infelizmente, o que não attrahia absolutamente era a extensão que viamos de pan- tanal alagado e que, quizessemos ou — não, teriamos de atravessar “navegando” a cavallo. Essa “nave- gação” é incommoda não só pela morosidade da “em- barcação” que não é apropriada, como tambem porque os gravetos, capins cortantes e principal. mente os espinhos, junto dos quaes muita vez é for- coso passar, maltratam-nos as pernas se, por inadvertencia, as deixamos de recolher para cima dos arreios onde é preciso ficar de joelhos. Foi, por- tanto, com um justo suspiro de alívio que, após duas horas e tanto de caminhada n'esses alagadiços, “atracâmos” em terra e conseguimos, já de botas cal. cadas, cavalgar á vontade e a trote, pois que, já sendo quasi 5 da tarde, estavamos ainda a algumas leguas da casa. Como sempre acontece n'essa região privi- legiada para o caçador, fomos encontrando, além do sem numero de aves, veados, porcos, ete.; d'esta vez, porém, mais do que em nenhuma outra, encontrámos muitos bandos de avestruz. Era minha intenção tra- zer para o Rio o coure de um grande cachaço, de preferencia atordilhado, e como surgisse um em nosso caminho, fiz o respectivo despacho do dito couro para essa cidade, mas, infelizmente, elle extra- viou-se; isto é, teimando em atirar, a bala, de cima do cavallo, errei o cachaco, que se incumbiu de con- remo nro isaseses ns Chatas deixando o retiro do Riozinho Tendo tirado as botas montamos a cavallo O Mario de Barros prompto para navegar 2095 servar, certamente com muito prazer, a vida e o couro no pantanal de Matto-Grosso... Os animaes que encontrámos em maior numero não eram d'aquelles á busca dos quaes iamos, ou pu- dessemos caçar, e, se bem que estivessemos de sobre- aviso e promptos a atirar em caso de aggressão, não foi absolutamente agradavel a nossa passagem entre enormes manadas de gado, onde a quantidade de “orelhas” (1) era enorme e nada tranquillizadora, pois que alguns eram touros feitos. Emfim, com pouco mais de cinco horas de cavalgada ininter- rupta, chegámos, eu e o Mario de Barros, ás 7 horas e 40 minutos da noute, à casa da bôa e hospitaleira fazenda das Palmeiras, onde tão bôas caçadas já ti- nhamos feito e onde eramos sempre recebidos com tanta amabilidade e gentileza pelos fazendeiros, e com tanta camaradagem e alegria da peonada. Não é preciso dizer que fomos, essa noute, bem cêdo para o leito e que dormimos profundamente: fazer a longa viagem que encetaramos a 20 e ter como epilogo cinco horas a cavallo, sob o causticante sól d'aquella região, são remedios cuja eficacia garanto, sem receio de errar, contra o mais resistente mal de im- somnia, mal de que aliás nunca tive tempo de soffrer. O dia seguinte, 28, não podia ainda ser dedicado à rainha das caçadas, pois que só n'esse dia chega-, riam os outros vaqueiros e os carros de bois com a bagagem; e assim, para não perder tempo, sahimos muito tarde, eu e o Acylino, ás 7 da manhã, apenas com a minha 22, e trouxemos aracuãs, marrecos, patos, e um lindo bugio negro, como só o são os de (1) Chamam “orelha” o gado que nunca foi ao curra:; gado bravio, que muitas vezes nunca viu gente. O nome de orelha é dado porque todo o gado que vem no rodeio e vae ao curral ou mangueira, ainda que não receba a marca da fazenda, leva um pique, um córte especial, na orelha. ES if Matto-(Grosso, pois que em todos os outros lugares que tenho visto esse animal (bugio ou barbado) o seu pello é de um amarello muito escuro, ou casta- nho claro, mas nunca preto. Ás 11 horas estavamos de volta á casa, carregados de caça sem o menor esforço, e com uma grande esperança; durante bôa parte da manhã ouviramos urrar um macharrão que tencionavamos caçar no dia immediato. O resto do dia foi empregado em afiar as zagaias, reunir a ca- chorrada... e dormir a sésta. Depois do reconfortante banho frio das ave- marias, e do appetitoso jantar, cêdo fomos dormir para que tambem cêdo estivessemos em marcha, no dia seguinte. Na manhã de 29, eu, o Mario de Barros, e os dous zagaieixros Bernardo e Acylino, montava- mos a cavallo e partiamos, não cêdo como progectá- ramos, pois que já eram pouco mais de 6 horas. “Marujo”, um cão baio que só era meu conhecido atravez das referencias do Nelson, era agora o ca- chorro mestre no qual depositavamos as nossas es- peranças, pois que o seu antecessor, “Paletot”, um excellente cão, morrera em sen posto de honra, nas caçadas de Setembro do anno anterior, na acuação de uma onça femea muito zangada. Seguidos pela cachorrada que ia solta, salvo “Marujo” que ia pela mão de Bernardo, não tinha- mos cavalgado dois kilometros quando esse zagaieiro, apontando a zagaia para um banhado que nos ficava á esquerda, disse: “óie o que está alli”. A principio custámos, mas depois divulgámos um quadro que só um grande acaso seria capaz de offerecer-nos à vista; era um espectaculo unico, inacreditavel quasi; como imacreditavel seria o que se passou e vou narrar, se não tivesse as photographias como provas irrefu- taveis. O que Bernardo nos mostrava e agora viamos bem perto de nós, era a luta de uma sucury com um jacaré, ou melhor, o final d'essa luta. Apeei do ca- Sucury e jacaré depois de rebocados para o campo Sucury e jacaré tal como os encontramos 205 vallo, tomei a minha imseparavel Gõerz 9 X 12, e, não querendo entrar n'agua (luxo imjustificavel, pois que instantes depois estaria alagado), photographei, um pouco longe, o interessantissimo grupo. Como esse grupo estivesse em parte immerso n'agua e não fosse todo visivel, e como, ainda, por ser muito cêdo (seriam talvez 6.30), temesse uma ruim photogra- phia, resolvi tentar uma operação que os meus caros leitores talvez relegassem para as aventuras de Miinckausen, se não existissem as provas photogra- phicas; ainda assim, eu deveria ter tirado uma pho- tographia intermediaria entre a do banhado e a do campo; mas, quando se está em face do facto real e palpavel, muito naturalmente não nos occorre a ideia de que elle possa ser posto em duvida. Mandei o zagaieiro Bernardo segurar a cauda do jacaré e puxar o grupo para o campo, onde o po- deria photographar á minha vontade, e esse original “reboque” é que poderia ter tambem photographado. O jacaré estava praticamente fóra de combate, pois, apezar de ter a cobra atravessada na bocca, não podia apertal-a nem fazer mais um só movi- mento, ao passo que a sucury movia-se, ou por outra, movia livremente o pescoço por entre as mandibulas do jacaré, e parecia não ter soffrido um unico arra- nhão. Convém aqui notar a “intelligencia” com que agiu essa sucury, pois que, embora não possamos garantir que ella tenha procurado a posição em que a encontrámos dentro da bocca do jacaré desde o começo da luta, é provavel que o tenha feito, a julgar pelo seu estado de immunidade; queremos frisar que o jacaré, embora fortemente armado de aguçados dentes, esses não vão até o fim dos maxillares, dei- xando ahi uma zona livre; e era justamente ahi, que, evitando caricias pouco amaveis, se refugiára a co- bra, provavelmente na occasião de ser acommettida pelo jacaré, coitado, que agia em legitima, porém — 206 — improficua defesa. Embora possa, e deva, parecer que, se não o jacaré, que estava totalmente tolhido e não mais em estado de reagir, pelo menos a sucury tivesse tido um movimento que demonstrasse revolta ou medo; ao contrario d'isso, não deu provas da me- nor inquietação, cousa que tambem notámos com re- lação aos cães, dos quaes um unico estava preso; é basta reparar na photographia em que figura o za- gaieiro Bernardo, para ver a attitude inteiramente despreoceupada dos alludidos cães. A quietude do jacaré não carece explicação, a da cobra, porém, se me afigura ter sido determinada pela “consciencia” de que se tentasse desenrolar-se do jacaré seria talvez por elle subjugada. Não tomámos medida de nenhum dos contendo- res, mas caleulâmos que o jacaré tivesse mais de me- tro e meio, e menos de dous metros; nada queremos adeantar em relação à cobra, pois que seria impos- sivel qualquer avaliação á vista do numero de voltas que fazia em torno da presa. Tendo photographado o tão interessante grupo no campo, — para onde não poderia ter vindo senão arrastado — (desculpem a insistencia), deixámol-o no local d'essa ultima pho- tographia, e esperavamos vel-o na volta, pois que era ahi caminho forçado para casa; ao regressarmos, po- rém, por perto de 1 hora da tarde, não vimos sequer vestigio do que ahi deixámos. Tendo sido arrastados uns quatro ou cinco metros, e já estando pratica- mente morto o jacaré quando o photographámos, é evidente que a sucury carregou novamente a sua presa para o banhado, afim de melhor alh devoral-a, isto é, engolil-a. Pouco depois de termos deixado em paz os dous inimigos (sem allusão ao tratado de Ver- sailles), tivemos que atravessar um rio bem avolu- mado pela cheia e que, além de ter ficado muito largo, durante grande trecho, bastante profundo, obrigava os animaes a atravessal-o quasi a nado, ou seja, como io de Barros e a primeira O Mari cada Onça da ca O autor e a mesma onça Gavallos valentes E O se diz em Matto-(Grosso, a “bola-pé”, o que quer dizer que os cavallos mal tocam o fundo com as patas. Isso quer dizer, como já perceberam, que pouco tempo durou o luxo de não querer molhar-me, quando foi occasião de tirar a primeira photographia da su- cury com o jacaré. Caminhando sempre, achámos alguns rastos, mas, como eram muitos os banhados formados pela cheia em começo, havia difficuldade, e mesmo impossibilidade em seguil-os. Os cães esta- vam alegres e corriam daqui para alli, e n'essas cor- rerias sem norte pegaram um lobinho e, depois um cattetú. Eu já estava deshabituado do sól ardentis- simo do pantanal de Matto-Grosso, e considerando que estavamos em fins de Janeiro, facil será imagi- nar que, apezar do meu chapéu de palha, tão gros- selro quanto vasto, sentia a cabeça a arder. Já eram quasi 10 e meia, tinhamos as roupas que abrigavam as pernas a ellas colladas pela agua dos banhados. e tinhamos as roupas que abrigavam o resto do corpo a elle colladas pelo copioso suor; mas, apezar do forte calor e d'essa irmanação de “ensopamento” de origens differentes, tudo esquecemos ao ouvir “Ma- rujo” levantar uma onça que, perseguida de perto pelo resto da cachorrada, logo deu acuação. Corre- mos todos, apeámos, e constatámos que a féra não era das mais mansas, pois que déra acuação nó chão. Apezar de termos accorrido com presteza, a onça conseguiu lograr os cães, mas, logo adeante, nova acuação nos enthusiasmou, e d'esta vez na beira de um capão. Approximámo-nos com cuidado, ladeados pelos zagaieiros, e, embora o matto não fosse muito sujo, custei um pouco a bem distinguir a cabeça do macharrão, mas, assim que o consegui, alojei uma bala da minha tres canos no craneo do “bitcho”, e foi por excesso de zelo que os zagaieiros utilizaram as zagaias. A nossa victima era um macho ainda novo, mas em completo desenvolvimento, e senhor de eee um pello tão perfeito quão lindamente pintado; fei- tas, pois, que foram as competentes photographias, tirou-se summariamente o couro da onça, tirou-se ainda umas costellas de cujo sabor estavamos sau- dosos, e talvez ás 11.30 da manhã, já montavamos e buscavamos a casa da fazenda. Ahi chegámos antes das 2 da tarde, dando graças pela grande sorte que tiveramos, pois que matar uma pintada no primeiro dia de caçada já constitma uma felicidade; mas, além do feliz encontro da sucury com o jacaré, a acuação da onça fôra no chão, os cães nada haviam soffrido, o couro era lindo e media, apezar de se tratar de um macho novo, 2 metros e 70 da ponta do focinho ao extremo da cauda. Dormimos uma deliciosa sésta, matámos, atirando de dentro de casa, com a 22, al- guns papagaios que não deixavam parar fructos no pomar, e, tendo assim passado o dia, jantámos, de- pois do gostoso banho do cahir da tarde, e fomos dor- mir cêdo e sonhar com a caçada do outro dia. No dia seguinte, 30, tendo o Mario ficado na fa- zenda cuidando de serviço, partimos tarde, ás 6 e meia, eu e os dous zagaieiros: Bernardo e Acylino. A peregrinação pelos campos era agora muito pe- nosa e fatigante pelas grandes extensões alagadas, e n'esse dia, para que se conseguisse chegar a deter- minado ponto, tivemos de atravessar duas vezes o rio a que nos referimos na cacada da vespera. De uma feita, como o ÁAcylino se afastasse um pouco com um cão que lhe pertencia, pareceu-nos ouvir para esses lados uma acuação, e vimos o allu- dido zagaieiro pôr o cavallo a galope; nós, que esta- vamos distantes, fizemos o mesmo, procurando obter o maximo da velocidade das nossas montarias; em meio da corrida, porém, e n'um local em que a ma- céga cobria cavallo e cavalleiro, o meu animal roda (cahe), e se um pouco mais curto fosse o seu pes- coco, certamente teria sahido por cima da cabeça, pg 6, a PRE as de E Mm O autor e a onça do páu Acelino e Bernardo — 209 — cousa de que andei muito proximo. Sem perda de tempo continuámos a carreira, mas, infelizmente, todo o esforço fôra empregado em uma illusão. Pouco depois de 10 horas os cães, em grande ala- rido, encetaram e fizeram uma linda corrida atravez do banhado; nós, com ardor e alegria seguiamos os cães, e, justamente ás 10 e meia, estruge os ares atroadora acuação... de um cachaço. O sól era caus- ticante; o Acylino, depois de termos em vão chamado a cachorrada, foi incumbido de acabar com o cachaço para que os cães viessem embora, emquanto eu e o Bernardo, a passo muito lento, caminhavamos sem rumo, e já desanimados de encontrar onca. Estava- mos á beira de um pequeno coricho, à espera do Acgy- lino para seguirmos juntos, e julgavamos a caçada perdida, quando o “Marujo” deu uns latidos; pres- táâmos attenção ao que “dizia” o cachorro mestre, demos n'essa direcção alguns passos, e logo perce- bemos que “Marujo” estava “dando páu” (acuando animal trepado no páu) e como se tratasse de um cão que não mentia, corremos ao local, que não distaria de nós talvez mais de cem metros, e ahi chegando e já encontrando mais uns quatro cães que tinham acudido á acuação de “Marujo”, vimos uma onça tre- pada a uma arvore a beira do capão. Esperei que a onça apresentasse a testa em po- sição normal á direcção do tiro e, ainda com a maio- ria dos cães na acuação do cachaço, alogei uma bala entre os olhos da féra, que cahiu fulminada. Era uma onça femea, muito magra e muito velha, possuidora de encrmes presas, e que media, da ponta do focinho ao extremo da cauda, dous metros e meio. Tirámos algumas photographias quasi no local em que cahira a nossa victima, tirámos o bello couro, montámos e buscámos a casa, com alguma fome e sob um sól terri- velmente quente. | Viagens e Caçadas 14 — 210 — Emquanto os zagaieiros preparavam o couro e o punham na grade, ao lado do que, na vespera, pas- sára pelo mesmo processo e seccava n'outra grade, aproveitámos para dormir uma reparadora sésta, da qual só sahimos para o banho da bocca da noute. Ao jantar, a prosa com o Mario de Barros cor- reu, como é facil imaginar, sobre caçadas, e muito. commentámos a enorme sorte que então me acompa- nhava, pois que, tendo partido do Rio exclusivamente para caçar onças no pantanal, nos dous primeiros dias tinhamos encontrado e morto duas pintadas, o que era positivamente magnifico. Para fazer resaltar essa bôa estrella, lembrámo-nos, então, que o nosso amigo e companheiro Nelson de Mello passára um mez n'aquella fazenda, e que, apezar de ser um bom cacador, muito resistente e pertinaz, não conseguira uma unica onça, muito embora sahisse todos os dias para o campo. À nonte enfarruscára-se, começou a chover, e fomos dormir contentes com essa chuva que, além de amenizar o calor, iria dar: ensejo para me- lhor encontrarmos rasto fresco. No dia seguinte, sexta-feira, ultimo dia de Janeiro, sem o Mario, sahi- mos ás 6 horas, muito esperançados com o dia enco- berto. Não tinhamos caminhado muito quando os cães acuaram um coaty, e, pouco adeante, ao ouvir o latir de um d'esses cães, os queixadas “bateram dente e trovejaram” dentro de um capão junto ao qual passavamos. Fugindo d'esses perigosos inimi- gos capazes de liquidar toda a nossa cachorrada, com a maxima presteza mudámos de rumo, chamando e carregando comnosco os cães, que aliás deram-se pressa em acompanhar-nos; e esses dous factos (acuação do coaty e encontro de queixadas) trou- xeram o desanimo aos zagaieiros, como máus pre- nuncios que diziam ser. Apezar d'isso, continuámos a caminhar, ou melhor, a perambular pelos campos, ora visitando um capão, ora procurando uma passa- O couro engarupado Travessia profunda era! Rd gem d'agua onde pudessemos encontrar rasto fresco, ora dirigindo os animaes para alguma revoada de “urubús verdadeiros”, que, muitas vezes, indicam ao caçador a existencia de uma carniça; e, de facto, principalmente quando esses urubús ficam pelas ar- vores cobiçando a carniça, mas não ousando sequer pousar no chão, então é quasi certo que a onça está, ou na propria carniçca, ou muito proximo a ella. Mas, seja que a catinga do coaty e dos queixadas perturbem o fáro dos cães, ou seja que o acaso, capri- choso como sempre, quizesse corroborar a crendice dos zagaieiros, o facto é que, apezar de termos caval- gado até às 2 e meia da tarde, os cães acuaram cinco cachaços, mas nenhuma onca. Como nos acostuma- mos facilmente ao que é bom, voltámos aborrecidos com o máu exito daquelle dia, como se fosse possivel ter sempre uma onça á nossa disposição; mas havia uma outra cousa que agora nos preoceupava e abor- recia : e era que, muito embora a caçada de onça fosse fortemente emocionante, o encontro das duas que mataramos não nos havia impressionado, embora a primeira tivesse sido acuada no chão. De volta á casa, passámos o resto do dia como de costume, e cêdo fo- mos dormir, para que nos refizessemos das fadigas do dia, e para cêdo enfrentar a do dia immediato. Abrimos o mez de Fevereiro sahindo ás 6 horas, ainda sem o Mario, isto é, com os zagaieiros Ber- nardo e Acylino, e nos dirigimos para os lados de um local da fazenda conhecido sob o nome de Isolamento. Atravessámos um coricho muito profundo e uma quantidade de banhadões, pois que esse trecho da fazenda já estava bastante alagado, quando, talvez pelas 8 e meia, á beira de um acuryzal circumdado de agua, os cães, de repente, pegaram rasto dentro do brejão e sahiram n'uma das mais bellas batidas que tenho visto: guiados pelo cachorro mestre, “Ma- rmjo”, todos os demais cães corriam, nadavam e la- ER |, dA tiam atravez do banhado, n'um enthusiasmo e n'um ardor de arrebatar; e, para quem visse de longe, daria a impressão de um cardume de toninhas a em- polgante corrida dos nossos valorosos cães (1). Nós galopando onde a altura d'agua permittia, e caminhando, emfim, o mais depressa que era pos- sivel, procuravamos acompanhar os cães, até que, depois de cerca de um kilometro de arrebatadora cor- rida, n'um lugar de lama e sem vegetação, os cães perderam. Uma “ponta” de gado, talvez assustada com a corrida, parecia ter passado por sobre o rasto do ma- charrão, e foi para nós um grande desapontamento aquella perdida, quando tão firme e segura 1a a ba- tida. Começámos a “rastejar”, isto é, a procurar rasto, e seguindo adeante, visitámos um pequeno ca- pão que ficava muito proximo, e logo depois um maior, sem resultado algum; resolvemos então voltar por outro caminho ao local da perdida, e logo achá- mos varios lugares onde a macéga mostrava o espo- jado de fresco. Com um pouco mais de trabalho e persistencia os zagaleiros acharam rasto fresquissimo (minando agua) e muito entrecruzado de um casal de onças; vimos, em uma arvore isolada, os recentes traços da subida d'essas oncas ou de uma d'ellas; vimos ainda muito rasto em que os cães se atrapalharam, mas não achavamos a “sahida”. Estavamos a uns cem metros da linha em que os cães, e nós, tinhamos vindo na belia e bulhenta batida, e um dos zagaieiros obser- (1) Para os leigos, convirá explicar que, além de ter a onça uma catinga muito forte, os cães seguem-lhe a pista atravez do banhado, graças à impregnação dessa catinga na vegetação por entre a qual passou a onça, atravessando o banhado. — 213 vou: “só se os bichos foram para lá, na hora em que vinhamos para cá”. E accrescentou: “onça é bicho que não importa com barulho de gente nem de ca- chorro”. Procurámos um pouco mais, e, de facto, tudo indicava a justeza da observação do zagaieiro. Bernardo estumou o “Marujo”, e este, depois de alguns latidos de incerteza, pegou bem no rasto, le- vantou e correu, no que foi seguido pela cachorrada, reproduzindo-se, de volta, a bella scena da batida da vinda. Seguiamos com enthusiasmo e as mais se- guras esperanças aquella corrida, quando, desagra- davel surpreza, surge ante nós um coricho largo e muito profundo; não seria possivel perder uma cor- rida tão quente, nem procurar fazer uma volta, cer- tamente longa, para encontrar uma passagem, pois que a acuação não poderia tardar; mas, em taes occasiões, como para o chefe em uma batalha, esses nem outros obstaculos são causas capazes de arre- fecer o animo e impedir o desenrolar da acção. Sem poder prever o resultado, atirámos os ani- maes ao coricho e, felizmente, após terem nadado comnosco uma distancia bem menor do que parecia necessario, galgámos a outra margem, e, já mais proximos do acuryzal, mas ainda a uns duzentos me- tros d'elle, o Acylino deteve o cavallo, franziu a testa, e exclamou: “Virge Maria! mas como é brabo esse bitcho! Não estão escutando?” E só então ouvimos o trovão! Às onças, perseguidas, só rosnam e urram quando acuadas; pois esse macharrão já rosnava antes de qualquer aggressão, e calenlavamos o que seria essa féra quando acuada pelos cães. Hontem, durante a caçada improductiva, eu pensava, com tris- teza, que a caçada de onças já não dava a sensação que a ella tanto nos attrahia; comecava, porém, a ver RE | a que laborava em erro. Eu já sabia, por experiencia propria e involuntaria, da qual sahi illeso miraculo- samente, o perigo que ha em perseguir um casal de. onças no momento da procreação, e agora, não tendo duvida sobre o enfurecimento em que se encontrava o macharrão, estavamos sériamente apprehensivos com o desfecho que poderia ter a nossa aventura. Os cães ainda correram um pouco, e nós, contor- nando o acuryzal da beira do qual tinha partido a primeira corrida, fomos ao encontro da acuação, que estava imminente e que irrompeu logo após. A tensão nervosa de que estavamos possuidos era das mais fortes, e, ao apearmos apressadamente, se eu esqueci de tirar as espóras, um dos zagaeiros achou taes difficuldades em desafivelal-as que resol. veu cortar as correias a facão. Os cães, tão conscien- tes do perigo quanto nós, mais uivavam do que latiam, e esparramados em torno da féra, à distancia, arrepiados, urinavam-se de medo, emquanto o ronco da féra, dominante e ameaçador, atroava os ares e chamava ao combate. Entrámos no acuryzal, baixo e sujo, eu armado com a minha tres canos, e ladeado pelos zagaieiros; logo, porém, foi preciso passar um dos zagaieiros para a frente, e, segundos após, o ou- tro, ficando eu, portanto, em terceiro e ultimo lugar; e avançámos assim ao encontro do nosso inimigo, cuja posição não era bem indicada pelos cães que estavam muito esparramados, e que já não era tran- quillizador, quando a acuação cessou, deixando-nos perplexos. Estavamos em situação bastante critica, uma das mais embaraçosas e perigosas n'esse genero de caçadas, pois, sem que nos fosse possivel perceber onde estaria a féra, poderia ella saltar sobre nós a qualquer instante. Quando uma onça acuada no chão, e maximé zangada como, a que perseguiamos, deixa voador É RA iG ad Ea aê ie uia q Ri A AR aee AE) Macharrão valente e zangado Cáps Dep ia Cinco dias de caçada — 215 — de rosnar, é signal que procura ludibriar os cães para atacar o caçador, de preferencia pelas costas, e era precisamente esse o grave caso em que nos encontravamos. Em taes circumstancias, como de resto, em ge- ral, a zagaia constitue a melhor arma de defesa con- tra as onças; eu, porém, além de estar com arma de fogo, tinha a peior posição, pois que era o ultimo da fila, e d'isso tinha perfeita consciencia. De vagar, seguiamos approximadamente a direccão do ultimo urro que ouviramos, quando um dos zagaieiros, vol- tando-se para mim, disse-me, em tom de conselho: “Commandante, vá “ladeando” os olhos porque esse bicho está negaciando a gente!” À tensão de nossos nervos era extrema; todos os nossos sentidos, como para reforcal-os pareciam concentrados na visão e na audição, e, sob a pressão d'essa incerteza e d'essa ameaça, que poderia effectivar-se e ser fatal de um momento para outro, estavamos um tanto indecisos sobre o rumo a tomar, quando um dos cães, o menor d'elles, latiu no rasto da féra. Que abençoado latido! Que enorme peso sahiu de nossos hombros! O macharrão, de facto, conseguira esgueirar-se por entre os cães sem ter por elles sido percebido, mas, por causa dos mesmos, ou por outro qualquer motivo, não conseguiu vir sobre nós; e, pouco após o latido a que fiz referencia e que, apezar de ter par- tido da terra, cahira do céu, já iamos á procura de nossos cavallos, quando, a pouco mais de cem metros de nós, nova acuação alegrou nossos ouvidos. Correndo para lá, atravessámos uma ponta estreita do acuryzal, entrámos n'um brejo que me arrancou as espóras, e instantes depois chegavamos á orla do bamburro onde estrugia a acuacão. À onça escolhera um local dos mais sujos, e era n'um emmaranhado de cipós, macéga, raizes e galhos seccos que ella agora — 216 — fazia ouvir os seus rugidos (1); e era mistér evitar que de novo o macharrão conseguisse lograr os cães. Por mais que nos approximassemos, não era possivel lobrigar o enorme animal, e, então, um dos zagaiei- ros, passando a zagaia para a mão esquerda, sacou do facão e foi, emquanto eu e o outro eramos só owuvi- dos e olhos, cortando um pouco o matto que nos sepa- rava da féra, que já então calára; e, subito, esse zagaieiro, o Acylino, pára o serviço de facão e se- greda: “está alli”, e aponta. O outro zagaieiro, o Bernardo, julgava estar a onça muito mais para a direita, e eu, apezar do ÁAcy- lino apontar para onde estava o animal, continuando a não vel-o, mandei que o Bernardo apontasse para onde estaria a cabeca da féra, o que coincidiu com um pequeno movimento da mesma, permittindo isso que eu conseguisse lobrigal-a entre o bamburro. Não tivera tempo de bem aperceber-me da posição do macharrão, quando este, n'um salto tão vigoroso, quanto rapido, atira-se sobre nós n'um rugir de tro- vão. Era um macharrão em plena pujança, extre- mamente forte e bravo, e, repito, não póde haver espectaculo mais emocionante do que ver uma féra, de tal corpulencia, força e agilidade, a dous metros de nós, de pé, com os braços abertos, as garras de fóra, as enormes presas á mostra, a testa franzida, o olhar em fôgo, e a grande bocca aberta, de onde parte, n'um urro formidavel, toda a ameaçadora fe- rocidade do rei dos nossos sertões. Em meio do salto que deveria fulminar um de nós, a minha bala foi (1) Na photographia em que figuro juntamente com o zangado macharrão, póde-se, além de avaliar a sua força pela largura de seu peito e grossura de seus pulsos, fazer ideia da quasi impossibilidade de enxergar qualquer animal dentro da vegetação que ahi se vê. apanhar a cabeça do nosso enfurecido inimigo; mas, ai de nós se ahi não estivessem os zagaieiros! Ao estampido do meu tiro o zagaieiro Bernardo cravou a sua zagaia no peito da féra; mas um grande susto, não percebido por nós, lhe estava reservado: ao cravar a zagaia, esse zagaieiro ouviu um estalo forte e secco, e, embora rapido tivesse sido o susto, cuidou que a zagaia se tivesse partido; esse barulho fôra produzido, entretanto, por cousa muito diffe- rente: é que a nossa zangadissima onça, ao receber a zagaia, mordeu o ferro com tal furia que partiu duas das tão fortes e grandes presas! Depois de tan- tas emoções, alojar uma bala na cabeça de uma onça que nos salta em cima, não é fazer um tiro propria- mente máu; d'ahi, porém, a saber se o projectil tocou o cerebro, vae uma distancia; e foram para nós mo- mentos da mais accentuada angustia os que passá- mos sem saber se Bernardo tinha dominado a féra, pois, tão sujo era o local, que o outro zagaieiro não poude prestar auxilio algum, nem eu, tampouco, se- cundar o tiro! Felizmente Bernardo tivera a grande sorte de acertar no “sangrador”, e, dentro de poucos instantes e após duas ou tres fortes contracções, fin- dava para sempre o forte e bravo macharrão que tanto trabalho e tantas emoções nos déra. Livres d'aquelle nobre inimigo, partimos á busca de nossas montadas e começámos a procurar rasto da onça fe- mea; estumámos os cães, percorremos aquelle e ou- tros capões, apeámos, conjecturámos, formulámos hypotheses, esquadrinhámos tudo, mas qual; a ardi- losa onça, rindo talvez de nós, taes cousas fez e arran- jou que, a nenhum de nós, nem aos cães, foi dado o prazer de encontrar-lhe as pégadas. Com mais de uma hora de trabalho perdido, re- ceiosos de perder o couro do macharrão, voltámos ao local onde o haviamos deixado, tirámos as photo- graphias que exhibimos, apossámo-nos do couro e dona = parte das costellas da nossa vietima, e buscámos a casa da fazenda, cheios de contentamento e enthu- siasmo, pois que a caçada fôra esplendida, e, sem duvida, a mais bella de quantas até então nos fôra dado fazer. Descançámos das fadigas e emoções e, no dia seguinte, como tivessemos de arrumar a bagagem para seguir no carro de boi, só sahimos ás 6.30. Parecia que a onça que não conseguiramos encontrar hontem estava devéras sentida com a perda que soffrera, a julgar pelas manifestações que chegaram aos nossos ouvidos, isto é, por ter ella urrado du- rante toda a noute. Fomos direito ao local em que a haviamos deixado na vespera; os cães, porém, logo ao passarmos a porteira do Isolamento, junto a um capão muito sujo e cireumdado de aguas muito pro- fundas, arrepiaram-se todos, latiram muito, mas era impossivel entrar n'esse capão, não só pelo que ficou dito, como pela enorme altura da macéga. E” bem possivel que a onça ahi estivesse, mas, a não ser que os cães a tivessem acuado, não era criterioso aven- turarmo-nos atravez de um banhado, que talvez désse nado, por entre a macéga que nos tolhia totalmente a vista, sujeitos, portanto, a um ataque inopinado e sem defesa, e isso tudo para talvez encontrar a onça. Fomos adeante, revirámos todo o capão da ca- cada da vespera, procurámos em capões proximos, fizemos o que era possivel fazer para descobrir a companheira do macharrão malereado, mas tudo foi em vão. De volta, no mesmo sitio, os cães repetiram a scena da vinda, arrepiando-se e latindo muito; per- duravam, porém, as razões que nos obrigaram a se- guir adeante, e, continuando no rumo de casa, lá chegámos muito cêdo, ao meio dia. O couro do macharrão que mataramos na ves- pera ainda estava no quadro; os outros, porém, já d'elle haviam sahido, e aproveitámos o dia para, en- Sejam tre outras cousas, tirar a photographia d'esses tres couros, que representavam o estupendo resultado de apenas cinco dias de caça. Certamente muito bôa e fruetifera continuaria a ser a nossa cacada se continuassemos ahi; mas, como a fazenda estava em pleno trabalho, e como os zagaleiros, o que de ordinario acontece, eram tam- bem excellentes peães, não deviamos abusar da bon- dade com que nos acolhiam, mantendo esses homens fóra do serviço em que eram elles tão necessarios. Como fôra decidido, pois, deveriamos partir, no dia seguinte, para Tarumã; as onças, porém, pare- cendo d'isso terem tido conhecimento, punham-nos agua na bocca urrando, como fizeram durante tods a nonte. A 3 de Fevereiro, ou seja uma semana depois de termos aportado ao chalet do Riozinho, partia- mos, precedidos do carro de bois, o Mario, eu e o zagaieiro Bernardo, com destino a Tarumã, onde de- veriamos apartar e entregar setecentas cabecas de gado. Durante o trajecto photographei um curioso ca- randá que apresenta a anomalia de possuir doze ga- lhos, e, como se essa anomalia não devesse constituir a unica cousa digna de menção, um veado matteiro apresentou-se em taes condições de passividade que foi possivel matal-o com um tiro de calibre 22, tendo eu para isso apeado do cavallo, sem que tal cousa tivesse, de leve, espantado o veado. A” 1 hora da tarde chegámes ao pittoresco retiro de Tarumã, nome que lhe advém da frondosa arvore junto a qual está o rancho, e que ella mesma de rancho serve nas noutes quentes e sem chuva; já ahi encontrámos o comprador do gado, e com elle estivemos, durante todo o resto do dia, apartando gado no curral. A” noutinha, antes do jantar, perguntei por alguma “bahia” onde se tomasse banho; e indicaram-me, a = ong uns cem metros do rancho, um local de onde po- der-se-ia tirar agua, accrescentando que um peão iria pôr umas latas d'agua para o meu banho. Momentos depois, tendo apanhado a toalha e o estojo, dirigi-me para o meu “banheiro”, que ficava muito proximo da aguada, e ahi verifiquei que essa aguada não era mais que um empoçado medindo cerca de cincoenta metros por vinte, constituido por muito pouco profunda camada de agua de côr verde escuro, e onde entravam livremente para beber, ou fazer justamente o contrario, bois, cavallos, porcos, e toda a sorte de animaes, emfim, que se quizessem desalterar. Fiquei na duvida se aquelle banho iria limpar-me ou produzir effeito opposto, comtudo, como eu estava caçando, onde não é possivel ter tudo quanto se quer, e como tal banho iria, com certeza, refrescar-me, tomei-o, e creio que estava muito agra- davel. A” hora do jantar notei que a agua que era ser- vida para beber tinha a côr de matte forte, e como lembrasse a conveniencia de mudarem de fonte, isto é, de lugar onde a iam buscar, responderam-me que nas redondezas não havia outra agua além d'aquella de perto do rancho; e isso queria simplesmente dizer que seriamos forçados a beber agua do empoçado a que já fiz referencia... Esse caso faz-me lembrar um outro, passado commigo e com meu saudoso irmão, não muito distante de S. Gonçalo de Sapucahy, e que vou aqui tentar narrar. Tinhamos ido, a cavallo, via- jando e caçando codornas, de Cambuquira a 8. Gon- calo, e d'alli, na intenção de caçar lobos e patos, nos dirigimos, para os lados de “Ouro-Falla”, a uma fa- zenda sita ás margens do rio Sapucahy. Para mim, como para meu irmão—de quem, com esta narrativa, tanto sinto augmentarem as sauda- des — era um grande prazer, logo cêdo, tomar banho Carandá original Tarumã A EIS da A - Apartando gado 4 n'alguma cachoeira, e, na falta d'esta, na quéda de uma “roda d'agua” ou em algum moinho; e assim sendo, logo indagámos onde poderiamos tomar o nosso banho, na manhã seguinte. O bondoso fazen- deiro, que tinha vindo comnosco de S. Gonçalo, indi- cou-nos um “bicame” por onde corria agua muito limpida, agua que seguia, depois, uma calha de ma- deira. Na manhã que se seguiu ao nosso primeiro pernoite, como nas outras, lá fomos gozar as delicias d'aquella agua fria; mas, como bons caçadores que eramos, tambem pela manhã nos libertavamos de to- das as exigencias da natureza. Ora, succede que, na roça, e principalmente a esse tempo (já lá se vae tantos annos!) não se encontrava uma banheira, nem mesmo cousas de maior necessidade; era, e muitas vezes ainda é, ao ar livre e em posição pouco com- moda que tudo se fazia ou faz, e, n'essa fazenda em que estavamos, aproveitavamos nós aquella corrente d'agua para substituir as installações sanitarias que não existiam. Creio que apenas tres ou quatro dias nos demorámos n'essa fazenda, mas, na ultima re- feição que ahi faziamos, elogiando entre outras cou- sas a agua que era excellente, perguntámos d'onde ella vinha: “Vem alh d'aquelle bicame”. E, oh desapontamento! apontaram para o bi- came onde nos mandaram tomar banho... Para tornar mais supportavel, ou antes, menos insupportavel a agua potavel de Tarumã, comecei a utilizar o meu filtro de campo; com cinco minutos de funccionamento, porém, estava elle totalmente entu- pido, e era preciso escoval-o para fazel-o novamente funccionar. Aliás o resultado da passagem da agua atravez do carvão não era dos mais brilhantes, pois que o maximo conseguido foi transformar a côr da agua, de matte forte para fraco. — 222 — Não ficou n'isso, como não ficará no caso que ora enceto, o complicado problema de adaptação 4 vida rude do retiro de Tarumã: Como disse, a dormida n'esse retiro fazia-se, muitas vezes, em rêdes estendidas sob a frondosa cópa da bella tarumã; e como creio já ter dito alhu- res, os mosquiteiros de rêde, no pantanal de Matto-: Grosso, são feitos de algodãozinho, o que lhe dá, ao par do inconveniente do calor e fraca areação, a van- tagem de abrigar contra o sereno, chuva fraca, ou cousas semelhantes. Nós estavamos na noute de 3 para 4 de Fevereiro e, portanto, em pleno e terrivel calor, a dormida fóra do rancho impunha-se, mas uma dificuldade totalmente inesperada, e mesmo nunca imaginada, surgia para mim: o meu mosqui- teiro, para que rão me faltasse ar e sentisse menos calor, era de filó com malhas muito finas para impe- dir a entrada do mais pequenmo mosquito; aconte- cia, porém, que, alli em Tarumã, os masquiteiros não eram usados propriamente contra os mosquitos, e sim contra os morcegos. Mas, afinal, que inconve- niente haveria em utilizar um mosquiteiro de filó contra os morcegos? E” que, naturalmente, estão suppondo que a defesa seria contra a possivel aggressão de taes morcegos; entretanto, a verdade é que precisavamos ficar ao abrigo não dos morcegos propriamente, mas sim do que provinha desses chi- rópteros. De facto, a quantidade de morcegos sendo ahi extraordinaria, torna-se necessario uma prote- cção qualquer contra as suas dejecções, cahidas como pingos negros de nauseante chuva. ” Emfim, tendo estendido pannos sobre o meu mos-. quiteiro, dormimos em seguida; mas estava eseripto que o nosso socego não seria grande nem duradouro : Tarde da noute, talvez ás 11 e tanto ou meia noute, começou a trovejar; e se isso poderia inquietar-nos pela chuva que provavelmente cahiria e obrigania á co ja fugida, para o rancho, muito mais nos preoccupava um possivel “estouro da boiada”. Realmente, a uns quarenta metros da beila tarumã estavam os curraes onde, n'essa noute, achavam-se encurraladas mais de mil cabeças de gado; se aquella massa se espantasse e arrombasse o curral — o que é commum — e se a sua céga carreira tomasse a direcção do nosso acam-. pamento, ai dos vinte e muitos ou trinta homens que alh estavamos. Logo ao começarem os trovões e os relampagos o gado deu signal de inquietação, e a cada ronco de trovão correspondia á caracteristica trovoada surda produzida pelos milhares de patas dos bois que procuravam correr, e que faziam, ao mesmo tempo, um outro barulho especial, constituido pelo choque dos chifres; todos nós viamos o perigo que representavam aquelles rumores, perigo que, quando não representasse o nosso anniquilamento, importaria na inutilização do trabalho que havia dado o conseguir ahi reunir aquelle numero de ca- beças, penoso trabalho que seria forçoso recomeçar, se a boiada estourasse. Cousa interessante, o prin- cipal calmante para esse panico é o assobio; e todos nós encetámos, em plena noute escura, um origina- lissimo concerto de assobios suaves e prolongados. Dentro em pouco ouvimos as palmas que nós, os ar- tistas, tinhamos merecido; essas palmas eram repre- sentadas pelo ruido das grossas bategas de chuva sebre a fronde do nosso abrigo, e antes que o agua- ceiro de todo nos encharcasse, corremos para o ran- cho. E fosse o effeito do calmante representado pelos assobios, fosse pelo aguaceiro, ou fosse pelas duas cousas, o caso é que a boiada, felizmente, tornou á tranquilidade. Ás 4 e meia já estavamos de pé, pois n'esse dia o trabalho iria ser grande, e todos nós tomariamos parte n'elle. Eu creio ter avisado que a original necessidade de abrigo contra a descarga d'aquelles pequenos aeroplanos nocturnos — que eram os morcegos — não constituia a ultima das difficuldades a vencer para a completa adaptação á vida rude de Tarumã; tenho agora, porém, sérios receios em abordar a sur- presa que nos aguardava a manhã; maximé já tendo feito referencia ao que nos succedeu nas margens do “Sapucahy. Já tinhamos estado em uma fazenda onde o ser- viço de esgoto era substituido pela voracidade dos porcos; todos aquelles que têm vivido ou estado na roça sabem quanto é commum o acompanhamento de porcos para alguem que procura, no campo, um lugar escuso onde não pretende ficar de pé... e ha mesmo quem tenha sido atirado ao chão pela fuçada de um porco mais atrevido cautelosamente chegado pelas costas do infeliz. Pois bem, em Tarumã, essas con- tingencias naturaes eram de tal modo perturbadas não pelos porcos, mas pelos urubús, era tal a perse- guição por elle exercida, que se tornára necessario o munir-se de uma vara para atugental. os! O serviço d'esse dia, e ao qual já fiz referencia, seria conduzir as setecentas cabeças que já estavam apartadas; assim, muito cêdo soltou-se a boiada, que ia sendo por nós cercada á medida que sahia do curral: ora era um novilho mais arisco que tresma- lhava e era perseguido e reconduzido á manada pelos cavalleiros; ora uma pequena ponta de seis ou oito cabeças que disparava e forçava a perseguil-as dous ou tres peães; até que, emfim, fóra dos curraes toda a boiada, foi ella mantida em rodeio parado para que pastasse um pouco, findo o que começámos a tocar essa boiada. No curral tinham sido apartadas as ca- beças que deveriam constituir a boiada, comtudo, o comprador tinha o direito, até que elle só com seus peães a conduzisse, de rejeitar uma ou outra rez que não julgasse bôa; e sendo assim, depois de mandar apartar, creio que duas rezes, resolveu tambem re- fugar um garrote que, apezar de bonito e gordo, era bravo e endiabrado, já déra muito trabalho no curral, e agora estava aborrecendo e perturbando a marcha da boiada: tres vaqueiros apartaram o garrote atre- vido e, para aproveitar a occasião, um dos peães la- cou, outro pealou e o outro transformou o garrote em novilho, findo o que deixaram-n'o quieto e, a-ga- lope, retomaram seus postos. Chegados ao limite da fazenda entregâmos a boiada e, tendo o Mario cedido ainda alguns peães para auxiliar o comprador até a margem do Para- guay, dirigimo-nos para o retiro d'onde vieramos, acompanhados de outros peães. | Quando nos approximavamos do local onde dei- xaramos o ex-garrote, talvez porque montassemos, n'essa occasião, os melhores cavallos da fazenda, estavamos muito adeantados sobre os vaqueiros e d'elles distanciados talvez mais de kilometro; o recem-novilho olhava-nos, provavelmente com raiva do genero humano, de que eramos por infelicidade então representantes, e o Mario, bem conhecedor da “psychologia” bovina, olhou para o animal e dis- se-me: “com aquelle é só convidar que elle parte so- bre nós”. Palavras não eram ditas... e, mesmo sem con- vite, o bruto, que estaria a cem ou cento e poucos me- tros distante de nós, disparou em nossa direcção; rapidos voltámos os nossos animaes e corremos fu- gindo á sanha vingativa, mas, embora a mim não fosse possivel attribuir a culpa do que fizeram ao coitado, foi precisamente contra mim que se voltou a sua furia, que ahi com todo o cabimento póde cha- mar-se de céga, vista sob qualquer aspecto. As espó:- ras procuraram transformar em arabe o meu cavallo crioulo, mas, vendo que a furia do ex-garrote fazia-o correr mais do que o cavallo, puxei o meu revólver, ao mesmo tempo que procurava alcançar um pequeno Viagens e Caçadas 15 — 226 — grupo de carandás, rodeando o qual procuraria en- ganar o meu perseguidor; alcancei, felizmente, mas não sem algum susto, a moita de palmeiras, conse- guindo ficar do lado opposto ao meu inimigo, e, de frente voltada para elle, esperava o rompimento da indecisão para correr novamente, mas já tendo dado algum folego ao meu cavallo. Os peães, porém, que . de longe viram a scena, accorreram ao local e, como eram alguns, lograram o caipóra e deram-me lber- dade. Continuámos o nosso caminho e, como tivesse- mos visto um pequeno empoçado, que não teria talvez quinhentos litros d'agua, mas cujo liquido, à vista do que utilizavamos, poderia considerar-se crystallino, tomámos nota do local para mandar, como mandá- mos, ahi buscar agua para beber. Chegados a Tarumã, empregámos o resto do dia em pequenos arranjos e preparativos para a caçada do dia seguinte, e depois do banho da tardinha e do Jantar, cêdo estavamos adormecendo ao som da gaita de fole, d'alguma canção de caboclo e do suave ru- mor das folhas verdes da virente tarumã agitadas pela brisa. No dia seguinte, 5, eu, o Mario e os zagaieiros Bernardo e Acylino, ás 6 horas da manhã, partimos com a cachorrada para o local denominado “Forno”, onde, segundo era corrente, andava a fazer diabruras um bello macharrão. Cavalgavamos pelo campo, e seriam talvez 8 ho- ras da manhã, quando um perfume muito agradavel, embora um pouco activo, espalhado no ar, chamou a nossa attenção; era, segundo informavam os zagaiei- ros, um “ariticum” que estava maduro, e como accrescentassem tratar-se de fructo muito saboroso, puzemo-nos á cata do ariticum, que não tardou a ser encontrado pelos nossos narizes. De posse do ari- ticum, verificámos que os tatús tambem apreciam a + pero vi ue dado di À e Leg pe q O SR up O ag do “apr a sic ea Cepam, PRADO E DE GE ra, re ep A' caminho da caçada Onça parda empoleirada — 227 — perfumosa fructa agreste, pois que quasi metade da mesma Já tinha sido por elles comida. Um facão fez, à Salomão, a separação da nossa parte d'aquella que cabia ao tatú, e depois de saboreado o que nos tocára, continuámos a nossa perambulação. Cerca de uma hora depois d'esse incidente, os cães correram um animal que, devido a estar a macéga, muito alta, custámos a perceber que era um tamanduá-bandeira, e esperavamos owvil-o bufar na acuação que deveria ser immediata, pois que o animal dirigia-se para um pequeno capão, quando, com enorme surpreza, vimol-o atravessar esse capão e continuar pelo campo; corri, então, a cercal-o e, com um tiro no co- ração fulminei o grande desdentado. Approximá- mo-nos da victima para nos apossarmos do seu bello couro, quando segunda surpreza que explicava a pri- meira surgiu ante nós: o tamanduá, quando o atirei, levava a grande cauda, que lhe dá o nome de ban- deira, empennachada por sobre o dorso, e só agora viamos que essa cauda encobria um filhote. Com grande custo tirámos o pequeno tamanduá das costas da nossa presa e demos-lhe liberdade, cer- tos de que poderia elle viver por si, pois que se tra- tava de um filhote de muito grandes dimensões. Por mais que rebuscassemos um rasto com os cães, ou uma carniça com a indicação dos urubás, tendo baldado os nossos esforços, resolvemos, por perto de 10 horas, continuar a procura, mas tratando de nos approximar do retiro; e assim procedendo, passavamos, meia hora depois, por junto de um capão, quando, tendo os cães latido de modo cara- cteristico, e tendo nós ouvido bulha no capão, esta- cámos nossas montadas, e logo vimos uma onça parda trepar a uma arvore na orla do mesmo capão. Como se tratasse de onça parda, os zagaieiros não fizeram, sequer, menção de approximar-se; e atirada que foi — 228 — por mim a onça, verificâmos o seu muito pequeno ta- manho. Mal haviamos montado e logo ouvimos acuação: no meio do capão; e como a oncinha morta estivesse, talvez, acompanhada pela respectiva progenitora,. imaginámos que essa fosse a que então acuavam os cães. Corremos para o local da acuação, e lá ainda: não chegáramos, quando alguns cães latiam empo- leirando outra onça; e chegando ao local para onde: nos dirigiamos, deparámos com outra oncinha, que- teve a sorte da primeira: Dirigimo-nos em seguida para a terceira acuação, certos, d'esta vez, de que- seria a mãe das oncinhas, quando ouvimos dous tiros de revólver, de um dos zagaieiros; forçámos mais o passo e, chegando emfim ao local da terceira acuação: e dos tiros, encontrámos, tal como não previamos, uma terceira oncinha, que veio juntar-se ás primeiras e permittir a photographia que tiramos. Continuando no proposito de trazer ao Rio, para que se fizesse uma ideia do tamanho de um cachaço e da espessura de seu couro no pescoço e espaduas, era minha intenção atirar um d'esses animaes, para trazer o couro; e como estivesse marcada para o dia seguinte a nossa partida de Tarumã, vinha agora pensando em executar esse projecto, embora o meu physico protestasse contra esse ou qualquer outro: projecto, pois que, subitamente, começava a não sen- tir-me bem. Continuavamos a viagem e, tal como se fôsse encommendado, avistámos um enorme cachaço, isolado, a uns cento e cincoenta metros de distancia; os cães, assim que o perceberam, correram para elle, e querendo aproveitar a pequena marcha que levava o cachaço, marcha que seria accelerada com a appro- ximação dos cães, deixei partir o meu tiro. Com esse tiro e a perseguição dos cães o cachaço desenvolveu a velocidade maxima e, no meio d'essa carreira, alve- Jei-o novamente; o animal não se deteve e, como se- — 229 — dirigisse para um capão, os zagaieiros galoparam para lá, na intenção de defender e salvar os cães. E foi bom, porque, enfurecido com o ferimento e a perseguição dos cães, o cachaço, já dentro do capão, fizera frente a estes e, graças á agilidade e firmeza de golpe do zagaieiro Bernardo, é que não perdemos um dos nossos bons e valentes auxiliares sob as pre- sas do atrevido cachaço. Continuámos a nossa róta para Tarumã, sentindo-me peiorar de momento a mo- mento, pois já não era muito facil manter-me a ca- vallo, devido ás tonteiras que tinha. A minha saude, felizmente sempre bôa, nunca fôra perturbada por máu funceionamento de orgão algum, e salvo uma pneumonia apanhada em Parana- guá por falta de abrigo, chuva, e repentina mudança de temperatura, uma congestão pulmonar no Es- treito de Magalhães e duas dóses de palustre adqui- ridas em caçadas de patos na baixada fluminense, tenho sempre usado, e talvez abusado, da minha re- sistencia physica sem nenhuma consequencia des- agradavel. Estava agora, além de aborrecido com os symptomas desagradaveis de tonteiras, nauseas e asthenia, preoceupado com o que poderia ter deter- minado esse estado morbido. O epilogo rapido e em extremo prosaico desse caso veio, além do allivio de males e preoccupações, trazer à memoria o que tinhamos ingerido pela ma- nhã, e ensinar que, sob pena de repetir identica per- turbação, não se deve tomar leite e, pouco depois, comer ariticum... Como a nossa bagagem, da qual faziam parte os couros, devêsse partir muito cêdo, no dia seguinte, para o Riozinho, tratámos de arrumal-a; e como tambem cedo devessemos partir, cêdo tratámos de dormir. Ás 4 e meia da manhã de 6 de Fevereiro partia para o retiro do Riozinho o carro de bois com a nossa ni — 230 — bagagem e trophéus, e ás 6 horas, depois de lançar- mos um olhar já saudoso á frondosa tarumã que dá nome ao retiro, montámos a cavallo e partimos, com o mesmo destino do carro de bois, eu, o Mario de Barros e o zagaieiro Bernardo. Não haviamos caminhado muito, quando, tendo um coaty surgido á nossa frente, foi elle victima de. um projectil da minha 22; d'ahi por deante, porém, não mais atirámos, talvez em razão da abundancia que enfara, ou, mais provavelmente, porque a volta de uma caçada envolve sempre a alma do caçador n'um ambiente de vaga tristeza, onde a emergente saudade deixaria ver atravez de seu véu, se o levan- tassem, a preoceupação e o sentimento de não ser possivel, — quem o sabe? — repetir no resto da vida aquellas emoções fortes e deliciosas. Hora e meia após a nossa partida, como esti- vessemos novamente em presença do grande alagado, descalçámos as botas para “descalçar aquella bota”, que outra cousa não era a morosa e nada commoda travessia a que já fizemos referencia. Com duas ho- ras justas de viagem semi-amphibia, chegámos ao porto do Riozinho, onde, depois de almoçar um pato bravo e accommodar a bagagem em uma canôda, em- barcámos, com mais um remador, em outra e, ás 11 e meia, comecámos a descer o Riozinho, em demanda do Paraguay e do porto da Manga, onde nos deveria tomar o “Brasil” e conduzir a Porto Esperança. Desciamos tranquillamente o rio, com a arma prom- pta para derrubar um pato que se dispuzesse a variar o “menu da matula”, mas, porque a hora não fosse propicia, ou porque propicia não nos fosse a sorte, não houve meio de atirar, e nem mesmo de avistar a gostosa peca; como, porém, um bello tuyúyú viesse, em certo momento, passar por cima da nossa canôa, derrubámol-o para trazer o enorme bico e algumas pennas como trophén. coco mA DR PAR 0 MR pp a oi DS a da Dt E AP 17 A o - E à $ sa, Ad Trez pumas em meia hora Forçando um boi a atravessar o Paraguay Barra do Rio de Entrando Janeiro na Guanabára — 2381 — Mais ou menos pelas 2 horas chegámos, emfim, a Manga, onde estavamos longe de imaginar que iria- mos ainda encontrar o comprador das setecentas ca- becas de gado que nos havia deixado na manhã de 4. Pobre homem: com a roupa em tiras, fatigado, sujo, quasi se dormir, mal alimentado, e diriamos en- velhecido, esse pobre homem lutava ininterrompida- mente desde que nos despedimos; ao fazer a boiada atravessar o Paraguay, mais de quarenta cabeças tinham refugado e conseguido escapar-se; algumas “teriam retomado o rumo de Taruma, nas Palmeiras, e estariam, provavelmente, na divisa com essa fa- “venda; outras, porém, constituindo a maior parte, estavam refugiadas n'um extenso espinheiral que n'essa zona margeia o Paraguay, e era ahi que, arros- tando os acerados espinhos, era preciso procurar, laçar e trazer á força esse gado, uma rez de cada vez, já se vê, e com que trabalho, com que luta, com que fadiga! E não cessava ahi o trabalho: ao cahir da tarde, assistimos a chegada de dous vaqueiros que, em farrapos e arranhados, traziam, a cavallo, preso aos extremos de seus respectivos laços, um recalci- trante novilho; uma vez este junto á barranca, tres homens tiraram as roupas (que aliás pouco lhes co- bria a nudez), dous outros saltaram em uma canda, e estes procurando rebocar o novilho, e aquelles im- primindo-lhe direcção e fustigando-o, gastaram grande tempo e energia para, já noitinha, conseguir o que almejavam. Mal acabaramos de assistir a esse espectaculo que tanto nos fizera lembrar as palavras de Roose- velt sobre a energia do nosso caboclo, quando, o boia- deiro, cujo nome sinto ter esquecido, correndo como louco, para uma canôa e fez remar a toda força para atravessar o rio. Já tereis a explicação, que a nós tambem só veio depois de notarmos o movimento quasi desatinado do boiadeiro: Um navio argentino Re E ago E descia o rio em demanda de Assumpção, e ao passar pela Manga, ou melhor, um pouquinho antes, apitou, pois que alh, ás vezes, embarcam carga ou passa- geiros; a nós teria passado despercebido o que então notavamos, se não fôra o movimento do pobre boia- deiro, mas, agora, na outra margem do rio, a uns cem metros d'ella, conseguiamos ainda ver elevar-se uma grande columna de pó como a fumaça de um incendio, e sentiamos chegar ao ouvido, no silencio da solidão, um abafado rumor de trovoada longin- qua, rumor já nosso conhecido e produzido pely gado assustado dentro do curral. Fóôra o receio, bem justificado, do estouro da. boiada que fizera o seu conductor correr e. atravessar o rio. ) Já tinhamos jantado a nossa “matula” e, como a noute fosse envelhecendo sem que apparecesse o nosso navio, tirámos a ede e respetivo mosquiteiro e dormimos. Só depois de 1 da de gado chegou o “Brasil”; despedimo-nos do Pantaleão e do Bernardo, demos um apertado, longo abraço cheio de amizade e gra- tidão ao bom amigo Mario de Barros, embarcámos e partimos, ás 2 horas da madrugada, rio a baixo. Ás 6 da manhã de 7 chegavamos a Porto Espe- rança e tomavamos o mais incommodo, sujo e infame wagon existente no mundo; n'elle deveriamos fazer doze e meia horas de viagem, e era com tristeza que enfrentavamos esse supplicio; a sorte, porém (a sorte que nos desculpe a largura das costas), decidiu que, além de mimosear-nos com uma poeirada insup- portavel, deveria fazer com que essa viagem durasse dezeseis horas, pois que só ás 10 da noute, esfomea- dos e sujos, chegámos a Campo Grande, de onde de- veriamos partir ás 4 horas da manhã seguinte. Fazia parte do meu programma de volta, como tivesse de perder um dia em Tres Lagõas, empregar “ 2999 248 esse dia caçando perdizes na fazenda do meu amigo Victorino Monteiro; á vista, porém, de uma série de “desencontros, resolvi prescindir d'essa caçada e, par- tindo de Campo Grande ás 4 horas e 15 minutos da manhã de 8, chegámos, dentro do horario (oh successo), com quinze horas de viagem, ás 7 da noute, portanto, a Tres Lagõas. Como não houvesse outro remedio, interrompe- mos ahi a viagem, e n'essa cidade passámos todo o Domingo, que foi empregado em arejar os couros de onça, fazer uma arrumação melhor na bagagem, etc. “Havia muito tempo que chovia abundantemente e, como provavelmente estão ainda lembrados, cho- veu durante toda a nossa viagem do Rio a Porto Es- perança, e já era grande a cheia do Paraná quando o atravessámos em demanda de Matto-Grosso. Agora, de volta, dezeseis dias após, como tivessem continuado as chuvas, a cheia teria attingido propor- ções nunca vistas, e havia sérias preoccupações sobre a travessia d'esse rio, que talvez não fosse mais pos- sivel. Já tinham mudado por diversas vezes o local da atracação do rebocador na margem paulista, e, na vespera, para tão longe fôra essa mudança que a viagem de travessia durou duas horas. Foi, pois, sob a desagradavel ameaça de termos de ficar presos em Matto-Grosso e, por causa do rio, não virmos ao Rio, que fomos dormir para aguardar os acontecimentos. No dia seguinte, 10, despertámos n'um verda- deiro diluvio; a grande praça em que fica o hotel em que estavamos, e no lado opposto do qual fica a es- tação da E. de Ferro, estava transformado em verda- deiro banhado; e foi sob pesadissima chuva e enchar- cando os pés na lama, que nos dirigimos para o trem, sem que soubessemos se tal sacrificio teria a sua re- compensa, pois que não sabiamos se poderiamos ou não seguir viagem. Emfim, com grande atrazo, par- tiu o trem, sem que ainda soubessemos se a travessia — 234 — do Paraná seria ou não realizada. Chegados á bar- ranca, ou ás proximidades d'ella, começámos por atravessar uma série de carros vasios que serviam de ponte improvisada, depois, por turmas de quatro a seis passageiros, saltavamos para um pequeno troly de linha que navegava em montanha russa, até que, chegando a um local mais profundo do alagado . e ahi perdendo a velocidade adquirida, era esse troly empurrado por alguns homens que, com agua pela cintura, faziam-o chegar até um ponto enlameado mas não alagado, local em que saltavamos para, de- pois de uma caminhada a pé dentro de um lamacal, attingir, depois de subir uma prancha de madeira, afinal (uff!) o rebocador. Não precisa dizer que para transportar todos os passageiros, que não eram pou- cos e entre os quaes algumas senhoras, foi preciso muito tempo; e assim é que, só duas horas depois de iniciada a manobra, deixavamos Matto-Grosso e a margem direita do rio Paraná, para chegarmos uns quarenta minutos mais cedo à outra margem. O pequeno espaço de tempo despendido na tra- vessia, o que constituiu para todos uma agradabi- lissima surpreza, foi devido a terem mudado ainda uma vez o ponto de atracação na margem esquerda, ou paulista, d'essa vez, porém, para quasi em frente ao ponto de partida na outra margem, que elle ficava, ainda com vantagem para nós, apenas um pouco á montante. Infelizmente, nem todas as surprezas d'esse dia deveriam ser tão agradaveis quanto a causada pela bôa travessia: À estação de Itapura fica a poucos kilometros da barranca; e é ahi que, n'uma casa tosca e unica, é servido o almoço préviamente encommendado de Tres Lagõas, de accordo com o numero de passagei- ros. Sendo a mesa d'esse arremedo de hotel muito pequena, é preciso esperar que uns terminem a re- pm EP — 235 — feição para que outros a façam, o que é sobremodo incommodo; e assim sendo, quem já sabe d'esse facto, dá-se pressa em tomar lugar na referida mesa. N'esse dia, a mim e mais seis ou oito passageiros que fomos os primeiros a chegar, serviram o almoço, que aliás já encontrámos á mesa, e como era natural, demo-nos pressa em terminal-o para ceder lugar aos demais. Qual não foi, porém, a nossa surpreza e o erorme desapontamento dos que esperavam, ao ou- virmos a declaração de que não havia mais nada para comer! Podem crer os caros leitores que, apezar da fome que traziamos, não comemos; não comemos, nem seriamos capazes de comer, o almoço destinado a quarenta ou cincoenta pessõas; não; a razão era outra e, como hão de ver, foi o rio quem furtou o almoço dos meus infelizes companheiros. Como disse antes, é preciso telegraphar de Tres Lagõas dizendo o numero de pessõas que vão almo- car em Itapura, para que ahi essas pessõas encon- trem almoço; o encarregado d'esse serviço fez o que era de seu dever na estação da partida; mas, como o rio, muito alto, tivesse arrebatado o fio telegra- phico, arrebatou tambem o almoço, pois que o tele- gramma não foi recebido. O que é mais comico, porém, é que os donos do tal hotel, e alguns empregados que se encarregam de transportar a bagagem na travessia do rio, tiveram tambem de jejuar, pois que o almoço que comemos a elles estava destinado. A” noute chegámos a Araçatuba, e é provavel que os famintos tivessem desforrado no jantar o que perderam no almoço. Ás 6 horas da manhã do dia immediato deixa- vamos Aracatuba; almocámos sem riscos e até muito bem em Presidente Penna, e ás 4.30 da tarde chega- vamos á florescente Baurú, onde fomos encontrar o nosso bom amigo Oscar Guimarães. O tempo de que E pat dispunhamos era curto, e, assim, jantado cêdo e sem muita folga, tomámos o nocturno da Sorocabana e rolâmos para 8. Paulo, tendo tido antes o cuidado de telegraphar ao amigo Epaminondas, pedindo pas- sagem e leito para o Rio. Pela manhã de 12 chegavamos a S. Paulo, onde, na estação, nos esperava o bom amigo Epaminondas; e antes mesmo de dar-lhe bom dia, gritámos-lhe do trem perguntando pelo leito encommendado. Apezar das enchentes de que já tinhamos noticias e parte das quaes haviamos presenciado, foi com surpreza que, depois da reclamação do bom dia por parte do nosso amigo, d'elle ouvimos essa resposta: “você não tem nem trem quanto mais leito...” Foi uma decepção de primeira ordem. Eu não estava de modo algum preparado para permanecer em uma cidade civilizada, pois, fazer de um modo pratico e rapido a viagem que estava em vias de terminação, só o era possivel com especial e reduzidissima bagagem; emfim, como não havia ou- tro remedio, e alimentando a esperança de que a linha da Central ficasse desobstruida de um momento para outro, dirigimo-nos ao hotel, lá deixámos a exquisita bagagem, e sahimos a prosear com o amigo Epaminondas e outros mais. No correr da conversa, já quasi á tardinha, lembrámo-nos de que talvez hou- vesse algum navio a sahir de Santos para o Rio; com certa difficuldade, pelo adeantado da hora, consegui- mos verificar que, no dia seguinte, 13, o “Itagiba” deixaria aquelle porto com o destino que desegava- mos, e Jogo ficou resolvida a minha partida para a manhã seguinte. A 13, pela manhã, sempre debaixo de chuva, deixei S. Paulo para descer a Santos e, tendo viajado com o velho amigo João Mello, chega- dos que fomos a essa cidade, dirigimo-nos em com- panhia d'esse amigo ao seu eseriptorio, e ahi espe- — 237 — rámos que um seu empregado trouxesse a passagem que para mim ordenaram-lhe fosse comprar. Poucos momentos depois voltava o alludido em- pregado, dizendo não haver mais passagem de 1º classe, e que, como toda a gente estava lançando mão do recurso, que era o unico, de comprar passagem de 3º, elle, graças ás bôas relações de amizade que o ligavam a um dos empregados da companhia, conse- guira fazer reservar para mim uma das ultimas pas- sagens de 3º classe... Mas, então, eu ia viajar como emigrante! de 3º classe?! Não; não era possivel. Absolutamente certo de que tudo arranjaria do melhor modo e que de modo algum compraria a pas- sagem de 3º, sahi com o tal rapaz, dirigi-me á agen- cia da companhia e fiquei muito contente em poder adquirir uma passagem... de 3º... Claro está que, tomando tal resolução, o fizera na premencia de não ficar sem poder regressar ao Rio, mas já tendo elaborado um plano logo posto em execução. Fui procurar o meu collega Capitão do Porto e delle obter uma apresentação para o Com- mandante do navio, mas, uma vez isso obtido, em lugar de ir a bordo, fui almoçar com uns amigos, e só ao ver approximar-se a hora marcada para a par- tida foi que apresentei-me a bordo do “Itagiba”. O gentil Commandante Marsh, desolado por não poder alojar-me em seu camarote, cujo beliche vago cedera vinte minutos antes, teria ficado embaraçado se não fosse a minha facil accommodação ás installa- ções “á la diable”. Disse-lhe que me contentaria, du- rante tão curta viagem, em ter onde guardar a minha heteróclita bagagem, e poder lavar-me, pela manhã. Tão fracos desejos foram logo accedidos e, como o navio só devesse partir não mais ás 5 da tarde, mas sim ás 9 da noute, tornei á terra, para jantar com + — 238 — amigos, e só regressei a bordo, acompanhado d'esses amigos, à hora da partida. Deixámos o cáes de Santos e, sempre no passa- diço, depois de apreciar a sahida do porto e de re- ceber os cumprimentos do nosso bonançoso Atlan- tico, sob um céu scintillante de constellações e acari- ciado pela brisa fagueira, senti desejos de transpor- tar-me ao mundo dos desconhecidos (temporaria- mente, já se vê). Mas, onde iria eu dormir? Com aquella tempe- ratura adoravel e leveza de ar que se goza no mar, o lugar mais agradavel para dormir seria o proprio passadiço. Era; era isso mesmo. — “Captain, preciso de sua cadeira de lona. — Mas pretende dormir as- sim!? — Já sei que o Senhor aqui é o Commandante, mas, agora, quem está com a manobra sou eu. — Está bem; ahi tem a cadeira. Fui buscar o meu poncho e a maleta; esta serviu-me, como prolongamento da cadeira, para repousar os pés, e vestindo o poncho e atando o lenço ao pescoço, estendi-me na cadeira, despedi-me, com um olhar, do azul constellado, e — bôa noute — dormi deliciosamente até a manhã se- guinte: o c'c Nmniio o oo De oo o o 00) .6 0,50 qDS Ma IO alo polido o)» co 6) 0 o foriw lio Fio) ho Ra ao por tarde bonançosa e bella que enfrentámos a barra, que se offerta como uma bocca ao beijo amante aberta, ao beijo que promette e desaltera. Maravilha depois de maravilha, transposta a barra, surge, incendiada pelos fogos vermelhos do poente, calma e tranquila, a bella Guanabara. Cami- nha o tempo á proporção que andamos, e as luzes, por centenas, por milhares, emmolduram o quadro da bahia. Praias, ruas, ladeiras, ilhas, morros, tudo, n'um surto que parece um sonho, illumina-se e agora esplende e brilha; e no oriente, entre os resquicios Bahia de Guanabára — 239 — vagos do violeta que inda o sólo colóre, desponta a lua radiante e linda, fazendo o mar rivalizar em bri- lho com as faiscantes luzes da cidade. Cada ponta de vaga ou de mareta reflecte o prateado incande- scente do astro terno que tão longe fulge; suspiram de contente os que regressam; nos que ora chegam brota uma saudade... Viajor, viajor, não salta ainda, contempla bem o. quadro que te empolga e te excede de muito o pen- samento; percorre a terra, corta os oceanos, rebusca em cada canto do planeta um sitio que te deixe embe- vecido como este que ora vês e te extasia. Parte e retém na mente o que contemplas, pois nem a todos, viajor, é dado gozar o sumptuoso panorama do co- ração da terra brasileira. N. 1.458 — Officinas Graphicas da Livraria Francisco Alves Ns y as e, ao AS ER Ret — O TAPE a FO ga Sa A EA a ERR 4 dd Ea pari £” de 1 TR ho TR a ta y : ME, à ei o NE º + = + x e À : + Capitulo II — Corumbá — Giboia — EadacroR bang! 4 Go Abi : ai À tanials== Ases aquaticas .&... 028 coa Sra che ARE vês ; c apitulo III — Projectos de caçada — Encontro com - Cs "Theodoro Roosevelt e viagem a Palmeiras : , º “. ã ns a Fazenda das Palmeiras — egresso pie t. á . “ A >. Palmeiras Par RP ag 2: 1 AR RN 27 es e - itul 1v — Viagem à Fazenda de S. João — Na xs nã a ae “e Fazenda de S. João — Caçadas no rio S. Lou- E we" sa FERÇO NR. duagos -RM nSi o o 2o Tat ce o apud xe o 4 E Ei e rapto DE io Vv— - Viagem é a S. Luiz de Caceres — Fazenda = E se do Descalvado = Caceres DE e Ea e 65 — - a so Réntindo dy É atm a Porto do Campo — Em Part » 1 É od ex pra à o Campo — Regresso ao Ladario.......... 9. RN a LE if de Capitulo Vil — Sr, Ja jão de Baxrdar — rc & k "a + . Es É: cada de onçass.........r so. - É re e q 14 ada "* Capitulo VIII — Cacadas é em “Urucúm” — Sr. Jenú = g ho PU -Ags + & ae pé - Segunda caçada. rbrishana o DAR Tea = 95 aê 4 + .. Capitulo IX — Marrecas e fes — Terceira caçada & e “de QUCHA gdena ooo Pg ss ES RS A de ae. ; X= victoria ESA ER ae x “ Capitulo X oria ReRinA = - Aim jacarés . = é age Quarta: “ia de onça. e ao E ARNS É É. “; ad - Capitulo XI — Das margens do Paraguay ao Rio de rea, p erra. ABRE A RS RE cs DE o» Capitulo XII — Sei ça tas em seis dias a TI t ” | e E E ” bia Du ag E E nad + Es Ai RS * . : $ E. s A Mo 4 E se a ê s E e E é » * É 4 “ Pi e o + é » x * q à po . e i * É Ee Ed « Ea TOSA 4 PO PED Ra nd pi gi ua dd Press e ago manero AT, “e F U V