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JÚLIO CESA\R_ mACHADO

A VIDA ALEGRE

r APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA)

LISBOA

LIVRARIA EDITORA DE MATTOS MOREIRA & C*

6j, Praça de D. Pedro, 67 1880

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Ha uma lenda antiga, que conta que um rico homem quiz ser enterrado debaixo do chão de uma egreja, para que todos, que entrassem alli, passassem com os pés p:r cima d'elle. . .

Que triste gosto é este, também, de recordar os dias da mocidade, e os ânuos vividos entre gente, que, não se havendo nunca interessado por nós quando nos viu, fraca esperança nos deixa de se interessar por nós, depois, ao ler-nos ? !

Mas é tão boa a mocidade, que, até os que a não tive- ram em muita maneira íeliz, lhe encontram, nos an- nos tardos da vida, o gosto agro-doce, que nenhumas venturas ou fortunas de outra epocha hão de jamais egualar.

APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

Venham a indiíTerença c os desdéns do mundo sor- rir friamente da lucta e das victorias dos que chegam á madureza da edade sem outra riqueza senão a confiança em Deus e em si ; ainda são mais pobres os que, tendo tudo, nem tiveram illusões, nem têem saudades.

Não foi, por certo, grande caso á luz da historia, aquelle de eu entrar na Revolução de Setembro, aos vinte e três annos, para substituir Lopes de Mendonça no fo- lhetim ; mas da mesma maneira que, apesar de ser uma historia velha e relha, os desgostos que os amores dão na vida, em elles apanhando a gente, fica uma pessoa com o coração estropiado, como se aquelle caso fosse novo em folha, não ha de o leitor na sua bondade deixar de i;onceder-me que ainda hoje considere como um dia entre todos memorável o d'aquella ceremonia, que con- sistiu em entregar, eu, nove meias folhas de papel, es- criptas de um lado só, ao administrador da Revolução de Setembro, n'esse tempo o mesmo cavalheiro que ain- da hoje está n'esse logar, o major Moraes Sarmento, e ouvir de seus lábios estas palavras melodiosas :

Se prefere receber o mez, estou auctorisado a...

Não se teem vinte e três annos para coisa nenhuma : rciorqui immediatamente que não havia precisão algu- ma d 'isso.

Se os melancholicos, se os atacados de «spleen» tives- sem podido passar uma hora por dia commigo emquanto

A VIDA ALEGRE

estive na lua de mel do folhetim, é provável que houves- sem (içado curados para todo o sempre.

Era uma cara de paschoa, a rainha !

Quando mais tarde a vida me creou direitos a enfas- tiar-me de vez em quando, estava, eu próprio, tão ha- hituado ao aspecto piltoresco da minha alegria, que nun- ca mais, de todo, lhe perdi os gcitos.

Tamhem, entendamo-nos, havia certa razão para não cair n'uma profunda misantropia, e decerto se compre- hende isso, se nos lembrarmos que ao quarto ou quinto folhetim principiaram a esgotar-se sempre, ás terças- feiras, que era o dia marcado para a publicação d'elle, nas lojas dos livreiros e no escriptorio da administra- ção,os números todos do jornal ; e que, mez e meio de- pois,a tiragem n'aquelle dia da semana foi augmen- tada.

Se no primeiro volume d'estes Apontamentos contei ao leitor com a verdade que se deve a todas coisas, mas, notavelmente, com a que todo o escriptor deve ao pu- blico, quando tem que fallar de si, as minhas tristezas, e os revezes que tantas vezes as motivaram, não vejo o motivo porque houvesse de eliminar n'esla resenha a rara circumstanciaque representa, mais do que para a minha sa- tisfação pessoal, para o sentimento de gratidão contente que se guarda para com o primeiro sorriso da felicida- de, a pagina festiva desta caitcira de lembranças.

APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

José Estevão,— o espirito d'aqiielle homem era ver- (ladoiranuMite suporior e bom teve uns júbilos com isso, interessou-se tanto pelos tollietins, e em tal grau de osíinia ipiiz eonceituar-me no animo das pessoas com (jiiom ta liava, que, oní duas ou três semanas achei-me, (Ml, tjiio não eonliecia quasi ninguém, a conhecer toda a gente para com quem significasse alguma coisa poder- se trocar um aperto de nuio.

Por oiilro lado. l.opes de Mendonça, que tivera sem- pre para num a ternura dum pae ou de um irmão mais velho, saudava, com aquella expansão de animo, que um scntiuumlo demasiado vivo foi mais tarde levando ate á exaltação febril, os esforços quo eu empregava por Ic- grar que não se me contestasse o uso que eu lizesse de uma peuna ao escrever para o publico.

Lopes de Mendonça era meu tutor. Nunca veio ao caso» das diversas occasiões em que tenho nos jornaes ou em livn^s faltado a seu respeito, coutar isto. Conto-o agora. Porque se tratas.<e de fuzer-me couseiho de famiíia, logo depois da morte de meu pae, e dando-se a circumstan- cia de minha mãe estar longe, pergimtaram-me se eu de.<t*java iudicar alguém para representar em Lisboa essa tutora iwluml, que a lei uão podia acceilar todavia pelo (^cto de eu viver em tauta distancia d ella.

Peusei uma, [^ettsei Ams, peiísei três. .

por tim:

A VIDA ALEGRE

Sim, tenho.

Ah ! Quem vem a ser? perguntou o procurador.

Vem a ser o sr. Lopes de Mendonça.

O que escreve Y

Esse mesmo. O que escreve.

Conhece-o ?

Perfeitamente.

E seu pae conhecia-o ?

Também o conhecia, sim senhor.

Bom. Pois consulte-o, e será esse. Foi esse.

N'um bello dia, o juiz Nogueira, excellente e respei- tável homem, que Deus tem, o então folhetinista Lo- pes de Mendonça, o escrivão sr. Freitas Jacome, e este seu venerador Júlio, achavamos-nos no tribunal da Boa Hora, onde essa ceremonia, mercê da bondade do escri- vão e do juiz, me não custou um real; e alli se estabele- ceu e registou o caso de eu íicar sendo pupillo de Lopes de Mendonça.

O visconde de Carnide, que mai? tarde foi sogro do illus- tre escriptor, encontrou-nos ao sair da Boa Hora, e Lopes de Mendonça deu-lhe parte do que acabava de se passar.

Não havia maneira de o suster a rir.. .

Oh ! Com os diabos ! Vossê é tutor d'elle ! . . . Essa agora ! Elle é que escolheu ? Pudera ! Que dois ! Oh ! que tutor !. . . Oh ! que pupillo !. . .

10 APONTAMENTOS DK UM FOLHETINISTA

E, d'alli em deante, em me encontrando :

Viva ! Então como vae?

Menos mal.

Ah! ah! ah! Não nic pôde esquecer. .. E o tu- tor ?

Vae bom.

Que historia ! Os senhores, quando lhes parecer, troquem, para variar !

Talvez.

Não c talvez; olhe que hão de tirar vantagem. Um mez pupillo um, no outro mez pupillo o outro... Ora o diabo ! Ah ! ah ! ah!... É impagável ! Uma assim é que ainda não veio !...

Com Mendonça, em el!es se encontrando, passava-se a mesma scena. Grandes apostrophes de risota, interjei- ções, exclamações, gargalhadas dobradas, de umas que n'aquelle familia passam de geração para geração, e que o visconde Guilherme, nosso secretario em Madrid, con- serva e mantém impremeaveis.

Mas, do mesmo modo que o D. César de Bazan, alti- vo, pechoso, distincto e nobre, embora houvesse perdido algures, na garganta de um monte ou n'alguma viella suspeita o escudo de armas quasi apagado de seus maio- res e se embuçasse n'um gibão usado com ares de quem estivesse vestido de brocado de oiro e tivesse ao peito a ordem de Calatrava, dizia ao primo D. Salustio que

A VIDA ALEGRE i l

se lhe queixava de elie haver dado motivo pela extrava- gância do seu traje a que certa fidalga da sua amisade largasse a rir por ver tal figura :

Gosto muito de fazer rir as mulheres !

assim, pelos modos, deve ser muito agradável aos namorados fazerem rir os futuros sogros ; e por isso o Mendonça, quanto mais o sr. Street ria, mais gosto sen- tia elle, tanto mais que as gargalhadas do visconde se- guem á risca o grande preceito de que o riso seja com- municativo, e, em elle ou seu filho desatando aquelles trillos e cadencias da hilaridade, é de uma pessoa rom- per logo tamhem a rir ou estoirar alli mesmo.

De uma occasitão, ha pouco tempo, estávamos a almo- çar, António Batalha Reis e eu, com o Carnide Guilher- me. António Batalha Reis, coatava-nos que vira de uma vez, em Madrid, Alexandre Dumas à porta do hotel, a tomar ar, de casaca azul de holões amarellos e sem cha- péu na caheça ; que se demorara um quarto de hora, na rua, a olhar para elle, e que, informando-se, e haven- do sabido que o celebrado romancista estava alojado n'aquella hospedaria, não resistira ao desejo de lhe fal- lar, e fora ao hotel procural-o.

O sr. Alexandre Dumas está em casa ? pergun- tara Batalha Beis ao porteiro.

Está, sim, ande, sr., que estão á mesa. . .

O porteiro, sabendo que Dumas dava n'esse dia ura

APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

almoço a dois ou três amigos, cuidava que quem lhe fal- lava fosse um dos convidados.

Por não parar no seu intento, Batalha Reis fez que não ouvira aquella exhortação, e foi seguindo...

Ouviu-se tocar a sineta, advertindo de que ia visita para o primeiro andar; appareceu um criado, Batalha Reis perguntou-lhe por Alexandre Dumas: o criado, pre- cedendo-o, dispoz-se immediatamente a tazel-o entrar nos quartos do grande homem.

Dumas estava effectivamente almoçando.

Achavam-se com elle á mesa dois francezes.

O criado bateu á porta com os nós dos dedos. . .

Entrez ! Batalha Reis entrou.

Ao ver uma visita que lhe era completamente desco- nhecida, Alexandre Dumas levantou-se e veio ao encon- tro d'elle.

Senhor Dumas disse Batalha Reis, um portu- guez que o admira desde que lè, passando agora por Ma- drid não resiste ao desejo de apresentar ao escriptor seu predilecto a homenagem do seu respeito...

Alexandre Dumas enxugou os beiços com o guarda- napo para poder sorrir com mais graça ; e, estendendo a mão ao nosso compatriota, quiz apresental-o aos seus amigos e ofterecer-lhe logar á mesa.

Desculpou-se Batalha Reis de não lhe ser dado accei-

A VIDA ALEGRE 13

tar, visto como a essa mesma hora o estivessem esperan- do. Dumas fez-lhe algumas perguntas relativas ao Por- tugal moderno, contou-lhe que de ha muito tinha dese- jos de conhecer este paiz : tomou nota, na sua carteira, do nome e da morada em Lisboa do visitante que o procu- rara ; depois, lastimando que elle não quizesse dar-lhes o gosto de se demorar, e havendo-o a esse tempo sen- tado junto de si e dos seus amigos, de novo se levantou para acompanhal-o e despedir-se, dando-lhe primeiro um aperto de mão, depois do aperto de mão um abraço, e, depois do abraço, rompendo n'esta exclamação :

Le brave jewie homme !

Batalha Reis, impressionado, como é natural, pela circumstancia de se encontrar alH, mão cá, mão lá, com o auctor do Monte- Christo, deixou talvez transparecer no semblante mais vivamente do que succederia a um ho- mem que não fosse peninsular, a commoção, o senti- mento admirativo, o impulso aflectuoso, de um leitor que admira, para com um escriptor que o deslumbra ; e Du- mas, notando isso, e impressionando-se também com a sincera gratidão dos espíritos superioreíí para com quem os comprehenda e os estime, de novo lhe deu um aperto de mão, e, sobre o novo aperto de mão, novo abraço, e, sobre o abraço outra vez a exclamação :

Le brave jeune homme t . . .

Expressão accrescentada d'esta vez por outro abraço

14 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

ainda, terceiro, e por estas palavras de uma ternura synibolica :

Encore une fois !. . .

Guilherme Street, ouvindo isto, elle, homem do norte, homem frio e íleugmatico, rompeu n'um riso de primeira ordem, e repetiu três vezes por entre garga- lhadas :

Essa é boa ! Isso é mesmo d'elle, é de romance, é puro d'Artagnan, é Monte-Christo, grande manière, tem drogas de Bálsamo, tem esporas á mosqueteiro. . . En- core une foisl Era como se não se pudesse apartar de ti, a quem via pela primeira vez, hein ? Oh ! que grande ra- tão ! Ah ! Ah ! Ah ! . . . Magnifico ! Pyramidal ! Ilé ! ! I Encore une fois ! Le brave jeune homme! Oh ! Oh ! Oh ! . . .

Pois bem, e é a este ponto que eu me propunha chegar: Lopes de Mendonça, meu tutor, Lopes de Mendonça, que, de certa epocha em deante, teve sempre mais ou menos o propósito de deixar o folhetim pela politica, de uma occasião, indo commigo, e, ao sair do Passeio, encon- trou Carlos Ramiro Coutinho, hoje visconde de Ou- guella, que o saudou com a alegria com que os seus amigos o viam sempre :

Oh ! Mendonça, como vae isso ?

Bem. Apresento-te o meu successor !

O teu...

A VIDA ALEGUE 15

O que ha de succeder-me no folhelim, é este ra- paz . . .

Ah!

É. Lembra-te d'isso.

Quando se deu esse encontro e esse dito, tinha eu pouco mais de dezoito anncs ; não havia razão alguma para calcular que o folhetim da Revolução tivesse de passar um dia d'elle para mim.

O que devia ser, e foi, o mais serio dos encargos, ter de estrear-me acompanhando nas revistas semanaes as representações da Ristori, foi tamhem, exactamente, o que me valeu, por ohrigar-me a trahalhar. A Ristori es- treiou-se pela Medea. Não sei se aquella tragedia é boa, ella tornava-a óptima, e perccbia-seexceilentemente que fosse um lance de predilecção para a sua alma de artis- ta, aquelle da invasão suhita da paixão, de que Medéa offerece o mais extraordinário exemplo. Juno alcança de Vénus que o Amor faça apaixonar Medéa, hlha de um rei, íillia do rei Eetes, por Jasão que vae com os com- panheiros á conquista do velo de oiro ; o rei desconha dos argonautas, e propõe ao Jasão ceder-lhe o velo com- tanto que elle vença uns toiros com pés de bronze e que deitavam chammas pelas ventas, que os obrigue a lavra- rem, e que, depois de semeado o campo de dentes de dragão, ceife, sósinho, os gigantes armados que n'aquelle campo hão de nascer. Medea, assistindo á contenda,

16 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

namorou-se logo de Jasão, que resplandecia entre to- dos pela elegância. Os argonautas punham a sua es- perança toda nos encantos da princeza, os famosos en- cantos de Medéa, mas ella principiou com medo, com terrores vagos, e as declarações amorosas de Jasão tor- naram-a mais perplexa ainda. A descripção da noite e do sonho no velho poema de Appolonio de Rhodes, a Expedição dos Argonautas, é primorosa: «Deitada na sua caminha, dava-lhe allivio ás penas um somno pesado em que os sonhos enganadores, agitados de imagens funestas, como succede a quem vive in- quieto, lhe mostravam o estrangeiro a sujeilar-se á prova, não por amor do velo divino, porque não hou- vesse sido esta a verdadeira causa que o tivesse le- vado áquella cidade do Eetes, porém para merecel-a, alcançal-a, a ella, e leval-a em sua companhia como noi- va.» Chegara a íigurar-se-lhe que também ella combatia touros e triumphava d essa prova cruel, mas que seus pães recusavam cumprir a palavra dada por não haver sido á donzella, mas a elle, que tal condição fora imposta: que, n'isto, se alevantava um conflicto entre seu pae e os fo- rasteiros, que os dois partidos a escolhiam por arbitro para se resolver conforme o coração d'ella lhe dissesse, e que, de repente, sem querer saber mais dos pães, ella escolhia o estrangeiro, deixando os seus n'uma aíflicção e n'uma ira extremas. Deixava-a então o somno em so-

A VIDA ALEGRE 17

bresalto, olhava de todas as bandas para as paredes da alcova, e rompia em lagrimas, a pedir á sorte que aquelle homem fosse outra vez para a sua terra, bem lon- ge, namorar alguma moça grega, em vez de estar alli a fazer correr tal risco á virgindade d'ella e á paz do lar paterno.. . E ora quer ministrar os venicinios que logrem dominar os touros, ora se lhe figura que o melhor será morrer ella, com bem pena de que as flexas de Diana a não tivesssem matado antes da hora de o ter visto... E pensa em salval-o, em perdêl-o, e outra vez e ou- tra, mas morrer, ella sim, morrer... Foi-se então á bo- ceta que arrecadava as drogas, umas salutares, outras destruidoras, e pondo-a sobre os joelhos, a soluçar, cho- rando, ia tirar os venenos que matam, escolher um, es- colher outro: mas, subitamente, enche-se de medo do Plutão, passa-lhe na idéa quanto entre os vivos é docee alegre, lembram-lhe as companheiras da sua edade, o sol que vem raiando parece-lhe mais bonito que nunca, 6 resolve ir-se encontrar com Jasão e dar-lhe o encanto. Era então manhã clara, e cada um na cidade dava principio á sua lida do dia. Occultou ella no seio a erva magica, e logo que avistou Jasão, ensinou-lhe por que modo devesse usar d'aquella erva. Elle vae, doma os tou- ros, lavra, lança á terra os dentes de dragão, saem dos sulcos os gigantes, combate-os, fere-os a eito, cei- fando-os. . . Mas a princeza estremece com o pensar que

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18 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

não íiquera ignorados de seu pae os auxílios que pres- tou, e, porque o medo a torne ainda mais ligeira, sae alta noite, atravessa sósinha as ruas da cidade, conse- gue sair das muralhas sem que nenhum guarda a conhe- ça, sobe as ribas do rio, avista o fogo que os heroes gre- gos conservavam acceso toda a noite como signal jubi- loso da victoria, chama por Jasão que está no navio com os companheiros e que salta a terra de um pulo, diz-lhe ser preciso salvarem-a, e salvarem-se a si dos furores do rei seu pae, pede-ihe que cumpra os juramen- tos que lhe fez, que goste sempre d'ella, que seja sem- pre seu: elie, como que allucinado de paixão, promette tudo, põe tudo em pratica: ella mesma o conduz pela floresta para irem buscar o velo de oiro, e, ao romper da aurora, o navio dos argonautas, perseguido debalde pelos Colchios, sae triuniphante; vão remando os heroes, e Medéa na popa ao lado de Jasão recosla-se meigamente sobre o comprido e fulgido veu, feliz como uma prince- za, feliz como uma deusa, feliz como uma mulher que ama e é amada...

A maioria do publico não tinha de nada d'isto a míni- ma noticia ; Argonautas, Apollonío, velo de oiro, tudo isto era letra morta para o seu conhecimento. Viu, por consequência apparecer Medéa, não a interessante e formosa princeza da Scythia, mas a lúgubre heroina vi- ctimadas fúrias, incendiaria, assassina, odiosa, transfor-

A VroA ALEGRE 19

mada pelo ciúme desde que aquelle Jasão namorado a repelliu ao enfastiar-se d'ella.

A lenda da heroina havia porém encantado a Ristori, como na lenda essa mesma heroina encantava e enfeitiça-

*

va todos; e a Ristori, que estava ainda no fulgor da bel- leza e da mocidade, dava-lhe as graças e vigor de uma maravilha.

Succediam-se as récitas com a representação de pe- ças novas. Em seguida á 3fedéa, que era no theatro a pedra de toque d'aquelle talento prodigioso, deu-se a Judith. A Medéa assombrara os cultos, a Judilli deslum- brou toda a gente. Mendes Leal, que n'esse tempo es- crevia com frequência para o theatro, traduziu essa tragedia que o poeta Giacometti havia composto expres- samente para a Ristori, e Emilia das Neves fez gosto em a representar.

Tem-se sido por muitas vezes cruel para com esta actriz nossa compatriota, e não raro se tem tido ares de a accusar pelo que mais depressa haja merecido louvor. Emilia das Neves, que foi uma mulher formosíssima, po- deria haver-se contentado com essa gloria, que é por or- dinário a que mais seduz e mais attrahe, e não pedir á arte, ao trabalho, ao estudo, victorias de outra ordem, sempre cortadas de revezes, por melhor que a fortuna pareça querer sorrir-lhes. Creada n'uma escola, que o tempo levou comsigo, notável nos dramas e melodramas

20 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

de um repertório que se apagou entre nós ainda antes de se apagar na França, de onde para nos veio, e onde ainda hoje a exceptuarmos o Theatro Francez e o Odeon apparece de vez em quando, ora pela Tour de JSesle, ora pela Closeriedes genéts, ora pela Chambre rou- ge, ella quiz tentar sem outro auxilio que o dos seus es- forços, todas as manifestações mais nobres e mais levan- tadas da artetheatxal.

O disparate, porém, o grande poder entre nós ! nunca lhe permittiu bem as significativas dedicações do seu espirito á causa das Medéas e das Judilhs, mas en- thronisou-a por muito tempo como a mais elegante e distincta protogonista dos dramas modernos, dramas da sociedade em que ella, aliás, apesar de magnificas toileltes, tinha uns ares tão theatraes, um arquear de braço tão fora da altitude usual, umas inflexões tão fal- sas, uma expressão de tom e gesto ião alheia ao natural da vida, que um simples :

Bom dia ! ou

Boa noite !

dito por ella n'estas obras, podia parecer uma revelação, um aviso sybillino, uma ameaça, uma ironia, uma benção, um sermão, uma ária, o que não parecia era «Bom dia!» ou «Boa noite!» A Ristori estimava-a como uma mulher de talento. A

A VIDA ALEGRE 21

primeira vez que a viu representar foi no Porto, e o Porto que soube dar á Ristori a mais viva demonstração do enthusiasrao no theatro, que não é a dos applausos, como a que se lhe deu em Lisboa, mas a da concorrên- cia, a das enchentes, portou-se gentilmente com Emilia das Neves, saudando-a e festejando-a não como quem a comparasse á mais extraordinária artista do mundo, que a isso deveria equivaler o equiparal-a á trágica da Me- déa e da Izabel de Inglaterra, mas como quem apreciava em todo o segredo da sua valia a rara vocação scenica d'esta portugueza, que, sem estudos de nenhuma or- dem e pela adivinhação do talento e pela applicação no tablado conseguira, por entre defeitos desculpáveis em quem não tinha onde aprender, nem quem pudesse cnsinar-lhe, o primeiro logar na esphera da sua proíis- são e do seu paiz.

Lisboa tem sempre, mais ou menos, preoccupado o Porto ; mas o Porto n'esse momento preoccupou Lisboa.

O acolhimento expansivo e febrilmente enthusiastico para com a Ristori envergonhou a meia indifferença da capital para com uma artista, que o mundo inteiro cele- brava.

Aquelle amigo, de quem fallo no primeiro volume d'esta obra a propósito do desapparecimento de Emi- lia Letroublon n'uma noite de recita do ,theatro do Gy- mnasio, Nicolau de Brito, estava por este tempo viven-

22 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

do na cidade invicta. N'um belío dia em que a mosca da amisade lhe deu uma ferroa dita mais valente, esse bene- mérito lembrou-se de mim, e escreveu-me, desaíiando- me muito instantemente a ir para lá.

«Precisamos rir ! dizia-me o meu Nicolau n'uma bem traçada epistola. Tenho de tudo aqui como o pastor da Marilia de Dirceu: vinho, legumes, fructa, azeite... me falta a tua doce companhia, para nos espojarmos a rir de qualquer coisa, e até de coisa nenhuma. Vossê, que se tem desenhado em pérolas para com a Ristori, tem ex- cellente occasião de não fechar ainda a bocca, e vir para o Porto esta semana admirar de novo a trágica, continuan- do de bocca aberla como nós, pérolas aparte, estamos des- de que a vimos. Traga dinheiro se o tiver; se o não tiver, traga coisa que o valha, isto é, leiras suas, que um editor troque a patacos. Dando-se o caso de também lhe não ser fácil trazer escripta, previno-o á puridade de que no Porto não ha a miséria franciscana de editores, que ca- tam ao sol d'essa capital as traças de livros velhos sem se arriscarem com auctores novos. Venha vossê, e não lhe cuidado o resto ; que ha de divertir-se, ganhando para isso, sem quebra da independência a que todo o bom portuguez attcnde.

Post scriptum: As mulheres, aqui, são um assombro. Nunca se viu coisa melhor.

A VIDA ALEGRE 23

Notahene: Desafia o Silva Pereira (o sobrinho do conde das Antas, sabes?) para que venham juntos.

Novo postscriptum : Avisa quando sahires d'ahi, para dispor as coisas. Tenho um andar devoluto no prédio era que habito. É para ti. Na rua Formosa : casa ao lado da do conde de Bolhão. Que tal ?

A' ultima hora: As mulheres, aqui, até ao fechar d'es- ta carta, continuam a ser um assombro ! . . . »

Eu tinha lido a esse tempo alguns auctores. Mas, porque digamos com franqueza, nem a concisão do Tá- cito, nem a verdade crua do Suetonio, nem as graças de TibuUo, haviam accordado no meu espirito uma impres- são tão lisongeira do poder do homem, como a esperan- ça que me deu, de uma folia de bota abaixo, a missiva encantadora do melhor dos Britos.

Nós havíamos deveras rido varias vezes na nossa vida; e, da ultima occasião em que nos tínhamos encontrado, antes da partida d'elle para o Porto, a risota tinha to- mado taes proporções, que a patrulha chegou a adver- lir-nos de ser contra os dictames da ordem publica a desbragada hilaridade em que nos surprehendeu alta noite.

O caso fora este. . .

Ia o actor Rosa, Rosa pae, João Anastácio Rosa, com o auctor do Alcaide de Faro, Joaquim da Costa Ca5-

24 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

caes, pouco antes da meia noite, pelo largo do Passeio, e dirigiam-se lenta e compassadamente para o Kocio, quan- do, ao chegarem perto do Café Suisso, e encontrando dois marujos inglezes bebedissimos, um d'esses nossos alliados, sem mais quê nem porquê, e decerto simples- mente por um desejo de acção e de exercicio, desabou um murro de tal quilate sobre o nosso Rosa que atirou logo com elle de pernas para o ar.

Estatelado no chão, o grande actor, n'esse tempo tão cheio de rheumatismo como de gloria, especou-se n'uma das mãos, firmando-a no solo ingrato, volveu uma embaciada vista para o chapéu, que lhe saltara da cabe- ça, e que o sr. Gascaes, que se puzera ao largo, lhe of- ferecia gentilmente, e, porque os inglezes, como se na- da houvesse sido, continuassem estrebuchando de tombos e de lingua sem se tirarem do mesmo sitio, disse ao au- ctor dramático n'aquelle tom incisivo e penetrante da sua declamação tantas vezes celebrada :

Ó sr. Cascaes, o sr. que sabe fallar inglez, enten- da-se com esses homens ! . ..

Eu sei fallar inglez a esta hora da noite ! re- torquiu Cascaes. Levante-se e vamo-nos embora !

Este episodio da historia contemporânea, que apanhá- mos fresco n'essa noite, poz-nos por tal arte em veia de alegria, que os próprios marujos, tanto foi o motim que nós fizemos n'aquella noite a rir, pareciam decerto mais

A VIDA ALEGRE 25

inglezes que nós ; mas, no conceito da patrulha, creio que não pareciam mais que nós.., senão isso.

O certo é que, não na semana immediata, como que- ria Nicolau, mas no mez seguinte, Silva Pereira e eu, to- mávamos no escriptorio do Chambica, ao cães do Sodré, os nossos respectivos bilhetes de passagem para o Porto, e enviávamos um telegramma, que obedecia a todas as leis do estylo, harmonia, precisão, e clareza, no qual di- zíamos ao nosso amigo, que na tarde d'aquelle dia se- guiríamos viagem no vapor Lisboa.

A viagem principiou ppr um episodio ultra-comico. . .

Sei o respeito que se deve guardar ao leitor, á leitora ainda mais, e hesito gravemente antes de o referir... Que dizem ? Mas depois. . .

Emíim, ahi vae.

flavia grande vento no dia da partida, o mar devia estar bravo, eu enjoo desastradamente, sahimos ás qua- tro horas e meia, o vapor era o mais ronceiro da compa- nhia: tudo isto fez-me fugir o apetite, e, instando Silva Pereira para que eu não embarcasse sem jantar, o único prato que, de algum modo, poude sorrir-me, de todos que vieram á mesa, foi um meu predilecto desde creança, feijões encarnados com azeite, vinagre, cebola, salsa e pimenta.

Pois come d'isso ! dizia Silva Pereira.

Coma d'isso, senhor ! dizia a criada.

26 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

Como d'isso, sim ! disse eu.

Comi d'isso e fui para o vapor. O pouco sol que ainda se avistava ao longe tinha ares de uma ironia : as vagas principiavam a cobrir o barco de vez em quando, o vento gemia e apostrophava, principiei a bocejar como quem cabe de somno, esfregava os olhos, firmava os pés, e di- rigia ao homem do leme perguntas importunas : se o mar iria a peor, se á meia noite o vento augmentaria ou diminuiria. . . Depois, não me dando resposta senão com encolher os hombros, esse homem disciplinado, voltei- me para o capitão ; ia dizer-lhe alguma coisa, que elle parecia realmente disposto a ouvir, mas sentei-me, vi as ondas acommetterem o vapor, atirarem-o de bom- bordo a estibordo ; com a primeira refrega de norte rijo nas alturas do Cabo da Roca senti as anciãs do enjoo, uma onda cobriu o vapor e alagou a tolda, gritaram-me que voltasse o rosto para o vento, que me encostasse ao parapeito, o capitão quiz amparar-me para eu descer ao beliche, mas. . .— troppo tarde! e as cascas dos feijões, á luz indecisa do cahir do dia, íiguraram-se-lhe sangue...

Sangue ! disse o capitão quasi commovido.

Logo o então barão de Magalhães, e hoje conde d' es- te titulo, se approximou de mim com o maior interesse, e, elle de um lado, do outro Carlos Cyrillo Machado, an- tigo deputado, cavalheiro por extremo amável, ponde- raram num commovente colloquio com o capitão, quanto

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acerbo deveria ser meu soffrimento para que o sangue ir- rompesse em golfadas de tão phenomenal pujança.

O vapor, que devera chegar ao Porto das oito para as nove horas da manhã, avistou a barra ás cinco horas da tarde. Tivemos vinte e cinco horas de viagem, e, mercê dos feijões encarnados, todos os passageiros se interessaram por mim vivamente, fui o alvo das atten- ções no momento de subir á tolda, e os passageiros fi- zeram-me a fineza de não observarem tanto, ao avistar terra, as margens do Furadouro, da Costa de Espinho e do Senhor da Pedra, como a minha pbysionomia. Pare- ciam ter mais desejo de ver a minha lingua, do que a lingua de areia do Cabedelo que fecha a barra ; e, em vez de mostrarem uns aos outros a Foz, que ficava em frente, tudo era mostrarem-me a mim...

Aquelle é o do sangue !

está o do sangue !

O do sangue !

Tudo isto me preparou um desembarque glorioso, acompanhado do Nicolau de Brito, que tinha eíTectiva- mente um primeiro andar devoluto, na rua Formosa, para onde nos dirigimos, sem dar ouvidos a uns homens de capote cor de pinhão, orlado de amarello, que azo- navam a gente com gritos a oflerecerem-nos cadeiri- nhas...

Que diabo de historia ! scismava eu. se

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sabe do meu caso, suppõem-me tão doente que nem de sege possa ir ! E elles á roda de mim:

Cadeirinha! Cadeirinha! Firme, leve, cadeirinha! Eram ás dúzias.

Que terra ! pensava eu. Que hospitalidade ! O feijões encarnados, eu vol-o agradeço !. . .

O Porto n'esse tempo ha vinte e um annos tinha ainda uma feição diversissima da actual: os prédios eram quási todos esguios, de quatro e cinco andares e ires janellas cada um. Presentiam-se quartos sem commo- didade, que devessem cançar quem estivesse em casa, peor do que se andasse a pela rua. a cada passo se avistavam obreiros a levantarem prédios, e percebia- se, que aquella cidade monetária tratava de se embellezar e de attender aos seus edifícios. A cidade n'essa epocha não poderia dizer-se bella, mas as camélias, o Douro, a Foz, compensavam tudo. Uns omnibus, uns char-à-bancs, uns diabos de carros phantasticos, venciam a passo por minuto a légua do Porto á Foz; porém, logo que desciam a Restauração, começava a deleitar-se a vista n'um panorama admirável, que se descobria em todo aquelle passeio á beira do Rio. Esses carros no verão tinham immenso que fazer; no verão antecendente áquelle em que alli estive, haviam feito, os carros, todos, mais de dezoito contos de réis. Cada logar custava seis vinténs,

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Tudo quanto havia rico e elegante no Porto reunia-se na Foz. A curiosidade, n'aquelle tempo, era o salvavidas, uma casita com um pequeno jardim de entrada, situada de modo que ouvia de um lado as queixas do rio, e do outro as iras do Oceano ; não tinha sahida para o mar : havia apenas umaportasinha, e, quando o barco devesse ser empregado no serviço dos náufragos, chamava-se povo, e era arrastado pela areia até á beira-mar ; essa operação levava uma hora, hora e meia : o sufficiente a um salvavidas para poder salvar os mortos.

Despachei nos primeiros dias os encargos obrigatórios de todo o bom forasteiro, ver a onde, por signal, havia um sacristão que me dizia : «Aqui está um santo canalisadol» e mais adiante: «Aqui está um santo vivo !)) e, porque eu ficasse pasmado : «Vivo?!» «É como lhe digo. . . É de carne. « «Ah ! Não é de pau? ! )) «Não, meu senhor ; se fosse de pau era um santo morto ! » «Ah ! » o paço do bispo, onde o via- jante tem um quarto de hora para abrir a bocca, esbo- galhar os olhos, e mostrar-se profundamente impressio- nado, á proporção que lhe façam notar a escada, a ga- leria, a cúpula. . . Mattosinhos, passeio de duas léguas de bonita estrada; e Leça da Palmeira, que é um en- canto.

Os theatros tomavam-me pouco tempo ; os conheci- mentos que eu tinha no Porto, ao principio, eram em nu

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mero limitado; íicavam-me as noites livres muitas ve- zes, o que me permittia trabalhar.

Logo que tive uma porção de cadernos de papel suf- ficientemente rabiscados, dirigi-me ao livreiro Cruz Cou- tinho, editor do Jornal do Porto, contractei com elle uns vinte folhetins, que principiaram a publicar-se no dia immediato, metti o dinheiro na algibeira, e desde essa manhã o Porto pareceu-me ainda mais bonito e principalmente mais alegre.

Não estejamos a fingir que uma natural distracção me leva a fallar-lhes de tudo, menos d'aquelle post-scriptum da carta do Nicolau, que tão de molde lhe pareceu desti- nado a dar-me no goto. As barqueiras do Douro, as gen- tis raparigas deAvinteSjdeS. Cosme, daMagdalena, dei- xam tal impressão a um homem que passeiar ás Fon- tainhas, e que se debruce a contemplar as formosas mo- ças que vão remando, sustendo o remo com mais distinc- ção do que a Stael segurava a penna, a julgar pelos re- tratos d'es5a litterata celebrada, que se íica por uns tempos a não pensar n'outra coisa, a suspirar pelas festas de agosto, e por aquelle panorama encantador. N'esse tempo quasi não havia casas n'aquelle sitio; algumas choupanas humildes, simplesmente, como que a dizerem que alli a riqueza não era chamada, e que a natureza e a formosura foge para os pobres e para os in- felizes, como para os consolar da vida. Quando por

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se me dizia ser pena que no Porto e nos arrabaldes não haja quintas, tinha Ímpetos de lhes gritar: Para que haviam os senhores de querer quintas, se a sua terra é uma quinta em grande, onde não ha olhar para algum lado que não se vejam arvores, mna vegetação esplendi- da, japoneiras altas e robustas como laranjeiras, carre- gadas de camélias preciosas !

A sociedade do Porto era muito dividida n'esse tem- po ; a classe a que se chama propriamente sociedade da- va-se certa feição estrangeira, principalmente ingleza; a burguezia era característica, tinha uma sinceridade de positivismo, que não se encontra facilmente ; as senho- ras sabiam ser donas de casa, ensinavam ás filhas coi- sas úteis, contabilidade domestica, cosinha... Isso ti- nha influencia nos costumes portuenses, notáveis de aus- teridade e de paz ; os maridos deixavam-se ser caseiros^ por verem as coisas de casa correrem com economia e certo conforto relativo. Não sei se isto era bem assim, mas a impressão que me produziu foi esta.

A redacção do Commercio do Porto, decerto por que- rer aproveitar a occasião de tornar sensível á imprensa de Lisboa os sentimentos de generosa camaradagem que caracterisaram sempre os cavalheiros que em todo o tempo se teem achado á frente d'aquelle jornal, um dos primeiros, senão o primeiro do paiz, fez-me a honra de me offerecer um sarau musical. Toda a imprensa

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portugueza registou esse facto de tão cavalheira bizar- ria ; eis, de entre as noticias que conservo, um trecho em que vem citada a parte musical da festa :

«1/ Andante e grande polonaise brilhante, para pia- no, composta e executada pelo sr. A. Moreira.

«2.^ Romanza da opera Maria diRohan, cantada pelo sr. Affonso Pinto da Gama Leão. -

«3.* 9." ária variada de Beriot, executada no violino pelo sr. Marques Pinto.

«4.^ Grande phantasia sobre motivos da opera Som- nambiila, executada no piano pelo sr. José de Mello Abreu, composta por Thalberg.

«5.^ e Esperança, trecho de Galam, composto e executado pelo sr. Nicolau Ribas.

«6.* Final de um quartetto deFesa, para piano, violi- no, viola e violoncello, executado pelos srs. António Moreira, Nicolau Ribas, Augusto Marques Pinto, e José Pereira da Silva Ribeiro.

«7." Galope, para piano, composto e executado pelo sr. Agostini.»

Ainda era moda n'aquelles dias a phrase altisonante «O barco da vida vogando n'um mar revolto»; mas eu teria que dizer do barquinho da minha existência, que parecia ir á vela n'um mar de rosas. . . Festas e

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mais festas, comer, beber, divertir. Desde pequeno que eu ouvira dizer que o homem come para viver, mas não vive para comer; isso, para mim, durante aquella estada no Porto, ia mudando de figura. Muitas vezes pen- sei então nos cuidados e necessidades inúteis que esta historia de comer traz ao homem, e quanto seria- mos mais felizes e ricos, com mais saúde, e tantas vezes mais independentes, se não houvesse este mau costume. Mau costume, enteudamo-nos: o que pretendo lembrar é que era escusado ser absolutamente necessário, ser in- dispensável, comer: prohibido também não conviria por nenhuma maneira que o fosse ; o bom do caso seria co- mer por golodice, e, então, se que ninguém come- ria senão coisas delicadas, coisas muito saborosas, como quem usa de cheiros, e gasta no Godefroid um quarti- nho em cada frasco de agua de colónia : não por neces- sidade, por delicia.

D'essa maneira seria comprehensivel uma boa gás- trica de vez em quando, para castigar o abuso do luxo... da barriga ; mas, no estado de simples uso, é mais que tudo cruel, que uma pessoa não possa viver sem a paparóca, e que tenha ás vezes uma cólica, não por ha- ver comido de mais, mas por haver comido para não ter fome !

Mercê de convites e mais convites para almoços, jantares e ceias, todo o tempo chegou a parecer-me

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34 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

pouco para mudar de prato. Tive presentinhos de Porto velho, que faziam a ventura das minhas noites. Nos amigos silêncios da lua, pelas três horas da ma- drugada, que era quando eu ia para casa, trabalhava sempre duas horas antes de me deitar, e dispunha a mesa de trabalho com graça e symetria tão galantes, que era sempre certo o papel almasso ao centro, o tin- teiro á esquerda, e á direita uma garrafa de 1815. Ma- tava a sede, por esta maneira, sem me expor a consti- par-me, desempenha va-me da grave missão que me con- feriam os que me regalavam esse néctar, e, tornando-o sócio das horas da applicação e do trabalho, figurava-se á minha modéstia de cada vez que me sentava á mesa da escripla, que ia ganhar novas luzes ! . ..

A alegria natural do meu génio era auxiliada ainda, ás vezes, pelas prendas do acaso, de modo que, a verdade é esta, andei sempre no Porto contentíssimo. Os por- tuenses são boa gente ; generosos, obsequiadores, sin- ceros.

E depois, quando se tem vinte e um annos tudo ri á roda de nós, o caso está em não fechar os olhos e não se obstinar a querer ser muito serio, muito serio. . .

O que eu ri, por exemplo, de uma passagem, como diz o povo, que ainda me diverte agora ao recordal-a. . .

Encontrei n'uma casa a passar a noite uma senhora estrangeira. Por que me agradasse a sua conversação,

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aproveitei a vantagem de lhe ter sido apresentado, e entretinha-me a conversar com ella de preferencia a conversar com quem me não agradasse tanto, isto pas- sava-se em casa de um cônsul velho, que morreu, e a quem eu era recommendado.

Pelo íim da noite, o bom do cônsul disse-me que no dia immediato haviamos de ir ver uma casa nova, lin- dissima, que o seu amigo fulano acabava de construir.

Com muito gosto ! respondi.

Ha de gostar. É uma belleza. Venha jantar com- nosco, e depois iremos ate de passeio...

No dia immediato jantei ; acabado o jantar, as se- nhoras foram pôr os chapéus, appareceu o amigo fulano, dono da tal casa nova, que iamos ver, e puzemos-nos to- dos a caminho.

As senhoras iam adeante. conversando.

Atraz, em certa distancia, o cônsul, o amigo, e eu.

O amigo era velho também ; velho gordo e bem posto, folgasão, agradável.

Por mais que eu quizesse esquivar-me a essa distinc- ção, chegados a certa altura, o cônsul chegou-se para a direita, o amigo chegou-se para a esquerda, e achei- me no meio d'elles. Então o cônsul, moderando a voz, para que sua mulher e a cunhada, que iam adeante, não ouvissem nossas falias, disse por esta maneira :

Estivemos pensando em si. . .

36 APONTAMEiNTOS DE UM FOLHETINISTA

Eu parei, pasmado a olhar para elle, em duvida do que se me figurava ouvir : Yamos para deante ! disse o amigo fulano.

Yamos andando ! disse o cônsul. E, d'alli a nada, proseguindo :

O sr. Júlio César Machado está n'uma terra que não é a sua, não tem conhecimento das pessoas nem dos usos» é moço, é muito moço, que edade tem, ó sr. Ma- chado ?

Vinte e três annos. Olharam um para o outro...

Vês ? Vinte e três annos ! É muito moço !

Muito moço!

Pois, por isso mesmo, pensámos nós que toda a prudência é pouca no seu caso. O meu amigo ja leu as conííShões de Rousseau ?

li. É a melhor ohra d'elle.

Sabe d'aquella semsahoria que lhe aconteceu em Veneza. . . Ora isso é que é preciso ter sempre em vista quando se chega a uma terra e se é rapaz. . .

Eu parei outra vez, ainda mais pasmado a olhar para elles. ..

Vamos para deante ! disse o cônsul.

Vamos para deante ! disse o amigo.

Amanhã, do meio dia para a uma hora, visto como o sr. Machado tem ^V; escrever a respeito dos usos e cos-

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tumes das terras que visita, e decerto o typo da lavra- deira lhe ha de absorver um capitulo, tomámos era con- sideração o caso em que se acha, e, para que possa ter co- nhecimento da feição e linguagem d'essas personagens caracteristicas do norte, alcançámos que uma, verda- deiramente typo, o procure na sua qualidade de modelo.. .

É disse o outro uma íigura digna de observa- ção. Pintor que tosse o sr. Machado, não lhe seria fácil al- cansar mais formoso modelo. Deve ter alli um bom capi- tulo...

E como eu de novo parasse, e estivesse a esboga- Ihar cada vez mais os olhos :

Fica, pois, prevenido... disse o cônsul.

Amanhã ao meio dia ! retorquiu o amigo. Eu ficava sem saber o que dizer-lhes...

Vamos para deante ! disse o amigo.

Vamos para deante ! disse o cônsul.

Fomos para deante ; dêmos o nosso passeio, vimos a casa, e fomos convidados a ficar para a noite. Com muito agradável surpresa minha, entre varias pv^ssoas que alli se reuniram, appareceu a senhora estrangeira. Conver- sou-se, fez-se musica, e eu, seguindo o movimento natu- ral de ir cada um para o que mais lhe agrade, fui sen- tar-me junto delia. Conversámos, rimos, disse-lhe fine- zas, ella era espertíssima e sabia dar o desconto devido ás circumstancias que concorrem n'um forasteiro, que

8 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

não tem tanto tempo como os da localidade para prefa- ciar as obras que emprehenda ; e, pedindo-lhe eu licen- ça para lhe escrever, respondeu-me com grande delica- deza, que não tinha duvida em me auctorisar a isso, po- rém que uma coisa, isso sim, me pedia...

Que coisa é ? perguntei eu.

Fazer com que nem o cônsul nem o amigo d'elle sonhem sequer...

Oh ! minha senhora, posso jurar-lhe que... Levantei-me, fui conversar com outras pessoas ; na

manhã immediata escrevi á senhora estrangeira : ao meio dia appareceu alavradeira trazendo um papel em que vinha escripto o meu nome e o numero da porta, mercê da previdência dos dois cavalheiros que assim se interessavam pelo bom andamento das minhas diligen- cias litterarias de tourisle.

No dia seguinte veio a resposta á minha carta, e n'ella se me dizia :

«Se tão vivamente lhe recommendei a maior discri- ção para com o cônsul e o outro amigo d'elle, perfeita- mente segura dos bons sentimentos de V. , mas não querendo deixar de especialisar bem que para com esses dois respeitáveis cavalheiros era necessária uma isenção absoluta de referencias, é porque. . . como dizer-lhe isto ? é porque. . . elles fazem-me a corte ! »

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Elles! ...

Li isto, e, comprehendendo então a sollicitude com que aquelles meus dois bemfeitores, tão depressa me ti- nham visto conversar de preferencia com a estrangeira, logo se haviam occupado de me proporcionarem um ob- jecto de estudo tão valioso como o tal modelo de Avin- tes, pisquei-lhes o olho, como se os estivesse a ver; e disse a mim próprio, como elles me diziam na tarde do pas- seio :

Vamos para deante !

Uma circumstancia, todavia, como que um segredo, fazia com que a rainha vida muitas vezes alejAre, e appa- rentemente alegre sempre, fosse cortada de melancholias, de umas inquietações vagas, que ninguém suspeitava e que eu disfarçava como se fora uma culpa.

Eu sabia pouco, e, melhor que ninguém, conhecia o muito pouco que eu sabia.

Não havendo passado dos estudos a que se chama pre- paratórios, e tendo sido obrigado a occupar-me de dili- genciar a minha vida na edadc em que os outros entrara nas escolas superiores, e não precisam ter outros cuida- dos senão levarem o seu curso direitinho, e não excede- rem o numero de reprovações além do que é consignado no programma de estudos para não perder o anno, en-

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contrava-me na situação equivoca de um actor que re- presenta um papel superior ás suas forças, e que não pode contar senão com o deslumbramento, que num rá- pido instante consegue produzir, no publico, a fortuna viageira um pouco do talento e um pouco do acaso.

Apparecia sósinho, no fim de um intervallo que es- tivera sendo aproveitado em rir dos grupos.

Esses grupos, de poetas, de novellistas, de criticos, estavam tão dispersos, que era preciso querer conhe- cer a historia litteraria d'aquelles últimos dois annos, para avaliar bem em que pouco tempo, com o apagar-se para elles a moda, se lhes havia tolhido o passo.

Fora uma geração notável de talentos, mas, por fim, no conceito publico, ia cahindo no sestro de Catilina abusar da paciência alheia.

Acolhido como uma novidade, deu-se-me rapidamente uma nomeada, que de um modo me alegrava, e me in- quietava de outro modo, pela difficuldade de a sustentar. Tivesse eu tempo, e meios para preparar sufficientemente o que escrevia, e o caso não me metteria medo; mas o tempo chegava a faltar-me, para escrever, o que seria para estudar ! Sustentei n'esse tempo três folhetins de revista de semana : o da Revolução de Setembro, o da Opinião, e o do Eeie ordem. Para a Opinião, jornal do duque de Loulé, entrei convidado por Barros e Cunha, para o Rei e Ordem por Eduardo Cabral, hoje conde de

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Cabral. O folhetim da Revolução publicava-se ás lerças- feiras, o do Bei e Ordem ás quintas-feiras, o da Opinião aos sabbados. Assignava com o meu nome na Revolução e na Opinião ; com o pseudonymo de Carolina no Rei e Ordem.

Ninguém soube, durante mais de um anno, quem foss: essa Carolina. A indole dos artigos era completamente differente em cada jornal. Na Revolução fazia o folhetim divagando ao lado dos assumptos, conversando, contando casos que viessem a propósito d'aquillo de que se trata" va : na Opinião narrava factos, contava o enredo das pe- ças, e occupava-me mais rápida e mais directamente de tudo que por ahi succedia : no Rei e Ordem não tratava senão dos incidentes que occorriam na sociedade, que eu frequentava pouco, mas de que andava informado por pessoa que tinha boas razões para não dizer a nin- guém ser eu quem escrevia e que as informações vinham de si.

Desconíiava-se de um ou de outro, esses outros e esses uns sempre dos que devessem ser considerados mais sa- bedores e mais versados n'aquelles mysterios, n'aquelles pequenos cancans da vida elegante. Disse-se ser o conde de Ficalho, José Horta, Ottolini... E, eu, caladinho.

O folhetim de Carolina passava da minha mão para a de Eduardo Cabral. Eu não ia á typographia. Eduardo Cabral, Francisco Maria Bordallo, os irmãos José e Mir

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guel Osório, e, de alguma \ez, José Bernardo da Silva Cabral, redigiam a folha. Em noite de provas, Eduardo incumbia-se de m'as rever : uma noite foram revistas por mim, em casa d'elle. Uma das curiosidades d'essa historia, é que eu havia sido revisor d'esse mesmo jor- nal dois annos antes ; por occasião da partida de Mar- ques Pereira para Macau, haviam-me fallado para que eu me encarregasse da traducção das noticias estrangeiras, mas o jornal suspendeu dois dias depois, esteve quasi dois annos sem se publicar, eu não chegara a escrever, e os typographos não me conheciam a letra.

Por outro modo o espectáculo, que, por aquella épo- cha, apresentavam as letras nacionaes, não podia deixar de inquietar um pouco. Em Lisboa estava tudo calado dir-se-hia que os talentos houvessem chegado todos á edade do silencio e da terceira secção; no Porto a socie- dade de jornalistas, romancistas, poetas, andava disper- sa, não por malquerenças, mas por ter de concentrar sua existência nos limites e condições do officio especia de cada um.

Isto é, no Porto, como em Lisboa, pôde dizcr-se que ninguém era litterato, ou vivia d'isso. Alguma rara excepção serviria para confirmar este exemplo.

Era singular, c grandemente louvável, a applicação, o estudo, a permanente curiosidade de espirito da moci- dade litteraria portuense; mas, entregue cada um ás

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occupações da sua vida positiva, passavam o melhor do seu tempo este n'uraa loja de ourives, aquelle nmna loja de pannos, o outro n'uma otíicina. Tentavam trium- phar das condições da vida material, procurando por en- tre as difliculdades d'ella uma hora de descanço, que aproveitassem desveladamente em dar por alguma ma- neira a medida da sua vocação.

não cheguei a tempo de conhecer Soares de Pas- sos. Morrera, havia um anno. Guardava-sc d'elle uma lembrança grave, profunda, como que religiosa e sa- grada. Descera á campa sem grande bagagem, que lhe embaraçasse a viagem, um livro unicamente, um vo- lumito em que resplandece, sublime, a alma de um poeta.

Havia um grupo aparte de jornalistas retirados, jorna- listas aposentados, jornalistas reformados, que se encon- trava ás tardes, na Águia de Ouro. Evaristo Basto, Gi- rão... nomens de espirito, sem se lhes fazer favor, es- tes dois. Ia muito alli também Arnaldo Gama, que a esse tempo havia feito um Génio do mal, que o perseguiu toda a sua vida.

Esse Génio do mal era um romance em quatro vo- lumes, publicado em folhetins de um jornal de quatro pollegadas, o Braz Tizana. Levou a vida de uma gera- ção a pubiicar-se. Quando concluiu, e o auclor se entre- gou a compor a 1'lHma Dona de S. Nicolau, e o Sar-

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gento-mór de Villar, não lhe restava vivo um dos leitores que haviam acompanhado a sua primeira obra ; eu sou d'esse tempo, e mais algumas pessoas, mas de- vemos principalmente o ainda existirmos a nunca a ter- mos lido.

Entretanto, nos seus últimos romances, esses dois que citei agora, Arnaldo Gama mudou de génio, e ganhou direitos de boa e sympathica justiça ao maior dos prei- tos que um portuguez pode prestar a outro lêl-o.

A Águia de Oiro ó oiro ! ó águias ! era um boti- quim escuro, feio, húmido, velho ; o cavaco, porém, de Evaristo Basto e de Girão tornava-o agradável por meia hora. Evaristo Basto era homem do mundo, tinha dis- tincção de espirito e de boas maneiras ; vestia-se bem, e, comquanto retirado da imprensa, onde fora, com Ca- millo Caslello Branco e Ricardo Guimarães um dos plantadores do folhetim no Porto, e, feito escrivão de di- reito, ainda revelava as louçanias da garridice e elegân- cia antiga.

Não assim Girão.

Girão, original, engraçadissimo, mas outro typo, com- pletamente e absolutamente outro typo, na forma ainda assim. No espirito, como elle, pelo menos, fino e gra' cioso.

Uma de suas historias, a primeira que me lembre de sua compendiosa vida...

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sei.

Aqui vae ella.

Girão bebia, bebia bem. É escusado dizer bebia muito, porque se percebe com a minha insistência em lhes explicar que bebia, que isto não serve para os levar á convicção de que elle bebia pouco.

De uma occasião foi convidado a jantar por uma famí- lia, que, duas noites antes, dera um baile.

Foi para guardando todos os preceitos, e entrou na sala dez minutos antes da hora marcada ; esta- vam já alli reunidas algumas pessoas de melhor in- timidade, e conversavam a respeito do baile, especial- mente a respeito da ceia, e da voracidade que se observa sempre n'aquelle acto solemne em todos os pontos do paiz...

Girão pronunciou-se com toda a indignação contra o procedimento de taes homens, e, apoderando-se da ques- tão, como se diz na camará, alli mesmo a tratou seguida e bizarramente, com estupefacção do auditório.

Estamos n'uma épocha de funesta intemperança ! Comer, beber; eis tudo! Os partidários de tal doutrina, representa-se á primeira vista, que devam ser o famoso fulano cosinheiro, ou o famigerado sicrano pastelleiro. Illusão ! Os partidários de tal doutrina não são tanto o cosinheiro, o pastelleiro, e o regimento de mirmitons empregados nas grandes occasiões em fazerem os croquet-

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tes e temperarem as sandwiches; ainda os ha mais en- thusiastas, e mais fanáticos. . .

São os que comem as ditas sandwiches e as mencio- nadas croqueltes.

Chega a ser acredora de notoriedade a devoção d'esses acolytos por aquelles acepipes fora de horas na casa alheia ! . . . Ouve-se dizer a cada passo :

«A casa é magniHca... Muitas salas... A que ho- ras será a cousa ? »

Ninguém pergunta que cousa é ; se sabe que é a ceia. E logo respondem com acerto :

«A que horas ha de ser ! . . . Á hora do cos- tume ! »

«Sei ! Andam sempre com invenções. .. São ca- pazes de abolir isso ! »

«Abolir a ceia? Essa enormidade é do tamanho de um prédio. Dono de casa que abolisse a ceia n'um baile, ainda seria mais assassinado do que o Gustavo VVaza, que morreu, n'um baile também, de uma vez ; mas de uma vez só. Teria de morrer mil vezes antes do cotillon; um tal malvado ! de pensar n'esse monstro erriçam-se-me os cabellos. lia de haver foie gras, ou arrebento de des- peito, faço estourar esta camará óptica com gritos sedi- ciosos ! Tenho oito gelados no bucho, e passam apenas minutos da meia noite ; a ceia n'estas circumstancias é

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indispensável para a ordem. Por menos do que isto, têem-se feito meetings! .. . »

Ah ! É pliantastico, o que ha de comilões nos hailes! Gente rica, gente que vive ou que deve viver á farta, faz baixezas por uma tira de hambre com vitellafria es- premida em meia fatia de pão duro, ensopada em mos- tarda, com acompanhamento de mau Porto ou de mau Champagne !

O dono da casa, sua esposa, e os convidados que ha- viam escutado com attenção, diziam entre si:

Quanto são delicados os sentimentos d'este cava- lheiro em assumpto tão melindroso !

Dehcadissimos !

Ve-se que é uma pessoa muito prudente, muito sóbria...

Muito sóbria!

O dono da casa estava contentissimo, estava propria- mente o que se chama regalado de o ver, de o ouvir, e de possuir n'elle um exemplo de moderação, que servi- ria de modelo á mesa para os outros convidados, por- que era, como se diz, apertadinho, aquelle dono da casa, e dM^so corria fama na cidade.

Talvez até fosse esta circun}stancia^ que influenciasse o animo de Girão a ponto de fazer gosto em mystiíi- cal-o, como em Florença, de uma vez, Dumas mystiH- cou, a seu modo, o conde de Bombella, que, conviden-

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fíO APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

do-0 a jantar, e sendo também a primeira vez que o re- cebia, lhe impoz logo, como sine qua non, um gordo ál- bum, em que lhe intimou que escrevesse, alli mesmo... Dumas ia a agastar-se ; mas, sem o deixar perceber, per- guntou ao conde, que era um pertinaz egoista, e á con- dessa, que além da mesma prenda de animo, tinha o dote de ser feiíssima :

E se eu estabelecer a condição de que não abram o álbum depois de eu escrever n'elle, senão á meia noite ?

Erá pelo carnaval, viram n'aquelle capricho uma phan- tasia própria do tempo :

Está justo! disseram o conde e a condessa de Bombe.Ua.

Dumas escreveu.

Os outros convidados scismavam :

Que escreverá elle ?

Depois de escrever uma ou duas linhas. Dumas fechou o álbum.

Prompto ! disse.

Em seguida consultou o seu relógio, desculpou-se de não poder demorar-se, allegando que deveria partir no comboio das onze horas, despediu-se e sahiu.

O conde e a condessa quizeram logo ir ler o autogra-

pho. . .

_ Não ! ponderaram os convidados. A promessa foi abrir o álbum á meia noite !

A VIDA ALEGRE 51

Tinham razão. Os fidalgos cederam.

Á meia noite ficaram desertas as mesas do wisth, ca- lou-se o piano, suspenderam-se as conversações, e, do- nos de casa e convidados, correram á sala pequena, onde, sobre a mesa, estava esperando por aquella hora o álbum.

Vejamos ! balbuciaram todos. ..

Todos viram.

A pagina dizia :

a O marido não é bom, a esposa não é bella.»

E tiveram, conde e condessa, de continuarem a ser Bombella !

Quando o criado annunciou estar o jantar na mesa, Girão estava enfadado da idéa da mesa e do jantar.

Mas um homem, que tem graça, nunca se enfastia por mais de um instante, nem sequer entre semsaborões ; o que lhe acontece é ter mais trabalho e dispôr-se a combater a insipidez que vem das outras pessoas pre- sentes, dei>truindo-a pela sua própria graça.

Por isso, sentado ao lado do dono da casa, que se dava uns ares seraphicos e íinissimos, e por coisa alguma to- caria n'uma garrafa, voltou-se sorrindo para um dos criados, três estavam esperando a um canto, engrava- tados e magníficos ; dois, não menos magníficos e não

52 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

menos engravatados, distribuíam a sopa; e um ia prin- cipiando a deitar nos copinhos a suspeita, a lagrima, de Madeira secco :

Madeira ?

Madeira. Deixou deitar.

Mas, estendendo o braço, puchou gentilmente da gar- rafa de crystal, com vinho tinto, que se achava sobre a mesa, e, enchendo d'e]le o copo grande que lhe estava destinado para agua ou vinho com agua, disse sorrindo ao amphytrião :

Antes das sopas molham-se as boccas ! E bebeu-o todo.

O íidalgo teve um sorriso amarello.

A sopa era a que chamam royale, e nem pelo nome que lhe davam, nem pelo fado de ser um simples caldo de peito de gallinha, exigia com violência aquelle sacriticio do copo grande ; porém, depois de saborear algumas co- lheres, Girão entendeu não dever dispensar-se de encher de novo o copo, e dizer com bonhomia ao amphytrião :

No meio das sopas tornam a molhar-se as boccas ! E záz.

O íidalgo teve um sorriso cor de canário... Aquella sopa engóle-se n'um momento. Mais duas ou três colheres mal cheias, e tudo fica dito. Girão encheu de novo o copo solemne, e proferiu com

A VIDA ALEGRE 53

agrado estas paiavras, sempre dirigidas ao aniphy- trião :

Sopas mamadas, goelas lavadas.

O (idalgo teve um sorriso cor de ócca. ..

O jantar seguiu o mais agradavelmente. Girão conver- sou cora muito chiste e primorosa sensatez, teve um dito amável para a dona da casa, uma sentença para cada prato, uma máxima para qualquer coisa, e de dito em dito, de prato em prato, de sentença e máxima em má- xima e em sentença, bebeu quinze garrafas dos vinhos mais variados, applicando a cada um, conforme seus méritos, o louvor que lhes coubesse, e o annexim que melhor quadrasse á circumstancia.

Foi memorável.

E, vê-se d'isto que, se Girão não escrevia folhetins como Evaristo Basto, armava folhetins em acção, o que, ao tempo da minha estada no Porto, Evaristo Basto nem sequer fazia na sua grave qualidade de escrivão de fazenda.

O Porto d'aquella epocha conservava apenas um fo- lhetinista, e esse folhetinista tinha sessenta annos.

Chamava-se José de Sousa Bandeira.

Três homens haviam feito valer o folhetim em Portu- gal:

Lopes de Mendonça ; António da Cunha Sotto Maior; e o Bandeira, conhecido nas letras por Braz Tizana.

54 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

Mendonça representara verdadeiramente, propria- mente, as letras, a critica, o espirito.

Sotto Maior representara a píiantasia romântica.

Bandeira representou sempre o que chamamos chiste, pilhéria : neto até certo ponto de José Agostinho de Ma- cedo, como elle esperto, paradoxal, bulhento, gostando do motim e das audácias, comquanto inferior ao padre não em talento, mas em erudição e nos prodigios de memoria em que brilhava aquelle productor infati- gável.

Tinha esse homem a graça terra a terra, graça que não tem azas nem quer tel-a, que andaaonivel da com- prehensão, tendências, e predilecções do vulgo, que es- tabelece como que uma collaboração tacita do escriptor e do leitor, ao ponto de ficarem eguaes e sentirem-se da mesma forca.

É essa. a graça, que, entre nós, melhor alcança a po- pularidade.

Em ar de brincadeira esse homem íoi um jornalista não sei se respeitado, mas temido. Invejava-se-lhe o sce- ptro, cubiçava-se-lhe o poder, e ninguém o queria, e re- cusaram-o todos a quem elle depois de velho tentou of- ferecel-o ; o throno de Hespanha em certas occasiões era o modelo em grande d'aquella ordem de coisas. Tem havido simples particulares, mais conhecidos dos credo- res, que das nações, que por terem os seus negócios em

A VIDA ALEGRE 55

mau estado, estejam sempre a ponto de resoluções des- esperadas, e que, fosse qual fosse a circumstancia, se offereceriam para governar os hespanhoes, até com aba- timento considerável na lista civil : mas o Bandeira quan- do quiz um redactor, não lhe appareceu ninguém, nem mais caro, nem mais barato; e o Agapito separou-se e creou em Lisboa um jornal da mesma Índole do Braz Tizana, que elle collaborára.

Qual fora o segredo do Braz Tizana ?

A pilhéria, algumas vezes a bisbilhotice, mas emfim a alegria das suas cartas, que eram nem mais nem me- nos do que os erros da opinião publica, a qual princi- piou por esse tempo a formar-se, e que, comquanto não tenha conquistado nenhum direito e continue a viver pela tolerância, exerce hoje uma acção extraordiná- ria, porque não o governo lhe não tem refreado o Ím- peto, mas como que se tem comprazido em a dei- xar crescer, na idéa de ser uma força mais a ajudal-o, não deixando elle por isso de estar sempre no caso de a conter e de a dirigir. O peor é que não a não dirigiu nunca, mas chegou a estar sendo dirigido por ella.

Escusado é dizermos que, se ha coisa respeitável, é a opinião publica, e que a intervenção activa d'ella nos ne- gócios políticos é um dos progressos d'este século ; mas o que é necessário é que ella seja esclarecida e expe-

56 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

riente, e isso, infelizmente, é o que ella entre nós não leni chegado a ser.

José de Sousa Bandeira quiz, até o ultimo periodo de sua longa vida, reagir^ contra a hypocrisia com que as coisas eram julgadas ; dizia elle que as palavras são como o vidro, e que escurecem tudo que não ajudarem a ver melhor. Moralista faceto, nunca deixou fugir-lhe o génio para a mysantropia e exercitou constantemente o lápis irónico na politica, á excepção de pequenas excur- sões fora d'esse circulo que traçara a si próprio. Via as coisas como são, e castigava-as rindo ; foi elle que disse, de uma occasião, ao grande Castilho, a propósito do seu Methodo de leitura repentina, que o melhor seria não teimar com aquillo, e que nunca os governos poderiam ver nissso vantagem de nenhuma espécie, porque se toda a gente soubesse ler, seria impossível governar. Cito este dito, porque me persuado que a nota da cáustica graça d'elle.

Não foi hem um escriptor, no sentido elevado d'esta palavra, teve convicções e não hesitou nunca deante da temeridade de dizer o que sentia : Credidi, propter quod locutus; tive crenças, e por isso (aliei, k liberdade foi a paixão d'esse homem ; não a poetisou, mas foi-lhe íiel.

O serviço de novidades especial áquelíe periódico, não bem retribuído, mas dirigido por elle como chefe experimentado, e verificado por sua (ilha como sub-

A VIDA ALEGRE 57

chefe intelligente, levava á redacção um contingente de noticias de toda a espécie, que eram logo examina- das, encontrando unicamente logar nas columnas do jornal aquellas cuja veracidade estivesse bem prova- da. Foi exactamente então que principiou a observar-se por gosto a moda de annunciar a Europa que a menina tal, filha de fulano, esteve em vésperas de se casar com sicrano; que a baroneza * já, havia dias, se encontrava DO seu estado interessante; e que o juiz * soíiria cacla vez mais de hemorroidal : corumunicações domesticas, que poderiam fazer-se em pleno escriptorio, mediante a intervenção não dissimulada de espécies sonantes, se não fosse a compadricc e as complacências bonacheiro- nas, que sempre em Portugal, mais ou menos, teem rei- nado na imprensa, estabelecerem a maior facilidade em poderem levar-se de graça ao conhecimento do publico os pormenores interessantes de taes casos.

Fez prodígios, movido pelo amor á liberdade ; o Aze- mel, jornal fundado por elle em Guimarães, em 1823, o Artilheiro, o Periódico dos pobres do Porto, e finalmente o Braz Tizana, foram o terror dos reaccionários, sem outro segredo de combale que não fosse o atacar pela mordacidade e pelo chiste, atacar rindo, com critica acerba e irresistível ; a graça foi a sua arma, e soube ga- nhar-lhe honras e glorias, até as da perseguição, que o atirou para as cadeias da Relação do Porto.

58 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

O Artilheiro teve artigos notáveis de pilhéria, a Con- fissão da imprensa livre portugueza, por exemplo, o Pas- seio da mãe e da filha, que eram a Constituição de 20 e a de 26, a Conversa na taberna, entre o chefe de ladrões e o aprendiz. Entretanto, todos esses artigos tinham de morrer sem quasi deixarem memoria de si, por serem escriptos sem cuidado litterario, sem a attenção e o es- mero que unicamente podem conservar, pelo estylo, os improvisos folhetinisticos ; destinados, a não ser isso, a entreterem unicamente durante vinte e quatro horas, e a não viverem mais do que ellas.

Ao receber no Porto uma carta de Bandeira, em que me dizia amavelmente que desejava ver-me ; que es- tava doente e velho, por isso não sahia de casa ; e que eu lhe daria gosto, visitando-o: não me demorei era o fazer senão o tempo de pôr o chapéu e ir para a rua.

Ao entrar em sua casa, vi um velho sentado a uma grande mesa de trabalho e uma menina a seu lado.

O velho era Bandeira ; branco, trôpego, querendo le- vantar-se para me receber, e contentíssimo de que eu fosse ao encontro dessa amabilidade e lhe poupasse o incommodo de se pôr em pé.

A menina era sua íilha, D. Maria da Gloria Bandeira, de quem no Porto se fallava muito como pianista ; que, pouco tempo depois, casou com Theotonio Patrício Alva- res, e, pouco tempo depois de casar, morreu. Era essa

A VIDA ALEGRE 59

menina quem fazia ultimamente quasi o jornal inteiro. Ao vel-a junto de seu pae lendo-lhe as noticias dos jor- naes de Lisboa que acabavam de chegar-lhe pelo cor- reio, lembrou-me a casa de Alexandre Magno de Casti- lho, o fundador e compilador do Almanach de lembran- ças para Portugal e Brasil. Da única vez que tive o gosto de o ver no escriptorio, encontrei-o com centos de jornaes deante de si, e sua íilha com uma grande the- soura na mão :

Estamos a fazer o almanach ! disse-me elle. Marcavam á margem da folha, durante o anno, todos os

jornaes em que encontravam noticia que lhes agradasse; depois, no tempo competente, iam-se áquella tarefa, e, melhor do que a tia do Nicolau Tolentino armou ao so- brinho de uma saia um fraque, engendravam, d'aquel- les papeis cortados, ornais curioso e entretido almanach, e uma das empresas mais lucrativas do tempo.

Venha disse-me Bandeira o folhetim de vinte annos abraçar o folhetim de sessenta e dois !

Ri muito com elle. Tinha immensa graça. Contava bem, e tinhamuito para contar. Devorado pela doença e pela edade, triumphava a cada momento da edade c da doença. Que de coisas havia passado ! Estivera im- menso tempo preso na torre de S. Julião ; chegara a dar as voltas á roda da íorca : era casado pela quarta vez... Celebre homem !

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APO.MaMEXTOS Dl VI FOLHETINISTA

O seu maior prazer áque' tempo era conversar e fu- mar. Uma vez feito o jorual apareciam pelo dia adeanle uns amigos, que, em tendo ( o, raridade, anei:dota, cor- riam a oflerecer-lhe o recre de a ouvir. Elle ria, ria, e ficava de bom humor para litas horas. Era coisa para se ver ! Chogava um, dava 3 bons dias á familia, aper- lava-lhe a mão a elle, que olhava desde que o visse entrar, com a avidez de u sequioso e a severidade de um juiz ; depois, em segui ...

Esta é dos meus si )s . . .

lia de ser boa. As a Beira são sempre boas. Conta...

N'aqueile momento ch« iva outro amigo, e, tirando a vez ao primeiro:

Ó Bandeira, queres ber o que me contaram ? O motivo porque a prima de Mancos deu em tonta. . .

For ser da familia ?-fetrocava o Braz Tizanaarir.

Não. Por outra cois; que se soube agora. Ainda por aqui não consta. And abafado isto... Coitada ! Co- nheci-a pequena. Bonita i j, olha tu, se o mundo lhe livesse sido indulgente, ixleria haver sabido d'alli uma

ia ! Mas o mundo é bruL tolo, e mau : tenho pena r elle, mas de ve-se-1 hasta justiça.

Sim ! Deve-se-lhe ela justiça !

Fel-a gastar o melli tempo da vida a preparar-se ra ser feliz e a merec* o, e faltou-lhe a tudo ; cui-

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A VLK ALEGRE

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dava a pobre creatura qu ser bonita seja o mesmo que pôr o amor no seguro. Es?ra por isso ! Veio a conhecer com o tempo qae as boniís são principalmente destina- das... a que a gente as dixe para nos irmos ás feias !

Está claro !

Nós admiramos n uj, sim. admiramos sincera- mente uma senhora que fja prendada, mas a? estúpi- das são as que nos captivai. . . Estou em te dizer, José, que até, por uma lei ab- n, íem-se grande estimação pelas que são sérias e mdestas . . . e gosta-se das ou- tras.

Cala-te. Às paredes tem ouvidos. . .

Quando a prima dosManços chegou a perceber tudo isto, ia a deixar atn de si a mocidade, e estava furiosa, estava o que o pov diz, damnadal Mordia-se com a idéa de haver sempraspirado sem obter ; de lhe haver fugido tudo, quanto jurasse ter seguro ! O espelho principiava a entrislecel-a aida mais : e a sua pouca fe- licidade a dar razão ao eselho. ia para saltar o barranco que em todos os teipos os moralistas teem de- senhado com uma certeza dereographos : ia dar-se toda á devoção. .. N'isto, como terá uma herança, appare- ceu-lhe noivo : casou. O mario tinha olhinhos piscos; pretençôes a importante : d<a-?e ares de ter idéas al- tas, mas via-se logo... queram baixas; largas, pode- ria ser, mas baixotas!

60 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

O seu maior prazer áquelle tempo era conversar e fu- mar. Uma vez feito o jornal, appareciam pelo dia adeante uns amigos, que, em tendo caso, raridade, ane«:dota, cor- riam a offerecer-lhe o recreio de a ouvir. Eile ria, ria, e ficava de bom humor para muitas horas. Era coisa para se ver ! Chegava um, dava os bons dias á familia, aper- tava-lhe a mão a elle, que o olhava desde que o visse entrar, com a avidez de um sequioso e a severidade de um juiz ; depois, em seguida...

Esta é dos meus sitios...

íla de ser boa. As da Beira são sempre boas. Conta . . .

N'aquelle momento chegava outro amigo, e, tirando a vez ao primeiro:

Ó Bandeira, queres saber o que me contaram? O motivo porque a prima dos Mancos deu em tonta. . .

Por ser da familia?— retrocava o Braz Tizanaarir.

Não. Por outra coisa, que se soube agora. Ainda por aqui não consta. Anda abafado isto... Coitada ! Co- nheci-a pequena. Bonita ! E, olha tu, se o mundo lhe tivesse sido indulgente, poaeria haver sabido d'alli uma jóia! iMas o mundo é bruto, tolo, e mau: tenho pena por elle, mas deve-se-lhe esta justiça.

Sim ! Deve-se-lhe essa justiça !

Fel-a gastar o melhor tempo da vida a preparar-se para ser feliz e a merecel-o, c faltou-lhe a tudo ; cui-

A VIDA ALEGRE 61

dava a pobre creatura que ser bonita seja o mesmo que pôr o amor no seguro. Espera por isso ! Veio a conhecer com o tempo que as bonitas são principalmente destina- das... a que a gente as deixe para nos irmos ás feias !

Está claro !

Nós admiramos muito, sim, admiramos sincera- mente uma senhora que seja prendada, mas as estúpi- das são as que nos captivam. . . Estou em te dizer, José, que até, por uma lei absurda, tem-se grande estimação pelas que são sérias e modestas... e gosta-se das ou- tras.

Cala-te. As paredes teem ouvidos. . .

Quando a prima dos Mancos chegou a perceber tudo isto, ia a deixar atraz de si a mocidade, e estava furiosa, estava o que o povo diz, damnada! Mordia-se com a idéa de haver sempre aspirado sem obter ; de lhe haver fugido tudo, quanto julgasse ter seguro ! O espelho principiava a entríslecel-a ainda mais : e a sua pouca fe- licidade a dar razão ao espelho. ia para saltar o barranco que em todos os tempos os moralistas teem de- senhado com uma certeza de geographos : ia dar-se toda á devoção... N'isto, como tivera uma herança, appare- ceu-lhe noivo : casou. O marido tinha olhinhos piscos; pretenções a importante ; dava-se ares de ter idéas al- tas, mas via-se logo... que eram baixas; largas, pode- ria ser, mas baixotas !

62 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

Viveram antes mal que bem. Não porque elle fosse um monstro, era um semsaborão presumido e ajudado não pela sorte, mas pelas protecções, que são uma espécie de sorte que se arranja por baixo. Ás vezes chegava a parecer um menos mau figurão, entre interesseiro e sincero : mas se as coisas que dizia lhe vinham do cora- ção, não é menos verdade que lhe sabiam pelo nariz : era fanhoso. O peor dos crimes !

Foi-lhe ella a pouco e pouco tomando tal quisilia que o seu gosto seria esganal-o. Mas, não se esgana assim ! Continha-se, e ia-lhe fazendo presente em especial, do ódio que tinha ao mundo todo. Chegado o dia em que o marido se sentiu em artigos de morte, como ella o fazia de fel e vinagre nos últimos tempos, não quiz elle mor- rer sem lhe pregar uma peça, e jurou-lhe que voltaria todas as noites para a apoquentar.

« Para me apoquentares ! 7 » exclamou a rapa- riga.

(( Sim ! Para te apoquentar ! . . . »

Isto, que parecia nada, inquietou-a muito ; inquie- lou-a ao ponto de querer tomar precauções.

Foi-se a elle depois de morto, e pregou-lbe um prego na cabeça e outro nos pés, para íicar bem preso ao cai- xão e não se poder d'a]li mecher.

Nunca o marido esse c que é o caso nunca lhe appareceu. Ella ia passeando a sua elegante viuvez,

A VIDA. ALEGRE 63

e, apesar de ir para velha, como estava rica, os ca- çadores de dotes faziam-lhe muito a corte. Ella ria-se. Haverá mez e meio, contou muito contente a duas ami- gas a esperteza que tivera ; as amigas foram dizer tudo á familia, e um dos parentes obrigou-a a ir despregar o corpo do marido.

D'ahi lhe vem o nervoso, agora. Desde que tal fez, treme de medo que o marido se lhe apresente. . . Tem horas de loucura, e, nos intervallos lúcidos, estremece á idéa de morrer de algum ataque mais forte... e ir encon- trar-se com o marido. . .

Diacho I ponderava o Bandeira. Por causa de Cupido mil transtornos ; uns roubam, outros matam, ou- tros suicidam-se, alguns até se casam! Lembrar-me eu que perpetrei esse acto quatro vezes sem me pre- garem I...

Quando se lhe fallava do correspondente do seu jor- nal em Lisboa, respondia tranquillamente :

Ah ! O Agapito? ! Magnifico. Conhece todas as se- nhoras, entende de toUettes de damas, e anda em dia com os bailes. Não sei quem elle seja.

O Agapito ?

Nunca o vi. Não o conheço.

E' boa I Mas, ao menos, por cartas...

Tenho cartas de um homem que me diz que mande eu dinheiro, que elle mandará artigos. Mando-lhe di-

64 APONTAMENTOS DR UM FOLHETINISTA

nlieiro, e elle, eírecli\ amento, manda os artigos. ha muitos mezes que offerece dizer-me o seu nome verda- deiro, e vir ao Porto apertar-me a mão, a não se dar o caso de ir eu a Lisi)oa apertar-lhe a mão a elle...

E entã ) ?

E então, respondo-Ihe sempre que o melhor é não vir elle ao Porto, não ir eu a Lisboa, não nos apertar- mos a mão, e ficarmos sempre n'isto de nos não conhe- cermos, para elle não ter o trabalho de desaíivelar a mascara. Oxalá niníruem houvesse jamais sabido que o Braz Tizana fosse este seu venerador José de Sousa Ban- deira. Para que quero eu saber quem seja o Agapito? Nada chega ao mysterio. Ó sigillo!... Se muitos ho- mens preferem as amantes ás mulheres legitimas, não sabes porque é ?

Não sei.

E' porque as conhecem menos, e ellas os conhe- cem menos a ellesl. ..

Ás noites, porque não jogasse, e não podesse sup- portar o calor : em se reunindo muita gente nas suas salas, deixava as visitas entregues ás delicias da musica e da conversação, e ia sentar-se na escada.

Na escada !

Era o seu forte. ÂUi fumava, aproveitando as primei- ras novidades dos convidados á proporção que chega- vam, e que, antes de entrarem na sala, eram obrigados

A VIDA ALEGRE 6o

na escada a dizer-lhe o que houvesse por esse mundo, obrigando-os ás vezes a sentarem-se a seu lado nos de- graus, e alli ficarem, narrando e discutindo... Houve tal que, tendo chegado ás nove horas, se conservou na escada, conversando, até á meia noite. Ameia noite, porque toda a gente fosse a retirar-se, e o convidado entendesse serem horas de fazer o mesmo, despedia-se de Bandeira:

Adeus, sr. Bandeira. Obrigado. estão na sala a apagar as luzes. Oiça, parece-me que seria, ao menos, do meu dever, entrar um instante, para cumprimentar as se- nhoras...

Não...

Pôde a familia de Y. Ex.* extranhar, e com razãos que eu não passasse d'aqui, e não fosse, ao menos, dar-lhe as boas noites. ..

Não tem duvida. Adeus, meu amigo ! Ora, muito me contou! No sabbado próximo não disponha de si, hein ? Também temos annos. . .

Hoje eram annos ? !

Eram, sim. Isso é a mesma coisa. Adeus. o meu amigo para sua casa... Boa noite e obrigado !

Tal era o Braz Tizana em ISr.O.

Estão decerto admirados de que, tratando do Porto d'essa épocha, e referindo-rae aos escriptores notavei, de então, não tenha citado os nomes de Camillo Cas-

5

66 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

tello Branco e de Ramalho Ortigão. Eu lhes digo : de Camillo e das primeiras relações que tivemos, quando a elle me dirigi para a publicação da Kslrella d' Alva, fal- lei no primeiro volume d'esta obra ; no tempo, porém, de que estamos agora tratando, o grande romancista estava n'um periodo de silencio : os seus romances eram muito lidos, é claro ,— tem sido em Portugal o escriptor moderno cujas obras teem encontrado mais constante estimação no mercado; mas, dizia o outro, como se fatiasse de um dia ou de uma semana : aHa annos em que um ho- mem não se sente disnosto para lazer nada ! » ; um sentimento de curiosidade, talvez, fizera com que elle cortasse a actividade permanente da sua vida por um anno de preguiça; ainda assim da preguiça excepcional d 'esse anno de mmaro^y far niente veio elle mais tarde a compor dois volumes de Memorias.

Pelo que respeita a Ramalho Ortigão, Ramalho não tinha n'esse tempo ainda popularidade. Os mais cultos no Porto conheciam esse mancebo e apreciavam a agu- deza do seu espirito; mas não possuía ainda a notorie- dade e a voga que depois de estar em Lisboa ver- dadeiramente alcançou.

nos conhecíamos. N'uma noite em que eu estava á porta do theatro do Salitre, Diogo de Macedo, nosso commum amigo, a quem ha poucos mezes este mesmo Ramalho consagrou um excellente artigo n'um jornal do

A VIDA ALEGRE 67

Rio de Janeiro, que tem a fortuna de o ter por folheti- nista, appareceu alli em companhia de um mocetão, ves- tido com certa originalidade que lhe ganhava a vantagem de alguma burguezinha que passasse voltar a cabeça para o ver segunda vez. Não era porque o casaco fosse encarnado, ou porque elle estivesse embuçado n alguma capa de casimira branca ; é até possível que não hou- vesse raridade no seu traje, que era das fazendas de ris- cado de que se usam fatos completos ; mas, um bonnet amplo, levantado, felpudo, petulante, escandaloso para a calçada do Salitre, em tempos que não deixavam pre- sentir a avenida, e cm sitios por onde não dou noticia eu, que moro alli ha muitos annos de haver vol- tado a passar um bonnet assim ! fez com que eu próprio contivesse difficilmente a minha curiosidade, e ficasse satisfeitissimo no momento em que o Diogo, com o ar nobre e franco que o caracterisava, nos apresen- tou um ao outro, e em que lhe ouvi dizer:

O sr. Ramalho Ortigão.

Aquella coisita a que se chama boa educação pareceu- me ser desde logo um dos dotes que possuia esse moço* O resto estava em harmonia com isso.

Cuidei em parte pelo seu modo, em parte pelo seu bon- net, que elle andasse estudando em Paris e se achasse aqui de saltada ; mas não : Ramalho, n'esse tempo, não ó não havia visto a França, a não ser nas cartas geo-

68 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

I

graphicas, mas talvez nem pensasse que houvesse de vi- sital-a um dia.

Estou a contar-lhes a maneira porque fiz conheci- mento com elle, por me parecer curioso tornar bem apreciável aos que d'elle tiverem conhecimento pe- los seus livros e artigos, em que o sentir francez domina a ponto de julgar muita gente que depois de estar em Paris é que elle se habituou áquelle ambiente, que, na Índole, nas maneiras, na feição do etylo e na do fato, Ramalho Ortigão era, em 1860, exactamente o que é hoje.

Nem o tempo nem as exigências acanhadas e caturras da sociedade em que vive conseguiram nunca transfor- raal-o.

Foi logo pouco tempo depois que elle principiou a es- boçar, com a sua penna picante e garrida, nas folhas portuenses, os typos e costumes da nossa terra, conferin- do-os com os de outros paizes, que conhecia então pela leitura dos livros e pelo dote que tem o talento de adivinhar tanta coisa.

Ramalho Ortigão tem phisionomia e não a perde nunca. Fomos de uma vez á horta da Rabicha: elle, Anthero do Quental, Jayme Batalha Reis, Alberto de Queiroz, João Burnay, Oliveira Martins. . .

O nome de Oliveira Martins é hoje conhecido no paiz ; áquelle tempo não pôde dizer-se que o fosse : ha-

A VIDA ALEGRE 69

via produzido apenas um livro sobre Camões e a sua obra em relação á sociedade portugueza e ao movimento da renascença, editado no Porto, com o titulo de Camões e os Lusíadas.

O publico não conhecia nem o passado d'esse escri- ptor nem o seu género de estudos, nem a originalidade do seu methodo. Em vez de viver na intimidade dos li- vros de litteratura amena, que andam mais em uso, e se encontram por ahi em todas as estantes e livrarias, en- tregára-se sempre esse moço ás obras severas dos pen- sadores, estudando-as era boa ordem, annotando-as, nunca as deixando meio exploradas, e adquirindo grande abundância de conhecimentos. Talento reflexivo, philo- sophico, averiguador. Coisa singular: tão dissimilhanles como eram as nossas predilecções litterarias, cntretinha- mo-nos muito conversando de letras.

Sabia o Proudhon na ponta da língua, e entrava pelos philosophos e políticos d'essa família; mas, de vez em quando apparecia, de manhã, em minha casa, e nunca encontrei espirito que melhor sentisse o fo- lhetim do que elle. Sempre guardei lembrança d'isso, e, como podem calcular, a minha estimação por elle tornou-se mais aíTectuosa. É um philosopho e ao mes- mo tempo um artista. Oliveira Martins ; tem grande e alto raciocínio, e ao mesmo tempo sensibilidade de poeta. Com que amor elle estudou os Lusíadas, e a vida

70 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

aventurosa, romanlica, heróica, do Camões, lucta do ta- lento contra a riqueza e a tolice !

Mas, emfim, n'ac]uella tarde da Rabicha, sincera- mente se liie figurou que, épico por épico, não ficasse a dever nada ao outro quem compozesse uma cal- deirada em seis cantos que tantos eram os que iam saudar, cantando-a ás auras e aos Arcos das Aguas Livres a canto, por talher! essa obra que em- prehendi.

João Burnay havia mandado conduzir para alli, não sei se n'uma padiola se n'um oranibus, um roast-heef.

Pela minlia parte, para não deixar na sombra esse clarão de meu engenho, cumpre-me dizer-lhes que ha- via tomado perante Deus, elles, a Rabicha, e a minha consciência, o encargo glorioso de confeccionar mes- mo a caldeirada das caldeiradas.

O ponto de reunião era na rua da Piedade, á Praça das Flores, onde morava então Anthcro do Quen- tal. Alli nos juntámos n'um dia de verão esplendido, e partiu a caravana ao meio dia. Estava um sol de rachar. Poucos passos adeante ia rcsolver-se mandar buscar se- ges, mas ouviu-se uma voz sahir de um kiosque apostro- phando-nos :

Que ! Seges ? ! Qual diabo ! Vamos a !

Era Ramalho Ortigão, que assim exprimia as suas convicções por baixo de um panamá ; mas um pa-

A VIDA ALEGRE 71

iiamá, façara-me favor! digno emulo d'aquella couve heróica, que de uma vez deu sombra ao exercito de Na- poleão ! Encontrámos a guarda, parou o official, pas- mado, e os soldados iam cahindo de pasmo. . .

Na Rabicha a impressão foi profunda. Ramalho, ale- gre, risonho, ousado, explicou ao dono da fazenda, ho- menzarrão intrépido e de alta e antiga fama de valente com os homens e terno com o femeaço, pimpão reforma- do, a quem uma bala levara o braço direito, que, ape- sar de maneta, tinha a linha. Ao principio aquelle homem não percebeu bem isto ; mas, quando de sahimos, ás oito horas, havendo alli chegado ás qua- tro, já elle próprio, maneta, explicava ás criadas da horta, qual d'ellas tinha a linha, e qual d'ellas não ti- nha « linha.

Anthero do Quental, que chegara aos anno?, não por certo do retiro e do silencio, mas da medita- ção severa, horas da madureza melancholica em que um homem, ao fazer a comparação do caminho que andou com o que tem para andar, cuida avistar o se- gundo mais curto que o primeiro, parecia outro n'esse dia, tão juvenil e espontâneo era o contentamento em que estava.

Oliveira Martins, vivamente sensibilisado pelos re- sultados obtidos, esteve a ponto de chorar de gosto ao ver a graça com que Ramalho ajudava a criada

72 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

de Bournay visto como Bournay mandara ir, além do roast-beef, uma criada franceza, ou á franceza pelo menos, isto é, de touquinha branca, saia curta e o avental de algibeirinhas consagrado pelas melhores vinhetas do Bertall a pôr a mesa. Elle ia á quinta colher as flores mais variadas, elle as enfeixava em bem armado ramilhete, elle estabelecia os desenhos mais interessantes, mercê da disposição gentilmente matizada d'ellas ; depois, vendo-me deante do grande tacho destiuado á ceremonia solemne da caldeirada, perguntou-me tremulo de ternura :

estás refugando, Júlio?

Eu não dizia nada. Mas Jayme Batalha Reis, que, du- rante aquelle acto, não tirava os olhos de mim, respon- dia com commoção :

; está a refugar !

Quantas cebolas, Júlio ? perguntava Ramalho.

Vinte e uma ! dizia Jayme.

Vinte e uma !

Cebolas verdes, em quartos ! . . .

Est-ce possible ? ! exclamava a criada franceza, ou á franceza, consultando Ramalho Ortigão com o olhar.

Je wV//are !... —retrucava Ramalho.— E, (vol- tando-se para mim) que mais lhe deitaste ?. . .

Eu não dizia nada.

A VIDA ALEGRE 73

Alberto de Queiroz, debruçando-se brandamente, pro- punha-se metter o nariz no tacho. A tanto pôde a sede do saber, e quiçá uma juvenil ambição, acredora de es- tima, conduzir a mocidade !

Alberto de Queiroz era então um adolescente. Entrava na vida curioso de conhecer as luctas e difficuldades, ou- sadias e revezes do destino dos escriptores e dos artistas. Dotado de uma percepção rara, e de uma avidez de es- tudar que ninguém combinaria facilmente com os ares de dandysmo com que elle passeava ao sol ou á chuva o seu janotismo, os que o viam, sem o conhecerem bem, consideravam apenas n'elle um rapazinho rendido a dois coquetismo^, o coquetismo da elegância e o das le- tras, na idéa de que elle não quizesse d'ellas senão o que essas santas comadres oíTereçam de commodidade mo- mentânea á existência de um rapaz, a saber, os bi- lhetes de entrada nos theatros, os convites para bailes, para regatas, para as inaugurações de linhas férreas ; e para as varias festas em que a vaidade ou a especulação do mundo, no habito em que estão de viverem colladas á publicidade dos reclamos, como a santola ao costado dos navios, recorrem aos que tiverem uma columna de jornal a disposição da patacoada humana.

Mas não. Levava-o para as letras o amor sincero que lhes tinha ; ficava contente do seu dia, quando um traballio de outrem lhe dava ao espirito a doce sa-

74 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

tisfação de apreciar ; e, prova não da aptidão das suas faculdades, mas da generosidade do seu coração, tudo era como que desempenhar-se de um empenho que houvesse contrahido comsigo mesmo de não se li- mitar á estimação silenciosa, e tirar, da comprehensão brilhante e fácil de que a natureza o prendara, a conso- lação mais útil e benéfica para os que trabalham, qual a de não se limitar a aprecial-os de si para si, mas abrindo a janella que para a rua. por assim dizer explical-os ao publico, convida!-o a prestar a sua attenção ás pro- ducções d'elles; e, mercê do talento e da generosidade de animo, empregar em os fazer sobresahir, em lhes dar luz, a diligencia que os egoistas e os mediocres tanto applicain e de tão boa gana a pôr os outros na sombra.

Que mais lhe deitaste ? tornava o Ramalho a perguntar.

Jayme Batalha Heis, que, a titulo de eu o conhecer desde pequeno, e haver sido um dos primeiros a mara- vilhar-me da rara lucidez do seu espirito, merecera da minha benevolência o tel-o ao meu lado, recitou n'estes termos :

Salsa, pimenta, sal, cabeça de saíio e de eirós, co- loráo, caril ! tudo ás voltas, na fritura do refugado, um pouco antes de se lhe atirar com dezoito tomates gran- des ! em pedaços ! três colheres de vinagre, oito de azeite ! lulas e ostras, além de peixe de sete qualida-

A VIDA ALEGRE

desi ruivo, tainha, chocos, saíio, eiroz, peixe-gallo, xar- roco ! . . .

Porque os convivas, ao ouvirem isto, estivessem a ponto de se torcerem e retorcerem todos de commoção, em gentis ataques nervosos motivados pelas sensações d'este dia, resolveu-se, como medida de prudência, em- prehender um passeiosinho de distracção, para não esta- rem alli concentrando por mais tempo uma attenção illi- mitada no tacho, em que tantos e tão extraordinários acontecimentos se estavam passando.

Assim foram pela quinta adeante até á estrada de Campolide.

Andavam trabalhadores a arranjar a estrada.

Vossemecês são das Obras Publicas? perguntou- Ihes Ramalho.

Sim, senhores ! respondeu um d^elles, que se achava a contas com uma pedrinha, procurando com arte o melhor modo de a encravar no chão. . .

Elle chamou os companheiros e entretiveram-se a con- templar aquelle espectáculo.

É curioso ! ponderou.

Qual fosse o fim do trabalhador ao pegar n'aquena pedrinha, bem o comprehendiam elles ; porém, com que habilidade elle se desempenhava de tal missão I

Piscava um olho...

Piscava o outro...

76 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

Mirava a pedrinha d'aqui, mirava-a d'alli...

Punha-a ao direito...

Olhava para ella bem, e punha-a atravessada...

Apalpava-a...

Assoprava-a...

Espreitava-a e admira va-a, como faz um ourives a uma pedra preciosa, que se lhe figure de boa agua e com grande vida...

Depois, com geitos de observação que fariam honra a um mathematico, encanastrava-a em cima de outras, como quem está a fazer a caminha para uma creança, devagarinho, com extremos de quem sabe amar mater- nalmente, porque assim digamos...

Ramalho, tirando da algibeira do peito o seu lenço de assoar finíssimo, dirigiu-se áquelle trabalhador das Obras Publicas, pediu-lhe para que o attendesse, confe- renciou com elle mysteriosamente ; depois, voltando-se para os companheiros :

Segurae nas pontas d'este lenço !

Todos seguraram o lenço pegando-lhe pelas pontas, de forma que não deixassem cair o que elle continha, e assim voltaram em procissão até á Rabicha.

A caldeirada estava prompta.

Eu passeava agitado.

Aquelles instantes pareciam-me de um comprimento excessivo...

A VIDA ALEGRE 77

Tinha a imaginação sobrexcitada por idéas de gloria...

Haveria querido n'aquelle momento ler alli á mão al- gumas paginas de leitura austera que me puzessem em afinação de modéstia...

Mas, não se poderia arranjar isso n'aquelles sítios.

Puz-me a meditar as palavras do Ecdesiasta : Vai- dade das vaidades...

Nada me acalmava.

Parava machinalmente deante do tanque, via-me na agua e comprimentava-me a mim próprio, como elle, esperava eu, teriam de comprimentar-me pela caldei- rada...

Oh!

Essa idéa fazia-me empallidecer...

Ouvi-lhes as vozes.

De cabeça erguida e attitude altiva esperei-os, firme.

Está prompta a caldeirada ! bradei.

E o echo dos arcos das Aguas Livres repetiu :

Caldeirada !...

Jayme Batalha Reis dirigiu-me a palavra :

Que dirias de Sócrates, se ai ém de philosopho, fosse industrial?

Eu ia dizer. ..

Anthero do Quental deu um passo á frente :

Que dirias de Napoleão, se, além de guerreiro fosse pianista insigne?

78 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

Eu já, por um triz, ia a fallar. .. Oliveira Martins, pondo-me a mão no hombro, con- templando-me longamente:

Que dirias de Thomaz de Carvalho, se, além de tudo que sabemos d'elle, fosse também capitão de na- vios ?

a resposta me ia pela lingua adeante. ..

Que diremos de ti, querido amigo, proferiu Ra' malho commovido que, além das occupações do teu oíBcio, te propões ser o que ha mais sublime entre as diversas espécies do saber humano, cosinheiro ! À tua dedicação á humanidade é sem limites; o teu amor ao trabalho é digno do espirito scientiíico de um grande sé- culo.. . Aqui te trazemos um presente ! Tens ouvido fal- lar no suor do povo ?

Muitas vezes.

É uma curiosidade rara, mas enconlra-se. Pedimos um pinguinho d'isso a um trabalhador das obras publi- cas, que anda alli adeante na estrada, e eil-o aqui... Entendemos que aquelle pinguito de suor do povo po- dia, mercê de que a raridade augmente o valor ás coisas, constituir o mais glorioso baptismo de um cosinheiro vo- luntário...

E, soluçando de jubiloso enternecimento:

Para a mesa, amigos !

Para a mesa!...

^

A VIDA ALEGRE 79

A caldeirada, não digo isto ao leitor, por eu agora estar presente, ficou pyraraidal, como dizem os hes- panhoes. A criada do Bournay, tomando-me deveras por um cosinheiro inspirado, queria casar commigo^ teve o amo immenso trabalho a recusar-lhe a minha mão.

Emquanto ao Ramalho, Deus me perdoe, saudou a cal- deirada terminando emblemaliramente pela ceremonia de rapar o tacho com tanto enthusiasmo, me disse, como o que tcstemunhcára no Porto á Ristori, por quem eu lhe perguntara, tão depressa elle uma manhã me deu o gosto de o ver no famoso primeiro andar do Nicolau de Brito.

Tem acompanhado sempre as representações da Ristori, o sr. Ramalho?

Era este o tratamento ceremonioso que então tinhamos.

Elle respondeu-me, quo, se não estivesse casado, faria mais do que acompanliar as representações da Ristori no Porto, iria acompanhar a Ristori nas suas representa- ções n'outras terras. . .

£ discorreu a respeito d'ella com o enthusiasmo exu- berante a que se entrega quando admira. Sabia tudo da carreira e destinos d'ella, e logo para alli discorreu de como os próprios francezes a queriam para si, a titulo de ser na França que essa mulher, que nascera na Itália e na Itália balbuciara o alphabeto trágico, fora acclamada

80 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

consagrada ; e que apparecera em Paris, pouco tempo antes, pela primeira vez, em 18S5, no anno da primeira exposição; que a Rachel pedira, á Ristori, que fosse ao theatro numa dada noite vêl-a representar, dizendo- Ihe galantemente a phrase sabida dos artistas : «Esta noite representarei para si.» não custando effecti- vamente a crer que fosse essa a sua intenção, e que a grande trágica da França se propuzesse mostrar á ita- liana o que vinha a ser isso de Rachel: mas que estava doente, e n'aquella noite, ou porque o tempo a peo- rasse, ou porque estivesse, como nós dizemos, nervosa, o caso é que lhe haviam faltado as forças, e que o pu- blico estivera frio durante a representação... Que, se- gundo corria fama, á sahida d'essa récita, a Ristori dissera : « Quanto é feliz, esta Rachel, em fallar aos francezes a lingua que.elles entendem ! » e se dera desde logo a aprender bem francez, fazendo-se-Ihe de propósito uma peça para ella representar n'esta lingua. Que a peça era uma semsaboria pretenciosa, uma massada litteraria e grave, Beatriz ou a Madona da Arte (que se deu em Lisboa no theatro de D. Maria lí, traduzida pelo auclor do Cura d'almas, Ricardo Cordeiro, e representada por Emilia das Neves); que a Ristori, tendo aliás grande es- timação pelo auctor da Beatriz, Legouvé, e fallando sempre d'elle com a seriedade digna e nobre que respi- rava em tudo que esta grande mulher dissesse, por-

A VIDA ALEGRE ' 81

que nunca houve, n'este mundo, quem fosse mais ele- gantemente senhora do que ella, que não parecia ar- tista com ares de íidalga, porem sim uma rainha, não podia deixar de se rir, em se lembrando de certa cantiga que os estudantes lhe haviam feito na musica do Lariflà:

Madame Ristori a vraiment le tort i mmense d'avoir un goiít hément pour Legouvé!

Ditas estas e outras cousas fumámos um charuto, e es- távamos a ponto de combinar uma rica funccão, quando Nicolau abriu a porta, e, tétrico, exclamou:

Sem appelação?

Sem appelação! respondi. Bem o vês; ha quasi mez e meio !

N'esse caso, meu amigo, deixas amanhã o Porto ; o Lusitânia sae hoje de Lisboa, e gasta treze horas!

Assim foi. Na tarde do dia immediato o Lusitânia fez exactamente como se tivesse ido de propósito buscar-me, e viemos por ahi fora, sulcando as aguas até o Tejo meu amado.

Por que fui eu, logo que voltei a Lisboa, n'uraa manhã d'esse fim do outono, á rua do Ferregial, e, batendo á porta de um primeiro andar, perguntar se morava alli o sr. Monct, ou Monnet,— elle era capaz de ter dois nn ?

Pertencera esse Monnet á companhia de dança de Saint- Léon, o incomparável Saint-Léon, choreographo, bailari- no, violinista, um dos talentos mais graciosos, mais ti- nos, e mais maleáveis d'este século. Era o mimico da companhia.

Comquanto as danças de Saint-Leon, o Saltarello, o Duende do valle, as Flores animadas, Trilly ou a rebe- ca do diabo, Paqueréte, o Paslor Aristéo e as abelhas, primassem c se fizessem valer sobretudo pelos passos da Fieury, da Lisereux, da Palmyra, do Saint-Léon, e do

8i APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

Gredeloue— que oito annos mais tarde veiu a Lisboa na empreza de Valdez, Cossoul, e Lima, na qualidade de compositor, em companhia da loira e gentil Mérante, com quem casou, ainda assim a mimica era, n'essas danças, o fio indispensável para atar, ligando-as entre si no seguimento de uma dada acção, as scenas destinadas a fazerem brilhar os saltos do Saint-Léon, saltos inimitá- veis, que elle justificava nâs suas danças pelo enredo d'ellas, os saltos do cannavial por exemplo, no Duende do valle, ao luar os passos brilhantes da Palmyra, o tacté da Lisereux, o ballonné da Fleury, e os grandes bailados do corpo de baile, bailarinas francezas, quasi todas ; alem de francezas, moças; alem de moças, boni- tas; e, ainda alem de bonitas, discípulas de Saint-Léon, o que é dizer tudo: «segundas» e uratos» da Opera de Paris, o que é dizer ainda mais que tudo!

Porca ficaram muitas d'ellas, e não ficaram mal. Al- gumas casaram com gentishomens; passou uma a ser ma- dame Gadanho, outra madame Thanberg.

Thanberg era, nem mais nem menos, do que visconde e coronel. Viveu em Lisboa muitos annos. Homem dis- tincto e amável. Foi, com o sr. Daupias, um dos funda- dores do hotel Central ; ao cabo de alguns annos passou a parte, que lhe tocava n'esse negocio, a Daupias, ficando com direito a um jantar permanente no hotel.

A este tempo estava viuvo de sua segunda esposa,

A VIDA ALEGRE 85

a ex-primeira bailarina Palmyra, viscondessa de Than- berg.

Alem de viuvo, estava enfastiado. Outros diriam ape- sar de viuvo ; na idéa de ser raro esse estado de espirito em circumstancias tão vantajosas. . . Mas, não brinque- mos. Estava triste, enfastiado da vida, sinceramente cal- do n'um torpor, n'uma atonia physica e moral desagra- dabilissima. De uma occasião Santanna e Yasconcellos, visconde das Nogueiras, amigo intimo e antigo d'clle, propoz-se distrail-o, com o fazer-llie ganhar muito di- nheiro. Como havia de ser? Havia de ser, por meio d3 um jornal, composto de três homens.

Primeiro homem, elle Thanberg.

Segundo homem, elle Santanna.

Terceiro homem, ou.

Esse jornal teria artigos em francez e artigos em por- tuguez. Nós dois escreveríamos os artigos em portuguez. Thanberg escreveria os artigos em francez.

O formato deveria ser apparatoso e elegante : o papel teria de ser vellino : a typographia não poderia ser outra senão a Imprensa Nacional, ou a dos Irmãos Lallemant.

E o dinheiro? perguntei eu.

O jornal ha de dar muito dinheiro, disse Santanna. E' uma novidade em Portugal. Um jornal humorístico para a sociedade, exclusivamente para a sociedade. . .

Mas o dinheiro para os primeiros números ?

86 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

Ah l Voilá ! disse Thanberg.

A imprensa que o adeante! disse Santanna. Como eu estivesse, n'aque!le dia, propriamente o que

se chama de feição, encarreguei-me de convidar os Lal- lemant para essa grande empreza.

Os irmãos Lallemant acceitaram o convite: terem uma parte na sociedade.

Ficámos sendo quatro sócios : Santanna Thanberg François Lallemant e eu. Lallemant encarregar-se- hia das despezas e da administração ; nós três escreve- riamos.

O jornal foi portuguez e francez até no titulo, cha-

mou-se :

O TEJO

Journal le plus occidental de l'Eiirope Editeur François Lallemant Thanberg redigiu um pequeno aviso, dando-nos de con- selho que nunca esse aviso deixasse de ser publicado em todos os números : Une boite aux lellres est inslallée au siège de V administration dujournal, pour recevoir tons les arlicles bons mots épigrammes, etc. , etc, qui désire- raient se voir imprimes sous le controle de la rédadion. On será três mduhjent pour le style; mais inflexible sur le bon goút. Les manuscrits non inseres seront brulés » E, magnanimamcnte, vollando-se para François Lalle- mant :

1

A VIDA ALEGRE 87

Pôde O meu amigo assignar isso ! Lallemant não quiz deixar de nos consultar pelo olhar e. . .

Âssigne o meu amigo isso ! relorquio o visconde. Sanlanna ponderou: ^

Sim, porque não ha de elle assignar isso ! ?

Está dito! accudiu François Lallemant. Assignarei.. . E escreveu por baixo do artigo esta palavra, ainda di-

ctada por Thanberg : (íLèditeur François Lallemant.^)

Bravo ! exclamou o visconde.

Foi o único artigo que fez Thanberg, no primeiro mez, esse aviso !

O jornal tinha um artigo politico, no logar consagrado pelo uso aos artigos de fundo ; era escripto por Santanna, que parecia encantado do promettedor andamento da nossa fortuna.

Uma das condições do contracto, redigido com o maior escrúpulo, era a de jantarmos juntos uma vez por semana. Emquanto o jornal não desse para esses festins, cada um de nós convidaria os outros, alternadamente. O dia do jantar será destinado a escrever o jornal.

Foi a única condição seguida á risca.

Santanna chegava da Camará ás seis horas, Thanberg levantava-se da cama segundo o seu costume ás cinco; e, ás sete horas da noite, uma vez por semana, os dois ir- mãos Lallemant, os publicistas Thanberg e Santan-

88 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

na acima citados, e eu, achavamo-nos ora no hotel Cen- tral, ora no Matta rua do Oiteiro.

Então, porque fosse um pouco tarde para fazer o jornal antes de jantar, jantávamos e fazia-se o jornal de- pois. Tudo que nos viesse á cabeça, púnhamos para alli. Em seguida liamos uns aos outros, e achavamos-nos uma graça extraordinária, que os irmãos Lallemant sincera- mente nos confirmavam. Uma graça de virar gente, com o riso, de dentro para fora! Historinhas, um homem que de dois filhos gémeos não quizera reconhecer senão um ; commentarios aos acontecimentos ; questões de lingua, apurando as irregularidades flagrantes dopae idioma, e encontrando em qualquer coisa uma irregula- ridade pavorosa ; conjugação do verbo morrer, por exem- plo:

Eu dou á casca

Tu vaes para os anjinhos

Elle estica

Nós nos piramos

Vós daes á canella

Elles espicham

Ao mesmo tempo curiosidades instructivas : estatística conjugal, esposas que fugiam aos maridos, maridos que deixavam suas mulheres por não as poderem aturar, ca- sados que se haviam separado de commum accordo, ca- sados, que, havendo principiado por quererem comer-se de beijos, acabavam por estarem arrependidos de não se

A VIDA ALEGRE 89

haverem comido, porém, por decência, occultavam á so- ciedade esse sentimento; casados indifferentes entre si, casados que o mundo reputava felizes sendo infelicissi- mos, casados felizes a irmos comparal-os com outros des- graçados, casados verdadeiramente felizes. . .

D'estes últimos, n'aquelle anno, havia nove, pelas nossas contas.

Era um estudo, para as leitoras, delicadissimo e inte- ressante ! . . .

O trabalho que isto nos deu ! diziamos nós ao Matta. Mas está exacta a estatistica. . . Exactissima!

Elle olhava-nos com admiração, o que não impediu que, ao íim do terceiro mez, Thanberg se sentisse cada vez mais fatigado da gloria e queixoso do mundo. Não perdera o sol um único de seus raios, nem a primavera economisava mais flores que n'outro tempo : ao visconde é que lhe chegara a edade, que torna experiente o ho- mem, porém lhe tira os raios e as flores da imaginação. O jornal obrigava a grande despesa, e absorvia o produ- cto das assignaturas: o meu Santanna e o seu Thanberg viram este estado de coisas com olhos de melancholia, Thanberg deu-se sinceramente por incapaz da paciência, Santanna partiu para Cintra com a sua familia, e Fran- çois Lallemant tendo de ir a Paris, onde não havia vol- tado, creio eu, desde que viera estabelecer-se em Por- tugal, disse-me sinceramente:

90 APONTAMENTOS DS UM FOLHETINISTA

Meu caro Machado, o meu amigo foi quem me con- vidou para esta empreza ; procurei assignaturas dirigin- do-me ás pessoas mais conspicuas, e recebi adeantado o importe do primeiro semestre...

E o jornal ha de sahir, pelo menos, seismezes; não é isto?

E' exactamente isso !

Sahiu seis mezes, o jornal o Tejo. Os últimos três, íil-o eu sosinho, sem fallar sequer em tal assumpto ao Thanberg, excellente e amável homem, mas que addia- va tudo, por um amor tão entranhado ao prazer da quie- tação, que, de uma vez, dizendo-se-lhe haver morrido uma pessoa de sua amisade e accrescentando-se :

Vosse de certo não deixa de ir ao enterro amanhã ?

Amanhã talvez não possa; mas irei depois de ama- nhã ! respondeu elle com a maior sinceridade.

Tudo isto, porém, veiu a propósito de Monnet, e do Monnet é que se estava tratando. A. minha pergunta era:

Para que havia eu ido uma manhã bater á porta de Monnet?

Pois me lembro.

Fui bater para lhe dizer isto :

Queridíssimo sr. Monnet, está vendo em mim o seu discípulo mais respeitoso.

O Monnet abriu-me os seus braços.

A VIDA ALEGRE 91

Cher!...

Depois abriu-me as minhas pernas : e, obrigando-me a deitar os pés para fóra, disse-me animadoramente :

-^Allez!

Ensinou-me a dansar Ensinou-me. . . Sim, digo bem, ensinou; eu é que não aprendi. O caso era da maior urgência : tratava-se de ir a um baile do club tinha seis dias deante de mim e era-me indispensável, eu considerava indispensável, dansar com certa dama... O bravo Monnet chamou sua esposa e os seus dois me- ninos, para empreendermos alli uma bem travada con- tradansa, e eu, no emtanto, fui para a janclla ver quem passava.

Passou um cavalheiro, e ninguém mais tarde me- receu melhor para mim este titulo do que elle José Maria Corrêa Seabra, administrador da Revista Univer- sal Lisbonense, o qual, vendo-me á janella:

Onde posso eu fallar-lhe? me perguntou. Tenho grande urgência de fallar ao meu amigo ! Grande urgên- cia.. . Ia agora mesmo informar-me da sua morada...

N'isto, vem de dentro o Monnet e diz-me contristado:

Minha mulher tem que sair. Que transtorno ! Ti- nhamos uma contradança: eu tocava rebeca, e ella, os pequenos, e o senhor dansavara. Isto são coisas, que por palavrasnão adeantam nada; é uma arte muito philosophi- ca, a dansa, mas quer pratica. Falta-nosumahgura; não

92 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

podemos fazer nada sem ella. Fique isto para amanhã ! E o Seabra, da rua:

Se não se demora muito a descer, espero-o aqui para lhe fallar!

Suba, meu amigo! retorqui eu, inspirado. Suba e fallaremos!

Ahi vem uma figura. licença? E' um amigo meu. Não ha tempo a perder, tenho cinco dias apenas dean- te de mim!. . .

Sim, disse Monnet; o seu amigo que suba!

E, chamando os seus dois filhos, e pegando na rebe- ca, emquanto eu abria a porta ao Seabra:

A vos places 1. . . disse.

O Seabra vendo aquelle apparato choreographico, sup- poz que viria incommodar-nos, e quiz abreviar quanto possível a exposição do assumpto que tinha a expor-me.

duas palavras, meu caro. Proponho-me ser edi- tor de...

Em que logar deverei collocar o meu amigo? per- guntei ao Monnet.

Cest votre dame ! respondeu-me aquelle professor. Logo coloquei o meu amigo Seabra á minha direita,

visto como elle na contradança fosse figurar de senhora. dizendo! acudi eu. Elleproseguiu: Proponho-me ser editor de . . .

A VIDA ALEGRE 93

Atlention ! disse Monnet aos pequenos, que eram nossos vis-à-vis.

Editor de.. .?

Editei as obras completas do padre Vieira, cinco volumes de sermões. . .

Monnet rompeu a primeira arcada na rebeca. . .

Quatro de cartas, tres de obras inéditas. . .

Partezl disse Monnet.

Os dois meninos, rompendo a primeira figura da con- tradança, vieram gentilmente fazer-nos a reverencia. Seabra, sem dar por isso, continuava.

Dois de obras varias, a Arte de furtar, a Historia do futuro, a Vida do auctor com retrato, vinte volumes ao todo . . .

Palavras não eram ditas, aqui lhe pego eu pela mão, e o vou levando commigo tres passos adeante e tres pas- sos atraz, com o ar mais delicado. . .

E agora quer. . .?

Publicar um livro seu. Os folhetins da ^íí^o/wpão de Setembro teem tido fortuna : é a occasião de tentar um livro. . .

Traversez ! bradou Monnet. Achámo-nos do outro lado.

Um dos meninos á voz de seu pae, que marcou :

Chevalier seull adeantou-se até nós . . .

94 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

E O que ha de ser esse livro ?

O que o amigo entender. Romance, divagações hu- morislicas, o que quizer, que não tenlia mais de um vo- lume, que alcance duzentas e cincoenta paginas, de que eu faça uma tiragem de mil exemplares, e ponha á ven- da por cinco tostões. . .

A votre tour ! disse Monnet.

Seabra pela primeira vez me pareceu estar surpreen- dido ao ver-me abandonal-o e ir desempenhar-me da fi- guração de Chevalier seul para cora os dois meninos ; voltando depois a segural-o pela mão, e, levando-o com- migo e com um dos meninos, o qual, como o Seabra, re- presentava uma dama, obedecermos todos três á voz de Monnet, que prescrevia n'essa occasião com a maior gra- vidade :

En avant Irois !

Mas. . .? balbuciou Seabra. E eu, sem demora :

Duzentas e cincoenta paginas, oitavo. . .?

Oitavo francez^ é bonito formato. . .

Para estar prompto quando?

Esse é o caso: cumpre trabalhar desde já, e entre- ter a imprensa á proporção que fôr escrevendo o livro...

Bravo! disse Monnet. Recommençons !

Tornámos a principiar.

Monnet veio tirar o chapéu ao Seabra. O Seabra pare-

A VIDA ALEGRE 95

cia, na sua distracção, não lh'o querer dar; tudo era se- gural-o, segural-o, recusando-lh'o.

Prenez le chapeau a votre amií exclamou emíim o professor, dirigindo-se-me com sentimento repreensivo de extranhar a descortezia com que eu tratava a minha da- ma.

E quanto? disse-me o Seabra, continuando a segurar o chapéu.

Paliaremos n'isso depois.

Ha de ser já.

Homem I Estou principiando carreira, faz-me con- ta fazer o livro, vossè m'o pagará como entender. . .

Marque o preço !

O que julgar de equidade. . .

Bem sei que cem mil reis é pouco, mas quero fazer mna edição luxuosa, com retrato, e, se o livro agradar, ir-nos-hemos a outro e dobraremos a parada. . . Convém?

A rebeca de Monnct soltou de novo os sons intrépidos de uma quadrilha :

A cos placesl bradou elle outra vez, arrebanhando- nos. . .

Convém? repetiu o Seabra, entregando-me, sem se sentir, a mão, que de novo lhe segurei.

Está justo. Principiarei o livro ainda hoje. Traba- lharei n'elle com amor. Ha dechamar-se Contos ao luar!

Allez. . . ! gritou Monnet.

96 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

Dansemos! disse eu ao Seabra, que percebeu em- fim que estávamos n'uma contradansa.

Que é isto então? perguntou Seabra com pasmo.

Veja n*essa suuphrase a nossa lingua, caro amigo! Considere as diíTiculdadescom que vou arcar, num livro que se proponha a graças de estilo! O sr. Seabra acaba de proferir uma phrase, que é um fogo de artificio: <iQue é is. . . (accender do foguete) to. . . (o foguete sobe) en... (o foguete estalla) tão ! . . . Lingua para tudo, meu ami- go ! Dansemos!. . .

Assim foi feito o contracto para os Contos ao luar.

I

Ó lua ! Ninguém venha dizer-me que sejas quarenta e nove vezes mais pequena que a terra . . . Para mim foste quarenta e nove vezes maior que tudo !

Diz o rifão, que se soubesse a mulher a virtude da arruda, buscal-a hia de noite á lua ; o que direi eu que devo, não á arruda, mas á lua, a virtude de se haverem tirado n'um anno três edições d'aquelle livro !

Porque, emfim, o titulo entrou por metade no segredo da fortuna que a obra alcançou ; e se com os raios da lua não amadurecem as uvas, o que é uso dizer dos que não teem vontade eílicaz no que emprehendem, certo é também, que, para mim, depois de dose a quatorse vo- lumes, que se seguiram áquelle, Scenas da minha terra^ Passeios e Fantasias, Recordações de Paris e Lon-

7

98 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

dres, Em tíespanha, Do Chiado a \enesa, Quadros do campo e da cidade, é que consegui, com o livro Ba lou- cura e das manias em Portugal , voga egual á que obteve o dos Contos ao luar, que me ia levando a crer, que, entre os meus trabalhos, não tivesse parceiro, como se diz que o luar de janeiro também o não logra ter; e que a lua, que se me havia mostrado então como que refle- ctindo sobre mim muita da luz que recebia do sol, hou- vesse minguado de uma vez por todas, e se me eclipsas- se para sempre, ou desse em lua d'agua como dizem os botânicos !

Caso mais serio do que possa parecer, tanto mais que eu poderia ver n'isso o conselho da ironia das coi- sas, e lembrar-me de que os velhos portuguezes recom- mendavam que quando a lua minguar não se comece a fazer coisa alguma. . . E havia de dizer adeus ás lettras, e não escrever mais livros porque a lua se me apre- sentasse em minguante?!

Não. Cris ou não cris, que se eclipsasse, á vontade; cumpria teimar e não ceder tão facilmente a Juno.

Que ella sempre teve, bem o sabia eu de o ouvir dizer, fama de caprichosa, de inconstante, e sobretudo, perigosa . . .

A de março tem maus créditos, e, pelos modos, com ares de não ser nada, adoece a gente, e o menos que faz é tornar nervosas até as pessoas menos propensas a

A VID\ ALEGRE 99

melindres de temperamento ; para os namorados^ para os amantes, chega a ser funesta.

Se os que inventaram o celebrado fleuve du Tenáre, também houvessem descoberto algures um rio da Deses- peração, espécie de lagoa stygia de ondas pretas, feito de lagrimas das coisas, e indo perder-se n'um abysmo, ver-se-hia que a lua de março faria n'esse rio as maio- res marés !

veríamos também differentes poetas a contempla- rem melancholicamente sua imagem no espelho move- diço da agua, alguns a dormitarem na praia, outros a brincarem na vaga, contentes, ainda assim, por assusta- rem os seus admiradores e tranquillos por virem para a terra em querendo; maridos em agitado batel, amantes agarrados ao remo e dasafiando com vistas furiosas um ceu sem Deus. . . E tudo isso por causa d'ella, da lua de março, da qual me perguntava de uma occasião em Paris, o sr. Andrews, que por muito tempo viveu entre nós, velho amabilissimo de cabelio um pouco ruivo, muito penteado :

—Ainda ha em Portugal aquella brégeira de lua marcelina?

Calei-me por que não poderia, sem oflensa da verdade, deixar de attribuir-lhe os maleíicios da estação primave- ral ; e de mais a mais, o sr. Andrews era insuspeito em embirrar com ella ; por que a lua de março é a ruiva,

iOO APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

ruiva como elle era, e o mundo inteiro está de accordo em affirmar que as imprecações dos que são victimas das intempéries se voltam merecidamente contra essa ini- miga. Que chova, que faça vento, que caia neve, que haja uma sécca de raciíar, vae tudo para o lombo da po- bre marotinha, que tem as costas largas!

A quantas applicações proverbiaes esse pallido sa- télite tem dado ensejo ! e que de comparações para que se presta na linguagem pittoresca !

Dos primeiros dias de casados, em que tudo é alegria, felicidade, illusões, diz-se serem lua de mel. A expressão ainda assim, quero notal-o, julgo ser imitada do árabe; os árabes teem um provérbio que diz : «A primeira lua depois do casamento é mel, as que se lhe seguem são vinagre.» Rigor de máxima. Não é admissivel que passa- dos os primeiros dias de noivar, se mude o lar em vina- greira. Os árabes poéticos, mas brutos, são ás vezes, como agora, brutos sem serem poéticos.

Ladrar á lua diz-se dos que investem em pomposas apostrophes, de longe e em vão, pessoas que lhes não dêem ouvidos. Ter cara de lua cheia é ter o rosto re- dondo.— Estar com lua diz-se, dos que não querem accommodar-se com as rasões que se lhes oíTereçam. . . Ter luas é ser sujeito a mudar de génio com frequên- cia, sendo desigual, caprichoso, dado a phantasias, atei- mas, e rebeliões súbitas. . .

A VIDA ALEGRE 101

No dizer dos poetas, a lua é Diana, a casta deusa que se chamava flecate no inferno, lua ou Phoebo no ceu, Diana na terra; e também lhe chamara amante de En- dymeão, do qual vivia tão captiva de amores, que não se atrevendo a encontrar-se com elle de dia, tirava-se do ceu todas as noites para visitar o pastor.

E é poética, todavia, e inspiradora ! E eu dizia com a melhor sinceridade, e o meu enthusiasmo todo no pro- logo d'aquclle livro :

«

Perdão! Não estranhem os pontinhos, nem cuidem ser trecho solto do prefacio, o que transcrevo. O prologo principiava assim, exactamente assim, com reticencias antes da primeira palavra. Diacho ! Ou se era romântico ou se não era ; e o luar, n'aquelle tempo, pedia isso ! Va- mos ao prologo :

E depois, eu não sei bem por que chamei ao

meu livro Con'.os ao luar! Por mil motivos; por nenhum, talvez. Não podiam estas historias ter sido contadas em noites de verão, n'uma quinta, n'um terraço, a uma ja- nella, ou sobre o mar? É por ventura estranho, que ellas nascessem das vagas inspirações que nos a lua, quan- do, um instante, parece namorar-nos íixa, e depois es- quivar-se, vaidosa de estar tão alta, escondendo a face bella por detraz de uma nuvem branca? Ou, ainda, não nascerá, o titulo, da Índole d'estas historias, de um

102 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

capricho essencialmente moderno, fogoso, excêntrico, desegual, tão depressa pondo o na realidade mais tri- vial, como mettendo a cabeça na nuvem da mais alta phantasia, cheio de gritos, de sorrisos, e de relâmpagos súbitos, misturando a paixão com a ironia, fazendo es- tremecer com uma acentuação cómica, dizendo as coi- sas mais tristes e fataes no tom de quem conversa, do- minando o andamento da acção a seu bel-prazer, preci- pitando-o, relardando-o, fazendo-o obedecer, como um escudeiro elegante e hábil a um cavallo fino que roe o freio? Tudo ao acaso, tudo a brincar, tudo para entreter, como se faz em Cintra, quando se conta um conto, logo depois do cair da noite, em Seteais ; como se faz na eira, á hora da descamisa, quando se narram his- torias para aflugentar o somno ; como se faz a bor- do, na tolda, quado o mar vae sereno, e as estrellas se miram nas ondas, a fallar-nos de saudades; como se faz sempre no estio, quando a brisa offerece á noite o perfume colhido nas flores, dois bellos olhos se fixam nos nossos, o amor nos accorda n'alma, e a lua está no ceu í . . . ))

Protegeu-me, ella, a meiga e doce lua; e as três edi- ções que teve a obra deram-me das lettras tão auspi- ciosa idéa, que me propuz desde logo a merecer o pre- mio que um rei da Thracia promettia ao som de trombe- tas a quem achasse uma voluptuosidade nova : inventei

A VIDA ALEGRE 103

para meu uso o prazer de não pertencer a nenhum par- tido politico. Não é mau. Experimentem, se lhes pare- cer, 6 hão de ver que se darão bem, até no dia im- mediato ! e não pôde dizer-se isto de todos os praze- res. Tive sempre uma opinião politica, que é o amor da liberdade ; mas, áparle esse, as lettras foram a pai- xão dominante da minha vida. Isto bem averiguado não viria talvez a demonstrar que a maior parte dos meus compatriotas sejqm muito mais propensos á poli- tica do que eu ; mas com certesa provaria que eu tive sempre menos ambições, e me considerei menos apto para tudo que estivesse fora da especialidade dos meus estu- dos, do que o meu \isinho Mattos que se fez administra- dor, o meu visinho Mattoso que se fez governador ci- vil, o meu visinho Mattinho que se fez deputado, ou o meu visinho da Matta que se fez ministro. Que eu, nem percebo bem como os inglezes sejam nossos alliados, pa- recendo-nos nós em tudo tão pouco com elles. Se fôr al- guém á ponte de Londres oílerecer uma pasta de minis- tro aos cem primeiros indivíduos que por ali passarem, será grande maravilha o dar-se o caso de encontrar um dos cem que acceite ; dizia um observador inglez do século passado. Agora façam favor de ir por Lisboa, a qualquer sitio, ponte ou não ponte, á dos vapores de Belém, se quizerem, e dirijam o mesmo ofíerecimento aos cem primeiros portuguezes que atravessem por ali ;

i 04 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

muito azar ha de ser o seu, se encontrarem um que lhes diga que não.

Movido por um sentir sincero, suppuz que o meu paiz não tivesse em menos estimação os trabalhadores dedicados, desinteressados, do que os que de seu prin- cipio se destinem habilmente á gymnastica politica. Es- tes effectivamente teem vantagens consideráveis. Áquel- les, é preciso que o conceito publico os engrandeça : es- tes recommendam-se a si, e dispensam o conceito pu- blico ! Não ha luctar com elles ! Ninguém entra num omnibus nem trepa para a varanda d'elle, senão no caso de haver logar vasio ; ainda não aconteceu que uma fa- mília, pelo facto de se aborrecer de esperar na rua, mandasse descer, de um omnibus que for cheio, as pes- soas que estiverem accommodadas dentro. Pois, na politica não ha essas delicadezas; despeja-se o vehiculo e metteni-se os sujeitos nos logares dos que estavam. Note-se, porém, ninguém reclama!... Se fossem no omnibus, correriam indignados a queixar-se á policia e á administração ! Em não se tratando de omnibus, mas de ministérios, nem isso fazem. Esses maganões bem sabem, que não teem direito de reclamar !

Escrever livros sinceros, em que íique o quanto um homem deva á vida de experiência dolorosamente ad- quirida, de sentimentos verdadeiros, de piedosas memo- rias : fechar a porta ás solicitações da vida apparatosa,

A VIDA ALEGRE 105

ás tentações da vida lucrativa, e recolher-se uma pessoa aos seus sonhos, ao interior de sua casa e da sua fami- lia, n'um romance como que ideal, mas verdadeiro, bem seguido, bem sustentado, sem desilusões, sem a realidade das coisas vir desmentir de vez em quando a felicidade de viver assim, não é tão trivial nem tão insignificante sonho como poderá parecer a alguns.

Accresce que, o meu temperamento, teve sempre uma porção de ternura, que me era grato não ser obrigado a suffocar. Na vida militante dos partidos, que diabo ha- via eu íazer d'essa ternura ?

Escrever, poetar, contentar-me com as alegrias do tra- balho e com a felicidade de ir no verão passar algum tempo com minha mãe na aldêa, e trazel-a todos os an- nos a Lisboa para passar o inverno commigo, tudo isto festivamente matisado dos devaneios e sorrisos da moci- dade, figurava-se-me ser uma existência sufficientemente preenchida e não menos significativa do que se a esmal- tasse de reverencias ao chefe do meu partido fulano ou sicrano, e de hurrafis congratulatorios com a pontinha de riso ou com o encrespar de sobrolho do meu deus Fontes, do meu deus Braamcamp, ou do meu deus Bispo. . .

Tudo isto, e d'este peccado me confesso, seriam in- fluencias da lua nos cérebros fracos, que, da antigui- dade até hoje, tem sido sempre infallivel pagarem Iri-

106 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

buto áquella chamma encravada n'um aro de prata. Quan- to mais eu, que cheguei a persuadir-me que ella estremecia de alegria, quando no silencio das noites se me figurava estar prestando o seu complacente ouvido ao hymno de gratidão e de esperança que eu lhe erguia. Cuidava de- Yer-lhe o segredo, da fortuna do meu livro, e, por isso mes- mo, esperava tudo d'ella. Exercia na minha imaginação a attracção que exerce nos elementos. As aspirações sem um íim bem determinado da minha vida, meio sonhos meio es- peranças de um rapaz sem familia, atirado pela sorte ao centro de uma cidade, alegrias sem base, tristesas sem obje- cto, perguntas sem resposta, impulsos dasympathia que prende o homem á creação inteira, tudo isso enviava eu no olhar, como uma prece, áquelle rosto pallido que pa- rece callar comsigo uma idéa eternamente attenta, e estar, a cada instante, a ponto de quebrar o seu silencio eterno... Ó mocidade! Ó impagável e encantadora con- fiança d'essa edade festiva, em que todos somos poetas ! Que encantos de que a bruxaria antiga devia ter enleado as illusões. no dia em que imaginou fazer baixar do ceu á terra aquelle oráculo em que tantos olhos estavam pre- gados. . .!

Não me cumpriste as promessas todas, loira ; ou, por- que melhor me explique, não escutaste a maior parte das coisas que te eu pedi, e deixaste-me entregue á influencia depressora da fortuna das lettras em Portugal.

A VIDA ALEGRE 107

Magana! Se não tenho tido tanta cautela, haver-nie-hia aífogado na lama. Diga embora á sua vontade o Theo- crito, que a pobresa íaça accordar as artes ; depressa deixa de ser incentivo, para ser obstáculo ; e não consta de memoriade homem que haja sido ella propicia aos litte- ratos. Convém, pelo menos era Portugal, ter certo o pão do dia de amanhã, a quem quizer conservar-se indepen- dente, sereno, e digno. Com a breca ! se é certo que o oiro seja filho de Júpiter, como o Pindaro affiança, bem po- dia ser irmão das musas. . . Mas, chó, mosca !

A fortuna dos Contos ao luar, três edições em oito mezes, de mil exemplares a primeira, e a segunda c ter- ceira de dois mil foi tão risonha que o Seabra, d'esta vez sem dança, disse-me apenas:

Vamos a outro ?

Vamos a elle ! respondi.

Para estar prompto quando?

Da Durruivos lhe mandarei dizer.

Seabra, como muita gente por esse tempo, cuidava que a Durruivos não existisse, que fosse brincadeira, inven- ção minha.

Qual Durruivos, nem meio Durruivos, vamos nós ao caso. . . Quando?

Como, qual Durruivos?! Vosso não acredita em Durruivos?

Eu sei cá. . .

108 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

Vossê cuida que não tenho mãe ?

Dizem-me que tem.

E onde é que minha mãe vive? !

Vive ?

Certamente que vive lá.

Mas em o Júlio se apanhando na. . . Como é que lhe chama? Na. . . Durruivos. . ., adeus livros, e adeus Seabra ! Yossemecês, de mais a mais, oiço dizer que são muito amigos. . .

Ah! É transtorno, darmos-nos bem, minha mãe e eu?

Pôde ser transtorno para a paciência que requer tra- balhar no livro. Não esteja a fazer que não me entende. Tresentas paginas não se escrevem a conversar, a ca- çar ...

Eu não caço.

Não, mas conversa por quem converse, e por quem cace. . . Emíim, quando?

De lhe escreverei para a semana ! Venha esse abraço !

Como se estivesse a fazer-lhe falta a rabeca do Mon- net, demorou o abraço e disse ainda :

Em dois mezes? Em três?

Parto amanhã. Parti.

Cheguei á Durruivos ao cair da tarde do dia imme- diato.

A VIDA ALEGRE 109

Alli escrevia na solidão da aldêa, tendo deante de mim um ramo de giestas, saragoças, flores decavalleiro, verdi- selas, e sorrisos do campo. Dava-me a mania para não querer senlar-me á mesa de trabalho sem todo aquelle apparato. Ainda sou do tempo da litteratura dos talis- mans, e íicára-me, supponho eu, das leituras de rapazito, a scisma de ter também um talisman eu próprio. O ramo de flores silvestres fazia as vezes d'isso soberbamente ; acabei por tomar a serio aquella pieguice e tinha sem- pre, pelo menos, giestas, deante de mim, como condição indeclinável para molhar a penna no tinteiro.

A jornada á Durruivos era a melhor festa que eu ti- nha. Havia-se estabelecido vir minha mãe a Lisboa pas- sar o inverno commigo, e ir eu á Durruivos passar o ve- rão com ella. Porque não podesse demorar-me muito na aldêa, em logar de permanecer ali os mezes de estio, ia e vinha, e voltava, três, quatro vezes no verão. O cami- nho de ferro era ainda novidade n'esses tempos ; a via- gem até o Carregado entretinha-me uma hora era uma hora, então; hoje são duas, de que o comboio ex- presso precisa para deitar ao Carregado : os cami- nhos de ferro são n'isso como nós, a attendermos a má- xima de que, ao homem, com os annos lhe crescem as necessidades.

Uma vez no Carregado, deixava-se uma pessoa condu- zir na prudente diligencia do José Paulo, quasi sempre

110 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

na companhia de alguns rheumaticos que se dirigissem ás Caldas da Rainha. Custava essa brincadeira meia moeda, representada num bilhete que ia comprar-se previa- mente á rua do Arco do Bandeira, nas cocheiras do Ma- nuel hespanhol. Havia um velho magrinho e alto, n'es- sas cocheiras, que era o encarregado da escripturação e de registrar a data, o numero do logar e a qualidade de ser de varanda ou do interior da carruagem ; esse ve- lho dizia sempre a qualquer passageiro :

Ó seu tafid ! para o consolar, por esta delicade- za, da brutalidade com que ali era o uso tratarem quem ia.

De uma vez o José Paulo, pouco ameno, mas bom ho- mem, estranhou-lhe aquelle costume:

Vosse chama taful ao freguez, seu diab'alma? ! Isso são palavras que se digam! Olhe que o estoiro. . .

O velho magrinho, com um ar maliciosíssimo que Deus lhe dera, chamando-o de parte, disse-lhe :

Ó seu José Paulo, vossemecê me conhece ha um par de annos, não ?

Sim, conheço ; e vae d'ahi ?

Vou dizer-lhe uma coisa. . .

Que coisa ?

Falle baixo. . . Chegue-se mais para aqui. . . o ouvido. . .

Despacha !

A VIDA ALEGRE 111

Calluda... (ao ouvido do José Paulo). Seu José Paulo, vossemecê sabe que tenho sido poupado, que te- nho algumas economias... Seu José Paulo, vossemecê está no meu testamento ! Oiça. Esta a novidade ; agora, aqui vae o conselho : não queira ter a deixa cedo. Se- ria peor para si ! Oiça, homem. Não lhe deixo por agora senão uma bagatella, mas determino que a quantia do- bre de anno para anno. É um bocado de pão, que pôde chegar a ser riquesa por pouco que eu viva. Tenho ses- senta e um. . . O caso está em que eu vivendo. Não me ralhe. . . Percebe? Nada de me amofinar. Para mim, ralhos e mau tratamento, seria uma apoplexia certa. . . Que quer vossemecê ? ! A gente não nasce feita. O meu génio é assim, seu José Paulo ! Vossemecê tem maus re- pentes ; isso não vale nada, mas, agora, seria capaz de dar cabo de mim !

O José Paulo íicou-o tratando muito bem, desde esse dia. Tinha para com elle attenções que causavam sur- presa á vigilância invejosa dos companheiros. Quando o via constipado, perguntava-lhe com bonhomia :

Isso vae melhorsinho ?

Melhorsinho vae alguma coisa. . ., respondia o ve- lho com um risinho seraphico.

É arribar, é arribar. Não cuidados á gente. Os arrieiros pasmavam.

O velho, quando lhe pareceu tempo, morreu.

1 12 APOxNTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

Não deixou nada ao José Paulo, nem tinha que dei- xar.

A diligencia seguia, pela estrada real, o mesmo cami- nho que toma ainda hoje; porque a chamada estrada no- va, —a de Yilla Verde, apenas alcança, por emquanto, ao Cadaval, e não tem sahida para as Caldas da Rainha senão, como se diz, por caminhos de cabras. Magnifica, notavelmente bem feita, aquella estrada real ; mas, de um lado e do outro, tudo charnecas, charnecas...

Fica, essa estrada, fora e distante de todos os togares, a exceptuarmos O tta, Cercal , a Seicheira ; mas a cada mo- mento se avista a vereda que conduz a Alemquer, ou o atalho por onde se toma para Tagarro, ou a carreira por onde se vae para o Pral, para a dos Francos, para a dos Negros, para o Paiinho.

Diz-se que na estrada antiga era outr'ora frequente assaltarem os passageiros, e roubarem-os. Conta-se que, por aquellas paragens, era perigoso pernoitar numa certa hospedaria ; e que, tendo voltado do Brazil ao cabo de muitos annos um filho da gente d'essa casa, sem que por carta houvesse prevenido da sua chegada, porque melhor armasse á familia a surpresa de lhe apparecer como hospede, e, no caso de o não reconhecerem, visto achar-se ausente desde pequeno, não declarar quem era senão á hora da comida, quando fizesse uma saúde aos locandeiros e explicasse estar bebendo á saúde de seu

A VIDA ALEGRE li3

pae e de sua mãe, essa mãe e esse pae, não o havendo eífe- ctivameníe conhecido, e vendo n'elle um forasteiro com- pletamente alheio áquelles sitios, lhe deram sumisso para o roubarem logo depois de entrar na casa. Não sei se é certo o caso, e o furor de desesperação em que se diz terem ficado quando a horrível verdade se lhes paten- teou ; mas ninguém d'aquelles sitios deixa de ter noti- cia, com verdade ou sem verdade, d'esse horror de boato.

De Ótta para deante o caminho é cada vez mais árido e faz perceber tanto mais isso, que Ótta apresen- ta-se aos viajantes com uma feição elegante e senho- rial. As quintas são bonitas; as fazendas andam bem tratadas. As propriedades Belmonte são ali as mais im- portantes. Ultimamente, n uma noite de arraial, pela festa do anno, passei por ; era cedo para o comboio que de- via passar ao Carregado ás quatro horas e meia da noi- te, o cocheiro disse-me que poderíamos demorar-nos na festa algum tempo ; apeei-m.e, e dei uma volta no largo. De um grupo, saiu um conhecido meu, que veio fallar- me ; instantes depois, olhando para alguém que estava n'outro grupo defronte, junto de uma fogueira, disse-me amavelmente :

Se não conhece o conde de Belmonte, elle é meu amigo, e eu estimaria apresental-os. . .

Meu amigo é elle também ! respondi eu. Onde está

8

1 14 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

elle ? Vae ver com que abraço nos atiramos um ao outro. . . O meu conhecido, chamando :

Ô Belmonte !

Veio o conde, e quando eu esperava encontrar o conde de Belmonte com quem andei no coUegio de Santa Mar- tha, o coliegio Pontes Athayde de que fallo no primeiro volume dos Apontamentos, vi um cavalheiro, que, ao es- tender-me a mão, me disse, como que respondendo ao meu pasmo :

Sou o íilho !

A philarmonica de Ótta, felizmente, cobriu n'essa oc- casião o «ah de despeito, que essa appellação aos meus annos me fez accentuar n'um tom entre envergonhado e austero. . .

Levava-se a jornada a espalhar a vista para um lado e para o outro de Ótta para deante, sem avistar uma vi- venda senão a casa das Marés, lindíssima casa, á in- gleza, com um parque á frente; e, mais adiante um pouco, uma quitanda de ramo á porta, a chamada venda de Aguas Espalhadas.

D'ahi em deante, como único entretimento, não havia remédio senão dirigir perguntas ao cocheiro : se as fa- zendas eram de Sancho ou Martinho, se o administrador teria projectos de pôr uma taboa por cima de um regato, aqui ou ali, para íicar com a consciência de haver dado uma ponte á localidade. . .

A VIDA ALEGRE il5

A estrada, curva a cada momento, ergue até se per- der de vista a branca cintura no meio das charnecas com um movimento sinuoso que tem pouca graça.

A conversação dos rheumaticos era dos encantos mais curiosos da diligencia. Dizia sempre alguém :

Em começando o tratamento, nunca mais poderá apanhar sol, nem ar, nem vento, nem sair á noite, nem de tarde, nem beber vinho, nem comer. . .

Nem comer ? !

Nem comer senão um franganilo cosido, e á sobre- mesa um perinho assado. . .

liem?!

~ Um perinho assado. E disse.

Chega va-se ao Cercal, um pouco antes da uma hora da tarde.

Os cocheiros demoravam-se nesse ponto de reunião ; e as seges particulares ou de aluguer, por melhores ins- tancias que se íizessem ao cocheiro para attender á velo- cidade como vantagem especial, quer viessem das Cal- das para o Carregado, quer fossem do Carregado para as Caldas, em sendo meia hora depois do meio dia da- vam aos passageiros occasião certa de exclamarem jubi- losamente :

Estamos a chegar ao Cercal.

Este costume, com a concorrência de trens, que, a pouco e pouco, n'aquelles sitios, se estabeleceu, cada

116 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

vez mais fez do Cercal áquella hora um ninho de co- cheiros. O vinho ali é sempre mau, e elles aproveitam essa circumstancia para melhor demonstrarem pela in- gorgitação de successivos litros o seu fervente amor ao copo de canada. Quando algum apparece pela vez primeira, tem de desempenhar-se dos seus deveres be- bendo uma canada de vez e sem pestanejar. Um de uma occasião pediu dez minutos para reflectir no que ia fazer e quaes as consequências da sua acção. Coucederam-lhe os outros cocheiros esta pequena espera, e o neophyto voltou costas e saiu. Havia no Cercal duas casas de co- mida com venda de vinho, a da viuva Moreira, que per- tence hoje a um íilho, e a do Leal, que foi trespassada aos que actualmente a dirigem. Passados os dez minutos appareceu outra vez o cocheiro novo e submetteu-se sem difficuldade á experiência convencionada da ceremonia. Em logar de uma canada, bebeu duas. Disse-lhe um dos cocheiros veteranos: Estavas a fazeres-te íino, e en- xugas por esta maneira ! O Galvêas, futura flor dos co- cheiros das Caldas da Rainha, sorriu-se :

Está bem de ver ! respondeu esse prudente mocc. Quiz experimentar primeiro se era capaz, fui beber a ca- nada ali ao Leal ; por isso ó que me estrevi a beber agora as duas!

É uma terra pittoresca, o Cercal ; e tem a habilidade de ser alegre em qualquer situarão e com qualquer tem-

A VIDA ALEGRE 117

po. Quantas vezes ahi cheguei debaixo de grandes car- gas d'agua, como dizem das chuvas grossas os almocreves.

O inverno no campo e medonho, e o Cercal sabe tor- nal-o ainda mais assustador por ollerecer a serra á vista como um papão. Essa famosa serra da neve despede um friosito, quando bem lhe parece, que sem ser propria- mente o frio da Sibéria, em que o thermometro tem o costume de se conservar entre vinte e trinta abaixo de zero, descer de vez em quando a quarenta, e chegar aos cincoenta uma vez por outra para variar, é, para o Cercal, um frio digno de apanhar mais gente, com a gra- ça que tem de enrijar pela noite adiante até conseguir que, de manhã, se entretenha a gente em desfiar a dedo as pestanas para as despegar da geada e poder abrir as pálpebras.

N'uma noite que alli passei, devendo haver theatro, representação particular, uma invernia phantasista viera oppôr-se a tal designio, e, á proporção que chegavam os convidados, ia-lhes dando gasalho a hospedaria, que o theatro lhes não dava íuncção. A estrada em la- gos, todas as portas do Cercal fechadas, os cocheiros praguejando, a longos intervallos o surdo rodar na lama de algum carro de matto, e a bulha monótona da agua nas janellas da hospedaria, e nos vidros das seges, que esperavam como abandonadas na rua, foram os encantos d'aquella para mim memorável noite.

118 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

Cada um dos passageiros, acoitados ali da sorte incle- mente, teve talvez por um momento a idéa de se fazer amphitrião de um festim, que entretivesse a noite, e con- vidar os outros a umaceia, que lograsse compensar bizar- ramente a ausência da comedia e a comparência do tem- poral ; mas seria difficil : um amphitrião precisa de seis condições indispensáveis, ter dinheiro, ter mesa, saber como se come, ser de índole munificente, ler methodo, e ter graça. Com uma noite d'aquellas, no Cercal, nin- guém se atreveria a ser engraçado, e, esta ultima condi- ção por preencher, destruia toda a possibilidade de ceia alegre.

Depois de se fumar o mais que se poude, ceiou-se. No Cercal, assim mesmo, o melhor que se pode fazer, é comer. Sempre ali foi assim. A.hi está que, de amar, não se poderia dizer o mesmo. Comer, sim. O coração, por lá, não passa por se dar verdadeiramente bem ; Cu- pido quebrou as azas n'aquelia terra, desde que um» das mais bonitas filhas do logar veiu para Lisboa casar coui um anão, o famoso anão retrozeiro ; hão de nascer- Ihe as azas outra vez ao pobre Cupido, é natural, mas por emquanto, anda na muda. Divaga por aquelles cam- pos ; vive de raizes, e do ar da serra ; principalmente do ar da serra. O estômago é que brilha por lá, e é muito attendido ; a canja é boa, carne ha quasi todos os dias, trazida das Caldas, peixe fresco com frequência, e o

A VIDA ALEGRE 119

presunto, são e rubro, chega a parecer uma invenção privativa (l'aquelle povo laborioso.

N'essa tal noite, chegando-se cada um para o grupo dos seus conhecidos, se ali os tinha, tratava de entreter a noite, quando, um que voltava das Caldas, e a quem perguntavam, se, n'aquelle anno, por haviam corrido bem as coisas, disse muito serio :

Succedeu um caso !

Uomem, conte isso I

Um caso nas Caldas ! ponderou um dos circura- siantes. . .

É de rheumatismo?

Conte I Conte ! . .

Referiu então, não sei se inventou, a historia de um vSouza, o Victor Manuel dizia que em Portugal to- dos são Souzas, por mais que o marquez de Souza- Holstein lhe jurasse não haver Souzas verdadeiros senão os da sua família . ((No, no, siete tiitti Souza has />> o qual Souza fora de Lisboa ás Caldas da Rainha, para assistir á caçada da lagoa, e entrou como em paiz conquistado, munido de uma espingar- da íinissima, em traje de especial tafuhria, todo elle botas inglezas grandes, altas, fartas, jaquetão de vel- ludo, chapéu de coco, guapo moço de bigode encera- do, regalando-se n'aquella festa de dar, como se diz, ^nims calças furiosas ao pobre cão para o fazer procurar

120 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

caça. . . que ficara de perfeita saúde, dizia elle que por influencias do clima húmido e das cavacas, que haviam tolhido seus vastos dotes de caçador demonstrados muitas vezes, na quinta das Mattas, a Santa Suzana, e em Villa Viçosa, e na Trafaria. . .

Chegara o tal Sousa á noitinha, e, porque fosse no alto da diligencia, conversando com o cocheiro, pergun- tára-lhe com modéstia :

Diga-me uma coisa, ha hospedaria nas Caldas, pois não ha ?

Hospedarias bastas. É o que falta ahi ! Havia a do Miranda, que era um palácio ; íartou-se de gastar di- nheiro para arranjar tudo como deve ser, mas ninguém se gabava de ler quartos com mais aceio... Também havia a do José Paulo, que tinha uma rica mesa. . . E a Malhoa, uma velha pequena, que, isso, para biíles ainda hade nascer quem lhe chegue. . .

Mas pelo que vossê diz, representa-se-me que vae tudo isso ? !

Pois vae ; mas que quer que lhe eu faça ; a gente não é eterna !

Bem sei, nem os censuro por terem morrido ; o que eu desejava obter da sua informação, é se ainda ha nas Caldas algum vivo, que resista aos maus exemplos, ao ponto de se conservar com casa de hospedes de porta aberta ?

A VIDA ALEGRE 121

Bem entendo. Ha, sim senhor.

E então quem é, se não for segredo ?

É gente. Mas não tem nome.

Ah ! Não tem nome ! ? É celebre !

Não é celebre, não senhor; é gente que está na sua casa, e se o senhor se quizer recolher, recolhe-o e não lhe hade faltar nada.

Ninguém diz o contrario !

O senhor quer ir para a praça ?

Para onde a prudência aconselhar, é que eu hei- de ir.

Então venha para a praça. Se vae para a rua da Olaria, tem um ramo de porta em porta , e não ouve fallar se- não em vinho.

Vamos para a praça !

macho ! diabo ! . . . raios te partam ! macho de um demo! . . . Prompto. Está o senhor á porta de uma familia capaz. Ó de casa ? Arrecada esta mai- la ; espere ; . . . ficava a manta ; . . . olhe a espin- garda, mulher. . . Está tudo?

Bem. Ahi tens para os ramos da tal rua das Olarias...

Nunca as mãos lhe doam, meu amo. Ó menina, ve- jam lá como tratam esse fidalgo !. .

A casa era limpa, e as patroas, duas senhoras edosas, passavam na villa por serem pessoas de maior virtude que adoptavam como filho quanto hospede lhes fosse

i22 APOMAaiENTOS DE UM FOLHETINISTA

parar. Uma d'ellas havia sido bonita, e requestada, em tempo ; por isso conservava para com os homens certa ternura, que não tinha outra significação senão o reco- nhecimento do culto que lhe haviam prestado em rapariga.

Logo deram a escolher ao Souza um quarto alegre, com janella para a praça, e lhe explicaram ter vastas accommodaçôes a casa que habitavam, mas estar occu- pado um dos lados delia.

Por maior que fosse o attractivo da conversação e da curiosidade, mais imperiosas necessidades primavam so- bre o Souza, que tratou de tomar chá e resersou para essa hora todas as informações.

É bonita, a villa?

Ai! Muito bonita! Grave, vistosa, enfeitada! O Passeio publico, com o ter mais arvores e mais agua que o de Lisboa, bem se pode calcular que terá mais sombra e mais frescura ; o hospital é um amor ; e, do que res- peita ás graças da terra, seria pouco o que disséssemos: fructa deliciosa, pecegos, alperces, melões, maçãs : mui- to bom doce, trouxas de ovos, cavacas; e depois a ga- lanteria da loiça, hoje conseguem n'isso tudo que se faz nos paizes estrangeiros : não é os boisinhos, as bi- lhas de segredo, como quando nós éramos raparigas. . . Está muito adeantada esta villa, meu senhor ; quem a conhecesse ha quarenta annos, lhe valor ! Vem para a cacada ?

A VIDA ALEGRE 12^

Venho.

Oh ! Vae gostar I Yae gostar ! . .

E começou a descrever-lhe a lufa lufa em que andava toda a gente das Caldas da Rainha n'aquelles dias, e de como a caçada fazia emmagrecer as senhoras da locali- dade pela lida de receberem hospedes, recommendar que não façam cereraonia, offerecer a cada instante um caldo, um copo de vinho, uma colher de doce, fazer visi- tas successivas á cosinha, ao forno, correr para um lado e para o outro, abrir armários, tirar a prata, a loiça da Índia, e mil coisas de ver a Deus, que apenas saem á luz n'essas occasiões memorandas. Historiou o chegar das tribus, parentes, amigos, convidados, de todos os logares, que caem alli n'esses dias, uns a pé, de vardas- quinha e espingarda, outros a cavallo, outros na diligen- cia, ainda alguns em carro de matto ; e abraço cá, abra- ço lá, viva, toca, bom dia, e nós estamos ! Descripção da grande scena do accrescentar da mesa e fazer as ca- mas, metade da casa para dormitório, a outra metade para refeitório : sempre mesa posta, sempre gente á mesa ; e, em algum convidado se levantando para ir to- mar ar, logo outro a cair das nuvens no logar delle e a herdar-lhe o talher e o copo. Relatava minuciosamente (juanto alli eram homéricas as coisas de comer e infati- gáveis as boccas dos convivas ; que não ficavam por alli, d'aquellas festas, viros nem boi nem vacca ; que emigra-

i24 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

vam todos os coelhos para a cosinha ; que a cada hora chegavam regimentos intermináveis de perus ; que as gallinhas não tinham tempo de optar por um desenlace da sua existência em fricassé, em cosido, ou em cabidel- la ; que os fornos iam a desabar com os pudins. Annun- ciava-lhe, batendo as palmas, a deliciosa alvorada que o esperava, o saltar da cama accordado pela philarmoni- ca que percorre as ruas da villa, ainda fusque fusque, para despertar os caçadores ; o almoço antes da partida ; o montar no burro, ou no cavallo, melhor ainda se é burro para favorecer o episodio de cair nos atoleiros d'a- quelles caminhos pittorescamente horrorosos ; depois, o saltar para a bateira sempre na esperança muita vez rea- lisada de ir alguém de trambolhão ao lodo ; e no fim da caçada, ás cinco horas, outra vez para a mesa, sempre para a mesa, para a mesa por todo o sempre. . .

Ia o Souza tomando o seu chá, e tem fama o chá das Caldas porque a qualidade da agua o auxilia quasi tanto como ao rheumatismo; ia comendo cavacas, ia escutando cora attenção os dizeres descriptivos da patroa, e dispu- nha-se a accender um charuto e ir dar uma volta na vil- la para não se deitar sobre a refeição, quando, de re- pente, se abriu uma porta que dava passagem aos hos- pedes do outro lado da casa e elle viu duas senhoras, deveríamos dizer uma só, porque essa, essa unicamen- te, é que elle viu, Deus santissimo ! com uma admiração

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A VID\ ALEGRE 125

de tal qualidade que se dissera terem renascido n'esse instante as paixões súbitas, que parecia haverem fugido da terra com as chácaras e as bailadas. . .

A patroa agarrou precipitadamente n'um castiçal, cor- reu a abrir a porta da escada, desceu até á rua para as alumiar. Depois, voltando, e como que dispondo-se a empreender uma nova serie de informações, com que entretivesse o seu hospede, em quanto a outra irmã aca- bava de lhe apromptar o quarto :

Vão para o club ! disse.

E não é permittido a um pobre caçador como eu, que traz mala mas não traz casaca, ir também alli pas- sar a noite ?

Se conhece algum dos sócios, melhor ainda algum dos directores. . .

Vamos tentar! disse o Souza erguendo-se. Se o quarto está prompto, queiram pôr luz para eu me arranjar. . .

Lavou-se, mudou de roupa, escreveu n'um bilhete o mais attencioso requerimento á direcção do club para lograr ter entrada n'aquellas salas, dirigiu-se alli quasi correndo, teve logo a fortuna de encontrar o director do hospital das Caldas, amigo de seu pae e que ficou en- cantado de lhe servir de apresentante : um quarto de hora depois, fazia a sua entrada gloriosa, e era apresen- tado, sem mais indicação nem mais pedido, ás duas se-

126 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

nhoras que acabara de ver pela primeira vez na hospe- daria.

A senhora baroneza de***, a senhora vonEIsberg, distincla pianista e mestra de musica da baroneza. . .

O Souza olhou demoradamente para a baroneza ; não era uma physionomia muito picante, perigosa, por que assim digamos, pelo tom da pelle moreno e ardente, ou pelo negrume e fartura dos cabellos, que íizesse lembrar aquelle extravagante dito de lord Byron de que uma tri- gueira valha ura harém. Era uma loira Yenus também o era agradável e magniíica.

O barão estava a jogar. Mostraram-o de longe ao Sou- za, explicando-Jhe por essa occasião uma quantidade de coisas curiosas a seu respeito, que não são para aqui. Essa gentil creatura, de adorável collo no entender dos especialistas, inspirara uma paixão ao cavalheiro, que tinha a ventura de ser seu marido. Eram ambos muito amadores de musica, e tudo pareceu inculcar desde logo que não poderia dar-se jamais sobre a terra um mais harmonioso duetto, do que o que ia ser entoado nas ale- grias apaixonadas d'estes cônjuges. Ao irem para as Caldas n'esse anno, oíTerecera elle por surprezaum mo- vei de raridade, um sophá-orgão, á baroneza: Ti- nha esse sophá órgão as mais doces vozes, e soltava cantos inteiros em alguém se lhe sentando em cima. Tão encantados se achavam com aquella raridade, que, > »

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A VIDA ALEGRE i27

não esconderem o prazer que lhes dava e quererem de algum modo que esse gosto fosse partilhado pelos que lêem por taes curiosidades arlisticas o culto que ellas devera merecer, tinham-o levado para as Caldas, o so- phá-orgão, e para o club, n'aquella noite, a íim de que, entre as diversões que alli ha sempre, íigurasse aquelle pelo attractivo da novidade.

O Souza era, o que se chama, rapaz íino ; mas tinha pouco mundo. A formosura da baroneza entonteceu-o, e, porque essa amável senhora houvesse acolhido com agrado a apresentação que lhe íizeram d'elle, julgou-se o Souza com direitos a fazer-lhe uma corte estapafúrdia, que ella por entre as polkas e as contradanças, nem tinha lòo para reprehender.

Foi leviana? Não o foi? As noites das Caldas são si- lenciosas, mas, ainda assim, as opiniões variam sempre em assumptos d'estes ; e não seria de espantar se alguém dissesse que ella acceitava com uma satisfação por ex- tremo visível o esgroviado namoro armado á óptica com (jue o Souza lhe deu batalha.

O caso é que o marido, fremente de ciúme, entregan- do-sc ao sentimento raivoso da indignação, deu duas voltas na sala, em largas pernadas, e, sem attentar no que íizesse, por não querer dar-sc ao disfructo indo direito ao Souza, atirou comsigo, com modos de quem dizia aler- ta, para cima do sophá-orgão, que n'essa noite man-

128 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

dará para o club, e o diacho do sophá-orgão, de re- pente, largou a tocar o alegre motivo do Rigolelo.

La donna é mobile . . .

Este caso, sem resultados graves felizmente, fez rir, como é fácil calcular ; mas quando o Souza na noite immediata appareceu no club, e perguntou pelo órgão, deram-lhe a noticia de que não estava ; e de que a baroneza á hora da caçada na Lagoa, havia deixado as Caldas da Rainha em companhia de seu marido e da mestra ailemã,

Homem! exclamámos, quando o outro acabou o seu conto : Mas isso é serio ?

Elle riu-se.

E cantou um trecho de opera ; com o que ia estra- gando tudo, porque tinha péssima voz.

Uma hora mais de diligencia do Cercal até uma arri- bana n'um descampado, a que dão o nome da Palhoça, e ahi me apeava eu, avistando logo o burrinho, que o António da Costa, um dos meus compatriotas de Durrui- vos, costumava sempre ir offerecer-me pela sua própria mão, com a gentileza de quem offerecesse um boiíquet.

llé ! ó António da Costa ? !

llé ! Sr. Machado !

Tudo bem?

A VIDA ALEGRE 129

Está tudo bom, não ha novidade, graças a Deus. Toca a montar. Quer estribos?

Se os ha hoje, aproveitemos.

Pois ha. É um jumento, este, que tem tudo ! Arriba... A caminho !

Deixa-se n'esse ponto a estrada real, corta-se á es- querda na direcção do Cadaval ; á metade do caminho os pinheiros purificam o ar, com aquelle bom cheiro re- sinoso que têem ; uma hora depois de sair da Palhoça avistam-se os moinhos da Vermelha e do Barrocalvo, duas aldeias, e, d'alli a instantes, os moinhos da Durrui- vos, espertos, alegres, independentes, com vento que os procura por todos os lados, sem precisão de irem esta- belecer-se nos cabeços, como os moinhos dos arrabaldes de Lisboa para apanharem por acaso o pobre sopro de um zephiro asthmalico : moinhos infatigáveis, sempre de panno inchado, em movimento, e zoar ruidosol

A entrada da Durruivos é formosa. Na baixa, avistam-sc as casinhas brancas por entre a rama dos sobreiros, que cortam o prado onde vão pastando vaccas e car- neiros. Á beira de um riacho, os choupos e os salguei- ros arrastam a sombra sobre a relva. A estrada ser- pentea no fundo de um valle de oliveiras, disputando a passagem entre montículos áquella agua, que vae deslisando tranquillamente nessa solidão abençoada. Tudo por alli se inunda de luz, com a suayida-

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130 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

de de uma caricia, n'uma harmonia doce e meiga. Respiram alegria as fazendas da aldeia. Arvores e arvo- res de fructa, vinhas magnificas; e a evidencia de que, em toda a parte onde haja podido brotar uma espiga, se semeou um grão de trigo.

A aldeia é tranquillissima. Durante o dia, todo o povo do logar anda entregue ao seu trabalho. Ouve-se apenas o zum zum dos moinhos, e, a espaços, o latir dos cães.

Comquanto seja uma pequena aldeia, sem aspirar a lornar-se notável em trigo, milho, vinho, ou azeite, ain- da assim a Durruivos, quatrocentas a quinhentas pi- pas de vinho. É vendido quasi todo á casa Fonseca, do Sanguinhal, a qual, de sua lavra, tem umas poucas de mil pipas ; obrigou-se este anno a dar todo vinho para o consumo do Pará, e gasta, por dia, no que paga aos seus empregados, setecentos mil réis.

O que poderia caracterisar a pobre gente da Durrui- vos é o não haver ninguém preguiçoso na aldeia ; ho- mens, mulheres, creanças, todos trabalham. Na Dur- ruivos levanta-se toda a gente ás três horas da manhã.

A producção é boa. O trigo e o vinho são excellentes ; a agua tem fama de fina, com quanto mal estimada, por- que, tendo, quasi todos os d'aquelle sitio, poços nas fazendas, não fazem caso das nascentes. E depois, alli, quasi todo o anno, bebe-se agua-pé !

O prior, filho da Durruivos, é um padre que represen-

A VIDA ALEGRE 131

ta numa esphera modesta a acção intellectual que o clero pode e deveria sempre exercer. Excellente homem para a sua família, conhecido alli e muito estimado, tra- balha, ajuda os que trabalham, e propõe áquelle peque- nino povo o ideal divino sem o afastar do ideal humano, porque o tempo sempre possa chegar para a religião e para a agricultura. Aos domingos o povo da Durruivos vae ouvir a missa á egreja do Senhor Jesus do Carva- lhal ; ou á. capella da casa de Loridos, a um quarto de legoa de distancia da aldeia. Pode calcular-se, o quanto as quatro velhas da missa do dia de semana se lamen- tam, de que a Durruivos não tenha missa ao domingol

Pouco depois das três horas no verão, e ás cinco horas no inverno , toca o sino, a chamar essas quatro velhas para a missa. Ao irem para o seu trabalho, os antigos do logar, que arrastram o e são tardios a despacharem-se de suas casas, trepam ao adro, e regalam-se de olhar para o prior, que diz a missa, encostados á enchada e debaixo do alpendre, porque a egreja é alpendrada como todas as egrejas antigas, que, por haver escrúpulo de admittir dentro do templo pessoas julgadas pelo povo do logar na conta de gente de conducta, as deixavam (içar á porta durante o tempo sufficiente para testemu- nharem emenda nos seus costumes.

Ao Senhor Jesus do Carvalhal concorrem desde S. Pe- dro até Gm de setembro grandes romarias, que se demo-

132 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

ram dois dias alli : cyrios do Ramalhal, da Ermigeira, Maxial, Ribeira de Palheiros, Pêro Moniz, Cadaval, Âthouguia da Baleia, Ferrei, Óbidos, Tornada, Bombar- ral, e, os dois mais antigos, de Peniche, e de Torres Yedras.

Quer seja para o Senhor Jesus, quer para Loridos, os caminhos são lindíssimos. Aos dias de semana têem prin- cipalmente um encanto, que os torna ainda mais agra- dáveis, não se ver gente. Os aldeões ás vezes tiram a graça á natureza. Goethe indo com um amigo por umas terras de trigo e de cevada, fez-lhe, se é certo o que elle conta, este singular pedido :

Ó amigo meu, põe-te !

Que me ponha ! Para que ?

^— Pôe-te nú, e larga a andar por ahi fora, para eu poder confrontar bem o homem com a natureza, cousa de que nunca se me offereceu ensejo !

Não sei se os laponios mereceriam ao Goethe egual convite; para interesse da natureza, acho melhor veUa sem elles . . . mesmo vestidos !

k maravilha, porém, a jóia d'aquel!es sítios, é Lo- ridos !

Essa propriedade é decerto uma das mais formosas do paiz. Da aldeia da Durruivos até avistam-se cons- tantemente sitios de uma graça extrema, que parecem o desenho fresco, puro, de uma pastoral, e fazem criar

A VIDA ALEGRE 133

vontade de estender a vista á procura de Estella e de Nemorino.. .

De repente, encontra-se uma fonte; mas, uns annos por outros, triste coisa, a fonte está secca : os tubos, que sempre costumavam estar cheios de agua, estão va- zios de todo: a nascente concentrou-se avaramente numa bacia estreita e pequenina. . .

De outras vezes os ventos tèem saccudido a fructa das arvores, o sol tem queimado as uvas, e u'a]guns raros abrigos, como que astúcias, laços armados ao sol, para o enganarem ! resistem cobertos com feno uns cachos de uvas resguardados com cautella paranão se queimarem; dos lados da estrada íluctuam nas sebes uns troncos rese- quidos, que o vento, umas tardes por outras, vem de re- pente balouçar, partir.. .

Tudo esta mudado I dizem os aldeãos, por lá, a cada instante.

A meio caminho encontra-se um pinhal, quieto, se- reno, sem fazer lembrar a bulha ruidosa e melan- cholica do mar; e o campo scintilla por entre a rama em cumiadas alvejantes... Mas adivinham-se, no es- tio, as iras do inverno ; na serenidade da atmosphe- ra, no ar quente e húmido, mais de trovoada que de verão, das estações que temos agora, sempre incertas e cruéis: e o pinhal tem o seu què ameaçador n'essa mes- ma pasmaceira, n'aquelle descançar de quem espera,

134 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

mal se mechendo os pinheiros, e a espaço parecendo conversarem uns com os outros, como que concertando o disfarçarem os terrores que hão de inspirar nos mezes da névoa e das ventanias, que são, por alli, terriveis.

A entrada nos Loridos remoça o animo. Áquella missa afflue gente do Sobral, do Barrocal vo, do Vai de Cana- da, do Bairro do Lobo, do Salgueiro, deFamões, de to- das as aldeolas dos arredores; o povo considera uma festa ir alli : é o espectáculo da opulência que influen- ceia n'aquelles espiritos. contentes de se encontrarem numa vivenda luxuosa, e terem de alguma maneira o goso da propriedade sem os encargos d'ella.

Os Loridos são uma propriedade extensa, bem cui- dada, abundante de arvores e de vinhas, e famosa pela sua matta, da qual o povo diz com respeito :

os medronhos que ha, dão para as vindimas ! Dezesete cascos, de aguardente d'elles, se fazem alli quasi todos os annos !

A capella é espaçosa, e clara. O povo, no fim da missa, canta um coro ; caso singular, canta-o bem ! Versos de grande innocencia ; esta quadra, por exemplo:

Nome de Jesus Que tão doce é! Sãlvae a minha alma El la vossa é!

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A VID\ ALEGRE i35

Depois, todo aquelle povo espalha-se pelo campo e pelas estradas, em procura cada um da sua casa e da sua aldeia. Parecem dizer que não ha remédio ; que o almoço também tem importância, que a missa é cedo, ? que a retirada convém ser rápida, visto como a belleza das paisagens se arrisca a perder com estar uma pessoa a vel-as, pela segunda vez,. . . em jejum !

Teve certa notoriedade ha vinte e cinco annos a ami- sade com que o beneficiado iMalhão me distinguia. Refe- riram-se por muitas vezes os jornaes a essas intimas e honrosas relações, e muita gente celebrava a boa fortuna de eu haver merecido a esse illustre velho, eu folheti- nista, eu homem dos theatros, dos divertimentos, dos jornaes, n'essa epocha, uma tão pronunciada estima.

Tudo isso veiu como que por acaso.

N'uma tarde, voltando das Caldas da Rainha, onde havia ido jantar, a titulo de dar um passeio na compa- nhia do administrador do Cadaval, João Motta da Fon- seca, e de um padre Tavares que por esse tempo era prior do Carvalhal, disse-me o administrador, excellente homem de quem hoje sou amigo :

Gostaria de que fossemos ver o Malhão, sr. Ma- chado?

Gostaria, de certo.

Não o conhece, pois não?

Não o conheço. Viu-me elle quando eu era peque-

136 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

no, mas me não lembro das circumstancias em que isso foi, nem de se elle é alto ou baixo.

Fomos a Óbidos, e parámos, numa rua estreita, diante de uma casa de apparencia modesta, quasi humilde.

É aqui, disse o Fonseca.

Malhão estava no seu quarlo de estudo, quarto escuro e húmido. Disseram-lhe o meu nome; elle conhecera muito a minha familia ; principalmente minha mãe, de quem uma irmã d'elle era muito amiga.

Acolheu-me com grande doçura, e principiou logo a conversar commigo, fallando-me da Durruivos, de meu pae, de quem se recordava perfeitamente, de um meu tio Fr. Fernando, doutissimo freire, grande figurão, hom cavalleiro, os freires, como se sahe, eram cavalleiros de ordens militares, que faziam votos religiosos e resi- diam nos Conventos das Ordens : de José Estevão, e, finalmente, dos foliíetins da Itevolução de Setembro, de que, me disse, havia lido alguns. Pode calcular-ss o gosto que me deu ouvir-lhe essa amável palavra. Malhão

138 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

que era homem alto e robusto, tinha uma expressão de physionomia extremamente suave, que contrastava com a virilidade da sua figura, e augmentava o encanto que exer- cia nos ânimos a doçura ineffavel da soa voz um pouco vela- da, mas, tão sonora, quanto a voz de um homem o pode ser.

Envolto em roupas de brixe e n'um capote comprido, passava alli, áquelle tempo, a sua vida a ler. Tinha sessenta e dois annos, por essa epocha. A cabeça estava toda branca. Quando conversava animava-se muito, e, por momentos, o homem de outra edade, moço e esbelto, como que reapparecia u'elle. A conversação era um tão grande prazer para o seu espirito, que elle pediu-me, pediu-me é a palavra, e explica-se pelo isolamento em que vivia em Óbidos esse homem talentoso e amável que voltasse alli alguma vez para conversar com elle.

Sahi de como atravessando um sonho. Aquelle pa- dre, aquelle velho, elegante na sua condição, mages- toso, e tão singelo, tão innocente, tão alegre, por in- stantes, tão simpathicamente melancholico, tão illuslre, tão citado, tão celebre e tão simples, impressionára-me.

Succedeu por essa occasião, que um acaso vivamente desagradável para mim me tirou por um tempo o gosto, a vontade e paciência de fallar, fosse com quem fosse, á excepção de Malhão, que, por assim dizer, me consolava pelo bem que me fazia ouvil-o e pelo poder que ti- nha quando fallava commigo de obter que eu não pen-

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sasse em mais nada, e se desvanecesse qualquer preoccu- pação, que pudesse dominar-me, no grato prazer de o ver, de o escutar, de estar com elle.

Fora o caso que a troca de uma carta ia occasionando um funesto lance. Havia alguém que me considerava, na sua meiga affeição, melhor do que eu era; estava doente essa pessoa, e eu, escrevendo-lhe de Lisboa, so- brescriptára por engano, dirigindo-lh'a, uma carta, que estava para ser enviada a outro destino, a uma cantora. Fe- lizmente, ainda assim, uma irmã que por essa occasião abria as cartas para ella e lh'as lia, deu logo por essa terrivel leviandade, eimprovisouos dizeres de uma carta, annunciando-lhe que eu iria d'alli a dois dias ver essa querida doente. Em seguida escreveu-me, a pedir-me que fosse. A irmã estava sua hospede, desde que adoecera. Parti de Lisboa, cheguei lá, a senhora que me escrevera e a quem eu áquelle tempo nunca havia fallado, appa- receu-me logo que eu subi uma grande escada de pedra pela qual se chegava a sua casa ; e, quando rompia a minha saudação e os votos de agradecimento peia bon- dade de que me dava tão honroso testemunho, metteu- rae uma carta na mão, e, de relance, um pouco secca- mente, disse-me :

D'aqui em diante peço-lhe que attenção ás suas cartas. Restituo-lhe esta, que veiu por engano, e que, se fosse lida pela doente, poderia matal-a.

i40 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

Pode calcular-se em que situação me encontrei então, n'aquella casa, durante três dias, que alli me demorei !

Não só, em estando na Durruivos, eu ia a miúdo visitar Malhão, mas escreviamos-nos com frequência. Sentia-me feliz pela amisade d'elIe.Dá-se na velhice um duplo eíleito d'optica, a vista exterior diminue e a vista interior augmenta ; distinguem -se menos os objectos, mas vê-se melhor a rasão das coisas. O espirito d'aquelle homem captivava-me de dia para dia. Nas suas cartas sentia-se a velhice respeitável, a velhice christã, a ve- lhice do homem que não se faz feio pelos destroços gra- duaes, pelas ruínas que levam tantos a serem, como se diz, creanças duas vezes,... mas sem a graça das creanças.

Muitas vezes, a olhar para elle, ao ouvil-o, ao lel-o, me lembrei eu de outro homem, e que homem ! o grande Garrett ! E a circumstancia de eu ter assistido a um caso, que deu ensejo a que as sympathias do illustre, subli- me poeta, alírouxassem para com Lopes de Mendonça, e a que este escrevesse um folhetim por occasião de se publicar o segundo volume do Arco de SanVAnna, tra- tando Garrett com demasiada severidade, acudia-me ao espirito mais vivamente ainda.

Tinha quinze annos, eu, quando vira isso... Foi, n'uma noite, na Floresta Egypcia. . .

O visconde de Almeida Garrett passeava brandamente

A VIDA ALEGRE 141

junto dos jogos, olhando para todos aquelles divertimen- tos com o seu modo de meia observação meio desdém.

Escostou-se depois a uma das columnatas, sorrindo-se para os meninos que gyravam nas cadeirinhas, e dei- tando o luzio para as mães. . .

N'isto Mendonça vè-o, vae direito a elle, e dá-lhe um tão infausto abraço, que o poeta, com o recuar um pou- co, encosta cora força o chapéu á coiumna, sente-o cair-lhe da cabeça e voltar-se-lhe o chino. . .

Largou toda a gente a rir.

Pode calcular-se a indignação de Garrett.

Yoltando-se para Mendonça e desvairado em ira, disse- Ihe com o entono de quem se propõe esmagar :

Que vosáê haja de ser sempre desastrado ! . .

Mendonça queria ainda dizer-lhe alguma coisa ; mas o que ?

Pedir-lhe desculpa ?

Inútil.

Justificar-se?

Difficil.

Estreitar de novo relações, que aquelle episodio rom- pera abertamente?

Impossível.

Preferiu outro expediente.

O expediente foi largar a rir, como toda a outra gente, que ai li estava.

142 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

O visconde endireitou o chino, poz o seu chapéu, e, quem observasse o olhar que trocaram, conheceria desde logo que aquelles homens n'esse momento eram dois ini- migos irreconciliáveis ; porque Mendonça, um momento depois, não ria, e não lhe pesava menos a agreste phrase do poeta :

Desastrado ! do que ao cantor de D. Branca o haver visto alguém rir-se delle.

Malhão, era um aldeão poeta. Alma terna, toda elflu- vios de religião e de doçura. O génio poético foi o que dominou n'elle. Não porque os seus versos denotassem grandes dotes artísticos e se pudesse admirar n'elles o segredo de Garrett, por exemplo, de introduzir, por assim dizermos, a pintura e a esculptura na poesia, enlaçando-ase formando um grupo indivisível como o das graças : o seu talento brilhava pela sinceridade, pela espontaneidade, pelo sentimento ; era a lyra campesina e christã.

Poucos destinos, tão sympathicos, como o d'esse padre. Nasceu em Óbidos ; era de uma familia de árca- des ; seu pae era o poeta Silveira Malhão : seus tios, João Monteiro e António Gomes, poetas. O vigário ge- ral influiu para que elle se dedicasse á vida ecclesias- tica ; Malhão, muito novinho ainda, frequentou o semi- nário de Santarém : estudou alli o seu latim, a sua philosophia. . . Aos vinte e ires annos estava padre.

A VIDA ALEGRE 143

Voltou de Santarém, onde estivera nove annos, e toi achar em Óbidos unicamente seus irmãos : tinham-lhe morrido pae e mãe.

Ficou vivendo em Óbidos modestamente, ensinando ao povo o ideal divino e ao mesmo tempo o ideal huma- no. As leiras não tiveram naquelles sitios outro inicia- dor senão elle. Uma casa importante na proximidade de Óbidos, a casa do Sanguinhal, chamou-o a si por muito tempo. Uma senhora, filha d'essa familia, D. Sophia da Fonseca, e um mancebo seu irmão, que chegou a ser conhecido em Lisboa e estimado pelo seu merecimento, Paulo Romeiro, foram, n'essa casa, discipulos d'elle. Pos- suía o mestre por alli umas fazendilas, os discipulos eram íilhos do primeiro proprietário do sitio : depois das lições do cathecismo, havia lições de agricultura ; Malhão en- contrava meio de ir ensinando ao mesmo tempo tam- bém o quanto sabia, muito ou pouco, da antiguidade grega e latina, e não contente de ressuscitar um ponto ou outro do saber dos antigos, compunha, para se entreterem, artigos e poesias; theologo, poeta, artista, lavrador, fazia d'isso uma synthese magnihca ; e, de trabalhos e aptidões tão diflerentes, formava uma espécie de laço entre a terra e o céo. Uma vez lindos os cuidados dessa eduoação, a tristeza como que principiou para elle. O campo não lhe bastava, ou antes talvez o entristeceu ver que o campo não bastava aos outros.

144 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

Compreende-se isso.

O tempo hoje está para a industria, e a industria não é aífeiçoada ao campo : supprime os jardins, deita as arvores abaixo, volta costas ás meditações e devaneios dos amigos da natureza, e não se importa com os riachos senão para fazer mecher as machinas.

De mais a mais entre nós o camponez não inspira gran- des sympathias; chamam-lhe bronco, feio, dado a inte- resses pequeninos, e consideram-o tão miúdo nos seus negócios, que, no caso de ir para o inferno, o que não é de crer, seja capaz de rezingar com o diabo por causa da fogueira e metter-lhe na cabeça que se gasta alli le- nha de mais, e que com dois cavacos possa arder do mes- mo feitio qualquer pessoa !

Os velhos do campo, em Portugal, são tristes. Têem o corpo dobrado pelo trabalho. Lavam-se pouco ; são fus- cos, encortiçados ; têem os olhos a lagrimejar : testa curta e rugosa, cabello esgroviado, a sair, em farripas, de um chapéu russo ou de um barrete velho. . .

Nunca tiveram senão um amor na vida, a terra.

Paixão permanente, invencível.

A rigidez de porte serviu-lhes sempre de capa ás am- bições. Mesmo quando estão a morrer, ainda se espertam para dizerem a alguém, pondo-lhe a mão no hombro, carregando, segurando, como quem está em anciãs de confessar o que quer que seja :

A VIDA ALEGRE 145

Agora é que nâo tenho precisão nem necessidade de ver se arranjava aquillo. . .

Depois, sorvendo um suspiro, e como que resumindo n'uma phrase a aspiração de toda essa existência, que chegou ao fio :

Tinha aquella idéa . . . mas não poude ser : comprar isso tudo por ahi arriba, e amanhar por minha conta. . . Ter fazendas hastas. . . Comprar tudo !

Ao que a mulher retroca ás vezes:

principia elle com as asneiras ! Diz sempre a mesma coisa. Tudo é querer ser mais poderoso que os visinhos. . . Ye se dormes !

A terra dá-lhes pouco; mas, quanto dinheiro tiverem, ninguém lhes falle de o empregarem de outro modo : comprar terra, terra. . .

Para algum mais desfavorecido da fortuna, a riqueza é os filhos. Não podendo ter terra, quer ter homens. Na cidade ha sempre quem diga por gala:

Sou filho do meu trabalho!

O camponez pobre prefere vir a dizer em velho :

Sou o trabalho dos meus filhos ! Chamem-lhe tolo.

As mulheres, trabalhando na sacha, na monda, á la- garta, á vindima, carregando como elles, e não bebendo como clles, vêem nos filhos mais do que riqueza; como nos costumes antigos, vêem gloria em ter muitos !

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i Í6 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

Diz-se que uma dama grega estando a mostrar a outra as jóias que possuía, lhe ia dizendo;

Como esta é hcnila, não é?

Bonita.

Eesta?

Também bonita.

E esta. . . Depois :

Agora, hade também deixar-rae ver as suas. A outra foi buscar os íilbos:

Aqui as tem ! disse.

São assim as mulheres do campo. Mas, diga-se a ver- dade, as jóias d'el!as não são de grande belleza nem pa- recem preciosas. . . á primeira vista ; são creanças fuscas, arrepiadas, arredias, que fogem de quem passa, vão espreitar para um combro ou de traz de um silvedo ; rindo de um modo alvar, ou pondo-se de uma seriedade de gatto-pingado ; ora selvagens á força de timidez : ora pedindo a benção a toda a gente, a este e áquelle a quem fali em.

Em todo o caso, se a fecundidade materna é uma ben- ção do ceu, pôde dizer-se que no campo chovem bên- çãos de todas as formas e feitios. . . Todos os annos as esposas dão um rapaz ou uma rapariga ao mundo, mais ou menos lestos e escorreitos.

Emquanto poude, emquanto a saúde lh'o permittiu,

A VIDA ALEGRE 147

Malhão não parou muito em Óbidos. Quando menos se esperasse, montava a cavallo, e elle ahi fugia por aquel- las estradas.

O gosto pelas viagens foi-me em grande maneira exci- tado por Malhão. Talvez que se eu o não houvesse co- nhecido, não tivesse sahido nunca do mesmo sitio, como acontece a tantos. Principiou isso logo pouco depois de eu lhe haver sido apresentado. Em 12 de julho de 1860, escrevia-me elle da Nazareth dizendo-me :

Nazai-elb, 1860, Julho, 12

A continuação do meu teimoso padecimento obrigou- me a deixar a pátria, e a vir procurar em terra alhèa o que não achava na própria. A passagem para aqui, in- commodos imprevistos da jornada, arranjo de casa n'esta localidade ; eis aqui a causa por que tenho demorado a resposta á muito obsequiosa carta de v. ex.', e não agra- deci ainda, o que agora faço, o generoso mimo de Lacor- daire. Accrescentarei a esta outra causa : a confiança na bondade d'um coração de 24 annos.

Não é preciso ser propheta, para predizer futuros, que são consequências lógicas do presente. Não é difficil va- ticinar a belleza dos fructos da arvore quando feita, quan- do apresenta tão saborosos os primeiros que : as es- trèas rcgulão o que se deve seguir.

As letras, coasideraias como instrumento de celebri-

i48 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

dade e de gloria, pedem o que v. ex." tem ; o génio e o desejo de as cultivar. Olhadas pelo lado do interesse, são um campo que, raras vezes, corresponde aos traba- lhos de quem o cultiva, campo ci>eio d'espinhos e d'abro- Ihos. A natureza commette um erro, quando faz nascer o génio fora do berço da fortuna. Pode elle descer ás occupações das profissões úteis, aos algarismos do com- mercio, ás cifras da agiotagem, etc? Contente-se o meu amigo com o seu destino ; a gloria das letras não vale menos que os cofres pejados dos ricos : são riquezas de differentes géneros ; e quem não prefere as do espirito ás da matéria?

Aqui fico n'esta terra, onde me demorarei por alguns mezes, a ver se a mudança d'ares muda para melhor o meu estado precário de saúde. Nazareth é o objecto mais caro ao meu coração, desde a idade juvenil. Nazareth, visitada por v. ex.', dar-lhe-hia matéria para uma longa serie d'intere»santes folhetins. Que partido não tiraria a sua imaginação d'esta posição, que tanto approxima o homem do ceu, dos alcantis que a orlam, dos mares que lhe beijão a raiz, muito em baixo, da pureza d'estes ares, das três povoações (Nazareth, Pederneira e Praia) que dão a mão umas ás outras, a primeira do pináculo d'este velho promontório, a segunda das collinas irami- nentes ao mar, e a terceira, irmã mais nova, que eu vi nascer, banhada pelas ondas, e visitada de tantas e tan-

A VIDA ALEGRE 149

tas gentes no tempo dos banhos ! Que direi do sanctua- rio de Nazareth, tão antigo como a monarchia, e de tão agradáveis reminiscências religiosas ! A religião e a na- tureza oílerecem aqui um rico banquete á imaginação, e ao espirito reflexivo.

Aqui íico n'esta terra, repito, apreciando sempre a fortuna de ter conhecido a v. ex.% e de ter recebido tantas provas da sua amisade. Creia, que muito o esti- ma, etc.

Francisco Rapluiel cia Silveira Malhão.

Não sei se a minha resposta a esta carta chegou á Nazareth antes de mim ; o que sei é que escrevi a Malhão a dizer-lhe que ia, e parti sem demora.

Na Nazareth estava uma companhia de theatro, com- posta de actores conhecidos, Pinto de Campos, Gil, Flo- rindo, Martins, Mendes Leal António, e, á ingleza, o melhor para o íim, and Izidoro. Fora Francisco Fer- nandes, hoje no Brazil, actor que se estreara no theatro de D. Fernando, quem fizera o milagre de conseguir que elles fossem á Nazareth.

Quando cheguei á praça, Francisco Fernandes, que tinha a paixão do barulho, largou a deitar foguetes logo que me viu. Malhão, que estava na egreja, cuidou que era um cyrio. Disseram-lhe que não era um cyrio, que era eu ! !

150 APOXTAMKNTOS DE UM FOLHETL\ISTA

Vivi alli quinze dias do modo mais original. Quando não estava com Malhão, estava com os cómicos. Malhão era o meu dia, os cómicos a minha noite. Malhão sabia isso, provavelmente, mas porque a veneração que eu lhe guardava me não permittisse fallar-lhe das alegres ceias depois dos espectáculos, na hospedaria, e porque elle se limitasse a aconselhar-me que não jogasse, nunca entre nós se tratou d'aquelle assumpto. De mais a mais, da Nazareth mesmo escrevi folhetins para a Revolução, e, indo ler-lhos, elle riu de eu contar, en- tre outras coisas, que estava aquartelado com um anão na única hospedaria do sitio, um anão que se mostrava por dinheiro e que, ás noites, para nos entretermos, quando não havia Iheatro, fazíamos, o anão, a mulher do anão, e eu, uma partida de dominó.

Porque minha mãe estivesse por aquelle tempo a ba- nhos em Peniche, fui, no inlervallo das festas da terra ás festas dos cyrios, que se realisam uma semana de- pois e duram três dias, visital-a allí.

Peniche é melancholica, e encantadora ; mira-se nas aguas não como uma coquetle, mas com a expressão triste e poética da noiva de um maritimo. Quando o mar acco- mette a praça e o vento redemoinha raivoso, Peniche parece esconder-se atraz das suas muralhas, como me- drosa de morrer. . .

Por uma fresta da janella, as. senhoras, que, n'aquella

A VIDA ALEGRE loi

villa, não deixavam ainda n'esse tempo ver o rosto, es- preitavam com recato. Na rua usavam mantilhas e envie- zavam-a por maneira que não se lhe distinguisse senão a ponta do nariz.

Em todas as ruas, rara a casa baixa em que não se vissem rendeiras a trabalhar ; raparigas quasi todas, e, em geral, bonitas, sentadas juntinhas umas ás outras, entregues todas aos bilros e ao torça!.

Havia por lá, ao que me disseram, uns agiotas que lhes adeantavam os aviamentos, e, como emprezarios, lhes davam uma bagatela pelo trabalho de cada dia. É de crer que ainda assim seja. Peniche é pobre, e as rendei- ras não haverão, provavelmente, melhorado muito de fortuna, apezar da estimação que se em Lisboa ás rendas que ellas fazem.

Ninguém sabe ao certo como principiasse em Peniche esta mdustria das rendeiras. Uma senhora muito sabida em contos, tradições, e lendas, dissc-me, de uma occa- sião, que todo o segredo d'aquelles tecidos, quem o en- sinara a lima rapariga da terra fora a Virgem. Maria em pessoa! . . .

A rapariga andava namoradissima, c triste de ser po- bre e o seu noivo ser rico.

N'uma noite, estando ella a chorar, e a lastimar-se da sua sorte, truz, truz á porta. Entrou uma senhora de sobrenatural belleza ; sem soltar uma palavra, depoz

lo2 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

sobre os joelhos d'filla, bilros, e linha íina. Depois, e, (lo mesmo modo, sem fallar, principiou a fazer traba- lhar os bilros, ensinando por seu exemplo a maneira de se servir de tudo aquillo e de conseguir os desenhos que pareciam estar a nascer-lhe debaixo dos dedos, formando toda a qualidade de malhas e flores bordadas, como jamais se havia visto.

Quando a discípula aprendeu, por arte que ja íizesse tal qual, o que acabavam de lhe ensinar, ia a romper a manhã. . . Então a divina figura desappareceu. . .

Logo agradaram tanto as rendas e principiaram a ven- der-se com tal procura, que a pequena dentro era pouco tempo tinha, com o producto da venda d'ellas, um dote tão taful que a familia do noivo, que era bem re- mediada, teve grande satisfação de annunciar-lhe que consentia no casamento e applaudia a união de tão for- moso par.

Nunca houve felicidade maior n'esta vida do que a d'aquella gentil noiva. Feliz como esposa ; d'alli ao tempo devido, feliz como mãe: e, sósinha no segredo de fabri- car as rendas, ganhando lindamente, ganhando um di- nheirão, ganhando o que queria.

N'uma noite que ella estava no seu serão, dá-lhe que dá-lhe, bilros para cá, bilros para lá, ao passo que o ma- rido a contemplava com ternura e os filhinhos lhe brin- cavam aos pés, de repente entra n'aquella casa a mesma

A VIDA ALEGRE 1S3

desconhecida que lhe revelara o segredo, causa de toda a felicidade em que viviam. Vinha, porém, triste e serena.

Estão aqui a paz e a abundância, estão ; disse : mas, a miséria e a fome andam por essas casas e ruas de Peniche. Vim eu a ti, mas tu não foste aos outros. Com isso, chorando, os anjos, de ti afastam a vista. . .

E desappareceu.

Do dia immediato em deante, foi bater de porta em porta, e entrar de casa em casa, a pobre mulher que assim íôra admoestada; e levando torçal e bilros, ofíere- cia-se para ensinar a quem quizcsse aprender a delicada arte de fazer rendas. . .

Queres que eu te ensine, Maria? queres tu Joan- na? e tu, e tu, e tu, Rosália, Gertrudes, Margarida?

Queremos, sim, se queremos !

As iniciadas quizeram também depois ter discipulas; e assim se estabeleceu em Peniche a industria das ren- das, modo de vida de quasl todas as mulheres d'aquella terra encantadora e triste, cercada de rochedos fragosos que parecem estar dizendo que a natureza a defende como a providencia. . .

Na volta para a Nazareth, tendo-se-me acabado o di- nheiro, estive metlido n'uma casa de venda de vinho n'um sitio chamado a Amoreira, emquanto a arrieiro foi da minha parte tratar de me arranjar oiro, como se diz

V 54 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

nos melodramas ! Estive alli dois dias^ a comer sarda que vendiam, e salame que eu havia levado. O da locanda dizia ao balcão, em tom de myslerio aos fre- guezes :

Não sei quem venha a sor este rapazola, mas é homem poderoso ; até a chouriça, que come, vem embru- lhada em prata !

Era o papel do salame, que o deslumbrava !. .

Logo que o arrieiro appareceu com o dinheiro, fizemos contas com o estalajadeiro, e, apezar de ir principiando a ser noite e de estar a armar-se uma trovoada, puz-me o caminho.

Pouco adeantei com isso, porque a trovoada estabele- ceu-se por alli como se estivesse na sua casa, e a chuva era em taes proporções que o arrieiro luzia todo c não fazia senão dizer-me :

Vamos recolher-nos, senhor ! Vamos ficar por aqui, olhe que não temos outra noite !

Por aqui, onde?

Ha adeante uma pouzada. . .

Vamos a ella I E depressa. . .

De noite, ou porque me resentisse da molha que apa- nhara, ou porque me fizesse ma! a comida, ocaso é que, de repente, senti-me doente. Chamou-se o cirurgião de um logar distante uma legoa d'esse povo. O cirurgião tomou-me o pulso, examinou-mc os olhos, e fez gosto

A VIDA ALEGRE !53

cm que eu deitasse a lingua de fóra. O arrieiro, que me era em muita maneira affeiçoado, perguntou-Ihe se eu teria a espinhela cabida, doença que elle próprio tivera ao ponto de o haver levado á cama. Não, homem ! disse o cirurgião. Isto é um pequeno...

Um pequeno ?

... incomraodo. Dc-me papel e tinteiro.

A dona da casa, moça guapa, conhecida n'aquel!es sítios, e que estava casada havia pouco mais de um mez disse de uma das portas, onde estava a espreitar:

Se a penna não estiver boa, eu dou outra.

O arrieiro poz tinteiro e papel em cima á-x mesa. O cirurgião escreveu. Depois, tornando a dizer que o caso era leve, dcspediu-se até o outro dia, montou a cavallo, e foi-se embora. Eram dez horas da noite. A receita marcava infusão de flor de laranja. O pcor foi, que, em todo o logar, não havia flor de laranja. A este tempo a familia da casa tinha ido deitar-se. O arrieiro correu a casa toda : vasculhava por todos os lados, mechia aqui, mechia alli, abria gavetas, fechava-as, até que descobriu n'um armário, mettida n'uma redoma de vidro, e, em cima de uma almofadinha, a coroa de noiva da dona da casa. O arrieiro, por ser de um natural amoravel e que- rer o meu bem, pegou-lhe logo, foi mettel-an'uma cafe- teira em bastante agua, e deixou ferver aquelle emble- ma encantador de uma innocencia, a que ninguém

156 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

provavelmente teve nunca a mais pequena coisa que dizer.

Depois, (leu-m'a a beber, numa chávena.

E eu bebi. . .

Quando tornei a apparecer na iNazareth estava tudo em festa. Â enorme ladeira que conduz á villa achava-se cortada de mendigos estropiados, que concorrem alli de todos os pontos do paiz fiados na altluencia de devo- tos. Chegavam, a cada instante, carros de todos os feitios, carregados de gente; cavalleiros, peões, celebridades do momento chamados jogadores de pau, as romeiras com os seus chapéus enfeitados de rosas, jasmins, e dhalias, a mulher que na praça dos toiros havia de farpear metti- da n'uma dorna, os que iam a galope para se acha- rem quando chegasse o cyrio da Prata Grande, ou o da Ericeira, as banhistas da praia em observação critica aos que passavam, a multidão buliçosa d'aquellas curio- sas festas, trinta mil creaturas que durante o anno es- peram por esta funcção, e que, em chegando o tempo d'ella, largam tudo e correm para a Nazareth.

Ma hospedaria havia um reboliço de metter medo. A estalajadeira pediu-me que a desculpasse, mas que, nas Ires noites que iam seguir-se, não haveria alli rei nem Roque, eque um hospede, fosse elle quem fosse, teria de sujeitar-se a estar com outros hospedes no mesmo quarto. Moido da jornada, reservei para o dia immediato tudo

A VIDA ALEGRE i57

quanto houvesse e fui-me deitar. Havia outra cama, defronte da niinba, destinada a José Joaquim Pinto, que foi depois por muitos annos emprezario do theatro de D. Maria K em sociedade com o actor Santos, e é em- prezario hoje do theatro do Gymnasio. Adormeci tão contente como se eu mesmo é que houvesse encommen- dado os foguetes que estalavam nos ares a cada in- stante. . .

De manhã abro os olhos e vejo uma turca, gentilmente recostada a um canto da casa. Uma turca, sem mais nem menos, vestida á moda do seu paiz. . .

Que prodigio !

Sem saber bem se estava a sonhar, conservei-me um pouco de tempo muito quieto, até me convencer que es- tava acordado, e que a turca nem era uma visão nem uma boneca. . .

Era uma mulher !

Tudo se explica em lhes dizendo que, durante a noite, chegara a companhia de arlequins ; dera duas ftincções ou quatro, ou cinco, e em seguida distribuiram-se por onde acharam quarto com porta aberta. Isto é, o meu somno fora tão profundo, que não posso atlirmar que, á turca, não fosse o magnânimo emprezario Pinto quem lh'a abrisse. . .

Estavam a banhos na Nazareth as três familias Fer- reira da Cunha, Abranches, e Gallo, que formavam

lo8 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

uma família só. Ferreira da Cunha era o celebre advo- gado do marquez de Niza, Abranches era o auctor do Captivo de Fez, Gallo, advogado também, era além de tudo um homem engraçadíssimo.

Costumava eu ir ás tardes á praia sem ser pela es- trada : do sitio (iogar do milagre) onde é a praça, a casa da Nazareth, palacete em que morava o admnistrador D. Francisco de Salles, o theatro, e a hospedaria, á praia e ás casinhas do jogo e dos banhistas, é um quarto de legoa ; a gente do povo, para evitar essa delonga, sen- ta-se no monte de areia que está iniminente sobre a praia, e a areia mesma a conduz docemente e com a rapidez de um caminho de ferro ; assim descia eu.

N'uma tarde, em que pratiquei este exercício com a mestria que me distinguia n'aquellas delicadas circum- stancias, chego á praia, vejo um rancho de gente, a olhar para mim e a rir; e, immediatamente, do grupo, que se compunha de seis senhoras e três homens, destacam dois, e vêem direitos a mim ;

É o sr. Júlio Machado, se não nos enganamos?

Perfeitamente. . .

Somos Ferreira da Cunha , e António Joaquim Abran- ches ; estão alli as nossas famílias, e o homem que íicou a acompanhal-as é o doutor Gallo. Damos awanhã um pi- que-nique na sala grande da casa da Nazareth, e, por- que o vemos por aqui ás tardes, sósinho, lembrâmos-nos

A \ID\ ALEGRE lo9

que talvez lhe seja agradável dar-nos o gosto de ser dos nossos. . . Somos vinte. . .

Com mil vontades, e mil agradecimentos !

Vamos á apresentação !

Uma vez feita a apresentação ás senhoras, disse-me o doutor Gailo :

Elles de mim não lhe disseram palavra? Sou o Gailo, advogado, Largo do Pelourinho, por cima do botequim do Marcos Felippe, 1.° andar: e aqui, na praia, aquella casa á esquerda, para onde iremos em sendo noite conver- sar, dansar, jogar. . . (E, como eu, a esta palavra, me acudisse a recommendação de Malhão : «Cuidado com o jogo I Na^azarelli não se faz outra coisa de noite por este tempo!» e ficasse talvez com ares perplexos, o doutor acudiu logo :) O meu cunhado Ferreira da Cu- nha joga tudo que o meu amigo quizer, o meu cunhado Abranches joga sóo wisth,eu não jogo nada, e as meninas (uma íilha sua, duas filhas do doutor Abranches, e uma fi- lha do doutor Ferreira da Cunha; jogam jogos de pren- das... O que escolher, jogará: tudo, vvisth, ou prendas! ?

Prendas!

Magnifico! Vamos pas^^ear. Não lhe cuidado a retirada. Ha um cavallo daluguel, que leva um homem a toda a hora da noite, da praia ao sitio por seis vinténs preço lixo ; um cavai io branco, como o do Apocalypse ! Vamos passear.

160 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

Passeámos, fomos aos jogos de prendas, rimos, con- versámos, — Ferreira da Cunha era um conversador admirável ! appareceram os irmãos Pinheiros, das Gaeiras, Adriano, o mais velho d'elles, e seu irmão An- tónio ; tomou-se chá, havia cavacas frescas, e uns boli- tos oriundos da Nazareth : historias e mais historias, di- tos, novos jogos, novas historias, novos ditos, n'islo tropel na rua . . .

Era uma hora da noite. . .

Chegam todos ás janellas, e ouve-se dar os meus signaes e pronunciar o meu nome em tom de ancie- dade . . .

Que é isto ? !

Era Francisco Fernandes e uma parte da companhia, que, não me vendo apparecer no sitio, informados de que eu descera á praia, e na persuasão de que na praia eu não conhecesse ninguém, andavam em minha procura, receosos de encontrarem o que porventura para a curio- sidade da sciencia valesse mais do que eu em vida o cadáver de um folhetinista !

Compreende-se bem que por melhor companhia em que eu me achava, logo corri ao chamamento da voz ami- ga de Francisco Fernandes, e do Martins, e do Gil, e de outros, meus companheiros de mesa, porque na Nazareth com elles jantava e ceava sempre.

As amáveis famílias com quem me achava, tinham co-

A VIDA ALEGRE 161

ração para apreciar isso, e juizo para o entender. Dei- xando-me partir, depois de instarem gentilmente com os meus amigos para que entrassem, limitaram-se a di- zer-me á despedida :

Ás seis horas, amanhã, na casa daNazareth ! A toi- rada principia ás quatro, esteja livre em faltando um quarto para as seis !

Toda essa mescla de relações, que sempre tive, expli- ca-se pelos destinos da minha vida e pela feição natural do meu génio ; em geral, porém, a mocidade, sem terás razões que eu tinha para que assim me succedesse, é propensa muitas vezes a uma alternativa de meio, como se diz agora, de que nunca resulta mais tarde senão que- bras de estima, e ingratidões.

Sinceramente, se eu tivesse de principiar de novo, evitaria a confusão e balhurdia de conhecimentos ; e trataria de entrar e permanecer exclusivamente n'uma classe, na alta ou na baixa. Quanto menos se adopte este systema, mais vem, com o tempo, um homem a en- contrar-se !

Para que lhes digo isto ? Porque a única utilidade, que esta obra dos Apontamentos pode ter, é a da verdade e sinceridade, a utilidade do exemplo. Aliaz, para que lhes estou a fallar de mim?

O que pode ser interessante n'isto não é o que me aconteceu, é o que aconteceu a um rapaz, que, como

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162 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

se do primeiro volume d'estes Apontamentos, se achou, aos dezesseis annos, sem pae, que lhe morrera, sem mãe, que vivia longe, e sem os bens, que lhe pertenciam, e de que a hypotheca enguliu os rendimentos; uma vez dada esta serie de circumstancias, observar como as coi- sas se passaram, até alcançar pelas lettras, n'um paiz em que todos ralham d'ellas, d'eilas se queixam, ou ma- nejam a arma não prohibida, perfeitamente assassina, elegante e envenenada, do mas, não uma victoria, que isso não valeria nada, mas ura milagre, viver. De- pois, — nas vicissitudes de uma carreira em que a von- tade e a força não se revelam na grandeza do íim attingido, porém sim na isenção de sujeições interessei- ras, de baixezas ambiciosas, e até das mais aceitáveis e aceitadas especulações, dos que, para alcançarem, fazem ofíicio de cão, lamber morder, dar logar aos que entram na vida não pela porta doirada nem pela porta das ílores, a fazerem de si para si as suas considerações, e emendarem para seu uso o capitulo tal, muito em- bora por ventura outros capitulos, outros trechos pelo menos, logrem a honra de lhes merecer o simples obri- gado, que se dá, a quem nos diz por onde a estrada segue para ir dar aqui ou além. . .

Francisco Fernandes, contente pelos resultados obti- dos na iNazareth, e, empreendendo novas conquistas, instou commigo para que o auxiliasse a resolver Santos e Emilia Letrublon, a irem dar algumas representações em Évora.

Santos ao principio moslrou-se difficil,

A Letrublon, a folia em figura de mulher, descobriu logo n'essa festa uns dias de vida airada. . .

Ha hospedaria em Évora? perguntou ella.

Ora essa ! disse o Fernandes. Ha a grande hospe- daria do Tabaquinho !

Terá Champagne ?

lia Champagne a rodo ! E depois, Évora é a terra da boa mesa ! O João Theodoro, o galleguinho, tem um

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festim todas as noites ! Ha o manjar branco das freiras, que o meu amigo Luiz da Costa, barbeiro de Évora, bar- beiro, dentista, cirurgião, e tudo, tem artes de alcançar a cada instante da generosa gulodice do convento... É uma cidade illustre, pátria dos. . .

Basta ! disse a Letrublon. José ? accrescentou fal- tando a Santos. Vamos?

Hade o Machado vir comnosco !

O Machado vae com certeza.

Não posso ! dizia eu. . .

Então não vamos ! retrucou Santos. E o Francisco Fernandes :

Ó Júlio?!..

Irei.

Bravo ! exclamou a Letrublon. Partamos amanhã. Não havia que dizer. Lisboa fazia-me falta n'essa occa-

sião, mas, que remédio senão preferir-lhe o João Theodoro, o theatro de Évora, o manjar das freiras, e o Champagne do Tabaqainho . .. trocando a agitação da capital n'aquella epocha, pela soturnidade das noites de Évora ?

Lisboa, de mais a mais, linha n'esse momento uma novidade, —o Circo Price, que, sem embargo dos escrú- pulos e melindres dos que receavam que um tal diverti- mento irritasse demasiado os sentidos, conseguiu no primeiro tempo ser considerado por toda a gente de Lis-

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boa como o ponto de reunião onde mais agradavelmente se passasse a noite. Aili se fumava, de chap-Bu na cabeça ! alli se estabelecia um namoro equestre bem armado ! alli principiou Lisboa a beber o hok ! nos intervallos, com o Frank Pastor, e ura irmão d'elle, o dos saltos, o famoso William, que é hoje em Yienna o primeiro em- prezario de circos; com o alegre Whittoyne, e, quando Deus queria, com as écuiferes. No íim dos espectáculos, o gordo Price abancava no botequim com os principaes artistas e alguns amadores escolhidos, e convidava as estreitas da sua companhia. Havia-as alli de rara formo- sura. Ainda passada a primeira epocha, que foi a mais notável a todos os respeitos, vieram ao Circo artistas ex- cellentes, e mulheres admiráveis : cito uma certa Mina Goetz, por exemplo, que atirava sorrisos como flechas, armada da sua graça e formosura raras, e da feição prin- cipal que a distinguia, feição correctissima, saliente, perfeita, encantadora, a perna : não do melhor que por se havia visto, mas do melhor que ainda se não tinha visto n'estes reinos ; pernas de Diana caçadora, que pa- receriam esculpidas em mármore, senão fossem de uma mobilidade viva e inquieta que nem as azas de um pássaro ! . . O William Pastor, era o Leão temido pelos janotas da época como turbatore di quelli confrade. . . Chegava ao meio da praça, firmava no chão as plantas das mãos ou as palmas dos pés— . . . a lembrança d'a-

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quelle sarilho me fez enganar agora ! e principiava n'uma vertigem de saltos encadeados uns nos outros, rolando no ar como uma bola com que o vento se di- virta ; saltos mortaes, duplos, triplos, para diante, para traz, sobre uma mão, sobre um pé, sobre. . . outro sal- to, — que produziam o mais terno effeito no bello sexo !

A Kennebel, a Gaertner, os famosos Delavanti, um milagroso Howard, os Sterzembach, umas poucas de fa- mílias prodigiosas, familia Gauttier, familia Boisset, fa- mília Vilespy, com os americanos Hiller, o diabinho Júlio Peres, os Mariani, o Camargo, a Mina, gymnastas, écuyères, trabalhadores em jogos icarios, rebequistas, ho- mens elásticos, creaturas que se seguravam ao trapesio pela ponta do queixo, homens que ensinavam cães a dan- sar, palhaços em todos os géneros, familias impossibles, como dizem os hespanhoes ; foram durante três annos nosso encanto e delicia nossa !

Um picador celebre, um tal flerzog, agradava bastante; mas a mulher d'elle, amazona, ainda agradava mais, não como amazona, mas como mulher d'elle. Os rapazes fi- zeram-se muito amigos d'esse Herzog, e mostraram-lhe vivo desejo de viverem na intimidade d'elle. . . artis- tas de Circo, pela maior parte das vezes, em os tirando da praça e lhes despindo os fatos de meia, perdem o encanto, e ficara reduzidos, pela rua, a terem ares de heroes em disponibilidade, chapéu mole, rosto triumphan-

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te, costuras do fato esbranquiçadas, gesto ora emphatico ora por extremo humilde, mãos sujas, e botas alegres de mais. . .

Em se reunindo no botequim ou na casa de pasto, não faliam senão de triumphos. . .

Ouvem-se os applausos no ecco, quando elles narram...

No Circo do Rentz ...

Ah ! Tu estiveste no Rentz ! . . . Em que estação ?

No Circo de Londres... No Hyppodrome. . . No Príncipe AfTonso. . .

O Price,. . . o Ribas,. . . o. . .

E salta um capitulo de cabalas ignoradas, intrigas, peripécias, victorias, lactas que mais ninguém conhece, de que mais ninguém ouviu fallar. . .

Bem. De accordo. É assim mesmo.

Mas, o flerzog, esse, não era assim !

Era um russo, que havia sido militar, passara não sei que lances por causa d'aquella mulher, e não estava re- solvido a que essa mulher, que era a sua... pudesse pa- recer não o ser de todo.

Uns poucos de rapazes empreenderam a conquista da formosa russa, e um d'elles principalmente, o marquez de C. M., chegou a declarar-se apaixonado por ella, e a jurar aos do seu grupo que haveria de triumphar da re- belde moscovita. Tudo eram convites e mais convites ao Herzog, para jantares, passeios, ceias, almoços. Elle

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acceitava e ia. Mas ia só. Um dia perguntaram-lhe pela mulher.

Nunca vem a estas festas ! disse elle. Na Rússia vemos isso com maus olhos. Não é como em Portugal. Ha por uns rapazes, que convidam os maridos com a esperança nas mulheres. Nós, que d'essa experiência ti- ramos o desdém que temos por elles, acceitamos os seus convites, porque, com.o artistas, não nos convém indis- pormos-nos com o publico; mas quando, um dia, jo- gamos jogo franco, e atiramos as cartas á mesa, é que lhes dizemos que somos mais espertos que elles, e lhes fazemos perceber que estimamos nossas mulheres. Em Portugal não é assim ? Talvez. Mas, ficamos da Rússia com estes usos bisarros ! Que se hade fazer ?

O marquez fez que não entendia, e, n'esse mesmo dia, offereceu-lhe um cavallo. Elíe sorriu-se, e acceitou.

HouveHregoas desde esse dia á fúria amorosa ; e^ coisa curiosa, que se muitas vezes da parte dos que pre- tendem ser amantes com os que sabem ser maridos, o marquez principiou a ter pelo llerzog uma dedicação de amisade, sincera e verdadeira.

Foi por esse tempo, que um mancebo da nossa melhor sociedade se namorou da mais bella amazona que olhos humanos têem visto, e, depois de a applaudir com o phrenesi enthusiastico dos vinte annos, quando ella mon- tava a sua gentil égua árabe amestrada na alta escola de

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equitação, fez apagar dos cartazes aquelle nome que era um dos segredos da fortuna do Price, e transíormou-o para o mundo n'outro nome, no seu.

Quando eu disse no Circo que ia para Évora, n'a- quella epocha em que não havia ainda caminho de ferro para esses sítios, suscitei a admiração das pessoas que me ouviram. Figurava-se isso como uma viagem peri- gosa !

Partimos no vapor do Barreiro, e o actor Taborda foi alli dar-me um aperto de mão e um frasco com agua ardente para os frios da noite. O frasco tinha uma cor- reia, que o tornava próprio para ser posto a tiracollo ; e a tiracollo o puz. Chovia a potes. Partiu o vapor, chegamos ao Barreiro ao cair da noite, e toda a nossa esperança, n'essa verdadeira noite de invernia, era o chá de Vendas Novas, que tinha fama de ser o melhor chá do paiz. Em Vendas Novas, ponho n'uma cadeira o capote em que ia embrulhado e tomo chá em companhia de dois passa- geiros que iam na diligencia. Acabada essa feliz cererao- nia, o cocheiro vem dar aviso de que vae engatar : le- vanto-me, vejo um bolso de viagem em cima da mesa, tomo-o pelo meu frasco, e ponho-o a tiracollo, sempre a tiracollo. Em seguida, capote no braço, e toca a accender um charuto. Um dos passageiros a este tempo corria a casa, espreitava por baixo das mesas, das cadeiras, n'uma aífliccão terrível. «Vamos embora ! dizia

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lhe eu. E elle : «Deixe-me, senhor ! Perdi um bolso de viagem em que levava alguns vinténs que tinha

«É procural-o «Isso faço eu De repente, es- taca diante de mim : «O sr. é que o tem Eu tinha um de cada lado, o frasco do Taborda e o bolso d'elle.

As estradas n'aquella epocha tinham fama. ía- mos dormindo, e, de súbito, um de nós, larga a berrar :

«Ladrões Acordamos meios tontos e turbados, ator- doados dos gritos, e avistamos uns poucos de homens estirados no chão, embrulhados em mantas, com três lanternas ao de si «Uma quadrilha Um dos pas- sageiros tirou um annel que lhe havia dado uma rapa- riga, e escondeu-o na bota.. . Qual quadrilha ! Eram os moços da diligencia, que esperavam, em Montemor, para mudar o gado.

Entramos festivamente em Évora, ás oito horas da manhã. A entrada da cidade é alegre ; quintas e mais quintas de uma frescura extrema. O olhar hesita, quando depois se fixa no interior da cidade, em acceitar o estylo desgracioso da casaria, prédios brancos, corcovados, de informes sacadas vermelhas, ruas em que se passa por baixo de arcos acanhados e desiguaes. . . A par d'isto, alguns palacetes magnificos, destinados a brilharem por si sós, porque nunca se veja ninguém á janella. . .

Sente-se a solidão.

Cae-sc n'uma atonia physica e moral, numa melan-

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cholia phantastica. Chega uma pessoa a suppôr que Évora desde os deuses nunca mais fosse habitada. A propor- ção que se encontra o solar de Garcia de Rezende, a Casa da Misericorida, onde estiveram as freiras maltezas, e a casa de Vimioso, era que apenas se adivinha nas janel- las a ordem gothica, estando até os arabescos das cima- lhas trocados por ornatos modernos, não se logra fazer idéa alguma da época em que se está, e acodem logo desejos de procurar a sepultura de Yenus. . .

O que ha que ver? pergimta-se.

A Cathedral, a Bibliotheca, e S. Francisco depois de tudo ... por originar impressão mais funda.

Pensa cada um :

O que será ?

Principia-se pela Cathedral, egreja magestosa e clara ; três entradas, a porta principal, a porta do norte e a porta do sul ; vasto templo ; anachronismos, erros da perspectiva e de gosto nos remoçamentos, por exemplo uma capella a interromper a linha de columnas, uma porta lateral que parece uma porta de escriptorio, a capella-mór em desaccordo com o estylo do templo ; mas de uma riqueza, que não ha remédio senão per- doar-lhe. . . E depois o quadro da Invocação, os bustos dos Apóstolos, os ornatos, os mármores ; a galeria dos arcebispos com os retratos ; a casa das vestimentas, bor- dados de grande riqueza, maravilhas de opulência; uma

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cruz de pedras preciosas, pela qual era tempos se offe- receram quatrocentos contos de réis ; o famoso coro, no- tável em trabalhos de entalhadura, arabescos, ornatos, figuras, emblemas profanos e principalmente agricolas, como era o gosto da epocha ; finalmente subir á torre, contemplar dos terraços os subúrbios, avistar o convento das freiras de S. Bento, o aqueducto, a Cartuxa, o forte de Santo António, o convento dos frades do Espinheiro, um ponto escuro que é Évora Monte, Redondo, S. Mi- guel de Machede, a Serra de Alpedreira, a ermida de S. Pedro de Portel, a encosta e villa de Vianna onde se deu a batalha de 1846, a serra de Montemor mettendo a cabeça nas nuvens ; e, ao espalhar a vista por aquella amplidão, sentir enlevada a alma, como átomo, que, nos calores do verão, se erga e se perca na atmosphera fluctuante. . .

Passa-se á Bibliotheca, que se deve a fr. Manoel de Cenáculo, considerado a flor dos arcebispos eborenses, o qual colligiu trinta e três mil quatrocentos e vinte e quatro volumes, a que uniu avultada quantidade de ma- nuscriptos e pinturas, ofíerta avaliada em tresentos mil cruzados. Pela guerra da península foi desbaratada a li- vraria. A Bibliotheca teve na sua fundação um perfeito, um vice-perfeito, três bibliothecarios, um cartorário, e um continuo, que entraram em serviço em 1811, sendo a vontade do prelado, na creação de tão útil estabeleci-

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mento, confirmada pela bulia expedida no Rio de Ja- neiro em 12 de dezembro de 1810, undécimo anno do pontificado de Pio YÍI, assignada pelo núncio Lourenço, arcebispo de Nicibene, precedida de licença regia de 21 de maio de 1807, e com o régio exequatur de 18 de ja- neiro de 1815. . . Quanda a visitei, tinha a Bibliotheca por empregados um continuo.

Quando ha theatro em Évora, á hora de principiar o espectáculo da primeira recita chegam ranchos de ho- mens, e enchem a platea, e os camarotes. homens. Se a peça é má, não volta ninguém : se é boa, na se- gunda recita vão as familias.

Os espectáculos de Santos e da Letrublon foram muito concorridos. Francisco Fernandes servia de ponto, e desempenhava algum papel pequeno, nas peças obriga- das a três personagens. Ás vezes, fazia papel de velha ; estava no buraco do ponto vestido de mulher, e, quando chegava a sua scena, trepava para o tablado. A socie- dade de Évora ria muito com isso. Elle conhecia effecti- vamente a principal gente da terra. Ao ponto de vista pittoresco, para elle Évora tinha dois homens : João Ra- phael de Lemos, antiquário, erudito, Évora antiga : Luiz da Costa, barbeiro, moço esperto, obsequiador, Évora mo- derna. Com este é que elle se entendia, e esse entendia- se com Évora inteira. Em poucos dias, Francisco Fer- nandes estava senhor dos segredos da localidade, e to-

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das as manhãs ao almoço contava-nos uma historia. O creado que nos servia á mesa no Tabaquinho, chamava- se Florindo. Estivera para casar com a creada de um cavalheiro, que alli conheciamos, e havia sahido d'essa casa dois dias antes de nós chegarmos a Évora. Fora escudeiro d'esse fidalgo. Dizia-lhe o Fernandes. não casas, Florindo?» «Não senhor !»—£ o Fernandes para nós, quando elle voltava costas : «Bem sei por- que !)) «Porque?» disse o Santos. Francisco Fernan- des referiu então que o fidalgo havia dito a esse escu- deiro :

«Não gosto de ter na minha casa senão gente ca- sada. Custa-me ver-te solteiro, Florindo ! Porque não casas tu com alguma das criadas da senhora ? Minha mu- lher havia de estimar tanto isso ! De qual d'ellas gostas mais «Da Romana.» «Não és tolo. Pois hei de fallar a teu respeito; deixa estar.» No dia immediato :

«O teu requerimento ha de ter despacho, Florindo. Romana não se mostrará contraria a que a pretendas

Florindo principiou a requestar Romana, e com tanto affecto e tantos zelos, que até, de uma vez, se lhe figurou que alguém, de noite, ia pelo corredor onde não havia mais que a casa da fructa, o forno, e a Romana. Poz-se á espreita no dia immediato, e iria jurar que viu o fidalgo... Que fez o Florindo? Burriíou o corredor com agua, e despejou por alli uma caixa de obreias. De

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manhãsinha foi-se ás botas do patrão, que estavam á porta da alcova para que as engraixassem, e poz-se a ver-lhe as solas. Tinham muitas obreiasinhas, muitas obreiasinhas. . .

Na breve pausa que se seguiu a esta historia, e em quanto a Letrublon ria, e o Santos meditava, Francisco Fernandes dizia-me com ufania :

Nem o fidalgo nem a Romana sabem porque não casou, o Florindo ! o Luiz da Costa o sabe, e eu !. .

Vamos d'ahi a S. Francisco. . . Anda ver uma coisa ! disse-me o Santos. Logo riremos da historia do Fernan- des,. . . para nos refrescarmos.

A coisa era a Casa dos ossos, uma ratice que ha, o mesmo que ir metter-se a gente no papo da morte.

A egreja de S. Francisco, vista de fora, é linda. Frontespicio gothico, portada no gosto Manuelino ; por baixo das armas do lado direito refere-se a D. João II, que foi o que principiou a obra : do lado esquerdo a D. Manuel, em cujo reinado se concluiu. É histórica por ter pertencido aos templários, por haver sido freguezia em que foi prior André de Rezende e por instituir n'ella D. Manuel a irmandade da Misericórdia de Évora, que é a segunda do reino. Por dentro, é uma egreja alegre, elevadíssima, de columnas graciosas, paredes finas, tom de variedade e de elegância. . . está o jazigo dos Cogominlios, companheiro um d'elles de Giraldo sem

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pavor. . . Alli está enterrado também, mas não se sabe o sitio, o nosso Gil Vicente.

De repente, um padre, o sachristao, um cicerone, al- guém que nos acompanhe, diz friamente :

A casa dos ossos.

Ossos, e ossos, em todas as paredes, de alto a baixo ; caveiras por todos os lados, tibias e tibias. . .

Tentou outr'ora a velha antiguidade, como lhe chama o Bocage, expressar nos monumentos a idéa da morte ; punham os egypcios aquelle sêllo da melancholia do seu génio em tudo que faziam, e, em quanto os gregos, ele- gantes sempre, gravavam apenas nas campas uma bor- boleta, como uaico emblema que consagrasse á morte os mármores funerários, a Itália representava nos baixos relevos, nos bronzes, nas pinturas, espectros e esquele- tos.. . Mas n'isso havia intenção, era um protesto contra o orgulho dos grandes para os humilhar; e por isso os velhos» poetas entremeavam os regosijos com a imagem da morte para os tornar mais vivazes. Alli, porém, na casa dos ossos de S. Francisco de Évora, nem intenção, nem arte. Fria brutalidade. Dir-se-hia uma brincadeira de mau gosto, uma troça grosseira, de rapaziada brava, á triste solemnidade da morte. . .

Algumas pessoas, fingem gostar. Ha gente que faz gala n'esses arremedos de coragem. Uma das coisas de que mais se recreava o Byron, por ser, ou para ser, o ho-

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mem das excentricidades, era ir em Londres a tíyde-Park n'uma sege de defuntos.

Mette nojo, essa casa, em que as paredes são de ossos. A tristeza vive alli no horror, no silencio, e na noite. É'Se assaltado logo de idéas confusas, tradições vagas, sonhos pesados, que transfiguram tudo. Herdava o pala- dino fabuloso a força dos que matava ; e a gente parece mudar, em seus, os ossos que alli !

O soprar da brisa, entrando pelas frestas altas do tem- plo, é glacial, n'aquelles corredores, n'aquella casa de- serta c lúgubre, aonde parecem passear a toda a hora fantasmas da noite, espantalhos fúnebres, a dizerem-nos que amanhã haverão de anivelar-se comnosco no eter- no pó. . .

Dizem os cirurgiões, haver exemplo de que doentes a quem se tenha cortado um braço ou uma perna, se queixem ás vezes, em certas condições de temperatura, de soffrerem da perna, ou do braço, que não têem. Dá-se alli, com os visitantes, ainda mais que este pheno- meno. Ao ir um homem parar com os ossos, sente-se esfriar. . . nos que ve.

A Letrublon queria fugir, o Santos esbogalhava os olhos, e deixava arripiar-se-lhe a formidolosa ganforina, que parecia em suas ostentosas proporções desafiar a minha trunfa por igual ambiciosa n'esses tempos, e, na- quella hora, por igual arripiada. . .

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(3 que a gente tinha de cabello n'essa quadra român- tica, chegaria hoje a parecer mentira !.. O Santos, coita- do, esse, tinha cabello, e tinha tudo por si, tudo a seu fa- vor, tudo a sorrir-lhe, n'aquelles'dias. Moço, com saúde, alegre, amado ; dispondo de dinheiro, do encanto e vanta- gens das commodidades; vivendo n'umacasa boa, quente no inverno, fresca no verão, bem mobilada, criadas, criados, excellcnte mesa, boa companhia, muita gente a cortejal-o, uns que precisavam lisonjeal-o e outros não, especuladores, e também sinceros ; o que se pôde ter, erafim, mais agradável, ver bom modo era todos, respi- rar poesia no bem estar da vida e do talento !

De uma occasião e de repente a roda principiou a desandar...

Tudo então, ou quasi tudo lhe fugiu. . .

Cousa notável, os cegos haviam-lhe produzido sempre uma impressão extraordinária. Quando no theatro de D. Maria se ensaiou o Tartufo, a cada instante elle, maravilhado da riqueza de recursos com que o illustre traductor sabia fazer valer e brilhar a lingua portugueza, exclamou com aquella expressão de artista tão privile- giada que fazia uma alma da accentuação do actor e da commoção do espectador : Oh ! este cego !. . .

De outras vezes, se encontrava nas ruas um cego tocador de guitarra, que aqui havia, o qual andava acompanhado por um pequeno, íixava-o muito :

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Coitado! dizia. E que boa cabeça! Fronte alta, rugas parallelas e pouco cavadas, orbitas profundas ; e, na parte inferior do rosto, pelo sereno das linhas, pelo suave dos contornos, aspecto de mocidade ! Que destino, hein? Escutar as vozes da natureza, mergulhado sem- pre em sensações tumultuosas, e armar a tristeza por tal arte que lhe faça fallar a linguagem das harmonias terrestres tocando o fado na guitarra ! Olhem que histo- ria aquella !

. . . E agora é elle que chora a desgraça própria de não poder espraiar na luz os formosos olhos de artista, que tanto valeram e tanto diziam por si sós nos grandes e brilhantes lances das suas noites de theatro !

Santos não era alegre, todavia, n'esse tempo. Tinha elementos de felicidade, mas não era alegre. Alegre era o Francisco Fernandes, que tinha graça para um regi- mento, graça original, graça de idéa.. .

Quando principiaram, hoje uma, para a semana ou- tra, a irem senhoras para a platea dos theatros, elle, de uma occasiào, no theatro de D. Maria, quisilou-se de ter no logar adeante do seu uma senhora, que, com o cha- péu, lhe tirava a vista.

Quando lhe pareceu, disse-lhe:

O minha senhora, faz favor de tirar o seu cha- péu, que não me deixa ver nada nem a quem está atraz. . .

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A senhora olhou para elle, surpreendida, e calou-se. D'alli a nada, o Fernandes :

Ó minha senhora, faz favor de tirar o chapéu, porque não me deixa ver nem ás pessoas que estão atraz. . .

Ella:

O sr. bem sabe que eu não posso tirar o chapéu !

Ah ! Isso, pode. Pôde pôl-o, logo pode tiral-o. Ella com grande enfado :

Não quero.

Elle, um instante depois:

Vou dizer-lhe, pela ultima vez, se faz favor de tirar o chapéu, porque não me deixa ver nem ás pessoas que estão atraz ...

Ella, moita.

Não lho torno a dizer; e repare bem, minha se- nhora, porque não respondo pelas consequências... não me responsabiliso pelo que vae succeder.

Ella, com ares de arremetter, sacode desdenhosa, pe- tulantemente, os hombros. Momentos depois, a sala rompe em vozearia :

Beu ! beu !

Toda a sala, com fúria, em berros :

Beu ! beu t beu! Medonho ! . .

A senhora ouve aquelle motim horroroso, julga ser

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ella quem lhe motivo, levanta-se do seu logar, sem olhar, sem ver ninguém, e sae precipitadamente. . .

Era o Francisco Fernandes, que havia posto o chapéu na cabeça.

Ella a sair, elle a tirar o chapéu.

Serenaram, por isso mesmo, os berros, de beu beu; a peça continuou ; e elle, d'alli em deante, a seu commodo, desfructou o espectáculo que foi maravilha !

Cma carta de minha mãe foi dar-me, n'uma manhã de Évora, a noticia de que Malhão se achava mais doente. Por uma maneira o desejo de ir buscar minha mãe a Durruivos, para que, segundo o costume, passasse o in- verno em Lisboa ; e, por outra maneira, aquella noticia, fizeram com que eu apresentasse a idéa de ser tempo de deixar Évora. Foi isso o que a Letrublon qiiiz ouvir, desejosa como estava de sair d'aili. Annunciou-se a ulti- ma recita; e o Santos, a Letrublon, e o Fernandes, com ares de partirem de Évora para que eu não regressasse só, chegaram commigo ao doce accordo, logo que nos achá- mos na estrada , de confessarem que estavam , pelo menos. Ião contentes como eu, por se verem de volta no ca- minho.

Chegámos de madrugada ao Barreiro, e pelas sete horas a Lisboa. Na tarde desse mesmo dia parti para a Durruivos. N'esse tempo havia três comboios da tarde ; segui no das duas horas ; cheguei á aldeia ás dez horas da

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noite, indo encontrar n'iima confusão de gritos, que es- trugiam os ouvidos do povo, o ultimo logarejo que se encontra antes da Durruivos, Valle de Canada.

Os habitantes, das oito ou nove choupanas, casas de rama, colmadas, três ou quatro casebres caiados, e o resto verdadeiras choças pastoris, acabavam de acordar de repente. Levantam-se e correm ás portas a debru- çarem-se ao postigo... Envolve-se na escuridão o campo, que a horrivel berraria atroa. . . Ouvem-se os rebanhos nos curraes, como que a adivinharem temporal... Em al- guém abrindo a sua porta, ahi entram os cães, em ban- dos, e aos latidos, de corrida, a refugiarem-se, atrope- lando os choupanarios assustados de sentirem, nus como estão, aquella malta, de repente, como o tiro de frecha que se fazia d'antes na serra ás perdizes, cair-lhes de chofre para cima das pernas.

As mulheres, em alaridos e vozes lastimosas, tudo é quererem que se lhes diga o que é passado. . . Também eu pergunto. Ninguém sabe. Ninguém pode dizer o que aquillo seja, É um reboliço, que ninguém sabe se vem debaixo, dos pinhaes que vão para a Durruivos, se da azinhaga que corta para o Sanguinhal, se do logar mes- mo e dos curraes. . .

N'isto acorda um rapazito, chamado Francisco, que costuma andar com o gado de uma tal Rosália, e larga a berrar :

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Ai que é o lobo ! Ó tia Rosália, é o lobo, que caiu no cepo, que lhe eu armei !

O' demónio, pois tu armaste ura cepo de lobo?

E mais que armei, quem o armou fui eu ! Levava o cepo do Thimoteo, todas as noites, ha mai? de um mez, e de manhã tirava-o. . . Ai que reinata ! Está em bai- xo na volta ao do rio. . . Apanhei o lobo !

os homens se armam, as mulheres rompem a gritar que também querem ver, que esperem por ellas, arranjam archotes, poem-se a caminho, vae quanta gente ha em Valle de Canada, trinta e seis pessoas, com os cães, atraz, de vontade. O cabreiríto vae ás per- nadas, pulo aqui, salto alli, contente, audacioso, in- trépido, á frente do rancho, a commandar aquella tropa, de foice ao hombro... Fica Yalle de Canada com as portas das casas ás escancaras, sem vivalma. Não digo bem ; ficam dois velhos : um pobre homem e a sua companheira, exasperados de os deixarem para alli abandonados a tal hora da noite, e com um medo do lobo que nem podiam fallar. . .

Quanto mais se vae chegando ao sitio a ranchada, mais aterradores se tornam os berros do animal. . . As mulhe- res espantadas do caso agarram-se aos homens; as crean- ças rompem a chorar e a pedirem para voltarem para casa.

Elle tem geitos de ser graúdo ! diz o cabreirito com

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satisfação orgulhosa. Tem uma voz á mesm'alma. Apa- nhei um lobo, que é um regalo ! ! amigo ! Isto não é maio, não se trata agora de fazeres creação, nem de espreitares de longe as rezes ! Estão aqui cabeças bas- tas, mas não são de gado ! querias preza, hein? para teu regalo, n'esta ninhada? Preso estás tu, e a batida é real ! Estás com a bocca ainda maior e as orelhas mais pequenas ! O' encrespado ! ? ! Que estacada, ó Zé?! Sus... O' diabo, ó lobo, ó maldito, óaquelle hé!.. Então, de repente, apparece, erriçado, o lobo, em pé, aos saltos de se ver preso com toda aquella gente adeante de si. Todo sujo de sangue, e sangue d'elle d'aquella vez, para variar, arreganhando a dentuça, e a deitar lume pelos olhos, ainda obriga a malta a parar em distancia, com receio de se chegar para elle...

O que está a calhar é leval-o vivo ! grita o rapa- zito.

Cala essa bocca! Não sabes o que dizes ! Então não querem ver ! O rapaz cuida que isto é algum coelho ! Arreda ! deixa-me, a mim, estoiral-o com um tiro, a este raio do diabo !

E, palavras não são ditas, o João Sabino, da horta do poço, a mais bonita horta de Yallc de Canada, vae a apontar a espingarda. . . ; mas, o Francisco, como se ti- vesse o demónio no corpo, salta furioso, pendura-se no cano da arma, afasta-a, gritando que se deve apa-

A VIDA ALEGRE 1 8o

nhar o lobo vivo, que está alli gente que farte para le- var aquelle caso a efieito, que não ha coisa mais fácil-

Não poude dizer mais. Veio uma rabanada de vento sacudir a luz dos archotes ; depois, reforçando, apagar todos de uma vez . . .

As mulheres gritam, os cães ladram ; ninguém se en- tende... Fica tudo escuro como breu. Ninguém tem animo de se mecher, com medo de se chegar para o lobo. Chamam uns pelos outros, apertando-se aos encontrões. No auge da desordem ouve-se um tiro... Depois, maior ainda a calada e o susto...

. Avistam-se duas luzes, do lado do logar... chegando, chegando. . . até que se conheça quem as traz. São os dois velhos, que haviam ficado sosinhos em Yalle de Canada, e que, de curiosidade, e de medo, não puderam parar em casa.

Chegam, aos tombos, truz, catrapuz, grazinando, a ralharem qual d'elles mais. Tornam a accender-se os ar- chotes, correndo a roda, a um por um ; mas, agora o verás ? ! que é do lobo ? ! ! não está ! O que está, no cepo, é uma das patas d'elle ensanguentada... O diabo do lobo cortara um pé, e fugira !

Logo ao chegar á Durruivos, e depois de abraçar mi- nha mãe, e dar as informações devidas do caso nocturno de Valle de Canada, soube que Malhão estava deveras muito mais doente.

i86 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

Uma enfermidade que lhe principiara com a velhice e fora augmenlando lodos os dias, incharem-lhe as gengi- vas, isolara-o, havia tempo, do seu maior prazer, o de conversar. A vocação d'aquelle homem, era de seguir a imaginação, escutar o que ella lhe murmurasse ao ouvido e ao coração no seio dos campos; a doença, o isolamento, íizeram-o acahar mais inesperada e dolorosamente a sua triste odysséa.

Foi simples a vida d'elle ; não é caso para se dizer, como tanto se affirma de alguns, que seria preciso um livro para a contar ; não : uma pagina bastará. Pela isenção do seu génio, pela humildade e penumbra dos seus destinos. Malhão não se encontrou nunca á frente dos movimentos de espirito da sociedade ; conservou as boas noções, as noções sãs : foi o que fez. A nossa epo- cha tem sido por excellencia a dos escriptores calholicos, e, apesar de haver muitos inimigos da religião, tem ha- vido também, por fora, muitos padres que teem en- tretecido á egreja catholica uma coroa de sciencia e de talento ; Malhão, condemnado ás condições do paiz em que nascera, á indiíTerença geral, á parcimonia dos seus meios de vida, exultou sempre com o ver a egreja apresentar uma serie talvez sem egual de apologistas illus- Ires, mas não lhe foi dado mais do que alegrar-se com isso, e dizer aos romeiros, do alto de um púlpito da Na- zareth, que, embora algumas vezes se haja predicto

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a mina da egreja, a arvore a que agoiravam queda ia ainda provando a eterna fecundidade de sua seiva n'um rebento constante de força e de luz. . . Depois, termi- nadas as festas da romaria annual, voltava a Óbidos, e continuava a viver no seu cantinho, pobre e doente, sem que os sermões, os versos, ou as loas que compunha para as romagens, pudessem ser tidos na conta de enri- quecerem o thesouro da defeza catholica em que figura- vam os Wiseman, luctando em esplendor com os Lacor- daire ou os Ravignan.

N'um grau obscuro, se o compararmos a esses perso- nagens eminentes, não poude mais do que diligenciar manter a superioridade do clero catholico, e ser, na sua villa, o representante do ideial intellectual. Existência laboriosa, pura ; virtudes de família ; dedicação ao de- ver. Soube o que era viver com pouco, comqnasi nada ; conheceu a res augusta domi, em todo o seu rigor, sem se queixar ; comia os feijôesitos da sua horta, e ia vi- vendo. Havia um stoico n'esse padre.

Outras nomeadas mais ruidosas decrescerão, e hão de desappareccr : a glorfa de Malhão conservar-se-ha ; foi um aldeão poeta, mas foi um homem de talento, um bom padre, um crente ; viveu, com os seus livros santos, e com as tradições sagradas, cantando e achando conso- lações suficientes na solidão do presbyterio, mystica união do levita com a egreja.

188 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

Fez-me falta aquelle espirito, aqueile coração alegre e bom. . .

E como por esse tempo o procurador me desse a no- ticia de que principiavam a libertar-se os prédios, que por morte de meu pae haviam ficado consagrados a pa- gar dividas, e que teria, dentro de dois mezes, um, ao Sa- litre, esquina da travessa do Moreira, ás minhas ordens, retorqui como de rasão, que mandasse elle limpar e afor- mosear essa vivenda, e que, para encher esses dois me- zes, me iria eu até Paris frequentar um bocadinho aquel- les alegres maganões e maganonas, de quem sempre tanto ouvira fallar. . .

O procurador esbogalhou os olhos. . .

Para França, sim ! Yae perguntar-me com que di- nheiro. Não será com o d'esse prédio, não. Esse, não o heide eu vender, tenho-lhe amor ; vivi ahi com o meu pae e a minha mãe, nos meus primeiros tempos de Lis- boa ; em se livrando outros, então fallaremos, porque hão de livrar-se os outros, não é assim ? hão de ser- vir para alguma coisa, esses santos prédios, que ainda me não serviram para nada ! ? Heide viajal-os^ procura- dor amigo, os das Amoreiras, o do Passo do Bem For- moso, o da rua da Praga, o da rua das Pretas ; e, uma vez que, em 1851, me aconselhou completa obediência, (completa passividade ao andamento da ruim fortuna, e que eu segui á risca os seus dictames, agora também.

A VIDA ALEGRE 189

é tempo, caro sr. Rocha, de que elles saibam com quem de entender-se têem, esses prédios amigos, que nunca me viram, e estão decerto desejosos de saber se é certo que eu tenha, como dizem, muito abertas as azas do nariz !

Contractei n'esse mesmo dia com o editor dos Contos ao luar, e das Scenas da minha terra, um livro novo, que houvesse de fazer a respeito de Paris. Acabara de re- ceber o preço de um volume que lhe entreguei em manuscripto. Passeios e Phantasias, e o dinheiro, adean- tado, do livro da viagem ; a primeira pessoa, que encon- trei, foi Thomaz de Carvalho ; e tão contente eu ia, que me pareceu indispensável dar-lhe noticias minhas circum- stanciadas, mettendo-me com elle n'uma escada, e mos- trando-lhe o dinheiro...

Olha, vês?

O que é isso? ! Para que é isso ?

Para ir a Paris.

Elle deu-me um olhar como deva dar-se a um irmão. . .

Bravo ! disse. Vae ! É-te preciso.

Tomei passagem a bordo do Ville de Brest, que fazia ã sua primeira viagem, e partia d'alli a dois dias. Por que Thomaz de Carvalho contasse em diíTerentes silios a scena da escada, a minha alegria, o meu dinheiro, a rainha viagem, recebi cartas a recoramendarem-me para

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França ; Casal Ribeiro aprcsentou-nie a Erlanger, o fa- moso banqueiro ; Lobo dVVvila, hoje conde de Valbom, ao visconde de Paiva, nosso ministro em Paris ; António Feliciano de Castilho ao celebre FerdinandDenis, biblio- thecario de Sainte-Geneviòve; Teixeira de Vasconcellos ao conde La Varenne, a Hypolite Castille, auctor da Histoire de la Seconde Mèpiiblique, a Monseíet, e a De Mazade da Meviie des deux mondes ; a senhora D. Maria Kruz teve a gentileza de querer escrever a sua irmã, D. Emilia de Azevedo, que a esse tempo vivia desde annos em Paris, e dar-me a fortuna do seu conhecimen- to. Quando fui á noite á rua Formosa, buscar essa carta, estava jantando em casa José Estevam, e, ao dize- rem-lhe que eu ia para Paris, levantou-se, veio direito a mim, com uma expressão de jubilo em que havia o seu quê de grande, como em tudo que elle fizesse ou dissesse:

Vossê vae para Paris ?

Amanhã !

É soberbo ! exclamou. Sem dinheiro ! Soberbo !. . Levantou-me ao ar, para me ver melhor. D. Pedro de

Brito do Rio, a sr.** D. Maria Kruz, e sua gentil íilha, hoje condessa de Ficalho, riam a bom rir. José Estevam, no seu enthusiasmo, julgava-me mais heróico ainda do que eu era ; eu levava pouco dinheiro, muito pouco, mas não era tão sublime que fosse absolutamente sem ne- nhum.

Como pode calcular-se, tudo foram deslumbramentos para mim n'essa primeira viagem a França !

O mar não eslava bom nem mau, o peor mar que ha para livro, porque não renda meia pagina sequer ! um mar para se ir deitado. Chegámos a Saint-Nazaire sem perpassar da brisa á flor serena das aguas^ nem gemer do vendaval nas ondas. . .

Meio termo !

Ao olhar para aquellas margens e ao ver tudo tão bem aproveitado, tanta cultura, tanto gosto nas edificações, um tom tão simples e tão útil na maneira de feitorisar, avistei a varinha da íada civilisação ; e lembrei-me, abaixando os olhos, dos armazéns do Ginjal, das cabanas do Barreiro, e da única hospedaria de Vendas Novas, a tal do bom chá, cuja entrada era peia cavallariça ! Para

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consolar o orgulho pátrio olhei para o ceu ! de um azul esbranquiçado, ceu também civilisado, ceu blasé. . .

Saint-Nazaire, que um nosso companheiro de via- gens, o conselheiro Paiva Pereira, amável homem, que traduzia todos os nomes para maior clareza, chamava Santo Nazario era uma pequenina povoação, que, n'a- quelle tempo, se julgava destinada a bons destinos e a ser considerada porto importante ; hoje ninguém falia nem pensa n'isso, e a companhia de vapores fran- cezes, que faziam aquella carreira, trocou pelo Havre Santo Nazario c Saint-Nazaire.

Porque o trem expresso para Paris não devesse partir senão na tarde immediata ao dia da nossa chegada, parti para Nantes pela manhã, a aproveitar o dia em visitar a cidade, que, apesar de antiquissima, é bonita, com lo- jas faustuosas, grandes espelhos, lettreiros monstros, tudo a dispor e a preparar para se ler, por assim dizermos, uma idéa de Paris.

ahi senti perfeitamente a França ; lembra-me, por exemplo, que, na hospedaria onde jantei estava n'uma das paredes um prospecto de um livro novo, que tinha por titulo Faut-il se marier ? por A. Fourgeaud. Fal- taram três minutos para a meza redonda ; esperávamos na sala, uns poucos de francezes, dois allemães, e eu ; os francezes olharam para o prospecto, sorriram-se, um d'el- les tirou da carteira o lápis e escreveu de um lado : Non;

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outro pediu-lhe o lápis e escreveu do outro lado : Cest selon; pourquoi pas ? ; o outro, com o mesmo lápis, es- creveu por cima : Ouff! jamais ! ; íinalmente outro, com o mesmo lápis, escreveu por baixo : Oiii, ca nengage à rien. N'isto, tocou a sineta pela terceira vez, guardou-se o lápis, e fomos jantar.

Parti de Nantes no comboio da noite ; parámos n'algu- mas estações, creio que por brincadeira; os guardas di- ziam : Dez minutos para os senhores viajantes ! de- pois, no momento em que os viajantes desciam para irem comprar um frangão assado, para beberem agua, ou mes- mo para a antitJiese da sede, diziam os guardas : Os senhores viajantes recolham-se ás carruagens!

Entrei em Paris ás quatro horas e meia da manhã. Estava-sc no fim de junho. Dormia ainda a população importante, a população proletária acordava, a popula- ção elegante ia-se deitar. Metti-me n'um coupé, que seguiu ronceiramente, como querendo dar-me tempo a obser- var o que ia encontrando. Sentia o coração inquieto. Quando passámos ao lado do Jardin des 'plantes, a modo que receei que o celebre urso Martin, tão fallado, que n'esse tempo alli vivia, me perguntasse noticias nos- sas.. . Á medida que penetrava em Paris não via se- não prédios enormes, cobertos de letlreiros, alguns de alto a baixo ; dir-se-hia uma cidade a deitar annuncios da sua expropriação por grosso e miúdo 1 . .

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194 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

Doces dias da mocidade ! Estremeço ainda á lembrança dos primeiros, alegres, dias, que então vivi em Paris.. . Tinha vinte e cinco annos, e a melhor das riquezas, um natural simples, empreendedor, alegre, sem outras am- bições senão as de não ser o ultimo da minha profissão no género em que trabalhasse, e levar vida divertida no tempo que me ficasse livre das obrigações do meu officio.

Para a minha edade e para o meu génio. Paris, segundo a expressão popular, estava a dizer ginjas. É inútil expli- car, que, n'aquella festa, o coração tinha o seu quinhão- sito, e prefiro dar esta satisfação, que ninguém me pede, a ficar exposto ao juizo que formassem de que essa ale- gria assentava tontamente por alguma maneira nas promptas delicias do Mabille. .. A felicidade, em quanto se é moço, tem isso de bom, que ninguém a compra, e que, quando Deus quer, um homem, que não possa ter dinheiro, possa tel-a, a ella. Ê celebre, mas é bem bom ; assim mesmo !

Pelo facto de em Paris não viver ninguém em casa, visto como se almoce n'um botequim, se jante n'uma casa de pasto, se tome cognac nos cafés, nos theatros, ou nos concertos, e a casa sirva apenas para dormir, quando um homem leve a morigeração ao subido grau de ir dormir a casa, habituei-me mais ou menos á exis- tência sui generis d'aquella terra, em que toda a gente se

A VIDA ALEGRE 195

occupa vivamente n'alguma coisa, sem ficar por isso com ares de fadiga ; em que a população fluctuante auxilia tanto o hulicio, que, por si só, quasi, enche os theatros, as exposições, os divertimentos ; em que, parando n'um sitio seja qual fôr, um homem, ao voltar a cabeça, vê, por força, uma sege, uma cocotte, e uma casa de pasto ; onde se sobe á fama por um arame, por uma bola de papel, pelo fio de uma faca, por um bago d'uva ; em que é brilhante tudo que é serio, e até as tolices têem a habi- lidade de sairem engraçadas !

As cartas que levei, foram-me de grande utilidade. O visconde de Paiva fez completa honra á recommendação de Casal Ribeiro, e teve grandes bondades para commi- go. Era homem extremamente fino, attento ás delicade- zas sociaes, e sabendo usar d'isso como ninguém, sem dar ensejo a que se lhe estranhasse n'esse capitulo o mais leve senão. Lembra-me, por exemplo, de um relance de scena a que assisti em sua casa um dia, por occasião de outra viagem, em 1864. Estávamos na sala, a viscon- dessa, seu filho o sr. Adolpho de Paiva, o sr. Mathiasde Carvalho, hoje nosso ministro em Roma, en'essa epocha ministro da fazenda em perspectiva, Francisco Kruz, o conde d'Obidos, e eu. Veiu o creado annunciar o jantar ; o visconde fez um leve aceno para indicar a um de nós que fosse offerecer o braço á viscondessa ; o sr. Mathias de Carvalho entendeu ser para elle a intenção d'aquelle

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aceno, e adiantou-se correndo para a dona da casa ; o Paiva, então, com a serenidade diplomática que o não abandonava nunca :

Sr. conde ! disse.

E o conde d'Obidos foi dar o braço á viscondessa, dei- xando-nos a fortuna ao Francisco Kruz e a mim de irmos atraz com o sr. Matbias de Carvalho. Note-se que o vis- conde estava a esse tempo n'uma situação um pouco difficil, cercado de credores, sabendo toda a gente isso em Paris, sabendo-o o governo perfeitamente em Lisboa ; e comquanto elle não pudesse de nenhum modo depen- der do conde d'Obidos, e estivesse em vésperas de de- pender do sr. Matbias de Carvalho, nem por isso lhe es- queceu que havia alli um conde, e que era ao conde, e não ao futuro ministro, que o ministro de Portugal devia convidar para oflerecer o braço á viscondessa. Isto não vale nada; mas foi por estes nadas que o visconde de Paiva se sustentou em Paris muitos annos, durante grande numero dos quaes por vezes se diligenciou fa- zel-o sair.

No dia em que me propuz entregar a carta de Teixeira de Vasconcellos a Charles de Mazade, indo procural-o a Passy, onde elle estava residindo, disse-me o cocheiro, indicando-me uma casa pouco antes d'essa :

Casa de Rossini !

E eu pensei entre mim :

A VIDA ALEGRE 197

Quem me dera ter uma carta para este I . .

Essa carta tive-a depois, e logo vamos ver porque ma- neira ; ou antes, vejamol-o já, para não usarmos do velho processo das novellas antigas, que tudo era addia- rem de um capitulo para outro as revelações de maior in- teresse.

Conta-se em duas palavras. Não lhes tomarei tempo... O que é preciso é dar um salto de dois annos. Mas, isso, dá-se facilmente. Quem é que não um salto de dois annos, de mais a mais, para a frente? Quantos os armam com galhardia para a recta-guarda, não de dois, mas de dez ou quinze, e pulam mergulhando... em agua circassiana !

Beneventano, dois annos depois dos acontecimentos que Íamos narrando, isto é, em 1864, visto que esta pri- meira viagem foi em 18C2, deu-me uma carta para Rossini.

Beneventano era um dos últimos representantes illus- tres do bel canto, o canto das volalas, ou roulades, ou como queiram exprimir isso, o canto ornado, emhm, o canto rossiniano.

Além da carta para Rossini, escreveu também a um certo Belleti, flauta da orchestra da grande opera, solista eximio e grande amigo de Rossini.

Depois, não contente de me recommendar a Rossini directamente, e a Belleti para me acompanhar a casa de Rossini, escreveu a fraschini, que se achava então em

198 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

Paris, para que elle prevenisse Rossini e o fosse prepa- rando de véspera, como a gente costuma dizer.

Tudo isso se realisou.

Fraschini, que me conhecia do theatro de S. Carlos das epochas de 1860, e 1861, e a quem, no folhetim da Re- volução de Setembro^ fiz sempre com boa sympathia a justiça a que o seu subido merecimento tinha direito, pareceu aproveitar com prazer aquella occasião de me ser agradável, e fallou a Rossini com vivo empenho a meu respeito.

Belleti, pela sua parte, foi gentillissimo, e, dez minu- tos antes da hora, que Rossini marcara para me receber, subiamos não em Passy, mas em Paris, a escada do auctor da Semiramis, e, chegados ao segundo andar, entrava- mos na casa em que vivia o grande homem.

Tenho o gosto de apresentar-lhe, caro maestro, disse Belleti o sr. Machado, escriptor de Lisboa, que o amigo Beneventano tanto nos recommenda, e de quem hontem Fraschini lhe fallou de uma forma. . .

Rossini, que estava sentado a uma pequena mesa de trabalho, com papeis de musica diante de si, ia a er- guer-se do seu logar com extrema amabilidade, quando me apressei a retel-o e balbuciei o que quer que fosse no género de :

É este um dia de gloria para mim, sr. Rossini, por alcançar a honra de apertar-lhe a mão. . .

A VIDA ALEGRE 199

Oh! interrompeu elle. Deixêmo-nos de phrases ; sei que o sr. Machado vive de fabricar d'isso, e ainda hontem o caro Fraschini me assegurou que se sustenta d'essa industria muito bem na sua terra.

Logo depois, voltando-se para Belleti, que se con- servava como que trepado em suas gigantescas pernas observando o mestre, de cima, com olhos vivos e in- quietos, como do alto de um zimbório, accrescentou, indicando-m'o, n'um gracioso tom emphatico :

Aqui está vendo o mais bonito rapaz de França e de Navarra, il illustre Belleti !

Belleti fez-se corado nos seus quarenta annos, e foi sentar-se encostado á parede para lhe caberem as per- nas no gabinete.

Como está por lá, perguntou-me Rossini, o sr. D. Fernando, de Portugal ?

A ultima vez que avistei Sua Magestade pareceu- me alegre e bem disposto. Era no theatro lyrico, canta- va-se Guilherme Tell, e o sr. D. Fernando, como que en- cantado d'aquella musica, que nos é deliciosa a todos e predilecta d'elle, acompanhava, de reminiscência, muitos trechos, batendo com os dedos no parapeito do camarote, com expressão de enthusiasmo.

Aqui tive o prazer de o conhecer em Paris, disse Rossini ; de uma occasião em que fui visilal-o n'uma ma- nhã cedo e quando ninguém me esperava, valendo-me

200 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

de explicar que um velho maestro não tem sexo, rimos bastante do assalto que dei á incógnita de um incógnito, fartando assim a curiosidade que tinha de a ver. Sinto pena de o não ler ouvido cantar. Dizem que possue uma voz lindissima. Um maldito defluxo teve toda a culpa d'esse contratempo ; Sua Magestade estava constipado e não poude conceder-me o gosto de o ouvir. Pela mi- nha parte, nos meus tempos, em tendo deíluxo, seguia sempre o systema contrario para os curar ; jantava com alguns amigos ou iamos cear juntos, e depois prin- cipiávamos a correr as ruas, recolhendo para casa fora d'horas, cantando eu, com quanta anciã tinha e a dei- tar tudo abaixo, musica que ia improvisando, ás vezes um miserere, com grande escândalo das devotas do bairro: punha-me isso bom no dia seguinte. Não me atrevi porém a supplicar com mais insistência o sr. D. Fernando, por me lembrar que talvez entrasse um suave sentimento de preguiça na sua recusa, e a preguiça é sentimento tão respeitável . . .

N'isto, indicando-nos os papeis, que tinha diante de si, e n'um tom de humour:

Aqui está em que passo hoje a minha vida ! disse. A emendar copias de uma missa, em que o copista me faz a cada instante de um um sol! Mas, conte-me ; morreu aquelle pobre Porto, empresário, coitado ! Essa morte foi para mim uma dupla perdal Oh ! Um golpe ines-

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perado. Perdi n'aquèlle homem um amigo, e um excel- lente vinho do Porto que elle me tinha promettido. Foi uma dupla perda I Ça fait deux Portos !

Vi-o rir n'essa occssião ; coisa que valia a pena, ver rir Rossini ! Elle era um homem alto, gordo, pallido, mas d'aquella pallidez maravilhosamente diaphana, que os pintores dão por vezes ás íiguras phantasticas. Tinha então (em 1864) setenta e dois annos. Em redor da fronte extraordinariamente descoherta, como para mos- trar quanto era vasto o recinto do seu divino talento, quem dera poder ter visto, negligentemente atirados para traz, os caprichosos anneis de cahellos brancos que aquella physionomia requeria ! Mas, ai de mim ! Uma cabel leira, nefanda como a de qualquer manleigueiro, que, para al- cançar tudo por dinheiro, até cahellos compre, uma ca- belleira impia, ridícula, atroz de pretenção e de burgue- zia, insultava os restos de poesia d'aquelle rosto, que tantas amantes haveriam beijado ; e o olhar como que se offendia quando, em vez de encontrar a calva elo- quente d'aquelle velho sublime, deparava com o alvíssi- mo rego do apartado e os empastados cahellos de um chino de D. Bartholo na cabeça do auctor do Barbeiro t A bocca, pequena para homem, e espirituosa como a malicia mesma, deixava-se franzir quasi sempre n'um sorriso irónico, indicio do caracter d'elle. O olhar, pro- fundo c claro, illuminava-se-lhe ainda d'aquella luz

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feiticeira, a cujos ardores se prostrara^ em tempos a re- sistência das mulheres, tanta ternura esse olhar lhes promettia para a doce hora em que duas creaturas se salvem ou se percam nas silenciosas harmonias do co- ração...

#

Esse homem, do que se sabe, e pelo que elle ainda denunciava, fora singularmente, artisticamente bem pare- cido ; escreveu-se a respeito da formosura d'elle como da do duque de Loulé ; os amigos tratavam-o, em rapaz, por Apollo de Belvedere. Elle mesmo, tinha veleidades pue- ris, engraçadas ; de uma occasiào disse a um pedante, que era monsenhor, e que lhe estava dando uma mas- sada no quarto da hospedaria, sem o deixar levantar da cama : «Está ahi o senhor a fallar-me de gloria ! Quer dar-se ao incommodo de ficar sabendo qual é o meu verdadeiro titulo á immortalidade? É ser o mais bello homem do meu século. Disse-me o Canova que tenciona tomar-me um dia por modelo para uma estatua d'Achil- les !)) e, palavras não eram ditas, salta fora dos lençoes e patenteia-se aos olhos do monsenhor, prelado romano, em trage. . . d'Achilles, o que, em certos paizes, passa por falta de attenção... «Veja-me esta perna ! Que me diz ao braço? E os hombros, hem, que largura ! prose- guia. Quando se tem este feitio, creio que pôde um ho- mem estar seguro da immortalidade!» E enthusiasma- va-se, aquecia, exaltava-se pelo que ia dizendo ; e pelo

A VIDA ALEGRE 203

riso, que lhe suscitava a extravagância das lembran- ças, improvisando carapetões, com tal veia e petulância que era maravilha ouvil-o, e que o pedante se viu na necessidade de largar a fugir. Lopes de Mendonça tinha igual maneira de gracejar ; mania ou não, principio ou não principio de loucura, dizia e fazia d'esses dis- parates ; quasi sempre, coisa curiosa, quando os cre- dores iam procural-o a casa. Muitas vezes assisti a essas scenas. Os credores acabavam por concordar em que não havia um homem tão bem feito de corpo como elle, e que era ingrato querer que elle pagasse o fato com que se vestia ; mas iam recebendo alguma coisa á conta. . . O único enthusiasmo de Rossini, áquelle tempo, era voz geral que se cifrava nas delicias da mesa e no prazer da cosinha, sendo elle próprio, segundo affir- mavam, um cosinheiro di qualitá. Honras, celebridade, gloria, não tinham o poder de acordal-o do dolce far niente a que se entregava, desde que o seu casamento com a cantora Colbrand o tornara rico ; a phrase de Sa- lomão : «debaixo do sol não ha senão vaidade! 9 era o seu conceito predilecto. Não fazia caso de coisa alguma que parecesse grande coisa. Quando collocaram o busto d'elle em Pesaro, sua terra natal, os membros do con- selho, não contentes com isso, resolveram levantar-lhe em vida uma estatua de altura natural, defronte da casa da camará, para que, quando os habitantes dos campos

APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

viessem ás terças e sextas feiras nos dias de mercado, tivessem a vantagem de poderem admirar o seu illustre concidadão.

Rossini, ao darem-Ihe parte d'isto, parece que reflexio- nou um momento, e perguntou depois ao orador da de- putação que lhe fora annunciar esse projecto:

Em quanto pode importar essa brincadeira ?

Votou-se uma somma de doze mil libras. Rossini reflectiu de novo.

Tenho uma idéa !

Não me admira ! disse o orador.

Uma idéa, e, para melhor dizer, uma proposta !

Uma proposta !

Isso é.

Vamos a ouvir, esplendido maestro !

Que necessidade ha de fazer essa despeza toda ? ! Fallemos aqui á puridade. Paguem-me os senhores me- tade d'essa quantia. . .

Metade ?

Metade ; e irei eu próprio duas vezes por semana á praça do mercado, ou onde quizerem, mostrar-meem pessoa, para que os meus compatriotas possam divertir-se a olhar para mim á sua vontade por espaço de uma hora!

A camará, pelos modos, não acceitou este alvitre. A vida de Rossini foi um destino de romance. Os amo- res, os triumphos, as aventuras de todos os géneros, merco

A VIDA. ALEGRE 20o

de uma prodigiosa facilidade de trabalhar, preencheram- Ihe a existência. O que elle compoz de operas, missas, cantatas, symphonias, quartetos, árias, coros, estancias, é uni prodígio, que surprehende á simples vista do ca- thalogo ; todavia, na sua musica, assim como em toda a vida d'elle, a tri&teza érara; estylo elegante, rápido, de uma frescura seductora; melancholia ligeira, graciosa, mais bonita que apaixonada.

Coisa curiosa ; esse homem que levou a vida em aven- turas, que raptou mulheres, inquietou maridos, e aniqui- lou rivaes, bello pelo seu talento, pela sua pessoa, e pslo prestigio tentador de uma mocidade aventurosa, que não cuidou senão de cantar e gosar, esse homem, que com- poz o ultimo acto do Othello e a serenata do Barbeiro, que nunca pensou senão em mulheres, nunca trabalhou senão para lhes agradar, não quiz agradar-lhes senão para as ter; que andou de uma para outra como devorado pela insaciedade da poesia, que procura sempre o ideal que lhe foge ; que casou duas vezes, de ambas as vezes rico ; que foi amado centos de vezes, de todas as vezes pobre ; esse homem não teve uma paixão na vida !

Os senhores em Portugal são revolucionários? perguntou-me elle depois de uma breve pausa.

Não temos dinheiro para nos arriscarmos a essas elegâncias. . .

Não é preciso. As melhores revoluções são as que

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duram vinte e quatro horas, e um dos motivos porque são melhores é por custarem mais haratas. Portugal deve ser um bom paiz ! fresco, hospitaleiro, tranquillo, e muito laranjado; quem for poderá clamar affoitamente: Inveni porlum, e até traduzir por esta maneira : Achei o vinho do Porto ! Nos meus tempos, quantas vezes for- mei tenção de ir ver Lisboa ! Hoje, porém, as viagens estão sendo tão difficeis, que devo renunciar a esse ideal.

Como, difficeis ! Tudo caminhos de ferro !

E então ! ? Nada peior para mim, que não posso andar em caminhos de ferro ! Andei n'elles uma única vez, e tive uma paralysia que me conservou quinze dias de cama ! Vim uma occasião de Florença, em jornada de carruagem, parando de terra em terra, para não me expor ao horror do wagon 1

Essa agora !

Olhe ; estou convencido, que, d'aqui a annos, ha de ser grandemente elegante emprehender longas via- gens em calleça e corricolo! O caminho de ferro matou a poesia das viagens com a historia da certeza, e da exa- ctidão. Acabaram as aventuras de jornada, os casos im- previstos, os transtornos que depois divertiam, a come- dia e o drama de correr terras !

Um criado veiu annunciar não sei que cantora italiana.

Vem passar o dia comnosco ! disse Rossini. Faça-a entrar para os quartos da senhora. Conhece-a, Belleti?

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Conhecia-a. Hoje não me recordo bem . . . Chega (la America, creio eu. Deve estar velha !

Não, homem ! É melhor que moça, está a mocidade em pessoa ; fez-se divina, depois de Deus ha muito tempo a haver formado bella ! Andam sempre a dizer que não tem cada um senão a edade que pareça ter! Simpleza ! O que deve dizer-se é que uma pessoa tem unicamente a edade que arranja por sua curiosidade. Estes malditos teem corações, que não pulsam senão por certidões de baptismo ! Querem ver os papeis ! Não sei como não per- guntam aos poetas se para fazerem versos se servem do Diccionario das rimas ? que querem saber tudo ! For- tes ratões !

Correu sempre fama da avareza de Rossini, e todavia parece não ser completamente justo esse boato, e ter sido proveniente de sua mulher a austeridade que reina- va em casa do celebre maestro^ á mesa, para com os con- vidados. Nunca tive alli bastante intimidade, nem occa- sião de poder julgar da verdade ou não verdade de um tal ponto histórico ; mas o Fraschini, o Bélleti, e ainda outras pessoas muito d'elle, aíTiançaram-me ser falso o que se dizia. Sua mulher n'aquelle tempo era a Pélissier, Olympia Pélissier, que exercera a proíissão de modelo de um pintor celebre durante annos. Dizia-se que tinha um génio diabólico, e ser sua prenda especial a mesquinhez. Rossini não se atrevia, pelos modos, a protestar contra a

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Índole tacanha d'essa creatura, que, apesar das ridicula- rias que o seu génio nimiamente parco denunciava a cada instante, lhe havia levado consideráveis haveres. Ria-se, brincava com isso, é até possivel que houvesse aprendido d'ella, sua companheira de uns poucos de annos, a sa- borear os gozos da avareza de uma vez ou de outra, e dizem que não deixa de ser agradável tomar o gosto a isso, com o que até íica explicado que os pródigos sejam também sempre avarentos ; mas, em não estando de humor favorável para taes excessos... somitegos, Rossinj revoltava-se contra a sordidez do temperamento d'e]la. De uma occasião, á sobremeza, estando a jantar duas pes- soas de fora, uma d'ellas muito familiar da casa, e a ou- tra não, afastou a Pélisser um pouco um bolo redondo, espécie de pudding ou de bolo inglez, para assim preve- nir á cautella, que não deitassem a mão ao prato ; Ros- sini mostrou-se enfadado com isso, e disse-lhe com voz cáustica :

Ó menina, porque não mandas tu fazer essas coisas de papelão? D'esse modo ninguém se tentaria a metter- Ihes a facca, e seria um socego para ti I ? !

Quando parti de Paris, pedi-lhe o favor de um retrato seu.

Com muito gosto, respondeu -me, e tenho um, que me trouxeram ha dias, que está de grande similhança. Yeja-o ! Estes diabólicos photographos deixana, por baixo

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dos retratos uma tão estreita margem, que me vejo afflicto para melter aqui a minha assignatura, e não tenho remédio senão dar-lhe o meu nome. . . homoepa- thico ! Eil-o.

Escreveu : Gioachino Rossini 1864.

Apertei-!he a mão, aqaella mão suhlime que escre- veu o Stabat, e que estava havia muitos annos... mettida na algibeira ; e despedi-me do deus da musica, depois de elle me, confiar um rolo de papeis, não sei que composição sua, pedindo-me para a entregar ao senhor D. Fernando ; o que fiz, logo que cheguei a Lisboa.

E agora, outra vez a Passy !

íamos a casa de Charles de Mazade. Passy, 2o. Era meio dia ; a essa hora, em Paris, todos os escriptores estão em casa ; elle estava na sua de Passy de Paris, como por dizem, e appareceu-me logo.

Charles de Mazade era, em 1862, homem de quarenta annos ; meia estatura, ar grave e digno, esmeradamente correcto na conversação ; olhos um pouco inflammados, como que a denunciarem applicação excessiva, abuso de trabalho. Vivia com um irmão, Victor de Mazade, engenh'iro, que estivera em Aveiro por occasião dos estudos para a construcção da linha, e fallava cem en- thusiasmo de José Estevão, com quem convivera alli.

Porque fosse o primeiro escriptor com quem fallava era Paris. e com poucos mais fallei depois d'elle, de

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210 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

cinco vezes que fui a França, arrependendo-me hoje principalmente de não me haver atrevido a bater á porta de Júlio Janin, apesar da grande tentação que tive de o fazer, n'essa mesma terra de Passy, onde elle estava então vivendo; mas, dissera a mim mesmo «Que diabo vaes tu fazer, ou antes que vaes tu dizer-lhe: que o queres ver, apertar-lhe a mão, abraçal-o? Tudo isso vae bem ; quando, porém, te pergunte em que te empregas, que officio é o teu, não haverá uma espécie de petulância em responderes áquelle homem illustre que tem traba- lhado tanto e que representa para o mundo o folhetim, tu, com os teus vinte e cinco annos apenas, e os teus pou- cos annos de meias columnas de jornal, Sr. Janin, eu também sou folhetinista... ! Não ; vae-te andando ; deixa o homem ; lê-o, estuda-o, admira-o, mas deixa-o quieto, e vae-te andando!» E fui-me andando ;e, apesar de arre- pendido d'isso, é quasi seguro que faria hoje o mesmo outra vez. . . ; mas, com o Charles de Mazade, como a carta, que levava, me impellia a isso, desforrei-me de todas as hesitações e acanhamentos, e regalei-o com um presente que deveria dar-lhe um gosto extremo... um volume dos Contos ao luar, com quanto tivesse vivas appreensões de que elle o não lesse nem o pudesse ler, não digo porque não quizesse, mas por não entender palavra da lingua porlugueza. Qual foi, porém, o meu pasmo, quando elle, entre-

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gando o livro a seu irmão Victor, lhe disse com a en- toação mais verosimil :

Lê-me ahi uma pagina. . .

E o irmão, abrindo o livro, ao acaso : a// faut voir Lessa da Palmeira, à 1'heureoú les femmes des pécheurs..,

Mas, o titulo ? interrompia o outro.

Corães au clair de lune. . .

Então, de pasmo em pasmo, ouvi-o traduzir, rapida- mente, correntemente, um dos trechos dos Contos ao luar, a historia dos Dois pescadores de Lessa da Palmeira^ que principia pela lenda do Senhor de Bouças, Senhor de Mattosinhos, ou Senhor dos Aíflictos.. .

Em Passy 1 ponderava eu de mim para mim ! Tudo isto em Passy ! . .

E esfregava os olhos como costumam fazer, nas peças magicas, os pastores, quando, de repente, se acham mu- dados em príncipes. . .

Essa admiração, ainda assim, não foi talvez tão extraor- dinária como deve ter sido a de algum compatriota meu, quando, tempo depois, ao folhear, no Grémio, o nu- mero de 1 de julho de 1864 da Beviie des deux mon- des, encontrou o meu nome, n'um artigo, em que o Ma- zade, por aflectuosa prova de estima de que lhe sou grato, aproveitara o ensejo de o citar. He ! Que queres que lhe faça; compatriota?! Em a gente traindo da sua terra íica exposto a encontrar de tudo, até a encontrar

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um homem que depois nos cite na Revista dos dois mun- dos!

Tudo isso hoje é mais simples. N'aquelle tempo, porém, ainda se dobrava a lingua para dizer viajar; e, quem ouvia fallar n'isso, punha a mão na orelha com ares de quem resguarde a trompa de Eusta- chio da audição de uma raridade... Era necessário estar prompto de malas e de passaporte á espera de que passasse do Brazil o vapor do dia 13, de Bordéus, e íicar de queixo cahido se não houvesse logar nos beli- ches, — ou metter-se na casca de noz dos Ville de Lis- bonne, Ville de Paris, Ville de Málaga, da carreira de Saint-Nazaire, oito dias a bailar nas aguas, quando não era para todo o sempre !

Nas primeiras viagens por terra que fiz a França, de Badajoz a Madrid tive de aguentar-me em mala-posta ; e, de Madrid a Bayonna, por duas vezes, quatro, cinco horas de diligencia. E que diligencia, e que mala-posta! Que seje, senhor conde ! como dizia o Tolenlino.

Partia, de Lisboa, no comboio, uma pessoa, fiada na providencia, e nutrindo a esperança de obter bilhete sem demora em Badajoz ; uma vez lá, sendo apenas dois os logares da mala-posta, succedia muitas vezes esta- rem tomados com antecedência, e o sujeito ficar uma semana á espera, mettido n'um diabo de fonda de las Três Naciones, horror de hospedaria conhecida mais

I

A VIDA ALEGRE 213

vulgarmente por Pan seco, não sei se por ser o appellido do dono da casa, se por não haver n'ella de ordinário outro manjar que se podesse comer. . .

Badajoz surprehendia-nos de madrugada ; passando pela rua, áquella hora, vários habitantes d'essa capi- tal da provincia, em traje hespanhol, para nos darem logo no acto de acordarmos e esfregarmos os olhos, uma forte dose de côr local.

Entrava-se n'um carro, que obrigava a gente a ir bai- lando o bolero, mesmo sentada, saltando de barranco em barranco, n'um caminho atroz, destinado a deixar-nos avistar a cidade, cercada de muralhas, estendendo-sepor uma collina, coroada com as ruinas de um castello velho, e a conduzir-nos á tal maganice das Três Naciones, que ainda moia muito mais do que o carro, por ser da força de trez nações que se puzerem ás costas de um homem; ratoeira em ponto grande, onde cada um pode- ria arruinar-se de tudo. . . menos de paladar, visto como não se chegava a poder comer !

Em se devendo esperar mais de três dias por logar namala-posta, saia-se d'alli com cabellos brancos, como o Latude passados os trinta annos de seu captiveiro. . .

Mas a mala-posta alegrava, e compensava-nos de to- das as penas e trabalhos. Era uma serie de caixas, uma para guardar o correio, outra para guardar as bagagens, e outra para guardar os passageiros, tudo velho, a desa-

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bar; segura por cordas, puchada por sete mulas que voa- vam por campos e valles, com uma orcheslra de pragas, gritos, chicotadas de cocheiro, de noite, de madrugada, ao meio dia, ou á hora em que fugia o sol, e em que a gente vendo alargarem-se os horisontes, tudo charnecas e montanhas, chegava a ter medo de perder pelo cami- nho as contemplações, os sonhos poéticos, os contos e lendas d'aquelle paiz encantado, á medida que se atra- vessavam campos sem habitantes, sem casas, sem arvo- res, e se via a serra de Guadarrama a apparecer-nos sempre em ondulações imprevistas como a querer pre- gar-nos alguma. . .

Alimentava-se o viajante, dois dias e duas noites, de chocolate, que tomava a ferver, com uma pressa impia, nas localidades em que havia muda... EmTrujillo almo- çava ; se pedia manteiga, davam-lhe manteiga de porco <.iEs de cerdo, no hay de otran : íicava um homem fulmi- nado. . .

Era então logo alli adiante, de Carrascal a Almaraz, quaíorze léguas, que se apanhava o luxo de possuir um postilhão, de chapéu na orelha, jaqueta arruinada, gran- des botas fanfarras, esporas compridas. Tinha uns olhi- nhos de uma mobilidade extrema, voz vibrante, cabei- los á mercê do vento. Não tinha dentes. Um biltre que quiz vingar-se d'elle, não sei por que historia, fizera-lhe com outros amigos uma espera, amarraram-o a uma arvore

A VIDA ALEGRE 245

etiraram-lhe OS dentes. Era um aragonez, esse postilhão; andava havia mais de vinte annos n'aquelle serviço de cavalgar todos os dias quatorze horas, no inverno, a cair- Ihe neve em cima, e de verão debaixo de um sol de abra- zar, para ganhar duas pecetas, dezeseis vinténs !

Jantava-se em Talavera de la Reina. Chegavam alli os viajantes pelo fim da tarde, no verão, a tremerem de que lhe dessem sopa de chocolate. . .

Interrogava-se timidamente o cocheiro a respeito do género de refeição, que nos dessem n'essa Talavera tão anciosamente esperada pelos estômagos. O cocheiro, a quem, n'aquella hora, se quizera presentear com um par de castanholas, para o animar a dar-nos noticias consoladoras, respondia gravemente :

JJna comida formal.

Trôpegos nos apeávamos, atravessando de chinelas por entre uma população que olhava para nós com um riso satisfatório. Estava a mesa posta, e havia obrigação de comer o que nos dessem. Não pretendo ser ingrato, ao cabo de tantos annos, inculcando por esta maneira de dizer que nos houvéssemos mostrado diííiceis perante o doce espectáculo de entrar n'aquella vivenda e ver a mesa posta. Não. Digo o que digo, e o que digo. Havia obrigação de comer o que alli se nos apresentava. Pvr chero, ou não puchero, perdizes ou não perdizes ensopa- das n'aquelle celebre azeite de um povo glorioso e per-

216 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

tinaz, a quem pouco inquieta que o azeite seja péssimo visto como a azeitona é óptima. Obrigação de comer, e eis o caso em duas palavras ; a administração, direcção, ou como lhe queiram chamar, da mala-posta, havia esta- belecido um contracto com o dono d'aquella amável pousada, para ter todos os dias quatro jantares promptos á hora de passar alli a mala-posta. Dois jantares eram para os passageiros, e, os outros dois, um para o cochei- ro, outro para o correio. O correio tinha uns papelinhos explicativos d'este negocio, nos quaes se estabelecera, prevenindo todas as hypotheses, que, pelo facto de levar comida comsigo para a jornada, não ficaria dispensado o passageiro de respeitar as leis do contracto. A redacção da coisa é que se prestava a uma interpretação mais có- mica do que o assumpto. O papelinho estabelecia o preço do jantar, que era um duro, e accrescentava : (iPor no comer, cualro pecetas.y) Era ainda mais. . . duro ! En- tretanto era rasoavel, porque a estalagem não deveria perder os jantares, que fizesse, contando antecipadamente com o ajuste estabelecido. . .

De uma occasião, receoso de ter de esperar em Bada- joz que me tocasse a vez de obter legar, pedira em Lis- boa a João Blanco o favor de alcançar-me pelo seu cor- respondente um bilhete para o dia tantos. Veio o bilhete, e aqui me puz eu a caminho. A esse tempo,— passava-se isto em 1866 havia uma hora de caminho de ferro

A VIDA ALEGRE ^7

de Badajoz a Merida; e de Merida até Madrid, é que se ia mettido na mala-posta. Logo que entrei na carruagem respectiva, como deve dizer-se em estylo official, e tão depressa o comboio assobiou e partiu, disse-me um cava- lheiro, que alli tive o gosto de encontrar acompanhado de uma senhora :

Yae o sr. portuguez. . . O sr. é portuguez ?

Sou, sim senhor.

Boa nação e formosa. estive em Lisboa, e gostei muito. Bonita ! É pena a comida não me ser lisongeira ao paladar. . . A manteiga no me gusta. Tiene un olor nauseabundo... Com que, vae o cavalheiro até Madrid?..

É verdade.

Na diligencia !

Nada. Na mala-posta.

Es imposible !

Impossivel porque ?

Porque na mala-posta ha dois logares. . .

Bem sei.

dois logares !

Ainda com o meu sobeja um !

Mas eu tenho os dois.

E eu espero ter o meu.

Deixe ver o bilhete !

O bilhete não o trago aqui, mas está certo.

E apertei-o docemente ao peito, na carteira em que

218 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

elle ia guardado, sem lh'o mostrar, não m'o comesse elle.

Pois não virá, usted. Le asseguro essol

Vamos a ver.

Que ver ! ? ! A minha irmã que vae aqui dormindo, senhora mui singular, a quem o café produz o effeito de narcótico, e que dorme agora por este feitio, mercê de uma chávena d'elle que bebeu sobre o jantar, é pessoa delicadissima, e eu não confiaria sua melindrosa saúde á diligencia, que leva mais treze horas do que a mala- posta e peior commodo.. .

Pois não digo que. . .

Bera; mas não pense em ir na mala-posta, por- que, é negocio seguro, tenho-a toda para nó^ dois!

Chegámos a Merida.

Saltei da carruagem, e procurei o correio que devia seguir de viagem. Tinha para elle uma recommenda- ção. Provavelmente fazem idéa, que essa recommen- dação não havia de ser do ministro ou do pae do rei. Era de outro correio, um chamado Lemos, muito alto, que aqui havia, e que por ter uma desordem era muito pimpão e levar uma sova de uns toireiros, interrom- peu depois a sua carreira de correio, e d'alli a nada a sua carreira de vivo. Encontrára-o no theatro do Gymna- sio, onde elle ia todas as noites em estando em Lisboa, e perguntára-lhe se era elle que iria de viagem commigo

A VIDA ALEGRE 219

até Badajoz. Não era. Mas escreveu, alli mesmo, n'um bilhete, a apresentação mais bizarra de mira ao seu col- lega, para que se interessasse pela minha pessoa, dan- do-me agua fresca pelo caminho quando eu tivesse sede, e fazendo-me as vontades no que fosse possível atten- der-me. Por isso, uma vez em Merida, e na presença do correio hespanhol, offereci sem demora á sua vista per- spicaz o bilhete do Lemos, e em seguida o bilhete da mald-posta :

Está direito?

Sumptuoso.

Vem ahi um hespanhol com uma senhora, e pre- tende ter hoje a mala-posta por sua. . .

Elle olhou de novo para o bilhete, examinando-o.

Não ha que recear.

Sou eu quem vae ?

É sim, e vae sósinho, câso raro, ha um logar tomado. É verdade que é sexta feira de Paixão.

O hespanhol da sua irmã havia-me perguntado, se eu levava mantimentos para a viagem ; e ponderara ser isso indispensável, visto como não houvesse onde comer durante mais de vinte e quatro horas. Respondêra-lhe eu, que o cheiro da comida guardada me era desagradá- vel em viagem, e por isso nunca uzava levar farnel.

Indispensable, indispensable I . . disse-me elle. Minutos depois de chegarmos a Merida, e logo que

220 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

colheu dos empregados da mala-posta as informações sufficientes para chegar á convicção de ser eu, e não elle, quem essa dita mala-posta teria a honra de condu- zir, o hespanhol queria morrer. Yeiu direito a mim.

lo lo considero a usted como un caballero. . .

Também me inclino a. . .

Perceberá pois facilmente, que, sendo dois minha irmã e eu, e, por falta de meu cunhado que eu suppuzera que houvesse escripto a tomar os bilhetes, achando-se unicamente um logar preenchido; seria estranho, que mi- nha irmã e eu fossemos na diligencia podendo o cava- lheiro ceder-nos a mala-posta, onde apenas o seu logar é que serve de obstáculo ! ? ! A diligencia é a mesma coi- sa, chega quasi ao mesmo tempo, differença de nada, muito mais alegre, e... fAqui sorria-se elle com o salero generoso das duas Castellas) e visto o sr. não levar mantimentos para a jornada . . . (tirou do sacco um em- brulho) le regallo un pollo !. . Con que. . .

Com que, agradeço o pollo, mas ha razões de estado que. . .

E trepei para a mala-posta, ao som dos guizos, das chicotadas, e da trombeta, deixando-o pittorescamente no meio da praça, entre as ruinas romanas de Merida; e dizendo-ihes um ingrato adeus, á irmã, ao hespanhol, e ao frangão.

Jantava-se em Talavera.

A entrada de Talavera de la Reina era encantadora; mas o interior da cidade não correspondia a essa formo- sura, devida principalmente á graça com que o rio, pas- sando ao lado das muralhas, atravessava jardins magnífi- cos, principalmente a Alameda, que é alli o passeio elegante de verão, celebre não pela abundância de arvores, e pela frescura que se respira, mas pela quantidade de pássaros de toda a espécie que pas- sam em bandos, agitando a aza infatigável, ou vêem como espíritos errantes descançar um momento na rama dos choupos. No mais, ruas estreitas, tortuosas, o que não as impedia de serem principales, como é tudo em llespa- nha, por cortezia. As casas projectavam o topo para

222 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

diante, como se quizessem cahir-nos do nariz. Não havia tempo de ver as egrejas, mas o estalajadeiro, um pouco antes de apparecerem na mesa as perdizes, recommen- dava sempre como um caso indispensável ir ver Santa Maria la Mayor, e, tirando o relógio, ponderava :

Ha tempo á justa de dar um pulo !

É o que explicava a antiguidade das perdizes n'aquella locanda. Por causa de Santa Maria la Mayor nunca che- gavam a ser comidas.

Entre outros costumes originaes, apontava-se uma usan- ça d'aque11a terra, usança de outros tempos e que os tempos nos levaram já, de uma feição curiosa. Quando uma muliíer acabava de dar á luz uma creanca, dava-se noticia d'isso a quem passasse, pregando na porta da rua uma almofadinha enfeitada de rendas e de filas ; a almo- fadinha era cor de rosa para dizer que nascera uma me- nina, e azul para indicar que nascera um rapaz. Em es- tando á porta signal de nascimento, deviam os credores respeitar durante nove dias o marido da dama que ti- vesse tido o seu bom successo. Aquella moda, segundo boas informações, concorreu outr'ora muito para augmen- tar a população de Talavera de la Reina...

Saia-se de Talavera, no verão, que foi sempre a esta- ção em que alli passei, ao cair da tarde. Ao largar da mala-posla havia uma claridade indecisa e descon- tente, que mal deixava avistar nas pastagens alguns bois

A VIDA ALEGRE 223

pequenos, de um aniarello vivíssimo, que contemplavam com uma espécie de ironia a capoeira em que iamos, e seguiam o seu caminho por uns campos pardacentos onde obstinados archeologos iriam de balde esgravatar a rel- va, sem que fossem capazes de encontrar os restos dos famigerados castellos da Hespanha.

apparecia um ou outro d'esses castellos tão falla- dos; ao longe, a grandes distancias, visivelmente enfas- tiados de estarem para alli no esquecimento ; occupados apenas em sustentarem, conforme podiam, as tradições do paiz.

Ainda uma noite, ainda mais uma comprida noite de mala-posta, acompanhados unicamente por montes que se confundiam cora a serra em transições tão insensiveis como as da serra a confundirem-se com as nuvens ; e sem se encontrar senão algum raro viandante de cara- bina ao hombro, lenço atado na cabeça, chapéu de abas largas, manta traçada, e polainas altas ; ou então, de lé- gua em légua, os soldados que patrulhavam, de vigia á estrada.

A proporção que a noite se adiantava, ia crescendo a alegria do correio. Pelas três horas, cantava. . .

Ao amanhecer, os cavallos fatigados encontravam em- íim alamedas magnificas. Por entre arvores de todos os lados, avistavam-se as torres e a casaria. . .

Ás quatro horas da manhã, despedia-se a gente por

APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

uma vez da serra de Guadarrama, e entrava moida e gloriosamente, por entre as névoas do crepúsculo, na fa- mosa cidade de Madrid, a mais alta da Europa, o que faz, me dizia o correio, com que o throno do rei de Hes- panha seja o primeiro depois do de Deus ...

Que seducção, que seducção, viajar ! Resistiria, hoje mesmo. Santo António a mais essa prova, bem o creio ; mas eu era fraco, e os prédios, que deviam ser mais fortes que eu, não o eram ! De viagem em viagem, parecia que o seu gosto era que eu os fosse viajando a elles ! Dir-se-hia não ser para outro fim que as hypo- thecas m'os houvessem emfim deixado livres. . . Foi um encanto... E que episódios! Ninguém calcula, assim mesmo, o que um prédio pode ter de malicia em si ! De uma das vezes, por exemplo, era um bem bonito. . . na rua da Praga, a rua que fica em frente da poria da Sa- cristia de S. José. . . Na véspera de se effectuar a venda d'esse (e no mesmo dia da venda deveria eu partir para Hespanha pelo comboio da noite) diz-me o procurador do individuo que pretendia a casa :

O sr. Brito não lhe disse nada ?

Qual sr. Brito ?

Ás portas de Santo Antão !

Heim ? !

O tabellião, o sr. tabellião Brito. . .

Ja sei . . .

A \IDA ALEGRE 225

Disse-lhe alguma coisa, elle?

Não o vi hoje. Amanhã o verei, se Deus quizer, quando o meu amigo me contar em cima da mesa o di- nheiro do prédio.

Pois é que amanhã não poderá ser. . . Dei um passo atraz.

Como é o seu nome todo ?

O meu ? -- O seu !

Fulano de tal da Cruz.

Senhor fulano de tal da Cruz, advirta no que me diz... !

Que quer que faça ? Ha uma hypotheca em aber- to!.. Encontrei isso, e não ha remédio senão tiral-a a claro ! Na recebedoria estão a tratar d'isso com o maior desvelo. . . Não lhe cuidado.

Poderei partir amanhã ? É indispensável I Entenda isto ! O sr. entende isto ? Ê-me indispensável partir amanhã !

Yamos a ver.

Onde é a recebedoria ?

Defronte do palácio do conde de Rio Maior.

Vamos juntos !

Agora, é-me impossivel ! o sr. andando, que eu irei ter !

Avante ! De o braço. Senhor procurador ! Não

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226 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

O largarei mais até amanhã. Disponha as suas coisas como quiztr ! Sou seu ! É meu ! Somos um do outro até o dioheiro da casa estar na minha mão. Tenho hilhete tomado para a mala-posta de Badajoz a Madrid : hei-de partir por força, entende bem, por força, no comboio da noite de amanhã !

Não se calcula, por mais imaginação que se tenha, o quanto bom coramodo o braço de um procurador em tão delicada circumstancia ! Foi um momento, irmos ao cartório Brito, para eu averiguar bem alli de que dimen- sões ia ser o cálix pelo qual me cumprisse esgotar a hypo- Iheca amargosa. Em seguida, do cartório Brito á Recebe- doria. Dois velhos recebedores, que alli existiam, esque- cidos de Deus e dos homens, vasculhavam obscuros escaninhos, de que vinham tirando aos maços uma pa- pellada fusca, do feitio e cor dos recibos de decima. . .

Estamos com a sua obra ! disseram-me esses dois velhos, do alto da escada de mão, em que se achavam trepados.

Ah!

appareceram uns vinte e tantos. A hypotheca é antiga bastante. . .

Sentia-me esfriar.

É caso, talvez, para. . . ?

Vamos a ver, vamos a ver, . . . diziam os velhos.

Isso, que para ahi está já, representa?

A VIDA ALEGRE 227

Trinta e tantas libras.

Oh ! Com os diabos !

E se ficasse n'isto ! diziam os velhos, de cima, sorrindo, como dois faunos reformados.

Em todo o caso, que isto se decida hoje, é o que lhes peço !

Temos aqui uma massada bem boa ! disseram, como mastigando em secco.

Que direi eu !

E eu ! resmungava o Cruz, com ares beatíficos.

Calle-se, malvado ! Foi vossê que originou a catas- trophe ! Pérfido. Hade ter mau fim. Foi vossê quem me perdeu !

Pois havia occultar ao meu constituinte. . . ?

Silencio. Vamos jantar, e voltaremos aqui ! O seu braço, assassino ?

Ó sr. Machado ...

O seu braço !

No alto da escada, os velhos recebedores, á sucapa, riam, com uma ironia de velhos macacos judiciaes. . .

Realisou-se no dia iramediato o negocio no cartório Brito ; paguei quarenta e quatro libras da hypotheca em aberto ; e oílereci-me com tão boa vontade, ao procura- dor Cruz, para lhe trincar o nariz um dia, que elle nunca mais me encontrou, sem que, por um movimento instin- ctivo deixasse de cobrir o nariz com a mão direita.

228 APONf AMENTOS DE UM FOLHETINISTA

Mas depois, na viagem, adeus tristezas ! Quem se lembra, em caminho de França, de um procura- dor !

De uma das vezes que fiz viagem por terra, tive por companheiro o conde de Óbidos, Manuel de Óbidos e Sabugal na sua familia o titulo é de uso alternar, e ser Sabugal n'um e Óbidos no outro ; infelizmente vi- vem pouco, e estas variantes succedem-se com demasiada frequência ; de outra vez fomos juntos até Paris, Tho- maz de Carvalho e o visconde Júlio de Santa Izabel. Quantas historias n'estes nomes ! O d'Obidos anno e meio depois foi morrer na Madeira, da tysica implacável, que tem destruído a sua familia. Júlio Ferreira, visconde de Santa Izabel, parte de Hespanha para Paris com Tho- maz e commigo, depois vae para a Suissa alegremente, e, logo depois de chegar ai li, tem o fim desgraçado e mys- terioso, que uns explicaram pela vingança de um marido exercida sobre elle, de noite, ao encontral-o nos quartos de sua mulher, e outros attribuiram a haver querido calar discretamente a sua presença nos jardins d'essa senhora, na occasião em que, ao saltar um muro, uma queda desas- trada o deixou logo meio morto.

Ficámos nós ainda, Thomaz e eu. Deus piedoso, nédios e magníficos, resistindo á sorte; elle com a facúndia dos ricos homens de outras eras, e eu com a bizarria natu- ral que o barbeiro de Sevilha cita :

A VIDA ALEGRE 229

Estás tão gordo e tão bom, Figaro ! diz-lhe o Al- maviva.

La miséria, signor comte!

O conde de Óbidos era excellente companheiro e ex- cellente amigo; mas o natural do seu caracter, e ainda mais a doença, tornavam-o melancholico a cada instante. Os homens fatalmente destinados a morrerem moços, são dotados de uma especial tristeza, em que parece de alguma maneira sentir-se o frio do tumulo.

Thomaz de Carvalho, esse, era a graça em figura de touriste. Contente de ir ver de novo Paris, onde vivera sete annos como estudante, ia por ahi fora com uma alegria de vaudeville. Dou-lhe n'isto quanta justiça posso, porque não conheço nada mais alegre do que um vaude- ville. Dizia coisas novas, o maganão ; e, quando eram velhas, ditas por elle pareciam mais moças do que no- vidades ditas por outros, e era como se as estivesse re- moçando para mostrar aos innovadores que não ha nada mais novo do que o que é antigo. Dizem que o Voltaire precisava de uma pitada e de uma chávena de café para estar de veia, e que, dado o caso de se lhe entornar a caixa do rapé, ou de se lhe voltar a cafeteira, adeus Candide, e adeus cavaco ; o Goethe, pelos modos, bebia punch, o Descartes precisava estirar-se ao comprido, e o Leibnitz de barriga para baixo, para pairarem de boa feição. Mas, o nosso amigo Thomaz, cigarrinho sobre

230 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

cigarrinho, e perna traçada a dar, a dar, elle ahi foi de Lisboa a Madrid sem se caiar, esperto e magnifico !

Eu conhecia pouca gente em Madrid, dois litteratos, Luiz Rivera e Manuel dei Palácio, o tenor Tamberlik, a senhora baroneza de Ortega, Euzebio Pagge, e o buffo Arderius. N'estas circumstancias tinha o tempo todo, ou quasi todo livre, e nem o empregava era fazer visitas nem em ter de receber as que me fizessem.

Ia ao theatro todas as noites ; no theatro real os camarotes resplandeciam de mulheres formosas, e pelo fim da noite é que havia ensejo e pachorra para observar qualquer outra singularidade, a de ser a tribu- na na segunda ordem por exemplo, medida adoptada para evitar que toda a gente quizesse ir para a primeira ordem ; dos theatros de declamação o melhor era o do Príncipe, mas o artigo que escrevi para a Revolução de setembro a respeito da Mathilde Diez na Venganza Catalana alcançou-me uma furibunda sova n'um jornal hespanhol El reyno, e escusado é dizer que houve logo um compatriota que me fez por o favor de o trans- crcTer, n'um jornal chamado Progresso e ordem, ao qual, se vê, porque amor com amor se paga, eu ofTereci a traducção da tunda, para elle a saborear melhor, no fo- lhetim da Revolução em que dei ao Reyno a resposta que lhe devia.

Essa famosa Mathilde Diez fazia ainda seu papel de

A VIDA ALEGRE 231

ingénua, tendo sessenta annos, e, bojuda, de cabeça enorme, quasi sem pernas, parecia na Venganza Cata- lana, do Guttierres, um idolo chinez. Era casada com Julian Roméa, estimado como o primeiro artista dramá- tico da Hespanha.

Depois do drama havia sempre um bailado; e alguma grande e deslumbrante manola, atirando a mantilha para o lado, sustendo a saia com os dedos, enraivecia os boleros, despeitava-os, íazia-os ajoelhar, atirarem-lhe aos pés os chapéus, implorarem-lhe de rastros que es- colhesse um d'entre elles, sem que ella serenasse ura instante da ebriedade d'aquella dança em que ha todas as manifestações do génio hespanhol, chamma de poesia, sentimento heróico, graça aventurosa e galanteadora !

Todavia, por mais que a Hespanha quiz resistir com o seu theatro, drama heróico, drama religioso, e co- media de aventuras Hespanha guerreira e altiva, Hespanha catholica, Hespanha de capa e espada che- gara para ella também a sua hora de OíTenbach: e, na mesma noite, em que se deu a Venganza Catalana, aíli- xou-se um cartaz n'outro theatro, de que não me lem- bra o nome, Jovellanos talvez, annunciando Los dioses dei Olympo; um Orphée aux enfers á hespanhola.

Logo depois um audacioso, meio hespanhol, meio por- tuguez, Arderius, que mais tarde veiu a Lisboa com uma companhia de Zarzuela perder o seu dinheiro no Circo

232 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

de Price, fundou um theatro, a que deu o nome de Buffos madrilenos, e que tem sido o theatro da moda em Ma- drid. O pae d'esse Arderius era um portuguez de Elvas. O filho principiou, como actor, sem fortuna e sem meios, e é hoje, como empresário, um dos homens mais ricos de flespanha. Ahi está o que não succede, nem pode succe- der por emquanto em Portugal, onde é tão seguro e tão inevitável darem perda as empresas theatraes, que se propõem bisarramente a empresários, os que não têem que perder. Tem mais novidade assim, e é mais simples.

Um baile publico, o baile Capellanes, era depois do theatro o abrigo da mocidade e dos estrangeiros.

Assim como no nosso antigo theatro de D. Fernando sempre os espectadores se davam ares graves com o lem- brarem-se que alli fora primitivamente a egreja de Santa Justa ; e o theatro de D. Maria tem ainda, atravez de tudo, a soturnidade que recorda haver alli existido a in- quisição ; o baile de Capellanes, pela austeridade de sua entrada, pelos seus corredores solemnes, pela saleta para guardar as bengalas com certo ar de sacristia, pelas grandes salas claustraes por onde balouçam a valsa di- versas muchachas, emquanto varias outras meninas e matronas estão sentadas em roda da casa tão profunda- mente immoveis que tropeça a gente com ellas, não poderia, ainda que o quizesse, negar que houve alli con- vento.

A VIDA ALEGRE 233

Um garboso empregado incumbia-se de advertir por mais singular que isso parecesse n'um baile publico de Hespanha, paiz da cigarrilha, não ser permittido fu- mar senão na sala de entrada. As hespanholas, que vi, pouco ciosas da fama de formosuras, salvavam-se pelo menéo : hespanholas, bonitas, ou feias, têem sem- pre uma graça especial para tocar, para cantar, e para dansar; e depois, aquellas Paquitas, Dolores, ou Pepas, costureiras quasi sempre, de Capelanes, pareciam cha- marem-se todas ellas JJona Decência ; um salero casto, para haver de tudo.

Logo de manhã, por mais cedo que fosse para a rua, en- contrava grupos de passeantes, conversando animada- mente, e dando grande attenção a tudo, como se andas- sem n'uma busca conscienciosa dos rastros do génio da in- quisição, e na esperança de que os monumentos, a calle de Alcalá, ou do Arenal, a carrêra de S. Jeronymo, ou algu- ma das praças, se resolvessem a contar os segredos que as gerações lhes têem confiado. Garbosa Madrid ! Terra para passear I Nem a llespanha a pode querer para outra coisa. Nem industrial nem fabril, Madrid é o rendez-vous da Hespanha, quando quer espairecer e gastar dinheiro. Quem alii trabalha é a modista, é o alfaiate, é o luveiro, o camiseiro... Terra de luxo! Terra de divertimentos! E também, se ve, por ser Hespanha, terra de politica; de sentimentos impetuosos, de paixões vivas e ardentes !

234 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

N'uma noite um moço francez meu amigo, Lyonnel Deville, muito conhecido em Lisboa da rapaziada d'esse tempo, e que desapparecêra d'aqui no íim de um verão, disse-me, surgindo de repente diante de mim em Madrid:

Caballêro Machado ? Fermilta usted. . .

Lyonnel Deville !

Sim; o sobrinho do Henri, secretario do conde Luccote ! Eu próprio. Tenho uma frisa de bocca, de que o Arderius acaba de me dar a chave para os Bu/fos ma- drilenos com a noticia de que estavas cá. Marchemos. Não sei se sabes que possuímos um jornal, eu e alguns amigos, do qual serás callaborador ; jornal elegante, ti- tulo La Sociedad. . . Apára-me essa penna !

Eu não sei hespanhol, homem !

Nem eu. Escreverás na lingua que quizeres. Eu escrevo sempre em francez ; um collega passa isso de- pois para o mais castigado castelhano. Digo castigado, por ser um castigo traduzir semelhantes coisas. Emíim, andêmos-nos, O melhor será combinarmos tudo na frisa!

se combinou isso tudo, eílectivamente, na frisa ; e, escrevendo n'essa mesma noite o artigo, tive o gosto, d*alli a uma semana, de me ler em hespanhol, o que equivaleu a ler-me sem me entender a mim mesmo, caso que não poderá dizer-se novo para um auctor, nas letras pátrias.

Na frisa, o Lyonnel, que conhecia uma quantidade

A VIDA ALEGRE 23^

enorme de litteratos, oao chegou a dar-me tempo para eu escrever os nomes de todos os cavalheiros aos quaes me fez favor de apresentar-me ; encontro, n'uma folha da carteira, com a data d'cssa noite: Alonzo de Beraza, director da Gaceta economista ; Ramos Car- rion ; Jimenez Delgado e António Perez, redactores do tal jornal a Sociedad, onde escrevi cinco artigos, osj últimos que tenho á vista, nos números 13 e 15 ; Ca- sares, Guttierres de Alba ; o pintor Rincon, Morayta, da Reforma, e, para tudo ser, um bruxo, o rei dos mági- cos, o grande Hermann ! amigo velho.

De outra occasião, em 1866 , indo d'aqui sósinho, levava por pedido de José Emydio Cabral, irmão do actual conde de Cabral, que era addido á nossa legação em Madrid e estava então com licença em Lisboa, um diabo de uma bengala para o duque d'Alba, bengala de responsabili- dade, porque era de tartaruga com castão de marfim todo arrendado, representando uma caçada, trabalho admirá- vel de duas ou trez dúzias de chinas, que devem ter morrido d'isso. Logo que cheguei a Madrid, depois de haver dado á bengala todos os cuidados requeridos, desempenhei-me d'aquella incumbência, a respeito da qual, durante quatro dias, o duque me não deu novas nem mandados, deixando-me, como é natural, vivamente es- pantado de que um bilhetito de visita não houvesse re- compensado os meus extremos !

236 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

N'uma noite de theatro, depois do chocolate, porque, como bom viajante, não brincava com essas coisas, e nunca, em Hespanha, faltava aos meus deveres para com Mathias Lopez, chego a casa e encontro uma carta da senhora de Ortega a dizer-me que no dia immediato, ao irem para os toiros, passariam pela hospedaria, eme levariam na companhia d'eUes para o seu camarote.

Assim foi. Cinco horas a darem, um caleche a parar á porta da fonda, puchado por mulinhas com uma guiza- Ihada de estrugir os ares. A baroneza estava vestida pittorescamente, de saia curta, mantilha de cores ; no caleche estava o barão e outro homem. Subi. Partimos.

O d'Ortega disse ao outro cavalheiro o meu nome, e disse-me a mim :

O sr. duque d'Alba !

Fizemos um gesto de comprimento ; o carro ia pelos ares ; a baroneza, alegríssima sempre, sorria ; os guizos, tliUy tlin, tlin, davam ao caso um tom fantástico. . .

a corrida havia principiado ; apeámos-nos, subimos á pressa, entrámos no camarote; o barão tomou o logar inferior, ao centro a baroneza e eu, no canto de honra o duque.

O qual duque não me dissera uma palavra a respeito da bengala, da perigosa bengala.

Celebre duque ! dizia eu.

Os três matadores haviam distribuído as suas saúda-

A VIDA ALEGRE 237

ções ao publico e em especial aos afpciomdos ; luziam ao sol as jaquetas bordadas a oiro, as abotoaduras de brilhantes, os anneis de rubis e esmeraldas, d'esses pim- pões, que ganham quatro mil e quinhentos reales, cinco milreales, cada um ! O presidente dava a chave ao guarda do curro : os picadores de lança em riste encetaram a sua melhor attitude. Saiu o boi ao som de trombetas ; paus afiados, pernas membrudas ; atirou-se, e ahi ficou um cavallo com uma tripa de fora, suspensos por algum tempo cavallo e cavalleiro, depois rebolando um por cima do outro, e o toiro a olhar, a olhar para o pobre loureiro immovel... Em baixo, nas trincheiras, uma parte do publico poz-se em pé. . .

Sentar-se, senores, que no lo ha matáo ! gritavam fu- riosos, os que esta\am por traz d'elles. O picador, pa- rece que ainda o estou vendo, vestido de amarello com franja de prata, polainas de ferro, largo chapéu branco caido para a banda ; estava como morto, e o boi na du- vida, sem o querer perder de vista. . . Os bandarilheiros animam a praça: um d'elles vae ao ar nos paus do toiro : agarram-o ao cair, e levam-o em braços, mas não está morto, aliás ieval-o-hiam para a sachristia, ao fundo da praça, capella com padre para administrar aos que mor- rem a extrema-uncção. . .

Quem é este bandarilheiro?perguntoaoduqued'Alba.

EUe não me resposta.

238 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

Como sem poder convencer- me d'isto, espero um in- stante, depois renovo a pergunta.

O duque não me responde.

Passa-me então pela lembrança que elle não me dis- sera sequer obrigado pela memorável romaria da ben- gala de tartaruga com o castão de marfim arrendado^ representando uma caçada; tenho a vertigem de quem se sente humilhado injustamente: mas a baroneza pergun- ta-me o que se passa; e, porque esteja eu transtornado de expressão, de côr, deita mão á mão do duque :

Duque ! Vossê chegou da Granja á hora da corrida ; da Granja, onde esteve uma semana; fomos buscal-o e em seguida fomos, de relance também, buscar o sr. Ma- chado, que nos é recommendado por pessoas de grande estimação para nós, de Portugal ; não sei se encontrou em casa uma bengala que lhe offerecem de Lisboa, o que quer que é raro, feito no Japão. . .

Sim, de José Emygdio Cabral ...

Sabe quem lh'a trouxe?

Não me lembra o nome, li com pressa a carta que m'o diz . . .

O portador da bengala foi Machado !

—Ah! disse o duque cortezmente. irei fazer-lhe os meus deveres. . .

Mas não basta isso!

Que mais então?

A VIDA. ALEGRE 239

É preciso explicar a Machado, que vosso é surdo do ouvido direito, mas surdo como uma porta, como um muro..

Para quê ?

Para quê! Porque, de duas vezes elle lhe dirigio a palavra, e o duque, como se ainda fora pouco não lhe haver dado noticias suas desde a bondade que Machado tivera para comsigo. . .

Pois se cheguei da Granja ha uma hora !?!

Bem sei, mas elle agora o sabe; e, de uma per- gunta, que, a seu lado, lhe dirigio por duas vezes, não logrou resposta á primeira vez nem á segunda. . .

O duque d'Àlba jurou-me então, por quantos modos lhe pareceram mais convincentes, que não ouviria um tiro se junto da orelha direita lhe disparassem uma pis- tola ! E, para sellar o desenlace gracioso d'este aconte- cimento, menos amável ao principio, jantámos n'esse dia com os d'Ortega, e o duque no dia immediato foi fazer- me a sua visita e convidar-me para um almoço e para uma caçada. Aceitei uma das partes do convite. . . Não foi a caçada.

Como disse ha pouco, de escriptores em Madrid, ape- nas conhecia verdadeiramente dois, Luiz Rivera, e Ma- nuel dei Palácio, visto como, com Escrich estivera, em 186i, o tempo de fumarmos um charuto pelo cami- nho adiante desde a Puerta dei Sol até á praça dos toi- ros numa tarde de domingo, indo com Manuel dei Pa-

240 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

lacio e encontrando-o casualmente ; e com Morayta, em cujo jornal, La Reforma^ escrevi duas correspondências, tive apenas o gosto de lhe fallar uma vez, no meu quarto do Hotel de Paris, Conhecimentos deffinitivos, Rivêra e Palácio.

Em 1866, porém, uma circumstancia me fazia duvi- dar de que estes dois amigos pudessem dar-me tão ale- gre hospitalidade como das outras vezes ; porque, tendo dado duas cartas de apresentação ao Fabbricca, marido da cantora Bernardi, destinadas ambas a Madrid, uma para Ri vera e outra para Palácio, recebi a noticia pouco satisfatória de que o Fabbricca não havia podido topar estes dois poetas, escriptores, e dilletlanti, pela simples casualidade de Manuel dei Palácio se achar emigrado e Rivera estar na cadeia !

Chegara portanto a Madrid d'esta vez sem a mínima idéa de abraçar estes collegas; e, ao ver Lyonel Deville, uma das minhas primeiras perguntas foi :

E o pobre Rivera?

Como, o pobre Rivera?

Sim ! continuei em tom compassivo ; esse inspirado e infeliz poeta, que estará compondo a esta hora entre ferros alguma elegia, plangente e negra como a sua ne- gra sorte de encarcerado !

Qual elegia, nem qual encarcerado! Luiz Rivera está a esta hora de robe de chambre, repotreado n'um so-

A VIDA ALEGRE 241

phá, saboreando um puro, e dictando garbosamente a um secretário algum artigo humorístico ou alguma poe- sia alegre para o seu Gil Blas !

Que vem a ser o seu GilBlas ?

O jornal mais jovial de Hespanha, que tem muitos assignantes, que se vende immenso avulso, e que está rendendo largamente ao Rivera!

Pois o Rivera não está preso ? !

Esteve preso, sim ; leve episodio. O que é isso na vida de um hespanhol ! Esteve preso, mas está solto; e, de mais a mais, teve uma sorte na loteria, ha quinze dias.

Que me dizes ! E o Palácio?

Manuel dei Palácio ?

Sim! Esse desditoso amigo! ao qual conheci na abundância ! e que, hoje, come o pão amargo do exilio !

E' exactamente o contrario d'isso ! dizia-me o De- ville, rindo. O Palácio está fazendo um dinheirão, desde que emigrou ; escreve composições lindissimas, em que a veia galhofeira se lhe desata em chistes com a maior liberdade ; inspiração ás soltas !

De íorma que, os dois homens, que eu suppunha mais perseguidos pelo destino, estavam, ambos, mais ditosos, do que quando os conhecera felizes !

Fui-rae logo a abraçar Rivera, que, eíTectivamente, como dissera Deville, estava de rohe de chambre^ fu- lo

242 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

ando, e dictando um artigo. Appareci no escriptorio sem que me annunciassem, e, dobrando o pescoço com ar grave de cortezia, estaquei defronte do poeta ; não me conheceu de principio; mas, de repente, como quem exclama: «Oh! Salteador gritou-me não sei que inju- ria grossa, que tive de acceitar por uma fineza, graças ao contentamento com que a revestiu.

Luiz Rivera, que estivera em Lisboa em 1851 e fora aqui redactor da Remia dei médio dia, chegara a estar velho em 1864 ; n'uma tarde d'esse anno, ao pôr do sol, estivéramos a uma janella dos Embajadores, onde eu mo- rava então, conversando ; conheciamos-nos de Lisboa do tempo das minhas estrêas nas lettras, e estava habituado a olhal-o com o enthusiasmo das admirações do alvor da vida ; n'essa tarde, talvez por causa do caminho melan- cholico que a nossa conversação tomara, pareceu-me ver no semblante do amável poeta os estragos que a lucta, os esforços, e as vicissitudes da carreira litteraria costu- mam dar ; imaginem, pois, o meu pasmo ao ir achal-o mais leve, mais alegre, e mais moço !

Rivera, disse-lhe, tu és o Fausto! Ja te conheci mais velho ! És o Fausto ! . .

E ahi principiámos a rir e a recordar os tempos da sua estada em Lisboa, os jantares da Padeira da Praça da Alegria, casa de pasto, que, n'essa epocha, tinha a ílor da litteratura attrahida pelo pato com arroz e pelas som-

A VIDA ALEGRE 243

bras protectoras de um quintalico ; as horas do café Suisso, em que Ricardo Guimarães, hoje visconde de Benalcanfor, para em tudo ir de accordo com as galas do seu estylo amplo, faebia cognac por copos de agua ; e o camarote dos litteratos no theatro de D. Fernando, em que Lopes de Mendonça, terror vivo da burguezia, no meio de apostrophes em voz alta era vivamente chamado á ordem pela platéa irritada. Eu era n'esse tempo o gamin de taes festas. Graças a Lopes de Mendonça, que me levava para toda a parte comsigo em me encontran- do, principiei, logo n'essa época, a ver de perto os illus- tres da nossa terra e a roçar manga com manga pela ca- saca dos deuses ! Consideravam-me como um irmão pe- queno de Lopes de Mendonça, e tinha entrada franca nos festins.

Luiz Rivera apparecera em Lisboa n'esse tempo, e foi Mendonça quem me apresentou a elle. Rivera princi- piava apenas a sua carreira. Não tinha ainda o que se chama experiência, mas nessas coisas um homem inex- periente vale ás vezes mais que dois experimentados; é ter talento ou não o ter ; que importa que se em- brulhe um quasi nada a lingua, a quem ainda apenas prin- cipie a fallar ; tem isso mais graça do que a regularidade chocha da mediocridade. De mais a mais, Rivera linha toda a casta de audácia ; escrevia polemicas, elegias, roman- ces, peças para o theatro ; achava-se todo em qualquer

244 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

pagina, que saisse da sua penna ; e passava a perna por cima do ram ram dos costumes.

Quando deixou Lisboa, escreveu um drama em verso, Las Aves de paso, uma zarzuela para a qual Barbieri com- poz a musica, El secreto de una dama, que teve grande êxito em Hespanha, e tem sido cantada em Lisboa mui- tas vezes, e centos d'obras em verso e em prosa ; não as fez que não fossem prosa nem verso, mas não falta pelo mundo quem se encarregue d'isso !

Conseguiu por fim que um jornal humorístico se sus- tentasse e o sustentasse a elle em Madrid ; e esse gé- nero de poesia rendeu-lhe bem. Em vez do Bijo dei de- sierto, de que ha em portuguez uma traducção de Mendes Leal, e de outras composições enthusiastas que lhe eram pagas com menos ardor do que elle punha em as traçar, acabou os seus dias, escrevendo, com grande voga e larga retribuição, coisas d'estas, por exemplo :

Yo, fumandome un cigarro^ fuime á casa en un simon ; y ella, á ver la ejecucion dei pobre Esteban Navarro.

Por eso en tono sencillo y sin que nada la asombre, ella canta esle estribillo : despues de ahorcar un bolsillo, vi tambien ahorcar á un hombre

A VIDA ALEGRE 245

Para os que se lembravam dos primeiros cantos do poeta, o sobresalto podia ser grande ; onde estava o Ri- vera antigo, da poesia inspirada e terna? estaria ainda, onde estivera d'antes, se fosse preciso ; mas pre- ciso para que, se elle escrevia para o publico e o publico gostava mais d'elle assim ? !

Morreu moço ; de cabello a branquejar, mas moço ainda, e velho do cansaço que as luctas da existência lhe haviam dado. Vivera com pouco dinheiro sempre, tra- balhando muito, orgulhoso e feliz ; o Gil Blas ia-o tor- nando rico, elle envergonhou-se d'isso, e morreu.

N'esse mesmo anno, e d'essa mesma occasião de estar em Madrid, segui de Madrid para Itália, lendo por com- panheiros de viagem até Milão o baritono Squarcia com sua mulher, e a cantora Borghi-Mamo e seu marido, o qual actualmente se acha em Lisboa acompanhando sua gentil íilha, creança de nove annosn'esse tempo, e hoje, como sabemos, uma das primeiras cantoras da epocha Era em abril ; terminara a estação lyrica de S. Carlos, e, fugindo da gaiola, iam voltando ao ninho pátrio todas essas aves de canto. Para mim, que ia a Itália por pri- meira vez, era da mais agradável vantagem fazer a via- gem com tão amáveis cicerones, e aproveitei contente aquelle auspicioso ensejo.

A linha férrea até Bayonna estava completa. A. car- ruagem em que iamos, apesar de sermos cinco, parecia ir

246 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

apinhada de gente, porque o Squarcia, encarregando-se da mise-en-scène com o saber theatral que o distinguia, armou, dos chalés, mantas, e chapéus, verosiraeis ma- nequins de trapos, que figuravam pessoas a dormirem, embuçadas, cada uma ao seu canto, em quanto nós na paragem das estações representávamos, á porti- nhola, de viajantes encalmados e molestos do apertão em que fossemos. O caso é, que, sosinhos até Paris, fo- mos conversando e rindo, sujeitos apenas á severidade, o Squarcia e eu, de não nos ser dado fumar, do cair da tarde em diante, senão um charuto ao crepúsculo ves- pertino e outro ao crepúsculo matutino, para que podes- sem ir fechados os postigos e não se fizesse fumo que en- rouquecesse a prima-donna. se que era Mamo quem nos opprimia com estas severidades, depois de nos haver perguntado gravemente de que modo era que nós fumá- vamos.

De que modo? ! exclamava o Squarcia. Muito !. .

Não é isso o que pergunto ! tornava o Mamo. Fumam como os de Malta, ou como a outra gente?

Homem ! Essa !

Não ha homem, nem meio homem. Fazem fumo, ou que fazem?

O Squarcia, pasmado, e eu :

De certo, fazemos fumo !

Não sabem fumar. O preceito é arrecadar, fumando

A VIDA ALEGRE 247

O fumo ; fumar cada um para dentro de si. Ser capaz, por exemplo, de beber um copo de cerveja, e não deitar o fumo senão depois !

Ficámos perplexos um momento ; em seguida, o Squar- cia com ares de triumpho :

Ascolta I E se te disser, que, em eu querendo, faço sair o fumo pelo nariz ? Mas, faz mal á saúde. . .

Pelo nariz ! Pelo estômago é que fuma todo o fu- mista sério ! É como se fuma em Malta.

E fechava os postigos.

Se ha terra de que seja grato recordar o encanto quando ja se está longe d'ella, é a Itália. Ao voltar de Paris ou Londres, ha sempre no animo do viajante o sen- timento de haver perdido alguma coisa, uma illusão ou uma esperança; de Itália volta-se cora a alma saudosa mas consolada ; tudo alli é ameno e doce ; amar, cantar, esperar, tal é o destino d'aquella gente ; o seu 'panem et circenses, é maccarroni e musica !

A viagem em diligencia e traineau, pelos Alpes, era uma festa. Não se faz idéa da magniíicencia do monte Cenis ; d'aquella natureza grandiosa e excepcional, em que as arvores verdejantes banham os pés no gelo, os riachos a cada passo correm das elevações e fazem bri- lhar nos rochedos as suas faiscas prateadas, e as nuvens brancas affagam a cumiada dos montes, volteando era redor d'elles como um bordado. De vez em quando um

248 APONTAMENTOS DB UM FOLHETINISTA

casalinho perdido no cimo de um roccado surge de re- pente por entre o farpão de uma nuvem e parece sus- penso no espaço ; mil torrentes, mil abysmos de um lado 6 outro, caminhos estreitos, que serpenteiam pelo monte acima e por onde apenas cabia a diligencia ou o traineau. O declive era rápido : de um lado e d'outro avistavam-se os montes apenas, e os abysmos ; rochedos trepados uns sobre os outros ou erguendo-se ao longe como pedras fúnebres ; mais adiante, uma catarata arrastrando ruido- samente, até precipícios profundíssimos, arvores que a tempestade arrancara ; depois o cume de um monte de- baixo de um manto de neve, ou erguendo-se aguçado por entre o nevoeiro ; algum guia ou algum caçador, alli ou além, desenhando-se subitamente por cima de uma nuvem, verdadeiras apparições phantasticas. . .

Frio diabólico, n'aquellas paragens. A meio cami- nho, em Lanslebourg, estalagem no meio do monte : apeiavam-se os viajantes, e havia meia hora de descanso. Todos saltavam trôpegos das carruagens, enregelados, medrosos... Alli se tomavam os traineaiix, quando a neve era muita ; espectáculo pittoresco e esplendido, ao luar. Mas, em a noite estando escura, montes e montes a er- guerem-se como monstros, e o olhar a perder-se no ne" grume dos abysmos. . .

A estalagem resplandecia de luzes ; era uma grande casa branca com duas entradas, sala cheia de mezas,

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criadas com grandes toucas brancas, dois concertistas a um canto tocando flauta e harpa, para alegrarem a si- tuação, com walsas caprichosas e alegres ; os viajantes tomando a sua sopa a ferver, o seu copo de vinho, e o seu pedaço de roas-beeff, emquanto outros, de refeição feita, calçavam meias de ou embrulhavam o pescoço.

Chegava-se de madrugada a Suza, entrava-se em ca- minho de ferro, como agora fazem a viagem toda, e ás onze horas da manhã estava-se em Milão.

É uma coquette, Milão ; pequena, afrancezada no luxo e nas modas, mas temperando isso com a voluptuosa morbidezza, que caracterisa a Itália. Paris não é coquette ; Paris é prestigiosa, mas é grande de mais para ser co- quette ; as cidades são como as mulheres, uma mu- lher pequena pôde ser propriamente coquette ; Milão é coquette.

insta lei-me no Hotel de la Ville, no Corso Yittorio Emmanuelle, que é para Milão o Chiado de Lisboa, rua extremamente larga, de grande extenção, a mais ele- gante e frequentada da cidade, partindo da praça da Cathedral e seguindo com as successivas designações de Corso Vittorio Emmanuelle, Corso di Porta Venezia, Corso di Porta Nuova ; passeio da noite, rendez-vous das manhãs.

Abril é o melhor mez de Milão para o viajante, o mez mais entretido e agradável ; pôde ainda assistir a uma

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representação no Scala, se alli chegar logo no principio do mez, e depois fica encontrando em Milão pelo mez adiante lodos os artistas italianos até então espalhados pelo mundo, e que alli acodem por esse tempo para tra- tarem de escripturas nas agencias theatraes. É um ver- dadeiro espectáculo de cantoras, e bailarinas. das que haviam estado em Portugal encontrei logo no primeiro dia dez ou doze, a Berini, a Fricci, a Laborde, a Lafont, a Stefanska, etc.

Os toristas, chovem alli também por esse tempo. A hospedaria em que eu estava não tinha outra gente. No- tei apenas em Milão poucos inglezes, em comparação de Veneza. Os locandièri, os ckeroni, e os custodi nota- vam também, e com maior tristeza ainda, a pouca affluen- cia dos nossos fieis alliados. Um carcunda que era guia da hospedaria deixem-me dizer-lhes que em Milão, não sei explicar o motivo, fervem carcundas í e tinha um grande sentimento de não poder alistar-se como vo- luntário para a guerra, dizia-me : Isto é um emprego perdido. Ha três semanas, não tenho acompanhado se- não quatro inglezes !

Coisa celebre; quando, em 1862, dei de Paris uma saltada a Londres, não se pode dizer que ficasse capti- vado de seducção pelos inglezes (pelas inglezas sim, que nunca na minha vida vi tantas mulheres de uma formo- sura, de uma idealidade de encanto, alguma coisa de

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superior ao que possa ser dado querer encontrar na terra, como alli !) Ê verdade que, perguntando-me, no palácio da Exposição, Moita e Vasconcellos, hoje chefe da repar- tição do Commercio e Industria no ministério das Obras publicas, se eu tinha em Londres muitas relações, tive de informal-o que o conhecimento mais intimo que tra- vara fora no amphitheatro de Covent Garden com um inglesão enorme, que se accommodara tão bem commigo, que, estando sentado n'um banco superior ao meu, che- gara por um triz a pôr-me os pés nos hombros, o que eu, de grosseiro que fui, lhe não permitti. . . Mas, em- fim, não levando cartas, não me demorando em Londres, não vendo senão as principaes coisas, e isso mal, apressa, que direito tinha eu de ficar a gostar tanto de inglezes que os quizesse também depois em Milão ? E todavia, não sei porque, no dia em que fui a Como, puz-me pelo meio do dia a scismar n'elles, e no quanto fosse de estra- nhar a sua ausência alli. . . para ajudarem o pittoresco ! Apesar da situação actual da Itália, n'aquelle tempo 18(j6 entrei alli pensando em tudo menos em poli- tica, e assim me conservei. Parecia-me bom viver n'a- quelle paiz sereno e tranquillo, refrescado por um sopro de arte, longe das preoccupações era que de ordinário se nos gasta a existência ; ver os primeiros e últimos raios do sol dourarem a cathedral, ouvir a brisa sussurrar nas arvores dos jardins, tomar um gelado á porta do

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café do Corso, e ir á noite escutar no Scala^ no Canno- biana, ou no Radegonda, a romanza do tenor e a ária da pnma-donna. Amor e musica são as duas únicas preoccupações que se dão bem n'aquella terra !

Em Veneza não me diverti apenas, trabalhei.

O livro que publiquei logo depois de regressar a Lis- boa, Bo Chiado a Veneza ^ foi, em grande parte, escripto alli. Não me tomaram o tempo, durante vinte e seis dias, prisões de nenhuma ordem ; todo eu era curiosidade, actividade ; não almocei uma vez que fosse, sem haver estado a trabalhar três horas. Era recommendado entre outras pessoas, a um grego chamado Velluti, biblio- Ihecariodo palácio ducal, e a Nicolo Barozzi, homem de lettras, secretario do museu Carrer. Levava cartas do librettista Piave, auctor do Crispim e la Comare^ e outras, alcançadas em Milão por madame Borghi-Mamo. As tar- des e as noites em Veneza eram para as gôndolas, ou para o theatro : as manhãs para os Archivos. Cheguei a ter, por lá, a mania de vasculhar papeis velhos que tivessem referencia a Portugal, e consegui a habilidade de íazer uma descoberta, uma carta escripta de Lis- boa ao doge cm 1598, quando o senado decidiu proces- sar um desconhecido, que fora preso em Pádua e dizia ser D. Sebastião, rei de Portugal. O embaixador de Hes- panha em Veneza queria apoderar-se d'elle e fez amea- ças no caso de lhe não ser entregue ; a republica, porém.

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não achando motivos para proceder contra elle, pôl-o em liberdade, intimando-ihe apenas que saisse dos seus es- tados. Constou isto em Portugal, e achei a carta que d'aqui se escreveu ao doge. Copiei-a do original, que existe no Archivo geral de Veneza. E' dirigida ao prín- cipe Marino Grimano, duque de Veneza, e assignada por Don Emanuel. Esse D. Manuel, que, a julgar da ortho- graphia da sua carta, escrevia o peor possivel, seria um dos filhos do prior do Crato? Talvez. Conservam-se no archivo muitas cartas dos nossos reis. A republica teve sempre um cônsul em Lisboa, que escrevia ao senado tudo o que por acontecia. Por espaço de dois séculos foram estes cônsules de uma familia do appelido Moura, que se extinguiu n'este século, deixando uma notável ga- lena de quadros, que pertence hoje em Veneza ás duas familias Sacchi, e Sernaggiotti.

Não ha perguntar por quem fez isto ? quem fez aquillo? Não é como nas outras terras, em que a res- posta a taes perguntas é sempre o rei este, o rei aquellc. Alli a resposta está dada : a Republica !

Mas, cada casa tem a sua historía I De algumas, das mais humildes até, conta-se o drama, os episó- dios. . .

Ainda se falia muito do Byron. O Nicolo Barozzi mostrou-me a casinha em que elle morou não esteve sempre no palácio Mocenigo, teve a tal casa, de varan-

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dinha baixa, onde elle se punha a ver passar as mas- caras no tempo do Carnaval, para nem estar de alto nem andar pela rua exposto ás chufas dos que se rissem de elle ser coxo. Teve em Veneza dois amores celebres : uma mulher do povo, Margarita Cogni, muito citada pela quantidade de estrepolias que fez, entre outras a de se deitar ao canal depois de uma altercação que tivera com o famoso auctor do Child-Harold : e uma fidalga, uma condessa, a Guiccioli, que teve grande poder sobre elle, ao ponto de conseguir, dizem, que não acabasse o poema de D. João, e escrevesse a Visão do Dante, por pedidos d'ella.

As prodigiosas obras de arte, que os telhados d'aquel- les ediíicios ainda cobrem ; ver e rever S. Marcos, pas- mar diante dos mosaicos, dos ornatos, dos baixos rele- vos, dos mausoléus esplendidos dos doges ; admirar no Palácio ducal os quadros sublimes dos mestres ; alternar de recreios, indo de tarde ao Lido, ao theatro, ou simples- mente passear na praça, á noite; tomar neve no Florian botiquim que não tem portas e está aberto toda a noite; conversar, com a facilidade amável, que ha, de fazer relações, n'aquella terra em que toda a gente anda a pé, e se encontra de bocado em bocado no jardim, na praça, nas pastelarias, no Palácio, no Rialto, ou no gran canale mettido cada qual n'aquella espécie de saveiros ou varinos, estreitos e compridos como peixes, a modo

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de sarda ou chicharro com uma caixa de sege na bar- riga, as suaves gôndolas, pintadas todas de escuro, e iguaes por fora para que não se adivinhe quem vae den- tro, rico ou pobre, princeza ou mulher de gondoleiro... que melhor, que mais doce vida ? Ah ! Veneza, que impressão produzes, que saudades deixas, e que razão têem os que te chamaram la bella !

A carreira publica pela qual se tinha antigamente maior sympathia era a de empregado publico. Havia boas rasôes para isso. As familias assustavam-se com a idéa de se separarem dos filhos, mandando-os estudar em Coimbra. Coimbra ficava longe e não desfructava grande fama no tocante á morigeração de costumes. Ia um mocinho esfriar alli nas margens do Mondego o amor por seus pães : ia estar exposto ás tentações da extravagân- cia alegre, e ao mau exemplo de alguns estudantes que se formavam depressa nas lei? do torto e de vagar nas do Direito. . . As mães tremiam.

A vida militar offerecia destino incerto : poderia não haver guerra, mas poderia haver guerra. Tão perfeito e tão airoso, ahi ia expôr-se o mancebo a que algum dia o

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estropiassem n'um campo de batalha. . . As mães cho- ravam.

Ser padre principiava a não prestar ; para estimação, poucas sympatiiias, poucos lucros : sermões a meia moeda, missas a doze vinténs : e um espirito de liberdade a sacu- dil-os por qualquer coisa. . . As mães calavam-se.

Ao passo que, ter um emprego do estado era ir de carrinho pela vida diante. As secretarias offereciam uma existência tranquilla e segura. Poderiam cair os tbronos, as repartições não cairiam. Toda a gente impor- tante do paiz eram empregados do estado : ou o paiz ficaria reduzido a moços de fretes, ou os empregados con- tinuariam nas suas secretarias. Enlrava-se ás nove horas, saia-se ás quatro ; ia-se para bem almoçado, e, quando Deus queria, dava-se ordem ao creado que levasse uma refeição, n'um cestinho, do meio dia para a uma hora : o chefe não precisava de recorrer a essas medidas, era convidado certo de todos os amanuenses, e petiscava gravemente do farnel de um e de outro. Queria-se prin- cipalmente para aquella profissão, muita seriedade, boas roupas, e bonita letra. O sujeito levava três horas a copiar um officio, que levara outras três a redigir, e pas- sava a segundo official no fim de uns annos, estribado na seriedade, no tempo, e no cursivo. . . As mães sorriam! O paiz via-os com bons olhos. O que ellcs soubessem, o que elles valessem, era um segredo. Nada se averi-

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guava áquelle respeito, senão que reinava entre os func- cionarios mutua consideração, muita estima, uma harmo- nia... digna de Mercadante.

De uma occasião, Rodrigo da Fonseca Magalhães, que tinha a loucura de se interessar pelo talento alheio, lemhrou-se de que talvez não houvesse motivo plausível para querer que os litteratos de Portugal morressem de fome, e deu-lhes empregos públicos.

Parece que, ao observarem o pouco que nas secreta- rias se trabalhava, aquelles diabos criminosos da sua fatal prenda das letras ! entenderam dever dar um exemplo ao mundo do que pudesse ser trabalhar menos ainda ; e, pondo o chapéu na cabeça, accenderam um charuto e foram fumal-o para o Terreiro do Paço... A se- riedade burocrática tremelicou n'essa hora, estranhando aquellas liberdades... Fumar, nos corredores, de modo que ninguém visse senão os coUegas, que estivessem também a fumar e também nos corredores,— ; mas, ir para o Terreiro do Paço, tomar sol, cavaquear com quem apparecesse, olhando de vez emquando para a secreta- ria.. .

Ellaláestá!

E. . . eu estou I

Tinha visos de libertinagem ... O funccionalismo en- crespou a venta e resmungou.

Olá I Oiá I gritaram-lhe então os litteratos. Que

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temos nós? Isto vae á vontade, ou vae á capucha? Vossês querem a mandria solemne ? !

Isto fez rir. Principiaram logo muitos, a serem litte- ratos.. . figurados, scismando até no melhor modo de os representarem com vantagem.

Talvez o não irmos nunca ao emprego preencha este vago anhelo ? disseram.

Não preenchia, porque, ou bem aquella historia se chamava repartição, ou não : o melhor seria não pôr jamais os pés na secretaria, e não faltar nunca á repar- tição . Isto é, não ir trabalhar, pelo mez adiante, mas comparecer sempre no dia do pagamento a embol- sar o ordenado.

Assim ficaria completa a obra! Esta idéa teve a accei- tação mais auspiciosa. . .

Diz a lenda que houve tal, a quem ninguém conhecesse no ministério a que pertencia, porque, até para rece- ber a mensalidade, se fizesse representar por segundo, quando não fosse, ao mesmo tempo, por terceiro, quarto, e quinto, o que coUocava o thesoureiro em delicados embaraços ao achar-se com cinco recibos pela frente, do mesmo cavalheiro, na mesma data ! que, por mais de uma vez, resolveu o embaraço de um modo escru- puloso e deíTinitivo, rompendo theatralmente pelo grupo de agiotas, (que todos reclamavam direitos de prioridade) ao som das exclamações do thesoureiro :

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A qual? ! Mas, a qual heide pagar, se todos repre- sentam igual direito ?

E elle gravemente :

A mim ! que sou o próprio ! . .

Comquanto mleressante, este lance^ pareceu não cair em graça aos agiotas. Taes reclamações fizeram, que a suave complacência dos thesoureiros pagadores deu parte de forte, fatigada de dar parte de fraca, e poz n'isso um ar de cobro tão evidente, que foram sus- pensos uns empregados e demiltidos outros, como so- lemne desforra das glorias burocráticas e de sua auste- ridade inconcussa. . .

Sempre eu me havia sentido menos que pouco pro- penso, — contrario até, a essa carreira e aos destinos d'ella.

Mas, estando as coisas n'este ponto... verdadeira- mente digno de ser de admiração, succedeu n'uma tarde de agosto de 1864, dirigindo meus passos pelo Passeio publico, ouvir duas vozes differentes, e ambas melodiosas, chamarem pelo meu nome com a vibração especial de quem tenha pressa de ser ouvido. . .

Eram Santanna Yasconcellos, hoje visconde das No- gueiras, e nosso ministro em Washington ; e Ricardo Guimarães, logo depois visconde de Benalcanfor e hoje inspector da instrucção secundaria.

Olá ! disse eu. Como estão vossès?

262 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

Ou elles me não disseram como estavam, ou não estou certo de qual fosse a melhor ou peor disposição da saúde d'estes amigos n'aquelle dia ; sei, porém, que, fallando elles ambos ao mesmo tempo, distingui, por en- tre essa meiga confusão, dizer-me Santanna:

O Ricardo vae ser ajudante do procurador da fa- zenda, e deixa, por isso, o logar do Instituto. . . Lem- brámos-nos de ti.

Para quê ?

Para secretario do Instituto. O primeiro que exerceu esse logar foi o Avelino, o segundo o Ricardo, vês que. . . E' um logar bonito !

Não ha motivo para o julgar feio, meus amigos, mas...

Nada de mas. És amigo do Corvo, o João Crysos- tomo tem por elle grande estima, é caso simplesmente de não perderes tempo e tratares d'isto quanto antes. . . Onde vaes agora ?

~ Jantar.

Bem ; janta e occupa-te d'isso ; nós vamos ao Lobo d'Avila pedir-lhe que escreva também ao seu collega a teu respeito. . . Vá, marchar.

Aperto de mão de Santanna, meu amigo desde os pri- meiros annos da minha carreira, aperto de mão de Ri- cardo Guimarães, por cuja intervenção eu havia entrado em tempo para a Revolução de Setembro como se

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do primeiro volume dos Apontamentos ; e viva, e bravo, e feita, e ainda bem !

Fui jantar.

E, pelo caminho, o ar consolava-me, como se fora a Providencia a sorrir-se para mim ! porque, e é esta a singularidade da historia, havendo combinado mezes antes uma ida a Alcobaça com o doutor F. F. Hoppííer, e seu cunhado Cordeiro, administrador de Cabo Yerde, que ia ás Caldas da Rainha com suas filhas para trata- mento de aguas, recebera de Hoppfler uma carta na manhã d'esse dia, a dizer-me laconicamente «Ama- nhã ás oito horas da noite na estação de Santa Apoló- nia ; para as Caldas e Alcobaça ; dispõe as coisas, e não faltes» ; depois de ler acarta, fôra-me a uma gaveta, abrira-a, e, examinando uma caixita de papelão, onde costumava guardar o dinheiro destinado a estar quieto por mais longo praso do que o do gyro de todos os dias, vira, que, dos dois contos e novecentos mil reis do ultimo prédio que vendera, e de que alli arrecadara o restante da ultima viagem, havendo tirado, a pouco e pouco, as notas de dezoito mil réis á proporção que as urgências da vida m'as haviam reclamado, me restavam três notas apenas: o peor d 'isto, não era tanto o serem essas notas as ultimas do prédio, mas ter sido aquelle prédio o ultimo que eu podesse de vez trocar a notas, visto omo os dois, que me restavam, exigissem de minha pru-

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dencia que os não viajasse como havia feito aos outros, a fim de não levantar meus voos nas letras até imitar Camões, não direi nos brilhantes principios nem nos arro- jados fins d'elle,... mas nos seus mdos.

Tirara então duas notas. Levara uma ao Keil ; trocara outra na loja do barbeiro Chico, quando alli me cor- taram o cabello: e, deixando dinheiro em casa para uns dias, vira-me obrigado a tirar a ultima, destinada a ir gastar-se commigo, durante a passeata, nas propinas a creados, e despesasitas eventuaes, que, apesar de convi- dado como eu o era por Hoppffer para a digressão a Alcobaça, sempre levariam dinheiro.

De modo que, teria de viver, d'alli em diante, do rendimento do prédio do Salitre e do prédio da rua das Pretas, addicíonado aos lucros demasiadamente parado- xaes que as letras me estavam dando por aquelle tempo : Corrêa Seabra, meu editor nos Contos ao luár^ Scenas da minha terra, Passeios e Phantasias, Recorda- ções de Paris e Londres, morrera n'esse anno; a lievo- lução de Setembro estava, por esse tempo, na peor das crises; Sampaio trabalhava de graça, como dando o exem- plo da coragem na ruim fortuna : mas, menos heróicos do que elle, os homens, por ordinário, em trabalhando de graça, trabalham mal , porque ninguém faça as coisas bem sem vontade : o jornal sustentava-se pelos artigos d'elle, e pela stricta economia de administração. . .

A VIDA ALEGRE 265

Tudo isso era excellente, mas a caixita de papelão ia ficar vazia !

Vazia !

Jantei, e sahi.

Era noite.

Desci a minha rua, costeei o Passeio, atravessei o Rocio, subi a rua Nova do Carmo, e, de repente, vejo um homem, que ia também subindo a rua : encaro com elle...

Era Corvo !

Era o sr. João de Andrade Corvo, o illustre homem de sciencia, o illustre. escriptor, hoje o illustre homem d'Estado, a quem eu de ha muito tinha a honra de tra- tar como amigo ; que, por muito tempo, de 1859 a 1863, tivera em S. Carlos a sua cadeira de platéa ao lado da minha ; que me acolhera sempre com intimidade, tanto mais estimável, quanto elle é difíicil em a esta- belecer,— mas a quem, por essa occasiãô, havia me- zes que eu não encontrava, que eu não via, e que, na noite do dia em que Santanna e Benalcanfor me ha- viam dito «Falia ao Corvo!» apparecia subitamente, ao meu lado, no meu caminho !. .

Terá duvida, meu caro sr. Corvo, disse-lhe eu, em fallar ao ministro das Obras publicas para que o logar de secretario do Inirtituto Industrial, hoje vago, pela sabida de Ricardo Guimarães, me seja dado ?

266 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

Nenhuma duvida. Tenho o maior prazer n'isso 1

Obrigado. uma palavra mais. Dá-se a cir- cumstancia de ter de ir amanhã para as Caldas da Rainha com o Hoppífer. . . Voltarei dentro de quatro dias ...

e volte quando queira, na certeza de que não me esquecerei.

Sereno sempre, como é o costume d'elle. Corvo cortou para o Chiado ; eu desci a rua Nova do Alma- da. No dia immediato, parti para as Caldas da Rainha com Cordeiro, duas meninas pequenas, suas filhas, e o medico Hoppífer, de quem a mãe d'essas meninas era irmã.

Coisa celebre, uma vez em jornada, como que se me apagou do espirito a idéa do Instituto.

A distancia esfumou por tal arte os horisontes d'a- quelle caso, que chegou a íigurar-se-me que deveria sobrevir um inconveniente qualquer e que era melhor não pensar mais em lai. De uma vez ou de outra, acudia-me isso á lembrança; mas, como estava sempre acompanhado, ia conversando ou seguia o fio da conver- sação das outras possoas; e assim consegui, que, tal idéa, se de repente vinha, de repente se fosse. Hoppífer era, etem sido sempre para mim como um irmão ; conversáva- mos sem segredos um para o outro, a não serem os que todo o homem tem o dever de guardar, porque lhe não

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digam respeito unicamente a elle ; riamos, philosofa- vamos, argumentávamos, discutiamos: isso mesmo enchia o tempo, isso mesmo me entretinha, e me occupava, tur- rando em amigáveis disputas com a anciã de um contro- vertor que se recreie em polemicar.

Alguma vez não teria rasão elie ; muitas vezes não teria eu razão. Mas, quando os amigos não têem razão, é que, sem lh'o esconder, nos devemos estreitar ainda mais: em a tendo, não precisam de nós. Desde novo, fora elle sempre muito dado a discutir. Por mais justo que seja um raciocinio, é sempre separado de um sophis- ma por um nadinha ; ninguém, todavia, poude jamais ver em IIoppíTer senão um sophista de boa ; o caracter de um homem conhece-se em tudo, não tanto nas grandes coisas como nas coisas pequenas; da maior parte das vezes o que as grandes coisas fazem, é sair cada um do caracter que tiver : e o caracter d'elle era completo ; digno, leal, heróico : por vezes, como que um antigo. Para alguns, altenta certa excentricidade do génio d'elle, ainda isso o deve representar mais original. De mais a mais, é um espirito de alta vivacidade, e de uma instrucção que os mais competentes reconhecem. Pertinaz, audacioso, íirme. na sua vida tem tido luctas serias. Sabe fallar, e, por isso, muitas vezes agrada : se soubesse uni- camente ouvir,... não desagradaria nunca; agradaria empre. Quantos ha, que, por terem escutado heróica-

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mente, desde que nasceram, morrem com fama de concei- tuosos ! . .

Estivemos dois dias nas Caldas, partindo para Alco- baça na madrugada do terceiro, que para mim devia ser o ultimo d'aquella ligeira romaria. Tinhamos um grande caleche, esplendido, como se usa agora dizer de tudo. Almoçámos no café da villa ; visitámos o templo, que passa por ser o maior de Portugal ; dêmos uma vista aos epitáfios, compuzemos o rosto com os ares merencó- rios que pudessem substituir a lagrima, que é de uso pagar alli ao tumulo de D. Pedro I e da linda Jgnez ; sentámos-nos um instantinho, na cadeira tomada aos hes- panhoes na batalha de Aljubarrota ; pasmámos do grande refeitório com uma veneração que nem o D. AíTonso II, nem o III, nem a D. Urraca, nem a D. Brites, nem o D. Diniz, nem a livraria, haviam sido capazes de nos merecer ; e, depois de bem aboborada essa admiração pela cosinha dos frades, passeámos, até serem horas de irmos jantar a casa de um cavalheiro francez nosso ami- go, que nos convidara, mr. Adolphe Nunes, proprietário em Alcobaça da mais bella casa da localidade, vivenda en- cantadora, disposta como se fora uma península no sitio em que se juntam os dois rios, Alcoa e Baça, que deram o nome á villa.

Recebeu-nos aquella amável familia com o mais gene- roso agrado. Três filhas tinha o nosso bisarro amphitriào,

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e não se lhes fazia favor na fama que corria de serem trez formosuras. Conversou-se, riu-se, contaram-se histo- rias, fez-se honra ao jantar, que era magnifico ; e, como estivéssemos nos dias grandes, tomámos o café no jardim. Estava o ceu de um azul profundo ; via-o atravez da rama immovel das arvores, porque não corresse a mais leve aragem n'aquella tarde, sereno, admirável, por cima da minha cabeça. . . E, sem querer, pensava no pouco dinheiro com que eu estava. . .

Ao invez da lógica e da equidade, não ha nada que ajude a ohter e a conservar agradavelmente um emprego como permittirem os haveres de um homem que elle possa passar sem isso. A hora de eu não poder passar sem isso chegara, logo, era natural que o emprego não viesse... Por uma excepção, porém, a mais rara que me consta, de tudo que tenho ouvido e lido desde que nasci, o emprego veiu I . .

Chego a Lisboa na madrugada de um sabbado, entro em casa, vejo duas cartas, eram, uma do mi- nistro para Corvo, outra de Thomaz de Carvalho para mim. . .

«O Corvo, dizia-me Thomaz, querendo que eu parti- lhasse da alegria que essa noticia te deve dar, enviou. me a carta do ministro. .

Havia passado a noite na varanda da diligencia das Caldas, a fumar, a conversar com o cocheiro, e a olhar

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para as estrellas ; quando acabei a leitura das cartas, en- tendi ser justo ir-me deitar, contente. . .

Sempre é certo ! dizia, entre mim, no caminho para a cama. Estou empregado ! Que historia esta ! . .

Dois dias depois, agradecia, no Ministério, ao sr. João Crysostomo de Abreu e Sousa, então ministro das Obras publicas ; e sou grato á hombridade com que na epo- cha de eleições em que se estava, de mais a mais;! sacu- diu suggestões com que a politica tentou deitar o gancho ao logar que vagara ; e ao acolhimento, como que significa- tivamente excepcional, das palavras que por essa occa- sião se dignou dar-me.

Ao chegar o dia de apresentar-me no Instituto, uma se- mana depois da nomeação, e, se sabe, devida e «respe- ctivamente» encartado, como um taful burocrático, bate- ram á porta, quando acabava de almoçar e me dispunha a sair de casa... De torrada na mão, sobre um golo de chá bebido á pressa, corri com a determinação de um persona- gem que se reconhecesse chegado á hora solemne de estar o governo a chamal-o com instancia ; e vi diante de mira o sr José Maurício Vieira, director da oííicina de instru- mentos de precisão no Instituto Industrial e Comniercial.

Esse cavalheiro, estimado pelo seu notável mereci- mento, fizera, annos antes, viagem para Saint-Nazaire no mesmo vapor em que eu fòra. Por que nenhum de nós pertencesse á raça dos que, em viagem, faliam com

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a lavadeira, ou com os criados, travámos pratica a bordo ; e essas relações estabelecidas sobre as verdes aguas do mar, alcançaram-me o ouvir-lhe dizer-me na manhã da minha ida para o Instituto :

Sabe para que venho aqui ?

INão, meu caro José Maurício !

Deu-me o Joaquim Júlio Pereira de Carvalho a noticia de que vossê deve apresentar-se hoje no Instituto. Yenho buscal-o, para ter o gosto de o acompanhar !

Obrigado, meu amigo !

De que ? I Pois que lhe dei indicações, por occa- sião de fazermos viagem para França, deixe-me agora ser-lhe guia na sua viagem de hoje ao funccionalismo, viagem para ficar ; esperemos isso !

Para íicar e criar raizes ! Vamos embora !

Acabe de almoçar, homem !

A consciência da minha missão de funccionario deve encher-me todo. Parlamos !

Voltámos da travessa do Moreira para o Salitre, e, á primeira travessa, á esquerda, que encontrámos, des- cendo a rua, dirigi-me para ella. Era a travessa da Cera, que a Camará Municipal está apagando n'csta hora, como se ella se tivesse... derretido.

Porahi?!

E' mais perto. Subiremos á Cruz do Taboado, e es- taremos lá n'um pulo.

272 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

Lá, onde?

N'esse querido Instituto, para o qual vou viver desde hoje !

Á Cruz do Taboado ! ? Esse, é o Instituto agrícola ! O seu, o nosso. Instituto, não tem que ver com isso. É á Boa Vista ! É no largo do Conde Barão !

Oh ! Com a breca ! Que ninguém nos oiça. . . Ai ! ai ! O Instituto Industrial, sim, fallemos baixo... Indus. trial é que eu vou ser. . . Fabricas,.. . officinas,. . . Três quartos de legoa, do Salitre, até lá! Viagem quotidiana de uma hora. . . Confesso-lhe que nem sequer sabia, esta é que por industria... do demónio ! mas fico sabendo agora, não ha que temer! Á Boa Vista... Diga- mos no Largo do Conde Barão... Não sei eu outra coisa ! Viva a industria, viva a grande arte que permitte ao homem ageitar a seu uso as matérias primas que a natu- reza lhe offerece ; e que também permittirá, espero eu, a um secretario ser cavalheiro d'ella. . . sem viver de ardis ! Avante ! . .

Quando chegámos, o guarda portão, velho baixinho, muito esperto, chamado Sá, levantou da cabeça o seu bonnet e deu-me um sorriso, como se dissesse aos muros d'aquelle severo estabelecimento do estado :

Eis ahi o homem !

O sr. José Maurício Vieira a dignar-se apresentar-me ao director, Joaquim Júlio Pereira de Carvalho, homem de

A VIDA ALEGRE 273

talento e de caracter, a quem eu tinha o gosto de conhecer do mundo e da sociedade: o director a apresen- tar-me aos empregados : um d'e!les a enlregar-me as cha- ves dos armários, e a explicar-me os arcanos e subtilezas da secretaria: e ahi me sentei eu, pedindo grave- mente o livro do Copiador, debruçando-me logo sobre essa preciosa collecção de manuscriptos, a estudar o es- tylo official, e a medital-o com desvelo. . .

(iSubmetto d appr ovação de v. ex.^ o incluso. . ((Tenho a honra de levar ao conhecimento dev. . .y>

((Accusando a recepção do Ofpcio que em data de...>) ((Convindo por bem do serviço publico. . «Cum- pre-me rogar a v. se sirva. . . » ((Considerando as res- pectivas deliberações ...» « Satisfazendo ao quo) ((Tenho a honrai) ((Communico.. . ^) ((Em virtude. . . »

Eram nove horas da manhã. Bonito dia; claro, esperto... Nem calor nem frio. Um dia creador, como se diz. As horas passavam lentamente. . .

A que horas é a sabida ? perguntei.

Ás três.

Um estudante veiu pedir-me certidões; íizera, dizia

elle, cinco exames ; achava pesadita a busca, c não me

dava pressa, bastar-lhe-hia tcl-as d'ahi a dois dias...

Não o larguei.

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274 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

Hade ser !

Não senhor...

Por força !

E ia-nie ás certidões, que pareciam sorrir-me por entre aquelle faí^tio solemne, quando, de penna erguida sobre o papel sellado, tive de suspendel-a, de repente, ao acudir-me a idéa de lambem para isso haver formu- lário, — forma, foórma ! . . E, recopilando mentalmente tudo que a sabedoria dos secretários tem ensinado ao mundo, escrevi, molhando a penna com mil cautellas, não me escapasse algum borrão, primeiro o meu nome, e depois :

Em cumprimento ao despacho retro, e revendo o Livro de exames d' este Institulo, certifico que a folhas. . .

Quando o estudante levou as certidões, cahi de novo no torpor physico e raoral de repartição do estado, a que poderia chamar-se com seriedade scientiíica

Átonite burocrática

Senti-me como um ente explorado, fechado a sete cha- ves, a quem unicamente o jubileu do domingo poderia libertar. . . Que de saturnaes, a que me propuz in petlo pêra esse íal domingo, esperar deitado que chegasse o correio, e ler na cama a carta da manhã ! Almoçar quando tivesse vontade ! Sair ! passear ! Escrever, em casa ; um folhetim, talvez ! . .

A VIDA ALEGRE 27o

Que saudades tive n'aque!Ie primeiro dia de gaiola, do descuidoso viver que eu levara desde os deze- seis annos, trabalhando sempre, mas, sem ter horas marcadas que viessem corlar-me as alegrias de prima- vera, alegrias de uma edade que conta sempre com a esperança, porque aformoseia tudo, e tudo a faz pare- cer bem !

Mas, emfim ! disse, a mim mesmo. Isto é preciso, ou Dão é preciso? Se não e preciso, vae-te embora; nin- guém te obriga, ninguém te irá buscar. Se é preciso, faze a tua obrigação, para esta-^es senhor ao menos da tua consciência, ainda que com a paciência te não accommodes tanto. Trabalha ; e deixa-te íicar.

Deixei-me íicar. . E cada vez propendo mais para a idéa de que n'isso não íiz mal.

Fiz bem. não sou bastante moço para dizer mal do passado, nem ainda bastante velho para me amuar com o presente, mas, mercê das lagrimas ou da malícia das coisas, tenho percebido que uma pessoa não deve des- cuidar-se de ser da terra... cm que nasceu. Em Portugal as letras substituem agora os antigos Iheatros particula- res ; occupação para curiosos, modo de vida de quem tiver outro.. .

E depois, quemsabese,nascircumstanciasde outr'ora, de vido de artista, de vida alegre, eu haveria resistido,

o'esii casa da travessa do íoreira, onde tenho vivido trabalhado ha tantos ann , aos rigores despóticos í a^eoida. . . da liberdade que se propõe demolir-n o prédio, o prédio ! coi se elle estivesse no meio c rca a impedir o transito !

EsUo certos de como a d'antes a travessa do M reira, essa devastada ivessa, que a Avenida, arr zando tudo, desabrigou ) encanto das amenas sei que a ornavam?

faziam por aqui as vores a habilidade de ler folha todo o anno ! Com( ;llas conseguiam isso, é o < eu nunca soube ; e mal iqui tenho vivido, com brc intervallos, desde que t 1844 vim da Durruivos.. Aos domingos de mai í, á hora da missa, era > o retiro dos namorados, suspirarem carinhos e pron jas, e sempre íoi tradin do bairro que nào havia e^ e falharem jurame )s que por aqui fossem fei í^ezes, estava eu } a almoçar, e, ao avistar < chinhos, tudo < i crescer-me agua na bo de inverno 1 avam o seu farnel, liam mão, um bc linho, o jornal que emh ou a marmelad . . Elle fazia um cig' para o ceu, cf o pedindo a Deus qi a mudass ia planta chamada ta aldade, p .er estar presa aos labi annos sal , d'esta abençoada t

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276 APONTAMEriOS DE UM FOLHETINISTA

n'esta casa da travessa do Moreira, onde tenho vivido e trabalhado ha tantos annos, aos rigores despóticos da avenida... da liberdade, que se propõe demolir-me o prédio, o prédio ! como se elle estivesse no meio da rua a impedir o transito !

Estão certos de como era d'antes a travessa do Mo- reira,— essa devastada travessa, que a Avenida, arra- zando tudo, desabrigou do encanto das amenas sebes que a ornavam?

Faziam por aqui as arvores a habilidade de terem folha todo o anno ! Como ellas conseguiam isso, é o que eu nunca soube ; e mais aqui tenho vivido, com breves intervallos, desde que em 1844 vim da Durruivos. . .

Aos domingos de manhã, á hora da missa, era este o retiro dos namorados, a suspirarem carinhos e promes- sas, e sempre íoi tradição do bairro que não havia exem- plo de falharem juramentos que por aqui fossem feitos...

Ás vezes, estava eu para almoçar, e, ao avistar os ter- nos ranchinhos, tudo era crescer-me agua na bocca. . .

Se era de inverno levavam o seu farnel, liam, entre apertos de mão, um bocadinho, o jornal que embrulhava o pão ou a marmelada... Elle fazia um cigarro, ella olhava para o ceu, como pedindo a Deus que por sua graça divina a mudasse na planta chamada tabaco, para assim, sem maldade, poder estar presa aos lábios d'elle...

Todos os annos sahia, d'esta abençoada travessa do

A VIDA ALEGRE 277

Moreira, um numero de casamentos, que, não é dizer, faziam honra á moral e ao Salitre.

Colliiam-se floriíilias silvestres; no tempo próprio, subindo aos campos, apanhavam-se espigas de trigo ; o milho oíTerecia as mais formosas maçarocas e timbrava em apresentar algumas de bago encarnado, grato ás ima- ginações amorosas. . .

Também ás vezes succedia náo haver trigo, nem mi- lho, nem flores ; e era uma graça andar á procura d'isso tudo, quando Deus queria de braço dado sem que os olhos vissem outra coisa senão a herva que verdejava ao sol, ou algum malmequer, que ambos meigamente queriam colher a um tempo, succedendo ao darem sem querer uma cabeçadinha um no outro, estreme- cerem ambos, e não pensarem mais no malmequer. . .

Vae agora, ao deitarem abaixo aquelles gentis silvedos, fartos 6 amplos, que enchiam de sombra a travessa, o que havia de apparecer, acocoradinho, aos pés de uma das arvores que defendiam estes suaves campos ?

Ura menino a dormir.

Acordaram-o iogo os operários, deram parte ao con- ductor de trabalhos, ao engenheiro da camará. . .

O pequenino olhava para elles, sorrindo. . .

Que estás tu ahi a fazer, menino ?

Não estou a fazer nada. Sou o Cupido ! "" - És o Cupido ? !

278 APONTAMENTOS DE UM FOLHETINISTA

Sou, sim, senhores. O Cupido. Estão a procurar-me as azas? ílãode nascer outra vez. Desde que andam por aqui a vasculhar tudo, e a fazerem poeirada e lama* çal medonhos, cahiram-me. Estou na muda. Assim o quiz a minha desgraça, e a Camará Municipal. D'antes vinham para aqui os namorados, e eu fazia rancho com elles. Passava-se muito bem. Agora, por causa d'es?a tal avenida, foram uns para a direita, outros para a esquerda, {iquei abandonado n'estes campos, e aqui tenho estado a chorar... Ainda entre estas selvas vivi uns mezes de raí- zes, de dryas de oito pétalas, de loureiros, e de ar ; principalmente de ar ! Tentei offerecer os meus serviços aos srs. camaristas. íi'uma manhã em que elles vie- ram, ao som de musica e de foguetes, pôr bandeirolas n'essas fazendas todas, mas não me entenderam ; não querem nada commigo. Aqui está porque me encontram agora tão mal vestido, a dormir de cansaço n'estes cam- pos. . . Levem-me comsigo ! Tudo isto está sendo arra- zado: torrão para aqui, torrão para alli ; vão morrer, os trabalhadores, n'esta bruta lida, quanto mais eu ! Le- vem-me! Terei muito propósito. Como poucoxinho. . . Sei fazer muitas coisas... Não lhes gastarei quasinada...

Alguém se haverá compadecido d'elle c o terá levado d'este campo, onde viveu alegre entre certas roseiras, urzes, sabugueiros, mil plantas rosáceas,— para os salões, onde terá de ser visto nos jantares, nos saraus, nos bai-

A VIDA ALEGUlí 279

les, á hora cm que, confundidos em montões de terra, os vallados, e os combros, do Salitre ao Valle do Pe- reiro, desmantelado, destruído, derrubado tudo, a minha casa da esquina, prostrada de sua altura c redu- zida a ruina, esteja igualada á terra. . .

Fiz bem, sim !

Com que animo viveria eu hoje á sombra do folhe- tim,— depois de havermos vivido aqui, o folhetim e eu, a nossa m.ocidade, á sombra solicita, risonha, dos ílorescentes arvoredos, que agora nos levaram ? !

Lisboa, 11 de dezembro de 1880.

FIM

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Machado, Júlio César A vida alegre

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