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VIDA DE LISBOA

COLLECÇAO ANTÓNIO MARIA PEREIRA

ALBERTO PIMENTEL

VIDA DE LISBOA

LISBOA

Parckria António Maria Pereira Livraria eoitora

50, 52 Rua Augusta - 52, 54

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DP 95

LISBOA Typographia da Parceria António Maria Pereira —Beco dos Apóstolos, ii. i.<»

Este livro é tão conveniente á distracção honesta das famílias, que até não são immoraes os capítulos de que o auctor não pôde ou não soube extrair logo a moralidac''».

O leitor, se quízer dar-se a esse trabalho, ha de verificar que as Fabulas de Lafontaine não são mais educativas, com a diíferença, modéstia aparte, de que são menos verosímeis.

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A Medalha do Tejo

Anverso (Monologo patriótico de lodo o bom alfacinha)

X#/'T|'VNTEM outros o pittoresco Rheno, como fize- ^^^ ram Matzerath, Becker e Musset; sejam «■^<^:r^^ eternamente famosas as Tristes de Ovidio, que melancolicamente celebram as margens do Da- núbio, onde o poeta estivera desterrado ; mas não fique inferior á gloria do Rheno ou do Danúbio o nosso bello Tejo, amplo e azul, tão abundante de aguas como de tradições, por igual brilhantes, tão cheio de luz como de memorias, tão povoado de velas brancas como de recordações eternas.

Tendo nascido para gigante, talhou o seu itine- rário ao longo de toda a península^ através de dois paizes. Nasce do seio de uma serra hespanhola^ faz a maior parte do seu curso por terras de Hes- panha, mas, para morrer, escolhe Portugal, o paiz da laranjeira e do rouxinol, e não quer morrer sem dar o seu ultimo beijo a Lisboa, a bella cidade do occidente.

Todas as suas gentis maneiras de fidalgo cava- lheiresco, todos os seus galantes requebros de gen-

COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA

tilhomem da corte os guardou para Portugal. Em Hespanha torna-se avaro das suas aguas, não con- sente que lhe domem o dorso senão pequenas e hu- mildes embarcações. Mas, entrando em Portugal, passando as Portas de Rodam, sente-se á vontade como n'uma terra de eleição, alarga o seu leito, en- grossa a sua corrente, otíerece-se á navegação, e vem correndo e cantando para trazer a Lisboa o seu ultimo feudo de galanteria.

Ouvindo a sua eterna serenata de gloria e amor^ muitos pequenos rios de Hespanha e Portugal aco- dem a saudai o na passagem e, encantados pela magia da sua lyra de Amphion, esquecem as ser- ras que os geraram, partem com elle, seguem-n'o fascinados e tributários, de modo que, quando o Tejo chega a Lisboa, não é um rio que passa, mas um gentil cortejo de rios que, presididos por elle, com elle vêm cantando a celebridade legenda- ria do seu guia.

Assim como um bando de menestréis tratará de afinar os bandolins ao avistar a janella da dama que os ha de ouvir, o bello Tejo azul, ao aproxi- mar-se de Lisboa, avoluma a expansão das suas aguas com o auxilio dos affluentes que o acompa- nham, e dilata o seu leito na largura de doze kilo- metros, para que a musica da sua grande lyra de crystal possa ter uma ampla vibração, cheia de gran- deza e poesia.

Então, principiando a mirar as cúpulas e as tor- res de Lisboa^ sente se, por amor d'ella, orgulhoso dos seus pergaminhos, e como que vem contando aos pequenos rios que o seguem a historia do seu passado glorioso, das naus descobridoras que d'aqui partiram em demanda de novos mundos, das frotas que daqui largaram para ir arvorar na Africa e na Ásia a bandeira das quinas, dos audazes mareantes e guerreiros que nas suas aguas receberam como que o pi imeiro baptismo da immortalidade he- oica.

VIDA DE LISBOA

Orgulha-se então de relembrar, olhando para a velha alcáçova, que foi elle que hospedou na sua vasta enseada as galés dos cruzados que auxilia- ram Atfonso Henriques na conquista de Lisboa; as naus empavesadas que voltavam da índia carre- gadas de especiarias e pedras finas; por ultimo, os grandes paquetes de navegação internacional que todos os dias vêm tocar no nosso porto para ligal-o com o mundo inteiro.

E como que encerra toda a sua historia famosa, toda a sua epopêa gigantesca, na recordação d'es- ses três typos de embarcações que lhe têm sulcado as aguas : as galés dos cruzados, as naus da índia, os paquetes transatlânticos.

Ás pequenas velas latinas, que a cada hora des- lisam sobre o espelho do seu curso, são para elle como insignificantes azas de gaivotas costeiras, que não chegam a fazer sombra no crystal das aguas.

No presente como no passado, gosta de me- dir a sua grandeza com a aza negra das águias da navegação, que desferem voos colossaes sobre o Pacifico e o Indico, roçando pelas ondas as longas plumas de fumo, que o vendaval encrespa.

Não o lisongeia tanto a lembrança das suas areias de oiro, que outr'ora lhe opulentaram o seio, e de que D. João III, se c verdadeira a fama, quiz que lhe fizessem um sceptro, como a memoria das na- vegações manuelinas e dos triumphos marítimos a que elle abriu a porta, dando franca passagem para o mar tenebroso, cheio de mysterios e de perigos.

Se alguém lhe vier falar do Rheno cantado pe- los poetas, responder Ihe-ha com um nome, o de Camões, que basta para encher de assombro o mundo.

E' ás nymphas do Tejo que Camões invoca no momento solemne de começar a sua epopêa:

E vós, Tágides minhas

4 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA

São ellas que lhe enchem a alma de saudade na hora em que parte para a Índia :

Eu me aparfi de vós, nymphas do Tejo, Quando menos temia esta partida.

E' sempre o porto da inclfcta Ullj^ssea, onde o doce Tejo e o salgado Neptuno misturam as suas aguas, que lhe a impressão da grandeza politica de Portugal e da nostalgia da pátria.

Vanglorie-se o Danúbio de ter retido nas suas margens um tamanho poeta como foi Ovidio, que ainda o Tejo lhe responderá triumphantemente com o nome do seu grande Camões, exilado por amor, não se sabe ao certo onde, mas seguramente na margem do Tejo, que elle próprio descreve.

E de memorias de poetas está cheio o Tejo, para se orgulhar ou para se arrepender. Arrependido certamente estará ainda por ter feito naufragar nas suas aguas o mavioso Rodrigues Lobo; orgulhoso se sentirá porventura quando se lembrar de que lord Byron, que tanto mundo havia corrido, tão captivo ficou da sua belleza e magestade que pre- tendeu medir-se com elle atravessando o a nado.

Mas como se dentro das aguas do Tejo pulsasse o coração de Portugal, não valeram ao poeta inglez os elogios que lhe dispensou para fazel-o esquecer dos aggravos que dirigira á nação.

E' certo que lord Byron havia dito no Childe Harold :

«A todos, cheios de alegria, saúda a serra de Cintra e o Tejo correndo a pagar ao Oceano o fa- buloso tributo das suas areias de oiro.»

Mas não é menos certo que o orgulhoso filho d'Albion havia chamado a Portugal: «Nação im- pando de ignorância e orgulho!»

Este aggravo inspirou ao Tejo uma vingança pa- triótica. Duas horas luctou lord Byron com as aguas tentando rcalisar a travessia ; era porém tão forte a corrente, que elle teve de abandonar o seu plano

VIDA DE LISBOA

e de recolher a terra, extenuado, vencido pela gran- deza impetuosa do rio.

Pode o Selef jactar-se de ter sido a causa da morte do famoso imperador Frederico Barbarôxa, que d'algum modo lhe não íica inferior o Tejo, re- cebendo no seu leito o cadáver do infante D. Mi- guel, filho do rei D. Pedro II.

Pode o Nilo ensoberbecer-se de haver conduzido nas suas aguas o berço fluctuante de Moysés, o legislador e libertador do povo hebreu.

Nobilita se por sua vez o Tejo com o facto de haver transportado ao lume d'agua o corpo vene- rando de Santa Iria, que recebeu do Zêzere, como o Zêzere o havia recebido do Nabão, e a que o Tejo, finalmente, deu sepultura em suas loiras areias, como diz Garrett.

Nada lhe falta ao bello rio azul do extremo occi- dente para ser famoso entre os famosos, notável entre os notáveis. Grande pelo seu curso, pelo seu porto, pelas suas tradições históricas; pittoresco pelas suas margens e pelos seus castellos, que ou resaltam do seio das aguas, como o de Almourol, ou as dominam do alto, como o de Santarém ; bello pela sua cor, que tem o brilho c a pureza de uma saphyra, onde o famoso ceu meridional se es- pelha n'uma eterna apotheose de luz.

Pode eternisar-sc nos concertos e bailes de Vienna a memoria de Johann Strauss fazendo valsar as gentis archiduquezas austriacas ao som do Bello Dãuiibio a:{iil.

Não menos bello, não menos azul, não menos suggestivo para artistas é de certo o caudaloso Tejo, doirado pelo sol da península ou envolvido na gaze vaporosa do luar.

Para contrapor á valsa (Je Strauss temos um en- xame de maestrinos que se inspiraram na belleza do Tejo, uma alluvião de poetas^ antigos e modernos, nacionaes ou extrangeiros, que o têm cantado com fogoso arrebatamento.

G COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA

E quando sobre as aguas do Tejo ardem fogos de Bengala, palácios luminosos, cúpulas phospho- rescentes, arcadas cambiantes, como por occasião da visita do príncipe de Galles, do rei Afíonso XII de Hespanha, do rei Oscar da Suécia, nada ha que possa igular a belleza, a grandiosidade, o esplendor feérico d'esse estranho espectáculo, que nos trans- porta ás narrativas phantasticas dos contos de fa- das nos paizes do Oriente.

Ufane-se embora o Rheno de ser cantado por Matzeraih, Becker e Musset; o Danúbio de se vêr celebrado por Ovidio e por Strauss, que o nosso- bello Tejo azul, tão abundante de aguas como de tradições, por igual brilhantes, tão cheio de luz como de memorias, tão povoado de velas brancas como de recordações eternas, não tem motivo para invejar-lhes a gloria. . .

Reverso

{Monologo sincero d'um nari^ sinceríssimo)

Á beira do Tejo, que doce poesia ! No céu^ as esirellas; no lio, crystaes. Não ha melhor sitio I Da noite a magia Attrae os amantes á borda do cães. . .

Depois quando a calma nos corpos lhes mette Incêndios terríveis, cruéis tentações, Váo ambos sorrmdo tomar um sorvete, E o par venturoso gastou dois tostões.

Porém muito antes que o encanto se quebre, E os lábios se juntem n'um languido beijo, Os dois apanharam talvez uma febre Nos canos d'esgoto que vão dar ao Tejo.

Aloralidade. O Tejo é um rio para vêr e naa para cheirar, ao contrario do rapé, que é bom para cheirar, e não tem que vêr.

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O g-enio de Lisboa (Monologo do critico c^ithanasio Duro)

«'^"Qaulus! Um diabo em carne e osso! O ma- ^^JT ganão do Paulus! O patusco do Paulus! (s^^ça£ £m se dizendo isto de um actor cómico^ está feito o seu elogio.

O ratão do Paulus!

Elle serve-se da cançoneta como de um saca- rolhas que vae arrancar gargalhadas ao espirito de mais estreito gargalo que seja possível imaginar. Tão jovial, tão reinadio, o Paulus, que até da outra vez fizera rir os portuguezes com repetir patuscamente uma blague que ha tempos corre por fora a nosso respeito: que nós, os portuguezes^ somos um povo alegre.

Comme les portugais je m'en vante, Je suis content, je suis joyeux. Qu'il grele, qu'il pleuve, qu'il vente On me voit le visage heureux.

Les habitants de Rarcelone,

Les italiens, les allemands

Ne sont pas toujours amusants,

8 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA

Mais dans la ville de Lisbonne,

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Les portugais, les portugais, Sont toujours gais.

On ne peut Têtre d'avantage.

A Lisbonne, même en voyage, Les portugais sont toujours gais.

Nós gostamos que nos digam isto, justamente como uma mulher feia gosta que lhe digam que é bonita.

Les portugais '

Sont toujours gais.

Fingimos acreditar, chegámos talvez mesmo a desvanecer-nos por momentos, mas no fundo da consciência de cada um está pelo menos a suspeita do contrario. . .

Alegres, os portuguezesl

A Lisbonne^ même en voyage l

Ah! lisongeíro Paulus, disfructador Paulus, o se- nhor, um francez, que de mais a mais leva a vida a cantar, chamar-nos alegres a nós, alegres em Lis- boa, alegres em viagem, sempre alegres toujours gais!

Pelo amor de Deus, Paulus!

Nós rimos quando o senhor esteve e tornare- mos a rir agora por que está outra vez, acredite. Logo que se embora, continuamos a ficar ma- zombos. E por minha vontade o senhor não se de- via ir embora nunca. Eu, se fosse o estado, com- prava-o a peso de oiro. Sabe para que? Para o in- troduzir nos nossos costumes, para injectar Paulus na politica, na litteraiura, na vida intima, nos bote- quins, nos passeios, para conseguirmos ser isso que o senhor lisongeiramente diz que nós somos.

Porque a verdade é esta, alegres não fomos nunca.

O senhor ha de ter visto Lisboa. visitou o nosso bairro aristocrático, viu Buenos Ayres? O que lhe pareceu, Paulus? Diga francamente, aqui

VIDA DE LISBOA 9

muito á puridade... Não lhe pareceu esse bairro uma cidadesinha morta, onde cresce a herva e a tristeza? Tem visto aos domingos as ruas da Baixa, depois das três horas da tarde? O que lhe pare- ceu aquillo, Paulus ? Diga, diga me aqui ao ouvido se lhe não pareceram um cemitério... foi aos cafés, entrou nos botequins? Que concorrên- cia, que alegria, que vivacidade nos cafés de Lis- boa! O quê! Achou-os tristes, solitários, somno- lentos?! Ah! lisongeiro Paulus, para que diz então que nós somos alegres em Lisboa?!

Francamente, Paulus, isto é uma cidade onde não ha creanças. Basta que lhe diga isto. Em Lis- boa só ha velhos; creanças, não O senhor por essas ruas uns pequenos seres, masculinos e femi- ninos, que talvez lhe pareçam creanças. Pois não são. Não brincam nos passeios, não correm, não saltam, não caiem sobretudo não caiem como as creanças dos outros paizes. Não se juntam em bandos, não faliam, não trocam sorrisos; quando muito, cumprimentam-se apenas. Antigamente ha- via bailes infantis no Passeio Publico. As creanças de Lisboa manobravam á voz do choregrapho-mór do reino, Justino Soares. Mas dançavam, como pessoas serias, austeros lanceiros, valsas sisudas. E o choregrapho mór educava-as no andamento como se encarcera um pássaro n'uma gaiola. Segu- rava-lhes os braços, atrambolhava-lhes as pernas. Assim, assim, dizia. De modo que cada pequena cuidava ter vinte annos e estar dançando com um homem pequeno; cada pequerrucho suppunha ter bigode e valsar com uma senhora de pouca al- tura.

Pensava-se em tudo, menos n'uma folia de crean- ças, porque as creanças manobravam a compasso, á voz de Justino Soares, caminhando gravemente para uma velhice precoce.

Acredite, Paulus, em Lisboa não ha creanças.

A maior parte dos prédios não tem jardim, não

10 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA

tem sequer um pateo. As creanças não podem brincar em casa porque incommodam a família e incommodam os visinhos. Também não vão brin- car aos passeios públicos. Educam -se fora da gy- mnastica e fora da hygiene, mas sempre dentro de casa. Habituam-se a metter o nariz em todos os negócios domésticos, a espreitar os visinhos, a sa- ber o que ha para o jantar, e a que horas o pae recolhe. Fazem-se grandes antes de o ser; tazem- se fracas, doentes, melancólicas. O que a educação- principia ha de acabal-o o fígado. Irão sendo cada vez mais doentes, tendo cada vez menos alegria e mais bílis.

Acredite, Paulus, em Lisboa não ha creanças. Isso que o senhor por ahi são apenas pessoas de formato reduzido, mas são pessoas, em vez: de serem creanças, e uma cidade onde não haja creanças ha de ser forçosamente uma cidade triste.

A população é de velhos, porque os que ainda não o são receiam-se de o ser. Ha de ouvir di- zer a cada passo a um homem relativamente novo: ((Estou velho! estão trinta e cinco!» Toda a pessoa que se suppõe velha é porque envelheceu por dentro, quando não tenha envelhecido por den- tro e por fora. Os annos são uma carga pesada, um fardo molesto. E o segredo da vida está justa- mente em atravessal-a procurando fugir ás coisas que incommodam, fazendo lhes rosto com ousadia^ em vez de lhes inclinar a cerviz com humildade.

Para que ha de a gente deitar a correr atraz do tempo parecendo receiar que nos fuja sem o poder- mos alcançar? Bem basta que o tempo corra atraz de nós incessantemente, sem nos dar tempo para tomarmos o fôlego.

Isto é um paiz tão triste, Paulus, que até se ri- dicularisam os homens que procuram remoçar com agua circassiana. Veja que paiz este! Esses taes são os valentes que todos os dias luctam corn o tempo, heroicamente, mettendo lhe a cabeça debaixo

VIDA DE LISBOA 11

dos joelhos, subjugando-o, obrigando-o a não fallar rnais alto do que a vontade d'elles. Os outros, os calvos, os brancos, são cobardes que se deixaram facilmente subjugar pe!o tempo sem resistência; que inclinaram submissamente os hombros para carre- gar com o fardo dos annos, e que andam por este mundo assoalnando os vestigios da sua própria der- rota, e dizendo a toda a gente a edade que têm, sem ninguém lhes perguntar por isso.

Todo o portuguez (as excepções são rarissimas) está casado aos vinte e cinco annos, aos trinta esiá doente, e aos trinta e cinco está velho.

Observe isto, Paulus.

Agora mesmo, que renhidas luctas não haverá por sua causa no seio das familias entre a mulher de trinta annos que desejava ir ouvil-o ao Gymna- sio, e o marido de trinta e cinco que se aborrece de calçar botas á noite para sair de casa!

E realmente, olhe que os maridos de trinta e cinco annos estão todos velhos; não c porque não sai- bam que Paulus é o rei da cançoneta e porque absolutamente não queiram ir ouvil-o; mas os acha- ques aborrecem, vem a azia, vem a hepatite, vem a bronchite, vem o rheumatico e, ó su- prema desgraça! vem o hemorrhoidal.

Um paiz que tem hemorrhoidas, e não tem crean- ças, é por força um paiz que consome menos ale- gria do que manteiga de cacau.

Francamente, para um paiz d'esta ordem, cebo... de Hollanda.

Em viagem, o mesmo que em Lisboa: um pouco peior talvez, por causa das almofadas.

De todos os viajantes o menos expansivo é o por- tuguez. Falia pouco no wagon, no paquete ou no hotel; falia pouco, e sempre com desconfiança. Sentase á mesa para jantar, e entende que os ou- tros devem fazer a mesma coisa. Entre comer e conversar não ha, á mesa, hesitação possivel para um portuguez; o portuguez come, o hespanhol come

12 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA

e conversa, o francez come, bebe, conversa e fuma.

O sr. Paulus deve ter conhecido o folhetinista mais alegremente francez que por temos tido, Juiio César Machado.

Pois bem, Machado, ou antes o Machadinho, por- que é sempre moço e sempre alegre por excepção entre os portuguezes, chegando a Nantes, de pas- sagem para Paris, teve de esperar três minutos pela mesa redonda.

Havia na sala uns poucos de francezes, dois alle- mães e elle. Na parede estava o annuncio de um livro novo intitulado: Faut il se marier? par qA, Fourgeaud.

Os seus compatriotas, Paulus, sabe como entre- tiveram os três minutos que faltavam para o jantar? Sabe de certo, calcula bem o que fariam, mas eu quero dizer-lh'o para que os portuguezes me oi- çam.

O primeiro francez escreveu por baixo do titulo do livro:

Non!

O segundo accrescentou:

Cest selon, pourquoi pas?!

O terceiro pegou no lápis e poz mais duas pa- lavras:

Ouíf ! Jamais !

Finalmente, um quarto francez deu o golpe de misericórdia na questão:

Oui; ca n'engage á rien !

Foi assim que os seus alegres compatriotas, Pau- lus, aproveitaram os últimos minutos antes da sopa. Sabe o que um portuguez haveria feito, em iden-

VIDA DE LISBOA 13-

tica situação^ se esse portuguez não fosse Júlio Cé- sar Machado ?

Sentava-se á meza a comer pão, desesperado por- que principiassem a servir a sopa.

Comme les portugais je m'en vante,

Je suis content, je suis joyeux,

QuM grele, qu'il pleuve, qu'il vente. . .

Nada d'isso, Paulus, nada d'isso.

O portuguez está sempre descontente com o tempo.

Se cai geada, o portuguez lamenta a sua des- graça porque se lhe queimam as couves. Uma embirração! Tanto trabalho tivera com a horta, diz elle, para que viesse agora a geada estragar-lh'a ! Este maldito tempo !

Se chove, o portuguez exclama :

Isto é agua de mais, está tudo perdido! Os campos andam a nado, a terra está ensopada! Que maldito tempo este !

Se tem havido sol, o portuguez, piscando o olha para o ceu, faz uma careta e diz :

Decididamente, não ha chuva este anno ! Te- mos uma estiagem pegada. Se assim continuar, apanhamos uma crise agrícola com.o não ha memo- ria! Tempo maldito!

E isto, Paulus, n'um paiz onde excepcional- mente são rigorosas todas as estações. . .

A nota triste, meu caro Paulus, predomina em todos os assumptos e em todos os logares, entre nós, acredite.

Na politica encontra se a cada passo. Todos os dias se diz no parlamento :

O paiz está perdido ! O nosso futura o a ban- carrota ou a morte !

O próprio orçamento, que é a alegria de muitas famílias, teima, por espirito nacional, em conservar a nota triste do deficit.

Na liiteratura, as senhoras preferem os roman-

14 C0LLEGÇÃ.0 ANTÓNIO MARIA PEREIRA

ces que as façam chorar. Alguns editores, compre- hendendo isto, têm mandado brochar cebolas para uso das leitoras.

Acredite, Paulus, nós estamos agora um pouco alegres porque o senhor appareceu de súbito em pleno Gymnasio a cantar as suas cançonetas des- opilantes e gaiatas :

Dans la Place de la Bastille Je me promanais Tautre soir, Lorsque une grande et belle filie Vient à passer sur le trottoír.

Para o fim do mez cahiremos na nossa habitual mazorrice chorona, embora o senhor corra a Eu- ropa a dizer que nós somos o povo mais alegre d'este mundo. . .

Les portugais Sont toujours gais.

(Monologo do critico Innocencio Manso)

Nem tanto ao mar, sr. Athanasio.

Lisboa é uma cidade trocista, muito disfrutadora, gostando de sublinhar todos os casos com um risi- nho de mofa.

O lisboeta em geral é alegre, não perde occasião de divertir-se, embora ás vezes tenha motivos para encarar a serio as coisas da vida.

Mas, adeus! atira cuidados e canceiras para traz dos moinhos, e eil-o ahi vae, o lisboeta^ todo cara de paschoas, aproveitar um comboio a preços re- duzidos, ver um casamento ou um enterro, tanto monta, esperar duas ou três horas a quedo pelo homem das botas.

O homem das botas é um symbolo da alegre pas- maceira, da curiosidade, sempre desenfadada, do lisboeta.

Sabem o que isso foi? Pelo tempo da primeira

VIDA DR LISBOA 15

invasão franceza, os santarenos, receiosos de algum desacato, quizeram acautelar o santo milagre^ uma ambula de crystal contendo uma hóstia, a que anda ligada uma lenda, e mandaram-n'o para Lisboa.

Felizmente, os francezes apanharam de todas as trez vezes a sua conta, Portugal salvouse das garras de Napoleão, a vida nacional entrou nos seus eixos normaes.

Então os santarenos começaram a reclamar o santo milagre, de que os lisboetas se não que- riam desfazer. Os de Santarém a instar, a insistir; o povo e senado lisbonense a tergiversar, não tendo vontade nenhuma de fazer a restituição. Mas as instancias dos santarenos eram cada vez mais for- tes, a situação complicava-se.

O governo via se em difficuldades, receiava algum conflicto entre o povo de Santarém e o povo de Lisboa.

Então alguém, um trocista de cá, lembrou ao governo um alvitre engenhoso: que se fizesse espa- lhar o boato de que tal dia, a tal hora, um homem, com botas de cortiça, atravessaria o Tejo, de Lis- boa para Cacilhas.

Pegou o boato, espalhou-se. Quiz toda a gente ir vêr o homem das botas. A multidão era compacta em toda a ribeira. Esperou duas horas, três horas, quatro horas, que chegasse o homem. Virá? Não virá? Foi logro! Entretanto, furtivamente, muda- va-se o santo milagre para Santarém. Grandes fes- tas em Santarém-, grande desapontamento em Lis- boa. Fica a tradição : o homem das botas, como quem diz o que nunca chega.

Pois apezar do logro ser monumental, ainda hoje Lisboa crê em todos os homens das botas que lhe annunciem. Esperará, chalaçando, largando piadas, o tempo que for preciso para se desilludir. Mas também, em se desilludindo uma vez... torna a illudir-se logo, porque faz gosto n'isso.

E' um symbolo. . . o homem das Imotas!

16 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA

No fim de contas, a philosophia do lisboeta é a única capaz de conformar-se com a brevidade da existência: tristezas não pagam dividas.

Uma vez admirei me de que o theatro da Trin- dade estivesse repleto de espectadores na noite de 23 de novembro. Dia cruel, dia de pagamento ao senhorio, dia de peregrinação para as casas de pe- nhores, parecia natural que ninguém, depois de feitos grandes sacrificios, tivesse vontade de ir ao theatro.

Disse isto a Francisco Palha, que estava no átrio da Trindade, esfregando as mãos de contente, por ouvir cantar o dinheiro n'esse tempo ainda o ha- via!— na caixa do camarotciro Moura.

E Francisco Palha respondeu-me:

Pois não lia duvida nenhuma de que a maior parte d'esta gente recorreu hoje ao prego para se habilitar a pagar a renda da casa. Mas sobejou al- guma coisa, ficaram na palma da mão alguns tos- tões, e são essas rapaduras do tacho o que toda esta gente vem gastar hoje ao theatro.

Em Lisboa, um papagaio que consegue fugir do poleiro, e que anda saltando de janella em janella ou que vai encarapitar-se no cimo da uma arvore, é um caso que produz sempre hilaridade, e attrae dezenas de espectadores.

Toda a gente pára na rua para admirar o papa- gaio, que parece troçar de todos os esforços que fazem para apanhal-o, e é isso o que mais agrada ao lisboeta, a nota cómica do caso, porque é justa- mente isso o qwe o lisboeta procura em toda a parte.

Uma das coisas que em Lisboa mais surprehende as senhoras da província é o costume das lisboetas se ficarem olhando umas ás outras, quando se en- contram na rua. A's vezes, frequentes vezes, acon- tece que os olhos da que sobe a calçada e os da que vai descendo se encontram como que n'um duello de critica, um momento depois de terem pas-

YiDA DE LISBOA 17

sado uma pela outra: surprehendem se ambas a olhar para traz, e a sorrir I

Sorrir de que ? De tudo, de nada, do chapéu, porque não parece ser de bom gosto, da capa, por- que passou da moda ; dos saltos das botinas, por- que estão gastos de um lado.

Acontece também que, n^este caso, nem os olhos commentam; ouvem se ás vezes risinhos, e até palavras, uma galhofa descarada.

De modo que uma senhora é forçada a saber a opinião que a seu respeito, a respeito do seu phy- sico e da sua ioilelte, formam as outras senhoras.

Doeste mau passo pôde salvar-se com um grande desdém ou com uma replica prompta. Mas os nervos femininos não se resignam facilmente ao desdém, e d'aqui resulta que a replica, m.ais ou menos prompta e feliz, é inevitável.

Contase que passando no Chiado certa dama, que havia sido formosíssima, ouvira dizer a outra:

-^ Está um caco ! » Ao que ella.) voltando se, respondeu de prompto:

Um caco. . . mas de Sévres 1

Ora tomai Esta é uma replica felicissima, digna de uma mulher d'espirito.

Tendo necessidade de responder alguma coisa, nem todas são tão promptas e felizes na replica, e, assim, cada uma responde o que sabe e o que pôde quando se ouve criticada em plena rua.

Esta inclinação á troça, que c o forte de Lisboa, man,ifesta-se até em classes que tinham obrigação de ser discretas, de possuir um maior sentimento das conveniências sociaes.

Ha famílias inteiras, menos mal collocadas, que passam a vida a rir dos outros^ meninas de iorgnou, ou sem ellc, cujos olhos são como o lápis de um ca- ricaturista, porque andam sempre a procurar os ri- dículos do próximo.

Ás vezes a palavra proferida em voz alta, incon- venientemente, vem em reforço dos olhos, e ouve a

18 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA

gente, porque para ser ouvido é intencionalmente dito, o que certas damas dizem das outras pessoas que estão por ali perto.

D'esta metralha de epigrammas quasi ninguém es- capa, nem mesmo, ó justa compensação 1 quem a dispara, porque, sendo a troça um costume publico, a pena de Tallião é frequentemente applicada.

Ha poucos dias vinha eu do Lumiar n'um ame- ricano aberto. Era um domingo. Meninas áeiorgnon^ enfileiradas na primeira bancada d'essa platea am- bulante, voltavam-se para traz, fazendo a critica dos outros passageiros, rindo, mirando-os zombeteira- mente. As suas principaes victimas foram trez rapa- zes inglezes, fortes, vermelhos, todos elles fumando cachimbo, os quaes trez mglezes haviam entrado ao passarmos no Campo Pequeno.

Pois elles aguentaram, imperturbavelmente, com uma fleugma verdadeiramente britannica, toda essa provocação da troça indígena, sem trocarem um olhar, uma palavra, sem ao menos encolherem os hombros desdenhosa e generosamente...

Eu cheguei a sentir-me vexado d'aquelle espectá- culo, em que a Inglaterra brilhou pela cordura, e em que Portugal deu tão triste ideia de si, sobre- tudo por ser a pátria de João Félix Pereira, que ^Idadamente passou a vida a ensinar civilidade aos ^ninos e ás meninas do seu paiz.

Na província, a modéstia dos costumes é geral, ninguém anda pela rua com um sorriso d'escarneo engatilhado, á procura de victimas, ninguém ousa rir-se na bochecha do próximo, nem critical-o em voz alta. Isto, lá, chama-se educação. E com- tudo, nós, em Lisboa lastimamos o atrazo em que se acham ainda os provincianos!

Na vida politica, ao passo que a província toma tudo a sério, ás vezes até um pouco sério de mais, Lisboa encara tudo a rir, quasi sempre com exa- gero.

ÊôDaixo da Arcada é dia de festa aqueHe (^m que

VIDA DE LISBOA 19

chega de fora uma commissão de ingénuos provin- cianos, que vem representar aos poderes públicos contra isto ou contra aquillo. Ha annos houve quem desse a estes cidadãos de boa o cognome áo, ja- poneses. E quando elles, recolhendo ao seu liotel, passam pela rua do Oiro, toda a gente os fica mi- rando de alto a baixo, commentando-lhes os cha- péus e as botas, o feitio da sobrecasaca, especial- mente, porque de ordinário a tesoura da provin- da anda atrazada dois annos no corte das sobreca- sacas.

O artigo de fundo, pedra de toque dos costu- mes poliiicos, raras vezes é humorístico nas folhas da província, e raras vezes deixa de o ser nos jor- naes de Lisboa.

C) génio do paiz é triste, pesadão, desconfiado. Mas Lisboa é uma excepção á regra geral do paiz, Lisboa gosta de rir, rende culto á piada e á laracha, parece ter uma confiança illimitada em si mesma, nos recursos do seu bom humor habitual. Em a gente saindo as portas da cidade, muda tudo de fi- gura : o saloio é reservado, desconfiado, apprehen- sivo- está quasi sempre de mau humor* chora com uma grande facilidade.

Sob o ponto de vista do génio da população, a estrada de circumvallaçao é uma muralha da China.

Moralidade. Um critico diz que Lisboa é triste, outro diz que Lisboa é alegre : não ha nada tão con- corde como a opinião de dois críticos 1

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11 1

A mocidade

Ç^TxiviDiREMos este capitulo em trez partes, em

^^m^\ ti^cz artigos successivos, tratando de outros (s%ry^ tantos pontos: a mocidade poriugueza nas gerações antigas; na ultima geração; e finalmente, «a geração actual.

Estas trez épocas estão separadas, na historia da mocidade portugueza, por differcnças profundas, que é mister reconhecer c estudar.

A mocidade portugueza foi na antiguidade uma cpopca. A força, o valor, a galanteria, a aventura encontram-se n'ella. A cruz, a espada e a lyra sym- bolisam-n'a. Quando a gente as nossas velhas ohronicas realengas sente-sc fascinada pelo esplen- dor das façanhas juvenis.

Os cavalleiros moços que acompanhavam o tam- bém moço Affonso Henriques passavam como um vendaval de guerra, avançando para o sul. N'uma das mãos a cruz; na outra o gladio. Affonso Hen- riques, o conquistador, é d'elles, vive entre os mo- ços; Affojiso Henriques, o velho, pertence aos ve-

VIDA DE LISBOA 21

lhos, aos monges. Entoa cânticos religiosos cm Santa Cruz de Coimbra, com Theotonio, o prior.

Quando a mocidade portuguczn parecia ir a cor- romper-se com Fernando I, porque

O fraco rei faz fraca a forte gente,

um heroe moço apparece para salvar do naufrágio as tradições gloriosas da mocidade portugueza. E' Nuno Alvares Pereira. D. Leonor Telles quiz ves- tir-lhe as armas p.or sua própria mão. Mas D. Nuno era tão novo, que não havia arncz que lhe servisse. Foi pedir-se um emprestado ao mestre de Aviz, que era também a esse tempo um heroe juvenil.

N'aquelles tempos, e a despeito do mau exemplo que a corte irradiava, os portuguezes nasciam he- roes.

Todo o poema do valor de Nuno Alvares está justamente na sua mocidade. O seu nome, immor- talisado nos Atoleiros, em Aljubarrota e Valverde, é o de um cavalleiro assombroso, que passa pelas hostes castelhanas como o anjo do extermínio. Em Ceuta não é o mesmo homem. Ahi, os filhos do rei sustentam heroicamente a tradição da mocidade portugueza. Mas o vulto de Nano Alvares não se põe em relevo por novas proezas. A velhice faz d'elle um monge, um espirito para o ceu, quasi um asceta.

Em Aljubarrota, a ala dos namorados, desfral- dando a sua bandeira verde, a cor symbolica da es- perança, bate-se pela pátria sob a divisa do amor. Na véspera da batalha esse ^rupo de rapazes, bra- vos como leões, conversam ao luar, fazendo votos de valor. N'aquelles tempos o valor era a escada de Jacob por onde era licito subir ao ceu da felici- dade amorosa.

Na corte de D. Manuel a preoccupação galante absorve a mocidade. Os cavalleiros de vinte annos fazem se trovadores. Mas as portas do Oriente, marchetadas de ouro e pérolas, vão abrir se, c des-

22 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA

cerrar um novo thcatro de proezas e aventuras. E' um reagente enérgico contra a enervação palaciana.

Camões, o typo mais completo e mais perfeito de um portuguez de vinte annòs, ensaia em aven- turas de capa e espada, nas ruas de Lisboa, as for- ças que depois vae consumir em Ceuta e na índia.

Quando Camões embarcou para a índia tinha vinte e nove annos; suppóe-se que então havia principiado os Lusiadas. Era um heroe completo, quasi ideal: tinha para as mulheres a fascinação da coragem aventurosa e do porte gentil ; para os ho- mens^ o valor, o denodo, a espada prompta e cor- tante, já afiada no pescoço de Gonçalo Borges ; para todos o deslumbramento de um génio superior, scintillante, peregrino.

Fechado o cyclo das grandes façanhas militares dos portuguezes no Oriente, a mocidade sente, é verdade, a falta de um vasto theatro para represen- tar as suas proezas de valor.

A companhia de Jesus empolga uma grande parte da mocidade portugueza, procurando encerrar no claustro todos os thesouros intellectuaes, todas as forças juvenis. Pela educação jesuítica, os moços fazem-se velhos, tornam-se sábios. O habito é como um arnez de gelo, arrefece o coração.

O que aconteceu porém ?

Foi que, quando a fortuna das poderosas ordens monásticas principiou a desandar, a mocidade por- tugueza, podendo rasgar a roupeta, atirou o cora- ção para o sol, para a liberdade.

Lança se então na febre da aventura amorosa. O

>

amor exalta a imaginação. Principia o cyclo dos poetas. As academias pullulam. As damas são co- nhecidas por anagrammas. Os a.nantes disfarçam-se cm pastores. O bucolismo alastra de flores o cami- nho que a mocidade vae pisando.

F^altam as guerras, as aventaras de batalha. Mas o ardente espirito portuguez, lendo febre de com- bater, empenha-sc em certamens poéticos.

VIDA DE LISBOA 23

Os outeiros são uma lucta de gloria litteraria. Ap- parecem as grandes rivalidades dos poetas, como outr'ora as tinha havido entre os soldados da Africa e da Índia.

O mais perfeito representante doesta época, que fecha o primeiro periodo da historia da mocidade portugueza, é Bocage, o Bocage dos ouleiros, do Agulheiro dos sábios^ da Nova Arcádia, dos impro- visos, das aventuras eróticas.

A alma portugueza renasce n'elle sob um novo aspecto.

II

Bocage abriu a porta á b'hemia intelligente. Refenndo-se á mocidade portugueza da uliima ge- ração, escreveu Júlio César Machado:

«Falia se agora muito em typos: —Que typo ! E' um typo ! Tu és typo I Não se falia va d'isso en- tão, e era então que elles existiam.»

E' verdade, a julgar pelas narrativas dos que ainda conservam memoria d'esse tempo aventuroso, em que o Marrare de Polimento era um baptismo, uma consagração. Entrar no Marrare era ter pas- saporte para viajar no paiz da bohemia, nas regiões da aventura, nos domínios do romance.'

Os rapazes d então eram uns estróinas, uns es- travagantes, uns devassos, se quizerem, mas nenhum d'elles era um inútil. Todos tinham talento. Dos co- pos de cognac saíam poemas. Da espuma do cham- pagne brctavam discursos parlamentares. Entre uma bailarina e uma ceia, estava a gloria.

D. José de Lencastre, um escriptor, era primo- roso, insigne com urra guitarra na mão. Depois do conde de Vimioso, ninguém sabia chorar um fad(^

24 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA

como elle. Punha na guitarra toda a sua alma de poeta. Quando elle a dedilhava ao luar, no Dafundo, o Tejo e as estrellas calavam-se para ouvilo, e as bailarinas não se atreviam a pedir mais champagne. Estavam embriagadas pela musica.

António da Cunha SottoMaior, que morreu nosso ministro em Stocholmo, era por ventura o mais com- pleto typo d'essa épocha. Escriptor, orador, elegan- te, bizarro um principe !

«As suas maiores excentricidades, diz Júlio Cé- sar Machado, foram exactamente o segredo da no- meada que elle alcançou. De uma occasião estava jogando o whist; caiu um pinto a um dos parceiro?, homem extremamente rico: o sujeito tirou o can- dieiro de cima da meza, e poz-se a procurar o seu pinto.

« Que faz, meu caro? Perguntou lhe Antono da Cunha. Quer deixar nos ás escuras?!

« Caiu me um pinto! respondeu o outro.

« Ahí E' escusado tirar-nos a luz; eu o allumio.

«E accendendo uma nota de quatro moedas fez com ella um archotinho para o ajudar a procurar o pinto. . .

(( Veja se o acha! disse.

((N'um bello dia, para não augmentar a conta no Keil, entendeu que seria bom r.^gular a sua vida, e fazer aos credores uma pequena amabilidade pa- gar-lhes-, isso fcz-se e foise embora para Dinamarca como nosso ministro: pagar-lhes e ficar, seria ama- bilidade grande de mais, seria fazer conta nova. Era ^homem de bons dotes, de um gosto fino para algumas coisas, e sabendo applicar as suas raras faculdades e concepções, que apresentavam sempre um caracter de originalidade. Tinha muitas vezes a maneira do cavalheirismo antigo e heróico. Não deve esquecer o seu no:ne: como homem de talento não lhe ficou que desejar, brilhou no parlamento pela vivacidade, esplendor, e ousadia d^s seus discursos, brilhou na mada con^o o primeiro janota do seu

VIDA DE LISBOA 25

tempo, no passeio publico o vi eu de uma vez com uma capa de casimira branca, brilhou na im- prensa como o único folhetinista que pôde conse- guir esse titulo no tempo ác Lopes de Mendonça, e foi ainda brilhar na diplomacia, mercê do alcance das suas faculdades e dos recursos da sua feição elegante. Se a gloria é alguma coisa, podem os mais illustres do nosso tempo invejar-lhe a sorte. Por muitos annos, quando elle estava ainda em Lisboa, se ouviu dizer de vez em quando:

« O António da Cunha é relho, não nos illuda- mos. no anno de. . .

«O seu elegante bigode branco continuava a ser tão moço como os rapazes d'esse tempo, bem mais moço que os rapazes d'agora. Esse bigode legendá- rio era, como por graciosa malicia, mais alvejante que nenhum outro, rnercê de um dos seus segredos de garridice : lavava-o todos os dias com sumo de limão, para o tornar de uma alvura nitida e magni- fica.

«Davam os antigos uma foice ao tempo e estavam longe por certo de cuidar, apesar da allegoria, quanto esse ceifeiro cruel havia de devastar a Lisboa de hontem, fazendo desapparccer em poucos annos, c como que de repente, quantos brilharam n'elli na única quadra elegante que ella teve. .

A opinião publica era feita pelos icóes do Alar- rarre. A imprensa ia ali tomar um café ás dez ho- ras da noite, meia hora depois um caba:;^ e passada mais meia hora, outro. Os folhetins que d'a1i saíam eram ardentes, crepitantes como o piinch. Sentia se n'elles e apontarei para exemplo os de Lopes de Mendonça a vida, a força, a espontaneidade das grandes alegrias.

A aventura tentava todos os espíritos. A politica d'esse tempo era a da revolução, de combate. Sam- paio guerreava os Cabraes fazendo um jornal que ninguém sabia onde era escripto e impresso, e que apparecia no bolso de António Bernardo sem se

2(3 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA

saber como fora ali introduzido. Gitam-se hoje com assombro os nihilistas, que pregam proclamações incendiarias nas costas dos próprios policias de S. Petersburgo. Não era menor façanha a que se dava com esse jornal revolucionário, de que muitos se serviram para aggrcdir o velho Sampaio, mas que, para nós, caracterisa a mais completa individuali- dade jornali^tica que tem havido em Portugal.

Um homem assombrava por esse tempo Lisboa inteira pelos seus prodígios de força e de atrevi- mento. Era Sant'Anna e Vasconcellos, que morreu visconde das Nogueiras. Quando lhe parecia, fazia despovoar os botequins.

Saiam os senhores, que eu quero tomar café sósinho, dizia.

E saía tudo.

Sampaio, o jornalista da revolução, encontrou-se um dia no campo da honra com este Hercules do Jiígh life. Confirmou pelos seus actos a coragem da-s suas palavras. Bateram-se bravamente.

Um dos elegantes d''e5se tempo entrou um dia n'um café do Rocio, levando na mão apenas uma chibata.

Quatro rapazotes bebiam a uma meza, e, quando o ouviram pedir capilé, sorriram-se de desdém.

Olá, diz o leão, traga mais quatro capilés. Fez se um profundo silencio no grupo dos rapa- zotes.

Vieram os cincos capilés.

Elle, o da aventura, aproxima-se da meza e diz serenamente:

Queira cada um dos meninos beber o seu capilé. Todos beberam.

Elle pagou, e saiu.

Na bohemia d'esse tempo, a pobreza era a alegria.

Havia um grupo de rapazes, que estão hoje de cabellos brancos, e que frequentavam as escolas superiores. Viviam n uma mansarda da rua da Pro- cissão, e, como não tivessem espelho para pentear-

VIDA DE LISBOA 27

se, conseguiram que uma costureirita do prédio fronteiro trouxesse o seu espelho para a janella, quando elles a chamavam batendo as palmas.

E qualquer d'ellcs, remirando-se do outro lado da rua, dizia para a visinha :

O' Gamillinha, levante mais o espelho, que não vejo bem.

Muito obrigado, Gamillinha, até amanhã. Viveram n'essa casa dez ou doze annos, e não

pagaram nunca a renda. O senhorio perdeu o am.or á agua furtada, e permitliu que os inquilinos justi- ficassem a palavra. . .

Doesta bohemia em que viveu a mocidade da ul- tima geração, sairam os ministros de hoje, os de- putados de hontem, os grandes oradores parlamen- tares, os eruditos, os professores, o que ainda ha ahi de melhor. . .

Disputavam-se o mesmo premio nas aulas, a mesma bailarina, a mesma gloria, e todavia ficaram sendo amigos, amigos para toda a vida e para todas as posições sociaes. Hoje vemol-os velhos, cansados, tratando-se por tu, n'um doce tom amigável, reme- morando as façanhas uns dos outros, fazendo ainda reflorir ao calor da saudade essas antigas ligações de amisade perdurável.

Ah! que profunda difFerença entre o hoje eo hontem !

lllustres bohemios d'esse tempo extremamente sympathico, quando o ultimo de vós morrer, a ale- gria portugueza partirá n'um dos ângulos da pedra sepulcral o seu copo de champagne, a taça das antigas ceias. Fará como o rei de Thule, para que ninguém mais a profane. . .

m

Somos chegados á ultima pai te d'esie capiíulo ; ultima, que é seguramente a mais espinhosa, c

28 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIKA

se certo rifão portuguez não fora demasiadamente plebeu, viria aqui a talho de foice.

Mas, emfim, por que não havemos de dizer a verdade toda, nua e crua? Tratamos apenas da col- lectividade, não nos dirigimos individualmente a ninguém. Não citaremos nomes. Podemos, pois, fal- lar com desafogo.

A mocidade portugueza está chegada a uma de- cadência deplorável.

Na alta sociedade, a indifferença predomina. De vez em quando, uma toirada cm Lisboa ou no Ri- batejo; uns domingos por outros, corridas de saltos no hippodromo de Bclem, mais nada. Os vinte an- nos elegantes narcotisam-se encostados ás montres do Chiado, n'ama somnolencii accablaníe. Se a mo- cidade doirada desperta alguma vez, não é para ir fazer uma longa viagem, uma d'essas longas via- gens que valem bem por um bom curso scientifico, é unicamente para dar batalha em S. Carlos con- tra um tenor decadente ou uma prima-dona fanée.

Os grandes typos da bohemia elegante desappa- receram, e parece que para todo o sempre. O mar- quez de Niza passou a ser apenas uma lenda antiga; no folhetim das suas aventuras, o tempo raspou esta phrase promettedora : La suite au prochain numero.

Dos cursos superiores ainda ás vezes saíam uns rapazes de animo resoluto, emprehendedores, acti- vos, enérgicos. Esses taes, como Serpa Pinto, Ro- berto Ivens e Brito Capello, preferiram os incommo- dos de uma aventura scientifica á somnolencia ener- vadora do Suisso, do Martinho, da Havanesa, e de qualquer loja da Baixa.

Por excepção, estes rapazes retrocederam para progredir-, isto é, parece terem pertencido ainda áqucllas gerações amigas de viajantes sábios e mo- ços, dos quaes Anquctil Duperron herdou o espirito arrojado e o amor á sciencia, que o levaram até ir procurar na índia as bases do orientalismo.

ViDA DE LISBOA 29

Mas, sem vislumbre de oííensa para qualquer dos três illustres exploradores, foi ainda um homem da ultima geração, foi ainda um dos celebres de ha trinta annos aquclle de quem lecebcram a protec- ção official, e talvez o impulso, para realisarem a missão scieniifica que tão gloriosamente levaram a cabo. Quem foi o pac da exploração? O sr. Murier o disse : João de Andrade Corvo, antigo frequen- tador do Marrare de Polimento; hontem um eru- dito; hoje um morto. . .

O fogo que lavra nas ultimas cinzas do passado chega ainda para aquecer de vez em quando a mo- cidade portugueza contemporânea.

Quem tem a culpa d'esta grande decadência actual? As causas parecem-nos complexas. Sem embargo, diremos francamente que n'este inventario de res- ponsabilidades cabe por certo aos governos abun- dante partilha. A falta de uma organisação séria e sabia da instrucção nacional é certamente uma das causas d'esta atrophia, doesta deplorável decadên- cia. Das aulas de instrucção secundaria sae-se ape- nas com uma ligeira camada de sciencia, que pôde ter um certo effeito n'um camarote de S. Carlos ou n'um //re d cluck Ica, mas que não por modo al- gum a comprehensão do verdadeiro caracter das sciencias, da sua útil applicação, nem o enthusias- mo pelos grandes commettimentos scientificos. Es- tuda-se apenas theoricamente, á pressa, unicamente para passar no fim do anuo. Convicções duradoiras, colhidas na pratica, na prova experimental da scien- cia, nenhumas. De toda a pomposa bagagem das escolas ficam apenas subsistindo dois ou trcz idio- mas, principalmente um, o francez, alimentado pela leitura, maior ou menor, de romances modernos, que constituem entre nós a pólvora dos combates galantes de salão.

Rapazes de doze annos atiram-se primeiro a# francez que ao portugucz. Porque? Porque a orga- nisação official dos estudos lhes permitte essa liber-

30 C0LLECÇÃ.0 ANTÓNIO MARIA PEREIRA

dade, e porque as suas farrjiias têm pressa de fa- zer d'elles homens, isto é, candidatos a empregos públicos, sabendo procurar no Roquette os vocá- bulos francezes que não têm na memoria. . . Triste, deplorável sociedade aquella onde todo o ideal da instrucção está posto na lingua franceza, como se nascêssemos... em França.

Com estes elementos se ha de fazer a sociedade de amanhã; é fácil prophetisar que ainda será peior que a d'hoje.

Depois de tudo isto, nos resta pedir ao sr. Hauteville que mande expor na sua montre da rua do Ouro um grupo photographado dos rapazes de ha trinta annos, a fim de que o indigena possa pa- rar deante da vidraça e dizer: Ali ja^ a mocidade portuguesa.

Moralidade. Campus ubi Trofa fuit. Traáuc- ção : não ha rapazes.

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IV

o amor

\uEM ha ahi que, ao recolher a casa n'uma

noite de inverno, fria, húmida, nevoenta ou ^!^n,<r tempestuosa, não tenha encontrado, como sentinellas perdidas na vastidão das ruas, dez na- morados que gargarejam idyllios para a janella de um quarto andar?

Por mais agreste que esteja a temperatura, por mais encharcadas que brilhem as pedras, o Amor indígena conserva-se ali de plantão, com a cabeça alta, o firme, o coração ardente.

A's vezes os Romeus da meia noite tem a boa estrella de namorar uma Julietta de re^-de-chaussée^ e então, em vez de esgalgar a cabeça, debruçam-se commodamente na janella, fallando para dentro, emquanto a chuva lhes vae rufando no dorso como na pellica de um tambor e o vento lhes assobia ás orelhas engalfinhando-se-lhes no cachaço.

Mas o que elles sentem não é o frio nem a chw- va, o vento ou a cacimba, o que elles sentem apenas é o amor, que os aquece como se uma for- nalha thes estivesse assando a alma, convertendo-a

52 COLLECÇÃO ANTOMO MARIA PEREIRA

n'um petisco bem loiro e bem quente, que se offe- rece rechinando á gala amorosa da namorado.

uma vez certo Romeu de rei-dechaussée teve o feliz acaso de, n'um m.omento para o outro, che- gar ao ideal da sua felicidade, casando em vinte c quatro horas, apenas.

Um rapaz estouvado, alegre, acabando de ceiar copiosamente, embirrou, ao passar pela rua de S. Bento, com o Romeu que ia sendo chronico n'a- quella rua.

E, achando-o entretido, como sempre, a fallar para dentro da janella, pegou-lhe valentemente pela gola do casaco, atirou com elle para o interior da casa.

Ao estrondo da queda acudiram o pae e a mãe da menina, de castiçal em punho.

O namorado estava estatelado no meio do chão, contuso, dorido, sem poder m.exer-se. Para colorir o escândalo, tornou se preciso apressar o casamen- to, que se realisou no dia seguinte.

A' volta da egreja, dizia o noivo para a noiva:

Sabes quem passou hontcm pela tua rua e me pegou pela gola do casaco?

Não sei. Não pude ver mais do que o vulW).

Sei eu : foi Deus !

Deus de chapéu alto!... porque quem quer que foi ia de chapéu alto.

Deus põe o chapéu que quer para fazer o mi- lagre que lhe appetecc. Mas, possuindo te agora, não posso duvidar de que fosse Deus. . .

Lisongeiro!

E' possivcl que, passados annos, o pobre homem tivesse razões para pensar de ouir© modo, quando, zangando-se com a sogra, ella lhe dissesse :

O senhor sempre é um genro que me entrou cm casa como um gato que \ eiu de trambolhão pela chaminé abaixo!. . .

Talvez elle pensasse então com ©s seus bo- tões:

VIDA DE LISBOA 33

N'aquella noite não foi Deus que passou. Era o Diabo de chapéu alto!

Mas ao futuro pertence liquidar, no casamen- to, as responsabilidades de Deus ou do Diabo.

Emquanto se namora, tudo é pelo melhor no me- lhor dos mundos, embora o vento assobie, a chuva caia e o nevoeiro possa talhar-se á faca.

Quanto mais baixa for a janella, tanto o nevoeiro deve ser mais denso. . .

No céo das noites de Lisboa, por mais brumosas que sejam, o Amor anda brincando no ar, darde- jando settas, correndo de um lado para o outro como uma estrella cadente, pendurando-se nas ja- nellas, descendo de um pulo até á rua para tornar a subir depois, esvoaçando, machinando, conspi- rando sempre contra os pães que estando a dormir não sonham com o passado. . .

Um rapaz sueco, vindo ha annos a Lisboa, disse- me de uma vez:

Em Portugal o amor tem dois cúmplices cer- tos: a noite e a janella.

E o temperamento nacional, accrescentei eu, fazendo lhe sentir que um sueco tem obrigação de ser frio.

Nós cá, os portuguezes, sempre fomos doces no amor como um torrão de assucar. Temos geito para isso. diz Lope de Vega na comedia da ^oro- íhea: «Eu, senhora, tenho olhos de creança e alma de portuguez.» E madame de Sevigné não queria alambicar muito as suas cartas com medo de pare- cer uma portugueza.

Mas, quanto á cumplicidade da janella no amor, não é esse um costume exclusivamente portuguez^ antes se deve considerar como tradição dos povos latinos.

Em Hespanha, fallar de amor através das rotu- las da janella, coisa é que se presenceia todas as noites e tem a sua expressão própria: hablar d la reja.

34 COLLECÇÃO ANTÓNIO MAKIA PEREIRA

Na Itália é rara a canção amorosa em que não entre uma janella. Em Nápoles, principalmente, é da janella que se ama, é para a janella que se na- mora. Chama-se a isto pelar la papa, como quem diz depennar o peru. Marc-Monnier attribue o costume á dominação hespanhola e explica a phrase pelo facto das raparigas, vindo á janella depennar as aves, irem dando trella aos namorados.

Na canção da Fenestra bassa ou da Fenesta vas- cia^ como se diz no dialecto napolitano, o namora- do queria transformar-se n'um rapazinho dos que por andam vendendo agua, para ter occasião de apregoal-a debaixo de uma janella, e quando a bella dama apparecesse para lh'a comprar, poder elle declarar-se: cO que eu vendo não é agua; são lagrimas de amor.»

Son lagrime d'amore, non é acqua.

Nos paizes frios, como a Suécia, percebe-se que os homens estejam fechados á noite em casa, ca- chimbando e bebendo. Mas no sul da Europa, onde o clima é sempre benigno, a noite não mette medo a ninguém, muito menos a um homem que pensa n'uma mulher.

Os gregos antigos viviam sempre na rua, as pa- redes das suas casas podiam atravessar-se com um alfinete, diz não sei quem, creio que é o Taine, por que a suavidade do clima os tornava vadios em casa paravam para dormir e comer.

Os italianos, os francezes, os hespanhoes são, como nós, gente que vive ao ar livre, graças á sua- vidade da temperatura. O lisboeta nunca foi pessoa que estivesse agarrado á casa como o caracol á casca.

No auto do Físico, de Jeronymo Ribeiro, irmão do poeta Chiado, diz um pae do século XVI :

Parece-me que se aza fazermos feria, sequer

VIDA DE LISBOA 35

forrar-me hei de o não ver nem a de ver esta casa mais que a horas de comer.

E a filha responde lhe :

Todo o filho de Lisboa

ha de morrer com esse vicio.

A esta alegre vadiagem dos lisboetas chamavam os poetas cómicos d'aquille século a aievia de Lisboa.

Mas o sueco, se via um rapaz imberbe parado de noite a olhar para uma janella, perguntava no seu portuguez de trapos, que ia falando :

Que fcL-^e este ?

Namora.

- Oh ! namorrare ! Sempre namorrare !

Se reparava n'um velho parado a uma esquina :

Que fa\e este ?

Namora.

Ohl namorrare! Sempre namorrare!

EUe tinha vindo a Lisboa para aprender o por- tuguez, porque lhe convinha isso como consignatá- rio dos principaes exportadores de Setúbal.

Demorou-se aqui mszes. Uma noite, vindo eu do Gymnasio, encontrei-o parado na rua do Moinho de Vento.

Gheguei-me ao d'elle, e disse-lhe :

O que faz o senhor aqui ? E elle, sorrindo-se, respondeu :

Naynorrare.

Eu repliquei, desaffrontando os meus compatrio- tas :

Oh! namorrare! Sempre naniorrare!

E, andados alguns passos, senti abrir uma janel- la,— em portuguez.

O sueco, na sua lingua de trapos, disse alguma coisa para cima, alguma coisa que deveria fazer lembrar a canção de Nápoles O que eu vendo não

36 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA

e agiia^ são lagrimas d amor , mas que, dita por elle, faria rir as pedras.

N'aquelle tempo não se vendiam ainda as caixas de phosphoros amorphos, o sueco era uma lingua que, mesmo temperada com o portuguez, não se entendia nem se accendia facilmente.

Desconfio que o homem, apesar de ter caido nos costumes da terra, não chegou a inflammar-se.

Por maior que seja um homem em Portugal, não vae inteiro á immortalidade sem ter pago o seu feudo ao gargarejo amoroso. Nós hoje vemos Gamões através do prisma da sua própria epopea, medi- mol-o pela estatua do Loreto. Pois bem! Gamões, o Homero Lusitano, também gargarejou, como se apura de um soneto seu, em lingua castelhana, no qual apostropha uma janella : Ventana venturosa^ diz elle. Está a gente a vel-o de cara no ar, a olhar para cima, esperando Gatharina de Athayde ou ou- tra qualquer, porque o nome não faz ao caso.

Gerto é que o costume tem seus inconvenientes, mas, em compensação, quão saboroso é para os namorados l

Um dos inconvenientes é seguramente a illusão que a distancia, que vae da rua á janella, favorece.

um sujeito casou, por honra da firma, com uma mulher que não chegava a ter quatro palmos de altura, mas que para lhe ir fallar á janella se encarapitava em duas cadeiras.

Foi na occasião de ir pedil-a que elle a poude ver de no meio da sala.

Mas era philosopho, e disse de si para comsigo r

Do mal o menos. . .

Havia ahi para os lados do Gastello uma rapa- riga com um lindo palmo de cara, mas que nas- cera tatibitati. Arranjou um namoro^ e foi-lhe isso bem fácil, porque o arranjou em silencio, olhando apenas. . O rapaz pediu-lhe um gargarejo: con- cedido. Mas quem apparecia de dia era ella, quem fallava á noite era a criada. O rapaz casou, conhe-

VIDA DE LISBOA 37

ceu o logro, e ella própria, visto que o estava dado, explicou como conseguira logral-o.

Pois menina, disse elle também philosophica- mente, olharei para ti e continuarei conversando com a tua criada.

Mas estes inconvenientes não conseguem preju- dicar a tradição do gargarejo nacional. O portuguez, como o napolitano, apregoa debaixo das janellas lagrimas de amor, e o sueco, se se ri do portuguez, cae na esparrella. . . namorrando também.

Ahi por dezembro, quando os frios apertam, o Amor espirra nas janellas, batendo o queixo.

Hoje ninguém toma por mau agouro o espirro, e ainda bem que assim é, porque se acreditássemos n'essa superstição tanto quanto nossos avós acre- ditaram, seriamos, no mez de dezembro, o povo mais enguiçado deste mundo.

Conta Frei Luiz de Sousa, na Historia de S. Domingos, que embarcando S. Frei Gil em Barce- lona para as Baleares e tendo-se ouvido um espirro ao levantar ferro, logc os mareantes tornaram a descer as ancoras, receiosos de partir com tão estreia.

Foi preciso que S. Frei Gil empregasse toda a sua unctuosa eloquência para os resolver a trium- pharem do receio que o espirro lhes inspirara.

Facilmente podemos rastrear a origem d'esta su- perstição. O mesmo Frei Luiz de Sousa a des- venda :

«As historias menos antigas fazem menção de uma doença geral, e tão perniciosa, que o homem que dava espirro, dava com elle juntamente a vida; e quando foi aplacando, se um espirrava, e acertava a ficar vivo, acudiam os presentes a dar-lhe as em- boras, como hoje fazemos sem mais razão, que o

38 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA

costume posto em posse, e termos de cortezia. E por ventura foi deduzido este, e o agouro dos mareantes do mesmo principio.»

A phrase Dominiis teciim, que ficou na tradição, data pois do tempo em que o espirro era sympto- ma de uma enfermidade mortal, que tomou o cara- cter de epidemia.

E' verdade que nem todos os espirros foram con- siderados de mau agouro nos tempos áureos da mythologia. O espirro para a direita era tido como de bom presagio. Suppunha-se que Júpiter e Gybele, Vénus e o Amor o favoneavam. Catullo diz n'uma das suas lyricas: «O amor, que até aqui havia es- pirrado para a esquerda, mostra a sua approvação espirrando para a direita.»

O que era mau era que o numero dos espirros não fosse impar. diz Opimo: ^^Permittam os deuses que eu espirre sete ve^es antes de entrar no leito da minha amada.»

As lendas pagãs faliam de espirros memorandos, que não deviam ser menos estrondosos que os que andamos agora ouvindo por toda a parte.

Quando Minerva, armada de ponto em branco, sahiu da cabeça de Júpiter, esfuziou um espirro tremendo pelas ventas do parturiente.

Frei Luiz de Sousa falia ainda de um espirro no- tável, que, ao contrario do que criam os marinhei- ros de Barcelona, fora tido como bom agouro.

-iMas o successo do espirro diz o mavioso chro- nista que elles tomaram em agouro avesso, foi nos tempos muito antigos recebido em contrario sentido, como o aponta o Príncipe dos Poetas em Penélope, de quem conta que se alegrou, ouvindo um espirro quando Ulysses começou a executar a vingança de seus inimigos, e que o houve por boa estreia, e signal de victoria.»

Notando a contradição do que a respeito do es- pirro se tem pensado, umas vezes em bem, outras em mal, conclue judiciosamente Frei Luiz de Sousa:

VIDA Dfc: LISBOA 39

aD'onde fica provado o engano, e futilidade do agouro pela diíferença dos tempos, e opiniões.»

Outro espirro muito celebrado em memorias gen- tilicas é o que o Amor disparou sobre o berço de Clvnthia:

Nam tibi nascenti et prin^is, mea vita, diebus, Candidus argutum sternuit omen Amor.

A phantasia pagã foi, para que inteiramente fique justificado o reparo de Frei Luiz de Sousa, até ver no espirro a passagem invisivel de um deus tu- tellar.

Esse deus incorpóreo denominava-se a Ave de Júpiter.

Sócrates cria que andava no caso um animal, mas suppunha que não fosse ave; era, segundo elle, um demónio familiar, que lhe falava por meio da esternutação, e Sócrates entendia-o.

Telha de philosopho.

Conta-se também que Vénus não espirrava nunca com receio de enrugar a face bellamente mimosa.

Pois andasse Vénus em dezembro por Portugal, e bem contra sua vontade espirraria como outras Vénus, mais ou menos pagãs, que por ahi andam, e que não fazem outra coisa.

E o caso é que não faltaria quem seguisse os passos de Vénus para lhe poder dizer de cada vez que ella espirrasse: Dominus tecum.

Demais a mais, Vénus teve sempre uma certa ti- neta pelos portuguezes, se dermos credito a Ca- mões.

Lembram-se, provavelmente, da formosa passa- gem dos Lusíadas em que Vénus implora a prote- cção de Júpiter em favor dos temerários nautas do occidente:

Este povo, que é meu, por quem derramo As lagrimas, que em vão cahidas vejo, Que assaz de mal lhe quero, pois que o amo, Sendo tu tanto contra meu desejo :

40 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA

Por elle a ti rogando choro, e bramo, E contra minha dita em íim pelejo. Ora pois : porque o amo é mal tratado, Quero-lhe querer mal, será guardado.

Eu estava agora a ponto de explorar a sympathia de Vénus pelos portuguezes para lhe exorar que com o calor dos seus beijos fizesse subir o thermo- metro; para lhe lembrar que, não querendo ella própria espirrar para não enrugar o rosto, era um acto de justiça evitar que as portuguezas corram o risco de ficar reduzidas a castanhas piladas á força de espirros.

Porque a verdade é esta: não ha belleza que re- sista á deíluxão, não ha nariz, por mais grego que seja, que possa triumphar do espirro.

Seria talvez por esta razão que, na antiguidade clássica, os espirros eram menos favoráveis entre as mulheres do que entre os homens.

As damas da Grécia e Roma, em se sentindo constipadas, recorriam a remédios preservativos contra a estcrnutação.

Tinham juizo.

Imaginem o que poderá ser, em dezembro, com 8 graus acima de zero, um idyllio nocturno permu- tado da rua para um terceiro andar.

Não é difficil imaginal-o, porque não ha scena mais vulgar n'este jardim da Europa á beira-mar plantado.

Ella, no seu terceiro andar: Pensei que não viesses! Tardaste tanto: quasi duas horas! Tenho o coração em chammas; o espirito em fogo. Ardia de impaciência e de inquietação. (Atchi, atchi: es- pirrando).

Elle, na rua, procurando disfarçar uma leviana infidelidade: O que tu estás é muito constipada!

Ella.* Constipada! quem falia agora em consti- pação! (Atchi, atchi: continuando a espirrar). O que eu estou é desesperada, raivosa: queria mor- der-te.

VIDA DE LISBOA 41

Elle, que tem vindo cie um gabinete particular do Restaurant Club^ a toda a pressa^ por ser muito tarde: Pois não tens razão, minha filha. fAtchi, atchi: espirrando também). Venho do Grémio. O conselheiro Sargedas, amigo de meu pae, pregou- me uma grande maçada sobre a questão ingleza. Eu estava em brazas; queria safar-me. fAtchi, atchi.) Constipei me. No Grémio estavam todos os fogões e todos os candieiros accesos; e como, logo que o conselheiro Sargedas me largou, sahi sem ter tem- po para esfriar, constipei-me também. fAtchi, atchi.}

Ella: Não tornes a fazer outra. Sabes que te adoro. Não me faças soffrer. O papá, que viajou muito por Itália, tem-me descripto muitas vezes o Vesúvio-, pois bem, eu tenho no coração um A^esu- vio, um vulcão I (Atchi, atchi.)

Elle: Queres então que te jure mais uma vez o meu ardente amor?I fAtchi, atchi). Não é preciso; bem o sabes.

Ella: Tu também estás muito constipado. Vae para casa, filho, mas não faças tolices. Olha lá! Não quero que adoeças por minha causa. Isto em mim não é nada. fAtchi, atchi.)

Elle: Por ti é que eu tenho cuidado. Por mim não faço caso de constipações. fAtchi, atchi.j

Ella: Vês?! Estás muito constipado! Vae dei- tar-te.

Elle: Não vou. Ficava aqui de boa vontade até de madrugada. fAtchi, atchij.

Ella: Não, não consinto. Eu nem sinto frio. (Atchi., atchij. Mas estou com cuidado pelo que te pôde acontecer, porque espirraste umas poucas de vezes. Adeus, filho. (Atchi, atchi).

Elle: Visto que mandas, obedeço. Mas eu tam- bém não sinto frio. fAtchi, atchi).

Ella : Adeus, querido. Até amanhã. fAtchi^ atchi).

Elle: Até amanhã, meu anjo. fAtchi^ atchi).

Ella, cerrando de mansinho ajanella: Atchij atchi).

42 COLLECÇ.\0 ANTÓNIO MARIA PEKEIRA

Elle, parando d esquina, emqiianto ella fecha a janella: Atchi, atchi.

O guarda nocturno, parado a pequena distancia: Atchi, atchi.

Os soldados da patrulha, desembocando á esqui- na, n'uma esternutação isochrona : Atchi, atchi.

O relógio da Estrella, espirrando duas badala- das, que parecem dois espirros de bronze: Atchi, atchom.

Eu próprio, que estou escrevendo isto: Atchiy atchd.

O que ella diz na Avenida ! Que verve., que fina graça ! Pára a ouvil-a quem passa, Ouvindo-a a gente é feliz ! Como descreve em dois traços O campo, Cintra, a cidade, Os salões, a sociedade. . . Que humor em tudo o que diz !

Em escrever é. . . difficil. Faz lembrar uma creança Que de fallar se não cansa ; De cuja bocca— uma rosa, Sai o perfume das flores, Tendo na palavra as cores Que tem na aza a mariposa.

A sua febril palavra, A sua inquieta ideia, Não pode ver-se apertada, Presa, opprimida, fechada. No enveloppe uma cadea.

Por isso, bem poucas vezes A sua setinea mão Sobre o papel tem traçado O que sente o coração Quando d'amor tem pulsado..

Mas um a quem escrevera, Entre os felizes, feliz,

VIDA DE LISBOA 43

Possue uma carta d'ella, Que em liguagem iingela Pouco mais ou menos diz :

Não se fatigue d'esp'rar^ Triunfe cTeça desqreriça, Talvej póçamos casar Muito antes do que penca.

Moralidade : Ama cada um quando pode e como pode. E quem não pode^ trapacea. Ha trapaças que são coleoptéros, e coleoptéros que são trapaças. Mas até os que não podem amar, querem fingir que ainda amam!

Nas ruas

A lisboeta que passa

noite não está serena. Galopam no ar nuvens negras, ameaçadoras. O vento açoita-as. Os candieiros do Chiado e a claridade das lojas dão ás pedras húmidas da rua espelhamentos phosphorecentes, que brilham um momento e pa- recem apagar-se logo. Carruagens, com os vidros fechados, deixando entrever toilettes brancas, atra- vessam para S. Carlos. Eh 1 eh! gritam os cochei- ros, gordos como texugos, envoltos em pelles, sof- freando os bellos cavallos normandos, para não atropellar os peÔes de chapéo esburacado e gola do casaco voltada para cima, que vão pisando a lama esparrinhando-a. Os garotos apregoam os jornaes da noite, correndo em zig-zags, saltando de um pas- seio a outro, annunciando e vendendo. Um caute- leiro, de voz roufenha, promette a sorte grande a

VIDA DE LISBOA 45

quem lhe comprar uma cautela. E um vendedor ambulante de castanhas cosidas berra á esquina da rua: Quentes e boas.

A lisboeta, que em geral não teme o inverno, passa affoita, saltando de pedra em pedra, arrega- çando o vestido, olhando para ver e para ser vista, aproveitando o tempo e andando.

E' como uma pequena escuna que se mette ao mar sem medo da vaga, e que manobra agilmente por entre os grupos, cortando a corrente, passando e vencendo.

O inverno tem o que quer que seja da Rosalina dos Sinos de Cornepille., parece andar cantando aos ouvidos dos homens e apontando para os pés das

mulheres :

Olhae, olhae, Examinae. . .

A noite, com as suas visões indecisas, favorece o culto da plástica feminina, o culto do pé, princi- palmente. Dizia não sei quem, que o mais rico ne- gociante do mundo se arruinaria dentro de pouco tempo se comprasse mulheres á noite e as vendesse pela manhã. A' noite o da mulher que passa pa- rece divino, e bem pôde ser todavia que pela ma- nhã o não seja. Após a figura imaginaria de Rosa- lina vem descendo pelo Chiado, em espirito, a turba dos poetas que têm cantado e adorado o pé. Não os vemos, mas ouvimol-os, na esteira da lisboeta saltitante, que arregaça o vestido e vae passando.

E' Fernando Caldeira que nos acotovella sorrin- do e dizendo :

Eu não sei, não comprehendo, Quando te vejo correndo, Mesmo que vás devagar, Como uns pés tão pequeninos, Tão delicados, tão finos. Assim te podem levar.

E' Bulhão Pato que atravessa pela nossa imagi-

46 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA

nação cantarolando a malaguena da Paquita e pis- cando maliciosamente o olho :

Depois, se o vento, Ao voltar súbito a esquina,

Vem mais violento.

Quem passa e Baixmho me diz «Menifia,

Que lindo ! »

Corada sigo ; Nem sequer olhos levanto

Para ninguém ;

E, quando vem O vento mais sacudido, Prendo e reprendo o vestido ;

Mas sempre alguém

Me diz que Distinctamente o pésinho. ..

Quando não é A's vezes um bocadinho. . .

Além do pé. . .

Nas noites de inverno da província é preciso ter vinte annos e uma imaginação muito viva para en- tresonhar um pésinho cambré que vae passando e para entreouvir os poetas que lhe vão juncando de madrigaes o caminho, porque a verdade é que na província, ás oito horas de uma noite de inverno, não passa ninguém, nem mesmo a patrulha com as suas botas municipaes de sete léguas.

Lá, a essa hora, o vento geme nos pinhaes, es- fusia pelas ruas desertas, a agua alastra-se nas pe- dras e bruxolea a luz da botica allumiando pal- lidamente os frascos das drogas e os caturras do gamão.

A casa é triste, as paredes têm sombras, a la- reira recorta no ar chammas de um azul sulphureo, mephistophelico, como o das pyras que ás vezes fi- guram nas operas de S. Carlos.

Uma trova popular de Braga celebra a peque- nez do das bracarenses, mas canta-o em ple- na luz do dia, á hora da missa, que é quando

VIDA DE LISBOA 47

elle se expõe á admiração dos seus adoradores:

Meninas de Braga Vão á missa à Co'o seu sapatinho Na ponta do pé.

Ah ! mas quem seria capaz de descobrir o cha- pim de uma Cendrillon ás nove horas de uma noite de inverno, perdido no Campo de Sant'Anna em Braga !

Ninguém. Nem mesmo Fernando Caldeira, nem mesmo Bulhão Pato. Ninguém!

a lisboeta é que põe o seu barquinho a nado á noite, ainda que o ceu esteja carregado, ainda que a chuva ameace, ella é que atravessa pulando as lamas do Chiado, colhendo as velas ao vestido, e segurando a sombrinha com a firmesa de um mari- nheiro experimentado que fosse ao leme.

Não teme a noite, porque as noites são teme- rosas na provincia, onde tudo é escuridade e m3's- terio, treva e confusão.

Vae, n'um pulo, comprar bolos para o chá, es- colher um vestido ao Grandella, vae a para o thea- tro, porque não é bastante rica para ir de trem, vae á modista fazer uma recommendação, vae a uma livraria comprar uma grammatica para o filho e, atravessando as ruas, pulando sobre a lama, o seu ar de honestidade defende-a, não a deixa confundir com as mulheres que vão habitualmente para as ca- deiras do Colyseu e para os gabinetes dos rcstau- rants.

A chuva ás vezes resolve-se a cair, a varrer as ruas, e a esburacal-as também. A lisboeta some-se, voou para casa nas azas dos seus pesinhos ligeiros. Mas a cidade não fica solitária, morta, ouve-se de vez em quando o rodar de um trem, um pregão que passa, o trote de um cavallo, o assobio de um na- morado.

E emquanto o Amor abre a janella, apezar da

48 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA

chuva, para corresponder á Esperança que asso- biou, o homem do mexilhão vae gritando e andan- do: lerre, ierre e a lanterna do guarda no- cturno atravessa rapidamente obedecendo ás pal- madas do inquilino que recolhe a casa.

Percebe-se que n'uma noite de inverno, o poeta, o escuiptor, o jornalista, ouvindo á volta de si o ruido de uma cidade que vive, pense nos seus ver- sos, na sua estatua, no seu jornal.

A noite, para as grandes cidades, não é uma so- lução de continuidade, um parenthesis aberto na sua vida normal. E' talvez um pretexto para viver de outro modo, para ver outras pessoas, mas, em todo o caso, um pretexto para viver sem sol.

As noites de Lamego passam em provérbio como sendo o typo d'essas enormes noites da província, durante as quaes uma pessoa accorda muitas vezes para pedir á luz do sol. que se digne apparecer por piedade !

Conta-se, como sendo a origem da locução noites de Lamego^ que um viajante, chegado áquella ve- tusta cidade, pernoitou n'um quarto escuro onde havia um armário cheio de queijos. Pela manhã, quando accordou, viu o armário, cuja porta abriu, pensando que era uma janella. Como não sentisse maior claridade no quarto, e lhe cheirasse a queijo fresco, tornouse a deitar, dizendo de si para com- sigo :

Não se nada! E' ainda muito cedo. as leiteiras andam pela rua a vender leite.

Dormiu mais duas horas, mais três, mais quatro. Quando, finalmente, o estalajadeiro se resolveu a ir bater á porta do quarto, o hospede não fazia se- não mostrar-se admirado de que as noites de La- mego fossem tão compridas.

Mas, a meu ver, Lamego é injustamente prejudi- cada com esta anecdota, em que se filia a tradição da longura das suas noites.

houve apenas a illusão de um homem, que to-

VIDA DE LISBOA 49

mou um armário por uma janella. Toda a gente sabe, porém, que a extensão das noites, em qual- quer região da província, é mais do que a illusão de um armário, é uma realidade que a janella confirma demorando-se em coar ao interior do quarto de cama o primeiro raio de sol.

Durante o inverno da provincia o sapatinho ou a botina dorme tanto como a sua dona. Estão de pousio, inactivos e somnolentos, sentindo de vez em quando passar-lhes por cima a turba faminta das baratas.

Em Lisboa^ a botina ficou sobre o tapete á volta da rua ou dos theatros, e, emquanto a chuva rufa na vidraça, parece cantar o idyllio do pequenino e branco, que ha poucas horas a calçou; parece acalentar com Fernando Caldeira o somno da lis- boeta que dorme, dizendo-lhe baixinho:

Esse teu pequenino Foi obra de algum destino, Que eu tinha de amar um pé.

II

Vendilhões e pregões

Quem não tem algumas vezes aitentado no aspe- cto pittoresco que oííérecem as ruas de Lisboa, es- tudadas na galeria dos typos populares que as atra- vessam, a horas certas, desde o romper da manhã até muito depois de cerrada a noite?

Quem não tem visto, ao menos uma vez na vida, recolhendo d'um baile ou madrugando para uma viagem, passar na rua, desenhando-se vagamente na nebrina da manhã, a figura do leiteiro, guiando

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ÕO COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA

as suas vaccas pachorrentas, de pequenas pontas muito recurvas e uberos volumosamente dilatados? Quem não tem reparado, a essa mesma hora, no padeiro que de cabaz ao hombro, em mangas de camisa ainda que o frio seja de rachar, vae correr a via-sacra dos seus freguezes, esperando paciente- mente ás portas tão pacientemente como as vac- cas do leiteiro que as criadas de servir acabem de espreguiçar-se e vestir-se ?

E quem não tem reparado também no cão pilha- rengo que faz a sua exploração matutina, mettendo o fo.inho nos barris do iixo, farejando algum osso mal descarnado, que lhe possa servir de primeira refeição ?

Os moços de fretes vão, de chinguiço ao hom- bro, procurando a primeira taberna da sua esquina para matar o bicho, e alguns, decilitrados, prin- cipiam a ler, aos tépidos raios do sol nascente, o Século ou o diário de Noticias, quasi sempre em voz alta, para que os outros os possam ouvir.

Os vendilhões ambulantes cruzam-se em todas as direcções, vergados sob o peso das gigas atulhadas de legumes, e parando a cada momento para tira- rem do peito o pregão atroador.

Ha horas, nas terras de provincia, em que as ruas são solitárias, mortas. Não passa ninguém, não se ouve uma única voz.

Mas cm Lisboa, ainda que a gente esteja muito bem fechada em casa, ouve a orchestra das ruas, a musica dos pregões, e sente-se acompanhada.

E' preciso que o dia tenha amanhecido diluvioso para que a rua de Lisboa emmudeça; porque, por mais intenso que seja o trio, o commercio ambu- lante rompe através do nevão, vae vendendo e can- tando.

Agora é a preta do mexilhão, que não tem hor- ror á neve, porque lhe inveja a brancura, é a preta do mexilhão que vae apregoando na sua aravia tra- dicional:

VIDA DE LISBOA 51

lerre, ierre.

Elie tem seu alho, alho,

Seu zariquiialho,

Seu azeite Je Santarém,

File é pouco, mas sabe bem.

Ierre, ierre.

E mal a preta tem acabado de passar, logo re- surge d'outra esquina o mexilhão, annunciando-se em pregão variado:

Mexilhão, PVa C!Íjda E p'r'o patrão.

Agora, especialmente de manhã, passa o judeu das tâmaras gritando:

Támari dô, Támari-dó.

Logo, de dia ou de noite, ouve se o pregão da

arféloa :

Ah! biquinho, arféloa, Gergelim, amêndoa doce.

No fim do verão, começa o pregão das casta- nhas:

Ha quente e bô.

Ou então:

Quentes e Loas.

Outra voz apregoa:

Pãesinhos e linguiça.

De vez em quando apparecem noves pregões, como eram os dos rapazinhos que vendiam bola-

52 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA

chas e apregoavam com musica das Tre'{ trocas de crjslal^ que por esse tempo se estavam represen- tando na Trindade:

Bom e barato, Bom barato : Cada pacote Custa um pataco.

Na complicada engrenagem da vida da capital, o pregão das ruas e a cantilena do garoto jogam in- timamente com os acontecimentos theatraes: a mu- sica do theatro, se caiu cm graça ao publico, vem logo reproduzir-se na rua.

Curvados, carregados, roufenhos, os vendilhões atravessam um bairro inteiro patinhando sobre a lama, rompendo através dos aguaceiros, passando por entre os gumes cortantes do frio da manhã. A gente ouve-os apregoar, e sabe pouco mais ou me- nos que horas são. porque a pontualidade dos ven- dedores ambulantes é chronometrica como a do sol, que não deixa jamais de levantar-se á hora mar- cada na folhinha. São cinco horas, são seis horas, dizemos nós, e voltamo-nos para o outro lado.

Entretanto a chuva cae a torrentes, o vendaval assobia nas janellas e no meio d'essa orchestra tempestuosa, sobrepujando-a, o pregão dos vende- dores ambulantes faz-se ouvir, a horas certas, como íe fossem as badaladas d'um relógio.-

Outros vendilhões, mais felizes, têm o seu bur- ro, que parece adormecer na porta n.^ 5, emquanto o dono está vendendo, e accordar depois para dar alguns passos até á porta n.° lo, tornando em se- guida a adormecer.

Os vendedores de jornaes passam correndo com as folhas da manhã debaixo do braço, saltando de um passeio a outro, em assalto aos primeiros trans- euntes, e os distribuidores, no seu passo curto e ligeiro de andarilhos, vão mettendo os jornaes por

VIDA DE LISBOA Ô3

debaixo das portas, subindo e descendo escadas, cujo numero de degraus devem saber de cór e sal- teado.

Poucas horas depois começam as varinas a appa- recer, os pés descalços, as pernas nuas, roxas de frio, apregoando o carapau, a pescada marmota, a «salpicadinha da costa».

Que bellos corpos de varinas, alguns! E tão mal tratados pela intempérie, ao passo que outros mui- tos, bem menos esculpturaes por certo, dormem ainda afofados em brandos colchões de sumaúma...

Os cauteleiros apregoam estridorosamente o 3:495, o 7:899, e hoje é que anda a roda, hoje é que y^e- bola^ quem se quer habilitar d taluda? quem quer ser rico sern trabalhar? Um d'elles, a quem não sabemos a alcunha popular, apregoa em verso:

As meninas d'esta rua Cheguem todas á janella. Se quizerem ser felizes, E' comprar me esta cautela,

A uma hora mais adeantada do dia, os homens do petróleo principiam a fazer o seu gyro, arreatan- do o burro que. nas cangalhas de madeira trans- porta as almotolias untuosas, umas cheias de pe- tróleo, outras de azeite, não se sabendo bem se elles vendem azeite por petróleo ou petróleo por azeite.

Um d'elles, levantando o queixo para as janellas, apregoa :

está o Guimarães, meninas e senhoras! está o Guimarães !

Um dos vendedores de petróleo é um homem gordo, de estatura regular, pae de um rapazinho que d'antes o acompanhava sempre, muito bem vestido, e que parece está agora cursando alguma escola superior, ao passo que o pae, mal enroupa- do, continua vendendo petróleo, berrando o seu pre- gão com o queixo pousado sobre o peito e a bocca escancarada até aos gorgomilos.

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Depois passam os ferros-velhos, com um chapéu alto na cabeça, outro chapéu aho na mão, dois ca- sacos ao hombro, um par de botas e um molho de chaves pendentes da oatra mão.

E os caldeireiros, batendo nos tachos signal de chuva, diz o povo ; e os amoladores de tesouras e navalhas, um d'elles, que não vejo ha longo tempo, muito característico, bexigoso e gordo, o amolador do cão como lhe chamavam, porque era um cão que puxava a caranguejola; e os andadores das freguezias, com a sua caixinha de lata pendu- rada do pescoço, e mettendo ao bolso o vintém das almas, como fazia o Taborda no Andador das di- tas; e os pobres, os cegos, as velhas, as creanças vadias, etc.

Depois, ao cair da noite, torna a revolutear nas ruas o enxame alipede dos rapazes que vendem jornaes, e algumas vez.es, alta madrugada, um va- rino de dez annos oíTerece, tiritando de frio, muito engoiado, as Novidades^ que são velhas a essa hora, e o Correio da Noite, que então deveria chamar-se o Correio da Madrugada.

Ha poucos mezes, o noticiário dos jornaes con- tou o caso dramático da morte de um vendedor ambulante, que principiou a adoecer na rua do Cru- cifixo e chegou morto, dentro de um trem, á porta do Governo Civil.

Até aqui nada mais natural. Os vendilhões de- vem por via de regra ser cardíacos: passam a vida carregados, dobrados, andando, gritando. Se ha morte verosimil para um vendilhão ou para um moço de fretes, é a de lesão cardíaca. O facto não espanta ninguém. Mas este caso teve eífectivamente uma nota sentimental, profundamente dramática.

Como todos os anonymos da rua, o vendilhão caiu sem que ninguém soubesse quem elle fosse ou onde elle morasse. A policia metteu-o n'um trem para leval-o ao hospital, mas como chegasse morto, e não o quizessem receber, conduziu-o ao

VIDA DE LISBOA 55

Governo Civil. Em França seria transportado para a morgue^ a fim de que entre centenas de pessoas alguma apparecesse que pudesse reconhecel-o. Mas em Lisboa, quando um anonymo morria na rua, an- dava em bolandas de um lado para outro, do Hos- pital para a Misericórdia, da Misericórdia para o Governo Civil, do Governo Civil para o Cemitério, até que, finalmente, acabavam por fazer aquillo que desde logo devia ser feito: dar-lhe a paz da sepul- tura *.

Estava a carruagem á porta do Governo Civil, juntaram-se policias, agrupára-se gente, e um rapaz bem vestido, que ia passando, teve também curiosi- dade de espreitar para dentro do trem, se é que não foi impcilido por um d'esses mysteriosos pre- sentimentos que nos annunciam as desgraças immi- nentes mais as desgraças do que as felicidades.

Ora o rapaz bem vestido, que ia passando, reco- nheceu o morto que estava no trem.

Era seu pae. . .

E junto ao trem, acommettido por uma syncope, cahiu nos braços dos curiosos que assistiam a esse drama pungente da vida das ruas.

Eis aqui a nota sentimental d'esie acontecimento, que passou rapidamente pelo noticiário dos jornaes da semana, tão rapidamente como os anonymos passam da sua lide quotidiana para a vala de um cemitério.

Se não fosse esta coincidência notável, o pobre vendilhão passaria despercebido na morte como na vida ; a sua morte teria impressionado apenas os transeuntes que casualmente a houvessem presen- ceado, e o cadáver, mettido dentro de um trem, atravessaria a cidade, em caminho do cemitério, sem ler despertado um leve movimento de sensibilidade.

Mas o vendilhão tinha um filho, e um acaso do- loroso fez com que o filho passasse na occasião em

^ em 1899 foi decretada a morgue em Lisboa.

56 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA

que a policia não sabia o que fizesse de um cadá- ver anonymo.

Felizes ao menos os vendilhões que têm um fi- lho, porque se morrem, e a policia pergunta aos que vão passando Quem quer este cadáver ? pode bem acontecer que uma voz commovida, soluçando de choro, responda: Queroo eu. Era meu pae...

III

Manhãs frias

Como todas as grandes cidades, Lisboa tem os seus aspectos estacionaes, a sua face de inverno e a sua face de verão.

Não cabendo no breve espaço d'um capitulo a larga photographia de Lisboa em todos os seus accidentes, estudemos a sua physionomia hybernal n'uma pequena zona intercalada entre a Praça do Príncipe Real e o Largo de S. Roque.

As arvores da Patriarchal Queimada não gote- javam ante-hontem lagrimas de orvalho, como nas manhãs húmidas dos outros invernos. Havia um frio secco, que cortava a pelle, e não fazia chorar as arvores. Na alameda que abre em frente da rua do Abarracamento de Peniche e vae até ao kiosque, o tom amarellado do arvoredo denunciava a devas- tação do inverno, mas em volta do lago a colora- ção vegetal resiste ainda ao rigor da temperatura, salvando as suas derradeiras esmeraldas nas folhas que baloiçam ao vento.

Das oito e meia para as nove horas da manhã, costureiras em cujos vestidos a pobreza briga com a moda, a miséria lucta com o figurino porque os vestidos d'essas pobres mulheres passam por de-

VIDA DE LISBOA Di

zenas de encarnações como os deuses da velha ín- dia— surdem da rua do Jasmim, das escadas da rua da Procissão, da rua da Escola Polytechnica, caminhando n'um passo ligeiro através do frio pe- netrante que lhes pôz uma nódoa de gangrena na ponta do nariz.

Todos os dias, á mesma hora, aquellas mulheres passam, com o mesmo vestido e a mesma veloci- dade, caminho dos ateliers do Chiado e da ^aixa, e ao descerem a alameda de S. Pedro d'Alcantara têm o aspecto de pequenas sombras ambulantes que se destacam movendo-se no fundo alvacento da manhã, através das arvores.

Duas irmãs, que saiem da banda da rua da Procis- são, uma d'ellas formosa, parece guardarem-se uma á outra, e chega a ser assombroso que tanto a que é formosa como a que o não é tenham podido equilibrar-se n'essa jornada de todos os dias, visto que o salto das botinas, comido de um lado, podia facilitar-lhes a queda. . .

Na rua de D. Pedro V, velhas octogenárias, de capote e alcofa, vão para o talho, buscar a sua pe- quena ração de carne. O frio da manhã fal-as mais encolhidas e corcovadas, e quando os americanos passam levando trez ou quatro passageiros de gola virada para cima ou caclie-ne^ de algodão, param encostando-se ás paredes, cosendo se com as casas, receiosas de poderem morrer de um desastre, ellas, que escaparam a outros !

Padeiros, em mangas de camisa, cabaz sobre o hombro, passam como uma ironia viva, que a saúde e a robustez atiram aos velhos e aos engeri- dos, e as varinas, que saiem com o carapau, olham fragilmente para aquella perfeição de homens, for- tes e possantes, de que as velhas ficam provavel- mente dizendo : Foram tempos !

Os porteiros dos bellos prédios da rua de D. Pe- dro V, de casacão abotoado e bonnct de galão prateado, desfloram o Século, com um grande in-

58 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA

teresse bisbilhoteiro, ou lustram, de panno na mão, o botão metallico da campainha, parando de vez em quando para trocar duas palavras com os criados da visinhança que passam para as com- pras.

No topo da alameda de S. Pedro de Alcântara, o olhar dilata-se pelo horisonte em que as eminên- cias da Penha, da Graça e do Castello se esfumam no vapor da manhã. O Tejo, na bahia do Barreiro, parece um lago de fogo por effeito da reverbera- ção do sol, e ao longe, o morro de Palmeila afigu- ra-se um pequeno ponto negro que faz lembrar uma mosca immobilisada sobre um vidro emba- ciado.

Os palácios de S. Pedro de Alcântara dormem como os seus donos ou os seus inquilinos, sere- namente. Depois de S. Carlos, quando os donos fecharam as pálpebras, f^^charam elles as portas, e no somno d'aquella pedra como no somno d'aquel- las pessoas ha o que quer que seja de regalo aris- tocrático, como de quem está sonhando com os Puritanos e pensando na Favorita.

As arvores da alameda apontam para o ceu as suas flechas quasi despidas, mas a hera sempre verde enrosca-se pelos troncos, como para dar uma vaga sensação de primavera aos felizes dos palá- cios que, por mais que façam, não podem nunca conhecer o inverno tal qual elle é na sua dureza agreste.

Em S. Roque, na volta da rua para o largo, o homem das castanhas cosidas, cabaz pousado no chão, mãos nas algibeiras, espera os famintos da manhã, que se sentem tentados pela provoca- ção de um alimento que fumega quando elles teem frio.

No largo, nos dias em que anda a roda, cautelei- ros esgrouviados, a voz quasi apagada pela bebida e pelo cansaço, forcejam por capacitar a gente de que elles são uns tolos, que vendem a felicidade

VIDA DE LISBOA Õ9

podendo compral-a, e de que a gente não é menos tola acreditando-os a elles.

Ah ! mas tudo isto não passa de um ligeiro croquis de uma manhã de inverno em Lisboa.

D'ahi a horas, o grande mundo e o alto funccio- nalismo accordam. Então principia a étalage^ a pompa do inverno na capital portugueza.

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VI

A Arcada do Terreiro do Paço

Em baixo. A desgraça da politica

'IJriÍÃo ha sitio em Lisboa que mais damno cause HsJI ao espirito publico do que a arcada do Ter- ®^^^^ reiro do Paço. O Almocreve das Petas, de José Daniel, parece que fez alli estalagem onde amarra e arraçôa a recova dos seus gordos carape- tòes. Quem pretende andar bem estribado nas no- vidades do dia, vae lá, escolhe um boato, bifurca n'elle a imaginação, chouta de grupo em grupo, es- palhando o boletim da arcada, e ao cabo de algu- mas horas está a cidade inçada de carapetões, que são a praga de Lisboa.

Antigamente, quando o Terreiro do Paço o era a valer, porque tinha Paço real, que o terremoto de 1755 desmoronou, íoi aquelle um local frequen- tado de sécios e estoiradinhos, de marialvas e bur-

VIDA DE LISBOA 61

guezes, que iam de simples passeio, a cavallo e a pé, dar uma volta elegante, como hoje se faz pela Avenida.

Por baixo do palácio da Ribeira corria uma ar- cada, que não era consagrada á politica, mas ao commercio de luxo, pois que abundavam ahi as lo- jas de ourives e joalheiros.

Todo o movimento da corte se concentrava no amplo terreiro, onde rodavam coches, escarvavam corcéis, soavam charamellas, formigavam soldados, pagens e frades. Perpassavam nas janellas do edi- fício real as açafatas, que atiravam olhares e sor- risos para fora, sobretudo ao cair da tarde, quando os cavalleiros eram mais numerosos e os coches mais frequentes.

N'um auto do poeta Chiado chega uma persona- gem e pergunta por outra :

Ora bem ! Onde é que é d'elle ? Responde-lhe uma voz de mulher :

Foi passeiar ao Terreiro que é negro escudeiro.

Era o sitio predilecto da mocidade elegante, co- mo Rebello da Silva explica: «Ao terreiro, que se rasgava defronte do paço, concorriam a e a ca- vallo os fidalgos e os burguezes, convidados mais que tudo no estio pela frescura das brisas mariti- mas.))

Assim foi durante trez séculos, a começar no \6.^ e a acabar no i8.°.

No reinado de D. Maria I escrevia Beckford n'uma das suas cartas: «O terreiro do paço, por onde seguimos caminho, estava cheio de ociosos de todas as classes e sexos, pasmados para as vidra- ças illuminadas do palácio, na esperança de ver n'um relance a sombra momentânea de sua mages-

62 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA

tade, do príncipe, do confessor ou das damas, es- coando se d"um para outro aposento. . . »

Os políticos não tinham que vêr n'aquella pas- maceira, filha da curiosidade ou da moda.

Desde o tempo de D. João V que havia secreta- rias de estado inslalladas no próprio edifício do paço real, mas a politica não lhes fazia sentinella como hoje ; pelo contrario, os políticos do século passado iam poisar longe e alto, em Santa Catha- rina, como sabemos por esta quintilha de Tolentino:

Iremos ouvir mil petas, Quando mais o sol se empina, Vendo acérrimos jarretas, Junto a Santa Gaiharina, Argumentando em gazetas.

Pois, srs., um bello dia a bisbilhotice politica mu- dou de poiso, desceu do alto de Santa Gatharina para o Terreiro do Paço, e foi apossar-se da arca- da, enchendo-a de grupos e boatos.

Quasi não ha logar para mais ninguém. Se que- rem lá caber, mettem se a um canto o engraxador, duas mulheres que vendem refrescos junto ao Arco da rua Augusta e defronte das Obras Publicas, e a velha que fala só, em casos da B3a Hora, sempre com um papel na mão, papel sellado. . . de suor pelo menos.

Em Madrid, no século XVII, havia o chamado Mentidero, nas grades de S. Filippe el Real.

Pois a fabrica das mentiras de Lisboa é na ar- cada do Terreiro do Paço, dos passos, melhor di- ríamos, muitos d elles perdidos e baldados.

Ali pelas duas horas da tarde chega o carapetão politico, de chapéo alto e charuto, toma conta da arcada, e espera que venham outros fazer lhe grupo.

A's trez, o carapetão acha auditório, e larga velas. Vae principiar a manobra do dia. Cada qual tem seu fim, seu propósito, e põe a nado o barco que lhe faz conta.

VIDA DE LISBOA G3

A's quatro, o enxame dos carapeiõcs parte pela rua do Oiro fora, sobe para a Alta^ entra nas lo- jas_, pára á porta da Havaneza, e depois de bem espalhado, vae jantar.

A arcada, apesar de deserta a essa hora, trium- pha em toda a linha. Foi ella que ditou a lei do dia e da noite. O que ella disse, correu mundo, entrou na circulação, viverá pelo menos até ao dia seguinte.

O commercio, a industria, a opinião publica, to- da a gente está ingenuamente repetindo o que a ar- cada quiz que se dissesse.

Conta-se um boato á familia, aos amigos, aos co- nhecidos.

E' o que se di:{. . .

Mas quem foi que o disse? Disse-o a arcada, por- que conveiu áquelle, porque interessa a este, por- que assim faz arranjo a um ou a outro.

Quantas vezes acontece que a pessoa que espa- lha um boato na arcada o vae encontrar á noite nos theatros ou no Grémio, tão nutrido e ancho, que nem reconhece o próprio filho !

E, coisa curiosa 1 como lhe parece um pouco dif- ferente, de modo a desconhecei o em parte, acaba por acreditai o também.

Ha ministros cffeciivos da arcada, e ministros honorários da arcada.

Os etlectivos são aquelles que moram ou mo- raram nos primeiíos andares do Terreiro do Paço.

Os honorários são os que não têm ainda pas- sado do boato, cujas honras vão usufruindo á es- pera que o Diário lh'as authentique um dia.

Teem morrido muitos d'estes, coitados! mas ou- tros os substituem, de farda feita, na esperança de que alguma hora a possam vestir depressa.

Se estivéssemos nos Estados-Unidos do Norte, algum yankee se haveria lembrado de mobilar a ar- cada do Terreiro do Paço para maior commodida- de dos frequentadores. O boato teria, para seu re- galo, cadeiras, sophás, petiscos e jvater-closel. Mas

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Portugal é um paiz baldo de phantasia industrial, não passa do copo d'agua e do engraxador nos pal- ratorios ao ar livre. De modo que todo aquelle que faz sentinella de duas horas no Terreiro do Paço, a firme, recolhe a casa descadeirado, derreado, com os pés a latejar dentro das botas.

Mas sabe o que se disse: é a sua consolação.

O portugucz falia em geral menos do que o hes- panhol, o francez e o italiano..

Sobretudo fora de casa, n'um wagon ou n'um ho- tel, n'um theatro ou n'um café, o portuguez não trava facilmente conhecimento com o visinho.

Embesérra e amola.

Mas na arcada o portuguez sente-se loquaz, fal- lador e curioso, deita abaixo os governos, põe em cima os governos, nomeia e demitte ministros, faz e desfaz leis, enche e esvasia o Díat^io.

Começa por perguntar O que ha de novo?

E as mais das vezes não espera pela resposta, é elle que responde a si próprio, é elle que conta o que se diz, é elle que tendo começado por fingir- se pedinte, acaba por despejar o sacco das novidades.

Sae d'alli e, se vae jantar a um hotel, não diz palavra á mesa ; se vae dar um passeio pelo Minho, não conversa com os companheiros de viagem.

Cançou-se, esgotou-se, tem corda na arcada, onde até as pedras lhe conhecem a voz.

O poder da falácia no Terreiro do Paço é tanto e tamanho, que até a pobre velha que para alli cos- tuma ir, não tendo com quem falar, fala comsigo mesma !

Outro dia vi-a sentada n'um banco da Avenida : pois estava calada !

O engraxador, contagiado pela influencia do meio, fala com as escovas, as escovas conversam com a graxa, e a graxa conta em segredo boatos ás botas.

Um amigo meu, frequentador da arcada, cuidou outro dia, chegando a casa, ouvir falar uma das botas que trazia calçadas.

VIDA DE LISBOA 65

Attentou o ouvido e distinguiu isto :

Coitado! também era tempo de o despa- charem amanuense !

Muito admirado, perguntou á bota :

Que estás tu ahi dizendo ?

Falo de um rapaz, meu conhecido, que final- mente vae ser despachado amanuense.

Como sabes isso ?

O engraxador contou-o á escova, que o con- tou á graxa, que m'o contou a mim. . .

Pois vocês occupam se d'essas coisas?

-Nós cá, as botas, emquanto os senhores falam dos que estão empoleirados na politica, conversa- mos dos que, sendo da nossa igualha, andam mais ao rés do chão. . .

Agora, quando começa o tempo quente, a gente pessoas silenciosas e solitárias fugindo ao sol ou ermando debaixo de uma arvore rachitica á es- pera do americano.

Mas se for ao Terreiro do Paço, encontra o- boato a tagareliar e a olhar de vez em quando para cima, á espera que caia tudo. . .

il

Em cima. A miséria do amanuense

Milton, no Parai\o perdido^ cantou a tremenda revolta dos anjos contra Deus. Ainda, estou certo d'isso, ha de apparecer um poeta de pulso, que se proponha celebrar em seus versos a justa, revolta dos amanuenses contra a sociedade. E ha uma tal ou qual relação de semelhança entre as duas

5

66 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA

revoltas, porque me quer parecer ás vezes que Lú- cifer, o chefe dos anjos rebeldes, teve o castigo de vir ser, na burocracia do mundo, o primeiro ama- nuense.

Castigo medonho! que se vae perpetuando n'uma classe inteira, obrigada a pagar innocentcmente as culpas do seu progenitor. . .

Dizia de uma vez um jogador sempre infeliz :

Ha duas espécies de homens, acreditem. A uma poz-lhe Deus a mão no hombro, dizendo-lhe : «Eu te ajudarei.» A' outra, dea-lhe um pontapé no fundo das costas^ exclamando: uArranja-ie como puderes.» Eu pertenço a esta ultima espécie ! con- cluía desesperado o jogador.

Pois também o amanuense está inscripto no rol d' esses que foram atirados para este mundo por um pontapé do Omnipotente.

De trambolhão em trambolhão, rolando pelo ar, o amanuense veiu cair, de cabeça para baixo, den- tro de uma repartição publica. Luctando, escabu- jando^ passam muitos annos primeiro que consiga íirmar-se nos pés e levantar a cabeça. A maior parte d'elles, coitados! não chegam nunca a descobrir, burocraticamente, a lei do equilibrio natural. Ficam, eternamente, de cabeça para baixo, á espera que chegue um ministro que, vendo as questões terra a terra, faça reparo em que os amanuenses estão sempre á dependura.. .

Conheci um ancião pessimista que, em ouvindo fallar de quaesquer complicações politicas do paiz, costumava dizer :

Para o anno ainda ha de ser peior. E o caso é que acertava sempre. . .

O amanuense, pelo que toca á sua classe, poderá imitar esse sceptico ancião, prophetisando todas as vezes que ha substituição de ministro :

Este ainda ha de ser peior que o outro. . .

E também o amanuense, até hoje, tem acertado sempre. . .

VIDA DE LISBOA 67

A roda politica de repente uma volta, leva um ministro e traz outro.

Os chefes de repartição arrebanham os seus ama- nuenses, para irem procissionahnente cumprimentar o novo ministro que chega.

Abre-se a porta do i^abinete, entram á frente o chefe e os segundos officiaes, depois os amanuen- ses.

S. ex.* o ministro está contente como umas pas- choas, recebe-os a todos com um sorriso de mal disfarçada felicidade.

Meus senhores diz s. ex.^ conto com o seu auxilio, como poderão contar com o meu.

Passado algum tempo, que não precisa ser muito, morre um segundo official.

Ha um estremecimento de alegria em toda a classe dos amanuenses. . .

Um allega a sua antiguidade.

Outro allega os seus talentos e serviços.

Ainda outro conta com o apoio do chefe, cujas manias tem procurado lisonjear, sempre com o olho na promoção.

Passam vmte dias, trinta dias, sem que o minis- tro faça o despacho.

Todos os amanuenses se deitam cada noite em- balados n'este doce sonho de esperança :

Sou eu I. . .

Um bello dia, apparece nomeado um estranho á repartição politico influente nas eleições d'algum circulo.

Tenham paciência! diz o chefe. S. ex.'* estava muito compromettido. . . Mas soceguem, que vae haver uma reforma dos quadros. . .

Como vae haver uma reforma dos quadros, é preciso preparar grandes trabalhos de estatistica. O ministro quer preceder a sua reforma de um bem elaborado relatório cheio de mappas e de algaris- mos.

Quem o paga é o amanuense, que passa trez se-

68 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA

manas a sommar, a diminuir, a multiplicar. E' elle que vae todos os dias levantando a enorme pyra- mide de algarismos, sobre a qual se ha de firmar a gloria reformadora de s. ex.* o ministro.

Effectivamente a reforma apparece. Alargam-se os quadros, comiO estava annunciado, mas para alar- gar os quadros, foi preciso apertar os amanuenses»

Que lhes resta fazer então ? Oh ! uma coisa tão legitima como inútil : representar.

Obtida auctorisação do respectivo chefe, que por sua vez a pede ao ministro, vae uma commissão de amanuenses ao gabinete de s. ex.'\

Um d'elles, que escreve para os jornaes, e que por isso tem foros de meio litterato, é encarregada de botar a fala do estylo.

A carestia das subsistências. . . a elevação da renda das casas... o augmento de trabalho pela organisação de novos serviços. . . a rede dos impos- tos directos. . . a triste situação em que se encontra a classe... a preterição dos direitos adquiridos; em conclusão, justiça, ex."'° sr., justiça!

Resposta de s. ex.^ :

Que sim, que justiça será feita.. . para a ou- tra vez.

A outra vez chega com outro ministro, que, para variar, faz o mesmo.

Desilludido, desesperado, o amanuense recorre a todos os expedientes possiveis e imagináveis para ir ganhando a vida fora da repartição.

Ha um processo muito efíicaz para conciliar o serviço publico com o Interesse particular, mas para isso é preciso ter as costas quentes com um padri- nho ou com um jornal. Consiste esse efíicaz pro- cesso em não pôr nunca os pés na repartição. E* radical.

Outro processo, não de todo mau, visa a conquis- tar as boas graças do chefe, lisonjeando-o, para que elle não olhe para o relógio quando o amanuense entra mais tarde ou quando sae mais cedo.

VIDA DE LISBOA 69

Se o chefe da repartição tem a mania das doen- ças, o amanuense explora-lh'a em proveito próprio.

Supponhamos que o chefe padece de uma dyspe- psia. . .

O amanuense principia por queixarse do estô- mago a pouco e pouco. Vae também caminhando a passos mesurados para outra d\'spepsia.

E então como vae isso? pergunta o chefe.

Não ha que ver: é uma dyspepsia perfeita- mente caracterisada.

Flatuienta ?

Sim, senhor. Passei uma noite horrivel. . . Também eul Não sei se é da mudança de tempo. . .

Disse-me um medico que sempre influia um pouco.

Eu também desconfiei de uns bolos que comi ao jantar. . .

Ah! V. ex.^ não coma bolos...

Porque?

E o amanuense, que os não come nunca, apro- veita esta occasião de arreliar a humanidade pare- cendo aliás amável.

Porque são o diabo para as dyspepsias !

Se o chefe de repartição é baboso por mulheres, convém ao amanuense explorar lhe essa corda sen- sível.

Supponhamos que o amanuense entra na secre- taria ás duas horas da tarde. . .

Logo hoje, que eu lhe pedi para vir mais cedo, é que se demorou tanto! Tenho estado ralado á sua'espera!. .

O' conselheiro! até v. ex.*, pelo mesmo mo- tivo, não deixaria de vir a esta hora. . .

O que foi?! Mulher?! --Mas que mulher, conselheiro!

C)nde ? Onde ?

Vi-a no Rocio, a sair de S. Domingos. . .

Typo ? Diga o typo.

70 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA

Alta, forte, morena, cabellos e olhos pretos... -- E' bom typo! Depois ? depois ?

Depois metteu pelo Poço do Borratem, calçada do Caldas, rua Nova de S. Mamede, Gastello. . .

E' um poucochinho longe I Eosr... fallou- Ihe?

Pois então!

E permittiu-lhe que a acompanhasse?

Pediu-me que o não fizesse para a não coni- prometter.

Mas disse-lhe ao menos onde morava ?

Isso disse.

Aonde ? aonde ?

Rua de Santa Cruz do Gastello, n.° tantos. .

Diabo! E' um poucochinho longe! iVlas vamos a isto, vamos a isto, que o ministro quer o relatório copiado até depois de amanhã.

No dia seguinte, o amanuense entra á mesma hora.

Diz-lhe o chefe :

A mulher enganou-o !

Bem sei.

Ah ! sabe !

Fui agora, andei para traz e para diante, e não encontrei tal numero!

Não ha, não! Elias usam ás vezes esse expe- diente para se descartarem de um sujeito. me tem acontecido isso ! Mas era boa, hein ?

Boa de lei !

Se tornar a encontral-a, veja se a segue.

me não escapa. . . o caso é tornar a encon- tral-a.

E através de todas as complicações da sua vida particular, de todos os constantes embaraços finan- ceiros da sua existência, o amanuense, para se ir aguentando com menos fome do que aquella que a orçamento lhe impõe, precisa recorrer a todos estes expedientes habilidosos, a todos estes processos de manha burocrática.

VIDA DE LISBOA 71

Tendo nascido para obedecer, para obedecer de sobrecasaca, que é a maneira mais cruel de obede- cer, mexendo-se sempre, não a toque de caixa, mas a toque de campainha, o amanuense apenas tem um momento de satisfação na sua vida, mas de sa- tisfação ephemera, que não faz senão revoltal-o mais, logo que esse momento passa. . .

E' quando eile. para quem sempre a campainha parece tocar, pÕe por sua vez o dedo no botão da campainha para dar ordens. . . ao continuo!

Moralidade. Nunca ninguém esteve em cima andando tanto em baixo.

Víí

A Avenida

[arece que ainda foi outro dia e, comtudo, vae um bom par de annos !

O Passeio Publico, com as suas grades de ferro e as suas arvores sombrias, tendo o ar de um cemitério... sem mortos, era defendido pela tradição, pelos cavaqueadores que todas as tardes o povoa- vam, e pelas pessoas que nas noites de verão eram alli certas a gosar a musica de uma banda regimen- tal.

Conhecido, declarado, convicto, havia um ini- migo do Passeio Publico : era Rosa Araújo.

Elle estava então na Gamara Municipal, tinha influencia junto do governo, de que fazia parte o seu velho amigo Sampaio.; e jurara guerra de morte ás grades de ferro e ás arvores sombrias do Pas- seio Publico.

Os jornaes sérios e os jornaes burlescos belisca-

VIDA DE LISBOA 73

vam todos os dias Rosa Araújo, tratavam-n'o pela sua alcunha popular de Coco, como se fosse um desdouro isso ! feriam a pessoa para atacar o plano audacioso de dar cabo do Passeio Publico, que era um parenthesis de tristeza encravado na cidade baixa.

Pela sua parte Rosa Araújo lia todos os jornaes, não deixou nunca de os comprar todos, mas não os acreditava o que constitue a única maneira sensata de os ler.

Bondoso por Índole, obsequiador por génio, ia fazendo favores a toda a gente, menos ao Pas- seio Publico.

Era n'esse tempo director de um Banco, que emprestava dinheiro com facilidade, tanta facilidade que se arruinou. Com um na Gamara iMunici- pal e outro no Banco, dispondo^ além d'isso, de grandes meios de fortuna, comprehende-se que Rosa Araújo pudesse dispensar favores a todo o mundo, incluindo o mundo, não pequeno, dos que na au- sência o tratavam por Coco e lhe iam censurando as suas tendências de Barão Haussman portuguez.

Pois que! vinha agora um homem que tinha sa- bido do povo, e que, por educação commercial, devia saber fabricar pasteis, propor se transformar Lisboa, a nobre cidade de mármore e de granito, que altivamente se havia consolidado nas suas tra- dições, e que perderia o seu grandioso caracter histórico, se lhe arrancassem uma pedra ou uma arvore !

O que estava devia estar... Kra sagrado! Ali não se tocava. Que o Rosa Araújo era bom ho- mem. . . concordava-se. Mas d'ahi até consenti- rem lhe que desse cabo do Passeio Publico, ia uma distancia enorme. Pois então aquelle rico sitio onde os brazileiros conversavam de manhã, onde os ha- bitués do Martinho iam dar uma volta á tarde de- pois de haverem tomado o café, e onde á noite passeiavamas cocottest os aspirantes da Escola do

74 COLLECÇÀO ANTÓNIO MARIA PEREIRA

Exercito, podia estar sujeito ao capricho de um ho- mem, que lhe jurara guerra de morte 1 Qual! Era intolerável de audácia um arrojo de vandalismo !

í<osa Araújo, sempre muito concentrado, com a sua physionomia de inalterável bondade, onde um leve gestí^ de contracção dolorosa se enrugava por vezes, também de quando em quando apparecia no Passeio Publico a olhar para as grades e para as arvores, como pensando n'este problema que lhe attraía todas as attençÔes: quanto tempo levaria a arrazar tudo aquillo ?

A opinião publica, que era a opinião do Passeio, fortalecida pela tradição, adivinhava lhe o pensa- mento, e preparava-se para atacal-o até ás ultimas barricadas, se fosse preciso.

Far-se-iam comicios, representações, protestos..

Pois então qualquer cidade de provincia havia de ter o seu Passeio, tão pittoresco como o de Évora, tão bonito como os de Aveiro e Lamego, e Lisboa, a capital, teria de ficar privada d'essa regalia pu blica, que constituía um dote da cidade, um apaná- gio que todo o bom lisboeta deveria defender até á derradeira gotta de sangue !

Não podia ser !

Rosa Araújo encontrava-se ás vezes com o único homem que na Lisboa d'esse tempo o comprehen- dia.

Era o engenheiro Miguel Paes, um sonhador das futuras grandezas materiaes da capital, e portanto dizia a opinião publica um utopista da laia de Rosa Araujo

O que queria o engenheiro Miguel Paes ?

Umas bagatellas, que no seu entender deviam engrandecer Lisboa, e que custariam a insignificân- cia d'uns cincoenta mil contos de réis.

Queria uma ponte sobre o Tejo, um viaducto sobre o valle do Passeio Publico, queria vários túnneis dentro da cidade, queria, nada mais e nada menos, transformar Lisboa.

VIDA DE LISBOA 75

Este homem, tão bom como Rosa Araújo, era o único companheiro lógico que a Providencia puzera ao lado do terrivel inimigo do Passeio Publico.

Sempre que os dois se encontravam, rallavam mano a mano como quem se entende n'uma intima communidade de senhos e ambições.

Dizia Rosa Araújo--

Este Passeio Publico, se fòr demolido, dará á cidade um ar de grandeza que ella não tem. . .

E Miguel Paes atalhava-o, não por estar em des- accôrdo, mas por seguir justamente a mesma or- dem de ideias :

E a ponte, a ponte sobre o Tejo 1 Que belleza e que vantagem ! De mais a mais elles estão engana- dos quanto ao preço d'essa obra grandiosa. Dêm- me trez mil contos, que eu me encarrego de fazer a ponte.

O peior, continuava Rosa Araújo, o peior não é arrancar as grades do Passeio. O peior é a de- molição dos prédios que ficam ao fundo; olhe, meu amigo, aquelle prédio onde está a photogra- phia do Rocha. Vê-o d'aqui ?

Perfeitamente.

Pois a expropriação d'aquelle e dos outros é cara. Os meus colle^as na camará vacillam ; e o tem.po vae passando sem que a Avenida nasça.

Não se importe com os collegas nem com nin- guém. Mande arrancar as grades, mande derrubar as arvores, que o resto irá d 'pois. E logo que a Avenida esteja feita, eu tratarei do viaducto que ha de ligar S. Pedro d'Alcantara com a Graça. Que formosura, hein ! Ora faça de conta. Rosa Araújo, que está o viaducto. Pôde imaginar-se coisa mais bella !

E Rosa Araújo e Miguel Paes ficavam de cara no ar, a olhar para o ceu azul, onde cuidavam des- cobrir o traço negro do viaducto, lançado sobre a ampla Avenida. . . que não tinha nascido ainda!

Enlevavam-se, como dois poetas, n'esse sonho

76 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA

tão querido da imaginação de um e outro : o en- grandecimento material de Lisboa. Mas, comquanto iguaes em aspirações, estava escripto que um dos dois fosse feliz.

Este, o feliz, foi Rosa Araújo.

E' certo que morreu pobre, ralado de desgostos, esquecido por muitos de quem elle sempre se ha- via lembrado.

Mas viu realisado o seu sonho : a Avenida fez-se ; a Avenida, contra a qual todos protestavam em these, foi recebida com agrado, applaudida sem re- servas.

Que importava a Rosa Araújo que na sua algi- beira já não houvesse dinheiro ? Elle nunca lhe deu grande apreço, nunca se ensoberbeceu por o ter... quando o tinha.

Firme na sua ideia, o prédio grande do fundo do Passeio foi demolido durante uma noite. As grades de ferro tiveram egual sorte. As arvores sombrias appareceram um dia com as raizes ao sol. A Ave- nida da Liberdade nasceu n'esse dia . . .

Então Lisboa inteira ficou admirada de que a ci- dade pudesse ter tanta luz e tanto arl de que um clarão de alegria pudesse irromper livremente desde Vai de Pereiro até ao largo dos Restauradores ! Lisboa, de cara lavada, admirou-se de si própria!

N'esse dia em que a Avenida nasceu, começou a glorificação de Rosa Araújo.

Miguel Paes, que de boa vontade se sujeitaria a pedir esmola se pudesse ter visto realisada a ponte sobre o Tejo, não foi tão feliz.

Nem ponte, nem viaducto, nem tunneis, nem nada! Morreu sem ver nada d'isso. Se elle ao rne- nos, depois de morto, tivesse passeiado pelo via- ducto da Graça como Rosa Araújo passeiou do- mingo, n'uma apotheose posthuma, pela Avenida da Liberdade ! . . . Os mortos não fazem concorrên- cia uns aos outros, os mortos não se acotevellam como os vivos. A gloria de Rosa Araújo não nos

VIDA DE LISBOA 77

deve fazer esquecer d'esse pobre Miguel Paes, que tanto amou Lisboa e que tanto sonhou engrandecêl-a.

O funeral de Rosa Araújo, se elle como Carlos V pudesse vêl o, pagar-lhe-ia sobejamente todos os desgostos que nos últimos annos de vida padeceu.

A conducção do féretro em triumpho ao 1 ngo da Avenida seria para elle uma espécie de marcha para o Capitólio.

Duas alas compactas de povo esperavam o prés- tito fúnebre n'um silencio solemne porque o si- lencio é a necrologia sincera que o povo sabe es- crever. . .

Os candieiros, envoltos em crepe, como que tes- temunhavam o luto da Avenida pelo seu fundador, e das janellas dos prédios que vão desde o Salitre até Vai de Pgi^eiro desciam olhares respeitosos, con- doídos, que pareciam lagrimas crystalisadas pela bella luz peninsular que o céu, livremente, pôde en- tornar a ílux sobre esse bairro novo, que nasceu do pensamento de Rosa Araújo.

Felizes os homens que fizeram alguma coisa útil, como Rosa Araújo, porque a hora da morte lhes é certamente suavisada pela consolação de não haverem perdido o tempo, nem malbaratado a exis- tência.

Eu tinha acabado de ler o Economista^ o que elle dizia a respeito dos boatos terroristas que in- fluíram na cotação dos nossos fundos *, o que lhe communicavam do Porto sobre o retraimento do grande e pequeno commercio ; o que, finalmente, lhe contavam de Pariz ácêrca d'essa pyramidal por- caria do isihmo de Panamá.

E a impressão geral que eu tirei d'essa rápida leitura matutina foi que as questões de dinheiro são as que estão destinadas a fechar a porta ao século

78 GOLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA

XIX, sobretudo, a questão da falta de dinheiro, que em Lisboa gera boatos pavorosos relativa- mente ás urgências do Estado, que no Porto faz retrair o banqueiro e o tendeiro, e que em Pariz prega com uma cabazada de legisladores no lodo do Sena.

E, devo confessal-o ainda, lendo o discurso de Delahaye na camará franceza, revolvendo mental- mente com um gancho de trapeiro esse enorme barril de lixo, no fundo do qual talvez esteja o próprio sr. Floquet, presidente da camará, eu como que tive uma vertigem de orgulho nacional ao lem- brár-me de que todas as nossas derrocadas banca- rias, de que todos os nossos escândalos financei- ros, comparados com a trapalhada do Panamá, fi- cam fazendo a figura de uma barata ao lado de um elephante.

Porque, a falar verdade, nós temos tido por uns charcosinhos de escândalo, em que se afogam duas pessoas, quando muito trez, mas aquillo em França, como quem diz na immaculada republica de Platão Júnior, é um mar de suspeições, de descrédito, que abrange nada menos de i5o legisladores.

E ainda eu continuava pensando que se em Pa- riz são grandes as necessidades de dinheiro, por- que a vida é ostentosa e os hábitos são requinta- damente elegantes, nós cá, pobres de nós ! somos um povosinho modesto em seus hábitos, com o juizo bastante para encolhermos as nossas despezas, por amor das deducçÕes e reducções que nos têm aju- dado a levarmos resignadamente a cruz ao Calvá- rio de um deficit minimo annual de 6:000 contos apenas.

Meia hora depois, pegando eu a trabalhar, a en- cher tiras de papel como quem está enchendo chou- riços de sangue do meu próprio sangue talvez, que não é muito, ia dizendo com os meus bo- tões que muito bonito é um povo ter o bom senso que lhe é preciso, pagar o que lhe pedirem, e gas-

VIDA DE LISBOA 79

tar o menos possível em extravagâncias e rapio- cas.

Se até gosto ver um homem moderado em seus gastos, um homem de tino, que olha com cau- tella para o futuro, muito mais gosto ainda ver um paiz inteiro a apertar os cordões á bolça, a re- trair-se, disposto a todos os sacrifícios para que não fique por pagar o coupon de janeiro.

Eu sempre fallando com os meus botões estou agora a trabalhar, dizia, apesar de ser do- mingo, e um domingo de bello sol todo liró : que Deus me perdoe, mas na situação attribulada que vamos atravessando, não se pôde perder um dia, é dar-lhe p'r'a frente, trabalhar, meus irmãos, que o trabalho, etc.

E para acabar de resignar me, acrescentava: De mais a mais não é este um sacrifício que eu es- teja fazendo. A esta hora todas as egrejas se fe- charam por falta de concorrência, apenas as mu- lheres foram á missa, emquanto os homens fica- ram trabalhando, e ellas mesmas deitaram a correr logo para casa, a fim de remendar o fato dos pe- quenos, imitando o exemplo de trabalho e economia que os maridos, por dedicação á pátria, lhes estão dando heroicamente.

Tive um momento de tristesa, porque nunca fui precisamente um egoista, quando me lembrei de que tantos ricaços se viram obrigados a desfazer-se dos seus trens, desde que as coisas principiaram a complicar-se, ou tiveram pelo menos que ficar re- duzidos a um cavallo para o logar de dois.'

Coitados! pensava eu. Deve custar lhes! Em uma pessoa se habituando a andar de trem, pare- ce-lhe, quando tem de apciar-se, que não sente os pés e que lhe tremem as pernas. Também eu, quando ando uma hora de trem, pelo preço da ta- beliã, sei bem o que me custa não poder gozalo por mais tempo! Àlas imagine-se que o trem era meu, e que, possuindo uma parelha normanda, me

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via obrigado a descasar a parelha, para ficar redu- sido a um cavallo!

Até sob o ponto de vista da sociedade protectora dos animaes isso deve custar a um coração bem formado, porque um cavallo que fica só, estando habituado a viver com outro, deve ficar muito apo- quentado da sua vida

Mas, emfim, a hora dos sacrificios chega a todos^ pensava eu, não ha remédio senão ver se esta coisa da crise se concerta de algum modo, seja pela re- forma da reforma das pautas, seja pela emissão de um papel novo em concorrência com o existente, seja, principalmente, pelo concurso dos esforços geraes para um próximo futuro de economia, que redima todos os desgovernos próximo passados.

A's quatro horas da tarde, depois de ter ganho o meu dia com patriótica resignação, achei que de- via, no interesse do próprio paiz, que não pôde perder cidadãos, ir dar uma volta a fim de prudente- mente conservar a minha saúde, regular o equili« brio das minhas forças physicas.

Desci pelas ruas de um bairro, que nasceu ma- gestoso e opulento nos últimos seis annos, quando precisamente as vaccas não estavam na engorda, e, sem realmente dar grande attenção ao facto de vaccas magras produzirem prédios gordos, entro de repente na Avenida.

Oh ! santo Deus ! fiquei deslumbrado como quem, tendo acabado de accordar, abre uma janella n um dia claro. Até cheguei a espirrar, que é o que sem- pre me acontece quando apanho um forte golpe de sol.

Espirrei e exclamei :

Mas isto é um paiz delicioso, que não precisa governo para coisa nenhuma! Isto é um paiz que a si mesmo se governa com tanta alegria como juizo ! E quando os pobres são alegres, são felizes. Viva Deus! Mas que importa o deficit de 6:000 contos! Até lhe pudemos dar licença de ser de 7:000 como

VIDA DE LISBOA 81

a expedição dos bravos do Mindello ou de 10:000 como os soldados de Artaxerxes. Aqui ha paiol para todas as campanhas possíveis contra a for- tuna! Aqui ha massa que chegue para entulhar a bocca do deficit, aqui ha bago para pagar o coupon de janeiro, e os outros! Oh! que delicioso paiz! oh! que grande pena que eu teria, se em vez de haver nascido em Portugal, fosse francez, e tivesse agora a entristecer-me o espirito a medonha trapalhada do isthmo de Panamá 1

Mas que vi eu, que pudesse justificar este vehe- mente solilóquio !

Ah 1 sabem o que eu vi ? Duzentas, trezentas car- ruagens^ brilhantes de vernizes e brazões, tiradas por cavallos magníficos, governadas por cocheiros encadernados em boas librés, subir a Avenida, des- cer a Avenida, tornar a subir, tornar a descer, pas- sar, voltar, a trote moderado, para que a gente pu- desse ver á vontade as caras felizes, resplendorosas das pessoas que essas duzentas carruagens condu- ziam.

Ah! elle é isto! disse eu com os meus queridos botões. Então não é realmente preciso que todos façam o sacrifício de apertar os cordões á bolça para salvar o paiz? ! Não ha necessidade de que o estado faça uma emissão de papel moeda, nem é necessário tributar os filhos varões ? ! Não tem ra- zão o commercio do Porto para se retrair, nem os bancos motivo justificado para pedirem mais do que um auxilio moral ? ! E' certo que não temos porca Panamás, nem outros isthmos escandalosos ? mas que, pelo contrario, navegamos em mar de rosas, com vento fresco ?

Pois bem ! sr. ministro da fazenda, carregue-lhe na mola, que isto ainda tem muito que dar; aperte o fiado, que isto ainda pôde render muito. E não trate de outra coisa, sr.. ministro da fazenda, se- não de restaurar a debilidade do thesouro, porque decretos, portarias, e regulamentos não são pre-

6

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cises. Isto é um paiz que se governa por si mesmo, principalmente ao domingo. Aqui ha ainda muita vida, muito miolo, muita matéria collcctavel. Gar- reguelhe, sr. ministro da fazenda I

Faça uma experiência, o governo. Cerceie mais os juros das inscripçóes, augmente as decimas, re- duza os ordenados dos funccionarios a 5o por cento, e verá que, logo no domingo seguinte, á mesma hora, a hora aristocrática, quatro da tarde, duzentas car- ruagens sobem a Avenida, descem a Avenida, pas- sam para ci na, passam para baixo, passam e repas- sam cheias de pessoas ricas, de pessoas felizes, cheias de contribuintes contentes como umas paschoas.

E deixem chegar a Lisboa os deputados, sem subsidio. Velos hão de carruagem aos trez em cada banco única economia que tenho visto fazer agora aos que pagam contribuição sumptuária alegres, bem dispostos, de violetas ao peito, de charuto na bocca, passeiando na Avenida o seu único diploma ou o seu duplicado diploma, sem sequer se lembra- rem do subsidio que Deus tem, vai para dois me- zes !

Isto é que é ! e o mais são Panamás, misérias da França e dos outros paizes pobres. As libras não fazem falta, as pautas não estragaram nada, as reducçôes e deducções ainda não fizeram uma vi- ctima.

Aqui ha massa, aqui ha miolo: carregue-lhe, sr. ministro da fazenda, que é o que o paiz precisa.

^Moralidade. por fora cordas de viola; por den- tro pão bolorento.

Vil

o estio

'^^^ARAPINHADA ! CU tC SaÚdo.

Tu começaste emfim a fazer as delicias dos encalmados lisboetas, tomada ás duas horas da tarde, no Ferrari ou no Martinho, ás co- lheres, com uma certa voluptuosidade que elles bem deixam perceber, e que eu acredito que realmente seja deliciosa.

E digo acredito porque, para mim, a carapi- nhada é apenas uma coisa que os outros tomam.

Estação calmosa! bella estação da calça branca, d'essa fresca calça branca que passa ás vezes por a gente como um leque aberto, dando pelo menos uma grata sensação de frescura, eu te saúdo.

Deve ser bom, poder vestir uma leve calça branca c atravessar a cidade não com um certo ar de bem estar, mas decerto com as pernas frescas.

E digo decerto porque a calça branca é, pa- ra mim, apenas uma coisa que os outros vestem.

Estação balnear, temporada alegre das praias,

84 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA

que vaes principiando a armar as tuas barracas desde Pedroiços até Cascaes, eu te saúdo !

Como deve ser bom, depois de uma noite calmo- sa, cheia de calor e de mosquitos, passada n'uma pequena alcova de uma pequena casa, ir pela ma- nhã para a praia e mergulhar o corpo na tina larga do Tejo ou na onda fria de Cascaes !

Como deve ser bom !

E digo como deve ser bom! porque os ba- nhos do mar são, para mim, apenas uma coisa que os outros perpetram.

Fresca solidão das montanhas, retiro suave de uma quinta bem solitarja. fechada de arvoredo, e perdida no fundo longinquo da provincia, eu te saúdo 1

Como deve ser bom no campo, mas no campa bem aftastado, levantar cedo, de madrugada, e pas- seiar sob as arvores, ouvindo cantar os pássaros e as pastoras l

Mas, ai de mim ! jamais possuirei esse doce pra- zer de levantar cedo para passeiar sob as arvores ouvindo cantar as pastoras e os pássaros !

Porque, levantar cedo, é para mim apenas uma coisa que alguns outros têm a coragem de prati> car.

Depois, sempre na mesma quinta, bem fechada de arvoredo, bem sombria e bem distante, como deve ser bom, ler o correio á sombra, lembrandose a gente de que aquelle papel, aquelle jornal ou aquella carta, chega de Lisboa, uma fornalha, ao passo que n'aquella bella quinta tudo é sombra e frescura mesmo ao meio dia!

Mas para experimentar essa agradável sensação,, de ler o correio á sombra, n'uma quinta, é preciso^ creio eu, possuir de algum modo uma quinta.

E, meu Deus ! uma quinta é, para mim, apenas uma coisa que os outros possuem !

VIDA DE LISBOA 85

Ha pessoas que vão desde a infância para Bel- las ou para a Nazareth, e que nem por um decreto mudariam de habito.

Pergunta-Ihes a gente se não gostariam de variar um anno por outro, indo para o Gradil ou para S. Martinho do Porto, e respondem convictamente que tal mudança não lhes poderia agradar.

Porque ?

Não sabem, mas affirmam que não gostariam decerto.

Assim é que outras pessoas, que jamais come- ram lamprea, por exemplo, teimam em dizer que não gostam de lamprea sem nunca a terem co- mido !

Em chegando o estio, os que costumam ir para Bellas entendem que têm obrigação de não faltar um único anno, e largam por ahi fora tão conten- tes como se os estivesse esperando uma verda- deira surpreza.

Qual historia I Conhecem todas as arvores de Bellas, as quaes, por sua vez, os conhecem tam- bém, como ás suas próprias folhas.

Quando elles chegam, todas as arvores parecem dizer-lhes n'um tom de expansiva familiaridade :

Vivai viva! Olá! esse fato é novo! E o cha- péu ? Não é com certeza o mesmo do anno passa- do. Fez bem em substituil o. O outro ficava-lhe mal. sabemos que a sua prima Carlota nos pas- sou o pé. Lemos isso nas gazetas. Casou rica ? Devia casar, porque era uma bonita rapariga, muito requestada. Olhe, aqui, que nós saibamos, teve ella trez namoros ao mesmo tempo. A' nossa som- bra enganou todos trez, visto ter casado com ou- tro, que não temos a honra de conhecer.

E' isto. Até as arvores sabem os segredos da familia, o numero de namoros das primas bonitas,

86 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA

e o tempo que duram os chapéus das pessoas que todos os annos vão para aquelle sitio.

Por sua parte, essas pessoas pagam-lhes na mes- ma familiaridade bisbilhoteira, commenrando :

O anno passado esta arvore estava mais bo- nita. Foi ar que lhe deu! Alto lá! Falta aqui umà oliveira, n'e5te logarl Apodreceria? Pois foi pena! Ainda ha dois annos esteve carregada de azeito- nas !

E' a mesma coisa. Também os habitues do sitio sabem pelo meudo a vida das arvores, o anno em que produziram mais, o anno em que produziram menos, etc.

Os saloios' repetem aproximadamente as mes- mas saudações e os mesmos commentarios das ar- vores.

Ora benzao Deus, que ainda está para me- lhor do que o anno passado! E o menino A-rthur! esse é que vem capaz de arrancar do chão um pi- nheiro! Foi o leite da minha burra, que o poz as- sim o anno passado ! Quando chegou, parecia chupado das bruchas ! Não ha ares como os dos nossos sitios para dar saúde a uma pessoa.

Depois vem a burra, que engordou o menino Arthur, fazer os seus cumprimentos, arreatada pelo saloio.

O pae do menino, a mãe do menino, o próprio menino têm, para lisonjear o saloio, que apresen- tar os seus agradecimentos á burra, passando-lhe a mão pelo pello, batendo-lhe uma paimadinha na testa.

E não basta isto é preciso dizer também al- guma coisa em honra da burra.

Pois olhe, tio Zé, que a sua Ruça está este anno muito catita I Bem se diz que a caridade bem entendida começa por nós.. . salvo seja! A Ruça não se limita a dar leite para engordar os outros i vae-se engordando a si própria.

E o saloio responde muito agradecido.

VIDA DE LISBOA 87

Não está másica de todo, não senhor 1 Tam- bém cá uma pessoa não lhe falta a coisa nenhuma.

Morrem p ")r isto os habilites^ por conhecerem, nas estações de verão, não os saloios, mas até as burras.

Nos trez primeiros dias depois que chegam, an- dam elles de casa em casa, de loja em loja. a dar abraços a todas as pessoas, visto não estar em cos- tume, e não ser fácil, abraçar as burras a que de- vemos gratidão.

Alguns, os pobres, principalmente, ficam agora, ficam sempre. Venha o verão, por mais ardente que seja, e não se mobilisam : estão, do verbo la- tino s/o, estar firme.

Para esses inventam outros que taes, quer dizer também pobres, certos ramos de commercio, com que vão armando á tentação de uma ou outra moe- da de cobre, para irem governando a sua vida.

Por este tempo apparecem sempre nas praças publicas os vendedores de limonada ác cavallinho, cm que o assucar mascavado faz as delicias do pa- ladar plebeu.

Era até ho)e o único refresco elegante do povo, mas este anno appareceram uns hespanhoes a ven- der sorvetes a dez réis e a novidade parece que tem logrado bom exiio.

A's sete horas da manhã os hespanhoes an- dam na rua, de sorveteira na mão, apregoando :

Sorvetes a lo réis. Qué fino! Qué fino!

Chega a parecer absurdo que ás sete horas da manhã pense alguém, quando o calor ainda não abrasa, e o padeiro ainda não bateu á poria, em tomar um sorvete como prologo ao almoço I

Que, n^essa hora matutina, uma pessoa se re- fresque por fora com agua do chafariz, é decente e

88 GOLLEGÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA

agradável ; mas que se refresque por dentro com um copinho de neve, quando o estômago está frio, se pôde explicar pela fascinação que todas tis novidades exercem.

appareceram também as primeiras melancias, que são para o povo uma antiga espécie de sorve- te. Mas o sorvete a dez reis veiu fazer este anno uma perigosa concorrência á melancia, tanto mais que tem o tic de uma novidade elegante, a attra- cção do desconhecido, cotado nos hábitos dispen- diosos das classes superiores.

Ha scenas de um cómico admirável, ahi por es- sas ruas, desde que as percorrem os vendedores ambulantes de sorvetes.

Ver um moço de esquina perpetrar o primeiro sorvete, levar a mão á bocca por suppor que podia trincar a neve como se tritura um bocado de pão, vêl-o atarantado, cuidando que todos os dentes lhe cairam, a olhar para o chão, procurando os, cons- titue um bello quadro popular, de um cómico im- pagável, que faz lembrar as boas farças grotescas do theatro antigo.

Os piteireiros encartados, esses não querem ar- riscar se ás incertezas de uma novidade, que tanto pôde agradar-lhes como desagradar-lhes. Vão indo pelo seguro. Do vinho elles sabem, de sciencia certa, que aquece no inverno e refresca no verão. E ao passo que a neve lhes poderia levar os dentes, se a uzassem, o vinho, nem que seja bebido sobre o dente, oífende a dentuça.

Outro ramo de commercio, característico do ve- rão das ruas, é a pêra assada, a bella pêra assada, seis por dez réis.

Uma trova popular canta o rico sabor que tem a pêra parda de agosto :

Chímaste-me pera p4rda. Pêra parda eu quero ser. virá o mez de agosto, hm que me queiras comer.

VIDA DE LISBOA 89

Ou crua ou assada a pêra parda de agosto faz as delicias da gulodice popular, e até as raparigas morenas, se os namorados lhes chamam peras par- das, todas se ufanam em lembrar-lhes que essa fructa tem um grande consumo no verão.

Nos bailes campestres, que tanta concorrência attraem no estio, não é raro ver uma valsista cra- var os dentes n'uma perinha fresca ao sentar se cansada e afogueada da dança.

O leitor sabe como os habitues dos bailes cam- pestres usam convidar as damas com quem dese- jam dançar ?

Tal é a formula :

A menina brinca?

No vocabulário do povo, esta locução corresponde a est'outra dos salões :

V. ex.* dá-me a honra desta valsa?

E nos bailes campestres, se a menina está dis- posta a brincar, levanta-se de golpe, e offerece o seu lenço branco ao parceiro que a honrou com a sua escolha.

Para que é o lenço branco?

O lenço branco é para que o parceiro o dobre sobre a anquinha da dama, e ponha sobre elle a mão, a fim de evitar que a transpiração provocada pela dança possa enodoar o vestido.

Quem é que nas noites calmosas de verão nao tem ouvido, ao longe, a musica de um baile cam- pestre, entrando pela madrugada com uma infati- gável febricitação de compassos, n'um delírio cho- regraphico de trombones ?

Ao sabbado, principalmente, é isso vulgarissim^o.

E quando a gente, ás duas horas da madrugada, ouve, por cima dos muros dos quintaes, os compas- sos vertiginosos de uma valsa, fica pensando alguns minutos, vagamente, n'essa bella robustez das clas- ses pobres, que resistem a uma noite de dança de- pois de um dia de trabalho.

E o baile repete-se todos os sabbados, com a

yO COLLIXÇÃO ANTONÍO MaHÍA PEREIRA

mesma fúria bailadeira, e a tisica galopante, que nos salões parece gerar-se no bacillus da valsa, respeita os corpos das costureiritas e dos operários, pas- sando, senl os tocar, para ir mais longe, e mais alto, fazer a sua colheita.

As classes populares de Lisboa dormem pouquís- simo no verão. Parece que no inverno, deitando-se com as gallinhas, dormem por atacado para todo o anno.

E explica-se que o proletário, vivendo encafurnado n'uma pequena casa estreita e insalubre, tenha no verão horror a fechar as janellas para ir metter-se dentro da cama.

Nas ruas mais solitárias da capital, familias in- teiras, sentadas á janella ou no degrau da porta, demoram-se conversando até muito depois da meia noite.

A's seis horas da manhã, se a gente sae para ir passar o dia a Cintra ou ao Estoril, encontra es- sas familias de pé, com a janella aberta, gosando a frescura da manhã.

-*

Outros, apesar de não serem pobres, não ha força que seja capaz de arrancalos de Lisboa.

Conheço um negociante da Baixa que não pôde tragar a província.

A minha trapeira, dizia-me elle, é melhor que todo o campo que o senhor possa imaginar. Tem boa vista, é fresca, aceiada e, sobretudo, meu rico senhor, na minha trapeira não ha saloios !

--Mas como passa então o verão? perguntava- Ihe eu.

Levanto-me ás oito horas e vou refrescar para a trapeira. Depois do almoço trato da minha vida. Depois de jantar, dou dois dedos de cavaco aos vi-

VÍDA DE LISBOA 91

sinhos. E, á noite, vamos uns trez ou quatro pas- seiar para o Gaes das Colun^mas.

Para o Gaes das Golumnas! E gostam d":sso ?

E' magnilico ! Gorre sempre viração e a agua, que bate na muralha, parece até refrescar o corpo da gente.

Mas o cheiro do Tejo?

Qual cheiro! A viração espalha o. O cheiro vae para os senhores, que estão na Altti. Nós, no Gaes das Golumnas, apanhamos o fresco.

Este bom homem, com os seus jtrez ou quatro amigos» continua a passar as noites de verão no Gaes das Golumnas, sem ter inveja aos que a essa hora estão em Gintra.

Outros são assignantes da alameda de S. Pedro d'Alcantara. Vão para alli ás seis horas da tarde, e recolhem a casa depois das dez. Sabem os nomes a todos os bustos que estão no jardim. Sa- bem de quem são os gatos que, saltando a cancella, costumam passeiar por entie as flores, e estragai as também. Sabem a q-ue pontos da cidade correspon- dem os candieiros que luzem na vertente oriental. Olhe, dizem elles a algum adventício, acolá é a calçada do Lavra. E o adventício pergunta, muito estranho: Aquelles trez candeeiros, que parecem enterrados n'uma cova funda e estreita, de que rua são ? Aquillo? aquillo acolá é a rua Nova de S. Mamede, aos Galdas.

O guarda do jardim conhece os habitues da ala- meda, dá-lhes conversa, de junco debaixo do braço e sempre de casacão vestido, ainda que o calor seja de rachar pedras.

Muitas vezes tenho ouvido os habitues discutirem entre si as alternativas, as reformas por que tem passado o jardim.

Ha alguns, tão encasados com o sitio, que ainda não puderam levar á paciência que substituíssem o feitio do jardim antigo pelo risco inglez que elle tem hoje.

92 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA

Você lembra-se ? Tinha arvores, havia trepa- deiras, as rosas amarellas cobriam em cachos a pa- rede, que, se a gente se debruçasse na grade da alameda, até podia colher as rosas. Agora o jardim está branco d'areia, muito nu, sem sombra, sem trepadeiras. .. que até vontade de chorar!

Mas isto assim é mais fino!

Qual mais fino! Pergunto eu uma coisa: nós somos portuguezes ou inglezes ?

Nós devemos ser portuguezes. .

Pois ahi está. Se nós somos portuguezes, para que havemos de ter jirdins inglezes ? Não sei! Nem eu. Mas ainda quero fazer outra pergunta.

Diga sempre.

Os inglezes. terão porventura jardins á por- tugueza ? carocho! Isso têm elles, que são cu- riosos !

Olha quem!

Pois então tenha cada um o que lhe é dado ter na sua terra, e deixemo nos de extrangeirices. Quando você vae ao Senhor da Serra, a Bellas, não lhe gosto entrar na quinta do Marquez, cheia de arvores, de ervas, que até se regala uma pessoa de estar para ali em mangas de camisa ? !

Pois é mesmo!

E' porque é uma quinta portugueza de lei, cheia de sombra á bruta. Gorte-lhe as arvores, ceife lhe as ervas, risque para ali um parque inglez, como dizem os jardineiros da camará, e verá se não vem de assado com o calor ! Ora aqui deitaram a baixo as arvores, e deixaram de os bustos ! Pois os bustos é que dão sombra ?

se que não!

E puzeram ali um viveiro, ao lado, por troça.

Acho que não seria por isso. . .

Foi! Pois se elles não querem as arvores para coisa nenhuma, para que diabo é que precisam creal-as !

VIDA DE LISBOA 93

E ali, conversando casos do sitio, discutindo o jardim moderno e o jardim antigo, conhecendo os gatos, conhecendo o guarda, conhecendo os can- dieiros, passam o verão os habitues de S. Pedro de Alcântara, que nem sequer se lembrariam de que existe Cintra, se não ouvissem partir para os com- boyos.

Mas nenhuma d'essas contentes pessoas se lem- bra de dizer uma única vez:

Se eu fosse também ! . . .

Quall Todos os outros podem partir, mas elles fi- carão sempre. . . a tomar conta na cidade.

Dois d'estes esquisitÕes, que não saiem nunca de Lisboa, embora fiquem sós, subiam no ultimo dia de agosto a rua Nova do Almada, pelas quatro ho- ras da tarde, e achando se perfeitamente á vontade na solidão profunda d'aquella rua, de que eram os dois únicos transeuntes, resolveram, por accordo súbito, fazer a sua patuscada campestre alli mes- mo, ás barbas do Chiado, no coração de Lisboa,

Um d'elles, o que morava mais perto, ahi para o largo do Carmo, mandou buscar a casa uma me- sa, duas cadeiras, e o jantar.

Esperaram encostados á montre do Ferin que tudo isso chegasse. Veio primeiro a mesa.

Abriram-n'a no meio da rua, sacudiram-lhe o com os lenços, e ficaram esperando pelas cadeiras.

Depois chegaram as cadeiras. Sentaram-se n'el- las, á mesa, e assim, em plena rua Nova do Alma- da, sem que estorvassem ninguém e sem que nin- guém os estorvasse, estiveram esperando pelo jantar.

Veio finalmente o jantar.

O criado desdobrou a toalha, poz os pratos e os talheres, collocou os copos e os guardanapos.

94 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA

O dono da casa, isto é, o dono da rua, quiz pes- soalmente tirar a sopa, emquanto o seu commensal se não dispensava de mexer por sua própria mão a salada de alface.

A solidão continuava a ser completa, como a de um gabinete particular, em que é expressamente prohibida a entrada. . . aos outros.

Porque o jantar ao ar livre pareça abrir o ape- tite, acharam deliciosa a sopa, repetiram.

Passaram ao hors-d^mivre. Álagnificol

Que bello jantar! dizia um.

Que excellente jantar! acrescentava o outro. -" Que pena não nps fazer companhia o Men- donça !

>

Está no Espinho.

E o Tancredo !

Está em Gascaes.

E o Maldonado !

Está em Telheiras.

E nós estamos aqui. . . na rua Nova do Al- mada.

Riram, e beberam.

Pela rua, ninguém. Nem mesmo um pobre, nem mesmo um parasita que se aproveitasse da occa- sião.

E' escusado haver cuidado com as colheres de prata, dissera o amigo do dono da rua.

Sim, observara o amphytrião, é escusado fe- char a porta. . .

Aloyau à la portugatse.

Está magnifico este lombo !

Eu te digo, foi hontem o Figaro no menu do Grand-Hotel, que me suscitou a idéa de o mandar fazer para hoje. Justo é que, pelo menos á mesa, sejamos uma vez portuguezes. Eis aqui a razão do nosso aloyaii à la portugaise, que está realmente delicioso.

Nunca jantei no campo tão bem!

Havemos de repetir. Temos por nosso todo o

VIDA DE LÍSBOA 95

mez de setembro. O que poderá obstar a que con- tinuemos a fazer os nossos pacatos pic-nics em ple- na rua Nova do Almada ? Nada, ninguém. Nem mesmo a policia. A policia foi toda para as Caldas curar-se do rheumatismo que nas noites de inverno apanha encostada ás esquinas. Pelo que nos respei- ta, aproveitamos uma rua que os lisbonenses vo- luntariamente nos abandonaram. Pois de quem é hoje a rua Nova do Almada ? De ninguém, e de to- dos. Primi capientis. Mas, além de nós dois, não ha n'este momento mais ninguém em Lisboa que tenha c bom gosto de se aproveitar de uma rua para jantar ao ar livre. O que pudemos fazer é, quando Lisboa voltar a casa, restituirmos-lhe a rua. Não concordas n'isto ? Acho mais delicado e cava- Iheiroso. Para que diabo havemos nós de ficar com a rua sabendo aliás quem é o dono ? Nada ! Seja- mos homens de bem. Voltem, srs. lisboetas, voltem quando quizerem, e nós lhe restituiremos esta sua artéria do Chiado. Está dito, sim? Restituiremos a artéria, mas, emquanto o dono não chega, aprovei- temol-a para uma série de pie nics, que hoje deixa- mos inaugurada solemnemente.

E, rindo, continuaram a beber.

Chegados ao desserí^ lembraram se de que pode- riam ter doce fresco com o pequeno trabalho de mandarem o criado compral-o alli ao á antiga casa Ferrari.

O amphytrião dissera ao seu conviva:

Meu amigo, a respeito de doce vamos comer o do sitio. E' uma especialidade d'esta rua. Aquella porta de vidros que alli vês é o guarda-vento de um mosteiro que um antigo monge, de origem ita- liana, Eerrari se chamava elle, fundou, ha muitos séculos, para as religiosas da sua ordem. Fabrica-se alli um doce afamado que nós vamos provar. Se fossemos passar o dia a Odivellas, haveríamos co- mido marmelada ; se estivéssemos nas Caldas, te- ríamos cavacas para a sobremesa. Viemos passar o

96 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA

dia á rua Nova do Almada, havemos de comer o doce do Ferrari.

NMsto voltava o criado com a bandeja cheia de bolos finos.

O homem da loja, disse elle, perguntou se o doce era para alguns viajantes que tivessem che- gado de fora.

Coitado ! Como em Lisboa não está ninguém, algum raro viajante que vem chegando se lem- bra de comprar as guloseimas do sitio. Pois quando lhe fores levar a bandeja, dize-lhe que sim, que somos eífectivamente dois viajantes, dois amigos, que resolvemos vir fazer um pie nic a Lisboa para ver a estatua de D. José e o arco da rua Augusta. Também lhe podes dizer que gostamos muito que são dois bellos monumentos. Havemos de es- crever um folhetim de impressões, tanto mais que este sitio parece pouco explorado por litteratos em viagem. Accrescenta que depois de termos visto os monumentos, tratamos de procurar sitio para jantar, e que escolhemos este por ser dos mais pittorescos que encontramos.

N'isto principiou a ouvir-se a melodia de um piano,

O quê?! Pois temos musica! E' alguma cas- tellã enamorada, que está confidenciando aos eccos d'esta solidão campestre os segredos da sua alma. Se for isso, que bello assumpto para o folhetim t Olha, chega alli ao convento, e pergunta ao sachristao das freiras, que te vendeu o doce, se elle sabe quem seja a castellã apaixonada que está tocando piano.

O criado foi saber o que o amo desejava e, a breve trecho, voltou com a resposta :

O homem disse-me que havia de ser na loja do Neuparth algum professor de musica que esti- vesse experimentando um piano. . .

Então os dois amigos accordaram do seu sonho. Lembraram se de que efectivamente estavam em Lisboa, na baixa, no foco dos saguões, e dos maus cheiros, n'essa cloaca máxima., . de todo o anno 1

K

gpcooooco

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IX

o inverno

riASSAR O inverno em Lisboa : eis o maior

desejo do provinciano.

«^i3;<^<:3=í Passar o verão na provincia : eis o maior desejo do lisboeta.

E comtudo nem o provinciano está bem em Lis- boa, nem o lisboeta está bem na provincia.

O provinciano, que vem hybernar na capital, ar- ruina o estômago, a algibeira, os pés ^ ás vezes o coração.

Queixa-se das comidas do Hotel, do dinheiro que é obrigado a gastar, do mau piso das ruas, e, quando Deus quer, das consequências de alguma phantasia amorosa que teve n"'esta Babylonia de mármore c de granito, á beira-mar plantada.

Percebe que nos theatros, nas ruas, nas lojas o reconhecem á Icgua como provinciano, e suppõe que se riem um pouco a seu respeito. Anda des- confiado, com a pedra no sapato, receioso de que

7

98 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA

lhe queiram metter os pés nas algibeiras, fazer o ninho atraz da orelha. . .

Nos theatros, enfada se muito nos intervallos, dá- Ihe o somno, boceja, cabecea, tem saudades do seu largo leito alvejante de linho, onde bem podia estar dormindo, na província, áquella hora, que seria morta, profunda de silencio e de somno. . .

Nas lojas, parece-lhe que tudo é mais caro para elle, que lhe pedem o dobro, o triplo do que as coisas costumam custar.

Discute : menos um tostão, menos seis vinténs. E' caro. Não quero. Vou a outra parte.

O seu estom.ago de diamante principia a atra- zar-se nas digestões^ a azedar se, a fraquejar. E' a cosinha do Hotel, diz o provinciano, esta maldita co- sinha franceza, cheia de molhos e de massas.

Quasi todas as semanas recebe más noticias da terra.

Ardeu-lhe um palheiro.

Morreu-lhe o burro.

Estragou-se uma sementeira.

Se eu estivesse, diz o provinciano, não te- ria acontecido nada d'isto.

O caseiro participa-lhe que, quando foi pagar a- decima, estava relaxada.

Grande camelo! exclama o provinciano, e eu que tanto lhe recommendei a decima !

Também o caseiro lhe manda dizer que foi o morgado da Carrasqueira para tratar de um nego- cio, mas que, estando ausente o patrão, não quiz dizer que negocio era.

O que seria ? pergunta a si mesmo o provin- ciano. Perdi de certo uma boa occasiao de ganhar dinheiro.

Mas a tudo isto se sacrifica o provinciano para poder dizer com orgulho que passou o inverno em Lisboa, gastando dinheiro e fazendo crescer agua na bocca aos seus conterrâneos menos. ricos do que elle.

VIDA DE LISBOA 99

A mulher irá deslumbrar a província com as ul- timas modas de Lisboa. Elle falará da politica, como um sujeito que a observou de perto, contará casos de S. Carlos, cavaqueiras do Martinho, es- cândalos da Arcada.

Todavia, quando regressam a casa, tanto elle como a mulher exclamam, tornando a ver os seus moveis, os seus criados, os seus cães, os seus cam- pos e o seu grande leito alvejante de linho: ((Boa romaria faz quem em sua casa vive em paz.»

. . . Porque em verdade o inverno de Lisboa é isto:

O' José, traze-me o candieiro.

O candieiro ao meio dia, meu sr. !

Pois tu não vês que. . . não vejo!

Não via, nãó senhor; é que está muito escuro!

** b' José"!

Meu sr. !

Deita lenha n'esse fogão.

Ainda tem !

Mas deita mais. Está um frio de rachar!

No fim do jantar :

O café bem quente, hein l Sim, meu sr.

Olha lá, ó José, põe também aqui o cognac. Safa que frio !

Depois do jantar :

O' José ! se chove.

Chove, sim, meu sr.

Traze-me então o casaco de caout-chouc^ as galochas, o chapéu de chuva, o cache-tie^.

100 COLLEGÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA

Sim, meu sr. : o cache-ne^, o chapéu de chuva, as galochas e o casaco de caout-chouc.

se falta mais alguma cousa!

se o patrão quer vestir também o sobretudo de cheviote por baixo e o casaco de caout-chouc por cima.

O que ! Vestir o sobretudo por baixo !

A' mesa do voltarete: —O' José! Meu sr.

Os parceiros dão licença ; traze me de den- tro o coupre-pieds.

Tudo isso é frio !

Diabo! Não haver também um couvre-mains , . . para jogar o voltarete !

lá, menina, se te abafas bem. Conchega mais essa capa... Assim! Olha que a entrada em S. Carlos é perigosa. No salão faz um frio medo- nho í E nas escadas !

Em S. Carlos:

O' menino! Corre bem o reposteiro.

Tem rasão, mamã, que está aqui muito frio !

Tu correste bem o reposteiro, menino?

Corri, sim.

Ah! é aqui da friza das Noronhas, que entrou agora uma visita.

No segundo acto da So7nnambula : Tu estás arripiada, menina?! Estou, sim, de vêr a Pacini, de branco e decotada.

A' volta do theatro, no trem:

Atchi ! atchi 1

Vês! A pequena consiipou-sel Foi de estarmos á espera do trem.

VIDA DE LISBOA 101

Este cocheiro chega sempre tarde!

Não foi isso. As Tutrezendos levam uma hora a entrar para o trem e a gente tem que estar a ba- ter o dente emquanto ss. ex.*' entram !

Pois sim, menina, pois sim: havemos de sahir sempre primeiro do que as Tutrezendos.

O' menino, faça favor de se levantar para o collegio!

vou.

Cinco minutos depois :

O' menino Arthur, olhe que são sete e meia. Chove ?

Chove. . . pouco.

Então é melhor esperar que chova menos.

Menino Arthur I

Que é ?

não chove.

Deixa-me estar então mais outro bocadinho á espera que o tempo segure.

Bom, meus amigos : o resto das remissas fica para amanhã.

Mas olha que está chovendo muito!

Sim ! Manda-me chamar um trem.

O' José, vae buscar um trem para o sr. Go- dofredo.

Faz-se uma nova remissa.

Então o José não vae buscar o trem para o Godofredo ? !

A criada, assomando á porta :

O José deitou-se com muita febre e uma pon- tada do lado direito.

Ora essa! Uma pneumonia, em vez de um tremi

O Godofredo, chegando a casa ás duas horas da noite e escorrendo como o beiral de um telhado :

Venho n'um charco I

102 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA

Gomo tu vens, minha jóia !

te disse como venho: n'um charco!

Queres um grog?

Pois, sim, venha um grog.

Como tu trazes o chapéu rie chuva ! ;

E' verdade! Parece o de miss Bettina Scott no Abbade Constantino.

Mas porque não vieste tu de trem?

Ora porque não vim eu de trem ? I Porque não havia em casa do Torcato quem o fosse buscar !

Então o criado?!

O criado está com uma pneumonia. Ih! Ih!

Que tens tu?

estou a sentir uma dorzinha rheumatica no artelho do esquerdo!

Idylho amoroso:

Não tenhas ciúmes da Elysa. E' a ti que eu amo, a ti, meu amor.

Não sei, não sei!

Não sabes! Pois olha, ainda outro dia. . . Cai de repente uma granisada.

Julietta recolhe-se para dentro da janella.

Romeu encosta-se á porta do prédio, muito per- filado, e o graniso canta lhe no bico das botas, es- parrinhando sobre o passeio.

Dez minutos depois, tendo cessado a saraivada:

Ella Mas dize lá.

Elle Que tempo! Parece que estou com os pés dentro de uma tina!

Ella Olha então... por causa da tua garganta.

Elle Não tem duvida. Ainda outro dia, no Gym- nasio, representava-se até o Diirand e Durand. . .

Nova saraivada.

Ella Adeus! adeus! Vae-te embora, querido. O meu coração treme pela tua garganta. . .

Aqui têm meia dúzia de authenticos croquis do inverno.

Vi DA DE LISBOA 103

Digam-me, francamente, se isto é tempo que se possa tolerar! Tempo em que tudo quanto é mais forte do que o homem parece conspirar contra elle: a agua^ o vento, a doença 1 Tempo de constante re- traimento, de sobresaltos continuos, em que o corpo, subjugando o espirito pelo terror, é um tyranno que triumpha !

O estio é, pelo contrario, a estação da franqueza e da confiança.

Nada ha realmente mais franco nem mais con- fiante do que adormecer a gente á noite junto de uma janella aberta, tendo noventa e nove probabi- lidades contra cem de que não accordará consti- pado.

Nada mais digno para esse grande conjuncto de forças physicas, que se chama natureza, do que ver deante de si um homem em mangas de camisa e não o ferir com uma pneumonia!

Nada mais generoso por parte da agua fria do que regalar a gente sem lhe causar o menor damno ao organismo!

Nada mais tranquillisador do que esse bello estio em que a gente conta sempre com o dia de amanhã para fazer um simples passeio ou uma longa via- gem ! * ^

Eu não tenho geito nenhum para esquimó. Hor- rorisa-me a idéa de viver na Groenlândia, no fundo de uma toca, encolhido, aninhado, em quanto fora a neve se vae erguendo em pyramides colos- salmente phantasticas.

Sou ainda um pouco portuguez antigo, gosto da franqueza: pão, pão; queijo, queijo. Nada de duvi- das, nada de incertezas. Quero sahir ? Aborrece-me ter que espreitar o ceu. Virá chuva ? não virá chu- va ? Prometto ir visitar um amigo ? Não sei se o tempo dará licença. O meu amigo está á espera; mas o tempo não deu licença: chove a potes.

Os cartazes de S. Carlos annunciam a Van- Zandt.

104 COLLIÍCÇÀO ANTÓNIO MARIA PEREIRA

São sete e meia. Veste-se a casaca, ata-se a gra- vata branca, pÕem se duas violetasinhas na bouton- nière.

O que canta ella ?

O Barbeiro de Sem Ih a.

Magnifico! ouvi o Barbeiro pela Donadlo, o ouvi pela Patti, poderei avaliar, pelo confronto, o valor da Van-Zandt.

O' José I se chove ?

Chove muito.

Vae então buscar um trem.

Dão oito horas, dão oito e meia: nem José nem trem 1

As violetas principiam a perder a graça, a fres- cura. A gravata começa a brigar com o botão do collarinho. Um pérfido cansaço succede á impaciên- cia: uma sombrasinha de preguiça perpassa pelos nossos olhos.

São nove horas, e chega o José, só.

Então o trem, José!

Não havia nenhum. Estão todos para S. Carlos.

Não fizeste a diligencia.

Fiz, sim, senhor. Também o criado do sr. Go- dofredo andava á procura de um trem, e não o en- controu.

São nove e meia. As violetas murcharam, a gra- vata branca declarou francamente a guerra ao bo- tão do collarinho, a sombrasinha de preguiça con- verteu-se em somno pesado.

O' José:

Meu senhor! meu senhor!

Que é ?

Passou a chuva.

Deixa passar. São dez horas. Vou deitar-me. Muito divertido, o inverno!

VIDA DE LISBOA lOÕ

*■

Nos últimos annos o inverno tem trazido comsigo a praga da infliienia.

A's cinco horas da tarde dois amidos, que vão jantar cada um em sua casa, despedem se até á noite, porque ambos estão convidados para a soirée do commendador Peixoto.

Até logo.

Bom appetite.

Chegam a casa, mandam servir o jantar, e, em- quanto esperam, parece-lhes que uma leve dor de cabeça principia a annunciar-se.

E' do frio, pensam.

Vae o jantar para a mesa e, apesar da sopa es- tar tão quente como desejariam, falta-lhes o appe- tite, a dor de cabeça augmenta, os pés principiam a esfriar como se os tivessem mettido dentro de uma sorveteira.

Não quero sopa.

Ora essa, menino! A sopa faz te bem.

Ai!

Que é ?

Uma dor nas pernas. Estou com iiijlneu^a^ decididamente. Vou-me deitar.

Mandase dizer ao commendador que não po- demos ir.

Decerto.' não podemos ir; manda-se dizer. N'isto bate-se á porta.

E' o criado do commendador Peixoto.

O que quer elle ?

Traz um bilhete.

Deixa ver.

«O commendador Peixoto participa ao seu ami- go o ex.'"° sr. . . que não pôde ter o gosto de o re- ceber hoje em sua casa, porque acaba de cair de cama com um ataque de t?iJJuen:^a.*

O bilhete está escripto por duas lettras differen-

106 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA

tes, postoquè conhecidas: é a lettra da filha mais velha e a lettra da filha mais nova.

Quem principiou a escrever o bilhete foi a filha mais velha, mas um forte ataque de influen\a as- saltoua logo ás primeiras palavras, e a filha mais nova teve de concluir o bilhete com algum custo, porque estava também a 38 graus de febre.

Mas em casa do commendador Peixoto ninguém pôde descansar, nem elle mesmo, até depois das nove horas da noite.

Primeiro' foi o Ferrari que mandou dizer que nao podia mandar os criados, porque lhe tinham adoecido.

Depois foi o pianista que fez saber, por um moço de fretes, que acabava de ser atacado pela in- fluenza.

Depois foram as sr.^^ Rochas, e as sr.""^ Mesqui- tas, e as sr.'"*^ Tainhas que mandaram aviso de que por doença de pessoas de familia não podiam com- parecer.

O criado do commendador Peixoto, que tivera de vir frequentes vezes á porta receber todos estes recados, acabou por sentir-se indisposto.

Foi golpe de ar que você apanhou na escada, diz-lhe a cosinheira. Deixe, que se alguém agora bater, vou eu lá.

N'isto batem á porta.

E' a cosinheira que vae abrir, porque a outra criada está ajudando a deitar as duas meninas doentes.

Manda dizer o sr. Pacifico que está com a influeniãj e que por este motivo não pôde vir hoje.

D'ahi a momentos a cosinheira começa a quei- xar-se de dores de cabeça.

Acode a criada que ja acabou de deitar as me- ninas :

Isso foi golpe de ar que você apanhou na es- cada, quando veio agora o criado do sr. Pacifico. Deixe, que eu olho por tudo.

VIDA DE LISBOA 107

Mas a criada das meninas foi á janella fallar com o namoro, visto que, achando-se quasi toda a familia doente, a occasiao era propicia, e á meia noite^ quando se estava deitando, principiou a sentir for- tes arripios.

Também ella foi atacada de ínjlueii^a.

Pela m.anhã, o commendador, que náo está me- lhor, quer mandar chamar o medico. Toca a cam- painha : uma vez, duas vezes, trez vezes. Ninguém responde.

O criado está de cama.

A cosinheira não é senhora da cabeça.

A criada das meninas cada vez tem maiores ar- ripios.

As meninas estão ambas a 3g graus cada uma.

a commendadora tem resistido por ora.

Não te afflijas, diz ella ao marido. Eu vou dar as providencias.

Effectivamente, levanta-se, e reconhece que ne- nhuma das pessoas da casa está capaz de levan- tar-se. Para mandar aviso ao medico tem que cha- mar um moço de esquina. O medico demora-se, porque oitenta doentes o esperam. Entretanto a commendadora principia a sentir-se esquisita, do- res pelo corpo, frio, calor. Não pôde comsigo-, vae também para a cama. Uma hora depois, bate-se á porta : é o doutor.

Ha de ser o medico ! grita do leito o commen- dador.

Olhem que está o medico a bater 1 gritam as meninas.

E' o medico, é, que eu bem o vejo pela janella do meu quarto, responde, da cama, o criado.

O medico, impaciente, continua batendo.

Estamos todos doentes ! berra o criado de modo que o medico o possa ouvir.

Então como hade ser isto ? pergunta o doutor.

se V. ex.^ quizer entrar aqui pela janella do meu quarto, que para a escada. Está ahi um

108 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA

banco de accender o candieiro. Suba o sr. doutor ao banco, e poderá abrir a janella. Eu, quando que- ro sahir de noite, sirvo-me d'esse meio.

O medico trepa ao banco para trepar á janella, que abre sem grande difficuldadé. O criado diz-lhe que batendo á porta dos quartos, porque todos os senhores e as criadas estão doentes. O doutor visita de uma cajadada o commendador e a com- mendadora.

E' a injluen^a^ diz elle. Depois vae ao quarto das meninas. -^E' injlnen^a também, diagnostica elle. Dirige-se depois para os quartos das criadas.

E' ainda a injluenia^ observa.

Por ultimo entra no quarto do criado.

Você está com a doença da moda.

>

Qual doença, sr. doutor ?

A iti/lueti^a, homem.

Isso pega-se, sr. doutor?

Parece que sim.

Então foram as criadas que me pegaram isto ! Finalmente, o doutor, visto não haver quem viesse

dar volta á chave, resolve sahir do mesmo modo como entrara: pela janella.

A loteria do natal

grande loteria do fim do anno constitua um dos aspectos mais interessantes do in ©Ntlj-tír^ verno da capital.

Lisboa inteira, anciosa e offegante, espera esse terrível momento em que a Fortuna escolhe, no dia 2*3 de dezembro, qual a algibeira em que ha de des- pejar a sua cornucopia repleta de oiro. . .

Pobre como todas as capitães, porque é jus- tamente nas grandes cidades que as fascinações abundam, cingindo todos os appetites nas pérfidas spiras do seu dorso de serpente tentadora, Lis- boa sonha com a riqueza ao menos uma vez por anno, Lisboa phantasia opulências de Creso quando o dia de Natal se aproxima, e o diluvio de annun- cios, de reclamos, de programmas da grande lote- ria nacional desaba sobre a cidade de mármore e de granito, fazendo promessas ás Margaridas alfa-

110 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA

cinhas de que, dentro de poucos dias, ellas terão sobejo motivo para cantar a ária das jóias; aba- lando a seriedade dos Faustos indígenas com di- zer-lhes ao ouvido que tudo n'este mundo se con- segue á força de dinheiro. . .

Todas estas esperanças despertam no cérebro de cada habitante a idéa de que seja justamente no seu lar que venha a cantar- se a grande opera da felicidade, musica de qualquer dos primeiros maestros da Baixa, Silva, Campeão ou Fonseca, musica de- liciosa em que ha verdadeiras tempestades sonoras de libras sterlinas que redemoinham n'um vórtice phantastico, fazendo de algum modo lembrar a sú- bita explosão de um vulcão cuja lava fosse de oi- ro. . .

Conta-se que de uma vez certo marido, ao sair de casa no dia 23 de dezembro, prevenira a mulher de que se fosse certo sair-lhes a sorte grande, elle viria de trem trazer-lhe a boa nova, e que ella, mal sentisse parar á porta a carruagem, atirasse para o meio da rua toda a mobilia pelintra da sua sala, todas as alfaias apirangadas do seu niénage burguez, porque, se elle viesse de trem, não havia que du- vidar^ estariam ricos, muito ricos, riquíssimos.

O marido saiu atordoado pela esperança, quasi somnambulo, embriagado de sonhos de grandeza e opulência. Entrou na rua do Oiro, onde, de um lado e outro da rua, todos iam vendo as suas cau- íellas e os seus décimos, para se certificarem bem de que estavam ricos mal lançassem os olhos ao cartaz dos prémios grandes, e elle acreditava que todos os outros seriam dentro de pouco tempo uns desgraçados desilludidos, porque a «taluda» era para elle que estava reservada, e para elle, que lhe antegostava as delicias.

Entrou na loja do Silva, repleta de gente qué se acotevellava, que se empurrava, que se precipitava sobre o balcão, e via, com effeito, que todas as ca- ras, risonhas momentos antes, desandavam súbita-

VIDA DE LISBOA 111

mente convertidas em carões chorosos, physiono- mias fúnebres, que faziam dó. . . excepto a elle, porque a infelicidade dos outros era a sua felicida- de, tudo aquillo eram probabilidades a seu favor, uma quasi certeza de que a sua esperança estava convertida em realidade.

Pôde enfiar a cabeça por uma clareira, e deitar o luzio para cima do balcão, onde o numero pre- miado apparecia escripto em caracteres garrafaes sobre uma larga tira de papel, a fim de evitar um tiroteio de perguntas que deixariam esfalfados os caixeiros do estabelecimento se houvessem de res- ponder a todas.

Então, o que elle leu não podia crel-o ! Leu... tornou a ler, pediu a um visinho que lesse por elle, e desenganou-se a final de que a Fortuna o ha- via atraiçoado brutalmente, guiando-o em sonhos até ao arco grande das Aguas Livres para o des- penhar depois no valle da Rabicha, onde, em vez do phalerno promettido, lhe seria apenas permit- tido continuar a decilitrar o carrascão do seu orde- nado de amanuense.

Seccou-se-lhe a bocca, fugiu-lhe a vista, treme* ram-lhe as pernas e quando a impressão desceu aos intestinos, o próprio abdómen não ficou indif- ferente. Quiz scgurar-se á hombreira da porta, mas as forças faltavaní-lhe cada vez mais, teve que cha- mar á pressa um trem, para que o conduzisse a casa, e recommendou ao cocheiro que batesse^ por- que se sentia muito incommodado.

A mulher estava á janella, cheia de impaciência, de sobresaltos, de anciedade. Viu assomar ao fundo da rua um trem em grande batida. De repente, os cavallos estacaram á porta do prédio e ella reco- nheceu a mão do marido abrindo a portinhola do trem.

Santo Deus ! estava rica ! N'aquelle trem vinha a sorte grande, um decimo do primeiro premio ! Ella bem viu que era aquella a mão do marido, mas,

112 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA

oh prodigio da Fortuna ! os dedos eram de oiro, es- tavam doirados e luzidios como se n'aquelle mo- mento liouvessem chegado da fabrica Aurificia, do Porto. Fora aquella mão que escolhera a sorte grande, e afíigurou-se-lhe que a sorte grande era como certas flores que nos doiram os dedos com o seu pollen brilhante.

Mais ligeira do que o relâmpago, agarrou n'uma cadeira, n'uma jarra, n'um castiçal, n'uma figura de barro e zás, tudo para o meio da rua; correu de novo á sala, pegou em duas cadeiras, que voaram pela janella fora; e quando ellas se escavacavam na calçada, o marido pallido, tremulo, nervoso, excla- mava do limiar da porta :

Mulher, ainda estamos pobres I Enriquecer de um dia para o outro! Como é bom

pensar n'isso ! Accordar a gente uma bella ma- nhã e sentir bater á porta do quarto, com os seus dedos de oiro, e com a delicadeza de uma fina mão que traga anneis, essa grande dama caprichosa e volúvel, bella mas esquiva, a Sorte Grande, que vem, ante pé, segredar-nos pela fechadura da porta a mais terna de todas as confidencias, aquella que um homem jamais poderá receber sem uma grande vibração nervosa de todo o seu organismo: Estás rico, louquinhol

Deuses immortaes 1 Essa voz maviosa não é mais do que a primeira nota de um coro ineffavel de apostrophes^ que de toda a parte soarão a nossos ouvidos.

O cocheiro :

Está posto o trem, excellencia. O fockey :

Excellencia, o cavallo está apparelhado. O Banco de Portugal:

Excellentissimo, o que vossa excellencia qui- zer. . .

O camaroteiro do theatro de S. Carlos :

A cadeira de vossa excellencia está certa.

VIDA DE LISBOA 113

O governo :

Porque não ha de vossa excellencia ser vis- conde ?. . .

Os amigos:

Sim, porque não has de tu ser visconde ? ^5 mulheres :

Não te esqueças de mim quando passares pelo Leitão.

Leitão^ o joalheiro :

Lembre se vossa excellencia das mulheres quando passar por mim. . .

O sr. Biirnaf.

Vossa excellencia ainda ha de fazer commigo um syndicato.

A florista da rua do Oiro :

Guardei para vossa excellencia esta rosa ama- rella. . .

O centro progressista :

Vossa excellencia deve metter-se na politica» O centro regenerador :

A politica espera por vossa excellencia. A camará municipal :

Vossa excellencia vai ter uma rua com o seu nome.

Tre^ litteratos :

Vossa excellencia devia fundar um jornal.

Um pescador de casamentos ricos^ distraindo-se e di:{endo por habito^ visto que está fallaudo a uma pessoa rica :

Amo-vos !

Uma empre:^a de minas :

Quando vossa excellencia tiver o capricho de empobrecer, falle comnosco.

Um bric-à-brac de quadros :

Aqui tem vossa excellencia um Raphael ge- nuíno. . .

Um bric'à-brac de objectos históricos:

Com esta penna de prata assignou Napoleão I o acto da sua abdicação.

114 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA

O guarda portão :

Esta carta e este ramo de flores para vossa excellencia.

A governanta francesa :

Bonne nuit, monsieur. Rien de plus ?. . . Geus ! que bella ladainha esta, em que todas as

commodidades, todas as tentações, todas as galan- terias doeste mundo são divinisadas pelo dinheiro, e em que cada palavra que se ouve parece não ser mais do que uma conta de oiro que vem por si mesma enfiar-se no rosário da nossa felicidade !

Moralidade. A sorte grande é, como diz Eduar^ do Garrido, uma coisa que sae. . . aos outros.

XI

Carnaval

ccoRDA a gente ouvindo, na rua, as casta- nholas dos rapazes. De vez em quando passa ao longe, muito festiva, uma phi- larmonica de artistas. E' o carnaval, não ha que ver. Estamos em pleno domingo gordo. Ih ! aqui mes- mo, debaixo da janella^ um gaproche veio tocar buzina furiosamente. Parece um epigramma á nossa preguiça cheia de indifferença. A pél a ! até os gavroches nos fazem surriada. se sabe na visi- nhança que gostamos de levantar nos tarde; por- tanto a visinhança aproveita a occasião para nos mandar uma bisca n'uma buzina.

Que horas marca o relógio ? Onze. Com effeito ! z buzina teve razão. A ! a !

Abrimos a janella. Oh ! santo Deus ! que mal en- carado dia ! Ceu pesadão, ruas lamacentas. Adivi- nhase frio fora. Poii, senhores, os que gostam

116 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA

de divertir-se no carnaval vão ficar verdadeiramente codilhados com este domingo gordo. Pobres rapa- zes! Elles ainda querem illudir-se annunciando a festa com as suas castanholas; espantar o mau tempo com a buzina. Agora estou capacitado de que a buzina não era um epigramma para mim, mas uma declaração de guerra ao mau tempo. Chove já. E é uma boa bátega d'agua, a que está agora caindo sobre a philarmonica que vae pas- sando ao longe. Pobres rapazes! que não poderão divertir-se hoje tanto como esperavam ! Pobres ra- parigas ! que contavam decerto poder empoar, den- tro dos pateos, ao abrigo da vigilância da policia, os operários seus namorados ! Vão empoar al- guém debaixo de chuva: era o mesmo que fazer papas sobre o fato da victima ! . . .

No Brazil vingou a ideia de addiar o carnaval para o tempo do S. João, por ser epocha menos sujeita a doenças

Através do oceano, consegui encontrar-me com o cidadão brazileiro que propoz tão acertado alvi- tre.

de uma vez, por motivo idêntico, propuz que a festa patriótica do i.^ de dezembro fosse trans- ferida para o i.° de junho, por causa das consti- pações, bronchites e pneumonias. Um paiz que tem bons patriotas precisa acautelal-os, defendel-os do rigor das intempéries.

E aqui está como a tão respeitável distancia^ mettendo-se de permeio o vasto oceano, dois ho- mens conseguem encontrar-se no mesmo pensa- mento humanitário I

Com o mau tempo que está fazendo agora, que de doenças se não hão de gerar no carnaval d'este anno !

Nada! Também nós precisamos mudar de mez o entrudo, passal-o para o dia de Santo António, que é tempo quente. Poupa-se uma festa, pou- par-se-hão muitas vidas, e a economia bem enten-

VIDA DE LISBOA 117

dida deve ser como a caridade: principiar por nós mesmos.

Agora, que estamos reformando tudo, não levan- temos a mão de cima da massa : reformemos tam- bém o calendário. Se o não fizermos, teremos que passar sempre pelo desgosto de ver a chuva estra- gar o carnaval, e de ver o carnaval arrastar para o cemitério um longo comboio de victimas.

Imaginem os senhores que hoje, em vez d'este domingo casmurro, amanhecia radioso de sol o dia i3 de junho de 1892. Que alegria para os corações moços, e até para os velhos que no carnaval cos- tumam remoçar!

elles, uns e outros, iriam a esta hora por ahi fora descendo o Chiado debaixo da fuzilaria dos tremoços e dos esguichos das bisnagas.

Mascarados em mangas de camisa, sentindo-se le- ves e frescos, fariam piruetas, dariam saltos e ca- briolas, n'uma alegria doida de rapioca nacional.

Como isso não acontece, os que andam agora na rua apanharam a sua carga d'agua, têm no corpo o fermento de uma constipação pelo menos. E os mais cautellosos, que ainda estão em casa es- preitando o tempo pela janella, sentem-se arrelia- dos, fulos, raivosos contra o destempero da natu- reza, que não respeita o calendário.

Mas, emfim, eu tenho de almoçar, e de acceitar o tempo tal como elle é.

Chove ? Paciência. Comerei o meu biffe, tanto mais devagar quanto maior for o aguaceiro. Com um dia d'estes não se pôde sair. E emquanto chover assim, não ha, não pôde haver carnaval. Portanto, almocemos tranquillamente, passemos do biffe para os ovos quentes, dos ovos quentes para o chá preto.

O que ? I Ainda chove ? Pois bem, esperemos. Vamos ler os jornaes da manhã, saber se a França tem ministério, se os operários de Berlim es- tão mais socegados, se os fundos subiram ou des- ceram.

118 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA

I>eio um jornal, leio dois. Que tolice ! Basta ler um jornal para ter lido todos. Mas emfim o tempo ha de gastar-se d"algum modo, sobretudo o mau tempo. . .

Parece-me ouvir mais castanholas na rua. Talvez a chuva passasse. Se passou, não tenho remédio senão ir até ao Chiado ver as mascaras, porque no Chiado passa tudo, o bom e o mau, e porque a Casa Havancza é um porto de abrigo para o caso de um aguaceiro.

Sim, eííectivamente não chove agora, mas o ceu está com cara de poucos amigos. Não tarda muito uma chuvada valente. Esta reflexão que eu faço,, hão de fazei a também os mascarados que estive- rem para sair. E não sahirão porcerto. Não sairei também, á espera que o tempo melhore. Vou ler. Decididamente, vou ler alguma coisa que valha a pena. Escolherei um livro bom, que consiga fazer-me esquecer das castanholas dos ra- pazes. Se a leitura me não prender a attenção, se eu continuar a ouvil-as, aborrecer-me-hei, porque as castanholas são realmente implicantes, bolem com os nervos.

Olá! um livro de historia! Não quero saber se o li ou se o não li: é bom, e isso me basta. Con- sigo lêr vinte paginas sem ouvir as castanholas, o que quer dizer que, o livro é realmente óptimo. Pa- ro um momento na leitura, porque encontro uma du- vida. Isto faz com que eu desça ao mundo da rea- lidade, e oiça de novo as castanholas.

Que horas são ? Trez. Diacho ! é a hora do Chia- do. Mas o tempo continua tão mau! Não tarda ahi a chuva outra vez. Esperarei mais uma hora. Sai- rei ás quatro, podendo ser. Com este tempo o Chia- do ha de estar deserto, a Casa Havaneza solitária» Quem é agora que sae de sua casa para ir apa- nhar, sem necesssidade, uma molhadella?

Não sairei também. O melhor que tenho a fazer é ler mais vinte, paginas. Apre! as castanholas^ em

VIDA DE LISBOA 119

a gente lhes dando attençao, fazem cócegas nos ou- vidos. E' que se não pôde atural-as 1

Pois, decididamente, vou lêr outras vinte pagi- nas.

E li. Aprendi alguma coisa, o que quer dizer que não perdi de todo o meu tempo. São quatro ho- ras 1 Isto não está dia capaz da gente ir por ahi abaixo. De mais a mais sujeitar-me-ia a apanhar uma furiosa metralha de tremoços. Como deve an- dar pouca gente pelas ruas, todo aquelle que se arris- car a sair de casa, apanhará em cheio os tremcços que estavam guardados para os outros. Ha de ser uma fusilaria de metter medo !

Imaginem a rua da Rosa, por exemplo, rua es- treita, onde parece que se foi anichar "aos andares toda a gente que gosta de jogar o carnaval. Faço idéa de que as meninas e as sopeiras da rua da Rosa estão agora furiosas, com uma boa provisão de tremoços, á espera que passe algum desgraçado mais audaz. Se esse desgraçado fosse eu, ficava prompto 1 Se, pelo contrario, vou por S. Pedro d'Alcantara, exponho me a apanhar o vento e a chuva, de cara. Não, o melhor é não sair por em- quanto. Cautella e caldo de gallinha nunca fez mal a doentes.

Ficarei, lerei ainda outras vinte paginas; agora chegarei a metade do livro. Pois decididamente^ vou lêr.

Que barulho é este na rua? Não, isto é decerto coisa que mereça a pena vêr-se. Largo o livro, corro á janella. Chove, mas passa na rua um mascarado em fralda de camisa, com um pincel n'uma das mãos, e um pote de barro na outra. De vez em quando pára, falia para as janellas, olVerece-se para caiador. Os rapazes que o seguem e as visinhas que estão á janella acham lhe muita graça.

Diacho! Se o carnaval de hoje é isto assim, não vale a pena sair para ir vêl-o. E não poderá ser melhor. Quem ha de com um tempo d'estes arris^

120 COLLEGÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA

car um beilo fato de mascara e uma bella equipa- gem? Ninguém.

São cinco horas? Pois dando as seis, vou jan- tar; é o melhor que tenho a fazer. Veremos ama- nhã, veremos terça feira, se o tempo melhora, se as mascaras podem sair, e eu também.

São seis. Vamos jantar.

Que tal está a noite? Má. Os charcos da rua re- luzem á luz do gaz. Vêem-se as estrellas? Algumas; poucas. Para o sul está muito escuro. Vem chuva. Pois deixal-a vir, eu é que não quero apanhal-a.

Os bailes de mascaras hão de estar desanimados, insípidos. Nem toda a gente pôde andar de trem. Ficarão, portanto, muitas pessoas em casa. Ir para um baile de mascaras, onde a temperatura é ele- vada, e estar com os pés húmidos, chega a ser toli- ce. Ir de galochas, chega a ser ridículo.

O que visto e ponderado, resolvo ficar em casa, achando assim um meio termo conciliador para não ir de trem nem de galochas.

Sem embargo, faço ideia do que vae agora por essa Lisboa toda.

Os que têm apenas vinte annos estão nadando n'um mar de felicidade.

O carnaval, aos vinte annos, tem licença para tudo^ para um assalto de bisnaga em punho, áo longo do corredor que é ordinariamente muito es- curo, e ao fundo do qual, onde a sombra é mais densa, o perseguidor consegue segurar a bella per- seguida pela algema encantadora de. . . um beijo.

Eu digo um beijo , porque timbro em ser um chronista honesto, ainda mesmo quando tenho a certeza de que ninguém me ha de ler.

Depois, o perseguidor e a perseguida voltam á sala, muito afogueados do rosto e... do beijo, c ninguém suspeita ou parece suspeitar de que n'aquella scena carnavalesca houvesse outro instru- mento além da bisnaga, outra liberdade que não fosse a de um borrifo de agua ilc Colónia.

VIDA DE LISBOA 121

Mas a verdade é que o beijo ficou engastado n"uns lábios de rubim, e que a bisnaga voltou va- sia para justificação apparente dos culpados

Depois, na sala, em pleno salsifré, na bochecha dos papás e das mamãs, o idyllio continua, graças ás liberdades que o carnaval permitte.

Ha sempre uma prima que namora um primo, uma visinha que namora um visinho, uma Julietta de loup que namora um Romeu de bigode postiço. Os dois sentem se felizes, muito felizes, o primo marca o cotillon e valsa com a prima, o primo cae de joelhos, sobre a almofada, aos pés da prima ou esgalgase, dando saltos no meio da casa, para apa- gar a vela que ella tem na mão.

No carnaval ninguém tem tempo para pensar mal dos outros, senão para se divertir. Ninguém se lem- bra de suspeitar que haja veneno em tudo aquillo, o veneno que não se vende nas boticas, mas que se encontra no fundo do coração.

Não ! Ninguém interpõe o seu veto a uma folia carnavalesca. Nem mesmo o poder moderador das mamãs.

Se, em face do primo, ha um terceiro, um des- peitado, um Othello de dominó, até esse, graças ao carnaval, tem licença para abrir a válvula do ciúme, para fazer epigrammas, calembours, phrases azedas que vão cravar-se, como pequeninos punhaes, no seio esbagaxado da Julietta de loup.

Esta mulher, pôde dizer o Othello de dominó^ parece-se muito com o visconde de Paiva Manso, que morreu ha annos em Lisboa.

Porque? em que?

Porque é Levy Anna (leinanna) e elle era Levy Maria.

Todos acham muita graça ao calcmbour, e todos o recebem, até talvez a Julietta de loup^ como um ■dito espirituoso de mascara, uma liberdade de car- naval.

A's trez horas da manhã a prima Julietta sae do

122 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA

baile, ainda com uma bisnaga na algibeira, e o primo no coração. Roda a carruagem para casa. e ella, através do vidro da portinhola, manda ainda um olhar apaixonado ao primo Romeu que ficou pa- rado a vel-a partir.

Então ella vae gosando a delicia de aspirar a agua de Colónia com que o primo a encharcou, no fundo do corredor. As luvas, o lenço, o leque, tudo isso conserva o perfume do primo, e ás vezes, du- rante a quaresma, a prima Julietta, no mysterio do seu boudoir^ cheira ás escondidas o primo Romeu, quer dizer, cheira as luvas que elle encharcou n'aquella feliz noite de carnaval que passara.

Mas o primo Romeu, depois que a carruagem partira, foi descarregar no baile publico de D. Maria a electricidade am.orosa de que a prima o saturara.

Toda a gente sabe como é fácil encontrar á en- trada de um baile publico uma Traviata disponível, que de algum modo complete uma Julietta platónica. O primo Romeu, uma vez em liberdade, o braço á Traviata cheia de tentação e de appetite, que vae ceiar, que bebe Champagne, e que ri crystallina- mente n'uma orgia de dois, comendo e bebendo, como se não fosse a decima vez que ceia n'aquella noite.

No dia seguinte, o primo Romeu levanta-se tarde, muito tarde. . .

Tem-se quarenta annos ?

Então ri-se a gente de ver a loucura carnavalesca dos outros o que é também um divertimento, com a vantagem de gastar menos dinheiro em ceias e bisnagas.

Os quarenta annos são muito mais baratos do que os vinte.

Pede-se apenas, no botequim, meio bife para um, e Collares.

Mas o bife é para quem o pede, o Collares é para quem o paga. Aos vinte annos, quem paga o Champagne é exactamente quem o bebe menos.

VIDA DE LISBOA 123

Depois d'esta cciasinha pacata e barata, o de quarenta annos accende um charuto e então, atra- vés das nuvens de fumo, passar em turbilhão ondulante as recordações deleitosas do carnaval dos vinte annos, as mulheres que outr'ora o intri- garam e bisnagaram, os dominós de luvas gtis- perle, as pastorinhas de seio nú, e ás vezes por en- tre as mulheres imaginárias do passado apparece uma mulher do presente, de carne e osso, que pôde acceit3r o braço que se lhe oflerece, sem que se lhe haja ofterecido a ceia.

E' muito mais barato como vêem.

Nos camarotes, nas frisas^ as mulheres de qua- renta annos sentem todo o peso dos seus pés de gal linha e dos seus filhos.

Estão no principio da noite arreliadas, desespera- das, fulas.

não ha ninguém que as bisnague, ao passo que para a frisa do lado, onde ílorece um jardim de vinte annos, está assestado um verdadeiro tiroteio de bisnagas.

As mulheres de quarenta annos limpam com o lenço e com mau humor os salpicos de agua de Co- lónia que lhes chegam da frisa immediata. Mostram- se incommodadas com aquella visinhança, que lhes pôde constipar. . . um braço.

Isto não são termos de brincar ! dizem ellas para os maridos, de modo que as visinhas do lado oiçam. Estou encharcada! Se irei ter rheumatismo n'este braço !

Entretanto, no botequim, os estróinas vão ceian- do copiosamente, bebendo, bebendo.

Os maridos dizem ás mulheres de quarenta an- nos :

O' filha, está pouca gente. Vamo-nos nós embora ?

E ellas respondem :

Assim como assim, gozemos o nosso dinheiro. E' que ellas bem sabem que os estróinas estão a

124 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA

ceiar, e que quando elles voltam ao salão, no mo- mento em que o baile referve mais doido, prestes a acabar, costumam despejar a torto e a direito as suas bisnagas.

São quasi quatro horas da manhã.

Os estróinas voltam do botequim ao salão, e de- satam n'uma orgia desenfreada.

E na confusão das bisnagas, na fúria do tiroteio, um d'elles, sem saber porque, aponta a sua bisnaga á dama de quarenta annos e despeja-lh'a sobre o rosto.

Então ella.^ felizmente encharcada, felizmente bis- nagada, volta-se para o marido e diz :

Vamos embora, que não quero que entrem de semana commigo. Isto é por força gente conhe- cida...

Mas sente-se ditosa, radiantemente ditosa, por- que ao menos, dos milhões de bisnagas que se gas- taram em Lisboa, uma foi gasta com ella.

E na carruagem, ao ouvido do marido, de modo que o filho de quinze annos não oiça :

Veja como sou uma mulher séria. Assim que me bisnagaram, quiz vir embora. . .

XIÍ

A renda das casas

[u casar ou metter freira, dizia o provérbio antigo. Uma paraphrase d'este rifão cabalmente explica o facto capital com que a semana fechou : pagar a renda da casa ou ir para o meio da rua.

N'uma cidade populosa como Lisboa, onde o pro- letário abunda, não pôde deixar de ser este um facto capital, que sobresalta a maior parte das fa- mílias.

Por que a verdade é que, peior ou melhor, o pão nosso de cada dia vae supprindo as exigências do estômago ; no orçamento domestico, a fonte da re- ceita vae gottejando sempre, mais ou menos, de modo que a Praça da Figueira não seja inteira- mente o supplicio de Tântalo. Trez quartas partes da população vivem au joiír le jour, se vão ar- ranjando, ás vezes providencialmente.

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Mas a renda das casas é preciso pedil-a a um sacrifício, talvez a um milagre comparavei ao jorro de agua que a vara de Moysés arrancou ao rochedo do Horeb.

Não é uma gotta que se possa pedir á escassa fonte das receitas ordinárias, mas antes uma bruta- lidade de dinheiro, um punhado de libras, que im- porta descobrir em alguma fonte, nos bancos da rua dos Gapellistas, no Monte-pio Geral ou nas garras do agiota.

Lisboa, que é habitualmente uma cidade alegre e frivola, uma cidade que ri e que esquece, Lisboa, a Lisboa do amanuense e do artista, a Lisboa do proletário e do inquilino, tem no seu calendário dois dias terriveis, sinistros : 20 de maio e 20 de novembro.

Tudo a população d'esta bella cidade esquece fa- cilmente : as tempestades da politica, os incidentes do parlamento, os escândalos da sociedade. Cada facto notável que vae acontecendo, preoccupa-a dois dias apenas. Um crime, por mais monstruoso que seja, obriga-a a gastar um vintém, somente. Durante dois dias consecutivos toda a gente compra um jornal, devora soffregamente quatro columnas de pormenores, e uma gravura. Mas ao terceiro dia, Lisboa sobe ao ceu da sua frivolidade, manda ao diabo a reportagem, como um preguiçoso que, para dormir melhor, se volta para o outro lado e torna a pegar no somno.

Os garotos podem gritar na rua pregões atroa- dores, as esquinas podem estar cheias de cartazes e de reclamos a quaesquer publicações allusivas ao facto. Lisboa não ouve os garotos, Lisboa não os cartazes, Lisboa não compra os opúsculos, ainda que esses opúsculos sejam pamphletos. O que Lis- boa quer, cançada de um acontecimento que fez ruido dois dias, é outro, acontecimento.

Mas uma coisa ha que ella não esquece, uma coisa em que pensa a serio, e em que, mais ou

VIDA DE LISBOA 127

menos, vae pensando todo o anno. Essa coisa é a renda da casa. Ora a renda da casa está personifi- cada no individuo que a recebe : esse individuo é o senhorio. Portanto, Lisboa, durante todo o anno, pensa no senhor. o,

O folhetim, a comedia, a anecdota visam ao se- Tihorio^ alcançam-n'o, ferem n'o, não o largam. O senhorio e a sogra são as duas individualidades mais atacadas pela troça lisbonense. Lisboa atara toda a espécie de maçador e pantomimeiro, Lisboa perdoa tudo quanto lhe queiram fazer: até perdoou ao homem das botas I xMas não perdoa ao senhorio, não esquece o senhorio : Lisboa odeia o.

E Lisboa tem razão. O senhorio é a espada de Damocles, sempre pendente sobre o pescoço do in- quilino é o rochedo que o Sysipho indígena vae ro- lando constantemente; é o espectro de Banquo, implacável e tenaz, que vae perseguindo o proletá- rio desde janeiro a dezembro.

E' elle que apparece mentalmente no seio de to- das as famílias quando se trata de planear um pas- seio a Cintra ou de comprar uma frisa em S. Car- los, para dizer egoista e ameaçador: «Não pôde ser. Lembrem-se que têm de pagar me a renda ■da casa.»

E' elle que se engalfinha no pescoço do ama- nuense de repartição, e o afoga como um carrasco, quando o amanuense pensa em dar a sua mão de esposo, com a respectiva manga de alpaca, á gira- fasinha dos seus pensamentos.

E' elle que arranca violentamente o portemonnaie da mão da D. Pulcheria, viuva do major fulano, ou da D. Engracia, mulher do chefe de repartição si- crano, quando a D. Pulcheria pensa em comprar um chapeo de flores roxas e a D. Engracia pensa «m comprar um chapéu de flores encarnadas.

E' elle que investe com o joven D. António ou com o joven D. José quando ambos pensam em comprar cavallo, quando ambos, saindo de S. Car-

128 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA

los, vêm imaginando descer o Chiado, a par, mon- tados nos seus baios, cortejando á direita e á es- querda, muito firmes no selim, muito bons pés de estribo, muito boas mãos de rédea.

D. António e D. José projectam tomar parte nas próximas corridas do hypodromo, ganhar o premio do governo ou o premio de el-rei, mas para que realisem esse ideal falta lhes apenas... o cavallo.

Ora D. António casou, e tem dois filhos; ora D. José não casou ainda, mas tem quatro filhos; ambos elles têm senhorio.

E o senhorio de D. António e de D. José entra como um beleguim no cérebro dos dois marialvas, e rouba lhes o cavallo como um cigano, deitando a fugir com elle.

Porque, a verdade é esta, nunca uma pessoa está livre da renda da casa.

D. António compraria o cavallo se não tivesse amda que pagar a renda.

D. José compral-o ia também, se pudesse ; mas não pôde, porque pagou a renda no dia 20 ou no dia 2D, por exigência do arrendamento.

Entre D. António e D. José, como entre toda a gente, antes ou depois do dia 20 de maio e de no- vembro, ergue-se como uma barreira para todos os sonhos, como uma muralha da China que impede todas as invasões da phantasia, a figura terriveL sinistra, colossal do senhorio.

# » *

Sim, o grande comboyo social da miséria ia ef- fectivamente partir para a terrível viagem da loca- ção das casas. Com uma velocidade verdadeira- mente vertiginosa, essa rápida locomotiva pára de seis em seis mezes, para se demorar um instan- te; depois vae de novo galopando doidamente atra-*

VIDA DE LISBOA 129

vés do tempo, e se algum passageTo morre durante a viagem, o seu cadáver é arremessado pela janella fora na direcção dos Prazeres ou do Alto de S. João, mas o comboyo vae caminhando sempre, sempre, conduzindo na sua marcha quasi phantastica aquel- les cuja ultima hora não soou ainda. . .

Nas estações, novos viajantes esperam, prepara- dos para a viagem. São familias que se constituí- ram recentemente, noivas que sobraçam o cofresi- nho das suas jóias, com que os pães e os amigos da familia as brindaram no dia do casamento; ra- pazes de vinte annos, que desposaram com grande estrondo de noticiário essas gentis meninas incon- scientes do seu futuro e que levam por único pas- saporte matrimonial a carta regia que os nomeou amanuenses de secretaria ou aspirantes do correio e da alfandega.

Entrando no wagon onde viuvas esfomeadas e antigos burocratas famintos fazem a viagem da vida com um mau humor que os torna hostis a to- dos os governos, a todas as evoluções sociaes, e á invasão de todos os progressos politicos, ouvindo as queixas amargas das viuvas que lamentam a sua miséria, e dos fidalgos arruinados que trocariam o seu appellido de familia por um charuto de vintém, esses alegres noivos, ainda embriagados pelas fugi- tivas alegrias da lua de mel, principiam a accordar do seu extasi nupcial, e vão perdendo parcellas de alegria e de felicidade á medida que o comboyo terrível vae devorando kilometros e illusões.

A primeira estação que elles fizeram foi a 20 de maio. Tinham realisado umas comprasinhas bara- tas para o seu ménage ; alugaram um trem para pagar as visitas de casamento, e mal acabavam ainda de embarcar no seu wagon de familia, quan- do o comboyo pára de repente, e uma nova estação é annunciada. Estavam a 20 de novembro, e na plataforma da estação o vulto automático do se- nhorio abria para elles essa mão terrivelmente adun- 9

130 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA

ca, que parece levar ao mesmo tempo a renda e a peile.

O que?! exclamaram os noivos simultanea- mente. Pois ? 1

Já, sim, um semestre passou. Quão longe que fica de ambos elles a egreja em que um dia entra- ram para casar, e todavia quão pouco tempo é de- corrido ainda !

Em roda, e emquanto o comboyo se demora, a turba dos inquilinos pranteia-se, lamenta se, expli- cando aos senhorios as dificuldades, os transtornos que tiveram de vencer para se acharem 4IÍ n'aquelle dia e áquella hora, pontualmente.

Que sentem muito, respondem os senhorios, mas que não pôde ser por menos, que está tudo muito caro, que as decimas são muito grandes, que os negócios vão mal. E adeusinho, até ao outro se- mestre ; que tenham saúde e felicidade, que passem por muito bem.

A machina o signal de partida, os passageiros retomam os seus logares, acommodam as suas ma- las, e, examinando-as, todos reconhecem que lhes falta alguma cousa, e que vão muito mais pobres do que chegaram ali.

me ficou uma pulseira ! exclama a noiva de ha um anno.

Ficou, sim, no braço do senhorio, porque em Lisboa os senhorios são verdadeiras montres de ou- rives.

Toda a gente pára a contemplar a da ourivesaria Leitão no largo das Duas Igrejas. Pois um bom se- nhorio, e quero com isto dizer um dono de muitos prédios, tem decerto muito mais que vêr quando passa na imponência magestosa dos seus rendimen- tos. Pendem lhe das orelhas muitos pares de brin- cos, no que é superior aos selvagens * pelos braços felpudos enroscam-se-lhe armillas de oiro, scintil- lantes de pedras preciosas. Sobre o peitilho da ca- misa reluzem broches, de variado gosto. Quando

VIDA DE LISBOA 131

tira o chapéu para cumprimentar alguém, desco- brem-se-lhe pentes contornados de pérolas, espeta- dos nas farripas grisalhas. E a gente diz, observando-o :

Olha, aquelle era o bracelete da viscondessa! aquelle pente de oiro era da sogra do conselheiro! aquelle brochesinho de prata comprei-o eu ha dois annos para dar a uma afilhada que casou ha um!

E emquanto o combo3'o galopa doidamente, co- mo um corcel de fogo, as conversações dos passa- geiíos continuam sobre a carestia dos géneros e das casas, sobre a incúria de todos os governos pe- rante a eterna questão do proletariado, sobre a falta de bairros expressamente construídos para as clas- ses menos favorecidas da fortuna, sobre a desigual- dade das posições sociaes e a tyrannia dos ricos para com os pobres.

Uma viuva que tem quatro tostões diários de monte-pio, diz para a noiva que vae a seu lado :

Vé-me agora sem chapéu, não é verdade? Pois eu tive um. . .

um ? ?

Um que valeu por dez.

Não percebo !. . .

Ah! minha rica menina! vae no caminho... ha de perceber um dia.

Mas explique sempre.

É fácil. Tive, quando casei, um chapéu com flores de laranjeira. Passado um anno, tirei lhe as flores e puz-lhe o fructo. . .

O que?! Poz laranjas no chapéu?

Não foram laranjas precisamente. Puz-lhe um cacho de uvas no sitio em que tinha as tiôres. De- pois morreu-me um tio, e fiz vindima em signal de sentimento. Tirei as uvas e puz fitas pretas. De- pois, morreu meu marido, c aproveitei a carcassa para a cobrir de merino. Depois. . .

Depois, conservou, naturalmente, o mesmo chapéu ?

132 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA

Nada d'isso. Depois tornei a casar, e cobri a carcassa com seda azul. O meu segundo marido era muito constitucional e quiz que eu tivesse um chapéu com as cores de 182Ò. Trez annos depois, o meu homem morria, e eu aproveitava o merina do primeiro marido. . .

E depois ?. . .

Depois, no dia da renda das casas, vendi o chapéu a uma visinha que estava para ser viuva do homem com quem não tinha casado.

O grande comboyo dos arrendatários vae galo- pando sempre, sempre, e a turba dos passageiros, conversando das suas próprias desgraças, quasi não tino de que elle foge tão depressa como o tem- po...

Chega um dia em que as bagagens, as malas, a mobilia desapparecem inteiramente. O passageiro, não tendo mais que vender, apeiase para ir lan- çar se ao Tejo, porque ninguém ahi paga renda; ou trata de arranjar dinheiro por quaesquer meios ar- tificiosos, que, no caso em que tudo corra mal, o podem conduzir ao Limoeiro, um prédio excepcio- nal. . . que não tem dono.

Moralidade. O caracol é muito mais fe iz do que o homem, porque não precisa ter senhorio para ter casa.

XIII

S. Carlos

^.

^ f\ iheairo de S. Carlos é uma espécie de mu- ^\y nicipio lyrico, de concelho musical encra- <ss^'^rÁ vado no coração da cidade, uma espécie de villa que tem os seus habitantes, os seus prédios, os seus costumes e os seus acontecimentos. . .

Os habitantes de S. Carlos são conhecidos de toda a gente. Vivem ali durante todo o anno na sa- leta do bilheteiro, no escriptorio da empreza, con- versando sobre os assumptos de casa, discutindo pro domo siia^ e ás vezes, quando está sol, vêm passeiar no largo, como na província se vae pas- seiar para o rocio da villa. De vez em quando, pelo anno adeante, dão uma fugida á cidade, descem á Baixa a tratar negócios, apparecem como íourisies, raras vezes, n'um ou n'outro theatro, e quando re- colhem á villa param algum tempo no Chiado com a tranquilla confiança de quem não está mal jus- tamente porque se acha perto de casa.

134 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA

A gente, quando os vê, lembra-se involuntaria- mente de bailarinas e de primas-donnas, ouve ar- cadas longínquas de violinos invisíveis, como pôde lembrar-se do harém e do alcorão vendo um turco, como poderá lembrar-se de boleros e seguidillas vendo uma hespanhola. Mas porque os reconheça como portuguezes, de fora da terra, fica dizendo comsigo :

Bem sei: c fulano de S. Carlos.

Como se costuma dizer de qualquer outra pessoa que, sendo conhecida na capital, costuma comtudo viver fora :

E' o Barahona de Évora.

E' o Mazziotti de Collares.

Como todas as terras de província, S. Carlos tem a sua botica^ o escriptorio do theatro. A's ve- zes o boticário é substituído: o Valdez succedeu ao Brito, o Brito succedeu ao Valdez, mas a botica conserva sempre os seus hábitos, as suas antigas tradições de cavaqueira. Falia se principalmente de pessoas que são ali conhecidas, dos cantores que têm passado pela scena de S. Carlos, sabe-se onde estão, quanto ganham, quanto gastam, e se peiora- ram de voz.

Lêm-se os jornaes lyricos, que chegam ali,, sem que ninguém mais se importe de vêl-os. Em todas as terras ha uma certa predilecção por de- terminados jornaes, que famílias inteiras vão assí- gnando de geração em geração. Em S. Carlos acon- tece o mesmo, se a imprensa lyrica, e importa mais saber se fulano perdeu a voz do que se fulano perdeu a eleição. De eleições faliam outros jornaes, justamente os que não se lêm ali.

Qualquer occorrencia que se vae dando^ traz á memoria uma serie de acontecimentos passados, mas que reverdecem travando-sc uns nos outros como os elos de uma longa cadeia tradicional.

Falla-se por exemplo, da Patti? Pois recorda-se logo a biographia da mãe, a Barili. Conta-se com

VIDA dl; LISBOA 135

quem era casada, com o Barili, professor de piano, que gostava de beber bem. Como o Barili afogasse demasiadamente em álcool a sua ternura conjugal, a mulher passou-lhe o pé, e foi cahir na mão do tenor Paiti.

Quando ella esteve em Lisboa, diz um, era nascida a Carlota, a coxa.

Mas foi em Lisboa, acrescenta outro, que nas- ceu o Carlos.

Por tal signal, lembra um terceiro, que o Car- los foi baptisado cm L^'sboa, sendo o José Carlos padrinho.

R' verdade, o José Carlos padrinho

Estou a ver a Barili na noite do beneficio, com uma bonita toileíle que lhe fizera a Magdalena!. . .

O leitor não sabe talvez quem era a ALigJalena, -mas sabem-n'o elles. Era uma famosa costureira de S. Carlos, que morreu, ha poucos annos ainda, quasi tão obesa como a corista gorda.

A propósito de mulheres gordas, alguns dos co- lonos de S. Carlos lembram logo a grande Alboni, uma abóbora cheia de harmonia... Por amor do contraste, faliam um pouco da Giuli Borsi, esguia como um ponto de admiração. Das mulheres gordas é fácil passar para os homens gordos. Cita-se o Be- 'neventano, o largo e magestoso Beneventano. . . E assim por deante, um não acabar de chronica local, de pessoas conhecidas na terra aquella terra de S. Carlos, exactanicnte como na vida de provinda se falia de pessoas que por ali passaram ou que ali estiveram, talvez a ares, ha muitos annos.

Como onde houver mais de uma pessoa ha sem- pre uma pretensão, e seja portanto preciso um em- penho, na villa át S. Carlos também ha d'isso o empenho, como por fora, para obter uma récita ou uma assignatura.

Vai a gente de viagem até S. Carlos procurar este ou aquellc para que lhe arranje esta cadeira ou aquel!e camarote.

136 COLLECÇÀO ANTÓNIO MARIA PlCRbllKA

Em ta querendo, menino, estou servido. tu me podes valer, amigo !

Não é tanto assim, responde elle, não ha abso- lutamente nada. Está tudo tomado...

Exactamente como um ministro de estado costu- ma responder: «Tenha paciência, os quadros estão preenchidos.»

Mas lá, homem, se quizeres. . . sim, se tu quizeres... Eu faço grande empenho... lá...

Pois hei de ver... verei... Olha, espera ahi um momento.

E volta pouco depois, volta com o bilhete, o de- sejado bilhete que se pretendia, e que outro qual- quer não seria capaz de arrancar nem a fór- ceps.

A's vezes também de dentro vem um empe- nho, não para que se recommende um pretendente que vae a concurso, mas para que se recommende um cantor ou uma cantora que vae ao Porto.

Quando o Corsi esteve da ultima vez em Lisboa, um amigo d'elle e meu, sempre disposto a obsequiar quando a gente tem alguma pretensão em S. Car- los, pediu-me uma carta de recommendação para o Porto, mas uma carta que- surtisse efteito, porque o amável C^srsi, tendo perdido a voz, não podia também perder cartas.

Eu queria ser agradável a ambos^ ao Corsi e ao seu protector, mas a quem diabo escreveria eu para o Porto uma carta lyrica que se não perdesse? 1

Preferi'^ recommendar um caixeiro a ter que re- commendar um tenor. . . Pensei muito na pessoa a quem deveria escrever. Um jornalista ? Mas esse, no caso de me attender, content^ar-se-ia com ap- plaudir o Corsi no jornal, e o que principalmente se queria era que elle fosse applaudido no theatro. A quem, pois?! Não sabia, não me lembrava. Nesta anciedade subia eu á noite o Chiado, momentos an- tes da hora a que devia entregar a carta, quando de repente uma idéa providencial me acudiu. Ao

VIDA DE LISBOA 137

Eduardo Vianna (vulgarmente, Eduardo Cheira) é que devia ser, e ao Eduardo Vianna é que foi.

(iMeu caro Eduardo. «Peço toda a tua benevolência para o tenor Gor- si, que ahi vae cantar, e que não tendo muita voz, tem comtudo a arte bastante para fingir qua ^inda a tem.»

Não sei se escrevi isto, mas devia ter cscripto uma cousa assim. Confesso francamente qje foi a primeira vez que recommendei um tenor, porque, não menos francamente o direi, o mundo Ktíco não é precisamente aquelle em que eu me d^^moro mais.

Vou algum 1 vez, como toda a gente, no in- verno, porque a villegialure de S. Carlos íaz-se no inverno, quando as outras acabam. E' aquella uma localidade de tão agradável clima como Nice, por exemplo. Começand) outubro, os ricos, principal- mente, vão alli fazer a sua estação e pagam caro o seu prédio. De um lado c do outro tudo são peque- ninas habitações, dispostas parallelamente umas so- bre as outras Como seja grande a concorrência, as casas ficam alugadas de anno para anno, de modo que se sabe de antemão quaes as caras que na primeira noite de espectáculo apparccerão n*este ou naquelle camarote.

E' como se se dissese em qualquer rua :

Mora alli fulano. Ou:

Aquella casa é de sicrano.

Anno cm que venha a Lisboa um cantor que tenha estado, é de grande satisfação para os ha- bitantes de S Carlos, porque, mais que nunca, es- tão com a sua gente, tu cá, tu lá, abraço para a direita, abraço para a esquerda.

Em i885, que me lembre, aconteceu isso. Vie- ram, de torna-viagem, a Borghi Mamo e o Cotogni.

A Borghi-Mamo era, para os habitantes de S.

138 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA

Carlos, uma pessoa de casa Sua mãe estivera em Lisboa, e ella mesma tinha vindo mais de uma vez. Por isso, quando em i8Sj tornou a cantar em S. Carlos, o que toda a gente perguntava era como tinha passado por Li. se se dera bem, e se tivera saudades de Portugal.

Foi recebido do mesmo modo o Cotogni, que fi- zera uma ausência de quinze annos, mas que tor- nara a vir habitar talvez o mesmo camarim e a pi- sar o mesmo palco seu conhecido, ao passo que na platéa e nos camarotes pessoas também suas conhecidas o escutavam.

Como se chama o barytono ? perguntava na primeira noite um sujeito da província a um dos habitues de S. Carlos.

Ora como se chama! como se chama! E' o Co- togni, que ainda ultimamente fez furor em Roma, e que esteve em Lisboa ha quinze annos. . .

Pouco mais ou menos como na feira de Beja podia um estranho perguntar a qualquer pessoa da terra:

Quem é aquelle sujeito ? E o da terra respondia lhe :

Ora quem é aquelle sujeito ! Pois isso é per- gunta que se faça? 1 E' o Alonso das minas. . .

Não tendo porém os cantores tradição local no theatro de S. Carlos, os habitues se não aborre- cem ainda que a gente ouse maçal-os com pergun- tas nos corredores ou no salão.

Por exemplo outro exemplo de i885:

Que tal é Ella ?

Ella quem ?

Ella... Ella. Surpresa do habitue.

A Ella Russell?

Ah! vem pela primeira vez. Vae ouvil-a. Mu- lher verdadeiramente interessante, uma ella para poetas, soprano de meio caracter, dizendo bem, mas um pouco incorrecta na vocalisação.

Se a gente perguntar :

VIDA DE LISBOA 139

Olhe lá, o que me diz do Pinto?

o hahilué mostra se por momentos perplexo, não sabendo se lhe queremos fallar do baixo Pinto ou do outro Pinto que é alto, e empresário do Gym- nasio.

O baixo Pinto . . . ?

Ah ! o baixo Pinto tem uma bella voz e uma excellente escola de canto.

Mas o que diz o governador civil?...

Como ? ! O governador civil ! !

Sim, pois como consente o governador civil que tenha ainda curso um Pinto na Linda de Cha- f?wiinix ?

O habitue não se zanga, e talvez até nos de ra- são.

Concordo, vou dizer ao Valdez que aconselhe o homem a mudar o appellido para Augusto Qui- nhentos Reis.

Mas se a gente insiste em fazer qualquer obser- vação a respeito da Borghi ou do Cotogni, oh ! céus! esses são como que deuses lares de S. Carlos, e não se deve senão entoar em sua honra o Iicce sa- cerdos magnus.

Ali, cm S. Carlos, é que c gastar adjectivos lau- datorios, encomiásticos.

Dizia-me n^esse anno um habitue:

Oh ! a Borghi ! magnifica ! Oh ! o Cotogni ! admirável !

Mas olhe lá, respondia-lhe eu, parece que vem ahi a Patti, segundo dizem os jornaes, e será bom guardar alguns adjectivos para ella. . .

E fui lhe aconselhando a conveniência de solici- tar uma portaria que dissesse pouco mais ou me- nos :

«Tendo tido o governo de Sua Magestade Fide- líssima conhecimento de que brevemente deve che- gar a Lisboa a prima-donna Adelina Patti, geral- mente considerada como a cantora mais celebre dos

140 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA

nossos dias, e convindo regular a adjectivação jor- nalistica por modo que não se empreguem em sua honra adjectivos banaes c desacreditados pelo excessivo abuso que d'elles tem feito o noticiário nacional, fica aberto concurso pelo tempo de quinze dias, a contar da data do presente aviso, para um fornecimento de adjectivos que possam reputar se condignos da notabilidade cantante a quem devem ser dirigidos.»

Deixe se de larachas ! dizia-me o de S. Car- los. A Borghi é magnifica! O Gotogni é admirável!

E n'isto apparecia, de repente, ali, o Gotogni. Então o de S. Carlos^ abrindo-lhe os braços :

Estás como ha quinze annos ! Estás, talvez, mais novo!

Com as cantoras nem mesmo os de S. Carlos

chegam facilmente a grandes intimidades, porque as

cantoras são as mulheres de mais alta cotação no

>

stock exchange do amor aventuroso.

Uma vez, n'um jantar de rapazes, ouvi um habi- tué de S. Carlos contar casos de bastidores acon- tecidos com italianas.

Também elie tivera illusões, também elle come- çara por arrastar a aza a uma diva, também elle se sacrificara, como tantos outros, offerecendo-lhe alguns ramos de flores, alguns camarotes n'outros theatros, e uma ceia com champagne.

Quando deitou contas á sua vida, ou quando os credores lh'as fizeram deitar, estava ainda muito atrazado, tão atrazado como se não houvera come- çado ainda. . .

Se alguém lhe sorria de um modo capaz de ali- mentar uma esperança, não era a diva., mas a criada da diva., uma napolitana bonita, que se habituara na convivência da cantora a contar o dinheiro ape- nas por centenas.

Vendo que o seu ideal estava cada vez mais longe, e que o dinheiro lhe desapparecia por entre os de-

VIDA DE LISBOA 141

dos, resolveu esse pretendente infeliz mudar de ru- mo, deixar em paz a diva e, para ao menos salvar as apparencias, cultivar a napolitana, que suppunha mais accessivel.

Tudo parecia desde então haver entrado nos seus verdadeiros eixos. A dirá deixava adivinhar este pensamento: aPara a minha criada... talvez.» A napolitana deixava perceber esta intenção: «Vere- mos como se vae portando.» E elle, o pretendente, dizia com os seus botões: aN'um naufrágio agar- ra se a gente á primeira tábua que encontra.»

Pois não obstante parecer que tudo havia entra do nos seus eixos, não obstante haver-se feito uma melhor distribuição de papeis aos trez actores da peça, a dipa continuava a pensar: «Para a minha criada... não sei !»; a napolitana continuava a abor- recer se de um tão demorado galanteio; e o pobre pretendente coniinuava a capacitar-se de que o amor em Nápoles tinha nascido para agiota.

E depois ? perguntámos os que estávamos á mesa.

Depois, disse o antigo habitue de S. Carlos, depois a época lyrica acabou, a dirá foi para a Itá- lia com uma escriptura para o Scalla^ a napolitana fui para o Pará com um brazileiro, e eu fiquei em Lisboa. . .

A ver navios ?

Não.

Então ? !

A ver credores í

<B^WÍí^^

XIV

A Penitenciaria

"""^'esta vida monotonamente frívola de Lisboa, em que quasi todos os dias se repetem as mesmas intrigas, as mesmas noticias e as mesmas comedias, exhibe-se de vez em quando, illu- minado pelo bello sol meridional do nosso ceu azul, n'um palco recortado por bastidores de mármore e granito um drama de sangue.

Então, abrindo um parenthesis á continuada ope- retta de OíTenbach a que uns assistem em quanto outros representam, Meyerbeer empunha a batuta e rege a orchestra.

Achamo-nos excepcionalmente em presença d'um Ubretto sombrio, de uma partitura tenebrosa. O noticiário philosópha, a Baixa estremece. Durante quarenta e oito horas toda a cidade assiste grave- mente á tragedia, declamando nos intervallos con- tra a corrupção dos costumes e a perversão do se-

VIDA DE LISBOA 143

culo. Mas Oftenbach, o nosso querido Offenbach de todos os dias, aborrecese de não ter que fazer, atira-se a Meyerbeer, arranca-lhe das mãos a batuta, •e empunha-a de novo retomando o seu logar. Lis- boa continua a ser frivola e monótona, vae todas as tardes para a Avenida, vae todas as noites para S. Carlos, e o tempo vae passando.

A verdade é que não temos condições theatraes para a tragedia. Soífremol a, como se soffre a tem- pestade,— sempre com a esperança de que passe de pressa. Amamos o ceu azul e a vida serena. Temos o nosso bom Tejo de crystal, e gostamos de vel-o tranquillo. Queremos que a natureza se inspire do nosso dolcc far iiiente. VamiOs vivendo resignados com os nossos credores e com os nos- sos achaques; supportam^os com egual bonhomia o rheumatismo c o sêllo. Não praticamos herois- mos, mas também não commettemos crimes. Lis- boa não é precisamente uma cidade maldita. Os trezentos mil habitantes da capital cultivam por dis- tracção a maledicência, fazem por divertimento um poucochinho de intriga, mas, a final, são boas pes- soas. A escoria da sociedade contenta-se com rou- bar carteiras da^ algibeira dos transeuntes e peças de panno das portas dos mercadores. Os grandes roubos raras vezes appareccm. Os cartórios da Boa Hora estão cheios de volumosos processos de lana caprina; os réus quasi nunca se acham habilitados a pagar as custas do processo Os juizes e os escri- vães queixam-se de viver n'uma pirangaria traba- lhosa. Os procuradores, se não procuram para si, morrem de fome. Não temos o crime celebre, não o tolera a lenidade dos nossos costumes, não está nos nossos hábitos. A Boa Hora funcciona todos os dias para julgar apenas infracções dos regulamentos po- liciaes. Sentenças anodynas são proferidas do alto da cadeira judicial : doze dias de prisão remíveis a tostão por dia.

Decididamente, não somos um povo de crimino-

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SOS. Vivemos trabalhando sempre, sempre sem vin- tém — e cara a!egre! Trezentos contos assombram- nos. A loteria do natal faz-nos crescer agua na boc- ca. O pão nosso de cada dia leva-nos tudo*, a fa- zenda nacional leva-nos. . . o resto. Aqui está a ra- são por que somos todos pobres. Mas, quando que- remos offender gravemenie alguém, temos sempre um epitheto engatilhado para a offensa: ladrão l La- drão é que é. Sabemos de ante-mão que esse epi- theto ha de incommodar a pessoa a quem é diri- gido, justamente porque essa pessoa é pobre. Ah l como poderia ser feliz um povo tão honrado, se esse povo tivesse juizo 1

Por isso mesmo que o crime não está nos nossos costumes, é que o crime nos commove. Filiamos d'elle com profunda impressão, mas essa impressão dura pouco ; morre depaysée^ victima do clima que lhe é contrario. Depois falíamos de outra coisa. E vamos sendo fe'izes a nosso modo sempre com o cutello do escrivão de fazenda sobre o pescoço.

Alegres e bons é que nós somos.

Ha poucos dias, excepcionalmente, julgou-se na Boa Hora uma causa celebre, de que Lisboa fallára o tempo que costuma gastar n'essas coisas. Um irmão matara a irmã Qm circumstancias verdadeira- mente anormaes. A base do processo era uma se- rie de CMmes monstruosos, o réu era um grande criminoso. Nem parecia portuguez ! Tanto mais que, mesmo durante a audiência, continuara a fazer exhi- bição do estofo phenomenal com que nascena para o crime.

Declarara desconhecer o rem.orso. Viu-se perdida para toda a vida, conderrnado ao máximo da pena, e sentiu vcntade de jantar. Tinha mais apetite do que remorso. Em frente do juiz que o julgara, e de Deus que o ha de julgar, nenhuma vibração nervosa agitara o seu organismo. O que elle queria era vol- tar depressa para a cadeia, como se fosse uni- camente que pudesse estar á vontade. Todas estas

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circumstancias impressionaram profundamente a opinião. Tinha aparecido um monsíro, e a nossa galeria não é precisamente de monstros. Lisboa fallou do caso, muito impressionada, e depois, olhando para o ceu Que bello dia! disse. O monstro passou; foi para o Limoeiro, e do Limoeiro irá para a Penitenciaria. uma pessoa talvez sentiu curiosidade de estudar por seus próprios olhos qual era o destino que esperava aquelle monstro. Essa pessoa fui eu. Quiz ver se seria possivel conseguir algum dia a regeneração doesse grande criminoso. O Limoeiro não regenera ninguém ; isso está mais do que provado. Mas a Penitenciaria não foi feita senão com o propósito de regenerar os criminosos-. Fui pois Ver a Penitenciaria.

Edificio isolado, fora de portas, a Penitenciaria não tem em redor, como o Limoeiro, uma colónia de pessoas que communicam diariamente com os presos, trocando diálogos com elles, n'uma convi- vência permanente. Tudo é silencio no exterior e no interior da Penitenciaria. Os presos estão ali completamente sós mesmo no meio dos outros presos. O ar sombrio do Limoeiro, a falta de luz e de aceio, que eram a mise-eu-sccne das nossas an- tigas prisões, desappareceram. O Limoeiro, com- parado com aquillo, parece um caverna de Caco.

No dia em que eu fui ver a Penitenciaria era um domingo, e justamente no momento em que entrei estava um dos capellães fazendo cathequese aos presos. Para um visitante não podia ser melhor a occasião. Pude ver a physionomia de todos os presos que, embocetados nas stalles^ com o rosto- descoberto, ouviam a prédica. Estavam attentos, e muitos d'elles pareciam commovidos. O capellão fallava-lhes uma linguagem clara e simples, para ser entendido. Finda a cathequese, os presos, com o rosto coberto pelo capuz branco, desfilaram em duas linhas ao longo das alas do edificio, sendo acompanhados por um insignificante numero de

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guardas. Ao passarem pelo sub director, que teve a amabilidade de me acompanhar, cumprimentavam militarmente. Cada um ia entrando para a sua cella, fechando a porta. Através da pequena lente, que cada porta tem, pude observar os presos. Uns co- meçaram a ler, outros a passeiar tranquillamente *, apenas um, o soldado António da Costa, passeiava a passos rápidos, como o leão na jaula. Quando €lle voltava na direcção da porta, a sua pupilla ama- rella, muito felina, fazia medo. Nenhum dos presos me impressionara tanto.

Fui ver as officinas, onde o trabalho n'esse dia era facultativo. Muitos presos quizeram, pouco depois, ir trabalhar. Fallei com alguns, que me mos- traram os seus artefactos, relativamente perfeitos. Um dos presos estava fazendo um pequeno prelo de madeira (minerva), para imprimir bilhetes de visita. Na otficina de marcenaria havia uma se- cretária, que fazia honra ao artista. Todos os presos que estavam trabalhando mostravam-se muito inte- ressados pelo trabalho, e muito lisonjeiados do bom êxito dos seus esforços. Respeitosos para com o sub-director, respondiam com uma certa bonhomia muito correcta ás suas perguntas. E mal que saía- mos, e se fechava a porta, ouvia-se o rumor do trabalho dentro das cellas.

Eu estava ainda no edifício, quando soou a hora do recreio. Através de uma pequena vidraça fosca, pude ver cada preso passeiando no jardimsinho que lhe é destinado. Quasi todos elles, no recreio, passeiavam apressadamente de um lado para o outro com uma physionomia muito desprecccu- pada, fumando avidamente. Presos ha que fumam, em meia hora de recreio, vinte e tantos cigarros.

Um dia, o soldado António da Costa fumou na cella á noite o que é expressamente prohibido.

Os guardas avisaram a direcção. Immediatamente foi o preso prohibido de fumar durante um mez. Queixou-se menos correctamente do que convinha,

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e o sub-director foi á cella reprehendel o. Então, António da Gosta pediu humildemente perdão da sua dupla falta, lamentando o castigo que merecera. Que, desde que fora soldado, se habituara a fumar, e que lhe custava muito deixar de fazel-o por trinta dias. Pedia encarecidamente a revogação do casti- go. No Limoeiro leria feito uma revolução na enxo- via ; na Penitenciaria mostrou-se humilde e arre- pendido.

Ha pouco tempo viera do Porto um preso que, tendo de sujeitar-se a um regimen hydrotherapico, se recusava a tomar banhos de chuva. A sua relu- ctancia foi facilmente vencida, e hoje é um preso dócil como os outros.

A principio, quasi todos os presos trazem com- sigo os vicios que adquiriram nas prisões onde es- tiveram. Todos elles começam por mentir, e todos elles acabam por penitenciar-se da mentira. Por sua parte, os directores da Penitenciaria procuram, pe- los meios ao seu alcance, contrariar as fabulas que elles inventam.

De uma vez, ha ainda pouco tempo, um preso pedira ao sub director que o passasse da officina de guardasoleiro para outra qualquer.

Porque? perguntou-lhe António de Azevedo Castello Branco.

Porque o homem que eu matei tinha o mesmo ofificio, e todas as noites me apparece o seu phan- tasma.

O sub-director respondeu-lhe que, a ser assim, o que elle sentia era o remorso do crime que com- mettera. Exprobrou-lhe o crime, e justificou o re- morso, N'esse mesmo dia, ofificiára para Murça pe- dindo informações biographicas sobre a victima do preso. Não tardou a saber que não se tratava de um guardasoleiro, mas de um lavrador. Castigou o preso por haver faltado á verdade, e conservou-o na officina de guardasoleiro, onde elle hoje é um dos melhores artistas.

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O que mais nos surprehendeu na visita á Peni- tenciaria foi a firmeza de disciplina adquirida n'um systema de prisões relativamente moderno entre nós. Devem-se estes excellentes resultados á solicitude, ao interesse que o director e sub-director tem pelo estabelecimento que superintendem.

Se é possivel regenerar completamente um crimi- noso, a Penitenciaria de Lisboa não deixará de rea- lisar o prodigio, tão intelligentemente organisada está.

Libanio da Silva, o assassino da irmã, com quem vivia em incesto, é moralmente um d'esses abortos humanos que de longe em longe apparecem em Portugal. Mas eu saí da minha visita á Peniten- ciaria com a convicção de que ella poderá domesti- car um monstro.

XV

Os gatos

?^lf iSBOA é a cidade dos gatos \^tl Raro inquilino deixa de possuir um. Ha j^^>^ ruas do interior, ruas estreitas, de pouco transito, onde uma legião de gatos passeia impune- mente.

As velhas de Lisboa não tratam amoravel- mente do seu gato, quasi tão amoravelmente como do seu neto, se o têm, mas até atiram para a rua o bucho da pescadinha marmota, que o gato da casa não quiz, por andar farto, e que os gatos da visi- nhança, mais famintos, disputarão á unhada, so- fregamente.

A's vezes, no estio, um estoiradinho que vai pas- sando, de chapéu branco, sente na copa do chapéu o estrondo de um trovão, que lhe azamboa a ca-

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beça e o deixa a tremer sobre as pernas : é um bu- cho de pescada, sobrescriptado para os gatos, que veiu arremessado de uma trapeira, e que se esbar- rundou sobre o chapéu.

Conheci uma pobre velha, que, não tendo que comer, sustentava trez gatos. E elles, para se lhe mostrarem reconhecidos ao sacrifício que ella fazia todos os dias, tirando o carapau a si mesma para lh'o dar a comer, entretinham n'a dando cambalho- tas, fazendo mocanquices, quando ella se sentava sobre a esteira no meio d'elles.

O Diário de Noticias contou ha pouco tempo, em linguagem singela, e por isso mesmo commovente, o caso de dois gatos, cujas donas morreram sem que elles quizessem tirar-se de ao dos féretros, tomar alimentos, obedecer ás caricias consoladoras que lhes faziam para que perdesseiil d'ali o sentido.

Ora não sendo provável nem mesmo natural que o segundo gato tivesse conhecimento, pelo Diário de Noticias, do exemplo dado pelo primeiro, qui- zeram d'ahi concluir os amigos dos gatos que estes factos punham bem em evidencia a nobreza de sen- timentos de um animal a que muitas vezes essa qua- lidade tem sido contestada.

Eu, francamente, acceito apenas a primeira parte do argumento.

Creio piamente que o segundo gato não leu o Diário de Noticias, creio mesmo que nunca o lesse, e que não convivesse com pessoas capazes de lhe irem dizer, na occasião em que a dona estava gra- vemente doente n'uma occasião em tanta manei- ra imprópria para bisbilhotices o que a imprensa contava a respeito dos extremos de saudade de ou- tro gato.

N'estas circumstancias é preciso pôr completa- mente de parte a hypothese de ter havido espirito de imitação, de se ler perpetrado um verdadeiro plagiato de sentimento; mesmo porque esta theoria deixaria a questão muito embaraçada, por isso que

VIDA DK LISBOA 151

dado que o segundo gato houvesse procurado imi- tar o primeiro, não seria fácil explicar o motivo que determinara o procedimento do primeiro.

Não ; façrmos aos gatos a justiça de acreditar que elies não lêm jornaes, que não sabem pelo Diário cie Noticias o que se passa. E infelizmente que assim é, porque se o gato lesse, se o gato qui- zesse saber o que se passa, o numero de leitores augmentaria prodigiosamente em Lisboa, terra on- de é diíficil dar um passo sem encontrar dois ga- tos.

Ora sendo tantos os jornaes, e havendo tão pou- co quem os pague, de gatos é que elles precisam. . . com calimburgo e tudo.

Mas a verdade temol a visto todos nós, a verda- de é que quando de uma janella atiram para a rua .a um gato um bocado de carapau dentro de um bocado de jornal, elle, sem hesitar, sem mostrar a menor perplexidade, engole o bocado de carapau e não se digna tocar no bocado de jorna!.

E' ainda este um defeito que eu encontro no gato, o seu profundo desdém pelo cstflo do próximo. O gato tem um profundo desprezo pelo estylo, não quer saber d'isso, e todavia força-nos muitas vezes a ouvir-lhe, a aturar-lhc durante noites inteiras os mios mais ou menos irritantes, do seu estylo amo- roso. O gato despreza o estylo do homem, mas obriga o homem a fartar-se do seu estylo, o eterna amote miado das suas aventuras no telhado das trapeiras.

E' que o gato é um animal essencialmente egoista, muito differente d'esses pobres burros que puxam os realejos, e que se resignam a ouvir a No?'ma, a casta dwa, isto é, o estylo de Bellini, desde pela ma- nhã até á noite ^ muito d'fferente dos cavallos que puxam a carruagem do dentista ambulante, e que pacientemente aguentam o estylo maçador com que elle annuncia a conspicuidade dos seus dotes ope- ratórios •, muito diíkrente do cão que vae guiando

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O cego e ouvindo-lhe por essas ruas fora o estylo somnolento da sanfona. . .

uma vez em toda a minha vida conheci um gato que viveu entre jornaes, não para os ler, é certo, mas para se encostar a elles como a um ponto de apoio nas incertezas da existência.

Mas como a historia d'esse gato se encontra, jus- tamente no ponto em que pretendo tomal-a, com a historia lacrimavel de um cão tão intelligente como infeliz, irei buscar ambas as historias á sua origem, começarei pelo principio.

Quem todos os dias pega no seu jornal, e o tranquillamente, tendo diante de si uma folha de papel crivada de caracteres typographicos, dispos- tos em columnas parallelas, n um alinhamento per- feitamente militar, imagina de certo, se não conhe- ce a vida da imprensa no seu mechanismo interior, que todos esses caracteres vieram perfilar-se alli rá- pida e facilmente como outros tantos soldados dis- ciplinados á voz do seu commandante.

E todavia que de trabalho não foi preciso empre- gar para que tudo apparecesse feito! um verda- deiro trabalho de sapa, através de todas as influen- cias de temperatura, de todas as outras canceiras da vida, um trabalho longo, asphyxiante, pesado, diário, monótono, como as oscillações de um grande pêndulo, porque o jornalismo não é outra cousa senão um pêndulo enorme que os acontec"mentos fazem oscillar.

Um jornal representa uma assombrosa addição de trabalhos que convergem ao mesmo fim e se completam successivamente, a partir dos operários que fabricaram o typo, o papel, a tinta, dos escri- ptores que constituem a redacção, dos typographos que traduzem para assim dizer em chumbo o que os jornalistas escreveram sobre o papel, dos ma- chinisias que dirigem e auxiliam o trabalho da im- pressão, até ao distribuidor que passa através da invernia ou da canicula, com egual pressa, no seu

VIDA DE LISBOA 153

passinho curto e veloz, para ir levar o jornal áquel- les que têm que o ler.

E' durante a noite que o trabalho dos jornaes matutinos se realisa, com uma pontualidade me- chanica, as janellas da redacção têm sempre luz até á mesma hora, as da typographia jorram até á ma- drugada a claridade crua do gaz, e quasi sobre a manhã a machina da impressão atira para os ares o seu agudo silvo, denunciando á visinhança que a sua fornalha está accesa, que as suas engrenagens vão cravar umas nas outras os seus dentes de ferro.

Mas até uma hora muito adeantada da tarde, o interior das officinas de um jornal tem um aspecto profundamente triste, árido, abandonado Assim como o simojn deixa revolvidas e calcinadas as areias do deserto, o tufão do trabalho põe no inte- rior das officinas os vestigios de uma devastação enorme, os traços enlabyrinthados de uma confu- são cahotica.

Quando entrei para o Diário Illustrado, apesar de conhecer desde longos annos a vida interior da imprensa nos mais subtis pormenores da organisa- ção do seu trabalho, recebi uma impressão com- pletamente nova e extranha ao atravessar uma vez, de manhã, seriam talvez dez horas, a officina da composição, sepultada n'aquella modorra silenciosa que parece ser o somno matutino dos chumbos, cansados da sua tarefa nocturna, somno que a nota alegre e vivaz do trabalho virá interromper quando o sol comiCçar a declinar.

Sobre a mesa onde o jornal c paginado, sobre o juarmore^ segundo a expressão technica, com o fo- cinho posto sobre as formas a que os vestigios da tinta davam ainda uns tons luzidios e húmidos, um cão de pcllo branco, enxovalhado, manchado de preto, com as orelhas caídas, as pálpebras cerra- das, dormitava.

Ao sentir que uma pessoa extranha se aproximava, abriu os olhos com surpresa, e ao ver que era um

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desconhecido que ousava penetrar ali, os seus olhos tiveram então um movimento de cólera e, levan- tando meio corpo, (itou-me com sobranceria, como se quizesse perguntar-me :

«Quem te permittiu que entrasses a esta hora nos dominios confiados á minha guarda?»

Eniáo pude vel-o bem, reconhecer os seus traços longinquos de bull-dog, que denunciavam a sua ori- gem espúria. Mas, na posição que tomara, deixou a descoberto um gato branco e amarello, que dor- mia indifferentemente, ao d'elle, n'uma sopitação profunda, de doença ou de velhice.

Esta camaradagem do cão e do gato, ali, sobre os chumbos, no meio d'elles, no abandono de uma casa deshabitada durante a maior parte do dia, sem ninguém que pudesse alimental-os, impressionou-me vivamente.

Por alguns momentos examinei o cão na sua at- titude cheia de desconfiança e de reservas ameaça- doras. Pareceu-me imponente no desempenho das suas funcções de Cerbéro da ofíicina, de cão de typographia, zelando os seus dominios, velando pela mtegridade do seu território. Achei-o tão gran- dioso, como despresivel o gato de pello amarello e branco, que continuava a dormir n'uma indiíferença bruta, automática.

Eu detestei sempre o gato^ tive sempre admira- ção pelo cão: em geral.

E ali mesmo, n'aquella hora, eu comprehendi mais uma vez a grandiosidade d'essa tragedia ter- rível, em que figurou o cão de Aubr}' de Montdi- dier, vencendo em combate desigual o assassino de seu dono.

O gato, se é esperto, é ladrão como o do mar quez de Carabas no C/iai Botté, de Perrault, ou to- lamente emproado como o Raminagrobis, que Ra belais fez juiz.

Mais tarde averiguei a historia do cão e do gato.

Tinham vindo não se sabia d'onde, viviam não

VIDA DE LISBOA 1Õ5

se sabia como, alguns compositores traziam-lhes de comer, mas o cão, se se esqueciam d'elle, ia pro- curar os seus protectores ás suas próprias casas para que o alimentassem.

Quando o chefe da typographia chegava, o cão sahia a dar o seu passeio, mas voltava a hora certa, ás cinco e meia da tarde, depois que percebeu que o director da t3^pographia tinha resolvido mandar vir o seu jantar á officina áquella hora.

O cão, cujo nome era Piloto^ regulava as coisas de modo que nem chegava antes nem depois, mas á hora precisa. Quem lhe dizia a elle que eram jus- tamente cinco horas e meia ? Como o sabia ? Cinco horas e meia, olhar para o relógio, e elle a entrar a porta ! Um chronometro !

Vinha jovialissimo, festivo, de rabo no ar, porque sabia que ia encontrar o seu jantar, e a sua gente: o pessoal da typographia começava a chegar.

Dava saltos deante dos compositores, sotíria tudo o que elles lhe quizessem fazer, ás vezes pinta- vam-lhe óculos e barbas, com tinta, outras vezes atavam lhe uma lata, que arrastava contente. E apesar de ser um pouco bravo, sobretudo no des- empenho dos seus deveres de Cerbéro, tudo sof- fria com bom humor, comprehendendo a necessi- dade de ser dócil para quem era bom para elle.

Na t\'pographia compraram-lhe uma coleira e um acamo, mas de nada valeu a coleira^ n'um dia em que se esqueceram de lhe pôr o acamo. Envene- nado pela strichnina durante o seu passeio habitual, o pobre Piloto sentiu-se agoniado*, arrastando-se a custo, com o pello banhado em suor frio, o olhar moribundo, íoi expirar á porta do Diário Illustrado, César dos cães, quiz soltar o derradeiro alento no átrio do senado t3^pographico^ agonisar sobre o seu manto dictatorial, um papel velho, elle que sempre tinha vivido entre jornaes inutilisados !

Pobre Piloto! uma vez, n'um dia de fome e de inverno, foi a minha casa, ladrando para que o

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deixassem entrar. Abriu-se-lhe a porta. Festejou-me expansivamente, com a doçura submissa de quem está disposto a parecer servil para não ficar sem jantar. Gomprehendi-o. Mandei lhe dar de comer. Mas, depois de haver comido, deixou-se ficar, como se quizesse ser amável commigo até ao ponto de esperar que eu saisse para me acompanhar até ao jornal. Não o quiz vexar, obrigando o a esperar por mim pelo simples facto de ter jantado em minha casa. Abri lhe a porta. Saiu, contente, farto. Nun- ca mais voltou, o que quer dizer que nunca mais teve fome. Mas, grato á maneira por que eu havia procedido para com elle n'aquelle dia, acompanha- va-me muitas vezes á noite, desde a redacção até á porta dos theatros. Comprehendendo perfeitamente a sua posição de cão, nunca ousou entrar no átrio de um theatro^ qualquer que fosse.

Tenho encontrado homens muito inferiores a isto.

O gato ou, para ser mais verdadeiro, a gata, ti- nha menos sympathias. Não sabia conquistal-as. A velhice dera-lhe um profundo aborrecimento da vida; deixava-se ficar para ali, indiííerente, comendo se lhe davam de comer, e em todo o caso comendo sempre menos do que lhe davam. Tinha fastio; soffria. Ultimamente, aninhava se sobre a mesa da redacção, não saía ainda que a enxotassem, tinha os olhos fechados, arquejava.

Os rapazes da typographia punham-lhe carapu- ços de papel, mitras de jornal; não se importava, deixava-se estar. Se lhe puxavam pelo rabo, miava, sem se mexer.

Algumas vezes subiu ao topo de uma estante, e ficava ali empoleirada horas e horas. Dormitava.

Quando, cheios de vida e de coragem, entrava- mos na casa da redacção, para desempenharmos o nosso trabalho quotidiano, a pobre gata modorrenta, arquejante, doente, impressionava mais ou menos a todos nós.

Até que um dia, um dos meus collegas de redac-

VIDA DE LISBOA 1Õ7

cão resolveu mandai a ir para sua casa, visto que não podia ser admittida no asylo de Runa.

A mudança de ares, o bom tratamento, o seu bello almoço de sopas de leite, o seu bello jantar de sopas da panelia, a sua ceia de carapau ou de sardinha fizeram com que, apesar da velhice, a gata parecesse, logo passados os primeiros dias, entrar n'um periodo de rejuvenescimento anachreon- tico.

Começou por dar o seu passeio sobre os telha- dos, a passo vagaroso, parando ás vezes, como um doente que passeia os seus leites de burra.

Depois o passo tornou se mais firme, o olhar mais animado, o pello mais crespo, chegou finalmente a um estado em que lhe seria muito agradável usar de agua circassiana, se os gatos precisassem de isso . . .

Pode bem ser que os maltezes das trapeiras, que os bichanos mais casquilhos da visinhança ficassem dizendo mentalmente quando ella passava : Está um cacol

Pode ser, mas não o pensava decerto ella que readquirira um tal ou qual ar de saúde e até, diga- mos a palavra, um tal ou qual ar de vaidade.

Quem a tivesse visto mezes antes, e quem a visse então, devia por certo imaginar que ella teria para com o seu protector os maiores desvelos de grati- dão, indo esperalo á escada, miando-Ihc um cum- primento amável e até, por um esforço de dedica- ção, descalçando-lhe as botas e chegando-lhe os sapatos.

Qual historia! Um bello dia, como recompensa dos beneficios recebidos, comeu lhe o bife do al- moço, e foi passeiar para o telhado com uma grande tranquilidade. . . de consciência.

Mais uma vez direi francamente, eu detes<o o caracter egoista dos gatos, e de duas uma, ou os d'esta semana devem constituir excepção, o que não creio, ou, o que prefiro crer, lamentaram a morte

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das suas donas pelo supposto abandono em que elles, não tendo a receber pensão do Monte Pio, julgavam ir encontrar-se de futuro.

Morreram... de saudade os dois gatos? Não consta, parece até que se irão resignando com so- pas de leite.

Um cão, quando ama estremecidamente o seu dono, e o morto, não se lembra senão de uma cousa : deixar-se morrer de fome sobre a sua se- pultura. Os exemplos abundam, e no cemitério da Lapa, no Porto, um cão de bronze perpetua a me- moria de um facto d'essa ordem.

E' que o cão, é, ao contrario do gato, um ani- mal nada egoista. Expõe-se heroicamente aos peri- gos sempre que lhe digam que isso é preciso, ou mesmo quando elle entende que o é: lebreo, lán- ça-se por desfiladeiros e abysmos nas correrias da caça ; Terra Nova^ precipita-se nas aguas para sal- var o naufrago; S, T^ernardo^ interna-se nos gelos para arrancar á morte o viajante desfallecido. . .

Faz o bem pelo bem, arrisca a sua vida pela dos outros, e por isso não vacilla um momento perante a ideia da morte quando ama o seu dono quasi sempre o ama e o seu dono está morto.

Os dois gatos da Baixa, que deram celebridade á semana, não consta que se hajam suicidado... nem mesmo simuladamente.

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XVI

Cintra

INTRA e as Caldas da Rainha continuam a dar as cartas em matéria de villegiaturc ele- gante.

Pele que respeita ás Caldas, chega a gente a ter pena de que se não possam vender ás garrafas, como as aguas, os divertimentos que ali se estão succedendo todos os annos.

Seria delicioso que, mesmo de longe, lográssemos saborear um copinho de pescaria na lagoa de Óbidos, para dar tom ao espirito, ou, para o mesmo fim, meia garrafa de passeio a Alcobaça e á Nazareih.

Por muito grandes que sejam as virtudes thera- peuticas das aguas chocas das Caldas, quer-me pa- recer que o Club caldense, quando conveniente- mente engarrafado na elTervescencia da valsa, pro- duziria resultados muito mais benéficos na saúde publica.

Assim, poderia a gente^ estando em Lisboa, vai-

160 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA

sar com agua das Caldas, em sua casa, de garrafa, na mão apressando ou demorando o rythmo da dança, segundo bebesse um gole maior ou menor. Poderia a gente fazer um passeio na Copa logo que puzesse os lábios no copo, ouvir o murmúrio alegre das conversações, o tinido sonoro das risadas frescas, e até, Deus meu ! trocar com as damas ausentes iim olhar ou um aperto de mão! Não se me dava de apostar que, se isso fosse possivel, haveria quem ficasse completamente embriagado com uma piella das Caldas, sonhando sonhos cor de rosa e vendo tumultuar no ar, por entre nuvens de cavacas, diabinhos azues. . .

Em começando o mez de agosto todas as phar- mareias deveriam surtir- se de villegiature de Cintra, que teria de certo muito maior procura do que a. agua da Sabuga.

.Quando as horas do calor apertassem, iriamos ao Barrai pedir Cintra e, logo á saida da botica, teriamos a visão e a frescura dos Pisões, a illusão óptica de Seteais, e até a illusão acústica do Macário sentado ao piano n'uma malinée dançante.

Largaríamos, n'este caso, a valsar pela rua do Ouro fora, convidando para a valsa a primeira se- nhora que passasse com o seu embrulhinho de compras debaixo do braço.

E dir-lheiamos valsando:

Ah! minha senhora, esta Cintra é realmente encantadora ! este Macário é inquestionavelmente a sorte em preto da musica 1 Que bom que é ir dançando assim por entre os castanheiros e as sombras, emquanto o conselheiro Latino está ali a conversar no Duche com outros dois académicos en vacancesl V. ex.' prefere a valsa á Academia? Também eu. Quem é aquelle conselheiro com quem V. ex."* trocou mesmo agora, n'esta volta que fizemos em frente do Monte-pio Geral, um olhar de intelligencia? Será indiscreta da minha parte esta pergunta ?

VIDA DE LISBOA 161

E a dama, sempre valsando, responderia: indiscreta, não. E' meu marido^ que vae para a repartição. Não conhece o Perdigão, da fazenda? Empregado muito antigo, mesmo muito bom em- pregado. Tem sete portarias de louvor. Eu sai a compras um pouco antes, vim comprar um fatinho de linho para o Zeca, e ainda não sei explicar bem a razão por que me encontro nos seus braços dan- çando a Parla de Arditi. . .

E' que eu bebi Cintra, minha senhora, meia gar- rafa *de Cintra, nada menos, ali no Barrai, e como neste momento esteja havendo em Cintra uma ma- iinée dançante, o Macário subiu-me á cabeça, a valsa esfervilhou-me no espirito, agitou-me os nervos, abriu-me os braços, e pois que v. ex.* passava n'*essa occasião, foi colhida por elles, que, emquanto não chegarmos ao Terreiro do Paço, não poderão lar- gal-a !

Mas sendo isto apenas um sonho, vamos a ver o que será Cintra não engarrafada em Lisboa, mas tomada na sua origem, como quem diz, na reali- dade das cousas.

O caminho de ferro, que prejudicou muito os hoteh de Cintra, pela facilidade que ha em ir e voltar no mesmo dia, mas que, em compensação, favoreceu os restaurants^ onde se entra para tomar um refresco ou uma pequena refeição, fez com que deixasse de ser aquelle um retiro apenas reservado á villegiature das classes superiores, o caminho de ferro abriu as portas de Cintra e deixou entrar toda a gente especialmente ao domingo.

Se houve localidade cuja quietação aristocrática o caminho de ferro alterasse profundamente, essa localidade é Cintra.

Ainda ha poucos annos, pelo estio, estava o rei II

162 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA

D. Fernando em cima, na Pena, com a cabeça quasi escondida entre as nuvens; em baixo, na villa, nas quintas, duas dúzias de famílias no- bres veraneavam quasi em segredo, convivendo apenas umas com as outras, sem que Lisboa ti- vesse d'isso noticia a não ser pelos jornaes.

Fez se o caminho de ferro e, a principio, como a maior parte dcs alfacinhas nunca houvessem to- mado gesto a Cintra, e a conhecessem pouco, li- vravam-se de ir de visita, por simples desenfa- do, receiosos de que pudessem voltar desconten- tes.

Mas um mais audacioso aventurou-se a comprar bilhete para uma passeiata de exploração.

Foi, hesitante ainda. Como, porém, pudesse go- sar as sombras de Cintra á sua vontade, beber a agua da Sabuga em primeira mão, comer as quei- jadas da Sapa ainda frescas da véspera, sem que ninguém protestasse e se revoltasse, veiu contar o caso para Lisboa, muito admirado da impunidade com que, realmente, toda a gente poderia ir.

Com que, foste a Cintra ? !

Fui, sim.

E então ?

Então, é uma terra cheia de arvoredo, com excellente sombra e excellente agua. gosto pas- seiar por ali durante algumas horas.

E a gente ?

Gente que ^e não importou nada commigo a não ser para me vender o que eu lhe queria com- prar.

Mas não te prohibiram que voltasses ? !

Não. Uns estavam sentados á sombra das ar- vores, outros appareciam ás janellas e dignavam-se até olhar para mim.

E, pois, possivel I

Não é possivel; foi certo.

Poderei eu então ir também a Cintra, a Cintra, a fidalga, a Cintra, a aristocrática!

VIDA DE LISBOA 16

o

Certamente que podes.

Foi este, foi aquelle, sempre com algum re- ceio. Mas em Cintra ninguém lhes fez mal, e, logo que isto constou, encheram se os comboios ao do- mingo, foi até gente de propósito a Cintra ver os toiros.

Desde esse momento, Cintra perdeu todo o en- canto da sua solidão feudal, digamos assim, Cintra abastardou-se, principiou a ser de toda a gente.

Não obstante. Cintra não consegue agradar com- pletamente áquelles que não costumavam frequen- tai a, áquelles que não têm ali nem chalcts, nem quintas, nem conhecimentos.

Para que se esteja bem em Cintra, é preciso ter creado ali raizes como as arvores.

Queixam-se varias pessoas de que, indo a Cin- tra, vêem pouca gente ; de que não encontram nin- guém, quasi.

A razão é simples. Cada um dos que passam o verão está na sua casa, na sua quinta, conver- sando em familia ou com as suas antigas relações de Lisboa.

De mais a mais Cintra é muito grande, esten- de-se até Collares e está repartida em quintas, em villas, de modo que, para ver os que estão, é preciso ir procural-os a sua casa.

Nas Caldas da Rainha não acontece o m&smo. Toda a gente se uma á outra, se encontra a cada momento. A Copa í um logar certo de reunião. O burguez e o fidalgo, o rico e o pobre avistam-se ali durante todo o dia, vivem em commum, con- servadas as devidas distancias, é claro. Mas, em- fim, nas Caldas da Rainha, qualquer que seja a posição que uma pessoa occupe na sociedade, tem a certeza de vêr gente, de ver toda a gente até, de não estar inteiramente por um momento que seja.

Um aguista, nas Caldas, pôde dizer á noite que viu as Caldas em peso, e se alguma difficuldade ha, c a de saber ao certo, em chegando a noite, quan-

164 COLLECÇÃÒ ANTÓNIO MARIA PEREIRA

tas vezes viu durante o dia uma certa pessoa, fu- lano, beltrano.

O anno passado, quando ali esteve a rainha D. Maria Pia, toda a gente podia ver sua mages- tade passeiando a pé, de manhã, na alameda da Copa, passeiando, á tarde, de carruagem, pela es- trada de Alcobaça.

Em Cintra olha-se para o castello da Pena, e contenta-se a gente com dizer : A família real está cá. Tão certo é que a familia real não está em Cin- tra, mas unicamente na Pena, o que faz grande dif- ferença.

Algumas pessoas que vão passar a Cintra dois ou três dias, acham medonhas as noites que ali passam ; noites húmidas, quasi frias e, peior do que isso, solitárias.

Um amigo meu dizia-me ha tempos :

Não me falle você em Cintra.

Por quê ?

Porque é a única terra onde tenho sido obri- gado a metter-me na casa ás dez horas da noite.

E é verdade que isto costuma acontecer lá. Com- prehende-se que á noite não prestem para nada as sombras. A serra negreja no alto, infundindo o que quer que seja de tristeza. O mar fica longe. Os trens são caros. O remédio, para quem não tem ali casa, consiste em, pouco depois de anoite- cer, metter-se primeiro no hotel, e depois na cama.

Alguns, que caiem na patetice de ir a Cintra por convenção, vêm para Lisboa dizer que se diverti- ram. . . também por convenção.

Mas a verdade é esta: aborreceram-se, e gasta- ram dinheiro.

Aquillo não é mau, sem que comtudo seja bom, para os que conhecem trez ou quatro familias e, sobretudo, para os que amam, porque esses, os namorados, estão bem em toda a parte.

De resto Cintra, que é sempre bella, pôde ser verdadeiramente deliciosa... nos livros.

VIDA DE LISBOA 165

Ahi é que ella se presta a todas as phantasias, a todos os romances, a todos os devaneios.

Porque ? Porque a maior parte da gente conhece mal Cintra, e pôde acceitar, sem protesto, qualquer mysterio que se localise ali.

Se dissermos que tal romance se passou na rua do Ouro, custa um pouco a engulir essa affirma- ção, porque todos nós conhecemos perfeitamente não a rua do Ouro, mas até conhecemos tam- bém as pessoas que moram.

Cintra é grande, tem quintas, tem palácios, tem chaleis, nem tudo se conhece em Cintra, de modo que a gente tende sempre a acreditar qualquer ro- mance que lhe digam ter-se passado ali.

Ainda agora assim é, apesar do caminho de ferro, e da facilidade com que este ou aquelle pôde che- gar a Cintra e voltar.

Alguns ricaços vão para lá, julgando que podem conviver, divertir-se, e enganam-se, acham-se sós, aborrecem-se, desesperam-se.

Conheço muitos a quem isto tem acontecido, e ha de acontecer, porque é mais fácil fazer relações em Lisboa do que em Cintra.

Em Lisboa sempre se ageita occasião de fallar- mos com alguém pelas ruas, nos theatros, nos ame- ricanos^ nos botequins.

Em Cintra, todos os que se não agrupam por serem conhecidos de velha data, passam uns pelos outros, apenas.

Se são ligeiramente conhecidos, contentam-se com abaixar a cabeça, e ir andando.

Se nunca se fallaram, parecem até nem dar tento de que alguém passando ao mesmo tempo...

Pôde aftigurar se isto uma coisa aliás muito na- tural.

E comtudo não é assim.

Nas Caldas da Rainha, uma pessoa a quem se metta em cabeça conversar com outra, embora não sejam conhecidos, chega a conseguil-o.

166 COLLECÇÃO ANTOT^IO MARIA PEREIRA

Em Lisboa também isso acontece com maior ou menor facilidade'^ á custa de mais ou menos tempo.

Mas, em Cintra, é caso difficil, esse; cm Cintra todos passam uns pelos outros e, sorrindo ou cum- primentando, não sorrindo ou não cumprimentando, vão passando sempre, de uns annos para os ou- tros. . .

XXNC/óNÍ>ÍX>^

XVJÍ

Lisboa apreciada por um samoyede

^Y[]ÍiNHA querida mulhersinha.

Yoiirte do Campo Grande, 5 de novem- bro de i883.

Estimo que estas duas regras te vão achar de perfeita saúde, pois a minha ao fazer d'esta é boa para em tudo te dar gosto.

Aqui estamos, nos climas do sul, sabe Deus com que saudades dos nossos gelos boreaes! Morre-se de calor por aqui; vivemos como n'uma fornalha. Qualquer dia morreremos queimados, eu e Ortze, como aconteceu ao nosso velho amigo Wasleo, que ficou em Praga, reduzido a torresmos. Se ficares viuva e tornares a casar, aconselho-te, no caso de te não dares bem com o teu segundo marido, que lhe recommendes uma viagem ao meio-dia da Eu-

168 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA

repa. Vês-te livre d'elle n'um instante; e, se acaso escapar, ha de voltar muito menos crú.

Estamos, como has de saber pelo T)iano de Noticias que recebemos ahi pelo correio de Ar- ckhangel, n'uma província de Hespanha, chamada Portugal. A capital é Lisboa, cidade que a todos nos tem espantado pela originalidade dos seus há- bitos, em que a contradicção predomina de um modo verdadeiramente notável.

Para demonstrar a minha asserção, começarei por passar em revista a nomenclatura de varias ruas d'esta capital.

Uma d'essas ruas chama-se da T^oa 1)ista^ e não tem nenhuma. Em todos os siiios públicos da ci- dade abunda um animal chamado gato^ inimigo fi- gadal de outro animal chamado 7^aio, ao qual sem- pre persegue. Pois onde os gatos menos apparecem é n'uma encruzilhada espaçosa chamada largo do Raio! Os portuguezes gostam muito de verdura, e chegam a comel-a crua, com o nome de salada; ha muitas ruas com o nome de arvores, taes como Carvalho, Figueira, Palmeira^ ^anxnras, mas o que menos se encontra n'essas ruas são justamente as arvores de que tomaram a denominação. Na rua das AdelíaSj não ha uma única! Na rua da Saudade tenho visto muita gente alegre, e na praça da Ale- gria já vi chorar uma maiher. Na rua do Sol ha sombra, e na rua da Atalaia toda a gente dorme a bom dormir ás duas horas da noite. A rua da Bi- íesga é larga, e a rua Formosa é feia 1

O portuguez gosta muito de estar sentado, e tem um culto especial pela cadeira. Toda a gente pensa em possuir uma, seja de professor, de deputado, de par do reino, de cónego ou de theatro. Nas egrejas ha cadeiras sagradas, que vão para casa das mu- lheres quando se sentem acommettidas pelas do- res do parto. Pois não obstante esta inclinação na- natural dos portuguezes pela vida sedentária, con- sagram de vez em quando um dia do anno a corri-

VIDA DE LISBOA 169

das de vários géneros. Hontem, domingo, apezar de ser dia santo, isto é, consagrado ao culto catho- lico, houve corridas de touros, de cavallos e de eleitores!

Nas corridas de touros, a maior parte do publico está sentado, e um dos toureiros faz uma sorte cha- mada de cadeira. Nas corridas de cavallos, a corte e grande numero de espectadores assistem sentados. Quando ha eleição (que na nossa língua deves tra- duzir por pechincha)^ os galopins correm de uma assembléa para outra, mas ha um certo numero de homens que estão sentados dentro das egrejas ao das urnas. E para que se fazem as eleições ? Para obter uma cadeira na camará municipal ou na dos deputados. Sempre a cadeira! Um portuguez que se prése de homem prudente diz com ufania qiie não corre a foguetes, porque o que mais custa a um portuguez é ettectivamente perder a cadeira. No theatro, para garantir o seu direito a estar sen- tado, ata nas costas da cadeira um lenço branco, symbolo d'esse direito.

Hontem realisaram-se as eleições municipaes, em que luctaram um partido monarchico e dois que o não são. Tudo se resumia no seguinte : Tira-te da cadeira, que me quero sentar.

Por causa d'isto se guerrearam e esmurraram os narizes, mas n'este paiz tudo se perde por causa de uma cadeira.

Ante-hontem fui ver um espectáculo acrobático e equestre a um amphitheatro, chamado Golyseu dos Recreios. Começou o espectáculo por uma quadri- lha de laficeiros, isto é, um bailado a cavallo. Os portuguezes applaudiram muito, porque se sentiram lisongeados nos seus hibitos tradicionaes vendo que era possivcl dançar sentado sobre um cavallo. De- pois, um picador chamado Lorenzo WultT apresen- tou cavallos amestrados em liberdade, e os portu- guezes applaudiram muito, porque os cavallos se puzeram a tanto quanto possível! Decididamew-

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te, minha amiga, isto é o paiz das contradicçôes.

Ha aqui uma ciasse numerosíssima chamada em- pregados públicos. São elles que fazem mover o carro da administração publica, espécie de trenó, que tem uma roda partida, e por isso anda tombado. De modo que os empregados públicos correspon- dem ás nossas rennas. O musgo de que elles se alimentam chama-se ordenado^ e é-lhes ministrado em rações mensaes, que elles devoram com sofre- guidão n'um momento. Depois ficam a olhar com os seus olhos castanhos quasi todos os emprega- dos públicos têm olhos castanhos cheios de uma doce limpidez melancholica para a grande arca, que contém o musgo do estado, e se chama thesouro. Assim ficam um mez, á espera que seja distribuída nova ração de musgo. Alguns perdem entretanto a paciência, desesperam-se, e espetam-se n'um instru- mento dilacerante, chamado prego. Esses dão á casca, cobertos de juros (traduz por feridas de mau caracter).

Ao contrario de nós, que gostamos de beber aguardente, os portuguezes de Hespanha gostam de beber agua fria. A fim de que ella lhes não fal- tasse, canalisaram um rio, chamado Alviella, para a capital. Mas, apezar d'isso, poupam a agua o mais que podem; com medo que lhes venha a faltar, be- bem-n'a por coma, para o que têm um registra nas suas próprias casas.

No verão comem gelo; se elles se apanhassem na nossa terra, eram capazes de devorar uma ava- lanche. De gorduras, gostam tanto como nós. De resto, comem tudo, até palha, o caso é saberlh'a dar. Se elles até o dizem n'um provérbio 1

No inverno, as mulheres andam vestidas de pel- les. Afora a mania de estar sentados, os portugue- zes parecem-se muito comnosco nos seus hábitos» Assim como o czar da Rússia nos tira a pelle todos os annos, com desagrado nosso, assim o es- tado lança tributos aos portuguezes, e os partido»

VIDA DE LISBOA 171

avançados chamam a isto lirar a pcllc. Acho que é a mesma coisa pouco mais ou menos.

Os nossos cães da Sibéria são aqui subsiituidos por uma grande variedade de cães (traduz por ca- lotes ou caiirim) que ladram constantemente á porta dos credores. Antigamente, para se verem livres d*elles, metiiam os cães na cadeia, mas como a ca- deia fosse pequena para tamanha canzoada, deixam- n'os andar em liberdade. Até eu fui mordido por um, que me pregou uma boa dentada na algibeira.

Grande numero de portuguezes sabe ler, mas a tradição secular do paiz permitte que se leia pela manhã ou d noite. E" por isso que os jornaes são matutinos e nocturnos', ao meio dia não sae nenhum jornal, porque ninguém o leria. o jornal official, chamado T)iario do Governo^ sae a essa hora, justamente para que ninguém o leia.

Os portuguezes dão-se muito á bisbilhotice, gos- tam immensamente de saber as vidas alheias. Ha um edifício, chamado Parlamento, onde numa dada época do anno se reúnem alguns homens unica- mente com o fim de saber o que os ministros fa- zem e têm feito. Então ahi, segundo sou informado, chovem as perguntas: Porque fez isto? Porque deixou de fazer aquillo ? Ha também um livro cha- mado Orçamento^ que é um cumulo de bisbilhotice, porque o seu fim é dar a saber quanto o governo pôde e deve gastar. Além d'isto, ha um tribunal chamado de contas para mettcr o nariz nas despe- zas do estado. Os jornaes até dizem quando uma pessoa faz annos, e ninguém pôde dar um passo, d'uma terra para outra, sem ir ás gazetas. Ha uma instituição, chamada policia^ que leva a sua curiosi- dade até ao ponto de saber os crimes que se com- mettem. Não te admirarás, pois, de que, logo que nós chegámos, não se lallasse de outra coisa senão dos samoyedes.

O estado tem uma constituição politica chamada Caria, á qual se accrescentou ha annos um post-

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scripium. Agora, segundo parece, vão virar folha, e acrescentar um post post -scripium ao post-scri- ptiim.

Não te deves esquecer de que Portugal é um paiz de contradicções, e por isso facilmente acreditarás que, n'este paiz, quem quer vingar-se de um ho- mem, matando-o á fome, não pensa senão em ele- val-o ás maiores honras sociaes, isto é, em fazel-o ministro de estado effectivo. Mas, como Portugal será sempre por excellencia a terra das contradic- ções, toda a gente pensa em ser ministro de estado. E' curioso, mas é exacto.

No verão principalmente, grande numero de ha- bitantes da capital morrem assados pela ardência do clima. Ha um meio de escapar á morte. Quando o corpo começa a acerejar, prega-se imme- diatamente com o doente dentro do mar, e é a única coisa com que estes desgraçados povos experimen- tam algum allivio. Esta fatalidade climatérica levou os portuguezes a incluirem na sua religião o mytho da moite por abrazamento na pessoa de S. Lou- renço, que era de Lisboa, e morreu assado n'um verão, por não poder tomar banhos do mar. No mytho, o rigor do clima é representado por umas grelhas. Durante a estação calmosa, os portuguezes cobrem-se com uma espécie de yourtes portáteis, e é tanto o seu medo pelo calor que até imaginam que Deus se incommoda com elle, e por isso abri- gam a sua imagem com uma espécie de parasol chamada palito.

Quando um bispo qualquer toma posse da sua nova diocese, é costume recebel-o debaixo d'esse mesmo parasol chamado paiiio, que também varias vezes abriga o rei. Este acto praticado com os bis- pos significa os votos dos seus diocesanos para que elle, durante o seu episcopado, não experimente ardência de nenhuma espécie. Quanto ao chefe do estado, é para que o sol abrazador lhe não derreta as pedras preciosas da coroa.

VIDA DE LISBOA * 173

Ainda durante a estacão calmosa homens e mu- Iheres reírescam-se com os leques, espécie de bar- batanas de peixe com que agitam o ar de encon- tro ao peito. O leque produz nas mulheres um eííeito singular: se por um lado lhes mitiga a calma, por outro lado decompóe-lhes a epiderme, esfari- nhando-a n'um fino e branco, muito similhante ao de arroz. Mas é tal o calor, que ellas, as po- bres portuguezas, não duvidam esfarinhar-se, para o não soíírerem.

O portuguez de Hespanha falia muito, falia sem- pre, falia mesmo só. Pelas ruas da capital vêem-se ás vezes homens e mulheres, carregados de fardos, e, não obstante o pezo da carga, vão gritando, ber- rando comsigo mesmos, para ver se apparece al- guém pelas janellas que lhes venha fallar. Na lingua do paiz chama se a estes monólogos pregões,

A bisbilhotice exercida para com os ministros no Parlamento é de tal modo, fazem-se tantos e tão longos discursos para saber o que os ministros fi- zeram ou pensam fazer, que, n'um periodo de meio século, esses discursos constituem por si uma livraria, e occupam uma das maiores casas do edificio. Todos os annos esta livraria vae cres- cendo a tal ponto que, decorrido talvez outro meio século, não haveria onde guardar mais discursos, se não se providenciasse desde deitando meia ci- dade abaixo para construir todo um bairro de es- tantes.

Este povo é muito bem educado, e tem para seu uso um vocabulário de amabilidades tão doces como torrões de assucar. Os jornaes republicanos chamam todos os dias ao rei clierubim, seraphim^ anjo, ar- chanjo (divindades celestes) e os jornaes de opposi- ção ao governo não tratam os ministros senão por minha flor^ meu bem, minha joiuy meu thesouro. A's vezes no Parlamento^ segundo me informou um indígena, as perguntas, posto que frequentes e repetidas, são adoçadas com tal amabilidade de

174 * COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA

phrase, que os ministros, depois de terem respon- dido, ainda ficam a lamber os beiços. Ahi vae uma pequena amostra de assucarilho parlamentar:

Ides, ó terna flor, dizer-me com a doce fragran cia que caracterisa a vossa eloquência, qual o mo- tivo por que deixastes penetrar na colmea do orça- mento, a fim de se banquetear com o mel do estado, fulano de tal, que pela vossa dulcíssima pasta foi despachado para a alfandega de consumo. Se vos apraz, minha jóia, respondei me, fazei roçar a mu- sica da vossa palavra pelos meus ouvidos anciosos de tão divina solfa.

E o ministro responde:

Sim, meu bem, acudirei prompto ao vosso cha- mamento, como a abelha procura a flor que a ena- mora, e a borboleta a chamma que a fascina. Possa a minha palavra levar á vossa alma um ecco lon- gínquo da minha admiração pelo vosso talento e do meu proíundo respeito pelo vosso caracter angélico.

E' impossível, como vês, ser-se mais delicado, mais assucar, mais marmelada, mais toicinho do ceu. Este é o comer dos políticos da terra ; d'outra coisa não gostam, nem gastam.

Por hoje não estou para mais.

Lembra-te de mim, e sobretudo não me atraiçoes no polo. Peia minha fidelidade não receies, visto que eu sou um homem do pai? dos gelos.

Teu marido que muito te ama

Fulano.

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XVilI

A escada

iiií^miiNTE hontem, i3 de julho, fui procurar o meu '6)^,píÊA velho amigo Agnello.

9-^Aty^ Encontrei á porta um landau e um breack, parados e vazios.

Diabo I se o Agnello vai sahir I Mas reflecti :

Não pode ser elle. A familia do Agnello é pe- quena.

Logo que entrei na escada, ouvi grande ruido de vozes e passos.

Era uma familia que descia.

A frente, um rapazote vestido á maruja, com um arco de madeira enfiado no braço direito. Mais atraz duas meninas, uma das quaes levava ao collo uma boneca.

Depois, uma interessante lourinha dos seus dez- oito annos, vestida de claro, com uma raqueíte na mão.

176 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA

Mais atraz, no primeiro patamar, encontrei uma senhora nutrida, que h'essa mesma occasião dizia gritando :

O Piedade 1 levas a boneca ?

E do fundo da escada uma voz infantil respon- dia-lhe:

Sim, titi.

No segundo patamar, encontrei ainda um grupo de quatro pessoas : um sujeito cuja cara não me era inteiramente desconhecida, e que estava fe- chando a porta; uma senhora que, junto a uma criada, olhava para dentro de um sacco; outra criada que conduzia o poleiro de um papagaio.

Subi ao terceiro andar, e antes de puxar pelo cordão da campainha, parei um momento obede- cendo a um involuntário impulso de curiosidade.

O que iria dentro d'aquelle sacco ?

Respondeu-me um gato, que n'esse momento miou em surdina, como Rocambole gritava quan- do, também dentro de um sacco, o atiraram ao Sena.,

É um Jardim Zoológico que vae para o cam- po, disse eu satisfazendo a minha própria curiosi- dade.

E bati á porta do Agnello.

Elle estava em casa. Entrei. Conversámos.

Encontrei na escada a gente de baijco, que vai para o campo.

Têm uma quinta em Palma. Mas o Tertu- liano, que é empregado na alfandega, vem todos os dias a Lisboa. Tu conhecel-o ?

Pareceu -me que sim.

Olha que é um elegante !

Não reparei.

A quinta representa para elle uma grande maçada, porque pode estar de noite. Mas gosta immenso de se maçar no caminho de Pal- ma, para ter o direito de usar polainas brancas- em Lisboa.

VIDA DE LISBOA 177

Como assim ?

E porque diz na Alfandega e na Baixa, onde apparece todos os dias: uEstou no campo. Quer alguma coisa para o campo ? O campo está delicio- so!» E as polainas brancas servem para o conven- cer de que, achando-se na Alfandega ou na Baixa, está eííectivamente no campo.

Ah ! As polainas servem-lhe ao menos para isso. Mas para que servirá á filha, em Palma, a ra- quette que elle levava ?

Para se convencer, como o pae, de que tam- bém vae fazer, elegantemente, sou séjour à la cam- pagne. Mas eu desconfio que, em Palma, a raquette serve algumas vezes de abano.

Como esta familia, todas as outras vão agora descendo a escada, na pressa de emigrar para o campo.

Encontra-se mais gente na escada, descendo, do que na rua, passeiando.

Dentro de poucos dias, cada escada de Lisboa será um franco monturo, pela ausência dos inquili- nos de cada prédio. Os gatos vadios irão dormir, em plena liberdade, a somneca do meio-dia nos pa- tamares solitários. Os transeuntes cncalmados de- positarão na sombra de um portal, sem receio de que os surprehendam, uma secreção incommoda. A escada, que é em Lisboa um ramal da rua, ficará completamente encharcada de immundicies, não combatidas pela agua e pela vassoira; cheirará, portanto, muito peior do que a rua.

Uma das coisas que mais horrorisam os provin- cianos, quando visitam a capital, é a falta de aceio nas escadas, que pertencem a todos os inquilinos do prédio, e que por isso mesmo não pertencem a nenhum.

Na provincia, cada familia occupa um prédio, de modo que a escada, sob a immediata fiscalisação e responsabilidade de uma íamilia, conserva-se limpa e fechada.

12

178 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA

No Porto, são muitos os portaes defendidos por uma cancellinha verde. Dispõe excelientemente o facto de encontrar lavados os degraus e os pata- mares : é um prologo que promette aceio no mé- nage.

Quando ás vezes subo uma escada immunda de Lisboa, occorre-me quasi sempre perguntar a mim mesmo: ((N'este prédio não morará uma mulher que tenha um amante? uma menina que tenha um namorado?»

Porque, em verdade, custa a crer como um ho- mem, que vae disposto a fazer amor, não fica des- agradavelmente perturbado quando trepa por uma escada cheia de folhas de alface, de papeis amarel- los, de monelhas de cabello, cheirando a urina de gato 1

Parece impossível que o coração não rebente, es- toirando como uma bomba, quando uma pessoa tem de atabafar o nariz com um lenço durante qua- tro ou cinco lanços de escada»

Ha uma horrível antinomia entre uma mulher que cheira bem e uma escada que cheira mal.

Emquanto o amor faz soar a campainha de uma porta, o coração e o nariz, solidários na mesma ur- gência de momento, supplicam á inquilina que se não demore muito em abrir.

O nariz, entrando na sala, exclamaria se pu- desse :

Safa ! que pitada !

E o coração, encantado com a presença da linda dama, também exclamaria, se tivesse voz:

Tu, Ricardina, és como uma talhadlnha de quelio ^rie: sabes bem; mas o cheiro da escada é terrível !

E ella, com a resposta na ponta da lingua, como todas as lisboetas, dar-se-ía pressa em responder :

Que importa a escada, que é um prologo ephemero, se eu, que sou um livro de muitas fo- lhas, estou cheirando a opoponax ?

VIDA DE LISBOA 179

Era ainda o caso de lhe responder :

O teu perfume é suspeito, porque diz Mar- cial : Noii bene olet, qiii beyie semper olet. Não chei- ra bem. quem cheira sempre bem. Tu, Ricardina, perfumas-te para suííocar o cheiro a frituras que vem da tua cozinha, o cheiro a gatos que vem da tua escada. O aroma que eu desejava encontrar n'este momento não é o que se vende nas perfu- marias, mas o que resulta de uma casa lavada, limpa, de uma roupa arejada, de um soalho claro, de uma escada varrida, de uns moveis bem espa- nados. Para chegar acima tive de me amparar trez vezes ao corrimão para não cair estonteado pelo cheiro a immundicies podres.

São as visinhas, filho, que deixam ficar os bar- ris do lixo atraz da porta de um dia para o outro.

Ah ! como é horroroso ter de discutir os barris do lixo quando se quer fallar de amor!

Mas o melhor da passagem, como se diz no so- lau, é que as outras inquilinas do prédio estão, de- certo, dizendo n'essa mesma occasião ás suas visitas:

Credo! esta escada sempre cheirai Havia de sentir ? E' uma tal Ricardina, que mora no terceiro andar, e que nunca manda pôr o barril do lixo a tempo de passar a carroça !

O novo bairro da Avenida introduziu um grande progresso no aceio das escadas. Ha vinte annos, apenas os hotéis e os palácios de Lisboa tinham guarda portão. Hoje os novos prédios d"aquelle bairro têm plantas e passadeiras na escada, con- fiada á vigilância de um porteiro.

Alguns outros bairros novos, e até alguns anti- gos, copiaram, por espirito de imitação, este bom costume, que aliás tem seus contras.

O porteiro é uma testemunha quasi sempre prompta a depor contra os inquilinos do prédio. Sabem pelos criados o que se passa em todos os andares, o que é mau, e dizem ainda mais do que se passa, o que é peior.

180 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA

Mas tudo isso se perdoa pelo gosto que o su- bir uma escada por cima de um tapete e por entre vasos de flores.

O porteiro avisa para cima pelo porta-voz, de modo que uma pessoa não tem que demorar-se muito tempo á espera no patamar. O inquilino pro- curado teve tempo bastante para receber ou para negar-se.

Não se estranha que um carteiro entregar uma carta de namoro n'uma escada da rua Barata Salgueiro ou da rua Castilho.

A epistola amorosa sobe dignamente por entre duas alas de plantas ornamentaes, archeiros de casaca verde e de alabarda florida.

Passa Sua Magestade o Rei Amor, solemne- mente.

E as plantas parecem dizer-lhe curvando-se sobre 03 vasos, apresentando as alabardas :

Real Senhor! Real Senhor 1

Essa marcha triumphal de um enveloppe com sa- chei absolve a bisbilhotice do guarda-portão, que fica dizendo ao coUega do prédio contíguo;

E' a carta do costume para a menina do se- gundo andar.

Nas escadas da Baixa, que são talvez as mais immundas de Lisboa, a carta de amor passa sem testemunhas, mas chega ao seu destino a pedir desinfectantes e lazareto. Se levava aroma, perdeu-o na escada. Parece, quando chega a ser recebida, uma carta que partiu do mesmo prédio. Cheira a visinhos, por mais de longe que venha.

O lisboeta gosta de emigrar para o campo, por- que o campo não tem nenhuma das pragas de Lis- boa : os gatos, a escada, os saguões, os barris do lixo.

Apesar de ir todos os annos para o campo, o campo sabe-lhe sempre a novidade. Cheira-lhe bem. Tem luz e agua sem contador. E o arque vem das serras é muito mais agradável de respirar, do

VIDA DE LISBOA 181

que a baforada que vem da escada suja, quando se abre a porta de casa.

Por tudo isto, é com alegria, quasi com enthu- siasmo, que a maior parte das familias de Lisboa vae agora descendo a escada em partida para o campo.

Os gatos da visinhança dizem-lhes adeus, ironi- camente, com o rabo, porque vão ficar senhores da situação.

E, passado o fim do mez, Lisboa, a cidade de mármore e granito, não será mais do que uma es- cada abandonada, onde, por sua vez, os poucos habitantes que têm de ficar na capital, poderão ir abandonar o que muito bem lhes parecer.

XIX

A manga de alpaca

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COS.

(STA semana, como nas anteriores, fallou-se I em trabalhos preparatórios de uma remo- ^ delação do quadro dos empregados publi-

Mas, por melhor que seja a reorganisação que vae eífectuar-se, eu tenho, desde alguns annos, a opinião de que a principal reforma a realisar de- pende dos próprios empregados públicos unica- mente.

Apesar da charge de Garrett aos funccionarios do estado, que na sua opinião vieram substituir os frades, e de outras charges que de vez em quando têm apparecido na imprensa e na litteratura, quer-me parecer que os empregados públicos são menos prejudiciaes pelo numero do que pela quali- dade.

Antigamente, quando ainda não estava em moda

VIDA DE LISBOA 183

a palavra «burocrata», ir para a repartição impor- tava a ideia de trabalho quotidiano, como ir para a fabrica.

A manga de alpaca não era apenas um processo de economia para quem tinha de passar umas pou- cas de horas roçando o antebraço sobre o oleado de uma banca: representava, principalmente, um symbolo.

Todo o empregado tinha a «manga» guardada n''um armário da repartição, como o operário tinha a blusa pendurada n'um cabide da officina.

E um e outro^ depois que enfiavam a manga ou a blusa, tomavam a serio o trabalho, porque, na boa dos costumes antigos, ninguém ousava mas- carar-se fora da época do carnaval.

Mas começou a generalisar-se a palavra «buro- crata», que a todos pareceu mais fidalga do que a denominação modesta de «empregado de repartição», e talvez para harmonisar a profissão com a pala- vra^ os funccionarios do estado principiaram a des- presar a manga de alpaca, o que valia tanto como sophismar o dever de trabalhar quotidianamente, porque não eram cUes tão tolos que quizessem es- tragar, em vez da manga postiça, a manga da so- brecasaca.

Eu ainda cheguei a conhecer alguns d'esses ve- nerandos exemplares do funccionalismo antigo, que no dia em que recebiam o despacho iam comprar a um mercador um covado de alpaca para mandar fazer a manga.

E assim como a batina velha e rota era em Coim- bra um titulo de gloria para o estudante, porque denunciava que deixara ha muito de ser caloiro, a manga de alpaca, quanto mais desbotada e gasta, tanto mais nobilitava o empregado publico, porque dava a conhecer que elle possuia a pratica, expe- riência e credito que resultam de um longo tiro- cínio.

Esses antigos empregados não precisavam livro

184 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA

de ponto para serem pontuaes. Entravam e saíam á hora regulamentar. E desde que entravam até que saíam faziam ranger a penna de pato sobre o papel dos officios com a regularidade de movimen- tos de um pêndulo de relógio ou dos alcatruzes de uma nora.

Apenas se interrompiam para tomar o seu lunch^ que traziam de casa, e para accender sobre o lunch o charutinho de vintém, de que apenas queimavam metade, guardando o resto para a hora da saída.

Todos elles circumstancia curiosa ! tinham calligraphia magnifica, porque o trabalho pausado lhes permittia maior correcção no desenho das let- tras. E^ ainda segundo a boa dos costumes an- tigos, entendiam que o estado lhes pagava para que escrevessem o melhor possível, visto que ninguém está disposto a comprar uma coisa que não seja boa.

Pois estes venerandos funccionarios foram cha- mados ironicamente bestas de carga pelos no- vos collegas que appareceram na repartição sem a bagagem da manga de alpaca e do lunch, porque desde logo fizeram tenção de escrever pouco e de ir l linchar fora.

Perdeu-se n'essa hora o habito da velha econo- mia para todos e para tudo : o estado começou a perder o trabalho regular dos seus antigos servido- res; os funccionarios públicos, para encher o tem- po, principiaram a perder o amor ao dinheiro que se propunham gastar n'uma refeição mais dispen- diosa do que aquella que poderiam trazer de casa.

Por alguns annos todos nós assistimos á guerra burocrática entre os novos e os velhos funcciona- rios, que se tinham encontrado a bordo da nau do estado havendo partido aliás de regiões onde os costumes eram muito differentes.

Os novos troçaram dos velhos, das «bestas de cargaT/, que lhes pareciam atrellados á burocracia como o cavallo á carroça. E os chefes de serviço,

VIDA DE LISBOA 185

reconhecendo que os novos não trabalhavam, ape- nas davam que fazer aos velhos, o que mais ati- çava a guerra entre uns e outros.

De uma vez, aconteceu em certa secretaria de estado que um dos velhos, quasi ao bater a hora da saída, foi encarregado de um trabalho muito urgente e longo.

Riram-se os novos vendo o collega afflicto a lim- par os óculos e a suar em camarinhas.

E o velho, irritado com a troça dos novos, co- meçou a sentir-se nervoso, atarantado, coisa que jamais lhe tinha acontecido deante de trabalhos de maior responsabilidade e fôlego.

Mas, escravo paciente da manga de alpaca e da penna de pato, metteu mãos á obra, com.eçou a de- senhar bellas lettras ornamentaes emquanto os no- vatos sorriam piscando os olhos uns aos outros.

Ao virar a primeira folha da copia, o velho func- cionario enganou-se e despejou o tinteiro, em vez do arieiro, sobre o papel que tinha enchido com a sua linda calligraphia muito decorativa.

Valha-me Deus ! exclamou o pobre homem las- timando-se.

Os rapazes riram-se.

Então, cada vez mais indignado, o velho funccio- nario disse dirigindo-se a um dos novos collegas:

De que se ri o senhor? Nunca lhe aconteceu um engano d'estes?!

E o rapazelho respondeu de prcmpto: Não, senhor!

Gabe-se, cesta rota! Então nunca lhe aconte- ceu despejar tinta sobre o papel em vez de areia ?

Não, senhor. Porque eu nunca preciso deitar areia sobre o papel.

Ora essa! Então o que é que faz?

Dou tempo a tinta para seccar á sua von- tade. . .

Entre os dois funccionarios públicos, um velho e outro novo, estava aberto um abysmo, representa-

186 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA

do pela manga de alpaca, que um usava sempre, e o outro não ousava nunca.

E desde que isto foi assim, os papeis começaram a encalhar nas repartições publicas, sendo preciso empregar o fórceps, como n'um parto difficil, para os arrancar de lá. . ,

Um dos empregados modernos entrava na se- cretaria e pendurava o chapéu n'um cabide bem alto e bem visivel.

Quando succedia o chefe mandal-o chamar, o continuo, encarregado d'essa missão, ia levar a res- posta de que o senhor amanuense Fulano estava dentro do edifício, porque tinha o chapéu no cabi- de, mas não estava na sua carteira.

Queira v. ex."" esperar um pouco, dizia o con- tinuo ao chefe, porque o sr. Fulano não saiu, e eu deixei recado na repartição.

Mas passavam as horas, e o amanuense não vol- tava.

Tantas vezes se repetiu este caso, que principiou a desconíiar-se de qualquer grande marosca.

Finalmente, descobriu-se que o amanuense pen- durava no cabide o chapéu que levava de casa, mas occultava no armário da repartição outro cha- péu, que lhe servia para safar-se á formiga.

Não podendo dar homem por si, arranjava ascoisas de modo que dava ao serviço publico. . . o chapéu.

A designação de amanuenses vem ainda do tem- po em que os empregados de repartição escreviam, e em que a manga de alpaca, além de ser um obje- cto necessário, era principalmente um symbolo.

Mas hoje essa designação é obsoleta, e precisa ser substituida. Em vez de amanuenses, que não são, deveria talvez dizer-se «pontuenses», porque a maioria dos funccionarios actuaes não vai á repar- tição— vai ao ponto.

Conta se de um, que costumando tomar café ao almoço, disse um bello dia á mulher que d'ali em deante antes queria chá preto.

VIDA DE LISBOA 187

Ora essa! mas tu gostavas tanto de café !

Então! Mudei agora.

Porque? Sentes- te doente? Passas mal do es- tômago ?

Não é nada d'isso, filha.

Mas essa resolução intriga-mel

E' uma coisa.

Conta tudo á tua Lulu. Dize porque é. . . Eile riu-se. E ella, muito pallida, com os olhos

fitos, esperava, nervosa, a revelação tremenda.

E' porque resolveu-se elle a dizer o café tira-me o somno na repartição.

Bons tempos! honrados tempos da manga de al- paca! se vós podesseis voltar, serieis a melhor de todas as reformas dos serviços públicos talvez a única efficaz.

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XX

o luar

^iff^|OuvE esta semana um tão lindo luar, que eu julgo interpretar os sentimentos dos lisboe- ^ tas, reconhecidos, enviando duas palavras de agradecimento á lua cheia.

Não confio muito na segurança do correio, mas estou convencido de que, independentemente do ser- viço postal, o meu pensamento poderá subir até á lua pelo mesmo caminho que segue o luar para des- cer á terra: o azul infindo.

Presumem os namorados que elles logram communicar espiritualmente com a lua, e que é ella que, por gratidão, lhes proporciona a doçura ineffa- vel do primeiro mez do casamento.

Completo engano! a lua é de mel para toda a gente em noites de plenilúnio: parece derramar so- bre a terra uma doce idealidade que invade todos

VIDA DE LISBOA 189

OS espíritos, e os baloiça languidamente numa rede tecida de fios de oiro e azul, suspensa do ceu.

Os montes e os rios, os campos desertos, as pla- nícies solitárias, as arvores silenciosas e as ondas do mar revestem uma estranha expressão de sua- vidade intelligente, quando a lua cheia deixa cair sobre a terra as gottas doiradas do seu eterno mel luminoso e macio.

As ondas do mar, principalmente, parecem re- cordar poemas extinctos, de felicidades perdidas, que ellas vêm contar á praia em estrophes fugiti- vas e harmoniosas.

Por isso aquelle mallogrado poeta Guilherme Braga disse algum dia:

... As ondas á noite andam cheias D3 perfumes e sons e luar.

Pois não é verdade que toda a paizagem mergu- lhada no luar, seja montanha ou campina, cidade ou aldeia, parece prestarnos ouvidos como um con- fidente que se debruça, attento, para escutar-nos interessadamente os mais recônditos pensamentos^ que guardamos na alma como um avaro o seu the- souro ?

Pois não é verdade que o luar nos inspira tanta confiança que lhe dizemos coisas inconfessáveis, se- gredos Íntimos, mysterios da nossa vida, que jamais ninguém ouviu nem suspeitou ?

Quem é que não disse alguma vez á lua cheia confidencias que teria reluctancia em dizer ao sol ?

O namorado: «Como eu amei aquella mulher!))

O agiota: «Que bello negocio! ganhei d'essa vez noventa por cento!»

O deputado: «Ouves, ó lua! eu quero ser minis- tro, sem fazer questão de pasta.»

A criada de servir: aO 92 da 4.'*^ arrasta-me a aza*, mas de quem eu gosto á do 86 da 2/»

O poeta: «Sabes? Se chego a publicar o meu poema, derrubo Camões.»

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Não confio muito na segurança do correio, mas estou convencido de que, independentemente do ser- viço postal, o meu pensamento poderá subir até á lua pelo mesmo caminho que segue o luar para des- cer á terra: o azul infindo.

Presumem os namorados que elles logram communicar espiritualmente com a lua, e que é ella que, por gratidão, lhes proporciona a doçura ineífa- vel do primeiro mez do casamento.

Completo engano! a lua é de mel para toda a gente em noites de plenilúnio; parece derramar so- bre a terra uma doce idealidade que invade todos

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VIDA DE LISBOA

189

OS espíritos, e os baloiça languidamente n'uma rede tecida de fios de oiro e azul, suspensa do ccu.

Os montes e os rios, os campos desertos, as pla- nicies solitárias, as arvores silenciosas e as ondas do mar revestem uma estranha expressão de sua- vidade intelligente, quando a lua cheia deixa cair sobre a terra as gottas doiradas do seu eterno mel luminoso e macio.

As ondas do mar, principalmente, parecem re- cordar poemas extinctos, de felicidades perdidas, que ellas vêm contar á praia em estrophes fugiti- vas e harmoniosas.

Por isso aquelle mallogrado poeta Guilherme Braga disse algum dia:

... As ondas á noite andam cheias Ds perfumes e sons e luar.

Pois não é verdade que toda a paizagem mergu- lhada no luar, seja montanha ou campina, cidade ou aldeia, parece prestar-nos ouvidos como um con- fidente que se debruça, attento, para escutar-nos interessadamente os mais recônditos pensamentos^ que guardamos na alma como um avaro o seu the- souro ?

Pois não é verdade que o luar nos inspira tanta confiança que lhe dizemos coisas inconfessáveis, se- gredos Íntimos, mysterios da nossa vida, que jamais ninguém ouviu nem suspeitou ?

Quem é que não disse alguma vez á lua cheia confidencias que teria reluctancia em dizer ao sol ?

O namorado: «Como eu amei aquella mulher!»

O agiota: «Que bello negocio! ganhei d'essa vez noventa por cento!»

O deputado: «Ouves, ó lua! eu quero ser minis- tro, sem fazer questão de pasta.»

A criada de servir: «O 92 da 4.* arrasta-me a aza*, mas de quem eu gosto é do 86 da 2.*»

O poeta: «Sabes? Se chego a publicar o meu poema, derrubo Camões.»

190 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA

A viuva: «Tu bem sabes, ó lua cheia! que este véu preto me aborrece muito.»

A solteira: «Dá-me um véu branco. . . ainda que tenha de ser preto.»

A macrobia: «Para a semana vou pôr mais qua- tro dentes.»

O pretendente: «Se chego a ser amanuense, pra- tico um acto de justiça: hei de pagar ao alfaiate.»

Tudo o luar escuta, do alto de uma arvore ou do cálix de uma flor, sem que ninguém se arreceie de uma inconfidência: é um poço sem fundo, ao qual entregamos tranquilJamente o segredo dos nossos pensamentos, que a ninguém mais revelaríamos.

Dahi vem, talvez, a confiança com que desde pequenos nos coUocam sob a protecção da lua, di- zendo-lhe:

Luar, luar, Toma o teu ar, ' Deixa os meninos

Crescer, medrar.

E' ella que, mantendo o caracter de protectora do nosso destino e de confidente dos nossos segredos^ recebe os memoriaes, que não teríamos a coragem de entregar a um ministro ou a um agiota:

O' lua nova ! Tu bem me vés : Dá-me dinheiro PVa todo o mez.

O sol é bisbilhoteiro. O povo chama-lhe caixa de oiro, talvez porque nas vistas de. toda a gente. Mas a lua é a confidente discreta, a fechadura que defende o cofre dos mysterios :

O sol é a caixa de oiro, A lua é a fechadura ; As estrellas são a chave Di minha pouca ventura.

VIDA DE LISBOA 191

Que as estrellas, por serem as damas de honor da lua, aprenderam d'ella a guardar segredos: uma indescrição perdel-as ia.

Por isso :

As estrellas são a chave Da minha pouca venrnra.

E quem sabe se as estrellas cadentes não virão expulsas do céu, por a lua as ter surpreendido a revelar alguma confidencia que ellas interceptaram no azul ?

Na consciência do povo está a convicção plena de que a lua, tão meiga para todos, e ainda hoje tão bella apesar de mascarrada, algum dia teria sido mais formosa do que o sol.

Foi talvez na origem do mundo. A lua, mirando o. sol, teve a imprudência de dizer-lhe:

Sou bem mais bonita do que tu!

O sol irritou-se, pegou n'uma porção de cinza e atirou lh'a á cara.

Desde então a lua ficou turva e seria desde então, também, que aprendeu a ser calada.

Se alguma vez sentisse tentações de tornar a dar com a lingua nos dentes, bastar-lhe-ia vêr-se retra- tada nos mares ou nos rios, para lembrar-se do caso da cinza e fechar a bocca.

O lisboeta, que vive muito á noite, ama a lua cheia mais que todos os p^^rtuguezes, e encanta-se de ver a sua linda cidade mergulhada n\im banho de luar que a torna deliciosamente phantastica, dando a impressão de ser o primeiro empório do mundo.

Foi certamente ao recolher a casa, n'uma noite de lua cheia, que Luiz de Camões escreveu estes dois versos :

E tu, nobre Lisboa, que no mundo Facilmente das outras és princeza.

O sol põe a descoberto as velhas mazellas de Lisboa : alfurjas mouriscas ainda de pé, boqueirões

192 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA

escuros, paredes desalinhadas, pardieiros rotos, ar- cos de muralha negra.

Mas a lua, cobrindo com um sendal delicado as misérias da capital, deixa apenas ver os contornos grandiosos da cidade, os sete montes que a recor- tam, os valles embutidos entre os montes, escalões de prédios empastando bairros populosos, clareiras de ruas, jardins recortados no declive, almoínhas distantes, torres alvadias, chalets alcandorados, edi- fícios nobres e, mais que tudo, o soberbo estuário do Tejo, que n'uma noite de luar parece um mar adormecido em oiro.

E' deslumbrante o espectáculo da cidade ao cla- rão da lua.

Floriam-me os annos da mocidade quando li nos Suspiros poéticos do dr. Magalhães, poeta brazileiro, essa admirável composição que celebra as ruinas da Roma antiga contempladas ao luar.

Estremeci de grandeza, deante d'essa cidade mo- numental, tão felizmente evocada pela inspiração de um poeta.

Mas, como aconteceu esta semana, creio que Lis- boa nada tem que invejar á Roma dos cézares quando o estrangeiro, n'uma noite de lua, a puder contemplar da muralha de S. Pedro de Alcântara, correndo os olhos desde o Tejo, por cima da ver- tente oriental, até aos longes de Campolide.

E comtudo é apenas meio livro aberto.

Se do alto da Graça ou, melhor ainda, do adro da egreja do Monte, quizer contemplar o panorama Occidental da cidade, completará a fascinação que Lisboa, envolta n'un:i luar sereno e claro, ha de dei- xar para sempre no seu espirito encantado.

Então cuidará ouvir, como o ribombo de um tro- vão formidável, a voz de bronze de Herculano a troar-lhe aos ouvidos : uLisboa, cidade de mármore e de granito, rainha do oceano, tu és a mais for- mosa entre as cidades do mundo.»

Façam favor, nacionaes e estrangeiros, tendo

VIDA DE LISBOA 193

contemplado Lisboa ao luar, de atirar pela janella fora as paizagensinhas bucólicas das povoações ser- ranas, com um campanário de palmo e meio, um riacho de vidro, umas arvores de froque verde e umas eiras brancas de cartão.

E' certo que o luar tem em toda a parte a mes- ma expressão de vago encanto, mas nem por isso deixa de ser como os diamantes, que parece terem sido destinados pela natureza para o collo alabas- trino das princezas bellas.

E Lisboa, ao luar, é bem a rainha do Tejo em toilette de baile.

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índice

Pag.

I A medalha do Tejo i

II O génio de Lisboa 7

III A mocidade 20

IV O amor 3i

V Nas ruas 44

VI A Arcada do Terreiro do Paço oo

VII A Avenida 72

VIII - O estio 83

IX O inverno 97

X A loteria do Natal 109

XI Carnaval 1 15

XIi A renda das casas i25

XIII S. Carlos 1 33

XIV A Penitenciaria i,|2

XV Os gatos 149

XVI Cintra 159

XVil L^isboa apreciada por um samoyede 167

XVIII A escada \nb

XIX A manga de alpaca 1X2

XX O luar 188

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DP Pimentel, /^Iberto

756 Vida de Lisboa

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