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Full text of "Música pré-barroca luso-americana: o Grupo de Mogi das Cruzes"

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MÚSICA PRÉ-BARROCA LUSOAMERICANA: 
O GRUPO DE MOGI DAS CRUZES 



Jaelson TRINDADE 
Paulo CASTAGNA** 



TRINDADE, Jaelson e CASTAGNA, Paulo. Música pré-barroca luso-americana: o 
Grupo de Mogi das Cruzes. Revista da Sociedade Brasileira de Musicologia, São 
Paulo, n.2,p. 12-33, 1996. 

TRINDADE, Jaelson e CASTAGNA, Paulo. Música pré-barroca luso-americana: o 
Grupo de Mogi das Cruzes. Data: Revista de Estúdios Andinos y Amazonicos, La 
Paz, n.7, p.309-336, 1997. 



Introdução 

A localização, identificação, conservação e divulgação do patrimônio artístico 
musical do Brasil tem sido até hoje fruto de iniciativas pessoais. Entretanto, esses esfor- 
ços ingentes, pertinazes, somados à ações pontuais, circunstanciais, privadas ou públi- 
cas, nesse campo da cultura, não podem continuar disfarçando o caráter restrito e ge- 
ralmente precário dos resultados alcançados. E, ainda que, na somatória, já muito se 
conseguiu ao longo deste século, tarda no país o amadurecimento dos trabalhos no cam- 
po da preservação do patrimônio musical. 

De maneira geral, "íz precariedade da pesquisa musical tem uma grande parcela 
na responsabilidade por nossa atual ignorância sobre a música antiga desta eterna 
Colónia"; 1 as inúmeras agressões aos arquivos, num descaso, desprezo, desinteresse 
pelo que havia neles; também as guerras, revoltas, tempestades, incêndios teriam con- 
tribuído para o desaparecimento definitivo de composições mais antigas das quais não 
existiram cópias. Decadência das antigas irmandades, mudanças no gosto, na atividade 
profissional da música e no código canónico, etc, tudo isso atacou até mesmo as músi- 
cas do século XVIII, que existem poucas, o que dizer então do XVII? 

O tipo de música composta ou utilizada no Brasil, no meio dos colonos, entre os 
séculos XVI e meados do XVIII era praticamente desconhecida até há poucos anos. Em 
1984, na cidade de Mogi das Cruzes, a 58 km da capital do Estado de São Paulo, no 
Brasil, foi descoberto um pequeno conjunto de peças musicais que permite, hoje, balizar 
a reflexão sobre a fase mais antiga da nossa prática musical. Dentre as 29 folhas de pa- 
pel de música encontradas, foram identificadas 11 obras diferentes. 

O padrão caligráfico dos textos musicais já indicava ao historiador não versado 
em linguagem musical, mas muito familiarizado com documentos manuscritos, datar 
dos primeiros anos do século XVIII. Não versado, mas informado o necessário para 
notar a diferença entre a escrita clássica da música e aquela de notas brancas, quase sem 
barras de separação. Tudo isso já demonstrava um significativo recuo em relação à mú 

Historiador, 9. a Coordenação Regional / São Paulo do IPHAN - Instituto do Patrimônio Histórico e 
Artístico Nacional. 

" Pesquisador da música brasileira e Professor do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista - 
UNESP - São Paulo. 

1 CASTAGNA, Paulo, Fontes Bibliográficas para a pesquisa da prática musical no Brasil nos séculos 
XVI e XVII. Dissertação de Mestrado, ECA/USP, 1991. v. 1, p. 98. 



TRINDADE, Jaelson e CASTAGNA, Paulo. Música pré-barroca luso-americana 



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sica pré-clássica dos compositores do último quartel do XVIII, expoentes das artes na 
região das Minas Gerais do Ouro, hoje amplamente divulgados. 

A importância e o significado dessa descoberta foi logo confirmado pelo musi- 
cólogo paulista Régis Duprat, a quem o IPHAN solicitou preliminarmente a análise das 
folhas de música. 

Os papéis de música de Mogi das Cruzes chegaram por acaso às mãos do pes- 
quisador. Mas não de maneira puramente fortuita, porque há cerca de 3 décadas tangen- 
cia a problemática da investigação da música do Brasil colonial. 

O achado aconteceu durante os levantamentos e estudos relativos ao acervo ar- 
tístico-religioso antigo da região, para a montagem de um Museu de Arte Sacra em de- 
pendências dos frades carmelitanos, por iniciativa da Coordenação Regional (São Pau- 
lo) do IPHAN - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. 

As folhas serviam de recheio para a capa e contracapa de couro do Livro de Fo- 
ral da Vila de Mogi das Cruzes, aberto em 1748 para traslado do antigo, em mau estado. 
A capa, trazia a aba superior descolada, a lateral quase... a curiosidade fez o resto! 

Localizar a ordem da Câmara de Mogi para encadernação do livro, daria pistas 
sobre o momento de desinteresse e/ou desuso dessas folhas de música. Tudo indica, 
porém, que a encadernação data da abertura do livro (1748). 

Uma das folhas funcionava como frontispício - "Bradados a 4. para Domingo de 
/ Ramos, e Sexta fr." da / Payxaõ. / De Faustino do Prado xavier." O nome desse então 
presumível autor de algumas das músicas já era conhecido do investigador. Poucos anos 
antes, durante uma pesquisa sobre a arquitetura rural da região esse personagem, quali- 
ficado como clérigo, aparecera no processo de inventário da irmã, feito em Mogi das 
Cruzes, datado do último quartel do século XVIII. O inventário post mortem indicava 
velhice dos envolvidos, assim sendo, o músico Faustino devia ser o mesmo padre mas 
na sua mocidade, em tempo mais recuados. 

A bibliografia disponível logo mostrou que o Padre Faustino Xavier não era um 
desconhecido, mas um célebre clérigo paulista, cónego da Sé de São Paulo desde 1760, 
falecido nonagenário em 1800. A Relação do Bispado de São Paulo, elaborada em 
1777, diz que o Cónego "é bom moralista, exemplar, esmoler devoto e de rigorosa resi- 
dência no coro". No século XX, seu único e breve biógrafo informa que Faustino, "se 
não foi talento brilhante [nas Artes da Moral e da Retórica] , mereceu a reputação de 
santo", pelo seu extremado pietismo e caritativismo. Nenhuma crónica falou, porém, na 
sua atuação como músico. 

As pesquisas atuais mostraram que o Padre Faustino Xavier foi um homem rela- 
tivamente rico para o meio social em que viveu. Teve fazenda de gado e pastos de en- 
gorda para manadas de mulas xucras nos Campos Gerais do Paraná; esteve metido no 
grande comércio de muares. 

A novidade maior, porém, é o seu passado musical revelado pelas pesquisas im- 
pulsionadas pela descoberta das músicas. As investigações agora prosseguem, tendo em 
vista a elaboração da edição crítica das músicas - o chamado Grupo de Mogi das Cru- 
zes, promovida pelo IPHAN. 

Faustino 

Faustino nasceu em c.1708 na pequena Vila de Mogi das Cruzes, filho de um 
comerciante local nascido durante a travessia dos pais do Reino para o Brasil. Estudos 
genealógicos indicam que há, pela parte do pai, um parentesco próximo do nosso Padre 
com o inconfidente Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, personagem histórico 
de vulto nacional, cujos avós saíram de Mogi para as Minas Gerais. 



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A serventia de Faustino na prática musical ordinária da Vila foi de curta dura- 
ção. Em 1729 (aos 21) anos foi nomeado pelo Bispo do Rio de Janeiro, D. Fr. Antonio 
de Guadalupe, mestre da capela da igreja matriz - estando vago o cargo - "pela muita 
perícia na arte da música"; esse superlativo já o diferencia do indicativo de "perícia na 
Arte da música", costumeiro nas provisões dadas pelos Bispos aos Mestres de Capela, 
bem como da qualificação de "músico destro" que para outros aparece. 

Além da Matriz, teve a seu cargo o mestrado da capela do Convento local de N. 
Sr. a do Carmo. Mas sua meta era o sacerdócio. Nem bem passaram cinco anos, obteve o 
grau de presbítero (ordens menores) e assumiu a função de Vigário Coadjutor da igreja 
matriz de Mogi. Desse modo, não pôde acumular a gestão paroquial com a gestão ofici- 
al da música. Logo, alegando a "penúria de sacerdotes" na Vila, tomou "as mais or- 
dens" e passou a Vigário titular. Em 1736, entretanto, já se transferiu para fora da loca- 
lidade. 

Serviu em outras paróquias da Capitania (documentadamente, como Vigário 
Encomendado da matriz da Vila e Porto de Santos a partir de 1751) até fixar-se na Ca- 
tedeal de São Paulo. 

O sacerdócio era efetivamente sua vocação. Aos 18 anos fez a candidatura às 
"ordens menores, e sacras", obtidas somente em 1732. O sacerdócio e o comércio. 

Encontradas as partes musicais manuscritas, várias questões se colocaram relati- 
vas ao contexto histórico- social e à organização da prática musical, à autoria e à circu- 
lação das obras, além dos aspectos diretamente ligados aos documentos, ou seja, a nota- 
ção e o papel. Essas pesquisas têm continuidade ainda hoje. Uma geografia da arte - e 
da música, em particular - na antiga Capitania de S. Paulo é uma empreitada doravante 
necessária para melhor entendimento das obras preservadas. 

Faustino e Angelo 

Há uma composição - o Ex Tractatu Sancti Augustini (obra n.° 3) - cujo frontis- 
pício traz assinalado "De Angelo Prado xavier". Pesquisas nas séries de Inventários, 
Autos Cíveis e Censos de População da Capitania (1765-1800), confirmaram o paren- 
tesco entre Faustino e Angelo: eram irmãos. 

Mais moço cerca de 8 anos, Angelo parece ter vivido sempre sob a proteção do 
Padre. Se ele, porventura, cantou sob a regência de Faustino - não era incomum paren- 
tes, compadres e amigos comporem a "capela de música" - ou desenvolveu, com os 
ensinamentos competentes do irmão, habilidades e até um certo talento artístico musi- 
cal, viu-se face a um meio social restrito demais para emprega-los. Teria composto o Ex 
Tractatu Sancti Augustini (obra que, pelo caráter polifônico refinado, se destaca dentre 
as demais do Grupo)! Pretendia, por volta de 1735, ao atingir a mesma idade (20/21 
anos) com que o irmão assumiu o Mestrado, requerer o mesmo posto em Mogi ou algu- 
res? O que há de concreto, por enquanto, é que esteve durante anos - pelo menos dos 27 
anos de idade em diante - ligado à compra e venda de muares do Sul do Brasil, ou seja, 
na órbita em que atuava o mais velho, Faustino. 

Em 1743 já estava na lida comercial. Em 1767, tem o posto de Escrivão da Real 
Fazenda na Vila de Santos. É preso e arrestado dos bens em 1768. Vai viver como agre- 
gado na casa do irmão Cónego, na cidade de São Paulo. Morre em 1769. 



Timóteo 



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Além de Faustino e de Angelo, um terceiro nome apareceu. Timóteo Leme do 
Prado. O escrito no frontispício da obra Tractus de Sexta-Feira Santa (obra n.° 4) não 
deixa dúvidas: "Do uzo de Thimoteo Leme". 

Há, no grupo, outra cópia desses Tractus ("para as profecias de Sexta fr." da 
Payxam") com a indicação "De Faustino do Prado Xavier". A letra é de Faustino, con- 
forme atestam as comparações caligráficas com outros documentos assinados pelo 
Mestre. 

O "De" indicava posse? É ambíguo o sentido. Em muitas composições dos sé- 
culos XVII / XVIII, o "De fulano" aparece em casos de autoria comprovada. Já o con- 
temporâneo "Do uso", como vimos, não deixa dúvidas. 

Uma consulta aos registros de pagamentos feitos a Mestres de Capela, colhidos 
em inventários pesquisados há anos para o IPHAN, registram a presença de Timóteo 
Leme do Prado como Mestre de Capela da Vila de Sorocaba, no início da década de 
1730. Portanto, havia circulação de peças entre diferentes localidades. 

Sorocaba era o ponto de partida e de chegada nas comunicações com os campos 
do Sul do Brasil. A partir de 1732, completada a ligação por terra com os extensos cam- 
pos vizinhos ao Prata, ali se tornou o foco do comércio de gado muar, vacum e equino. 
Havia mogienses em Sorocaba. Um deles era Antonio da Cunha Gago, morto em 1731: 
Timóteo recebe por tocar no seu enterro. 

Consultando os velhos inventários e autos cíveis do Arquivo do Estado de São 
Paulo foi possível saber, inclusive, que Timóteo Leme assinava inicialmente Leme da 
Silva, tendo mudado depois para Timóteo Leme do Prado: em 1732 é da Silva e a assi- 
natura num daqueles documentos coincide com a do manuscrito musical de Mogi. Nou- 
tro de 1735 também. Num documento de 1744 já se verifica a mudança: um credor ale- 
ga que seu nome antes foi "da Silva", passando depois a "do Prado"! 

Em 1772 encontramos em Sorocaba um Timóteo Leme do Prado, que na assi- 
natura se qualifica como padre. Nesse documento vê-se o desenho inconfundível do 
"Th" inicial do nome encontrado 40 anos antes ! Na Relação do Bispado de São Paulo, 
de 1777, consta que o padre "Thimoteo Leme do Prado", de oitenta e cinco anos, vive 
em Sorocaba, "totalmente Decrépito" . 

Marcas d'água e caligrafia 

A documentação arquivística (inventários, testamentos e processos cíveis) loca- 
lizada - direta ou indiretamente vinculada aos personagens do Grupo de Mogi - permitiu 
datar com certa precisão o período ou períodos da atividade musical dessas pessoas. Os 
textos autógrafos encontrados em meio a essa documentação, comparados com os textos 
das músicas e assinaturas nas folhas, contribuiu tanto para a datação das peças como 
para confirmar a intervenção direta dos personagens identificados. 

A seguir, a identificação das diversas marcas d' água (marcas dos fabricantes) 
encontradas na maioria dos papéis de Mogi - pesquisa obrigatória - se fez basicamente 
no Arquivo do Estado de São Paulo, buscando papéis de diferentes localidades da Ca- 
pitania utilizados entre os anos de 1720 e 1740. 

Utilizava-se o papel comum para copiar músicas, desenhando-se as pautas. 
Identificamos 12 marcas d' água diferentes nesses papéis. 

Naquele arquivo central existe uma correspondência trocada, a partir de 1721, 
entre as autoridades locais (Câmara, Milícia e Justiça) e o Governo da Capitania, sedia- 
do em São Paulo, permitindo assim estabelecer uma amostragem representativa. Verifi- 
quei diversos maços de papéis avulsos e, a incidência de certas marcas em determinados 



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períodos e regiões, permitiu situar aquelas encontradas nos papéis de Mogi como uma 
das preponderantes nas décadas de 1720 e 1730. 

Por exemplo, o escudo português das cinco quinas, coroado, ladeado por leões 
portando estandartes (marca n.° 11) aparece na parte de "Tenor a 4" da cantiga Matais 
de incêndios (obra n.° 11); essa marca foi encontrada também em documentos emitidos 
no Rio de Janeiro, 1743; na cidade de São Paulo, 1735; e na vila de Sorocaba, 1738. Em 
um documento do arquivo cartorial de Ouro Preto (MG), datado de 1748, ele aparece na 
primeira página de uma folha dupla - a segunda tem uma coroa encimando a flor de lis e 
a palavra Givsto na parte inferior do emblema (marca n.° 10, a mesma da folha de Tiple 
a duo desta Cantiga). 

A marca do citado Ex Tractatu Sancti Augustini (nas partes de Tiple a 4 e Baxo 
a 4), por exemplo (marca n.° 7), foi encontrada, até agora, em um ofício da Câmara de 
Mogi das Cruzes datado de 1724 e em inventários post mortem de Mogi das Cruzes 
datados de 1723, 1725 e 1732. Nesta última data, Angelo estaria com cerca de 16 anos... 

A marca encontrada na folha da parte de rabeca da Ladainha de N. Sr." (obra n.° 
10) - as iniciais AMC (marca n.° 12) - não foi localizada nesse primeiro levantamento de 
marcas. Falta ainda, certamente, a consulta a uma literatura especializada. 

Além disso, as caligrafias dos textos de Mogi - 10 deles em latim e um apenas 
em português (o da Cantiga) - foi comparada com numerosos e variados manuscritos 
paulistas das décadas de 1720 e 1730, ficando evidenciada a similitude com os padrões 
caligráficos vigentes no período pesquisado. 

Modestos cometimentos 

Alguma coisa já se sabe, há tempos, sobre a atividade musical nos núcleos anti- 
gos de povoamento da Capitania de São Paulo, revelada pela documentação textual dos 
arquivos paulistas. De forma que o pesquisador não se surpreende, ao obter, pela pri- 
meira vez, textos musicais executados naquele território e naquela época. 

Além disso, as funções religiosas no Reino de Portugal - diz-nos a história da 
cultura - não prescindiam da música. A falta de música ou o mal desempenho musical 
iam sempre em detrimento do culto divino, conforme conceito tradicional da Igreja. 2 

A prática ordinária da música no mundo colonial estava profissionalmente vin- 
culada aos atos litúrgicos e às festas religiosas. Mas, também, ainda que excepcional- 
mente, podia ocorrer durante a encenação de pequenas "óperas", comédias e entreme- 
zes. De resto, a documentação tem mostrado que entre as populações dessas vilas pau- 
listas do Seiscentos e Setecentos, era usual tanger viola, harpa, cítara e até pandeiro. Em 
meados do século XVII, circulam em Vilas como São Paulo e Santana do Parnaíba li- 
vros de canto de órgão, cartapácios e papéis de música, não apenas em mãos dos Mes- 
tres de Capela. E muitos daqueles tangedores de viola eram letrados: "tinham à mão um 
Cervantes, um Vieira, um Mendes Pinto, um Bento Pereira ou livros de comédias e en- 
tremezes, além de muita literatura 'espiritual', jurídica e médica". Na vizinha e já Ci- 
dade de S. Paulo, em 1728, por exemplo, a "música à capela" até já podia contar com o 
recurso do órgão e do cravo unidos ao baixão. 4 

2 SOARES, Franquelim Neiva. Ensino e Arte na região de Guimarães através dos Livros de Visitações do 
século XVI. Separata da Revista de Guimarães, Guimarães, v. 93, 1984. 

3 TRINDADE, Jaelson Bitran, Música colonial paulista: o grupo de Mogi das Cruzes. Revista do Patri- 
mônio Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro, n.° 20, p. 18, 1984. 

4 Idem. 



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Se pensarmos nas vilas coloniais como cabeças de um território organizado, com 
uma produção agrícola regular, de caráter comercial, sabemos já que as instituições - 
transplantadas do Reino - funcionam, ainda que não haja opulência económica. 

Criada em 1611 como Vila, a povoação de Mogi das Cruzes desde 1630 estava 
com o seu convento e igreja da Ordem l. a de N. Sr. a do Carmo funcionando, conjunto 
algumas décadas depois acrescido de uma capela anexa de Irmão Terceiros. Tinha, na- 
turalmente, uma igreja Matriz, irmandades, confrarias. Tinha uma vida rural equilibra- 
da, com latifúndios acumuladores de índios, muitos sítios rurais pequenos e médios; os 
agregados - gente livre em terras alheias - e os indígenas, servos da lavoura, que os co- 
lonos traziam aprisionados na "torna bolta do sertão", movimentavam a produção. 

Para o trabalho de catequese, fornecimento de trabalhadores temporários aos 
estabelecimentos rurais, bem como para movimentar as próprias fazendas, contava o 
município com dois aldeamentos missionários criados pelos padres jesuítas: Aldeia de 
N. Sr. a da Ajuda e Aldeia de N. Sr. a da Escada. A Escada não dispunha propriamente de 
uma fazenda e, nos primeiros anos do século XVIII, passou para a administração de 
frades franciscanos vindos de outra localidade. 

Os carmelitanos do convento da Vila possuíam duas grandes fazendas com ca- 
pelas capazes de dizer missa para a população rural: Santo Alberto e Santo Angelo: 

"Essa estrutura é o bastante para que as instituições da ordem social vi- 
gente - políticas, sociais e económicas - na Colónia tomem forma, se pro- 
jetando na vila. É o que basta para haver músico profissional a até mesmo 
boa música na terra". 5 

No povoado, menos de 100 casas de morada - morar mesmo era no campo. Mo- 
gi, vizinha à cidade de São Paulo, estava ao lado do caminho que, através do vale do rio 
Paraíba, atingia os limites com a Capitania do Rio de Janeiro. Articulava-se, assim, ao 
principal circuito comercial e urbano do território. 

A parcela comercial da produção era diversificada, porém, pouco expressiva: 
mantimentos, tabaco, algodão e cana. Nesse sentido, Mogi refletia a situação regional 
vigente à época. 

O quadro sócio-econômico da Capitania de São Paulo, nestes primeiros vinte 
anos do século XVIII, apresenta solução de continuidade. Esvaziada de população, san- 
grada pelos distantes descobertos auríferos das Gerais e do Centro-Oeste, torna-se uma 
economia dependente do trânsito interno, com predomínio da produção de mantimentos; 
uma fase denominada como "Intermezzo Roceiro" pelo arquiteto Luís Saia, ao caracte- 
rizar o contexto da "Morada Paulista" na primeira metade daquele século. 

Uma Capitania de segunda ordem. Tem- se a idéia de que foram bastante mo- 
destas as realizações artísticas da Capitania de São Paulo durante os dois primeiros sé- 
culos de povoamento. Idéia expressada pelo sociólogo Lourival Gomes Machado no seu 
texto Artes Plásticas no Brasil (1960) que ele complementa com uma outra: "Onde, 
porém, aumentassem as disponibilidades, logo se impunha a tendência à realização, 
completa quanto possível, do modelo português" . 6 

As análises preliminares feitas por Régis Duprat em 84/85 e os estudos ora des- 
envolvidos sobre as obras musicais (P. Castagna) assinalam o caráter sóbrio, ainda ata- 
do ao maneirismo, que caracterizam as peças de Mogi. Poderiam tranquilamente ter 
sido escritas no século XVII: se na produção musical do Reino, como se verá adiante, 

5 Ibidem, p. 17. 

6 MACHADO, Lourival Gomes. Barroco Mineiro. São Paulo, Perspectiva, 1969. p. 367-368. 



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ainda perdura por toda a segunda metade do Seiscentos o estilo maneirista, o que não 
dizer da Colónia... 

Eram as formas tradicionais de música polifônica que se ouviam soar, no início 
do Setecentos. As igrejas paulistas, traçadas em "estilo-chão", onde regularmente o pú- 
blico ouvia, além do cantochão, música em "canto de órgão" (polifônica), às vezes 
acompanhada de instrumentos musicais (órgão, cravo, harpa, baixão), possuíam uma 
discreta maquinaria de culto, onde simultaneamente se apresentavam os pequenos retá- 
bulos proto-barrocos, ainda compostos de painéis pintados e os exemplos barrocos do 
chamado "Estilo Nacional", com arco-românico em arquivoltas e colunas pseudo- 
salomônicas exibindo, em talha singela, um entalhe muitas vezes rude - algumas dessas 
obras "recriações" muito inventivas dos padrões eruditos. 

No decorrer do século XVII, Portugal vive um período de transição nas artes. É 
a fase de experimentação proto-barroca em que, por uma via de renovação, afasta-se 
progressivamente da situação maneirista. Nesse processo, a música não conheceu ritmos 
semelhantes ao da literatura, da pintura e da talha. De certa forma, tal como na arquite- 
tura, definiu uma nova configuração estético-ideológica já no limiar do século XVIII. É 
quando se afirma o Barroco. 

A Cantiga de Mogi - amor divino ou amor mundano? 

As músicas de Mogi se conformam estilisticamente em uma situação pré- 
barroca. E quanto à poesia? Matais de incêndios (obra n.° 11), para 4 vozes e instru- 
mentais), não tem ares de cançoneta erudita. Seria mais apropriado encará-la tal como 
vê o crítico brasileiro Antonio Candido - ainda que noutro contexto - a poesia do nosso 
Silva Alvarenga (Vila Rica, 1749 - Rio de Janeiro, 1814): "poesia lírica em metro fácil 
e cantante, de sabor quase popular" 9, - o poeta Silva Alvarenga era filho de um Mestre 
de Capela e ele próprio bom violinista de salão, iniciado na música pelo pai desde cri- 
ança. A obra de Silva Alvarenga, diz o crítico, "já toca o ponto onde a poesia se desfaz 
em música". 



MATAIS DE INCÊNDIOS 



Matais de incêndios, meu lindo, ai, lê, lê. 
Porque um sol me pareceis, não me mateis. 



Deixai que eu goze essas luzes, ai, lê, lê. 
Meu amor, não me mateis, não me mateis. 



} [bis] 



} [bis] 



Hei de chegar-me aos incêndios, ai, lê, lê. 
Inda que raios vibreis, não me mateis. 



} [bis] 



7 COSTA, Lúcio. A arquitetura jesuítica no Brasil. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 
Rio de Janeiro, n.° 5, p. 61-65, 1941. 

8 CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira (momentos decisivos). 4 a , São Paulo, Martins, 
s.d. v. l,p. 142. 



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Mas se a vós me chego, amante, ai, lê, lê. 
Meu amor, não me mateis, não me mateis. 



Para abrasar corações, ai, lê, lê. 

As palhinhas acendeis, não me mateis. 

O meu por vós já se abrasa, ai, lê, lê. 
Meu amor, não me mateis, não me mateis. 



Suspendei menino o pranto, ai, lê, lê. 

Mas, meu lindo, não choreis, não me mateis. 

Ora, fazeis-me a vontade, ai, lê, lê. 

Meu amor, não me mateis, não me mateis. 



O uso do repertório barroco 9 e a fala indicando a condição feminina, de amante, 
de esposa, podem, em primeiro lugar, indicar tratar-se de um vilancico. 10 Nessa forma 
musical, a relação amante-amado se refere ao amor místico, o amor da alma pelo "me- 
nino Amado", por aquele Jesus que ela [alma] quer esposar. 

Na poesia do amor místico um dos motivos centrais é a redenção, cujos aspectos 
são geralmente ilustrados pela figura etimológica morte-morrer. A redenção se dá pelo 
casamento da alma (Esposa) com o Amado (Deus). O símbolo central desse amor, da 
união mística - a chama, o fogo, a fogueira - se faz presente em toda a obra, 11 poesia e 
prosa, de São João da Cruz, disseminada sob a forma de romances e vilancicos: entrar 
nos "gozos verdadeiros do espírito'", 12 oposto ao gozo das coisas exteriores e visíveis... 
U'a alma arrependida que vai a caminho de Deus. 

E o menino que chora? Nos vilancicos, esse é o menino Deus; o menino (Jesus) 
que chora (de frio) é uma constante nos temas pastoris dos vilancicos, adentrando-se 
pelos séculos XVII e XVIII em autos e cantos: 

"pero Dios en el pesebre 
allí lloraba y gimía 

que eran joyas que la esposa 
al desposorio traía; 
y la madre estaba en pasmo 
de que tal trueque veia: 

el llanto dei hombre en Dios, 

9 As metáforas que aparecem na Cantiga são corriqueiras na poesia amorosa, por exemplo, do poeta seis- 
centista brasileiro da Bahia Gregório de Matos Guerra; muito mais nas peças lírico-amorosas do que na 
sua poesia religiosa, voltada para o Amor Divino. Cf. MATOS, Gregório de. Gregório de Matos: obra 
poética. Rio de Janeiro, Record, 1990. 2 v. 

10 STEVENSON, Robert (transcrição e estudo). Vilancicos Portugueses: Autores Vários. Lisboa, Ca- 
louste Gulbenkian, 1976. (Portugaliae Musica, série A, v. 29); VIEIRA, Ernesto, Dicionário biographico 
de músicos portuguezes: historia e bibliographia da musica em Portugal por [...]. Lisboa, Mattos Moreira 
& Pinheiro, 1900. 2 v. 

11 CUEVAS, Cristobal (ed.). San Juan de la Cruz: Poesias completas. Barcelona, Bruguera, 1981. p. 
XXX. 

12 Idem, p. 105. 



} [bis] 

} [bis] 

} [bis] 

} [bis] 

} [bis] 



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9 



y en el hombre el alegria " 

Os vilancicos do século XVII são "obras exclusivamente sobre textos religio- 
sos". Executados para deleite e gáudio do povo, neles predominam os assuntos pasto- 
ris. 14 Eram cantados nas igrejas, 

"[•••] por ocasião das maiores festas. Essas eram principalmente as do Na- 
tal, as da Epifania ou Reis, e as de Nossa Senhora. Nas festas de qualquer 
santo também se cantavam vilancicos quando os recursos dos festeiros 
permitiam as respectivas despesas" . 15 

Mas nos primeiros anos do XVIII através de pastorais e de provisões aos Mes- 
tres de Capela, as autoridades religiosas no Brasil condenam a execução do que deno- 
minam de "cantos ou vilancicos profanos, e indecentes" . Os tonos, ou "canções secula- 
res", profanas, tinham geralmente acompanhamento de viola e eram escritos para 4 ou 
mais vozes, tal como os vilancicos: 16 tono, esse é o nome do vilancico profano? 

Será que estamos diante de uma poesia erótica profana? O erotismo do texto da 
Cantiga salta aos olhos. Nesse caso, seria um tono. D. Francisco Manuel de Melo, no 
Seiscentos português, chamou tonos a todos os versos que escreveu, musicados pelos 
principais compositores portugueses de sua época, tratando de assuntos profanos. 

Essa ambiguidade se deve ao repertório simbólico utilizado? - um repertório 
corrente também na poesia profana. 

1 7 

Segundo Helmut Hatzfeld, a mescla de religião e sensualidade é traço hispâni- 
co, ibérico, de matriz árabico-maometana que depois passa a ser característica hispano- 
católica. São espanhóis, nascidos no Quinhentos, os carmelitanos Santa Teresa D'Avila 
e São João da Cruz, cujos escritos de exaltada paixão mística se disseminam por todo o 
século seguinte. 

O místico João da Cruz encontra também na poesia profana uma importante 
fonte de inspiração, diz Cristobal Cuevas na introdução às suas Poesias completas. 

Por enquanto, permanece a dúvida se a Cantiga fala do sagrado ou do profano. 
Se for profana, a fala é de mulher. Entretanto, por ora é difícil discernir, porque fala 
feminina, de exaltada paixão mundana como aquela de Soror Mariana Alcoforado é 
coisa invulgar, pelo que se sabe, na literatura portuguesa do Barroco. 

Mas não esqueçamos o Padre Manuel Bernardes, no seu texto "Contra as músi- 
cas lascivas" (Armas da Castidade, Lisboa, 1699), verberando contra religiosas que 
gastam tardes, junto à grade "em visita com seculares", em motetes e xácaras e discan- 
tes, "com seus quebros e gargantas, e brandas punhaladas, com que atravessa o cora 

13 Ibidem, p. 38. 

14 STEVENSON, Robert, op. cit, p. VIII. 

15 VIEIRA, Ernesto, op. cit., v. 2, p. 28. 

16 STEVENSON, Robert, op. cit, p. XXIX. 

17 HATZEFELD, Helmut. Estudos sobre o Barroco. São Paulo, Perspectiva / EDUSP, 1988. p. 298. O 
autor fala da tendência espanhola, ibérica, "que veio dar a todo assunto profano um viés devocional, 
tratando-o 'a lo divino' ". 

18 Isso, conforme o autor, só seria possível mediante o recurso à técnica do contrafactum ou ver- 
são "ao divino". "Imitar verso, copla, estilo e matéria juntamente, isso é o que chamam contrafa- 
zer". Textos profanos foram inseridos em contextos diferentes. O fenómeno de "contrafaturas" se 
estende ao séc. XVII. Às vezes, a refusão era mais profunda e afetava o léxico, as imagens e a 
estrutura. Em todo caso, a pretensão de manter a versão "ao divino" o mais próximo possível de 
seu modelo explica a frequente ambivalência profano-religiosa desta classe de poesia. Cf. CUE- 
VAS, Cristobal. Poesias completas. Barcelona, Bruguera, 1981. 



TRINDADE, Jaelson e CASTAGNA, Paulo. Música pré-barroca luso-americana 



10 



ção de quem ouve descuidado" . Talvez fazendo loas, de maneira ambígua, ao adorado 
Menino... 

Tono ou vilancicol Os símbolos encontrados na Cantiga (sol, raios, luz, menino, 
abrasamento, incêndios, matar, etc.) não são patrimônio da poesia religiosa: são utiliza- 
dos pela poética do Barroco em geral. 19 Disseminados, tornam-se familiares; utilizados 
coloquialmente, são entendidos pelo público em geral. 

A poesia erótica do nosso baiano seiscentista Gregório de Matos está repleta 
dessas metáforas. 20 Aliás, a frase "não me mateis" comparece musicalmente no estribi- 
lho de umas coplas de Gregório, em que "magoado o poeta e sentidíssimo com esta pena de 

VER FRUSTRADOS TODOS OS SEUS INTENTOS, CANTAVA AO SOM DO SEU INSTRUMENTO A SEGUINTE LE- 



Aqui-d'El-Rei, que me matam 
os negros olhos de Brites! 
eu não vi mulher tão branca 
com tão negros azeviches. 
Dizem que pelos cabelos 
a leva certa velhice, 
que como enfim é menina, 
gosta mais das meninices. 
Quer-se casar cum Menino, 

[ ] 

ESTRIBILHO 

Tá tá, 
não me mateis tá, 

que inda que sou velho, 



19 ROIG, Adrien. O teatro clássico em Portugal. Lisboa, Biblioteca Breve, vol. 76. p. 138; SPINA, Se- 
gismundo e SANTILLI, M. A. Apresentação da poesia barroca portuguesa. Assis, 1969, p. 117, 145, 
154; SILVA, Vitor Manuel Pires de Aguiar e. Maneirismo e Barroco na poesia lírica portuguesa. Coim- 
bra, Universidade de Coimbra, Centro de Estudos Românicos, 1971. 

20 Vide nota n.° 9. 

21 MATOS, Gregório de. op. cit., v. 2, p. 715. E o "ay Le Le" que aparece em Mogi, no estribilho da 
nossa Cantiga? Há pistas para investigação. O cancioneiro português do Alentejo registra ecos da tradi- 
ção mourisca: 



Esta noite, à meia noite, 
A meia noite seria, 
Ouvi cantar meu amor 
Aos cantos da Mouraria 
Ai lê, 

La na do Mouro, 
Meu bem amado 
É um cravo de ouro. 



Este elemento poético-musical aparece de maneira idêntica no estribilho do canto de uma Con- 
gada afro-brasileira, recolhido por F. A. Pereira da Silva no início deste século, em Goiana, Pernambuco, 
Nordeste do Brasil e reproduzido por Arthur Ramos em seu O folkdore negro do Brasil (Rio de Janeiro, 
Civilização Brasileira, 1935): 

Ó meu sinhô São Lourenço 

Ai! lê lê 
Aqui tá seu zipretinho 

Ai! lê lê 
Cantando a sua zifé 

Ai! lê lê 



TRINDADE, Jaelson e CASTAGNA, Paulo. Música pré-barroca luso-americana 



11 



não hei de cansar. 



Do ponto de vista literário e musical, o estudo da nossa Cantiga a 4 vozes terá 
que passar pelo exame do estoque disponível das diferentes formas musicais de que ela 
mais se aproxima - vilancicos, romances e chançonetas em linguagem (cantigas profa- 
nas, em vernáculo) - praticadas ao longo do século XVII e princípios do XVIII no mun- 

22 

do português e ibérico em geral. 

Do ponto de vista textual, a Cantiga possui uma linguagem expurgada do jogo 
de palavras, dos paradoxos do Barroco, aproximando- se muito daquela linguagem poé- 
tica, direta, clara, que vemos no texto dramático de Antonio José da Silva, O Judeu (Rio 
de Janeiro, 1705 - Lisboa, 1739), nome ligado tanto à história da literatura como à da 
música portuguesa. 

Suas óperas, as primeiras em língua portuguesa, traziam pequenas peças de 
gosto popular. 23 

24 

Amor é rapaz, diz o nosso Antonio José. 

A fala de Teseu a Ariadna, na Cena II da ópera Labirinto de Creta (Lisboa, 
1736) lembra com ênfase a linguagem da Cantiga: "Prometo abrasar-me de amor nos 
incêndios". E não é só o homem que o diz. Egéria, no Precipício de Faetonte (idem, 
1738), diz na Cena I da Primeira Parte: "Sim, Faetonte, pois ao ouvi-lo pronunciar, me 
senti abrasada em um vivo incêndio" . 26 

A amada é o Sol. Na Cena II, Segunda Parte, da mesma ópera, Faetonte vê, 
oculto, Ismene se aproximar: "e no entanto gozarão os olhos por entre essas ramas o 

27 28 

belo Sol, que me abrasa" . Ou ainda: "Não te vás formosa Vénus, que sem dúvida 
nascestes agora das escumas desse mar, para abrasar corações [...]; descobre esse ros- 
tinho, que como Sol se quer nublar nessa inoportuna nuvem; não me importa que me 
cegues com raios, se amor já me cegou com delícias", diz Periandro a Filena (Primeira 
Parte, Cena V da Esopaida ou Vida de Esopo, ópera estreada em Lisboa, em 1734). 

O Amor é Menino. Na Terceira Parte, Cena I do Precipício de Faetonte, Albano 
diz a Ismene, a quem deseja: "Amor que foi, sempre é; pois não tem mais que um tem- 
po, e por isso se pinta menino"? 0 

Obras dos anos de 1730! Nesse caso, a poesia da Cantiga estaria, portanto, aggi- 
ornatada._ 

A idéia expressa do Amor Menino, entretanto, já a encontramos no Padre Vieira, 
quase cem anos antes. O sermão que pregou em 1645, na Capela Real, pretendia expli- 
car a paixão divina, mas, segundo o crítico Roberto Simões, "terminou por deixar-nos 
uma agudíssima página de psicologia do amor profano" . 



11 STEVENSON, Robert. op. cit, p. VIII-IX; GA VALDA, Miguel Querol. Cancionero Musical de 
Gongora. Barcelona, CESIC, 1975. p. 61, 64; PINHO, Ernesto Gonçalves de. Santa Cruz de Coimbra: 
centro de actividade musical nos séculos XVI e XVII. Lisboa, Calouste Gulbenkian, 1981. 

23 SILVA, Antonio José da. Óperas. São Paulo, Ed. Cultura, 1944. 2 v. (Série Clássica Brasileiro- 
Portuguêsa "Os Mestres da Língua" sob a direção de José Perez, v. 26) 

24 idem, v. 2, p. 398 - "Caranguejo" canta, em uma ária: ''Amor é que chora, / Que amor é rapaz." 

25 idem, v. 2, p. 46. 

26 idem, v. 2, p. 428. 

27 Os destaques são nossos. 

28 idem, v. 2, p. 474. 

29 idem, v. 1, p. 165. 

30 idem, v. 2, p. 510. 

31 Simões, Roberto, "Padre Vieira e o Amor Mundano", Revista do Livro, Rio de Janeiro, MEC, v 6, n.° 
2, p. 207-209, 1957. 



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12 



O Amor é Menino. E a razão desse simbolismo entre os antigos, para Vieira, 
"era porque nenhum amor dura tanto que chegue a ser velho". Nas pinturas "o amor é 
sempre menino, porque ainda que passe dos sete anos, como o de Jacó, nunca chega à 
idade do uso da razão". 

Propondo-se a classificar o amor, define o amor vulgar: "a alma de um menino, 
que vem a ser? Uma vontade de afetos e um entendimento sem uso". E faz um reparo: 
"Tudo conquista o amor quando conquista uma alma; porém o primeiro rendido é o 
entendimento" . 

Outro porém é o Menino que aparece nos escritos seiscentistas do padre Manuel 
Bernardes (1644-1710). 

O Menino é Deus. E Deus "quando brinca como menino". No texto Rende-te, 
Coração, 32 há elementos que à primeira vista parecem denunciar o sentido da Cantiga 
de Mogi, sobretudo pela imagem das "palhinhas": o menino amado seria Deus. 

"Rende-te, coração meu; que te pedem? Que ames? Não há lei mais 
suave. Quem t'o roga? Um menino? [...]. 
[•••] 

Rende-te coração. Para onde hás de fugir? Para a morte? Hoje nas- 
ce a vida [...]. 
[•••] 

Rende-te; com que hás de resistir? Com a ambição? Hoje é trono de 
Deus uma manjedoura de brutos. Com a ira? As suas armas são lágrimas e 
gemidos. Com a avareza? Deus se dá a si mesmo. Com o apetite de delei- 
tes? Deus chora, Deus padece, Deus está em pobres faixas sobre as palhi- 
nhas. 

Basta; que estou rendido. Basta; que me fere e mata o amor deste 
menino." 

As obras do Padre Bernardes foram publicada já no final do Seiscentos e primei- 
ros anos do Setecentos. 

É o mesmo amor ao menino Deus que aparece nos escritos mais tardios, as Can- 

33 

tigas ao Menino, da religiosa franciscana Madre Soror Baptista de Deus Custódia, do 
Mosteiro da Madre de Deus de Vinhó, Gouveia (Portugal), falecida anciã em 1774: 

"Nuzinho vos vejo 
O meu Menino 
Mil finezas farei 
Meu queridinho. 
Não vos quero em couro 
Por este frio 

Mas ardeis em incêndios 
Meu queridinho". 

E nas Novenas ao Menino Jesus: 



BERNARDES, Padre Manoel. Excerptos (por Antonio Feliciano de Castilho). Rio de Janeiro, Garnier, 
1865. v. 2, p. 91. 

33 "O Livro da Tia Baptista". Beira Alta, Viseu, v. 8, n.° 4, p. 419, 432, 4 o trim. 1949. 



TRINDADE, Jaelson e CASTAGNA, Paulo. Música pré-barroca luso-americana 



13 



"Eu Vos adoro ó meu Deus Menino, e todo o meu remédio que sendo 
toda a grandeza Vos fizestes pequenino, nascendo em umas palhinhas sendo 
toda a riqueza, chorando de frio por quem? por esta desgraçada F. 

"E possível que por mim seja, mas já sei que razão tendes, pois es- 
tais vendo o regelo, e frialdade deste coração. Pois meu Divino Esposo se 
Vós tudo podeis peço Vos me abraseis toda no Vosso Divino amor [...]." 

As "palhinhas" - aquelas que o menino acende em nossa Cantiga - aparecem, 
porém, também no contexto profano do século XVII. São encontradas na Carta de Guia 
de Casados (Lisboa, 1651), de D. Francisco Manuel de Melo. Este chama a atenção dos 
maridos para o perigo que representa ao equilíbrio do casamento o costume de empregar 
em casa pajenzinhos "que chamam tocha ou, de estrado" - que é facilitar que o fogo 
salte e se expanda: 

"Esta sevendilhas pequenas, estes arqueiros, estas palhinhas, estas arestas, 
são às vezes causas de grandíssimos incêndios". 34 

Estilos musicais no Brasil colonial 

A questão dos estilos musicais praticados no Brasil colonial apresenta grandes 
dificuldades de análise, ligadas a problemas históricos e à grande faixa de espaço e 
tempo no qual esta música se desenvolveu. Robert Smith, referindo-se à arquitetura 
brasileira antiga, procurou determinar as grandes divisões estilísticas observadas na 
América Portuguesa: 

"O viajante encontra em cada região do Brasil restos de arquitetura 
colonial, mostrando um caráter especial conforme a zona do país em que se 
acha. Pode-se falar nos estilos regionais da época colonial, designando 
pelo menos quatro diversas maneiras de construir. Temos primeiro a ar- 
quitetura dos extremos do país, estilo italiano frio e severo dos estabeleci- 
mentos jesuíticos, das Missões do Rio Grande do Sul e das cidades e aldeias 
da região amazônica do Norte. Em segundo lugar vem a arquitetura do es- 
tilo setecentista do norte de Portugal, localizada no Estado de Minas Ge- 
rais e no maranhão, onde em duas diversas regiões o viajante observa, com 
espanto, pequena multidão de Viseus e Bragas tropicais. Lá, nas igrejas, 
nos conventos e em quase toda a arquitetura secular se sente bem forte a 
saudade do Minho longínquo. A seguir, o estilo da capital [Rio de Janeiro] , 
envolvido mais tarde numa complicação de influências francesas e italianas 
sobrepostas aos modelos portugueses, verdadeira trasladação além do 
Atlântico do estilo da Corte de Lisboa de depois do terremoto [de 1755], 
quando quase ao mesmo tempo as duas capitais lusitanas começavam a re- 
vestir sua forma moderna. Existem estes três estilos e mais um - a arquitetu- 

35 

ra do Nordeste.'" 



MELO, D. Francisco Manuel de. Carta de Guia de Casados. Porto, Simão Lopes, 1949. p. 46. 
35 SMITH, Robert C. Igrejas, casas e móveis: aspectos da arte colonial brasileira. Recife, Ministério da 
Educação e Cultura / Universidade Federal de Pernambuco / Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico 
Nacional, 1979. p. 23. O fragmento citado refere-se ao primeiro capítulo do livro, "(9 carácter da arqui- 
tetura colonial do Nordeste", anteriormente publicado na revista Estudos Brasileiros, Rio de Janeiro, ano 
2, v. 4, n.° 10, 1940. 



TRINDADE, Jaelson e CASTAGNA, Paulo. Música pré-barroca luso-americana 



14 



Podemos utilizar a classificação de Smith como ponto de partida para analisar a 
proliferação de estilos na produção musical brasileira do período. O primeiro deles, o 
jesuítico, desenvolveu-se no Brasil desde 1549, baseado em modelos da música ibérica 
católica de caráter funcional, ou seja, despreocupada com a função meramente artística 
das obras ou com o deleite da aristocracia, mas voltada a objetivos exclusivamente ca- 
tequéticos e espirituais. Dessa música, utilizada sobretudo nas regiões costeiras, so- 
mente restaram textos de músicas e relatos de época descrevendo sua utilização. No 
Brasil, praticou-se até 1759 - quando a Companhia de Jesus ainda atuava nos domínios 
portugueses - desde canções nas línguas correntes (latim, português, espanhol, tupi- 
guaraní e outras línguas indígenas), até obras em "canto de órgão" 36 a várias vozes e 
com instrumentos, cantadas em latim em cerimónias religiosas. Infelizmente, pouco 
podemos inferir com relação ao caráter musical propriamente dito de tais obras, uma 
vez que não existem manuscritos documentadamente utilizados nas missões jesuíticas 
da costa brasileira para poderem ser analisados do ponto de vista musical. Não se acre- 
dita, também, que essa prática possa ter alcançado o desenvolvimento observado nas 
missões da América Espanhola. 

O segundo estilo descrito por Smith refere- se àquele encontrado em Minas Ge- 
rais. No tocante à produção musical, foi na Capitania de Minas Gerais que se desenvol- 
veu o movimento mais rico e mais coeso do período colonial. No entanto, a vasta pro- 
dução colonial mineira exibe uma evolução estilística semelhante à que se observa na 
produção arquitetônica: encontramos obras musicais de uma simplicidade pós-barroca, 
como as de Manuel Dias de Oliveira (Tiradentes, c. 1735-1813) e de autores anónimos 
mineiros, distintas da produção pré-classica que floresceu entre C.1760-C.1820, de auto- 
res como J.J. Emérico Lobo de Mesquita (17467-1805), Marcos Coelho Neto (1763- 
1823), Inácio Parreiras Neves (c.1730 - 1793/4) e Francisco Gomes da Rocha (c.1754- 
1808), que já lograram uma produção de caráter dramático mais acentuado, porém ple- 
namente integradas à função religiosa. A última fase da música colonial mineira, mani- 
festa na produção de J.D. Castro Lobo (1794-1832), já exibe uma forte ligação com o 
classicismo musical italiano, totalmente regida pelas inovações operísticas, segundo 
modelos de Giovanni Paisiello, Domênico Cimarosa e Luigi Cherubini, fazendo surgir 
obras voltadas em primeiro lugar ao espetáculo - por meio do virtuosismo vocal e ins- 
trumental - e em segundo à religião. 

O estilo encontrado na música do Rio de Janeiro colonial, assim como na arqui- 
tetura, é tardio, mais complexo e cosmopolita. José Maurício Nunes Garcia (1767- 
1830), apesar de sua base estética portuguesa e italiana, utiliza também modelos im- 
portados de outras nacionalidades, sendo a riqueza de meios a característica principal de 
sua produção e de outros autores do início do séc. XIX. A música instrumental foi mais 
utilizada no Rio, em função da presença da corte portuguesa, com obras do próprio Gar- 
cia, mas também de Marcos Portugal (Lisboa, 1762-1830), Sigismond Neukomm 
(1778-1858), Gabriel Fernandes da Trindade (c.1790-1854) e outros. 

Uma certa semelhança pode ser observada entre a produção carioca e paulista 
colonial. A cidade de São Paulo, sede do Bispado desde 1745, procurou instalar uma 
prática musical que simbolizasse a Igreja triunfante e o poder colonial, sobretudo no 
período de atuação, como mestre de capela da catedral, do compositor português André 
da Silva Gomes (1752-1844), desde 1774. 

Finalmente, a produção colonial nordestina, cujos maiores centros foram Salva- 
dor (Bahia), Recife e Olinda (Pernambuco), foi quase totalmente perdida, impossibili 



"Canto de órgão" é palavra portuguesa para música mensurada e "a vozes", contraposta a "canto- 
chão", música não mensurada e cantada em uníssono, chamada também "canto gregoriano". 



TRINDADE, Jaelson e CASTAGNA, Paulo. Música pré-barroca luso-americana 



15 



tando análises mais acuradas. Os raros exemplos sobreviventes, como o Recitativo e 
Aria de autor anónimo Baiano, de 1759 (possivelmente escrito por Caetano de Melo 
Jesus) e algumas poucas peças de Luís Álvares Pinto (c.1719-c.1789) já manifestam 
divergência estilística. O Recitativo e Ária utiliza uma forma plenamente barroca, mas 
já exibe características estilísticas mais avançadas, que poderiam ser denominadas pós- 
barrocas ou pré-classicas. Luís Alvares Pinto, ao contrário, apresenta uma produção 
estilisticamente mais arcaica. Seus modelos são os do barroco português da primeira 
metade do séc. XVIII, com uma curiosa aliança entre a manutenção da polifonia antiga 
e a economia de recursos composicionais. 

Por toda a América Espanhola, a produção musical dos séculos XVI e XVII re- 
produziu os principais modelos composicionais renascentistas, possibilitando, entre fins 
do séc. XVII e inícios do séc. XVIII uma impressionante assimilação das tendências 
mais modernas do barroco italiano, incluindo a técnica do recitativo e ária, do estilo 
"concertato" e, inclusive, da ópera e da música instrumental. Por outro lado, o panora- 
ma musical luso-americano não exibiu uma atualização estética nas mesmas propor- 
ções: "Mão existe Opera em Portugal no século XVII, nem existirá até às primeiras se- 

37 

renatas italianas cantadas na corte portuguesa na década de 1720." Ruy Vieira Nery 
informa o quanto Portugal esteve preso, no séc. XVII, aos modelos contra-reformistas e 
a uma música de caráter renascentista, com a manutenção da polifonia vocal e uso res- 
trito dos instrumentos musicais, o que este autor denomina de maneirismo musical 
português: 

"O Maneirismo perdura na Música portuguesa muito para lá de as 
suas últimas manifestações em Itália terem dado definitivamente lugar ao 
Barroco, ao longo das décadas de 1630 e 1640. Se considerarmos em ter- 
mos genéricos a nossa produção musical da segunda metade do século XVII 
verificamos, com efeito, que os géneros em que ela assenta são ainda, fun- 
damentalmente, os que herdou do século anterior - a Missa, o Motete e o 
Vilancico no plano da Música sacra, o Tento e a Fantasia na Música ins- 
trumental - e que nos faltam por completo alguns dos géneros fundamentais 
do Barroco italiano seiscentista como a Opera, a Cantata e a Oratória no 
plano vocal ou a Sonata e o Concerto no plano instrumental. Encontramos, 
por outro lado, uma persistência evidente da polifonia imitativa, na maioria 
dos casos concebida para uma textura de quatro a seis vozes. No âmbito da 
teoria musical depara-se-nos um quadro de inegável estagnação, em que as 
normas do contraponto quinhentista e o sistema dos oito modos gregoria- 
nos, tal como haviam sido expostos mais uma vez em 1613 por Cerone, 
transitam de forma quase imutável de tratado em tratado, independente- 
mente da qualidade pedagógica indiscutível de alguns destes manuais, 
como é o caso da Arte Mínima de Manuel Nunes da Silva, que, editada em 
1685, viria ainda a ter duas reedições, já em pleno século XVIII (1704, 
1725). [,..]" 38 

Quando Nery se propõe a descrever a produção portuguesa de fins do séc. XVII 
e inícios do séc. XVIII, esbarra em uma dificuldade de caráter metodológico que, em 
suma, é a mesma que temos de enfrentar ao investigar a prática musical brasileira na 

37 NERY, Rui Vieira & CASTRO, Paulo Ferreira de. História da música. Lisboa, Imprensa Nacional - 
Casa da Moeda / Comissariado para a Europália 91 - Portugal, 1991. p. 79. (Sínteses da Cultura Portu- 
guesa) 

38 NERY, Rui Vieira & CASTRO, Paulo Ferreira de. op. cit, p. 76 



TRINDADE, Jaelson e CASTAGNA, Paulo. Música pré-barroca luso-americana 



16 



primeira metade do séc. XVIII: a música desse período, em Portugal, não se orientou 
por um único ideal, manifestando, ao mesmo tempo, uma tendência à manutenção dos 
estilos quinhentistas e outra em direção ao barroco italiano: 

"O período que medeia entre as décadas de 1670 e 1720 é um dos 
que foi até hoje menos estudado na nossa História da Música, correspon- 
dendo em termos estilísticos a uma espécie de terra de ninguém entre o 
prolongamento das manifestações de um Barroco seiscentista de raiz ibéri- 
ca e a penetração maciça dos modelos italianos a partir da segunda década 
do século XVIII. Na medida em que esta penetração se verificou sobretudo 
através da Capela Real, como veremos, ela apanhou de surpresa a maioria 
dos músicos portugueses formados e activos nas restantes instituições, 
mesmo naquelas que tradicionalmente se tinham destacado como grandes 
centros de actividade musical, como as Sés de Lisboa e Évora, por exemplo. 
Surge-nos assim neste período, quer no quadro geral da produção musical 
portuguesa quer até no seio da obra de cada compositor, uma identificação 
estilística de fundo em que coexistem as atitudes mais variadas, desde a fi- 
delidade absoluta aos modelos peninsulares tradicionais à aceitação em 
bloco dos novos padrões importados, passando por inúmeras formas híbri- 
das em que elementos de ambas as tendências se combinam numa área cin- 

39 

zenta de difícil classificação." 

A produção portuguesa do período 1670-1720 representou, portanto, uma fase 
de transição entre o renascimento tardio peninsular e o estilo barroco importado da Itá- 
lia. A partir de então, Portugal passou a assimilar as novidades barrocas, como a ópera, 
o recitativo e a ária, mas ainda utilizando técnicas composicionais já superadas na Itá- 
lia. 40 Assim, o Requiem de Antônio Teixeira (1735) soa mais próximo da ópera de 
Monteverdi que de toda a música de Vivaldi; a produção religiosa de Domênico Scar- 
latti (que viveu em Lisboa entre 1720-1724) e Carlos Seixas (1704-1742), apesar de 
identificáveis enquanto barrocas, manifestam ainda a manutenção da polifonia vocal e 
das linhas planas do renascimento tardio. 

Sob esta perspectiva, é possível compreender um pouco mais sobre os raros 
exemplos barrocos encontrados no Brasil e compostos no centro do século XVIII, como 
a Oratória ao Menino Deus para a Noite de Natal, de Inácio Parreiras Neves (Ouro 
Preto, Minas Gerais), o Recitativo e Ária atribuído a Caetano de Mello Jesus (Salvador, 
Bahia, 1759) e as poucas composições recuperadas do pernambucano Luís Alvares 
Pinto. Este autor, nascido em c. 1719, viajou a Portugal em c.1740, lá permanecendo até 
data anterior a 1761. Em Portugal, estudou com o contrapontista Henrique da Silva Es- 
teves Negrão e, entre outras atividades, foi professor de música das filhas do Marquês 

39 NERY, Rui Vieira & CASTRO, Paulo Ferreira de. op. cit, p. 80-81. 

40 Complementam as informações já transcritas estas mais de Rui Vieira Nery: "t/m elemento decisivo 
neste processo de transformação será, já em plena década de 1720, a introdução gradual dos instru- 
mentos de corda na música litúrgica, mais uma vez a exemplo do sucedido na Capela Real. [...]" e ainda 
esta outra sobre a adoção do modelo operístico italiano em Portugal: "A partir da década de 1730, no 
entanto, o gosto da corte e do público em geral orientou-se gradualmente para a nova Opera italiana 
que entretanto chegara a Portugal, e o teatro musicado de tradição ibérica, ao contrário de géneros 
similares como o Singspiel na Alemanha, o Vaudeville em França ou a Ballad Opera em Inglaterra, 
desapareceu da cena, constituindo o Discurso apologético em defesa do teatro espanhol (1739) do Mar- 
quês de Valença, como escreve Manuel Carlos de Brito, 'o dobre de finados pelo género em Portugal ', 
mas também o fim de um processo devolução de um Barroco musical de raízes inequivocamente penin- 
sulares." Cf.: NERY, Rui Vieira & CASTRO, Paulo Ferreira de. op. cit., p. 82 e 84, respectivamente. 



TRINDADE, Jaelson e CASTAGNA, Paulo. Música pré-barroca luso-americana 



17 



de Pombal. De suas composições, cujas circunstâncias indicam forte impregnação pelo 
barroco português, eram conhecidas apenas um Te Deum laudamus para coro e orques- 
tra (cujas partes orquestrais foram perdidas) e um Salve Regina para três vozes e contí- 
nuo. Recentemente, surgiu um manuscrito inédito, o Músico e moderno sistema para 
solfejar sem confusão, 41 obra teórica e prática para o ensino da leitura musical, que 
contém as 24 Lições de solfejo, peças a duas vozes - a mais grave para ser tocada por 
instrumento (possivelmente o cravo) e a mais aguda para ser solfejada - e os cinco Di- 
vertimentos Harmónicos, obras corais a três e quatro vozes, destinadas a treinar o sol- 
fejo em grupo. São peças francamente tonais, dotadas do "desenvolvimento contínuo" 
barroco, mas com a manutenção da técnica polifônica, que o barroco italiano já abando- 
nara em nome da homofonia e dos contrastes solo-tutti, então denominados "musica 
concertata" . 

Sabemos, no entanto, que a prática musical no Brasil, mesmo em circunstâncias 
precárias, remonta aos primórdios da colonização. Por toda a costa, desde Recife (Regi- 
ão Nordeste) até São Vicente (Região Sudeste), as notícias sobre o trabalho remunerado 
de músicos são relativamente grandes a partir de c.1650. Mesmo assim, é notável a per- 
da quase total da documentação musical relativa a períodos anteriores à década de 
1760. 42 

O Grupo de Mogi das Cruzes 

Até inícios da década de 80, eram raros os documentos musicais encontrados no 
Brasil, que exibiam uma estética cronologicamente anterior aos estilos musicais já estu- 
dados. O passionário do compositor português Francisco Luís (séc. XVII), que o pri- 
meiro Bispo de Mariana, D. Manuel da Cruz, levou para aquela cidade em 1748, o 
Cum descendentibus in lacum do espanhol Ginés de Morata (séc. XVI) 44 e o Manuscrito 
de Piranga, 45 provável coleção de obras portuguesas setecentistas para a Semana Santa, 
são os casos mais conhecidos. 

A descoberta de Mogi, no entanto, possui um grande significado na musicologia 
brasileira, por ter permitido, pela primeira vez, o estabelecimento de uma relação clara 
entre a música maneirista ou pré-barroca ibérica e a prática musical na América Portu- 
guesa. Copiadas ao redor de 1730, as 11 obras musicais do Grupo de Mogi das Cruzes 
diferenciam- se nitidamente da música barroca, pós-barroca ou pré-clássica produzida no 
Nordeste brasileiro e nas Capitanias de Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro no 
século XVIII, assemelhando-se às obras religiosas portuguesas mais simples produzidas 
desde o final do séc. XVI até o final do séc. XVII. Suas principais características são as 
seguintes: 

41 Manuscrito de propriedade de D. Pedro de Orleans e Bragança (Petrópolis, RJ), bisneto do Imperador 
Pedro H. 

42 Os mais antigos manuscritos musicais brasileiros datados foram copiados em épocas muito próximas: 
1759 na Bahia, 1767 em Minas Gerais, 1774 em São Paulo, 1776 em Pernambuco e 1783 no Rio de Ja- 
neiro. 

43 LOPES, Maryla Duse Campos. Transcrição de um passionário do século XVIII. ENCONTRO NACI- 
ONAL DE PESQUISA EM MÚSICA, II, São João dei Rei, MG, 4 a 8 de dezembro de 1985. Anais. Belo 
Horizonte, DTGM da Escola de Música da UFMG, Orquestra Ribeiro Bastos de São João dei Rei, Socie- 
dade Brasileira de Estudos do século XVIII. Belo Horizonte, Imprensa Universitária, 1987 [na capa: 
1986]. p. 55-62. 

44 DUPRAT, Régis. A polifonia portuguesa na obra de brasileiros. Pau Brasil, São Paulo, ano 3, n.° 15, p. 
69-78, nov./dez. 1986. 

45 CASTAGNA, Paulo. O manuscrito de Piranga (MG). Revista Música, São Paulo, Depto. de Música da 
ECA-USP, v. 2, n° 2, p. 1 16-133, nov. 1991. 



TRINDADE, Jaelson e CASTAGNA, Paulo. Música pré-barroca luso-americana 



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1. Formação coral "a cappella", com emprego possível de um instrumento grave 
(melódico ou harmónico) dobrando ou substituindo o baixo vocal; 

2. Utilização do sistema modal; 

3. Escrita em partes; 

4. Utilização da notação mensurai ou proporcional; 

5. Ausência de grande parte das alterações cromáticas ou acidentes, que deveriam 
ser introduzidos pelos cantores ("musica ficta"); 

6. Repousos por "cláusulas" ou "cadências", ou associação de ambas; 

7. Utilização de valores largos (a base está nas mínimas e semibreves); 

8. Pouca variedade rítmica (os valores predominantes são a semibreve e a míni- 
ma; semínimas são incomuns e colcheias muito raras); 

9. Utilização de designações renascentistas para as vozes (tiple, altus, tenor, bas- 
sus); 

10. Predomínio dos registros graves para o tiple (soprano) e o altus (contralto) e 
dos médios para o tenor e o bassus (baixo), com maior flexibilidade para o 
bassus; 

11. Extensão (registro ou âmbito) reduzida das partes vocais (geralmente, de uma 
quinta a uma oitava), à exceção do bassus; 

12. Movimento das vozes normalmente por graus conjuntos; 

13. Harmonia simples; 

14. A exceção das obras ou seções polifônicas, inexistência de passagens a solo, 
duo ou trio (a Cantiga Matais de incêndios é exceção); 

15. Ocorrência esporádica de quintas ou oitavas paralelas; 
16. Sujeição total ao ritmo do texto latino; 

17. Estilo predominantemente silábico; 

18. Repetições de texto muito raras; 

19. Música de preocupação exclusivamente religiosa, sem a exploração de efeitos 
dramáticos ou teatrais; 

20. Base estética filiada às obras tecnicamente mais simples do estilo romano con- 
tra-reformista, comum na Península Ibérica no séc. XVII; 

21. Utilização de três procedimentos musicais básicos: 

a) o fabordão 

b) a homofonia modal 

c) a polifonia 

Mas as obras dos manuscritos de Mogi das Cruzes permitiram uma constatação 
ainda mais importante. Encontramos várias das peças deste conjunto em cópias mineiras 
e paulistas posteriores, em versões idênticas ou adaptadas, sempre sem indicação de 
autoria. Tal pesquisa revelou que, pelo menos 5 das 1 1 obras copiadas em Mogi em 
c.1730, continuaram a ser reproduzidas em cidades de Minas Gerais e São Paulo du- 
rante os séculos XVIII e XIX e mesmo em inícios do séc. XX: os Bradados de Domingo 
de Ramos (obra n.° 1), os Tractus de Sexta-Feira Santa (obra n.° 4), a Paixão segundo 
São João, em duas versões (obras n.° 5 e 6) e a Procissão do Enterro (obra n.° 8). Com 
isso, essas peças, que até há pouco se procurava atribuir a compositores dos séculos 
XVIII e XIX, se revelaram, no mínimo, anteriores a 1730 e, segundo suposição decor- 
rente de nossa análise estilística, obras provavelmente de compositores portugueses ou 
brasileiros de fins do séc. XVII. 

As composições encontradas em Mogi das Cruzes permitiram, mais que a sim- 
ples descoberta de um novo acervo, uma compreensão mais efetiva da produção paulista 



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e mineira anterior à fase barroca e pré-clássica de C.1760-C.1820, pela identificação de 
composições que circularam por esses territórios em períodos anteriores. 

As obras musicais 

A documentação do Grupo de Mogi das Cruzes compõe-se de 29 folhas, manus- 
critas por 10 a 15 copistas diferentes, três dos quais identificados nas próprias cópias: 
Faustino do Prado Xavier, Angelo do Prado Xavier e Timóteo Leme que, como vimos, 
não são necessariamente os autores das músicas. Por análises realizadas no papel e na 
caligrafia dos originais, supomos que a maior parte dos manuscritos teria pertencido, em 
data anterior a 1748, ao arquivo pessoal de Faustino do Prado Xavier (1708-1800), 
mestre de capela de Mogi das Cruzes entre 1729-1733 e cónego da Catedral de São 
Paulo na segunda metade do séc. XVIII. 

Apresentamos, a seguir, uma rápida descrição das obras recuperadas dessa do- 
cumentação, seguida de seu índice Temático. 46 

1 - Bradados de Domingo de Ramos. As cópias desta obra parecem ter sido todas reali- 
zadas por Faustino do Prado Xavier, apesar de serem reconhecíveis quatro padrões dis- 
tintos de cópia. A obra está construída em homofonia modal, apresentando, para os 
"Bradados" da Paixão, música quase sempre em "canto de órgão", à exceção das se- 
ções "Et tu cum Jesu Galileo eras" e "Et hic erat cum Jesu Nazareno" , ambos em can- 
tochão (por breves e semibreves). A versão de Mogi não apresentava a seção polifônica 
inicial de 21 compassos, o "Passio Domini nostri Jesu Christi secundum Mathceum" , 
que restauramos com base em manuscritos encontrados no Museu da Música de Maria- 
na (MG). Existe também um manuscrito da Sé de Évora, copiado já em notação vigente, 
provavelmente no séc. XVIII e intitulado "Ditos das turbas para Domingo de Ramos", 
que apresenta seções coincidentes com os Bradados de Mogi, sobretudo a seção Non in 
die festo. A obra foi escrita em "compassinho" (C), sem a utilização de barras de com- 
passo. 

2 - Ofício de Quarta-Feira Santa. Somente existia uma parte de Altus, ainda assim in- 
terrompida no c. 670, antes da conclusão do responsório Una hora non potuisti, da oita- 
va lição (o Ofício possui nove lições). E certamente a peça mais longa de todo o con- 
junto, mas que não pode ser, até agora, nem identificada e nem restaurada por falta de 
partes. A obra foi escrita em "compasso maior" (C cortado), sem barras de compasso, 
com ligaduras de breves. 

3 - Ex Tractatu Sancti Augustini. Copiada por Angelo do Prado Xavier, esta é a obra 
musicalmente mais complexa do Grupo de Mogi das Cruzes. Alternando seções poli- 
fônicas com homofônicas, estende-se por 163 compassos, referentes a dois terços do 
texto de Santo Agostinho sobre os Salmos, para a 4. a Lição do 2.° Noturno do Ofício de 
Matinas da Quinta-Feira Santa (no séc. XVIII: Quarta-Feira). A obra foi escrita em 
"compassinho" (C), sem a utilização de barras de compasso, com o emprego de ligadu- 
ras de breves. 



46 As notas musicais de tamanho reduzido, no índice Temático, não existiam nos manuscritos do Grupo 
de Mogi das Cruzes. Foram restauradas por análise interna das obras ou por comparação com manuscri- 
tos provenientes de outras localidades. 



TRINDADE, Jaelson e CASTAGNA, Paulo. Música pré-barroca luso-americana 



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4 - Tractus de Sexta-Feira Santa. Esta obra foi encontrada em dois conjuntos diferentes: 
o primeiro, completo, foi provavelmente todo copiado por Faustino do Prado Xavier; o 
segundo, somente em partes de Tenor e Bassus, foi copiado por Timóteo Leme. A obra 
é estritamente homofônica e aparece em versões praticamente idênticas em arquivos 
paulistas e mineiros. 47 A obra foi escrita em "compassinho" (C), sem a utilização de 
barras de compasso. 

5 - Paixão segundo São João (música 1 - versão 1). Destinada à Sexta-Feira Santa, esta 
obra foi copiada por Timóteo Leme e provavelmente por Faustino do Prado Xavier. A 
seção inicial de 21 compassos, o "Passio Domini nostri Jesu Christi secundum Joan- 
nem", foi restaurada com base em manuscritos encontrados nas cidades de Mariana 
(MG), São João dei Rei (MG) e Pindamonhangaba (SP), sempre associados aos Tractus 
de Sexta-Feira Santa. A peça é essencialmente homofônica, com '"canto de órgão" para 
as passagens corais da Paixão, à exceção da seção "Numquid et tu ex discipulis es homi- 
nis istius", em cantochão (por breves e semibreves). A obra foi escrita em "compassi- 
nho" (C), sem a utilização de barras de compasso. 

6 - Paixão segundo São João (música 1 - versão 2). Encontrada no Grupo de Mogi das 
Cruzes apenas por cópias de Tenor e Bassus por Timóteo Leme, difere da versão anteri- 
or por encontrar-se escrita quinta justa acima e por incluir, em "canto de órgão", tre- 
chos da Paixão referentes às falas de Jesus Cristo. Nas passagens corais, a música pode 
ser restaurada com base na versão anterior. Nas passagens referentes às falas de Jesus, 
no entanto, não existe certeza em relação ao número de vozes utilizadas: 2, 3 ou 4? A 
obra foi escrita em "compassinho" (C), sem a utilização de barras de compasso. 

7 - Paixão segundo São João (música 2). Trata-se de uma segunda Paixão para a Sexta- 
Feira Santa, disponível apenas por uma parte de Tiple. Infelizmente, a obra ainda não 
pode ser identificada ou restaurada, apesar de já transcrita. Foi escrita em "compasso 
maior" (C cortado), sem barras de compasso, apresentando ligaduras de breves. 



Localizamos cópias dessa obra no Museu da Música da Arquidiocese de Mariana (MG), no arquivo da 
Orquestra Lira Sanjoanense, de São João dei Rei (MG) e no Museu Histórico e Pedagógico D. Pedro II e 
Princesa Leopoldina, de Pindamonhangaba (SP). Régis Duprat possui, em seu arquivo pessoal, cópias 
manuscritas desta peça, como também dos Bradados de Domingo de Ramos, localizadas em acervos 
paulistas: "Assim, arrolamos sete manuscritos oriundos de várias cidades do Vale do Paraíba e da Serra 
do Mar, e um exemplar de Porto Feliz, a oeste de São Paulo. As cidades do Vale são: Aparecida (2 ma- 
nuscritos) e Guaratinguetá; e os da Serra do Mar: Cunha (2 manuscritos) e São Luís do Paraitinga (2). 
Um destes últimos parece tratar-se do mais antigo dentre os demais (apenas uma parte do contralto), 
porém, não datado, traz a escritura original reforçada por decalque mais recente, dificultando conclu- 
sões mais definidas. 

"Dentre os manuscritos datados, um dos de Aparecida é o mais antigo. De 1863, é proveniente 
da cidade mineira de Itajubá, serra acima, ali copiado por Francisco José de Lorena que, nessa década, 
se radica no Vale, onde constituiu uma linhagem de músicos de Aparecida do Norte. Seria ele o portador 
do novo protótipo das obras compostas no mesmo Vale, cerca de 130 anos antes e, a partir de então ali 
refundidas como difundidas foram nas Gerais em período anterior: e ali permaneceram, executadas e 
recopiadas. Não é outra a razão de encontrarmos dois itens dessas obras no catálogo de microfilmes do 
Ciclo do Ouro. Uma, no Museu da Música, de Mariana (p. 269) 'P. a sexta f. m '; outra, na Lira Sanjoanen- 
se, de São João del-Rei (p. 271), em cópia de 1928 e autoria atribuída, no catálogo, a Manoel Dias de 
Oliveira". Cf. DUPRAT, Régis & TRINDADE, Jaelson (Uma descoberta musicológica: os manuscritos 
musicais de Mogi das Cruzes, c. 1730. In: ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISA EM MÚSICA, II, 
Belo Horizonte, Imprensa da UFMG, 1986, p. 52-53. 



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8 - Procissão do Enterro. Esta peça aparece como a última obra das partes de Tenor e 
Altus copiadas por Timóteo Leme, que continham os Tractus e a Paixão para Sexta- 
Feira Santa. Baseamos sua restauração em uma versão de copista anónimo (séc. XIX) 
de Piranga 48 e em uma versão copiada por Manoel José Gomes (1792-1868, pai de 
Carlos Gomes) em Campinas, na primeira metade do séc. XIX. 49 Utiliza o fabordão 
para a seção Heu! Heu! Domine! e homofonia para o Sepulto Domino. A obra foi escrita 
em "compassinho" (C), sem a utilização de barras de compasso. 

9 - Regina Cceli Icetare. É a Antífona de Nossa Senhora, cantada aos sábados, desde a 
Páscoa até a Santíssima Trindade (exclusive). Recuperamos, dentre os documentos de 
Mogi, apenas as partes de Tiple e Tenor, mas o caráter homofônico e a extrema simpli- 
cidade da obra permitiu sua restauração completa. A obra apresenta mensuração ternária 
(C3), com mínimas e semibreves negras e semínimas brancas com haste, sem barras. 

10 - Ladainha de Nossa Senhora. Desta obra somente existe, no Grupo de Mogi das 
Cruzes, uma parte de "Rabeca", ou seja, violino. Dividida em quatro seções - Kyrie, 
Pater de Ccelis Deus, [Sancta] Maria e, provavelmente, Agnus Dei. Apresenta mensu- 
ração ternária (C3), com mínimas e semibreves negras, semínimas brancas com haste e 
barras de compasso, à exceção das regiões com hemiolas decorrentes da utilização de 
semibreves negras. 

1 1 - Matais de incêndios. Música sobre poesia de oito pares de versos decassílabos, que 
denominamos Cantiga. Esta composição foi escrita em português e copiada em partes 
de Tiple 2.° a 4 (voz mais aguda), Tiple a duo, Altus a duo e Tenor a 4, por quatro co- 
pistas diferentes e não identificados. Cada um dos oito pares de versos é cantado duas 
vezes: a primeira a duas vozes (Tiple a duo - Altus a duo) e a segunda a quatro vozes. A 
existência de pausas gerais de dois compassos em quatro ocasiões (compassos 8-9, 12- 
13, 21-22 e 25-26) faz supor a utilização de um acompanhamento instrumental (talvez 
para harpa ou viola), cujas partes não foram encontradas. Realizamos uma restauração 
teórica desse acompanhamento, com base apenas na análise interna da obra, empregan- 
do somente linhas melódicas extraídas das partes vocais. O manuscrito também apre- 
senta mensuração ternária (C3), com mínimas e semibreves negras, sem barras de com- 
passo. 



Manuscrito encontrado no acervo pessoal de D. Terezinha Aniceto, na cidade de Piranga (MG). 
49 Manuscrito encontrado no acervo Santana Gomes, do Museu Carlos Gomes do Centro de Ciências, 
Letras e Artes de Campinas (SP). 



TRINDADE, Jaelson e CASTAGNA, Paulo. Música pré-barroca luso-americana 



GRUPO DE MOGI DAS CRUZES: 
ÍNDICE TEMÁTICO 



í - BRADADOS DE DOMINGO DE RAMOS 



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2 - OFICIO DE QUARTA-FEIRA SANTA 



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3 - EX TRACTATi: SANCT1 Al GUSTINI 



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4 - TRÁCTUS DE SEX TA-FEIRA SANTA 



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5 - PAIXÃO SEGUNDO S. JOÃO (música I - versão 1) 



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6 - PAIXÃO SECINDO S. JOÃO (música 1 - versão 2) 



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TRINDADE, Jaelson e CASTAGNA, Paulo. Música pré-barroca luso-americana 



7 - PAIXÃO SF.GI NDO S. JOÃO (música 2) 



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PROCISSÃO DO ENTERRO 



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9 - | ANTI FONA] REGINA C/ELI L/ETARE 

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u! Sal - va - lor no 



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Re - gi - na ca; - li lae - ta - 

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ai - le - lu - ja. al - le - lu 

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Re - gi - na cse - li la: - ta - re, 
10 - | LADAINHA DE NOSSA SENHORA| 



al - le - lu - ja. 



al - le - lu - ja. al - le 



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II - ICANT1GA] MATAIS DL INCÊNDIOS 



rrrr i r "f J r r 1 rrf f ' Tf ' r rrrr ' "rr ^ff 



1. Ma - tais— de in cên-dios, — meu— lin-do, 

2. Dei - xai — que eugo-ze es - sas — lu-zes, 

3. Hei de— che-gameaos— in - ceixlios. 



ai, lê, lê. Por - que— um — sol — me — pa receis, 
ai, lê, lê. Meu— a - mor — não— me — ma - teis. 

lê. In - da — que— r rai - os— vi - breis, 



1^1 — ti - gai i auí — ui-v-^iruius. ai, i\-, ic 111 ua ^|u^- — r tai — v i - li 



4. Mas- sc a vós me che - go, a-man-tc, 

5. Pa - ra a - bra-sar co - ra - çò-es. 

6. O — meu— por vós já — sea-bra-sa, 

7. Sus - pen - dei. me - ni - no, o pran-to, 

8. O - ra,— fa-zeismea— von - ta -de. 



lê, le. Meu a - 

""As pa 

Meu a ■ 

lê, lê. Mas [meu 

lê, lê. Meu a - 



mor nao me ma - teis, 

Ihi - nhãs a - cen - deis. 

mor não me ma - leis. 

lin - doj. não cho - reis. 

mor não me ma - teis, 



EÉÉÉ 



r r r 



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