Skip to main content

Full text of "O Palimpsesto de Aristarco"

See other formats


O Palimpsesto de Aristarco 



Consideragoes sobre plagio, originalidade e 
informagao na musicologia historica brasileira* 

Andre Guerra Cotta 

A comunidade envolvida com a musicologia historica brasileira sofreu no ano 
de 1997 o impacto de uma carta acusatoria, que passou pelas maos de muitos 
pesquisadores, criando um clima geral de constrangimento e, digamos assim, muita 
adrenalina. Tratava-se de uma carta escrita por Regis Duprat, inicialmente 
enderecada a Sociedade Brasileira de Musicologia, mas distribuida para diversas 
personalidades da area e mesmo a algumas instituicoes, na qual este acusava de 
plagio Paulo Castagna, musicologo da nova geracao 1 . Espantosa, nessa carta, 
alem da acusacao em si 2 , foi a agressividade com que seu autor se manifestou - 
usando, por exemplo, palavras como moleque para referir-se ao acusado. Alem de 
tais agressoes verbais, o autor da carta afirmou que tomaria as medidas juridicas 
cabiveis, isto e, processar o acusado. Este e um dos raros casos em que alguem fez, 
por escrito e publicamente - normalmente tais acusacoes nao ultrapassam os limites 
do privado e a forma oral de uma conversa entre amigos -, uma acusacao publica de 
plagio no campo da musicologia historica brasileira. Em outras areas, a galeria de 
acusados de plagio e muito extensa e comporta nomes ilustres (nem pela acusacao 
em si, nem mesmo pela sua comprovacao, deixaram de ter reconhecida sua 
celebridade) como e o caso de Shakespeare e Flaubert, na literatura, de Pascal, na 
filosofia, e ate mesmo de Freud, na psicologia. Apesar de tudo, o episodio revelou- 
se extremamente importante. Criou uma otima oportunidade para a manifestacao 
de Castagna, que fez uma defesa minuciosa em um artigo-resposta 3 . Poder-se-ia 

Este artigo foi desenvolvido a partir da disciplina Retdrica da Informagao, ministrada pela 
Prof. Dr. a Vera Lucia Casa Nova, no Programa de Pos-graduacao em Ciencia da Informacao, 
EB-UFMG. 

1 O caso ja foi relatado em artigo. Cf. CASTAGNA, Paulo. O "roubo da aura" e a pesquisa 
musical no brasil. Anais do X Encontro Anual da ANPPOM. Goiania, UFG/ANPPOM, julho, 
1997, p. 35-39. 

2 Uma acusacao de plagio e um gesto violento, principalmente quando e uma acusacao injusta. 
Uma das raz5es inconscientes - me veio a memoria quando estava por terminar este texto - 
para que eu me dedicasse a estudar esse problema foi a suspeita que recaiu sobre uma redajao 
descritiva que fiz, ainda nos estudos de segundo grau, chamada Zoefer. Mesmo inocente e 
mesmo tendo o problema resolvido - nao deixou de ser um elogio, afinal - foi muito dura a 
experiencia de estar no banco dos reus. 

3 CASTAGNA, Paulo. Etica e democracia na musicologia brasileira: uma resposta a Regis 
Duprat. Sao Paulo, 1997, 29 p. Artigo solicitado pela Sociedade Brasileira de Musicologia, 
com vistas a publica<;ao, ainda nao publicado. 



7 



inclusive, depois desse artigo, dar por encerrado o infeliz episodio, mas isso 
significaria perder a oportunidade de aprofundar um pouco mais as diversas 
questoes que se colocaram, entre as quais pode-se destacar: Como se pode tratar 
a questao do plagio e da originalidade na ciencia e, mais particularmente, na 
musicologia? Quais sao os problemas envolvidos quando dois pesquisadores 
trabalham sobre um mesmo objeto? 

PLAGIAR: USURPAQAO OU INTERTEXTUALIDADE? 

Michel SCHNEIDER (1990, p. 34), que estudou detalhadamente o plagio, 
especialmente suas ocorrencias e relacoes na psicanalise e na literatura, aborda o 
tema da seguinte maneira: 

"Falo de plagio, ora dando ao termo a defrnicao estrita de um procedimento 
- desonesto - de escritura, ora a extensao a toda uma serie de questoes que 
concernem ao sujeito do pensamento e da escritura (...) 0 sentido de plagio 
e tanto restrito a pouca coisa, o que os tribunals assim caracterizam (o 
plagio, digamos, sem aspas), quanta um conjunto imenso (o "plagio") a in- 
pertinencia [sic] radical da linguagem." 

Essa distincao coloca um problema muito mais profundo que o plagio no sentido 
estrito de fraude - de roubo de um texto -, que e o problema do "plagio" enquanto 
um fenomeno maior que abarca as relacoes diversas entre pensamento, linguagem 
e escrita: a intertextualidade 4 . Esse sentido amplo toma a forma de um fundo comum 
sobre o qual se movimentam as ideias, ao qual o pensamento estaria como que 
condenado, e parece indicar que todo texto e um palimpsesto 5 em que 
reminiscencias inconscientes e coincidencias acidentais colaboram com as 
apropriacoes intencionais de outros textos: sob o que se le (ou escreve) ha um 
segundo texto, sob o segundo um terceiro, e assim por diante. 

Na evolucao historica do termo plagio, sua significacao mudou muito. Na Roma 
antiga, segundo Christian VANDENDORPE (1998), o termo plagiarius podia 
designar "tanto o ladrao de escravos como alguem que vendia como escravo uma 
pessoa livre" e o poeta Marcial, no seculo I de nossa era, teria sido o primeiro a 
aplicar ao termo esse sentido figurado para designar alguem que tinha se apropriado 
de seus versos 6 . Hoje, esse sentido figurado ganhou o significante para si e o 
conceito de plagio que Marcial cunhou e corrente em nossa fala. SCHNEIDER 
(1990, p. 56), observa que essa nocao de plagio se constitui progressivamente na 

4 A nocao de intertextualidade foi introduzida por Julia Kristeva, em 1967. (cf. VANDENDORPE, 
Christian. Le Plagiat. Capturado via WWW, em 15 janeiro de 1998. URL: http:// 
www.uottawa. ca/ academic/ arts/lettres/plagiat.htm. ) 

5 "palimpsesto, s. m. (gr. palimpsestos). Papiro ou pergaminho cujo texto primitivo foi 
raspado, para dar lugar a outro; atualmente pode-se decifrar o primitivo mediante a fotografia 
com raios ultravioleta." MIRADOR INTERNACIONAL. Diciondrio Brasileiro da Lingua 
Portuguesa. Sao Paulo: Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicacoes Ltda., 1976. p. 1265. 

6 SCHNEIDER (1990, p. 58) tambem registra o uso feito por Marcial . 



8 



articulagao entre idade classica e idade moderna, como que paralelamente a 
constituigao do fenomeno da autoria 7 e a instituigao da propriedade intelectual. 
Aos poucos, o termo ganhou lugar na vida cotidiana e nos dicionarios. Entretanto, 
segundo ele, nas primeiras definigoes modernas de plagio, como as de Charles 
Nodier e Voltaire, por exemplo, haviabastante imprecisao quanto ao que constituiria 
exatamente a materia do plagio, pois falava-se tanto em roubar pensamentos como 
em roubar textos 8 e durante algum tempo nao se observara distincao entre um e 
outro. Essa imbricagao complexa entre pensamento, linguagem e escritura, presente 
ja na imprecisao das primeiras definigoes, e localizavel em certas semelhangas ou 
remissoes presentes na maioria dos textos. Quando localizamos, por exemplo, em 
SCHNEIDER (1990) e VANDENDORPE (1998) a informagao de que Marcial teria 
sido o primeiro a utilizar a pala\Ta plagio no sentido figurado de roubo liter ario, 
encontramos no primeiro: 

"Aplicada ao roubo literario, a expressao encontra-se, pela "primeira" vez, 
ja em Marcial (livro I, epigrama 53): 'Impones plagiario pudorem' ". 
(SCHNEIDER, 1990, p. 58) 

E o segundo, apresenta assim a informagao: 

"Marcial e o primeiro a aplicar o termo em um sentido figurado para desi- 
gnar alguem que tinha se apropriado de seus versos (1, 52, 9)." 
(VANDENDORPE, 1998, URL cit.) 

Nenhum dos dois menciona uma fonte secundaria, apenas o texto de Marcial 
(com discrepancias, observe-se). De onde tera surgido essa informacao ou, mais 
exatamente, a conclusao de que esse e o primeiro registro de um tal uso dessa 
palavra? Da pesquisa documental de fontes primarias? Ora, pelo menos 
Vandendorpe tem em suabibliografia a obra de Schneider e nela teria encontrado 
esse dado. Poderia, talvez, checar a informagao diretamente no original, mas ainda 
assim deveria remeter a fonte secundaria, se foi la que soube de seu carater pioneiro. 
Outra possibilidade e a de que essa informagao encontre-se em uma fonte secundaria 
comum, presente na bibliografia de ambos, mas - lapso ou intengao? - nao 
relacionada a esse dado. Uma outra hipotese intertextual e a de que essa informagao 
seja tao conhecida dos autores, tao mencionada e comentada em seu meio que 
reveste-se de uma certa obviedade, de modo que nao ha porque remeter a fonte: as 

7 Como lembra BARTHES, "O autor e uma personagem moderna, produzida sem duvida pela 
nossa sociedade, na medida em que, ao terminar a Idade Media, com o empirismo ingles, o 
racionalismo frances e a fe pessoal da Reforma, ela descobriu o prestigio pessoal do individuo...". 
BARTHES, R. A morte do autor. O rumor da lingua. Lisboa: Edicoes 70, 1987. (col. Signos, 
44). p. 49. 

8 Nodier, teorico sutil do plagio segundo Schneider, localizou diversos casos de plagio de 
Voltaire. Curiosamente, o proprio Nodier, por sua vez, foi tambem um plagiario praticante: 
uma de suas vitimas foi Jean Potocki, autor de O manuscrito encontrado em Saragosa, obra 
plagiada parcialmente por Nodier, que parece ter chegado ao ponto de "sequestrar" um 
manuscrito desta obra em Paris. Cf. SCHNEIDER, 1990, p. 56-57. 



9 



fontes seriam os manuais, o conhecimento legitimado e estabelecido, a cultura 
ocidental. E claro que sao apenas conjeturas. Embora possa haver nessa coincidente 
falta de referenda algo mais que o simples acaso, por outro lado, pode-se perceber 
claramente que cada um dos autores deixa seu traco, sua marca propria. Vandendorpe 
e direto, afirmativo, noticia o fato e da nome ao sentido figurado presente na 
expressao do poeta. Schneider e mais cuidadoso, por outro lado, ao utilizar aspas 
na palavra primeira, conotando que ai tambem ha um valor especial: nao so flexibiliza 
o marco historico - afinal, sera mesmo, com certeza absoluta, a primeira vez? - mas 
aponta, sutilmente, que esta implicita nessa palavra a propria questao da 
originalidade, do texto primeiro, questao que se coloca necessariamente no debate 
sobre o plagio: o que e a originalidade? Quando acaba a citacao, a recorrencia e 
inicia o unico, o original? Restaria saber quem "descobriu" o pionerismo de Marcial, 
se e que isto importa nesse contexto. 

"PLAGIAR": ETICA DA CITAQAO 

Curiosamente, utilizamos o mesmo sinal tipografico da citacao - as aspas, 
inventadas para esse fim pelo impressor Guillaume, no seculo XVII 9 - para realgar 
um valor significativo de uma palavra, como fez Schneider no caso de "primeira". 
E e precisamente atraves da citacao que podemos conversar com outros autores 
que consideramos significativos, incorpora-los ao texto, costurar os textos, como 
diz Antoine COMPAGNON (1996, p. 3 1): 

"Escrever, pois, e sempre reescrever, nao difere de citar. A citato, gracas a 
confusao metonimica que a preside, e leitura e escrita, une o ato de leitura e 
o de escrita. Ler ou escrever e realizar um ato de citacao. A citacao representa 
a pratica primeira do texto, o fundamento da leitura e da escrita: citar e 
repetir o gesto arcaico do recortar-colar..." 

No gradiente intertextual que vai da citacao do texto a citacao do pensamento, 
esse "plagio" - inerente ao trabalho de quem le e escreve - e uma transmutacao 
criativa do texto recortado em um novo, a transicao da lingua de emprestimo do 
escritor que le para a lingua propria do leitor que escreve, a conversa fundamental 
do texto pessoal com o texto impessoal da cultura, com o fundo comum - "o 
escritor mata o plagiario que traz consigo" (SCHNEIDER, 1990, p.38, passim). Esse 
fundo comum e o grande misterio e a grande conquista da invengao da escrita. A 
escrita - e a leitura, seu duplo - permitiu que a sociedade humana conseguisse fixar 
coisas intangiveis (como numeros e pensamentos) sem a necessidade da presenca 
fisica, passando-as atraves do espaco e do tempo, como tao bem observou 
MANGUEL (1997, p.207): 

"Desde os primeiros vestigios da civilizajao pre-historica, a sociedade 
humana tinha tentado superar os obstaculos da geografia, o carater final da 

' A esse respeito cf. COMPAGNON, Antoine. O trabalho da citagao. Belo Horizonte: Editora 
da UFMG, 1996. p.37. 



10 



morte e a erosao do esquecimento. Com urn unico ato - a incisao de uma 
figura sobre uma tabuleta de argila -, o primeiro escritor anonimo conseguiu 
de repente ter sucesso em todas essas facanhas aparentemente impossiveis". 

E sobre o edificio impessoal e trans-temporal da cultura, portanto, que se le e 
escreve (plagiario ou "plagiario")- E tambem com esse edificio que se estabelece 
uma relagao de aprendizado - que passa, as vezes, pela imitagao, pela repeticao - e 
de dialogo - que passa por emprestimos e contribuicoes. Como lembra 
COMPAGNON (1996, p.42), "Citare, do latim, e por em movimento, passar do 
repouso a agao". E no entrecortar-se das citagoes que a cultura humana movimenta- 
se nos textos, que ela e sedimentada, transformada, tecida. Michel de CERTEAU 
(1994,p.l31)disse: 

"Surge um problema peculiar quando, em vez de ser, como acontece 
habitualmente, um discurso sobre outros discursos, a teoria deve desbravar um 
terreno onde nao ha mais discursos. Desnivelamento repentino: comeca a faltar 
o terreno da linguagem verbal. A operacao teorizante se encontra ai nos limites 
do terreno onde funciona normalmente, um carro a beira de uma falesia." 

Nao citar seria o absurdo, a paralisia, o discurso vazio - ausencia do outro -, 
uma especie de misantropia da escritura: a construcao de um edificio sem 
alicerces 10 . Por outro lado, o antipoda desse misantropo e o citaciondrio 
compulsivo 11 . Entre a ausencia e a compulsao, ha toda uma tipologia da citagao: a 
citagao de pedantismo (^Eu sei. eu cito"), a citagao de afasia ("vestir o vazio"), 
entre outras, e nao se omita a existencia da citagdo de narcisismo 12 ou auto- 
citacao. Devemos a ECO (1996, p. 121-122) a caracterizagao de dois outros tipos 
perigosos de citagao: a citagao inutil ("qualquer um poderia te-lo dito") e a 
citagao por preguiga ("deixar a tarefa aos cuidados de outrem"). Ha tambem o 
que poderiamos chamar de citagdo de gueto ou citagdo de eleigao: citar apenas 
os autores do circulo predileto, da "panela", porque citar, em si, ja e considerar, no 
sentido de apreciar, de levar em conta - e confirmar a existencia. Esse tipo de 
citagao e chamado de referenda privilegiada por BOURDIEU (1992, p. 169-170), 
para quern uma analise dos indices de citagdo poderia delimitar claramente grupos 
de adversarios e de aliados em um campo de batalha ideoldgica no interior de um 
dado campo de produgao simbolica. E curioso, nesse sentido, o criterio dos indices 



10 Imperdivel metafora de Rogerio de Paiva, criada ao conversarmos sobre o texto sem citacoes, 
que eu "plagiei". 

11 SCHNEIDER (1990, p. 343) assim o descreve: "reivindica tao peremptoriamente a linhagem 
de seu costado de nobreza cultural, que se pode adivinha-lo orfao e certamente bastardo, triste 
crianja banal, no quintal do castelo, ladrao iletrado". 

12 Segundo SCHNEIDER (1990, p. 341), a citafao de narcisismo e "pratica freqiiente em 
certos... campos hiperconcorrenciais da produgao de ideias, ...[ e a ] estrategia de fustigar 
com a assinatura, com a repeticao do nome do autor por ele mesmo, a cada publicacdo, e 
que acabara por atestar, assim acreditam, que uma obra estct surgindo". Vem da mesma 
obra, mesma pagina, as demais tipologias de citacao mencionadas anteriormente. 



11 



de citagao, nos quais se mede a importancia de um autor pelo numero de vezes que 
e citado: afinal, nao se pode citar um autor para depreciar seu texto, sua importancia? 
BOURDIEU observa tambem que, ao inves de um mdice de reconhecimento, uma 
citagao pode estar associada a fungoes diversas como manifestacao de lealdade 
ou dependencia, estrategias de filiagao, de anexacao ou de defesa. 

Sob diversas formas - citagao, parafrase, palimpsesto - entrelagamos em nosso 
discurso a fala de outros autores e assim adentramos um terreno em que a mengao 
das referencias a obra citada e ao seu autor, fornecidas com a maior precisao 
possivel, nao e apenas uma exigencia academica, mas tem intersegoes delicadas 
com o dominio do direito - na medida em que pode configurar-se como crime contra 
os direitos de autor - e com o dominio da etica - posto que afeta as relacoes entre 
os autores e leitores, citados e citantes. 

PLAGIAR: MA-FE. 

"No sentido moral, o plagio designa um comportamento refletido que visa 
o emprego dos esforcos alheios e a apropriacao fraudulenta dos resultados 
intelectuais de seu trabalho. Em seu sentido estrito, o plagio se distingue 
tanto da criptomnesia, esquecimento inconsciente das fontes, ou da influencia 
involuntaria, pelo carater consciente do emprestimo e da omissao das 
fontes. E desonesto plagiar. O plagiario sabe que o que [ele J faz nao se faz". 
(SCHNEIDER, 1990: 48. Grifo meu.) 

Nesse sentido estrito, o plagio e uma operacao consciente, de ma-fe: fazer 
passarpor seu um texto que nao oe. SCHNEIDER (1990. p. 65), apartirdeelementos 
presentes em Voltaire, propoe uma definigao de plagio no estrito senso, segundo a 
qual "e no palavra por palavra, no decalque exato, mas sem nome de autor, que 
reside o plagio". E uma definicao que difere muito da formulada por CHAVES (1997, 
p. 126): 

"Do plagio pode-se dizer que e uma pirataria soft ou uma pirataria light, 
porque o plagio e a copia de uma obra querendo parecer que nao e copia. A 
copia pura e simples, em que a pessoa se substitui ao autor, e a usurpacao. 
O plagio nao, o plagio disfarca, nao quer ser, nao quer parecer que o e." 13 

De acordo com essa segunda definigao, a usurpacao ipsis Uteris - facilmente 
perceptivel - difere do plagio porque este e uma usurpacao disfargada e nao o 
decalque exato. Pirataria intelectualmente sofisticada, exige um consideravel grau 
de refinamento, pois copiar e coisa que qualquer um pode fazer, mas plagiar, nesse 
sentido, nao: exige tecnica para uma boa camuflagem, e obra para uma especie de 
falsario as avessas 14 , conhecedor das tecnicas, das texturas e dos tecidos, enfim, 

15 E curioso que Chaves qualifique de "lighf ou "soft" o plagio, pois ao que parece, em relacao 
a simples copia ele constitui uma atividade intelectualmente mais pesada, isto e, uma pirataria 

"hard". 

14 Ou "o plagiario, entao, nao e um falsario da obra, mas de si mesmo: um impostor" 
(SCHNEIDER, 1990, p. 117). 



12 



que seria capaz de reproduzir literalmente uma obra, mas que mais ou menos 
requintadamente produz um "original" a partir da obra do plagiado, apagando os 
rastros, criando pistas falsas, seduzindo e persuadindo o leitor a acreditar na sua 
legitimidade. LAUTREAMONT (apud SCHNEIDER, 1990, p. 146), o maior autor 
dentre os plagiarios ou o maior plagiario dentre os autores para Schneider, disse: 

"O plagio e necessario. O progresso o implica. Ele cerca de perto a frase de 
um autor, serve-se de suas expressoes, apaga uma ideia falsa, a substitui 
com uma ideia justa." 

Existem, portanto, gradagoes de plagio, entre a copia literal - coisa de plagiarius 
simplex - e o trabalho refinado do plagiarius artifex, esse virtuose, que 
frequentemente escolhe com erudicao suas fontes, pois sabe distinguir o que tem 
qualidade do que nao tem 15 . Aqui a fronteira entre plagio e "plagio" comega a 
desvanecer novamente, como a ideia se desvanece na cabeca do plagiario. So lhe 
resta preencher o vazio dessa perda com a ajuda do outro, do plagiado. 

Existem tambem gradagoes naextensao do texto plagiado. LOPES (1997, p. 241) 
exemplifica o plagio da quase totalidade de uma obra com o caso - classico, pode- 
se dizer - em que o romance da escritora brasileira Carolina Nabuco, A sucessora, 
foi plagiado na Europa, por Daphne Du Maurier, emRebecca 16 . Mas observa que 
"o mais comum e o plagio de imagens, metaforas ou citacoes que nao sao 
originalmente do autor, e sao reproduzidas em suas obras sem mencao de fonte, o 
que passa a ser doloso" (Id., Ibid.). Quanta maior a extensao do plagio, sera 
provavelmente mais facil seu reconhecimento. Quanta menor, porem, o trabalho de 
dizer em que ponto comega o plagio e termina o texto torna-se cada vez mais dificil, 
como no caso das falsas pardfrases, que ECO (1996, p. 128) define como verdadeiras 
citagoes sem aspas, que turvam o limite entre citagao e interpretagao, onde apenas 
o fio condutor do tratamento tematico deixa um rastro camuflado, mas perceptivel. 

Parece que comegamos a adentrar novamente o terreno das tipologias 17 : entre 
outros, ha o plagio de humildade (MONTAIGNE, apud SCHNEIDER, 1990, p. 67: 
"esconder minha fraqueza sob esses grandes creditos..."), o plagio ornamental 
(apenas adornar com o alheio), o plagio de humor (no pastiche), o plagio de 
impostura, o plagiarismo ls , o fantastico plagio absolute - o sonho de escrever o 
livro dos livros (como O livro de areia, de Borges) - e ainda o auto-pldgio, que 

15 Estas expressoes taxonomicas devemos a SCHNEIDER (1990, p. 120). 

16 Este caso de plagio e comentado com detalhes por JORGE, Fernando. Vida e obra do 
plagiario Paulo Francis: o mergulho da ignorancia no poco da estupidez. Sao Paulo: 
Geracao Editorial, 1996. p. 233-235. A respeito dessa obra (da qual pode-se dizer que e de 
maneira geral uma obra passional), apesar de que seu autor tenha operado com uma definicao 
muito ampla de plagio, tratando quase toda semelhanca - mesmo em casos de pastiche, de 
lugares comuns e ate mesmo em casos que parecem mais criptomnesia que omissao consciente 
- como tal, por outro lado, ele encontrou casos de real omissao de autoria em citacoes literais 
e de valor consideravel, feitas por Francis - plagios, portanto. 

17 As tipologias apresentadas sao de SCHNEIDER (1990, p.67-69). 



13 



consiste na retomada constante pelo autor, conscientemente ou nao, da materia de 
seus antigos textos para compo-los novamente. Essas ultimas modalidades, da 
unidade suprema de todos os livros - Deus ou o mundo - e da ideia fixa - escrevemos 
sempre o mesmo texto?- remetem ao movimento ciclico de retornar ao texto original, 
de estarmos presos ao texto unico, pessoal e intemporal. 

REPETIR, IMITAR, RETORNAR, ORBITAR 

De fato, ser original e algo extremamente dificil - quern se dedica a um trabalho 
de pos-graduacao sabe o que isso significa - e talvez seja mesmo impossivel ser 
absolutamente original. Construimos nossos textos sobre um edificio cultural 
complexo e nossa consciencia deste edificio e certamente limitada: o trabalho de 
revisao de literatura que todo pesquisador empreende sistematicamente e uma 
especie de busca da solidificacao dessa consciencia, uma tentativa de mapear o 
trabalho das geragoes passadas e dos contemporaneos, discernindo, inclusive, o 
que ja foi feito do que, supoe-se, ainda nao foi. Nao reinventar a roda - sera 
possivel ? - e a exigencia da originalidade academica. Mas Alexander LINDEY 
(Apud CHAVES, 1997, p. 127), ao tratar do plagio e da originalidade, afirmou que: 

"Ha poucas coisas tao obvias quanto a frase que diz que nao ha nada de 
novo sob o sol. Ha poucas, tambem, tao compreensivelmente verdadeiras. 
Na literatura, na arte, na musica e na arquitetura, como na filosofia, lei, 
religiao e ciencia, nos incessantemente reiteramos o passado. As nossas 
mais ousadas inovacoes, quando cuidadosamente estudadas, revelam-se ser 
nada mais que variacoes de velhos temas. (...) Os originais, diz Emerson, 
nao sao originais. Ha imitacao, modelo e sugestao, ate verdadeiros arquetipos, 
se nos conhecemos sua historia. O primeiro livro tiraniza o segundo." 

A tirania do primeiro texto e assustadora: estamos amarrados a um mesmo 
circulo, labirintico, repetitivo, condenados ao eterno retorno da imitacao, do modelo 
ou da sugestao, incapazes de fugir do fundo arquetipico de nossa experiencia. 
Como ironiza CRUZ MALPIQUE (192[?], p. 1 13): "tfe original, so o pecadti\ Ou, 
como na frase muito citada de La Bruyere: "Tudo ja foi dito". So nos resta, como 
uma condenacao, repetir, reinventar incessante e circularmente a roda. 

E preciso considerar que, embora tenha esse inegavel peso, o fenomeno da 
repeticao guarda em si tambem sua importancia. Repetir, imitar, copiar, sao gestos 
atavicos que permitem ao homem adaptar-se ao mundo, aprender, construir, embora 
tenham na necessidade do novo sua contraparte. A copia nao e apenas um exercicio 
pedagogico para o aprendizado da caligrafia e da lingua, mas e uma instituigao. A 
copia de livros em Alexandria era obrigatoria - por decreto real - e e somente gracas 
a atividade dos copistas medievais, na Europa e no Oriente, que podemos conhecer 

18 O plagiarismo foi um procedimento de escritura literaria inventado em Paris pelo Abade 
Richesource ("rica fonte"?) que dava toda a receita de criar um "plagio original": "consiste 
em enfileirar todas as partes numa nova ordem, substituir as palavras e as frases por palavras 
e frases equivalentes etc.". Cf. SCHNEIDER (1990, p. 144). 



14 



obras cujos originais desapareceram irremediavelmente. Por tras de toda a profusao 
de compact discs, e dificil imaginar que sem as muitas copias de suas partituras, 
autores como Bach, Vivaldi ou Haydn teriam excluidas de sua obra muitas pecas 
significativas. No caso da musica brasileira do passado, sao rarissimos os 
autdgrafos - originais de proprio punho, com a marca caligrafica do autor - a 
imensa maioria do acervo de manuscritos musicais preservou-se pelas copias, na 
sua maior parte anonimas. Outro momento no qual a repeticao tem um papel 
importante e na verificacao (ou falsificacao) de uma proposicao ou teoria cientifica. 
Como exigencia metodologica, deve-se permitir ao leitor de uma dissertacao ou 
tese a repetiqao do trabalho, percorrer novamente os passos que conduziram ao 
resultado. Da mesma forma com que atraves da copia podemos preservar, perpetuar 
nossas objetivacoes 19 , buscamos na repeticao ordem, sentido ou seguranca, tal 
como a crianca que imita os pais. "Em Roma, aja como os romanos" (a quern atribuir 
esse dito popular, senao a escritura amnesica, anonima e intemporal?). E pode-se 
experimentar tambem um tipo singular de aprego pela simples repetigao e si, pelo 
retorno, pelo ciclico - como nesse palindromo medieval, de autor anonimo, embora 
tenha sido incrivelmente feliz - original? - em sua ideia: 



s 


A 


T 


0 


R 


A 


R 


E 


P 


0 


T 


E 


N 


E 


T 


0 


P 


E 


R 


A 


R 


0 


T 


A 


S 



Incrivelmente, pode-se ler a frase em circulos, nos quatro sentidos. Ha um 
grande fascinio neste jogo de palavras especulares, que confirmam plasticamente 
o que, em frase, querem dizer 20 . Quern sera esse semeador anonimo, que sustenta 
sua obra nas orbitas do eterno retorno? Voltamos a frase e percorremos as 
possibilidades especulares do texto: relembrar Heraclito, dizer de novo nao e repetir, 
e dizer de novo. Todo autor circula mesmo eternamente, preso ao tudo jd foi dito? 
Pode-se radicalizar a frase "nao ha nada de novo sob o sol" - um lugar comum, sem 
duvida - e negar a possibilidade da originalidade? 

O PALIMPSESTO DE ARISTARCO 

Considerar - estar entre as estrelas? 21 - a impossibilidade de algo novo sob o 
sol leva a pensar na possibilidade de procurar acima do sol: tambem la, no silencio 

" Objetivacoes, no sentido cunhado por BERGER e LUCKMANN, sao Indices dos processes 
subjetivos criados pela expressividade humana para estende-los alem da situacao face-a-face. 
Um caso especial de objetivacao e a producao humana de sinais, a significacao (BERGER, 
LUCKMANN, 1985, p.55). 

20 Uma tradujao livre (de onde a conheco?) propoe que se entenda assim o texto Sator Arepo 
tenet opera rotas: O semeador Arepo mantem sua obra em circulos. Traducao semelhante e 
proposta por REICH, Willy (e retraduzida para o portugues por C. Kater): "O semeador 
arepo mantem sua obra em movimentos circulares" (WEBERN, 1984, p. 155). 

21 Cf. Ciencia Ilustrada. Vol. I, p. 97. 



15 



do universo, imperaria o labirinto do retorno eterno? O caso de Aristarco de Samos, 
um astronomo grego que viveu antes de Ptolomeu e antecipou, de certa forma, a 
teoria copernicana, parece confirmar nossa tragica situagao. Segundo SAGAN 
(1969, p. 12), 

"um inspirado astronomo, Aristarco de Samos, sustentou por volta de 275 
a.C. que o Sol, e nao a Terra, era o centra dos movimentos celestes. Acreditava 
tambem que o Sol fosse maior que a Terra. Nao sabemos como chegou a 
estas conclusoes tao modernas; ambas foram rejeitadas, em sua epoca, 
como fantasiosas." 

E surpreendente saber que Copernico nao foi original, que o sistema 
heliocentrico tambem estava escrito no fundo comum da experiencia humana. 
(Saberia ele que Aristarco de Samos tivera a mesma ideia quase dois milenios 
antes? Teria ele plagiado a ideia de Aristarco?) Segundo Thomas KUHN (1996, 
p. 102, passim.), o caso de Aristarco de Samos e o unico caso, na historia da 
ciencia, de antecipagao completa de um paradigma" . Kuhn analisa a Historia da 
Ciencia distinguindo entre ciencia normal - aquela que precede por um trabalho 
cumulativo e previsivel, baseando-se em realizagoes cientificas passadas, em um 
paradigma - e ciencia extraordinaria - aquela praticada em periodos pre- 
paradigmaticos ou de transicao entre dois paradigmas. A ciencia normal pode 
articular um paradigma, mas nao pode corrigi-lo; pode levar a anomalias e crises, 
mas estas so terminar-se-ao atraves de um evento abrupto e nao-estruturado, 
semelhante a alteragao da forma visual (KUHN, 1996, p. 1 58). Os periodos de ciencia 
extraordinaria caracterizam-se justamente pela necessidade de constante 
(re)construcao do campo de estudos, desde seus fundamentos, pela liberdade de 
escolha de observacoes e experiencias a serem estudadas e por uma ausencia de 
qualquer conjunto-padrao de fenomenos ou de metodos. Nestes periodos, segundo 
KUHN, homens confrontados com a mesma gama de fenomenos os descrevem e 
interpretam de maneiras diferentes, vivem num mundo desordenado, tenso - tensao 
essencial a atividade cientifica. Geralmente isto ocorre em relacao as anomalias: 
depois da consciencia previa de uma anomalia, acontece geralmente uma 
emergencia gradual e simultanea de seu reconhecimento - tanto no piano conceitual 
como no piano da observagao - e uma conseqiiente mudanca das categorias e 
procedimentosparadigmaticos (KUHN, 1996, p. 89, passim). Isto levaraaproliferagao 
de solugoes parciais e divergentes (adaptagoes ad hoc) e a um cada vez maior 
desacordo quanta ao paradigma existente, ate mesmo sobre qual e ele - eis a crise 
paradigmdtica. Ela pode terminar de tres maneiras: 1) a ciencia normal acaba se 
revelando capaz de solucionar o problema que provocou a crise, reconduzindo o 



22 Paradigmas sao "realiza9oes cientificas universalmente reconhecidas que, durante algum 
tempo, fornecem problemas e solucoes para uma comunidade praticante de ciencia" (KUHN, 
1996, p. 13). Deve-se observar que sao muitas as definicoes de paradigma apresentadas pelo 
proprio KUHN e posteriormente estudadas por diversos autores. 



16 



paradigma pre-existente ao status de aceitagao geral; 2) depois de resistir ate mesmo 
as abordagens mais radicals, nao surge solugao no estagio atual da area de estudo 
e o problema e deixado para uma futura possibilidade; 3) emerge um novo candidate 
a paradigma 23 , criando um estado de transigao. 

Este estado de transigao, longe de ser um processo cumulativo - isso seria 
ciencia normal -, e potencialmente uma revolugao cientifica: um episodio de 
desenvolvimento nao-cumulativo, de rupturas atraves das quais um paradigma 
mais antigo e total ou parcialmente substituido por um novo, incompativel com o 
anterior. Assim, algumas crengas e procedimentos anteriores sao descartados e 
substituidos por outros, oriundos do novo paradigma, porque permitem aos 
cientistas "dar conta de um numero maior de fenomenos ou explicar mais 
precisamente alguns fenomenos previamente conhecidos" (KUHN, 1996, p.93). 
Esse processo e complexo e moroso, mas conduz a um debate no qual, geralmente, 
trava-se um "dialogo de surdos", permeado pela circularidade argumentativa - 
orbitar, mas sem acordo nem mesmo sobre o ponto em torno do qual se faz a orbita 
- pois cada grupo utiliza seu proprio paradigma para argumentar em favor desse 
mesmo paradigma: para comecar, discorda-se ate mesmo quanta a lista de problemas 
que qualquer candidate a paradigma deve resolver (KUHN, 1996. p. 126). 

Kuhn discute a possibilidade de se estudar os tipos de alteracao da percepgao 
experimentados pelos cientistas que abragaram novos paradigmas 24 e, passando 
pela histeria da astronomia, da eletricidade, do oxigenio e do pendulo, descarta o 
papel exclusivo de interprete geralmente reservado a esses cientistas, comparando- 
os ao experimento em que o homem usa lentes inversoras (KUHN, 1996, p. 147) e 
tem que adaptar-se a ver o mundo de outra maneira 25 . E, de fate, os cientistas 
parecem tratar o oxigenio e os pendulos - isto e, os objetos de sua ciencia - como 
"ingredientes fundamentais de sua experiencia imediata" (KUHN, 1996, p. 163). Por 
isso pode-se dizer que, depois de uma revolugao cientifica, os cientistas trabalham 
"em um mundo diferente". Nao sao capazes de ver o mundo como antes, assim 
como nao serao capazes de aceitar o argumento de que o mundo nao e tal como o 
estao percebendo. No debate entre proponentes de dois diferentes paradigmas, 

23 Tres tipos de fenomeno, segundo KUHN, podem originar uma nova teoria: fenomenos ja 
bem explicados pelos paradigmas existentes (caso em que geralmente a nova teoria nao e 
aceita); fenomenos cuja natureza e bem indicada pela teoria, mas cujos detalhes so podem ser 
entendidos apos uma melhor articulacao da teoria (o autor tambem chama isso de "trabalho 
de limpeza". Caso os esforcos de articula-la fracassem, surge entao o terceiro fenomeno); as 
anomalias reconhecidas, que recusam-se a serem assimiladas aos paradigmas existentes. Cf. 
KUHN, 1996. p.131. 

24 Quando ocorre uma tal revolucao na sua area de conhecimento, a percepcao do cientista deve 
ser reeducada, para que possa adaptar-se a nova visao e tambem para que consiga desvencilhar- 
se da expectativa de ver o que era habitual na experiencia anterior (resistencia a novidade, a 
anomalia que agora podera tomar-se a norma). Caso contrario, o cientista acorrentar-se-a ao 
antigo paradigma, que provavelmente morrera com ele. Conferir os testemunhos de DARWIN 
e PLANCK (KUHN, 1996, p. 191). 



17 



estes praticam seu oficio em mundos diferentes. A grande dificuldade do "dialogo 
de surdos" aponta exatamente para o que constitui, como observou SCHNEIDER 
(1990, p. 140), a originalidade da obra, que decorre, fundamentalmente, de 

"sua capacidade de engendrar mundos (...) e nao do fato de que essa visao 
"primeira" foi engendrada por um autor "primeiro", sem origem". 

A originalidade de uma obra cientifica nao estara tanto no seu carater de 
pioneirismo, mas na sua capacidade de produzir um mundo diferente, e isto implica 
em convencer a coletividade, isto e, a comunidade cientifica, atraves da 
concorrencia pela legitimidade 26 cultural. BOURDIEU (1992) observou esta 
especificidade do campo da produgao erudita, que (diferentemente de outros 
tipos de capital simbolico ligados a industria cultural, que se orientam segundo 
regras de mercado) consiste em 

"produzir ele mesmo suas normas de producao e os criterios de avaliacao de 
seus produtos, e obedece a lei fundamental da concorrencia pelo 
reconhecimento propriamente cultural concedido pelo grupo de pares que 
sao, ao mesmo tempo, clientes privilegiados e concorrentes". (BOURDIEU, 
1992, p. 105) 

Nao ha outro criterio para o estabelecimento de um novo paradigma senao o 
consentimento da comunidade relevante, e a retorica tem nesse sentido uma 
participacao importante, porque a adogao de um dado paradigma ou o 
reconhecimento de uma obra cientifica podem se dar nao somente pelo progresso 
nos resultados estritamente cientificos, mas tambem pela persuasao, por razoes 
inteiramente externas a ciencia, como ordem estetica ou politica e ate mesmo pela 
fe na capacidade do novo paradigma (KUHN, 1996, p. 198). Por outro lado, como 
mostra BOURDIEU (1992, p. 110, passim), e na medida em que a ciencia e arte 

25 Pode-se fazer um paralelo entre a metafora das lentes inversoras utilizada por Kuhn e a 
observacao de SCHAFF sobre a percepcao da neve e sua expressao na linguagem esquimo. Os 
esquimos - por uma questao de sobrevivencia, inclusive - tem palavras para nomear cerca de 
trinta tipos diferentes de neve, e nao "a neve" em geral. Um forasteiro que comece a 
conviver com os esquimos provavelmente tera marcadamente alteradas sua percepcao da 
neve, assim como sua praxis - passara aos poucos (ou abruptamente?) a distinguir diferentes 
tipos de neve, inicialmente de qualidades mais facilmente notaveis, depois percebendo sutilezas, 
ate que nao sera mais capaz de ver o que via antes: "a neve" em geral. Serao os "proprios 
dados da sua experiencia" que foram modificados ou apenas o homem, e sua visao de mundo? 
Podemos compara-lo aos cientistas que, depois de uma revolucao cientifica, trabalham "em 
um mundo diferente". Cf. SCHAFF, Adam. Langage et Connaisance. Citado por BLIKSTEIN, 
Isidore. Kaspar Hauser ou A Fabricagao da Realidade. Sao Paulo: Cultrix, 1990. p.57-58. 

24 BERGER e LUCKMANN consideram que as teorias - corpos diferenciados de conhecimento 
- correspondem analiticamente a um terceiro nivel de legitimacao. Sao elas que legitimam 
setores institucionais da sociedade e conferem autonomia ao processo de legitimajao, explicam 
a estrutura institucional da sociedade e sao delegadas a pessoal especializado (o que nao 
acontece nos primeiros niveis de legitimacao). Cf. BERGER, Peter e LUCKMANN, Thomas. 
A construgao social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento (trad, de Floriano 
de Souza Fernandes). Petropolis: Vozes, 1985. p. 125 e ss. 



18 



(enquanto campos de produgao e circulagao de bens simbolicos) constituem-se 
como campos autonomos de produgao, libertando-se do comando de instituigoes 
exteriores - como a aristocracia e a igreja, por exemplo -, que surge uma ortodoxia - 
o estabelecimento de criterios definidores do exercicio legitimo da pratica cientifica 
ou artistica - e desenvolvem-se gradativamente leis proprias de distingao cultural, 
que nao somente manifestam a ruptura com fatores externos que pretendem influir 
nessa produgao, como limitam a "busca da diferenga anomica a qualquer prego" . - 
isto e, definem limites para uma busca legitima da distingao. A uma ortodoxia, que 
nunca dominant completamente um campo de produgao erudita, opor-se-ao, pelo 
principio dialetico da distingao cultural, praticas de refinamento - a exploragao de 
todas as possibilidades tecnicas e esteticas, para e esgota-las e renova-las - e 
praticas de singularidade - ruptura com as ortodoxias presentes, e no confronto 
entre os diferentes produtores as oposigoes expressar-se-ao espontaneamente em 
umalinguagemde excomunhao reciproca (BOURDIEU, 1992, p. 108, passim). Devido 
a circularidade das relagoes de produgao e consumo no campo de produgao 
simbolica, 

"quase todas as obras trazem a marca do sistema de posicoes em relacao as 
quais se define sua originalidade e contem indicacoes acerca do modo com 
que o autor pensou a novidade de seu empreendimento" 

(BOURDIEU, 1992: 112) 

Assim, a especificidade da pratica intelectual ou artistica tem principios tecnicos 
- esotericos, no sentido tambem utilizado por Kuhn -, que sao a realizagao de um 
processo dialetico de estabelecimento de ortodoxias sobre uma estrutura de 
relagoes de forga simbolica expressa, por sua vez, em uma hierarquia de 
legitimidades (areas, obras e competencias legitimas), nas instancias de produgao 
ou de reprodugao e difusao de bens simbolicos 27 . Bourdieu explicita que as tomadas 
de posigao intelectual sao estrategias inconscientes ou semiconscientes para a 
conquista da legitimidade cultural, do monopolio da produgao, reprodugao e 
manipulagao legitimas dos bens simbolicos e, enfim, do exercicio legitimo da 
violencia simbolica 28 . A questao do autor primeiro nao pode ser relevada aqui, 
mesmo porque tem relagao direta com o fenomeno da descoberta, cuja importancia 



BOURDIEU, 1992. p. 118, passim. A respeito das instancias de reproducao - ensino - e 
difusao de bens simbolicos, exatamente pela especificidade de seus produtos, BOURDIEU ve 
a necessidade de tratar o campo de producao, reproducao e circulacao de bens simbolicos 
como "campo das relacoes de concorrencia pelo monopolio do exercicio legitimo da violencia 
simbolica". 

O problema da violencia simbolica reflete-se num problema presente nas instituicoes de 
ensino superior, ja denunciado pela imprensa e vivenciado por professores de areas diversas 
nos trabalhos escolares de cada fim de semestre, que e o problema dos trabalhos comprados. 
Incapazes de responder as exigencias das instancias de legitimacao da ortodoxia, certos 
estudantes cometem uma especie de plagio consentido, em que um autor vende sua obra para 
um impostor que paga. 



19 



retdrica na ciencia - particularmente na musicologia brasileira - tem sido 
consideravel. A questao da autoria e do plagio na ciencia e do carater impessoal 
do conhecimento tem aspectos bastante controversos e delicados no que diz 
respeito a descoberta e a sua publicacao. Houve uma tentativa de Freud e alguns 
de seus discipulos, que SCHNEIDER (1990, p. 161) chamou de comunismo das 
ideias: uma especie de pacto visando assegurar o transito livre da palavra - plagio 
consentido - e uma elaboragao coletiva - tentativa de sublimar o narcisismo - da 
teoria psicanalitica, que, no entanto, fracassou totalmente. Schneider relata, alias, 
diversos casos de plagio e controversias autorais - verdadeiras disputas pelo 
reconhecimento da descoberta de um objeto ou formulacao - no movimento 
psicanalitico. Recortando suas palavras: 

"O episodio se desenrola em tres tempos. Um obj eto cientifico (...) comeca 
a ser estudado e defmido. No comeco, nao pertence a ninguem. E o estagio 
da pesquisa, comum e concorrencial. Depois, varios pesquisadores utilizam, 
em direcoes diferentes, certas propriedades do objeto e lhe dao (...) sua 
legitimidade cientifica. Enfim, um deles associa seu nome ao que se torna 
uma descoberta, atraves da formalizacao publica e publicamente verificavel 
por qualquer um, de suas propriedades teoricas e praticas" (SCHNEIDER, 
1990, p. 185) 

Se no comeco o objeto nao pertence a ninguem, existe entao um ponto a partir 
do qual ele pertence a algueml A concorrencia esta terminada e o objeto tem um 
dono? Frequentemente o progresso acontece a partir do trabalho simultaneo de 
diversos pesquisadores, com colaboracao reciproca mesmo antes de qualquer 
formalizacao em artigos, relatorios, etc. SCHNEIDER (1990, p.207) cita diversos 
casos envolvendo Freud, entre os quais o de Albert Moll, que parece ter sido o 
mais dificil para o pai da psicanalise. Freud reivindica a descoberta da sexualidade 
infantil com grande veemencia, chegando ao ponto de omitir as leituras que fez 
sobre o assunto e ate mesmo ignorar a existencia de trabalhos semelhantes ao seu, 
como o de Moll. Ai aparece um complemento da citaqao de narcisismo, que pode- 
se chamar de omissao concorrencial e que tambem merece um estudo especifico, 
pois as omissoes que se manifestam na historia de um dado campo de producao 
podem mapear (tal como as referencias privilegiadas apontadas por Bourdieu) 
grupos adversarios e aliados na batalha ideologica interna que se da neste campo. 
Em outros momentos Freud foi vitima, como no caso da disputa sobre as 
propriedades terapeuticas da cocaina, em que suas ideias foram publicadas por 
seu amigo Leopold Konigstein (cf. SCHNEIDER 1990, p. 185). Diante dessas 
evidencias, como pode uma "formalizacao publica e publicamente verificavel" 
determinar absolutamente que um pesquisador foi o unico e o primeiro a desenvolver 
o problema? A ciencia e impessoal, mas tem, feliz ou infelizmente, certas regras 
sociais que trabalham para uma personalizagao do conhecimento. Uma delas e a de 
que a prioridade da comunicacao equivale a prioridade da descoberta. Pode-se 



20 



dizer entao que o objeto, que no comego, nao pertence a ninguem, tern agora um 
"dono", no sentido de que o pesquisador X descobriu Y. Obviamente isto tem 
implicates economicas e sociais positivas para o descobridor - seja ele um 
individuo ou um grupo. Nunca, entretanto, esse termo pode ser entendido em 
termos de posse, de exclusividade: o pesquisador X e quern pesquisa Y portanto 
ninguem mais deve pesquisar Y. Existem casos em que um pesquisador simplesmente 
publica primeiramente a descoberta que, na realidade, ja foi feita antes ou nasceu 
dos estudos preliminares de outros autores. Nesse caso, quern publicou tera a 
prioridade da pesquisa, mas provavelmente o tempo fara com que a descoberta 
recaia nas maos certas: o pesquisador X publicou a descoberta de Y nias de fato 
Yhavia sido estudado por Z desde. . . O mais importante e que a personalizagao da 
descoberta e mais uma instituicao socio-cultural do que um fenomeno cientifico. 
Pelo contrario, a ciencia trabalha sobre um piano impessoal. "Eu inventei a 
psicanalise porque [ela] nao existia na literatura" 29 , dizia FREUD (SCHNEIDER, 
1990: 175). Mas, posteriormente, quando questionada a psicanalise em seu status 
epistemologico, o proprio Freud vai despojar-se publicamente de sua 
"originalidade" para justificar suas ideias quanta a reprovacao geral, buscando 
atribuir retroativamente a outros colegas uma divida teorica em relacao a alguns 
dos pilares fundamentais da psicanalise, como a associacao livre, a etiologia sexual 
das neuroses, o determinismo psiquico, etc. A esse respeito, SCHNEIDER (1990, 
p. 175) observa que "este procedimento e o que a ciencia reivindica e que tende a 
apagar o pesquisador e sua descoberta no anonimato objetivo do conceito." 

Como se pode ver no caso da psicanalise, a epoca das primeiras articulagoes 
teoricas de Freud, os problemas relativos ao plagio e a co-autoria nao sao privilegio 
da musicologia histarica brasileira. Talvez sejam caracteristicos de campos de 
producao cientifica em estado pre-paradigmatico, como parece ser o caso da propria 
ciencia da informacao. No caso da musicologia, o papel da descoberta tem sido 
muito controvertido, como observou CASTA GNA (1998), nao so pela 
supervalorizacao da descoberta em si - ineditismo -, pela utilizacao retarica do 
fenomeno da descoberta para provocar impacto e pela visao "romantizada" da 
figura do pesquisador como "descobridor", mas tambempelo carater de propriedade 
com que se revestem tais descobertas e sua relacao com a suposta propriedade de 
temas de pesquisa 30 . E aqui entrecruzam-se os campos simbolicos, pois esse e um 
tema ao qual os teoricos da ciencia da informacao nao poderao se furtar. 

Mas voltemos a Aristarco. KUHN (1996) mostra que nao faz sentido pensar 
que a astronomia heliocentrica poderia ter comecado com Aristarco, porque isso 

29 Como o carro a beira da falesia, para lembrar Certeau, descobrir e tambem desbravar um 
terreno sem discursos. 

30 Esta etica exclusivista se baseia numa especie de princlpio de nao-invasao de dominios, 
fenomeno que CASTAGNA (1998, p. 100) compara aos pactos colonialistas, citando inclusive 
um trecho muito ilustrativo da legislafao espanhola do seculo XVII: "ningun descobridor 
entre a poblar en el distrito de otro". 



21 



eqiiivaleria ao anacronismo de desconsiderar os contextos historicos de ambos, 
dele e de Copernico 31 . Apesar de que Aristarco tenha "enxergado" algo diferente 
onde todos viam um universo que girava em torno da terra, sua descoberta nao 
fazia sentido em seu contexto historico e nao podia ganhar legitimidade. A 
originalidade de Copernico estava no fato de que ele satisfez as regras de construcao 
e demonstragao vigentes na sua comunidade cientifica, embora provavelmente 
contrariando uma parte dela, e porque havia a necessidade social de um outro 
paradigma pelos proprios problemas e limitacoes do que estava ate entao vigente. 
Em todo caso, Copernico, ao escrever sobre o texto impessoal da ciencia, estava 
inscrevendo sobre um palimpsesto, no qual ja havia deixado sua marca Aristarco. 

O CASO DOS MANUSCRITOS DO GRUPO DE MOGI DAS CRUZES 

A polemica que originou este artigo gira em torno de uma acusacao de plagio, 
como dito antes. Regis Duprat, o acusador, afirma ter sido indagado por alguem 

"se uma das materias ali inseridas (p-12-33) nao constituia objeto de trabalho 
que fartamente publiquei..." 32 

A formulacao e ambigua, porque uma materia publicada so pode constituir 
objeto de trabalho quando ela propria e o objeto estudado. Obviamente, Duprat 
nao quer dizer que a materia (o artigo de Jaelson Trindade e Paulo Castagna) tenha 
constituido para ele um objeto de estudo. Ao dizer, estranhamente, que a materia 
publicada constitui objeto de trabalho que fartamente publicou ele coloca ao seu 
leitor uma formulacao imprecisa: nao se pode publicar um objeto de trabalho, mas 
somente um trabalho sobre um dado objeto. Entretanto, Duprat constroi dessa 
maneira sua frase inicial, deixando de lado o problema que se insinua, a diferenga 
entre objeto de estudo e estudo do objeto, e instaura uma confusao epistemologica 
- causada por uma faldcia 33 de ambigiiidade - que permeara toda a polemica: tal 

31 Na epoca do primeiro, o sistema geocentrico nao apresentava qualquer problema que pudesse 
ser solucionado pelo sistema heliocentrico e, alem disso, era muito mais razoavel e bem 
sucedido na predicao da mudan9a de posicao das estrelas e dos planetas. Nos seculos posteriores 
e que as anomalias do sistema ptolomaico (o desajuste de suas predicts em relaijao aos 
planetas e aos equinocios, por exemplo) comecam a abrir o terreno para um novo paradigma, 
de forma que, lentamente, no inicio do seculo XVI grande parte dos astronomos europeus 
reconhecia que o sistema estava fracassando: estava instalado um contexto de crise 
paradigmatica. Segundo KUHN, o prefacio de Copernico em De Revolutionibus Orbis 
constitui "uma das descricoes classicas de um estado de crise" (p. 97). 

32 DUPRAT, Regis. Carta a Sociedade Brasileira de Musicologia. 1997. Citado por CASTAGNA, 
Artigo-resposta. p. 5. 

33 O termo faldcia e utilizado aqui no sentido que tem dentro da disciplina logica. O problema 
mencionado merece o estudo mais acurado de um especialista em logica, mas podemos iniciar 
sua abordagem localizando indicios de pelo menos dois tipos de ambigiiidade nesta formulacao 
de Duprat: anfibologia - que refere-se construcao gramatical ambigua e eqxdvoco (igualmente 
no sentido logico), em que os termos ou expressoes (no caso materia, trabalho, objeto e a 
expressao objeto de trabalho) semelhantes sao utilizados com sentidos diferentes nas 
proposicoes (o que destroi a validade do argumento). Cf. COPI, 1973, p. 91 e ss. 



22 



como formulada a frase, o objeto estudado e o trabalho do pesquisador seriam a 
mesma coisa. A acusacao de plagio, apesar dos artificios retoricos initials' 4 , e 
assim formulada: 

"2. Agora, sob o titulo de "Musica pre-barroca lusoamericana: o grupo de 
Mogi das Crazes", com a colaboracao de Paulo Castagna, e estampada no n. 
2 acima citado, surge materia na Revista dessa Sociedade que considero 
plagio flagrante aos trabalhos que publiquei pois, nao obstante explorar 
ideias que a materia pretende originais, omite as indispensaveis referencias 
bibliograficas convencionais e legais. Todas as referencias que faijo neste 
termo referem-se exclusivamente ao conteudo das paginas 22 a 28 com 
respectivas notas de rodape, presumidamente de autoria de Paulo Castagna." 
(DUPRATapud CASTAGNA, Artigo-resposta, p. 7) 

Como CASTAGNA (1997) afirmou em seu artigo-resposta e pode-se corrfirmar 
facilmente, Duprat produziu basicamente dois textos sobre o assunto que foram 
republicados posteriormente: o primeiro, como autor unico, publicado na Revista 
do IPHAN em 1984 e reimpresso no livro Garimpo Musical em 1985; o segundo 
com a colaboracao de Jaelson Trindade, publicado em Belo Horizonte em 1986 e 

34 Duprat nao faz sua denuncia sem antes apoia-la em um terceiro personagem - um "colega pesquisador 
altamente qualificado" - que menciona a todo instante, mas mantem anonimo. Interessante artificio 
de retorica: apelo a autoridade de um anonimo. E obvio que se trata de um argumentum ad 
verecundiam falacioso (no sentido logico), porque nao se pode respeitar, enquanto argumento, a 
opiniao de alguem que nao se sabe quem e. Mas o fato e que esse personagem pode falar a vontade, 
protegido por seu anonimato (o que permite que de sua boca saiam todos os improperios - como 
"trata-se mais e de um moleque" ou "eximio cuspidor dos pratos em que come") sem que se exponha 
ao julgamento do leitor. Duprat dessa maneira, tambem nao se expoe tanto. 

55 Ha bastante imprecisao no discurso de Duprat tambem quanta aos trabalhos em questao. Ao inves 
de apontar precisamente quais sao os seus textos utiliza as expressoes "trabalho que fartamente 
publiquei" e "dois ou tres artigos posteriores", citando alguns dos artigos no decorrer de sua carta. A 
partir da listagem fornecida por Castagna e somando os que apareceram posteriormente a ela, 
cronologicamente, os textos publicados sobre os manuscritos de Mogi sao: 1) TRINDADE, Jaelson. 
Musica colonial paulista: o grupo de Mogi das Cruzes. Revista do Patrimomo Historico e Artistico 
National, Sao Paulo, 1984, n. 20. p. 15-24; 2) DUPRAT, Regis. Antecipando a historia da musica 
no Brasil. Revista do Patrimomo Historico e Artistico National, Sao Paulo, 1984, n. 20. p. 25-28; 
3) DUPRAT, Regis. Garimpo musical. Sao Paulo: Novas Metas, 1985. Capitulo "As mais antigas 
folhas de musica do Brasil", p. 9-20. (Colecao ensaios, v.8); 4) DUPRAT, Regis e TRINDADE, 
Jaelson. Uma descoberta musicologica: os manuscritos musicais de Moji das Cruzes, c. 1730. 
Encontro Nacional de Pesquisa Em Musica, II, Sao Joao del Rei, MG, 4 a 8 de dezembro de 1985. 
Anais. Belo Horizonte: Imprensa Universitaria da UFMQ 1986. p. 49-54.; 5) DUPRAT, Regis e 
TRINDADE, Jaelson. Une decouverte au Bresil: les manuscrits musicaux de Mogi das Cruzes, c. 
1730. Musique et influences culturelles reciproques entre l'Europe et L'Amerique Latine du XVIeme 
au XXeme siecle. Boletim do The Brussels Museum of Musical Instruments, Bruxelles, 1986, n. 16. 
p. 139-144.; TRINDADE, Jaelson e CASTAGNA Paulo. Musica pre-barroca lusoamericana: o 
Grupo de Mogi das Cruzes. Revista da Sociedade Brasileira de Musicologia, Sao Paulo, 1996, n 2. 
p. 12-33.; TRINDADE, Jaelson e CASTAGNA Paulo. Musica pre-barroca lusoamericana: o Grupo 
de Mogi das Cruzes. DATA - Revista del Instituto de Estudios Andinos y Amazonicos, La Paz, 
Bolivia, 1997, n. 7. p. 309-336. As publicajoes 6 e 7 contem basicamente o mesmo texto. 
Utilizaremos nesse trabalho a publicacjio 6, apesar de que nao contenha ( devido a problemas na sua 
edicao e nao por responsabilidade de seus autores) as notas de rodape de n° 36 a 42. Poderiamos 
utilizar a de numero 7, mas ela nao esta facilmente disponivel para o leitor brasileiro. A publicacao 
integral, contendo as notas ausentes nessa edicao, encontra-se na Revista Eletronica de Musicologia. 
URL: http://www.cce. ufpr.br/~rem/REMvl. 2/voll.2/mogi. html. 



23 



adaptado no mesmo ano para publicacao na Belgica 35 . Os textos envolvidos sao, 
assim, um artigo de DUPRAT (1984), outro artigo de DUPRAT e TRINDADE (1985) 
e o supostamente plagiario artigo de TRINDADE e CASTAGNA (1996). Duprat 
afirma que as ideias exploradas por Castagna neste artigo nao sao originais e 
acusa-o de omitir referencias bibliograficas, de uma omissao concorrencial. E 
preciso levar em conta que a originalidade e um problema complexo, mas pode-se 
dizer, depois de le-lo, que ha um grau consideravel de originalidade no artigo de 
Trindade e Castagna, pois as diferengas entre os dados apresentados em um 
artigo e outro sao gritantes: 

"Duprat, em seus artigos (com ou sem a participacao de Trindade), afirma 
que a documentacao de Mogi e constituida de 40 folhas, ou de cerca de 40 
folhas, enquanto, em nosso, afirmamos que e constituida de exatamente 29 
folhas; Duprat menciona, em seus trabalhos, a existencia de 7 obras entre os 
papeis de Mogi, enquanto em nosso, falamos em 1 1 obras; Duprat afirma, 
em seus trabalhos, que Faustino do Prado Xavier e Angelo do Prado Xavier 
sao autores de algumas das obras de Mogi, enquanto em nosso artigo, 
estudamos o caso de "Faustino do Prado Xavier, Angelo do Prado Xavier 
e Timoteo heme que, como vimos, nao sao necessariamente os autores das 
musicas"; 36 nosso artigo apresenta um Indice Temdtico das obras de Mogi 
das Crazes, que ate hoje nao apareceu em nenhuma publicagdo desse 
musicologo" (CASTAGNA, 1997, p. 8-9) 

Realmente, sequer o numero de obras apontado nos artigos de DUPRAT (1984, 
1985) e o mesmo que o apresentado no artigo que ele afirma ser plagio dos seus 
trabalhos (Duprat nao menciona, por exemplo, duas Paixdes segundo Sao Joao). 
Essa imprecisao e freqiiente, ocorrendo ate mesmo no caso de informacoes 
elementares, como na especificacao do numero de folhas existentes 37 . Porque nao 
precisar uma informacao tao essencial para quern deseja conhecer o conjunto 
documental de Mogi? Ha outras discrepancias que o proprio Castagna nao 
mencionou: os artigos de Duprat sequer registram a existencia de Timoteo Leme 
do Prado, o terceiro nome que consta nos manuscritos; Castagna 38 esclarece que 
e possivel verificar nos manuscritos a caligrafia de 15 diferentes copistas (entre 
eles os tres identificados), o que Duprat nao faz, deixando ao leitor a impressao de 
que trata-se de material homogeneo; Castagna localiza cinco obras difundidas 
atraves de copias em Minas Gerais e Sao Paulo no decorrer dos seculos XVIII e 
XIX e mesmo no sec. XX, enquanto Duprat menciona apenas duas. Um dado 

38 Nota presente no artigo-resposta referente ao artigo de TRINDADE e CASTAGNA (1996, 
p. 26). 

37 DUPRAT (1984, p. 11) fala em "cerca de 40 folhas" e no artigo de 1985 (p. 50) diz: "O 
conjunto dos documentos musicais de Moji das Crazes contem 40 folhas de papel pautado 
com seis pecas religiosas e uma profana". 

38 Em certos momentos, para maior fluidez do texto, mencionarei apenas Castagna - pelo fato 
de que ele e, estranhamente, o unico dos dois autores acusado de plagio - embora o texto 
tenha sido produzido em co-autoria com Jaelson Trindade. 



24 



importante, em termos de diferencas entre as abordagens, e o fato de que Castagna 
(juntamente com Trindade) relata detalhadamente quando, onde e como os 
manuscritos foram encontrados, mostra claramente a origem dos manuscritos - 
informacao importante, nao so para permitir que se possa conhecer as fontes 
primarias, mas tambem porque o simples fato de que as folhas tenham servido de 
recheio para a encadernacao de couro do Livro Foral da Vila de Mogi das Cruzes, 
aberto em 1748, e relevante nao so para que se possa compreender a cronologia 
mas tambem porque e preciso alertar que podem ocorrer casos semelhantes em 
todo o Brasil 39 . O discurso de Duprat e novamente laconico ao falar da descoberta: 

"Essa comemorafao e dupla pois os limites cronologicos do Recitativo e 
Aria acabam de ser suplantados pela descoberta de urn conjunto de 
manuscritos musicais em Moji das Cruzes, Sao Paulo." (DUPRAT e 
TRINDADE, 1986: 49) 

Mais nada, nem uma so palavra sobre as fontes primarias. No artigo impresso 
em Garimpo Musical - o mesmo que fora publicado em 1984 na Revista do IPHAN 
-, DUPRAT (1985, p. 10) informa que a descoberta de tais fontes deve-se ao 
historiador Jaelson Bitran Trindade, a quern chama de "velho companheiro de 
pesquisas de fontes primarias". Em seguida, apenas observa que o achado "nao 
foi fortuito", privando o leitor de informacoes mais precisas sobre a proveniencia 
e a custodia dos manuscritos, dizendo somente que Trindade o faz "em outro 
espaco". Na Enciclopedia daMusica Brasileira (1998, p. 836) 40 , encontra-se, no 
verbete sobre Faustino do Prado Xavier, um dado novo: "o material, descoberto 
pelos historiadores John e Jaelson Trindade...". Este outro "descobridor", nunca 
antes mencionado, surge como signo da imprecisao: quem e esse personagem 
antes estranhamente ausente? Porque somente agora (cerca de 14 anos apos as 
primeiras publicacoes sobre o assunto) entrou em cena? Para aprofundar o topico 
referente a descoberta, e preciso considerar algo que se encontra por baixo dos 
textos - palimpsestos - em questao: os sinais de uma ruptura em termos de uma 
politica de disseminacao da informacao cientifica. Por que o artigo de Castagna, 
que tem uma visao critica do fenomeno da descoberta e de sua utilizacao retarica 
na musicologia, expoe todos os detalhes da descoberta e da custodia? Por que o 
texto de Duprat, que enfatiza a importancia da descoberta, e tao impreciso quanta 
aos seus detalhes e a localizacao das fontes primarias? Se Duprat indica que 
Trindade comunica dados importantes sobre sua descoberta "em outro espaco", 
por que nao fornece as devidas referencias bibliograficas ao leitor, para que este 
possa encontra-lo? O fato e que se as unicas fontes secundarias sobre os 
manuscritos de Mogi fossem os artigos de Duprat, seria impossivel saber onde se 
encontram tais documentos. Essa informacao foi claramente apresentada por 
CASTAGNA (1998, p.97-98, nota 1). A ausencia de informacoes precisas e 

39 Ha relato de caso semelhante no Arquivo Publico de Ouro Preto, MG, por exemplo. 

40 A area de miisica erudita desta publicado e coordenada por Regis Duprat. 



25 



detalhadas sobre a proveniencia e principalmente sobre a custodia dos manuscritos 
mencionados verifica-se tambem em outro trecho do texto de Duprat, citado por 
TRINDADE e CASTAGNA (1996, p.33, nota47): 

" 47 Localizamos copias dessa obra [Tractus de Sexta-Feira Santa] no 
Museu da Musica da Arquidiocese de Mariana (MG), no arquivo da 
Orquestra Lira Sanjoanense, de Sao Joao del Rei (MG) e no Museu Historico 
e Pedagogico D. Pedro II e Princesa Leopoldina, de Pindamonhangaba (SP). 
Regis Duprat possui, em seu arquivo pessoal, copias manuscritas desta 
peca, como tambem dos Bradados de Domingo de Ramos, localizadas em 
acervos paulistas: 'Assim, arrolamos sete manuscritos oriundos de varias 
cidades do Vale do Paraiba e da Serra do Mar, e um exemplar de Porto Feliz, 
a oeste de Sao Paulo. As cidades do Vale sao: Aparecida (2 manuscritos) e 
Guaratingueta; e os da Serra do Mar: Cunha (2 manuscritos) e Sao Luis do 
Paraitinga (2). Um destes ultimos parece tratar-se do mais antigo dentre os 
demais (apenas uma parte do contralto), porem, nao datado, traz a escritura 
original reforcada por decalque mais recente, dificultando conclusoes mais 
defmidas. Dentre os manuscritos datados, um dos de Aparecida e o mais 
antigo. De 1 863, e proveniente da cidade mineira de Itajuba, serra acima, ali 
copiado por Francisco Jose de Lorena que, nessa decada, se radica no Vale, 
onde constituiu uma linhagem de musicos de Aparecida do Norte. Seria ele 
o portador do novo prototipo das obras compostas no mesmo Vale, cerca 
de 1 30 anos antes e, a partir de entao ali refundidas como difundidas foram 
nas Gerais em periodo anterior: e ali permaneceram, executadas e recopiadas. 
Nao e outra a razao de encontrarmos dois itens dessas obras no catalogo de 
microfilmes do Ciclo do Ouro. Uma, no Museu da Musica, de Mariana (p. 
269) 'P. 8 sexta f. ra '; outra, na Lira Sanjoanense, de Sao Joao del Rei (p. 271), 
em copia de 1 928 e autoria atribuida, no catalogo, a Manoel Dias de Oliveira' . 
Cf. DUPRAT, Regis & TRINDADE, Jaelson. Uma descoberta musicologica: 
os manuscritos musicais de Mogi das Crazes, c. 1730. In: ENCONTRO 
NACIONAL DE PESQUISA EM MUSICA, U, Belo Honzonte, Imprensa 
daUFMG, 1986, p. 52-53." 

Observe-se que esta e uma nota de rodape que inclui uma citacao, alias, 
corretamente construida 41 , e tambem que Castagna teve o cuidado de indicar as 
instituicoes que custodiam os manuscritos que consultou e nao apenas a sua 
localizacao geografica. Duprat, no trecho citado, menciona apenas as cidades de 

41 Na verdade, TRINDADE e CASTAGNA cometeram tres pequenos "erros" (se e que se pode 
chama-los assim): corrigir a palavra Paraibel para Paraiba (ao inves de utilizar sic entre 
colchetes depois do erro citado e corrigi-lo fora da citacao); omitir a palavra mesma na 
expressao "nessa mesma decada" e corrigir a pagina do catalogo Ciclo do Ouro, que foi 
erroneamente indicada como 217 por Duprat e corrigida por Castagna para 271 na citacao - o 
que mostra que este e um leitor cauteloso, que verificou o texto de Duprat (mas o procedimento 
correto seria o mesmo do primeiro "erro"). Qualquer um pode ver que tais "erros" sao, antes de 
mais nada, gentilezas com o citado, pois tratam-se de problemas sem maior importancia que, 
corrigidos, dao maior fluencia ao texto e, no caso do segundo inclusive, favorecem a sua 
compreensao. Em todo caso, seria interessante nao "ajudar" o citado. 



26 



origem dos manuscritos e passa a conjeturar sobre sua antigiiidade e proveniencia, 
mas nao fornece dados precisos sobre sua localizacao (como fez no caso dos 
microfilmes, deve-se ressalvar). Castagna inferiu, talvez pela falta deles, que os 
manuscritos mencionados pertencem a colecao pessoal de manuscritos musicais 
histaricos de Duprat (fica a questao, pertencem ou nao?). Mas nao se pode deixar 
de observar que Trindade e Castagna citam Duprat diversas vezes em seu trabalho 
e nao cometem, portanto, a alegada omissao concorrencial, nao "apagam os 
rastros" presentes no objeto que estudam. Ressalte-se tambem que a citacao e 
muito clara, na medida em que deixa perfeitamente distinto o que e texto citado e o 
que nao e. Mas o fundamental e que Castagna apresenta informacoes mais precisas 
sobre as fontes primarias que consulta. 

Apenas para contestar definitivamente a hipotese de plagio, faremos uma breve 
incursao em dois tapicos musicologicos presentes nos artigos: a contextualizacao 
das obras e a analise musical. Para contextualizar as obras manuscritas, TRINDADE 
e CASTAGNA (1996, p.22-25) apresentam, sob o subtitulo Estilos Musicais no 
Brasil Colonial, em forma de citacao, quatro grandes divisoes estilisticas 
observadas por Robert Smith na arquitetura colonial brasileira. Corretamente citada, 
a ideia de Smith e utilizada como um parametro para a analise dos estilos musicais 
praticados no Brasil em quatro periodos: o jesuitico, o mineiro, o carioca-paulista 
e o nordestino. Nao ha nos textos de Duprat qualquer mengao a Robert Smith ou 
qualquer tentativa semelhante de periodizagao dos estilos presentes na producao 
colonial. A preocupacao com as dificuldades na analise geral dos estilos, presente 
no artigo de Castagna, tambem nao se encontra nos trabalhos de Duprat (este 
observa apenas problemas localizados e a cronologia, como veremos). Castagna, 
pelo contrario, e responsavel - mesmo numa obra de autoria coletiva isto fica claro 
- por uma contextualizacao bastante realista e critica quanta a precariedade da 
pesquisa musicologica no Brasil. Essa preocupacao e coerente com a problematica 
que trabalhara em seguida, ao dialogar - uma das fungoes da intertextualidade no 
palimpsesto cientifico - com o ja citado Smith e depois com Ruy Vieira Nery - que 
nao e citado, em momenta algum, nos artigos de Duprat -, em cuja analise da 
musica lusitana do seculo XVII (e mais precisamente no que chamou de maneirismo 
musical portugues) encontrou elementos para caracterizar as formas hibridas 
presentes no material de Mogi: 

"A producao portuguesa do periodo 1670-1720 representou, portanto, 
uma fase de transicao entre o renascimento tardio peninsular e o estilo 
barroco importado da Italia. A partir de entao, Portugal passou a assimilar 
as novidades barrocas (...), mas ainda utilizando tecnicas composicionais ja 
superadas na Italia (...) Sob essa perspectiva, e possivel compreender um 
pouco mais sobre os raros exemplos encontrados no Brasil. . . A descoberta 
de Mogi, no entanto, possui um grande significado na musicologia brasileira, 
por ter permitido, pela primeira vez, o estabelecimento de uma rela§ao clara 



27 



entre a musica maneirista ou pre-barroca iberica e a pratica musical na 
America Portuguesa. Copiadas ao redor de 1730, as 1 1 obras musicais do 
Grupo de Mogi das Crazes diferenciam-se nitidamente da musica barroca, 
pos-barroca ou pre-classica produzida no Nordeste brasileiro e nas 
Capitanias de Minas Gerais, Sao Paulo e Rio de Janeiro no seculo XVJJI, 
assemelhando-se as obras religiosas portuguesas mais simples produzidas 
desde o final do sec. XVI ate o final do sec. XVII." (TRTNDADE, 
CASTAGNA, 1996, p. 24-25) 

Ao contrario de Castagna, o discurso de DUPRAT (1985, p.9-10) nao demonstra 
preocupacao, mas ate mesmo um certo entusiasmo pelos avancos das pesquisas, sempre 
ressaltando a importancia da suplantacao dos limites cronologicos pela descoberta de 
obras mais antigas que o Recitatrvo eAria, de 1759, e comemorando os 25 anos de sua 
primeira execugao. Ao contextualizar as obras, DUPRAT (1986, p.53) diz: 

"destaquemos que a documentacao descoberta em Moji e da maior 
significacao para os estudos musicologicos no Brasil. Recua, 
documentalmente, de cerca de 40 anos o conhecimento vivo da Historia da 
Musica Brasileira. Adentra um periodo estilisticamente diverso do ja 
conhecido, nao obstante constituir-se de musica religiosa, integradana liturgia, 
para coro misto a 4 vozes, de escritura simples e homofono-harmonica. Sua 
notacao musical e arcaica, ainda vinculada as caracteristicas anteriores a 
modernizacao procedida no decorrer do seculo XVHI. ..(...) O conjunto das 
obras de Moji nos faz compreender melhor o esplendor da producao musical 
brasileira da segunda metade do seculo XVJJI Circunscrita a pequena vila a 
poucos quilometros da igualmente pequena Sao Paulo, tal musica constitui 
persuasiva amostra do que se fazia nos maiores centres do Brasil colonial 
tais como o Rio de Janeiro, Olinda e Recife e sobretudo a capital do Salvador, 
onde os recursos materials, a vida social e cultural permitiriam, sem duvida, 
um culto religioso mais rico e faustoso." 

O artigo de Duprat enfatiza a antigiiidade do material - com expressoes como 
"recua, documentalmente, de cerca de 40 anos o conhecimento vivo..." -e sinaliza 
a diferenga estilistica das obras em relagao a musica posterior ja conhecida. Mas o 
fundamental e que, na interpretacao de Duprat, a musica de Mogi e uma amostra 
que atesta a qualidade da musica realizada nas grandes cidades (necessariamente 
mais elaborada e desenvolvida que aquela), enquanto Castagna relaciona 
explicitamente o conjunto de Mogi a musica portuguesa do seculos XVI e XVII, o 
que Duprat nao faz. E so depois de uma tal contextualizacao da problematica 
estilistica presente na musicologia brasileira que o artigo de TRINDADE e 
CASTAGNA apresenta o essencial, isto e, informacoes precisas sobre os 
manuscritos de Mogi, concluindo a artigo com um indice tematico, com incipits 
musicais, isto e, informacao concreta e util para o leitor. DUPRAT (1986), que nao 
apresenta indice tematico ou incipits, termina seu texto lamentando a perda de 
documentacao antiga: 



28 



"so nos resta deplorar o rigor do tempo, as caracteristicas do clima tropical, 
a acao perversa dos insetos e a negligencia dos homens que contribuiram 
para arrebatar outros papeis como esses, privando-nos, gradualmente e de 
um so golpe [sic], da representacao mais fiel do homem brasileiro desse 
tempo, e de usufruto de seus bens despreservados" (DUPRAT, TRINDADE, 
1986, p.54./ 2 

Comparar esse epilogo de apelo emocional com o modo como o artigo 
supostamente "plagiario" se fecha torna patente a diferenga. O artigo de Castagna 
termina com a apresentacao de dados concretos sobre os manuscritos encontrados 
em Mogi - nao uma simples listagem das obras, mas informagoes detalhadas sobre 
cada uma, o que permite que se tenha uma ideia concreta, em termos musicais, nao so 
de cada pega isolada, como tambem do conjunto. Tais dados, para quem conhece o 
oficio, so podem ser obtidos atraves de um trabalho de analise musical. Nenhum dos 
artigos de Duprat apresenta informagoes sistematizadas sobre o conjunto, tampouco 
sobre cada uma das obras em separado, mostram apenas dados comparativos, na 
maioria das vezes restritos ao problema da notagao, de um modo prolixo que, apesar 
de incitar a curiosidade do leitor sobre a descoberta, nao o ajuda a conhecer o 
acervo. Para dar um exemplo, diz DUPRAT ( 1 986 : 5 1 . Grifo meu.) : 

"Com excecao da peca n.° 6 [Ladainha de Nossa Senhora, parte iinica: 
rabeca] as demais fazem supor que se trata, seguramente, de obras para 
coro misto a 4 vozes, ainda que a composicao das claves [sic] seja variada, 
isto e, para vozes agudas [sic] . E o caso das pecas n°s 2, 3 e 4, escritas 
respectivamente [sic] para as claves de sol, e do (2 a , 3 a e 4" linhas). Na peca 
n ° 3, da qual faltam duas partes, as remanescentes, de soprano (tiple) e 
tenor estao respectivamente nas claves de sol e de do (3 a linha); disso 
podemos concluir que as partes faltantes, de contralto e baixo, estariam 
respectivamente nas claves de do (2 a e 4 a linhas)." 

Para que tanta prolixidade, se bastaria dizer que as obras foram escritas utilizando 
o sistema de claves altos" ? Alias, ao dizer "vozes agudas", a imprecisao e maior 
porque, afinal, as vozes de contralto e baixo, mesmo quando escritas nas claves de 
Do na segunda e quarta linhas, respectivamente, continuam sendo vozes graves. 
Concluir que as partes ausentes teriam sido copiadas com as claves mencionadas 

42 Quem se dispuser a ler as ultimas palavras do artigo de Garimpo Musical nao conseguira 
evitar a impressao de que o trecho citado e um auto-pldgio (ver acima, p. 6-7), com tecnicas 
de plagiarismo ("auto-plagiarismo"?) que, se nao chegariam a encher os olhos do abade 
Richesource (Cf. nota 26), estao bastante visiveis: "so nos resta lamentar que a inclemencia 
do tempo, as caracteristicas do clima tropical, a acao perversa dos insetos e a incuria 
desvairada dos homens tenham provavelmente contribuido para extirpar da face da nossa 
terra e bojo da nossa cultura um conjunto significativo de produtos culturais musicais [sic] 
arrebatando-nos, de uma so vez, a representacao mais fiel do homem brasileiro daquele 
tempo e a fruicao de seus bens desprezervados [sic]" (DUPRAT, 1985: 17). 

43 Sobre claves altas Cf. HERMELINK, Siegfried. Chiavette. The New Grove Dictionary of 
Music and Musicians. London: McMillan; Washington: GROVE's Dictionaries of Music; 
Hong Kong: Peninsula, 1980, vol.III, p.222. 



29 



e algo muito simples, mas essa informacao meramente tecnica tem a peculiaridade 
de ser banal para o iniciado, nao lhe acrescenta nada, e incompreensfvel para o 
leigo, que tera a impressao de algo muito complexo 44 . Segue-se a seguinte 
informagao, sobre os Bradados: "trazem a formaqao vocal das cloves [sic] 
consagradas no decurso do seculo XVIII..." (DUPRAT, TRINDADE, 1986, p. 51. 
Grifo men). Bern, formac do vocal - ou seja, o grupo executante - e uma coisa, 
enquanto sistema de claves - notacao - e outra. Mas, somadas todas essas 
informacoes, por mais que se queira conhecer o conjunto das obras, pouco se 
aproveita, exceto um conjunto de dados sobre a notacao. Deve-se ressaltar tambem 
que a seqiiencia desse tipo de imprecisoes dificulta a compreensao do artigo e 
assim a imprecisao retorna como uma caracteristica de discurso: nao parece mais 
uma casualidade, mas uma especie tecnica de obscurantismo, que consiste em 
mistificar, em passar a impressao de erudicao, mas apresentando uma informacao 
apenas superficial e nao permitindo um conhecimento palpavel, util 45 . Ainda que 
reelaborado de maneira mais clara, o texto informaria muito pouco sobre o material 
musical. Esse e tambem um aspecto problematico da disseminacao da informacao, 
que merece a atengao de profissionais das areas afins, como a ciencia da informacao. 

Para finalizar o estudo comparativo dos artigos, comentaremos o que 
apresentam relativamente a duas obras: Ex tractatu Sancti Augustini eMatais de 
Incendios. Em relacao a primeira, Duprat diz: 

"E interessante notar que sua [deAngelo do Prado Xavier] composiijao - o 
Ex tractatu Sancti Augustini - seja, talvez, a mais significativa das pecas 
agora descobertas. Vimos de transcreve-la recentemente, nao tendo sido, 
ainda, executada em concerto." (DUPRAT, TRINDADE, 1985, p. 50) 

E apenas o que menciona da obra mais significativa do conjunto - nenhuma 

44 Uma descri9ao como a seguinte, na mesma pagina, informa muito pouco sobre o material 
musical, embora possa parecer muito erudita: "Em questao de metrica e compasso, sobretudo 
a peca n.° 5, o oficio de Quarta feira, que e, na realidade, de quinta-feira, "In Coena Domini", 
ad matutinum, cantada em quarta-feira, tem valores dispostos entre a longa ([figura da longa] 
e a minima, e excepcionalmente surgindo a seminima. Nas demais pecas as figuras abordadas 
vao da breve a seminima. As pe9as de n°s 1, 2 e 4 estao em "compassinho"; a de n.° 5, em 
"compasso maior" [figura] e seus responsorios, em compassinho (C). A Regina Coeli apresenta 
o tempo de proporjao menor (C3) e a Cantiga, que e a unica pe9a profana, esta na sua versao 
mais arcaica (C3)." 

45 CASTAGNA (1996) e muito mais objetivo ao trazer, para efeito de uma caracteriza9ao do 
conjunto, um quadro geral que nao confunde o leitor, com vinte e um itens, entre eles: "4. 
Utiliza9ao da nota9ao mensural ou proporcional (...) 7. Utiliza9ao de valores largos (a base 
esta nas minimas e semibreves); 8. Pouca variedade ritmica (os valores predominantes sao a 
semibreve e a minima; seminimas sao incomuns e colcheias muito raras)...". As informa9oes 
mais pormenorizadas sao fornecidas separadamente para cada pe9a e nao se detem na descri9ao 
da nota9ao, mas incluindo caracteristicas formais, procedimentos composicionais, aspectos 
musicais propriamente ditos de cada uma. Enquanto Duprat e quase que meramente descritivo, 
muito centrado nos elementos da nota9ao utilizada e com grande prolixidade, Castagna o faz 
com detalhe e objetividade, ultrapassando o piano notacional e passando a analise musical. 



30 



analise musical, mesmo preliminar, nenhuma caracteristica composicional ou 
exemplo musical. Ja Castagna traz o seguinte: 

"3 - Ex Tractatu Sancti Augustini. Copiada por Angelo do Prado Xavier, 
esta e a obra musicalmente mais complexa do Grupo de Mogi das Crazes. 
Altemando secoes polifonicas com homofonicas, estende-se por 163 
compassos, referentes a dois tercos do texto de Santo Agostinho sobre os 
Salmos, para a 4." Licao do 2.° Noturno do Oficio de Matinas da Quinta- 
Feira Santa (no sec. XVIII: Quarta-Feira). A obra foi escrita em 
"compassinho" (C), sem a utilizacao de barras de compasso, com o emprego 
de ligaduras de breves." (TRINDADE, CASTAGNA, 1996, p. 27) 

Embora sintetico, o trecho fornece, como se pode ver, o nome do copista (que 
para Duprat e o autor, observe-se 46 ), uma breve descricao do procedimento 
composicional, da a extensao da obra em numero de compassos, a origem do texto 
liturgico e elementos da notacao. Quanta ao Matais de Incendios: 

"Essa cantiga, ou proto-modinha, e seguramente da mesma epoca dos demais 
manuscritos. (...) faz recuar de pelo menos 40 anos o conhecimento dessa 
manifestacao da cultura musical leiga "que poderia viver nos teatros de 
praca publica, nas tavernas, nas Casas da opera, serenatas, ao som das 
violas. . ."(8 47 ). Esta cantiga e de escritura a quatro vozes (2 tiples, contralto 
e tenor). Como nas tradicionais modinhas da Ajuda, o soprano e o contralto 
conduzem-se "a duo" mas nao apresentam, como aquelas, uma adaptacao 
estritamente silabica do texto poetico e menos ainda a linha melodica 
sincopada das modinhas atribuidas a Caldas Barbosa. Com metrica ternaria 
e o tempo de proporcao menor, a cantiga de Moji oferece, na seccao "a 
duo", as vozes em tercas paralelas, alias caracteristicas do genero, e possui 
uma seccao, como segunda parte, cuja polifonia a 4 se desenvolve 
homofonicamente, coisa ausente das modinhas do final do seculo XVEL Ha 
evidencias de acompanhamento instrumental nas longas pausas que 
resistimos em interpretar como meros silencios expressivos. A tematica e 
manifestamente idilica. Suas dissemelhancas morfologicas e poeticas e o 
labor na definicao da justa relacao dos textos literario e musical reclamam 
profunda analise, razao de a nao apresentarmos ate o momenta. " (DUPRAT, 
TRINDADE, 1985: 51-52) 

Entre a tautologia cronologica e muitos elementos descritivos, alguns elementos 
de analise estilistica sao finalmente apresentados, mas enfraquecidos, em minha 
opiniao, pelo rebuscado eufemismo final em que o autor desculpa-se por nao 
apresentar uma restauracao da obra. O artigo de Castagna traz: 



46 Enquanto finalizava este artigo, a hipotese de Castagna foi confirmada pelo musicologo Ivan 
Moody, em Lisboa, que localizou como autor do Ex tractatu o compositor portugues Manuel 
CARDOSO (ca. 1566 - 1650). A obra foi publicada ja em 1648, com o titulo "Feira Quinta in 
Ccena domini - Lect. 4". Cf. Livro de varws motetes (transcricao e estudo de Jose Augusto 
Alegria) Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1968. (Col. Portugalias Musica, serie A, v. 13), p. 88-92. 

47 Nota 8 de Duprat: "Jaelson Trindade. Art. Cit. [ e o texto n°2, ver acima] p. 19." 



31 



"11 - Matais de incendios. Musica sobre poesia de oito pares de versos 
decassilabos, que denominamos Cantiga. Esta composicao foi escrita em 
portugues e copiada em partes de Tiple 2." a 4 (voz mais aguda), Tiple a duo, 
Altus a duo e Tenor a 4, por quatro copistas diferentes e nao identificados. 
Cada urn dos oito pares de versos e cantado duas vezes: a primeira a duas 
vozes {Tiple a duo -Altus a duo) e a segunda a quatro vozes. A existencia de 
pausas gerais de dois compassos em quatro ocasioes (compassos 8-9, 12- 
13, 21-22 e 25-26) faz supor a utilizacao de um acompanhamento 
instrumental (talvez para harpa ou viola), cujas partes nao foram encontradas. 
Realizamos uma restauracao teorica desse acompanhamento, com base 
apenas na analise interna da obra, empregando somente linhas melodicas 
extraidas das partes vocais. O manuscrito tambem apresenta mensuracao 
ternaria (C3), comminimas e semibreves negras, sem barras de compasso." 
(TRINDADE, CASTAGNA, 1996: 28) 

Observe-se que, enquanto Duprat chama a obra de proto-modinha, Castagna 
nao faz qualquer mencao a modinha (de fato, sua analise caminha para outra direcao, 
associando a obra ao vilancico, como fica claro no texto do encarte de gravagao 
realizada posteriormente 48 ). 

A essa altura, pode-se ver que o suposto plagio nunca existiu. Ao inves de 
aceitar o livre debate de ideias contrarias (como disse em sua carta de acusacao) e 
um embate intertextual, Duprat partiu para o piano explicitamente politico, acusando 
Castagna de plagio. Mas pode-se deduzir da leitura dos textos que o artigo de 
Trindade e Castagna nao so e corretamente construido no que diz respeito as 
citacoes e a pratica intertextual, como tern um alto grau de originalidade em termos 
de contextualizacao - com o auxilio de Smith e Nery - e em termos de informacao - 
na medida em que traz dados que os artigos anteriores nao apresentaram. Duprat, 
enfim, parece nao se preocupar com o que se escreve, mas com quern escreve. 
Tudo isso desdobra-se em uma problematica ambiguidade, pois diz DUPRAT (1986, 
p.53.): 

"Reservando-nos um aprofundamento da analise para a edicao critica dos 
manuscritos transcritos que vimos preparando, destaquemos..." 49 

Reservar alguma coisa pode tanto significar guardar para uma outra 



Cf. CASTAGNA, Paulo. Musica no Brasil Colonial I. In: Historia da musica brasileira: Ricardo 
Kanji; Orquestra e Coro Vox Brasiliensis. Sao Paulo: Eldorado, CD 946137, [1998]. p. 13-14. 
No encarte pode-se ler: "Anonimo - Matais de incendios [Cantiga ou Vilancico de Natal, 
para 4 vozes e acompanhamento - Mogi das Cruzes, inicio do sec. XVIII. Restauragao: 
Paulo Castagna (1996)." O fato de ambos denominarem a obra de Cantiga constituiu a unica 
coincidencia, pois a descrijao formal e diferente, as consideracoes analiticas para a restauracao, 
feitas com clareza por Castagna, estao ausentes em Duprat. Observe-se que Castagna restaurou 
a peca no mesmo ano em que seu o artigo de co-autoria com Trindade e a obra ja esta gravada. 
A mesma expressao no texto de Garimpo Musical (DUPRAT, 1986, p. 16, grifo meu): "A 
guisa de conclusao, e reservando um aprofundamento e maior abrangencia para a edijao 
critica do material que sera executado e gravado, ressaltemos..." 



32 



oportunidade quanta guardar para si, e assim DUPRAT, subliminarmente ou 
nao, evoca o que se pode chamar de principio de nao-invasao de dominios, 
presente na ideologia da supervalorizacao da descoberta, e juntamente a 
preocupacao de restringir o acesso aos manuscritos. O que agrava o problema e o 
fato de que Duprat coordena, desde 1983, a Colecao Francisco Curt Lange, 
custodiada no Museu da Inconfidencia de Ouro Preto, e a politica restritiva que 
implantou - explicitamente ou nao - tem afetado o trabalho de muitos musicos e 
pesquisadores 50 . Nas entrelinhas deste episodio, mostra-se a camada mais profunda 
do palimpsesto: a batalha ideologica pela democratizagao do acesso as fontes 
primarias. Essa discussao esta presente nos debates recentes em encontros da 
area de musicologia, e nao se trata, nesse caso, de simples opinioes ou posturas 
isoladas, mas do reconhecimento coletivo da necessidade de principios basicos 
para o estabelecimento de politicas de informagao. Nesse sentido, particularmente, 
nao somente a musicologia mas diversas outras areas de conhecimento dependem 
de contribuicoes da ciencia da informagao. 

CONSIDERAQOES FINAIS 

"Quando se deseja medir distancias astronomicas pequenas, como as que 
separam o sol das estrelas mais proximas ou os astros de nosso sistema 
planetario, usa-se a triangulacao (...) Esse metodo, denominado a 
determinaqao das paralaxes, nao serve para as enormes distancias em que 
seencontramasgalaxias." (Ciencia Ilustrada, Vol.3, p. 956). 

A antecipagao paradigmatica de Aristarco e particularmente interessante porque, 
em primeiro lugar, olhar para o universo mostra o quanta somos pequenos, ate 
mesmo insignificantes, diante dele e do grande misterio que significa estar neste 
mundo que comporta mundos diferentes. Na musicologia histarica brasileira e na 
propria ciencia da informagao estamos as vezes em desacordo sobre o ponto sobre 
o qual orbitam nossos objetos e frequentemente discordamos ate mesmo sobre 
qual e o objeto primordial de nosso campo de estudos. Se a fisica e, para muitos, 
paradigma maximo de cientificidade 51 , pode-se dizer, para seguir com a metafora de 
Aristarco, que nao somos, na musicologia histarica brasileira, sequer capazes de 
calcular a distancia entre as estrelas, quanta mais de identificar a existencia de 
objetos extra-galaticos. O caso de Aristarco parece tambem metaforizar a 
circularidade das relagoes de producao simbolica nos diversos campos da ciencia. 
Em termos astronomicos, da epoca de Marcial ate agora passou-se um 
pequenissimo periodo da histaria, no qual a ideia de autor nasceu, ligada as 
tecnologias criadas na idade moderna, e com ela os conflitos de propriedade 
intelectual. As tecnologias da informagao desenvolvidas no seculo que se finda 

50 Cf. GIRON, L. A. Documentajao e usada como fonte de lucro pessoal. Folha de S. Paulo, 3 1 
dez. 1989, p. E-3. 

51 A esse respeito cf. FOUREZ, 1995, p. 165. 



33 



engendram transformagoes nos conceitos de autoria, de intertextualidade e na 
propria delimitagao dos campos de producao simbolica, problemas com as quais a 
ciencia da informagao tera que lidar. 

Mas a metafora de Aristarco pode ser ainda mais estendida, devido a uma 
curiosa coincidencia: se ha uma triangulagao para a astronomia, ha uma proposta 
metodologica homonima para as ciencias humanas, o Princlpio de triangulagao e 
convergencia (GUTIERREZ, 1993), composto de tres modalidades para a abordagem 
de um dado objeto: o uso de fontes multiplas, o uso de metodos variados e a 
diversidade de pesquisadores. O uso de fontes multiplas e necessario para que 
informacoes sobre uma ocorrencia obtidas de uma dada fonte possam ser 
comparadas com informacoes sobre a mesma ocorrencia provenientes de outra 
fonte. Aplica-se, por exemplo, ao estudo de uma dada obra do periodo colonial 
brasileiro que tenha varias copias em diversos acervos. Prescindir da consulta e 
do estudo de um desses documentos - cada um deles e unico - pode significar a 
perda de dados importantes e um grande prejuizo para os resultados do trabalho. 
Isso mostra, por um lado, que um manuscrito musical nao tem um valor em si, 
absoluto, isoladamente, mas somente em relagao ao acervo documental 
remanescente, em relagao a outros documentos - de seu fundo arquivistico ou de 
outra proveniencia - relativos ao tema. Mostra tambem, por outro, que e necessario 
avangar no problema das politicas de acesso e na integragao dos esforgos de 
tratamento dos acervos de manuscritos musicais e disseminagao da informagao. O 
uso de uma variedade de metodos de investigacao para estudo do mesmo objeto, 
independentemente da fronteira entre pesquisa quantitativa e qualitativa, buscando 
a superagao das contradigoes entre estas duas vertentes metodologicas, constitui 
a segunda modalidade de triangulagao. Para Gutierrez, o problema da antinomia 
quantitativo-qualitativo evoluiu de uma dicotomia aparentemente simples entre 
metodos quantitativos - associados as ciencias naturais, empiricas e factuais - e 
metodos qualitativos - associados as ciencias humanas, historicas e sociais - para 
sistemas complexos onde somam-se valores, conceitos, categorias, metodos, 
tecnicas e principios diferentes. Nao se trata apenas de respeitar o potencial 
interdisciplinar de alguns objetos de pesquisa, mas buscar uma diversidade de 
metodos que permita alcangar diferentes dados e interpretagoes, e assim, 
consequentemente, diferentes possibilidades transdisciplinares na investigagao 
cientifica. Finalmente, a outra tecnica de triangulagao, que no contexto desse artigo 
tem especial importancia, e a diversidade de pesquisadores pronunciando-se sobre 
um dado objeto. O fato de diferentes individuos, com diferentes visoes de mundo, 
debrugarem-se sobre o mesmo objeto so pode trazer um avango no seu 
conhecimento e, consequentemente, no campo de produgao simbolica a que se 
relaciona. A humildade cientifica, nesse sentido, traduz-se no reconhecimento de 
uma etica nao-exclusivista em relagao aos objetos de pesquisa. Isso significa, no 
ambito da musicologia historicabrasileira, uma mudanga de paradigma comparavel 



34 



a revolugao copernicana: nao se trata mais de descobrir "tesouros musicais" e 
apropriar-se deles, mas sim de tratar a documentagao de valor historico pelo seu 
valor de informagao e disponibiliza-la para a comunidade cientifica. 

O papel da ciencia da informagao, nesse sentido, e fundamental, na medida em 
que a evolugao das tecnicas de tratamento e disseminagao da informagao relativas 
as fontes primarias para a pesquisa contribui para uma democratizacao do acesso 
as mesmas. Alem disso, pelo seu carater transdisciplinar, cabe a ciencia da informagao 
auxiliar o dialogo entre as diversas areas do conhecimento, criando condigoes 
para uma intertextualidade que torna-se cada vez mais necessaria e, ao mesmo 
tempo, mais complexa. 



BIBLIOGRAFIA 

BARTHES, Roland. O rumor da lingua. Lisboa: edicoes 70, 1987. (Col. Signos, n°44). 
BERGER, P. , LUCKMANN, T. A construgao social da realidade: tratado de sociologia do 

conhecimento. Petropolis: Vozes, 1985. 
BLIKSTEIN, Isidore. Kaspar Hauser ou A Fabricagao da Realidade. Sao Paulo: Cultrix, 

1990. 

BOURDIEU, P. A economia das trocas simbolicas. 3 a ed. Sao Paulo: Perspectiva, 1992. 

(col. Ciencias Sociais, v.20). 
CASTAGNA, Paulo. Descoberta e restauracao: problemas atuais na relacao entre 

pesquisadores e arquivos musicais no Brasil. 1° Encontro latino-americano de 

Musicologia, Curitiba, 1997. Anais. Curitiba: Fundafao Cultural de Curitiba, 1998. p. 

.97-109. 

CASTAGNA, Paulo. Etica e democracia na musicologia brasileira: uma resposta a Regis 

Duprat. Sao Paulo, 1997. 29 p. 
CERTEAU, Michel de. A invengao do cotidiano: artes de fazer. Petropolis: Vozes, 1994. 
CHAVES, Joao Carlos Muller. Apirataria e o plagio. Reflexoes sobre direito autoral. Rio de 

Janeiro: Fundacao Biblioteca Nacional, Dep. Nacional do Livro, 1 997. 
CIVITA, Victor, (ed.). Ciencia Ilustrada. Sao Paulo: Abril, 1978. 

COMPAGNON, Antoine. O trabalho da citagao. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 
1996. 

COPI, Irving. Introdugao a logica. Sao Paulo: Mestre Jou, 1973. 

DICIONARIO Brasileiro da Lingua Portuguesa - Mirador Internacional. Sao Paulo: 

Encyclopaedia Britannica, 1976. 
DUPRAT, R. Garimpo musical. Sao Paulo: Novas Metas, 1985. p. 9-20. (Col. Ensaios, v. 8). 
DUPRAT, R., TRINDADE, J. Uma descoberta musicologica: os manuscritos musicais de 

Moji das Crazes, c. 1730. Encontro Nacional de Pesquisa em Musica, 2°, 1985. Anais. 

Belo Horizonte: Imprensa Universitaria da UFMG, 1986. p. 49-54. 
ECO, Umberto. Como se faz uma tese. 14 a ed. Sao Paulo: Perspectiva, 1996. 
ENCICLOPEDIA da Musica Brasileira: Popular, Eradita e Folclorica. 2" ed. rev. e aum. Sao 

Paulo: Art Editora, Publifolha, 1998. 



35 



FOUREZ, Gerard. A construcao das ciencias. Introdugdo a fdosofia e d etica das ciencias. 

Sao Paulo: Unesp, 1995. 
GUTIERREZ, Hugo Cerda. Superar las contradicciones entre los paradigmas cuantitativos 

y cualitativos en la investigation cientifica? Revista Opciones pedagogicas, v.9, n.l, 

p.54a62. 1993. 

HEPvMELINK, Siegfried. Chiavette in: New Grove Dictionary of Music and Musicians. 

London: McMillan, 1980, vol. 3. 
JORGE, Fernando. Vida e obra do pldgidrio Paulo Francis: o mergulho da ignordncia no 

poqo da estupidez. Sao Paulo: Geracao Editorial, 1996. 
KUHN, Thomas. A Estrutura das revoluqoes cientificas. 4 ed. Sao Paulo: Perspectiva, 

1996. (col. Debates, v. 11 5). 
LOPES, Moacir. O plagiato de textos e ideias. Reflexdes sobre direito autoral. Rio de 

Janeiro: Fundacao Biblioteca Nacional, Dep. Nacional do Livro, 1 997. 
MALPIQUE, Cruz. Como se faz um escritor. Lisboa, 192[?]. p. 113. 
MANGUEL, Alberto. Uma historia da leitura. Sao Paulo: Companhia das Letras, 1997. 
REVISTA ELETRONICA DE MUSICOLOGIA. URL: http://www.cce.ufpr.br/~rem/ 

REMvl .2/voll .2/mogi.html. 
SAGAN, C, LEONARD, J. N. et allii. Os Planetas. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1969. 

(Col. Biblioteca Cientifica Life). 
SCITNEIDER Michel. Ladrdes de palavras: ensaio sobre o pldgio, a psicandlise e o 

pensamento. Campinas: Editora da Unicamp, 1990. (Colecao Repertorios). 
TRTNDADE, Jaelson, CASTAGNA, Paulo. Musica pre-barroca lusoamericana: o Grupo 

de Mogi das Cruzes. Revista da Sociedade Brasileira deMusicologia, Sao Paulo, n. 2. 

p. 12-33. 1996. 

TPJNDADE, Jaelson, CASTAGNA, Paulo. Musica pre-barroca lusoamericana: o Grupo 
de Mogi das Cruzes. DATA -Revista del Institute deE studios AndinosyAmazonicos, La 
Paz, Bolivia, n. 7. p. 309-336. 1997. 

VANDENDORPE, Christian. LePlagiat. Capturado via WWW, em 15 dejaneirode 1998. 
URL: http://www.uottawa.ca/academic/arts/lettres/plagiat.htm. 



36