Universidades e
Instituições
Científicas no
Rio de Janeiro
Simon Schvvart/.man (Organizador)
Antônio Paim / Jacqueline Pitangui Romani
Mareia B. de Melo Nunes / Tânia Salem
Maria Clara Mariani / Nadja Vólia X. Souza
CNPq
CONSUMO NAOONAl Dl DÍSCNVOLVIMÍNIO
ciíNiirico í tccnoiogico
CNPq - Presidente
Lynaldo Cavalcanti de Albuquerque
Comité Editorial
Guilherme Mauricio Souza Marcus de La Penna
José Duarte de Araújo
Ângelo Barbosa Monteiro Machado
Cicero Gontijo
Fernando Irajá Félix de Carvalho
Francisco Almeida Biato
Mário Guimarães Ferri
Simon Schwartzman
Elon Lajes Lima
Schwartzman, Simon. org.
Universidades e instituições científicas no Rio de
Janeiro. Brasília, CNPq , 1982.
243 p.
I. Universidades. 2. Instituições de Pesquisa. I.
Paim, Antônio. II. Título.
CDU 378 + 061 .6 (815.3)
Sumário
Introdução 7
Simon Schwartzman
1? Parte
A Busca de Um Modelo Universitário
Por uma Universidade no Rio de Janeiro 17
Antônio Paim
Do Centro Dom Vital á Universidade Católica 97
Tânia Salem
2? Parte
O Apoio Governamental á Pesquisa
0 Conselho Nacional de Pesquisa e a Institucionalização da
Pesquisa Científica no Brasil 137
Jacque/ine Pitangui Romani
Educação e Ciências Sociais; o Instituto Nacional de Estudos
e Pesquisas Educacionais 169
Maria Clara Mariani
3.a Parte
Instituições de Pesquisa e Pós-Graduação
0 Instituto de Biofísica da Universidade Federal do Rio de Janeiro 199
Maria Clara Mariani
Pós-Graduação em Engenharia: a experiência da Coppe 209
Márcia B. de Melo Nunes, Nadja Vólia X. Souza e
Simon Schwartzman
Introdução
Simon Schvartzman
Ciência e Universidades no Rio de Janeiro
Os trabalhos reunidos neste volume analisam, cada qual à sua maneira, a gesta-
ção, crescimento e maturidade de uma série de instituições de pesquisa e de ensi-
no no Rio de Janeiro. O período de tempo é amplo, indo desde os primeiros mo-
vimentos pela educação e por uma universidade brasileira na década de 20 até a
criação dos cursos de pósgraduação em engenharia nos anos 60, as instituições
estudadas vão desde órgãos governamentais, como o Conselho Nacional de Pes-
quisas, até instituições privadas, como a Universidade Católica do Rio de Janei-
ro; e as áreas abrangidas incluem desde as ciências biológicas, no Instituto de
Biofísica da Universidade Federal do Rio de Janeiro, até as ciências sociais, do
Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais. No entanto, não existe nenhuma
pretensão de cobrir toda a riqueza e variedade da experiência carioca em pesqui-
sa e ensino superior. O Instituto Manguinhos, hoje Oswaldo Cruz, a principal ins-
tituição brasileira de pesquisa nas primeiras décadas do século XX, já foi objeto
de alguns estudos especializados, e não será visto aqui; fica ausente, também, to-
da a tradição de pesquisa médica, e muitas outras áreas que ainda necessitariam
de uma análise e compreensão mais profunda. Os dois ensaios sobre universida-
des se referem principalmente a seus antecedentes históricos e culturais, e não
tentam nenhuma análise do funcionamento efetivo da Universidade do Rio de
Janeiro nem da Universidade Católica - estudos que ainda necessitam ser feitos.
O que une todos estes textos é a intenção de ver, em cada caso, qual era o proje-
to que movia as pessoas, e como estes projetos puderam ou não vingar. O objeti-
vo é compreender os valores, as motivações, as idéias-força que dão sentido a
uma atividade humana - e, mais tarde, examinar como isto se confronta com a
realidade da falta de recursos, do subdesenvolvimento, e de uma tradição históri-
ca onde o espírito de pesquisa não havia fincado raízes.
A ciência moderna necessita, para seu desenvolvimento, de um espaço que lhe é
proporcionado, por um lado, por um sistema educacional amplo e bem constituí-
do; e, por outro, pela utilização social intensiva de conhecimentos técnicos na in-
7
dústria, na esfera militar, na área de saúde. Além disto, este espaço precisa ser
preenchido por um grupo social que busca na atividade cientff ica enquanto tal —
menos que em seus produtos - uma forma de mobilidade, ascensão e reconheci-
mento social. Esta combinação especial de circunstâncias parece ter ocorrido nos
poucos países que conseguiram chegar ao século XX com uma tradição científica
e universitária bem constituídas, isto ocorreu no Japão, onde os esforços de mo-
dernização iniciados pela dinastia Meiji encontram nos Samurais um grupo dis-
posto a assumir os novos papéis na área da ciência, da técnica e da educação; na
Prússia, onde a busca de um espaço social de uma classe média ascendente se ca-
naliza para o sistema universitário, e se combina mais tarde com o desenvolvi-
mento da indústria química e com a centralização política de Bismark para a
criação de um Estado militarmente forte e industrializado; na França, cuja tradi-
ção científica e intelectual passa pelos Enciclopedistas, que contribuem para der-
rubar o antigo regime e estabelecer, mais tarde, o Estado Napoleónico; nos paí-
ses anglo-saxões, onde a industrialização cria um espaço natural para o desenvol-
vimento do conhecimento técnico, e a educação e cultura são canais clássicos de
mobilidade e afirmação do prestígio social de setores médios* .
No Brasil, entretanto, esta combinação não se dá. No passado, a sociedade brasi-
leira se organiza essencialmente em termos de uma combinação de núcleos urba-
nos dependentes do comércio internacional e da administração centralizada do
país, e populações rurais vivendo de produtos de exportação, da produção para
o abastecimento dos centros urbanos, ou simplesmente vegetando em zonas de-
cadentes que, um dia, tiveram a glória dos grandes ciclos do açúcar, do ouro e
mais tarde do café. Nesta sociedade, a educação como forma de mobilidade so-
cial é uma possibilidade remota. Seu melhor exemplo, talvez, são os jovens de
famílias pobres que buscam as carreiras eclesiásticas, e tratam assim de escapar
das limitações de seu berço. Para os filhos das classes altas, as profissões liberais
clássicas - o direito, sobretudo, e também a medicina - são formas de fazer a
transição da vida do campo para a vida da cidade. Enviando seus filhos para as
escolas de direito de São Paulo e Recife, para as faculdades de medicina do Rio
e da Bahia, para a Universidade de Coimbra, no século XVlil, e mais tarde para
a Bélgica e França, as famílias mais ricas do país formam uma classe política
culta, sofisticada, que passa a habitar as capitais e preferir o mundo urbano,
ainda que sem abandonar suas bases rurais 2 .
Veja, entre outros, Alexandre S.C. Barros, "A Formação das Elites e a Continuação da
Construção do Estado Nacional Brasileiro", Dados 15. 1976; Joseph Ben-David, The
Scientisfs Role in Society, New Jersey, Prentice Hall. 1971; Joseph Ben-David, Centers
of Learning: Britain, France, Germany, Berkeley, the Carnegie Comission on Hígher Edu-
cation, 1977; Robert Gilpin, France in the Age of the Scientific State, New Jersey, Prin-
ceton University, 1968; U. Hashimoio. "An Historical Synopsis of Education and Scien-
ce in Japan from the Meiji Restauration to the Present Day", The Impact of Science in
Society, 13, t, 1963; Simon Schwartzman, "Universidade. Ciência e Subdesenvolvimen-
to", Dados 19. 1978. (republicado em Universidade, Ciência e Ideologia: A politica do
Conhecimento, Rio de Janeiro, Zahar, 1981).
Sobre os padrões de educação das elites brasileiras no século XIX, ver Josó Murilo de Car-
valho. A Construção da Ordem: A Elite Política Imperial, Rio de Janeiro. Editora Cam-
pus, 1980.
O Estado brasileiro não é simples agregado desta elite. Ele tem origens fortes na
tradição burocrático-patrimonial portuguesa, que chega em peso ao Brasil com a
Corte de D. João, e já vinha se instalando nos séculos anteriores. Para esta buro-
cracia, a educação, a ciência e a técnica são instrumentos úteis para a consolida-
ção e fortalecimento de seu poder. É ela que traz para o Rio de Janeiro a Acade-
mia Real de Guardas-Marinhas, e instala, logo após, a Academia Real Militar, que
daria origem à Escola Politécnica do Rio de Janeiro 3 . O Estado forma seus mari-
nheiros, seus oficiais e seus engenheiros, enquanto que as oligarquias de base ru-
ral formam seus médicos e advogados. Não é por coincidência que as duas esco-
las de direito e uma das escolas de medicina tenham sido instaladas, ainda por
D. João, fora da capital do país (em São Paulo, Recife e Salvador, respectiva-
mente). Além das academias militares e de engenharia, e da sua escola de medi-
cina, o Rio de Janeiro é sede de algumas instituições de pesquisa, todas bastante
pragmáticas em seus objetivos iniciais: o Real Horto, pensado inicialmente como
Jardim de aclimatação, e que daria origem ao Jardim Botânico; o Real Gabinete
de Mineralogia, que seria o embrião do Museu Nacional; e um Laboratório Quí-
mico-Prático, que não teria maiores desdobramentos.
Esta divisão de trabalho inicial — o Estado formando e estimulando as atividades
técnicas e práticas, e as classes altas formando os homens cultos e os profissionais
liberais — não resistiria, no entanto, à evolução histórica pela qual o Brasil estaria
destinado a passar. Apesar da mentalidade mercantilista trazida pela família real
portuguesa, pouco havia para ser feito pela administração como atividade econó-
mica, além de taxar o comércio que circulava pelos portos do país. Não havia mi-
nérios nobres a explorar, a agricultura já se realizava de forma autónoma nas
plantações de açúcar e café, e nem guerras significativas, além dos conflitos no
Prata, eram possíveis. A vida na corte, por outro lado, atraía os homens mais
bem dotados e de mais posses das famílias oligárquicas, que encontravam na po-
lítica uma forma nobre de exercer seus dotes e sua cultura. Dentro de seus limi-
tes estreitíssimos, o Império se organiza como uma monarquia constitucional eu-
ropéia, com os partidos Conservador e Liberal se sucedendo nos gabinetes, e a
cultura e a ciência sendo estimuladas pelo monarca ilustrado. É neste clima que o
Gabinete de Mineralogia se transforma em museu, em que se cria um Observató-
rio Astronómico, o Instituto Histórico e Geográfico, a Comissão Geológica do
Império, e várias outras instituições. A atividade científica se faz, essencialmen-
te, por naturalistas estrangeiros que são atraídos pelo apoio imperial - Cruls,
Morize, Hartt, Derby, Goeldi e vários outros — , enquanto que as escolas superio-
res reproduzem, à sua maneira, o ambiente politizado dos centros culturais euro-
peus, com a criação de fraternidades secretas e a difusão do positivismo e do pen-
samento republicano e liberal.
Centro cultural e político do país, o Rio de Janeiro vai, no entanto, perdendo
para São Paulo as iniciativas na área económica, e. também, na área de pesquisa
científica de vocação mais aplicada. Com o início da República, são as institui-
Ver a este respeito Tjerk Guus Franken. "Cronologia da Ciência Brasileira (1500-1945)",
em Simon Scbwartzman. Formação da Comunidade Cientifica no Brasil. São Paulo, Cia.
Editora Nacional, Finep, 1979, apêndice 1 .
9
ções paulistas que passam, cada vez mais, ao primeiro plano, enquanto que os
centros de pesquisa imperiais entram em decadência. A Escola Politécnica, o
Instituto Agronómico de Campinas, a Comissão Geográfica e Geológica do Es-
tado de São Paulo, o Museu Paulista, o Instituto Bacteriológico de São Paulo,
todas estas instituições datam de antes de 1900, e atestam o vigor com que São
Paulo busca assumir a liderança da atividade científica e educacional na nova era
de descentralização. A Faculdade de Medicina, que introduz pela primeira vez no
país o regime de tempo integral para seus professores, o Instituto Butantã, que
adquire prestígio internacional, e mais tarde o Instituto Biológico, são os marcos
mais importantes deste esforço de criação de uma ciência moderna, dotada de re-
cursos que a riqueza do café permitia, e orientada para as necessidades práticas
Os limites destes desenvolvimentos estavam dados, no entanto, pela própria natu-
reza da expansão económica paulista, baseada na monocultura do café, que não
lhe dava uma base social mais ampla sobre a qual uma política científica e edu-
cacional mais forte pudesse se assentar. O Rio de Janeiro, enquanto isto, conti-
nua como a caprtal cultural do país, onde os grandes problemas são discutidos, e
as grandes políticas são buscadas. É no Rio de Janeiro que surge, já no início do
século, a reação intelectual ao positivismo, no ambiente da Escola Politécnica, e
que seria responsável por trazer ao Brasil uma visão totalmente nova a respeito
da natureza da atividade de pesquisa e da organização da vida universitária. É no
Rio que se organiza a Academia Brasileira de Ciências e a Associação Brasileira
de Educação, que teriam um papel fundamental em um amplo processo de dis-
cussão nacional a respeito da organização do sistema educacional e científico do
país. É no Rio, acima de tudo, que se organiza o Instituto de Manguinhos, que
passa de um simples centro de combate a doenças ambientais a um centro de
pesquisa científica de padrão e prestígio internacional, e que forma toda uma
geração de pesquisadores que iriam, mais tarde, guarnecer as principais institui-
ções de pesquisa de São Paulo, Minas Gerais e outros estados.
A Revolução de 30, que traz consigo uma nova centralização do poder político
nacional, e o afastamento de São Paulo do centro principal de decisões, provoca
nova inversão da situação. Enquanto que no Rio a centralização e burocratização
que irradiam do poder central minam progressivamente todas as tentativas de or-
ganização de uma atividade científica e universitária mais autónoma e indepen-
dente - processo que afeta o Museu Nacional, o Instituto Manguinhos, a Univer-
sidade do Distrito Federal - de tão curta vida - e outras instituições, é para São
Paulo que se transfere o centro das preocupações com uma universidade de novo
tipo, que pudesse ter um papel significativo e próprio no desenvolvimento do
país. Enquanto a Universidade do Brasil mal consegue se manter sob a legislação
detalhista da chamada Reforma Francisco Campos, e a UDF não consegue se fir-
mar, a Universidade de São Paulo se organiza de forma radicalmente nova em re-
lação a toda a experiência anterior brasileira, e se firma como a instituição de en-
sino superior e de pesquisa mais importante do país.
* Para uma análise aprofundada a respeito destes desenvolvimentos, ver S. Schvartzman,
op. c/r.
10
As instituições analisadas nestes ensaios são todas do período pós 1930, chegan-
do inclusive à época contemporânea. Todas elas refletem, cada qual à sua manei-
ra, esta característica constante do Rio de Janeiro, de ser o centro de grandes
concepções e grandes projetos de âmbito nacional. A Universidade do Distrito
Federal, analisada em suas origens por Antonio Paim, é importante não tanto pe-
lo que ela chegou a produzir, que foi muito pouco, mas pelo que ela representava
como culminação de um longo processo de discussão a respeito da natureza da
universidade brasileira, que se opunha, em sua filosofia, ao preconizado pela Re-
forma Francisco Campos e por toda a legislação brasileira de educação superior
até época bastante recente. Podemos perceber melhor a importância do estudo
de Paim se atentarmos para a linha de continuidade que une esta experiência da
década de 30 com a Universidade de Brasília, dos anos 60, e com a Reforma Uni-
versitária adotada em todo o país, a partir de 1968. O outro grande projeto alter-
nativo da época foi o dos intelectuais católicos agrupados no Centro Dom Vital,
que é analisado, em sua história, no trabalho de Tânia Salem. Ainda que o movi-
mento católico se colocasse, em muitos aspectos, nas antípodas do movimento
pela Educação Nova, liderado por Anísio Teixeira, ambos compartiam o ideal de
uma universidade autónoma, auto-regulada e independente da tutela do Estado.
Não deixa de ser irónico que o sucesso do movimento católico, com a criação da
PUC, tenha sido uma vitória de Pirro, na medida em que esta universidade termi-
na por se distinguir pouco do restante do sistema universitário brasileiro do pós-
guerra, ao qual teve que ir se adaptando em razão de seu próprio sucesso.
O Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais e o Instituto Nacional de Estudos
Pedagógicos, estudados por Maria Clara Mariani, são, de certa maneira, uma con-
tinuação da tradição de Aníxio Teixeira, e a tentativa mais importante feita até
então no país de institucionalização da pesquisa social. Suas ambições são tam-
bém bastante amplas. O que se busca não é a consolidação da pesquisa enquanto
tal, mas a elaboração de uma "radiografia" social do Brasil, que pudesse dar mar-
gem para uma política de transformação social profunda do país. Uma parte im-
portante desta política se faria, necessariamente, através do sistema de ensino, e
é por isto que os pesquisadores do Inep se envolvem tanto nas disputas da Lei de
Diretrizes e Bases da Educação e, mais tarde, na organização da Universidade de
Brasília. A consequência desta vocação é, paradoxalmente, o fracasso. Pelo Inep
passaram muitos dos principais pesquisadores sociais do país, que mais tarde se
transferiram para outras instituições, mas o próprio instituto não conseguiu se
consolidar. É importante notar que, no início dos anos 60, o instituto já perdera
sua importância como órgão de pesquisa ou de apoio à atividade académica, an-
tes, pois, da decadência que inevitavelmente se produziu após 1964.
Os últimos dois ensaios examinam dois programas de ensino e pesquisa mais re-
centes, de grande vitalidade, que se destacam no ambiente da Universidade Fede-
ral do Rio de Janeiro, ex-Universidade do Brasil. O Instituto de Biofísica é anali-
sado por Maria Clara Mariani do ponto de vista de seu fundador e mentor intelec-
tual, Carlos Chagas Filho. Ele é exemplo de uma estratégia bastante distinta da
grande maioria dos centros de pesquisa e formação científica no país: uma estra-
tégia voltada especificamente para a busca da qualidade científica, e baseada na
busca de uma posição excepcional para o instituto dentro do quadro institucio-
nal da universidade.
11
Neste sentido, existem muitas semelhanças entre o Instituto de Biofísica e a
Coordenação dos Programas de Pós- Graduação em Engenharia, a Coppe, analisa-
do por Mareia Nunes, Nadja Souza e Simon Schwartzman. Ambas instituições
possuem uma liderança pessoal fortemente marcada, e ambas conseguem uma
posição privilegiada no contexto universitário. No caso da Coppe, esta posição
foi obtida graças a novas fontes de financiamento para a pesquisa que surgiram
no país após 1965. com a criação do Fundo de Tecnologia do Banco Nacional de
Desenvolvimento Económico. Duas diferenças, no entanto, são marcantes. A pri-
meira é que o Instituto de Biofísica consegue estabelecer uma relação não confli-
tiva com a universidade, o que não é o caso da Coppe. Esta pode ter sido, talvez,
uma diferença de estilo das respectivas lideranças. Mais significativo, no entanto,
é o fato de que o Instituto de Biofísica se organiza a partir de uma tradição cien-
tífica importante no Brasil, que é a tradição de pesquisas biológicas do Instituto
Manguinhos, enquanto que a Coppe tem um projeto muito mais difícil e ambi-
cioso, que é trazer para o Brasil uma tradição inédita de pesquisa tecnológica.
Além desta falta de tradição, a pesquisa tecnológica é muito mais dependente
que a pesquisa biológica da existência de todo um projeto governamental de de-
senvolvimento da tecnologia nacional que, no entanto, não se deu. Enquanto o
Instituto de Biofísica se institucionaliza como um centro de pesquisa académico,
o destino da Coppe é se integrar ao sistema universitário como programa conven-
cional de engenharia, com ênfase em engenharia civil, com um padrão significati-
vo de qualidade mas com ambições bastante reduzidas em relação aos projetos
iniciais.
A visão conjunta destes diversos projetos e de seus destinos permite ver quão ár-
dua tem sido, no Brasil, a tarefa de criação de uma tradição de competência cien-
tífica e de um sistema universitário onde a ciência pudesse ter o seu lugar. Não
faltaram projetos ambiciosos, nem momentos em que estes projetos pudessem
encontrar recursos económicos e políticos suficientes para que fossem bem ini-
ciados. Faltaram, no entanto, outros elementos muitos importantes.
Uma das principais ausências foi a de um grupo socialmente significativo que vis-
se na atividade científica um objetivo digno de ser buscado e perseguido por seus
méritos próprios, O estudo de Antonio Paim sobre os antecedentes da Universi-
dade do Rio de Janeiro mostra a existência de um pequeno núcleo, organizado
ao redor da Academia de Ciências, que tinha esta visão; outro grupo significativo
é o da tradição biológica iniciada por Manguinhos. Mas estes eram setores muito
restritos em número, e a visão que tratavam de difundir a respeito da organização
universitária e da atividade científica era, principalmente, fruto de seus contatos
culturais e intelectuais com a Europa. A pesquisa científica e o ideal de uma uni-
versidade autónoma e auto-orientada eram valores de uma pequena elite ilustra-
da, e não a aspiração de setores mais amplos da própria população do país.
A outra ausência importante foi a de um contexto universitário que desse guari-
da à atividade científica. As duas correntes em prol de uma atividade autónoma e
auto-regulada estudadas neste volume fracassaram em seus objetivos centrais, na
medida em que o que se consolidou no Brasil, cada vez mais, foi o sistema de en-
sino de tipo napoleónico, de faculdades profissionais controladas e reguladas pe-
lo governo central. Este sistema não estimula a competição entre centros de pes-
quisa, e faz com que as carreiras universitárias tendam a se esclerosar em posições
12
vitalícias conquistadas por exames ou concursos públicos, onde a pesquisa como
atividade continuada não tem maior importância. A autorga de títulos reconheci-
dos pelo governo é o grande objetivo de todos que passam por este tipo de uni-
versidade, na medida em que estes títulos garantem um status legal ao qual cor-
responde uma expectativa conhecida de remuneração. A UDF. a Universidade de
Brasília, a USP, as diversas instituições estudadas neste volume e, de uma forma
geral, a própria reforma universitária de 1968, foram tentativas de sair da estru-
tura do sistema napoleónico em favor de uma concepção mais dinâmica e aberta
da atividade universitária. Mas as vicissitudes destas experiências parecem indicar
que a persistência do modelo antigo é muito grande.
A ausência de um grupo social significativo que se interesse pela atividade cientí-
fica, e a ausência de um sistema educacional apropriado para abrigar e estimular
este interesse, se combinam com uma terceira falha importante, que é a situação
de dependência tecnológica do país. Esta dependência ocorre na área da tecnolo-
gia industrial, tanto quanto na de tecnologia biológica, médica e social. A rever-
são desta situação depende de um projeto político governamental a longo prazo
que ainda não se esboçou com suficiente claridade, e isto coloca limites bastante
sérios quanto às possibilidades de expansão e consolidação da atividade científica
e tecnológica no país s .
Finalmente, tem faltado, na maioria das experiências de desenvolvimento institu-
cional na área científica e educacional, uma visão clara de como a atividade cien-
tífica se organiza, e de que elementos ela precisa para sobreviver e se reproduzir.
Esta visão tem estado ausente não somente dos governantes, mas também de
muitos que se envolveram na criação de programas e instituições com idéias de-
masiado claras sobre os produtos que a pesquisa deveria produzir, e demasiado
obscuras sobre o caldo de cultura que ela precisa para viver. As histórias bem su-
cedidas são histórias geralmente curtas, de períodos em que lideranças marcantes
foram capazes de impor seu entusiasmo, e isolar suas instituições do peso do
meio ambiente. O problema mais sério das instituições científicas e universitárias
brasileiras não é tanto o do surgimento destas lideranças e destas formas de isola-
mento, dos quais temos já vários exemplos, mas, principalmente, o da consolida-
ção destas instituições através do tempo. É aí, na institucionalização e reprodu-
ção, que a maioria das experiências fracassam.
O volume e a densidade das atividades científicas e tecnológicas e do ensino de
pós-graduação no Brasil, dos dias de hoje, podem fazer com que estes ciclos de
ascensão e decadência deixem de ser obrigatórios. Um conhecimento mais ínti-
mo de algumas das experiências do passado mais ou menos recente, que este vo-
lume proporciona, pode ajudar a encontrar a chave para o entendimento de até
onde podem ir, ou não, as instituições científicas e as universidades brasileiras.
Para uma visão ampla da questão, ver Fabio Stefano Erber, "Science and Technology Po-
licy in Brazil: A Review of the Literature", Latin American Research Review, XVI, 1.
1981, p. 3-56.
13
V Parte
A Busca
de um Modelo
Universitário
Por uma universidade
no Rio de Janeiro*
Antônio Paim
EM BUSCA DE UMA UNIVERSIDADE BRASILEIRA
A transformação da universidade medieval, para introduzir em seu seio a ciência
moderna, é, como se sabe, processo extremamente longo e complexo. No caso de
Portugal, o Marquês de Pombal promoveria, em 1772, uma reforma que de certa
forma antecipa o problema, em relação às adaptações posteriormente introduzi-
das na universidade européia. Em Portugal, a universidade tradicional seria vir-
tualmente destruída. A singularidade do evento consiste no fato de que a nova
instituição estaria voltada para a ciência aplicada. Trata-se agora de formar uma
elite renovada, apta a identificar as riquezas naturais do Reino e explorá-las. A
nova universidade é encarada como uma peça essencial ao projeto de tornar Por-
tugal uma nação rica e próspera. Escapa à reforma a compreensão da ciência co-
mo saber desinteressado e busca da verdade.
A geração de doutores pombalinos, que acabou chegando ao poder depois de sua
morte, a despeito das tentativas de eliminar sua presença na história de Portugal,
evoluiria na verdade para prescindir da universidade como instituição unitária e
integrada, dando preferência ao ensino de nível superior em estabelecimentos
isolados. Esse modelo seria adotado abertamente no Brasil, com a transferência da
família real, e preservado após a Independência. Mais tarde o menosprezo pela
universidade seria fundamentado pelos positivistas. De sorte que, à tradição ante-
rior, somar-se-ía a conceituaçao da universidade como elitizante e promotora de
saber ornamental, por uma facção ascendente da intelectualidade brasileira.
Em vista dessa circunstância, o ensino superior brasileiro evitaria o modelo uni-
versitário ao longo do Império e nas primeiras décadas da República, de tal mo-
do que a defesa da idéia ue universidade acabaria sendo um prolongamento da
• Trabalho realizado por convénio entre o Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de
Janeiro e a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep).
17
luta que se travou contra os positivistas na Escola Politécnica do Rio de Janeiro.
Os porta-vozes da nova orientação promoveriam o entendimento da universidade
como o lugar da ciência, que a experiência sugeria não ser imprescindível quando
se tratava apenas da formação profissional. Aos precursores somam-se logo diver-
sos outros segmentos da intelectualidade. Assiste-se ao movimento liderado pela
Associação Brasileira de Educação.
Em que pese pretende-se agora introduzir a pesquisa como núcleo da instituição
por tanto tempo desprezada, o movimento não dispõe de um conceito unívoco
de ciência. Na obra de Amoroso Costa, por exemplo, aparece a idéia de que a
ciência não se constitui apenas da parte que se encontra feita e conclusa, mas,
compreende igualmente a efetivação da pesquisa. Mas não se pode dizer que essa
idéia fosse generalizada. Na verdade, semelhante entendimento da ciência seria
introduzido mais tarde, no Brasil, pelos professores estrangeiros contratados nos
anos trinta.
Tampouco se pode dizer que Amoroso Costa e seus seguidores mais próximos
tivessem uma idéia clara dos caminhos a seguir para implantar a pesquisa, no-
tadamente no que respeita à física, desde que em outros domínios o país acumu-
lara alguma tradição.
O curso histórico iria suscitar um desfecho inesperado para esse movimento em
decorrência da Revolução de 30. O novo governo adota a universidade como mo-
delo a ser aplicado ao ensino superior. Essa formulação, contudo, estava longe de
corresponder - como o processo de sua execução o evidenciaria de modo insofis-
mável — ao projeto acalentado no decénio anterior.
Nesse ambiente é que se situa a experiência da Universidade do Distrito Federal,
considerada na presente análise.
É sabido que a contribuição decisiva para a institucionalização da pesquisa na
universidade brasileira, notadamente no que respeita à física, que era o terreno
novo a ser desbravado, se deve á criação da USP e à ação desenvolvida pelo pro-
fessor Gleb Wataghin. No mesmo sentido atuaram os grupos que se achavam vol-
tados para a pesquisa biológica e química. Assim, o propósito da presente análise
não consiste em negar essa verdade histórica, mas apenas em promover uma com-
preensão mais aprofundada e abrangente do mesmo processo, valorizando a ex-
periência desenvolvida no Rio de Janeiro em prol da institucionalização da pes-
quisa na universidade, o que afinal iria se consumar com a absorção da UDF pe-
la Universidade do Rio de Janeiro, mediante a criação da Faculdade Nacional de
Filosofia.
1. Antecedentes da idéia de universidade na cultura brasileira
A Reforma Pombalina da Universidade de Coimbra, levada a cabo em 1772, e a
maneira pela qual se deu início à organização do ensino superior com a mudança
da Corte para o Rio de Janeiro, marcaram em definitivo a posição que a cultura
brasileira iria adotar em relação à universidade. Pombal pretendeu desfechar um
golpe de morte contra o verbalismo da cultura portuguesa e fez da universidade,
voltada para a ciência aplicada, seu principal instrumento. Os homens que cerca-
vam D. João VI e tiveram a missão de implantar as instituições de cultura, inexis-
18
tentes na Colónia, haviam sido formados na nova mentalidade e prescindiam de
todo da universidade. O menosprezo pela instituição, subjacente a semelhante
atitude, iria finalmente explicitar-se com a ascensão do positivismo. Já agora a
universidade é combatida como elitizante e promotora de saber ornamental. De
sorte que somente na década de vinte deste século, como parte do processo de
crítica e superação do positivismo é que iria emergir nova e valorativa acepção de
universidade, entendida então como o lugar da ciência.
O modelo pombalino de universidade
Na Reforma de 1772, o ensino universitário subdividiu-se desta forma: ciências
teológicas (Faculdade de Cânones e de Leis) e ciências naturais e filosóficas (Fa-
culdade de Medicina, de Matemática e de Filosofia). A filosofia fora reconceitua-
da e era entendida como conhecimento da natureza e ao instituto que levava o
seu nome incumbia formar agrónomos, botânicos, naturalistas, mineralogistas e
metalurgistas. As ciências naturais assim identificadas constituíam o cerne da
universidade. Cuidou-se de que seu ensino estivesse voltado para a aplicação.
Com vistas a esse objetivo. as novas faculdades foram dotadas de observatório,
gabinete de física, laboratório químico e jardim botânico. Foram contratados fa-
mosos professores italianos como Domingos Vandelli, Miguel Antonio Ciera, Mi-
guel Franzini, Simão Gould e Luis Chichi, Graças a essa reviravolta, ao alvorecer
do século, Portugal já reunia numeroso grupo de naturalistas de reconhecido
prestígio na Europa.
A ciência passa, em Portugal, a ser identificada com o saber da natureza colocado
a serviço do processo material. Expressa-o de modo claro José Bonifácio de An-
drada e Silva (1763/1838) que chegou a se tornar figura das mais representativas
da Academia de Ciências, de que foi secretário. Hz Memória sobre minas de car-
vão e ferrarias de Foz de Alge. em Portugal (1813) 1 escreve: "Se o País é estéril
em produtos agriculturais, como a maior parte de nossas vastas serranias e char-
necas; se as fábricas têm obstáculos quase intransponíveis para se porem em con-
corrência com os estrangeiros, como entre nós sucede; que outro modo mais na-
tural e seguro terá uma nação para não empobrecer e despovoar-se, do que a la-
vra em grande dos seus minerais, com que a Providência a quis dotar?. . . Se a
Rússia e a França se enriqueceram de novo tanto, com a lavra de suas minas,
quem proíbe a Portugal enriquecer-se do mesmo modo? Pão, pólvora e metais
são quem sustenta e defende as nações: e sem eles de próprio fundo, é precária a
existência e liberdade de qualquer Estado".
A ciência é precisamente o elemento requerido para promover a nova riqueza
mediante a adequada utilização dos recursos naturais disponíveis. Esse caráter da
ciência atravessa toda a obra de José Bonifácio, como de resto dos outros natura-
listas brasileiros tornados famosos no período. Assim, por exemplo, na Memória
sobre a pesca da baleia e extração de seu azeite (1790) teria oportunidade de
afirmar que "os homens comuns assentam consigo que as coisas comuns não en-
Obras cientificas, politicas e sociais, col igadas por Edgar Cerqueira Falcão, Santos, 1964,
vol. I.
19
tram na repartição das ciências; e assim a arte de fazer fornalhas parece-lhes coisa
vulgar, e de qualquer estúpido pedreiro; masj contudo, bastante conhecimentos
físicos requer. Em Santa Catarina, onde se acha fundada a maior armação do
Brasil, há pelo menos 20 caldeiras com outras tantas fornalhas respectivas; mas se
os primeiros construtores alguma coisa soubessem mais da f fsica e química do fo-
go, todas elas estariam reduzidas a cinco, quando muito" 1 . Os exemplos pode-
riam ser multiplicados.
Desse modo, a geração formada pela universidade pombalina estava preocupada
exclusivamente com a formação técnica. E somente desta iria cuidar no Brasil
feito sede da Monarquia.
Para atender à defesa militar, criaram-se a Academia da Marinha, em 1808, e a
Academia Real Militar, em 1810. A formação de médicos e cirurgiões foi tam-
bém desde logo encetada, abrindo-se sucessivamente cursos de cirurgia e anato-
mia, logo ampliados, em 1813, no Rio de Janeiro e na Bahia, para constituir o
ensino médico propriamente dito. As atividades económicas foram igualmente
contempladas: organizam-se cursos de Agricultura (1812) e de Química, este
compreendendo química industrial, geologia e mineralogia (1817). O sistema iria
depois ser completado com a Academia de Artes (1826) e as Academias de Direi-
to (1827).
Essa opção por institutos isolados, de inegável cunho superior 3 não deixa de ser
algo de inusitado, porquanto a tradição européia consistia em reunir os vários
institutos em torno do Colégio das Artes, que preparava os estudantes para a ma-
trícula nas faculdades e, supunha-se, assegurava a unidade da instituição. A estru-
turação destas, isoladamente, criou a necessidade do vestibular, então inexisten-
te, e, ao longo da prática ulterior, os chamados cursos anexos.
Chegou-se a supor que a administração portuguesa se opunha à iniciativa, o que
pode não corresponder à realidade. Pelo menos tem-se notícia de que José Boni-
fácio de Andrada e Silva teria voltado ao Brasil, atendendo o convite de D. João
VI para assumir a reitoria do Instituto Académico, denominação que era dada à
universidade que se cogitava de fundar no Rio de Janeiro. A providência seria
postergada, mas José Bonifácio lança a idéia nas instruções aos deputados paulis-
tas, eleitos para participar das Cortes de Lisboa. Essa universidade cogitada por
José Bonifácio constituia-se de três Faculdades: Filosofia, Jurisprudência e Me-
dicina. Distinguia-se da universidade portuguesa reformada por Pombal pela eli-
minação das Faculdades de Cânones e Teologia, o que parece indicativo do avan-
ço da mentalidade laica no meio século transcorrido. Além disto, a Faculdade de
Filosofia subdividia-se em três seções: ciências naturais, filosofia racional e moral
e ciências matemáticas. Mantém-se inalterada a acepção de filosofia, eliminando-
se o ensino da matemática em instituto autónomo e integrando-o diretamente
1 Vol.cit..p 40.
3 Os cursos da Academia Real Militar (Carta de Lei de 4 de dezembro de 1810) tinham
desde logo duração de oito anos, exigindo-se que o corpo docente deveria ser integra-
do por onze professores e cinco substitutos, equiparados aos lentes da Universidade de
Coimbra, etc.
20
nos cursos de formação dos especialistas em mineralogia, metalurgia, botânica e
agronomia. As Cortes não considerariam a providência.
Com a Independência, reaparece a idéia de universidade, desta vez em projetos
de lei submetidos primeiro à Constituinte e depois à Assembléia, ambos da au-
toria de homens de grande ilustração. A proposta de sua criação, apresentada à
Constituinte, em 1823, denominando-a Instituto Brasílico, seria de Câmara Be-
thencourt e Sá (1762/1835), mineralogista e metalurgista famoso, mais conheci-
do como Intendente Câmara, do Distrito Diamantino. O reaparecimento da ini-
ciativa, em 1826, deve-se a Januário da Cunha Barbosa (1780/1846), que a cha-
mou de Instituto Imperial do Brasil. O Cónego Cunha Barbosa fora professor de
filosofia no Rio de Janeiro, optando pela militância política. Mais tarde tomaria
a seu cargo a fundação do Instituto Histórico.
A nova elite dirigente não vislumbrou qualquer vantagem na criação da universi-
dade, prevalecendo o sistema da formação profissional em faculdades isoladas,
espalhadas em diversas partes do território nacional.
Assim, a idéia de universidade, que poderia eventualmente ser associada a outra
forma de entendimento tanto da filosofia como da ciência, foi arquivada por lar-
gos decénios. O interesse que volta e meia se dedicava à instituição tinha eviden-
tes intuitos centralizadores. Limpo de Abreu, Visconde de Abaeté (1798/1883)
ministro do Império em 1837, escrevia em seu relatório:
"A conveniência de fundar os estabelecimentos de ensino de que tenho tratado
e de formar, com outros já existentes, uma só corporação científica com o títu-
lo de universidade, foi-nos largamente demonstrada em um dos anteriores rela-
tórios da repartição interinamente a meu cargo.
Não repetirei, pois, aqui o que então se disse sobre este assunto, deixando à
vossa prudência e sabedoria darem o justo valor às razões expendidas; é, porém,
de meu dever o lembrar-vos a absoluta precisão de criar-se uma autoridade, indi-
vidual ou coletiva, a quem não só se incumba a tarefa de vigiar sobre as doutrinas
ensinadas à mocidade, mas também se dê mais influência a respeito dos lentes e
certa jurisdição correcional para compelir o aluno ao cumprimento de suas obri-
gações escolásticas e manter a necessária decência, respeito e subordinação"* .
Refere o mesmo documento opinião de Bernardo Pereira de Vasconcelos (1795/
1850), como ministro do Império em 1839, segundo o qual a vantagem de todos
reconhecida na criação da universidade, embora a tanto não se reduzisse, residia
em colocar lentes e alunos "debaixo das vistas imediatas do Governo Geral",
Parece escapar à regra centralizadora o projeto de criação de uma universidade na
capital do Império, "composta de quatro Faculdades: Direito, Medicina, Ciências
Naturais e Matemática e Teologia" apresentado em 1870 por Paulini de Souza
(1834/1901), ministro do Império. Tratava-se, contudo, da simples agregação de
faculdades, sem atribuir à instituição qualquer nova missão que a dignificasse,
embora o ministro fizesse profissão de fé em favor da liberdade de ensino.
Apud Relatório Seabra (19061 in Documentos Parlamentaras. Instrução Pública. Volu-
me VI. Rio de Janeiro, 1919. p. 237.
21
A última iniciativa do Império na matéria é de cunho eminentemente centraliza-
dor. Trata-se do Projeto Homem de Melo (1881). Apreciando-o Roque Spencer
Maciel de Barros afirmaria que o "ministro faz da Universidade da Corte o centro
de todo o ensino do país, mas, por outro lado, subordinando-a totalmente a um
Conselho Superior de Instrução Pública, que por sua vez fica completamente su-
bordinado ao ministro. . . Enfim, desde as questões mais genéricas às mais parti-
cularizadas, é o Conselho, isto é, o ministro do Império, que opina e decide. O
que escapa à alçada desse órgão cai sob a jurisdição do Conselho Universitário,
onde não é menor a força do ministro". A preocupação fiscalizadora vai ao pon-
to de incumbir o Conselho Universitário de "censurar previamente os discursos a
serem lidos nas solenidades de colação de grau em cada Faculdade" e de dar pa-
recer sobre programas de ensino, compêndios, horários das lições, pontos de exa-
me, etc. As Congregações podem apenas propor estas medidas ao Conselho. Con-
clui Maciel de Barros; "Fastidioso seria o exame de outros pormenores da organi-
zação administrativa da Universidade, mesmo porque já vimos o essencial e é bas-
tante para que se perceba o caráter centralizador do projeto, com todo o ensino
oficial praticamente nas mãos do ministro" s .
Ainda que na última Fala do Trono se haja afirmado que "entre as exigências da
Instrução Pública sobressai a criação de escolas técnicas e de duas universidades,
uma no Sul e outra ao Norte do Império", extinguiu-se a monarquia sem que ti-
vesse dado nascimento à instituição. Ao longo de todo o período mantém-se a
convicção de que o ensino superior acha-se vinculado à formação profissional. A
universidade que chegou a ser cogitada jamais teve outra incumbência além da
agregação de faculdades isoladas. Não se logrou, assim, superar o modelo pomba-
lino.
A oposição positivista à idéia de universidade
Augusto Comte (1718/1857) havia se pronunciado contra a ingerência oficial na
educação, enquanto não se instaurasse o estado positivo. A propósito escreveria:
"O positivismo está longe de negar que o ensino deva ser regulado, embora esta-
beleça que esta organização não é ainda possível, enquanto durar o interregno es-
piritual, e que, quando ela tornar-se realizável, segundo o livre ascendente de
uma doutrina universal, pertencerá exclusivamente ao novo poder intelectual e
moral. Até lá, o Estado deve renunciar a todo sistema completo de educação ge-
ral". Nas condições estado metafísico, em que supunha se encontrava a huma-
nidade em seu tempo, o ensino em mãos de suas instituições resultava em obstá-
culo ao advento da nova situação. O insigne positivista brasileiro Luiz Pereira
Barreto (1840/1923) iria escrever em sua obra de divulgação As Três Filosofias 1
5 A ilustração brasileira e a idéia de universidade. São Paulo, Faculdade de Filosofia da
USP, 1959, p. 320/321.
6 Sistema de Política Positiva, ed. francesa de 1912, tomo I, p. 122.
7 Filosofia teológica 1 1 874) e Filosofia metafísica ( 1 876), não tendo publicado o livro de-
dicado á filosofia positiva.
22
que "a Igreja e a Academia, tais são, por toda parte, as duas grandes cúmplices
que estão resolvidas a instruir-nos - embrutecendo-nos. É o ensino, emanado
dessas duas corporações, que constitui a verdadeira fonte da corrupção dos nos-
sos costumes sociais". Dessa plataforma, de cunho eminentemente político, emer-
ge a consigna da liberdade de ensino.
Vista mais de perto, a liberdade de ensino preconizada pelos positivistas não tem
verdadeiramente este caráter, porquanto se trata de liberdade para o ensino da
doutrina positivista, liberdade que é negada à instituição oficial apenas pela razão
de que não ministraria aquela doutrina. No estado positivo, confessa-se aberta-
mente, a consigna será retirada. Em que pese este caráter falacioso, o argumento
foi mobilizado para combater a idéia de universidade, que a muitos parecia de-
vesse ser a inovação que à República incumbia introduzir no ensino.
Luiz Pereira Barreto abordaria especificamente o tema da universidade numa sé-
rie de artigos publicados em A Província de São Paulo no ano de 1880. Esses ar-
tigos foram estudados por Roque Spencer Maciel de Barros em duas oportunida-
des 8 . Sua análise é retomada aqui a fim de resumir a linha de argumentação de-
senvolvida.
Pereira Barreto entende que para julgar qualquer fenómeno basta submetê-lo à
lei dos três estados, que consistia no cerne da filosofia de Augusto Comte. Segun-
do esse princípio, a humanidade havia passado por uma fase teológica, a que se
sucedera o ciclo metafísico. Na Época Moderna formaram-se os elementos reque-
ridos para a constituição do estado positivo, etapa superior do curso de desenvol-
vimento da humanidade. Ao conceber a estrutura político-institucional da última
fase, Comte inspirar-se-ia sobretudo na Idade Média, preconizando a formação de
uma classe sacerdotal que exerceria a tutela da sociedade. Em vista dessa concep-
ção a influência de suas idéias no Brasil deu-se sobretudo no sentido de nutrir o
republicanismo autoritário. No caso particular. Pereira Barreto não advogaria se-
melhante ideário político, embora procurasse manter-se fiel ao positivismo, fide-
lidade de que é um exemplo expressivo sua crítica à idéia de universidade, adian-
te referida.
Aplicando à instituição a lei dos três estados, Pereira Barreto acha que ela surgiu
ambígua, num momento em que a teologia dominava, mas defrontando-se com o
simultâneo desenvolvimento da metafísica. O seu ensino nasceria pois com essa
marca: servir às duas filosofias. Com o advento da ciência, a universidade não se
faria de rogada, dispondo-se a adotar uma terceira filosofia. Ora, argumenta en-
fático, três filosofias que se negam não podem viver pacificamente no mesmo or-
ganismo. As universidades passam então a ter uma existência puramente nomi-
nal, no sentido de que não servem a um senhor que lhe defina a face. É de nosso
autor esta conclusão: "Aí se ensina a idolatrar o passado e a abominar o presen-
te. Mas também o contrário. Aí se ensina que existe um Deus, que existem mui-
tos, que não existe nenhum. Todas as contradições, todos os disparates aí encon-
tram uma cadeira assalariada, um abrigo seguro e uma retórica certa. Trata-se,
portanto, de um verdadeiro flagelo social" 9
Em Evolução do pensamento de Pereira Barreto. São Paulo, Brijalbo/USP, 1967, e no li-
vro antes mencionado.
23
A conclusão não deixaria de ser chocante se se tratasse da autêntica liberdade de
ensino. Entendendo-se esta liberdade como a coexistência de pontos de vista di-
versos, o retrato que dela nos pinta Pereira Barreto corresponde ao da instituição
apta a assegurá-la.
Como se vê, a condenação decorre de uma posição eminentemente política, que
se complica por achar-se estribada numa acepção de ciência que a coloca a servi-
ço da transformação social.
Pereira Barreto representa o intelectual positivista que não iria aceitar a transfor-
mação da doutrina numa religião. Os que deram semelhante passo e congrega-
ram-se em torno da Igreja Positivista também recusaram frontalmente a idéia de
universidade. A posição dessa parcela do positivismo brasileiro seria fixada por
Raimundo Teixeira Mendes (1855/1927) no debate do Projeto Homem de Melo.
Escreveria nessa oportunidade uma série de artigos na Gazeta de Notícias do Rio
de Janeiro, mais tarde reunidos no folheto A Universidade, que se reeditou nos
começos do século para combater expressiva corrente de opinião em favor da
criação da universidade, então estruturada, e que iria levar o Parlamento ao de-
morado exame da questão.
A linha de argumentação apresentada pelo chefe da Igreja Positivista pode resu-
mir-se da forma adiante apresentada.
A grandeza nacional exige a reforma do ensino. Mas a universidade não é solução
adequada para promover aquela grandeza, eis a premissa maior. Assim, Teixeira
Mendes vai encaminhar a discussão, estabelecendo, antes de mais nada, que a uni-
versidade não se inclui entre os elementos requeridos pela grandeza nacional. É
interessante enumerar quais seriam esses elementos, segundo seu entendimento,
A grandeza nacional, diria Teixeira Mendes, depende da redução ao mínimo da
massa de parasitas que exploram o trabalho proletário; da redução ao indispensá-
vel dos indivíduos úteis que, mantidos pelo proletariado, colaboram para o bem-
estar deste; enfim, da educação e moralização deste mesmo proletariado, para
que possa possuir seu domicílio inviolável e uma verdadeira família, em que a
mulher não seja obrigada a descuidar dos filhos para cuidar do sustento da casa.
Portanto, a universidade não é requerida pela grandeza nacional.
Mas não se trata apenas de organismo desnecessário. A esse aspecto não se resu-
me o problema. Ao contrário, corresponde a verdadeiro absurdo. Sua constitui-
ção somente poderia gerar como resultado a sistematização de nossa pedantocra-
cia e o atrofiamento do desenvolvimento científico, isto é, aquele preconizado
por Comte e com vistas ao terceiro estado. A tentativa basta para demonstrar a
incapacidade política de nossos governos, referindo-se ao Império, porquanto seu
combate é ao Projeto Homem de Melo.
O governo brasileiro, sentencia finalmente, deve renunciar ao estabelecimento de
um sistema de educação nacional, que só os positivistas seriam capazes de empre-
ender, no momento oportuno. Enquanto tal oportunidade não se apresente, deve
9 Apud Roque Spencer Maciel de Barros. A ilustração brasileira e a idéia de universidade,
op. cit.. p. 328/329.
24
limitar-se a assegurar a instrução elementar, sem compromisso com qualquer das
"filosofias" existentes, e a desenvolver o ensino especial (profissional) sem con-
ceder privilégios aos que o cursarem 10 .
A argumentação positivista, como se vé, tangencia o assunto. Em nome do regi-
me ideal, volta-se as costas ao real. Na verdade, o problema do ensino propria-
mente dito não é sequer apontado.
Apesar disso os positivistas lograram influenciar a maioria dos componentes dos
órgãos decisórios e por isto mesmo são responsabilizados diretamente pelo aban-
dono sistemático da idéia de implantar-se a universidade, nos decénios iniciais da
República, pelo conhecido educador Isaías Alves. Abordando o assunto na déca-
da de vinte, escreveria: "Já é deveras um pouco tardio o movimento em prol da
Universidade. . . Tivéssemos instituído as Universidades no começo do século e já
teríamos passado o tempo de prova dos regulamentos e estaríamos com o serviço
cultural iniciado. Foi mais um prejuízo que nos trouxe o positivismo ortodoxo
pela voz de Miguel Lemos, que foi um dos espíritos dominadores do seu tempo
em nosso país, pouco rico de pensadores e filósofos. Agora, emendando o erro, é
urgente realizar essa reforma de extraordinárias consequências para a vida do
país"".
A acusação há de parecer bem fundada a quem consulte os documentos da dis-
cussão ocorrida no começo do século 12 , desde que a oposição positivista acha-se
presente em toda a linha. O deputado Gastão da Cunha, autor de um projeto
criando a universidade, apresentado ao Parlamento em 1903, tenta contorná-la
desta forma: "Ora, senhores, se bem entendi as causas da oposição do eminente
filósofo (Comte), elas desaparecem em face das organizações universitárias mo-
dernas, que em nada mais podem lembrar aqueles institutos medievais, sem dúvi-
da arcaicos e nocivos ao desenvolvimento intelectual de nossa época, . . .". Gas-
tão da Cunha lembra ainda que Emile Littré (1801/1881 ), o famoso discípulo de
Comte que recusou a religião da humanidade, reconhecera o equívoco positivista
nos seguintes termos: "Com a supressão das universidades queríamos abrir cami-
nho ao ensino positivista. Laborávamos porém em engano, supondo estarmos na
transição - divisória que julgávamos pouco espessa - para um futuro decisivo.
Mas a divisória é muito menos ténue do que imaginávamos; e o desbastamento,
que aliás nunca se pôde operar, teria sido muito mais danoso à instrução em ge-
ral, sem aproveitar em nada a doutrina que tínhamos em mente" 13 .
A oposição positivista também foi atacada frontalmente, lembrando o deputado
Sátiro Dias que "o respeitável senhor Teixeira Mendes ainda ontem capitulava a
vacinação obrigatória de tão perversa quão irracional monstruosidade", devendo-
Cf. A universidade 2 a edição. Rio de Janeiro, 1913 e Roque Spencer Maciel de Barros,
op. cit., p. 331/332.
1 1 O problema universitário brasileiro. R io de Janeiro, A Encadernadora, 1929, p. 371 .
12 Documentos Parlamentares. InstruçSo Pública. Vol. VI, p. 63/157.
13 Op. cit., p. 69 e 70.
25
se equiparar àquela tese a sua opinião de que a universidade não passa de formi-
dável e audacioso atentado às aspirações nacionais em matéria de ensino.
De todos os modos, respeitou-se a interdição positivista. Tanto mais que, objeti-
vamente, ia ao encontro de uma de nossas mais velhas tradições.
Primórdios do germanismo pedagógico
Segundo se mencionou, nos começos deste século ocorre no país animado debate
acerca da universidade. Mais tarde chegou-se a supor que, durante o seu curso,
houvesse aflorado, grangeando aplausos, a acepção de universidade segundo o
modelo alemão, isto é, o de uma instituição capaz de promover a formação de
cientistas e pesquisadores, sem embargo do preparo de professores e de profissio-
nais. Semelhante impressão não parece justificável, embora existisse certo germa-
nismo pedagógico que compete caracterizar.
Algumas iniciativas em prol da criação da universidade surgiram na década de no-
venta. Entretanto, a questão somente assumiu feição melhor configurada graças
ao apoio que lhe dei: o ministro da Justiça e Negócios Interiores, José Joaquim
Seabra, encarregando o professor Azevedo Sodré de elaborar o respectivo proje-
to, submetido à Câmara em 1903. A discussão arrastou-se até fins de 1904, quan-
do a Comissão de Instrução Pública considerou prematura a sua instituição. Pro-
nunciaram-se as Congregações da Faculdade de Direito de São Paulo, da Faculda-
de Medicina da Bahia, da Faculdade de Direito do Recife, da Faculdade de Medi-
cina do Rio de Janeiro, da Escola Politécnica do Rio de Janeiro e do Ginásio Na-
cional 14 . Num desses pareceres, o da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro,
afirmou-se que o projeto Azevedo Sodré seria "modelado no regime das universi-
dades alemãs" 15 , opinião que seu autor referiria ao refazê-lo para incorporaras
diversas sugestões. Posteriormente, na conferência que pronunciou acerca do en-
sino superior - e que seria incorporada ao inquérito sobre a questão universitária
que se mencionará adiante - Rodrigo Otávio (1866/1944) afirma: "O projeto que
o ilustre professor Dr. Azevedo Sodré apresentou em 1903 foi elaborado sob o
molde dos institutos alemães" 16 .
Semelhante opinião é de todo improcedente. O projeto Azevedo Sodré assim es-
tabelece a principal função da universidade: "Ministrar a instrução secundária e
superior por intermédio de suas faculdades, tendo em mira dar ao ensino um cu-
nho eminentemente prático e profissional, e promovendo ao mesmo tempo, por
um estímulo bem conduzido, pela emulação e distribuição de prémios, o progres-
"Projeto Azevedo Sodré e pareceres". Documentos Parlamentares. Instrução Pública.
Vol.cit.,p. 257/401
,s Op. cit.. p. 273.
16 O problema universitário brasileiro, ed. cit., p. 474. A conferência intítulava-se "Cria-
ção e desenvolvimento dos cursos de ensino superior no Brasil: Função social das uni-
versidades", proferida na Biblioteca Nacional em 10 de outubro de 1918, tendo sido
publicada na Revista da Universidade do Rio de Janeiro. l|1):27-45, 1926. O autor
foi membro da Academia Brasileira de Letras, onde ocupou a cadeira n9 35.
26
so das ciências no Brasil e a constituição de uma literatura científica nacional".
Para incompatibilizar semelhante enunciado com o modelo de universidade ale-
mã bastaria a atribuição de "ministrar a instrução secundária". Além disso, aque-
la universidade se consagrara por estimular a formação de homens de ciência e não
apenas de profissionais.
A explicação para o equívoco estaria no que se denominou de germanismo peda-
gógico, vigente nas últimas décadas do século passado. Roque Spencer Maciel de
Barros entende que, embora se falasse em universidade alemã, a instituição com
que se simpatizava era a do privat-docent, aliás incorporada ao ensino superior
brasileiro sem maiores vínculos com a inspiração original, isto é, a de promover
a concorrência entre os docentes. O projeto Azevedo Sodré consagrava essa fi-
gura e, além disto, condicionava o exercício da profissão à realização do denomi-
nado exame de Estado, vigente na Alemanha. Tais aspectos, contudo, não con-
substanciam uma opção pelo modelo alemão de universidade vigente no período,
isto é, por um instituto que assegura o desenvolvimento da ciência, em que pese
cuide igualmente da formação profissional 17 ,
A idéia de que a universidade é o lugar da ciência constitui algo de muito tardio
na cultura brasileira.
2. Nova acepção da universidade como parte da reação ao positivismo
A idéia de universidade iria experimentar alteração radical na década de vinte,
como um dos resultados da oposição ao positivismo iniciada na Escola Politécni-
ca do Rio de Janeiro.
A influência do positivismo no período republicano não se restringiu ao aspecto
antes apontado, encontrando ampla repercussão nos mais diversos setores 18 .
Contudo, não vem ao caso examinar de forma abrangente essa questão, salvo no
que respeita aos aspectos adiante enumerados.
O positivismo de Augusto Comte apresenta duas faces principais, sendo a primei-
ra aquela que coloca a ciência a serviço da reforma social e virtualmente reduz o
homem a puro mecanismo. O saber dessa esfera do real se define como física so-
cial. Nessa visão da pessoa humana é que se apóia a filosofia pol ítica positivista 19 .
A discussão de semelhante ponto de vista foi efetivada por Tobias Barreto (1839/
1889) que, para refutá-la, elaborou uma doutrina mais tarde denominada de cul-
turalismo. Segundo Tobias Barreto, o homem não se deixa explicar a partir de
simples causas eficientes, isto é, em termos de física social, porquanto se orienta
Quanto à pretensa influência alemã na reforma do ensino levada a cabo em 1870 por
Leôncio de Carvalho, consulte-se a obra de Roque Spencer Maciel de Barros, dedicada
ao tema e antes citada (p. 265 a 296).
Cf. Ivan Lins História do positivismo no Brasil. 2? edição. São Paulo, Cia. Editora Na-
cional, 1967.
No Brasil, o castilhismo constituí a principal vertente da filosofia de inspiração positi-
vista.
27
por causas finais. A obra de cultura que foi capaz de erigir, afirma, escapa ao es-
quema determinista. Semelhante ponto de vista chegou a ser mais tarde retoma-
do e aprofundado. Contudo, a refutação dessa parcela do comtismo não logrou
alcançar maior sucesso no país, ao contrário do que se verificou com a doutrina
adiante apresentada.
A outra face do positivismo corresponde à sua acepção de ciência e de filosofia.
Esta resumir-se-ia a uma síntese das ciências. Tobias Barreto poria igualmente
em circulação o conceito neokantiano segundo o qual a filosofia seria um tipo de
saber que não aumenta o conhecimento científico, acepção essa que permitiu o
abandono das "filosofias sintéticas", a exemplo do comtismo ou do evolucionis-
mo, em prol de doutrinas melhor elaboradas. Contudo, a difusão de semelhante
ponto de vista exigia, previamente, a refutação da própria acepção de ciência pre-
conizada por Comte, o que requeria conhecimentos de que não dispunham os
bacharéis de direito, partidários das idéias de Tobias Barreto. A questão acabou
deslocando-se para a Escola Politécnica.
Para Augusto Comte, as ciências achavam-se constituídas, razão pela qual inter-
dita a investigação de vários temas, rotulando-os de "metafísicos", justamente
o caminho pelo qual enveredou a nova física. A circunstância gerou natural in-
satisfação entre os cultores da ciência no país que encetaram uma reação contra
a influência do positivismo num de seus redutos principais: a Escola Politénica
do Rio de Janeiro. Esse movimento foi iniciado por Otto de Alencar (1874/191 2)
e teve vários seguidores sendo Manoel Amoroso Costa (1885/1928) o mais desta-
cado.
Balanceando a fase inicial dessa reação antipositivista, que abrange os dois decé-
nios iniciais do século, Amoroso Costa iria assinalar que para Comte "a ciência
fundamental está radicalmente esgotada com a construção da mecânica celeste,
termo de sua evolução normal", nada justificando "a invasão do domínio mate-
mático pelas abstrações desprovidas de racionalidade e de dignidade, que nele fez
prevalecer a anarquia académica; só resta agora elaborar uma sistematização su-
bordinada ao conjunto dos conhecimentos humanos" 20 .
Decorre dessa doutrina estreita, prossegue Amoroso Costa, "uma condenação das
funções elíticas feita em termos tais que é lícito presumir que a importância des-
sas funções escapou inteiramente ao reformador. Igual sorte têm as funções des-
contínuas, o cálculo das probabilidades, qualificado de aberração profundamente
estéril. Por outro lado, Comte julga pouco lamentável a dificuldade de obter cri-
térios gerais sobre a convergência de séries, e ainda mais, aceitando o princípio
leibnitziano como de natureza essencialmente indutiva, renuncia a libertar a aná-
lise infinitesimal do aparente paradoxo que lhe serve de fundamento.
Se acrescentar a essa parte negativa da Síntese a reforma da numeração sobre ba-
se setimal, diante da qual recuaram os seus próprios discípulos, e a tentativa infe-
liz de substituir por formação o termo tradicional de função, que remonta a Lei-
bniz, terei citado alguns dos pontos que caracterizam a obra de Comte" 21 .
Conferencia sobre Otto de Alencar (1918) in As idéias fundamentais da matemática e
outros ensaios. São Paulo, Gnjalbo/USP, 1971, p. 71.
28
Na mesma oportunidade, Amoroso Costa iria indicar que a evolução posterior da
ciência propiciou este destino às interdições de Augusto Comte: ". . . as funções
elfticas, em vez de constituírem divagações efémeras, deram origem à maravilho-
sa teoria geral das funções, base da matemática moderna, que hoje se aventura
pelo terreno proibido da descontinuidade; o cálculo das probabilidades tem sido
um meio fecundo de investigação justificado pelo desenvolvimento das ciências
que estudam os fenómenos estatísticos; a teoria das séries é de importância pri-
mordial, bastando atentar ao papel que desempenha em análise moderna a fór-
mula tayloriana; e finalmente todos sabem que uma das grandes obras do século
XIX em matemática foi a definitiva consolidação dos fundamentos da análise.
Note-se que não aludo aqui senão aos progressos da ciência que contribuíram di-
retamente para quebrar os limites decretados pela Síntese. Que diria Comte se
pudesse imaginar o sucesso das geometrias não-euclidianas e dos espaços a mais
de três dimensões; das funções estranhas cujas singularidades parecem desafiar a
intuição; da mecânica da relatividade; do monumento que já é hoje a física ma-
temática, não falando da astronomia estrelar e de todas as questões, enfim, que
vedou ao método matemático, em nome de uma vaga sociologia".
Otto de Alencar aceitou integralmente a ciência de seu tempo, afastando-se por
essa razão do positivismo. Parcela significativa da intelectualidade brasileira iria,
contudo, fazer opção inversa.
A reação antipositivista iniciada por Otto de Alencar e retomada por Amoroso
Costa iria alcançar êxitos notáveis. Em 1916 é fundada a Academia Brasileira de
Ciências, cujo primeiro presidente foi Henrique Morize (1860/1930). Essa enti-
dade vincula-se estreitamente ao Instituto Franco Brasileiro de Alta Cultura, que
iria patrocinar amplo intercâmbio entre cientistas brasileiros e franceses. Em
maio de 1925 promoveu-se a vinda ao Brasil de Albert Einstein (1879/1955),
A presença em nosso país do criador da teoria da relatividade revelaria a condi-
ção minoritária a que haviam chegado os positivistas entre os cultores das ciên-
cias exatas no país. Assim, Licínio Cardoso (1852/1926), catedrático de mecâni-
ca racional da Escola Politécnica, saudaria o evento publicando em O Jornal, do
Rio de Janeiro, artigo intitulado "Relatividade imaginária". Nas discussões que
o fato enseja na Academia Brasileira de Ciências verifica-se que não ocorre uma
só intervenção em favor de Licínio Cardoso, cuja posição seria combatida por
Adalberto Menezes de Oliveira, Álvaro Osório de Almeida, Inácio Azevedo Ama-
ral e Roberto Marinho de Azevedo".
Verifica-se, pois, que o grupo de pensadores vinculado à Escola Politécnica de-
senvolveu com êxito, no que respeita às ciências f ísico-matemáticas 23 , o movi-
mento de superação do conceito de ciência de Augusto Comte, facultando à
intelectualidade brasileira a possibilidade de acompanhar o sentido de sua evo-
Idem.p. 71/72.
Cf. Revista da Academia Brasileira de Ciências 1 ( 1 1 : 1 25- 1 30, abril de 1 926.
No âmbito das ciências humanas não se logrou idêntica superação da influência do posi-
tivismo.
29
lução. No que respeita à filosofia da ciência. Amoroso Costa acompanharia de
perto o processo de formação da corrente, de filosofia denominada neopositivis-
mo, facultando se estruturasse uma tradição oposta ao comtismo.
Em 1923, a Academia Brasileira de Ciências iria abrir outra frente: a reivindica-
ção de uma universidade que desse lugar ao culto da ciência pura, sem vínculos
imediatos com a aplicação. Neste sentido, em vista da reforma do ensino de que
se cogitava, sugeriu ao ministro do Interior a criação de uma Faculdade Superior
de Ciência. Comentando a iniciativa, escreveria Amoroso Costa:
"0 mundo moderno, com o seu fanatismo do progresso material, não desconhe-
ce o que deve ao trabalho dos homens de ciência. Nos países novos esse fanatis-
mo é levado ao auge e mesmo pessoas muito instruídas ignoram por completo
que exista um ideal científico superior ao do homem que fabrica mil automó-
veis por dia, ou o que opera uma apendicite em dez minutos. Daí a opinião qua-
se unanimemente admitida entre nós: a ciência é útil porque dela precisam os en-
genheiros, os médicos, os industriais, os militares; mas não vale a pena fazê-la no
Brasil porque é mais cómodo e mais barato importá-la da Europa, na quantidade
que for estritamente suficiente para o nosso consumo. Tal a mentalidade domi-
nante entre aqueles que nos educam, e, por mais forte razão, entre aqueles que
nos governam. Não admira que assim seja; é a mentalidade de que só hoje, no
fastígio da riqueza e da força, se começam a libertar os Estados Unidos". E con-
clui: "O apelo da Academia Brasileira de Ciências é uma declaração de princí-
pios, a que ela estava moralmente obrigada. Mas, por muitos anos ainda, a ciência
oficial será entre nós uma tecla utilitária, e nada mais" 24 .
Aparece, assim, na cultura brasileira, uma acepção valorativa da universidade, atri-
buindo-lhe a função de cultivar as ciências, despreocupando-se de sua aplicação.
Essa idéia estava destinada a uma vigorosa germinação.
3. A Academia Brasileira de Ciências
A Academia Brasileira de Ciências (ABC) desempenha papel muito importante
no movimento ora estudado. Foi fundada a 3 de maio de 1 916, com a denomina-
ção de Sociedade Brasileira de Ciências, por um grupo de professores da Escola
Politécnica, realizando suas sessões na sala de congregação. Seu primeiro presi-
dente foi Henrique Morize (1860/1930), conhecido homem de ciências sucessi-
vamente reeleito para o cargo até o falecimento. A primeira diretoria era consti-
tuída ainda por J.C. da Costa Sena e Juliano Moreira (vice-presidentes); Alfredo
Lofgren (secretário-geral); Roquete Pinto (19 secretário); Amoroso Costa (29 se-
cretário) e Alberto Betim Paes Leme (tesoureiro). Reelegeu-se para os períodos
1917/1920 e 1920/1923. A partir de 1923, Amoroso Costa não mais a integra e
a Secretaria Geral passa às mãos de Miguel Osório de Almeida.
A academia funcionava com base em seções limitadas às seguintes: Ciências Mate-
máticas, Físico-Químicas e Biológicas. Mais tarde estabeleceram-se em definitivo:
Ciências Matemáticas. Físicas, Químicas, Geológicas e Biológicas.
54 "Pela Ciência Pura", (maio, 1923) in Obra Citada, p. 151 e 152.
30
Licínio Cardoso foi o primeiro presidente da Seção de Ciências Matemáticas. A
contar de 1923, essa função é desempenhada por Amoroso Costa.
Até 1929, as publicações da academia registram periodicidade irregular, fruto de
dificuldades financeiras que se refletem também na ausência de sede própria. Du-
rante alguns anos, funcionou no pavilhão que a Tcheco-Eslováquia havia manda-
do erigir no Castelo (Avenida das Nações), como parte das comemorações do
centenário da Independência (Exposição Nacional do Centenário). Somente em
começos da década de sessenta estabeleceu-se em sua sede própria, à Avenida
Graça Aranha.
Quanto às publicações, iniciam-se com a Revista da Sociedade Brasileira de Ciên-
cias (Imprensa Macional, 23 cm), anual, e que aparece em 1917 (n9 1); 1918
(n° 2) e 1919 (n9 3). A partir de 1920, muda de formato e de denominação.
Passa a chamar-se Revista de Ciências - órgão da Socidade Brasileira de Ciên-
cias (F. Briguiet & Cia., 31 cm). Projetada para circular bimestralmente, só con-
segue fazê-lo nos três primeiros números (Ano IV, n9 1, janeiro, fevereiro; n9 2,
março-abril;n9 3, maio-junho). Os números relativos ao segundo semestre (4/5/6)
são reunidos num único fascículo. Em 1921, aparece apenas o que se denomina
Complemento do V ano. Em 1922, a mesma publicação passa a chamar-se Revis-
ta de Ciências — órgão da Academia Brasileira de Ciências (VI ano: janeiro-de-
zembro, Cia. Melhoramento de São Paulo, 31 cm). No resumo das atas das ses-
sões não se encontra nenhuma indicação quanto à data precisa em que a entidade
começou a denominar-se academia ao invés de sociedade.
O órgão da academia não circula nos anos de 1923, 1924 e 1925. Em 1926, edi-
ta-se a Revista da Academia Brasileira de Ciências (nP 1, abril 1926, Oficinas Ti-
pográficas do Ministério da Agricultura, 25 cm). O número 2, que circula com a
data de janeiro de 1928, contém apenas o resumo das atas das sessões realizadas
em 1926 (Mendonça Machado & Cia., 25 cm).
Verifica-se novo interregno, até 1929, ano em que nova publicação declara em
seu primeiro número: "Sob a presente forma de Anais, reenceta a Academia Bra-
sileira de Ciências a publicação de seus trabalhos científicos" (Anais da Acade-
mia Brasileira de Ciências, Ano I, tomo I, n9 1, 31 de março de 1929, 26 cm).
Os Anais aparecem trimestralmente, mantida a sequência na numeração das pági-
nas.
A julgar pela leitura das publicações relacionadas precedentemente, os integran-
tes da academia procuram manter o melhor nível científico de seus trabalhos e
acompanhar de perto a evolução das ciências. Parecem mais ligados ao pensamen-
to francês, provavelmente em decorrência do grande desenvolvimento que a ma-
temática atinge naquele país, no início do século. Sucedem-se as visitas de pensa-
dores franceses ou a sua designação como membros correspondentes. A sessão
comemorativa da Independência conta com a presença de Emile Borel, que pro-
nuncia uma conferência intitulada "A teoria da relatividade e a curvatura do Uni-
verso", não divulgada na Revista de Ciências por não ter sido taquigrafada. No
ano seguinte (1923), a academia recebe os professores E. Gley, Henri Abraham e
H. Pièron. Mais tarde, em 1926, a 8 de setembro, tem lugar uma sessão solene em
decorrência da visita de Paul Janet, Emile Marchouy e Georges Dumas. A acade-
mia acha-se estritamente vinculada ao Instituto Franco-Brasileiro de Alta Cultura.
31
O grupo da Academia Brasileira de Ciências desenvolve um trabalho pertinaz no
sentido de tornar conhecida da intelectualidade brasileira a nova física. Dedica-se
maior atenção à teoria da relatividade. Assim, além do que se divulgou a propósi-
to do tema na Revista Brasileira de Engenharia, na imprensa diária e no livro de
Amoroso Costa, Roberto Marinho de Azevedo apresenta à academia estudo que
é divulgado em duas partes, com a denominação genérica de "O princípio da re-
latividade" (Parte I; 4(1): 12-24 janeiro-fevereiro, 1920: Parte II; 4(2): 45-53,
março-abril, 1920, ambas na Revista de Ciências). O mesmo professor voltou ao
tema com uma "Resposta às objeções levantadas entre nós contra a Teoria da
Relatividade" (Revista da Academia Brasileira de Ciências (1) : 1 3- 1 7, abril, 1926).
A academia reúne-se em sessão solene para receber Albert Einstein, a 6 de maio
de 1925. Nessa oportunidade pronuncia uma conferência intitulada "Observa-
ções sobre a situação atual da teoria da luz", divulgada na Revista de 1926, a par-
tir de um texto entregue pelo autor a Getúlio das Neves, traduzido por Roberto
Marinho de Azevedo.
A presença de Einstein no Rio de Janeiro enseja uma discussão comprobatória da
derrota do comtismo nos círculos científicos nacionais.
Na sessão da academia de 28 de maio, Licínio Cardoso procede à leitura de um
artigo de sua autoria, divulgado em O Jornal (16 de maio), intitulado "Relativi-
dade imaginária". Adalberto Menezes de Oliveira e Álvaro Alberto refutam as
considerações ali contidas e Licínio Cardoso responde-lhes na sessão de 10 de ju-
nho. Na sessão de 24 de junho, Adalberto Menezes volta ao assunto, afirmando:
"os que combatem as teorias de Einstein parecem desconhecer o verdadeiro pa-
pel de uma teoria física", que, no seu entender, seria "o de coordenar as leis já
conhecidas e prever novas leis". Na sessão de 8 de julho, continua o assunto em
pauta, cabendo a Inácio do Amaral e Roberto Marinho de Azevedo combater as
teses do mestre positivista. Observe-se que nas atas da academia não aparece uma
só intervenção em favor de Licínio Cardoso (Revista da Academia Brasileira de
Ciências de 1926 págs. 125-130).
A exemplo de outros trabalhos divulgados na década de vinte, no ensaio deno-
minado "A filosofia matemática de Poincaré", publicada na Revista da Academia
Brasileira de Ciências (julho-dezembro, 1920), Amoroso Costa procura delimitar
o âmbito da filosofia das ciências, enfatizando o papel do espírito humano, a par-
tir da matemática, por corresponder sua criação à esfera em que "limita ao míni-
mo o auxílio do mundo exterior". Ao que acrescenta: "Tudo se reduz aí a esco-
lher, na massa dos fatos e das relações, aqueles que podem levar a resultados ge-
rais; os espíritos verdadeiramente matemáticos têm o sentimento da ordem em
que se devem encadear os raciocínios para atingir um fim determinado, assim co-
mo os jogadores de xadrez sabem discernir o bom lance entre lances permitidos
pelas regras do jogo. Nesse trabalho é preciso também salientar o papel primor-
dial do senso estético, porque as combinações úteis de fatos, as transformações
fecundas, são ao mesmo tempo mais belas, e essa harmonia é um admirável fio
condutor" (páginas 107-108).
Nessa explicitação dos princípios da ciência, onde o "a priori" adquire o seu ver-
dadeiro significado - problemas que não podem ser objeto de nenhuma ciência
particular - Amoroso Costa dá ; se conta de que circula numa esfera onde as op-
ções radicais resultam da "tendência profunda" de nosso espírito e sobre os
32
quais "os homens provavelmente nunca chegarão a acordo", equivale dizer, onde
a índole dos problemas impossibilitam o recurso às demonstrações convincentes.
Os Anais de 1929 (Tomo I, março) transcrevem as alocuções proferidas na sessão
solene, realizada a 20 de dezembro do ano anterior, na Escola Politécnica, em
homenagem a Daniel Hennmger, Tobias Moscoso, Amoroso Costa e Ferdinando
Laboriau, falecidos em desastre de aviação. E os Anais de 1930 (Tomo II, junho),
o discurso de Dulcídio Pereira em memória de Henrique Morize.
A partir de 1929, os Anais da Academia Brasileira de Ciências são publicados
com regularidade. Embora encadernados num único tomo anual, a impressão se
fazia trimestralmente, confeccionando-se posteriormente o índice. Em geral, os
Anais inseriam exclusivamente as comunicações dos membros da academia. Em
alguns anos, impressos de forma autónoma mas encadernados em conjunto, dá-
se notícia das reuniões em que se discutiam as comunicações bem como de cer-
tos eventos (eleição e posse de diretorias) e insere-se a relação dos membros da
entidade.
Nos Anais de 1937 (Tomo IX, p. 163/165) noticia-se a posse da diretoria elei-
ta para o biénio 1937/1939 integrada por Adalberto Menezes de Oliveira (presi-
dente), Roberto Marinho de Azevedo e Cândido de Melo Leitão (vice-presidente).
Exercera a presidência, no ano anterior, Álvaro Alberto. Este, no discurso de
transmissão do cargo, refere que a academia contou com o concurso de Luz Frei-
re, "que veio do Recife duas vezes", e dos professores estrangeiros chegados a
São Paulo: Luígi Fantappié, Gleb Wataghin e Felix Ravitscher. Em relação à no-
va diretoria, traça o perfil de seus integrantes. A propósito de Roberto Marinho
de Azevedo diria que "tem sabido formar tantas gerações de discípulos em seus
notáveis cursos nesta gloriosa Escola Politécnica e, ao florão de seus títulos, aca-
ba de reunir o de organizador da jovem Escola de Ciências da Universidade do
Distrito Federal".
No biénio 1939/1941, a academia é presidida por Inácio Azevedo Amaral e, de
1941 a 1943, por Arthur Moses. Nesta última gestão, de 4 a 8 de agosto de 1941,
realiza-se simpósio sobre raios cósmicos, por ocasião da visita da missão científi-
ca norte-americana, chefiada por Arthur H. Compton, da Universidade de Chica-
go, em viagem pela América do Sul para a realização de medidas da radiação cós-
mica.
A missão científica era integrada por William P. Jessé (Universidade de Chicago),
Normal Hilberry (Universidade de N. York), Ernest O. Wollan (Chicago Tumor
Institute), Donald J. Hughes (Universidade George Washington, de St. Louis) e
Paulus Pompéia (Universidade de São Paulo).
Além dos componentes da missão, apresentaram comunicações os professores
Gleb Wataghin, G. Occhialini, Marcelo Damy de Souza Santos e Yolande Mon-
teu, da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo; Padre F. X. Roser,
do Colégio Anchieta; Adalberto Menezes de Oliveira, da Escola Naval; Bernhard
Gross, do Instituto Nacional de Tecnologia; René Wurmser, do Colégio de Fran-
ce e Joaquim Costa Ribeiro, da Faculdade Nacional de Filosofia.
Tomaram parte nos trabalhos e acompanharam ainda as reuniões os professores
Arthur Moses, presidente da academia; Álvaro Alberto, da Escola Naval; Inácio
Azevedo Amaral, da Escola Nacional de Engenharia; Francisco Magalhães Go-
33
mes, da Escola de Engenharia de Belo Horizonte; Luiz Freire, da Escola de En-
genharia de Pernambuco; Carlos Chagas Filho, da Faculdade Nacional de Medi-
cina; Francisco Mendes de Oliveira Castro, do Instituto Nacional de Tecnologia;
Arthur do Prado, da Escola Nacional de Agronomia; Gabrielle Mamana, Luigi
Sobrero e Dalberto Faggiani, da Faculdade Nacional de Filosofia; Abraão de Mo-
rais, da Faculdade de Filosofia da USP; Eugénio Hime, da Escola Nacional de
Belas Artes; Venâncio Filho, do Instituto de Educação; Carneiro Felipe, da Es-
cola Nacional de Química; F. Radler de Aquino e Mário Pinto, do Departamen-
to Nacional da Produção Mineral; Francisco de Souza, diretor do Serviço Meteo-
rológico; Cardoso Fontes, do Instituto Oswaldo Cruz; A. J. Monteiro, da Escola
Técnica do Exército; Paulo Arruda e diversos outros interessados.
As reuniões tiveram lugar no Salão Nobre da Escola Politécnica. Na primeira reu-
nião, de 4 de agosto, discutiram-se comunicações dos professores Compton,
Hughes e Menezes de Oliveira, tendo Marcelo Damy apresentado resultados das
medições de radiação cósmica feitas em São Paulo durante o eclipse do sul de 1
de outubro de 1940. Na segunda (dia 5), apresentaram comunicações Hilberry,
Occhialini e Roser; na terceira (dia 6), Wataghin e Gross; na quarta (dia 7), Cin-
tra do Prado. Nessa ocasião, o professor Carlos Chagas Filho e assistentes fizeram
demonstrações experimentais das pesquisas em andamento sobre a produção de
eletricidade pelos seres vivos e, na quinta e última (dia 8), discutiram-se comuni-
cações de Marcelo Damy, René Wurmser, Paulus Pompeia, Gross e Costa Ribeiro.
Essa reunião teve importância muito grande para o desenvolvimento da pesquisa
relacionada à radiação cósmica que, por sua vez, tornar-se-ia ante-sala da física
nuclear no Brasil.
Nos Anais subsequentes do período estudado não mais se inserem notícias de
eventos salvo o de 1945 que volta a transcrever as discussões. Apenas o corres-
pondente ao ano de 1942 publica a relação dos membros da academia, então in-
tegrada por 69 pessoas, a seguir relacionadas:
- Adalberto Menezes de Oliveira
- Adolpho Ducke
- Afrânio Peixoto
-Alberto Childe
- Alberto Sampaio
- Alfred Schaeffer
Alix Lemos
Alipio di Primio
Allyrio de Mattos
• Álvaro Alberto da Mota e Silva
• Álvaro Osório de Almeida
■ Angelo M. da Costa Lima
Annibal Alves Bastos
■ Antonio Cardoso Fontes
■ Aristides Marques da Cunha
Arlindo de Assis
Arthur Moses
■ Arthur Neiva
Arthur do Prado
- Augusto Tasso Fragoso
- Benjamin Vinelli Baptista
- Bernhard Gross
- Cândido de Mello Leitão
- Carlos Bastos Magarinos Torres
- Carlos Chagas
- Cesar Ferreira Pinto
- Djalma Guimarães
- Domingos Fernandes da Costa
- Dulcídio de Almeida Pereira
- Edgard Roquete Pinto
- Ernesto Lopes da Fonseca Costa
- Eugénio dos Santos Rangel
- Francisco M. de Oliveira Castro
- Francisco Radler de Aquino
- Frederico Carlos Hoehne
- Glycon de Paiva Teixeira
- Gustavo M. de Oliveira Castro
- Henrique de Toledo Dodsworth
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- Inácio M. Azevedo do Amaral - Mário da Silva Pinto
- J. Belfort Vieira — Mathias de Oliveira Roxo
- Joaquim de Almeida Lisboa — Maurício Joppert da Silva
- Joaquim Costa Ribeiro - Miguel Osório de Almeida
- José Carneiro Felippe — Odorico Rodrigues de Albuquerque
- José Ferreira de Andrade Júnior — Olympio da Fonseca Filho
- José Frazão Milanez - Oscar d'Utra e Silva
- José Pantoja Leite - Paulo Parreiras Horta
- Lauro Travassos - Othon Leonardos
- Lélio Gama ~ Reynaldo Saldanha da Gama
- Luciano Jacques de Moraes - Roberto Marinho de Azevedo
- Luiz Cláudio de Castilho - Romeu Braga
- Luiz Afonso de Faria - Ruy de Lima e Silva
- Mário de Andrade Ramos - Sebastião Sodré da Gama
- Mário Paula de Brito - Sylvio Fróes de Abreu
- Mário Saraiva
Além dos titulares acima relacionados, a academia conta ainda com sócios corres-
pondentes estrangeiros.
A partir de 1940, os Anais classificam as comunicações nestas seções: Ciências
Matemáticas, Ciências F ísico-Químicas e Ciências Biológicas. l\lo período ante-
rior, eram relacionadas englobadamente e seu número oscila em torno de 30
anualmente, com duas únicas exceçÕes discrepantes: 21 comunicações em 1931 e
43 em 1 935.
A matéria básica dos Anais, até 1940, é constituída de comunicações relaciona-
das à história natural taxionõmica e às geociências de tipo exploratório. Posição
de menor relevância ocupam a química tradicional, os trabalhos de cunho mate-
mático e temas da fisiologia e medicina bacteriana.
É numeroso e ativo o grupo dos cientistas voltados para as geociências de tipo
exploratório, destacando-se Euzébio de Oliveira, Djalma Guimarães, Mathias de
Oliveira Roxo, Fróes de Abreu e Viktor Leinz.
A história natural taxionõmica é cultivada por Rodolpho von lhering e diversos
de seus assistentes, que pesquisam os problemas relacionados à piscicultura, em
especial a reprodução em águas de forte teor de salinidade, frequentes nos açu-
des do Mordeste; Cândido de Mello Leitão, que estuda géneros e famílias de ara-
nhas; Lauro Travassos, espécies de parasitos do homem; e diversos outros.
As duas seções são a parte mais relevante, vindo, subsidiariamente, as comunica-
ções relacionadas à química tradicional, elaboradas com maior assiduidade por
Álvaro Alberto, e os temas matemáticos, abordados por Teodoro Ramos, Inácio
Azevedo Amaral, Lélio Gama e Luiz Freire. Os Anais refletem o interesse dos ir-
mãos Osório de Almeida (Álvaro e Miguel) pelos problemas da fisiologia e da me-
dicina bacteriana.
A partir de 1940, ascendem a uma posição de grande destaque os temas relacio-
nados à radiação cósmica e começa a aparecer colaboração da nova geração de
cientistas que iria voltar-se para a física nuclear. Nos anos imediatamente anterio-
res, tais questões são abordadas exclusivamente por Gleb Wataghin e Bernhard
Gross, admitidos como membros correspondentes da academia em 1935. A cola-
35
boração de Mário Schemberg inicia-se em 1937, mas nessa fase está dedicada à
matemática.
Nos Anais de 1940 e 1941 publicam-se 14 comunicações relacionadas ã radiação
cósmica, em sua maioria apresentadas e discutidas por ocasião do simpósio a esse
tema dedicado. Esse tema continua ensejando trabalhos, notadamente de Wata-
ghin e Gross, ao tempo em que tem início a publicação de comunicações relacio-
nadas à física nuclear. Nos Anais de 1941 , Marcelo Damy trata de novo método
de detecção de partículas elementares, voltando a essa temática nos Anais de
1942. Nos Anais de 1944, os temas da física nuclear são abordados por Mário
Schemberg (energia própria do elétron), Cesar Lattes e Gleb Wataghin (estatís-
tica de partículas elementares e núcleos) e Leite Lopes (energia potencial do
dêuteron).
Das 14 sessões noticiadas pelos Anais de 1945, duas são dedicadas ao debate de
comunicações de Leite Lopes e Schemberg, versando sobre questões da física
nuclear e quatro ao fenómeno termo-dielétrico, a partir de exposição apresenta-
da por Costa Ribeiro. Na discussão desse último tema intervém Gross, Tiomno,
Mário Pinto, Carlos Chagas e Cintra do Prado. Nesse mesmo ano, os Anais pu-
blicam trabalhos de Wataghin (relatividade e indeterminação). Leite Lopes (mé-
son) e Schemberg (elétron).
A emergência da nova área de interesse combina-se com a manutenção das linhas
tradicionais de pesquisa. Assim, das 38 comunicações publicadas pelos Anais de
1945, 13 versam sobre problemas de matemática com a peculiaridade de que, ao
lado de Azevedo Amaral, agora aparecem os nomes de Mário Schemberg (duas
comunicações), Francisco Oliveira Castro e Leopoldo Nachbin (uma comunica-
ção cada). As comunicações versando sobre ciências f ísico-químicas são, em sua
maioria, dedicadas à química tradicional e às geocièncias de tipo exploratório
mas as que estão voltadas para os raios cósmicos e a física nuclear ocupam posi-
ção de destaque, ascendendo a seis. Finalmente, na parte dedicada às ciências bio-
lógicas, permanecem os mesmos interesses antes apontados, com o predomínio
dos velhos colaboradores, desde que a nova geração de pesquisadores dessa área
(Oswaldo Frota Pessoa, Domingos Arthur Machado Filho, José Antunes, José
Lacerda de Araújo Feio, Luiz Emídio Mello Filho, Newton Dias dos Santos e
Emanoel de Azevedo Martins, para mencionar apenas os que vinham de se diplo-
mar na UDF e na recém-fundada Faculdade de Filosofia) somente iria sobressair
um pouco mais tarde.
4. Associação Brasileira de Educação
A Associação Brasileira de Educação (ABE) foi fundada a 16 de outubro de
1924 e teve sua primeira diretoria constituída por Levi Carneiro, Cândido de
Mello Leitão, Delgado de Carvalho, Heitor Lira, Mário Brito e Branca de Almei
da Fialho. Todos os que militaram nesses primeiros tempos da entidade são unâ-
nimes em reconhecer que a iniciativa deveu-se a Heitor Lira, do mesmo modo
que o impulso inicial que a projetou e consolidou* 5 .
Heitor Lira da Silva faleceria dois anos depois de constituída a ABE, em 18 de
novembro dd 1926, tendo nessa ocasião 47 anos de idade. Formara-se em enge-
nharia pela Escola Politécnica do Rio de Janeiro e lave entre seus colegas de tur-
36
ma e. subsequentemente, de trabalho, a Roberto Marinho de Azevedo, que mais
tarde iria se destacar na difusão da teoria da relatividade, cuja validade era con-
testada pelos positivistas, à época desfrutando ainda de muito prestígio no ensi-
no militar e, em geral, na matemática e nas escolas de engenharia.
Juntamente com Roberto Marinho de Azevedo, Heitor Lira trabalhou na Cia. Pau-
lista de Estrada de Ferro. Mais tarde, ambos transferiram-se para a Central do Bra-
sil, ocupando-se, entre outras coisas, do projeto de eletrificação dessa ferrovia.
Heitor Lira dedicou-se igualmente ao magistério, tendo sido professor catedráti-
co do Curso de Arquitetura da Escola Nacional de Belas Artes. Sua grande, pai-
xão era contudo a educação. E, embora não acreditasse na possibilidade de êxi-
to, seus amigos acabariam concordando em participar de uma entidade àquele
mister dedicada.
Heitor Lira concebeu e implantou, na ABE, estrutura amplamente descentrali-
zada. Desejou, talvez, estimular a multiplicidade de iniciativas a fim de assegu-
rar o concurso de número crescente de pessoas e, por essa via, a perpetuação da
entidade.
A ABE subdividia-se em seções estaduais inteiramente autónomas. A par disso,
tinha em seu interior diversos departamentos, em geral liderados por figuras de
renome, que se ocupavam diretamente dos assuntos que lhes competiam. A ques-
tão da universidade, por exemplo, incumbia à Seção de Ensino Técnico e Supe-
rior, cujo primeiro diretor foi Ferdinando Laboriau Filho, da Academia Brasilei-
ra de Ciências e da Escola Politécnica. Em 1927, esse cargo passou a ser ocupado
por Amoroso Costa, talvez o homem de ciência brasileiro que haja então grangea-
do maior renome no exterior; e, em 1928, por Álvaro Osório de Almeida, desta-
cado animador da pesquisa científica no país.
A ABE, entre setembro de 1 925 e maio de 1 929, editou um boletim em que da-
va conta de suas atividades. Nos anos de 1930 e 1931, uma publicação denomi-
nada Schola. E, a partir de fevereiro de 1939, a revista Educação.
Desde o primeiro ano de funcionamento, adotou como praxe a realização de
conferências, que tinham lugar num dos auditórios da Escola Politécnica. Essas
conferências versavam sobre questões de educação. Assim, em 1925 foram abor-
dados estes temas; métodos da escola ativa (Augusto Nieto Cabelero, diretor do
Ginásio Moderno de Bogotá); a instrução técnica e profissional no Peru (Luiz Ca-
tanhede); o ensino na Suíça (Laura Lacombe) e modalidade da educação social
(Amaurv de Medeiros).
A partir de 1926, tiveram início os cursos de alta cultura e especialização, pro-
movidos pela Seção de Ensino Técnico e Superior. Eram ministrados em número
limitado de aulas (entre 5 e 10) e realizavam-se, simultaneamente, três ou quatro.
O Boletim de julho, 1926, registrava a presença de auditório assíduo de cerca de
Cf. "In Memoriam" de Heitor Lira da Siiva Boletim da Associação Brasileira de Educa
ção 3(91 .1, jan-fev., 1927; A criação e o criador. Boletim de Ariel 4(4) :1 12-1 13, ian.
1935 (discurso de Francisco Venâncio Filho na comemoração do décimo aniversário da
ABE): e Heitor Lira e a ABE. Educação, órgão da Associação Brasileira de Educação
1(11:1, fev., 1939.
37
100 pessoas, dispondo, ao todo, de 300 a 400 ouvintes nos diversos cursos simul-
tâneos. O relatório das atividades do período novembro de 1925 a janeiro de
1926, assim estabelecera o nível dos cursos: "Está cuidando esta seção (de Ensi-
no Técnico e Superior) de promover cursos de especialização, feitos naturalmen-
te para um público reduzido mas que terão o cunho verdadeiro de ensino supe-
rior, sobre pontos mais interessantes e modernos. Realizado o seu escopo serão
esses cursos os precursores naturais de uma Faculdade de Ciências, já tão neces-
sária em nosso meio" 26 .
A julgar pelos temas e pela qualidade dos professores, observou-se a diretriz do
programa. Amoroso Costa ministrou, sucessivamente, estes cursos 2 1 : As idéias
fundamentais da matemática (1926), As geometrias não-euclidianas (1927) e As
geometrias não-arquimedianas (1928). A matemática foi igualmente objeto de
outros cursos, a saber: As teorias do acaso (Tobias Moscoso) e A indeterminação
em matemática (Inácio Azevedo Amaral). Tratou-se de física nos cursos de Dul-
cídio Pereira (A constituição da matéria e a física do descontinuo) e Abrahão
Izechsohn (Termodinâmica), das modernas teorias da química (Mário de Brito),
da geologia do petróleo (Euzébio de Oliveira), de neurofisiologia e biologia (curso
de fisiologia, em 1926, por Álvaro Osório de Almeida; de teoria da excitação dos
nervos, por Miguel Osório de Almeida e sobre hereditariedade, por André Drey
fus) e também de temas ligados às artes e à cultura em geral (A arquitetura no
Brasil, por Nereu Sampaio; o folclore, por Gustavo Barroso; Reflexões sobre a
filosofia de Bergson, por Luiz Betim Paes Leme, etc).
Essa atividade, mais tarde, chegou a ser denominada de extensão universitária 28 .
A exemplo das conferências a publicação do Boletim objetivava formar uma cons-
ciência acerca dos problemas educacionais brasileiros e apontar desde logo as so-
luções mais adequadas. Amoroso Costa, co assumir a presidência da ABE, a 11
de julho de 1928, apreciou-a deste modo:
"Se quiséssemos resumir o seu programa em uma palavra, poderíamos dizer que
ela se propõe a ser uma orientadora, em todos os problemas relativos à educação
física, intelectual e moral dos brasileiros. Submeter a exame esses problemas, ana-
lisar de que modo pode convir à sua resolução os métodos e os sistemas resultan-
tes da experiência dos países mais velhos, aconselhar aos poderes públicos, e às
iniciativas particulares, as resoluções que comporta o nosso caso especial - tais
devem ser, penso eu, os nossos objetivos principais.
Boletim da ABE 1 (4) :4, abril, 1926.
O primeiro foi publicado, logo após sua morte, na coleção dirigida por Pontes de Miran-
da (As idéias fundamentais da matemática. Rio de Janeiro, Pimenta de Melo, 1929, 264
p.) e reeditado recentemente pelo Instituto Brasileiro de Filosofia (São Paulo, Editores
USP/Grijalbo. 1971). Os dois últimos permanecem inéditos.
No discurso em nome da ABE, por ocasião da morte de Ferdinando Laboriau, Vicente
Licínio Cardoso afirmaria: "A União criara antes, no papel apenas, por ser bem mais fá-
cil, sem despesas e sem nenhum curso novo, a Universidade do Rio de Janeiro. Labo-
riau, dirigindo os pelotões da Associação Brasileira de Educação, organizou, criou, rea-
lizou, em suma, durante dois anos, um programa notável, de verdadeiros cursos de ex-
tensão universitária" IO problema universitário brasileiro. Rio de Janeiro, 1929, p. 18).
38
Para alcançá-los, pode a nossa atividade tomar por vezes caminhos à primeira vis-
ta pouco diretos. Para citar apenas um exemplo, tomarei o desses cursos e confe-
rências que tão grande êxito vão logrando. Eles não se destinam apenas a divulgar
tais ou quais conhecimentos, por mais úteis e interessantes que estes sejam; sua
finalidade consiste em despertar o gosto pelos estudos de toda a ordem e criar
um ambiente favorável ao desenvolvimento desses estudos. Nós não nos limita-
mos a afirmar a necessidade de ser resolvido o nosso angustioso problema univer-
sitário: o sucesso dos cursos que temos realizado equivale a uma verdadeira de-
monstração experimental que se tornou indispensável a criação de uma universi-
dade digna desse nome. Essa prova está feita, e não é dos menores serviços que já
pode apresentar a ABE" 29 .
A curva ascensorial da ABE situa-se no período que vai de sua fundação aos fins
do decénio. Nesse ciclo, desempenha papel efetivamente renovador no terreno
específico a que se destinava: a educação. Liderou o movimento em prol da uni-
versidade, graças ao qual formou-se entre os educadores brasileiros uma acepção
de universidade que serviu, de um lado. para unificá-los, e, de outro, para assegu-
rar que essa idéia se mantivesse e acabasse vingando no decénio subsequente, em
que pese o desinteresse oficial. A ABE promoveu significativo debate sobre o en-
sino secundário e atuou igualmente em campos absolutamente pioneiros como o
cinema educativo, a organização de pais junto às escolas, a educação sexual e tan-
tos outros temas.
A Revolução de 1930 iria entretanto suscitar um debate que, se nascia da nova
orientação educacional, acabou assumindo feição eminentemente política, a sa-
ber, o ensino religioso facultativo nas escolas públicas. A ABE foi chamada em
1931 a desempenhar papel conciliatório entre as tendências em confronto, mas
preferiu engajar-se no campo da Escola Nova, frontalmente oposto àquela fran-
quia. O enrijecimento das posições desses dois grupos coincidia com a acentuada
polarização entre tendências totalitárias de direita e de esquerda que igualmente
se imiscuíam no debate, complicando-o extremamente. Essa circunstância iria se-
lar a sorte da ABE, levando-a à virtual liquidação no VI Congresso Nacional de
Educação, realizado em Fortaleza, no mês de fevereiro de 1934, onde o conflito
chegou a ameaçar a integridade dos congressistas.
A partir desse momento, a ABE ainda patrocina iniciativas isoladas mas irá ingres-
sar num estado de autêntica hibernação, ao longo de todo o Estado Novo. Em
1945 iria renascer, mas adquirindo uma feição eminentemente política, muito
distanciada de seu programa original.
Esse enunciado sintético do histórico da entidade, no período abrangido pela
presente análise, comporta o desdobramento adiante apresentado.
Além da Seção de Ensino Técnico e Superior, cuja atuação foi caracterizada, a
ABE contava inicialmente com estes departamentos: Ensino Primário e Normal,
Ensino Secundário, Ensino Profissional e Artístico, Educação Física e Higiene,
Educação Moral e Cívica e Cooperação da Família. Ao longo de sua atuação,
apareceram outros departamentos. Por volta de 1935 adquiriu a feição que se in-
29 Boletim da ABE 3( 1 0) : 1 0, março-abril, 1 927.
39
dicará. Estas seções atuavam de modo independente e eram dotadas de grande
iniciativa.
A Seção de Cooperação da Família, que foi durante largo período dirigida por
D. Armanda Alvaro Alberto, ocupou-se com êxito da organização de círculos
de pais nos colégios. Coincidindo sua estruturação com a fase inicial de difusão
do cinema, cuidou da necessidade de fixar critérios quanto às exibições adequa-
das ou nocivas às crianças. Neste sentido, mantinha nos jornais a publicação de
esclarecimentos aos pais quanto aos filmes em cartaz. Patrocinou igualmente a
realização de seções infantis. Promovia também cursos de Puericultura, de Psi-
cologia Infantil, de Metodologia das Escolas Maternais, entre outros. Realizou
ainda inquérito entre jovens de 7 a 18 anos, nos colégios do R io de Janeiro, para
identificar leituras preferidas e elaborou uma lista de obras apropriadas à infância
e à adolescência. A seção, em caráter pioneiro, iniciou a discussão do tema edu-
cação sexual, tendo inclusive chegado à elaboração de um folheto contendo os
procedimentos recomendados, de autoria do professor Fernando Magalhães, da
Faculdade de Medicina, mais tarde reitor da Universidade do Rio de Janeiro, que
era pessoa ativa na ABE, de que foi presidente. Afastar-se-ia da entidade de for-
ma ruidosa que oportunamente será mencionada.
A questão dos métodos pedagógicos e da necessidade de sua modernização tam-
bém mereceu diversas iniciativas, em geral capitaneadas pela Seção de Ensino Se-
cundário, tais como conferências, debates, cursos, etc.
As diversas seções buscavam atuar no sentido de adequar a legislação, emitindo
pareceres sobre projetos ou reformas em curso, ou tomando a iniciativa de apre-
sentá-los. A estatística escolar é fruto de tais gestões, do mesmo modo que a or-
ganização, na década seguinte, da Escola Nacional de Educação Física. Maior re-
levância acabaram por adquirir os inquéritos nacionais, efetivados em relação ao
ensino superior e ao secundário. Estes temas, em especial o último, vieram a ocu-
par posição de destaque nas Conferências Nacionais de Educação, que a entidade
patrocinou a partir de 1927.
A I Conferência Nacional de Educação realizou-se em Curitiba, de 1 9 a 22 de de-
zembro de 1927, contando com delegações de 16 Estados. Foram constituídas
oito comissões para estudo de 1 13teses apresentadas, a saber: ensino primário (2);
ensino profissional e superior (1); ensino secundário (1); educação higiénica (D e
problemas gerais (3). Entre as resoluções aprovadas destacam-se a defesa da uni-
formização do ensino primário, nas suas idéias capitais, mantida a liberdade de
programas, e da criação de escolas normais superiores, em diferentes pontos do
país, para a formação do magistério secundário. A ABE não chegou a publicar os
Anais dessa primeira conferência mas preservou, em seus arquivos, diversos docu-
mentos, em especial resumos das teses divulgados pela imprensa ou o texto inte-
gral de muitas delas.
A II Conferência teve lugar em Belo Horizonte, de 4 a 1 1 de novembro de 1929.
Nesse conclave figurou em posição de destaque o relatório de Tobias Moscoso
acerca do novo sentido em que se deveria encaminhar o ensino superior, através
da organização da universidade, bem como a resposta da Universidade de Minas
Gerais ao inquérito patrocinado pela ABE. A Seção de Ensino Secundário da ABE
apresentou ao conclave amplo trabalho intitulado O ensino secundário — base para
uma reforma (publicado na íntegra no Boletim da ABE (13):14-31. maio de
40
1929) instruído com esquemas gerais de organização, carga horária para o curso
tronco e os ramos de letras e ciências, bem como pelos programas de algumas dis-
ciplinas (matemática, geografia, educação física e sociologia). Afirmase nesse do-
cumento que "a ambição justa da escola secundária não é formar bacharéis, mas
preparar, pela educação, o adolescente para a luta, armando-o com instrução pa-
ra vencer na vida, dentro do campo de suas próprias aptidões". Considerada a
magnitude dessa contribuição, decidiu a segunda conferência transferir a sua dis-
cussão para a terceira, sugerindo que fosse especialmente dedicada ao tema. Dis-
cutiram-se problemas relacionados ao ensino primário, agrícola, normal e técnico
e profissional, e educação política, educação social, educação sanitária e educa-
ção doméstica. Da segunda conferência tampouco se publicaram os Anais, preser-
vando a ABE documentação de idêntico caráter à de que se dispõe em relação à
primeira.
A 1 1 1 Conferência Nacional de Educação (São Paulo, 7 a 1 5 de setembro de 1 929)
é a única de que se publicaram os Anais, editados pela Diretoria Geral de Instru-
ção Pública de São Paulo, em 1930. A conferência discutiu preferentemente o
ensino secundário, com ênfase nestes aspectos: finalidade, defeitos da legislação,
iniciativas capazes de influir sobre a opinião pública em prol de sua reforma, ini-
ciativas para disseminá-lo no país e responsabilidade dos pais. A Seção de Ensino
Secundário fez preceder o conclave da publicação do livro intitulado O problema
brasileiro do ensino secundário, reunindo a matéria do inquérito que promoveu
sobre o tema Este inquérito foi respondido por 24 professores do Distrito Fede-
ral, todos ligados ao magistério secundário, no Colégio Pedro II, na Escola Nor-
mal, na Escola de Artes e Ofícios, além de pessoas que na época eram considera-
das como especialistas de reconhecida competência, a exemplo de Lourenço Fi-
lho, figura destacada da Escola Nova, diretor do Departamento de Educação no
governo Vargas e fundador do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos; Antô
nio Carneiro Leão, que havia exercido o cargo de diretor da Instrução Pública do
Distrito Federal, responsável pela reorganização do ensino secundário em Per-
nambuco, mais tarde, diretor da Faculdade Nacional de Filosofia; e Isabel Jaco-
bina Lacombe, diretora do conhecido colégio que, então, se demonimava Curso
Jacobina.
A exemplo dos encontros anteriores, a terceira conferência discutiu igualmente
os problemas das outras áreas de ensino. A Revolução de 1930 veio interromper
abruptamente a linha de desenvolvimento até então trilhada pela ABE. O movi-
mento, logo no começo de 1931, parecia pretender apropriar-se daquelas bandei-
ras em torno das quais se haviam agrupado os educadores, decretando as refor-
mas do ensino secundário e superior. Ao mesmo tempo, entretanto, rompia com
uma tradição profundamente arraigada entre os mesmos educadores, ao permitir
o ensino religioso nas escolas públicas.
A IV Conferência Nacional de Educação, realizada no Rio de Janeiro, não logrou
os objetivos colimados e, de certa forma, contribuiu para acirrar os ânimos. O
conclave, não tendo chegado a facultar qualquer entendimento entre as partes,
optou pela eleição de uma comissão incumbida de elaborar uma declaração de
princípios e um programa de política educacional. O anteprojeto desse documen-
to seria elaborado por Fernando de Azevedo. Publicado em começos de 1932,
passaria à história como o Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova.
41
A ABE, por seu turno, agregaria àquela comissão mais 21 representantes das di-
versas unidades da Federação, com a incumbência de elaborar anteprojeto de di-
retrizes do Plano Nacional de Educação. Esse anteprojeto se constituiu no tema
central da V Conferência Nacional de Educação, realizada em Niterói, de 26 de
dezembro de 1932 a 2 de janeiro de 1933. A respeito do conclave escreve Fer-
nando de Azevedo; "Tendo como objetivo principal senão único apreciar suges-
tões de uma política escolar e de um plano de educação nacional para o antepro-
jeto da Constituição, a quinta conferência reunida em Niterói discutiu e aprovou,
depois de longo estudo pela Comissão dos 31, o Plano de Educação Nacional ela-
borado pela Comissão dos 10, e destinado à reconstrução em novas bases do sis-
tema de educação e cultura no país. A Comissão dos 31, a cuja presidência foi
elevado o autor desta obra, que já fazia parte da Comissão dos 10, teve como re-
latores Lourenço Filho, o reformador do ensino em São Paulo em 1931, e Anísio
Teixeira, que já se empenhava a fundo nas reformas escolares do Distrito Federal.
As diretrizes porque se orientou o novo programa educacional, os debates iniciais
que provocaram o exame de um problema verdadeiramente complexo como o da
educação e a intransigência da defesa de pontos de vista divergentes senão opos-
tos, acentuara a cisão one logo se declarou na segunda sessão plenária, o que des-
locou para a nova corrente do pensamento educacional o predomínio na assem-
bleia, com a renúncia do presidente Fernando Magalhães e a aclamação do nome
de Lourenço Filho, para substituí-lo na direção de seus trabalhos". (A Cultura
Brasileira, Rio de Janeiro, IBGE, 1943, p. 400/401).
Segundo a documentação preservada na ABE, parece a Fernando Magalhães, na
época reitor da Universidade do Rio de Janeiro e que já havid exercido a presi-
dência da ABE, que o voto, do que denomina de Comissão dos 30, em vista do
seu próprio afastamento, em favor do ensino leigo, corresponde a "ato de hostili-
dade à crença do país que não aprovará impedirem, na escola, o ensino facultati-
vo de sua crença aos seus filhos, nela nascidos e criados. A comunhão brasileira
em matéria de fé diverge da Comissão dos 30. A decisão é lamentável mas irrita.
Divirjo da decisão e recuso participar da reunião educativa cujos fins se abastar-
daram".
Nas atas manuscritas, preservadas pela ABE, consta o resumo do relatório apre-
sentado por Lourenço Filho, adiante transcrito.
"Através das reuniões promovidas pela ABE pode o observador verificar a evolu-
ção do pensamento educacional do país. Traçando um histórico das quatro con-
ferências anteriores, demonstra como esse pensamento, que se atinha às miúdas
questões de técnica escolar, se foi alargando e aprofundando, até defrontar as
questões de política educacional. Essa evolução foi apressada, no dizer do orador,
pelo advento da Revolução. É assim que, na quarta conferência, realizada em
1931, no Rio de Janeiro, o Governo Provisório, pelo senhor ministro da Educa-
ção, em memorável discurso, solicitou dessa assembléia a definição de uma filo-
sofia educacional capaz de ser aplicada com êxito à realidade brasileira. Não pô-
de essa conferência responder de pronto à solicitação. Mas por delegação da Me-
sa da Assembléia um grupo de educadores publicaria, três meses mais tarde, um
manifesto educacional ao povoe à Nação. Esse documento foi diversamente apre-
ciado, mas recebeu os aplausos dos meios cultos e das diversas correntes revolu-
cionárias, como demonstra o programa de educação apresentado pelo Congresso
Revolucionário, há pouco reunido na Capital Federal.
42
A ABE, cônscia das responsabilidades decorrentes da conferência anterior, esta-
beleceu como ponto capital do programa da quinta conferência que se estudas-
sem as sugestões a serem apresentadas à comissão que redige o anteprojeto cons-
titucional, constituindo para o inicio desse estudo uma comissão de educadores.
Os resultados do trabalho dessa comissão foram tomados como ponto de partida
para o trabalho de uma Comissão Nacional.
Os debates se realizaram com o maior entusiasmo e grande eficiência. De modo
que, ao encerrar-se a Conferência, pôde seu presidente dar conhecimento não só
dessas sugestões, a serem apresentadas ao Poder Constituinte, como de um esbo-
ço de Plano Nacional de Educação".
A VI Conferência denominou-se VI Congresso Nacional e teve lugar em Fortale-
za, de 02 a 10 de fevereiro de 1934. Consolida-se a identificação da ABE com o
movimento da Escola Nova, mas ao mesmo tempo sela o seu destino como enti-
dade atuante e influente.
O congresso foi muito tumultuado e virtualmente não chegou a encerrar-se, mas
discutiu diretrizes relativas à educação pré-escolar, ao ensino primário, profissio-
nal e normal; educação artística, higiénica, f ísica e recreativa; direção de escolas;
inspeção e administração escolar. Foram apresentados ao congresso 25 relatórios
e teses. O conclave assistiu também a conferências de diversos professores e ex-
posições sobre a situação do ensino público dos delegados oficiais. As diretrizes
tornadas públicas correspondem às sugestões contidas nas diversas teses.
Neste sexto congresso de Fortaleza, Luiz Freire apresentou uma tese contendo
o plano de organização de Faculdades de Ciências e Letras, "destinadas a comple-
tar a formação científica e literária dos que, feito o curso ginasial, não desejarem
seguir cursos profissionais, e preparar professorado secundário de sólida cultura
e eficiência". Na proposição de Luiz Freire a faculdade dividir-se-ia nas seções de
Letras e Ciências, realizando esta cursos de Ciências Matemáticas, Físicas, Quími-
cas, Naturais e de Psicologia. Cabe lembrar que nessa época, isto é, em começos
de 1934, na Universidade do Rio de Janeiro retoma-se igualmente a idéia de pro-
mover-se a formação de cientistas e pesquisadores, tendo o Conselho Universitá-
rio aprovado indicação neste sentido.
Contudo, o sexto congresso notabiliza-se sobretudo por se ter constituído numa
demonstração do nível de radicalização a que havia atingido a disputa em torno
do ensino religioso.
O incidente inicia-se através da intervenção do representante do Espírito Santo,
numa das sessões plenárias, propondo que o congresso telegrafasse à Assembleia
Constituinte, então reunida no Rio de Janeiro, solicitando a inclusão da nova
Carta Magna de dispositivo estabelecendo o ensino religioso facultativo nas esco-
las. A proposição seria rebatida pelo professor Edgar Sussekind de Mendonça, da
delegação do Distrito Federal, que a considerou desleal desde que o regimento
vedava manifestações coletivas de qualquer natureza. Desde essa oportunidade, a
Imprensa Católica local passa a combater violentamente o congresso, em especial
a pessoa do professor Sussekind de Mendonça. Afirmou-se que, por ocasião de
uma solenidade no Clube Fénix Caixeiral, o aludido professor "usando da pala-
vra e abusando da hospitalidade cearense, derramou toda a sua vesânia comunista
contra a pessoa divina e adorável de Nosso Senhor Jesus Cristo". (Jornal O Nor-
43
deste). Na noite do dia em que saiu publicada essa notícia, um grupo exaltado
agrediu Edgar Sussekind, no centro de Fortaleza, de que resultou tiroteio e a pri-
são dos agressores. Questões políticas também tumultuaram o congresso, que
cancelou parte do programa original, encerrando-se antes do prazo estabelecido,
a fim de evitar generalização do conflito.
0 sexto congresso elegeu para o biénio 1934/1935 uma diretoria liderada por
Lourenço Filho, que iria desenvolver notável esforço no sentido de afastar a ABE
da arena politica. O esforço parece ter sido coroado de êxito por um curto perío-
do mas não seria suficiente para fazè-la renovar-se e perdurar.
A diretoria do biénio 1934/1935 era integrada ainda por Afrânio Peixoto e Ar-
quimedes Guimarães (vice-presidentes), Clotilde Motta (tesoureiro) e Gustavo
Lessa (secretário). Manteve em funcionamento no período estas seções: Educação
Pré-Escolar (Celina Nina de Oliveira), Ensino Primário (Evira N. da Silva e Maria
Reis Campos), Ensino Secundário (Branca Fialho e Menezes Oliveira), Ensino
Normal (Nestor Lima e Lourenço Filho), Ensino Superior (Luiz Freire e Arthur
Moses), Ensino Profissional (Fideles Reis e V. F. Venâncio Filho), Educação Fí-
sica e Recreação (Renato Eloy Andrade e Renato Pacheco), Educação Higiénica
(Almeida Júnior e J. P. Fontenele), Educação Artística (Ceição Barros Barreto e
Celso Kelly), Administradores de Ensino (Pedro Gouveia Filho e Mosés Araújo),
Diretores de Escolas (Anfrisia Santiago e Arteobela Frederico) e Educação de
Adultos (Guimarães Menegale e Armanda Alvaro Alberto).
Em 1934, a ABE promoveu uma série de conferências sobre o ensino secundário,
a propósito do Plano Nacional de Educação. Essas conferências foram reunidas
no livro Um grande problema nacional, editado pela Pongetti.
A nova diretoria conseguiu manter a periodicidade dos conclaves nacionais, reali-
zando de 22 de junho a 7 de julho o VII Congresso Nacional de Educação, dedi-
cado à educação física Constou de discussões do tema e de participação em de-
monstrações, pelas escolas secundárias, no estádio do Fluminense e também pela
liga de Esportes da Marinha e Escola de Educação Física do Exército. A sessão inau-
gural foi prestigiada com a presença do presidente da República, Getúlio Vargas.
O sétimo congresso aprovou resolução sugerindo a promoção da educação física
da população escolar em todos os graus. Sugeriu igualmente a criação da Escola
Nacional de Educação Física, integrada à Universidade do Rio de Janeiro.
Além do tema indicado, o conclave ocupou-se de uma única questão: a organiza-
ção dos Conselhos e Departamentos de Educação. Com vistas a esse f im, uma co-
missão criada pela ABE, integrada por Anísio Teixeira, Lourenço Filho, Fernan-
do de Azevedo e Celso Kelly, elaborou anteprojeto. A discussão desse documen-
to foi realizada em Comissão Especial presidida pelo ministro da Educação, Gus-
tavo Capanema.
Observa-se, de parte do ministro Capanema, empenho no sentido de apoiar-se no
consenso dos educadores. Além da iniciativa anterior, relacionada aos departa-
mentos de educação, iria promover, em 1936, inquérito acerca do Plano Nacio-
nal de Educação, em que se perguntava: Como pode ser definido o Plano Nacio-
nal de Educação? Qual deve ser a sua compreensão?
A ABE designou comissão para elaborar um parecer no qual se afirma: "Há dois
44
pontos de vista nitidamente antagónicos relativamente a esse assunto. Uns acham
que o plano deve ser um verdadeiro códigp nacional de ensino. Outros acham
que deve ser apenas um conjunto de diretrizes, Este último ponto tem sido ado-
tado persistente e coerentemente por todas as comissões às quais a nossa associa-
ção tem delegado poderes para representá-la perante a opinião pública. E é preci-
so não esquecer que a idéia de um plano nacional de tal forma encarado nasceu
no seio de uma dessas comissões, e por intermédio dos seus componentes foi re-
presentada à Assembleia Constituinte e por esta aceita.
Já agora se pode dizer que um código de ensino para todo o Brasil será franca-
mente inconstitucional, além de ser profundamente nocivo, conforme o demons-
tra, entre outras razões, o clamor levantado contra as seriações rígidas e os pro-
gramas minuciosos impostos a todo o país pelas diferentes reformas educacionais
elaboradas durante o período republicano".
Recolhe-se a impressão de que - certamente devido à radicalização que se alastra
no país e em face da situação política cada vez mais complexa - o ministro Ca
panema abdica da obtenção do consenso dos educadores sem renunciar ao supor-
te técnico de que deseja revestir as iniciativas no terreno educacional. Assim, re-
crutaria para seu ministério técnicos de reconhecida competência, à frente Lou-
renço Filho. E na medida em que o Estado Novo dispensa seja ascultada a opi-
nião em todrs os setores, buscaria institucionalizar a colaboração dos técnicos e
especialistas, criando o Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, em substitui-
ção aos inquéritos e ao contato direto com a ABE.
Infere-se a nova orientação à vista do flagrante desinteresse oficial pela ABE, no
período subsequente à discussão em torno do Plano Nacional de Educação em
1936, antes referida. Eleito presidente no sétimo congresso, Mário Teixeira de
Freitas deixaria relatório das dificuldades do seu mandato 11935/1938). Não te-
ve a ABE a possibilidade de realizar qualquer reunião de caráter nacional ou sus-
tentar outras iniciativas. A entidade ingressa no período de franco declínio.
Em 1938 ascende à presidência Fernando de Azevedo. E logo no início do ano
seguinte consegue lançar a revista Educação (nP 1 , fevereiro de 1939) Retomou-
se também a praxe das conferências públicas, na sede social, versando problemas
de educação. Reuniu-se no Rio de Janeiro, de 6 a 10 de agosto de 1939, o VIII
Congresso Mundial de Educação que, se bem não fosse iniciativa da ABE, permi-
tiu certa movimentação entre educadores brasileiros. Nesse ano de 1939, a ABE
elegeu novo presidente, Odilon Braga, e logrou realizar com êxito um curso de
férias. Também foi cogitada a realização do VIII Congresso Nacional de Educa-
ção para o ano de 1940, o que entretanto não chegou a ocorrer.
Da revista Educação publicaram-se quatro números no ano de seu aparecimento
(1939) e nos exercícios seguintes. Entre 1942 e 1944 reduz o formato e circula
uma única vez ao ano. Segue-se a fase em que a publicação é suspensa, só voltan-
do a circular em 1948 (nP 21, com o formato grande, nos números iniciais) sen-
do presidente Raul Bittencourt.
Realizou se o VIII Congresso Nacional de Educação, de 19 a 27 de junho de
1942, em Goiânia, como parte dos festejos comemorativos da instalação da nova
capital de Goiás. A inauguração oficial ocorreu a 5 de julho daquele ano, tendo o
governo decidido fazê-la preceder do que se denominou de "batismo cultural", a
45
cargo do conclave educacional, da II Exposição Nacional de Educação, Cartográ-
fica e Estatística e da V Seção do Conselho Nacional de Geografia. Tudo isto fa-
zia parte do movimento desencadeado pelo governo e que se chamou de "Marcha
para o Oeste", nada tendo propriamente a ver com a problemática da educação
brasileira. Por isto mesmo o evento não conseguiu arrancar a ABE do torpor em
que, segundo toda evidência, havia ancorado. Parece comprová-lo a ata da Assem-
bléia Geral, realizada a 26 de outubro de 1942, ao consignar que tendo renuncia-
do o titular eleito em Goiânia, não fora possível atender às exigências dos estatu-
tos na sua substituição de vez que não existia nenhum departamento estadual em
atividade. "Em fase do exposto", prossegue a ata, "só existe o Departamento do
Rio de Janeiro. Por isso a sua diretoria vem propor à Assembléia avocar este de-
partamento todas as responsabilidades que cabem à entidade nacional, voltando
a usar a expressão genérica Associação Brasileira de Educação". {Educação, 17-
18, janeiro-dezembro, 1943, p. 56. A seção local sempre se denominaria Associa-
ção Brasileira de Educação - Departamento do Rio de Janeiro. Na Assembléia
Geral de 29 de outubro de 1947, reformam-se os estatutos para dar à entidade,
novamente, caráter nacional).
Embora não esteja compreendido no período fixado para a presente análise a
ABE parece iniciar um novo ciclo de sua história em 1945, talvez caracterizado
por uma atuação eminentemente política. Assim, começa por engajar-se no mo-
vimento em prol da redemocratização do país. A 19 de março o Conselho Dire-
tor reúne-se e considera que essa é a questão essencial. A 1 2 de abril a ABE adere
à campanha da anistia. Segue-se o nono congresso que vota o documento intitu-
lado Carta da Educação Democrática (publicada na revista Educação, 21 :24-28,
1948).
5. A questão da universidade e a ABE
Uma das atividades mais importantes da ABE foi, como vimos, a realização de
conferências nacionais, assim como de dois "inquéritos" entre líderes educacio-
nais do país a respeito de questões de ensino e da universidade.
A idéia de promover um inquérito entre especialistas aparece na exposição de Le-
vi Carneiro, ao assumir a Presidência, que então se exercia em rodízio entre cs
membros da diretoria, a 15 de julho de 1925 30 . Seu objetivo consistia em "pro-
vocar o pronunciamento de grande número de pessoas competentes previamente
escolhidas". Em começos de 1926 a ABE expediu uma circular em que solicitava
opinião acerca dos seguintes assuntos: 1) criação do Ministério da Educação;
2) contratação de professores estrangeiros e 3) instituição do Fundo Escolar. Es-
se primeiro inquérito não parece ter sido bem sucedido, desde que a publicação
não mais voltou ao assunto. Contudo, em 1926, tem lugar o inquérito sobre a
instrução pública em São Paulo, promovido pelo jornal O Estado de São Paulo,
sob a direção de Fernando de Azevedo e, em 1927, o inquérito sobre ensino se-
cundário, patrocinado pela ABE.
Do ponto de vista da presente análise, adquire maior relevância o inquérito sobre
Boletim da ABE 1(2) :1. novembro. 1925
46
o problema universitário brasileiro, convocado em começos de 1927, pela Seção
de Ensino Técnico e Superior da ABE.
0 inquérito foi dirigido por uma comissão integrada pelos professores Domingos
Cunha, Roquete Pinto, Ferdinando Laboriau, Inácio Azevedo Amaral, Levi Car-
neiro, Raul Leitão da Cunha e Vicente Licínio Cardoso. A ABE obteve o apoio
de O Jornal e do Jornal do Comércio, do Rio de Janeiro e de O Estado de São
Paulo. Membros da comissão visitaram São Paulo, Bahia e Minas.
A Seção de Ensino Técnico e Superior formulou os seguintes quesitos:
1 - Que tipo universitário adotar no Brasil? Deve ser único? Que funções deverão
caber às universidades brasileiras?
II - Não conviria, para solução de nosso problema universitário, aproveitar os
elementos existentes como observatórios, museus, bibliotecas, promovendo a sua
articulação no conjunto universitário?
III - Não é oportuno realizar, dentro do regime universitário, uma obra concomi-
tantemente nacionalizadora do espirito de nossa mocidade?
IV - Não seria de todo útil que os governos estaduais auxiliassem ao governo fe-
deral na organização universitária?
V - IMão convém estabelecer mais íntimo contato entre o professor e o aluno?
VI - Não convém a adoção, onde possível, do livro texto (sistema norte-america-
nol em substituição gradual do ensino oral?
VII - É satisfatória a situação financeira do professor universitário? Não se im-
põem medidas reparadoras?
Os quesitos foram encaminhados a personalidades representativas. Além disto, os
membros da comissão ficaram incumbidos da redação de teses relativas a cada
um dos temas propostos.
Responderam ao inquérito 33 professores do Rio de Janeiro, São Paulo, Pernam-
buco, Paraná e Rio Grande do Sul. Pronunciou-se ainda o Conselho Universitário
da Universidade de Minas Gerais.
As respostas, juntamente com as teses da comissão organizadora e alguns dos de-
poimentos do inquérito de O Estado de São Paulo foram publicados em 1929 31 .
O inquérito da ABE e a publicação do livro indicado constituem forma inteira-
mente original de encaminhamento do problema educacional no país, porquan-
to buscam, antes de mais nada, o estabelecimento de um consenso no seio da co-
munidade docente. Objetiva-se, assim, superar o vício das reformas precedentes,
caracterizado nestes termos:
"Houve de fato, como foi frisado, em torno de cada reforma, dois sistemas ex-
pressivos da precariedade de seus ideais: renúncia do Congresso a suas funções le-
gislativas, outorgando poderes ao ministro cujo nome fica individualmente preso
O problema universitário brasileiro. Inquérito promovido pela Seção de Ensino Técnico
e Superior da Associação Brasileira de Educação. Rio de Janeiro, A Encadernadora,
1929, 538 p.
47
à reforma; reaçao pronta, subsequente, determinada nas próprias faculdades, o
que flagrância, pela animosidade das congregações, o fato de não haverem sido
ouvidas ou consultadas. As reformas já nascem, pois, com os dias contados: sem
credenciais de êxito, ridicularizadas, demais, que são pelos catedráticos, diante
da onisciência do ministro reformador, julgando-se versado (aconselhado sempre
por 3 ou 4 amigos professores, cujos nomes não aparecem em público) em todos
os cursos superiores de modo a poder modificar não só as matérias de um dado
ensino, como também o programa de uma qualquer de suas cadeiras" 35 .
0 inquérito da ABE buscou não apenas o consenso acerca de temas substantivos
da questão universitária, como cuidou sobretudo de estabelecê-lo no seio da elite
académica. Assim, opinaram sobre o assunto os educadores mais conhecidos na
época como Jonatas Serrano, Francisco Venâncio Filho, Alcides Bezerra, Mendes
Pimentel; juristas e professores de direito como Luiz Carpenter e Levi Carneiro;
professores de engenharia como Barbosa de Oliveira e Corinto da Fonseca. Em
geral, professores dos diversos estados em que funcionavam estabelecimentos de
ensino superior.
Comparece também o núcleo dirigente da Academia Brasileira de Ciências: Amo-
roso Costa. Ferdinando Labonau, Inácio Azevedo Amaral e Álvaro Osório de Al-
meida. Finalmente, do debate participaram intelectuais de renome no período
como Vicente Licínio Cardoso, Gilberto Amado e Tristão de Ataíde.
O surgimento de uma consciência nova acerca da universidade aparece igualmen-
te em outra das iniciativas da ABE: as Conferências Nacionais de Educação.
A decisão de promover, todos os anos, conferências nacionais de educação, foi
tomada em 1927. A primeira conferência realiza-se em Curitiba, no mesmo ano
de 1927. A segunda conferência terá lugar em Belo Horizonte, em 1928, a tercei-
ra, em São Paulo, em 1929 33 .
Nas duas primeiras conferências os debates giraram sobretudo em torno das te-
ses apresentadas pelos participantes que versavam sobre os assuntos mais diver-
sos. A terceira foi dedicada ao ensino secundário. Contudo, o tema da universi-
dade ocupou posição de destaque em todos os certames.
Na I Conferência, Amoroso Costa apresentou uma tese intitulada As Universi-
dades e a Pesquisa Científica que, segundo se mencionará, resume um ponto de
vista acerca da instituição, talvez o resultado mais significativo do debate ocor-
rido no período. Na segunda conferência, o tema é relatado por Tobias Mosco-
so, tendo seu pronunciamento alcançado grande repercussão. Também a Uni-
versidade de Minas Gerais manifestou-se sobre o assunto. A terceira conferên-
cia, embora dedicada ao ensino secundário, enseja discussão das mais interes-
santes, conforme se pode ver dos Anais. Esse debate tem lugar no Rotary Clube,
em presença dos delegados à terceira conferência, presidido por Teodoro Ramos,
e busca estabelecer o que seria a função primordial da universidade.
32 O problema universitário brasileiro, ed. cit., p. 21 1/212.
33 Das primeiras conferências, segundo se indicou, somente se publicaram os anais da ter-
ceira: Anais da III Conferência Nacional de Educação, São Paulo. Diretoria Geral de Ins
truçâo Pública. 1930. 1001 p.
48
Finalmente o problema universitário é discutido no Congresso de Ensino Supe-
rior realizado no Rio de Janeiro de 1 1 a 20 de agosto de 1927, em comemora-
ção ao centenário dos cursos jurídicos. O tema é considerado de diversos ângu-
los, em geral pelos participantes do inquérito promovido pela ABE, razão pela
qual as teses apresentadas a esse congresso figuram igualmente na publicação que
lhe foi dedicada, antes mencionada. Foram abordados estes aspectos: definição
do tipo de universidade que mais se adapta às condições do Brasil (Luiz Carpen-
ter), requisitos indispensáveis para a criação de universidade (Abelardo Lobo),
exame da oportunidade da criação de universidades livres (Azevedo Sodré), o de-
senvolvimento do espírito universitário e o papel dos seminários ou institutos de
investigação científica na vida universitária.
No debate considerado, discutiram-se preferentemente estes temas: a) que fun-
ções deve ter a universidade, isto é, que modalidade de ensino incumbe-lhe minis-
trar e que formação dará àqueles que frequentem seus cursos; bl qual a vincula-
ção a ser estabelecida com a entidade mantenedora, ou, mais explicitamente.de
que níveis de autonomia deve desfrutar e c) como se deve estruturar o seu gover-
no. Às funções da universidade vincula-se a definição dos institutos que a com-
põem. Tratou-se igualmente da didática do ensino, da formação e aperfeiçoamen-
to dos professores e da importância do campus universitário. Contudo, as três
questões de início apontadas esgotam o essencial, pelo menos a partir dos objeti-
vos da presente análise.
Álvaro Osório de Almeida, em conferência pronunciada em novembro de 1927,
sob os auspícios da ABE, incluída no volume O problema universitário brasileiro,
chamou a atenção para uma questão preliminar cuja magnitude somente se evi-
denciaria nos anos trinta: a preferência por um outro nível de ensino e, em nome
desta, o abandono dos outros segmentos. Vale transcrever o que então escreveu:
"Imaginemos que por um desenvolvimento excepcional do ensino primário desa-
pareça o analfabetismo no Brasil, que todo brasileiro saiba ler. Seria evidentemen-
te um grande passo, mas incompleto. Cada um desses brasileiros teria se tornado
mais receptivo ao progresso do que antes de aprender a ler, mas faltariam os ho-
mens capazes de resolverem os complexos problemas de uma grande nação civili-
zada. Trinta e quatro milhões de brasileiros com instrução primária não somam
um homem superiormente instruído. O saber não é uma grandeza aditiva.
Onde se encontraria a elite intelectual, capaz de analisar as complexas situações
de uma nação jovem em evolução, isolar os seus elementos, resolver os problemas
que se apresentam e acelerar o seu desenvolvimento?
Imaginemos inversamente a organização de ensino superior em um país de anal-
fabetos; tal situação só poderia existir com um regime autocrático no qual o so-
berano decide suas ações sem que o povo as compreenda e lhe tome contas. Em
uma república, em uma democracia como o Brasil, esse regime não se poderia
manter. A elite intelectual tem que se apoiar nas massas menos instruídas, mas
contudo suficientemente eaucadas e instruídas, para compreenderem a sua im-
portância e o papel que aquele exerce em seu proveito.
Como admitir a possibilidade de aparecimento de uma elite da inteligência e do
saber em uma nação de selvagens?
Assim, acredito que o simples bom senso mostra estarem errados aqueles que,
49
por uma visão parcial do problema, desejam e trabalham pelo desenvolvimento
de uma só parte do ensino, combatendo a. organização das outras seçõesde ins-
trução" 34 .
Múltiplas terão sido as razões pelas quais o esforço em prol do estabelecimento
de um consenso acerca da universidade, que ora descrevemos, se haja frustrado
com a Reforma Francisco Campos - que deveria ser o seu corolário natural - e
sobretudo com a sua prática, pelo menos em relação à Universidade do Rio de
Janeiro. Contudo, contribuiu para semelhante desfecho a importância que se atri-
buía ao ensino secundário. O correto entendimento do papel específico e insubs-
tituível de cada um dos segmentos do ensino correspondia, de fato, a uma ques-
tão preliminar, como assinalou Álvaro Osório de Almeida.
As funções da universidade
Tobias Moscoso, que foi o relator do tema na II Conferência Nacional de Educa-
ção (Belo Horizonte, 1928), entende que, por suas linhas gerais, lograra-se esta-
belecer este consenso :
"Entendo que, ao criarmos as universidades, deveremos nitidamente distinguir
dentro delas duas orientações, para as quais se disporão os cursos e regimes apro-
priados e se porão todos os recursos ã disposição dos alunos, consoante o tempe-
ramento e aptidão de cada um: essas duas orientações serão a técnica e a científi-
ca. A primeira levará à formação da perícia na aplicação à vida prática, profissio-
nal, da ciência adquirida, mediante o conhecimento dos preceitos e processos
económicos ótimos, considerados em geral e particularmente em relação ao nos-
so país. A segunda visará a competência na investigação científica e na contribui-
ção para o avanço da ciência, mediante os métodos experimentais e lógicos em
que se adestrem os sentidos na observação dos fenómenos e o espírito na estatís-
tica dos resultados, na indução das leis e no raciocínio dedutivo, tudo, quando
oportuno, dirigido especialmente para os fatos do Brasil. As universidades têm
que preparar, com efeito, ao mesmo tempo, técnicos e pesquisadores da ciência.
E o mesmo direi em relação às letras e às artes, em cujo domínio os alunos segui-
rão as duas orientações harmónicas mas distintas, uns cuidando essencialmente
de executar, os outros de descobrir.
A este respeito estou em que as opiniões se não dividem entre nós. Divergem, is-
so sim, quanto ao modus faciendi ou ao grau de importância atribuível a cada
orientação" 3S .
Azevedo Sodré, relator de um dos temas debatidos no Congresso de Ensino Su-
perior (Rio de Janeiro, 1927), depois de examinar detidamente a experiência ale-
mã e americana, manifesta-se de maneira aproximadamente idêntica a Tobias
Moscoso:
"A universidade brasileira deve ter por principal objetivo o ensino profissional,
34 O problema universitário brasileiro, p. 1 27/1 28.
35 O problema universitário brasileiro, p 499/500.
50
educando e preparando alunos para todas as profissões, cujo exercício exija,
além de tirocínio prático, conhecimentos científicos especiais. Deverá abranger
várias escolas técnicas, podendo no começo ser incompleta e ir crescendo por
epigenesia com a criação ou incorporação de novos cursos ou escolas.
Além desse objetivo principal deve a universidade brasileira visar igualmente ao
ensino dos ramos mais elevados do saber humano e à organização da pesquisa
original, em ordem a contribuir para a progresso da ciência. Deverá para isto
ter institutos e laboratórios bem aparelhados e manter, ao lado das faculdades e
escolas profissionais, uma faculdade de letras e outra de ciências e altos estudos,
conferindo diplomas de bacharel ou doutpr em letras, em ciências físicas e natu-
rais, em matemáticas, em ciências sociais, etc" 36 .
Tenha-se presente que o entendimento antes expresso resultou da mais veemen-
te condenação ao caráter meramente utilitário do ensino superior brasileiro. Isto
é, chegou-se a considerar a atuação da universidade nessas duas frentes depois de
ter-se enfatizado que a simples formação profissional, nos moldes em que foi pra-
ticada desde as primeiras décadas do século XIX, não se revestia do caráter pró-
prio que se atribui à instituição universitária. Gilberto Amado afirmaria: "É indi-
ferente que as faculdades de preparação profissional, técnica, imediata, entre nós
chamadas superiores, como as de direito, medicina, engenharia, de minas, agronó-
micas, militares, etc. continuem isoladas ou reunidas se um princípio de organi-
zação geral não lhes modifique o caráter". O que se faz mister, nossa primeira ne-
cessidade, conclui, é a criação de centros de cultura científica e centros de cultu-
ra humanística, isto é, "universidade com faculdades de química, de física, de
matemática, de ciências biológicas, com abundância de meios para a pesquisa
científica em todos os ramos da atividade pura e com faculdades de filosofia, de
letras e de ciências sociais com todos os meios eficientes para a formação da alta
cultura" 37 .
Álvaro Osório de Almeida diria, na conferência antes citada que, dentre os dois
grandes objetivos da universidade — o ensino dos ramos elevados do saber e o
desenvolvimento das ciências - é o segundo o mais importante. "A experiência
secular de todos os povos que progrediram e progridem, mostra que, para manu-
tenção desse espírito de progresso, é necessário manter, ao lado os espíritos utilitá-
rios, outros, idealistas, muito mais raros que os primeiros, capazes de encontrar
na contemplação pura dos fenómenos naturais, em seu conhecimento ou estudo,
ou no cultivo das letras, a plena satisfação às suas necessidades intelectuais. . . Es-
ses espíritos não necessitam de excitações externas ou de outros homens, para o
seu trabalho. Este traz em si mesmo as alegrias e a recompensa de que todos nós
necessitamos. São eles a fonte, a origem de toda produção intelectual e de todo o
progresso da sociedade. Daí a necessidade, compreendida por todos os meios
adiantados, de manter esses homens ao lado dos espíritos utilitários, que neles se
inspiram e transportam os frutos por aqueles colhidos, adaptando-os e aliciando-
os à vida das sociedades humanas" 38 .
O problema universitário brasileiro, p. 93/94.
37 O problema universitário brasileiro, p. 354.
61
A contribuição de Amoroso Costa ao debate é enfática ao afirmar que "a organi-
zação atual dos nossos cursos superiores é inteiramente utilitária e visa apenas à
educação profissional", o que explica "a opinião vulgar de que a ciência só vale
pelas suas aplicações, pela maior soma de comodidades que nos proporciona".
Não contesta a importância do ensino técnico, que deve ser ampliado e aperfei-
çoado constantemente. Mas, parece-lhe, sem desenvolver o gosto pela pesquisa
original não há universidade digna desse nome. E é para esse aspecto que deseja
chamar a atenção.
Amoroso Costa esclarece que a reputação cientifica de um país se mede exclu-
sivamente pela contribuição a essas pesquisas. Ao que acrescenta: "O que há de
essencial na pesquisa científica é a inspiração idealista que ela é eminentemente
apta a desenvolver. Mais do que descobridores, os que a ela se consagram são
mestres de humanidade, para os quais nada existe de comparável ao culto da ver-
dade e da beleza. Amparar o seu esforço, pois, é preparar um mundo melhor" 39 .
Assinala que no Brasil pouco se tem feito nesse sentido. Nas ciências naturais en-
contra número relativamente grande de pesquisadores. À medida, porém, que se
consideram domínio menos concreto, a produção original escasseia rapidamente,
pela ausência de ambiente propício a tais estudos. Lembra que espíritos de pri-
meira ordem como Gomes de Souza e Otto de Alencar quase nada produziram
que se tenha incorporado à ciência, em vista de seu isolamento e autodidatismo.
A fim de superar semelhante lacuna, apresenta o seguinte programa de atuação
para as faculdades de ciências:
I — As faculdades de ciências das universidades devem ter como finalidade, além
do ensino de ciência feita, a de formar pesquisadores, em todos os ramos dos co-
nhecimentos humanos.
II — Esses pesquisadores devem pertencer aos respectivos corpos docentes, mas
com obrigações didáticas reduzidas, de modo a que estas não perturbem os seus
trabalhos originais.
III — Devem ser-lhes assegurados recursos materiais os mais amplos: laboratórios
para pesquisa biológica e f ísico-químicas, observatórios astronómicos, bibliotecas
especializadas, facilidades bibliográficas, publicações periódicas para divulgação
dos seus trabalhos, aparelhamento para explorações geográficas, geológicas e mi-
neralógicas, biológicas e etnográficas.
IV - Deve ser-lhes assegurada uma remuneração suficiente para que eles dedi-
quem todo o seu tempo a esses trabalhos 40 .
Temos assim que emerge a idéia de que a criação da universidade no Brasil pren-
de-se ao desenvolvimento da ciência pura porquanto o ensino profissional acha-
se instituído. Agora pode-se dizer que semelhante propósito é prematuro, como
o faz C. A. Barbosa de Oliveira 41 , mas nunca desconhecer o novo ponto de vista.
O problema universitário brasileiro, p. 1 50
O problema universitário brasileiro, p. 436.
O problema universitário brasileiro, p 437/438.
52
u
39
40
Muito representativo da nova circunstância é o debate que se trava em São Paulo,
na oportunidade da III Conferência Nacional de Educação (7 a 15 de setembro
de 1929), sob a presidência de Teodoro Ramos, na sede do Rotary Clube, em
presença dos delegados ao conclave.
A questão prende-se a uma conferência realizada naquela instituição, no mês an-
terior, divulgada em O Estado de São Paulo, pelo Dr. Victor da Silva Freire, em
que afirmou, pretendendo louvar-se da experiência européia, que a função pri-
mordial das universidades consiste na formação de chefes de indústrias, isto é, ho-
mens dotados de habilitação profissional, mas possuidores igualmente de cultura
geral.
Na discussão desse ponto de vista que se trava na oportunidade da terceira confe-
rência suscitam-se opiniões contrárias, mobilizando argumentos que vale consig-
nar. Assim Fonseca Teles, um dos contestadores, entende que o enunciado ante-
rior não pode de modo algum consistir em função primordial. A ênfase, parece-
Ihe, deve caber às faculdades de ciências puras, embora, ao lado destas, a insti-
tuição deva manter institutos técnicos ou de ciências aplicadas. A propósito da
Alemanha, que havia sido invocada por Victor da Silva Freire, chama a atenção
para o fato de que, ali, são distintas as funções da universidade e das escolas téc-
nicas e superiores, cabendo às primeiras também a formação de professores e cien-
tistas. Em favor de uma posição diametralmente oposta à que foi levantada, invo-
ca a conclusão de G Blondel, professor da Escola de Ciências Políticas de Paris,
segundo a qual "estamos hoje de acordo em que as universidades devem continuar
antes de tudo como foyers de ciência pura, de ciência desinteressada" 41 .
Os Anais da terceira conferência transcrevem ainda uma conferência pronunciada
na mesma oportunidade, de Ernesto Souza Campos - que mais tarde se tornaria
conhecido estudioso de problemas educacionais, autor de vasta bibliografia, ten-
do chegado a ministro da Educação - combatendo a hipótese apresentada ao de-
bate no Rotary. Afirma que no continente europeu, ao contrário do que se havia
insinuado, as escolas de engenharia e outros institutos técnicos geralmente não fa-
zem parte das instituições universitárias, salvo raras exceções. Assim se manifesta
acerca do modelo que conviria adotar no Brasil:
"Convém-nos melhor, segundo meu juízo, o tipo misto com um bom núcleo de
estudos científicos e culturais desinteressados, que irá crescendo gradualmente
pela justaposição de novas peças, até atingir o valor das faculdades de filosofia,
ou ciências e letras, ou artes liberais, sistema completado pelas escolas profissio-
nais que possuam elevada organização científica e capacidade para desenvolver
pesquisas originais, aparelhamento indispensável para manutenção destes institu-
tos no alto nível que lhes compete" 43
Parece lícita, portanto, a conclusão de Tobias Moscoso quanto à existência de
um consenso acerca das funções da universidade: cabe-lhe acolher a ciência pura,
ai Ver obra citada, p. 173.
4 1 Anais da III Conferia Nacional de Educação, edição citada, p. 863.
i3 Anais cit., p. 880.
53
não fazendo c menor sentido dar semelhante denominação a simples aglomera-
ção de escolas profissionais.
Moscoso assinala que o consenso não abrangia o modulus faciendi. O grupo de
vanguarda, integrado pelos membros da Academia Brasileira de Ciências, estaria
inclinado a supor que a maneira prática de implantar a nova orientação seria atra-
vés da criação das faculdades de ciências. Teodoro Ramos acha que, em São Pau-
lo, a universidade poderá ser criada de imediato, estruturando-se uma faculdade
de filosofia e letras, em instituto de educação e alguns cursos superiores de mate-
mática, física e química. Estes poderiam ter lugar na própria Politécnica, comple-
mentando os laboratórios e aproveitando elementos nacionais de valor ou profes-
sores estrangeiros vinculados aos Institutos Franco-Paulista e Franco-Brasileiro
de Alta Cultura. A partir dessa base seria possível desenvolver os institutos de
pesquisa científica e de cultura livre e desinteressada, único meio de "arrancar-
nos da situação subalterna em que, no terreno científico, nos encontramos" 44 .
O encaminhamento sugerido por Teodoro Ramos prende-se talvez à consciência
da carência de recursos. Álvaro Osório de Almeida achava que os governos de-
viam dotar as universidades de patrimônio que lhes permitisse viver de forma au-
tónoma embora sóbria, cabendo a estas arcar com o próprio custeio, mediante a
cobrança de taxas e doações particulares. Agrupados os institutos num mesmo
local evitar-se-ia a duplicação de dispêndios em instituições afins. A par disto, es-
tabelecer-se-ia, pelo contato, uma verdadeira consciência de classe entre os pro-
fessores, capaz de defendê-la contra as seduções do dinheiro. "Coloque-se, pois,
todas as escolas ao lado uma das outras, junte-se uma biblioteca completa, provi-
dencie-se para o alojamento fácil e barato de alunos do interior, fácil item-se jo-
gos e recreios, e ter-se-ia perfeita, embora possa-se partir de uma organização mo-
desta, a instalação material da universidade" 45 .
Essa preocupação de tornar exequível a iniciativa, do ponto de vista dos recursos
materiais, aparece igualmente no pronunciamento de Francisco Venâncio Filho:
"Não adianta muito dizer que precisamos disto ou daquilo. . . Pelo fato de não
ter apontado solução económica, está sem solução. Por isso vai aqui, descendo ao
terra-a-terra do custo em dinheiro, o esboço de uma Faculdade de Ciências, mo-
desta mas decente, sem suntuosidades pomposas, sem despertar apetites abertos,
mas exequível nas suas próprias bases e com elasticidade para que se pudesse am-
pliar posteriormente, seja com a iniciativa oficial, seja com o auxílio particular,
despertados com os resultados alcançados". Francisco Venâncio Filho dispensa
mesmo qualquer organização burocrática, desde que se tratava de uma institui-
ção de cultura. "A faculdade teria a direção imediata do reitor da universidade e
haveria apenas um funcionário permanente, o secretário, a quem caberia toda a
organização e expediente. , ."* 6 .
44 O problema universitário brasileiro, p. 303/304.
45 O problema universitário brasileiro, p. 1 30.
46 O problema universitário brasileiro, p. 345/34$.
54
Níveis de autonomia
No curso do debate ora caracterizado, chegou-se a considerar que o êxito da ini-
ciativa dependia diretamente da autonomia que a nova entidade chegasse a con-
quistar em relação ao Estado. Não se tratava da velha bandeira da "liberdade de
ensino", preconizada pelos positivistas e que consistia, segundo se evidenciou,
em liberdade para estabelecer-se o monopólio da doutrina comteana. A questão
residia em assegurar à universidade autonomia didática mas também administrati-
va. Álvaro Osório diria que, no Brasil, a universidade correspondia a uma expres-
são irreal entre outras coisas pelo seguinte: "É uma repartição pública sem inde-
pendência. O chefe do Departamento de Ensino, o reitor, o vice-reitor, diretores
de faculdades são meros funcionários, sem independência de ação, demissíveis a
gosto e vontade do governo, por mais eminentes que sejam, e felizmente eles o
são - não podem agir e estou certo que se deixassem em suas memórias notícias
do que pretenderam fazer e que não puderam executar, seria uma demonstração
dolorosa, mas ilustrativa, do que afirmamos. Não peçamos a eles, pois, confissões
públicas".
Álvaro Osório de Almeida tinha em vista sobretudo a situação do ensino superior
em geral e, em, especial, a experiência dos anos de existência da Universidade do
Rio de Janeiro. Tendo-se estruturado naquele período a Universidade de Minas
Gerais 47 , observa que os mesmos defeitos se faziam presente. Aponta como
exemplo o aviso do ministro da Justiça, dispensando de prova escrita a alunos na-
quela instituição, ao que exclama: "A simples formalidade de um exame é resol-
vida não pelos professores e diretor, mas por ministro domiciliado a mil quilóme-
tros de distância".
A idéia de que a ingerência oficial poderia burocratizar e asfixiar o novo institu-
to, e assim frustrar o almejado desenvolvimento da pesquisa científica, parece al-
go difundido, não consistindo simples receio dos homens mais ligados à Acade-
mia Brasileira de Ciências, como Álvaro Osório de Almeida, e que dispunham de
fundadas razões para duvidar do interesse governamental por semelhante projeto.
O professor Bruno Lobo, que procura expressar a opinião do corpo docente da
Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, iria reivindicar para a universidade
"ampla autonomia didática e administrativa, sendo que a autonomia didática de-
ve ser das faculdades que a compõem, enquanto que a administrativa só deve ser
cerceada pela nomeação do reitor pelo doador, quando existir a^uém com esse
direito, Estado ou particular, custeando as suas elevadas despesas' 8 .
Tobias Moscoso, tendo relatado o tema num congresso, desejaria certamente ex-
pressar certo consenso, não apenas da Escola Politécnica mas do professorado
que tivera oportunidade de ouvir como um dos dirigentes da Associação Brasilei-
ra de Educação, ao afirmar que "a obra seria, não digo inteiramente frustrânea,
mas grandemente lesada, pela intervenção do Estado na gestão de tais institutos,
principalmente no que se refere às questões didáticas. Sou, pelo que me ensinam
Foi criada a 7 de setembro de 1927 e instalada a 15 de novembro desse mesmo ano.
O problema universitário brasileiro, p. 168.
55
as lições de outros países e pelo que sei do nosso, partidário decidido da comple-
ta autonomia das universidades, da sua independência integral em relação ao go-
verno e até do Poder Legislativo". Diria ainda não desconhecer que "essas idéias
liberais, chocam na nossa terra muita gente. Preconceitos e rotinas também go-
zam de prestígio, dispõem de grande força. E não falta quem, quando se trata de
legislar sobre alguma coisa, pense logo, antes de tudo, em restrições, peias, entra-
ves, limitações, invés de facilidades para a ação e estímulo para o esforço. . . O
mal não está na liberdade mas na inferioridade dos homens que a desfrutam. Na
organização das universidades cuide-se de as prover com gente de escol, na inteli-
gência, no caráter, na ilustração. Dê-lhes autonomia, de verdade, e o benefício
para o nosso ensino superior será feliz realidade, em pouco tempo" 4 *.
Apareceria, contudo, uma posição conciliadora, expressa por Azevedo Sodré. Pa-
ra fundamentá-la considera que a autonomia diz respeito às relações com a enti-
dade mantenedora. Assim, a universidade inglesa rege-se livremente, sem a menor
ingerência do Estado mas dispõe de grandes patrimónios. Já a universidade fran-
cesa desde Napoleão é mantida e dirigida pelo Estado. Lembra que, no entender
de Royer Collard, "a universidade era o próprio governo aplicado à direção geral
do ensino". E acrescenta: "entre um tipo e outio coloca-se a universidade alemã
que, sendo instituição do Estado, por ele em parte mantida, e vivendo sob a sua
vigilância imediata, conservou uma parte notável do seu caráter corporativo, dis-
põe de personalidade jurídica, goza de uma parcial liberdade didática e de uma
privilegiada jurisdição disciplinar". Dessa análise conclui: "Nenhum tipo de uni-
versidade atualmente existente poderia ser adotado no Brasil sem inconvenientes
mais ou menos sérios. Haverá, pois, mister organizar-se um tipo novo, com o
aproveitamento de elementos fornecidos por outros tipos, tendo-se em vista as
condições de nosso meio e o estado de civilização da nossa sociedade. A univer-
sidade brasileira deve ser semi-oficial, dispor de autonomia didática e disciplinar
tão completa quanto possível e de uma relativa autonomia administrativa. A au-
tonomia universitária absoluta, em relação aos poderes públicos, é uma aspiração
incompatível com o conceito do Estado. A universidade brasileira deve viver de
subvenções concedidas pelos poderes públicos, da renda de um patrimônio que
se for constituindo e de uma contribuição moderada e diferencial fornecida pelos
alunos" 50 .
O governo da universidade
As questões precedentes — funções da universidade e níveis de autonomia —eram
naturalmente de molde a suscitar controvérsia, o que não ocorria com a forma de
estruturar os órgãos dirigentes. O ponto polémico residia apenas na ingerência da
entidade mantenedora - o Estado, a bem dizer - no processo de escolha do rei-
tor, parecendo essencial que devesse, antes de tudo, gozar da confiança de seus
pares. Não se cogitou da formação de lista de nomes com vistas a circunscrever a
escolha oficia!, adotada posteriormente, mas a inclinação era por algo desse tipo,
49 Obra citada, p. 493 e 507.
50 Obra citada, p. 74 e 93.
56
isto é, por uma fórmula que evitasse o simples ato da nomeação, sem consulta à
entidade.
A formulação de Azevedo Sodré, adiante transcrita, pretende resumir o entendi-
mento a que se chegou:
"Sua direção deve caber a um reitor, assistido por um Conselho Universitário. 0
reitor será eleito por este conselho, com um mandato por três anos, podendo ser
renovado. O conselho será constituído pelos díretores das faculdades e escolas fi-
liados à universidade, por um delegado do governo federal e outro do prefeito
Municipal para a Universidade do Rio de Janeiro, ou do governo estadual para as
que se fundarem nos Estados. Farão parte igualmente deste conselho mais seis
membros, estranhos ao magistério, com um mandato de três anos, renovado pelo
terço todos os anos, eleitos pelos antigos alunos diplomados que compareçam às
festas de encerramento dos cursos da universidade" 51 . Azevedo Sodré admite a
nomeação pelo governo dessa representação dos antigos alunos no ciclo inicial da
universidade. Como se vê. não se pretende excluir o Estado do processo de esco-
lha, mas apenas evitar que o faça com exclusividade e prevalência sobre o corpo
docente.
Diversos outros temas foram abordados no curso de debate que ora se resume,
notadamente a importância do "campus" universitário, a adoção de regime de
trabalho e remuneração capazes de assegurar a dedicação dos docentes, institutos
a serem organizados, etc. Assinale-se apenas que no período considerado, isto é,
fins da década de vinte, preservava-se entendimento da figura do docente livre
em consonância com a sua formação histórica, em outros países, entendimento
que mais tarde iria de todo desaparecer. Assim, o professor Luiz Carpenter, da Fa-
culdade de Direito da Universidade do Rio de Janeiro, assim os define: ". . . pro-
fessores estranhos à universidade, lecionando disciplinas do quadro delas ou ou-
tras não constantes do quadro, a alunos universitários ou estranhos. . . sem um
centil de despesa nem para a universidade nem para o Estado, cobrando o docen-
te, dos seus alunos, as taxas que com eles ajustar, e podendo fazer da livre docên-
cia um meio de vida ou profissão honrosa" 52 .
DESFECHO INESPERADO. A REFORMA FRANCISCO CAMPOS E SUA
EXECUÇÃO
No período em que nos encontramos, a cultura intelectual sem objetivo claro e
definido deve ser considerada luxo acessível a poucos indivíduos e de escasso pro-
veito à coletívidade.
Getúlio Vargas
1. Inflexão no papel atribuído à universidade
A reforma levada a cabo logo após a Revolução de 1930, dispondo que o ensino
superior deveria obedecer, de preferência, ao sistema universitário passou à histó-
ria com o nome do ministro que a encaminhou, a exemplo da tradição. Desta vez,
porém, o autor identif ica-se plenamente com a obra, o que nem sempre aconte-
ceu no passado.
57
Francisco Campos, aos 40 anos de idade, fora nomeado titular do recém-criado
Ministério da Educação. Ascendia ao poder, ao que se supunha, como represen-
tante de Minas Gerais no novo governo, isto é, daquela facção que aparentemen-
te justificava o nome de liberal dado à aliança que promoveu a revolução, desde
que os gaúchos, que iriam rapidamente conquistar a hegemonia do movimento,
muito distanciados se achavam de semelhante ideário. Identificavam-se com o
castilhismo, facção do republicanismo autoritário que logrou melhor fundamen-
tação teórica, enriquecida, à época, pela prática do exercfcio do poder ao longo
de quatro decénios.
Na verdade, contudo, a cultura do jovem político mineiro foi colocada aberta-
mente ao serviço do autoritarismo, incumbência que soube realizar com inegá-
vel talento, graças ao que iria transformar-se em figura exponencial dessa ver-
tente, ao longo das décadas seguintes.
No caso especffico da reforma do ensino que promoveu e patrocinou, admite-
e que tenha buscado refletir o consenso dos educadores, aos quais se achava li-
gado pelo exercício das funções de secretário do Interior, de Minas, o que o leva-
ria a presidir a II Conferência Nacional de Educação, no mês de novembro de
1928, bem como a efetivar, em seu estado natal, a reforma do ensino primário.
Contudo, concebeu de tal maneira o novo instituto ao qual se atribuía o papel
de fomentar a ciência que sua reforma acabou não tendo qualquer consequên-
cia prática no sentido de alterar o quadro tradicional.
Tinha suportes eminentemente culturais a idéia de universidade que se configu-
rou, na segunda metade da década de vinte, na mente de parcela significativa da
elite brasileira, segundo a qual esse novo instituto não se requeria para o ensino
superior de caráter profissional, mas em vista do desenvolvimento do saber desin-
teressado. Supunha-se, é certo, que da criatividade científica poderia advir o pro-
gresso material. Contudo, a tanto não se reduzia a questão. O aprendizado da
ciência e a pesquisa científica chegaram a grangear o respeito de segmento repre-
sentativo da intelectualidade, que as considerava justificativa suficiente para a re-
forma pretendida, Expressando esse estado de espírito. Amoroso Costa exclama-
ria: "A alguém que o interroga um dia sobre a utilidade de não sei que questão
ra do espírito humano"
Na Reforma Francisco Campos a questão adquire conotação eminentemente po-
lítica. Imbuído que estava da convicção de que o ensino secundário, se deixasse
de constituir simples passagem para o ensino superior, poderia preparar o homem
brasileiro para enfrentar a época de mudanças bruscas em que ingressara a huma-
nidade, passou a atribuir situação privilegiada a esse ciclo educacional. Assim,
acabou colocando a universidade a serviço de semelhante projeto
S1 Obra citada, p. 94.
51 Idem, p. 432/433.
53 Boletim da ABE 3(11), maio-junho, 1927
58
Tratando da reforma do ensino secundário, afirmaria Francisco Campos que "o
mundo contemporâneo é um mundo em estado de movimento e de mudança, em
que dia a dia se acentua a necessidade de rever as soluções anteriores, dar novas
soluções a situações novas e imprevistas e reconstruir os sistemas de noções e de
conceitos de maneira a assegurar a consistência do seu contexto em face de novas
situações e experiências" 54 .
O ensino secundário não deve circunscrever-se ao preparo de candidatos aos cur-
sos superiores nem muito menos preocupar-se com o volume dos conhecimentos
a transmitir. Sua função precípua é "construir um sistema de hábitos, atitudes e
comportamentos, ao invés de mobiliar o espírito de noções e de conceitos, isto é,
de produtos acabados, com o qual a indústria usual do ensino se propõe formar o
stock dos seus clientes". Tanto maior é a sua responsabilidade quanto menor a
influência educativa da família e da comunidade, em decorrência da diferencia-
ção e crescimento das aglomerações humanas, do alargamento e da expansão dos
espaços sociais. A reforma do ensino secundário é, finalmente, reclamada em no-
me do espírito e dos princípios pelos quais a revolução ascendeu ao poder, desde
que da iniciativa depende "não apenas os destinos de nossa cultura moral e inte-
lectual, senão o nosso desenvolvimento económico e o crescimento de nossa ri-
queza pública e privada" ss .
Em matéria de ensino superior é provável que Francisco Campos não nutrisse
convicções tão arraigadas. Acresce o fato de que a Revolução de 1930 não trazia
nenhuma política educacional bem definida. Talvez por isto tivesse concordado
em estabelecer que o ensino superior deveria ser ministrado na universidade, à
qual competia agregar a Faculdade de Ciências, agora denominada Faculdade de
Educação, Ciências e Letras. Sua maior preocupação, contudo, volta-se para a
formação de professores secundários. E embora essa missão não seja incompatí-
vel com o propósito do movimento antes caracterizado, de desenvolver a pesqui-
sa científica no país, atribui-lhe maior prioridade.
O ministro reconhece que o novo instituto - a Faculdade de Educação, Ciências
e Letras — ao permitir que a vida universitária transcenda os limites do interesse
puramente profissional, confere à universidade o seu caráter próprio. "Cumpria
porém" - assim prossegue - "não esquecer, na primeira tentativa que se faz de
instalar no Brasil um instituto de alta cultura, que nos povos em formação como
o nosso, a cultura não pode ser organizada de uma vez, integralmente e de manei-
ra exclusiva. Para que instituto dessa ordem vingue entre nós, torna-se indispen-
sável que resultem da sua instituição benefícios imediatos, devendo a sua inser-
ção no meio nacional fazer-se exatamente nos pontos fracos ou nas lacunas de
nossa cultura, de maneira que o seu crescimento seja progressivo e em continui-
dade com as nossas exigências mais próximas e mais imperativas. Essas considera-
ções determinaram o caráter especial e misto da nossa Faculdade de Educação,
Ciências e Letras, dando-lhe ao mesmo tempo funções de cultura e papel eminen-
temente utilitário e prático".
54 Educação e Cultura, ed. cit., p. 48/49.
55 Educação e Cultura, ed. cit., p, 55.
Francisco Campos preocupa-se com a possibilidade de que as Faculdades de Ciên-
cias se tornassem "adorno ou decoração pretenciosa em casa pobre". Em vista
"das imperiosas necessidades do presente" é-lhes atribuída função de caráter
pragmático e de ação imediata sobre nosso estado de cultura. Essa função apre-
senta nestes termos: "Ao lado de órgão de alta cultura ou de ciência pura e de-
sinteressada, ele deverá ser, antes de tudo e eminentemente, um instituto de edu-
cação, em cujas divisões encontrem todos os elementos próprios e indispensáveis
a formar o nosso corpo de professores, particularmente os do ensino normal e se-
cundário, porque deles, de modo próximo e imediato, depende a possibilidade de
se desenvolver, em extensão e profundidade, o organismo, ainda rudimentar, de
nossa cultura" 56 .
O ensino secundário, a seu ver, será ainda por muitos anos pobre, insuficiente e
às vezes nulo. Falta-lhe sobretudo corpo docente de orientação didática segura,
particularmente no que se refere às ciências básicas e fundamentais. Em nome
dessa preocupação é que precisamente o órgão definidor da universidade deve ser,
como disse, antes de tudo e eminentemente, um instituto de educação.
Assim, Francisco Campos, na verdade, não adere ao ideal de universidade que ha-
via mobilizado a intelectualidade no período que precedeu imediatamente a Re-
volução de 1930. Mas também não quer limitar-se a conservar o ensino superior
nos moldes tradicionais. Imagina poder instituir a universidade, mas colocando-a a
serviço do aprimoramento do ensino secundário, a que atribuía, sem dúvida,
maior relevância.
Nestas condições, a Reforma Francisco Campos não poderia tornar-se em elemen-
to catalizador dos educadores mais esclarecidos, único agrupamento capaz de rea-
lizar a idéia de universidade, como a experiência da Faculdade de Ciências da
UDF, no Rio de Janeiro, e da Faculdade de Filosofia da USP,em São Paulo, iriam
demonstrar. E talvez por isto mesmo tivesse acabado no papel.
2. A busca de novos objetivos
O movimento desencadeado na década de vinte, visando à implantação da univer-
sidade, concebida como instituição onde se praticasse a pesquisa científica ao la-
do da formação profissional, além de não haver encontrado sua expressão legíti-
ma na Reforma Francisco Campos, tampouco refletiu-se na política levada a ca-
bo pelo governo Vargas, virtualmente ao longo de toda a década de trinta. Essa
idéia talvez tivesse desaparecido se aquelas pessoas que a ela se mantiveram fiéis
não encontrassem uma oportunidade de realizá-la em âmbito estadual, através
das universidades de São Paulo e do Distrito Federal 57 .
Educação e Cultura, ed. cit., p. 67.
A possibilidade de organizã-la adveio do Decreto n° 25.579, de 27 de março de 1933,
que regulamentou o funcionamento de universidades estaduais e livres, que eram previs-
ias. além das federais A Umverçidade de Minas Gerais havia sido criada por lei estadual
(n? 956, de 7 de setembro de 1 927) e reconhecida pela União através de ato de 1931.
Na década de trinta, não dispunha de condições de funcionamento diferentes daquelas
com que contava a Universidade do Rio de Janeiro, adiante resumidas.
60
Até o início de 1939, quando se cria a Faculdade Nacional de Filosofia, com ba-
se nos cursos até então mantidos pela Universidade do Distrito Federal, o gover-
no Vargas não manifesta, na prática, qualquer empenho em fazer com que a Uni-
versidade do Rio de Janeiro tivesse existência de fato. Em 1934, as autoridades
chegam a desmembrá-la em duas, criando a Universidade Técnica Federal, que in-
cluía inclusive a Escola de Minas de Ouro Preto. No entanto, essa universidade
não chegou sequer a ter um reitor designado, ao contrário da do Rio de Janeiro,
que tinha pelo menos um titular. A hipótese de renunciar à organização univer-
sitária chegou a ser cogitada, segundo se deduz dos termos do inquérito promo-
vido entre professores, pelo ministro Gustavo Capanema, no ano de 1936:
- Pode caber a denominação de universidade a um conjunto de escolas superio-
res, a que faltam cursos de filosofia, de ciências e de letras?
- Deve o ensino superior ser feito de preferência em universidade? Ou será pre-
ferível ministrá-lo em estabelecimentos isolados?
Fernando de Azevedo reconhece que a revolução não trazia "um programa de
política escolar nitidamente formulado ou mesmo implícito num plano de reor-
ganização nacional que se propusesse executar quando as armas vitoriosas con-
centrassem nas mãos de seus chefes os poderes da Nação. Nem prevalecia, a não
ser em alguns dos grupos revolucionários, de tendências mais avançadas, a idéia
de que a posse do poder formasse a condição suficiente para grandes transforma-
ções sociais, económicas e pedagógicas" 58 .
Enquanto no âmbito da revolução observa-se essa ausência de clareza quanto aos
objetivos educacionais, forma-se no país uma consciência entre os educadores no
que toca à necessidade de mudança dos processos pedagógicos a par de reformas
estruturais de monta, a começar pela organização da universidade. Nos primeiros
momentos, a revolução vitoriosa pareceu caminhar no sentido de fazer seu o pro-
grama da elite académica, criando o Ministério da Educação e Saúde, decretando
a reforma do ensino secundário e adotando a universidade como forma de orga-
nização do ensino superior, ainda que sem reconhecer plenamente sua autêntica
função.
Mas logo deu curso a uma iniciativa que iria arrastar os educadores a prolongada po-
lémica, a saberia oficialização do ensino religioso facultativo nas escolas públicas.
A circunstância se complicava pela presença cada vez mais marcante, no cenário
político nacional, de agrupamentos totalitários de esquerda e direita, que procu-
raram dar à discussão deflagrada no terreno educacional uma conotação política
de que não se revestia. 0 certo, entretanto, é que os ânimos acirraram-se criando
uma autêntica incompatibilidade, por vários anos, entre a ídéia de renovação es-
colar e a idéia religiosa. Ao longo da década de trinta, contudo, "esses dois gru-
pos" — observa Fernando Azevedo - "mantiveram-se abertamente em conflito
até 1937, ano em que o golpe de Estado cortou pela autoridade o conflito, amai-
nando as polémicas, arrefecendo as paixões e impondo, como linha de conduta,
no domínio educacional, uma política de compromissos, de adaptação e de equi-
líbrio".
A Cultura Brasileira, ed. cit.. p. 395.
61
Durante o ano de 1931, os católicos desenvolveram longa campanha em favor de
seus pontos de vista. O Centro Dom Vital,, do Rio de Janeiro, divulgou a coletâ-
nea de artigos intitulada Pedagogia da Escola Nova; Tristão de Ata ide publica
Debates Pedagógicos e, o padre Leonel Franca, Ensino Religioso e Ensino Laico.
Nesse mesmo ano, em outubro, o Centro Dom Vital de São Paulo promove um
Congresso de Educação. Os reformadores, em especial os que se achavam mais di-
retamente vinculados à Escola Nova, mantinham-se igualmente ativos. Todas as
energias pareciam estar voltadas para a alimentação desse conflito.
Na tentativa de promover uma linha de entendimento, uma "zona de concordân-
cia", como então se dizia, o governo estimulou a realização da IV Conferência
Nacional de Educação, em dezembro de 1931. A iniciativa não foi bem sucedida,
estabelecendo-se, ao contrário, a convicção de que aos dois grupos cabia trilhar
seus próprios caminhos.
Em 1932, apareceu o famoso manifesto dos pioneiros da Escola Nova — "A re-
construção educacional do Brasil" - e a V Conferência Nacional de Educação,
em Niterói, em dezembro daquele ano, se constitui numa manifestação dessa cor-
rente. Os renovadores dispõem-se a levará prática suas ideias, no Distrito Federal,
onde um de seus líderes, Anísio Teixeira, ocupa a Secretaria de Educação, e, em
São Paulo, através de Fernando de Azevedo e Almeida Prado. A idéia de univer-
sidade, como instrumento hábil para impulsionar a investigação científica, iria
sobreviver em meio a esse movimento.
A convocação da Constituinte em 1933 determina que, nesse ano, se desenvolves-
sem grandes esforços, de parte das facções em luta, no sentido de fazer com que
seus pontos de vista se tornassem vitoriosos na nova Constituição. Como resulta-
do de tais pressões, a Carta de 1934 procurou atender aos dois grupos, o que iria
prolongar a cisão e postergar a solução daqueles problemas em torno dos quais
havia acordo, como parecia ser o caso da universidade, mormente quanto a Carta
Magna requeria ser implementada através de legislação ordinária. E a nova lei de
organização da Universidade do Rio de Janeiro, que tomou o n9 452, somente
seria promulgada a 27 de julho de 1937, embora refletisse o empenho de traduzir
a opinião da vanguarda universitária, não chegaria a produzir maiores efeitos.
Enquanto os educadores estão às voltas com um debate que parecia absorvê-los
de todo e as iniciativas renovadoras refluem para o âmbito estadual - na Capital
Federal e em São Paulo — no seio do novo governo vão se polarizando forças de-
sejosas de levar à máxima radicalização o sentido técnico-profissional do ensino.
O ministro do Trabalho incumbe, em 1932, a Raul Azevedo, Joaquim Pimenta e
F. Luderitz, de estudar o problema da organização científica do trabalho. A co-
missão conclui pela necessidade de promover-se a implantação de uma Universi-
dade do Trabalho, idéia com que simpatizava o próprio ministro 59 . Insere-se nes-
sa mesma linha a criação da Universidade Técnica Federal, em 1934. Deseja esse
grupo que a educação, em escala nacional, dirija-se especialmente para o trabalho.
A universidade definida no curso dos debates da década de vinte, ainda uma vez,
deixa de encontrar seu lugar no quadro dominante. A instituição a que se lhe deu
r» Cf. Revista da Universidade do Rio de Janeiro, 2(2), 1932, p. 245/25S.
62
o nome, no Rio de Janeiro, não tinha qualquer função, como o reconhece e pro-
clama a Associação Brasileira de Educação, ainda em começos de 1939, o que de-
corria, a seu ver, de uma administração que não soubera entrever as virtualidades
do Estatuto de 1930, que "constitui documento que honra nossa cultura".
Ao que acrescenta: "Tratando-se de uma universidade urgia cuidar de transformar
a justaposição provisória dos órgãos incorporados em integração definitiva, pro-
piciando-lhes, para esse fim, ainda que com sacrifícios, os recursos necessários
quanto à racionalização das atividades didáticas e de investigação quanto ao apa-
relhamento e às instalações essenciais ao rendimento da obra escolar e do traba-
lho especulativo processado nos gabinetes. Nada disto foi feito e se a legislação
superveniente às leis orgânicas de 1931 derrogou o sistema em experiência não
foi para obedecer ao espírito universitário que inspira a essência da reforma reali-
zada, mas para agravar os defeitos do primitivo estatuto e estabilizar as falhas
que ele admitia na perspectiva de próximos corretivos e dentro do princípio de
que Roma não foi feita num dia.
As escolas que exigiam a assistência de laboratórios e clínicas para pesquisa con-
tinuaram como dantes e as que exigiam acomodação pelo menos decentes conti-
nuam, como a Faculdade de Direito, sem material, mas, em compensação, foram
justapostos no papel, ao agregado incoerente da organização inicial, novos insti-
tutos, entre os quais, é claro, faltava a Faculdade de Ciências e Letras" 60 .
Os objetivos fixados pela nova elite do poder são resumidos por Lourenço Filho
nas comemorações do decénio do governo Vargas. Indica que agora se pode efeti-
vamente falar em educação nacional, em vista dos "termos políticos em que o
Estado Nacional soube colocar a questão". Semelhante colocação cifra-se em con-
cebê-la como um processo social inelutável e globalizante, voltado para a organi-
zação económica do país, condição de manutenção e fortalecimento da unidade
política e moral da Nação. E conclui:
"Assim sendo, o plano em que se compendiem as bases, os quadros e as diretrizes
da educação nacional, deverá ser um estatuto da educação para o trabalho, dan-
do expressão concreta à letra e ao espírito mesmo da Constituição, atendendo à
judiciosa observação do presidente Getúlio Vargas: no período em que nos en-
contramos, a cultura intelectual sem objetivo definido deve ser considerada luxo
acessível a poucos indivíduos e de escasso proveito à coletividade" 61 .
3. Universidade sem função
A legislação promulgada após a Revolução de 1930 estabelecia que a Universida-
de do Rio de Janeiro seria integrada por nove escolas, entre estas incluídas a Es-
cola de Minas, que funcionava em Ouro Preto e três estabelecimentos inexisten-
tes (Faculdades de Educação, Ciências e Letras; Faculdade de Farmácia e Facul-
dade de Odontologia). Assim, a universidade compreendia, na verdade, apenas es-
60 Educação, órgão da ABE 1 (2) : 1 2, maio de 1 939.
61 Lourenço Filho. "A educação nacional", in Os grandes problemas nacionais. Rio de Ja-
neiro, Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), 1942. p. 65.
63
tes institutos: Faculdade de Direito e Medicina, Escola Politécnica, Escola Nacio-
nal de Belas Artes e Instituto Nacional de Música.
A Escola Politécnica, a Faculdade de Medicina, a Escola de Belas Artes — que
abrigava o Curso de Arquitetura — e o Instituto de Música datam todos da primei-
ra metade do século passado. A Faculdade de Direito resultara da fusão, em 1920,
das duas faculdades livres fundadas em 1891 (Faculdade Livre de Ciências Jurí-
dicas e Sociais do Rio de Janeiroe Faculdade Livre de Direito do Rio de Janeiro).
De sorte que a universidade mantinha as mesmas características presentes a sua
criação no decénio anterior enão passava da aglomeração de instituições sedimen-
tadas, ciosas de seus direitos, prerrogativas e atribuições.
A primeira reunião do Conselho Universitário teve lugar a 2 de maio de 1931,
sob a presidência do reitor Carvalho Mourão, logo depois, em começos de junho,
em virtude de ter sido nomeado ministro do Supremo, substituído por Fernando
Magalhães, que exercia as funções de diretor da Faculdade de Medicina 62 .
A Reitoria funcionava na Faculdade de Direito, passando ao Ministério da Edu-
cação e Saúde ainda em 1931. Não tinha, com efeito, ingerência maior na vida
das escolas. Essa circunstância explica provavelmente o programa de trabalho
formulado pelo professor Fernando Magalhães, primeiro reitor efetivo dessa no-
va fase - exerceria o mandato de meados de 1931 a meados de 1934 - todo vol-
tado para fora. Assim, teria oportunidade de escrever: "Para os efeitos da cultura,
base essencial da nacionalidade, a universidade será muito mais popular do que
doutoral, constituindo-se não em empório de diplomas, mas um distribuidor de
conhecimentos. Cabe-lhe, sem dúvida, preparar os técnicos, mas compete-lhe,
além e acima disso, educar o povo.
0 que a universidade brasileira pensa realizar está projetado nos gráficos demons-
trativos de sua possível, embora futura, atividade. A sua irradiação vale mais do
que a sua focalização: como centro ela é técnica, como irradiação será social e
cultural. Por sua ação social desenvolverá o museu social, aparelhamento perma-
nente de educação completa, mediante processos divulgadores aperfeiçoados e
vários. Por sua ação desdobra-se na universidade popular, verdadeira usina de for-
ça democrática, pelo apuro intelectual de todo cidadão. O museu social é uma
exposição metódica de material educativo em permanente e automático exerc:'-
cio. A universidade popular é a sucessão dinâmica de ondas concêntricas, pene-
trando qualquer distância, difundindo-se com seus recursos pela extensão terri-
torial e pela massa humana. Todas as organizações e diligências do país são sub-
sidiárias da universidade, que irá buscar os documentos instrutivos e seus veicula-
dores onde estiverem : para isto apresentando-se os mandatos universitários.
No primeiro ano da nova experiência a reitoria expediu diversos comunicados à
No período anterior à revolução, a universidade tivera estes reitores: Ramiz Galvão
(1921-1925); Afonso Celso (1925-19261 e Cícero Peregrino da Silva (1926-1930), Pe-
lo Decreto r>9 14.343, de 7 de setembro de 1920, que a criou, o cargo de reitor seria
exercido pelo presidente do Conselho Superior de Ensino.
Revista da Universidade do Rio de Janeiro, série II, n9 1, p, 12.
64
imprensa, abordando estes temas: ação social e cultural da Universidade do Rio
de Janeiro; extensão universitária; universidade popular; museu social e manda-
tos universitários. Todos preservam o mesmo tom do programa do reitor. Diz-se
ali, por exemplo, que a "extensão universitária deve ter raízes na massa do povo",
A universidade editou a Revista da Universidade do Rio de Janeiro que, no decé-
nio anterior, circulara uma única vez. Publicação de caráter anual, inseria artigos
e estudos da autoria dos professores e noticiário da atividade do Conselho Univer-
sitário. Para divulgação da matéria de rotina (atos administrativos; relação de ma-
triculados; formaturas, etc.) apareceu, em 1932, o Anuário da Universidade do
Rio de Janeiro.
O Anuário não passou desse primeiro número. Mas a Revista da Universidade do
Rio de Janeiro circulou nos anos de 1932, 1933, 1934, 1935, 1 936 e 1937 64
bxpectativa nao confirmada
Com a instalação da Assembléia Constituinte, parece haver se criado uma expec
tativa nova entre os dirigentes da universidade. Assim, na sessão de 31 de março
de 1934, o Conselho Universitário aprova uma proposição, solicitando seja facul-
tada autonomia à universidade. Os instrumentos legais vigentes estabeleciam que
tanto o reitor como os diretores das faculdades eram de livre nomeação do presi-
dente da República, sem qualquer ingerência do corpo docente no processo de
sua escolha. O orçamento era fixado de forma idêntica à adotada para o serviço
público em geral. A reivindicação da autonomia objetivava eliminar essas normas
que, na verdade, impediam o funcionamento da instituição.
Volta à tona igualmente a idéia de que a universidade tem como função mais re-
levante a formação de cientistas e pesquisadores. 0 Conselho Universitário cria
uma comissão especial constituída pelos professores Pontes de Miranda, Miguel
Osório de Almeida, Inácio Azevedo Amaral, Leandro Kassif e Ronald de Carva-
lho, para elaborar o anteprojeto de organização da Faculdade de Educação, Ciên
cias e Letras.
Na exposição de motivos 65 a necessidade de formar cientistas é encarecida sob a
alegação de que a maior parte dos problemas técnicos de nossas indústrias estão
sem solução por falta de número suficiente de homens possuidores de forte cul-
tura científica fundamental. Vé-se que os autores do anteprojeto - os principais
deles figuras representativas do movimento desencadeado na década de vinte -
desejavam adaptar-se às circunstâncias e não chamar a atenção para o caráter de-
sinteressado do ensino que propugnavam.
No essencial, entretanto, a concepção da faculdade mantém-se fiel à doutrina
O último número Ido b'4"ij 1936/1937) dessa publicação, aparecido em 1939, indica
que não mais circulará, devendo ser substituída pelos Arquivos da Universidade do Bra-
sil, já que a Lei n° 452, de 27/06/1937, mudou-lhe a denominação. Os arquivos nunca
circularam. Na déc3ua de cinquenta aparecem cinco números dos Anais da Universida-
de do Brasil (número 1, 1950;nP 2, 1951; n? 3, 1952; n° 4, 1958e n° 5 em 1959).
Publicada na Revista, n? 4-5, de junho de 1934, p. 291 e seguintes.
65
que a apresentava como instituto por excelência definidor da universidade. Cogi-
ta-se da sua divisão em trés seções: Educação, Ciências e Letras, cabendo-lhes for-
necer duas licenças: magistral, para os candidatos ao magistério secundário e nor-
mal e, cultural, para os pretendentes à cultura superior em educação, ciências ou
letras.
A expectativa de que o Parlamento pudesse encaminhar a instituição para o seu
verdadeiro leito não iria ser correspondida, pelo menos na fase da Constituinte
e na que lhe seguiu de imediato. A grande preocupação é com a formação técni-
co-profíssional, de que resultaria a iniciativa adiante comentada.
A Universidade Técnica Federal
Através do Decreto n° 24.738, de 14 de julho de 1934, cria o governo a Univer-
sidade Técnica Federal. Seria constituída pelas escolas Politécnicas e de Minas,
retiradas da Universidade do Rio de Janeiro, e pela Escola Nacional de Química,
além de oito institutos de pesquisa. Mantinha-se a Universidade do Rio de Janei-
ro, integrada pelas Faculdades de Medicina e Direito, Escola de Belas Artes e Ins-
tituto de Música.
O evento dá bem uma idéia da desorientação reinante em matéria de ensino su-
perior.
A nova instituição não chegou sequer a existir no papel, a exemplo do que ocor-
ria com a Universidade do Rio de Janeiro. Maurício Joppert da Silva, na aula
magna, inaugural do ano letivo de 1950, teria oportunidade de lembrar;
"O Decreto n9 24.738, de 14 de julho de 1934, é uma página sombria na histó-
ria do ensino brasileiro: separa a Escola Politécnica da Universidade do Rio de Ja-
neiro e a inclui na Universidade Técnica Federal. Esta universidade nunca teve
reitor: nos diplomas dos engenheiros graduados pela Escola Politécnica, entre os
anos de 1934 e 1937, a assinatura do reitor está em branco. . ," 66 .
Essa curiosa experiência é abandonada através da Lei n° 452, de 5 de julho de
1937.
A universidade reformulada
A Lei n? 452, votada pelo Parlamento em fins do primeiro semestre de 1937,
corresponde a uma tentativa de retomar o sentido original da criação desse tipo
de entidade desde que, se bem não lhe atribua maior autonomia, concebe-se um
lugar para a pesquisa e coloca-se em primeiro plano a formação do corpo docen-
te, admitida inclusive a contratação de professores estrangeiros.
A Universidade do Rio de Janeiro passa a denominar-se Universidade do Brasil,
integrada pelas seguintes escolas:
— Escola Nacional de Engenharia - Faculdade Nacional de Direito
— Escola Nacional de Minas e - Escola Nacional de Belas Artes
Metalurgia — Escola Nacional de Música
— Escola Nacional de Química — Escola Nacional de Agronomia
— Faculdade Nacional de Música - Escola Nacional de Veterinária
— Faculdade Nacional de Odontologia - Faculdade Nacional de Farmácia
66
- Faculdade Nacional de Arquitetura - Faculdade Nacional de Filosofia,
- Faculdade Nacional de Polftica e Ciências e Letras
Economia — Faculdade Nacional de Educação.
Das escolas e faculdades enumeradas existiam apenas as oito primeiras. Às velhas
escolas - que passavam a ter a denominação padronizada de "faculdade nacio-
nal" - haviam sido adicionadas duas novas: Faculdade de Odontologia, criada
em 1934 a partir do curso existente na Faculdade de Medicina, e a Escola Nacio-
nal de Química. Esta última originara-se da Escola Superior de Agricultura e Me-
dicina Veterinária, criada em 1910 (Decreto n? 8.319, de 20 de outubro), que ti-
vera, em 1920, os seus cursos desdobrados em três: de Agricultura, de Veteriná-
ria e de Química. O Curso de Química da antiga Escola Superior de Agricultura é
que daria origem à Escola Nacional de Química, organizada em 1933, pelo De-
creto n9 23.01 6, de 28 de julho.
Tratando desse período, Raul Bittencourt assinalaria que "a incorporação das
Escolas de Agricultura e de Veterinária à Universidade do Brasil não se verificou,
continuando as mesmas sob a jurisdição do Ministério da Agricultura e vindo a
constituir mais tarde, em 1943, a Universidade Rural. As Faculdades de Arqui-
tetura e Farmácia só se isolaram em 1945, respectivamente, pelos Decretos-lei
nP s 7.918 e 8.272, de 31 de agosto e de 3 de dezembro. Até aio ensino de far-
mácia e arquitetura funcionavam em cursos anexos à Medicina e Belas Artes" 67 .
A Lei nP 452 retoma uma idéia que havia aparecido na oportunidade do projeto
de organização da Universidade Técnica Federal: a de que a pesquisa na universi-
dade deveria ser efetivada através de institutos autónomos. Foram previstos de
forma bem ampla, segundo se pode ver na enumeração a seguir:
- Instituto de Física — Instituto de Eletroradiologia
- Instituto de Eletrotécnica - Instituto de Biotipologia
- Instituto de Hidroaerodinâmica - Instituto de Criminologia
- Instituto de Mecânica Industrial - Instituto de Psiquiatria
- Instituto de Ensaio de Materiais - Instituto de História e Geografia
- Instituto de Química e Eletroquímica - Instituto de Organização Polftica e
- Instituto de Metalurgia Económica
- Instituto de Nutrição - Instituto de Psicologia 68 .
A Lei n? 452 cogita da organização da Cidade Universitária, estabelecendo a doa-
ção de terrenos na Quinta da Boa Vista 69 .
Com o intuito de assegurar o aperfeiçoamento do corpo docente, fica o Conselho
66 Anais da Universidade do Brasil. 1(1), dezembro. 1 950. p. 1 3 1 .
67 "Breve histórico da Universidade do Brs3il e da Faculdade Nacional de Filosofia", ín
Digesto da Faculdade NaciT <al de Filosofia, Rio de Janeiro, 1955. p. 18.
Mm
Com a consolidação da universidade, essa idéia seria retomada. Assim, em 1950, funcio-
navam estes institu.os: Nutrição (Josué de Castro), Eletrotécnica (Ernâni da Mota Re-
sende), Puericultura (Joaquim Martagão Gesteiral. Psiquiatria (Maurício de Medeiros),
Biofísica (Carlos Chagas Filho), Psicologia (Nilton Campos) e Ginecologia (Arnaldo de
Moraes).
67
Universitário obrigado a mandar, anualmente, ao exterior, um ou mais de seus
professores catedráticos para fazer estudos especiais da disciplina que lecíonam.
Consagra-se igualmente a contratação de professores estrangeiros de nomeada.
A universidade deve conceder bolsas a estudantes necessitados e mandar ao es-
trangeiro alunos de excepcional merecimento intelectual para fazer estudos de
problemas especiais, constantes dos programas de ensino.
O Parlamento desejou, portanto, que a idéia de universidade se aproximasse do
entendimento manifesto da parcela mais lúcida e atuante do professorado 70 .
Contudo, faltou ainda o instrumento capaz de plasmá-la na prática e que se admi-
tia fosse a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, Deve-se conceber que a As-
sembléia evoluiria no sentido de preencher essa lacuna essencial, desde que, quan-
do se deu o fechamento do Congresso, em novembro de 1937, tramitava projeto
de lei organizando a nova escola.
O prazo transcorrido entre a promulgação da Lei n9 452 e o goipe de Estado, de
apenas quatro meses, não permitiu que se adotasse qualquer providência no sen-
tido de implementá-la.
A universidade permaneceria igualmente sem função durante todo o ano de 1938
e parte do exercício seguinte. Em meados de 1939, o governo federal absorve a
Universidade do Distrito Federal e a transforma em Faculdade Nacional de Filo-
sofia. Começava, então, o verdadeiro processo de consolidação da Universidade
do Rio de Janeiro.
Em 1932, quando a Universidade do Rio de Janeiro passou a reger-se pela legisla-
ção Francisco Campos, a comunidade universitária correspondia a cerca de 5.000
pessoas, sendo pouco mais de 4.700 alunos e aproximadamente 300 professores.
A metade da população estudantil achava-se concentrada nos Cursos de Medicina
e Direito. A Politécnica tinha 700 alunos. Em fins de 1 938 a comunidade passara
a contar com 6.000 pessoas, tendo o corpo docente virtualmente duplicado. Os
cursos de Direito e Medicina, com quase quatro mil alunos, absorviam maioria
ainda mais significativa e a Escola Politécnica havia crescido relativamente pouco
(passara a contar com 820 alunos). As escolas mais recentes registravam matrícu-
la em torno de 500 alunos (Química Industrial, 146; Farmácia, 67 e Odontolo-
gia, 325).
A RETOMADA DA IDÉIA ORIGINAL E SUAS CONSEQUÊNCIAS
1. Uma experiência pioneira: a Escola de Ciências da UDF
Segundo se mencionou, a idéia de constituir a universidade - como forma de fa-
zer com que o ensino superior, além da formação profissional, facultasse a insti-
tucionalização da pesquisa científica — mobilizou a elite académica ao longo de
toda a segunda metade da década de vinte. O lustro seguinte iria contudo deixar
69 A lei criou 3 Comissão do Plano da Universidade, mais tarde denominada Escritório
Técnico da Cidade Universitária que. já por volta de 1945, se havia fixado pela escolha
do Fundão. Como se sabe. a idéia somente seria concretizada na década de sessenta.
68
patente que, embora o governo saído da Revolução de 30 tivesse adotado formal-
mente o projeto de implantar a universidade, o ambiente permaneceria inaltera-
do. Desvaneceram-se as esperanças no governo federal.
Em 1934, em virtude do término das atividades da Assembleia Constituinte, teve
lugar a renovação dos governos estaduais, mediante a realização de eleições. As-
sim, tanto em São Paulo como no Rio de Janeiro ascendem ao poder governantes
aos quais se achavam vinculados os partidários da renovação educacional. Fer-
nando de Azevedo teria oportunidade de escrever que "com Armando Sales, no
poder, e Júlio de Mesquita Filho, na direção do O Estado de São Paulo, pareceu-
nos ter chegado, afinal, a oportunidade de criar a Universidade de São Paulo e a
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras que seria integrada no sistema". No Rio
de Janeiro, a eleição de Pedro Ernesto leva para a Secretaria de Educação Anísio
Teixeira que, como vimos, conquistara uma liderança inconteste no movimento
educacional brasileiro. Dessa circunstância resultaria a criação da Universidade
do Distrito Federal.
As duas iniciativas tiveram o mérito de reaglutinar os partidários de uma univer-
sidade que assegurasse o desenvolvimento da pesquisa. Os êxitos iniciais alcança-
dos, no Rio de Janeiro como em São Paulo, estabeleceram uma situação favorá-
vel a que a Universidade do Rio de Janeiro fosse levada finalmente a estruturar-
se segundo o novo modelo.
A Universidade do Distrito Federal foi criada através do Decreto Municipal
n9 5.513, de 4 de abril de 1935. Compunha-se de cinco escolas, a saber: Ciências,
Educação, Economia e Direito, Filosofia e Instituto de Artes.
A nova instituição propunha-se alcançar estes objetivos:
a) promover e estimular a cultura de modo a concorrer para o aperfeiçoamento
da comunidade brasileira;
b) encorajar a pesquisa científica, literária e artística;
c) propagar aquisições da ciência e das artes, pelo ensino regular de suas escolas
e pelos cursos de extensão popular;
d) formar profissionais e técnicos nos vários ramos de atividade que as suas esco-
las e institutos comportarem;
e) prover a formação do magistério em todos os seus graus.
Anísio Teixeira enfatizaria que a diretriz essencial do novo instituto consistia em
promover a cultura desinteressada e assegurar a preparação para a carreira intelec-
tual. Na aula inaugural de seus cursos, assim definiria os encargos da Universidade:
"A função da universidade é uma função única e exclusiva. Não se trata somente
de difundir conhecimentos. O livro também os difunde. Não se trata somente de
conservar a experiência humana. O livro também a conserva. Não se trata somen-
Tinha em seu seio um digno representante na pessoa do professor Leitão da Cunha, a
cujo nome se vincula tanto a consolidação da universidade como a conquista de sua au-
tonomia, segundo se mencionará oportunamente Em extenso discurso na Constituinte,
teria ocasião de examinar a situação do ensino no país, em especial o ensino superior,
transcrito na Revista da Universidade do Rio de Janeiro, fase II, n° 6, 1935.
69
te de preparar práticos ou profissionais, de ofícios ou de artes. A aprendizagem
direta os prepara, ou, em último caso escolas muito mais singelas do que univer-
sidades.
Trata-se de manter uma atmosfera de saber, para se preparar o homem que o ser-
ve e o desenvolve. Trata-se de conservar o saber vivo e não morto, nos livros ou
no empirismo das práticas não intelectualizadas.
Trata-se de formular intelectualmente a experiência humana, sempre renovada,
para que a mesma se torne consciente e progressiva.
Trata-se de difundir a cultura humana, mas de fazê-lo com inspiração, enrique-
cendo e vitalizando o saber do passado com a sedução, a atração e o ímpeto do
presente.
O saber não é um objeto que se recebe das gerações que se foram, para a nossa
geração; o saber é uma atitude de espírito que se forma lentamente ao contato
dos que sabem" 71 .
No Brasil, parece-lhe, predominou em matéria de cultura o mais espantoso prati-
cismo. Chama-se por uma formação utilitarista, no sentido estrito e limitado da
palavra. Ao que acrescenta: "Esse país é o país dos diplomas universitários hono-
ríficos, é um país que deu às suas escolas uma organização tão fechada e tão limi-
tada que substituiu a cultura por duas ou três profissões práticas, é o país em que
a educação, por isso mesmo, se transformou em título para ganhar um emprego.
Haverá, por acaso, demasiado ensino superior no Brasil? Não. 0 que há são de-
masiadas escolas de certo tipo profissional, distribuindo anualmente diplomas em
número maior que o necessário e o possível, no momento, de se consumir.
Entre essas escolas e as escolas de que precisa o país para formar o seu quadro de
intelectuais, de servidores da inteligência e da cultura, de professores, escritores,
jornalistas, artistas e políticos, há todo um mundo a transpor.
E qual a universidade que abre, hoje, aqui as suas portas? É, por acaso, mais uma
universidade para o preparo puro e simples de profissionais, de médicos, de ba-
charéis, de dentistas e engenheiros civis?
Não. É uma universidade cujas escolas visam ao preparo do quadro intelectual do
país, que até hoje se tem formado ao sabor do mais abandonado e do mais precá-
rio autodidatismo".
A inscrição para os vestibulares é aberta a 22 de junho, estabelecendo-se que o
ano letivo teria início em julho, encerrando-se em março de 1936. A reitoria fun-
ciona no prédio do Instituto de Educação (Rua Mariz e Barros). A universidade
oferece cursos para formação de professores e especialização em diversas discipli-
nas, bem como o curso superior de artes e os de teatro e artes industriais.
Nesse primeiro ano letivo a instituição passou por verdadeira prova de fogo. Além
da novidade dos cursos e do imperativo de recorrer à Universidade do Rio de Ja-
neiro, em especial no que respeita aos laboratórios, viu-se frontalmente atingida
pela situação política do país. Em novembro, os comunistas ensaiam um golpe
Boletim da Universidade do Distrito Federal. 1(1-2). iulho -dezembro, 1 935. p. 1 5.
70
de Estado e o governo marcha para o endurecimento. É decretada intervenção do
Distrito Federal, sendo Anísio Teixeira, idealizador e animador da universidade,
afastado da Secretaria de Educação. Descrentes das possibilidades do projeto, di-
versos professores abandonam a UDF.
A Universidade do Distrito Federal sobreviveria a essa refrega graças à ascenção
à reitoria de Afonso Pena Júnior, intelectual de renome, que soube assumir-lhe o
espirito e reunir em seu derredor o que havia de mais expressivo da intelectuali-
dade brasileira.
Desde a fundação, as escolas haviam sido entregues a personalidades de reconheci-
do valor. O novo reitor consegue recompor a situação, mantendo diretores ou
conseguindo a colaboração de novos valores. Em 1936 achavam-se a cargo de Ro-
berto Marinho de Azevedo (Ciências); Lourenço Filho (Educação); Edmundo da
Luz Pinto (Economia e Direito); Prudente de Moraes Neto (Filosofia e Letras) e
Cornélio de Oliveira Penna (Artes). Nas humanidades, como nas artes, foram
convocados conhecidos intelectuais e artistas. Nessa área a universidade contou
igualmente com o concurso de professores franceses.
O ano letivo de 1936 é aberto com as conferências da missão universitária fran-
cesa 72 , contratada no ano anterior por Afrânio Peixoto, enviado a Paris para de-
sincumbir-se dessa tarefa. Integram-na estes professores, todos renomados: Émile
Brehier (filosofia); Eugène Albertini, Henri Hauser e Henri Tronchon (história);
Gaston Leduc (linguística.); Pierre Deffontaines (geografia) e Robert Garric (lite-
ratura). Esse grupo permaneceria na UDF todo esse ano letivo, inaugurando uma
praxe que, mais tarde, iria repetir-se na Faculdade Nacional de Filosofia. Na opor-
tunidade da publicação das aulas inaugurais desses professores, Afonso Pena Jú-
nior assinalaria:
"Em cursos como os nossos, destinados à formação de professores, as missões
universitárias estrangeiras, selecionadas em vários centros de cultura têm, sobre-
tudo, a vantagem de oferecer ao exame e escolha dos futuros professores uma
brilhante variedade de tipos de tendências de ensino, verdadeiros modelos para a
formação profissional dos estudantes, segundo o temperamento e a vocação de
cada um.
Essa atuação de bom fermento, esse influxo vocacional dos mestres insignes dei-
xa, por vezes, traços indeléveis através de várias gerações.
0 caso de Gorceix na Escola de Minas, de Ouro Preto, demonstrou cabalmente
a magia poderosa de uma sedução de mestre" 73 .
Tendo sido entregue a direção da Escola de Ciências a Roberto Marinho de Aze-
vedo, participante ativo do movimento que deslocou o positivismo da Escola Po-
litécnica, fundador e diretor da Academia Brasileira de Ciências, pôde atrair um
grupo de professores plenamente identificados com a idéia de promover o estudo
Reunidas no livro Lições inaugurais da Missão Universitária Francesa durante o ano de
1936. Rio de Janeiro. UDF 1937.191 p
Obra cit..p. I I I
71
desinteressado das ciências, na esperança de formar pesquisadores e também bons
professores para essas disciplinas.
Assim, mobilizou Lélio Gama, da Escola Politécnica e do Observatório Nacional,
para dirigir os cursos de Matemática; Lauro Travassos, do Instituto Oswaldo Cruz,
para o Curso de Zoologia; Alberto José Sampaio, do Museu Nacional, para o Cur-
so de Botânica; e Djalma Guimarães, do Serviço Geológico e Mineralógico, para o
Curso de Mineralogia, todos membros da Academia Brasileira de Ciências. Além
destes, contou a escola com os seguintes professores estrangeiros: Bernhard Gross,
diplomado em física pela Universidade de Stuttgart, e técnico do Instituto Na-
cional de Tecnologia; Alfred Schaeffer, diplomado em química pela Universidade
de Munich, professor da Escola Técnica do Exército; Viktor Leinz, doutor em
ciências pela Universidade de Heidelberg e Otto Rothe, doutor em química.
Além dos professores, que já então haviam adquirido notoriedade, a direção da
Escola de Ciências atrairia ao seu magistério alguns jovens recém-formados e que
a posteridade iria revelar como autênticas vocações científicas, tendo comple-
mentado a sua formação na UDF, como Plinio Sussekind (física), Francisco Men-
des de Oliveira Castro (matemática), Hugo Souza Lopes, Herman Lente Gustavo
de Oliveira Castro, mais tarde conhecidos entomologistas, todos professores de
escolas técnicas secundárias do Distrito Federal, e Joaquim Costa Ribeiro que, lo-
go ao concluir o Curso de Engenharia, fora contratado como assistente pela Es-
cola Politécnica.
A UDF tinha, em 1936, cerca de 400 alunos matriculados nas diversas escolas:
Ciências, 109; Educação, 149; Economia e Direito, 58; Filosofia e Letras, 38 e
Instituto de Artes, 67. Nesse ano, seus cursos livres seriam frequentados por mais
de 700 pessoas.
O Corpo Docente estruturava-se deste modo:
Escolas
Professores
Assistentes
Total
Ciências
8
9
17
Educação
15
11
26
Filosofia e Letras
13
5
18
Economia e Direito
21
9
30
Artes
15
8
23
Total
72
42
114
O curso na Escola de Ciências consistia de aulas práticas de laboratório e também
excursões para coleta de material, no caso de mineralogia e história natural. Eram
utilizados os laboratórios da Politécnica (mineralogia e geologia), da Escola Na-
cional de Veterinária (zoologia), do Museu Nacional (botânica), tendo sido mon-
tado, em dependências do Instituto de Educação, laboratório para embriologia e
anatomia comparada, sob a direção de Carlos Wernecl:. Muitos de seus alunos já
haviam frequentado ou continuavam cursando medicina e engenharia.
72
No ano letivo de 1936, segundo do Curso de Ciências, observa-se evasão de 40%
entre a matrícula inicial e o comparecimento aos exames finais, assim distribuídos:
Cursos
Números de Alunos
Matrícula Exame
Matemática
29
14
História Natural
31
21
Física
23
11
Química
26
17
Total
109
63
O fato se explica, segundo o depoimento de pessoas que frequentaram tais cur-
sos, pelo nível em que eram ministrados e pelo rigor dos professores.
Em 1937, a UDF forma a sua primeira turma e o reitor Afonso Pena Júnior con-
sidera-a empreendimento plenamente vitorioso. Num documento presumivelmen-
te deste período 74 teria oportunidade de escrever:
"Essa universidade não é certamente um conjunto de escolas de tipo profissional,
distribuindo anualmente diplomas em maior número que o país pode consumir;
é precisamente um centro de alta intelectualidade, de orientação da inteligência e
do saber, de formação de professores, escritores, jornalistas, artistas e políticos,
não unicamente no preparo restrito e prático de médicos, bacharéis e engenhei-
ros. Nela será preparado o homem culto, o que difere do homem diplomado.
A Escola de Ciências visa facilitar a formação de especialistas e pesquisadores,
nos vários ramos dos estudos gerais e aplicados.
A Escola de Economia e Direito destina-se a desenvolver estudos sobre a nossa
organização económica e social, constituindo-se em centro de documentação e
pesquisa dos problemas da vida nacional que interessam à formação do Estado,
assim como à produção e circulação de riqueza a sua normal distribuição.
A Escola de Filosofia e Letras terá a sua atividade ligada aos estudos superiores
do pensamento e sua história, sob os aspectos filosófico, literário e moral.
A Escola de Educação tem por fim promover a formação do magistério e atuar
como centro de documentação e pesquisa para a formação da cultura pedagó-
gica nacional.
O Instituto de Artes promoverá o estudo e o desenvolvimento das artes e seus vá-
rios ramos, como centro de documentação, pesquisa e irradiação das tendências
de expressão artística da vida brasileira".
Os documentos da UDF, constituídos de correspondência do reitor; expediente das es-
colas, relatórios de professores; programas; recortes de jornais; documentos da contabi-
lidade, etc, encontram-se arquivados no Instituto de Educaçà-o do Rio de Janeiro, e
nunca foram publicados.
73
O documento em causa, que relata as atividades da universidade nos anos de
1935, 1936 e parte de 1937, assinala ainda que seu pioneirismo expressa-se tam-
bém na criação, nesse último ano, do Curso de Jornalismo e Publicidade, bem co-
mo na existência, no Instituto de Aites, de cadeiras de urbanismo e história das
artes no Brasil.
Pelo menos no que respeita à formação de professores de ciência, de nível supe-
rior, bem como de pesquisadores, a UDF parece plenamente justificada. Com a
formatura dos primeiros diplomados, os que tomaram a seu cargo consolidá-la do
ponto de vista didático, dão por encerrada sua missão, a começar de Afonso Pena
Júnior, que passa a reitoria a José Baeta Vianna, bioquímico de renome da Facul-
dade de Medicina de Minas Gerais, então responsável pelo Curso de Química da
Escola de Ciências da UDF. Roberto Marinho de Azevedo transmite a direção da
Escola de Ciências ao conhecido professor pernambucano Luís Freire.
No ano letivo de 1938, já a universidade conta com uma equipe cuja formação
seria complementada em seu próprio seio, apta a substituir Bernhard Gross, Lélio
Gama, Lauro Travassos, Alberto José Sampaio, Otto Rothe e Alfred Schaeffer.
Essa equipe seria inteorada, na maioria dos casos, por jovens professores que mais
tarde viriam a adquirir reputação científica, como Joaquim Costa Ribeiro, que
assume a cadeira de física e a direção desse curso, tendo como assistente a Luiz
da Costa Dodsworth Martins; no Curso de Matemática, Henrique de Almeida Fia-
lho (adjunto) e Silvio Pinto Lopes (assistente); João Moojen de Oliveira, como ti-
tular da cadeira de biologia, assistido por Ennio Velozo de Faria e José Antunes;
Antenor da Silveira Peixoto, titular da cadeira de química inorgânica, tendo a
Danilo Alves Nobre como assistente; João Geraldo Szyska, a de química orgâni-
ca, com Walter Forster como assistente. Na direção dos cursos de Geologia e
Botânica permanecem professores estrangeiros (Viktor Leinz e Karl Arens), reu-
nindo como assistentes a Elysiatio Távora Filho, Emanoel Azevedo Martins e
Ulysses José Lopes. Para dirigir o Curso de Matemática foi convidado o professor
Luiz Freire, da Escola de Engenharia de Pernambuco, que, entretanto, exerceria
as funções apenas por alguns meses, o mesmo ocorrendo em relação à sua perma-
nência à frente da Escola de Ciência.
A UDF formou igualmente pesquisadores que passaram a trabalhar nas institui-
ções existentes, como Oswaldo Frota Pessoa (primeiro na Faculdade Nacional de
Filosofia e, posteriormente, na Faculdade de Filosofia de São Paulo); Alcides
Lourenço Gomes (Ministério da Agricultura, no serviço de pesquisa em piscicul-
tura dirigido por Rodolpho von lhering); Domingos Artur Machado Filho (Insti-
tuto Oswaldo Cruz) e José Antunes, José Lacerda de Araújo Feio, Luiz Emidio
Melo Filho, Newton Dias dos Santos e Emanuel de Azevedo Martins (Museu Na-
cional). Entre os matemáticos pode-se assinalar a presença de Weimar Penna que
mais tarde ingressaria no Mosteiro São Bento, onde adotou o nome de D. Ireneu,
vindo a destacar-se no movimento filosófico de inspiração católica, bem como no
ensino da matemática.
Cabe ressaltar que a UDF abrigou ainda, entre os seus professores, segundo se
mencionou, a Joaquim Costa Ribeiro, naquela época jovem de 30 anos e que
posteriormente iria notabilizar-se como físico de renome internacional.
Essa indicação sumária da iniciativa pioneira que foi a Escola de Ciências da UDF
evidencia de modo claro o acerto do movimento encetado na década de vinte,
74
em prol do ensino de nívei superior de caráter desinteressado. Eram, com efeito,
imensas as possibilidades de despertar vocações e factível dar inicio a uma tradi-
ção científica no país.
Entretanto, a interventoria do Distrito Federal, em 1938 a cargo de Olímpio de
Melo, não tinha da UDF opinião favorável, segundo se pode ver da documenta-
ção preservada. Cogitou-se inclusive de seu fechamento.
A elite dirigente da Universidade do Rio de Janeiro, em especial o reitor Leitão
da Cunha, há de ter entrevisto, no incidente, a oportunidade para absorver essa
experiência e dotar a URJ dos cursos que a tornariam uma universidade autênti-
ca. Dessa aspiração nasce o movimento pare transferir o acervo da UDF à Univer-
sidade do Rio de Janeiro, afinal consumado em meados de 1939.
2. A organização da Faculdade Nacional de Filosofia
Na oportunidade das comemorações do décimo aniversário da fundação da Fa-
culdade Nacional de Filosofia, Raul Bittencourt teve oportunidade de afirmar:
"A Universidade do Distrito Federal, brilhante viveiro de capacidades, a despei-
to de sua efémera vida de quatro anos apenas, sazonou um ambiente de compre-
ensão que não mais permitia a inexistência, na Capital Federal e na universidade
federal, de uma faculdade onde a cultura encontrasse a sua forma mais alta e de-
sinteressada". Assim, a UDF criou o clima favorável a que a universidade federal
empreendesse os passos requeridos pela efetivação da pesquisa científica como
parte do ensino superior.
Tal ocorreria através do Decreto-lei n9 1 .190, de 4 de abril de 1939, segundo o
qual a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, de que cogitara a Lei n° 452,
de 5 de julho de 1937, passa a denominar-se Faculdade Nacional de Filosofia. Es-
se instrumento legal, estabeleceu que seriam as seguintes as suas finalidades:
a) Preparar trabalhadores intelectuais para o exercício das altas atividades cultu-
rais de ordem desinteressada ou técnica;
b) Preparar candidatos ao magistério do ensino secundário e normal e
c) Realizar pesquisas nos vários domínios da cultura, que constituam objeto de
seu ensino.
A Faculdade de Filosofia subdivide-se em seçõesde: Filosofia, Ciências, Letras e
Pedagogia.
A Seção de Ciências compreende seis cursos, a saber: Matemática, Física, Quími-
ca, História Natural, Geografia e História e Ciências Sociais.
Para assegurar o seu imediato funcionamento, o governo extinguiu a Universida-
de do Distrito Federal e transferiu os seus cursos para a faculdade então criada.
A Prefeitura cedeu igualmente o prédio em que funcionava a UDF, a antiga Esco-
la José de Alencar, no Largo do Machado.
No documento antes indicado em que traça a história do estabelecimento, Raul
Bittencourt informa que "até 1942, a faculdade funcionou no Largo do Macha-
do. Não possuindo laboratórios próprios, o ensino das ciências experimentais se
realizava com a colaboração de outras unidades universitárias, como a Faculdade
de Medicina, a Escola de Química, o Museu Nacional. Depois, a administração e
75
os diversos cursos foram se transladando, progressivamente, para o edifício da
Avenida António Carlos, 40, na Esplanada do Castelo".
Durante os primeiros anos a faculdade foi dirigida direta e pessoalmente pelo rei-
tor Raul Leitão da Cunha, sucedido por San Thiago Dantas (1941-1945), Djalma
Hausselman (1945) e Antonio Carneiro Leão, a partir de dezembro de 1945.
No ano de sua fundação a faculdade contava com 360 alunos.
A experiência indicaria serem fundadas as esperanças de que a nova unidade esco-
lar iria dar à universidade o complemento de que carecia para assumir as funções
que lhe eram atribuídas pela parcela mais esclarecida da elite intelectual do país.
O estilo de trabalho da nova faculdade
No período 1939/1945, foram implementadas todas as medidas requeridas pela
consolidação da Faculdade Nacional de Filosofia, como um todo, em especial no
que respeita o ensino das ciências.
Para implantação definitiva dos cursos de física, onde era menor a tradição na-
cional, foram conti atados os professores Gabrielle Mamanna, Luigi Sobrero e
Dalberto Faggiani que, após ministrarem cursos durante dois anos letivos, regres-
saram a seus países de origem 75 . Em 1942. montaram-se os laboratórios de quí-
mica, física, biologia e os museus especializados de mineralogia, zoologia e antro-
pologia.
Foram, gradativamente, introduzidas no ensino diversas pnx^s requeridas pelo
trabalho científico. Assim, a pesquisa de campo e de laboratório passou a repre-
sentar componente obrigatório. No caso dos alunos de história natural, implan-
taram-se linhas de pesquisa de biologia, zoologia, mineralogia e botânica. A fim
de familiarizá-los com o trabalho científico desenvolvido em instituições nacio-
nais, estabeleceram-se convénios para estágio no Museu Nacional.
A direção da faculdade patrocinou a criação de diversos órgãos destinados a esti-
mular os discentes e, ao mesmo tempo, habituá-los ao estilo requerido. Entre ou-
tros, o Centro de Estudos de Química, o Centro de Pesquisa Genética, o Centro
de Pesquisas Físicas e os Centros de Estudos Mineralógicos e Botânicos. Esses ór-
gãos realizavam reuniões, debates e comemorações de eventos. Deste modo, em
agosto de 1943, o Centro de Estudos de Química promoveu, na faculdade, sessão
comemorativa do bicentenário de Lavoisier. Essas entidades recebiam cientistas
estrangeiros ou de outros estados que eventualmente se encontrassem no Rio de
Janeiro.
Desde logo, cuidou-se de que alunos e professores dispusessem da possibilidade
de divulgar trabalhos de cunho académico. Nos anos de 1942 e 1943 foi publica-
75 Cientistas entrevistados pela pesquisa História Social da Ciência no Brasil, dirigida por
Simon Schwartzman e sob o patrocícnio da Finep. consignam que o professor Sobrero
despertou vocações para a física teórica, o que não ocorreria em sua ausência, em vista
de que Costa Ribeiro achava-se integralmente voltado para a física experimental, distin
cão que se entendia como válida no período, embora seja discutida posteriormente. O
professor Bernhard Gross. por seu turno, consigna o alto nível dos cursos do professor
Mamanna, a que assistia com seus auxiliares do Instituto Nacional de Tecnologia.
76
da a Revista FNF, que pretendia abranger todos os cursos e departamentos. De-
pois os centros de estudos e pesquisas imprimiram boletins, contendo comunica-
ções de seus membros, sem periodicidade regular. Mais tarde, todos reunidos edi-
taram a Revista Científica.
A faculdade estimulou os centros de estudos e pesquisas a adquirirem familiari-
dade com as publicações científicas de sua especialidade aparecidas no país e no
exterior. Assim, o material editado por esses órgãos ref lete a preocupação de es-
tabelecer intercâmbio com os mais importantes centros científicos em todo o
mundo para obtenção de suas edições e conhecimento dos trabalhos desenvolvi-
dos. As reuniões dos centros versavam também a troca de informações obtidas
mediante esse recurso. A organização da biblioteca, com as características reque-
ridas pelas atribuições do estabelecimento, inclusive a obtenção de colecões dos
mais importantes periódicos científicos, passou a figurar entre as iniciativas prio-
ritárias da direção da faculdade.
Promoveram-se algumas iniciativas em conjunto com a Faculdade de Filosofia da
Universidade de São Paulo, como é o caso do Seminário de Física, que teve lugar
no mês de abril de 1942, contando com a participação do Departamento de Físi-
ca da USP.
O Centro de Pesquisas Físicas escolheu como linhas de investigação permanente
estes temas: raios cósmicos e física das altas energias.
Resultados assinaláveis
Tem lugar em 1942 a formatura da primeira turma de diplomados pela Faculda-
de Nacional de Filosofia, dentre os alunos matriculados diretamente em seus cur-
sos. Entre 1939 e 1941, diplomaram-se os que haviam ingressado na UDF.
Nos primeiros dez anos de funcionamento (1939/1948), a faculdade diplomou
653 pessoas, sendo maior o grupo de letras e línguas (233), seguindo-se geografia
e história (122), desenho (91 ), pedagogia (47) e filosofia (27).
Nos cursos de ciências formaram-se 148 pessoas assim distribuídas:
Cursos Diplomados
Ciências Sociais 30
Matemática 46
Química 36
História Natural 28
Física 8
Total 148
A Faculdade Nacional de Filosofia, a exemplo de sua congénere paulista, criou
de imediato a possibilidade da carreira docente para diversas vocações de cien-
tistas e pesquisadores formados nas duas capitais. A experiência iria demonstrar
77
que esta não seria condição suficiente para o desenvolvimento da atividade cien-
tífica no país. Contudo, os que pugnavam pela introdução dos cursos de ciência
no ensino superior não desejavam apenas comprovar a existência de pessoas aptas
e interessadas. Acalentavam a esperança de que se constituísse num primeiro pas-
so capaz de criar um clima favorável à ctividade, achando-se implícito o reconhe-
cimento da necessidade de que os diplomados viessem a ser aproveitados na habi-
litação que haviam conquistado. Nos setores em que a pesquisa dispunha de su-
porte institucional, como no caso da biologia e da fisiologia (Museus Nacional e
Paulista, Instituto Oswaldo Cruz, Ministério da Agricultura, etc), da mineralogia
e da botânica (Departamento de Produção Mineral, Jardins Botânicos, Museu
Goeldi, etc.) ou de mercado junto ao setor privado, como era a circunstância da
química, os melhores dotados foram sendo absorvidos em tais atividades e con-
tribuíram mesmo para dar novo alento a alguns desses institutos. No caso da físi-
ca e da matemática, entretanto, a alternativa era a docência superior para os que
revelaram vocação de pesquisadores.
A Faculdade Nacional de Filosofia tratou de estruturar a carreira docente de mo-
do adequado, realizando os correspondentes concursos. Assim, ao completar dez
anos de funcionamento contava, nos cursos de ciências, com estes catedráticos
concursados: J. da Rocha Lagoa (matemática); Ernesto de Oliveira Júnior (geo-
metria); Joaquim Costa Ribeiro (física geral e experimental); José Leite Lopes
(física teórica e experimental); Plínio Sussekind da Rocha (mecânica racional,
mecânica celeste e física matemática); João C. Cardoso (f ísico-química e quími-
ca superior); Werner Krauledat (química inorgânica e química analítica); Athos
da Silveira Ramos (química orgânica e biológica); Tomaz Coelho Filho (geologia
e paleontologia); Aníbal Figueiredo (botânica); A. Melo Leitão (zoologia); Lad-
gem Cavalcanti (biologia) e Elisiário Távora Filho (mineralogia e petrografia). En-
tre os professores contratados achavam-se Oswaldo Frota Pessoa (biologia); Ma-
ria de Lurdes Antunes (botânica); Maria Laura Mousinho (geometria); Maria da
Glória Hermida (zoologia); Moema Mariani de Sá Carvalho (geometria). Em 1946,
foi contratado Cesar Lattes para implantar o Curso de Física Aplicada e Física
Nuclear.
Nesses primeiros anos de funcionamento a faculdade promoveu igualmente alguns
concursos de livre-docéncia em que foram aprovados, entre outros, Leopoldo Na-
chbin (análise matemática e análise superior) e Werner Krauledat (química inor-
gânica e química analítica).
A faculdade deu também significativa contribuição à melhoria do padrão do pro-
fessorado secundário. Dentre os seus diplomados, os que desejavam dedicar-se ao
magistério deviam fazer, além do curso de bacharelado, o de licenciatura, que
consistia do aprendizado teórico e prático de didática do ensino. Para esse mister,
organizou-se o Colégio de Aplicação, com cursos ginasial e científico, onde os
alunos inscritos na licenciatura tinham oportunidade de ministrar aulas, supervi-
sionadas por professores da faculdade. Além dessa iniciativa, realizavam-se cursos
de verão abertos a professores secundários em exercício e que não dispunham de
curso superior.
Avaliando o impacto cultural do novo instituto nessa fase inicial de seu funciona-
mento, o professor Raul Bittencourt teria oportunidade de consignar:
"Além dos cursos e conferências, na avaliação da obra desta Faculdade Nacional
78
de Filosofia, como centro irradiador de cultura, embora sem nenhum propósito
de ser completo na enumeração, será justo salientar as iniciativas dos professores
Thiers Martins Moreira e José Carlos Lisboa que, com a parceria dos estudantes
fizeram ressurgir o teatro de Gil Vicente e de Cervantes; a celebração do centená-
rio de Goethe, a que está ligado o nome do professor Álvaro Franco Pinto; a pu-
blicação do livro Le théâtre moderne et le Brésil, de Fortunat Strowski, e da
Fontes do latim vulgar, comentadas por Serafim Silva Neto, e os Textos Quinhen-
tistas, comentados pelo professor Sousa da Silveira; os trabalhos de antropologia
brasileira, do professor Artur Ramos; os estudos sobre geografia humana e sobre
o problema da alimentação, do professor Josué de Castro; a primeira edição com-
pleta do texto medieval português da Demanda do Santo Graal, publicada e co-
mentada pelo professor padre Magne; o Curso de Economia Política, do profes-
sor Djacir Menezes; as pesquisas históricas que realizou o professor Hélio Viana
sobre a imprensa no Brasil; os trabalhos de campo do professor Hildgard Stern-
berg; as pesquisas originais, na órbita da física, dos professores Costa Ribeiro e
Leite Lopes; as investigações químicas sobre pirólise das gorduras, do professor
Athos da Silveira Ramos. E, ainda que continue incompleta esta longa lista de
produção cultural acrescentem-se as trinta teses dos que disputaram em concurso
a cátedra ou a livre-docéncia, nesta faculdade, e mais se compreenderá a acicate
que ela está sendo na atividade criadora da inteligência brasileira" 76 .
3. Marco de um novo ciclo: a autonomia da universidade
Com o transcurso do ano de 1945, encerra-se o ciclo inicial de consolidação da
universidade. 0 término dessa primeira fase coincide com o fim do Estado Novo.
0 país como um todo iria empreender uma experiência efetivamente nova, for-
malmente livre de qualquer tutela. A universidade foi colocada em pé de igualda-
de para ingressar nesse período, porquanto ganhava carta de maturidade, através
do decreto que lhe concedeu autonomia, da iniciativa do reitor Raul Leitão da
Cunha, feito ministro da Educação no governo organizado para preencher o inter-
regno entre o afastamento de Getúlio Vargas e a posse do novo mandatário a ser
eleito.
0 Decreto-lei n9 8.393, de 17 de dezembro de 1945, assinado por José Linhares
(presidente) e Raul Leitão da Cunha (ministro), estabelecia que a "Universidade
do Brasil, instituição de ensino superior cujos fins estão fixados na Lei n9 452,
de 5 de julho de 1937, passará a ser pessoa jurídica com autonomia administrati-
va, financeira, didática e disciplinar".
Já agora a universidade é integrada por 14 faculdades, preservada a inclusão da
Escola de Minas de Ouro Preto, todas implantadas e em funcionamento: Direito,
Odontologia, Filosofia, Arquitetura, Ciências Económicas, Farmácia, Engenharia,
Belas Artes, Música, Minas e Metalurgia, Química, Educação Física e Desportos e
Enfermagem. São estes os Institutos de Pesquisa de que trata o decreto-lei: Ele-
trotécnica, Psicologia, Psiquiatria e Biofísica. Mais tarde, na oportunidade da
76 "No décimo aniversário de fundaçSo da FNF" in Decenário da Faculdade Nacional de
Filosofia, Rio de Janeiro. Universidade do Brasil, 1951. p. 23.
79
elaboração dos estatutos aprovados pelo Decreto n9 21.321, de 18 de junho de
1946, são acrescidos os Institutos de Puericultura e Nutrição.
Raul Bittencourt assim resume o novo status alcançado pela instituição: "0 rei-
tor e os diretores das faculdades eram de livre nomeação do Poder Executivo; o
Conselho Universitário tinha funções assaz limitadas e o orçamento da universi-
dade era fixado, como para os serviços públicos em geral, pelo Congresso Legis-
lativo. Agora o reitor é escolhido pelo presidente da República de uma lista trí-
plice eleita pelo Conselho Universitário e os diretores designados pelo reitor com
aquiescência do presidente da República, dentre nomes indicados pela congrega-
ção. O orçamento da universidade estabelece apenas a quantia global concedida
à universidade e o Conselho Universitário elabora a discriminação da despesa, de
parceria com um novo órgão: o Conselho de Curadores.
Decide livremente quanto à atividade didática, respeitado o padrão mínimo fixa-
do em lei: condições de ingresso, número de séries de cada curso e ensino das dis-
ciplinas previstas na legislação" 77 .
Para o ano letivo de 1946, a Universidade do Rio de Janeiro registra matrícula da
ordem de oito mil alunos, sessenta por cento dos quais frequentando os cursos
de Medicina (2.359), Direito (1.510) e da Escola Politécnica (899). A Faculdade
de Filosofia registrava a matrícula de 334 alunos, equiparável à do ano de sua
fundação.
BALANÇO E CONCLUSÃO
É sabido que o impulso original que a pesquisa científica veio a alcançar entre
1935 a 1945 leva a uma grande frustração na década de cinquenta. Tornada ins-
trumento de consolidação da universidade, que fora recusada sistematicamente
ao longo de mais de um século, a pesquisa científica não chega contudo a assu-
mir igualmente feição acabada. Multiplicam-se as universidades, mas com o fran-
co predomínio da formação profissional. Somente nos anos recentes retoma-se
aquela linha de atividade.
Assim, o movimento que empolgou toda uma geração, ao longo de mais de dois
decénios, se conseguiu institucionalizar a universidade, o que não logrará alcan-
çar as sucessivas gerações que antecederam, não teve força suficiente para dar à
universidade a feição que lhe atribuía. Essa circunstância não deve levar-nos, con-
tudo, a obscurecer sua enorme significação. 0 surpreendente é que haja conduzi-
do tão longe essa bandeira.
Deste modo, os resultados alcançados, embora a posteridade haja indicado que
não eram definitivos mas efémeros, devem ser consignados, como ponto de par-
tida para um balanço mais amplo e geral.
Cabe portanto ter presente que a criação da Faculdade de Filosofia da USP e da
Escola de Ciências da UDF, posteriormente transformada em Faculdade Nacio-
nal de Filosofia, teve desde logo o mérito de aglutinar os estudiosos da história
natural taxionômica, das geociénciasde tipo exploratório, da química tradicional.
77 Digesto da Faculdade Nacional de Filosofia, p. 19.
BO
da fisiologia, da medicina bacteriana e da matemática. Os cultores dessa ciência,
que configuravam verdadeiras vocações isoladas, formadas à mercê do autodida-
tismo ou pela ação das poucas figuras marcantes que haviam aparecido no pano-
rama cientifico brasileiro, tinham agora a possibilidade de transmitir uma expe-
riência sistematizada, para turmas sucessivas de jovens. Esses estudiosos tiveram
logo a satisfação de encontrar uma primeira geração extremamente receptiva, em
muitos casos já tendo frequentado ou concluído cursos profissionais, que deu ba-
se à estruturação, no processo ora estudado, do núcleo constitutivo do corpo do-
cente da Faculdade Nacional de Filosofia, supondo-se que outra não tenha sido a
circunstância verificada na Faculdade de Filosofia da USP.
No início do pós-guerra, a Faculdade Nacional de Filosofia conta em seu corpo
docente com cerca de trinta professores de matemática, física, química, geologia,
mineralogia, biologia, botânica e zoologia, que se formaram ou conciuíram a sua
formação na Escola de Ciências da UDF ou na própria faculdade. Para aferir a
magnitude desse contingente basta ter presente que a Academia Brasileira de
Ciências, tão logo assumiu estrutura definitiva nos anos vinte, tinha cerca de se-
tenta membros e esse número permaneceu constante aproximadamente até 1945,
não apenas pelos critérios de admissão mas sobretudo em face da ausência, no
país, de mecanismos institucionalizados para o preparo de novos cientistas e
pesquisadores.
No período que vai de 1935 a 1945, a Escola de Ciências da UDF e a Faculdade
Nacional de Filosofia não apenas formaram os docentes de ciências exatas que
iriam tomar em suas mãos o ensino dessas disciplinas como igualmente prepara-
ram diversos pesquisadores que passaram a integrar os quadros do Instituto Os-
waldo Cruz, do Museu Nacional, do Departamento Nacional da Produção Mine-
ral e do Instituto Nacional de Tecnologia. Nesse mesmo ciclo iniciaria o progra-
ma de formação de professores de ciências para o ensino secundário, que iria re-
gistrar notáveis sucessos. E embora voltado sobretudo para essas ciências exatas,
o movimento que ensejou o surgimento daquelas escolas trouxe igualmente sig-
nificativo progresso às ciências humanas e à filosofia. Esta, que até então era en-
sinada de forma restritiva nas escolas profissionais, como filosofia do direito, da
matemática, etc, passa a contar com instituto que lhe é especialmente dedicado.
A história, a sociologia, a economia, a etnologia e a antropologia também adqui-
rem a possibilidade de institucionalizar seu ensino de modo autónomo.
De sorte que a Faculdade Nacional de Filosofia deu forma nova a uma tradição
existente, escoimando-a dos defeitos denunciados por sucessivas gerações, em es-
pecial o autodidatismo e a improvisação. No caso específico das ciências exatas,
os novos docentes que se haviam formado, frequentando laboratórios espalhados
pela cidade, pertencentes a diversos órgãos, contavam com essas instalações im-
plantadas na própria faculdade. A pesquisa que era igualmente privilégio de umas
poucas instituições passa a integrar a formação curricular. 0 intercâmbio com
instituições estrangeiras, a coleta sistemática de bibliografia e a realização de sim-
pósios e seminários se incorporam ao estilo de trabalho dos cientistas e pesquisa-
dores, já agora de forma institucional. O contato frequente com professores es-
trangeiros é outra novidade que se introduz no ensino superior.
Contudo, em que pese a significação dos resultados apontados, não reside em tais
aspectos o principal mérito da nova experiência.
81
Quando a Academia Brasileira de Ciências lançou a idéia da criação das Faculda-
des Superiores de Ciência, no inicio da década de vinte, a iniciativa se entendia
como passo necessário á manutenção de nossos vínculos com a evolução do pen-
samento científico mundial, que os positivistas pretenderam obstar em nome de
uma disciplina batizada de sociologia e que, na verdade, nada tinha de científica,
como Amoroso Costa teria oportunidade de indicar. Naquele decénio, acompa-
nhar o curso da ciência significava acompanhar o tipo de investigação simboliza-
da pela teoria da relatividade. E ainda que Licínio Cardoso a chamasse de imagi-
nária, a Academia Brasileira de Ciências logrou superar a interdição positivista,
promovendo a vinda de Einstein ao Brasil e mantendo acesa a discussão em torno
do tema. Deste modo, o propósito do movimento não consistia apenas em dar
nova dimensão aos setores clássicos da ciência, mas simultaneamente de incorpo-
rar os novos segmentos. Na época da segunda guerra mundial, semelhante plata-
forma revestia-se de conteúdo bastante diverso daquele assumido na década de
vinte. Posição de primeiro plano iria alcançar a física nuclear.
No Brasil, o elemento de transição para a física nuclear correspondeu aos estudos
da radiação cósmica, que era o campo de preferência do pequeno núcleo de físi-
cos então formados no Rio de Janeiro e em São Paulo, do mesmo modo que de
seus mestres estrangeiros, em especial GlebWataghin e Bernhard Gross. A circuns-
tância criou desde logo a possibilidade de estabelecer contato com um dos nú-
cleos mais avançados da física mundial, o do professor Arthur Compton, da Uni-
versidade de Chicago, que se tornaria, logo a seguir, uma das figuras centrais da
física nuclear norte-americana.
O evento que marca o cumprimento do programa estabelecido, isto é, o de acom-
panhar a evolução da ciência ao invés de voltar-lhe as costas, é o Simpósio de Ra-
diação Cósmica realizado no Rio de Janeiro, sob o patrocínio da Academia Brasi-
leira de Ciências, de 4 a 8 de agosto de 1941 , por ocasião da visita da missão cien-
tífica norte-americana, chefiada por Arthur Compton e integrada por quatro ou-
tros professores.
A reunião é acompanhada pela velha geração de professores que soube manter-se
fiel ao ideário da Academia Brasileira de Ciências, como Álvaro Alberto, Inácio
Azevedo Amaral, Francisco Magalhães Gomes, Luiz Freire, Adalberto Menezes
de Oliveira, entre outros, e conta com dois outros tipos de participantes que a
singularizam em relação a outros momentos da história da ciência do Brasil. Os
primeiros são os professores estrangeiros contratados pelas novas escolas criadas
no país e que, naquele ano, voltados para essa disciplina, eram em número de oi-
to, tendo à frente Gleb Wataghin, Bernhard Gross e Luigi Sobrero. Os últimos
eram os pioneiros dentre os jovens físicos que, no ciclo subsequente, iriam inte-
grar o núcleo que assumiria os destinos dessa ciência em nossa terra: Joaquim
Costa Ribeiro, Marcelo Damy e Paulus Pompéia.
O simpósio teria o mérito de estimular a pesquisa física e despertar novas voca-
ções que iriam completar a formação no exterior, já agora diretamente voltada
para a física nuclear, como seria o caso de Mário Schemberg, Leite Lopes e Cesar
Lattes, além de Marcelo Damy e Paulus Pompéia, antes mencionados. Parte igual-
mente destacada dessa nova etapa seriam as pesquisas de Joaquim Costa Ribeiro,
que o levariam à descoberta do fenómeno termodielétrico, e os estudos sobre
produção de eletricidade pelos seres vivos, de Carlos Chagas Filho, que daria lu-
82
gar, mais tarde, à criação, na universidade, do Instituto de Biofi'sica.
Vé-se, pois, que a velha geração soube encontrar as pessoas capazes de servir de
elo entre a ciência de seu tempo e aquela a que deveria dedicar-se à nova geração.
Tal é a circunstância vigente no período que se seguiu imediatamente ao término
do conflito.
A experiência ulterior iria indicar que a simples disponibilidade de pesquisadores
e cientistas, a par da institucionalização do ensino de ciência, desvinculado da
formação profissional, não seriam suficientes para assegurar o desenvolvimento
cientifico do pais, escapando aos objetivos da presente análise o estudo das de-
terminantes do desfecho subsequente.
Nosso propósito limitava-se a investigação dos destinos do ideal de universidade,
acalentado na década de vinte, o que nos permitiu verificar que veio a encontrar
o seu momento de plena realização, no caso do Rio de Janeiro, por volta de 1945.
APÊNDICE
Apresentação
Em vista de que as referências bibliográficas do assunto aqui estudado são escas-
sas e de diffcil acesso, pareceu imprescindível organizara informação disponível
sobre professores e pesquisadores citados no texto, o que se efetiva neste apêndi-
ce. Tais informações são apresentadas em ordem alfabética.
Afonso Pena Júnior (1879/1968)
Político e jurista de grande evidência, desempenhou papel singular no movimen-
to em prol da institucionalização do ensino da ciência. Tendo assumido a reitoria
da UDF num momento de crise, deu-lhe continuidade e impediu que a experiên-
cia se frustrasse em seguida ao afastamento de Anísio Teixeira. Os êxitos da Es-
cola de Ciências da UDF representavam os primeiros resultados práticos de uma
hipótese cuja efetividade até então não tivera oportunidade de ser verificada. De-
vem, em parte, ser imputados a Afonso Pena Júnior, que colocou seu prestígio
político a serviço daquela idéia.
Exerceu o magistério na Faculdade de Direito de Belo Horizonte e foi sucessiva-
mente secretário do Interior do Estado de Minas Gerais, deputado federal, mem-
bro do Superior Tribunal da Justiça Eleitoral e ministro da Justiça. Foi membro
da Academia Brasileira de Letras.
Alfred Schaeffer (1879/1957)
Natural da Alemanha, formon-se em farmácia em 1902, passando em seguida a
estudar química na Universidade de Munich, onde doutorou-se em 1906. Foi as-
sistente do Instituto de Química Aplicada da mesma universidade. Convidado pe-
lo governo de Minas Gerais, veio instalar o Laboratório de Análises do Estado,
em 1 91 1 , radicando-se no Brasil.
Foi professor da Faculdade de Medicina e Farmácia de Belo Horizonte, desde sua
83
fundação, em 1912, passando em 1919 para a Escola de Engenharia, onde im-
plantou e dirigiu o Instituto de Química. A partir de 1935 transfere-se para o
Rio de Janeiro, a fim de reger as cadeiras de química inorgânica e analítica da Es-
cola Técnica do Exército, fundada naquele ano. No biénio 1935-1937 regeu a
cadeira de química da Escola de Ciências da UDF. Abandonou essas funções e
não chegou a se transferir para a Faculdade Nacional de Filosofia, em virtude da
chamada lei da desacumulação, que proibia o exercício de mais de uma função
pública. Aposentou-se das atividades docentes em 1949. Continuou, entretanto,
realizando trabalhos de pesquisa no laboratório da Escola Técnica do Exército.
Era membro da Academia Brasileira de Ciências.
Alvaro Osório de Almeida (1882/1952)
Foi um dos dirigentes do movimento em prol da reforma do ensino superior para
dar lugar à universidade na segunda metade dos anos vinte, tendo presidido a se-
ção correspondente da Associação Brasileira de Educação e se ocupava de abor-
dar o tema considerando os seus diversos aspectos. Era um dos maiores entusias-
tas dos cursos de extensão da ABE, por considerá-los uma demonstração cabal da
existência de condições favoráveis à organização da universidade, para dar lugar à
formação de cientistas e pesquisadores.
Diplomou-se em medicina em 1906, seguindo para Paris onde trabalhou no Insti-
tuto Pasteur. De volta ao Brasil, instalou modesto laboratório de fisiologia no po-
rão da residência de seus pais, na rua Almirante Tamandaré. Com a mudança da
família para a rua Machado de Assis, o laboratório expandiu-se de modo signifi-
cativo, tornando-se um centro de consultas, reuniões, preparo de teses, enfim,
um dos pontos isolados em que se praticava a atividade científica do país no pe-
ríodo considerado.
Ingressou no magistério em 1911, como professor extraordinário de fisiologia da
Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, tendo ascendido à cátedra em 1927.
É considerado precursor da luta contra as endemias rurais, sendo autor de inúme-
ros trabalhos originais. A partir de 1933, dedicou-se exclusivamente ao estudo e
a pesquisa do câncer.
Anísio Teixeira (1900/1971)
É considerado como a figura mais proeminente da Escola Nova ou pelo menos
daquela vertente desse movimento que se manteve fiel à inspiração de John De-
wey, de quem foi discípulo na Universidade de Columbia em 1929, e que consis-
tia em vincular o processo educacional à formação democrática dos cidadãos.
Teve oportunidade de ocupar vários cargos na administração escolar, vinculando-
se a diversas iniciativas pioneiras, como é o caso da reforma do ensino no Distrito
Federal (1934/1935), da criação da Universidade do Distrito Federal (1935) e da
concepção e implantação da Universidade de Brasília, na década de sessenta. Foi
conselheiro da Unesco para ensino superior, secretário da Capes, diretor do Inep
e do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais e membro do Conselho Federal
de Educação. Dedicou-se igualmente ao magistério, em especial na Faculdade Na-
cional de Filosofia.
84
Autor de extensa bibliografia, tendo alguns de seus livros merecido sucessivas re-
edições, destacando-se Vida e educação — introdução à pedagogia pragmática de
Dewey (1930); Educação progressiva (1932); Em marcha para a democracia
( 1 934) ; Universidade e liberdade humana ( 1 954) ; A educação e a crise brasileira
(1956) e Educação não é privilégio (1957).
Antônio Augusto de Azevedo Sodré (1864/1929)
Autor de projeto de reforma do ensino superior amplamente debatido nos come-
ços da República e participante ativo do movimento em prol da universidade,
nos anos vinte. Formou-se em medicina em 1885. Na faculdade, foi professor de
patologia clínica e de clínica médica, e também diretor. Fundou a publicação
Brasil médico, que lhe sobreviveu. Pertenceu à Academia Nacional de Medicina
e exerceu a Díretoria Geral de Saúde. Dedicou-se igualmente à política, tendo si-
do deputado federal e prefeito do Distrito Federal, quando se ocupou, em espe-
cial, da instrução pública.
Athos da Silveira Ramos (nascido em 1906)
Formado em química industrial pela Escola Superior de Agricultura, foi o primei-
ro catedrático de química orgânica e biológica da Faculdade Nacional de Filoso-
fia. Mais tarde, passou a integrar o corpo docente da Escola Nacional de Quími-
ca. Ainda na Universidade do Rio de Janeiro, dirigiu o Instituto de Química, en-
tidade voltada para a pesquisa.
Foi sucessivamente vice-presidente e presidente do Conselho Nacional de Pesquisas.
Bernhard Gross (nascido em 1905)
Natural de Stuttgart, Alemanha, concluiu a Escola Técnica Superior de Stuttgart
e a Universidade de Berlim, doutorando-se em física em 1932. Foi professor do
Instituto de Física de Stuttgart, tendo-se transferido para o Brasil em fins de
1933, passando a integrar os quadros do Instituto Nacional de Tecnologia a par-
tir de 1934.
Incumbiu-se da organização do Curso de Física da Escola de Ciências da Univer-
sidade do Distrito Federal, deixando de transferir-se para a Faculdade Nacional
de Filosofia, que o absorveu e substituiu, em 1939, em vista da legislação então
introduzida, que proibia acumulações no serviço público. Devendo optar por um
único estabelecimento, preferiu o INT. Ali dedicou-se à pesquisa científica du-
rante largos anos.
Foi diretor da Divisão de Física do Conselho Nacional de Pesquisa Cientificada
Comissão de Energia Nuclear (1967/1969). Aposentando-se, aceita as funções de
professor visitante do Instituto de Física e Química de São Carlos.
Membro da Academia Brasileira de Ciências, desde 1935, da American Physical
Society e de diversas outras organizações científicas internacionais, no transcur-
so do seu 70P aniversário, em 1975, promoveu-se em sua homenagem o Simpó-
sio Internacional sobre Eletretos e Dielétricos, e a Universidade de São Paulo
concedeu-lhe o título de doutor Honoris Causa.
Na apresentação dos Anais do simpósio, editados pela Academia Brasileira de
Ciências, Sergio Mascarenhas, do Instituto de Física e Química de São Carlos,
considera-o fundador da física experimental de padrão internacional no Brasil.
Domingos Artur Machado Filho
Diplomou-se em veterinária pela Escola Nacional de Veterinária (1937) e em his-
tória natural pela Escola de Ciências da UDF (1938). Concluiu igualmente o Cur-
so de Medicina na Escola de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro (1948), pas-
sando a integrar o corpo docente dessa escola, na cadeira de parasitologia.
Dedicou-se à pesquisa biológica no Instituto Oswaldo Cruz, especializando-se em
helmintologia e bioecologia dos parasitos.
Emanoel de Azevedo Martins (nascido em 1907)
Diplomado pela Faculdade de Medicina (1934) e pela Escola de Ciências da UDF
(1937). Foi professor assistente de geologia e paleontologia da Faculdade Nacio-
nal de Filosofia (1938/1940) e catedrático a partir de 1951 . Integrou a equipe de
pesquisadores do Museu Nacional de 1940 a 1961. Autor de diversos trabalhos
de sua especialidade, divulgados em revistas técnicas.
Fernando de Azevedo (1894/1974)
Educador de grande renome, tendo sido um dos principais animadores do movi-
mento denominado Escola Nova, teve participação das mais destacadas em todo
o processo de criação da universidade brasileira,
Recém-formado, na década de vinte, dedicou-se inicialmente ao magistério e
mais tarde (1926/1930) à direção da Instrução Pública no Distrito Federal. Foi, al-
guns anos mais tarde, diretor da Instrução Pública no Estado de São Paulo (1933).
Ao longo da década de trinta está presente a toda a polémica educacional, tendo
exercido a presidência da ABE. Elaborou, para figurar como volume introdutó-
rio do recenseamento de 1940, o livro A cultura brasileira, que constitui marco
significativo na história do pensamento nacional.
Dirigiu, nos anos de 1941 e 1942, a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da
Universidade de São Paulo. Na USP, foi ainda, durante largo período, membro
do Conselho Universitário. Exerceu o cargo de secretário de Educação do Estado
e da Prefeitura de São Paulo, e de diretor do Centro Regional de Pesquisas Edu-
cacionais, com sede naquele Estado.
Fundou, na Companhia Editora Nacional, a Biblioteca Pedagógica Brasileira e
pertenceu a diversas associações internacionais. Foi membro da Academia Brasi-
leira de Letras.
Autor de extensa bibliografia, destacando-se, entre os seus livros mais conhecidos,
além de A cultura brasileira, já mencionado, A educação e seus problemas, Edu-
cação entre dois mundos, Sociologia educacional e As ciências no Brasil.
Gustavo Mendes de Oliveira Castro (1904/1978)
86
Biologista, diplomado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, em 1945,
integrou o corpo docente da Escola de Ciências da UDF. Pesquisador em biolo-
gia do Instituto Oswaldo Cruz, publicou grande número de trabalhos sobre pro-
tozoários, insetos dípteros e ecologia vegetal. Membro da Academia Brasileira
de Ciências.
Heitor Lira da Silva (1879/1926)
Criador da Associação Brasileira de Educação, diplomou-se pela Escola Politéc-
nica do Rio de Janeiro e trabalhou, em seguida, nas oficinas de Jundiaí, da Com-
panhia Paulista de Vias Férreas. Foi, mais tarde, diretor dos serviços elétricos de
Barra do Pirai. Tendo ascendido à direção da Estrada de Ferro da Central do Bra-
sil, Aarão Reis convidou-o e a outros engenheiros para projetar a eletrificação da-
quela estrada. A serviço desse projeto, viajou à Europa.
Regeu por mais de dez anos a cadeira de resistência de materiais e estabilidade
das construções do Curso de Arquitetura. Falando do programa da ABE no pri-
meiro aniversário de sua constituição teria oportunidade de dizer: "Nós espera-
mos vir a formar um núcleo poderoso no seio da sociedade brasileira", vaticínio
que se confirmou plenamente. Publicou estas obras didáticas: Problemas práticos
de física elementar; e Geometria (Biblioteca de Educação Geral, 1923).
A ABE editou, em 1972, volume de 238 páginas, In Memoriam de Heitor Lira da
Silva. Apresenta-o Carlos Américo Barbosa de Oliveira, seguindo-se estes textos:
discursos pronunciados na sessão comemorativa de 18 de dezembro de 1926,
pronunciados por Tobias Moscoso, em nome de seus colegas; Graça Couto, em
nome da Congregação da Escola Nacional de Belas Artes; A. Carneiro Leão, em
nome dos educadores brasileiros; Maria Luiza de Almeida Cunha, em nome do
Curso Jacobina; Fernando Magalhães, em nome da Associação Brasileira de Educa-
ção. Além destes, o discurso de Vicente Licínio Cardoso na ocasião do seu enterro;
o artigo de Afonso d'E. Taunay publicado no Correio Paulistano (21/11/1926);
os artigos de Alvares Rodrigues, Euclydes Mendes Viana e Eduardo Agostini, apa-
recidos no Jornal do Brasil (8/1 2/1 926) .
O volume em apreço contém ainda trabalhos de Heitor Lira: conferência sobre
a oportunidade da introdução de manual traming no ensino secundário do Brasil
(Liga Pedagógica, 1922, p. 105-148); tese apresentada ao Congresso de Ensino
Centenário da Independência, sobre problemas do ensino (p. 149-172); texto so-
bre método de ensino e norma de exame de matemática, subsídio à Reforma do
Ensino (1923, p. 173-180), programa da Biblioteca de Educação Ativa (p. 181 -
185); discurso de inauguração (p. 187-208) e de encerramento (p. 209-218) de
série de conferências no Curso Jacobina (1817); discurso na inauguração da Es-
cola Regional de Mereti (p. 219-226) e Programa de ABE (p. 227-233).
Hermann Lent (nascido em 1911)
Pesquisador do Laboratório de Helmintologia do Instituto Oswaldo Cruz e diplo-
mado em medicina pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, foi professor-
assistente da cadeira de zoologia da Escola de Ciências da UDF e, posteriormen-
te, professor catedrático de parasitologia da Escola de Medicina e Cirurgia e da
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Faculdade Nacional de Farmácia.
Membro da Academia Brasileira de Ciências, e há vár.os anos, editor de seus Anais.
Hugo de Souza Lopes (nascido em 1909)
Médico veterinário pela Escola Nacional de Veterinária (1933) cursou história na-
tural na Escola de Ciências da UDF. Diplomando-se em 1938, passou a integrar a
equipe do Instituto Oswaldo Cruz, tendo se tomado especialista de renome em
entomologia e malacologia. No magistério, foi professor catedrático da Universi-
dade Rural. É membro da Academia Brasileira de Ciências.
Inácio Manoel Azevedo do Amaral (1883/1950)
Teve atuação destacada em todo o movimento científico brasileiro deste século,
notadamente a partir da criação da Academia Brasileira de Ciências, de que foi
membro ativo e cuja presidência exerceu no biénio 1939/1941.
Concluiu a Escola Naval na turma de guardas -marinhas de 1900, ingressando des-
de logo no magistério militar, como professor da Escola Naval. Mais tarde, em
1912, fez concurso para a Escola Politécnica. Foi ainda professor da Escola Nor-
Em sua carreira na Escola Naval, chegou a catedrático de termodinâmica, caldei-
ras e combustíveis, em 1922, posteriormente transferido para a cadeira de balís-
tica. Em 1924, foi nomeado chefe do Departamento de Artilharia e, em 1931,
chefe do Departamento de Ensino de Armamento. Na Politécnica foi livre do-
cente de geometria analítica e cálculo infinitesimal e, em 1927, professor cate-
drático por concurso.
Pertenceu ao Conselho Universitário e ao Conselho Nacional de Educação, tendo
sido diretor da Escola de Engenharia (1942) e reitor da Universidade do Rio de
Janeiro, então denominada do Brasil (1945/1948).
Pertenceu a outras instituições científicas do país, além da Academia Brasileira
de Ciências, e do estrangeiro. Publicou diversos trabalhos científicos, quase todos
de matemática.
João Moojen de Oliveira (nascido em 1904)
Assumiu a cadeira de biologia, na Escola de Ciências da Universidade do Distrito
Federal, em 1938. Anteriormente, exercera as funções de professor de genética na
Escola Superior de Agricultura e Veterinária de Viçosa. Entre 1942 e 1945, fez
doutoramento em vertebrados, biologia e paleontologia nas Universidades de Ber-
keley e Kansas, nos Estados Unidos. Nos dois decénios subsequentes ocupou-se
de complementar a coleçãode mamíferos brasileiros do Museu Nacional, colocan-
do-a entre as maiores do mundo. Descreveu dois géneros e quinze espécies novas
de mamíferos. Desenvolveu um novo método de extermínio de murídeos (ratos).
Joaquim Costa Ribeiro (1906/1960)
Diplomou-se pela Escola Politécnica do Rio de Janeiro, em 1928, passando desde
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logo a integrar o corpo docente, como assistente da cadeira de física. Em 1933
foi aprovado em concurso para livre -docente.
Foi catedrático de física experimental da Escola de Ciências da UDF e, nessa con-
dição, transferiu-se para a então criada Faculdade Nacional de Filosofia. Efetivou-
se na cadeira, mediante concurso, em 1946. Posteriormente foi chefe do Depar-
tamento de Física e sócio fundador do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas.
Inicou sua atividade científica em 1940, com trabalhos originais sobre um novo
método para a realização de medidas de radioatividade e aplicação desse método
ao estudo de minerais radioativos brasileiros. Em 1942, em colaboração com o
professor italiano Luigi Sobrero, da Universidade de Roma e que lecionou na Fa-
culdade de Filosofia do Rio de Janeiro, desenvolveu a construção de um novo ti-
po de aparelho de polarização autocolimador, especialmente indicado para estu-
dos de fotoelasticidade. Em 1943 iniciou, em colaboração com o professor Ber-
nhard Gross, estudos experimentais sobre propriedades dielétricas da cera de car-
naúba. Em prosseguimento a esses trabalhos descobriu, em 1944, um novo fenó-
meno físico, de caráter muito geral, consistindo na produção de cargas elétricas
associadas a mudanças de estado físico de dielétricos, em que uma das fases é só-
lida, fenómeno que denominou "efeito termo dielétrico" e que foi incorporado à
física com o nome de efeito Costa Ribeiro. Essa descoberta despertou grande in-
teresse nos círculos científicos internacionais. A propósito do tema, ministrou
cursos na Sorbonne e no Instituto de Física de Strasbourg (1945), no Massachus-
sets Institute of Technology e na Universidade de Yale (1945).
Incumbido de saudá-lo na oportunidade da entrega do prémio Albert Einstein,
da Academia Brasileira de Ciências, Bernhard Gross tivera oportunidade de afir-
mar: "Uma descoberta feita é, de certo modo, algo impessoal. Toma vida própria
independente. Mas o caminho que levou a ela revela uma atitude fundamental: os
traços característicos do descobridor. . . O efeito termodielétrico não foi desco-
berto num laboratório estrangeiro de tradição antiga, a pesquisa não foi orienta-
da por nenhum mestre experimentado - tudo foi feito por um único homem iso-
lado num laboratório brasileiro. . . Tanto mais admirável é a descoberta quando
se julga o fato não apenas pelo mérito intrínseco que possui, mas pelas condições
em que foi realizada".
Costa Ribeiro era membro da Academia Brasileira de Ciências, da Societé Philo-
matique de Paris, da Associación Física Argentina, da American Physical Society
e da congénere alemã. Exerceu diversas funções públicas, entre outras a de dire-
tor-geral da Divisão Técnico-Científica do Conselho Nacional de Pesquisas. Foi
membro do Conselho Consultivo e da Secretaria Executiva do Comité das Na-
ções Unidas para aplicações pacíficas da energia nuclear, com sede em Viena.
José Lacerda de Araújo Feio (1912/1973)
Tendo concluído a Faculdade de Medicina, em 1936, matriculou-se no curso de
história natural da Escola de Ciências da UDF, formando-se quando esta já havia
sido incorporada à Faculdade Nacional de Filosofia, em 1940. Ingressou no Mu-
seu Nacional como pesquisador em zoologia. Foi diretor dessa instituição de
1967 a 1970. Entre outros trabalhos publicou os seguintes livros: Sinopse de siste-
mática zoológica e Apreciação litográfica sobre sinopse de sistemática zoológica.
José Leite Lopes (nascido em 1918)
Diplomou-se em química industrial pela Escola de Engenharia de Pernambuco
(1939) e foi da primeira turma de formandos do Curso de Física da então criada
Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil (1942). Fez o douto-
rado em física na Universidade de Princenton e, de volta ao Brasil, tornou-se ca-
tedrático de física teórica da Faculdade Nacional de Filosofia. Na faculdade foi
ainda chefe do Departamento de Física.
Sócio fundador do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, ocupou nessa entidade
os cargos de chefe do Departamento de Física Teórica e diretor científico.
Membro da Academia Brasileira de Ciências e da American Physical Society.
Lauro Travassos (1890/1970)
Integrou o grupo de professores responsáveis pela implantação da Escola de Ciên-
cias da UDF. Diplomou-se pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, em
191 1, passando a integrar os quadros do Instituto Oswaldo Cruz, como pesquisa-
dor e especialista em helmintologia e entomologia. Foi professor da Escola Nacio-
nal de Veterinária e da Escola de Medicina da USP. Autor do livro Introdução ao
estudo da helmintologia (1950). Grande colecionador e viajante, excursionou pe-
la maior parte do território nacional. Publicou numerosas memórias e comunica-
ções científicas. Pertenceu à Academia Brasileira de Ciências.
Lélio Gama (1892/1981)
Discípulo de Amoroso Costa, na Escola Politécnica, participou ativamente de to-
do o movimento que se seguiu à criação da Academia Brasileira de Ciências. Des-
de jovem seu interesse principal voltou-se para a matemática e a astronomia, in-
gressando nos quadros do Observatório Nacional. Foi diretor dessa instituição, a
partir de 1952. Apoiou com entusiasmo a criação da Universidade do Distrito
Federal, tendo pronunciado a aula inaugural de seus cursos, em 1935. Dirigiu a
seção de matemática da Escola de Ciências.
No observatório, dedicou-se em especial às seguintes pesquisas: latitudes e sua va-
riação, magnetismo terrestre e flutuações anuais do eixo da terra. É autor de inú-
meros trabalhos de matemática.
Levi Carneiro (1882/1971)
Foi o primeiro presidente da Associação Brasileira de Educação, à qual prestou
grande colaboração no ciclo inicial de sua formação, embora se dedicasse sobre-
tudo ao direito. Alcançou grande notoriedade nos meios jurídicos, onde foi presi-
dente da Ordem dos Advogados do Brasil, consultor jurídico do Ministério das
Relações Exteriores, consultor geral da República e juiz da Corte Internacional
de Justiça, sediada em Haia. Foi membro da Academia Brasileira de Letras.
Licínio Cardoso (1852/1926)
Foi um dos últimos positivistas da Escola Politécnica, tendo se negado perempto
90
riamente a reconhecer a validade da ciência que se estabeleceu a partir dos come-
ços do século.
Nasceu em Lavras no Rio Grande do Sul e ingressou no serviço militar, no Rio de
Janeiro, em 1873, aos 21 anos de idade, sendo admitido como aluno da Escola
Militar em começos de 1877, concluindo o curso de engenharia militar em 1879.
Em 1880 passava a fazer parte do corpo docente do Curso Preparatório. Depois
da República, transferiu-se para a cadeira de sociologia e moral da Escola Militar.
Em 1887 foi nomeado lente de mecânica racional da Escola Politécnica, depois
de haver se classificado em primeiro lugar no concurso então realizado, abando-
nando a carreira militar. Manteve, entretanto, a condição de professor da Acade-
mia. Integrou a comissão de professores enviada por Benjamin Constant à Fran-
ça, onde permaneceu ao longo do ano de 1892.
Na Academia Militar, Licínio Cardoso foi conquistado para o positivismo de Au-
gusto Comte por Benjamin Constant, que fora seu professor. À difusão do com-
tismo dedicaria seu magistério, tanto na Academia Militar como na Escola Poli-
técnica.
Em 1895, aos 43 anos de idade, matriculou-se na Faculdade de Medicina do Rio
de Janeiro. Desejava o diploma de médico para dedicar-se à homeopatia. For-
mando-se em 1900, inicia a carreira de médico homeopata. Tornou-se presidente
do Instituto Hahnemaniano em 191 2, e é o artífice da criação da Faculdade Hah-
nemaniana, no ano seguinte. Seu falecimento ocorreu em Lisboa, em 1926, em
vista da circunstância de ter seguido para a Europa, a fim de assistir o conclave
internacional de homeopatia.
O Instituto Hahnemaniano publicou, ainda em 1926, um livro dedicado à me-
mória de Licínio Cardoso, do qual consta alguns dos artigos de sua autoria, in-
clusive o de combate à física de Einstein, denominado "Relatividade imaginá-
ria". Além desses ensaios, escreveria o livro intitulado O ensino que nos convém
(Anuário do Brasil, Rio de Janeiro, 1922) de combate à reforma de 1925. Sua
filha Leontina Licínio Cardoso escreveria a sua biografia (Licínio Cardoso, seu
pensamento, sua obra, sua vida. Rio de Janeiro, Valverde, 1944).
Luiz Freire (1896/1963)
Professor da Escola de Engenharia de Pernambuco, participou ativamente de to-
do o movimento em prol do acompanhamento dos novos caminhos encetados
pela matemática e pela física e em favor da criação de escolas aptas a formar pes-
quisadores e cientistas. A par disto, contribuiu diretamente para a formação cien-
tífica de diversos jovens, entre outros Mário Schemberg e Leite Lopes, que iriam
tomar a seu cargo a realização do projeto das gerações anteriores no que respeita
à implantação da pesquisa dedicada à física nuclear.
Tendo se dedicado ao magistério secundário, na década de vinte, foi mais tarde
diretor da Educação Normal de Pernambuco. Tornou-se professor catedrático de
física da Escola de Engenharia em 1934. Em 1938, por alguns meses, dirigiu os
cursos de Matemática da Escola de Ciências da Universidade do Distrito Federal.
Em Pernambuco, foi presidente do Conselho Deliberativo do Instituto Tecnoló-
gico e, a partir de 1950, passou a integrar o corpo docente da Escola de Quími-
ca. Tendo permanecido na Escola de Engenharia, ali organizou, em 1954, o Institu-
91
to de Física e Matemática, que contou com a colaboração de diversos matemáti-
cos e físicos portugueses, entre outros Alfredo Gomes Pereira e Manoel Zaluar.
Luiz Freire foi membro do Conselho Nacional de Pesquisas, desde sua fundação
em 1951, até o falecimento. Era membro da Academia Brasileira de Ciências, on-
de teve atuação destacada. Participou do Segundo Colóquio Internacional de Ló-
gica Matemática, realizado em Paris, em agosto de 1952.
Publicou diversos ensaios e memórias, além destas teses: Da ciência Matemática,
sua Metodologia, e Bases para uma Axiomática da Termodinâmica. Estudou o
pensamento matemático de Gomes Teixeira e Teodoro Ramos e, na sessão con-
junta da Academia Brasileira de Ciências edo CNPq, estudou a obra de Roberto
Trompowski, por ocasião da comemoração do centenário de seu nascimento, em
1953. Colaborou nos Anais da Academia de Ciências ena Gazeta Matemática de
Lisboa.
Na sessão da academia dedicada à sua memória, coube ao antigo discípulo, Leite
Lopes, traçar-lhe o perfil. Nesse discurso teria oportunidade de assinalar: "A ciên-
cia brasileira deve hoje muito dos seus melhores valores à ação catalizadora de
Luiz Freire no Recife - Mário Schemberg, Leopoldo Nachbin, Hervásio de Car-
valho, Maria Laura Moutinho, Leite Lopes, Samuel MacDowell, Ricardo Palmei-
ra, Fernando de Souza Barros, Manfredo Perdigão. Sônia Santos, Rómulo Maciel,
Francisco Brandão, entre outros".
Luiz Emídio de Melo Filho (nascido em 1913)
Cursou a Faculdade de Medicina da Universidade do Brasil, diplomando-se em
1939, e, simultaneamente, a Escola de Ciências da UDF. Ingressou no Museu Na-
cional em 1944, especializando-se em pesquisa botânica.
Diretor do Museu Nacional a partir de 1976.
Manoel Amoroso Costa (1885/1928)
Considerado como um dos maiores matemáticos do país, tendo alcançado reco-
nhecimento internacional, embora falecido prematuramente, aos 43 anos de ida-
de, é sem dúvida, o autor da hipótese de que a universidade brasileira deveria es-
truturar-se para permitir o desenvolvimento da pesquisa científica, tendo como
núcleo principal a Faculdade Superior de Ciências. No movimento desencadeado
na segunda metade dos anos vinte essa ideia grangeou inúmeros adeptos e assu-
miu as dimensões que foram caracterizadas. A incumbência de levar à prática se-
melhante projeto acabaria assumida por dois de seus discípulos: Teodoro Ramos
e Roberto Marinho de Azevedo, o primeiro em São Paulo, e o segundo no Rio de
Janeiro.
Amoroso Costa diplomou-se pela Escola Politécnica com apenas 21 anos de ida-
de, em 1906. Em 1912 seria admitido como membro de seu corpo docente. Seu
magistério dedicou-o à eliminação da influência de Augusto Comte nos meios
científicos brasileiros, tarefa iniciada na Politécnica por Otto de Alencar (1874/
1912). Seria em parte bem sucedido, No que respeita à possibilidade da intelec-
tualidade brasileira ter acesso à nova física combatida pelos positivistas, foi no-
92
tável a contribuição de Amoroso Costa. Desejava, entretanto, manter o interesse
pela filosofia da ciência, no que, entretanto, não logrou formar discípulos.
Estudou durante mais de três anos na França, nos começos da década de vinte,
tendo frequentado o curso de Teoria do movimento da lua, de Andoyer, por exi-
gência de suas atribuições docentes, e dois cursos de filosofia, para atender à sua
curiosidade intelectual: Introdução à filosofia das ciências, de Abel Rey, e Teoria
do conhecimento, de Leon Brunschvicg. Mais tarde, ministraria cursos de sua es-
pecialidade na Universidade de Paris tendo, segundo Miguel Osório de Almeida,
deixado profunda impressão entre os professores daquela instituição.
Amoroso Costa deixou obra significativa de matemática, astronomia e ffsica e
um longo ensaio sobre a teoria da relatividade (Rio de Janeiro, 1922). Os seus
trabalhos relacionados à filosofia das ciências foram em parte reeditados recen-
temente (As idéias fundamentais da matemática e outros ensaios, São Paulo, Edi-
toras Grijalbo/USP, 1971 ). Lélio Gama teria oportunidade de dizer que o talento
de Amoroso Costa, "como aquela força celeste que faz surgir subitamente uma
nova estrela no espaço, fez fulgurar em dia a celebração do Brasil no seio das
constelações científicas do mundo".
Manoel Lourenço Filho (1897/1970)
Foi presidente da Associação Brasileira de Educação e participou ativamente de
todo o movimento educacional desde os começos da década de vinte, quando se
incumbiu da reforma do ensino público no Ceará (1922/1923). Nos anos trinta
foi sucessivamente diretor geral do Ensino Público em São Paulo, membro do
Conselho Nacional de Educação e diretor geral do Departamento Nacional de
Educação. O governo deu-lhe a incumbência, em 1938, de organizar o Instituto
Nacional de Estudos Pedagógicos (Inep), que implantou e dirigiu até 1946. Fun-
dou, em 1944, a Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. De 1947 a 1951 vol-
tou a exercer as funções de diretor geral do Departamento Nacional de Educação.
Esteve sempre vinculado ao magistério, inicialmente em São Paulo e, posterior-
mente, no Rio de Janeiro, onde integrou o corpo docente da UDF e, depois, da
Faculdade Nacional de Filosofia.
Suas obras completas, em 10 volumes, foram publicadas pela Editora Melhora-
mentos, destacando-se seus livros Introdução ao Estudo da Escola Nova 119301
e Tendências da Educação Brasileira (1940).
Miguel Osório de Almeida (1890/1953)
Diplomado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, dedicou-se à pesquisa,
ao magistério e à divulgação científica, tendo sido um dos grandes animadores do
movimento desencadeado pela Academia Brasileira de Ciências em prol do desen-
volvimento científico, em geral, e da criação da universidade, em particular.
Foi diretor do Laboratório de Fisiologia do Instituto Oswaldo Cruz e professor
da disciplina na Escola Superior de Agricultura e Medicina Veterinária, que daria
origem à Universidade Rural. Na Academia Brasileira de Ciências ocupou sucessi-
vamente os cargos de secretário-geral, vice-presidente e presidente. Em decorrên-
93
cia dos acordos de intercâmbio cultural franco-brasileiro, foi professor visitante
na Faculdade de Ciências de Paris, em 1927 e 1932.
Era livre docente de fisiologia, física biológica e higiene; membro de diversas as-
sociações científicas internacionais; doutor Honoris Causa das Universidades de
Paris, Lion e Argel ;e membro da Academia Brasileira de Letras.
Colaborou com grande frequência na imprensa periódica, reunindo posteriormen-
te em livros os artigos e ensaios assim divulgados {Homens e coisas de ciências,
1925; Vulgarização do saber, 1931; Ensaios, críticas e perfis, 1938). Redigiu inú-
meras memórias para revistas científicas editadas no país e no estrangeiro, sendo
ainda autor do Tratado elementar de fisiologia.
Newton Dias dos Santos (nascido em 1916)
Licenciado em história natural pela Escola de Ciências da Universidade do Distri-
to Federal (1938), doutorou-se nessa disciplina, em 1950, na Faculdade Nacional
de Filosofia. Formou-se igualmente em medicina (1940) pela Faculdade de Medi-
cina da Universidade do Rio de Janeiro (à época denominada Universidade do
Brasil).
Logo após a formatura, passou a integrar o quadro de pesquisadores do Museu
Nacional, tendo se tornado conhecido entomologista, com grande número de tra-
balhos científicos publicados.
Exerceu as funções de diretor do Museu Nacional no período 1961/1964.
Oswaldo Frota Pessoa (nascido em 1917)
Diplomou-se em história natural pela Escola de Ciências da UDF (1938) e em
medicina pela Faculdade de Medicina da então denominada Universidade do Bra-
sil (1941). Cursou técnicas de pesquisas biológicas no Instituto Oswaldo Cruz em
1941. Doutorou-se em história natural na Faculdade Nacional de Filosofia.
Em seguida à formatura, ocupou-se de pesquisa, dedicando-se posteriormente ao
magistério, primeiro na Faculdade Nacional de Filosofia (1948/1958) e depois
na Faculdade de Filosofia da USP.
Autor de diversos trabalhos e pesquisas nos campos da genética humana e da ci-
togenética, sendo membro das Sociedades Brasileiras de Botânica e de Genética.
Raul Leitão da Cunha (1881/1947)
Ocupa um lugar central na história da universidade brasileira. Como reitor da Uni-
versidade do Rio de Janeiro, implantou os cursos de ciências, destinados à forma-
ção de cientistas, pesquisadores e professores, tendo, com vistas a esse fim, lide-
rado o processo de absorção da UDF e sua transformação na Faculdade Nacional
de Filosofia. Nesse período inicial, acumulou as funções de reitor da universida-
de e diretor da faculdade, desde que vinculava o processo de consolidação da pri-
meira aos destinos da última. Além disto, como ministro da Educação do gover-
no de transição que se implantou no país, em seguida à deposição de Vargas em
1945, elaborou e obteve a promulgação do Decreto-Lei n? 8.393, de 17dede-
94
zembro de 1945, concedendo à universidade autonomia administrativa, financei-
ra, didática e disciplinar.
Médico patologista, diplomou-se pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro
em 1903. No mesmo ano seguiu para a Europa, a fim de especializar-se em anato-
mia patológica. Ingressou no magistério em 1907, ocupando a cátedra de histo-
logia e passando, mais tarde, para a de microbiologia e, finalmente, para a de ana-
tomia patológica, Foi diretor da Instrução Pública (1919/1920) e da Saúde Públi-
ca (1920/1926). Ocupou igualmente cargos no legislativo, tendo sido vereador
no Distrito Federal e deputado à Assembléia Constituinte de 1933. Publicou di-
versos trabalhos de sua especialidade.
Roberto Marinho de Azevedo (1878/1962)
Professor da Escola Politécnica, assume posição de evidência, na década de vinte,
entre os divulgadores da teoria da relatividade. Com semelhante objetivo escreve
na Revista Brasileira de Engenharia e na Revista de Ciências, órgão da Academia.
Nesta, em 1926, responde às objeções levantadas pelos positivistas brasileiros.
Participa do movimento da ABE em prol de uma universidade que complemente
o ensino superior, ministrando cursos de ciência pura, além do ensino profissio-
nal. Coube-lhe, no Rio de Janeiro, a exemplo do que faria Teodoro Ramos em
São Paulo, a tarefa de liderar a realização desse projeto, em caráter pioneiro, na
condição de diretor da Escola de Ciências da Universidade do Distrito Federal.
Foi membro da Academia Brasileira de Ciências, onde desempenhou cargos de
direção.
Vicente Licínio Cardoso (1890/1931)
Foi dirigente da Associação Brasileira de Educação, em sua fase inicial. Concluiu
o curso de engenheiro-arquiteto da Escola Politécnica em 1913. Em 1917 foi
aprovado no concurso da cadeira de história da arte, da Escola Nacional de Belas
Artes, tendo concorrido com a tese intitulada Filosofia da Arte. Publicou diver-
sos livros, entre outros: Pensamentos brasileiros. Afirmações e comentários e A
margem da história do Brasil. Era filho de Licínio Cardoso.
Teodoro Ramos (1895/1935)
Diplomou-se em 1916 pela Escola Politécnica do Rio de Janeiro, tendo acompa-
nhado o movimento de renovação científica liderado, entre outros, por Amoroso
Costa. Ingressou na Academia Brasileira de Ciências, em sua fase inicial, e partici-
pou ativamente de seus trabalhos.
Logo após a formatura, radicou-se em São Paulo, tornando-se catedrático de físi-
ca e matemática da Escola Politécnica.
Teve posição das mais destacadas na criação da Universidade de São Paulo, pri-
meiro como animador de todos os debates então realizados, em prol da criação
das Escolas Superiores de Ciências, destinadas a formar cientistas e pesquisado-
res, e, mais tarde, como integrante do núcleo dirigente encarregado de sua estru-
turação. Nessa qualidade, incumbiu-se da contratação de professores estrangeiros
na Europa. É de sua iniciativa a mobilização dos professores alemães e de outras
nacionalidades que colaboraram na Implantação da Faculdade de Filosofia da
USP.
-
Víktor Leinz (nascido em 1904)
Nasceu em Heidelberg, Alemanha, tendo se graduado em geologia na universida-
de dessa cidade e concluído curso de pós-graduacão em petrografia de sedimentos,
Transferiu-se para o Brasil em 1935, contratado pelo Departamento de Produção
Mineral. Nesse período, integrou igualmente o corpo docente da Escola de Ciên-
cias da UDF. Mais tarde, ingressou na USP, como chefe do Departamento de Geo-
logia e Paleontologia (a partir de 1949).
Membro da Academia Brasileira de Ciências, é autor de extensa bibliografia dedi-
cada à geologia do Brasil.
96
Do Centro D. Vital
à Universidade Católica*
Tânia Salem
INTRODUÇÃO
O propósito desse trabalho é o de reconstruir o trajeto verificado entre a funda-
ção do Centro D. Vital do Rio de Janeiro (1922) - de onde eclode o movimen-
to católico leigo nos anos 20 - e a criação das Faculdades Católicas, futura Pon-
tifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, em 1941 , Enfocar-se-á no ideá-
rio católico que justifica e impulsiona a criação de um estabelecimento próprio
de ensino superior e, paralelamente, se buscará depreender os elos institucionais
intermediários entre as duas referidas organizações. Ainda que o interesse central
se refira à atuação da Igreja na esfera da educação superior, incursiona-se tam-
bém na postura por ela assumida, nessas duas décadas, frente aos debates pedagó-
gicos sobre os outros níveis do ensino.
Após um breve histórico sobre a emergência do movimento de "reação católica"
na década de 20, dividiu-se o exame da questão segundo um marco cronológico
relacionado à dinâmica interna do grupo católico e que se refere à mudança na
chefia do Centro D. Vital. O primeiro período - que vai de 1922 a 1928 — co-
bre os anos em que a liderança do laicato coube a Jackson de Figueiredo; o se-
gundo compreende de 1928 a 1941 , quando o movimento se encontrava encabe-
çado por Alceu Amoroso Lima. Embora a presença de Alceu como presidente da
ação católica tenha persistido mesmo após 1941, o corte efetuado nessa data se
Trabalho realizado no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ).
Agradecemos ao Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do
Brasil (CPDOC), na pessoa ae Lúcia Lippi de Oliveira — coordenadora do Projeto Brasi-
liana — por ter colocado a nossa disposição o material e as pesquisas realizadas pela
equipe sobre o movimento católico dos anos 20. Somos também gratos a Simon Schwar-
tzman, Regina Lúcia Morel e Renato Boschi pelos comentários e sugestões feitos ao
trabalho. E ainda, ao professor Alceu Amoroso Lima e ao padre Pedro Belisário Vello-
so que nos concederam entrevistas, permitindo clarificar alguns pontos obscuros da
trajetória educacional católica.
97
justifica por ser este o ano em que se funda a Universidade Católica — tratada aqui
como o coroamento do empenho da Igreja do domínio da educação superior.
A substituição na chefia do laicato, ocasionada pela morte de Jackson de Figuei-
redo, implicou em uma nova orientação imprimida ao movimento de um modo
geral e que se refletiu, de igual maneira, na própria estratégia de condução do
grupo no setor educacional. Ademais, e não menos importante, é o fato de que
o critério cronológico proposto coincide, a grosso modo, com duas outras ordens
de fatores, externos ao movimento, que são também cruciais para compreender a
dinâmica do comportamento da Igreja frente à esfera do ensino. Referimo-nos,
de um lado. a acontecimentos políticos relevantes na conjuntura nacional que
conduziram a uma reavaliação do papel da Igreja enquanto agente de sustentação
social e política e, de outro, ao acirramento dos embates pedagógicos.
De fato, pode-se atribuir aos primeiros anos da década de 30 o caráter de um di-
visor de águas entre dois momentos bastante configurados na história do grupo
católico no que tange às disputas educacionais. No contexto dos anos 20, o tema
da educação adquiriu um lugar de proeminência na arena dos debates no país.
Alguns grupos políticos da sociedade civil, que no período estruturavam projetos
de reconstrução nacional, passaram a conceber a escolarização como o instrumen-
to-chave para responder às crises que assolavam a cena brasileira e para afirmar as
bases da nacionalidade. Os católicos já esboçavam, nesse período, uma sistemati-
zação de seu ideário pedagógico e ensaiaram - ainda que de forma tímida e pou-
co articulada, sobretudo se comparada com sua ação no momento subsequente
— suas primeiras reivindicações no campo educacional. Entretanto, sob a égide
da República Velha, a Igreja - embora adquirindo maior visibilidade pública gra-
ças ao movimento de mobilização do laicato - não chegou a se constituir, efeti-
vamente, em uma força política expressiva, mostrando-se incapaz de fazer valer
suas demandas na esfera do ensino.
A derrocada da Primeira República forneceu à Igreja uma situação propícia para
suplantar o ostracismo a que tinha sido relegada pela Constituição de 1891, de
inspiração positivista. A debilidade endémica da ordem política instaurada no
país com a Revolução de 30 converteu-a em uma força social de peso para a le-
gitimação do novo arranjo de poder. Como ficará evidenciado, a questão educa-
cional se configurou, no período, em um importante elemento de barganha que
viabilizou a reaproximação entre a Igreja e o Estado. Assim, foi nesse segundo
momento que as lideranças leigas e eclesiásticas, em troca do suporte ao regi-
me, conseguem ver realizadas algumas de suas demandas centrais no setor de en-
sino. Além disso, a crescente estruturação e afirmação alcançadas pelo movimen-
to católico nessa etapa permitiram também que o grupo empreendesse, em cará-
ter particular, iniciativas relevantes no campo da educação superior.
Pode-se afirmar que, em termos ideais, o projeto último da Igreja era o de recu-
perar a posição privilegiada e quase monopólica por ela desfrutada no universo
cultural e educacional da Colónia. Segundo sua ótica, este era o papel que lhe
cabia, por direito sobrenatural, mas que lhe fora usurpado no século XVIII
quando Pombal expulsou os jesuítas do país, Na perspectiva da liderança católi-
ca, reconquistar essa influência significaria, a um só tempo, disseminar seu poder
de influência na nova conjuntura e solucionar os impasses que afligiam a Nação.
Pautada nessas premissas, a Igreja formulou, no período, um programa delibera-
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do para recristianizar a sociedade e a própria instituição do Estado - tarefa que
se viabilizaria, basicamente, através da ressocialização das elites dirigentes segun-
do os princípios cristãos.
No entanto, as pretensões pedagógicas católicas esbarraram em propostas educa-
cionais alternativas e mesmo antagónicas às suas que se articulavam, com maior
nitidez, nesse momento. O contexto dos anos 30 presenciou, sobretudo até 1937,
um aguçamento dos debates pedagógicos nos quais se destacou, como o principal
concorrente e opositor aos católicos, o grupo dos "educadores profissionais"
identificados com o movimento da Escola Nova. O Estado recém-implantado,
sem uma diretriz educacional definida e buscando sempre soluções conciliatórias,
oscilava entre as duas tendências, atendendo as reivindicações ora de um, ora do
outro grupo em litigio.
Aprofundando a concepção já elaborada no decénio anterior, a década de 30
conferiu à escola o papel de agente de primeira ordem para modificações sociais
mais profundas. Em outras palavras, veicula-se a crença de que a reforma educa-
cional se constituía na peça chave para a reconstrução nacional. Essa supervalori-
zaçao ideológica do processo educacional, compartilhada tanto pelos católicos
quanto pelos escolanovistas, reforça a percepção do sistema escolar como um va-
lioso recurso de poder. Por conseguinte, a disputa pelo controle desse sistema de-
ve ser interpretada também como uma disputa política*, o confronto entre as di-
versas filosofias pedagógicas em pauta evidenciava, em última instancia, a concor-
rência entre projetos alternativos de reconstrução nacional. O objetivo desse tra-
balho é o de delinear o projeto elaborado pelos católicos e ver como ele se retra-
duz e se especifica no seu ideário pedagógico e nas suas conquistas no setor edu-
cacional 1 .
Cabe ainda uma última observação: a própria estrutura altamente hierarquizada
da Igreja Universal impõe a necessidade de se pensar as Igrejas de âmbito nacio-
nal como células desse conjunto mais amplo. As relações destas últimas para com
Em trabalho recentemente publicado, Cury (1978) analisa o debate entre a visão peda-
gógica liberal - expressa no movimento da Escola Nova - e a católica, para o perfodo
de 1930 a 1934. Sustenta o autor que o horizonte intelectual dos dois grupos era co-
mum no sentido de que as reformas por eles propugnadas visavam, em última medida,
à manutenção da ordem capitalista. Entretanto, embora sendo representantes da classe
dominante, católicos e liberais se constituíam em dois segmentos da mesma. A própria
pedagogia desenvolvida por cada um deles apontaria para as f rações de classe a cujos in-
teresses serviam; a proposta católica expressaria a "continuidade de uma política educa-
cional mais adequada ao modelo oligárquico" Ip. 25), enquanto que a dos pioneiros
buscaria "uma adaptação da política educacional ao processo económico gerado pelas
novas forças produtivas, bem como a adaptação do capitalismo dependente periférico
pela reforma educacional dentro do processo de urbanização" (p. 25). Num certo sen-
tido, essa perspectiva encontra suporte no trabalho de Velloso (1978) sobre a análise
temática da revista católica m Ordem para o período compreendido entre 1921 a 1937.
A autora destaca a presença de artigos aí publicados que, com um caráter nitidamente
antiurbanista e antiindustrialista, apologizam a "vocação ruralista natural" do brasilei-
ro (p. 127 e 141). Embora não descartando a importância desse tipo de discussão não
há. por parte desse trabalho, o propósito de aprofundar essa vertente explicativa. Tal
tarefa exigiria uma investigação mais cuidadosa em uma área que transcende os limites
deste texto.
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a Santa Sé se configuram como relações de nítida subordinação, cujas orienta-
ções gerais a serem seguidas são ditadas e veiculadas sobretudo por meio de encí-
clicas papais. No período sobre o qual versa esse trabalho, alguns documentos
foram emitidos por Roma, pronunciando-se não só a respeito das diretrizes gerais
a serem seguidas pela ação católica mas, também, de modo mais específico, sobre
os princípios educacionais da Igreja. Essa contextualização é importante para
que se tenha em mente que aquilo que será aqui narrado, encontrava suporte, em
linhas gerais, em determinações superiores. Não obstante, esse artigo não faz re-
ferências explícitas a esses comandos de Roma. Entre outros motivos, essa deci-
são se justifica de um laoo, pela própria flexibilidade relativa de interpretações
autorizada pelas encíclicas. E, mais importante ainda, porque a concretização
desses desígnios reside, em última instância, em fatores específicos a cada país
que escapam ao controle hierárquico da Santa Sé. No caso brasileiro, por exem-
plo, o surgimento de lideranças eclesiásticas e leigas dispostas a fazer reviver o ca-
tolicismo no Brasil e também as relações particulares que se estabelecem entre a
Igreja e o Estado se constituíram, de fato, nos elementos que possibilitaram a
mediação entre as ordens superiores de Roma e os resultados efetivamente alcan-
çados. Sustentamos que esses fatores intervenientes, mais do que as diretrizes da
Santa Sé, são os responsáveis últimos pelos sucessos alcançados pelo movimento
de reação católica dos anos 20.
O PANORAMA HISTÓRICO DOS ANOS 20
O processo de diferenciação da economia brasileira a partir do final do século
passado e princípio deste - evidenciado na expansão da lavoura cafeeira, no tí-
mido desabrochar da indústria, no aceleramento do processo de urbanização e na
emergência de um mercado interno - foi acompanhado por uma maior comple-
xificação da estrutura social. O crescimento das camadas médias urbanas, a cons-
tituição do proletariado e da burguesia industrial, o incremento da imigração eu-
ropéia e a crescente organização e autonomia das Forças Armadas acusam a pre-
sença de novos atores que passam a exigir uma ampliação nas bases de represen-
tatividade do sistema vigente.
As aspirações políticas das forças sociais emergentes esbarram com a rigidez da
máquina político-administrativa, consolidada durante a primeira república. Nessa
configuração, as oligarquias agroexportadoras — sob a hegemonia da burguesia
cafeeira - detinham o controle sobre os principais recursos de poder na socieda-
de, e seus interesses predominavam não só no plano federal mas também no esta-
dual, tanto no Legislativo quanto no Executivo.
No entanto, a crise decorrente da Primeira Guerra Mundial (com a diminuição
dos vínculos de dependência externa), os sinais de abalo e desgaste no interior do
próprio pacto oligárquico e a crescente pressão das novas camadas sociais eviden-
ciam, ao mesmo tempo que estimulam, o enfraquecimento do regime político es-
tabelecido.
A cena brasileira na década de 10 e, em especial, na de 20, ver-se-á assolada por
uma intensa mobilização da sociedade civil. Revelando uma ambiência de insa-
tisfação e de busca de novas alternativas, as camadas urbanas se organizam em
partidos de âmbito estadual, em movimentos político-sociais, procurando impor
100
seus projetos e demandas, que visavam ou à conservação ou à reformulação da
ordem social vigente.
Os conflitos sociais e a efervescência ideológica se manifestam nas greves operá-
rias e no maior grau de perturbação provocado pelas campanhas presidenciais.
O ano de 1922 é expressivo desse clima geral: presencia-se a concretização da in-
quietude cultural e estética com a Semana da Arte Moderna, a fundação do Par-
tido Comunista do Brasil e a agitação nos quartéis, colocando em cena os movi-
mentos tenentistas.
Esses grupos descontentes ignoravam ou excluíam a Igreja de seus programas e
soluções. Como assinala Iglesias, as camadas mais importantes da intelectualidade
brasileira provinham, nesse momento, de círculos positivistas, evolucionistas ou,
pelo menos, indiferentes ao catolocismo (1971 , p. 132). Diante desse cenário em
convulsão e sob a ameaça de se ver marginalizada do processo político nacional,
as cúpulas eclesiástica e laica deslancham uma estratégia de autodefesa e se orga-
nizam dando início ao que se convencionou chamar de "reação católica". Esse
movimento assumiu posição de destaque no contexto brasileiro a partir dos anos
20, configurando-se em um importante núcleo aglutinador da sociedade civil,
ainda que restrito, basicamente, aos estratos médios e superiores. O "renascimen-
to católico" se formalizou com a criação da revista A Ordem (1921) e do Centro
D. Vital (1922), instituição que congregou a intelectualidade católica e da qual
se irradiou, nas duas décadas seguintes, um amplo movimento de apostolado.
A REAÇÃO CATÓLICA
O alcance e o significado dessa revitalização do catolicismo brasileiro só podem
ser corretamente avaliados e compreendidos, quando se considera a posição e o
papel desempenhado pela Igreja na Monarquia e nos dois primeiros decénios da
República.
De uma situação de inegável predomínio cultural na época colonial, a Igreja é
colocada, ao longo do Império, numa posição nitidamente subalterna face ao po-
der temporal. Recorrendo, mais uma vez, a Iglésias: "como resultado da Consti-
tuição de 1824, a religião católica é a oficial; estabelece-se o regalismo. A associa-
ção do Estado e da Igreja conduzirá a uma Igreja submetida; o prestígio da ma-
çonaria e o culto de valores leigos fazem dela algo de convencional, sem maior
vigor, uma força como as outras. A submissão ao poder civil é reconhecida pelos
próprios membros do clero, tão entranhado é o espírito regalista, origem de ques-
tões que se arrastam ao longo do Império, em que a religião é sempre vencida,
em que se impõem os elementos leigos" (1971, p. 131).
A relação entre a Monarquia e a Igreja só foi abalada pela Questão Religiosa
(1873) quando o bispo D. Vital, visando à transformação da Igreja em força
atuante, reivindica liberdade de decisão em matéria eclesiástica 2 . Mas, passado
Sadek considera esse episódio como o primeiro ensaio da "reação católica" que se con-
solida nos anos 20(1978. p. 100).
101
este incidente, reacomodam-se as relações e a Igreja volta à situação de marasmo
que a caracterizava.
A República, nascida sob inspiração positivista, declara-se leiga e promove a sepa-
ração dos dois poderes. Se por um lado a Igreja se viu privada dos privilégios que
desfrutava no Império, por outro passava a dispor, potencialmente, de uma mar-
gem mais elástica de atuação decorrente da liberdade institucional e organizacio-
nal obtida graças ao novo arranjo político. É nesse momento que surge, nos
meios católicos, uma proposta de radicalizar a conduta da Igreja. Ela é apresenta-
da por Júlio Maria, que defende o afastamento dos poderes dominantes em prol
de uma maior aproximação com as massas. A hierarquia eclesiástica, no entanto,
optou por aderir à ordem vigente. Por conseguinte, as relações entre Igreja e Es-
tado não sofrem abalos significativos e o ajustamento à nova conjuntura se pro-
cessa de modo não traumático. Os dois primeiros decénios do regime republica-
no são caracterizados pela letargia e passividade nos meios católicos brasileiros 3 .
O primeiro sinal mais vigoroso de oposição ao espirito acomodatfcio da Igreja,
e que se converte no baluarte da "reação católica" é a carta pastoral de 1916 de
D. Leme, recém-nomeado arcebispo da diocese de Olinda e Recife 4 . Nesse docu-
mento está preconizado o esboço dos principais fundamentos que governam o
movimento que se estrutura nos anos seguintes.
O pressuposto primeiro em que se baseia a pastoral é o da identificação do Brasil
como um país essencialmente católico. Embora constituindo a quase totalidade
da Nação, os católicos — acusados de se comportarem como um "grupo asfixiado
e inoperante" - tiveram solapada sua posição de direito na condução dos desti-
nos nacionais por uma minoria laica e descrente que encabeçava a república posi-
tivista 5 . Mais do que uma humilhação para a Igreja, essa situação é apontada co-
mo responsável pelos conflitos e desordens que assolavam a sociedade brasileira
naqueles anos. Interpretando a fragilidade de nossa estrutura económica, políti-
ca e social como decorrente, em última instância, de uma crise de ordem moral,
D. Leme adverte que somente a recristianização da sociedade seria capaz de res-
taurar a unidade espiritual do país, devolvendo-lhe seu equilíbrio e harmonia
naturais' .
Antes da virada do século, surgem algumas figuras de Intelectuais católicos — como Fe-
lício dos Santos. Afonso Celso, Eduardo Prado, Carlos de Laet e outros — que tentam
se organizar para fazer frente à ameaça da secularização republicana. Sua investida, no
entanto, não foi exitosa, ainda que possam ser considerados como os precursores da fu-
tura militância católica. ICf. Todaro, 1971. p. 34 a 36).
A transcrição de extensos trechos da pastoral podem ser encontrados na obrada Raja
Gabaglia (1962, cap. VI), biógrafa oficial de D. Sebastião Leme.
O seguinte texto do documento é bastante expressivo: "que maioria católica é essa, tão
insensível, quando leis, governo, literatura, escolas, imprensa, indústria, comércio e to-
das as demais funções da vida nacional se revelam contrárias ou alheias aos princípios
práticos do catolicismo? (. . .) Chegamos ao absurdo máximo de formarmos uma força
nacional, mas uma força que não atua. que não influi, uma força inerte" Sapud Raja
Gabaglia. 1962. p. 68).
102
neamente, salvaguardar a nacionalidade, D. Leme proclama a necessidade de um
revigoramento de laços entre os leigos e a hierarquia eclesiástica para que juntos,
ainda que sob uma estrita subordinação dos primeiros aos comandos da cúpula
eclesiástica, desferissem a açâ*o católica. Propondo uma política de "saneamen-
to dos saneadores", a cooptação de intelectuais é sugerida como a estratégia bá-
sica para a irradiação da ampla obra de apostolado. Destacada como elemento
de vanguarda do movimento de reação, a intelectualidade teria como tarefa com-
bater as bases agnósticas e laicistas do regime, disseminando a doutrina cristã pe-
la sociedade e suas instituições. Assim, contrariando o plano de Júlio Maria que
determinava a recatolicização do pais por meio de uma aliança entre Igreja e po-
vo, a pastoral propõe que o mesmo objetivo seja alcançado de "cima para baixo"
- isto é, consolidando o conluio da Igreja com a elite, sobretudo a intelectual.
O arcebispo aponta a falta de instrução religiosa como a principal causa do indi-
ferentismo e inércia dos católicos. Tornava-se premente combater o "catolicis-
mo de sentimento" e fundamentar a fé religiosa em um conhecimento mais apro-
fundado dos ensinamentos cristãos 7 . Dessa ênfase num "catolicismo mais inte-
lectual" decorre o papel de extrema relevância que D. Leme confere ao problema
educacional. Como programa de ação sugere, de um lado, a luta contra o ensino
leigo - consagrado pela Constituição de 1891 - por meio da introdução do ensi-
no religioso nas escolas oficiais. Justificando que essa exigência não se constituía
em um privilégio mas em um direito que cabia â maioria católica do país, o arce-
bispo demanda também subvenções, por parte dos poderes públicos, às escolas
confessionais. De outro lado, a pastoral já alerta para a necessidade de criação de
uma universidade católica com vistas ao recrutamento e socialização de elites que,
orientadas segundo princípios cristãos, se capacitariam para promover a unifica-
ção moral do país.
Nomeado bispo auxiliar do Rio de Janeiro, D. Leme transfere-se para essa cidade
em 1921 . É nesse momento que encontra Jackson de Figueiredo, que se converte
no seu principal colaborador na reconquista da inteligência brasileira, até sua
morte, em 1928.
Foi a partir do encontro dessas duas personalidades que a "reação católica" ir-
rompe na cena nacional. O período que compreende a década de 20 até meados
da de 40 é marcado por um intenso trabalho da Igreja que teve, como núcleo ir-
radiador, o Centro D. Vital do Rio de Janeiro. Com o decorrer do tempo, o mo-
vimento se ramifica em campos cada vez mais diversificados com a criação de
suborganizações de leigos, todas elas ajustadas e estruturadas por D. Leme, que
se constituiu no principal mentor da reação até sua morte, em 1942. Escapa aos
propósitos deste trabalho uma análise de todas as esferas em que se lançaram os
Nas palavras de D. Leme: "Para o espírito pensador, a crise no Brasil não é uma crise
poli tica, cuja solução depende de formas de Governo. É uma crise moral, resultante tia
profunda decadência religiosa, desde o antigo regime, das classes dirigentes da Nação e
que sô pode ser resolvida por uma reação católica" lapud Villaça. 1975. p. 81).
Na perspectiva de Alceu Amoroso Lima: "D. Leme participou da convicção possivel-
mente até exagerada de que o conhecimento e, portanto a educação, era a base huma-
na da fé" (L.mae Lima, 1973. p. 232).
103
católicos, bem como a de seu posicionamento frente aos aspectos problematiza-
dos da realidade nacional. No entanto, cabe frisar que, ainda que ocupando um
lugar de proeminência no seu programa, sua pregação educacional se constituiu
em apenas uma das áreas em que a Igreja desfere esforços para fazer representar
suas posições.
O CENTRO D. VITAL SOB A DIREÇÃO DE
JACKSON DE FIGUEIREDO: A COSMOVISÃO CATÓLICA
E O IDEÁRIO EDUCACIONAL
"Pode-se fazer a história do catolicismo no Brasil antes e depois de Jackson de
Figueiredo" (Iglésias, 1971, p. 110). De fato, o movimento de reação encontra
nesse personagem o mais ferrenho líder leigo da militância católica. Ele é respon-
sável pela aglutinação, em torno de si, de um núcleo de intelectuais solidários
com suas idéías e posições - como Hamilton Nogueira, Perillo Gomes, Alceu
Amoroso Lima, Durval de Moraes, Padre Leonel Franca, dentre outros — que
continua sua obra de apostolado mesmo após sua prematura morte aos 37 anos.
Depois de ter sofrido, em sua juventude, influencias do materialismo, do evolu-
cionismo e mesmo do anarquismo, Jackson de Figueiredo converte-se ao catoli-
cismo em 1917, sob influência de Faria Brito. Seu encontro com D. Leme no
Rio de Janeiro, em 1921, significou sua conversão definitiva e o início de seu
trabalho de irradiação apostólica.
A reação católica que desponta no Brasil nesse período estava fortemente pau-
tada no pensamento tradicionalista e reacionário francês, expresso pelos ideólo-
gos da Action Française 8 , e pelos doutrinadores da contra-revolução 9 . 0 subs-
trato dessa cosmovisão apoiava-se no suposto da existência de uma verdade tida
como eterna, imutável e essencial. Dessa perspectiva ahistórica decorria seu des-
prezo por fatores sociais, económicos e políticos - ou melhor, sua redução a um
problema de caráter moral 10 . Associado a essa concepção estática e defendendo
a desigualdade entre os homens como um dado natural, essas correntes de pensa-
mento tinham como fulcro a sacralização da ordem, da hierarquia e da autorida-
de. Cultuando o passado e a tradição, insurgiam-se contra qualquer tipo de revo-
lução, enquanto manifestação que contrariava o status quo 1 1 . Os tradicionalistas
desembocaram em um nacionalismo exacerbado e condenavam as ideologias e os
A Action Française se constituiu num movimento reacionário que pretendia a restaura-
ção da Monarquia na França e teve como principais expoentes Henri Messis, Auguste
Viatte e Charles Maurras. O movimento acabou sendo condenado pelo Vaticano em
1926.
Velloso (1978. p. 1 23 e ss.) assinala, entre 1921/28. a presença de artigos em A Ordem
que transcrevem e/ou analisam as idéías centrais de seus principais defensores como De
Maistre, De Bonald e Veuilloi.
Nas palavras de Jackson de Figueiredo; "não creio em soluções sociais. Só creio em fi-
nalidade moral. Aceito pois. as maiores diferenças de forturna como parte necessária do
drama da vida" lapud Lima e Lima, 1973, p. 26).
104
regimes liberais e democráticos como insufladores da anarquia e da subversão à
"ordem natural" do mundo.
A Igreja é tida como a cristalização da estabilidade e da ordem e a Idade Média
simbolizava o ideal a ser restaurado. A harmonia então vigente havia sido sucessi-
vamente perturbada, a partir do século XVI, com a reforma luterana, promotora
do cisma espiritual no Ocidente, com Descartes que, ao conceder supremacia à
dúvida e à razão, minara o saber único e cristalizado e com a Revolução France-
sa que, com seus ideais de liberdade e igualdade, acabara por estimular a licen-
siosidade e a desordem. Esses movimentos são apontados como as origens da
crescente laicização da sociedade e do Estado, fator explicativo para todas as
crises modernas. Segundo essa perspectiva, o Estado Liberal - personificando o
liberalismo e o individualismo hipertrofiados contra a ordem — teria como epí-
logo inevitável a implantação do Estado Comur.ista.
É nessa cosmovisão que Jackson de Figueiredo e seus pares se abeberam ao ini-
ciarem o movimento de ação católica. De acordo com tais pressupostos procla-
mam que a única saída eficaz para debelar a onda revolucionária que se espalha-
va pelo mundo, e que também atingia o Brasil, era uma reação espiritual. Susten-
tando que a consolidação da nacionalidade dependia de um substrato moral co-
mum entre os indivíduos e identificando a nacionalidade brasileira com os valo-
res católicos, o grupo advoga a disseminação da doutrina cristã como a única ar-
ma eficaz para combater o pluralismo político, .em o que seria impossível resta-
belecer a unidade e a ordem no país.
É com essa matriz de pensamento e com esse projeto de "salvação nacional" que
Jackson de Figueiredo cria, em 1921,-4 Ordem. A revista, que se converte no
mais importante instrumento de difusão do ideário católico, pretendia combater
as posições e ações indiferentes ou hostis à Igreja e, deliberadamente, busca seus
leitores entre os intelectuais do país. Declarando obediência à hierarquia eclesiás-
tica, a publicação destacava a figura de D. Leme como o guia diretor do movi-
mento que então se iniciava.
Irmanado à revista, surge, no ano seguinte, o Centro D. Vital com o objetivo de
promover estudos, discussões da doutrina religiosa e de congregar intelectuais
para uma ação apostólica. D. Leme recomenda a instituição a seus fiéis, justifi-
cando-a como "uma obra destinada à penetração espiritual dos intelectuais, por
meio de bibliotecas e publicações de livros especiais etc ... A generosidade que
dispensarmos a essa obra frutificará em uma nova geração de intelectuais" íapud
Raja Gabaglia, 1962, p. 182).
É interessante contrastar o propósito inicial da organização, expresso na reco-
mendação do bispo, com o depoimento de figuras que dela participaram no pe-
ríodo em que esteve sob o comando de Jackson de Figueiredo. Segundo Alceu
Amoroso Lima: "(O Centro D, Vital) nasceu, ao mesmo tempo, no plano da dou-
trinação não apenas de base intelectual, mas religiosa e ligado a uma intenção po-
lítica de caráter prático, embora não partidário: o da defesa do princípio da au-
1 ' Segundo célebre frase de Jackson de Figueiredo: "a pior legalidade é melhor que a me-
lhor das revoluções".
105
toridade, que lhe parecia (a Jackson de Figueiredo) o mais debilitado pela deli-
qúescência do liberalismo burguês ?m 30 anos de República" 12 . Em outro arti-
go, Alceu ressalta que "a autoridade, o nacionalismo e a polemica" se consti-
tuíam nos pontos capitais do movimento que então se organizava 13 .
Essa perspectiva é confirmada por Hamilton Nogueira: "A Ordem foi uma revista
de caráter político-religioso. Nós achávamos, naquela época, que o movimento
religioso deveria ser paralelo ao movimento político de reação contra o liberalis-
mo dem ocrático" (apud Lima e Lima, 1973, p. 22).
Depreende-se dos depoimentos acima que a orientação jacksoniana - e, portan-
to, também do grupo que reuniu à sua volta - mais do que cultural, conforme
inicialmente pretendida, foi predominantemente política 1 * . Afirma-se, inclusive,
que Jackson de Figueiredo pretendia fundar um partido católico no país, no que
foi desestimulado por D. Leme. A revista e o Centro D. Vital parecem ter funcio-
nado como sucedâneos desse propósito.
No campo educacional já se esboçam, nesses anos, as duas vertentes de atuação
que acompanharam o movimento até os anos 40 com respeito à formação de
consciências. De um lado, no que tange à educação superior, reitera-se a urgência
de socializar as elites dirigentes segundo os princípios cristãos. Artigos publica-
dos em A Ordem, nesse período, insistem na perfeita compatibilidade entre ciên-
cia e fé e glorificam a filosofia tomista como o único conhecimento verdadeiro
em oposição aos postulados materialistas e positivistas, acusados de corroer os
espíritos e a própria ciência (Cf. Velloso, 1978, p. 124 e 128). Mas, do ponto de
vista de uma ação mais prática, não parece ter havido, entre 1921 e 1928, ne-
nhum empenho concreto para a criação de um centro de cultura superior. Pode-
se, entretanto, sugerir que o próprio Centro D. Vital ocuparia esse espaço com
seus debates e reuniões semanais e com sua proposta de arregimentação e con-
versão das elites ao catolicismo.
Por outro lado, com referência aos outros níveis de ensino, os católicos se lan-
çam ao combate da educação leiga vigente nas escolas oficiais, apontada como
uma afronta e desrespeito à maioria católica do país. Com essa bandeira de luta,
a Igreja desfere seu primeiro ensaio de reivindicação na esfera política. Entre
1924 e 1926, quando se discutia, no governo Bernardes, a revisão constitucional,
os católicos se mobilizam e propõem a anexação de algumas emendas que fica-
ram conhecidas como "emendas católicas". A primeira delas prescrevia a intro-
12 "Notas para o Centro D. Vital II II)" em A Ordem. v. 58, nP 6, dez. 1957. Alceu escre-
ve para a revista uma série de doze artigos sob esse título, publicados entre outubro de
1957 e outubro de 1958.
13 "Notas para o Centro D. Vital (V)' - em A Ordem, v, 59, n9 2. fev. 1958.
14 Nesse período a revista se posiciona abertamente frente às campanhas presidenciais de-
fendendo três candidatos sucessivos; Epitácio Pessoa. Artur Bernardes e Washington
Luis. Jackson de Figueiredo trabalha na administração de Bernardes como chefe de
censura e depois no Ministério da Agricultura. Para outras informações acerca da postu-
ra política assumida pela revista frente à conjuntura nacional e internacional, ver Vello-
so, 1978, p. 123/130.
106
dução do ensino religioso facultativo nas escolas públicas e a outra reivindicava o
reconhecimento da posição privilegiada da Igreja enquanto culto da maioria na-
cional. Apesar da forte campanha deflagrada por A Ordem e pelo Centro D. Vi-
tal, ambas as propostas foram rejeitadas. Esse fracasso denota que o grupo católi-
co, na Primeira República, não se constituía ainda num ator suficientemente ex-
pressivo a ponto de conseguir impor seu programa na esfera de decisões políticas.
Além dos católicos, outras correntes de pensamento também articulavam, nesse
momento, projetos próprios no domínio pedagógico. A década de 10, especial-
mente a partir de 1915, e o princípio dos anos 20 presenciam o surgimento de
um amplo movimento ideológico que Jorge Nagle (1974 e 1977) denomina de
"entusiasmo pela educação". A decepção com o regime republicano que, ao con-
trário do que era esperado, não havia resolvido mecanicamente os desequilíbrios
da sociedade brasileira, estimula a busca de novas alternativas para solucionar os
impasses nacionais. É nesse contexto, que se estruturam correntes de opinião que
passam a conferir à educação o papel de força propulsora da sociedade e de ele-
mento saneador de todas as crises que assolavam o país. Mais especificamente, a
disseminação da educação popular, através da multiplicação das instituições esco-
lares no molde das já existentes, passa a ser concebida como o mecanismo básico
de mobilidade social das camadas populares e como o fator-chave para acelerar o
desenvolvimento nacional. Assim, com uma tónica nitidamente nacionalista e
ainda que enfatizando diferentes aspectos com respeito aos alvos que se preten-
dia atingir, organizações como a Liga da Defesa Nacional, a Liga Nacionalista de
São Paulo, o grupo da revista Brazitéia, a Propaganda Nativista e a Ação Social
Nacionalista apresentam como bandeira comum de luta a erradicação do anal-
fabetismo.
Embora compartilhando com esses grupos uma superestimação ideológica do
processo educacional enquanto agente básico para transformações estruturais, o
movimento católico deles se distancia com respeito a propostas de ação. Ou seja,
seu empenho nesse setor se reduz, como assinalado à luta pela introdução do en-
sino religioso nas escolas oficiais. Referindo-se à postura católica, sintetiza Na-
gle: "passa para segundo plano o problema da difusão do ensino nos seus dife-
rentes níveis e modalidades; principalmente, o esforço para incrementar a atua-
ção da escola primária ficou reduzida ao mínimo. Instruir por instruir — argu-
mentou-se - é tarefa ociosa e prejudicial; o que importa é educar e para que ha-
ja educação é preciso impregnar o processo dos ensinamentos da doutrina cristã,
católica" (1974, p. 105).
Parece proveitoso tentar uma rápida avaliação do movimento católico nesses se-
te anos o que, de modo simultâneo, permitirá sintetizar alguns dos principais
pontos acima abordados. No que tange especificamente à educação, pode-se con-
cluir que, se por um lado, é fato que esse momento assinala a aparição do grupo
católico na arena pedagógica, de outro, - em termos de avanços concretos -, os
resultados atingidos são pouco significativos. Isso se evidencia, em parte, na ten-
tativa fracassada na inclusão das "emendas católicas" na revisão constitucional.
Ademais, o Centro D. Vital que nasce com a proposta de recrutar intelectuais
com vistas à disseminação de uma cultura católica superior, também, num certo
sentido, não concretiza essa promessa. Não é despropositado afirmar que a atua-
ção do grupo no período se confunde com o posicionamento de Jackson de Fi-
107
gueiredo frente ao mundo. Mais voltado para a ação e para o debate político, o
líder do laicato imprime ao centro uma orientação mais política do que cultural.
Por ocasião da morte de seu fundador, o número de sócios do Centro D. Vital
não ultrapassava a casa dos cinquenta e as conferências e cursos lá proferidos
contavam com uma audiência bastante restrita. Em suma, a instituição se alijava
cada vez mais do grande público, formando um círculo fechado de uns poucos
indivíduos em torno do programa político de seu criador (Cf. Todaro, 1971,
p. 1 19 e Iglésias, 1971, p. 157).
Não obstante, não se deve subestimar o saldo positivo legado por esses anos. Foi
graças a Jackson de Figueiredo, em conluio com D. Leme, que se presencia pela
primeira vez no Brasil o engajamento de intelectuais católicos na vida pública.
Segundo o depoimento de Alceu, foi a lealdade a Jackson que impediu a desin-
tegração desse pequeno núcleo de ativistas e que os incentivou a dar continuida-
de à obra desse pioneiro após sua morte. A expansão e o aprofundamento das
iniciativas católicas na década de 30 se constituíram numa prova de que os es-
forços de Jackson de Figueiredo não foram infecundos.
O CENTRO D. VITAL SOB A DIREÇÃO DE
ALCEU AMOROSO LIMA: MODIFICAÇÕES PROCESSADAS
NO CARÁTER DO MOVIMENTO E A RE APROXIMAÇÃO
DA IGREJA COM O ESTADO
Durante sua juventude, quando cursava a Faculdade de Direito, Alceu sofre uma
forte influência do agnosticismo e do evolucionismo spenceríano 1 s . Abandona a
advocacia pela literatura e crítica literária e assinala que durante esse período -
que vai até 1924 - não tinha qualquer interesse despertado nem pela vida públi-
ca nem pelos problemas religiosos. Alceu destaca Bernanos, Chesterton e Mari-
tain como figuras marcantes que o conduziram a uma aproximação em direção à
Igreja, efetivada em 1928. Do primeiro, que classifica como um reacionário, ab-
sorve a idéia da necessidade de uma atitude militante em resposta ao intelectua-
lismo descompromissado e ao ateísmo; do segundo, definido como um antitradi-
cionalista e um dos reabilitadores da liberdade dentro do pensamento da Igreja,
incorpora a noção do reformismo católico distributivista como uma síntese entre
o capitalismo e o socialismo. Maritain, por fim, se constituiu num de seus princi-
pais mestres com seus conceitos de "democracia cristã", "democracia social" e
"humanismo integral".
No entanto, Alceu atribui a Jackson de Figueiredo a influência mais decisiva por
ele sofrida entre 1924 e 1928, período em que se consolida seu processo de con-
versão. Segundo suas palavras: "a conversão e a influência de Jackson sobre mim
não chegaram a alterar minhas idéias liberais anteriores (. . .) Jackson de Figuei-
redo, no entanto, viria a exercer uma ação póstuma sobre mim. Com sua morte,
15 Informações minuciosas sobre a formação intelectual de Alceu podem ser encontradas
em Lima e Lima (1973). Para um resumo de sua biografia ideológica, bem como de
seus principais livros, ver Jarbas Medeiros, 1976, p. 219/378. Os dados acima forneci-
dos foram retirados dessas duas obras.
108
completar-se-ía sua influência. Morto, terminaria me vencendo apenas por um
tempo" (apud Lima e Lima, 1973, p. 120 e 121). De fato, sua conversão religio-
sa implicou numa adesão às crenças políticas jacksonianas; durante os dez anos
seguintes Alceu - bem como o grupo por ele liderado - assume uma postura or-
todoxamente autoritária, baseada no culto da disciplina e da ordem. Segundo sua
própria perspectiva, somente em 1938 começaria a se atenuar, em seu pensamen-
to, a força do esquema tradicionalista de Jackson de Figueiredo. Volta-se, a par-
tir daí, para as idéias professadas por Maritain, Thomas Merton e Teilhard de
Chardin que o reconduzem a uma postura liberal e a um catolicismo comprome-
tido com reformas sociais.
Três meses após sua conversão ao catolicismo e uma semana após a morte de
Jackson, Alceu é procurado por Hamilton Nogueira, Durval de Moraes, José Vi-
cente de Souza e Sobral Pinto para assumir o cargo de presidente do Centro D.
Vital e de diretor, junto com Perillo Gomes, de A Ordem. Em depoimentos, Al-
ceu relata sua resistência inicial em aceder ao convite e a decisão de aceitá-lo é
por ele interpretada como um "dever" para com o amigo morto e seu ideário 16 .
Ainda que destacando a influência póstuma de Jackson de Figueiredo sobre sua
personalidade, o fato é que, ao concordar em assumir a presidência, Alceu im-
põe como condição "afastar o centro totalmente da política militante ou parti-
dária" 1 7 . Seus estatutos são revistos e o Centro D. Vital passa a ter como pro-
pósito central "o desenvolvimento, através de meios intelectuais legítimos, de
uma cultura católica superior em nosso meio" 18 .
D. Leme elege o Padre Leonel Franca, que estava em contato com o centro desde
seus primórdios, para ocupar o postó de assistente eclesiástico do Centro D. Vital.
O sacerdote jesuíta, que tinha como foco principal de interesse "os homens cul-
tos e os universitários", desempenhou um papel destacado nas lutas desenvolvi-
das pelo grupo católico no campo do ensino e da educação 19 .
Em suma, sob a tríplice liderança de D. Leme, Alceu e Franca, o movimento so-
fre uma mudança de angulação. A idéia professada pelo bispo — em concordân-
cia com os desígnios da Santa Sé - de que a função espiritual da Igreja estaria es-
treitamente ligada a uma missão cultural, é estimulada por esses dois colaborado-
res que, ao contrário de Jackson de Figueiredo, eram personalidades intelectuais.
16 Ver "Mofas para o Centro D. Vital (0" em A Ordem, v, 58. nP 4, oul. 1957 e "Notas
para o Centro D. Vital (II)" em A Ordem, v. 58, nP 5, nov. 1957
17 "Notas para o Centro D. Vital (III)" em A Ordem, v. 58, n? 6. dez. 1957
18 Essa reorientação atinge também a revista. Alegando que os novos rumos não represen-
tavam uma infidelidade ao seu fundador mas, ao contrário, correspondiam às suas mais
profundas intenções. Alceu, em editorial, propõe:/! Ordem perderá naturalmente o ca-
ráter político que em tempo possuiu (...) e passa agora a ser uma revista católica de
cultura geral, visando mais à inteligência do que aos acontecimentos" (Alceu Amoroso
Lima. "Obedecendo" em A Ordem, v. 8. n9 1, dez. 1928).
19 Segundo suas próprias palavras: "a mim me parece que meu campo de apostolado natu
ral seria entre os homens e os académicos" (apud D EIboux. 1953, p. 243).
109
Os efeitos do perfil da nova cúpula logo se manifestam sobre o caráter do movi-
mento que, de predominantemente político, tem agora enfatizado seu cunho cul-
tural. Essa nova configuração, associada a outros fatores explicitados mais adian-
te, é responsável pelo maior empenho dispensado pelo grupo do ensino e, em es-
pecial, no da educação superior. Comentando a sucessão do Centro D. Vital, afir-
ma Villaça: "a mudança foi profunda. Ao político sucedia o universitário. Come-
çava a fase cultural do movimento católico no Brasil" (1975, p. 13, grifo nosso).
A partir da década de 30, o movimento se expande geograficamente com a cria-
ção de filiais do Centro D. Vital em várias outras cidades brasileiras. Mas o núcleo
do Rio de Janeiro permanece como a principal célula de irradiação da doutrina
católica e é ele que sofre o crescimento mais acelerado. Com propósitos apostóli-
cos e ainda sustentando que a solução dos impasses nacionais dependia de uma
regeneração moral das elites, a nova liderança procura ampliar o debate cultural,
investindo mais intensamente na cooptação de intelectuais. O número de sócios
que em 1928 era de 50 se expande para 500 em 1935. Congruente com a nova
orientação, as reuniões informais se transformam em cursos e conferências sobre
filosofia, sociologia ou assuntos relacionados com religião, atraindo um público
cada vez mais numeroso. Destinados, a princípio, apenas aos sócios do centro, es-
ses encontros acabam sendo frequentados por professores, intelectuais, políticos
e empresários mesmo que não formalmente vinculados à organização. Dentre os
conferencistas convidados destacam-se personalidades como Osvaldo Aranha, Pe-
dro Calmon, Américo Lacombe, Tasso da Silveira, Afrânio Peixoto, Maritain e
Bernanos. Ademais, deve-se também a Alceu a iniciativa de convidar para traba-
lharem no Centro D. Vital intelectuais não católicos como, por exemplo, os poe-
tas Murillo Mendes e Jorge de Lima.
Paralelamente verifica-se a ocorrência, entre 1930 e 1935, de um outro fenóme-
no de extrema relevância que confere um novo caráter ao movimento - a saber,
o desdobramento do Centro D. Vital em uma série de organizações e associações
leigas especializadas. Por meio desse mecanismo, a reação católica se ramifica em
campo cada vez mais diversificados, garantindo sua infiltração em diferentes se-
tores da vida nacional.
A Associação dos Universitários Católicos (1929) e o Instituto Católico de Estu-
dos Superiores (1932), que serão objetos de exame detalhado adiante, são as
duas entidades criadas especificamente para o desenvolvimento de um trabalho
no domínio universitário. A Confederação Nacional de Operários Católicos e as
Equipes Sociais - também geradas nesses anos — tinham por tarefa exercer o
apostolado junto aos trabalhadores urbanos, prevenindo a infiltração comunista
em suas fileiras. A Confederação da Imprensa Católica e a Associação de Livra-
rias Católicas, por sua vez, se ocupavam da divulgação e publicação de notícias e
volumes católicos. Essas seis entidades, juntamente com o Centro D. Vital, se
constituíam nas sócias componentes da Coligação Católica Brasileira. Fundada
em 1929, a coligação representou um esforço de unificar, coordenar e racionali-
zar o trabalho dessas diversas associações leigas. Em 1935 ela é substituída pela
Ação Católica Brasileira, que se converte na mais importante organização laica da
Igreja no Brasil.
O desdobramento do núcleo católico não se esgota nas instituições mencionadas.
Embora não formalmente ligados à Coligação Católica Brasileira, outros submo-
110
vimentos se formam nesse período, como a Congregação Mariana, os Círculos
Operários, a Associação dos Professores Católicos e a Liga Eleitoral Católica, to-
dos sob estrito comando da hierarquia eclesiástica. Essas duas últimas organiza-
ções, que desempenharam um papel importante na luta dos católicos no setor
educacional, serão examinadas mais adiante.
A formação dessas diferentes frentes de trabalho interconectadas aponta para a
crescente eficiência e maturidade do movimento, permitindo sua penetração em
múltiplas instâncias sociais e culturais. Assim, pouco a pouco, a cruzada militan-
te vai perdendo a feição monolítica e fechada, característica dos tempos de Jack-
son de Figueiredo, para ingressar, entre 1930 e 1945, na fase de maior prosperi-
dade e prestígio nacional.
O sucesso dessa investida não pode ser explicado apenas pelo empenho e capaci-
dade dos líderes do movimento ainda que este seja, sem dúvida, um fator expli-
cativo de peso. Entretanto, parece plausível afirmar que dificilmente a Igreja te-
ria atingido tal poder de influência se não fosse pela conjuntura bastante especial
dos anos que corriam. Os vitoriosos da Revolução de 30 não constituíam um gru-
po homogéneo; pelo contrário, o Estado então instaurado era sustentado por
uma coligação heterogénea de interesses na qual nenhum grupo tinha força sufi-
ciente para impor-se aos demais. Esse equilíbrio instável gera um "vazio de po-
der" que, de um lado, reforça o papel do Estado enquanto árbitro das tendências
existentes e, de outro, converte a Igreja em uma força política relevante para o
suporte e legitimidade do governo provisório.
D. Leme estava cônscio do poder potencial que tinha nas mãos e, na inauguração
da estátua do Cristo Redentor em 1931, que mobiliza grandes contingentes de
católicos de todas as partes do país, adverte: "O nome de Deus está cristalizado
na alma do povo brasileiro. Ou o Estado reconhece o Deus do povo, ou o povo
não reconhecerá o Estado". A advertência - que pode ser interpretada, ao mes-
mo tempo, como uma mensagem de um possível apoio — foi logo entendida por
Vargas. A partir daí consolida-se, paulatinamente, uma nova fase nas relações en-
tre o poder temporal e o eclesiástico; de uma situação de separação e desunião
entre as duas instituições passa-se a uma de cooperação e aproximação progressi-
va. Deve-se ter em mente que essa aliança foi viabilizada pelo fato de a Igreja es>
tar pautada num ideário e num tipo de atuação que se encontravam em perfeita
consonância com a ideologia autoritária e paternalista então implantada. Ou se-
ja, a persistência da linha interpretativa jacksoniana com ênfase na "ordem" e nas
"autoridades constituídas", o trabalho da Igreja de prevenção à infiltração comu-
nista em diferentes setores através da ação católica, o prestígio moral e o apoio
das massas católicas convertiam a Igreja em uma aliada indispensável ao regime.
Em troca ela obtém não apenas alguns ganhos específicos - como a reintrodução
do ensino religioso nas escolas e a não legalização do divórcio - como também o
seu reconhecimento quade oficial, consagrado na Constituição de 1934.
Foi a conjugação favorável desses fatores internos e externos ao movimento cacó-
lico que propiciou uma arrancada mais agressiva por parte da Igreja para impor
suas propostas no espaço político nacional. As transformações aludidas se retra-
duzem, com nitidez, na atuação do grupo frente ao domínio educacional. Com-
parando-se os dois momentos pelos quais atravessa o movimento católico, nota-
se que permanece inalterável o lugar de destaque atribuído à educação no seu
111
ideário. Por outro lado, o período mais recente apresenta traços diferenciais im-
portantes com respeito à fase anterior. Sintetizando, a ênfase mais cultural im-
primida ao movimento a partir de 1928, a criação de organizações leigas especi-
ficamente voltadas para um trabalho no setor de ensino e o maior poder de bar-
ganha da Igreja vis-à-vis ao Estado — são elementos que propiciam as vitórias al-
cançadas pelo grupo no campo educacional nos anos seguintes. Nesse sentido, es-
ses fatores evidenciam também o afunilamento da trajetória que os católicos per-
correm até desembocar na criação de um centro próprio de ensino superior.
1. A Igreja frente ao ensino primário, secundário e normal
Já em 1931 a Igreja obtém sua primeira vitória no setor educacional. A promul-
gação do Decreto n9 19.941 de 30 de abril desse ano tornava facultativo o ensi-
no religioso nas escolas públicas, pondo fim a quarenta anos de vigência de laici-
dade nesses estabelecimentos. Por meio desse ato governamental, D. Leme veria
concretizada uma das principais demandas expressas na sua carta pastoral de
1916, e os católicos se veriam refeitos da derrota sofrida em 1926 quando foi re-
cusada a anexação das "emendas católicas" na Constituição.
Estudiosos do movimento de renovação espiritualista, bem como alguns de seus
próprios protagonistas, tém ressaltado a intenção e o sentido político subjacen-
te à promulgação do decreto, destacando que ele se constituiu no primeiro elo de
aproximação entre a Igreja e o Governo Provisório. Em um de seus depoimen-
tos 20 , Alceu se refere a uma carta enviada por Francisco Campos a Getúlio na
qual, defendendo a necessidade de tentar uma reaproximação com a Igreja, apre-
sentava sua pasta de educação como um instrumento para restabelecer tal ponte.
O então ministro da Educação e Saúde já tinha mantido contatos com D. Leme
e o padre Franca que lhe sugeriram a conveniência e a oportunidade de introdu-
zir, em nossas leis, o ensino religioso nas escolas públicas. O jesuíta foi encarre-
gado pelo ministro de redigir a exposição de motivos que, após ser aprovada pe-
lo cardeal, foi entregue a Campos em 15 de abril. Quinze dias depois, o decreto
era promulgado. No seu livro Debates Pedagógicos, publicado em 1931, Alceu
enaltece a figura de Campos e atribui ao decreto o valor de "dissipar 40 anos de
mal-entendidos entre a Igreja e o Estado da República" (1931, p. 57).
A situação do debate educacional a partir de meados da década de 20 apresenta
alguns traços diferenciais importantes com relação ao momento imediatamente
precedente 21 . O movimento caracterizado como "entusiasmo pela educação" —
que se articula na década de 10 e no princípio dos anos 20 — propugnava a difu-
são das escolas como uma forma de assegurar ao país um lugar dentre as nações
desenvolvidas. No entanto, por volta de meados da década de 20, o "entusiasmo
pela educação" cede lugar ao "otimismo pedagógico". Ainda que também enfa-
Entrevista concedida ao CPDOC em setembro de 1976.
Essa discussão está apoiada em dois trabalhos de Jorge Nagle (1974 e 1977) sobre o
tema.
112
tizando a luta contra o analfabetismo, a perspectiva emergente se diferencia da
anterior por defender a necessidade de não apenas disseminar a escola mas, so-
bretudo, de reformulá-la segundo um novo modelo pedagógico. Presencia-se, pa-
ralelamente, o surgimento de novos padrões na forma de se abordar a temática
educacional. Esses assuntos são, pouco a pouco, retirados da esfera de compe-
tência dos movimentos políticos e organizações partidárias, conforme ocorria
na década de 10, e passam a ser pensados, pela mentalidade dominante, como
um domínio especializado e autónomo da realidade social. Em outras palavras,
a educação se converte em um campo especializado gerando uma nova categoria
de técnicos e especialistas que, de fato, se profissionaliza em torno do tema. Em
1924, o movimento ganha seu suporte institucional com a criação da Associação
Brasileira de Educação que institucionaliza e centraliza os debates promovendo
palestras, cursos, conferências e inquéritos na área. Dessa sociedade de educado-
res participam importantes intelectuais como Heitor Lira, Sampaio Dória, Lou-
renço Filho, Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo e outros. Integrando a buro-
cracia pública na área educacional, esses técnicos em educação convertem seus
princípios pedagógicos em políticas públicas ao empreenderem reformas de ensi-
no em alguns estados e no Distrito Federal.
Tomando-se em conta a ótica do grupo católico, pode-se sugerir que o "entusias-
mo pela educação" se constituía num movimento mais inócuo que o do "otimis-
mo pedagógico" pois, enquanto que o primeiro proclamava apenas a dissemina-
ção da escola, o último apresentava propostas reformistas que afrontavam direta-
mente os princípios católicos. A mobilização desse grupo de profissionais com
pretensões a monopolizar a planificação e as decisões nesse âmbito aponta para a
necessidade da Igreja de assumir uma posição mais agressiva sob pena de se ver
marginalizada de interferir num campo que, segundo seu ideário, era antes de
sua competência e da família do que do Estado ou de qualquer grupo profissio-
nal laico.
A crença, disseminada no período, de que a reestruturação do sistema escolar le-
varia, de modo quase que automático, à resolução dos problemas nacionais, re-
força a percepção de que o controle sobre o sistema de ensino se constituía num
elemento fundamental de poder - ou seja, reconhece-se a escola como uma agên-
cia, de fato, política. Em 1931, Franca pontificaria: "mais do que em qualquer
outro teatro de luta, é na escola que se fere a peleja constante que decidirá o fu-
turo dos nossos destinos (...) Quem conseguir plasmar nas suas mios o maior
número de almas novas, será o senhor da sociedade e do mundo civilizado de
amanhã" (apud D'Elboux, p. 231, grifo nosso).
Portanto, a interpretação dos próprios atores em jogo denota que a luta por im-
por seu projeto pedagógico extrapolava, em intenções e consequências, a esfera
especificamente educacional. As disputas pedagógicas assumiam uma colabora-
ção nitidamente política e o que estava na arena de debates era, em última ins-
tância, a proposta de diferentes projetos de (re)construção nacional.
Fernando de Azevedo — um dos mais eminentes representantes da Escola Nova
— atribui ao decreto de 1931 a responsabilidade pela intensificação da clivagem
entre o grupo do qual fazia parte e os educadores católicos, cujo confronto se
prolongará abertamente por quase sete anos (1964, p. 663). Escapa às nossas in-
tenções uma análise minuciosa dos princípios propugnados pelo movimento pe-
113
dagógico renovador. Antes, com o intuito de delinear esse debate, tentar-se-á fi-
xar como os católicos, a partir de sua própria perspectiva e princípios, interpre-
tam e contestam os postulados escolanovistas.
Já em 1931 , Alceu e Franca — considerados os dois expoentes do movimento de
renovação cultural e educacional católico — publicam livros nos quais estão ex-
pressos os principais pontos defendidos pela Igreja frente ao confronto. A obra
de Alceu consiste numa compilação de seus artigos escritos no decorrer daquele
ano. Nela, o autor polemiza, de um lado, com Francisco Campo e Azevedo Ama-
ral e a respeito do problema da reorganização universitária e, de outro, com dife-
rentes correntes de opinião que se manifestaram contrárias ao decreto, como gru-
pos protestantes, parte da imprensa e ainda adeptos do escolanovismo (Gustavo
Lessa e Lourenço Filho). Por sua vez, o livro de Franca é uma apologia do ensino
religioso. Remetendo-se sempre à experiência de outros países, o autor trata da
questão sob o ponto de vista pedagógico, social e jurídico e apenas o último artigo
é, especificamente, dedicado ao decreto brasileiro.
A intelectualidade católica reitera, em primeiro lugar, a importância da revolução
espiritual como a base verdadeira de qualquer progresso e como a única capaz de
gerar o consenso necessário para o restabelecimento da ordem no país 22 . A civi-
lização norte-americana é responsabilizada pelo alastramento, por todo o mundo
no decorrer do século XIX, de uma mentalidade laicista, individualista e protes-
tante, contribuindo assim para o enfraquecimento da espiritualidade e, particu-
larmente, do catolicismo. A busca de um perfil especificamente nacional, por
conseguinte, implicaria de modo inevitável numa repulsa aos dogmas importados
norte-americanos dada sua não identificação com a "alma católica" do povo bra-
sileiro. Em suma, a revolução espiritual é apontada como o meio de recuperar a
verdadeira identidade nacional, ameaçada pela "descaracterização yankista ou
soviética" (Lima, 1931, p. VII). Nessas colocações já se insinua uma crítica aos
escolanovistas, cuja matriz de pensamento provém dos países protestantes, so-
bretudo dos EUA.
A veiculação dessa espiritualidade teria, como canal básico, o sistema educacio-
nal. Assim, a filosofia pedagógica adotada não seria apenas responsável pelas con-
dições de ensino strícto sensu mas também, e especialmente, pelo tipo de socie-
dade (leia-se, seu "estado moral") construída a partir dela. Visto sob um outro
ângulo, mais do que instruir, a escola deveria se voltar para a educação de seu
povo 23 .
O movimento da Escola Nova com seu "modernismo agnóstico" fortemente in-
fluenciado pelas teorias de Dewey, é apontado como o causador, nos dias que
corriam, da "anarquia pedagógica" que assolava o país. Segundo os intelectuais
católicos, sua fragilidade - e também a razão principal porque tinha de ser com-
Sobre os quarenta anos de laicismo republicano, Alceu conclui: "a unidade espiritual da
Nação deixou de ser para o liberalismo corrente uma preocupação de ordem pública.
Cogita-se de todas as formas de unidade: a unidade política, a unidade jurídica, a unida-
de processual e a unidade fiscal. A única de que o liberalismo político dominante se de-
sinteressa é a unidade espiritual que ê. entretanto, a base de todas as demais" 11931, p.
VíV».
114
batido — derivava do fato de não estar embasado, em termos filosóficos, em um
ideal pedagógico consistente. Submetendo a filosofia à ciência e, portanto, ig-
norando o aspecto sobrenatural no ser humano, o "naturalismo pedagógico" te-
ria reduzido a psicologia a uma ciência puramente experimental - ou melhor, a
uma pseudociência pautada em pressupostos deterministas e mecanicistas.
Dada a impossibilidade de uma ciência positiva incorporar a moral verdadeira aos
seus domínios, a pedagogia dos reformadores apresentava um caráter fundamen-
talmente utilitarista e pragmático 2 ''. E, deixando-se aprisionar pelo delírio da
técnica e do progresso material, incentivavam a crise espiritual dos nossos dias
preparando o campo para a implantação dos ideais comunistas na sociedade bra-
sileira (Cf. Lima, 1931, p. 154 a 160e Franca, 1931, p. 14a 19).
Segundo os educadores católicos, o traço distintivo básico de sua pedagogia com
respeito àquela propugnada pela escola de Dewey era sua orientação e subordina-
ção às ciências especulativas — isto é, à filosofia e teologia 25 . A conclusão que
daí inevitavelmente se retira é a de que "entre religião e pedagogia (existe) um
nexo inscindível (. . .) Se a educação não pode deixar de ser religiosa, a escola
leiga que, por princípio, ignora a religião, é essencialmente incapaz de educar.
Tal é o veredictum irrecusável de toda sã pedagogia" (Franca, 1931, p. 20 e 25).
Justifica-se assim a principal bandeira de luta dos católicos frente ao debate edu-
cacional — a saber, o combate à laicização do ensino. A escola leiga, ponto-chave
do programa dos escolanovistas, é responsabilizada por estimular o egoísmo e a
anomia moral da coletividade, conduzindo-a a comportamentos anti-sociais 26 .
De modo inverso, só o ensino religioso era capaz de sedimentar a reforma inte-
rior dos indivíduos, substrato último das reformas económicas e sociais 27 .
Um segundo ponto de dissenso entre as duas correntes pedagógicas se manifesta-
va nas respostas diferenciais fornecidas à questão sobre a quem, por direito, com-
2J "O homem não vale pelo que sabe mas pelo que ô (...) É sobretudo a consciência que
faz o bom chefe de família, o bom cidadão, o bom operário, o bom profissional. E a
consciência não se forma com lições de gramática ou de geografia (...) é a educação
que plasma o homem; a instrução, quando muito, prepara técnicos. A instrução dirige-
se exclusivamente para a inteligência, a educação abraça o homem na totalidade de sua
natureza desenvolvendo-lhe harmoniosamente todas as faculdades. A instrução é ape-
nas um meio; a educação, o fim, a razão de ser da atividade pedagógica" (Franca, 1931,
p. 7 e 81.
is
26
"Como não têm um ideal, como não possuem um critério de distinção entre o bem e o
mal, optam pelo útil. E daí o pragmatismo pedagógico" (Lima, 1931, p. XVIII).
"E pela ciência especulativa que se encontra o ideal pedagógico e não pelas ciências ex-
perimentais. A pedagogia se forma de acordo com nossa concepção geral de vida (. , .)
O ideal moral, portanto, governa o ideal intelectual e social. A ética, por sua vez, se
subordina à teologia pois não vivemos em um estado de abstração filosófica ou moral
e sim de realidade histórica. E pela teologia conhecemos os dados revelados da nossa
posição real no mundo" ILima, 1931, p. XI).
Apoiando-se em informações estatísticas de vários países. Franca conclui pela relação
inversa entre ensino religioso e taxas de suicídio, delinquência e criminalidade.
115
petia educar. Interpretando as propostas escolanovistas como pressionando em
direção ao monopólio pedagógico do Estado, a intelectualidade católica acusa
essa corrente de postular o bem do Estado e da sociedade como a lei suprema
promovendo, em última instância, o aniquilamento da personalidade individual.
Também por esse motivo, sua filosofia estaria, aos olhos dos católicos, abrindo
brechas para a comunização do país.
Em contraste, os católicos defendem a competência de três agentes na condução
do processo educacional: a Igreja, a família e o Estado. A primeira, enquanto re-
presentante da sociedade sobrenatural, teria a missão de educar em virtude de
uma concessão divina. A família, por sua vez, é encarada como a agência natural
da educação. Antes de pertencer à sociedade temporal a criança pertence à famí-
lia e, por conseguinte, os pais dispõem de um direito e dever inalienável sobre
sua educação 28 .
Finalmente, concebe-se o Estado como dispondo apenas de um poder de coor-
denação e orientação de modo a viabilizar os desígnios da Igreja e da família
para a expansão integral dos membros da comunidade. Ou seja, seus direitos na
esfera educacional seriam limitados pelos direitos anteriores e superiores das
ordens natural e divina 29 . Seguindo esse raciocínio, o monopólio pedagógico es-
tatal, bem como a laicidade do ensino, são apontados como uma subversão da
hierarquia natural existente entre essas três entidades, além de representarem
uma afronta contra a moral da maioria católica do país. O combate a essas duas
propostas se constituiu nas principais bandeiras de luta do movimento católico
na esfera do ensino primário, secundário e normal.
A idéia de que os pais e a Igreja têm precedência sobre o Estado, no que tange à
educação, levou os intelectuais católicos a uma posição singular frente ao proble-
ma da erradicação do analfabetismo. A gratuidade e obrigatoriedade da instrução
— outro ponto de destaque do ideário escolanovista — é interpretada, mais uma
vez, como uma interferência do poder público em uma esfera que não era de sua
competência. Ademais, sustentando que a difusão de conhecimentos no máximo
instruía mas, de fato, não educava, o movimento católico se opõe abertamente
"A educação interior das almas é condição imprescindível da organização externa da
sociedade. Assim, o problema da reforma social se reduz, em última análise, a um pro-
blema de formação de consciência, isto é, a uma questão éticoreligiosa" (Franca, 1931.
p. 28/29).
"A criança não pertence ao Estado; aos pais, incumbe o dever e assiste o direito de lhe
ministrar a educação física, intelectual, moral e religiosa a que tem direito inviolável
(...) A escola, continuadora da primeira formação, é o complemento do lar: deve pro-
longar lhe a obra educadora, não destruí-la ou embaraçá-la. O professor, público ou
particular é, por função, um delegado e um representante da autoridade paterna. (Por-
tanto) a função educadora lê) inerente e inseparável da missão natural da família"
(Franca, 1931, p. 60/6D.
(A educação) "caberia simultaneamente á família, à Igreja e ao Estado, cada qual com
sua esfera de ação e sem que este possa negar, de qualquer modo que seja, o direito de
precedência que as duas instituições, natural e sobrenatural, cabe. na organização so-
cial do ensino e da educação nacional" (Lima, 1931, p, XIII).
116
ao "democratismo escolar" como, aliás, já o vinha fazendo desde a década ante-
rior. Em seu livro Política, escrito em 1932, Alceu — referindo-se ao fato de o
Brasil possuir naquele momento cerca de 67% de analfabetos — concluía: "essa
alma profunda da nacionalidade não precisa ler e escrever para ser humana e bra-
sileira (. . .) Sempre tive grande inclinação por fazer apologia dos analfabetos.
Pois bem, essa massa de brasileiros analfabetos é que conserva as nossas mais pu-
ras virtudes de alma" (apud Jarbas Medeiros, 1 978, p. 332, grifo nosso) 30 .
0 decreto de 30 de abril veio atender à principal demanda do ideário da Igreja.
No entanto, a vitória precisava ser consolidada. Em primeiro lugar, segundo a
perspectiva dos próprios educadores católicos, a lei apresentava falhas sobretudo
no que dizia respeito ao fato de estar destituída de qualquer estabilidade jurídi-
ca. O artigo 1 19 do referido decreto autorizava o governo a suspender o ensino
religioso, por simples aviso do ministro da Educação.
A polémica provocada pela promulgação do decreto era mais um motivo que dei-
xava os vencedores em sobreaviso. Alegando que o ato governamental feria a
neutralidade escolar e liberdade de consciência, diferentes setores pró-laicistas da
sociedade civil se mobilizam e, publicamente, manifestam seu agravo. A eles, a
intelectualidade católica responde que a escola leiga não é, nem podia ser neutra
porque colidia com os direitos e deveres da grande maioria da população 31 . Ar-
gumentavam, ainda, que o caráter facultativo do ensino religioso, conforme es-
tabelecido pelo decreto, respeitava integralmente a liberdade espiritual, pois ga-
rantia que ele seria ministrado aos filhos das famílias católicas e que dele seriam
dispensados os alunos cujos pais assim o solicitassem.
Como já referido, o decreto provocou um aguçamento do confronto entre os
educadores católicos e os reformistas. Acusando seu cunho politiqueiro e mesmo
seu caráter inconstitucional, os pedagogos escolanovistas insistiam na continuida-
de dos debates sobre o ensino religioso, advogando a necessidade de uma Consti-
tuinte para discutí-lo. A clivagem entre os dois grupos se acentuou de tal modo
que foi impossível, a partir daí, estabelecer uma zona de consenso entre as posi-
ções, como ficou atestado na IV Conferência Nacional de Educação, realizada
em dezembro de 1931. Esse congresso, conforme pedido do chefe do Governo
Provisório e do ministro da Instrução e Saúde às partes em litígio, tinha por in-
cumbência definir princípios que exprimissem a política escolar da revolução.
Quase dez anos depois Alceu, em discurso proferido na inauguração das Faculdades Ca-
tólicas, reiterava essa posição ao afirmar - , "a instrução generali2ada mas superficial, qua-
se sempre mais perniciosa que a própria ignorância, (tornou as massas) mais dóceis do
que nunca às seduções dos falsos cultos e à contaminação dos fanatismos. Se a verda-
deira cultura leva à independência, as tinturas de instrução facilitam o servilismo" (em
A Ordem, v 25, n° 25, abril de 1941).
"A escola leiga é evidentemente contrária à consciência católica (...IO Estado que va
sa pelos moldes do laicismo toda sua instrução oficial, ultrapassa as raias de sua autori-
dade, lesando os direitos espirituais de uma parte da população. Ante a escola leiga e as
prescrições de sua moral os católicos se vêem numa penosa e injusta alternativa: ou se
privam dos benefícios da instrução pública ou transgridem, sob a pressão de uma vio-
léncia moral, as leis de sua consciência religiosa. É este porventura um regime de liber-
dade espiritual?" (Franca. 1931. p. 69).
117
Entretanto, ele acabou por consumar o rompimento definitivo entre os dois gru-
pos que se consubstanciou com a publicação, em princípios de 1932, do Manifes-
to dos Pioneiros da Escola Nova. Ainda nesse ano, esse grupo se reúne na V Con-
ferência Nacional de Educação, promovida pela Associação Brasileira de Educa-
ção, para apresentar sugestões de um plano nacional de educação para o antepro-
jeto da Constituição.
A proximidade da Assembléia Constituinte, a mobilização e cooptação dos pio-
neiros para cargos de destaque na burocracia estatal, bem como a própria indefi-
nição do Governo Provisório frente aos grupos em litígio reafirmam, para os ca-
tólicos, a ideia de que a vitória obtida com o decreto não era definitiva. A fim de
evitar um retrocesso, a intelectualidade católica organiza uma intensa campanha
de modo a revidar as ações dos escolanovistas e, paralelamente, garantir a consa-
gração de seus princípios na Constituição de 34. Através da revistai Ordem e de
outros órgãos de divulgação, o Manifesto dos Pioneiros é taxado como um "do-
cumento socialista ecomunizante". Acusa-se Anísio Teixeira (seu alvo preferido),
Fernando de Azevedo e Celina Padilha, dentre outros, de professarem e dissemi-
narem a ideologia comunista pelo país.
Em fins de 1931, sob a direção de Everardo Backhauser e do padre Franca, ini-
ciam-se as atividades da Associação dos Professores Católicos, visando à agluti-
nação dos professores cariocas com o propósito de discutir problemas pedagógi-
cos e formular propostas de ação. Em 1933, a associação passa a ser organizada
nacionalmente com a criação da Confederação Católica Brasileira de Educação
que promove cursos e congressos com o objetivo de formular uma política edu-
cacional com base na doutrina cristã. Essas duas entidades se constituíam na con-
trapartida católica à Associação Brasileira de Educação. Entretanto, segundo al-
guns estudiosos, sua atuação foi bastante medíocre e os congressos nacionais pro-
movidos pelos católicos apresentavam um nível bastante inferior aos dos escola-
novistas (cf. Danilo Lima, 1978, p. 75 e ss).
Em 1933, os católicos enviam à comissão constituinte um memorial — as "Rei-
vindicações Católicas" - redigido por Alceu e Franca, no qual estavam estipula-
dos os princípios que a Igreja desejava ver consagrados na Constituição. A não
inclusão de suas propostas na Constituição de 1926 parece ter despertado os ca-
tólicos para a necessidade de se organizarem para pressionar a Assembléia Cons-
tituinte de modo a garantir a incorporação de seus pontos na nova carta. Este é
um dos objetivos que leva, em 1933, à criação da Liga Eleitoral Católica que faz
das Reivindicações Católicas seu programa de ação. Ainda que afirmando estar
subordinada ao princípio da isenção partidária e insistindo que seu propósito era
apenas o de esclarecer a consciência católica em matéria eleitoral, o fato é que
essa entidade, organizada em escala nacional, se configura em um extraordinário
instrumento político nas mãos da Igreja. Sua posição foi a de que só seriam indi-
cados ao eleitorado católico aqueles candidatos à Assembléia Constituinte de 33
e ao Congresso Nacional de 34, que apoiassem as reivindicações estipuladas pela
liga. Seu programa totalizava dez pontos e, dentre estes, três eram apontados co-
mo o programa mínimo a ser defendido, a saber, o reconhecimento do casamen-
to religioso pela lei civil e indissolubilidade do laço matrimoniada incorporação
do ensino religioso facultativo nas escolas públicas e a regulamentação da assis-
tência religiosa facultativa às forças armadas, prisões, hospitais etc,
118
A mobilização do eleitorado foi tal que a Igreja garantiu que uma parte significa-
tiva dos representantes na Constituinte fossem favoráveis à inserção de suas teses
na nova carta. De fato, após intensos debates, a Constituição de 34 confirma a vi-
tória dos católicos 32 . Não apenas seu programa mínimo é incorporado na carta
constitucional como também nela a Igreja obtém seu reconhecimento quase ofi-
cial por parte do Estado. Os católicos, que defendiam o princípio da distinção
entre Igreja e Estado não na base de dissociação mas sim numa de "colaboração
recíproca", conseguem ver esse ponto prevalecendo na Constituição de 34.
0 fato de os reformadores não terem conseguido impor seus princípios de neu-
tralidade e laicidade de ensino não autoriza concluir que foram eles os derrota-
dos absolutos no embate. A Constituição de 34 acabou por atribuir ao Estado
um papel intervencionista e diretor no Plano Nacional da Educação e garantir a
escolarização primária, gratuita e obrigatória. Ademais, seus representantes con-
tinuaram a ocupar postos de destaque na burocracia estatal e a empreender re-
formas de ensino em diversos estados. Nesse sentido, ambos os grupos vêem aco-
lhidas algumas de suas reivindicações, prevalecendo, em última instância, uma si-
tuação de compromisso e acomodação, pelo menos formal, das perspectivas em
conflito.
Após a consagração jurídica definitiva de seus princípios pedagógicos, a lideran-
ça católica manteve-se vigilante para que a regulamentação do ensino religioso
fosse implementada. O último foco de resistência encontrava-se no Distrito Fede-
ral, autónomo desde 34, e então governado por Pedro Ernesto. Anísio Teixeira,
no cargo de Secretário de Educação, procurava fazer passar uma lei para invalidar
no Distrito Federal o que a Constituição estipulara para os estados. Após uma sé-
rie de tramas políticas processadas por detrás dos bastidores e de articulações in-
terpessoais, D. Leme consegue ver posta a lei em execução em 1937 33 .
Comparativamente ao período de 1931/34, o número de artigos publicados em
A Ordem, nos três anos subsequentes, sobre a educação primária, secundária e
normal, diminui de modo significativo. E, os que aparecem, se preocupam apenas
em reenfatizar os princípios pedagógicos católicos já assinalados e/ou se limitam
a repetir as acusações aos educadores reformistas e seus princípios 3 " .
Pode-se, portanto, afirmar que em 1934 praticamente se encerra o trabalho do
movimento católico com respeito ao ensino primário, secundário e normal. Pas-
sar-se-á agora à análise do ideário e das estratégias de ação do grupo no que tange
ao ensino superior.
Para uma síntese das discussões travadas na Assembléia Nacional Constituinte sobre as
questões educacionais, (ver Cury, 1978, p. 112e ss).
Para uma descriça-Q detalhada desse acontecimento, (ver Raja Gabaglia. 1962. p. 350 b
ss).
Essa conclusão pode ser retirada a partir do trabalho de Mônica Pimenta Velloso (1977,
1? vol.l, no qual foi realizado um levantamento bibliográfico exaustivo dos artigos pu-
blicados pela revista para o período de 1921 a 1937. O material, não publicado, e divi-
dido em três volumes, encontra-se nos arquivos do CPDOC.
119
2. A Igreja e o ensino superior
0 encontro de dois postulados centrais do ideário católico — a ênfase numa re-
forma moral e espiritual associada à perspectiva elitista do movimento — já evi-
dencia o porquê de a educação superior e a criação de um estabelecimento pró-
prio de ensino terem se constituído, desde a década de 10, em metas prioritárias
do movimento de reação católica 3s .
Não obstante, mais de três décadas decorreram até que esse anseio fosse efetiva-
do. O programa deliberado de cooptação e doutrinação de elites - que já era o
objetivo último da criação do Centro D. Vital - foi assumindo, passo a passo,
uma concretude e uma especificidade cada vez maiores. O primeiro desses avan-
ços se deu com a mudança na chefia do laicato de Jackson de Figueiredo para
Alceu Amoroso Lima, em 1928. Ainda que não provocando qualquer alteração
nos fundamentos filosóficos que norteavam a ação do grupo, nem do diagnóstico
particular elaborado sobre a situação brasileira, e nem mesmo nas soluções suge-
ridas para a resolução da crise, verificou-se uma mudança na inflexão do movi-
mento, de predominantemente politico à cultural. Além disso, com a pulveriza-
ção do Centro D. Vital em diferentes frentes de trabalho de leigos, subordinadas
à Coligação Católica Brasileira, a educação e, em especial, a educação superior se
converteu em um domínio especializado do movimento. A Associação dos Uni-
versitários Católicos (1929) e o Instituto Católico de Estudos Superiores (1932),
embora com sentidos bastante distintos, foram as entidades geradas para uma
atuação da Igreja do domínio universitário. Essas são, em suma, as instâncias me-
diadoras que remontam o trajeto entre a eclosão do movimento católico, em
1922, e a fundação das Faculdades Católicas, em 1941 .
Ao assumir a presidência do centro, Alceu se dispõe a ampliar a organização por
meio da participação de novos membros rompendo, assim, com o enfeudamento
característico do momento precedente. O primeiro setor da sociedade que se ten-
ta conquistar e, paralelamente, organizar a ação, é a juventude universitária. Em
1929 nasce a Associação dos Universitários Católicos do Rio de Janeiro que, em
seus estatutos, anunciava como objetivo: "a) completar a instrução e a educação
religiosa de seus membros; b) preparar católicos militantes tanto na vida particu-
lar quanto na vida pública; c) coordenar as forças vivas da mocidade brasileira a
fim de ser restaurada a ordem social cristã no Brasil". A nova entidade sublinha-
35
Em verdade, a aspiração por uma universidade católica antecede, em muito, a década
de 20. Pelo que se tem notícia, foi Candido Mendes que. pela primeira vez. em 1866,
proclama a necessidade da criação de um centro de irradiação doutrinária Em 1900,
durante o I Congresso Católico Brasileiro, reunido na Bahia, os congressistas votaram
pela introdução, nas academias de estudos superiores existentes, de duas cadeiras —
uma de filosofia e a outra de teologia, o que não se concretizou. A primeira realização
efetiva nesse sentido ocorreu em 1908 quando, por iniciativa de D. Miguet Kruse e con-
tando com o apoio de Alexandre Correa e Leonardo Van Acker — formados em Lou-
vain — funda-se a primeira Faculdade Católica de Filosofia e Letras em São Paulo, mas
sem reconhecimento oficial. Quando no cargo de arcebispo em Recife, O. Leme tinha
por propósito implantar a universidade nessa cidade, idéia que só veio a se concretizar
em 1941 no Rio de Janeiro, (Cf. Anuário das Faculdades Católicas I (1941). Riode Ja-
neiro, 1942, p. 5 e ss).
120
va, ainda, o propósito de trabalhar em completa submissão à ortodoxia da Igreja
Católica e às autoridades eclesiásticas 36 . Padre Franca, que colocava como meta
missionária principal a "salvação da juventude universitária", foi nomeado por
D. Leme para o cargo de assistente eclesiástico da organização nascente.
A entidade passou a se constituir na seção juvenil do Centro D. Vital. As reuniões
semanais e os cursos por ela promovidos se realizavam no próprio centro e, se-
gundo Todaro, os encontros dos aucistas eram inteiramente dominados e dirigi-
dos pelos membros mais velhos do movimento (1971 , p. 238) o que, aliás, estava
em total congruência com o espírito fortemente hierarquizado da organização.
Em 1930, a revista A Ordem abre uma seção especial - a Seção Universitária -
que passa a reproduzir artigos dos jovens militantes.
No âmbito especificamente universitário, os aucistas desenvolvem algumas lutas
em prol da autonomia universitária e por uma maior representação estudantil no
Conselho Universitário. No entanto, desde muito cedo, a associação acaba se
transformando quase que exclusivamente em uma liga do combate à infiltração
comunista nas faculdades sendo inclusive responsável pela perseguição e expulsão
de alunos e professores na década de 30 37 .
O fato de a primeira ramificação do Centro D. Vital ter se verificado no campo
da atividade universitária estava em perfeita congruência com o ideário que go-
vernava o movimento. Os católicos criticam o caráter tecnicista e profissionali-
zante dos estabelecimentos oficiais existentes em nível superior que, enfim, eram
responsáveis pela geração das novas camadas dirigentes do país. Na ausência de
um templo próprio de ensino superior, a Igreja, através da Associação dos Uni-
versitários Católicos, se infiltra nesse domínio com o intuito de catolicizar essas
consciências em formação e se opor, por meio de uma ação organizada, à disse-
minação de valores contrários ou competitivos aos seus nesse meio.
Essa entidade que, em 1935, se converte na Juventude Universitária Católica,
não chega a se constituir em um antecedente direto da Universidade Católica
mas, por outro lado, ela consubstancia a primeira tentativa da Igreja em cooptar,
para o seu seio, as futuras elites dirigentes da nação, representadas nos jovens
universitários. O sucesso dessa investida, por suposto, garantiria a ressacralização
das instituições sociais e também a do Estado.
Três anos depois, o movimento consolida um avanço decisivo em direção ao fim
almejado com a criação do Instituto Católico de Estudos Superiores visualizado,
já na época, como o primeiro germe da futura Universidade Católica 38 . Criado
"Estatutos da Associação dos Universitários Católicos do Rio de Janeiro" (em A Or-
dem, v. 10, n° 7, junho de 1930).
Ainda segundo informações de Todaro, o governo apoiava publicamente a organização
sendo que Campos, Capanema e Osvaldo Aranha frequentaram, algumas vezes, as reu-
niões do grupo, encorajando suas ações (1971, p. 240).
Em discurso proferido na sessão de inauguração do instituto, Alceu concluía: "E que
nossa pequenina iniciativa possa vir a ser a semente de uma grande árvore frondosa para
que há muito apelamos: a Universidade Católica Brasileira" (em A Ordem, v. 12, n9 28,
junho de 1932). A mesma idéia estava expressa no pronunciamento proferido por Fran-
ca nessa mesma cerimónia ( 1954, p. 133).
121
em maio de 1932, esse estabelecimento teve Alceu Amoroso Lima como idealiza-
dor e fundador e foi dirigido por Sobral Pinto. O padre Franca também marca aí
sua presença como membro do corpo administrativo e docente. Na cerimónia de
inauguração, presidida por D. Leme, estavam presentes na mesa, Alceu, Fernan-
do de Magalhães (reitor da Universidade do Rio de Janeiro), Arquimedes Memó-
ria (diretor da Escola de Belas Artes) e, como representante do Governo Provisó-
rio, o ministro da Educação e Saúde, Francisco Campos. Tal fato atesta a aprova-
ção - ou, pelo menos a condescendência - do Estado frente à entidade que en-
tão nascia 39 .
Num sentido muito genérico, a finalidade do instituto coincide com o propósito
do Centro D. Vital e também com o da Associação dos Universitários Católicos
- qual seja, o de formar fileiras em torno da cristianização da inteligência nacio-
nal. Entretanto, mais importante são suas diferenças - ou melhor, a especificida-
de e particularidade que o instituto guarda quando confrontado com as associa-
ções que o precederam.
Como a Associação dos Universitários, o novo centro de excelência tinha por
propósito atingir, especialmente, os alunos da Universidade do Rio de Janeiro, vi-
sando complementar sua formação obtida nos estabelecimentos tradicionais de
ensino superior, de modo a integrá-los na ação católica (cf. Lima, 1932). Entre-
tanto, a predominância do caráter político (em sentido estrito) sobre o cultural
assumido pelo movimento aucista assinala a distância entre as duas organizações.
Ademais, e mais importante ainda, é o fato de que, com o instituto, a Igreja con-
cretiza seu anseio por um estabelecimento próprio para o adestramento de elites
católicas.
Ao assumir a presidência do Centro D. Vital, Alceu, coerente com seu propósito
de converter a organização em um "núcleo de estudos para a formação de uma
cultura católica superior", promove conferências semanais sobre temas filosófi-
cos, sociológicos, educacionais e mesmo religiosos. O nascimento do Instituto
Católico assinala um avanço nessa situação à medida em que passa a oferecer cur-
sos regulares de nível superior, sistematizados e programados segundo um curri-
culum com a duração de dois anos. Nesse sentido, diferentemente do caráter de
célula indistinta do Centro D. Vital, a nova entidade se especializa na tarefa de
transmitir uma cultura católica superior abolindo o cunho de difusidade e ama-
dorismo das palestras e cursos até então vigentes.
O instituto estabelece, no seu primeiro ano de funcionamento, três disciplinas
obrigatórias — a sociologia, a filosofia e a teologia — oferecendo ainda três fa-
cultativas: a introdução ao direito, à matemática e à biologia. Com o correr do
tempo, o curriculum se expande significativamente e a assistência se eleva, em
meados de 30, para uma média de 200 pessoas por ano 40 . Em contraste com a
A repercussão dessa iniciativa do Centro D. Vital extravasou os meios católicos e não
recebeu, por parte de alguns setores, uma acolhida favorável. Em nota publicada em A
Ordem, (v. 12. n° 28, junho de 1932), alude-se a um artigo de Carlos Lacerda publica-
do no Diário de Noticias, em 25/05/32, no qual o jornalista afirma que o empreendi-
mento colocava em perigo o Estado leigo. Obviamente a revista critica a posição, argu-
mentando contra seu sectarismo (Cf Velloso. 1977. 29 vol.).
122
orientação mais cultural imprimida aos cursos e palestras que tinham lugar no
Centro D. Vital, o programa oferecido pelo instituto não escondia suas preten-
sões "científicas". As cadeiras ministradas e as próprias pesquisas sociológicas
desenvolvidas pelos alunos procuravam seguir os cânones metodológicos univer-
salmente aceitos mas, paralelamente, procurava-se fundamentar os conhecimen-
tos no paradigma cristão de ciência 41 . Enfatizava-se a perfeita compatibilidade
entre ciência e fé como dois aspectos de uma única verdade, e também entre a
açâo social católica e as ciências sociais, sugerindo-se a sociologia como o meio
para concretizar tal cooperação. Em suma, a ciência passa a ser visualizada como
o esteio intelectual para a ação católica e, por conseguinte, instruir os alunos era,
paralelamente, prepará-los para a atividade militante.
Do ponto de vista de seus ideal izadores, o Instituto Católico teria um papel fun-
damental a desempenhar no quadro de ensino superior carioca. Na cerimónia de
abertura do novo centro de estudos, Alceu e Franca, em seus discursos, acusam a
orientação excessivamente profissionalizante e pragmática dos únicos cursos, em
nfvel superior, oferecidos ao público carioca — a saber, Engenharia, Direito e Me-
dicina. Em contraste, a originalidade e importância do núcleo católico estaria no
fato de ser ele pensado como "um instituto de estudos superiores, nobres e de-
sinteressados" (Franca, 1954, p. 126). Não houve, por parte dos católicos, na-
quele momento, a intenção de requerer a oficialização da entidade e. por conse-
guinte, os alunos dai' egressos recebiam apenas um certificado de conclusão do
curso sem nenhum valor oficial 42 . Apesar disso, a intelectualidade católica insis-
tia no caráter pioneiro de seu empreendimento, sustentando que ele vinha suprir
o vácuo existente na área de humanidade no Rio de Janeiro. De fato, por meio
desse instituto, a Igreja impõe sua presença numa esfera de saber até então desa-
tivada no Distrito Federal.
0 A título de ilustração, do programa para o ano letlvo de 1939, constavam as seguintes
áreas, cadeiras e professores responsáveis: a) Área de Estudos Teológicos: estudos teoló-
gicos (Martinho Michler O.S.B.) e ação católica (Alceu); b) Area de Estudos Filosófi-
cos: filosofia geral (frei Sebastião Tauzin O.P.) e história geral (João Gouveia Vieira);
c) Area de Estudos Morais e Políticos, economia polTtica (Romeu Rodrigues Silva), so-
ciologia (Luiz A. do Rego Monteirol, pedagogiaexperimental (D. Hélder Câmara), peda-
gogia geral (Theobaldo MirandaSantos) e história da civilização (Eremildo Luiz Vianna);
d) Área de Estudos Biológicos: biologia e antropologia (Hamilton Nogueira); e) Área
de Estudos Literários: literatura brasileira (Alceu), Latim (Guilherme Ribeiro) e filoso-
fia da linguaguem (Silvio Edmundo Elia). Folheto sobre o programa letivo do ano de
1939 do Instituto Católico de Estudos Superiores, publicado pelo Centro D. Vital.
1 A partir de 1935. A Ordem transcreve algumas teses de alunos do Curso de Sociologia.
Ver, por exemplo, Sebastião Pinheiro Magalhães Bastos, "Um Inquérito Social" (ver-
sando sobre as condições de vida dos moradores do morro do Querosene no Rio de Ja-
neiro); Maria de Lourdes Gomes. "Como pode a Sociologia Contribuir para a Reforma
Cristã da Sociedade" e Antônio Gabriel de Paula Fonseca, "A Reforma Cristã da Socie-
dade". Os dois últimos trabalhos se encontram publicados (em/4 Ordem, v. 14, n? 59,
ian. 1935); (Cf. Velloso, 1977, 3? vol ).
2 Em um de seus depoimentos, Alceu Amoroso Lima (1979) ressalta que um dos motivos
que desestimulou os católicos a requerer o reconhecimento oficial do Instituto Católico
era a presença de correntes de opinião do peso na sociedade brasileira francamente des-
favorável à privatização do ensino superior.
123
A urgência na implementação de um estabelecimento católico de ensino superior
parece ter se aguçado como uma resposta alternativa não apenas ao tipo de ensi-
no já vigente como também às propostas da reformulação dos cursos nesse nível,
que se consubstanciam no Decreto n9 19.851 de 11 de abril de 1931, referente à
reforma universitária apresentada por Francisco Campos. A insatisfação e as crí-
ticas desferidas pelo grupo à legislação oficial estão condensadas na polémica tra-
vada por Alceu com o ministro da Educação e Cultura e também com um de seus
mais ardentes defensores, Azevedo Amaral (ver Lima, 1931, p. 7 a 66).
0 decreto foi precedido por uma conferência pronunciada por Campos em mar-
ço daquele ano, na qual o ministro destacava o caráter católico inerente ao con-
ceito da universidade 43 . O líder do laicato aplaude essas declarações mas, já num
clima de desconfiança, acusa a conceituação ambígua contida no discurso, adver-
tindo que o "caráter de catolicidade que a universidade recebeu da Igreja (. . .)
não lhe concede nenhum título de substituição, nem mesmo da autonomia em
face aos dogmas da Igreja" (1931 , p. 9).
A exposição de motivos que acompanhava a reforma confirmava, para os católi-
cos, a suspeita do hiato que separava a concepção oficial de universidade daquele
por eles defendida. Em primeiro lugar, acusa-se o decreto de identificar a preten-
sa base espiritual da universidade com um conceito mais amplo de "cultura lite-
rária e artística". Portanto, ainda que a nível de intenção a reforma tenha sido
gerada para transcender o cunho profissionalizante do sistema vigente, a intelec-
tualidade católica sustenta que, ao desprezar as ciências filosóficas, ela teria ape-
nas confirmado a feição pragmática desses estabelecimentos, prolongando o de-
sastre do "laicismo pedagógico republicano". A própria criação da Faculdade de
Educação, Ciências e Letras que, segundo a ótica católica, seria o ponto de decre-
to que mais se aproximaria da ansiada Faculdade de Filosofia e Teologia, teria si-
do reduzida a uma "Escola Normal Superior para a preparação de professores pe-
lo Estado à feição de seu laicismo burguês anticristão ou, pelo menos, não cris-
tão" (Lima, 1931, p. 24/25).
Os educadores católicos antevêem, na reforma propugnada, sinais nítidos de
"contaminação marxista". Essa infiltração se evidenciaria nas duas propostas de
reorganização dos cursos jurídicos existentes e, mais ainda, na justificativa do mi-
nistro para tal procedimento. A primeira medida suprimia a cadeira de filosofia
do direito substituíndo-a pela de introdução à ciência do direito, e a segunda in-
troduzia a cadeira de economia política no primeiro ano do curso. Francisco
Campos justifica a precedência do estudo da ordem económica sobre o da ordem
jurídica alegando que "as relações económicas constituem quase todo o conteú-
do ou matéria do direito (e portanto) o fato económico passa a ser um pressu-
posto de fato jurídico" (apud Lima, 1931, p. 26). Em resposta, o líder do laicato
"Por suas origens, por sua formação, por seu caráter de universalidade, a universidade é
uma instituição católica e o espírito universitário tem de ser um esforço de totalização
espiritual (. .) universidade é, portanto, organização, cooperação e instrução na ordem
do simbólico e do espiritual. Por aí se revelam as indiscutíveis afinidades da universida
de com a Igreja, organização, ordem, estrutura e disciplina" (Francisco Campos, apud
Lima, 1931, p. 8e 91,
124
concluía: "É o triunfo de Karl Marx! A crítica aos fundamentos da filosofia do
direito foi uma de suas obras iniciais, que ele sempre considerou como funda-
mental para a sua ação revolucionária materialista. As expressões do senhor mi-
nistro da Educação poderiam ser subscritas por qualquer marxista. E ainda se diz
que é preciso combater o comunismo! Mas o verdadeiro comunismo é esse comu-
nismo dos espíritos, é essa lenta penetração da filosofia materialista em todos os
campos da atividade social. (. . .) Conquistando a Faculdade de Direito como a
está conquistando, obtém o marxismo o ponto estratégico fundamental para
contaminar toda mocidade dos cursos jurídicos e preparar assim o seu estado
maior para os golpes que premedita" (1931, p. 26/27).
O ministro parece não ter desprezado as críticas que lhe foram desferidas. Tanto
assim que em um outro artigo (1931, p. 55/66), Alceu alude a uma entrevista de
Campos na qual afirmava que na Faculdade de Educação, Ciências e Letras figu-
rava uma seção de filosofia, onde a Igreja poderia promover cadeiras de filosofia
tomista, mas advertia também que nunca tivera a intenção de criar uma universi-
dade católica. O articulista elogia a fala do ministro insistindo, entretanto, no ca-
ráter eclético e materialista da nova legislação universitária.
Ainda que as relações entre o Governo Provisório e os educadores católicos pos-
sam ter sido abrandadas, dezenove dias depois, com a promulgação do decreto
que facultava o ensino religioso nas escolas públicas, é inegável que a Igreja se
percebe como sofrendo uma derrota com a reorganização universitária proposta.
De fato, embora a legislação de 1 1/4/1931 tenha vindo a público como um esfor-
ço de contemporização entre as diversas correntes de pensamento, ela estava, pe-
lo menos a nível de intenções, mais próxima do ideário escolanovista que do ca-
tólico 44 . Por meio dela o sistema de ensino superior era colocado sob forte tute-
la do Estado, e a Igreja alijada do papel que, segundo sua perspectiva, lhe cabia
por direito natural nessa esfera.
Em suma, essas circunstancias reiteram para os católicos a convicação de que não
poderiam contar com o Estado para implementar o modelo de organização uni-
versitária por eles propugnado 45 . E, dado a feição anticristâ - ou, pelo menos
não cristã - dos estabelecimentos oficiais de ensino superior, reforça-se também
a urgência em preparar elites para disseminar os princípios cristãos na sociedade
e no próprio Estado 46 . A conquista, em caráter privado, de um espaço próprio
Cf Fernando de Azevedo. 1964. p 661 12 e Simon Schwartzman. 1977, p 171 .
Apôs avalrar a Reforma Francisco Campos, Alceu concluía: "não resta aos católicos se-
não contar com suas próprias forças. Só eles estão em condições de organizar uma uni-
versidade de base verdadeiramente espiritual" (Lima, 1931, p. 281.
Em abril de 1932 A Ordem, em editorial, proclamava: "é inútil tentarmos influir nos
destinos da Nação e do Estado sem possuirmos uma elite realmente adestrada que este-
ja em condições de por em movimento as grandes massas eleitorais em torno de nossas
idêias construtoras. E que possam resistir à pressão das ideologias que a cada momento
nos assaltam" (em A Ordem. v. 12, n° 26, abril de 1932). Tais palavras prenunciam
não só a criação da Liga Eleitoral Católica mas também a do Instituto Católico de Estu-
dos Superiores, fundado um més apôs a publicação do editorial.
125
no âmbito da educação superior se apresentava como a solução para concretizar,
a um só tempo, ambos os objetivos.
O Instituto Católico nasce, assim, como o locus no qual os católicos ensaiam e
atualizam seu modelo alternativo de organização universitária e como um cen-
tro de irradicação doutrinária preparando, em ambos os sentidos, o terreno para
a futura Universidade Católica.
A discussão sobre o modelo de universidade proposto pelos católicos - mais es-
pecificamente, sua filosofia pedagógica e organizacional - remete para o diagnós-
tico por eles elaborado acerca do "estado das ciências" e da própria universidade
no mundo e no Brasil. O universo científico é visto como atravessando um mo-
mento de desordem e anarquia geral. Essa situação se expressaria tanto em uma
crise de finalidade de cada disciplina (desenvolvimento científico para quê, com
que fim) bem como no estado de anomia que caracterizava o modo específico de
relacionamento entre os domínios científicos no mundo moderno (Cf. Lima,
1932 e Franca, 1954, p. 138 e ss).
As causas geradoras dessa situação remontavam à reforma luterana ao cartesianis-
mo, ao enciclopedismo e à supremacia, a partir do Século XIX, das ciências natu-
rais e matemáticas sobre as filosóficas e a metafísica. Esses diferentes movimen-
tos teriam rompido com a organização do pensamento escolástico e, promoven-
do um crescente divórcio entre o pensamento religioso, o metafísico e o científi-
co, teriam contribuído para produzir o mito corrosivo do "cientismo" — isto é,
a crença de que a técnica e o progresso, por si só, solucionariam todos os males
que afligiam a humanidade 7 .
Por outro lado, havia que se considerar o fenómeno moderno do avanço da divi-
são do trabalho intelectual com a consequente pulverização e especialização do
conhecimento em diferentes esferas do saber. Esse processo não é apontado, em
si mesmo, como algo pernicioso; antes, o que lhe conferia um caráter anómalo e
anòmico no mundo contemporâneo era sua subordinação à "tirania monista e
positivista". A violação da hierarquia natural entre as ciências teria acarretado a
perda da integralidade científica e a quebra de unidade no pensamento ociden-
tal, atestadas na situação de desordem e competitividade reinante entre os dife-
rentes domínios científicos. A propósito, sintetiza Franca: "cada disciplina en-
cerrou-se no isolamento do seu objeto limitado por uma abstração, desenvolveu-
se no seu domínio com onímoda independência e esqueceu-se as coordenadas e
subordinações reais e hierárquicas que a prendiam ao conjunto das outras disci-
plinas, e não raro, numa tentada usurpação de hegemonia pretendeu, com os ele-
mentos exlclusivos de sua competência, dar uma interpretação total da realida-
de (. . .) Rompeu-se a harmonia e com ela a subordinação essencial do conheci-
mento à totalidade do seu objeto. Em vez de um império legítimo das ciências
O pensamento católico elabora uma distinção entre "ciência" e "cientismo" afirmando
que. enquanto a primeira aceita um finalismo teológico, o segundo se caracterizaria por
sua oposição à metafísica. Da mesma forma, distingue-se o conceito de "progresso" do
de "evolução": o primeiro denotaria apenas os aspectos materiais ao passo que o ultimo
abrangeria também os aspectos morais de uma sociedade.
126
mais elevadas, um imperialismo invasor de cada disciplina fora de seus domínios"
(Franca, 1954, p. 130/131 > 48 .
A organização dos centros superiores do saber refletia os efeitos decorrentes des-
sa febre laicizante e, ao mesmo tempo, reforçava a dissolução do pensamento e
dos conhecimentos científicos contemporâneos. 0 regime universitário medieval,
caracterizado como uma "estrutura de solidariedade pedagógica, de ordem, de
disciplina e sobretudo de hierarquia entre as ciências" (Lima, 1931, p. 10) fora
substituído pela concepção "moderna" de universidade, que vinga na França
após a Revolução de 1 789. Ao tomar por substrado as ciências experimentais ou
sociais, o modelo francês teria decretado a morte do espírito universitário e da
própria universidade, reduzindo-a a uma reunião inorgânica de escolas sem ne-
nhum elo entre si e atuando sem nenhuma finalidade coletiva. Essa concepção
racionalista, pragmática e profissionalizante de universidade teria invadido o Bra-
sil que iniciava, com a criação da Universidade do Rio de Janeiro, em 1920, o
seu movimento de secularização universitária.
No entanto, a partir do final do Século XIX, estar-se-ia presenciando o movimen-
to de formação livre das universidades católicas que tinham por modelo a Univer-
sidade de Louvain (1834). Graças à restauração do primado do pensamento filo-
sófico no corpo de conhecimentos e à recuperação do papel da teologia enquan-
to orientadora geral de todas as ciências, os produtos das ciências naturais e so-
ciais estariam readquirindo sentido, unidade e integridade plenos. Em outras pa-
lavras, o respeito pela ordem natural hierárquica entre as disciplinas estaria devol-
vendo ao universo científico sua capacidade de se expandir harmonicamente (Cf.
Lima, 1932).
Enquanto embrião da futura Universidade Católica, o Instituto Católico de Estu-
dos Superiores pretendia se integrar no movimento internacional do renascimen-
to filosófico católico e, concomitantemente, servir como um modelo alternativo
de organização universitária no Brasil. Em verdade, a demanda última era a de
que o ensino superior se libertasse da tutela estatal para voltar a pertencer à Igre-
ja. Alegando que somente a universidade católica era capaz de realizar a síntese
orgânica do saber, Franca, no seu discurso de abertura do novo instituto, adver-
tia: "a universidade, por sua natureza, para não mentir às promessas de seu nome
e às exigências de sua função, deve ser católica; e as universidades que deixaram
de ser católicas viram-se, na mesma proporção, diminuídas como universidade"
(1954, p. 128).
Vinculado às justificativas de cunho mais académico vislumbra-se também, no
dicurso dos educadores católicos, o papel político que um centro de excelência
É notório que o diagnóstico referente ao domínio científico é equivalente, tanto no
que tange às causas como também aos efeitos, ao diagnóstico proposto para explicar as
crises nas outras instâncias sociais. A propósito, escreve Alceu ! "Deu-se com o positi-
vismo e o monismo científico o mesmo que se deu com o individualismo social. O bem
próprio superou o bem comum. Ao mesmo tempo que, nessa fase da civilização, cada
indivíduo pr ocurava sua máxima autonomia, cada ciência também procurava libertar-se
e crescer sem medida e sem se preocupar com sua posição no complexo dos conheci-
mentos humanos" (1932). Como ficará evidenciado, essa equivalência se reproduz tam-
bém a nível das soluções propostas.
127
católica teria a desempenhar na vida nacional. Tal questão remete ao diagnósti-
co particular elaborado por essa intelectualidade acerca da situação brasileira
dos anos 30, bem como às soluções por ela sugeridas. Como ficará patente, a
análise desta realidade resulta de uma transposição mecânica dos fundamentos
filosóficos elaborados pelo pensamento tradicionalista e reacionário francês e
pelos doutrinadores da contra-revolução.
O período é definido como um momento de crise. Isso se evidenciaria nas suces-
sivas revoluções civis e militares que eclodiram na década de 20, que culminaram
com a Revolução de 30 e que se perpetuavam mesmo após esta. Esse clima de
anarquia e subversão à ordem atestaria, essencialmente, a incompetência das ca-
madas dirigentes para conduzir os destinos da Nação. Desvirtuadas e internamen-
te esfaceladas em facções políticas, as elites se substituíam umas às outras no po-
der e, incorrendo nos mesmos erros e padecendo dos mesmos defeitos, elas colo-
cavam em risco a própria nacionalidade. A explicação última da crise é reduzida
à ausência de uma unidade moral e espiritual entre grupos dirigentes - prelúdio
de sua dissociação política - e sua origem remonta à implantação do regime re-
publicano que, violentando a tradição católica do povo brasileiro, instaura e dis-
semina a mentalidade laicista e materialista por todas as instâncias sociais.
O único caminho apontado como capaz de restituir às elites um projeto e um elo
moral comum era o de sua ressocialização segundo os princípios ético-religiosos,
o que implicava em devolver à Igreja o papel que por direito lhe cabia na condu-
ção dos destinos do país, Em outras palavras, só pela subordinação dos poderes
temporais ao poder espiritual é que as camadas dirigentes poderiam superar o
pluralismo leigo corrosivo e corruptor, garantindo, assim, a unidade entre todos,
a moralização da vida pública e a preservação da nacionalidade.
Segundo o ideário católico, a reforma na consciência das elites só se operaciona-
lizaria, basicamente, através do sistema de ensino superior. Ou seja, a cosmovi-
são católica percebe a universidade como o centro nevrálgico de toda a estrutura
social. O diagnóstico de que "a crise da civilização foi a crise da universidade"
(Franca, 1954, p. 195) sugere, do modo inverso, que sua reestruturação seria a
pedra de toque para instaurar um modelo alternativo de sociedade 49 .
A atribuição à universidade do papel de peça chave para a reconstrução nacional
permite deduzir que o agente que efetivasse seu controle sobre esse sistema esta-
ria garantindo, paralelamente, a base para irradiar seu poder de influência por to-
Numa cena medida, essa postulação distancia a retórica dos católicos da dos escolano-
vistas frente à questão educacional enquanto elemento chave para promover mudanças
sociais mais profundas. Supondo que todos os males nacionais seriam sanados através
da democratização e adaptação do sistema de ensino às novas necessidades geradas pela
sociedade urbano-industrial, o ímpeto dos renovadores é sobretudo canalizado para re-
formas no ensino primário, secundário e profissional. Isso não significa que, a nível de
discurso, tenha desprezado a articulação de uma rede de ensino voltada para o adestra-
mento de elites; mas. sem dúvida, em termos de uma ação concreta o ideário escolano-
vista não consegue penetrar com a mesma intensidade no ensino superior. Os católicos,
ao invés, ainda que também procurando intervir em todos os níveis do universo esco-
lar, elegem - em congruência com seus pressupostos elitistas - o sistema universitário
como seu campo estratégico de ponta.
128
das as outras esferas sociais 50 . Nesse sentido, a Universidade Católica é pensada
pelas lideranças laicas e eclesiásticas do período como tendo duplo sentido polí-
tico, fortemente relacionados entre si: de um lado, ela se constituiria em uma
instituição de combate ao ensino e à mentalidade laicistas, garantindo a resolu-
ção das crises nacionais e barrando a penetração da ideologia comunista no país;
de outro, na medida em que se responsabilizasse pelo adestramento das futuras
elites dirigentes, a Igreja, por suposto, concretizaria sua meta de recristianizar a
sociedade e a própria instituição do Estado. Por conseguinte, é plausível afirmar
que o investimento da Igreja na esfera do ensino superior extrapolava as frontei-
ras do "académico" constituindo-se de fato, também, em uma estratégia política
para recuperar seu papel na condução dos destinos da Nação.
A perspectiva acima delineada acerca das funções explícitas e implícitas de uma
universidade permanece inalterada no discurso católico nos nove anos que sepa-
ram o nascimento do Instituto Católico e a efetiva fundação das Faculdades Ca-
tólicas, em 1941. Entretanto, nesse intervalo, presencia-se a ocorrência de alguns
eventos que, embora não interferindo diretamente na criação da universidade no
sentido de apressá-la, se constituíram em fatores que se acrescentam ao ideário
do grupo, reafirmando-lhes a necessidade de continuar persistindo para alcançar
esse fim último (Cf. Lima, 1979 e padre Velloso, 1979),
A radicalização das clivagens ideológicas na primeira metade dos anos 30 se refle-
te não só nos meios universitários como também se retraduz nas diferentes cor-
rentes de pensamento pedagógicas, exacerbando os debates e as acusações mú-
tuas entre os grupos, pelo menos até 1937 51 . Assim, por exemplo, num contex-
to de forte exaltação política no ambiente universitário carioca, Alceu disputa,
nos anos de 1931 e 1933, as cátedras de economia política e introdução ao direi-
to, respectivamente, ambas na Faculdade Nacional de Direito. Nas duas tentati-
vas saem vitoriosos seus concorrentes — Leônidas de Rezende e Hermes Lima.
Segundo o depoimento de Alceu (1979) esse episódio foi interpretado, na épo-
ca, como mais um indício de que a universidade estava sendo tomada pelos co-
munistas e que os professores católicos (identificados, pelo grupo opositor, como
fascistas) tinham sua entrada barrada nas universidades oficiais.
A criação da Universidade do Distrito Federal, em 1934, promovida por Anísio
Teixeira, foi muito mal recebida pela intelectualidade católica. Acusando seu
idealizador ora de americanizar a educação brasileira, ora de comunizá-la, os ca-
tólicos apontam a nova instituição como sendo não só puramente laica mas, de
fato, anticatólica". Para conter o avanço da secularização da cultura superior
brasileira e a infiltração da pedagogia comunista nas políticas educacionais ofi-
TranscreveiTios, mais uma vez, a afirmativa de Franca sobre a importância da escola:
"Quem conseguir plasmar em suas mãos o maior número de almas novas, será o senhor
da sociedade e do mundo civilizado de amanhã"" lapud D'Elboux, p. 231).
Nesse ano, o golpe de Estado abafa, pela autoridade, os conflitos pedagógicos. Isso não
significou, como é óbvio, a supressão efetiva dessas perspectivas contrárias, elas conti-
nuam persistindo na sociedade brasileira, disputando o reconhecimento de suas propos-
tas e deslocando o debate para outras arenas menos visíveis como. por exemplo, para
dentro do Conselho Nacional de Educação.
129
ciais, o grupo volta a insistir na importância da criação de um centro livre de es-
tudos superiores católicos.
A formalização desse desígnio ocorre no 19 Congresso Católico de Educação
promovido pela Coligação Católica Brasileira de Educação, realizada no Rio, em
1934. A comissão especial destacada para estudar esse problema conclama todas
as forças educacionais católicas a reunirem esforços para fundar, o mais rápido
possível, uma universidade subordinada à Santa Sé e ao episcopado brasileiro e,
portanto, independente do Estado - ainda que conservando o direito à ajuda
monetária federal. Acentuava-se também que as faculdades de Direito, Educação,
Letras e Jornalismo deveriam receber prioridade enquanto centros de fundamen-
tal importância para a irradiação da doutrina cristã.
O projeto foi comunicado a Roma e a Santa Sé — através da "Congregação dos
Seminários e Universidades" - não só aprova como estimula a intenção. Assim,
por volta de 1938, D. Leme se achava investido por Pio XI de um mandato espe-
cial para resolver as questões relativas à futura universidade.
A última das grandes manifestações em favor da criação imediata de uma Univer-
sidade Católica veio do 19 Concílio Plenário Brasileiro reunido na Bahia, em se-
tembro de 1939. Na pastoral coletiva de todos os bispos dirigida ao clero e fiéis,
consagrava-se a importância e urgência do empreendimento, justificando-o como
"um instrumento imprescindível de sua irradiação ampla e benfazeja em todas as
esferas sociais" (apud Anuário das Faculdades Católicas I (1941), p. 8).
Em 1940, D. Leme confia à Companhia de Jesus a direção pedagógica e adminis-
trativa da futura universidade. Nesse mesmo ano, a comissão organizadora das
Faculdades Católicas, encabeçada por Alceu e Franca, inicia seus trabalhos fun-
dando a Sociedade Civil mantenedora da universidade, desenvolvendo uma am-
pla campanha financeira para angariar fundos para a instalação dos cursos. Em
outubro de 1940, o Conselho Nacional de Educação vota, por unanimidade, a
autorização prévia de funcionamento às Faculdades Católicas e, nesse mesmo
mês, Vargas assinava o Decreto n9 6.409, que autorizava a instalação do curso de
bacharelado da Faculdade de Direito e dos sete cursos da Faculdade de Filosofia
- a saber, Filosofia, Letras Clássicas, Letras Neolatinas, Letras Neogermànicas,
Geografia e História, Ciências Sociais e Pedagogia.
Em 15 de março de 1941 ocorre a solenidade de abertura dos cursos. Nessa ceri-
mónia discursam o padre Franca — enquanto reitor das Faculdades Católicas — o
ministro da Educação, Gustavo Capanema, e ainda Alceu e Afonso Pena que fa-
lam, respectivamente, em nome da Faculdade de Filosofia e da de Direito.
O motivo da escolha do curso de Filosofia como um dos núcleos iniciais da futu-
ra universidade encontra perfeita consonância com o ideário pedagógico católico.
Em seu pronunciamento, Alceu (1941) sublinha a importância da orientação es-
piritualista na formação do professorado secundário que, com uma educação im-
pregnada de sobrenaturalismo. se responsabilizaria por disseminar os dogmas cris-
sí Apôs o expurgo da Universidade do Distrito Federal, ocorrido em 1935, Alceu assume
o cargo de reitor desse estabelecimento por alguns meses entre fins de 1937 e princí-
pios de 1938.
130
tãos pelos outros níveis do ensino. Ademais, a presença de uma Faculdade de Fi-
losofia, Ciências e Letras, em conjunto com mais duas unidades, se constituía em
uma das exigências oficiais para que um estabelecimento de ensino superior rece-
besse a denominação de universidade.
De outro lado, considerando-se que as elites políticas e administrativas do país
eram compostas, basicamente, de juristas e advogados, a eleição da Faculdade de
Direito como a outra dessas células iniciais adquire bastante sentido. Por meio
dela, a Igreja pensava preparar uma escola de juristas para garantir que as leis bra-
sileiras estivessem pautadas segundo a doutrina cristã. E, adestrando as novas
camadas dirigentes, a Igreja penetraria na teia da administração pública, logran-
do por suposto, ressacralizar a instituição do Estado 53 .
O corpo docente das duas faculdades era composto, em sua maioria, por profes-
sores que lecionavam na Universidade do Distrito Federal e/ou na Universidade
do i. asil (antiga Universidade do Rio de Janeiro). Esse processo de escolha teria
se pautado, segundo Alceu, antes na qualidade intelectual dos membros do que
em sua religiosidade, ainda que tivesse sido evitada a contratação de professores
declaradamente anticatólicos. Essa determinação de D. Leme, Alceu e Franca
provocou uma certa celeuma dentro dos próprios círculos católicos, já que uma
das posições prevalecentes sustentava que uma universidade católica só poderia
absorver professores católicos (Cf. Lima, 1979). Por sua vez, conforme informa-
ções do Anuário das Faculdades Católicas, de 1941, a grande maioria dos primei-
ros alunos inscritos - 14 para a Faculdade de Direito e 70 para a de Filosofia -
provinha de renomados colégios confessionais como Notre Dame de Sion, Colé-
gio Jacobina e outros. Além das disciplinas incluídas no curriculum oficial, as
faculdades católicas, em virtude dos dispositivos de seu regimento interno, minis-
travam a todos os alunos um curso superior de cultura religiosa.
Instalados os dois cursos e entrando em funcionamento em 1941 , o passo seguin-
te a ser dado dizia respeito ao reconhecimento oficial da nova instituição. O Es-
tatuto das Universidades Brasileiras de 1931 facultava a criação de faculdades
particulares, o que talvez explique a votação unânime do Conselho Nacional de
Educação autorizando o funcionando prévio das faculdades católicas, em 1940.
Entretanto, essa medida, aparentemente descentralizadora, era compensada pe-
lo fato de a legislação deslocar o cerne do problema para a questão da equipara-
ção dos diplomas expedidos pelas faculdades privadas aos das oficiais. Ou seja,
por meio do instituto da equiparação, o governo federal conservava sua função
normativa e fiscalizadora sobre tais escolas visto que a contrapartida de tal rega-
lia se encontrava na obrigação do atendimento total às normas e padrões ditados
pela União. E, mesmo assim, o cumprimento de tais exigências era um requisito
necessário mas não suficiente para que os estabelecimentos particulares tivessem
No seu discurso de abertura das Faculdades Católicas, Afonso Pena afirmava: "os ho-
mens de direito, os juristas de profissão tém sido. ordinariamente, os homens de dire-
ção e de mando. Nem o camarada Lenin fugiu a essa norma, pois o revolucionário de
todos os tempos também era jurista. Como a Igreja poderia despreocupar-se com a for-
mação de dirigentes, da formação dos que podem conduzir o Brasil para o bem e para
o mal?" (em A Ordem, v. 52. n? 52, abril de 1941).
131
garantido seu reconhecimento oficial. De fato, as leis brasileiras delegavam a pa-
lavra final ao Conselho Nacional de Educação que deveria examinar e decidir, ca-
so a caso, os pedidos para tal reconhecimento.
A intelectualidade católica enfrentou algumas resistências ao tentar a oficialização
das faculdades católicas. Segundo o depoimento de Alceu (1979) - que era, des-
de 1931 , o representante católico no conselho, juntamente com Franca - as difi-
culdades provinham não tanto por nenhum pedido referente a um estabelecimen-
to confessional mas antes, do fato de haver, dentro do conselho, uma corrente
francamente favorável ao monopólio estatal do ensino superior. Essa posição era
encabeçada por Reinaldo Porchat que ocupava, naquele momento, o cargo de
presidente do Conselho Nacional de Educação. Frente a essa ambiência desfavo-
rável. Franca e Alceu se lançaram, dentro do próprio conselho, à tarefa de con-
quistar os votos dos membros ainda indecisos ou mais receptivos à demanda dos
católicos. Ao final, foi aprovado o pedido de oficialização e, pelo Decreto Gover-
namental n9 10.895, de 01/12/1942, as faculdades católicas eram equiparadas às
oficiais com o poder de expedir diplomas de igual valor legal.
Em 1946, a Escola de Serviço Social do Instituto Social do Rio de Janeiro, fun-
dado em 1937, se agregava às faculdades católicas, completando assim o número
de unidades requeridas pela legislação oficial para a formação de uma universida-
de. Pelo Decreto n9 8.681, de 15/03/1946, as Faculdades Católicas foram eleva-
das à categoria de universidade, dando nascimento à primeira universidade parti-
cular do Brasil. No ano seguinte, a Santa Sé agraciava a instituição com o título e
prerrogativas de Pontifícia, equiparando-a às suas congéneres que se espalhavam
pelo mundo.
Conclusão
Sumariando, não parece despropositado afirmar que o ideário católico que im-
pulsiona a criação de um estabelecimento próprio de ensino superior estava
inextricavelmente relacionado a uma proposta mais ampla, elaborada pela Igreja
no período, para a (re)construção do Estado Nacional e da nacionalidade. Os prin-
cípios que embasam esse projeto podem ser sintetizados nos seguintes pontos:
a) as origens mais profundas da crise brasileira seriam de ordem moral;
b) a tarefa de reconstrução nacional se operacionalizaria, basicamente, através de
uma reestruturação do sistema educacional;
c) a sedimentação da nacionalidade pressupunha, como medida mais importante,
a montagem de um programa deliberado de formação e treinamento de elites, en-
quanto grupo responsável para concretizar tal objetivo. A natureza dessa elite, o
tipo de socialização a que fosse submetida, os valores que adotasse seriam, portan-
to, os elementos-chaves na determinação dos resultados que se desejava atingir;
d) só uma elite homogénea, articulada e unificada em torno de princípios essen-
ciais seria capaz de se desincumbir da tarefa de construção do Estado Nacional;
e) os valores mundanos e materiais dividiam os homens enquanto que os espiri-
tuais os agregavam. A filosofia pedagógica laicista comprometia não só a unidade
do pensamento científico mas também a unidade espiritual das elites e, por con-
seguinte, a unidade política da nação. De modo inverso, os princípios sobrenatu-
132
rais católicos — que encontravam respaldo na maioria do nosso povo — forma-
vam o substrato comum da nacionalidade. Socializar as elites segundo tais prin-
cípios significaria recuperar a hierarquia organizadora no domínio do conheci-
mento que correria paralelo à revitalização moral dessas lideranças. Essa mudan-
ça na mentalidade dominante se projetaria, por suposto, na esfera das realidades
concretas, garantindo a restauração da ordem na vida política nacional;
f) deriva daí que a universidade — enquanto locus especializado de geração e so-
cialização das camadas dirigentes — tinha de ser católica. Alertando para que a
missão de uma universidade não era a de preparar técnicos, mas sim "ensinar os
mais aptos para dirigir os outros" (Franca, 1954, p. 194), tais centros de exce-
lência teriam, por função primordial, gerar um espritde corps de forma a garan-
tir que as elites daí egressas viabilizassem o projeto nacional;
g) a "recatolicização" das camadas dirigentes significaria, a um só tempo, a res-
sacralização da sociedade e do Estado e, paralelamente, devolvem à Igreja o pa-
pel que lhe cabia, por direito sobrenatural, na condução dos destinos nacionais.
O projeto da Igreja de se fazer representar no espaço do ensino superior se con-
substancia com a criação da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e
com a disseminação, a partir daí, de estabelecimentos similares em outros esta-
dos brasileiros. Nos dias de hoje, uma percentagem substancial de universitários
tem sido formada em centros católicos de ensino, denotando um rápido avanço
da educação católica superior nas últimas décadas" .
Entretanto, ainda que esses centros de excelência tenham alcançado inegável re-
nome nos meios académicos, as aspirações últimas que a intelectualidade católi-
ca pretendia ver realizadas por meio da implantação de uma universidade católi-
ca, certamente não se concretizaram. Não cabe aqui discutir se houve, nos anos
que passaram, um amadurecimento ao nível de responsabilidade pública dos di-
rigentes nacionais, nem se houve um avanço efetivo na construção da nacionali-
dade e nem mesmo em que medida a Igreja recuperou seu papel de agente de pe-
so no espaço político nacional. Importa sim afirmar que, se algum desses avanços
ocorreu, dificilmente eles podem ser atribuídos à penetração da Igreja na esfera
do ensino superior.
Mesmo abstraindo o que há de específico na ótica católica acerca das funções
de uma universidade, um erro de perspectiva permeia, de modo subjacente, seu
ideário educacional. Embora seja inegável que a universidade tenha por tarefa re-
pensar a realidade nacional e, portanto, gerar alternativas para a transformação
da mesma, por outro lado, supor que sua reorganização conduziria, de forma
quase que automática, a modificações estruturais mais profundas é, sem dúvida,
uma visão equivocada. Essa perspectiva peca exatamente por pensar a universida-
de de modo descontextualizado — ou seja, como uma instância imaculada, isola-
da e impermeável às pressões institucionais, às leis de poder - internas e externas
a ela, às injunções do mercado etc, que desfiguram os rumos idílicos proclama-
dos quando da sua criação.
Em fevereiro de 1979, o reitor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro -
professor João Augusto McDowell - declarava que 70 a 80% do corpo discente univer-
sitário brasileiro estudava em estabelecimentos católicos (Jornal do Brasil, 14/2/791.
133
No caso especifico brasileiro pode-se sugerir que, entre outros fatores, um dos
elementos que contribuiu para a defasagera entre o trajeto idealizado para a Uni-
versidade Católica e o trajeto possível e efetivado foi o estreito leque de alterna-
tivas de cursos superiores e/ou vagas ofertadas ao público carioca quando da cria-
ção desse estabelecimento 55 . Ademais, munindo-se de um corpo docente alta-
mente respeitável, a Pontifícia Universidade Católica garantia seu sucesso como
centro de excelência académico mas, por outro lado, e de modo paradoxal, aca-
bava por trair seu projeto de universidade como veículo de evangelização. Em
outros termos, a Universidade Católica se institucionalizou antes como um esta-
belecimento destinado a atender à elite em geral do que à elite católica e, nessa
medida, seu perfil confessional e seu caráter de obra militante se desvaneceram.
Por conseguinte, o projeto inicial pensado para a universidade - que podia, em
si mesmo, ser equivocado - não pôde nem mesmo ser testado. Morreu no nas-
cedouro.
Caberia investigar, em profundidade, os rumos seguidos pela Pontifícia Universi-
dade Católica, seus sucessos e fracassos e, mais ainda, suas causas explicativas.
Mas esta é uma outra história que, certamente, merece ser contada.
FONTES CITADAS
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Por exemplo, a Escola Politécnica da Universidade Católica, exatamente por ser um cur
so estritamente técnico, não constava da agenda de prioridades dos católicos. No entan
to, ela foi implantada em 1948, em resposta a um apelo dirigido ao padre Franca pelos
professores da Escola Nacional de Engenharia, em virtude da reduzida capacidade de
matrículas que essa escola - a única existente no Rio na época - podia ofertar ao pú-
blico (Cf. padre Velloso, 1979 e padre Franca, 1954. p. 140).
( * ) Os artigos do autor assinados sob o pseudónimo de Tristão de Ataíde estão indiferen-
ciadamente inseridos nesse tópico.
134
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1957b. "Notas para o Centro D. Vital (II)". A Ordem, V. 58, n? 5, nov. 1957.
1957c. "Notas para o Centro D. Vital (III)". 4 Ordem, V. 58, n? 5, dez. 1957
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2 ? Parte
O Apoio
Governamental
à Pesquisa
O Conselho Nacional de
Pesquisas e Institucionalização
da Pesquisa Científica no Brasil*
Jacqueline Pitangui Romani
A CRIAÇÃO DO CONSELHO
Muito embora apenas na década de 1950 seja implantado no país um órgão de
coordenação e orientação da produção cientffica, o desenvolvimento da ciência e
da tecnologia no Brasil esteve, desde seus primórdios, relacionado direta ou índi-
retamente à atuação do Estado, ao qual sempre coube a maior parcela de respon-
sabilidade na promoção do desenvolvimento das instituições de ciências e tecno-
logia no país. Entretanto, a criação do CNPq em 1951 (Lei n9 1.310 de 15 de ja-
neiro) constitui importante marco nas relações Estado-ciência, estabelecendo, pe-
la institucionalização do papel do Estado enquanto patrocinador direto de pes-
quisas, novo padrão de relacionamento pelo qual este assume explicitamente a
condição e apoio da atividade de produção cientifica.
Diversos fatores parecem ter concorrido para a implantação deste organismo. Por
um lado, desde fins da década de 40 a participação do Estado na economia do
país vinha se tornando cada vez mais significativa e, neste sentido, a criação do
CNPq insere-se em um quadro geral de atuação económica estatal, consoante
com o predomínio de uma política industrializante.
Por outro lado, cabe salientar que a idéia do prestígio internacional, que a cria-
ção de um Conselho Nacional de Pesquisas poderia trazer, influi consideravelmen-
te na criação deste organismo, que atuaria assim como fator de fortalecimento da
imagem do Estado enquanto agente modernizador:
"O desenvolvimento das descobertas científicas em ritmo progressivamente ace-
lerado, tem tido repercussão de espantoso alcance em todos os setores da socie-
dade de hoje, e o papel que nestas atividades vem sendo assumido pelos governos
— . _ .
• Trabalho realizado na Superintendência de Planejamento do Conselho Nacional de De-
senvolvimento Científico e Tecnológico (Coordenação de Estudos). A responsabilidade
pelos conceitos emitidos é da autora.
137
de todos os países que estão na dianteira da civilização é cada vez de maior signi
ficação e importância. Não poderia o Brasil, fugir a um movimento de âmbito uni-
versal e a criação do CNPq constitui um imperativo em face da necessidade de fa-
zé-lo ocupar o lugar cultural que lhe cabe entre as demais nações do ocidente"' .
A primeira proposição no sentido de implantar um órgão como o CNPq no pais
remonta, ao que tudo indica, a 1931, quando a Academia Brasileira de Ciências
sugere a criação de um Conselho Nacional de Pesquisas. Alguns anos mais tarde.
1936, Getúlio Vargas menciona, em mensagem ao Congresso, a necessidade da
criação de um Conselho Nacional de Pesquisa e Experimentação, ligado a proble-
mas agrícolas. Observa-se, em discursos oficiais de então, certos valores que refle-
tem claramente, mediante exemplos de países avançados, a importância atribuí-
da à ação de órgãos de ciência e técnica enquanto agentes de mudança e progres-
so sócio-econômico:
"Em maio de 1936 encaminhava Vossa Excelência ao Congresso a primeira men-
sagem presidencial cogitando da criação de um Conselho Nacional de Pesquisas
Experimentais. . .
Teria sido inegavelmente um grande passo e o Congresso Agronómico que se reu-
nira no Rio, sob convocação do ministro Odilon Braga, aplaudira calorosamente
a idéia de provocar um surto agrocientffico no Brasil, análogo ao que se verificou
nos Estados Unidos e que contribuiu de modo decisivo para a gigantesca e equili-
brada estrutura económica daquele grande país" 1 .
A criação do CNPq em 1951 deve-se também, em grande parte, à preocupação
governamental com o problema da energia atómica que era visto como questão
de segurança nacional. De fato, ao evidenciar a importância da ciência e da tecno-
logia, a segunda guerra mundial demonstrou "algo muito mais importante, que
não é apenas que a ciência e tecnologia têm papel vital no desenvolvimento de
novos armamentos e atividades deste tipo, mas que o desenvolvimento científico
e tecnológico, mesmo aplicado inclusive para fins militares, é consequência de
um processo de prazo muito longo de acumulação de conhecimento científico e
tecnológico" 5 . Desta forma, é sobretudo através da participação do Brasil na Co-
missão de Energia Atómica das Nações Unidas, em 1946, 1947 e 1948 que a
idéia da criação de um Conselho toma vulto. Em 1946, por iniciativa do almiran-
te Álvaro Alberto, que chefiava a delegação brasileira àquela Comissão, e do
Chanceler João Neves da Fontoura, foi elaborado um Projeto Nacional de Ener-
gia Atómica, que foi no entanto abandonado.
É possível supor que a experiência estrangeira teve papel bastante significativo
no abandono deste projeto e consequente proposta de um organismo cujo espec-
tro de atuação fosse mais amplo 4 . Assim, em abril de 1949, o presidente Dutra
1 Discurso proferido pelo coronel Armando Dubois Ferreira, presidente em exercício do
CNPq. ao presidente da República. CNPq, Relatório de Atividades, 1951,mimeo„ p.1.
: Considerações gerais apresentadas a sua Excelência o senhor presidente da República
pelo almirante Alvaro Alberto. CNPq, Relatório de Atividades. 1 951 . p. 11. mimeo O
grifo não aparece no original.
3 Palestra de José Pelúcio Ferreira, em comemoração dos dez anos do Funtec, rmmeo.
138
nomeou uma comissão de 22 membros, presidida pelo almirante Álvaro Alberto
Motta e Silva, cujo trabalho deu origem a um anteprojeto de lei apresentado em
maio desse mesmo ano ao Congresso, e no qual o presidente propunha a criação
de um órgão de supervisão que se apresenta como um Estado-Maior da Ciência,
da Técnica e da Indústria, neste particular "capaz de traçar rumos seguros aos tra-
balhos de pesquisas científicas e tecnológicas no pafs, desenvolvendo-os e coorde-
nando-os de modo sistemático".
De qualquer forma, o apoio à pesquisa no campo da física nuclear, a qual se atri-
buía então grande importância, não só em termos de sua utilização bélica, mas
também em função de seu aproveitamento para objetivos económicos e sociais,
continua a ser preocupação fundamental do Conselho, como se depreende da
mensagem do presidente Dutra ao Congresso, em maio desse mesmo ano:
"É um fato reconhecido que, após a última guerra, tomaram notável e surpreen-
dente incremento não só por imperativo de defesa nacional, senão também por
necessidade de promover o bem-estar coletivo, os estudos científicos, e de modo
particular os que se relacionam com o domínio da física nuclear. Neste sentido
estão dedicando esforço diuturno as nações civilizadas, em particular os Estados
Unidos, a Inglaterra, o Canadá e a França, que passaram a considerar tais estudos
tanto em função dos propósitos da paz mundial como, sobretudo, em razão dos
imperativos da própria segurança nacional. É evidente, para quem seriamente
pensa nos destinos do país, que o Brasil não poderia ficar alheio àqueles propósi-
tos decorrentes, sobremaneira, da atual conjuntura histórica" 5 .
Assim, coube ao CNPq "incentivar, em cooperação com órgãos técnicos oficiais,
a pesquisa e a prospecção das reservas existentes no país, de materiais apropria-
dos ao aproveitamento da energia atómica" 6 . Posteriormente, as atividades de
pesquisa nuclear foram absorvidas, em sua maior parte, por órgãos específicos.
Entretanto, já estavam lançadas as idéias básicas que nortearam o CNPq em suas
etapas ulteriores: o estabelecimento de convénio com entidades nacionais, a pes-
quisa orientada para fins específicos e a identificação de recursos naturais 7 . Por
outro lado, e também como requisito para o cumprimento destas mesmas atri-
buições, este órgão se propunha a apoiar a formação de recursos humanos. Pos-
teriormente, esta revelou ser a linha de ação mais dinâmica dentre suas ativida-
des de fomento à ciência e tecnologia.
Tal influência fica evidenciada no discurso do almirante Álvaro Alberto ao presidente
da República, op. cit., p. 13: "Faz esse documento menção dos motivos que determina-
ram a preferência dada a um Conselho Nacional de Pesquisas, muito mais amplo que
um órgão exclusivamente destinado ao desenvolvimento e ao controle da energia atómi-
ca. Com efeito, em todos os países dotados de uma instituição deste género, fora ela
precedida de um Conselho de Pesquisas, com ou sem essa denominação".
5 Relatório do CNPq. 1951 , p. 55: Mensagem do presidente Dutra ao Congresso Nacional,
1 2 de maio de 1 949.
* Artigo 39. parágrafo 3 da Lei n9 1 .310, de 1 5 de janeiro de 1951 Cabe ressaltar que o
almirante Álvaro Alberto sempre demonstrou preocupação em assegurar o aproveita-
mento dos materiais atómicos do pais, cuias reservas eram cobiçadas pelas grandes po-
tências.
139
Diversos fatores contribuíram para que a ação deste órgão, apesar da abrangência
de suas diretrizes iniciais, ficassem circunscritas sobretudo aos programas de auxí-
lio à formação de recursos humanos. Cabe, antes de mais nada, considerar que as
políticas de ciência e tecnologia no paísdesenvolvem-se dentro de parâmetros ad-
vindos de condicionantes históricos de crescimento económico, dos quais depen-
dem, em última instância, tanto os seus propósitos formais quanto a sua efetiva
implementação. Neste sentido, o fato de que as necessidades tecnológicas de nos-
so sistema produtivo fossem supridas basicamente mediante a importação de tec-
nologia, desvinculava, de uma certa maneira, o sistema científico do processo de
produção, afastando, consequentemente, o cientista ou o tecnólogo do mesmo 8 .
Por outro lado, cabe também considerar que o CNPq se propunha a ser um órgão
de planejamento da atividade científica, num momento em que o próprio concei-
to de planejamento ainda não estava incorporado ao discurso oficial ou à prática
económica. Segundo José Pelúcio Ferreira, "O CNPq, como um órgão de Estado-
Maior, no sentido que foi dado, na expressão usada, significava um órgão de coor-
denação, de planejamento da atividade de ciência e tecnologia que - a própria
Comissão reconhecia — era difusa, permeava todo o ministério, não era viável em
condições em que o próprio planejamento económico, muito mais fácil de perce-
ber, não era aceito tranquilamente e havia muita dúvida sobre o significado real
Seja pelo papel de coordenação a ele atribuído, seja pelo fato de que ao ser insti-
tuído estivesse intimamente relacionado à questão nuclear - domínio explícito
da segurança nacional - ou porque, ao constituir-se em órgão de fomento e coor-
denação da ciência e da tecnologia passaria a controlar não só a prática, mas so-
bretudo a ideologia do "saber científico", elemento legitimador de poder, o fato
é que o CNPq foi sempre revestido de caráter eminentemente político. Este cará-
ter reflete-se inclusive em sua articulação com os demais órgãos do Estado: o
CNPq estava diretamente vinculado ao presidente da República, que era também
o responsável pela escolha do presidente e vice-presidente desta instituição, assim
como de 5 membros de seu Conselho Deliberativo, na época constituído por 23
pessoas, recrutadas dentre membros da comunidade científica e representantes
de ministérios.
Do ponto de vista organizacional, além do Conselho Deliberativo, "órgão sobera-
É importante destacar que a experiência dos países capitalistas desenvolvidos no fomen-
to às atividades de ciência e tecnologia influiu consideravelmente, não sò na implemen-
tação de um Conselho Nacional, como também nos moldes em que tal órgão foi conce-
bido; de fato, este tinha como referência modalidades organizacionais da National Scien-
ce Foundation, dos EUA e do Conselho Superior da Pesquisa Científica e Técnica, da
França.
Não se trata de desvinculação stricto sensu e sim de uma forma específica de vinculação
que coloca os países subdesenvolvidos, como afirma Charles Cooper, na situação de con-
sumidores de ciência e tecnologia. Tal fato reflete-se não só no CNPq, mas também na
ação de fomento à C & T do BNDE. cujo apoio ao desenvolvimento tecnológico da em-
presa nacional só adquire relevância na década de 70
José Pelúcio Ferreira, op. cit.
no de planejamento e orientação das atividades do CNPq", esta instituição conta-
va com uma Divisão Técnico-Científica que "tem por finalidade a programação e
execução dos planos gerais de pesquisas aprovadas pelo Conselho Deliberativo",
e uma Divisão Administrativa.
Outro aspecto decorrente da criação do Conselho, enquanto órgão coordenador
das atividades científicas do país, diz respeito à questão da "liberdade e indepen-
dência" do pesquisador versus a intervenção e controle do Estado sobre a produ-
ção científica. A preocupação em assegurar a liberdade do cientista está incorpo-
rada pelos setores responsáveis pela criação deste órgão, pois, ao mesmo tempo
em que se justifica a atuação do Estado neste campo, enfatiza-se, mediante a
forma de atuação a ser adotada, a necessidade de garantir esta liberdade:
"Não é porém destituída de perigos a criação de um órgão destinado a orientar,
em âmbito nacional, a política geral de investigação científica. Realmente, o cli-
ma próprio de investigação é o da liberdade. . .
Afortunadamente, os nomes que Vossa Excelência houve por bem escolher para
a constituição do Conselho Deliberativo e o próprio texto da lei e do regulamen-
to que norteiam as atividades do Conselho, são garantia suficiente de que não ha-
verá restrição de liberdade de investigação científica em nosso país" 10 .
A questão da liberdade e não o comprometimento do cientista com os fatores
externos aos "verdadeiros" interesses da ciência - decorrente de um posiciona-
mento da ciência como um conjunto de relações autónomas regidas por uma ló-
gica interna própria, ou seja, como sistema quase auto-suficiente — , é considera-
da, em abundante literatura, como um dos atributos principais do homem de
ciência. Tal posicionamento parece ter sido incorporado pelos responsáveis pela
criação do CNPq.
Entretanto, esta é, a nosso ver, uma questão mal situada na medida em que suge-
re uma absolutização da autonomia de ciência quando tanto a produção deste sa-
ber quanto a sua utilização são processos sociais e, como tais, não podem ser des-
vinculados das condições históricas concretas de sua produção. Neste sentido, en-
quanto processo histórico, o desenvolvimento do conhecimento científico não se
tem realizado em termos de um processo acumulativo linear e ininterrupto. Ao
contrário, ele se desenvolve de forma acidentada, relacionada a interesses políti-
cos e económicos que interferem na produção do conhecimento, obstaculizan-
do-o em alguns setores, promovendo-o em outros. Assim sendo, o problema da
dependência ou independência da atividade científica não encontraria seus ali-
cerces em modalidades institucionais de atuação
Dos vários aspectos relativos à criação do CNPq aqui mencionados é possível es-
tabelecer algumas observações, fruto da interrelação das variáveis que mais pare-
cem ter influído para a implantação desta instituição. A criação de um órgão
central de coordenação e apoio à atividade científica não constitui, portanto, um
ato isolado, inserindo-se, ao contrário, no contexto económico e político vigente
Ofício de apresentação do senhor presidente em Exercício do CNPq ao senhor presi-
dente da República. CNPq, Relatório de Atividades. 1951. mimeo.
141
no país na década de 50, onde se fazia sentir cada vez mais a participação do Es-
tado.
Se por um lado é esta participação económica do Estado que torna possível a in-
corporação da ciência em suas áreas de atuação, por outro, o papel desempenha-
do pelo Estado é muito mais o de agente desobstaculizador de possíveis pontos
de estrangulamento do processo de industrialização em curso que de planejador
do mesmo. Neste sentido, era então inviável a efetiva realização de uma ativida-
de de coordenação e planejamento por parte do CNPq. O fato de que este órgão
se dedicasse basicamente à formação de recursos humanos é, no entanto, coeren-
te com o papel de agente removedor de pontos de "estrangulamento" do proces-
so de industrialização, dentre os quais destacava-se a falta de pessoal qualificado
para a assimilação e incorporação da tecnologia importada. Este hiato entre in-
tenções e prática reflete, de certa forma, a ausência de inserção do discurso ofi-
cial sobre ciência e tecnologia na lógica global do desenvolvimento económico
do país.
Dentre os fatores que contribuíram para a criação do CNPq destaca-se o proble-
ma da energia nuclear. De fato, a partir dos resultados alcançados com a energia
atómica" e sobretudo das esperanças então depositadas no campo das pesquisas
da física nuclear, depreende-se duas variáveis fundamentais; a crença na capacida-
de da atividade científica alcançar, por si só, grandes resultados e a consciência
de que tais resultados são frutos de processos de investigação de longo prazo.
Justifica-se assim a atuação do Estado neste campo, tanto mais porque, no que se
refere à energia nuclear, os resultados da atividade científica estariam intimamen-
te relacionados à segurança nacional. Convém lembrar que vivia-se então o clima
de guerra fria do qual fazem parte uma série de iniciativas voltadas para a defesa
do país - dentro de uma concepção de Estado forte e moderno - tais como a
criação da Escola Superior de Guerra e da Petrobrás. A grande valorização dos re-
sultados que seriam alcançados com a atividade científica é parte, por sua vez, da
crença, então dominante, de que os países subdesenvolvidos atravessam basica-
mente as mesmas etapas de desenvolvimento percorrida pelos países avançados,
onde era notório o papel desempenhado pela ciência e tecnologia.
Quanto ao prestígio internacional, outro fator que também contribuiu para a
criação deste órgão, ressalta-se que sua busca, enquanto elemento propulsor do
amparo estatal à ciência, não é fenómeno característico desta década. Neste sen-
tido, já em 1808, o apoio estatal oferecido às "expedições aqui encetadas por
cientistas europeus contribuía para a imagem de uma monarquia esclarecida e
culta, compatível com os laivos de refinamento da elite proprietária"' 2 .
Nos referimos especialmente ao Projeto Manhattan — pesquisas para a bomba atómica
- que estabelece novas articulações entre pesquisa e objetivos político-militares do go-
verno.
Vera M Candido Pereira, op. cit., p. 20.
142
ATUAÇÃO
Atuação enquanto Conselho Nacional de Pesquisas
O quadro de referência que orientou a atuação inicial do Conselho, advinha, em
grande parte, da experiência de órgãos internacionais. De fato, assuntos como
pesquisa fundamental, concessão de bolsas de estudo, troca de informações cien-
tíficas, registro de pessoal científico e técnico, carreira de pesquisador e tempo
integral, figuravam nos programas de ação de instituições congéneres dos EUA e
da França. É interessante observar que as primeiras ações deste órgão, incorpo-
rando a orientação internacional, constituem-se, de certo modo, numa forma de
aprendizagem dos caminhos a seguir na transposição daqueles mecanismos estran-
geiros ao Brasil, mais do que em ações decorrentes de propósitos e intenções cris-
talizadas. O Relatório de Atividades de 1951, do CNPq, realiza um retrospecto
de sua atuação nesse ano, atuação esta desenvolvida em seis direções, a saber:
— contato com pesquisadores e instituições de pesquisa;
— concessão de auxílios para pesquisas;
— formação e aperfeiçoamento de pesquisadores;
— reuniões científicas e intercâmbio com instituições estrangeiras e internacionais;
— trabalhos no campo da energia atómica;
— atividades de caráter geral em benefício da pesquisa.
Estas direções permanecem praticamente as mesmas nos primeiros anos de ativi-
dades do Conselho, ocorrendo, no entanto, modificações no que se refere aos
trabalhos no campo da energia atómica.
A Lei n9 1 .310, que institui o CNPq, conferiu-lhe objetivos específicos no domí-
nio da energia atómica, como se depreende do parágrafo 3? de seu artigo 39 e
do parágrafo 29 de seu artigo 59, respectivamente transcritos abaixo:
"O Conselho incentivará, em cooperação com órgãos técnicos oficiais, a pesquisa
e a prospecção das reservas existentes no País, de materiais apropriados ao apro-
veitamento da energia atómica".
"Compete ao Conselho Nacional a adoção das medidas que se fizerem necessárias
à investigação e à industrialização da energia atómica e de suas aplicações, inclu-
sive aquisição, transporte, guarda e transformação das respectivas matérias-pri-
mas para esses fins".
Além da atividade de pesquisa e prospecção destas reservas, a Lei n9 1,310, em
seus parágrafos 49 e 59, também estipula a proibição da "exportação, por qual-
quer forma, de urânio e bório e seus compostos e minérios, salvo de governo a
governo, ouvidos os órgãos competentes" e coloca, sob controle de Estado, pelo
intermédio do CNPq ou, quando necessário, do Estado Maior das Forças Arma-
das "todas as atividades referentes ao aproveitamento da energia atómica, sem
prejuízo da liberdade de pesquisa científica e tecnológica".
De acordo com tais atribuições, a ação inicial do Conselho neste campo pode ser
desdobrada em duas linhas:
-apoio à física nuclear e à física em geral;
— apoio a atividades relacionadas à energia atómica.
143
Segundo o professor Joaquim da Costa Ribeiro 13 , na época membro do Conse-
lho Deliberativo, o CNPq teria prestado, desde sua fundação, apoio sistemático ã
física nuclear e a física em geral, mediante subvenções, recursos para aquisição
de equipamentos, contratação de especialistas e concessão de bolsas a várias ins-
tituições, assim como bolsas e auxílios de estudo e aperfeiçoamento. Nos primei-
ros quatro anos de funcionamento o Conselho concedeu 88 bolsas de estudo,
aperfeiçoamento e especialização neste campo.
Se o fomento do CNPq à área de física realizava-se basicamente em forma indire-
ta, mediante contribuição aos laboratórios e institutos de investigação, sua atua-
ção inicial no campo da energia atómica desenvolvia-se de modo bastante direto.
Desta forma, o CNPq atuou no sentido de preservar as reservas nacionais de ma-
terial atómico, descobrir e explorar novos depósitos para a produção de combus-
tíveis nucleares e formar especialistas aptos a projetar e construir reatores nuclea-
res. Para tal o conselho contava com órgãos especializados como a Comissão de
Energia Atómica (CEA) e o Instituto de Energia Atómica (IEA) 14 .
Com o correr do tempo, entretanto, as atividades desenvolvidas no campo da
energia atómica foram sendo absorvidas por órgãos específicos, concentrando-
se o CNPq no apoio à física. Assim, em 1953, foi criada a Comissão de Exporta-
ção de Materiais Estratégicos no Ministério das Relações Exteriores (Decreto
n9 30.583) retirando ao CNPq funções a ele atribuídas pela Lei n9 1.310 de
15/01/51 . Da mesma forma, as atribuições da CEA passaram à Comissão Nacio-
nal de Energia Nuclear, criada em 10/10/56 pelo Decreto n° 40.1 1 0 1 s .
Dentre as outras direções para as quais se orientava a atuação do CNPq, o auxí-
lio para pesquisas e a concessão de bolsas revelaram-se, desde o início, como as
atividades principais do conselho, as quais se assegurava a maior parcela de recur-
sos. Tais recursos distribuíam-se em função dos sete setores do conhecimento en-
tão reconhecidos por este órgão, A importância relativa de cada um deles pode
ser vista no quadro I.
13 J. Costa Ribeiro, "Utilização da Energia Atómica no Brasil", Ciência e Cultura, Vol. 8.
n° 1, 1956.
'* A Comissão de Energia Atómica (CEA) foi instituída pelo Conselho Deliberativo em
27/01/55, atendendo a proposta do almirante Alvaro Alberto. Ela era composta por
11 professores e presidida pelo general Bernardino de Mattos, possuindo, dentre outras,
as seguintes atribuições: propor med.das que julgar necessárias à utilização da energia
atómica; elaborar instruções, controlar atividades referentes ao aproveitamento da ener-
gia atómica; fomentar a pesquisa e prospecção de materiais. O I nstituto de Energia Ató-
mica (IEA) foi criado pela CEA em virtude de convénios entre o CNPq e a USP, em 31
de agosto de 1956. Decreto n° 39.826. Tinha por finalidade desenvolver pesquisas so-
bre o aproveitamento da energia atómica para fins pacíficos e contribuir para a forma-
ção em ciência e tecnologia nuclear.
,s As tentativas do CNPq, sob a presidência do almirante Álvaro Alberto, de realizar um
aproveitamento autónomo da energia nuclear enfrentam uma série de obstáculos já que
contrariavam os interesses de países capitalistas hegemónicos, preocupados em garantir-
se o acesso a reservas de minerais estratégicos existentes em determinados países perifé
ricos, como o Brasil, a índia, o Congo. Vide a propósito Regina Lúcia Moraes Morel.
Considerações sobre a Politica Cientifica no Brasil, UnB, 1975, mimeo.
144
Quadro I
CNPq, Distribuição percentual de Auxílios e Bolsas Concedidos em 1952.
Bolsas
Dispêndios |%)
Setores
n9
%
em Balsas
em Auxílios
Total
Pesquisas
Tecnológicas
17
5.8
5,7
7,6
7,0
Pesquisas
Matemáticas
22
7.5
7.7
1.4
3,5
Pesquisas
F ísicas
47
16,0
14,1
33,0
27,5
Pesquisas
Químicas
37
12,6
15,6
4.8
7,5
Pesquisas
Geológicas
14
4,8
5,5
6,0
5,5
Pesquisas
Agronómicas
9
3,0
9.2
5,1
6,5
Pesquisas
Biológicas
144
49,0
40,7
40.6
41,0
Setor Técnico
4
1.3
1.5
1.5
1.5
Total
204
100%
100%
100%
100%
Em Cr$ 1.000.00
correntes
7.541
19.263
26.834
Fonte: Relatório de Atividades do CNPq (1952).
Observa-se a importância (quase metade dos recursos para bolsas e para auxílios)
das dotações concedidas às ciências biológicas. Tal fato explica-se possivelmente
por ser esta uma das áreas científicas de maior tradição e relevância no país até
então. Destaca-se, a seguir, a física, que apesar de equiparar-se à química no que
se refere ao montante destinado às bolsas, ultrapassa-a consideravelmente em ter-
mos de auxílios para pesquisa, absorvendo 33% das dotações, para o qual é pro-
vável ter contribuído a importância atribuída naquela época à questão da energia
nuclear
Para uma visão mais ampla da distribuição de recursos pelas áreas do conhecimento
nestes primeiros anos de atuação do conselho, veja-se os quadros II e III.
Observa-se, que as ciências biológicas mantém a mesma posição, encampando a
maior parte dos recursos distribuídos às bolsas (quadro II) para o período, desta-
cando-se, em seguida, a física e a química, Chama-se atenção, no entanto, para o
acentuado decréscimo dos recursos destinados à física em 1956 ' 6 , assim como pa-
ra o constante decréscimo das dotações à agronomia, que só se recupera em 1955.
Coincidentemente, neste ano é destituída a Comissão de Energia Atómica (CEA), cria-
da pelo CNPq por proposta do almirante Álvaro Alberto.
145
Quadro II
Distribuição Percentual dos Recursos Destinados a Bolsas pelo CNPq (1951 - 1956)
ANOS
Setor
1951
1952
1953
1954
1955
1956
Pesquisas
3,2
12,6
Agronómicas
19,5
9.1
2,8
15,9
Pesqu.sas
37,1
Biológicas
40,7
44,5
43,8
31,0
33,2
Pesquisas
Físicas
12,9
14.1
12,2
13,5
19,8
6.7
Pesquisas
Químicas
11.8
15.6
18,1
13,5
15,5
17,6
16.5
Tecnológicas
8.5
5,7
10,8
10,2
10,2
Pesquisas
Matemáticas
5.8
7.8
5,4
4,9
3.0
4.2
Pesquisas
Geológicas
4.4
5,5
3.4
2.4
7.8
8.9
Setor Técnico
1.5
2.8
2.2
3.3
Total Anual
100%
100%
100%
100%
100%
100-%
Em Cr$ 1.000,00
correntes
1.106
7.541
18.752
23.235
17.572
27.512
Fonte: Relatórios de Atividades do CNPq
Quanto à distribuição dos auxílios (quadro III), suas maiores porcentagens relati-
vas destinaram-se também às ciências biológicas e à física, destacando-se, no en-
tanto, o significativo aumento dos recursos alocadosà química em 1956 e à agro-
nomia em 1955.
A atuação inicial do conselho, desenvolvida nas direções apontadas e centrada no
fomento às atividades de pesquisa e formação de recursos humanos, veio preen-
cher uma lacuna no sentido de oferecer ao cientista condições mínimas de dedi-
cação integral ao trabalho de pesquisa, assim como suscitar no estudante a voca-
ção pela carreira de pesquisador. É importante salientar que o apoio financeiro —
bolsas, auxílios, etc. — oferecido pelo Estado ao cientista, nos padrões inaugura-
dos pelo CNPq, insere-se no quadro mais amplo do processo de institucionaliza-
ção da produção científica, processo este integrado ao movimento do capital e
da divisão social do trabalho e que vem atuar no sentido de consolidação da ca-
tegoria "cientista" enquanto profissão.
Entretanto, menos por problemas relativos a características de orientação e/ou
organização interna do CNPq e mais pela própria situação desta instituição — em
termos de sua posição na ordem de prioridades da política económica vigente na
década de 50 11 - o fato é que as medidas de política científica adotadas não ob-
tiveram os efeitos desejados.
Por um lado, como se ressaltou anteriormente, é sumamente vulnerável a posição
146
de um órgão voltado para a coordenação global de políticas científicas num mo-
mento em que o próprio conceito de planejamento económico a nível nacional
ainda não está incorporado à prática governamental. Por outro lado, apesar de a
política científica constituir elemento fundamental no que se refere à posição de
prestígio internacional do país - funcionando assim como um fator de legitima-
ção do poder político — a formação de recursos humanos e o auxílio à pesquisa
científica desenvolviam-se de forma desvinculada do sistema produtivo, na medi-
da em que não respondiam às necessidades efetivas do mesmo. Já em 1955, o
CNPq sofre sérios problemas orçamentários e os recursos de que dispõe ficam
muito aquém das solicitações de auxílio: ". . .constituindo o CNPq o único ór-
gão nacional de assistência à pesquisa, para ele convergiu um volume de pedidos
cuja soma, em cruzeiros, ultrapassou de muito a importância de Cr$ 60 milhões
creditada à Divisão Técnico-Científica, para atender ao fomento da pesquisa nos
diferentes setores de atividades atualmente assistidos" 1 8 .
Estas dificuldades se estendem para o período imediatamente posterior. Como
observa José Leite Lopes 19 , de 1956 até 1961, a dotação orçamentária do CNPq
decresceu de 0,28% do orçamento da união para 0,1 1% (quadro IV).
As dificuldades orçamentárias sofridas pelo Conselho estão nitidamente retrata-
das no Relatório de Atividades de 1959:
No exercício de 1959, em virtude da limitação de recursos, cuidou a DTC de as-
segurar plena continuidade dos planos de pesquisa que vinham oferecendo resul-
tados mais consistentes e aqueles cuja maior objetividade e importância para o
desenvolvimento nacional estavam sendo bem conduzidos. Como se deveria espe-
rar, não puderam ser atendidos numerosos pedidos novos de bolsas e de auxílios
que, em montante superior a Cr$ 40 milhões foram transferidos para nova apre-
ciação e possível cobertura no período de 60.
. . . A demora na entrega da 1? parcela do orçamento de 1959 e o fato de não ter
sido entregue naquele exercício o quarto trimestre impediram o atendimento de
numerosos pedidos e fizeram com que as despesas na DTC se limitassem com
enorme sacrifício para o bom andamento do trabalho científico a Cr$ 12.090.079
- quantia que a DTC pôde efetivamente aplicar praticamente igual a de 1958 20 .
Os problemas orçamentários do conselho repercutem em sua organização inter-
na, dificultando o recrutamento de pessoal qualificado para planejar a sua pró-
pria ação, o que naturalmente incide em sua atuação externa. Desta forma, as
Cabe lembrar que a condução de pesquisa no domínio da energia atómica - então su-
mamente valorizada no pais - já não fazia parte das atribuições específicas desta ins-
tituição, voltada basicamente para a formação de recursos humanos, enquanto o gover-
no canalizava sua ação para a consolidação da infra-estrutura necessária ao processo de
industrialização.
' 8 Relatório de Atividades de 1955. CNPq. p. 37.
José Leite Lopes, Ciência e Desenvolvimento. Edições Tempo Brasileiro, São Paulo.
1964.
20 Relatório de Atividades de 1959, CNPq, p. 1 1 , 1 2. O grifo não consta do original.
147
Quadro III
Distribuição Percentual dos Auxílios Concedidos pelo CNPq (1951 - 1956)
Setor
1951
1952
1953
1954
1955
1956
Pesquisas
Agronómicas
4,6
5,2
3.2
2,4
— - -
24.6
16.1
Pesquisas
Biológicas
29,4
40,6
46,7
42,0
23,5
21.0
Pesquisas
Tecnológicas
20.0
7,6
12,4
11.8
21,3
12,5
Pesquisas
Físicas
Pesquisas
Químicas
33.4
9.3
33.0
4.8
23.5
7,2
33,4
4.9
18.4
7.4
23.4
26,5
Pesquisas
Geológicas
M
6.0
3.1
2,7
4.6
4.9
Pesquisas
Matemáticas
Setor Técnico
0.2
1,6
1,4
1,4
0.2
3,7
2.8
0.1
1.6
—
Total Anual
100%
100%
100%
100%
100%
100%
Em Cr$ 1.000,00
correntes
15.498
19.293
22.061
22.802
13.944
43.284
Fonte: Relatório de Atividades do CNPq
Quadro IV
Recursos Orçamentários Destinados ao CNPq (Valores Correntes)
Ano Orçamento da União Dotação do CNPq Percentagem
Cr$ CrS
1956 71.505408.000 200.000.000 200.000.000 0,28
1957 113.971.917.000 240,000.000 240.000,000 0 22
1958 140.527.396.000 240.000.000 240.000.000 0,16
1959 156,226.543.000 270.000.000 270.000.000 0,17
1960 194 327.480.000 335 500 000 167.750.000 0,09
1961 302.289.051.000 555.500.000 335.500.000 0,11
1963 - 1.707 000 000 943.000.000
C) Percentagem da parcela recebida em relação ao Orçamento da União (Despesa fixada).
Fonte: H, Moussatché, "Algumas dificuldades e aspirações na organização da pesquisa cien-
tífica em nosso país", Revista Civilização Brasileira, 3, 1965. p. 293.
148
bolsas de estudo no estrangeiro também diminuíram - 86 bolsistas foram envia-
dos em 1956; 30 em 1961; 49 em 1962 e 71 em 1963. Esta etapa corresponde-
ria também à significativa evasão de cientistas brasileiros para o estrangeiro 21 .
Como se observa da leitura do Relatório de Atividades de 1 964, as dificuldades
enfrentadas pelo Conselho permanecem até esta data:
"O CNPq e as instituições de pesquisas vinham sofrendo, nos últimos anos, se-
guidos cortes em suas dotações orçamentárias, agravados por toda sorte de de-
longas na entrega das parcelas a serem liberadas. Resultantes desta incompreen-
são do papel que desempenham a C & T no desenvolvimento de uma nação so-
brevieram a estagnação nos organismos de pesquisas e o desencanto entre os pes-
quisadores nacionais.
Não pode ser negado o decréscimo da produção científica nacional nos últimos
anos, a partir de 1961 .
Apesar das pressões orçamentárias, o CNPq prossegue em sua linha de apoio à
produção científica, mediante concessão de auxílios e bolsas, constituindo até
1964, quando se institui o Funtec no BNDE — que se orientará basicamente pa-
ra o apoio à pós-graduação em ciências puras e exatas - o principal órgão de fo-
mento à ciência no país 23 .
Por outro lado o CNPq vinha também desenvolvendo uma linha de ação executo-
ra, mantendo sob sua administração as seguintes instituições: Instituto Brasileiro
de Bibliografia e Documentação (IBBD), criado em 1954 com a finalidade básica
de elaborar, divulgar e intercambiar informações bibliográficas e estimular o de-
senvolvimento de bibliotecas científicas e técnicas, transformado em 1975 no
Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (Ibict); o Instituto de
Matemática Pura e Aplicada (Impa), que criado em 1952 só é oficializado em
1956. Sua finalidade principal é desenvolver o ensino e a pesquisa nesta área do
conhecimento; o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazónia (Inpa), fundado
em 1954, dedicado ao desenvolvimento de pesquisas científicas próprias àquele ha-
bitat, responsável pela administração do Museu Paraense Emílio Goeidí (MPEG);
- fundado em 1966; o Instituto de Pesquisas Rodoviárias (IPR), criado em agos-
to de 1957 com a finalidade de coordenar programas, incentivar estudos e pes-
quisas de interesse rodoviário, desvinculado em novembro de 1972 do Conselho,
passando a integrar o Departamento Nacional de Estradas e Rodagens; finalmen-
te o CNPq era também responsável pelo Grupo de Organização da Comissão Na-
Regina L. Moraes Morel, op. cit., apresenta dados organizados por Thales de Azevedo, a
partir de fonte do Senado Americano, segundo as quais entre 1956 e 1961 houve signi-
ficat.va emigração de cientistas, engenheiros e méd.cos brasileiros para os EUA.
Relatóno de Atividades. de 196i. CNPq. p. 4.
Cabe mencionar que o CNPq não foi o único órgão a atuar até então, na medida em
que. também em 1951 (Decreto n° 29.741). foi criada a Campanha de Aperfeiçoamen-
to de Pessoal de Ensino Superior (Capes), voltada para a "promoção de uma campanha
para melhoria do ensino superior no pais e a realização de medidas destinadas a assegu-
rar a existência de um quadro de técnicos, cientistas e humanistas suficiente para aten-
der às necessidades dos empreendimentos públicos e privados que visam ao desenvolvi-
mento económico e cultural do Brasil".
149
cional de Atividades Espaciais (Gocnae), criado em 1961, dedicado ao desenvol-
vimento do Programa Espacial Brasileiro, que veio mais tarde - 1971 — a se
transformar no Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe).
Este quadro só se altera a partir das mudanças políticas ocorridas em 1 964 quan-
do se observa uma crescente ênfase, através dos discursos oficiais, no problema
da ciência e de tecnologia como elementos fundamentais para o projeto desen-
volvimentista do governo. Apesar de que esta ênfase não se traduzisse a curto
prazo em ações coordenadas, cabe ressaltar a instituição, nesse mesmo ano, do
Fundo de Desenvolvimento Técnico-Científico no Banco Nacional de Desenvol-
vimento Económico (BNDE), assim como uma pequena reestruturação no CNPq,
com a Lei n9 4.533 de 08/12/64, que amplia sua área de competência no sentido
de "formular a politica cientifica e tecnológica nacional e executá-la mediante
planejamento com programas a curto e a longo prazo, periodicamente revistos.
Articular-se com ministérios e mais órgãos do governo nas questões científicas
e tecnológicas, de modo a assegurar a coordenação de programas e melhor apro-
veitamento de esforços e recursos. Incentivar as pesquisas, visando ao aproveita-
mento das riquezas potenciais do país, sobretudo as que podem contribuir para
a economia, a saúde e o bem-estar. Incentivar e auxiliar financeiramente a reali-
zação de pesquisas em universidades ou institutos. Colaborar, especialmente com
o Conselho de Segurança Nacional e o Estado-Maior das Forças Armadas, na for-
mulação de conceito estratégico nacional que dependam da ciência e da tecnolo-
gia. Colaborar com as indústrias, fornecendo assistência científica e técnica".
Cabe ressaltar, entretanto, que a principal modificação ocorrida nas atribuições
deste organismo, além de desvinculá-lo completamente das atividades no campo
da energia atómica, diz respeito a uma maior explicitação de sua função de órgão
formulador de políticas, mantendo-se, ao mesmo tempo a função de coordena-
dor a ele atribuída desde o início. Neste sentido a ampliação deste papel do con-
selho seria condizente com a incorporação do conceito de planejamento á políti-
ca governamental, não se tratando assim de um discurso específico à ciência e
tecnologia e sim de um reflexo na ciência e tecnologia de ideologias governamen-
tais mais globais, concomitante ao reconhecimento da importância destas ativida-
des para o projeto de desenvolvimento nacional.
Em decorrência desta ampliação de suas funções, o conselho elabora um Plano
Quinquenal para o período de 1968/1972 em cuja introdução lê-se:
"A programação da ciência no país é apontada assim como imperativo da vida
nacional. Sua ausência ou o retardamento da sua aplicação traduzir-se-á por um
desenvolvimento anómalo, com prejuízo para uma verdadeira autonomia tecno-
lógica.
No presente documento são estabelecidas as bases de uma programação para o
desenvolvimento científico e tecnológico que deverá procurar, por aproxima-
ções sucessivas, o encontro de meios mais adequados a uma política científica
que englobe o conjunto das atividades da pesquisa fundamental, da pesquisa
aplicada e da pesquisa industrial, harmonizando, integrando e orientando os es-
forços dos centros de pesquisa e assegurando os meios financeiros para o desen-
volvimento do ensino de ciências e a realização de pesquisas".
Em termos administrativos mantém-se a mesma estrutura básica, isto é, presi-
150
dente, vice-presidente e Conselho Deliberativo, sendo este, no entanto, amplia-
do de modo a incorporar todos os membros dos novos ministérios criados, no-
meados pelo presidente da República, assim como representantes do BNDE.
No que se refere às suas atividades de fomento, o CNPq, além das linhas tradicio-
nais de atuação (bolsas e auxílios), passa a cumprir, a partir de 1968, uma pro-
gramação de apoio ao ensino da pós-graduação, e as bolsas de pós-graduação que
vigoravam a partir de 1962, passam a ser reservadas aos centros de excelência in-
dicados pela Comissão de Pós-Graduação. Em 1972 incorpora outra linha de
atuação, isto é, os Programas Integrados. Trata-se de programas voltados para o
desenvolvimento de áreas específicas em função de prioridades estabelecidas nos
Planos Nacionais de Desenvolvimento e nos Planos Nacionais de Desenvolvimen-
to Científico e Tecnológico, já previstos desde 1968 no Programa Estratégico de
Desenvolvimento (PED) e reafirmados, em sua maior parte no Plano de Metas e
Bases para a Ação do Governo (1970).
A incorporação destas novas funções já refletia uma crescente preocupação go-
vernamental com o desenvolvimento científ íco-tecnológico do país, sobretudo
com o aparelhamento institucional necessário à viabilização daquele desenvol-
vimento. Neste sentido, dentre uma série de outras medidas procede-se em 1974
a uma reestruturação substancial do conselho. Tal reestruturação insere-se em
um quadro geral de diretrizes e medidas voltadas para o fomento e organização
das atividades de produção científica e tecnológica do país, a partir de preocu-
pações explicitadas no Programa Estratégico de Desenvolvimento (PED) para o
período 1968/1970.
Sem pretender realizar aqui uma descrição exaustiva deste programa, voltado
fundamentalmente para a retomada do processo de crescimento mediante au-
mento da taxa global de poupança e de investimento público e privado e pela
manutenção de alto nível de consumo privado e da demanda global, é impor-
tante destacar o fato de que é neste programa que se encontra a primeira propo-
sição sistemática de uma política científica e tecnológica para o país.
Segundo Eduardo Guimarães e Ecila M. Ford 24 , é a explicitação tanto da neces-
sidade de acelerar o ritmo de incorporação de tecnologia ao sistema produtivo
como de realizar esforço próprio de pesquisa que diferencia este programa dos
planos anteriores, onde a questão da tecnologia aparece geralmente como conse-
quência implícita de medidas esparsas.
"A substituição de importações de produtos industriais, na forma do intenso pro-
cesso desenvolvido no pós-guerra, não é suficiente para assegurar um desenvolvi-
mento auto-sustentável, devido particularmente às suas implicações no tocante à
criação de mercado e à adequação da tecnologia instalada. Será preciso comple-
mentá-la através da substituição de tecnologia, tomada esta, racionalmente, no
sentido de adaptação de tecnologia importada e gradual criação de um processo
autónomo de avanço tecnológico. Será difícil encontrar experiência de algum
país em que o crescimento rápido e auto-sustentável não tenha sido apoiado num
processo interno de desenvolvimento tecnológico" 2 s .
Eduardo Guimarães e Ecila Ford, "Ciência e Tecnologia nos Planos de Desenvolvimen-
to" em Pesquisa e Planejamento Económico, RJ, dezembro de 1973.
151
O caráter pioneiro das diretrizes enunciadas no PED deriva não só da sistematiza-
ção e explicitação de seus objetivos formais, como do próprio conteúdo destes
objetivos que, deslocando-se do campo da pesquisa científica, fundamentalmente
universitária, orienta-se basicamente para a pesquisa tecnológica e propõe sua ar-
ticulação com as necessidades do sistema produtivo nacional.
Esta reorientação levou à formulação de uma abordagem sistemática da ciência e
da tecnologia onde as ações das diversas instituições e modalidades de fomento
seriam orientadas por um Plano Básico de Desenvolvimento Científico e Tecno-
lógico (PBDCT). Este plano reafirma a maior parte das iniciativas concernentes
à ciência e tecnologia previstas no PED, cujo alcance se faria mediante a ação
convergente de uma série de medidas.
Dentre estas iniciativas, orientadas por uma abordagem sistemática dos proble-
mas de ciência e tecnologia, destacam-se:
- a estruturação das atividades de ciência e tecnologia em termos de Sistema Na-
cional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (SNDCT);
- a criação, em 1969, do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tec-
nológico (FNDCT);
- a estruturação da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) enquanto Secre-
taria Executiva do FNDCT;
- a criação de uma Secretaria-Geral adjunta para Desenvolvimento Científico e
Tecnológico e Desenvolvimento Industrial na Secretaria de Planejamento e Coor-
denação Geral;
- a elaboração de Planos Nacionais de Desenvolvimento (PND's);
- a elaboração de Planos Básicos de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(PBDCT'5).
As medidas adotadas no país no campo do desenvolvimento científico e tecnoló-
gico levaram a uma significativa mobilização de recursos, através de vários instru-
mentos financeiros do governo federal e das dotações concedidas por agências e
fundações estrangeiras, assim como a preparação de uma estrutura institucional
adequada, da qual faz parte a reestruturação do CNPq. De fato, o reaparelhamen-
to institucional deste órgão teve por objetivo dotar o conselho de condições téc-
nicas e administrativas necessárias à sua atuação como órgão central de um Siste-
ma Nacional de Ciência e Tecnologia.
Desta forma, em 1975, de antiga autarquia, subordinada ao presidente da Repú-
blica, o CNPq se transforma, pela Lei nQ 1.619, em Fundação, com a denomina-
ção, de Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, vincu-
lada diretamente à Secretaria de Planejamento da Presidência da República 26 .
Cabelhe auxiliar o ministro de Estado Chefe da Secretaria de Planejamento prin-
cipalmente na coordenação e elaboração do PBDCT e na análise de planos e pro-
gramas de ciência e tecnologia, assim como na formulação e atualização da polí-
tica de desenvolvimento científico e tecnológico estabelecida pelo governo fede-
JS Ministério do Planejamento e Coordenação Geral, Programa Estratégico de Desenvolvi
mento. 1968/1970. "Estratégia de Desenvolvimento e Estrutura Geral", Vol I, Parte
II. p. 4-8.
152
ral. A Financiadora de Estudos e Projetos por sua vez é o principal agente finan-
ceiro do CNPq e são mantidas como unidades subordinadas ao Conselho o Insti-
tuto de Pesquisas Espaciais, o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazónia, o
Instituto Brasileiro de Bibliografia e Documentação (mais tarde Ibict) e o Institu-
to de Matemática Pura e Aplicada. São também incorporados em 1976, dois ou-
tros órgãos; o Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) e o Observatório Na-
cional ION).
AÇÃO DE FOMENTO DO CNPq
Bolsas
Procurou-se reconstituir a atuação do CNPq entre 1951 e 1976 na sua linha tra-
dicional de fomento à formação de recursos humanos e à pesquisa. Cabe, entre-
tanto, chamar atenção para alguns pontos que se deve ter presente quando se
proceder a leitura dos quadros que seguem. Antes de mais nada deve-se esclarecer
que de 1951 a 1966 o CNPq reconhecia sete setores do conhecimento: biologia e
ciências médicas, agronomia, química, física e astronomia, matemática, geologia
ou ciências da terra e tecnologia. Apesar de discriminar também um setor técni-
co, este não constitui uma área do conhecimento propriamente tal, e suas dota-
ções parecem ter-se destinado basicamente a serviços auxiliares da antiga Divisão
Técnico-Científica, tais como compra de material, serviços bibliográficos, bolsas
de especialização, etc. Sem relevância no que se refere à concessão de bolsas
(apenas quatro em 1952 e duas em 1955) este setor tem relativa importância em
se tratando da distribuição de auxílios, como se verá mais adiante.
Em 1966 são incorporados dois novos setores de conhecimento: veterinária —
que pertence hoje, junto com agricultura à área de ciências agrárias - e ciências
sociais, elevando-se assim para nove o número de setores com os quais o CNPq
classifica suas atividades.
Em 1976 a Superintendência de Desenvolvimento Científico (SDC) passa a utili-
zar como critério classificatório as áreas ou subáreas correspondentes a 15 Comi-
tés Assessores. Como os quadros apresentados a seguir cobrem a atuação do con-
selho desde o início, a classificação dos setores ou áreas obedece aos critérios tra-
dicionais, discriminando assim nove setores.
Não tendo sido possível contar com uma única fonte de dados que cobrisse sua
atuação nestas quase três décadas, os quadros foram construídos utilizando-se di-
versas fontes:
A Lei n° 1.619. que rege as mudanças destes órgãos estipulou a criação do Conselho
Científico e Tecnológico (CCT), órgão máximo de assessoramento do CNPq. composto
de 30 membros nomeados pelo presidente da República: 15 membros natos (o presi-
dente, o vice-presidente do CNPq, representantes dos ministérios, do Emfa, do BNDE,
do Iplan, da Academia Brasileira de Ciências) e 15 membros nomeados pelo período de
dois anos entre cientistas, tecnólogos ou pesquisadores. A nível de assessoramento, esti-
pulou ainda a criação de uma Consultoria Científica constituída por representantes da
comunidade científica. Criou também os Comités Assessores compostos por pesquisa-
dores, com a função de orientar a alocação de recursos para bolsas, auxílios, etc.
153
- Relatórios de Atividade do CNPq para os anos 1951-1959 e 1964-1973.
- H. Moussatché, op. cít. apresenta para 1960, 1961, 1962e 1963 dados globais
(isto é. sem discriminação por setor de conhecimento) recolhidos em conferência
pronunciada por W. Kerr perante a XVI Reunião Anual da SBPC, publicados na
revista Ciência e Cultura, v. 17, 72, 1965.
- Memória dos últimos cinco anos do CNPq, recolhidos no arquivo desta entida-
de e fornecidos pela SDC para os anos de 1 973, 1 974, 1 975 e 1 976.
Não foi possível conseguir nenhum tipo de informação para os anos de 1953 e
1954, tampouco discriminar as dotações segundo setores para 1960-63. É impor-
tante salientar que tais quadros podem não corresponder exatamente à distribui-
ção de fato realizada. Representam, no entanto, uma aproximação bastante acu-
rada da mesma.
Analisando o panorama geral da distribuição de bolsas efetuada pelo CNPq no
decorrer destes 25 anos de atuação (quadro V), observa-se a nítida predominân-
cia das ciências naturais e exatas, onde se destaca a participação prioritária das
ciências médicas e biológicas (27,3%) mantendo-se assim, no cômputo geral, as
tendências observadas no início da atuação do conselho. Cabe também ressaltar
a relevância do número de bolsas destinadas à agricultura, que, juntamente com
a veterinária são responsáveis por 22% das mesmas. Observa-se, por outro lado, a
escassa importância atribuída às ciências sociais, que tendo sido incorporadas
apenas em 1966 aos setores de conhecimento reconhecidos por este órgão, não
alcançam a captar nem mesmo 5% do total de bolsas concedidas neste período.
Finalmente, o quadro V demonstra também de forma clara a orientação do con-
selho no sentido de que o desenvolvimento de estudos e pesquisas tecnológicas
não constituía área de atuação prioritária: o número de bolsas concedidas ao se-
tor de tecnologia (no qual se incluem as ciências de engenharia) corresponde a
apenas 5,7% do total do período. De fato a implementação de programas e me-
didas de apoio ao desenvolvimento tecnológico tem sido realizada, em sua maior
parte, por outros órgãos de fomento como o Banco Nacional de Desenvolvimen-
to Económico, a Financiadora de Estudos e Projetos, a Secretaria de Tecnologia
Industrial, etc.
Analisando-se os quadros VI e V 1 1 , onde se apresenta a distribuição anual de bol-
sas pelos setores do conhecimento, observa-se que:
1. o número total de bolsas oferecidas a cada ano não apresenta tendência cres-
cente regular. Ao contrário, seu comportamento é bastante oscilante, especial-
mente entre 1 951 e 1 964 (se entre 1 951 e 1 952 o número de bolsas mais que tri-
plica, ele decresce de 1952 para 1954, aumenta entre 1955 e 1956, volta a dimi-
nuir entre 1956 e 1957, aumenta novamente entre 1957 e 1958 e volta a apre-
sentar uma queda entre 1958 e 1959). Somente a partir de 1964 passa a apresen-
tar uma tendência clara ao crescimento, particularmente acentuada entre 1975/
1976;
2. a posição relativa dos vários setores do conhecimento em cada ano é relativa-
mente semelhante ao longo de todo o período. Observa-se, assim, que a posição
de destaque alcançada pelas ciências médicas e biológicas, detectada a partir do
quadro V, é resultado de uma nítida predominância deste setor (que em nenhum
momento deixa de absorver menos de 21% das bolsas distribuídas em cada ano)
154
Quadro V
Bolsas Distribuídas pelo CNPq (1951-1976) *
Areas do Conhecimento
Bolsas
1%)
Agricultura
Ciências Médicas e Biológicas
Química
Astronomia e Física
Ciências da Terra
Matemática
Tecnologia
Ciências Sociais
Veterinária
Diversos
6.779
10.790
3.352
3.503
3.082
3.557
2.276
1.865
1.888
7
17,2
27,3
8,5
8,9
7,8
9,0
5,7
4,7
4.8
0,02
Total
39.504
100%
Fonte: Relatórios de Atividades do CNPq e dados do Arquivo (Memória do CNPq).
* Este Quadro não inclui o n° de bolsas outorgadas em 1953 e 1954, para cujos
anos não foi possível encontrar informações. Da mesma forma, não inclui o n9
de bolsas outorgadas em 1960, 1961, 1962 e 1963 pois não foi possível conse-
guir os Relatórios de Atividades do Conselho nestes anos. Conseguiu-se, entre-
tanto, informação quanto ao número total de bolsas concedidas nestes anos (sem
discriminação por áreas do conhecimento). Assim, em 1960 foram concedidas
452 bolsas; em 1961, 504; em 1962, 550 e em 1963, 584. Não inclui tampouco
as bolsas para o exterior entre 73-76. Se computados os totais para 60-63 e do-
tações para o exterior de 73-76 o número total se elevaria para 42.363.
desde 1951 até 1976. No outro extremo da escala encontram-se as ciências so-
ciais que recebem sempre as porcentagens mais baixas de bolsas;
3. em decorrência da política de prioridades já salientada, observa-se uma acen-
tuada concentração das bolsas em dois setores, biologia e agricultura, que para o
período examinado têm sempre em conjunto uma participação superior a 40%
das bolsas outorgadas. Observa-se, por outro lado, que a partir de 1968 o setor
de tecnologia adquire maior relevância relativa, passando a terceira prioridade do
conselho. Em contrapartida a química, também a partir de 1968, apresenta uma
perda de importância relativa que se consolida nos anos seguintes. Cabe destacar,
entretanto, que tal perda refere-se apenas a valores relativos já que em valores
absolutos (quadro VI) o setor acusa um crescimento do número de bolsas.
No que se refere à outorga de bolsas para o exterior (quadro VIII), observa-se
que, apesar de mostrar crescimento em termos absolutos, sua participação no to-
tal de bolsas apresenta oscilações significativas de ano para ano e seu comporta-
mento ao longo do período indica claramente uma tendência relativa decrescen-
te, inversa portanto a apresentada pela distribuição global de bolsas desta entida-
de. De fato, o peso relativo das bolsas para o exterior sobre o total de bolsas ofe-
recidas a cada ano pelo conselho é significativamente mais elevado (20,2%, 1 8,6% e
155
Quadro VI
Número de Bolias distribuídas pelo CNPq - para o Pais a o Exterior (1951 1976)
Areas do conhecimento
Ano»
Agronomia
Oulm.c.
Astronomia
e Física
C,»ncias dl
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Tecnologia
Ci4ncies
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Total
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Sociais
Biológicas
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1960
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1962
1963
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30
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120
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1.572
1969
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209
198
235
159
76
94
2 .43
1970
361
758
244
250
233
259
343
1.0
142
2 700
1971
533
309
303
263
33.
573
163
.93
3.46.
1972
782
781
252
35.
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3.725
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1976 •••
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1 873
365
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3 557
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ínnte Hel.to..osrteAt,,,di>desdoCNPqll95l 19721 Oados «o Arq u ,vo - Mamona do CNPa ( 1973 761
Obir-rviÇOIK:
1951 o 'o. a! de bolsas par a 9 Isica compreende bolsas para Matemática.
1955 o total de Bolsas do Matemática inclui bolsai para « Istca. O toiai de bolsas 1 223) mc.ui bolsas vigentes e novas dotações.
* " 1 973. 1974. 1 975 e 1976: os lotais para este ano telerem-se apertas a *>o'sas concedidas no país Em 1976 as bolsas de Pesquisa classificadas pela Sopei intendência
de Desenvolvimento Ciennlicocomo "nova sistemática" estão também contabilizadas. Neste ano o setor Agricultura inclui dotações para Veterinária.
••■•0 Total 39 504 não mc.ui o nomeio de bolsas concedidas em 1960. 61 . 62 e 63. nem as bolsas do emeilor concedidas em 73. 74, 75 e 76. St tais dotações tossem
incluídas o lotai geral se elevaria par» 42 363
i
Quadro VII
Distribuição Relativa das Bolsas Outorgadas pelo CNPq para o Pais e o Exterior (1957 1976)
AREAS DO CONHECIMENTO
Ano, /
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Médicas «
Biol6o.c»>
Química
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Ciências da
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Matemática T
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Total
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19.4
100%
1962
49.7
12 7
16.2
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7 6
5,9
100%
1953
1954
13 6
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19.9
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4.9
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100%
1965
33 3
36,0
14.6
8 9
7.4
5.2
5 6
100%
1966
1967
163
34 2
11.6
10.3
10,2
9.3
74
1.2
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100%
1971
15.4
24.4
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100%
1976 •••
19/1
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100%
Fome Re.a.6.,osd«A|.v,dedMdoCNI>a..95l 19731 Dartoido Arosuvo Membi..ido CNPo 1 1973 7„i
Observações
1951 o tora. de bolsas para Física compreende bolsas paia Maiemetica
•■ 1955 o loiai dcboisásde Maierr.ai.ca ,ndu, bolsas para F li.ca. O 101a. de bolsas 17731 «i». bolsas vaemci c no.asdoiaçAes
'•• 19 73. 1974 19 75 | 1976 os totais paia este ano relerem se apenas a bolsas concedidas no pais. Em 1976 a» bolsas de Pesouna classificadas peioSupe.imen
dèneiade Desenvolvimento CanlLico como nova sistemática f esiáo lambem contab.li/ooas. Nesie ano o seioi Aoiicu.iura inc.u. dotacies para Velerinin.7
Quadro VIII
Bolsas no Exterior concedidas pelo CNPq (1955- 1976)
Anos **
NV de Bolsas
Percentagem sobre total de
bolsas oferecidas em cada ano
1956
45
20,2%
1956
92
18,6%
1957
90
22,2%
1958
76
14,6%
1959
45
9,4%
1960
26
5.7%
1961
1962
30
6,0%
1963
1964
26
61
4,5%
10,1%
1965
76
8,9%
1966
77
6,6%
1967
95
6,8%
1968
110
7,0%
1969
154
7^2%
1970
153
5,7%
1971
140
4,1%
4,1%
1972
152
1973
124
2,7%
1974
139
3,2%
1975
185
4,0%
1976
321
4.9%
Total '
2.217
5,2%
Fonte: Relatórios de Atividades do CNPq (1955 - 1972)
Superintendência de Desenvolvimento Científico: Memória do CNPq (1973- 1976)
* 5,2% corresponde ao total de bolsas no exterior sobre o total geral (pafs e ex-
terior) de bolsas concedidas pelo CNPq neste período.
" * Não foi possível conseguir informação sobre o número de bolsas no exterior
em 1952. 53. 54 e 1961.
22,2%) nos três primeiros anos da série apresentada. A partir de 1969 e possivel-
mente em função do maior estímulo e consequente expansão dos programas de
pós-graduação, no país, para o qual concorreu não só as iniciativas do CNPq -
programa de pós-graduação, identificação de centros de excelência, etc. - como,
também do Funtec e da Finep, dentre outros órgãos, a proporção de bolsas no
exterior decai consideravelmente. Assim, se em 1955 20,2% das bolsas outorga-
das destinavam-se à realização de estudos no estrangeiro, 20 anos depois este per-
centual corresponde a apenas 4% das mesmas.
Quanto à sua distribuição por áreas do conhecimento nos últimos cinco anos de
atuação do conselho (quadro IX), constata-se a manutenção da relevância das
ciências exatas, ressaltando-se, entretanto, que o mesmo não acontece com as
158
Quadro IX
Bolsas no Exterior concedidas no Quinquénio (1972 -1976)
1972
1973
1974
1975
1976
□ 1 kA
BLM
10 (10%)
0» (7,3%)
to IO CO/ \
12 (8,6%)
1b (B,l%)
A A ln w\
FA
23 (23%)
30 (24,2%)
33 (23,7%)
39 (21,2%)
54 (16.8%)
QU
10 (10%)
09 (7,3%)
11 (7,9%)
08 (4,3%)
10 (3,1%)
MA
21 (21%)
30 (24,2%)
29 120,9%)
32 (17,3%)
24 (7,5%)
GC
09 (9%)
11 18,9%)
11 17,9%)
08 (4,3%)
22 (6,9%)
AG
08 18%)
08 16.5%)
10 (7,2%)
15 (8,1%)
20 (6,2%)
TC
16 116%)
22 (17,7%)
26 (18,7%)
50 (27.0%)
102 (31,8%)
CS
03 (3%)
05 (4,0%)
07 (5,0%)
18 (9,7%)
45 (14,0%)
Total
100 (100%)
124 (100,0%)
139 (100,0%)
185 (100,0%)
321 (100,0%)
Fonte: Dados do Arquivo do CNPq
ciências médicas e biológicas, que não ocupam posição predominante, reservada
neste quinquénio à Física. Chama atenção também a posição da tecnologia que,
alcançando sempre frequências relativas elevadas, é responsável, em 1975, por
27% das bolsas para o exterior concedidas nesse ano.
Auxílios
Quanto aos auxílios, que constituem um dos instrumentos mais eficazes de apoio
è ciência do CNPq, eles estão agrupados em duas categorias, capital e custeio, po-
dendo no entanto serem solicitados simultaneamente pelo pesquisador. Os auxí-
lios de capital compreendem equipamento, material permanente e material biblio-
gráfico. Os auxílios de custeio cobrem despesas com material de consumo, isto é,
material de duração precária. Além destas categorias, o CNPq também concede
auxílios para serviços de natureza técnica ou especializada; contrato de pesquisa-
dores nacionais ou estrangeiros; participação de pesquisadores em congressos e
reuniões científicas; realização de congressos e outras reuniões científicas; mis-
sões e expedições científicas; publicação de livros textos. As modalidades atuais
de auxílio não diferem significativamente daquelas vigentes no início de atuação
do conselho.
A análise da distribuição dos auxílios por áreas do conhecimento no período
1964-1976 (quadro X e XI) permite estabelecer as seguintes considerações:
1. observam-se no período, modificações quanto ao número e tipo de áreas do
conhecimento abrangidas. Assim, a área denominada setor técnico desaparece a
partir de 1966 e nesse mesmo ano incorporam-se as áreas de ciências sociais e ve-
terinária. Por outro lado. algumas áreas experimentavam através do período, uma
maior amplitude na medida que assimilam atividades conexas, como é o caso de
astronomia na área de física, ciências médicas na área de biologia, etc; em outros
termos, observa-se um crescimento nos setores beneficiados com os auxílios;
159
2. quanto à evolução em termos reais dos auxílios concedidos às diferentes áreas
(ver quadro X), constata-se a mesma situação já anotada com referência ao com-
portamento do total de bolsas, isto é, uma tendência, porém muito irregular, no
crescimento a longo prazo. É importante salientar que cada uma das áreas acusa
acentuadas quedas e altas em alguns anos do período e que essas alterações não
se produzem nos mesmos anos em todas as áreas; em outros termos não existe
identidade no sentido das variações nem proporcionalidade entre as variações do
total e de cada uma das áreas. Pode pensa, -se assim, a título de hipótese, que as
decisões para a concessão de auxílios são tomadas independentemente de área
em área, sem levar em consideração as disponibilidades totais;
3. outro aspecto importante a ser salientado refere-se à distribuição relativa dos
recursos segundo áreas. O exame do quadro XI permite constatar alguns fatos
significativos: a) a área de ciências sociais mostra uma participação extremamen-
te baixa através do período, sendo a média de 1,2% e só no ano de 1976 deixa
de ser a área que recebeu menos recursos; b) matemática é outra área com parti-
cipação muito reduzida e relativamente estável: máxima de 5,5% e média de
3,9%; c) física é a área que maior atenção tem recebido em termos de auxílios
relativos; tanto assim que nos treze anos considerados, só entre 1972-1974 per-
deu levemente a prioridade para biologia; d) biologia é a segunda das áreas com
maiores auxílios recebidos; e) a concentração dos recursos é muito acentuada já
que física e biologia, em conjunto, têm absorvido quase sempre em torno da me-
tade dos recursos destinados a auxílios; esta concentração é particularmente
acentuada a partir do ano de 1 972.
As observações anteriores evidenciam a existência de uma política de prioridades
que se mantém através de todo o período, também constatada no que se refere à
distribuição de bolsas (quadro VI e VII).
Finalmente, a partir do quadro XII é possível tecer algumas considerações sobre
os recursos distribuídos pelo CNPq para auxílios e bolsas, através do período
1951-1976. Os comentários são apresentados em forma sintética e não conside
ram os anos 1953-1954 nem 1960-1963, para os quais não foi possível encontrar
informações:
1 . o total de recursos distribuídos - expressos em termos reais - apesar de mos-
trar uma tendência crescente ao longo do período analisado, sofre de acentuadas
alterações já constatadas na distribuição de auxílios por setores do conhecimento
- tanto incrementos como quedas frequentes de um ano para outro. Cabe desta-
car, entretanto, que nos dois últimos anos constata-se um aumento no total dos
recursos distribuídos e que o incremento de 1975 a 1976 foi de 58%;
2. os recursos destinados através do período a auxílios, bem como os destinados
a bolsas, assinalam uma tendência positiva mas padecem também de fortes irre-
gularidades de ano para ano. Observa-se, por outro lado, que em certos anos as
alterações dos totais têm sentido oposto, como entre 1958-1 959, entre 1965-1966,
entre 1971-1972 e entre 1972-1973;
3. cabe observar que até o ano de 1965, os recursos destinados a auxílios foram
sempre maiores que os destinados a bolsas; a partir de 1972 esta situação sofre
uma reversão evidente que se consolida através dos anos, constata ndo-se em 1975
e 1976 que os recursos destinados a bolsas foram 90% e 43% superiores aos desti-
nados a auxílios;
160
Quâdro X
Distribuição dos Auxílios por Areas do Conhecimento, valores correntes e constantes (em Cr$ 1 .000.00)
Areas DO CONHECIMENTO
Citncas «
Sociau
g.onomia
Biologia
Astronomia
Ib)
(C. Terral
Gaología
Ou(m,c.
Tacnologia
Técnica
Vatann*,,.
(0
Tol.l
1964
-
45.5
122,9
139.0
109.8
111.8
3,0
60,1
16.6
315.4
608.8
864.5
2 335,1
2 641.0
2,086.2
2.124.2
57,0
1.141,9
11 567,2
1966
-
85,7
296.1
811.5
226.3
98.3
100.5
336.6
11.8
1.966.8
1 .028.4
3.553.2
9 738.0
2.715.6
1.1 79.6
1.206.0
4.099Í2
141,6
23.601,6
.966
'6.2
1423
343.6
666.0
298.2
269.0
112,3
447.0
—
6.8
2.302.1
140.9
1 243.3
2989.3
5 794.2
2 594.3
2.340.3
977.0
3.888.9
59.2 20.028.3
1967
2.7
179,0
497,2
.264.3
519.3
176.9
137.8
369 9
—
«5
3 151.5
18.4
1.217,2
3381.0
8.597.2
3.531.2
1.202,9
937.0
2.515:3
30.6
21.430.2
1968
0.9
99.9
351.5
1 410.2
591.B
284.6
114.7
630.9
-
76.8
3 561.4
4.9
549.5
1 933,3
7.756.1
3.254.9
1.565.3
630.9
3.4 70.0
472.4
19 587.7
.969
98.0
94.9
1.069.3
2 935.5
556.1
904.5
443.0
1.930.0
27.1
8.050.5
441.0
427.1
4 811.9
13.209.8
2 502.5
4.070.3
1993.5
8.685 0
122.0
36 227.3
1970
91 1
213,3
1 871.9
4.023,2
1.484.8
2 225,1
163.1
3.489.4
-
71.2
18.633.2
34-./
810,5
7 1 13.2
15.288,2
5.642.2
8.455,4
619.8
13 259.7
270.6
51 806.2
1971
163.7
339,9
2*36.9
4.64 7.2
1.372.6
996,2
409.7
2.597.3
-
250.9
13,384.4
507.5
1.053.7
8.174.4
14.406.3
4.255.1
3.088.2
1.270.1
8 051,6
777,8
41 491.6
1972
307.1
801,6
4 224.8
3.994.7
2.702.2
1.239.3
393.9
1 629.2
-
15.242.8
229.2
2 164,3
11 407.0
I0.7B5.7
7.295.9
3.346.1
1.063.6
4.398.8
41.155.6
1973
204.8
1 012.2
4.951.4
4.587,8
2.160.2
1.430,1
648.5
2.155.2
17,150.2
471,0
2.328,1
11 338,2
10.551.9
4.968.5
3.289,2
1.491.6
4.957.0
39.445.5
1974
157?
1 361.4
5 890.4
5.353.4
3.690.5
2 106,1
887,6
2.488.6
21.935.1
283.0
2 4 50.5
10.602,7
9.636,1
6.642.9
3.791.0
1.597.7
4.479.5
39 483.2
1975
293.9
1 748.8
7.633.9
13.016.8
2.403.7
1.813.0
708.3
2.402.9
30.021.3
41 1.5
2.448.3
10 687,5
18.223.5
3 365,2
2.538.2
991.6
3.364.1
42,029,8
1976
4.018,4
5477.4
24 206.7
26.497,1
4.840.9
3. 754.3
2.057,2
9. 736,5
BO 588,5
Forno Relatórios de A.ividades do CNPq 1 1964 - 1972) Dados do Arquivo - Mamona do CNPq ( 1973 19761
(al para cada ano o valor de cimo corresponde a ciureiros correntas a o da baixo a cruzeiros comiam», de 1976. A transformação para valores constantes «o, real , rada me-
diante aplicação do Indice Geral de Preços, coluna 2. Oponibilidade Interna. FGV.
Ibl apart.rda 1972 inclui-lo Astronomia.
10 a partir de 1972 Vo.erinârla aparece incluída com Agronomia.
Quadro XI
D.siribuiçiio Rol»liva dos Recursos de Auxílios Segundo Areas do Conhecimento 11964 • 1976)
Areas do conhecimento
Anos
CMrwM
Sor..,,
Biologia
Fhiea
lai
Geolo,.»
Qulmic*
Lcnoloaia
Ttcmc»
Veterinária
ibi
Tot.l
196"
'.5
20.4
22.8
18.0
18.7
0.0
9.9
2.7
100.0
1965
4J
15.1
41.3
11.5
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5.3
17.4
0.5
too.o
1966
0.7
6.2
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28.9
13.0
11.7
4.9
19.4
-
0.3
100.0
1967
0.0
6.3
15.8
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16.5
5.6
4.4
11.2
0.1
100.0
1968
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2.B
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16.6
7.B
3,«
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-
2.2
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1969
U
1.2
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11.1
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1970
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100.0
1971
1.2
2.5
19.7
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19.3
1.9
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1972
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27,7
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17.7
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2.6
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100.0
1973
1.2
5.9
28.9
26,8
12.6
38
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1974
0.7
6.2
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.6.8
ti
4.1
!"
100.0
1975
1.0
s.a
2S.4
8.0
6.0
8.1
100.0
1976
5.0
6.B
30.0
329
6.0
4 7
s
'2.1
—
,00.0
Ponta Elaborado a partir dos Relatoi.ot tíe Auvidaúei do CNPq
lai a par urdi 1972, Finca inclui lambem Astronomia.
fb> ap.m.de 1972. W,e..nâ,,a aparece .ncluidacornArj-onomia.
Quadro XII
DlsirlbutçSo dos Recursos para Auxílios e Bolsas, em valores corremes e consianles (1951 1976)
Dutribuicío doi. Recursos l«m Cr$ 1.000 correntes < %| Evolução dos Recursos (em CrS 1.000 de 19761 1 '
Anos
Auxílios
Bolsas
Totais
Auxílios
Bolsas
Totais
I9S1
15 588
199*1
1 090
17*1
16.648 1100*1
10.637 836
74 3 3 80
H 353 93U
1952
19.293
172*1
7.541
128*)
26.834 1100*1
1 1.768 730
4 600 010
16 368 740
19S3
1954
—
_
1955
13944
(44*1
17.752
156*1
31 696 1 100*1
5 023 846
6.372.968
11 378 864
1956
33 285
155*1
27513
<45%l
60.798 1 100*1
9.9B5 500
8 253 900
18.239.400
1957
51 107
(59*1
34 871
141%!
85.978 1 100*1
13 390 034
9 136.202
22.526 236
1958
69. 108
159*1
47.791
(41*1
116 899 (100*1
16,033.056
1 1 087 512
27. 1 20 568
19S9 •
69 690
151*1
68 000
149*1
137 690 1 100*1
1 1 707 920
n.424,000
23. 131 920
1960
—
mm
1961
-
—
-
-
-
196}
—
—
1963
1984
608 843
180X1
149 570
(20*1
758.413 1100*1
11 SB8.017
2.841 830
1965
1.966 837
168*1
909 493
132*1
7.876 330 (100*1
23 602 044
10.913.916
3^9.M60
1966
670 055
129*1
1 632 054
171*1
2.302 109 (100*1
6 879.4 79
14.198870
20.028 348
1967
3.151 578
14 8%»
3 465.137
152*1
6.616.665 1 100*)
2 1 .430 390
23 562 932
44.993.322
1968
3.561.440
14 7*1
3998559
(53*1
7 559 999 1100*1
19587.920
21 992.074
41 579.996
1969
8.050 4 75
155*1
6.675.547
145*1
14 726 022 1100*1
36.227 138
30 039.961
66 767089
1970
13633 197
151*1
13.238 435
149*1
26 871 632 1100*1
51 806 149
50309853
102.112.202
1971
13 384 407
148*1
14 226.538
152*1
27.610.945 1100*1
41 491.662
44.102 268
85.593.930
1972
15.242 857
138*1
25.238 950
162*1
40.626.807 1100*)
41.155.714
68.145.165
109 692.373
1973
17 150209
132*1
36 245.431
(68*1
53.395 640 1100*1
39445.481
83.364.491
122 809.972
1974
21 935 135
135.6*1
39579572
58.501653
(64.4*1
61.514.707 1100*1
39.483 243
71 243.230
110.726.473
1975
30.021 326
(33,9*1
(65. INI
88 522 979 1100*1
42.029.856
81 902.314
123.932.170
1976
80 588604
(41*1
1 16.260 489
159*1
196.849.093 1100*1
80 588 604
115.260.489
195 849.093
Cl
estimado a pjriii dos gráficos incluídos no Relatório do referido ano. pois o documento não especifica valores
I • ■ I Fo, ulilKado o lnd.ce Geral de Preços coluna 2 (Disponibilidade Internai da F.G.V
Nota Par. os anos 1953 1954. 1960 > 1963. não foi possível obler Informações.
Font. Construído a parti, d. Relator , os de Atividades do CNPq ( 1951 - 19721.
Dados do Arquivo (Memorial do CNPq (1973- 19761.
4. convém notar, em último termo, que a distribuição dos recursos totais entre
auxílios e bolsas, guarda quase sempre certos limites, no sentido que flutua no
intervalo de 1/3e 2/3.
OBSERVAÇÕES GERAIS
Depreende-se da leitura anterior alguns aspectos que merecem ser destacados. As-
sim, da observação dos quadros relativos ao acompanhamento da ação de fomen-
to deste órgão, constata-se que a distribuição de bolsas e auxílios ao longo destas
décadas é extremamente irregular de anojara ano. Desta forma, apesar de detec-
tar-se uma tendência ao crescimento a longo prazo, as irregularidades apresenta-
das refletem-se não só no número de bolsas anuais ou de verbas destinadas a au-
xílios, mas também na distribuição das dotações segundo setores do conhecimen-
to, ou seja, não há proporcionalidade entre as variações dos totais e as variações
de cada área. Observa-se, entretanto, que apesar destas oscilações, os dados le-
vantados evidenciam claramente a existência de uma política de prioridades que
se mantém ao longo da atuação deste organismo, privilegiando claramente as
ciências médicas e biológicas (bolsas) e a física (auxílios). Neste sentido, aparece
como relevante a análise dos documentos que oficializam esta orientação bem
como os fundamentos que a sustentam — os critérios norteadores da determina-
ção de tais prioridades - e que não transparecem nos relatórios de atividade des-
te órgão.
Chama-se também atenção para as dificuldades orçamentárias enfrentadas pelo
CNPq que, apesar de particularmente agudas na primeira década de sua atuação,
prolongam-se na década seguinte. Assim sendo, em boa medida, as alterações ob-
servadas na concessão de bolsas e auxílios explicam-se pelos problemas orçamen-
tários. Tais flutuações orçamentárias - reflexo da ponderação atribuída à ciên-
cia e tecnologia em geral - dificultaram o estabelecimento de planos e metas
orientadoras de sua atuação. Cabe ressaltar que tais flutuações são, por sua vez,
consequência indireta da política económica global do país que, ao longo deste
período, sofreu oscilações consideráveis detectadas não só a nível de medidas
efetivamente implementadas como também na multiplicidade de planos e pro-
gramas produzidos.
O que se pretende salientar é que as formas possíveis de atuação institucional
têm seu contorno delineado pelo contexto económico e político no qual se in-
sere e com o qual interage a instituição. Tal afirmação parece particularmente
pertinente em se tratando do deserrpenho do papel "político" do CNPq, isto é,
sua atuação enquanto órgão de coordenação e orientação das atividades de ciên-
cia e tecnologia do país. °ara o desempenho de tal papel, inerente ao conselho
desde sua criação, mesmo se formulado diferentemente no decurso destes anos,
somente em 1974 serão oferecidas condições institucionais de viabilização. E is-
to ocorrerá em função da reafirmação da importância atribuída ao planejamento
em geral e ao planejamento cientiTico e tecnológico em particular, dentro da po-
lítica económica vigente após 19Õ4.
Não se pretende, no entanto, considerar o aparelhamento institucional como
condição fundamental ao desempenho do papel político do CNPq. Muito ao con-
trário, tem-se consciência de que sua efetivação prende-se à articulação estrutural
164
das instâncias económicas, politicas e sociais do oaís. Entretanto, as reformas
institucionais enquanto resultado de "intenções" estabelecidas em planos e pro-
gramas governamentais são indicadores, pelo menos, de seu grau de importância
na ordem de prioridades do governo.
A atribuição de prioridades à ciência mediante a formulação de polfticas científi-
cas e a concretização das mesmas dependem, em último termo, da função social
atribuída à ciência. Desta forma é na organização social do país e no processo
histórico de sua formação que se deve buscar os elementos básicos, responsável
pela estrutura da produção científica - entendendo-se por estrutura os proces-
sos nos quais os conhecimentos científicos são produzidos, circulam e são incor-
porados à sociedade. Tais processos, nos quais o Estado desempenha papel fun-
damental tanto no nível da produção quanto da incorporação - são processos
institucionais 27 .
As oscilações no comportamento do CNPq, a orientação de sua atuação basica-
mente para o fomento, a formação de recursos humanos, suas flutuações orça-
mentárias, a redefinição de suas funções derivam, portanto, menos de caracte-
rísticas "internas" da instituição que das funções externas que a ciência e tecno-
logia vêm desempenhando em nossa sociedade.
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Plano Quinquenal - 1968-1972
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A incorporação da ciência à sociedade diz respeito não apenas a sua incorporação en-
quanto técnica de produção e/ou saber especifico - mas também a sua incorporação
enquanto racionalidade social. A propósito, Habermas em "Técnica e Ciência como
Ideologia" salienta a expansão da esfera de ação racional caracterizada pela institucio-
nalização da ciência enquanto instrumento politico na sociedade moderna. Habermas
preocupa-se com o problema do teor político da razão técnica e neste sentido concebe
a racionalidade em termos do exercício de uma dupla função - produtiva e ideológica
- do progresso técnico.
165
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anos do Funtec.
Educação e Ciências Sociais:
0 Instituto Nacional de Estudos
e Pesquisas Educacionais*
Maria Clara Mariani
Em 1952, Anísio Teixeira foi empossado como diretor do Instituto Nacional de
Est jdos Pedagógicos (Inep), órgão de pesquisa do Ministério da Educação e Cul-
tura. Assumia o lugar de Murilo Braga de Carvalho, morto num desastre aéreo
quando se dirigia para os Estados Unidos, para representar o Brasil num Congres-
so de Educação.
ANÍSIO TEIXEIRA
Anísio Teixeira era uma das figuras míticas da educação brasileira: reformador
do sistema educacional baiano no governo Góes Calmon (1924/1928), foi um
dos técnicos com quem Francisco Campos discutiu a sua reforma do ensino
(1930), Diretor de Educação do prefeito Pedro Ernesto (1931/1935), signatário
do "Manifesto dos Pioneiros" (1932), fundador da Universidade do Distrito Fe-
deral (1935), novamente secretário da Educação na Bahia no governo Otávio
Mangabeira (1946/1950). Chegava ao Inep cercado de uma intensa expectativa.
Sua imagem era a de um técnico de competência internacionalmente reconheci-
da, cuja principal característica era ser inteiramente avesso à burocracia. Nos vá-
rios cargos que ocupou deixara sempre marca inovadora: como inspetor de ensi-
no no governo Góes Calmon fez o primeiro levantamento global das condições
materiais e humanas das escolas baianas — o resultado, como não podia deixar de
ser, foi extremamente insatisfatório, tendo sido constatado que, ao lado de quase
total ausência de recursos, existia uma máquina burocrática dominada pela men-
talidade mais imobilista. Hermes Lima nos informa que, já naquela época, o ob-
jetivo de Anísio Teixeira era "traçar para a educação as diretrizes de um pensa-
mento que colocasse o sistema de ensino a serviço da reconstrução não apenas da
instrução, mas da própria sociedade" 1 . Tinha percebido a necessidade de fugir
Trabalho realizado no âmbito do Centro de Estudos e Pesquisas da Finep. A responsa-
bilidade pelos conceitos emitidos é da autora.
1 Hermes Lima, Anísio Teixeira, Estadista da Educação. Rio. Editora Civilização Brasi-
leira, p. 43.
do acidental ismo e das injunções politicas, e partiu para uma análise concreta da
situação do ensino e das condições sociais do meio em que teria que ser organiza-
do. Concluiu que era melhor lutar pela melhor educação possível nas condições
existentes, do que por uma educação utópica e inatingível. A formação do pro-
fessor primário (quase sempre professora) era uma das peças chave nesse proces-
so. Em todo o Estado da Bahia existia apenas um Instituto Normal — o de Salva-
dor. A quase totalidade das professoras eram "leigas" que, se muitas vezes faziam
o seu trabalho com dedicação e honradez, não dispunham do aparato técnico
considerado o mínimo indispensável para a realização de um trabalho eficiente.
Para começar a combater essa deficiência, foram fundados em duas cidades do
interior - Feira de Santana e Caetité - novos institutos, ao mesmo tempo que o
currículo se tornava mais diversificado e mais exigente.
No fim do governo Góes Calmon, Anísio Teixeira produziu um documento a pe-
dido do novo governador Vital Soares, que pretendia mantê-lo no cargo, no qual
enumerava uma série de sugestões que permitiriam a reorganização progressiva
do sistema educacional baiano. Defendia principalmente uma educação diferen-
ciada para os centros urbanos, as pequenas comunidades rurais do recôncavo ou
do sertão e a população propriamente rural das fazendas e sítios. Insistia em que
só através da pesquisa das condições reais da vida desses grupos, do conhecimen-
to das suas necessidades e projetos, e de preparação de professores de boa quali-
dade, poderia surgir uma rede escolar que não se limitasse ao papel formal de en-
sinar a ler e contar, habilidades que, na maioria das vezes, eram perdidas por fal-
ta de utilização. Sua colaboração ao governo Vital Soares foi curta, porque não
encontrou apoio para levar adiante seus planos e preferiu demitir-se.
A partir deste momento, até o seu retorno à administração pública, como diretor
da Educação do prefeito Pedro Ernesto, esteve nos Estados Unidos estudando
administração e filosofia de educação do Teacher's College da Universidade de
Columbia, onde entrou em contato com o sistema educacional norte-americano.
Ali descobriu Dewey e Whitehead, e entusiasmou-se com as suas propostas. De
volta ao Brasil, passou a participar intensamente das discussões da Associação
Brasileira de Educação (ABE), defendendo o ponto de vista de que o papel do
ensino era, não o de acompanhar, mas o de preceder ou até provocar modifica-
ções que permitissem o Brasil passar de país agrário a industrializado.
Como diretor de Educação do Distrito Federal desenvolveu um trabalho coeren-
te com esta linha de pensamento. É verdade que nos últimos anos, em parte gra-
ças à pregação da ABE, aumentara a importância atribuída pelo Estado à educa-
ção: a criação do Ministério da Educação e Saúde, um dos primeiros gestos de
Getúlio Vargas como presidente provisório depois da Revolução de 30, é sinto-
mática. Assim, sua tarefa era menos solitária, embora continuasse a despertar a
estranheza dos políticos. Sua preocupação inicial foi repetir o que fizera na Ba-
hia, e que considerava pré-requisito para qualquer tomada de atitude: fazer o le-
vantamento das condições materiais e funcionais do ensino oferecido nas escolas
públicas. Se na Bahia a tónica tinha sido a penúria, no Rio era a falta de unifor-
midade, tanto das instalações existentes quanto da qualidade do ensino ofereci-
do. Esforçou-se com sucesso para reestruturar o sistema de ensino dentro da li-
nha que viria a ser sistematizada no Manifesto dos Pioneiros, combatendo o em-
pirismo dominante, ao dar um encaminhamento científico ao estudo e às solu-
170
ções dos problemas educativos, que, na sua opinião, deveriam estar não no terre-
no burocrático-administrativo mas no político-social, Este objetivo só seria atin-
gido na medida em que fosse fortalecido o papel do Estado como educador, para
torná-lo capaz de oferecer a todos uma escola uniforme, laica, gratuita, obrigató-
ria e mista. Nessa intenção foram introduzidos novos métodos e técnicas pedagó-
gicas ao mesmo tempo que se expandia a rede escolar. Numa segunda etapa pro-
curou atacar os pontos considerados críticos a partir do levantamento feito: a
inoperância e a repetência. A estratégia adotada foi mais uma vez tentar melho-
rar a formação dos professores. Para isso foi criado o "Instituto de Educação",
que seria uma Escola Normal modelo. O projeto previa a existência, além da Es-
cola de Professores, de Jardim de Infância, Escola Primária e Secundária, que
funcionariam como laboratórios para novas técnicas e Escolas de Aplicação para
os alunos do Curso Normal. Em 1935 a Escola de Professores foi incorporada à
Universidade do Distrito Federal, e passou a chamar-se "Escola de Educação".
Foi a primeira vez que se fez no Brasil a formação de professores primários a
nível universitário. Ao lado da Escola de Educação funcionava um Instituto de
Pesquisas Educacionais, dirigido por Delgado de Carvalho, primeiro passo para
desenvolver o hábito do debate e dos estudos coletivos entre os educadores.
Esse trabalho de expansão e melhoramento da rede de ensino oficial desenca-
deou uma série de críticas contra Anísio Teixeira, provenientes principalmente
do clero e da liderança católica leiga. O Manifesto dos Pioneiros foi uma resposta
da comunidade dos educadores a esses ataques, que continuaram durante todo o
período em que Anísio esteve à frente da Secretaria. Com a criação da Universi-
dade do Distrito Federal, em 1935, organizada fora dos padrões tradicionais, so-
mou-se a hostilidade dos integralistas à dos católicos. As acusações se tornaram
mais precisas - aos argumentos técnicos juntaram-se os ideológicos - e a univer-
sidade foi classificada de esquerdista. Com o agravamento dos conflitos políticos,
Pedro Ernesto viu-se impossibilitado de continuar a dar cobertura ao trabalho de-
senvolvido por Anísio Teixeira, que voltou para a Bahia, onde passou a desenvol-
ver atividades privadas, fora da área de educação.
Em 1947, foi novamente chamado à administração pública, como secretário da
Educação de Otávio Mangabeira. Encontrando-se na mesma situação de 1924, foi
necessário reiniciar a luta para tirar a educação das mãos do partidarismo, da im-
provisação e da descontinuidade, dando-lhe um tratamento administrativo mais
isento e mais objetivo. Desse período o que ficou de mais importante foi a elabo-
ração da Lei Orgânica de Educação e Cultura do Estado e o projeto para os cen-
tros experimentais de educação. Esses centros teriam sempre Jardim de Infância,
Escola Elementar Modelo, Escola Normal, Escola Secundária, Parque Escolar,
Centro Social de Cultura e internatos para as crianças que não tivessem família.
Por absoluta falta de recursos a idéia não chegou a ser posta em prática, a não ser
no caso do Centro Educacional Carneiro Ribeiro, em Salvador, que veio a ser a
Escola Experimental do Centro Regional de Pesquisas Educacionais do Inep (não
confundir com a Escola de Aplicação do CRPE/Bahia). Seu objetivo seria provar
a eficácia da educação como fator de transformação social — o filho do lavrador
ou o filho do operário, atendido satisfatoriamente nas suas necessidades culturais
e físicas, graças a professores especialmente treinados, dieta adequada e assistên-
cia médica, poderia render tanto ou mais quanto o filho de uma família abasta-
da. Era a possibilidade de escapar da longa prática de discriminação económica e
171
social em vigor no Brasil, e permitir o surgimento de lideranças fora dos grupos
oligárquicos tradicionais. A constituição das elites deixaria de estar baseada no
"direito de nascença" para ser o resultado do desenvolvimento de aptidões natu-
rais de determinados indivíduos especialmente capacitados para determinadas ta-
refas. Ao mesmo tempo, através da transmissão de hábitos, atitudes e aspirações,
a escola iria preparando a criança para a civilização técnica e industrial que o Bra-
sil se propunha a construir.
Com o fim do governo Mangabeira, Anísio Teixeira veio para o Rio dirigir, a con-
vite de Ernesto Simões Filho, ministro da Educação de Vargas, a Capes - Comis-
são (depois Coordenação) de Aperfeiçoamento do Pessoal de Nível Superior. A
Capes fora idealizada pelo economista baiano Rómulo de Almeida, e tinha como
objetivo desenvolver mecanismos que permitissem formar, no mais curto espaço
de tempo, os quadros necessários para o programa de desenvolvimento económi-
co pensado pela equipe que cercava o presidente Vargas. Procurou-se melhorar a
qualidade dos docentes universitários através da concessão de bolsas no exterior
ou em centros brasileiros considerados de qualidade excepcional. Foram feitos
também levantamento:, pesquisa e documentação a respeito das condições do
ensino superior brasileiro. Nesse momento, com a morte de Murilo Braga de Car-
valho, Anísio Teixeira passou a dirigir o Inep - Instituto Nacional de Estudos
Pedagógicos do MEC, hoje denominado Instituto Nacional de Estudos e Pesqui-
sas Educacionais, mas conservando a mesma sigla.
O INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS PEDAGÓGICOS
Criado em 15/01/1937, na gestão de Gustavo Capanema no Ministério da Educa-
ção e Saúde, com o nome de Instituto Nacional de Pedagogia, pela Lei n° 378,
destinava-se a realizar pesquisas sobre os problemas de ensino, nos seus diferentes
aspectos, atribuição até então do Departamento Nacional de Educação. Mas só
em 1938, com o Decreto-Lei n? 580, suas atribuições foram melhor definidas e,
com a nova denominação de "Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos" pas-
sou a ter existência real. Idealizado por Lourenço Filho, educador também liga-
do à ABE e ao movimento da Escola Nova, que realizara como inspetor-geral de
ensino no Ceará reformas tão importantes quanto as de Anísio Teixeira na Bahia,
tinha como atribuições:
"a) organizar documentação relativa à história e ao estudo atual das doutrinas e
das técnicas pedagógicas, bem como das diferentes espécies de instituições educa-
tivas; b) manter o intercâmbio, em matéria de pedagogia, com as instituições
educacionais do país e do estrangeiro; c) promover inquéritos e pesquisas sobre
todos os problemas atinentes às instituições educacionais do país e do estrangei-
ro; d) promover investigação no terreno da psicologia aplicada à educação, bem
como relativamente ao problema de orientação e seleção profissional; e) prestar
assistência técnica aos serviços estaduais, municipais e particulares de educação,
ministrando-lhes, mediante consulta ou independentemente desta, esclarecimen-
tos e soluções sobre os problemas pedagógicos; f) divulgar pelos diferentes pro-
cessos de difusão, os conhecimentos relativos à teoria e à prática pedagógica".
Cabia também ao Inep cooperar com o Departamento Administrativo do Serviço
Público (Dasp) "por meio de estudos ou quaisquer providências executivas, nos
172
trabalhos atinentes à seleção, aperfeiçoamento e readaptação do funcionalismo
público da União".
O Inep começou a funcionar com uma pequena equipe: Lourenço Filho e 3 téc-
nicos em educação. No ano seguinte, 1939, seu quadro foi ampliado, organiza-
ram-se diversas seções e definiram-se funções. Passou então a ter 6 seções: Do-
cumentação, Inquéritos e Pesquisas, Psicologia, Orientação e Seleção Profissio-
nal, Biometria Médica, Biblioteca Pedagógica. A ênfase na psicologia explica-se
pela formação de Lourenço Filho. A existência das seções de Orientação e Sele-
ção Profissional e Biometria Médica estava ligada às funções de cooperação com
o Dasp.
0 programa, como se pode ver, era ambicioso, mas a sua realização era dificulta-
da por dois obstáculos dificilmente contornáveis, não só na época em que foi
concebido como no correr da sua vida: a falta de pessoal especializado e as rígi-
das normas do funcionalismo público.
Segundo Elza Rodrigues Martins, funcionária do Inep, desde 1 947 e diretora do
CBPE de 1969 a 1975, um dos principais problemas do instituto, como órgão de
estudos e pesquisas, foi a dificuldade de recrutar pessoal especializado. Pelas nor-
mas do Dasp, o desempenho das funções específicas do Inep deveria ser entregue
aos "técnicos de educação". Mas o que era um técnico de educação 7 Nunca ficou
muito claro. A indicação ainda imprecisa está no regulamento do Curso de Peda-
gogia da Faculdade de Filosofia da antiga Universidade do Brasil, que diz que
aquele curso se destina também a formar técnicos de educação para os quadros
profissionais do Ministério da Educação e Saúde. Assim, o quadro do Inep, um
órgão de estudos e pesquisas, foi preenchido na maioria por pessoas cuja princi-
pal qualificação era a de terem feito o Curso de Pedagogia — a mesma exigência
feita para um funcionário cuja tarefa fosse fiscalizar burocraticamente institui-
ções de ensino em qualquer dos seus níveis, ou o registro de diploma. É sabido
que o Curso de Pedagogia não ministrava aos seus alunos formação técnica ou
metodológica que lhes permitisse atuar na área de pesquisa. Não é difícil con-
cluir que o Inep nasceu com uma grande pretensão com relação às funções que
deveria desempenhar, sem que a essas funções correspondesse uma formação de
pessoal adequado.
É possível que essa limitação inicial tenha definido o rumo que o Inep tomou.
A administração Lourenço Filho (1938/1945) realizou, além do trabalho de im-
plantação do órgão, a organização de uma biblioteca pedagógica, de um serviço
de documentação da legislação educacional brasileira, e a criação da Revista Bra-
sileira de Estudos Pedagógicos em 1941, que divulgava não só os estudos e pes-
quisas feitos no instituto como o pensamento pedagógico internacional, alguns
estudos e pesquisas importantes para o conhecimento da educação no Brasil. Fo-
ram realizados inquéritos anuais sobre vários aspectos da administração dos servi-
ços de educação em geral e da organização do ensino público; estudos sobre a or-
ganização do ensino primário e normal nos estados; coleta sistemática de docu-
mentação sobre educação contemporânea e histórica (orgamzaram-se os originais
de A Instrução e a República, de 1889 a 1930); estudo sistematizado do conteú-
do de jornais e revistas ligados à educação, com o objetivo de seguir a evolução
do pensamento no país; levantamento da bibliografia pedagógica desde 1808; pu-
blicações técnicas para serem distribuídas às instituições ligadas à educação. E,
173
na verdade, grande parte do quadro do Inep dedicou-se não à pesquisa, mas aos
estudos relativos à instituição de um "Fundo Nacional do Ensino Primário" que
deveria estabelecer a origem dos seus recursos e os critérios para a sua aplicação.
Em 1945, com o fim do Estado Novo, Lourenço Filho foi substituído por Muri-
lo Braga de Carvalho. Essa administração estendeu-se até 1952, e nesse período
o Inep praticamente perdeu o seu caráterde instituto de pesquisas: continuaram
apenas alguns serviços de documentação ligados à legislação e publicaram-se catá-
logos sobre as oportunidades de educação existentes no país. As razões foram vá-
rias: a principal talvez tenha sido a extinção da Diretoria do Ensino Primário e
Normal, e a passagem das suas atribuições para o Inep, que, junto com a adminis-
tração dos recursos do Fundo Nacional do Ensino Primário, passou a ocupar a
quase totalidade da atenção do instituto: a tarefa de construir escolas em zonas
rurais, nas fronteiras e nas áreas de colonização estrangeira, levaram à necessida-
de de estudos a respeito do melhor tipo de prédio para grupos escolares, escolas
isoladas, escolas normais. Da função de administrador do Fundo Nacional do En-
sino Primário surgiu um novo setor, o de Aperfeiçoamento do Magistério, que
oferecia cursos de especialização no Distrito Federal, para professoras primárias
do interior, em regime de bolsas de estudo.
Em 1952 tomou posse Anísio Teixeira. Sua principal preocupação foi a de dina-
mizar o Inep, transformá-lo num órgão capaz de dar "à política educacional do
Ministério da Educação e Cultura (o Ministério da Educação e Saúde tinha sido
desdobrado, no governo Vargas, em Ministério da Educação e Cultura e Ministé-
rio da Saúde) a base de estudos e pesquisas necessária à um realismo operante de
meios e a uma inteligência esclarecida de fins e propósitos. . ." "As funções do
Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos deverão ganhar amplitude maior, bus-
cando tornar-se, tanto quanto possível, o centro de inspiração do magistério na-
cional, para a formação daquela consciência educacional comum que, mais do
que qualquer outra força, deverá dirigir e orientar a escola brasileira. Os estudos
do Inep deverão ajudar a eclosão desse movimento da consciência nacional indis-
pensável à reconstrução escolar" 2 .
Segundo Darcy Ribeiro 3 , "Anísio Teixeira, quando assumiu a direção do Inep
em 1952, tinha a completa percepção de que a educação, tanto quanto a saúde,
necessita de pesquisas, estudos; necessita que gente de melhor qualidade se dedi-
que a pensar nos problemas da educação. Tanto que tinha o sentimento físico
do fracasso do governo brasileiro na tarefa de educar elementarmente a sua po-
pulação. Ele se inquietava com isso. Queria saber o porquê do fracasso, ou se não
seria fracasso, mas intenção. Ainda que não fosse uma intenção explícita. A elite
brasileira, formada numa sociedade escravista, tinha a tendência de pensar em
povo como carvão para queimar e não pessoas para serem educadas . . ."
O quadro de funcionários do Inep não tinha condições de cumprir essa nova tare-
Ministério da Educação e Cultura, Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos: Análise
da situação atual do Inep e Proposta de reformulação de sua estrutura e objetivos. Rio,
MEC/lnep, Dezembro de 1971, p. 10,
3 Entrevista. 5 de setembro de 1 978.
174
fa. Nos últimos anos, sua ampliação se fizera em detrimento da qualidade, e mui-
tas pessoas que tinham entrado como interinos, sem terem ao menos o já inefi-
ciente Curso de Pedagogia, tinham sido eferivadas, impedindo a contratação atra-
vés de concurso de técnicos melhor qualificados. Anísio Teixeira propôs, como
forma de contornar o problema, a criação de duas campanhas: a "Campanha Ex-
traordinária de Educação" e a "Campanha do Livro Didático e Materiais de Ensi-
no". A primeira deveria, através de acordos, contratos e convénios com especia-
listas, organizações técnicas e de ensino, fazer, em todos os estados da Federação,
o levantamento da situação dos diversos ramos e níveis do ensino. A segunda de-
veria estabelecer as bases para a elaboração de manuais que servissem como guias
para o professorado secundário, até então habituado a um ensino verbalista e na
maioria das vezes inócuo. Os novos manuais deveriam servir de base para uma
transformação radical do ensino médio, e por isso deveriam ser elaborados por
profissionais de competência indiscutível, indicados pela comunidade dos educa-
dores secundários.
Em 1 953 a idéia foi aprovada e surgiram a "Campanha de I nquéritos e Levanta-
mentos do Ensino Médio e Elementar" (Cileme) e a "Campanha do Livro Didáti-
co e Material de Ensino" (Caldeme). Ambas definiram seus programas através de
seminários que reuniram os principais técnicos de educação do país. O programa
da Cileme pretendia cobrir os aspectos gerais da educação média e elementar (le-
vantamento rápido, precedido da reunião da documentação existente, e destina-
do a um contato com a situação real do ensino em todo o país); os sistemas esta-
duais da educação (especialmente quanto à organização administrativa e técnica);
o aluno do curso médio (suas condições sociais, capacidade, ideais, dif iculdades
e conflitos); o professor do curso médio (suas condições socio económicas, for-
mação, capacidade, condições de trabalho e eficiência); a escola de grau médio
(visando especialmente à organização de escolas para a sua classificação sob o
ponto de vista da eficiência geral).
A Caldeme, por sua vez, contratou 8 técnicos com o objetivo de produzir ma-
nuais relativos a diferentes matérias e iniciar uma coleção que englobasse toda a
bibliografia disponível sobre ensino, princípios e métodos educacionais.
A grande novidade do programa pensado para a Cileme foi pretender não acumu-
lar dados, que já existiam, mas utilizá-los de maneira inovadora. Assim, a escola
deveria ser abordada não só pelo seu aspecto material e estatístico, mas nos seus
objetivos reais e no seu funcionamento. 0 enfoque deixou de ser quantitativo pa-
ra ser qualitativo. Perguntava-se basicamente: o que representa a escola para os
alunos que a procuram? Quais são os objetivos — transcendentes aos dispositivos
legais de ordem geral — que se propõe alcançar? Com que eficiência atinge esses
objetivos e de que modo atende aos ideais daqueles que a procuram? Quais as
causas essenciais das falhas que apresenta neste ou naquele setor? De que modo
poder-se-á contribuir para atenuar ou remover essas falhas?
A seleção não foi fácil : procurou-se encontrar pessoas que, além de competentes
tivessem uma tal convicção a respeito dos inconvenientes do ensino verbalista
que as levasse à elaboração dos manuais, em detrimento das suas atividades pro-
fissionais. Aceitaram o desafio alguns professores cujos nomes é importante que
fiquem registrados: zoologia: Paulo Sawaya (da USP); botânica: Karl Arens (da
FIMF); biologia geral: Oswaldo Frota Pessoa (da FNF); português: Mário de Sou-
175
za Lima (da USP); francês: RaymondVan DerHaegen (da Universidade da Bahia);
história geral: Carlos Delgado de Carvalho (FNF); história do Brasil : Américo Ja-
cobina Lacombe (PUC/Rio); química: Warner Gustav Krauledas (FNF).
Tanto a Cileme quanto a Caldeme tiveram um papel importante no processo de
dinamização do Inep concebido por Anfsio Teixeira. Foram mecanismos que,
embora transitórios, permitiram que fossem contornadas dificuldades de pessoal
e de verbas, e foi introduzida uma filosofia de trabalho até então inexistente.
Porque, como relata Elza Rodrigues Martins 4 , "a discussão a respeito de uma fi-
losofia da educação só se fez a partir de Anfsio Teixeira. Dentro da faculdade -
eu era do Inep e da antiga Nacional de Filosofia, — sentia que nunca houve a
preocupação de estabelecer pressupostos para uma educação brasileira, que por
sua vez estava muito presa à filosofia geral do governo. Com Anísio Teixeira, a
consciência da necessidade de traçar uma filosofia para a educação brasileira fi-
cou muito viva. Nas faculdades padecíamos de todo o mal que caracterizava e
ainda caracteriza o ensino superior brasileiro. Tínhamos um Curso de Pedagogia
com disciplinas que se superpunham sem qualquer consciência de departamen-
talização, sem qualquer presença de uma consciência crítica a respeito da educa-
ção brasileira. No Inep essa consciência existia, a de que só através do conheci-
mento, do levantamento, e do diagnóstico de uma situação é que nós podería-
mos encontrar uma solução. Não sentia essa preocupação nem condições para
que tal propósito viesse a existir na Faculdade de Filosofia, pelo menos na do
Rio de Janeiro. Porque essa é uma programação muito difícil, em termos de
pessoal e de recursos, e a nossa Faculdade de Filosofia era formada por cerca de
20 cursos diferentes, nenhum deles com condições de promover pesquisas".
"No Inep, por sua vez, se existia a preocupação, não havia a possibilidade de fa-
zer pesquisa em ampla extensão. As dificuldades de pessoal e verbas eram enor-
mes. Algumas vezes foram contornadas com a criação de mecanismos que, em-
bora transitórios, permitiram ao órgão outra perspectiva no tocante a pessoal, a
material, a recursos. A administração Anísio Teixeira foi uma época de criação
de campanhas, comissões, como a Caldeme e a Cileme, para o aperfeiçoamento
do magistério elementar, entre outras funções. Essas comissões permitiam a
vinda de pessoal para a assessoria, inclusive do estrangeiro, proporcionando uma
autonomia que era impossível com os recursos habituais do serviço público, onde
predominava a hegemonia dos setores meio sobre os serviços fins. Anísio Teixei-
ra foi o grande construtor de uma nova filosofia de trabalho em um órgão técni-
co como o Inep".
Com relação ao que foi produzido, tanto a Cileme quanto a Caldeme podem ser
consideradas campanhas bem sucedidas. Numa época em que havia pouca siste-
matização a respeito da educação, contribuíram para o conhecimento de proble-
mas e encaminhamento de soluções. A Cileme publicou 10 livros e cerca de 30
estudos na sua área, e a Caldeme, além de reunir mais de 10 volumes sobre o en-
sino, princípios e métodos educacionais, iniciativa sem precedentes no Brasil,
elaborou oito manuais para o ensino secundário.
Em fins de 1953 iniciou-se a organização do Centro de Documentação Pedagógi-
4 Entrevista. 10 de outubro de 1978
176
ca, contando com sugestões feitas pelo técnico da Unesco, Herbert Coblans, cu-
ja organização foi confiada a Zunes de Menezes Dona. 0 centro deveria sistema-
tizar os trabalhos desenvolvidos pelas duas campanhas e por outros setores do
Inep, garantindo a documentação e divulgação dos resultados obtidos. Na mesma
época foi criada a Biblioteca Brasileira de Educação, de periodicidade semestral,
continuando o trabalho iniciado por Lourenço Filho.
O CENTRO BRASILEIRO DE PESQUISAS EDUCACIONAIS
Os planos de Anísio Teixeira eram ainda mais ambiciosos. Do seu ponto de vista
era impossível estudar a educação brasileira e seus problemas sem levar em conta
a realidade nacional. Para isso era necessário montar uma estrutura ainda inexisten-
te no Brasil. Aproveitando seu bom relacionamento com os técnicos da Unesco,
conseguiu com Wilhem Beatty, diretor do Departamento de Educação daquele
órgão, que vinha ao Brasil estudar as possibilidades de instalação no Brasil de um
Centro Latino-Americano de preparação de educadores rurais e especialistas em
educação de base, que a Unesco co-patrocinasse um grande survey sobre a situa-
ção educacional brasileira. Esse survey deveria fornecer informações a partir das
quais fosse possível planejar, em todos os níveis e graus de ensino, medidas de
grande alcance visando à reconstrução educacional do país.
A idéia cresceu, e em agosto de 1953, Charles Wagley e Carl Withers, técnicos
da Unesco, redigiram um relatório com sugestões sobre a organização e finalida-
des do levantamento planejado.
Em 1954, o projeto que vinha sendo intensamente discutido por educadores bra-
sileiros e técnicos da Unesco, começou a tomar contornos mais nítidos. Não se
pensava mais num survey mas numa instituição permanente que permitisse a rea-
lização de estudos sobre a educação no Brasil em bases sólidas. A Unesco tinha
no projeto um interesse especial: funcionaria como um laboratório para toda a
América Latina. Seria o "Centro de Altos Estudos Educacionais", que deveria,
segundo o documento produzido por Anísio Teixeira, ter como objetivos:
"A - A pesquisa das condições culturais do Brasil em suas diversas regiões, das
tendências de desenvolvimento e de regressão e das origens dessas condições e
forças - visando a uma interpretação regional do país tão exata e tão dinâmica
quanto possível.
A 1 — A formulação de uma política institucional, especialmente de referência à
educação, capaz de orientar aquelas condições e tendências no sentido de desen-
volvimento desejável de cada região do país.
B - A pesquisa das condições escolares do Brasil, em suas diversas regiões, por
meio do levantamento dos seus recursos em administração, aparelhamento, pro-
fessores, métodos e conteúdo de ensino, visando apurar até quanto a escola está
satisfazendo as suas funções em uma sociedade em mudança para o tipo urbano e
industrial de civilização democrática, e até quando está dificultando essa mudan-
ça, com a manutenção dos objetivos apenas alargados da sociedade em desapare-
cimento.
C - À luz da política institucional formulada pela pesquisa antropo-social e das
verificações da pesquisa educacional: 1) elaborar planos, recomendações e suges-
177
tões para a reconstrução educacional de cada região do país, no nível primário,
rural e urbano, secundário e normal, superior e de educação de adultos; 2) elabo-
rar, baseados nos fatos apurados e inspirados na politica adotada, livros de texto
de administração escolar, de construção de currículo, de psicologia educacional,
de filosofia da educação, de medidas escolares, de preparo de mestres, etc.
D - Conjuntamente com esse trabalho de pesquisa, interpretação e elaboração
de material pedagógico e, por meio dele, o centro treinará administradores e es-
pecialistas em educação para lotar os Centros Regionais de Estudos Pedagógicos
que estão sendo criados nos estados, ligados ao master-center do Rio de Janeiro,
e, se possível, os próprios departamentos de educação das Escolas de Filosofia
das universidades brasileiras".
Foi a partir desse documento, que já registra a preocupação de Anísio Teixeira
com a formação de quadros para enfrentar adequadamente o problema da edu-
cação no Brasil, que foram recrutados os membros da equipe que seria enviada
pela Unesco. Bertran Hutchinson, sociólogo britânico, e Oto Klinemberg foram
os primeiros a vir, atendendo à convocação de Anísio Teixeira, com quem já ti-
nham trabalhado em outras oportunidades. Oto Klinemberg foi quem propôs,
em bases mais concretas, no que ficou conhecido como "Documento Klinem-
berg", um esquema dos objetivos e da organização do centro. Foi ele também
que sugeriu a mudança do nome "Centro de Altos Estudos Educacionais" para
"Centro de Pesquisas Educacionais".
0 "Documento Klinemberg" — conjunto de 5 memorandos — foi a tentativa de
sistematizar num esquema concreto e operativo tudo o que o grupo de técnicos
brasileiros e da Unesco vinha discutindo há mais de 2 anos. A tónica do docu-
mento é a urgência do conhecimento "das necessidades e exigências do povo
brasileiro, nos vários níveis sociais, económicos e educacionais, e nas várias re-
giões geográficas".
Preocupa-se também com o problema da divulgação dos resultados dos estudos
e pesquisas do centro: "Uma das principais tarefas do centro será a de comuni-
car aos professores de todo o país os resultados de pesquisas importantes em
ciências sociais, relativas ao passado e ao presente. 0 material concernente ao
Brasil em geral e às suas regiões deverá ser organizado de modo a poder ser uti-
lizado pelos professores, que poderão assim obter, sem dificuldades, informa-
ções relativas a zona em que servem".
Klinemberg sugere as vantagens que adviriam de um trabalho sério de pesquisa e
divulgação: 1) conhecimento mais profundo da vida e da cultura do Brasil; de fa-
to, provavelmente, melhor conhecimento da cultura do Brasil do que qualquer
outro país; 2) maior contato entre os estudiosos brasileiros e os educadores e es-
pecialistas em ciências sociais de outros países; 3) melhoramento dos métodos de
pesquisa e preparação dos educadores e especialistas brasileiros em ciências so-
ciais; 4) comunicação aos professores de todo o país de melhor conhecimento da
cultura do Brasil em geral, assim como de regiões específicas; 5) desenvolvimento
em novas direções da aplicação das ciências sociais aos problemas educacionais;
6) estabelecimento de um padrão para o melhoramento de um sistema educacio-
nal, que pode ter aplicação em outros sistemas além do Brasil, e a criação de um
modelo que poderá efetuar contato mais íntimo e proveitoso entre a educação
e as ciências sociais".
178
Num momento em que as ciências sociais no Brasil, com exceçao da Universida-
de de São Paulo, não tinham um locus institucional onde pudessem se desenvol-
ver, não apenas como disciplinas académicas mas como instrumento de com-
preensão e modificação do real, o projeto da criação do CBPE vinha preencher
essa lacuna, e acenar com possibilidades até então impensáveis. Klinemberg de-
monstra estar consciente das dificuldades que deveriam ser enfrentadas.
"Isso, a nosso ver, constitui um programa que se pode aspirar para o centro. Até
onde ele poderá ser realizado, dependerá dos recursos disponíveis e do pessoal".
Sugere portanto que se obtenha a melhor categoria possível de pessoal, tanto
brasileiro como estrangeiro, e admiti-lo sempre que possível em tempo integral.
Fugindo do velho modelo brasileiro dos "bicos", em que o pesquisador se vê
obrigado a pulverizar a sua atenção, trabalhando em vários lugares para somar
um salário que lhe permita viver, essa equipe coesa deveria, em regime de dedi-
cação exclusiva, desenvolver não pesquisas isoladas, mas um trabalho integrado
e coordenado, fugindo do individualismo.
Klinemberg voltou para a Unesco e pouco depois chegou Charles Wagley da Uni-
versidade de Columbia, que já colaborara com Anísio Teixeira na organização da
Capes. Ele e J. Roberto Moreira iniciaram a fase de implantação do CBPE: insta-
lação na nova sede, planejamento das primeiras pesquisas, organização dos servi-
ços administrativos e bibliotecas e, finalmente, o recrutamento dos primeiros
cientistas que iriam colaborar com o centro.
Qual o critério que presidiu essa escolha? Voltando ao depoimento de Darcy Ri-
beiro, "um dos problemas da educação é que é muito difícil atrair gente inteli-
gente para se ocupar com problemas de criança da escola primária, ou do jovem
da Escola Normal . . ." "Quando Anísio criou o CBPE, seu objetivo era ter um
comando fora do Ministério dedicado aos problemas da educação e vinculado à
universidade, à intelectualidade e também ao magistério. Foi a tentativa de in-
teressar a intelectualidade brasileira nos problemas da educação, coisa que não
tinha acontecido até então. A intenção era dar à educação o mesmo interesse, o
mesmo critério de orientação científica que se dá à medicina, e também fazer
com que a universidade, que havia incorporado por causa da tradição francesa a
problemática da saúde, incorporasse a problemática da educação. Nas universida-
des o que havia com relação à educação era uma neblina pedagógica: os cursos de
didática, de pedagogia, eram cursos frouxos, não eram nada. A intenção de Aní-
sio era subverter isso . . ." "O CBPE deveria estar articulado aos centros regionais
— que deveriam ter sempre uma grande biblioteca e uma escola experimental —
que deveriam articular-se com a intelectualidade local, para fazer o encontro dos
educadores com os intelectuais e do ministério com a universidade. Pretendia-se
promover pesquisas que permitissem fazer um diagnóstico da situação da educa-
ção, estudos sociais e culturais, e experimentação educacional para criar modelos
de escolas multiplicáveis para quando o Brasil quisesse dar uma saída ao proble-
ma da educação, e criar material didático".
Numa das primeiras reuniões do período de organização em 18/08/1955, estive-
ram reunidos educadores e cientistas sociais que responderam ao apelo de Anísio
Teixeira: Fernando de Azevedo, Almeida Júnior, J. Roberto Moreira, Charles
Wagley, Mário de Brito, Jaime Abreu, Luís de Castro Faria, Antonio Cândido de
179
Mello e Souza, José Bonifácio Rodrigues, Lourival Gomes Machado, Bertram
Hutchinson, Florestan Fernandes, Egon Schaden, L. A. Costa Pinto e Henri Lau-
rentie, este representante da assistência técnica da ONU. Mais uma vez foi enfati-
zada a necessidade de estabelecer uma intensa colaboração entre educadores e
cientistas sociais, entre especialistas do Rio e de São Paulo e de outros núcleos
estaduais, e entre especialistas estrangeiros visitantes e técnicos brasileiros.
Elza Nascimento Alves, que acompanhou o processo de gestação do CBPE, assi-
nala que "antes da criação do CBPE passaram-se meses de discussão. Discussão
de elaboração. Procurava-se dar um sentido novo à área da educação, que era
muito isolada. Pretendia-se chegar a um quadro que não tivesse um caráter ape-
nas pedagógico ou psicológico. Porque até então a educação estava ligada apenas
à psicologia. No Inep, principalmente, porque Lourenço Filho era psicólogo e to-
da a ênfase da sua administração foi em educação e psicologia, toda a pesquisa
feita foi de caráter psicológico ou pedagógico. Anísio Teixeira veio com uma
concepção mais ampla. Queria unir educação e ciência social. Para se chegar a um
esquema organizacional, conceituai, de como essas duas coisas poderiam traba-
lhar juntas, e de como a educação necessitava de conhecimento sobre o contexto
social para ser realmente autêntica, adequada ao pai's. A discussão levou muito
tempo, porque se tinha que elaborar uma coisa completamente nova".
Os primeiros estudos já estavam sendo feitos quando o centro foi oficialmente
instituído em 28/12/1955, pelo Decreto n9 38.460.
Eram os seguintes: análise sobre o que os estudos de comunidade já efetuados no
Brasil esclarecem a respeito do processo educativo nas comunidades estudadas,
por Josideth Gomes; estudo sobre estratificação social no Brasil, e levantamento
de bibliografia nacional de interesse sobre o assunto, por L. A. Costa Pinto e Val-
domiro Bazzarella; aproveitamento de questionários anteriormente preenchidos
sobre uma amostra de estabelecimento de ensino no Estado do Rio de Janeiro,
por J. Bonifácio Rodrigues; estudo sobre o funcionamento de 5 escolas primárias
em Blumenau, por Orlando Ferreira de Melo; estudos sobre mobilidade social em
São Paulo, por Bertram Hutchinson; estudo sobre assimilação de imigrantes italia-
nos em São Paulo, e pequeno survey sobre as manifestações de fanatismo religio-
so em Malacacheta, por Carlos Castaldi; estudo sobre relações étnicas ao sul do
Brasil, por Florestan Fernandes, entre outros.
Ao decreto de criação do centro está acoplado o "Plano de Organização do Cen-
tro Brasileiro de Pesquisas Educacionais e Centros Regionais" dividido em 4 te-
mas: fins e objetivos, organização geral, atribuições da direção do programa, do
pessoal e suas atribuições.
Esse plano é um documento extremamente bem feito e meticuloso, que descreve
uma organização que pode ser pensada como "perfeita". Seus objetivos são am-
biciosos mas não irreais. Ele pretendia, basicamente, promover a pesquisa das
condições culturais e escolares e das tendências de desenvolvimento de cada re-
gião e da sociedade brasileira como um todo, tendo em vista a elaboração gradual
de uma política educacional para o país; elaborar planos, recomendações e suges-
tões para a revisão e a reconstrução educacional do país - em cada região - nos
níveis primário, médio e superior, e no setor de educação de adultos; elaborar li-
vros-fonte e de textos, preparo de material de ensino, estudos especiais sobre ad-
ministração escolar, currículos, psicologia educacional, filosofia de educação.
180
medidas escolares e de qualquer outro material que concorra para o aperfeiçoa-
mento do magistério nacional; treinar e aperfeiçoar administradores escolares,
orientadores educacionais, especialistas dé educação e professores de escolas nor-
mais e primárias.
Para atingir essas metas seriam adotadas as seguintes normas: análise do processo
de desenvolvimento que vem afetando a sociedade brasileira como um todo, em-
bora com intensidade variável nas diferentes regiões do país; contribuição dos es-
tudiosos de educação e ciências sociais para estabelecer as diretrizes de uma polí-
tica educacional; consideração das relações dinâmicas entre educação e sociedade
que vão ser analisadas como processo; a educação deve ser encarada como um
dos fatores que podem acelerar, corrigir ou equilibrar o desenvolvimento da so-
ciedade brasileira. Nesse sentido a escola deve ser uma agência de transmissão do
patrimônio cultural nacional a todos os brasileiros; a pesquisa em ciências sociais,
realizada dentro do centro, deve subordinar-se em princípio aos interesses e obje-
tivos da ação educacional; a pesquisa em ciências sociais deve ser explorada am-
plamente, para que seja possível obter conhecimentos positivos sobre as condi-
ções de existência e as exigências de desenvolvimento económico social e cultu-
ral das diversas regiões do país; os resultados da pesquisa em ciências sociais e da
pesquisa educacional servirão para elaborar os fundamentos da política educacio-
nal, ou de orientação para reformas específicas, ou programas restritos de altera-
ção do sistema educacional; o estudo de organização da escola, nos diversos ní-
veis, se fará tendo em vista ajustá-lo às descobertas da investigação científica e às
necessidades do meio social ambiente.
Como funcionou o CBPE na prática?
O primeiro problema que teve que ser enfrentado por Anísio Teixeira e sua equi-
pe foi a oposição existente dentro do próprio Inep. Alguns técnicos satisfeitos,
ou pelo menos não insatisfeitos, com o regime que vigorava, opuseram-se frontal-
mente à criação do CBPE, afirmando que a nova estrutura iria apenas reproduzir
o Inep, crítica que não deixava de ser justa, porque formalmente isso acontecia.
Mas, mais uma vez utilizando o testemunho de Darcy Ribeiro, "a idéia de Anísio
Teixeira era criar algo exatamente para complementar o Inep, que exercia fun-
ções que tinham que continuar. Até então, em detrimento da pesquisa, fizera
prédios de escolas, campanhas de alfabetização e convénios com os estados, fi-
nanciando a formação das professoras primárias. Isso estava sendo feito e bem fei-
to, e deveria continuar e continuou. Ao lado disso tentou montar uma grande má-
quina de ciências sociais, de intelectuais tratando da problemática da educação".
Outro grupo que resistiu foi o de pedagogos que pensavam a educação num sen-
tido bem estreito. Consideravam desnecessário investigar as condições sociais an-
tes de planejar novos modelos educativos ou modificar os antigos. Segundo Re-
gina Helena Tavares, que trabalhou no Inep desde 1952 e no CBPE até seu fecha-
mento, sendo sua diretora de 1975 a 1976, essa resistência, de maneira geral, foi
quebrada. A maioria dos técnicos do Inep se rendeu inteiramente às novas idéias,
e passou a trabalhar em conjunto, a participar, a colaborar com o novo grupo
coordenado por Darcy Ribeiro.
0 Decreto n9 38.460 instituiu o CBPE que foi sediado no Rio de Janeiro, e fun-
cionava num prédio da Rua Voluntários da Pátria, e 5 centros regionais: Pernam-
181
buco, dirigido por Gilberto Freire; Bahia, por Carmem Spínola Teixeira; Minas,
por Abgar Renault; São Paulo, por Fernando de Azevedo, e Rio Grande do Sul,
por Eloah Ribeiro Kunz. Cada um dos centros tinha 4 divisões: Divisão de Estu-
dos e Pesquisas Educacionais, Divisão de Estudos e Pesquisas Sociais, Divisão de
Documentação e Informação Pedagógica, Divisão de Aperfeiçoamento do Ma-
gistério.
A produção nos centros regionais foi muito desigual, tanto se compararmos um
com outro, quanto se observarmos diversos momentos de um mesmo centro. O
que menos produziu foi o do Rio Grande do Sul. 0 de Pernambuco teve uma
boa fase, quando foi dirigido por Gilberto Freire. Promoveu uma série de pesqui-
sas, principalmente na Zona da Mata, coordenada por Levy Cruz, sociólogo re-
cém-chegado dos Estados Unidos, onde fizera o doutoramento. Publicava uma
revista - Cadernos Região e Educação, e previa-se, coisa que não chegou a ser
feita, a absorção de um grupo de cientistas sociais locais que estava fazendo pós-
graduaçao no exterior.
O Centro Regional da Bahia destacou-se pela experiência do Centro Educacional
Carneiro Ribeiro como escola experimental. Era um sonho antigo de Anísio Tei-
xeira, da época do governo Otávio Mangabeira, que foi concretizado através do
Inep. Localizado num bairro proletário - Liberdade - funcionava em regime de
tempo integral, e com professorado especializado. Seria, na opinião de Darcy Ri-
beiro, a escola capaz de subverter o modelo educacional brasileiro: "a escola bra-
sileira está feita para o menino de classe média, cujos pais têm educação primária
completa e que tem alguém em casa disponível para estudar duas ou três horas com
ele. Portanto, é uma mentira dizer que essa escola é para o povo, porque o povo
vai para ser reprovado. No Brasil nunca houve educação popular. Anísio Teixeira
começou a fazer uma coisa que muita gente condenou como cara, porque no Bra-
sil a prioridade é para viadutos" . . . "No Centro Educacional Carneiro Ribeiro
quanto mais atrasada a criança, mais treinada a professora. Dava-se também com-
plemento alimentar, não apenas para matar a fome, mas para permitir um desen-
volvimento saudável. Havia acompanhamento médico permanente . . ."
Em São Paulo, o centro regional trabalhou em estreita colaboração com a Univer-
sidade de São Paulo, o que lhe permitiu assimilar o prestígio com que a universi-
dade já contava. O primeiro prédio do campus da USP foi construído pelo CRSP:
destinava-se a ser um grande centro de estudos sobre a educação elementar, pro-
movendo não só pesquisas como cursos de aperfeiçoamento para as professoras
primárias do interior. Para isso oferecia inclusive condições de hospedagem. Che-
gou a ter uma excelente biblioteca pedagógica, publicou a revista Pesquisa e Pla-
nejamento onde saíram os primeiros levantamentos sobre ensino primário no mu-
nicípio da capital, ensino secundário oficial e ensino normal oficial e particular.
0 Centro Regional de Minas Gerais foi dirigido sucessivamente por Mário Casas-
santa e Abgar Renault. Promoveu cursos de francês e inglês para professores do
ensino secundário e fez pesquisas sobre vocabulário e pensamento lógico nas es-
colas de Belo Horizonte.
O Rio Grande do Sul desenvolveu pesquisas sobre livros-texto de leitura, e pro-
moveu estudos para a adaptação de testes de inteligência e aptidão às condições
locais. Traçou também um plano de diagnose educacional aplicada à ortografia.
182
Os diretores dos centros regionais reuniam-se periodicamente numa comissão
consultiva formada por eles, pelo diretor do Inep e o pessoal técnico. 0 objetivo
dessas reuniões era buscar uma certa homogeneidade nos projetos e permitir o
acompanhamento não só dos trabalhos que estavam sendo feitos, mas do tipo de
preocupação que centralizava as atenções dos educadores de cada região. Mas, o
que aconteceu na realidade foi que nos centros regionais a falta de pessoal, so-
mada à falta de recursos, fez com que houvesse sempre hipertrofia de uma divi-
são em detrimento das outras.
Quanto ao Centro do Rio de Janeiro, é importante aprofundar mais a sua histó-
ria; dirigido pessoalmente por Anísio Teixeira, tinha Darcy Ribeiro à frente da
Divisão de Estudos e Pesquisas Sociais, Jaime Abreu na Divisão de Estudos e Pes-
quisas Educacionais, Elza Rodrigues Martins na Divisão de Documentação e In-
formação Pedagógica e Lúcia Pinheiro na Divisão de Aperfeiçoamento do Magis-
tério. Como se organizou cada uma dessas divisões?
A BIBLIOTECA DO CBPE
Comecemos pela Divisão de Documentaçâoe Informação Pedagógica (DDIP) que,
segundo o Plano de Organização do CBPE e dos centros regionais, deveria desen-
volver as seguintes atividades: 1 ) documentação relativa às necessidades dos estu-
dos e pesquisas desenvolvidas pelas diferentes divisões; 2) Biblioteca da Educação,
de Ciências Sociais, e demais ciências fontes da educação, cumprindo-lhe ainda
manter a mais completa Brasiliana que for possível; 3) cadastro bibliográfico e
de instituições educacionais, de educadores e educacionistas; 4) informação, in-
tercâmbio e divulgação; 5) publicações; 6) Museu Pedagógico, destinado a de-
monstrar a evolução das doutrinas, práticas educacionais, material de ensino, es-
pecialmente em relação ao país, cabendo-lhe ainda manter filmoteca, discoteca,
arquivo de fotografias e gravuras. A filmoteca, parte do serviço audiovisual, pro-
punha-se a prestar auxílio às escolas através do empréstimo de filmes e slides,
projeções didáticas para professores na própria sede do CBPE, e à elaboração de
slides, salientando-se a coleção "Tipos e aspectos do Brasil", feita em colabora-
ção com o IBGE.
A grande realização da DDIP, foi a organização da biblioteca, que chegou a ter
mais de 70 mil volumes e 1.800 títulos de periódicos nacionais e estrangeiros.
Aberta a qualquer pesquisador, com serviços de apoio extremamente eficientes,
teve um papel importante no Rio de Janeiro como centro de estudos de educa-
ção e de ciências sociais, mesmo para os que não pertenciam aos quadros da insti-
tuição. Foi considerada a melhor biblioteca especializada em educação e ciências
sociais de todo o país.
Reuniu também uma extensa Brasiliana, com objetivo de permitir o estudo de
todos os aspectos da cultura brasileira. O setor didático pedagógico continha to-
da a informação básica e bibliografia internacional sobre educação, coleções de
livros didáticos utilizados nas escolas brasileiras e em países com os quais tínha-
mos vínculos culturais e que poderiam servir como referência.
A organização dessa biblioteca ficou a cargo de um grupo misto de bibliotecono-
mistas e educadores, que contavam com o auxílio dos técnicos da Unesco - prin-
183
cipalmente Hutchinson e Wagley, que ajudaram na seleção do que deveria consti-
tuir a base das coleções.
Embora a DDIP tenha sempre sido lembrada pela qualidade da sua biblioteca, de-
senvolveu uma série de outras atividades. O n° 15 da revista Educação e Ciências
Sociais (setembro 1960) informa que até aquele momento, isto é, em 5 anos, a
divisão tinha distribuído 450.000 livros a bibliotecas e instituições educacionais,
sendo que 90.000 de janeiro a setembro daquele ano. Refere-se também à colo-
cação de 30 aparelhos de projeção cinematográfica, 200 laboratórios de química
e 200 de física, 400 unidades didáticas de física, química e biologia.
Um arquivo fotográfico, que pretendia abrir-se para todos os aspectos da vida
brasileira, mas com ênfase especial nos aspectos educacionais, já contava naquele
momento com 4.600 negativos.
Através de um trabalho cotidiano em que distribuiu pelo país inteiro comunica-
ções, estudos, livros didáticos importantes para a elevação do nível do professor
brasileiro, a DDIP exerceu um papel fundamental não só na divulgação das pes-
quisas e experimentos realizados no CBPE e nas suas escolas experimentais, atra-
vés da revista do Inep, Educação e Ciências Sociais, como na distribuição de li-
vros didáticos de boa qualidade. É importante assinalar o papel inovador e de di-
vulgação de idéias e experiências educacionais exercido por estas revistas, sobre-
tudo a Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, publicada com continuidade
desde a sua fundação.
ESTUDOS E PESQUISAS SOCIAIS
A Divisão de Estudos e Pesquisas Sociais, até pelo fato de ser uma experiência
inédita, recebeu uma grande dose de atenção. Quando foi chamado para dirigi-la,
Darcy Ribeiro era o coordenador do primeiro curso sistemático para etnólogos
e antropólogos no Museu do índio. Sua experiência era basicamente com socie-
dades tribais. Atraído pelo projeto de Anísio Teixeira, organizou no CBPE o que
pode ser considerado o primeiro curso de pós-graduação brasileiro em ciências
sociais. Com um programa de 2 anos, em tempo integral, centrado na temática
brasileira, ao fim dos quais o aluno deveria produzir uma monografia original,
reuniu como professores cientistas que antes trabalhavam sem qualquer contato
entre si: Oracy Nogueira, Jacques Lambert, Roberto Cardoso de Oliveira, Ber-
tram Hutchinson. O curso iniciou-se com 15 alunos e formou 10 pesquisadores
nos 2 anos em que funcionou.
Quanto ao programa de pesquisas, era extremamente ambicioso. Nas palavras do
próprio Darcy Ribeiro, que participou intensamente da sua concepção, "era um
programa duplo, em que tomamos 14 áreas brasileiras, 14 municípios típicos da
Amazónia ao Rio Grande do Sul e estudamos a população rural e a população ur-
bana, condições de vida e condições culturais, com o objetivo de publicar mono-
grafias sobre cada uma delas. Das 14, umas 4 chegaram a ser publicadas. Além
dessas 14, havia mais umas 20 pesquisas do tipo social sobre urbanização, indus-
trialização e educação. Nunca houve programa tão amplo na área das ciências so-
ciais. Essas pesquisas todas, se tivessem tido continuidade, formariam uma biblio-
teca que teria sido a mais importante na área de ciências sociais no Brasil. Era um
184
"passar o Brasil a limpo". "Umas pesquisas eram de síntese - síntese do conheci-
mento existente num determinado campo; outras eram estudos de campo do ti-
po sociológico, sobre contraste rural/urbano nas cidades laboratório. Eram orien-
tadas por Bertram Hutchinson, Florestan Fernandes ou por mim. Se essas pesqui-
sas tivessem sido completadas, o Brasil passaria a ter uma biblioteca de ciências
sociais como não tem até hoje. Além do mais, teria tido o efeito de voltar as
ciências sociais brasileiras para a nossa temática, principalmente a que tem rele-
vância social. Esse era o sentido que Ani'sio queria dar, e não impedir que alguém
façà qualquer pesquisa que queira fazer, mas não facilitar, como veio a acontecer
depois, que o cientista social brasileiro seja alguém cujo objetivo é colocar um
ponto e vírgula em Levy Strauss. Se o programa tivesse tido continuidade, nós
teríamos voltado uma grande quantidade de cabeças, gente de boa qualidade,
para a temática da educação, que é a temática do conhecimento e da cultura
brasileira".
"... O que as pesquisas pretendiam era ver o que a antropologia, o que a socio-
logia podiam dizer ao educador. Não pretendíamos tomar o lugar do educador.
Pretendíamos criar uma bibliografia de ciências sociais que aumentasse o grau
de conhecimento do Brasil, supondo-se que, na medida em que se tivesse um
maior conhecimento sobre a sociedade e a cultura brasileiras, o planejamento
educacional seria melhor".
Nem tudo que estava previsto foi realizado. As razões foram várias. Há concor-
dância entre os entrevistados quando enunciam algumas delas; a saída de Darcy
Ribeiro para organizar e depois dirigir a Universidade de Brasília num momento
em que ainda não tinha se formado uma liderança para substituí-lo; a mudança
de governo (Juscelino/Jânio), com inevitáveis repercussões na política de verbas;
o emperramento da máquina burocrática que dificultava a contratação de pessoal
qualificado; os baixos salários que não retinham os técnicos e pesquisadores que
já estivessem na instituição. Assim, alguns trabalhos não foram concluídos. Ou-
tros, concluídos, foram arquivados, por terem sido considerados insatisfatórios.
Mas alguns, como os trabalhos de Bertram Hutchinson (Mobilidade e trabalho),
Oracy Nogueira {Família e comunidade em Itapetinga), Manuel Diegues Júnior
(Regiões culturais do Brasil), Jacques Lambert (Os dois Brasis), Florestan Fer-
nandes (A integração do negro à sociedade de c/asses), Egon Chades (O japonês
e o alemão no Brasil), Eunice Durham (Adaptação dos contingentes rurais nas
metrópoles) são considerados momentos importantes na literatura sociológica
brasileira.
ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS
A Divisão de Estudos e Pesquisas Educacionais era dirigida por Jaime Abreu, es-
pecialista em ensino médio, assessorado desde 1959 por Nádia Franco da Cunha.
Jaime Abreu foi um educador preocupado com os aspectos económicos do ensi-
no. Promoveu uma série de inquéritos a respeito da economia, da educação, seus
custos, possibilidades e tempo de retorno. Foram feitas também análises de cur-
rículos e estimuladas classes experimentais em busca de melhores modelos para
o nível médio.
Segundo Nádia Franco da Cunha, um dos aspectos mais satisfatórios do trabalho
185
na Divisão de Estudos e Pesquisas Educacionais foi o aproveitamento das pesqui-
sas feitas, tanto pelos órgãos deliberativos e executivos do Ministério da Educa-
ção e Cultura quanto por outras instituições ligadas à educação pública ou priva-
das (Secretaria de Educação, Faculdade de Pedagogia, etc). A equipe sempre
procurou divulgar o que fazia, encaminhando para os possíveis consumidores os
inquéritos e pesquisas realizadas. A divisão recebia constantemente pedidos de
informação vindos tanto do Brasil quanto do exterior. O intercâmbio com a
Unesco, com o Instituto de Pesquisas de Paris, com a OEA era intenso: trocavam-
se trabalhos, respondiam-se questionários.
O terceiro setor que se dedicou à pesquisa no CBPE foi a Divisão de Aperfeiçoa-
mento do Magistério, dirigida por Lúcia Pinheiro. Originariamente essa divisão
deveria promover cursos e estágios para o magistério responsável pela formação
de professores primários, ou seja, das escolas normais e dos cursos de Pedagogia
Começou a fazer pesquisas que interessassem à sua área por sugestão de Jaime
Abreu.
A Divisão de Aperfeiçoamento do Magistério recebia pessoas de todo o Brasil em
busca de formação, aperfeiçoamento e novas técnicas. A necessidade de ter uma
escola onde essas novas técnicas fossem postas a prova antes de serem divulgadas
levou o Inep a pedir à Secretaria da Educação do então Distrito Federal a conces-
são da Escola Guatemala, recém-inaugurada no Bairro de Fátima, para ser a sua
Escola Experimental. Segundo Elza Rodrigues Martins, a Escola Guatemala foi
um grande laboratório de ensaio de métodos e processos de ensino, de avaliação,
de tentativa de busca de melhores soluções para a educação brasileira. Professo-
res de todo o Brasil vinham fazer estágios, observar. De volta aos seus estados
tornavam-se focos de efeito multiplicador, dentro das próprias secretarias de edu-
cação. Esse trabalho foi documentado em 6 filmes relativos a ativídades de classe,
que deveriam ser utilizados no processo de implantação da reforma do ensino de
19 grau.
Lúcia Pinheiro procurou, como coordenadora da Divisão de Aperfeiçoamento do
Magistério, desenvolver um tipo de pesquisa que estivesse intimamente vinculada
á problemática vivida pela professora primária. Por essa razão a grande maioria
dos trabalhos da sua divisão referiu-se à 1? série. A 1? série é o grande "fantas-
ma" da educação elementar em função da altíssima taxa de repetência.
Por volta de 1960, quarenta e oito por cento das crianças matriculadas no curso
primário estavam na 1P série. E, somando-se as duas primeiras séries, chegava-se
a 66%. A terceira série não contava mais do que 8% dos alunos. Para identificar
as causas do problema foram feitas varias pesquisas, como por exemplo a respei-
to da formação das professoras primárias nas escolas normais de oito estados
brasileiros; sobre a prática real do professor primário; e um estudo comparativo
dos currículos das escolas primárias no Brasil, Suíça, França, Estados Unidos e
Itália. A cada pesquisa concluída correspondia uma pequena publicação que,
distribuída pelo maior número possível de escolas no país, divulgasse não só o
que tinha sido observado, como também sugestões para, senão resolver, pelo
menos encaminhar o problema.
Na concepção original do CBPE essas três divisões deveriam trabalhar em ínti-
mo contato. Mas na verdade isso não aconteceu, a não ser no período "áureo"
186
do CBPE: de 1956 a 1960. E se isso aconteceu não foi em função do tipo de
organização existente, mas na liderança pessoal de Anísio Teixeira que funcio-
nava como um mediador entre as três divisões, promovendo reuniões, estimu-
lando a discussão. Foi uma época em que o Inep, segundo várias pessoas que vi-
veram a experiência, deixou de ser uma repartição pública para ser o local onde
se debatiam os principais temas ligados à problemática educacional brasileira, em
todos os seus níveis. Desses debates participavam não só os técnicos do instituto,
como cientistas sociais como Otávio Ianni, Fernando Henrique Cardoso, Arthur
Gianotti, Florestan Fernandes que trouxeram importantes contribuições ao gru-
po e desempenharam um papel relevante na difusão das idéias ali surgidas.
É interessante o depoimento de Elza Nascimento Alves sobre o clima dessa época:
"No período de Anísio Teixeira o Inep era um verdadeiro cadinho de idéias. E a
concepção que se tinha naquela época de pesquisa era o que hoje em dia se cha-
ma "sistémica". Não se pensava em pesquisas isoladas. Hoje em dia nem as uni-
versidades têm essa visão: não há um planejamento, uma concepção sistémica. E
na época de Anísio Teixeira houve. O que se fez foi um planejamento integrado.
Tínhamos um esquema de referências ao qual as pesquisas s° vinculavam: Brasil
urbano/Brasil rural. Era todo um quadro de pesquisas sociais para subsidiar, para
dar sentido à pesquisa educacional. Acho que nem as universidades nem o minis-
tério conseguiram retomar essa concepção de pesquisa dentro de um quadro refe-
rencial mais completo e mais integrado. Além do mais, havia todo um clima, to-
do um quadro de debate, de fermentação intelectual. Sentia-se um ambiente ab-
solutamente técnico. Não havia o conceito de autoridade pelo cargo. Quando o
grupo se reunia para discutir alguma coisa, era a autoridade de quem sabia mais
um assunto, de quem tinha mais experiência na área que contava. Era uma coisa
suigeneris, que nunca vi em lugar nenhum".
Dois grandes debates marcaram esse período: o primeiro, em torno da Lei de Di-
retrizes e Bases da Educação, e o segundo, da organização da Universidade de
Brasília.
A LEI DE DIRETRIZES E BASES
O projeto para uma lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional foi enviado ao
Congresso pelo ministro Clemente Mariani em 28/10/1948, atendendo a uma de-
terminação da Constituição Federal de 1946. Elaborada por uma comissão da
qual fizeram parte Lourenço Filho como presidente, Pedro Calmon como vice-
presidente e presidente da Subcomissão do Ensino Superior, Fernando de Azeve-
do como presidente da Subcomissão de Ensino Médio, Antonio Almeida Júnior
como presidente da Subcomissão de Ensino Primário e uma série de outros edu-
cadores entre os quais o padre Leonel Franca, Alceu Amoroso Lima, Antonio
Carneiro Leão e Celso Kelly, era uma lei cuja principal característica era o seu ca-
ráter evolutivo. Pretendia dar à educação uma organização que a livrasse de refor-
mas espasmódicas, que permitisse uma evolução natural, sem tornar necessária
uma reforma atrás da outra.
Segundo Anísio Teixeira suas grandes linhas seriam:
"1. Unidade da educação brasileira - toda a educação brasileira, em todos os
187
seus níveis e ramos, terá diretrizes e bases comuns, constituindo um sistema con-
tínuo, diversificado e uno, a ser executado por particulares e pelos poderes pú-
blicos, sob a administração dos Estados e a supervisão discreta, mas eficaz, do go-
verno federal.
2. Divisão de competências: os sistemas estaduais de educação representam os
corpos - também eles próprios diversificados — componentes do supersistema
completo e amplo da educação nacional, enquanto não se chega até o município,
ao que tenderá o sistema, à medida que amadureça a experiência administrativa
brasileira.
3. Poder supervisor e normativo da União — a União não perde nenhum dos seus
poderes, que antes se ampliam, com a inclusão — pela primeira vez - do ensino
primário dentro de sua órbita normativa. Seu poder se exercerá pela própria Lei
de Diretrizes e Bases e por uma ação, extraordinária, nos casos de cassação e re-
visão de atos dos governos estaduais, e continua permanente, na ação supletiva,
por meio da qual assistirá financeira e tecnicamente os governos dos Estados,
exercendo, indiretamente, a mais profunda influência sobre o ensino que, de fa-
to, se quiser, poderá Jirigir, pela forma mais fecunda de direção, que é a de de-
monstração, do estímulo e da sugestão.
4. Flexibilidade, liberdade e descentralização - ... os planos impostos de cima
para baixo podem funcionar na ordem mecânica, e mesmo aí apresentam seus
graves defeitos, nunca em sistemas vivos como os da educação. Temos de restabe-
lecer uma linha de autonomia que unifique todos os tecidos do sistema educacio-
nal, desde o trabalho de classe até a ordem administrativa mais alta, não para se
perder a unidade, mas para se conseguir a forma única de unidade, que não é pre-
judicial às instituições sociais vivas e dinâmicas: a unidade obtida pela emulação
de meios e formas diversas com objetivos comuns e de que resultará uma cons-
ciência comum".
Durante dez anos a Lei de Diretrizes e Bases foi discutida no Congresso, sugeri-
das emendas, propostos substitutivos. Em todo esse período os técnicos do Inep,
muitos dos quais já tinham assessorado os membros da comissão, participaram
do debate, fornecendo dados, depondo na Comissão de Educação da Câmara.
Mas o momento em que a participação do Inep/CBPE se fez sentir com mais in-
tensidade foi o da discussão do Substitutivo Lacerda, em 1959. Esse projeto, cal-
caldo no de 1948, apresentava uma série de modificações que desvirtuaram o seu
sentido original. A principal delas era o uso de verbas públicas para subsidiar a es-
cola privada, em nome do "direito fundamental da família de promover a educa-
ção dos seus filhos e acompanhá-la de perto". O campo definiu-se entre os defen-
sores da ideia de que a totalidade dos recursos do Estado deveria ir para a escola
pública e os que insistiam em que a escola particular deveria ser subsidiada. O
clero católico liderava a corrente ligada ao ensino privado que defendia a canali-
zação dos recursos para a escola particular. É importante assinalai que um grupo
religioso e ligado ao ensino privado não entrou no processo de hostilização a
Anísio Teixeira: os educadores metodistas, que no Rio mantinham o Colégio
Bennett. Foi nesse contexto que surgiu o memorial dos bispos gaúchos protes-
tando contra a presença de Anísio Teixeira na Capes e no Inep. Hermes Lima diz
que, "na opinião dos bispos, Anísio estaria envenenando e destruindo a família e
188
preparando a revolução socialista na sociedade brasileira" 5 . Pouco depois, em
julho, com a ratificação, pela IV Reunião Ordinária da Conferência dos Bispos
do Brasil, da posição defendida pelo arcebispo de Porto Alegre, D. Vicente Sche-
rer, criou-se uma crise política pue quase resultou na saída de Anísio Teixeira
dos órgãos que dirigia. Depõe Darcy Ribeiro, que teve um papel importante na
situação:
"Foi nessa época que houve um memorial dos bispos do Rio Grande do Sul, acu-
sando Anísio de estar comunizando o Brasil por ter criado o CBPE. Juscelino
deu a cabeça de Anísio para os padres. Clóvis Salgado chamou Anísio e pediu os
cargos. Anísio entregou. À tarde, eu declarei que ele não tinha pedido demissão
e escrevi um artigo, com Almir de Castro, e Tude de Souza — foi o único artigo
de An ísio que ele não escreveu : Sou contra — 10 coisas e Sou a Favor - 10 coi-
sas. A reação nacional foi tão grande que saíram 70 editoriais de jornal defenden-
do Anísio. Juscelino voltou atrás, pediu desculpas e apelou para que ele ficasse.
Nós ganhamos. Naquele momento a Igreja era contra a educação do povo, pela
educação da elite. A reivindicação que faziam era que na nova lei das Diretrizes
e Bases o dinheiro fosse destinado à educação privada. Nós não éramos contra a
educação privada, desde que ela se pagasse. Éramos contra que o pouco dinhei-
ro que havia disponível para a educação popular fosse dado a gente rica. A posi-
ção da Igreja hoje está totalmente modificada".
A superação da crise provocada pelo documento emitido pela Conferência dos
Bispos não encerrou os debates em torno da Lei de Diretrizes e Bases, que con-
tinuaram intensos e envolvendo todos os setores ligados ao ensino. Não foi um
debate que tenha ficado restrito às publicações especializadas. Jornais e revistas
participaram, abrindo espaço para os representantes das posições em jogo. Conta
Elza Rodrigues Martins:
"A época do substitutivo Lacerda foi uma época muito efervescente. Reuniam-se
no Inep muitas pessoas, por exemplo Paulo Duarte, da Revista Anhembi, Geral-
do Bastos Silva, que era um profundo conhecedor do ensino médio, Roque Spen-
cer Maciel de Barros, Laerte de Carvalho Ramos do Centro Regional de São Pau-
lo, Joel Martins, Renato Jardim, Roberto Moreira, todos defendendo uma linha
de participação e de verbas públicas para a instrução pública. Toda essa discussão
está documentada em um número especial da Revista do Inep. Foi um período
muito vivo, muito efervescente para o Inep. A Lei de Diretrizes e Bases, por ser
uma primeira lei formulando um plano orgânico, continha a educação brasileira
sob todos os aspectos, em todos os graus, em todos os ramos. O Inep tinha uma
equipe numerosa, capaz de questionar com pertinência sobre qualquer aspecto
da lei".
O testemunho de Darcy Ribeiro complementa o de Elza Rodrigues Martins, quan-
to ao papel dinamizador do Inep/CBPE na discussão:
"A luta pela escola pública na batalha pela Lei de Diretrizes e Bases foi toda
orientada por nós, do CBPE. Uma das suas consequências foi atrair Florestan
Fernandes, que era um cientista que escrevia sobre a organização social dos Tupi-
s Anísio Teixeira. Estadista da Educação, p. 161
189
nambás, ou a guerra entre os Tupinambás, para a tarefa da educação, foi um m
do de chamá-lo para a realidade brasileira. Isso foi bom num momento em que s
discutia a escola pública, em cuja defesa Florestan cresceu como líder. Dificil-
mente isso teria acontecido se não fosse Anísio, se não fosse o CBPE".
A UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
O planejamento e organização da Universidade de Brasília foi outro tema que en-
volveu de maneira oficiosa o Inep/CBPE. Em UnB: invenção e descaminho 6 Dar-
cy Ribeiro diz que a UnB "foi e é o projeto mais ambicioso da intelectualidade
brasileira. Efetivamente, de 1959 a 1961 a criação da UnB foi a questão cultural
mais séria, mais desaf iante e mais empolgante que se colocou diante da intelectua-
lidade do país, que a via como sua meta e sua causa".
O plano de estruturação da universidade foi oficialmente coordenado por uma
comissão especial nomeada pelo presidente Kubitscheck, composta por Darcy
Ribeiro, Oscar Niemeyer e Cyro dos Anjos. Mas, como relata Darcy Ribeiro no
livro citado, quando saiu o decreto nomeando a comissão, o planejamento já es-
tava avançado, o que permitiu que fosse rapidamente publicado um documento
que continha o plano para a nova universidade junto com uma avaliação redigi-
da por diversos intelectuais. Essas discussões tinham se realizado no CBPE e con-
centravam as atenções de todas as pessoas ligadas ao ensino superior no Brasil.
Resultaram num diagnóstico nada satisfatório das condições de funcionamento
das universidades existentes, através da análise da universidade modelo - a Uni-
versidade do Brasil. Foi denunciada a rigidez de sua estrutura, centralista e auto-
ritária, que tinha levado à instituição de um sistema cartorial que, burocratizan-
do a educação superior brasileira, a conduziu a extremos de irresponsabilidade e
de clientelismo. Graças a isso multiplicaram-se por todo o país escolas superiores
degradadas e improvisadas, mas que atendiam às exigências do Ministério da Edu-
cação.
Rapidamente o campo dividiu-se entre os partidários da nova universidade e os
que se opunham a ela, de maneira velada ou aberta. O modelo proposto opunha-
se frontalmente à manutenção dos privilégios da cátedra e às formas vigentes de
entrada e ascenção na carreira universitária, que tinham dificultado a formação
de pessoal qualificado, e, como não podia deixar de ser, despertou uma série de
hostilidades, que se revelaram em críticas técnicas e políticas.
A nova universidade deveria retomar e reavaliar duas experiências na área do ensi-
no superior que, por razões diversas, tinham sido castradas: a da Universidade de
São Paulo e da Universidade do Distrito Federal, ambas fundadas na década de
30. A grande novidade que trouxeram foi pretender cobrir todos os campos do
saber e da cultura — o que na época se chamava cultura desinteressada — sem
uma preocupação imediatista com a sua aplicabilidade. Pretendeu-se também que
não fossem apenas uma aglutinação das faculdades pré-existentes, como tinha si-
do o caso da Universidade do Rio de Janeiro. Para isso era necessária a existência
de uma faculdade que articulasse todas as outras, estimulando o convívio univer-
Editora Avenir. Rio de Janeiro, 1978, p. 15.
190
sitário ao mesmo tempo que evitasse a duplicação de esforços: no caso da USP
foi a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras e, na UDF, um complexo sistema
de escolas e institutos ligados a centros de pesquisa e experimentação que deve-
riam cultivar e divulgar as ciências exatas e humanas.
O projeto para a faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP foi desvirtua-
do pela resistência dos professores da Escola de Medicina, Engenharia e Direito
que não aceitavam que as disciplinas básicas fossem dadas pela nova Faculdade,
o que acabou por transformá-la numa outra escola profissional: passou a formar
pesquisadores e professores secundários de ciências e letras. A UDF, por sua vez,
foi esvaziada por razões politicas, depois que Anísio Teixeira, seu idealizador e
alguns dos seus professores foram acusados de participarem de movimentos de
contestação ao governo Vargas.
Na prática, os planejadores da Universidade de Brasília contavam quase que ape-
nas com indicações negativas: como não deveria ser a nova universidade. Darcy
Ribeiro assinala no seu depoimento que "só nos consola dessa estreiteza pensar
que a própria carência teria, talvez, dado à Universidade de Brasília uma liberdade
de se inventar que, provavelmente, seria tolhida em um país melhor servido por
universidades que realizassem satisfatoriamente suas próprias ambições".
E como seria essa nova universidade?
Muitas das suas principais características decorreram do fato de não ser uma uni-
versidade qualquer, mas a Universidade de Brasília, nova capital do Brasil. Deve-
ria, assim, cumprir uma série de papéis que em cidades como o Rio de Janeiro ou
São Paulo seriam exercidas por outras instituições. Brasília, preocupavam-se os
idealizadores da sua universidade, corria o risco de tornar-se uma cidade burocrá-
tica, provinciana. Assim, era necessário que fosse criado um centro de floresci-
mento cultural e artístico, em que fossem estimuladas as letras e as artes. Era im-
portante também que a universidade proporcionasse aos órgãos públicos toda a
assessoria necessária, que em cidades já constituídas encontra-se com maior fa-
cilidade. Para cumprir esse papel era fundamental que tivesse a mais alta qualifi-
cação científica, aliada à liberdade docente e à autonomia académica.
0 terceiro objetivo da UnB seria o de tornar-se um núcleo de amadurecimento de
consciência crítica nacional. Para isso deveria ser dada atenção especial ao corpo
de professores "não só quanto à capacitação científica, mas quanto à posição
ideológica".
O grupo que, no CBPE, em torno de Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira concebeu
a UnB era composto basicamente de pessoas ligadas à Sociedade Brasileira para
o Progresso da Ciência. Pretendiam, fundamentados na experiência da luta que
mantinham há anos para implantar ou desenvolver a atividade científica nas uni-
versidades ou institutos em que trabalhavam, construir uma estrutura que, ao
contrário das que existiam, estimulasse e não dificultasse a transformação do
Brasil num país com um mínimo de autonomia científica. Darcy Ribeiro diz que
"a verdadeira vocação da Universidade de Brasília — nela inculcada pela SBPC —
era ser uma universidade completa que cobrisse, pela primeira vez em nossa his-
tória, todos e cada um dos campos do saber, com a capacidade de cultivá-lo, de
aplicá-lo, de ensiná-lo. Expressávamos essa vocação dizendo e reiterando que a
191
UnB se devia a duas lealdades: a fidelidade aos padrões internacionais do saber e
a busca de solução para os problemas nacionais" 7 .
Para alcançar esses objetivos surgiu uma universidade organizada em torno de
três componentes fundamentais: os institutos centrais de ciências, letras e artes,
dedicados ao cultivo e ensino do saber fundamental, as faculdades profissionais,
devotadas à pesquisa e ao ensino nas áreas das ciências aplicadas e das técnicas,
e os órgãos complementares, que prestariam serviços à comunidade universitária
e à cidade. Era um modelo inédito, que ao mesmo tempo que evitava duplicação
de esforços, permitia que cada setor desenvolvesse ao máximo suas potencialida-
des, de forma complementar, do nível básico ao pós-graduado.
Outra preocupação do grupo que concebeu a Universidade de Brasília foi de li-
vrá-la da burocracia do Ministério da Educação e Cultura. Para isso foi organiza-
da como uma fundação, o que lhe permitia autonomia administrativa. Os recur-
sos para a sua implantação e manutenção viriam de verbas orçamentárias e da
renda de bens que lhe seriam doados pela União. Seria dirigida por um Conselho
Diretor de seis membros, escolhidos originariamente pelo presidente da Repúbli-
ca, que elegeriam entre eles o reitor, e indicariam seus substitutos. No plano aca-
démico, a UnB, se autodirigiria através da Câmara dos Docentes, dos Decanos e
dos Estudantes. As atividades docentes seriam dirigidas por Congregações de
Carreira que teriam como tarefa aprovar currículos e planos de estudos e fisca-
lizar sua execução. A vida quotidiana da UnB seria regida por pequenos colegia-
dos, as mesas executivas, compostas pelo titular do instituto, faculdade ou depar-
tamentos, um representante dos professores e outro dos alunos.
O modelo proposto para a Universidade de Brasília não chegou a se realizar ple-
namente ali, por razões que são amplamente conhecidas. Mas, além de ter desen-
cadeado uma das mais intensas discussões a respeito de como deveria ser a nova
universidade brasileira, inspirou a criação ou reformulação de várias instituições
na América Latina e na África.
APÓS ANÍSIO TEIXEIRA
Em 1964, com o fim do governo de João Goulart, Anísio Teixeira foi substituí-
do na direção do Inep por Carlos Pasquale, educador paulista. Na chefia do CBPE
ficou Péricles Madureira de Pinho, que fora por muitos anos seu diretor executi-
vo e estava plenamente identificado com os pontos de vista de Anísio Teixeira.
Carlos Pasquale não hostilizou a equipe que trabalhava com Anísio Teixeira, nem
promoveu devassas administrativas, comuns na época. Quem tinha pesquisas em
andamento — eram poucas — pôde continuá-las, mas sem grandes estímulos. Ti-
nha seus projetos próprios que, se em linhas gerais não entravam em conflito
com a orientação anterior, já estavam marcados pelas novas tendências que iriam
ser dominantes a partir de 1964. No período em que Carlos Pasquale esteve a
frente do Inep, foi realizado o censo escolar em todo o Brasil, retomaram-se as
Conferências Nacionais de Educação, iniciaram-se os estudos e sugestões para a
instituição do salário-educação (instituído em outubro de 1964) e instalaram-se
V. UnB - Invenção e Descaminho, p. 87.
192
os Colóquios Estaduais para a Organização das Secretarias de Educação (Ceoses)
que tratavam da organização dos sistemas de ensino e do Programa de Assistên-
cia Técnica em Educação aos Estados. Foi também iniciada a publicação do
Anuário Brasileiro de Educação que pretendia acompanhar o movimento educa-
cional brasileiro a partir de 1964 (foram publicados dois números).
A Carlos Pasquale seguiram-se Carlos Corrêa Mascaro, Guido Ivan de Carvalho e
Walter de Toledo Piza (1966-1969, 1969-1970 e 1970-1972). Foram períodos
em que o Inep se concentrou em suas funções burocráticas. Muitos técnicos saí-
ram para trabalhar em outras instituições com melhores condições de trabalho
ou remuneração. Algumas poucas iniciativas foram tomadas: a implantação de
um sistema de assistência técnica aos Estados, realizado por um grupo de técni-
cos brasileiros e da Unesco, através dos Ceoses e a criação da Equipe de Assis-
tência Técnica ao Ensino Elementar (Eatep), resultado de um convénio entre o
MEC, o Contap e a Usaid, constituído por seis educadores brasileiros e seis nor-
te-americanos. Posteriormente o Eatep foi aglutinado aos Ceoses e ao Pate (Pro-
grama de Assistência Técnica em Educação, existente desde 1963), resultando no
SAT — Serviço de Assistência Técnica.
Em 19 de fevereiro de 1972 assumiu a direção do Inep o coronel Ayrton de Car-
valho Mattos. Sem nenhuma ligação anterior com a problemática de ensino, fo-
ra escolhido pelo ministro Passarinho por ser um administrador hábil e compe-
tente. Nas suas próprias palavras 8 , o que definiu a sua indicação foi o fato de ser
uma pessoa de fora da área, que poderia avaliar sem paixões a situação do Inep e
tomar atitudes que, mesmo necessárias, desencadeariam obrigatoriamente insatis-
fações e protestos. Antes de tomar posse, entrou em contato com os técnicos do
órgão que o auxiliaram a fazer um levantamento da situação existente, altamente
insatisfatória: equipes insuficientes, salários baixos, pouca produtividade, princi-
palmente nos centros regionais, desânimo, burocratização. Para o coronel Ayrton
faltava ao Inep uma organização, um regimento que lhe permitisse funcionar in-
dependentemente de lideranças carismáticas:
"O Inep, no tempo de Anísio Teixeira, era um órgão de primeira grandeza, mas
tudo se fazia exclusivamente em função da sua liderança pessoal. O Inep era Aní-
sio Teixeira. O órgão não tinha estrutura formal, não tinha um regimento, enfim,
não tinha uma organização que permitisse o seu funcionamento na ausência de
Anísio. E foi justamente o que aconteceu com a saída de Anísio, seus sucessores
não tinham a sua estatura, e o órgão foi definhando".
Uma vez elaborado o regimento, iniciou-se a tomada de uma série de medidas
práticas: a primeira foi o fechamento dos centros regionais, considerados impro-
dutivos há bastante tempo, ao mesmo tempo que se fortalecia o Centro Brasilei-
ro (do Rio de Janeiro) através da constituição de grupos-tarefa, recurso permiti-
do pela Reforma Administrativa e que possibilitou a contratação de pesquisado-
res para projetos específicos e melhor remuneração para os vinculados à institui-
ção, submetidos às rígidas tabelas do Dasp.
A providência seguinte foi transformar o Inep num órgão de financiamento a
! Entrevista, 20 de outubro de 1978
pesquisas ligadas à educação. Com esse objetivo foram iniciados contatos com
órgãos que fariam pesquisas educacionais. Pretendia-se levantar periodicamente,
através de inquéritos entre os educadores ligados ao ministério, às secretarias e às
universidades os temas de maior interesse para o campo e distribuí-los entre as
instituições que realizavam pesquisas. O Inep financiaria essas instituições em re-
gime de prestação de serviço, e ao CBPE ficariam reservadas duas atribuições:
realizar as pesquisas consideradas indispensáveis mas não escolhidas voluntaria-
mente por qualquer das outras instituições, e funcionar como assessoria técnica
para auxiliar e avaliar o andamento e a qualidade das pesquisas externas.
Na concepção do coronel Ayrton, o CBPE deveria também funcionar como uma
escola onde seriam testadas novas formas de trabalho e de divulgação: "O CBPE
estava tendo um papel importante na mudança da mentalidade que considerava
que o trabalho de pesquisa deveria ser individual e isolado. Nós nos batíamos pa-
ra que as pesquisas fossem realizadas por equipes multidisciplinares. Faríamos is-
so, e queríamos mostrar que era uma coisa exequível e que os resultados só po-
deriam ser melhores do que aqueles apresentados por um único elemento".
Durante a administração do coronel Ayrton o Inep recuperou parte da sua vitali-
dade. Foi reformulada toda a Divisão de Documentação, Divulgação e Informa-
ção, sob a chefia de Regina Helena Tavares. Os pontos principais desta reforma
foram: o estabelecimento de uma rede sistemática de informações educacionais,
que viria a abranger todo o país; a utilização de um thesaurus de educação para a
indexação e recuperação das informações educacionais; o estabelecimento de um
serviço tipo "pergunta-resposta" para melhor atender aos usuários, utilizando in-
clusive um vídeo terminal, ligado ao Prodasen, que permite a recuperação de in-
formação legislativa. Além desses, receberia uma ênfase especial a constituição de
um banco de dados sobre pesquisas educacionais em realização no Brasil, através
de um levantamento bianual. Pesquisas que se arrastavam há anos foram concluí-
das e outras iniciadas, existindo uma grande preocupação com a sua utilização:
"uma das críticas que eu fazia ao nosso trabalho é de que ele ficava intramuros —
não havia difusão nem mesmo do ensino na Guanabara. A Escola Guatemala, que
era a escola experimental do Inep, realizava experiências importantes, mas que
não eram aplicadas nas outras escolas. Assim, quando surgiu a oportunidade de
testar as sugestões do CBPE nas escolas de um dos distritos da Guanabara, foi ex-
celente. Essas escolas passaram a apresentar um rendimento excepcional".
Essa proposta de aplicabilidade das pesquisas foi a saída encontrada para o pro-
blema de encontrar um papel para a Divisão de Pesquisas do CBPE: tendo deixa-
do de ser o órgão onde era pensada a política educacional brasileira, a pesquisa
académica devendo ser feita basicamente na universidade, ficou para o CBPE a
tarefa de realizar pesquisas de curta duração que informassem o MEC e as secre-
tarias estaduais a respeito do funcionamento efetivo de recomendações ou deter-
minações suas.
Por razões administrativas o coronel Ayrton desentendeu-se com o secretário ge-
ral do MEC, Euro Brandão, em novembro de 1975, e foi substituído interinamen-
te por Francisco Cruz Barbosa Lopes. Em fins de 1976, assumiu a direção do
Inep a professora Maria Mesquita que fez a transferência do órgão para Brasília
e fechou o CBPE. A biblioteca, que chegou a ser encaixotada para ser levada pa-
ra Brasília, diante dos apelos de vários grupos interessados na sua manutenção
194
no Rio, foi objeto de um acordo com a UFRJ. onde foi instalada em fevereiro
de 1979.
CONCLUSÃO
O que podemos apreender da história do Inep? Em primeiro lugar, que ela não fo-
ge à rotina de ir.'-neras outras instituições científicas ou paracientificas brasilei-
ras: criada num momento de grande entusiasmo, trazendo consigo uma proposta
de inovação, pretendendo ser uma ruptura com os padrões antigos, passa por um
curto período de intensa produtividade mas não suporta o peso do processo de
rotinização.
Na opinião das pessoas entrevistadas, os problemas do CBPE começaram ainda
no governo Kubitschek: Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro, profundamente envol-
vidos com o projeto e depois a organização da Universidade de Brasília, afasta-
ram-se de um envolvimento mais direto com o programa de pesquisas sociais, que
era o mais ambicioso projeto do centro. Com o fim do governo Kubitschek e a
crise provocada pela renúncia de Jânio, a situação tornou-se ainda mais indefini-
da. Oracy Nogueira, que ficara chefiando a Deps, voltou para a Universidade de
São Paulo. Roberto Cardoso de Oliveira também se desligou do centro e foi or-
ganizar o Curso de Pós-Graduação em Antropologia Social no Museu Nacional.
Durante o governo João Goulart o Inep/CBPE esteve primordialmente envolvi-
do com o delineamento da política educacional do país, e a implantação do sis-
tema escolar de Brasília, da escola pré-primária à universidade. Esse nível de
comprometimento tornou o Inep um órgão extremamente visado depois de
1964. Se seu primeiro diretor, Carlos Pasquale, conseguiu um relacionamento
satisfatório com a equipe, Anísio Teixeira foi processado criminalmente pela
União por peculato-furto, no exercício do cargo de reitor da Universidade de
Brasília. Era uma espécie de avaliação pública pelos novos detentores do poder
do homem com quem o Inep estava profundamente identificado.
A tentativa do coronel Ayrton de Carvalho Mattos de recuperar o Inep, atribuin-
do-lhe novas funções, foi relativamente bem sucedida. Mas a esta altura o Institu-
to já deixara de ser o centro de pesquisas e geração de ideias que pudessem in-
fluenciar de maneira significativa o sistema educacional e a sociedade brasileira
como um todo. O Inep passa a ser mais um órgão burocrático do Ministério da
Educação, e cumpre, assim, o ciclo comum a tantas instituições do país. Como
resumia o próprio Anísio Teixeira: "no Brasil, as instituições duram tanto quan-
to seus fundadores".
195
3 ? Parte
Instituições de
Pesquisa e
Pós-Graduação
O Instituto de
Biofísica da UFRJ*
Maria Clara Mariani
A CARREIRA DE CARLOS CHAGAS FILHO
Carlos Chagas foi o segundo filho do descobridor da "doença de Chagas". Nasceu
em 1910, um ano depois da grande proeza científica do pai que descobriu o agen-
te patógeno, o hospedeiro e o transmissor de uma doença ainda não conhecida -
a "tripanossomíase americana". A carreira científica no Brasil, até então obscura
e caracterizada como de "sacrifícios", restrita portanto aos que tivessem outras
formas de subsistência, começara a render frutos fora do seu campo específico.
Os prémios internacionais, a aclamação como membro especial da Academia Na-
cional de Medicina trouxeram, junto com o reconhecimento social, a legitimação
pública de uma atividade até então restrita aos laboratórios. Carlos Chagas Filho
socializou-se portanto num ambiente em que a carreira científica não estava liga-
da apenas a incompreensões e desestímulos, mas também a sucesso, ainda que
esse sucesso não implicasse em compensações financeiras: a pobreza da família
é enfatizada em todos os textos sobre Chagas pai, como uma espécie de tributo
a ser pago pelo privilégio de participar da construção de um "novo" Brasil. O
intenso convívio que o pai começou a manter a partir de 1921 com as comuni-
dades científicas européia e americana permitiu também uma visão do campo
bem mais estimulante do que se estivesse restrito à esforçada, mas ainda incipien-
te, "colónia" carioca. Quando, em 1926, entra para a Faculdade de Medicina,
única opção da época para quem quisesse fazer ciências biológicas dá apenas mais
um passo num caminho que parece vir sendo traçado desde as visitas que, crian-
ça, fazia aos laboratórios de Manguinhos, onde o pai foi pesquisador e depois di-
retor. Formado em 1931, Chagas torna-se em 1932, assistente do professor Raul
Leitão da Cunha na cadeira de Patologia, e em 1935 faz concurso para livre-do-
cente de física biológica. Paralelamente fizera o curso de especialização de Man-
Trabalho realizado no âmbito do Centro de Estudos e Pesquisas da Finep. Publicado
inicialmente em Interciencia, vol. 3, n9 5. 1978, p. 320-325. A responsabilidade pelos
conceitos emitidos é da autora.
199
guinhos, recebendo forte influência de Carneiro Felipe, f ísico-químico formado
pela Escola de Minas de Ouro Preto e um dos responsáveis pela introdução no
instituto de métodos mais modernos do que os até então usados na pesquisa bac-
teriológica.
Até 1937 Chagas manteve-se vinculado tanto à Faculdade de Medicina como ao
Instituto Oswaldo Cruz. Nesse ano, com a morte de Francisco Lafayete Rodri-
gues Pereira, catedrático de f ísica biológica, abre-se concurso para a cadeira e
Chagas apresenta-se, estimulado principalmente por Carneiro Felipe, que consi-
derava importante levar para a universidade o "espírito" do instituto. Esse proje-
to não parecia muito viável à maioria da equipe de Manguinhos, e Evandro Cha-
gas, irmão de Carlos, era um dos mais descrentes da possibilidade de realizá-lo.
Para ele, há pouco tempo derrotado no concurso para substituir o pai na cadei-
ra de doenças tropicais, a Faculdade de Medicina era um "cemitério de vocações
científicas". Assim, a decisão de abandonar Manguinhos e atirar-se integralmen-
te numa empreitada bastante arriscada implicava em ganhos ou perdas totais.
Vencendo, receberia os louros de pioneiro, como o pai e o irmão (criador do Ser-
viço Especial de Grandes Endemias do Instituto Oswaldo Cruz - Sege). Perden-
do, seria mais um dos tão desprezados catedráticos-fósseis da Faculdade de Me-
dicina.
Diante desse quadro compreende-se que Chagas tenha investido o possível no
próprio sucesso. Preparou-se para o concurso com quem considera os seus três
mestres: Carneiro Felipe, já citado; Costa Ribeiro, físico da Escola Politécnica; e
Francisco Mendes de Oliveira Castro, do Instituto Eletrotécnico. Vencedor, no-
meado e empossado, parte para a Europa, por um período de seis meses, em bus-
ca de subsídios para o projeto que tinha em mente: implantar uma mentalidade
científico-experimental na faculdade, que considerava imprescindível na forma-
ção de médicos na era pós-pasteuriana. Além das dificuldades objetivas que teria
que enfrentar, como a carência de pessoal e de material, existia um grande mito
a ser vencido: o de que na Faculdade de Medicina era impossível fazer pesquisa
científica; para confirmá-lo citava-se a presença no corpo docente de pesquisado-
res do gabarito de Carlos Chagas (de 1926 a 1934), Olimpio da Fonseca (desde
1928) e Alvaro Osório de Almeida (desde 1921) que nunca tinham conseguido
realizar ali seus trabalhos experimentais. Alvaro Osório chegara a recusar a oferta
de um laboratório completo feito por um "ilustre brasileiro" porque era "impos-
sível fazer pesquisa na universidade".
O estágio europeu, em Paris com Wurmser e Fessard e em Londres com Downan
e Hill ofereceu-lhe o modelo de trabalho científico que procurou transplantar
para o Brasil: valorização do contato pessoal entre pesquisadores, inclusive como
forma de circulação das informações geradas nos vários laboratórios e tolerância
com a "curiosidade, o ímpeto, o desconhecimento e até a arrogância dos pesqui-
sadores novos", condições que considerava essenciais para a manutenção da vita-
lidade do ambiente e afastamento dos riscos de hierarquização e burocratização
excessiva.
Na volta, já com clareza quanto aos seus objetivos, e quanto aos métodos para al-
cançá-los, seu primeiro passo é organizar a equipe com que vai trabalhar. Sua
preocupação é reunir um grupo suficientemente qualificado para superar os obs-
táculos materiais e burocráticos inevitáveis. Do primeiro grupo fizeram parte Ti-
200
to Enéas Leme Lopes, Lafayete Rodrigues Pereira, seus colegas de faculdade, Al-
mir de Castro, sanitarista experiente também de Manguinhos, e Oromar Moreira,
José Moura Gonçalves e João Batista Veiga Salles, vindos da "escola" de Baeta
Vianna na Faculdade de Medicina de Belo Horizonte, aos quais logo se junta Her-
tha Meyer.
A possibilidade de reunir essas pessoas em torno de um laboratório que mal se
iniciava deveu-se em parte a um dispositivo da Constituição de 1937, que impe-
diu a acumulação de cargos a nível federal, mas não criou condições para o sur-
gimento de uma carreira de pesquisador, através do estabelecimento de salários
adequados e do trabalho em tempo integral. Em função disso esvaziaram-se os
institutos independentes já que como professores universitários as compensa-
ções eram maiores.
O trabalho no recém implantado Laboratório de Biofísica, nova denominação
da cadeira, passou a ser uma opção viável para os que não queriam abandonar o
trabalho de pesquisa nem desvincular-se da universidade. Em pouco tempo entra-
va em funcionamento o primeiro laboratório, o de "Cultura de Tecidos", dirigi-
do por Hertha Meyer, do laboratório que a Fundação Rocketeller mantinha em
Manguinhos, e João Machado. Os recursos provinham do Sege, dirigido por Evan-
dro Chagas, profundamente interessado na cultura de protozoários - Trypano-
soma cruzi e Plasmodium avarium — , já que o conhecimento dos seus ciclos vitais
era fundamental para as campanhas de saneamento que dirigia. Pesquisava-se
também a bioeletrogénese do tecido cardíaco
O segundo laboratório foi o do próprio Chagas com o qual colaborou Bernhard
Gross, do Instituto Tecnológico do Exército. A pesquisa desenvolvida ali sobre
a bioeletrogénese do Electrophorus electricus, do poraquê da Amazónia, iniciou
algumas práticas que se tornaram tradicionais no instituto, como a da colabora-
ção entre instituições e o aproveitamento de estruturas biológicas características
da ecologia nacional. Funcionou também como uma espécie de fio condutor do
crescimento do instituto: à medida que foi se tornando mais complexa foi exigin-
do a introdução de novas técnicas que por sua vez abriram novos campos de in-
vestigação. Segundo publicação do instituto de 1971, a maioria dos pesquisado-
res que se formaram no instituto até a década de 50 estudou algum aspecto da
eletrogênese ou da biologia do Electrophorus electricus.
Nesse período. Chagas já dá mostras do seu empenho e capacidade de superar
obstáculos. Desafiado pela burocracia e penúria universitárias, procurou e encon-
trou soluções institucionais ou não, que permitiram a continuação do trabalho.
Junto a Luiz Simões Lopes, então diretor do Departamento Administrativo do
Serviço Público (Dasp) conseguiu que fosse criado o cargo de "técnico especiali-
zado" com um salário superior ao de professor assistente, o que foi um primeiro
passo para a criação da carreira de pesquisador dentro da universidade. Acionan-
do suas relações pessoais conseguiu doações, em dinheiro ou em material, que ul-
trapassaram os parcos recursos disponíveis. Desses doadores, o principal foi Gui-
lherme Guinle, hoje patrono do instituto, que continuou com generosidade uma
tradição de mecenato científico iniciada por seu pai, através da Fundação Gafrée
Guinle. De 1946 a 1956 Guilherme Guinle, pessoalmente, suplementou os salá-
rios de toda a equipe do instituto, financiou a vinda de cientistas estrangeiros ou
a ida de pesquisadores brasileiros para o exterior, além de doar integralmente o
201
primeiro laboratório de Radioisótopos. Chagas recorreu também a amigos e pa-
rentes do Ministério das Relações Exteriores para resolver problemas políticos
de pesquisadores franceses, alemães e italianos fugidos do nazismo e que chega-
ram ao Brasil de modo irregular.
O Instituto de Biofísica
Asssim, quando em dezembro de 1945 o laboratório foi transformado em Insti-
tuto de Biofísica, já tinha uma bagagem razoável de contribuições à ciência bra-
sileira: introduzira e divulgara novas técnicas, tais como, registro de potenciais
elétricos, cultura de tecidos, cromatografia, eletroforese, microscopia de refle-
xão, inferência e polarização, microrradiografia, citoquímica e radioisótopos; im-
plantara uma prática de intercâmbio científico nacional (principalmente, com o
departamento de Física da Universidade de São Paulo, Instituto Oswaldo Cruz
e o Instituto Tecnológico do Exército) e internacional, recebera para estágios
ou cursos mais ou menos prolongados mas sempre férteis, pesquisadores do ga-
barito de René e Sabine Wurmser, Charles Phillipe Leblond (da Universidade
MacGill do Canadá, introdutor da técnica dos radioisótopos), Occhialini (Itália),
Summer e Mathilda Brooks (dos EUA). Também já definira suas linhas de pes-
quisas básicas; o estudo do Electrophorus electricus, suas características bioquí-
micas, equipamento enzimático, transformações energéticas e características
principais de descarga de eletroplaca; o estudo da função tireoidiana; o estudo da
depressão alastrante - "Leão Wave" - conduzido por Aristides Pacheco Leão,
que vindo de Harvard, incorpora-se à equipe. Continuou, também, a busca das
características da evolução do Trypanosoma cruzi.
Mas a contribuição mais importante do laboratório nesses 9 anos de trabalho fo-
ra, sem dúvida, quebrar o mito de inviabilidade da prática científica na universi-
dade e abrir caminho para o surgimento de novas instituições de pesquisa: na
própria Faculdade de Medicina, o Instituto de Microbiologia, organizado em
moldes semelhantes ao Instituto de Biofísica, e dirigido por Paulo de Góes; na
Faculdade Nacional de Filosofia, o Centro de Pesquisas Genéticas; na Faculdade
Nacional de Farmácia, o Centro de Produtos Naturais, o Centro Brasileiro de Pes-
quisas Físicas, autónomo, mas intimamente ligado ao Departamento de Física da
antiga Faculdade de Filosofia. Em todas essas instituições, procurou-se, como no
Instituto de Biofísica, enfatizar o trabalho multidisciplinar e criar uma estrutura
de apoio ao pesquisador, não apenas em termos materiais (salários, equipamen-
tos) mas principalmente quanto ao intercâmbio científico. O isolamento seria o
maior perigo a ameaçar o desenvolvimento da ciência brasileira, ainda referida ao
modelo do cientista solitário pesquisando no seu laboratório particular assuntos
do seu próprio interesse.
A partir de 1948 vemos o trabalho de Chagas desdobrar-se em duas frentes: ao
mesmo tempo que continua presente no instituto, participando e estimulando a
pesquisa e a formação de novos pesquisadores, tarefa considerada essencial para a
ampliação do trabalho, inicia um trabalho de divulgação junto à comunidade
"leiga", através de cartas a parlamentares, entrevistas a jornais e revistas, pales-
tras na Rádio Ministério da Educação e discursos em solenidades públicas em que
prega a necessidade de desenvolver a ciência brasileira. Enfatiza a relação entre a
202
ciência forte e país independente, e apresenta sugestões concretas para o encami-
nhamento do problema. A principal delas, a criação de um Conselho Nacional de
Pesquisas, veio se tornar realidade em 1951. O principal objetivo desse conselho
seria dar ao pesquisador brasileiro segurança quanto às condições básicas de tra-
balho - tempo integral, equipamentos adequados, possibilidade de intercâmbio
científico através de suplementação de salários, financiamento para material e
concessão de bolsas de viagens para o exterior, ou de meios para a realização de
algum projeto considerado relevante. Prega também a necessidade da criação de
uma faculdade de ciências, que aliviaria a Faculdade de Medicina do seu duplo
papel de formar médicos e cientistas, além de trazer claras vantagens para o ensi-
no secundário e superior, laboratórios e instituições de pesquisa, colocando no
mercado mão-de-obra adequada. A preocupação de Chagas com o ensino secun-
dário traduz o seu ponto de vista de que a formação do pesquisador começa na
idade escolar, e não faz sentido investir grandes somas na universidade sem que
sejam cobertos os períodos de formação primária e secundária, durante os quais
inúmeras vocações científicas se perdem, por absoluta falta de apoio.
Em 1951, quando completa 5 anos, o instituto já crescera bastante. Contando
com 4 divisões administrativas - F ísico-Químico-8iológica, Bioeletricidade, Bio-
física Celular e Radiologia Médica — e 1 1 Laboratórios — cultura de tecidos, his-
tologia, Raios X, eletrônica, eletroforese, bioquímica, gás, bacteriologia, eletrofi-
siologia, medidas radioativas, medidas óticas - ampliaram a equipe original, com
a vinda de Hiss Martins Ferreira, Gilberto de Freitas e A. Hargreves, além de An-
tonio Couceiro, morfologista vindo do Recife em 1940. O programa de intercâm-
bio científico, essencial na formação de cientistas, mantivera um ritmo intenso, e
foi graças a ele que novas áreas de interesse se desenvolveram no instituto. A visi-
ta dos professores Lacassagne e Letarjet, do Instituto de Radium de Paris, deu
origem ao Laboratório de Radiobiologia (1951) que se dedicou a estudar os fe-
nómenos de restauração celular após radiação, e das sucessivas vindas de Denise
Albe-Fessard, do Instituto Marey, de Paris, (que a partir de 1953 tornou-se chefe
do Laboratório de Métodos Biológicos) resultou um novo grupo de pesquisas no
setor de Neurobiologia (1958). Os temas tradicionais do instituto, eletrofisiolo
gia, função tireoidiana, depressão alastrante e o ciclo vital do Trypanosoma cruzi
continuaram a ser aprofundados, graças a técnicas mais refinadas que por sua vez
abriram novos campos de conhecimento. Por exemplo, o Laboratório de Eletro-
forese, instalado para permitir a análise das características bioquímicas do órgão
elétrico do Electrophorus electricus. tornou possível importantes estudos sobre
venenos de serpentes brasileiras.
Nesse ano, com a criação do Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq), os recursos
ampliaram-se e com eles a ambição dos projetos. Entre 1952 e 1957 instalaram-
se duas unidades importantes, a de Microscopia Eletrônica e a de Ultracentrifuga-
ção Analítica, a primeira doada pelo CNPq e a segunda pela Fundação Rocke-
feller, além do novo Laboratório de Radioisótopos, financiado em parte por Gui-
lherme Guinle. Intensificou-se a ida dos pesquisadores para estágios de aperfei-
çoamento no exterior, com bolsas do próprio CNPq, da Fundação Rockefeller,
do Conselho Britânico e da Unesco, que quando voltam para o instituto retomam
seus projetos em bases mais elaboradas.
Diversas investigações
O sistema de intercâmbio científico concebido por Chagas foi, segundo vários de
seus colaboradores, um dos seus grandes achados. Consistia no envio, exclusiva-
mente para laboratórios que tivessem trabalhos semelhantes, de pesquisadores
brasileiros com vínculos profundos com o instituto, e que já tivessem um nível
de desenvolvimento profissional que permitisse uma interação em bases equali-
tárias. Isto evitou uma série de problemas ligados a desajustes na volta para o
Brasil, comuns a pesquisadores que, menos maduros, absorviam não só os méto-
dos, mas os próprios objetos das pesquisas desenvolvidas no exterior e na volta
não se adaptavam a trabalhar em condições menos "confortáveis".
Instalada a unidade de ultracentrifugação, o instituto iniciou um projeto em co-
laboração com médicos clínicos sobre a determinação do teor de lipoproteínas
no sangue que teve grande repercussão na prática médica brasileira.
Do Laboratório de Radioisótopos surgiram duas pesquisas importantes: a primei-
ra, em colaboração com o Departamento de Física da Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro e o Departamento de Genética da Universidade do
Paraná, contando também com apoio da Comissão Nacional de Energia Nuclear,
propunha-se a fazer um levantamento minucioso das áreas de radioatividade na-
tural existente no Brasil: Guarapari e Araxá; a segunda junto com a terceira ca-
deira de clínica médica da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, a pesquisar
a possibilidade de aplicação dos isótopos radioativos à medicina; aprofundaram-
se os estudos sobre a função tireoidiana, o que em 1961 permitiu a realização
de um colóquio internacional sobre a tireóide. Foram organizados também pela
primeira vez, cursos sobre a utilização de radioisótopos em biologia, medicina e
bioquímica para divulgar a técnica no Brasil e na América do Sul.
Os novos projetos abriram a possibilidade de absorção da segunda geração de pes-
quisadores, que estava sendo "treinada" por Chagas desde os primeiros anos da
faculdade. Convidando para trabalhar nos laboratórios os alunos que tivessem de-
monstrado no vestibular e nos primeiros anos do curso qualidades que considera-
va essenciais para um bom cientista (imaginação, persistência, combatividade),
foi formando dentro dos laboratórios, segundo normas simples, mas constantes a
equipe que iria permitir a ampliação dos trabalhos. Estimulava-se o contato dire-
to do iniciante com o pesquisador mais velho, e a convivência direta com o pro-
blema experimental.
O crescimento do corpo técnico e a ampliação dos projetos obrigou a algumas
modificações na estrutura administrativa do instituto. A concentração de todos
os poderes e responsabilidades nas mãos de Chagas, que no período de implanta-
ção pode ter sido a condição básica do sucesso, deixou de ser viável. Em 1954 foi
criado o cargo de vice-diretor e Manuel Frota Moreira, membro da equipe desde
1938. quando ainda era aluno do segundo ano de Medicina, ocupou o lugar, pas-
sando a ser o responsável por toda a parte administrativa.
Em 1955, mais uma vez a política de intercâmbio científico demonstra-se eficaz
e é graças a visita do Professor B. I. Hoffman, da New York State University que
se organiza o Laboratório de Eletrof isiologia Cardíaca. Essa nova frente de traba-
lho desenvolveu-se rapidamente, e em 1961 o instituto promoveu o "Simpósio
Internacional sobre Tecidos Especializados do Coração".
204
Até esse ano, o instituto já tivera seus trabalhos publicados em revistas de circu-
lação internacional de alto nível como Parasitology. Journal de Physiologie, Na-
ture. Acta Bioquímica, Experiência, Comptes Rendus de I' Académie des Scien-
ces de Paris, Journal of Neurophysiology, o que indica a qualidade de sua produ-
ção científica.
A segunda geração de pesquisadores, à medida que foi alcançando maturidade
científica partiu também para estágio no exterior. De volta, desenvolvem proje-
tos próprios e recebem nos laboratórios alunos para treinamento, dentro do mes-
mo esquema pelo qual tinham passado.
Pós-Graduação
A comprovação dos bons resultados desse sistema fez com que se tornasse uma
espécie de plano-piloto para o projeto de pós-graduação que a Universidade do
Brasil pretendia implantar nas áreas de biologia e medicina. Em 1962 com apoio
do CNPq, da Capes — órgão do Ministério da Educação e Cultura, e da Fundação
Ford, iniciaram-se formalmente os cursos de Física, Química e Biologia, que fo-
ram precursores da atual pós-graduação. Essas novas fontes de recursos vieram de
certa forma liberar o instituto da dependência que tinha de doações esporádicas
de empresas particulares ou públicas e permitir planejamento a mais longo prazo.
Em 1964, Chagas foi escolhido diretor da Faculdade de Medicina. Embora isso
não tenha implicado num afastamento de fato do instituto, que funcionava no
mesmo prédio da faculdade, caracterizou-se a necessidade de formalizar uma
equipe dirigente para responder pelo seu funcionamento. Criaram se então trés
departamentos: Administrativo (Eduardo Pena-Franca), Científico (Darcy de
Almeida) e Didátíco (Antonio Paes de Carvalho) com autonomia de planejamen-
to e execução nas suas áreas específicas mas ainda sem existência legal. Conti-
nuou nas mãos de Chagas a "identidade" do instituto. É ele quem negocia ver-
bas, distribui os recursos internos, realiza convénios, enfim, concebe e põe em
prática as linhas diretrizes do instituto. Por isso, quando foi em 1966 para a
Unesco instalou-se um período de vazio institucional. Manuel Frota Moreira, vi-
ce-diretor, ocupou interinamente a direção e a decisão do reitor, a quem caberia
escolher o substituto, custou a ser tomada. Finalmente foi escolhido Aristides
Pacheco Leão, por ser o pesquisador de maiores qualificações acadêmico-cientí-
ficas.
Os três departamentos foram fortalecidos e transformados em subdiretorias, em-
bora sem personalidade jurídica. Funcionam até hoje como um colegiado interno
responsável pela administração do instituto. O período de 1966 a 1970 foi mar-
cado por uma grande expansão das atividades do instituto. Na jornada interna de
1971 foram relatados e discutidos 44 projetos de pesquisa e a equipe dos chefes
de laboratório atinou, através do trabalho de ensino e pesquisa, um grau de ma-
turidade que permitiu a superação das dificuldades trazidas pela saída de Chagas.
Mantiveram-se as linhas de pesquisa tradicionais, criaram-se e se aperfeiçoaram
técnicas extremamente "finas", e os trabalhos sobre a poluição radioativa, reali-
zados pslo Laboratório de Radioisótopos (Eduardo Pena-Franca) adquiriram
uma importância ainda maior em função das explosões atómicas realizadas no
Hemisfério Sul. O setor de radioisótopos ao qual pertence o laboratório foi cre-
205
denciado pelo Serviço Nacional de Medicina e Farmácia para avaliar os diplomas
do curso de Medicina Nuclear, e os programas dos setores de radioisótopos e ra-
diobiologia fazem parte do Plano Nacional de Energia Nuclear, dirigido pela Co-
missão Nacional de Energia Nuclear. Criou-se um Laboratório de Radiobiologia
Celular, atualmente integrado à rede internacional da Organização Mundial de
Saúde. O setor de Biologia Molecular, decorrente da expansão dos interesses
científicos dos pesquisadores do instituto, criou métodos próprios de cultura
de larvas que permitiram o isolamento de excelente material para estudos gené-
ticos (cromossomos politênicos). Os laboratórios de Contração Muscular e Comu-
nicação Celular surgiram do desenvolvimento dos estudos sobre a eletrofisiologia
da fibra cardíaca isolada (Antonio Paes de Carvalho). O setor de Neurobiologia
(Carlos Eduardo Rocha Miranda e Eduardo Oswaldo Cruz) concentrou-se no es-
tudo de marsupiais e publicou trabalhos detalhados sobre a organização cito-ar-
quitetònica do seu cérebro.
Em 1970, ano em que Chagas voltou da Unesco e reassumiu a diretoria, apesar
de todas essas conquistas a situação financeira do instituto não era boa. O valor
das bolsas do CNPq já não era significativo, e o desnível entre os salários pagos
pela Universidade do Rio de Janeiro, a USP e a Universidade de Brasília ameaça-
va a tradicional estabilidade da equipe. A solução encontrada foi apresentar ao
Fundo de Desenvolvimento Científico (Funtec) do Banco Nacional de Desenvol-
vimento Económico um projeto de apoio institucional, que incluía o pagamento
de técnicos, a organização de uma infra-estrutura de trabalho e o fortalecimento
do programa de pós-graduação. O auxílio do Funtec permitiu a profissionaliza-
ção da parte administrativa da pesquisa, até então a cargo de cada pesquisador,
individualmente. Permitiu também o reequipamento geral do instituto, inclusive
a instalação de uma nova unidade de microscopia eletrônica e um computador
adequado ao tipo de investigação desenvolvido.
A concepção do projeto foi trabalho comum da equipe. Eduardo Pena-Franca,
coordenador administrativo, Darcy de Almeida, coordenador científico e Anto-
nio Paes de Carvalho, coordenador de ensino, ficaram com a responsabilidade
executiva em cada área. A nova estrutura do instituto, mais formal, determinada
pelo seu crescimento e pelas novas instalações da Universidade Federal do Rio de
Janeiro não quebrou o clima extremamente pessoal que o caracteriza desde a sua
fundação. Talvez a chave desse clima seja a organização em torno dos laborató-
rios, o que permite o relacionamento intenso de grupos pequenos de pesquisado-
res. Os laboratórios com interesses afins são por sua vez organizados em departa-
mentos. Atualmente o instituto conta com 25 laboratórios, três unidades — mi-
croscopia eletrônica, ultracentrifugação e microcinematografia que, apesar de
vinculadas a determinado departamento tém seus serviços acessíveis a todos os
laboratórios, e quatro departamentos: Radiobiologia, Neurobiologia, Biofísica
Molecular e Circulação e Biomecânica. Existe um diretor, escolhido de uma lis-
ta tríplice pelo reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e três coorde-
nadores - de administração e finanças, ensino (graduação e pós-graduação) e
científico, indicados pelos chefes de laboratório, que formam o que é chamado
de "colegiado interno". Esse colegiado, que não tem existência legal, é mencio-
nado como prova do clima de harmonia que se mantém no instituto. O cargo de
diretor seria mais simbólico do que real, e as decisões seriam sempre tomadas pe-
206
lo grupo. A busca de consenso é enfatizada mesmo que para isso as coisas tenham
que andar um pouco mais devagar.
O sistema parece funcionar. Esse ano (1976) termina o contrato com a Funtec e
a tendência é que esta fonte seja substituída pelos recursos do Fundo Nacional
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, administrado pela Finep. Impor-
tante é que todos os objetivos e prazos foram cumpridos. O curso de pós-gradua-
ção está classificado entre os melhores do Brasil pela Capes e a qualidade da pro-
dução científica mantém-se estável. Os trabalhos dos pesquisadores do instituto
são aceitos nas melhores revistas especializadas e é frequente a vinda de pesquisa-
dores estrangeiros atraídos pela possibilidade de intercâmbio científico e de tra-
balho num ambiente estimulante.
Esse ambiente está extremamente ligado à identidade do instituto, e sua especi-
ficidade está mais ligada ao "clima" em que se trabalha do que propriamente à
sua produção. Uma das grandes preocupações da equipe é exatamente manter
esse clima. Como exemplo, é citado o problema do consenso no concurso para
professor titular realizado em 77. Havendo apenas uma vaga, decidiram escolher
internamente um candidato, no caso Antônio Paes de Carvalho, que se apresenta-
ria sozinho, para afastar um tipo de competição que consideram negativa e inevi-
tável numa disputa institucionalizada por um cargo para o qual vários estão igual-
mente qualificados.
Aparentemente, esse clima é partilhado pelos alunos tanto de graduação quan-
to de pós-graduação. Na medida em que é muito claramente colocada a necessi-
dade de adequação ao modelo de convivência do instituto, tem-se a impressão
que os não assimiláveis praticamente se auto-excluem. O "caráter" do instituto
é bastante conhecido entre os estudantes. Procura estágio ali quem já está inte-
ressado em trabalhar dentro daquele padrão. É condição essencial ter um peque-
no projeto orientado pelo chefe do laboratório, que é quase sempre financiado
pelo Programa de Iniciação Científica do CNPq. Assim o estagiário trabalha em
condições profissionais, o que faz com que tenha um vínculo bem mais intenso
com o trabalho do que teria se fosse um "auxiliar" de pesquisa do professor. Mas
isso não impede que esteja todo o tempo participando da evolução da pesquisa
do chefe do laboratório, e absorvendo o que chama de "copa e cozinha" do la-
boratório. Com relação aos pós-graduados vindos de outros centros a situação
obviamente se complica. A seleção é feita através de uma prova de conhecimen-
tos objetivos e não há maneira, nem intenção, de testar a "personalidade" dos
candidatos. A tática adotada é não permitir que o número de "novos" ultrapasse
uma certa proporção, para permitir a sua absorção pelo grupo. Os pós-graduados,
além de uma pesquisa própria, têm o compromisso de dar aulas nos cursos de
Biofísica e Fisiologia que o instituto ministra nas várias faculdades e institutos
do Centro de Ciências da Saúde.
Conclusões
Para terminar é importante, na medida que se enfatizou tanto o "clima" do insti-
tuto, mencionar os mecanismos acionados para criá-lo e mantê-lo.
O principal talvez seja a identificação a uma "família". Atualmente uma "famí-
lia" suficientemente grande para que se possa prever a necessidade de reformular
207
suas regras de funcionamento. É fácil imaginar que nos primeiros tempos, em
que o grupo era pequeno e a burocracia imposta pela universidade era pouca, o
modelo "familiar" possa ter funcionado a contento.
O relato dos pesquisadores "criados" por Chagas, descrevendo, por exemplo, a
distribuição de equipamentos ou material de trabalho em função das necessida-
des imediatas de cada um, dá a entender que qualquer formalização seria mais
do que inútil, contraproducente. Partindo desse pressuposto, considerava-se dis-
pensável qualquer controle de horário ou produtividade dentro da idéia de que o
trabalho científico é uma atividade dotada de um ritmo próprio, sobre o qual
não se pode intervir sem graves danos. Para Chagas a organização de um instituto
de pesquisa dentro de um modelo burocrático equivaleria a esvaziar a ciência do
seu caráter específico. Um cientista que precisasse de livro de ponto para produ-
zir não seria um cientista mas um burocrata, e seu trabalho seria sempre de baixa
qualidade, por mais rigoroso que fosse o horário cumprido.
A maior parte da equipe do Instituto de Biofísica participa desse ponto de vista.
A frequência, por exemplo os encontros informais realizados depois das cinco
horas em vários laboratórios, é extremamente valorizada. Nesse encontro são dis-
cutidas as várias pesquisas em andamento e trocam-se informações e ideias, e de-
finem-se os vários subgrupos existentes no instituto, construídos não apenas em
função do interesse científico mas também da afinidade pessoal.
Até agora esse modelo tem funcionado. Os atuais chefes de laboratório foram
submetidos a um tipo de socialização semelhante por Carlos Chagas, o que dá
uma grande unidade à equipe. Essa "escola" enfatiza a prioridade da imaginação
criadora e boa metodologia sobre aparelhagem sofisticada e dispendiosa, a neces-
sidade de estar permanentemente ligado à "realidade brasileira" e a obrigação
de formar novos cientistas dentro de um padrão "ótímo" de qualidade, garantin-
do a continuidade do trabalho. Foi a partir dessas premissas que o instituto cres-
ceu. E cresceu em tais proporções que foi necessário mudar a sua estrutura fun-
cional-administrativa, que adquiriu um caráter mais formal. A nível do funciona-
mento dos laboratórios os princípios propostos por Chagas continuam dominan-
tes. A possibilidade de conciliar os dois modelos é atualmente uma preocupação
para toda a equipe, colocada diante de um problema comum a muitas institui-
ções científicas, como se manter dentro de dimensões que preservem sua iden-
tidade sem perder a possibilidade de competir no seu campo específico?
208
Pós-Graduação em Engenharia:
A experiência da Coppe*
Márcia B. de Melo Nunes
Nadja Vólia X. Souza
Simon Schvartzman
FORMAÇÃO E AUGE
Em 1963 foi criado, no âmbito do Instituto de Química da então Universidade
do Brasil, um Curso de Pós-Graduação em Engenharia Química, ao qual vieram a
se juntar posteriormente outros programas, agrupados, em 1965, por uma Coor-
denação dos Programas de Pós-Graduação em Engenharia - a Coppe. Em 1978 a
Coppe, como órgão suplementar do Centro de Tecnologia da Universidade Fede-
ral do Rio de Janeiro, já se constituía no maior programa de formação avançada
em engenharia da América Latina. Neste ano ela concedia seu milésimo título de
mestrado, cobrindo uma vasta gama de especialidades — engenharia química, me-
cânica, elétrica, metalurgia, civil, naval, nuclear, biomédica, de sistemas, e enge-
nharia da produção, além dos programas de projetos industriais e de transportes,
planejamento urbano e regional e administração de empresas, com mais de 1.500
alunos inscritos. Um total de 25 doutorados já havia sido concedido até essa data.
A Coppe não é importante somente por suas dimensões, mas também pelo que
ela significou como projeto e pela forma pela qual ela buscou se estabelecer, den-
tro de um ambiente universitário pouco estimulante para iniciativas deste tipo.
Na concepção de seus fundadores, a Coppe deveria se constituir em um centro de
formação técnica e profissional de alto nível, que pudesse dotar o país de uma
capacidade tecnológica própria, e não, simplesmente, mais uma escola de enge-
nheiros para as demandas de rotina do mercado de trabalho existente. Segundo
o seu boletim de 1965, "a grande expansão da indústria de transformação no
Brasil requer um número crescente de profissionais criadores, capazes de desen-
Trabalho realizado pelo Grupo de Estudos sobre o Desenvolvimento da Ciência do Cen-
tro de Estudos e Pesquisas da Finep. A responsabilidade dos conceitos emitidos é dos au-
tores.
209
volver novas técnicas, processos, métodos e aparelhagem. Estes profissionais de-
vem ser treinados e formados a uma taxa acelerada (. . .). O curso descrito neste
boletim foi estabelecido para dar aos formados em escolas brasileiras a oportuni-
dade de estenderem seus conhecimentos sem deixar o país".
Para isto, ela deveria buscar no exterior novos modelos de ensino e organização,
e a experiência norte-americana foi adotada, na criação de cursos regulares de
pós-graduação - à qual foi incorporada, posteriormente, a experiência de vários
outros países europeus, através de programas de intercâmbio. Nisto, a Coppe não
inovava totalmente - o Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA) em São Jo-
sé dos Campos já havia adotado, anteriormente, o mesmo modelo — mas busca-
va um alcance e uma diversidade de linhas de trabalho que o ITA não chegara
a pretender.
Para que este projeto fosse tentado, algumas formas de funcionamento foram
adotadas, e que depois seriam retomadas, com maior ou menor êxito, por outras
instituições brasileiras com projetos inovadores em educação superior. A primei-
ra destas formas consistiu no surgimento de uma liderança empresarial bem defi-
nida e personalizada, na pessoa de Alberto Luis Coimbra, diretor da Coppe desde
sua criação até 1973. A segunda foi a obtenção de fontes de recursos próprios e
independentes, livres dos procedimentos rotineiros de apropriação e gastos da
universidade. A terceira foi a organização de uma estrutura administrativa separa-
da do sistema universitário, que pudesse gerir o programa e seus recursos com to-
da a autonomia e independência.
De uma perspectiva de 15 anos talvez seja possível entender como estas diversas
particularidades da Coppe foram responsáveis por seu sucesso e, também, pelas
dificuldades que o programa encontrou, levando a adaptações profundas de seus
projetos iniciais até a atual fase de consolidação. Mais do que um balanço ou ava-
liação desta experiência, o que este texto pretende é chamar a atenção para a ma-
neira pela qual o projeto foi concebido, implementado, e quais os obstáculos que
foi encontrando pelo caminho. Por seu caráter pioneiro, a experiência da Coppe
pode ser extremamente didática para o entendimento de outras tentativas, tam-
bém em andamento, de criação de centros de alto nível em ciência e tecnologia
no Brasil.
Os Inícios da engenharia química
Os cursos de Pós-Graduação em Engenharia Química entram em funcionamento
em 1963. Segundo os boletins publicados em seus primeiros anos, eram cursos
"mantidos em um nível comparável com o das melhores instituições de ensino
da Europa e Estados Unidos. O presente programa de pós-graduação", dizia ain-
da o texto de 1965, - "servirá de base para um centro pan-americano de estudos
avançados de engenharia " 1 .
Os próprios boletins dão um resumo histórico da formação dos cursos: "O pri-
Os textos entre aspas que se seguem são extraídos dos boletins oficiais publicados pela
Coppe e seus diversos cursos, conforme indicado.
210
meiro esquema para a implantação do Curso de Pós-Graduação de Engenharia
Química resultou da viagem de uma comissão, credenciada pela Congregação da
Escola Nacional de Química da Universidade do Brasil, aos Estados Unidos, em
dezembro de 1960. As visitas efetuadas às Universidades de Houston, Rice, Cali-
fórnia (Los Angeles e Berkeley), Stanford, Califórnia Institute of Technology,
Minnesota, Michigan e MIT, mostraram a importância dos cursos de pós-gradua-
ção no preparo de pesquisadores, professores e engenheiros criadores e, também,
o efeito benéfico que os cursos de pós-graduação têm nos cursos de formação,
tornando-os atualizados".
"Este esquema preliminar foi apresentado ao seminário "Reforma Universitária e
o Ensino de Engenharia", conduzido pelo Clube de Engenharia do Rio de Janei-
ro, em dezembro de 1961. Em agosto de 1961 vieram ao Rio de Janeiro, com o
patrocínio da Organização dos Estados Americanos, os diretores das Escolas de
Engenharia de Houston e Texas. Esses, em conjunto com professores da Escola
Nacional de Química e da Escola Nacional de Engenharia, estabeleceram um pla-
no para um curso conjunto de pós-graduação em Engenharia Química e Mecâni-
ca, que foi apresentado ao coordenador brasileiro do Ponto IV pelos diretores
das Escolas de Química e Engenharia da Universidade do Brasil em outubro de
1961".
"Com a criação do Instituto de Química da Universidade do Brasil (IQUB) e seu
funcionamento em 1962, esta entidade que congrega as cadeiras de química e en-
genharia química das Escolas de Química, Engenharia, Medicina, Farmácia e Fi-
losofia da Universidade do Brasil ficou à testa do curso, através de sua Divisão de
Engenharia Química".
"Nos meses de julho e agosto de 1962 foram ministradas as primeiras aulas pós-
graduadas através de cursos curtos e intensivos sobre camada limite e turbulên-
cia, escoamento através de leitos porosos e programação para computadores di-
gitais. Estes cursos foram apoiados em conjunto pela OEA, IQUB, Universidade
de Houston e Conselho Nacional de Pesquisas. As aulas foram ministradas por
professores da Universidade de Houston".
"A inauguração formal do Curso de Pós-Graduação em Ciência de Engenharia
Química com o oferecimento dos graus de M.Sc. e D.Sc. teve lugar em março de
1963. Os auxílios da OEA e da Fundação Rockefeller permitiram a vinda de qua-
tro professores norte-americanos, resultando que aproximadamente a metade do
ensino fosse ministrado por professores americanos e metade por professores bra-
sileiros".
Os contatos feitos com instituições norte-americanas se desenvolveram a partir
de relações de trabalho estabelecidas anos antes por Alberto Luís Coimbra e Ber-
nardo Mascarenhas, entre outros, que haviam ido estudar naquele país no final
da década de 40.
Coimbra é químico formado pela Escola de Química do Rio de Janeiro, em 1946.
De 1947 a 1949 estuda enyenharia química na Universidade de Vanderbilt, nos
Estados Unidos, onde obtém o título de mestre. De 1949 a 1953 trabalha na Es-
cola de Engenharia industrial de São Paulo, liderada por padre Sabóia, em sua
lembrança "um padre excepcional, um padre fantástico, ele estava percorrendo
os Estados Unidos, fazendo conferências e levantando dinheiro para a escola dele
211
em São Paulo, fazendo contatos com as companhias americanas que operavam
no Brasil . . .". Em 1 953 volta ao R io de Janeiro para lecionar em um curso de re-
finação de petróleo da Petrobrás e faz concurso para livre-docente na Escola de
Química, não tendo conseguido, no entanto, a posição de catedrático, ganha em
concurso por Bernardo Mascarenhas. Os próximos anos são de atividade múlti-
pla e variada: "ensinava na Escola de Química, ensinava na Petrobrás, tinha um
emprego de projeto, era consultor de duas empresas americanas e ensinava na
PUC, Engenharia Química, Mecânica dos Fluidos. , ." 2 .
A experiência da Petrobrás foi certamente marcante. A formação de especialistas
em refinação de petróleo no Brasil tem início com o Setor de Supervisão e Aper-
feiçoamento Técnico do antigo Conselho Nacional do Petróleo, do qual se origi-
nou o Centro de Aperfeiçoamento e Pesquisa do Petróleo (que incluía um setor
de análise e pesquisas) criado em 1955. É deste centro que se originaria, em 1966,
o Centro de Pesquisas da Petrobrás (Cenpes). O esforço de incorporar a tecnolo-
gia do refino, e de formar pessoal capaz de operar a empresa, foi a base de forma-
ção de toda uma geração de engenheiros químicos que o Brasil até então não co-
nhecera 3 ,
No início dos anos 60 surge a oportunidade para uma nova iniciativa. Frank Tiller,
professor de Coimbra e Bernardo Mascarenhas em Vanderbilt, mas já então pro
fessor do College of Engineering, Universidade de Houston, Texas, é convidado
para vir ao Brasil, e após esta visita seguem-se as viagens de brasileiros aos Esta-
dos Unidos. Os recursos para isto são, em parte, oriundos do próprio Instituto
de Química. Mas, por outra parte, há grande envolvimento de instituições nor-
te-americanas e da Organização dos Estados Americanos, sem dúvida responsá-
veis pela idéia de utilizar a experiência do Rio de Janeiro para a criação de um
programa de alcance continental.
Em 1962 Coimbra parte para os Estados Unidos, com o apoio da OEA, para seis
meses de visita e familiarização com o sistema educacional pós-graduado norte-
americano. Cursos regulares de pós-graduação, tempo integral para alunos e pro-
fessores - o que implicava em salários adequados e bolsas de estudo -, forma-
ção no exterior de jovens promissores que pudessem vir a integrar o quadro de
professores dos cursos, tais são os itens que parecem, desde o início, prioritários.
No período que vai de 1961 a 1 963, uma das preocupações centrais de Coimbra
é a formação de alguns de seus antigos alunos da Escola de Química para a pós-
graduação que se tinha em projeto organizar. Neste sentido, ao tempo em que
Giulio Massarani e Affonso da Silva Telles, antigos alunos seus na Escola Nacio-
nal de Química, eram enviados a Houston para realizar cursos de Mestrado em
Engenharia Química, Carlos Augusto Perlingeiro, também ex-aluno seu, passa-
va um período também em Houston antes de ingressar formalmente no curso de
mestrado no Rio, aprendendo técnicas de computação aplicadas à Engenharia
Química. Assim, foi possível montar a base de um corpo de assistentes brasilei-
Entrevista realizada em 1978.
A respeito, ver Dulce Maria Monteiro Vianna, "Pesquisa Tecnológica na Petrobrás",
Finep. Centro de Estudos e Pesquisas, 1975. manuscrito.
212
ros que davam apoio efetivo aos professores responsáveis pelos cursos. A esco-
lha desses alunos era de responsabilidade do próprio Coimbra, como ressaltam
os depoimentos:
"., . .Em 1961 eu havia passado num concurso da Petrobrás, mas quando ouvi
falar na pós-graduação. na possibilidade de estudar mais, resolvi arriscar me ins-
crevendo na primeira turma do Curso de Pós-Graduação em Engenharia Quími-
ca. Eu já havia tido uma experiência anterior como monitor e que muito me
agradara (. . .)". "É significativo lembrar a experiência de dois colegas que acre-
ditaram mais ainda do que eu naquilo tudo que estava para vir. Foram Giulio
Massarani e Affonso Telles, que antes mesmo de ter sido iniciado o mestrado
aqui, foram para os EUA, casados, fazer o mestrado para voltar Deus sabe lá para
quê. Poderia ser bem sucedida a experiência da implantação do curso de pós-gra-
duação e todos teriam uma ocupação, uma profissão no ensino de pós-graduação
na universidade. Ou simplesmente iriam para a indústria, onde naquela época,
provavelmente, muito pouco eles poderiam utilizar esses conhecimentos adqui-
ridos no mestrado ..." (Carlos Augusto Perlingeiro, depoimento) 4 .
"... Foi como se fosse uma ordem seca do Coimbra. Ele era um professor muito
bom da Escola de Química. Os cursos dele eram bem vistos e era um privilégio
ser bem atendido por ele. Eu me lembro perfeitamente, o Coimbra chegou na bi-
blioteca e me chamou com o dedo, "Vem cá. Você vai para Houston". Não foi
nada mais, nada menos do que isso. Nós acreditávamos tanto nele, que nem pen-
samos duas vezes. Era o meu caso, o do Affonso Telles e do Maurício Leonardos
— que não veio para a Coppe, ficou num escritório de patentes. Mas, consciência
do que estávamos fazendo, nenhuma. Nós não tínhamos a menor idéia do que
era pósgraduação . . ." (Giulio Massarani, depoimento) s .
Tal era, ainda na lembrança de um destes primeiros participantes, o ambiente de
trabalho:
". . .Foi interessante, participei como monitor. Depois em 1962, durante as ne-
gociações todas, tinha muita correspondência e eu ajudava o professor Coimbra a
bater carta, bater apostila e tudo mais e depois como aluno. Com isso fui adqui-
rindo uma visão global. Em 1964 terminei a tese e fiquei como professor na en-
tão Divisão de Engenharia Química do Instituto de Química, onde nasceu real-
mente a pós-graduação em Engenharia Química. Em 64 dei meu primeiro curso,
foi minha primeira experiência no ensino de pós-graduação. Em 1963 eu havia
tido experiência na graduação. Porque como aluno de mestrado o professor
Coimbra incentivava todos a participarem no ensino de graduação. Dei um curso
de cálculo numérico, um de introdução á computação" (Carlos Augusto Perlin-
geiro, depoimento).
Carlos Augusto Perlingeiro é engenheiro químico formado em 1961 pela Escola Nacio-
nal de Química da Universidade do Brasil, tendo obtido seu mestrado em 1964 na
Coppe e seu doutorado em 1970. na Universidade de Stevens.
Giulio Massarani é químico industrial e engenheiro químico, formado pela Escola Na-
cional de Química em 1961, tendo obtido seu mestrado em Engenharia Química na
Universidade de Houston (1963) e seu doutorado na Universidade de Toulouse, em
1971.
213
A colaboração internacional
A partir dos contatos com os Estados Unidos, programas de intercâmbio são es-
tabelecidos com vários outros países, com o objetivo explícito de diversificar as
fontes de influência e os modelos de trabalho que os programas de engenharia
podiam adotar. 0 catálogo da Coppe de 1971 dá um quadro destas diversas in-
fluências:
"Desde o início a Coppe procurou a assistência técnica de professores estrangei-
ros e a tem recebido através da OEA, Comissão Fullbright, Fundação Rockefeller,
AID e governos da França, Grã-Bretanha, Holanda, URSS e Alemanha e também
do Comité Europeu de Imigração. A assistência técnica dos Estados Unidos se
faz, atualmente, através de um acordo Al D/U F RJ, coordenado pela Universidade
de Houston, que serve principalmente aos programas de Engenharia Elétrica,
Química e Metalúrgica. A assistência técnica francesa vem servindo principal-
mente aos Programas de Elétrica e Civil e contribui decisivamente para a implan-
tação do Programa de Engenharia Nuclear. Os professores da Grã-Bretanha che-
gam a Coppe por intermédio do Conselho Britânico. A sua contribuição foi mui-
to importante para a implantação do Programa de Engenharia da Produção, que
recebeu assistência da Universidade de Birmingham. Os programas de Engenharia
Química e Nuclear são também beneficiados. A assistência técnica da Holanda
foi prestada à Engenharia Civil e deu uma importante contribuição para a implan-
tação da pós-graduação de Engenharia Naval. A União Soviética presta uma assis-
tência crescente a todos os programas da Coppe, enviando professores de alto ní-
vel que ministram cursos e dirigem pesquisas. A assistência técnica da Alemanha,
coordenada pelo DAAD, se faz sentir, principalmente no programa de Engenha-
ria Elétrica e na Ciência da Computação Digital e Analógica" (Coppe, Universida-
de Federal do Rio de Janeiro, Catálogo de 1971 ).
Este intercâmbio com o exterior, entretanto, não se restringia apenas à colabora-
ção de professores estrangeiros nos diversos programas da Coppe mas atingia,
também, seu corpo discente. Em 1966, por exemplo, a Coppe passou a receber
auxílio do Itamaraty que, através de bolsas de estudos, patrocinava a vinda pa-
ra a instituição de alunos latino-americanos interessados em realizarem cursos
de pós-graduação em Engenharia (cf. Coppe, Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Catálogo 1967/68). E em relação ao intercâmbio com países da Euro-
pa, por exemplo, a leitura do Catálogo de 1973 da Coppe revela a presença em
seu corpo docente de muitos ex-alunos da instituição doutorados em centros
universitários europeus. Para ficarmos apenas no Programa de Engenharia Quí-
mica, por exemplo, pode-se citar Giulio Massarani - colaborador do programa
desde seu início - que obteve seu doutoramento em Toulouse (1971), Carlos
Russo, M.Sc. (1965) pela Coppe que obteve seu doutoramento em Leeds, In-
glaterra (1970); e Maury Saddy e Martin Schmal, ambos M.Sc. (1966) pela
Coppe e que obtiveram seu doutoramento, o primeiro em Londres (1970) e o
segundo em Berlim (1970).
"... Nós fomos para Houston. A razão de Houston, é que o Coimbra tinha fei-
to a tese de mestrado dele com o professor Tiller, que na época em que nós fo-
mos estudar estava em Houston. Portanto, o Tiller e a Universidade de Houston
faziam parte do esquema de treinamento do Coimbra. Todo mundo que ele man-
214
dou, na época, foi para Houston. Depois é que o Coimbra mesmo diversificou,
enviando inicialmente mais gente para o restante da América, e depois para a Eu-
ropa. (. . .) Eu voltei para o doutorado em Toulouse, na França. Já naquela épo-
ca o Coimbra tinha a nítida preocupação de misturar os doutorados para pegar
todas as tendências. A América era um pouco prepotente, em termos das organi-
zações que financiavam - OEA e outras - e o Coimbra não gostava, porque to-
lhia um pouco a liberdade. Além disso, ele sempre teve uma visão geral de ciên-
cia e por isso começou a misturar Europa com América. Hoje em dia as influên-
cias, em geral, são mais europeias que americanas, (vias tem algumas áreas que a
América é mais forte, por exemplo engenharia de sistemas. Em termos de conhe-
cimentos não existe defasagem entre Estados Unidos e Europa, em engenharia
química mais forte é a Europa. Mas é difícil dizer isso, não é muito nítido e as
orientações são um pouco diferentes. Sempre se procura a pessoa, o orientador
e não a universidade, onde ele estiver o doutorado é feito lá . . ." (Giulio Massa-
rani, depoimento).
O papel do Funtec
A criação, em 1964, do Fundo de Desenvolvimento Técnico-Científico (Funtec)
do Banco Nacional de Desenvolvimento Económico vem trazer aos projetos de
formação de um sistema de pós-graduação em engenharia novas perspectivas. O
Funtec teve seu início com a Resolução n9 146/64 de 29 de maio de 1964, do
Conselho de Administração do BNDE. Pela resolução, "basicamente, quatro con-
siderações importantes definiram os objetivos do Funtec, em seu projeto de cria-
ção: 1) o fato de que as operações do BNDE eram intimamente vinculadas à re-
moção dos pontos de estrangulamento responsáveis pelo desequilíbrio estrutural
da economia brasileira, dentre os quais se apontavam a escassez de técnicos de
grau médio e superior e a deficiência no setor de pesquisa técnico-científica; 2) os
investimentos feitos até então, nos setores básicos da economia, não foram acom-
panhados de esforço idêntico no setor educacional, fato que resultou na exacerba-
ção do problema; 3) a expansão do setor industrial, vencidas as etapas iniciais de
crescimento, teria o seu ritmo condicionado, cada vez mais, à qualificação da for-
ça de trabalho e ao fortalecimento das bases científicas e tecnológicas do país;
4) o preço da tecnologia importada onerava cada vez mais o balanço de pagamen-
tos do país com despesas maciças em know-how, assistência técnica e aluguel de
marcas e/ou patentes" 6 .
O antecedente mais imediato do Funtec foi a chamada "Quota de Treinamento
e Ensino Técnico" criada em 1958. Tratava-se de um adicional de 3% de cada
operação aprovada pelo banco, que podia ser utilizada pelos mutuários para o
aperfeiçoamento de seus quadros. Era uma quota voluntária, cuja utilização não
correspondeu às expectativas. O Funtec surge a partir de uma reavaliação deste
fundo e passa a operar com 3% dos recursos globais do banco. Dirigido desde o
início por José Pelúcio Ferreira, 40% de seus fundos foram destinados à pesqui-
Banco Nacional de Desenvolvimento Económico, Funtec - 10 anos de Apoio a Pesqui-
sa, Rio. BNDE, 1974.
215
sa científica e à formação de recursos humanos, e 60% à pesquisa tecnológica.
Havia, além disto, uma parcela prevista para o ensino técnico.
Criado de forma independente, e a princípio sem vinculação com o que vinha
ocorrendo na área universitária, o Funtec tinha, pois, objetivos ambiciosos, que
iam desde o treinamento de técnicos de nível médio até o desenvolvimento de
uma tecnologia nacional, que pudesse reduzir os problemas de balança de paga-
mentos resultantes da importação de know-how e tecnologia estrangeiras.
Diante de uma gama tão ampla de objetivos, o Funtec buscava definir sua linha
de atuação, quando se dá a aproximação com o grupo que viria mais tarde, com
seu apoio, a formar a Coppe. Alberto Luis Coimbra, convidado a realizar um dis-
curso por ocasião da comemoração dos 10 anos de existência do Funtec relem-
bra os caminhos pelos quais veio a saber da existência deste tipo de recursos.
"(. . .) Um certo dia no início de 64, lá numa das duas salas onde funcionava o
curso de mestrado da Escola de Química na Praia Vermelha, recebi a visita de
um colega engenheiro químico formado pelo IME, Hélio Sá Rego, então asses-
sor do BNDE. Por indicação de um amigo comum, Arthur Lago, o Sá Rego sou-
be do esforço que vínhamos desenvolvendo, conduzindo o curso de mestrado em
engenharia química iniciado no ano anterior com os recursos limitados do orça-
mento do Instituto de Química da UFRJ".
"Falou-me das verbas que haviam acumulado no BNDE provenientes das parce-
las que em cada empréstimo eram reservadas para treinamento de pessoal técni-
co das empresas contratantes, parcelas essas que vinham sendo pouco e mal uti-
lizadas".
"Lembro-me que houve uma certa competição, habilmente estimulada pelo pró-
prio BNDE, que desde então procurava consultar professores e industriais para
tirar as suas conclusões sobre como e onde aplicar os recursos na preparação de
gente qualificada capaz de criar e utilizar a moderna tecnologia. Segundo essa
diretriz, o pessoal assim treinado ensejaria o melhor aproveitamento dos recur-
sos que eram emprestados às indústrias".
"O nosso entrosamento inicial com Jardy Sellos Correia e Pelúcio foi uma ex-
periência gratificante e construtiva. Os contatos continuariam com Sellos e Pe-
lúcio e mais tarde principalmente com Pelúcio e sua pequena equipe" 7 .
A competição a que Coimbra se referia era entre a tendência a utilizar os recur-
sos do Funtec para a formação de engenheiros de nível médio, de operações, e
a de empregá-los para programas regulares de pós graduação, orientação que
acabou por prevalecer. Não foi uma opção fortuita. A ideia de concentrar recur-
sos na formação de recursos humanos para o desenvolvimento nacional, particu-
larmente na área de engenharia, já vinha ganhando corpo em vários setores da li-
derança científica e técnica do país. Em 1963 José Leite Lopes, professor de fí-
sica eminente da Universidade do Rio de Janeiro, aproveitara o ensejo de uma
reunião internacional para propor um amplo programa de formação de engenhei-
7 "Discurso proferido por ocasião do 10? aniversário do Funtec", Noticiário Coppe, X, I.
Janeiro-Maio. 1975.
216
ros de alto nível para o pafs. Outros trabalhos da mesma época propõem criação
de um grande sistema institucional para a ciência e tecnologia do país, que culmi-
nariam na criação de um Ministério da Ciência e da Tecnologia. Não há dúvida de
que estes trabalhos de Leite Lopes tiveram grande influência, direta ou indireta,
nos propósitos de constituir um sistema nacional de ciência e tecnologia voltados,
não para a universidade, mas para um projeto de desenvolvimento nacional 8 ,
Uma vez fixada a orientação, o Funtec passa a ser a principal font» de financia-
mento da pós graduação em engenharia, que deixa, assim, de depen jjr tão forte-
mente do apoio internacional com que até então contara. Ao mesmo tempo, a
Coppe passa a dar ao Funtec um conteúdo prático e real que até então desconhe-
cia, passando a ter uma atuação cada vez mais dinâmica, sob a liderança de José
Pelúcio Ferreira. A aproximação entre os dois programas de trabalho então cons-
tituídos é assim lembrada por Coimbra:
"Estabeleceu-se uma relação cordial entre professores e funcionários do BNDE,
muito gratificante, foi uma época muito agradável. Eles viviam os problemas da
universidade e quando atrasavam os pagamentos, a liberação do dinheiro do
BNDE, eles procuraram ajudar. Depois os primeiros regulamentos do Funtec
foram feitos na Coppe. O primeiro regulamento do Funtec só previa a engenha-
ria, mas nós mesmos tomamos a iniciativa de incluir física, matemática, quími-
ca, porque não se pode fazer uma pós-graduação em engenharia sem ciência bá-
sica forte na universidade (...) Também ajudamos muito a estabelecer a pós-
graduação do Instituto de Matemática Pura e Aplicada ..." (entrevista).
O apoio do Funtec à Coppe não foi essencial apenas para o desenvolvimento
deste programa. Mais do que isto, ele significou o início de uma nova etapa na
história da ciência e da tecnologia do país, por algumas razões importantes.
Em primeiro lugar, o volume de recursos disponíveis para ciência e tecnologia,
gerados em uma instituição como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econó-
mico, superava em muito a capacidade de absorção imediata do sistema educacio-
nal do país. Até o ano de 1973, quando há uma redefinição de seus objetivos, o
Funtec jamais se viu na contingência de deixar de aprovar um programa qualquer
considerado de boa qualidade por falta de disponibilidade financeira. Isto permi-
tiu um crescimento vertiginoso de instituições que, como a Coppe, se capacita-
ram para utilizar estes recursos de forma ágil e eficiente. Em segundo lugar, estes
recursos eram acompanhados de uma cultura administrativa e organizacional to-
talmente distinta do que o sistema educacional e científico brasileiros tinham co-
nhecido até então. À mentalidade burocrática e formal do serviço público vigen-
te na universidade sucedeu-se a mentalidade empresarial estimulada pelos econo-
mistas e engenheiros do BNDE. Sem maior compromisso com a tradição históri-
ca das instituições de ensino do país, era possível criar estruturas e programas
totalmente novos, que rompessem com os esquemas estabelecidos, e buscassem
Veja, entre outros, os seguintes textos, todos publicados entre 1963 e 1964 por Jo-
sé Leite Lopes na coleção "Ciência e Sociedade", editada pelo Centro Brasileiro
de Pesquisas Físicas: "The Need for Scientific Training for Engineers: Problems and
Prospects in Brazil"; "Centros Nacionais de Treinamento e Pesquisa para o Desenvol-
vimento Brasileiro"; "A significação da ciência no Mundo Contemporâneo: O Proble-
ma Brasileiro"; "Por uma política científica nacional".
217
novos horizontes. É claro que isto permitia importantes inovações e aberturas
mas poderia dar lugar, também, a um crescimento desmedido e descontrolado de
programas e projetos custosos de qualidade e eficiência duvidosa.
A partir de 1973, as funções do Funtec de apoio direto à pós-graduação em ciên-
cia e tecnologia são atribuídas à Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), se-
cretaria executiva e responsável pela aplicação dos recursos do Fundo Nacional
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, definidos orçamentariamente. A
Finep herda não somente o papel, mas muito da cultura gerencial do Funtec, e
permite que prossiga a expansão da Coppe, já então modelo para muitos outros
programas de vanguarda no país. É a própria liderança do Funtec, personificada
em José Pelúcio Ferreira, que assume a direção da Finep e dá continuidade ao
trabalho anterior.
0 primeiro auxílio foi concedido em 1964 ao Programa de Engenharia Química;
em março de 1965 é implantado o Programa de Pós-Graduação em Engenharia
Mecânica; a estes dois se seguem os programas de Engenharia Metalúrgica e de
Engenharia Elétrica, ainda em 1965 estes programas são agrupados sob a coorde-
nação da Coppe, ser.Jo sua direção entregue a Alberto Luis Coimbra, que nela
permanece até 1973.
As contribuições do Funtec à Coppe estão listadas, ano a ano, no quadro a seguir.
Com a saída do Funtec da área de apoio à pós-graduação, a Finep concede ao
programa recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnoló-
gico no valor de Cr$ 70 milhões no ano de 1975, e mais Cr$ 9 milhões para seu
recém-criado programa de pós-graduação em administração. Estes não são os úni-
cos recursos extraordinários que a Coppe recebe do fundo, já que participa, tam-
bém, de uma série de projetos de pesquisa específicos, e dotados de fundos pró-
prios 9 .
A expansão da Coppe não é grande somente em termos de recursos: dos 11 alu-
nos iniciais do mestrado em Engenharia Química, haviam, em 1966, 99 alunos
inscritos, e, dez anos depois, 1.538. A taxa média de expansão dos alunos entre
1963-4 e 1966-7 é de 139,4% ao ano; de 1967 8 a 1971-2, a taxa média é de 25%
ao ano, caindo para 18,2% entre o período 1972-3 e 1975-6. Em 1977, finalmen-
te, este crescimento vertiginoso parece se deter, com a diminuição de 10% no to-
tal de alunos em relação ao ano anterior (estes dados são analisados com maior
detalhe na terceira parte).
Expansão e auge
Do início da entrada de recursos maciços do Funtec, em 1967, até a relativa esta-
bilização do crescimento do número de alunos, em 1973, é a fase que muitos con-
sideram o "período áureo" da Coppe, em que o programa se beneficia de um flu-
xo aparentemente ilimitado de recursos financeiros e humanos, e abre constante-
mente novos horizontes.
9 Finep, Aiuaçâo do Fundo Nacional de Desenvolvimento Cientifico e Tecnológico no
Período 1970/76, Rio de Janeiro. Finep, 1977.
218
Contratos do Programa de Desenvolvimento Tecnológico do Banco Nacional de
Desenvolvimento Económico (Funtec/BNDE) com os cursos de pós-graduação em
Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janetro (UFRJ/Coppe). 1964 1973.
Ano do
Primeiro
Numero do Contrato e
Descrição da Are»
Valor Total em
Cruieiros Correntes
Por Contrato
Total do Ano
Valor em
ORTN
1964
1 UFRJ/Eng. Química
65.000,00
05.000.00
6.500
1965
4. UF R .l/E ng Química
6 UFRJ/Eng Química
58 596.00
60.000.00
118.595,00
8.44?
1967
21. UFRJ/P6s-G'aduaçeb em Eng.
26 UFRJ/Eng. Química
1 .545.500.00
488.160.00
2.033.660,00
78 824
1968
33. UFRJ/Coppe
20.584.400,00
20.584.400,00
650.376
1969
58 UFRJ/Coppe. Biooéncias
232.000,00
232.000,00
6.019
1970
75, UFRJ/Coppe. Eng. Civil
731.200.00
731.200.00
15.965
1971
123/1. UFRJ/Coppe. Engenharia
29.174.374,00
29.174.00
529.000
1972
136. UFRJ/Coppe, Pesquisa Médica
484 670,00
484.670.00
7.334
1973
172. UFRJ/Coppe. Eng, Mecânica
176. UFRJ/Coppe. Eng. Naval
177. UFRJ/Coppe. Eng Química
178. UFRJ/Coppe, Eng. Civil
181. UFRJ/Coppe. Eng Indústria
189 UFRJ/Coppe, Eng. Metalúrgica
190. UFRJ/Coppe. Eng Elét'<ca
198 UFRJ/Coppe. Informática
212 UFRJ/Coppe. Eng. Nuclear
230. UFRJ/Coppe. Pesquisa Médica
Aplicada
2.680.800.00
1.755.272,00
3.936 800.00
4 090.O00.00
3.668.352.00
4.500.00
3.980 000.00
3.064.600,00
1.880 000.00
2.335.688,00
27.396.012.00
364.599
Tot.1
1 726.893
Fonte; Banco Nacional de Desenvolvimento Económico, Funtec - 10 Anos de Apoio * Pesquisa. R,o. 8NOE. 1974.
Em 1967 a C^y;-' ..jpa suas novas instalações na Ilha do Fundão, na Cidade
Universitária, e três novos programas são criados: Engenharia Civil, Engenharia
de Produção e Engenharia Naval, dando seguimento a seus projetos de expansão
e atingindo, neste ano, um total de 262 alunos matriculados. Além destes progra-
mas, em 1966 havia sido criado um Departamento de Cálculo Científico que,
graças aos recursos do Funtec, pôde instalar um computador digital IBM 1130
que, em conjunto com um computador analógico (EAI-TR-20), que já vinha sen-
do usado desde 1965 em trabalhos de pesquisa, e com um outro computador
EAI-TR-48-Hl'BRIDO, instalado em 1967 - ambos adquiridos com recursos tam-
bém do Funtec e do CNPq - dava apoio, inicialmente a todas as atividades de
pesquisa realizadas na Coppe e, posteriormente a toda UFRJ e a órgãos do gover-
no e indústria que necessitavam do processamento de dados científicos 10 .
Novos programas e novas linhas de trabalho são estabelecidas na medida em que
10 Coppe - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Catálogo de 1967/8.
219
houvesse massa crítica e recursos, e a existência de uma série de matérias básicas
comuns e diferentes especialidades permitia economias de escala. O Curso de En-
genharia da Produção, ao sair da área especificamente técnica para o tratamento
inevitavelmente qualitativo de fenómenos humanos, abre para a Coppe uma linha
até então inédita. Segundo o catálogo da Coppe de 1977, "a simbiose de suas
técnicas mais tradicionais, como as de análise do trabalho e de planejamento e
controle da produção, com os mais recentes desenvolvimentos nos campos da er-
gonomia e sobretudo de pesquisa operacional levaram o engenheiro de produção
ao contato com uma faixa extraordinariamente ampla de especialidades: enge-
nheiros de diversas especialidades, nas indústrias correspondentes e no planeja-
mento e operação de sistemas de transportes; economistas, no planejamento e
níveis micro e macroeconómicos; matemáticos, administradores, psicólogos, etc".
O Programa de Engenharia da Produção contou, em seu início, ao lado de um pe-
queno grupo de professores brasileiros, com a cooperação técnica de professores
da Universidade de Birmingham, e seguiu, até 1969, com a orientação primeira
que lhe havia sido imprimida: cursos de Industrial Engineering nos moldes dos
oferecidos por univerrdades norte-americanas e inglesas. A partir de 1969, entre-
tanto, surgem cara o curso oportunidades de diversificação pela aplicação da me-
todologia utilizada em áreas conexas, levando ao surgimento de especializações
dentro do próprio curso: economia da tecnologia, gerência de produção e enge-
nharia do produto e pesquisa operacional 1 1 .
Mais ainda, tal interdisciplinaridade é que vai proporcionar a criação de dois ou-
tros programas - constituídos, na realidade, apenas como áreas conectadas ao
Programa de Engenharia de Produção - que foram a Área de Planejamento Ur-
bano e Regional, criada em novembro de 1971 e diretamente subordinada àque-
le programa e a Área Autónoma de Projetos Industriais e Transportes, criada em
fins de 1975. Também neste ano se inicia o Programa de Administração de Em-
presas.
O Programa de Engenharia Naval teve por base uma experiência inédita de coope-
ração com a União Soviética, através de Dmitri Vastovscev, um dos quatro pro-
fessores soviéticos que durante três anos participaram dos trabalhos da Coppe,
dentro de sua política deliberada de diferenciar as fontes de influência interna-
cionais, a partir dos contatos iniciais mais exclusivos com os Estados Unidos.
No mês de março de 1968 tem início o Programa de Engenharia Nuclear, dentro
do convénio estabelecido entre a UF RJ e a Comissão Nacional de Energia Nuclear,
contando com estreita cooperação do Instituto de Energia Nuclear, também ins-
talado na Cidade Universitária:
"... A criação do Programa de Engenharia Nuclear surgiu da idéia de aproveitar
o Instituto de Energia Nuclear para formar pessoas qualificadas para trabalhar no
próprio instituto e em atividades ligadas à construção de reatores de Angra dos
Reis. Quando da coordenação de Ubirajara Quaranta Cabral, é que houve a arti-
culação para a implementação do programa. Aproveitou os professores do Insti-
tuto de Energia Nuclear, alguns estrangeiros e o próprio Leite Lopes - do Institu-
Cf. Coppe, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Catálogo de 1977.
220
to de Física, para rlar física nuclear e estatística - depois eu e o Zielli - do Ins-
tituto de Energia Nuclear". (Luiz Pinguelli Rosa, depoimento) 12 .
Ao Programa de Engenharia Nuclear se seguem outros três: o de Engenharia Bio-
médica, o de Engenharia de Sistemas e Computação e o de Engenharia Matemáti-
ca, todos criados em 1970. Além destes, ainda nesse ano é criado o Núcleo de
Computação Eletrônica (NCE) da UFRJ, considerado como uma "evolução na-
tural" do Departamento de Cálculo Científico (DCC) da Coppe, cujas atividades
nele se inseriram e cujo equipamento e equipe que lhe serviam de base foram ce-
didos ao NCE.
Finalmente, em 1 971 é criada a Área de Planejamento Urbano e Regional, subor
dinada - como se viu - ao Programa de Engenharia da Produção, fruto de um
convénio com o Ministério do Interior.
UMA EXPERIÊNCIA SHUMPETERIANA?
Liderança Pessoal e Informalidade
A literatura económica nos fala de empresários inovadores - os entrepreneurs de
Shumpeter — cuja característica principal é a capacidade de combinar uma série
de fatores de produção pré-existentes de uma forma inédita, e dar origem, assim,
a empreendimentos industriais originais. O empresário shumpeteriano não aceita
as formas existentes e tradicionais de organização do trabalho, de definição do
produto, de combinação de fatores. Na busca determinada e decidida de um ob-
jetivo só por ele vislumbrado, é capaz de reunir ao redor de si pessoas atraídas
por sua liderança, e cria, consequentemente, organizações fortemente marcadas
por suas características de personalidade. Estas qualidades, que para muitos fo-
ram essenciais na fase "heróica" do capitalismo, cedem lugar, com o tempo, a
um outro tipo de liderança, mais convencional, mais previsível em seus atos,
mais capaz de delegar e rotinizar suas ações - uma liderança de managers, de ge-
rentes. Uma vez amadurecida a empresa, o empresário que a cria se transforma,
muitas vezes, em obstáculo à sua institucionalização definitiva, a seu funciona-
mento como organização complexa cujos objetivos superam, e muitas vezes dei-
xam de lado, a inspiração daqueles que a criaram. Teria sido este o caso da Coppe?
A organização do sistema universitário brasileiro, regulamentado em seus deta-
lhes por complexa legislação e decisões normativas de agências reguladoras do
Ministério da Educação, dá pouco espaço e visibHidade para a emergência, em
seu meio, de experiências inovadoras. No entanto, a história das instituições de
ensino e pesquisa no país, naquilo que ela tem de mais significativo, está ligada a
uma série de nomes de pessoas que conseguiram, em determinados momentos,
romper a rotina e o convencionalismo das instituições existentes, e criar algo de
novo: Paula Souza na Escola Politécnica de São Paulo, Oswaldo Cruz em Man-
—
Luis Pinguelli Rosa é formado pelo Instituto Militar de Engenharia, com curso de espe-
cialização em Engenharia Nuclear realizado na Escola Naoonal de Engenharia (19661.
Forma-se em física pela Universidade Federal do Rio de Janeiro em 1968, obtém o mes
trado em 1969, e o doutorado pela Universidade Católica do Rio de Janeiro em 1974
221
guinhos. Rocha Lima no Instituto Biológico de São Paulo, Zeferino Vaz na fcs-
cola de Medicina de Ribeirão Preto e Universidade de Campinas, Carlos Chagas
Filho no Instituto de Biofísica da Universidade do Rio de Janeiro, Paulo de Góes
no Instituto de Microbiologia da mesma universidade, Anísio Teixeira na Univer-
sidade do Distrito Federal, Brasília, e no Centro Brasileiro de Pesquisas Educa-
cionais — para citar somente alguns exemplos mais evidentes. É claro que ne-
nhum destes homens pode, por si só, levar à frente seus projetos, independente-
mente das condições de seu meio e sua época; acreditar nisto seria cair em uma
concepção ingénua e simplista sobre a maneira pela qual a história é feita. 0 que
eles tiveram em comum foi a capacidade de vislumbrar possibilidades que outros
não percebiam, e cumprir desta maneira o desiderato shumpeteriano da inovação.
Esta função shumpeteriana foi desempenhada na Coppe por Coimbra, em uma
evidência clara de que instituições de ensino podem dar lugar, e se beneficiar,
deste tipo de liderança individual. Dentro de um contexto de grande informali-
dade e desburocratização, Coimbra toma todas as decisões importantes, assume
todas as responsabilidades, é o protetor e garantia da permanência e da continui-
dade dos programas. Os professores não têm contratos formais, os cursos não
aguardam regulamentações e aprovações ministeriais, as verbas são conseguidas
por períodos curtos e renováveis, pela atividade do empresário. Paternalista e
protetor - ou, para outros, autoritário e auto-suficiente - não há dúvida que ne-
le se concentram os grandes méritos e desméritos do programa.
". . .0 Coimbra era a pessoa que resolvia tudo a tempo e a hora, que inspirava
uma confiança muito grande e que de fato era um déspota esclarecido. Se ele
fazia coisas certas fazia-as por conta própria e mesmo os auxiliares mais diretos
tinham pouca ou nenhuma influência nas coisas que ele considerava mais cru-
ciais. 0 sistema de administração da Coppe era muito centralizado em suas mãos.
Mas talvez não tivesse outro modo para ele fazer as coisas. . ,*' (Luiz Pinguelli
Rosa, depoimento).
"... Muita gente diz que o Coimbra era ditador todo poderoso. Mas a meu ver
ele era forte, mas ouvia muita gente. Antes de ocorrer o problema todo em 1973
ele estava descentralizando a Coppe. Os coordenadores já contratavam professo-
res. Quer dizer, tomavam iniciativa, propunham gente. Mas ele é que tinha que
ver se existiam recursos. Ele protegia o corpo docente de toda maneira possível,
dos problemas de recursos. Ele não deixava a gente sentir, como sente hoje, que
estava faltando dinheiro ..." (Luiz Bevilacqua, depoimento) 1 3 ,
0 crescimento do programa tende, inevitavelmente, a ressaltar as disfuncionali-
dades de liderança tão pessoal e centralizada, levando à busca de novas formas
organizacionais. Ainda aqui, a Coppe inova, em relação à universidade.
A criação acelerada de novos programas, aliada ao aumento do número de alu-
nos levou a uma perda progressiva do clima absolutamente informal que havia
presidido até então as relações no interior do corpo docente e deste com o corpo
discente. Se, nos primeiros anos, o tempo integral exigido dos alunos tinha sua
Luis Bevilácqua é engenheiro civil . formado pela Escola Nacional de Engenharia da Uni-
versidade do Brasil em 1959, e doutor pela Universidade de Stanford, Califórnia, em
1970. Trabalha atualmente na Promon Engenharia
222
contrapartida na disponibilidade de espaço para que eles permanecessem na ins-
tituição durante todo o dia - aspecto fundamental a compor o aprendizado de
um aluno de pós-graduação - com o tempo isto não seria mais possível : mantém-
se a exigência de tempo integral para os alunos mas não há mais espaço físico pa-
ra que todos eles permaneçam na universidade o dia inteiro.
As atribuições do coordenador da Coppe - por ato do reitor da UFRJ - consis-
tiam em "planejar, implantar e desenvolver as atividades de pós-graduação das
diversas áreas da engenharia " 1 * . Para assessorar suas atividades, contava a Coor-
denação da Coppe com dois órgãos, a Congregação e o Conselho de Chefia, todos
apoiados pelos Serviços de Administração cujo superintendente administrativo
ocupava posição do mesmo nível que a de um professor.
A Congregação da Coppe, constituída por todos os seus professores e instrutores,
era seu órgão deliberativo máximo, reunindo-se, pelo menos, quatro vezes por
ano ao final de cada período letivo. O Conselho de Chefia era o órgão executivo
da Coppe, presidido pelo coordenador da instituição, e do qual faziam parte to-
dos os chefes de programas, o chefe do DCC e o superintendente administrativo
e suas medidas deliberativas eram submetidas à congregação.
Os depoimentos assinalam a grande importância, até este período, da Congrega-
ção da Coppe e o clima de informalidade que presidia suas reuniões.
"A tomada de decisão era no Conselho Deliberativo, que se reunia duas vezes
por ano e era o órgão supremo da Coppe. Este conselho se compunha de todos
os professores, auxiliares de ensino e representantes dos alunos. Este era o único
do tipo na universidade. Nos outros núcleos e institutos, que são órgãos suple-
mentares, não havia conselho composto da totalidade dos docentes (...). É claro
que com o correr dos tempos, esse conselho vai ficando ingovernável, principal-
mente pelo número de pessoas que nele participam. 0 conselho foi instituído
quando a Coppe tinha uns 20 a 30 professores com níveis de participação dife-
rentes, só mesmo as pessoas mais antigas tinham condições de dirigir as assem-
bleias. Ele passou a não funcionar direito e dificultar as reuniões. . ." (Carlos Au-
gusto Perlingeiro, depoimento).
Já o catálogo de 1968, entretanto, assinala as primeiras modificações desta orga-
nização básica quando, por decisão da congregação são criadas as Comissões de
Congregação, a Comissão da Biblioteca, a Comissão de Calendário, a Comissão de
Divulgação, a Comissão de Finanças para Pesquisas e a Comissão de Qualificação
Académica - de caráter consultivo e administrativo, das quais participavam pro-
fessores brasileiros e estrangeiros, proporcionando entre eles um "entrosamento
efetivo" 15 .
Estas modificações se completam quando finalmente, em 1971 , o Primeiro Regi-
mento Interno da Coppe altera esta estrutura, criando um Conselho de Coorde-
nadores, com as tarefas mais gerais de assistir à direção, elaborar planos e opinar
quanto a questão de caráter académico e de distribuição de recursos e um Conse-
Coppe, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Catálogo de 1969.
Coppe, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Catálogos de 1968 e 1969.
223
lho Deliberativo com a faculdade de deliberar quanto a propostas feitas pela di-
reção e pelo Conselho de Coordenadores. Deste conselho fazem parte todos os
professores titulares, adjuntos e assistentes, mas estabelece-se uma representação
de dois membros para os auxiliares de ensino e de um membro do corpo discen-
te, o que significa uma mudança substancial em relação à participação de todos
os seus professores e pesquisadores, vigente até então.
". . .A Congregação de Professores aprovava ou propunha a criação de novos
programas, acho que era por maioria. Para a contratação de novos professores,
era no Conselho de Coordenadores - que se compunha pelo coordenador da
Coppe e os chefes de cada programa. Este conselho se reúne até hoje. Nele se pro-
põe a contratação de professores, que é aprovada ou não ..." (Luiz Bevilacqua,
depoimento).
"... O primeiro regimento da Coppe, data de 1971. Foi escolhida uma comissão
- Walter Mannheimer, Paulo Rodrigues Lima e convidada a professora Hebe
Martelli do Instituto de Química. Este regimento manteve a estrutura informal,
interna à própria Coppe, independente da estrutura da universidade, o que lhe
permitia o tipo de funcionamento existente. . ." (Carlos Augusto Perlingeiro,
depoimento).
A venda de serviços: a Coppetec
A própria qualidade do professorado da Coppe gerava um problema de difícil so-
lução, que era o da demanda do setor empresarial por seus serviços. Tradicional-
mente, este problema tem sido resolvido pelas universidades brasileiras pelo pou-
co tempo dedicado pelos seus professores ao ensino, e pela ausência de pesquisa
no âmbito das escolas. Desta forma, os professores podem dar suas aulas a um
custo reduzido, e desenvolver suas atividades práticas de forma independente.
Na Coppe, no entanto, os padrões de ensino desejados exigiam o tempo integral,
o que por sua vez levava à exigência de níveis salariais competitivos com a de-
manda externa. Além disto, havia pouca justificação para impedir que o poten-
cial técnico reunido pela Coppe não fosse utilizado pela sociedade mais ampla, à
qual ela pertencia. A criação de uma empresa de consultoria da própria institui-
ção, que canalizasse e disciplinasse estes serviços externos, permitindo uma re-
muneração adicional, mas controlada, para o salário de seus professores, foi a so-
lução adotada.
Oficialmente, a Coppetec foi descrita como entidade destinada a intensificar os
vínculos entre os programas e as empresas, "permitindo a participação de docen-
tes e alunos da Coppe no desenvolvimento da tecnologia brasileira e atraindo,
portanto, para a universidade, projetos de interesse para o progresso do país.
A Coppetec é a unidade científica da Coppe orientada para os problemas da tec-
nologia nacional" (Coppe, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Catálogo
1972). "Realizando pesquisas, projetos e estudos tecnológicos, a curto, médio e
longo prazo, e que variam desde pequenas pesquisas em escala de laboratório, até
projetos de instalações industriais e estudos económicos em nível nacional, a
Coppetec se encontra à disposição das empresas para o apoio técnico necessário
à realização de projetos para terceiros (. . .) os resultados obtidos pela Coppetec,
colocando ao alcance do governo e iniciativa privada o potencial criador, cientí-
224
fico e tecnológico de uma instituição do nível da Coppe/UFRJ, a credenciam co-
mo fator decisivo na contribuição para o estabelecimento de uma tecnologia na-
cional, indispensável ao atendimento dos elevados padrões de desenvolvimento
do Brasil".
A criação da Coppetec foi considerada por muitos professores e pesquisadores
entrevistados como uma iniciativa pioneira não apenas no que se refere a uma
nova estratégia de captação de recursos pela própria Coppe como também no
que diz respeito à maior possibilidade de fixação do corpo docente da Coppe em
tempo integral na universidade. Além disso, sua importância era também vista da
perspectiva das possibilidades de implementação de uma política de integração
indústria-universidade surgida em função das inúmeras solicitações que pesquisa-
dores individuais da Coppe recebiam para consultorias privadas a diversas empre-
sas - estatais ou não. O principal mérito entrevisto na criação da Coppetec foi
o de disciplinar estas atividades, central izando-as e fixando um teto salarial máxi-
mo para os pesquisadores da instituição que participavam destes projetos de con-
sultoria (todos os pesquisadores da Coppe faziam parte do corpo da Coppetec).
Mais ainda, atribuindo-se aos coordenadores de programa a decisão acerca das
disponibilidades efetivas de tempo de um pesquisador para participar de um de-
terminado projeto, evitou-se que a médio ou longo prazo os pesquisadores da ins-
tituição transformassem o trabalho de consultoria em sua principal fonte de ren-
das - e, consequentemente, em sua principal atividade - em detrimento das fun-
ções de docência e pesquisa académica. Ao mesmo tempo, na medida em que a
Coppetec significava a institucionalização do sistema de consultoria, foi possí-
vel que esta - canalizada e controlada - se somasse de forma considerada pro-
dutiva às demais atividades desenvolvidas pela instituição.
". . .Aquele potencial todo, 200 professores em tempo integral, cinco só em
tempo parcial, muitos deles com experiência de prática industrial, tinham traba-
lhado em indústria, em projetos, engenharia civil, pontes, muitos deles com bas-
tante experiência aqui e no estrangeiro, só ensinando e dirigindo teses que é um
trabalho de primordial importância. Mas nós achávamos que eles podiam fazer
mais para o Brasil, que é um país carente de técnicos, pessoal de nível. Nós acha-
mos que a Coppetec usando essencialmente o corpo docente, o corpo técnico da
Coppe, inclusive estudantes, poderia prestar serviços a empresa no sentido lato,
e de um modo geral, governo e privada. E foi assim que a Coppetec foi concebi-
da. (...) A Coppetec começou a funcionar de uma maneira informal em 1968,
mas a institucionalização, dentro da Coppe, com o mesmo status que os outros
programas académicos, com um coordenador com assento no Conselho de Coor-
denadores junto com os seus colegas de outros departamentos só ocorreu em
1970. (...) A Coppetec foi um sucesso muito grande e até hoje é um sucesso,
ganha bastante dinheiro que serve para complementar salário de professor e des-
pesas de viagens de rotina, para trazer professor estrangeiro. . ." (Luiz Alberto
Coimbra, depoimento).
A utilização do próprio quadro de professores e do equipamento da Coppe, sem
a criação de uma estrutura paralela, foi uma das primeiras características da
Coppetec. Sua estrutura se limitava a um coordenador e sua secretária. O adicio-
nal de remuneração aos professores, por participação em projetos deste tipo, ti-
nha um teto de 20% sobre o salário, ou de 30% para os chefes da pesquisa. Final-
225
mente, outras formas de consultoria a título pessoal ficavam vedadas aos profes-
sores do programa.
A entrada de recursos por esta via, que aumenta os salários para os professores e
dá à instituição importante flexibilidade operacional, é sempre uma faca de dois
gumes, porque pode também subordinar os objetivos de ensino e pesquisa do
programa às demandas mais imediatas do mercado, e com isto retirar apoio e in-
teresse por projetos, temas e linhas de trabalho gerados no interior do próprio
programa, e mais diretamente voltados, dentro da filosofia da própria Coppe, ao
desenvolvimento de tecnologias mais avançadas e autónomas. De fato, não faltou
quem, na Coppe, se opusesse à criação de uma unidade de serviços com estas ca-
racterísticas, vendo nela uma ameaça às características mais académicas que um
programa universitário deveria ter. Alguma idéia do que a Coppetec realmente re-
presentou pode ser vista pela análise que se segue.
Os quadros a seguir apresentam os dados globais a respeito dos contratos con-
cluídos pela Coppetec até 1976, assim como dos contratos em execução em
1978, do ponto de vista do volume de recursos; e o número de projetos concluí-
dos ou iniciados até 1978, do ponto de vista do número de projetos. Não existe
especificação de valor por projeto, mas somente agregações por ano e setores de
atividade.
A comparação entre os dois quadros mostra uma grande concentração de peque-
nos projetos na área de assistência técnica a empresas e ensaios industriais, e uma
grande concentração dos valores nas áreas de infra-estrutura, tecnologia indus-
trial e desenvolvimento de recursos humanos.
O exame da distribuição dos projetos por programa e setor permite introduzir
uma distinção entre projetos do tipo hard e de tipo soft, ou seja, entre os que im-
plicam realmente pesquisa e desenvolvimento de tipo tecnológico e os que não o
fazem. Além disto, é possível também tentar diferenciar trabalhos que sejam de
rotina daqueles que implicam inovação.
Em linhas gerais, os projetos na área de "desenvolvimento de recursos humanos"
são cursos de vários tipos, alguns feitos por professores da Coppe por solicitação
de outras instituições, outros feitos como parte do programa de ensino da pró-
pria Coppe (como é o caso do mestrado em Administração) e que só figuram co-
mo "contratos" por razões de tipo contábil. Estas são atividades soft por exce-
lência, que em muitos anos concentraram mais de 50% dos recursos obtidos pe-
la Coppetec.
Os projetos de assistência técnica a empresas são, principalmente, na área de en-
genharia civil, e implicam tecnologias muitas vezes complexas, incluindo ensaios
de vários tipos, elaboração de projetos, elaboração de modelos, etc. Os projetos
de ensaios industriais são principalmente de engenharia civil e metalúrgica, em
geral bastante específicos tecnicamente. Os recursos carreados por estes proje-
tos, no entanto, são bastante pequenos, em termos relativos. Os projetos de as-
sessoria a órgãos governamentais são também predominantemente de tipo soft,
incluindo o desenvolvimento de sistemas de informação gerencial, desenho de
lay-outs, sistemas de cadastro, etc, com ênfase na área de engenharia da pro-
dução.
A partir de 1974 assumem importância cada vez maior os projetos na linha de
226
Coppetec: Projetos contratados de 1
Programas SETOHES
Novas
Tecnologias
Infra-
estrutura
Tecnologia
Industrial
Desenvolvimento
Regional e Social
Recursos
Humanos
Assistância
Técnica a
Governo
Assistência
Técnica a
Empresas
Ensaios
Industriais
Total
Engenharia
Biomédica
-
-
1
-
í
2
3
-
7
Engenharia
Química
9
—
4
-
2
1
4
1
21
Engenharia
Mecânica
-
5
-
3
1
9
9
31
Engenharia
Elétrica
-
1
4
-
2
2
3
4
16
Engenharia
III, _ — J _ m
Metalúrgica
-i
10
4
—
A
39
60
tnyenn,jrta
C.v.l
1
3
3
-
4
3
69
43
126
E ngenhana
da Produção
-
3
6
-
9
12
6
37
Planejamento
Urbano
-
3
2
2
-
7
PIT
—
4
4
1
1
10
Administração
-
-
—
3
2
-
5
Engenharia
Nuclear
7
2
2
11
—
7
3
j
8
5
1
27
Engenharia
Naval
1
2
3
Total
24
18
36
3
40
35
104
98
361
Nota: existe contagem dupla para contratos executados por mais de um programa. O numero total de contratos é de 344. mais 6
administrados pelo Centro de Tecnologia.
Coppetec - Programas concluídos até 1976 e Programas em andamento em 1978.
(percentagens de valores por ano)
Ano
Novas
Tecnologia
Tecnologias de
li Infraestrutura
Tecnologia
Industrial
Desenvolvimento
Regional e Social
Desenvolvimento
de Recursos
Humanos
Assessoria a
Órgãos
Governamentais
Assistência Ensaios
a Empresas Industriais
Total
(100%)
(em mil
cruzeiros!
1970
34.5
1.4
12.4
18.2
21.1
10.5
1.6
853
1971
6.7
4,2
60.6
26.2
2.1
0.2
4.18.6
1972
13.1
51.7
23.0
8.4
3.8
4.357
1973
2.0
5.2
82.6
2.2
5.6
2.3
1 3.982
1974
5.8
1.8
62.2
1.2
4.5
16.4
7.1
1.0
8.949
1975
8.4
16.1
41.1
1.6
27.8
3.8
0.6
16.035
1976
12.9
38.8
46.1
—
0.9
1.2
8.435
1978
10.6
44.7
11.0
23.8
1.7
7.4
0.8
63.056
tecnologia industrial- Ao contrário dos "ensaios", estes tendem a ser projetos de
grande porte. O principal cliente é a Secretaria de Tecnologia Industrial do Minis-
tério da Indústria e Comércio, responsável por 11 dos 1 9 projetos desta linha de
1973 a 1976. Outro cliente importante é o Instituto Nacional de Pesos e Medi-
das. Os temas incluem desde a elaboração de planos diretores para diversas áreas
(para o desenvolvimento da indústria siderúrgica, ou para o estabelecimento de
um programa de desenho industrial) até "recomendações para arranjo interno e
dimensionamento do espaço de carroceria de ônibus" e "implantação de um cen-
tro nacional de desenvolvimento do produto". Outros projetos na mesma rubrica
tendem a ser mais técnicos.
A área de tecnologia de infra-estrutura "se refere, essencialmente, a projetos na
área de transporte e eletricidade, mas principalmente ao estabelecimento de siste-
mas de transporte, modelos de otimização e análise de consequências sociais e
económicas de grandes projetos de infra-estrutura". Ainda aqui, não predomi-
nam projetos de hard technology.
Finalmente, a área potencialmente mais criativa, de desenvolvimento de novas
tecnologias, inclui nove projetos de engenharia química e sete na de engenharia
nuclear; na realidade, os projetos de química são, em alguns casos, de interesse
também da área nuclear. Em 1970, dois desses projetos, um de engenharia nu-
clear, outro de siderurgia, incluíam quase 35% dos recursos da Coppetec; só em
1978, com nove novos projetos, a maioria financiados pela Comissão Nacional de
Energia Nuclear, esta área recobre maior significação no conjunto.
Ainda que sumária, esta análise dos projetos da Coppetec mostra a existência de
um grande número de contratos de tipo educativo, outros de natureza adminis-
trativa, outros de implantação de sistemas, e um número relativamente reduzido
de projetos que implicam pesquisa tecnológica propriamente dita. Existe ainda
uma aparente concentração de recursos em projetos de tipo soft, financiados por
agências governamentais, e um grande número de projetos técnicos demandados
pelo setor empresarial, todos de valor reduzido. O impacto desta combinação de
projetos sobre os diversos programas da Coppe ainda está por ser visto de forma
mais sistemática.
A Coppe e a universidade: flexibilidade e rigidez
No contexto da universidade brasileira, dos anos 60, voltada essencialmente para
a formação de profissionais em nível de graduação, sem tradição de pesquisa,
presa de um sistema rígido e burocratizado de carreiras universitárias com limita-
ções orçamentárias sérias e falta de autonomia financeira de seus diretores, a
Coppe representava uma inovação drástica, que provocaria, certamente, reação.
Coimbra relembra uma das muitas incompreensões iniciais que tiveram que ser
superadas para a criação da Coppe:
" (. . .) Nós gostamos de pensar pelo menos que nossa contribuição foi importan-
te para o estabelecimento da pós-graduação no Brasil; em qualquer área, mesmo
em ciências humanas. Inclusive, porque eu me lembro que quando nós falamos
em mestre pela primeira vez o termo foi combatido porque diziam que ia con-
fundir com mestre-de-obras, entendem? No entanto você vê, hoje está consagra-
do (. . .) pelas estruturas existentes, mesmo na UFRJ. Eu me lembro que havia
229
uma Comissão de Pós-Graduação de todas as áreas na UFRJ e esse termo foi ata-
cado, "mestre", apesar de dizermos; não, mas é mestre em ciências, não vai con-
fundir com mestre-de-obras. Então vamos arranjar outro termo. Mas o termo
vem do Latim, se nós estamos copiando, estamos copiando da raiz da nossa pró-
pria língua ..." (Coimbra, depoimento).
A existência de recursos extra-orçamentários à universidade, provenientes de suas
diversas fontes de financiamento, permitiu que a Coppe, desde antes mesmo de
sua formalização, pudesse implementar uma filosofia de quase que completo afas-
tamento de estrutura burocrática da universidade:
"... Nós tivemos que fundar quase que uma ilha, para nos defendermos do ran-
ço que havia em volta da gente. Pensamos que tínhamos que crescer e subir de-
pressa - como um balão subindo tão depressa que ninguém pode alcançar e que
pedra não atinge — para ficarmos fortes e não sermos atingidos pela ineficiência
da universidade (...) nós tivemos que usar de processos não-ortodoxos para po-
dermos fazer essa coisa toda. Isso, evidentemente, não estava em perfeito acordo
com a burocracia da UFRJ" (Coimbra, depoimento).
Este afastamento da estrutura burocrática da universidade dizia respeito não ape-
nas à possibilidade de complementar os salários de professores que já faziam par-
te do corpo docente da universidade para que se dedicassem à Coppe em tempo
integral mas, mais ainda, à possibilidade de contratação pela própria Coppe de
docentes e pesquisadores considerados relevantes para as linhas de trabalho de-
senvolvidas por seus diversos programas. Dentro disso, é importante ressaltar a
própria criação de uma estrutura de carreira paralela à estrutura da universidade,
em que um professor-assistente nos quadros da universidade podia receber na
Coppe o título e o salário correspondente ao de professor titular em tempo in-
tegral — desde que possuísse a qualificação exigida para este cargo.
"... Existem uma série de particularidades da Coppe. Os professores, por exem-
plo, têm uma titulação diferente da universidade. Ele (Coimbra) fazia a classifi-
cação dos professores titulares, adjuntos, assistentes, que não tinha nada com a
universidade. Saiu no catálogo - Professor titular da Coppe/UFRJ - e realmen-
te na universidade era auxiliar de ensino. Mas ele não ligava para isso, porque o
modo dele ver as coisas era diferente. Era uma forma muito mais dinâmica,
atual. (...) A administração universitária é — até hoje — emperrada. Ele perce-
beu que a Coppe não podia funcionar dentro do esquema universitário. De modo
que a Coppe, não quis se integrar - pelo menos de início - no sentido adminis-
trativo. (Luiz Bevilacqua, depoimento).
"... O espírito de que a Coppe era uma vanguarda, um fator de modernização
dentro da universidade. Que era necessário o tempo integral com salário bom, pa-
ra que a universidade deixasse de estar nas mãos dos professores de tempo parcial
- bem sucedidos nas suas profissões, mas de fora e que viam na universidade um
clube, onde quando podiam passavam lá - que ganhavam pouco e também se de-
dicavam pouco. Independentemente da competência profissional. E nós tínha-
mos a visão de que a pessoa tinha que se dedicar em tempo integral à universida-
de e para isso teriam que ter salários adequados. E isso nos movia a ampliar o
modelo Coppe, na engenharia, na física, na matemática e de fato a Coppe fez
isso ..." (Luiz Pinguelli Rosa, depoimento).
230
Mais ainda, a disponibilidade destas verbas permitia a implantação de uma infra-
estrutura administrativa dinâmica e agilizada que apoiava e não interferia nos tra-
balhos académicos desenvolvidos por seus pesquisadores, permitindo rapidez e
eficiência tanto no que se referia a compras de equipamentos quanto a viagens de
professores ao exterior ou a convites a professores estrangeiros para que visitas-
sem ou trabalhassem na instituição.
Esta diferenciação burocrática e administrativa entre a Coppe e a universidade
não significava, no entanto, afastamento. Ao contrário, havia uma tendência deli-
berada de fazer com que a presença da Coppe influenciasse o restante do sistema
universitário, tanto no nível dos cursos de graduação quanto em relação à criação
e fortalecimento de outros programas avançados independentes.
Os pesquisadores da instituição assinalam, por exemplo, a ênfase dada pela Coor-
denação da Coppe na participação de seus docentes - quer fizessem ou não parte
do corpo docente da URFJ - nos cursos de graduação. A interação entre os dois
sistemas — Graduação e Pós-Graduação em Engenharia — era considerada como
extremamente benéfica na medida em que, por um lado, proporcionava aos estu-
dantes da graduação um contato intenso com professores não apenas qualifica-
dos formalmente e com conhecimentos adquiridos em centros de pesquisa avan-
çados no exterior, mas também - e principalmente - com professores que fica-
vam na universidade em tempo integral, podendo, portanto, dar aos alunos uma
assistência que extrapolava os períodos de aula. Mais ainda, este contato era con-
siderado importante e era estimulado na medida em que permitia criar nos alu-
nos ainda na graduação, um maior interesse pelas atividades académicas, servindo,
consequentemente, como base estratégica para recrutamento de parte do corpo
discente da Coppe. Por parte dos professores da Coppe, além disto, esta partici-
pação era considerada extremamente produtiva na medida em que permitia um
maior contato com a realidade universitária brasileira - contato este que sempre
corre o risco de ser perdido caso os professores se mantenham apenas dentro do
sistema de pós-graduação que, por sua própria natureza, implica numa seleção
qualitativa mais rigorosa de seus alunos.
Além disso, a Coppe teve papel de destaque como suporte à criação de outros
cursos de pós-graduação dentro do Centro de Tecnologia da UFRJ — do qual a
Coppe posteriormente veio a fazer parte. 0 Curso de Pós-Graduação em Física
do Instituto de Física é um exemplo deste apoio que a Coppe procurou dar à
irradiação da pós-graduação para outras unidades da universidade.
"... Porque na época não havia pós-graduação na física. Aliás o Coimbra apoia-
va - mesmo como professores da Coppe, pagos como tempo integral por lá, vis-
to que não havia tempo integral na universidade - que nós viéssemos do institu-
to de Física e nós demos muito apoio às tentativas na física. Inclusive a tentati-
va de criação da pós-graduação, logo no início, com o Leite Lopes e o Sussekind".
"A física foi esboçada na Coppe mas não foi tão diretamente pelo Coimbra. Nós
fomos essenciais, sem nenhuma modéstia, para o Instituto de Física naquela épo-
ca de esvaziamento do instituto, precursora da atual fase. Quando foi embora o
Leite Lopes, ficou apenas a professora Anita que era assistente, diretora-adjunta
do Leite, com toda a responsabilidade, e nós quatro. Então, o caso do Instituto
de Física é mais ligado a pessoas do que a Coppe, propriamente. No entanto, ha-
via a intenção explícita da Coppe, de propagar o seu modelo pela universidade.
231
Nós ficamos no I nstituto de F ísica com o apoio do Coimbra e até hoje, como che-
fe de Departamento, tenho meu salário quase que totalmente pago pela Coppe".
(Luiz Pinguelli Rosa, depoimento).
Da mesma forma, o Programa de Engenharia Matemática, que havia sido inicial-
mente implantado na Coppe, foi, posteriormente, transferido para o Instituto
de Matemática da UFRJ.
Um outro tipo de interação Coppe/UFRJ foi o repasse da primeira para a segun-
da, de determinados serviços de infra-estrutura como, por exemplo, o Núcleo de
Computação Eletrônica e a biblioteca. Como assinala um documento elaborado
por professores da Coppe em janeiro de 1975:
". . . Vale a pena salientar realizações importantes, muitas das quais transcende-
ram o âmbito da Coppe e vieram beneficiar não só a UFRJ como diversos outros
setores da vida universitária e empresarial do pais;
(...) a criação de um Programa de Engenharia Matemática na Coppe, sua implan-
tação em termos de corpo docente altamente qualificado, e a sua transferência
total para o Instituto de Matemática da UFRJ, onde se tornou um núcleo da pós-
graduação que, apoiado pela Finep, é considerado centro de excelência pelo
CNPq, contando atualmente com 22 doutores, 44 mestres e já tendo graduado
12 mestres e um doutor;
— a criação de um Departamento de Cálculo Científico na Coppe, a aquisição de
um computador IBM 1130 e outro IBM 360, mod. 40, a formação de pessoal
qualificado e respectivo treinamento no exterior, por iniciativa da Coppe e, pos-
teriormente, a transferência de todo esse acervo para o Núcleo de Computação
Eletrônica da UFRJ".
Mais ainda, a biblioteca instalada pela Coppe, com cerca de 20.000 livros e 1 .500
títulos de periódicos e publicações seriadas foi toda transferida - juntamente
com o pessoal especialmente treinado para sua supervisão - para o Centro de
Tecnologia da UFRJ.
O interrelacionamento entre a Coppe e a universidade se manifestava, ainda, pe-
lo apoio que ela recebeu da reitoria em seus momentos mais cruciais, tanto na
pessoa de Pedro Calmon quanto na de Muniz de Aragão. A Coppe contou ainda
em sua época de maior expansão, com o apoio do próprio diretor da Escola de
Engenharia, Afonso Henriques de Brito. No entanto, não há dúvida que foi na
Escola Nacional de Engenharia que se localizava a maior resistência ao novo pro-
grama. O diferencial de salários entre os professores da Coppe e os professores da
Escola de Engenharia era bastante alto, gerando, as vezes, grandes doses de ressen-
timento, para o qual certamente contribuía o fato de que os professores da Coppe
— se comparados aos da Escola de Engenharia — eram razoavelmente mais jovens
e, muitas vezes, melhor qualificados, o que implicava numa ameaça potencial
muito grande aos professores titulares mais antigos.
O crescimento acelerado da Coppe de 1963 a 1972 - o potencial de inovação
que a Coppe representou para a universidade durante aquele período - exigência
de tempo integral do corpo docente, estímulo à qualificação nos moldes da co-
munidade científica internacional, uma remuneração considerada adequada e
que permitia a fixação do professor na universidade, o incentivo ao contato com
232
a comunidade científica internacional — tudo isto aliado à autonomia adminis-
trativa de que a Coppe desfrutava então, estes três grandes fatores em conjunto,
parecem ter dado margem à crise que se desenrola na instituição a partir de 1973.
CRISE E CONSOLIDAÇÃO
A saída de Coimbra
Em 1973 uma crise rumorosa leva ao afastamento de Coimbra da direção da
Coppe. O estopim são acusações de uso irregular de fundos. O inquérito realiza-
do a este respeito termina arquivado, sem formação de culpa. Não há dúvida que
a administração financeira da Coppe não obedecia aos cânones administrativos
usuais; não há dúvida, tampouco, quanto à idoneidade pessoal e dedicação de
Coimbra à sua instituição. Na realidade, as irregularidades formais que porven-
tura existiram foram, acima de tudo, um pretexto para limitar a autonomia e in-
dependência do programa.
A campanha contra a Coppe, feita inclusive através da Imprensa, e o subsequen-
te afastamento de Coimbra, traz ao programa perplexidade e incertezas. De acor-
do com a lembrança de vários professores, houve, durante o período de andamen-
to do processo, uma espantosa baixa na produtividade da maior parte de seus
membros. Conforme muitos deles ressaltam, não havia o clima necessário para
que todos pudessem se dedicar a suas atividades de pesquisa. As "conversas de
corredor" eram muitas e constantes e não se tinha nenhuma certeza acerca dos
rumos que a instituição tomaria a partir de então. A decisão de Coimbra de se
afastar da universidade traz consigo também o afastamento de outros professo-
res que com ele haviam dado início às atividades da instituição, implicando con-
sequentemente na interrupção de algumas linhas de pesquisa, num certo esface-
lamento da organização académica existente até então e também na dúvida, por
parte dos que decidiram lá permanecer, de até que ponto se conseguiriam man-
ter os propósitos e objetivos que determinaram o surgimento da Coppe.
A saída de Coimbra não significou apenas a perda de um de seus membros mais
centrais, de alguém que, de uma certa forma, parecia estar sempre por perto a
cuidar dos interesses dos pesquisadores e da instituição. Na realidade, à época
em que se desenrola a crise acima, a Coppe já parecia ser uma instituição sufi-
cientemente autónoma e com alto grau de credibilidade académica que lhe ga-
rantia a obtenção de recursos de agentes financiadores de uma maneira até certo
ponto independente de esforços puramente individuais.
As circunstâncias, porém, em que esta crise se desenvolveu — e o tipo de acusa-
ções que a desencadearam - pareciam, na realidade, colocar em questão a pró-
pria integridade moral da instituição como um todo e, assim, pareciam indicar
a necessidade de que se provasse não apenas a má fé de tais acusações - e os mó-
veis daqueles que as tinham feito - mas também a capacidade de seus membros
de levarem adiante os objetivos aos quais a instituição havia se proposto.
A julgar pelos depoimentos, o eixo central da questão estava, na realidade, no
âmbito das relações que a Coppe havia estabelecido com a UFRJ e tanto os acon-
tecimentos de 1973 quanto acontecimentos posteriores acabaram por permitir
233
uma intervenção da UFRJ na Coppe, que mudou substancialmente a qualidade
daquelas relações.
O período que se segue imediatamente à saída de Coimbra é tido por muitos dos
entrevistados como um momento de conciliação e transição. Nomeado um inter-
ventor para a Coppe, o professor Sydney Santos - desde há muito exercendo na
Coppe atividades em tempo parcial, combinadas a encargos na Escola de Enge-
nharia, da qual era professor — parece ter conseguido estabelecer uma ordem ra-
zoável no caos que então reinava. A sua atitude de também afastar do corpo do-
cente da Coppe aqueles professores que haviam dado início ao processo contra
Coimbra foi bem recebida por parte do restante do corpo docente da instituição
e lhe garantiu o respaldo necessário para que fosse possível levar adiante a tarefa
de devolver à Coppe a credibilidade que muitos julgavam ameaçada.
1976: crise e perda de autonomia
A nomeação de um professor relativamente afastado da Coppe como seu inter-
ventor foi entendida como uma anomalia a ser superada quando, em cumprimen-
to de seu regimento interno, o Conselho Deliberativo da Coppe indicou em 1975
uma lista tríplice de professores para a escolha de seu novo diretor. Destes, foi
escolhido pelo reitor da universidade o professor Luís Bevilacqua, do Programa
de Engenharia Mecânica que, entretanto, teve sua posse adiada sucessivamente
até sua renúncia ao posto que não chegou a assumir. Em seu lugar é nomeado o
professor Sergio Neves Monteiro, do Programa de Engenharia Metalúrgica e Ma-
teriais. Pesquisador de reputação bem estabelecida, alheio até então à política
institucional da universidade, sua nomeação é uma solução de compromisso que
coincide com a reforma do regimento da Coppe.
Onovo Regimento da Coppe, aprovado pelo Conselho Universitário em 26/08/76,
não contou para sua elaboração — ao contrário do Regimento de 1971, por exem-
plo — com a participação de membros de seu corpo docente sendo, por isto mes-
mo, considerado por alguns como um regimento autoritário, imposto de cima pa-
ra baixo:
"... Houve depois uma modificação imposta pela Reitoria do Conselho Delibe-
rativo, que era o único órgão deste tipo da universidade, pois nos outros núcleos
e institutos — que são os órgãos suplementares — não havia um Conselho Delibera-
tivo composto da totalidade dos docentes. As autoridades superiores das univer-
sidades acharam que isso era uma aberração. Para enquadrar no padrão da universi-
dade, resolveram, de cima para baixo, acabar com o Conselho Deliberativo, e o
Corpo Docente teve que aceitar por razões disciplinares. (. . .) Na elaboração do
Regimento de 1976, não houve a participação de nenhum membro da Coppe. , ."
(Carlos Augusto Perlingeiro, depoimento).
Uma das modificações substanciais introduzidas por este regimento é a que cons-
titui o seu Art. 29, que transfere aos órgãos competentes da universidade o julga-
mento das propostas de admissão de docentes pela Coppe encaminhadas pelo di-
retor da Coppe a partir de consulta ao Conselho de Coordenadores 16 . O Regi-
16 O Regimento de 1976 consta do Catálogo da Coppe de 1977
234
mento de 1971, em contraste, estabelecia que "os docentes da Coppe terão sua
admissão proposta por iniciativa das coordenações de programas e mediante apro-
vação do Conselho de Coordenadores" 1 7 .
Em termos objetivos, isto significava uma modificação mais ampla no próprio
critério de classificação do corpo docente da Coppe. Pelo Regimento de 1971 , os
professores contratados a nível de professor titular deveriam "ter sido anterior-
mente nomeados professores titulares na carreira de magistério, ou contratados
em nível equivalente por alguma unidade de universidade, ou então ter sua con-
tratação aprovada pelo Conselho Deliberativo da Coppe com maioria de dois ter-
ços dos membros presentes, por proposta do Conselho de Coordenadores"; fica-
va a critério apenas do Conselho de Coordenadores da Coppe a classificação de
professores nos cargos de professor assistente ou professor adjunto. Com o Regi-
mento de 1976 modifica-se toda esta estrutura de contratações, cabendo sempre
à universidade, em última instância, classificar os docentes de qualquer nível, cu-
jas propostas de contratação deveriam ser sempre a ela encaminhadas.
Um segundo ponto em que os dois Regimentos diferem substancialmente é o que
se refere à forma de nomeação do diretor da Coppe. 0 Art. 1 3 do Regimento de
1971 reza que "0 Diretor da Coppe será nomeado pelo Reitor, mediante indica-
ção do Decano do Centro de Tecnolocia homologada pelo Conselho de Coorde-
nação deste Centro", indicando o parágrafo único deste artigo que "O Conselho
Deliberativo da COPPE, por solicitação do Decano, submeterá à sua apreciação
uma lista tríplice constituída de membros do Corpo Docente da Coppe, em re-
gime de tempo integral, da qual será indicado o Diretor". Já o Regimento de
1976, entretanto, assinala apenas em seu Art. 23 que "Ao Diretor designado pelo
Reitor, por prazo não superior a quatro (4) anos, compete: (. . .)".
Finalmente, no que se refere a modificações no estatuto, não decorrentes de mo-
dificações mais gerais de leis ou do Estatuto e Regimento Geral da UFRJ e a ca-
sos omissos no Regimento, diz o Regimento de 1971 : "Art. 42 — Qualquer mo-
dificação deste Regimento deverá ser proposta aos órgãos superiores da Universi-
dade, após aprovação pelo Conselho Deliberativo da COPPE. Art. 44 - Os casos
omissos neste Regimento serão resolvidos, no que for de sua competência, pelo
Conselho Deliberativo da COPPE e nos demais casos, pelo Conselho de Coorde-
nação do Centro de Tecnologia, pelo Conselho de Pesquisa e Ensino para Gradua-
dos ou pelo Conselho Universitário". Já o Regimento de 1976, embora aceite
modificações do Regimento, "por decisão do Conselho Universitário, mediante
proposta do Diretor ou de dois terços (2/3) dos membros do Conselho de Coor-
denação", diz em seu Art. 39 que "os casos omissos neste Regimento serão resol-
vidos pelo Conselho de Coordenação do Centro de Tecnologia, pelo Conselho
de Pesquisa e Ensino para Graduados ou pelo Conselho Universitário no que for
da competência destes Conselhos".
Há, assim, uma perda considerável no poder de que até então dispunha o corpo
docente, da Coppe, através de seus órgãos específicos, para decidir questões tão
cruciais quanto a nomeação de seus diretores e a resolução de questões não pre-
vistas regimentalmente.
O Regimento de 1971 consta do Catálogo da Coppe de 1972.
235
As alterações de 1976 se dão em seguida a um clima de intensa crise e mobiliza-
ção estudantil em 1975. Nesse ano, os estudantes iniciam uma greve pelo aumen-
to do valor de suas bolsas de estudo, consideradas excessivamente baixas. Não
há nenhuma indicação que aquele ano tenha sido particularmente pior do que
outros, e por isto a questão do valor das bolsas, por si mesma, não é suficiente
para explicar o movimento. Mais ou menos ao mesmo tempo, mas de forma in-
dependente, surge uma crise no Programa de Planejamento Urbano e Regional,
que termina com a demissão sumária de vários de seus professores e com a pa-
ralisação do curso.
O Programa de Planejamento Urbano e Regional (PUR) foi a tentativa mais ex-
trema feita pela Coppe de sair de sua área de especialidade, em engenharia, para
cobrir outros campos de atividade. Ele foi criado em 1971 através de um convé-
nio com o Ministério do Interior, e tinha como base um contrato de cooperação
com o Serviço Federal de Habitação e Urbanismo (Serfhau), do Ministério do In-
terior. A colaboração com o Serfhau, e mais tarde com o Conselho Nacional de
Planejamento Urbano (CNPU) garantiam ao PUR uma base financeira adequada.
Isto, entretanto, não se mostrou suficiente.
Uma questão básica passível de ser suscitada pela criação deste programa dentro
do âmbito da Coppe é certamente a do lugar que um curso multidisciplinar — e
que envolvia necessariamente, a participação ativa de profissionais de outras
áreas, principalmente de ciências humanas - poderia ocupar naquela instituição.
Tratava-se de saber, na realidade, até que ponto esta orientação multidisciplinar
não levaria a médio ou longo prazo a um conflito acerca da ênfase quanto aos
rumos que o curso deveria tomar: se um caminho mais técnico, voltado realmen-
te para os objetivos iniciais a que se havia proposto ou se um caminho que envol-
vesse também uma discussão mais política e sociológica acerca da problemática
das cidades e do planejamento urbano.
Quando de sua instituição, a proposta central era de que ficaria aos cuidados de
um corpo docente estruturado e fixado na própria Coppe o trabalho com os as-
pectos técnicos e de planejamento económico propriamente dito do curso — daí
a sua inserção como área no Programa de Engenharia de Produção que oferecia a
possibilidade do desenvolvimento de linhas de trabalho neste sentido - enquanto
que as outras disciplinas mais relacionadas às áreas de ciências humanas seriam
oferecidas dentro da própria Coppe, porém através de professores conferencistas.
"... O PUR é um pouco diferente. Nasceu de uma idéia nossa em contato com o
Serfhau, de que havia lugar para um programa de planejamento urbano de cunho
quantitativo, voltado para a engenharia de planejamento. Tanto que, toda vez
que nós ingressávamos em áreas limítrofes da engenharia, em que tanto pode ser
considerada engenharia quanto economia, ou qualquer outra chamada de apoio à
engenharia, nós tínhamos o cuidado de fazer isso, procurando dar um cunho de
engenharia. Pois nos interessava desenvolver planejamento urbano com o uso de
métodos matemáticos e sob o ponto de vista de engenharia de planejamento. En-
quanto que as áreas de sociologia urbana, economia, história que eram necessá-
rias ao curso de planejamento urbano, seriam dadas por conferencistas vindos de
outras áreas da universidade. Não seriam professores da Coppe. Os professores da
Coppe seriam os de caráter matemático. Estes seriam considerados docentes da
236
Coppe no PUR. os outros seriam chamados conferencistas, . ." (Alberto Luiz
Coimbra, depoimento).
O desenrolar das atividades da área, entretanto, acabou a curto prazo por envol-
ver no programa como membros em tempo integral do corpo docente da Coppe,
vários profissionais destas outras áreas. Na verdade, embora muitos depoimentos
enfatizem a importância de tal multidisciplinariedade no caso do planejamento
urbano, pode-se questionar até que ponto o desenvolvimento no âmbito de uma
instituição como a Coppe - mais voltada para a engenharia - de uma cultura
profissional diferente - como a da área de ciências humanas - não terá levado a
conflitos quanto à orientação do curso.
Não caberia entrar aqui nos detalhes da crise do Programa de Planejamento Ur-
bano. Vale apenas lembrar que ela ocorre em um setor em certo sentido marginal
à Coppe, que ainda não havia se consolidado de forma clara, e em um momento
em que o programa se vê ameaçado por pressões estudantis, que traziam para
muitos a ameaça de intervenções externas de efeitos potencialmente desastrosos.
Nestas condições as decisões da Reitoria são drásticas e de tipo disciplinar: a de-
missão da maioria dos professores do programa, levando à sua paralização, sem
entrar no mérito das questões que suscitaram a crise em seu início. Para muitos,
o sentido exemplar das demissões do PUR, no contexto da perda progressiva de
autonomia por que passava a Coppe, não deixou de ser notado.
As novas bases de consolidação
A crise do relacionamento entre a Coppe e a universidade não termina em confli-
to, mas em conciliação. Em 1977, o coordenador da Coppe, professor Sergio Ne-
ves Monteiro, é nomeado sub-reitor para Graduados e Pesquisas da Universidade;
e o professor Carlos Alberto N. Cosenza, também do corpo docente da Coppe, é
decano do Centro de Tecnologia. Esta integração funcional corresponde, por sua
vez, a uma intenção conciliatória pessoal:
"... De uma forma geral, o que eu tentei foi fazer uma reintegração da Coppe,
acho que consegui. Não só por mim, mas principalmente pelo esforço do Conse-
lho de Coordenação da Coppe, do vice-diretor que era o Paulo Lemos e do sub-
diretor académico que era o Massarani. Fizemos, também uma reaproximação
com a universidade. E que foi muito bem sucedida. (. . .) Com essa abertura hou-
ve maior compreensão de ambas as partes e hoje a Coppe é uma das unidades
mais alinhadas com a Administração da universidade. 0 fato de eu estar nesta po-
sição de sub-reitor é um demonstrativo disso. . ." (Sérgio Neves, depoimento) 18 .
Além disso, a presença na Coppe de muitos dos professores que a iniciaram reve-
la a sua disposição de continuar o trabalho que vem sendo empreendido desde
1963.
". . . A universidade agora tem mais possibilidades de intervir na Coppe. De fazer
Sergio Neves Monteiro é engenheiro civil pela Escola de Engenharia da Universidade Fe-
deral do Rio de Janeiro 11966). com curso de especialização em metalurgia na Coppe.
mestrado (1968) e doutorado 11972) na Universidade da Flórida.
237
a Coppe funcionar nos moldes dela. Mas não tem ninguém que esteja querendo
isso. Principalmente este novo reitor, o professor Caldas, quer que a Coppe conti-
nue funcionando, como funcionou até hoje. 0 que eles não querem é que ela te-
nha uma atitude muito independente da universidade. Ela tem que estar mais li-
gada à universidade, não administrativamente, mas não pode ter a iniciativa de
contratação de professores de titulação. . ." (Luiz Bevilacqua, depoimento).
Trata-se, aparentemente, de um final feliz. Terminada a etapa empresarial, em
que a informalidade e a liderança personalizada foram essenciais para a criação
de uma instituição, surge a fase gerencial, em que os procedimentos burocrati-
camente estabelecidos e as responsabilidades formalmente atribuídas e delimita-
das se impõem. Nesta passagem, os antigos líderes são muitas vezes marginaliza-
dos, em um processo doloroso mas, afinal, inevitável.
No entanto, haveria que adotar esta conclusão com certo cuidado. Não há dúvi-
da que, agora, a Coppe está mais institucionalizada e estabelecida do que o foi
em seus primeiros 15 anos; ela parece haver chegado, também, a seu limite de
crescimento. O que aconteceu, no entanto, com os objetivos e ideais que leva-
ram à sua criação?
Foi marcante na Coppe desde seu início, a presença de uma preocupação em
atrelar a implantação de um sistema de pós-graduação em Engenharia às necessi-
dades de um país em processo acelerado de desenvolvimento económico, que
pressupunha um nível de autonomia tecnológica considerado como condição im-
prescindível para a continuidade daquele processo. Tal preocupação está presen-
te não apenas nas justificativas para a criação do Programa de Engenharia Quími-
ca mas de todos os outros programas que compõem a Coppe e é parte integrante
dos objetivos e da filosofia que norteiam a Coppe como um todo até o momen-
to atual:
"Preocupamo-nos com a formação de mestres e doutores, que partem para todos
os estados, para inúmeras universidades, indústrias, companhias e órgãos públi-
cos, levando como bagagem, além de uma formação solidificada em ciência bási-
ca e em prática experimental, também prática profissional de alto nível. Espera-
mos da pós-graduação elemento humano para a pesquisa, para o magistério e pa-
ra a profissão nos graus mais exigentes. Concentramos esforços em forjar líderes
dinâmicos e conscientes da importância e peso de sua ação, em prol não apenas
do rápido desenvolvimento nacional, mas também de um mundo melhor" 19 .
"... A Coppe foi criada para graduar no Brasil um tipo de profissional em enge-
nharia inexistente na época, que era o pessoal em nível de mestrado e doutorado.
Nós tínhamos a idéia de que faltava esse elemento para compor o quadro profis-
sional, necessário ao desenvolvimento tecnológico do país. Tinha pessoal de ní-
vel médio, tinha engenheiro e faltava pessoal de pós-graduação para compor a
equipe de criação de tecnologia. E nós achávamos que formando esses mestres
e doutores, estaríamos colaborando com um dos requisitos necessários ao de-
senvolvimento tecnológico do país. . ." (Alberto Luiz Coimbra, depoimento).
19 Coppe, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Catálogo de 1977
238
É exatamente tal preocupação que parecia ir de encontro às considerações que
em 1964 norteavam a política do BNDE dando margem à criação do Funtec -
cuja contribuição foi decisiva para a implantação da Coppe. Tais considerações
apontam para as tentativas de remover pontos de estrangulamento considerados
como responsáveis pelo desequilíbrio estrutural da economia brasileira. Dentre
estes, são mencionados não apenas a escassez de técnicos de nível médio e supe-
rior e a deficiência no setor de pesquisa técnico-científica, mas também uma de-
fasagem entre os investimentos nos setores básicos da economia e os investimen-
tos no setor educacional; supõe-se, igualmente, a existência de um condiciona-
mento cada vez maior da expansão do setor industrial à qualificação da força de
trabalho, ao fortalecimento das bases científicas e tecnológicas do país, e ao pre-
ço pago pela tecnologia importada, know-how, assistência técnica e aluguel de
marcas e/ou patentes. O Funtec se propunha a investir maciçamente no apoio
à pós-graduação então incipiente no país, ao mesmo tempo em que instrumenta-
va "de forma ampla suas modalidades de apoio à utilização da tecnologia pela
empresa brasileira". E mais ainda, reconhecendo que para "resistir à competição
de subsidiárias de empresas estrangeiras que acorrem ao país, a empresa brasileira
precisa estar amparada não só financeira como tecnologicamente", objetivava
exatamente a eliminar aquilo que considerava como a "fragilidade tecnológica da
indústria nacional" 20 .
Na perspectiva de hoje no entanto, muito destes objetivos parecem inalcançados.
A tónica geral dos que participaram deste processo é a percepção de um grande
descompasso entre o que se propunha como contribuição da Coppe à política de
desenvolvimento do país e os rumos que tal política efeti vãmente tomou: a ênfa-
se na importação de tecnologia e de know-how em detrimento da valorização dos
recursos humanos disponíveis no país para a criação de uma tecnologia nacional e
a preponderância do apoio à instalação de empresas estrangeiras - que, por sua
própria natureza, não demandariam recursos humanos formados para a pesquisa
no próprio país, uma vez que a tecnologia por elas utilizada já estava desenvolvi-
da em seus países de origem.
". . .Apesar de eu achar que talvez quem tivesse razão era o Otávio Catanhede.
Porque nós montamos a pós-graduação pensando num Brasil que não existia e
que não existe. Que não respondeu àquilo que nós pensávamos que fosse acon-
tecer. Porque nós estávamos lançando no mercado um produto mais ou menos
sofisticado que exigia um desenvolvimento tecnológico para o país. Nós imagi-
návamos que cumprindo a nossa parte de formar mestres e doutores em engenha-
ria, isto é, pessoal criativo, que esse tipo de profissional fosse ser absorvido por
um país que realmente quisesse se desenvolver com criação interna de tecnologia.
Mas isso não aconteceu até hoje. E se isso continuar - e é o que tudo indica - eu
me arrependo de ter ganho do Catanhede. Porque realmente o que o Brasil preci-
sa, não é nem de engenheiros de cinco anos, quanto mais de mestres e doutores.
É de engenheiros de operação mesmo. Porque nós vamos ficar operando fábricas
importadas o resto da vida ..." (Alberto Luiz Coimbra, depoimento).
"... Tenho quase a certeza de que o modelo da Coppe está cheio de defeitos, no
As referências do BNDE. Funtec - 10 Anos de Apoio á Pesquisa, Rio, BNDE, 1964
239
sentido que ele se distancia da realidade brasileira e sofistica demais as coisas, em
relação à prática que as atividades produtivas no Brasil permitem aplicar, em al-
guns campos. (. . .) As indústrias eram totalmente refratárias a qualquer partici-
pação desse tipo e não têm necessidade dessa participação agora e muito menos
na época, tanto que todo o nosso desenvolvimento industrial foi baseado na im-
portação de tecnologia, nas empresas multinacionais, ou empresas nacionais que
compram patente ..." (Luiz Pinguelli Rosa, depoimento).
Esta percepção pessimista poderia ser atribuída, eventualmente, à óticadosque
estiveram mais envolvidos com a fase heróica e áurea da Coppe do que com seu
período mais recente de consolidação. O exame dos dados a respeito das matrí-
culas e do destino dos ex-alunos do programa, no entanto, pode dar uma visão
mais realista dos fatos.
O aspecto mais evidente indicado por este quadro é a produtividade académica
relativamente baixa da Coppe. O número irrisório de 25 doutores em 15 anos
mostra que, na prática, os programas de doutorado quase não funcionaram. Em
relação ao mestrado, menos do que 20% dos alunos terminam suas teses, e mais
de 50% abandonam o curso, a maioria sem sequer completar seus créditos. Na
realidade, a grande maioria dos programas de pós-graduação no Brasil apresentam
taxas similares de deserção e de aprovação de teses. Isto significa que a Coppe
não é, aparentemente, excepcional neste aspecto. Mas não resta dúvida de que
há algo problemático em um programa de ensino que só consegue titular vinte
por cento de seus alunos.
Deixando de lado os programas mais recentes, parece ser claro que o maior nú-
mero de deserções, e o menor número de teses concluídas, se dá exatamente nos
programas de maior demanda — engenharia civil, da produção, elétrica, todos
com mais de 60% de evasão. Estes dados parecem indicar que a grande maioria
dos alunos destes cursos buscam preparar-se um pouco melhor, e alongar um
pouco sua vida de estudante (se possível com uma bolsa de estudos), até conse-
guirem um emprego satisfatório, quando então o curso de pós-graduação perde o
sentido para eles. Seria possível interpretar o que está ocorrendo não como fra-
casso, mas como prova de sucesso dos cursos: a demanda do mercado de trabalho
sobre seus alunos seria de tal intensidade que impediria que eles completassem
seus programas de estudo. Isto significaria, pelo menos, que existe confiança do
mercado em relação ao processo de seleção dos alunos da Coppe.
De qualquer forma, é claro que o nível almejado pela direção dos programas não
é de interesse nem dos alunos, que não completam seus cursos, nem das empre-
sas, que os contratam. A aceitação deste fato com todas as suas implicações leva-
ria a transformar a Coppe em um programa muito mais modesto em suas ambi-
ções, quer desistindo dos níveis de formação de pós-graduação que presidiram
sua criação, quer reduzindo drasticamente seu corpo discente aos 20% que tém
condições efetivas de concluírem os programas de estudo - ou, talvez, se subdi-
vidindo em duas linhas distintas, uma de especialização profissional, outra aca-
démica.
Não existem dados disponíveis sobre o destino profissional dos alunos que aban-
donam o curso. Existem informações, no entanto, sobre a minoria, os que termi-
nam sua tese de mestrado. Destes, cerca de 40% se dedicam ao magistério, e
240
Coppe, Teses de Doutorado e movimento de alunos de Mestrado, 1965 - 1978.
Area Doutorado Mestrado Desligados sem tese
— . . — —
N?de teses Teses concluídas Matriculados com créditos sem créditos Reprovados Total de
concluídas até 1977 em 1978 concluídos concluídos Blunosde
N9
%
N9
%
mestrado
Química (1963)
4
124
28.3
83
19,1
36
103
91
437
Mecânica II 966)
3
66
25,0
68
25,8
46
48
36
264
Elétnca (1966)
1
86
12.3
187
26,7
103
219
104
Metalúrgica"(1966)
2
59
16.0
98
26,7
51
106
54
368
Civil (1967)
6
139
14,3
189
20,1
201
261
156
942
Produção (19671
3
140
16.3
131
15.2
147
221
219
858
Naval (1967)
25
25,7
30
31,0
11
19
12
97
Nuclear (1968)
87
26,4
96
29,2
41
70
35
329
Sistemas (1971)
6
109
16,5
227
34,4
44
214
66
660
Biomédica (1971)
21
17,5
59
49,2
12
17
11
120
Administração (1975)
—
12
7,5
125
78.2
10
13
160
PUR-PIT (1975)
44
14,5
250
82.2
7
3
304
Total
25
908
17,3
1.543
29,5
692
1.295
800
5.238
52
Coppe, destino dos alunos que terminaram soas teses de mestrado até 1977.
Are»
Magittéric
. PÔ.Gredueçeo
(Doutorado)
Organizações
e Empresas
Públicas
Empresas í
Privada.
lutônomos
Sem
Mormaço
Total
Biomédica
ti
14
1
1
1
1
21
dA
U4
20
25
18
7
124
Mecânica
£o
10
4
19
8
66
P iáâ n.-j»
C i cl r i c a
22
19
2b
b
15
86
Metalúrgica
26
8
14
ii
Q
«
ca
o»
ClV.1
77
23
9
20
6
135
Produçio
41
27
64
,4
1
37
184
Administração
2
3
7
1
12
Naval
17
6
3
25
Nuclear
24
25
16
17
5
87
Sistemas
36
27
24
14
8
109
Total Geral
338
170
189
119
2
90
aproximadamente 20% prosseguem seus estudos em busca de um doutorado, no
pais ou no exterior. Fora o setor universitário, o maior empregador são empre-
sas públicas e, em proporção bem menor, as empresas privadas.
Em linhas gerais, estes dados confirmam que um dos principais objetivos da
Coppe está sendo cumprido, ou seja, formar pessoas que tenham condições de
prosseguir seus estudos e multiplicar seus conhecimentos. É significativo, no en-
tanto, que, dos 60% que permanecem na área académica, cerca de 2/3 se dedi-
quem ao magistério sem precisar ir além do mestrado. Com toda a probabilida-
de, isto significa que eles realizam um trabalho de professores de cursos de gra-
duação, sem possibilidades de levarem a frente uma carreira de estudos e pesqui-
sas. A predominância das empresas públicas sobre as empresas privadas revela,
finalmente, o fato já conhecido da pouca demanda do setor empresarial brasi-
leiro por pessoal de qualificação mais alta.
Em síntese, a Coppe parece ser hoje, predominantemente, um curso de especia-
lização de boa qualidade em engenharia, com ênfase nas áreas mais tradicionais
e operacionais: a engenharia civil, a engenharia da produção, a engenharia de sis-
temas e a engenharia elétrica. Seus propósitos iniciais, de constituição de uma
engenharia verdadeiramente nacional, a partir da formação de especialistas de
nível comparável ao dos principais centros de engenharia avançada do mundo,
deixaram de se cumprir. A idéia de pesquisa, o trabalho académico consubstan-
ciado na elaboração de teses, o recrumento dinâmico de professores que pudesse
garantir sempre a presença de cientistas e técnicos os mais avançados, o intercâm-
bio intenso com o exterior, todas estas noções, que constituem ainda hoje o que
muitos denominam "o espírito da Coppe", são mais um modelo ideal do que
uma realidade efetiva, que é dada, principalmente, pela evasão de 80% de seu
alunado,
Como curso de especialização de bom nível, mas tradicional, deixam de existir as
242
razões que em algum momento colocaram a Coppe em conflito com a umversida-
de. As novas bases de consolidação, no entanto, deveriam ser causa não de alívio
e tranquilidade, mas de preocupação, levando a uma reflexão mais profunda so-
bre as necessidades e as condições reais do ensino profissional, da pesquisa tecno-
lógica e do trabalho científico em nossas universidades.
243