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Full text of "A afronta a António Nobre"

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5^ 


t  «PRONTA  A  ANTÓNIO  NOBRÍ 


1 


E'  prazer  irresistível  do  constructor, 
derruir  para  fazer  melhor. 


o    Editor 


CÊiSAF?    de:   f-rias 


a  afronta 
a  aniúniq 
nobre::: 


Saibam  quantos.  • . 

I  — O   Poeta  do   «SÓ» 

II  —  Quem  é  o  sr.  Albino  Forjaz  de  Sampaio 

III  — O  seu  '«António  Nobre», 

obra  irreverente  e  mercantil 


LIVRARIA  CENTRAL,  EDITORA 

14-A,    Avenida    Almirante    Beis,    1  4-G 

LISBOA 


SaiMm  quantos. . 


Saibam  quantos  estas  laudas  virem  que  eu 
não  quis  fazer  com  elas  uma  obra  de  estrondo, 
que  me  pusesse  repentinamente  em  foco, — dado 
que  o  sr.  Albino  Forjaz  de  Sampaio  já  alcançou 
foros  de  consagrado  e  o  autor  é  praça  recente 
na  milícia  das  letras.  Demais,  é  óbvio  que,  nes- 
tas circunstâncias,  o  que  eu  teria  a  fazer,  no 
interesse  do  meu  futuro  literário,  em  vez  de 
hostilizar  aquele  sr.,  que  pontifica  para  aí  em 
coisas  de  pseudo-crítica  e  anda  na  roda  dos  imor- 
tais num  tu  cá,  tu  lá  familiar,  era  dirigir-lhe  vá- 
rios e  curvadíssimos  salamaleques,  no  intento 
de  lhe  captar  as  simpatias,  para  quando  saisse 
a  lume  ter  sempre  sua  eminência  a  benzer-me 
magnânimamente   com  o    seu  hissope.  E>igo-o 


de  começo  para  murchar  bastardas  insinuações 
dos  plumitivos  vesgos,  seus  acólitos  e  panegi- 
ristas. 

Nào  amo  a  literatura-petardo.  Nào.  Pelo  con- 
trário. Tendo  as  faculdades  gostativas,  nào  sei 
se  por  excessivo  requinte  ou  por  embotamento 
mórbido,  nada  afeitas  ao  sabor  de  iguarias  con- 
dimentadas de  escândalo,  peza-me  bastante 
sentir  que,  de  facto  e  contra  a  minha  vonta- 
de, algum  cheiro  a  escândalo  daqui  tresanda, 
roçando  e  açulando  o  olfacto  e  o  apetite  do 
público  ledor  gulosamente  ávido  de  escritos  em 
que  tal  excêntrico  tempero  seja  certo  e  bravo. 

E  muito  hesitei  mesmo  antes  de  acometer 
esta  faina,  cuja  índole,  pela  sua  tonalidade  crí- 
tica, fica  destoando  no  plano  de  trabalhos,  que, 
obedecendo  a  um  forte  e  actual  pendor  do  meu 
espírito,  eu  estabelecera  para  o  decurso  do  ci- 
clo inicial  da  minha  vida  escriturai,  plano  quási 
de  todo  em  todo  entretecido  apenas  de  obras 


III 


de  ficção  artística.  A  emergência,  pois,  que  me 
atirou  para  a  tarefa  presente  constituiu  para 
mim,  primeiro  do  que  para  ninguém,  a  maior 
das  surprezas.  Tarefa  agradável  e  consoladora  ? 
Ou,  antes,  safara  de  gozo  e  mortificante?  Uma 
e  outra  coisa,  simultaneamente,  com  a  dupla 
face,  risonha  e  carrancuda,  que  todos  os  aspectos 
do  mundD  apresentam  a  olhos  mortais.  Se  agra- 
dabilidade  e  consolo  me  ungiram  a  alma  en- 
quanto nela,  esquecido  do  seu  motivo  nodal  — 
o  da  réplica  ao  desageitado  comentador  do 
Poeta  —  falei  de  António  Nobre,  esse  alto  e 
fulgentíssimo  astro  do  lirismo  português  dos 
últimos  tempos,  a  que  devoto  a  mais  enraizada  e 
velha  admiração,  velha  da  velhice  capaz/de  caber 
nuns  vinte  e  tantos  anos, — tédio  e  mágua  me  tol- 
daram breve  as  doces  emoções  hauridas  naquela 
primeira  parte  da  minha  faina,  ao  lembrar-me 
de  que  a  executava  somente  como  alicerce  duma 
outra   mais   áspera   e    para   a  qual,  já  o  disse, 


IV 


não  só  me  escasseia  propensão,  como  até  se 
levanta  dentro  de  mim  invencível  repulsa:  a 
de  impugnar  quem  cometeu  o  desacato  contra 
a  memória  do  infeliz  Poeta,  não  pela  pessoa 
atacada  —  que  isso  nada  me  importa  —  mas 
apenas  porque  um  ataque  não  se  leva  a  cabo 
sem  ferimentos  e  sem  estridor,  nem  se  com- 
padece do  melindre  dos  espíritos  contempla- 
tivos e  tolerantes,  que  só  a  custo  consentem 
em  amarrotar  a  túnica  branca  da  serenidade 
que  os  veste  sob  a  chispante  e  pesada  cota  de 
armas,  forçosa  de  envergar  para  entrar  em 
combate,  sempre  febril  e  sem  tréguas,  bastas 
vezes  injusto  e  sem  nobreza. 

Mas  o  sr.  Albino  Forjaz  de  Sampaio  assim 
o  quis,  publicando  o  seu  último  inferior  e  re- 
voltante livro,  e  assim  o  quiseram  também  os 
meus  irmãos  mais  velhos  nas  letras,  que  egois- 
tamente  se  quedaram,  silenciosos  e  neutrais,  pe- 
rante a  afronta  que  ele  comporta,  não  vindo, 


arrancar  a  carcassa  infantil  e  delicada  do  Poeta 
àquelas  màos  profanadoras,  já  reincidentes  e 
velhuscas  no  crime  de  violar  túmulos  de  mor- 
tos ilustres.  E  ficar-me-ha  sempre  a  mágua 
de  que  outras  penas,  mais  autorisadas,  mais 
idosas  e  mais  hábeis  do  que  a  minha,  humil- 
de entre  as  humildes,  —  outras  penas,  dizia, 
como,  por  exemplo,  as  de  Justino  de  Mon- 
talvão, António  Patrício,  Antero  de  Figueire- 
do e  Alberto  de  Oliveira,  quatro  Mestres 
da  prosa  portuguesa  contemporânea  e,  para 
mais,  quatro  ferventes  admiradores  do  Poeta 
do  Só,  ou  por  anquilosante  desdém  pelo  seu 
detractor  ou  por  simples  desconhecimento  do 
desacato,  não  tivessem  tido  o  arranco  de  in- 
dignação esperado,  para  morderem,  sulcarem, 
vertiginarem  no  papel,  no  cometimento  da 
empreza  justiceira  a  que  eu  me  arrojei,  mas 
só  quando  vi  que  um  silêncio  demasiadamente 
longo,  e   possivelmente  suspeito  de  cumplici- 


VI 


dade,  envolvia  o  delito,  como  se  nada  houvesse 
a  objectar  ao  ignominioso  veridictum  e  só  de- 
pois de  ter  averiguado  que  ninguém  mais  tra- 
zia entre  mãos  obra  similar,  que,  a  publicar-se, 
me  libertaria  do  encargo  que  penosamente  ia 
tomar  sobre  os  ombros. 

Não  alimento  a  ingenuidade  de  supor  que 
em  todos  os  espíritos  esta  defeza  de  António 
Nobre  vá  suscitar  unânime  e  intenso  entusias- 
mo e  trazer-me  a  força  da  sua  solidariedade. 
Demais  sei  que  bastantes  miopemente  o  con- 
sideram um  Poeta  de  ordem  menor,  olhando 
mais  para  o  continente  pequeno  da  sua  curta 
obra,  curta  como  a  sua  vida,  do  que  para  o 
âmago  rico  de  potência  lírica  do  seu  conteúdo. 
Eles  terão  sorrido,  quem  sabe  se  com  prazer  ?,  da 
heresia  do  sr.  Forjaz,  como  sorrirão  àmanhan  da 
minha  réplica,  achando  que  exagero  e  que  o 
assunto  não  merece  tanta  importância  e  tanto 
alarme.   Pois  até  para   esses  eu  julgo  que  este 


VII 


caso  nâo  deve  ser  alvo  de  tão  gelada  apatia : 
O  que  o  sr.  Forjaz  fez  hoje  com  Anto,  fá-lo 
ha  àmanhan,  como  já  prometeu  claramente,  e 
usando  decerto  de  igual,  se  não  maior,  vio- 
lência iconoclasta,  com  outras  individualida- 
des, que  mais  alto  e  florido  altar  disfrutem 
no  culto  da  gente  desdenhadora  do  génio 
de  Nobre.  Sobre  a  pedra  de  alicerce  desta  de- 
feza  restrita  e  actual  poderá  ser  erguido  o  arca- 
boiço  largo  do  edifício  da  generalidade,  em  que 
tenham  asilo  outros  casos  que  a  todos  importam. 
Bem  sabem  :  ontem,  mal  tinham  entrado  na 
Morte  os  cadáveres,  ainda  quentes,  de  Silva  Pin- 
to, Ramalho,  Bulhão  Pato,  correu  logo,  numa 
fúria  irreverente,  a  cuspir-lhe  sem  cima.  Agora, 
em  nova  sortida,  sacou  do  sepulcrosito  de  An- 
tónio Nobre  e  revolveu-lhe  as  cinzas  brancas 
com  os  estos  raivosos  que  a  mediocridade  cos- 
tuma ranger  à  vista  da  grandeza.  E,  enquan- 
to   bolsa   insultos  contra  o  Poeta  do  Só,  que 


VIII 


nào  pode  ter  culpa  de  que  o  Destino  lhe  ti- 
vesse dado,  e  para  seu  mal,  o  que  recusou  ao 
desageitado  crítico,  declara  não  ficar  por  ali. 
Voltará  àmanhan  a  quebrar  as  lousas  das  cam- 
pas de  Camilo,  de  Fialho,  de  Eça,  de  Cesário 
Verde,  de  José  Duro,  e  de  muitos  mais,  no 
propósito  evidente  de  apenumbrar,  enferrujar, 
amachucar  a  auréola  duns,  e  a  outros  na  inten- 
ção esconsa  e  hipócrita,  manhosa  e  ridícula,  de 
lhes  pôr  os  méritos  em  melhor  destaque,  de 
os  sacudir  do  pó  do  esquecimento,  em  que  a 
sua  alma,  boa  e  piedosa  da  última  hora,  não 
consente  que  vão  cair.  Como  se  os  talentos  raia- 
dos de  génio  de  Camilo,  do  Fialho  ou  do  Eça, 
necessitassem  para  circular  no  nosso  entusiasmo 
admirativo  da  apresentação  gaguejada  dum  sr. 
Albino  Forja?  de  Sampaio!...  Armou  o  ho- 
mem em  porteiro-cicerone  do  Panteon :  salte 
a  nomeação  no  «Diário  do  Govêrno"  e  dêem- 
Ihe  a  farda  agaloada ! 


IX 


Mas  voltemos  ao  sério,  que  o  caso  serio  é. 
Demais  tem  sido  a  complacência  de  todos  nós, 
ledores  e  escritores,  velhos  e  novos,  ante  as 
suas  arremetidas  habilidosas  de  Jongleurjiterá- 
rio,  complacência  que  já  vai  tomando  visos  de 
cobardia.  Urge  entravar-Ihe  o  passo,  pois  mal 
irá  a  um  povo  que  alarvemente  se  ri  ou,  pelo 
menos,  não  se  indigna  ao  ver  um  funâmbulo 
no  meio  da  praça  esfarripar,  caricaturar,  cobrir 
de  lama  as  memórias  dos  momentos  mais  altos 
da  sua  história  e  dos  vultos  tutelares  e  eleitos 
da  sua  estirpe  1  Urge  despertar  a  consciência 
pública,  por  estas  claras  coisas  ainda  interessada, 
de  modo  a  iniciar,  a  pôr  em  marcha,  a  intensificar 
um  movimento  de  reprovação  contra  os  pro- 
cessos literários  do  sr.  Forjaz,  que,  obstinada- 
mente, quási  sem  um  eclipse,  desde  a  sua  estreia, 
se  caracterizam  pela  falta  de  escrúpulo  na  escolha 
dos  assuntos,  pela  carência  de  higiene  moral,  pela 
ostentação  de  cinismos  e  torpezas,  pela  ausên- 


cia  de  superiores  motivos  de  beleza,  pelo  ar 
artificiosamente  frondeiir  das  suas  asserções) 
perseverando  no  erro,  tão  abusado  nas  gera- 
ções últimas,  de  imbuir  de  pessimismo  e  des- 
crença a  mentalidade  hodierna,  condenável 
catequese  que  nele  tem  ainda  a  agravante  de 
não  ser  espontânea,  sincera,  mas  sim  filha  dum 
cálculo  menos  honroso.  Livro  após  livro,  numa 
produção  diluviai  e  toda  numa  seqiiência  de 
estampidos  de  morteiros,  verruma-o  o  delírio 
de  fugir  ao  esquecimento,  essa  suprema  tortura 
dos  artistas,  mas  para  ele  apenas  o  fantasma  da 
ruina,  o  estancamento  duma  fonte  de  manantes 
proventos.  O  que  mais  teme  é  que  os  milha- 
res, verdadeiros  ou  fictícios,  das  suas  edições 
encontrem  um  dia  no  indiferentismo  público 
a  eclusa  que  imobilise  e  estagne  a  massa  liinosa 
e  pútrida  da  sua  torrente :  por  isso,  aos  pin- 
chos,  aos  urros,  mantendo  sempre  viva  ao  re- 
dor  de   si  a  atmosfera   vermelha  do  reclamo. 


XI 


tem  conseguido,  com  provas  medíocres  de  ta- 
lento, galgar  vertiginosamente  os  postos  da 
gerarquia  literária,  onde  hoje  ostenta  largos  e 
doirados  galões. 

Pois  bem:  erga-se  de  toda  a  parte  um  bra- 
do de  indignação  e  de  reprovação  contra  aquele 
autor,  que  vá  arrancar  as  cataratas  aos  olhos 
dos  que,  por  ausência  de  bom  gosto  e  de  or- 
denada cultura,  vivem  fanaticamente  boquia- 
bertos diante  do  seu  malabarismo,  e  que,  para- 
lelamente, o  force  a  parar  e  a  arripiar  caminho, 
sob  pena  de  ser  exautorado,  de  se  lhe  arran- 
carem os  galões  que  pavoneia:  ou  aproveita  as 
suas  medianas  qualidades  de  escritor  em  traba- 
lho sério  e  dalgum  modo  belo,  ou  o  público 
se  desinteressará  dele  e  das  suas  malas-artes, 
relegando-o  para  o  charco  em  que  chafurdam 
os  líteras  sem  mérito  e  sem  vergonha. 

Compreende-se,  quási  mesmo  se  desculpa,. 
o    exotismo    das    suas   Palavras    Cínicas.  Re- 


Ali 


presentam  um  golpe  de  estado  literário  para  se 
apossar  dum  lugar  a  dentro  do  cercle  da  no- 
toriedade, barrado  hermeticamente  pelos  con- 
sagrados. Quási  todos  os  novos  sentem  neces- 
sidade de  dá-lo,  em  vista  do  já  tradicional  egois- 
mo  daqueles,  incapaz  de  se  descerrar  para  aco- 
lher os  recem-vindos.  O  sr.  Forjaz  deu  o  seu 
com  um  êxito  pleno:  as  censuras  e  os  aplau- 
sos silvaram  à  sua  roda,  foi  discutido  barulhen- 
tamente, decoraram-lhe  o  nome,  compraram- 
Ihe  o  livro.  Assim,  forçada  a  porta  do  desta- 
que, impunha-se-lhe  despir  imediatamente  a  ves- 
timenta vistosa  e  jogralesca  do  assalto  e,  com- 
penetrado da  linha  fidalga  da  sua  missão,  deitar- 
se  ao  trabalho  progressivo,  a  um  trabalho  pau- 
tado por  normas  do  bom  senso  e  inteligência 
equilibrada,  seleccionando  o  pendor  que  lhe 
fosse  próprio  e  construindo  nesse  terreno  a  sua 
catedral  de  beleza,  com  voadura  de  arcaria  con- 
forme ao  sopro  íntimo  de  sua  inspiração.  Não 


XIII 


o  fez,  porém.  E  não  o  fez  até  hoje,  como  toda 
a  sua  obra  o  demonstra  à  sobreposse,  porque 
descobriu  naquela  ruim  espécie  de  literatura 
de  escândalo  um  inexgotável  filão  de  oiro. 

Ora,  o  seu  último  livro  António  Nobre 
nào  só  é  disso  mais  um  documento,  como  até 
ameaça  de  enveredar  decidido  por  caminho 
que  se  lhe  deve  desde  já  tornar  defêzo,  e  onde 
decerto  fará  a  mais  estouvada  destruição  num 
património  que  é  de  todos  nós:  a  lembrança 
venerada  daqueles  que,  de  entre  a  mole  escu- 
ra e  razoirada  da  Raça  se  alçaram  a  atestar- 
Ihe  valores  mais  altos  e  iluminados  de  luz  eter- 
na, magníficas  possibilidades  de  aquilares  des- 
tinos, direitos  incontestáveis  à  ressurreição  do 
seu  antigo  e  viril  imperialismo,  já  nas  energias 
da  sensibilidade,  já  nas  da  acção. 

Se  o  deixarmos  sem  freio,  irá  não  sei  a  que 
vandálicas  emprezas.  Exgotado  o  património 
nacional,   correndo   do  campo   literário  para  o 


XIV 


scientífico  e  deste  para  o  guerreiro,  irá  depois 
por  todo  o  universo,  talando,  rasgando,  ensan- 
^iientando,  destruindo.  Nào  ficará  pedra  sobre 
pedra.  Estou  em  crer  que  já  premeditou  arran- 
car as  barbas  honradas  de  D.  João  de  Castro,  e 
consta-me  que  Aristóteles,  assustado,  lá  do  fundo 
da  antiguidade,  todos  os  dias  implora  de  Jeová 
um  raio  que  reduza  a  torresmos  o  Átila-anào. 
E'  com  o  escopo  de  suscitar  uma  corrente 
de  reacção  contra  tais  processos  que  este  livro 
se  publica.  Tem  o  significado  dum  protesto. 
E'  esse  o  seu  fulcro,  atravessando  o  pretexto 
de  desafrontar  a  memória  de  Anto  duma 
diatribe  incoerente  e  especuladora.  Assim  (divi- 
di o  meu  trabalho  em  três  partes:  na  primeira, 
digo  da  minha  impressão  ante  a  individualidade 
artística  do  Poeta  do  Só;  na  segunda,  foco 
•em  conjunto  a  vida  literária  (a  única  ao  meu  jus- 
to alcance  e  ao  do  publico)  do  sr.  Albino  Forjaz 
de  Sampaio;  e,  finalmente,  na  terceira,  faço  aau- 


XV 


tópsia  ao  livro  António  Nobre,  a  que  este 
meu  constitui  réplica.  Tanto  numa  como  noutra 
destas  duas  últimas  partes  nào  vou  com  o  bistu- 
ri esgrimindo  à  laia  de  navalha,  aceso  na  vesâ- 
nia de  só  encontrar  defeitos,  manchas,  falên- 
cias, com  a  cegueira  que  dá  a  paixão  da 
hostilidade.  Mas,  também  nào  quebro  o  gume 
do  instrumento,  para  suavisar  o  corte,  para 
rombamente  deixar  indene  muita  fibra  avaria- 
da, numa  quebreira  de  piedade  de  que  o  ata- 
cado nào  tem  necessidade,  nem  merece,  nem 
me  agradeceria,  estou  certo.  Nào  tomo  senho 
de  carrasco  nem  sorriso  untuoso  de  asperzidor 
de  água-benta.  E  a  sinceridade  que  me  intu- 
mece  as  veias  do  pulso  na  hora  em  que  manejo 
a  pena  neste  pleito  é,  pelo  menos  para  mim,  o 
bastante  fiador  da  justiça  que  preaide  a  estas 
páginas. 

Poderiam   elaster  vindo  a  lume  mais  cedo, 
visto  o  livro  do  sr.  Forjaz  circular  no  mercado 


XVI 


ha  já  meses.  Poderiam,  mas  nào  deveriam,  acho 
eu,  se  bem  que  a  maior  parte  desse  atrazo  se 
deva  apenas  à  circunstância  de  só  tardiamente 
eu  ter  tido  conhecimento  da  essência  da  obra 
do  sr.  Forjaz,  pois  preocupado  com  outras  fai- 
nas instantes  no  momento  em  que  ela  surgiu, 
mal  tive  tempo  de  lhe  ler  o  título,  ficando-me 
na  presunção  de  que  se  tratava  duma  rememora- 
ção simpática,  duma  análise  inteligente,  duma 
homenagem  enternecida  a  um  dos  mais  originais 
e  delicados  Poetas  da  nossa  Terra.  Isto,  apesar 
do  pouco,  mas  bastante  para  formar  tal  juizo, 
que  conhecia  da  bagagem  escriturai  daquele 
autor  não  me  autorizar  robustas  esperanças  nas 
suas  aptidões  para  trabalhos  dum  tal  jaez,  reque- 
rentes, acima  de  tudo,  de  identidade  poética  e 
delicada  ao  serviço  duma  especial  acuidade  crí- 
tica. Semanas  depois,  o  acaso  da  leitura  dum 
jornal  atirou-me  para  debaixo  dos  olhos  com  o 
registo   do   aparecimento  do  opúsculo,  registo 


XVII 


de  aberta  censura,  e  desvendou-me,  então,  o 
seu  criminoso  miôlo.  Dando  razào  à  anemia 
daquelas  esperanças  e  arruinando  a  presunção 
que  o  seu  título  traiçoeiramente  me  impusera,  o 
livro  em  debate,  em  vez  de  simpatia,  compreen- 
são, admiração,  vinha  só  polvilhado  de  inveja, 
de  insensibilidade  e  do  desejo  escuro  de  diminuir 
o  renome  de  António  Nobre.  Renegando  subita- 
mente a  instância  das  fainas  em  decurso,  pro- 
curei-© e  li-o  dum  fôlego.  E,  ao  cabo,  compene- 
trado de  que  no  seu  autor  se  acentuava  cada  vez 
mais  uma  aguda  crise  de  mercantilismo  literário, 
cujos  alarmantes  sintomas  já  vinham  de  longe, 
e  necessário  era,  portanto,  opôr-lhe  um  imediato 
e  enérgico  antídoto,  lancei-me  a  prepará-lo.  Fo- 
Ihiei  livros  e  jornais  e  revistas,  investiguei  e  até 
me  impus  o  pesado  sacrifício  de  ler  toda  a  obra 
do  sr.  Forjaz  de  Sampaio,  evitando  precipita- 
ções, sempre  temíveis  em  casos  tais,  e  recrutan- 
do e  coordenando  com  segurança  todos  os  seus 

F.  2 


XVIII 


elementos.  Eí,  a  este  respeito,  julgo  que  me  seii 
lícito  o  orgulho  de  supor  que  não  realisei  obra 
leviana,  peca  e  falha  de  documentação.  Fica  as- 
sim justificado  o  atrazo,  e  a  quem  praticamente 
conheça  as  canseiras  e  o  fatal  consumo  largo 
de  tempo  a  que  tarefas  desta  natureza  obrigam, 
decerto  até  ele  parecerá  exíguo. 

Sairá  daqui  mal-ferido  o  sr.  Forjaz?  Nào 
me  regosijo  com  isso,  creiam,  nem  o  procurei, 
pois,  aparte  o  meu  desapreço  pela  sua  obra, 
não  me  galvaniza  qualquer  particular  sentimen- 
to de  animosidade  contra  ele.  Respondem  es- 
tas palavras  aos  que,  entre  o  gentio  que  lhe  es- 
trondeia  batuques  cultuais,  queiram  insinuar 
que  vim  aqui  saldar  rancores  antigos.  Pessoal- 
mente, creio  que  nunca  vi  o  sr.  Albino  Forjaz 
de  Sampaio.  Literariamente,  estou  até  na  con- 
vicção de  que  lhe  devo  uma  fineza:  a  dumas  re- 
ferências, curtas  mas  elogiosas  sem  parcimónia, 
que,  a  propósito    dum  trabalhosito    meu   em 


XLX 


verso,  publicado  ha  uns  três  anos,  A  Luta  in- 
seriu entào,  e  que,  embora  não  assinadas,  me 
deixaram  convencido,  pelo  toque,  de  que  eram 
do  seu  punho.  Já  vêem. . . 

Quero  ainda  fazer  notar  a  esses  mesmos 
que  padecem  de  fanatismo  pelo  sr.  Forjaz  que 
nào  abrigo  a  ingenuidade  de  esperar  que  ele, 
acossado  por  esta  condenação,  se  vá  pôr  em 
fuga  do  campo  das  letras.  Nào,  nào  é  a  vez 
primeira  que  esse  gentio  vê,  com  alma  aperta- 
da, o  seu  manipanso  foilemente  zurzido.  E  ele, 
ora  coxo,  ora  zarolho,  ora  manco,  honra  seja 
feita  à  sua  indefectível  valentia,  jamais  se  arre- 
dou uma  polegada  da  senda  trilhada.  Descon- 
fio mesmo  que  já  calejou  e  que  as  pancadas — 
metaforicamente  falando,  claro  está— que  lhe 
caem  no  lombo  já  lhe  nào  fazem  móssega  al- 
guma nem  arrancam  um  pio  sequer.  De  quatro 
tundas  formidáveis  me  recordo  agora.  Uma, 
quando  da  morte  de  Silva  Pinto,  de  que  adian- 


XX 


te,  por  oportuna,  farei  larga  menção.  Outra,  a 
que  o  sr.  Avelino  de  Sousa,  sem  dó  nem  pieda- 
de, lhe  aplicou  a  propósito  do  fado  (.'O  Fado 
e  os  seus  censores» — Lx^,  1912, — edição  do 
autor— pag.^  13  a  38).  Ministra-nos  ali  conheci- 
mentos interessantes  sobre  a  nativa  pecha  do 
sr.  Forjaz  de  não  ter  uma  opinião  sua  e  fixa 
sobre  os  assuntos-temas  dos  seus  escritos, 
sempre  acomodatícios  ao  momento  que  passa, 
na  busca  torturada  de  efeitos  mirabolantes, 
numa  lógica  de  pé-coxinho,  que,  de  contínuo 
brigando  consigo  própria,  já  não  consegue 
crédito  em  espíritos  rectos.  Depois,  temos  a 
tunda  mestra  que  o  ilustre  jornalista  sr.  Adeli- 
no Mendes  lhe  infligiu  por  ocasião  da  sua  fa- 
mosa negociata  da  ida  a  França  à  custa  do  pró- 
digo papá-Estado,  para  escrever  um  livro  de 
impressões  sobre  o  front  português,  e  a  que 
também  mais  de  espaço  me  refiro  na  segunda 
parte   deste  trabalho.  Finalmente,  a  quarta  das 


que  me  lembram  é  a  do  Veneno— rtsposia.  às 
Palavras  Cínicas,  do  sr.  João  Coúho,  soi-disant 
escritor  brazileiro,  e  que  foi  a  mais  infeliz  de  to- 
das, pois,  querem  concepção,  querem  execução, 
as  Palavras  Cínicas,  com  todos  os  seus  defeitos, 
valem  bem  mais  do  que  esse  livro  de  refuta- 
ção, género  literatura  gá-gá  de  que  se  ria  Fia- 
lho, trôpego  na  forma  e,  para  mais,  com  tão 
desgraçada  revisão  tipográfica,  que  deixa  o  lei- 
tor na  dúvida  de  que  o  seu  autor  tivesse  ja- 
mais pegado  numa  gramática.  Em  pontuação, 
é  horrível!  Em  resumo,  faz-nos  ficar  com  mais 
piedade  do  espancador  do  que  do  espancado. 
Desculpou-oo  editor,  "'^  em  conversa  comigo,  di- 


(*) —  Compreende-se:  desculpando-o,  desculpava-se, 
pois  aqui  muito  à  puridade  lhes  digo  que  o  autor  do  Vt- 
neno  é  simplesmente  o  sr.  Ventura  Abrantes,  o  próprio 
livreiro-editor  do'  livro.  Seu  título  de  escritor  brazileiro  é 
fictício  e  a  lista  de  obras  anteriormente  publicadas,  no 
ante-rosto  do  volume,  fictícia  é:  constituem  artifícios  de 
mise-en-sccne  para  melhor  imporem  como  nome  verda- 
deiro o  que  não  passa  dum  pseudónimo. 


XXII 


zendo  que  o  Veneno,  fora  escrito  no  veloz  espaço 
de  oito  dias.  Seria.  E  para  que,  se  não  havia  ne- 
nhuma urgência  a  aguilhoá-lo,  visto  as  Pala- 
vras Cínicas  serem  já  velhas  de  catorze  anos? 
Seis  meses  ou  um  ano  mais  para  essa  respos- 
ta, se  não  lha  dariam,  também  nào  lhe  tirariam 
a  qualidade  de  oportuna,  que,  em  qualquer  ca- 
so, já  não  alcançava,  e  tinham  permitido  ao  sr. 
João  Coelho  realisar  obra  mais  capaz  de  me- 
recer elogios.  Como  veiu  a  público,  resultou 
mais  do  que  inane:  contraproducente. 

Desta  feita,  repito,  já  vêem  os  senhores  que 
o  sr.  Albino  Forjaz  de  Sampaio,  como  de  cos- 
tume, receberá,  firme  e  cínico,  este  meu  ataque 
e  nenhuma  melhoria  para  ele  e  para  nós  da- 
qui advirá,  se  não  me  secundarem  todos, 
gritando-lhe  a  plena  voz  que  se  regenere 
e  mude  de  processos,  se  quere  continuar  a  viver 
literariamente,  ou  que,  pelo  menos,  não  alveje 
para  assunto  das  suas  cabriolices  escriturais  mo- 


XXIII 


tivos  que  quási  todos  nós  temos  como  sagrados. 
E,  então,  aos  de  alma  delicada,  aos  que 
têem  sentido,  como  eu,  o  espírito  deliciosa- 
mente estrelado  de  emoções  dulcíssimas  sem- 
pre que  evocam  a  figura  estranha  de  Anto,  o 
Poeta  singular  e  infeliz  do 

. .  livro  mais  triste  que  lia  em  Portugal. 

a  esses  não  preciso  de  pedir  que  estejam  comi- 
go nesta  cruzada.  Tenho  até  de  mim  para  mim 
que,  se  tomei  da  pena  para  traçar  estas  páginas, 
não  fiz  mais  do  que  obedecer,  por  um  fenó- 
meno de  telepatia,  à  sua  dispersa  mas  poderosa 
sugestão,  vibrando  forte  em  todo  o  peito  por- 
tuguês, de  homem  ou  de  mulher,  ainda  não 
dessorado  do  leite  da  humana  ternura,  de  que 
falava  Shakespeare,  e  ainda  ungido  de  amor 
por  estas  claras  e  divinas  coisas  da  Poesia  e  da 
Beleza. . . 

C  de  F. 


1-0  Poeta  do  50' 


Nascido  no  Porto,  aos  16  de  Agosto  de 
1867,  António  Nobre  incrusta  os  seus  dezas- 
seis anos,  idade  genericamente  desabrochante 
das  energias  pensantes  e  sensoriais  do  homem, 
e,  no  caso  particular  do  Poeta,  idade  que  se 
ajusta  à  data  de  publicação  dos  seus  primeiros 
versos,  num  ambiente  heterogéneo,  tumultuo- 
so, cortado  de  múltiplas  e  desencontradas  exe- 
geses filosóficas  e  estéticas. 

Ia  entào  por  todo  o  mundo  culto,  irradian- 
do dos  empórios  mentais  e  artísticos,  um  ba- 
bélico  bra-á-á  de  mil  ritos  diferentes,  que  ator- 
doava os  cérebros,  arrepelava  os  nervos,  ele- 
vava as  sensibilidades  às  mais  altas  e  esgo- 
tantes tensões.  Tantos  eram  os  Rabis,  e  tão 
aparentemente  sábias  e  inspiradas  as  suas  cate- 


A  Afronta  a  António  Nobre 


queses,  e  tão  vistosos  e  louçàos  os  seus  para 
mentos  verbais,  —  que  a  uma  consciência  moça 
e  débil,  ainda  em  formação,  e,  portanto,  fácil 
presa  de  enganadoras  sugestões,  não  se  podia 
deparar  como  tarefa  branda  e  leve  o  pronun- 
ciamento por  esta  ou  por  aquela  seita,  arreba- 
nhando-se  empós  um  ou  outro  pastor,  batendo 
com  os  joelhos  nas  lages  dum  mais  próximo  ou 
mais  longínquo  templo.  E,  assim,  com  mil 
veredas  sulcando  em  sua  frente  os  horizontes, 
quem  resolvesse  encetar  os  passos  numa,  ao 
acaso,  decerto  bem  pálida  e  escassa  luz  de  fé 
levaria  a  alumiar-lhos,  visto  as  sebes  de  rosas 
das  certezas  e  as  paliçadas  de  espinhos  das 
dúvidas,  que  ladeavam  todas  essas  veredas 
filosóficas  e  estéticas,  em  nenhuma  se  apresen- 
tarem mais  olorosas  e  polícromas  ou  mais  acu- 
tilantes e  hirsutas  do  que  noutra,  afirmando 
ou  desmentindo  ser  a  escolhida  a  que  levava 
direitinho  à  Terra  da  Promissão  da  Arte. 

Para  mais,  conspirando  a  favor  dum  logro, 
era  esta  a  promessa  ridente  que  à  entrada  de 
todos  os  caminhos,  pelas  mesmas  palavras  e 
em  letras  de  palmo  e  meio  pintadas  nas  mes- 
mas álacres  cores  pelas  taboletas,  acenava  ao 
viandante  recem-vindo.  Fosse  lá  alguém  saber 
qual  dizia  a  verdade ! . . . 

Estavam,  pois,  convertidos  em  campos  de 
feira  os  rincões  do  Pensamento  e  da  Arte.  As 
gentes,   aos   enxames,  erravam   de  tenda  para 


A  Afronta  a  António  Nobre 


tenda,  provando,  mercando,  incaracterísticas, 
sem  paladar  certo.  De  quando  em  quando,  os 
tendeiros,  na  exaltação  ciumenta  de  seus  eli- 
xires e  panaceas,  urravam  entre  si  um  dialecto 
bem  pouco  literário  e  digno  das  suas  linha- 
gens olímpicas.  Chegaram  por  vezes  a  vias  de 
facto,  e  como  o  barulho  e  a  desordem  atraí- 
ram em  todo  o  sempre  melhor  do  que  falas  e 
gestos  mansos,  a  nuvem  forasteira  era  cada 
vez  mais  espessa  em  redor  dos  gritantes  mer- 
cadores. Estava  ali,  talvez,  o  gérmen  do  que 
hoje  se  chama — o  reclamo  à  americana. . . 

Simbolismo,  parnasianismo,  reacções  clás- 
sica e  romântica,  positivismo,  satanismo,  pes- 
simismo, néo-idealismo,  novos  ímpetos  da  es- 
cola realista  e  outros  fenómenos  não  menos 
de  espantar,  —  ia  por  ali  uma  confusão  doida, 
poeirenta,  cegante.  E,  claro  está,  que  no  horto 
da  poesia,  habitualmente  remansoso,  a  bara- 
funda não  era  menor.  Nada  escapara  ao  flagelo. 

-Menino  e  moço,  abandonado  por  seu  des- 
tino nesta  encruzilhada,  como  nos  velhos  con- 
tos de  fadas,  e  sentindo  a  sua  alma  palpitar  e 
abrir  as  asas  na  ânsia  irrepremível  de  atingir 
as  mansões  do  Sonho,  onde  encontrasse  do- 
çura e  perfeição  a  compensarem-no  das  mi- 
sérias da  vida  terrena  e  vulgar  que  os  seus 
olhos  largos  e  reveladores  iam  já  descorti- 
nando em  volta,  que  resolução  tomou  António- 


A  Afronta  a  António  Nobre 


Nobre  ?  Que  vereda  das  mil  que  se  lhe  ofere- 
ciam o  cativou  mais  ?  E  em  qual,  por  íim,  deci- 
dido ou  vacilante,  abriu  a  marcha  ? 

Em  nenhuma.  O  seu  orgulho  enorme, 
Orgulho 
insupportavel  tal  o  meu,.  . . 

peça  saliente,  peça-mestra  do  seu  organismo 
moral,  nào  lhe  permitia  seguir  na  esteira  de 
alguém  por  qualquer  desses  caminhos,  alguém 
que  nào  visse  de  certeza  ser  maior  do  que  ele 
próprio,  alguém  que  o  nào  soubesse  enfeitiçar 
pela  mágica  força  dum  prestígio  sóbre-hu- 
mano.  Nào  havendo  ali  pastor  algum  com  os 
excelsos  predicados,  não  se  arrebanhou.  Deixou 
partir  nas  várias  direcções,  para  ali,  para  àlêm, 
as  longas  caravanas  dos  outros  poetas,  e  ficou-se, 
no  meio  da  encruzilhada — triste,  orgulhoso  e  só. 

Então,  palpando,  adivinhando  um  drama 
dentro  de  si,  concentrou-se,  volveu  os  largos 
olhos  da  sua  inteligência  e  da  sua  sensibilidade 
para  o  próprio  interior.  Nesse  ensimesmamento, 
nào  mais  descansou  enquanto,  de  entre  os 
meandros  nebulosos  do  mundo  da  sua  alma, 
ainda  na  confusão  dos  dias  do  génesis,  não 
conseguiu  aperceber  bem  e  arrancar  esse  dra- 
ma, inteiro,  ingente  e  convulso,  para  o  pôr 
sob  a  bátega  forte  e  alumiadora  do  seu  gé- 
nio poético. 

Embora  sotálirio,  ermo  de  viventes  com- 
panhias, alguém,  contudo,  o  ia  às  noites,  horas 


A  Afronta  a  Antónfo  Nobre 


mortas,  acarinhar.  Era  uma  ronda  de  sombras, 
de  sombras  que  a  sua  simpatia  iluminava  san- 
tificadoramente,  e  que,  à  sua  voz  de  devoto  e 
místico  chamamento,  acorriam  a  inspirá-lo,  tute- 
lando sua  obtinada  pesquiza : 

Sou  médio,  evoco-os,  noite  em  meio, 
Vós  não  acreditaes,  eu  sei-o. . . 
Deixal-o  não  acreditar. 

Mas,  que  sombras  seriam  essas  que  o  visi- 
tavam, noite  velha?  De  que  fantasmas  a  sua 
bruxa  evocação  fazia  desenhar  no  ar  caliginoso 
os  vultos  diáfanos  ?  A'  frente,  vindo  de  muito 
longe,  no  tempo  e  no  espaço,  Shakespeare,  o 
rival  dos  deuses,  o  portentoso  criador  de  almas, 
cujas  referências  sào  bastas  na  obra  de  Anto, 
como 

O'  Bancuos  do  remorso !  O'  rainhas  xMachebetts 

Da  ambição  !  O'  Reis  Leais  da  loucura  !   O'  Hamlets 

Da  minha  vingança  !  O'  Ophelias  do  perdão.. . 

nos  Males  de  Anto  e  ainda  no  final  da  mesma 
poesia 

Mas  uma  coiza  que  lhe  faz  ainda  peior, 
Que  o  faz  saltar  e  lhe  enche  a  testa  de  suor, 
E'  um  grande  livro  que  elb  traz  sempre  comsigo 
E  nunca  o  larga :  diz  que  é  o  seu  melhor  amigo, 
E  lê,  lê,  chama-me  «Carlota,  anda  ouvir  I> 
Mas. . .  nada  oiço.  Diz  que  é  o  Sr.  Shakespeare. 


A  Afronta  a  António  Nobre 


A  seguir,  Camões,  o  grande  épico  da  Raça, 

Camões  I  ó  lua  do  mar  bravo  ! 
Vem-me  ajudar. . . 

Depois,  Garret,  o  delicado  heleno  que  an- 
dou de  joelhos  a  beijar  a  terra  portuguesa, 

O'  Garrett  adorado  das  mulheres, 


Que  falta  fazes  á  Lisboa  amena ! 
Anda  vêr  Portugal !  parece  louco. . . 
Que  pátria  grande  !  Como  está  pequena  I 

Ombro  com  este,  Antero,  o  Santo,  a  cami- 
nho do  ceu  e  duvidando  da  sua  existência, 
com  o  cilício  da  dúvida  a  sangrar-lhe  o  espí- 
rito sem  um  momento  de  descanso. 

Quero 
Mas  é  ir,  á  Ilha,  orar  sobre  a  cova  do  Anthero 

aspirava    religiosamente.    E   pedia    ao   sol   de 
junho  assim  : 

Sol  de  Junho  queima  as  minhas  estantes 
Poupa-me  a  Biblia,  Anthero...  e  pouco  mais  ! 

Finalmente,  de  tropel,  com  os  seus  mortos, 
seus  pais,  sua  ama,  seus  amigos,  todos  os  fa- 
miliares da  sua  infância  e  da  sua  juventude, 
levados  no  tufão  que  tudo  leva,  Job  e  as  de- 
mais figuras  da  Bíblia,  dolorosas,  arrepeladas, 
cheias  de  ira  e  de  sublimidade,  e,  de  mistura 
com  elas,  a  raça  lusa,  a  grei  de  outrora,  a  que 
andara  no  mar  largo  em  meio  de  tempestades, 


A  Alront;i.  :i  António  Nobre 


a  descobrir  novos  mundos  e  a  atrigueirar  a 
pele  no  incêndio  de  mil  batalhas,  o  povo  de 
santos  e  de  heróis,  a  alta  marinhagem  da  nau  da 
Pátria,  de  quando  ela  singrara  em  horas  di- 
vinas, sobre  as  ondas  altas,  de  alto  capita- 
neando as  outras  raças  e  jugulando  os  ímpetos 
hostis  da  Natureza. 

Num  ambiente  político  nacional  sórdido  e 
desnorteado,  com  o  seu  quê  de  desmanchar 
de  feira,  contrastando  violentamente  com  esse 
passado  de  prestígio  e  de  elevação;  num  mo- 
mento social  espiralado  de  interrogações,  em 
que  já  começavam  de  fermentar  as  lutas  teme- 
rosas que  nos  angustiam  hoje;  numa  época  de 
demolição  das  velhas  crenças  e  dos  velhos 
ideais  e  de  ensaio  de  novos  sistemas  filosó- 
ficos, mal  nascidos,  logo  moribundos;  num  pe- 
ríodo de  assalto  feroz  a  tudo  que  a  tradição 
fortemente  enraizada  na  alma  humana  ungira 
de  fé,  sonho  e  espiritualidade;  enfim,  num 
ambiente  tenebroso,  num  momento  rugidor  e 
revolucionário,  numa  época  irrequieta,  num  pe- 
ríodo de  transição  dum  estado  de  coisas,  que 
se  dizia  mau,  para'  um  outro,  que,  envolto 
ainda  na  poeirada  do  que  ruia,  não  se  descor- 
tinava melhor  nem  mais  belo;  —  qual  a  saúde 
imperturbável  e  mansa  que  poderiam  gosar  os 
espíritos  que  medravam  nessa  convulsa  e  de- 
cadente era  de  ha  trinta  e  tantos  anos,  em  que 
António  Nobre  desabrochou  o  seu  espírito  fino 

F.  3 


|0 A  Afronta  a  António  Nobre 

e  melindroso  ?  A  mesma  que  nós,  os  de  hoje, 
com  esses  trinta  e  tantos  anos  passados,  pode- 
mos gosar,  uma  saúde  precária,  débil,  cortada 
de  dolorosidades  e  desânimos  suicidantes,  pois 
cada  ano  que  sobre  esse  tão  próximo  ontem 
tem  corrido  não  tem  feito  mais  do  que  trazer 
novos  e  terríveis  problemas  aos  nossos  cére- 
bros, novos  e  sangrentos  dramas  aos  nossos 
corações.  Teem-se  acogulado  nos  horizontes 
mais  nuvens  negras  de  tragédia,  e  o  ar,  cheio 
das  emanações  pútridas  do  cadáver  da  velha 
ética,  que  dia  a  dia  mais  se  pulveriza,  aos 
ponta-pés  da  turba  truculenta,  já  fede,  asfi- 
xia, intoxica.  Vejam-se  os  costumes,  o  con- 
gestionamento das  cidades,  o  êxodo  dos 
campos,  o  referver  das  ambições,  a  sede  do 
ganho,  o  luxo  sem  freio,  o  alastramento  dos 
hospitais  e  das  cadeias,  uma  torrencial  litera- 
tura feita  quási  só  com  taras  e  anomalias.  E,  no 
meio  disto,  quem  ousará,  pois,  escancarar  aboca 
num  riso  aberto,  vibrante  e  triunfal,  num  canto 
argênteo  e  apoteótico?  Quem,  àlêm  das  crian- 
ças, cuja  ignorância  da  vida  as  imuniza  do 
desgosto  pelo  mundo  actual  ?  Quem,  de  en- 
tre os  adultos,  senão  os  ébrios  e  os  loucos? 
Assim:  com  um  meio  tão  crispado  e  in- 
certo a  envolvê-lo;  com  aqueles  elementos  de 
cultura,  a  Bíblia,  Shakespeare,  Camões,  Garret, 
Antero,  como  alimentos  predilectos  do  seu 
espírito;  com  o  seu  enorme  poder  de  evocação, 


A  Afronta  a  António  Nobre 


€xercendo-se,  ora  sobre  a  ridente  e  despreocu- 
pada quadra  da  infância,  ora  sobre  a  virili- 
dace  esplendente  da  sua  raça;  e,  para  mais, 
com  o  seu  organismo  fraco  de  doente  do  peito, 
juntando  a  tortura  física  à  tortura  psíquica 
originada  nos  males  do  mundo:  a  poesia  de 
António  Nobre  não  poderia  resultar  diferente 
da  que  ele  nos  deu —triste,  elegíaca,  febril, 
ladainhante,  supersticiosa,  sombria,  desespe- 
rada, macabra,  mas,  acima  de  tudo  e  como 
melhor  importa,  radicalmente  portuguesa,  pro- 
fundamente sincera,  magnificamente  lírica  e 
bela. 

Se  exagero  parece  haver  por  vezes  nos 
seus  lamentos,  saidos  duma  concepção  unila- 
teral e  pessimista  da  vida,  é  que  o  dom  da 
profecia,  peculiar  aos  grandes  Artistas,  vibrava 
vigorosamente  nele:  sendo  desolante  o  aspecto 
do  mundo  do  seu  tempo,  o  Poeta  não  via 
sinal  de  mutação  à  sua  roda,  não  via  que 
um  movimento  de  reacção  operasse  a  aleluia 
daquela  sexta-feira  de  paixão.  Pelo  contrário. 
A  directriz  acentuada  dos  espíritos  era  exacta- 
mente para  o  pioramento  dessa  decadência 
das  sociedades.  E  mentiu-lhe  o  seu  sentir  pro- 
fético ?  Dê  corajosamente  a  resposta  algum  de 
nós,  que,  vivendo  neste  pgjidemónio  actual, 
não  seja  por  completo  cego  de  entendimento. . . 

Filho  legítimo  do  consórcio  dum  tempera- 
mento doente  com   uma   época  de  decadência, 


12  A  Afronta  a  António  Nobre 


O    Só   tem,    portanto,    na    sua   parte   restrita,, 
individual,  subjectiva,  a  maior,  o   valor  duma 
minuciosa  auto-biografia,   e  na  sua  parte  ob- 
jectiva, geral,  humana,  o  dum   símbolo,   crista- 
lizando nas   suas    estrofes  as  queixas   do    mal- 
-estar  não  só  da   nacionalidade,   como  do  uni- 
verso, ou,  pelo  menos,  dos  povos   gastos   da 
civilização  europea  mediterrânea,   cujas    ener- 
gias exaustivamente  se  aplicaram  durante  sécu- 
los, em  esforços  talvez  superiores   às    suas  fa- 
culdades. 
/^    A   Morte    tornou-se,    portanto,    o   motivo 
^central  da  sua  inspiração.  Viu  que  para  ela  a 
gente  caminha  a  cada  passo  dado  na  vida.  No 
torvelinho  de  incertezas  em  que  a   consciência 
do  homem  se  debate,  só  ela  se  divisa  como  certa, 
como  inegável,  como  isenta  dos  desequilíbrios 
que  em   tudo   o   mais  se   constatam.  Cogita  a 
sciência  em  desarmá-la,   estala  os   crâneos    no 
interior   dos    laboratórios   no   intento    de   lhe 
opor  uma  defeza   indestrutível,    e,  nessa  cogi- 
tação profunda,  nada  resolvendo,   mais  dela  se 
aproxima,  definhando  ou  caindo  nas  fauces  da 
loucura,   sua  filha.  Procuram-se  alegrias,  pra- 
zeres, horas   brandas,  e  tudo    isso  apenas  com 
o  fito  de  nos  esquecermos  dela,  de  nos  iludirmos, 
julgando  que  ela  nos  perdeu  a  pista.   O   arti- 
fício é  vão.  A  máscara  que   lhe   pomos   mal  a 
cobre,   e  os  nossos  olhos  pávidos  não  cessam 
de  vê-la,    ora   longe,   a    seguir-nos,   silenciosa, 


A  Afronta  a  António  Nobre 13 

ora  perto,  deitada  na  nossa  cama,  sentada  à 
mesa  na  nossa  frente,  rindo  escarninhamente 
^jio  olhar  e  nas  gargalhadas  da  mulher  amada. 
O  seu  hálito  transe-nos.  Pelos  crepúsculos, 
aninha-se  nos  recantos  da  nossa  saleta,  coalha- 
dos de  sombra,  e,  de  quando  em  quando, 
numa  lúgubre  carícia,  avança  para  nós  o  seu 
enorme  vulto  de  carne  tecida  da  própria  som- 
bra, lança-nos  os  braços  em  volta  do  pescoço 
é  beija-nos  num  beijo  gélido,  que  nos  sacode  o 
corpo  num  arrepio  de  passamento.  E'  a  mais 
constante  enfermeira  de  todos  os  enfermos. 
Solícita,  não  despega  do  seu  leito  dia  e  noite. 
Ninguém,  por  mais  só  que  se  julgue,  sofre  do 
seu  abandono.  Ronda,  ronda  sempre  em  redor 
de  nós,  em  passos  furtivos,  iguais,  impertur- 
báveis. Insensível  às  nossas  lisonjas,  na  inten- 
ção de  desarmá-la,  sorri-se  com  bonomia  do 
nosso  infantil  estratagema  e  não  se  suborna 
por  coisa  alguma  do  mundo.  Se  a  insultamos, 
raivosos  de  nos  sabermos  impotentes  para  fugir 
ao  seu  jugo,  sorri-se  ainda,  ainda  e  sempre, 
certa  da  sua  presa,  zombando  da  nossa  raiva 
inútil,  ocultando-se  um  pouco  às  vezes,  para 
logo  de  novo  e  mais  perto  nos  surgir,  ron- 
dando, rondando,  solene,  enorme,  feiticeira, 
hipnótica,  dominadora,  imperial,  divina,  cheia 
do  encanto  do  seu  mistério,  o  maior  de  todos 
•os  mistérios,  que  tanto  nos  aterra,  para  melhor 
nos  seduzir. 


14  A  Afronta  a  António  Nobre 

Foi  assim  que  Anto  vislumbrou  a  Morte. 
Elegeu-a  para  sua  noiva.  Vestiu-lhe  o  colo  das 
jóias  mais  preciosas  do  seu  lirismo  opulento.. 
Prostou-se-lhe  aos  pés  na  mais  incondicional 
das  venerações.  Rezou-lhe  as  jaculatórias  mais 
rendidas.  Teceu-Ihe  os  epitalâmios  mais  arden- 
tes e  nupciais.  E  ninguém,  de  certo,  nenhum 
poeta  dos  modernos  ou  dos  antigos  tempos, 
soube  dirigir-lhe  as  frases  de  possessiva  ter- 
nura que  Anto  entoou  à  sua  beira.  E,  por  isso, 
comovida,  enternecida,  quiçá  pela  vez  primeira 
na  sua  existência  de  desapiedada  c  álgida,  a 
Morte  escutou-o  sem  sobranceria,  sorriu-lhe 
com  doçura,  chamou-o  a  si  amorosamente, 
abriu-lhe  de  par  em  par  as  portas  do  seu  pa- 
lácio de  mistério  e  sonho,  deitou-o  aconche- 
gadamente no  seu  tálamo  negro  de  mil  vezes 
possuída  e,  contudo,  sempre  virgem  e  sempre 
casta. 

Ficou-nos  desse  amor  desvairado,  dessa 
paixão  sem  freio,  a  mais  formosa  e  sentida 
colectânea  de  epístolas  passionais  que  a  nossa 
literatura  possui:  o  Só.  Ao  enformá-la,  dela 
irradiou  o  Poeta  as  poesias  mais  brandas,  rea- 
lisadas  nos  armistícios  das  suas  dores,  doces 
confissões  enamoradas  perante  uma  mulher, 
suaves  desabafos  de  pequenos  afectos,  que  de 
modo  algum  chegaram  a  constituir  traições 
àquele  absorvente  cuidado  pela  sua  Maior-De- 
sejada,    a    Morte.    Ali,    no    Só,    procurando 


A  Afronta  a  António  Nobre  J5 

imprimir-lhe  um  tom  de  unidade,  enfeixou, 
pois,  os  mais  altos  gritos  do  seu  desespero, 
do  tédio  que  o  torturou  enquanto  teve  de 
esperar  no  mundo  o  dia  das  suas  voluptuosas 
bodas,  da  sua  ansiedade  sôfrega  por  ir  des- 
cansar a  cabeça  no  regaço  misterioso  da  sua 
estranha  Bem-Amada.  Lê  a  gente  o  Só  e 
tem  a  ilusão  de  que  passeia  num  fúnebre  jar- 
dim da  florações  gigantescas  e  exóticas,  em 
que  um  sopro  ignoto  e  músico,  de  dedos  sub- 
tis, desfere  as  liras  das  folhas  e  das  pétalas  e 
faz  esvoaçar  no  espaço  o  sussurro  harmonioso, 
mas  grave  e  acabrunhante,  dum  De  profundis. 

Depois  de  longa  peregrinação  pelo  mundo, 
parte  dela  buscando  a  saúde  que  lhe  deser- 
tava velozmente  do  peito,  peregrinação  de  que 
ficaram  muitos  marcos  nas  datas  dos  seus 
versos,  a  18  de  iVlarço  de  1900,  em  Car- 
reiros (Foz  do  Douro),  com  trinta  e  três  anos 
incompletos,  levou-o  a  tísica,  —  disse  a  medi- 
cina. Só  ela?  não  acredito.  Assim  como  não 
acredito  que,  sem  essa  circunstância  da  sua 
doença,  António  Nobre  viesse  a  realisar  uma 
obra  totalmente  diferente  da  que  deixou  ao 
nosso  culto,  isto  é,  uma  obra  mais  optimista, 
mais  consolada  e  consoladora,  mais  ciosa  e 
amante  da  vida.  Embalde  me  citarão  certos 
trechos  das  Despedidas,  seu  livro  póstumo, 
e  desse  volume  inédito  dos  Primeiros  versos, 


16  A  Afronta  a  António  Nobre 

assim  como  o  seu  plano  de  obras,  razoavel- 
mente longo,  encontrado  entre  os  seus  papeis 
particulares,  e  que  atinge  meia  dúzia  de  títulos, 
ou  ainda  passagens  da  sua  correspondência 
para  amigos,  tendo  fé  na  cura  e  em  dias  me- 
lhores,—  embalde  me  citarão  tudo  isso  a  abo- 
nar a  presunção  da  sua  existência  literária 
poder  ter  tomado  outro  rumo  mais  claro  e 
desassombrado  de  ;imargura,  se  viesse  a  pro- 
longar a  vida.  Não  foi  apenas  a  doença  que  o 
matou  —  repito.  Ela  foi  somente  o  detalhe,  a- 
forma,  o  instrumento.  Mais  do  que  ela,  ma- 
tou-o  o  meio,  matou-o  o  ambiente  da  época 
em  que  nasceu  e  dentro  da  qual  o  destino,  só 
por  engano,  o  pusera.  A  síntese  das  suas  quei- 
xas podia  bem  ser  igual  à  dum  outro  inconso- 
lável, Musset,  cujo  grito  maior  foi:  Je  suis 
venu  trop  tard  dans  un  monde  trop  vieiíxl 
Mátou-o  a  sua  sensibilidade  de  grande  Artista, 
de  extraordinário  Poeta.  Não  podia  acomodar 
a  grandeza  do  seu  espírito  na  estreiteza  do 
mundo.  Sentia-se  asfixiado,  encarcerado.  Como 
todas  as  inteligências  do  tempo,  rudemente 
açoitadas  por  um  vento  de  negativismo,  e  a 
este  embate  abrindo  brecha  nos  alicerces,  a 
sua  também  sofreu  o  choque,  e  disso  só  resul- 
tou amargura,  abatimento  moral,  astenia  da 
vontade.  Nào  repudiou  por  inteiro  as  suas 
crenças,  mas  não  conseguiu  manter  o  espírito 
impermeável  à  endosmose  tóxica  e  destruidora. 


A  Afronta  a  António  Nobn 


A  sciência  trazia  então  como  escopo  des- 
pir a  vida  de  todos  os  altos  atributos  que 
a  poesia  e  a  religião  lhe  haviam  emprestado. 
Ficava  um  ermo  a  existência.  O  homem  redu- 
zia-se  à  proporção  do  bípede  vulgar,  descen- 
dente do  símio.  Murchavam  ao  seu  hálito  os 
hortos  do  sonho.  Secavam-se  as  fontes  e  mirra- 
vam-se  os  pomos  da  idealidade,  e  não  mais, 
portanto,  as  almas  insatisfeitas  teriam  onde  mi- 
tigar suas  fomes  e  sedes. 

E,  então,  a  de  Anto,  que  pela  sua  condi- 
ção de  excepcional,  mais  sôfregas  e  ardentes 
sentia  essa  fome  e  essa  sede  de  ideal,  como 
poderia  subsistir  doravante?  Se  os  seus  pul- 
mões se  não  tivessem  tão  cedo,  ou  mesmo 
nunca,  desfeito  em  sangue,  é  possível,  lógico 
mesmo,  que  a  sua  maneira  tivesse  evoluído, 
afastando-se  dos  extremismos  subjectivistas,  fa- 
tais no  primeiro  ciclo  de  todos  os  Artistas,  as- 
cendendo a  uma  objectividade  mais  serena  e 
desentranhando,  assim,  do  seu  estro  potente 
e  magnífico  mais  dois  ou  três  volumes  de  belos 
poemetos.  Teria  deste  modo  deixado  completo 
o  seu  lindo  poema  O  Desejado,  tão  imbuído 
de  sentido  pátrio.  Mas  isso  não  bastaria  para  o 
acorrentar,  resignadamente,  à  vida  coeva,  chan 
e  baça.  A  imperfeição  das  coisas  e  dos  seres 
postos  à  sua  beira,  num  contacto  forçado  e 
quotidiano,  imperfeição  inconvertível  ao  influxo 
da  sua  vontade,  imperfeição  tornada  orgânica  e 


18     A  Afronta  a  António  Nobre 

fixa,  e  que,  para  mais,  nào  só  lhe  afrontava  a 
sensibilidade  delicada,  como  até  lhe  penetrava 
o  espírito,  contagiando-o  da  sua  fealdade,  man- 
chando-o,  apoucando-o,  —  havia  sem  dúvida  de 
lhe  desenrolar  o  cruel  dilema:  ou  se  integrava 
na  vida  mesquinha,  amesquinhando-se,  é  bem 
de  ver,  ou  seria  impiedosamente  triturado  na 
sua  bárbara  engrenagem.  E  nào  será  de  presu- 
mir antes  a  sua  intransigência  de  que  a  sua 
rendição?  Acrescente-se  a  estes  motivos  de 
desgosto  pela  existência  ainda  uma  outra  con- 
dição, também  fatal  na  maioria  dos  verdadeiros 
Artistas.  O  aparecimento  de  antimonias,  umas 
vezes  entre  a  sua  saúde  e  a  sua  ânsia  de  correr 
aventuras,  esta  forte,  aquela  débil,  outras  vezes, 
as  mais,  entre  o  espírito  suave  e  cheio  de 
requintes  que  lhes  abaula  o  peito  e  a  sociedade 
em  que  o  seu  destino  os  põe  a  viver.  E  começa 
então,  feroz,  despedaçadoramente,  o  pleito  entre 
os  contendores,  pleito  que  finda  sempre  pela 
derrota  sangrenta  dos  Artistas,  que  na  sua  es- 
pecial natureza  de  ser  encontram,  não  um  auxi- 
liar, mas  sim  um  inimigo  mais  a  corroer-lhes  o 
aço  das  suas  cotas  de  armas,  pouco  a  pouco 
rendendo-os  inermes  e  exaustos  à  truculência 
do  inimigo  externo.  Esteve  António  Nobre  su- 
jeito a  esta  condição,  todos  o  sabem.  Paradoxal- 
mente, mesmo  os  da  sua  roda,  literatos  como 
ele,  que  se  sentiam  atrair  irresistivelmente  pela 
originalidade  do  seu  talento,  não  deixavam  de 


A  Afronta  a  António  Nobre  19 

acidular  com  despeito  e  inveja  a  sua  admiração. 
Em  Coimbra,  os  lentes  reprovaram-no  dois 
anos  e  os  condiscípulos  regosijaram-se  sem  re- 
buço com  estes  seus  desastres  nos  estudos  ofi- 
ciais. Teve  de  desertar  e  ir  fazer  o  curso  a  Pa- 
ris, H  foi  sempre  assim,  enquanto  em  vida,  por 
toda  a  parte  onde  passou.  Queriam  ajustá-lo 
à  craveira  vulgar,  Excedia-a?  Apedrejavam- 
-no.  Faziam-lhe  pagar  caro  o  prestígio  do  seu 
estro,  o  encanto  que  de  si  emanava,  o  po- 
der pessoal  de  que  impregnava  todos  à  volta. 
Por  isso,  ainda  os  que  mais  ou  menos  com  ele 
tinham  afinidades,  nào  hesitaram  em  bandear-se 
com  o  vulgo,  para  a  vingativa  conjura.  Saben- 
do-o  ávido  de  companhias  reverentes,  afasta- 
ram-se  dele,  fizeram-lhe  em  torno  o  vácuo  e  o 
silêncio,  no  intento  criminoso  de  o  matarem  à 
míngua  desse  sagrado  pão  que  era  indispensável 
à  sua  alma  — a  simpatia.  E  conseguiram-no. 
Couraçava-o  férreamente  o  orgulho,  mas  a  vio- 
lência dos  ataques  excedia  a  fortaleza  da  cou- 
raça. Num  dado  momento  sentiu-se  perdido, 
derrotado,  sem  um  arrimo  sequer,  louco  D, 
Sebastião  batalhando  entre  a  chusma  de  infiéis, 
apenas  seguido  do  seu  agoirento  áio,  o  tédio. 
Nem  uma  das  suas  quimeras  soubera  persistir 
em  acompanhá-lo  até  a  morte,  denodadamente. 
Transidas  de  cobardia,  deixaram-no,  a  distância 
bastante  da  linha  de  batalha.  E  quási  o  viram 
cair,  trespassado,  exangue,  sem   soltarem  pie- 


20  A  Afronta  a  António  ^'obre 

dosameute  um  grito,  um  ái,  um  soluço.  Até  o 
Amor,  o  condestável  dos  Poetas,  se  rendeu  bem 
cedo.  Culpa  de  Anto?  Talvez.  Quis  demais. 
Debruçou  sempre  a  sua  alma  nos  olhos  das 
mulheres  com  a  mira  de  ver  o  ceu,  quando  não 
é  essa  a  paisagem,  mas  sim^  a  da  volúpia,  para 
onde  essas  janelas  encantadas  olham  .A  Purinha, 
essa  miragem  maravilhosamente  linda,  exprime 
bemi  o  seu  sonho  romântico  e  errado  de  buscar 
anjos  na  terra,  seres  sobrenaturais  com  belezas 
célicas  e  virtudes  de  milagre.  Por  isso,  o  Amor, 
não  lhe  podendo  ofertar  o  impossível,  como  a 
amisade,  e  como  tudo  o  mais,  o  abandonou 
também.  No  ardor  do  combate,  animou-o  ape- 
nas o  ritmo  forte  do  coração  dos  simples,  os 
pegureiros  e  pescadores  da  sua  terra,  em  que, 
tal  como  no  coração  dos  búzios,  vago  e  distante, 
ressoa  o  marulhar  das  ondas  largas,  ele  escutava 
a  grita  audaz  e  épica  da  raça  lusíada  de  outrora. 
Caiu  por  fim.  O  seu  AIcácer-Kibir  foi  num 
leito  de  doença.  A  lançada  que  lhe  trespassou 
o  flanco,  arremessou-lha  a  tísica.  Reatando  e 
repetindo:  esta  foi  mera  comparsa  na  tragédia. 
Coube-lhe,  por  acaso,  dizer  a  frase  final.  Des- 
consolado, traido,  só,  mesmo  que  a  doença  se 
lhe  não  tivesse  enamorado  dos  pulmões,  não 
morreria  de  velho.  Mais  dia,  menos  dia,  roída 
a  sua  alma  pela  nevrose  do  talento,  por  essa 
outra  incurável  e  galopante 

Tysica  de  alma. . . 


A  Afronta  a  António  Nobre  21 

chegaria  a  hora  turva  em  que  o  seu  braço  se 
ergueria  à  altura  do  peito  ou  da  fronte,  empu- 
nhando o  revólver  libertador,  quebrando  os 
grilhões  que  o  jungiam  ao  mundo  de  misérias, 
descerrando-lhe  em  frente  a  Jerusalém  eterna, 
onde  habitava  a  sua  feiticeira  noiva,  de  sorriso 
imutável  e  de  misterioso  encanto.  A  11  de  Se- 
tembro de  1891,  quási  nove  anos  antes,  vira 
ele  partir  desse  modo  violento  para  a  Cidade 
Santa  um  dos  seus  fantasmas  tutelares.  Se  não 
fosse,  pois,  o  episódio  da  tísica,  iríamos  hoje 
encontrar  António  Nobre  incorporado  na  teoria 
dos  nossos  grandes  suicidas,  como  irmão  de  An- 
tero, Camilo,  Soares  dos  Reis,  Trindade  Coelho, 
Manuel  Laranjeira,  todos  esses,  que,  sentindo 
suas  almas  de  eleição  com  as  largas  asas  prisio- 
neiras na  estreita  gaiola  da  vida,  só  viram  uma 
solução  —  quebrarem-lhe  as  barreiras  e  arremes- 
sarem-se  para  o  Infinito. 

Uma  criação  de  Deus,  mas  incompleta; 
Águia,  encerrando  um  coração  de  pomba, 
Cedro  que  dava  folhas  de  violeta  I 

Nestes  trez  versos  da  poesia  Ca(ro)  Da(ta) 
Ver(niibiis)  parece  Anto  definir-se,  com  uma 
assombrosa  clarividência. 

Mas  este  e  outros  conceitos  que  no  Só 
abundam,  cheios  de  altivez  e  de  convicção  no 
próprio  valor,  e  até  coerentes  com  as  doutrinas 


22  A  Afronta  a  António  Nobre 


que,  a  despeito  das  tendências  democratica- 
mente niveladoras  já  então  eclodindo  com  vi- 
gor, prenhavam  a  atmosfera  mental  da  época, 
doutrinas  de  forte  crença  na  acçào  dos  super- 
-homens,  tendo  Carlyle,  Emerson  e  Nietzsche 
por  apóstolos-pontífices,  —  este  e  outros  concei- 
tos, dizia,  serviram  de  certo  modo  aos  detracto- 
res de  Nobre  para  o  apodarem  de  vaidoso, 
exibitivo  e  ávido  de  notoriedade  rápida. 

A  incompreensão  dos  Artistas  pelo  comum 
das  gentes,  às  vezes,  como  neste  caso,  reforçada 
pela  inveja  dos  que  já  pertencem  a  uma  esfera 
superior,  é  reincidente  no  velho  erro  de  julgar 
aqueles  à  sua  imagem.  Não  busca  elevar-se, 
nivelar-se  com  eles  nos  seus  momentos  de 
genial  intuição,  meter-se  na  zona  da  áurea 
claridade  que  lhes  dimana  da  alma  e  do  cérebro. 
Em  vez  disso,  e  embora  aproveite  e  muito  da 
sua  acção,  urde-lhes  de  rastos. e  ferozmente  as 
maiores  armadilhas,  pretende  aluir  pela  base 
o  Sinai  onde  eles  se  erguem  na  inspiração  que 
topeta  o  ceu,  força  por  inquinar-lhes  a  fonte 
de  Juvência  onde  se  alimentam  de  ideal,  na 
ânsia  bastarda  de  os  ver,  quando  derrubados, 
iguais  a  si,  pigmeus  e  míseros,  integrados  na 
massa  amorfa.  Quando  menos,  comete  o  desa- 
cato de  traduzi-los  para  figuras  banais  e  isentas 
de  prestígio. 

Ora,  porque  se  ha-de  julgar  um  produto  ar- 
tificial e  rebuscado  a  excentridade  de  António 


A  Afronta  a  António  Nobre  23 


Nobre,  e  não  um  fruto  espontâneo  da  sua  espe- 
cial estrutura  íntima,  impossível  de  arrancar  da 
árvore  humana  donde  brotara,  sem  a  mutilar? 
Para  mim,  a  chamada  naturaHdade,  feita  de 
simpleza  charra,  das  maiorias,  é  que  seria  nos 
marcados  na  fronte  pelo  fatídico  sinal  dos  ra- 
ros um  preciosismo  monstruoso,  um  aborto 
condenável  e  falso,  por  estranho  aos  seus  or- 
ganismos de  excepção.  Devemos  tomar  o 
mundo  tal  como  é :  vário,  desigual,  matizado  de 
contrastes,  não  apedrejando  os  que  fogem  ao 
figurino  previsto  e  à  fórmula  corriqueira. 

Aliás,  toda  a  mocidade  talentosa  é  atreita  a 
ímpetos  exibicionistas,  perdidos  mais  tarde  por 
completo,  e  mais  acentuados  nuns  ou  mais 
ténues  noutros,  conforme  os  temperamentos. 
Nem  Antero,  cujas  ambições  literárias  foram 
sempre  tíbias,  não  publicando  as  obras  senão 
a  vivas  instâncias  dos  amigos,  e,  para  mais,  se 
tornou  no  vulto  de  íntegra  e  magestosa  beleza 
moral  que  todos  ^admiramos,  —  nem  ele  foi 
escapo  a  esses  ímpetos  moços.  Dizem  os  seus 
biógrafos  que  em  Coimbra  bastante  cultivou  a 
excentridade. 

Mas,  focando  sob  este  prisma  António  No- 
bre, e  aparte  a  porção  fugitiva  que  dessa  pecha 
geral  à  mocidade  lhe  caberia,  que  outros  moti- 
vos se  deparam  para  à  sua  singularidade  ser 
atribuída  a  índole  dum  arranjo,  duma  intenção, 
dum  postiço?  Pois  não  o  contradiz  com  elo- 


24 A  Afronta  a  António  Nobre 

quência  o  facto  do  seu  isolamento  em  Paris, 
isolamento  de  monge,  e,  sobretudo,  o  cara- 
cter nacional  que  se  obstinou  em  vincar  no 
Só,  apesar  da  sua  elaboração  ter  decorrido 
quási  toda  longe  de  Portugal  e  entre  o  tumulto 
de  civilizações  intensas  e  absorventes,  em  pro- 
miscuidade com  novas  e  arrevezadas  estesias? 
Enquanto  ele,  num  ambiente  estrangeiro,  não 
se  estrangeirava  e  ficava  fiel  ao  espírito  da  sua 
grei,  outros,  e  tantos,  escritores  portugueses, 
sem  porem  sequer  um  pé  fora  da  raia,  apenas 
por  snobismo,  cuidavam  de  entornar  nos  seus 
livros  ideias  estranhas,  na  avidez  dum  sucesso 
retumbante,  em  cabotinas  estilisações  da  paisa- 
gem e  da  fauna  humana  alheias,  deixando  as 
próprias  em  afrontoso  repudio. 

Em  reforço  deste  argumento,  colho  em  os 
Serões  de  Março  de  1Q09,  dum  pequeno  artigo 
intitulado  .'António  Nobre»  e  assinado  pelo 
pseudónimo  «Lia",  os  seguintes  dizeres  teste- 
munhais : 

«Ha  dias  estive  a  lêr,  ao  acaso,  versos  de 
António  Nobre,  nas  Despedidas,  livro  melancó- 
lico, publicado  já  depois  da  morte  do  auctor. 
Isto  fez-me  recordar  algumas  horas  da  vida 
d'esse  poeta,  que  passou  pelo  mundo  rapida- 
mente, deixando  em  muitos  espíritos  a  inolvi- 
dável suggestào  do  seu  doloroso  talento.  Essas 
horas,  insignificantes  para  elle,  e  de  que,  certa- 
mente  nenhuma  lembrança  lhe  ficou,  fixaram- 


A  Afronta  a  António  Nobre  25 


se-me  na  memoria,  pois  foram  as  únicas  em  que 
tive  occasião  de  vêl-o,  de  ouvil-o  conversar,  de 
apreciar  o  seu  espirito  suavemente  sombrio. 

-<Eu  não,  conhecia  António  Nobre.  Uma 
noite,  ao  entrar  em  ca>a  da  familia  d'um  amigo 
seu,  disseram-me: 

"  —Sabe?  —  Vem  hoje  cá  o  António  Nobre. 

"A  noticia  nâo  rne  alvoroçou.  Interessava-me 
pouco  o  poeta,  cujos  versos  não  comprehendia. 

"António  Nobre  appareceu  e  então  comecei 
a  perceber  o  dominio  que  exercia  em  todos 
que  se  approximavam  da  sua  estranha  persona- 
lidade. E  exprimo-me  d'esta  forma  absoluta, 
por  que  vi,  n'aquella  noite,  o  encanto  invadir, 
sem  excepção,  as  pessoas  que  o  rodeavam. 

'i António  Nobre  era  n'esta  época,  18Q8,  um 
homem  de  figura  delicada,  rosto  paílido,  expres- 
sivo, completamente  rapado,  o  que  mais  deixava 
admirar  a  finura  extrema  das  suas  feições,  es- 
pecialmente a  bocca,  tão  correcta,  de  linhas  tão 
suaves,  que  ficaria  bem  em  rosto  de  mulher.  A 
fronte  ampla,  começava  a  tornar-se  ainda  maior 
pelo  rarear  do  cabello,  e  n'aquella  physionomia 
um  pouco  fatigada  e  doentia,  os  olhos  abriam- 
se  enormes,  escuríssimos,  profundos,  admiravel- 
mente bellos. 

«O  poeta  estava  vestido  negligentemente, 
calçava  umas  botas  deselegantes  e  solidas. 
Achei-o  despretencioso,  como  indifferénte  ao 
effeito  que  a  sua  presença  produzia.  Eu  tinha 

F.  4 


26  A  Afronta  a  António  Nobre 

ouvido  algumas  vezes  accusal-o  de  vaidoso,  mas 
não  me  deu  essa  impressão  a  sua  altitude.  Pa- 
receu-me  que  n'elle  a  idéa  do  próprio  valor, 
era  uma  convicção  e  não  uma  vaidade. 

«Acceitava  o  facto  simplesmente,  conscen- 
ciosamente,  e  referia-se  a  isso  com  toda  a  natu- 
ralidade, como  a  coisa  que  não  merecesse 
admiração.  Pelo  menos  foi  isto  que  julguei  vêr. 

«A  sua  maneira  de  conversar  prendia,  im- 
pressionava, penetrava.  A  voz  lenta,  grave,  um 
pouco  velada,  com  umas  leves  intonoções  de 
ironia,  deixava  cair  as  palavras  serenamente,  e 
poucas  vezes  as  suas  mãos  pallidas  acompanha- 
vam com  um  gesto  o  que  dizia". 

E,  ainda  melhor  do  que  este  testemunho,  en- 
contro no  1.°  volume  das  Memorias  de  Raul 
Brandão,  o  grande  prosador  hodierno,  um  ir- 
mão gémeo  de  Dostoie>»'ski,  nascido  sob  o  ceu 
português,  estas  páginas  de  evocação  do  Poeta, 
formidáveis  de  sinceridade,  num  bater  de  peito, 
contrito  e  comovente,  que  espanta : 

"18  de  Março-1900. 

"Faz  hoje  annos  que  morreu  António  Nobre, 
Em  pequeno  ia  com  Eduardo  Caminha   *   en- 


(*)  Eduardo  Caminha?  Deve  ser  'antes  Eduardo 
Coimbra,  o  malogrado  poeta  dos  Dispersos,  morto  aos 
18  anos,  e  a  cuja  memória  António  Nobre  escreveu  as 
seis  quadras  da  poesia  Sepulchrosito,  publicadas  no  n.° 
6  da  2.*    série  de   A  Águia,  com    uma    nota   do   autor 


A  Afronta  a  António  Nobre  27 

terrar  os  seus  versos  no  jardim  solitário  do 
Palácio,  e  pedia,  com  os  olhos  límpidos  e  sô- 
fregos, uma  Biblia  para  repousar  a  cabeça 
quando  o  levassem  no  caixão. .  .  António  Nobre 
usava  uma  abotoadura  de  cabeças  de  pregos 
e  sorria  com  um  modo  e  um  ar  de  ternura  e 
desdém.  Fugiam  delíe  antes  de  publicar  o  Só; 
.os  poetas  do  seu  tempo  odiaram-no  depois  de 
publicar  o  Só.  Ser  diferente  dos  outros  é  já 
uma  desgraça;  ser  superior  aos  outros  é  uma 
desgraça  muito  maior.  Viveu  sempre  isolado. . . 

Entrou  na  morte  como  tinha  vivido  —  só 

"Digamo-lo,  digamo-lo...  No  fundo  detes- 
taram-no,  detestaram-no  todos.  Nào  lhe  pude- 
ram perdoar  a  impertinência,  o  desdém,  o  gé- 
nio. Era  um  ser  diferente.  Não  agradava  a  nin- 
guém. Só  as  mulheres  o  amaram.  Era  um  Poeta. 
Desconheceu  a  vida  pratica.  Tinha  a  consciência 
do  seu  valor,  e  uma  superioridade  que  se  nào 
podia  aturar.  Estávamos  todos  mortos  por  nos 
desfazermos  d'esse  ser  aparte,  d'esse  eterno 
cônsul  sem  consulado,  d'esse  estudante  de 
Coimbra  que  os  lentes  reprovavam  e  que  nos 
fazia  sombra.  A\as  debalde  o  arredámos  :  houve 

indicando,  bem  explicitamente,  qual  a  sua  intenção — come- 
morativa do  enterro  feito  em  1883  de  versos  de  ambos  na 
gruta  de  Luís  de  Camões,  no  Palácio.  Também  a  poesia 
do  Só,  Ca(ro)  Da(ta)  Ver(mibus)  diz  :  «iMemoria  a  J. 
d'Oliveira  Macedo,  Eduardo  iloimbra,  António  Fogaça». 

C.  de  F. 


28 A  Afronta  a  António  Nobre 

uma  coisa  nova  que  passou  no  mundo  e  que 
ficou  no  mundo — que  nos  ficou *na  alma   .  • 

«Agora  estamos  todos  apaziguados,  todt,'S 
podemos  esquecer  a  superioridade,  a  afectação 
e  o  desdém  infantil  de  António  Nobre. 

"Foi  para  a  cova  completar  trinta  e  três 
anos  n'um  dia  de  chuva  como  este,  frio  e  sujo, 
o  poeta  insolente  como  um  principe  e  adorá- 
vel como  uma  creança.  Quantos  estavam  alli  á 
beira  do  tumulo  ?  Meia  dúzia  escassa,  o  Frei,  o 
Justino,  o  Eduardo  de  Sousa,  eu  —  e  quem 
mais?  quantos  mais?  Os  jornaes  deram  a  sua 
morte  em  duas  rápidas  linhas.  Respirou-se. 

«Hoje  é  um  dos  poetas  portuguezes  com 
mais  admiradores.  E'  um  poeta  de  simpathia. 
Nunca  teve  sorte  senão  depois"  de  morto.  Por- 
quê? Porque  não  misturou,  como  nós  todos,  o 
sonho  com  a  vida  pratica.  Ao  contrario,  raros 
homens  terão  posto  tão  de  acordo  a  vida  com 
o  sonho.  Fez  mais ;  suprimiu  a  vida.  Correu  o 
globo  e  só  a  si  próprio  se  encontrou.  Viu  o 
mundo  e  nunca  assistiu  a  outro  drama  que  não 
fosse  o  da  sua  alma.  E  poentes,  arvores,  esírel- 
las  ou  pedras,  entraram-lhe  no  coração  como 
espadas.  Nenhum  outro  exprimiu  d'uma  forma 
tão  sua  o  universo.-  Que  universo,  dirás?  O 
meu  ?  o  teu  ?  .  Não,  o  que  elle  descobriu, 
scismando  como  um  navegador,  á  proa  do  seu 
barco . .  •  Por  isso  nui;ca  hão-de  faltar  sonha- 
dores   que   evoquem    essa    singular   figura   de 


A  AtYonta  a  António  Nobre       29 

poeta,  que  uma  vez  atravessou  a  terra,  soluçou, 
monologou  como  Hamlet  e  sumiu-se  logo  no 
sepulchro". 

Este  corajoso  «mea  culpa»  chancela  de  ver- 
dadeiro o  que  afirmei,  pois.  Acompanha-o  uma 
impressionante  gravura  "António  Nobre  no 
caixàO",  nunca  reproduzida,  creio,  em  qualquer 
dos  trabalhos  até  hoje  publicados  sobre  o 
Poeta.  Apresenta  um  aspecto  muito  diferente 
daquele  que  todas  as  outras  suas  conhecidas 
fotografias  nos  dão.  Mais  velho,  o  cabelo  mais 
escasso,  o  bigode  crescido  e  farto  caindo  ao 
abandono  sobre  a  boca,  a  barba  também  envol- 
vendo-lhe  cerradamente  o  queixo,  tais  como 
ele  nào  usau,  -  estas  divergências  fisionómicas, 
em  relação  aos  retratos  vulgares,  lornam-no 
irreconhecível  à  primeira  vista.  Mas,  se  lhe  fi- 
xarm.os  os  olhos  —  apesar  de  cerrados,  ó  caso 
estranho  !  —  logo  o  reconhecemos  e  identifi- 
camos. São  os  seus  olhos,  nào  ha  dúvida!  Ás 
suas  pupilas  magas,  largas  e  expressivas,  co- 
brem-nas  ciosamente  as  pálpebras,  mas  a  gente, 
nào  sei  porquê,  adivinha-as,  vê-as,  negras,  bri- 
lhantes, profundas,  misteriosas,  carregadas  de 
sonho,  voltadas  decerto  para  o  oceano  da  eter- 
nidade, como  «navegador,  á  proa  do  seu  bar- 
co",  que  foi,  no  dizer  de  Raul  Brandão. 

Destacando-se  na  alvura  da  camisa,  do  co- 
larinho e  da  gravata  e  emergindo  de  entre  tu- 
fos de  hervagem  e  flores,  parece  até  que  a  sua 


30  A  Afronta  a  António  Nobre 


cabeça  de  dolorido  ostenta  já  na  barba  e  no 
bigode  bastos  fios  de  prata,  a  mascararem  com 
uma  velhice  jorematura  os  seus  trinta  e  dois 
anos  de  plena  vida.  Fora  a  Morte,  talvez,  que, 
sentindo-se  mais  velha  do  que  ele,  —  oh !  muito 
mais  velha!  —  para  dalgum  modo  atenuar  a  di- 
ferença entre  a  idade  prrjpria  e  a  do  seu  noivo, 
assim  procurou  aproximá-lo  mais  de  si,  enve- 
Ihecendo-o,  num  assomo  violento  de  ciúme   . . 


De  António  Nobre,  poucos  ou  nenhuns  iné- 
ditos, no  sentido  rigoroso  do  termo,  existirão 
hoje,  visto  A  Águia,  da  Renascença  Portuguesa, 
do  Porto,  num  carinhoso  preito  de  admiração, 
se  ter  dado  já  por  diversas  vezes  à  louvável  ta- 
refa de  publicá-los,  chegando  mesmo,  àlêm  de 
editar  o  Só,  a  fazer  do  n.°  10  da  1."  série,  de 
julho  de  1911,  como  que  um  opúsculo  especial 
em  sua  memória.  Trouxe  aí  a  lume  muitas 
poesias  nunca  anteriormente  dadas  à  estampa 
umas,  outras  que  o  tinham  sido  mas  não  no  Só 
nem  nas  Despedidas  e,  por  isso,  quási  intangí- 
veis para  o  prazer  espiritual  de  muitos  dos  de- 
votos do  Poeta,  soterradas  como  eram  em 
páginas  de  jornais  e  revistas  efémeras,  e  outras 
ainda  que  a  mão  de  Auto,  subitamente  enfadada, 
numa  dessas  rajadas  de  tédio  que  tantas  vezes 
enegreciam  o  firmamento  claro  do  seu  estro, 
afastara   de   si,   a   meio   da  realisaçào,    e  para 


A  Afronta  a  António  Nobre  31 


sempre  ficaram  incompletas,  mutiladas  na  sua 
beleza.  Capitaneou  essas  poesias  um  desenho 
de  António  Carneiro,  soberbo  pela  interpreta- 
ção psicológica  dos  seus  traços,  em  que  o  lápis 
bruxo  do  artista-pintor  nos  deixa  adivinhar  o 
mundo  complexo  de  pensamentos  e  sensações 
que  tumultuava  no  íntimo  do  Poeta.  Seguiram 
também  esse  retrato  três  curiosas  reproduções 
fotográficas  e  o  fac-siinile  dum  autógrafo  de 
Nobre.  É  este  número  da  excelente  revista 
portuense,  sem  dúvida,  um  valioso  e  impres- 
cindível subsídio  para  o  estudo  completo  do 
Poeta  que  se  faça  algum  dia.  Mais  tarde,  ainda 
ela  voltou,  em  vários  números  da  2.^  série,  a 
inserir  novas  poesias  de  António  Nobre,  tam- 
bém exiladas  dos  seus  dois  únicos  livros,  e 
que.  futuramente,  como  é  de  justiça,  se  encon- 
trarem vontade  piedosa  e  amiga  a  coligi-las 
num  volume,  -  reavivando  o  antigo  propósito, 
logo  tomado  quando  da  impressão  das  Despe- 
didas, e  primitivamente  cometido  a  Justino  de 
Montalvão,  creio,  —  com  outras  se  arregimenta- 
rão de  modo  a  formar  o  texto  dos  Primeiros 
versos,  livro  anunciado  mas  nunca  vindo  a 
lume,  atirados  de  prestes  os  versos  que  o  com- 
punham para  a  penumbra  empoeirada  dos  pa- 
peis íntimos  e  avulsos,  não  sei  eu  e  não  sabe 
ninguém  ainda  hoje  ao  peso  de  que  rasoáveis 
motivos. 

Assim,  se  me  não  é  concedida  a  honra  de  va- 


32  A  Afronta  a  António  Nobre 

lorizar  estas  (Dáginas  com  quaisquer  produções 
de  Nobre  absolutamente  inéditas,  quis,  contudo, 
um  benéfico  lance  do  acaso  que  me  viessem 
cair  entre  as  mãos  uns  recortes  de  jornais  an- 
tigos com  versos  da  sua  primeira  fase,  já 
documentando  exuberantemente  a  riqueza  do 
seu  temperamento  lírico  e,  sobretudo,  inte- 
ressantes pela  naturalidade,  pela  frescura  da 
maneira,  entào  ainda  bafejada  por  um  espírito 
que  trazia  o  sol  doirado  dà  mocidade  alegre  a 
bater-lhe  em  cheio,  scentelhando-o  de  excelsa 
graça,  de  fina  bonomia,  e  mal  deixando  pres- 
sentir a  aproximação  sombria  do  pessimismo, 
que  pouco  mais  tarde  havia  de  começar  a  per- 
seguí-lo pela  vida  fora,  braço  dado  com  a 
doença,  em  conúbio  trágico,  para  um  apadri- 
nhamento sinistro  e  mortal. 

Como  nenhuma  das  poesias  que  seguem 
faça  parte  dos  livros  do  Poeta  ou  das  exuma- 
ções de  A  Águia  realisadas  até  o  presente,  nem 
mesmo  as  tenha  eu  visto  citadas  por  algum 
dos  muitos  escritores  que,  episodicamente  ou 
longamente,  teem  versado  a  individualidade  de 
António  Nobre,  concluí  estarem  elas  em  abso- 
luto esquecidas,  e,  deste  modo,  já  que  um  feliz 
acaso  mas  desvendava  e  punha  sob  os  olhos, 
me  competia  divulgá-las  aqui. 

É  esta  a  contribuição  que  posso  deixar  ao 
coleccionador  que  àmanhan  surja  a  enfeixar 
as   composições    poéticas   do   ciclo  inicial   do 


A  Afronta  a  António  Nobre  33 


Poeta,  a  sua  primeira  colheita  de  frutos  de 
Beleza,  de  Graça  e  de  Sonho,  doirados  e  sa- 
borosos para  quem  os  vê  e  lhes  saboreia  ape- 
nas o  inebriante  sumo  da  polpa,  nem  sequer 
adivinhando  quanta  dor  dilacerou,  triturou, 
rasgou  primeiro  as  entranhas  maternais  do  es- 
pírito criador  que  atirou  para  a  luz  solar,  e  em 
forma  tão  generosamente  comunicativa,  essa 
colheita  magnífica. 

Pequena  contribuição,  sim.  Mas,  reconhe- 
cendo a  sua  modéstia,  não  a  considero,  toda- 
via, importuna. 

Faço  transcrição  fiel,  respeitando  rubricas  e 
ortografia : 

O  ECLIPSE 


{24  de  setembro  de  1884) 

N'aquella  tarde  eii  contemplava,  ancioso, 

A  lua  das  marés  : 
Ia  ver  um  phenomeno  curioso, 

Pela  primeira  vez. 

Desde  as  sete  horas  que  eu  me  achava  prompto, 

Pois  vinha  no  jornal 
Que  se  daria,  ás  sete  e  meia  em  ponto, 

O  eclypse  total. 

Na  praia,  Miss !  áquella  hora  havia 

Enorme  sensação : 
Enthusiasmada,  a  gente  discutia 

Com  o  óculo  na  mão 


34  A  Afronta  a  António  Nobre 


E  como,  é  certo,  com  a  vista  núa, 
Tam  fraca  e  tam  subtil, 

Tu  não  podias  observar  a  lua. 
Astrónomo  gentil. 

Um  moço  poeta,  rouxinol  das  praias. 

Um  oculo  offereceu 
A  ti,  meu  doce  Ptolomeu  de  saias, 

Geometra  do  céu  ! 

Assestaste-o,  mas  nada:  uma  imprevista 
Mancha  aos  teus  olhos  sáe, 

Pois  que  estava  graduado  pela  vista 
Do  teu  velhinho  pae. . 

Da  praia,  entanto,  na  deserta  areia. 

Caia  o  luar  a  flux, 
E  nos  céus  fulgurava  a  lua  cheia. 

Cheia  de  tanta  luz, 

Que  tu,  imaginando  ver  da  aurora, 

O  lúcido  arrebol. 
Disseste  :  «Estou  capaz  de  abrir,  agora, 

O  meu  chapéu  de  sol  .  » 

Única  phrase  que  tombou,  creança, 

Do  róseo  lábio  teu, 
Porque  depois,  —  que  súbita  mudança  ! 

Tornou-se  escuro  o  ceu  . . 

E  a  lua,  a  pouco  e  pouco  desmaiando, 

Sumia-se  no  ar, 
Como  se  um  monstro  a  fosse  devorando, 

Na  sombra. .    devagar. . . 


A  Afronta  a  António  Nobre  35 


Á  hiz  da  lua  succedeu  a  treva, 

Treva  de  horror  sem  fim, 

Côr  dos  teus  olhos,  deliciosa  Eva  ! 
Meu  pallido  jasmim  ! 

E  ao  ver-me  só  nas  trevas,  de  repente. 

Clamei  por  ti,  clamei. . . 
E  interrogando  a  multidão,  a  gente, 

Em  vão  !  Não  te  encontrei  ! 

Ah,  bem  dizem  as  lendas,  os  adágios, 

E  as  bruxas  do  Sabbat, 
Que  os  eclypses  da  lua  são  presagios, 

Sinaes  de  coiza  má  ! 

Por  isso  o  Mal  com  sua  garra  adunca 

Me  separou  de  ti. 
Pois  que. tu  nunca  mais  me  viste,  nunca  ! 

E  eu  nunca  mais  te  vi  . 

E,  hoje,  nas  trevas  sepulchraes  e  calmas. 

Eu  vivo,  por  meu  mal  : 
É  que  também  se  deu  de  nossas  almas 

O  eclypse  total  !     - 

Do  livro,  no  prélo  :  «Alicerces>. 

António  Nobre. 


Tem  esta  poesia  a  nota  interessante,  por 
nova,  de  denunciar  o  título  dum  livro  Alicer- 
ces, que  não  consta  do  «Plano  das  obras  de 
António  Nobre»,  publicado  pelo  sr.  Visconde 
de  Villa-Moura  no  seu  notável    Ifvro    António 


36  A  Afronta  a  António  Nobre 


Nobre  (seu  génio  e  sua  obra)  o  único  trabalho 
de  vulto  inteligentemente  urdido,  que  até  a 
data  alguém  deu  a  lume  sobre  a  figura  do 
Poeta,  porque  nào  se  detêm  nele  a  catalogar 
poesias,  na  ânsia  comezinha  e  burocrática 
de  lhe  abrir  assento  de  baptismo  nesta  ou 
naquela  escola  literária,  mas  sim,  armada  a  sua 
observação  com  a  melhor  e  a  mais  subtil  das 
lupas,  que  o  seu  próprio  temperamento  de 
Artista  lhe  forneceu  —  na  quási  plena  identi- 
dade de  duas  maneiras  de  ser  psíquicas,  a  de 
si  mesmo  e  a  de  Anto,— desceu  ao  íntimo 
deste,  a  sondar-lhe  fibra  por  fibra  a  alma 
enorme  e  ondeada  de  crises  supra-terrenas  e 
infernais.  Com  exactidão,  obstinou-se  em  des- 
cobrir primeiro  o  génio  do  Poeta  e  em  de- 
monstrar depois  que  a  sua  obra  ali  embebe  pro- 
fundamente as  raízes,  seguindo  assim  processo 
contrário  ao  usado  pelo  vulgo  dos  tratadores 
de  coisas  literárias,  com  óculos  críticos  enca- 
valitados no  nariz,  foscos  de  erudição,  a  ates- 
tar-Ihes  à  légua- a  miopia,  isto  é,  a  impotência 
para  lobrigarem  algo  àlêm  do  papel  e  dos  ca- 
racteres nele  exarados. 

A  poesia  que  segue  nào  a  datou  o  Poeta, 
nem  sei  ao  certo  a  data  do  periódico  que  a 
inseriu,  pois  o  fragmento  que  possuo  abran- 
ge '  apenas  os  versos.  Contudo,  à  margem, 
alguém  escreveu  a  lápis  1888,  que  julgo  indicar 
o  ano  em  qtie  saiu  o  impresso. 


A  Afronta  a  António  Nobre  37 


AO  VIOLÃO 


Manhã  de  junho.  O  céu  é  rubro.  A  lua,  tonta 

De  somno,  vae  tombando. .  .  O  sol  no  azul  desponta 

Apagam-se  de  todo  os  astros:  pyrilampos 

Que  scintillam  do  céu  nos  azulados  campos. 

Dos  olivaes  do  monte  o  rouxinol  diz  missa 

Á  natureza  que  o  ouve,  extactica  e  submissa. 

Os  pássaros  gentis,  vindos  á  luz  este  anno, 

Andam  em  bando,  aos  mil,  n'um  labutar  insano, 

A  alluir,  a  desfazer  com  o  biquito  e  as  azas, 

Os  ninhos  virginaes,  as  suas  aéreas  casas 

A  luz  do  sol,  desperta  a  aldeia  socegada: 

Os  carros  da  lavoira  alongam-se,  na  estrada. 

D'um  misero  casal,  á  soleira  da  porta, 

Uma  velhinha  mai^ra  e  doente,  quasi  morta, 

Fia  na  sua  roca  o  linho  das  estrigas. 

Muito  ao  longe   no  monte,  algumas  raparigas 

Andam  á  lenha.  Sim;  já  canta  a  cotovia: 

É  preciso  cuidar  da  refeição  do  dia- . . 

Vêm-se  ao  collo  das  mães,  pequenos,  a  gritar, 

Despenteados,  sem  graça,  immundos,  por  lavar. 

E  vê-se,  além,  passando,  a  multidão  cristã 

Que  vae  para  a  capella  ouvir  a  missa  aldeã. 

E  eu,  mal  caiu  no  oceano  a  derradeira  estrella. 

Abri  a  larga,  antiga,  hierática  janella, 

Deixei  que  o  ar  lavasse  os  meus  pulmões  e  vim 

Postar-me,  doce  amadal  ao  pé  do  teu  jardim. 

Dormes  ainda,  eu  sei:  a  tua  alma  habita, 

Nesse  Paiz,  além  da  abobada  infinita. . . 

Mas  sei  que  tu,  de  mãos  cruzadas  sobre  o  peito, 

Est.is,  alli,  n'um  branco  e  pequenino  leito. 

Assim  não  ouves,  não,  uma  canção  secreta 

Que  eu  vibro,  baixo  e  baixo,  cm  meu  violão  de  poeta. 


38  A  Afronta  a  António  Nobre 

Acorda,  meu  Amor!  Levanta-te,  creança! 

Desprende  ao  vento  a  longa  e  emmaranhada  trança. 

Ajiido-te  a  fazer,  (por  que  isso  me  compete), 

A  tua  delicada  e  simplice  toilette. 

Só  te  verá  o  mar,  esse  discreto  velho . . . 

O  lago  do  jardim  será  o  teu  espelho. 

E,— escuta!— banhar-te-has,  n'um  cálice  de  rosa: 

Para  o  teu  corpo,  flor!  é  uma  tina  espaçosa!  - . . 

Hei-de  enxugar-te  o  corpo,  á  luz  dos  meus  desejos, 

E  cobrir  te-hei,  depois,  com  um  lençol  de  beijos! 

Vamos!  acorda,  amor!  Levanta-te  do  ninho! 

Descerra  o  meigo  olhar;  veste  o  roupão  de  arminho, 

E  vem  comigo,  vem,  por  esses  campos  fora: 

Espera-nos  o  almoço  a  que  preside  a  Aurora! 

Ah,  quanto  é  bello  vêr  a  natureza  era  festa! 

Que  harmonias  sem  fim,  nos  ramos  da  floresta! 

Como  é  viril  e  grande  a  voz  que  sae  da  Terra, 

E  vae  de  praia  em  praia,  e  vae  de  serra  em  serra! 

As  rolas  passam,  longe...  e  não  sei  que  ave  canta: 

Que  muzica  divina  e  explendida  garganta! 

Mais  uma  vez:  acorda!  As  doces  cotovias 

Clamam  por  ti  do  ceu  e  mandam-te  os  «Bons  Dias». 

Levanta-te  e  verás  como  é  formoso  isto: 
O  céu  é  de  rubins,  como  o  lençol  de  Cristo! 
A  Terra  nada  em  luz;  tem  uma  côr  de  festa, 
Piírece,  até,  meu  Deus!  que  em  cima  da  floresta 
Caiu  o  sangue  hostil  de  trágicas  batalhas. 
Os  montes  vêem-se  além  a  arder,  como  fornalhas 
Onde  se  incinerasse  o  corpo  d'um  gigante! 
Os  cravos  do  jardim  parecem,  n'este  instante. 
Os  cravos  com  os  quaes  pregaram,  n'uma  cruz, 
Os  frios  pés  e  as  mãos  tão  brancas  de  Jesus! 
Os  morangos  sensuaes  parecem  corações 
Esfaqueados,  vertendo  o  sangue,  aos  borbotões, 
E  lagrimas  de  fogo  as  cerejas  vermelhas! 


A  Afronta  a  António  Nobre  39 


Nas  amplidões  do  valle  as  fulgidas  abelhas 
Andam  chupando  o  mel  e  a  virgindade  ás  rozas. 
Sente-se  palpitar  o  coração  das  Cousas   . . 
E  o  vinho  da  alvorada,  em  crispações  doiradas, 
Escorre  pelo  mundo  às  ondas,  ás  golfadas! 

Mas  tu  não  ouves,  não,  e  mais  feliz  do  que  eu 
Que  não  possuo  a  Graça  e  a  protecção  do  ceu, 
Poisou  agora  mesmo,  á  beira  do  telhado 
Da  tua  casa  esguia,  um  Dou  Juan  alado: 
Safou-se  do  beiral  para  um  carvalho,  em  frente, 
E  d'esse  modo  altivo,  ignóbil,  insolente. 
Sem  o  menor  respeito  e  minimo  decoro, 
Fica-se  a  olhar-te, — assim, — fazendo-te  namoro, 
Vál  Abre-lhe  a  janella  e  deixa-o  entrar.  Coitado! 
Beija-lhe  as  pennas,  beija  e  affaga-o  com  cuidado. 
Que  eu  não  me  zango,  não.  Seja  feita  a  vontade 
Ao  brejeiro  pardal,  filho  da  Immensidade! 
Por  mim,  deixo-te  em  paz,  digo-te  adeus,  Aurora! 
E,  se  não  canto  mais  e,  se  me  vou  embora. 
Não  é  por  ódio,  crê;  não  é  por  ciúmes,  não: 

— Partiram-se-me,  filha!  as  cordas  do  violão  . . 

António  Nobre. 

»  *  * 

O  SÓ  já  hoje  se  inscreve  no  número  das 
obras  clássicas  da  literatura  portuguesa  e  a  no- 
toriedade que  disfruta,  justa  e  calorosa,  garante 
bem  que  será  lido  e  amado  enquanto  se  falar 
a  nossa  língua.  Já  no  presente  as  Antologias 
arquivam  trechos  seus,  criteriosamente  escolhi- 
dos   como  paradigmas   de  beleza  poética,  na 


40  A  Afronta  a  António  Nobre 


suavidade  e  equilíbrio  do  ritmo  e  no  surto  alto 
da  inspiração,  que  o  desprende  da  chateza  dos 
versifícadores  vulgares  e  o  arremessa  para  as 
rejriões  da  violenta  emoção,  a  única,  ao  certo, 
em  que  se  aprovisionam  de  ar  suficiente  e  vi- 
tal os  pulmões  dos  grandes  Poetas  e  Artistas, 
e  ionge  da  qual  eles  asfixiam  e  abrem  cavernas. 

Fora  disto,  muito  acima  deste  culto  semí- 
oficial,  o  que  se  apresenta  como  mais  impor- 
tante, como  mais  impressionante,  pelo  seu  si- 
gnificado de  espontaneidade,  é  a  corrente  de 
leitores,  livres  da  menor  coacção,  cada  vez  en- 
grossando mais  e  mais  e  erguendo  cm  unísono 
coro  as  suas  vibrantes  confia  't  <io  encanta- 
mento sentido,  num  contágio  c  Inaçào  que 
nào  abranda  de  vitalidade  por  .  anos  que 
passem  e  outros  livros  tarnbêm  .;.  valor  sur- 
jam a  provocar  a  atracção  simpáiica  do  publico. 

Três  edições  conta  já  o  Só,  todas  exceden- 
do, pelas  suas  tiragens  avultadas,  a  magreza 
clássica  das  edições  do  nosso  estreito  mercado 
literário,  que  então  em  livros  de  versos  (e  isto 
é  num  país  de  poetas!  .)  é  duma  debilida- 
de irrisória.  Pelo  contraste  ressaltante  deste 
facto  tnais  avulta  ainda  o  sucesso  da  obra  de 
António  Nobre,  ao  presente  por  completo  es- 
gotada e  sem  grandes  esperanças  de  ser  em 
breve  reeditada  de  novo,  por  incompreensível 
recusa  da  família  do  Poeta  às  instâncias  que 
nesse  sentido   de  várias  partes  lhe  têem  sido 


A  Afronta  a  António  Nobre  41 


feitas.  Segundo  depoimento  de  A  Águia,  só  do 
Brasil  chegam  frequentemente  encomendas  de 
100,  500  e  1.000  exemplares,  que,  está  claro, 
pela  infeliz  circunstância  apontada,  nào  podem 
ser  satisfeitas.  Assim,  sobre  os  raros  exempla- 
res que  aparecem  à  venda,  em  liquidações  de 
bibliotecas  particulares  e  fundos  de  livraria,  a 
especulação  galopa  infrene,  cabriola,  delira.  Por 
exemplares  das  2.^=  e  3."^  edições  surgem  ofer- 
tas gradas,  de  cincoenta  escudos  e  mais.  Quan- 
to aos  da  edição  princeps,  os  poucos  felizes  que 
hoje  os  possuem,  aferrolham-nos  ciosamente, 
em  ímpetos  de  bibliófilos  avaros  e  loucos. 

Contudo,  e  em  inexpugnável  oposição  aos 
entraves  levantados  injustamente  à  sua  expan- 
são, e  às  pedradas,  não  muitas,  valha  a  verda- 
de, dum  ou  outro  zoilo,  que,  de  quando  em 
longe,  zunem  desarmoniosamente  na  ambiên- 
cia carinhosa  que  o  circunda,  o  interesse  pelo 
livro  mantêm-se  sempre  forte,  palpitante  e  cá- 
lido, como  se  constata. 

E  porquê?  Qual  a  causa  desta  violenta  e 
estranha  atracção  pelo  Só?  Que  procura  nele 
essa  corrente  de  leitores,  dia  a  dia  maior e mais- 
ávida?  Decerto  aspirar  o  mágico  hálito,  ora 
acre,  ora  doce,  do  mistério  e  da  tristeza,  que 
dos  seus  versos  dimana,  como  se  no  facetado 
maravilhoso  daquelas  estrofes  se  encontrasse 
espelhado,  retratado  com  espantosa  nitidez  e 
similhança  o   fundo  revolvido  e  chagado  das 

F.  5 


42 A  Afronta  a  António  Nobre 

suas  almas,  ainda  teimosas,  apesar  do  quoti- 
diano e  brutal  embate  da  realidade  que  as  ro- 
deia e  de  contínuo  as  rasga  com  as  garras 
aduncas,  em  vestirem-se  da  clâmide  branca  e 
Ihamada  de  oiro  do  Sonho.  E'  como  se  aque- 
las perturbadas  almas,  que  se  aglutinam  na  mul- 
tidão caudalosa  dos  seus  leitores,  pressentis- 
sem e  adivinhassem  quási,  ao  lerem  essa  auto- 
biografia sombria  e  convulsa,  serem  elas  mes- 
mas pobres  irmans  da  alma  de  Anto,  tristes 
como  ela,  irmans  pelo  sangue  negro  e  tóxico 
da  dolorosidade  que  as  intumece,  pela  com- 
plexidade, cheia  de  antagonismos,  das  ambi- 
ções que  lá  dentro  redemoinham,  pela  submis- 
são, quási  aprazível,  quási  voluptuosa,  ao  cilí- 
cio da  dúvida  que  as  flagela,  pelo  peso  da  des- 
crença que  as  abate  e  roja  no  pó  cinzento  e 
frio  do  tédio.  Irmans,  por  um  lado,  incompara- 
velmente mais  felizes,  pois,  desprovidas  do  sen- 
tir mago,  da  intuição  feiticeira  dos  Artistas, 
sentem  e  sofrem,  ao  invez  deles,  apenas  a  agrura 
dos  seus  destinos,  num  pequeno  quinhão,  res- 
trito às  suas  personalidades  vulgares,  embora, 
por  outro  lado,  se  devam  achar  um  tanto  mais 
desgraçadas,  porque,  sentindo  e  sofrendo,  elas, 
almas  rasas,  sem  o  condão  excelso  de,  na  voz 
divina,  de  oiro  e  cristal,  do  génio,  dizerem  alto, 
uivarem,  rezarem,  cantarem  as  sensações  do 
seu  martírio  e  os  sofrimentos  da  sua  tragédia 
ingente,— rudes,  mudas,  emparedadas,  não  po- 


A  Afronta  a  António  Nobre  43 


dem  alcançar  a  compensação  que  aos  excepcio- 
nais, pela  magestosa  beleza  que  impregna  os 
seus  desabafos  postos  em  Arte,  acode  a  aliviar- 
-Ihes  o  fadário  de  viverem  num  mundo  inferior 
e  contrário  à  sua  natureza  melindrosa. 

Se  o  culto  pelo  Só,  expresso  numa  perma- 
nente e  intensa  leitura  e  desdobrando  o  seu 
fogo  de  Vesta  em  espíritos  mais  ou  menos  ar- 
tistas, embora  apenas  receptivos,  assimiladores 
—  pois,  quanto  a  mim,  para  admirar  sincera- 
mente qualquer  obra  de  arte  é  de  absoluta  e 
primacial  necessidade  ser-se  de  algum  modo 
também  um  pouco  artista,  no  que  me  ponho 
de  inteiro  acordo  com  uma  opinião,  ainda  mais 
concreta  sobre  o  assunto,  de  Fa;.met,  o  mestre- 
-crítico,  le  lecteur  de  poetes  est  un  initié. .  , 
— é  tão  considerável,  que  em  breve  espaço  de 
tempo  lhe  rarefaz  no  mercado  as  edições  suces- 
sivas e  grossas  e  origina  um  jogo  diabólico  de 
cifras  sobre  os  poucos  exemplares  que  ainda 
aparecem,  como  acabo  de  dizer,  não  deve  igual- 
mente deixar  de  ser  apontada,  como  não  me- 
nor nem  menos  robusta,  antes  pelo  contrário, 
a  sugestão  que  ele  exerceu,  já  sobre  os  poetas 
contemporâneos  do  autor,  já,  e  maiórmente, 
sobre  os  das  nova  e  novíssima  gerações.  Acu- 
sam, bem  acentuado,  o  seu  ascendente,  todos 
os  que  após  ele  vieram  ao  mundo,  neste  reta- 
lho da  terra  ocidental,  com  a  dolorosa  e  estra- 


44  A  Afronta  a  António  Nobre 


nha  sina  de  vibrarem  suas  almas  acima  das  al- 
mas do  vulgo,  como  monges  e  levitas  mais  ou 
menos  inspirados  dessa  religião  de  sempre,  ou, 
de  quando  menos,  de  enquanto  os  Homens  per- 
manecerem humanos — a  Poesia. 

Exerceu  sugestão  —  disse.  Direi  melhor  — 
exerce,  pois  o  facto  dessa  sugestão  ainda  hoje 
se  constata  dia  a  dia  nos  livros  que  vão  apa- 
recendo. Sem  grande  arrojo  poderia  dizer  mes- 
mo-exercerá,  atendendo  a  que  no  Sô  ha  um 
manancial  inexgotável  de  poesia,  de  pensamen- 
to poético,  a  que,  não  só  é  lícito  alguém  recor- 
rer como  fonte  inspiradora,  mas  até  é  de  re- 
comendar que  assim  seja,  pelo  caracter  nacio- 
nal, português,  que  da  maior  parte  daquelas  es- 
trofes transpira.  Assim  se  terá  sempre  um  ele- 
mento poderoso  de  salutar  reacção  contra  as 
influências  estrangeiras,  que  a  moda  versátil 
nos  sopra,  e  ao  peso  das  quais  as  virtudes  .ma- 
ciças se  derrancam  e  estiolam  na  literatura  que 
fazemos. 

Investigada  com  vagar,  livro  por  livro,  a 
produção  literária  portuguesa  desde.  1892,  ano 
em  que  o  Só  surgiu,  até  o  presente,  obras  em 
prosa  e  em  verso,  tudo,  e  apartadas  em  ruma 
as  páginas  que  a  António  Nobre  e  ao  seu  gé- 
nio poético  se  referem,  atingiria  essa  ruma  àe 
papel,  sem  exagero,  um  vulto  montanhoso.  No 
curso  da  minha  longa  leitura,  quantos  comen- 
tários, estirados  ou  curtos,  quantas  rememora- 


A  Afronta  a  António  Nobre  45 


çòes,  quantas  citações  de  versos,  a  vigorisarem, 
a  imprimirem  o  prestígio  da  graça  e  do  senti- 
mento a  impressões  próprias,  eu  tenho  encon- 
trado, e  isto  ao  acaso,  sem  me  nortear  a  inten- 
ção de  encontrá-las?!  E  como  eu,  com  certeza, 
toda  a  gente  que  lê.  Ha  até  citações  dos  seus 
versos  já  consideradas  clássicas,  tào  usuais  são. 
Por  exemplo,  aqueles  dois  versos  evocados, 

Qn'é  dos  pintores  do  meu  paiz  extranho, 
Onde  estão  elles  que  não  vêm  pintar? 

sempre  que  se  quere  verberar  o  descuido,  o 
desapreço  dos  nossos  artistas  da  tela  pelos  en- 
cantos, tão  fartos,  louçàos  e  pitorescos,  do  nos- 
so torrão  serrano  e  da  beira-mar,  em  que  o 
azul  que  o  alpendra  esconde  a  velha  e  acesa 
pugna  do  Deus-cristào  e  de  Pan,  ambos  ciosos 
da  primazia  de  derramarem  sobre  ele  as  suas 
bênçãos  fecundas. 

Os  poetas,  principalmente,  como  é  natural, 
trazem  uma  abada  de  homenagens  espantosa, 
cristalisando-as  desde  as  simples  quadras,  já 
iniiineros  sonetos,  até  composições  longas,  sem- 
pre imbuídas  fortemente  de  veneração  pela 
sua  delicada  e  gentil  lembrança.  Quem  fizesse 
disto  colectânea,  quantos  volumes  de  In  Me- 
moriam obteria? 

E  sabe-se  bem  que  tais  juizos  encomiásti- 
cos, rendidos  de  respeito,  não  sobem  apenas  da 
massa  semi-anónima  dos  novos,  dos  neófitos 
das  letras,  muitos  dos  quais  de  novos  não  pas- 


46  A  Afronta  a  António  Nobre 

sam,  a  nào  ser  para  falidos,  mortos  e  malogra- 
dos, uns  pela  débil  compleição  do  seu  estro, 
outros  pela  tão  vulgar  e  estúpida  incompreen- 
são do  meio.  Não.  Bem  fundos  e  luminosos 
rastros  de  beleza  deixaram  e  deixarão,  os  ainda 
vivos,  após  si  muitos  dos  que  têem  turibulado 
junto  do  túmulo  de  Anto.  Foi  e  é  gente  de 
jupitereana  estirpe  a  das  romagens  piedosas  ao 
seu  leito  de  morte.  Foram  e  são  das  mais  ilus- 
tres e  mais  fidalgas  da  nossa  grei,  mãos  galhar- 
damente familiarisadas  com  um  instrumento  de 
trabalho,  donde  irradie  a  astral  scentelha  do 
talento,  seja  um  cinzel,  um  lápis  ou  uma  pena,, 
essas  mãos  postas  em  geito  de  oração  à  beira 
da  sua  campa  e  cobrindo-lhe  a  lousa  branca  de 
rosas  e  de  louros. 

Se  António  Nobre  não  fosse,  pois,  o  alto 
Poeta  que  foi,  se  a  sua  obra  não  merecesse, 
apesar  de  pequena  em  vulto  externo,  ficar  en- 
tre as  mais  perduráveis  obras  poéticas  da  lín- 
gua lusitana,  contra  o  que  arriscam  os  raros 
zoilos  que  o  apedrejam,  como  compreender, 
como  justificar,  esta  sinergia  laudatória,  tão  vi- 
brante e  partindo  precisamente  dos  núcleos  da 
multidão  mais  esclarecidos  de  luz  mental  e,  por 
isso,  mais  aptos  a  formarem  um  juizo  crítico,. 
severo  e  isento  de  falhas?  Que  estranho  dalto- 
nismo  o  seu,  se  se  tivessem  prestado  a  colabo- 
rar num  tal  engano?! 

Esta   ininterrupta  queima  de  incenso,  feita 


A  Afronta  a  António  Nobre 47 

àquêm  e  àlêm-mar,  pois  no  Brasil  esse  culto 
nào  é  menor,  em^  escritos,  em  trabalhos  plás- 
ticos, enfim,  nas  múltiplas  facetas  da  Arte,  de- 
monstrando à  sobreposse  a  larga  esfera  da 
influência  do  Poeta  e  o  profundo  conhecimen- 
to que  ha  dos  seus  versos,  tem  ainda  outra  ma- 
nifestação de  cunho  notável,  que,  em  certos  ca- 
sos, chega  a  ser  antipática  ou  mesmo  criminosa, 
diga-se  o  termo  violento  mas  exacto.  Ao  lado 
de  imitações  numa  ou  noutra  passagem,  ténues, 
pálidas,  e,  por  isso,  toleráveis,  e  mesmo  bastas 
vezes  confessadas,  sem  rebuço  hipócrita  a  amor- 
daçá-los, pelos  próprios  autores,  quási  sempre 
novatos  e,  assim,  necessitados  de  moldarem  a 
sua  emoção  na  dos  poetas  consagrados, — de- 
para a  gente,  em  não  menos  vezes,  com  fla- 
grantes desonestidades  de  imitação,  com  inegá- 
veis decalcos  da  maneira  e  dos  processos  de 
Nobre,  e  até  da  seiva  emocional  dos  seus  ver- 
sos, imitação  tão  fora  das  fronteiras  da  crítica 
mais  generosa,  que  perde  qualquer  jús  a  inti- 
tular-se  honesta,  e,  sendo  cópia  servil,  incorre 
na  classificação  condenatória  de  plagiato,  de 
roubo  literário.  Muitas  já  foram  denunciadas  e 
espiaram  o  crime  com  o  merecido  repudio 
público,  suscitado  por  essas  denúncias.  Das  que 
medram  ainda,  encapotadas,  nào  me  sorri  ser 
o  delactor. 

Não  se  dão  estes  decalcos  apenas  no  inte- 
rior do  Só,  isto  é,  no  seu  miolo  poético.  Como 


48^ A  Afronta  a  António  Nobre 

as  suas  edições,  principalmente  as  2.^  e  3.^  se 
revestiram  dum  aspecto  exótico,  original,  na 
disposição  das  páginas,  na  beleza  das  vinhetas, 
no  formato,  em  resumo,  em  toda  a  sua  figura 
material, — logo  outros  autores  se  deram  a  co- 
piar-lhes  o  corte  e  os  ornatos  da  vestimenta, 
desde  o  tipo  aos  desenhos.  Ainda  ha  poucos 
dias  me  mostraram  um  livro  brasileiro,  Se- 
tembro, de  Manuel  do  Carmo,  que,  já  sendo 
parte  do  seu  conteúdo  um  inferioríssimo  pas- 
tiche  do  poema  de  Anto,  procurou  também  im- 
primir ao  envólucro  uma  estreita  aproximação 
com  o  semblante  editorial  daquele.  E'  um  exem- 
plo, porque  estes  casos  são  muitos. 

Este  exagero  de  simpatia  por  António  No- 
bre, tomando  caracter  de  aberração,  resolven- 
do-se  em  corrupto  espírito  imitativo,  deu-se 
ainda  com  respeito  à  sua  singularidade  como 
homem.  O  snobismo,  que  de  tudo  se  apossa, 
tomou-o  à  sua  conta.  Mordidos  por  essa  tarân- 
tula, muitos  de  entre  a  roda  literária  e  artística 
da  sua  época  se  atiraram  a  copiar-lhe  os  gestos 
e  o  nó  da  gravata,  o  modo  de  andar  e  as  ati- 
tudes scismadoras,  o  erguer  da  cabeça  altiva  e 
os  menores  tics  pessoais,  embora  insignifican- 
tes, tudo,  numa  palavra,  que  puderam  da  sua 
excentricidade  instintiva,  bem  ou  mal,  mas  mais 
vezes  mal  do  que  bem.  Nem  mesmo  a  sua  doen- 
ça escapou — santo  Deus !  Estupidamente,  filia- 
ram nela  o  seu  poderoso  e  rútilo  talento:  e  lo- 


A  Afronta  a  António  Nobre 49 

go  surgiram  bandos  de  tísicos,  de  artificial  pa- 
lidez, de  tosse  rebuscada,  falando  voluptuosa- 
mente em  hemoptises,  em  pulmões  desfeitos, 
em  noivados  com  a  morte.  E,  se  um  arsinho  de 
geito  versificador  lhes  bafejava  o  íntimo,  pres- 
tes escorria  a  água-chilra  dos  seus  versos  pre- 
tensiosos, coxos,  urdidos  sobre  os  motivos 
mórbidos  do  cânon,  mas  sempre,  pela  falta  de 
sinceridade  bem  reconhecível,  soando  a  òco  e 
enfastiando  o  público,  que  pretendiam  épater. 
Como  o  arremedo  das  circunstâncias  físicas  era 
impotente  para  o  milagre  da  eclosão  dum  en- 
genho onde  nativamente  ele  não  brotara,  esta 
espectaculosa  mise-en-scène  patológica  e  ultra- 
-romântica,  breve  abriu  falência.  Mas  isto  nào 
impediu  que  talentos  verdadeiros  e  recem-na- 
aos  se  asfixiassem  dentro  dela,  podendo,  a  te- 
rem enveredado  por  caminho  mais  conforme 
à  sua  natureza,  vingar,  desabrochar,  desenvo!- 
ver-se  até  robusta  estatura.  Foi  longa  a  teoria 
destes  arlequins  de  hospital.  E  o  mais  célebre 
é  que  ainda  hoje,  vinte  e  tantos  anos  idos,  apa- 
recem . . . 

Ha  quem  debite  a  António  Nobre  as  culpas 
deste  desvio,  desta  contrafacção  baixa  e  gro- 
tesca. E'  óbvia  a  iniquidade  do  débito.  Se  al- 
guém toma  dum  gomil  de  Falerno  e  o  bebe 
até  a  embriaguês,  se  uma  criança,  brincando  à 
beira  dum  lago,  se  descuida  e  afoga  nele,  se 
um   insensato   expõi  longamente  a   cabeça  ao 


50 A  Afronta  a  António  Nobre 

sol  de  Agosto  e  se  adoenta, — de  quem  a  culpa? 
Do  vinho,  do  lago,  e  do  sol? 

E'  precisamente  um  caso  similar  ao  de  Mau- 
rice  Rollinat  imitando  à  outrance  Baudeíaire, 
forçando  por  viver-lhe  os  sentimentos,  repu- 
diando a  própria  personalidade  em  homena- 
gem à  musa  satânica  e  delirante  que  o  vate 
das  FLears  da  Mal  pusera  em  moda,  conseguin- 
do apenas  uma  cópia«má  à  custa  penosa  do 
estrangulamento  da  sua  índole  poética,  rústica, 
equilibrada  e  san,  de  que  parece  ter  saudades 
quando  escreve : 

Heureiíx  Thomme  qui  se  guérií 
De  la  vénéneuse  lecture, 
Du  projet  du  songe  et  nourrit 
Sa  pensée  avec  la  nature. 


Será,  assim,  justo  que  Baudeíaire  sofra  con^ 
denaçào  pelo  voluntário  descaminho  de  Rol- 
linat ? 

Para  remate  desta  ligeira  impressão  sobre  o 
feiticeiro  Poeta  do  Só,  que,  sincero  perante  o 
seu  próprio  temperamento,  e  deixando,  para 
mais,  tauxiada  magnificamente  a  sua  bela  obra 
com  as  duas  mais  altas  virtudes  exigidas  em 
Arte— a  originalidade  e  a  irradiação  emocional 
— teve  ainda  o  valor  de  ser  o  vidente  intérprete 
da  sentimentalidade  convulsa  e  decadente  da 
grei  da  sua  era,  e  quiçá  da  nossa,  —  seja-me 
lícito  transcrever  uma  pequena  parte  dum.  ar- 


A  Afronta  a  António  Nobre  51 

tigo  que  o  ilustre  escritor  sr.  jiilio  Dantas  pu- 
blicou em  1915  a  respeito  da  comemoração 
feita  em  Coimbra  a  António  Nobre.  Ti-anscre- 
vo  essas  frases  do  eminente  e  festejado  autor 
da  Ceia  dos  Cardeaes,  porque  vejo  nelas  uma 
formosa  e  eloquente  síntese  da  medida  lata 
daquele  valor:  "Nobre  não  foi  apenas  o  autor 
d'um  dos  mais  belos  poemas  que  tem  produzido 
a  alma  lírica  moderna:  é  a  figura  que  mais  pro- 
fundamente incarnou  a  grande  tristeza  nacio- 
nal, expressão  resignada  e  dolorosa  de  todas  as 
fadigas  da  raça.  Nenhum  livro  foi  tão  forte- 
mente sentido  pela  mocidade  portuguesa,  como 
o  Só.  Nenhum  livro  foi,  por  conseguinte,  tão 
comovidamente  amado.  E  porque?  Porque  nos 
seus  desalentos  profundos,  nas  suas  renuncias 
doentias,  nas  suas  agonias  formidáveis,  estamos 
todos  nós.  São  os  nossos  estigmas.  E'  o  nosso 
retrato.  A  minha  geração  reconheceu  se,  inteira, 
nas  paginas  confrangedoras  avesses  Luz iadas  da. 
decadência.  A  geração  novíssima  parece  — ái 
d'ela  e  de  nós! — reconhecer-se  também." 


Quem  é  o  sr.  (Albino 
Forjaz  de  5ampâio 


Findo  o  ligeiro  estudo  impressionista  que  so- 
bre António  Nobre,  o  notável  Poeta  do  Só,  atraz 
ficoU;  e  antes  de  examinar  detidamente  as  pe- 
ças do  processo  contra  ele  organizado,  surde 
agora  o  ensejo,  ou  melhor,  o  dever,  de  averi- 
guar quem  é  a  personalidade  que,  ao  convertê-lo 
em  pretenso  réu  de  imaginárias  culpas,  ousou 
saltear  a  jazida,  pequena  como  um  berço,  onde, 
entre  olorantes  lembranças,  repousava  a  sua 
ossada  infantil  e  branca,  revolvendo-a,  arran- 
cando-a  ao  merecido  repouso,  desornando-a 
das  grinaldas  em  que  tantas  mãos  devotas  a 
haviam  aconchegado. 

Se  bem  que  já  esta  empreza  de  quebrar  lousas 
tumulares  seja,  por  sinistra  e  arrepiadora,  inca- 


56 A  Afronta  a  António  Nobre 

paz  de  suscitar  simpatia  e  angariar  louvores  de 
gente  piedosa  e  boa,  nào  quero  ater-me  nesta 
questão  a  um  aspecto  de  mero  sentimentalismo 
e,  antes,  buscarei  imprimir-lhe  a  feição  mais 
prática  aplicável  ao  caso:  mensurar  a  estatura 
espiritual  do  juiz,  comparando-a  com  a  do  réu, 
observar  a  imaculidade  da  toga  que  envergou 
para  o  julgamento,  inquerir  da  gravidade  que 
transpira  do  seu  ciirriciiliim  vUcb,  fazer,  enfim, 
um  balanço,  ainda  que  rápido,  dos  altos  atri- 
butos que,  assistindo-lhe,  lhe  outorgaram  o  di- 
reito de  lavrar  uma  sentença  condenatória  con- 
tra o  Poeta,  com  punho  firme  e  de  carranca 
fera  e  ríspida. 

Como  prometo  no  Saibam  quantos...  de 
prefácio  a  este  despretensioso  trabalho,  pro- 
curarei caldear  de  calma  imparcialidade  a  tinta 
que  me  vai  servir  para  traçar,  tanto  este  capí- 
tulo de  comentário  ao  passado  literário  do  sr. 
Albino  Forjaz  de  Sampaio,  como  o  seguinte  e 
último,  de  decomposição  do  seu  António  No- 
bre que  suscitou  o  presente  opúsculo.  Poderá 
a  mihha  pena  aqui  deixar  exarada  uma  visão 
errónea,  mas,  se  o  fizer,  de  novo  o  garanto, 
não  será  no  intento  de  estrondear  efeitos  de 
briga  de  arraial:  se  erros  cometer,  serão  erros 
sinceros,  reçumantes  de  convicção.  Assim,  em 
nada  querendo  exceder  o  limite  que  demarquei 
para  os  meus  assertos,  fujo  a  tratar  duma  ques- 
tão  que  a  outro,  que  tivesse  em  mira  o  escân- 


A  Afronta  a  António  Nobre 57 

dalo,  sorriria:  a  legitimidade  ou  ilegitimidade 
com  que  o  sr.  Albino  Forjaz  de  Sampaio  faz 
uso  deste  apelido  em  vez  do  de  "Cunca"  ple- 
beu e  chato,  que  lhe  é  atribuído  por  quem  em 
,  tempos  na  imprensa  com  fragor  debateu  o  caso. 
E'  a  sua  personalidade  escriturai  que  me  im- 
porta: nela  me  confinarei. 

Por  nào  sei  que  misteriosa  razào,  desde  as 
Palavras  Cínicas  que  o  sr.  Albino  Forjaz  de 
Sampaio  vem  cuidadosamente  apagando  da 
lista  das  suas  obras  publicadas  os  seus  primeiros 
trabalhos  literários  dados  a  lume.  Modéstia  mal 
compreendida?  Nào  o  creio,  porque  a  ser  as- 
sim, faria  ele,  por  coerência,  igual  táboa  rasa 
dos  demais  livros.  Formo  a  este  respeito  uma 
presunção,  que  mais  adiante,  em  lugar  próprio, 
como  corolário  do  que  fôr  explanando,  virá 
mais  compreensível. 

Três  obrasinhas  em  verso  antecedem  o  pri- 
meiro volume  de  prosa,  tão  reclamado,  do  sr. 
Forjaz,  que,  é  evidente,  não  conseguiu  furtar-se 
à  trivial,  clássica  e  lusitana  costumeira  duma 
estreiasinha  poética. 

São  elas:  Violáceas,  em  1901;  O  Sol  do 
Jordão,  em  1Q02;  e  Ao  cair  da  folha,  em  1904. 

Violáceas,  é  uma  plaqueta  com  duas  páginas 
impressas  apenas  e  uma  capa.  A  impressão  a 
azul  sobre  papel  couché,  e  este  cortado  mim 
formato  acentuadamente  oblongo,  recordam  lo- 
go a   2.^  edição   do  Só  de  António  Nobre,  de 

F  6 


58  A  Afronta  a  António  Nobre 

1898,  de  Guillard,  Aillaiid  &  C",  Lisboa,  se,  para 
mais,  lhe  observarmos  a  disposição  das  estro- 
fes. Mas  vai  ainda  àlêm  a  similhança.  Para  pro- 
va, transcrevo  grande  parte  dos  versos: 

Cachopas   do  Norte,  ás  Noites  de  Eira, 
A  rir  desgarradas,  gemer  violões. 
O'  Noites  de  Neve!  roda  da  lareira! 
Contos  a  contar!   Velhas  noites  de  Eira! 
Vida  de  Saudade,  nossos  Corações. 

'  O',  Noites    de    Estriga,  Noites  de  Luar, 
Com  loiras  Marias,  alegres  a  cantar, 
Lindas,  encostadas,  hombro  co'os  Maneis, 
Que  aspiram,  sorrindo,  a  coifa  d'anneis 
E  a  Lua  Cheia  ronda,  a  empoçar 
Em  noites  de  Estriga,  na  eira  o  Luar. 

Louco  Coração!  não  me  evoques  Sonhos 
Nesgas  d'ilIusão,  Triste  Mocidade. 
Não  tornes  mais  agros  teus  dias  tristonhos; 
Dá  cabo  de  ti  o  Sonho  e  a  Saudade. 

Ao  Sol-Poente,  grenha  de  cabeças  loiras. 
Que  lá  longe  esmaece  como  uma  queimada, 
Morrendo,  mui  distante,  na  terra  de  moiras, 
A  escura  Noite  veste,  a  opa  estrellada 
E  embrulha  na  treva,  suas  repas  loiras. 

Porque  a  Noite  é,  o  manto  de  Nossa  Senhora, 
Ceu  cheeinho  de  estrellas,  dos  astros  rosário 
Padres  Nossos,  lá  tremem  e  luzem  agora 
São  astros,  são  estrellas,  flux'straordinario 
Coipo  luzes,  que  tremam,  no  cimo  de  mastros. .. 

Depois  duma  quintilha  no  mesmo  tom,  que, 
por  sem  especial  interesse,  omito,  continua: 


A  Afronta  a  António  Nobre 59 

Tristes  casas  da  Estrada,  frias,  ao  recato 

Tecm  luzes,  que  brilham  á  Noite,  ao  serão, 

As  Estrellas  da  terra,  que  o  são  lá  do  niatto: 

Na  Estrada  o  Luar,  assemelha  um  regato 

Ou  mesmo  a  Via  Láctea,  em  ceu  de  escuridão. . . 

E  ao  cimo  lá  passa,  sombrio,  um  enterro 

Com  cirios  accesos,  dúbios,  mui  distantes 

Luzinhas  tremulantes  á  bruma  do  cerro.  •■ . 

Lá  passa!  Lá  passa  sombrio  um  enterro 

De  cirios  trementes  aos  Ventos  andantes. 

E  a  Vida  dos  Mortos,  é  Noite  sem  fim, 

Que  dormem  socegados,  talvez  a  sonhar 

E  a  nós,  que  sonhamos  lábios  de  carmim, 

Revela-nos  a  Noite,  Visão  singular 

O  Enterro  dos  Sonhos,  na  Noite  sem  fim. 

Dormem  os  Mortos,  calladinhos, 
Devem  ter  frio,  coitadinhos: 
Na  Solidão  lá  d'uma  aldeia; 
Passam  na  Estrada,  raparigas. 
Moças  tão  lindas,  e  cantigas 
Que  ellas  cantam,  em  sereia, 
A  sirandar, 

E,  no  Ceu,  passa  a  Lua-Cheia. 
Os  Mortos  dormem,  sem  fadigas 
Sem  accordar. 
Partes  coração  p'ra  terra  Estrangeira, 
P'ra  Longe,  p'rá  Morte,  p'rá  Vidad'Alem, 
Lá  ficas,  quieto,  dormindo  á  soalheira, 
Na  Paz  do  Senhor,  não  vae  lá  ninguém  ! 
Alegre,  na  Rua,  passa  a  tua  Amada, 
Que  linda  que  é,  sanzinha,  corada. 
Parece  uma  Santa,  tão  bonita  vae 
E,  um  dia,  vae-te  lá  visitar, 
Livida  Santinha  e  já  descorada, 
Comtigo  já  Verme,  ha-de  então  Noivar! 


60  A  Afronta  a  António  Nobre 


O'  vós  que  ficaes,  por  mim  rezae  ! 
O  Vento  nas  Cruzes,  prepassa  a  lufar 
Os  Mortos  lá  dormem,  ao  frio  ao  Luar. 


Albino  Forjaz  de  Sampayo. 


(Da  Via  Dolorosa) 

em  preparação 


Descortina-se  facilmente  e  inegavelmente  o 
figurino.  Na  forma,  veja-se  a  poesia  .-^Antonio" 
do  Sd,  com  versos  da  mesma  medida  e  for- 
mando dois  temas,  desenvolvendo-se  paralela- 
mente, ou  melhor,  um  cortando  o  outro,  como 
um  comentário,  como  um  falar  baixinho.  E  na 
essência,  —  aparte,  é  bem  de  ver,  a  titubeaçào 
dos  versos  do  sr.  Forjaz,  a  estupenda  orgia  de 
maiúsculas,  a  nebulosidade  espessa  das  ideias, 
a  desordem  da  pontuação,  a  falta  de  vida 
poética  de  tudo  aquilo,  —  que  se  constata  ? 
Quais  os  motivos  que  enchumaçam  o  tema  dos 
versos  do  sr.  Forjaz?  O  necrofilismo,  a  tristeza^ 
a  desilusão :  o  verme,  o  enterro,  o  compungi- 
meiíto  pelos  mortos,  o  luar  batendo  nas  cruzes, 
círios,  noivados  na  campa,  todo  aquele  ar  de 
epicédio,  não  acusam  bem  o  molde,  ainda  mais 
do  que  a  configuração  gráfica  e  a  qualidade  do 
papel  ?  E  as  reminiscências,  ligeiras  embora,  de 
scenas  aldeans,  com  noites  de  eira  e  laradas 
entretidas  em  velhos  contos,  reminiscências  en- 
voltas no  luar  lindo  e  branco  da  saudade,  e, 
de  mistura,  uma  terminologia  cristan,  "Manto 


A  Afronta  a  António  Nobre  61 

de  Nossa  Senhora»',  "dos  astros  rosário ",  "Pa- 
dres-Nossos",  «na  paz  do  Senhor»',  terminologia 
que  nào  mais  se  repete  na  obra  do  sr.  Forjaz 
e  até  bem  colide  com  o  ateismo  à  outrance  que 
depois  vem  ostentando?  Não  se  impòi  tudo 
isso  como  postiço,  como  decalcado,  como  es- 
tranho à  sua  estrutura  espiritual  ? 

Razão,  pois,  tinha  eu  quando,  no  capítulo  an- 
tecedente, afirmava  vastíssima  a  influência  da 
obra  de  Nobre.  E,  pela  situação  especial  que  o 
sr.  Forjaz  com  o  seu  livro  sobre  o  Poeta  se 
criou  agora  em  relação  a  este,  é  sobremodo  no- 
tável, e  cheio  de  picaresco,  o  facto  de  se  vir  a 
reconhecer  que  nem  ele  próprio  conseguiu  exi- 
mir-se  a  essa  sugestão,  e  que  até,  no  contágio 
dela,  nào  pode  dizer  que  fosse  dos  mais  só- 
brios. . . 

Esta  Via  Dolorosa,  de  título  romântico,  pes- 
simista, dita  em  preparação,  e  de  que  a  pla- 
queta Violáceas  constituiu  guarda  avançada, 
nào  chegou,  afinal,  a  aparecer.  Costumam  ser 
férteis. . .  em  títulos  de  obras  os  primeiros  anos 
literários  de  todos  nós,  pelo  que  tal  não  admira. 
Em  vez  dela,  no  ano  seguinte,  foi  publicado 
O  Sol  do  Jordão,  editado  em  Lisboa  pelo 
livreiro  Gomes  de  Carvalho.  E'  um  trabalho  já 
mais  de  vulto,  embora  modesto.  Denuncia  uma 
reviravolta  completa  no  espírito  do  autor,  em 
relação  à  obrinha  anterior.  Isto  mais  confirma 
a  qualidade  de  postiços  e  alheios  à  sua  enverga- 


62  A  Afronta  a  António  Nobre 

dura  que  atribuí  aos  versos  dela.  No  Sol  do  Jor- 
dão o  tom  é  outro.  Nào  ha  já  delicadezas  de 
sentir,  ternas  e  piedosas,  quási  crentes.  Apro- 
veitou, sim,  motivos  do  cristianismo,  mas  na 
intenção  desvirtuadora,  herética.  Era  a  feição 
da  poesia  em  moda  mais  recente,  e  mais  capaz 
de  produzir  barulho.  Baudelaire  tornara-se  o 
orago  do  novo  culto.  Armou-lhe  um  altar,  re- 
zou-lhe  as  FLeiírs  da  Mal,  desatou  a  compor 
poemetos  imbuídos  de  satanismo,  de  blasfémia, 
de  amorosa  apologia  das  mulheres  prostituídas. 
Neste  volumesinho  de  vinte  e  tantas  páginas 
ha  mesmo  duas  composições  que  o  resumem, 
assim  baptisadas — '-Blasphemia"  e  ^Mulheres 
Perdidas»,  esta  dedicada  à  memória  de  Baude- 
laire. A  originalidade  aqui,  como  àlêm,  é  es- 
cassa. A  técnica  do  verso  é  melhor,  tem  algum 
pálido  clarão  de  beleza  lírica  num  ou  noutro 
verso,  (e  quando  assim,  faz  lembrar  a  Histó- 
ria de  Jesus  de  Gomes  Liai)  mas,  em,  conjunto, 
ainda  este  seu  trabalho,  a  que  presidiu  uma 
musa  destrambelhada  e  exótica,  cabotina  e  for- 
çada, nào  é  de  molde  a  conseguír-lhe  renome 
de  poeta. 

Seguíu-se  em  1904,  em  edição  da  casa  Viuva 
Tavares  Cardoso,  a  plaqueta  Ao  cair  da  folha, 
soneto  destacado  do  Sol  do  Jordão  e  acom- 
panhado de  traduções  em  várias  línguas. 

Verdadeiramente,  pasma  o  alarde  feito  com 
um    soneto    que   nada   tem    de  célebre  e  bem 


A  Afronta  a  António  Nobre  63 

medíocre  se  pode  considerar.  Tecido  em  volta 
dum  tema  romanticamente  piegas,  até  contêm 
versos  errados,  como  os  3.-,  4.°,  5.°  e  10.°: 

Ao  cair  la  folha 

Quando  ciir  a  folhae  tu  te  fores 
A  ter  com  minha  mãe  que  já  morreu, 
Se  não  lhe  posso  dar  mais  que  ílores, 
Leva-lhe  beijos,  abraços,  — Que  sei  eu  ! 

Diz-lhe  que  eu  ainda  sou  como  era  d'ante3 
Assim  sem  esperanças,  sempre  sem  amores. 

—  Meus  pobres  olhos,  sempre  agonisantes 
Vão-se  mirrando  mais,  só  pisam  dores.  — 

Diz  que  os  meus  versos  são  atormentados. 
Como  só  sabem  rimar  os  desgraçados, 
Diz-lhe  que  em  breve. . .  Não,  mas  deixa  lá. 

Podia  a  santa  aftligir-se  1  E  agora, 

—  Sempre  são  mães  I  —  quando  te  fores  embora 
Nunca  lhe  contes  o  que  vae  por  cá. 

Lisboa,  1902 

Pois,  qual  se  fosse  o  imortal  soneto  de  Aivers. 
Ma  vie  a  son  secret,  mon  âme  a  son  mystère, 
ou  O  maior  poema  de  amor  em  catorze  versos 
de  todos  os  tempos 

Alma  minha  gentil,  que  te  partiste, 

de  Camões,  ambos  merecidamente  repetidos 
pelo  mundo  fora,  em  todas  as  línguas,  —  o  so- 
neto do  sr.  Forjaz,  imperfeito  de  forma,  charro 
de  ideia  poética,  ostenta  nessa  separata  nada 


64  A  Afronta  a  António  Nobre 

menos  de  que  oito  traduções,  uma  francesa, 
duas  alemans,  uma  inglesa,  uma  italiana,  duas 
em  espanhol  e  outra  em  sueco,  subscritas  pelos 
nomes,  a  muitos  respeitos  ilustres,  de  Henri 
Faure,  Louise  Ey,  Wilbelm  Stork,  Edgard  Prés 
tage,  Bobbio  Porzia,  D.  Cármen  de  Burgos  y 
Segui,  D.  Manuel  Lorenzo  D'Ayot  e  Dr.  Oõran 
Bjõrkman.  Como  ?  Porquê  ?  Que  momentâneo 
e  infeliz  ataque  de  cegueira  acometeu  estes  lú- 
cidos espíritos,  levando-os  a  curvarem-se  com  in- 
teresse para  o  que  nada  de  interessante  continha, 
desperdiçando  aí  seus  talentos  subidos  e  seus 
zelos  perseverados  de  lusófilos  distintos  ?  Com 
que  nuvem  de  lisonja  os  teria  a  todos  incensa- 
do o  sr.  Forjaz,  para  assim  os  inebriar  e  lhes 
embotar  a  acuidade  do  gosto  artístico  e  da  vi- 
são crítica?  Penalisa,  na  verdade,  observar  que 
um  medíocre  soneto  alcançou  uma  homenagem 
que  verdadeiras  obras-primas  da  nossa  poesia 
jamais  lograram  ou  lograrão. 

Deste  modo,  as  traduções  resultaram  supe- 
riores ao  original,  pelo  menos  mais  correctas 
estilisticamente,  senão  adquirindo  alguma  be- 
leza, como,  por  exemplo,  a  de  D,  Cármen  de 
Burgos. 

A  respeito  dos  versos  errados  do  sr.  Forjaz, 
é  curiosa  a  anedocta  contada  pelo  sr.  Avelino 
de  Sousa  no  seu  O  fado  e  os  seus  censores, 
Lisboa,  1912,  a  páginas  19: 

«Ha  uns  doze  annos,  se  não  estou  em  erro,  um  amigo 


A  Afronta  a  António  Nobre  65 

meu  —  actualmente  residente  fora  da  metrópole  —  pediu- 
-me  para  fazer-Ihe  um  soneto  dedicado  a  uma  festa  de 
sport.  Alinhavei  os  mal  amanhados  versos  como  pude  ; 
receoso,  todavia,  de  que  estivessem  mal  metrificados,  mos- 
trei-os  ao  sr.  Forjaz,  que  então  frequentava  a  livraria  Gui- 
marães &  C.%  onde  eu  era  caixeiro.  S.  ex.^  levou  o  pobre 
soneto  para  concertar,  e  eu,  no  dia  seguinte,  fui  buscal-o, 
já  correcto,  a  uma  companhia  de  seguros  da  Baixa,  onde 
o  sr.  Forjaz  estava  collocado,  e,  muito  grato  pela  sua  soli- 
citude em  servir-me,  vim  todo  inchado  com  a  minha  obra 
e  cônscio  de  que  a  sua  correcção  era  inexcedivel.  Mais 
tarde  o  sr.  Albino  Forjaz  fez  publicar  um  soneto  seu,  de- 
dicado á  memoria  de  sua  ex.'"^  mãe,  e  tendo  na  mesma 
plaquette  —  um  mimo  typographico  impresso  em  bom 
papel  —  a  traducção,  creio  que  em  quatro  idiomas.  Qual 
não  é,  porém,  o  meu  espanto,  quando  ouço  um  poeta 
muito  illustre  dizer,  ao  lêr  o  trabalho  do  sr.  Forjaz  :  E  fez 
este  homem  tanto  reclamo  a  esta  coisa,  para  afinal  lan- 
çar no  mercado  um  scneto  errado  ! 

Fiquei  com  uma  enormissima  cara  de  parvo  —  por  per- 
ceber que  o  sr.  Forjaz,  que,  aliás,  muito  solicitamente  me 
concertara  os  versos,  percebia  tanto  de  métrica  como  eu  ! 

Vem  isto  a.  talhe  de  foice,  para  prevenir  o  caso  de  s.  ex.^ 
se  lembrar — e  é  muito  capaz  d'isso!^de  me  chamar  poeta 
de  pechisbeque,  pelo  facto  de  eu  ter  no  mercado  livros 
com  versos  errados. 

O  que  succede  commigo,  succede  com  o  sr.  Forjaz;  e 
quem  tem  telhados  de  vidro. .. 

Ha,  porém,  uma  differença:  é  que  eu  estudei  a  métrica 
o  mais  que  pude— e  estou  sempre  estudando — e  hoje  já 
deito  tombas  nos  versos  de  quem  menos  sabe;  e  o  sr. 
Albino  Forjaz  de  Sampaio — que,  certamente,  como  eu, 
daria  tudo  para  arrancar  aos  ^livreiros  os  versos  errados 
que  lá  tem— foi  sempre  um  péssimo  poeta,  embora  seja 
imi  prosador  distinto.» 


66  A  Afronta  a  António  Nobre 

Como  a  Via  Dolorosa,  anunciada  pela  pla- 
queta Violáceas,  ti-.mbêm  as  obras  poéticas» 
Aspasia,  e  Atfatkh,  prometidas  no  ante-rosto 
do  Sol  do  Jordão,  ficaram  apenas  na  pro- 
messa. E'  que  o  sr.  Forjaz  viu  bem,  pulsando 
a  sua  constituição  literária,  a  anemia  extrema 
do  seu  estro.  Sentiu-se  impotente  para  cami- 
nhar àlêm  do  que  havia  feito,  apesar  da  mes- 
quinhez dessa  ida  tarefa.  Faltava-lhe  o  sopro 
íntimo,  o  arrebatamento,  a  rajada  da  emoção. 
Sem  eles,  e  teimando  no  trilho  encetado,  leva- 
ria a  vida  a  bater  na  tecla  dos  mesmos  temas, 
numa  curta  escala  de  abafados  sons,  e  isto  ain- 
da com  esforços  desmedidos,  .para,  no  final, 
não  merecer  senão  o  epíteto  de  infeliz  versifi- 
cador.  Não  tinha  propensão  poética,  não.  Mas, 
admitindo  que  a  tivesse,  não  se  manteria  a  fa- 
zer versos  muito  tempo,  pois  com  a  febrici- 
tante ambição  de  sonoro  renome  e  de  farto 
estipêndio,  que  o  sr.  Forjaz  tem  vindo  à  larga 
demonstrando  na  sua  carreira  de  escritor,  não 
lhe  sen/iria  aquele  campo  para  o  desenvolvi- 
mento dessa  dupla  e  aguda  ambição.  Os  poetas, 
mesmo  os  bons,  os  grandes,  têem  entre  nós  um 
público  pequeno,  que  não  consome  edições  que 
dêem  sustento  a  ninguém.  Por  isso,  àlêm  de  tudo 
o  mais,  o  sr.  Forjaz  licenciou  as  musas.  E  não  se 
pode  dizer  que  andasse  mal  avisado  em  fazê-lo. 
Agora,  no  que  não  merece  elogios  é  nas  m.os- 
tras  de  demasiada  dureza  de  alma  para  os  pri- 


A  Afronta  a  António  Nobre  67 

mogénitos  da  sua  prole  escriturai.  Embora  alei- 
jados, ele,  menos  do  que  ninguém,  devia  votá- 
-los  ao  ostracismo.  Bastava  apontá-los  como  fi- 
lhos do  primeiro  ciclo  da  sua  produtividade, 
em  anos  moços  e  incertos,  para  alcançar  um  be- 
nevolente juizo.  Falido  como  poeta,  goradas  as 
suas  tentativas  para  sê-Io,  evita  o  mais  possível 
lembrar  esses  frustres  ensaios,  que  testemunham 
à  sobreposse  a  sua  astenia  genésica  de  artista 
do  verso.  Nào  tem  a  coragem  moral  de  con- 
fessar fraquezas  e  faltas,  e  por  isso,  e  só  por 
isso, — é  esta  a  presunção  de  que  atraz  falei  e 
que  emerge  do  exame  da  primeira  fase  da  pro- 
dução do  sr.  Forjaz — ele  cuidadosamente  apa- 
ga das  guardas  dos  seus  livros  os  títulos  dos 
seus  três  primeiros  trabalhos  publicados,  im- 
pondo-nos  como  obra  de  estreia  as  Palavras 
Cínicas. 

Se  eu  os  fui  desenterrar  de  sob  as  pàzadas 
de  silêncio  que  o  autor,  como  pai  desnaturado, 
lhes  arremessara  para  cima,  não  tive  apenas  em 
propósito  confundi-lo  com  tais  atestados  de 
fraqueza.  Nào  foi  o  fruto  dum  capricho  mesqui- 
nho esta  exumação.  Fi-la,  já  porque,  se  inicias- 
se este  bosquejo  de  estudo  nas  Palavras  Cíni- 
cas, ele  ficaria  incompleto,  já  porque,  embora 
transitório  e  na  maior  parte  alheio  ao  arcabou- 
ço literário  do  sr.  Forjaz,  nào  deixa  esse  ciclo 
primeiro  da  sua  produção  de  conter  em  si  al- 
guns gérmens   dos  elementos  que  mais  tarde, 


68  A  Afronta  a  António  Nobre 


ao  longo  da  sua  caminhada,  o  haviam  de  acom- 
panhar, como  se  verá. 


Por  1905,  data  do  aparecimento  das  Pala- 
vras Cínicas,  já  a  efervescência  da  escola  rea- 
lista mal  agitava  o  lago  das  letras  lusas.  Tinha 
deixado,  claro  está,  bastantes  resíduos,  mas  o 
seu  maior  ímpeto  passara.  Entre  mais  feições 
estéticas  vindas  após  ela,  a  reacção  néo-idea- 
lista,  principalmente,  amansara-a,  adormen- 
tara-a,  curara-a  da  epilepsia  aguda. 

Quando  surgiu,  todos  o  sabem,  vinha  pre- 
nhe de  promessas  o  seu  cartaz.  Por  isso,  a 
multidão  se  lhe  acogulou  à  porta,  na  ância  de 
entrar  e  de  mergulhar  os  espíritos  na  agua  lus- 
tral dessa  corrente,  que  se  afirmava  não  preci- 
sar da  mentira  e  da  ilusão  para  produzir  Be- 
leza. A  verdade,  e  s(3  ela,  luminosa  e  pura,  na 
nudez  da  sua  carne  pagan  e  rígida,  pontificaria 
ali  dentro  do  templo.  Ficaram,  pois,  desertas 
as  capelinhas  fronteiras,  dos  velhos  cultos,  e 
aquela,  vistosa  e  fresca,  viu  num  ápice  encher- 
-se-lhe  a  nave  das  gentes  letradas  e  artísticas. 
Fora,  só  ficaram  dois  ou  três  caturras,  padres- 
-oficiantes  dos  cultos  velhos,  de  cérebro  fóssil,  a 
esvurmar  o  seu  despeito  contra  a  doutrina  nova 
que  lhes  roubava  os  devotos  e  os  réditos.  Co- 
meçou, pois,  sob  a  telha  realista,  o  desenrolar 
dos  ritos.  Variados,  revolteantes,   agitando  as- 


A  Afronta  a  António  Nobre  69 

pectos  diferentes,  deleitaram  logo  a  multidão 
cujos  espíritos  anquilosados  pela  monotonia 
anterior,  encarcerados  entre  quatro  paredes  co- 
bertas de  alto  a  baixo  de  bolorentos  símbolos, 
ali,  com  um  horizonte  novo  e  mais  vasto  e  ou- 
tro ar  a  fustigar-lhes  a  sensibilidade,  de  súbito 
se  sentiram  agradavelmente  sacudidos,  alegra- 
dos, inebriados.  Era  a  natural  agitação  da  co- 
piosa libação  dum  vinho  rascante  e  novo.  As- 
sim, seduzidos  os  olhos  pelo  rito  espectaculoso 
e  embrumadas  as  mentes  pelo  incenso  das  pala- 
vras fortes  com  que  se  fazia  a  exegese,  assis. 
tiram  longamente  àquele  suceder  de  quadros 
de  mutação  rápida,  sem  lógica,  picantes,  ermos 
da  verdade  prometida  e  do  sentimento  das  pro- 
porções, como  produtos  duma  fantasia  mons. 
truosa.  Os  focos  eléctricos  batiam  em  cheio 
nos  scenários  pintalgados,  e  na  indumentária 
lentejoulada  dos  figurantes,  irisando-os,  arran- 
cando-lhes  brilhos  estranhos  e  magnéticos.  Co- 
meçaram então  de  desfilar  os  motivos,  até  ali 
tidos  como  mais  sérios  e  veneráveis,  como  alvo 
das  mais  grotescas  farças.  Ora,  era  a  turba,  le- 
vada por  um  furor  herético,  a  amachadar  as 
portas  das  catedrais,  onde  outrora,  durante  sé- 
culos, tinha  ajoelhado  e  queimado  a  mirra 
das  suas  preces,  fazendo  fugir  os  deuses,  acos- 
sados pelo  vandálico  tropel,  apressadamente, 
ridiculamente,  de  rotas  túnicas  ao  vento  e 
nimbos    corroídos    pela    ferrugem.  Em  segui- 


70 A  Afronta  a  António  Nobre 

da,  essas  mesmas  mãos  profanadoras  iam-se  às 
aras  e  substituiam-Ihes  por  esterco  ignóbil  as 
abadas  de  rosas  que  lhes  atapetavam  as  pedras, 
enquanto,  cá  fora,  nos  terreiros,  as  carnes,  pro- 
vectas  e  magras,  dos  filósofos  que  até  ali  ha- 
viam educado  as  gentes,  rechinavam  entre  as 
línguas  de  fogo  dos  autos-de-fé  a  que  essa 
mesma  enlouquecida  turba  os  ia  condenando, 
um  por  um.  Surgia  depois  a  ética,  velha  ma- 
trona das  relações  de  todos  os  lares  e  exemplo 
apontado  às  íilhas  das  famílias,  dansando  estou- 
vadamente no  tablado  fronteiro,  semi-nua,  es- 
perneante,  obscena  de  trovas  como  a  cortezan 
mais  imunda.  Regimes,  crenças,  preconceitos, 
prestígios,  imunidades,  virtudes,  tudo  sofria  a  ra- 
sante fúria  apocalítica.  Era  o  virar  do  avesso  do 
mundo  dos  românticos.  A  scena  final  dava  a  exis- 
tência como  um  campo  chào  e  despido  dos  poma- 
res da  idealidade  e  do  sonho.  No  meio  do  ermo, 
imerso  em  escuridão,  o  Homem,  pávido,  gritava 
que  ia  morrer  à  míngua.  Mas,  como  nas  apo- 
teoses das  revistas  de  hoje,  que  procuram  sem- 
pre para  fecho  da  sua  crítica  irreverente  uma 
nota  optimista,  ao  fundo  rasgava-se  o  pano  ne- 
gro do  ceu,  entremostrando  a  figura  alentada  e 
façanhuda  da  Razão  com  o  corpinho  enfezado 
da  Sciência  nos  braços,  a  chupar-lhe  furiosa- 
mente os  líberes,  quási  exaustos  de  leite. 

Bêbeda  de  novidade,  a  todo  este  disparatado 
espectáculo   assistiu,   sem    grandes  mostras   de 


A  Afronta  a  António  Nobre  71 

escândalo  e  até  com  aprazimento  notável,  a 
multidão  cativada  pelo  cartaz  do  naturalismo. 
Durante  anos  a  embriaguez  manteve-se,  não 
permitindo  que  os  cérebros  e  as  sensibilidades 
se  reapossassem  de  si,  para  verem  claramente 
o  quanto  de  ilusório  e  de  mentiroso,  de  excessi- 
vo e  de  artificial  existia  nessa  exegese  estética^ 
vinda  para  combater  uma  outra,  se  não  menos, 
também  não  mais,  cheia  de  artifício  e  de  ex- 
cesso, de  mentira  e  de  ilusão. 

Ao  cabo,  porém,  dalguns  anos,  com  a  re- 
petição do  espectáculo,  que,  embora  variado^ 
não  podia  elevar  essa  variedade  ao  infinito,  a 
curiosidade  sôfrega  dos  espectadores,  não  achan- 
do ali  mais  com  que  se  alimentar,  começou  de 
cansar,  de  pender,  de  amolecer.  Com  esta  fra- 
queza cja  curiosidade  forte  que  as  comprimia, 
as  consciências  foram  voltando  a  pouco  e  pou- 
co ao  seu  domínio  e  tiveram,  então,  em  breve, 
o  azo  de,  evocando  as  scenas  espantosas  a  que 
haviam  assistido,  mostrarem  a  sua  repulsa  e  o 
asco  por  elas.  Revigoraram-se  reacções  apenas 
esboçadas,  ergueram-se  em  pleno  vulto,  escor- 
raçaram o  naturalismo  para  segundo  plano. 
Á  turbulência  sucedera  a  mansidão.' Dali  à  mo- 
notonia antiga  ia  um  passo. 

Fracassado  poeticamente,  e  com  o  seu  nome 
de  escritor  quási  tão  virgem  de  notoriedade 
como  quatro  anos  antes,  ao  parturejar  as  Vio- 
láceas   e   as   duas  seguintes   produções,    coisi. 


72  A  Afronta  a  António  Nobre 

nhãs  miúdas  e  pouco  originais,  embora  gritan- 
tes como  o  Sol  do  Jordão,  pôs-se  decerto  a 
cogitar  o  sr.  Forjaz  na  maneira  de  agitar  o 
mundo  das  letras  em  seu  favor,  num  movimen- 
to de  atenção  que  o  arremessasse  ao  encontro 
do  grande  público.  Cogitou  nisso,  e  esperta  foi 
sua  cogitação.  Em  frente  do  bem  defendido 
trono  da  celebridade,  traçou  o  plano  do  seu 
golpe  de  estado,  e  logo  se  deu  à  faina  de  exe- 
cutá-lo. 

Escreveu,  assim,  aquelas  oito  cartas  das  Pa- 
lavras Cínicas,  cujo  miolo  traduziu  à  pressa  e 
libérrimamente,  e  ainda  atravez  do  francês,  duma 
corrente  literária,  nascida  do  pessimismo  scho- 
penhaueriano,  já  arrumada  lá  fora,  no  país 
oriundo  e  nos  que  mais  a  tinham  assimilado, 
nos  baixos  das  estantes.  Que  importava  a  falta 
de  originalidade,  se  aquelas  páginas  retumba- 
vam de  atrevimento,  coisa  em  que  a  maior  parte 
do  nosso  público  ledor,  já  quási  esquecido  de 
todo  das  sensações  do  banho  frio  do  realismo 
e  de  novo  bastante  amornado  nas  do  período 
néo-romântico  sucedido  àquele,  não  deixaria  de 
encontrar  sabor  exquisito  e  apetitoso  ?  Um 
brando  nevoeiro  de  idealismo  cobria,  envolvia 
novamente  as  almas?  Vá  de  descerrar  e&se 
manto  suave,  rasgá-lo  a  golpes  bruscos,  sacudir 
as  almas  nele  imersas.  Fez,  pois,  incursão  no 
bric-à-brac  das  letras,  foi  ao  recanto  onde  dor- 
miam sob  pó  o  scenário  e  a  indumentária  do 


A  Afronta  a  António  Nobre ^ 

realismo,  espanejou-os,  coseu-os,  doirou-os,  en- 
fiou-os  na  sua  pena,  ávida  de  chegar  depressa 
e  de  fazer  barulho,  e  logo  as  oito  famosas  car- 
tas sairam  a  lume,  petulantes,  com  uma  sonora 
campainha  em  cada  frase  e  uma  nota  de  ba- 
tuque cafreal  em  cada  palavra.  Amor,  religião, 
amisade,  altruismo,  honestidade,  todo  o  erário 
virtuoso  do  espírito  humano,  sofreram  o  seu 
ataque  depredador  e  extremista.  Temeroso  de 
fracassar  ainda  nesta  tentativa,  não  usou  de 
meio  termo.  Excedeu,  e  em  muito,  os  proces- 
sos mais  violentos  dos  mais  violentos  cultores 
do  realismo.  Fez  mais.  No  intento  de  melhor 
vitriolar  os  seus  conceitos  pessimistas,  aliou  à 
ressurreição  da  maneira  desta  escola  a  recor- 
rência aos  motivos,  tão  censurados,  do  ultra- 
-romantismo.  Pôs  o  seu  eu  a  declamar  ensan- 
decidamente, — despótico,  sádico,  virulento. 

Não  errara  na  presunção  que  formara  sobre 
o  estado  dos  espíritos  ledores.  Foi  nisso  clari- 
vidente psicólogo — talvez  pela  vez  única  na  sua 
vida  das  letras. 

Por  uma  reversão  brusca  e  boémia  do  pala- 
dar, o  público,  ouvindo-lhe  a  chinfrinice  ali- 
ciente,  acorreu  à  sua  beira,  e  provada  a  igua- 
ria cosinhada  por  ementa  já  olvidada,  não  lhe 
recusou  nem  aplausos  nem  admiração.  Antes 
lhos  concedeu,  de  modo  mesmo  a  /csvilir  p^^lo 
pasmo  dos  pacóvios  ante  as  sortes  de  prestidi- 
gitação dos  artistas  de  feira. 

F  .7 


74. A  Afronta  a  António  Nobre 

E'  quási  sempre  assim  a  multidão.  Oiça  rufar 
na  praça,  desencadeie-se  lá  fora  uma  descabe- 
ladora  e  rugente  tempestade  de  sons,  cheire-lhe 
a  divertimento  bravo,  a  bródio  de  arromba, — 
e  logo  ela  se  sentirá  animada  a  seguir  até  o  fim 
do  mundo  a  marcha  espaventosa. 

Assim  sucedeu  com  as  Palavras  Cínicas.  Toda 
aquela  safra-nafra  de  conceitos  de  rubra  apolo- 
gia do  egoismo  mais  feroz  e  mais  besta  ia  es- 
barrar nos  seus  modos  de  ser  anteriores  aní- 
micos e  pensantes,  maguando-os,  ferindo-os,  en- 
sanguentando-os?  Mas  era  moda,  julgava-se.  Era 
civilização,  era  modernismo.  Ser  crédulo,  senti- 
mental, piedoso,  amorudo,  desinteressado,  pro- 
bo, estava  já  nos  domínios  álgidos  do  fossilis- 
mo.  Eram  qualidades,  essas,  que  rebaixavam, 
entibiavam. 

Eclodiu  entào  o  incrível  snobismo  da  desver- 
gonha edo  canalhismo.  A  nova  e  clara  doutrina 
estava  ali.  Aquele  rapaz  é  que  filosofava  com  pro- 
fundeza, derrubando  preconceitos,  rasgando  apa- 
rências ilusórias,  raspando  vernizes  enganado- 
res. O  que  corria  nas  veias  da  humanidade  era  um 
rio  negro  de  lama.  A  bondade  era  apenas  a 
máscara  da  torpeza.  Os  chamados  bons  sentimen- 
tos constituíam  um  lugar-comum  da  ética,  e 
tresandavam  à  légua  a  provincianismo,  a  gau- 
cherie.  Urgia  avaliar  a  sociedade  como  ela 
merecia:  covil  de  ladrões,  alcova  de  barregans, 
logradoiro  de  maus,    capitólio   de   perversos. 


A  Afronta  a  António  Nobre  75 


antro  de  viciosos,  hospício  de  tarados.  E,  so- 
bretudo, não  valia  a  pena  viver,  porque  a  vida 
era  o  mal  e  apenas  o  mal. 

E  o  pobre  burguez,  até  ali  mecanicamente 
piedoso  e  honesto,  com  o  livrinho  em  punho, 
na  ânsia  de  em  tudo  se  encontrar  em  perfeita 
identidade  com  os  ditames  do  cânon,  apalpava- 
-se  ai  na  e  corpo  e  sentia-se  de  súbito  descon- 
solado de  si  próprio,  por  nào  se  ver  ainda  com 
ganas  de  matar  alguém,  de  roubar  o  próximo, 
de  atirar  com  a,  mulher  ou  a  filha  para  os  bra- 
ços dum  amigo,  ou  de  furar  os  miolos  com 
uma  bala!.    . 

Nem  toda  a  massa  do  público  recebeu,  claro 
está,  desta  forma  acolhedora  o  atado  das  oito 
rubras  cartas  do  sr.  Forjaz.  Em  contraposição 
àquele  núcleo  que  embasbacou  perante  a  obra, 
deslumbrando-se  com  o  arrojo,  e  dividido  em 
dois  afluentes — dum  lado,  uma  minoria  de  con- 
sciências depravadas,  captadas  pelo  modelo  que 
reconheciam  exacto,  deliciadamente  mirando-se 
no  lisongeiro  espelho  que  o  livro  lhes  apresen- 
tava, como  um  pântano  verdoengo  e  fétido  (o 
que  surde  como  péssimo  sintoma  para  os  que 
se  preocupam  com  a  sanidade  da  raça),  e  dou- 
tro, a  m.aioria  composta  dos  eternos  papalvos 
perante  tudo  o  que  traga  o  sinete  de  novo  e 
faça  estrondo,  gente  inofensiva  e  de  espírito 
mole  como  cera,  apto  a  receber  de  bom  grado 
a  dedada  de  todas  as  sugestões,  boas  ou  más. 


76  A  Afronta  a  António  Xobre 

— em  contraposição,  dizia  eu,  surgiu  uma  mole 
de  gente,  mais  senhora  da  sua  mentalidade, 
mais  equilibrada  e  san,  que  se  escandalizou 
com  a  bruteza  das  doutrinas  expedidas,  repu- 
diando-as  e  criticando-as  na  mais  acerada  hos- 
tilidade e  levantando  celeuma  rude  e  cerrada  em 
sua  volta. 

Foram  este  choque  de  opiniões  e  esta  diver- 
gência diametral  de  atitudes  ante  a  sua  obra  de 
estreia  em  prosa,  que  salvaram  o  sr.  Forjaz  do 
enxurro  do  anonimato,  erguendo-lhe  o  nome, 
fazendo-lhe  a  fortuna.  Tinha,  pois,  a  sua  firma 
a  circular  nas  duas  vias  mais  rápidas  de  pro- 
paganda :  o  acordo  entusiástico  e  a  indignação  es- 
brazeada,  alimentando-se  automaticamente  uma 
à  outra,  transportando  ambas,  embora  contrá- 
rias, uma  reputação  à  áurea  região  do  desta- 
que. Lançara-se  propiciamente  no  cercle  das  le- 
tras. Eram  pandas  de  forte  vento  as  velas  que 
o  punham,  assim,  ao  largo  da  perigosa  costa, 
eriçada  de  baixios,  da  obscuridade,  onde  tantos 
outros,  e  por  vezes  magnificamente  apetrecha- 
dos da  pedraria  sem  jaca  dos  melhores  talen- 
tos, naufragam  irremediavelmente. 

De  passagem,  e  para  desfazer  possíveis  equí- 
vocos, devo  observar  que  os  meus  comentários 
não  são  em  absoluto  contrários  ao  realismo. 
Desta  feição  literária  abjuro  apenas  dos  seus 
excessos,  da  sua  força  truculenta,  tão  avonde 
posta  a  uivar  nos  seus  corifeus.  E'  condição  fa- 


A  Afronta  a  António  Nobre  77 


tal  a  todos  os  movimentos  revolucionários,  quer 
políticos,  quer  estéticos,  quer  scientíficos,  a  vio- 
lência, arrasando-se  assim  sem  conta  nem  me- 
dida, nào  só  o  mal  que  ha  em  vista  arrasar, 
mas  de  igual  modo  o  bem  que  lhe  fica  limí- 
trofe. Ora  o  realismo,  na  sua  fase  inicial  e  re- 
volucionária não  foi  escapo  a  esta  fatalidade. 
Demoliu  demais,  demoliu  às  cegas.  Trouxe  van- 
tagens? Muitas,  mas  depois  de  asserenado,  de- 
pois de  conduzido  ao  leito  da  sua  corrente. 
Quando  fora  dela,  produziu  inundações,  atro- 
pelos, mutilações,  monstruosidades.  Quebrado 
o  seu  ímpeto  feroz  de  conquista,  passou  de  tu- 
fão a  vento  oxigenado  e  tónico,  arejador  e  cla- 
rificador da  atmosfera  da  arte,  viciada  pela  lon- 
ga permanência  de  estéticas  senis  e  paralíticas 
de  inacção.  Em  nada  mesmo  me  assustam  as 
inovações,  e,  assim,  vejo  até  com  sadia  tole- 
rância, senão  com  simpatia,  o  desabrochar  das 
novas  escolas  de  hoje,  como  o  cubismo,  o  futu- 
rismo de  Marinetti  e  outras,  que,  entre  a  sua 
desordem  própria  de  assaltantes  e  conquistado- 
res, alguma  coisa  de  bom  trazem,  que  ficará  a 
virilizar  o  sangue  dos  temperamentos  literários 
e  artísticos,  sacudindo-os,  impedindo -os  de  cair 
num  letargo  visinho  da  morte.  O  que  é  preciso 
é  que  destes  movimentos  rejuvenescedores  se 
nào  tomem  como  qualidades  definitivas  as 
transitórias,  as  do  seu  período  de  eclosão,  e 
se  lhes  nào  guarde  o  mal,  deitando  ao  desbarato  o 


78  A  Afronta  a  António  Nobre 

bem,  num  daltonismo  desastroso.  Infelizmente, 
bastas  vezes  assim  tem  sucedido   . . 

Bastas  vezes  assim  tem  sucedido,  sim.  São 
longos  os  necrológios  resultantes  dessas  des- 
orientações, nas  várias   escolas  inovadoras. 

O  sr.  Forjaz,  em  parte,  inscreve  o  seu  nome  no 
do  realismo.  E  com  uma  agravante.  E'  qne, 
tendo  começado  a  sua  produtividade  já  fora,  e 
muito,  da  poeirenta  e  confusa  atmosfera  do 
aparecimento  da  escola,  não  se  pôs  a  seguir-lhe 
os  cultores  mais  próximos  de  si  e,  portanto, 
mais  equilibrados  e  possuídos  de  serena  beleza. 
Não.  Recuou.  Foi  aos  inícios  caóticos  do  rea- 
lismo e  ali  se  aprovisionou  da  água  torrencial 
e  turva  dos  seus  excessos.  Foi  o  que  trouxe 
para  borrifar  os  seus  escritos,  ou  melhor  direi, 
para  os  abeberar,  pois  não  são  só  borrifos 
de  vitríolo  as  suas  notas  mais  salientes.  Repre- 
sentam um  mergulho  demorado  no  corrosivo 
líquido.  Assim,  em  obediência  às  laudas  iracun- 
das do  Alcorão,  afivelou  o  elmo  do  materia- 
lismo e  desatou  às  lançadas  a  tudo  que  na  vida 
e  nos  costumes  encontrou  de  delicado,  do  com- 
passivo de  consolador.  Apontou  o  Homem  como 
o  animal  egoísta  por  excelência,  a  besta  sem 
alma,  que  apenas  os  instintos  maus  conduzem. 
Isto  já  eu  disse.  Não  o  repito.  Mas,  caso  curio- 
so, tomando  do  realismo  apenas  o  seu  lado 
baixo,  expresso  no  culto  pelo  vil,  pelo  nojento, 
pelo   torpe,  numa  concepção  unilateral,  e,  por- 


A  Afronta  a  António  Nobre  79 

tanto,  falsa  da  vida,  foi  também  à  extrema  do 
rincão  oposto,  o  do  romantismo,  e  trouxe  de 
lá,  para  seu  uso,  a  maneira  subjectivista  ali  pe- 
culiar, alucinada  de  vaidade,  ardida  de  hiper- 
trofia do  eu.  São  estes  dois  aspectos  das  duas 
escolas  antagónicas  que  o  sr.  Forjaz  conseguiu 
fundir  nas  Palavras  Cínicas,  piorando-as  uma 
e  outra  o  mais  que  poude,  dando  delas  as  fases 
mais  retrógradas  e  rubras. 

Porque,  se  delas  tivesse  escolhido  as  partes 
sadias  e  definitivas,  consorciando-as,  teria  posto 
em  acção  a  fórmula  da  literatura  do  futuro. 
Nem  o  pensamento  esmagando  o  sentimento, 
nem  este  amolentando  aquele.  O  cérebro  e  o 
coração,  ambos  librando  alto  e  à  mesma  areja- 
da e  luminosa  altura.  A  vida  dada  em  bloco, 
com  as  suas  arestas  e  as  suas  maciezas,  com  as 
suas  manchas  e  as  suas  belezas,  na  eterna  ron- 
da do  bem  e  do  mal. 

O  que  o  sr.  Forjaz  deu  foi  o  avesso  desta 
fórmula.  Casou  a  escória  com  a  vasa. 

De  propósito,  alonguei  este  asserto  sobre  as 
Ralavras  Cínicas,  talvez  com  prejuízo  do  es- 
paço reservado  para  o  seguimento  da  obra  des- 
te autor.  De  propósito,  porque  no  seu  primeiro 
livro  de  prosa  escao  bem  patentes  os  gérmens 
que  vivificam  toda  a  sua  restante  produtivida- 
de. Não  mudou  ainda  de  motivos,  tem  mantido 
sempre  a  mesma  directriz  que  presidiu  a  este 
tomo.   E   recordando  agora  o  seu  frustre  ciclo 


80  A  Afronta  a  António  Nobre 


poético,  ver-se  ha  que  já  o  Sol  do  Jordão,  em 
grande  parcela,  incluía  os  sintomas  das  quali- 
dades negativas  que  nas  Palavras  Cínicas  se 
desenvolveram  com  exuberância,  e  que  as  Vio- 
láceas em  nada  acusam  a  chancela  da  sua  ver- 
dadeira constituição  mental,  como  fiz  notar. 


Crónicas  imorais,  em  1Q08;  Lisboa  Trágica, 
em  1910;  Prosa  Vil,  em  1911.  Três  livros  iguais, 
no  mesmo  género  fragmentário,  quási  de  todo 
em  todo  colectâneas  de  artigos  e  crónicas,  vin- 
dos primeiro  a  público  nas  colunas  dos  jornais, 
onde  o  sr.  Forjaz  colabora. 

Vejam-se  os  títulos,  sempre  alicientes,  sem- 
pre prometedores  de  sensações  fortes  e  ácidas. 
E  o  miolo?  Sem  homogeneidade,  sem  espírito 
de  seqíiência,  comentários  ao  acaso  das  impres- 
sões, sem  nada  de  notável  e  roçando  às  vezes 
pela  chateza. 

Nas  Crónicas  imorais  tropeça-se  logo  num 
prólogo  de  chalaça  barata  e  mole,  pueril  mes- 
mo, que  pôde  ficar  como  tipo  de  todos  os  seus 
prólogos.  E  das  suas  páginas  restantes  só  se 
salvam  as  sete  da  crónica  Artistas,  justa  e  pie- 
dosa, que  tem  por  tema  a  morte  de  Augusto 
Santo,  o  malogrado  escultor,  irmão  de  Soares 
dos  Reis,  outro  mísero  de  génio. 

A  Lisboa  Trágica  pouco  progresso  marca  so- 
bre os  volumes  anteriores.  Também  não  é  una 


A  Afronta  a  António  Nobre  81 

de  sentido.  Como  diz  o  sub-título  Aspectos  da 
cidade  compòi-se  de  pequenos  quadros,  carre- 
gados intencionalmente  de  sombras,  de  crispa-' 
ções,  de  vultos  torturados  mal-entrevistos.  Vê- 
se  que  leu  algum  dia  Gorki.  Mas  a  emoção  não 
lhe  molha  a  pena,  e  as  figuras  saem  a  custo, 
como  títeres  de  trapos  vestidos  e  de  trapos 
formados.  Não  ha  ali  carne  viva,  não  ha  ho- 
mens sofredores,  não  ha  tragédia  convulsa.  Ha 
apenas  rabulistas  num  drama  que  o  sr.  Forjaz 
engendrou,  e  que  o  representam  mal,  dando  a 
entender  a  avareza  do  emprezário-autor. 

Em  íntimo  acordo  com  as  "  "  »  "  abundan- 
tíssimas ao  longo  da  sua  obra,  umas  vezes  in- 
dicando a  paternidade  da  citação,  mas  outras, 
passando  adiante,  como  a  dar  azo  a  que  não  se 
repare  nas  aspas  e  se  lhe  atribuam  o  conceito 
e  a  forma  verbal,  esta  em  geral  mais  pomposa 
do  que  a  sua,  está,  numa  ampliação  destes  seus 
velhos  hábitos  de  enchumaçar  de  prosa  alheia 
a  prosa  própria,  a  dedicatória  desta  Lisboa  Trá- 
gica. E'  uma  página  inteira  de  Fialho — a  de- 
dicatória dos  Contos  do  grande  escritor  a  Ca- 
milo. Isto  uma  vez,  escapa;  mas,  vezes  segui- 
das, como  sistema  e  nestas  proporções,  é  ver- 
dadeiramente abuso.  E  ousou  ele  censurar  Sil- 
va Pinto  a  este  respeito,  como  já  se  verá ! . . 
A  Sinfonia  de  abertura  deste  mesmo  volume  é 
uma  romântica  lenga-lenga  de  lamúria  sobre  a 
aspereza  e  a  sordidez  da  existência,  e  as  remi- 


82 A  Afronta  a  António  Nobre 

niscências  de  leituras  e  de  quadros  vistos  esta- 
deiam-se  por  ali  abaixo.  Zola,  Daudet,  Dante,  o 
EvangeHio,  Goethe,  Molière,  Balzac,  Murger, 
Hugo,  Bartrina,  Mantegazza,  Oerôme  e  mais 
que  me  não  recordam,  em  dezoito  páginas, 
salvo  erro.  No  fim,  perguntar-se  ha,  e  com  ra- 
zão, o  que  é  propriamente  seu. 

A  1.'^  edição  da  Prosa  Vil  ainda  melhor  do- 
cumenta este  defeito.  No  fecho,  ostensivamen- 
te, envaidecido  com  a  sua  erudição,  prega-nos 
diante  da  vista  com  um  «índice  dos  autores 
citados ",  que  compreende  uns  cento  e  sessenta 
e  tantos  nomes,  e  alguns  com  mais  duma  cita- 
ção. Cento  e  sessenta  e  tantos  nomes  1 .  .  Sa- 
bem em  quantas  páginas?  Em  duzentas  e  deza- 
nove; quási  um  autor  para  cada  página ! 

Neste  livro  a  melhor  crónica  é  A  alma  das 
cousas.  O  resto  é  frouxo  de  interesse,  tecido 
numa  prosa  evidentemente  mal  cuidada,  decer- 
to escrita  sobre  o  joelho,  cheia  de  terminações 
estrondosas,  próximas,  repetidas  passo  a  passo, 
quebrando  o  ritmo,  dando-lhe  sonância  de  ladri- 
dos:  "O  Cyrano,  VAiglon,  o  que  são  senão  a 
vibração  da  tecla  patriótica  no  intuito  de  ganhar 
francos  e  notoriedade?  E  não  é  já  um  homem  de 
talento  que  se  compraz  em  fabular  bellezas,  um 
artista  que  sonha  a  sua  obra  longe  do  bulicio  da 
multidão,  mas  um  charlatão  vulgar,  macrot  da 
fama  que  ao  bezerro  d'oiro  prostitue  a  sua  lyra." 
Neste  bocadinho  de  prosa,  que  a  gente  quási  se 


A  Afronta  a  António  Nobre 83 

esquece  tratar  de  Rostand  e  tem  vontade  de 
creditar  como  auto-biográfica, — Deus  do  ceu, 
tão  bem  lhe  assenta  o  significado! — apresenta 
cinco  terminações  em  ão  nas  sete  linhas  que 
tem  no  livro. 

Quebrando  a  vulgaridade  do  estilo,  arreme- 
te de  quando  em  logo,  ou  com  termos  vetus 
tos,  carreados  por  Camilo  e  Fialho  dos  poei- 
rentos elucidários  da  língua,  ou  com  neologis- 
mos da  sua  lavra,  bárbaros,  incríveis,  dispen- 
sáveis, como  este  da  mesma  Prosa  Vil:  "Se  in- 
vestigarmos juliomardelescamente,  até  aos  avós, 
veremos.       «etc.  Juliomardelescamente! ... 

Sintetisando:  três  volumes  medíocres,  apenas 
interessantes  aqui  e  àlêm,  sem  surto  largo,  epi- 
sódicos, anedóticos,  de  efémeras  impressões,  es- 
critos segundo  a  necessidade  da  sua  colabora- 
ção em  jornais,  ao  sabor  das  sugestões  disper- 
sivas e  rápidas  da  vida  hodierna. 


A  novela  Qente  da  Rua,  o  seu  trabalho  de  mais 
fôlego,  com  princípio,  meio  e  rim,  surge  em  1914. 

E'  o  seu  trabalho  de  mais  fôlego,  sim,  mas 
não  de  grande  fôlego  também.  Vê-se  que  re- 
presenta um  esforço  desmedido  para  ele  escre- 
,ver  cento  e  cincoenta  páginas  seguidas  sobre 
um  tema,  quando  a  sua  pena  está  afeita  ape- 
nas a  traçar  crónicas  miúdas  de  miúdo  número 
de  páginas. 


84  A  Afronta  a  António  Nobre 


Gente  da  Rua  pode  considerar-se  uma  ten- 
tativa de  romance.  E  como  tentativa,  padece  da 
incerteza  e  do  tacteamento,  que  caracterizam 
todos  os  traballios  de  experimentação  de  for- 
ças numa  actividade  nova. 

O  título  vistoso,  moderno  e  sugestivo,  pro- 
mete o  que  o  conteúdo  nào  dá:  um  estudo,  ain- 
da que  leve  e  adoçado,  aformoseado  por  pro- 
cessos de  arte,  da  questão  social,  tào  complexa 
e  tào  vasta  e  tão  eminente  nos  tempos  de  hoje. 

Grevistas,  pátios  de  fábricas,  scenas  dos 
bairros  pobres  e  de  míseras  casas  de  hóspedes, 
gente  de  fraca  mentalidade,  com  a  matilha  dos 
instintos  à  solta,  scenário  sórdido  e  comparsa- 
ria  não  menos  sórdida,  elementos  estes  bastan- 
tes para  cobrir  um  milhar  de  páginas  com  uma 
tragédia  viva,  palpitante,  convulsa  e  uivada  de 
desgraça, — com  tudo  isso  o  sr.  Forjaz  esbo- 
çou apenas  e  mal  duas  ou  três  figuras  e  amon- 
toou descrições  de  coisas  e  de  gestos,  nos  seus 
aspectos  exteriores,  superficiais,  periféricos. 

Ao  lê-la,  pela  classe  dos  personagens,  pelo 
ambiente  de  bas-fonds  onde  eles  se  movem,  pelo 
assunto  da  intriga,  lembrou-me  essa  novela  tan- 
tas outras  obras,  que  têem  versado,  com  supe- 
rior beleza  e  intuição  decifradora  de  almas,  a 
multidão  dos  famintos,  dos  deserdados,  dos 
sem-pão,  que  fazem  seu  covil  lôbrego  e  infecto 
nos  pátios  velhos  das  grandes  cidades.  Tantas 
e  tantas !  Sem  recorrer  ao  estranjeiro,   leiam-se 


A  Afronta  a  António  Nobre 85 

Os  Podres,  de  Raul  Brandão,  Os  Humildes, 
de  Fidelino  de  Figueiredo,  Os  Famintos,  de 
Joào  Grave,  e,  sobretudo,  mais  concretamente 
sobre  a  questão  tão  momentosa  dos  conflitos 
entre  o  patronato  e  o  operariado,  esse  Capital 
Bendito,  da  magnifica  pena  de  D.  Virgínia  de 
Castro  e  Almeida,  pena  feminil  de  vigor  mais 
viril  do  que  muitas  que  mãos  de  homem  em- 
punham. Todos  estes  livros  e  muitos  outros 
a  Gente  da  Rua  me  faz  lembrar,  e  lembrar 
com  saudade. 

Falta  na  novela  do  sr.  Forjaz  a  seiva  emocio- 
nal, que  o  assunto  não  dispensa.  O  seu  estilo 
não  sobe,  não  soluça,  não  chora,  não  impreca, 
não  sái  da  anotação  fria  e  da  indicação  dos 
movimentos  físicos  das  figuras.  Os  movimen- 
tos íntimos,  os  de  alma,  aqueles  que  determi- 
nam, galvanizam  os  externos,  muito  longe  de 
os  salientar,  até  os  sufoca,  os  finge  ignorar,  ou 
ignora  de  facto,  com  a  sua  arreigada  concepção 
materialista  da  existência.  E'  o  realismo  em 
bruto,  o  realismo  não  lapidado,  que  lhe  em- 
bota a  pena,  que  lha  acorrenta,  que  lhe  limita 
as  faculdades. 

A  técnica  é  por  igual  falha.  Não  ha  uma  bem 
proporcionada  dosagem  dos  episódios  da  intriga 
pelos  capítulos  em  que  a  obra  se  divide.  A  lin- 
guagem, mesmo  fora  dos  diáLogos  que,  pela  na- 
tureza baixa  dos  personagens,  se  impunham 
simples,  é  chan  em  demasiado,  linguagem  im. 


86  A  Afronta  a  António  Nobre 

própria  de  livro,  linguagem  mais  de  jornal,  de 
narração  de  repórter,  em  que  a  necessidade  de 
ser  rápido  não  permite  o  mais  leve  adorno 
verbal,  embora  a  pena  que  escreva  seja  hábil 
e  amante  de  belezas  de  estilo.  Nem  gongorismo 
nem  chateza.  E  a  escrita  para  livro  propicia, 
se  é  que  a  ela  não  obriga,  por  feita  com  mais 
vagar,  a  escolha  dum  talhe  mais  elegante  para 
a  vestimenta  das  ideias,  sem  que  estas  em  nada 
percam  da  sua  clareza.  A  monotonia  do  estilo 
da  Gente  da  Rua  só  é  cortada  pelos  plebeís- 
mos mais  chocantes  e  sem  graça,  mesmo  fora 
dos  dizeres  das  bocas  das  suas  figuras,  em  que 
seriam  talvez  naturais,  mas  dispensáveis.  Con- 
tumazmente,  persegue-o  a  intenção  chocarreira, 
scéptica,  caricatural,  deformadora.  A  maneira 
forte  sedu-lo.  Pratica-a,  piorando-a.  E'  sempre 
a  tara  do  realismo  extremista  a  arremessá-lo 
com  volúpia  para  o  revolver  do  grosseiro  e  do 
violento. 

*** 
Em  1916,  a  par  de  O  livro  das  cortezãs,  tra- 
balho modesto  de  compilação  de  escritos  de 
outros  autores  sobre  o  assunto  que  o  título 
indica,  feito  de  parçaria  com  o  ilustre  homem 
de  teatro  Bento  Mântua,  deitou  o  sr.  Forjaz 
a  lume  o  volume  Grilhetas.  Como  quási  todos 
os  seus  anteriores  e  posteriores  trabalhos,  não 
é  inédita  a  sua  matéria.  Já  as  suas  parcelas  ti- 
nham sido  publicadas  em  jornais. 


A  Afronta  a  António  Nobre 87 

Para  mim,  é  o  seu  livro  mais  interessante, 
apezar  da  sua  parte  de  depreciação  de  Silva 
Pinto,  Bulhão  Pato  e  Ramalho,  que  o  tornam 
antipático  em  extremo,  muito  mais  mesmo  que 
as  Palavras  Cínicas,  livro  de  estreia  estrondosa 
por  meio  de  blague. 

Chamo-lhe,  pois,  interessante  pelo  que,  em 
síntese,  nos  fornece  da  estrutura  mental  do  seu 
autor,  e  dos  seus  dilectos  processos  de  fazer 
escrita. 

Pinceladas  de  vermelho  cinismo,  que  é  a 
tinta  mais  fiel  da  sua  paleta,  tem  estas  confis- 
sões na  Resposta  a  um  inquérito : 

«Eu  não  nasci  escritor.  Nasci  pobre.  Devo 
declarar  que  não  tive  nunca  bossa  para  meni- 
no prodígio. 

"Nasci  pobre  e  magro.  Se  me  fiz  escritor  foi 
talvez  por  estas  duas  fatalidades  do  meu  nasci- 
mento." 

«Nasci  pobre  como  disse.  Quando  se  nasce 
pobre  tem  a  gente  de  cavar-se  para  comer. 
Precisa  de  vender-se  sob  qualquer  pretêsto. 
Experimentei  uma  boa  diízia  de  profissões  até 
que  imaginei  fazer-me  literato.» 

"Comecei  por  fazer  versos.  Não  se  vende- 
ram. Eram  horríveis.  Desisti  de  comprar  o  meu 
queijo  com  os  meus  lamentos  poéticos.  Luta- 
ra, sofrera  e  desesperava-me.  Fartara-me  de 
tudo  e  começava  a  fartar-me  de  mim.  Fiz  pro- 
sa.  Vendeu-se  e  eu   pude   almoçar  nesse  dai 


A  Afronta  a  António  Nobre 


OS  miolos  de  alguns  meses.  Não  desistindo  de 
almoçar,  continuei  a  fazer  prosa.  De  então  para 
cá,  meu  amigo,  tomei  um  pavor  à  caneta  e  ao 
papel  branco  que  só  lhe  pego  quando  necessito 
de  almoçar  novamente. 

«Não  sou  artista,  sou  industrial.  Fabrico  pe- 
ríodos como  um  marceneiro  cómodas  ou  um 
luveiro  luvas.  Procuro,  estudando,  torná-los 
mais  perfeitos.  Busco  notas  exactas  e  singula- 
res para  eles,  é  certo.  Mas  isso  não  é  preocupa- 
ção artística.  Não  é.  São  apenas  melhoramentos 
que  eu  introduzo  na  minha  indústria.  Quero 
servir  bem  o  meu  freguês,  que  é  o  meu  editor. 
Este,  por  seu  turno,  tem  interesse  em  servir 
bem  o  público.  E'  claro  que,  gostando  da  mi- 
nha marca  e  exigindo-a  ou  gastando-a,  o  edi- 
tor se  dirige  a  minha  casa  a  buscar  os  meus 
produtos.  Tem  como  no  bom  comércio,  o  des- 
conto para  revender.  O  meu  nom.e  é  a  minha 
taboleta.   Cumpre  pois  acreditar  a  taboleta." 

Esta  rebuscada  nonchalance,  este  ar  de  mo- 
tejo persistente,  a  propósito  de  coisas  e  factos 
no  geral  tidos  como  elevados  e  obedecendo  a 
forças  esotéricas  e  fatalistas,  formam  um  dos 
artifícios  mais  fecundos  da  sua  prosa,  no  que 
diz  respeito  a  angariar  as  graças  do  grosso  pú- 
blico, grosso  em  numero  e  grosso  de  espírito, 
grosso  público  devorador  das  suas  grossas 
edições. 

Ha  um  fundo  de  verdade  naquelas  confis- 


A  Afronta  a  António  Nobre    89 

soes.  Mas  decerto  acentuou,  vincou,  alastrou 
intencionalmente  a  nota,  numa  lisonja  à  sua 
clientela  de  baixo  gosto,  a  quem,  numa  errada 
catequese  do  sentido  de  democracia,  ele  e  os 
seus  próximos,  têem  procurado  convencer  de 
que  a  sociedade  ideal  é  a  sociedade  rasa,  sem 
cérebros  criadores  nem  almas  heróicas,  e  apon- 
tando à  truculência  do  seu  ódio  os  que  trans- 
gridem essa  uniformidade  e  elevam  acima  da 
planura  humana  uma  insígnia  de  nobre  e  ta- 
lentosa excepção. 

Para  mais  prodigamente  receber  os  afagos  e 
o?  favores  da  turba,  diz-se  seu  irmão  gém.eo, 
despe  de  todo  o  prestígio  a  sua  pena,  baixa  o 
seu  mister  das  letras  ao  nível  dos  outros  mis- 
teres, como  a  marcenaria,  onde  a  máquina  bruta 
e  insensível  já  hoje  substitui,  e  com  vantagem, 
o  trabalho  engenhoso  do  homem. 

Esta  transigência  detractiva  pôde  ser  inteira- 
mente sincera,  como  inculca?  Não,  é  bem  de 
ver.  E'  um  chamariz,  um  visco  para  a  simpatia 
das  multidões,  que  só  incensam  os  que  as  li- 
songeiani,  os  que,  se  maiores,  se  diminuem  de 
estatura  moral  e  mental,  para  lhes  darem  a  ilu- 
são duma  irmandade  completa. 

Por  isso  nega  a  sua  condição  de  artista:  «Não 
sou  artista.  Sou  industrial.  Fabrico  períodos.  . 
Procuro,  estudando,  torná-los  miiis  perfeitos.. . 
São  apenas  melhoramentos  que  eu  introduzo 
na  minha  indústria.  Quero  servir  bem  o  meu 

F.  8 


91)  A  Afronta  a  António  Nobre 

freguês. .  •  - "  Mas  como  o  freguês  não  é  gran- 
demente exigente,  as  melhorias,  os  progressos, 
são  pequenos.  Das  Palavras  Cínicas  ao  volu- 
me Grilhetas  vão  onze  anos  (1905-1916),  e  nas 
obras  deste  lapso  de  tempo  não  se  desenha  a 
trajectória  da  sua  carreira  em  curva  ascensio- 
nal, senão  mui  lenta,  quási  insensível.  Ha 
mesmo  declínios,  retrocessos,  desfalecimen- 
tos. 

Interessantes,  pois,  e  muito,  sob  o  ponto  de 
vista  da  psicologia  do  autor,  estas  confissões 
do  Grilhetas,  ainda  com  o  desconto  do  excesso 
artificial  que  as  sobrecarrega,  e  que  não  deixam 
de  ser  um  tanto  desastrosas  para  o  sr.  Forjaz, 
àlêm  do  dano  que  podem  causar  a  todos  que 
cultivam  a  alta  profissão  das  letras.  Ele  pró- 
prio, decerto,  bastas  vezes  se  terá  arrependido 
de  levianamente  as  ter  bolsado. 

Ficaria  este  volume  Grilhetas  como  o  seu 
melhor  livro,  se  não  fosse  a  nota  de  atrevimen- 
to, demasiado  forte,  que  pôs  a  vibrar  nos  seus 
capítulos  Máscaras— Silva  Pinto  e  Na  hora  da 
morte  coin  os  três  artigos  Silva  Pinto,  Bulhão 
Pato  e  Ramalho  Ortigão. 

Como  disse,  feito  o  volume  de  escritos  já 
anteriormente  publicados  na  imprensa,  como 
os  outros,  os  artigos  Máscaras — Silva  Pinto  e 
Silva  Pinto,  tinham  vindo  a  lume,  o  primeiro 
pouco  tempo  antes  da  morte  do  vigoroso  pan- 


A  Afronta  a  António  Nobre 91 

fletário   dos    Combates  e  criticas,  e  o  segundo 
logo  a  seguir  ao  seu  passamento,  em  1911. 

Essa  atitude  irreverente  para  com  um  homem 
que  fora  um  grande  e  honesto  trabalhador  das 
letras,  suscitou  logo  frases  de  reprovação  ar- 
dente. Em  A  Capital  de  30  de  Novembro  des- 
se ano  de  1911,  CA.,  que  julgo  ser  abrevia- 
tura do  nome  do  ilustre  jornalista  sr.  Carlos 
Amaro,  diz  assim  na  secção  Teatros,  em  crítica 
a  uma  peça  do  República.  "Alem  disso,  um 
critico  agoniado  que,  ainda  ha  dias,  escarrava 
sobre  o  cadáver  de  um  escritor  notável  sob  a 
forma  de  injurias,  o  resto  das  lisonjas  com  que 
o  sujou  em  vida,  vem  hoje  com. . ."  etc.  Refe- 
ria-se  ao  sr.  Forjaz,  que  atacara  a  peça.  Este, 
sentido,  vem  ao  mesmo  jornal  em  2  de  Dezem- 
bro com  uma  carta,  reptando  C.  A.  a  provar 
que  dirigira  lisonjas  a  Silva  Pinto.  Dois  dias 
depois  C.  A.  responde: 

«Esqueceu-nos,  hontem,  de  nos  referir  a  uma 
carta  aqui  publicada  a  propósito  da  nossa  crí- 
tica á  comedia  O  sr.  Freitas,  em  que  se  pediam 
provas  de  que  o  seu  autor  tinha  lisongeado 
Silva  Pinto  em  vida. 

«O  caso  pouco  interessa  o  publico  e  deixa- 
ríamos a  carta  sem  resposta  ante  a  massada  de 
termos  de  percorrer  a  collecção  d'um  jornal  á 
procura  das  referencias  elogiosas  que  muita 
gente  se  lembra  de  ter  lido  se  n'um  livro  do 
agoniado  crítico  a  que   nos  referimos  não  en- 


92 A  Afronta  a  António  Nobre 

contrassemos  o  nome  de  Silva  Pinto  citado  en- 
tre os  nomes  de  Turguenef,  Gorki,  M.  du  Camp, 
d'Annunzio,  Eugénio  de  Castro,  Zola,  Hart- 
mann,  Fialho,  Camões,  Schopenhauer,  Antero, 
Michelet.  Não  ha  lá  mais  nomes  e  o  leitor  con- 
cluirá das  intenções  do  homem  que  entre  os 
Grandes,  citava  a  Silva  Pinto  em  vida,  e  lhe  vem 
agora  cuspir  injurias  sobre  o  cadáver. 

"As  citações  vêem  ao  fundo  de  cada  pagina, 
respeitosamente,  n'uma  atitude  bem  diversa 
d'aquella  em  que  vimos  o  citador,  de  perna 
alçada,  esguichando  misérias  sobre  um  caixão 
ainda  mal  fechado,  onde  dormia  para  sempre 
um  rijo  e  desgraçado  trabalhador. 

«Nem  mais  palavra  sobre  este  caso  triste  e 
esta  rápida  e  ultima  explicação  só  é  dada  pelo 
respeito  devido  ao  jornal  em  que  veio  a  carta 
e  não  ao  escriba  que  a  assina,  ancioso  por  uma 
polémica  que  lhe  servisse  de  reclame. 
«Vá  bater  a  outra  porta. , .  C.  A." 
O  sr.  Forjaz  respondeu  a  isto  não  sei  que 
cínica  e  trivial  asserção.  E  C.  A.,  em  7  de  De- 
zembro, a  propósito  duma  festa  que  Afonso 
Gaio  propunha  se  realisasse  para  despedida  do 
grande  actor  Joaquim  de  Almeida,  aplaudindo 
a  ideia,  volta,  apezar  da  sua  promessa,  ao  as- 
sunto : 

"E  além  de  tudo  será  ainda  um  nobre  pre- 
texto para  tratar  de  nobres  coisas  de  Arte,  lon- 
ge, bem  longe  dos  paues  onde  os  Albinos  me- 


A  Afronta  a  António  Nobre  93 

dram,  latejando  como  vermes  na  babugem  das 
aguas  lamacentas ;  •  . 

«Que  de  estranhas  coisas  acontecem  á  gente! 
Até  íigora  nos  aparece  o  orphão  Albino  que 
nós  julgávamos  perdido  desde  os  tempos  omi- 
nosos!.      Bicho  o"minoso  e  deplorável ! 

'"Este  anthipatico  desgraçado  sob  a  acusação 
ultra-infamante  de  escarrar  as  misérias  da  pró- 
pria alma  sobre  um  morto  iilustre  nem  uma 
palavra  gasta  a  defender-se,  acceita  tudo  como 
bom  e  só  se  íinge  offendido  por  lhe  dizerem 
que  o  tinha  lisongeado  em  vida ! 

"Não  é  lisongear,  diz,  citar  respeitosamente 
entre  os  Mestres  o  homem  que  depois  de  mor- 
to e  enterrado  só  lhe  merece  vaias  e  referen- 
cias insultuosas. 

«Triste  mistura  de  faia  e  de  gato  pingado,  o 
nosso  misero  orphão  !. .  . 

«Mas  ha  peor  agora,  mmito  peor  ainda.  As 
creaturas  que  teem  andado  a  açular  Albino 
sem  piedade  alguma  pela  sua  desgraça,  dei- 
xam-n'o  ir  á  degradação  da  carta  ultima  que 
nos  faz  faltar  ao  silencio  promettido,  pois  como 
caso  hospitalar  o  achamos  digno  de  observa- 
ção mais  cuidadosa. 

"Vem  agora  Albino  evocar  a  amisade  de  Sil- 
va Pinto  e  ornamentar-se  com  os  elogios  que 
o  notável  escriptor  lhe  fez  em  livros!...  Só 
nos  lembra  d'um   caso   semelhante  succedido 


94 A  Afronta  a  António  Nobre 

ha  annos,  n'um  cemitério  de  Lamego:  Uns  sinis- 
tros ratoneiros  despiam,  batiam  nos  mortos  e 
roubavam-lhes  os  anneis.  Foram  parar  á  Peni- 
tenciaria estes,  emquanto  orphão  Albino  por 
ahi  ginga  á  solta  e  toma  descaradamente  o  ar 
de  quem  faz  perguntas. 

"Quer  saber  Albino  o  que  é  preciso  para 
conversar  humanamente  comnosco.  Ser  bacha- 
rel formado^  ser  administrador,  ser  pae  da  pá- 
tria, ser  grão-vizir,  ser  lord  Byron,  ter  génio 
com  grande  O,  ou  ter  como  elle  uma  obra  ex- 
traordinária, dez  volumes  de  arte  requintada  e 
subtil? 

"Não,  gelatinoso  orphào,  nada  d'isso.  Basta 
ser  decente.  E  um  insultador  de  cadáveres,  es- 
pécie repugnante  de  lombriga  tumular,  pode 
uma  pessoa  esmagal-o  debaixo  da  bota,  mas 
nunca  com  elle  conversar  humanamente. 

"Não  conversaremos. 

"A  orphào  Albino,  misero  exilado  da  vergo- 
nha, só  um  direito  talvez  lhe  assista:  o  direito 
de  possuir  orelhas. 

«E  d'ahi,  talvez  nem  isso. . . » 

E'  difícil  estigmatizar  ombro  de  criminoso  com 
ferrete  mais  profundo  e  infamante. 

E,  contudo...  Contudo,  tendo  em  1911  re- 
cebido este  violento  castigo,  não  se  coibiu  o  sr. 
Forjaz  de  aproveitar  os  escritos  que  o  tinham 
arrastado  ao  ferro  do  carrasco,  para  avolumar 
o  livro  Grilhetas,  cinco  anos  volvidos.  Ao  con- 


A  Afronta  a  António  Nobre  95 

trário  de  mostras  de  arrependimento,  perseve- 
rou no  crime,  gritou-o  envaidecidamente.  No 
Este  livro,..,  duas  páginas  com  que  prefacia 
o  tomo,  volta  a  afirmar  que  não  lisongeou  Sil- 
va Pinto.  Álêm  do  que  C.  A.  em  contradita  ga- 
rante e  bem,  encontra-se  muitas  vezes  na  sua 
obra,  a  mais  de  outras,  como  a  páginas  164  do 
1.°  milhar  da  Prosa  Vil,  a  frase  do  autor  da 
Pkilosopliia  de  João  Braz  sobre  Camilo :  «a  for- 
midável corda  das  lagrimas;  a  formidável  cor- 
da do  riso.  Diz  tudo  a  frase  de  Silva  Pinto.  For- 
midável, sim.  Nunca  adjectivo  aplicado  teve 
tanta  precisão.»  Não  será  isto  mostrar  incondi- 
cional concordância,  pelo  m.enos,  com  a  opinião 
do  forte  panfletário?  E  depois,  no  artigo  Más 
caras,  entre  anedoctas  mal  cabidas,  define-o  as- 
sim, aleivosamente:  «Azedo,  azedo  e  azedo." 
"Discrasia,  verrina  &  má  lingua."  E  intriga: 

"Querem  saber  como  ele  faz  um  livro?  Prin- 
cipia por  cortar  dos  jornais  bocadinhos  precio- 
sos. Põe-lhe  depois  por  baixo  uma  sentença  ou 
um  comentário  também  precioso.  Por  exem- 
plo: 

"Chiça,  chiça,  chiça»,  ou  então  "raio  de  vida 
esta",  «porca  de  vida^  etc.  Feito  isto,  reúne  4  his- 
tórias que  lhe  contaram  (quási  sempre  quem 
aquilo  lhe  contou  foi  o  Camilo)  e  põe  por  bai- 
xo: "Está  certo!  Está  feito  o  livro.  São  200  pá- 
ginas: 180  dos  jornais,  14  do  que  lhe  contaram 
e  dele  3  páginas  fora  o  ante-rosto  e  rosto.  As- 


96  A  Afronta  a  António  Nobre 

sina  e  sào  quinhentos  réis.  Vende-se  na  Parce- 
ria Pereira." 

Usando  do  exagero  que  o  sr.  Forjaz  usou 
para  com  Silva  Pinto,  não  haverá  ensejo  de 
aplicar  igual  e  depreciativo  juizo  a  respeito  do 
seu  próprio  processo  de  fazer  livros,  onde,  como 
notei,  as  citações  e  as  reminiscências  sào  numa 
abundância  pasmosa?  Irradiadas  elas,  quantas 
páginas  legitimamente  filhas  do  seu  engenho, 
propriamente  originais?  Com  argueiros  dessa 
índole  nos  próprios  olhos,  não  os  viu  senão  nos 
dos  outros. .. 

Foi  aquela  opinião  sobre  Silva  Pinto  ainda 
publicada  em  vida  deste  escritor.  Sim,  em  vi- 
da aparente.  Por  essa  época  já  Silva  Pinto  es- 
tava à  beira  do  túmulo,  já  era  apenas  uma  som- 
bra do  que  fora,  já  o  seu  braço  estava  refece 
para  brandir  a  clava  temível  da  sua  pena.  Por 
isso,  se  Silva  Pinto  teve  conhecimento  da  dia- 
tribe do  sr.  Forjaz,  decerto  a  recebeu  com  a 
indignação  recalcada  dum  doente  que  fora  po- 
deroso, e  a  cuja  cabeceira  alguém  agora,  ven- 
do-o  inofensivo  pelo  maniatamento  da  doença, 
se  valesse  disto  para  o  insultar,  dizendo-lhe  o 
ódio  que  sempre  calara,  cobardemente.  Talvez 
lhe  tivesse  ocorrido  à  mente,  num  sorriso  scép- 
tico  de  débil  consolo,  a  fábula  do  Mo  mori- 
bundo e  do  burro. .  • 

Mas  tal  diatribe  ainda  parece  suave  e  mode- 
rada ao  lado  da  que,  logo  que  o  cadáver  do 


A  Afronta  a  António  Nobre  97 

panfletário  desceu  à  terra,  traçou  e  deu  a  pú- 
blico em  A  Luta,  creio.  Parece  que  o  ódio  ali 
enfreado,  aqui  perdeu  o  freio',  ao  saber  decidi- 
damente, definitivamente,  inerme  e  fria  a  mào 
que  poderia  castigar  o  seu  atrevimento.  Nada 
havia  já  a  temer.  Desrolhou  o  frasco  do  vitríolo, 
Derramou-o  sobre  o  papel.  Foi  o  delírio  da  in- 
júria. Catou-lhe  os  livros,  em  busca  de  defeitos. 
Coleccionou  picaras  e  sujas  anedoctas.  Disse  tudo 
quanto  uma  alma  cheia  de  fel  pôde  dizer.  «O  ha- 
bitante dessa  carcaça  que  encerraram  num  caixào 
não  passou  de  um  azedo,  de  um  sinistro,  de  um 
aziumado."  «A  sua  obra  foi  a  sua  imagem.  Pilhé- 
rias, comentários,  farsolices,  zargunchadas,  ma- 
lícia, asperidão  e  sobretudo  azedume,  um  aze- 
dume resmungadamente  pessoal.  ^  Foi  talvez  in- 
vejoso este  pobre  diabo?  Tudo  me  leva  a  crer  que 
sim.  Mas  que  êle  foi  zanagamente  cruel  não  res- 
ta duvida.  Êle  nào  deixou  uma  grande  página, 
nem  sequer  uma  página  bela.'"  «Foi  impenetrá- 
vel de  orgulho,  e  jamais  sentiu  de  fora  para 
dentro,  visto  que  nula  era  a  sua  receptividade. 
E  nào  passava  no  seu  horizonte  homem  que 
nào  fosse  latrinário,  mulher  que  nào  trouxesse 
entre  o  corpete  e  o  seio  o  livrete  da  polícia. 
Amargo  e  impiedoso,  esse  velho  terrível,  de 
juba  branca  e  larga  fronte,  que,  quancio  descia 
à  rua  com  a  sua  velha  caneta  ferrugenta,  ainda 
abria  clareiras  de  terror. . . " 
Terrível  velho  com  a  sua  caneta  abrindo  cia- 


98  A  Afronta  a  António  Nobre 

reiras  de  terror  ..  Sim:  Por  isso,  quando  ain- 
da em  pleno  vigor,  o  sr.  Forjaz  o  lambuzou  de 
lisonja,  só  se  atrevendo  a  beliscá-lo  quando  já 
a  morte  andava  a  rondar-lhe  o  leito.  Depois, 
mal  o  viu  hirto  no  caixão,  é  que  surdiu  a  es- 
bofetear-lhe  as  faces  geladas,  valentemente,  num 
ímpeto  de  ódio,  cujas  determinantes  não  vejo, 
ou  talvez  mesmo  apenas  por  malvadez  instinti- 
va, tarada. 

Morto  Bulhão  Pato,  o  mimoso  autor  da  Pa- 
qiiita,  também  o  sr.  Forjaz  pouco  melhor  trato 
deu  à  sua  memória  do  que  dera  à  de  Silva 
Pinto.  Negou-lhe  o  talento :  « . .  como  artista  foi 
uma  figura  subalterna  que  só  por  suas  cãs  e  al- 
guns bambúrrios  se  achou  guindado  ao  olimpo 
das  letras."  «A  sua  prosa  é  de  uma  banalidade 
que  transpõe  quási  o  tapume  da  chateza.»  «A 
Paquita  já  os  senhores  sabem  o  que  é.  Uma 
coisa  mais  intragável  do  que  piorno."  E  mais 
ou  menos,  todos  os  seus  assertos  são  assim,  ir- 
reverentes, chocarreiros,  negativos.  Esíá-lhe  no 
feitio  a  maledicência. 

Está-lhe  no  feitio,  mas  só  a  expressa  às  cla- 
ras, alto  e  bom  som,  quando  apanha  os  alveja- 
dos impotentes  para  lhe  responder.  Só  assim. 
Porque,  parece  que  com  Bulhão  Pato  se  deu  o 
mesmo  que  com  Silva  Pinto,  no  que  diz  res- 
peito ao  acatamento  que  em  vida  lhe  mostrou 
o  sr.  Forjaz,  para  na  morte  lhe  gritar  desapreço, 


A  Afronta  a  António  Nobre 99_ 

e  mais  que  desapreço — rancor.  Nuno  de  Bulhão 
Pato,  sobrinho  do  Poeta,  e  meu  amigo,  e  tam- 
bém um  temperamento  poético  de  valor,  que 
infelizmente  a  burocracia  absorveu  e  encarce- 
rou, afirmou-me  que  se  lembrava  de  ter  visto 
entre  a  correspondência  de  seu  tio  uma  ou  mais 
cartas  do  sr.  Forjaz,  em  termos  amistosos  e  en- 
comiásticos, talvez  quando  lhe  ofertou  exem- 
plares dos  livros  que  publicava.  Seriam  mesmo 
para  o  caso  muito  curiosas  de  ver  as  dedica- 
tórias destes.  Decerto,  não  seriam,  e  assim 
aquela  ou  aquelas  cartas,  no  mesmo  estilo  do  ar- 
tigo do  livro  Grilhetas...  Mas,  contra  o  meu  gosto 
em  testemunhar,  com  documentos  escritos  pelo 
seu  próprio  punho,  a  hipocrisia  do  sr.  Forjaz, 
lisongeando  agora  o  que  mais  tarde  ha-de  ata- 
car furiosamente,  a  correspondência  e  a  livra- 
ria do  Poeta  Bulhão  Pato,  dispersas  ambas 
pela  família  basta,  não  permitem  já  uma  pes- 
quiza  nesse  sentido.  E"  pena.  Tenho,  pois,  de 
me  contentar  com  o  testemunho  verbal  de  Nuno 
de  Bulhão  Pato,  que,  embora  vago,  não  deixa 
de  ser  dalgum  modo  valioso. 

Com  a  morte  de  Ramalho  Ortigão  estron- 
deou  o  mesmo  desacato.  Parece  que  o  regosija 
ver  rolarem  por  terra  as  árvores  humanas  mais 
altivas  e  de  melhor  seiva.  Vendo  em  todos  con- 
correntes, rivais,  oficiais  do  mesmo  ofício,  desa- 
bafa quando  os  sabe  a  caminho  do  exílio  éter- 


100  A  Afronta  a  António  Nobre 

no,  deixando-lhe  o  campo  da  sua  indãsiria 
mais  livre  e  mais  apto,  assim,  para  expandir  o 
seu  negócio. 

Ha  quem  se  lembre  de  ter  lido  ha  anos  qual- 
quer referência  elogiosa  do  sr.  Forjaz  a  Rama- 
lho Ortigão,  antes,  muito  antes  da  morte  do 
ilustre  autor  da  Holanda.  Busquei-a,  mas  em 
vão.  Era  difícil  encontrá-la,  aliás,  pois  que  não 
fora  arquivada  em  livro,  mas  sim  aparecera 
apenas  nas  páginas  efémeras  dum  jornal.  Isto 
não  importa.  Já  se  viu  que  é  possível,  que  é 
lógica,  a  existência  dessas  linhas,  poucas  ou 
muitas,  aqui,  àlêm,  onde  não  sei.  Possíveis  e  ló- 
gicas (na  lógica  especial  do  sr.  Forjaz),  pelo  que 
sucedera  com  Silva  Pinto  e  Bulhão  Pato. 

Duma  citação  sei  eu.  É  na  Prosa  Vil.  Não  a 
acompanha,  é  certo,  qualquer  palavra  de  encó- 
mio. Mas  demonstra  ela,  pelo  menos,  concor- 
dância. 

Escusado  é  dizer  que  julgo  inteiramente  in 
justo  o  seu  juizo  sobre  a  individualidade  de  Ra- 
malho: "Quanto  ao  escritor,  êle  foi  sempre  um 
sorna  de  períodos  geométricos,  angulosos,  pre- 
nhes de  estatísticas  fora  do  propósito  e  sem  um 
vocabulário  capaz  de  faiscar  imagens  rútilas  e 
inesquecíveis."  Segue  neste  teor,  amachadando 
valores,  fazendo  comparações  desrazoáveis,  em 
detrimento  de  Ramalho,  com  D'Amicis,  Alfre- 
do de  Mesquita,  Ricardo  Jorge,  a  respeito  da 
Holanda  e  das  Praias  e  Aouas. 


A  Afronta  a  António  Nobre 101 

No  parti-pris  da  oposição,  cega-se,  obstina-se 
em  negar,  em  apoucar.  Ramalho  Ortigão,  to- 
dos o  sabem,  se  não  foi  um  Cellini  da  prosa, 
nenhuma  qualidade  de  escritor  de  pulso  lhe 
faltou.  A  sua  obra  merece  o  nosso  respeito  e 
até  a  nossa  gratidão.  Em  grande  parte  dela  foi 
português,  bem  português.  Saudável,  saudável- 
mente  a  escreveu.  Trouxe  ensinamento  para  a 
nossa  sociedade,  induziu  melhorias  e  reformas. 
Ninguém  tem  o  direito  de  sepultá-la  a  um 
canto,  como  falha,  inútil,  mumificada. 

Fialho  empregou  muitas  vezes  o  seu  subido 
talento  em  hostilidades  levianas  e  injustas.  Um 
dia  deu-lhe  para  classificar  a  doutrinação  de 
Ramalho  deste  modo:  «biologices  e  socio- 
logices  da  biblioteca  de  dois  soiis.»  Foi  talvez 
o  que  arrastou  o  sr.  Forjaz  a  expedir  os  seus 
comentários  de  desapreço  pela  obra  de  Rama- 
lho Ortigão.  No  seu  fanatismo  pelo  Mestre, 
fanatismo  que,  obedecendo  à  fatalidade  de  to- 
dos os  sentimentos  extremos,  é  incondicional 
e  não  distingue  as  altas  qualidades  dos  peque- 
nos defeitos  que  assistiam,  umas  e  outros,  no 
espírito  superior  e  requintado  do  grande  Ar- 
tista da  prosa  portuguesa,— o  sr.  Forjaz,  assimi- 
lando-lhe  em  bloco  todas  as  sugestões,  e  tal- 
vez mais  depressa  as  turbulentas  e  desequili- 
bradas, e  por  isso  inferiores,  do  que  as  outras, 
ampliou  o  dito  que  o  Mestre  num  momento  de 
mau  humor   atirara  ao  papel,  glosando-o  atra- 


102  A  Afronta  a  António  Nobre 


vez  do  seu  temperamento  sarcástico  e  sistema- 
ticamente adverso. 

Vindo  ao  encontro  da  indignação  que  adivi- 
nhava (ia  a  dizer — desejava,  tendo  em  vista  o 
seu  ardente  desejo  de  reclamo. .  .)  irem  levan- 
tar os  três  artigos  sobre  Silva  Pinto,  Bulhão 
Pato  e  Ramalho,  como  de  costume,  pediu  mu- 
leta. "Disse  Voltaire  que  para  com  os  vivos  deve 
haver  deferências,  mas  para  com  os  mortos  a 
nada  mais  estamos  obrigados  do  que  à  verda- 
de. D.  Francisco  Manuel  de  Mello  diz:  Se  os 
mortos  vos  não  dào  medo,  tratai  dêlès.  Concor- 
dando com  ambos,  eu  sinto  que  é  quando  uma  crec- 
tura  morre  que  o  seu  espólio  se  arrola  emeirinha.» 

Deve-se  só  a  verdade  aos  mortos,  concordo. 
A  avaliação  do  espólio  só  é  feita  após  a  morte 
de  alguém,  é  certo.  Mas  a  verdade  é  o  insulto, 
o  extravasamento  de  bílis,  o  ataque  feroz  ao 
espírito  dos  mortos?  Ha,  por  acaso,  nesses  três 
artigos  do  sr.  Forjaz  sobre  as  individualidades 
de  três  notáveis  escritores,  o  tom  calmo  duma 
crítica  mensuradora  de  valores?  De  ponta  a 
ponta,  só  os  lambe  uma  chama  voraz  de  nega- 
tivismo. O  vocabulário  neles  usado  é  acintoso, 
satírico,  propositadamente  escaldante.  Nem  a 
vida  particular  escapou  à  sua  hostilidade.  Ver- 
dade, não.  A  verdade  em  nada  temperou 
aquelas  páginas.  Só  a  mentira,  ao  serviço,  nem 
sei  se  dum  despeito  ou  se  da  sua  mania  icono- 
clasta, impeliu   a    pena  do  sr.  Forjaz  ao  traça- 


A  Afronta  a  António  Nobre 103 

-las.  Depois,  ante  um  féretro  ninguém  é  obrigado 
a  descobrir-se,  ao  geito  cristão,  reverente  para 
com  o  exílio  duma  alma,  na  sua  viagem  longa 
para  o  maior  mistério.  Mas  o  que  não  é  per- 
mitido, o  que  representa  desacato  de  demente, 
é  atirar  mancheias  de  lama  sobre  um  caixão  ou 
retalhar-lhe  à  navalha  o  manto  lentejoulado 
que  a  piedade  dos  outros  pôs  a  cobri-lo. 

Sem  esta  nefanda  parte,  como  disse,  o  livro 
OriLhetas  ficaria  talvez  como  a  melhor  e  mais 
interessante  obra  do  sr.  Forjaz.  Representa, 
em  técnica  de  estilo,  o  acúmen  do  seu  processo. 
O  vocabulário  ali  é  mais  rico.  Os  artigos  sobre 
Eça  e  Camilo,  sobre  Fialho  e  Latino  Coelho  e 
sobre  Júlio  Dantas,  Eduardo  de  Noronha, 
Shwalbach,  Mântua,  estes  bem  atochados  de 
elogios  (pudera !  tratava  com  vivos !  mas  te- 
nham SS.  Ex.^'  a  infelicidade  de  marchar 
adiante  do  sr.  Forjaz,  e  ver-se  hão  novas  mos- 
tras da  sua  especialidade  necrológica  ),  e  os 
inquéritos  de  jornais,  sào  curiosos,  entretêem, 
embora,  por  fragmentários,  nào  sejam  destina- 
dos a  perdurar.  Ha  neles  uma  parte  útil.  A 
divulgação  de  factos  e  particularidades  que, 
por  dizerem  respeito  a  figuras  de  destaque, 
mereciam  sair  da  penumbra  e  do  silêncio.  Exi- 
giram estudo,  trabalho  paciente.  As  notas  bi- 
bliográficas, mesmo  as  dos  três  incriminados 
artigos,  são  também  de  louvar.  O  pior  é  o 
adubo  dos  comentários.. 


104  A  Afronta  a  António  Nobre 


Em  1917,  publica  as  Vidas  Sombrias.  Livro 
de  crónicas,  já  editadas  em  jornais,  tresmalha- 
damente,  e  agora  acolhidas  sob  o  alpendre 
dum  título  pretensiosamente  romântico,  explo- 
rando a  nota  melancólica,  tem  as  qualidades, 
quer  positivas,  quer  negativas,  os  altos  e  os 
baixos,  em  assuntos  e  estilo,  da  trilogia  das 
Crónicas  imorais,  Lisboa  Trágica  e  Prosa  Vil. 
Sem  grande  vulto  e  sem  novas  características, 
dispensa  especial  anotação. 


E'  do  geral  conhecimento  a  maneira  como 
Portugal  foi  levado  a  cooperar  no  grande 
conflito  mundial,  desencadeado  em  1914. 
Quási  extinto  de  todo  o  espírito  guerreiro  da 
raça,  não  foi  sem  relutância  da  grande  massa 
do  povo,  é  doloroso  dizer-se,  que  se  começou 
a  organizar  e  efectivar  o  envio  do  nosso  con- 
tingente de  forças  para  os  campos  de  batalha 
da  Flandres,  A  uma  política  internacional  de 
aberta  simpatia  pela  causa  dos  Aliados  inicia- 
da pelos  governos  ,de  então,  opunha-se  uma 
outra  corrente  de  opinião,  que,  temerosa  dos 
avultados  encargo  que  sobre  o  tesouro  por- 
tuguês impenderiam  se  tal  intervenção  se  rea- 
lizasse, preconizava  antes  uma  política  neutral, 
embora  complacente  para  com  a  Enterite,  as- 
sim à  maneira  da  que  a  nossa  visinha  Espanha 


A  Afronta  a  António  Nobre  105 

resolveu  seguir,  e  donde,  se  nào  lhe  veiu  pres- 
tígio bem  claro  e  épico,  alcançou  um  largo  e 
lisongeiro  desenvolvimento  do  sen  imperialis- 
mo, na  forma  mais  pacífica,  mais  moderna  e 
mais  isenta  de  perigos — a  da  melhoria  da  sua 
balança  económ.ica. 

Esqueciam  os  dessa  campanha  defectista  que 
a  Espanha  nào  estava,  em  relação  aos  Aliados, 
no  mesmo  ambiente  histórico  em  que  se  en- 
contrava o  nosso  país  e  que,  portanto,  a  polí- 
tica escolhida  por  ela  e  que  lhe  levou  caudais 
de  oiro  aos  cofres  da  nação,  ainda  que,  impos- 
ta ao  nosso  povo,  viesse  a  dar  os  mesmos  re- 
sultados económicos,  o  que  é  duvidoso,  não  só 
nos  não  era  moralmente  aplicável,  como  até  a 
escolhermo-la,  cairíamos  no  perigo  de  sermos 
dados  por  relapsos  aos  tratados  com  a  Ingla- 
terra. 

Não  é  aqui  o  campo  azado  para  ressurgir  essa 
questão,  juntando-lhe  quaisquer  comentários  a 
favor  dum  critério  ou  doutro,  O  que  importa 
ao  meu  escopo  é  perante  o  facto  da  nossa  en- 
trada na  guerra  com  os  Impérios  Centrais,  cons- 
tatar que  em  certas  camadas  do  público  essa 
cooperação  esteve  bem  longe  de  ser  entusiástica. 

Por  isso,  como  sucedera  já  em  todos  os  países 
arrastados  ao  conflito,  criou  o  nosso  governo 
um  organismo  oficial  que  tinha  por  missão  fa- 
zer a  propaganda  intensa  do  nosso  esforço  bé- 
lico, não  só  dentro  de  Portugal,  com  o  intuito 

F.  9 


106  A  Afronta  a  António  Nobre 


de  levantar  o  espírito  popular,  incendiando-o 
de  simpatia  pela  causa  em  que  fôramos  a  par- 
ticipar, mas  também  lá  fora,  no  estranjeiro,  com 
um  caracter  mais  genérico  nessa  propaganda^ 
que  sempre  deveria  ter  existido  e  é  de  desejar 
que,  bem  orientada,  se  perpetue  e  se  fixe,  para 
atenuar  a  pasmosa  ignorância  em  que  a  nossa 
nacionalidade  se  debate  nos  outros  países,  mui- 
tas vezes  recebendo  bastamente  o  oiro  luso^ 
mas  confundindo-o  com  o  da  Espanha. 

Criou-se,  pois,  uma  rq^artição  especial  para 
esse  fim.  Mas,  ao  que  parece,  pelos  depoimen- 
tos de  peso  que  têem  vinde  a  lume,  a  pecha 
de  má  administração  que  corrói  toda  a  nossa 
engrenagem  burocrática,  logo  invadiu  o  recem- 
-nado  organismo,  depauperando-lhe  os  recur- 
sos, consumindo-lhe  as  verbas  num  abrir  e  fe- 
char de  olhos,  quási,  a  bem  dizer,  sem  nenhuma 
propaganda  se  ter  feito.  Quem  devorou  tanto 
dinheiro?  Sabe-se  lá  bem!.  .  Bem  nào  se  sabe, 
mas,  contudo,  um  ou  outro  caso  foi  denunciado, 
como  aquele  que  é  agora  ocasião  de  com.entar: 
o  do  sr.  Forjaz,  o  da  côdea  farta  que  nesse 
bodo  foi  dada  a  roer  ao  afortunado  plumitivo. 
Este  caso  do  negócio  do  sr.  Forjaz  com  a  tal 
repartição  de  propaganda  foi  deixado  em  he- 
rança, em  Dezembro  de  1917,  à  situação  co- 
nhecida pelo  dezenibrismo.  Nada  melhor  do 
que  uma  transcrição  de  certas  passagens  dos 
jornais  a  esse  respeito  poderá  instruir-nos.  Em 


A  Afronta  a  António  Nobre  107 

A  Luta  de  21  de  Janeiro  de  1918  estampou  o 
sr.  Forjaz  quási  duas  insolentes  colunas  de  pro- 
sa, em  troco  de  várias  alusões  adversas  que  di- 
versos orgàos  da  imprensa  já  haviam  publicado 
dias  antes.  Ei-las  : 


CRÓÍsTIC^ 


A^spectos    &    Impressões 

O  ESCAI^DÃLÕ  FORJAZ 

Ora  vamos' a  isto. 

Havia  no  ministcrio  da  Instrucção  uma  comissão  cujo 
fim  único  era  a  propaganda  de  Portugal  intra  e  extra  fron- 
teiras, comissão  de  que  faziam  parte  creaturas  que  muito 
■considero  e  de  quem  me  tionro  de  ser  amigo.  Um  belo 
dia  propuz  a  compra  de  uma  edição  de  artigos  meus,  cró- 
nicas que  tinha  publicado  sobre  a  Alemanha.  A  comissão 
achou  que  seria  melhor  fazer  eu  um  livro  novo,  de  im- 
pressões directamente  colhidas  no  front,  livro  curioso  e 
vivido.  Concordei  e  propuz-me  fazêl-o.  Receberia  para 
isso  3:000  francos,  foi  o  que  pedi.  Em  troca  daria  artigos 
de  propaganda  nos  jcrnaes  onde  costumo  colaborar,  pu- 
blicaria um  livro  de  240  paginas,  com  um  minimo  de  ti- 
ragem de  3:000  exemplares  e  daria  á  comissão,  que  é  como 
<iuem  diz  ao  governo,  200  exemplares.  Tal  o  negocio.  Foi 
o  caso  aprovado  pela  comissão  e  aprovado  pelo  conselho 
de  ministros  Afonso  Costa.  Estava  a  coisa  neste  pé,  isto 
é,  fechado  o  contracto  entre  o  escritor  Albino  Forjaz  de 
Sampaio  e  o  governo  portuguez,  quando  a  revolução  sur- 
ge. Todos  os  negócios  de  publicidade  foram  novamente  a 
•conselho  e  o  conselho  aprovou  novamente  o  que  já  apro- 
■vado  estava.  E'  que  o  conselho  reconheceu  que  o  nego- 
cio nada  tinha  de  imoral. 


108 A  Afronta  a  António  Nobre 

O  governo  dava-me  3:000  francos,  858S03  escudos  ao 
cambio.  Eu  dava-lhe  além  da  publicidade,  da  propaganda, 
do  meu  nome  e  do  meu  trabalho  200  exemplares,  que  a 
60  centavos  cada,  valem  120  escudos.  Dir-se-ha  que  os 
exemplares  não  são  dinheiro?  Pois  são,  porque  o  editor 
os  paga  ao  deposito  de  papel,  á  tipografia  e  impressão, 
ao-brochador  e  ao  moço  e  eu  lh'os  pago  a  ele,  porque  o 
governo  m'os  pagou  a  mim. 

Ouro  é  o  que  ouro  vale  ou  íes  affaires  sontles  ajfaires. 
Ficou  já  a  verba  moralmente  reduzida  a  setecentos  e  tal 
mil  réis,  um  fortunão. 

Ora,  houve  um  jornal  do  Porto,  o  Jornal  de  Noticias, 
informado  pela  prenda  do  seu  correspondente  de  Lisboa, 
que  dizia  que  a  «revolução  veiu  encontrar  muita  gente  com 
o  taçalho  na  boca,  sem  lhe  dar  tempo  de  o  engulir.»  E  di- 
zia mais  que,  (era  comigoj,  havia  individuos  contractados 
para  ir  ao  front,  recebendo  só  para  viagens,  3:000  fran- 
cos. O  sublinhado  é  meu.  Em  primeiro  logar,  murche  a 
orelha  do  cronista.  Eu  comi  o  taçalho.  Em  segundo  logar 
os  taes  3:000  francos  foram  para  tudo,  sem  encargos  de 
maior.  Para  eu  pagar  comboios,  comedorias  e  fretes,  para 
publicar  um  livro,  para  escrever  artigos,  para  dar  du- 
zentos exemplares  ao  governo,  para  sofrer  frio  e  neve, 
para  dormir  incomodamente,  para  poder  lá  ter  ficado  com 
uma  bala  na  cabeça,  porque,  julgo  que  é  uma  coisa  que 
na  guerra  possa  acontecer  semi  parecer  extraordinário  a 
ninguém,  nem  mesmo  a  quem  morre.  Ora  tudo  isto  por 
846$00,  para  mim,  que  tenho  uma  casa  com  arte,  uma  li- 
vraria preciosa,  comida  regular  e  bôa  cama,  acho  que  não 
é  de  locupletar-se  a  gente.  Grande  negocio  na  verdade 
para  quem  fosse  descobrir  Paris,  como  aconteceu  a  alguns 
colegas  parolosos. 

Mas  ainda  ha  mais.  No  dia  18  de  Dezembro  o  sr.  For- 
jaz  de  Sampaio  comprou  na  casa  Thos,  Cook  &  Son  um 
bilhete  de  ida  e  volta  a  Paris.  Custou-lhe  1095640  réis. 
Ora  já  os  malvados  700  escudos  estão  em  ÕCO  apenas.  O 


A  Afronta  a  António  Nobre  109 

sr.  Forjaz  demorou-se  na  viagem  24  dias.  Numa  média  de 
50  francos  por  dia,  pão  negro  e  café  sem  assucar,  o  sr. 
Forjaz  gastou  mais  1.200  francos.  Os  javardos  julgarão 
que  eu  tenho  medo  das  suas  jornalices  ou  das  suas  insi- 
nuações. Agora  ponham  cartas,  guias  e  plantas,  trabalhos 
publicados  sobre  a  guerra  e  ha-os  bem  curiosos,  bem  in- 
teressantes, quer  como  técnica,  quer  como  arte,  Le  Feu  e 
L'Enfer,  de  Barbusse,  a  Ma  Pièce,  de  Paul  Lintiér,  Los 
cuafro-ginetes  dei  apocalipsis,  de  Blasco  Ibanes,  Les  pre- 
mièrs  cent  mille,  de  lan  Hay.  Tudo  isto  havia  que  se  com- 
prar. Resumo:  os  senhores  sabem  qnanto  eu  ganhei  com  o 
escândalo  da  minha  ida  ao  front?  Os  senhores  sabem  com 
quanto  eu  regressei  a  Lisboa,  com  quanto  num  envelope 
eu  dei  entrada  na  estação  do  Rocio?  Pois  com  uma  nota 
de  100  francos  que  rebatida  dois  dias  denois  no  Credit 
me  deu  295400  e  duas  moedas  hespanholas  de  10  cênti- 
mos e  2  francezas  de  5.  Conservo-as  para  recordação. 

Agora  outra  coisa.  Eu  fui  como  tenente.  Parece  extra- 
ordinário e  todavia  não  houve  coisa  mais  regular.  Como 
quereriam  os  taes,  os  outros,  os  aqueles,  que  eu  fosse?  A' 
paizana.  Ignora-se  cá  em  Portugal  que  é  defezo  a  paiza- 
nos  o  campo  das  operações.  Para  ir  ao  froní  vesti-me  de 
tenente.  E'  uma  coisa  que  sem  favor  a  lei  me  concede. 
Já  tinha  vestido  a  casaca  para  ir  a  uma  festa  em  casa  do 
dr.  Manuel  de  Arriaga;  para  ir  numa  das  maquinas  do  rá- 
pido do  Porto  me  vestira  de  ganga  azul,  e  para  fazer  uma 
viagem  na  casa  das  maquinas  do  paquete  Porto  me  ves- 
tira de  fogueiro. 

Tenho  ainda  um  smoking,  um  frak  e  tudo  isto  compra- 
do antes  da  famosa  negociata  dos  três  mil  francos,  que  um 
famoso  sucio  julgava  serem  três  contos  de  réis. 

Embora  a  farda  de  tenente  me  ficasse  a  matar,  despi-a 
em  Bayonna.  E'  que  eu  tive  sempre  pouca  querença  para 
as  fardas.  E  entre  a  de  tenente  que  um  decreto  me  em- 
prestou e  a  da  Academia  que  ganhei  pelo  meu  trabalho,  a 
da  Academia  é  muito  mais  vistosa.  Mete  espadim,  chapéu 


110  A  Afronta  a  António  Nobre 

armado  e  não  é  ainda  acessivel  aos  garujas  literários  que 
dão  facadas  nas  gazetas. 

Tem  a  minfia  ida  uma  outra  parte,  reservada  até  seu 
tempo.  Essa  porém  não  custou  um  real  ao  Estado.  Parece 
que  ficamos  entendidos,  hein? 

Percorro  as  gazetas.  A  Capital  perguntava  Tenente  de 
que?  insinuando  que  este  governo  estava  já  a  talhar  fa- 
tias para  os  afilhados  e  que  eu  ia  substituir  o  sr.  Augusto 
Pina.  Enganou-se  a  Capital.  Não  fui.  O  governo  disse  á 
Capital  por  que  me  tinha  feito  tenente.  A  Capital  não 
disse  nada  aos  seus  leitores.  Também  é  um  processo 
jornalistico.  Creaturas  mal  intencionadas  vieram  dizer-me 
que  a  noticia  da  Capital  e  o  taçaiho  do  Jornal  de  Noti- 
cias eram  prosa  do  meu  amigo  Adelino  Mendes.  Não  acre- 
ditei, claro.  Adelino  Mendes  já  esteve  em  França  e  sabe 
que  três  mil  francos  mesmo  fardados  são  nada,  a  não  ser 
que  a  creatura  vá,  como  c'esí  la  guerre,  dar  tiros  -  passe 
o  calão — de  algumas  centenas  de  francos  aos  compatrio- 
tas que  tope.  A  Opinião  fazia  O  Caso  Forjaz  como  se 
fosse  o  caso  Caillaiíx.  As  outras  abundavam  nas  aguas  do 
escândalo.  Está  pois  a  cousa  explicada,  se  bem  que  eu  po- 
deria ter  comido  o  taçaiho  como  diz  o  outro  e  não  vir 
agora  aqui  dizer  que  estou  gratissimo  a  todos  por  tantas 
provas  de  amisade. 

Pois  é  verdade!  Valem  um  poema,  os  inventores  do  es- 
cândalo  . . 

Sinto  nos  bicos  da  pena  as  cócegas  vocabulares  do  pa- 
dre José  Agostinho.  Ficam  de  remissa,  embora  isso  me 
dê  uma  pena  que  nem  os  senhores  podem  imaginar. 

íllbino  Forjaz  de  Sampaio 

Por  mais  fleugma  que  nos  assista,  não  se  po- 
dem ler  sem  revolta,  sem  indignação,  estas  pa- 
lavras de  filáucia  e  de  descaramento,  dando  em 


A  Afronta  a  António  Nobre  111 

insignificante  conta  o  emprego  dos  dinheiros 
públicos. 

Aparte  ainda  o  tom  chalaceador  e  irritante 
dessa  crónica,  cumpre  fixar-lhe  certas  afirma- 
ções com  respeito  à  indole  do  negócio  contrac- 
tado,  para  a  gente  se  certificar  se  foi  ou  não 
cumprido:  "A  comissão  achou  que  seria  melhor 
fazer  eu  um  livro  novo,  de  impressões  directa- 
mente colhidas  no  front,  livro  curioso  e  vivido." 
«Em  troca  daria  artigos  de  propaganda  nos 
jornaes  onde  costumo  colaborar,  publicaria  um 
livro  de  240  páginas,  com  um  mínimo  de  ti- 
ragem ..."  etc.  Ver-se  ha  que  não. 

Vários  jornais  lhe  deram  resposta  enérgica. 
Como  súmula  dessa  oposição,  aqui  está  uma 
local  de  A  Capital  do  dia  seguinte : 

O  caso  Forjaz  de  Sampaio 

o  sr.  Albino  Forjaz  de  Sampaio  já  regressou  do  front 
portuguez.  E  hontem,  para  elucidar  o  publico,  publicou 
na  Lucta  um  longo  artigo,  no  qual  explicava,  como  elle 
próprio  diz,  o  escândalo  Forjaz,  pondo  em  pratos  limpos 
tudo  o  que  a  esse  mesmo  escândalo  diz  respeito.  Se  não 
fosse  uma  alusão  directa  á  Capital,  pouco  nos  interessa- 
ria o  relatório  do  sr.  Albino  Forjaz  de  Sampaio.  Mas 
como  o  commissionado  pelo  governo  portuguez  para  ir  a 
França  desempenhar  uma  mysteriosa  e  urgente  commissào 
de  serviço  nos  diz  que  não  quizemos  publicar  a  explica- 
ção que  o  governo  para  aqui  enviara,  somos  forçados  a 
pôr  as  coisas  no  pé  que  lhes  pertence.  Effectivamente,  não 
publicámos  a  nota  explicativa  do  governo.  E  sabe  o  sr. 


112  A  Afronta  a  António  Nobre 


Forjaz  de  Sampaio  porquê?  Porque  não  a  entendemos. 
Succede-nos  sempre  isso  quando  vemos  citados,  em  docu- 
mentos officiaes  ou  officiosos,  um  rosário  d'artigos  de  lei, 
que  nem  os  próprios  juizes  da  relação  se  atrevem,  as  mais 
das  vezes,  a  decifrar. 

E  não  nos  arrependemos  do  que  fizemos.  O  nosso  ins- 
tincto  valeu-nos  uma  vez  mais.  E'  que  entre  a  nota  eluci- 
dativa, recheiada  de  citações  de  artigos  de  decretos  appli- 
caveis  ao  escândalo  Forjaz,  e  o  que  conta,  no  seu  artigo 
da  Liicta,  o  sr.  Albino  Forjaz  de  Sampaio,  ha  uma  discor- 
dância absoluta.  O  governo  dizia  que  incumbiu  aquelle  es- 
criptor  de  ir  ao  C.  E.  P.  desempenhar  uma  commissão  de 
sua  confiança  e  declarava  que  opportunamente  informaria 
o  paiz.  O  sr.  Albino  Forjaz  de  Sampaio  assevera  que  foi 
ao  front  portuguez  para  escrever  um  livro,  do  qual  forne- 
cerá ao  Estado  duzentos  exemplares,  tendo  recebido  para 
isso  a  bagatela  de  3.000  francos,  ou  sejam,  segundo  as 
contas  do  interessado,  858$00  escudos.  O  estado  realisava, 
portanto,  um  excellente  negocio,  comprando  cada  exem- 
plar do  livro  que  o  sr.  Albino  Forjaz  de  -Sampaio  escreve- 
ria a  4.290  reis  cada  volume.  São  estas  as  objecções  que 
temos  por  bem  fazer  á  referencia  que  endereçou  á  Capi- 
tal o  auctor  do  artigo  da  Liida.  Não  nos  parece  que  não 
sejam  claras  e  elucidativas , . . 

Também  no  Jornal  de  Notícias  de  26  de  ja- 
neiro o  ilustre  jornalista  Adelino  Mendes  saiu 
à  estacada,  respondendo  com  merecida  violên- 
cia à  insinuação  do  sr.  Forjaz  duma  preten- 
dida má  fé  do  correspondente  daquela  folha 
em  Lisboa.  Entre  outras  coisas,  diz-lhe:  «  . .  o 
ar  de  mártir  com  que  se  reveste,  querendo  fa- 
zer-se  passar  por  ter  prestado  um  serviço,  quan- 
do foi  ele  que  recebeu  dinheiro  da  Nação  para 
servir  os  seus  interesses" . .  ■  «O  sr.  Albino  For- 


A  Afronta  a  António  Nobre  U3 

jaz  não  pôde  ofender  ninguém,  nem  mesmo  a 
memória  de  Fialho — que  é  a  muleta  literária 
que  lhe  tem  servido  para  tudo — até  para  ser 
sócio  da  Academia.'/  Remata:  «E  não  julgue  o 
cínico  das  Palavras  Cínicas  que  fico  com  có- 
cegas nos  bicos  da  pena,  para  desembestar  em 
impropérios  contra  quem,  sem  ter  a  coragem 
de  se  me  dirigir  cara  a  cara,  pretendeu  naifar- 
-me  pelas  costas.  Nào.  Fico  com  cócegas  mas 
é  na  biqueira  do  sapato.  E  essas  pôde  o  cava- 
lheiro estar  certo  de  qiie,  se  fôr  preciso,  nào 
as  deixarei  eternamente  a  roer,  como  comichão 
maldita,  das  que  levam  coiro  e  cabelo.  Porque 
a  respeito  de  resistência  moral  e  física  o  meu 
ilustre  camarada  Herculano  Nunes  que  diga  e 
testemunhe  até  onde  ela  vai,  quando  se  trata 
de  chegar  a  roupa  ao  pêlo  ao  sr.  Forjaz  de 
Sampaio." 

Tão  escandaloso  proteccionismo  revelava  c 
caso,  proteccionismo  que  nunca  o  Estado  bron- 
co e  avarento  dispensara  a  nenhum  artista  da 
pena  deveras  necessitado  dele  e  a  ele  tendo 
jus  por  subidos  méritos, — que,  mesmo  sem  se 
ver  o  livro,  já  os  protestos  se  erguiam  nesta 
grita  reprovadora  e  bem  legítima 

Porque  teria  sido  o  sr.  Forjaz  o  beneficiado, 
o  único  beneficiado,  quando,  se  se  compulsar  a 
imprensa  anterior  mas  desses  mesmos  anos  de 
guerra,  ver-se  ha  que  muitos  outros  escritores 
desenvolveram  uma  vasta  propaganda  do  nosso 


14  A  Afronta  a  António  Nobre 


esforço  no  conflito,  sem  que  o  Estado,  num  ge- 
neroso gesto  de  Mecenas,  os  tivesse  chamado 
a  si,  recompensando-os,  dando-lhes  chorudo 
dinheiro  para  uma  viagem  em  terras  de  Fran- 
ça? Porque?  Porque  só  o  sr.  Forjaz  teve  o  atre- 
vimento de  fazer  a  proposta  da  pubHcaçào  do 
livro  famigerado?  Talvez  só  por  isso.  Mas  o 
que  ninguém  poderá  aprovar  é  que  tão  levia- 
namente essa  proposta  tivesse  sido  aceita,  mal- 
baratando dinheir-os  que  tanto  custam  a  pagar 
ao  pobre  contribuinte  português.  Quem  quere 
regalos,  paga-os,  e  não  se  deita  a  chuchar  na 
exangue  teta  estadual. 

Diversos  jornais  mantiveram  à  sua  exclusiva 
custa  correspondentes  lá  fora,  em  França,  no 
intento  meritório  de  darem  passo  a  passo  ao 
público  o  relato  dos  feitos  da  nossa  soldades- 
ca. Por  exemplo,  A  Capital  dois  enviados  teve, 
nada  menos:  Adelino  Mendes  e  Mário  de  Al- 
meida, a  quem  se  devem  dois  belos  livros  so- 
bre a  guerra.— Cartas  da  guerra  e  O  Clarão  da 
Epopeia.  Como  estes,  outros  jornalistas  e  escri- 
tores por  lá  andaram  e  dos  seus  trabalhos  ficou 
uma  propaganda  enorme  e  bem  feita,  que  nem 
um  ceitil  custou  aos  cofres  públicos. 

Depois  deste  estampido  de  ataques  ao  es- 
cândalo e  da  fumaceira  que  o  rodeou  por  mo- 
mentos, fez-se  um  silêncio  longo.  Rolaram  os 
meses, — e  o  luso  pagante  à  espera  do  decantado 
livro,  que  lhe  custara  a  bagatela  de  3:000  fran- 


A  Afronta  a  António  Nobre  115 

COS !  Quási  decerto  se  esquecera  dele,  tão  habi- 
tuado anda  de  ha  longas  eras  a  pagar  tanta 
coisa  inútil  e,  o  que  é  mais,  tanta  coisa  que 
nào  vê. . . 

Rolaram  os  meses,  rolaram,  e,  por  fim,  já 
quási  à  beira  da  assinatura  do  armistício,  surge 
um  livro  do  sr.  Forjaz,  de  título  estranjeirado 
A  Avalanche  que,  por  certas  passagens,  e  mais 
ainda  porque  nenhum  livro  mais  ele  tenha  publi- 
cado com  temas  sobre  o  prélio,  deixa  a  gente 
na  presunção  de  ser  este 'o  '<  livro  novo,  de  im- 
pressões directamente  colhidas  no  front,  livro 
curioso   e  vivido»,  «um  livro  de  240  páginas». 

Este!.., — pasmará  o  leitor,  como  eu  pasmei, 
ao  folheá-lo.  Primeiramente,  com  uma  publica- 
ção tão  tardia,  quási  já  fora  do  tempo  do  con- 
flito, o  livro,  por  melhor  que  fosse,  resultaria 
inútil,  tendo  em  vista  o  fim  a  que  se  propu- 
nha—manter aceso  o  interesse  do  povo  portu- 
guês pela  acção  dos  seus  soldados,  que  valen- 
temente se  estavam  batendo  e  morrendo,  co- 
bertos de  glória,  lá  longe,  na  Flandres,  honran- 
do o  sagrado  nome  da  Pátria.  Depois,  o  livro 
não  só  não  é  melhor  do  que  os  outros  publi- 
cados sem  subsídio  oficial,  como  até  é  pior,  como 
nào  é  bom,  como  é  inferior.  «Livro  novo,  de 
impressões  directamente  colhidas  no  front». 
«Novo»,  é  falso.  Folheie-se  uma  colecção  de  A 
Luta  e  lá  será  encontrada  a  maior  parte  dos 
artigos  que  constituem  esse  capítulo  do  livro 


116  A  Afronta  a  António  Nobre 

Á  margem  da  grande  guerra,  que  se  estende 
por  cento  e  vinte  páginas,  isto  é,  mais  de  me- 
tade do  volume,  que,  ao  todo,  tem  220  em  vez 
das  240  páginas  contractadas. 

Duas  transgressões,  portanto,  se  apontam  já 
ao  contracto:  a  falta  da  qualidade  de  inédita 
de  metade  do  livro  e  o  seu  menor  número  de 
páginas. 

Para  quem  conheça  um.  pouco  a  obra  do  sr. 
Forjaz,  irreverente,  sarcástica,  indiferente  ao 
sentimento  de  patriotismo,  dá  franca  vontade 
de  rir  o  estilo  da  dedicatória:  nA  todos,  que 
ao  frio,  à  neve,  à  chama  rubra  dos  incêndios, 
ao  troar  do  canhão,  ao  enervante  crepitar  da 
fuzilaria,  na  incei  teza  das  águas  do  mar,  na 
planície  desolada  da  Flandres,  na  noite  negra 
das  trincheiras  ou  na  noite  vermelha  dos  hos- 
pitais, souberam  lutar,  combater,  sofrer,  mor- 
rer, honrar  a  Pátria  —  Soldados  de  Portugal  — 
dedica  o  autor".  Como  sôa  falso  tudo  isto!  Co- 
mo isto  é  postiço  no  temperamento  do  sr. 
Forjaz!  Tanto,  que  as  palavras  lhe  sairam  sem 
alma,  alinhadas  ali  a  custo. 

Em  seguida,  á  laia  de  prefácio,  sumaria  os 
motivos  do  conflito  grandioso,  com  estafados 
lugares  comuns  do  jornalismo  e  sabença  do 
Larousse.  Com  os  mesmos  elementos  cozi- 
nhou as  vinte  crónicas  da  primeira  parte  do 
volum.e.  E  —  caso  célebre  e  risível!  —  em  algu- 
mas delas  de  tal  modo  estira  por  páginas  e 


A  Afronta  a  António  Nobre  117 

páginas  o  relato,  túrgido  de  algarismos,  do 
poderio  multiforme  dos  alemães,  que,  apezar 
do  fecho  das  crónicas  vaticinar  a  derrota  dos 
Impérios  Centrais,  se  chega  a  acreditar  que 
aquilo  tudo  não  é  mais  do  que  um  dos  muitos 
elementos  de  propaganda  anti-aliada,  isto  é, 
pró--Gerniânia,  pago  generosamente  com  o  pér- 
fido e  execrando  oiro  alemão,  tal  é  a  impressão 
de  força  e  de  superioridade  da  energia  da  Ale- 
manha que  esses  assertos  nos  introduzem  no 
espírito!...  Leia-se:  «A  sua  (da  Alemanha) 
marinha  é  enorme,  o  seu  exército  não  cessa  de 
aumentar,  as  praças  fortes  da  fronteira  multi- 
plicam-se  e  com  elas  a  espantosa  rede  de  ca- 
minhos de  ferro ".  «Passou  a  fronteira  e  na  luta 
económica  que  caracteriza  a  vida  moderna,  a 
indiístria  e  o  comércio  alemão  dia  a  dia  maio- 
res e  mais  pujantes  se  fazem».  «Foi  isso  o  que 
tornou  Hamburgo  o  terceiro  porto  do  mundo 
e  fêz  de  Bremen  um  grande  império.  Por  Ham- 
burgo tudo  passava.  Havia  o  navio  carvoeiro, 
o  de  carnes  congeladas,  o  que  só  levava  frutas. 
O  café  do  Brasil,  a  borracha  e  o  cacau  das 
nossas  Africas,  as  rendas  da  Madeira,  as  louças 
do  Japão,  porcelanas,  sedas,  livros,  cantaria, 
papeis,  de  tudo  Hamburgo  era  o  grande  mer- 
cado. Só  a  sua  praça  tinha  430  vapores  mon- 
tando 637:000  toneladas,  com  16:000  tripulan- 
tes." Não  tem  qualquer  coisa  de  relatório  dum 
cônsul  alemão,  encarecendo  os  méritos  da  sua 


118  A  Afronta  a  António  Nobre 

orgulhosa  Pátria?  "A  sua  marinha  de  guerra.  .  . 
a  segunda  marinha  do  mundo..  "  «O  exérci- 
to, que  nos  Hohenzollerns  é  «uma  tradição  de 
família»,  é  o  primeiro  do  mundo,  com  os  seus 
formidáveis  23  corpos".  "O  comércio  e  a  in- 
dústria alemã  são  coisas  espantosas  de  desen- 
volvimento." Etc,  etc.  Que  veemente  panegíri- 
co, triunfal,  apoteótico;  para ''digno  remate,  soas 
notas  clamorosas  do  Deutschland  uber  alies! . . . 
A  segunda  parte  do  volume  intitula-se  No 
coração  da  guerra  e  tem  como  sub-título  Sol- 
dados de  Portugal.  Começa  a  páginas  129.  Em 
oito  crónicas,  que  abrangem  mais  de  quarenta 
páginas,  diz-nos  o  que  passou  a  sua  importan- 
te pessoa  «a  caminho  do  front",  bem  minucio- 
samente, com  horas  de  partida  de  comboios,  o 
frio  que  fazia,  a  fome  que  sentiu  a  ccirta  altura 
do  trajecto,  as  olhadelas  que  deitou  à  paisa- 
gem, os  episódios  pícaros  da  viagem,  o  bom 
gosto  dum  jantar  em  Valência,  a  delícia  do 
vinho  ingerido  a  regá-lo,  a  recordação  duma 
zurrapa  que  lhe  molhara  as  tripas  treze  anos 
antes,  coisas  estas  e  outras  todas  muito  homé- 
ricas e  dignas  duma  epopeia. 

Tanc-tan,tanc-tan,  o  comboio  silva,  o  com- 
boio rola,  o  comboio  desdobra  por  ali  fora  o 
corpo  serpenteante  de  anéis  de  aço.  Bargas, 
Agonias,  Cabailas,  Madrid,  por  fim.  Primeira 
étape  do  seu  calvário.  «Frio  laminante,  pneu- 
mónico".  Pobre  sr.  Forjaz   de  Sampaio!    En- 


A  Afronta  a  António  Nobre U9 

quanto  lá  longe,  comodamente  instalados  nos 
covis  das  trincheiras,  os  soldados  bisonhos  de 
Portugal  se  entregam  à  orgia  da  guerra,  ele, 
em  alto  serviço  da  Pátria,  em  abnegado  sacri- 
fício pela  grei,  arrosta  com  aquela  intempérie, 
com  aquela  algidez  do  ar,  no  deserto  de  Ma- 
drid, que  lhe  faz  ter  imensas  saudades  de  Lis- 
boa! O'  Lísbia,  ó  Pátria,  ó  numes,  como  pa- 
gardes os  favores  do  ínclito  cidadão?! 

Parte  de  novo.  Segunda  étape,  terceira,  quar- 
ta, muitas.  San  Sebastian,  Bordéus,  Paris.  Vá 
de  evocar  o  Paris  doutros  tempos,  revolteante, 
boémio,  colmeia  de  lindas  fêmeas.  Mesmo  as- 
sim mudado  e  despido  dos  atractivos  de  outro- 
ra, ainda  se  compraz  em  esboçar-lhe  aspectos 
em  duas  ou  três  ciónicas.  Revistas,  mulheres  de 
pernas  ao  léu,  o  sorriso  pecador  de  Rose  Amy 
e  o  bacante  olhar  da  Gaby  Deslys.  O  que  o 
homem  sofre  atravez  daquilo  tudo,  em  que 
jamais  esqueceu  a  magestade  da  sua  missão: 
"E,  quando  no  fim  subo  a  escada  do  hotel,  pi- 
sando a  passadeira  com  as  minhas  fortes  botas 
impermeáveis,  eu  penso  na  loucura,  no  vorti- 
Ihão,  no  sonho  de  luz  e  carne  que  passou  ante 
os  meus  olhos  e  agora  é  somente  um  sonho. 
Penso  também  se  voltarei  a  vê-lo,  se  não  fica- 
rei, pelo  acaso  de  uma  inevitável  fatalidade, 
nesse  front  para  onde  a  minha  guia  em  inglês 
diz  que  eu  devo  partir  amanhã,  da  gare  do 
Norte  às  9  horas. 


120  A  Afronta  a  António  Nobre 

"Sei  lá!  Sabemos  nós  por  acaso  alguma  coi- 
sa!.. ." 

Vale  uma  lágrima  este  final! 

Partiu,  seguiu,  viu  campos  desolados,  apro- 
ximou-se  da  no  nian's  land.  Melancolicamente  to- 
cado do  pavor  da  morte,  confidencia:  «No 
comboio  scismo  um  pouco  em  mim.  Cá  vou. 
Para  onde?  Para  o  desconhecido.  E'  curioso 
isto,  pois  não  é?  E  chega  o  comboio  ao  Aire. 
São  9  e  meia  de  uma  soturna  manhã  de  neve». 

Página  177.  Entra  na  zona  do  front.  Lamen- 
tos dum  galucho,  o  encontro  com  um  amigo 
velho,  o  regalo  do  almoço.  Depois,  a  caminho 
da  escola  dos  gazes,  uma  caminhada  longa  so- 
bre a  neve  e  sob  neve,  que  lhe  arranca  uns  quei- 
xumes de  poltrão  "...  por  vergonha  é  que  eu 
não  confesso  que  sou  um  pobre  farrapo  de 
alma  a  quem  a  neve  perturba  e  mata.»  «Se  eu 
caisse  varado  à  beira  daquela  estrada  de  prata 
fosca  que  não  acaba  mais,  só  a  neve  me  amor- 
talharia e  os  corvos  saberiam  de  mim,  tal  é  a 
impressão  de  solidão  que  há  agora  na  minha 
alma."  »Eles  batem-se.  E  na  minha  mente  ima- 
gino o  inferno  que  deve  ser  por  lá.  Na  es- 
curidão da  noite  eles  batem-se.  Um  camion 
passa.  Tudo  estremece.  E  eu,  encolhido  entre 
os  lençóis,  caio  a  pique  no  sono,  primo-ir- 
mão  da  Morte,  como  lhe  chamou  o  Eça  de 
Queiroz". 

Avança  para  a  linha  de  batalha.   Fala  muito 


A  Afronta  a  António  Nobre  121 

de  si.  Descreve-se,  relata-se  com  vagar  e  pre- 
sunção, julga-se  o  eixo  do  mundo.  Mais  ane- 
docta,  mais  chalaça,  mais  invectiva  contra  o  frio 
e  a  neve,  e  a  respeito  da  soldadesca  portugue- 
sa, nada  ainda,  a  valer.  Só  ela  nos  aparece  a 
páginas  194,  incarnada  no  galucho  Joaquim. 
Homenagem  ao  heroísmo  luso,  preito  fervoroso 
às  altas  qualidades  de  bravura  da  nossa  gente? 
Meia  lauda,  se  tanto,  para  tal:  meia  dúzia  de 
frases  banais,  sem  entusiasmo,  sem  comoção, 
sem  força  de  sinceridade.  A  seguir,  doze  pági- 
nas com  ditos  da  soldadesca,  episódios  grotes- 
cos dos  interv^alos  das  batalhas,  calão  das  trin- 
cheiras, entre-tens  singelos,  e  pouco  mais. 

Avista-se  já  o  termo  do  volume.  Mais  o  XIV 
capítulo  com  a  descrição  monótona  do  cami- 
nho para  Bethune,  dentro  dum  automóvel.  Um 
avião  boche  em  cima,  pairando,  moendo  sons. 
Longe,  o  troar  do  canhão. 

«A  trincha",  capítulo  final,  que  dá?  Impressão 
ligeira  dum  rápido  contacto  com  a  linha  de- 
marcadora  da  Terra  de  ninguêni.  Desvaira  en- 
tão, engrandece-se,  glorifica-se,  julga  se  integra- 
do no  pavoroso  conflito,  danao  a  vida  em  ho- 
locausto à  Pátria,  à  Civilização,  à  Humanidade, 
como  os  outros  seres  humanos  que  ha  longos 
dias,  intérminos  dias,  ali  se  batem,  denodada- 
mente, almas  fortes  e  viris  compondo  estrofes 
dum  novo  Lusíadas.  Esqucce-se  de  que  foi 
ali  apenas  por  passeio,   com  3.000  francos  na 

F.IO 


122  A  Afronta  a  António  Nobre 

algibeira,  para  escrever  um  livro  sobre  o  mar- 
tírio dos  outros.  Supõi-se  irmão  de  heróis,  com- 
partilhando do  mesmo  alto  e  trágico  destino: 
"pode-se  com  cuidado  olhar  a  Terra  de  nin- 
guém, fazer  mesmo  gestos  ao  irmào  boche  que 
do  outro  lado  morre  como  nós  outros.»  «E 
transida,  bafejando  as  màos,  sem  sono,  a  gente 
escuta  os  ecos  e  o  nosso  coração  doento  é  como 
um  velho  relógio  tonto  oscilando  entre  a  sau- 
dade dos  que  estão  longe  e  a  idea  de  morrer 
ali,  armado  e  equipado,  sonolento  e  triste,  como 
um  cão  sem  forças.» 

As  linhas  de  mais  beleza  que  traz  o  livro  são 
as  poucas  em  que  transmite  a  impressão  dum 
oficial  que  escapou  ao  9  de  Abril,  o  nosso  Al- 
cácer-Kibir  do  século  XX. 

Ocamente,  como  na  dedicatória  farfalhuda, 
finda:  «E  o  boche  viu  como  se  batem  e  morrem 
os  portugueses,  os  soldados  sofredores,  herói- 
cos, humildes  deste  encantado  e  lindo  Por- 
tugal. E  eu  recordo  a  nossa  terra,  os  nossos 
soldados,  e  lembro  comovidamente  uma  qua- 
dra que  ao  sabor  popular  um  coração  de  por- 
tuguês deu  forma:.    .»  etc. 

Fazendo  balanço  ao  livro.  Não  é  ele  em  tudo 
inferior  ao  seu  desígnio?  Já  fiz  notar  que,  ten- 
do o  seu  autor  tomado  o  compromisso  de  fa- 
zê-lo  novo,  lhe  meteu  muito  original  já  ante- 
riormente publicado  em  jornais.  Em  seguida, 
bem  exígua  parte  dele  tem  por  assunto  o  tema 


A  Afronta  a  António  Nobre 123 

proposto— O  duma  impressão  do  esforço  por- 
tuguês na  Grande  Guerra.  Por  último,  esta  parte 
não  só  é  pequena  em  quantidade ;  a  sua  quali- 
dade é  nua  de  interesse,  fria  de  emoção,  erma 
de  simpatia.  Não  ha  ali  uma  nota  rugente  e  alta 
de  heroísmo,  de  sublimidade,  que  repercuta  na 
nossa  alma,  que  nos  incendeie  de  entusiasmo, 
que  nos  ponha  o  espírito  em  vibração.  Nada, 
sob  este  ponto  de  vista.  Ora,  não  foi  decerto 
para  repetir  o  que  já  em  todos  os  tons  e  em 
toda  a  imprensa  mundial  se  dissera  sobre  a 
Alemanha,  nem  para  narrar  com  insulsa  hiper- 
trofia do  eu  a  sua  rota  até  o  front,  atravez  de 
Portugal,  Espanha  e  França,  que  o  Estado  com 
dinheiro  de  todos  nós  o  subsidiou  fartamente 
nessa  viagem.  E'  esta  circunstância  que  piora  o 
livro,  que  lhe  salienta  a  falta  de  valor.  De  res- 
to, a  crítica  não  teria  diante  dele  de  tomar  se- 
não a  atitude  que  lhe  compete  perante  qual- 
quer livro  saido  a  público — aplaudindo  ou  ne- 
gando aplausos.  Aqui,  e  naquela  circunstância, 
o  caso  é  outro.  O  caracter  de  oficial  que  tem  a 
obra  exige,  legitima  maior  severidade  da  críti- 
ca. Considera  o  sr.  Forjaz  uma  ínfima  bagatela 
a  quantia  de  3.000  francos  que  recebeu.  Con- 
vêm-lhe  assim,  e  o  seu  desejo  teria  sido  rece- 
ber muito  mais.  Mas  os  contribuintes  do  Esta- 
do é  que  não  podem  ter  tão  desenfastiada  e 
pródiga  concepção  do  valor  da  pecúnia  nacio- 
nal.  E,  então,  nem  ao  menos  teve  um  gesto, 


124  A  Afronta  a  António  Nobre 

uma  palavra,  um  impulso  de  agradecimento  : 
bem  podia,  se  nào  fosse  duma  ruim  ingratidão, 
ali  no  pórtico  do  livro,  em  vez  daquela  farfa- 
Ihuda  dedicatória,  de  retórica  vazia  e  álgida, 
exarar  uma  saudação  a  todos  nós,  a  todos  que, 
sem  vontade  embora,  tivemos  de  custear-!he  o 
passeio  pelo  estranjeiro. . . 

E  com  isto  provou  o  Estado  à  sobreposse  a 
sua  falta  de  vocação  para  Mecenas:  entre  toda 
a  bibliografia  portuguesa  do  grande  conflito 
mundial,  é  o  livro  que  ele  estipendiou  o  de 
menor  valor  e  destinado  a  mais  depressa  es- 
quecer! 

E  assim  também,  melhor  teria  sido  o  sr.  Forjaz 
não  ter  escrito  aquele  leviano  e  espalhafatoso  ar- 
tigo de  A  Luta,  que  atraz  transcrevo  na  íntegra. 
Só  foram  eficazes  em  comprometerem-no  aque- 
las palavras,  em  que  a  vaidade  espinoteia  à 
larga,  alardeando  um  serviço  à  Nação,  quando 
dela,  por  malas-artes  e  compadrios  políticos  e 
literários,  recebeu  nào  insignificante  maquia. 
Quando  não  indigne,  faz  rir  o  que  ele  diz  nesse 
teor:  «  .  .os  taes  3.000  francos  foram  para  tudo, 
sem  encargos  de  maior.  Para  eu  pagar  com- 
boios, comedorias  e  fretes,  para  publicar  um 
livro,  para  escrever  artigos,  para  dar  duzentos 
exemplares  ao  governo,  para  sofrer  frio  e  neve, 
para  dormir  incomodamente,  para  poder  lá  ter 
ficado  com  uma  bala  na  cabeça,  porque,  julgo 
que  é  uma  coisa  que  na  guerra  possa  aconte- 


A  Afronta  a  António  Nobre 125 

cer  sem  parecer  extraordinário  a  ninguém,  nem 
mesmo  a  quem  morre.  Ora  tudo  isto  por  846§00, 
para  mim,  que  tenho  uma  casa  com  arte,  uma 
livraria  preciosa,  comida  regular  e  boa  cama, 
acho  que  não  é  de  locupletar-se  a  gente.» 

Na  verdade,  pensando  bem,  tudo  isto  por 
846S00,  é  um  ovo  por  um  rial.  Bem  teria  an- 
dado o  governo,  contractando,  a  este  módico 
preço,  preço  para  amigos,  em  vez  de  uma,  meia 
dúzia  de  Avalanches!  Um  verdadeiro  negócio 
da  Chma  para ...  o  sr.  Forjaz! .  -  E  praza  a 
Deus  que  não  acuda  ao  sacrificado  escritor  a 
ideia  de,  perante  a  enormidade  da  sua  abnega- 
ção, nos  pedir  ainda  um  suplementesinho  aos 
3.000  francos,  a  título  de  indemnisação. 

Depois  do  esboço  dum  rol  de  despezas  de 
transporte  e  comedorias,  diz:  «Agora  ponham 
cartas,  guias  e  plantas,  trabalhos  publicados  so- 
bre a  guerra  e  ha-os  bem  curiosos,  bem  inte- 
ressantes, quer  como  técnica,  quer  como  arte, 
Le  Feii  e  L'Enfer,  de  Barbusse,  a  Ma  Pièce, 
de  Paul  Lintiér,  Los  cuatro  ginetes  dei  apocali- 
psis,  de  Blasco  I banes,  Les  premièrs  cent  niille, 
de  lan  Hay.  Tudo  isto  havia  que  se  comprar.* 
Mas,  para  quê?  Pois,  para  escrever  aquelas  mor- 
nas páginas  de  A  Avalanche  ainda  foi  preciso 
recorrer  à  leitura  desses  alheios  livros  sobre  a 
guerra?  Que  desastrada  confissão:  claudicante 
por  natureza,  o  sr.  Forjaz,  pelo  visto,  não  dá 
passo  sem  muleta! 


126  A  Afronta  a  António  Nobre 

Irritante,  malcriado,  insultuoso,  cheio  de  ba- 
sófia,  infeliz  sob  todos  os  aspectos,  aquele  arti- 
go, na  verdade. . . 


Na  esteira  de  A  Avalanche,  e  dentro  do  mes- 
mo ano  de  1918,  saiu  o  volume  Tibério  filóso- 
fo e  moralista.  Taboleta  longa  e  vistosa,  que 
nada  tem  por  detraz,  a  nào  ser  um  cerzido  me- 
díocremente  habilidoso  de  palavras,  com  ber- 
nardices  sem  graça  e  sem  uma  ideia  que  se  di- 
ga original  e  interessante.  Parece  escrito  o  vo- 
lume com  a  tinta,  mas  aguada,  muito  aguada 
mesmo,  com  que  o  autor  traçou  as  Palavras 
Cínicas.  Filosofices  baratas  e  que  chispam  de 
todo  o  cérebro,  por  mais  rocaz  e  bruto,  mora- 
lidades chatas* e  no  género  das  que  salpicam 
toda  a  sua  anterior  obra,  com  uma  ironia  for- 
çada, sem  scintilação  ofuscante.  Até  a  lingua- 
gem é  menos  impressiva  do  que  em  outros  vo- 
lumes do  sr.  Forjaz. 

Livro  mínimo,  de  crise,  de  depressão,  por- 
tanto. 

Ora,  a  propósito  deste  trabalho,  li  eu  ha  tem- 
pos, não  sei  já  quando  nem  firmado  por  quem, 
um  artigo  em  que,  perante  a  silografia  contu- 
maz do  sr.  Forjaz  de  Sampaio,  se  lhe  estabele- 
cia estreito  parentesco  com  Léon  Bloy,  o  gran- 
de panfletário,  cuja  morte,  ocorrida  no  sufo- 


A  Afronta  a  António  Nobre  127 

cante  e  absortivo  tempo  de  guerra,  sofreu  do 
inundo  culto  uma  insultuosa  apatia.  Esmagada 
pelo  horrível  cauchemar,  sôfrega  de  lhe  regis- 
tar todos  os  episódios,  até  a  imprensa  mais 
próxima,  a  francesa,  mal  reparou  no  passa- 
mento do  temível  fundibulário  da  pena.  Des- 
ceu à  terra  envolto  na  mortalha  do  silêncio,  de 
que  em  vida  se  dissera  tão  vitimado.  Dir-se  hia 
que  até  na  morte  o  conseguiram  diminuir  os 
seus  inimigos,  furtando-lhe  as  orações  de  gran- 
de e  pomposa  retórica  de  que  fora  sempre  tão 
amante  a  sua  alma  de  católico  e  de  artista. 

Sintoma  do  vício  da  desproporção  que  é  tão 
vulgar  entre  nós  em  todas  as  coisas,  esse  arti- 
go, que  pòi  a  par  o  sr.  Forjaz  e  Léon  Bloy  re- 
vela, àlêm  de  miopia  crítica  acentuada  no  seu 
autor,  um  conhecimento  incompleto,  bem  pior 
do  que  um  completo  desconhecimento,  do  ta- 
lento desse  tigre  da  literatura  francesa,  da  sua 
maneira  furibunda,  convulsiva,  olímpica,  tantas 
vezes  empregada  em  esfarrapar,  entre  as  garras 
afiadas  da  sua  portentosa  ironia,  as  maiores  re- 
putações de  tantos  dos  seus  contemporâneos  e 
confrades  artistas,  reduzindo-as  a  risíveis  tra- 
pos, rojando-as  pelo  pó  do  desprezo,  mas  tu- 
do isto  gritado  a  plena  voz,  em  frente  dos  tú- 
mulos e  em  frente  das  casas  dos  vivos,  com 
inquebrável  coragem  e  suprema  sinceridade, 
não  poupando  ninguém,  morasse  em  mísero 
albergue  ou  em  altaneiro  capitólio. 


128  A  Afronta  a  António  Nobre 

Dí-lo  eloquentemente  assim:  "J'ai  vécu  dans 
une  extraordinaire  solitude,  peuplée  des  ressenti- 
menís  et  des  désirs  fauves  que  mon  exécration 
des  contemporains  engendrait,  vociférant  ce 
qui  me  paraissait  juste,  fallut-il  en  crever." 

Tinha  amargas  queixas  da  vida  e  dos  ho- 
mens. "Ma  vie  est  un  pélerinage  infernal,  un 
prodige  de  douleurs;  j'ai  crevé  de  íaim  pour 
Jésus-Christ.  Je  suis  abhorré,  maudit,  renié, 
conspué,  inaperçu- . ." 

Os  seus  quatro  volumes,  curiosíssimos,  Le  De- 
sespere, Le  Mendiant  Ingrat,  Mon  Journal,  V 
Invendable,  narram,  com  uma  estranha  elo- 
quência, a  su^  vida  acidentada  e  cheia  de  ba- 
talhas quotidianas,  ferindo  e  sendo  ferido,  fa- 
zendo sangrar  orgulhos  e  saindo  delas  com  o 
seu  orgulho  enorme  também  tauxiado  de  cica- 
trizes. 

lei  on  assassine  les  grands  hommes  é  o  su- 
gestivo título  de  um  dos  seus  livros.  E  vai 
dando  as  punhaladas.  Brunetière  para  eleé  «um 
um  imponderável  pedante  gaguejando  em  calão» 
Paul  Adam  um  "crotomaníaco»,  Flaubert  um 
«vómito  sobre  o  século  próximo»,  Anatole  Fran- 
ce  um  «retórico  pusilânime",  Bourget  «um  sim- 
ples eunuco»',  os  Goncourt  «dois  adelos  unidos 
por  uma  membrana»,  Balzac  «um  olho  imenso 
— nada  mais  que  um  olho»,  Ibsen  «um  gorila 
escrevendo  a  palavra  fatalidade^.  Como  estas 
definiçõeSj    muitas    outras,    violentas,    brutais, 


A  Afronta  a  António  Nobre 129 

candentes,  mas  vivas,  originais  e  duma  exótica 
e  pujante  beleza. 

Claro  é  que  esta  fúria  apocalítica,  diabólica 
histérica,  só  lhe  grangeou  uma  atmosfera  esbra- 
zeada  de  ódios.  Pois  isso  mesmo  converteu  ele 
no  seu  mais  alto  e  nobre  pergaminho,  dizendo 
ser  o  maior  sonho  da  sua  vida  «ser  o  escarra- 
dor  das  maldições  do  universo,  andar  vestido, 
como  num  manto  luminoso,  pelo  desprezo  in- 
finitamente agradável  das  pessoas  honestas,  re- 
ceber apenas  injúrias  porcalhonas  e  desafios 
crapulosos,  parecer,  enfim,  a  mais  baixa  lama 
do  capacho  literário  e  atolar-se  gloriosamente 
nas  dejecções  dos  mais  lodosos  porcos  do 
jornalismo. . . » 

Paradoxal,  suntuoso,  hiperbólico,  iracundo 
como  um  deus  das  velhas  teogonias,  da  sua 
Femnie  pauvre  disse  iMseterlinck:  «cet  ouvrage 
est  Ia  seule  des  oeuvres  de  ce  jour  ou  il  y  ait 
des  marques  evidentes  de  génie." 

Como,  pois,  aproximar  o  sr.  Forjaz  de  Sam- 
paio do  grande  panfletário,  aparentando-os, 
descobrindo-lhes  afinidades?  Só  porque  a  obra 
do  sr.  Forjaz  tem  uma  tonalidade  rubra  de 
irreverência,  de  cinismo,  de  virulência,  de  bru- 
talidade? Mas,  aparte  a  diferença  de  grau  des- 
sas características  num  e  noutro,  diferença 
enorme,  ha  a  considerar  que  o  que  em  Léon 
Bloy  é  sincero,  inato,  orgânico,  é  no  sr.  Forjaz 
postiço,  artificial,  mero    truc  de  niise-en-scène. 


130  A  Afronta  a  António  Nobre 


Servem-me  estas  palavras,  em  que  disse  um 
pouco  da  minha  entusiástica  admiração  perante 
o  alto  valor  de  Léon  Bloy,  aíargando-me  quiçá 
demais,  para  repudiar  uma  aproximação  injus- 
ta,— servem-me  elas  à  maravilha  como  ponte 
para,  fechando  este  longo  capítulo,  amassar 
numa  visão  de  conjunto,  rápida,  as  sínteses  que 
atraz  ficaram  das  parcelas  da  obra  do  sr.  For- 
jaz  puMicada  até  hoje.  Cumpre  fazê-lo  agora, 
visto  ser  o  seu  António  Nobre  a  obra  que  se 
seguiu  ao  Tibério  filósofo  e  moralista  e  querer 
eu  fazer-lhe  comentário  em  capítulo  privativo, 
como  fulcro  deste  trabalho. 

Profissional  das  letras,  vivendo  quási  exclusi- 
vamente delas,  mercando  pão  e  agasalho  com 
o  produto  dos  seus  livros,  e  para  isto  traba- 
lhando muito  e  muito,  deitando  às  vezes  para 
o  público  mais  de  um  livro  por  ano,  -  como 
sempre  sucede,  a  qualidade  na  obra  do  sr.  For- 
jaz  é  prejudicada  grandemente  pela  quantida- 
de. Não  tem  tempo  de  joeirar,  seleccionar,  ele- 
ger m.otivos  de  escrita.  Tudo  aproveita,  a  es- 
mo. Daí  o  caracter  fragmentário  da  sua  pro- 
dução. Não  tem  espírito  de  sequência,  não 
possui  sentido  unificador.  Mas,  mesmo,  frag- 
mentários, poderiam  os  seus  livros  recomendar- 
-se  por  um  brilhante  poder  expressivo,  por  um 
cuidado  lavor  da  forma.  Pois  nem  isso.  A  maio- 


A  Afronta  a  António  Nobre 131 

ria  das  suas  páginas  é  fosca,  não  scintiia  a  jóia 
duma  imagem,  não  espelha,  não  contêm  uma 
irradiação  de  luz.  Aqui,  àlêm,  raras  como  os 
oásis  nos  desertos,  encontram-se  umas  ou  outras 
paragens  interessantes,  mais  sentidas,  revelando 
um  criador  contacto  com  a  vida.  Mas,  fugidias, 
estas  notas,  tão  pequenas  e  escassas  se  enxer- 
gam, que  só  pacientemente,  catando  com  va- 
gar os  seus  milheiros  de  páginas,  se  conseguem 
encontrar.  O  estilo  normal  ida.  sua  obra  é  o  vul- 
gar, chão,  plebeu.  Com  obras  igualmente  frag- 
mentárias e  dispersivas,  apontam -se  na  litera- 
tura portuguesa  muitos  e  muitos  nomes,  gran- 
des, prestigiosos,  dignos  do  nosso  amor.  Fialho, 
o  criador  de  tantas  páginas  que  são  verdadeiras 
montras  de  joalharia,  D.  Maria  Amália  Vaz  de 
Carvalho,  com  um  longo  principado,  de  litera- 
tura, sem  um  momento  de  crepúsculo  no  seu 
fastígio,  Júlio  Dantas,  Augusto  de  Castro,  Car- 
los Malheiro  Dias,  na  sua  última  fase  de  cro- 
nista, esquecido  como  anda  do  romance,  e  tan- 
tos, tantos  outros,  cujos  nomes  encheriam  pá- 
ginas. Por  isto  se  vê  que  o  sr.  Forjaz  no  gé- 
nero de  crónica,  que  mais  cultiva,  poderia  bem, 
se  melhores  dotes  lhe  assistissem  e  mais  atento 
labor  pusesse  no  que  faz,  subir  a  um  mais  alto 
nível  de  valia.  Não  é  o  género  que  é  inferior. 
Neste  caso,  quem  o  maneja  é  que  não  sabe 
aproveitar-lhe  os  recursos,  até  a  sua  maior  la- 
titude. 


132  A  Afronta  a  António  Nobre 

Como  já  apontei,  um  dos  seus  trucs  favori- 
tos é  a  concepção  pessimista  da  existência  hu- 
mana. Teimou  para  ali  um  dia,  no  alvor  da  mo- 
cidade, embebeu-se  de  doutrinas  que,  como  ou- 
tras, fulgiram  lim  instante  no  ceu  da  filosofia 
para  logo  desaparecerem,  e  desde  então,  fossi- 
lizando a  passageira  moda,  atravez  do  prisma 
dessa  concepção  pessimista  tem-se  mantido  obs- 
tinadamente a  julgar  os  episódios  da  vida,  os 
sentimentos,  os  homens,  as  coisas. 

E"  árida,  por  isso,  a  sua  obra.  Não  tem  flo- 
rescências  de  ternura,  silvas  de  piedade,  pra- 
dos idílicos  e  pastoris.  Tem  antros,  mansardas, 
recantos  sombrios  da  cidade,  interiores  de  hos- 
pital e  de  morgue.  A  dor,  mais  a  dor,  só  a 
dor.  iMas  é  mais  o  vocábulo  doloroso  do  que 
propriamente  a  sensação  dolorosa.  Não  tem 
garra  emotiva.  Deixa  o  ledor  de  espírito  frio. 
Perde  laudas  a  descrever  aspectos  trágicos  e, 
ao  fim,  quem  o  lê  nada  de  tragédia  sentiu,  e 
teve  sempre  bem  presente  que  tudo  aquilo  é 
apenas  literatura,  que  está  a  ler  um  livro,  que 
não  ha  o  perigo  de  a  tragédia  descrita  o  con- 
tagiar. Não  empolga,  não  hipnotiza,  não  possui. 
As  suas  descrições  amarguradas  estào  para  a 
vida  realmente  trágica  na  mesma  relação  em  que 
um  gato-pingado  está,  num  enterro  duma  crian- 
cinha, para  com  a  mãi  desta,  que  se  convulsio- 
na e  se  arrepela,  bramindo  o  seu  desespero, 
enquanto  aquele,  já  insensível   a  tais   espectá- 


A  Afronta  a  António  Nobre 133 

culos,  forçosos  de  assistir  no  seu  mister,  se 
mantêm  fleugmático  e  como  estranho.  Pois,  sal- 
vo seja,  o  sr.  Forjaz,  com  as  suas  doloras,  tem 
um  ar  de  cangalheiro .  .  • 

Algumas  das  suas  paginas  fazem  supor  que 
o  sr.  Forjaz  é  um  desgraçado,  um  mísero,  roído 
de  necessidades,  estalando  nervos  na  luta  pela 
vida,  e  que  daí  lhe  advêm  a  sua  amargura,  o 
seu  desespero,  o  seu  sombrio  e  revolucionário 
lance  de  olhos  sobre  as  coisas  do  mundo.  Pois, 
confirmando  a  debilidade  de  convicção  que  os 
seus  assertos  apresentam,  no  citado  artigo  de 
A  Luta  bem  claramente  ele  desmente  a  supo- 
sição romântica  e  piedosamente  simpática  exis- 
tente nalguns  dos  seus  leitores  mais  ingénuos, 
que  o  tomam  a  sério:  «para  mim,  que  tenho 
uma  casa  com  arte,  uma  livraria  preciosa,  co- 
mida regular  e  boa  cama. . ."  Um  perfeito  bur- 
guês, comodamente  instalado  na  vida,  é,  pois, 
o  autor  de  mil  apóstrofes  violentas  contra  a 
agrura  da  existência,  o  que  decreta  a  inanidade 
do  esforço,  a  falência  da  felicidade.  Que  tal? 
Oh !  eu  gostava  bem  de  que  lesse  estas  linhas 
um  pobre-diabo  que  ha  tempos,  ali  no  Rocio, 
quando  duma  greve  dos  eléctricos,  vociferava 
contra  a  traição  dos  amarelos,  dos  que  se  ti- 
nham apresentado  ao  serviço,  e  exclamava  para 
uma  companha  descalça  e  vcciferante  como 
ele:  «Quem  diz  bem  é  o  Forjaz  de  Sampaio. . . 
Aquele,  sim,  é  que  diz  o  que  a  vida  vale. . .  Ele 


a  34  A  Afronta  a  António  Nobre 


é  que  é  bem  um  irmào  do  povo,  explorado 
pela  burguesia. . .  Leiam  as  Palavras  Cínicas  ...>' 
Que  redondíssima  cara  de  asno  o  homem  apre- 
sentaria se  soubesse  ter  o  sr.  Forjaz  boa  casa, 
boa  mesa  e  boa  cama!. . . 

Por  esta  fisionomia  lamurienta,  tão  do  agra- 
do do  jbaixo  público,  aliada  ao  outro  pertinaz 
recurso  da  irreverência,  da  mordacidade,  da 
chalaça  forte,  tem  conseguido  o  sr.  Forjaz  uma 
grande  notoriedade.  Tem  uma  clientela  vasta  e 
fiel,  recrutada  entre  a  gente  mais  inculta.  Ven- 
de bem  os  livros,  e  é  esse  o  seu  mal,  sob  o 
ponto  de  vista  moral,  tào  antagónico  por  vezes 
ao  material.  Para  servir  quem  lhe  paga,  nào 
pode  melhorar  os  seus  processos,  ascender  a 
uma  atmosfera  mais  límpida  de  arte.  Industrial 
das  letras,  como  confessou  nos  Grilhetas,  bem 
se  importa  ele  com  a  crítica,  se  tem  sempre  uma 
rumorejante  freguesia  acogulada  diante  do  seu 
mostruário ! 

A  fauna  mal  esboçada  da  sua  obra  é  toda  in- 
tencionalmente composta  de  exemplares  tara- 
dos, monstruosos,  escravos  de  maus  instintos. 
Corpos,  animalidade,  carne  apenas.  Espíritos — 
nenhuns.  Paisagem,  também  nela  se  nào  encon- 
tra. Vive  longe  da  Natureza.  Circunscreveu  a 
sua  observação  aos  acidentes  da  urbs  incarac- 
terística  e  tumultuaria.  Para  o  sr.  Forjaz  nào  ha 
leiras  fecundas,  nào  ha  almas  boas  e  iriadas  de 
honestidade.   E'  um  catalogador  de  museu  pa- 


A  Afronta  a  António  Nobre  135 

tológico.  Neste  tom,  a  sua  obra  nào  desperta 
simpatia,  nào  ergue  o  espírito,  nào  suscita  me- 
lhoria de  caracter,  nào  torna  coesa  e  amorosa 
a  multidào.  E'  um  exegeta  do  egoismo,  na  sua 
forma  mais  brutal. 

E  sentido  rácico,  sentido  lusitano?  Nenhum, 
é  triste  constatá-lo.  Se  os  seus  vocábulos  per- 
tencem à  língua  poriuguesa,  os  assuntos  nada 
têem  que  os  mostrem  enraizados  no  espírito 
da  grei.  Só  tlagelando,  queimando,  motejando, 
dizendo  mal,  tem  tomado  a  nossa  gente  e  as 
nossas  coisas  para  temas  da  sua  faina  escriturai. 
Virtudes,  nunca  lhas  encontrou,  nunca  uma 
coisa  nossa  o  entusiasmou,  nunca  teve  uma  pa- 
lavra de  carinho  para  qualquer  aspecto  da  vida 
colectiva  de  Portugal. 

E'  muito  novo^  muito  original  nas  imagens 
da  sua  escrita, — clamam  os  seus  devotos.  Um, 
certo  dia,  por  paradigma,  apontou-me  esta  de 
A  Avalanche:  "Porque  o  sono  em  caminho  de 
ferro  é  como  o  cão  do  ferreiro.  O  viajante  dor- 
me emquanto  o  comboio  marcha;  o  cão  acor- 
da quando  o  martelo  pára."  Era  flagrante  de 
verdade  e  nunca  expresso  tal  pensamento,  ga- 
rantia o  leitor  assíduo  do  sr.  Forjaz.  Pois  a 
pag.  20  de  Les  Opinions  et  les  Croyances,  de 
Le  Bon,  datado  de  1913,  lê-se:  «Ladiscontinuité 
du  plaisir  et  de  la  douleur  represente  la  consé- 
quence  de  cette  loi  physiologique  que^le  change- 
ment  est  la  condition  de  la  sensation.  Nous  ne 


136  A  Afronta  a  António  Nobre 

percevons  pas  des  états  continus,  mais  des  dif- 
férences  entre  des  états  simultanés  ou  succes- 
sifs.  Le  tic  tac  de  la  plus  bruyante  horloge  fi- 
nit  à  Ia  longue  par  ne  plus  être  entendu  et  le 
meunier  ne  será  pas  réveillé  par  le  bruit  des 
roues  de  son  moulin,  mais  par  leur  arrêt." 

Não  se  julgue  que  insinuo  um  plagiato  co- 
metido pelo  sr.  Forjaz  sobre  a  passagem  de 
Le  Bon,  anterior  à  dele,  pois  é  de  1913,  com 
esta  comparação  dos  dois  trechos,  cujo  sentido 
é  extremamente  próximo.  Creio  pouco  em  pla- 
giatos,  pelo  que  ainda  não  ha  muitos  meses, 
quando  iniciei  este  trabalho,  repeli  indignada- 
mente a  colaboração  que  alguém  me  ofereceu,  e 
que  teria  a  forma  de  uma  longa  relação  dos 
plagiatos  de  que,  no  entender  desse  alguém,  a 
obra  do  sr,  Forjaz  está  inçada.  Repeli  essa  co- 
laboração, porque  a  julguei  antipática  e  falsa, 
visto  que  a  obra  do  sr.  Sampaio,  não  sendo  de 
um  cunho  superior,  é,  contudo,  bem  digna  da 
média  capacidade  escriturai  que  reconheço  exis- 
tir naquele  autor.  Se  para  fazer  o  que  ele  tem 
feito  fosse  preciso  recorrer  a  fonte  estranha, 
teríamos  de  concluir  ser  o  sr.  Forjaz  uma  com- 
pleta negação  literária.  E  disse  o  defendo  eu, 
sinceramente. 

O  que  eu  lhe  nego  é  o  direito  à  notorieda- 
de, com  aura  de  consagração,  de  que  disfruta, 
pois  não  tem  bagagem  para  isso.  Conquistou-a 
por  leviano  bafo  da  sorte  cega  e  por  demasia- 


A  Afronta  a  António  Nobre  137 


da  transigência  do  público  ledor.  Sabe  viver, 
eis  tudo.  E  com  esta  habilidade,  tem  suprido  a 
falta  dum  grande  espírito  e  duma  imaginação 
fecunda,  dum  espírito  e  duma  imaginação, — sen- 
síveis, de  largo  surto  e  de  estrutura  delicada. 
E,  se  hoje,  ao  publicar  os  seus  volumes,  se 
enfeita  com  o  título  «da  Academia  das  Sciênci- 
as  de  Lisboa»',  pelo  que  filàuciosamente  escre- 
veu "E  entre  a  (a  farda)  de  tenente  que  um 
decreto  me  emprestou  e  a  da  Academia  que 
ganhei  pelo  meu  trabalho,  a  da  Academia  é 
muito  mais  vistosa.  Mete  espadim,  chapéu  ar- 
mado e  não  é  ainda  acessível  aos  garujas  lite- 
rários que  dão  facadas  nas  gazetas»,  se  poude 
ter  este  desabafo  vaidoso  e  insolente,  deve-o, 
mais  do  que  ao  seu  trabalho,  que  não  tem  ca- 
tegoria para  tão  elevada  distinção,  a  uma  soma 
de  circunstâncias  casualmente  felizes  para  ele, 
e  que,  vadiamente,  não  surgiram  a  apadrinhar 
grandes  nomes  da  nossa  literatura,  como  Go- 
mes Liai  e  mais,  que  morrerão  sem  terem  to- 
mado assento  no  seio  da  douta  instituição,  en- 
quanto num  seu  fauteuil  o  sr.  Forjaz  se  ame- 
senda,  apezar  de  na  Prosa  Vil  lhe  ter  dado  es- 
ta bicada,  a  propósito  da  questão  ortográfica : 
"Cumpre  ao  instituto  de  surdos-mudos  que  dá 
pelo  nome  de  Academia  Rial  das  Sciências  re- 
solvel-aw.  Instituto  de  surdos-mudos...  e  de 
cegos,  principalmente,  —  pelo  menos,  quando 
abriu  as  portas  para  o  ingresso  do  sr.  Forjaz. . . 

F.   11 


138  A  Afionla  a  António  Nobre 

Afortunado  e  habilidoso  —  sào,  em  resumo  e 
olhando  em  globo  o  seu  passado,  os  mais  justos 
qualificativos  que  cabem  ao  sr,  Forjaz. 

Longe  ainda  do  termo  da  vida,  não  tendo 
ainda  mesmo  dobrado  o  promontório  dos  qua- 
renta anos,  poderá  ser  que  àmanhan,  em  plena 
maturidade  do  seu  temíberamento,  nos  dê  uma 
obra  mais  vultosa  e  mais  bela,  mais  construtiva 
e  mais  simpática. 

Oxalá  assim  seja,  para  que  eu  possa  entào 
dar  largas  à  faculdade  mais  querida  do  meu 
espírito:  a  admiração. 

Mas  nisso  não  deposito  grandes  esperanças 
—  santo  Deus!.    . 


1-0  seu  "fíntónio  ho- 
bre'\  obra  irreveren- 
te e  mercantil. 


Foi  para  dar  uma  ideia,  quanto  possível  justa, 
da  envergadura  intelectual  do  sr.  Forjaz,  enca- 
rada sob  o  especial  ponto  de  vista  da  sua  auto- 
ridade para  emitir  um  juizo  condenatório  so- 
bre a  figura  poética  de  António  Nobre,  expresso 
no  seu  mais  recente  livro  ha  meses  aparecido, 
que  vim  no  capítulo  antecedente  em  excursão 
pela  sua  obra,  nào  pequena  em  volume,  de  es- 
tação em  estação,  observando,  comentando,  dis- 
cutindo. 

Chego,  pois,  agora  ao  fim  desta  viagem :  ao 
seu  ponto  capital. 

António  Nobre  inculca-se  o  primeiro  vo- 
lume de  uma  série  subordinada  ao  título  Os 
Bárbaros.   Di-lo  o   autor  na  meia  dúzia  de  li- 


142  A  Afronta  a  António  Nobre 

nhãs  do  intróito,  chamando  ao  trabalho  «es- 
corço de  estudo  sem  pretensões."  Diz  mais.  «São 
páginas  de  análise,  em  que  se  procura,  não  exal- 
tar ou  deprimir  mas,  serenamente,  buscar  a 
verdade."  "Estas  páginas  nào  representam  um 
estudo.  Falta-lhes  muito  pari  isso  e  a  crítica 
moderna  tem  exigências  não  compadecidas  do 
nosso  tempo  e  competência.  São  apenas  no- 
tas "  No  início  da  obra  pede  bordão  a  Théo- 
gnis  de  Mégara  e  com  ele  invoca  ardentemente 
a  verdade,  «a  mais  justa  de  todas  as  coisas.» 

Vamos  a  ver  como  a  pulcra  divindade  invo- 
cada o  tutelou. 

Antes  de  mais  nada,  vou  a  uma  colecção  de 
A  Luta  e  do  seu  número  de  10  de  Março  de 
1915,  transcrevo  as  passagens  mais  importantes 
de  um  artigo  ali  publicado  pelo  sr.  Forjaz,  de  co- 
mentário oposicionista  à  forma  como  a  acade- 
mia de  Coimbra  fizera  dias  antes  a  comemora- 
ção do  aniversário  da  morte  do  Poeta  do  Só 
num  número  especial  de  A  Galera,  revista  pu- 
blicada naquela  cidade.  Citando  trechos  do  ori- 
ginal da  publicação  comemorativa,  e  bordando 
sobre  eles  um  nem  sempre  feliz  humorismo, 
tem  aliás  nesse  artigo  notas  sensatas  e  justas, 
principalmente  quando  verbera  a  pobreza  da 
homenagem,  não  proporcional  aos  méritos  do 
homenageado. 

"Não.  O  que  havia  a  fazer  seria  uma  série  de 
artigos  na  forma  do  de  Ferreira  Lima,  cada  um 


A  Afronta  a  António  Nobre  143 


tratando  o  poeta  sob  a  sua  feição.  Um,  estudan- 
do a  sua  biografia:  Outro  o  mal  de  viver  dos 
seus  versos:  Outros  a  influência  das  viagens  no 
seu  temperamento.  Um  com  gana  medicatriz 
estudaria  António  Nobre  nosograficamente.  Ou- 
tro veria  António  Nobre  sob  ponto  de  vista 
amoroso. 

"Um  terceiro  investigaria  da  saudade  na  sua 
obra.  Inéditos  do  poeta  ou  poesias  pouco  co- 
nhecidas seriam  publicadas.  A  sua  biografia  se- 
ria estudada.  Os  seus  Íntimos  diriam  da  sua  in- 
timidade. E  no  fim  de  tudo  isto  A  Oalera  da- 
ria matéria  para  um  estudo  definitivo  sobre  o 
poeta. 

"Não  o  fez.  Porque?  Primeiro  por  madracice, 
cousa  nata  do  portuguez.  Depois  por  incompe- 
tência, cousa  que  este  número  prova  á  socieda- 
de. Que  os  moços  da  Galera  são  decerto  bons 
rapazes  e  não  se  lembraram  do  poeta  senão 
para  se  fazerem  lembrados,"  etc. 

E  finda  assim,  deveras  indignado : 

«Ha  uma  cousa  que  no  meio  de  tudo  isto  eu 
não  compreendo.  Que  demónio  veio  o  pobre 
António  Nobre  ali  fazer.  Pois  nem  a  escuridão 
da  campa  dará  o  socego,  Senhor  Deus  dos  li- 
teratos amargurados?  Que  é  preciso  ser-se  in- 
feliz para  inda  depois  de  morto  ter  ás  canelas 
uma  recua  de  líteras  assim  tão  petulantes  como 
idiotas ..." 

Qual  o  tom  destas  linhas?  De  desapreço  por 


144  A  Afronta  a  António  Nobre 

Nobre?  Evidentemente  que  nào.  Bem  pelo  con- 
trário. Ataca  sem  parcimónia  os  promotores 
duma  homenagem  ao  Poeta,  que  não  se  dis- 
tinguiu senào  por  um  ar  pelintra  e  mesquinho. 
Lamenta  António  Nobre,  a  vítima  dessa  rapa- 
ziada leviana,  e  indica  com  vagar  o  largo  pro- 
grama do  estudo  complexo  que  sobre  a  indivi- 
dualidade do  Poeta  poderia  e  deveria  ter  sido 
feito. 

Cumpre,  pois,  fixar  esta  observação:  que  em 
1915,  se  o  sr.  Albino  Forjaz  de  Sampaio  nào 
se  declarava  incondicional  sósista,  pelo  menos, 
e  numa  ocasião  que  às  largas  lhe  dava  ensejo 
para  isso,  não  fez  a  menor  profissão  de  fé  anti- 
-sósista. 

E  cumpre,  não  menos,  registar  esta  citação 
da  Prosa  Vil:  "Dizia  António  Nobre  ao  falar 
das  inegualaveis  paizagens  de  Portugal,  das  suas 
árvores,  dos  seus  regatos,  dos  seus  poentes, 

Que  é  dos  pintores  do  meu  paiz  extranho, 
Onde  estão  elles,  que  não  vêm  pintar 

"Como  valia  a  pena  ter  o  seu  talento  para  fa- 
zer a  elegia  da  mocidade  saudosa,  da  mocida- 
de gloriosa  que  passou,  que  desterraram,  que 
morreu.  . ." 

Pois  quem,  numa  parte  e  noutra,  assim  fala- 
va, é  precisamente  quem  hoje,  quatro  anos  vol- 
vidos apenas,  surge  com  um  livro  sobre  o  Poeta 
do  Só,  cuja  seiva  é  inquinada  do  veneno  da  an- 


A  AtYonta  a  António  Xobre  145 

tipatia,  cujo  escopo  é  reduzir,  senào  anular,  o 
intenso  culto  que  Nobre  disfruta  num  largo  pú- 
blico, isto  apezar  da  promessa  de  «não  exalçar 
ou  deprimir  mas,  serenamente,  buscar  a  verda- 
dew  e  da  sua  oração  ardente  a  esta  deusa. 

Começa  a  catilinária:  «António  Nobre  é  dos 
poetas  mais  queridos  do  público  snob  que  lê 
poetas  para  apenas  lhes  citar  o  nome  em  mo- 
nossílabos de  admirativo  êxtase.  E  emquanto 
Guilherme  de  Azevedo,  Cesário  Verde,  José 
Duro  e  outros  são  impiedosamente  esquecidos, 
António  Nobre  é  moda,  as  suas  edições  esgo- 
tam-se  e  o  poeta  tem,  ainda  hoje,  quem  lhe 
pretenda  continuar  a  obra,  restaurando  o  só- 
sismo  como  se  êle  não  fosse  coisa  que  com  o 
seu  autor  nasceu,  morreu  e  com  êle  foi  defini- 
tivamente enterrada." 

O  qualificativo  de  moda  dado  à  admiração 
pelo  Poeta  é  faccioso  e  erróneo.  A  moda  é  por 
natureza  efémera  e  inconstante.  As  suas  incli- 
nações duram,  quando  muito,  meses,  e  nunca 
espaços  de  tempo  tão  longos  como  o  dos  quási 
trinta  anos  que  são  passados  sobre  o  apareci- 
mento da  1.*  edição  do  Só.  Veja-se  o  número 
de  estéticas  novas  e  de  vultos  oficiantes  de  no- 
vos credos  literários  que  têem  sulcado  este  lar- 
go período  e  averigúe-se  se  alguma  e  algum 
deixaram  após  si  uma  tão  clara  e  florida  esteira 
como  o  5d  e  o  Poeta,  seu  autor.  Nenhuma  es- 
tética e  nenhum  vulto,  é  forçoso  dizer-se. 


146  A  Afronta  a  António  Nobre 

Não  vejo  também  que  responsabilidade  terá 
António  Nobre  na  afervorada  estima  que  o  pií- 
blico  lhe  devota,  ao  passo  que  deita  ao  ostra- 
cismo outros  poetas  de  valor,  como  Duro,  Ver- 
de e  Guilherme  de  Azevedo.  Não  é  a  glória  sa- 
boroso pitéu  de  acanhado  tamanho,  que  seja 
preciso  aquinhoar  em  taçalhos  iguais,  para  que 
todos  fiquem  contemplados.  Tem  valor  José 
Duro?  E'  livro  de  superior  emoção  o  Fel? 
Cesário  Verde  foi  um  poeta  de  talento,  digno 
de  menção?  Guilherme  de  Azevedo  deixou  uma 
obra  reveladora  dum  temperamento  artista  de 
escol?  Quetn  o  nega?  Mas  para  reconhecer  isso 
é  preciso  ir  apear  António  Nobre  do  erguido  al- 
tar em  que  o  instinto  sagrador  do  povo  o 
colocou,  amachucar-lhe  a  auréola  que  lhe  cir- 
cunda a  fronte,  roubar-lhe  as  mãos-cheias  de 
rosas  que  atapetam  a  sua  pedra  de  ara? 

Não  é  baixar  os  que  mais  altos  estão  ao  ní- 
vel dos  que  jazem  baixo  demais  que  remedeia 
a  injustiça  das  desproporções  que  porventura 
existam,  julgo  eu.  Estabelecer  nível,  sim,  entre 
o  que  possa  ser  nivelado,  claro  está,  mas  de 
maneira  contrária  à  preconizada  pelo  sr.  For- 
jaz — elevando,  descobrindo  méritos  ocultos, 
construindo  novos  altares  ao  lado  dos  velhos, 
porque  o  entusiasmo  admirativo  não  tem  li- 
mites na  sua  capacidade  e  o  templo  da  Arte  roça 
a  abóbada  da  sua  nave  pelas  arcarias  do  céu. 

Para  amar  mais  e  melhor  José  Duro  ou  Ce- 


A  Afronta  a  António  Nobre       147 

sário  Verde  nào  é  necessário  amar  menos  nem 
pior  António  Nobre.  Perante  o  facto  de  haver 
nomes  e  obras  esquecidos,  soterrados,  fora  da 
zona  luminosa  da  notoriedade  a  que  têeni  di- 
reito, o  que  ha  a  fazer  é  chamar  a  atenção  do 
grande  púbHco,  pelo  Hvro,  pelo  jornal,  pela 
conferência,  por  todos  os  meios,  enfim,  ao  al- 
cance dos  familiares  da  literatura,  para  esses 
olvidados  autores  e  para  os  seus  trabalhos, 
reeditando  estes,  quando  exgotadas  as  suas  edi- 
ções, e  aditando  prefácios  de  estudo  e  de  justo 
encómio  a  essas  novas  tiragens. 

Ha  esquecidos  em  todas  as  literaturas.  Toda 
a  gente  de  medianas  curiosidades  literárias  co- 
nhece o  caso  do  poeta  e  romancista  irlandês 
Maturin  (1782-1825),  que  Balzac  enfileirava  en- 
tre "les  plus  grands  génies  de  TEurope»',  no 
que  foi  acompanhado  por  Vitor  Hugo  e  Char- 
les Nodier,  e  que,  afinal,  a  posteridade  deixou 
sepultado  no  mais  escuro  desapreço.  E'  um 
exemplo. 

Pois  com  g  simpático  desígnio  de  erguer  e 
impor  ao  nosso  amor  alguns  dos  nossos  esque- 
cidos, subordinada  a  este  mesmo  título,  o  ilus- 
tre jornalista  e  poeta,  sr.  Mayer  Garção,  trouxe 
a  lume  em  A  Capital  de  1914,  pelos  meses  de 
Abril  e  Maio,  uma  série  de  artigos  de  recorda- 
ção de  vultos,  uns  já  mortos,  outros  ainda  vi- 
vos, que  na  política,  no  jornalismo,  na  arte,  na 
poesia,  na  prosa  de  livro,  em  resumo,  em  qual- 


143  A  Afronta  a  António  Nobic 


quer  manifestação  duma  actividade  notável,  por 
um  momento  passaram  em  plena  luz,  para  lo- 
go, ou  ceifados  pela  morte,  ou  tragados  por 
exigências  da  vida  material,  mergulharem  na 
massa  anónima  e  rasa.  Lima  Bastos,  o  imagi- 
noso e  potente  romancista;  Costa  Alegre,  o  ne- 
gro, o  «doce  poeta  do  amor,"'  de  quem  outro 
poeta,  Paulino  de  Oliveira,  escreveu : 

Sabei,  ó  brancos  de  alma  hedionda  e  preta, 
Que  ha  pretos  de  alma  niveamente  clara ! 

Heliodoro  Salgado,  o  apaixonado  republica- 
no; Beldemónio  (Eduardo  de  Barros  Lobo),  o 
fino  e  poético  prosador  da  Musa  Loira,  nào 
obstante  o  seu  humorismo  picante,  mordaz  ; 
Fernando  Liai,  o  boémio  cantor  dos  Relâmpa- 
gos; José  Duro,  o  desgraçado  poeta  do  Fel; 
José  Climaco,  outro  suave  poeta,  que  nem  um 
livro  deixou;  José  Newton  e  Alfredo  Serrano, 
o  dos  modestos  Versos  e  o  da  maviosa  Manhã 
doirada;  Moniz  Barreto,  a  estranha  organiza- 
ção de  crítico,  tão  cedo  arrastado  para  o  turbi- 
lhão do  Nada;  Eduardo  Perez,  o  contista  do 
Casal  do  Caruncho;  Nunes  Claro,  ainda  feliz- 
mente vivo,  belíssimo  e  claro  estro,  como  o  seu 
apelido,  que  ainda  hoje,  mas  só  de  longe  em 
longe,  nos  delicia  com  os  cantos  da  sua  musa; 
Manuel  Cárdia,  o  malogrado  jornalista;  e  mais 
alguns,  cujos  nomes  nào  tenho  presentes. 

Em  ressurreições  similhantes  se  íêem  empre- 


A  Afronta  a  António  Nobre  149 

gado  muitas  vezes  outras  penas  não  menos  ilus- 
tres. Quantas  crónicas  interessantíssimas  e  piedo- 
sas se  encontram,  biografando  artistas  e  in- 
telectuais e  políticos,  nos  volumes  Cérebros  e 
Corações,  Ao  correr  do  tempo,  Alguns  homens 
do  meu  tempo,  Figuras  de  hoje  e  de  hontem,  de 
D.  Maria  Amália  Vaz  de  Carvalho,  nas  Figuras 
Literárias,  do  Dr.  Cândido  de  Figueiredo,  nas 
Figuras  Humanas,  de  Alberto  Pimentel,  nas  In- 
dividualidades, de  Henrique  das  Neves,  e  em 
mais   da   numerosa  coorte  dos  que  escrevem  ? 

Ha  ainda  esquecidos  que  nem" uma  linha  se- 
quer lograram  dos  seus  pósteros?  Acredito. 
Lembro-me  de  utn:  Eduardo  Coimbra,  compa- 
nheiro de  António  Nobre,  e  que  ha  pouco  ain- 
da um  grande  poeta,  que  só  por  sua  demasiada 
modéstia  não  traz  todos  os  dias  o  seu  glorioso 
nome  na  boca  de  todos  nós,  João  Saraiva,  o 
encantador  vate  das  Líricas  e  Sátiras,  me  evo- 
cou em  palavras  de  impressionante  saudade. 

Álvaro  Carvalhal,  outro  delicado  e  infeliz 
poeta,  também  só  teve  a  lembrar-se  dele  o  es- 
pírito fino  de  Augusto  de  Castro,  numa  crónica 
dos  Fantoches  e  Manequins. 

Por  isso,  e  apezar  destes  casos,  não  se  pôde 
dizer  qne  sejam  muito  carinhosos  uns  para  os 
outros  os  nossos  literatos  e  demais  notáveis.  E, 
claro  está,  que  o  público  menos  o  é  ainda.  Ha 
um  lamentável  e  acentuado  divórcio  entre  o 
povo  e  os  artistas,  parece-me  bem  que  por  cul- 


150  A  Afronta  a  António  Nobre 


pa  destes,  que,  alardeando  suas  intestinas  lutas, 
se  desprestigiam  mais  e  mais  aos  olhos  daquele, 
quando  deviam  ser  os  primeiros  a  dar  um  alto 
exemplo  de  coesão  e  harmonia,  condições  es- 
tas imprescindíveis  ao  bom  viver  das  colectivi- 
dades, quer  profissionais,  quer  nacionais. 

Já  uma  vez  o  sr.  Forjaz  mereceu  bem-hajas 
sob  tal  ponto  de  vista,  quando  prefaciou  a  2/ 
edição  do  Fel  de  José  Duro. 

No  que  os  não  merece  é  no  trabalho  que  es- 
tou agora  comentando  e  em  que  lançou  estas 
palavras : 

"É  que  António  Nobre  exerceu  e  exerce  uma 
acção  deletéria,  dissolvente  e  a  essa  acção  ne- 
cessário é  contrapor  livros  sadios,  poetas  en- 
corajantes,  porque  a  vida  e  a  literatura  são  a 
acção,  a  luta  e  nunca  o  desejo  mórbido  de  mor- 
rer ou  a  confissão  deprimente,  o  exibitivo  osten- 
toso de  misérias  orgânicas  e  tristezas  lamechas." 

Que  assim  fosse,  onde  sobeja  autoridade  ao 
sr.  Forjaz  para  falar  em  acções  deletérias  e  dis- 
solventes produzidas  por  um  livro,  quando  ele 
é  o  autor  das  Palavras  Cínicas,  obra  voluptuo- 
samente tecida  de  torpezas  e  grossarias,  incita- 
mentos ao  abandono  dos  bons  princípios  e  ao 
amor  pela  vida?!  Todo  e  qualquer  poderia  exa- 
rar aquele  juizo  sobre  a  natureza  do  Só,  menos 
o  sr.  Forjaz.  Depois,  àlêm  do  poema  de  Nobre 
ser  prenhe  de  emoção,  de  intensa  emoção,  como 
já  afirmei  no  primeiro  capítulo  deste  trabalho, 


A  Afronta  a  António  Nobre  151 


e  não  do  relato  de  "  misérias  orgânicas  e  triste- 
zas lameciías",  a  sua  influência  sobre  a  turba, 
sobre  o  que  propriamente  este  termo  indica» 
seria  nula,  visto  que  o  culto  de  António  Nobre 
onde  mais  reside  não  é  aí,  mas  sim  numa  ca- 
mada de  gente  de  mais  bem  ordenada  cultura, 
que  nào  cede,  por  isso  mesmo,  com  facilidade 
a  desorientadoras  sugestões,  e  antes  lhes  neu- 
traliza a  virulência. 

O  Só  tem  milhares  de  exemplares  vendidos 
e  é  sofregamente  procurado.  Mas  nào  anda  po- 
sitivamente entre  as  mãos  do  baixo  povo,  e 
mesmo  os  milhares  das  suas  edições,  se  bem 
que  alguns,  nào  atingem  o  número  dos  milha- 
res de  tiragem  das  Palavras  Cínicas,  que  vào 
em  perto  de  vinte,  se  nào  é  artificial  a  indica- 
ção das  tiragens  neles  estampada.  E  a  este  vo- 
lume,— enfeite-se  o  sr.  Forjaz  com  essa  glória,  se 
a  acha  envaidecedora, — tenho  eu  visto  gente  de 
todo  o  estofo,  ainda  o  mais  semi-analfabeto, 
procurar  e  ler  avidamente,  decorando  passa- 
gens, servindo-se  delas  para  desculpar  uma  ac- 
ção menos  meritória,  usando-o  como  um  câ- 
non, como  um  Alcorão  das  suas  almas  incer- 
tas, que  a  triste  e  falsa  beleza  dum  intento 
ruim  seduz  e  estonteia.  Não  invento,  nào  ca- 
lunio. Constato  apenas.  Nos  meus  tempos  de 
liceu,  muitas  vezes  escutei  dos  rapazes  meus 
condiscípulos  referências  ultrajantes  para  as  pró- 
prias mais,  moldadas,  como  confessavam,  pelas 


152 A  Afronta  a  António  Nobre 

de  uma  das  catorze  cartas  das  Palavras  Cíni- 
cas. Imagine- se  por  que  catecismos  recebiam 
aqueles  espíritos  desabrochantes  as  iniciais  li- 
ções de  moral,  que  os  deviam  alumiar  pela  vi- 
da fora  ! . . 

As  afirmações  valem  conforme  quem  as  faz, 
conforme  o  coturno  moral  de  quem  as  emite. 

Por  isso,  pasma  de  ver  a  inconsciência  do 
sr.  Forjaz  ao  exigir  "livros  sadios,  poetas  enco- 
rajantes",  quando  escreveu  os  livros  menos  sa- 
dios e  menos  encorajantes  que  conta  a  nossa 
literatura  de  hoje  e  talvez  de  todo  o  tempo, 
afora,  é  evidente,  essas  miunças  livrescas,  anó- 
nimas e  soezes,  de  venda  clandestina,  que  a 
polícia  persegue  nos  quiosques  de  má  morte. 

«António  Nobre  foi  um  moço  rico,  inteligen- 
te e  é  um  poeta  excelente  se  o  considerarmos 
como  um  caso  isolado,  único,  original,  por  isso 
mesmo  não  destituído  de  interesse.  Outra  é  a 
nossa  opiniào  se  o  analisarmos,  o  comparar- 
mos, o  considerarmos  como  um  poeta  que  in- 
flui na  turba  e  pesa  nefastamente  na  multidão. 
Como  poeta  para  ler  sem  mais  cuidado  está 
bem.  Como  poeta  para  ter  altar,  embora  late- 
ral, no  culto  literário,  achamos  mau.  E  acha- 
mos mau  porque  êle  foi  um  snob,  não  teve  sin- 
ceridade, e  a  sua  obra  escalpelizada  mostra 
apenas  que  fáceis  são  de  contentar  os  seus  fi- 
éis»', diz  o  sr.  Forjaz. 

«Foi  um  moço  rico".    Não  foi  rico  afirmam 


A  Afronta  a  António  Nobre  153 


OS  seus  íntimos.  Mas  nào  foi  também  um  po- 
bretão, um  miserável  vate  de  trapeira,  com 
muito  sonho  de  banquetes  pantagruéiicos  no 
sentido  e  no  estômago...  apenas  hipóteses  de 
jantar.  Não  foi  rico,  mas  possuiu  os  cómodos 
d'uma  situação  de  abastada  mediania.  Ora  é 
esta  circunstância  que  parece  açular,  alucinar  a 
sanha  crítica  do  sr.  Forjaz.  Nào  perdoa  a 
quem,  por  bom  olhado  da  fortuna,  não  ande 
respigando  em  despejos  de  repastos  de  outrem 
a  côdea  dura  que  rilhe  para  calar  a  fome  e 
deixar  o  estro  salmear  um  pouco. 

Lembrando  talvez  os  seus  dias  maus,  antes 
de  ser  burguês,  antes  de  conquistar  a  boa  ca- 
ma, a  boa  casa  e  a  boa  mesa,  de  que  se  ufana 
hoje,  não  perdoa  que  António  Nobre,  sem 
nunca  ter  passado  necessidades  materiais,  saiba 
falar  no  «mal  de  viver».  Só  concebe  a  tortura 
quando  gritada,  uivada  por  um  ventre  esfo- 
meado: «Fosse  ele  um  homem  que  tivesse  dia 
a  dia  de  cavar  o  seu  passadio»,  diz  adiante.  O 
seu  critério  materialista  não  lhe  permite  lobri- 
gar àlêm  do  corpo,  não  o  deixa  trespassar  o 
carnal  envólucro  e  assistir  às  grandes  tragédias 
interiores,  aos  pavorosos  conflitos  espirituais, 
aos  dramas  ingentes  que  escolhem  para  tabla- 
do uma  alma  de  excepção.  Com  o  registo  frio 
e  míope  dos  esgares,  dos  gestos,  das  convul- 
sões e  dos  momos  externos  adquire  o  bastante 
alimento  para  a  sua  curiosidade  fastienta  e  jul- 

F.12 


i54  A  Afronta  a  António  Nobre 


ga  ter  apercebido  o  mundo  em  globo,  integral- 
mente. 

Snob  o  Poeta,  snob  o  público  seu  devoto,  — 
acusa.  Mas  snob  porque?  Nas  multidões  o  sno- 
bismo nào  tem  um  pendor  certo  e  persistente. 
Se  não  fosse  bem  íntima  a  sua  admiração  pelo 
Poeta,  já  a  multidão  que  lhe  reza  o  nome  teria 
tido  de  sobra  tempo  para  mostrar  o  seu  enfa- 
do e  polarizar  o  seu  afecto  em  individuali- 
dade mais  recente,  com  mais  seduções  de  novi- 
dade, porquanto  o  snobismo  vive  destas  contí- 
nuas e  rápidas  transferências  de  objectivo.  E'  o 
reconhecimento  duma  grande  parte  de  bele- 
za fixa  e  compreensível  em  todo  o  tempo  e  por 
toda  a  gente  existente  no  Só  que  não  deixa  o 
estranho  livro  cair  no  esquecimento. 

Também  é  leviana,  senão  conscientemente 
forçada,  a  acusação  de  ter  sido  um  snob,  um 
falho  de  sinceridade,  António  Nobre.  Com  o 
espírito  faccioso  que  o  impele  por  todas  as 
páginas  desse  seu  trabalho,  e  castrado  de  in- 
tuição psicológica,  como  logo  no  início  da  sua 
carreira  literária  se  evidenciou,  o  sr.  Forjaz  tei- 
ma em  não  ver,  ou  não  pôde  ver  de  facto,  a  cons- 
tituição íntima  do  Poeta,  os  especiais  compo- 
nentes da  sua  alma  de  artista.  Concebido  um 
molde  anímico,  ó  seu  talvez  apenas,  obstina-se 
em  deitar-lhe  dentro  todos  os  espíritos  com 
que  depara,  e  sempre  que  algum  extravasa,  ex- 
cede as  medidas  do  recipiente,  se  confessa  ina- 


A  Afronta  a  António  Nobre  155 


daptável  à  estreiteza  daquela  bitola, — logo  auda- 
ciosamente decreta  e  grita  que  o  temperamen- 
to esquivo  à  acomodação  forçada  peca  por  artifi- 
cialismo, pretende  grangear  reparo  do  público 
pela  sua  saliência,  infringe  as  regras  sadias  da  sin- 
ceridade. Com  isto,  demonstra  à  sobreposse  a 
carência  de  dotes  críticos,  que  implicam  nos 
seus  detentores  um  completo  abandono  de 
ideias  preconcebidas  e  a  abstracção  da  própria 
personalidade. 

António  Nobre  foi,  pois,  sincero  perante  si 
mesmo,  perante  a  singular  estrutura  do  seu 
temperamento.  O  sr.  Forjaz,  mesmo,  contradi- 
zendo-se,  o  reconhece.  «Se  detidamente  anali- 
sarmos o  que  é  o  Só,  veremos  que  o  Só  é  êle 
apenas.  .  E'  um  livro  pessoal,  uma  autobio- 
grafia, um  desabafo  em  verso,  como  essência  a 
sua  tristeza. .  • - 

«Não  é  pois  um  livro  que  emprimaveresca 
as  almas.  Não  as  tonifica,  não  as  eleva,  nào  as 
consola.  Nào  estimula,  acelera,  revigora.  Muito 
ao  contrário  deprime,  esgota,  maleficia.  Melan- 
colia pegadiça,  doloras  ternas,  ritmo  mole  e 
dulçoroso,  êle  nào  é  mais  que  a  boceta  onde  o 
poeta  em  vida  depositou  a  sua  dor  com  a  un- 
ção com  que  os  antigos  gregos  depositavam  as 
cinzas  dos  antepassados  a  quem  muito  amaram. 
A  sua  dor,  cultivada,  narcizada,  contada  pelos 
dedos  em  todos  os  ritmos,  dia  a  dia  aumenta- 
da a  juros  compostos. 


156 A  Afronta  a  António  Nobre 

"Sofrer  em  António  Nobre  é  um  ofício.  Êle 
é  um  profissional  da  Dor  e  a  sua  lamúria  é  a 
lamúria  de  um  mendigo  de  estrada,       » 

«Fora  de  si  não  ha  dor  que  o  impressione. 
Fora  de  si  o  sofrimento  é  mínimo,  nào  existe. 
Fora  de  si  o  sofrimento  plebeíza-se.» 

'<£'  que  o  desejo  de  morrer  no  poeta  do  Só, 
seria  um  preságio,  seria  uma  famisterie,  mas 
não  era  um  desejo.  Era  apenas  um  processo  li- 
terário ! . . . " 

A  todos  que  tenham  lido  o  5^  acudirá  instinti- 
vamente uma  fácil  e  enérgica  refutação  a  estes 
conceitos  detractivos,  que  resumem  o  intento  do 
livro  e,  com  mais  palavra,  menos  palavra,  enchem 
as  páginas  que  nele  são  originais  e  que  bem  redu- 
zidas são  em  número,  na  verdade:  nas  108  que 
enformam  o  volume  apenns  30  e  tantas  contê- 
em  matéria  da  lavra  do  autor.  O  resto  tem  tra- 
balho, sim,  mas  sem  nenhum  interesse  e  nenhu- 
ma utilidade,  afinal. 

A  dor  é  o  maior  motivo  de  todas  as  literatu- 
ras. Já  ha  três  'mil  anos  o  era:  talvez  daqui  a 
três  mil  anos  o  seja  ainda.  Poder-se  hão  contar 
as  obras  que  ao  seu  empolgante  influxo  se  te- 
nham conseguido  mostrar  estranhas  e  imper- 
meáveis. Em  contraste,  a  bibliografia  que  a  his- 
toria, que  lhe  narra  as  variantes,  que  lhe  mono- 
grafa  as  nuanças,  tantas  tpiantos  os  temperamen- 
tos humanos,  que  faz  a  crónica  viva  e  palpitante 
do   reinado  tumultuário  e  trágico   mas  belo   e 


A  Afronta  a  António  Nobre 157 

magesíoso  dessa  suprema  e  tirânica  Imperatriz, 
velha  como  o  mundo  e  que  jamais  com  o  cor- 
rer dos  séculos  envelhecerá,  —  é  caudalosa,  in- 
catalogável,  impossível  de  abrigar  na  mais  vas- 
ta das  bibliotecas. 

O  riso,  a  alegria,  a  visão  descuidada  e  opti- 
mista da  existência,  nunca  inspiraram  grande- 
mente os  homens.  Só  quando  inflados  os  seus 
pulmões  por  um  sopro  trágico,  alteiam  as  suas 
means  estaturas,  partem,  em  rasgos  de  heroís- 
mo, ao  encontro  de  terríveis  enigmas,  invadem 
a  moradia  dos  deuses,  irmanando-se  com  eles. 
Quantas  vezes  mesmo  o  riso  não  é  índice  do 
que  vulgarmente  se  tem  por  a  alegria,  mas  sim 
um  enviado  da  dor,  sua  antagonista?!  Que  é 
o  riso,  expresso  na  ironia,  na  caricatura,  na  sá- 
tira? Que  é  o  sarcasmo  senão  uma  extravagan- 
te máscara  do  mais  dolorido  choro? 

A  dor  tem  Dante,  tem  Shakespeare,  tem  B)^- 
ron,  tem  os  maiores  génios  no  número  dos 
seus  apaixonados  amantes.  Escravizaram-se-lhe 
e,  a  dizerem  alto  a  deliciosa  pungência  dessa  es- 
cravidão, cheios  de  febre  mística,  convulsos, 
histéricos,  tornaram-se  sobre-humanos,  atingi- 
ram o  sublime. 

E  nem  por  isso  a  narração  desses  oaristos 
sombrios  enfraqueceu  a  energia  dos  homens. 
Bem  pelo  contrário.  A  carne,  quando  numa 
temperatura  cálida  e  doce,  tende  ao  repouso 
estagnante  vizinho  da  morte,  adormece,  perde 


158  A  Afronta  a  António  Nobre 


O  ardor  que  é  condição  imanente  da  existência, 
o  éLaii  vital  de  Bergson.  E"  preciso  que  a  alma 
a  fustigue,  a  acorde,  a  incite,  a  encaminhe  para 
a  acçào.  E  nada  melhor  e  mais  eficaz  para  esse 
desideratum  do  que  o  violento  chicoteio  da 
dor,  o  espectáculo  de  injustiças  a  reparar,  a 
imposição  de  dificiências  a  prover. 

Demais  o  sabe  o  sr.  Forjaz.  E  sabendo-o, 
apezar  de  apontar  em  Nobre  a  recorrência  ao 
motivo  da  dor  como  um  defeito,  o  sr.  Forjaz 
tam.bêm  insistentemente  recorreu  a  ele  na  sua 
obra,  desde  os  títulos  aos  conteúdos,  como  já 
comentei  atraz. 

xMas  como  uma  diferença,  em  desabono  do 
autor  das  Palavras  Cínicas:  a  sua  dor,  a  dor 
de  qoie  fala  a  cada  passo,  a  dor  de  que  aduba 
centenas  de  páginas,  não  se  mostra  com  aquele 
não  sei  quê  vivido  e  real,  aquele  poder  trans- 
missor de  emoção  que  dimana  duma  ade- 
quada disposição  de  palavras;  vêem  para  ali  os 
vocábulos  como  despojados  da  sua  alma  pie- 
dosa e  sentida,  como  para  uma  parada  especta- 
culosa  e  frívola,  vocábulos  tornados  inertes, 
ressequidos,  cadáveres  já,  porque  os  não  sabe 
vivificar,  pôr  em  estreito  contacto  com  a  vida, 
introduzir-lhes  o  soro  puro  da  dolorosidade,  o 
autor  das  páginas  em  que  ficam  encerrados, 
como  em  táboas  de  caixotaria  funerária. 

E  em  António  Nobre,  diga-o  e  torne-o  a  di- 
zer o  sr.  Forjaz,   mas  em  vão  decerto  para  os 


A  Afronta  a  António  Xobre 159 

que  leram  e  souberam  ler  o  Só,  a  influência 
emotiva  é  flagrante,  intensa,  forte:  arrasta,  pren- 
de, faz  confranger,  gera  simpatia. 

Nào  é  apenas  uma  dor  do  Poeta,  restrita  ao 
seu  caso  de  doença,  ignorando  as  torturas  da 
demais  humanidade.  Leia-se  A  Vida: 

Mas  dize,  meu  amor  I  ó  Dona  de  olhos  taes  I 
De  que  te  serve  ter  um  astros  sem  eguaes  ? 
Olha  em  redor,  poiza  os  teus  olhos  '.  O  que  vês  ? 
O  mar  a  uivar  I  A  espuma  verde  das  marés  I 
Escarros  !  A  traição,  o  ódio,  a  agonia,,  a  inveja  !  - 
Toda  uma  cathedral  de  lutas,  uma  igreja 
A  arder  entre  clarões  de  cóleras  1  O  orgulho 
Insupportavel  tal  o  meu,  e  o  sol  de  Julho  ! 
Jesus  I  Jesus  !  Quantos  doentinhos  sèm  botica  ! 
Quantos  lares  sem  lume  e  quanta  gente  rica  ! 
Quantos  reis  em  palácio  e  quanta  alma  sem  ferias  ! 
Quantas  torturas  '.  Quantas  Londres  de  mizerias  ! 
Quanta  injustiça,  quanta  dor  !  quantas  desgraç  is  1 
Quantos  suores  sem  proveito  I  quantas  taças 
A  transbordar  veneno  em  espumantes  boccas  ! 
Quantos  martyrios,  ai  I  quantas  cabeças  loucas, 
N'este  macomio  do  Planeta  I  E  as  orfandades  ! 
E  os  vapores  no  mar,  doidos,  ás  tempestades  I 
E  os  defuntos,  meu  Deus  I  que  o  vento  traz  á  praia  ! 
E  aquella  que  não  sae  por  ter  uzada  a  saia  ! 
E  os  que  sossobram  entre  a  vaidade  e  o  dever  1 
E  os  que  têm,  amanhã,  uma  lettra  a  vencer  ! 
Olha  essa  procissão  que  passa:  um  torturado 
De  Infinito  1  Um  rapaz  que  ama  sem  ser  amado, 
E  para  ser  feliz  fez  todos  os  esforços. . . 
Olha  as  insomnias  d'uma  noite  de  remorsos, 
Como  dez  annos  de  prizão  maior-cellular  ! 
Olha  esse  tysico  a  tossir,  á  beira-mar.    . 


160 A  Afronta  a  António  Nobre 

Olha  o  bebé  que  teve  Torre  de  coral 

De  lindas  illuzões,  mas  que  uma  águia,  afinal, 

Devorou,  pois,  ao  vel-a  ao  longe,  avermelhada, 

Cuidou,  ingénua !  que  era  carne  ensanguentada ! 

Quantos  são,  hoje?  Horror  !  A  lembrança  das  datas. . . 

Olha  essas  rugas  que  têm  certos  diplomatas  I 

Olha  esse  olhar  qíie  têm  os  homens  da  politica  ! 

Olha  um  artista  a  ler,  soluçando,  uma  critica. 

Olha  esse  que  não  tem  talento  e  o  julga  ter 

E  aquelle  outro  que  o  tem. . .  mas  não  sabe  escrever  ! 

Olha,  acolá,  a  Estupidez  !  Olha  a  Vaidade  I 

Olha  os  Afflitos  !  A  Mentira  na  Verdade  ! 

Olha  um  filho  a  espancar  o  pae  que  tem  cem  annos  ! 

Olha  um  moço  a  chorar  seus  cruéis  desenganos  I 

Olha  o  nome  de  Deus,  cuspido  n'um  jornal ! 

Olha  aquelle  que  habita  uma  Torre  de  sal, 

Muros  e  andaimes  feitos,  não  de  ondas  coalhadas. 

Mas  de  outras  que  chorou,  de  lagr3'mas  salgadas  ! 

Olha  um  velhinho  a  carregar  com  a  farinha 

E  o  filho  no  arraial,  jogando  a  vermelhinha  1 

Olha  a  sair  a  barra  a  galera  Gentil 

E  a  Anna  a  chorar  p'lo  João  que  parte  p'ro  Brazil  I 

Olha,  acolá,  no  cães  uma  outra  como  chora: 

É  o  marido,  um  ladrão  que  vae  «p'la  barra  fora  I» 

Olha  esta  noiva  amortalhada,  n'um  caixão     . 

Jesus  1  Jesus  !  Jesus  !  o  que  hi  vae  de  afflicção  ! 

Como  se  vê,  ha  aqui  bastas  referências,  rápi- 
das, dadas  em  formosas  sínteses,  mas  impressi- 
vas, dos  vários  aspectos  da  dor  universal.  E 
não  só  nesta  poesia,  mas  em  mais  do  volume, 
pelo  que  só  de  má  fé  se  pôde  afirmar  ter  vivi- 
do o  Poeta  apenas  confinado  nas  tristes  e  es- 
trangulantes  quatro  paredes  da  sua  dor,  sem 
uma  fresta   para  a   paisagem  anímica  dos  ou- 


A  Afronta  a  António  Nobre 16] 

tros,  como  se  vivesse  num  planeta  ermo  de  mais 
seres  viventes. 

E  ainda  quando  narrava  o  seu  sofrer,  o  des- 
fibrar da  própria  alma,  nessa  narração  surgia 
como  um  símbolo  da  atmosfera  mental  e  senti- 
mental da  época  —  nevrozada,  devorada  de  fo- 
mes espirituais,  que  uma  religião  já  em  deca- 
dência e  uma  sciência  ainda  mal  vingada  não 
conseguiam  mitigar.  Era,  pois,  o  reflexo,  a  cris- 
talização do  dorido  pensamento  errante  e  da 
sentimentalidade  doentia  que  não  sabia  tam- 
bém onde  encontrar  albergue.  E  nisto,  nisto 
só,  nesta  conformação  espiritual,  existente  entre 
o  Poeta  e  as  gentes,  é  que  se  firmou  o  gosto 
destas  por  a  obra  daquele:  viam-se  espelhadas 
nele,  procuravam-no,  aplaudiam-no,  amavam-no. 
Não  foi,  pois,  um  impulso  do  snobismo  a  de- 
terminante desse  acordo,  desse  aplauso,  desse 
amor. 

«E  assistimos  a  um  caso  de  injustiça  das 
multidões.  Èle  é  grande.  Cesário  e  José  Duro 
são  esquecidos.  Todavia  a  sua  musa  não  é  nem 
a  musa  serena,  olímpica  de  Cesário  Verde, 
nem  a  sua  Dor  é  o  trágico  vortilhão  de  José 
Duro»,  volta  o  sr.  Forjaz,  sempre  esquecido  de 
que  não  é  lícito  estabelecer  comparações  entre 
esses  três  tão  diferentes  temperamentos  de  Du- 
ro, Nobre  e  Cesário,  para  mais  ainda  sujeitos 
a  ambientes  diversos.  José  Duro  é  grande  no 
Fel,  sim.  Mas  também  é  muito  pessoal,  muito 


162 A  Afronta  a  António  Nobre 

egotista  na  dor,  quando  a  toma  para  tema  dos 
seus  versos.  Cesário  Verde  deixou  matéria  pa- 
ra um  livro,  livro  que  piedosamente  Silva  Pin- 
to deu  a  lume,  que  vale  sobretudo  como  docu- 
mentação da  fase  realista  na  poesia.  O  âmbito 
da  sua  visão  foi  acanhado,  não  passou  os  mu- 
ros da  cidade,  e  no  seu  fetichismo  do  objecto, 
esqueceu-se  em  demasiado  do  elemento  huma- 
no, visto  integralmente,  alma  e  corpo.  A  não 
evolucionar,  e  muito,  nas  suas  ideias  poéticas, 
pouco  mais  daria  do  que  o  livro,  aliás  valoro- 
so, que  deixou. 

Como  o  sr.  Forjaz  apresenta  este  caso,  colo- 
ca António  Nobre  em  inferior  plano,  em  rela- 
ção a  Duro  e  Cesário,  quando  nessa  hierarqui- 
zação de  valores  não  ha  réstia  sequer  de  justi- 
ça. E  repito:  torne-se  José  Duro  amado  pelas 
multidões,  imponha-se  ao  espírito  destas  o  no- 
me de  Cesário  Verde,  como  dum  poeta  di- 
gno de  estima,  mas  deixe-se  António  Nobre 
onde  está,  amado  e  lido  como  merece. 

Negar  é  fácil,  a  maledicência  não  carece  de 
engenho  para  brotar  em  torrentes.  E  como  o 
sr.  Forjaz  se  impôs  essa  faina  de  diminuir  o 
renome  consagrado  de  Nobre,  esquece-se  por 
completo  de  que  prometeu  «não  exalçar  ou  de- 
primir mas,  serenamente,  buscar  a  verdade.»  E 
disto  esquecido,  perdido  o  freio,  delira,  esca- 
buja,  torce  a  lógica,  atira  às  cegas  tagantadas  à 
memória  do  Poeta. 


A  Afronta  a  António  Nobre 163_ 

Depois  de  lhe  chamar  snob,  de  lhe  negar  sin- 
ceridade, de  o  acusar  do  uso  da  dor  como  dum 
processo  literário,  de  ser  apenas  na  exterioriza- 
ção dessa  dor  um  lamuriento,  de  cultivá-la  co- 
mo uma  planta  de  estufa,  de  ser  um  madraço 
e  um  vadio,  e  dessa  falta  de  ocupação  lhe  ad- 
vir o  spleen  e  o  tédio,  e  isto  em  frases  cheias 
de  atrevimento  e  de  irreverência  chocarreira, 
que  nunca  um  espírito  de  crítico  pôde  arqui- 
tectar, como  estas:  «Doente  rico  por  todo  o 
mundo  vadiou  a  sua  carcaça,  a  sua  doença  é 
em  parte  filha  da  madracice.",  «Tem  a  mania 
das  grandezas  dando-se  ares  de  príncipe  exi- 
lado... e  escreve  com  letra  grande,  como 
os  matoides  de  Lom.broso,  palavras  de  signifi- 
cação corrente  e  vulgar»,  —  depois  de  tudo  is- 
to, sem  o  menor  senso  equilibrado  dum  críti- 
co, entra  na  parte  mais  avultada  da  sua  obra, 
que  consisto  em  pôr  em  confronto  as  duas  edi- 
ções do  Só,  a  l.'"^  e  a  2.^  vagarosamente,  abor- 
recidamente, inutilmente,  apontando  onde  a 
2.^  edição  alterou  o  texto  da  1.%  numa  palavra 
ou  num  verso  inteiro,  numa  estrofe  ou  num 
poemeto  completo,  só  para  concluir  leviana- 
mente: "Assim  todos  os  que  confiarem  credula- 
mente em  que  o  poeta  era  uma  espécie  de  ser 
vindo  de  Deus,  para  em  versos  candentes,  lím- 
pidos, serenos,  cantar  a  sua  dor,  assistem  agora 
ao  açacalar  dessas  tristezas,  não  espontâneas 
mas   paciente,  torturante,   fatigantemente   poli- 


164 A  Afronta  a  António  Xobre 

das  e  trabalhadas.  A  espontaneidade  é  pois 
uma  coisa  larga  e  severamente  premeditada." 

Pois  mais  de  40  páginas  emprega  nesta  faina 
do  confronto  das  duas  edições,  tão  minucioso, 
que  roça  pela  infantilidade  ou  dá  a  entender 
que,  tendo  em  vista  publicar  um  livro  com 
uma  centena  de  páginas,  pelo  menos,  não  sube 
o  que  lhe  ha  de  meter  dentro  e  resolve,  num 
achado,  atirar-se  àquele  trabalho  de  cópia  de 
passagens  várias  do  Só,  que,  por  mutiladas, 
truncadas,  mal  deixam  adivinhar  a  beleza  do 
poema,  o  que  não  é  pequeno  delito. 

Infantil  tarefa,  sim,  só  para  encher  papel,  de- 
certo. Senão,  vejam-se  algumas  transcrições  con- 
frontadas ali:  Uma: 

"O  verso 

«O  que  isto  para  mim  seria,  Amigo,  quando, 
«foi  emendado  para 
«O  que  isto  para  mim  seria,  Manuel,  quando» 

Outra,  não  menos  supérflua,  e  por  isso  típica: 

"No  verso 

«Por  esses  lindos,  deliciozos  arredores, 
«o  lindos  foi  substituído  por  doces." 

Outra  ainda: 

"N'0  Somno  de  João  as  alterações  são  mini- 
«mas  e  constam  apenas  do  verso 

«O  João  dorme.,.  Innocente! 


'para 


A  Afronta  a  António  Nobre  165 


íO  João  dorme,  o  Innocente!» 


Como  se  observa,  apenas  uma  variante  na 
pontuação  não  deixou  de  ser  indicada,  e  assim, 
a  par,  também  regista  esta : 

'<Na  1.^  é 

«Ó  Carlota!  ó  Carlota! 


'.Na  2. 


<A  Carlota!  A  Carlota  ! 


Decididamente,  e  perante  tais  exemplos,  só 
se  pode  interpretar  o  trabalho  do  sr.  Forjaz 
como  eu  interpretei :  a  necessidade  de  enegre- 
cer papel  com  palavras,  fossem  quais  fossem. 
Porque,  é  de  notar  que  mesmo  assim,  isto  re- 
vela trabalho,  trabalho  paciente  e  demorado.  O 
que  é  é  um  trabalho  inútil  e  sem  mérito  nenhum 
de  originalidade. 

Achou  o  contrário  o  sr.  Forjaz,  como  diz: 
"O  leitor  vai  ver  por  que  transformações  pas- 
sou o  Só.  Tem  tanto  maior  utilidade  este  tra- 
balho quanto  é  certo  que  o  Só  da  1/  ediçào  se 
acha  literalmente  esgotado.-."  Mas,  para  que 
precisa  o  leitor  vulgar,  o  que  procura  na  obra 
a  sensação,  a  força  emocional,  e  apenas  isto, 
saber  que  uma  dada  passagem  da  2.^  ediçào  do 
poema  não  existiu  primitivamente,  na  l,'*  ou  que 
teve  forma  diferente?  Para  o  leitor  especial,  que 
é  o  estudioso,  o  que  lê  com  intenção  critica,  o 


166  A  Afronta  a  António  Nobre 

que  vai  em  busca  do  processo  de  elaboração, 
para  esse  não  basta  o  cotejo  fragmentário  que 
o  sr.  Forjaz  pôs  a  engordar  o  seu  franzino  opús- 
culo. 

Se  Nobre  emendou  muito  os  seus  versos,  foi 
porque  o  anseio  pela  perfeição  torturava  o  seu 
espírito.  Este  anseio  é  mesmo  condição  orgâ- 
nica nos  artistas.  Eça  foi  um  torturado  da  for- 
ma, Fialho  não  o  foi  menos,  Flaubert  foi-o  tanto 
que  consumiu  com  a  factura  da  Madame  Bovary 
catorze  anos  e  ainda,  depois  de  vê-la  lançada  a 
público,  procurou  sustar-lhe  a  venda.  E  não  fo- 
ram grandes,  grandes  entre  os  máximos,  Eça, 
Fialho  e  Flaubert? 

Não  ha  obras  de  jacto.  Os  repentistas  são 
raros,  e  só  produzem  coisas  mínimas  e  pálidas. 
Entre  a  concepção  e  a  realização  vai  um  labor 
intenso  e  longo.  E  por  mais  treino,  por  mais 
engenho,  que  residam  numa  actividade  artís- 
tica, raríssimas  vezes  a  primitiva  modalidade 
duma  ideia  traz  já  o  cunho  definitivo.  Porque  re- 
cusar, pois,  a  António  Nobre  o  direito  de  emen- 
dar, a  seu  bel-prazer,  os  versos  que  escreveu, 
mudando-lhes  trechos,  acrescentando,  cortando, 
pontuando  diferentemente?  A  pôr  neste  facto 
um  sinal  de  inferioridade,  quantas  obras,  tidas 
como  obras-primas,  em  todas  as  literaturas,  te- 
rão de  sofrer  igual  ataque  e  ser  apeadas  do  pe- 
destal em  que  se  erguem  perante  nós?!  Quan- 
tas?! 


A  Afronta  a  António  Nobre  167 

Afirma  o  sr.  Forjaz  que  em  muitis  dessas  al- 
terações deu-se  um  pioramento.  E'  um  crité- 
rio, é  uma  opinião  sua.  Com  ela  não  concordo, 
e  comigo  estará  muito  leitor  que  se  dê  ao  es- 
forço de  ler  atentamente  essas  variantes,  uma  a 
uma.  Em  quási  todas,  o  pensamento  vincou-se, 
o  ritmo  cadenciou-se  melhor,  o  vocabulário 
enriqueceu-se. 

Portanto . .  •  Portanto,  o  sr.  Forjaz  querendo 
ver  defeitos,  só  defeitos  vê. . . 


A  páginas  78  escreve  o  sr.  Forjaz:  "Para  se 
ver  como  a  forma  espontânea,  sentida  e  simples 
prevalece  sobre  a  forma  complicada  e  jDara  se  ver 
como  o  natural  excede  o  artificioso  damos  a 
seguir  dois  sonetos.  O  primeiro,  de  António 
Nobre,  tem  a  data  de  188.^  e  o  que  reproduzi- 
mos é,  exacto,  o  que  saiu  na  segunda  ediçào  do 
Só.  O  outro  é  o  conhecido  soneto  de  Raimun- 
do Correia  e  tem  também  a  data  de  1885.  Não 
se  julgue  que  os  pomos  em  confronto  para  se 
dizer  que  António  Nobre  plagiou  Raimundo 
Correia  visto  o  soneto  deste  ter  primeiramente 
visto  a  luz  da  publicidade.  Não.  Isso  nada  nos 
interessa,  pois  nos  diz  ali  um  amigo,  escritor 
ilustre,  que  os  dois  plagiaram  a  poesia  Les  Co- 
lombes  de  Teófile  (sic)  Gauthier.  O  que  nos 
apraz  é  constatar  a  vitória  da  forma  simples  em 


168  A  Afronta  a  António  Nobre 


que  a  intensidade  é  dada  pelo  talento,  sobre  a 
forma  original,  complicada,  rebuscada,  em  que 
a  intensidade  é  dada  pelo  vocábulo,  ou  por  ar- 
tifícios de  técnica." 

Releve-se-me  o  tamanho  da  transcrição.  As- 
sim era  preciso,  porque  este  ponto  do  livro  en- 
cerra uma  das  notas  mais  antipáticas  ali  enfeixa- 
das. Nega  o  intento  de  induzir  um  plagiato  de 
Nobre  sobre  o  soneto  de  Raimundo  Correia. 
Ha  negativas  que  valem  por  afirmações:  esta  é 
uma  delas.  Se  assim- não  fosse,  não  teria  o  sr. 
Forjaz  escolhido  para  o  cotejo  que  faz  a  segun- 
da versão  do  soneto  de  Nobre,  diferente  da  da 
l.""  edição,  que  tem  fíoí//as  em  vez  de  pombas.  O 
termo  pombas  convinha-lhe  mais  para  o  seu  es- 
curo propósito,  pois,  à  primeira  vista,  e  embora 
no  resto  não  houvesse  grande  aproximação,  esse 
termo,  comum  a  ambos  os  sonetos,  seria  no- 
tado. 

Vou,  pois,  transcrever  eu  da  1.^  edição  do  Só 
o  difamado  soneto: 

Menino  e  moço 

Tombou  da  haste  a  flor  da  minha  infância  alada, 
Murchou  na  jarra  de  oiro  o  pudico  jasmim  : 
Voou  aos  altos  céus  St.*  Águia,  linda  fada, 
Que  d'antes  estendia  as  azas  sobre  mim. 

Julguei  que  fosse  eterna  a  luz  d'essa  alvorada, 
E  que  era  sempre  dia,  e  nunca  tinha  fim 
Essa  vizão  de  luar  que  vivia  encantada 
N'um  castello  de  prata  embutido  a  marfim  1 


A  Afronta  a  António  Nobre  169 

Mas,  hoje,  as  águias  de  oiro,  águias  da  minha  infância, 
Que  me  enchiam  de  lua  o  coração,  outrora. 
Partiram  e  no  ceu  evolam-se,  a  distancia! 

Debalde  clamo  e  choro,  erguendo  aos  céus  meus  ais: 
Voltam  na  aza  do  vento  os  ais  que  a  alma  chora, 
Elias,  porém,  Senhor,  ellas  não  voltam  mais .    . 

Leça,  1885. 

E  recordar  devo  também,  assim,  o  soneto  de 
Raimundo  Correia: 

As  pombas .    . 

Vae-se  a  primeira  pomba  despertada     . 
Vae-se  outra .  • .  mais  outra     .  emfim  dezenas 
De  pombas  vão-se  dos  pombaes,  apenas 
Raia,  sanguinea  e  fresca,  a  madrugada. . . 

E  á  tarde,  quando  a  rigida  nortada 
Sopra,  aos  pombaes  de  novo  ellas,  serenas, 
Rufiando  as  azas,  sacudindo  as  pennas, 
Voltam  todas  em  bando  e  em  revoada. . . 

Também  dos  corações  onde  abotoam. 
Os  sonhos,  um  por  um,  céleres  voam. 
Como  voam  as  pombas  dos  pombaes; 

No  azul  da  adolescência  as  azas  soltam. 
Fogem  > . .  mas  aos  pombaes  as  pombas  voltam, 
E  elles  aos  corações  não  voltam  mais. . , 

Apenas  no  fecho,  nas  palavras  terminais  do 
verso  último,  este  belo  soneto  coincide  com  o 
soneto  de  Nobre.  E  isto  é  pouco,  muito  pouco, 
mesmo  nada,  melhor  direi,  para  poder  concluir 
um  plagiato,  como,  parecendo  negar,  esperta- 
mente afirma  o  sr.  Forjaz.  No  resto,  nos  senti- 

F.  13 


170  A  Afronta  a  António  Nobre 


dos  que  enseivam  as  duas  produções,  não  ha 
pontos  de  contacto.  E,  como  quere  o  detractor 
do  Poeta  do  Só,  o  soneto  deste  é  inferior  na 
mineira  de  transmitir  a  sua  ideia,  ao  de  Rai- 
mundo Correia?  Não  vejo  em  quê.  E  também 
não  vejo  que  o  de  Nobre  seja  carregado  de 
artifício,  rebuscado  na  forma,  gongórico  de  ex- 
pressões. E'  belo  no  seu  género,  como  é  belo 
noutro,  o  do  poeta  brasileiro,  em  resumo. 

Mas  o  sr.  Forjaz,  com  o  impulso  da  má  von- 
tade que  o  guia  atravez  do  seu  opúsculo  em 
questão,  apraz-se  muito  em  confundir,  compli- 
car, pôr  em  dúvida,  despertar  desconfianças 
fazer  confrontos  entre  coisas  que  nenhum  con- 
fronto podem  ter. 

Já  fizera  assim  atraz,  comparando,  não  sei 
para  quê,  estes  versos  de  Nobre,  parece  que 
para  superiorizar  o. engenho  de  Cesário: 

Os  mestres  ainda  são  os  mesmos  d'ante5: 
Lá  vae  o  Bernardo  da  Silva  do  Mar, 
A  mail-os  quatro  filhinhos. 
Vascos  da  Gama,  que  andam  a  ensaiar  , 

com  a  quadra  de  Cesário  Verde : 

Vêm  sacudindo  as  ancas  opulentas  ! 
Seus  troncos  varonis  recordam-me  pilastras; 
E  algumas,  á  cabeça,  embalam  nas  canastras 
Os  filhos  que  depois  naufragam  nas  tormentas. 

Mas  voltemos  ao  plagiato  insinuado.  Acober- 
tando-se  com  a  opinião  dum  ilustre  escritor, 
naturalmente  tão  ilustre  como  anónimo,  pois 


A  Afronta  a  António  Nobre 17] 

que  ihe  esconde  a  graça,  o  que  faz  supor  seja 
ele  próprio,  pega  na  acusação  que  esboçara  a 
respeito  de  Nobre  e  desdobra-a,  de  modo  a 
cobrir  com  o  seu  nojento  pano  os  dois  poetas, 
Nobre  e  Correia:  aponta-os  como  plagiários  am- 
bos nos  sonetos  discutidos  da  poesia  Les  Colom- 
bes  de  Théophiie  Gautier. 

Esperava  eu,  nesta  altura,  ver  estampada  a 
poesia  que  sofreu  o  roubo  denunciado.  Seria 
este  o  processo  honesto  e  representaria,  para 
mais,  a  confirmação,  a  documentação  irrefutá- 
vel da  sentença  que  condena  os  dois  poetas.  Pois 
não.  Sciente  de  que  a  torpe  calúnia  sempre  deixa 
vestígios,  e  conhecendo  talvez  a  vacuidade  da 
afirmação  que  fazia,  deu  a  alfinetada,  instilou  a 
gota  da  triaga  e  passou  adiante,  sem  mais  ex- 
plicações, porque  tinha  a  consciência  de  que 
claudicaria  se  as  tentasse  dar. 

Mas  eu,  por  acaso,  conheço  a  poesia  de  Gau- 
tier referida,  Conheço-a  e  até  entre  os  meus 
papeis  velhos  encontro  uma  sua  tradução,  da- 
tada de  1914,  que,  para  instrução  dos  menos 
familiarizados  com  o-  idioma  francês,  me  per- 
mito copiar. 

No  original,  a  poesia  de  Gautier  é  assim: 

Les  colombes 

Sur  le  coteau,  là-bas  oíi  sont  les  tombes, 
Un  beau  palmier,  comine  un  panache  vert, 
Dresse  sa  tête,  oíi  le  soir  les  colombes 
Viennent  nicher  et  .se  mettre  à  couvert. 


172 A  Afronta  a  António  Nobre 

Mais  le  matin  elles  quittent  les  branches; 
Comme  un  collier  qui  s'égrène,  on  les  voit 
S'éparpiller  dans  Tair  bleu,  íoutes  blanciíes, 
ht  se  poser  plus  loin  sur  quelque  toit. 

Mon  âme  est  Tarbre  oii,  tous  les  soirs,  comme  elles, 
De  blancs  essaims,  de  douces  visions, 
Tombent  des  cieux,  en  palpitant  des  ailes, 
Pour  s'envoler  dès  les  premiers  rayons. 

Eis  a  poesia  pretensa  vítima  da  depredação 
dupla.  Que  se  vê?  Que,  se  entre  os  dois  sone- 
tos não  ha  similhanças  que  autorizem  nem  muito 
nem  pouco  a  presunção  aleivosamente  aventa- 
da pelo  sr.  Forjaz,  menos  existe  aqui  seja  o  que 
fôr  que  se  possa  apontar  como  fonte  de  inspi- 
ração de  um  ou  outro  dos  poetas  incriminados. 

^5  pombas 

Álêm,  sobre  a  colina,  em  cujas  lombas 
Os  mortos  cavam  sua  cidadela, 
Aninha  à  tarde  multidões  de  pombas 
Uma  verde  palmeira,  altiva  e  bela. 

Mas,  mal  ascende  o  sol,  a  caravana, 
Como  um  colar  que  desbagôa  as  pérolas, 
Desfaz  as  brancas  tendas,  sobe  e  plana, 
Sulcando  o  largo  mar  das  ondas  cérulas. 

Também,  pelo  crepúsculo,  minha  alma. 
Como  essas  frondes,  se  engrinalda  de  asas. 
Mas,  colmeia  de  sonhos,  áurea  e  calma. 
Em  breve  a  aurora  a  cresta  em  suas  brazas. 

Tradução  de 

.    César  de  Frias. 


A  Afronta  a  António  Nobre  173 


Demais  o  sabia  o  acusador,  pelo  que  não  apre- 
sentou a  prova,  limitando-se  a  bolsar  a  insinua- 
ção gratuita  e  nua. 

Raimundo  Correia  tão  honesto  foi  em  de- 
nunciar as  sugestões  recebidas  doutrem,  que 
na  2.^  edição  correcta  e  aumentada  das  Poesias, 
de  1906,  com  prefácio  de  D.  João  da  Câmara, 
confessa  numa  nota  colocada  no  seu  termo  "a 
influência  dos  poetas  extrangeiros  então  mais 
em  voga  alli  (S.  Paulo),  de  V.  Hugo,  de  Th, 
Gautier.»  E  cita  com  precisão  as  poesias 
que  sofreram  essa  influência,  como  o  soneto 
Vinho  de  Hebe,  de  uma  ideia  haurida  nas  Pre- 
mières  Poésies  de  Madame  de  Ackermann.  A  não 
ser,  pois,  inteiramente  original  no  seu  soneto  As 
pombas,  porque  não  o  confessaria  também? 

Mas,  nada  mais  é  preciso:  a  transcrição  dos 
versos  de  Gautier,  permitindo  o  cotejo  ime- 
diato com  os  sonetos  de  Nobre  e  do  posta  das 
Sinfonias,  dispensa  outra  argumentação:  fornece 
a  mais  poderosa,  a  mais  convincente. 

E,  agora,  salvas  da  mesma  assentada,  as  re- 
putações dos  dois  excelentes  artistas  do  verso, 
pergunto  eu  se  não  é  merecedora  de  severa 
crítica  a  leviandade  com  que  se  arremessa  uma 
acusação  tão  grave,  como  é  a  do  plagiato,  so- 
bre o  renome  jubilado  de  dois  insignes  poetas, 
só  com  o  propósito  de  denegri-los,  de  sujar- 
-Ihes  a  pureza,  servindo  um  ponto  de  vista  arti- 
ficialmente condenatório  e  negativista? 


174  A  Afronta  a  António  Nobre 

E  se  eu  usasse  de  igual  processo  na  aprecia- 
ção da  obra  de  quem  em  tào  pouco  apreço  tem 
a  honestidade  literária  dos  outros?  Pode  ria  bem 
fazê-lo,  quando  encontrei  aquela  sua  plaqueta 
Violáceas,  cujos  versos  tanto  se  aproximam,  pela 
forma  e  pelo  sentido,  de  uma  poesia  da  sua  ví- 
tima de  hoje:  António  Nobre.  Chamei-lhe  ape- 
nas ali  uma  sugestão,  quando  a  critiquei.  Pois 
bem  intensa  e  flagrante  se  mostra  essa  suges- 
tão, onde  até  nem  falta  a  escrita  "Com  letra 
grande,  como  os  matoides  de  Lombroso»  de 
«palavras  de  significação  corrente  e  vulgar".  Já 
vejo  que  se  o  sr.  Forjaz  estivesse  na  minha 
situação  não  hesitaria  em  tais  casos  e,  fugin- 
do a  meias  medidas,  classificaria  o  facto  de 
plagiato  escrito  e  escarrado,  com  todas  as  le- 
tras, sem  apelo  nem  agravo.  E,  quando  me  ofe- 
receram a  colaboração  de  que  falo  atraz,  duma 
lista  de  plagiatos  do  sr.  Forjaz,  te-ia  hia  acei- 
tado, contente  em  extremo  por  poder  confun- 
di-lo, chamando-lhe  ladrão  literário,  em  vez  de 
repelir,  como  repeli,  com  nojo,  essa  contribui- 
ção de  escândalo  para  o  presente  trabalho.  Tam- 
bém, a  ser  leviano  e  mal  intencionado  como  o 
sr.  Forjaz,  poderia  lembrar  que  o  Fel  de  José 
Duro,  de  quem  se  armou  agora  gritante  advo- 
gado, anuncia  na  1.^  edição,  no  verso  da  capa, 
a  obra  "'AN'ATKH"  poema,  e  que  O  Sol  do 
Jordão  do  sr.  Forjaz,  editado  quatro  anos  de- 
pois, também  declara  em  preparação  uma  obra 


A  Afronta  a  António  Nobre  175 


com  igual  título.  Poderia  ainda  apontar  o  quási 
paralelismo  dalguns  títulos  das  suas  obras  com 
os  de  obras  de  Fialho,  o  Mestre,  um  dos  pou- 
cos mortos  que  o  sr.  Forjaz,  talvez  por  su- 
perstição e  por  saber  que  tudo  literariamente 
lhe  deve,  não  foi  ainda  maltratar  na  campa: 
Lisboa  Galante,  de  Fialho,  1903 — Lisboa  Trá- 
gica, do  sr.  Forjaz,  1910;  Vida  Irónica,  daquele, 
1914 — Vidas  Sombrias,  deste,  1917;  Jornal  dum 
Vagabundo,  sub-título  em  Fialho  de  quatro  li- 
vros, Pasquinadas  (1904),  a  citada  Vida  Iróni- 
ca, Á  Esquina  (1915)  e  Barbear,  Pentear  ^916) 
—Jornal  dum  Rebelde,  livro  que  o  sr.  Forjaz 
promete  em  A  Avalanche. 

Mas  não.  Não  o  fiz.  E  com  essa  abstenção  só 
me  encho  de  orgulho.  Não  procuro  cimentar 
gloríolas  fáceis  com  trucs  escuros  e  caluniado- 
res, e  para  as  festejar  fazer  uso  de  estrondosas 
bombas  de  clorato  de  potassa,  azumbando  es- 
candalosamente os  ouvidos  da  gentana. 


Reconhece  o  sr.  Forjaz  que  António  Nobre 
teve  encomiásticos  julgamentos  dos  seus  con- 
temporâneos, e  não  só  destes  como  de  eminen- 
tes espíritos  da  geração  posterior.  Cita  neste 
teor  palavras  de  Alberto  de  Oliveira,  Antero 
de  Figueiredo  e  Júlio  Dantas,  comentando-as 
num  tom  de  mofa  e  concluindo  que  elas  não 
valem  como  críticas  mas  como  panegíricos. 


176  A  Afronta  a  António  Nobre 

Foi,  pois,  com  gáudio  qne  deu  com  o  artigo 
de  Moniz  Barreto  na  Revista  de  Portugal  de 
1892,  artigo  que,  na  verdade,  tem  mais  tonali- 
dade crítica  do  que  os  outros,  porque,  indis- 
cutivelmente, Moniz  Barreto,  por  des fortuna 
das  nossas  letras,  tâo  cedo  ceifado  pela  morte, 
em  qualquer  hospital  de  Paris,  a  braços  com  a 
miséria,  foi  uma  autêntica  e  forte  compleição 
literária  destinada  a  erguer  à  merecida  altura 
um  género  que  entre  nós  é  tào  precário— o  da 
ponderada  análise  de  valores  mentais.  Pelo  me- 
nos, em  independência  de  juizos,  cultura,  dis- 
ciplina intelectual  e  intuição  emotiva,  documen- 
tadas no  seu  artigo  de  perfeita  sintese  A  lite- 
ratura portugueza  contemporânea  que  veiu  a 
lume  na  Revista  de  Eça,  jamais  foi  excedido 
por  qualquer  outra  actividade  escriturai  que 
tenha  tentado  o  género  na  nossa  grei  lite- 
rária. 

Encontrou  o  sr.  Forjaz  o  artigo  de  Moniz 
Barreto  e  vendo  nele  umas  ou  outras  passa- 
gens que  poderiam  servir  a  sua  campanha 
contra  o  Poeta  do  Só,  foí-se  a  elas  e  copiou-as, 
isolando-as  do  resto  do  texto,  alterando-lhes 
assim  o  sentido,  como  é  manifesto. 

Se  Moniz  Barreto  escreveu  "Só  é  uma 
collecção  de  versos,  entremeados  de  prosas, 
impressas  como  versos»,  que  o  sr.  Forjaz 
transcreve,  acrescentou  «e  ao  longo  da  qual 
desabafa  e  se  manifesta  a  alma  d'um  verdadeiro 


A  Afronta  a  António  Ncbic  177 


poeta".  Diz  que  «Alma  doente,  o  sr.  António 
Nobre  soube  extrahir  da  sua  doença  effeitos 
de  Arte  singulares  e  ás  vezes  intensos."  Mais: 
"Em  primeiro  logar  devo  declarar  uma  coisa 
que  nunca  é  indifferente  a  um  escriptor,  mesmo 
pessimista  e  possuído  da  nostalgia  do  nada.  O 
livro  do  sr.  António  Nobre  é  uma  considerá- 
vel manifestação  de  talento  e  um  dos  mais  no- 
táveis que  se  tem  publicado  ultimamente.  O 
seu  auctor  tem  lembranças  de  grande  poeta. 
Algumas  das  peças  que  o  constituem,  como  a 
Vida,  Os  Cavalleiros,  são  jóias  lyricas." 

E  se  comenta  «A  variedade  dos  themas  ex- 
plorados não  é  grande.  Uma  certa  pobreza 
d'invenção  se  fará  sentir  depressa.  N'este  livro 
de  versos  que  não  tem  as  dimensões  do  Maha- 
bharata  esse  efeito  é  visivel.  As  repetições  não 
escasseiam, '  logo  ele  próprio  desculpa  «e  seria 
injusto  lançal-as  á  conta  do  poeta.  E'  que  a 
expressão  do  desespero  é  de  sua  natureza  mo- 
nótona, e  o  cadáver  é  susceptível  de  poucas 
attitudes." 

Chama,  na  verdade,  "deprimentes»  àquelas 
impressões  e  sentimentos  que  António  Nobre 
utilizou  para  tecer  os  versos  do  Só.  E  eis  aqui 
descoberta  a  razão  por  que  o  sr.  Forjaz,  contra 
o  seu  costume,  não  foi  muito  longo  nas  trans- 
crições do  artigo  de  Moniz  Barreto  nem  lhe 
apontou  as  partes  mais  salientemente  oposicio- 
nistas  à   estética   de  Nobre.  Bebeu-lhe  sim  as 


178 A  Afronta  a  António  Nobre 

ideias,  e,  mais  adiante,  mais  atraz,  vestiu-as 
com  palavras  suas,  para  convencer  de  que  o  seu 
juízo  sobre  a  essência  do  Só  é  legítimo  filho 
do  seu  critério,  é  por  inteiro  original.  Nào  é, 
conclúí-se  agora  ao  ver  o  artigo  de  Moniz 
Barreto,  que  nào  copio  integralmente,  por  es- 
cassez de  espaço  neste  volume,  que  já  vai  longo. 
Moniz  Barreto  estivera  já  em  atitude  condena- 
tória para  com  o  Só,  mas  com  a  diferença  que, 
como  crítico  verdadeiro  que  foi,  guardou  a 
precisa  serenidade  nos  assertos  que  expediu, 
ao  passo  que  o  sr.  Forjaz,  apezar  da  sua  pro- 
messa de  ser  sereno,  logo  às  primeiras  pala- 
vras se  destrambelhou,  e,  vindo  por  aí  fora 
numa  sarabanda  epiléptica,  nào  reproduziu  ape- 
nas as  opiniões  críticas  daquele,  mas  traduziu-as 
antesjpara  linguagem  baixa  de  insulto  e  de  de- 
sordem. E'  a  diferença,  e  nào  pequena. 

Mas,  perguntar-me  hào  agora :  se  reconheço 
em  Moniz  Barreto  uma  superior  capacidade  de 
crítico  e  se  ele  se  pronunciou,  em  parte,  bem 
desfavoravelmente  a  respeito  do  Só,  nào  se  abala, 
em  consequência,  a  minha  admiraçào  por  An- 
tónio Nobre?  Nào.  E  nào,  porque  o  artigo  de 
Moniz  Barreto  foi  escrito  numas  condições  de 
tempo  muito  diferentes  das  que  vigoram  hoje, 
e  que  permitem  ver  a  personalidade  do  Poeta 
por  outra  prisma,  que  já  obriga  a  certas  correc- 
ções naqueles  juizos.  Moniz  Barreto  escreveu 
logo  após  a  saida  do  Só,  com  o  seu  autor  vivo 


A  Afronta  a  António  Nobre  179 

e  nào  mostrando  em  nada  conhecer-lhe  a  psi- 
cologia. Quem  escreva  hoje  sobre  António  No- 
bre está  perante  um  fenómeno  literário  comple- 
to e  consumado,  obra  e  autor  como  objectos 
da  crítica,  àlêm  de  que,  já  fora  do  ambiente  que 
circundou  o  Poeta,  mais  nítido  e  desapaixonado 
lance  de  olhos  pode  ter  também  para  o  estudo 
do  estádio  mental  e  artístico  de  que  ele  fez 
parte.  E  isto  nào  é  de  somenos  importância. 
Moniz  Barreto  tinha  perante  si  apenas  a  obra. 
Hoje,  o  crítico  tem  como  termos  da  sua  equa- 
ção, àlêm  da  obra,  a  biografia  do  autor  e  a  pers- 
pectiva da  época. 

E,  sobretudo,  Moniz  Barreto  podia  afoitamen- 
te verberara  recorrência  a  '«impressões  e  senti- 
mentos que  aPsychoIogia  moderna  classifica  de 
deprimentes,  e  que  Espinoza  condemnava  na 
sua  Ethica  como  destruidoras  da  energia  e  da 
integridade  da  alma»»,  porque  não  tinha  na  sua 
bagagem  literária  umas  Palavras  Cínicas,  umas 
Vidas  Sombrias  ou  um  Tibério  filosofo  e  mo- 
ralista, corpo  o  sr.  For  jaz,  e  que  desautorizam 
por  completo  este  sr.  quando  se  ponha  a  exigir 
«livros  sadios,  poetas  encorajantes",  «livros  que 
tragam  e  nào  livros  que  esgotem." 


Vá  de  escrever  as  últimas  páginas  deste  tra- 
balho. 


180  A  Afronta  a  António  Nobre 


Vá  de  tirar  as  conclusões  que  ressaltam  do 
que  atraz  ficou. 

Censurava  em  1915  o  sr.  Forjaz  os  moços  de 
A  Galera,  pela  falta  de  biilho  e  de  beleza  de 
que  se  ressentiu  a  sua  homenagem  então  pres- 
tada a  António  Nobre.  Tinha  o  sr.  Forjaz  bas- 
tante razão  nessas  censuras.  Tinha-a  nesse  tempo. 

Hoje,  perdeu-a  por  completo,  e  colocou-sena 
situação  de  poderem  os  homenageadores  de 
1915  vir  bater-lhe  à  porta,  devolveu do-lhe  os 
termos  acres  que  então  sobre  eles  ousou  expe- 
dir: «recua  de  líteras  assim  tão  petulantes  como 
idiotas." 

Porque  o  livro  António  Nobre  é  bem  mais 
pobre  do  que  o  número  especial  daquela  re- 
vista coimbran,  dedicado  ao  Poeta  do  Só.  Ali, 
ainda  ha,  ao  lado  das  titubeantes  primícias  dos 
organizadores  da  homenagem,  um  belo  artigo 
inédito  do  Mestre-Prosador  Antero  de  Figuei- 
redo e  um  outro  de  Alves  dos  Santos,  bem  in- 
teressante, àlêm  do  de  Ferreira  Lima,  que  o  sr. 
Forjaz  elogiou. 

Mas  os  moços  de  A  Galera  tinham  em  seu 
abono,  atenuando-lhes  a  falta,  a  sua  idade  juve- 
nil e  inexperiente,  a  sua  bem  recente  familiari- 
dade com  as  coisas  literárias. 

Nenhum,  como  o  sr.  Forjaz,  tinha  quási  um 
decénio  de  literatura  no  pêlo  e  dez  celebrados 
volumes  sobre  o  lombo. 

Eles  nada  fizeram  de  grande.  Pois  o  sr.  For- 


A  Afronta  a  António  Nobre 181 

jaz  nada  de  grande  fazendo  também,  quando 
deitou  mãos  ao  mesmo  cometimento,  fez  mau, 
fez  ruim,  fez  especulação  grosseira,  errou  in- 
tencionalmente, para  armar  a  um  determinado 
efeito. 

Senão,  folheie-se  o  livro  do  sr.  Forjaz  e  pro- 
cure-se  lá  o  que  ele  exigia  houvesse  no  citado 
número  de  A  Galera:  «O  que  havia  a  fazer  se- 
ria uma  série  de  artigos  na  forma  do  de  Fer- 
reira Lima,  cada  um  tratando  o  poeta  sob  a 
sua  feição.  Um,  estudando  a  sua  biografia:  Ou- 
tro o  mal  de  viver  dos  seus  versos:  Outros  a 
influência  das  viagens  no  seu  temperamento. 
Um  com  gana  medicatriz  estudaria  António  No- 
bre sob  ponto  de  vista  amoroso. — Um  terceiro 
investigaria  da  saudade  na  sua  obra.  Inéditos 
do  poeta  ou  poesias  pouco  conhecidas  seriam 
publicadas.  A  sua  biografia  seria  estudada.  Os 
seus  Íntimos  diriam  da  sua  intimidade." 

Exigia  tudo  isto,  e  veja-se  agora  o  que  fez. 
Colocou-se  em  frente  do  Poeta  e  crivou-o  de 
invectivas,  ácidas  em  extremo.  Substituiu  aque- 
le programa  por  um  plano  de  ataque  intensivo 
e  sem  quartel.  Negou,  negou,  negou.  Conce- 
deu, como  por  favor,  que  Nobre  tivesse  tido 
talento.  De  resto,  nada:  nem  sinceridade,  nem 
emoção,  nem  receptividade  artística.  E  chega 
aos  epítetos  de  «cabotino»  e  «criatura  inferior»-... 
Pois,  onde  está  ali  o  estudo  atento  da  bio- 
grafia do  Poeta  ?  Onde  uma  interpretação  in- 


182  A  Afronta  a  António  Nobre 

teligente  do  mal  de  viver  dos  versos  do  Só  ? 
Onde  a  demonstração  de  que  o  nomadismo  de 
Nobre  lhe  deu  feição  especial  ao  temperamen- 
to? Análise  medicatriz,  existe  ali  alguma?  Dos 
casos  amorosos  dele  diz-nos  o  quê?  O  elemen- 
to da  saudade  na  obra  de  Anto  foi  posto  em 
destaque?  Traz  à  luz  inéditos  ou  poesias  es- 
quecidas ?  Entrevistou  os  íntimos  do  Poeta,  pa- 
ra alguma  coisa  nos  contar  da  sua  intimidade? 

Nada.  Nada.  Perante  estas  exigências  feitas 
aos  outros,  faliu,  faliu  miseravelmente.  Com 
esse  escopo,  nada  nos  deu  de  novo. 

De  novo,  só  o  seu  ponto  de  vista  adverso 
ao  Poeta,  aluindo-lhe  o  crédito,  pretendendo 
arrefecer-lhe  em  roda  a  temperatura  de  simpa- 
tia. 

Novo,  é  como  quem  diz.  Novo  com  pano 
velho:  ressuscitando  e  vertendo  para  dialecto 
de  insultos  um  juizo  crítico  de  Moniz  Barreto, 
como  já  provei. 

E  entreteve-se  então  com  bugigangarias,  co- 
mo a  do  minucioso  cotejo  das  duas  edições  do 
Só,  registando  em  mais  de  metade  do  volume 
as  menores  variantes,  letra  a  mais,  vírgula  a 
menos,  dando-se  nisto  uns  ares  de  quem  pres- 
ta estimável  serviço ! 

Para  satisfazer  ao  estudo  da  influência  das 
viagens  de  Nobre  no  seu  temperamento,  que 
faz?  Vai  ao  Só,  às  Despedidas  o.  2.  A  Águia, 
que  publicou  muitos  inéditos  do  Poeta,  e  três- 


A  Afronta  a  António  Nobre  183 


lada  as  datas  e  as  designações  das  localidades 
onde  as  poesias  foram  escritas,  copia  trechos 
destas,  referentes  a  esta  ou  àquela  terra,  e  nada 
mais.  Onde  está  a  influência  das  viagens  no 
temperamento  ? 

E,  sempre  obediente  ao  seu  desígnio  detrac- 
tor, diz: 

«  ..nào  sentia  decididamente  amor  pela 
França,  nem  mesmo  por  esse  Paris. 

Paris  de  Baudelaire  I 

Paris  de  Verlaine  e  poetas  sonhadores  ! 

Mais  de  mendigos  ricos,  de  fidalgos  salteadores; 

(Despedidas,  pag.  82 ) 

"Ele  mesmo  o  confessa  nos  seguintes  dois 
versos: 

Paris  que  me  acolheste  n'agreste  mocidade, 
Eu  não  te  amo  não,  mas  dou-te  uma  saudade. 

(Despedidas,  pag.  82) 

"Nào.  Ele  não  amava  esse  Paris  que  não  re- 
parou nele." 

Soberba  e  imperiosa  conclusão:  Nobre  não 
amava  o  grande  e  babilónico  Paris,  por  despeito, 
por  não  sentir  que  esse  Paris  se  interessasse  por 
ele!  E'  espantosa  a  audácia  da  malévola  con- 
clusão! O  arreigado  e  profundo  nacionalismo 
de  Nobre,  tão  avonde  documentado  nos  seus  ver- 
sos, sempre  luarizados  de  saudades  do  torrão  na- 


Í84  A  Afronta  a  António  Nobre 


tal,  não  lembrou  ao  sr.  Forjaz  para  explicar  aque- 
le desamor  por  Paris!...  O  despeito,  sim,  o 
amor-próprio  ferido,  a  vaidade  insatisfeita. .  . 
Como  se  o  Poeta  pudesse  megalomânicamente 
sonhar  com  dominar  em  Paris,  o  grande  almo- 
fariz de  potentados,  reis,  príncipes,  rajás,  gé- 
nios, sábios!. . . 

já  é  facciosismo.  • . 

Na  biografia  do  Poeta  que  traz  no  fecho  do 
volume  dá-nos  alguma  novidade?  Nenhuma. 
Similhante,  mais  completa  mesmo,  publicou-a 
,0  ilustre  escritor  sr.  Visconde  de  Vila-Moura 
no  seu  livro  sobre  António  Nobre. 

Ha  no  trabalho  do  sr.  Forjaz  uma  parcela  de 
louvar.  A  bibliografia, — se  bem  que  na  parte  que 
aponta  e  cataloga  os  escritos  sobre  o  Poeta  seja 
ainda,  e  muito,  deficiente.  Ha  muitos  mais  tra- 
balhos ali  não  citados,  focando  aspectos  da  vida 
de  Nobre  e  da  sua  obra. 

Iconográficamente,  também  o  opúsculo  é  po- 
bríssimo. Das  10  gravuras  que  estampa  só  o 
desenho  de  Roque  Gameiro  e  o  autógrafo  cons- 
tituem novidade.  Todas  as  outras  são  os  retra- 
tos mais  divulgados  de  Nobre,  ainda  bem  re- 
centemente aparecidos  no  livro  do  Visconde  de 
Vila-Moura,  em  A  Águia  e  nas  edições  do  Só 
e  das  Despedidas,  n'A  Qalera,  etc. 

Mesmo:  este  mínimo  coeficiente  de  estudo 
útil,  que  veiu  ali  fazer,  num  livro  que  tem  por 
fulcro  demonstrar  que  António  Nobre  vive  de- 


A  Afronta  a  António  Nobre  185 

masiado  no  culto  das  multidões,  usurpando  um 
lugar  que  de  direito  pertence  a  outros  poetas 
maiores,  como  Cesário,  Duro  e  Guilherme  de 
Azevedo?  Pois  se  injustamente  o  nome  do 
Poeta  do  Só  e  a  sua  obra  não  cessam  de  ine- 
briar, e  nefastamente,  no  entender  do  sr.  Forjaz, 
o  cérebro  do  grosso  público,  para  que  apre- 
sentar ali  a  reprodução  dos  retratos,  elaborar 
quadros  comparativos  e  táboas  cronológicas,  em 
cuidados  quí  melhor  ficavam,  e  só  aí,  num  tra- 
balho de  homenagem  ao  Poeta,  e  não  num  de 
oposição,  como  é  o  opilsculo  em  debate?  Ver- 
bera que  uma  fogueira  se  mantenha  viva  e  de 
tào  altas  chamas  que  dê  ares  de  fogo  sagrado, 
e,  contudo,  vai  lançando  também  uma  acha  na 
fogueira !   .  . 

Grande  contradição  esta,  que,  aliás,  nào  é 
virginal  no  volume  do  autor  da  Prosa  Vil! 
Muitas  mais  apresenta,  como,  por  exemplo, 
quando  afirma  num  ponto  que  o  sôsismo  "Com 
o  seu  autor  nasceu,  morreu  e  com  éle  foi  defi- 
nitivatriente  enterrado",  para  afirmar  logo  nas 
duas  linhas  seguintes  a  vitalidade  desse  sósismo: 
"E'  que  António  Nobre  exerceu  e  exerce  uma 
acçào  deletéria,  dissolvente  . . "  E'  como  o  conto 
infantil  do  Era,  não  era,  andava  na  serra, . . 

Por  isto  e  pelo  teor  das  duas  transcrições 
que  puz  no  inicio  deste  capítulo,  duns  pará- 
grafos do  artigo  do  sr.  Forjaz  nA  Luta  e  da 
Prosa  Vil,  descobre-se  bem  nitidamente  como 


186  A  Afronta. a  António  Nobre 


é  forçado  e  da  última  hora  este  critério  adverso 
ao  grande  renome  literário  do  Poeta  do  Só. 

E'  um  truc,  um  postiço,  uma  máscara,  afive- 
lada por  um  momento  ao  rosto,  para  provocar, 
pela  excentricidade,  a  atenção  do  público  seu 
predilecto,  a  quem  ele  habituou  o  paladar  ao 
gosto  de  iguarias  fortes  e  picantes. 

Decerto  viu  que  resultaria  coxa,  por  falha  de 
sinceridade,  a  diatribe  que  engendrava  contra 
Nobre.  Decerto  viu  como  era  ridículo  e  indi- 
ciava inconsciência  o  apodo  de  dissolvente  e  de- 
letéria lançado  sobre  a  obra  do  Poeta,  sendo 
ele,  o  sr.  Forjaz,  o  desbragado  produtor  dum 
rol  de  livros,  donde  escorrem  teorias  veneno- 
sas e  donde,  por  uma  sistemática  exegese  do 
egoismo  mais  truculento  e  sórdido,  tem  ema- 
nado nào  pequena  parcela  da  efervescência 
mórbida  que  pulveriza  a  nossa  sociedade  ho- 
dierna e  ameaça  levá-la  ao  maior  cataclismo  so- 
cial: commis-voyageur  da  corrupção  e  do  delí- 
rio, esquecia  a  fazenda  antiga  dos  seus  mostruá- 
rios, que  lhe  tem  enchido  de  lucros  as  algibei- 
ras, e  desatava  agora  num  berreiro  a  reclamar 
mercadoria  de  alto  valor  ético  e  saudável!.    . 

Decerto  o  sr.  Forjaz  viu  tudo  isto:  decerto, 
porque  é  inteligente.  Mas,  acima  da  sua  inteli- 
gência pôs  sua  esperteza  de  industrial  de  perío- 
dos, como  se  intitula,  e,  ante  a  necessidade  pa- 
ra o  seu  negócio  de  fazer  mais  um  livro,  ocor- 
rendo-lhe  a  ideia  de  escrevê-lo  tendo  por  te- 


A  Afronta  a  António  Nobre 187 

ma  António  Nobre,  filosofou  assim:  se  o  escre- 
vesse homenageando  o  Poeta,  desde  que  no 
seu  temperamento  nào  existe  forte  intuição  psi- 
cológica, nada  sobre  ele  poderia  dizer  de  novo, 
tanto  mais  que  o  assunto,  depois  de  tantos  tra- 
balhos sobre  ele  publicados,  estava  por  assim 
dizer  exausto;  restava  o  recurso,  inédito,  fecun- 
do, detonante,  de,  embora  torcendo-se,  negan- 
do-se  no  que  anteriormente  escrevera,  operar 
um  movimento  de  reacção  contra  o  culto  acen- 
drado  pelo  Poeta.  Encontraria  nisto  resistên- 
cia? Melhor.  O  embate  da  sua  arremetida  nes- 
sa mur.ilha  de  almas  defensoras  de  Nobre  pro- 
duziria estrondo,  —  e  feito  assim,  pelo  escânda- 
lo, pela  irritação  despertada,  o  reclamo  do  li- 
vro, estava,  implicitamente,  decretado  o  seu 
bom  êxito  de  venda.  O  encontro  do  artigo  de 
Moniz  Barreto,  dando-lhe  bordào,  servi-lhe  hia 
magnificamente,  para  dar  à  empreza  uns  vizos 
de  seriedade. 

Com  tão  sorridentes  planos,  pôs  màos  à  ta- 
refa. Fez  em  sarrafos  o  bordão  por  fortuna 
achado,  falquejoulhe  a  seu  bel-prazer  os  con- 
ceitos, pincelou-os  à  doida,  a  esmo,  com  a  ru- 
bicunda tinta  do  insulto,  e,  como  aparafuzados 
uns  aos  outros,  davam  pequeno  volume,  para 
atingir  a  costumada  centena  de  páginas,  meteu- 
-Ihe  os  chumaços  de  algodão  que  já  indiquei. 

E  assim,  de  túnica  vermelha  como  todos  os 
seus  livros,   fero,  gritante,   demoníaco,  o  livro 


188  A  Afronta  a  António  Nobre 

aí  corre  no  mercado,  sem  atestar  que  no  seu 
autor  vibre  o  desejo  de  progredir  e  de  fazer 
melhor  e  mais  belo  hoje  do  que  ontem.  Bem 
pelo  contrário.  Pois,  em  meu  juizo,  o  seu  An- 
tónio Nobre  ficará  na  sua  bagagem  como  a 
obra"  mais  ilógica,  antipática,  desinteressante, 
inútil,  exibitiva  e  irreverente  à  sobreposse. 

E,  se  a  série  prometida  Os  Bárbaros,  que  es- 
te volume  iniciou,  fôr  toda  assim,  —  pobre  Fia- 
lho, pobre  Camilo,  pobre  Eça!  pobres  todos 
os  outros!  O  bárbaro  de  Os  Bárbaros  é  muito 
capaz  de  pegar-lhes  nos  venerandos  ossos, 
embrulhá-los  nas  capas  encarnadas  dos  seus  li- 
vros e  cometer  a  barbaridade  de  ir  vendê-los 
a  uma  refinação  de  açúcar!.  .• 

E  se  dos  moços  de  A  Oalera  disse  o  sr.  Forjaz 
serem  eles  bons  rapazes  e  nâo  se  terem  lem- 
brado do  poeta  senào  para  se  fazerem  lembra 
dos,  —  eu,  com  franqueza,  e  como,  graças  ao 
Pai  do  céu !,  não  o  conheço  <le  perto,  não  direi 
que  o  cínico  autor  é  bom  rapaz,  mas  o  que 
não  hesito  em  dizer  é  que  ele  não  se  lembrou 
do  Poeta  senào  para,  mercantil  e  substanciosa- 
mente,  ganhar  mais  uns  cobres... 


Finis :  Laus  vitae 


Pag. 

Saibam  quantos I 

I  —  O  Poeta  do  «Só» 1 

II  —  Quem  é  o  sr.  Albino  Forjaz  de  Sampaio    53 

III  —  O  seu  «António  Nobre»,  obra  irreverente  e 

mercantil  139 


o 


A  faina  de  composição 
c  de  impressão  desta  obra, 
executada  nos  prelos  da 
Imprensa  Africana,  na  rua 
de  S.Julião,  58  e  60,  desta 
cidade  de  Lisboa,  começou 
em  1  de  Fevereiro  de  1920 
e  findou  em  8  de  Maio  do 
mesmo  ano. 


PQ      Frias,  César  de 

9261       A  afronta  a  António  Nobre 

N6Z67 


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