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Full text of "A jornada d'Africa; resposta a Jeronymo Franqui e a outros, noticia do successo da batalha, do captiveiro e d'outras cousas dignas de menção"

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A JORNADA DAFRICA 



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S.M.EL-REI B. SEBASTIÃO. 



A JORNADA 



DAFRICA 



KOTICZA DO SnCOESSO DA BATAIjIIA, DO CAPTiyEIBO E D OUTBAS 



RESPOSTA A JEBONTMO FRAHQUI E A OUTROS 
ISSO DA BATAIilIA, DO CAP7 
COUSAS DiairÃS DEOIEfirÇÂQ 

JERÓNIMO DE MENDONGA 

NATURAL DA CIDADE tJtJPORTO 

(copia da edição de 1607) 



aEJlDIT.A.r50 3POI* 



F. MARIA RODRIGUES 



«^^-c^^ouf^rc^ii/^v^vcD^^ 



PORTO 



IMPRENSA RECREATIVA 00 INSTITUTO ESCHOLAR OE S. OOMINGOS 

3 — BUA DO CORONBI< PACHECO — 7 

1878 






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FBOXiOSO 




josTo que nuaca esqueçam grandes males nem 
©erros passados possam deixar de ser, pôde toda- 
Ivia a malícia humana accrescentar ambas estas 
«cousas, de maneira que perepa a verdade total- 
mente e venham a ser maiores os damnos da mentira, que 
quantos succederam por divino juizo ou culpas nossas: 
pelo que, apezar do sentimento com que nos ameapa a la- 
mentável historia, me pareceu mui justo tractar d'esta jor- 
nada. ^ • 

E, ainda que quando tomei esta empreza logo foi meu 
destino fugir de tocar na infeliz batalha, senão mui breve- 
mente, assim por não^ cahirem tantos males de um só golpe 
como por me não julgar capaz de semelhante empreza, vendo 
depois o modo coA que alguns estrangeiros, como Jeronpio 
Franqui e frei António de S. Romão, tractam d'ella, accrescen- 
tando às faltas e misérias outras muito maiores (como senão 
bastaram as que na verdade aconteceram), as quaes nosso 
descuido podia acreditar seus erros, e podendo reparar 



VI PROLOGO 



quem depois vier que ninguém os contradisse, sendo tâo 
manifestos, me pareceu razão não passar em silencio cousa 
alguma, para que se saiba em todo o tempo o que aconteceu 
na verdade, apontando alguns logares onde se verá claramente 
aquillo de que taes auctores deviam ter errada informação. 

E não ò farei como escriptor por certo, que não ha ra- 
zão para que tal se cuide de mim ; mas somente como quem 
viu e passou toda esta jornada, darei meu testemunho, posto 
que por outra parte me corro tanto de não haver em Portu- 
gal quem com outro estylo e differente lição quizesse até 
agora tractar d'esta historia, tirando-a com razão á verda- 
deira luz, que não quizera de algum modo fallar n^isto, por 
não accrescentar também mais damno a damno com meu fraco 
entendimento. 

Só por uma razão me pareceu bem tractar doestas cousas, 
a qual é que, escrevendo eu somente d'ellas, se. acabará de 
vér o desamparo d'este reino; e assim já pôde ser que alguém 
se mova a tomar esta empreza dignamente, que não será pe- 
queno premio a quanto me aventuro n'este primeiro ensaio, 
posto nas mãos de tão varias opiniões e perante as mesmas 
pessoas de quem escrevo. 

Nem deixará de ter muitos louvores quem nisto se 
occupar, que, posto o sujeito seja tão triste, não é por isso 
bem que fique em silencio; pois vemos (jida dia quanta di- 
ligencia os homens fazem para se saber a perdição de um pe- 
queno navio, quanto mais o naufrágio de um tamanho reino. 
Nem lhe faltará exemplo tão digno de imitar contra Franqiá 
e seus sequazes n'aquelle excellente e» verdadeiro historiador 
Joseph Hebraico, que, refutando e confundido a Magneton, 
Apion e outros, não deixou de escrever' de sua pátria <bem 
diflferentes mágoas e misérias, sem lh'o impedir a dor de 1a- 
ttianho sentimento, por mostrar a verdade, julgando com ra- 
zão ser mór mal a mentirá que a mesma desventura. 

Porém, se com tudo isto não houver quem se ofTerepa, 



o ^6 não cuido, ea me contento de haver cumprido com 
minha obrigarão n'esta lembrança, ficando mui certo qae a 
quem me conhece não lhe será nova minha insuihdencia, 
e com 09 mais espero que a toneão me valha, pedindo per- 
dão áquelles tie quem por ventura deixarei de dizer muitas 
cousas, não por falta da vontade mas por me feltar o verda- 
deiro conhecimenlo d'enas, além de não ser f 
se escrever tudo. 



COMO RESPOSTA AO NOVO PROEMIO DE JEROXYMO PRANQUI 
XA SUA 3.* IMPRESSÃO 



Não somente, benigno leitor, pretendeu Jeronymo Fran- 
qui em muitas cousas aniquilar e destruir a honra d'eato 
rdno, mas até, sondq-lhe manifesto o commum queLvume 
âe naturaes e estrangeiros, deu n'osta sua terceira impressão 
msa descarga ou desculpa muito mais culpável (se mais fflra 
possível) que seus primeiros erros, encobrindo cora razões so- 
^listicas o simulada singeleza a maior malícia >que os ho- 
mens viram; e, porque pode haver alguns a quem o falso pa- 
reça verdadeiro, levados das fingidas apparencias, me pare- 
cendo razão responder às cousas d'e8te seu proemio, as quaes 
hei como referidas no bom entendimento de quem as tíver 
iido, e digo que é tão famosa e tão pura a verdade que, se 
acaso sem ella se dií alguma cousa, ainda que seja em lou- 
vor próprio, (nos ânimos grandes ao menos) serve sõ de ver- 
gonha e vitupério ; e, como estas suas obras trazem logo com- 
Mgo em tantas partes a mà tenção descoberta, não tão so- 
mente foram aos portuguezes odiosas, mas a lodo o mundo, poia 
até d'aqBe!le3 a quem louva e chama vencedores são tão aborre- 
cidas que lhe impediram o curso de seu livro em todaaBespa- 



Vm PROLOGO 



nha; e quanto á diligencia e zelo bem mostra ser só paixão pura, 
pois tomou sem nenhum propósito a seu cargo a historia de 
Portugal, não lhe tocando semelhante empreza de nenhum 
modo, sendo genovez de nação, todo occupado na feitoria 
d'alfandega d'esta cidade de Lisboa, o que se vé mais clara- 
mente em ser tão prompto a perseguir e condemnar os 
affligidos (suave pasto de malignas entranhas!), pois senão 
contentou com dizer na verdade as desventuras e misérias 
que aconteceram, mas inventou de novo outras maiores (se é 
que não deu credito a falsas informações), sem achar alguma 
escusa em uma batalha onde houve tanta resistência e mor- 
reram mais mouros que christãos, sendo tão desigual o 
partido; antes para poder condemnar mais livremente dá 
por cousa impossivel poder-se louvar quem perde, sendo tanto 
pelo contrario, que muitos com perderem ficaram tão hon- 
rados que ma,is se lhes podia haver inveja do que magoa 
ou piedade! Qual Judas na Palestina, Pompéo na Pharsalia, 
Berengarío na Hungria, Carjos e Francisco na Mia, agora 
ha tão poucos dias o valoroso principe Alberto, archiduque 
d' Áustria, na Flandres, e outros infinitos que alcançaram mais 
gloria perdendo que ganhando, pois em fim o valor não consiste 
no successo das cousas, senão na ordem e conunettimento 
d'ellas. 

Isto no que toca à batalha de Alcácer, onde a mór culpa 
dos portuguezes foi serem tão fieis a seu rei que, vendo tão 
claramente a morte, não deixaram de lhe obedecer ; e na perda 
da vida d'elle (irreparável perda!) ninguém foi culpado senão 
elle somente, pois pelo succedido também os mouros n'esse 
mesmo conflicto perderam o seu rei, sém a perda lhe ser im- 
putada a cobardia. 

E quanto á segunda batalha de Alcântara com muito 
mais razão se podéra Franqui correr de dar tal nome a um tu- 
multo plebeu, sendo tão poucos os fidalgos e homens nobres 
que foram d'este parecer (levados de mn animo brioso, posto 



PROLOGO IX 



que ignorassem a razão), estando todo Portugal entregue 
a Sua Magestade, do que elles se podiam envergonhar de 
não resistir ao poder do duque d'Alba, sendo tão poucos. 

E na perda da ilha Terceira cora cousa mui mais justa 
podéra antes dar louvores aos portuguezes, que attribuir-lhes 
isso a deshonra, pois o seu terço foi o primeiro que desem- 
barcou em terra na companhia de D. Félix de Aragão, seu 
capitão. 

Não tracto já da batalha naval de Philippe Estrosi, 
• cuja desgraça Franqui nos attribue também, sendo francezes 
todos os que vinham na armada, por um só portuguez que 
vinha n'ella, indo tantos vencedores na de Hespanha. 

E quanto ás qualidades naturaes, pelas quaes julga a 
condição dos portuguezes, ainda que do mortal ódio que lhes 
tem não houvera outro mais claro indicio que o modo como 
interpreta sua opinião, este só bastava ; pois, sendo a pro- 
priedade da palavra a que chamamos opinião tão differente 
. que só entre nós signiQca ponto de Iwnra-. debaixo do qual 
se entende não fazer vileza com fallar verdade e ter vergo- 
nha (cousas que tanto estimam os portuguezes), elle declara 
que a opinião de que se prezam e que publicamente confessam 
é que vivem mais da imaginação d^aquillo que de si cuidam, 
que do que realmente são. Ora veja quem isto lé como pôde 
haver no mundo gente tão insensata que tal de si confesse, 
e que voto pôde ter nas cousas dos portuguezes, assim n^esta 
jornada -como nas mais, quem de tão honrada e clara pala- 
vra tira tal sentido ! Pelo que está claro não poder escrever 
d'elles, e ser reprehendido com verdade, quem assim escreve ; 
pois, ajuntando á falsa informação má natureza, diz algumas • 
cousas tão longe do que aconteceram. 

E, nò que tíacta d'el-rei D. Henrique de Castella (cuja 
entrada parece que andou buscando por arguir de novo aos 
portuguezes), n'isso se pôde ver quanto estes estimam tra- 
ctar-se da verdade, pois approvaram e consentiram tal histo- 

2 



PROLOGO 



ria, ainda que em seu damno ; claro argumento de que assim 
soffreriam a d'elle, se fura verdadeira, mas somente de o 
não ser é este queixume, cousa que Jeronymo Franqui não quer 
acabar de entender. 

E, no juizo que faz acerca dos validos d'este reino, pa- 
rece certo mui dura sentença contra a graça dos príncipes 
attribuir logo àquelles que a tiveram vicios por natureza, 
maldades por oíficio ; pois o contrario nos mostram as divinas 
lettras nos sanctos Joseph e David, que tão grandes priva- 
dos foram, cada um em seu tempo, dos Pharaós do Egypto 
e dos monarchas da Assyria. Pois na gentilidade com quanta 
singeleza e quão pouca ambipão procederam alguns gran- 
des validos dos senhores do mundo, como foram Ephestion, 
Mecenas, Séneca e outros que sem lume da Fé fugiram das 
maldades ! E agora em nossos tempos quem viu a modera- 
ção, fidelidade, zelo e pureza de Ruy Gomes da Silva e de 
alguns que ainda hoje vivem (e que aqui não nomeamos por este 
respeito) e em fim-, de nossas portas a dentro, do conde de Villa- 
nova, D. Martinho de Gastelbranco, do conde da Casta- 
nheira, D. António de Athaide, e ultimamente de Christovão 
de Távora, pôde ver quão poderosa sejaa malicia que forma 
outra natureza, dando os vicios por infalliveis qualidades 
nos privados, como argumenta Franqui para poder melhor jul- 
gar dos homens a seu alvedrio! 

E na Divina Providencia quem ha que não confesse que 
foi particular vontade de Deus a mudança doeste reino ; que 
não é pequena consolação a todos e bem poderá Franqui 
attribuir a isto somente todas as nossas cousas, mas não julgar 
do merecimento de culpas, dando c^río juizo aos juizos divinos, 
como adiante se verá. 

E, no que toca a se pôr nas mãos de Deus, justificando 
sua sinceridade e pureza, somente se respçnde que foi mal 
aconselhado em tomar tão justo juiz- a tão injustas obras. 

Assim que está manifesto não poder Jeronymo Franqui 



PROLOGO XI 



escrever dos portuguezes, nem é r^izão se lhe dé algum cre- 
dito; pois não se achou presente em quanto diz, — errando o 
nome aos homens, muitas vezes o offldo, quasi sempre 
es successos, além de ser suspeito claramente, e tanto que frei 
António de S. Romão (atraz nomeado) que quasi o segue em 
tudo, na dedicatória de seu livro ao condestavel de. Castella, 
sobre esta jornada d'el-rei D. .Sebastião, diz que a nação 
portugueza se pôde chamar offendida e que as obras de 
Franqui argúem vinganpa contra os portuguezes, o que de- 
via nascer de algumas paixões particulares que, segundo se 
tem entendido, não é bom que se especulem. 

E, porque se acabe de entender quanto vae da vista á 
4nformação, veja-se a Pontifical de António Ciccareli-, doutor 
em Theologia, italiano de nação, na vida de Gregório xni, 
o qual, escrevendo sobre a mesma matéria dos successos d''este 
reino, quando tracta da batalha de Alcácer, pogto que acerte 
em algumas cousas, como em dizer que durou seis horas, 
que eram os inimigos sessenta mil de cavallo, afora os de pé, 
e que foram rotos duas vezes, todavia diz que morreram dos 
mouros cincoenta mU, não sendo mais que dezoito (dos que 
recebiam soldo, digo), e que MuleyMahomed persuadiu a el-rei 
D. Sebastião entrasse pela terra dentro, sendo tanto pelo con- 
trario, como adiante se verá. E, quando tracta d'el-rei Philippe, 
nosso senhor, segundo doeste nome, na cidade de Lisboa,, diz 
que correu n'ella dous grandes perigos de vida, porque duas 
vezes foram descobertas minas que os portuguezes fizeram 
nos paços reaes e na igreja onde costiunava ouvir missa, e, 
se isto senão descobrira, fora el-rei arruinado ou nos paços 
ou na igreja, e que os autores doesta maldade foram grave- 
mente castigados! 

Veja-se pois que remédio isto tivera para se deixar de 
crer d'aqui a bem poucos annos, que ninguém d'este tempo 
será vivo, sendo escripto por um doutor Theologo, se hoje 
senão refutara com tantos homens vivos e presentes, de Cas- 



14 A JORNADA 
f 



haviam de ser grandes homens, os mandou servir a el-rei de 
Fez : depois vieram a alcançar licença do mesmo senhor para 
fazerem guerra aos chrislãos, vistos os grandes damnos que 
os mouros recebiam; e succedendo-lhes bem, determinaram 
pôr em effeito seus escondidos desejos, e mataram a el-rei 
de iMarrocos, fazendo-se senhores de todos os seus reinos. De- 
pois tiveram guerra entre si, como salteadores sobre o illal 
ganhado, e Muley iMahomod, irmão mais moço, tomou tudo ao 
mais velho; e vendo-se absoluto senhor doestes reinos, des- 
baratou depois, e prendeu a el-rei de Fez, Elotas Merine, de 
quem foi criado, coiho traidor ingrato, e doeste modo ficou 
senhor de toda a Barbaria: o qual parece que quando estava 
em paz com seu irmão, fez com elle uma lei, ou concerto, 
que o filho mais velho de cada um d'elles que sa achasse 
vivo á hora da morte de seu pae, succedesse no reino, e não 
os netos. Aconteceu, pois, que os mais dos filhos d'este Xerife 
mais moço, usurpador de tudb, morreram a ferro, como foi 
Abelquadre e outros, e ficou Muley Audelá somente seu filho 
mais velho por seu herdeiro, o qual reinando dezesete annos 
com grande prosperidade, sem embargo de ter irmãos vivos, 
filhos do dicto Xerife seu pae, que por razão do contracto de- 
vessem herdar, todavia jurou por successor a seu filho Muley 
Mahomed, o Xerife, que foi com el--rei D. Sebastião. O qual 
tanto que se viu jurado começou a maquinar contra seus tios, 
que já em vida de Muley Audelá, seu irmão, se haviam acolhi- 
do, e mandou matar um em Tremecem, e outro escapou nos 
desertos de Lybia, e Muley Audelmelic, vendo isto se passou 
ao Grão-Turco, o qual vulgarmente se chama Muley Moluco, 
porque sendo pequeno era tão affeiçoado aos christãos, que 
seu pae lhe mandou fazer uma bragua d'ouro cheia de muitas 
pedras ricas, e lh'a pôz um dia chamando-lhe Moluco (como 
quem diz servo), d'ond6 lhe ficou o sobrenome também as- 
sentado, que muitos lhe não sabem o nome verdadeiro. An^ 
dou, pois, Muley Moluco em Constantinopla muito tempo, sem 

I 



d' AFRICA 1 5 



poder alcançar soccorro do Grão-Turco contra seu sobrinho 
(como também d-el-rei de Hespanha não havia podido alcan- 
çar, fazendo primeiro os mesmos oíDcios). Porém, depois de 
escapar na batalha do senhor D. João de Áustria, em com- 
panhia de Uchali, o tarco lhe deu cinco mil janizaros debaixo 
de algumas condições, todas em notável, damno da christanda- 
de, principalmente de Hespanha, por razão de poder ter galés 
em Larache. E assim entrou nos reinos de seu sobrinho, o Xerife, 
que foi com el-rei D. Sebastião. E em três batalhas, com prós- 
peros successos, se fez absoluto senhor de toda a Barbaria; e o 
Xerife se veio ao Pinhão de Belles, fortaleza da coroa .de 
Hespanha, no mar Mediterrâneo, d'onde pediu soccorro a el-rei 
Philippe, e não achando guarida passou a Ceuta, da qual fa- 
zendo os mesmos officios com el-rei D. Sebastião, e promet- 
tendo-lhe a fortaleza de Larache com algumas cousas mais, 
lhe começou el-rei a dar ouvidos, fundado mais no bem da 
christandade e na dorida em preza que se lhe olTerecia, que 
nas vaidades que diz frei António de S. Romão, seguindo 
Jeronymo Franqui. 

Andando, pois, el-rei cheio doestes pensamentos, como a 
natural inclinação e amor da guerra o despeitassem grande- 
mente, começou a dar conta a alguns fidalgos em particular, 
mais para pôr em effcito seus desejos que para tomar os ver- 
dadeiros conselhos; porém, viu que todos, com animo sin- 
gelo, fugindo fielmente à infame lisonja, não deixaram de lhe 
apontar o que conviííha. Começou, cedendo a tantos pare- 
ceres, a querer salvar os principaes inconvementes, que eram 
deixar este reino sem filhos herdeiros, e passar em Africa sem 
parecer e ajuda d'el-rei Phihppe, seu tio segundo. Pela qual 
razão lhe mandou por embaixador Pêro Dalcaçova, para que 
tractasse doestas cousas, mui confiado no devido eíTeitod^ellas;* 
pois no que tocava á empreza de Larache, con\dnha tanto 
mais a sua magestade a segurança de galés de turcos n'a- 
quelle porto, quanto tem mais visinhos seus estados que Por- 



« 



16 A JORNADA 



tugal; e no seu casamento, razão havia de mui bom despa- 
cho a tão justa petição. Procurou el-rei vér-se com sua ma- 
gestade, para de mais perto lhe significar seus desejos. . De 
todas estas cousas se não viu por então mais effeito, que 
trazer Pêro Dalcapova a resolução que se tomou da vista 
dos reis em Guadalupe, e assim parece que senão deferiria a 
mais, pois de tão perto se esperava tractar doestas matérias 
com mais auctoridade e fundamento. Partiu-se logo el-rei 
D. Sebastião para Guadalupe, e em toda a parte, no reino de 
Castella, foi recebido com palio, e como rei natural em todas 
as jnais cousas. Tractaram-se os reis nas vistas eguabnente de 
magestade, fallando primeiro el-rei Philippe como lhe con- 
vinha; houve entre ambos verdadeiras mostras de grande 
amor; e no que toca á empreza da jornada de Africa, ja- 
mais sua magestade pôde acabar com el-rei outra cousa, que 
fundado no puro zelo que o compungia, sem querer escutar ou- 
tra razão alguma, razão só lhe parecia seu conselho. Vendo, 
pois, el-rei Philippe, nosso senhor que está em gloria, a total 
determinação d'el-rei D. Sebastião, inda que não quizesse 
admittir seus verdadeiros conselhos, determinou de o ajudar, 
pelo grande amor que lhe tinha, sendo o negocio com par- 
ticular adiantamento de Larache somente, e por conselho do 
duque de Alba, havendo que assim convinha; porém, depois 
não veio a eíleito nenhuma cousa d'estaSj ou por razão de 
esperar que baixasse o turco, segundo o que então se pu- 
blicava, ou por cuidar sua magestade- que faltando a el-rei. 
tamanho soccorro cedesse por necessidade ao que por razão 
não queria. E no que se tractou acerca de seu casamento 
dizem que o diííeriu até serem de edade as senhoras infantas 
D. Isabel Clara, e D. Catharina. Doesta maneira se tornou el- 
rei D. Sebastião a Portugal; d'onde se começou a fazer pres- 
tes, não obstante os novos oíTerecunentos que sua magestade . 
lhe fazia por ordem de D. João da 'Silva, seu embaixador em 
Portugal, com certos contractos sobre a especiaria, que tam- 



d' AFRICA 1 7 



bem não vieram a effeito ; nem a causa se sabe, posto que n'este 
tempo veio da Barbaria o capitão Francisco de Aldana, a quem 
sua magestade havia mandado espiar a terra para melhor se in- 
teirar do que cumpria a el-rei D. Sebastião ; e dizem que com 
sua informação cessou o negocio, havendo sua magestade que 
não era bem dar calor a cousa tão desencaminhada, e assim o 
mandou a el-rei, para que d'elle se informasse, sendo por certo 
que com sua informação, ou moderasse o conselho, ou to- 
tahnente desistisse da empreza. Porém o capitão Aldana em 
nenhuma d'estas cousas» fez eífeito, antes lhe tomou el-rei 
a palavra para o acompanhar n'esta jornada. 

N'este tempo vendo sua magestade todavia como el-rei D. 
Sebastião não desistia por nenhum modo de sua determmação, 
tornou a fazer novos oíficios sobre esta matéria, escrevendo 
particularmente a el-rei, e dando-lhe com muito amor verda- 
deiros conselhos, mandando juntamente ao duque d' Alba, 
que fizesse o mesmo por via' de Luiz da Silva, embaixador 
em Gastella. E no que diz frei António, seguindo Franqui, que 
muitos diziam que sua magestade fingira todas . estas cousas 
artificiosamente, porque de uma maneira ou de outra se melho- 
rava no partido; pois tomando el-rei D. Sebastião a fortaleza de 
Larache segurava os reinos de Hespanha, e morrendo na deman- 
da ficava seu herdeiro. Certo que me parece que se levanta gran- 
de testemunho ^ vivos, e mortos ; porque nunca tal se disse, nem 
cuido podia chegar a tanto a maUcia humana, que tal se sus- 
peitasse de tal rei. 

iPassados alguns dias, e deliberado el-rei totalmente na 
jornada, não admittindo conselho por soccorro, mandou á Itália 
fazer alguma gente no Ducado de Florença, e não havendo 
a missão logo eífeito, por alguns inconvenientes que se ofTe- 
receram, de cujo successo ha opiniões muito varias, mandou el- 
rei a Allemanha, a baixa, a Sebastião da Costa fazer três mil 
homens, e nomeou por coronéis da gente que se havia de 
levantar em Portugal Diogo Lopes de Sequeira, Francisco de 

3 



18 .A JORNADA 



Távora, Vasco da SDveira, D. Miguel de Noronha, e por ca^ 
pitão dos aventureiros, Cluristovão de Távora (grande seu pri- 
vado era) e por capitão mór da armada D. Diogo de Sousa^ 
tendo primeiro nomeado a D. Luiz de Athaide, que depois pelo 
que convinha ao estado da índia foi por \iso-rei. Foi também 
nomeado por mestre de campo o general D. Duarte de Menezes, 
e ordenou el-rei que o acompanhassem seiscentos italianos, 
que acaso tomaram o porto d'esta cidade de Lisboa, indo 
por mandado de sua santidade a soccorref os christãos catholi- 
CQS da ilha de Irlanda, em companhia do marquez Thomaz 
Stcrnoile. 



CAPITULO II 




DAS RAZÕES QUE TEVE EL-REI D. SEBASTIÃO PAHA 
PASSAR A BARBARIA 



BoR tres causas, como todo o mundo sabe, se rao- 
f\eii pl-rei a passar em Africa, A primeira por ser 
] ontra infleis tào visinhos, e tão inimigos. A se- 
S^uniia por soccorrer a mu rei perseguido, posto 
que Infiel, que com tanta liumildade lhe pediu remédio. A 
terceira por estorvar a visinhaoça dos turcos que com Muley 
Moluco -vieram (além dos que se podiam esperar pela nova 
consideração do Grão-Turco) fazendo-se senhor do porto de 
Larache, e à'algumas cousas que todas resultavam era pro- 
veito da christandade, principalmente dos reinos de Castella, 
sem outro fundamento algum, segundo o que escreveu a 
el-rei Philippe, seu tio, e a sua santidade muitas vezes. 

E quanto ao que diz Franqui, que o Xerife o incitava, 
ou persuadia a se fazer imperador de Marrocos, parece certo 
cousa ridícula cuidar-se que havia de dar aquíllo para cuja 
restauração vinha só pedir soccorro; aem por outra parte se 
pôde cuidar de um rei tão valeroso,'e tão catholico, que de- 
baixo de o metter de posse de seus^reinos se fizesse senhor 
d'elles, corao também aíHrma frei'Antonio, quando diz que o 
Xerife se temia d'isso, e el-rei determinava de llie fazer ver- 
dadeiras suas suspeitas., G no que diz que ei-rei mandou logo 
para esse etTeito fazer a corda cerrada a modo de imperador, 



20* A JORNADA 



também se engana, que já d^antes usava d*ella, nas arma- 
ções ordinárias do mesmo senhor, a qual devia mandar cer- 
rar ou porque o Papa Pio v lh'a mandou com um estoque 
sagrado, e o titulo de magestade, ou pela mesma razão 

dos reis seus visinhos ; pois era neto de Carlos v, e descen- 
dente dos mais imperadores : por essa razão como também 

os reis de França a trazem por Carlos Magno, e os de 
Inglaterra por Constantino Magno ; quanto mais que se tem, 
que os reis independentes todos podem trazer coroa cerrada 
sem a cruz em cima, que faz a differença da dos impera- 
dores. Mas tornando a nosso propósito, el-rei se moveu a 
passar em Barbaria pelos respeitos acima ditos. E posto que 
para esta jornada fossem necessários alguns pedidos, como 
foram aos homens de nação e a outros, nunca o negocio foi 
de maneira, que se não podesse tolerar; porque o Papa lhe 
concedeu a terça das igrejas em que el-rei se moderou, e a 
cruzada juntamente, e os homens da nação se concertaram so- 
bre o Fisco, como agora fizeram com el-rei Philippe, nosso se- 
nhor mui licitamente, sem os espantos que disto faz frei An- 
toniOy significando que foi contra uso, lei, e costume. E no 
mais houve tanta moderação, que soífreu el-rei ao conde de 
Tentúgal, uma descarga mais de reprehensão que de desculpa, 
pedindo-lhe o mesmo senhor dinheiro emprestado por carta 
particular, e não foi lançado pedido aos nobres, e senhores 
de titulo de obrigação como diz frei António; senão de rogo 
por cartas particulares admittindo mui facilmente qualquer 
escusa. 

. E na verdade se bem se notar o que havia mister tamanha 
empreza pôde ser que ache que nunca rei algum fez seme- 
lhante negocio com tão pouca oppressão de seus vassallos. E 
no que diz Jeronymo Franqui acerca de Deus castigar este 
rmo, e este rei pelas muitas delicias e soberba em que os 
portuguezes então viviam, certo que me parece que com bem 
de arrogância, ou por melhor dizer blasphemia quiz elle jul- 



21 



gar doa juízos divinos, como se foram cousas de que o ho- 
mem poderá dar testemunho (qual o soberbo Eliaas Thema- 
nites nas misérias do Job) e mais quando n'este tempo vi- 
■viam as gentes em Portuga! com tanta moderação assim nos 
gastos, como nos costumes qiie as senhoras mui principaes, 
e a mesma rainha andavam em andilhas, e os senhores e 
príncipes não usavam coclies com que hoje não podemos pas- 
sar as ruas, nem havia telas, nem brocados, uem ODlraa in- 
venções para as mullieres, que tudo alagaram depois como di- 
hivio na geral perdipão. Pois no quetocaael-rei D. Sebastião, 
que n'este tempo estava na força de sua adolescência, bem 
claro esta como todo o mundo sabe, que era um prjncipe 
em que nunca se conheceu, nem quasi suspeitou vido al- 
gum, tanto que por sua pureza, não lhe podendo dizer ou- 
tra cousa, se Uie argiJia, ser algmn tanto aiTeif oado à mon- 
taria; cujo exercício, aJém de ser mui proveitoso a qualquer 
príncipe, para se exercitar nas cousas da guerra (como de 
« confçssa el-rei de Hespanha D. AtTonso si, um dos mais 
■valerosos príncipes da Europa) nuna lho tirou as horas de 
despacho e de governo. Pois vi^de que taes costumes podiam 
ser os das gentes, que lai rei tinham, sendo juntamente úe 
tanta \irtude e zelo, os que então punham em ordem as cou- 
sas do governo, e na doutrina da sancta Madre igreja, a co- 
Bhedda pureza dos religiosos da companhia de Jesus: que 
só pretendiam esercital-o em bons costumes, e devida con- 
tinenda, não no estrondo das armas para ser mais famoso, 
como diz frei António, seguindo Praoqui. 

Fizeram guerra os filhos de Israel aos de Bemjamín, 
justa, e saneia por Deus ordenada, e foram porém vencidos. 
Pelejou o saneio rei Josias contra Necho, rei do Egypto, e 
foi no campo de Magedo desbaratado e morto, posto que 
contra um gentio lizesse a guerra. Foi vencedor Pompéo 
desde sua mocidade em todas quantas guerras fez como ly- 
ranno ; o sem razão vencido em uma que sustentou com justa 



22 A JORNADA 



causa; d'onde Catam confessa (posto que gentio) o grande 
segredo da Providencia Divina. Sancto era el-rei Luiz de 
França, sancta sua tenção, e mui catholica a geijte que le- 
vava contra os inimigos da lei de Christo, e foi desbara- 
tado, preso, e captivo. Que mais justa jornada houve no 
mundo, que a do imperador Conrrado com os mais prínci- 
pes na conquista da Terra Sancta, por conselho e persuasão 
do glorioso S. Bernardo (quasi divino mandamento) e foi 
.com tanto numero de christãos desbaratado e perdido. E 
pondo alguns a culpa a este sancto da jornada, deu elle vista 
a um cego, em justiflcação de como o que pregara foi man- 
dado por Deus. Pois agora eim nossos tempos que guerra 
pôde haver maí3 justa que a que fez contra os hereges Ta- 
boristas de Boémia, e vemos quanta gente catholica se per- 
deu em tantas jornadas, sem bastarem valorosos imperado- 
res, commissarios do sancto Papa, nem sancta Cruzada. Por 
ultimo exemplo, que empreza podia haver mais necessária 
a tantos damnos, como a christandade cada hora recebe, que 
a de Argel, onàe o valoroso e catholico imperador Carlos v 
perdeu tanta gente, depois de ter qua,si tomada esta faminta 
perpétua da liberdade christã. E agora ha tão poucos annos 
tantas armadas, como se assolaram d'estes reinos em tão 
justa guerra contra os Lutheranos. 

Grande cegueira, certo fura se o successo das cousas se 
houvera de attribuir ao merecimento das pessoas, pois pelo 
mesmo caso ficara o Grão-Turco que tanto manda, toma, e 
desbarata a respeita dos reis christãos, mais amado e favore- 
. eido de Deus, antes o^contrario vemos que os mais queridos 
são mais castigados, como a cada passo acontecia aos mimo- 
sos filhos de Israel. Bem fácil cousa é de entender quem con- 
siderar os termos doesta perdição, como adiante se verá, que 
foi particular determinação divina, pois de quantas cousas 
para esta jornada foram feitas, bastava desordenar-se uma 
somente para ella não ter efleito; mas tudo caiu tanto a ponto. 



d'africa 23 



que parece que Deus com sua própria mão conduzia os por- 
tuguezes aos limitados termos de seu castigo, ou escondidos 
fins de seu alto juizo, que ninguém pôde alcançar. 

Deus em fim é Senhor que tudo, pôde tirar ou conceder, 
pois antes de ser nosso jâ*era primeiro seu; pelo que o mudar 
os impérios, e acabar os reinos é uma certa vontade de sua 
infinita sabedoria; do que muitas vezes nos parece castigo, 
o que por ventura nos resulta em proveito. E é tão antiga 
a opinião de que a vontade divina dispõem d'estas cousas, 
como ella somente sabe ; tão fora de nosso fraco entendimento, 
que estando Pompéo muito desconsolado na ilha de Lesbos 
depois de vencido de César, lhe disse o philosopho bárbaro, 
que não tinha razão de estar d^aquella maneira, pois era sem 
duvida ir contra a vontade dos deuses, os quaes de tempos 
em tempos mudavam fatalmente as cousas ; e que também os 
impérios, e monarchias tinham seus annos criticos, em que des- 
falleciam com tudo o mais : às quaes palavras de modo cedeu 
Pompéo que ficou muito consolado, tendo por certo que era 
cousa ordenada pelo céo, e não defeito da sua pessoa, ou repu- 
blica. Pois se isto entendiam os gentios, com quanta mais razão 
nós que temos lume de fé devemos cuidar que a mudança 
de nosso estado é particular vontade d^aquelle Senhor que 
sempre o melhor deixa escondido? Não nego eu que culpas 
de tão largos tempos podiam merecer maiores castigos, mas 
não certo d'aquelle a quem Franqui as attribue todas, que- 
rendo adivinhar a tenção Divina, e dar certo juizo aos incom- 
prehensiveis juizos de Deus. 

Estando pois o negocio nos termos que atraz dissemos, 
em que as cousas da guerra se vinham ajuntando com toda 
a brevidade, a qual nunca se cuidou que viesse a effeito, ou 
por ella desfallecer por si mesma, ou por particular mercê 
de Deus, não sendo juntamente nunca doesse voto el-rei Philippe 
segundo, nosso senhor, que está em gloria, começaram os 
fidalgos, e senhores d'este reino a temer muito mais deveras 



Í\ A JORNADA 



O perigo de tão inconsiderada empreia, e pediram a Chris- 
tovào de Távora quisesse dissuadir a el-rei d'ella, havendo 
ijue só a elle como a tamanho privado ouviria. Ao que Chris- 
tovào de Tawra respondeu em sua justificação que nunca em * 
acto, nem em paIa\Ta lisoi^eara a el-rei n'este particular, nem 
lhe dera seu parecer, antes se mostrara sempre mui tímido, 
ftdlando-lhe o mesmo senhw algumaks veies n'estas cousas, 
por lhe faier merct^ que era o termo com que se lhe podia 
declarar sua tenção. Porém que tiral-o de tão arraigado pro- 
supposto, não lhe parecia carga só de seus hombros, nem podia 
ix)nvencer a el-rei com razoes, pois era mancebo sem expe- 
riência na guerra, antes elles o podiam fazer, pois foram ge- 
neraes, e cercaram, e foram cercados, além de smt auctmdade, 
e seus annos; e no que lhe tocasse de sua parte não perde- 
ria ponto, solicitando uma hcHa boa, em que sua alteza lhe fi- 
zesse iftercé de o ouvir. O que se pôde mui facilmente crer, por- 
que além de Christovão de Távora ser um fidalgo muito hon- 
rado, em quem nunca a (temasiada privança fez seu offido, 
ninguém interessava mais na vida, e quietação d>l-rei, e 
do reino. E tanto isto assim, que quando o mesmo senhí»' o 
mandou sobre estas matérias a Castella, antes da ida de Gua- 
dahipe, alcançou elle hcença para visitar o Cardeal D. Hen- 
rique, sob color de devida c(»rtezia, pois havia passar por 
junto de Évora d'onde elle já estava mal contente, e desa- 
brido; e lhe pediu qmzesse tomar á sua conta dissuadir a 
el-rei doesta jornada, aventurando-se á indignação em que pu- 
dera cahir se elle tal soubera. Mas como dizia vendo isto al- 
guns fidalgos, como fomn D. João Mascarenhas c^ja auctori- 
dade era grande nas armas, e Frandsco de Sá, conde que 
depois foi de Matbosinhos, a quem el-rei tinha muito respeito 
por haver sido aio do prindpe seu pae, Maram a el>rei de 
conformidade cada um em particular, e posso que lhe agra- 
deceu muito seu bom zelo, não somente ob não quiz ouvir^ 
mas ordenou que o não acompanhassem, deixando-os fot 



governadores em companhia de D. Jorge d' Almeida, arcebispo 
áe Lisboa. E Pêro Dalcaço\'a como pessoas de grande valor, 
zelo, e virtude e não raalquislos, como diz frei Amónio, 
seguindo Franqui. Estes officios fizeram outros muitos lidal- 
gos, e senhores aconselhando a el-rei pelo bem communi do 
reino, e com instancia D. Aironso de Gastelbranco, depois 
bispo de Coimbra, e viao-rei d'este reino, sem ambipão ou 
coMpa, como diz Franqiii. 

N'este tempo veio de captivo D. António da Cunha, um 
fidalgo muito honrado e bom cavalleiro, o qual havia pele- 
jado da parte do Xerife, contra Muley Moluco; e querendo 
_el-rei informar-ae d'elle de algumas cousas de Barbaria, como 
D. António lhe dissesse a forma em que os mouros pelejavam, 
e quanta gente havia de guerra fallando verdade puramente, 
como quem a dizia a seu rei e senhor em matéria de tanta impor- 
tância. E no fira de toda esta informapao quando elle cuidou 
que el-rei lh'o agradecesse muito, lhe disse, parece-me D. Anto- 
jBO que vos parecem os mouros muitos ; ao que elle respondeu: 
eu digo o que convém a vossa alteza, e quando me vir em 
seu servic» contra elles espero mostrar que fallei como 
verdatteiro, e não cobarde. 

No mesmo tempo os vereadores d'esta cidade de Lisboa, 
e os homens do governo d'ella failaram algumas vezes a el-rei, 
lembrando-lhe o que con\inha a este reino, e outras cousas, bas- 
tantes cada uma d'ellas ao dissuadirem de seu intento; mas o 
valeroso rei que por natural ferocidade, ou para melhor di- 
zer, permissão Divina, tinba assentado comsigo ser esta jor- 
nada justa, piedosa, e saneta, não dava ouvidos a cousa al- 
guma, julgando-se pelo que sú entendia, muito licitamente 
endurecido: sendo cousa que do principio de sua vida tanto 
tinha no desejo, e na lembrança que estando ura dia no mos- 
teiro de S, Koque (de bem pouca idade) depois de commim- 
gar recolhido em uma capella como costumava, foi \1sto 
(áanla de ura crucifixo de joelhos, onde com mídtas lagrimas, 



26 A JORNADA 



e grande instancia (de modo que acudiu seu mestre cuidando 
ser outra cousa) estava pedindo a Deus, que assim como a 
tantos príncipes ham concedido victorias, impçrios, monar- 
chias, lhe concedesse a elle somente ser seu capitão. E ou- 
tra vez estando á profissão de uma freira no mosteiro da 
Madre de Deus, que se chama D. Maria de Síenezes, como 
ella havia sido dama do Paço, lhe disse : senhor, hoje com ra- 
zão é o dia am que o Divino Esposo parece que deve conce- 
der mais facilmente o que sua esposa lhe pedir; por isso 
veja vossa alteza o que quer que de sua parte lhe peça. El-rei 
lhe respondeu que lh'o agradecia muito, e que lhe pedisse que 
o fizesse seu capitão; sendo de tão pouca idade que o tive- 
ram todos a maravilha. Pois vejam agora os principes guer- 
reiros os invendveis capitães do mundo, que não tiveram 
por ventura desde âeus verdes annos tão fundado propósito, 
e saneio zelo, nem com tão pouca ambição commetteram quiçá 
contra infiéis de semelhante empreza que segredos são estes 
da Divina Sabedoria, que quanto a nosso entendimento mal 
se pôde cuidar que faltasse Deus a tão sanctos desejos. 

Determinado em fim el-rei de conseguir seu intento, 
mandou chamar os fidalgos a conselho, os quaes depois que 
entraram na casa para isso deputada, esperando que el-rei 
propuzesse as razões que tinha para fazer esta jornada, com 
determinação de lhe mudarem a vontade, ou ao menos aca- 
barem com elle que não fosse em pessoa, el-rei chegou á 
porta . somente, e em logar de lhes propor sua tenção, lhe 
fez uma larga practica, na qual lhes não pedia conselho, di- 
zendo que só lhes dava conta para lhes declarar seu mtento ; 
e no fim d'isto sem guardar resposta se foi a outra casa dei- 
xando a todos com as palavras na buca, e com assas magoa 
em seus corações. Doesta maneira aconteceu, e nunca el-rei 
pôz em conselho de estado sua determinação, como Franqui 
culpando a muitos senhores doeste reino, .que por suas per- 
tenções, ou ignorância calavam a seu rei a verdade, acon- 



d' AFRICA. 27 

selhando o contrario d'ella, sendo isto tão differente, que 
perguntando el-rei ao outro dia a D. Manoel de Menezes, bispo 
de Coimbra, que no conselho se achou, que lhe parecera a 
practica, elle respondeu que bem parecia de sua alteza, posto 
que algum tanto dilatada nos argumentos, dando-lhe a entender, 
que era mais estudada para persuadir como pretendente, que di- 
latada para admittir conselho como senhor. Doesta maneira 
lhe fallavam todos, os que não queriam ouvir; semelhantes res- 
postas ás de D. António da Cunha, ' ou succeder-lhe o que 
aconteceu a um fidalgo bem honrado e valoroso d'este reino, 
que na índia acabou algumas emprezas das mais notáveis 
que lá houve, o qual como reprehendesse e aconselhasse a 
el-rei a primeira vez que passou em Africa, não lhe sejido 
agradável foi d'elle t^o mal recebido, que mandou publica- 
mente (gualardão injusto!) consultar a médicos philosophos 
se podia um homem ter menos valor, e juizo com idade que- 
rendo attribuh' a desatino seu honrado conselho, e fiel zelo. 
Porém a tudo isto se aventuraram todos, se cora sua injuria 
ou damno se atalhara totalmente a mal fundada opinião. 
Gomo fizeram por suas cartas D. Duarte do Castelbranco de- 
pois conde do Sabugal, que n'este tempo estava por seu em- 
baixador em Castella, e o conde de Tentúgal depois marquez 
de Ferreira, e pessoalmente D. Álvaro da Silva, conde de Por- 
talegre, mordomo-mór, senhor de muita auctoridade e virtude, 
mas nada aproveitou. 

Estiveram estes fidalgos alguns dias entre esperança e 
temor, porque por uma parte cuidavam que sua magestade com 
sua auctoridade, e com parecer também do duque de Alba, 
tirariam a el-rei doeste pensamento, e por outra parte, toda- 
via iam vendo o contrario, até que em fim se começaram a fazer 
prestes, com os mais do reino, offerecendo-se antes a todo o 
rigor da fortuna, que a qualquer descrédito de sua obediên- 
cia, e lealdade, comprando armas e cavallos, e outras cousas 
necessárias á guerra, com muita despeza de sua fazenda. 



28 .A JORNADA 



para o que tomaram náos, caravelas, e outras embarcações 
necessárias, e capazes. E quanto ás galés escusadas que Pran- 
qui diz quando as cousas que convinham principalmente não 
faltavam, que muito era irem alguns mancebos lustrosamente 
ataviados, antes o aparto na guerra anima os soldados, e 
dá temor aos inimigos. N'esta jornada acompanhou a el-rei 
o Prior D. António, filho do Infante D. Luiz, posto que algum 
tanto desabrido . por certas paixões que teve com Christovão 
de Távora. O duque tíe Braganpa D. João não pôde acom- 
panhar a el-rei por estar n'este tempo muito enfermo, porém 
ordenou que o acompanhasse seu filho D. Theodosio, duque de 
Barcellos com muitos criados, vassallos, e fidalgos da mesma 
sorte. O duque de Aveiro acompanhou a el-rei, com muitos 
vassallos, criados e fidalgos e no que diz frei António, seguindo 
Franqui, que os senhores de Portugal iam providos como a 
pessoa d'el-rei, é verdade, porque sempre em seu serviço, como 
leaes vassallos, gastavam liberahnente sua fazenda sem rece- 
berem soldo, nem vantagem, como se costuma n^outros rei- 
nos ; porém no que diz que carregaram de seda, e bakellas, 
e ouro, como quem ia para bodas, parece certo que foi mais 
imaginação da mercantil miséria genoveza, que outra cousa, 
porque ninguém levou mais que o . que convinha além das 
armas, e outras cousas convenientes a guerra. 

N'este tempo o cardeal D. Henrique, vendo que el-rei 
não queria tomar seus verdadeiros conselhos, acerca da mal 
sustentada opinião, se foi para Évora bem desabridor, e mal 
contente, largando o cargo de Inquisidor mór, que el-rei deu 
a D. Manoel de Menezes, bispo de Coimbra. 



*"^<=^^0:^3IC^>'^>o^-» 



CAPITULO III 




COMO PARTIU A ARMADA, E DE ALGUHAS COIFAS 
QUE PASSARAM EM ARZILA 



^>EPoi3 que toda a gente de guerra M junta, ciyo 
giiunujco não chegava a dezesete mil homens con- 
5ven), a saber, nove mil portugaezes, que podia 
Jhaver nos terços que os coronéis levantaram, três 
mO tudescos, dos quaes era capitão Martin de Borgoulia moQ- 
síeur de Tanberg, dous mil castelhanos que governava D. Alonso 
d'Aguilar (posto que então não estivessem todos em Lisboa) 
seiscentos italianos a quem regia o marquez Tomaz Sternoile, 
mil e quinhentos ventureiros portuguezes, homens nobres, 
além dos mais Sdalgos illustres, e senhores que foram oa 
jornada, se partiu el-rei D. Sebastião da cidade de Lisboa, 
em vinte e quatro de junho de setenta e oito, com grande 
contentamento e alegria de todos, porque aqueUes a quem 
se deixavam comraunicar os perigos, que podiam succeder, 
se confortavam, nas esperanças de alguma boa occasião, e 
03 outros nas aparências do bem que promettia tão formoso 
juntamente, festejavam os alegres príndpíos, sem haver al- 
guém em toda a armada que mostrasse tristeza, ou melancolia 
com trlites agouros, como traslada frei António de Jerocpao 
Franqui, afBrmando que todos os portuguezes iam já entre- 
gues ã morte, que não lhes dava menos d'antemão os medos, 
e temores, e filzendo grandes mysterios para prognostíao' seus 



30 A JORNADA 

fi 



males, de dar o esporão da galé real em uma náo .flamenga, 
sendo pelo contrario maravilha nâo acontecer algum desas- 
tre no porto d'onde sabiam juntas mil embarcações, mas antes 
era tanta a festa, e barmonia das cbaramélas, pifanos, e tam- 
bores, e outros instrumentos belHcos,. que parece certo (como 
foi verdade) que alli o contentamento se despedia dè todos. 
O primeiro porto que el-rei tomou foi o de Lagos no Algarve 
com toda esta armada, aqui se detejj^ quatro dias, nos quaes 
se embarcou alguma gente do terpo de Francisco de -Távora, 
que n'aquellas partes foi levantada, e partido d'alli em breve 
tempo, cbegou a Galis, para esperar alguma gente que se 
vinba juntando, castelhanos principalmente, onde esteve oito 
dias, 6 Ibe fe^ muitas festas o duque de xMedina Sidónia, para 
o que menos tempo bastava, e também para o mais. 

N'esta conjuncção procurou Muley Moluco por suas intel- 
ligencias, dissuadir a el-rei D. Sebastião da empreza, como 
havia feito d'antes, por via de André Gaspar Corço, lembran- 
do-lhe sua justiça, a inconstância de Muley Mahomed, os da- 
mnos que d'elle havia recebido, e juntamente promettendo- 
Ihe algumas cousas, ao que el-rei por nenhum caso respon- 
deu nunca, e d'isto se queixava grandemente Muley Moluco, 
como depois se* soube em Fez de Reduão, seu grande pri- 
vado. 

Nem era possivel, nem justo que el-rei lhe respondesse, 
porque por uma parte no que tocava á justiça de Muley Moluco, 
nenhuma tinha, quando os Xerifes fizeram o concerto, que 
os filhos herdassem, e não os netos, nem quando foram catholi- 
cos podia militar isto, por ser em prejuizo do neto successor, pois 
concertar-se com elle menos era cousa licita, pois tomou de- 
baixo de sua protecção o Xerife, com as condições entre ambos 
ordenadas, e quando as não houvera, bastara somente sua 
segurança para não fazer outra cousa, e sem embargo doesta 
verdade que todo o mundo viu, além de que por clara conse- 
quência se deixa isto entender, muito facilmente ousa Jeronymo 



d'africa 3 1 



Franqui dizer de um rei tão verdadeiro e justo, que deu por 
resposta a estas cousas, ou mandou dar a Muley Molueo, que 
elle havia feito muito gasto, e conduzido muitos estrangeiros, 
pelo que nâo podia faltar á empreza, se lhe não desse Tutuão, 
Larache, e o cabo de Gué, e que Muley Molueo vendo isto lhe 
respondeu, que era aquiUo partido para se pôr em practica, 
quando el-rei o tivera cercado em Marrocos, e lhe entregara 
seu inimigo Muley MalMjmed. 

Por certo que parece esta uma cousa, não somente indi- 
gna de algum credito, mas digna de uma grande reprehensão, 
pois- bem claro está, que se el-rei D. Sebastião mandara dizer 
isto a Muley Molueo, que concedendo-lhe os legares sobreditos 
queria desistir da empreza, faltando com a- fé ao Xerife, e pondo 
em preço a quem lhe mais desse sua verdade, nem foi certo 
comrf este auctor, e frei António que o traslada affirmam isto, 
pois ambos confessam, que el-rei Philippe, nosso senhor, que 
está em gloria, não pôde nunca acabar com el-rei acordo algum 
com Muley MoIuqo. 

Depois que el-rei. D. Sebastião, como atraz dizia, se de- 
teve em Calis oito dias, chegou com toda a armada defronte 
de Tanger, onde desembarcou com quatro galés somente, para 
dar ordem a algumas cousas necessárias, mandando a D. 
Diogo de Sousa, que o esperasse em Arzila com a mais frota, 
aqui se deteve pouco, e ordenou Muleixeque filho do Xerife, 
fosse correndo a costa até Masagão, para dar calor aos que 
quizessem tomar seu bando com Marthn Corrêa da Silva, por 
capitão dos portuguezes que o acompanhavam, e depois veio 
a Arzila nas galés, e o Xerife por terra com alguns mouros 
de pé e de cavallo. Logo el-rei mandou desembarcar a gente 
em terra, e foi alojado o campo junto dos muros da villa, e 
alguma parte dentro n^eUa. 

Pareceu-me razão tractar aqui primeiro um pouco do sitio, 
.e desposipão do logar de Larache, onde el-rei levava posto 
à mira, antes que tractemos da eleição que se fez do caminho, 



32 A lOItXADA 



ftn epse mm babaeiúe se eolendan » iBlinilíbíles, e iat- 
eoDTeníeiítes, que se ofieieoefaia. 

Larache é mn porto de mar, que tem uma peqiimia po- 
voação, está sítiiado em trinta e qoalro grãos d'aliiiia da Dosaa 
parte do norte, na costa da Barbaria, quinze legoas do estrato 
dt Gil»'altar, ponoo niais on menos, oneado a sudoeste no mv 
Oeeaoo, e quatro abaixo de Arzila, as qnaes são de desolo ba- 
totadas de animaes mui feros. É o porto capaz de moitas galés, 
e de navios de alto bordo até duzentas toneladas, pcH* ser fundo 
o rio, posto que não muito largo. A soa barra não é muito 
ládl de entrar: tem uma fortaleza pouca forte na entrada d'dla; 
sobre um banco d'areia da outra parte do rio, a respeito de qomn 
vae de Arzila, abaixo logo t^n uma enseada pequena, a qoe 
cbamam Castíl de Genovezes. 

Este é o mais prindpai porto de toda a Baibaria, por 
. respeito de estar tão perto de Etespanba, e ser o melbor de 
todo o mar Oceano, e de maior concurso de mercancias de 
. todas as partes, príndpalmente dos inimigos da Igreja Catho- 
liça, que levam por aqui muitas armas aos mouros, e outras 
s^nelhantes cousas, em grande perda e d^unno da diristandade. 
O seu rio se chama Lucus; e Ptolomeu o nomea Uso, nasce 
na provinda de Elebat segundo Âbraham Ortelio, quarenta 
legoas pouco mais ou menos de sua foz; passa por muitos 
logares, principalmente por Alcácer Quibir; que de Larache 
estará três legoas, e de Arzila sete. Tem um campo que se 
chama Uderaca, que quer dizer a adargua, o qual vulgar- 
mente se diz campo de Alcácer, por começar, junto a esta 
yilla, onde foi a batalha, como adiante se verá, é grande, e 
muito chão, pelo qual se vem mettendo uma pequena ribeira 
da parte do norte no rio Lucus, cujo nome é Vet Macasin. 
O que basta por ora para nosso intento, e se houver alguém, 
que mais particularmente o queira saber, leia a discrippão 
de Africa. . 

Tanto que el-rei desembarcou em Arzila como atraz.dis- 



d'africa . 33 



semos^ chamou os fidalgos a conselho, e propondo-se n'elle 
qual caminho seria melhor a Larache, uns diziam, que o 
mais seguro e breve era ir por mar na armada, e desem- 
barcar em terra, porque se não esperava muita resistência 
da parte dos mouros. Outros que marchasse o campo por 
terra ao longo do mar aquelías quatro legoas, que ha de 
Arzila a Larache, levando as carretas e carros por trinchei- 
ras da parte da terra, e a armada á vista pelo mar,, e tanto 
que o exercito chegasse poderia passar a gente nos bateis das 
náos á outra banda do rio, d'onde a fortaleza está situada. Ou- 
tros diziam que marchasse el-rei por terra até poder passar o rio 
Lucus com todo o exercito facilmente no campo de Alcácer, onde 
o váo dá logar a isso, tomando a mesma villa de caminho, na 
qual podia deixar o Xerife, e bater depois a fortaleza de Lara- 
che com as costas mais seguras. 

Os inconvenientes que se allegayam eram primeira- 
mente contra o parecer de ir el-rei desembarcar em terra, 
estar a fortaleza de Larache situada sobre o banco d'areia 
à entrada da barra, de maneira, que nem uma ave podia 
entrar por ella, sem risco nyiito grande dos baixos, e da 
artilheria, e que desembarcar no rolo do mar na costa brava, 
quando o tempo o consentisse, tamj)em era notável perigo 
pela facilidade com que os mouros com trincheiras na praia 
se podiam defender da gente que havia de sahir com tanto 
. trabalho com a agua pelos peitos, a risco de poder vir uma 
tormenta, e ser forçado levantar-se a armada, e deixar metade 
da gente em terra. E quando desembarcasse toda, como na costa 
brava se podia tirar artilheria, e mantimentos, porque posto que 
abaixo de Larache um pouco, havia uma pequena enseada, 
onde está uma casa a modo de forte, que se chama Castil 
de Genovezes, era cousa muito pequena, além de estar (como 
era notório) também trincheirada e fortalecida com a gente 
que Muley Amet, irmão de Muley Moluco alli tinha, que fi- 
cava o sitio inexpugnável. 

5 



34 A JORNADA 



No 8egiindo parecer de marchar o exercito por terra ao 
longo do mar, também diziam de que modo se havia de passar 
o rio, pois forçadamente os bateis da armada, barcas, ou galés, 
que para isso eram necessárias, haviam de entrar pela bar- 
ra dentro, onde como está dicto, a fortaleza com toda a arti- 
Iheria, e mosquetes juntamente, havia de defender a entraifai 
de maneira, que mettendo tudo no fundo, ninguém ousasse 
acommettel-a, e nenhum outro remédio havia, além de serem 
as quatro lagoas de Arzila a Larache de mui ásperas mon- 
tanhas. 

No terceiro parecer de marchar o campo por terra, diziam 
que corriam muito risco por falta dos mantimentos, e dos assal- 
tos que os mouros podiam dar de noite e de dia; além de 
tudo isto que se oíferecia el-rei a dar uma batalha, em que não 
somente aventurava a honra e reputação d*este reino, toda a 
nobreza, valor, e substancia d^elle, mas sua vida e pessoa, em 
que consistia a perpétua consolação e remédio de todos. 

D*ésta maneira se tractou o negocio, e posto que houve 
muitos fidalgos de contrario parecer no caminho que se seguiu, 
todavia permaneceu a opinião d'el-rei, como tão própria a 
seus desejos, e mandou que o campo marchasse por terra, 
a buscar o vão do rio Lucus de Larache, para vir sitiar a 
fortaleza que da outra banda estava. O que realmente, bem 
considerados os inconvenientes que nos outros pareceres havia, 
não era mal acertado conselho, se a brevidade e diligencia 
seguira' a resolução, pois não havia n'este tempo em todo o 
campo quem podesse resistir, nem tão somente ousasse olhar 
para o d'el-rei, por ser muito pouca a gente que Muley Amet, 
irmão de Muley Moluco, pôde ajuntar, depois de fortalecer 
Larache, como capitão que era d'aquellas partes. Tanto que 
veio de Alcácer um judeu, que se diamava Gibre, pedir a 
el-rei salvo conducto para os seus, que na viUa estavam como 
cousa desamparada, em que não havia nenhum modo de resis- 
tência, como confessa frei António, e n'este tempo estava 



35 



íUnda Molcy Moluco em Marrocos, que são d'ahi mais de cem 
legoas, e poderá muito facilmeate el-rei partiudo logo tomaf 
Alcácer, e deixar n'elle o Xerife com os seus mouros, e algu- 
ma gente de guarnição, e descer a Larache ao longo rio, que 
eatà d'ahi ires legoas, e fazeudo-se senhor da enseada de 
Castíl de Cenovezes, desembarcar muito facilmente os man- 
timentos, e munipões necessárias, sitiando a fortaleza, que 
muito brevemente podéra tomar, trincheiraodo-se da banda 
da terra, mas a tardanpa de Calis, e de Tanger, e ultimamente 
dezoito dias que ol-rei esteve em Arzila, sem haver para que, 
toi totalmente a causa da perdição d'el-rei, e de seu carapo. 
Porque ii'este tempo teve logar Muley Moluco, para chegar 
a Alcácer, com as gentes que tinha convocadas de Sus, Tm- 
(knte, Tedula, Fez, e Miquines. O que certo, se el-rei fora ex- 
perinientado como valoroso, poderá muito bem prevenir, lem- 
brando-lhe a presteza de César, e dos mais que no mundo 

[ alcapparam si'i eora ella tantas victorias. 

D'este mudo aconteceu como havemos dicto, e não houve 

f algum fidalgo que aconselhasse a el-rei, senão aquíllo que 
lhe convinha, porque se alguns foram de voto que se mar- 
chasse por terra, não era com pequeno fundamento, havendo 
a diligencia necessária, que era bera que houvesse, como 
todos cuidaram e a.ssim daram seu parecer sam malicia alguma, 
como realmente parece. Nem .sei, como diz Franqui, e frei 
António que o segue, que D. Aironso de Portugal, conde de 
Vimioso, como sagaz e astuto, por se 'singar de Pêro Dalca- 
fova, aconselhara a el-rei que fosse por terra, porque ftiflan- 
do no campo os mantimentos, lhe puzease el-rei a culpa. 
Por certo que cousas são estas que se não podem crer, não 
idigo eu de semelhante senhor tão honrado, e tão valeroso, 
mas de nenhum homem que fosse christão, nem d'outro, ain- 
da que o não fosse, pois bem claro está que os perigosos e 
temerários conselhos que Franqui diz, também ell3 os ficava 
tomando para si, pois foi no mesmo campo, e morreu na ba- 



36 A JORNADA 



talha, levando comsigo três filhos. Mas tornando á nossa 
relação, depois do campo alojado, como está dicto, que muito 
devagar desembarcou em terra, não sem grande murmuração 
de alguns ministros, a quem tocava esta diligencia, d'ahi a 
seis ou sete dias pareceu bem a el-rei, mandar dar um rebate 
falso, para ver como a gente se havia n'elle, e sendo dez ou 
doze horas da noite, dispararam as bombardas, e começou 
a ouvir-se em todo o campo, arma, arma, ao que acudiram 
todos de maneira, que no principio houve grande confusão. 
Porém o melhor que foi possível, e mui depressa, acudiram 
os terços ao alto das tranqueiras, e os fidalgos se pozerara a 
cavallo, mas na praia, junto ás portas de Arzila, houve de- 
masiada grita e confusão, porque os que estavam dentro na 
villa, sabiam de rondão ao campo, e outros acudiam dentro 
a suas obrigações, e juntamente alguns homens do mar, de 
muitos que na terra havia, se lançavam com muita fúria 
aos bateis para acudirem a suas náos, ou a seu remédio, como 
homens desarmadoSj e que não tinham mais obrigação que 
a de seus navios. 

El-rei n^este tempo estava dentro na villa, e sahindo 
ao campo acudiram a elle tantas gentes, que se viu muito em- 
pachado, e começou a dizer ao alto, e devagar; doesta ma- 
neira se foi tudo pondo em ordem, e o campo esteve todo a 
ponto até pela manhã, que se soube, pelo que se viu, que o 
rebate fôrá falso, da breve confusão do qual Jeronymo Franr 
qui parece que tomou occasião para dizer, que com os pri- 
meirt)s rebates que houve, quando os mouros do Xerife, que 
iam com el-rei D. Sebastião, sahiram ao encontro dos de 
Muley Moluco, foi tamanho o medo dos portuguezes, que mui- 
tos a quem se tolheu a embarcação se acolhiam para Tanger. 
Sendo assim, que quando os mouros do Xerife sahiram a es- 
caramuça, com os de Muley Moluco, além de ser de dia não 
pelejaram em parte onde bomem de quantos estavam no ar- 
raial visse tal peleja, nem mouro contrario algum, por esta- 



d'afriga 37 



rem muito longe: de modo, que não podia haver razão de 
medo, nem de vista, nem de ouvida, nem ainda de suspeita, 
6 assim esteve todo o campo muito quieto sempre, sem se mo- 
ver pessoa alguma. E quando acontecera, que o temor dos 
inimigos obrigara a algum coitado a querer fugir do campo, 
não lhe era .mais fadl metter-se em Arzila, d'onde tinha as 
costas, e as portas abertas, que acolher-se a Tanger d'ahi 
sete legoas, fugindo dos mouros para os mesmos mouros, 
que Ím) caminho diz que encontravam, e ostaptivavam? Ora 
veja agora quem isto lé, se o não viu por seus olhos, se lhe 
acha algum fundamento, e por aqui pôde julgar quão erra- 
das informações houve nisto. 

Passados alguns dias, houve um rebate no campo, e 
appareceram ao longe muitos mouros, a quem el-rei quiz sa- 
hir em pessoa, leVando na vanguarda D. Duarte de' Menezes, 
mestre de campo general, com quinhentas lanças, onde iam 
os principaes senhores de Portugal, e o duque de Barcellos 
junto a el-rei, armado de armas brancas, d'onde fez maravi- 
lhas em tão pequena idade, mas não é maravilha, que na 
virtude de seus ascendentes, tão. manifesta em Africa, suppria 
o valor a seus annos : passou el-rei pois muito adiante, e foi 
o negocio de maneira, que foram mais de três legoas attaz 
dos mouros, que se iam retirando : no qual tempo se moveu 
a esquadrão dos aventureiros (onde eu ia) pouco menos de 
uma legoa, a dar calor á gente de cavallo, e el-rei se tornou 
muito satisfeito de como se houveram na briga, n^atando 
alguns mouros, e o duque, tanto que elle chegou a Arzila, 
o foi visitar á sua tenda, com um estoque nas mãos, o que 
sabendo el-rei, o saiu a porta a receber, e gabando publica- 
mente seu animo, e sua diligencia, lhe deu muitos abraços. 
Passado este rebate (cujo commettúnento com tamanha desor- 
dem foi com razão attribuido a el-rei a temeridade, pelo pe- 
rigo que podéra haver, havendo silada como cada hora acon- 
tece) os fidalgos o sentiram de maneira, que sem nenhum 



38 A JORNADA 



temor ou fingímeDto se foram a elie, fazendo-lhe algiimaft 
lembranças, mais de leprehensão, que de conselho; pelo que 
parece que não foi bem informado Franqui, pois diz que 
mais amigos de adulação que de verdade, queriam antes 
aconselhal-o mal, por lhe serem apraziveis, bem temendo sua 
desgraça. Antes o sentiram tanto, que entre algumas {Nracticas 
que sobre estas e outras cousas tiveram por algumas vezes, 
estivaam determinados a persuadir a el-rei totalmente que 
não entrasse pela terra dentro, oom bem honrado, licito, e 
fiel atrevimento. E não faltou algum entre elles, que se of- 
fereceu a ser o primeiro que se lançasse a seus pés, se todos 
n'isso firmamente concordassem, mas, emfim, pôde mais o 
temor de qualquer mancha, na obediência dos porUiguezes, 
que o da certa morte, que quasi diante de seus olhos viam. 
D'este logar escreveu Christovão de Távora uma carta ao 
secretario Miguel de Moura, que depois foi escrivão da puri- 
dade, e um dos governadores d'este reino (a qual eu vi sendo 
eUe Meddo) e entre outras cousas de muita mágoa e sen- 
timento, acerca da porfiada tenção d'el-rei, lhe dizia, que os 
enccMumendasse a Deus, que estavam no mais infeliz estado da 
vida, não querendo elle admittir algum conselho. 

E foi tanto assim que nenhum fidalgo deixou de dizer 
a el-rei o que importava, quando se offereda, que mandando 
el-rei D. Henrique tirar devassa, depois n'este reino, de Luiz 
da Silva, de quem elle cuidava, que como seu privado 
lhe fallaría â vontade, por mo perder o logar que tinha : 
Luiz da Silva se justificou ^de maneira, que por testemu- 
nhas muito graves provou o contrario, e que n'este mes- 
mo logar de Arzila, depois que com muita humildade con- 
fessara a el-rei as mercês que d'elle tinha recebido, lhe dis- 
sera que não fosse pela terra dentro, porque totalmente em 
semelhante co^juncção se ia a perder, com outras cousas 
mais tocantes a este negocio, bem dignas de indignação, 
conforme seu humor. No fim das qmea lhe respondeu el- 



d' AFRICA 39 

lei com muita paixão, muito asperamente, pelo que se pôde 
bem julgar como lhe fallariam os mais fidalgos, que tão pou- 
co perdiam em perder a graça que com elle não tinham. 

E assim Martim Gonçídves da Gamara, escrivão da pu- 
ridade, que foi d*el-rei D. Sebastião, e presidente do desem- 
bargo do Paço, que lhe era muito acceito, e de que tinha 
grande confiança, se houve também nos negócios públicos do 
reino com muita liberdade e zelo do bem commum, não se 
persuadindo da muita vontade e gosto que el-rei mostrava 
d*esta jornada, e quando a fez a primeira vez, posto que 
declarou que ia visitar Tanger, e Ceuta, como fazia a quaes- 
quer outros legares de seus reiços, e que havia de tomar, 
como tornou, todavia Martim Gonçalves não foi de tal pare- 
cer, antes em elle partindo se apartou logo de seu serviço, 
e se escusou de continuar n'eUe, posto que o infante car- 
deal, que ficou então governando, lh'o pediu por muitas ve- 
ies, e agora n'esta ultima jornada havia annos que elle esta- 
va já de todo fora de seu .serviço : 

Da mesma sorte fizeram também o seu oflBicio o padre Luiz 
Gonçalves da Gamara, e os mais da companhia, que como 
está dicto concorreram sempre com el-rei, instruindo-o em 
boa e sã doutrina, e bons costumes, e na imitação dos an- 
jligos de Portugal, como se vé pela carta que escreveu a 
seus povos, quando começou a governar, cijgo traslado me 
pareceu bem pôr aqui, assim para que se veja o muito amor 
que lhes tinha, como o bom zelo de seus principies: 

GARTA D'EL-REI D. SEBASTIÃO A SEUS POVOS 

Jmz, vereadores, e procurador {de tal logar, eíc,) Eu 
êUrei vos erwio rmiMo saudar, etc, QuamJto mais oanhed- 
mento vou tendo das cousas do governo de mevà remos, ta/nto 
me parece mais necessário para elles (além da ajuda e favor 



40 A JORNADA 



que para isso devo pedir a Nosso Seiíhor) fazer muita conta 
das lembranças e avisos de meus povos e vassallos, pelo 
que vos encommendo muito me aviseis particuloâ^ mente de 
tudo o que vos parecer necessário, para bem de meus reinos, 
assim para conservação e aug mento do culto Divino, que é a 
priíneira e principal obrigação dos reis catholicos, e de que 
os reis passados meus oajós tiveram tanto cuidado, os quass 
eu muito desejo imitar e seguir, com,o tombem, para que 
seja guardada inteiramente a justiça ás partes, e se lhe não 
faça por meus officiaes, nem por outra pessoa de qualquer 
qualidade que seja^ aggravo, nem vexação alguma, princi- 
palmente ao povo miúdo, e gente pobre de que eu deter- 
mino ter especial cuidado, e porque além da obrigação que 
tenJio de prover nas cousas da religião christã, e da justiça, 
desejo também, pôr em ordem a reformação dos costumes, 
e de restituir os antigos, a que sou muito affeiçoado, vos 
encommendo muito me escreveis os meios que vos parecerem 
necessários para isto haver e/feito, ainda que em alguma 
m^aneira pareçam contrários ao tractamento costumado de 
minha pessoa e casa, e a msu particular gosto, porque o 
mór que eu tenho,, é prover nas necessidades de meu reino, 
e vassallos, e de os ter taes quaes são e foram sem/pre os 
portuguezes. António Carvalho, a fez em Almeirim^ a treze 
de fevereiro, de 1569. Duarte Dias a fiz escrever. 

REI. 

Este era o fnicto que resultava dos bons conselhos, e 
sã doutrina dos religiosos da companhia, e porque el-rei 
D. Sebastião era naturalmente inclinado a cousas de guerra, 
especialmente ás de Africa, vendo os padres os grandes in- 
convenientes que d'aqui se podiam seguir (se não usasse 
d'esta inclinação com a temperança e prudência devida) lhe 
foram sempre lembrando o que convinha, como aconteceu, 
que estando el-rei ura dia na lição muito^ imaginativo, di- 



d'afriga 4 1 



zendo que estava cuidando em tomar Africa, como fosse de 
idade conveniente (e tinha para isso exemplo do imperador 
Carlos V, seu avô, cuja vida trazia sempre comsigo) lhe res- 
pondeu o padre Luiz Gonçalves: Senhor, porque vejo que 
vossa alteza falia de ciso, lhe fallarei também de ciso: não 
pôde el-rei de Portugal passar em Africa sem três cousas : a 
. primeira sém deixar no reino quatro ou cinco filhos machos : 
a segunda que arrisque seu reino não indo em pessoa : a ter- 
ceira que ha de ter tanto dinheiro, gente e apercebimentos, 
que o possa fazer com segurança; com a qual resposta el- 
rei ficou muito -triste e melancólico, por ser tanto contra 
seu desejo, e presupposto; e assim, o padre Luiz Gonçalves, 
seu mestre, antes de elle passar em Africa a primeira vez, 
se ia já retirando do Paço, e de todo se foi antes que el- 
rei partisse, e lhe fez uma practica muito comprida, lem- 
brando-lhe os grandes inconvenientes de sua ida; e agora 
n'esta segunda e ultima jornada, já de todo o padre Luiz 
Gonçalves era afastado do Paço, havia alguns annos, e 
Meceu antes que el-rei passasse, o que soubemos por 
pessoas 3e muita auctoridade, que foram presentes, e ti- 
nham razão de o saber ; e não foi isto só o que o padre 
Luiz Gonçalves da Gamara n'esta matéria tinha feito, senão 
que vendo já de antes, que com a tardança de seu casa- 
mento se arriscava a successão de seus reinos, começou logo 
a tractar d'elle sendo moço, e ante tempo lembrando-o e per:- 
suadindo-o á rainha sua avó, e ao cardeal infante seu tio, 
e ao mesmo rei por muitas vezes e em diversos tempos, 
apontando primeiramente na senhora infanta D. Isabel Cla- 
ra, filha d'el-rei Philippe segundo de Castella nosso senhor, 
que está em gloria, e não havendo isto effeito, lembrou 
Margarita, filha d'el-rei de França; que foi casamento sobre 
o qual depois o Papa Pio v escreveu a el-rei D. Sebastião, 
pelo cardeal Alexandrino, seu sobrinho, que a isso enviou, 
e lhe foi respondido que era d'isso contente, nep que- 



42 A JORNADA 



m^ outro dote mais que entrar el-rei de França na liga^ 
de que se então tractava (que este foi sempre seu zelo); 
mas, ou porque morreu o Papa antes do cardeal chegar a 
Roma com esta resposta, ou por outros respeitos, não houve 
eíTeito este casamento, e morrendo pouco depois el-rei Car- 
los IX de Franpa, lembrou também a rainha sua mulher, fi- 
lha do imperador Maximilíano, que ficava viuva e muito mopa« 
Assim pois fallavam a el-rei D. Sebastião este3 religiosos, 
e n'e^ta conformidade oujtros muitos, porém como se havia 
de cumprir o que Deus tinha ordenado, nem estas cousas 
vieram a eífeito, nem por outra via el-rei se desceu de sua 
opinião. 



CAPITULO IV 



D ALGUMAS COUSAS QVK PASSARAM EH ARZILA 
B GOMO MARCHOU O CAMPO 



fc'BSTE tempo, vendo o Xerife a delibcraspão d'el- 
Erei em marchar por terra, muito quisera dissua- 
jdil-o, como (juem sabia o gran poder dos mou- 
pros em campanha, dizendo juntamente que não 
convinha a sua alteza mostrar-se tão leloso da guerra, nem 
manifestar loiíç seu poder, por não virem a suspeitar os 
mouros, que x jornada era mais conquista que sorcorro, 
e para se passarem a elle, bastava somente o desemljarcar 
em terra, sem mostrar por nenhum modo qi]erer marchar 
por eita dentro. Isto dizia o Xerife, julgando quiçá por seu 
coração que podia acontecer, vencendo eJ-rei, fazer-se se- 
nhor de tudo, ao que el-rei não respondeu cousa alguma, 
ou por entender muito bem o temor cauteloso do Xerite, 
OH porque totalmente seu desejo eia vencer antes com pe- 
rigo, fazendo a gueira descohertamenle, que sustentar-se 
com esperanças de soccorro, a neu parecer vergonhosas, 
perdendo o tempo e reputação. De que lhe nào dava pe- 
queno indicio não ver passar algum mouro ao Xerife, depois 
que deseml)arcãra em Arzila, de quantos elle havia prometlido. 
O qual vendo a Besolupão d'el-rei, e como lhe não deferia a 
eousa alguma, attribuindo mais a desprezo o pouco caso que 
el-rei fazia de seus conselhos, que a melhor fundamento de 



44 A JORNADA 



sua parte, ficou tão enfadado, e aborrecido, que foi visto sa- 
hir com as lagrimas nos olhos diante do mesmo senhor. D'on- 
de nunca mais d'elle se suspeitou bom animo, que não era 
pouco para temer, quando havendo da parte d'el-rei algum 
bom successo, se visse elle com poder, não somente para 
não entregar o promettido, mas para se vingar com damno 
dos portuguezes. 

N'este logar adoeceram muitas pessoas, e alguns ho- 
mens nobres e fidalgos deixaram por esse respeito de ir no 
campo. Aqui falleceu António Velles da Silveira, uchão d'el- 
rei, cuja morte elle sentiu muito, por lhe ser aífeiçoado por 
suas partes e qualidade. 

Passados emfim dezoito dias, que como está dicto foi 
a total mina de todos, el-rei mandou marchar o campo na ^ 
melhor ordem que lhe foi possivel,,onde o duque de Barcel- 
los seguia o seu guião real, mas el-rei lhe mandou que se 
recolhesse no seu coche, e posto que elle o recusou muitas 
vezes, dizendo que não havia de ir no coclje, nem sofiter 
que sua alteza pelejasse sem elle o acompanhar, todavia el- 
rei o obrigou: promettendo-lhe que no dia da batalha lh'o 
concederia. 

N'este tempo Muley Moluco, que de Marrocos havia par- 
tido para Alcácer, mandando primeiro a gente dos reinos que 
havemos dicto, chegou a um logar que está no caminho, o 
qual se chama Tremesenal, onde lhe foi dado peçonha, se- 
gundo fama, pelo alcaide de. Guali,- que pretendia fazer-se 
rei, e posto que se descobriu, ou suspeitou a traição, e fo- 
ram castigados alguns alcaides, todavia o do Guali ficou 
sem castigo, ou por não ser de todo descoberta sua mal- 
dade, ou por não se aterver Mijley Moluco com elle em tal 

tempo, porque tinha o mais dos soldados e alcaides de sua 
parte. , 

Logo Muley Moluco se começou a achar mal. Em este 

logar aconteceu uma cousa de grande maravilha, a qual pa- 



d'africa 45 



rece qoe foi notável prognostico da morte d'este príncipe. E 
foi que sendo meia noite, estando ella muito seren^^e quieta, 
subitamente se levantou um rumor, e estrondo tamanho que 
se não ouvia ninguém no camt)o, e visivelmente pareciam 
de redor d'elle esquadrões de gente armada, e soavam tam- 
bores, e grande grita, de modo que todo o campo se pôz em 
armas, com bem de temor e sobresalto, e se lhe acolheram 
muitos mouros, tendo por certo serem salteados dos chris- 
tãos, e passado um grande espaço, tanto . que se acabou este 
torvelinho, ficou a noite outra vez muito serena, sem se ver 
pessoa alguma de guerra, ou signal disso. Passado pois 
este sobresalto, caminhando Muley Moluco, como atraz dizia, 
chegou junto de Alcacer-Quibir. Partíu-se o nosso campo co- 
mo fica dicto a vinte *e nove de julho, e a primeira jornada as- 
sentou duas legoas de Arzila, pouco mais ou menos, • levan- 
do o caminhp direito de Alcacer-Quibir. Aqui chegou o capi- 
tão Frandsco de Aldana, a quem sua magestade havia dado 
licenpa, o qual trouxe por seu mandado um ehno a el-rei D. 
Sebastião, que fura do imperador Carlos v, com uma carta 
do duque de Alba, na qual lhe louvava muito o querer so- 
mente tomar Larache, em entrar pela terra dentro, com ou- 
tros fundamentos, a qual parece devia ser resposta em confir- 
mação do que el-rei lhe havia escripto sobre esta mesma 
matéria. 

Tanto que chegou este capitão, tomou logo conhecimen- 
to de algumas cousas, como muito practico soldado que era, 
e por sua ordem se faziam os alojamentos, e dos capitães 
João de Gama, e Alexandre, sendo engenheiros Philippe Ter- 
do, e frei Estevão, religioso do Carmo, que muito valoroso 
soldado havia sido. Levaya o campo dos portuguezes^ vinte 
e quatro peças de artilheria, entre pequenas e grandes, e ca- 
jxdnhando emfim. com muita ordem, d'esta maneira chegou 
ao quinto alojamento, sem haver no caminho cousa de que 
se possa fazer menção; porque o mais que houve foram ai- 



46 



A JORNADA 



guns rebates, que davam alguns mouros que vinham na reta- 
guarda, 9 ver se achavam alguma cousa desencaminhada. 
Aqui se dojou o exercito em um logar alto ao longo de uma 
pequena lagoa, onde na tarde doeste mesmo dia appareceu 
no campo de Alcácer alguma gente de Muley Moluco, junto 
á ponte do ribeiro Mocasin, pela apparenda da qual se enten- 
deu claramente estar visinho o inimigo. Muley Moluco n'este 
tempo acabou de entender o caminho que el-rei levava, e se 
veio chegando a Alcácer, e d'ahi ao campo, junto ao vào do 
rio Lucus, que os pórtuguezes iam buscar, para seguir a ou- 
tra banda o caminho a Larache. 

N'este ultimo alojamento, vendo el-rei o inimigo diante, 
e que por força para seguir seu caminho havia de passar o 
ipesmo rio, por parte que se havia áf encontrar com elle, 
teve conselho do que devia seguir, e mandando alguns caval- 
leiros tentar o vào do rio mais abaixo, d'onde passando o. 
campo podesse escusar vir às mãos com o inimigo, teve cer- 
to aviso de como era mui alto, e não podia passar sem 
perder a artilheria; vendo pois el-rei este inconveniente, e 
como passando-se o vào podiam os mouros dar na retaguar- 
da, e desordenar tudo, se concluiu que o vào se buscasse ao 
outro dia, mais acima d*onde passasse o exercito sem ser ne- 
cessário perder a artilheria ou reputação e se desse a bata- 
lha, querendo o inimigo estorvar a passagem com muito ap- 
plauso e alvoroço de todos, e não como homens que iam aca- 
bando as vidas, como diz frei António. Na tarde d'este mesmo 
dia appareceram muitos mouros, que segundo se entendeu 
vinham reconhecer o campo^ e el-rei mandou ao duque de 
Aveiro qvtd com larezeatos de cavallo os reconhecesse, dando- 
Ihe o seu mesmo guião, favor que o duque conheceu de ma- 
neira, que apeando-^e em vm momento ttie foi beijar o estri- 
bo, e pelo contrario o prior D. António, filho do infante D*. 
Luiz, sentio estranhamente ser Referido em tal empreza, prin- 
cipahnente pela honra do guião real. Paitiu-se o duque com 



A gente que ei-rei mesmo lhe esteve ordenando, por quere- 
rem todos ser primeiros, e como fosse já perto da noite, de- 
pois de se aísogar algum tanto do tampo, mandou el-rei que 
se recolhesse, e o duque se tornou, dando noticia da gente 
que era. 

Logo pela manha foi di\Tilgada a uo\'a da batalha, e ae 
começaram todos a fazer prestes. N'estc mesmo dia Muley 
Uoluco, como capitão sagaz e experimentado, fingiu uma car- 
ta d'el-rei D. Sebastião, mostrando-a aos elches, na qual Ifae 
dizia, entre outras muitas cousas, que todas inventou para sua 
justilicação, cpie elle não desejava tanto vencer os mouros 
por sua particular honra, e inleresse, quanto por queimar vi- 
vos todos os renegados da Barbaria, o que foi bastante para 
de tanto numero de ^ente d'esta maneira, não se passarem 
a el-rei mais que dous homens, que foram os alcaides Mami 
e Raposo. 

Era todo o exercito de MuJey Moluco formado de varias 
gentes, porque havia n'elle andaluzes, ou granadinos, que 
são os mouros que de Granada se passaram a Barbaria, ou 
seus descendentes, e tm^cos d'aquelleB que ajudaram a ganhar 
o reino, renegados de todas as napões, azuágos, mouros que 
descendem de çhristãos, como adiante se dirá, e mouros natu- 
raes. Todas estas gentes \1nham muito bem apercebidas, e no 
campo havia mais de quarenta peças de artilheria. Era ca- 
pitão da gente de cavallo (principalmente da que tinha ã sua 
conta) Muley Âmet, irmão de Muley Moluco, e capitão dos 
escopeteiros de cavallo Amet Lataba, e dos elches Uchali 
Antgoces, do Ouali dos andaluzes, e capitão da guarda, Ali 
Muça: estes eram os principaes; haveria no campo mais de 
oitenta mil homens de cavallo, e de pé mais de rpiarenta, se- 
gundo os mesmos mouros dizem, porque os portuguezes não 
poderam saber mais, quo ver um campo de cinco ou seis le- 
goas tão occupado com seus inimigos, que apenas se enxer- 
gava iogar despovoado, e u'esta matéria é muito de notar 



48 A JORNADA 



Jeronymo Fraoqui, porque querendo desacreditar os portugue- 
zes com o pouco numero dos mouros, todavia vem a con- 
fessar que seriam somente de cavallo quarenta mil, além dos 
aventureiros, e alarves, e quando falia na gente de cavallo 
de Portugal, diz que seriam mil e quinhentos, como se con- 
tra numero tão pequeno valessem menos quarenta mil que 
elle confessa, afora os mais oitenta mil que os mouros di- 
zem, e também frei António chama ao exercito de Portugal 
famoso, quando diz que o desbarataram, e que occupava mais 
de uma legoa, e 'quando • reconta que o viu Muley Moluco, 
diz que motejou da pouquidade d^elle, assim como de um 
mesmo numero, por apoquentar de ambos os modos, ora faz 
infinitos ora tão poucos. v 

Logo Muley Moluco mandou mesdar sua gente, de ma- 
neira que não ficassem muitos juntos de uma só napão, por 
não poderem haver conselho de se passarem ao Xerife, que 
com el-rei estava, o qual n'este tempo o persuadia que não 
desse a batalha, julgando os portuguezes muito inferiores em 
numero, e além d'isso tinha novas como Muley Moluco estava 
enfermo, mas a falta de mantimento no exercito soffria mal 
qualquer demora, e não era possivel tornar-se a buscar às 
nàos, senão fosse com o mesmo campo todo jjpto por respei- 
to dos inimigos de que estava cercado, e sendo assim, além 
do muito risco em que se punham, pareceria fugida, e não 
remédio. 

Tanto que foi manhã divulgada a nova da batalha, como 
está dicto, todo o campo se puz de festa, pedindo-se alviparas 
uns aos outros com grande animo e demonstração de ale- 
gria (se bem por Divina vontade foi tão contrario o successo 
á esperança); el-rei se mostrou alegremente, a todos repre- 
sentando, com grande magestade o valor de que estava cheio, 
e não algum tanto humilde, e paciente, a modo de quem te- 
mia de perto o que de longe não receava, como diz Franqui, 
e juntamente que todos os mais estavam cheios de temor, o 



d'africa 49 



que também segue trei António, qual se com olhos divinos 
poderam elles penetrar os segredos de tantos peitos ; e o que 
pôde mais maravilhar é, que nunca algum d'elles falia em 
temor, ou covardia que nomêa, senão todos os portuguezes, 
indo no campo d*el-rei D. Sebastião quasi outros tantos es- 
trangeiros, que parece deveriam participar em alguma cousa 
de seus visinhos. 



|5Í A J(«W«íADA 



Na retaguarda eram os terços de Diogo Lopes de Sequei- 
ra (posto que elle ficou era Arzila por capitão das galés) e 
de Francisco de Távora, com trezentos mosqueteiros, e de 
uma banda e de outra estava repartida a cavallaria: à mão 
direita dos aventureiros era D. Jorge de Lencastre, duque de 
Aveiro, com o seu batalhão de cavallo, cujo guião seguiam 
muitos cavalleiros fidalgos e senhores, e além de seus cria- 
dos e vassallos, que el-rei lhe ordenou* sem lhe nomear al- 
gum cargo 1*0 campo, como a senpielbante pmcipe convinha^ 
pois pela assistência real nao podia ter o maior. 

Da mesma banda era D. Duarte de Menezes com os fron- 
teiros de Tanger e Ceuta, e o Xerife com sua pequena com- 
panhia, um pqucQ mais adiante, e da esquerda o. estandarte 
re^^ com muitos fidalgos e senhores ; o duque de Barcellos 
D. Theodosip, q o prior D. AntOQio, filhos do infante D. Luiz, 
andayai^ np campo sem legar certo, de s^us criados e vassal- 
los açQiupainhadQS. A bag^em ia ao lado direito, entre os 
GS^Vialteiros e ijaf^teria, cchu logar não muito bastante em 
me|o pq^ra ^e poder recolher em qualquer retirada a gente 
d^ íay^p, 4'onde ?^ adiou depois que fura grande incon- 
v^iiiente n|o se fonuar o campo mais largo, e de modo que 
ficasse Ipgar suficiente para çe poder melhor fecoJher a caval- 
\^m; o terpo doa g^tsuloreiS, que levava a seu cargo o capi- 
tão Gonçalo Ribeiro Piíito, ia junto á bagagem; assim entrou 
o exerdto pp çanjipo ; e tanto que passou a pequena ribeira 
de Mpcç^sin, ç^ti?dxp da sua ponte, por s^r baixa a maré, que 
se lhe cpmmunic^ pelo rio Lucus, ás idez horas do dia po- 
zeram 03 mouros fogo ao feno, e panasco secco, que deu 
bem grande . enfadamento, mas atalhou-ae o melhor que foi 
possivel. 

O Xerife n'esta coiyunçpãp se pôz diante de todo o exer- 
citp, com as b^udeira3 tendidas, quasí chi^miando 03 mouros 
amigos^ do ^ímigo campp, nias passaram-se-lhe muito ppu- 
cos, ou por não poderem mai^., pu qiúç^ {KHt s^ ^IJ^ m^o 



malquisto {este é aquelle Xerife do cerco de Hazagão, tio 
Bòmeado no mundo). 

Assim se passou o dia, no qual se vieram sóraetltg doua 
elches a el-rei; um d'elles se chamava Mami, castelhano de 
nação, e outro era o alcaide Raposo, portuguez, e tanto que 
fiii noite o campo se assentou na mesma fúrma em que vinha, 
por estar ã vista do inimigo, todos com as armas na mSo, 
postos em suas estancias, com Jíoa vigia e promptidão, asíis- 
tiado as sentinellas e andando de redor as atalaias de ca- 
vallo. 

Este sitio, que prevenidamente o campo occupou, era o 
melhor que se podia imaginar, por estar entre dous pequenos 
braf-os de rios, Vet Mocasin e outro, bastantes todavia a mui 
grsaãe parte da defensão. 

N'este tempo, D. Duarte de Menezes, como quem tinha 
tanta experiência dos mouros, e do seu modo de pelejar, sa- 
bendo muito bem como elles de noite não são homens de 
guerra, e se assombram fkcâmente de qualquer movimento 
de armas, aconselhou a el-rei mandasse dar uma encamisada, 
ofTerecendo-se cora a gente das fronteiras, e muitos fidalgos 
que se lhe ollereciam a desordenar totalmente o campo de 
Mule? Moluco, seguindo-se dous bons eíTeilos d'este coramet- 
ento: primeiramente mostrar-lhe a ousadia e determinapSo 
dOB pOTtoguezes, com muito damno seu, dando logar com a 
desordem do sobresalto a se acolherem os temerosos ê mal 
contentes, c se passarem ao Xerife seus amigos, ou ao me- 
nos, turbada e perdida a ordem em que Muley Holucú os ti- 
nha, largassem o campo com alguma sombra de escusa, quan- 
do passar se não podessem; mas el-rei de nenhum modo veio 
n'isto. 

Muitos diziam que estava Ião açodado por dar a batalha, 

que não quiz que houvesse alguma occasião de se desordenar 

j o êflteito d*ella, por lhe não tirar o louvor do imaginado ven- 

I cteie&ttj, imitando qtripà com arrogância aquella tão reprovada 



54 A JORN^A 

■ • 

opinião do magno Alexandre, ao menos nos tempos de agora, 
que tanto se prezava de não vencer cora ardis, ou cautellas ; 
outros haviam que era bora conselho não haver encamisada, 
porque sendo tão poucos os portuguezes de cavallo, qualquer 
pequeno damno que recebessem era muito, podendo fazer 
tão pouco aos inimigos; porém D.. Duarte de Menezes, e mui- 
tos outros fidalgos e senhores, approvavam de maneira este 
conselho, entepdendo o proveito que d'elle podéra resultar, 
que não Qcou el-rei sem muita. culpa de se não pôr em effeito. 

Estes eram pois os homens valorosos e sábios que el- 
rei comsigo levava, e não sei certo como frei António, seguindo 
Franqui, diz que hão havia em todo o campo um homem 
livre e sapiente que o podésse aconselhar com liberdade, sem 
algum temor. 

Esta noite se passou toda muito quieta, sem embargo 
de estarem tão perto os inimigos, fazendo-se prestes cada 
um para o dia seguinte, de tudo o que á batalha convinha, 
ajuntando-se os amigos e companheiros para se ajudarem 
6 favorecerem no conflicto, áem temor algum que se podésse 
enxergar ao menos. 

Tajito que amanheceu, a quatro de agosto de setenta e 
oito, dia de S. Domingos, e se viu o largo campo coalhado 
de infinitos inimigos, o Xerife se foi a el-rei, dizendo que 
sua alteza não devia dar a batalha, antes devia mandar trin- 
cheirar o campo da parte d^onde só lhe não faziam reparo 
os pequenos rios, de que estava cercado, porque além de 
haver novas que Muley Moluco estava muito chegado á morte, 
o sitio era maravilhoso contra a gente de cavallo do immigo, 
que tanta vantagem, sem comparação, fazia à sua, e sendo 
commettido no mesma logar tinha a victoria certa. Todas 
estas razões eram muito bem fundadas, e assim foram d'el-rei 
ouvidas, porém os inconvenientes eram grandes, nascidos só 
de uma causa, a qual era não haver mantunento algum no 
campo, porque só para cinco dias se fez provisão, ou por não 



D*AFRICA * • 55 

V 

se poder, levar mais, porque o mais d'elle foi ás costas dos 
solàados, ou quipá por el-rei medir as jornadas a seu modo, 
sem imaginar impedimento, e pôde ser que ambas as cousas 
se ajuntassem; e sendo d'esta maneira, mal se podia vencer 
o inimigo com tardança, pois no mesmo remédio estava o 
perigo. E não era pouco de temer vir elle primeiro valer-se 
da dilação, conhecendo esta falta, pois com muita facilidade, 
com tanto numero de gente de cavallo, podia ter em cerco 
a todos, e sem nenhum danmo seu vencei -os a pura fome, 
pelo que mais êra a tardança de temer que de procurar. 

E assim inteirado el-rei d'esta verdade, determinou va- 
ler-áe do forçoso remédio, mandando que o exercito mar- 
chasse na forma em que estava, seguindo a via de Larache, 
porque se o inimigo o deixasse passar, podia chegar lá mui- 
to facilmente n'aquelle dia, e segurando as praias desembar* 
car o mantimento necessário, com que podia sitiar a forta- 
leza, trincheirando-se da parte da terra como está dicto; e 
quando Muley Moluco se antepozesse a querer dar batalha, 
menos era de temer qualquer perigo honroso, que o damno 
tão sabido de demora, pela grande falta em que o campo es- 
tava : posto que bem se podéra esperar um dia comendo-se 
os bois. 

Vendo o Xerife esta verdade, sahiu com outro conselho, 
dizendo que pois a razão por falta padecia força, ao menos 
não devia sua alteza oíTerecer a batalha, passando d'aquelle 
logar, senão com poucas horas do dia, porque succedendo 
alguma desventura (o que Deus não quizesse) haveria tem- 
po e logar para se salvar sua pessoa, em cuja vida não so- 
mente estava o remédio de tantos, mas o seu em particular, 
e que havendo algum bom^ successo, como se esperava, re- 
cebendo os mouros qualquer pequeno damno se passariam 
de noite mais facilmente a elle. 

Não era este parecer do Xerife mal acertado, posto que 
para se não seguir se allegaram alguns inconvenientes, prin- 



56 * X ÍGRSAJDA 



Gi{>alme]ite, qne danão-^se a batalha já tarde^ bastava quai- 
(píer dsunno qoe m portmguesses reosfoessem (aquelleâ ãtgt» 
que no exercito iam quasi arrebatados, além de aereni lavra- 
dores, sem nenbuma experiência) pata, ã sombra da noite, 
desampararem o campo fagindo a ÂrzOa^ o que de dia âão 
ousariam fazer, com medo dos superiores. 

D'este parecer do Xerife foram quasi todos os &dáig09, 
que como leaes vassallos nenhuma cousa antepozeram nunca 
á salvação d'el-rei. 

Permanecendo em fim seu voto ou mandamento, como 
em todas as mais ccmsas, e entrando B'6Ste odnselho (segun- 
do se afflrma) o capitão Francisco de Âldana, que em tal es* 
tado devia escolher o melhor, como é bem que se cuide,. el- 
rei mandou mamshar o exercito na forma sobredita. 

Vendo Muley Moiuco n'este tempo o campo dos portu- 
guezes posto em ordem de batalha, começou a ordenar a sua, 
pondo a infanteria diante, que era toda de arcabuzeiros, e a 
cavallaria atraz, e n'esta forma veio em meia lua todo o seu 
exercito, cercando o d'el-rei, de maneira, que por toda a par- 
te ficou éendo vanguarda: costume antigo dos muitos cerca- 
rem logo os poucos, como já Gesar dizia, ^juando de Lahielio 
e Juba foi cercado ein Numidia. 

N'esta conjuncção Muiey Moiuco se sentia muito aggra- 
vado de sua enfermidade, e bem quizera não dar batalha, ad- 
sim fi^orque se temia que em qualquer occa^ão de bdga 
se passassem ao Xerife os mouros que lhe conheda affeiçoa- 
' dos, como porque entendia a falta dos mantímeútos Ho cam- 
po dos portuguezes, e esperava, sem algum damno ou peri- 
go de sua parte, tomar todos á fome. O que na verdade era 
cousa muito factível, como está^dicto^ sendo o mais de sua 
gente de cavallo e tanta; mas sua enfermidade apertava de 
maneira com elle, que não ousou fazer o conúraiio, temendo, 
que se não vencesse em vida, por sua morte i^m duvida 
Muley Mahomed seria rd, porque do valor e condi^ ád &ê\x 



57 



itmà.0 flava muito pouco, pelo que vendo a morte vizinha, 
6, tão perto 03 inimigos, se resolveu em vir a conclusão ; e 
<ío modo qne pôde fez uma carta a seua alcaides, em que 
lhe mostrava sua justipa, justiflcando-ae de sua parte, e ma- 
nifestando a maldade de seu sobrinho, em metter os cJiria- 
lãos em Barbaria, e o damno que d'isso lhes podia resultar, 
a qual falia escreve muito dilatadamente Jeroaymo Franqui, 
buscando as melhores razões qne pílde por parle de Huley 
Holuco, e frei António a traslada aojié da letlra, calando am- 
bos as verdadeiras e cathoiicas qoe por el-rei D. Sebastião 
poderam dar, dizendo efimente frei António uma só vez que 
ftilla em nome d'el-rei D. Sebastião, que dizia : eia hijos, e eia 
cavaQeiros, Santiago, e a ellos que sou caualha. 

No que certo parece quiz ftKTar trabalho, pois em todo 
o grau thcsouro da fecunda língua hespanhola não achou 
outras palavras, que accommodar á liocca de semeilianteprin- 

I cipe. 

Maa como dizia, d'e9ta maneira, estando já todo o campo 
cercado do largo giro que por »nbas as partes os mouros 
para esse elfeito fizeram, e tudo a ponto de batalha, co- 
meçou el-rei a percorrer o campo, dando ordem a todas aa 
cousas, e fazendo o oflicio de sargento-mòr, com tanta \lgi- 

[ Jancía e (niidado, qne chegando á bandeira real, e vendo umd 
fileira de cinco cavalleiros silimente, sendo as mais de seis, 

1 disse coro melancolia: n'esta fileira falta um cavallciro?— ao 
que respondeu Gomes Freire de Andrade, que no meio d'ella 
estava com doua filhos de cada parte: pois como, senhor, 
«m pae com quatro lilhos, lodos de uma mesma vontade em 
vesso servipo, não supprirão a falta de um homem? — ^ao qne 
el-rei respondeu, advertindo logo quem era o que lhe fallava, 
revendo-se alegremente era tão formosa companhia : tendes 

' rauita razão, Gomes Freirç. 

Assim, depois de andar por todo o campo, e partícular- 

I mente por entre as fileiras dos aventureiros, chamando a si 



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• CAPITULO VI 



DA BATALHA B DOS SUCCESSOS d'eL1:4A 



fc icTAS estas breves palavras, el-rei mandou dar a 

I flí^|Aije-Maria, ultimo signal da batalha, e foi levan- 
I W ffil^^') ^"^ Crudíixo em alto, pelo padre Ãlejumdre 

^™jj companhia, a cuja vista so pòí de joelhos toda 

a gente que a p^ estava, e ii'e3.ta conjuncsjão dispaiou a pri- 
laeira pepa do campo inimigo, d'oiide parece que Jeronyrao 
Fntaqui tomou occasião de díHGr que foi tamanho o medo 
dfls portuguezes em veado púr fogo às bomhardas dos mou- 
ros, que todos se prostravam por lerra : não sabendo que esta 
humilhapão foi feita á imagem de Christo, e frei António de- 
diH:aiido bem ostc passo, diz que so estiravam todos de largo 
a largo. 

Logo dispararam outras bombardas, das quaes uma ma- 
' tou alguns homens no esquadrão dos aventureiros, entie os 
' quaes acabaram Gregório Sarnaclie de Noronha, e João Bran- 
I (Uú) d' Almada, que não estavam por certo prostrados por terra, 
antes com fronte serena c levantada se viam muito prom- 
ptos a qualquer assalto, nem houve alguém que por animo, 
, ou por vergonha bolisse comsigo, nem tão súmento baixasse 
a cabeça, nem sei certo, como dizem esíes dous auctores, que 
lodos os portuguezes se estirassem em terra, como se estives- 
sem já amortalhados, cousa que parece não podia acontecer, 
I aiud^ que lh'o maudassem com pena de morte. 



62 ' A JORNADA 



Logo disparou a artilheria dos portuguezes, e posto que 
não devia fazer muito eífeito, todavia os mouros de cavallo 
se revolviam de maneira, que mostraram receber damno, e 
alguns ficaram mortos d'ella, por cima dos quaes passou o 
esquadrão dos aventureiros, posto que n'este tempo foi morto 
Pêro de Mesquita, capitão que a governava, de uma mosque- 
tada, que foi grande parte de seu desamparo, como adiante 
se verá. * 

• El-rei n'este tempo andava por todo o campo armado de 
armas pretas ligeiras, dando particularmente ordem a muitas 
cousas; e vendo o duque de Barcellos armado a cavallo, lem- 
brando-lhe muito bem como lhe promettéra no caminho, que 
no dia da batalha consentiria que o acompanhasse d'aquella 
maneira, e que sem lhe dizer cousa alguma se anticipàra tão 
valorosamente, ficou assas maravilhado, e com estranha ale- 
gria gabou diante de todos seu animo e diligencia. Porém como 
já se comepasse a batalha, e as bombardas fizessem seu offi- 
cio, el-rei obrigou ao duque que se recolhesse no seu coche, 
o que elle não fizera se lh'o não mandara precisamente, e por- 
que el-rei entendia muito bem isto, vendo o certo perigo em 
tão pequena idade, quiz prevenir sua ousadia. | 

Logo se moveram os esquadrões, convém a saber: o dos 
aventuremos portuguezes, os castelhanos que estavam á mão 
esquerda, e os tudescos e italianos à mão direita ; el-rei, n'esta 
conjuncpão pouco mais ou menos, foi ao estandarte da gente 
de cavallo, que á banda esquerda estava, no qual eram os fidal- 
gos velhos, e de mais experiência, e lhes disse (fallando par- 
ticularmente com D. Luiz de Menezes, alferes-mór) : que sob 
pena de caso maior ninguém se bolisse d'aquelle logar, nem se 
abalasse o estandarte, senão quando elle em pessoa o mandasse ; 
e passando à mão direita, onde estava o duque de Aveiro cora 
muitos fidalgos (porém os mais d'elles, ou quasi todos man- 
cebos), depois de lhe louvar muito a ordem em que o duque 
os tinha posto, lhe disse que se não bolisse d'aquelle logar, 



63 



I 



sem que elle de sua própria bocca Ui'o dissesse, determinando, 
parece, escolher o mellior tempo para isso ; e d'esta maneira 
andava por todo o carapo, fazendo quasi todos os oíHcíos, por 
cujo respeito parece que por andar mais solto e desoccupado, 
não ordenou cavalleiros de sua guarda, que foi um dos maiores 
erros que jamais príncipe commetleu no mundo, pois não tào 
somente com quatrocentos homens escolhidos que comsigo 
podéra trazer se livrara da inerte, mas se pozéra em salvo 
a lodo o tempo; mas emfim, faltou isto, sendo cousa tão 
clara como o mais, por vontade só d'el-rei, que em tudo se 
encaminliava ao que Deus d'el]e linha deteiminado. 

N'e3to comenos, os mouros que haviam muito bem con- 
siderado haver mais fraqueza na retaguarda, começaram pri- 
meiro a pelejar n'ella, por divertir a el-rej, o qual vendo a 
escararau£a, como andasse tão desejoso do pelejar, acudhi com 
o seu guião somente, que levava D. Jorge Tello, e Ohristovào 
de Távora, a dar calor á gente de Diogo Lopes de Sequeira e 
Frandscíi de Távora, onde aos primeiros encontros lhe mata- 
ram um cavallo, pelejando a gente por bera grande espaço 
com muito valor; nem sei como ii'este passo diz frei António, 
seguindo Franqui, que logo entregaram as armas aos mou- 
ros, como se podéra estar seu remédio aú n'isso, durando a 
batalha inda depois mais de quatro horas, até o lira da qual 
parece, que nem os mouros podiam tomar alguém a partido, 
nem outrem acceital-o, quanto mais que afDrmam que os mou- 
ros 03 matavam como carneiros sem os" quenerem captivar, o 
que certo parece cousa impossível, pois quando isto podéra 
acontecer a algum covarde desatinado, bastava somente o seu 
exemplo para ninguém mais se entregar. 

N'este tempo o esquadrão dos aventureiros, e os mais 
que dos lados o seguiam, depois de dispararem toda a esco- 
petaria com grande ímpeto e valor nos mouros, que da mes- 
ma maneira haviam disparado a sua, começaram a caminhar, 
rapribando e matando com tanto furor e ousadia os mouros 



64 A JORNADA 



arcabozâros de pé, que estavam sem piqueiros que os dd^ 
fè&daaseai, que os de cavallo, vendo o desbarate dos seus, eo^ 
meçaram a fugir de mandbra que Huley Moluco, a quem se ása 
conta, por vir como está dicto muito enfermo em uma liteira^ 
se sabiu d'ella, e vendo-se desamparado qua de todos, se 
póz a cavallo para os obrigar com morcer diante a tomarem 
á batalha ; e vendo que n^ihuma cousa aproveitava, tevaado 
o alfai^ contra os nossos, por achar a morte antes que o 
buscasse, cahiu do cavallo, e foi secretamente mettido na liteira 
com um mancebo eldie, por nome Manporico, onde Meceu 
de pura coragem e desesperação, lyudado tsimbem da enfermi- 
dade que trazia, avizando primeiro o melhor que pode que 
se tivesse em segredo sua morte, e o elche o soube fazer de 
maneira, que fez parecer a todos que Hutey Moluco estava 
vivo, dando as ordens em seu nome que mais convenientes 
lhe pareciam á batalha. 

Foi esta fugida, que os mouros fizeram de maneira que 
muitos não pararam senão em Fez, e n'oulros logares mais 
longe ainda, d'onde se publicou o vendmento dos christãos, 
e no campo se ouviu pw grande espaço, yictoria, victoria, 
dizendo ser Huley Moluco morto, que não faltou quem viesse 
dar esta nova, e Huley Amet, que depois foi rei, como em 
seu logar sedirá, fugiu com toda a sua gente, e não foi esla fu- 
gida occasionada de alguns Alarves que roubaram a bagagem 
de Huley Holuco, como Jeronymo Franqui diz, antes os mes- 
mos Alarves que estavam espiando o que aconteceria, vendo 
fugir os seus (como confessa frei António) deram o negocio 
por concluido, e como cousa que julgavam por de christãos, 
queriam aproveitar para si. N'esta coiyuncçâo, como os mou- 
ros eram sem conto, os que estavam na retaguarda iam le- 
vando o melhcH* dos portuguezes, sem saberem o que na sua 
vanguarda se passava, e o mesmo aconteda nas partes do 
meto, porque por todas eram commettidos. 

N^este tempo o duque de Aveiro, e os fidalgos da oom- 



d'africa 65 



panhía da bandeira real, como lhes havia mandado que se 
não bolissem sem elle mesmo lh'o mandar, vendo que, não 
apparecia, estavam em grande confusão, porque por uma 
parte viam quanto eíTeito fizeram n'esta hora, e por outra 
não tinham paciência com tanta observância; porém não ou- 
^vam bolir-se, como el-rei lhes havia dicto. 

N'este comenos o esquadrão dos aventureiros, que com 
estranho valor se havia de todos adiantado, chegou a ganhar 
a artilheria de Muley Moluco, e tão perto da liteira onde elle 
estava morto, que de cinco pendões verdes que junto d'ella 
estavam foram tomados dous pelos portuguezes, quando se 
levantou» uma maldita vo^, que um capitão por nome Pêro 
Lopes, que sargenteava o terço, infelizmente pronunciou, di- 
zendo ter posto uma alabarda atravessada diante da primei- 
ra fileira, ou por cuidar que levados do impeto e furor 03 
aventureiros haviam passado além do que convinha, ou se- 
gundo dizem por acudir a Álvaro Pires de Távora, capitão 
dò terço (posto que elle o não provocasse a isso, antes, se- 
gundo se tem, estranhasse depois muito), ao qual remettendo 
valorosamente com os inimigos, e esforçando os seus diante 
de todos, deram uma arcabuzada de que depois morreu; de 
maneira que os aventureiros, tão valorosos quão pouco exer- 
citados, pararam, retirando-se sem a devida ordem, o que se 
não acontecera, fora muito fácil cousa cortar a cabeça a Mu- 
ley Moluco, e posta como determinavam em um alto pique. 
Desenganados os mouros da morte que sempre lhes encobri- 
ram, deixaram totalmente o campo, passando-se ao Xerife 
que com os portuguezes ia. E por acpii se verá de quão pe- 
quenas cousas nasce às vezes tanta desventura, da qual este 
homem por tão leve occasião foi causa. 

, Tanto que os aventureiros se retiraram-, e perdido o furor 
primeiro, sentiram em sangue frio mais advertidamente os 
males que receberam, lastimando-se aquelles que vinham fe- 
ridos, e enchendo-se os mais de confusão; de modo ficaram 
9 



66 A JORNADA 



desordenados que os mouros de cavallo que aão se haviam 
acolhido (que todavia eram inQnitos) vendo os seus de pé fa- 
zer outra vez rosto, tornaram de novo à escaramuça, seguio- 
do os desordenados aventureiros. 

N^este comenos o duque de Aveiro, vendo os inimigas 
tão perto que quasí lhe punham a lanpa, sem el-rei apparecer, 
incitado de alguns fidalgos que com elle estavam (posto que 
sua obediência lh'o não consentia), forçado da necessidade, deu 
Santiago, animando valorosamente os seus, e picando rija- 
mente o cavallo, a lança que na mão tinha, de forte se lhe 
havia mettido por uma greta da terra, que quando foi a puxar 
por ella, de nenhum modo a pôde arrancar (qual ar bandeira 
no infeliz lagoTrasimeuo), e assim não podendo fazer demora, 
porque a gçnte de cavallo vinha carregando, levou da espada 
largando a lança, que parece que a terra inimiga já lhe arreba- 
tava, infeliz agouro certo, principalmente em mão tão valorosa. 

Correu o duque diante de todos, animando-os á batalha, 
e mandou metter o guião nos mouros por um fidalgo seu que 
o levava, por nome António de Vasconcellos, o qual como man- 
cebo se apressurou de modo que alguns do batalhão do du- 
que, ou não tendo tempo, ou quiçá não lhe passando a pala- 
vra, o não poderam seguir tão depressa. 

N'esta mesma coiyuncção D. Duarte de Menezes, que al- 
gum tanto do duque estava apartado da mesma banda, coia 
os fronteiros que o seguiam, e o Xerife que perto d'elle es- 
tava com sua pouca gente, se moveram a par, entrando nos 
inimigos, o que vendo também os fidalgos que acompanha- 
vam o estandarte real, sem embargo de não apparecer el-rei, 
não podendo aguardar mais, deram Santiago, de maneira que, 
juntamente com seus companheiros, foi feito tal estrago, que 
pondo em fugida grande multidão de mouros, começou ou- 
tra vez a apparecer a^.victoria da parte dos portuguezes. 

Mas emfim, que podiam fazer dous mil homens de caval- 
lo, por mais valorosos que fossem, contra quarenta mil que 



d'at^riga ^7 



Franquí confessa, fora aventareiros e Alarves, que vem a 
ser ainda maior numero do que elie diz que os portugiiezes 
acrescentam? 

N'esta conjuncpão chegou a el-rei um fidalgo, e lhe dis- 
-se, que os mouros tmham quasi tomada a artilharia, que sua 
alteza desse ordem para se lhe fazer resistência ; o que vendo 
el-rei, acompanhado de muitos fidalgos e outros cavalleiros, 
se lançou entre os mouros que estavam sobre ella pelejando, 
com tanto valor, que com muito damno dos inimigos lhe 
fez logo largar a preza, e com a mesma gente que o seguiu, 
e outra que se lhe ajuntou em differentes partes, quasi sem 
ordem fez algumas entradas nos mouros. 

■ Aqui foram mortos com valor estranho dous irmãos d'a- 
quelles cinco que juntos entraram na batalha: D. Henrique de 
Menezes, e D. Simão de Menezes, o qual foi visto com uma 
'bandeira dos inimigos na mão, sobre um montão de mortos, 
incitando os vivos (já quasi- sem vida) a semelhante exem- 
plo; e assim foi morto D. João da Silveira, filho do conde da 
■Sortelha, herdeiro de sua casa e do valor de seus ascendentes ; 
fl. Manoel de Menezes, bispo de Coimbra, que com a lanpa 
em logar de báculo, no sancto augmento dá fé catholiea, mos- 
trou por obra que inda nas armas fez vantagem às lettras. 

Da mesma maneira acabou Ayres da Silva, bispo do Por- 
to; D. Affonso de Portugal, conde de Vimioso, e D. Manoel 
seu filho, que banhando a terra com seu sangue, mostra- 
ram a innocencia de seu animo, na maldade por Jeronymo 
• Franqui injustamente opposta. Também foi morto D. Vasco 
Coutinho, e D. Luiz Coutinho, conde de Redondo, que emfim 
ousou banhar-se de tal sangue esta terra. O regedor Louren- 
ço da Silva, de uma escopetada, cujo valor parece que não 
ousava a morte accommetter de. perto; D. Diogo de Castelbran- 
00 ; Jorge da Silva, a quem não faltava, no largo processo de 
sua honrada vida, senão o remate de tão feUz morte, que- 
rendo antes por sepultura o duro campo dos infiéis inimigos 



68 A JORNADA 



em terra estranha, que o pomposo sepulchro tão ennobreci- 
do em sua terra. 

Aqui foi morto Sebastião de Sá, o qual costumado a tan- 
tos vencimentos, não podendo soffrer a retirada a que o gros- 
so pezo dos esquadrões inimigos obrigava os portuguezes, 
arremetteu aos mouros, dizendo á vista de todo o mundo que 
o seu cavallo não voltava, e assim pelejando foi buscar a 
morte, temendo talvez não a achar onde ella estava tão 
certa; também acabou D. Vasco da Gama, conde da Vidi- 
gueira, valorosamente, e D. Martinho de Castelbranco em com- 
panhia dos aventureiros, d'onde lhe pareceu esperar mais 
quedo a morte. 

Assim acabaram também D. Diogo de iMenezes, e D. 
Francisco de Menezes, filhos de D. Fernando; e D. Luiz de 
Menezes, filho de D. Aleixo, aio d'el-rei, que todos juntos fo- 
ram em companhia, fazendo tão estranhas maravilhas^ como 
de tal progénie se podia esperar. 

Aqui morreu também o barão d' Alvito, D. João Lobo, 
o qual, tomando um barrete vermelho nos dentes, quasi si- 
gnificando que o tempo era mais de obras que de palavras, 
se lanpou entre a multidão de seus inimigos, onde acabou 
valorosamente, depois que por largo espaço á custa de mui- 
tas vidas lhe deu a entender a tenção de sua empreza. 

Também acabaram como esforçados cavalleiros D. Ál- 
varo, D. Henrique de Menezes, D. Diogo Lopes de Lima, 
Lopo de Sousa, João Quaresma, Sancho de Faria, Manoel de 
Sousa, Simão da Veiga, e foi morto D. Francisco de Moura, 
filho de D. Luiz de Moura, fidalgo muito cortezão, e grande 
' homem de cavallo, mostrando com grande valor na guerra 
o effeíto do nobre ensaio, em que na paz andava exerci- 
tado. 

Aqui acabou também D. Jayme, filho do duque de Bra- 
gança, com bem differente successo do que seus avós tive- 
ram n'esta terra, não no valor, por certo, mas na fortuna, 



d'africa 69 



que nem sempre está propicia às heróicas obras ; também foi 
morto com grande valor, pelejando, D. Rodrigo de Mello, 
filho do marquez de Ferreira, que então era conde de Tentú- 
gal, aquelle honrado velho, que se no dinheiro, que lhe foi 
pedido por honra, se mostrou com el-rei avaro, foi tão li- 
. beral por ella em seu servipo que deu prodigamente quanto 
tinha em cousas que não tem prepo, pois mandou na jorna- 
da três filhos. 

Aqui acabaram também valorosamente D. Pedro, e D. 
Lourenpo de Noronha, flJhos do conde de Linhares, e foram 
mortos, pelejando como honrados cavalleiros, dous filhos de 
Fernão Telles: Jeronymo Telles, e Manoel Telles, o qual ten- 
do um notável pejo nas mãos de seu nascimento, bastante 
a qualquer digna escusa, de nenhum /modo se quiz aprovei- 
tar disso, antes para acompanhar el-rei se começou a exer- 
citar de novo, até que veio a menear a lanpa, e cuido certo 
que sem mãos o acompanhara, que não é menos bastante a 
lealdade, amor, e obediência que os portugaezes tem a seu 
rei; assim acabou este ousado mancebo, em que pôde um 
animo honroso quasi milagrosamente supprir a falta da na- 
tureza, dando-lhe mãos para servir seu rei, e para buscar 
memoria, sem fim na vida, e glorioso premio na morte. 

De tão illustre sangue como havemos dicto andava n'es- 
te tempo o campo cheio de vivos e mortos, juntamente va- 
riando a morte com lamentáveis successos, e sustentando-se 
a desprezada vida á força de valor e de ventura. 

Era cousa digna de bem grande magoa ver n'este es- 
tado encontrarem-se os amigos e parentes, dando-se breve 
conta das feridas que traziam, é tomando conselho d'onde 
com mais honrado efíeito poderiam acabar as vidas, que do 
remedo já não tractavam, impossibilitados do infinito nume- 
ro de seus mimígos, e assim quando algum fidalgo d'estes, 
ou qualquer outro homem de valor acabava de matar algum 
mouro, vendo o pouco que fazia acaso a falta* d'aquelle ini- 



70 A JORNADA 



migo entre a multidão de tantos, perdia totalmente a 
fiança^ e quasi a pacieQcia, sem poder achar algmn moda de 
remédio contra o furor da infernal copia, que tudo 
em oeiro, salteava e discorria, sem deixar logar em qpe 
guem podésse estar odoso, de tal maneira que em cm 
to modo perdia o valor seu preço, pois vendo-àe tão 
ixmlta tantos fizeram tão altas mara\iUias, que se podÊa 
dar que era mais necessária defensão que natural esfo^fiu 

Desceram pois os grossos esquadrões dos inimigos 
tantas panes sobre a$ portuguezes, que os mais á'die& 
nm DhHtos no campo: e o duque de Aveiro, não poucodii 
tão poaca gente so^Trer o peso de tamanha mnltidãrt, se 
rxNi de maneiía que investiu, forçado dos inimigos, por 
pane do esquadrão dos tudescos, desordenando os 
e depcá? d'i:M perguntando por el-reL com a poaca gn^ 
lhe dcavi e com outra a quem pecsuadiu que o segEsae-^ 
uvxi nos 3K>nrd> o;;tFa \iez. doude perdendo a vidaeci tu- 
>^KDd dãmp> muâroa quantos pniKesa» de inthuio 
ve »> aaDàOL e asási foi tamiaha a perda deste pr^sãft^ 
:^ a virta!^ ignava o animo, que se ama s^J* paéeaL 



X^^sai («c^.-ipkx ;ai9bei& o Sen& eom ssa eijsàt^ 
SI» 5:^ siaL»]& in^ne^siii sez!i opãempeloraa^ âi 
^ HÉOáy ^^ Jãty^ ja ^«icferfava 4 ser ^^of^fosãõ -e Ãf$ 




r_ :• çie faa z 






d' AFRICA 7 1 



elle, que icabou a vidl^ não perdendo resistir a tantos, e foi 
feàto em muitos pedaçoô^ qm senão satisfizeram com me- 
nos os executores da covardfe vingampa. 

lambem foi morto de uma escopetada Álvaro Pires de 
Távora^ da Pesqueira, que n^este esquadrão ia ; e serido mor- 
tos emfim muitos italianos, que bem haviam pelejado como 
destros soldados^ o marquez Thomaz, seu cafHtâo, e grande 
parte dos! castelhanos, que também o fizeram valorosamente, 
o os mais dos soldado» das fronteiras de Africa, que com es- 
tranho valor pelejaram, por serem como eram eadá dia exer- 
cftados com estas gentes, e outros homens nobres e soldados 
de* valor, sem lhe ser necessário o exemplo dos estrangeiros, 
como escreve Franqui e segue frei António^ attribuindo aos 
portíiguezes somente grande medo, em tempo que realmente 
todos passavam a mesma miséria, carregaram infinitos bestei- 
KW, e arcabuzeiros de cavallo, que regia Amette Latava, elche 
genovês, os quaes matavam* sem alguma resistência os aven- 
tareíros e mais soldados' que lhe não podiam fazer algum 
damno, de maneira qué tudo era magoa, temor, e confusão. 

A gente de Vasco dé Silveira, e I>. Miguel de Noronha, 
(pie era realmente a de menos* valor,, por serem homens quasí 
todos cdhidos por força, sem vontade e sem experienGiaí, pe - 
leja^vam no meio mui froiDiamente, estando todos amontoados, 
sem ousaEefm saMr ao campo a squdar seus companheiros, por 
mais que seus^ capitães e coronéis os excitassem e movessem. 

Ailguns^uierem dizer q«e el-rei mandou que estes esqua- 
drSes se» não boíissem como corpo* dft bartafta, nm em tal tem- 
po era. porém maíB acto de covardia que^ de obediência. 

Não deixava em todo este tempo á gente de Âmette La- 
taba de persegufc a todos, que muito- solfei' e destra percorria 
todo, ^er foii reaimiente o^ remate da perdípão dè' todo o campo. 

Eft-rei n^eâtfe' tfemptt^ andavai por tteda a paale pelejando 
pessoalmente, ' como se s6 no vaior de seu btaçO' estí^vera o 
r^B»8dk) de todos^ e havift> tomado com sms mãos duas baj!"- 



72 A JORNADA 



deiras aos mouros, e lhe haviam morto outro cavallo ; e an- 
dando d'esta maneira em um que lhe deu Jorge d* Albuquer- 
que, com Christovão de Távora sempre a seu lado, e D. Jorge 
Tello, pagem do guião (que estranhas maravilhas havia feito), 
bem certificado dos termps em que as cousas estavam, quiz 
tentar a ultima fortuna, mais desdenhando a dilatada vida, 
que presuppondo novas esperanpas. E assim com os mais fi- 
dalgos e cavalleiros que se podéram ajuntar, entrou nos mou- 
ros com tanto valor e ousadia, que todos á custa de muitas 
vidas lhe davam largo caminho, não ousando esperar o des- 
esperado encontro ; porém não tardou muito que tanto es- 
forço em numero tão pouco, cedesse á multidão dos inimigos, 
retirando-se el-rçi ferido no rosto, e fenecendo os mais dos 
cavalleiros e fidalgos, que n'esta volta o acompanharam. 

Cousa certo é digna de grande admiração ver a estranha 
lealdade dos homens 'nobres, e fidalgos portuguezes, e como 
se não contentavam por serviço de seu rei aventurarem as 
vidas, presagos quazi da vizinha morte, senão que pródigos 
de seu sangue queriam também sacrificar seus filhos. 

N'este ultimo conflicto foi morto João Carvalho, o qual 
andando já com uma lançada nos peitos, muito cansado das 
entradas que nos mouros havia feito, entrou seu filho Pêro 
Carvalho, herdeiro de sua casa, moço de grandes esperanças, 
com duas cutiladas na cabeça, todo banhado em sangue, de 
tal modo que apenas foi d'elle conhecido, vencendo-se pois 
doesta maneira o pae e filho; depois de se darem os últimos 
abraços, confortados no glorioso fim que se esperava, parti- 
ram juntamente, sendo mortos em tão ditosa companhia, ó 
visão piedosa, a cuja vista parece que treme a terra, e o céo 
se abre, quasi arrebatando os gloriosos espiritôs. 

Aqui morreu também Gomes Freire, o qual foi visto com 
muitas feridas em todo o corpo ; e andando já sem elmo, pe- 
los muitos golpes que havia recebido, e grande calor do dia, 
lhe deram uma lançada por um olho, de que acabou a vidai 



d'africa 73 



N'esta mesma volta/ ao fim já da bs^talha, na qual com 
tanto valor se havia sustentado, foi morto juntamente, não 
com menos esforço, seu filho Nuno Fernandes Freire, fazendo 
tantas maravilhas um e outro, que de muitos cavalleiros 
podéram supprir a falta, e não de um só como o mesmo Go- 
mes Freire havia dicto a el-rei. 

Aqui morreu também António de Souza, aquelle gentil 
mopo filho de Diogo Lopes de Souza, governador da casa, com 
que pôde tanto a força de honra e amor de seu rei, que não 
tendo outro o mandou em sua companhia quazi em sacrifí- 
cio, o qual andando já sem elmo dos golpes que n'elle rece- 
bera, com uma cutilada pela cabeça acabou a venturosa vida, 
antes de tomar quazi posse d'ella, pois não passava de quinze 
annos^ 

N'esta conjuncção, depois da retirada, como havemos 
dicto, vendo D. Fernando de Mascarenhas, que junto a el-rei 
estava, virem -se chegando alguns mouros a elle, não ^offren- 
do como leal cavalleiro a próxima oífensa que se lhe offere- 
cia, se lançou entre elles tão ousado a receber a morte, que 
todos lhe deram logar á custa de suas vidas, até que a tanta 
multidão cedeu a virtude, e foi morto ás lançadas diante 
de seu rei. Cousas por certo são estas todas dignas de não 
passarem em silencio, com grande inveja das gentes, e larga 
satisfação dos justos, príncipes. 

Aqui acabou também Gonçalves Nunes Barreto, que com 
grande valor se havia sustentado em todas as entradas, po- 
rém como trouxesse algumas feridas, principahnente uma es- 
copetada que o atravessava de .parte a parte, andava arremet- 
tendo aos mouros com a espada na mão, tinta em sangue, 
buscando somente na ultima vingança honrada sepultura: 
quando sem vigor algum da mortal ferida cahiu do cavallo 
abaixo, quazi nos meus braços (que acaso me achei presente), 
armado de armas brancas, onde acabou em um momento, 
com os olhos no céo, para onde seguramente caminhava. 

10 



74 A JORNADA 



Aqui morreu tambeni, como âoBrado.e valoroso cavai- 
leiro, &. João Pereira, filfao de D.. Francisco Pereira; Luk 
de Alcáçova foi morto- ik) uUâino dia batalha, assim como Mar 
Doe{ Quaresma, que deu com sua morte feliz sepultura á vida, 
e claro testemunho dos limitados termos da fortuna. 

Aqui acabaram também Estevão Soares de Mello, e Ber- 
nardo de Mello, ambos em companhia como* esforçados ca- 
valeiros, e foi morto &. Gonçalo Chacon, cavaileiro castelha- 
no, pelejando com estranho valor em todos os perigos da 
batalha, e D. Alonso de Aguilar, coronel dos castelhanos, o 
qual acabou tão valorosamente, que sendo algumas^ vezes 
mmto necessária^ e quazi forçosa a retirada, sempre dizia, 
arr^miettendo com os inimigos : — mmcsi Dios quiera. que la casat 
de Aguilar buelva atraz — como lhe eu ouvi algumas vezesi. 

Aqui acabou, também Francisco de Âldaoa, que como 
gentii eapitão e bom soldado fèz obrais muito dignas de seu? 
nome; e foram mortos, pelejando vaiorosameote^ Thomé da 
Silva, Joanne Mendes de Oliveira, Ctaistovão de Alcáçova,. 
I>v Pedro da Cunha, D. Nimo Manoel, Ghristovão de Brito, 
André Gonçalves, alcaide-mór de Gintra, e Alonso Peres Pam- 
toja, de duas escopetadas; D. Sancho de Noronha, D.. João e 
D. Luiz de Ciastro, fllhos. de D. Álvaro de Castro, Leonel de 
Lima, D. MatMas de Noronha^ D. Gaspar de Teive, Sd)a8tiào 
Gonçalves Pita, Francisco Henriques, João Gomea Cabrsd, B. 
Rodrigo de Castro, D. Rodrigo^ seu sobrinho, e D. Biogo 
de Castro, dja casa do Torrão; e foi morto Lourenço Amaído^ 
frontOTo em Tanger, como valoroso cavalleiro que er^ e se 
mostrou em Arzila, na primeira escaramuça diante el-rei^ de 
qAiem íoi muito louvado, e* assou foi morta comi vatev ei^ra- 
nho; Õ. Garcia de Menezes, ao qiSEal el-res, poir sua muita, ida- 
de, quiz estorvar que: o acompanhasse, o quet nunca pôde con- 
seguir, e justamente seu filfao &. Duarte de Menezes', e 
D. Gonçalo de Gastelbranco ; e assim foram mortos valoro- 
samente Mlamoel de Miranda, Aatonio L(^, alcaide-mór de 



d'afriga 75 

Monparas, D. Manoel de Lacerda, Matheus de Brito, Ruy de. 
Figueiredo, Fernão de Sousa, D. João Manoel, D. Francisco, 
seu filho, D. João Henriques, Bartholomeu da Silva, D. Pedro 
de Menezes, filho de D. Duarte de Menezes, mestre de campo 
general, Garcia Afl^onso de Beja, Francisco Domingues de Beja, 
filhos de Rodrigo Affonso, Sebastião da Silva, filho de Fer- 
não da Silva, João da Silveira, de Beja, Duarte Dias de Mene- 
zes, Lopo de Sousa, M.artim Afibnso, seu filho, D. Luiz de 
Almeida, D. Álvaro Coutinho, Jorge da Silva, filho de Duarte 
da Gama, Henrique Correia da Silva, filho de Ambrósio Cor- 
reia, D. Manoel Rolim, D. Affonso, conde de Mira. 

Também houve alguns fidalgos que morreram logo de- 
pois da batalha, como foram Luiz da Silva, filho de Braz Tel- 
les, em resultado das muitas feridas que recebeu; D. Antão 
de AUnada, D. Fadrique Manoel, cujo corpo resgatou sua mãe 
D. Joanna de Athaide, e Nuno Furtado de Mendonça, aos quaes 
n'este logar podemos também dar a sepultura, pois n'elle 
com tanto valor tomaram posse da gloriosa morte que ti- 
veram. 



CAPITULO VII 



DO puí que teve a batalha 



. sorte acãbar^n estes e outros muitos fi- 
l ÍIm*'^'^°^ ^ senhores, que alo é possível serem 
I W Kii^fóridos, e algirns nobres cavalleiros, sendo dos . 
~ "^^ m;us os que não quiz a mo'rte lambem acompa- 
nhados, que só em não ficarem vivos lhes fizeram vantagem, 
se vivos se podem chamai* aquelles que de feridos e cançados 
ficavam também nas màos da morte. Dos quaes não fazemos 
em particular menção alguma, posto que muitos fizeram obras 
dignas de eterna memoria, assim porque seria processo in- 
finito, como porque na verdade, na batalha onde el-rei mor- 
reu, só mortos se podem nomear. 

Já n'este tempo os que ficaram vivos andavam sem or- 
dem pelejando cada um na parte onde se achava, e os IVon- 
teiros de D. Duarte de Menez'es, que era sua companliia fize- 
ram maravilhas nas armas, lambem eram quasi lodos acaba- 
dos, e os mouros do Xerife, 

N'este tempo foram mortos grande parte dos tudescos, 
com monsietu" de Tamberg, seu capitão, pelo infinito numero 
de Alarves que com elles investiram, sentindo a fraqueza em 
que estavam. Na retaguarda era já morto Francisco de Távora, 
que sustentou com grande valor aqueUa parte, a qual se ha- 
m mui fracamente n'este estado, por serem já muitos mor- 



78 A JORNA©A 



tos, e os mais, entrados do temor e espanto da morte, não 
faziam mais que buscar remédio á vida. 

Vendo os mouros n'este tempo a gente tão cançada, e 
já tão pouca, como a cercassem de todas as partes, por se 
aproveitarem da occasião que a fortuna ^Ihes ofTerecia, aperta- 
ram de novo rijameníe, andando sempre Amet Lataba fazen- 
do irreparáveis damnos com o grosso batalhão doé escopetei- 
ros de cavallo, de modo que por muitas partes começaram a 
romper o campo, posto que n'outras se pelejava ainda, po- 
rém mais por venderem bem as vidas, que com esperanças 
de victoria. E sendo emíim quatro ou cinco horas da tarde, 
havendo-se começado a batalha ás onze, se acabou de decla- 
rar a desventura dos portuguezes, e aão como diz Jerony- 
mo Fraaqui em pouquíssimo espaço, antes cuido certo que 
nunca se viu tã^ pouca gente, sendo o mór numero d'ella 
tão mal exercitada, e de tão fraca qualidade, sustentar tanto 
tempo o grosso pe^o de tantas gentes, sendo por tantas par- 
tes combatidos, que todos careciam de soccorro, e ninguém 
podia soccorrer seus companheiros ; e assim os mal reparados 
esquadrões começaram a encolher-se desordenadamente, àm- 
vendo grande .confusão e miséria em toda a parte, porqro 
cada um procurava não se achar da parte de fora, e queren- 
do todos estar ^ de dentro, como não podia ser, cabiam uns 
sobre outros desordenadamente, e muitos se mettiam debaixo 
das carretas, outros buscavam alguma boa occasião de se sal- 
varem 6m oavallos que no <»mpo andavam sem dono. De 
maneira que não liavendo já defensão, usavam os mouros a 
seu alvedrio ou de piedade, captivando, ou sem elia, matando 
covardemente ousados. Pelo que era tania a confusão e des- 
ventura, que nem póáe ter nome, nem contar-se, e n^este 
estado bem podem confessar os portuguezes quanto de suas 
Govardias escreve Franquí, e traslada frei António, mas tam- 
bém parece que nío podem eflles negar, que nunca houve no 
mundo algunra gente, fle todo rendida e desbaratada, por mais 



79 



valorosa que fosse, que deixasse de esconder os (dhos ámortf, 
c mais, ainda assim, alguns olislÍDadameute se defendiam. 

El-rei n'este tempo, bera certificado de tanta desventura, 
depois de Ilie matarem outro cavallo, fazendo as maravilhas 
que todo o mundo \1u, andava acompaobado do alguns fidal- 
gos, que pretoudíam salval-o, a lioco de suas \idas, quando 
se viu cercado do uma multidão de Alarves, d'onde não sentin- 
do oa que o acompanhavam algum remédio a sua salvapão, 
se apartou um d'elles, por conselho dos mais, com um lenço 
posto na ponta da espada, e dando conta aos mouros como alli 
estava el-rci, no melhor modo que lhe foi possível, lhe respon- 
deram que largassem as armas primeiro, e então poderiam 
Iractar do que ihe convinha. A qual resposta el-rei sentiu de 

I maneira, que sem escutar mais accordo se lançou a elles fu- 
riosamente, acompanhado ács quo o seguiam, pelujaudo todos 
«om desesperada ousadia por sua salvação, onde dizem que 
cahia depois de morto o cavallo. 
Até este passo houve algumas pessoas dignas de fé, que 
ousaram revelar o acontecido, porém se viram mais, não se 
sabe ; o que se \iu sempre claramente, é que nunca alguém 
disse que vira raatar a el-íei, o não é muito, realmente, pois 
nenhura homem que ficasse vivo é razão que tal confesse. 
N'eate ultimo conflicto foram mortos, com estranho va- 
lor, D. Jorge de Lencastre, de uma escopetada; D. António 
da Costa, filho de D. Gileanes da Gosta; D. Álvaro de Castro, 
D. Jorge de Faro, João ái Henclonça, Luiz Alves de Távora, 
Christovão-de Távora, D. António de Noronha, U. João Masca- 
renhas, Luiz de Gatilho, e o desembargador António Velho 
Tinoco, ouvidor do campo, o quai, depois de pelejar valorosa- 
mente na batalha, entrou nos mouros, onde ibi morto, di- 
zendo: — ora, senhores, aqui não ha mais que a alma a Deus 
e o corpo á honra; — e assun foram mortos o desembargador 

Francisco Casado de Gai'valho, furrlel-múr do campo, e seu 

^K hinão Pedralverez de Carvalho. 



80 A JORNADA 



O Xerife n'este tempo pretendeu salvar-se, e querendo 
passar a ribeira do Mucasin, se afogou, por estar n'esta cour 
juncfão a maré cheia, que do rio Lucus se communica com 
elle. 

Esta foi na verdade a summa de toda a desventura, e 
o que se pôde colher de vista própria, e de alguns fieis com- 
panheiros ; e se houver alguém que visse outras muitas cousas, 
e não estas que dissemos, saiba que tudo podíar acontecer, 
mas que não é possivel escrever-se tudo, como se pôde jul- 
gar pelo que acontece em uma pequena briga, que sendo a 
sustancia toda uma, reduzida a tão limitados termos, cada 
um conta as cousas de maneira, que corre muito risco a ver- 
dade do successo : e lembra-me que vi fallar n'esta matéria 
em conversação algumas vezes, sem jamais uma pessoa con- 
cordar com outra, porque cada um quer que seja somente 
aquillo que elle viu, e pois não é possivel contestar com to- 
dos, basta que se apontem as principaes occasiões de perdição, 
que na verdade a matéria não dá de si nenhum gosto para 
se dilatar curiosamente. 

Os mouros que n'esta batalha morreram foram muitos, 
porque só dos que recebiam soldo faltaram dezoito mil, vistos 
e examinados depois os livros de matricula em Fez, segundo 
os mesmos mouros diziam, e confessava Reduão, elche por- 
tuguez, viso-rei de Barbaria, por quem corriam estas cousas, 
posto que Jeronymo Franqui diz que não morreram mais 
que três mil; porém como se não achou lá n'e3te tempo, 
não é muito. Dos christãos morreram bem metade, mas ain- 
da assim forara outros tantos os mouros^ 

Doesta maneira passou toda a jornada que Jeronymo Fran- 
qui escreve, da qual parece certo devia ter errada informa- 
ção, porque não parece possivel ousar algum homem dizer se- 
melhantes cousas, tão fora do que aconteceu; porém, se 
chega a tanto a maldade humana, seja Deus louvado que 
foi servido não somente dos males e perdas d'este reino. 



d'afriga 8 1 

mas ainda penníttía com tanta ousadia a solta mentira em ma- 
liciosas línguas. Frei António de S. Romão, castelhano monge 
de S. Bento, segrae Franqui, trasladando-o quazi todo, com al- 
gumas cousas mais de quem devia ser mal informado, como 
é Èfem que se cuide de um religioso; mas quem por ventura 
não vir como elle contesta com Jeronymq Franqui, nas cou- 
sas que cegamente escreveu, cuidará que as não diz todas, 
pois promette no seu tractado da jornada e morte d'el-rei D. 
Stíyastião tirar-lhe toda a malida e mau zelo com que as disse ; 
e o qoe mais se pôde notar é que, dedicando o livro ao con- 
destavel de Cástella, e attribuindo-lhe o nome de portuguez, 
pelo novo parentesco do duque de Bragança, cuidaram que 
se inclinava elle em favor dos portuguezes, sendo tanto pelo 
contrario, qu^ bem notado o modo com que tracta da herança 
do reino de Portugal, parece certo que quer diminuir ^ ver- 
dadeira estimação que os reis de Hespanha devem fazer d'elle, 
e o respeito e amor que a seus naturaes é devido; dizendo 
que sua magestade herdou esta gran coroa que se havia des- 
troncado de Cástella, como se não houvera accrescido nada, 
e tornara a seu primeiro ser, da maneira que foi dada em 
casamento ao conde D. Henrique, não sendo então mais que 
um condado minto pequeno, e muito estreito, e agora um 
grande império, como elle mesmo confessa. Pelo que muito 
mais se lhe pôde estranhar do que a Justo Lipcio (que como 
estrangeiro podia ignorar estas cousas^t posto que muito dou- 
to) não fazer lembrança da aventurosa successão d'este di- 
latado reino, escurecendo o contentamento que os novos prin- 
cipes d'iaso podem ter, fazendo com razão mercês a seus 
vassallos, que nunca grandes bens sãò menos de estimar 
por mais que se mereçam. 

Nem ha razão alguma para que os reis de Hespanha dei- 
sem de amar aos portuguezes como a filhos, antes lh'o de- 
vem de foro, pois bem claro se vé que toda a herança pas- 

1% com suas condições. 
11 



82 A JORNADA 



As condições d'este reino foram sempre serem os vas- 
sallos filhos e o rei pae e senhor,, mercês e obrigações tão 
conhecidas como nos portiiguezes se tem visto, não digo eu 
n'este reino, mas cinco mil léguas d'elle, onde nunca hou- 
ve em tanta multidão de gentes, no decurso de tantos an- 
nos, um pensamento de desobediência, que não tem menos 
força o amor e lealdade dos portuguezes. 

Como bem se viu, quando D. António, filho do infante 
D. Luiz, veio a esta cidade de Lisboa, com dez ou doze mil 
homens, não houve portuguez algum de substancia que se 
passasse a elle, nem ainda dos mais humildes (a não ser por 
força), antes se defenderam como cruéis inimigos, d'aquelles 
que por amigos e libertadores se apregoavam, cousa que posto 
fosse de tão justa obrigação, não deixa de ser de grande 
meredmento diante de seu rei e seu senhor, com perpetuo 
credito de sua fidelidade e paternal amor de benigno prín- 
cipe. 

Quando a rainha D. Catharina, nossa senhora, que está 
em gloria, governou estes reinos sem fallar portuguez, de- 
fendeu aquelle tão memorável cerco de Mazagão, mais por 
honra que por necessidade, só com diamar a seus vassallos 
filhos, e os .ter n'essa conta, sustentando a posse em que os 
deixou el-rei D. João, seu marido e nosso senhor, sendo em 
tanto extremo amada e obedecida, que o maior trabalho que 
tinha era mandar aos grandes, sob pena de caso maior, que 
se não embarcassem, è tirar das nãos por força os filhos me- 
ninos dos homens nobres, fidalgos e senhores, que se em- 
barcavam, levados do amor, sem saberem onde iam. 

Continuando assim este zelo e fidelidade como se pôde 
ver ainda agora no tempo em que isto estamos escre- 
vendo, e estando uma armada hoUandeza muito numerosa 
sobre a cidade de Lisboa, se embarcaram à porfia quinhen- 
tos homens nobres d'este reino, em companhia de D. Luiz 
Fajardo, general do mar Oceano por sua inagestade, ô mais 



de cento e quinze fidalgos illustres e senhores, onde entra- 
vam muitos dos principaes morgados, e de ião poucos an^ 
nos alguns, que só o valor lhes dava idade, sendo tão 
igual o partido no numero das náos, e Ião certa a briga, 
como se podia esperar de gente que parece não esperava 
outra cousa, sem serem constrangidos, nem quiçá anima- 
dos uns, nem outros, mais que da fiel ousadia portugueza, 
e zelo do serviço de seu rei. Antes foi isto cousa era mui- 
tos Ião pouco esperada, que de alguns era tanto animo 
julgado a desatino, mas desatino honroso, d'onde ^e pôde 
bem ver a lealdade dos porluguezes, como está dicto. 

Mas tornando a nosso propósito, que muito largamente 
I havemos discorrido fora á'e\le, sendo tão interessados na 
1 matéria, digo que quinhentos homens, fidalgos illustres os 
1 mais d'elles, entraram n'eata batalha, na qual houve família 
I de que não escapou alguém, e aquelles que viveram 'foram 
pouco mais de duzentoe, pela maior parle muito feridos. 

Grande por certo foi a desventura dos portuguezes, po- 
rém se não fura a morte d'el-rei, em cuja vida se acabou com 
todo o remédio, e consolação de tantos, nào ia tanto era se 
perder uma jornada de quem elle podéra toraar satisfação, 
vivendo com disfíurso raais maduro, e palpável experiência, 
que muito mais gente não menos illustre se perdeu em qua- 
tro jornadas de Inglaterra, e já hoje não lembra^ mas a fal- 
ta d'el-rei aggravou tanto este negocio, que até seraelhantes 
homens se atrevem a destruir a honra dos portuguezes, com 
tanta soltura, não sentindo quem se magoe d'eale reino. 

Três cousas não pôde negar o mundo todo á napão por- 
tugneza, as quaes são: bom nascimento, valor, e religião. 
Primeiramente no que toca aos bons respeitos celestes para 
serem bem nascidos, que sempre em nós iniluera conforme 



? saber que o mundo está repartido em cinco zonas, 
1 saber: duas frigidas, que ficara debaixo dos poios; 



84 A JOBNAl^ 



unia tórrida, á qual corta a equíaods^ pelo meio, e duius teH>- 
peraãas^ dd9 quaes aqpella que está da nossa parte ák> norte, 
e começa em vinte e ties graus e melo, é repartida em nov^ 
climas, ou regiões, e doestas regiões a do meio se chama 
áê Roma, a qual é a mai$ temperada e melhor, em ciya altudra 
e respeito a Hespajiha está posta, e Portugal no meio de sua 
melhor altura, e mais ocddental que todos os reinos da Eu- 
ropa, e na qualidade da ten?a em maás benigna e mm sua- 
ve parte da todas, p^ onde nenhuma gente do mundo tem 
melhoras respeitos para ser bem nastcida, antes só em ser a 
ultima, atém das mais prerogativas, foz a portugueza vanta- 
gem a todas, pois vemos que dajs cinco partes do mundo 
a Europa é a melhor no valor e na sdencia, que é todo o bem 
das gentes. 

Pois no valor hem sabe o miuido todo que Portugal, sen- 
do um pobre condado, veio a fazer-se tão nobre reino, pelo 
grande esforpo com que os portugue^ses lançarsmi fora os mou- 
ros, de que estava quasi todo occupado, com tantas e tão in- 
signes batalhas, e nobres maravilhas, defendendo-se junta- 
mesle de seus visinbos hespanhoes, tão valorosos, e não se 
contentando com ílesarem d'elles isentos, lhe entraram algu- 
mas vezes por seu reino, sahindd com todas estas cousas a 
sê(ci salvo por espaço de quinheMos a^oos pouco mm ou me- 
nos, ató quando Deus foi servido que a razão somente os ven- 
cesse na successão d'el-rei Phílâppe, nosso senhor, quô está 
em gloria ; e poçqpie se acabe de ver quão suMdo valor foi 
sempífe o doesta nação, digo que Deus com sua própria boca. 
a approvou, quando em toda a christaftdade encolheu somente 
os pear tuguezes para levarem sm sancta fé a partes tão remo- 
tas e inimigas, empreza tão mairavilhosa, de tanto per^ e sof- 
Mmeaito, que muitos lhe cbama^ram doucUipe, e todo o nnmdo 
temeridade, e vemos todavia, que a vontade do mesmo Se- 
jÈua (s^ eHe louvacio) M feita, e que responderam suas 
obras ao piesi^piposto da Divinâi eleição, ânrando de eem an- 



d'afriga 85 

nos a esta parte com tanto valor, cada dia em crescimento, 
os effeitos d'ella. 

Pois no que toca a religião, bem sabem as gentes todas 
o puro zelo que tem da sancta fé catholica, e o particular 
cuidado e devopão do culto Divino, em que ninguém lhe faz 
vantagem, tanto que Abrahâo Ortelio, auctor muito grave, 
quando descreve as grandezas e qualidades das provincias 
de todo ò orbe, conta por maravilha o infinito numero de 
igrejas e sumptuosos templos que ha no reino de Portugal 
(onde á porfia parece que cada hora vão em tanto augmento), 
tão enriquecidos pela pia vontade e devopão dos príncipes, 
e mais gentes, attribuindo quasi a 5lle somente, por excel- 
lencia, o grande fervor e zelo de christandade, como reconta 
dos mais outras grandezas. E Estrabo, antiquissimo escriptor, 
diz que foram sempre muito tementes aos Deuses, e grandes 
amadores de seu culto, que não é menos antiga esta pia in- 
clinação que sempre tiveram as cousas Divinas, ainda que 
fosse então por ignorância erradamente, d'onde se pôde in- 
ferir que já Deus n'este tempo os ia dispondo para o que 
d'elles depois determinava. 

Não tracto d'outras muitas cousas de que os volumes 
naturaes e estrangeiros estão cheios, pelo que convém a bre- 
vidade, e porque seria processo infinito. 

Pois agora, sobre todas estas verdades, que com razão 
parece não deve negar Franqui, nem frei António de S. Ro- 
mão, diga o mundo o que quizer, que tantas mercês como 
Deus tem feito aos portuguezes os pôde fazer viver muito 
confiados, que não ha-de sua Divina magestade apartar nunca 
a face d'ellas, como no campo de Ourique de boca própria se 
penhorou, nem podem com razão ser desconsolados com tanto 
castigo da mão Divina: que culpas castigadas reduzem sem- 
pre a mais perfeito estado os peccadores diante de Deus. 



» , 



LIVRO II 



EEIAÇAO DO CAPTIVme NA JORNADA FAPEIGA 



CAPITULO I 



RENDIDA A BATALHA, DESCEM OS MOUROS AOS DESPOJOS 




lEPois que OS mouros alcanparam esta victoria, 
tão pouco d'elles merecida e esperada, sendo o 
Icampo de todo rendido, cessou em parte seu fu- 
Iror, e não sentindo já alguma resistência arremet- 
teram aós despojos, usando tão mal da clemência que de- 
vem ter os vencedores, que muitos que parece não acharam 
logar de exercitar sua ira emquanto durou a batalha, far- 
tavam depois seus ânimos covardes nos já rendidos; sendo 
principaes executores d'esta vil façanha infinitos Alarves, que 
desceram á pressa dos altos montes, onde estavam de ata- 
laia. 

Via-se no campo tanta desordem e confusão, como se 
pôde imaginar de semelhante miséria, sendo tão varias as sor- 
tes e tão tristes, que ainda depois de tanta desventura só por 
ventura se escapava, como aconteceu ao duque de Barcellos, 
D. Theodosio, a quem Deus milagrosamente livrou da morte. 



88 A JORNADA 



para consolação e remédio de tantas vidas. Porque sendo ea- 
ptivo de dous Alarves, como fosse visto em seu poder de 
um soldado Azuago, que percebeu em um momento a quali- 
dade da presa, de maneira arremetteu a elle, que tirando-o com 
violência de suas mãos, um d'elles querendo pagar-se do que 
lhe cabia, covardemente atrevido tirou do alfanje, para par- 
tir pelo meio de mn só golpe, em tão pequena quantidade, 
por ventura a maior pessoa que nunca até alli n^estas partes 
se viu em tal miséria ; porém o Azuago, como soldado esperto, 
movido assim da gentileza do menino, como do real sem- 
blante, a quem não pôde escurecer a sombra da morte, met- 
teu subitamente de permeio. a longa escopeta, amparando o 
golpe, o qual vinha com tanta fúria, que sem embargo de 
dar primeiro n'ella, chegou de maneira á cabeça d'este prín- 
cipe que lhe fez uma ferida, bastante a cobril-o todo de san- 
gue, permittiudo Deus que lhe acontecesse acaso o que lhe 
roubou a sorte por sua pouca idade, que não passava de doze 
annos. 

Aqui foi também captivo o prior D. António, filho do 
infante D, Luiz, cujo aventuroso successo (sem ventura a 
tantos) em seu logar' diremos, e os mais cavalleiros fidalgos 
e senhores, os quaes se viam n*esta ultima miséria, com mui- 
tas feridas, entregues â morte, que por maior penj os não 
quiz receber em honrosos perigos. 

Os mouros do Xerife que foi com el-rei D. Sebastião 
passavam a mesma miséria, posto que muitos, fingindo ser 
da banda de HxHqj MoIuco, captivavam alguns christãos, por 
se melhor encobrirem, e se salvaram com elles em Arzila. 

Alguns cavalleiros de nossas fronteiras, dos poucos que 
úcaram, se fizeram em um corpo, e posto que com assas pe- 
rigo de suas vidas se salvaram em Tanger, como aconteceu, 
depois de tudo achado, a outras pessoas, e não em tempo 
que podeasem com perderem as vidas ser de proveito em cousa 
algi -^ nívotte sobre eatg matéria houve depois em Por- 



d'africa 89 

tugal digum juízos differeoies, me pareceu bem dizer aqui 
o que n'isto passa, já que são taes os attributos da vida que 
não vale a um homem pelejar até o não querer a morte, tri- 
Ibimdo mil vezes o natural termo, para escapar das malido- 
SBS linguas, meãos piedosas qu6 ardentes balas e agudos fer- 
ros. 

Primeiramente, bem se sabe que o campo d"el-rei estava 
assentado em forma quadrada quando se deu a batalha, como 
atraz fica dicto, e o dos mouros ao redor d'elle. Foi cerrando 
as pontas, de maneira que o cercou todo, occupando em circulo 
quasi o espaposo campo do rio Lucus. De modo que_, onde quer 
qae os esquadrões estavam, ou fosse de uma banda ou da ou- 
tra, era a vanguarda, e assim juntamente se começou a bata- 
lha com pouco intervallo em todo o logar, a qual d'este modo 
se toi continuando emquanto da parte dos christãos houve 
resistência. Pelo que, como é possível que alguma pessoa fosse 
tão desatinada, que para salvar a vida e buscar a liberdade 
se fosse metter debaixo das armas de seus inimigos, que por 
então não perdoavam a cousa viva? £ quando assim fosse, de 
que maneira podiam escapar de mortos ou captivos ? Pelo que 
fica manifesto, vé-se que ninguém podia salvar-se da batalha, 
setfão depois de tudo rendido e desbaratado, porque então dei- 
xaram 0^ mouros a forma em que pelejavam, desamparando o 
campo em muitas partes, para acudir à presa dos captivos 
e bagagem. 

Pois sendo isto verdade, e sendo assim que a verdadeira 
fortaleza consiste em aventurar a vida por cousa que valha 
mais que ella, como se tem ordinariamente pela pátria, pelo 
rei, e pela fé, não havendo para que dar satisfação a nenhu- 
ma cousa doestas, porque não pretenderia cada um salvar a 
vida, e buscar a liberdade, pois no que toca á defensão da 
fé nenhum mouro obrigou a christão n'este conflicto que 
o deixasse de ser, e no bem commum da pátria quantos mais 
se salvassem maior proveito seria, pois na defensão da pes- 



90 A JORNADA 



soa real que auxilio podia receber um corpo defunto da mise- 
rável gente jà de todo desbaratada^ não nego eu que se alguém 
escapasse da batalha, durando as esperanças de victoria, não 
seria eterna infâmia, porém salvar-se aspirando com viril ani- 
mo a melhor fortuna, é cousa digna de louvor, e não de vi- 
tupério, como se lê de Caio Terêncio, varão na gran batalha 
de Ganas, que salvando-se com muitos soldados, foi do Senado 
por isso muito bem recebido, ainda que tinha a culpa toda da 
perdição, porque o morrer quando não era tempo, não so- 
mente fora tirar filhos a Roma, mas dar mais gloria a seus 
inimigos. 

Muitos exemplos doestes podéra dar, qual foi na de Ra- 
vena, e de Lepanto, e de filhos que deixaram pães, e pães a 
filhos, poupando-se para acabar em vinganças honrosas, que 
não pôde sempre o valor humano ter ligada a fortuna a seu 
alvedrio, nem haver maior fraqueza que não saber defender 
a vida, reservando-a a melhor uso, quando não é necessário 
perdel-a. 

Mas tornando à nossa relação, sendo já bem tarde os 
mouros se foram recolhendo cada um com sua presa, com 
assas temor uns dos outros, porque o mais poderoso não 
somente a tomava ao mais fraco, mas acontecia ás vezes ma- 
tal-o primeiro por escusar ouvir suas razões. 

Os despojos que os inimigos alcançaram do campo fo- 
ram muito poucos, tirando a presa dos captivos, porque eram 
tantos que a muitos não coube mais que um pedaço de 
tenda. 



CAPITULO II 



ACCLAMAM OS MOUROS POR RBI MUI.EY AMET, E ENTERRAM 
OS SEUS QUE NA BATALHA MORRERAM 




^ 



IA tarde d'esle mesmo dia foi acclamado rei Muley 
[Ãmet, e porque se saiba como Deus quando 
servido escolhe as ma^ tristes pessoas para 
|maior castigo, vamos mostrar como a fortuna o 
põz no tbroQO real, tão pouco d'elle esperado. 

É de saber que este Muley Amet era lido em tal couta 
de seu irmão Muley Moluco, que chegou Reduão, elche por- 
luguez, ã dar-Ibe uma bofetada, sem por isso baver uma mi- 
nima reprebeasão: porém, posto que fosse qual era, trazia 
debaixo de seu governo dezoito mil homens de cavailo, com os 
quaes eutrou na batalha; e no tempo em que os aventureiros 
chegaram junto aos cinco pendões verdes, a par da liteira de 
Muley Moluco, sabendo elle que era morto, com toda a gente 
de sua companhia se acolheu; e sendo totalmente acabada a vida, 
na qual tinha só sua fortaleza, succedeu logo por vontade 
Divina o que havemos contado. Rendido o campo, e sabida 
geralmente a morle de Muley Moluco, começaram os alcai- 
des e mais gente de guerra a acclamar Hnley Amet, cuidan- 
do lodos que os acompanliàra na batalha, e que no campo 
devia estar; e era tanto peio contrario, que levando-lhe mui- 
to depressa alguns amigos seus asta nova, o foram achar em 



94 k JORNADA 



Chegou logo esta nova à armada^ e veio Diogo da Fon- 
seca, corregedor da curte, ainteirar-sedo caso, e entrando na 
casa, onde estes homens estavam com o capitão Pêro de 
Mesquita, o mancebo embuçado se descobriu, e foi visto que 
era um homem fidalgo (não da casa d'el-rei, nem Ha corte, 
por certo), cujo nome não sabemos, nem é bem que se saiba; 
e sendo muito reprehendido elle e seus companheiros, deram 
por desculpa que não haviam dicto que vinha alli el-rei, se- 
não que vinham d'onde el-rei estava. 

N'este meio tempo começou a fama a fazer seu offlcio, 
e foi confirmada a opinião de ser aquelle el-rei D. Sebastião 
no mar e na terra, porque havendo precedido tão claros in- 
dicios e sendo a nova tão amiga, por mais que do capitão 
e de Diogo da Fonseca eram desenganados, ninguém queria 
cuidar o contrario, principalmente embarcando-se este man- 
cebo escondido, ou com temor do povo, ou por lhe parecer 
que vindo áquellas horas seria notado ; e na verdade foi uma 
grande inadvertência e mal empregada piedade deixarem-n'o 
embarcar d'esta maneira, pois em qualquer damno que rece- 
besse não ia nada, principalmente merecendo elle muito ' 
bem algum castigo, e muito em dar occasião a nunca se ter ^ 
por certa a morte d'el-rei D. Sebastião, d'onde nasceram tan- 
tas desventuras, que chegou um lavrador, por nome Pedro 
Affonso, do termo da cidade de Lisboa, a fingir el-rei D. Se- 
bastião vivo, e pôz em seu logar um Matheus Alvares, pedrei- 
ro, que mostrava aos simples lavradores ; de modo que chegou 
o negocio a attrahir muita gente da Ericeira e de Cintra, com 
que Pedro AíTonso commetteu algmuas crueldades, como foi 
matar o desembargador Gaspar Pereira do Lago, e despenhar 
alguns oi&ciaes da justiça, e correram muito risco alguns 
vassallos leaes e ministros graves d'el-rei, como foi Dio- 
go da Fonseca, corregedor que então era da corte, a quem 
o archiduque Alberto mandou castigar este tumulto, e se viu 
de maneira que esteve muito perto de perder a vida, se não 



fura muita a industria e valor que usou, e foi necessário man- 
dar logo o cardeal algumas companhias de soldados, para aca- 
bar de atalhar este furor, 

E assim se entende que fez o glorioso S. João Baptista 
milagre,* pedindo a Deus livrar-se este povo de Lisboa, por- 
que no seu dia estavam estas gentes concertadas para en- 
trarem e destruírem esta cidade debaixo do nome d'el-rei D. 
Sebastião, e outras cousas que depois succederam de grande 
desatino e desventura, que não ha para que se reliram, as 
qiiaea por nascerem da imaginação de ser el-rei vivo, é ainda 
maior mágoa, pois se perderam então licites desejos, sabendo 
mal usar d'elle3, pois bem claro estava qiie sendo asam não 
havia para que tomar armas, nem usar d'outra8 invenções, 
senão dar graças a Deus, havendo só de permeio el-rel Phí- 
lippe, nosso senhor o príncipe tão calholico, e que tanto ama- 
[ va seu sobrinho. 

Mas tornando ás tendas onde passamos a noite, digo 
I que tanto que foi manhã, abertos os oitios e desperto o enten- 
' dlraonto, caiu sobre todos Ião profunda tristeza, que apenas 
lhes deixou o sentido livre para poderem cuidar em cousa al- 
gama, antevendo em um momento a larga somma de tantas 
misérias ; mas sobretudo o sentimento da despenhada honra 
poriugueKa, que tão pouco aates eslava no logar onde não 
podia ser mais levantada, acabava de todo a paciência. 

Estando pois d'esta maneira, como Deus sempre consola 
os ainiclos, lançaram os olhos para o caminho e viram vir 
muitos carros, acompanhados de muitos mouros e mouras gri- 
tando, os quaes vinham carregados dos seus mortos, que pa- 
rece que no espapo que lhes flcou do outro dia sahiram a 
buscar de Alcácer; e posto que esta visão em tal estado lhes 
não podia dar algum contentamfmto, foi porém parte de gran- 
de consolapâo, fazendo um breve (Uscurso em como aquelles 
que com mais razão poderam chamar-se ditosos, iam d'qauella 
maneira despedaçados e mortos em sua terra, com tanta grita 



96 A JORNADA 



e lastima de seus parentes, sem algum gosto da mallograda 
vktoria, e eUes todavia, ainda que maltratados e captivos, 
estavam com vida, e facilmente podiam passar qnalquer ad- 
versa fortuna, e assim n'este pensamento, com os olhos pos- 
tos na misericórdia Divina, ficaram com alguma consolação. 

Grandes eram as lastimas que se ouviam n'esta eommum 
miséria, aos homens a quem faltava qualidade para soifri- 
mento honroso, chorando os miseráveis de maneira, e dizendo 
algumas cótisas na lembrança do desamparo de suas casas, 
que causavam a todos outro novo tormento, dando bem dará 
mostra da fraqueza de seus ânimos. Pelo que realmente de- 
viam ter os prindpes grande conta com seus commissarios, 
no modo de levantar gente para a guerra, castigando rija- 
mente 08 erros (fue n'essa parte se commettem, pprque muitas 
vezes largam mancet>os muito practicos, e m^ui gentis esco- 
peteiros, e tomam em seu logar um simples cabreiro, ou po- 
bre lavrador, a troco de muito baiso preço, e doesta maneira 
vem a formar esquadrões bem numerosos (como foram os que 
el-rei levou) de valentes soldados ao parecer, e de innocen- 
tes od^lhas nas obras; também parece notável erro, como a 
experiência n'esta desventura nos tem mostrado, querer mn 
principe fazer guerra ao menos voluntária, com gente colhida 
por força, e com rigor; porque, como terá particular cuidado, 
no que toca a malida, um pobre official que deixa a casa cheia 
de fiiHios, sem outro remédio algum mais que aquelle que 
por suas mãos lhe ganhava no ofãoio, em que somente estava 
exerdtado, ou como deixará o lavrador, por mais robusto e 
bem disposto que seja para a guerra, os campos orphãos de 
quem com suor de seu rosto espersva tirar a fructo para 
susi;enfcar seus filhos^ e pagar suas rendas? 

Nunca, segundo entendo, depois que houve guerras no 
mundo, se commetten tão temerária empreza, com tão mal dis- 
dplinada e simples genle, sendo a mais d'e}la levada sem sa- 
ber onde ia; de maneira qae eamirtaiÃo por mandado d'el- 



d' AFRICA 97 



rei, partiam gemendo com mil suspiros, com os olhos postos 
em seus filhos, como as vaccas em Palestina quando por man- 
dado de Deus levavam o sancto pezo da arca sagrada: vede 
com que valor esta pobre gente 'arremetteria a seus inimigos, 
sendo por nosso mal a mais numerosa em nosso campo. 

Quem por ventura não vir estas cousas com os olhos da 
razão, perguntará onde estava o valor dos portuguezes, de 
que tanto se presam ; mas bem notada a fraqueza e qualidade 
d'esta gente que el-rei levava, bem se deixa entender que pos- 
to que fosse de Portugal, não podia ter nome de portugueza, e 
d'isto deu bem claro testemunho a fidalguia doeste reino e a 
gente nobre d'elle no estrago que fez em seus inimigos, mor- 
rendo e matando, como elles mesmos confessam e se mostrou 
por obra, e assim se viu depois por experiência quão gi^ande 
erro fora não levar el-rei a gente nobre de Portugal de ca- 
vallo, que fora muita, e de muito valor, e não pobres e mise- 
ráveis lavradores, que em nenhuma parte do mundo servem 
senão para lavrar os campos. 



13 



CAPITULOni 




MANDA O XERIFE BU5CAH O CORPO D EL-REI D. SEBASTIÃO 



ho niGsmo dia da batalha, passaado Sebastião de 
■Rezende, um mopo da camará d'el-rei captivo pelo 
■campo, 0D<1e estava a multidão de corpos mor- 
pto3 (1? amigos e inimigos, todos ni)s e despoja- 
dos, sem. diíTerença alguma, viu entre outros muitos o real 
corpo d'el-rei, cujo cnado era; e como por então não podés- 
se fazer outra cousa mais que derramar iaQoitas lagrimas, 
guardando bem na memoria o posto e logar em que o vira, 
ao outro dia pela manliã dando conta aos fidalgos, foram es- 
tes de parecer que se dissesse ao Xerife, por não perecer 
o real corpo sem a de\'ida sepultura. 

Logo se lhe deu conta, e elle mandou que se buscasse 
com dous mouros, em companhia de Rezende, e foi achado 
no mesmo logar que havia dicto. 

Vendo pois Rezende aquelle formoso e real corpo, depois 
de o banhar com amargo pranto, despojou-se da própria ca- 
misa para o cobrir, juntamente com umas seroulas até o joe- 
lho, que no chão por desprezadas deviam ficar, e pondo-o 
em uma cavalgadura foi trazido ã tenda do Xerife. 

O' miserável vida, caducas esperanças, desenganado es- 
pelho da presumpfião humana, quem viu, dias antes, um 
lei mancebo tão amado e tão temido, senhor de um reino tão . 



iOO A JORNADA 



rico e tão honrado, sobre um soberbo cavallo plzando o ini- 
migo campo, livre e seguro entre seus vassallos, todo rodea- 
do de luzentes armas, e de puro amor, e o vi agora posto 
em uma humilde cavalgadura, atado com uma corda, coberto 
de sangue, suor, e terra, com o rosto disforme do transito 
mortal, e de uma ferida que na testa tinha, e outra muito 
grande debaixo do brafo direito, que parecia de azagaia, por 
certo que nâo ha mister pouco soccorro do céo um pobre 
entendimento, para se abater humildemente debaixo da incom- 
prehensivel ordem e governo da pro\1dencia Divina, vendo 
em um só momento sepultada a honra das gloriosas armas 
dos portuguezes, as esperanças de um rei tão valoroso, o 
perpetuo amparo e consolação de tantos, e de todo emfim 
cifrado c perdido n'esta só vida quanto nem cuidar se 
sabe. 

Tanto que o real corpo chegou á vista dos fldalgos que 
presentes estavam, e de outros captivos, todos se pozeram 
em um vivo pranto; e de joelhos, com entranhado amor e 
obediência, lhe foram beijar os pós, sendo já d'elles recoahe- 
eido, se poderam todavia olhos tão cobertos de lagrimas ter 
inteiro reconhecimento. 

Logo o Xerife lhes mandou dizer que vissem aquelle 
corpo, e se fosse d'el-rei D.* Sebastião se lhe daria a devida 
sepultura, e do que n'Í8so assentassem lhe dçssem conta. 

Fez-se o que el-rei mandou, e posto que não houvera 
outras testemunhas mais que as infinitas lagrimas e suspiros, 
bastavam para se dar inteiro credito ao miserável suc- 
cesso. 

Feita a diligencia, e certificados os fidalgos que presen- 
tes estavam, o Xerife lhes mandou dizer se queriam resga* 
tar o corpo de seu rei, ao que responderam que sim, e vi», 
se sua magestade o que lhe haviam de dar, porque no 
primeiro logar de christãos se entregaria a quem mach 
dasse. 






Tanto que o Xeiife teve esta resposta, como a sua ten- 
ção era rartiQoar-3e s'jmfinte com esta diligencia se era 
aquelle o corpo d'el-rei D. Sebastião, não ctcferiu a mais, e. 
mando!] que o pozessfim em um caixão, o qual se fez das 
andas em que ia Jorge da Silva, e n'eU8s foi levado a 
Alcácer. 

AUissimo Senhor, bemgno, e justo juiz, como é posá- 
vel que tendo tanto amor aos homens, como vossas obras tem 
mostrado, os venhaes a desamparar de maneira que deixeis 
3eu governo em suas mãos? 

Se todos 03 aniraaès são governados pelo homem com 
muita razão, pois Ihea faz tanta vantagem na parte distincta 
e suprema do uso d'ella, e assim parece pois que os homens 
deverão ser regidos por outras iotelligencias de matéria mais 
sublime, e de mais levantado Jaizo, sem paixão natural de 
ira, ódio, ou inveja, como pôde uma creatura humana soccor- 
rer a falta alheia, se quanto o mundo tem Uie parece pouco 
para remediar sua necessidade, ou seja verdadeira ou cubi- 
çoaa, e nomo pude um juizo humano, quando seja o melhor 
que houve no mundo, acudir a tanta diversidade de cousas, 
sem lhe ser necessário entregar muitas vezes os poderes reaes 
em mãos famintas, vis, e cuhiposas, muito contra o que 
deseja, pi}i3 não pude sempre acertar nas eleições? 

Pois que esteja na vontade de uma S('i creatura assolar 
um reino, sem querer, ou por defeito natural ou por qual- 
quer outro furor, admittir conselho algum, é cousa certo di- 
gna de grande lastima. 

Por outra parte, Senhor, já que permittls que se herde 
a liberdade das gentes como se fora campos e arvoredos, pa- 
rece que devia ser o herdeiro de tão aita mercê bem digno 
d'ella no entendimento, bondade e justiça: mas emflm, Se- 
nhor, bem claro está que toda.s as nossas misérias nascem 
da multidão de nossos peccados. E sobretudo, ha quem fora 
tão bemaventurado que podéra não somente fazer vossa von- 



102 



A JORNADA 



tade, mas ser muito devoto d'ella, que sendo vós quem sois, 
bem daro está que hão-de ser vossas obras justas, verda- 
deiras e sanctas, e que a desconsolação que temos do mo- 
do e termo d'ellas nasce do defeito de nosso entendimento, 
pelo grande amor que temos ás cousas da terra, e a nós mes- 
mos, turbando-/ios isto a vista dos gloriosos flns que tantas 
vezes estão encobertos debaixo da maior tristeza. 



• ; 



ci><^?jfô^Xí>^=^--^ 



♦ • 



^^. . * 



CAPITULO IV 




ENTBRRA-SE O CORPO D'BL-BEI D. SEBASTIÃO; VAB 

BELCHIOR OO AMARAL A ARZILA B TANGER 

COM LICENÇA DO XERIFE 



S OUÇO depois do infeliz reconhecimento do corpo 
|d'el-reiD. Sebastião, entraram os fidalgos quepre- 
|[senteíj se acharam em conselho na miserável fór- 
iiiit em que o tempo o consentia, e assentaram que 
86 deviam resgatar todos juntos, assim por flcar o preço mais 
fitvoravel, como por atalhar o damno que resultaria do muito 
que por si promettassem alguns mal soíTricIos, impossibilitan- 
do-08 mais. Foram d'oste parecer D. Duarte de .Menezes, D. 
Duarte de Castelbranco, depois conde do Sabugal, D. Fernando 
de Castro, D. Miguel de Noronha, e Belchior do Amaral, com a 
resolufão do qual foi D. Duarte fallar a el-rei, a quem elle 
com attenção ouvia por ter conhecimento de suas obras e pes- 
soa, sendo capitão de^ Tanger. O qual lhes respondeu muito 
conforme ao que elles pediam, que era resgatarem-se Juntos, 
dizendo que lhe paroda muito bem, mas que os fidalgos se 
■vinham juntando a cada hora, e sendojuntososporiaemprec^ 
muito acconmiodado, o que já não' podia ser senão em Fez; 
d'esta resposta ficaram muito satisfeitos, mas não entenderam 
por então a causa d'esta boa vontade, a qual era para que es- 
1, levados de tal desejo, incitassem os mais a reTC- 



i04 A JORNADA 



Depois d'esta resolupão, pareceu bem aos do conselho, a 
quem os mais haviam dado sua authoridade, que se devia pe- 
dir ao Xerife mandasse por em guarda do corpo d'el-rei 
algum fidalgo, assim por authoridade, como por não aconte- 
cer ficar de maneira que se podésse outro pôr em seu logar, 
dando-se d'aqui occasião a nunca se ter aquelle por verda- 
deiro. Tornou D. Duarte com isto ao Xerife, o qual o conce- 
deu muito facilmente, e foi ordenado que Belchior do Ama- 
ral fosse acompanhar o corpo, e dar-lhe sepultura. Partiu 
Belchior do Amaral {»ra Alcácer, e nas lojas das casas de 
Abraen Suflane, alcaide da mesma \âlla, lhe fez a sepultura, 
ajudado de um tudesco, onde no caixão em que vinha foi 
enterrado, coberto de cal e areia, e de infinitas lagrimas, pon- 
da-lhe alguns signaes de pedras e tijolos, para se conhecer a 
todo o tempo. 

Feita esta lacrimosa diligencia, pareceu bem a estes fl-* 
dalgos ordenarem alguém que fosse a Arzila dar conta do es- 
tado das cousas; a iâto annuiram todos, e escrevendo D. Duarte 
de Castelbranco o que se havia de guardar, e pedindo-se ao 
Xerife desse licença, respondeu que assim se ordenasse, e 
o mensageiro fosse aquelle que para Alcácer fura sob sua 
palavra. Partiu Belchior do Amaral, e entrou em Arzila, 
onde achou Pêro de Mesquita, capitão, com assas temor dò 
Xerife lhe vir pôr cerco, por estar tudo desapercebido; po^ 
rém elle, como sabia o caminho que o Xerife levava, assegu- 
rou o capitão e todos os mais. 

Quando os fidalgos se ajuntaram, como atraz fica dicto, 
foi assentado que a pessoa que viesse a Arzila, além de dar 
^nta do estado das cousas, pretendesse haver algum dinheiro 
do que na armada ficara, para se dar ao Xerife a conta do res- 
gate dos fidalgos, assim porque com isso o começassem a 
grangear, eomo por elle o ter significado ; porém vendo Bel- 
dÉior do Amaral como em Arzila nem estava D. Diogo de Sousa 
com a armada, nem havia outro algum remédio, paftín 



D^AFRIGA 105 



mesmo dia, como quem só procurava por descanso os traba- 
lhos a que se oíferecia, e tanto que chegou a Tanger deu conta 
ao capitão Pêro da Silva, que na cidade por el-rei estava, asse- 
gurando-o dos receios que com razão poder a ter da determi- 
narão do Xerife. 

Estava ii'este tempo surto em Tanger um galeão da ar- 
mada, com uma caravela, que D. Diogo de Sousa mandou com 
D. Francisco de Souza, seu sobrinho, a saber o que se passava; * 
e como Belchior do Amaral, depois que fez os devidos oíScios, 
acerca da segurança da terra, e das mais cousas necessárias, 
não soífresse uma hora só de repouso, escrevendo uma carta 
em que relatava aos governadores a morte d'el-rei D. Sebas- 
tião, e o apparecimento de seu corpo, com as mais cousas pas- 
sadas e tocantes a este infeliz negocio, se deliberou em par- 
tir, dando a carta a D. Francisco ao cabo de três dias, nos 
quaes, além de outras muitas mágoas e misérias que n'esta 
cidade viu, aconteceu uma cousa bem digna de memoria, as- 
sim pela maravilha d'ella, como pelos honrosos eíTeitos que 
a causaram. 

Estava n'esta cidade frei João da Silva, filho de Rui Pe- 
reira da Silva, guarda-mór que foi do príncipe D. João, reli- 
gioso da ordem dos pregadores, muito douto e excellente pre- 
gador, a quem por sua qualidade e virtude amava muito el- 
rei D. Sebastião, e o não acompanhou por ficar com todo 
o cuidado dos enfermos do campo, e além d'isso mal dis- 
posto. O qual. tanto que soube a vinda de Belchior do Amaral, 
lhe mandou pedir, por sua indisposição, o quizesse ver, e sen- 
do visitado lhe disse: Senhor uma cousa hei-de perguntar a 
vossa mercê, sem querer saber outra alguma, a qual é, se 
el-rei D. Sebastião por ventura é morto. Aft que Belchior do 
Amaral respondeu que morto era, e elle o enterrara por suas 
mãos. 

Tanto que frei João da Silva ouviu e percebeu este 
cruel desengano, no qual parece que viu cifrados quantos ma- 

14 






108 A JORNADA 



Seguindo pois el-rei seu caminho, e fazendo mui peque- 
nas jornadas por causa da muita gente que levava, e dos 
negócios que se offerecem nas novidades de semelhante esta- 
do, ao cabo de dezoito dias chegou com seu campo á vista 
de Fez. 

Chegaria o Xerife a este logar com sessenta mil homens 
de cavallo, e quinze mil de pé, porque os mais se retiraram 
feridos, além dos que na batalha morreram, e tanto que en- 
trou na cidade, estando a seu parecer muito descanpado em 
seus papos, se levantou entre a gente de guerra, que no cam- 
po fora das portas estava, um rumor tal, que parecia 
outra nova batalha; porém como o alvoropo fosse somente 
sobre as pagas, que parece lhe haviam promettido, satisfel-os 
el-rei, ficando o negocio resolvido, e elle seguro, po^to que 
muito resentido do successo. 

Passado este tumulto, ao outro dia mandou o Xerife apre- 
goar que todo o mouro que tivesse fidalgo, o trouxesse a 
seu poder, como por determinação da guerra estava ordenada, 
e quem o contrario fizesse seria muito rigorosamente easlfe- 
gado, além de p^der o captivo. 

E para melhor haver assim os fidalgos, mandmi carrar os 
portos, e que não houvesse Cáfilas, Btem commercio, pafa«e 
não salvarem alguns, o que durou muito tempo, e foi luna 
das maiores deseonsolapões que os captivos receberam. 

Com esta <Hdem, emfim, e grande temor â'el-fei, 
acudiram muitos mouros, trazendo os fidalgos que tinham, 
os quaes muito contra sua vontade aeceitavam o novo melho- 
ramento de senhor, querendo antes soíTrer as misérias de sen 
captiveiro, que ter descanpo onde não era raxão. 

D'esta madeira se iam juntando de todas as partes; e 
sem embargo d'esta determinação alguns fidalgos não foram 
entregues, por sersm de alcaides prindpaes, como foram tres 
que mandou o alcaide Alichechito, e outros semeUtsmtea -se- 
nhores, com que el-rei devia dissimular. Os do numero fo- 



D^AFRÍCA 109 



ram aposentados assim como vinham era casa dos judeus, 
e o duque de Barcellos na do Xeque, ou Governador d^elles. 

Bem diíferente sorte de todos teve n'este tempo o prior 
D. António, fillio do infante D. Luiz, permittindo-o assim Deus 
por seus occultos juizos, o qual foi captivo de um alarve hon- 
rado, visinho d^aquelle Aduar que chamam de Talemaçude, 
que D. Duarte de Menezes sendo capitão de Tanger destruiu 
todo: o qual tantp que o captivou, para melhor se encami- 
nharem suas cousas, o despiu dos vestidos que trazia, dandb- 
Ihe outros tão baixos e miseráveis, que sendo buscados os 
fidalgos, e levando um mancebo mopo da camará d'el-rei que 
com elle estava preso pelos pés, o desprezaram e largaram 
como a um pobre soldado, o qual d'esta maneira foi levado > 
ao Aduar, e perguntando-lhe o mouro que significava aquella 
insignia (dizendo isto pelo habito de Malta que lhe achou), 
elle respondeu cautelosamente, que aquillo era signal e obri- 
gapão de certos Gacizes de christãos, e por isso trazia cruz 
branca da igreja d'onde comia. Deu a isto muito facihnente 
credito o mouro, e folgou de lhe ouvir dizer que comia renda 
de igreja. 

Estando pois tido n'esta conta, como no Aduar estivesse 
também captivo um cavalleiro de Tanger, que se chamava 
Gaspar da Gran, por sua ordem e de um judeu por nome 
Abraham Gibre, se concertou com o mouro em dous mil cru- 
zados, pelos quaes o judeu ficou mettendo em cabepa ao mou- 
ro que se até janeiro aquelle Cacis não estivesse na sua igre- 
ja, o Papa a proveria, e elle ficaria sem se poder resgatar, 
de modo que o mesmo mouro o trouxe a Arzila, sem nenhum 
intervallo nem perigo, em tão pouco tempo, que não passa- 
ram dous mezes; d'onde se pôde ver no successo de tantas, 
bonanpas as longas misérias a que Deus começava a abrir as 
portas, juntamente com as de Arzila, por seus occultos juizos. 




CAPITULO VI 



DO QUE PASSAVAM OS CAPTIV03 EM PEZ ; 
DESClteVE-SE A CIDADE 



? uma cidade, a maior e mais príDcipal de 
I toda a Barbaria; está situada a trinta e um gráos 
Kda nossa altura; ha ii'eUa duas partes, convém a 

tsaber: Fez, o novo, que contém Alcáçova, Papos 

reaes, casas de senhores, Alfandegas, Aduanas; e isto cercado 
de muitos bons muros, faz uma pequena cidade. Logo junto 
tfella, a pequena distancia, está Fez, o velho, bera mura- 
do, e assentado entre alguns outeiros e planides ; foi parte 
d'estã gran cidade, chamada Elbeida, que quer dizer a bran- 
ca, edificada por um grande pregador entre os mouros, que 
se chamava Idriz, na era de setecentos e noventa e oito; a 
outra parte maior, à qual somente divide um pequeno rio, 
se chamou Aynaul, e foi edificada por Acem, neto do mesmo 
Mriz, e hoje se chamam uma e outra Fez, o velho, corte do po- 
nente; dizem que depois Josepli Luntuna fez d'estas duas ci- 
dades uma sõ, pondo-lhe o nome do rio próprio, que se cha- 
mava Fez, como mais largamente se refere na descripção de 
AMca, onde se dizem ã'esta cidade tantas grandezas, que pa- 
rece cuidaram que nunca podésse haver tanta testemunha 
de vista, como por nossos peccados houve (se jà não foi 
erro da hnpressão), porque fazem a Fez, o velho, sem o no- 
vo, de oitenta e quatro mil visinbos, e que a sua Mesquita 



112 A JORNADA 



maior occupa meia légua de campo, e tem dentro em si dez 
mil esteios de mannore grossos, que vem a occupar um es- 
papo fora de consideração. 

O que disto me parece, como quem o viu devagar, 
com informação de alguns captivos velhos, e de judeus já 
hoje convertidos, que se crearam na mesma terra, é que Fez, 
o velho, terá trinta mil visinhos, e a sua Mesquita quatro- 
centos esteios de tijolo, e não de mármore, e poderá ter de 
uma porta á outra, estando toda eYn forma redonda, trezen- 
tos passos, sendo como é muito formosa, com doze portas, 
que convergem a todos os bairros, de modo que se pode 
entrar muito facilmente n'ella por qualquer parte, estando no 
meio da cidade como está; tem de renda oitenta mil craza- 
dos, os quaes lhe come el-rei, dando muito pouco» aos seia» 
Cacizès, que são muitos. 

E no que toca a Fez, o novo, a quem põem na mewMi 
descripção oito mil visinhos, a qual edificou Jacob, {)rimei- 
ro rei de Fez, o velho, dos Benamerines, oomo fortaleza para 
recolher sua gente, terá mil visinhos, quando muito, por ser 
cousa muito pequena. 

É toda a cidade de Fez, o velho, muito cheia de casas, 
e infinita gente, e juntas ambas as ddades, que ambas, por 
estarem muito perto, parecem a mesma cousa, fazem um 
bem soberbo e formoso apparato ; toda a casa em Fez, o ve- 
lho, tem bombas de agua, que do rio tomam bem facibnen- 
te, e ha na cidade trezentos e tantos moinhos e pizões. 

A Judearia também é parte da cidade, a qual está jun- 
to aos muros de Fez, o novo, de modo que parece tudo uma 
cousa; tem muros não muito ídtos, de que toda está cerca- 
da em forma redonda ; terá mil visinhos e é toda cheia de ca- 
sas muito altas e sobradadas; não tem mais que uma só 
porta, a cuja entrada estSo sempre mouros oíliciaes d'el-rei, 
que reoebem seus tributos, e fazem em um oerto modo guaar- 
da á miserável gente. 



d'afbígâ 113 



A esta cidade, pois, tão opulenta e nobre, acudiam todos 
os christãos captivos, e mui poucos tinham remédio para 
ficar n'ella, por haver jà muitos, que tal foi o successo de 
nossa desventura, e só aquelles que tinham habilidades na- 
turaes, ou sciencia em sdguma arte, não sendo fidalgos co- 
nhecidos, alcançavam favor, e tinham mais acconunodada sor- 
te, e assim era grande o contentamento e consolação d'aquel- 
les que vinham de outras partes e ficavam n'esta cidade, 
jiporque além de estar o Xerife n'ella, estavam todos os fidal- 
gos'e concurso de mercancias. * 

Além d^isso, muitos Elches senhores favoreciam os 
christãos, entre os quaes havia lun portuguez de nação, 
que se chamava Alichequito, muito rico e valido do Xerife, 
de muita boa natureza e condição, o qual era totalmente 
amparo e refugio dos captivos; mas sem embargo doestes 
commodos, bem se deixa entender quantas e quão diver- 
sas misérias e trabalhos podiam padecer os captivos em 
Fez, e em outras partes, no decurso de um anno e meio 
que os fidalgos do numero estiveram em Barbaria, de 
cujo tempo e successo era nossa tenção escrever mais 
particularmente, se não fora a lembrança de que, por 
sua qualidade e aspereza, seria dar a sentir de novo o 
mesmo captiveiro; antes sendo a matéria tão triste, enten- 
di certo que não havia para que fazer menção de cousa 
alguma^ porém como Jeronymo Franqui, tractando doeste 
captiveiro, condemna a nação portugueza, dizendo ser 
mal soSrida, apontarei algumas cousas, pelas qúaes se 
poderão julgar as outras, e se verá claramente o que se 
podia padecer. 

E digo ainda mais, que não é minha tenção somente 
justificar cousas tão justificadas, sermão que, como isto sejam 
misérias e desventuras que passaram portuguezes, as quaes 
sempre diante de Deus, ou seja por castigo de peccado?, ou 
por seu alto juizo, habilitam os peccadores, e os fazem capazes^ 

15 



IH A JORNADA 



de 8ua divina graça e miserioofdia, não é l)mn que piãaem 
í^m Allondo, servindo juntamente de se emendarem errot^ 
e de meltior discnirso nas coosas que podem snoceder, tendo- 
ínt tamt>em |>or muito oerto, que não ha-de Deus nunca deauft- 
parar este reino, por mm que com rigor o vejam castigado, 
que OH pães não castigam por ódio, senão por amor. 

Tomando a nossa obrigação, digo que muitos hommB 
havia aos quaes seus amos tinham presos nas cadéas puMi- 
(^, por se cotarem em alto preço, onde dormiam no diSof 
e não tiiiliarn outra cousa para comer, mais que algum ptítxe 
maulimonto que os ladrões que estavam na prisão lhes davam 
das esmolas que n'ella recebiam, que não bastava o extre- 
mo de sua necessidade a não se apiedarem a quantas misé- 
rias lhes viam padecer. 

Outros moiam trigo e cevada em uma mó de mão, on 
cardavam lã, com tarefa certa ; de maneira que ás veies, de- 
pois de não doscançarem em todo o dia, lhes ficava tão pequena 
parte da noite, que não tinham de repouso uma só hora; 
muitos iam cavar de dia as vinhas, e hortas, sendo mais sof- 
frivel trabalho, porque descaupavam de noite, posto que al- 
guns, com grossas bragas que levavam, passavam grande tor- 
mento no caminho. 

Outros havia que tinham cinco e seis amos, aos quaes 
o miserável captivo servia toda a semana por distribuição, 
experimentando cada dia difrerentes humores, e vaif os traba- 
lhos, porque cada mouro doestes, por pequena parte que ti- 
vesse u'6lle para lhe dar tormento, a tinha toda. 

Alguns havia a quem seus amos punham a aprender 
oillcios bem humildes e trabalhosos, e por certo que vi eu 
muitos j& bem destros n'elles, trabalhando com infinita pa- 
ciência de dia e de noite. 

Outros havia de mais curta ventura e miserável estado, 
os <)uaes seus amos tinham carregados de ferro de dia, le (f^m 
prisões muito escuras de nmle, tnettídos em um tronco, sem 



verem pessoa alguma, e quanto mais soffriam peorera, por- 
que a maldade e cobipa dos mom-oB, d'e3te honrado sdErimento 
(Mtncebia grande qualidade era suas pessoas, e assim, para 
o effeito de se cotarem em alto preço, carregavam mais a mão 
em suas misérias. 

Estas e outras muitas cousas, que como está dicto senão 
I podem referir, passavam os captivos ordiaariamente em Fez, 
■ em Hechines e em outros logares, mettidos pelo sertão dentro, 
as quaes sendo tão estranhas e trabalhosas eram muito sua- 
ves, a respeito do que padeciam os captivos de Alcácer, Te- 
tuão, Larache e Sa!é, que por estarem perto de nossas tor- 
, talezas os tinham os mouros em masmorras. 

Sào as masmorras umas covas grandes, em que os mou- 
ros recolhem os captivos do noite, para os terem mais seguros, 
e tem uma só hôca por onde descem a ellas, onde padecem 
grandes misérias de fome e sede, e outivas cousas semelhan- 
tes no uso da sua limpeza, que não podem ter nome, pelo 
qae deve todo o christão dar muitas grafas a Deus de o 
livrai' de tantos trabalhos, o ter muito zelo e cuidado da re- 
' demppão dos captivos, para que o mesmo Senhor o guarde 
de tanta desventura. 

Isto era o que passavam os captivos com muito animo, e 
l cadencia; nem os lidalgos.por levarem melhor vida se des- 
f cobriam nunca, salvo quando corria risco seu respeito, sua 
vida, ou' consciência, porque então fura fraqueza soflrer qual- 
quer injuria, pelo inleresse de seu resgate, quem só se podia 
respeitar, cousa nunca admittida na opinião portugueza; mas 
não havendo estes perigos, todos solfreram muito, não esti- 
mando os trabalhos, de que lhe não dava ^queno exemplo 
o que padeceu n'oBta mesma terra o infante D. Fernando, 
e muitos se livraram sem serem conheridos. Por onde se pfide 
ver quão enganadamente Jeronymo Franqui diz, fallando geral- 
mente dos portuguezes, que quando são captivos os mouros 
03 tem em muita estima, por se cotarem logo em alto prepo 



116 A JORNADA 



como gente deliciosa e para pouco, pois o contrario se viu 
n'este captiveíro, quanto mais que bastava só a nunca ima- 
gínada e trabalhosa viagem da índia, para se dar a palma 
aos portugaezes de soffredores de trabalhos e perigos; mas 
n'esta matéria de captiveiro ousaria affirmar que estimam 
os mouros mais a um portuguez, por miserável que seja, 
que ao mais principal genovez, não como entende Franqui, 
senão porque aos portuguezes, como continues vizinhos e ini- 
migos, estimam elles muito terem em captiveiro, tanto por 
se livrarem dos males recebidos, como por estarem livres 
dos que podiam receber, e assim mui raramente resgatam 
os cavalleiros das nossas fronteiras, e a muitos d'elles dão 
veneno, de que morrem logo ou pelo tempo adiante, e além 
d'isto também qualquer portuguez lhes importa mais, pela ra^ 
zão de que o genovez, no mesmo dia em que se vê capti- 
vo, se torna facilmente mouro, e sendo isto assim nenhum 
proveito vem a seu dono de taes captivos, porque ficam d^el- 
rei e não dão nada por seu resgate, e assim os mais dos 
Elches da Barbaria são genovezes. 

Não quero trazer á lembrança a passagem do Grão-Turco 
Amurates em Hungria, nem julgar 'de seus câmbios, nem do 
edicto publico de Garldfe vii, rei de França, nem de quando 
se pôz em contingência (entre alguns homens, doestes) a quem 
se seguiria, se a parte do Grão-l\irco, se a dos catholicos impe- 
radores, nem dos refrães da Itália, tantos e tão verdadeiros, 
nem emflm de outras muitas cousas, que não é bem que 
tenham nome, assim por não serem do que toca a nossa rela- 
ção, como porque na verdade em todas eUas não deve ter 
culpa alguma a^ senhoria de Génova, cujo solido corpo com 
tanto gasto de seus thesouros e esparsimento de seu sangue^ 
resiste de continuo aos ioimigos de nossa sancta fé catholica^ 
mas estes seus partos indignos lhe solicitam bem differente 
opinião, e dão claro testemunho da pouca fé que em todas 
as cousas se deve dar a semelhantes homens. 




CAPITULO vn 



MANDA o XBRIFK ÀOS FEDALfiOS QUE SE PONHAH EH PaSÇO 



j'ESTA maneira que havemos dicto corriam as 
|coi:sa5, eslando todavia os portos cerrados, que 
lloi cousa entre todos muito sentída, quando o 
Ixerife, depois de ter em seu poder cincoentae 
quatro lidalgofí com as dilígendas que se Itzeram, mandou 
que se resgatassem, trabalhando muito que fosse cada um 
em particuiar, e que se não fallasse no duque de Barcellos. 
JuBtaraqi-se logo todos, muito contra sua vontade, porque, 
como tinham escripto a el-rei D. Henrique o modo em que 
estavam, não lhes pareceu bem acceitarem alguma cousa sem 
sifa ordem. Mas não podendo fazer outra cousa, elegeram para 
este efleito D. Duarte de Menezes, D. Miguel de Noronha, D. 
Fumando de Castro e D. João de Menezes, a feita a eleição 
estavam aguardando o que o Xerife pediria; porém logo lhes 
foi dicto que o costume era prometterem os captivos primei- 
ro, o que foi muito tiem entendido, pela tardança que houve 
da parte d'el-rei. 

Certos os fidalgos d'i3to, prometteram por si oitenta mil 
cruzados, do que o Xerife ficou tomado de maneira, que 
jurou de os não resgatar nunca, com grandes queixumes de 
sua dissimulação, e fingida pobreza; porém, passada a melan- 
colia, mandou pedir pelo alcaide Gahia um conto de onças, 



lld A. JORNADA 



que são quatrocentos mil cruzados, ao que os/ fidalgos nãe 
responderam a propósito. 

Vendo isto o Xerife lhe mandou um rol, no qual esta- 
vam quinze da companhia, pelos quaes dizia lhe haviam de 
dar somente os quatrocentos mil cruzados. 

Descido el-rei d*estas esperanças, ou verdadeiras, ou fin- 
gidas, disse a D. Duarte de Menezes que se determinasse, e 
lhe dessem pelos' fidalgos (que já chegavam a setenta) qua- 
trocentos mil cruzados, e quando não, lhe haviam de dar 
mn cònfb dé ouro; dém d'isto tentou levar ao cabo tmiã 
cousa contra toda a razão, a qual era que nenhum christão 
havia de sahir da Barbaria, se lhe não entregassem Muley 
Napar , seu sobrinho, e irfi&ão do Xerife, que veio n^esta jor- 
nada, que estava em ArzUa, ao que D. Duarte respondeíi, 
que etles não se podiam obrigar ao que estava na vontade 
d'el-rei; porém a injusta petição durou muito tempo. 

N'esta copjuncção o alcaide Cabia, a quem elles tinbadi 
por bem zeloso, lhes disse, que elle insistiria com o Xeilfo 
qtie resgatasse os oitenta (a que jà chegava o numero) em 
quatrocentos mil cruzados; isto disse este alcaide apm bem 
dififerente tenção do que os fidalgos cuidavam; porque, conio 
determinava matar el-rei, em companhia do Guali, no cami- 
nho de Marrocos, e ficar-se com o reino de Fez, confortne 
ao repartimento que entre si tinham feito, vinha-lhe muito 
a propósito não se irem os fidalgos d'ahi, os quaes n^este 
tempo eleggram assim para este negocio, como para irem a 
Portugal, D. Jorge de Menezes, Vasco da Silveira, Ayres Tel- 
les, Christovão de Moura, D. Francisco de Portugal, Pêra 
Guedes, D. Francisco d'Almeida e Manoel Soares. 

Também elegeram para este negocio, e para acudirem 
aos enfermos, D. Duarte de Caôtelbranco, meirinho-mór, e Luie 
César. 

■ 

Juntos estes fidalgos e os mais do conselho, oonduírant 
qtre âe dèâs^ quatrooentos mil cruzados, e n'esle mesma 



D^AFWCA 1 i 9 

dia, indA o úcsÁde Qtdiia failar a ei-rei sobre estas cousas, 
fei por seu mandado morto, juntamente com o do Guali, Gurrí 
e outros, pela conjuração que haviam feito. 

Esta moJTte do alcaide Cabia fpi muito sentida de todos 
os fidalgos, porque o tinham propicio. El -rei n'este tempo 
estava mais intransigente que nunca, porque era persuadido 
dos Gacizes qi;^ não acceit^sse menos de um couta d'ouro, e 
além d'i880 os al^^aides, que succederam n'este seu negocio, 
eram seus inimigos ; porém, como os subornassem, decidiram 
el-rei a que fosse nos quatrocentos mil cruzados, como lhes 
havia promettido o alcaide Cabia. 

Estando as cousas d'esta maneira, e tractando-se alguns 
pontos de coutraicto, lhes foi dicto que havia de ser com con- 
dição, que todos os que morressem fossen^ dW por diante 
por conta dos vivos, e que o tempo de darem o dinheiro ha- 
via ser sete mezes, o que os fidalgos não quizeram a,cceitar 
de nenhum modo, dizendo a el-rei que podi?un morrer tantos, 
que se impossibilitassem os vivos e sua magestade perdesse 
o reagate de uns e outros, e além d'i3so que não devia como 
priucipe benigno chegar com elles á ultuní^ miseriat, pondo;-se 
da parte da sua desventura, pois emflm tudo era por vontç^de 
de Deus, a quem os vencedores, além da natura^ humanidade, 
deviam temer, cuidando que também lhe podia cair a mesma 
sorte, e 'Ua reputação de sua grandeza acerca de outros prín- 
cipes também lhe traria grande louvor a liberal piedade justa- 
mente usada. 

.Com esta resposta foi o Xeque dos judeus, e André 
Corço, um italiano, que foi grande privado de Muley Moluco, 
ao Xerife, o qual a sentiu de maneira, que jurou por toda a sua 
lei destruir todos estes fidalgos, e não faltaram alcaides que 
lhe aconselharam que lhes mandasse cortar as cabeças, attri- 
buindo mais a desprezo sua dissimulação que as impossibilida- 
des que arguiam. 

Logo el-rei os mandou chamar, e elles entendendo que 



120 'a jornada 



devia ser para se vingar de sua resposta, ordenaram que em 
logar de alguns que eram chamados (os quaes estavam doentes) 
fossem outros, para o que se offereceram logo D. Gileanes da 
Gosta, Pêro Guedes e Bernardim Ribeiro, que foram com os mais 
eleitos, tirando Luiz César, que para fazer alguns negócios 
ficou de fora. 

Chegando ao papo, acharam Amubemseleme, que era um 
mouro vedor da fazenda d'el-rei, muito mal inclinado e inimi- 
go dos christãos, o qual lhes mandou dizer da parte do Xerife 
(estando elles no pateo de fora á sua vista) que até àquelie tem- 
po sua magestade os tivera por fidalgos, mas que d'ahi por 
diante os teria por perros e villões, pois procederam de ma- 
neira, e fora tal o termo que com elle usaram, que lhe parecia 
aquelle muito pequeno castigo ; e logo mandou lançar a cada 
um d'elles duas bragas, dando-lhe bem pouco aos ferreiros 
que as lançavam de errar o golpe de quando eúi quando, de 
maneira que sahindo d'este trabalho, algum tanto escandali- 
sado Vasco da Silveira disse cora melancolia (quando quiçi 
se esperava d'elle outra cousa) : faço voto a Deus de nunca 
mandar lançar braga em nenhum captivo meu, ainda que seja 
mouro; — honrada ira certo bem digna de tal fidalgo. D'esta 
maneira foram todos levados á prizão. 



«.-'C^sÇ^>35ií!>ÇXr> ^=»-- J 



CAPITULO VIII 




G0NGLI;E'SB o corte dos riDALOOS, B os G&CUZBS DE 
FEZ O QUBREH ESTORVAR GOH BL-REI 



^STANDo lia Sejana presos, como Qcadicto, estes 
)s, e com muito perigo de suas vidas, por 
?haver muitas doenpas entre os captivos d'el-rei 
|que ii'ella estevam, no segundo dia d'esta prisão 
mandQÚer-rei a ella, para mais terror presos da mesma ma- 
neira, o padre firei António de Lacerda, frei Vicente da Fon- 
seca e frei Luiz das Cliagas, os quaes estavam com elles mui- 
to contentes dos males que padeciam pelo bem que d'Í930 
a tantos resultava, sem quererem vir de alguma maneira 
nas duras condições que o Xerife Ibes queria pAr, ofTere- 
cendo a vida em tão honrado sacriQcio. 

Todavia seus companheiros, que estando livres d'estas 
penas sentiam com maior força o damno à'ellas, não lhe lem- 
brando o interesse, que nunca em semelhantes pessoas foi 
anteposto às obras de virtude, arcordaram que se deviam 
acceílar todos os partidos, ou por melhor dizer as determi- 
nações do Xerife, e. d'esta maneira sendo, soltos se come- 
çaram a preilear, sendo tão desegual o partido, pois de uma par- 
te estava, um rei tyr^mo, diverso na fé, natural no ódio, 
tão livre e tão seguro, sem temer respeitos, em sua terra, 
e de outra um numero de infelizes captivos (posto que de 
alto valor), maltractados e feridos, com tão pouco remédio, 



122' A JORNADA 



em terra alheia, debaixo do cruel zelo de ura cobarde inimi- 
go, sem algum reparo a -seus livres golpes ; de maneira que 
estas eram as duas qualidades dos preiteantes. 

Vede com que receio ou piedade concederia o domador 
livre honrosos e seguros partidos a quem não tinha outro 
remédio senão acceitar por condição muito jilsta qualquer 
extremo de miséria; de modo que, depois de bem reconhecidas 
estas verdades e sabida a tenção d'el-rei> que sempre se ia 
encaminhando a mai3 desbumanos termoa, foi concluiu que 
se acceitasse a livre determinação de seu absoluto senhor, como 
Ozeram por força já os Romanos na perdição de Canas, ex- 
postos ás condições de Annibal, que elle ainda depois não 
cumpriu, pelo. que o negocio foi mais acto de obediência 
que de concerto, e assim ninguém com razão lhe pôde cha- 
mar partido, errando-lhe o nome, para condemnar de longe a 
quem para acceitar de perto lhe faltava (como dizer-se pôde) 
o livre alvedrio. Quanto mais que se viu por experiência (pi^ 
não foi irremediável, e também, ae veio a descobrir urn^ 
cousa : que Deus, por sua misericórdia,, e por bem occultog 
meios, era de sua parte, porque, como fica dícto, o alcaide ãe 
Cabia favoreda o partido por lhe ficarem em Fez. Acoeifa-' 
ram emfim os .fidalgos o corte em quatrocentos mil cruzados^ 
a razão de cinco mil cada fidalgo; e não sei certo como 
Jeronymo Franqui, com menos piedade^ que os mesmos mou- 
ros, lhe acrescenta oitenta mil cruzados, dizendo que se co- 
taram a seis mil e a mais ainda. 



B'AJTaCA 123 



TRASLADO DO CONTRACTO QUE OS OITENTA FIDALGOS 
DO NUMERO FIZERAM COM O XERIFE 
TIRADO DÈ ARÁBIGO 



Por mandado do servo de Deus e guerreiro era seu ser- 
viço mandador dos fieis Abelabis-Hamet, por Deus exalçado 
filho do mandador dos fieis Bem Âudelà Mahomet, o Xeque 
Xerife Alçaaides, o qual Deus sempre esforce e exalte seus 
mandados, e estenda com pjrosperas victorias suas bandeiras 
altas, por quem elle é, e por suas mercês : 

Foi o concerto entre nós e nossos xaptivos, os oitenta 
fidalgos que capti vamos em nossa bemdicta guerra, que nós 
os cotamos em dez centas mil onças, dinheiro da moeda 
corrente desde o tempo da feitura d'esta, os quaes sâo os no* 
meados por nomes e signaes nas três meias folhas d'este pa* 
pel assignadas, e lhes damos de praso sete mezes, que come- 
çarão do dia em que este foi feito; e se algum d'elles mor- 
rer ou fugir no dicto tempo, correrá por conta dos mais ; e^ 
do que trouxerem de roupa ou mercadoria a esta comarca, 
aquiilo que se tomar para nossa honrada casa, ou se com- 
prar por nosso mandado, não lhes custará nenhuma dizima, 
e só do que venderem conunummente a pagarão, como é cos- 
tume; e depois de pagarem o sobredicto se poderão ir em 
liberdade aonde quizerem, o que fazemos saber a todos 
os que nossa carta viíepi. Dada em Fez a dez de outubro, 
aane^ 1587. 



124 



A JORNADA 



ROL DOS FIDALGOS DO NUMERO DOS OITENTA 



D 



D. Affonso de Menezes. 
AlTonso de Torres. 
Álvaro da Silveira. 
Ambrósio Peçanha. 
António de Azevedo. 
D. António de Castelbranco. 
D. António da Cnnha. 
António de Mello. * 
António de Mendanha. 
D. António Pereira. 
António de Távora, 
^yres de Miranda. 
Ayres Telles da Silva. 
Ayres Telles. 



B 



Belchior do Amaral. 
Bernardim Ribeiro. 



Christovão de Mello. 

Christovão de Moura. 

D. Constantino de Bragança. 



Damião Dias. 

D. Diogo de Castro. 

D. Diogo de Menezes Roxo. 

D. Diogo de Menezes. 

Diogo da Silva. 

Duarte Coelho d'Albuquerque. 

D. Duarte de Castelbranco, de- 
pois conde do Sabugal. 

D. Duarte de Menezes Alca- 
nhais. 

D. Duarte de Menezes. 



* D. Fernando de Castro. 
D. Fernando Henriques. 
D. Fernando de Menezes. 
D. Filippe de Portugal. 
D. Francisco d* Almeida. 
D. Francisco de Castelbranco. 
D. Francisco da Gama. 
D. Francisco de Menezes. 
D. Francisco de Portugal. 
Francisco de Sampaio. 



D AFMCA 



125 



6 



M 



D. Garcia de Noronha. 
D. Gelianes da Gosta. 
Gaspar de Souza. 
Gil Fernandes de Carvalho. 



J 



D. Jeronymo Lobo. 

D. João de Azevedo. 

João de Barros da Silva. 

D. João de Castro. 

D. João Coutinho. 

João Freire de Andrade. 

D. João de Lencastre. 

João de Mello. 

D. João de Menezes Roxo. 

D. João de Menezes Sequeira. 

D. João de Portugal. 

João Rodrigues de Sá. 

D. João de Souza. 

Jorge d' Albuquerque Coelho. 

D. Jorge de Menezes. 



D. Manoel da Cunha. 
D. Manoel Pereira. 
Manoel Soares. 
Manoel de Vasconcellos. 
D. Martinho de Souza. 
D. Miguel de Noronha. 



N 



D. Nuno Mascarenhas. 
Nuno de Mello. 



Pêro Guedes. 
D. Pedro d'Epa. 

R 

Ruy Gomes de Azevedo. 
Ruy da Silva. 



S 



D. Lourenço d' Almada. 
D. Lourenço de Noronha. 
Luiz César. 
D. Luiz de Lencastre. 
D. Luiz de Menezes. 
D. Luiz de Portugal. 



Simão Freire de Andrade. 
Simão de Souza. 



D. Vasco de Athaide. 
Vasco da Silveira. 
Vicente de Saldanha. 



126 A JOIL^CADA 



Deram estes fidalgos seu bastante poder aos eleitos, e 
concluído o negocio, mandou el-rei abrir os portos, que foi 
grande consolação a todos, e foi D. Duarte de MenezeB fallar- 
lhe, ao qual elle fez muitas cortezias, querendo remedear 
em parte o demasiado rigor que usara; logo lhe pediu lieeosa, 
para irem a Portugal seis fidalgos, e o Xerife veio ii'i8S0 coql 
condição que lhe haviam de dar vinte e cinco mil onças á 
conta de todo o resgate. Entraram os fidalgos em conselho 
sobre quem iria ao reino, e foram eleitos D. Miguel de No- 
ronha, D. Duarte de Castelbranco, meirinhOTmór, Vasco d,^ 
Silveira, D. Duarte de Menezes, Luiz Gesare Manoel Soams; 
feito isto, e buscado o ^linheiro que o Xerife pediu, assignau 
este o alvará de licença para os eleitos partirem a dar coiita a. 
el-rei do que estava feito, e pedir-lhe mercê e remédio.. 

N^esta coi^uncção alguns fidalgos mancebos comaçafam. 
a dizer que bastava irem somente a Portugal quatro, o que 
devia ser (segundo parece) porque tendo mais companhei- 
ros cuidavam ser mais lembrados, do qual movimenio (que 
fôra bem escusado) nasceu que, como el-rei quasi se tinha 
arrependido, mandou chamar D. Duarte de .Menezes e Jhe 
disse, que os Cacizes de Fez, o velho, lhe faziam certos íce- 
querimentos (como logo diremos) e que lhe parecia juflttíça 
deferir a elles ; a isto thç Tespondeu D. Duarte que não sa- 
bia mais do que ter um alvará por sua magestade assignado, 
e começar a pagar esta conta. * 

Estando como acima apontei el-rei n'estes termos, parece 
que tiveram os Cacizes da JtesquitS de Fez, o velho, noticia 
do contracto, e consultando entre si, que seria bom tirarem 
doeste negocio um grande proveito á republica, além de fa- 
zerem serviço a Mafoma nos damnos que recebessem os chris- 
tãos, e dando conta d'isto ao Gati (que é como seu Bfepo a 
nosso respeito) foram laUar a el-rei, dizendo que sua muges- 
tade dava liberdade a oitenta fidalgos por quatro oentds iqíI 
cruzados, no qual contracto fura enganado, e que elles lho 



I 



queriam dar maia mtenta mil oneas que o povo llie emprea- 
ta"va logo em dinheiro, sem -esperar sete meies, e que atém 
do proveito que se conseguia d'onde era piedade não se 
usar d"el]a, fazia grande servlfo a aeu Mafoma. 

A estas palavras respondeu el-rei (posto que a D. Doarte 
disse íHitrá cousa) que elle tínha celebrado contracto cora os 
duiatãos, pelo que não tiavia de alterar n'est'e negocio cousa 
alguma, ao que o Cati replicou que a escriptura não eslava 
ainda feita, pelo que bem podia sua magestade dar o negocio 
por não concluído: e el-rei lhe respondeu que entre os chria- 
tãos era uso e costume nas pessoas de qualidade ser escri- 
ptura publica o que se assentava de palavra, e pois elles tra- 
ctarara isto confiados em seu estylo, não era razão que elle 
fosse de menor qualidade, antes iraclando com elles ficava 
obrigado a estar pelas cousas concluidas a seu modo, quan- 
do fOra qualquer particular, quanto mais que ã sua real pes- 
soa não convinham semelhantes obras. 

Com esta resposta foi Deus servido que se aquietou o 
Cati e os seus Cacizes. 

Por este succesao e perigo em que todos se viram se 
acabou de entender a misericórdia que Deus com elles usara, 
assim na tenção do alcaide Cabia, como em não serem ad- 
mittidos os Cacizes, e certo não se pôde negar o muito pri- 
mor e honra que usaram aqnelles que facilmente poderam 
negociar seu resgate, era quererem, por não deixarera seus 
companheiros com pouco remédio, aventurar-se às misérias 
que lhes podiam succííder nas condipòes do coatracto, to- 
mando às suas costas o carregado peso da pobreza, e fazendo 
a sorte comraum como j geral desventura. 

Não é menos digna de memoria a fineza que fizeram 
U. Gileanes da Costa, Pêro Guedes e Bernardim Ribeiro, em 
se offerecerem a entrar no logar dos fidalgos eleitos, que el- 
rei mandou chamar para llies cortar as cabepas, como em tal 
lempo se podia facilmente cuidar. 



128 A JORNADA 



N'est6 tempo, depois que os fldalgos fiwram sdtos, pie- 
teuderam resgatar o corpo d'el-rei D. Sebastião, ffjkém foram 
avisados como lhes seria muito prejudicial fallar n'isso, for 
nâo cuidar o Xerife que podiam facilmente dar tanto dinheiío, 
e tractar de mais resgate que o seu, e além d.'isso que elle 
determinava dar o corpo d'el-rei .de grafa a el-rei Miilippe^ 
nosso senhor, que está em gloria, pelo que os fidalgos ces- 
saram de íállar mais n'este negodo, que o coração lhes não 
soíTria estar em silencio. 

Também do resgate do duque de Barcellos se quizera 
tractar, temendo-se outra doença perigosa como uma que 
teve, mas o Xerife respondeu que sem procuração de seu 
pae nao podia deferir a isso, querendo parece dizer, que não 
havia para que pôr em resgate semelhante príncipe, de quem 
o dinheiro nunca podia ser preço, como também do corpo 
d'el-rei havia significado. 

iN'esta coiyuncção se foram ajuntando mais alguns fidal- 
gos pelas íntelligencias que el-rei tinha, os quaes ia reco- 
lhendo Âmubenselleme em uma torre escura, e bem pequena, 
em Fez, o velho, onde estavam bem apertados, com grandes 
bragas, para se cotarem em alto preço; mas elles, que vi- 
nham bem acostumados de seus primeiros amos, gracejavam 
dos medos o carrancas que lhes faziam, sofii*endo estas misé- 
rias com tanto valor e pacienda que os mesmos mouros se 
maravilhavam. Estes fidalgos e outros foram depois a Marro- 
cos, os quaes por então mandou el-rei aposentar na Judea- 
ria com os mais. 



CAPITULO IX 



S PADRES DA santíssima TRINDADE A FAZER 
O RESGATE ; PARTE O XERIFE PARA MARROCOS ; 
PARTEM OS ELEITOS ' 




ÈF.POIS que O Xerife pôz em quietação a oirtade 
Ge tudo o mais com a morte rios Alcaides que 
Shavemos dicto, por se allegar serem culpados em 
Icrirae de lesa mageslarte, tendo lambem concluido 
com o resgate dos oitenta fidalgos, se partiu para Marrocos, 
onde chegou em breve tempo, tranquilJisando tudo cora sua 
presenpa; e n'e8ta conjunccào pouco mais ou menos entraram 
também em Fez dous religiosos da Santíssima Trindade, 
frei Ignacio e frei Agostinho, ao negocio do resgate dos ca- 
ptivos, que foi a maior e primeira consolarão que todos 
tiveram, os quaes logo começaram a buscar os meninos e 
mulheres mocas, cuja edade era menos capaz das misérias 
communs do captiveiro, e como levassem credito, dinheiro e 
algumas fazendas que em Ceuta deixavam sontiu-se logo em 
todos grande consolação, e os fracos se animaram em seus 
trabalhos, e os meninos e mulheres viram particularmente seu 
remédio. 

Tamiiem estes religiosos davam ordem a alguns homens 
nobres e fidalgos para sobre íianca se poderem pór em salvo, 
e d'esta maneira exercitavam seu piedoso otlicio com muito 
zelo o caridade, e em breve tempo mandaram uma calila de 
trezentas e tantas pessoas. 



130 A JORNADA 



Tanto que os fidalgos, como atraz dissemos, concluíram 
o seu resgate, fundaram na Sejana uma igreja, sendo D. Fran- 
cisco de Portugal, filho do conde de Vimioso, o que com mais 
zelo tractou d'isto, resgatando os ornamentos que no campo 
foram por muito preço para celebrar os offidos Divinos. Armou- 
se logo a igreja o melhor que foi. possível com algumas ima- 
gens de Nossa Senhora e de outros sanctos, que todas cus- 
taram muito, porque os mouros faziam grandes escrúpulos 
de as darem aos christãos; porém o dinheiro os resolvia 
logo. 

Ordenadas todas estas cousas, e comprado o consenti- 
mento de Amubenselleme, que era todo o governo d'el-rei, se 
começaram a pôr em uso os officios Divinos, dízendo^se missa 
todos os dias, onde acudiam os fidalgos e mais captivos que 
para isso tinham liberdade, e todos os Domingos e dias san- 
ctos havia sermão, com tanta ordem e concerto, que dava 
grande consolação a todos. 

Além d'isto havia excellente musica dos capellães do 
duque e d'el-rei, de maneira que parecia um paraíso, posto 
que no meio do inferno, e muitas vezes os mouros ás es- 
condidas buscavam logar para ouvir este suave ajuntamenr 
to, e como entre elles não ha musica por arte, permittindcM) 
assim Deus, por não se profanar cousa tão Divina em louvor 
do seu Mafoma, ficavam como attonitos, ouvindo a desusa- 
da melodia. - 

Ghegou-se n'este tempo a nossa Quaresma, e foi a ígr^ga ' 
armada, e cobertas as imagens, o melhor que foi possível ; 
havia completas, terças, quintas e sabbados, e sermões qua- 
si todos os dias, e posto que houve algumas turvaçõea, por 
parte dos Gacizes da Mesquita maior, chegada a semana san- 
cta foi Deus servido que não houvesse cousa alguma, tiiaA- 
do em virtude de taes dias toda a força aos sequazes do de- 
mónio, e os offidos se começaram quarta-feira, com toda .a 
solemnidade que se pôde imaginar, onde se juntaram iniutos 



I -lidalgos, além dos oitenta do numero, e outros homens no- 



I 



Quinta-feira houve rnna solemne procissão, dentro da 
mesma Sejana, de muitos disciplinanles, com tanta devoção, 
que não liavia quem se tivesse com lagrimas, tanto que até 
os mouros do guarda quo a Sejana tem, ajudavam a esle 
sentimento. 

Foi encerrado o Senhor com toda a solemnidade, e os mais 
dos captivos e fidalgos comraimgaram na igreja por sua devo- 
ção, e vinte e quatro horas emfim esteve o Santíssimo Sa- 
cramento trlumphaodo dos demónios em soa própria terra, 
sem haver algum temor ou sobrosalto, antes alguns mouros 
que das guardas alcanpavam poder ver algumas cousas d'es- 
las, estavam mara\ilha{!os e confusos, de maneira que o mes- 
mo Senhor particularmente parece que lhes abrandava os âni- 
mos; e sexta-feira e sabbado se fizeram os olEcios costuma- 
dos, e na manhã da Paschoa houve procissão mui solemne. 

Havia jã n'este tempo em Fez grandes enfermidades, 
por ser a terra muito húmida, mas a Divina Providencia, que 
de bnge nos prepara o remédio, vendo quantas misérias se 
haviam de padece.r, perraittíu que apparecesse n'esta cidade 
um homem por nome Francisco Veles, de Ceie, onde estava 
captivo, castelhano de napão, grande physico e boticário, que 
foi n'esta parte a melhor parte sua, por não haver boticas 
em Barbaria, o qual foi realmente como instrumento Divino, 
■vida e saúde a muitas pessoas. 

Entre os fidalgos que falleceram foi logo um dos pri- 

DS D. Francisco de Portugal, veador da fazenda, em cujo 
aposento me achei acaso algumas vezes, e realmente fui ver 
sua morte, um dos mais lastimosos espectáculos da vida, por- 
que por uma parte estava n'elle representando a fortuna 
abreviadamente a somma de seus trágicos processos, vendo 
um fidalgo tão illustre ede tanta virtude e partes, já tão pros- 
pero, e com razão valido de seu rei, em una pobre casa, 



132 A JORNADA 



humilde cama, em terra inimiga, enfermo e captivo; e pôr 
outra via-se n'elle a mesma humildade, tomando com tio se- 
rena face os males da mão Divina, que parece triumphava 
sua paciência de quantas penas padecia, consolando com ani- 
mo quasi presâgo de Divinos prémios os amados filhos de* 
que estava rodeado, e as gentes todas, que admiradas esta- 
vam vendo aquelle espantoso e despenhado salto de nossa 
miserável \1da. 

Depois d'este bom fidalgo falleceu logo seu filho D. João, 
e D. Luiz de Menezes, alferes-mór (J'este reino, sendo estra- 
nhamente sentido de todos, o qual em sua vida resgatou a 
bandeira real aòs mouros. Assim falleceram também Antónia 
da Cunha, e Simão de Sousa do Pombal, com duas grandes cu- 
tiladas pelo rosto, que na batalha sotfreu, onde no prepo hon- 
roso de taes feridas foi o primeiro que nos mostrou formosa 
a fealdade; e morreu egualmente Damião Dias de Menezes. 

Também falleceram D. António de Noronha, D. Manoel, 
João Tavares de Sousa, D. Jeronymo Manoel, e Vasco da Sil- 
veira, aquelle valoroso fidalgo, a quem tanto contra sua von- 
tade na batalha emprestou a morte tãp pequeno espaço de 
vida. E D. João de Menezes, António de Távora, e D. Joi^ge 
Telles de Menezes, pagem do guião d'el-rei, das muitas feridas 
que na batalha lhe fizeram, praticando tão notáveis cousas na 
defensão de seu Senhor, e de sua insignia, que vendo el-rei o 
mesmo valor chegou a reprehender sua ousadia. 

Também falleceu Álvaro Pires de Távora, e Peio Moniz^ 
de uma postema que se lhe gerou do cansaço da batalha, e 
grandes golpes que nas armas havia recebido, os quaes to- 
dos foram enterrados com mais alguns homens nobres em 
um campo sagrado que está junto a Fez, o novo, que se 
havia comprado para este effeito, excepto o alferes-mór, ciga 
corpo veio a este reino á sua sepultura, e D. Francisco de 
Portugal. . 

Pelos mais d'estes fidalgos se deram muitas esmolas, e 



foram leiloa officios na igreja da Sejana, e acompanhados os 
cadáveres á aeiiultura do melhor modo c|ue foi poaaivel. 

Passados já alguns dias depois cjue el-rei deu licenfa 
para os lidalgos irem a Portugal, partiram D. Miguel de 
Noronha, D. Duarte Casteltranco, Luiz César, e Manoel Soares, 
que para este elfeito foram eleitos, os quaes prestaram jura- 
mento aos Saoctos Evangelhos, diante de um cruciíixo, que 
mui verdadeiramente tractariam o que convinha ao remédio 
de selia companheiros, aem aceitarem d'el-rei mercê alguma, 
nem tractarem de seu particular emqiianto elles estivessem 
captivos, o que prometteram, partindo logo; e depois de 
passarem alguns trabalhos e pei'seguipões no caminho, che- 
garam a Alcácer, onde acharam André Gaspar Corpo, aquetle ita- 
liano que atraz dissemos que l'6ra privado de Muley Moluco, o 
qual levava ordem para. entregar o corpo d'el-rei D. Sebas- 
tião em Ceuta, por mandado do Xerife, a instancias d'el-rei 
D. Pbilippe, nosso senhor, que está em gloria, que para isso 
e outras cousas havia mandado Pêro Vanegas por embaisa- 
íior ao Xerife, cora grande presente; e depois de se ordenar 
Manoel Soares para assistir em Tanger sobre a matéria do res- 
gate, partiram estes fidalgos, e André Corpo com elles, e 
chegaram a Ceuta com o real corpo, o qual foi entregue a 
D. Lionis Pereira, capitão da mesma cidade, e a D. Rodrigo 
de Menezes, que por ordem d'el-rei D. Henrique estava jà 
□'este logar para traclar o resgate geral dos captivos. 

Aqui estiveram estes lidalgos poucos dias, e com pouco 
repouso, porque mais levavam na memoria e na vontade o 
remédio e consolação dos companlieiros que deixavam capti- 
vos, que o presente gosto de se verem em liberdade. 

Chegaram emlim a Lisboa, onde foram muito bem re- 
cebidos d'el-rei íl. Henrique, o qual à sua pelipão mandou 
logo que Paulo Alfonso, Pêro ííarbosa e Francisco Carneiro fos- 
sem juizes dOílançamento que se havia de fazer a cada um con- 
forme as suas rendas e possibilidades, porque entre elles ha- 



134 A JORNADA 



Via, como está dicto, alguns que não tinham cousa alguma^ 
pelos quaes pagavam os outros, que com razão houveiam 
de pagar mais de cinco mil cruzados de seu resgate, e assim 
a quota de todos juntamente deu remédio a muitos, sem pie- 
juizo dos mais. 

Logo por ordem dos fidalgos procuradores e diligends^ 
dos juizes foi junto muito dinheiro, com que acudiram ás 
pessoas a quem tocava, conforme ao que foi lanpado, e el- 
rei D. Henrique lhes fez mercê de cem mil cruzados, e com 
todo este dinheiro e outro para o resgate geral, e muitas pegas 
ricas, mandou por embaixador ao Xerife D. Francisco ila 
Gosta, á petípão dos fidalgos, que depois falleceu em Mar- 
rocos, quasi em captiveiro, com muita honra e satisfação te 
Bua parte, e perpetua obrigação de seu rei e de sua pátria; 
e sua magestade, n'este mesmo tempo, mandou também Pero 
Vanegas por seu embaixador ao Xerife, com grandes pre- 
sentes, para o obrigar a tractar bem os captívos, e lhe pe- 
dir o duque de Barcellos, seu sobrinho. 

Todas estas cousas alcançaram estes fidalgos procurado- 
res, com tanto cuidado e diligencia, que mostraram bem quão 
escusado fora o juramento que para este effeito prestaraià 
em Fez. 

N'este tempo, depois que o Xerife foi a Marrocos, man- 
dou levar à mesma cidade o duque de Barcellos, cuja au- 
sência em Fez se sentiu muito, e foram em sua companhia 
alguns fidalgos e o padre frei Ignacio de Jesus, no qual ca- 
minho por quinze dias sofi^eu os trabalhos d'elle com viril 
animo, onde Deus o livrou de muitos perigos, para ser como 
é refugio commum da pátria, gloriosa causa de bem nascidos 
fructos, seguro amparo àquella memorável casa da real pro- 
saica. 

Depois da partida do padre frei Ignacio ficou o padre fitei 
Agostinho correndo com o negocio dos capttvos, os quaies 
énciaminhava em cáfilas pequenas de mouros e judeus par- 



d' AFRICA 135 

ticulares, com muito cuidado e diligencia; porém no meio d'es- 
tas cousas foi Deus servido leval-o, cuja morte foi de todos 
muito sentida, por sua diligencia, zelo, virtude, e pela falta 
que fez no melhor de seu negocio. 

N'este mesmo tempo vieram novas a Fez, de como estava 
o Xerife muito doente, pelo que todos os fidalgos e homens 
nobres ficaram com razão tristes, temendo não lhes guardas- 
se o novo successor o contracto do seu re8|;ate, e não fora 
muito, porque se soube que elle se arrependera depois de o 
ter feito. 

Fizeram-se grandes devoções por sua saúde, que a tan- 
ta miséria nos chegou a fortuna, que nos era necessário pe- 
dir a Deus aquillo que menos desejávamos; d'ahi a poucos 
dias soube-se que o Xerife estava bom, o que todos geral- 
mente festejaram, porque os mais dos captivos dependiam da 
liberdade dos fidalgos, pelos bens que d'elles recebiam. 



% 



•i^ 



d'afriga 137 



CAPITULO X 



COMO SE LIVRAVAM ALGUNS CAPTIVOS, E DE 

ALGUMAS FUGroAS 




tão estreito o caminho que seguimos, e tão 
(cheio de aspereza, que ainda que meu talento fora 
^outro, entendo certo, não podéra em tanta des- 
ventura deixar de ser molesto aos ouvintes. Pelo 
que, apezar do respeito e sentimento que se deve a nosso 
lamentável processo, me pareceu razão, d.escer de quando em 
quando a cousas mais humildes, por ver se posso com al- 
gum disfarce suspender os ânimos, cansados de ouvirem tan- 
tas miserias,;com mais licença do que até agora fizemos, por- 
que também nos vamos apartando dos successos que pedem 
outro respeito. 

E posto que em parte se me attribua isto a leviandade, 
saiba-se todavia que de industria me condemno por dar algum 
allivio. E tudo soffrerei como isto assim seja, antes que aven- 
turar-me a ser tão desabrido como promette a narração doeste 
successo, assim deserta e núa. 

Havia n'este tempo entre os captivos vários successos, 
porque uns se livravam por desusados modos, outros esta- 
vam injustamente presos por fidalgos, outros havia que de 
maltratados e perseguidos vinham a fazer concerto com a 
desesperação, entregando-se antes ao desengano do tempo 
nas mãos de seus amos, e na esperançia de algum bom suc- 
cesso, que a perecerem com desusados tormentos; e muitos 

18 



t38 A JORNADA 



He livraram, como aconteceu a este de quem diremos^ para 
que se julgue o que podia acontecer aos mais, que de outra 
maneira seria processo infinito. 

Ilavia um mancebo nobre, o qual era captivo de um Cads 
da Mesquita maior, que depois de lhe dar muitos tonnentos, 
porque se cotasse como fidalgo, o levou a uma torre da 
Mesquita, nú da dnta para dma, com as mãos atadas atraz, 
e lhe disse : sabe que o fim de tua vida é chegado, ou por 
ventura o principio de tua felicidade, pois se como fidalgo 
que és te não cotas em cinco mil cruzados, eu te lançarei 
d'esta torre abaixo, e se por outro modo queres fugir k morte, 
' e alcançar a verdadeira vida, convém que sejas mouro. 

Vendo o mancebo esta cruel deliberação, ficou tão solure- 
saltado como se pôde imaginar; porém como nas condipões 
que seu amo lhe offereda, antepunha o interesse ao selo qpie 
de sua lei mostrava, ficou muito quieto, conhecendo que tudo 
eram invenções da cubica, e respondeu com muita iseação, 
que fidalgo não era, e mouro não queria ser. Vendo o Gads 
esta resposta, determinou acrescentar ao medo algum novo tor- 
mento, e lhe disse : pois já que tu, como fals(^ e oouteloflo» 
negas teu próprio ser, e como inimigo de Deus não segues seo 
caminho, eu te darei a morte de maneira, que nem o c6o te 
veja, nem de ti saiba a gente. 

Galou o mancebo todas estas cousas com o coração em 
Deus;.e o mouro, com o favor d'outro que comsigo levava, o 
trouxe a um quintal, d'onde tinha um poço muito alto, e 
atando-lhe uma longa corda nas mãos, que como fica dicto 
tinha atraz atadas, o foi largando por ella pouco e pouco 
abaixo, com grandes ameaças e interrogações ; mas elle, que 
ia cheio de novos espirites, sofi^rendo tudo com muita padm- 
cia, a nada respondia, porque por uma parte, no que tocava a 
ser mouro, estava disposto a padecer mil mortes, e no mais, 
confessando de si o gue não era, impossibilitava o lemedio 
da vida. 



139 



^ 



Veniio o mouro esta firmeza, auspendeu o maDcebo; 
e em lingua castelhana, que muito bera Tallava, dísse-lhe em 
seguida: Pois corao pertinaz e endurecido tu mesmo te queres 
dar à morte, d'es3a maneira que ficas acabarás a vida. ÍL dando 
volta á. corda em cima do pofo, se foi a sua casa, deixando 
porém vigia a vér a deterrainação do captivo, o quai esteve 
d'esta maneira bem grande espafo da noite, encommendan- 
do-se a Deus ; e trapando no entendimento algum modo de re- 
médio, veio a dar em uma subtileza, a maior que jamais 
pude inventar a grande mestra neceíísídade, como adiante se 
verá. 

Gritou logo o mancebo em altas voies, e foi soccorrido do 
Cacls, que não tinha o pensamento em outra cousa; e subindo 
acima com assas trabalho, disse : Senhor, é tão natural aos capli- 
vos, quando são fidalgos e senhores, encobrirem sua quali- 
dade, não pelo interesse, mas pela fraqueza que mostrariam, 
não sabendo soilter misérias, que minha dissimulação Oca bem 
desculpada, pelo que desde agora, cedendo a míuha fortuna e a 
tua felicidade, me dou por vencido e descoberto, e quero que ha- 
jas sete mil cruzados de meu resgate, diíTerente prepo do que ima- 
ginavas, porque saibas que não nasceu o meu sofirimento de 
miséria. 

Ouvindo o mouro estas palavras, considerou que havia 
vencido uma grande batalha, e abraçando o mancebo lhe disse 
que nunca de seu valor e sollrimenlo imaginara menos. 

Recolheu-se o captivo, formando um grão respeito em 
sua pessoa, com signiQcapão de grandes cousas, e tanto que 
foi manhã deu conta do estado em que estava e do remé- 
dio que pretendia, por outro captivo de casa, a um fidalgo hon- 
rado seu amigo, pedindo-lhe vinte miticaes para principio de 
soas cousas, o qual lh'os mandou logo. 

Tanto que o dinheiro chegou, e o mouro viu á primeira 
enxadada as primícias da descoberta mina, Ocou tão entrado 
de suas esperanças, que se foi ao captivo, dizendo que se 



^ 



140 • A JORNADA 



não comraunicasse d'aquella maneira, porque el-rei o toma- 
ria. Vendo o mancebo tão bom principio a seus desejos, lhe 
disse: Pois se assim é, e já que for teu respeito deixo de acu- 
dir a minhas necessidades, é necessário que tu soocorras a 
ellas com a maior dissimulação que for possível. A mim me 
convém, emquanto de Portugal não chega o meu resgate, res- 
gatar algumas pessoas de minha obrigação, e hei-de tomar 
dinheiro a cambio ; porém não queria dar este proveito se- 
não a alguns mouros teus conhecidos, e de muita confiança, 
e no que toca á satisfação dos interesses perde o cuidado. 

Ficou o mouro d'isto mtiito satisfeito, e deu conta a al- 
guns cubiçosos, que lhe começaram a dar dinheiro a razão de 
dncoenta por cento cada mez. Foi o mancebo tractando isto 
com muita moderação, e pagando o interesse a uns do que 
tomava a outros, em ditferente moeda, por não dar alguma 
suspeita, até que veio a ter a quantidade que havia mister 
para buscar mouros guiadores de cavallo, por ordem do mes* 
mo fidalgo seu amigo e do captivo de casa, a quem se havia 
descoberto. 

Chegado, emfim, o dia*tão desejado d'este mancebo, cpiB 
era estimado de todos, ao cabo de alguns mezes, em que 
eile gastou mui largamente ã custa dos mouros, quando mais 
a cubica os tinha cegos, se pôz em salvo pela via de Meli- 
Iha, com seu fiel companheiro; e como os mouros eram de 
cavallo, e sabiram a primeira noite muito bem concertados 
(porque também n'esta companhia se salvou D. Luiz de 6o- 
doi, capitão do terço dos castelhanos), não houve remédio, 
por mais que e desesperado Gads e seus companheiros flie- 
ram, sendo muito para notar-se que nenhum d'elles ousa- 
va dizer que o fugitivo era fidalgo, com temor d'el-rei, nem 
também que lhe deram dinheiro a cambio, e assim ficaram' 
todos olhando uns para os outros; porém quando se soube 
quem o captivo era, e os tormentos que lhe havia dado .o 
Gacis, até os ihesmos mouros louvavam a invenção do manoe^ 



bo, e OB companheiros o fizeram prender como a seu fia- 
dor. 

Muitas d'estas cousas aconteceram, ipie não é possível 
serem referidas, (ronde os mouros \1eram a não apertar tan- 
to comos captivos, e a resgalal-os antes de fugii-em. 

Outros captivos iiavia do mais curta ventura e menos 
intelligencia, gue com passarem grandes tormentos, e se olíe- 
recerem a muitos perigos, eram n'el!es tomados, e sempre 
na sorte peoravam, e algum houve que se entregou total- 
mente á desesperapão, como foi um Tudesco, que vendo-se 
muito maltractado e perseguido de seu senhor em I^ez, o 
velho, porque se cotasse em alto pre(!o, determinou ven- 
der-lhe a vida mais cara ainda do que lh'a eiJe queria fe- 
zer comprar, e tomando um alfange, a primeira cousa que 
íei foi matar seu amo, e sabindo pela cidade foi matando 
quantos achava, excepto mulheres e meninos, até que o en- 
cerraram em um aposento e o mataram As escíipetadas, de- 
pois de ter feito um grande estrago; e foi isto causa de li- 
berdade a todos, porque os mouros os largaram logo aos 
padres pelo que elles quizeram, e os judeua o lizeram com 
taota pressa, que no mesmo dia lhes não licou nenhum em 
casa, dando-os de graça, com a condição de que nenhum tornas- 
se ã iludearia, a por alguns dias não ousaram abrir as portas. 

Lembra-me, acerca do entranhavel mído que esta gente 
tem, uma hialoria muitas vezes repetida e celebrada dos mou- 
ros, a qual foi, que estando uma voz o Xerife era campanha 
contra uma insurreição, como tivesse pouca gente, veudo-se 
em grande necessidade, lhe disse um privado seu: Senhor, pa- 
rece-me bem, que pois não ha outro remédio, que mandes ar- 
mar dous ou três mil homens judeus que ha n'esta cidade, 
pois te não faltam armas ; porque emfim, ainda que tenham es- 
te nome, todavia são homens como nòs, e veado-se juntos e 
bem armados, de crer é que pelejarão muito bem. E man- 
dando dar ordem, foram em um momento os judeus arma- 



142 A JORNABik 



dos de todas as armas, dos quaes se fez um esquadrão mui- 
to formoso, de que o mouro se satisfez grandemente, e ca- 
minhando contra seu inimigo, chegou à sua vista com aquel- 
le fantástico esquadrão, e com os mouros que o acompanha- 
vam, o qual vendo tanta gente ficou maravilhado, cuidando 
ser novo soccorro de turcos, e todos os que o seguiaoi se 
acolheram e eUe juntamente. 

Vendo el-rei aquelle servipo que os judeus lhe haviam 
feito, lhe agradeceu muito a boa vontade, louvando a pre- 
sença de todos, e dizendo aos seus: — Que formoso esquadrão 
aquelle estava! 

Isto dizia el-rei; quando no meio doestes louvores che- 
garam dous enviados de todo o esquadrão, pedindo a soa 
magestade lhes fizesse mercê mandiaur-lhes dar três ou quatro 
mouros, para os guardarem dos rapazes, que lhes não fizessem 
algum mal pelo caminho d'alli até à cidade; o qual, vendo 
tão gracioso temor e petição, disse: Parece-me que, se meu 
inimigo soubera o valor d'esta gente, estávamos bem avia- 
dos« Logo el-rei lhes mandou dar a guarda que pediam, que 
lhes não foi pouco necessária. 

E porque se saiba como esta gente, de quem contamos 
tão miserável fraqueza, não tem perdido o valor de sua an- 
tiga ousadia senão pelo largo uso do seu ^batimento entre 
esta barbara gente, permittindo-o assim Dáus por seus pecca- 
dos, contaremos brevemente uma mui grande façanha, que já 
em nosso favor fizeram, digna de eterna memoria. A qual é 
que sendo Nuno Fernandes de Athaide capitão de Safim, uo 
tempo de Muley Amet, o Xerife maior, vieram pôr cerco três Al- 
caides sobre a mesma cidade com mais de cem mil homeus ; 
e estando Nuno Fernandes muito apertado, tiveram notida 
d'isto dous judeus que viviam em Azamor, por nome laac 
Bensemero e Ismael, os quaes se determinaram vir em seu 
soccorro., para o que ordenaram á sua custa duas fragatas, oom 
duzentos homens de sua nação, mui gentihnente atavudos; 



^ 



e enlrsEdo era Saflm de noite, sem serem sentidos dos sitian- 
tes, foram muito bem recebidos de toda a gente, e do capi- 
tão, com quem tinham muita amisade, e m'unlando-se com 
outros que na terra liavia, sahiram por uma porta falsa, que 
de noile fizeram, ao campo dos mouros, e atacando-os 
de madrugada fizeram espantoso estrago noa sitiantes, tor- 
nando-se a recolher com muito animo e concerto, de maneira 
que os mouros, havendo dezesete dias somente que estavam 
de cerco, e vendo esta determinação tão valorosa, e a gran- 
de defensão que da cidade se fazia, o levantaram. Por aqui 
se vi quanta differonca faz esta gente em si mesmo em 
compaoMa de cliristãos. 

Mas tornando a nosso propósito, de que nos desviamos 
por divertir um pouco o pensamento cansado de ouvir má- 
goas, digo que, além dos muitos descontos e misérias que 
03 captivos padeciam, havia tam!)em successos desastrados, 
como aconteceu a um mancebo fidalgo, posto que não era 
do numero, o qual, demasiadamente colérico, por bem pequeno 
motivo matou um judeu, de quem era captivo, dando-lhe 
com um pau na cabeça, cousa que com razão os judeus sen- 
tiram tanto, que fazendo d'islu queixume ao Aqueme Amu- 
bensellerae (porque elles não tem alpada para dar morte) este 
deu ordem para que fosse morto a ferro, como lã se costuma, 
« dependurado á porta da Judearia, antes que os fidalgos o 
soubessem, d'onde o Alcaide Alliiiíequilo o mandou tirar, por 
■Ih'o pedir D. António Pereira. 

Parecerá cousa fora de propósito, que sendo am chris- 
tão captivo de judeus, e matando seu amo, não tenham elles 
alçada para lhe darem a morte, pelo que me pareceu bem di- 
zer aqui brevemente alguma cousa acerca d'isto. 

Tem a Judearia de Pez e todas as mais em Barbaria um 
maiural, a quem chamam Xeque, o qual é nomeada por el-rei, 
e deposto todas as vezes que lhe bem parece ; e no que loca 
à justiça criminal, tem alpada para mandar acoutar, tirar ore- 



144 A JORNADA 



lhas e narizes, e todos os mais castigos, ã excepção da morte, 
porque isto reservou el-rei para si, por respeito do que pôde 
importar absolvição quando se oíferecer. 

As cousas dvis correm d'outra forma, porque tem 
juizes na primeira instancia, e depois appellação ; porém em 
todas estas cousas, quando el-rei quer, ou os seus Aquemes, 
fazem o que lhes bem parece. Tem também cadeia, em que o 
Xeque manda prender, e onde ás vezes levam os seus 
captivos, pelos terem mais seguros, tendo porém muito 
cuidado d*elles. 

Lembra-me que fui um dia a um cárcere doestes visitar 
um captivo, onde vi um judeu muito bem disposto e men- 
brudo; e querendo saber porque estava preso, me foi dicto 
que o tinham aUi muito mimosos e bem tractado os outros 
judeus, porque não podia soífrer as ^em razões dos mouros, 
ferindo alguns, e dando n'elles sem algum temor, porque 
parece que era de tanto coração o pobre homem que nem o 
longo uso de sua desventura podia acanhar seu animo, e para 
remédio d'isto o tinham alJi d'esta maneira, porque em sa- 
hindo fora era. revolta toda a Judearia. 

Eu fallei com este judeu, e certo que mostrava o que 
â'elle se dizia, de que tive assas mágoa, porque podéra aquelle 
animo feroz, sen^o melhor disposto, em outra parte fazer 
muitos serviços a Deus, e dar seu justo premio ao fraco, 
qtie, contra toda a razão, gemia sob o império do forte. 

Mas tomando a nossas fugidas, além de muitas esmolas 
que os fidalgos davam para aguda do resgate dos captivos, a 
outras obras em que se occupavam, dignas de louvor, e os 
homens nobres em sua possibilidade, cuidavam também em 
dar ordem para que fugissem, ficando por fiadores aos mouros 
que serviam de guias, correndo o negocio por ordem de al- 
guns captivos velhos, e dos christãos mercadores da Aduana, 
que é um logar onde vivem em liberdade, fechados sobre si, 
e onde ha muitos e mui honrados. 



Os mouros guiadores se eDCãrregavam dos captivos, e os 
levavam com muita fidelidade, que tanto pude o interesse, 
que faz a um homem aventurar-se a perder a fazenda, a vi- 
da, e a honra, por saívar o maior inimigo que Lem, inimigo 
que d'aíii a poucos dias às vezes lhe paga este benefluio com 
duas escopetadas. 

Deixando, porém, as maravilhas do interesse, pois es- 
tamos em tempo em que ellas se nos reveiam a cada passo, 
direi que entre os mouros dofcidos da fidelidade acima refe- 
rida, alguns havia traidores e de feros instinctos, que illu- 
dindo os captivos mais incautos com a promessa de os le- 
var a salvamento, a poucos passos da cidade os roubavam 
e matavam, a não ser algum que, monos perverso e cruel, 
se limitava a practicar apenas o primeiro d'esles crimes. 

D'esta maneira andava a sorte variando, com sobresal- 
lo de lodos, porque até aqueUes que escapavam chegavam 
em tal estado a nossas fronteiras, que alguns morriam do tra- 
balho recebido, além dos perigos e misérias que passavam. 

E outros havia a quem succediam cousas, que tomaram 
antes estar captivos toda a sua vida do que passar pelo tormen- 
to a sobresalto d'ellas ; como aconteceu a um homem aobre, 
o qua! fugiu em companhia de ura mouro que o trouxe a 
Arzila, e chegando de noite ao pé, dos muros, como lhe não 
solfresse o corapâo esperar até que se abrissem as portas, 
pela manhã, pediu que o alassem por cordas ; foi logo a seu 
rogo atado com duas, que deviam ser de algum popo, e come- 
çando a subir mui junto das ameias, estalou uma das cordas, fi- 
cando suspenso pela outra, que milagrosamente teve mão n'el- 
le; e vendo-se d'esta maneira, receando que se puxassem pe- 
la corda se romperia nas pedras do muro e estalaria como 
a outra, gritou que estivessem quedos, e encommendou-se a* 



Logo deixaram de puxar de cbna, e o mancebo viu-se 
í maior agonia que se pude imaginar, porque p muro era 



146 A JORNADA 



muito alto, e, em fazendo qualquer moviminto com a corda^ 
sabidamente havia esta de estalar, por ser fraca e estar cos- 
sada; por outro lado, para se deixar estar assim até pela 
manhã, corria o mesmo risco, além do martyrio que soffida ; 
de modo que estava em uma anciã mortal, sem ter onde se 
apegasse, e sem que os de cima lhe podessem chegar. 

Por fim, foi Deus servido valer ao desgraçado, porque, 
tendo os soldados arranjado outra corda, ainda que a muito 
custo, por ser de noite, conseguiram tirar o desventurado 
captivo d'aquelle transe doloroso, chegando alguns a lançar- 
Ihe as mãos às orelhas e aos cabellos, para o segurar, quan- 
do o viram próximo do termo de tão perigosa ascensão ; mas 
em tal estado chegou acima, que muitos dias andou como as- 
sombrado ; e algumas vezes lhe ouvi dizer que, se tivera adivi- 
nhado o que havia de succeder-lhe, preferia mais ficar capti- 
vo toda a vida, do que libertar-se por tal preço. E não é 
de maravilhar, que o trago da morte é deveras espantoso. 

Estas e outras cousas semelhantes aconteciam aos que 
^ bem se livravam, que, se se houvessem de contar todas, seria 
processo infinito; mas este caso basta para amostra dos 
mais. 

Também havia outro modo de fugida, a escala Vista, 
como lhe chamavam, que assim como era mais difficultoso, 
assim sè não abalançavam senão pessoas tractadas de maneira 
que se arrojavam quasi sem nenhuma esperança. Das quaas 
fugidas contaremos aqui uma, que posto que não teve um 
successo tão feliz como as outras, é digna de se contar, assim 
pelo que se passou n'ella, como porque aprendam os câptivQS 
a ter paciência em seus trabalhos, não cuidando que se podfiw 
remediar facilmente. E. quando fugirem tenham mais uotí<4a 
do caminho. 



9- 



Entre' alguns homens fidalgos, que por vários acontad- 
mentos foram levados a Argel, foi um bem honrado e conl^- 
cido, que se chamava Luiz Pereira, o qual, estando captivo em 



H7 



P 



^ 



Adnar bem longe de Arzila, como fosse tracfàdo muito 

asperamente, poripie de cBa o tinham amarrado a uma esta- 
ca, com uma corda pelo pescopo, e de noito em ura tronco, 
além da muita fome que padecia, e outras misérias que a 
esta se seguem, detenninou fugir para Arzila, e não tendo 
outro tempo para o poder fazer senão de dia, publicamente, 
perante todos, escoando a lapada lançou a fugir, com algum 
pouco mantimento que pôde haver às mãos; e como se em- 
brenhasse á vista dos que o seguiam, em vez de correr para 
a parte onde estavam os nossos legares, e para onde elle 
mesmo levava o rosto fugindo, tomou rumo diverso, de modo 
que, sendo procurado pela via de Arzila, teve tempo para se 
embrenhar até ã noite. D'onde começou a seguir seu cami- 
nho, não pelas estradas, pelo perigo que corria, senão por 
valles e montes, encaminhando-se o melhor que podia para a 
parte do mar. Passaram-se pois alguns dias n'este caminho, 
que elle continuou com gi^aude \igia e diíigenãa, emquanto 
lhe durou o pouco mantimento que levava, até que omfim 
chegou ã vista do mar, descalfo e com os vestidos feitos em 
mil pedafos pelas brenhas e mattos que passava. 

Como já totalmente fosse muito cansado e quasi sem 
alento, pela grande fome que padecia, se encostou uma noite 
a uma pequena arvore, cuidando em seu remédio, e no que . 
devia fazer. 

Estando pois d'esta maneira, muito cansado e duvidoso, 
sentiu vir rompendo o raatto um grande vulto negro, e como 
em tal estado nem forcas tivesse para subir uma pequena 
arvore, virou-se subitamente para o vidto, com desesperada 
ousadia, com um pequeno bordão que na mão levava; e 
posto que n'est6 tempo era bem mancebo, parece que tinha 
ouvido dizer que todo o animal teme e acata o rosto do homem ; 
e por se valer d'este remédio, á falta d'outro, se deixou ea- 
lar muito seguro. 

Quiz Deus emfim que serenasse o perigo e se acabasse. 



148 A JORNADA 



porque o tal vulto, que era um leão muito grande, sem ar- 
remetter com elle, talvez pela razão que acima dissemos, ou 
melhor por misericórdia do Senhor, passou em silencio e com 
a maior indifferenpa. 

Vendo Luiz Pereira que o animal passara, sahiu do 
matto a buscar na praia alguma lapa onde paasasse o dia, 
por vir amanhecendo; e andando em busca de logar accom- 
modado, encontrou uma cova na arribada do mar, onde lhe 
pareceu que muito seguramente podia esconder-se. 

Começando pois a entrar por ella dentro, viu alguns 
ossos de animaes, de modo que, não só por isto, mas tam- 
bém pelo cheiro que d*ella sahia, entendeu que era o apo- 
sento do leão que no matto vira, e, deixando muito depressa 
•a cova, subiu a uns montes de areia, o melhor que pôde, 
determinando cobrir-se d'ella, quando vé claramente entrar o 
leão em sua casa, havendo tão pouco espaço que estivera 
piara se recolher n'ella. Doesta maneira foi Deus servido li- 
vral-o de tão terrivel encontro. 

V^ndo o captivo isto, se foi alongando do logar, tão 
cansado e perseguido de fome, que apenas se podia ter em 
pé, e foi amanhecer junto a um logar cercado de muros, 
que totalmente cuidou que era Arzila, mas se tivera practi- 
ca de nossas fronteiras entendera que não podia ser, pois 
viu um rio muito formoso; antes conhecera ser Larache, e 
que á mão direita sabidamente lhe ficava Arzila, d'ahi a qua- 
tro léguas. Vendo-se pois este mancebo tão perseguido da 
fome, e com tanta fraqueza que se não podia levantar do 
chão, onde procurava algum remédio, foi visto de úm alfe- 
res, elche italiano, e levado a uma galé que no porto estava, 
onde foi aferrolhado a Argel, e andou padecendo um anno 
sem por nenhum caso querer dizer quem era, soíTrendo as 
<X>ndiçoes da vida que todo o mundo sabe; e foi Deus emfim 
servido se resgatasse por acconunodado preço, por seu gran- 
de soSlrmie&to e padençia honrosa; porém, bem notados os 



\ . 



d' AFRICA 149^ 



perigos que passou, e a vida que se Uie oíTerecia nos tor- 
mentos da galé, não fica muito acertado conselho aventu- 
rar-se alguém sem as devidas precauções e com grandes pro- 
babilidades de bom êxito. 

Outro modo quasi de fugida havia entre os fidalgos e 

, homens nobres, o qual era, que muitos se concertavam com 
seus amos, antes de irem ter á mão d'el-rei, e lhe davam 
certo preço, de modo que o senhor ficava satisfeito, e elles 
tomavam sobre si o risco de se porem a salvo, ou fugin- 
do, ou peitando os senhores dos portos; como aconteceu a 
três fidalgos que tinha o Alcaide Alichequito — Henrique de 
Sousa, Nicolau de Sousa e Simão da Cunha, os quaes, depois 
que passaram muitas misérias e trabalhos por não serem 
descobertos, vindo ter à sua mão, por assas ventura se 
resgataram pelo preço que custaram ao Alcaide, intervindo 
n'isso o padre frei Ignacio, e além d'isso lhes deu ordem 

• para por via de Larache se porem a salvo; e assim acon- 
teceu, posto que em Larache peitaram muito dinheiro, no 
caminho tiveram muitos perigos, e no mar estiveram muito» 
perto de se alagarem ou tomarem a ser captivos. 



CAPITULO XI 



DA FUGIDA QUE GOMHETTEU VIRGÍNIA E DO 

SUCCESSO d'ella 



^.AMBEM n'esta geral desventura houve mulheres 
JSqne tiveram intelligencia para se porem a sal- 
W-1'- (vo, que tudo com os mouros acabava o interes- 
SFT-^-j^se; mas não aconteceu assim a uma moça ita- , 
liana, de qyem me pareceu bem fazer particular menção, 
por ser grande sua fé e boa sua vontade; e posto que o su-- 
jeito seja imi pouco humilde, não é por isso bem que passa 
em silencio, que as maravilhas de animo, as obras de vir- 
tude, tanto são mais de estimar, quanto menos se esperam 
da pessoa; e porque melhor se entenda, é de saber que en- 
tre os capitães do terço do Marquez Esterauile, havia um 
que se chamava Hercules, o qual tmia uma moça muito 
bem parecida, com quem vinha desposado, segundo opinião 
de sua companhia, e nobre segundo seu parecer, a qual, en- 
tre outras mulheres de diflereutes nomes, foi captiva de dous 
Alarves, que a traziam muito mal tractada, a pé e descalça, 
e descomposta de forma que Ibe foi necessário csAsríi o que 
menos escusava de ídguns baixos fatos; e caminhando d'es- 
ta maneira, passou acaso um poderoso Alcidde, o qual, en- 
trado em um mcanento de sua gentileza, lançou arrebata- 
dameate mão d'ella, tomando aos Alarves até a mais pe- 
quena pefa de sen vestido, que se sua pessoa corria ris- 



152 A JORNADA 



CO em qualquer parte, muito mais se arriscava n'esta, onde 
só reina a licenciosa maldade do seu Mafoma tão proclamada. 

Logo o senhor absoluto tractou da moça a seu modo, 
satisfazendo a vontade tanto contra a sua, que chegou a pe- 
rigo de morte em sua honesta defensão, o que se pôde mui- 
to facilmente crer, pelo que adiante diremos. 

Seguindo pois o mouro seu caminho, de tal maneira se 
deixou levar d'esta affeição, que d/outra cousa não tractava. 
Sentiram muito isto dous filhos homens que o Alcaide tinha : 
alguns* querem dizer que foi mais inveja que mágoa de suas 
mães, mas talvez fosse uma e outra cousa. 

Chegado este Alcaide a Fez, o qual se chamava Amuben- 
selleme, começou a mortal inveja, com bem grande razão, a 
fazer seu offlcio, indignando-se as mulheres, e seus filhos por 
sua parte fazendo-lhe alguns queixumes; porém o mouro, a 
quem amor não dava licença para guardar justos respeitos, 
pisava tudo livremente, fazendo senhora da casa aquella que 
tanto contra sua vontade o era d'elle. 

No meio d'estas bonanças, tão mal festejadas de quem 
as possuia, como um captivo do Alcaide Alichequito, elche 
portuguez, andasse muito desejoso de saber de seus successos, 
movido ainda da primeira mágoa que d'ella teve, vendo-a no 
caminho descalça, onde lhe valeu em algumas cousas o 
melhor que lhe foi possível, veio a saber de seu estado, e 
procurou fallar com ella, assim para a consolar em suas ricas 
misérias, como para lhe fazer as devidas lembranças no pe- 
rigo de sua alma; porém, como a casa do Alcaide fosse mui- 
to grande e respeitada, temia não succedesse algum desastre, 
^havendo má suspeita de suas piedades, e assim lhe mandou 
dizer por um italiano, que lhe deu conta de sua vida, folga- 
ria muito de a ver com licença do Alcaide, fazendo-lhe saber 
quem era, e lembrando-lhe os benéfidos que d*elle recebera. 

Deu-lhe o captivo conta disto, e ella lhe mandou dizer 
que muito seguramente podia vir, porque o Alcaide não 



d' AFRICA í 53 



lhe tolhia cousa em que podésse imaginar seu gosto e con- 
solapão. 

* 

Com esta segurança foi o captivo visital-a, e como ella 
andasse em trajos de moura, ficou algum tanto sobresaltado, 
á primeira vista; mas o captivo ítaliaço lhe disse que o Al- 
caide a não deixava andar d'outro modo, para poder signifi- 
car que era também moura, desculpando-se em parte com as^ 
gentes do grande amor que lhe tinha. 

Folgou Virgínia muito de ver este mancebo, e lhe disse: 
ó caro amigo, quanta alegria tenho, se em tal estado pôde 
haver alguma, de vos ver com vida, e onde podeis ter espe- 
rança de remédio, e juntamente de achar em vós tão fiel 
testemunha da minha lealdade : estes hábitos que vedes (tris- 
tes agouros de mortaes blasphemias) me obriga a trazer este 
injusto possuidor de minha liberdade, inimigo cruel e forçoso 
amigo, que tanto contra seu consentimento goza do infeliz 
corpo, mas já pôde ser que seja esta sua curiosidade ou dis- 
simulação caminho a meu remédio, porque d'esta maneira 
tenho mais tempo e licença para poder tractar d'ella. 

Isto dizia Virgínia com tantas lagrimas que bem mos- 
trava a verdade de seu coração, a quem o captivo consolava 
o melhor que podia diante de um elche, velho castelhano, que 
era sua guarda; e mettendo mais a mão nas esperanças de 
seu remédio, lhe veio a perguntar pelo seu capitão Hercules, 
ao que ella respondeu : sabei que a fortuna o tinha mui bem 
feito commigo, senão fora o descrédito de minha forçada von- 
tade, e o perigo d^alma, pois está em liberdade a melhor 
parte minha: Hercules, meu bem, e todo o meu remédio, está 
livre em Ceuta, posto que também reciprocamente assista 
em Fez. 

Doesta maneira lhe foi Virgínia significando as esperan- 
ças (Jue tinha de sua liberdade, porque Hercules, além de a. 
ter cotada em oitocentos cruzados, entendendo quão mal po- 
dem ter preço contentamentos amorosos, pretendia por todos 



154 A JORNADA 



OS meios sua liberdade, buscando mouros de guia com todo 
o favor e segredo possível. 

Quando Virgínia isto dizia, pondo o captivo os olhos 
n'ella viu que se achava em estado de gravidez, e quisera 
dissimular o que desccArira ; mas ella, que sentiu muito bana 
este pejo, disse com muitas lagrimas : 

Bem sei que com razão foram sempre as obras mais 
dignas da Fé, que as palavras ; mas eu, como verdadeira tesle-. 
munha de mim mesma, ouso aflírmar que foi isto que vedes obra 
somente da absoluta natureza, que se outra cousa suspeitara 
do consentimento de minha alma ou prazer dos meus senti- 
dos, eu própria rasgara em minha vingança as mal occupa- 
das entranhas, dando com a morte honrada satisfação a minha 
vida. 

Estas desculpas dava de si Virgínia, e realmente, se a 
boa philosophia dà logar, bem se pôde ter que fallava verdade, 
pelo que mostrou por obras. 

Depois d'isso, Virgínia foi dando mais particular conta de 
sua vida a este mancebo, o qual se despediu d*ella com assas 
compaixão de suas mágoas e temor de seus successos. 

Estava n'este tempo o capitão Hercules em Ceuta nego- 
ciando o resgate de Virgínia, e, de mil cruzados que o Papa 
lhe mandou para o seu, dava elle oitocentos, porque quando 
esta mercê chegou estava já resgatado. E vendo que tudo 
isto não bastava j)ara conseguir seu intento, determinou gas- 
tar este dinheiro, solicitando por outro modo, e teve taes mr 
telligencias, que Virgínia pôde ordenar sua fuga com os 
mouros de guia, e com outras pessoas que a ajudaram a 
isso. 

Chegada pois a noite de todos tão desejada, partiu Vir* 
ginia em trajes de moura, em dma de um ginete, com seii3 
companheiros, e seguiu a via de Melilha, que não eia mtf 
aoertado conselho, pois era msds provável que a aguardassem 
Aa6 frontekas. 



155 



Tanto que amanheceu, e o Alcaide achou de menos Vir- 
gínia, ficou tão furiosamente desatinado, que não lhe lem- 
brando obrigapões, nem dignidade, começou a correr a lerra, 
com todas as juslipas e mais gente de sua casa, cuidando 
que não podia ser a fuga de uma delicada moça raais que 
até seus visinhos; porém, achando alguns indícios de mais 
longa viagem, se tornou para casa, tão triste e descontente, 
que se se podéra por este respeito haver piedade d'elle fura 
muito bem empregada. 

Logo acudiram as mulheres, muito consoladas de sua 
deacoQSòlação, com fingido semblante, dizendo que se não 
agastasse, que tndo tinha remédio, e assim o dera Deus a 
Virgínia como ellas o desejavam, não por bem d'ella, mas 
por quietação d'ellas. Emfim, o Alcaide expediu togo mui- 
tos mouros de caMallo pai'a todos es logares onde podia 
haver suspeita, com grandes promettimentos, porque além 
das saudades que amor lhe solicitava, bastantes a não dei- 
xarem logar a outro sentimento, lastimava muito, como mou- 
ro que era, que seu Qlho viesse ao mundo em parte onde podés- 
se ser christão. 

Não faltavam D'e3te tempo aos filhos do Alcaide algu- 
mas lembranças para o indignarem, mas o mouro havia mis- 
ter maia consolarão e remédio que ser persuadido ao que 
menos pretendia. 

Passados emlim alguns dias (que nunca duram muito 
alegres esperanças) foi Virgínia tomada no caminho de Meli- 
Iha, sendo desamparada de seus guias, que para se livrarem 
da morte lhes foi assim necessário ; e como além do respei- 
to que o Alcaide mandou que se tivesse para com cila, sua 
gentileza se fazia respeitar em toda a parte, foi tractada com 
toda a cortezia, e trazida á presenpa do Alcaide nos mesmos 
tr^'e3 em que fugira. 

Chegou emfim Vir^ia, triste, canpada, e quasi esmo- 
recida, a casa do Alcaide, que por uma parte estava muito 



156 A JORNADA 



contente, e por outra n^uito sentido de tal determinação; e 
assim, entre mágoa e melancolia, lhe disse: 

Ó fera ingrata, se o devido respeito a esse innocente 
fructo, que de nossas vontades amorosas devera ser um doce 
nó, te não pôde mover a piedade, porque te não moverá 
aquelle amor tão sem limite, que te fez, sendo captiva, livre 
domadora de um senhor escravo? Se minha altiva sorte, an- 
tevendo quipá o que amando mereço, me quiz enriquecer 
com tua pobffcza, qué culpa tenho eu na desventura que me 
fez feliz? Se não te offendi n'isto, em que pude offender-te, que 
com tão vil desprezo pretendeste deixar-me ? Não vés, ingrata 
escrava, antes cruel senhora, como por teu respeito, depois 
de me alhear a mim mesmo, tudo puz em alarma, procuran- 
do-te por toda a parte, idolo d'alma, ahna doesta vida, e 
pizando (triste de mim), com desatinada ousadia, a justa ob- 
servância da lei em que vivo ? Se tanto desejo tinhas de não 
ser senhora onde nunca pareceste captiva, eu te fura muito 
fiel guia, que pois quiz amor que por ti não tivesse liber^ 
dade em parte alguma, pouco importava mudar estado e 
vida, a troco de te ver contente. Mas tu, como deshumana, 
usandcr mal de minha singeleza e sacrificio, não só me des- 
prezaste, mas, excedendo os limites de toda a crueldade (em 
meu damno admirável), desmentiste o poder da natureza, que 
nunca fez cousa bella para causar tristes, effeitos. Se por ven- 
tura minha fealdade Ine faz sem culpa ser de ti aborrecido, 
o sol, que o céo serena, e dá luz às estrellas, também anda 
com os raios pelo chão. Mui bem poderão teus ingratos 
olhos, assim como traspassam minhas entranhas, descobrir n'es- 

ta alma tanta formosura, que bastará a encobrir minha tor- 
peza. 

Isto dizia o mouro, e outras muitas cousas, em arábigo, 

que em portuguèz vem a ser o que havemos dicto, pouco 

mais ou menos, as quaes foram narradas por um judeu de 
nome Dinar, que se achou por interprete no lastimoso caso. 






Chorava a triste Virgitiía, ouvindo estas palavras, com bem 
ifferente mágoa, porque a não tinha mais que de sua cur- 
veuiura, e il'e3te modo se recolheu, lào aborrecida de si 
isina, e Ião canpada, que adoeceu de uma grande enfermi- 
em breve, tempo,, com os sobresaltos e trabalhos pas- 
los, se aniquillou aquelle infcíiz fructo d'esse amor que eila 
lo repudiava. Sentiu o Alcaide grandemente esto desastre, 
im pelo trabalhoso accidente, como por temer Virgínia maia 
endurecida e menos penhorada ; e a'estas desconíianpas, bem 
solicitadas de seus filhos e mulheres, passou alguns dias o mou- 
ro, entre esperança e temor, até que Virgínia, deliberada 
outra vez a não aofirer tal vida, Dão cessando os intelli- 
oíBcios que !he procurava o seu capitão Hercules, tor- 
m a fugir quasi da mesma maneira. 

Sentiu este desprero e ousadia o Alcaide, de modo que, 
i si aborrecido, mandou seus lilhos que a fossem bus- 
car com'a costumada gente de cavallo, e que a pojcssem em 
parte onde se resgatasse, porque não sentia seus olhos ca- 
pazes de tanta agonia: e como os filhos estivessem tão prom- 
ptos na ira como estimulados de suas mães, não quizorara 
mais que uma pequena licença para sua desejada vingança. 
Partiram logo, e posto que alguns dias pôde a triste Vir- 
gínia occidtar-se de seus inimigos, mettida em brenhns, sofiten- 
do mil misérias, enílim veio ás suas mãos, e trazida a casa do 
Alcaide, meia morla e consumida, foi posta em prisão, onde o 
mouro não quiz ir vel-a. Notando isto os lilhos e mulheres do 
Alcaide, foram carregando a mão em suas culpas, de maneira 
que o mouro começou totalmente a perder as saudades d'el- 
la — que tanto pôde um desamor em um peito bárbaro, 

Vendo isto as mulheres, e o bom principio que levavam 
seus cruéis propósitos, ajuntaram á infeliz moça falsamente 
novas culpas, por onde o mouro, como elias fossem sobre 
pmões amorosas, perdeu a paciência totalmente, dizendo que 
ião apparecesse mais diante d'e!le, de tal modo que seus fi- 



158 A JORNADA 



lhos e mulheres ousaram commetter a crueldade que logo 
veremos. 

O' sorte iudigna da belleza humana, que foi na vida 
Lucrécia, Helena, e Hero, mais que ferro, incêndio e prece- 
pido ! quem viu esta moça no nosso campo, tão bella qoe 
arrebatava os olhos de todos, e a vé agora condemnada de 
sua própria belleza^ tão pobre só por muito enriquecida, é 
cousa certo digna de grande mágoa, prindpahnente tendo-se 
libertado as mais das mulheres que como ella foram captivas f 

Mas tornando a nosso propósito, digo que os filhos do 
Alcaide, movidos do mortal ódio das mães, que presentes es- 
tavam, e de sua bruta e natural feroddade, tiraram a triste 
Virginia da prisão onde a encerraram, estando fora da ddade 
o desesperado e aborrecido Alcaide ; e com estranha fmía, sem 
piedade alguma, lhe ataram as mãos tão cruelmente, que ella 
conheceu muito bem o flm de seus dias; e como estivesse 
já tão canpada da ^1da, que apenas se sustentava n'ella, ven- 
do a visinha morte que os agudos alfanges promettiam, co- 
meçou a dizer em altas vozes : 

O' ministros cruéis do indigno mandamento, promptos 
cobardes na vingança ingusta, com quanta mais razão esses 
agudos ferros poderam exerdtar-se no piedoso soccorro de 
minha triste vida, que na vil façanha da innocente morte de 
uma miserável captiva, desamparada e estrangeira! Se mi- 
nha triste sorte, a quem vós chamáveis alta ventura, tur- 
bou alguma hora vossa paz e socego. Deus sabe que nunca 
em tal estado solicitei vossos desgostos. Que lei tão rigorosa 
condemnou jamais estranhas culpas, em quem de vontade li- 
vre carecesse? Por buscar minha honesta e justa liberdade, e 
por vos deixar na quietação da vossa, estou em tanta misé- 
ria; e quando com pias entranhas devera ser soccorrida, oa 
perdoada ao menos, vejo triumphar de minha morte aqael- 
les de cuja vida eu podéra ser senhora. Mas pois meus 
lidtos desejos, honrado presupposto, aborreddo estado, são 



d'aprica 159 

os verdadeiros cutelos que dão fim a esta triste vid^ e não 
esses cobardes alfanjes, não vos quero lembrar mais vossos 
erros, nem mostrar minha innocencia. 

Isto dizia Virgínia diante das assanhadas mulheres do 
Alcaide, a quem o mortal ódio não dava logar a piedade al- 
guma, antes incitavam seus filhos* ao cruel acto, os quaes 
arremetteram a ella de maneira que não pôde quasi n'este 
amargoroso transe pronunciar, como quizera, o sancto nome de 
Jesus que invocava. Descem os agudos alfanjes sobre as ma- 
deixas de ouro, cobre-se a pallida neve do corrente sangue e 
sahe da formosa boca o brando espirito, com o doce amado 
nome juntamente! 

Assim acabou Virgínia; e como todos em casa estives- 
sem da parte de seus inimigos, foi dicto ao Alcaide que 
morrera de sua morte natural, sendo enterrada por alguns ca- 
ptivos, com grande mágoa de todos. O que Hercules sentiu 
d'este successo, que por amor da desditosa dama havia muito 
tempo que estava em Ceuta, do lastimoso caso se pôde coUigir. 

Pareceu-me bem dizer aqui o fim que teve este Alcaide, 
permittindo-o assim Deus, por ser o maior inimigo que os 
christãos tiveram. Sendo mandado pelo Xerife ao reino de 
Guago, nova conquista, veio de lá por suas oulpas preso, e 
acabou miseravehnente, tanto que um captivo bem honrado 
me affirmou que chegara a dar-lhe esmola. 

Foi este o único mouro que não deu gasalhado aos fi- 
dalgos, porque todos os mais os tractavam com grande res- 
peito, pelo conhecimento que de seu valor tinham em nos- 
sas fronteiras ; e até o mesmo rei dizia que não eram seus 
captivos, senão seus devedores. 



t-^ttNOr^QKJfXO-^^^sj 




CAPITULO XII 



COMO DEVEM FUGIR OS CAPTIYOS 



j AnacEU-ME, pois estamos tractando de fugas, 
ryW dizer aqui algxtiq^s cousas que Q'cstas materías 
j|\i practicar a alguns captivos vellios e espe- 
Irimentados. que se salvaram fiTgitido, e tam- 
bém apontar outras muito necessárias para este íim. Porque 
(por nossos peccados) cousa é que pôde acontecer a muitos 
qiie agora o não imaginam; e também estou lembrado, que 
alguns homens em Miquines deixaram do fugir por não sa- 
berem onde estão os nossos logares. Pelo que tractaremos 
um pouco do assumpto, conforme ao que ouvimos e enten- 
demos; e posto que a matéria não seja muito gostosa, toda- 
via, porque pôde alguma hora ser de proveito, bem se pôde 
supporlar. 

E se houver algum que se dé por muito seguro de nun- 
ca ser captivo, pôde deixar este capitulo, mas eu não sou 
d'esse conselho, antes recommendo a meus filhos que não 
tão somente leiam isto muitas vezes, mas ainda que o 
saibam de cór. Primeiramente, deve considerar toda a pes- 
soa em seu captívoiro, sua qualidade, fazenda, e remédio 
que tem para se resgatar, e que senhor tem, e as esperan- 
ças, emíim, de que se sustenta, porque muitas vezes pôde 
acontecer que o resgatem por tão accommodado prepo que 



162 A JORNADA 



seja mui grande desatino procurar fugir, aventurando-se 
a encontrar no caminho outro peior amo, ou por vários ca- 
sos a morte, como acontece muitas vezes, sobre a defeza 
de sua pessoa, ou por má inclinação dos mouros com quem 
se encontre, de maneira que sempre se ha-de attentar muito 
bem o primeiro respeito. 

* Deliberado emfim o captivo, e conhecendo que totalmente 
lhe é necessária a fugida para conseguir a liberdade, deve bus- 
car e escolher um companheiro, porque além de ser grande al- 
livio e consolação a companhia, é também remédio muitas 
vezes, ainda que não seja para mais que para tomar conse- 
lho, e perder o temor. Primeiramente, deve cuidar do manti- 
mento, conforme a distancia que houver dos logares onde 
commetter a fugida aos nossos que vae buscar. Este mantimen- 
to deve constar de grãos torrados e passas, que ambos occupam 
menos logar, e é cemer que esforpa e põe substancia. 

Também deve primeiro advertir que não ha-de fugir 
senão pelo verão (salvo se a commodidade do tempo dér ou- 
tro logar), em occasião que os trigos estejam altos,. para se 
esconder. No dia em que fugir ha-de procurar ser logo à 
noite, • para qiie leve aquelle espaço aos mouros que o hão-de 
ir procurar. E porque, são muito diíTerentes os logares, dire- 
mos de cada um onde demora, e o caminho que deve seguir 
o captivo, guiando-se pelo Norte^como estrella fixa, para que, 
apartando-se ou chegando-se a ella conforme o caminho que 
levar, acerte sua viagem. • 

Começando pois em Marrocos, o primeiro logar nosso é 
Masagão, onde forçosamente hão-de vir os captivos buscar 
seu remédio,* pelo qual respeito lhe fica mais diíBcultoso, por 
ser logar certo, e onde o vão buscar até ás portas, princi- 
palmente se é pessoa de resgate, para o que é de saber que 
Masagão está de Marrocos 25 legoas (que eu andei), muito 
bom caminho, e onde entra parte do campo (Ja Aduquela; e 
para sabermos como se ha-de reger o captivo pela estrel- 



d'africa 163 



Ia, é de saber que esta cidade está a vinte e nove gráos 
e dous terf os da nossa parte do Norte, e quem estiver n'ella, 
caminhando sempre ao mesmo Norte, e quarta do Nor-Noroes- 
te, virá dar a Masagão, de maneira que pôde caminhar 
quasi ao Norte, por ser pouca a distancia, carregando algum 
tanto sobre a mão esquerda; mas o mais seguro e melhor 
é quem partir de Marrocos caminhar aô Norte, sobre a mão 
direita a Nordeste, até dar no rio que vae ter a Azamor e se^ 
chama Morobea, e não pôde haver melhor guia, porque Ma- 
sagão fica duas legoas de Azamor sobre a mão esquerda, che- 
gado ao mar e ao longo do mesmo rio. 

Deve o captivo, se for fidalgo, não commetter a fugida a 
Masagão estando em xMarrocos, porque é quasi impossivel es- 
capar, porque logo correm até ás portas onde estão até o 
tomarem, salvo se estiver primeiro um mez ou dous metti- 
do em alguma casa antes que parta, de fnaneira que os mou- 
ros, ou cansados ou enfadados, desesperem como já disse. Po- 
rém, sendo mesquinho, pôde seguir a ordem que digo, atten- 
tando bem que antes que amanheça 'se deve esconder em 
algumas brenhas ou entre os trigos, entrando por elles sem 
fazer rastro algum, com muito tento, e não deve fazer pega- 
das na estrada junto do logar onde ift metter, antes um bom 
espaço atraz deixar o caminho. 

Também deve ter grande animo e sofWmento, porque 
posto que veja junto a si mil mouros, parecendo-lhe que não 
pôde escapar, não ha-de esmorecer, mas antes, se for neces- 
sário, deve fazer-se morto como a rapoza, porque aconteceu 
já escaparem captivos, sendo muitas vezes trilhados de seus 
próprios amos. 

No modo do mantimento fará sempre a provisão possi- 
vel, comendo quando poder de uma herva que chamam tagar- , 
rinha, a modo dos nossos cardos, da qual deve primeiro 
ter conhecimento, e de uns palmitos que nascem ao longo 
do chão, porque muitas vezes acontece entregarem-se os ca- 



i 



164 ' A /ORNADA 



ptivos a piura fome; e por respeito da agua se deve aeoom- 
raodar, sempre que lhe fôr possível, ao longo d'ella, ou 
valer-se de modo que lhe não seja necessário ir buscal-a de 
dia; por nenhum caso dormirá de noite, sendo-lhe possivel, 
antes deve repousar todo o dia embrenhado no trigo, ou em 
qualquer parte. 

Se por ventura lhe for necessário caminhar fora da estra- 
^da, deve observar a estrella do Norte, para por ella ir bus- 
cando aquella parte ou rumo que lhe é necessário; e como 
pôde acontecer turbar-se o céo algumas vezes, de modo que 
a não veja, deve marcar algumas estrellas conhecidas da 
parte do Sul, porque também, levando as costas n'ellas, po- 
dem servir emquanto não apparece a do Norte. 

Chegando á vista da nossa fortaleza, não se alvoroce 
nem se desmande, antes com muita vigilância e cuidado mais 
que nunca vigie muito bem tudo, e se fôr homem fidalgo 
que tenha suspeitas que o buscam', não deve alcançar a 
nossa fortaleza de noite, porque é certo estarem-no aguar- 
dando ás portas, antes deve ir-se chegando para perto, em- 
buscando-se em alguma parte, e depois de amanhecer, quan- 
do as nossas atalayas descobrirem o campo, dirigir-se para 
a fortaleza; porém, sepdo mesquinho, pôde de noite che- 
gar-se, não ás portas, mas um grande espaço abaixo, ao 
longo do mar, de maneira que se souber nadar se metta 
n^elle, e venha nadando pouco a pouco ao longo da areia, 
e reconhecendo o campo* o içelhor que lhe fôr possivel ; 
o melhor é deixar-se estar ao longo da fortaleza na agua 
até sahirem as atalayas, porque sendo de verão será muito 
fácil cousa, comtanto que se não ponha a tiro de escopeta, 
para que as vigias de cima do muro lhe não atirem, cuidando 
ser mouro espia, que em tudo é necessário ter muito tento 
e advertência ; e este mesmo respeito devem guardar, seguin- 
do a estrella, aquelles que se acharem perto de iMarrocos, pou- 
co mais ou menos. 



/' 



d' AFRICA 165 

Ista é o que toca aos captivos de Marrocos, e quanto aos 
de Fez, que está da nossa parte do Norte, a trinta e um 
gràos de altura, é de saber, que o captivo se ha-de aperceber 
para trinta legoas, porque o mais accommodado logar nosso 
ó Tanger, por Arzila ser já de mouros, e deve seguir o Nor- 
Noroeste, e assim dará a Tanger, e se tomar mais para o 
Norte uma quarta dará em Ceuta, e seja-llie por aviso que 
tem que passar os rios Sabugo e Lucus, junto a Alcácer, que 
de verão lhes não serão muito difficultosos, ainda que não 
saibam nadar, guardando o que se tem dicto, e o mais que 
o tempo de si dér. Miquines está de Tanger trinta e duas 
legoas, e a trinta gráos d'altura da nossa parte do Noríe ; 
quem d'elle fugir ao mesmo logar de Tanger deve seguir 
sempre o Norte, e quem da dieta cidade quizer fugir a Ma- 
sagão, que são vinte e cinco legoas, deve seguir Oes-Noro- 
este, até dar no rio de Azamor Morobea, que o guiará como 
está dicto no de Marrocos. 

De Fez não devem os homens fidalgos nem de Alcácer 
ou Tetuão fugir senão para Melilha, ou Horão, porque doesta 
manehra, sendo buscados nas fronteiras de Portugal como 
mais certo valhacdito, poderão escapar; nem tampouco o 
devem fazer senão com guias seguras, e a cavallo, estando 
primeiro escondidos alguns dias, como está dicto. Alcacer-Qui- 
vir está a trinta e três gráos e meio da nossa parte do Norte, 
onze legoas de Tanger, de modo que o captivo, caminhando 
sobre o 'mesmo Norte, algum tanto sobre a mão esquerda, dará 
era Tanger, e se quizer ir a Geuta ha^de tomar á mão direita # 
ao Nor-Nordeste pontusdmente. E se fôr de Fez para Melilha 
deve seguir o Nordeste, e quem de Fez fôr para Horão deve 
seguir o Les-Nordeste. 

De Tetuão a Geuta são cinco legoas, todas ao longo do 
mar, ao Nor-Noroeste, que se deve seguir, e é cousa muito 
sabida, e quem de Tetuão quizer ir a Tanger deve seguir o 
Nor'-Noroeste : são dez legoas de caminho. Todas estas cousas 



168 A JORNADA 



paciência, offerecendo a Deus a sua vida, e alma a todo o 
género de trabalho e miséria, e assim não deve fallar de 
nenhum modo em seu resgate, isignificando, se lhe tòr pos- 
sível, que não perdeu muito em tamanha perda, porque os 
mouros no principio não fazem senão vigiar o que diz, e o 
que sente, d'onde formam logo no captivo, ajudados de sua 
raalicia, a qualidade que lhes bem parece conforme ao que 
sentiram. 

Não deve também por nenhum caso mudar o nome (sal- 
vo quando :isar de Dom, que entre elles é cousa muito 
subida), porque isso só basta para o terem por fidalgo, como 
aconteceu a alguns pobres homens n'esta jornada, mal adver- 
tidos, que pondo-se outro nome sem haver para que, e de- 
pois sendo acaso chamados pelo seu de outros captivos, os 
mouros os tiveram por fidalgos sem mais outro algum signal, 
e padeceram depois, só por esta ignorância, muitos annos mi- 
seravelmente, até que muito á sua custa vieram os mou- 
ros a desenganar-se : e alguns acabaram a vida n'esta opi- 
nião. 

Também se advirta, que a primeira cousa que os mouros 
fazem é ver se lhe podem colher alguma carta ás mãos, das que 
escrevam a seus parentes, e algumas vezes lanpam dissi- 
muladamente espias d'andaluzes, que se fingem christãos 
com muita facilidade, porque faliam hespanhol como os natu- 
raes, e se na carta lhe podem colher alguma palawa que lhes in- 
teresse, jamais se esquecem d^ella, dando-lhe grande credito, 
como é de razão que seja, pois que o captivo por sua mesma 
lettra confessa, no que se deve estar de sobreaviso, escrevendo 
sempre com muita cautela, e de maneira que da própria indus- 
tria dos mouros se fique elle aproveitando. 

Jamais diga que é casado, ainda que o seja, porque logo 
os mouros fazem* de conta que tem fazenda, que muito bem sa- 
bem (^tie era terra ôe christãos não casam de grajja, como na 
sua, onde os dotes $ão quasi nada. E quando lhe for totalmen- 



te necessário escrever, não deve de o fazer senão por via dos 
I; christãos mercadores de Aduana, de quem tiver conhecimento. 
Seja muito diligentò e perspicas em lodo o serviço, 
iporque, aiém de grangeav com isto a vontajJe de seus senlio- 
P"íes, e ihíi abrandar os aiiimos, para lhe não darem rada hora 
infinitas pancadas, creando-lhe iiailicular ódio solire o geral 
que Ihfi tem, ser\1rã tamliem de o não venderem para remar 
nas galés de Argel, como Tazem a muitos do quem senão 
liam por sua mã soml)ra e melancolia, onde jamais téem 
remédio senão por maravilha, além do immenso tral)alho e 
desventura das galés. 

Guarde-ae era todo o modo de Iraotar com as mouras 
familiarmente, recebendo mimos o favores d'el!as, porque na 
verdade é gente muito lasciva, e cora anirao disposto a qual- 
quer desordem, e não se eogane alguém consentindo em 
semelhantes desventuras, e cuidando remediar suas neces- 
sidades, porque além do perigo da alma, tamanho e tão ma- 
nifesto, de qualquer maneira que os mouros o venham a sen- 
to o enterram vivo, e quando não a mesma moura lhe dá 
veneno de que morre, ou lo^o ou depois, 'raiseravelmente, 
querendo como em sacrilldo com tal morte purgar sua culpa, 
que d'outra maneira tem que senão põde-salvar. iNo modo 
do comer tenha paciência, e também na rama e no fato, e 
^jamais em cousa alguma mostre brio, comendo facitraente 
o mantimento ordinário que ihe derem, sem mostrar asco eui 
cousa alguma, ijue em tudo isto andam sempre os mouros dí 
sobreaviso, e de pequenas cousas fazem grandes mysterioa, o 
i'oucel>ida uma vez a opinião de que são fidalgos, téem depois 
muito trabalhoso remédio. He fòr caplivo de algum Alcaide 
que tenha cargo d'el-rei, ou .seja rico (poriiue doa mais d'estes 
é elle lierdeiro legitimo) seja-íhe por aviso que, na hora em 
que el-rei o mandar matar, ou elle morrer naturaUsenle, fuja 
logo de casa, e vá escondidamente onde alguém o tome 
para captivo, que não faltará quem o acceite, poniue d'oulra 



170 A JORNADA 



maneira sua fazenda confiscada fica logo d'el-re^ onde tem 
muito pouco remédio, porque o Xerife não resgata senão 
fidalgos a cinco mil cruzados, o menos, havendo que não 
convém a sua magestade dar ouvidos a outro prepo, além 
de seu estado ter muitos captivos. Todo o captivo que esti- 
ver em algum Aduar deve pretender que o vendam para a 
cidade, porque os turcos os vão comprar a estes legares para 
o remo, e os Alarves os dão mais facilmente. Deve todo o 
captivo, ainda que realmente seja muito pobre, mostrar que 
o é, não nas palavras, ás quaes os mouros não dão algum 
credito, mas nos efifeitos, porque pouco aproveita não ter 
uma pessoa alguma cousa de seu se os mouros concebem o 
contrario, antes lhe é peor que aos ricos, porque emfim os que 
o são, á custa de sua fazenda redimem depois seus descuidos ; 
mas os pobres ficam de todo impossibilitados, de maneira que 
a uns e outros é necessário fazerem muito bem o offlcio de 
captivos, e não cuide alguém que levará melhor vida se se 
manifestar, porque então é peor, que os mouros, como sen- 
tem onde tirar, carregam a mão com tormentos e misérias, 
para que vá o captivo dando mais do que prometteu, ima- 
ginando sempre que ninguém promette qdanto pôde dar. 
Muito deve pretender o captivo vir ao poder de algum judeu, 
porque na verdade, como está dicto, são d'elles muito bem 
tractados, e como se temem que sendo o captivo de prepo, 
posto que não seja muito, lhes seja logo tomado, accommo- 
tiam-se mais depressa no resgate, e não lhes falta intelligen- 
cia para os porem em terra de christãos; e seja por aviso a 
todo o capfivo que não use mal da brandura e paciência do 
judeu em sua casa, descompondo-se com elle„ como acontece 
lás vezes a algum ignorante mal soíTrido, e mal agradecido, 
porque posto que o judeu não ouse de modo algum castigal-o, 
ou por sua boa natural inclinapão, ou porque o longo cos- 
tume de so&er misérias lhe tem feito habito de paciência, 
todavia por remir sua vexação dá parte do captivo a algum 



d'afkica 171 



mouro, e conta do que passa, o qual lhe tíra a tnalicia com 
jnuitos açoites, e o faz traball^ de noite e de dia, porque 
depois que o moijro tem alguma parte, usa n'este negocio 
(como dizem) com rigor, e depois d'isso sempre o miserá- 
vel captivo se arrepende tarde. Isto é o que se passa acerca 
dos captivos nobres e honrados, e também dos miseráveis 
em seu modo ; e no que toca aos fidalgos fronteiros, que são 
logo conhecidos, e por lei da guerra d'el-rei, não ha tanto 
que advertir: somente lembramos que senão julgue cada um 
n'este estado pelo que de si cuida, antes deve imaginar que 
é pobre, ainda que o não seja, e se.o for dal-o muito clara- 
mente a entender em seus effeitos, porque posto que os mou- 
ros saibam muito bem os nomes a todos quantos tem, e 
cujos, filhos são, tendo el-rei n'isso particulares intelligencias, 
pelo que lhe convém, todavia qualquer descuido ou pouco 
sofirimento podem prometter mais- de si que o que elles 
cuidam, além de não ser honra em tal estado não saber 
soffrer misérias, quanto mais que muitas cousas se offerecem, 
de que se podem aproveitar e grangear a liberdade, como 
aconteceu a Pêro Guedes, que sendo fronteiro e pelejando 
em uma. escaramuça, onde matou três ou quatro mouros 
antes que .o captivassem, segundo me afíirmou um elche 
portuguez (que se achou presente), como lhe dessem, algu- 
mas lançadas, èntré as quaes foi uma na garganta, tomou 
occasião para se fazer mudo, e em três ou quatro annos que 
esteve captivo jamais disse palavra, por mais que os mou- 
ros buscassem invenção para isso, até que o resgataram por 
muito diflferente preço, o que realmente foi uma das mais 
notáveis cousas que acerca de captivos jáijiais aconteceu, 
digna por certo de muito louvor, não pelo que ganhou sof- 
frendo, mas por mostrar quão bem saberia ter soffrmiento 
n'outras cousas maiores. E assim se mara%dlharam os mouros 
estranhamente, quando depois souberam que não era mudo. 



172 A JORNAPA 



e agora em nosso captiveiro vinham a fallar com ellè, por 
ver se era verdade o que diziam, que não acabavam de crer 
caso tão estranho. 

Do que convém aos captivos serem de elches já have- 
mos tractado, e assim o devem procurar sempre, pois são 
os' que melhor livram. 




CAPITCLO XIH 



COMO PREGAVA O PADRE FREI VICENTE DA FONSECA E 

COMO OS lUDBUS ÚOVIAM SEUS SERMÕES; DO 

MODO COMO OS ELCHB3 VIVE» E $Io d'eL- 

LSS TRACTADOS OS CHBISTÃOS 



Í.A n'eHte tempoestavam conhecidos Uià/is os re- 
Pliglosos que foram captivos, e por ordem d'el-.reí 
1 casa dos judeus, entre os quíies hfivia 
1^0 padre ftei Vicente da Fonseca, da ordem dos 
préfifadores, o qual particularmente pregava, só a fim de con- 
fundir 03 judeus, tractando sempre da Sagrada Escriptura, 
trazendo todas as prophecias dos sanctos Propbetas da Jeí ve- 
lha, e citando os logares em hebraico, a cujos sermões assis- 
tiam sempre vinte a trinta judeus Rabinos, principalmente um 
3 quem chama^m Hahi maior, por ser enUe etlles o mais 
douto ; os sermões se faziam em casa de D. Francisco Portu- 
gal, Úlbo do conde de Vimioso, que era nas casas dos mesmos 
judeus, sendo cousa muito de notar a attenção com que to- 
dos ouviam sempre, sem se descomporem em actos nem 
em palavras, p()r mais que frei Vicente dissesse, guardando a 
obrigação de bons ouvintes; e depois de se acabai;. o sermão 
vinha o Rabi maior com muita brandura e modéstia pedir a 
repetifão d'algumas cousas, tanto que alguns, não soãVendo 
que çlle escutasse, com razão lhe chamavam cbristão, e trei Vi- 
cente diante dos mais satisl^ia aquelle desejo, sem querer por 



174 



A JORNADA 



nenhum caso responder a outros, Çor não fazer confusões, 
salvo se o mesmo Rabi entrava nas perguntas. 

Foram estes sermões de frei Vicente bastantes, no pou- 
co tempo em que estivemos em Fez, a se converterem mui- 
tos judeus, e se vieram fazer christãos, dos quaes eu conhe- 
ço alguns n'esta cidade de Lisboa, por onde se pôde bem 
julgar quantas judias fariam o mesmo se tivessem essa li- 
berdade, e certo n'ellas fora muito mais facil a conversão, 
por serem naturalmente muito castas e honestas,%além de 
terem muito bom entendimento, tanto que entre duas ou 
três mil mulheres que haverá na Judearia, não ha uma só 
d'aquellas que chamamos solteiras, nem a consentiriam de 
nenhum modo ; também • se lhes não pôde negar que téem 
muita brandura e piedade, como èu vi muitas vezes usar 
com captivos, assim em os soccorrerem em suas necessida- 
des, como nas doenpas, pelo que realmente temos obrigação 
de nos magoar muito de sua miséria. 

Toda esta gente andava tão cheia de maravilha, vendo 
a verdade e cortezia com que dos fidalgos e gente nobre 
era tractada, que não cuidavam senão de como lhes haviam de 
fazer a vontade, como se foram seus amados filhos, choran- 
do mil vezes o desterro de Hespanha, e com muita razão, 
pelo mortal ódio que os mouros lhes tem e pelas misérias 
que padecem, taes que se não poderiam contar sem grave of- 
fensa dos ouvidos humanos, mágoa por certo grande em 
gente de razão e entendimento, e que tão querida foi já de 
Deus, e na qual todavia somente os christãos captivos (depois 
dos elches que se não téem por mouros) achavam algum re- 
médio e consolação, sendo tractados com muita humanidade 
aquelles que foram a seu poder, além de que era grande al- 
livio a todos entenderem-se com elles, porque faliam em ge- 
ral castelhano, à excepção de alguns judeus mouriscos, de 
qiíe se lá não faz conta, pelo que temos particular obrigação, 
além da ordinária, de rogar a Deus pelo melhoramento jde seu 



d'africa 175 

infeliz estado, para que venham ao verdadeiro conheciniento, 
e não se perca tanta gente em cada hora com tanta miséria. 
' D'esta maneira passavam os captivos que acertaram de 
ser de judeus, porém a mais accommodada e melhor fortuna 
foi d^aquelles que vieram a poder de elches, porque além de 
acharem logo com quem se entendessem, algumas vezes acon- 
teceu serem senhor e captivo ambos de uma pátria, e por 
ventura parentes, e quando isto não fosse, todavia são filhos 
de christãos, e posto que lhes não podemos também assim 
chamar, pois renegam, por mais que elles digam que em 
seus corapões o são, ainda assim parece que nem de mou- 
ros podem ter o nome; e assim, deixando de ser christãos, 
mostram ser dififerentes no exterior do que são no interior, e 
com muita razão dizem alguns d'elles que os elches é a mais des- 
graçada gente do mundo, pois os mouros os téem por christãos, 
e os christãos por mouros, porém que nem uns nem outros 
acertam, porque nenhuma doestas cousas são. 

Vive esta gente no tracto de sua pessoa, e em todas as 
mais cousas, muito differente .dos mouros, e os mais d'elles 
não téem mais que uma mulher, podendo ter muitas ; muitos 
ha que zombam de Mafoma publicamente, e rezam as nossas ora- 
ções, posto que lhes não aproveitem, e alguns quando boce- 
jam fazem o signal da cruz na boca, que não pôde emfim o 
demónio vencer o sancto costume, por mais que d'elles tenha 
tO(Qado posse. 

A maior parte d'esta gente baptisa seus filhos quasi publi- 
camente; e com referencia a esta circumstanda me pareceu 
bem contar aqui uma cousa mui digna de se notar, tomando 
um pouco de mais atraz o successo, porque também se ve- 
jam os perigos e misérias a que um captivo está' sujeito. 

Pousava bem junto de Alichequito o Alcaide Raposo, tão 
nomeado em toda a Barbaria, o qual se passou aò campo dos 
portuguezes no dia da batalha, como está dicto, em compa- 
nhia de Mami. Era este homem portuguez de nação, muito 




176 'a jornada 



esforçado, e de boas condições, e sendo por sua 
captivo, veio ter a Fez, a casa de um judeu que o 
o qual tinha uma fiilâ muito formosa, segundo aíoda 
mostrava, com quem elle parece que se embaraçou por 
res; e vindo a moça por decurso de tempo a ficar 
começou a manifestar seu perigo e desventura, dizendo 
ptivo como por seu respeito bavia de ser apedrejada puUicuMni- 
te (que nâo se castiga com menos, cousa entre os judeus lio 
estranha), além da infâmia de sua pessoa, e de seus paienles, 
e que tudo isto era nada, comparado com a iounensa àòr que 
sentia, vendo que o haviam de apedrejar vivo primeiro dou- 
to de seus olhos. Isto dizia chorando, muitas vezes, tanto que 
o captivo, não sentindo algum remédio na vida, veio a dei»- 
rainar-se com a morte, dizendo : Bem sei, senhora, que pw 
meu respeito estaes no mais infeliz estado da vida^ oo qual 
eu tenho dobrada pena, sentindo muito mais ainda os vo^os 
males, de que fui occasião; porém, como nossas desventuras 
tiveram todavia principio de verdadeiro amor, nascido de vossa 
belleza, razão será que em tudo me sejacs companheira, pois 
fostes a causa: sabei, senhora, que estou deliberado pagar 
com a morte os erros de minha vida, pois sendo christão^ 
e conhecendo o verdadeiro Deus, quebrei tão facilmente seus 
preceitos, dando- com desatinos (posto que amorosos) não 
somente occasião a perecer com a morte infame tão estranha 
belleza, mas ainda a apressui-ar-se o tormento d'essa alnia, 
que é tanto mais bella. Mas pois isto agora não tem remédio 
humano, razão será que busquemos o Divino, salvando as 
almas, que, livres da miséria d'esta vida, vão ambas n'um 
momento em companhia^ gosar da eterna bemaventcranca 
para que nasceram, deixando o demónio frustrada com as 
duras prisões com que nos tem atados, a mim no indigao 
estado de quem a Deus conhece, e a vós na longa confusão 
e geral cegueira de vossos erros. Bem sabeis por quantas ve- 
zes vos tenho declarado a verdadeira lei de Christo, mos- 



^ 



trando-vos clarameote os errados caminhos que seguis, e poLs 
■ Nosso Senhor foi servido que depois de noiisos erros se tiras- 
se de tamanho veneno a mesma triaga, sendo nossa con- 
versação parte para virdes ao verdadeiro conhecimento da 
lei de Deus, como vàs mesma me confessaes, desejando mui- 
to a agua do haptif^mo, também o sangue pôde servir de 
agua, confessando a Fé Catholica sem algum temor, pela qual 
verdade eu diante de vós, e em vossa ajuda, sollVerei alegre- 
mente a morte, por mais cruel que seja, sendo-vos amigo e 
leal namorado «'outros amores bem dilVerentes dos rle agora. 
Ao que ella respondeu: Ai, coitada de mira, quão longe estou 
de achar consolação em cousa alguma, pois até com as mes^ 
mas razões com que me persuadis a estorvaes ; muito bem 
entendo quão pouco vao em que se pei-ca uma \ida tão triste 
como a minha, senão levara após de si essa de quem eu sft 
vivo, perecendo juntanjente o innocente fructo de nossos mal 
logrados amores, pelo que, já que o tempo costuma dar remé- 
dio a tudo, também n'elle podemos esperar, com o favor 
de Deus, principalmente não só a salvapão das vidas, mas 
das almas, vivendo em terra de chrislãos muitos annos com 
o fructo das bênçãos di\inas. 

Vendo pois este captivo a mal deliberada mopa, tão 
cheia de tomor e espanto da morte, lhe disse com grande sen- 
timento: Pois senhora, que determinação é a vossa era tão 
evidente perigo? Eu não vejo modo, lhe respondeu ella, 
mais que ura só, cujo remédio vos será ainda mais penoso 
que o próprio damuo, pois nos será forçado tomar fingida- 
mente a lei dos mouros, até escapar d'esta fúria, debaixo 
da qual podemos viver christãmente até de todo nos por- 
mos em terra do christãos, porque posto que estes caminhos 
sejam torpes e Infames, todavia o fim d'elles é honrado e 
glorioso. 

Cím estas falsas apparencias, pondo este manceiK) 03 olhos 
na esperança dos tempos, se deLxnu lc\'ar d'e8tas fingidas 



17S A JORNADA 



razões, podendo raais com elle o temor de perder a amada 
companhia, que o respeito de Deus. 

Assim escaparam ambos, tomando a lei dos mouros, csont 
a promessa de viverem christãos, e realmente, se isso Hies- 
aproveitara, nas obras o mostravam, como logo veremos. 

Tinha esta gente três filhos, e o mais velho seria já: de* 
quinze annos, os quaes eram baptisados, e em sua casa.s^ 
chamavam pelos nomes de christãos, e fora de mouros, ex- 
cepto quando algum captivo falia va com elles, porque o não; 
consentiam de nenhum modo. 

Era este Alcaide mui grande amigo de todos os chrisr 
tãos e particularmente de frei Vicente da Fonseca, ao qual, 
parindo sua mulher n'este tempo, chamou para baptisar um 
filho, e em sua companhia algumas pessoas, que ajudaram a 
festejar o baptismo, onde acaso me achei. Logo o Alcaide, que- 
rendo festejar a frei Vicente, lhe disse^ (mostrando-lhe a mu- 
lher) : Eis-ahi, senhor, a causa de todos meus cuidados ; veja 
agora vossa paternidade se foram bem acertados meus erros. 
Ao que frei Vicente respoíideu, obedecendo ás leis da corte- 
zia, que a senhora Zaida certo lhe parecia bem digna de se 
acharem por ella desculpas onde não as havia, e que sua 
mercê estava bem no conhecimento disto, pois não somente 
tinha feito por seu amor todo o possível, mas ainda o que 
se não podia fazer. Ella, todavia, quando se ouviu chamar Zaida,. 
disse graciosamente: não me tracte vossa paternidade mal, 
que o meu nome dentro no meu coração é Maria, e também 
n'esta casa, até que Nosso Senhor Jesus Christo queira que 
n'outra melhor parte se possa elle nomear à buca cheia. 

N'este passo se arrazaram os olhos de agua a frei Vicenr- 
te, e a todos os mais, assim de piedade no sentimento doesta 
.magoada gente, como de prazer, vendo toda uma casa com 
tão bons. desejos nas entranhas da Barbaria. 

Logo frei Vicente, com as portas cerradas, baptisou o 
menino, de quem foi padrinho um mercador christão, que se 



chamava Inygo de Melohi, e dando todos muitas graças a 
Deus pelo presente acto, se despediram do Alcaide e da mou- 
ra, que foi juí^a e conFesaava ser cbristã. Assim vive a ruíiior 
parte d'e3ta gente, e aos Xerifes lhes dá bem pouco d'isso ; 
tanto que Muiey Moluco, quando algamas vezes entrava na 
igreja dos christãos em Marrocos, por curiosidade lanpava 
agua benta aos elcbes, e se alguns faziam d'isso escrúpulo, 
ria-se muito d'elles, dizendo: Para que é negar a verdade? 
as vidas e as pessoas me sirvam Itetmente, que das almaa não 
se me dá cousa alguma. E na verdade, bem sabam os reis 
da Barbaria que os elches não são mouros, porém como IheS' 
sãâ muito lieis, e os mouros são inconstantes e traidores, 
téem-nos era muita conta, e fazem-Ihes muitas mercês e hon- 
ras; comtudo, nenhum, por mais contente que seja, deixa de 
trazer na memoria e na vontade vér-se em terra de christãos, 
como logo veremos em um successo que me pareceu bem 
contar aqui: o qual, posto que não escuse sua fraqueza e 
desatino, servirá de grande consolapão a muitos, a quem a 
miserável sorte levou a tão triste estado, esperando uma hora 
boa de seu remédio e salvapão. 

No tempo de Muley Amet, o Xerife mais velho, estando 
elle uma sexta-feira na Mesquita maior de Marrocos, acom- 
panhado de muitos Alcaides e gente de sua guarda, por ser 
dia muito solemne a seu modo, e juntamente dos mais prin- 
dpaes Cacizes, entrou peia porta um homem, quási negro de 
queimado do sol, vestido de áspero saial, cora o cabeilo 
solto e comprido, descalço, e de modo que toda a gente que 
na Mesquita estava ficou cheia do maravilha, sem dizer pa- 
lavra, esperando em que pararia tão estranho appareci- 
_ mento. 

Logo este homem, sem fazer reverenda a el-rei, nem a 
Hitra çessoa alguma, se subiu na cadeira ou logar d'onde o 
íads maior ha\1a acabado de pregar, e com alta e clara voz 
iomecou a diíer d'esta maneira : 



180 A JORNADA 



Christo vence, Christo reina, Christo ha-de vir a julgar 
os vivos e mortos, e tudo o que não é isto é mentira. 

Vendo el-rei tâo estranha cousa, e os mais Alcaides que 
com elle estavam, o quizeram logo matar, ao que por nenhum 
caso resistiu o determinado cavalleiro de Christo. 

Estando, pois, o negocio d'esta maneira, acudiram os 
Cacizes, dizendo que era um homem doudo, e que por isso 
não reparasse sua magestade no que elle dizia. D'esta maneira 
foi lanpado fora da Mesquita e livre por doudo o mais sisuda 
homem do mundo, do qual depois se soube qué era um elche 
que andava fazendo penitencia, e buscara aquelle logar para 
passar honroso martyrio, e assim andou até que veio a terra 
de christãos, porque os mjDuros, vendo-o tão resoluto, por nãa 
desacreditarem sua lei não quizeram lançar mão d'elle. 

Por aqui se pôde ver como esta gente podia tractar 
seus captivtís, e na verdade a experiência o mostrou bem 
em nosso captiveiro, pelo que, posto que seja de abominar a 
desventura doestes erros, não devem os príncipes deixar de 
recolher e dar- remédio áquelles a quem lavou a culpa o- 
verdadeiro arrependimento, e nós temos muito grande obri- 
gação de rogar a Deus que os livre do captiveiro d^alma, e 
também da vida, que realmente bem se podem chamar escra- 
vos, por mais livres qué vivam. 



CAPITULO XIV 




AMOTINAM-SB OS AZUAG03, PARTE REDUAO PARA MAR- 
ROCOS E NO CAMIXHO OS FIDALGOS O PERSOA- 
QKH QUE VÃ A MASAGÃO 



fcSsiM passavam estes captivos como havembs di- 
j^ilHRcto, e OS mais que eram. de mouros tinham as- 

'~ ^T[fiás de desventura; e porque se saiba que não 
isómente padeciam misérias em, seus trabalhos, 
mas rauiias vezes os perseguia a fortuna até com as mes- 
mas apparencias de contentamento e liberdade, contaremos 
algumas cousas qce lhes aconteceram. 

Estavam n'e3te tempb alojados em Fez dnco ou seis 
mil soldados Ãzuagos, todos escopeteiros, e faltando-lhes a 
paga se amotinaram, e, formando um esquadrão, começaram 
aappellidar Muley Napar, um sobrinho d'el-rei que estava aco- 
lhido em Arzila, chamando assim quantos christãos podiam 
haver, com os quaes comeparam a marchar para Arzila, e 
foram caminhando perto de uma legoa, quando trouxe a for- 
tuna Reduão, elche poítuguez, muito valoroso e \'a!ido d'el- 
rei, que, como adiante diremos,' veio com grandes poderes a 
Fez, o qual tinha tanta auctoridade, que ousou chegar sem 
algum m(Jdo á boca das escopetas, e dando e tomando so- 
bre o negocio, fez abrandar a desesperada gente, com lhe& 



i'82 A JORNADA 



prometter pagas e outras mercês, as quaes permittiu Deus 
que fossem como adiante diremos, e Reduão, em paga does- 
ta notável obra, e outras muitas, foi morto a ferro em Mar- 
rocos. 

Logo se desfez o esquadrão, e os captivos tornaram 
para seus amos, dissimulando o melhor que lhes foi possível, 
mas aos mais d'elles aproveitou bem pouco, que os mouros 
souberam de sua fugida, e foram castigados muito aspera- 
mente, redundando tamanha alegria em tanta tristeza. 

Estes Azuagos descendera de christãos de differentes 
nações, e a liberdade de que gosam alcançaram-n'a elles â 
custa dos servipos prestados a um rei de Merines, liberdade 
que este monarcha lhes concedeu sob a condipão de não 
habitarem em terras de christãos, mas sim n'aquellas que 
por elle lhes fossem designadas. 

lJ'esta maneira estiveram muitos annos guardando a lei 
de Christo, até que pela fragilidade de nossa natureza e 
corrupção de costumes, com a ajuda de tão má visinhaaifa, 
vieram a ser meios mouros, e depois mouros de todo, como 
agora se vé. 

Quando esta gente guardava a 4ei de Christo, sendo de 
certa idade, bem pequenos, lhes punha seu pae na face 
aquelle Divino signal da Sancta Cruz, para se differençarem 
dos mais, e prezam-se tanto hoje disto seus descendentes, 
ainda que mouros, que todos trazem os mesmos signae» 
postos por seus pães, e geralmente lhes chamam Azuagos, a 
quem el-rei logo que chegou a Marrocos, assim pelo alvo- 
roço que fizeram quando elle entrou em Fez, como por este 
de agora, mandou matar sem ficar algum, espalhando-os =&- 
simuladamente pelas províncias, e em um só dia deu ordem 
para isso, que d'outra maneira fora muito dificultoso, por se- 

* 

lem muitos e muito valorosos. 

Grande lastima foi ver morrer tanta gente em uma só 
liora, e mais descendendo de christãos, posto que por outra 



d'africa 188 



parte foi mercê de Deus, assim por íaltar aos mouros esta 
valorosa companhia, como por não se enriquecei o inferno 
iada hora com os muitos descendeates de quem tanto adorou 
a Christo. 

Mas tornando a nosso píoposito, depois que se acabou 
este tumulto, e Reduão deu cumprimento às cousas que por 
^l-rei lhe foram mandadas, como atraz apontamos, partiu para 
Marrocos, levando em sua companhia a mãe d^el-rei, e Leia 
Suna, uma fonnosa dama com quem estava casado, da gera- 
ção dos Bocresias, que são os mais nobres mouros da Barba- 
ria, e levando também grande parte dos thesouros reaes, e 
outras peças muito ricas ; iriam em sua companhia mil almas 
de todas as nações, porque, como em cáfila muito segura, 
foram muitos judeus, turcos, ai^menios, christãos, elches, de 
maneira que era um formoso arraial, posto que a mais da 
^ente fosse de negocio, e não de guerra. 

Partiram em sua companhia seis fidalgos, convém a sa- 
ber: D. António de Castro, conde de Monsanto, António de 
Moura Telles, João Moniz, Martim de Castro, Ruy Dias da Ca- 
mará, e Simão Corrêa Barem, e além de alguns captivos no- 
bres e outros do numero commum levava mais de duzentos 
homens elches, muito gentilmente concertados, e dous ou 
três Alcaides mui principaes, parentes da noiva, a qual le- 
vava muitas damas e outras mulheres, que iam mettidas em 
umas grandes gaiolas cobertas de sendaes, de modo que ne- 
nhuma cousa apnarecia d'ellas, e da mesma maneira iam 
as duas rainhas, posto que com mais apparato. 

Seguia seu caminho Reduão, muito de vagar, assim por 
respeito da muita gente, como pelo que se devia á auctori- 
dade de semelhantes pessoas, e além d'isso como fosse te- 
meroso e pensativo, pelo que em Fez lhe havia acontecido, 
levava totalmente o animo quebrado, e muito pouco gosto 
de sua viagem ; e porque «nelhor se entenda a razão disto, 
é de saber que o Xerife, ou pelos novos temores que de tal 



184 A JORNADA 



personagem podia ter, ou pela antiga lembrança da bofetada 
que d'eile ha\ia recebido, não querendo imitar a el-rei de 
França nas injurias do duque de Orleans, determinava tirar- 
Ihe a vida, e para o poder melhor fazer, segundo depois se 
viu, o mandou a Fez com grandes poderes e favores, porque 
em Marrocos parece que por então se nao atrevia com elle; 
Sentiu isto muito bem Reduão em Fez, porque uma noite, 
estando em um banho, entraram dnco mouros para o matar, 
os quaes, sendo sentidos dos elches que fielmente o serviam, 
acudiram estes em sua defeza, de maneira que dous ficaram 
mortos, e os três foram bem maltractados, lançando Reduão 
fama que eram ladrões, por dissimular o negocio (que tanto res- 
peito se deve aos reis, que nem de suas injustas determina- 
ções tendes licença para vos queixar), e d'outra vez lhe foi 
dado veneno em um presente que lhe mandaram; porém, 
como elle andasse de aviso, não quiz comer cousa alguma, 
antes fez a experiência em ura cão, e viu claram^ente o efíeito 
d'ella, de maneira" que com estes desenganos ia muito can- 
çado e receioso; porém, por outra parte, como o demónio 
tinha tomado posse d'elle, lhe mettia em cabeça que, sem 
embargo doestas cousas, el-rei, vendo sua fidelidade e diligen- 
cia, se esqueceria de tudo. 

Chegando pois doeste modo além do meio do caminho, 
junto ao rio Morobea, que vae ter a Azamor, D. António 
de Castro e António de Moura Telles, ou porque lhes fosse 
revelada alguma cousa pelos elches do temor e sentimento de 
Reduão, ou porque vissem uma conjuncção tão boa, com es-"* 
tranho valor ousaram commettej uma das mais honradas em- 
prezas que se pôde imaginar. 

E assim, foram a Reduão, que parado com todo o campo 
ao longo da ribeira estava, e lhe fizeram a practica seguinte, 
havendo porém primeiro tractado o que convinha acerca de 
sua deliberação com mais fidalgos, que também foram d'este 
parecer. 



D*AFRICA 185 

O' valoroso portuguez, a cujo alto merecimento parece 
que rendida a fortuna te veio a pôr nas mãos a mais facil, 
honrada e justa empreza, de quantas alguma hora venturo- 
sa occ^sião deu a pessoa alguma, porque além da Divina 
reconciliação d'alma, a cujo respeito vale tão pouco a vida, 
tudo quanto n'ella se» pôde desejar te busca de um só golpe: 
pois te ofTerece primeiramente a justa vingança de teus co- 
nhecidos inimigos, a pompa soberana com que entrarás no 
reino em que nasceste, enchendo os olhos de estranha ale- 
gria a todos teus parentes, na restauração com tanta vanta- 
gem da honra já perdida, e além do commum contentamento, 
quasi te farás absoluto senhor de todo um reino, que te 
não ficará em menos obrigação, pois com esta tamanha presa 
podes muito facilmente resgatar todos os portuguezes que 
hoje miseravelmente padecem n'esta infeliz terra, lisongeira 
inimiga de tantos mal aconselhados christãos, a quem tam- 
bém se offerece n'esta milagrosa conjuncção adoce liberdade 
de todos, sempre tão desejada, que a cada passo a buscam 
para salvar as almas, com tanto risco de suas vidas; agora, 
sendo aqui comtigo mais de duzentos homens, todos inflam- 
mados doeste mesmo desejo, olha com quanta facilidade podes 
sahir de tão famosa empreza, da qual nunca te pôde succe- 
der senão felicidade, pois quando fosse tamanha a ingratidão 
d'el-rei de Portugal que te negasse um titulo muito honroso, 
que môr honra podia ser que havel-o tão bem merecido. Tan- 
to mais, que basta para o comprar em qualquer parte os 
grandes thesouros' que livremente levarás comtigo, e o que 
de nossos resgates te daremos. Este rio que vés vae direito 
a Azamor, logar quasi despovoado, e sem defeza alguma; 
manda marchar com qualquer honesto desvio todo este cam- 
po ao longo doestas aguas, cujo curso parece que te está cha- 
mando á gloriosa empreza. 

Quando estes fidalgos acabaram de dizer a Reduão estas 
e outras cousas, depois que o elche as escutou muito bem^ 

24 



166 A JORNADA 



com assas maravilha de sua deliberarão, lhe re^ondeu mui- 
to grave e ^gazmente: 

E' tamanha a liberdade que os captivos téem para cora- 
metter as cousas de que possam conseguir o eflfeito d'ella, * 
que não me maravilho da estranha ousadia de vossos riso- 
nhos conselhos, nem vos quero dar outra penitencia a tama- 
nho atrevimento, mais que a confusão e vergonha em que 
vos vereis, não me sabendo responder a nada do que vos 
quero perguntar. Oizei-me, por vida vossa: quando íôra 
possivel (do que Deus me livre) que minha lealdade podéra 
quebrantar-se, cedendo á força do vil interesse que me ha- 
veis significado ? De que modo se podéra conseguir o dese- 
jado fim de tão desatinado presupposto, sendo certo que para 
esse effeito se haviam de coramunicar duzentos homens el- 
ches, de tão varias nações e diíferentes humores, entre os 
quaes impossivel cousa steria sustentar-se o segredo, que sendo 
revelado por qualquer via aos mouros que aqui vão, mad 
podia alguém escapar de suas mãos ? D'outra maneira, se eu 
quizesse caminhar com toda esta gente para Azamor, que 
razão podia dar de minha partida, sabendo todo o mundo 
que vou direito a Marrocos, e eu sempre assim o tenho di- 
cto? Por outra parte, se os elches não fossem todos de minJha 
opinião, quem havia de matar os mouros que sabidamente 
haviam de ser contra ella? Assim, de qualquer maneira, 
parece-me, senhores (com vosso perdão), que sereis mais para 
a guerra que para o conselho d'ella. 

Grande contentamento foi o dos fidalgos, assim era ve- 
rem tomar tão facilmente a Reduão sua ousadia, como no 
desejo que lhe enxergaram de querer saber, a modo de 
zombaria, o remédio que lhe podiam dar; e logo, owh 
mais liberdade e confiança, lhe começaram a dizer doesta 
maneira: 

Ó venturoso Alcaide, chamado pela mão Divina a tão glo- 
riosos fins, pelos mais fáceis meios que nunca houve na vida, 



d'afbíga 187 



sabe que as tuas próprias diffioilãades sao verdadeiros argu- 
mentos nossos, pois quanto ao que dizes que tudo pôde 
commetter um captivo por se ver livre, bem claro está que 
isso se não deve entender em nossas pessoas, pois basta para 
nosso resgate a metade da renda que cada um de nós tem 
cada anno, de modo que sem nenhum receio, com o favor de 
Beus, nos julgamos já livres, pelo que, posto que fôramos os 
mais desasisádos homens do mundo se não víramos a facili- 
dade d'esta empreza, como era possível com tão pouca neces- 
sidade aventurarmos as vidas, se não tivéramos a certeza, a 
intima convicção, de que nossa ousadia facilita teu perigo ? 
Quanto ao primeiro inconveniente, bem claro está que nenhum 
elche d'esta companhia, por mais filhos e mulheres que tenham, 
deixam de suspirar pela salvapão da alma e honra da vida, 
pela qual razão tudo se pôde fiar d'elles, e quando te não pa- 
repa seguro este conselho, aqui vão trezentos christãos captivos, 
diversos e d*el-rei, com os quaes nôs degoUaremos todos os 
mouros que aqui vão, dando-lhe tu suas armas, o que de noite 
pôde ser muito facihnente, pois tão confiados e seguros dor- 
mem ; e, feito isto, a que mui seguramente nos oflferecemos, por 
força todos os elches hão-de seguir teu parecer, porque já en- 
tão ficam sempre suspeitosos a el-rei, quanto mais que elles 
abraçarão de modo a desejada occasião, que não será necessário 
algum promettimento ou rogo, porque sabe que todos o vem 
significando com estranhas anciãs, como pôde ser que de ai-, 
guns tenhas entendido e nós de todos. Quanto a serem muitos 
08 mouros, bem se deixa vér que os majs d'elles são gente 
inútil e desarmada, que passa seu caminho, ' e os outros são 
judeus, e uns e outros se haverão por bemaventurados em 
escaparem de nossa fúria, deixando o campo cheio de despo- 
jos ; e dos mais que podem fazer resistência nãp amanhecerá 
nenhum vivo, salvo aquelles quatro Alcaides Bocresias, que 
logo amarraremos; e acabada esta segura empreza, que dei- 
xarás á nossa conta, sem metteres n'isso nenhum cabedal. 



188 A JORNADA 



pódés muito facilmente caminhar com todas estas riquezas aa 
longo d'este rio, até Azamor, que está a duas pequenas legoas 
de Masagão, onde irá algum de nós diante pe^ir as alviparas 
de tão nobre fapanha, e nós te viremos receber, caso possa 
haver quem te resista. Quanto mais que em um dia e uma 
noite fôramos a Masagão, sem poder haver no campo quem ouse 
olhar tão somente para nós, e primeiro que de Maqui- 
nes possa vir gente, por estar mais perto d'aqui, antes 
que lá chegue a nova já estaremos a salvo. Tudo isto 
que te dissemos está pelos fidalgos e mais captivos doesta com- 
panhia ordenado, com parecer dos elches qaasi todos, com 
tanta facilidade, dando tu licenpa, como verás mui breve- 
mente, t 

Calou-se Reduão a todas estas cousas, dando com sua dis- 
simulação tão vivas esperanças aos fidalgos, que quasi se 
começavam a fazer prestes, incitados dos elches, que estra- 
nhamente suspiravam por esta em preza; e assim, passado 
algum tempo mais, além d'aquelle que totalmente^ lhes fazia 
cuidar na certa deliberação do Alcaide, se tornaram a elle 
com novos argumentos ; porém o desventurado, que por seus 
peccados tinha merecido a Deus differente fortuna, se resol- 
veu dizendo, que o Xerife se fiara d'elle, e elle se não podia 
fiar de tantos': e que por ultimo sempre' em Portugal se- 
ria tido por um vilão renegado, e em Barbaria era príncipe, 
e christão dentro era sua alma. 

Grande foi a mágoa e tristeza de todos estes fidal- 
gos, que, bem lembrados de sua obrigação, ousavam pôr 
em tamanho risco suas vidas, só por dar liberdade a tantas 
gentes. 

Partiu emflm Reduão, levando a triste via de Marrocos, 
para onde o deixemos ir, que antes de muitos dias o iremos 
lá ver em differente e miserável estado, tão arrependido de 
su^ mal empregada'fidelidade, como temeroso de perder aquel- 



D*APRICA 



189 



la sua tão infame e triste vida. E realmente, fallando eu de- 
pois com alguns d^aquelles elches n'este reino, que alli se 
acharam presentes, e depois voltaram, soube como a empre- 
za era cousa mui factivel, e que bastavam, para se resga- 
tarem todos os portuguezes, a mãe e mulher d'el-rei e os 
Alcaides Bocresias, mas parece que o não permittiu Deus por 
nossos peccados. 



CAPITULO XV 




DESCHÊVII-SE A CIDADE DE UARKOCOS, E THAQTA-SE 
DO CAMINHO DE FEZ A ELIA 



[ se deixa entender quantas e quão diversas 
^cousas passariam os captivos em todo este tempo 
Ique estiveram em Fez, vivendo sempre com o 

jintenso desejo de verem suas mulheres e seus 

filbos, 6 sustentaúdo-se de esperanças, que a cada passo se 
turbavam com a infidelidade dos mouros, da qual nunca 
podiam estar seguros, assim pelo receio de el-reí lhes imo cum- 
prir seu resgate, como pelo perigo geral, debaixo de tão cer- 
tos e tamaobos inimigos; e assim, foi realmente particular 
mercê de Deus acharem os fidalgos as casas ám judeus em 
que se recolhessem, que nenhum d'élles podéra viver nas ã(& 
mouros, por serem avaros, cruéis, e maliciosos, e pelo con- 
trario acharam dos judeus muita brandura, afl^itidade e.cor- 
tezia, além de ser allivio muito grande entenderem-se com 
elles na linguagem, porque, como esta dicto, foliam todos cas- 
telhano; e asam, em todas as cousas eram estes fidalgos tra- 
ctados como em suas próprias casas, com muito amor e sin- 
geleza. 

As suas occupacões ordinárias eram: pela manbã ir ou- 



192 A JORltADA 



vir missa, e á tarde juntarem-sc em boa conversação os ami- 
gos e parentes, tractando de seu remédio. 

Alguns havia que aprendiam Arábio e Hebraico, por não 
darem logar á ociosidado, e nas tardes do verão subiam aos 
terrados das casas, aonde, com os olhos postos nos altos mon- 
tes que defrontam com parte da nossa Hespanha, estavam cur- 
tindo saudades. N'isto recebiam grande allivio, por ser a vista 
muito formosa, e jamais nenhum d'elles sahia da Judearia, 
salvo quando eram chamados por mandado d'el-rei ou de 

seus Aquemes. 

Os outros captivos, homens nobres que andavam sob 

fiança, tinham mais liberdade, porque iam a Féz^ o velho, visi- 
tar e soccorrer seus amigos, e algutaas vezes a um campo 
que está na Judearia, onde os judeus se enterram, logar mui- 
to aprazivel, cercado do jardim d'el-rei, pelo que se dizia 
vulgarmente, que melhor era n'aqueUà ter^ conversar os 
mortos que os vivos. Aqui Vão as judias, em determinado tempo 
do anno, prantear seus defunctos, e tíerto ei^ cousa para notar 
ver entfat algumas moças galanteando e rindo umas com as ou- 
tras, e ao chegarem ás sepulturas, a qué cada uma ia diri- 
gida, tirarem os mtmtos e começarem suas lamentações, fat- 
iando em altas vozes com os defUnctos, como se elles lhes hou- 
vessem de responder, e depois que faziam isto (como pdr òffl- 
iclo) logo se tornavam rindo e folgando, para dar logar a outíaí 
que Víoíam fazer o taesmo. Nisto tinham os captivos algum afl^ 
livlo) qtie muitas vezes mágoas com mágoas Se òònsolam, porém 
sempre com aqiieíles sobresaltos de sè vérera captivos, qtie nft 
mór alegríík arrebatavam tudo, sem deixarem uíii só Inôme&tô 
õ ^anitóo quieto. 

Andavam n'6Ste tempo ôs fidalgos do tiumerõ com gtaii- 
áèB espetanças de liberdade, porque D. Franéisco da COBta^ 
alôm dos presentes que levou ao Xerife dá parte d'el-iei D. 
Henrique, tinha todo o cumprimento do resgate ordenado em 
letras e em fazendas, e assim era muito grande o alvoroço 



e contentamento de todos, com as saudades male vivas e 
, tnai9 penosas, fazendo-se prestes o melhor que lhes era poa' 
■■sivel, o que geralmente soQViam muito mal ob mouros, por 
i maldade e peio mortal ódio que nos [éem. 

Westa conjunção parliu uma cáfila, onde fomos alguns 
■ptiv09 ã cidade de Marrocos, da qual convém tractar um 
^ouco, deixando as cousas do Feí no estado que havemos 
íicto, até que digamos como sahiram os fidalgos do numero 
I outros muitos captivos, que com seu remédio e à sua aom- 
íira vieram. " 

,Ha de Fez a Marrocos cento e tantas legoas, sem haver 
1 todo o caminho estalagem, logar, ou vílla, salvo a cidade 
) Teilula, que da estrada estará duas legoas, pelo que as 
^ssoas que caminham vão em caflias de cem homens, ao 
faenos, com toda a ordem e concerto de guerra, por respeito 
3 Alarves, que são naturalmente ladrões: e porque n'este 
Eftminho vimos algumas cousas dignas dgrmenfão, me pare- 
1 tractar d'elle particularmente, para que também se 
iba o modo como og mouros caminhara, e o que passam 
5 captivos em sua companhia. 

Partiu emQm a nossa cãfiia, indo todos em som de guer- 
; e n'aquel!e dia, jã bem tarde, sem descansar nem comer 
jenão á noite, fomos faier jornada a uma ribeira muito fresca, 
itade havia muito peise, que até foi necessário, para poderem 
Jeber as cavalgaduras, bater a agua com varas, porque uns 
MS saltavam aos olhos, outros lhes picavam na hòca, e alguns 
; lhes mettiam pelas ventas. 

E tanto assim é, que, ha hem poucos dias, um captivo 

liatural d'esta cidade de Lisboa, que se chama Luiz Alves, 

me disse, fallando n'lsto, como seria possível dar-lhe algum 

hedito quem o não viu por seus olhos, a não saber que os 

^alarves de nenhum modo comem peixe, nem põem n'Í930 cui- 

lado! 

Finalmente, aqui nos aposenlamoa esta noite, onde o mes- 



194 . A JORNADA 



mo Luiz Alves, com anzoes que fez de agulhas, pescou muito 
facilmente innumeros peixes, e de muito bom sabor, com os 
quaes nos valemos na presente miséria. 

Ao outro dia fomos caminhando da maneira sobredita, 
todos postos em som de guerra; e como fizesse grande cair 
ma, encontrando uma pequena ribeira de agua muito clara^ 
eu e os mais dos captivos açodadamente nos lançamos a ella, 
e algum tempo bebemos, primeiro que sentissemos que era 
salgada, o que vendo alguns elches de nossa companhia, e 
juntamente a confusão em que estávamos, rirdm muito do 
nosso engano, e na verdade todos ficamos muito suspensos, 
porque logo na mesma ribeira vimos andar caranguejos, e as 
pedras cobertas de caramujos, e muito mais nos maravilhava 
por vermos que \1nha da parte da terra, e de nenhum modo 
podiamos atinar com a causa; mas logo nos foi dicto que a 
ribeira passava por uma serra de sal, que a natureza n^aquella 
terra cria, por Ihe^o faltar cousa alguma, e que as aguas 
antes de chegar à serra eram doces (como logo adiante vi- 
mos) e depois de passarem por ella se tomavam salgadas, 
como à nossa custa experimentamos. 

D'esta maneira iamos caminhando, aposentando>nos sem- 
pre ao longo das ribeiras, onde, pela intelligencia de nosso 
companheiro, éramos soccorrídos de peixe, que, a ser d'outra 
maneira, nenhum de nós chegara vivo, segundo a nús^na 
dos mouros. 

Em todo o caminho, até à cidade de Tedula, não vimos 
cousa alguma, senão algans aduares pelas montanhas, que 
são uns pequenos povos de tendas de lã de cabras, situados 
em circulo, onde os Alarves de noite recolhem seus gados. 

Tedula é um logar mui pequeno, onde prende o nome 
o espaçoso campo de Tedula, que será de qninie legoas úb 
comprido^ por seis de largo, todo egual e chão^ por (Hide cami- 
nhamos dous dias, que realmente se cansavam os (dhos de yer 
tão for^noso espaço; algims rios passamos n'esle cuninlio, 



d' AFRICA 195 

* principalmente aquelle em que Reduão esteve quasi determi- 
nado em sua bemaventurada partida. 

Depois de termos andado pouco menos que as duas par- 
tes do caminho, fomos fazer jornada a uns montes, por não 
haver ribeira alguma n'aquella paragem, onde encontramos 
uns aduares, de mouros tão pobres, que não comisgn outra 
cousa senão a farinha» que tiravam de uns certos espi- 
nheiros, cujo fructo era bem amargoso e moído em mós de 
mão, e não havia mais que uma lagoa de agua pluvial, da 
qual nós também bebemos, depois de todos os cavallos entrarení 
a beber n'ella, o que basta para se haver dicto o mais. Ha n'es- 
te deserto infinitos leões, e logo nos a;duares se ctíegou uma 
moura velha a um elche de nossa companhia, que se chama- 
va Mami e se passou no dia da batalha á nossa parte (como 
está dicto), e lhe disse em sua linguagem, que havia poucos 
dias que um leão lhe arrebatara uma ovelha diante dos seus 
olhos, e que vendo ella isto correra a elle com estranha ou- 
sadia, dando-lhe com a roca que na cinta trazia, e chaman- 
do-lhe sujo e cobarde, que não tinha coração para os bra*- 
vos touros d'aquella montanha, senão para a fraca ovelha 
de uma moura pobre; e que o leão, ouvindo isto, largou 
a preza e se retirou cabisbaixo, corrido e vergonhoso. 

Isto aífirmava a moura, e posto que parece impossí- 
vel, Mami e os mais companheiros lhe davam credito, acres- 
centando todavia que aquelles mouros usavam de certas pala- 
vras de encanto, como ^á fazem aos lobos, e na índia às ser- 
pentes. 

Ao outro dia fomos fazer jornada a um campo, cercado 

todo de uma pequena ribeh-a, onde nos aposentamos, por sej 
logar adequado para isso, não só pela muita agua que ha 
n'aquelia parte, como por ser seguro dos leões. 

Pozeram-se as tendas, e os mouros começaram a apa- 
nhar lenha para fazer fogueiras, de que costumam cercar-se 
nas partes onde ha animaes ferozes. Estando d'esta maneira e 
sendo já quasi noite, vimos nas faldas de um pequeno monte da 



196 A JORNABA 



outra parta da ribeira atravessar um leão, olhando para itò^^ 
seguindo com passo vagaroso, e daado algum urro9 bem xoaõíh 
Hbos. Quiz um captivo da companhia atirar-lhe a espin- 
garda, mas por nenhum caso Ih- o consentiram, porque fOrd 
cousa muito perigosa assanhal-o. Gmfim, elle passou de Qt^g 
bem perto, reconhecendo tudo, e toda a noite ninguém áfí^r^ 
miu, para alimentar as fogueiras e disparar as escopetas, od* 
tando todos postos em ordem, como quem esperava um grfgK}^ 
assalto. Passada a noite, durante a qual os leões andaram a^ 
redor da cáfila, ao outro dia pela manhã, já sol sabido, no^ 
partimos, e como chovera alguma cousa de noite vimos q 
rasto das feras que pela estrada andavam, e caminhando malsi 
um pouco adiante ouvimos ao longo de um matto uivar muitoa 
adibes, que são uns animaes como rapozas pequenas; gue-^ 
rendo saber o que fosse aquillo, nos foi dicto que todo o lefto 
trazia corasigo, bem contra vontade, quarenta a cincoentji 
d'aquelles animaes, os quaes se não sustentavam mais que da 
preza que o leão fazia, depois de satisfeito, e quando elle se des- 
cuidava o desatinavam cora brados, até que, importunado, 3e 
levantava e ia em busca d'alguma preza, andando todavia aquel-» 
les a seu lado, mas sempre muito precavidos, que lhe não che- 
gue o leão, como também fazem os peixes, a que chamam 
Romeiros, com o tubarão, na costa de Guiné. 

Doesta maneira caminhando, e aposentando-nos sempre ap 
longo da^ ribeiras, ao cabo de doze dias chegamos a xMarrpcoa, 
que está, segundo o que parece, ao pó dos montes Claros, moa-» 
tes que, a seis legoas de distancia, se chamam Atlantes, oa 
quaes atravessam toda a Barbaria, de Levante a Poiiente; 
^0 muito alvos e formosos, e estão sempre os seus cumea 
cobertos de neve, pela qual razão lhe chamam Claros. 
Está esta cidade a vinte e nove grãos e dous tei^^os da 
nossa parte do Norte, onde sempre residem os Xerifes: é 
toda chã e muito bem assente ; terá quinze ou vinte mil vixir 
nhoã; por haver dentro d'ella muitas casas de senhores, e ai- 



•# 



D-AFBICA 107 



guns palmares e jarcMos, eslà propriamente assenta loomo a 
(úá^e de Sevilha, e tem no meio i|ma formosa torre, a qual di- 
zem ter sido feita pelo mestre da de Sevilha : tem quatro ma^ãs 
de prata em cima do capitel, enfiadas em um varão de ferro 
muito grande, e, segundo se refere oa historia dos Xerifes, 
um rei dos Banamerines as mandou fazer dos quintos qm 
lhe couharam do despojo de uma guerra de Hespanha, e djz ^ 
prophecia que um rei cbristão as ba-ide ganhar; ^ assim 
prouvera a Deus que acontecesse. 

N^esta cidade passam -se 4s vezes do:qs oú três aonos sem 
ohover, porque as serras dos montes Claros parece que chamam 
a si os nuvens, como as montanhas na provinda de Lima, 
da outra parte do mundo novo ; porém, descem das serras algu- 
mas ribeiras, das quaes se fazem artificialmente muitas leva- 
das, que regam os campos; e d'esta agua se bebe, que é mui- 
to boa: as casas são como as de Fez, e as ruas também, posto 
que mais largas. 

 Mesquita de Alcáçova e paços reaes téem três m^çãs 
d'ouro muito grandes em cima do capitel, como as de prata 
que havemos dicto, as quae3 não são todas de ourb, mas 
téem de redor a grossura de um dedo d'elle, que vem a ser mui- 
to, porque são grandes, e as de prata são vasadas por dentro, 
como mais largamente se contém na historia dos Xerifes. 

Os campos doesta cidade são muito grandes e formosos ; 
dão muito trigo, porque são todos regados ; ha muitas fructas 
de todas as qualidades, menos serejas e castanhas. 

Téem n'esta terra os jchristàos captivos d'el-rei um logar 
cercado, a que chamam tercenal, onde vivem a seu modo, 
tendo egreja e sermões., e tudo o mais como em terra de chris- 
tãos; são offic^aes e pagam a ^-rei tributo. 

Os paços reaes estão dentro da Alcáçova, logar muito 
forte, bem murado e eom cava; são muito formosps. Muley 
Moluco fez alli um^ ca^a muito sumptuosa (que eu \i), na 
qual dizia que hav^ de ter a elrrei D. Sebastião, e sem du- 



198 A JORNADA 



vida assim o julgava, por antever em seu pequeno poder o 
certo &m da temeridade d'aquelle rei; e prouvera a Deus que 
assim acontecera, pois qualquer outro mal fora suave com- 
parado com tanta desventura. 

N'esta cidade, como corte mais principal, residem' todos 
os Alcaides e senhores, e a gente de guerra ordinária que o 
Xerife tem, que serão dezesete mil homens, aos quaes fs^zem 
paga cada quatro mezes; a outra gente chama-se Masaguania, 
que são os Alcaides, que residem nas villas e legares, e na 
mesma cidade, os quaes são obrigados a acompanhar o Xerife 
todas.as vezes que os houver mister, com sua gente de cavallo 
e de pé, pagando-lhes soldo, como aos ordinários, emquanto 
dura a guerra, e quando estão em paz não vencem mais 
que certo vestuário que téem cada anno; porém nos aduares 
téem consignadas suas rendas, e os Alarves lavradores lhes 
pagam a razão de quatro cruzados por cabepa cada anno ; mas 
elles dão taes ordens que os fazem pagar a dez e doze. 

As rendas dos Xerifes são muitas, mas. a principal é d'esta 
natureza, a que chamam guarramas, e nunca as vão colher 
sem exerdtor formado, e acontece muitas vezes haver guerra 
muito cruel e serem os d*el-rei desbaratados pelos Alarves," 
que não podem soSrer os desaforos que com elles usam. 

Dizem que terá o Xerife três contos de ouro, de renda, 
fora o que agora lhe vem da nova conquista do reino de 
Guago, ^ que estando \ím dia fallando nos muitos milhões 
d'el-rei de Hespanha e do Grão-Turco, dissera que era mais 
rico que ambos, porque se tinha três não gasta\^ mais que 
dous ; e por certo que disse muito bem, pois vemos cada dia 
e cada hora tantos homens perdidos,* que, deixados levar das 
vaidades do mundo, gastam mais do que téem, sem alguma 
boa razão ou fundamento. 

Tem Marrocos uma Judearia como a de Fez, mas não de 
gente tão rica, por haver pouco tempo que os saquearam. 

São os mouros n'esta cidade infinitos, assim pela assis- 



d'apriga 199 

tencia dos Xerifes, t^omo pela grandeza da terra, porém de 
muitos géneros, porque uns são Azuagos, que descendem de 
christãos, como havemos dicto; outros se chamam Andaluzes, 
que são os que passaram á Barbaria nas guerras de Granada ; 
outros descendem de judeus tornadiços, e muitos de Turcos; 
os outros, que são os verdadeiros e naturaes, são Árabes, e 
nós lhe chamamos vulgarmente Alarves. 

Estes são de Arábia, d'onde tomam ô nome : são pardos 
na cor, téem o cabello nédeo, e são os mais nobres e mais 
antigos; são naturalmente mudáveis e pouco fieis; vivem os 
mais d'elles nos campos e montes, em aduares, que são uns 
pequenos povos de tendas de lã de cabras, assentados em cir- 
culo, para recolherem dentro seu gado de noite, e cada vez 
que querem mudar de logar o fazem muito facilmente, le- 
vando as tendas para onde bem lhes parece, que a terra é 
commum por ser toda 4'el-rei, e tamanha que para tudo 
chega. 

A nobreza em Barbaria, pondo de parte esta antiguidade 
dos Alarves (que lhes vale muito pouco, pois são quasi todos 
pobres lavradores), consiste na que os reis dão por me- 
recimento das armas e valor da pessoa, o que realmente 
pareceria cousa muito justa, se não tivera uma grande cruelda- 
de: a qual é, que a fidalguia que o pae alsanpou por seus 
merecimentos não abrange a seus descendentes, pois acon- 
tece ser um mouro Alcaide muito piincipal, com nome nos li- 
vros d'el-rei, e quando morre deixar seus filhos pobres e aba- 
tidos. 

E não é isto somente na gente nobre, mas nos prínci- 
pes, tanto que um irmão do Xerife, que comnosco ia, era em 
Alcácer, depois de nossa perdipão, apregoador de jumentos 
perdidos, apesá^de ser sobrinho do próprio rei que então 
reinava. 

Não é isto assim por certo n'este nosso reino, porque 
basta uma só vez chegar um homem a ser fidalgo, para o 

26 



^lOP A ÍQRNADA 



Ber^m aeus âpac^Qd0]it.ç3, iK)r maí8 inúteis e (iobgo dignos 
que p^reçm; e l^l^ é qna ul^^bQ, comp em tudo, 908 dUb' 
rencemos dos b2^)i)aro3; todaN^, parece que deviqm teros 
reis (principalmente ii^eate reino) muita conta copi os mereci- 
mentos e qualidftdes das pessoas, Cazçndo estas raeiK^s por 
serviços honrosos, ccmuo quasi todas as nações do mundo fi- 
zeram, buscando modo com que gratificar as obras de valor 
e merecimento. 

Antigamente cbamavam-se vilãos aquelles que moravam 
dentro das villas, porque, como fracos officiaes, não se davam 
por seguros em parte qiie não fosse muito bem murada, pelo 
que os homens principaes e cavalleiros (no tempo em que 
não havia foros em casa d'el-rei) edificavam torres no <cain- 
po, onde se recolhiam com sua gente de pé e de c$ivaUQ, 
e d'onde sabiam a pelejar com os mouros, tão fortes como 
ainda hoje se vê na cidade do Pqirto, onde jazem os desceu^ , 
dentes doestas gerações, que já n^aquelle tempo, de trezentos 
a quatrocentos annos a esta parte, eram nobres e fidalgos. 

Mas tornando a nosso propósito, por não fazer tão larga 
digressão fora d'elle, posto que havia muito que discorrer sotee 
esta matéria, que não resultaria em pouco proveito da honra 
doeste reino, que todos somos obrigados a desejar, digo que 
entramos n'esta cidade, onde havia muitos captivos, tracta^ 
dos, porém, com muito mais respeito e humanidade, pelas ra- 
zões que logo diremos. 



201 




CAPITULO XVI 



COMO FORAM 03 EMBAIXADORES ItECSQIDOS DO XBRiyE 
E COMO ERAJtt TRAGTADOS OS FIDAJ-ÇOS CAPTIVOS 



P..\ Q'este fôpipo eram chegados a Marrocos os Biq- 
f baixadores Pêro Vanegas por parte de sua mages- 
|\íade, e D. Francisco da Costa por el-rei D. Ilen- 
frlque, aos qu^es fez o Xerife muito desuzadas 
cortezias em sija recepção e gásãlbado, assim 
por s^rem os primeiros que nuDca até allí entraram em Bar- 
baria oom o nome de Embaixadores, eomo por sua qualidade, 
além dos presentes valioso^ que cada um ievava, que âe 
tudo o enriqueceram oosaas misérias. 

Foram estes Embaixadores aposentados em casas muito 
nobres, onde lhes mandava dar o Xerife mui abundantameate 
cada dia o necessário para elles, e par» toda a sua gente : tan- 
to que os sobejos bastavam a muitas pesâ(»£ que d'isso se que- 
riam aproveitar, posto que a D. Francisco, como lá ficou at$ 
que falleeea, veio o Xerife pouco e pouco a tirar tudo. 

Eram ii'esta cidade tractados os captivos mellior que em 
outra parte, assim por ser fl gente mais nobre e principal, 
como pela assistência dos Embaixadoresj a quem el-rei defe- 
ria ifluito particulanBeiite. 

Oa fidalgos captivos "que foram trasidoa por seu manda- 
do Q intelllgencía de Alcftcer, Tetulo, Laracbe, Sallé e ou- 
tras partes, estavam aposentados dentro da Judearia, em 



202 



A JORNADA 



uma rua a que chamam Derbe, com guardas mouros à porta, 
em casas despejadas que os pobres judeus lhes deixaram, essa 
desventurada gente, que nem para si tinha gasalhado, pela 
razão que havemos dicto. 

Os que estavam n*este recolhimento, além de outros que 
se poderam livrar da mão d'el-rei, eram os seguintes : 



D. Álvaro da Silveira, filho do 

conde da Sortelha. 
D. António d'Âlmeida. 
D. António de Castro, conde 

de Monsanto. 
António de Moura Telles. 
António de Saldanha. .' 
D. Braz Henriques. 
D; Gaspar de Sousa. 
Christovão de Mello. 
Damião de Sousa. 
Diogo de Mendonça Arraés. 
D. Duarte da Costa. 
D. Duarte de Menezes. 
Fernão de Mendonpa. 
Francisco Barreto de Lima. 
D. Francisco de Portugal, filho 

do conde de Vimioso. 
Heitor de Moura. 
D. Henrique de Menezes. 
João Brandão de Lima. 
João Gomes de Lemos da Trofa. 



João Moniz. 

D. João Pereira, depois conde 

da Feira. 
D. João Tello. * 
D. Lucas de Portugal. 
D. Manoel Mascarenhas. 
D. Manoel Pereira. 
D. Marcos de Noronha. 
Martim de Castro. 
D. Martinho Henriques. 
Miguel Telles de Moura. 
Nicolau de Faria. 
D. Pedro de Castel-branco. 
D. Pedro da Cunha. 
Pedro do Cem. 
D. Pedro de Menezes. 
Pêro Corrêa d*Andrade. 
Ruy Dias da Camará. 
Ruy Gil Magro. 
Ruy Lopes Coutinho. 
Simão Corrêa Barem. 
Simão Mascarenhas. 



Havia mais, além doestes fidalgos, alguns religiosos, em 
cujo numero entrava o padre frei Vicente da Fonseca e ou- 
tros homens nobres, aos quaes chamavam do segundo rol. 

O duque de Barcellos foi, por mandado do Xerife, apo- 



d'afíuca 203 



sentado particularmente fora da Judearia, nas casas do Embai- 
xador de Castella, onde estava com alguns fidalgos seus cria- 
dos, como a semelhante príncipe convinha, e n*este tempo 
visitou o Xerife duas vezes, o qual Jihe fez tantas cortezias, 
que o deixou mara\ilhado. 

Os fidalgos que estavam no Derbe se emparceiravam 
uns com os outros, conforme o parentesco ou amisade que en- 
tre elles havia; alguns se accommodaram em casa de D. Fran- 
cisco de Portugal, filho do conde de Vimioso, forçado de suaaf- 
fabilidade e cortezia, onde havia missa todos os dias e sermões a 
seu tempo, que esta era a primeira cousa em que punha o cui- 
dado, além de ser amparo e refugio a todo o homem nobre 
em Barbaria. Mas que podia faltar a quem das melhores par* 
tes tinha tudo? 

Depois dos fidalgos do numero, quasi todos os que es- 
tavam era Marrocos, procedentes de diflferentes partes, como 
dissemos, vieram ao poder d'el-rei, e querendo occultar a sua 
nobreza, passaram por isso muitos trabalhos; mas por fim, 
sendo malsinados, não pòderam deixar de se revelarem com 
toda a verdade. 

Tanto que foram juntos, assentaram que se devia dar 
conta do succedido a el-rèi D. Henrique, e nada fazerem sem o 
seu consentimento, o que foi mui bem considerado, dç sua parte 
e agradecido da d'el-rei: e o Xerife não apertou com elles, espe- 
rando que, resgatando-se cada um em particular, lhe viesse mais 
proveito que de todos juntos, manifesto signal de como não 
estava ainda satisfeito do corte dos oitenta, assim porque nun- 
ca nos mouros a cubica tem limites, como pelo que. lhe ha- 
viam os cacizes mettido em cabeça. 

Deram estes fidalgos conta a el-rei D. Henrique do esta- 
do em que estavam, e como à petição dos procuradores dos 
oitenta sua alteza tinha ordenado mandar D. Francisco da 
Costa por Embaixador, determinou que elle os resgatasse; e 
assim, tanto que foi e.m Marrocos, começou a tractar do res- 



M4 



£Élp d? dda «n « puticiihr: e VBdndo-» da iMlf (M^ 
ni p«i coÉi o Xerife* foram coladkB a cSaeo adi cMliHHt 
^ ^^TBB adofe ^ tos, Hl» oobos adei^ipiaie e dMasA^ 
•MO» ftnn D. Dufi? de flnm». D. iMouo da CÉstM, Ã; 
Frsassco (t FtetogaL e Xartun de Gartra^ e aKat dlasa IdMí 
Af g jui ISA iBKsopor ã A> adaar de m M^csla, qiè gds- 
7?ii cvfa mi anfe ds dmsBtaa cmadoa. 

Etm D. Itaniae les fex mace a cada vat d» qaiibai- 
3» a&iWwqv teaa a ser omto talo do qae iãàdta tttt 
±ih^K éy maBKnK a» tem lul uiad» da qtià Wà- 
'iefZE.iK?i?z3»T^:ci6capCiT0» i wcli i aa a aqioeila qiaÉ& dH 
3iâLis i? 9. Fmaisco oa em lelr^ om em diabevo. 

OecogmaaF^ esies Sdrisos mniiiiiiHli aat dMif 

nisga^ e >iew& ea boaes(;s coaveisacões. ii ailri !!■ ^ gMi« 
« aOivu etsCBeox lodos jimiK: ^lam mfaaaBaadm^ è aga- 

•ípaoL i i"i''.jjiUa Bniioa c^cnas^ itanda aidem a aigan 

n%Í3sn:em. w^qoe 3ete?deTei iiliiia iHidfcifciiiiai,pÉ^ 

ne lièttL ãE se aveatonini a aarar an Ksaiaa» 

tfeí-wi: 



sr fTSB;K fimõem eataTam cijjeftan a 
rtnasKQ i infinEs e5taS> d^ cafCrrae. e 
TBjàxs afc^nr tfivBK) paia je Stiji^m a 
ne lies iL^oafiecBut. coe» líanus 
?9fL nzãj «rjotar. para ifoie por eBa sp juIgiHM 
i}epQis ^{0^ vi lírit Me^flám kner ia 
^^a^r. sm sobaobúL éSmnb <jQÊt 
MBXHL :aaftto £l lÉrbana emmama Vo 
:*nziii jasTcfmjjs â.-tu. luzaca omia danas de 
«dkxs K ante;, ic Je ^ ãar a 
!!BDiar am c&a Mst^mo d^ SiacaTdlB^ 
KSoiBBa&i ie «oaAaaKt jacceseaL a 
InamAr ^oe es Aorant de ^KSt ae fdk 





D^ArtUCA 205 

^^^^^^^^*^'^^^^'™^^*^^'^'^"^*^****^^^*^^^^^^^— ^™^^^^ ' !■■■— I I ■■■■■■ —■■■III 

fôí cotifiado; a tótm me importa fiãô ifletios que a segu- 
f^ttçà de meus f eioos, a quietaçSo de minha pèsôoa, que não 
viva Muley Naçar, meu capital inimigo, peio que, fazendo pata 
este effeito de ti particular confidencia, té quelro dar a liberda- 
de, e além d*isso vinte mil meticàes, e confio da tua pessoa e fi- 
dalguia^ que cumprirás meus licites desejos, dando o castigo 
que inei^ce dignamente um usurpador^ que conspirou contra 
a pessoa de seu natural rei e senhor. Esse mouro que ahi 
vés, de cujo valor e lealdade, estou bem qertiflcado, o le- 
varás comtigo^ que para este effeito eto tudo seguirá tua 
ordem, e debaixo doeste preceito e de minha palavra po- 
des ir mui seguro, que eu te darei um alvará, pelo qual se 
saiba em todo ô tempo que como escravo meu te pude man- 
á^x a este negocio, no qual se por ventura fôreà achado não 
temas cousa alguma, qiie o poder dos reis não é limitado, 
e a mais abrange que no seu império. 

Estava a este tempo António de Monta posto de joelhos 
diante d'el-rei, considerando por uma parte a vehemenda e 
mágestade com que o mouro dispunha tão levemente de seu 
credito, vida e honra, e por outra quão visinho estava da mor- 
te, dando qualquer escuza, por justa que fosse: pondo os 
olhos juntamente no mouro companheiro, viu que era agigan- 
tado, e mostrava no semblante estar já com as mãos no 
homicídio; de modo que se viu cercado de mil sobresal- 
tos, até que pude, com o ftivor divino, responder d'esta ma- 
neira : 

Bem sei, senhor, que o conceito e opinião dos prtncipes 
pôde dar novo ser a qualquer homem, pelo que, posto que 
conheça muito bem minha fraqueza, desde agoi*a me quero 
julgar capaz de grandes cousas, e assim me oôbrepo a fazer 
tudo o que convém a teu servipo, obedecendo como captivo 
teu que sou, sem mais outro algum premio que a Satisfação 
que me ficará de haver cumprido a licita determinação de um 
tão grande piincipe; e para que mais seguro estias, farei 



206 A JORNADA 



tudo que me for possível, sem antepor alguma cousa a teu 
serviço, e assim te quero dar fiança dos dfico mil cnizados 
em que estou cotado. 

Folgou com isto muito o Xerife, e gabando-lhe o mos- 
trar-se tão desinteressado, lhe entregou seu companheiro, 
encommendando-lhe de novo o segredo doeste negocio* 

Partiu emfim António de Moura, usando com o mouro, 
que muito bem fallava castelhano, de toda a dissimulação pos- 
sível; e como a sua determinação, quando respondeu ao Xerife, 
foi não cumprir as suas ordens, por isso, para se livrar da 
morte, deu a fiança dos dnco mil cruzados em que estava 
cotado. 

Andou d'esta maneira António de Moura alguns dias, 
nos quaes ia algumas vezes ao Xerife por seu mandado, e 
o mouro seu companheiro juntamente, a praticar o modo como 
se haveria n'este negocio; e estando jà preparado de tudo, 
parece que o Xerife tevç esperanças por outra via, que 
não é para dizer-se, de poder conseguir isto com melhor effeí- 
to, e, desistindo d*este primeiro conselho, estava muito arre- 
pendido de se ter descoberto a António de Moura; e assim, 
para se livrar de se saber tamanha maldade, trocando a sorte 
de um em outro innocente, determinou matar a António de 
Moura, debaixo de qualquer apparencia de justiça, para o que 
chamou um e}che, ao qual informou muito bem do que ha- 
via de fazer, dizendo que confessasse que lhe furtara uma 
espada de ouro, e que a vendera a um fidalgo, e sendo-lhe 
para este eíTeito mostrados todos, apontasse em António de 
Moura. 

Começou logo el-rei a queixar-se d'este furto, e mandou 
prender o elche, o qual confessou tudo como lhe era mandado. 

Estando, pois, António de Moura bem descuidado de 
todas estas cousas, entrou pelo Derbe dentro o elche preso, 
e sendò-lhe mostrados os fidalgos, apontou em António de 
Moura, que muito bem conhecia, como lhe estava mandado. 



d' AFRICA 207 



Bem se pôde julgar como este fidalgo ficaria, perceben- 
do logo a qualidade da malicia, assim porque via tardar o 
seu despacho, como por lhe ser revelado alguma cousa 'do 
novo plano e determinação d'el-rei. 

Vendo, pois, António de Moura como o Xerife, por enco- 
brir suas maldades, não se fiando d'elle, lhe queria tirar a vida, 
tomando por pretexto este furto, de que elle se conhecia bem 
ihnocente, foi na mesma hora a casa do Embaixador Pêro 
Vanegas, e disse como o Xerife o queria matar pòr um tes- 
temunho falso, que lhe levantavam acerca d'uma espada d*ouro 
(sem por forma alguma lhe descobrir a verdade do negocio). 
Estranhou isto muito Pêro Vanegas, porque António de Moura 
se justificou de maneira, que ficou elle inteirado de sua inno- 
cencia, e respondeu-lhe que logo iria ter com o Xerife. Não tar- 
dou muito que António de Moura fosse preso, e levado a uma 
casa que está na horta d'el-rei, onde se costumavam pôr 
os delinquentes que haviam de padecer, na qual esteve toda 
a noite, cheio de tão estranha agonia, como se pôde conside- 
rar de ura innocente condemíiado á morte por tão desusados 
e escondidos modos. 

Tanto que Pêro Vanegas soube doesta prisão quizera ir 
logo fallar ao Xerife, mas não lhe foi possivel, por ser já 
muito de. noite: porém, pela manhã de madrugada foi ao 
papo, e mandou dizer a el-rei que lhe queria fallar em uma 
cousa de muita importância ; mandou o Xerife que entrasse, 
e Como elle, para significar melhor suas queix;as, e a deter- 
minação que thaha, fosse em trajos de viagem, com as esporas 
calçadas, lhe perguntou o Xerife que novidade era aquella; 
ao que elle respondeu, que vinha despedir-se de sua mages- 
tade, e que estava já d'aquella maneka, pois não era bem 
que elle estivesse mais em terra onde sua magestade man- 
dava matar um fidalgo tão honrado como António de Moura, 
por causa de uma espada, posto que fosse de diamantes ^ mas 
que elle estava innocente de semelhante furto; que pedia a 

27 



208 A JORNADA 



sua magestade revogasse a sentença, e no que tocava a sa- 
tisfação, posto que não havia de sua parte culpa alguma, 
outra espada se lhe daria de mór preço. 

Ficou el-rei maravilhado da determinação do Embaixa- 
dor, e procurou em todo o modo ver se podia descobrir mais 
n'este negocio, e se lhe tinha António de Moura descoberto 
alguma cousa do grande segredo ; mas como o Embaixador de 
nada sabia, impossível lhe era descobrir o que el-rei preten- 
dia saber. 

E vendo o Xerife, todavia, como António de Moura nem 
com o temor da morte descobrira o segredo, conheceu 
que era capaz de se fiar d'elle, e determinou perdoar-lhe a 
culpa que não tinha, dizendo ao Embaixador que logo o 
mandaria soltar, e que sua tenção não era senão descobrir 
o furto de que estava muito queixoso. Mas elle estava inno- 
cente, e o elche o pagaria: beijou-lhe o Kmbaixador a mão 
por esta mercê, e logo foi solto pela manhã António de Moura, 
depois de ter passado este espantoso trago da morte. 

Ao outro 'dia o mandou o Xerife chamar, onde se viu 
em outro sobresalto mui grande, principalmente quando 
entrou na casa onde elle estava só. Porém, com muito ani- 
mo se pôz de joelhos diante d'e^rei, o qual lhe disse : Uma 
só cousa quero que saibas, a qual é, que os braços dos reis 
tudo alcançam; vae-te, muito embora, mas onde quer que 
estiveres faz de conta que me tens presente. 

Em seguida, António de Moura, asseverando a el-rei com 
muita obediência que, pela sua parte, aquelle segredo se- 
ria inviolável, retirou-se muito satisfeito, e sendo resgatado 
d'ahi a pouco tempo^ partiu para Masagão.. Foi ahi, depois 
de interrogado por mim, que elle me contou todas as peri- 
pécias doeste acontecimento ; mas já o Xerife tinha morrido, 
que em vida d'elle nunca António de Moura revelara a nin- 
guém este negocio, exceptuando el-rei D. Henrique, a quem o 
descobrira, por ver passar um dia pela rua Nova doesta cidade 



d'africa 209 

o mouro que o Xerife lhe dava por companheiro, por nome 
Abraen, d'onde inferiu que, desenganado o Xerife do que por ou- 
tro modo pretendia, mandou o mouro para matar Mdey Napar, 
o que também se evitou, 'pelas diligencias que se fizeram; e 
mais me aífirmou, que, quando o Xerife o chamara para este 
negocio, lhe dissera algumas cousas que lhe haviam aconte- 
cido, as quaes ninguém podia saber senão por via do demó- 
nio; e não é muito pelas grandes feiticerias dos mouros. 

Estes e outros sucçéssos havia a cada- passo ; e para que 
se acabe de entender quão necessário era o favor Divino para 
se livrarem, não somente d'aquillo de que podiam ter receio, 
mas ainda do que não podiam recear, me pareceu bem con- 
tar aqui outro perigo bem grande, em 'que ^e viu também 
um d'estes fidalgos. Mas para que melhor se entenda, é de 
saber que entre os mouros ha um certo numero de ermitães, 
que fazem mui asperd vida, além da commum abstinência,, os 
quaes são muito estimados, e tidos por sanctos em sua lei, e 
a quem geralmente chamam Morabitos; trazem sempre os 
pés descalços e a cabeça descoberta, ^com grande grenha, 
e um .pellote de áspero 'saial sobre a tisnada carne ; são mui- 
to dados á sua escusada oração, e'd'esta mesma sorte ha tam- 
bém mouras, havidas por tão sánctas entre esta barbara gente, 
que chegaram algumas a dar passaportes para entrar no céo, 
como se verá em uma senhora, cuja vida primeiro contaremos, 
para que melhor se entenda o que vamos dizer. 

Tinha o Xerife Muley Amet, que n'este tempo reinava em 
Marrocos, uma irmã, a qual chamavam Leia Mariam, mulher 
já de edade, e que nunca casou, tão avisada, grave e con- 
trafeita, que os mouros a tinham por sancta, com tão grande 
conceito de sua virtude, que chegou, como havemos dicto, a 
dar passaportes para o céo, os quaes eram tidos em muito 
grahde estima, e não havia senhor que os não pretendesse 
por valias, ou os não comprasse por dinheiro, não reparando 
no preço, por grande que fosse, ou por cuidar reahnente 



210 A JORNADA 



que tinha o céo certo, ou por lisongear el-rei seu irmão ; 
tudo pude ser que se ajuntasse, acerca do que aconteceram 
algumas òousas em nosso tempo assas graciosas, ' que não 
eonvéem k nossa relação. 

D'e»ta maneira vivia esta senhora, muito amada d'el-rei 
e de todo o mundo, a qual n'este tempo, esquecida algum 
tanto do sua hypocrisia, se deixou levar de om pensamento 
amoroso, signiQcando a D. Francisco de Portugal, pelos meios 
de que dispunha, que lhe não eram desagradáveis suas cou- 
sas, e posto que em principio tractou isto com muita singe- 
leza e conflanpa, a modo de zombaria, chegou porém a man- 
dar-lhe dizer (mettendo este negocio em razão de virtude e 
matrimonio) que se reparava em ella ser d*outra lei, não se lhe 
desse disso, porque não seria senão o que elle quizesse ; do 
que D. Francisco de Portugal ficou muito enfadado, porque 
n'este negocio, ou negando ou concedendo, qualquer perigo 
era mottal. 

E temendo muito algum testemunho falso que as mu- 
lheres levantam facilmente, por qualquer desdém começou 
a resentir-se, como bom christão que era, da facilidade com 
que se deixara levar d'estas zombarias, que podiam vir a ser 
pesadas, do que lhe não dava pequeno indicio o ver que, che- 
gando-se n*e8te tempo a Paschoa dos christãos, deu Leia Ma- 
riam um banquete muito explendido a todos os fidalgos, 
conforme o nosso uso. 

Andando, pois, D. Francisco bem descontente e reoeioso, 
poique a mouia, gracejando, tractava todavia de ameaças, che- 
gou um lecido áo Xerife, no qual lhe mandava que fosse 
logo Mar-Ibe. Bem se pôde julgar como ficaria com tio grande 
sobresalto, principalmente sendo esta senhora tão amada d'el- 
rei^ 6 tida por lio sancta; mas D. Francisco, a quem não accu- 
saia a consciência, nem nunca tivera outros temeres, tra- 
dando todavia primeiro de sua alma. foi muito confiado, com 
aiiDo disposto a sofflrer mil martyrios quando s^ odereces- 



211 



l«em. Chegou, emfim, aonde o Xerife estava, o qual tractou- 

1 Bòmente cora elle sobre a matéria de seu resgate, do qne 

flcou muito satisfeito; e entrando pela porta da Judearía, 

onde o estavam esperando com grandes temores, apeou-se 

i cavallo em que vinha, enchendo oe olhos a todos de estra- 

iha alegria, pois era com razão geralmente amado. 

Foi a moura todavia d'aqui por diante solfrendo melhor 
3 desenganos, e lançando, á boa parte aa cousas, qne em- 
tn, couio senhora, não quiz que outrem soubesse este des- 
brezo, senão amor somente, quando fosse verdade o que se 
ispeilava; mas ella procedeu de maneira, que bem se p3de 
ler que foi este negocio mais graça e passatempo do qne ou- 
t cousa; porém, se acontecesse (como podéra aer) que a 
moura seguisse outro caminho, e amor, piedade, ou par- 
ticular respeito não bastassem, bem se deixa entender o pe- 
1^ rieo em que este fidalgo estava, sem ser culpado em cousa 

Rima, pelo que se pôde !)em julgar a quantas cJiusas não 
iradas, como havemos diclo, estavam todos sujeitos, debu- 
da vontade e alvedrio de seus inimigos. 
Foi depois esta senhora continuando com muito boas 
IS, emquanto estes fidalgos estiveram captivos, e mandou 
ms presentes a D. Fraucisco quando sahiu do captiveiro, 
03 quaes elle saberia muito bem recompensar, como tão libe- 
1 B magnânimo ' que era. 

Também havia n'esta cidade uma mulher portugueza, 
mito antiga dos chrislàos (que' entre tantas misérias algum 
iefugio se achava ás vezes), a qual se chamava Leia Quebir, 
[ue quer dizer senhora grande, e era casada com um elche, 
iso-rei da província de Dará, mui privado do Xerife, e pa- 
rece que fni filha d'algimicavalleiro, d'aqiielle8 quecaptivarara. 
no cabo de Gé; porém ella vivia de maneira que só nos tra- 
jas era moura; e assim fazia muitas esmolas aos captivos, 
-traclando de graça todos os que vieram a seu poder, e aos 
algoe mandava muitos presentes, principalmente quando 



212 A JORNADA 



partiam, sendo de alguns visitada, como se estivera n'este 
reino; tinha duas filhas muito bem parecidas, que fallavam 
portuguez como sua niãe, casadas com dous elches; um d'el- 
les era homem nobre, castelhano de napão, natural de Cór- 
dova, por nome Solimão, o qual depois de estar resgatado se 
tomou mouro, pelo que o Xerife o tinha em grande conta, 
e o fez seu estribeiro-mór; o outro era portuguez, vedor da 
fazenda; de maneira que a casa era toda de grandes a seu 
modo, e assim os seus aposentos occupavam todo um bairro, 
com muitos mouros de guarda á porta. 

Era esta senhora (que assim lhe podemos chamar por 
suas grandezas, e porque morreu da maneira que logo dire- 
mos) muito affavel, branda, e por extremo avisada, tanto que . 
mais parecia creada' no regaço das princezas de Orbino, que 
entre esta barbara gente ; mas o animo de christã parece que 
lhe dava novo ser; ella, suas filhas, e todas as suas donzellas 
turcas e andaluzes fallavam portuguez, de maneira que não 
fazia a sua casa diiferença alguma da casa d'um senhor de Por- 
tugal, exceptuando os trajos, que tanto discordavam com 
as palavras; não deixavam porém de fallar o Arábio, como 
quem se creou na mesma lingua, mas só com os mouros de 
fora usavam d^elle, que os de casa também sabiam fallar 
portuguez. 

Tinha esta senhora um captivo d'el-Tei em sua casa, 
homem nobre dõ segundo rol, o qual era seu parente, ou ao 
menos soube fingir que o era, a quem deu oitocentas onçíls para 
seu resgate, e por seu respeito fez bem a muitas pessoas; e 
eu posso muito bem testemunhar isto, porque sempre em 
Marrocos estive n'està casa, posto que foi pouco tempo. 

E por certo é cousa digna de maravilha- ver a facilidade, 
amor é cortezia, com que esta gente tractava, já não digo os 
fidalgos e senhores, mas qualquer captivo nobre, sentan- 
doros â sua meza sobre ahnofadas de brocado d'ouro, em ca- 
sas soberanas, de maneira que parecia um notável despro- 



d'apric A 2 1 3 

posito; mas emQin, aqiielle inlenso desejo que trazem de 
contínuo de honrarem a lei em que nasceram (da qnal jamais 
se esquecem) os faz com tanta egualdade considerarem-se em 
terra de christãos. 

Deleitavam-se muito estas senhoras em ouvir fallar nas 
cousas de Portugal, e ás vezes choravam muitas lagrimas nas 
lembranças d'ellas, posto que nunca as conhecessem — que 
tanto pôde a força de razão e amor da pátria. 

Doesta maneira viviam estas gentes, sendo porém seus 
maridos os principaes Alcaides que el-rei tinha: e o viso-rei 
era marido de Leia Quibir, mui grão personagem, e de muita 
confiança, por cujo respeito era esta senhora summamente 
amada do Xerife, e também por suas qualidades, de maneira 
que a visitava muitas vezes ; e estando ella doente da enfermi- 
dade de que falleceu, mandou dizer ao Xerife que se a queria 
ver como moura que o não fizesse, porque ella era christã, e 
sem embargo disso elle a visitou, dissimulando o que enten- 
dia; e d'esta maneira falleceu, confessando-se geralmente, al- 
guns annos depois que os fidalgos se retiraram ; e bem se pôde 
cuidar que teria Nosso Senhor misericórdia de ^u.a alma, e 
que suas filhas seguiriam o mesmo caminho. 



\ 



15 



I 



d'africa 2 1 5 



CAPITULO XVII 



DA FUGIDA QUE FIZERAM DE MARROCOS D. JOÃO DE VASGON- 

GELLOS E D. LUIZ COUTINHO; DA MORTE DE REDUÃO 

E COMO PARTIO A CÁFILA DOS GAPTIVOS 




.^li-iú^A OUVE n'esta cidade mui notáveis fugidas^ prin- 
[cipalmente a que fizeram D. João de Vasconcel- 
los e D. Luiz Coutinho; e assim, pelo desusado 
(modo d'ella, como pela qualidade das pessoas, 
nos pareceu conveniente íractal-a aqui com especial interes- 
se. Estando, poiè, estes fidalgos captivos.de Leia Mariam, a 
tal senhora irmã d'el-rei, havida por saucta, como está dicto, 
se combinaram com um mouro da serra do Farrobo, junto 
a Tanger, por nome Amet, o qual, depois que se concertou 
com elles, trazendo em sua companhia alguns homens no- 
bres, partiu para Fez, indo os fidalgos em ttajos de mou- 
ros, e os mais como captivos. 

No mesmo dia em que tudo se deliberou publicamente, 
como quem fazia seu caminho ordinário, os mouros, ao darem 
pela falta dos fidalgos e captivos, por mandado d'el-rei corre- 
ram em um momento ao caminho que vae a Masagão,' imagi- 
nando bem mal o que elles tomaram, que era pela terra den- 
tro, ao revez do que cuidavam, e não somente buscaram tudo , 
correndo todas as vias, mas foram até ás portas de Masagão, 
onde cuidavam que tinham a preza certa, e durante dous me- 
zes estiveram setecentas lanpas sobre a villa. 

N'este tempo chegaram os fidalgos a Fez, cwn guia e 

28 



216 A JORNADA 



mais captivos, muito de espaço conversando e fallaado com os 
outros mouros das cáfilas e dos aJuarcs, e logo que chega- 
ram á cidade, o mouro Am^^t, por dissimular, comprou umas 
casas, onde se recolheu com a companhia, dando a entender 
que eram novos elches. e que vinham em ser\i£ío d'eH:ei. 

Entretanto, os mouros que estavam de cerco sobre Ma- 
sagão, desesperados já da preza, tomaram a Marrocos, sem 
poderem atinar em cousa alguma, e imaginando somente que 
os captivos se pozeram a salvo antes que elies chegassem. 

Amet, neste tempo, partiu publicamente com sua com- 
panhia de Fez, com muita dissimulação e confiança, pelo ca- 
minho de Alcácer, onde não entraram, porque a sua tenção 
era dar a entender que seguiam seu caminho direito ; e assim, 
passaram como se fossem para Tetuão. entrando em uns adna- 
res junto d'elle, d onde foram a Tanger, e passando tantos 
perigos e trabalhos como se pode imaginar de semelhante 
caso, os quaes eu realmente folgara de escrever, mas não 
pude colher mais informações : antes, fallando com um d'es- 
tes captivos nobres que digo, o qual foi por ventura um dos 
primeiros no perigo e no negocio, por ser muito bom sol- 
dado, jamais pude conseguir dVUe a informação que «dese- 
java, o que em verdade me pesou deveras. 

N'esta cidade, como havemos dicto, estavam todos os Al- 
caides prindpaes, mouros, andaluzes e elches, entre os quaes 
Reduão, em privança e dignidade, levava vantagem a todos, 
o qual havia poucos dias que .chegara de Fez, como dissemos, 
e corria n'este tempo com todo o pezo do resgate dos fidal- 
gos; mas, estando no cume de suas. mal entendidas bem- 
aventuranças, el-rei determinou de o matar^ ou fosse porque 
lhe seria revelado que dera ouvidos á deliberação dos fidal- 
gos, ou por se livrar de semelhante personagem, que é o 
mais certo, não se esquecendo nunca de sua antiga iqjmia. 

Sentiu isto muito bem Reduão, por mais que o Xerife 
com elle dissimulasse, e foi dar conta a Pêro Vanegas, Em- 



d'aprica 2 1 7 



baixador de sua magestade, como pessoa a quem el-r^i ti- 
nha grande respeito. Tractando de sua fidelidade, e mostrando 
como seus inimigos o perseguiam injustamente, levantando- 
Ihe testemunhos falsos, pediu-lhe para de tudo informar el- 
rei; mas o Embaixador, a quem sua magestade havia mandado 
soccorrer captivos, e não remedear elches, inteirado tam- 
bém, e magoado da occasião que elle deixou perder, lhe res- 
pondeu que semelhantes matérias eram muito pezadas, e os 
reis, depois de justificados comsigo, eram muito maus de dis- 
suadir, tanto mais que, sendo elle christão, não podia intervir 
por um elche, aliás arriscar-se-ia a que o Xerife mais depressa 
o tivesse por cúmplice do que por intercessor. 

Partiu Reduão com esta resposta, tão desconsolado e 
arrependido, que chegou a confessar toda a sua mágoa a al- 
guns elches que vieram depois a este reino e isto mesmo con- 
taram. Andando pois d'esta maneira, valendo-âe de alguns ami- 
gos com suas justificações, o mandou el-rei chamar sobre a ma- 
téria do resgate; porém, quando elle tjranspunha a porta da 
camará, foi arrebatado pelos guardas, que logo lhe tomaram os 
papeis e as chaves que levava. 

Vendo-se o triste doesta maneii^, bem certificado de su^ 
desventura, ou fosse por cuidar que escaparia, ou porque 
realmente o demónio tinha tomado posse d'elle, dis^ somente 
que o deixassem fazer a Cela, e que dissessem a el-rei que 
morria mouro ; déram-lhe os siteres muito breve tempo a esta 
infernal orapão, e como o Xerife havia mandado que o ma- 
tassem, sem lhe escutarem cousa alguma, em um momento 
o acabaram ás cutiladas. 

Feita a diligencia, soube el-rei o que tinha dicto o con- 
demnado, e em premio de haver também contestado mandou 
que o levassem ao popo dos principes, que está ntí seu jar- 
dim, poço a que chamam dos Guerreiros, e onde lançam os 
Muleys que el-rei manda matar com razão- ou sem ella. 

D'esta maneira acabou este miserável homiem, no qual 



Si8 A JORNADA 



08 fidalgos 6 mais captivos perderanoi bem pouco, porque era 
contra todos para se justificar com el-rei;.mas sentiram isto 
muito 03 elcbes, e peio contrario se alegraram os andaluzes, 
que são grandes 'seus inimigos ; porém o Xerife, mandando cha- 
mar os elches, os assegurou com muitas palavras, dizendo que 
os tinha em conta de filhos, e que estivessem segutos e con- 
vencidos de que Reduão pagara o que merecia. 

Cousa é certo digna de maravilha, ver a conta em que os 
reis da Barbaria téem esta gente, ainda que seja um pobre 
official mechanico, como dizem que o elche Reduão era filho 
de um sapateiro de Vvlia Real ; porém a mim me affirmou An- 
tónio de Moiira que era homem nobre natural de Portalegre, 
onde tinha parentes, e que elle o vira em mopo na mesnu 
cidade. Seja d'onde for, elle foi bem malaventurado, e bem 
mal aconselhado. 

N'este tempo, o padre frei Ignado de Jesus corria com o 
resgate geral dos captivos, com muita diligencia, zelo e cuidado, 
como religioso que era de muita virtude e sanctidade, dando 
conta ao Embaixador D. Francisco, e communicando com Luiz 
Fernandes, a quem el-rei D. Henrique para este effeito man- 
dou em companhia do Embaixador ; e assim, foi ordenada uma 
cáfila de muitos captivos, os quaes, depois de resgatados e 
avindos com seus amos, ou com dinheiro ou com fianpa, pa- 
gavam os quintos a el-rei de seu resgate, e depois d'isto o 
dizimo d'estes quintos, invenção ou tyrannia que só mouros 
podéram descobrir. 

Foram estes captivos por algumas vezes ao tribunal do 
Papo, onde lhes escreveram os nomes, e tomaram os signaes, 
e depois de bem examinados partiram de Marrocos, levando 
quatro mouros de guarda e dous escrivães, e um irmão 
religioso da Sanctissima Trindade. 

D'esta maneira caminhando, ao cabo de dnco ou seis 
dias chegaram & vista de Masagão, que de Marrocos estará 
vinte 6 dnco legoas. Bem se pôde julgar o contentamento e 



d'afíiica 2 1 9 

alvoroço com que esta gente veria aquelles fortes e amigos 
muros, disparando as bombardas, todos cobertos de bandei- 
ras, e de mulheres e meninos, com as mãos levantadas, dan- 
do graças a Deus, por verem sahir do captiveiro mais de qui- 
nhentas pessoas, entre as quaes vinham seus pães e seus mari- 
dos. Indo pois d'esta maneira já muito perto dos muros, como 
na vida não ha prazer perfeito, encontraram-se com o Alcaide 
Cabus, fronteiro n'3quellas partes, o qual estava amigavelmen- 
te pezando lacre e outras mercadorias, por conta de alguns 
fidalgos ; e como visse tanta gente, ou fosse da mágoa que 
d 'isso recebeu, ou por quidar tiraria algum proveito, man- 
dou parar a todos, e tomando conhecimento da caflia não hou- 
ve os despachos por bons, a mandq^L que caminhassem para 
Azamor. Partiram logo os captivos, com muitos mouros de guar- 
da, para esta cidade, com os olhos postos em Masagão, e com 
tanta tristeza como se pôde imaginar. Sentiu isto muito João 
de Mendonça, capitão da mesma villa ; mas como o Alcaide es- 
tava com mais de mil' homens de cavailo, não pôde resistir 
a cousa alguma. 

N'este tempo, os escrivães d'el-rei começaram a fazer 
seus protestos, de maneira que o Alcaide Rubos mandou tor- 
nar os captivos, os quaes devagar e contra sua vontade ti- 
nham jà andado uma legoa; e assim, quando chegaram era 
jà perto da noite, pelo que n^aquelle dia não pôde haver des- 
pacho. 

Aposentaram-80 todos ao longo do mar, e, como o cam- 
po eistava em paz, algumas pessoas mancaram de Masagão 
a seus amigos e parentes o alimento de que tanto precisavam. 

Durante a noite não houve entre elles alguém que po- 
désse dormir, e como era muito perto, alguns se pozeram 
a salvo, não esperando o exame do outro dia, no que, feliz- 
mente, foram bem succedidos. Logo de manhã foram os ca- 
ptivos presentes ao Alcaide, lendo os mouros seus nomes e 
elles mostrando os signaes que lhes tomaram; porém, no 



220 A JORNADA 



meio do negocio, o Alcaide ordenou que todos os captivos 
se retirassem. 

Sahiram logo de Masagão muitos clérigos, com as cru- 
zes levantadas em procissão, e os captivos começaram a ca- 
minhar na mesma ordem, levando também uma cruz de pau, 
que era conduzida pelo padre que com elles ia, a qual os 
mouros folgaram muito pouco de ver. 

Doesta maneira caminharam por algum tempo; nfáis^ 
logo que entraram as portas da cidade, cada um largou 
a correr, olhando para traz de quando em quando, sem sa- 
berem se iam pelo céo se pela terra, e parecendo-lhe ser 
aquillo um sonho. 

. E realmente é tamanho o contentamento ao sahir uma 
pessoa do captiveiro, que fica como fora de seus sentidos ; nem 
pôde haver alegria no mundo que com esta se coraparej e 
eu o posso muito bem aífirmar, como quem o afflrma por 
experiência. 

Desde que os captivos entraram as portas da cidade era 
cousa muito para se notar ver o alvoroço e desatino com que 
as mulheres vinham abraçar seus maridos e seus filhos ; e 
postos todos já então em melhor ordem,-, foram em procissão á 
egreja, onde com muitas lagrimas e soluços deram infinitas 
graças a Deus, o qual foi servido que estivessem na cidade, a 
esse tempo, seis ou sete caravellas do reino, onde se embar- 
caram quasi todos os captivos, e vieram a salvamento; ou- 
tras cáfilas houve, porém, de menos porte, e também alguns 
mouros e judeus punham em Masagão^ por sua conta, alguns 
captivos. 



CAPITULO XVIII 



CONCLDB-SE O NEGOCIO DOS FIDALGOS E DOS MAIS DE 
MARROCOS; PARTEM PARA CEUTA; DESPEDB-SE O DU- 
QUE DO XERIFE, QUE SEGUE O MESMO CAMINHO 



[■■r,ste tempo o Embaixador D. Francisco ila Cos- 
jta, quo, como honrado fldalgo e bom christão, 
Inão descanpava um momento no interesse dos 
pseus concidadãos, concluía com jubilo o resgate 
dos fidalgos que estavam em Marrocos; e, teodo preparado 
em fazenda, nredito, dinheiro e pedrarias os quatrocentos 
mil ciTizados que tocavam, aos oitenta fidalgos do numero, 
entregou ao Xerife a cópia completa, recebendo d'elle, em 
troca d'esse documento, a ' plenária quitação que desejava. 
Logo que isto concluiu, participou-o immediatamente para 
Fez, a fim de que os fidalgos se fizessem prestes ; e esta boa 
nova foi acolhida com aquelie jubilo e alvoroço que só pode 
avaliar quem sentiu já sobre seus hombros o peso do capti- 
veiro. 

igualmente o Elmbaisador Pêro Vanegas, que sua ma- 
gestadc havia mandado com grandes presentes ao Xerife, 
para tractar bem os captivos e se haver moderadamente 
em seu resgate, tinha feito seu officio com muito zelo e 
cuidado, e alguns fidalgos estavam já em Portugal, por or- 
dem do Embaixador D. Francisco, porque logo que lhes vi- 
nha sen resgate se retiravam por Masagão ou Ceuta; e como o 
desejo de sua magestade fosse principalmente obter a liber- 



222 A JORNADA 



dade do duque de Barcellos, seu sobrinho, logo que o Xe- 
rife concedeu isto a Paro Vanegas, sem o minimo resgate, 
e deu liberdade da mesma maneira a D. João da Silva, con- 
de de Portalegre, que estava captivo43m Alcácer, e muito 
ferido, posto que tivesse outros negodos importantes, para 
os quaes ficou lá algum tempo, ordenou el-rei que o duque 
regressasse immediatamente. 

Despediu-se emflm o duque do Xerife, o qual lhe fez 
as costumadas cortezias, e partiu para Ceuta com alguns fi- 
dalgos seus criados, e outros muitos eaptivos que resgatou. 

N^esta cáfila vieram também D. Francisco de Portugal, 
D. Manoel Pereira, Simão Corrêa, e outros fidalgos, por cujo 
resgate ficou o Embaixador D. Francisco, a quem elles satisfi- 
zeram em Ceuta, e o Xerife lhe fez mercê de seu sobrinho D. 
Duarte da Costa, sem pagar cousa alguma. 

Muitos ficaram todavia em Marrocos, por não terem o . 
cumprimento de seu resgate; mas não foi por muita tempo, 
sendo jà fallecidos n'esta mesma cidade D. Henrique de Mene- 
zes, Pêro do Cem e D. Gaspar de. Sousa. 

D'esta maneira se livraram estes fidalgos e os mais do 
numero, pelo muito zelo e diligencia do Embaixador D. Fran- 
cisco da Costa, o qual esteve depois muitos annos em Barba- 
ria, não só como refém do dinheiro por que havia ficado, e para 
tractar ao mesmo tempo alguns negócios, mas também para 
satisfazer o Xerife, que se honrava de o ter por Embaixador : 
porém elle morreu em Barbaria quasi captivo, tendo dado 
a liberdade a tantos, pelo que na verdade se lhe deve grande 
louvor, 6 el-rei lhe está em muita obrigação, além dos pré- 
mios que terá no céo, que nunca faltaram quando faltam os 
da terra. 

E da mesma sorte, em seu modo, lambem não é pouco 
de louvar a diligencia e zelo de Luiz Fernandes, \e lhe está 
em muita obrigação el-rei e este reino, pois morreu em Mar- 
rocos n'estes mesmas oflicios. Não faUo já nos padres frei Igna- 



cio da feaua e frei kntotúa da GonmclO)) e noa má^ reUgior 
SOS da Sanctíssima Trindade, que là também monrwim, pois 
im é uovo Q^eUes «cab^^reia n^este «AoctQ ofiMP> com tanto 
fer^ov cqriãade como cada dU vemcA. 

QdpoUj qi^ 08 fidalgos do aumero U\fefam oídem d'fJ- 
rei^ por Yin do Si]ibai3Uidtor D. Fiwjdlãco, para ae podarem re- 
tirar, com .passaporte real, e doua ikaides eom guarda wH* 
dente de pé e de e^vallo, ae oomesaram uiim? pinst^^eom 
tanto alvoroço e diligencia, como se pôde imagi^W ; par. €»tnt 
ip»ftê efSdL oeusa^nuiito de notaor yen o senjámento e a^uda; 
das que os judeus tínbam doesta por^ite, wiiQ pela proveito 
(ffíQ y^cebi^m d^ hoBpedagem» coquii ieaIinMt0 p^ qffiÉbillda* 
da cami. que m commuoifeavaqi todos^ - 

Nem é de ^pwtar que isto assim S€D>| parque ik A^pe*- 
reza é crueldade dos mQuros. Ibes fiusia mjfí wronãHWBte 
a brandura e oorteiia dos cbrií^âos, além da que os judeus 
siío naturaUuenta muito i^Obveis. 

Gbocavam as mais das judia», que por feradipSp ^ sçua 
pães e avôs estavfun bem lembradas da gri^ldeza da^ Ifespit^ 
nha, e liberdada que Q'eUa tildiam; e diiíam: ' « 

Qh( bemave^tuiada gente! que qom t$0 poucQ tempc^ de 
desterro toma á sua amada pátria cchu tamanha alegria^ pfpr- 
tlndo de onde as miseidqa ^pie passfirwn sô Ibes aarvirwi para 
saber, coubecer ag^UMsr o bem e quietn)^ i/à, vidm 9 âlagnMr- 
Hm o presente a meotoria do pwsa4ol Haa tiistes.d^aqiiaflasi 
que &Mte barbara gente, em peipatu$i miaeria vêem crescer 
cada dia. mates, que não podem ser maiores, contando tfmtos 
annos sem contar outm consjetl Ó ooit^das de nós, quão enga^ 
nadas vlviamos;, quando com a primeira nova que tíhâgpu ^^ 
esta cidade, de que os cbristãc^ tinham vendido, dávamos com 
pesar e desatino com a cabeia peias paredesi Prouvera a Deus 
que podésseraos aabir um dia do áspero jngQ d'est4 ijufejaial 
gente, trocando felimenite^ a s<fflte B-outnti eqja wbre^ae 



« 



224 A JORNADA 



virtude, para maior m&goa e saudade, conhecemos em tao 
pouco tempo. 

Isto dizia quasi toda esta gente, despedindoHse de uns 
e outros com muito amor e singeleza, pondo^se os meninos 
e mulheres em dma dos terrados, para ver sahir a cáfila, e os 
mais dos homens acompanhando e Mudando os fidalgos, o que 
realmente causava um novo sentimento a todos — que tudo 
facUitam as condições do tracto humano, e as^mágoas estranhas 
fazem próprias. 

N'*esta despedida, os mais dos fidalgos e outros homens 
nobres se compunham com os judeus, acerca das dividias 
particulares gde seus câmbios, sobre o que vieram alguns a 
este reino em commissão dos mais, onde lhe foi feito cumpri- 
mento de justiça, dos quaes um, que se chamava Gibre, e outro 
Vilhalom, '^endo o tracto dos christãos, e o modo como foram 
agasalhados em Portugal, nunca mais quizeram tornar & Barba- 
ria^ posto que não deixaram de ser, judeus, e Gibre se deixou fi- 
car em Tanger, e Vilhalom foi & Itália, e primeiro esteve em 
Ceuta, d'onde mandou diamar uma filha sua e se despediu 
d'ella pai* sempre, para não tomar a ver as misérias e detk 
venturas, que nunca conheceu senão depois de ver as bo- 
nanças. 

Tanto ípie os fidalgos estiveram de todo aviados, com 
tendas e tudo o mais necessário a semelhante camktho, le- 
vando em sua companhia muitos captivos homens nobres, e 
outros do numero commum, que à sua sombra e com seu re- 
médio se resgataram^ além de seus criados, partuam de 
Fez no fim de Novembro de setenta e nove, na força e ri- 
gor do inverno, indo todos em companhia n'uma formosa 
(afila, com aquelle contentamento e alvoroço que bem se dei- 
xa entender; e posto que eram tão grandes as chuvas e tor- 
mentas, que muitos correram risco, e todos passaram gran-. 
des trabalhos; tanto que diegaram a perder-se uns dos ou- 
tros por espaço de três ou quatro dias, todavia com as visi- 



d' AFRICA 225 

' I - ... I ■ 

nhãs esperanças de liberdade, que tudo facilitara, passavam 
alegremente este caminho. 

Chegaram emíim a Alcácer, onde estiveram dous dias 
descansando de tantos trabalhos, refazendo-se do necessário, 
aposentados em tendas fora dos muros da villa. 

D^aqui partiram para Tetuão, ao longo do campo onde 
foi a infeliz batalha; n'este logar falleceu Duarte Coelho d'Al- 
buquerque, um fidalgo mui honrado e valoroso, que emfim 
veio achar a morte onde a buscou tantas vezes ; e posto que 
elle vinha enfermo, eu tenho como certo que o não matou se- 
não a lembrança d'aquelle infausto dia, mágoa perpetua e des- 
consolação a tantos. 

Levavam estes fidalgos e os mais captivos, n'este tem- 
po, os olhos postos no céo, que não podiam soBrer a vista 
de tal terra, e por bem largo espaço com infinitas lagrimas 
foram encommendando a Deus os amigos e parentes, de quem 
a morte e saudade lhes não ' causava menos mágoa que in-' 
veja. 

• Chegaram emfim a Tetuão ao cabo de quarenta - dias, que 
gastaram em trinta legoas de caminho, pouco mais ou menos 
(posto que antes que partissem alguns estiveram esperando por 
tempo), no que se podem ver os trabalhos da jornada, 

N'este mesmo tempo chegou também, o duque de Barcel- 
los a Tetuão, e D. Francisco de Portugal, e todos os mais da 
companhia, pelo caminho de Celle, onde tiveram o Natal, com 
tantos trabalhos e enfadamentos, quanto a jornada foi daas ou 
três vezes maior, sendo na mesma conjuncção, onde o duque 
se viu em muitos perigos, posto que vinha em um ginete mui- 
to formoso que o Xerife lhe deu ; porém tudo passou com va- 
ronil animo, facilitando a todos o caminho com sua presen- 
ça, que não sei que tem esta visinhança dos príncipes, que 
a sua sombra anima e dá calor, e a sua vista nutrimento. . 

N'esta villa foi visitado o duque, como em todos os mais 
logares, pelos Alcaides principaes, na forma que convinha, e o 



226 A JORNADA 



Xerife lhes devia ter ordenado : aqui se deteve dnco oa seis 
dias. e as mais fldalgos e captivos juntamente, onde algans 
passaram assas trabaltio, porque os Alcaides d'estes portos 
raramente os deiíam passar sem muito boas peitas, e às ve- 
ies os tomam por fidalgos e captivam de novo, sem mais 
outra razão ou justiça, que parecer-lhes bem. 

N*este logar se viram alguns fidalgos em grandes tralKi- 
lhos, porque os judeus que de Fez vieram em sua companhia 
{que seriam dez ou doze), aos quaes^elles deviam muito di- 
nheiro, que haviam tomado a cambio para suas necessidades, os 
embargaram: de maneira, que se viram sem algum remédio; 
mas D. Francisco de Portugal, a quem chegou esta noticia, 
clamou dous judeus por quem corriam seus negócios, e lhes 
mandou que tomassem sobre sua cabeça todas estas dividas 
aos outros. 

Foi logo de maneira, que ordenou D. Francisco o contra- 
ctck e segundo se entende importava o negocio em m^ de 
seis OQ sete mil cruzados: e sem estes fidalgos saberem cousa 
alguma, nemdaiem n^este negocio uma só passada, lhes Ase, 
quando estavam ma^ desesperados de poderem adiar reme- 
âd n^esta tanra: Vossas m^^rces podnn ir emboca qmndo 
quiserem. — Ficaram todc^ muito contenless com asas maia- 
\iika de tal hbeidade. e mais obrigados ainda pelo modo como 
Bies foi dis|iei^aâo tal bnieficio. 

Doesta manara vaieu este fidalgo tamben a nrift» ho- 
EKfts Bobnes;. que tram i soa coota^ e fez oolras coem B'es- 
t^ Tap::veím. bem di^sas de louvor. 

Putiu em:im o di;:que de Baitellas de THaio^ e D. ftan- 
dso» e os fitts âdik-v^ d^esia companhia. JMlMMinlf, oon 
^ tão scae^v\ e cbe^^ando a ism kor qse ^ chan Omh 
^7». a IRS Ve:^ âe Ceiita. D. FnwKO se aputm do dh^ae 
con ateiK que de Ihirxxis viencL e odros caplima» e fcí 
<SB&»3r Hs e^es do Ibnp^ei de Stecta únn^ sat aliar 



D AFRICA 



227 



em Ceuta, onde no mesmo dia chegou o duque com os mais 
fidalgos e senhores. 

As alegrias e contentamentos que n'esta sahida do Egy* 
pto podia haver, não faltará quem as diga, que a mim só de 
tristezas me coube poder fallar. Mas tornando a nosso propó- 
sito, n'este tempo os captivos que ficaram em Fez, Marrocos 
e outras partes, ou por cuidarem seus amos que eram fidal- 
gos, ou por não terem quiçá quanto lhes pediam de resgate, 
não bastando o que el-rei mandava dar, passavam muito tra- 
balhosamente a vida, sem, o favor e ajuda dos fidalgos, pos- 
to que o Embaixador D. Francisco da Costa, que estava em 
Marrocos, soccoriia alguns ; mas nãò podia acudir a todos, que 
eram grandes as misérias que passavam. 

E porque se acabe de entender quão ônganadamente 
Jeronymo Franqui diz que os portuguezes são mal soíMdos 
e para pouco servem, me pareceu bem pôr aq^ui os fidalgos 
que vieram ás mãos d'el-rei, fazendo elle tanta diligencia nis- 
so, claro argumento dos trabalhos que passaram encobrindo 
sua qualidade, não porque soífressem mais que os outros, mas 
porque tiveram mais ventura em seu soífrimento, podendo 
com sua honra sustentar-se. 



D. Affonso de Noronha. 

D. Afibnso da Silva d^Elvas. 

D. Álvaro de Castro. 

Álvaro Ferreira Pereira, Porto. 

Ambrósio de Aguiar. 

André de Brito. 

Autonio de Mello, alcaide-mór 

d^Elvas. 
António de Mendonça. 
D. António de Menezes. 



António Pereira Deberredo. 
António Pereira, d'entre Douro 

e Minho. 
D. António Rolim. 
António de Vasconcellos. 



B 



Bartholomeu da Silva. 
Bernardim de Carvalho. 
Bernardim Dalte. 
Braz Soares. 



2iH 



A JORNADA 



Chrístovão Falcão de Sousa. 

Christovão Freire. 

1). Chrístovão de Noronha. 



D 



Diogo Botelho. 
Diogo Lopes de Car\'alho. 
Diogo Lopes de Car\'albo. íílho 
de Beraardim de CarN-alho. 
D. Doarie de Larcão. 
D. Diogro de Meueies. 
tóíjg-o Pejaiiha. 
Dicíiro das Povoas. 



t 



Francisoo Cameíro. 
Francisoo Freire. 
D. Francisoo de 

depois amde de 
D. Francisco de 
Francisco de Puik. 
Francisco de Soonu 
Francisco Teixeiía de 




Gomes Borges. 



H 



JleDrique Pereira de 
D. Henrique de Partogai. 
Henrigue de Sousa, depois^ 
vemadar da Casa. 



Eí^l^ Cvielhi». 



y 






1. ^?ftti Iinntiniii^ 
fb ni leãimnr^ 

2 jrÃi IfeunuuES. 



d'aprica 



229 



D. João de Menezes. 

D. João de Portugal. 

João de Saldanha. 

João de Saldanha, filho de Luiz 

de Saldanha. 
João da Silva. 
D. João de Vasconcellos. 
Jorge Barreto. 
Jorge Furtado. 



Luiz de Brito. 

D. Luiz Coutinho. 

Luiz de Góes. 

Luiz iMartins de Sousa. 

Luiz Pereira, do Porto. 

Luiz da Silva. 



N 



Nicolau de Squsa. 

D. Nuno Alvares Pereira, de- 

pois condo de Tentúgal. 
Nuno Fernandes de Magalhães. 



D. Paulo de Larcão. 

D. Pedro de Abranches. 

D. Pedro d'Ahneida. 

D. Pedro da Silva d'Elvas. 

Pêro Mascarenhas. 

Pêro Peixoto. 

Pêro Vaz Corte Real. 



R 



M 



D. Manoel de Castelbranco, de- 
pois conde de Villa Nova. 
D. Manoel da Cunha. 
Manoel de Macedo. 
Manoel de Mello. 
Manoel Pereira de Lacerda. 
D. Martim Affonso de Castro. 
Martim Gonçalves da Camará. 
Martim Gonçalves Tavares. 
Miguel Soares. 
D. Miguel da Silva d'Elvas. 
Miguei de Suniga. 
Miguel Telles. 



D. Rodrigo de Castro. 

D. Rodrigo Lobo. 

D. Rodrigo de Noronha. 

- S 

Simão da Cunha. 
Simão Cabral. 
Sancho de Toar. 
Simão da Cunha, filho de Ruy 
Gomes. 

T 

Tristão da Cunha. 
Vasco Martins Moniz. 



230 



A JORNADA 



Âlém doestes fidalgos, que são quasá oulzros tantos como 
os que vieram a poder d^el-rei, e outros de qfae não podemos 
ter noticia, houve infiailos homens nobres que também se 
livraram por mesquinhos, e alguns estiveram quinze e vinte 
annos em cativeiro, sem haver entre elles quem se tomasse 
mouro, salvo se foi por ventura ou desventura algum coita- 
do de tão pouco momento, que não pôde bgt conhecido, ha- 
vendo tantos que por largos tempos sofilreram tantas misé- 
rias, nas quaes acabaram, e outros que publicamente, para não 
serem mouros, padeceram cruéis mortes, como são estes, dos 
quaes agora, dando fim a nossa jornada, tradaremos. 



LIVRO III 



t.%- 



DOS MARnBIOS OUE HODVE EM CÂPUVEIRP 
NA JORNADA D'AFRIÒA 



CAPITULO t 




AVENDo de trectar d'aquélles que padeceram pela 

de Christo n'esta joraada, como cousa perten- 

mte a eUa, pareda razão dbamar a todos mar- 

tyreSy que se uns, confessando a fé em captívei* 
ro, moneram por ella, os mais n*esta m«sma conflssSo e san- 
cto «ugmento acabaram pelejando na batalha, e mais quando 
podemos {lamente crer qoe todos est&o na gloria^ como a 
madre Thereza de teus, nova fundadora da Ordem das Des* 
calpas, jâ boje beatíBcada, pois confessa em suas visões 
que, queixando-se a Deus do estrago e desventurada batalha 
d'el-rei D. Sebastião, o mesmo Senbi>r a consolou, e lhe disse : 
Que sabes tu, se os achei eu em estado para os trazer a mim? 
O que realmente é uma grande consoU^ para todos aquel- 
les que tão interessados são com as pessoas que acabaram n'es- 
te conílicto, e além d'i8S0 também vimos como na opinião 
das gentes se téem reahnente por martyres aquelles que aca- 

90 



232 A lORNADA 



baram pelejando contra mouros, como foram os que morre- 
ram em Sacavém resistindo aos de Âlemquer, e os inglezes 
e. portuguezes que acabaram na tomada d'esta cidade de Lis- 
boa, que estão enterrados em S. Vicente de Fora, e junto ao 
Mosteiro de S. Francisco, cigas casas se chamam hoje dos 
martyres, por este respeito. 

E dà bem daro testemunho d'esta verdade o sancto Ga- 
valleiro Henrique, homem allemão, dizendo que por virtude 
d'aquelles martyres portúg^uezes que alli em S. Vicente com 
elie estão enterrados, e morreram na tomada de Lisboa, 
deu Nosso Senhor saúde a dous mudos que o tomaram por 
seu intercessor. 

E asshn foi visto no campo de Alcácer, que nenhum cor- 
po de diristão se corrompeu, antes se mirraram todos sem 
algum mau cheiro, e n'aqu6lle anno, fora de curso, admira- 
vehnente cresceu o rio Lucus, de maneira que os levou ao 
mar, permittindo Nosso Senhor dar-lhe inda aquella- sagrada 
sepultura. 

Mas pois emquanto a egreja catholica não approva e de- 
termina o nome que se lhes ha-de dar, não o podemos nós &- 
zer; chamar-lhe-hemos ao menos, a uns é outros, cavalleiros 
de Ghiisto, que confessando sua sancta fé por não serem mou- 
ros, e pelejando contra elles, acabaram as venturosas vidas. 

E porque já dos mais que pereceram na batalha vtemos 
feito menfão, diremos agora d'aquelles que n'outra nova ba- 
talha pelejaram só com as armas da padencia, e vencidos 
venceram, . para que com essa lembrança se và continuando a 
memoria de tão sanctas maravilhas, emquanto ellas não vem 
à luz da verdadeira autboridade. 




CAPITULO II 



DO MODO EU QUX VIVEU OS CAPTIV03 SH CASA DO XBRJFB, 

QUE BLLE KAIOIA FAmR MOUROS POR PORCA, E GOMO 
PROCEDUH SETE MOQOS, QUE MANDOU KATAR 



kLTissiMos são por certo oe joizoa Divinos, e grac- 
f,ãBS e escondidos seus segredos. Quem pcdéra 
|calãai que estava o Redemptor da vida qo meio 

) som das armas -e estrondo da guerra, esco- 

Ibéndo para defesa de sna Sancta Fé Cathollca, entrp tan- 
tos soldados fortes e robustos, sete gueirein» meninos, em 
cuja ftaqneza delenoiíuva maniftetar mais suas forcas? 

Quem de tamanha desventuTíi como foi a nossa podéra 
imaginar tão feliz successo, qne venha a paieoer mnito pon-' 
ca perda a respeito do conliedáo hem ã'estas ditosas almas, 
qae estavam qu^ bem fora de tão fèUi morte passando a 
descuidada vida? Pelo que, nas cousas de Deus, além da devi- 
da subjeifão a seu alto juizo, será muito acertada. orapão de 
nossa parte, que sua divina magestade se lembre de nosso 
descuido, e tenha piedade de nossa ignorância, para nos alu- 
miar, pms sendo-nos tão alheios seus segredos, mal podemos 
aceitar d'outra maneira. 

Trouxe Muley Molut» da Turquia um novo e desusado 
costume dos reis seus antecessores, o qual é servirem-se de 
portas a dentro de moços elches, e alguns d'eUe8 castoados, 



234 A JORNADA 



■«ii^ 



dos quaes, segundo é fama, não somente se servem nos offi- 
dos ordinários da casa, mas também de outras cousas, que nao 
é bem que tenham nome : os quaes fazem ser mouros, ou ao 
menos parecer que o são, com desusados tormentos, e como 
não seja capaz d'elles sua tenra edade, concedem por força o 
que negam quanto lhes 6 possível, e logo que estão n^estes 
hábitos e n'esta reputação os mandam ensinar a ler e escre- 
ver, e os applicam a outros ofícios e artes, conforme a indi- 
nação de cada um, vivendo sempre em recolhimento, e nunca 
sabem fora senão juntos, em comp&nhia do Mcaide que d^elles 
tem cuidado. O numero ordinário são quarenta, dncoedta, e 
mais, se mais o Xerife pôde haver. 

Doeste rebanho infeliz assim opprimido escolheu Nosso 
Senhor sete cordeiros, mostrando sua Divina Misericórdia, que 
não pôde ' haver no mundo tão mau estado em que ella não 
tenha logar, quando da nossa parto hsya qualquer sancte e 
bom desejo, como havia n'estes servos, que'sõ nos actos'' ex- 
teriores eram mouros, e dnco d'elles o foram por força: e 
um nem com infinitos tormentos se apartou da fé, senão foi 
por manifesta ignoranda, como adiante se vera; e outro 
em quem Nosso Senhor quiz mostrar mais suas maravíQms, 
era mouro de nação, filho de eldie^ e de moura, sem ne- 
nhum oonhedmento de nossa sancta fé, antes mui doutrina- 
do na ceita de Alcorão de Mafoma, tante, <{ue lia por élle ao 
Xerife e ^tava ordenado a*Gaciz e mestre de todos estes 
moços, e n'esta confiança o mandou o Xerife communicar 
com elles, porque sendo da sua edade os podésse melhor 
aSéiçoar a si, e reduzir à sua oeita; mas a Divina Misericór- 
dia fez caça do caçador, e convencido o mestre dos dilscipu- 
los, deu tão formoso salto, que de Ali que se diamava sen- 
do mouh), se chamou d'alli por diante Francisco da Espe- 
rança, oom twto amor e conformidade com seus companhei- 
ros, que não somente fd seu fiel amigo, mas seu consdheiro, 
como adianto se verá. 



d'afriga 235 

Tinham estes moços alguns christãos osqptivos ã'el-rei, 
de quem se fiavam, e por quem corriam com os religiosos 
da Sanctissima Trindade, que residiam em Marrocos, fazendo 
o resgate geral, os quaes lhes buscavam livros devotos por 
onde liam todo o tempo que dos mouros se podiam escon- 
der, e dos mais companheiros de quem se não fiavam; tam- 
bém tinham imagens e cruzes, escondidas entre seu fato, e 
ao tempo da oração ás tiravam,' e diante d'ellàs se encom- 
mendavam a Deus, jejuavam a Quaresma e Advento, e os 
mais dias da obrigação, dos quaes sabiam por estes chris- 
tãos captivos, pelo que, sendo sdgumas vezes accusados diante 
d'el-rei, foram mui rigorosamente castigados; perguntavam 
pelos sermões què os padres faziam, ê quando lhes occorria 
alguma duvida» acerca dos bons costumes e honra de Deus, 
a communicavam aos religiosos que já dissetnos ; folgavam 
muito de ouvir fallar na vida dos sanctos, sendo confrades 
em todas as confrarias, e fazendo muitas esmolas, e o mais 
que podiam haver gastavam n'estas sanctas obras, e assim 
na penitencia como çm tudo o mais eram (diristãos, menos 
nas apparencias, emquanto não chegava sua ('''^jada hora; 
tinham todos algum modo de subjeição a um companhei- 
ro seu, que se chamava Simão de Freitas, porque como ti- 
nha bom entendimento e natural, era mais visto nas cousas 
da virtude, e assim lhe obedeciam como a mestre e maioral. 

D'esta maneira viviam mui conforme^; porém o demó- 
nio, que não pôde soffrèr estes sanctos desejos, lhes met- 
teu em cabeça que tudo quanto faziam era perdido, e nada 
lhes podia aproveitar, tomaiddo teròeiros que não eram d'es- 
ta companhia, que lhes diziam isto a cada hora, com os qiiaes 
pensamentos andavam todos muito tristes e descontentes ; po- 
rém como acudisse a Misericórdia Divina, dando conta does- 
tas cousas. aos padres frei lanado de Jesus e frei António da 
Conceição, que são os religiosos que havemos dicto, com os 
quaes continuaram até à derradeira hora, foram logo conforta- 



236 



A JORNADA 



dos em seus bons princípios, fazendo-lhes saber como aquel- 
las tentações eram do demónio, as quaes tivessem a bom si- 
gnal e principio de sua salvação, porque ainda que no esta- 
do em que estavam não mereciam graça, nem gloria, merece- 
riam chegal-os Deus a' tempo de se publicarem por chriístãos, e 
alcançarem tudo o que taes obras mereciam ; e porque o de- 
mónio isto entendia, ordenava apartal-os doestes bons prin- 
cipies, cerrando a primeira porta a seu remédio : o qual con- 
selho estes moços tomaram como vindo do céo, cobrando 
novo animo, e exercitando as pias obras, de maneira, que 
não temiam jà serem sentidos, antes desejavam que se des- 
cobrisse a verdade que em seus corações estava. 



s 



/ 

237 



CAPITULO m 




DO MEIO QUE O SENHOR TOUOU PAIU ESTKS SEUS 
SERVOS SE PUBLICAHEH POR CHBJSTÃOS 



B ENiioRADA a Misericórdia Divina das saneias obras 
3 ardente zelo d'estes cavalleiros de Gtiristo, quiz 
Imostrar e descobrir ao mundo quem élles eram, 
a tomando por melo a paixão' e desavença que 
houve entre um eltíis companheiro na casa (não na ^conver- 
sa[ão) com outra d'esta ditosa compaúhia, os quaes apren- 
deram juntamente nm offido'; e como aquelle elche, que era 
bem moDTo, tractasse mal este, em quem conhecia o animo de 
christão, juron o offendido aer nm dia momro, para se vingar 
A'este seu inimigo, o qual se c' imava Xabão; e com esta in- 
dignaíão o deshonrou de maneira, e a todos os mais, que ge- 
ralmente eram mouros, qne o elcbe lhe fez gran^ juramentos 
de o fazer ser mouro, em que lhe pezasse; e tractandc imme- 
diatameote de procnrar o Alcaide Amar, que tinha cuidado d'el- 
les, lhe descobriu todo. Sabendo isto os mais companheiros 
christãos, se foram a este elcbe, persuadindo-o não somente a 
não fazer queixume, mas a confessar a lei de Cliristo, com 
aqueilas palavras e razões que o Bsphito Sancto lhes mostra- 
ria, porque em taes casos não falta com o dom de sua Divioa 
sabedoria; mas o elche estava tão entrado do demónio, e per- 
suadido á vingança, que nenhuma d'estas. cousas qniz escu- 



238 A JORNADA 



c.x 



!^tar, antes prometteu descobrir a todos, e dizer como o que- 
' riam tirar de ser mouro. 

Com' estas palavras e infernal resolução veio a travar*se 
uma briga entre todos, de maneira que comeparam a dizer 
alguns que era chegado o tempo de se manifestarem por 
christãos ; e um d'elle8, que se chamava Simão de Freitas, de 
mais authoridade e respeito entre todos (como havemos dicto), 
se levantou logo, e com voz alta, e mui segura, disse : 

Agora, agora é tempo, ó constantes cavalleiros de Chris- , 
to, de se manifestar nossa tenção, e todo aquelte que quer 
seguir esta bandeira cbegue-se a mim. 

Ajuntaram-se logo a elle muitos^ e se publicaram por 
christãos, e' o primeiro de todos foi Francisco da E|perança, 
o qual muitos dias havia que ctesejava publicar-se ; mas como 
Deus o tinha guardado para consolação e soccorro de sua di- 
tosa companhia, parece que lhe reprimiu a força do espirito. 

Vendo Simão de Freitas tão bom principio a seus dese- 
jos, começou a animar os companheiros, chamando pelo no- 
me de Jesus; mas como o passo da n^rte é tão espantoso, e o 
dom de morrer pela fé é particular graça Divina, retirar am- 
se alguns, ficando somente oito, e na hora da venturosa mor* 
te apenas sete, como adiante se dirá. 

Vendo Xabão, author doestas differenças, o que se passa- 
va, foi ao Alcaide Amar, e lhe disse, que o& mais dos nnoços 
eram christãos, e se queria saber eãta verdade mandasse 
chamar kbnam^ que era um memoo de doze ou treze annos, 
natural de Faro, no' Algarve, e dando-Hie tormento, eUe des- 
cobriria tudo, posto que também era cbri^ão. 

Mandou logo o Alcaide trazel-o perante si, o qual não 
podendo soflirer os tormentos, por sua tenra edade, descobriu 
a verdade, e nomeou aquelles que eram christãos. 

Vendo isto o Alcaide Amar, mandou trazer a todos dian- 
te de si, estando ccon elle o accusador Xabão, o qual, se 
algmn com temcxr ou recaio diaia que l}ie tevantaram aquiir 



d'afriga 



289 



lo, insistia, dizendo: «Porque negas agora o que tantas vezes 
me confessaste? » Porém, como o demónio ia já de vencida, to- 
das quantas armas dava a seus sequazes se viravam contra 
elle, e assim foi parte esta accusapão (que estranhamente sen- 
tiram) de cobrarem tão grande animo, corridos de sua fraque- 
za, que todos juntos, com estranha ousadia, disseram diante 
do Alcaide Amar que eram christãos, como sempre foram, e 
que confessavam e criam a fé de Nosso Senhor Jesus Ghristo; 
do que o Alcaide ficou tão furioso' e admirado, que rebentava 
de paixão -e tristeza; e tomandp a dar tormento ao menino, 
para descobrir se havia mais alguns companheiros, elle so- 
mente respondeu què não sabia mais que de si, que também 
era chri^tão como os outros. 



M 




CAPITDLO IV 



DÂ. CONTA O ALCAIDE AMAR DO QDB LHE 
HAVU ACONTECIDO 



kSKDo O Alcaide Amar tão admirafel determina- 
|ção, e como não podia deiíar de dar conta a 
il-rei, porque sendo o sucoesso tSo publico te- 
Ifflia com razão ser casljgaão, se o soubesse por 
oum~via, foi logo a elle, e, daiido-lhe conta de todo, ãcou 
o XeriTe tão furiosamente desatinado, que apenais pMe per- 
guntar a causa de tamanha novidade, e quasi i^ deu are- 
sto ao Alcaide, mandando diamár a nm mancebo grego de 
nação, por BOtne Girâo, para se acabar de certificar, ao quat 
perguntou muito particulannente a causá porqoe se chama- 
vam christãos, e quaes eram os que isto confessavam; ao qné 
o mancebo respondeu: 

Muley sabe que os mais doe moçra sãó dhrisâos. 
Com isto Scon o Xerife tão magoado e corrido, por se 
fnrverem creado em sua casa, e ã sua meta, que todo aquel- 
le dia esteve como attonito, sem se ãeteimlnar em cousa al- 
guma, e sendo maiUiã mandou chamar o Alcaide Abraem Su- 
flane, seu viso-rei e com mnita razão grande privado, e o 
Alcaide UaDCOr, também muito seu v^do. (fote éaqueíle el< 
che melancotiéo, que foi mettido na Utéira doiói Wál&j Molúfió, 
quimdo élie fsjlecen, ounõ bavemoe dicú>)- 



24^ A JORNADA 



N'este comenos, o elche Xabão, inimigo mortal d'esta 
ditosa companhia, e particular ministro do demónio (de quem 
no ãm d'este processo contaremos um caso muito notável), 
não somente disse ao Xerife o que se passava, mas de novo 
lhe descobriu todos os christãos com quem elles se conununi- 
cavam, e por ciga intelligenda tinham os avisos quê havemos 
dicto dos religiosos da SanctioSima Trindade, cousa que o 
Xerife sentiu.de maneira, que logo os mandou prímder, com 
determinapão de não ficar nenhum vivo, os quaes foram pre- 
sos sem demora, e trazidos ao Mexuar, com grande es- 
trondo e fúria; e i^ó um que se chamava António Mendes 
escapou, e se acolheu a casa de uma irmã d'el-rei; porém não 
lhe valeu cousa alguma, porque por força foi tirado. 

N'esta coi^juucção chegaram os Alcaides a el-rei, o qual 
lhes deu conta do que se passava, mostrando no gesto a dor e 
sentimento que disto tinha; e fazendo particular queixume 
de Francisco da Esperança, dizia em altas vozes: 

Gomo será possível, que se ouça e diga em nossos rei- 
nos que também o filho de Aduel MeUque se tornou christão, 
sendo moura sua mãe, e seu pae mouro, não havendo cau- 
sa nem razão alguma de tamanho desatino, mais que um 
simples movimento, cousa não só digna de espanto,, em tão 
pequena edade, mas de grande vitupério a nosso Mafoma e 
noi^a lei? 

E assim, cheio de ira e de estranho furor, mandou que 
todos os christãos, que haviam sido medeaneiros doestas cou- 
sas, fossem mortos a ferro; mas o Alcaide Abraem Suflane, 
que tinha muito excellente condição e compassiváa-entranhas, 
acudiu a isto, estranhando-lhe muito o que elle tanto estra-* 
nhava, e dizendo, que emfim os christãos, por obrigação de 
sua lei, conoLO os mouros pela sua, tipham razão de procurar, 
com todo o fervor e diligencia, o bem dos seus ; e como n'es- 
te negodo havia tamanhas culpas, como fora induzir-se um 
mouro a ser christão, sua magestade devia saber qual dos 



d'afriga 243 



chnstãos era mais culpado, e com sua morte dar exemplo a 
todos. 

N'isto concordou o Xerife, depois de convencido, todavia 
mais do respeito e amor que tinha a Sufiane, que de lhe pa- 
recer razão o que elle dizia; e como soubesse muito bem o 
nome de todos, mandou que matassem a António Mendes, 
aquelle que atraz dissemos que se acolhera a casa da irmã 
d'el-rei, que era havida por sancta. 

Era este António Mendes natural da cidade de Tavira, 
no reino do . Algarve, ordenado de ordens de Evangelho, o 
qual realmente, posto que se não comprehenda n'este ditoso 
numero, parece que não tem menos logar, pois por uma 
parte foi o principal instrumento d'6ste successo, cujas' dito- 
sas culpaús o conduziram a tão feliz morte, como logo dire- 
mos ; e por outra, se os que morreram, por razão e verdade 
são bemaventttrados, eUe padeceu por ambas estas cousas ; 
por onde se pôde crer, que não terá menos premio que seus 
companheiros, tendo em particulat tanto merecimento no me- 
recimento de cada um; e assim, é muito de louvar a diligen- 
cia,' zelo e caridade que n'este negocio teve o Embaixador 
D. Francisco da Gosta, e.os religiosos que havemos dicto, 
persuadindo e animando todos estes cavalleiros de Cbristo, 
com o que não somente sé arriscavam a qualquer indignação 
do Xerife, mas a padecer semelhante morte. Porém, eu cuido 
reahnente que elles não desejavam outra cousa, do que deu 
bem claro testemunho o processo de suas vidas, acabando 
n'estas e n'outras sanctas obras da redempção dos captivos 
em Marrocos, onde estão enterrados^ 

Mas tornando a nosso propósito, diegou António Mendes, 
amarrado com as mãos atraz, ao Xa^aque, onde recebeu a 
morte, que lhe deram às cutiladas os dteres d^el-rei, com mui« 
ta constância e paciência, sem embargo de lhe offerecerem a 
^âda, querendo ser mouro; e depois de morto os mouros lhe 
pozeram fogo e lhe atiraram muitas pedradas, porém não aca* 



244 A JORNADA 



bou de arder, porque, como o fogo não foi íuandado por el- 
rei, nao foi bastante, e d'esta maneira esteve dous di^is no 
terreiro, porque não queria el-rei de nenhum modo que o 
enterrassem, sobre o que trabalhou muito o mordomo da Mi- 
sericórdia do Teixenal, que é um logar cercado, em que os 
christãos captivos d'el-rei vivem, e téem egreja, e as mais 
cousas que no captiveiro havemos dicto; mas como el-rei de- 
terminava de ser castigo exemplar, não deferia a nada; até 
que emflm, por via do mesmo Alcaide Sufiane, houve por bem 
dar licença para o enterrarem, e foi levado à Misericórdia, 
onde lhe deram sepultura, fingindo todavia que o levavam a 
enterrar ao campo onde os christãos se enterravam, por- 
que os mouros não consentem que se enterrem dentro da Alcá- 
çova; mas a Divina Misericórdia, que se não esqueci^ de quan- 
ta elie tivera na salvação de seus fieis amigos, lhe deu este Ich ' 
gar tão honrado, como em principio de paga. 

Os mais christãos foram presos na Sèjana, onde estiver- 
ram muitos dias, carregados de ferros; mas emfim, pela boa 
condição de Abraem Sufiane, escaparam da morte, que d'ou- 
tra maneira eatende-se que nenhum remédio tiveram. Entre 
elles foi preso um homem honrado, por nome Francisco Soa- 
res, que hoje está n'esta cidade de Lisboa, e Domingos de 
Torres, natural de Masagão, ci^a feliz morte direnoios em seu 
logar. 



Livtrtióií 




S SERVOS DÍi DEUS PORÀM LÇVADÒS 
DIANTE DO XERIPS' 



|nA tão granílè' o sentímeatò gtie el-rei Unha da 
Caneta deliberado d'este3 gnéitéíros de Chfiato, 
fqm não re^ODSãvaumasõ bora; e assinij veio 
imiiito cedo pela manhã ao Mexuar, onde ás mes- 
mas boras mandara 'vi^'o'Al(Míé Suflàné, e' Maàporico. 

N'este tempó^eSíã^Çam' tãrtitem' os amantes de Clinsto 
esperando asua hotá-tlò déséjaffa, e consolatido-se uns aos 
ODtroã, com aMmo esperaújinãO nos celestes prémios, sendo 
Fràádâco da Espemnfa oqiie com mais fervor os incitava 
aqáe o não desamparassem na batalha, pois para esse ef- 
feito, como capitães de Christo, o haviam armacfc cavalleiro, 
e que nenhnnl temesse a breve morte, pois elle não receava 
a sua, que muito bem sabia quão dilatada havia de ser, pois 
o haviam dè atailazíir, e cortar os pés, e mãos, e fazer seu 
corpo em pédaçôsmtiíto' miúdos, porser 3\iá culpa, na opinião 
dos mouros, muito maior; porém, que côm tão ditosa pena 
estava tão contente, q^e tomara sdr julgado capaz de mór 
tormento. 

Estas e oiitrássénielhaiítes cousas dizia Francisco da' Es- 
peranpa a seus companheiros, os qnaes o asseguravam de 
seus aãiinóà; còili'Ditiit() amor e'tóííftftlDÍiltaâê(. 



246 A JORNADA 



Estando pois todos d'êsta maneira, entrou com elles o 
Alcaide Jaudar, elche castrado"^ que se cre&ra com todos, o 
qual começou a dizer a Francisco da Esperança, com muitas 
lagrimas de piedade, que se tomasse mouro, e que olhasse 
o que fazia, porque o tinha enganado, e não se deixasse 
morrer nesdamente ; ao que elle, respondeu, com animo mui- 
to seguro : 

O' Jaudar amigo, se assim como no mundo, para lograr 
as vidas, fomos companheiros, o fôramos agora para salvar 
as almas, quão bem empregada que seriada tenção com que 
me persuades, de ciyo effeito eu estou bem longe, pela bon- 
dade de Deus! Mas o tempo é breve, e tu não buscas para 
ti remédio, antes procuras o damno d'outrem; basta só para 
tua conftisão a fadlidade com que me verás morrer .pela ver- 
dadeira lei de Ghristo, que se d'outra maneira a mim me fora 
dado, eu vos fizera confessar a todos o engano em que vi- 
veis. 

Dietas estas breves palavras, antes que o renegado lhe 
desse alguma resposta, chegou um recado do Xerife, em qué 
o mandava levar tão depressa, que apenas se pôde despedir 
de seus companheiros, lembrando-lhes somente que o não dei- 
xassem, não tanto pelo que temia de seu particular desam- 
paro, como pelo bem que de sua companhia á todos espera- 
va. Partiu emfim Frandsco da Esperança com os guardas que 
o levavam, pedindo perdão a todos, e publicando em alta 
voz a fé de Jesns Ghristo. 

Entrou na casa onde el-rei estava, o qual, quando ou- 
viu pronunciar quasi diante de si o sancto nome do Redem- 
ptor da vida, cheio de estranha ira lhe disse : 

O' incrédulo malvado, quem te enganou e te persuadiu 
a que fosses chiístão? 

Ao que elle respondeu, mui segurameiite, e sem al- 
gum reòeio: 

Ninguém me enganou; desde que nasci sou diristão. 



D^ATOIGA 247 

Vendo isto, el-rei, todo inflammado em viva cólera lhe 
disse : * • 

Por ventura, teu pae não foi mouro? tua mãe e teu ir- 
mão não são mouros? tu não sabes de cór a lei de Mafa- 
mede? 

Ào que elle retorquiu : 

Meu pae nunca foi mouro, minha mãe é somente a Vir- 
gem Maria; verdade é que três vezes passei o Alcorão, mas 
nunca n'elle achei cousa em que me podésse salvar, e só 
na fé de Jesus Christo espero ser salvo. 

Isto disse Francisco da Esperança ; e repetindo el-rei que 
olhasse o que fazia^ pois o havia de pagar com morte infa- 
me, elle respondeu, rindo-se d'estas ameaças: 

O' principe da terra, sabe que christão sou, e christão 
hei-de morrer, e que não ha tormento que me seja estranho, 
nem mal que não deseje padecer pela fé de Jesus Ghrísto; 
n'esta confiança verás como te estimo, sendo minha fíraqpe- 
za claro argumento de quão pouco podes a respeito de quem 
me faz ousado. 

« 

Ouvindo el-xei estas pakvras se deu por respondido, 
e, cheio de estranlia confusão e maravilha, mandou que o 
levassem, e lhe trouxessem dons áoa que diziam ser chrís- * 
tãos. 

Foi este cavalleiro de Christo muito contente com aquel- 
le auxilio Divino que sentiu diante d'el-rei, e com uma ale- 
gria espiritual, que em altas, vozes lhe sahia d'alma, ia di- 
zendo: viva a fé de Jesus Christo; e, chegando a seus com- 
panheiros, lhes disse : ' . 

Irmãos, não hsga alguém qtte deixe de confessar o ver- 
dadeiro Deus, e verdadeiro Homem, como eu agora fiz, com 
seu favor e ajuda, que n'este ultimo dia, primeiro na outra 
vida, se nos prepara um bem formoso triumpho de nossos 
inimigos. 

Os dous companheiros, que foram logo levadoSi eram 

38 



248' A jOB!ÍÍÚ)ift 



Sim&o de Prèitââ e Fernão Ginéls, o» qúá^sl, segfiindò^ áft pi- 
zadas de seu mestre e seu discípulo, iam muito conteáttisr,' 
dizendo em sdtas vozes : viva a lei de Cbristo, e ilèâinBó'jun- 
tamente perdão a todos, e primeiro âquellès qué oâ leváviBlíh- 
atados, havendo de ser pelo contrario, mas a verdadeirà'líú^ 
mildade sempre se encarrega das culpa» aUíeías. 

Chegaram emflm doesta maneira onde el-rei estava, o 
qual lhes perguntou se eram mouros ou christãos; ao q[ue el^ 
les responderam, sem algum temor, que christãos eram ; e 
perguntando-lhes el-rei â causa de tal mudaúça, dissersmi, que 
no que sempre fora nunca houvera mudança; e estavaoif tão 
determinados na confissão da fé catholica, tão livres e coúfia- 
dos, que o Alcaide Jaudar, que era o que os trazia diante d'el- 
rei, reprebendeu asperamente Simão de Freitas, vendo que 
lhe fàllava d'aqnella maíieira; mas elle mostrou na resposta, 
quão pouco temia o poder humano, dizendo em altas* vozes : 
 verdade, que nunca guardou respeitos, salta dé meu cora- 
ção, peto que não deves estranhar-me a liberdade coúi que 
fallo, que emfim el-rei não é mais que um homem. , 

Isto cfisse SimfLo de Frdtas diante do Xerife, sdm algum 
temor; o qual^ vendo sua determinação e a de seu compa- 
nheiro, comd temesse alguma verdade ciará (que sejgpre os , 
injustos prindpes fogem, tirando a vida aos professores d'el- 
la, como Herodes a S. João, e perseguindo aquelles que 
a publicam), mandou que os levassem ao Xaraque e lhes cor- 
tassem as cabeças ; pegaram logo n'eUes dous elches da com^' 
panhia, e com as espadas na m|o os levavam fora para esse 
effeito; e sahindo jã pela porta, mandou et-rei que ostoniasí- 
sem para- dentro, e' levasséih' a seus apó^ntos; e a causa 
d'istofoi'uma carta que lhe* escreveram Xàbão e'seuíi*com- 
panhÉáros', emqíie lhe pediam por mercê lhes désse'a'exé^ 
cnção d'esta' morte, que 'por honra dos elches os queriam' 
matar; isto concedeu el-rei muito facilmente, e por esta tá** 
zãe^^os tóiUáTam^^pâtraiteittro^- e nãò morrérim fõrá^pdblica- 



mente. Quando^^ão de Freitas isto i viu,. parbcen^ 
seria mais alguma dilação, disse: Se de Deus. tenho a vida, 
não in'a pôde el-reitirar^ e se llei^de morrer^ para que é tan- 
ta detença? E Fernão Ginez disse a. um dos elches, que paanai 
os degolar foi buscar uma- espada: Andae, andae, inuso, e: 
ajude-vos Deus, que na vossa dúigenda está nosso remedia 

Logo- os iornaram para* a^ casa oade seus compandbiéiros 
estavam, dos quaes foram alegremente recebidos, prindpal-r 
mente de Franòisco da Esperança, por ver que os tinha jài 
seguros na confissão da fé de Jesus bhristo. 

Depois d'isto, mandou el-rei que trouxessem outios dous^ 
e trouxeram João e Domingos, os quaes iam muito alegres : 
e contentes, enconunendando-se a Deus e & Virgem Nossas 
Senhora, pedindo perdão â .todos, como seus eompanheiros 
fizeram; e, chegando diante do Xerifevlbes -pi&rguntou- com: 
muita ira se eram mouros ou chrisiãos^demodo. quer João' 
Francês não acertava palavra, não perdendo porém a vontade 
que tinha de padecer por Deus^ ao qual o. mesmo Senhor r 
acudiu, infundincio de novo; em^seu companheiro Domingos^ 
esta parte do espirito que lhe fsdtava^ e de tal modo, que 
respondeu por si e por elle, dizendo que ambos eram duas- 
tãos e sempre o foi^m. Vendo isto el-rei, j'à muito cançadp 
e corrido, mandou que os levassem à casa dos outros. Reti- 
raram-se um e outro, confessando pelo caminho, em : altas 
vozes, a lei de Chiisto;e com este alvoroço e alegria ichega- 
ran;i a seus companheiros, que os< receberam.com não menor: 
contentamento. 

Depois d'isto, mandou eÍHrei que, lhe trouxessam outro» 
dous, e logo lhe levaram Amaro e António^ que bemper-^ 
suadidos iam de seus companheut». Fezrlhes el^ as mes^ 
mas perguntas, [se eram. .mouros, ou- christSoe, admoestan^ 
do-os primeiro, que olhassem o que diziam; pias elles res-^ 
ponderam que chrju3tãos: eram> e christãoAi haviam de morrer,' . 
com a qual resposta el-iei ne deu por.t:C(mGhudO|i e^fleou' tão^ 



250 A JORNADA 



envergonhado, do pouco fructo que de seu trabalho tirara, que, 
sem querer ouvir niais palavra, mandou que os levassem. 

Chegaram estes dous mancebos a seus companheiros, 
dos quaes foram recebidos alegremente, e todos postos em 
um animo, conformes em Deus, estavam esperando sua dito- 
sa hora. 

Entre esta venturosa companhia foi levado também um 
moço, do qual se não faz menpão, porque com o temor da 
morte disse que era mouro, e fazendo el-rei perguntas a ou- 
tro, qual era o menino a quem havia atormentado o Alcaide 
Amar, respondeu, com muita isenpão, que christao era e 
sempre o fora, do que el-rei se maravilhou estranhamente 
e os Alcaides que com elle estavam, vendo tanta firmeza em 
tão pouca edade, que não chegava a treze annos; e foi isto 
causa de se indignar mais contra os servos de Deus, e mandou 
que matassem este menino, em logar d'aquelle que havia 
desmaiado e no temor da morte lhe guardara o devido res- 
peito. Era este mancebo João Francês, como está dicto, a quem 
Deus, sem embargo d'isto, íinha concedido tão feliz sorte, como 
adiante se verá; e o menino escapou com vida, por engano 
do Alcaide Jaudar, indo já para padecer, como também dire- 
mos. 

Quando estes cavalleiros de Christo se tornaram a reco- 
lher, a dous e dous, por mandado d'el-rei, depois de sua 
verdadeira e admirável confissão, estavam muitos elches e 
mouros fora da porta esperando por elles ; e vendo como sem 
temor algum confessavam em altas vozes o nome de Jesus, 
carregavam sobre elles com muita ira, desprezo e bofeta- 
das, principalmente sobre o mais pequeno que dissemos, de 
cuja tenra edade tmham particular paixão, como de cousa que 
mais significava o poder Divino e com maior clareza os con- 
fundia ; mas os servos de Deus, bera inteirados nò prepo does- 
tas deshonras, soflfreram tudo com muita paciência e alegria, 
para mais confusão de seus algozes. 



D^AFRICA 251 



N'esta coHJuncção, posto que ao Xerife haviam designado 
aquelles que tornaiam a dizer que eram mouros, depois da 
primeira confissão de christâos, todavia os mandou vir diante 
de si; os quaes, vencidos do temor da morte, confessaram ser 
mouros, o que bastou somente para el-rei lhes perdoar e 
mandar que se fossem embora. 

Depois de todas estas cousas, vendo o Xerife que a fa- 
cilidade doestes mais aggravava a firmeza e constância dos 
outros, cheio de estranha confusão e ira disse aos Alcaides, 
que sem duvida alguma haviam ^e morrer todos aquelles, 
que tanto em seu desprezo e abominação de sua lei confes- 
saram publicamente a de Christo; e por mais que o Alcaide 
Abraem Sufiane procurasse mitigar-lhe a fúria, dizendo que 
eram meninos, e que na dilação do tempo estava muitas ve- 
zes o remédio doestas cousas, pelo que não devia sua ma- 
gestade chegar ao cabo d'ellas t^tuto no principio, não foi nada 
bastante a dissuadil-o de seu intento, porque, como Deus os 
tinha escolhido, parece que endurecia o coração d'el-rei, para 
maior confusão sua e gloria d^elles. 




CAPITULO VI 



Dp QUB PAS3ARAM ESTES SERVOS DE CHEIISTO, DEPOIS 

DE SABEREM COMO ESTAVAM CONOEHNADOS Á HORTE, 

E DE UMA GRANDE TENTAÇÃO QUE TIVERAM 



|'esta conjuncção, como se fossem acabando as 
■horas em que o demónio podia ter alguma espe- 
■ranfa, chegada quasi a manhã do fim glorioso 
5d'este3 cavalleiros de Christo, pretendeu comba- 
tel-os com novo pensamento de vingança, accommodianiia-se 
jl a ^u pi;esupposto; e assim, começaram a dizer nus aos ou- 
trija, que ppis estava tão certa sua morte, o melhor seria vin- 
gaiçoi-s^ torneiro de todos aquelles que (^ haviajn persegui- 
do, cumo eram o Alcaide Amar, que. 03 descobriu a el-^êl, e 
Xai)^p, ^ accusaflor, e todos og i^ais, emfim, que foram 
coi^trí^ elles. 

E t^o levados estiveram os seis d'e&te panaamçoto dia- 
bo)iQo, que llies faltou muito pouco para o porem em efeito, 
tendo j^ pafa isso facas e alfanges, escondidos. 

■ Ua^ Q Senhor da^ vinganças, o paQ das miseriqorâiaí, em 
c^ija. Divina mente estava seu remédio reservado, não consen- 
If^ que ca^i^m ao cabo da jornada, inspirando no seu bom . 
franci^gç. 139, íl4Bfi'^*^t^ "i° novo zelo e fervor Divino, para 
melhor os confupdir wm as palavras d'aqueUe que com mais 
i;;^ I^^r^ S$r, aAW^'> ^ persuacUdo, pois ua^ceu mouro: 
Q.q^, ^p, qjíç, sojul)^ d'^st^^dçsatíjfio, coíT^H a ellfis elhes 
disae: 



254 A JORNADA 



O' fieis amigos, amados companheiros, que desatino é 
este, que crue! inimigo entrou em vossos corações, que vos 
veio com armas olFensivas, quando só das da paciência deve- 
reis estar armados, pois no que toca a tomar satisfação aos 
mouros nenhutn proveito se pôde conseguir, mas antes com 
seu damno os \1ngamos de nós mesmos, dando claros indicios 
que não foi nossa morte amor Divino, senão furor humano, 
pois mostramos por obras mais elFeitos de ira e de paixão, 
que de paciência: e para com Deus seremos condemnados 
como usurpadores de seu Divino oificio, a quem só compete o 
certo juizo das cousas e a vingança d'ellas. Triste satisfação 
certo seria qualquer que se tomasse, pois esperando premio 
nós seriamos devedores, e tendo dado fielmente conta, de 
novo entrariamos n'ella. Pois vede qual seria qosso sacrifício, 
tirando a outrem as vidas, quando por Deus as damos ! Cesse 
por seu amor a infernal fúria, que não é este o tempo de 
buscar fama gloriosa na vida, senão gloria com Deus na 
morte. 

Estas e outras cousas disse Francisco da Esperança a 
seus companheiros, ás quaes se renderam logo todos, conhe- 
cendo as invenções do demónio, com grande arrependimen- 
to de sua errada tentação. 

Passadas estas cousas, logo que foi manhã mandou o 
Xerife chamar o Alcaide Jaudar, e lhe disse, que fosse onde 
estavam estes servos de Deus e os afogasse a todos. Partiu 
o Alcaide, e foi ter com elles á casa onde estavam, lex^an- 
do comsigo quatro moços elches, já grandes, e seis pequenos, 
dos quaes os que com maior prazer isto fizeram foram quatro, 
Bogatiar, Solimão, Piáli, e o duro Jairão, que foi o que em 
seu nome e no dos mais escreveu a carta a el-rei, ofierecendo- 
se para algozes — que tão visinhos são n'esta miserável vida 
os bens dos males e as sortes ledas das tristes. 

Chegaram emfim estes infemaes ministros com Jaudar, 
seu capitão, onde os servos de Deus estavam muito alegres, 



d' AFRICA 255 

animando-se uns aos outros, principalmente Francisco da Espe- 
rança, o qual com estranha ousadia estava persuadindo a um 
moço que se chamava xMancor, seu companheiro na primeira 
consulta de se publicarem por christãos, mas que, com receio 
de perder a vida, não seguira seu sancto propósito; e como 
fosse seu grande amigo, e em principio de sua conversão o 
havia doutrinado bem na fé, com grande mágoa lhe dizia, que 
não perdesse tão feliz hora com temor da morte, pois na ver- 
dade seu coração outra cousa sentia diíTerente .de suas pala- 
vras, e pois fora mestre da verdade, não fosse confessor da 
mentira. Mas como padecer pela confissão da fé seja particu- 
lar graça da misericórdia Divina, nenhuma cousa aproveitou 
com elle. 

Juntos emfim os infemaes ministros, o primeiro a quem 
chamaram ao sacriQcio foi a Francisco da Esperança, com 
aquella má vontade e zelo que do Xerife devia ser encommen- 
dado ; cuja morte e dos mais poremos d'aqui por diante em 
capitulos particulares. 



33 




CAPITULO VII 



VIDA E MORTE DE FRANCISCO DA ESPERANÇA 



toAscEu este venturoso menino, como formoso li- 
firio entre os espinhos, na cidade de Marrocos; seu 
Ipae se ctiamava Abdel Melique, castelhano de na- 
Sção, natural de Málaga, o qual se tomou mouro, 
como acontece a muitos, posto que os mais d'elles, ou qua- 
si todos, o sào fmgidamente; sua mãe era moura de nação: 
tiveram outro fllho mais velho, o qual chamaram Amet, e a 
este Ali : morto seu pae, flcou em poder de seu irmão, e não 
se podendo sustentar por sua pobreza, teve intelligencia 
para entrar em casa d'el-rei, sendo de edade de sete ou oito 
annos, o qual o mandou logo aprender o Alcorão em compa- 
nhia de alguns mopos elches, os mais d'elles feitos por for- 
ça, entre os quaes se avantajou. De maneira que lhe encom- 
mendou el-rei a doutrina de todos, porque sendo companhei- 
ros, e da mesma edade, os persuadisse mais facilmente; mas 
el-rei deu as armas contra si, porque o mestre saiu tão bom 
discípulo como logo veremos. 

Era Francisco da Esperança moço de boa inclinação, e 
por extremo affeiçoado a bons costumes; e como seus compa- 
nheiros (cigo numero, como havemos dicto, era muito grande) 
eram de mui varias nações, e somente os castelhanos e portu- 
guezes sào os que menos se esquecem da fé que no baptis- 



258 A JORNADA 



mo rocebí^rara, o f]o> IpO!1> co^tum''-. começou Aii a inclinar-se- 
Ihos mais. traclan^Io com olirs muito f.imiliarmento: e para o 
poder melhor fazor aprorif! -u a linçriia h\-panhola, que em 
brove tempo so;:;»-^ muito iem: o c:«::io ror e>ta razão, e por 
sua boa natureza, viesse a >'T parti :í.;inr amico qo> hespa- 
nhoes. e elles o juli-assem incapaz il-^ o> deaundar como 
cliristãos. se lhe rtes"')!»riram íiliruns ({'esia ditosa companhia. 
xMegrou-se elle muito C''»m i<ío, peilind-í-ihes com muita effi- 
cacia que lhe ensina-sem a fé de Nosso Senhor Jesus Chris- 
to. porque taml.)."*ni queria ser cbristãn, como elle? eram. 

Foi doutrinaílo d'estes mofos em tudo o que con\inha, 
e de cr<T é que. sendo i-t) o!»ra do r!spirito Sancto, elle acu- 
diria de man^-ira que nfio faltasse o ne«vssario. e lhe fosse a 
verdade df-rljirada. ainda qu** por tfio pequenas línguas e 
humildes pré^radores. 

Logo lhe ensinaram a doutrina christã, e todas as mais 
oraçnes. e fizeram que rezasse os sete Psalmos: e elle, para 
poder saber uielh >r, as mais dVstas cousas escrevia em Ará- 
bigo: e assim, entre amlns as iinguas ia aprendendo tudo, 
com tanto zelo e curiosidad\ que a todos causava mara\'ilha: 
do modo que, quanto mais ia sabendo de nossa sancta fé, 
mais aborrecia a seita de Maf )ma: e como era obrigado a ir 
todas as quartas-feiras ouvir o sermão dos mouros á Mesquita 
com os companheiros, mais ia por contemporisar que por ou- 
tra cousa, rindo-se grandemente em seu coração de quanto 
ouvia dizer acerca dos milagres de Mafoma. principalmente 
do primeiro que os mouros contam, o qual é, que trazen- 
do-lhes Mafoma a seita, viera a luz do céo e se lhe raettéra 
no corpo, e por cada manga de sua vestidura lhe sahia uma 
metade : e que os mouros, depois de morrerem, para ganha- 
rem o céo vão por um caminho em que gastam três mil 
annos caminhando sempre para baixo, e mil para cima, e outras 
cousas semelhantes, como os rios de mel e de manteiga, etc., 
etc; o que lhe fazia cada hora aborrecer mais tal seita, e 



d' AFRICA 259 



dedicar-se com grande amor e vontade ao conhecimento da 
lei de Deus, aprendendo todas as orapoes, de Nossa Senho- 
ra principalmente; e a primeira que soube foi a Avè-Maria. 

Resava todos os dias o rosário, fazia muitas esmolas se- 
cretas, e depois que começou a aprender a doutrina christâ 
tomou o nome de Francisco da Esperança, e se inscreveu as- 
sim na confraria de Nossa Senhora do Rosário, e em outras 
muitas. 

Dava esmolas á Misericórdia, em dinheiro, cera e azeite ; 
todas as suas palavras eram dirigidas a Deus, ao qual sempre 
pedia que o recebesse em seu grémio e em terra de christãos 
acabasse a vida: se via alguma cousa mal feita entre seus com- 
panheiros, logo lhes ia á mão, e não podia soíTrer descon- 
certos contra os bons costumes; e tão grande era o des3Jo que 
tinha de sua salvação, e de lhe não faltar nada para isso, que 
mandou perguntar ao padre Ignacio de Jesus se cahia em al- 
gum erro ou culpa morrendo sem ser baptisado, porque elle 
estava disposto a ser o primeiro de todos, ao que logo teve a 
resposta que convinha; e de tal maneira se aproveitou do co- 
nhecimento de Deus, que nunca n^elle houve desfallecimento 
em cousa alguma, antes cada vez em tudo aproveitava mais, 
até chegar ao ponto de sua ditosa hora. 

E assim como foi o primeiro que seguiu Simão de Frei- 
tas, também o foi na morte, que estando entre k)dos encom- 
mendando a Deus sua alma, e á Virgem Nossa Senhora, lhe de- 
ram recado que o chamava o Alcaide Jaudar; e como elle en- 
tendesse muito bem para que era, com grande alvoroço se co- 
meçou a despir, ficando apenas com a camisa e as ceroulas. 

Chegaram logo os algozes, e foi levado a uma casa bem 
triste, que para isso escolheram, mas mui alegre e sumptuosa; 
e logo que o cavalleiro de Christo entrou, rosando o Psalmo 
do Miserere mei Deus, ao ver o Alcaide Jaudar rodeado de 
seus infernaes ministros, lhe disse com muita humildade e 
paciência, mas com grande animo e constância : Eis-rae com- 




CAPITULO VIII 



VIDA E MORTE DE 3IMA0 DE FREITAS, DE SETÚBAL 



Simão de Freitas natural da villa de Setu- 
Ibal; chamava-se seu pae Gaspar de Freitas e sua 
^inãe Joanna Cariada; foi captivo no campo de Al- 
^^^^^^J/^acer, d'onde veio a poder de um mouro, Alcai- 
e de Teti!ã°, sendo de edade de dez ou doze annos, o qual 
mouro, posto que Simão fosse menino, como tinha bom enten- 
dimento e era muito fiel, lhe entregou todas as chaves do me- 
lhor de sua casa, e tudo lhe corria pela mão, sendo summa- 
mente querido de seu amo, por seus merecimentos. 

Estando pois d'esta maneira, tirou el-rei a Alcaidia a este 
mouro, o qual partiu para Marrocos, onde alguns fidalgos, 
que do menino tinham conhecimento, o quizeram resgatar; 
mas o mouro de nenhum modo o consentiu, peia aíTeição 
que lhe tinha. 

Vendo isto os fidalgos, deram ordem para que o menino 
fugisse de sua casa, e o recolheram na Judearia, onde esta- 
vam aposentados. 

D'esta maneira esteve alguns dias, emquanto se buscou 
um guia que o levasse a Masagão, e, feita a diligencia, o en- 
caminharam com outro companheiro; porém, como Deus o 
tivesse escolhido, permitliu que antes que sahissem de Mar- 
rocos fossem tomados, e como o companheiro era captivo d'el- 



264 A JORNADA 



rei, levaram também a Simão diante d'elle, o qual folgou 
muito de o ver, e mandou que o recolhessem com os mais 
mopos, e ao outro captivo que o levassem à Sejana; soube logo 
d'isto o amo de Simão ; porém, por mais que fez, dando a el- 
rei muito dinheiro, n ida aproveitou, que n'esta terra não ha 
maior justiça que a vontade d'el-rei. 

Era n'este l;empo Alcaide da guarda doestes moços um mou- 
ro, filho de elche, o qual se chamava Mahamu Zarcon, cruelis- 
simo IjTanno para os fazer mouros á força; e assim como 
era seu costumo usou com este menino, persuadindo-o pri- 
meiro com brandura; porém, vendo que nada aproveitava, 
começou a dar-lhe tormentos, que não podendo soífrer sua 
tenra edade, lhe fizeram dizer que era mouro; mas, sem em- 
bargo d'is3o, nunca se apartou de seu coração o conhecimen- 
to de Deus e de sua sancta fé catholica: resava ordinaria- 
mente, e jejuava a Quaresma e Advento, quatro têmporas e 
todos os mais dias da obrigação da egreja; não comia carne 
às sextas-feiras e sabbados, dava muitas esmolas, era confra- 
de de Xossa Senhora do Rosário, e por extremo affeiçoado 
a acudir ás necessidades do hospital, e n'isto gastava a paga 
que d'el-rei tinha quasi toda, buscando mil invenções para 
poder acudir a estas cousas ; também mandava dizer muitas 
missas: tinha muito claro juizo e muito boa inclinação; tra- 
ctava sempre com seus companheiros das cousas de Deus, e 
n*ellas era de todos havido por mestre, lendo-lhes os livros 
devotos, e dedarando-lhes o que con\inha á salvação da alma ; 
e n'estes exercícios gastava a \ida buscando tempo conve- 
niente para os exercitar ; e assim, quando se publicaram por 
christãos. elle foi o primeiro que pronunciou o nome de Jesus, 
e chamou os mais como está dicto. £ nunca nlais, até à hora 
de sua feliz morte, faltou em cousa alguma, antes esteve tíu) 
inteiro nas cousas da fé, que perguntando-se ao Alcaide Jau- 
dar se morrera elle christão, disse que mais que todos quantos 
nunca houvera. 



d'afriga 265 

Um dia antes de sua morte, sabendo já a certeza d'ella, 
mandou dar duas onpas de esmola à Misericórdia, que mais 
não devia ter, pois dava tudo, pelas quaes pediu lhe dissessem 
duas missas: uma ao anjo de sua guarda e outra a S. João 
Baptista, estando com tanto animo e inteireza, que não bas- 
tou o espanto e temor da morte a lhe turbar o sentido, nem 
fazer esquecer a immensa caridade que tinha. 

Mandou mais á Misericórdia uma touca da índia, por 
lhe não ficar cousa que não entregasse a Deus, e assim se 
pôde crer que na cabeça d'onde elle a tirou lhe punha o 
mesmo Senhor uma muito formosa coroa. 

Estando pois d'esta maneira muito conforme cora a von- 
tade Divina, foi logo, após Francisco da Esperança, chama- 
do á casa onde havia de padecer ; o qual, tanto que o viu mor- 
to d'aquella maneira, ficou algum tanto alterado, posto que 
se lhe enxergou muito pouco, porque parece que foi mais 
de piedade que de temor; e assim, disse, apontando com o 
dedo para o venturoso mancebo: A minha alma como a tua. 
E levantando os olhos para o céo fez oração', dizendo: 

Senhor Deus de Misericórdia, em vossas mãos encommen- 
do a rainha alma. 

Logo os algozes lhe lançaram a corda á garganta, a qual 
quebrou ao primeiro moviraento; porém, foi muito depressa 
outra vez atada, e tornando-lhe a dar garrote, quando esta- 
va quasi afogado acudiram a Francisco da Esperança, que 
ainda bolia, como atraz fica dicto, e depois de concluírem o 
que convinha tornaram a elle, e achando-o ainda vivo no 
meio dos tormentos, com os raesraos garrotes cora que o afo- 
garam, lhe deram mui grandes pancadas na cabeça, e mui- 
tos couces na barriga, como pessoas que mais queriam vin- 
gar as injurias do demónio, a quem serviam, que fazer o 
que el-rei somente lhes mandava; e vendo todavia que não 
acabava de expirar, tiraram-lhe uraa jaqueta pequena que 
tinha vestida, na qual acharam as mesmas orações de seu 



Í66 A JORNADA 



companheiro Francisco da Esperanfa, e logo expinm Unto 
que Ih*as tiraram. No que realmente pareoe que Deus qníz 
mostrar, que assim como e^te ditoso mancebo foi o primei- 
ro capitão do todo^, fosse também dos que mais tonnento» 
padeceram, pan sor maior sua gloria, provocando juntaoien- 
te. por tão mara\1lhv>sos meios, ao verdadeiro arrepeaãizzHnto. 
^^ cruéis executoras de tamanha maldade, coiridos e enver- 
gonhados de sua ivrfidia. Padeceu sendo de edade de «iíioi- 
\o a ileienove annos. 



i 




CAPITCLO IX 



\1DA E MORTE DE FERNÃO GIXBZ 



^tiNEz, OU, segundo se lem. Femaodo, porque as- 
gsim se mandou elle assentar na confraria de Nos- 
Isa Senhora do Ilosario, posto que, em casa d'el- 
f rei, Ginez fosse seu nome, (Jue também podia ser 
appellido, era gallego de napão, natural de Bayona ; foi feito 
mouro á forpa por mandado d'el-rei, a quem elle chamou 
Jaen. nome não muito adoptado entre os mouros, mas que 
elle usava por sua curiosidade, como se viu em outros moços 
d'esta mesma sorte. 

Era Fernão Ginez muito dilTerente em seu coração do 
que seu vestido significava, porque só tinha a verdadeira lei 
de Christo, posto que não se desse a conhecer com tanta li- 
berdade como seus companheiros, mais por natural incli- 
nafão, que por outra cousa ; porém, tanto que elles se pu- 
blicaram, e Simão de Freitas pronunciou primeiro o nome de 
Jesus Christo, logo elle, em altas vozes, disse que era chris- 
tão. N'esta resolução se mostrou tão firme, que nunca mais, 
até á hora de sua morte, mudou em cousa alguma, dizendo 
as palavras que havemos referido; quando o elche foi bus- 
car a espada para o matar, tão iQflammãdo estava nos desejos 
de padecer por Christo, que tanto que Simão de Freitas foi 
chamado, não esperou elle que o chamassem, antes se foi 



268 Â JORNADA 



offereoer, entrando na casa onde estavam os algozes, assim 
por esforpar a seu companheiro, sentindo também como ami- 
go o que esperava padecer, como por confundir seus inimi- 
gos no pouco temor que d'elles mostrava. 

E' certo que parece que Nosso Senhor andava buscando 
a estes seus servos nova invenpão de merecimentos, por não 
ficar algum, que em todo o extremo (posto que em differen- 
tes modos) não manifestasse seu poder. 

Mas, como dizia, tanto que Simão de Freitas deu a alma 
a Deus, a cujos tormentos Ginez esteve presente, sem faze- 
rem n'cllc outros eífeitos mais que um desejo entranhavei 
de se ver n'aquelle glorioso transito, lhe disseram os algo- 
zes que se preparasse; e um d'elles, que se chamava Ra- 
madão, sou grande amigo, com piedade de o ver d'aquella 
maneira (segundo o demónio lhe metlia em cabeça), lhe disse: 

Não sei, irmão Jaon, como hei-de ter mãos para te fazer 

mal. 

Ao que elle respondeu: 

O' meu bom amigo, bem parece que não sabes a sua- 
vidade dos tormentos de quem por Deus padece ; agora, ago- 
ra é tempo em que se hão-de mostrar os amigos leaes, pois 
na brevidade de tão ditosa offensa está todo o meu bem; 
deixa a cruel piedade e acaba-me depressa, que nunca me 
podias ser de maior proveito. 

Logo os algozes o assentaram no chão, e lhe deram 
garrote cora tanta diligencia como elle havia encommenda- 
do e assim em um momento deu a alma a Deus, tendo vinte 
annos de edade. 



--*^^iS*3^Sií53'*-^ 




CAPITDLO X 



VIDA E MORTE DE JOÃO FRANGES 



|,o,\o Francês, natural de Pariz, sendo ainda mui- 
fto menino o levou seu pae á cidade de Lisboa, 
\ onde se creou, e esteve até á Jornada d'el-rei 
£\i. Sebastião, na qual foi, e no campo de Alcácer 
o~"cãptivÕu um mouro grão senhor, juntamente com outro 
menino portuguez do termo da cidade de Lisboa; s sendo 
ambos n'este tempo de edade de dez ou doze annos, preten- 
deu seu amo vendel-os a um turco ; d'igto foi avisado o pa- 
dre frei Ignacio de Jesus, que como havemos dicto residia 
em Marrocos sobre o resgate geral dos captivos; mas não 
pôde fazer mais que entreter a venda, por não achar o di- 
nheiro que o mouro pedia; e não foi pequeno bem escapa- 
rem do turco, ainda que os comprou um mouro andaluz, 
d'onde pelo mau tractamento se acolheram a casa d'outro, a 
quem erradamente os christãos tinham por grande seu ami- 
go, cuidando que estivessem alli até os dar por algum pre- 
po accommodado: mas succedeu tudo ao revez, que o mouro 
os foi logo entregar a el-rei, o qual os mandou faíer mou- 
ros á força, com grandes tormentos, como mstumava o tyran- 
no Alcaide que d'elles tinha cuidado. 

N'este tempo, porém, o nosso João Francês, a que poze- 
ram o nome Acem, reclamou sempre, mostrando a pressão 
que Ibe faziam, e não apartando nunca de seu coração a fé 
de Christo. 



270 A JORNADA 



Era muito devoto e amigo de Deus, bem intencionado, 
buscando sempre as boas conversações e fugindo das más, 
e era mofo de sua natureza mui honesto. 

E assim, tanto que á forpa o fizeram dizer que era 
mouro, tomou logo amisartc rom Francisco da Esperança, a 
quem ensinou os sete I^salmos, c outras cousas, e foram sem- 
pre grandes amigos; fallavam ordinariamente nas cousas de 
Deus, cm cuja fé João esteve sempre muito firme dentro em 
seu coração, e ainda que quando o levaram diante d'el-rei 
desmaiou, não desfalleceu porém om sua firmeza, mas foi 
um natural pejo, porque, como dissemos, era tão brando e 
honesto de sua natureza, que de encolhido e humilde lhe 
nasceu o desmaio que teve; porém, tanto que se viu fora d'onde 
el-rei estava, mostrando que o acto fura mais de obediência 
e cortezia, que de temor, começou a dizer em altas vozes, com 
muita confiança e alegria: Viva a lei do Cliristo; e posto que 
el-rei mandou que não morresse, e que em seu logar matas- 
sem o menino que havemos dicto, foi Deus servido por seus 
occultos juízos que se trocassem as sortes, acontecendo does- 
ta maneira : 

O Alcaide Jaudar, que era o executor de todas estas cou- 
sas, usando a mais cruel piedade que se pôde imaginar, se foi 
a esse tenro menino, em tempo que elle estava muito forte 
e determinado a padecer, e o começou a pei-suadir a que fos- 
se mouro, com branduras, promessas e afi^agos, de maneira 
que o innocente, a quem a visinha morte e os mais tor- 
mentos não podéram dobrar de nenhum modo, disse quei 
seria o que sua mercê quizesse, e assim ficou rendido, que o 
demónio sabe muito bem as armas com que se vencem es da 
sua edade. 

E do que se pode haver maior mágoa, é que foi isto no 
tempo em que elle era já chamado para padecer, seguindo seu 
caminho, despindonse para isso e encommendando-se a Deus. 



d' AFRICA 27 1 

Confesso que chegando a este passo se me arrazaram 
os olhos de agua/ com a dor de tamanha perda, e saudade 
da salvação d'esta alma, considerando juntamente a grande 
força da miséria humana, pois até no collegio de Christo re- 
cebe o demónio seu tributo. 

Mas eu confio em Deus, cujo alto e escondido juizo não 
somente se não sabe mais, nem especular-se pôde, que se não 
esquecerá de taes principios, guardando em seu thesouro es- 
tes desejos, até que em mais perfeita edade este menino te- 
nha ainda coroa de maior merecimento; que pois nas leis 
humanas sempre o menor se absolve, como condemnarão 
as leis Divinas edade tão pequena? Mas antes de crór é que 
o mesmo Senhor, que sabe todas as vias, escolhesse para am- 
bos o melhor tempo, acudindo á necessidade presente, por- 
que, como el-rei tinha mandado que não morresse o nosso 
João de Pariz, e podia, sendo mancebo, correr maior perigo, 
ficando entre tantos vicios, quiz que fosse primeiro, guar- 
dando outro logar a este menino, a cuja innocencia pare- 
ce que cstà obrigada a misericórdia Divina, do que não ha 
hoje poucas esperanças, porque informando-me eu de al- 
guns captivos que agora vieram, e assistiram então a todas 
estas cousas (como adiante se dirá), soube que este mance- 
bo andava por capitão nas cáfilas do reino do Guago, nova 
conquista dos Xerifes, e tinha ainda estes sanctos desejos, 
lembrando-se muito bem de quanto bem perdera: e deter- 
minava vir a terra de christãos o melhor que lhe fosse pos- 
sível, ou acabar em alguma ditosa occasião. 

Mas tornando a nosso propósito, vendo o Alcaide Jau- 
dar como João de Pariz publicamente e sem algum temor vie- 
ra confessando a lei de Christo, sem embargo do desmaio 
que diante d'el-rei teve, lhe pareceu causa bastante para o 
matar, ainda que lhe fosse mandado o contrario, sem dar 
conta ao mesmo senhor de cousa alguma, e assim o pôz por 
obra, até que por fim o menino disse que faria o que elle qui- 

35 



272 A JORNADA 



zesse, considerando que com satisfazer ao numero de sete 
cumpria com sua obrigação. 

Chamaram logo o prompto cavalleiro de Christo, o qual 
veio muito alegremente rezando o Credo e dizendo a Con- 
fissão, e tanto que chegou onde os algozes estavam, muito 
humildemente lhes pediu perdão, dizendo: Meus irmãos^ se 
em alguma cousa vos tenho offendido, rogo-vos, por amor de 
Deus, que me perdoeis, e também vos peço, pelo pão e sal 
que havemos comido todos juntos, que me acabeis depressa; 
não vos estorve algum escândalo, se o tendes, de me ver 
christão, que minha breve pena não deixa de cumprir vos- 
sos desejos. 

Dietas estas breves palavras, lanparam-lhe logo os algo- 
zes a corda ao pescoço com tanta ira, que muito brevemen- 
te, convertida essa fúria em seu remédio, deu a alma a Deus, 
sendo de dezenove até vinte annos. 



CAPITULO XI 



VIDA. E KORTE DE DOMINGOS 




líi,nMiNGos, portuguez, natural de Gouvéa, na aer- 
^ra da Estrella, foi captívo eo campo de Alcácer, de 
Bedade de ireze ou quatorze annos; veio a poder 
Sd'el-rei, onde, com a forpa do3 tormentos que 
havemoãliicto, o fizeram dizer que era mouro, e lhe poze- 
ram o nome Buxer, 

Era mofo honesto, amigo de Deus, e muito devoto de 
Nossa Senhora do Rosário, e procurava sempre saber dos chris- 
tãos o que se dizia nos sermões que elle não podia ouvir, 
com verdadeiras saudades d'alniã. 

Mandava dizer muitas mfôsas, jejuava o Advento e Qua- 
resma e todas as mais obrigaf:òes da Sancta Madre Egreja: 
quarta-felra de Trevas, antes de sua feliz morte, foi com 
outro companheiro para entre umas taipas, onde se discipli- 
naram com milita devoção na lembrança do sancto dia. 

Presava-se tanto de christão, que de nenhum modo con- 
sentia que lhe chamassem mouro, nem zombando: gastava a 
vida em sanctos exercícios, e desde a hora em que se pubh- 
cou por chiistão cada vez se incendia mais no amor Divino; 
e assim nas perguntas que o Alcaide lhe fez, como quando 
foi diante d'el-rei, respondeu por si e por seu companheiro 
João de Pariz, com tanto valor e ousadia como atraz disse- 



;^ A lOaSADA 



\iúà^ UMStroa grude constância, e n'ella permane- 
Cu uc a th)m ite sua ditosa morte, da qual estava tão de- 
M.,^^^;^ 4U^ tiixbs as vezes qne os algozes cbania\'am outro. 
. ac ^ ia meUer primeiro na casa sem que fosse chamado, 
.Utí v(Uk> \t» diiiim que se tornasse para fora, e quando fo$- 
st^ tít^mpo o chamariam; elle saía logo, mostrando em 
>;tHiti^ e(K>tto$ s6 pura humildade, e quando o foram buscar 
vi^ tttttito alegre, fazendo o signal da Cruz e invocando o 
ijíioou^ de Jesus, pelo que o Alcaide Jaudar lhe deu tal pan- 
\mte na cabepa, com um pau que tinha na mão, que logo 
itUu em terra, e lhe rebentou o sangue pelo nariz e pe- 
ta bocca; mas elle não deixou por isto (que Deus permittiii 
para maior gloria sua) de seguir seu presupposto; antes oom 
devopao e efficada chamava pelo nome de Jesus, em coja 
virtude n'aqneile breve ensaio de tormentos lhe era tão sua- 
ve a pena, que estando tão próximo â morte lhe parecia 
muito dilatada a vida. Lançarani-lhe logo os algozes a corda 
ao pescoço, e apertando rijamente, como offendidos de tama- 
i^ constância e Uberdade, deu a ahna a Deus, sendo de eda- 
de de vinte annos. 




CAPITULO XII 



: MORTE DE AMARO 



^HARo, portugoez de mfão, natural de Colares, 
K junto da vUla de Cintra, cbamando-se seu pae Sil- 
Ivestre Convives, 6 soa giãe Franciãca Jwge, 
Éfôi captivo ao campo de Alcácer, seodo de edade 
de 'doze ou treze annos ; veio a poder d'el-rei, onde o fi- 
zeram mouro h for^, como aos mais, e lhe cbamaram Haini; 
mas elte, como em soa alma, onde sempre guardou a fé de 
Christo, não tivesse tal nome, não deiíou nunca de se eo- 
commendar a Deus e á Virgem Nossa Senhora, de quem era 
muito devoto ; dava muitas esmolds, mandava dizer missas, 
resava sempre, jejuava os tempos que a Saacta Madre Egre- 
ja obriga, fazendo emflm algumas obras que convém a um 
bom christão ; era mofo bem inclinado, amigo da virtude, 
fugia das màs conversações, e o mais do tempo gastava-o em 
sanctos exercícios. 

Quarla-feira de Trevas, antes de se publicarem por cbris- 
tàos, se foi disciplinar entre umas taipas, em lembrança de 
semelhante tempo e em castigo de suas culpas — que o gran- 
de desejo de sua salvação lhe fazia buscar toda a peniten- 
cia. 

Folgava muito de ler as vidas dos sanctos, e tinha 
particular intelligencia para saber dos sermões que no ter- 



276 A JORNADA 



cenal aos christãos se faziam ; e tão arreigada estava em sen 
corapão a fé catholica, que nenhum companheiro lhe levou 
vantagem, como bem se viu na resposta que deu ao Alcaide 
Jaudar, quando lhe perguntou se era christão, e muito mais 
livremente diante d'el-rei, sendo de tão boa consciência e 
tão temente a Deus, que depois que entendeu que havia de 
morrer mandou uma carta um dia antes ao padre frei Ignado, 
em a qual se confessava geral e particularmente de todos os 
seus peccados (ainda que não era confissão), e assim estava 
muito firme e consolado aguardando a morte : chegada pois 
a hora d'este ditoso mancebo, estando elle muito conforme 
com Deus e com estranha alegria dentro em sua alma, esfor- 
çando a seu companheiro António, foi chamado da parte dos 
algozes, a cujo recado obedeceu com mnito alvoroço; e enoom- 
mendando-se a Deus, entrou na casa do sancto sacriQcio, on- 
de á primeira vista dos cinco companheiros (em cuja formo- 
sura seu glorioso premio viu escripto) ficou tão incendido no 
amor Divino, e nos desejos de se ver em sua companhia, 
que estando tão perto disso, lhe parecia muito dilatado o 
tempo; mas os algozes, cujo animo estava bem longe does- 
tas considerações, lhe lançaram a corda ao pescoço, apertan- 
do tão rijamente, que em um momento deu a alma a Deus, 
e foi incluido no feliz numero de seus companheiros, sendo 
de edade de dezoito annos. 




CAPITULO XIII 



! MOHTE DE ANTÓNIO DA SILVA 



ç^ DERRADEIRO d'estes aeíe venturosos mofos {an- 
iítes o primeiro, se em tão grandes tormentos pó- 
M(!e haver algum que tenha este nome) foi Anto- 
da Silva, portuguez de nação, natural da vi!- 
la de Setúbal; chamava-se seu pae Manoel Esteves, e sua mãe 
Catharína Cardoza; foi captivo no mar, de treze para quatorze 
annos. 

No tempo em que o captivaram estava o Xerife em 
Fez, de caminho para Marrocos, jà posto no campo era ten- 
das, onde o menino lhe foi levado, e elle o mandou entre- 
gar ao Alcaide Mahamut Zarcon, que, como havemos dicto, 
tinha cuidado d'estes raofos, o qual com sua costumada mal- 
dade e tyrannia determinou de o fazer mouro, tractando-o 
primeiro com muita brandura e alfagos : mas como elle a to- 
das estas cousas respondesse que era christão e sempre o 
havia de ser, mandou-lhe dar mais de duzentas pancadas nas 
costas e nas plantas dos pés, com um pau, como se lá costu- 
ma, o que elle soffreu com animo varonil, dizendo que chris- 
tão havia de ser, ainda que o matassem mil vezes. 

Vendo o tyranno esta firmeza, inventou outro modo de 
tormento, dando em uma corda de Unho muitos oóz e muito 
juntos, e encostando o menino a um pau da tãnda, lhe fez atar 



,»*i*. .' por.âetraz do mesmo pau mandou que 

^ vtti um ■garrote; apertaram logo r^amente, e 

sw.- .'>ii(nr que pena esta seria, a qual elle soQVea 

„._» .\iiitauiia, dizendo que era cbristão e invorando 

, ^ .* Ji-sus n'ess8 pouco espapo que o tormento lhe 

';\iio kto não bastasse para obrigar o padecente a dí- 
. , ;ai- era mouro, maadou o tyranao que o atassem com 
u. aJtAt atrai, e foi levantado em um mastro alto, oode se 
.>uii.la a baodeira do seu Célá, na mesma corda que para isso 
^Tvta. e nos pés lhe Toram atadas entras, pelas quaes puxa- 
vam dous elches, Jaudar e Amar, quando o subiam acima, de 
mineira que o descoi^untavam todo; mas elle estava tão 
i'heio do Espirito do Senhor, que na força do maior tormen- 
td mais nvamente confessava a lei de Chrísto, diíeodo que 
bem lhe podiam fazer quanto quizessem, que não havia de 
ser mouro: e posto que estando d'esta maneira no mais alto 
do mastro lhe fizeram muitas percutas, ora com ameaças, 
ora com promessas, não bastou cousa alguma a Ibe mudar 
o propósito — que Deus levantou este sen pequeno e grande 
ca^-alleiro, como estandarte nctorioso de sua Saneia Fé Catho- 
lica, onde se punha a bandeira de Mafoma, para mais con- 
fusão e vitupério de seus servos, vendo tão claramente por 
um tenro menino manifesta a verdade, onde com tanta ce- 
gneira se publicava a mentira. 

Corrido emfim o t;p^nDO do pouco fructo qoe faziam 
suas ameaças, rogos e tormentos, determinou por ultima ten- 
tativa valer-sõ do fogo, e descendo o menino do mastro onde 
estava, mandou buscar borralho muito quente ; mas o men- 
sageiro, que sabia bem contentar seu amo, tronie em logar 
d'elle brazas muito accezas. 

Tomou logo o tyranno uma das maiiHOs, e pòl-a sobre 
um dedo do menino, o qual aoSreu tudo com muita paden- 
da; e como estava abrazado d'outro fogo, disse: S. Lourenço 



D^AFRICA 279 



foi posto em umas grelhas, e estando jà assado de uma par- 
te, dizia ao seu lyranno que o virasse da outra; assim po- 
deis vós fazer agora doesse dedo, pondo a braza d'outra ban- 
da, que doesta já está assado. 

Cumpriu logo o tyranno esta vontade tão accommoda- 
da á sua, e pôz-lhe a braza da outra parte ; porém, vendo quão 
pouco effeito isto fazia, corrido também de ver que não lhe 
aproveitava nem ainda o maior rigor dos elementos, tomou 
o brazeiro, e assim como estava o lanpou sobre a cabeça do. 
menino, coroando-o de brazas para o ser de estrellas : o que 
elle soffreu com tanto animo, confessando a fé catholica, que, 
vencido o tyranno totalmente, começou a imaginar alguma 
nova invenção de tormento, e mandou vir cannas tostadas, 
as quaes começou a aguçar com uma faca diante d^elle, para 
lh'as metter pelas unhas dos dedos, dizendo que bem via o 
tormento que se lhe apparelhava se não queria ser mouro: 
mas o forte menino sem algum temor dizia que christão era e 
christão havia de morrer, por mais penas que lhe dessem. 

Vendo o tyranno isto, metteu-lhe uma canna entre a car- 
ne da unha do dedo poUegar da mão esquerda, de que cor- 
reu grande quantidade de sangue, e depois veio a perder a 
unha ; mas nada aproveitou para deixar de confessar o nome 
de Jesus em altas vozes; o que vendo o tyranno, determmou 
de o cortar e vestir em trajos de mouro, fazendo á força 
os actos exteriores, já qu6 não podéra acabar o mais. 

Foram-se logo os companheiros a este menino, dizendo 
que não quizesse pa^ar tantos tormentos, e que muitos mais 
lhe haviam de dar, pelo que dissesse que era mouro, como 
elles fizeram, e que dentro em seu coração fosse christão, 
como elles também eram, porque isso bastava ; mas elle des- 
presava estes conselhos, e não solfria dizerem-lhe que fosse 
mouro; porém, depoia de muito importunado dos companhei- 
ros, disse que o era, mais com piedade de seus queixumes e 
rogos que temeroso de novos tormentos, cuidando como inno- 

36 



280 A JORNADA 

cento menino que não deixavn de ser christão emquanto ríão 
consentia nas obras de mouro, e assim se viu no arrependi- 
mento d'este erro claramente manifesta sua tenção, porque 
tanto que o barbeiro veio, e elle entendeu que o negocio 
passava de palavras, disse publicamente sem algum temor, 
quando lhe vestiam os trajos de mouro e o circumcidavam, 
que christão era, e que todas aquellas cousas lhe ftiziam á 
força: e não somente o disse n'este estado, mas depois sem- 
pre em toda a parte onde se achava em publico, e em se- 
creto a christãos e a mouros, mostrando por obras o que di- 
zia nas palavras, e Jazendo tudo áquillo que convinha a bom 
christão; puzeram-lhe emflm os mouros o nome de Jafar, sem 
embargo d'isto, como lhes bem pareceu, mas elle não acceitou 
uma cousa nem outra, e assim ficou triumphando de seus ini- 
migos, se pude todavia desculpar seu erro o seu engano, co- 
mo parece razão em tão pequena edade, posto que bem bas- 
tavam tantas maravilhas como haviam visto em um menino 
innocente, a quem venceram rogos e não tormentos, para 
entenderem a grande força do amor Divino, que milagrosa- 
mente em qualquer cousa sua se mostrava; mas a cegueira 
d 'alma, a que chamaremos ódio, não lhes dava logar a cousa 
alguma. 

Era este menino de muito boa condição, amigo da egre- 
ja e bem inclinado ; dava muitas esmolas, folgava de lhe da- 
rem bons conselhos, não acompanhava senão com os bons, de 
continuo se encommendava a Deus e á Virgem Nossa Senho- 
ra, de quem era muito devoto, e assfin bem mostrou que 
se trazia os trajos de mouro era christão. E quando Simão de 
Freitas pronunciou o nome de Jesus, não foi elle dos derra- 
deiros, mostrando-se mui firme e constante na resposta que 
deu ao Alcaide e a el-rei, como havemos dicto. 

E assim nisto, como em todas as mais obras, havia per- 
severado, desde que sendo menino recebeu os tormentos 
que dissemos até este tempo de sua feliz e desejada hora, a 



d'afhica 281 



qual chegada, vendo elle chamar primeiro todos os seus com- 
panheiros, estava cheio de tão sancta inveja e divinas sau- 
dades de padecer por Christo, ardendo em vivos desejos, 
que não sabia já quando seria chamado a tanto bera. E assim 
como foi mais atormentado que todos, assim quiz Deus que 
fosse o ultimo, para que também no tormento doesta dilação que 
sua alma sentia lhe fizesse vantagem na morte ; e não somen- 
te n'ella, mas no modo, permittiu também que fosse avanta- 
jado, sendo tão differente da de seus companheiros, como se 
verá. 

Tanto que Amaro acabou de dar a alma a Deus, foi An- 
tónio chamado; o qual, entrando na casa mui alegremente, 
como quem chegava a cousa mui desejada, invocando o nome 
de Jesus, e fazendo o signal da Cruz, depois de lhe lança- 
rem o baraço ao pescoço, foi levantado nos hombros de dous 
algozes, que de si fizeram força com um pau atravessado ; e 
como eram grandes, e elle muito pequeno de corpo, puxan- 
do os outros para baixo, acabou em um momento a ventu- 
rosa vida, que tantos martyrios padecera, sendo de edade de 
dezesete até dezoito annos, a quatro de julho de 1588. 




CAPITULO XIV 



COMO OS SERVOS DB DEUS FORilM ENTERRADOS 



!! oNCLumo este admirável successo, foi o Alcaide 
^Jaudar, a quem a execução tocava, dar conta 
fi a el-rei do que era feito, o qual mandou que 
^ ogo que fosse noute os lançassem em um poço, 
que está em uma horta sua, junto aos paços reaes, e não ser- 
ve d'outra cousa maia que de sepultura d'aqueUe3 que o Xe- 
rife manda matar em sua casa, ou por nio dar escândalo, 
vendo-se a sem razão publicamente, ou por não haver alvo- 
roço quando a morte f<»se com rarào; e aasim, acontece is 
vezes entrarem alguns elches ou mouros no paço, e nunca 
maia apparecerem, o que realmente é uma das maiores mi- 
sérias da vida, pois no logar onde se ha-de buscar o remodio, 
a honra e consolação, esta tão certo o perigo, qne ninguém 
pôde entrar seguro de poder toraar a sãfr. 

Chegada a noute, o Alcaide, com alguns christãt» seus, 
e outros que no paço tinham entrada, mandou levar os ser- 
vos de Qeus ao poço, onde fotam lançaijoe eom moita terra 
em cima, exceptuando Francisco da Esperai^ que foi o pri- 
meiro qne da casa tiraram, como também na morte o havia 
Biâo, em ci;jo rosto se mostrava tuna dgetisada formosura, e 
a razão de o não levarem com os outros foi particular von- 
tade do Alcaide Jaudar, cajá tenpão parece que era nâo que- 
rer, sendo mouro, fosse na companhia dos dtnstãos; porém de- ' 



iHi A JOBXADA 



poU, t/^mendo que oâo UiuvaA^e el-rei bem isto mandos qie 
o (\fíí¥tuUtmsmtm d'0Dd« estava, e foi levado ao poço, à'Qs^ 
tomando a tirar a terra a seus compaobeiros, o deixaram «a 
sua dít//sa ^^DOipaobia, permittindo assim Deus, porque seDâ<3 
na vida tao conformes o fossem também na morte, e na âE^ 
pultura, 

D^^pols d1str), d'abi a algruns tempos teve o Embaixador 
\), Francisco da Costa intelligenda, e por um captivo hortelão 
que tinha livre entrada na horta, onde o poço estava, man« 
dou a pouco e pouco trazer estes ossos escondidamente, e o 
captivo o fez assim, flngindo que lhe trazia hortaliça, e em 
sua casa estiveram com todo o segredo e respeito que lhe 
era devido, e depois de morto D. Francisco, e ó Padre frei 
Ignardo de Jesus, e frei António da Conceição (cuja informa- 
ção seguimos), havendo-se licença do Xerife para se trazerem 
Hous corpos a este reino, mandou el-rei Phílippe nosso se- 
nhor, que está em gloria, que viessem em seu logar os d'es- 
tos sote cavalleíros de Chrísto, publicando-se que aquella os-* 
sada ora do Embaixador, e dos mais religiosos, que d'outra 
maneira não fura possivei ; mas Deus ordenou tudo tão sua- 
vomentíi quo os ossos vieram à cidade de Lisboa, a casa de 
I). Joarina Henriques, mulher do mesmo Embaixador, d'onde 
sua magegtarte os mandou depositar. em S. Francisco, onde 
hoje estão, encarregando o doutor Lourenço Mourão, desem- 
bargador do paço, de inquirir a verdade d'este importante 
succcflso, para eíreito d^ S. Santidade os canonizar; e assim 
o pormittirà Nosso Senhor, que por tão estranhos meios os 
trouxe a este reino, dando seu justo premio em tão ditosa 
companhia no céo a D. Francisco, por estas e outras sanctas 
obras, que se não sabem pagar na terra, e aos mais reli- 
giosos e pessoas juntamente, qué pela salvação doestes felizes 
moços se olferecoram ã morte tantas vezes, e por sua liberda- 
de depois ainda de mortos ficaram seus corpos em captiveiro 
na cidade de Marrocos. 



d'africa 285 



CAPITULO XV 




COMO PADECEU DOMINGOS DE TORRES, E DO QUE 
ACONTECEU A XABAO, O ELGHE ACCUSADOR 

iGOu-ME tanto na memoria o desejo de saber par- 
ticularmente as cousas doestes felizes mancebos, a 
►{ quem me confesso estranhamente affeiçoado, que 
^^.me não contentei com a relação que o Padre 
frei António da Conceipão, como testemunha de vista, man- 
dou ao Cardeal Alberto, Governador doestes reinos, a quem 
com tanta razão se pôde dar inteiro credito, mas procurei fal- 
lar com alguns captivos, como foram Jeronymo da Azambuja, e 
Francisco Soares que se achou presente, e foi um dos captivos 
que com António Mendes foram pr^ísos, e pela boa inclinação 
do Alcaide Sufiane, depois de padecerem muitas misérias e 
trabalhos, foram soltos, e escaparam com vida, como está di- 
cto, do qual soube algumas cousas em particular, que me pa- 
receu bem não passarem em silencio, principalmente a morte 
de Domingos de Torres, natural de Mazagão, que foi também 
um dos captivos presos, e não deve ter menos logar que os 
mais perdendo a vida como logo diremos, posto que não foi 
em sua venturosa conjuncção ; e porque melhor se entenda es- 
te successo contaremos primeiro o Divino juizo que veio so- 
bre o traidor Xabão. 

Foi tão admirável entre toda a gente este caso que con- 
tamos, que os mouros se mostraram muito confusos, os el- 



286 A JORNADA 



ches com k-mor arrependidos, contentes e edificados os 
christrios, do maneira que, posto que em diíF Tentes subjei- 
tos, em todos era eí,^ual a maravilha, d'onde nasceu tamanho 
ódio contra o accusador Xabão, que os mouros o aborreciam 
pelos termos que usou n'este successo (que emfim, em todo 
o estado, quando se ama a traif ao se al)orrece o traidor), e dos 
elches e chiistãos era tão perseguido, que não sentindo ou- 
tro n^nedio se acabou de entregar de todo aos demónios, à 
ímitafio de Judas, não se enforcando, porém; mas corrido e 
desprezado das gentes, querendo com novas culpas enco- 
brir seus erros, se deu totalmente á perseguição dos christãos 
e oração de ^íafamede, e como fosse n'isto muito prolixo, por 
mostr.ir aos mouros que Cí)mo zeloso da honra de seu Mafo- 
ma fizera traição a seus companheiros, c não como trwdor, 
estando um dia fazendo a Célá em cima de uma esteira, como 
se abaixasse muitas vezes beijando o chão, por humildade, 
como entre elles se usa, um junco d*ella se lhe mettea por 
um olho, o qual logo alli ficou em testimunho de sua mal- 
dade e vitupério de semelhante devoção, sendo a esteira 
muito lisa e muito alva, como entre os mouros para seme- 
lhante acto de costuma, sem se poder esperar, nem imagi- 
nar tal cousa, do qual successo houve entre todos nova mara- 
vilha, e foi sempre depois este infame accusador apontado 
com o dedo, em memoria de seus delictos , permittindo Deus 
que ainda na vida se conhecesse o galardão de sua alma. 

Vendo pois Domingos de Torres estas e outras cousas, 
que cada hora o levavam mais a seus sanctos propósitos, co- 
mo fosse grande amigo de um mancebo elche da casa d'el- 
rei, e desejasse muito a salvação de sua alma, esquecido 
por este respeito de todo o perigo de sua vida, lhe escre- 
veu uma carta, em a qual, depois de lhe dar como fiel e ver- 
dadeiro amigo saudáveis conselhos, lhe trazia á memoria as 
sanetas maravilhas dos sete companheiros, e o admirável cas- 
tigo de Xabão, e outras muitas cousas. 



o amigo fingido, porém, o maiiifesto traidor, usando 
mal d'este sancto zelo levou a carta a el-rei para mais acre- 
ditar sua fidelidade; o qual, veado tantanho alrevimealo em 
um chriatão a quem já perdoara, e como não somente tra- 
ctava da reducpão d'este mancebo, mas desprezando seus sa- 
criflcios allribuia a castigo Divino a perda do olho de Xabão, 
magoado também das mais lembranças, que na carta se con- 
tinham, mandou que o enterrassem vivo. 

Estava n'este tempo este mancebo esperando o fructo 
e galardão de seua bons conselhos, sem por nenhum caso 
imaginar tal ingratidão e falsidade, quando subitamente foi 
levado a uma prisão, onde logo soube o que havia aconteci- 
do, e como el-rei mandava goe o matassem. 

Bem se pôde julgar qual ficaria um animo singelo, cheio 
de tão estranhos sobresaitos; porém elle com nenhuma cou- 
sa desmaiou, antes ficou tão firme em seu primeiro propósi- 
to, que aconselhando-lbe aiguns captivos que fugisse, e pro- 
mettendo-Uie ajuda para isto, a nenhuma cousa deferiu, e s6- 
meate disse, como quem estava entregue á sua sancta deter- 
miaaf ão : 

O' enganado amigo, que próspera victoria fâra a mmha, 
se tu não grangeàras eterna morte na perda d'esta vida, pois 
quando por teu respeito, amor e piedade, me fizeram tão 
solicito, já desde então me dava por companheiro em teus 
ditosos males, com desejo entrauhavel que minha ousadia fi- 
zesse ser egual nos perigos: mas tu não tão somente des- 
prezaste meus fieis conselhos, mas como ingrato e desleal 
quizeste valer -te de minha singeleza e lealdade; porém eu 
te perdoo, que mal sabes quanto em meu proveito acertaste 
errando; e Deus permitta, por sua misericórdia, que seja 
minba morte também preço da salvafão de tua abna, abrin- 
do-te os olhos d'ella, como eu jâ fui auctoridadc e credito 
de tua estragada vida. 

Chegou-se a noite, e foi Domingos de Torres levado á 



288 A JORNADA 



horta d'el-rei, a que chamam de Guerreiro^ onde ã sua vista 
começaram os mouros a abrir uma cova, sem lhe daxem razão 
ou dizerem cousa alguma. Ó admirável espectáculo! ó Torre 
inexpugnável, não te deixes vencer, que se estes mouros, 
para te sepultarem, estão abrindo a terra, também os anjos, 
para te receberem, estão abrindo o céo. 

Estava também mudo n'esta conjuncção este cavalleiro 
de Ghristo, que a brevidade dos conceitos da alma, em quem 
a Deus se entrega, não dá logar à lingoa. 

Entretanto os mouros, depois de terem feito a cova para 
o sepultarem, mandaregm buscar um machado, com o qu^ lhe 
cortaram ambas as pernas, para evitar o trabalho de lhe tira* 
rem duas bragas, de que se queriam aproveitar. E assim em 
taes extremos, morto das cruéis dures, e vivo só para sentil-as, 
foi de seus inimigos sepultado, soffrendo com altíssima pa« 
ciência todas estas cousas, que até para se imaginarem pare- 
cem insoffriveis. Assim acabou este mancebo, e foi o derradei- 
ro que, como vencedor, ficou no campo dos sanctos cavalleiros 
e felizes portuguezes. 

Além d'esta ditosa companhia (dulcíssimo e suave fructo 
de raiz tão amarga) houve n'estes tempos em Barbaria muitas 
pessoas, de que não trdctamos por não serem da jornada, que 
padeceram cruéis mortes, confessando a lei de GhristOy como 
foi o Alcaide Amet Navajrro, elche, ou por melhor dizer mouro 
ângido, a quem chamavam Pedro em Madrid, d'onde era na- 
tural, o qual foi crucificado na parede dos muros d' Alcáçova 
de Marrocos, onde pregou altissimamente em louvor de Deu3 
e vitupério e confusão de Mafoma, até que lhe metteram ma 
grande cravo pela testa e lhe cortaram a lingoa, 

E Jeronymo de Ávila, captiva d'el-rei, mancebo nobre 
hespanhol, natural de Guelva, ao qual deram mil e tantos 
murros na bocca do estômago, de que logo morreu, com 
estranha constância e padencia. 

Além d'isto, também houve muitos mancebos, que^ posto 



a 



d'apriga 289 

que não deixal^m de offereCer as vidas com inviolável pré- 
supposto na confissão da fé catholica, como foi Álvaro Ve- 
les, natural de Arronches, e outros, padeceram tantos tormen- 
tos, que lhe não fizeram os mais vantagem senão na boa 
ventura de não ficarem vivos, o que acontece ordinariamen- 
te depois que Muley Moluco trouxe da Turquia aquelle inhu- 
mano costume, de fazerem por força os christãos mouros com 
desusados martyrios, principalmente os meninos; mas seja 
Deus louvado, que tudo isto consente por seus occultos juizos: 
do que só podemos inferir, que sendo-nos tão estreitos os ca- 
minhos da salvação, por nossas culpas e misérias, permitte 
Eile estas cousas, abrindo com tamanha tyrannia uma continua 
e larga estrada para o céo. 

Por tudo que introduziu Muley Moluco onde nunca che- 
gou a crueldade dos inimigos baíbaros, nossos visinhos, se 
pôde bem julgar o que se devia temer de seu império, alli 
na pouca segurança dos logares de Africa, entre os quàes 
está certo a chave da christandade, como em toda a costa 
de Hespanha, no mar Mediterrâneo e Oceano, com muitas ga- 
lés e gente exercitada n'ellas, e o porto de Larache, tão vi- 
sinho e capaz de tudo. 

Não fbi, por certo, pequena mercê de Deus tiiíu: do 
mundo tamanho inimigo, posto que a troco de tanta des- 
ventura nossa, que realmente ninguém na christandade com 
elle poderá estar seguro, principalmente quando agora ve- 
mos, que sendo um rei tamanho e tão catholico, com tan- 
to desejo de nos defender^ vieram os mouros em uma fusta 
(hontem dnco de outubro de 606) tomar uma caravela ã 
Gascaes, onde nunca chegaram nem com o pensamento. 

De maneira que, bem considerados os damnos e inconve- 
nientes, que com a vinda de Muley Moluco e sna visinhança 
se offereciam, não era mal acertado prevenir el-rei D. Sebas- 
tião um tamanho inimigo, com metter de posse o Xerife de 
seus reinos, e tomar o porto de Larache, se o modo acompa- 



290 À JORNADA 



nhára a tenção, a brevidade o desejo, e a razão em seu con- 
selho tivera mais logar. 

Mas emiim, são meios que Deus toma para dispor das 
cousas conforme a sua Divina vontade, particularmente como 
se viu bem n'esta, que não é pequena consolação a tantas 
misérias, pois tudo da mão de Deus é sempre bom, ainda 
que seja como castigo. 

E não foi pequena parte esta consideração, a nos fazer 
chegar ao íim d'este processo, passando facilmente por todo 
o rigor de quaesquer opiniões e zelos differentes, que sus- 
tentam não ser isto jornada digna de se trazer à memoria, 
sendo de tanta mágoa e desventura : o que facibnente con- 
fessariamos se o mundo lhe tivera posto eterno silencio; mas 
quando alguns estrangeiros mal informados, e não sei se 
mal zelosos, a manifestam jà de uma em outra lingoa, pare- 
ce certo outro novo castigo não haver quem saia pela ver- 
dade, approvando com tadto consentimento e notável des- 
cuido, maldades tão notórias : pelo que, quando nosso traba- 
lho não for de louvor digno, ao menos esperamos que o seja 
de perdão, offerecendo-nos com o favor Divino (se houver 
satisfação de nossa boa vontade) a passar mais adiante na 
Historia de Jeronymo Franqui, acerca da união d'este reboto 
á coroa de Gastella, com a fiel diligencia que convém a se 
aclarar a verdade em muitas cousas suas, para que se saiba 
em todo o tempo, com testemunho dos que hoje são vivos, 
o que aconteceu pontualmente, dando, o melhor que nos fôr 
possivel, inteira noticia d'algumas particularidades, com a 
devida satisfação ao christianismo, zelo e procedimento de 
el-rei D. Philippe, nosso senhor, que está em gloria, e in- 
teira justificação da fidelidade portugueza, e de alguns par- 
ticulares injustamente condemnados: que grande mal seria 
deixar sem a justa e devida contradição um estrangeiro escan- 
daloso, incerto e temerário, julgando as cousas a seu alve- 



d'âfrigâ 



291 



driOy com animo tão perverso, como confessa até o mesmo 
frei António, de quem atraz falíamos. 

E se por ventara meu atrevimento parecer grande (co- 
mo se pôde cuidar), entenda-se, todavia, que menos mal será 
sofflrer-se minha insuíBciencia, pois a verdade não ha mister 
ornamento, que padecerem-se tantos damnos, causados pelo 
nosso descuido e silencio, por falta de quem diga a mesma 
verdade. 





Pag. 
Prologo « V 



• DÂ SnCCESSAO. DO XERIFE MULEY ttAHOMED 

I^^Principio qu6 os Xerifes tiveram, e algu- 
mas cousas que passaram entre sua mages- 
tade e el-rei D. Sebastião 13 

ir--*<DB» n^zdes que teve el-m D. Sdi)astiao para 

passar a Barbaria 19 

III-t-*CfCHiio partiu a armada, e de alguma» cousas 

que passaram em Arzila 29 

IV-— D'algumas cousas- que passaram em Artila e 

ccnmo maicliou a campo 43 

Vr~De algumas cousas que passaram antes âa ba- 
talha 51 

VI— Da batalhão dos successosd'èlta . . . • 61 
Vn— Do fim que teve a batalha 77 



294 INDIGB 



RELAÇÃO DO CAPTIVEIRO NA JORNADA D'AFRICA 

I — Rendida a batalha, descem os mouros aos des- 
pojos 87 

II — Acdamam os momros por rei Muley Amet, e 
enterram os seus que na batalha morre- 
ram 9j[ 

III — Manda o Xerife buscar o corpo d'el-rei D. Se- 
bastião « . 99 

IV:— Bnterra-se.o corpo d'el-rei . D. . Sebastião ; vae 
Belchior do Amaral a Arzila e Tanger com li- 
cença do Xerife 103 

V — Parle o Xerife de junto de Alcácer a Fez; res- 
gata-se o prior D. António, filho do infante 

D. Luiz - . . 107 

VI — Do que passavam os captivos em Fez; des- 

creve-se a cidade . . . . . .... 111 

VII — Manda o Xerife aos fidalgos que se ponham 

em preço 117 

VIII — Gonclue-se o corte dos fidalgos, e os cadzes 

de Fez o querem estorvar com el-rei . . 121 
IX — Entram os Padres da Santíssima Trindade a &• 
. . zer o. resgate; parte o Xerife para Marrocos; 

partem os eleitos 129 

X— Como se livravam alguns captivos, e de algu- 
mas fugidas 137 

XIt— Da fugida que. commetteu^ Virgínia e do suc- 

. cesso. d'ella . 151 

XII— Como devem fugur os captivos 161 

XIII— Como pregava o Padre Frei Vicente da Fonseca 



índice 295 



e como os judeus ouviam seus sermões ; do 
modo como os elches vivem e são d'elles 
tractados os christãos 173 

XIV — Amotinam-se os Azuagos, parte Reduão para 
Marrocos e no caminho os fidalgos o per- 
suadem que vá a Masagão 18 1 

XV — Descreve-se a cidade de Marrocos, e tracta-se 

do caminho de Fez a ella 191 

XVI — Como foram os Embaixadores recebidos do 
Xerife e como eram tractados os fidalgos 

captivos 201 

XVII — Da fugida que fizeram de Marrocos D. Joíio de 
Vasconcellos e D. Luiz Coutinho; da morte 
de Reduão e como partiu a caíila dos ca- 
ptivos 215 

XVIII — Conclue-se o negocio dos fidalgos e dos mais 
de xMarrocos; partem para Ceuta; despede - 
se o duque do Xerife, que segue o mesmo 
caminho 221 



1 — Dos martyrios que houve em captiveiro na Jor- 
nada d'Africa . 231 

II — Do modo em que vivem os captivos em casa 
do Xerife, que elle manda fazer mouros por 
força, e como procediam sete moços, que 

mandou matar 233 

III — Do meio que o Senhor tomou para estes seus 

servos se publicarem por christãos . . . 237 
IV— Dá conta o Alcaide Amar do que lhe havia 

acontecido . . - 241 

V— Como os servos de Deus foram levados diante 

do Xerife 245 



296 IXDICB 

VI — Do que passaram estes servos de Christo, de- 
pois de saberem como estavam conderana- 
dos ú morto, o de uma grande tentação que 

tiveram 253 

VII — Vida e morte de Frantísco da Esperança . . 257 
V 1 1 1 — Vida e morte de Simão de Freitas, de Setú- 
bal 263 

IX — Vida e morte de Fernão Ginez 267 

X — Vida e morte de João Francês 269 

■ 

XI — Vida e morte de Oominíros 273 

XII — Vida e morte de Amaro 275 

XIII — Vida e morte de António da Silva .... 277 

XIV — i.omo os servos de IVus foram enterrados . 2S3 
XV — Como padeceu Domingos de Torres, e do que 

ai\nueceu a Xabâo, o eldie accusador . . 235 



X DO INT^ICS 



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