Skip to main content

Full text of "A mocidade de D. João V, romance"

See other formats


This  is  a  digital  copy  of  a  book  that  was  preserved  for  generations  on  library  shelves  before  it  was  carefully  scanned  by  Google  as  part  of  a  project 
to  make  the  world's  books  discoverable  online. 

It  has  survived  long  enough  for  the  copyright  to  expire  and  the  book  to  enter  the  public  domain.  A  public  domain  book  is  one  that  was  never  subject 
to  copyright  or  whose  legal  copyright  term  has  expired.  Whether  a  book  is  in  the  public  domain  may  vary  country  to  country.  Public  domain  books 
are  our  gateways  to  the  past,  representing  a  wealth  of  history,  culture  and  knowledge  thafs  often  difficult  to  discover. 

Marks,  notations  and  other  marginalia  present  in  the  original  volume  will  appear  in  this  file  -  a  reminder  of  this  book's  long  journey  from  the 
publisher  to  a  library  and  finally  to  you. 

Usage  guidelines 

Google  is  proud  to  partner  with  libraries  to  digitize  public  domain  materiais  and  make  them  widely  accessible.  Public  domain  books  belong  to  the 
public  and  we  are  merely  their  custodians.  Nevertheless,  this  work  is  expensive,  so  in  order  to  keep  providing  this  resource,  we  have  taken  steps  to 
prevent  abuse  by  commercial  parties,  including  placing  technical  restrictions  on  automated  querying. 

We  also  ask  that  you: 

+  Make  non- commercial  use  of  the  files  We  designed  Google  Book  Search  for  use  by  individuais,  and  we  request  that  you  use  these  files  for 
personal,  non-commercial  purposes. 

+  Refrainfrom  automated  querying  Do  not  send  automated  queries  of  any  sort  to  Google's  system:  If  you  are  conducting  research  on  machine 
translation,  optical  character  recognition  or  other  áreas  where  access  to  a  large  amount  of  text  is  helpful,  please  contact  us.  We  encourage  the 
use  of  public  domain  materiais  for  these  purposes  and  may  be  able  to  help. 

+  Maintain  attribution  The  Google  "watermark"  you  see  on  each  file  is  essential  for  informing  people  about  this  project  and  helping  them  find 
additional  materiais  through  Google  Book  Search.  Please  do  not  remove  it. 

+  Keep  it  legal  Whatever  your  use,  remember  that  you  are  responsible  for  ensuring  that  what  you  are  doing  is  legal.  Do  not  assume  that  just 
because  we  believe  a  book  is  in  the  public  domain  for  users  in  the  United  States,  that  the  work  is  also  in  the  public  domain  for  users  in  other 
countries.  Whether  a  book  is  still  in  copyright  varies  from  country  to  country,  and  we  can't  offer  guidance  on  whether  any  specific  use  of 
any  specific  book  is  allowed.  Please  do  not  assume  that  a  book's  appearance  in  Google  Book  Search  means  it  can  be  used  in  any  manner 
any  where  in  the  world.  Copyright  infringement  liability  can  be  quite  severe. 

About  Google  Book  Search 

Google's  mission  is  to  organize  the  world's  Information  and  to  make  it  universally  accessible  and  useful.  Google  Book  Search  helps  readers 
discover  the  world's  books  while  helping  authors  and  publishers  reach  new  audiences.  You  can  search  through  the  full  text  of  this  book  on  the  web 

at  http  :  //books  .  google  .  com/| 


Digitized  by  VjOOQIC 


dbyGoOgi- 


Digitized  by  VjOOQIC 


Digitized  by  VjOOQIC 


MOCIDADE  DE  D.  MO  V, 


POK 


X..  A.  REBELLO  DA  SILVA. 


TOMO  I. 


LISBOA 

TTMflBAiPHIA  DA  BBTISTA  DNlVlUSAt 
'  Rua  doi  Fanqueiros,  8S 

18S1 

f\j  Digitized  by  CjOOg  IC 


lOAN  STAOC 


Digitized  by  VjOOQIC 


f  ^Sl 


DUAS  PALAmS  BR  lIPUaçÂO. 


EscRETBNDO  esta  noTdla,  o  auetor  protesta 
que  Bio  quíz  fazer  senão  um  romance. 

Serft  pouco»  nSo  duyida ,  mas  contenta-se.  Se 
a  leitura  entreter  e  as  scenas  não  desagradaram^ 
fica  tão  satisfeito,  como  se  lhe  coroassem  o  li- 
vro dos  louros  ressequidos,  que  teem  andado 
por  todas  oraçSes  da  praça  publica,  desde  Mãsa- 
oiello  até  Jeronymo  Paturot,  de  ridicula  memo* 
ria. 

Depois  de  acabado  este  quadro,  quasi  familiar, 
dos  costumes  portugueses  no  século  XVIU ,  de* 

"    íl     000  r       I 

Digitized  by  VjOOQIC 


II 

via  conformar-se  á  moda  e  encarregar  os  perso- 
nagens de  um  papel  philosophico-social ,  profun- 
damente regenerador.  Apesar  do  lustre ,  que  o 
romance  podia  receber  da  sua  novidade,  resistiu 
á  tentação ;  sempre  entendeu  que  a  arte  nâo  pre- 
cisa do  foro  pequeno  da  politica  para  ser  a  pri- 
meira entre  as  illustrações  intellectuaes. 

O  que  o  famoso  romancista  escocez  conseguiu 
fazer  dos  seus  heroes ,  procurou  o  auctor  imitar 
de  longe  a  respeito  das  figuras  deste  ensaio.  O 
seu  desejo  era  animal-as  de  modo ,  que ,  portu- 
guezas  nas  feições,  nas  idéas^  e  no  viver,  en- 
trassem facilmente  na  intimidade  do  publico , 
como  amigos,  ou  conhecidos  seus  antigos. 

O  seu  receio  é  da  ter  ficado  ainda  muito  atraz 
da  realidade  poética ;  por  isso  que  na  passagem 
do  mundo  ideal  para  a  manifestação  do  mundo 
positive  raras  vezes  é  conservada  a  admirável 
similhança ,  que  faz  a  gloria  de  todos  os  prínci- 
pes da  arte. 

  idéa,  que  houve,  desenhando  nas  horas  va-^ 
gas  as  scenás  deste  painel  imperfeito,  era  com 
pôr  uma  espécie  de  Trilogia  que  désse-Vulto  e 
càr  á  época  essencialmente  dramática,  que  entre 
nós  é  dominada  pela  figura  do  sr.  D.  João  V  , 
espécie  de  rei  popular  no  meio  do  seu  absolu- 
tismo. As  qualidades  e  os  defeitos  do  monarcba ; 


Digitized  by  VjOOQIC 


Ill 


o  seu  fausto,  a  âua  generosidade,  e  as  paixões 
que  se  lhe  attribuem,  indicaram-no  como  aquelle 
dos  nossos  reis  modernos,  de  quem  o  poro  se  lem- 
braria com  mais  interesse.  Orgulhoso  como  Luiz 
XIV,  e  amigo  de  aventuras  como  o  califa  de 
Bagdad,  D.  João  y  saiu  sempre  de  todos  os  encon- 
tros perfeito  cavalheiro,  e  magnânimo  Soberano. 

A  Mocidade^  que  hoje  se  publica,  é  apenas  o 
prologo  de  todo  o  drama.  Âs  outras  duas  partes 
mais  extensas,  mais  vivas  de  acção  e  de  colorido, 
talvez,  hão  de  seguir-se  ã  exposição  (se  ella 
for  feliz)  e  completar  o  quadro,  começando  pelo 
rei ,  que  na  mocidade  apparece  de  longe,  e  com 
o  caracter  pouco  assente,  que  a  verdura  dos  an- 
nos  ainda  exigia  que  se  lhe  desse.  Dos  outros 
personagens ,  alguns  morrem  na  primeira  parte , 
e  na  segunda,  em  virtude  da  sua  provecta  idade ; 
e  os  mais  interessantes ,  com  as  modificações  do 
tempo  e  das  idêas,  continuam,  concorrendo  com 
o  Salomão  portuguez,  tão  peccador  e  devoto,  até 
aos  ultimes  annos  da  sua  vida. 

Se  este  ensaio  merecer  alguma  attenção  do 
publico,  protesta  o  auctor  não  desanimar,  e  conta 
pôr  na  tela  do  romance  uma  época ,  a  seu  vêr . 
a  mais  curiosa  de  todo  o  século  XVIII  em 
Portugal.  Se  o  livro  mergulhar  no  esquecimento, 
ha  de  sentil-o  infinitamente,  mas  ganhará  ao 

Digitized  by  VjOOQIC 


jMtM  ttia  desengano  atemp<^  ficando,  livre  para, 
se  occupar  de  coisas  maia  da  eua  Tocaçao. 

Depois  disto  nada  tem  a  accrescentar*  Á  eri* 
tiea  pertence  louvar  ou  castigar  o  que  a  obra 
trouxer  de  bom,  ou  de  m6u ;  e  sem  vaidade  nem 
servidão  Ifae  wirega  a  sua  causa.  Nada  ha  mais 
ínsulso  do  que  a  mania  de  querer  à  força  de  pro* 
loquiose  de  citações  postiças,  remar  contra  a  opi- 
nião incutindo  a  leitura  do  romance  ou  da  poe- 
sia ,  que  o  gosto  publico  oigeitou. 

O  milagre  de  animar  as  estatuas  não  cabe  nos 
dias  em  que  vivemos,  £9te  nSo  é  o  século  das 
Galatheas  e  Pigmaliães.  Ou  a  obra  tem  valor,  e 
vive  do  seu  mérito ;  ou  morre  do  frio  incurável 
da  idéa  e  da  execução,  caso  desesperado  que 
não  remedeia  o  vesicatório  impertinente  de  um 
discurso  de  Gil  Anms ,  aborrecido  em  todos  os 
legares  e  em  todas  as  questões. 


Digitized  by  VjOOQIC 


MOCIDADE  DE  D.  JOlO  V 


CAPITULO  I. 

«x  X   VEilDADB    DU    UH  BltrÃU    NO    ADRO    DE    â.     DOAUNGOS.  » 

—  «  Ninguém  me  diga :  «  eu  desta  agua  n5o 
beberei.»  Padre  Procurador,   nào  somos  nada 

.  neste  mundo. » 

—  «  E'  verdade ,  Thomé  das  Chagas.  Entào 
que  quer  ?  Pagam-se  os  peccados.  » 

—  «  E  eu  sem  pregar  olho  toda  a  santíssima 
noite.  .  .  e  vai,  e  sahe-nos  uma  destas !  Os  nossos 
padres  como  estão?» 

—  «  Mortiíicadissimos !  .  .  .  Apesar  de  toda  a 
grandesa  de  alma  isto  che^a  ao  vivo.  » 

1 

Digitized  by  VjOOQIC 


2  A  MOCIDADE 

—  c<  Pois  nSo !  E  o  excommungado  papel  nSo 
haverá  meio  de  se  lhe  acudir?» 

—  «A  Provisão  do  Desembargo  do  Paço  ?  Eu 
não  sei,  por  mais  que  scisme.  E'  Ccesar  in  Ccb- 
sare !  Sempre  é  ir  de  El^rei  para  £l-rei.  Como 
os  padres  de  S.  Roque  hão  de  rir-se  a  esta  hora ! » 

—  a  Pois  elles  com  isto  tem  alguma  coisa  ?  » 

—  <(  Teem  tudo,  Thomé.  V.  mercê  não  per- 
cebe, mas  percebo  eu.  A  pedra  veio  da  sua  mão ; 
e  os  padres  da  Companhia  atiram  certo. . .  Não 
importa!  O  jogo  continua,  e  no  fim  se  verá 
quem  perde. » 

— «  Não  suppunha.  Ora  esta !  Com  que  an- 
dam os  Jesuitas  no  caso  7  d 

—  <(  Em  tudo ,  irmão  Thomé.  Nestes  reinos , 
faz-se  alguma  coisa  que  elles  não  cubram  com 
a  sua  roupeta  ?  » 

—  «  Parece  impossivel ! . . .  Até  no  Desem- 
bargo do  Paço  ? . . . » 

—  «  Em  toda  a  parte.  A  Companhia  appare- 
ce  á  cabeceira  de  Eí-rei,  se  adoece,  no  seu  ora- 
tório se  resa,  á  mesa  dos  seus  tribunaes  se  des- 
pacha. . . » 

—  <(  Então  se  está  em  todos  os  legares?  ...» 

—  «  Sabe  e  aconselha  tudo,  é  verdade.  Só  dft 
Santa  Inquisição  não  venceu  por  ora  nada,  nem 
hade  conseguir,  era  quanto  florescer  a  Ordem  do» 


Digitized  by  VjOOQIC 


BB  D.  JOÃO  V.  3 

Pregadores,  institaida  para  confusSo  dos  herejes 
e  acoite  dos  hypocritas. . .  Aqui  tenho  o  texto 
do  primeiro  sermão  na  capeUa  real ,  e  qae  man- 
dem refutar-me  pelos  seus  casuistas  e  doutores. ,  • 
O  que  lhe  digo  Thomé  das  Chagas,  é  que  o  pia* 
no  dos  Jesuítas ,  o  negro  e  maldicto  plano  dei- 
les.  .  . » 

—  u  Jesus  da  minha  alma ! » 

—  <t  E^  abolir  a  Santa  InquisiçSo ,  e  enterrar 
nas  suas  ruinas  a  ordem  de  S.  DcHoaingos.  A  in-* 
veja  rala-os. » 

—  «  Por  isso  as  prophecias  s3o  tantas  e  o  povo 
anda  tão  inquieto.  Sabe  V.  Rev."*  o  que^  di- 
zem ? . . .  Que  bade  nascer  em  Babylonta  o  An- 
techristo.  O  certo  é  que  para  as  bandas  da  Sé 
apparece  já  um  lobishomem ;  e  ao  pé  de  Santa 
Engracía  qoeíxam-se  os  visinhos  de  que  sahe. . .  » 

—  «Um  demónio!...  Pois  atreye^e  com 
essa  chécha  cabeça  a  prescrutar  os  altos  mysK 
terios  de  Deus?  Não  são  precisas  maravilhas.  O 
Antechristo  nasceu  já. » 

—  «Santa  Barbara ,  S.  Jeronymo !  Ábrenunr' 
€Ío !  Vade  retro ! » 

— Cale-se,  homem.  Que  escarcéos  são  estes? 
Mas  a  culpa  é  minha.  Para  que  lhe  estou  eu 
a  fallar  de  coisas  superiores  á  sua  rasão  ?  Dei- 
xemo-nos  disto.  Mas  a  Provisão,  esta. pedra- 


Digitized  by  VjOO^IC 


4  A   JIOCIDABÊ 

da  na  cabeça,  hei  de  ficar  assim  com  alia?  Va- 
mos. »  . 

—  ((Uma  esmolinha  por  alma  dos  fieis  de- 
functos ,  minha  devota ! » 

Gritou  o  Sr.  Thomé,  interrompendo  eshof^- 
cio  o  dialogo ,  jâ  cortado  pela  súbita  meditação, 
em  que  o  padre  mestre  se  abismou. 

Em  quanto  este  passeia  preocupado  e  fallando 
só ,  e  aqaelle  apara  a  esmola  na  pia  bandeja , 
observemos  de  perto  os  protogonistas  da  scena. 
Entremos  no  escorregadio  campo  da&expUeaçòes 


E'  justo  principiar  pelo  mais  graduado. 

O  mestre  Pr.  João  dos  Remédios ,  da  ordem 
de  S.  Domingos,  ex-DeíiAidor  e  digníssimo  Pro- 
curador do  convento  de  Lisboa,  era  um  frade  de 
nome  na  corte  e  na  égreja.  A  opinião  dos  eru- 
ditos vaciHava  entre  elle  e  o  ^adre  Chagas,  pre- 
gador de  grande  fama.  Se  o  padre  Chagas  limava 
mais  os  sermões  e  possuia  o  segredo  de  commo- 
ver  o  auditório,  o  Sr.  Fr.  João  não  conhecia  emulo 
na  vehemencia  dos  affectos  e  nas  explosões  de 
uma  voz  sonora.  Formado  ín  ulroque  jure  gosava 
nó  foro  da  reputação  de  ser  um  segundo  Pegas. 
Se  o  negocio  valia  a  pena,  Sua  Reverencia  fe- 
chada nariquissima  livraria  do  convento,  cobria 
quatro  cadernos  de  papel  da  sua  lettra  garrafal , 

Digitized  by  VjOOQIC 


X>E  D.  JOÃO  V.  8 

^  lançava  sdbre  a  parte  adversa  uma  allegaçio 
fulminante ,  que  fazia  pular  a  veneranda  cabel- 
leira  ao  Desembargo  do  Paço,  e  roer  as  unhas 
Bo  douto  patrono  contrario. 

Quando  muito,  inculcava  cincoenta  annos  o 
sábio  procurador;  porém  a  certidão  de  baptismo, 
menos  citada  por  elle  do  que  as  ordenações, 
addfcíonava  uns  cinco  ou  seis  de  mais  acinoa  da 
conta  redonda.  —  Apesar  de  gordo,  os  movimen- 
tos ndo  tinham  nada  de  acanhados  ou  desairosos ; 
«  figura  era  mais  vistosa  do  que  esbelta.  Arre- 
dondado e  muito  cheio  o  seu  rosto,  com  duas 
covinhas  aos  lados  das  faces,  quando  ria,  espiri- 
tualísava-se  com  facilidade ;  e  a  bocca  fina  e  chis- 
tosa dava-lhe  grande  animação:  as  mHos  bem 
tratadas  e  macias ,  e  o  pé  bem  calçado  e  pequeno, 
tinham  degancia,  e  distincção.  Já  se  vé,  que 
vivendo  no  secuk),  sem  vaidade,  podia  contar  com 
o  voto  das  damas,  que  é  voto  absoluto  em  oh- 
jectos  desta  importância. 

Sem  ser  Lavater,  custava  pouco  a  notar  que  a 
applicação  constante  ás  lettras  sagradas  e  profa- 
nas, e  o  uso  do  púlpito,  imprimiam  em  sua 
reverencia  um  cunho  particular.  As  inllexôes  e 
os  gestos  do  padre  procurador  tinham  aquella 
exageraçôó  theatral ,  que  é  uma  segunda  natu- 
reza para  os  que  faliam  em  publico  muitos  annos. 


Digitized  by  VjOOQIC 


6  A  MOaDÀ0E 

A  estatura  seria  desempenada,  se  o  trabalho  do 
bofete  a  não  tivesse  curvado  um  pouco.  O  olhar 
teria  mais  viveza ,  e  o  sorriso  mais  agrado ,  se 
o  primeiro  não  adormecesse  tanto  a  miúdo, -e  o 
segundo  brincasse  com  menos  ironia  aos  cantor 
da  bocca.  A  oscillação  do  lábio  superior,  alguma 
coisa  grosso,  e  a  das  azas  do  nariz  bastante  víh 
vas,  depunham  que  o  frade  doutor  não  era  tão 
humilde  e  paciente,  como  o  estado  monn^tico 
requer.  Em  fim,  grandes  entradas  em  uma  testa 
espaçosa  e  elevada ,  e  a  ruga  da  profunda  refle* 
;sSo  cavada  na  frooite ,  asseguravam  que  a  agu- 
deza do  espirito  e  o  talento  existiam  dli  para 
compensarem  os  defeitos  de  um  caracter  sincero 
e  forte,  mas  irascivel  e  imperioso. 

Mais  gordo  do  que  magro,  como  se  disse, 
mesmo  até  mais  obezo  do  que  gordo,  a^  cores 
florescentes  do  rosto  eram  um  testemunho  irre- 
fragavel  da  sua  inclinação  As  doçuras  da  vida ,  e 
mais  ainda  aos  prazeres  da  meza.  O  Sr.  Fr.  João 
trazia  um  barretinho  curto,  deitado  para  a  nuca, 
deixando  assim  descoberta  sempre  a  parte  ante- 
rior da  cabeça,  que  era  realmente  bella.  A  Pro- 
visão do  Desembargo  do  Paço,  enrolada  na  mão ; 
servia-lhe  de  leque  ou  de  compasso ,  segundo  a 
ira  lhe  fazia  subir  o  sangue  ao  rosto,  ou  lhe 
descompunha  o  gesto  em  accionados  violentos* 


Digitized  by  VjOOQIC 


BE  D.  JOÃO  V.  7 

Durante  o  dialogo ,  que  ouvimos ,  o  padre  mes- 
tre tioha  puchado  e  repellído  o  barretinho  da 
testa  para  a  nuca  umas  poucas  de  vezes,  e  ba- 
tido o  pé  com  Ímpeto  outras  tantas.  Via-se  bem 
que  o  reverendo  batalhava  com  a  ira ,  que  era  o 
seu  demónio  familiar,  e  que  o  demonia  mais 
vezes  ganhava  a  palma,,  do  que  a  santa  doutrina 
theologica. 

Em  tudo  era  o  segundo  interlocutor  o  anti- 
poda  do  sábio  jurisconsulto ,  que  dado  á  conver- 
sação e  gostando  muito  de  fallar  elle  só  (quando 
não  estava  preocupado),  encontrava  no  irmão  Tho- 
mé  o  ouvinte  mais  paciente  e  convencido,  que 
a  verbosidade  podia  exigir  para  se  apascentar. 

Trinta  annos  seriam  a  edade  do  milagreiro, 
se  caras,  como  a  delle,  tivessem  edade  possivel, 
ou  a  deixassem  colher  em  flagrmte.  Era  um 
esqueleto  estuando  e  desengonçado ,  com  os  os- 
sos em  reacção  permanente  contra  a  carne, 
com  os  nervos  a  encordoarem  a  secura  da  pelle 
verdenegra  que  o  colffia:  em  fim  parecia  um 
paradoxo  da  figura  humana,  desses  que  a  natu- 
reza forma  a  capricho ,  quebrando  o  molde  para 
Bão  ficarem  cópias. 

Aos  doze  annos,  tinha  já  a  altura  de  um  ho- 
mem e  a  magreza  de  um  galgo ;  e  até  aos  vinte 
ainda  espigou  que  mettia  medo» 


Digitized  by  VjOOQIC 


8  A    MOCÍD.VOÍÍ 

O  esganado  pescoço  sustinha  a  cabeça  do  Sr. 
Thomé,  cabeça  esguia  adiante,  e  alterosa  na 
coroa ,  aonde  se  empinava  uma  nuca'  insolente , 
servindo  de  prego  á  peruca  alaranjada,  ignóbil 
capacete  de  clinas  e  estopa ,  que  vinha  arri-* 
piar-se  em  molhos  estupentados  sobre  o  cabeção 
da  golla.,  e  armar  nm  bico  de  sanefa  quasi  á 
flor  das  sobrancelhas ,  espavoridas  á  raiz  da  mais 
depremida  testa. 

Seguia-se  a  cará  do  honradíssimo  servo  de 
Deus.  Imaginem-se  uns  queixos  afunilados,  re- 
^  irando-se  alguma  coisa  para  a  barba ;  sobre  os 
queixos  grude-se  a  pelle  còr  de  coquilho,  col 
lada  ás  jnaçàs  do  rosto ,  acerejadas  de  roxo-terra 
c  um  pouco  proeminentes;  arme-se  esta  quasi 
caveira,  forrada  de  pergaminho,  de  um  nariz 
de  ponta  de  lanceta ,  com  a  corcova  e  o  cava- 
lete de  rigor ;  e  depois  de  considerado  este  e^' 
candalo  de  carne  e  osso,  digam  se  era  possivel- 
que  Deus  creassc  uma  figura  tao  exótica ,  sem 
misstlo  especial. 

Os  gestos  condiziam  com  a  pessoa.  Escarne- 
cer do  próximo  é  pcccado ;  mas  qual  seria  o 
Santo,  que  deixasse  de  se  rir,  vendo  os  pés 
eternos  e  inchados  do  cotovellos  pondo  os  calca- 
nhares a  meia  legtia  um  do  outro?  Quem  fica- 
ria serio,  quando  aquelle  esqueleto  rompia  em' 


Digitized  by  VjOOQIC 


DE  I>.   JOÃO  Y.  9 

compasso  fúnebre  a  sua  marcha ,  içado  em  duas 
pernas  de  cegonha,  e  dando  aos  braços  com  a  ele- 
gância dàs  asas  de  um  morcego.  A  todas  as  outras 
prendas  acrescia  um  ar  de  bolina  que  lhe  der- 
reiava  o  lado  esquerdo ,  e  um  geito  de  pescoço , 
que  o  fazia  cabeciar  para  o  hombro  direito.  Em 
ódio  à  linha  recta  a  barba  fincada  no  peito ,  fu^ 
rava-o  se  tivesse  corte,  e  as  costas  podiam  ser- 
vir de  modello  a  um  arco  de  ponte. 

Enormes  óculos  de  azelha ,  apertando  o  na- 
riz, proporcionavam  ao  nosso  devoto  a  commo- 
didade  de  lançar  a  sua  vista  de  lince  por  de- 
baixo dos  vidros.  As  cannellas  sem  barrigas  de 
pernas  ,  enfiavam-se  em  meias  bicolores,  de  lã 
grossa  com  pontos  azués  nos  buracos  numero- 
sos ;  calções  velhos  e  cujos ,  com  largas  passagens, 
e  bello  xadrez  de  remendos ,  serviam  de  bainhai 
ás  coxas  delgadas  como  floretes.  Cor  de  pulga  a 
vestia  encolhia-se  no  encovado  peito,  para  dan- 
çar em  plena  folga  sobre  o  súpposto  ventre.  Já 
no  fio  a  casaca-giteo ,  verde-garrafa ,  e  de  uma 
baeta  lansuda,  fugia  do  corpo  ao  dono,  como 
os  judeus  ao  fogo  do  Santo  Officio. 

O  Sr.  Chagas ,  (Deus  tenha  tido  misericórdia 
com  a  sua  alma!)  animava  as  graças  da  phisio- 
nomia  ,  por  meio  de  um  risinho  amarello  e  beato. 
Quando  alguma  coisa  merecia  o  seu  agrado  (caso 


Digitized  by  VjOOQIC 


10  A   MOCIDADE 

raro)  ouviain--se  em  applauso  estrepitoso  as  e^tri^ 
dulas  gargalhadas  do  devoto  ^  desafiDadas  em  fal-- 
sete.  DeSaíxo  dos  beiços  sorvidos  ^  em  crua 
guerra  cpm  as  gengivas,  encavalleuraLvam-se  os 
mais  negros  e  limosos  dentes,  arremetteado 
pela  bocca  fora.  Os  olho6  vesgos ,  enviusaudo  a 
ví^  por  duas  frestas ,  e  a  voz  de  tiple  muita 
agrodoce ,  salgavam  as  reticencias  e  momi- 
ces  abeatadas,  que  elle  chamava  as  suas  ma- 
neiras. 

Soh*e  o  trajo  profano  o  irmão  Thomê,  ver^ 
dadeiro  cabide  huitiano ,  pendurava  aos  hombros 
o  inseparável  balandrau  das  almas,  desbotado  e 
roto,  com  um  registo  de  S.  Domingos  e  do  Ro- 
zario  cosido  &  murça,  e  seu  rdieario  de  prodi- 
gioso tamanho  pendente  de  um  fio  de  vistosas 
camandulas.  £m  uma  das  mdos  trazia  a  salva  ^ 
representando  as  almas  do  purgatório ,  entre  ala- 
baríntadas  chanunas.  Â  outra  dava  a  beijar  aos 
fieis  um  nicho  de  porta  de  vidro ,  rallo  de  mea- 
lheiro por  baixo,  e  dentro  S.  João  Baptista  e  a 
sua  ovelha. 

O  todo  deste  embirrento  figurão  era  mais  as- 
tuto, do  que  boçal.  A  simplicidade  estava  por 
fora ,  e  a  velhacaria  por  dentro.  Eis  em  resumo 
a  vera  effigie  do  Sr.  Thomé  das  Chagas,  anda- 
dor  das  almas,  primeiro  servente  do  padre  Fr« 


Digitized  by  VjOOQIC 


:M  0.  JOAQ  V.  il 

iíi$i$iâúê  Remedi€6;  e  sacristfto  da  missa  dos 
IMliogas  e  Qiiintas-feiras ,  no  oraUMrío  de  Diego 
^  Mendonça  Corte  Real ,,  secretario  das  Merc^ , 
de.el-rei  D.  Pedro  II,  nosso  senhor. 

Resta  dizer  mais,  que  o  logar  .d«  scena  era  o 
■adro  do  am^ento  de  S.  DomiiB^os  de  IísIkhi; 
q  a  hora ,  as  sete  horas  da  manbfi  do  dia  20 
àio  mez  de  Novembro  de  1706. 

Já  se  vé  qni$  o  dialogo;  que  ouvimos,  foi  um 
.pouco  matinal ;  mas  nossos  avte  oram  madrugin 
-dores,  -seguindo  aipda  o  antigo  adagio  que  (Uz : 
€<  deita-te  ao  sol  posto,  mas  ergue*-te  com  es- 
tr^Uas  no  céu.  »  Demais,  tendo  a  Provisão  do 
J)eEembargo  sobre  o  bufete  podia  o  padre  procu- 
rador conciliar  o  somoo?  Depois  de  voltas  e 
mais  voltas  na  cama ,  levantcb^e ;  poz««e  &  ja*- 
,ndla  a  espmtioro  dia;  puniu  o  gato;  acordou 
os  seus  dois  canários  e  o  verdilhão ;  e  por  fim 
aos  primeiros  clarões  da  aurora ,  resolveurse  a 
ir  tomar  um  banho  de  ar.  Vestiu-se ;  pegou  na 
Provisão ;  desceu  á  portaria ;  e  como  o  inverno 
^a  secco,  d'ahi  a  ajguns  minutos,  tinha  o  gosto 
de  tiritar  de  frio,  gelado  como  um  sorvete. 

Deitando  os  oihos  pela  praça  achouHi  deserta. 
Chegando  ao  cunhal  viu  o»  vinte  e  cinco  arcos , 
que  se  abriam  para  o  rocio ,  desde  a  Ritesga  até 
ao  adro  do  convento,  e  augmenbou  a  sua  me- 


Digitized  by  VjOOQIC 


i2  A    MOCIDADE 

lancolia.  Tão  cedo,  dormia  tudo.  Nem  um*  dm» 
duzentas  logeas  portáteis,  que  se  armavam  de^ 
baixo  dos  arcos  apparecia  ainda.  Ninguém  fte^ 
gava  o  toldo  diante  da  testada  dos  logares ;  nH^ 
se  movia  um  adelo^  capeHista,  ou  fanqueiro  a 
arrumar  o  panno  de  linho ,  as  rendas ,  ou  as  chi* 
tas  da  sua  (eira.  Os  próprios  mariolas^  tSo  bali* 
çosos  e  activos ,  ressonavam  profundamente  nas 
suas  possilgas.  Defroifte  do  cunhal  do  primeiro 
arco,  ao  murmúrio  das  aguaá  o  Neptuno  dè 
Rocio  da  peanha  do  chafariz,  estendia  o  tri^ 
dente  com  marmórea  indiíFerença. 

Fr.  João  rondou  de  passeio  toda  a  arcada  até 
â  escadaria  do  grandioso  Hospital  de  Todos  os 
Santos,  pêlo  sitio  aonde  ainda  hoje  estio  S. 
Domingos  e  a  Praça  da  Figueira.  Depois,  quando 
voltava  scismando ,  perto  do  cruzeiro  do  convento , 
appareceram-lhe  as  estiradas  pernas  do  irmão 
Thomé ,  a  quem  o  zelo  dava  azas  e  que  vinha 
a  galope  pedir  alviçaras  pelo  resultado  da  de- 
manda ,  que  nSo  podia  suppor  perdida. 

Duas  palavras ,  agora ,'  para  explicar  o  enigma 
da  Provissão ,  que  tirava  o  somno  ao  padre  Pro^ 
curador  e  fazia  da  cara  do  Sr.  Thomé  a  publica- 
fórma  de  utn  «  Miserere.  » 

O  Hospital  de  Todos  os  Santos  era  proprie^ 
tario  de  alguns  dos  arcos  do  Rocio,  e  arrenda- 


Digitized  by  VjOOQIC 


vflHOfr  aos  h>gt9tas  por  dois  mij  réis  mnuaes  cada 
ufli;  A  ocdom  de  S.. Domingos,  possuía  os  arcos 
do  lado.  ^  adro  e  debaixo  do  dormitório  de 
eima,  e  os  frades  contentaram-se  muito  tempo 
com  a  metade  do  [Nref o  exigido  pelo  Hospital. 
Tudo  corria  em  santa  paz,  quando  eleito  Pro- 
yíneialiiavo,  este,  contara  o  voto  do  seu  defini- 
tofÍQ ,  levantou  a  renda  para  dar  uma  bofetada 
9em  mSLO  c  na  soberba  do  seu  visinho.  Ardeu 
Tríq^a  J  Os  veodilhoes  gritaram  «  aqui  d'el-rei  p  , 
piX)testando  sem  pejo  nem  temor  contra  uma  le> 
6So  enorme ,  que  os  fecia  pagar  a  elles  as  culpas 
de  terçeico. 

-«.  Em  tão  melindrosas  circumstancias,  o  ante- 
cessor de  Fr.  João ,  chamado  Fr.  Chrisostomo 
Borrego ,  cahiu  na  simplicidade  de  citar  os  re^ 
friK^taríos  para  arredarem  as  tendas  da  parede 
sob  pena  de  dot9  mil  réis  de  multa.  Não  espe^ 
jaram  por  segunda  intimação  os  vendilhões;  e 
requerendo  vestoria  ao  Senado  da  Camará ,  vie- 
ram pôr  a  feira  diante  da  testada  dos  arcos.  Da- 
qui se  originou  a  perdição  dos  frades.  Com  o 
Auto  de  Vestoria  os  belAirinheiros  provaram  que 
nloroecupando  terreno  do  convento  lhe  não  de- 
viam pagar  nada ;  e  a  demanda ,  muito  feia  desde 
o  principio,  concluiu  pela  famosa  Provisão  do 
Dezembargo ,  declarando  as  testadas  do?^  arcos 


Digitized  by  VjOOQIC 


If  A  MOGIDADC 

livres,  e absolyendo  os feiraútes  deairendomeitto 
e  aluguel  pelas  occupaf^m.  Ainda  por  cima  o* 
convento  pagou  as  custas !  Deste  modo ,  os  pa- 
dres de  S.  Domingos  d^am  os  seus  arcos  de 
graça  pelos  quererem  alugar  muito  caros. , 

Quando  Fr.  João  dos  Remédios  entrou  a  ser- 
vir ,  o  negocio  estava  muito  mal  %urado ;  traloii 
de  lhe  valer ;  mas  era  tarde.  Pouco  habituada  a 
revezes ,  este  cahiu-lhe  como  um  raio  em  cima 
da  cabeça ;  e  n9o  o  querendo  imputar  á  notória 
injustiça  da  causa,  preferiu  attribuiK-o  ao  ódio 
antigo  e  á  rivalidade  entre  S.  Roque  e  S.  Do^ 
mingos,  entre  os  Jesuitas  e  os  Pregadores.  Se 
elle  se  enganava  nio  se  sabe ;  mas  que  a  Provi»- 
são  deu  grande  gosto  aos  padres  da  Companhia , 
é  caso  averiguado. 

Desta  opinião  do  Procurador  da  Communidtde 
nasciam  as  pesadas  reflexSes,  que  lhe  ouvimos,  a 
respeito  dos  filhos  de  Santo  Ignacio,  viiinhos-  e 
inimigos  da  ordem  inquisitorial. 

O  padre  mestre  Remédios  ainda  estava  infor*< 
mando  o  Sr.  Thomé  do  succedido,  e  o  noMi> 
Andador ,  moralisando  o  caso  com  o  notável  ada- 
gio—  u  ninguém  me  diga,  eu  desta  agua  não  be- 
berei »  — ,  quando  um  homem ,  escapando  pdas 
costas  do  Dominico  e  do  seu  acolyto,  ainda  no 
maior  calor  ddt  sua  conversação,  passou  por  el^ 


Digitized  by  VjOOQIC 


BE  B.  JOZO  V*  IS 

les  como  uma  sombra ,  e  foi  eocer^0e  eom  a  pn 
lastra  do  primeiro  arco,  depois  de  observar  os 
oradores.  O  cbapeo  de  abas  largas  e  copa  baixa 
era  um  cbapeo  de  Jesuita ,  e  carregado  na  testa 
encobria-^Ihe  a  parte  superior  do  rosto«  A  capa 
de  panno  preto  embuçada  escondia-4he  a  barba 
e  o  corpo  todo.  Donde  se  collocou,  tudo  podia 
vér  e  ouyir  perfeitamente. 

Um  quarto  de  hora  depois,  outro  bomem, 
atravessando  do  palácio  do  Duque  de  Cadaval,  en- 
trou na  egreja,  e  feitas  as  suas  devoções,  tomou 
agua  benta ,  e  veio  para  o  adro  assentar-se  no 
poyal  da  cruz  levantada  defronte  da  portaria* 
Alii ,  cofiando  uma  cabelleira  mal  empoada  e  de 
guedelhas  á  antiga ,  espécie  de  floresta  virgem , 
poz  o  cbapeo  de  lado  sobre  a  copa ,  arregaçou  os 
punhos  de  Hollanda  encardidos ,  afinou  o  laço  da 
gravata,  e  sacou  por  fim  do  bolso  da  esbeiçada 
casaca  de  tafetái  com  botões  do  tamanho  de  ro- 
dinhas de  fogo  um  tinteiro  de  chiífire  e  um  cotto 
de  penna.  Depois,  montando  o  joelho  direito  a 
cavallo  no  joelho  esquerdo,  principiou  a  rabiscar 
em  um  papel  com  o  maior  socego  do  mundo. 

Assim  dispostas  as  figuras  succedia,  que  o  sá- 
bio theologo  tinha,  nas  suas  costas,  o  homem  em- 
buçado, e  o  Andador  das  almas  cobria  com  a 
longa  pesspa  o  risonho  escrevente ;  tudo  isto  de 


Digitized  by  VjOOQIC 


i6  à.   MOCIDAQE 


certo  sem  nenlnim  ddles  se  ler  ajustado,  nem  o 
pensar ,  â  excepção  do  Jesuíta.  Esse  é  provável 
que  soubesse  a  razão  por  que  alli  se  achava. 


Digitized  by  VjOOQIC 


CAPITULO  II. 


MAIS  YAL  SO  QUE  MAt  ACOMPANHADO. 


Depois  do  episodio  da  esmola  o  padre  procu- 
rador e  o  devoto' acolyto  ficaram  callados,  um 
defronte  do  outro,  alguns  instantes.  As  sobran- 
celhas do  Sr.  Thomé  das  Chagas  ^  ora  subiam  â 
raiz  do  cabello,  ora  baixavam  a  tocar  nas  ca- 
pellas  dos  olhos,  o  que  neste  digno  cavalhteiro 
significava  que  reflectia  no  caso,  n5o  percebia 
nada ,  e  desejava  muito  perceber.  Fr.  João  scis- 
mava  carregando  na  ruga  frontal ,  e  brincando 
com  os  pollegares  um  em  roda  do  outro.  Era  o 
seu  gesto  usual ,  quando  compunha. 
2 


Digitized  by  VjOOQIC 


18  A   MOCIDADS 

A  íiual  o  andador  arremetteu  ás  suas  duvidas 
Gom  denodo ,  expelliu  da  garganta  o  pigarro  ma- 
tutino ,  e  com  a  vozinha  doce  como  pastilha  e 
arrastada  como  perguiça  do  Brazil ,  continuou  o 
dialogo ,  interrompido  pela  sua  jaculatória  ás  al- 
mas. 

—  «  Com  que  —  disse  em  tom  insinuante  — 
V.  Rev."*"  julga  que  o  papel  não  tem  cura ,  e 
é  obra. .  .  » 

—  «Dos  herejes,  dos  christjios  novos,  dos 
inimigos  de  Deus  e  da  sua  gloria.  Digo ,  creio , 
e  affirmo ,  irmão  Thomé  »  —  respondeu  Fr.  João 
irado. 

—  «  È  muito ,  padre  mestre.  Atrever-rse  esta 
gente.  .  .  .  Jesus!  £  então  no  Desembargo  do 
Paço.  .  .  .  Bem  rosna  o  povo ,  e  no  fim  de  tudo , 
é  elle  que  tem  rasão.  h^  de  cima,  donde  se 
espera  o  exemplo  vem  o  peccado !  Estft^mps  per- 
didos, devoto  S.  Domingos  da.  mipHa  alma! 

Mas  Fr.  João  dos  Ren^edios  já  o  i>ão  escu- 
tava. Distrabido  voltour^e  copi^  iippaciepcia ,  foi 
direito  ao  homem  do  tinteirp ,  po^rse  diante  delle  . 
^em  o  ver  ,•  e  abrindo  a  provisão  leu-a  a  meia 
voz,  fazendo-se  a  cada  lii^ba  maí^  corada  do  que 
uma  romã.  Thomé  d^s  Chagas  cuidava  entre- 
tanto, que  o  p«|dre  mostre,  estava  dictiMido  e  quç 
Q  outro  servia  de  seu  escrevente ;  pot*  is&o  não 


Digitized  by  VjOOQIC 


"BE  D.  JOiO  V.  19 

fez  maior  reparo,  e  entrou  a  scístnar  também, 
olhando  para  as  barcarolas  dos  çapatos  com  a 
mesma  complacência,  com  que  o  peru  ha  de 
olhar  para  as  pernas  do  payfio. 

Quem  estava  em  braza  era  o  homem  do  poial , 
victima  innocente  da  hermenêutica  do  procura- 
dor ,  que  plantado  a  dois  passos  Mie  lhe  tirava 
a  luz,  e  lhe  fazia  ainda  em  cima  voar  o  papel, 
com  o  vento  da  capa ,  que  o  frade  estava  a  tra- 
çar com  ímpeto  repetidas  vezes. 

Por  fim  o  pobre  homem,  desenganando-se , 
poz-se  de  pè ,  cortejou  o  sen  algoz  com  ar  sup- 
plicante,  e  disse-lhe  com  cert^  requebro: 

—  «O  padre  mestre  d&  licença?.  Sou  poeta 
de  casa  do  Sr.  Duqse ,  e  amigo  intimo. ...  do 
escudeiro  particular  dê  S.  Ex.^  âahi  de  casa  e 
vim  até  aqui  por  ar^ar,  e  para  tér  taitibem  se 
acho  a  chave  de  um  soneto ,  que  se  me  engas- 
gou na  segunda  quadra. .  . .  Agora  mesmo. ...» 

De  tudo  isto  apenas  chegou  aos  ouvidos  do 
frade  absorto  a  penúltima  palavra.  Nem  sequer 
viu  aquelle  homem  roliço ,  curtinho ,  flexivel ,  e 
todo  cortezias,  que  de  pé,  epn  quarta  posiçSa 
de  dança,  e  boeca  cheia  de  rizo,  o  compri- 
mentava ,  meniando  o  chapelinho  amaçado ,  do 
modo  mais  obseqtiioso  do  mundo. 

—  «  Agora  ?  —  atalhou  o  aerio   frade ,   cui- 


Digitized  by  VjOOQIC 


20  À    MOCIDADE 

dando  que  respondia  ao  irmào  Thomé.  —«-  Agora ! 
Sabe  o  que  se  pôde  fazer?  » 

— ^ «  Sei,  sim  Sr, ;  agora  segue-se  acabar  o  meu 
soneto ,  ouvir  a  minha  niissa ,  e  ir  almoçar  do 
que  Deus  nos  dá ,  se  V.  Rey.™*  não  ordena  o 
contrario.  .  . .  y> 

O  poeta ,  estava  um  arco  dizendo  isto ;  tinha 
o  braço  na  mais  elegante  ciirva ,  e  o  pé  lançado 
airosamente  com  toda  a  galla  da  corte ,  esperando 
talvez  uma  cortezia,  e  o  campo  livre  em  res^ 
posta ;  mas  se  esperava  illudiu-se. 

-—  «  Ojptis  et  okufnperdidi !  » -^^  exclamou  elle, 
ouvindo  o  frade  pagar  os  seus  primores  com  a 
mais  secca  e  impertinente  interjeição. 

—  <c  Hum !  »  —  exclamou  Fr.  loão  dando  aos 
hombros,  e  mudando  de  posição.  Desta  vez  Th 
cou  de  todo  âs  escuras  o  poeta. 

—  «  V.  Rev."*  perdoará ,  mas ,  como  tive  a 
honra  de  lhe  dizer ,  medito  um  poema ,  um  so^ 
neto.  Prouvera  a  Deus  que  me  visse  livre  delle!... 
Tem  conceito  e  consoante  obrigado. . . .  Mas  na 
verdade  estou  pregando  aos  infiéis ;  o  padre  nem 
\ê  nem  ouve ;  e  o  peior  ainda  é  que  pegou  de 
estaca  defronte  de  mim.  E  esta ! » 

— r- «  É  caso  irremediável.  »  —  proseguta  Fr^ 
Joào,  passeiando  sempre  do  mesmo  lado  e  faK 
lando  alto  ao  pé  do  poeta» 


Digitized  by  VjOOQIC 


life  b.  jOAO  V*  21 

-^  «  Que  tal !  Irrremediavel !  mas  veja ,  Re-» 
Véfèúdissimo  ^  tenha  consciência.  Deita-me  a 
perder — gritou  o  niagarefe  de  methaphoras  com 
grande  impaciência.  —  Irretnediavel  é  só  a  morte. 
Deixe-me  V.  Sapiência  dois  minutos  vêr  a  Phebo, 
to  divino  Apdllo  pbr  algutts  chamado  Hypérion , 
e  se  Consultando  com  elle  eu  nào  achar  a 
rima. ...» 

''-^«Não  acha  tiada,    hão  tem  sabida 

—  replicou  Fn  João  absorto. -^Digo-lhe  que 
t)Bo  ha  sahida.  Não  é  capaz. ...» 

— ^  «  Pois  sustento  eu  que  sim ,  que  ha ,  e  que 
sou  capaz ;  e  tanto  sou  que  já  athei. . .  ■.  ouça  o 
)[mdre>  ^  . . 

Temendo  ser  enfadonho , 
Agora  os  sonhos  envio; 
Sendo  que  foi  desvario.,,, 

Fr.  João  parecia  escutal-o  attento. 

—  «Então?  Que  me  diz  o  ftev.™"*?  É  ma- 
gnifico, óptimo,  nãò?  O  que  foi  o  sonho  se- 
não o  que  São  todos  os  áonhos: — erros  do  ca- 
pricho ,  cuidados  da  alma ,  cathalogos  da  memo-^ 
ria ,  e  enganos  da  idêa  ?  Logo  o  que  são  sonhos  ? 
Desvarios !  E  o  que  é  desvario  ?  Sonho ,  perfeito 
^onhoi    Eis  aqui  $mmdum  artem  comp  o  seu 


agitizedby  Google 


22  A   XOCTDADK 

creado  Bo-nardo  Pires  achoa  o  mais  engenhoso 
^neeito  e  a  mais  opulenta  rima. . « .  Mas  isto 
siifi^ede  só  a  quem  bebe  do  ikio  era  Aganij^ 
oomo  hei  de  fmw  na  dedicatória ,  que  servirli 
de  postilblo  a  Ap^M^ld. .  , .  » 

Ê  o  modesto  cuHor  das  Musas ,  lio  euthusiiísmo 
do  seu  triumpho,  amarrotava  de  gosto  as  calças 
imperiaes ,  largo  e  impertinente  anachronisoM»  a 
que  o  (KHidenmaTa  a  bolsa ;  e  eom  a  outra  nâo 
sacudia  pela  manga  o  nosso  padre  procurador, 
que  tendo  o  indece  curvado  diante  da  bocoa ,  tm 
ar  de  quem  apanha  uma  idèa  vadia,  o  fulminou 
com  um  furilrando — «  deixenne ! » 

—  «O  frade  n5o  está  em  si ,  o  Crade  viu 
bixo  —  resmungou  o  poeta  descontente.  —  Que 
demónio  de  hom^ai!  Que  o  deixe?  Mas  é  in- 
verter as  rimas.  Eu  é  que  morro  porque  elle 
me  desassombre  a  mim.  Nfio  se  irá  este  espan- 
talho daqui  ?  Ao  menos ,  Rev.™®  —  gritou  com 
força  —  livre-me  da  sua  capa ,  por  todos  05  San- 
ctos  do  Paraiao !  £  o  manto  de  Niobe ,  é  a  noite 
da  imaginação,  é  o  cárcere  das  Musas. .  .  ora 
graças  a  Deus,  foi-se.  Por  lá  o  tenham  bastante 
tempo ,  que  nHo  deixou  saudades. 

Sendo  que  foi  desvario... 
Veremos  se  fecho  entretanto  a  quadra. » 

Digitized  by  VjOOQIC 


B«  O.  MOSO  V.  23 

N&  sbStraeç^  ò  paéfe  jproeuradofr  deixando  b 
^etó  em  pai ,  foi  eiA^ando  a  tes^ta  e  abrindo 
a  caixa  do  tabaco ,  procurar  o  seu  priíneiro  pouso. 
Afli  íiAkotí  à  Saa  ^itaâa  de  afrrostrinha ,  sorvida 
de  tfegár  e  fem  três  tempos ,  escorvou  e  carregou 
t)  natíz  ^  e  fecolhido  õ  lenço  na  manga ,  tocou  ná 
taíttph  fià  tatta  o  rufo  do  costume  com  os  dois 
dedo^  dá  inâo  direita.  Foi  entSío  que  de  todo 
cahiu  em  si,'é  olhando  deu  por  Thomé  dsís 
Chagas  de  joelhos  e  braços  ábettos  á  pbfta  da 
Igreja,  com  a  bandeja  das  alma^  e  o  nicho  de 
S.  ioíto  adiante  de  fei. 

Mas  o  padre  mestre  tinha  necessidade  de  des- 
éfogo ,  e  o  aiidador  das  alhiàs  servia-lhe  de  vaso 
]f>ftra  eipectorãt  as  frás. 

-^  tt  Thtiihé ,  if  Md  Thomé !  j)  — •  chamou  o 
íevérehdo  irfipacientê. 

^^tt Estou  á  primeira  missa,  meu  padre.  Ahi 
toií  àos  pés  de  V.  ftev."^ » 

— ^tíAwdè.  Tenho  que  lhe  dizer.  írá  logo  dã 
ntttibá  parte  á  rua  da  Calcetaria ,  a  casa  de 
Diogo  de  llteildoíiça  com  ufna  carta. .  . .  Quero 
poí*  fim  sàbér ! ....  Esta  proviáio  nâo  é  natural. 
Tràctaiíi  dé  métter  o  alvião  aos  cunhaes  do  nosso 
convento;  tentam  arrazal-o  pelos  alicerces. .  .  . 

-=^<í  Sâtita  Maria,  Mâi  de  Deus,  orai  por  mim 
jJéccàdot- !  -^  gfítòu  o  irmão  das  almas  desenros- 


Digitized  by  VjOOQIC 


âi  A  XOaDÀI^ 

cando  de  um  ímpeto  a  soa  eterna  pessoa.  —  Den 
tar  a  baixo  uma  Babylonía  destas,  quem  é  o 
ímpio  ? . .  . » 

—  ttThomé  das  Chagas,  V.  mercê  excedeu- 
se.  Ào  convento  do  nosso  padre  S.  Domingos 
chama  Babylonia  ?  Lembre-se  que  era  a  cidade 
da  profana(^o ,  a  mãi  dos  vicios ,  e  veja  o  erro 
que  disse.  Nâo  responda.  Sei  que  o  não  fez  por 
mal :  peccou  yenialmente. ...  »• 

—  «Mea  ciilpa,  mea  máxima  culpa!  Pro- 
metto  duas  coroas  a  Nossa  Senhora  e  uma  esta->> 
çao  ao  Santíssimo ,  mais  o  jejum  de  pão  e  agua 
Sexta  feira* ...» 

—  a  Está  bom ,  está  bom.  Não  é  preciso  tanto.. 
Gosto  de  o  vér  devoto  e  com  temor  de  Deus. 
Está  absolvido.  Tornando  ao  que  lhe  ia  dizendo : 
esta  gente  não  descança  em  quanto  não  subver- 
ter tudo.  Atiram  de  longe  á  Inquisição ,  porque 
tem  medo  de  se  chegar ;  mas  em  nós  se  vin- 
gam e  por  nós  começam.  Inde  ircel  A  Or- 
dem dos  Pregadores  primeiro,  e  o  Santo  Of- 
íicio  depois,  eis  o  plano.  No  íim  mettem-se 
de  dentro  como  na  Universidade  e  nas  eschó- 
las ,  como  em  toda  a  parte ,  segundo  o  costume 
delles. » 

—  «  Perdoe-me  padre  procurador ,  mas  eu  não 
creio.  Pois  ha  hereje  capaz  de  tirar  os  autos  de 


Digitized  by  VjOOQIC 


1>£  B.  JOÃO  IP.  âà' 

lè  ao  poYo ,  uma  consolação  tão  grande  aos  fieis 
de  Christo. ...» 

—  «  Por  isso  mesmo !  O  amor  do  povo  enfu* 
rece-os;  por  elle  sobre  tudo  é  que  abcNrrecem 
mais  a  Inquisição.  Da  primeira  vez  foi  o  padre 
António  Vieira  quem  traçou  o  projecto.  Deus 
lhe  tenha  perdoado !  Ficaram  mal  é  o  mesmo ; 
iresovam.  £nganaram-6e  da  primeira  vez?  Não 
importa ;  emendam  desta  o  golpe. ...  A  que 
horas  estará  levantado  Diogo  de  Mendonça?» 

—  «Com  as  seis  o  acha  V.  Rev.™*  ao  hu- 
fete.  » 

—  «Esão?» 

—  «isto  são  sete  horas,  o  muito.  Mas  daqui 
á  Calcetaria  ainda  é  um  bocado. » 

—  «Não. importa,  esperemos  as  oito.  Digo- 
Iho  eu ,  Thomé  das  Chagas ,  o  ultimo  cometa 
não  appareceu  debalde.  Prognostica  mortes,  guer- 
ras e  ruínas.  Veremos  aonde  tudo  isto  ha  de  ir 
parar!  Metteram  o  reino  nesta  guerra  por  causa 
doallemão. ...» 

— r«Do  archiduque,  segundo  diz  el-rei  de 
França  ?  » 

—  «Do rei  catholico ,  D.  Carlos  III ,  segundo 
diiz  em  Portugal  el-rei  D.  Pedro,  e  em  Londres 
os  seus  amigos  herejes. ...» 

— ^í<  Bem  mo  prognosticou  hontem  a  santinha 


Digitized  by  VjOOQIC 


26  A    MOCIDADS 

da  tia  Perpetua  das  Dores,  dando-irie  a  beijar 
o  rozario,  depois  do  terço  —  Thoihé ,  fllho, 
encommende^e  muito  a  Deus.  O  Ante-Christo 
corre  às  sottas  por  Híspanha,  e  de  Hispanha  a 
Portugal  não  é  dento  um  pulo. » 

— «Coitada  da  serra  die  Deus.  Oxalá  que 
assim  eetíio  ella  houresse  muitas !  Mas  a  culpa 
disto  sabe  de  quem  é  ?  Esta  provisSo  ha  de  se 
dizer  que  foi  feita  íio  Terreiro  do  Paço.  É  falso ; 
nSo  foi.  Donde  veio,  e  quem  a  dtctou  foram 
6»  padres  de  S.  fioque.  É  obra  da  Companhia 
de  Jesus. 

—  «  Pois  não  ha  temor  de  Deus  ?  Padre  mes- 
tre ,  esses  hereges  são  da  Companbiá  de  Judas , 
e  não  da  de  Jesus.  Mereciam,  Deus  me  perdoe ! 
que  lhes  queimassem  as  roupetas  na  fogueira,  e 
os  entaipassem  vivos  no  Santo  Ôffieio.  >r 

—  «  Thomé.  Não  diga  isso. . .  » 

-  —«Digo  e  affirmo.  E  ao  Desembargo  da 
mesma  maneira.  Eu  cá  arrastavaH>  de  carocha  e 
sanbenito  ao  primeiro  auto  de  fé.  >y 

—  «  E  o  presidente  da  mesa  também  ?  » 

—  «  Porque  não  ?  ReverjBndissimo,  quem  acom- 
panha eom  herejes ,  bereje  é.  >» 

—  «O  Dtíque  de  Cadaval ,  D.  f^uno  Alvaíres 
Pereira,  meu  senhor?  Exclamofi  o  poeta  que  ha 
bocado  roia  as  unhas  de  desesperação^  interróm' 


Digitized  by  VjOOQIC 


DB  D.  JOÃO  V.  27 

pído  poh)  dialogo.  -^-^  Nfto  é  no  presideiite  do  Dor 
^mbargo  do  Paço,  no  Duque  meu  amo,  que  o 
mochilla  deste  gato  pingado  põe  a  bocca  excom^ 
mungada  ?  Ouçamos  o  coUòquio.  Segundo  parece, 
promette  muito. » 

-«^tfThòmè  das  Chagas  «-^observou  Fr.  João 
que  se  tinha  rido  da  justiça  musnlmana  dq  digno 
milagreiro — sabe  que  mais?  Se  o  ouvisse  al^ 
guem  de  easá  do  Duque ,  ou  de  S.  Roque ,  Y . 
mercê  nSo  via  sol  nem  lua  na  eadôa«  Tome  um 
conselho.  Falle  menos  e  respeite  mais  os  padres 
da  Companhia  e  o  Duque  de  Cadaval. 

<«^<x Salva  nBo  bme  a  minha  alma,  padre 
mjQIrtre ,  se  eu  deixasse  de  fazer  o  que  disse.  Je- 
suitas.  Desembargadores,  e  judeus,  que  são  todos 
o  mesmo ,  levava-os  de  sociedade  até  ao  auto  da 
fé. . .  Quanto  ao  Duque,  oiço  rosnar,  que  está 
sendo  alma  e  correio  dos  herejes ;  e  apesar  de 
dizerem  que  elle  é  esmoler  e  temente  a  Deus , 
cá  para  mim  sei ,  que  nem  tudo  o  que  luz  é  oi- 
ro. . .  De  El^^rei  não  admira,  depois  da  doença , 
andft*^lhe  a  cabeça  á  roda. . « )i 

-«-^  «  Âh  mofino  judas !  Sezdes  te  peguem  — ^ 
rogio  o  poeta  exacerbado.--^ O  que  aquelle  sa^ 
iafrairio  desenrola  l  Felizmente  apanhas-me  de  pa- 
pel e  pentta^  Os  padres  da  Companhia  e  o  De- 
wmfanrgo  ao  luàie.  Bera !  Cá  escrevo.  O  Duque 


Digitized  by  VjOOQIC 


28  À  JttOCIDABE 

meu  amo,  alma  e  correio  de  herejes.  Nio  tenl 
duvida ;  cá  assento.  Em  fim  £l-rei,  nosso  senhor4 
que  Deus  guarde,  maluco,  ou  pouco  menos,  pois 
lhe  anda  a  cabeça  á  roda.  Fica  registado.  Deixa 
estar  meu  Longuinhos,  chupado  das  bruxas,  que 
vais  dar  um  par  de  voltas  á  roda  da  forca^  Deito 
já  a  correr  para  o. palácio.  Nós  veremos,  deixa 
estar ! » 

E  o  nosso  poeta^  assentando  o  chapéo  sobre  a 
cabelleira  com  o  punho ,  arrancou  a  trote  para 
o  Paço  do  Duque,  com  a  espada  a  bater^he  nas 
barrigas  das  pernas ,  e  as  abas  da  ampla  casaca^ 
enfunadas  ao  vento.  Ia  aos  pulinhos ,  e  cantaro- 
lava em  voz  esganiçada  estes  maus  versos  hespa- 
nhoes: 

Non  dirá  rai  Senor  Padre , 
Si  es  de  menor  sentimienío , 
Ver  muerto  ai  dueno  querido 
Que  ver-lo  en  poder  ageno. 

Nem  o  Sr.  Fr.  Joio,  nem  o  virtuoso  Thomé^ 
o  viram  atravessar  a  praça,  porque  o  primeiro 
olhava  ha  bocado  para  um  velho,  que  estava  alli 
perto  fallando  com  um  soldado,  e  o  segundo 
passava  miúda  revista  a  todas  as  peças  do  seu 
mealheiro.  Assim  o  nosso  Bernardo  Pires  esca-^ 
pou  ás  reflexões  dos  dois  respeitáveis  inquerído^ 


Digitized  by  VjOOQIC 


m  j>.  jolo  t.  29 

ires;  e  qual  outro  Ofestes,  vexado  das  fúrias,  for 
depositar  no  seio  do  escudeiro ,  seu  amigo ,  os 
segredos ,  que  lhe  enchiam  o  coração  de  fel. 

Entretanto  o  padre  mestre  não  tirava  os  olhos 
do  velho ;  e  este  a  passos  lentos  também  se  apro^ 
ximava  cada  vez  mais  da  portaria ,  conversando 
sempre  com*  o  soldado.  Â  vista  do  reverendo 
exprimia  assombro  e  uma  espécie  de  terror ;  o 
seu  espirito  lutava  cóm  a  memoria;  excessiva-* 
mente  abertos  e  sem  pestenejar  os  olhos  do 
theologo  não  largavam  o  recem-chegado ;  estu- 
dando<-lhe  feições  e  gestos  com  uma  tenacidade 
incrível;  via-se  que  o  Procurador  de  S.  Domingos 
duvidava  e  cria  ao  mesmo  tempo ;  observava-^ 
que  lhe  subia  do  coração  á  bocca  um  nome,  mas 
que  temia  illudir-se  julgando  impossivel  existir 
ainda  a  pessoa ,  a  quem  pertencera.  Eis  a  causa 
da  sua  curiosidade ,  sé  era  só  curiosidade  o  sen- 
timento que  o  agitava. 

Fr.  João,  por  fim ,  não  se  ponde  ter,  e  foi  di- 
reito aos  dois  homens,  que  naquelle  momento 
chegavam,  justamente  ao  cruzeiro  do  convento.  O 
Sr.  Thomé ,  apesar  de  ser  bem  pouco  feminino 
em  tudo,  herdara  de  nossa  mãi  Eva  boa  dose  do 
peccado  original,  e  tinha  terriveis  cócegas  de  es- 
cutar quanto  se  passava  á  roda  da  sua  veneranda 
pessoa ;' o  Sr.  Thomé,  pois,  como  verdadeiro  dis- 


Digitized  by  VjOOQIC 


30  A   KOaDADB 

cipulo  da  devota  Perpetua  dts  Dores ,  a  iiielh<^ 
bruxa  golhilheíra  do  seu  bairro,  foi^se  aproxi^ 
mando  pé  ante  pé,  com  passadas  de  IS,  e  ou-^ 
vido  â  lerta,  para  tentar  fortuna.  O  fociafafo  pie- 
doso do  aantan^  dava  ares  do  focinho  do  gato# 
quando  fareja  a  presa,  e  cosido  com  o  cha^ 
faz  a  policia  da  sua  gula,  para  quô  lâo  lhe  es- 
cape a  ceia.  Mas  por  mais  cauteloso,  que  se  mos^ 
trasse,  o  nobre  Thomé  perdeu  o  melhor  daseena* 
Peccou,  talvez,  por  excesso  de  prudência !  Á  sua 
chegada ,  já  estavam  conduidos  os  preliminares 
da  conferencia ,  e  o  padre  mestre ,  benxendo-se 
e  chorando  de  alegria,  já  apertava  nos  braços 
com  o  maior  extremo,  o  mesmo  vdho  espigado, 
rijo,  e  esperto,  que  lhe  causara  tamanha  sensa- 
ção apenas  o  vira.  O  Ândador  das  almas  foi,  por 
tanto ,  constrangido  a  contentar-se  com  a  parte 
menos  interessante  da  peripécia.  O  Procurador 
de  S.  Domingos  estava  perguntando  ao  seu  amigo 
Philippe  da  Gama  como  alli  viera  ter  direito. 

—  «Eu  t'o  digo  em  duas  palavras — respon- 
deu este.  Para  se  ir  bater  á  porta  duas  cousaa 
sao  precisas,  ter  casa  e  saber  aonde  etla  é;  Com 
mil  demónios !  Eu  estou  fora  ha  doze  annos ,  e 
sem  noticias  pelo  menos  ha  sete  completos.  Quem 
tem  bocca  vai  a  Roma,  diz  o  rifeo,.  mas  esta 
Lisboa  não  é  Roma,  é  uma  l<Aw ;  e  um  homem 


Digitized  by  VjOOQIC 


DãK  D.  JOÃO  V.  3t 

não  pó^e  andar  por  ella  toda  a  perguntar  á  gente 
que  vé :  «  faz  favor ,  dá*me  nçticia  do  sujeito  da 
capa  parda  ?  »  Por  tanto ,  puz^me  9  scismar ,  e 
eis  o  q^e  fiz*  Lembrou-me  o  meu  antigo  amigo 
Fr.  João  e  o  seu  convento ;  se  não  deu  ainda  os. 
fios  á  teia ,  ningueq^  melhor  sabe  ensinar-*me  a 
casa.  3e  morrão,  paciência!  Talvez  algum  do& 
frades  possa  valer-mQ  neste  apuro.  Vim  por  isso 
direitinho  como  um  fuso  ao  Rocio.  Na  rua  dos. 
Ot^ives  vejo  um  homem  parado  e  pei^unto-lhe : 
is  çpnhece  o  padre  Fr,  João  dos  Beme<ílo^  da  or- 
dem 4o  S.Oomingoa?  <tQue  resposta  cuidas,  que 
me  deu  o  excommungado  ? 

«  What  do  you  say  ?  » 

Era  inglez !  Safei-me.  Entro  na  rua  dos  eseu- 
deiros,  acho  outro  estafermo  embasbacado  para 
uma  porta ,  pergunto  o  mesmo ,  e  diz-me : 

«  Wím  verhngm  sie ! » 

Era  allemão.  Caspite!  Pernas  para  que  te 
quero^  Já  bem  azoado  chego  ao  {locio,  e  -descu- 
bro um  soldado,  fallo-lhe,  e  chapa-me 

M  €he  skíe  toi  pw  capo  di  Caio  Mário?  » 

*  Digitized  by  VjOOQ  IC 


32  [A  MOCIDADE 

Fiquei  varado!  Por  fortuna  passava  aquelfo 
soldadD  portuguez  ou  gallego,  que  n9o  sei  aindft 
o  que  é ,  e  com  um  boticão  arranquei-lhe  meia 
dúzia  de  palavras,  que  o  maldito  vendeu  a  tostão 
cada  uma. .  . 

Dize-me  Fr.  João ,  isto  é  Portugal ,  ou  que 
demónio  é  ?  O  que  anda  por  cá  cheirando  tanta- 
gento  de  todas  as  naçSes  ?  » 

—  «  Veiu  na  armada  dos  alliados,  e  está  chu- 
pando a  olha  da  panella  portugueza.  Edificam  a 
Torre  da  Asneira ,  e  fazem  a  confusão  das  lin-> 
guas ,  como  vés.  Vamos  ao  que  importft.  Já  ali- 
moçastes  ?  » 

—  n  Estou  em  jejum  natural.  » 

—  «  Então  vamos  á  mmha  ceíla.  Temos  muito 
que  fallar,  e  em  quanto  almoças  saberás  noti- 
cias. .  . » 

—  «  Haja  methodo ,  Fr.  João.  O  homem  não 
vive  só  de  pão.  Minha  mulher?» 

—  «Está  bem.  Inconsolável  com  a  tua  perda, 
e  chorando  seu  marido  como  deve  e  elle  me- 
rece. » 

—  «Obrigado,  Fr.  João,  muito  obrigado.  São 
favores!  Com  que  escapou  á  magoa  da  minha 
morte  aquella  santa  creatura  ?  Ainda  bem.  E  aa 
pequenas  ?  » 

—  «Louvado  seja  Deus,  esfôo  lindas  como 


Digitized  by  VjOOQIC 


t>E  D.  JOiO  V.  33 

doas  perchas.  Semente  a  mãi  queixasse  áe  que 
acha  a  mais  mva  um  tamto  leve  da  cabeça.  Vei^ 
duras  da  idade. » 

-^«Está  feitot  E  onde  está  ella?» 

—  «Quem,  Cecilía?)» 

—  i(  Sim  homem ,  a  mais  nova. » 

—  c<Metlei]ha  a  mai  em  SaiAa  Clara  no  mo^ 
teiro,  a  vér  se  educada  lá  assentam  dsí  eahe^. 
A  maisjelba,  tua  filha  Thereza^  tení  mnitb 
juízo  e  Tive  com  tua  mulhar  em  caza  do  eom- 
mendador,  do  tio  delia,  homem  honrado,  bom 
catholico,  e  menos  mal  de  bens  da  fortuna. » 

— «Hum!  ora  muito  me  contas.  Famoso! 
Veremos  tudo  isso. » 

— «( Não  tens  mais  pressa  do  que  eu.  Almoçai 
e  vamos  logo. » 

^*^fiiMeno  fima^  Fr»  Joáo,  como  diria  o  ho- 
mem de  Caio  Mário.  Uma  ressurreição  nSo  é 
obra  grossa  que  se  leve  assim  de  uma  corrida. 
Isto  da  gente  sãhir  da  cova  e  if  parecer  á  fa- 
milia,  é  j^oco  sadio. ..4  Não  quero  de^a- 
ças.  Demos  tempo  ao  tempo.  O  peior  está  pas- 
.sado.  »  . 

—  «Já  não  digo  nada ,  Philippe.  Tu  o  lés ,  e 
tu  o  entendes. » 

—  «Está  claro.  A  propósito,  disse  Philippe, 
virando  e  revirando  o  cjbapeo  aprezilhado  e  guar- 


Digitized  by  VjOOQIC 


34  À  itocifiÂM 

i^Í4lo  Ã  aotigni  '^  iMKles  âmrHÉoe  se  miÀeL  míl^ 
Hier  t«m0U  estado  ^m  abundai  oupcia»?» 

—  «  Ora  essa !  Uma  Senhora  TÍrtaosa  e  hcch 
Ibida!. .  Dms  td  feúàM^  Pbtf  se  te  idigo^  que 
ainda  não  deixou  de  cb^nat  »  tua  ialtâ. » 

—  «Âhi<  VÊmmo  é  que.»  pulga  jM^rde.  Não 
4[Osfto.  diB  feiitts,4is  fegrnii»^  nem  mésmor  da  que 
hft  ém  CbimlM. .  i  mUlfal»  que  dborà  nuita  Mi 
MMrtfa>  é  jNHrfne  jj^rwriíài  MtnK.  Acrodttfthiu^. 
£  se  diimteí  dcrtegulMlai  diora  •  primeifof^  qnei^ 
jlbe:n)^ttev  cidDMS.  AH  ^  jtftll  Entendo  ^  agera:  «i^ 
tendai;  o  tío^  aOámikeoiãdut^  fue  e&pmé  de 
homem  é  ?  Àpost0<  qui»  ainda  nãò  fat  cpiarenta 
annos^  e  que  choram  ambo»  a  minha  tm»rie^  éfH 
#aA€tt  )>aa?» 

— «  £  eu  sem  te  jperceber !  TeUs  iotèa.  Pèe 
m*ÍA  qiaaretitBi  e  acertai  a  idad^  dc^  Cemmen^ 
'dador.  »> 
.    ^*^  «  Oitenta:  aiitiM?  91         : 

u  -^«lEncàiS.  Poiay  atMeVesMse  aiiíeppov?» 
-  o^^Fr.  João^  nada.cfe  )uiãoa  ^làepnrim ! 
Viat0  eonftinttar  viuva  mttniia  mnlber^  e  lero»" 
tenta  annos  o  Commendador^  mudo  de  epiniia^ 
£m  abMfatido  ramos  de  pamie  toniar  pesse^ 
Servirei  de  procurador  aos  mena  íhHetèdo»  d^ 
reilos.  )>     . 

•^«Entíio  a<ás  be»  da  Biototitív 


Digitized  by  VjOOQIC 


BB  b.  JOÃO  V.  âo 

^^^  «  Fr.  Joôo  o  (fim  dizent  as  obras  de  mtsé-* 
ríedíáin  ?  Coiisokii  os  trisêes  e  ttsitaí  os  enfer- 
itvgís^  Y<mje  cmmM  os  triste». 

«-^«  Aniéaí  bem,  aiiidgt  bem.  Mas  ahnocemoo 
jprimeiro.  Èspere-me  Thomé,  ^e  eu  não  tardo. 
Tem  de  Yewt  ^  cartar,  cpie  lhe  disse,  k  Catee- 

^-^iiSitáí,  BéTesendisBino^  1» 

0  padre  sdbfin  è^ÍB  para  a  celía  con»  o  sea 
amigo  PkíUfqie,  e  o  nossir  aridador,  depoodo  e 
%m  àevêl»^  mdsõ  de  S.  Jofto ,  pltntoií-se  á  porta 
da  i^ja,  caçando  as  eàtá9]m  dos  fieis,  que  irnsi 
màtttdO',  oti  fne  vinham  entrando*  O  seiá  itf 
cMipui^ido  e  focinho  penitente  eram  um  tman 
ftbeiiçoado ,  qiie  âiuaca  deixava  de  atraMr  a  pie* 
dade  das  iíeMas  ^  sobre  tudo  á  das  v^as  e  |u« 
bihidas; 

Neste  moniftntò,  o  homem,  que  no  capitulo 
imteeodi^te  deixarmos  eseoiriíão  com  tanta  cau*- 
táls  alta?  da  píhtstva  do  primeiro  arco,  safaiu 
do  sai  pouso  a  farta-^ássof  toreen  pelas  costas 
do^  milag^iffOi  e  pt^ndo-Uie  de  teve  a  mão  n0 
líonsbro ,  disse  com  grande  saavidadOi 

—  « Irmão  Thomé ,  p«M5  Chrísti  !  % 

^mú  cobra ,  tevaotsuda  aos  seus  pés  de'  t^é-= 
peiile\)  lâi»  fazia  dar  ao  andridor  ctos  aknas  t^ 
inanfao  p«lo^  como  elle  dèu,  nem  o  obrigava  a 


Digitized  by  VjOOQIC 


36  À   MOCIDADE 

YÍrar-se  logo  com  tantp  sobresalto.  Âquella  era 
a  saudação  usual  da  Compahhia  de  Jesus ;  restava 
saber  se  também  seria  Jesuíta  quem  a  dava.  Era ! 
A  palidez  do  Sr.  Thomé  não  se  enganava.  Via 
diante  de  si  a  fatal  roupeta. 

O  Jesuita  mostrava  setenta  annos ;  os  cabellos 
eram  raros  e  brancos  como  neve,  naquella  ca- 
beça ,  que  tinha  a  puresa  e  a  poética  inspiração 
dos  mais  bellos  typos  do  apostolado,  como  os 
concebeu  o  pincel  dos  grandes  mestres. . .  Al- 
guma cousa  curva ,  a  sua  estatura ,  apezar  disso , 
parecia  elevada  e  magestosa.  Segundo  se  via ,  a 
idade  carregando  sobre  ella ,  e  ainda  mais  talvez 
os  trabalhos  do  que  a  idade ,  inclinavam  a  fronte 
para  o  chão ,  como  a  arvore  antiga  se  descabe  do 
tronco,  e  quebrando-se  a  pouco  e  pouco  vem 
beijar  a  terra :  mas  nos  momentos  de  ardor  re- 
ligioso ,  ou  de  enthusiasmo  vivo ,  a  fronte  do  Je- 
suita, sabia  aliviar-^  do  pezo,  e  sacudindo  os 
annos  como  Lazaro  o  sudário ,  era  capaz  de 
se  levantar  orgulhosa  e  firme,  de  um  impeto 
juvenil,  pondo  nò  céu  a  vista,  a  esperança,  e 
o  pensamento ,  e  doirando-se  nestas  occasiões  de 
um  resplendor  particular. 

A»  rugas ,  cruzavam-se  na  testa ,  cujas  entra- 
das altas  iam  per(fer-se  nas  raras  madeixas  pra^ 
teadas ,   que  se  annejlavam  ,  acompanhando  o 


Digitized  by  VjOOQIC 


DE  D.  JOÃO  V.  37 

rosto,  cujas  feições  nobres  eram  sobre  o  com* 
prido,  cujas  foces  eram  desmaiadas  da  palidez 
usual  nos  que,  vivendo  de  mais  a  vida  do  espirito, 
trazem  estampados  no  rosto  os  cuidados  da  intel- 
ligencía.  Ainda  belios ,  eram  pequenos ,  mas  ex- 
pressivos os  seus  olhos.  Meigos  no  repouso  do 
animo ,  e  um  pouco  tocados  daquella  doçura  trans- 
parente ,  que  sabe  afiar  a  vista  e  enturval-a ,  para 
ferir  ou  esconder,  podiam  illuminar-se ,  que- 
rendo ,  e  reflectirem  nas  chamas  concentradas  ou 
em  relâmpagos  terriveis  6s  vezes,  toda  a  elo- 
quência da  paixão ,  da  cholera  e  da  amizade. . . 
Nestes  momentos,  pouco  vulgares,  era  uma  trans^ 
figuração  completa :  remoçava-se  a  phisionamía , 
apagavão-se  òs  signaes  da  idade ,  o  corpo  crescia 
magestoso,  a  cabeça  pousava-se  erecta,  os  olhos 
ardiam  mais  e  diziam  tanto,  como  os  do  man- 
cebo mais  novo  na  existência  e  mais  forte  nos 
trabalhos. 

Ninguém  tão  simples  e  affavel  como  o  padre ; 
os  seus  braços  estavam  sempre  abertos  para  to- 
dos ;  o  sorriso  dormia  e  accordava  com  elle ;  o 
corado ,  morto  para  o  rosto ,  e  a  alma  sem  es- 
pelho na  vista ,  se  gemiam  ou  se  allegravam ,  era 
dentro  de  si  mesmos ,  longe  do  exame  e  da  in- 
discrição dos  homens.  Aquella  face  passiva  e 
risonha ;  aquella  voz  igual  e  sem  paixão ;  aquelle 


Digitized  by  VjOOQIC 


3S  "^À   MOGIOADff 

dfatr  iram^^nte  «  «em|ire  tKo  fuoáo  que  bío 
deixava  e&treyer  um  ^egredo^  eram  ab]»mo6  aonde 
perdia  o  esludo  e  a  aBal]f«e  o  ^baervador  mais 
fiagaz.  A  irosÉad»  fazia  o  pader  do  p^tã ;  t  á 
lerça  de  yonlade,  paca  veneer  ^  «miífos.,  prifiár- 
fiioM  Teeeendo-se  a  si.  Nunoa  &  aembbdnte  Iw- 
«iittio  fai  iiina  mascara  tão  perfeita ;  ivaucm  nifH 
guem ,  antes  ou  di^ifi ,  soube  eseravispr  ikiat& 
aespotjcamente  o  espírito  e  a  nofeer^. 

Só  uma  oaifia  pào  sabíii  ocefdtar  :  -^o  gmo  \ 
Poucos  seriam  mais  fauiaiidi»,  e  apesar  diaso^  e 
talvez  por  isso ,  era  tal  a  dignidade  do  aeu  porte , 
as  suas  maneiras  respiravam  tanta  grandeza,  diH 
quella  que  vf  m  ife  Oieus ;  e  mesaio  aereoa  «  de  pro- 
pósito apagada ,  a  sua  vista  raiava  com  iai^  por- 
der ,  que  sem  o  oonfaecerem ,  quantos  o  vian  ín- 
clinavám-se  em  espirito  diante  delle ,  advidbanda 
um  desses  homens ,  que  sio  potencias  da  torra 
por  ordena  e  lei  da  intelligencia ,  como  o^  rei^ 
peto  direito  do  sangue  e  do  nascimento. 

Ao  andador  das  almas  foi  o  que  sueeedeu. 
Apenas  o  enearou ,  e  viu  fitos  noa  seus  os  oibofi 
do  jesuitâ,  dizendo  tanto  e  pareoeiído  inertes^ 
apenas  sentíti  aquelle  soiriso  fino  deseer^lbe  do 
rosto  á  alma,  e  tocar-lha  no  mais  intima,  a 
fndo  posta  de  leve  pareceu-lbe  que  pesava  ^  seu 
bombro  como  uma  torre;  e  abysnuidio  paaçoti 


Digitized  by  VjOOQIC 


hu  n.  JoIo  y .  39 ' 

Ioga  de  roxo  a  azul  ^  e  de  azul  a  cor  de  en- 
xofre; em  doas  segundos  a  cara  prodigiosa  da 
saatarrão  parec4a  um  arco  irijs  na  variedade  dos 
cambiantes.  Entretanto  sua  paternidade  não  lhe 
dizia  mais  do  qiie  isto : 

^-^« Filho,  vi  dalli  e  ouvi  tudo.  Sabe,,  que 
gostei  muito  do  seu  inod<o?  V.  mercê  foi  bem, 
foi  optiniamente*  Quer  dar-me   unia  palavra  ?  » 

Porque  o  seguiu  q  Sr.  Thomé  sem  resistência , 
mudo  cúím  um  4efuncto^  e  cambaleando,  coma 
um  ébrio  ? 

Porque  a  Companhia  de  lesus  era  aquelle  pa- 
dre. Impenetrável  nos'designios,  suave  nas  fal- 
ias ^  mas  terrivel  uas  obras  l 


Digitized  by  VjOOQIC 


Digitized  by  VjOOQIC 


CAPITULO  III. 


UM  RETRATO  EM  VM  CONVENTO. 


No  princípio  do  século  passado  toda  a  Lisboa 
corria  ao  mosteiro  de  Santa  Clara ,  de  religiosas 
seraphicas,  attrabida  pela  sumptuosidade  das  func- 
coes  divinas  e  pelo  agrado  seductor  do  locutório. 

Âlli  desciam  as  devotas  bellas  t9o  compadeci- 
das ,  e  brilhando  com  tanta  graça ,  que  o  mundo 
desmaiava  ao  pé  da  sepultura,  aonde  os  olhos 
das  defunctas  eram  tSío  lindos  e  sabiam  dizer 
tudo!...  Segundo  affirmam  os  poetas  contempo- 
râneos ,  a  prisão  dos  corações  do  calipba  Haraun- 
Areschild ,  não  era  nada  ao  pé  do  encanto  dos 


Digitized  by  VjOOQIC 


42  A  VOCIDÀDI^ 

maviosos  sorrisos ,  que  os  seduziaiiL  £  a  yerda<fe' 
é  qw  aiada  hoje  xescemiçaí  aos  perfomes  frei- 
raticos  aquelles  sonetos  e  glosas,  em  que  os  vates^ 
accesos  na  sacfa  chamma,  refinavam  a  vida»  muita 
mais  ideaU  que  a  ronceira  existenoia  desta  época 
de  prosa  ruim  e  de  algarismos  falsos^ 

Estavam  então  em  moda  «cos  amores  freiratí^ 
cos  »  indigno  termo  applicado  por  legulejos  mal 
creados  á  casta  adwação »  que  ardendo  sobre  si 
mesma «  se  conmví^  em  vwfam%  não  ousando 
profanar  o  objecto  querido.  Pelo  menos  assim  ex- 
plicavam os  amadores  estas  embiocadas  paixões, 
tão  melindrosas  como  sentimentaes.  Se  era  ista 
só,  ou  alguma. CQiisa  mais «  que  responda  a  cons- 
ciência delles ;  a  minha  ha  de  suppor  sempre  a 
melhor. 

Mas  el-rei  D*  Pedro  ç  ç3  ;rabji;^ntas  miiiis- 
tros  do  seu  con^elbq  ^  Siímny  das  paixdes  f^rjsipbi- 
cas  qoisas  capazçs  de  eirifiôr  os  cabellos  *  um 
cçtssaco  do  Wolga !  Coipo  a  raposa  achava  ^s  uvas 
verdes ,  elles  achacam  immoral  a  pasmaceim  na 
locutório ,  e  deitaram  um  alvarA  contra  os  Nar- 
cisos da  clausura,  que  levantou  alaridos  medonhos. 
O  efiteito  da  ca^ancuda  lei ,  como  era  de  espe- 
rar, foi  salgar  mais  o^to  aojieccadfi^  (se  pec- 
cado  haWa)  com  a  desãiediencía  putdica.  A  ala 
dos  freiratico^  namorados  ficou  Qrme,  juranda 


Digitized  by  VjOOQIC 


9B  Oi.  ãmo  V.  43 

eEtennkar  os  oMíiiidias  e  ateiides  alé  A  qiiiotA 
^erafãD*  Aswii  a  fietnsoídade  tliQfi^gK»  dê  «u» 
mogcstade  serviu  apews.  para.empMt  de  uma  ih»- 
vem  de  fMpma  e  aatg^  os.davQtoi  (^Mleiras 
do  sen  cpinêlMii  cfejio,  Mlmaii«  é  jfí^9  wwMe 
4a  josti^ii  ( «  aa  Iratai  tmmpaaa-^  ^ueôoiaa  eoDr 
iiainsiim  a  inr  «honar  á  grade  mwi  osfiareiítes  a 
iyraafláa  Iwata  da  1^ ,  aomlmda  Mnpve  daa  |ifr- 
\»a6  da  fanatíoa  dw»É>ia. 

£  aomi  aia^iiaaia  ét  aucaoilar  aaaiiii?  Erain 
tlíodelicadea.Qa  aeíôa  que  o  bmial  eastig«vA,  e 
(do  SaQtfli  aa  faoea  f  w  a  cioaa  toalfaa  aroartalbava ! 
9feo  leria  grande  crueldade  «abrigar  eabelba  ca- 
pthu»^  tio  cedo  «aftei^adaa  em  ^a,  t  lompcrem 
de  (èdo  oom  o  ieealo?  IVirque  e  fiara  que?  Sfe 
hem  aerviani  a  Deaa ,  qae  mà  foitiam  as  imor 
ceotea «  ottiande  par  àivtnofM  pnia  tMi  dnaa  hòr 
ras  peca  o  mmda?  Ê  certo,  que  nen  eBa$  ful- 
giam ,  e  alguma  alé  deaejavft  engaMar-ae  de  loBge 
que  iaaae ,  eom  a  iua  iaaagem;;  oem  os  homens 
deboairam  as  portas  à»  papatao  aonde  môratam  An- 
jos tão  meigos  e  amigos  da  teira.  Reinava  atb 
am  aoda  a  fevça  o  y^tso  de  Ciaelhe^ 

aimor,  ésimmartel!  $&w»  m&ouofml^ 

As  memnrias  do  tempo  nm  cbeía6:destas  pair- 


Digitized  by  VjOOQIC 


44  A  mocidadk 

xões,  Qorês  sem  finícto,  todas  gelo  por  tira  como 
a  sepultura  em  que  se  crearam ;  mas  ainda  quen- 
tes por  dentro  do  incêndio,  que  as  abrasou.  Sé- 
culo singular,  em  que  as  dores  excmciantes  do 
amor  se  consolavam  com  a  severidade;  em  que 
a  espiritualidade  do  aflfedo  imperava  scdire  os  sen- 
tidos!... Escrava  dos  impossíveis  sentimentaes,  a 
poesia  procurava  as  trevas,  cantando  em  um 
limbo ,  donde  a  esperança  nunca  descubria  o  ceu 
por  mais  que  subisse,  aonde  os  anjos  nio  podiam 
trazer  a  redempc^o  for  mais  que  descessem ! 

E  apesar  disto  eram  felizes  ou  julgavam  sèl-o. 
Podesse  fallar  a  sombra  de  D.  Joto  V ,  do  rei 
freíratico  por  excellencia,  que  ella  o  diria.... 
Quando  o  SalomUo  portuguez  buscava  o  devoto 
asylo  do  mosteiro  de  Odivellas,  a  magia  da  soli- 
dão era  grande,  pois  tão' adormecido  se  esquecia 
alli ,  e  tanto  a  custo  o  arrancavam  delia.  Destas 
viagens  ao  ceu ,  como  rei  discreto ,  D.  João  V 
guardou  segredo ;  e  dos  contos  que  o  povo  fez  y 
e  do  mais  que  então  se  disse ,  só  Deus  sabe  a 
verdade ! 

No  anno  de  1706,  todos  os  dias  sobre  a  tarde, 
bellos  ranchos  de  fidalgos ,  mais  ou  menos  nu- 
merosos, saiam  pelo  postigo  do  arcebispo,  e  vi- 
nham, de  galope,  desfillar  ao  adro  de  Santa 
Clara.  Á  mesma  hora ,  também ,  as  jeiozias  do 


Digitized  by  VjOOQIC 


mosteiro  deixavam  etitrever  as  lindas  ca{»tivas , 
que  nSo  se  cançavam  de  applaudir  o  garbo  e  a 
destreza  dos  cavalleiros. 

Até  á  noute  recebiaiiHse  as  visitas  no  locutó- 
rio ;  depois  de  escurecer  tudo  vmha  para  o  adro 
illuminado ,  que  era  õ  theatro  desta  corte  primo- 
rosa. O  mote  erusava-^  com  a  glosa ;  as  palmas 
do  repentista  inspirado  com  a  estrepitosa  ovaçSo 
do  seu  antecessor.  Â  serenata  interrompia  o  ma- 
drigal ,  e  o  solau ,  acompanhado  á  viola ,  suíFo- 
cava  o  pomposo  elogio  de  ignorada  deidade.  O 
soneto,  o  poema-rei  destas  palestras  de  Apollo, 
ou  sem  sabor  ou  sibilino,  coxeava  atraz  do  con- 
ceito obrigado.  As  freiras  de  cima ,  e  os  cava- 
lheiros do  baixo,  ligavam  aquelles  alambicados 
trocadilhos ,  favos  de  mel ,  libados  no  fanokoso  li- 
vro dos  « Ghristaes  d' Alma. »  Nada  igualava  as 
delicias  destes  serões  ao  divino,  em  que  a  re- 
clusa, pondo  a  vozinha  em  ponto  de  rebuçado 
para  engraçar  mais,  lembrava  o  aehrostico,  esse 
terrivel  «  capo  lavoro  »  do  outeiro ,  ciyo  enigma 
ajustado  e  decorado  entre  a  musa  e  o  vate  can- 
tava as  finezas  de  um  novo  Petrarcha  aos  ouvi- 
dos nada  cruéis  da  segunda  Laura. 

Choviam  entSo  em  manná  de  abundância  so- 
bre o  pamaso  ambulatório  os  papeliços  de  pasti- 
lhas e  os  gulosos  fartes  com  o  sabido  sobscrípto 


Digitized  by  VjOOQIC 


46  A  liottMIMê 

dé  e^fMMf  ágttáésas  gid|mM^  é  Âlai  iiJoci> 
ea(k)5.  D^  ôrdíiMârio  a  deipeM  poética'  dky  òateíM 
era  feita  peia  imagiiiaçM  AtgsÉhi  de  ãoBÍÉtos 
Elpínoí  i  dilMMg  psr  fe^fcm  eftni  $b^  sia»  pen- 
na^  89  graMlai  loqtiaMS ,  a  pfe$a  àt  una  easan 
ou  de  um  janltf  . 

Ife  taiPdé  é»  masai»  dttfr  ê*  <pi6  o  9dI  Haaeâi 
Oo  aata^  (Mra  0  oam^nli^def  Sk  Daningaar  a» 
n<)i^iça9  e  adUcandas  do  opufetito  imrteiro^  as^ 
settlada9  em  «slvado  Mm,  nas  dkteitoflas  M«aaH 
das  que  civcmidaipafli  as  |aidnis  è»  daosdoy  so^ 
Rhavam  eam  a  kata  apeleeida  4»  le  dahàr  m 
cèRtwa  pefo  pasMfia  da  laide.  limas:  daffodta  daa 
outras,  esílaa  lanutam  o«  eesimí  ftwwimas  Mn» 
^ias ;  aqaeHM  botdavam  de  branco  oa  de  ímn 
tíz ;  e  algamas  ftaiam  as-reidi»  á  fran^aia^  eternri 
diese^pera^o'  dM  bHroa  €0ii«eia|Ma*ea8^ 

Da  doa  poltrona'  de  pair  sento,  <*otti  aàsei^ 
de  moBcovift  e  espaldar  esguia,  c^aifC^Jacto'  de'  pvc^ 
go6  amareHoS)  a  soror  regétita  éspiíeÉtaaa-  im* 
cima  do  lí«rro  e  por  debaii»  dm  òcíàm  a  iiiquíiãte 
fAalatige  <so6íiáda  á  sua  vigílaum.  E  apesar  èa 
seiot  MMmetí^  à^  teaetatel  iMdre,  e  erii 
despreso  da  sua  a«eto»Íd»diB  ^  o  cbUreada  marami^ 
riiibo  de  risilês  é  de  vMes  tii^  parava.  A  éenspírà-' 
çto  trama^ar^aevicisAio  eta  faoe  di^podie»  (ieapottol^ 
tio  sefero  èm  iégèt  aquéSe  po^  fasiiiiinai. 


Digitized  by  VjOOQIC 


á  etdeira  da  regente^  mm  ttajam  o  habilD  ^  o 
^yeH  branco  d»  mmifBS^  e  a  ootra  veMia  à  M^u^ 
hr^  com  elegante  s^frii<;tdaàe.  Aymêlla  i^egral, 
t|ae  afaria  paf«  a  vavanifov  e^via  ao  meio  detlaâ, 
€  por  isBo  oa  dmiílí AanA»  os  boràiâQsy  ou  fal^ 
hrsiú  ente  si^  e!9|NamcHiiii  a  vista  jpeto  ^o  e 
jMte:  ftxm  9^  «aèliic&Aií(Í0^  M^tfo  inor  tífliida  e 
'SQove^  que  iy  o  deMta  daa  iU^dencias  iMimas 
^^basr  ami^s  foT»iom>r 

k  secufaor  tem  dí6iaBei9  aânoi»  q;aa«i4o  m»(o, 
«e  dira  Cecitía  ^  a  filha  da  Fil^ipe  da^  Gama ,  de 
quem  o  ar.  Fr.  M^  iiltifaa^  8e«  aâtiga*  amigo, 
éándcHlbe  motàism  àef  eatô»  A  névi^a  cbmiavflHse 
Cafliarfaia  dfe  AitÍMii(te>  e  porteneia  a  mia  femi^ 
fia  pokrê:,  pasÉm  ilki^e  da  eòittet  perdendo 
Bua  mãe  on  tettfa  klodd  mtim  pafa  o  eoavento 
ée  Mie  afinoB^  a  ei^ttir  ^  Mmptf  da«  pi^ofiss&o. 

Geôlia  era  ma  tanto  baka ;  tíite  «iqiieUa 
^estetBÉa  qiia  6  fefça/  A^  fffimoda  e  deHcMda  pareee 
frágil  nas.  donarila»;  qu«:  á  muiiler  feita  acerei 
«eaílft  mn  atraetifô  aMs^,  fuaiídit»  a  symetria  das 
ynoporçdeB  lhe  realça  a  gi^aça.  A  tl^iliilídade , 
«9SI  fpie:  o  cof po  cedia  eém  dfésteijt^  natural  à» 
aiaia  6apriohc(sa&  ondulações^  («vestia  óa  seuâ  me- 
iMPes.  gestos  t  menema  dte  ínfiniâi  gmiièt^. 

O  tesfc)  n&oliaèa  a  pareM  seria  e  q^m s^ 


Digitized  by  VjOOQIC 


44B  ▲   XfOCIDADE 

pre  fria  do  typo  clássico ;  era  aniiaado  da  eiqsres- 
são  meridional,  menos  correcta  e  mais  ideal, 
cuja  mobilidade  reflecte  a  alma ,  e  traduz  a  vida 
em  toda  a  opulência  juvenil.  Â  tes,  sem  ser  da 
alvura  deslavada  e  marmórea  das  ruivas,  era 
branca  ,  porém  a  miúdo  illuminada  das  rosas 
transparentes,  que  acende  a  menor  comoção  do 
sangue  ou  do  espirito  na  phisionomia  portngueza. 
As  posições  da  cabeça ,  com  o  requebro  da  mais 
casta  voluptuosidade ,  exprimiam  sempre  alguma 
cousa,  na  graça  e  no  abandono  quasi  infantil, 
em  que  se  esqueciam.  Pequena  e  engraçada  a 
bocca  não  se  descompunha  com  o  riso  solto ,  que 
tanto  desforma  a  formosura,  abria-se  como  a  flor 
abre  o  botão ;  e  se  podia  ser  accusada  era  do  re^ 
cato,  com  que  escondia  de  mais  dentes  admi^ 
raveis  pela  igualdade  e  pureza  do  esmalte. 

Sobre  o  coUo  pousado  em  toda  a  riegancia- 
grega,  verdadeiro  collo  de  garça  dos  poetas, 
brincavam  em  spiras  luxuriantes  os  cabellos  cas^ 
tanhos  cendrados.  Uma  fita ,  posta  em  bandó , 
retinha  as  tranças,  que  d^is  de  emoldurar  e 
rosto ,  esperguiçavam  os  anneis  perfumados  pelo 
mantinho  de  seda  preto,  que  tanto  fazia  sobre- 
sahir  o  mimo  e  alvura  da  pelle.  Os  cabellos  as- 
sedados,  que  soltos  arrastavam  pelo  chão,  apa- 
nhados na  coroa  de  uma  cabeça  do  mais  per- 


Digitized  by  VjOOQIC 


M  D.  JOÃO  V.  49 

leito  modello ,  pareciam  seguros  apenaà  por  nim 
rosa  branca  ^  seu  único  enfeite. 

Vendo-se  o  pé  estreito  e  arqueado  dir-se-hia 
que  só  alcatifas  saberia  pisar ,  tão  breve  e  subtil 
se  pousava  no  chão.  As  mãos  na  brancura  trans* 
parente ,  azulada  de  vei«s  fínissimas  e  esfumadas^ 
ttiofitrav&m  aquelle  melindre  aristocrático ,  que  é 
a  sua  belleza.  Os  dedos ,  de  um  côr  de  rosa  ti- 
bh  ,  afilavamHse  nas  pontas  com  o  geito  provo- 
cador^ que  faz  julgar  a  vida  paga$  sentindo-os 
castos  e  trementes  entre  outros  dedos  extremosos. 

Mas  o  prestígio  áà  vista  é  que  lhe  dava  um 
enlevo  irresistível.  Eram  negros  os  olhos,  não 
daquelle  preto  escuro  e  firme  ^  que  só  diz  impé- 
rio ;  mas  do  outro  preto ,  também  fechado  como 
a  noite ,  mais  raro  ainda ,  que  fuzila  reflexos  azu- 
lados, por  eifeíto  da  luz,  subindo  a  iuilamijniar 
a  pupilla ,  e  rosando-se  ao  atravessar  o  claro  es- 
curo da  orbita.  Debaixo  de  sobrancelhas ,  dese- 
nhadas com  estrema  pureza  em  arcadas  de  uma 
curva  ideal,  ostas  pupillas  assetinavam-se,  ba- 
nhando a  vista  em  brilho  cristalino,  e  húmidas 
de  fluido  siiave,  vinham  sobresaltar  a  alma,  in- 
sinuando-se  no  coração ! 

Era  fascinadora  e  invencivel  a  sensação  elé- 
ctrica de  taes  olhos!  E  ou  os  seus  raios,  avelu- 
dados nas  sombras  das  pálpebras,  temperassem 
4 


Digitized  by  VjOOQIC 


oO  k  MOCIDAME 

«  int«mi<i«de  da  Itu ,  ra  na  saa  magnética  btànê»^ 
parencía  se  accendette  t  fogo  da  paitik^,  é  Mto 
<(ae  diiia  tanta  coufti  raira  à  tonhura  ^lles,  é 
fMvavel  4ue  fosse  tSò  terrível  a  M^<Mt5  ^  tnn 
ira,  què  depois  de  ifistM  omii  tei»  fieafam  lúP* 
dêâdo  «"alma  j^  «Mipe. 

Nenbnma  pl^rase  pAde  ekprimif  a  melattoMki 
ééleste,  qoé  tomatam,  ^qtiattdo  tneio  adonnecl- 
d6s  è  elevafido-êe  lânguidos  pftm  o  eèiá^  pftrecisfli 
subir  èm  um  raio  de  «^1 ,  e  fi^rdefMi-M  eem  elle 
M  infinito.  A  graça^  à  fteduoffio»  é  o  império  fil^ 
^iftador  de  taes  olhoê,  mais  ^Mbe»  do  que  pe- 
ninsulares ,  mais  de  israelita  <iiie  de  cireâssistia , 
sem  as  eovinhas  arredòfidftdes  aos  éanios  dâ  m^ 
rituosft  bo(^a ,  sem  «  animação  d«cpielltt  portil^ 
gttèzes  feições,  faria  Suppor  que  o  Iwça  de  Gè» 
eilia  èra  um  rosal  de  BÂgdnd,  o»  mais  ^«Mo^ 
aigmn  oásis  da  Palestina. 

O  justtihò  òom  guarftiçdes  de  lelílha  ^  vMfè&^ 
lando  o  seio  virginal  ^  apert&va  sobre  â  esbelta 
eifitura,  deixando  advinbar  formas  elegantes, 
que  *  idade  detia  sfttedondar.  Se  no  coi^  ^  eomo 
}á  d^,  predominais  o  mimo  delieado  e  um 
pouco  frágil  da  flor ;  a  perfeição  de  afguns  con- 
tornos ,  e  á  expresslo  de  outros ,  revelavam  já  em 
muitas  cousas  ámulber,  cujabellefea,  rica  de  setVi 
é  ainda  tenra  e  melindrosa  de  músculos.  OlbMidtt 


Digitizedby  VjOOQIC  ' 


it  U.  Jõ5l(>  V.  SI 

^j^  f^ltíyté^^bêttíff^  o  tosta,  %è  âà  pai-- 
tè^Wt^iiíl^iftf  iattÂdiÊ^  â^  com  dlis; 

que  o  sangue  impetuoso  seria  prompto  é^m  in^ 
lMftÀ«íMf-($  dofá^;  é  ^Uè  oá  olIkiS)  agora  sère- 
«d8r^iA6aib«t^  VolfêBBMi  ii^adès^  j^detia^  fti- 
iílÊ»'mí  ai«íi4K|«ftM;e^  mm  ns  tem^^estadeà  d'almff. 
-í- »».  €áft»iiift  de  Alfeôldei  à  tíotiçâ ,  êfa  for- 
HlO&a  (iiMlieiÉ ,  pyrèm  de  tittà  k^Ietá  mái»  $e^ 
i«fèp.  A«  lei^  ifitMto  r^tare»  é  delíeôdas  ti^ 
^Mm  Wí^  mtíeà^áé^t  ^  iMun^ft  pespoito.  Wb 
imb;  ê&mpm  pftlíMo,  p^ocb  dá  afma  ^  i^eflè- 
4Âíá  i  á  li^nqtiíHlUtoâé  efa  A  áâa  èxpr^o  úídf- 
il«ria.  A  M  ám  òlhféi,  civi  ({ue  bfi)t»áVa  d  fíno 
«  cIbí^  miA  dà  tofAira^  flArei^^  ui«i  tafyto  frocisct^ 
tStn^aiafétà  fèOèxtVâ  ^iii«láCSo  a  «[lié  oâ  ac^i^ 
ttfitvfi^â/^d  nmisdi  rm^hi^tn  ób  segrede»  mais 
iiflílínté^  db  tibn^.^A  eáláluta  íiSt>  era  «cima  da 
líl^&l^  ihtts  é/seu  Ardii  tiobresa  ittn  potioo  p&t-^ 
pendicular  a  fazia  suppor  uma  ou  duas  lifihas 
^Bh  eM.  Afs  msi^  hòíúte^  apesar  dé  magraá ;  e 
4(  @ôè  «la  |)6llè  tit^atífé  ft  ãlt\itft  fria  âfeiâ  is&iirâft, 
i$MipIé«»Vitm  «  ffti^tytíoiftfã  dá  liOViçã^  |4li»i)6^â<]^a 
i^rfe^  gl^e^-^wco  é^s^sitd^  é  j^r  isso  Mesmo 
i«ri(c»ttdo^  Ulfli  earácftèr  6^t  ^  mmit  áisétos 
pbtm^i,  e  de  IMfM*  diéll^g,  i^e^hà^  infeliz, 
^ôtti  §6  buiAtehr  áíè  m^ènor  ^teuiwe.  A  opjw^i- 


Digitized  by  VjOOQIC 


S2  A   MOCIDADS 

e  a  terna  e  concentrada  amizade  de  Cathartnt 
era  sem  duvida  a  verdadeira  causa  da  intimidade, 
que  as  unia. 

D.  Catharina  de  Athaide  podia  ter  maia  do» 
annos  do  que  9  sua  amiga,  mas  a  experteacia 
da  reflexão  é  precoce  quasi  sempre  em  earacte*^ 
res  como  o  seu.  Costumada  a  conter-se  e  a  ob- 
servar, nunca  cedia  ás  sensações  repentinas,  des^ 
confiando  muito  de  si ,  e  não  pouco  dos  outros , 
também.  A  honrada  pobreza  da  sua  casa,  cuja 
fidalguia  fora  desattendída  pela  ingratidão  real , 
í^ervia-Ihe  de  estimulo  para  redobrar  o  resguardo 
do  seu  tracto.  Se  vivesse  em  opulência ,  a  bon- 
dade do  coraçSo  inclinal-a-hia  á  convivência  fa- 
miliar das  outras  meninas ;  mas  com  a  sua  es- 
treiteza de  meios  intendeu  que  devia  ser  cortes 
e  agradável,  sem  esquecer  o  sangue  donde  pn^ 
cedia,  nem  permittir  aos  outros  que  o  esqueces- 
sem. 

Com  Cecilía  dava-se  a  excepção  única,  admit- 
tida  por  D.  Catharina  no  seu  invariável  systema. 
Á  educanda  soffria  e  perdoava  tudo.  Com  a  im- 
petuosidade de  génio ,  que  lhe  ei;a  natural ,  a  fi- 
lha de  Filippe  da  Gama  ria  e  chorava  sem  mo- 
tivo ,  e  quasi  sem  provocação ;  e  momentos  de- 
pois passando  da  altivez  á  humildade,  e  do  des- 
dém á  compaixão,  não  sabia  explicar  a  rasão  des- 

Digitized  by  VjOOQIC 


D£  D.  JOÃO  V.  dS 

tas  variações.  Como  acontece  ás  vezes ,  enganar- 
se-bia  com  ella  quem  tomasse  a  sua  exaggerada 
sensibilidade  por  indicio  de  fraqueza  de  vontade ; 
debaixo  das  apparencias  de  leviandade  encobria 
grande  firmeza  de  animo.  Um  pouco  dada  á  tra- 
vessura e  à  malicia  do  epigramma ,  e  viva  como« 
fogo,  Ceciliaera  o  idolo  do  convento,  aonde  to- 
dos a  adoravam. 

Julgando  seu  pae  morto  na  índia  havia  sete 
annos ,  amava  a  mãe  com  um  extremo  arreba- 
tado,  e.  tinha  ao  commendador  uma  aíFeição  quasi 
filial ;  este  pela  sua  parte  idolatrava  a  «  menina 
bonita*»  e  não  podia  passar  um  mez  sem  a  vér. 
€om  sua  irmã  Theresa,  Cecilia  parecia  mais  secca 
e  reservada,  o  que  procedia  do  ar  de  auctoridade 
com  que  a  mais  velha  a  aconselhava  em  muitos 
casos.  No  fim  de  tudo  tinha  um  coração  de  oiro, 
ainda  verde  das  illusões  da  mocidade ,  ainda  vir- 
gem nos  infinitos  thesouros  de  abnegação  e  sen- 
sibilidade ,  que  o  enriqueciam.  Àquelle ,  a  quem 
uma  vez  ella  chegasse  a  amar  com  verdadeira 
ternura,  devia  reputar-se  um  homem  ditoso. 

Depois  do  retrato,  que  acabamos  de  fazer — 
a  um  «  sim  »  de  lábios  aonde  o  amor  sorria  com 
tanta  graça ,  a  uma.  promessa  de  olhos  tão  elo-' 
quentes  na  paixão ,  só  Deus  podia  pôr  o  preço , 
se  é  que  ha  na  terra  preço  que  os  pague. 


Digitized  by  VjOOQIC 


Digitized  by  VjOOQIC 


CAPITULO  IV,. 


»E  O  HABITO  NÃO  FAZ  O  MONGE,  O  VÉU  NAO 


sentaddf  w  ^49ft  ào  lavor ;  C^eilia  l^rdu^do  aw<i 
escarpa  cf«»  *  st»  aetiviáftife  febril ;  Catteritioi 
xii«t»i9a4o  im  ^míhiq  d«  fr<¥a4ftl  €Wi  o  costumado 
soc^o, 

A  ^cw^»  mm  a  ^rbawtre  os  ^dos,  de 
vez  em  quando  jogava  um  «orriso  tr«ve$so  6  sm 
coaipaidi^ra ,  e ,  «^$ar  <k  {irovocaQ$o  directa , 
esta  não  levantava  QS  ioi]>9S^  mas  sorria-s«.  Pa- 
racíam  ambas  cainhada»  dç  foHar  tantoí  do  que 
tivbam  longe  àp  .owaçlo  e  tâo  pouoo  do-  qv*e  «'^^'^ 
endtomeiite  9eiiAtam» 


Digitized  by  VjOOQIC 


o6  A    MOCIDADE 

Por  fim  Gecilia  impaciente  deixou  escorregar 
o  bordado  de  cima  dos  joelhos ,  e  atirou  a  agu- 
lha com  enfado ,  inclinando-se  depois  para  a  sua 
amiga.  Assim  esteve  esperando  minutos  que  uma 
palavra  lhe  desse  a  nota  do  dialogo ;  porém  es- 
perou debalde :  D.  Catharina  nSo  disse  nada.  A 
pobre  Gecilia ,  afrontada  com  o  silencio ,  e  ex- 
halando  um  grande  suspiro ,  resolveu-^  a  rom- 
per o  tiroteio. 

—  «  Aborrecido  dia ,  Catharina !  »  exclamou 
ella  com  impeto.  —  Ai ,  menina ,  muito  feliz  és 
tu!» 

—  «  E  sou ,  bem  vés  >»  replicou  a  noviça  com 
o  mais  duvidoso  sorriso. 

—  «Olha,  minha  Consolação ,  continuou  Ge- 
cilia ,  dando-ihe  este  nome  tomo  é  costume  en- 
tre amigas  nos  collegios — nSo  sabes  o  que  eu, 
se  fosse  má ,  devia  dizer  da  tua  resposta  ? » 

—  «  £  porque  não  dizes ,  minha  Alegria  ?  » 
observou  Catharina  com  toda  a  tranquillidade. 

—  «  Porque  tenho  medo  desse  teu  ar.  Depois , 
affligias-te  se  eu  fallasse.  .  » 

—  <(  Não ,  minha  jóia ;  tu  nunca  me  affliges.  » 

—  «O  callado  é  o  melhor.  » 

—  «Pois  eu  digo,  já  que  tu  não  queres. 
Achas  que  vivo  muito  triste,  para  ser  feliz? 
Enganas-te,  meu  amor;  fui  «empre  seria.  Que 


Digitized  by  VjOOQIC 


DE  D.  lOÃO  V*  ST 

chora  muito  com  saudades  do  mundo ,  para  me 
desapegar  sem  pena  delle  ?  O  coração ,  sim , 
chora,  porque  é  de  carne;  mas  o  espirito  está 
contente.  Sem  sacrifício  não  se  serve  a  Deus, 
nem  ha  merecimento  em  o  servir.  Disse-te  que  era  - 
feliz,  e  sou;  porque  tenho  tudo  o  que  <fesejo)» 
-^Não,  Catharina;  conheço-te,  leio-te  por 
dentro,  vés?  Basta  de  brinco!» 

—  d  Tu  sabes  que  sou  pouco  amiga  de  rir. 
Nio  brinco ,  fallo  serio. » 

—  «  Falias  serio  ?  Ora  dize ,  dissimulada ,  das- 
me  noticia  de  certo  retrato,  que  de  relance  vi 
uma  vez?... 

—  «  Que  retrato  ? . . .  Tens  lembranças ! » 

£  a  bella  noviça ,  vermelha  e  assustada ,  le- 
vava as  mãos  depressa  ao  ^io ,  no  gesto  de  su- 
mir alguma  coisa.  Ceoilia  olhava  para  ella  sor- 
rindo ,  e  este  olhar  malicioso  mais  augmentou  a 
confusão  da  sua  amiga. 

—  «Não  te  assustes,  menina,  disse  a  edu- 
canda rindo.  Não  é  coisa  do  outro  mundo.  Fat- 
iava daquelle  retrato,  que  disseste  que  se  per- 
deu. Ora ,  se  me  não  engano ,  achado  está ,  e 
muito  perto  do  teu  coração. » 

—  «Percebo  agora,  acudiu  Catharina  grace- 
jando constrangida.  É  verdade,  trago  um  re- 
trato ,  mas  é  o  de  meu  pae. »     . 


Digitized  by  VjOOQIC 


l^«^  com  qu^m  96  parece  i»  teu  retrata? i» 

^-«-^  Nfio.  Alguma  idéa  tua ! » 

-r^fíCom  c«rto  o05ciaU  we  pw  how  d* 
s^,  todo»  06  (Uas  v^  p«riid«  m  rttA«  d»-* 
fixxnte  âa  tua  janetia  *  d'p^  híq  tira  os  olbis. . .» 

w-n«Pelo  a»ar  ^  D«ua»  Cwtíia!  >>    . 

—  «Jesus,  que  medas l  E  por  t9b^. pojiet  fi<* 
ca^  ))raQca  4^omo  uma  dW&nt»?  Sotl^,  <iti8  tem, 
menina?  Se  vi  um  homem  Q^m  di^  ruft,  |«r 
is^  nã(^  m(Nrro  mai^  ced«,  cr^ii»  «u.  i» 

-^«Mas  ^  qui9  s3^  tiidk^  sQppo6Íete&.  S^  r<^. 
trato.  .  .digo,  esse  moço  n9o  tem  nada.  ^9  M 
escoada,  t, . .  hida  aer  mea  ire^Ks  »  v 

—  K  Ora  v^am..  Seado  dok  irmíoa  Mnea  me 
faltaste  $eiâo  de  um !  Estava»^  mai  ow»  eite-s 
aio?* 

Era  tjk>  pen^traiiitç  a  irama  4e  q«e  CeaiU(k 
aíTectava  a  sua  falsa  inoceroia ,  que  dlaaa  lagri*-' 
mas  saltaraadi  do&Olhoa  da  noviça,  deseorolaiâo- 
se  vagarosa»  pela$  face$.  A  aiougada  ímmWr 
ciiya  travessura  as  folia  correr),  estava  morta  per 
desatara  rir;  mas  <h» presenoa  daquella  di9rviva. 
e  sincera,  deitou-^e-lbe  noa  brai^  ateagandb*^ 
e  beijando*^  eom  e^iítremosa  efftoss». 

— ^íí  Perdoa^me,  Catbarina !  Foi  malfeito*  T» 
nèo  merecias. . .  Mas  tamben  pturque  teencobrat 


Digitized  by  VjOOQIC 


i^:ti»  iPn%^? '  •  í^^\á»&  que  elk  jiSp  i;jd)^  gm^ 

4í^  1101  sc^gsredp  ? )) 

^  -*-. «  Nâo ,  min,bd  JQÍ9»  3ex  qve  t^o$  juizo ,  m«$ 

não  uw  delle  sçpipre, » 

jj  -r- «  Obfig^ !  EstQtt.entàQ  iitacJvi4a..  &  mit 

nha  amiga  ? »  ,       .  .    >      f 

:   ^^  1í:l&^s^,  «í^H.  ^  M^  çaiQ  tcf  ^^  Affligiste- 

me ,  oieq  amor.  » 

£  ^rrií^bx  6^  4)pi^4fi4e ,  por  entre  a3  Lagri- 
^n^;^rai^  .Qru2|iu<^^  D.  CatlWinft  deu-^lbe  um 
})eijo  com  infínita  amizade. 
,.>^ifrííàfl|  te'rifm?dio^-7^jy<>5eg»ÍQ  ella.de- 
))f4^.%q(^$s^Trmçrbei  a^est^^adi;^  tãp  curiosa; 
y/WS^r  ^:V*?c¥i  ^  e« ;di;(ei;,  mewji^?» 

^'T-  tf  ji^iç),  Ojiero  jabfír  tudo.  í^  E  q  j(içd9  de 
^iUafY-;eF|^uidjgt  pa^a  P  fir^  âjvve4C«;vci^  a  j)fm^ 

,   -.^aÇro^nettçs^egriôdo?» 
,.  i-iT-ítJi^re.  E  tu,  a  mm-,  promçtteç?,» 
;   T^^cPçi^  ti9  QiQYâi  já  tem  segredos  o  teu 
corjiçi^,  Cfci4ftK 

r*Tr<f>Oh,  *e  tem!  E  foiíf^  nàp?  e  talvez 
ff^c^  do  que.jallga^. , .  Â  gente  cresce  ^r^it 
depressa,  Catharina.  Olha ,  meu  amor ,  sei  muitas 
çpuíi^;  ^vinl^o.^mivítes  n)^;  q  uma  delias  é 
es^ag-tfV  amas!  Farín  »  t^a  confissão  pelo  pri- 
meiro mandame]|;itQ.». 


Digitized  by  VjOOQIC 


60  A   MOClOTABtt 

'  —  «  Amo ! »  —  murmurou  a  noviça ,  tremult 
de  voz,  quasi  ao  ouvido  da  sua  amiga. )> Amo 
sem  esperança,  sem  mais  esperança  do  que  a 
de  ndo  chegar  a  ver  o  fim  do  meu  engano,  se  6 
engano ;  da  minha  illusão ,  se  me  illudo.  Bem 
vés  o  triste  amor  que  é. » 

-^  <x  E  nSo  juras  em  v&o?  Amas  e  crês  como 
em  ti  f» 

— «  Firmemente !  Mas  de  que  serve  ?  » 
— «De  tudo.  Não  professaste;  és  livre;  diris 
a  tua  mSo, .  . » 

—  «  Ai  Cecilia ,  nlío !  O  habito  é  mortalha. 
Devo  a  meu  pai  este  sacríficio  pela  sua  tenrara. 
Não  ha  logar,  fio  mundo,  em  que  eu  caiba  senão  a 
cella  do  convento. . .  Dos  bens,  que  tivemos, 
só  ha  em  nossa  casa  hoje  a  gloria  éd  um  nome 
que  deve  acabar  como  principiou,  honrado  e 
puro.  Uma  filha  dos  Athaides,  querida ,  não  entra 
em  casa  de  ninguém  mendiga. . .  Não  podendo 
ser  esposa  de  nenhum  homem,  serei  esposa  de 
Christo. . .  é  como  se  faz  na  minha  famiHa. » 

—  «Pois  levando-lhe  esse  coração,  e  tanta 
belleza,  não  lhe  levas  um  dote,  que  não  tem 
preço?» 

—  «Achas  bastante?  Talvez  elle  dissesse  o 
mesmo ,  o  amor  cega.  E  depois  ? .  .  Não.  £  re- 
solvida. Ficarei  sepultada  aqui. » 


Digitized  by  VjOOQIC 


HS  D«  joiov.  61 

'  --*-«Mts  porque  o  vés  aioda,  porque  o  não 
desenganas?» 

D.  Catharína  olhou  fito  para  Cecília ;  e  pe- 
gando-lbe  na  mSo  depois  com  força,  disse  na- 
quele tom  ailbgado ,  que  ás  vezes  é  mais  vebe^ 
men|^  do  que  a  mais  alta  voz : 

—  <ç  Porque  a  paixão  que  lhe  tçnho  pôde  mais 
do  que  o  dever.  No  dia  em  que  o  perdesse  estalava  o 
€OFB(}ão  no  peito.  Tenho  medo  de  mim,  tenho  medo 
delle  nesae  dia,  vês  ?  I  Deus  te  Uvre,  pela  sua  graça, 
de  um  amor  assim ;  é  a  alma  e  a  fé,  é  a  salvação 
ou  a  morte  de  uma  vida  inteira.  Não  o  desen- 
gano ,  porque  ainda  me  desejo  enganar  a  mim.  Sou 
•uma  fraca^midher  e  a  morte  Ceiz-me  horror ,  sobre 
tudo  a  morte  lenta  e  inconsolável ,  que  me  espera. 
Quero  esgotar  de  todo  esta  illusão  suave.  £  como 
ac(Mrdarei  eu  delia  meu  Deus  1  ? . . .  Percebes?  £i^ 
tendes  agora  porque  me  callo,  devendo  fallar? 
Sobes  porque  não  lhe  digo  que  morro ,  que  morri 
.  para  o  mmido  e  para  dle?  Parque  em  cada  dia 
vivo  só  os  poucos,  momentos  em  que  o  vejo. »  > 

Ella  ch<»rava  dizendo  isto,  e  Cecília  unia  as 
suas  lagrimas  ao  pranto  amargoso ,  que  a  deses- 
peração exprimia  dos  olhos  da  sua  amiga.  Cin- 
gisdo-a  com  os  braços  o  eubrindo-a  de  carinhos, 
a  pobre  menina  exelaoiott  com  wtbusiasmo  ao 
mesma  tempo : 


Digitized  by  VjOOQIC 


6fi  À  MOf:iDAi»# 

-^«Mífiila  B¥MgÊi,  mífifhft  imit,  h^ée  sal- 
var-te,  porque  se  eu  lhe  disser;  elte  UBtflfeftí! 
teée. ..»  ' 

—  «Elle!  quem?-^i»tertt>ttipèil  €}«t*«rflMi 
ti&m  um  g&êU)áetérf6T *-^Gm\\é  será^ceftá  «Mis 
uma  desgraça?  Aiftás  cMiè  «a?  Dillé!  àMd^  b 
tiíste  ^  quiiiido  ^  como  ?  Querida  meÉkiè,  oito  bem  ^ 
p9e  a  vísia  em  tuim  T !  i» 

Cecilia  ouviam  sottifvdò  tòM:  ttiítMh.  If^Mf 
a  p^m  tê  ottios^  tí^éenéctam-se /  ú  iíMí  IháilM; 
e  beik  domo  utn  attjò  ^iie  ^ê  ^^«1  ãtt^  h(lMi4ti^ 
humanas  tia  mais  i^aéíciM  ínÈOòén^f^  ^  di^se  tiAl- 
tada  e  co<iteti(5idai 

--^  a  0)ba  Cfiftftarítia ,  te  fei  'betíi  §e  ma) ,  «So 
sei ;  o  que  sei  é  que  «  sittlo  Sempre  afei^  pé  de  miiti 
e  qtie  eslA  em  tudo  6  qti&  eu  ^^  é  piãMò.  Aimfe 
elle  n«o  ehègdu  e  já  itte  estfi  ftíllfttidci^  JA  ^isffiia  pii^ 
mim  e  me  chama  t  á  mfába  ttkmi  è§ta  cbevè^-A 
^a  imagem  f  o  mm  e&pit^  tivé  eem  a  <Mle 
na  ausência;  Dia  e  Mvte^  o  c^fr^Ko  i^pettMie 
cofm  jubilo  duas*  pàlatras ,  que  tsãd  é  ^u  hmé, 
êomeci  amet.  Pòr  e^té  hMM^'^  Cá^rinfa,  dei- 
tfttiHtè  mà  peMí",  eu  quÊite  jBHibfty. . .  Rfi«ftá  éiM; 
que  me  estendesse  os  brâ^,  qner«ndd  efte, 
▼ia*me  fugir  alé  do  <5ett  páfra  <>  Seguii^ . .  i  Meti 
amor,  nlKK^res,  pKerÍMi^!'Véi;  Sé'<etlè  p6dèi 
mais  do  que  eu ! . . .  Não  padecei  Mmbélfr  M? 


Digitized  by  VjOOQIC 


BC  D.  joko  *Y*  63 

«OciíoApts.aiada  tento:  quanda duas  almas  que 
ise  amain  assim  ^  chegam  a  ^r^e^  diae^  dixe> 
aié  afM^^fttai  «n  minutos,  cni  um  sorriso^  as 
it^iiMB  de  iilaitDS  atínoat » 

«•-«1»  Calaste  ^  oaiarte!  Bsia  tida  pmMttMi  a 
aqMaràttiâ ^  mai  aSo  a  dá  o  muadoi,  lifto  se  fè?e 
aento  no  oeii« » 

^'^nTúmimA  Aa  tM*a.  €fè  e  ama  €cmo  ea. 
AiMRaea^  ôam  a  fé  e  varáB^.,» 

-!^  «  Oxalá  1  Más,  miiAaCedlia^  aecreica««ôa 
ISatfaaríMi  ceqi  afiactaosa  tmtezav  ^  ^o  nova 
ainda ,  tiro  sincera !  Esse  coração  tilgMMHtt, 
tronfia  ]iMÍto  deaaak . .  Toma  aèntido  1  Ndo  (ens 
fii  4ie  ta  iddetidà.  Meu  «mer^  aòautela^te ; 
Aoai^  títeste  il^rafio  para  te  Iriígar.  i> 

*^u  Bem  8<Í5  Cathatifii.  Sm  orpta ^  é  Pei^ 
dade,  mas  o  nome  de  meu  pÀ  è  «ÂrigaçSo,  e 
jMt  i^  d^mrtreaa  ea  o^Mkndorei.até  4le  mim. 
NSo  tenho  irmão,  mas  tenho  animo  e  contada: 
e  para  não  precisar  de  vingança  liaita  qne  me 
respeite  como  devo.  Sd  laainfa  sarfirai  de  irmão 
e  de  pai  ao  meu  amor  e  a  mim  i  m  Beas  que  lè 
na  Imnha  alma  sabe  le  (irometto  omM  Té  e  se 
creio  com  fervor.  1 .  » 

E  por  um  gesto  sublime ,  CeeiKn  ^  «flectindo 
nos  olhos  a  exquisita  asnsíbtMade  á^  coração , 
rfjoelhou  lentamente  aos  pés  ãe  €fltfcãrina,  le- 


Digitized  by  VjOOQIC 


64  A   MOCIDÁIIE 

vantando  a  mSo  ao  ceu ,  como  quem  pronuneti 
um  voto  irrevogável. 

  noviça  olhou  para  ella  sem  severidade.  Co^ 
nhecia-a  muito  para  davidar  da  abnega^^o ,  (fàt 
exprimiam  as  suas  palavras.  Sabia,  que  esia  pai- 
:xão  embora  fosse  uijíl  mal ,  era  já  um  mal  irre- 
mediável. Por  experiência  sabia  mais,  que  no 
primeiro  ame»*,  quando  se  cré  e  se  adora  assim, 
esse  amor  é  a  própria  vida  e  só  com  ella  expira. 
Foi,  portanto,  para  sondar  a  chaga  e  sem  es- 
perar remédio,  que  D.Catharína  perguntou  com 
melancolia : 

—  (( DirHne4ias  como  elle  se  chama  ?  » 

—  «  O  nome  que  todos  lhe  dão  não  sei.  De 
mim  quer  só  aquelle  nome  tão  doce,  que  diz  só 
«  bocca  da  irmã  e  da  esposa.  Chama-se  João. » 

--<cÊ  fidalgo?» 

«  Não  sei ;  mas  todos  me  parecem  pequenos 
ao  pé  delle. » 

—  «È  nobre?» 

—  «É;  se  eu  o  amo!» 

—  «É  rico?» 

—  a  Para  mim.  Não  te  disse  que  o  amo  ?  » 

—  «  E  se  fosse  pobre  ?  »    . 

—  <<  Amava-o. » 

—  «Se  fosse  mechanico ? » 

—  «  Amava-<) ! . . , 


y  Google 


M  D.  JOÃO  V.  65 

^--- «  Se  te  levasse  longe  dos  teus  e  de  mim  ?  » 

—  «  Amava-o  ! .  .  .  com  amor  de  filha  ,  de 
irmã,  e  de  amiga ^  com  todo  o  amor  que  nos 
dá  «  ceu ,  e  o  coração  encerra. 

'    —  «  E  enganaíido-te  não  o  aborrecias  ?  » 

—  «  Nilo !  » 

—  «  E  preferindo  outra  não  o  odiavas  ?  » 

—  «  Não !  » 

- — «Eseelle  não  podesse,  ou  não  quizesse 
senão  amar ,  acceitavas  ?  » 

—  «  Morria ,  ou  acceitava !  »  Murmurou  Ce- 
cília sem  hesitar. 

— «  Mesmo  um  amor  sem  nome ,  digamos 
tudo ,  mesmo  um  amor  sem  esposo  ?  » 

— «  Sim !  Tudo  menos  arrancar  a  alma  do 
corpo ,  para  arrancar  a  sua  imagem.  » 

—  «  Então  Cecilia ,  exclamou  Catharina ,  so- 
luçando ,  e  com  as  mãos  erguidas ,  então  boa  ou 
má  eis  a  tua  sorte.  E'  o  primeiro  e  o  ultimo  dos 
teus  amores;  para  ti  acabou-se  o  riso  e  a  ale- 
gria ;  fugiu  a  mocidade.  Colheram-te,  pobre  co- 
ração !  A  tua  alma ,  que  eu  conheço ,  está  aos 
pés  desse  homem ,  vencida ,  escrava ,  para  elle 
a  perder  ou  a  salvar!  Cecilia,  és  mulher. 
Não  procures  as  illusôes  da  meninice,  porque 
perdidas  não  tornam ;  cuidas  que  podem  voar , 
livres,  Jcomo  d'antes?  . .  se  o  teu  senhor  mandar, 

X  5 

Digitized  by  VjOOQ  IC 


66  k  MOGIBÀl^B 

O  coração  qté  do  ceu  ha  de  cahir  á  sua  voz,  coólid 
a'  ayesinha  ferida  cahe  na  terra  para  morrer.  » 

-^  «  E  que  importa ,  ge  elle  amar,  se  fôr  fe-^ 
liz?» 

—  «  Feliz !  Peus  o  permitta.  Poisam  amar-te, 
querido  anjo ,  como  tu  deves  ser  amada ,  para 
viverei?. . .  Nâo  è  a  hora  do  passeio?  Vamos  ao 
jardim ;  quero  saber  tudo.  » 

£  dandp  o  braço  a  Cecitia,  a  noviça  desceu 
adiante  de  todas  para  tomar  o  sitio  que  desejava. 
Com  effeito  apenas  o  sino  bateu  a  hora  suspi- 
rada, as  agulhas  ficaram  no  ar  sem  âair  mais 
um  ponto  4  e  os  bastidores  desert^ia  i^o  viram 
mais  um  fio ;  em  toda  a  casa  do  trabalho  se  fez 
uma  verdadeira  mutação  de  tbèatro,  Âquelle 
bando  de  pombinhas  -,  doidçsjandç  e  cwrendo  em 
tropel,  rindo  e  fallan(io  altO)  foyi,  a  saltar  os 
(degraus  das  escadtes,  precipitar-s^  na  cçrea  ^  Wo 
eíperando  por  ninguém,  nçm  olhando  para  trai. 

A  regente  depois  ^  metter  os  ocido»  entw  a 
íplha  do  livro  ascético,  que  estava  lendo,  eo^ 
j^eaindo  de  sciatíca  çfe^onica ,  e  oa^Qntk)  da  sm 
^sthma  incurável ,  sahiu  logo  atraia  para  acQise 
j^ç^nJiar  o  en:^a9^e ,  jâ  dividido  em  ranflios «  va*' 
gw^ndo  peta»  arcadas  ruas  ^  jardim ;  estas  re- 
gando a  roseira  ou  o  alecrim  pr^lectf,  aqaeUi^ 
t$migalh9.nd<)  pao  aos  pei:<í;es  do  tao^nei  e  «^ 


Digitized  by  VjOOQIC 


M  D.  JOÃO  V.  67 

Vnais  novas  provocando  os  dois  caxorrinhos  da 
abbadessa ,  cuja  beatifica  digestão  foram  pertur- 
bar os  latidos  dos  seus  quadrúpedes  validos. 

Entretanto  debaixo  de  um  carramanchão  re^ 
tirado ,  Ceeilia  e  Catharina ,  as  duas  amigas,  de 
mãos  dadas  e  com  o  rosto  chegado^  conversavam 
com  a  maior  viveza* 


Digitized  by  VjOOQIC 


Digitized  by  VjOOQIC 


CAPITULO  V. 


PETRLS  IN  CUNCTIS  EST  PETRUS   IN   VINCULIS. 

A  PASSO  cheio,  mas  não  precipitado/ o  jesuíta 

adiante  e  logo  atraz  o  andador  das  almas ,  am- 

.  bos  chegaram  ao  arco  das  portas  de  Santo  AntSo. 

O  primeiro  risonho  e  sereno  ;•  o  segundo  cada 

vez  mais  escravo  do  terror. 

O  dia  amanhecera  limpo  e  claro ;  o  ar  estava 
frio  e  secco ;  e  nas  ruas  o  silencio  era  completo. 
Todas  as  portas  e  janellas  fechadas  davam  testi- 
munho  do  recolhimento  dos  visinhos. 

O  jesuita  parou  debaixo  do  arco ,  e  de  leve , 
muito  de  leve ,  pousou  outra  vez  a  mão  no  hom- 
bro  do  honrado  Thomé.  Se  visse  desabar  a  abo- 


Digitized  by  VjOOQIC 


70  A   MOCIDADE 

beda     não  se  encolhia  mais  o  milagreiro,  tre^ 
mendo  como  yaras  verde». 

A  Yoz  do  padre  acompanhou  o  gesto;  era 
uma  voz  limpida  e  vibrante;  quasi  tão  suave  como 
o  timbre  da  voz  feminina ;  mas  que  apesar  da 
melodia  tinha  umagrcMloce  que  arranhava  mais, 
do  que  a  rudeza  de  algumas  falias  ásperas.  Certo 
geito  estrangeiro  na  accentuação  das  vogaes  dava 
um  cunho  partiwlw  it  wlmQf^  phrases. 

Algumas  vezes  a  vista  parecia  desbotada,  e  ar- 
mavanse  então  de  uma  doçura  felina  que  fazia 
esfriar  as  pessoas  para  quem  olhava.  O  sorriso 
impenetrável  era  acerado  de  ironia ,  e  cortava 
como  o  fio  de  um  stilete.  Nestas  occasiões  a  ama- 
bilidade do  padre  metia  medo. 

Em  gefiil  o  sewUvi^r  do  íomitft  qe«  nesta 
occasiãot  eff  irttaoso  e  i?ellwm>;  a  vista  pitrfimda 
e  pfisetniQjbe  ^  des^w  que  em  nm  rolatiee  medem 
Cl  vee»  hida;  e  a  boôoa,  riMiha  ou  «tei«,^  sei%- 
pre  em  guarda ,  nuncn  deicobria^  ^  p^nmne^to* 

As  feÍQdes.  kffi  aooimds^,  a  testo  «lia  ^  bom- 
beedit ,  e  o  Qa^ix  «tiiiUn^,  viríl^,  o^  boi»  C^rm^do», 
caindo  wm  grus^i»  letircieMiív^im  m  ows  j ura  a- 
pressão  o  t^  das  phisioiíomitfl  ít^lioi^»,  ei^ 
íuitira  e  profundidade  €«fHii9  {|«iJm<Mte  os  eb- 
annndiares  poucQ  acodtiunados  a  í(ktor|re|at4is«  A 
idade^  oarèandoc^  eabçU<is,  ctio^vt  fk  aan»  ^,^ 


Digitized  by  VjOOQIC 


DK  D.  iOÃO  V.  71 

miigestade  uma  figura ,  aoiMk  o  dedo  de  Deus 
imprimia  com  distíncçào  o  cunho  indelével  da 
génio  e  da  grandeza. 

A  sorrir ,  e  senifure  um  faTo  de  mel  nas  pa* 
kvras,  o  reverendo  padre,  rompeu  as  hostilida- 
des«  deixando  cahir  amigável ,  mas  utn  pouco 
m«U  peiMa  ^  a  mão  direita  no  bombro  da  sua 
victima. 

*^ «  Como  |à  lhe  disse  ^  filho ;  gostei  de  o 
ouvir «  goatei  muito.  Yé-se  bem  o  seu  zelo  pela 
religião  ^  e  o  grande  temor  de  Deus.  Depois ,  é 
bcmn  catholico  ^  ama  e  rebita  a  santa  inquisi- 
ção. Fallou  bem,  faltou  optimameate.  Conven- 
cettHne ! » 

Este  elogio  succarino  amargava  como  absynto 
ao  honrado  andador.  Extático,  com  a  peruca  des- 
^onhadá,  e  os  olhos  de  sentinella  ao  sorriso  do 
faàíe^  Thomé  afinava  os  ouvidos^  penando  a  fogo 
lento  e  em  trances  mortaes  todos  os  se«s  pec- 
cados.  O  jesuita  observada,  sorria-âe  para  dentro, 
e  fingia^se  desentendido. 

—  cc  Não  responde  ?  Noto  agora :  V.  mercê  não 
está  bom ;  tem  alguma  coisa  ?  » 

— *■ «  Não  é  nada ;  estou  melhor !  »  O  devoto 
engasgouH^  sem  folgo  para  mais.  Muito  desejava 
•creioeiítar :  «  Tão  bom  te  visses  tu ,  desalmado 
hypocrita !  »  mas  faltou4he  o  animo. 


Digitized  by  VjOOQIC 


72  A    MOCIDADE    . 

— «  Está  melhor?  ora  ainda  bem.  Ndo  nos 
adoeça.  Sabe  do  que  isso  prppede  provavelmente  ? 
Do  calor  que  toma  pela  religião.  A  carne  não 
pôde  com  o  espirito. . .  £  eu ,  filho,  receio  que 
venha  ainda  &r  fazer-lhe  muito  mal  o  seu -espi- 
rito. . .  Ora  pois !  Repito ;  gostei  dé  o  ourvir ; 
pareceu-me  libio  o  padre  Fr^  João;  desconbe- 
ci-o !  Será  bom  apertal-o.  Olhe ,  Thomé ,  tenho 
scismado ;  o  seu  conselho  de  curar  a  heresia  a 
ferro  e  fogo,  digo-lhe  que  o  acho  menos  mau !  ? 
mas  dos  executores  vae  tudo.  Gom  peque- 
nas correcções  na  forma,  estou  em  que  será 
muito  útil  e  agradável  a  Deus  e  á  egreja.  >» 

—  c<  Misericórdia !  Peccavi ,  reverendo  padre^ 
peccavi!  » 

— «  Quem  não  pecca ,  filho  ?  Como  ia  di- 
zendo :  acho-lhe  razão ,  é  das  obras  de  miseri- 
córdia castigar  os  que  erram.  Disse  muito  bem. 
Y.  mwcé  tem  génio  e  habilidade. . .  para  casos 
de  consciência.  Tirei  informações  a  seu  respeito 
e  satisfizeram-me.  Não  havemos  de  consentir  que 
a  luz  de  um  entendimento  claro  se  esconda  nessa 
humildade...  Não  deseja  figurar?  Pois  sim! 
Isso  c  muito  louvável;  mas  todos  hSo  de  co- 
nhccel-o  ao  menos !  As  nossas  missões  da  Ame- 
rica pedem  homens,  assim  zelosos  da  cura  das 
almas  c  do  serviço  de  Christo.  »  . 


Digitized  by  VjOOQIC 


MD.  JOÃO  V.  73 

>  — «  Valha-me  Deus!  Errei  contra  a  com- 
panhia; mas,  y.  patanidade,  accuda-me  pelas 
chagas  do  Salvador !  Nãa  me  deite  a  perder !  » 

—  a  Socegue ,  filho.  Se  lhe  digo  que  estimo 
a  sua  habilidade  ?  —  e  que  V.  mercê  tem  muita 
é  inegável.  Ora,  fallou  da  Companhia  de  Jesus. 
A  esse  ponto  ia  eu  chegar  agora.  Ainda  assim ! 
Teve  caridade  comnosco.  Castiga  o  corpo,  e 
lembra-se  da  alma.  —  Foi  onde  gostei  mais  de 
o  ouvir.  Estava  inspirado !  O  embusteiro ,  o  hy- 
pocríta ,  pondo  a  nossa  capa ,  nem  por  isso  é  mais 
jesuita  do  que  o  moiro  ou  o  idolatra.  No  seu 
corado  escarneceu  de  Deus  e  da  Companhia ;  e 
entre  a  salvação  de  um  e  a  salvação  de  todos, 
optar  pek)  interesse  maior  é  a  doutrina  do  ins- 
tituto. >» 

—  «  Milagrosa  Vii^em  do  Cabo ,  valei-me ! » 
—  murmurou  o  irmão  das  almas,  cujo  pavor 
crescia  em  proporção  da  sinistra  amabilidade. 

—  « Invoca  a  Mãe  de  Deus  ?  Boa  fonte  pro- 
cura !  Louvo-lh'o  muito.  Tomando  á  Companhia. 
Dizia  eu  que  o  seu  conselho  era  bom ;  e  refle- 
ctindo ,  acrescento ,  que  o  acho  óptimo.  Ê  pre- 
ciso um  exemplo ,  e  vamos  dal-o ;  senão  ouça : 
É  da. cidade  de  Évora,  não?» 

—  «Sou,  meu  padre.  Lá  nasci  e  me  crea- 
ram. » 


Digitized  by  VjOOQIC 


7i  À   MOCIDADB 

—  ((Muito  bem.  Eattio  estA^noeaâo  de  no» 
ajudar ,  se  quízer  ^  a  serrir  a  Deus  e  A  relifbo^ 
Sendo  de  Évora,  conheceu  por  forga  um  tal 
Onofre  Crespo,  algum  tempo  familiar  do  nosso 
padre  Simões^  Havia  de  conhecer  I « . .  EUe  é 
da  sua  idade,  trinta  annos >  pouco  mais  ou  me^ 
nos. » 

O  Sr.  Tbomé,  ouvindo  a  eitação»  fes-^se  fuUo , 
e  sentiu  fugir  o  lume  dos  olhos.  Três  veies  apol-' 
pou  o  chio  com  os  pés ,  como  quem  etperímanta 
as  pernas  para  uma  boa  ciHTida ,  e  outras  tantas 
consultou  o  rosto  do  jesuíta  com  os  olhos  atieio^ 
SOS.  Inutilmente  I  A  eterna  aíbbiiidade  do  padre 
desarmava  â  soa  penetração. 

A  pergunta  era  naturalíssima ;  e  não  teria  aiH 
sustado  o  milagreiro ,  se  não  reflectisse  que  os 
jesuítas  9  por  desgraça,  sabiiun  quanto  quêriasfi.  A 
intensidade  do  medo,  e  a  violência  do  ataque, 
restitttiram-^lhe  a  clareza  do  íntendímento«  Ape^ 
nas  percdbeu  por  onde  vinha  o  assalto  armouHse 
de  prudência  e  de  simplicidade.  O  padre  afdver- 
tiu  a  mudança ,  e  sorríuHie  de  novo.  Applaadii^ 
se  talvez  por  encontrar  o  adversário  mais  forte 
do  que  suppunfaa. 

—  «  Que  figura  tem  esse  Oifofre  Cfeâpo  ^  meu 
padre? — perguntou  o  devoto  com  a  possível  se- 
renidade, depois  de  poucos  instantes  de  paosa 


Digitized  by  VjOOQIC 


BE  D.  JOÃO  V.  7S 

p^—  Hft  da  bsiv^r  aígnaes;  V.  paternidade^  de 
c^rto  oft  mandou  tirar.  Está  averiguada  a  histo- 
ria io  eriBie? .  • .  •  se  eUe  eommetteu  crime. 
Com  esse  apoatamenta  talvev  eu  podesse  lenv- 
brarnone. « . .  Aiada  que  sahi  tSa  novo  da  cidade 
que  pouQ^  0ie  reoordõ. ...» 

*-*Ê  natural  V.  mercê  tinha  vinte  annos^ 
quando  mudou  de  terra ,  segundo  me  diss^am. 
Ha  de  tembrar-ee«  Foi  por  esse  .|kempo. » 

—  cEsteja  V^ paternidade  certo;  se  eu  o  co- 
nhecer l  Nada  ha  que  eu  nio  foça  pelo  intaresse 
da  santa  religião. 

Como  bem  táctico  o  Sr.  Thomé  cobria  a  re- 
tirada com  UBM  demenstracio  sobre  a  frente  do 
inimigo.  —  «  Sendo  comigo  -^dizía  para  si — o 
jeswta  descalçardes  e  apanho^iii.  Seado  com  ou-^ 
tso^f  se  o  oonbeQo ,  deauacio-Os  do  céu  lhe  ven 
aba  O  rwiedio;  se  aio  o  ceabeco,  arahos  es- 
tamos salves^  Em  tedooca^o  a  charidade  começa 
per  aiis. » 

Mais  animado  com  este  raciocinío ,  o  aadedor 
accQDimodáMi  ai  p^uca,  afinou  as  oamandulas ,  e 
a^paoiMe  da  sua.  ajb»  vulgar  e  disaimuiâda  íhh 
pudea(9iaw  0,)esiiita,  com  um  risinho  falso,  es*- 
tava-Of  toado  por  daitro.  Era  evidante  que  o  par 
dre  assiatia  em  espirito  ã  desaforada  ccmiedía  ^ 
que  em  monologo  corria-  na  abna  do  milagreiro. 


Digitized  by  VjOOQIC 


76  A.  MOCIDADE 

—  «  Falia  com  juiso — respondeu  sua  paterni- 
dade com  todo  o  socego;  nem  se  esperava  me- 
nos do  seu  zelo.  Quer  ouvir  os  crimes  do  hypo- 
crita  e  conhecer  a  arvore  pelo  fructo  ?  Ê  justa 
Felizmente  temos  aqui  as  cópias.  A  Companhia 
sabe  que  os  seus  inimigos  não  descançam ,  e  conta 
com  elles.  Está  armada!  Ora  leia  á  sua  von- 
tade. » 

E  o  jesuita ,  metendo  a  m9o  no  seio ,  tirou 
um  maço  grosso,  e  entregou-o  ao  Sr.  Thomé, 
sempre  com  o  riso  na  bocca;  ao  mesmo  tempo, 
disse-Ihe : 

—  «Sabe  lèr,  bem  sei,  e  até  seus  princípios 
de  grammatica.  Sei  mais  aonde  estudou ,  e  quem 
foram  seus  mestres. 

-^«  Gosto  pouco  disto  —  rosnava  o  devoto 
entre  dentes:  —  Este  padre  sabe  de  mim  pelo 
menos  a  metade  do  que  eu  sei ,  e  queira  Deus , 
que  não  saiba  tudo.  Em  íim,  veremos!  Ha 
de  correr,  como  uma  lebre,  aquelle  que  me 
apanhar.  )> 

E  abriu  o  maço  com  algum  tremor  nos  de- 
dos. Em  quanto i ia,  arrepiando  as  solnrancèlhas 
e  engolindo  em  sécco,  a  vista  escrutadora  do 
padre  não  perdia  o  menor  dos  seus  movimentos ; 
era  uín  exame  de  consciência  feito  in  anima  vili 
segundo  o  methodo  jesuitico. 


Digitized  by  VjOOQIC 


QB  D.  joie  Y.  77 

Em  substancia  resavam  os  papeis  das  proeaas 
de  um  Roberto  Macário ,  verdadeáro  cavalheiro 
de  industria  ao  divino,  e  famoso  mestre  na  con- 
sumada arte  de  enganar  o  próximo. 

Onofre  Crespo,, natural  de  Évora,  e  filho  de 
pães  incógnitos ,  fora  rectdbido  por  caridade  em 
casa  de  uma  beata  viuva,  chamada  Perpetiui  das 
Dores.  Antes  de  ser  ccMdhecida  por  hypocrita ,  a 
beata  era  confessada  do  padre  Simões,  lente  de 
theologia  no  coUegto  dos  jesuítas ,  e  engomava 
a  roupa  para  aquella  piedosa  casa.  Quando  Ono- 
fre tinha  doze  annos  entrou  nas  classes  do  col- 
legio ,  e  estudou  latim ,  lógica ,  e  rethorica.  Aos 
dezoito  principiott  a  ouvir  theologia ,  e  a  ajudar 
á  missa  ao  seu  mestre  e  protector,  o  padrê  Si- 
mões. Parecia  o  exemplar  do  perfeito  devoto. 
Ninguém  foliava  menos ,  nem  resava  tanto ,  con- 
servando-se  mais  tempo  de  joelhos  e  braços  er- 
guidos. Vqamos  como  se  aperfeiçoaram  estas 
prendas. 

O  padre  Simões  costumava  depois  do  jantar 
disiarahir-se  com  um  passeio  pela  cidade ,  le- 
vando em  sua  companhia  o  Sr.  Onofre  Cre^. 
'Uma  tarde  entrou  com  elle  na  loja  de  cei!to  ou- 
rives, seu  amigo,  homem  rico  e  honrado,. e 
pozrse  a  apreçar  prata  lavrada ,  até  o  valor  de 
cem  moedas,  tudo  objectos  diversQS.  Era  uma 


Digitized  by  VjOOQIC 


7S  k  MoQDkm 

«ncomtnenda,  e  eomo  queria  servir,  regateou,  sà« 
hindo  por  fim  muito  suado  e^sem  eoneluír  o 
ajuste  i  porque  desejava  saber  a  vMtade  do  com* 
prador.  Fazia  vento  quando  voltaram  para  o  col- 
legio,  o  padre  cobstipou-se,  e  fieou  surdo  do 
defluxo.  Três  dias  depcns^  justamente  no  dia  em 
que  fazia  vinte  annos^  o  virtuoso  Ooofre  a|qpaH 
receu  de  manhi  na  loja  para  leVar  a  prata  da 
parte  do  jesuíta  ^  diiendo  ao  ourives  que  fcsse 
com  elle  se  queria  receber  o  dinheiro.  Ainda 
era  cedo ,  e  quando  entoaram  na  egrqa ,  o  pah 
dre  SimOes  estava  confessando  a  Sr/  Perpetua. 
«Espere  um  instantinho «^«^ disse  o  devoto  ao 
ourives — eu  avião  o  padre  mestre.  ^ 

Com  eflSeito  cbegou-^se  a  eUe,  e  em  quanto  a 
penitente  começa  em  jaculatórias  espírituaes  , 
que  atroam  a  egreja ,  o  Sr.  Omrfre  absí^can»  e 
muito  chegado  ao  jesuita  profere  algumas  pahK 
vras ,  que  o  ourives  não  percebeu ,  graças  ás  ox*- 
clamações  da  beata ;  mas  que  não  o  inquietaram 
em  virtude  da  resposta  cb  paAr^ ,  dada  muito 
alto ,  como  é  eostume  doa  surdos.  Viraudo^^e 
para  elle ,  o~  confessor  disse : «  Pois  sim  ^  sim. 
Cerni  muito  gosto,  é  mu  instantinho  «m  quanto 
avio  esta  devota  e  logo  lhe'  falto,  n  Depois  ftpa- 
randano  cesto,  que  o  Sr.  OMfna  tramnamto, 
acrescentou ; «  Leve^aaie  isso  fsra  o  meu  quarto^ 


Digitized  by  VjOOQIC 


BK  B.  jroÂo  V»  79 

^  com  cuidado.  >0  meão  Onofre  nSo  esperou 
segunda  ardem;  n)doii  sobre  os  calcanhares^  e 
oabiu  immoáiatamente  da  egreja  ^  fatendo  a  sua 
eortecia  aos  santos  com  a  mais  espremida  com^ 
fiunc^o. 

Quando  a  beata  se  leTantmi  para  resar  a  soa 
peitttoncia^  o  padre  Simões,  chamando  o  cre<- 
êar^  assooiHfle,  saudoo-o  com  a  mSo,  e  disse: 
H  ajoeihe  e  diga  o  acto  de  contricçSo  » -««-V.  pit* 
temidade  pendoará,  mas  eu  não  venho  oonfes^* 
salame.  '^^ «  Essa  éboa  1  Pois  ndo  quer  que  eu  o 
<Híiça?ik««*^SimSr. ;  mas  não  é  do  confissão:  vim 
para  receber  as  ordens  do  padre  mestre.  -^ 
^  Quaes  ordens? )» ^*^  AqueUa  continha  que  sabe« 
—^  «  Não  percebo !  V.  mertéestèemseojoíao?» 
»*«^Por  signal  em  }epim  ainda;  V* paternidade é 
que  está  distvahido*  Fa}Io  da  prata. .  .  «^  «  Ah ! 
Foia  não !  Desculpe  I  esta  cabeça }  Ê  negocio  feito^ 
já  sabe.  Appareça  por  cá  tfsaanhãi  cedo,  para  o 
acabarmos.  Não  quer  mais  nada?»^**»  Beijo  as 
«fios  da  V.  paternidade.  -^ « Nte  se  esqueça. 
Traga  a  conta  e  o  recibo»-^  vem  tudo,  pa^ 
én  mestre. 

Naqndlo  dia  faltou  ao  jesuita  o  sen  andarilho 
Onofte;  mas  nãa  lhe  deu  cuidado ;  tinha  pedido 
Koança  para  ir  a  uma  romaria,  a  seis  legoas  da 
distancia  da  cidade,  e  juigau-o  de  viajem.  Na 


Digitized  by  VjOOQIC 


SO  A   MOCIDADE 

manhft  seguinte  davam  nove  horas,  é  entrava  o 
ourives  pela  cella  do  padre  mestre  ccmi  a  sau- 
dação usual:  —  Deus  seja  nesta  casa!  —  «E  o 
ajirie  a  V .  mercê !  respondeu  o  religioso ,  che- 
gando-Ihe  um  moxo  para  defronte  do  maciço 
contador  de  páu  santo  torneado  a  que  escre- 
via. » —  Acpii  está  agora  a  relação  da  prata ,  e 
o  preço  das  peças  marcado  á  margem.  —  «Dé 
cá.  Assim  é  que  eu  gosto.  Contas*  claras.  » — 
Agora  se  V.  paternidade  quer,  vamos  conferir  o 
dinheiro.  ^ —  «  Se  o  acha  certo  para  que  é  isso  ? 
E  a  prata  ?  »  —  Veiu  a  que  o  padre  mestre  man- 
dou. —  «  Pois  sim ;  mas  que  é  delia  ?  »  —  Na- 
turalmente está  aonde  V.  paternidade  a  poz— 
rqriicou  o  ourives  rindo. —  «  Aonde  eu  a  metti  ?  1 
Está  zombando?  Pois  não  me  dá  a  prata  e  quer 
que  eu  saiba  aonde  a  guardei?»  —  Não  dei  a 
prata  ?  —  acudio  o  mercador  fazendo-se  branco. 
Desde  hontem  aonde  está  ella  senão  em  po- 
der do  padre  mestre? 

—  «Não  brinque.  Falle serio.  —  «Muito serio 
fallo  eu.  Por  signal  que  Y.  paternidade  me  di^se 
que  voltasse  hoje  pelo  dinheiro. »  —  «  Pelo  dinhei- 
ro? Ahiestá outra.  Oh, Sr. Irinocencio Pires,  não 
me  faça  cahir  em  scismas !  Pelo  amor  de  Deus ! 
Pois  o  rapaz,  o  Onofre  não  lhe  levou  hontem  o 
dinheiro,  seriam  oito  horas  da  manhã?  Cetn 


Digitized  by  VjOOQIC 


DB  B.  JOÃO  r.  81 

moedas  em  dobrões  de^oiro,  contados  pela  mi- 
nha mão?» 

-^ «  V.  paternidade  faila  muita  verdade^  mas 
eu  não  i^i  nerh  um  ceitií,  quanto  mais  cem  moe- 
das em  dobrões.  Quando  mandou  buscar  a  pra-: 
ta.  . .»  —  «Eu?  Não  mandei  tal!  Até  lhe  pedi 
que  m'a  guardasse!  Não  leu  a  minha  carta ?)> 
-^^ — «Â  sua  carta?  Qual  carta?  Não  me  deram 
senão  este  recado  hohtem  da  parte  de  V.  pater- 
nidade, que  entregasse  a  prata  e  fosse  logo  ao 
collegio.  O  Sr.  Onofre  depois  metteu  a  prata  no 
cesto,  e  eu  acompanhei-o  á  igreja,  onde  por  or- 
dem do  padre  mestre  esperei  que  a  devota  aca-^ 
basse  a  confissão. » 

.  Um  raio  fulminava  menos  o  jesuita.  Perce- 
beu que  estava  roubado ,  e  roubado  duas  ve2es. 
-: —  «  Não  recebeu  o  dinheiro  ?  perguntou  convul- 
so» »  —  «Nem  cinco  réis!  E  o  padre  mestre  não 
tem  a  prata  ?  »  exclamou  o  ourives  atterrado«  — 
tdVem  uma  culher!  Meu  amigo,  estamos  rou- 
bados, V.  mercê  na  sua  prata,  e  eu  no  dinheiro 
alheio. . .  O  que  é  isto?» 

£  o  jesuita,  empurrando  com  força  uns  pa- 
peis em  cima  do  contador,  deu  com  a  vista  em 
uma  carta,  fechada^  lacrada ,  e  com  sobrescripto 
para  elle.  Abriu-a,  leu-a,  e  roxo  de  raiva, 
pas8ou-a  em  silencio  ao  ourives.  Este  poz  os 
6 

Digitized  by  VjOOQIC 


82  A   MOCIDADE 

óculos  e  todo  tremulo  leu  alto  o  que  se  se^ 
gue : » 

«  Meu  respeitável  mestre !  V.  puternidad^ ,  e 
eu  enganamôHM)s  um  com  o  outro.  Servia-o  para 
ganhar  algum  reuiedio  para  a  telhice^  e  até  hoyè 
áffirmo-lhe  que  não  sei  a  côr  do  seu  dinheiío.  .0 
padre  mesUre  suppos  que  eu  me  habilitava  para 
sasto ,  por  isso  me  poi  quadí  a  jejwn  de  pSo  e 
agoa.  CÂra  o  nosso  moralista  o  padre  Bauntus, 
previu  Da  Sunma  Pecoatwmm^  editio  quinên^'^ 
fug.  mihi  213  e  214,  esto  eaao  de  coftscieDCia, 
aonde  dii : «  que  pôde  o  servo  a  quem  nko  pagam, 
«pagarHie  por  suas  mãos,  com  tanto  que  lâo 
« tire  mais  do  que  lhe  deverem ,  settdo  pobre  e 
«  desamparado. »  Sou  pobre ,  e  ainda  por  cima 
«orphao.  Cà  levo  por  tanto,  s^utndo  tio  bom 
H  eoiaselbo ,  os  vinte  dobrões  e  mais  a  prata  no 
K  valor  de  duientas  Aioedftf .  É  quanto  c^dculo , 
K  que  devia  receber  em  oito  annos  de  serviço ,  e 
«  nSo  o  (aço  caro^  Ficam  os  calçOes  e  a  roupeta, 
4l  4ue  V»  paternidade  me  deu «  porque  bem  etêr 
a  minados ,  estão  uma  rede  de  pardaei.  Taadiaft 
«deixo  a  Summa  de  Baamus,  aitidA  mareada 
«  dtãío  loeo ,  mas  descanee  V.  paternidade  ^  de^ 
«eorei-a  primeiro.  Ajuiio  que  o  padrt  mestre 
«  dará  o  dinheiro  por  bem  empregado ,  Vendo  o 
« frueto  da(t  doutrinas  de  um  doU  melhores  Ca«» 


Digitized  by  VjOOQIC 


BÈ  D.  JOÍO  V.  83 

fc  suisúfi  da  companhia.  Com  elles  protesto  vtrer 
€(  e  morrer ,  dando  ao  exceliente  mestre  que  m'os 
«ennnou^  os  parabéns  pelo  gosto  que  lhe  hade 
«  cansar  o  meu  exemplo.  Se  o  dinheiro  se  foi,  a 
f(  gloria  da  theologia  ficou,  e  ainda  assim  V.  pa- 
<c  ternidade  compra  barato.  Conto  acabar  muito 
«  rico  e  ir  como  um  foguete  direito  ao  ceu.  Re- 
f(  commeiMle^me  a  Deus  nas  suas  orações,  e  seja 
« amigo  deste  seu  discípulo ,  que  lhe  beija  as 
«mãos.  Benedicite^  padre  mestre t  Até  ao  dia 
«  de  juízo.  Ti 

—  «Ah  patife,  ah  hypocrital  — gritou  o  je- 
suíta desesperado  com  o  roubo,  e  sobre  tudo  com 
a  citação  do  padre  Bauny ,  cuja  doutrina  pouco 
mau,  ou  menos,  era  a  tirrocada  peio  Sr.  Onofre 
Crespo.  ^(  Para  isto  aqueci  a  vibora  1  Bem  feito  1 
Sabe  o  que  elle  me  disse  na  igreja  ?  Que  tinha 
V,  mercê  grande  devoção  de  se  confessar  comi- 
go. »'•«*- Perece  V.  paternidade?  A  prata  não 
sthta  das  attnhas  mios  se  «ão  oiço  o  padre  mes- 
tre dizer:  «leve-a  ao  meu  qcrartotn-^^Mías  eu 
jttlgaeí  quebra  a  miiiha  roupa !-^«Ka<]la;  era 
a  mmha  prata.  i>«— «  V^hacol  Pdiidé ! » 

Emqoanto  os  padecentes  de^fenam  ^  roubo 
e  tfpeitam  as  nãOB  na  cabeça ,  o  devoto  por  «res 
e  teátos  eiiega?a  a  Mottte-Mór.  Perto  <fe  vilhi , 
dssmhm  de  img^  um  carefNr^  muito  bem  mofi- 


Digitized  by  VjOOQIC 


84  A    MOCIDADB 

tado.  «  Álli  está  o  que  me  era  preciso.  Vinha  do 
ceu  um  ^  cavallo  assim !  »  Dizendo  isto  comsigo 
entrou  a  scismar  e  apeou-se  do  macho,  que  es- 
tava no  lastimoso  estado  da  mulinha  do  Palito 
Métrico: 

«  Cortabat  fíos  almas  quicumqae  vídenti !  x> 

Quando  o  marchante  (era  marchante  o  ho- 
mem) se  chegou  ao  pé  delle ,  achou-o  â  borda 
do  poço  desfeito  em  lagrimas : 

—  «Salve-o  Deus,  que  tem  V.  mercê?» 

—  «  Ah ,  sr. ,.  não  me  diga  nada.  » 

—  «  Qual  I  O  que  o  afflige  ?  Diga ;  desaíTo- 
gue !  )> 

—  «Não  tem  remédio.  Cahiu-me  no  poço  a 
imagem  de  Nossa  Senhora.  Era  de  oiro,  e  não 
sei  nadar. » 

—  «É  só  isso?» 

—  a  Acha  pouco?  Se  não  fosse  prenda  de  mi-- 
nha  mãe,  não  me  affligia  tanto.  Más  deu-m^a 
ella  á  hora  da  morte...  ^ 

'  — «  Console-se,  que  ha  remédio,  homem !  Eu 
nado  como  um  peixe  e  se  lhe  não  tiro  a  imagem 
do  fundo  do  poço,  ninguém  a  tira.  Segure-me 
o  cavallinho ,  e  livre-o  de  algum  couce  do  ma- 
cho ,  olhe  que  «lie  não  se  confessa.  Está  bom. 
Cuidado  com  essas  bolças,  que  não  estão  vazias ! 


Digitized  by  VjOOQIC 


DE  D.  JOÃO  V.  88 

Sentido !  —  Se  larga  da  mão  esse  demónio  saiba 
que  o  não  apanha  senão  em  Aldea-Gallega — é 
um  virote  a  fugir. » 

Dizendo  isto  o  marchante  despia-^se  na  maior 
boa  fé  e  deitava-se  ao  poço.  A  agua  andava  funda 
e  o  bocal  não  se  podia  alcançar  debaixo  com  a 
m^o.  Apenas  o  pobre  homem  mergulhou ,  o  de- 
voto Onofre  saltou  no  cavallo,  segurou  as  bolças, 
e  enrolando  a  roupa  n^uma  trouxa ,  prendeu-a 
á  garupa.  Depois  chegou-se  á  bpcca  do  poço  e 
todo  assucarado  perguntou  para  baixo : 

—  «Está  lá?» 

—  «  Cá  estou ! »     ' 

—  «  Deixe-se  estar.  Ainda  não  achou  ?  » 

—  «  Não  vejo  nada !  » 

—  «  Pois  eu  já  achei.  Aonde  quer  que  fique 
o  cavallo  e  as  bolças  ?  » 

—  «Ah  ladrão !  Espera !  Aqui  de  El-rei !  Es- 
pera ! » 

—  «Não  enrouqueça  sem'  precisão.  Estánie 
aboberando ;  fique  de  gaiola ,  e  dè  muitas  gra- 
ças a  Deus,  porque  não  tem  grilhão  ao  pé  nem 
grade  á  roda.  Sahe  fresquinho  como  uma  alface. 
Adeus.  Saúde.  Olhe ,  o  seu  fato  vae  na  garupa , 
escusa  de  procurar  por  elle !  Para  outra  vez  seja 
mais  leve  em  vir  ao  de  cima  d^agoa ,  e  menos 
fácil  em  se  deitar  á  bóia. » 


Digitized  by  VjOOQIC 


86  A    MOCIOAiHi 

O  triste  marcfaaote  eêcoajurou-se  dentro  do 
poço  uflMifl  poucaâ  de  horas,  e  o  honrado  Onofre 
não  parou  senão  em  Aldéa4iallega ,  aonde  en- 
tregou o  cavailo  quosi  arrebentado  i  díiendo  da 
parte  da  sua  victima ,  que  a  esperassem  por  todo 
o  dia  seguinte  f  infaUivelinente*  Depois  destas 
duas  proeaas  veio  para  Lisboa ,  e  oonstou  que 
mudAra  de  nome,  mettendo-«e  donato  na  Pe- 
nha de  França^  A  sr,^  Perpetua  das  Dores ,  di- 
gna mãe  adoptiva  deste  bom  moço,  vivia  tansH 
bem  na  oârte  com  elle,  e  ambos  se  remediavam, 
comendo  os  ovos  da  gallinba  de  ouro  apanhada 
em  Évora  e  Monte-Mór. 

O  andader  aeabnndo  de  lér  os  papeis  estava 
frio  de  neve  e  cuberto  de  suores.  O  jesuíta  nunca 
tinha  tirado  os  olhos  de  cima  delle.  Apenas  viii 
a  leitura  concluida,  estendendo  a  mão,  disse: 

-^a  Que  me  dit  filho?  Tinha  génio  o  hypo- 
crita !  Forte  pena !  É  verdade  vamos  aos  signaes... 
esquecel-oft-ia  eu?  Nada;  cá  estão.  £  esta!... 
Ê  \k  mercê  tirado  por  uma  penna.  Nem  dois  ir- 
mãos gémeos  ? !  Que  singularidade ! » 

• —  «  Jesus  bento  nome  de  Maria !  V.  paterni- 
dade att^ra-me !  Isso  é  engano.  » 

—  <x  Esta  claro ;  o  que  ha  de  ser  ?  Um  mero 
acaso!...  Entretanto  é  mau.  Bem  sabe  o6  tnoo- 
centos ,  que  morreram  de  uma  folsa  sinúlhança , 


Digitized  by  VjOOQIC 


DiE  D.  JOÃO  V.  87 

por  íUwlu)  da  jui^ttça;  dív-se  depois,  eu  cuidei, 
eu  suppuz,  mas  o  morto  não  resuscita.  Deus 
nos  livre  de  inimigos ,  e  de  más  parecenças ,  so- 
Jire  i«do,  em  devassa  aberta,  ou  em  denuncia 
ao  Santo  Officio. » 

-^^iíW,  paternidade  zomba !  aecudiu  o  devoto 
sorrindo  cem  uma  visagem  avinagrada. » 

«-^  H  Falio  nwito  serio*  É  peior  parecel-o ,  do 
que  sèl-^.  Nio  disse  nem  digo  outra  coisa,  n 

--^ «  Corpo  Santo  do  meu  Deus  l  Ê  possivel 
qua  o  justo  pague  pelo  peccador?  Que  sirva  de 
i^rime  a  cara  a  um  innocente... » 

-^  «  Entio  I  Nnaca  ouviu  que  pela  booca  morre 
0  p^M?  Aqui  o  innocente  morre  por  ter  a  cara 
d^  peccador.  Nio  se  amofine ,  porém ,  o  bomem 
ha  de  appftf^eaer... » 

^^alfas  V.  paternidade  percebe  que  o  nome, 
a  menor  dilTerença  de  {ei^çÕes...  o 

'-^^  Vaftia-nos  Deus,  Thmíé,  valba-nos  Deus ! 
Eu  percebo ,  bem  v6.  Os  moralistes  são  da  sua 
opinião «  e  também  eu  sou ;  mas  que  quer  I  Se 
06  ministros  ateim»n ,  e  nio  sentenceiam  seiúo 
pela  tonb^aria !  Noto  a  reconvenção ,  não  preciso 
que  a  faça.  Y,  mercê  defende-se  com  a  diiFe- 
reȍa  do  nome  ?  Ora  muito  bem.  Mas  os  juices 
bão  de  responder ,  e  aqui  entre  nós  com  sua  ra- 
sto talvex ,  que  os  nomes  mudam  e  as  pessoas 


Digitized  by  VjOOQIC 


88  A    MOCIDADB 

iicam !  Terá  de  justificar ,  terá  de  provar ,  bem 
sei  que  não  é  nada  para  ura  homem  honrado; 
que  nunca  se  chamou  Onofre,  que  sempre  foi 
Thomé.  Isto,  jâ  se  vé,  é  fallar  por  exemplos, 
nada  mais.  Não  se  assuste. » 

1 —  <c  É  que  V.  paternidade  pinta  tanto  ao  vivo ! » 
observou  o  devoto  arripiado  como  um  janeiro. 

• —  «  Ha  muito  do  vivo  ao  pintado,  nâo  tenha 
receio.  Mas  parece  um  laço  do  demónio.  Ora 
oiça :  são  os  signaes :  n  Rosto  comprido  e  olhos 
pardos.  Um  pouco  vesgo. »  Observe  mais,  escute ! 
«  Altura  ?  Um  palmo  acima  da  ordinária. »  Tal  e 
qual  \  —  Thomé  encolheu-se.  — ►«  Côr  esverdeada, 
tirante  a  cobre. » — O  devoto  sentia  a  cara  em 
brasa,  e  julgou-se  côr  de  pimentão.  —  «Nariz 
aquilino  e  uma  verruga  na  ponta. »  O  nosso  amigo 
metteu  as  unhas  a  igual  verruga  para  a  degolar. 
«( Maneiras  beatas  e  um  ar  no  lado  esquerdo. » 

r — «É  mentira  —  berrou  o  milagreiro — é 
.  mentira !-p-* Isto  foi  geito  de  nascença.» 

—  Rmm  habemus  confitentem !  —  disse  o  pa- 
dre de  modo  que  o  andador  ouvisse ;  e  mais  aho 
accrescentou :  «  Ora  pois !  Nelle  é  um  ar,  em  V. 
mercê  é  que  foi  um  geito  de  nascença ;  pôde 
admittir-se.  Digo-lhe ,  porém ,  que  a  similhança 
é  fatal...  Occorre-me  ajgora !  Temos  o  remédio 
fBio  pé  de  casa.  Dè-me  um  abraço  polo  que  vou 


Digitized  by  VjOOQIC 


DE  D.  JOÃO  V.  89 

dizer.  Sabe  que  chegou  o  nosso  padre  Simões,  e 
está  em  S.  Roque?  Pois  é  verdade. — Bem- ve- 
lhinho ,  coitado ,  mas  rijo  ainda.  Quiz  assistir  aos 
«xames.  Iremos  lá ,  e  elle  nos  dirá...  Tem  alguma 
coisa,  filho?» 

'  Toda  a  impudência  do  irmão  das  almas  soço- 
brou com  este  ultimo  golpe.  Conheceu  que  es- 
lava dentro  do  laço  e  que  todos  os  meios  de  se 
«escapar  tinham  sido  previstos  com  engenho  e  as- 
túcia superior.  Então ,  mas  tarde ,  entendeu  o 
conselho  salutar  do  dominico  —  «  que  a  respeito 
dos  jesuitas  o  melhor  era  fatiar  menos ,  e  acau- 
-telar-se  mais. »  A  forca  e  a  fogueira  já  lhe  dan- 
çavam diante  da  vista.  Sentia  o  corpo  em  brasa 
e  a  garganta  preza. 

Por  isso ,  depondo  a  dissimulação ,  deitou-«e 
•aos  pés  do  jesuita ,  que  o  levantou  com  benevo- 
lência ,  sem  se  desarmar  do  seu  sorriso. 

—  «Pelo  que  vejo  teme  que  se  enganem  os 
olhos  do  padre  Simões  ?  Não  estranho ;  é  natu- 
ral. Mas  que  remédio  ?  V.  mercê  queixava-se  da 
heresia  e  da  impiedade;  até  confundia  a  nossa 
roupeta  com  os  peccadores  que  a  vestem ;  um 
exemplo  é  indispensável :  magoa-me  vêl-o  afflicto ; 
mas ,  diga ,  no  meu  logar ,  o  que  fazia  ?  » 

— «  Fui  temerário,  meu  padre,  e  Deus  cas- 
trga-^me.  Se  a  justiça  sabe  estou  perdido. . .  » 


Digitized  by  VjOOQIC 


90  A    UOQDADfi 

—  «  Nio  O  quefQ  eng/m^ri  aio  se  pimpite- 
Nao  «reio,  nSo  posio  Mveditar  q«e  V.  lúerc^ 
tenb«  medo  de  si  a  esse  ponto.  Seja  fiMrte  $  ani- 
menge.  (^a  pois !  Fallou  da  companhia  sem  te- 
mor de  Deus  e  sem  charidade  ctffistST  $e  o  sen 
coração  Ih^o  diz,«~que  e«t  r<fNÍto,  gostei  de  o 
ouvir  e  acho  que  faUou  muito  bem^^«e  o  fav 
coração  o  accusa ,  pensa,  exoogite  coisa  do  a(^^ 
viço  da  <M)mfanbia ,  em  que  &««  a  rqMsraeio. . . 
O  mal  pagaHse  com  o  bem ,  ha  de  t«r  ouvido^ 
atguma  ?ez.  » 

—  « CtealA  que  eu  pedeMe,  meu  padn^! » 

—  <(  Todos  podemos  a)gima  caÍ9a.  Ha  íniim^ 
gos,  o  mal  de  quem  os  olo  tem;  ajudemo^noft 
uns  aos  outros...  Siga  por  este  themo » que  ha  do 
acertar.  Diga-me ;  porque  se  «Ao  ha  de  p6r  uma 
pedra  em  cima  do  tal  roubo  de  Évora  ?  Assim 
como  assim  o  dinhetno  está  peidido ;  o  que  lb& 
parece  ?  Deixemoa  o  homem ,  e  nto  se  frUe  mais 
nisso. » 

—  «  Acfao  exeellonte ,  justtssimol  >^ 

—  «Previ  logo  que  mereeía  a  sua  approva-- 
(%o.  EatSo,  ainda  nte  achou  aada  no  eapttido 
das  reparações  moraes?» 

— ií  Meu  padre— exclamou  o  decoto  em  mm^ 
-^nio  attinjo,  nlo  descubro,  v^ 

—  «Admira!  Ora  lorne  a  reieçíir:  irâde 


Digitized  by  VjOOQIC 


0fi  D.  ioiov.  91 

vag«r.  Q  adagio  dii;:  ajuda-me  que  eu  te  ajuda- 
rei. Temoa  iniinii^oa.  Ora  ae  V,  mercê  podesse, 
se  y.  mercê  <|uize8ae ,  a  companhia  por  exem- 
plo resistia  melhor  aos  seus ;  e  eom  os  padres  de 
Jeaus  da  sua  parte  o  sr.  Thomé  acbava-ae  tam- 
bém mata  forte;  fig4rei  a  hypothese:  agora  tice 
a  condhasSo.  Ainda  não  entende? 

-^K  Ckmefio  a  peroebcar,  meu  padre.  » 
~-<  £sttmo!  Vamos  ^imamente.  Com  va:- 
dade ,  responda-me ,  oio  leva  uma  carta  6  Cal- 
cetaria, a  casa  de  Diogo  de  Mendonça,  creio 
eu;  da  parte  do  padre  João.  dos  Remédios, 
de  S.  Donwgos,  ao  secretario  de  estado  de 
£lrrei  nosso  senhor?  lesho  uma  idéa  con^- 
fusa.  • .  V^a  se  mo  ajuda.  Estau  perdido  de  me- 
JBorin !..,.)» 

— «  £  o  que  V,  paternidade  diz.  Levo-a  em 
aendo  oito  horas.  » 

—  <c  Óptimo !  Pode-me  diaer  agora  o  cami- 
Bhot  que  conta  s^uír  para  casa  de  Diogo  d^ 
Afendonça  7  » 

—  Irei  por  onde  V,  paternidade  quizer.  n   « 
— a  Valha-o  Deus ,  homem !  Pois  eu  quero, 

ou  peço  aytgnma  coisa?  Se  deseja  aervtr  a  com- 
panhia ,  se  o  seu.  ppra^  o  accnsa  de  ter  for- 
mado juiios  temerários  a  resfieite  d^ ,  digo  só 
i}ne  iria  de  cpuninliín  per  Santo  Antio,  e  re- 


Digitized  by  VjOOQIC 


92  A   MOCIDADE 

conciliaTa-me  com  algum  dos  padres,   comigo 
por  exemplo ,  antes  de  entregar  a  carta.  » 

—  Mas  é  ir  a  Roma  para  chegar  a  Paris , 
reverendo  padre.  » 

—  «  E  duvida,  por  um  pedaço  mais,  ganhar  as 
indulgências  da  viagem  ? ! . . .  Indo  pw  Hespa- 
nha  chega  mais  depressa ,  é  verdade,  mas  pôde 
cahir  nas  mSos  dos  inimigos.  Indo  de  volta  por 
Ualia  demoranie,  mas  chega  com  certeza.  A 
paciência,  filho,  faz  prodigios.  » 

— <i  Mas  se  não  levo  a  carta  fechada,  se  a 
entrego  aberta. .  .  » 

—  «  Aberta  ou  fechada  quem  fallou  da  carta  ? 
depois  V.  mercê  deve  notar  que  ha  olhos  que 
Idem  tudo ,  até  por  cima  do  sobscripto.  O  Sr. 
l'homé  põe  a  sua  carta ,  aonde  quer ;  para  tra- 
tar primeiro  da  sua  alma;  ella  é  o  importante. 
Observe  que  não  estou  suggerindo  traiçSo  nem 
inconfidência — longe  de  mim  tal  idéa.  V.  mercê 
não  abre ,  não  mostra ,  nem  lê  a  carta.  Agora 
se  outro  o  fizer  por  interesse  ou  por  curiosidade, 
o  que  temos  nós  com  isso?  Non  mea  culpa ^ 
acabou-se !  » 

—  « Irei  por  Santo  Antão,  de  caminho^  como 
V.  paternidade  aconselha. . . » 

—  «  Observo-lhe  que  eu  não  aconselho  nada. 
Deus  me  livre.  Entenda-mo-nos !  Quem  aconse- 


Digitized  by  VjOOQIC 


BK  B.  JOÃO  Y.  93 

lha  parlicipa  do  acto  praticado. . .  O  que  tenho 
feito  apenas  é  dizer:  «em  seu  logar,  no  seu 
caso  de  V.  mercê,  ia  â  Calcetaria  passando  por 
Santo  Antão.  Percebe  ?  » 

—  «  Percebo  de  mais ,  meu  padre. » 

—  «Por  onde  tenciona  voltar?  » 

*-^«  Virei  pedir  a  absolvição  á  casa  professa 
de  S.  Roque. » 

—  <x  Fará  muito  bem.  É  preciso  tempo,  sem- 
pre ,  para  se  formar  uma  verdadeira  contricção* 
Vejo  que  intende  as  cousas — havemos  de  dar- 
nos  perfeitamente.  Ouve?  Em  chiando  matide 
chamar  logo  o  padre  Simões ;  ha  de  reconcilial-o 
com  muito  gosto. » 

—  a  O  padre  Simões !  Jesus  do  ceu ! » 

—  «Socegue.  O  nosso  querido  irmão  tem  a 
vista  cançada,  não  conhece  ninguém.  Haden) 
tractar  com  muita  caridade !  » 

—  «Posso  então  ficar  certo?» 

—  «  Gertissimo,  filho.  Tudo  bem  pensado,  estou 
pela  sua  opinião.  Deixaremos  em  paz  o  Onofre. 
Diga-me,  sabe  de  uns  papeis  da  inquisição,  que 
tinha  o  padre  Fr.  João  dos  Remédios ,  ha  coisa 
de  dois  dias?  —  Tenho  aqui  uma  nota. .  .» 

—  «Eu  verei.  Sendo  preciso  V.  paternidade 
pôde  contar. . . » 

—  c<  Pois  nãp  conto !  Por  ora ,  não.  Veremos 


Digitized  b^  VjOOQIC 


94  A   MOCIDADE 

depois.  Ande,  vá  com  Deus  que  se  fai  tarde.  Nlo 
quero  que  o  nosso  padre  procurador  espere  por 
minha  culpa.  Quanto  «o  tal  Onofre  Crespo ,  se 
ouvir  faltar  delle. . .  » 

—  «O  que  heide  feier?»—*- «clamou  o  de- 
voto ainda  tremulo* 

—  K  Besar-lhe  por  alma,  filho.  Agora  me  lem-^ 
bra  que  falleceu. » 

—  <cDeus  o  tenha  A  sua  víatâ?»  exclamou  o 
andador ,  levantando  os  olhos  ao  cen. 

E  com  um  sorriso  (abo  ambos  se  apartaram 
seguindo  cada  qual  para  seu  lado.  O  Sr.  Tbomé 
voltou  para  S.  Domingos ;  o  jesuíta  entrou  fira 
o  seu  coUegio. 


Digitized  by  VjOOQIC 


CAPITUIéO  VI. 


O  PADU  Fr.  Joio  dos  Rettiodios  e  ò  seu  amigo 
Filippe^  desctodo  do  dormitório,  cingaraiii  ao 
enueíro»  quando  o  relógio  dava  oito  horas  da 
mwbft ;  ao  inéaaio  tempo^  ainda  tremulo  da  ri* 
aia  do  lerrivel  Onofre  CreiBpo,  iqppareda  o  v. 
Tknmé  das  Chagas,  do  lado  de  Santo  Antto.  O 
procurador  entregou-lhe  a  carta  ^  e  o  doToto^ 
depois  de  beijar  a  manga ,  como  Judas  beijou  a 
Clôistot  Jiartíu  dinsito  para  o  cdlegio  dos  je- 
suítas. 

*-««  Agora  estamos  desembaraçados;  podemos 
ir  ^«••diise  o  doainico  ao  seu  amigo» 


Digitized  by  VjOOQIC 


96  A   MOCIDADE 

—  a  Fr.  João ,  cada  qual  é  como  Deus  o  fez. 
Assim  não  quero.  Sou  teimoso  i  escusas  de  té 
cançar ;  nem  que  me  levem  arrastado ! » 

—  «  Valha-me  Deus ,  Filippe !  Queres  que  eu 
appareça  adiante ,  e  prepare  o  animo  de  tua  mu- 
lhe\?...  » 

/ — «Quem  te  pega?  Dize-lhe,  ouves?  que 
s/u  o  maior  amigo  do  heroe  elogiado :  e  não  ã 
enganas.  Tens  até  licença  para  fazeres  um  poema 
épico.  Anda;  põe-te  ao  fresco;  dispõe  essa 
gente. ...» 

—  «Só  uma  coisa  te  peço ,  Filippe ;  trata  o 
commendador  com  respeito.  É  homem  de  qua- 
lidade, grande  sábio,  e  está  costumado  a  toda 
a  contemplação :  talvez  o  aches  um  tanto  esqui- 
sito ;  mas  é  de  excelletite  coração.  Não  ha  nin- 
guém isempto  de  defeitos,  tu  o  sabes. » 

—  «  Pois  sim ,  vae  socegado.  Poremos  o  coní- 
mendador  macio  que  nem  um  veludo,  úão  te- 
nhas cuidado.  Acredita  que  não  me  obriga  a  vi- 
rar de  bordo  com  toda  a  sabedoria !  Ao  primeiro 
tiro ,  dísparo-lhe  a  metralha ,  e  bum !  leva  salva 
real ;  tu  verás.  » 

— -«Deus  permitta!  Então,  daqui  a  meia 
hora  ?. .  .  » 

— «  Está  dito.  Daqui  a  meia  hora.  Ouve  cá. 
O  commendador  é  curioso,  gosta  de  raridades ?  » 


Digitized  by  VjOOQIC 


BE  D.  JOÃO  T.  97 

^-  <t  Foi  sempre  o  seu  vicio. » 

—^«Famoso  homem I  E  de  animaes?  Tetiho 
uma  idéa.  Bem !  Dou-lhe  um  presente  de  deitar 
a  mão  abaito.  Mas  é  que  elle  merece-o.  Quem 
levou  para  casa  minha  mulher,  e  aturou  as  ver- 
duras das  raparigas  ?  Adeus  Fr.  João. » 

O  c(Hnmendador  Lourenço  Telles  morava  na 
rua  das  Arcas.  A  sua  casa  ^  de  dois  andares ,  ti- 
nha varanda  saccada<  A  parede  sahia  por  cima 
da  porta  ^  abocetada  em  forma  de  armário ,  muito 
similhante  a  algumas,  que  ainda  hoje  vemos  no 
antiquíssimo  bairro  de  Alfama.  A  rua  era  menos  es- 
treita e  menos  mal  assombrada  do  que  as  da  visi- 
nhança ;  podia  até  passar  por  alegre  em  vista  dei- 
las.  Lourenço  Telles  occupava  a  casa  toda ;  e  em 
perto  de  cinco  annos,  só  três  ou  quatro  vezes 
tinha  sabido  a  pagar  algumas  visitas  de  cumpri- 
mento. 

Na  sala ,  aonde  ó  commendador  persistia  mais, 
rasgavam-se  três  janellas  grandes ;  e  a  claridade 
animava-a,  entrando  â  vontade.  As  paredes  eram 
forradas  de  coiro  vermelho  com  lavores  de  prata ; 
a  papeleira  de  pau-santo ,  lavrada  com  primor , 
e  ornada  aos  cantos  de  cabeças  de  cherubins ,  e 
de  columnas  torcidas  com  capiteis  floridos,  attes- 
tavam  a  opulência  do  velho  erudito.  Um  escri- 
ptorio  (secretãiria)  precioso  de  charão ,  embutido 
7 

Digitized  by  VjOOQIC 


98  A   MOCIDADE 

em  arabescos  chinas ,  e  otnado  de  afmarios^  de 
pinrtas  dè  espelho,  defróate  da  papeleira,  tinha 
a  gaveta  cabida ,  e  Sii6tentá?a  uma  escrevmiffba 
de  feitia  e  dimensOes  curiosas.  Cadeiras  de  co^ 
tas  e  pés  arredados,  abertas  eaí  bellis^tiai  fa- 
lha, vestiam  o  aposento;  nos  assentos  repre- 
sentavam, em  matt2  delicada,  algumas  scenas 
da  Eneiada,  e  os  espaldares  Variados  trata- 
vam as  mais  raras  aves  do  Ganges  e  do  Nilo. 
E^an  bordadas  na  A^«,  e  a  perfeição  do  tra- 
balho parecia  inimitável  As  aHas  estairtes,  lot- 
neadaB  e  entalhada»  é  capricho,  vergavam  com 
o  peso  dos  volumes.  Em  tim  bofefe,  coberto  de 
damasco,  brilhavam  duas  jairras  do  Jâp&o,  da* 
quelle  barro  transparefttè  como  vidro,  daquelte 
axttl  e  oiro  finissimos ,  Cujo  segredo  hoje  se  per- 
deu talvez.  Duas  talhas  da  índia,  grandes  e 
magestosas,  aos  cantos  da  casa,  descançavam 
sobre  leões  doirados.  As  cortinas  das  janelW,  e 
os  reposteiros  das  portas,  em  varetas  prateadas, 
on^vam  as  pregas  de  vistosa  tela  verde ,  apsr^ 
nhadas  em  cordões  de  seda,  com  belotas  de 
oiro. 

A  cadeira  do  commendador  era  semi-círcular , 
assento  de  estofo  carmesim,  costas  abertas  em 
grinaldas  de  rosas ,  imitando  um  açafete  de  flo- 
res; pés  de  garra,  com  seu  globo  nas  unhiè* 


Digitized  by  VjOOQIC 


Dl  ir.  JOÃO  V.  99 

Pèitíi»  &htitib  te  éapríchioso ,  em  ífm  a  arte  se 
aDnèâun^com  ^  comniodidade.  Diante  de  si  um 
vi^adcr  gnoáe,  t&aoiíeiíi  de  pau-santo^  de  pé 
taiTsHltf  àè  passarinhos  em  ramos  de  acantho , 
96vm  de  basca  de  escrever  a  Louçenço  Telles^ 
e  yimnk  em  cima  deUe  varies .  livros ,  um  eo^ 
^ittiete  eom  arroK  coddb ,  e  um  pucharo  de  ge* 
leia  ««peciaL  Ao  tado  um  epatador  de  pa«  da 
Iflidiai^^  marebetadb  de  griphos  de  madre^rola , 
êim  ifMngeê  nos  péi,  sustentava  dms  pagodes 
de  marfim  e  uma  curiosa  fonte  efaineza. 

tí  ctnpfiieniiadoir  devia  ter  sido  ò  que  se  cos- 
Uísia^  diíer  um  iMmitò  homem;  e,  apesar  dós 
seua  ottttta  «nos,  e  dos  estragos  áà  doíonça,  a 
9fiá  veShíce  não  era  repugnante.  Os  olhos  azues 
um  pouco  dflitiagídos  de  cdr,  poeém  de  uma 
kn  ainda  clara;  a  pdte  branca  e  r(»ada,  posto 
çpae  cheia  de^  rugas ;  a  bocca  fina  e  pequena ;  e 
M  boa»  pKopcxTQSes  db  corpo  ^  dayam^lbe  niíuHo 
agradaível  apparaiicia.  As  feiçSes  regulares  e  « 
af  cèseiiufoso,  U^ncSam  respeito,  e  não  ceos^ 
Ira&gíam,  O  sorriso ,  abrkido  a  phisionomia ,  era 
jfmkl  e^t^bistosa^  porém  rara  vex  irónico.  Via-* 
sd  iiosán^  o^genario  o  t^po  corteisão  em  toda 
a?  pureia.  Na  rcàidade ,  poucos  homens  tinham 
vúlo  o  obisrvado  mais  ó  mundo;  poajeos  o  te- 
mmf^ ^oímIo  tanto,  vivendo  na  sociedade  esco*- 


Digitized  by  VjOOQIC 


100  A   MOCIDADE 

Ifaida  cÍDcoenta  annos,  CO01O  elle,  san  eoimnet-* 
ter  um  soUecismo  de  ceremoníal ,  ou  esquecer  « 
mais  insignificante  fbrmali<hde.  Nestes  pontos 
era  e  fôra  sempre  o  manual  da  polidez ;  e  em 
toda  a  parte,  por  onde  yiajou,  deixara  honrosa 
memoria  de  si.  Escravo  da  moda,  Lourenço 
Telles  parecia  o  Mathusalem  mais  namcMrado  de 
Lisboa.  Um  moço  peralvilho  —  um  frança ,  como 
então  se  chamavam  os  petimetres  —  não  o  ex- 
cedia^  no  apuro,  que  ainda  dedicava  ás  ruina» 
da  eclipsada  elegância. 

A  cabelleira  penteada  e  lustrada  de  preciosos 
óleos ,  soltava  em  toda  a  frescura  dos  polvilhos  y 
sobre  os  hombros ,  as  bolsas  de  canudos  annel* 
lados ,  a  que  só  dava  a  sezão  devida  o  calor  do 
forno.  Os  çapatos  de  salto ,  com  tacões  verme^ 
lhos ,  tinham  o  verniz  transparente ,  que  o  gosto 
de  então  exigia  imperiosamente.  Os  topes  ou 
rosetas  de  fitas ,  em  vez  de  fivelas ,  assentes  longe 
do  peito  do  pé ,  disfarçavam  a  sua  grandeza ,  tor^ 
nando-o  &  vista  mais  breve  e  airoso.  A  volta  de 
cambraietá  de  rendas  era  daquellas ,  que  enro- 
ladas no  pescoço  por  uma  ponta ,  devia  o  criado 
apertal-as  com  força  para  ficarem  justas^  e  o  san- 
gue rebentando  das  faces.  Calções  estreitos  do 
corte  mais  moderno;  botões  de  diamante  do» 
punhos  do  camisote;  bordadura  esplendida  na 


Digitized  by  VjOOQIC 


BB  D.  JOXO  V.  101 

\esiia ;  franjõés  de  oiro  no  canhão  das  luvas ,  es- 
quecidas em  cima  da  cadeira ;  e  roupas  de  cham- 
bre de  seda  «  primavera  » ,  de  flores  e  ramos  lar- 
gos ,  soltas  por  cima  do  fato ,  completavam  o  es- 
merado vestido  do  velho-menino.  O  chapéu,  guar- 
necido e  apresilhado  com  primor,  estava  ao 
lado  do  espadim  de  copos  dourados,  e  punho 
cravejado.  A  bengala  de  unicome,  de  castão 
de  oiro  com  sua  esmeralda  engastada,  via-se 
ao  lado  da  cadeira.  Toda  aquella  múmia ,  (por- 
que a  mag|reza  do  commendador  era  extrema) 
rescendia  aos  aromas  mais  custosos. 

Um  gato  de  casta  franceza ,  quasi  da  espécie , 
hoje  chamada  «  Angora  »  estava  deitado  aos  seus 
pés ,  branco  e  assedado  como  um  arminho ,  in- 
dolente e  gordo  como  um  sultão ;  e  enroscava-se 
em  um  coxim ,  com  as  patas  dobradas  debaixo 
da  cabeça,  enrolando  o  corpo  na  voluptuosa 
curva ,  que  exprime  a  suprema  beatitude  da  raça 
felina.  Um  dos  olhos  meio  fechado  espreitava  a 
sala,  em  quanto  o  outro  dormitava  piscando- 
ae  com  delicias ,  como  para  dizer  â  restea  do  sol 
que  o  aquecia: — sou  completamente  feliz! 

Da  outra  parte ,  sobre  meia  columna  de  no- 
gueira ,  pousada  em  uma  peanha ,  um  papagaio 
cabaciava  no  poleiro  ou  dava  bicadas  no  come- 
doiro ,  soltando  roladas  stridulas. 


Digitized  by  VjOOQIC 


102  A   MPCfBADIS 

De  vet:  «m  quando  ^  Lourenço  Tie&s  4ay«  uo^ 
cidber  de  arroz  ao  Liado,  e  podia-lhe  o  jpé,  ior 
teitomiMeiído  pwa  isso  a  mais  iateiasaaote  kih 
tora ;  oa  deixava  engulir  uma  aop*  de  gdef a  ao 
gato ,  com  eminente  riwo  de  uma  Carpa  wb  •cal- 
ções,  Ott  na  mm  de  seda  c6r  de  rosa.  Oque  se 
notara  neste  velho  singular ,  era  a  g^niça  inusíta , 
que  lhe  realçava  as  acçOes,  ainda  as  mm  rídi- 
eulâs.  Era  a  naturalidade  e  o  ar  de  grandeza, 
que  reve&tiam  este  mixto  de  ancião  e  de  mancebo, 
fallaado  de  erudição  como  um  sábio,  discor- 
rendo como  um  pbilosopho «  e  figurando  oomo 
peralvilho  impenitente! 

Em  cima  do  v^d(»*  estavam  abertas  mttilas 
cartas  com  as  assignatunis  de  D.  Lim  da  Cu- 
nha, do  conde  de  Tarouca,  e  de  Diogo  de 
Mendonça ,  provando  que  ^a  activa  a  w»  cor- 
respondência com  estes  homens  raiinentes^  Pa- 
peis de  versos  em  francez  e  castelhano ,  as  obras 
de  Tácito  e  de  VirgiliQ,  o  Orlando  do  Ârioâtos 
e  as  tragedias  de  Pedro  CorneiUe ,  encaderpadas 
em  veludo ,  a  par  do  livro  de  Horácio ,  aberto 
e  sublinhado  quasi  em  cada  verso,  attestavam 
que  lhe  era  familiar  a  conversa^  das  musas  an- 
tigas e  modernas. 

O  commendad<>r  não  estava  só ;  faria-Jhe  com- 
panhia um  homem  alto  e  delgado,  dq  presença 


Digitized  by  VjOOQIC 


D£  P.  JOÃO  V.  103 

geatil ,  e  tracto  ma3fÂ>so.  A  cabeça  deste  Qào  se 
ornaya  dos  faUes  massacrôcos  de  canudos,  que 
se  enrolavam  pelos  homhros  de  Lourenço  Telles ; 
entradas  grandes  em  uma  testa  elevada  e  calva  ^ 
da  mais  beUa  expressão ;  a  pelle  íiua ,  e  oor  de 
rosa  desbotado;  o  rosto  comprido  sobre  o  oval,  os 
olhos  ras^idos  e  cheios  de  animação ;  e  uma  bocca 
pequena  e  séria ,  com  soíFriveis  dentes ,  c<Hnpu- 
nhaiB  aquella  profunda ,  clerical,  e  sareaa  phi- 
sioncmaía ,  capaz  de  inspirar  um  excellente  pai- 
nel de  S.  João  Cbrisostomo.  Os  gestos  do  per- 
sonagem eram  graves  e  compassados ;  o  riso  dis- 
creto; as  palavras  poucas  e  pesadas  a  minutos. 
A  estatura  arquea^a'-«e  alguma  coisa ,  como  é  de 
uso  nos  erudUos;  o  corpo,  apesar  de  magro, 
tinha  certa  elegância ;  as  tíbias  extensas  e  nada 
grossas  tornavam-lfae  as  passada3  longas  e  ma- 
geatosas.  Vestia  sempre  cdres  escuras ;  e  o  talhe 
«neio  secular  e  meio  profano  tího  desmentia  a 
g;ravidade  da  poesia.  A  bengala  de  castão  de 
porcdana  japonett ,  de  £sitio  exótico ,  servia-lhe 
«ai»  de  taboleta ,  que  de  encosto ;  assim  como 
ia  antiquíssimo  annel  egypcio ,  de  um  só  rubkn, 
mettido  no  dedo  à  maneira  episcopal ,  jera  os- 
tentado com  estudado  dcisleixo.  Sinetes  de  cama- 
feus, em  vidrilkos  pretos,  pendiam  dos  dois  re- 
Í6J06  que  trazia.  Este  uniforme  sçientiSco-^irda- 


Digitized  by  VjOOQIC 


104  A  MOCIDADE 

ticio,  tinha  a  vantagem  de  poder  figurar  a<i9 
crédulos,  que  o  sábio  era  pelo  menos  um  bispo 
in  partibus  infidelium.  Toques  originalíssimos  no 
gesto  solemne ,  e  na  contracção  mimica  do  rosto , 
completavam  este  retrato.  A  caixa  de  oiro  oval  ^ 
de  tampa  lavrada,  abria-^e  lentamente,  e  le* 
vantava  o  sabor  das  citações  ao  oráculo  com  a 
clássica  pitada. 

Esta  figura  agradável ,  e  nada  antipathica ,  íat- 
zia*se  chamar  o  abbade  SiWa,  posto  que  muitos 
lhe  negassem  a  abbadia ,  e  que  outros  maliciosos 
jurassem  que  nem  ordens  sacras  tinha.  O  abbade 
honrava  as  casas  dos  fidalgos  de  frequentes  visitas; 
e  servia  de  conselheiro  aulico  aos  seus  illustres  ami- 
gos nos  casos  intrincados.  Com  as  senhoras  dócil 
e  sociável  a  ponto  de  se  lhe  prestar  como  escu- 
deiro servente ;  umas  vezes,  oh  excesso  de  civili- 
dade !  qual  ama  carinhosa ,  levando  os  cachorri- 
nhos de  fralda  nos  braços ;  outras ,  feito  estribeiro 
ou  volantim,  e  sustendo  na  fuga  a  hacanea  valida  ás 
delicadas  clientes.  Finalmente  senhor  dos  segre- 
dos de  toucador,  e  modista  masculina ,  compondo 
â  franceza  ou  á  alemã  esses  empinados  toucados, 
cujas  grimpas  foram  as  delicias  de  nossos  avós. 
Génio  universal  a  arte  poética  e  a  arte  da  cosi- 
nha,  os  tractados  scientificos  e  os  roteiros  de 
bailes  e   festejos  eram  versados  por  elle  com 


Digitized  by  VjOOQIC 


DE  D.  JOAÓ  V.  lOK 

m&o  diurna.  NHo  admira ,  pois ,  que  esta  utili- 
dade huniana ,  <;ujotbeatro  era  a  boa  companhia , 
tivesse  de  mais  ainda  a  rara  prenda  de  ser 
para  os  estudiosos  itm  archivo  ambulante  de  no* 
ticia&  microscópicas,  um  catalogo  etèrrio  de 
supposto$  manuscriptos ,  que  se  dignava  conde- 
corar de  títulos  imaginários.  O  erudito  cobria  a 
nudez  do  espirito  e  a  pobreza  do  sizo  com  a  Sua 
dignidade  perpendicular ;  e  affectava  a  sciencia 
infusa ,  esbrugando  as  pbrases  e  deixando-as  ca- 
fair  a  uma  e  uma  como  pérolas.  Era  auctor  de 
cinco  tractaditos  notáveis  pela  magreza  do  texto 
e  bydropica  inchação  das  notas,  e  ainda  mõis 
peia  exquisitice  dos  assumptos. 

No  primeiro ,  confessou  que  dez  annos  cavara 
os  minas  históricas  até  averiguar ,  se  acaso  certo 
viso-rei  da  índia  monreu  ou  nâo  de  bexigas  doi- 
das !  No  segundo ,  (a  obra  prima)  doze  ânuos 
consumiu  em  apurar  a  natureza  do  milagre,  que 
despegou  as  pernas  a  AfFonso  Henriques.  E  para 
eterna  gloria  da  sua  época  ^  descobriu  um  perga- 
minho cheio  de  nódoas ,  que  era  (dizia  elle)  uma 
doação  authentíca  toda  do  punho  do  conquista- 
dor de  Lisboa  «  de  mui  buena  letira  »  em  que 
se  declarava  ter  sua  mercê  ElHrei  sido  curado  pela 
virtude  da  famosa  receita  da  podrága,  achada 
na  caveira  de  Santo  Thyrso  pelo  seu  ayo  Egas  Mo- 


Digitized  by  VjOOQIC 


106  A    M0C1I)A{>í; 

niz.  No  terceiro  ofHisciite  (coisa  sublime!)  ebe- 
gou  a  reunir  mm  eollec^  de  máximas  autho^ 
grapbas  de  todos  os  reisdePif^tugal,  eomecando 
em  Luso  e  Aludis  ,  e  acabando  em  D.  Joio  IV, 
com  a  qual  vingou  os  reaesgarafonhos  do  egqtie- 
cimento  calygraphieo.  Fínafanenle,  as  paginas 
mais  variadas  da  sua  penna  eram  sem  queatio 
duas  memorias  consagradas  a  provar  que  as  bar- 
bas de  D.  João  de  €astro  entraram  ruivas  quando 
as  empenhou  em  Goa ,  e  sahiram  pretas  quaado 
as  resgatou.  Cinco  pc^inas  de  lexto,  em  cada 
uma^  locupletadas  com  setenta  pagiaas  de  nolas 
enchiam  de  erudiçio  este  ensaio  capillar;  só  a 
venda  avulsa  rendeu  para  o  eacriptor  chflffidoso 
vestir  seis  orphSos  de  ambos  os  seicos. 

O  ccrnimendador  e  o  alAade  conversavam  havia 
tempo  de  obras  clássicas  e  de  estylos  litteraiios.  O 
Aristarcho  ecckjsiastíeo  opinava  a  favor  dos  mo- 
dwnos,  o  enidito  seeular  defendia  a  sabia  anti- 
guidade. Ambos  revolviam  nomes,  datas,  e  tí- 
tulos de  livros ,  com  a  &ciUdade  do  anatómico 
estudando  i»  anima  vUu 

—  «  Sustento  !**<- exclamou  o  oenuosendador 
— Alnram  Tácito»  e  verão.  Nenhum  moderno  era 
capaz  de  oserever  assim»  Dou  o  meUtor  diâoiante 
se  apparecer  exemplo. » 

-«-<c  Ah,  commendador,    e  a  jpoesía  ?  Fa- 


Digitized  by  VjOOQIC 


^ftp.jolojy.  407 

4a  )i9ia  «Off^Çte  a  fàmc  d^  Arjosto,  o  divií- 
no?» 

*^/c<  ^ísíMq^  asteB  d^Ariosto  ei^tâtiu  Apuleo ! 
(AtítB$  do  Ortoado  houvç  o  Burro  de  Oiro.  — 
T^^ta  de  piftturas  livi«6 ,  de  phantasias  vivas  ? 
Âbi.  as  i^eba»  0^  ^noderoos  não  o  excedem. » 

Observando  isto  LoiBsnço  Telles  sorvia  com 
ddiiciaa'  uma  pitada ,  e  fechando  a  caixa ,  cuja 
«t^mpa  representava  unia  Veuus  «m  admirável 
nadez ,  deu  na  tira  da  camisa  dois  piparotespara 
•acudir  o  tabaco. 

— r  f(  Nenhum  dos  modernos , — continuou  elle 
4^pois-T  «  nei4imi9t  disse  com  un^  pfarase  o  que 
Tácito  insinua  quando  quer.  Por  exemplo :  « ipm 
etíam  pwíe  $wmm ! »  «Era  cmel  até  na  paz !  » 
—  Meu  amigo  hoje  ha  outras  glorias «  mas  em 
historia  ^  cof^  abnubei  Esconda-se  o  rosto !  Os 
Tácitos  e  os  Polybios  nao  se  repetem,  a 

— ^xc  Mas  a  clareza,  passando,  por  Tácito ,  faz-se 
obscura  como  a  noite? — sugeriu  o  padre. 

-r*  « jDitos  escbolasticos !  Não  o  conhece  quem 
quer,  é  verdade;  mas  conversado  com  famili^ 
ridade  percebe-^  iogo. »  Acudiu  o  erudito  esfre- 
^ndo  as  mios  cem  velocidade. 

rr-^Q  qiãe  é  defeito.,  hade  concordar— ^prqh 
seguiu  o  abbade  pouco  lisongeado  da  e^e^ç^o 
(le  TnSuQsdo  seu  amigp.(«)rí-lieRd^ra-6^  da  Ho- 


Digitized  by  VjOOQIC 


108  A  tfOCIOÀM 

Tacio? Â  brevidade  topna-meiibíKno?  Bré- 

vis  esse  laboro  obscurus  fio  ? 

—  «  Parece-lhe  então  Horácio  claro?  Pois  eu 
não  acho ;  e  lido  com  elle  todos  os  dias.  Veja  a 
Ode  Cur  me  quereUs  eúcanimas  tuis !  o  poeta  jura 
ser  inseparável  de  Mecenas  até  na  morte. . . )» 

—  «Jurou  falso! — interrompeu  o  ecclesias- 
tico ,  rindo  estrepitosamente.  Mecenas  se  espe- 
rou o  amigo  inseparável ,   fez  muito  mal. .  .  » 

—  «  Perdoe  1  Calumnia  Horácio :  Non  egoper- 
fidum  dixi  sacramentum  /  E  é  verdade.  Não  pro- 
nunciou voto  perjuro.  Para  eterno  lucto  das  Mu- 
sas ,  seguiu  o  seu  carpere  iter  comités  parcui ; 
morreu  no  mesmo  anno.  » 

—  «É  a  versão  vulgar,  atalhou  com  um  sor- 
riso vaidoso  o  critico  abbacial.  —  Mas  os  homens 
doutos ,  Sr.  Lourenço  Telles ,  separamnse  do  vulgo 
servil  dos  commentadores.  Em  um  manúscrípto 
raríssimo ,  que  achei  na  Bibliotheca  do  Duque, 
enriquecido  de  preciosas  notas  de  Petrarcha , 
o  erudito,  descubri  a  verdadeira  data  da  sua 
morte. » 

—  «  Abbade ,  está  bem  certo  de  que  o  viu  ? 
—  perguntou  o  commendador  com  ironia.  -*— 
Pôde  saber-se  o  titulo  desse  prodigio ,  se  existe 
o  titulo?» 

—  «  Amanhã »   Vi  6  manuscripto ,  Sr.  Lou- 


Digitized  by  VjOOQIC 


BB  D.    JOÃO  V.  109 

renfio  Telles.  Digo^lhe  que  o  vi»» — respondeu 
o  ecclesiastico ,  corando  e  balbuciando. 

—  «  Pois ,  Sr.  abbade ,  Já  nao  é  pouco ;  parece- 
me  que  ninguém  mais  o  tornará  a  vér.  A  mim 
bojo  basta-me  isto.  Obiit  HoratÍMs  q^rmo  cetcais 
£9^  0odem  qua  Mecenas,  O  que  significa:  Ho- 
rácio morreu  de  39  annos  de  idade  ^  no  mesmo 
aonó,  em  que  falleceu  Mecenas,  £  o  que  dizem 
todos,  até  nova  ordem  do  seu  manuscripto  ima- 
gtni^o*  Será  modesto  mas  é  verdadeiro. » 

-^«Imaginário?  —  exclamou  o  abbade  al^ 
çando  a  dextra  com  dignidade  —  « imaginário ! 
Sr.  Lourenço  Telles,  louvado  Deus,  sei  latim  e 
agradeço-lhe  a  traducção  infantil ,  com  que  me 
regalou.  Quanto  ao  Petrarcha,  elle  e  eu  rimo- 
QO»  da  simplicidade  dos  remendões  de  livros  que 
são  o  seu  Evangelho,  n 

'  —«Linda  imagem!  Pois  não!  O  Sr.  abbade 
jfn  não  pôde  acompanhar  senão  com  Petrarcha 
para  se  rir  da  minha  simplicidade.  Exceljente! 
Man  áabe  uma  cotSa?  O  seu  manuscripto  aposto 
que  existe  na  lua,  aonde  pára  aquelle  famoso  li- 
vro dos  Paiões ,  que  me  fez  procurar  três  mezes 
e  que  teve  a  crueldade  de  imputar  ao  pobre 
Garcia  de  Resende,  que  Deus  tem  em  santa 
glorit?)! 

—  «Quem  não  vè,  não  acha ~- respondeu  o 


Digitized  by  VjOOQIC 


IICÍ  A   ]|fÕaDAl5E    * 

ecciesiasliéa  em  ár  de  moift.— -O  St.  commeni^ 
dador  entende  mais  de  cortetia9  e  meminig,  áú^ 
que  de  antigas  leftras.  >v  ~  - 

—  «  Non  e§o  offmdartmgiê!  ih  fUpstatWíOm 
me  tocam. — exclamou  Lourenço  Telks  eémoé 
olhosjscintilfoiítes.  -^  Conbeço^me  I  Oxalá  ifúà 
outros  íhíessmt  o  mesiíio! » 

—  «C^  modéstia  rara ! » — atailiMa  abbaéc» 
com  indignação.  r 

—  <iDe  certo — prosegttíu  o  erudito  cwn  as 
faces  acesas— mas  graças  a  Bei»  aindai^  nS»-6% 
o  ridiculo  papei  de  muita  gente ,  tradusiida  ow^ 
tintanui  Gias ,  por  Gias  de  ittio  na  dntiv. »     . 

—  <cÉ  fabo!)»^^  gritou  o  abbide  dando  um 
pulo. 

-^«Não  se  agoniei  falio  de  um  panro,  nfio 
fallo  de  um  sábio  da  sua  reputação.  O  sócio  ás 
Petrarehat.  .  iv-^-Loorenço  T^es  aqui  abei- 
lou  a  cabeça  com  malicia ,  e  riuHie  alto  e  imito, 
tempo. 

—  «A  alhisflk)  errou  o  aho!*«^«« bradou  4^ 
reverendo  critico  fulo  de  de  raita. 

^— «Nío  me  parece!»^— respondeu  ó  neB» 
liecamettte. 

-^<*8r.  Lourenço  Telles.»-— continuou' o  ièn 
bade — c(  saiba  que  despreso  as  satyras^^^^-que 
thé  cothppdéço  dòs  satjirícosv» 


Digitized  by  VjOOQIC 


DB  D.   jaÃOV.  111 

•4^aFai  tíoito  hoDkl  Bfto^e  B^iiãa  face,  t 
ofièrece  a  outra. [Que  mais?» 

•^«Qtte  ]iiab?)»-^prosegiMii  o  «cleiiaslico 
recmàtateBào  com  a  sondiaria  pco^oesdon  do 
velho  sábio.  —  <(N8o  ignoro  ^  que  a  velfake  é 
eoduca  e  imetiL  9 

-^n  Obrigadbstmo  lJ«o  é  tio  fafeo  como  gros- 
seira CoBttBue!» 

-^«SÍDi  9r«^  contíiim.  £  sendo ,  poueo  ad- 
mira q«e  o  vento  da  vaidade  entre  na  cabeça 
ouça  de  algumas  múmias ,  e  sussurre  lá  por  denr 
too.  Ê  disto  que  proeede  hcrer  tanto  sábio  iné- 
dito^ tanta  sangaesuga  de  cHafOesI. .  A  plebe 
dos  aoctores  posthumos  é  maior  do  que  a  plebe 
de  Atb^ias,  que  vendia  o  voto. .  • » 

—  «Pare  um  momento,  abbade,  deixe-me 
extasiar  1  Nunca  houve  retrato  nais  parecido: 
dou-lhe  09  parabéns ! »— Disoado  isto  Louienço 
Telles  esteva  roxo  de  ehoferay  tinha-se  encos* 
tado  á  soa  muleta ,  e  tomava  rapé  a  miúdo  e 
com  soífireguid&o ,  indicio  vehemente  do  furacão 
que  o  revolvia — «  Olhe  nfto  falta  é  sw  maravilha 
sODfo  um  rotulo  ^  —  proseguiu  exaltado.  —  a  Po- 
nha-4he  o  nome  do  indigesto  collector  de  potra^ 
nhãs,  do  inimigo  jurado  da  verdade  e  da  rasão,  e 
diga  affi^to:  Eece  homo  l  kqá  está  o  alarve !  Per- 
doe a  traducç&a  livre.  De  certo,  qoem  inventou  as 


Digitized  by  VjOOQIC 


112  A   MOCIOADS 

garatujas  latinas  dos  xeis  Luso  e  Âbidis,  e  teve 
o  despejo  de  aífrontar  a  seriedade  publica  attri-" 
buindo  a  uma  caveiraa  cura  das  pernas  de  Aifonso 
Henriques ,  quem  fei  isto  sem  lhe  cabírem  as 
faces  no  chão,  está  julgado  I » 

—  a  Não  me  altera  com  a  invectiva !  )>«—ac- 
-cudiu  o  abbade  rangendo  os  dentes.  —  a  Estou  se- 
reno, rio-me,  vejal » — De  feito  quizrir-^et  po- 
rém o  esforço  heróico,  malogrourse^  e  sahiu-lbê 
uma  ejaculação,  que  era  o  meio  tcsmo  entre  um 
Irouxo  de  choro  e  um  espirro. 

—  a  Deixe  a  capa  de  Gesar,  abbade  I » -^ex- 
clamou o  implacável  commendador.  w-^Não  se 
ria  assim,  que  fai  dó«  Sirvft-lhe  isto  de  lição  para 
se  expor  menos  de  outra  vez.  Não  fallo  da  carta 
authentica  de  Affonso  I ,  isso  é  abaixo  da  cri- 
tica* São  romances,  que  em  o  sr.  morrendo  nin- 
guém faz,  como  ninguém  os  tinha  feito  antes  .  .>. 
Á  propósito  I  apuremos  bem  a  moléstia  do  Viso- 
Rei.  Animo !  Olhe  que  ha  muita  gente  boa  ca- 
paz de  morrer  de  bexigas  doidas.  » 

«— «  A  baba  de  um  Bavio  não  deslustrou  as 
paginas  de  Ennio  1  »  disse  o  ecciesiastico  repol- 
treando^se,  branco-de  cera ,  e  cruzando  a  perna 
com  indiiferença  olympica. 

— «  Julga  ?  II  ^<"  perguntou  o  velho  erudito  com 
escarneo. » -^  O  Sr.  abbade  é  nm  poço  de  sciencia. 


Digitized  by  VjOOQIC 


M  D,  ;roAO  r.  113 

toertence  jáem  vida  â  posteridade.  Salve  modesto 
Enmol  p 

—  «  Compadeço-me  da  sua  ignoitméia.  »  — 
acudiu  o  abhade  com  a  voz  cava  e  irritada  —  «O 
Sr.  D.  Affonso  Henriques,  filho  da  rainha  D. 
Thereza. . . 

— » «  E  do  Conde  D-  Henriqiie;  *  * »  ^—-ajuntou 
Loutenío  íclles,  rindo. 

.  -*_  a  Neto  do  rei  de  Castelia. . . »  —  continuou 
o  ecciesiastico. 

—  «  Justo !  Neto  de  seus  avóft  ?  Pelo  amor  de 
Deus;  não  me  recite  uma  das  suas  notas  im- 
mortaes.  » 

'  <^— «  Chamado  pdlos  contemporâneos  o  (7on- 
quistador, .  .  » 

— ■' «  Pelo  contemporâneo  Faria  e  Sousa  ?  Ora 
ãideus  l  Querem  vér  que  lhe  achou  a  lettra  coxiu) 
lhe  desettbriu  o  rétralo?  ; 

-r— «  Nèorae  confundeni  as  interrupções,  es- 
teja certo.  Continuarei.  Soube  escrever  como  uni 
clérigo.  »  ' 

—  a  Comme  um  clerc!  Francez  puro.  Bellis- 
simo!  Ê  digno  da  veracidade  caligraphica  de 
Luso  e  Abidis  In 

:  — ■' «  Repito-lhe^  a  sua  ignorância  é  lastimosa ! » 
—-acudiu  6  abbade  aceso  em  vivissimas  cores  e 
com  «ma  aiir<Mra  boreal  a  invadir-lhe  a  calva. 


Digitized  by  VjOOQIC 


114  A   MOCIl^AMI 

—  tf  Tem  rasão.  Sem  ella  nSo  se  escreríft  um 
livro  sobre  as  barbas  de  D.^  João  de  Castro.  » 

—  <c  As  barbas  são  históricas !  » 

—  «As  barbas  sim ,  mas  a  cdr  nSro,  Porque 
omittiu  o  barbeiro  que  as  ôortou?  A  posteri- 
dade deria  conhecel-o.  Tenha  paciência !  Não 
nos  deixe  a  historia  cdxa  á  falta  desta  perua  es- 
pecial. » 

—  tf  Escarneça,  zombe  dos  heroes*  Iffetta  a 
ridiculo  as  glorias  pátrias.  » 

—  tf  Río-me  da  miséria  da  apologia.  » 

-^  tf  Os  morcegos  do  Parnaso  esfMintani-se  da 
novidade. .  .  » 

—  tf  Fazem  peíor;  mordem-se  de  ínvqa,  dih- 
bade!  » 

—  tf  As  grafitas  honramnie  nSo  puUíeando 
nada. » 

—  tf  Se  os  papagaios  abocanham  tudb  l  » 
Estava  neste  grau  de  amenidade  a  dii^puta,  e 

efaammejavam  os  olhos  dos  dois  athletas  ^  cpiando 
Jasmin,  o  escudeiro  do  commendador,  ousou 
devassar  o  tear  de  Penélope ,  com  o  recado  de 
Filippe  da  Gama ,  que  ba^a  á  porta  durante  o 
conflicto  dos  eruditos.  O  padre  mestre  Remédios 
tinha  prevenida  Lourenço  Telles  da  visita  do  seu 
amigo ,  e  por  isso  era  já  esperado.  A  próxima 
enjtrada  de  um  estranho  lembrou  aos  beJlig^aii<- 


Digitized  by  VjOOQIC 


M  D.  JOÃO  V.  115 

tes  clássicos  o  famoso :  Quos  ego ! . .  Sed  motus 
prmtat  componere  fluctus.  » 

Olharam,  pois,  um  para  o  outro  com  indi- 
zível expressão,  e  a  um  tempo  correram  a  mão 
pela  testa;  enchugaram  a  bocca  com  o  lenço 
almiscarado ,  e  de  repente  deram  á  phisionomia 
a  serenidade ,  que  muitas  vezes  cobre  o  maior 
ódio ,  servindo  de  mascara  aos  bons  actores  na 
sociedade  culta.  Depois  Lourenço  Telles,  sen- 
tou-se,  engatilhou  o  rosto  em  um  sorriso  obse- 
quioso ;  consultou  um  espelhinho  oval  e  doirado, 
que  tinha  ao  pé  de  si ;  e  acbando-se  irreprehen- 
sivel  no  semblante  e  no  vestido,  ordenou  a  Jas- 
min  que  fizesse  entrar  o  capitão ,  prcparando-se 
para  o  receber  com  a  graça  primorosa  da  sua 
experimentada  pòlide?. 


Digitized  by  CjOOQIC 


Digitized  by  VjOOQIC 


CAPITULO  VIL 


tUSSES  ABRAÇA  PENÉLOPE  ! 


O  domínico  tinha  dito  ao  commendador ,  que 
Filippe  era  recem-chegado  da  índia  e  amigo  ve- 
lho do  marido  da  senhora ;  acrescentando  que 
trazia  duas  excellentes  noticias ,  consistindo  a  pri- 
meira em  sér  falsa  a  sua  morte ,  e  a  segunda  em 
que  o  deveriam  esperar  por  todo  o  mez  na  volta 
da  náu  de  viajem ,  que  estava  a  chegar.  Execu- 
tando as  instrucçôes  recebidas ,  o  padre  preparou 
o  animo  de  Lourenço  Telles  para  sopportar  como 
christào  a  entrada  de  seií  sobrinho.  Em  quanto 
os  dois  antiquários  se  feriam  no  seu  pugilato  lit- 
terario  Fr.  João  passou^ ao  interior  da  casa  e  prip- 


Digitized  by  VjOOQIC 


118  A  MOaDADS 

cipiou  a  confortar  a  sr.*  Magdalena  da  Gama 
para  a  dispor  a  resistir  à  alegria  repentina  da 
boa  nova ,  que  vinha  annunciar-Ihe. 

Assim  precedido  pelo  seu  embaixador ,  Filippe 
apresentou-se  no  Sancta  Sanctorum  do  sabio  la- 
tinista ,  devidamente  annunciado  pelo  cartaz.  En- 
tre portas ,  o  capitão  da  índia ,  com  o  tremendo 
chapeo  de  três  quinas  arvorado  na  mão ,  incli- 
nou-se ,  piscou  os  olhos  como  se  lhos  assombrasse 
o  sol ,  e  com  o  balanço  de  corpo ,  característico 
dos  embarcadiços ,  decidiu-se  a  introduzir  a  sua 
pessoa  sem  maiores  preâmbulos.  O  commendador 
aberto  de  phisionomia,  affavel  e  obsequioso ,  pou- 
sou as  mãos  no  maciço  velador ,  levantou-se  al- 
gum tanto  firmado  n'ellas,  e  fez-lhe  uma  pro- 
funda cortezia.  O  abbade  regis  ad  exemplum  em- 
punhou a  bengala,  e  appoiado  no  seu  castão, 
elevou-se  â  altura  requerida,  abaixou  a  cabeça 
as  linhas  precisas ,  e  tornou  a  cahir  lento  e  so- 
lemne  no  assento  da  cadeira. 

Filippe  da  Gama  tinha  promettido  ao  reli- 
gioso ,  seu  amigo ,  duas  coisas  pouco  fáceis :  — 
luctar  com  a  erudição  do  commendador ,  e  dei- 
xal-o  encantado.  Com  a  sinceridade  desabrida , 
e  o  génio  inflamável,  que  lhe  conhecemos,  a 
tentação  do  marido  da  sr,*  Magdalena  sobre  o 
seu  erudito  parente,  deyia  exceder  as  forças  do 


Digitized  by  VjOOQIC 


^  B.  JOÀO  V.  119 

tentador.  Dos  bons  estudos ,  que  tinha  cursado , 
.  o  nosso  capitão  apenas  retinha  de  memoria  os 
farrapo^  dos  «artapacios  e  esses  mesmos  não  os 
entendia.  Quanto  á  cultura  e  delicadeza  das  ma- 
neiras^ em  eonílicto  com  o  primoroso  Lourenço 
Telles,  o  digno  Sindabd  portuguez  o  que  podia  fa- 
zer senão  serzir  alguma  lentejoula  mareada  ás 
felpudas  amabilidades  do  marujo  e  do  soldado, 
formado  nas  pragas  do  convez,  e  doutorado  na 
aschola  do  sertão? 

O  capitão  empregou  a  meia  hora  de  espera, 
eoncedida  ao  padre  seii  amigo ,  em  engenhar  o 
plano  de  operações  para  casa  do  tio  sábio;  em 
coJligir  o  drama,  da  sua  vida ;  e  aproximar  o  de- 
senlace ^  a  peripécia  fínal ,  em  que  devia  dizer 
o : «  coaheces-me  »  de  rigor ,  nos  braços  da  es- 
posa. Â  par  da  importância  do  assumpto. não  se 
esqueceu  da  beliscar  a  memoria  e  de  vilicar  o 
cérebro  para  obter  o  sacrifício  de  três  phrases  de 
Cícero ,  e  de  uma  sentença  moral ,  bagagem  scien- 
tifíca  bem  leve,  mas  a  seu  ver  sufliciente.  De- 
pois de  armado  dos  pós  até  á  cabeça,  na  sua 
opinião ,  levantou  a  aldraba ,  e  com  grande  con- 
fiança deu  entrada  na  sala  achando-se  em  pre- 
sença dos  Âristarchos ,  ainda  ensanguentados  da 
discussão  horaciana. 

-^«tFaz  íavor  de  entear  !>>  — acudiu  logo  a 


Digitized  by  VjOOQIC 


120  A   MOCÍ0ABB 

obsequioso  cotnmendador.  —  «  Queira  desculpar 
se  recebo  tanta  honra  assentado,  mas  estou  preso 
por  ordem  de  quem  pôde : «  —  acrescentou  com 
um  surriso  amargoso. — «O  sr.  abbade  Silva, 
meu  amigo ,  fará  as  minhas  vezes.  Então  vem 
cançado  ?  Está  suado  ?  O  seu  ohapeo  incom-^ 
moda-o ! 

—  «  Nem  cançado ,  nem  suado ,  muito  agra-r 
decido.  Tenho  andado  milhares  de  legoa»  pelo 
sertão ,  sem  me  virem  os  bofes  á  bocea ;  quanto 
mais  com  duas  passadas  do  Rocio  aqui ;  eu  não 
costumo  suar  no  inverno  com  frio.  Irra !  está  de 
fazer  da  gente  caramellos ! » 

—  «  Vé-se  que  o  sr.  viajou  muito  no  sertão ! » 
— ^suggeriu  o  abbàde  forcejando  de  balde  por  de- 
sapossar Filippe  do  chapeo  casquete.  Isto  passa^ 
va-se  ainda  ao  pé  da  porta  da  entrada.  De  re- 
pente o  capitão  resolvido  a  entrar  em  batalha, 
e  um  pouco  agoniado  pela  requintada  polidez 
dos  dois  eruditos ,  sacudiu  o  pescoço ,  carregou  o 
sobr'olho ,  enxotou  o  abbade  com  a  mão  sem  ne- 
nhuma ceremonia ,  e  dizendo  comsigo :  —  «  vou 
deixal-o  embaçado  !  » —  dirigiu  ao  commenda- 
dor  a  seguinte  phrase  de  Cicero ;  —  «  Meam  erga 
U  benevolentium  fctcile  pajiciesl  ' 

*    Facilmente  verás  a  benevolência  que  me  inspi' 

Digitized  by  VjOOQIC 


DB  D.  JOÃO  V.  ISi 

Aa  mesmo  tempo  arrefnètlia  á  cadeira  de  Lou- 
renço Telles ,  cuja  vista  extática  exprimia  o  maior 
espanto ,  diante  da  vehemencia ,  e  da  crueza  sa- 
piente  do  seu  hospede.  O  abbade  Silva ,  enco- 
lhendo os  hombros ,  tornou  a  sentar-se ,  tocando 
cravo  por  distracção  sobre  o  castão  japonez  da 
apparatosa  bengala. 

Entretanto  o'commendador,  citado  em  latim, 
julgou  da  sua  honra ,  acudir  á  lingua  sabia  no 
estilo  de  Cicero :  — «  Mi/ii  in  vestris  commodls 
migendis  grata  animi  bmevolentia  defectura  non 
est. »  * 

O  erudito  pronunciava  cada  palavra  com  o  ri- 
gor ,  e  o  perfume"  clássico  do  amador  entendido. 
Todavia  comsígo  murmurava :  ~  u  Que  espécie 
de  homem  será  este  ?  » 

Por  desgraça ,  Filjppe  da  Gama ,  segundo  no- 
tamos, tinha  o  ouvido  latino  muito  surdo;  repe- 
tia de  c6r,  e  nem  percebeu  o  que  disse  nem  o 
que  lhe  responderam.  Por  isso,  em  quanto  o 
douto  interlocutor  se  banhava  na  pura  latinidade , 
O  capitão,  perdendo  os  arções  do  primeiro  bote, 

ras.  Filippe  estropia  o  latim,  dizendo:  perjicies  em 
legar  de  perspicies. 

•  Tenho  o  maior  desejo  de  vos  ser  cm  tudo  agra- 
dável. 


Digitized  by  VjOOQIC 


122  A  MOCIDíílDB 

valeuHse  dos  caxorros  da  |H*oa ,  %  segundo  tinha 

protestado  ao  frade ,  disparou  ao  acaso  outra  baila 

.  rasa.  —  <x  Qucero  cur  tam  suUto  mansus  est  ?  »  *' 

Lourenço  Telles  deu  um  pulo ,  e  chegou  para 
si  a  campainha  de  prata,  para  esconjurar  as  si- 
labadas  e  os  erros  que  lhe  escorcharam  os  ouvi- 
dos. O  despropósito  era  flagrante.  Quanto  ao  ab- 
bade,  levantou  os  olhos  ao  céu;  desencruzou  as 
.extensas  pernas,  e  aproximou  o  chapeo  de  bor- 
las verdes.  Ambos  se  julgaram  em  presença  de 
uni  maníaco.  —  «  Medoro  torce  il  nazo ! » — acu- 
diu o  auctor  do  Opúsculo  sobre  as  bexigas  do 
Viso-Rei. 

O  capitão  lanhava  o  latim,  mas  de  italiano, 
percebia  alguma  coisa,  assim  como  de  inglez  e 
bespanhol ,  em  virtude  da  f  ua  intimidade  com  os 
negociantes  destas  nações.-  Sem  demora  deitou  ao 
abbade  um  olhar  mortifero,  e  voltando-se  mais 
<para  elle,  chapou-lhe  muito  serio  a  memorável 
.sentença: 

,  «Bellum  est  sua  vitia  nosse!  > 

Um  salto  do  compilador  de  notas ,  o  risito 
amarelo  do  commendador  ao  epigramma  clássico, 

•  Pergunto,  qual  é  o  motivo,  porque  tão  de 
repente  amançasle  ?  Filippe  estropia  a  phrase ,  di- 
zendo mansus  est  em  vez  de  tnamuetiis  fu^ii! 


Digitized  by  VjOOQIC 


BB  D.  JOÃO  V.  123 

e  um  mio  stridulo  do  gato  valido ,  formaram  am 
accordo  perfeito,  depois  da  valente  citação. 

FiUppe,  obedecendo  aos  repetidos  signaes  de 
Lourenço  Telles  tinha  arrastado  um  tamborete , 
e'  .procurando  a  melhor  posição ,  não  reparoqi , 
que  um  dos  pés  ameaçava  a  cauda  de  Mtnete.  Ao 
sentar-se  cahiu  em  peso  sobre  ella,  e  arrancou 
ao  mart^rísado  gato  os  Isunentos ,  que  retalhavam 
o  coração  do  sábio  commendador.  Este  desespe- 
rado ,  agitou-se  fazendo  por  sorrhr ,  consolando  a 
victima  com  sopas  de  geleia ,  e  dizendo  ao  mesmo 
tempo  com  muito  agrado  ao  seu  hospede :  —  «  Não 
é  nada!  Agradeço  infinitamente  o  seu  incom- 
modo !  Toma  um  copo  de  vinho ,  uma  culbet  de 
doce?  Se  me  fizesse  o  obsequio  de  se  chegar 
mais. « •  estou  um  pouco  surdo. » 

Era  um  meio  delicado  de  salvar  o  gato  de  se- 
^ndo  encontro;  porém  o  raio  foi  cahir  mais 
longe.  Ainda  não  tinha  dito  estas  palavras  já 
uma  espécie  de  terremoto  abalava  a  columna  na 
sua  peanha ,  sacudia  a  gaiola ,  e  derrubava  o  pa- 
pagjãio  de  cabeça  para  baixo,  dançando,  sus- 
penso no  grilhão,  entre  gritos  agudissimos.  Fi- 
lippe  voltou-se  admirado ,  ao  passo  que  Lourenço 
Telles ,  branco  e  convulso ,  exclamava  —  «  Santa 
Barbara ! »  —  precipitando-se  em  soccorro  do  pa- 
pagaio. Chegou  tarde  "porém ;  a  mão  nervosa  do 


Digitized  by  CjOOQIC 


12Í  A   MOaDADB 

capifSo  já  empolgava  a  ave  pela  cabeça ,  e  a  re^ 
punha  no  poleiro ,  mais  magoada  do  soccorro  do 
que  da  queda. 

—  «  Pelo  que  vejo  o  sr.  commendador  é  amigo 
de  brutos?»  —  perguntou  Filippe  limpando  a 
língua  aos  cantos  da  bocca,  e  introduzindo  a 
furto  um  rebuçado  de  tabaco. 

—  «Sim,  Sr.,  sou  curioso»  —  replicou  o 
velho  com  certa  finura  irónica.  —  «Jà  creeí 
quatro  cães ,  oito  gatos ,  e  três  papagaios.  Mi-^ 
nete,  que  vè ,  é  bisneto  da  «  Sultana  »  que  trouxe 
de  França  na  minha  ultima  viajem.  Estou  com 
muita  penai  Morreu  o  meu  sauguim  de  uma 
cólica  de  uvas. ...» 

—  «Sào  animaes  friorentos!  Sabe,  este  seu 
papagaio  não  é  feio.  Falia  bem  ?  » 

—  «  Ensinei-o  eu ! » 

— «  Pois ,  Sr. ,  se  o  apanhasse  no  Brazil , 
quando  fui  á  rossa  em  Minas  Geraes. . . . 

—  «  Não  o  deixava  escapar  ?  . . . » 

—  «  Está  brincando !  Sal ,  pimenta ,  e  espeto 
com  elle !  olhe  que  é  um  bocado  saboroso. » 

—  «O  Sr.  come  papagaios  ?  »— •  acudiu  o  Com-r 
mendador  espavorido ,  e  abanando  as  mãos  para 
chamar  o  sangue  ás  extremidades. 

—  «Como,  sim  Sr.^  e  também  macacos* 
Digo-lhe   que  sâo  gostosos.   Parecem   mesmo 


Digitized  by  VjOOQIC 


DE  D.  JOÃO  y.  12$ 

creanças  assadas!»  —  E  Filippe  ria-se  com  vi- 
isivel  sati^façad^ 

—  «  Que  homem ! » — disse  o  abbade  recuando 
a  cadeira,  em  quanto  os  olhos  azues  do  seu 
amigo  se  espantavam  com  terror. 

—  (( E  se  nos  nao  devora ,  nio  é  por  sua 
culpa  l »  acerescentou  Lourenço  Telles ,  sorrindo 
contrafeito. 

O  capitão  estava  tão  contente  que  julgou  ma- 
gnifica a  sensação  causada  pelas  suas  opiniões 
quasi  antropophagaS. 

—  «É  verdade.  »  —  continuou  com  certo  or- 
gulho—  «Prefiro  o  papagaio.  É  carne  verme- 
lha, aromática,  e  saborosa,  Quero  ensinar  a 
cosínhal-o.  Supponha  o  sr.  conmiendador ,  que 
matanws  este.  Agarram-se-lhe  as  azas.  .  * .  » 

Aqui  a  acção  ia '  seguir  a  palavra  ^  quando 
Lourenço  Telles  seriamente  assustado  lhe  sus- 
pendeu docemente  o  braço ,  dizendo  : 

—  «  Entã^,  o  Sr.  pretende  comer  o  meu  pa- 
pagaio?» 

—  (<Nada,  por  ora  não.  Era  dar  idéa, .  •  ♦  » 

—  «Mas  eu  não  gosto  de  idéas;  digo,  não 
gosto  de  guizados  exóticos. » 

—  «  São  scismas.  Tudo  vaô  do  costume.  Na 
America ,  por  exemplo ,  quando  me  doiram  carne 
de  cobira  a  primeira  vez,  qual!  nem  á  mão  de 


Digitized  by  VjOOQIC 


126  A  HoaDAns 

Deas  padre.  Depois  chachava  nella  como  rebu- 
çado !  » 

—  «  Cobras !  Também  come  serpentes !  »  mur- 
mnroa  o  commendador  quasí  parvo  de  nojo. 

—  «O  congro  nSo  é  tao  bom.  Pois  o  la- 
garto? Delicioso !  Branco  e  tenro  como  frango. » 

— « Este  homem ,  se  entra  na  arca  de  Noé 
nSo  deixa  senão  os  ossos!» — rosnava  o  abbade 
abismado.  Lourenço  TeHes  torcia-se  como  um 
parafoso ,  e  a  custo  reprimia  o  que  lhe  vinha  á 
bocca.  Vendo  os  olhos  do  hospede  fitos  no  gato 
com  certa  complacência ,  disse-lhe  rindo  de  um 
riso  forçado : 

—  « Ia  apostar ,  que  também  me  diz  que  não 
desgosta  de  gato  ^  e  que  é  bom  ?  » 

— ^  «  De  certo.  Parece  lebre.  E  em  mojangé : 
asseguro-lhe  que  se  grita  por  mais. » 

—  «  S^il  a  le  comr  aussi  ãur  que  la  tête^  fio\íi 
sommes  perdus  !  w '  observou  o  Commandante  ao 
abbade ,  que  respondeu  com  um  gesto  de  acquies- 
cencia.  E  tocando  a  campainha  com  força ,  vi- 
rando-se  para  Filippe ,  disse : 

— <fVou  mandar  chamar  a  senhora.  Ha  de 
tòtar  anciosa  de  o  vêr. » 

*  Se  o  coração  do  homem  é  duro ,  como  a  ca- 
beça, estamos  perdidos. 


Digitized  by  VjOOQIC 


DK  D-  Joio  ▼.  127 

— Estou  &s  ordens  do  sr.  commendador. » 
A  cortezía  refinada  do  erudito  penava  a  fogo 
lento.  A  entrada  abrupta  do  capitão,  o  sen  la- 
tim salpicado ,  e.  as  violências  commettidas  con- 
tra o  gato  e  o  papagaio  ^  a  par  da  nauseabunda 
saliva  do  tabaco ,  e  dos  cruentos  dogmas  sobre 
a  arte  da  cosinha ,  causavam-lhe  um  tedio ,  um 
horror ,  e  uma  aSIicçSo ,  que  o  cobriam  de  suo- 
res frios,  inspirando-lhe  a  deliberação  de  sacu- 
dir pela  porta  ou  pela  janella  o  grosseiro  perso- 
nagem ,  que  se  introduzia  em  sua  casa  com  tanto 
desafogo.  Mas ,  escravo  da  polidez ,  levou  a  he- 
roicidade a  ponto  de  continuar  o  dialogo : 

—  «  Viajou  muito ,  segundo  observo.  » 

—  <c  Menos  mal  I  Tenho  visto  meu  bocado  de 
mundo.  Andei  pela  China ,  pela  índia ,  e  pela 
America. . .  mas  como  o  sr.  commendador  ainda 
n^o  vi  senão  uma  pessoa. » 

—  «  LisoDJeia-^me !  E  em  que  me  pareço  com 
ella?» 

—  «  Em  ser  um  janeiro  penteado,  n 

—  a  Com  effeito?» 

—  «Pelas  sete  orelhas  de  Belzebutl  Aposto 
que  o  sr.  commendador  nuo  morre  antes  de 
ençommendar  a  mortalha ,  para  ir  um  palmito 
á  cova. ...» 

Lourenço  Telles  agradeceu  o  insulto,  como 


Digitized  by  VjOOQIC 


128  A   MOaDADE 

se  fosse  um  elogio.  Estava  ardendo ,  ma»  repri- 
mia-se. 

—  «  Acha-me  exótico  ?  » 

—  «Nada!  Acho-o  divertido.  Assim  embo- 
necrado  e  com  os  pés  para  a  cova,  sabe  quem  me 
parece?  O  Ra  já  de  Singapura.  Com  noventa 
annos  feitos  deu-lhe  em  casar  com  uma  rapariga 
de  quinze  ^  e  toda  a  noite  das  bodas  andou 
n^uma  dobadoura.  Por  s^ignal  que  dois  dias  de- 
pois foi  a  pique* 

O  abbade  desatou  a  rir  e  o  commendador 
acompanhou-o  visto  não  ter  outro  remédio. 

Neste  momento  Jasráin  y  o  creado  francez  de 
Lourenço  Telles ,  entrou  na  saia  participando 
que  a  senhora  vinha  já.  Jasmin  era  muito  for- 
malista ,  e  dez  annos  mais  novo  do  que  seu  am^. 
Trazia  á  cabeça  uma  cabelkira  immensa ,  das 
mais  fartas  de  que  havia  noticia* 

O  abbade  Silva ,  como  bèm.  educado ,  enten- 
deu que  um  terceiro  era  demais;  por  isso,  e 
para  se  eximir  áa  aíiabilidade  do  nojsso  Filippe 
da  Gama,  pegou  no  chapéu,  eomprimentou 
amigavelmente  o  seu  iiluátre  adversário,  e  en- 
caminhou-se  para  a  porta  da  escada,  precedida 
por  Jdsmin.  O  douto  clérigo  notara  certo  ruido 
forte  na  ^escada ,  mas  o  calor  da  conversação  e 
a    singularidade    delia,    tinfaam-no    distrabido. 


Digitized  by  VjOOQIC 


BE  D.  JOÃO  V.  129 

Agora ,  aproximando-«e  da  porta ,  sentiu-o  cres- 
cer, e  olhou  para  o  escudeiro,  que  punha  a 
mão  na  chave. 

O  capitão  perguntava  nesta  occasiâo  a  Lou- 
renço Telles : 

—  «  Como  gosta  de  animaes ,  dois  de  mais , 
não  lhe  fazem  transtorno  ?  » 

—  «  São  o  meu  recreio  ! 

—  «  Pois ,  se  dá  licença  ,  offereço-lhe » 

NSo  pôde  acabar.  Apenas  se  abriu  a  porta  da 

escada  para  sahir  o  abbade ,  entrou  de  roldão  no 
aposento  um  tropel  medonho.  —  Um  macaco  dis- 
forme, descomunal,  horrendo,  precipitou-se , 
cingido  de  uma  corrente  pela  cintura.  De  ras- 
tos ,  atraz  delle ,  vinha  um  preto  corcunda ,  pro- 
curando contel-o  inutilmente.  Ladrando  e  arre- 
mettendo,  um  cão  de  compridas  felpas,  e  gi- 
gantescas proprçôes,  entrou  cubrindo  a  reta- 
guarda do  ruidoso  séquito.  Era  o  presente  de 
Fílippe  da  Gama ;  era  o  «  Tigre  »  e  o  «  Simão  » 
com  que  esperava  captar  a  benevolência  do  seu 
parente.  Proh  pudor!  O  creado  velho  deu  um 
salto  de  medo ,  gritando  com  força  «  Morbleu !  » 
O  abbade,  sem  gota  de  sangue  no  corpo,  poz- 
se  em  defeza  com  a  bengala  em  guarda  de  flo- 
rete. O  commendador ,  aterrado  com  a  invasão , 
segurava-se  meio  de  pé  ao  seu  velador.  Só  o 
9 

Digitized  by  VjOOQIC 


130  A    IIOCTDÁDB 

nosso  capitão  ria  e  esfregava  as  mSos,  gritando 
ao  abbade  —  «  Torce  il  nazo  Medoro ! » 

O  macaco,  verdadeiro  Simia  Satyrus  de  Li- 
neu ,  investiu  pela  casa ,  arrastando  em  ar  de 
ceppo  o  pobre  preto  atraz  de  si.  Apenas  avistou 
o  escudeiro  e  o  clérigo ,  foi  direito  ao  primeiro 
e  pelou-Ihe  a  cabeça  da  vistosa  peruca ,  arrega-' 
nhando  os  dentes ;  foi  direito  ao  segundo  tirou- 
Ihe  a  bengala  das  mãos,  quebrou-lha  no  corpo, 
por  fortuna  era  fina ;  e  usurpou-lhe  o  respeitá- 
vel chapéu  abbacial ,  regalando  o  dono  ao  mesmo 
tempo  com  uma  sova  de  coices.  O  pobre  anti- 
quário cahiu ,  e  todo  amarrotado  e  vexado ,  con- 
seguiu salvar-se  da  ira  do  mono.  —  Feita  assim 
a  sua  preza ,  Simão  chegou-se  ao  espelho ,  en- 
caixou a  cabelleira  e  encapellando-lhe  por  cima 
o  chapéu  do  abbade ,  deu  um  salto  â  gaiola  do 
papagaio,  aggarrou-a,  poz  uma  das  mãos  no 
hombro  do  commendador ,  e  depois  um  pé ,  e 
guindou-se  deste  modo  á  janella  que  dava  para 
o  telhado ,  cuja  beira  escolhera  para  recosto ,  em 
quanto  embalava  o  «  Lindo  »  no  meio  de  guin- 
chos e  biocos  infernaes. 

Não  é  fácil  pintar  o  pavor  e  a  indignação  de 
Lourenço  Telles.  Tremulo  de  susto  procurava  o 
florete  e  não  o  achava ;  tinha-se  resolvido  a  va- 
rar o  mono.  Olhava  inflammado-  para  o  nosso 


Digitized  by  VjOOQIC 


DB  t>.  JOÃO  V.  131 

íoapitão,  o  qual  ajudando  a  erguer  o  abbade,  es- 
gotava da  janeila  um  copioso  vocabulário  de  pra- 
gas contra  o  macaca.  Neste  terrivel  transe  o 
cão ,  espectador  rosnante  até  alli ,  decidiu-se  a 
entrar  em  scena ;  o  que  fez  saltando  no  gato , 
que  a  sua  presença  obrigava  a  assoprar  com  o 
contra-baixo  de  uma  ronca  prolongada.  O  infe- 
liz «Minete»,  feito  um  ouriço,  debaixo  da  ca- 
deira de  seu  dono ,  repellia  o  dente  com  a  unha, 
e  com  Marte  favorável  sustentava  o  assalto  de  que 
ficaram  cruentos  signaes  nó  focinho  do  inimigo 
e  nas  pernas  do  commendador.  O  velho  erudito 
entre  as  garras  do  gato  e  os  dentes  do  cão ,  per- 
dido de  cholera ,  descarregava  ás  mãos  ambas , 
e  de  cutello,  um  volume  monstro  das  obras  de 
Santo  Agostinho  sobre  o  dorso  canino. 

Este  episodio  durou  minutos.  Filippe,  o  creado, 
e  o  preto,  conseguiram  por  fim  desapossar  o 
macaco  da  sua  presa ,  e  desalojar  o  cão.  Simão 
foi  algemado  com  a  sua  corrente ;  e  Tigre  con- 
tido pela  bengala  de  seu  dono.  A  paz  renasceu 
no  agitado  aposento,  e  olhando  uns  para  os 
outros ,  e  vendo-se  quaes  ficaram  do  combate , 
os  actores  da  farça,  proromperam  n'uma  gar- 
galhada estrepitosa  e  cordeal ;  Jasmin  com  a 
calva  nua ;  o  abbade  roto  e  amarrotado ;  e  o 
commendador  com  um  mappa  geographico  nas 


Digitized  by  VjOOQIC 


132  A   MOaDADG 

meias ,  das  unhas  de  « Minete.  »  Esta  rizada , 
que  celebrou  a  concórdia  do  reino  animal ,  era 
repetida  da  rua  por  quantos  viam  prezo  à  janella 
sacada  um  mono  disforme,  enfeitado  com  sua 
cabelleira  de  caxos,  e  chapéu  de  clérigo. 

Seguiu-se  Filippe  da  Gama  a  dar  as  explica- 
ções sobre  o  attentado ;  o  orador  provou  a  boa 
intenção  e  absolveu-se  do  resto.  O  discurso  foi 
acceito ;  Lourenço  Telles  era  muito  cortez  para 
lhe  observar  a  diíFerença  que  havia  entre  um 
sauguim  e  o  hediondo  mono,  que  mettia  a  sua 
casa  a  saque.  Âpezar  disso  não  se  esqueceu  de 
chamar  Jasmin  e  de  lhe  dizer  ao  ouvido  com  ira 
concentrada :  a  Empoisonnez-moi  le  singe  au  plu- 
tôt !  Quel  animal  affreux ! » 

O  abbade  applaudiu,  e  Jasmin  ouviu  a  or- 
dem cruel  com  visivel  satisfação. 

Entrava  então  na  sala  a  sr.*  Magdalena  da 
Gama,  e  o  commendador,  encostando-se  ao 
braço  do  abbade ,  retirou-se ,  precedido  por  Jas- 
min com  o  papagaio ,  e  seguido  de  «  Minete  » 
que  se  retirava  magestoso  com  as  honras  da 
guerra.  Lourenço  Telles  ao  pé  da  porta  viu  o 
padre  Fr.  João ,  e  a  despeito  da  sua  polidez  não 
poude  conter-se ,  que  lhe  não  dissesse : 

—  (( Padre  mestre,  o  seu  amigo  é  um  homem 
inaudito.  Come  lagartos  e  papagaios;  desfecha 


Digitized  by  VjOOQIC 


DE  B.    JOÃO   V.  133 

em  latim  com  as  pessoas ,  que  nào  conhece ;  e 
acaba  por  introduztr  em  minha  casa  um  macaco , 
que  moeu  o  abbade ,  roubou  a  peruca  ao  meu 
escudeiro ,  e  por  um  segundo  não  almoça  o  meu 
papagaio.  Gosto  pouco  de  o  vér  com  a  senhora. 
Em  todo  o  caso  Jasmin  não  o  perderá  de  yista 

Ce  monsteur  du  lion  lá 
Est  parent  de  Calígula. 

Ah ,  inimitável  Lafontaine  \  Até  logo  Fr.  João ; 
é  nosso  hoje?» 

O  frade  abaixou  a  cabeça,  e  encolheu  os 
hombros.  —  «  Valha-me  Deus  com  este  Filippe  ? 
Sempre  hão  de  parar  nisto  as  suas  graças  \ »  — 
E  foi  atraz  do  commendador  para  lhe  desvane- 
cer os  preconceitos. 

Entretanto  o  honrado  Filippe  tinha  o  coração 
melhor  do  que  a  cabeça.  Vendo  sua  mulher  com 
o  luto  de  viuva ,  e  lendo  no  seu  rosto  as  sauda- 
des e  as  lagrimas  de  muitos  annos,  custou-lhe 
a  reprimir-se  que  a  não  apertasse  nos  braços.  Pas- 
sou-lhe  da  idéa  a  novella  que  tinha  urdido ,  e 
faltou-lhe  o  animo  para  exacerbar  a  dôr  nas  cha- 
gas vivas  desta  alma  magoada.  Em  presença  de 
Magdalena  esqueceu-se  do  que  soffrera-  e  lembrou- 
se  do  muito  que  a  sua  ausência  a  fizera  padecer. 


Digitized  by  VjOOQIC 


134  A   MOGIDADS 

A  felicidade,  que  o  mundo  pôde  dar,  prome- 
tia sorrir-lhe  naquelies  olhos  ainda  bellos ,  quando 
os  enchugasse ;  chamava-o  por  aquella  bocca  fiel 
em  guardar  os  juramentos,  que  uma  vez  pra- 
nunciava.  Confuso  e  perplexo,  o  capitão  ora 
olhava  para  o  chão ,  ora  embebia  a  vista  em  sua 
mulher ,  scismando  sobre  o  que  dôvia  dizer.  Ma 
gdalena  rompeu  o  silencio ,  depois  de  breve 
pausa. 

—  «  Aqui  estou ,  sr. !  Venho  receber  da  sua 
bocca  a  vida  ou  a  morte.  Fr.  João  disse-me.  .  .  » 

—  «  Fr.  João  é  um  asno !  —  exclamou  Fi- 
lippe.  Se  lhe  disse  que  seu  marido  era  morto 
enganou-a.  Posso  jurar-lhe  que  está  vivo.  Nin- 
guém o  sabe  melhor  do  que  eu.  » 

Magdalena  levantou  os  olhos  com  viveza ,  mas 
não  os  fitou  na  pessoa  que  lhe  fallava.  Comtudo 
percebia-se  que  o  som  da  voz  a  fazia  estreme- 
cer. 

—  «Fr.  João  é  incapaz  de  mentir — respon- 
deu com  ailguma  severidade.  —  Apenas  me  in- 
formou de  que  tinha  chegado  da  índia  um 
amigo  seu  e  de  meu  marido,  que  Deus  haja; 
e  com  um  suspiro  Magdalena  accrescentou :  — 
Fr.  João  disse-me  depois,  que  havia' esperanças 
vagas Em  fim  disse-me  que  noticias  exa- 
ctas só  o  sr.  as  podia  dar. » 


Digitized  by  VjOOQIC 


PI  D.  Joio  V.  13tf 

—  «Fr.  João  fallou  bem  —  acudiu  Filippe 
com  entbusiasmo.  —  Mais  exactas  ninguém ,  sr.* 
Magdalena.  Ora  diga*me :  tinha  muito  apego  a 
seu  marido?» 

—  «  Ah ,  sr. !  » 

— « Não  ha  rosa  sem  espinhos ;  bem  sei ; 
Filippe  é  vivo ,  mas  pôde  ter  casado  na  índia.  . .  » 

—  «Meu  marido  sabia  que. tinha  mulher  • 
filhas ,  meu  marido  não  casava.  £  o  sr.  se  fosse 
amigo  delle  também  não  dizia  essas  coisas  â  sua 
viuva. » 

—  «Salva  tal  agoiro!  Mas  se  lhe  affirmo, 
senhora ,  que  Filippe  não  morreu ! . .  .  É  boa ! 
Acredite  sr.*  Magdalena ,  o  seu  homem  não  tem 
maior  amigo  do  que  eu  e  Fr.  João.  Pôde  crer. 
Mas  a  verdade  primeiro.  Filippe  escapou  duas 
vezes  por  milagre ,  está  vivo  e  são ,  e  volta  qual- 
quer dia. ...» 

—  «Bem  dito  sejaes,  meu  Deus! — soluçou 
Magdalena,  levantando  as  mãos  ao  ceu  com  ef- 
fusao.  —  Agora,  senhor,  podeis  levar-me,  já 
não  faço  falta.  Minhas  filhas  tem  o  amparo  de 
seu  pae !  » 

£  as  lagrimas,  desta  vez  serenas,  correram  de 
alegria  por  aquellas  faces ,  que  o  pranto  cavara 
tantos  annos. 

—  «A  sr.*  Magdalena  é  boa  mulher  de  seu 


Digitized  by  VjOOQIC 


136  A   MOGIDÀDJB 

marido ,  é  excellente  mâi  de  suas  filhas.  Deus 
hade-lh^o  pagar. »  —  Disse  o  capitão,  que  sentia 
os  olhos  arrasados  de  agua,  e  que  roia  as  unhas 
com  anciã  para  disfarçar. 

—  a  Cumpro  o  meu  dever. » 

—  a  Por  dever  só  não  se  ama  assim.  Extreme 
é  mais  do  que  dever. » 

— «  Amo-K),  como  a  mulher  deve  amar  o  es- 
poso da  sua  alma,  o  pai  de  seus  filhos,  e  a  ale- 
gria do  seu  coração.  .  .  Não  sei  que  haja  no 
mundo  maior  extremo. 

—  «  Esquece  o  amor  de  mai  ?  » 

—  «  Tem  rasão.  Pôde  ser  que  estremeça  mais  a 
minha  Cecilia,  talvez  ame  tanto  a  minha  Thereza. » 

.  —  «  Hem  !  Estimo !  Sabe  que  Filippe  está  ve- 
lho ,  rabujento ,  e  somitigo  ?  é  verdade.  » 

—  «  Acha  leve  a  sua  cruz,  para  elle  a  trazer 
sem  tristeza  e  enfermidade?  Quinze  annos  de 
trabalhos,  ausente  de  mulher  e  filhos,  exposto  a 
tantos  perigos  mortaes ,  um  rapaz ,  quanto  mais 
elle  que  não  era  moço,  não  o  supportava  sem  ficar 
velho  e  desenganado,  sem  perder  o  gosto  do 
mundo ,  como  eu  perdi.  » 

—  «  Pois  eu,  minha  senhora. .  .  Faz  favor  de 
olhar  para  mim.  Que  tal  me  acha  ?  » 

—  «  Eu  ?  Que  hei  de  achar  ?  » 

—  «Perdoe  —  alguma   coisa   acha   por   for- 


Digitized  by  VjOOQIC 


DB  D.  JOÀo  y.  137 

ça.  Que  tal  ihe  pareço,  diga  sem  ceremonia?» 

—  «  Essa  é  boa !  Muito  bem.  » 

—  «Um!  Esperto  e  bem  consenrado?  Gra- 
ças a  Deus  sempre  rijo  e  valente,  e  mesmo 
pobre  como  Job,  alegre  que  nem  am  passari- 
nho. » 

—  «Ê  a  maior  fortuna  que  pôde  ter. » 

—  «Diz  muito  bem,  sr.*  Magdalena.  Que  lhe 
palpita  esse  corado  de  um  marido  nos  meus  ter- 
mos?» 

— «Sr.  capitão!  Lembre-se  que  sou  mulher 
de  um  amigo  seu ! » 

« —  Lembro,  lembro.  Aqui  para  nós.  Filippe 
não  merecia  a  Deus  uma  senhora  tão  bella  e  vir- 
tuosa. .  .  £  um  maganão ! » 

—  «Se  para  isto  me  desejou  fallar,  ha  de  per- 
mittir. . .  i> 

— «Não  permitto.  Quero,  mando  que  íique. 
Tenho  direito. .  • » 

—  «Caia  em  si,  veja  o  que  diz.  Sinto  ser 
obrigada  a  observar-lhe  que  tem  bem  pouca  de- 
licadeza de  sentimentos.  Como  senhora  deve  res- 
peitar-me;  como  mulher,  e  mulher  infeliz  de 
um  amigo  seu ,  devia  ter  compaixão  de  mim.  E 
entre  tanto  ha  meia  hora.  .  . 

Filippe  estava  extasiado;  mas  ainda  luctava 
para  não  revelar  o  incógnito.  Emfim  não  se  pôde 


Digitized  by  VjOOQIC 


13S  A   MOCIDADE 

ter,  e  no  estrebilho  popular  disse  estas  palavras 
da  cantiga : 

«  Aí ,  esposo  da  minha  alma  y 
Aí ,  triste  de  mim  sem  ti ! 
—  Que  darias  tu ,  senhora 
A  quem  n^o  trouxera  aqui  ?  • 

Magdalena  escutou,  com  sobresalto,  a  cantiga 
valida  de  seu  marido.  Via-se  que  os  seus  olbos 
anciosos  advinhavam  o  segredo,  mas  que  receiava 
enganar-se  ainda. 

—  Ha  meia  hora,  que  te  fallo,  e  ndo  meou 
ves ;  que  te  chamo  e  não  me  respondes  ?  Magda- 
lena, o  que  davas  tu  a  quem  trouxesse  teu  marido 
aqui  ?  Um  beijo  por  ti ,  outro  por  nossas  filhas 
querida  mulher.  .  .  Deus  não  quiz  que  morrêsse- 
mos separados,  quando  sempre  vivemos  unidos. » 

—  «  Filippe  !  Filippe  !  marido  da  minha 
alma ! » 

—  «  Muito  mudado  estou ,  pois  minha  mulher 
me  não  conhece !  » 

—  «Agora,  agora!  Sinto,  conheço...  Per- 
doa !  Custava-me  a  crer  tanta  felicidade.  Estou 
costumada  á  desgraça ,  Filippe ! . . 

—  «  Pois  julgaste ,  querida  mulher ,  que  ou- 
tro ,  primeiro  do  que  eu ,  havia  diíer-te  que  teu 


Digitized  by  VjOOQIC 


Ds  D.  JOÃO  y.  139 

marido  vivia  ?  Olha  o  teu  annel ,  lembrag-te  ?  O 
retrato  de  nossa  filha ,  vêl-K)  ?  » 

—  «O  coração  devia  dizer-me,  os  olhos  de- 
viam vér  que  eras  tu ,  e$poso  da  minha  alegria. 
E  eu  duvidei!  Meia  hora  pude  estar  ao  pé  de  ti 
sem  te  conhecer !  A  voz.  tinha-a  na  alma »  sa- 
bes ?  as  feições  é  que  não  me  pareciam  tuas.  Es- 
tás tão  mudado ,  tão  brancQ ,  barba  e  cabellos  I 
E  não  admira ;  com  tantos  trabalhos !  £  eu  pa- 
reço a  mesma  ?  n 

—  «  Estás  a  mesma ,  a  mesma  és  sempre ;  a 
minha  santa  mulher.  Que  é  das  nossas  filhas; 
quero^as  vêr , .  quero-as  beijar.  Estou  soffrego. 
Duas  vezes  que  tive  a  morte  ao  pé  de  mim  cha- 
mei por  elias  e  por  ti ,  primeiro  que  chamasse 
por  Deus ! » 

—  u  E  sem  Deus ,  estavas  comigo  agora  ?  Fi- 
zeste mal  9  Filippe. » 

—  «Magdalena;  tens  razão.  Vamos  vêr.,,» 

—  «Hoje  achas  só  Thereza.  Cecilia  está. em 
Santa  Clara. » 

—  «  Não  para  freira  espero  em  Deus !  Lou- 
vado seja  a  Providencia,  temos. cabedal  para  do- 
tar nossas  filhas  ambas. » 

Neste  momento  a  porta  da  sala  abriu-se,  e  o 
commendador  entrou  pelo  braço  de  Fr.  João  dos 
Remédios ,  que  vinha  contendo  o  riso.  O  abbade 


Digitized  by  VjOOQIC 


140  A  MOGIDADB 

seguia-0,  lamentando  com  Jasmín  a  perda  do 
seu  chapéu. 

—  «  Ent&o  minha  sobrinha  fallou  bastante  de 
seu  marido  com  este  sr. » — perguntou  Lourenço 
Telles,  sentando-se  na  cadeira.  —  «Trouxe-lhe 
boas  noticias.  Como  se  demorava. .  . » 

—  «  Âh ,  meu  tio ,  trouxe-me  a  consolação , 
que  podia  dar-me  neste  mundo.  Trouxe  meu  ma- 
rido ! » 

—  «Seu  marido?»  —  exclamou  o  commen- 
dador  estupefacto.  —  «  Onde  está  elle  ?  » 

—  «  Aqui  em  corpo  e  alma  »  —  atalhou  Fi- 
lippe  saudando-o — nEcee  hamol  Este  é  o  ma- 
rido, e  esta  é  a  mulher,  falta  só  a  sua  benção ,  tio ! » 

—  «  Seja  feita  a  vontade  de  Deus ! »  —  gritou 
Lourenço  Telles  engolindo  uma  grande  culher  de 
geleia  para  se  reanimar.  —  «  Posí  fata  quiescit ! 
Sobre  queda  couce — murmurou  contricto  —  So- 
brínho  esta  casa  chega ,  escusa  de  procurar  ou- 
tra. » 

—  «  Obrigado ,  tio.  Era  a  minha  tenção. » 

—  «  Mas  podia  não  ser  a  minha.  Agora  como 
parentes  e  com  franqueza  vou  pedir-lhe  três  coisas. » 

—  «  Diga ,  tio.  » 

—  «  Não  traga  monos  nem  caens  de  fila.  Não 
coma  diante  de  mim  cobras  nem  gatos.  Quanto 
ao  papagaio.  .  .  » 


Digitized  by  VjOOQIC 


BE  D.  JOÃO  V.  til 

—  «  Fica  perdoado  ?  Concedido  tio ,  e  eu  ga- 
nho por  cima.  Preste-Joâo !  » 

O  negro  corcunda  chegou-se. 

—  Leva  o  Simão  e  o  Tigre  á  cella  do  er.  Fr. 
Jo%o ,  em  S.  Domingos.  Depois  yolta  que  tens 
que  fazer. » 

—  «  Nada ,  ponho  embargos !  A  minha  cella 
não  é  pateo  de  bixos.  »  ' 

—  «  Cala-te,  Fr.  João,  não  lejas  creança.  Dei- 
xa-me  tiver  bem  com  o  tio.  .  .  Dà  o  mono  a 
quem  quizeres. » 

—  «  Com  essa  condição. .  .  » 

— «  Agora,  sobrinho ,  tenho  a  honra  de  lhe 
apresentar  o  Sr.  Âbbade  Silva,  erudito  res- 
peitado de  toda  a  cdrte,  e  auctor  de  varias 
obras. » 

—  «  Sou  um  seu  admirador. » 

—  «  Espere !  lam-me  esquecendo  duas  coisas 
essenciaes.  Se  lhe  não  custar  muito,  falle-me  em 
portuguez;  e  se  quizer  mascar  tabaco...  » 

—  «  Mau ! ))  —  resmungou  Filippe. 

—  «  P<ide  mascal-o...  n 

—  c<  Bem ! »  —  exclamou  o  capitão  animado. 
.  —  te  Na  cosinha  ou  no  quintal.   Nesta  sala 

nunca. » 

— «  Amen!  Se  nos  díi  licença,  tio,  adeus  até 
ao  jantar. » 


Digitized  by  VjOOQIC 


lis  À   MOCIDADlí 

—  «Sem  ceremonia,  se  acaso  se  desgostar  do 
papagaio... » 

—  «  V.  mercê  come-o  ?  » 

' —  « Isso  é  no  Brazil.  Cá  dou-o  de  presente. 
Tenho  uma  arara,  e  gostava...)) 

—  «Veremos!  A  casa  é  grande;  é  natural 
que  chegue.  Adeus,  filhos,  vão,  estejam  á  sua 
vontade. ))  E  vendo-os  sair  accrescentou : 

*— «Então  que  diz  a  isto  o  nosso  Fr.  João?» 

—  «  Que  altos  são  os  juisos  de  Deus !  )> 

—  «  E  o  abbade  ?  » 

—  «  Que  vae  tudo  bem ;  e  melhor  iria  se  eu 
não  ficasse  sem  chapéu. )) 

—  «Pois  eu  digo  que  ha  meia  hora  tinha 
vontade  de  deitar  meu  sobrinho  da  janelia  abaixo ; 
fez  um  barulho  incrível,  padre  mestre!  Mas 
agora... )) 

—  Agora ,  commendcdor !  )> 

' — Agora,  para  que  hei  de  mentir?  Acho-o 
bom  homem  e  de  excellente  coração.  No  fim  de 
tudo  queria  obsequiar-me...  Ha  de  pulir-se;  ha 
de  pulir-se  com  o  uso  da  corte.  Jasmin !  Hoje  é 
festa  nesta  casa.  Jantam  cá  o  abbade,  o  sr. 
Fr.  João ,  e  meu  sobrinho  Filippe.  .  .  quero  um 
ou  dois  pratos  da  tua  mão.  Um  dia  não  são  dias. 
—  Sabes  que  o  macaco  vae  viajar  —  accrescentou 
baixinho. —  O  preto  leva-o  á  c^lla  de  Fr.  João.  >» 


Digitized  by  VjOOQIC 


HK  B.  JOÃO  y.  143 

— «  Pobre  ir.  Fr.  Jo5o!  » 

— «  Olha ,  Jasmín ,  diz  a  meu  sobrinho,  que 
o  mande  antes  pôr  em  casa  do  abbade.  Quero 
que  aprenda  a  dizer  em  que  anno  morreu  Ho- 
rácio. Anda ,  Jasmin.  Ê  uma  idéa  óptima !  » 

O  creado  sahiu  logo,  e  d^ahi  a  pouco  o  negro 
expellia  diante  de  si  o  monstruoso  Simão ,  que 
passando  pelo  abbade  arreganhou  os  dentes ,  em 
quanto  o  commendador  ria  e  esfregava  as  mãos. 


Digitized  by  VjOOQIC 


Digitized  by  VjOOQIC 


CAPITULO  VIII. 


PStO  AMOR  SB  GANHA  O  GBU  ! 


Catharina  e  Cecília  conversaram,  muito  ten^ 
po,  no  jardim,  na  mais  intima  confidencia.  Des- 
maiou o  sol  na  copa  das  arvores ;  o  ceu  princi- 
piou a.  empallidecer  com  as  primeiras  sombras  do 
occaso ;  e  nos  caracoleíros  e  madresilvas ,  a  can- 
tiga dos  rouxinoes  ia  adormecendo  em  notas 
expirantes,  até  se  calar  de  todo.  Estava  pró- 
xima a  hora ,  em  que  a  terra  se  banha  na  luz 
pallida  e  saudosa  do  crepúsculo. 

Entretanto^  nem  o  rápido  fechar  da  tarde, 
nem  os  raios  do  sol ,  descorados  jà ,  e  o  buH- 
cio  nos  tufos  de  myrtho ,  e  nos  taboleiros  de 
10 


Digitized  by  VjOOQIC 


146  A  MOGIDABB 

flores,  nem  a  alegria  das  companheiras,  que  a 
rir  e  a  correr  passavam  diante  delias ,  desaper- 
tavam as  m&os,  unidas,. das  duas  amigas,  ou 
seccayam  as  lagrimas  que  fugiam  serenas  e  quasi 
desapercebidas  dos  olhos  de  ambas.  Algumas  ye- 
zes  as  rosas  do  pejo  acendiam-se  no  seu  rosto; 
outras  a  pallidez  da  commoção  affugentava-as. 
Para  ellas  o  mundo  encerrava-se  no  coração  e  na 
alma  que  viyia  do  amor  {arwrosp ,  que  a  espe- 
rança da  solidão  inflama  de  saudades  e  cuidados. 

Gecilia  foi  a  primeira  que  fez  um  esforço  para 
romper  a  fascinação  deste  colloquio.  Leyantan- 
do-se  de.  rqiente ,  amosiiido  a  mM  d^entre  as 
da  sua  amiga,  olhou  com  yiveza  em  redor 
de  si ;  Catharina  seguiu-a  com  sobresalto.  Âpe- 
saa  entraram  na  rua  principal  do  jaidun  vkam 
a  regente  e  um  padre  da  companhia  de  Jesas. 
Ob  modos  inquiatôs  e  escrutadores ,  com  que  erte 
par  aeraphico  obsenraya  tudo  de  una  e  eutia 
parte ,  sem  alterar  a  s^annidade  dos  passos ,  in- 
dieayam  que  procurava  alguém. 

-^c<É  soror  Mónica  y»'^^  exclamou  Cecília. 

~- «  É  o  padre  Ventura  1 » -^  disae  Catharíoa 
com  alvoroço. 

—  a  Não  te  diâa  eu?  »  —^tornou  a  primeira. 

r-  Cecilia ,  não  sabes  ^  que.  quem  espera ,  de* 
iespera  7  »  —  respondeu  e  segunda. 


Digitized  by  VjOOQIC 


ra  Wé  SOÃO  V.  147 

A  presença  de  um  padre  jesuita  no  jardim  de 
Santa  Clara ,  e  sobretudo  nas  horas  de  recreio , 
era  um  acontecimento  pouco  ordinário.  Comtudo 
parecia  evidente,  que  S.  Paternidade  tinha  me^ 
recido  as  sympathias  das  noviças  e  educandas, 
porque  em  logar  de  fugirem  do  seu  encontro , 
procuravam-no  beijando4he  a  manga,  t  fazen- 
do-se  muito  vermelhas ,  quando  tocava  de  leve 
com  o  dedo  na  iace  a  alguma.  Havia  já  três 
meaes ,  que  o  conheciam ,  e  sabendo  a  qualidade 
de  visitador  e  reformador ,  em  que  fora  investido 
pela  Santa  Sé,  (o  que  o  trácia  ao  convento  re- 
petidas vezes)  imploravam  a  sua  itttercessio ,  sem* 
pre  efficas,  para  mitigar  o  rigor  dos  castigos, 
impostos  pela  prepotencia  da  abbadeça.  S.  Pa« 
ternidade  nfto  se  escusava ,  e  salvo  um  pequem 
sermão  á  paciente,  aecudia  sempre  em  atudUo 
im  opprimidsn.  Assim  tinha  attraMdo  a  con- 
fiança daquella  população  feminina ,  que  debaixo 
do  glorioso  pendão  de  S.  Francisco  caminham 
pdb  estrada  da  graça  e  da  salvação. 

CecBia  não  podia  demorarnsie  miúto  tempo  na 
mesma  idéa.  Emquavto  o  padre  e  a  regente 
mediam  as  passadas ,  virou-se  para  Catharina  e 
disse  em  ar  magoadoc 

•    *^«Ho}e  morra  6  aède  a  minha  roseira 
branca!» 


Digitized  by  VjOOQIC 


148  A   MOCIDADE    . 

—  «  E  O  meu  craveiro  amarelk)  ?  » — respon- 
deu Catharina. 

—  «Olha,  acudiu  Cecília,  o  padre  já  nos 
viu ,  e  chama-nos !  Então !  Não  éramos  nós  a 
quem  procuravam  ?!...» 

—  «  Â  ti ,  pôde  ser ;  mas  a  mim ,  porque  ?  » 

—  «  Porquê  ?  Não  sei ;  mas  é.  a  ambas.  Olha 
o  dedo  da  regente ,  que  parece  um  ponteiro. ,  . 
faz-nos  signal ;  estás  desenganada  ?  Vamos  ?  » 

Partiram ,  ligeiras  e  airosas ,  como  duas  gra- 
ças ,  que  fugissem  ao  bello  grupo  de  Canova.  No 
meio  da  lameda  encontraram  o  religioso  e  soror 
Mónica.  O  jesuita,  por  caridade,  encurtava  o 
passo  para  não  esfalfar  a  pobre  freira ,  cujo  can- 
caso ,  exacerbando-se  em  frouxos  de  tosse ,  lhe 
tomava  a  respiração  n^uma  pieira  cavernosa.  A 
sciatica  não  concorria  menos  para  tornar  des- 
iguaes  e  lentos  os  seus  movimentos.  O  padre  ti- 
nha os  cabellos  brancos ,  %  fronte  ampla  e  os 
olhos  penetrantes  e  reflexivos  do  jesuíta,  que 
vimos  conversar  amigavelmente  com  o  sr.  Thomé 
das  Chagas  no  Arco  de  Santo  Antão.  Era  sem- 
pre a  mesma  bocca ,  em  que  florescia  um  sor- 
riso eterno,  era  o  mesmo  rosto  passivamente af- 
favel,  e  a  mesma  expressão  diplomática.  S.  Pa- 
ternidade, desde  que  chegou  a  distancia  propria, 
fallava  á  freira  com  os  lábios,  e  ás  duas  amigas. 


Digitized  by  VjOOQIC 


BE  D.  JÒÃÓ  V.  149 

coíii  a  yista ;  e  é  jasto  ácerescentar ,  que  a  lin- 
guagem muda  dos  olfaós  foi  mais  eloquente  do 
que  as  doutas  palavras  da  sua  homilia. 

—  «  Pois  sim ,  Yae  muito  bem ,  leia  a  madre 
Santa  Thereza ,  que  lê  um  santo  livro:  Grande 
doutrina!  A  «Mística  Cidade  de  Deus»  tam- 
isem. Vou  mandar*-lha  e  os  «  Exercicios  »  do  nosso 
patriarcha  Santo  Ignacio. . . .  verá  que  bons  guias 
lhe  dou  para  acertar  no  caminho  da  graça .... 
Mas  a^nde  está  esta  querida  soror,  a  madre 
abbadeçá  ?  » 

—  «  V.  Paternidade  sabe ,  que  jâ  lie  mandei 
recado,  ^o  horas  de  já  ter  acordado  da  sua  sé^  » 
—  respondeu  soror  Mónica ,  no  tom  plangente 
e  precioso ,  que  é  característico  das  freiras  ve- 
lhas. 

— «  Algum  motivo  ha ,  esteja  certa.  O  peior 
é  demorar-se Se  tivesse  a  bondade  soror  Mó- 
nica !  Se  repetíssemos  o  recado !  » 

A  regente  e:2^halou  um  suspiro  capaz  de  co^ 
mover  um  Adamastor ,  acrescentando  com  en- 
fado: 

—  «  Não  percebo ,  padre  mestre.  Y.  Paterni- 
dade não  é  pessoa  que  se  faça  esperar.  ...  Eu 
mesma  vou.  Meninas  fiquem. )) 

—  «Os  deveres  desta  santa  casa  desculpam 
tudo ))  —  observou  o  jesuíta ,  sorrindo-se.  Nào 

Digitized  by  VjOOQ  IC 


IfiO  À  MOODAOS 

lhe  €rt  deseenhecida  a  lucta  capital»!*  !9iid€- 
aera  iníinigas  morUe^  as  duai  veneráveis  religio- 
sas; e  tinha,  boas  rasSes  para  se  limitar  a  orna 
perlsita  neutralidade. 

Soror  Mónica  retirava^-se  coxeando,  quando 
Gecilia  é  Gatharioa  chegavam  ao  pé  do  jesuita , 
e  beijando^lhe  a  manga ,  lhe  tomavam  a  faen^o. 
Apenas  a  regente  esteve  a  boa  distancia  ^  o  pa- 
dre Ventura  deu  alguns  passos  mais  para  ellas, 
e  pegando  na  mão  a  andMis ,  respondeu  á  sau- 
dação  com  bondade  paternal.  A  sua  voz  era  entre 
seria  e  joviaL  Toda  a  intenção  estava  na  vista 
o  não  nas  palavras ,  segutido  o  costume. 

—  <(  Deus  as  faça  santas,  filhas ,  e  as  abençoe ! 
Então  D.  Catharina,  vamo-nos  alegrando?  Es- 

^  tamos  já  mais  conformados  com  o  habito  ou  ha 
ainda  grandes  saudades  do  mundo ,  <{Ue  nos  não 
deixam  amar  a  Deus  como  boa  religiosa  ?  » 

Catharina  corou ;  tremula  e  conliasa  nada  res- 
pondia ;  mas  Cecilia  acudiu  logo  com  a  costu- 
mada impetuosidade: 

— « Acha  V.  Paternidade ,  que  Deus  quer 
promessas  que  excedam  as  nossas  forças  ? 

—  «  Gecilia !  »  —  interrompeu  a  sua  amiga. 

—  «  Ah ,  a  minha  doutora ! »  — *óbservou  o 
jesuita  com  o  seu  nso  fino.  —  «  Respondo  com 
outra  pergunta :  ponha  o  caso  em  ;sí  a  xnioàa 


Digitized  by  VjOOQIC 


jm  D.  jíoio  Y.  151 

donselfe  Theoibni ,  e  digt :  fe  iÍ!Keflie  á6  eiM- 
liHsr  eake  ^  denrecet  de  íksa  fUfaft,  e  a  iH«rto 
doB  Mtíiim,  <|ae  o  faculo  chaina  amor,  dei- 
xava norrer  aeu  pae  de  fieoa ,  ou  ohadeeia^lfae^ 
saerifioanda^^e?» 

-^«Nio  ha  pae  q^  man»  da ieUeidade  da 
sua  filha. » 

"^  «  MmíAd  bem.  Conpara  eutto  a  jgloria  de 
senrír  a  Deus  com  a  fallivel  alegria  que  ilude 
oaiiomei»?  Eatto -que  diz  ?  » 

««^«lilfiii  paàre^  dígo:$ó  oque  neensinacaM. 
De?eHie  «nar  a  Deus  .a<Aee  todas  as  coifas  y  e 
defiMS  a  naaios  irmiíQa^  mm»  :a  náa  meamos,  a 

— *-«EioáUe»te!!  Stfaa  que  aprofeita  a  dou*- 
tiiM  nerta  casa?i> — rredacgaia  o  padre  no 
mesmo  tom.  Depois  toniaiid(Hse  serio  disae : — 
«D.  Cíatbarína,  Meditei  sobre  o  sen  case;  e 
oommuaiquei-K»  sem  revelar  a  pesaoa^  enten- 
de-ae,  aos  mm  satÂos  dos  nossea  padres.  Ê  ver- 
dade ;  «  o  4pie  |ulga  que  disseram  elles  ?a. 

—  «  Que  devia  professar  t» 

•—  «  Respire.  Nem  tanto ;  disseram  que  ^n- 
Ire  o  amar  de  Deus,  e  o  anor  humano,  nlo 
hafarefierenoia  raaoaveL  • . .  não  acha,  tambean  ?  » 

«-*-  «Deeidemcatlkxgueeumao  posso  escclher?» 

—  «  Também  não  decidiram.  iDistínguem !  Os 
nasasosfiasuiaiasiiio  i^^ndos  /em  distinecões !  Se 


Digitized  by  VjOOQIC 


lc>2  A    MOCIDADE 

O  coração  ^  entrega  exclusivamente  a  Deus ,  ha 
a  vocação  sincera,  o  esposo  acceita  a  esposa.  Mas 
se  a  alma  recahe  nas  saudades  do  mundo  e  se 
lembra  mais  da  terra,  Deus  não  quer ,  Deus  não 
permitte  um  vinculo  que  a  bocca  fónna  e  o  co- 
ração desmente.  Não  é  este  o  seu  caso ,  D.  €a- 
tharina  ?  » 

—  «Ah  padre  Ventura !  Sou  indigna  da  graça 
de  Deus ,  bem  vejo ! » 

—  «Âfflictos  nos  vemos;  pois  sim;  mas, 
animo ,  e  resignação !  Entre  dois  males  irreme- 
diáveis ,  optar  pelo  menor  é  o  dever  do  ^cbrís- 
tão.  Deus  não  manda  impossiveis ;  amor  e  obe- 
diência á  sua  Lei ,  é  o  que  EUe  ordena.  Abra- 
ham  não  matou  Isaac. . . .  Medite  neste  e^i^m- 
pio ;  humilhe-se ,  e  teiíha  fé. » 

— ^crBem  humilhada  estou  na  presencia  da 
minha  fraqueia !  O  que  posso  fazer;  se  Deus  me 
não  chama ,  se  tenho  o  coração  escravo  das  pri- 
sdes  do  mundo  ?  E  meu  pae ,  o  que  dirá  meu 
pae ,  se  chega  a  saber  ? . . .  » 

— « Seu  pai  não  é  um  tyranno ,  ha  de  con- 
formar-^e  com  a  vontade  de  Deus.  Uma  alliança 
virtuosa  e  honrada  é  sancta  aos  olhos  da  Infi- 
nita Bondade.  Nem  todos  podemos  servir  a  Dens 
da  mesma  maneira. » 

—  <i  Ai  9  padre  Ventura !  Conhece  meu  pai , 


Digitized  by  VjOOQIC 


DE  D.  JOÃO  y.  1 53 

e  sabe  a  firmeza  da  sua  vontade.  Disse  uma  yez 
que  não  me  podia  casar ;.  e  essa  alliança; .  .  i» 

-^  «  Ha  de  fazer-^se.^ . .  As  coisas  é  qae  muda- 
ram ,  não  foi  seu  pai ,  D.  Catharina.  Uma  aíFeição 
honesta  em  que  envergonha  ?  O  Conde  suspirai 
pelo  momento  de  possuir  uma  esposa  virtuosa ; 
seí-o ;  disse^mo  elle.  Havemos  de  convencer  seu 
pai.  O  Conde  de  Aveiras  ^  amigo  e  valido  do 
Principe  Real ,  que  amanhã  (quero  dizer) ,  que 
de  om  instante  para  outro ,  altos  juizos  de  Deus  ^ 
pôde  subir  ao  throno. . . » 

-™^ « V.  Paternidade  não  ignora  a  ingratidão 
da  corte ,  e  a  nossa  familia. .  .  » 

'. —  <í  Sei  tudo  9  filha  ! . .  mas  confiemos  em 
Deus.  Um  genro  poderoso  vale  muito ,  e  seu  pai 
tem  pratica  do  mundo ,  percebe  as  coisas.  Esteja 
certa ,  não  resiste.  Peço  oito  dias. .  .  » 

'—«Oito  dias?  E  julga  V.  Paternidade  que 
meu  pai  approva. . . » 

-^í<Ha  de  approvar. » 

—  «E  Deus?» 

—  «LembreHse  de  que  padeceu  para  a  sal- 
var ,  e  veja  se  pôde  querer  um  sacrificio  superior 
á  nossa  força  ?  Diga-me :  e  se  houvesse  meio  de 
conciliar-mos  as  duas  coisas ,  servindo  a  Deus , 
e  vivendo  no  mundo,  ficava  mais  tranquílla?  » 

«—  c(  Oxalá ,  meu*  padre ! » 


Digitized  by  VjOOQIC 


154  A  MOCIDADS 

— « Dè  moitas  graças  a  Deus;  o  neio existe. 
O  habiU)  não  fas  o  monge  ha  de  ter  oufido ;  e  a 
verdadeira  (abusara. é  >o  recato  da  alma ,  e  a  in- 
noceneia  do  coraçio.  Com  o  vestido  seovlar ,  e 
a  liberdade  do  corpo  pede  ser  escrava  de  Deas. 
Temos  os  exenúoios  para  mortificar  t>  esfâríto,  a 
obedi^icia  a.  superiores  espírítuaes  para  nos  vat^ 
por  um  vinculo  sagrado ;  ha  a  afanegaçào  da  pesh 
soa  e  da  vontade  para  interesse^  santa  inte- 
resse 1  de  muitos. . .  e  tudo  isto  faz  o  sacri&cb 
completo.  Se  quizer ,  D.  Catharina ,  aeii  mulher 
de  seu  marido ,  eesposa  «de Deus ,  <(aantoá  graça 
da  perfeita  religiosa. . .  »> 

—*« Aonde,  e  de  que  siodi>^  padre  Ven- 
tura?» 

-^w  No  mtitutodo  Patnandia  Santo  l^eto. 
Pôde  ser  ter^eim  doaooiedade  de  Jesus.  Ou*i)to 
ao  maê  creia  «m  Deus  e  tenha  esperança.  A  pa- 
ciência vence  tudo. » 

O  padre  duplicou  a  força  ^a  este  proaaissa  <smk 
um  gesto  magestosoe  expressivo.  Vixendo-se  de- 
pois para  Oecília  acrescentou  em  tem  jovial : 

«-^«£  a  memoa  bonito  o  que^diz?  Mo  ha 
nesse  coração  pequeno  e  alegre  nenhum  peocado 
escondido^  que  se  confesse fn 

— «Ai  pndre  Vtsitodor ,  nenhum ! »  — Tes- 
pendeu  ella  vermelha  come  uma  rosa  e  dando  á 


Digitized  by  VjOOQIC 


faocfli  O  »eio  MriHo  trvmw»,  que 4Í0!eBgiifdb 
a  tornaTa. — «Não  tesho  mions.;  «  wm  níft- 
g«iem  me^frar. » 

-7- «  Sim  ?  Vejam  a  iowcivt  dbs  homefts?  Po^ 
bre  freíriíihai  Hei  de  dar«4fae  uma  «dtieia  para 
a  ONí^olar.  a 

— «Mas  60  oSo  êitoa  triate! 

<--*«  Atoda  bem.  Lembra-ae  de  soa  pai  ?  » 

—  «Oh,  muito,  muito I-***4Ciidiu  Cecília, 
cabindo  logo  em  melatioolía  rcAexiya.  Tenho-o 
pfeamte  como  le  o  vime,  Olba  padre  mtetne 
qwntos  $&o  hoje  ^  mes  1}^ 

—  «Porque?» 

-^«Porque  está  faaando  dofl»  «amas  que  elb 
me  tare  oos  faragos  e  me  beijou  a  adtima  vet. 
Querido  pai  j  Partiu  e  não  ternau  maia. .  %  Mal 
^ahia  eu  que^e  deapedia  paca  aampre. » 

—  «EÔgane^tae;  ba  de  vrf-Oi» 

— «Jío  eéu.  Hle  era  bom;  eslá  iá. » 

-^^.Sapero.  em  iem  Ghrísto  que  lá  iremos 
todos.  Mias.  seu  pai ,  Geeilia ,  dSo  morreu.  • .  i» 

— ^^tt Meu  pai?*.  E  V.  Paternidade  nfto  me 
dtfia  nada!  Ab«  a  minha  maí,  a  minha  que- 
rida mail. .  » 

— «  Enlfto !  NSo  sio  eoiaas,  que  se  levem  a 
chorar. . .  Lagrimas  e  desmaios  ? . .  E  para  a 
tdstem  oqae  veierva  entio  ?  Aiegriaa  taes » quando 


Digitized  by  VjOOQIC 


156  A   MOl^lDAta 

Deus  as  mándu,  eleva-^  o  é8(ril4tó  «ò  céâ,  e 
'acceítam*-se  ccmi  jubilo.» 

— ; «  Também  se  chora  de  alegria !  Meu  pai 
^ito !  Ainda  o  tomarei  a  tdr ! » 

—  «E  finais  depressa  do  que  julga.  Está  em 
Lisboa,  em  sua  casa.  Chegou  hoje ;  e  é  natural 
que  venha  aqui  amanhfi.  Gomo  elle  ficará  satis- 
feito de  vér  uma  filha. .  .  digna  do  seu  amor  se 
proceder  bem  sempre. » 

—  «Ah,  padre  Ventura,  se  elle  soubesse! 
ۈtharina,  querida,  agora  mais  do  que  nunca 
peço  a  tua  amisade. .  .  Diz-me  o  corai^o  que 
chegou  a  hora. . . » 

— «  De  algumi  lhe  ter  amor  ?  d  —  atalhou  o 
jesuíta  eto  tom  malicioso.  Depois  tomando  ar 
serio ,  mas  nSo  severo ,  proseguiu :  —  «  D.  Ca- 
tharina  pero^,  e  eu  entendo.  Soc^ue  Ceei- 
lia.  O  Conde  de  Aveiras  é  o  maior  amigo ,  que 
tem  um  cavalheiro  moço ,  que  a  viu  em  S.  Do- 
mingos faz  hoje  cinco  metes ;  que  lhe  declarou 
o  seu  amor  uma  sexta  feira  á  noite,  aqui  nesfe 
jardim  quinze  dias  depois ;  e  que ,  hontem ,  aindu 
hontem ,  lhe  escreveu  por  certa  beata  uma  carta 
para  lhe  dizer ,  que  viria  esta  tarde  ao  convento, 
custasse  o  que  custasse. . .  Nlo  é  tudo  assim ,  D. 
Cathariria  ?  » 

As  duas  meninas  olharam  uma  para  a  outra 


DigitizedbyCiOOglC 


BBfi.   ÍQÍ0  %.  1S7 

tão  fiasmadas,  tto  coBftisas ,  que  o  padre  Ventura 
uSo  pôde  suster  o  riso  apesar  da  sua  gravidade. 
Neabnína  se  atrevia  a  fietUar  de  eavergcobada. 

—  «Admiram-^e?  Nfio  estranhem^  Sâo  mila- 
gres da. nossa  roupeta!  CecSia  eu  não  censuro, 
nem  approvo.  Os  jesuttass  ha.  de  oonven€er'-se , 
são  melhwes  do  que  diz  a  madre  t^^deça,  que 
é  uma  santa  pessoa. . .  )i, 

-  —  «  Mas  quem  revelou  a  V.  Paternidade  ? . .  » 
interrompeu  Gecilia  com  as  faces  a  arder. 

— « Provavelmente  alguém  que  o  sabia.  Fi- 
lha, nada  se  faz ,  que  se  i^  descubra.  Repito ; 
nSocendemno,  nem  approvo,  entenda-me  bem ! 
Isto  não  é  o  casamento  de  D.  Catbarina. .  .  Co- 
nhece- o  amigo  do  Conde  de  Aveiras?  Se  xtòo 
sabe ,  pelo  menos  suspeita  quem  elle  é ,  e  o  que 
hade  vir  a. ser?. .  » 

— .<xÊ:o  homem,  que  amo!  Não  sei  mais, 
nem  preciso  » atalhou  Ceeilia  em  um  repente  de 
enfado.  O  jesuíta  olhou  para  eUa  alguns  instan- 
tes, leu  no  seu.ro^o  a  verdade  e  a  innocencia, 
e  meneou  a  cabeça  com  mais  peear  do  que  se- 
veridade. 

—  «  Ah ,  Cecília ,  receio  que  do.  coração  v©-: 
nha  a  sua  morte.  Jactem. idade;,  defve  meditar.* 
olhe  que  o  sacfifieio  é  grande  aos  olhos  de.Deus,- 
e  immensO'  aos»  ottios  do  mundo» » 


Digitized  by  VjOOQIC 


il^  Jí  tfOaOADI  i 


múu  CotharÍDa,  a  cpiem  nio  eseapoa  a  intençiet 
com  qoe  o  jeMHta>  praferili  as  vltitnas  palarrái. 

—  (cA  verdade  assusta ,.  fiiha. — Respondeu 
elle. — Se  a  suaaoiiga  Soubesse  a  que  Cuia«  era 
menor  o  mal  Antes  de  entreger  assim  a  sua 
alma,  dena  saber  a  quem.  •  .Deus  permitta  que 
se  não  arrependa  e  depois  cbora.  Nio  digo  mais ; 
não  sei  seaãaittò.k> 

—  ccE  euf-^aea(&i  Cecilía  exaltada *~ sei 
que  o  amo  «  quç  seu  amada.  Que  nio  terei  es- 
poso ^  ou  que  será  eUe.  ;• » 

—  <x  Valha^nes  Deus !  Quer  iazer  de  mim  seu 
confidente  ?  Eu  lAo  entendo  de  paixões  munda* 
nas.  Confessor  posso  absolver  da  culpa^  ima  vez. 
que  o  coraçio  seja  bom ,  e  o  seu  é  bom,  Cecí- 
lia, oxalá  que  a  cabeça  assentasse  um  pouco. 
Amifo,  digo-lhe  que  fei  mal,  que  faz  muito 
mal  em  se  fiar  dos  oUios.  Lembre*«se  de  seu  pai ; 
veja  o  desgosto  de  sua  mii. .  •  Sobre  tudo ,  o 
mundo,  respeite,  o  mundo.  Quanto  ao  mais  Deus 
é  menos  rigoroso  do  que  alguns  theologos. . .  e 
ha  exemplos.  Se  a  culpa  aproveita  a  nossos  ir- 
mios ,  se  a  mentira  os  salva ,  peccámos  sempre 
mas  é  peccado  muito  próximo  da  virtudes  . .  Um 
instante  de  síneera  oontri^#  píóde  laval^o.  Ju** 
dith   também  peceou,  gloriosa  cu^,  que  for 


Digitized  by  VjOOQIC 


BIT  D.  JOto  V.  1S# 

a  Ubenlade  do  seu  porro !  Nada  é  absoluto  neste 
yalle  de  lagrimas.  Se  fossemos  perfeitos  éramos 
santos.  Mas  de  téras ,  nHo  sabe  quem  é  o  amigo 
do  Conde  de  Ateiras?» 

—  K  E  V.  Paternidade  ?  »  —  exclamou  Catha- 
rina. 

— ^ «  Eu  ? !  Nao  tê  que  estou  perguntando  ? 
Cecília ,  tracte  de  se  cíonGrmar  na  terdade  antes 
de  decidir.  Olhe  para  a  sua  consciência  e  lucte 
em  quanto  titèr  forças;  se  nío  poder  tencer-se 
procure  remir  o  peccado  pêlo  exercici^)  da  vir- 
tude. . .  A  yo2  do  mundo  nem  sempre  é  verda- 
deira ;  ouça  antes  a  voz  do  ceu.  Saiba  que  para 
O  serviço  de  Deus  importam  menos  os  meios  do 
que  os  fins. » 

—  K  flSo  entendo ,  padre  Ventura ! » — repli- 
cou Cecília  ingenuamente. 

—  «Entenderá  um  dia.  Nao  é  a  madre  ab- 
badeça ,  que  alli  vem  ?  Pois  sim ,  filhas ,  ha  di- 
versos modos  de  ganhar  o  ceu.  Cecilia,  a  verda- 
deira virtude  dao  está  na  bocca  do  mundo ;  D. 
Catharina  lembrense  do  que  eu  disse  do  nosso 
Instituto. . .  Amem  e  esperem  ambas ,  e  serSo 
salvas ! . .  .  Ora  venha  a  nossa  querida  abbadeça, 
que  já  nos  ia  tardando.  »     ' 

—  «V.  Patemidadebem  sabe  o  peío  da  minha 
jcrm. . . ,  Bens  m'a  tire  depressa  tle  cima  dos 


Digitized  by  VjOOQIC 


460  jA   ifOCIOADfi 

hoDibros!»-^  exclamou  a  freira  com  maueiráfi 
beatas,  e  aífectadas. 

—  «  Ora  pois ,  louvado  seja  Deus  por  tudo ! » 

—  a  Aonde  quer  V.  Paternidade  que  o  receba  ?^> 
— « Aonde  lhe  fòr  mais  agradável,  Eu  não 

escolho. » 

—  tt  Meninas ,  não  sabem  que  a  hora  do  re- 
creio acabou?  Beijem  a  mão  do  sr.  padre  Ven- 
tura ,  e  peçam-lhe  vénia. . . » 

—  «  Dá  licença ,  querida  madre  ?  . . .  Cecília 
ha  de  receber  um  recado  de  casa.  Não  sabe  ^Seu 
pai ,  que  diziam  morto ,  está  vivo  e  chegou  a 
Lisboa.» 

— ^«Deu  graças  a  Deus  por  tamanho  mila- 
gre ,  Cecilia  ?  » — exclamou  a  abbadeça. 

—  «Já  cumpriu  os  seus  deveres ;  parece-me 
que  não  ha  inconveniente  em  a  deixarmos  vèr  o 
seu  parente. . .  creio  que  é  parente  ? .    . » 

—  «  É  primo !  ]» —  atalhou .  Cecilia  intrepida- 
mente. 

—  «  O  seu  primo  » — repetiu  o  padre  com  egual 
denodo  —  «Naturalmente  não  são  coisas^  que  se 
digam  diante  de  todos  em. um  locutório.  A.gra- 
vidade  do  negocio  desculpa. . . » 

—  «  E  onde  está  o  seu  parente ,  menina  ?  » 
-^interrompeu  a  abbadeça. 

—  ff  Na  grade ,  segundo  me  informam  »  — 


Digitized  by  VjOOQIC 


DÇ  B.  JOÃO  V.  161 

obs^¥ou  O  jesuíta.  —  «É  melhor  irmos  para  a 
casa  da  secretaria  ^  que  se  pôde  reputar  extra 
clausura:  e  deixaremos  os  dois  primos  em  li- 
berdade . . .  bem  Yé ,  querida  abbadeça ,  este 
caso  sabe  da  regra  geral.  . . » 

—  «  Apesar  disso,  é  contra  o  uso.  Entretanto 
y.  Paternidade  manda !  Menina,  vá  subindo ;  eu 
dou  as  ordens.  Assistirei  á  sua  yisita. » 

—  aExcellente!  Assim  não  ha  peocado.  Va« 
mos!  i> 

E  tomando  pela  rua ,  que  ia  dar  â  porta  re- 
servada, o  padre  Ventura  mostrou  que  sabia 
perfeitamente  o  caminho.  A  abbadeça  seguia-o , 
rosnando : 

—  «Não  percebo  tal  breve  de  Roma,  nem 
taí  visita!  O  padre  santo  não  podia  nomear  o 
nosso  guardião  em  logar  deste  jesuita?  Nossa 
Senhora  nos  acuda !  » 

—  «Não,  soror;  disse  o  padre  virando-se 
com  ar  severo  —  Sua  santidade  sabe  que  não  é 
permittido  ao  guardião  ser  juiz  em  causa  própria. 
Querida  madre,  n^o  se  esqueça,  peço-lh^o  muito, 
de  que  não  peccamos  só  por  obras ;  por  temeri- 
dade de  pensamentos  ainda  ás  vezes  se  pecca 
mais  •  .  Cuidado  em  não  cabir !  d 

Esta  ultima  advertência  tinha  dois  sentidos. 
Podia  referir-se  á  lição  moral ,   que  acabava  de 
11 

Digitized  by  VjOOQIC 


16$  A  MOGEIDADS 

dsp,  6;  869  O  sev  tpjfhoaenifr;  ou  sdnteiMe  rifo^ 
iír  ao  mmitikeÊàf^  sdMreMAtados  fos  râcftpáM  â 
freiras  vendcMe-  colhiéa  ^s  flamante  mspiiMra^ 
$ãa  contr»  a  seu  visitador.  Fesse  o  que  fosse,  l^« 
Paternidade  continuou  a  subir  a  escada  eon»  9 
soeego  ovdtnaFio;  e  a  abbadeça,  eimrrigida  pela 
inura  duo^  Mvido»  iteliano,  &  seriamente^  assustada 
pelo  ar  de*  a«istoridad&,  que  ¥m  assumir  ao  je- 
suiCa ,  HSd^  profsriv  um»  stf^  palarmi  mais.  Assim 
chegaram  ambos  á  secretaria  do  mosteiro; 


Digitized  by  VjOOQIC 


CAPttVhO  IX. 


*-iÍNDlí  ífiú-  síÈ-  íírtHrf  tisai  o  ÉMl 


As  òtàem  der  aBfiàtíeíâ-  foi'am  cttihpiítfes'  sem 
detttona  r  otites  db  Cecilhr  entrar  mr  safa  da  se- 
cretaria ,  xã  It  esperara  o  seu-  jmreiite. 

Bste  líSo  esperou  sem  grande  incpiíetaçao  a 
momentd  de  a  vêr  na.  grade,  a  esta:  hora  deserta*» 
ôsed  desassocegò  percebia-se  na  passeia  impa- 
,  ciente,  em  que  mediar  o  apposeiítò,  cotrtandScr 
oí  mintitos  r  e  no  arsobresaftadb,  con*  qnie  ofhaw 
parti  ff  porta ,  se  ourir  aignm  riííâé.  Depoiff 
disto  ê  inutir  dizeir,  qim  se  llíe  abria  o  paraisa 
diante  ctes  offios,  ntr  moAntenttr  èril  que  mi  con- 
vidado a  ttocíar  a  ímporttma  puBBdida*  do  Io- 

I 

Digitized  by  VjOOQ  IC 


164  A   MOCIDADE 

cutorio  pela  casa  reservada  aonde  podia  fallar , 
sem  ser  escutado  por  freiras  curiosas  e  ávidas  de 
enredos. 

A  disciplina  do  convento  fora  violada.  O  favor 
que  se  lhe  concedia  ^  era  uma  excepção ,  de  que 
gosavam  só  os  príncipes,  os  cardeaes,  os  bis- 
pos,  e  os  confessores  da  ordem ;  o  saudável  ter- 
ror incutido  pelo  jesuita  conseguiu  mover  a  ve- 
nerável abbadeça  a  auctorisar  uma  innovação, 
que  ia  servir  de  saboroso  pasto  ás  murmurações 
das  filhas  de  S.  Francisco. 

Logo  que  o  primo  de  Cecilia  entrou ,  fechou- 
se  sobre  elle  a  porta ,  e  appareceram ,  primeiro 
a  abbadeça  e  o  padre  Ventura ,  e  logo  depois  a 
educanda,  que  tinha  vindo  de  volta.  Os  dois 
religiosos ,  sérios ,  e  revestidos  da  gravidade  fria, 
que  diz  a  um  desconhecido ,  que  o  recebemos , 
mas  nos  acautelamos:  Cecilia,  vivamente  agi- 
tada, comprimindo  o  tremulo  coração  com  a 
mão  ainda  mais  tremente.  Encontrando  o  olhar 
affectuoso ,  mas  discreto ,  do  hospede ,  a  pobre 
menina  sorriu  com  tanta  suavidade  e  timidez , 
que  ojesuita  deixou  escapar  um  gesto  de  receio; 
mas  cahindo  em  si  poude  conter-se ,  e  em  um 
instante  os  olhos  explicaram  tudo  ao  seu  amante. 

O  parente  de  Ceciffa  mostrava  dezoito  annos « 
e  talvez  ainda  os  não  contasse  completos.  Tinha 


Digitized  by  VjOOQIC 


DE  D.    JOÃO  V.  16B 

O ,  corpo  bem  proporcionado  e  esbelto ;  a  pre- 
sença agradável  e  insinuante ,  apezar  dos  ares  de 
grandeza ,  que  tornavam  quasi  aprumada  a  sua 
estatura ,  dando  certa  côr  altiva  aos  gestos.  As 
sobrancelhas  desenhavam  uma  curva  muito  viva , 
excessivamente  escuras  e  bastas  talvez  desces- 
sem pezadas  de  mais,  carregando  os  olhos.  As 
pupillas  pardas  raiavam  luz  tão  clara ,  illumlnan- 
do-se  á  menor  commoção ,  que  bem  poucas  pes- 
soas poderiam  soffrer ,  sem  abaixar  a  vista ,  o 
relâmpago  que  as  fulminava.  Era  a  mesma  força 
e  magestade ,  que  deu  a  Luiz  XIV  a  vantagem 
de  atterrar  tanto  com  um  voiver  d'olhos ,  como 
com  as  mais  severas  palavra^,  que  profere  a 
bocca  do  rei. 

O  rosto  do  mancebo,  mais  trigueiro  do  que 
alvo,  pouco  rosado,  era  animado  e  nobre  de 
feições ;  correspondia  bem  á  expressão  da  vista. 
A  testa  elevada  e  espaçosa ,  serena  reflectia  a 
intelligencia ,  contrahid»  inculcava  a  impetuosi- 
dade do  animo.  Os  beiços  cheios  c  vermelhos , 
com  o  superior  alguma  coisa  revirado  e  terso , 
annunciavam  um  caracter  viril ;  o  beiço  inferior 
muito  mais  grosso  e  descabido ,  indicava  grande 
propensão  aos  deleites  sensuaes.  Menos  séria, 
esta  bocea ,  aonde  ás  vezes  a  ironia  se  espiri- 
tualisava  com  chiste,  podia  adoçar  repentína- 


Digitized  by  VjOOQIC 


16(S  A   4ipaD4J>S 

mentia  a  sçvieridade  jda  pjbjb^iooQinia.  0  nmi  fiui^i 
,aquiUoo  jRãp  descalua  na  poiíta,  q  m  m^hsm 
indicadas  e  laceis  de  se  entum^er  inculcavam 
um  génio  forte  ,e  irritável.  Em  todo  o  $eu  as- 
pecto lia-se  yontade  firiije ,  talentiO  prompto ,  |;e- 
nio  arde^te »  e  constância  de  idéas ,  pmito  promr 
pta  em  degeaerar  em  obstipação,  A  delicadeza 
da  pelje  e  a  pureza  dqis  veias ,  azulaqdo-se  trans- 
parentes como  únissimas  spmWaç ,  provav/iip  que 
o  typo  aristocrático  era  conservado  na  sua  far 
milia  em  toda  a  perfeição. 

Os  cabellqs  sem  pós  i^em  peruca  fugiam  sol- 
tos pelos  bombros,  enrolandp-se  em  annei^  de 
bello  castanho  claro.  A  mâo  pequena ,  cheifi  ^  e 
macia ,  parecia  mão  de  senhora.  O  pé  airoso  e 
pequeno  pizava  com  jgraça ;  os  mpyimentos  res- 
piravam elegância  e  dignidade  desafectada;  a^ 
maneiras  eram  n^turaes ,  e  dotadas  de  exquisita 
jdistínc^.  Bonitos  dentes  brancos  e  iguaes  ap- 
pareciam,  quando  sorria,  no  meio  do  carmim  dos 
beiços ,  ainda  corados  de  todo  o  calor  da  juven- 
tude. O  seu  porte  inculcava  mais  o  fidalgo  e  p 
militar ,  do  que  o  plebeu  e  o  negociante.  Até  a 
voz  sonora  tinha  a  firmeza  de  tom ,  e  a  inflexão 
imperiosa ,  que  dã  o  uso  do  poder  hs  pei^soas 
mais  aífeitas  a  mandar  do  que  a  obedecer. 

Trajava  uma  casaca  sem  enfeite  nem  bor^ 


Digitized  by  VjOOQIC 


M  D.  JOÃO  y.  1$T 

dura ;  parem  ^  Tolfai  ^^mada  4e  ^rén^fts  |»raoÍ9- 
sfts»  posta  ao  pescoço  com  o  desgarre  coTtesãOi 
l)rigava  com  a  modesta  ^ppareficia  da  vestia  « 
dos  calções.  O  <3aiBÍsote  de  fiiui  cambray  esooa- 
didHse  mal ,  ^  aos  botões  de  l^rilhaotes  que  o  or- 
navam ;  dois  rubis  de  grande  vedor»  os^uecidos 
w&  súoetes  do  relojo ,  desueotíam  «  sinqJícidad^ 
estudada  do  resto  do  fato.  A  espada ,  boa  íolha 
de  Toledo ,  própria  para  duello ,  e  bem  lavrada , 
pe&dia  de  rioo  talím.  As  luvas  de  oanbão  viam- 
se  euroladas  doutro  dos  copos  da  espada.  De  $eda 
côr  àd  rosa,  a  meia  vestia  t9o  juata  que  pare^ 
cia  estalar  na  perua ;  e  os  çapatos  com  rosetas 
ou  topes  de  fita ,  nada  tmbam  que  invejar  aos 
do  íidailgQ  mais  primoroso.  No  dedo  brilhava  um 
anual  com  três  diamantes,  o  no  chapéu  uma 
presilha  sem  jóias  accommodava-^  á  niediania 
de.  pjirte  do  trajo.  A  um  observador  não  podia 
escapar  que  o  mancebo ,  prívaado-se  de  quanto 
forma  a  opulência  do  vestido ,  nâo  se  despira 
dos  objectos  que  são  inherentes  á  verdadeira  aris- 
tocracia ;  a  finura  da  roupa  branca  9  e  o  valor 
das  pedras,  que  trazia,  accusavam->uo  de  que- 
r^  disfarçar  uma  posição  em  tudo  muito  supe- 
rior ao  que  r^resentava. 

A  sala ,  om  que  se  achavam ,  tinha  duas  ja- 
nellas  altas,  abertas  em  vãos  profundos,  uma 


Digitized  by  VjOOQIC 


168  A    MOCIDADE 

uma  quasi  ao  fundo,  mas  do  mesmo  lado  da 
parede ,  a  ootra ,  collocada  ó  ilharga  da  porta , 
por  onde  entrara  o  primo  de  Cecília.  Quem  se 
recolhesse  ao  cubiculo  formado  pela  primeira 
janella  nem  via  nem  era  visto  pelas  pessoas  en- 
tretidas no  recanto  da  segunda.  No  meio  da  casa 
levantava-se  um  enorme  bofete  de  páu  santo  tor- 
neado ,  carregado  de  livros  e  papeis  de  escriptu- 
ração.  Defronte ,  na  parede  opposta  6s  duas  ja- 
nellas,  estava  um  grande  crucifixo,  sobre  uma 
banqueta  doirada ,  com  duas  alampadas  accesas. 
Uma  dúzia  de  cadeiras  de  assento  e  espaldar  de 
muscovia  acabavam  de  vestir  o  apposento. 

A  vista  do  mancebo  primeiro  fitou-se  nos 
olhos  pequenos  e  sagazes  e  na  bocca  sumida  e 
barba  avançada  da  abbadeça ,  que  da  sua  parte 
«ão  o  examinava  com  menor  attenção.  Dahi  pas- 
sou a  estudar  o  rosto  sereno  e  impassivel  do  pa- 
dre Ventura ;  porém  a  vista  deste ,  não  menos 
firme  e  mais  profunda ,  encontrou  a  sua  sem  se 
abaixar ,  e  nada  disse  ou  deixou  advinhar.  A  cor 
subindo  ás  faces  do  primo  de  Cecilia ,  e  a  fronte 
carregando-se  de  repente ,  apenas  chamou  um  ar 
de  riso  aos  lábios  do  jesuita.  O  seu  aspecto  era 
todo  respeito  frio  e  civilidade  discreta ;  mas  os 
olhos  ousavam  mais :  e  firmes  declaravam  que  nada 
do  que  via  era  para  elle  segredo ,   que  sabia  co- 


Digitized  by  VjOOQIC 


DE  D.  JOÃO  V.  169 

nhecer  as  pessoas,  porém  que  as  não  descu- 
bria,  e  que  estava  disposto  a  conter  qualquer 
palavra  ou  acto  donde  resultasse  prejuiso  aos 
outros. 

  abbadeça ,  respondendo  com  uma  secca  me- 
sura â  cortesia  bem  pouco  profunda  do  mancebo, 
rompeu  o  silencio. 

—  «O  Sr.  padre  Ventura  disse-me  (expoz  ella) 
que  o  senhor  é  primo  desta  menina ,  e  traz  no- 
iicias  importantes. . .  Entendemos  que  este  logar 
era  itiais  conveniente  do  que  o  locutório  para 
uma  conversação  de  tal  natureza.  Pôde  fallar. . . 
desculpará  de  certo  que  o  meu  dever  me  obri- 
gue a  assistir  á  sua  conversação»  —  O  rosto  do 
primo  de  Ceeilía  tomou  de  súbito  as  cores  afo^ 
gueadas  do  orgulho  oílbndido ,  os  olhos,  a  prin- 
cípio tímidos ,  fusilaram  de  cholera ,  e  teve  de 
morder  os  beiços,  fazendo-lhes  sangue,  para  re- 
primir uma  resposta  severa  que  lhe  subiu  á  bocca ; 
conteve-se,  mas  ficou  callado.  Somente  ouvindo 
citar  o  jesuita  encarou-o  de  novo  com  attenção , 
examinou-o  em  um  olhar  perscrutador ,  e  incli- 
nou de  leve  a  cabeça  para  elle.  Era  fácil  perce- 
ber, que  scismava  no  modo  porque  um  padre 
que  não  conhecia  adivinhava  os  seus  segredos,  e 
lhe  servia  de  protector  silencioso.  Do  jesuita  a 
sua  vista  recahiu  sombria  c  concentrada  sobre  a 


Digitized  by  VjOOQIC 


170  A   MOGIPABE 

abbad^ça ,  a  i^uem  se  b8o  dignou  honrar  asm 
juma  »ò  palavra^ 

O  padre  Ventura  sobretudo  o  que  temia  emm 
as  imprudências,  e  achava  o  primo  de  Cecília 
muito  moço  ^e  nuiito  ir^ascivel ,  para  subjugar  as 
paixões ,  diante  da  provocação  deliberada  de  uma 
freira  contumaz  e  quizilenta ;  além  disto  lia  nos 
olhos  da  educanda  (e  o  padre  visitador  eabia  ler 
no  rosto  dos  outros,  como  em  livro-  aberto) que 
ella  tremia  iguaes  receios ,  e  preseutia  próxima 
a  tempestade:  por  isso,  o  nosso  jesuitâ  previ«- 
dente  e  valedor  interpo&«e  a  tempo  para  evi- 
tar uma  s^^na  violenta,  recorrendo,  s^undo  o 
seu  costume «  aos  melifluos  circumloqiAios  que 
ninguém  empregava  com  mais  habilidade. 

—  ff  Se  dá  licença ,  venerável  irman ,  inter- 
rompeu elle ,  não  acho  inconveniente  em  fica- 
rem aqui  os  dois  primos  um  instante. . ,  são  ne- 
gócios de  familia,  negócios  caseiros,  como  se 
diz  no  mundo. . .  Cecilia  não  é  freira ,  não  se 
lhe  pôde  applicar  a  disciplina  em  todo  o  rigor. . « 
Depois ,  confesso-lhe  que  pouco  me  devo  demo- 
rar, e  vou  commonicar-lhe  coisas  que  não  po- 
dem passar  dos  seus  ouvidos* » 

—  «Obedeço,  padre  visitador!)»  —  replicou 
a  abbadeça  com  azedume.  —  a  São  ordens  de 
V.  Paternidade,  não  poií^o  C^t^ir;  mas  sempre 


Digitized  by  VjOOQIC 


B£  D.  joip  y.  17t 

d}gp  pe  lavo  aè  miojtias  ^lSo9.  e  nSo  respondo 
seiíSQ  ,poj:  pain»,. » 

—  «íJS  DàQ  faz  pouco,  ipíaba  iman«  Eu  res- 
poniem  do  resto.  Bem  vê,  não  ba  escândalo; 
uma  secular  pôde  repeber  ps  seus  parentes  e  ou- 
yil-os  em  .tern>.os  honestos,  ã  vika  de  pessoas 
maiorps  de  toda  n,  excepção.., .  o  perigo,  respei- 
tável ^padre,  o  grande  perigo  ^  os  abusos,  que 
deçgrai^adamente  vemos  em  tanta  casa  de  Deus« .  ^ 
nâo  fello  desta ,  Dens  me  livre.  Esperemos  quf 
dê  um  exemplo  útil ,  advertindo  pela  sua  auste- 
ridade a  relaxjifião  das  outraSi.  O  peccado  irre- 
missiypl,  como  e^  di?ia,  é  converter-se  a  clau- 
suj-tí  em  abrigo ,  çm  çiprisco  de  adores  profanos 
e  quasi  públicos,  e  abrindp-íie  qs  wllos  dos  lo- 
cutórios ao  vicio  e  á  seducçâp.  Eis  o  mal ;  mas 
ha  de  curar-se  c(m  a  ^uda  de  Peu^.  Esperemos 
tudo  delle. » 

—  «  Menina !  — r  gritou  a  freira ,  convulsa  e 
suffocada,  —  sabe  quem  manda  aqui?  Já  ouviu 
as  minhas  ordens  ?  Veja  p  que  o  seu  parente  lhe 
quer,  e  depois,  peça-lhe  licença,  e  retire-se 
immediatamente.  Irà  fazer  as  suas  orações  àquelle 
oratório.  » 

Ç  o  dedo  mirrado  e  eterno  da  venerável  serva 
de  S.  Francisco  indicava  uma  porta ,  fronteira 
à.dft  entrada,,  que  dayft;|^ra  a  çapíçllinha  inte- 


Digitized  by  VjOOQIC 


17â  A   MOCIDADE 

rior  aonde  costumava  fazer  as  suas  devoções.  Ce- 
cília abaixou  a  cabeça ,  pallida  e  desorientada ; 
o  mancebo  desfechou  uma  vista  de  ódio  mortal 
tão  ardente,  que  se  a  freira  o  visse,  esfriava  até 
ao  coração.  O  único  a  quem  o  rasgo  de  auctori- 
dade  da  abbadeça  não  alterou  foi  ojesuita,  a  quem 
a  seta  era  apontada ;  apenas  um  sorriso  amargo 
e  desprezador  lhe  fugiu  pelos  beiços ,  encres- 
pando levemente  os  cantos  da  bocca.  Revestido 
logo  de  ar  severo,  e  tornando  a  estatura  erecta 
de  um  só  movimento  cheio  de  magestade ,  não 
precisou  senão  de  levantar  para  ella  os  olhos  para 
lhe  abater  a  soberba,  e  a  confundir  na  vaidade. 
É  verdade ,  que  a  chamma  que  luziu  nos  olhos 
do  padre  brilhava  tão  viva ;  é  certo  que  o  gesto^ 
de  que  a  acompanhou  era  tão  firme  e  tão  pode- 
roso ,  que  o  próprio  parente  de  Cecilia ,  pouco 
aíFeito  a  deixar-se  dominar,  não  soube  encubrir 
as  suas  sensações,  e  recuou  involuntariamente. 
Entretanto  nem  um  dos  músculos  da  face  do 
jesuita  se  descompoz  com  a  ira,  se  ira  havia 
nelle ;  nem  uma  só  nota  acre  ou  resentida  lhe 
tremeu  na  voz ;  somente,  por  eíFeito  natural  do 
sentimento  da  superioridade,  a  sua  voz  lenta 
encheu  o  aposento ,  sahindo  vibrante ,  e  accen- 
tuada  da  bocca  do  filho  de  Santo  Ignacio.  Âpro- 
ximava-se  mais  do  timbre  metálico  do  sermão ; 


Digitized  by  VjOOQIC 


DE  D.   JDAO   V.  173 

mas  não  reyia  a  menor  expressão  de  cholera ,  ou 
de  paixão.  Era  fria ,  pausada ,  e  grave  como  de 
costume. 

—  «Cecilia  —  disse  elle  com  a  maior  sereni- 
dade —  pôde  ouvir  e  responder.  Esteja  em  quanto 
lhe  fòr  preciso;  e  prohibo-lhe  que  deixe  esto 
quarto  sem  minha  venía.  Falle  sem  temor,  a 
esta  janella,  que  ha  de  ter  muito  que  dizer  e 
que  sdber  l . . .  Não  lhe  recommendo  modéstia  e 
eircumspecç&o,  porque  lhe  foço  justiça.  Não  ignora 
o  que  deve  a  si  e  a  esta  casa.  É  quanto  basta.  )> 

—  fc  V.  Paternidade  esquece  que  eu  estou  aqui, 
ott  julga  que  já  não  sou  a  prelada  deste  con- 
vento? )í  —  atalhou  a  abbadeça  verde  de  orgu- 
lho, e  de  desesperação. 

—  «  Eu  já  lhe  perguntei  alguma  coisa , ,  ma- 
dre abbadeça?  Ou  essa  interrogação  imprópria 
involve  a  temeridade  e  a  desobediência  de  que- 
rer pedir-me  contas  ?  Ora  bem !  Espero  no  Se- 
nhor que  a  soberba  e  a  rebellião  não  achem 
guarida  nesta  santa  casa ;  mas  se  por  desgraça 
se  introduziram  aqui ,  temos  na  igreja  de  Deus 
o  remédio. . .  por  mais  altas  e  seguras ,  que  se 
julguem.  Vamos,  querida  irmã,  já  Ih^o  disse, 
pouco  posso  demorar-me.  » 

Balbuciante  e  tremula  a  a|)badeça  seguiu  o 
padre  visitador  em  um  estado ,   que  fazia  com- 


Digitized  by  VjOOQIC 


174  A  MOaDADE 

cesse  soBre  cr  séti  dotttettfo  ^  attiiátfe  4e  iigc^. 
Aonde  ha  vontade  e  poder  a  occasíão  nírif  Mta^y 
e  a  sua  consciência  acciwava-a  de  gravés  negligen- 
cias em  mais  de  um  ponto.  Decidiu-se,  portanto, 
a  evitar  segundb  confRcto ,  e  a  détorar  este  hkí- 
milhaç9o,  como  aviso  salutar,  embora  losse  ermar* 
goso.  Da  Stta  pairtef  o^  jfesufto,  saflsfeitô^  dh^  y^dkh 
ria ,  ou  fezendo  poueo  ca^ò  délFa  ,*  voltotr  hgtf  ff 
èoçntú ,  quer  lhe  êra  haftituall  Obtftte  d*  ffitt*,  e^ 
dada  a  demonstràçãb  precisa ,  entendia  ò^flÚh-^ 
mente  que  o  meio  dte'  (íolher  ás  rantageiír  ií5o 
consiste  em  apettaií  ãb  mái^o^ai^.  fbi  pdf  isèty 
que  os  dois  reKgiosoíT  se  retiraram'  ao  cubilb-  dtf 
primeira  janella ,  deixando  em  plena  Itberdsíde^ 
a  filhff  de  FiKppe  dà  Grài»  e  o  sf^u  atnántèf,  que 
seguinda  o  «onseffio  A)  padre  yenttira^  se  redõú 
Iheram  ao  v9o ,  aonde  podiam  éster  sefn,  sttàft* 
vistos  nem  «uvidòs:  A  aftbadeça'  e  o  jèíáriUtodéSíí-^ 
âppareceram  logo  no  recanto  profecfor',  que  c»*' 
separava  completamtenté  da  educanda  e  do  itott-* 
cebo. 


Digitized  by  VjOOQIC 


fMtn     .Vf"}"^    '■'■"''^'^■'     "■>*    '^Mmé^^m^n    tij^Vin' 


cAmxszo  X. 


ÊCai  £.  SMlH^it 


)f9im^  o;  itf8»i0^  aèíaiilotMè  e  recuou;  quiií 

gMi-4hd  ifHM  cK  4orftção;  a  «hm  eimoreeia  nM 
olhos,  e  a  yoz  gemia  nos  lábios  em  murntorioi 
teroos;  Hor  m^§e  da  oMrmoçto  afocHiMHSid  mi  si- 
leam^e  ouihmi  d&  beèjofii  o»  dedo»  fOSado^^  qtlc^ 
o  lefaidwilii'  ktandfliMBttto^  trmimidot  èò  f râsnr 
eiHvQ  OS  seos,  fM  se  Um  ítíusnàò  fittafo^  otnadoss 
em  os  êf^ítBBT. 

HieadoiwwHi  com  a  nisto,  m.  ^héf «  pritsc^' 
era  doqaente  mm  itieífitice.  A  dott^ta,  ao^sò^ 


Digitized  by  VjOOQIC 


176  A   MOCIDADE 

bresaltodo  amante,  gosara  o  seu  tríumpho.  Sea- 
tindo-se  arrebatar  em  radiosa  agHa^,  pel» 
suas  contava  as  pulsações  do  coração  ^  que  batia 
alvoroçado  como  o  delia ,  ambos  abrazados  na 
chamma ,  que  arde  tanto ,  se  é  viva  e  vem  de 
dentro. 

O  seu  nome,  que  na  bocca  do  mancebo  era 
apenas  estremecido  por  um  suspiro ,  chegava-lhe 
aos  ouvidos,  como  suave  exhalaçfto,  em  uma 
nota  divina  desse  cântico ,  qae  o  coração  em  ju- 
bilo só  entoa  pelo  amor.  Inclinada  e  timida^ 
Cecilia  não  sabia  de  palavras,  que  exprimissent 
o  seu  enlevo.  Ao  pé  de  si  tínba  o  amante;  ro- 
çavam pelos  delle  os  seus  cabellos ;  aquelles  olbos^ 
reviam  a  sua  imagem ;  aquelle  espirito  não  via 
outra  lux.  ^ . .  A  donzella  desfall^cida  de  ternura ; 
com  as  mãos  a  conter  o  seio  palpitante ;  com  0 
doce  nome  nos  lábios ,  cedeu  ao  tremor  eléctrico 
da  paixão ,  e  deixou  fugir  a  alma  atraz  das  il- 
lusoes. 

Espirando  angélica  doçura ,  a  sua  vista  apa- 
gava-se  a  medo  na  sombra  das  assedadas  pesta- 
nas;  e  em  delíquio  pensativo ,  ora  fugia  de  si 
mesma  entre  o  veu  das  pálpebras  descabidas; 
ora  accesa  de  repente,  illuminava-se  raiando  cheia 
de  brilho  e  de  poder.  Os  beiços  abriam-se,  como 
o  botão  abre  a  flor ;  e  perfumados  da  fragantia 


Digitized  by  VjOOQIC 


M  B.  JÕAO  V.  177 

da  inâocencia^  entre  sorrisos  voavam  a  colber 
os  suspiros  do  mancebo.  Nas  faces  a  côr  a  avi- 
var e  a  sumir-se ;  na  vista  os  desejos  castos  a 
esconder-se  e  a  apparecer ;  na  bocca  o  amor 
brincando  no  meio  de  rosaS'  e  mbins.  .  .  .  Que 
fascinante  enlevo ! 

Aquelles  cartos  momentos  viram  em  rapto 
sublime  o  coração  de  um  fundir-se  no  coraçio 
do  outro ;  a  vista  embeber-se  na  vista ;  e  uni- 
dos em  espírito  serem  a  mesma  alma «  o  mesmo 
fogo,  uma  só  paixSo. 

Era  admirável  a  expressão  que  dava  ao  rosto 
o  enlace  de  duas  almas  extremosas,  felizes  de 
({oanta  ventura  se  pôde  gozar  no  mundo.  Com 
a  mão  pendente  e  a  cabeça  inclinada  sobre  o 
coUo ,  Cecília  conao  que  dizia :  ^-  nio  falles !  — 
Deslumbrado  e  vaciUando ,  o  mancdiK) ,  com  os 
olhos  expirantes ,  respondia :  —  adoro-te ! — Pe- 
los beiços  de  ambos  passava  o  ligeiro  frémito, 
que  é  a  melodia  do  affecto ,  quando  trasborda  e 
vem  perder-^  na  palavra  humana,  incapaz  de 
o  traduzir. 

Nos  olhos  de  Cecília  raiou  a  esperança  que 
brilha  uma  vez  na  vida.  As  pupillas  húmidas,  e 
as  palpbbras  languidas,  a  uma  e  uma  deixavam 
fugir  as  lagrimas ,  que  sio  tio  doces  e  amargo- 
sas, se  a  alegria  as  faz  correr,  e  a  saudade  as 

Digitized  by  VjÒOQIC 


178  A   MQCIDADfi 

i«qol|ie  ÔBfQi»  como  peralM  aberta»  ao  túor 
4a  paiiio  t  o  enroladas  palaa  bcef  da  betlosa* 

Qttauto  tempo  estariftm  assim  oalladoi  e  ^n^n- 
vmànào,  mm  e\le^  souberam  9  wm  pôde  di- 
zar^se.  Na  vida  ideal  nio  »^  cootam  as  boref  * 
Somente,  serenado  o  primeiro  impuiso»  nhã- 
ram-sé  outra  vez  9a  terra,  a  deram  o  nkimo 
a  ena  ao  ceu. , 

A  domseUa  delicada,  jÀ  paUida^  jà  pwada, 
emia  da  commoçao  que  a  arrebatava,  O  corpo, 
e  recuava  um  momeuto,  era  para  flexivaJ  e 
ff94^um  se  deteucar  logo  para  o  manceba.  A 
mio  frouxa,  deseièia  nas  rolos  erguidas  para 
a  suster.  Esquecida  e  carinhosa  aqwlla  mio, 
tbesouro  do  amor,  dei^ou-se  prooènr  entre  os 
dedos  eonvidsos  do  amante ,  e  estramaoendo  com 

a  fogo  dos  beijos,  oao  fugiu A  soduoolo 

doa  olhos  o  o  extasis  da  alma ,  espirituaUsando  o 
semblante,  davam  ao  silencio  da  ternura ,  ft  qaaii 
immobtUdade  ebeia  de  delicias,  uoia  oxprsssio 
adorável  ^  que  (ária  em  vista  deUa  paUidaa  e  frias 
as  caricias  mais  ardentes. 

A  booca  do  manc^,  assastada  primaiio,  e 
arrebatada  depoift,  cobria  da  beijos  a  mio  de. 
CoatJâft;  e  mais  andaz  ff^  ãm,  quia  atrever^e 
a  ftttbir  das  mios  ao  rosto.  Bastov  um  muio 
para  a  suspender.  Ao  mdsmo  tas^  a  voz  da 


Digitized  by  VjOOQIC 


BB  D.  joXq  r,  t79 

educanda,  suaipe  e  Tepmadte  da  attraeção  ilM* 
sistivd ,  que  é  o  maior  poder  da  mulher ,  aquella 
voz  infantil  na  frescura,  maviosa  na  doçura^  e 
tão  persuasiya  como  a  paiitão ,  ?eio  pdr  termo  a 
uma  sce&a ,  em  que  ambos  gosa^am  e  padeeíam 
muito.  No  meio  de  um  sorriço,  cuja  ironia  doce 
toda  era  amor,  a  linda  menina  a&stou  de 
leve  o  amante,  com  um  gesto  delicado,  e  in- 
cKnando  a  cabeça  suavemente  para  elle^  excla « 
mou  coni  ceita  lânguidis  oa  falia : 

-><-.«  Ás  santas  nunca  se  beijou  aenão  a  mfto. 
A  bocca  é  para  pedir  a  Deua  pelos  peecadores. » 

f«^«  Olha -*^  exclamou  elle  erguendo  as  mãos 
e  cahindo  em  adorafsllo  «^^  A  alegria  enloá-^ 
qu6ce!  . . .  .Estou  ao  pó  de  ti^  yejo^te^  ^  ^^o 
o  posso  crer  ainda.  Se  soubesses  com  que  sai^ 
iíàe  esperei  este  dia,  e  o  receie  ifue  tive  de 
que  elle  não  chegasse! . . .  Cecília ^  a  felicidade 
imagina-se,  descfa-se^  mas  assim  de  repente  ^  é 
como  a  dôr,  custa  a  supportar.  Dize«-ni6  cpw 
tão  é  BDiiho  I  Pelo  meu  amor  te  peço  i  oompa- 
dece-te  de  mim;  sou  indigno  de  te  vêr:  faemt 
sei , :  ma»  fierdoa«-me;  nie  te  oíbndai ;  nSo^  ou- 
Te«me!  SiJTaHBie!  i> 

•««^  K  Com  tão  poQ^  lé  achas  que  será  possi-* 
TelT-^  acudiu  ella  rrisonlia«  ^^^ingrato  1  Hd  da 
pegaiute  na  mio  e  pd-a  sobre  o  toraçiot  pnra 


Digitized  by  VjOOQIC 


180  A  MOCIDADE 

sentires  que  não  bate  menos  do  que  o  teu !  £01 
que  esperas ,  se  os  blhos  estão  a  vêr ,  e  tu  aão 
acreditas?» 

—  <r>No  teu  amor!  » 

—  «e  É  milagre !  E  não  receias. ...» 

-^  «  O  receio  é  só  de  te  perder. . . .  Creio  em 
ti. . . .  Como  em  mim.  » 

— «  Como  em  ti?  Será  bastante?  » — ata- 
lhou ella ,  maliciosa  na  duvida  que  fingia. 

—  cc  Não !  Creio  como  em  Deus.  » 

—  «  É  demais !  Mas  se  ama»  sem  féé . .  » 

—  «  Sem  ella  eu  não  podia  viver ! 

—  ((  Morre-se  por  tão  pouco  ?  »  —  perguntou 
Cecilia  entre  seria  e  jovial. 

— «  Mor^ ,  se  o  incrédulo  perdeu  a  espe- 
rança toda.  D  —  insinuou  o  mancebo;  e  lendo 
nos  seus  olhos  a  ternura ,  acrescentou :  —  <(  £ 
elle  poderá  salvar-se  ?  » 

— «  Talvez ! . . .  dize-lhe  que  ame  e  creia 
sempre.  » 

—  «  E  promettem  ouvil-o  ?  »  —  acudiu  com 
fiogo. 

—  «  Estariam  ao  pé  delle  se  o  não  ouvissem  ? » 
A  pausa ,  que  interrompeu  o  dialogo ,  nascia 

da  anciedade.  Este  gracejo,  no  estilo  melin- 
droso dos  amores  vulgares ,  era  muito  falso  para 
ccHrresponder  ao  profundo  affecto,  que  os  domi- 


Digitized  by  VjOOQIC 


DE   D.  JOÃO  V.  181 

nava ;  e  ambos  conheciam  que  deviam  aprovei- 
tar a  occasíão.  Entretanto ,  nenhum  tinha  animo 
de  soltar  a  primeira  phrase,  tão  custosa  de  ex- 
pellir  do  coração ,  se  vem  delle ,  e  não  da  bocca , 
os  juramentos ,  que  a  consagram. 

Cecilia,  observando  que  o  mancebo  luctava 
comsigo ,  e  não  se  atrevia  a  fallar ,'  poz  os  olhos 
no  chão ,  e  com  o  rosto  affogueado ,  ousou  ser 
a  primeira  a  declarar  os  sentimentos  da  sua 
alma.  Na  altiva  innocencia ,  tão  segura  que 
nada  receia,  e  adorando  com  a  devoção  exal- 
tada do  amor  virgem,  a  educanda^  pegou  na 
mão  do  amante  e  exclamou  depois  em  voz  tre- 
mula : 

—  «  Callas-te  ?  Queres  que  eu ,  mais  timida , 
antes  de  te  ouvir ,  diga  que  amo  ?  Acredita ,  se 
Dão  o  sentisse  não  te  illudía.  Sou  alegre,  sou 
até  creança ,  como  elles  dizem ,  mas  o  coração 
se  uma  vez  prometteu  nunca  mais  se  esquece.  A 
occasião  em  que  te  vi ,  os  momentos  em  que 
foliámos ,  os  juramentos  que  escrevemos ,  estão 
firmes ;  foram  feitos  diante  de  Deus ,  e  gravei-os 
com  o  sangue  da  minha  alma !  A  ventura ,  ou 
a  desgraça ,  que  posso  esperar ,  entrego-as  nas 
tuas  mãos. ...  O  mundo,  se  me  escutasse,  ac- 
cusava-me :  é  mal  feito ,  bem  sei :  uma  donzella , 
que  se  estima ,  não  diz  de  repente  a  um  homem 


Digitized  by  VjOOQIC 


183  A  UQCIDADE 

O  que  eu  estou  aqui  disendo.  Mas  sAcs !  O  re- 
cato é  dt  alma ;  e  para  me  guardar,  é  de  mm 
o  meu  amor  e  a  tua  bonra.  Confio  em  U !  7  Se 
abusasse!,  vés !  despresara^te ,  e  quando  se  des^ 
presa. ...  o  amor  caUu  e  vão  tem  virtude ;  ta 
e  eu  somos  incapazes  de  Ibe  darnoies  essa  morte , 
não  é  assim!  » 

Elle  corou  e  esbpemeeeu  ouyindo  esta  confia- 
sio  ingénua.  Bm  quanto  Ceciiia  fallavtt ,  contem- 
plou--a  perdido  no  enlevo ,  que  é  a  declaiaçio 
aais  lisonjeira.  Depois ,  ás  ultimas  piírases ,  em 
que  o  rosto  da  sua  amante  era  uma  rosa  no  cnr* 
mim  e  os  olhos  affectoosos  ibe  penetravam  o  co*- 
ração ,  tornou  a  ajoelhar  e  com  respeitosa  ter* 
Biprà  exclamou : 

---K Fiaste  na  minha  honra!  Se  a  bocca  t^o 
não  sabe  dizer ,  pergunta  ao  coração ,  que  16  m 
meu ,  e  elle. . .  )> 

*-*«  Responderá  por  ti  ?  a -***  aeudiu  a  edu- 
canda sorrindo  com  malicia  —  «  Mas  o  que  lhe 
bei  de  eu  perguntar,  se  elle  é  mudo,  ae  nio 
falia?  Sabes  o  que  jurava,  sem  ^  meu  espe- 
lho ?  Que  tão  feia  nasci ,  Deus  me  não  castigue ! 
que  até  a  lisonja  se  não  atreve  a  enganarnne.  » 

—  a  Porque  és  bella  de  mais ,  porque  lia  nai 
teus  olhos  a  pureza  de  um  anjo ,  é  que  os  pec- 
cadores  não  ousam  levantar  a  vista. » 


Digitized  by  VjOOQIC 


DE  D.  JOÃO  V.  183 

-^  «  EDgAoattiHse !  Sou  miiUwr  e  deprate  desço 
do  altar. . .  n  -^  atallum  Cecilia ,  obrigando  o 
mancebo  a  ei^uer  o  joettu>  do  chSo.  —  «Va- 
vam  l  ^^  prosaguiit  impaciente  -^  disseste-me  que 
Ytnha^y  e. . . » 

-*-  a  E  vim  }aFar*te  que  és  a  tui  da  minha 
vida«  e  lâo  digo  ametade  do  qtie  sinto!  Tent 
razão;  aMi  um  incvedalo^  um  posillanimel  Es- 
tremepo^te^  e  callo*me  e  perturbo^me,  quando 
o  eoraffio  está  a  estalar  no  peito,  e  a  alma  não 
pôde  já  com  a  Micidade. . .  Cecilia ,  boje  sei :  o 
amor  é  só  mna  ve2  na  Tida.  Se  adivinhasses  eom 
qifto  saudade  te  íaHo  na  ausência ;  a  magna  com 
te  chanto ;  e  o  jubilo  que  me  alvoroça  se  onço 
o  teu  nome^  o  tea  doee  nome  . «.  E  a^ra,  ?te ! 
tmno  como  uma  oreança ;  affbga*se*me  o  cora- 
ção ;  e  nSo  posso,  não  sei  senão  deitar^meaosteu^ 
pá»  repetindo  até  que  tats  acredites: — amo-te, 
adoto4e,  e  é  a  primeira  vez  que. amo  1  Cecilia, 
juro.pek  nassa  esperança ^  ainda  mulher  ne- 
ihoma  foi  mais  querida  do  que  tn.  Eu  que  não 
devo  inclinar  a  cabeça  seiião  a  Deus ,  que  não 
ajoelho  senão  a  Christo,  olha  estou  prostrado,  e 
deixo  onrrer  j»  lagrimas  s<dire  as  taas  mãos. . . 
Diie y  anjo  do  meu  amor,  estes  olhos  chorosos , 
este  coração  tremenle ,  não  o  attestam  nsais  do 
que  juramento»  e  promessas  ?  » 


Digitized  by  VjOOQIC 


184  A   MOCIDADE 

—  «  Neste  instante ;  agora  1  Atteode*me,  Jíofo. 
Tenho  medo  de  tanta  felicidade.  Sempre  me  dis- 
seram que  muita  ventura  de  repente  era  indicio 
de  desgraça.  Sou  fraca ,  sou  mulher ,  e  tremo 
que  o  amor  que  é  a  minha  luz  se  apague ,  nto 
sei  por  que  mãos ,  nem  de  què  modo.  Tenho 
medo! . .  E  é  tão  forte  que  me  tira  a  alegria , 
e  ás  veses  o  coracSo  fica  negro  de  tristeza. » 

—  «  Que  loucura !  —  acudiu  elle,  pegando-lhe 
na  mão.  —  Não  tenhas  receio  senão  da  morte  : 
porque  só  morto  deixarei  de  amar-te. » 

—  a  E  o  tempo ,  João  ?  Nunca  ouviste ,  que 
assim  como  nas  flores  a  fragrância  dura  pouco, 
o  amor  dos  homens  é  .curto  è  facil  de  mur* 
char?. .  O  mundo,  aa  armas,  outras  paixdea 
consolam-D^os  depressa;  mas  nós,  coitiHkis,  nto 
temos  seiâo  memorias  e  saudades. .  •  Desculpa ! 
Não  jures ,  não  digas  nada !  Para  què  ?  bem  sei : 
estes  instantes,  o  dia  de  hoje,  o  de  amanhã  , 
são  ineus  ainda,  mas  depois?. .  .  é  o  méu  re- 
ceio ,  o  meu  presentimento.  Rainha,  dava-te  uma 
coroa ;  simples  donzella ,  não  tendo  fidalguia  nem 
thesouros,  dei-te  quanto  possuia  de  precioso:  a 
alma ,  o  coração ,  toda  a  ventura  que  posso.  . .  vi- 
ver. . .  comtigo. .  .  não  tinha  senão  isto ;  entre- 
guei-to! . .  .  Que  mais  queres  que  sacrifique?» 

—  «  Cecilia !  E  reinar  sobre  esse  coração ,  é 


Digitized  by  VjOOQIC 


DE  D.  JOÃO  V.  185 

pequena  glorta  ?  Porque  choras  ?  Duvidas  de 
mim  ?  » 

—  «Não.  Creio  de  mais:  é  o  meu  temm*. 
Jn^s  que  vivia  se  me  tu  faltasses?  O  dia  em 
que  vir  morta  nos  teus  olhos  a  minha  esperança , 
a  hora  em  que  o  coraçdo,  procurando  o  teu ,  o 
i^o  achar ,  acredita-me ,  Joio ,  é  o  diâ  e  a  hora 
em  que  morreu  a  tua  Cecilia.  y> 

—  <c  Sc^  elle  também  o  ultimo  da  minha  vida ! 
Não ,  anjo  da  minha  alma ,  socega.  Em  quanto 
respirar  não  existo  senão  para  ti. . .  Esses  bellos 
olhos  estão  tristes  e  chorosos  ?  Quero-os  firmes  no 
império  que  lhes  dei. . .  lagrimas ,  e  estamos  jun- 
tos! ...  O  que  farás  enUlo  na  ausência  ?  Vamos ; 
uma  bocca ,  que  o  amor  formoa  em  um  sorriso , 
hei  de  vel--a  seria  e  pensativa? . . .  Cecilia ,  Ce- 
ciiia ,  não  vés  que  a  minha  alma  suspira  nos  tais 
Idiios,  e  que  o  meu  coração  geme  com  o  teu  si-- 
lencio?  » 

Ella  ouvia-o  com  jubilo.  Alva  e  trem^te  a 
tcíão  sem  fugir  deixava-se  det^pela  do  mancebo, 
nos  olhos  do  qual  ardiam  mil  carícias.  A  vista , 
cheia  de  ternura ,  quebrava  os  raios  languidos 
em  doces  lagrimas,  que  aveludando-lhe  o  bri- 
lho ,  a  faziam  extasiar  eléctrica  e  fascinante.^  A 
cabeça  descahia  frouxa  e  negligente  sobre  o  coUo , 
como  se  inclina  ao  sol  a  íflor  consumida.  . . 


Digitized  by  CjOOQIC 


1^  A  .MOCIDADE 

De  repente,  escutando  m  ultímas  {Milarras  do 
mancebo ,  tremeu-lhe  nos  beiços  um  suspin> ;  a 
yiata  iaztlou;  e  um  sormo  indefinível  encheu  de 
espirituosa  anímaçSo  o  rosfeo ,  em  que  as  cotei) 
da  esperança  renasciam  ditosas.  Neste  momento 
esqueceu  tudo.  Um  dos  braços ,  em  coUar  deli-* 
cioso  9  cingia  o  corpo  do  amante  ^  apertmdo-lhe 
o  coração  contra  o  seu , .  que  não  palpitara  me- 
nos apressado ;  e  com  a  face  unida  á  diette,  e  os 
olhos  perdidos  nos  seus  olhos,  inclioouHie  tanto, 
que  o  haMto  suspirara  sot^re  a  respiração  ardente 
do  mancebo.  Depois  cheia  de  pejo ,  eseairlate  ds 
pudor,  fagitt,  hesitoi»,  e  voltando  en,  um  im** 
peto  irresiatvvei ,  pousoihjfae  a  booca  ligeira'* 
mente  na  fronte. 

O  fogo,  a  flor  de  um  beijo,  peísson  de  lereâ 
fiii  eirtremeoer  a  alma  do  amante ,  ({ue  voou  aios 
lábios  a  absorver  o  perfume,  e  gozar  a.doíçuniw 
O  que  ambos  sentiram,  a  pureza  deste. oacdo 
em  que  desmaia-  o  amor  virgem ,  só  pede  apre^ 
cntlK)  quem  nas  anciãs  deste  martpio,  tão  cnid 
e  tãosnave,  aprendeu  a  conhece  quanto  eile 
doe ,  e  se  deseja. 

Apenas  a  eacpbsão  do  aíFecto  assereDou  «m 
pouco,  Cecilia  envei^onhada  escondeu  o  rosto 
entre  as  mãos ;  e  a8  li^rimaa  soltas  e-abrasadas 
gotejaram  uma  atraz  èk  outra.  De  jodhos-^  raan- 


Digitized  by  VjOOQIC 


OB  B.  Hão  V.  187 

téhOf  beij«m-Uie  o»  deão»  eonvulsoif  e  entre 
meiguiced  e  estremiM»  foFeej^va  por  Ibe  descobrir 
00  lindos  olboft^  tpm  o  pegar  tomava  tilo  perigo* 
99B^  Asúm  decorreram  minutos,  até.  que  eUa 
pallida  da  lucta  interior^  e  endiagando  o  pranto^ 
kiftt&toii  a  cabefa,  ^iizendo  com  tristeza : 

--^«Foi  um»  fraqueta,  JoSo;  nSo  oie  des- 
pnstes  I .  •  •  )^ 

-*-  <x  Despresar-te  ?  1 « .  •  quando  te  ddknro^,  o 
me  fases,  o  mais  felisi  dos  homens.  » 

<^-*^  d  O  temp«k  é  precioso. . .  ouve^me.  Meu 
pae  está  ¥tvo^  ebegou  hontem.  Em  dois  dias  vou 
sdiír  do  eon¥6nlo>  aonde  odbi  as  doces  e  eter^ 
nas  memorias  da  minha  vida.  Se  não  toraar  a 
vèr-^te,  eite  aunei  è  para  te  lembrares  de  mim. «  ; 
Promettes  q^ ,  uma  vea  mv  dta  ao  m^ios « 
olhando  para  elte,  darás  ima  saudade,  umdi 
lenbranoa  è  toa  Ceciita  ?  a 

E  passourlfae  no  dedo  uma  <x  memori))  »  cuja 
brilfarâte  sapfaâra  era  pura  e  azul  como  o  eeu 
que  os  escutava. 

—  «  Acceito !  ~  eiíclamo«.  elle  com  fervor.  -— 
Será  o  símbolo  da  nossa  uniSo,  JuíTo  diante  de 
Deus  nao  receber  outra  miilhef ,  em  quanto  qui* 
zeres  ser  minha ;  e  solnre  a  mi«ha  alma  e  a  mi- 
nha honra  protesto  antes  HMxnrer  do  que  não 
eumpiír ..  >> 


Digitized  by  VjOOQIC 


18B  A   MOCIDADE 

—  (( Olha  —  respondeu  CeciKa  ccfm  suavidade 
—  o  futuro  nfto  sei ,  mas  sinto  que  talvez  estas 
sejam  as  ultimas  horas  de  felicidade. . .  Amo-te, 
^  João  I . . .  Amo-t€  como  nSo  posso  amar  outra 
vez ;  e  digo-f  o ;  nSo  tenho  pejo ;  nSo  me  enver- 
gonho. Seguir-te-hei  a  toda  a  parte;  a  minha 
alma  és  tu,  e  longe  de  ti  n&o  vivo.  Se  me  cha- 
mares 9  ouvirei  aonde  quer  que  esteja ;  e  cheia 
de  orgulho ,  radiosa  de  jubilo ,  hei  de  vir ,  e  ao 
pé  de  ti ,  e  juntos ,  a  tua  alegria  será  a  minha ; 
a  tua  dòr  consolar*se-ha  no  meu  seio ;  compa- 
nheira inseparável  achar-me^has  sempre  unida  á 
tua  vida. . .  em  tudo. . .  Sabes  o  poder  que  tens 
sobre  mim ;  de  que  servia  negal-o  ?  Quando  o 
amor  é  assim ,  o  coraçSo  de  um  vé  tudo  no  co- 
ração do  outro.  Em  paga  do  affecto  de  minha 
irmã ,'  e  do  extremo  de  minha  mãe ;  pelo  res- 
peito de  meu  pae ,  por  quanto  estremeço ,  por 
quanto  posso  sacrificar ;  não  peço  senão  amor,  o 
teu  amor ,  que  é  a  única  existência  que  hei  de 
viver. . .  Pela  terniu^a  dos  que  mais  estimas,  pelo 
carinho  destes  instantes ,  não  me  enganes  I  Ju- 
ra-me,  que  a  tua  Gecilia,  perdendo  tudo,  achará 
o  amor  por  que  suspira !  Vês  tu  1  >  sem  elle  não 
respiro ,  e  o  remorso  será  o  teu  castigo  I  x> 

E  meia  ajoelhada,  o  pranto  corria,  os  soluços 
estalavam ,  e  convulsas  as  suas  mãos  apertavam 


Digitized  by  VjOOQIC 


DB  D.  JOÃO  V.  189 

anciosas  as,  do  mancebo.  A  eloquência  do  gesto 
e  a  express&o  dos  olhos  era  quasi  divina.  Elle 
erguía-a  com  ternura ;  adorava-a  com  suspiros ; 
e  arrastado  aos  seus  pés,  repetia  com  fervor: 

—  «  Amo-te ,  adoro-te !  Quem  não  te  ha  de 
amar  ?  » 

—  <c  Serás  fiel  ?  » 

—  «Sempre!  » 

—  «  Não  amas  outra  ?  » 

—  «  Ninguém  te  iguala !  » 

—  «  Serás  meu ,  só  meu,  como  eu  sou  tua  ?  » 

—  «  Cecília ,  Cecília !  Não  vês  que  tanta  ale- 
gria mata  1  Ahres-me  o  ceu ,  e  não  reparas  que 
nos  esperam  as  saudades  ?  » 

—  «A  saudade  também  CQnsola.  Quando  penso 
em  ti  a  minha  alma  vive.  Diísi^te  que  amava  e 
o  meu  amor  é  assim.  Já  te  perguntei  quem  eras  ? 
Nunca';  porque  o  coração  te  conhece  l  Mas  ha 
um  segredo  que  me  occultas.  Porque  não  decla- 
ras o  teu  nome  ?  Meu  igual ,  quem  te  impede  ? 
Meu  inferior ,  eu  descerei. « .  » 

—  QcE  fidalgo,  e  grande?»  —  atalhou  elle 
com  um  sorriso. 

—  «  Subiria  eu  para  te  encontoar.  n 

—  a  Não,  querida,  eu  é  que  preciso  subir  para 
te  igualar. .  .  Rainha  davas-me  a  corda ;  juro  que 
se  desejo  um  tbronó,  é  pura  te  assentarei  nelle. 


Digitized  by  VjOOQIC 


i90  A   MOaOADB 

Um  dos  meus. .  •  um  dos  hcmnm  reis,  D^  Pedio 
que  chamam  o  Crud,  não  coroou  rainha  a  linda 
Ignez?  Senhora  do  meu  coração,  qaem  diria 
que  um  império  é  muito  pelo  teu  sorriso?» 

—  a  Lisonja !  os  reis  querem  liberdade  ,*  e  o 
amor  é  escravidão.  » 

—  c<  Em  que  são  de  rosas  as  cadeias  ?  Vés , 
a  poesia  segue-te ;  és  a  bella  musa  deate  sitio. .  . 
Olha,  Gecilia,  sabes  o  que  lhes  falta  a  elies, 
aos  príncipes  ?  É  quem  os  queira  por  amor.  Fe- 
liz daquelle  qm  foi  amante  antes  de  ser  rei !  o 

—  «  Mas  responde !  Quem  és  ?  » 

— a  Um  homem  que  desejava  ser  Deus  para 
viver  comtigo  eternamente.  » 

—  E  que  não  é  rei ,  ainda  que  tenha  os  me- 
recimentos ?  —  accrescentou  ella ,  sorrindo  com 
malícia. —*Dize 5  e  conde  és?  » 

— «  Não«  Mas  os  condes. . . .  »  ' 
— «  Valem  menos.  Queres  que  diga?.De8e^ 
java-te  grande  fidalgo.  Gomo  haviam  de  cair 
bem  as  gallas  da  corte  em  tão  airoso  corpo !  — , 
proseguiu  Cecília ,  admirando^  com  innoeente 
desvanecimento -r—E  os  bordados  e  os  diamantes 
que  bonitos  ficavam  ornando  esse  peito  que  é 
tão  nobre  * . . .  Olha ,  eU  fisna-te  rei ,  se  fosse 
Deus ! »  .      . 

—  (<  Querida ,  —  acvdiu  o  mancebo  um  pouco 


Digitized  by  VjOOQiC 


M  D.  JOXO  V.  Í9ti 

perplexo^-^a  yerdt^ra  galle  de  iim.cavallmro 
é  a  aspada !  n 

•*-^«  £  teu  pae  como  se  cháina?  n 

-«■,«  Pedro !  » 

^—  «  E  o  teu  nome  todo !  » 

•~«  D.  João  de  Villa  Viceja,  n 

^K  Então  âi  fidalgo?  y>  • 

^»^n  Sou.  » 

—  «  És  titular?  » 

-^ii  Na  fomília,  de  que  descendo,  o  titulo 
é  o  direito;  e  tem  custado  caro.  » 

—«És  militar?  » 

— ^íiO&  fidalgos  portugueies,  Cedlia,  nach 
tmí  soldados.  )» 

— «  £  as^im  como  sou  querethme  ,  amai- 
me?  Detisas  por  mim  as  damas,  as  fidalgas?  i> 

*-^  K  Anjo  da  minha  alma »  por  ti  deixara  a 
^incesa  mais  põd^sa.  » 

— :«  D.  João  —  exclamou  dia  com  enthi^ 
m^o  -*^  pobre,  amaYa«-te  I  Mecbameo,  ad^aya- 
ta !  Sem  parentes  nem  riqueza ,  quma-^te  com 
igual  estremo.  O  meu  amor  te  serviria  de  pae, 
;de  fortuna ,  e  de  nobreza.  »  .  . 

— ** «  £  eu ,  Cecília ,  pela  ahna  de  minha  mSe 
protesto,  que  por  ti  esquecerei  família,  poder, 
e  gmndeza ,  se. . . .  » 

—  i<  Se  Deus  não  ordenasse  que  respeitasse- 


Digitized  by  VjOOQIC 


192  A    MOCIDADE 

mos  em  nossos  pães  a  imagem  do  Creador ! » -^ 
disse  ama  voz  grave  atraz  delles.  VirouHse  e 
achou  o  padre  Ventura.  Na  luz  dúbia  do  ere- 
pusculo  apparecia  já  de  longe  o  habito  da  ab- 
badeça ,  recolhendo-se  ao  oratório. 

—  «  Padre ,  cuidei  que  estava  só !  —  excla- 
mou o  mancebo  no  mesmo  tom ,  e  com  espirito 
igual  ao  de  Luiz  XIV,  dizendo:  —  «SenhMnres, 
El-rei  esperou !  »  , 

—  «  É  só  esteve  —  replicou  o  jesuita  serena- 
mente—  Apenas  ouvi  as  ultimas  palavras,  e 
essas  não  diziam  nada ,  porque  n%o  quero  crer 
que  dissessem  muito. .  . .  Entenda ,  Gedliit ,  seu 
primo  tem  deveres  pesados.  Roguemos  a  DeiEK 
que  o  auxilie  para  elle  os  desempenhar  com 
gloria.  Se  o  ama,  segundo  o  século,  pôde  contar 
com  o  seu  coração ;  não  conte  com  mais  nada.  » 

—  a  E  que  mais  posso  desejar?  »— resp<MH 
^u  ella  singelamente. 

—  c(  Conforme !  Ás  vezes ,  ignorando  o  yalor 
das  coisas,  damos  de  graça  grandes  thesoiros> 
e  sabendo  depois  arrependemo-nos  s^  reme^ 

dio Mas  isto  são  horas  de  sair.  Repito : 

seu  primo  tem  deveres ;  e  estou  certo  que  em 
poucos  dias  elle  mesmo  dirá. ...  d 

—  «  Padre !  »  —  gritou  o  mancebo  mordaido 
os  b^os. 


Digitized  by  VjOOQIC 


Ds  B.  JOÃO  r.  193 

'—«O  meu  nome  é  JuHo  Ventura!  —  acu- 
«liu- o  jesuttà  oppondo  esta  observação  cortez  á 
exclamação  quasi  inciyíl  do  mancebo :  —  seu 
primo — proseguiu  virando-se  inalterável  para 
«  donzeHa , — foi  sempre  bom  e  justo.  Sabe  que 
o  sangue  que  Ibe  corre  nas  veias  é  do  mais  il- 
lust^e,  e  conhece  que  um  fidalgo  portuguez  é  o 
symbolo  da  honra. .  . .  Isto  bem  considerado  ha 
de  inspirar-lhe  uma  resolução  virtuosa  ^  digna 
delle  9  e  em  harmonia  com  as  suas  obrigações. »» 

—  «Se  V.  Paternidade  sabe  a  quem  falia, 
aoonsdlho-o  a  que  não  contiuMd  » • —  interrompeu 
o  laancebo  com  modos  rmp^iosos.  O  padre  sor- 
riu-«e ;  e  no  mesmo  tom  natural ,  continuou : 

-r-  «  Aconselha  mal ,  é  o  que  faz.  Na  Com- 
panhia ,  ba  de  saber ,  costumam  experimentar- 
DOS  desde  noviços  para  todos  os  lances  e  traba*- 
Ihos. . . .  Quem  prega  na  America,  na  China, 
e  nõ  Japão ,  conhece  ao  que  se  expõe ;  sabe  que 
pôde  morrer  pela  verdade ;  comtudo  isso,  o  Evan- 
gelho chegou  pela  nossa  bocca  ás  regiões  mais 
barbaras;  e  a  cruz  arvomda  por  nós  e  regada 
pelo  sangue  dos.  nossos  martyres  está  de  pé  e 
floresce. . . .  Cuidei  que  lhe  tinham  ensinado 
isto.  h 

—  «Sei  tudo  o  que  me  diz!  —  accudiu  o 
mancebo  um  pouco  humilhado  da  lição  —  mas 

13  * 


Digitized  by  CjOOQIC 


194  A   MMaDADI 

O  serviço  de  Deus  fião  tem  nadbi  com  •  que-  es- 
tava tractando,  quando  Y.  Paternidade  me  in- 
terrompeu indiscretamente,  i» 

— a  Tem  tudo;  á  censura  é  injieta.  A  sua 
conversação  nfio  podia  dmrar;  e  ha  promessas 
tombarias  a  que  é  prudente  valer  a  tempo .... 
Diga-me :  era  melhor  que  viesse  a  abbadeça  em 
meu  logar ,  e  ouvisse? . , .  » 

■—  «  Pois  ella  havia  de  atrever-se  ?  . . .  » 
-— «  Â  separar  doas  primos?  Ê  simples.  Fa- 
zia o  seu  dever.  Sejamos  rascáveis.  O  que  lhe 
disse ,  Cecília ,  é  exacto.  Seu  primo  tem  grana- 
dos obrigações  a  cumprir.  Fidalgo,  a  sua  honra 
é  sagradb :  portuguez ,  ámanhft ,  hoje  mesmo , 
pôde  s&r  chamado  ôs  armas,  e  ha  de  ir. .  . ; )» 

—  c<  Hei  de  ir ,  padre  ?  Ás  ordens  de  quem  ?  d 
— clamou  o  amante  de  Gecilia  cheio  de  orgu- 
lho e  de  cholera. 

—  «  Ás  de  El-rei  e  da  sua  pátria  julgo  eu. . . 
Creio  que  obedecerá  a  ambos.  » 

—  a  Mas  isso  tudo'  o  que  tem  com  o  ndsso 
amor?» — perguntou  com  timidez  a  donzetta. 

— «  Muito  ou  nada ,  filha.  Se  nos  limitar- 
mos  ao  estado,  em  que  nascemos,  a  nuvem 
passa  por  cima  e  não  nos  toca.  Se  nos  exceder- 
mos ,  pôde  acontecer  que  nos  alcance.  O  raio 
procura  mais  as  emincaeias.  Deixemos,  poiéA, 


Digitized  by  VjOOQIC 


DE  D.   JOÃO  V.  195 

M  rilègDfiae*  QnBf  saèèv  éo  tem  dereres  feaa- 
do»,  seB«piriiiK)r3  Vept!» 

E  tirando  «m  carta  4o>  aoio^  catoegoa*^  fria- 
HMitir  ao  naimba^ Este  apenaslea  o  sokcpipto 
sobresaltou-se,.  e  <Mniièo  ptra  o  jesaika  menof 
arme  do  qoe  antes*,,  perguntota : 

— <(Quem  lhe  deu  esta  casl»}» 

'-^c  A  pessoa  qm  9  escrmem. » 

—  «Ent3o  8d)e?. .  .w 

-*-^  «Tudo»  O'  qur  m&  dímni;^ » 

D.  João  abriu  a  carta  e  leu-a  agitado.  De  re- 
pente fez-se  k^Dcòy  e  dan^  alganMS  volta»  pela 
fasa  com  infieto^  mamummi; 

-^ «  BfsseranF-lhé  Utà»};  Mó  importa..  Co- 
miga  perdem,  pekfarf»  4  qaanda  tfSo  eoisegueih 
pela  brandura.  Veremos  se  este  casarasado'  se  toÉ 
BÕa  quercÉd»  eu ! » 

AÔilflHulo  o  primeiro  accesso,  cbtgaa^e  a-  Cef- 
eiiia  d!  disse^  tora  infinita  termarfei : 

-^orSou  obrí^of  a  salbit.  Esta  caria  èna 
rcdidade  hnportante-s  &  t»mo  di6se  ó'  padre. . . 
Ventura. . .  tenho  deveres  a  cumprir :  mas  socegar 
qfaerida ,  o  priniMo  der  todos  é  amar-te.  Em 
poiHM  dia»  nos  veremmí ;:  bemi  sbIks^,  jAb  poa^a 
com  as  saudades  da  tua  ausência. » 

ist^foèditid  anieia  voa;  apesar dr. pcwcatição 
0  ícsuita  sorriffHie,  ianh?  adíaiite  parar  Itte  akrir 


Digitized  by  VjOOQIC 


196  A   MOfilDADE 

a  porta  da  escada  particular.  Passando  fov  Cecí- 
lia ,  attonita  da  repentina  despedida ,  o  padre  se- 
gredou-lhe  ao  ouvido  estas  palavras  : 

— •  «t  Eu  não4he  dizia  que  seu  primo  tinha  de- 
veres ,  e  que  havia  de  cumpril-os !  » 

Ao  sahir  da  porta  D.  João  olhando  para  elle 
com  attenção,  disse-Ihe: 

—  «  Padre  Ventura ,  fez-me  um  grande  ser- 
viço. Se  houvesse  dois  cavallos !  ?  » 

— «  Esperam  enfreados  no  pateo  do  mos- 
teiro.» 

—  «y.  Paternidade  é  magico?» 

— « Deus  me  livre.  Mas  sabendo  de  que  se 
tractava  preveni  as  coisas.  Acha  que  fiz  mal?» 
■  —  «  Padre  Ventura ,  procure-me.  Preciso  fal- 
lar-lhe  mais  de  vagar. » 

O  jesuita  inclinou-se  profundamente  e  reco- 
Iheu-se  para  o  vfto  da  janella,  deixando  em  li- 
berdade os  dois  amantes.  Vendo  que  o  não  ob< 
sorvavam ,  o  mancebo  ajoelhando  quasi  aos  pés  de 
Cecilia  entregou-lhe  um  pequeno  maço  lacrado , 
dizendo : 

—  «  É  o  meu  retrato.  Lembra-te  com  elle  de 
quem  fica  penando  até  tomar  a  ver-té.  Adens, 
adeus  1  x> 

E  arrancando-se  de  um  impeto  ao  encanto 
que  o  ligava ,  sahiu  precipitadamente.   A  doo- 


Digitized  by  VjOOQIC 


BB  D.  JOÃO  V.  197 

zells ,  mettendo  o  retrato  no  seio ,  pensativa ,  le- 
vantou os  olhos ,  e  achando  callado  ao  pé  de  si 
o  jesuita ,  perguntou-lhe : 

—  «A  carta ,  meu  padre ,  é  de  muito  valor  ?  » 

—  c(  Filha ,  aquella  carta  vale  uma  coroa.  >» 

—  «Então  D.  João  é?. .  .» 

—  «  Mais  baixo ,  de  vagar ! ...  £  um  homem 
que  está  a  receber  a  maior  herança  de  Portugal. » 

£lla  não  'percebendo ,  declinou  a  vista ,  sus- 
pirando ;  e  seguiu  o  padre ,  que  lhe  offereceu  a 
mão  com  amisade  para  a  conduzir  ao  oratório 
da  abbadeça. 


Digitized  by  VjOOQIC 


Digitized  by  VjOOQIC 


CAPITULO  XI. 


MUITA   ftULttA  PABA  NADA ! 


Vamos  á  rua  das  Arcas,  a  casa  de  Lourenço 
TeJles. 

Seriam  oito  horas  da  noite ,  quando  uma  pan- 
cada forte  na  porta  da  rua ,  despertou  da  espé- 
cie de  somnolençjij^,  em  que  ia  cahindo,  toda  a 
família  reunida  ^p  escriptorio  do  Commenda- 
dor. 

O  velho  erudito,  deu  um  suspiro  e  pousou 
o  livro,  que  estava  ruminando.  No  meio  do  so- 
bresalto ,  a  sr.^  Magdalena  da  Gama  deixou  es- 
capar uma  estação  do  seu  ros«*io.  O  abbade 
Silva  pulou  na  cadeira;  e  o  lápis  quebrou-se- 


Digitized  by  VjOOQIC 


200  A   MOCIDADE 

lhe  nas  pregas  do  toucado ,  que  desenhava ;  em 
quanto  Cecília  e  Thereza ,  uma  sentada  a  bor- 
dar ao  pé  da  outra,  levantaram  a  vista  para 
Jasmin,  que  sahiu  do  canto  da  sala  e  a  um 
aceno  de  Lourenço  Telles , .  acudiu  á  escada  ^ 
com  um  castiçal  de  três  braços ,  a  Cm  de  reco- 
nhecer as  visitas. 

Ainda  fora  da  porta,  estas  faziam  já  uma  bulha 
intolerável,  fallando,  e  rindo  estrepitosamente. 

No  reino  animal ,  o  alvoroço  era  igual.  Mi- 
nete  esperguiçou-se ,  apontou  as  orelhas ,  e  cóm 
abrimentos  de  bocca ,  assentou-se  aos  pés  de  seu 
dono  na  conspícua  posiçfio,  que  decidiu  o  ab- 
bade  Casti  a  honrar  os  gatos  com  a  intendência 
da  policia.  O  papagaio  espanejou-se ,  e  entufado 
viròu-se  para  o  abbade  Silva ,  e  chapou-lhe  a 
pergunta,  ensinada  por  Filippe  —  «O  abbade 
quer  chapéu  ?  »  —  escoltada  de  três  risadas  rou- 
cas ,  e  discordes.  A  circumspecta  Minerva ,  que 
presidia  ao  laboratório  do  erudito ,  escandalísada 
fugiu  diante  da  invasão  dos  bárbaros. 

Como  dissemos,  o  Commendador  pousou  o 
livro ,  e  virado  para  o  abbade ,  observou-lhe : 

—  «  Sào  novas  loucuras  de  meu  sobrinho  ,- 
quer  vér  ?  Isto  é  umas  sobre  outras ! » 

—  «  Ouço  vozes  diíFerentes  »  —  respondeu  o 
sábio  archaista. 


Digitized  by  VjOOQIC 


DE  D;   JOÃO  V.  201 

—  a  Medor  túrce  o  nariz  \  »  —  gargarejou  o 
papagaio,  empertigando^e  no  poleiro. 

—  «  Maldito  animal!  y» — rosnou  o  antiquá- 
rio muito  vermelho  da  risadinha  das  meninas ; 
e  oilendido  com  o  presente  de  uma  ameixa  cu- 
berta ,  premio  de  Lourenço  Telles  ao  plumoso 
satyrico. 

—  «  Jasmin !  »  —  exclamou  o  velho  erudito 
com  impaciência. 

Ao  som  da  campainha ,  tocada  com  força  j  o 
escudeiro  appareceu  entre  portas. 

—  «  Quem  fai  tanta  bulha  ?  »  —  perguntou 
9eu  amo. 

—  «  O  sr.  Gapitfio.  » 

— «  Quem  vem  com  Filippe?  » 

—  a  O  sr.  JoSo  dos  Remédios ,  quasi  a  ras- 
tos. ...» 

— «  Fr.  Joio  a  rastos  ?  O  que  me  diz  ?  E  os 
outros  ?  » 

No  encarquilhado  rosto  do  escudeiro  )ia-se 
grande  constrangimento ;  seu  amo  e  toda  a  fa- 
mília viam-no ,  e  por  isso  porfiavam  no  interro- 
gatório. 

—  «  Nâo  conheço  »  —  replicou  Jasmin ,  en- 
colhendo os  hombros. 

•»—  «  Nío  conhece  ?  Quantos  slo ;  também  nío 
sabe  ?  » 


Digitized  by  VjOOQIC 


208  A  KDCIDÀPB 

—  «  Um  só !  »     ' 

—  «  Que  Jãgura  é  ?  • . .  » 

O  escudeiro  torceu-se,  e  deu  á  iuz  a  evasiva 
segumte : 

— «Não  tem  figura  possível !  » 
'  — «i  Ora  essa?  Mas  Jba  de  parecer^ie  a  mn 
homem,  espero  em  Deus.  » 

—  c(  A  um  homem  não  sei,  mas  ao  demó- 
nio ,  parece-me  que  sim.  Pelo  menos  tal  e  qual 
o  pintam  nas  egrejas.  » 

A  lingua  pegava-se-lhe  ã  cada  palavra.  O  ea- 
cudeiro  nunca  fòra  medroso  nem  visionário ;  a 
sua  opinião ,  e  sobre  tudo  o  susto  com.  que  a 
manifestava  causaram ,  portanto ,  profunda  sen- 
sação em  Lourenço  Telles.  O  calafrio,  que  fez 
aninhar  a  familia,  e  o  próprio  abbade,  á  roda  da 
sua  cadeira,  visitou-lhe  também  a  espinha  dorsal. 

Na  véspera  ao  jantar  tinha  ateimado  com  Fi- 
lippe,  que  o  diabo  não  podia  apparecer  em  forma 
visivel ;  e  seu  sobrinho ,  partindo  nozes ,  e  re- 
gando^s  .  de  copiosas  libações  de  excellentd  vi- 
nho, apostara  dobrado  contra  singello,  em  como 
antes  de  quarenta  e  oito  horas  havia  de  conven- 
cer o  tio  sábio.  O  velho  erudito  riu-se  e  citou 
o  varão  tenaz  de  Horácio,  appellando  para  o 
abbade,  que  encolhia  os  hombros  com  n^do  de 
Filippe,   e  bastante  igualmente  da  forma  vi*- 


Digitized  by  VjOOQIC 


^B  B.  .rOAO  y.  2ft3 

sW«e)  do  4aiMiiio.  FmlmeDt^  o  noiao  capitão, 
vendo  fiuas  filhas  muito  riMobaa^  e  .§ua  mulber 
^o^iida^,  6  J«ai9ÍJi  tusaiodo  {lará  eogulir  a  gar- 
^Jhadfi  aac^a »  quto  Ibo  fonuigava  m  garganta , 
levaotiw-se  mbdadot  e  empraioa  os  iocr^u- 
los  pftfH  recobenem  o  diabo  em  casa  no  dia  se- 
^auate.  £i»  a  arasãOn  porque  mais  ou  menos  tre- 
fnermB  todojsf  9  oi«viodo  quo  o  teatqidor  se  achava 
á  (K>i!ta  i  na  %iira  om  que  o  pintaoi  os  bomeos 
seu  kiimj^a. 

— ^<<  O  4Í9bo?  J* — exclamou  l-ourenço  Tel- 
les^ pondo  o  fispi4ÍRi  *i5ohre  a  meza^  — «  Meu 
afdbríaho  ati^eveu^ae  amatter^me  o  demónio  em 
easa  ?  >i     . 

•— 1(  Aasim  o  supponho:»-^  replicou  o  escu- 
deiro owa  pa¥Qr.  ^ 

-«^ <r Fecàem  a  porta.  Ponbam*no  fora»  — 
gmtfou  o  latinifita,  taxendo-ae  branco,  como  a 
Um  da  «na  cainúsa ,  e  olhando  para  o  abbade , 
4iie  estava  cèr  de  cré^  e  fi^m  os  bi^açoç.  dece-' 


'¥.  Â  quem?  » —  perguntou  Jasmin  muito 
pálido -^c(.A,o  damonio,  ou  ao  sr«  capitão?  » 
-*^«(  A  ambos,  a  an^s,  eu  não. exceptuo!  » 
— retomou  o  Commendador  i^om  a  maior  ve- 
bameiíeiia  i  deixando  eabir  a  .^ixa  do  tabaco , 
ixm  dar  por  isso.  Np  chSo,  ^Hou  fóra  a  t^pa, 


Digitized  by  VjOOQIC 


204  A   MOaDÀDB 

e  O  pó  acre  e  subtil  subiu  ao  feciuho  de  Mi- 
nete.  Jasmin  já  tinba  sabido. 

Exaceii)ado  com  o  suplicio  anti-canonico  do 
rapé,  o  gato  espojou  a  caboça  no  sobrado,  ati- 
rou uns  poucos  de  pulos,  e  com  o  ardor  dos 
olhos  e  do  focinho,  investiu  ás  longuissimas  tí- 
bias do  abbade ,  que  tinha  a  desgraça  de  se  achar 
defronte.  Entretanto  o  papagaio,  subimfo  e 
descendo  do  poleiro ,  gritava ,  atroando  tudo. 

O  episodio  de  Minete  náo  diminuiu  o  susto 
da  familia.  Victima  do  attentado,  o  pobre  ab- 
bade resistia  frouxamente :  as  unhas  do  aggres- 
sor  eram  fortes  e  nada  escrupulosas.  Em  quanto 
dois  olhos  phosphoricos  o  fascinavam ,  as  garras 
dos  pés  arroteavam-lhe  a  meia  de  seda  e  a  bar- 
riga da  perna ,  e  as  das  mãos  cfaegavam-Ihe  ás 
coxas ,  e  aos  calções  de  veludo  preto.  Nova  re- 
sistência ,  novos  arranhões ,  segunda  derrota ! 
Então ,  o  compilador  de  notas ,  vendo-se  feito 
mastro  da  gimnastica  felina ,  acreditou  que  la- 
ctava com  o  demónio,  e  perdeu  o  animo.  A 
phisionomia  solemne  descompozHse ,  a  dignidade 
pevidosa  fugiu;  e  gago,  convulso,  e  torcido 
em  gestos  de  terror ,  deu  tal  espectáculo  de  si , 
què  os  circumstantes  benziam-se  attonitos.  A 
transformação  do  profundo  oráculo  em  Laocoonte- 
palhaço,  marinhado  pcír  um  gato,  era  na  rea- 


Digitized  by  VjOOQIC 


BBDu  JOiO  V.  20B 

lidadé  a  maior  queda',  que  podia  dar  a  digni- 
dade do  sábio,  e  a  magestade  do  sacerdote. 

O  pugilato  durou  instantes.  Sentido  dos  le- 
ves repelldès  do  erudito ,  MineU  subiu  por  elie , 
assanhado  em  nAios  e  assopros  atterradores.  O 
ecclesíastico ,  inutilmente ,  recorria  ás  armas  es- 
piritíiaes  do  exorcismo,  ás  armas  clássicas  da 
lingua  lithurgica ,  e  ás  armas  terrestres  de  duas 
mãos  tremulas  e  arranhadas.  O  gato  ganhou  a 
yietoria.  Conquistando  o  hombrodochronista  de 
Affonso  Henriques ,  fez  d^elle  ponto  de  apoio ; 
e  08  pés  escorregando  pelas  faces  rasgavam-nas 
em  arvoredos  de  planta  militar.  Minetey  demo- 
Tou-^se  pouco  nas  alturas ;  e  saltou  logo  em  pezo 
á  gaiola  do  papagaio ,  que  veio  de  pancada  acima 
da  cabeça ,  e  de  lá  acima  do  joelho  do  atribu- 
lado antiquário.  Em  epilogo  de  tantas  desditas , 
a  ave  prieferiu  uma  coisa  do  critico  a  outra  qual- 
quer coisa,  e  pegou-lhe  com  o  bico  para  não 
corrsr  contara  seu  gosto. 

Não  é  possivel  descrever  o  effisito  do  combate 
nos  espeeta<feres.  Era  a  idéa  de  todos ,  que  só  a 
presença  do  demónio  podia  arrojar  Minete  ao 
inaudito  escândalo  de  tractar  o  abbade  como 
rato  guloso  ou  pardal  lascarino.  Lourenço  Tel- 
les mettia  dó.  Ora  dirigia  ao  seu  douto  amigo 
consolações  patheticas ,  sem  lhe  acudir ;  ora  in- 


Digitized  by  VjOOQIC 


396  A  IKlCiDAVJÍ 

crepava  o  §ào  com  as  mais  severa»  aptttfopheá. 
A  queda  da  gaiola  ^e  a  fiiga  cstrepitoss  4e»  etfi- 
minoso^  obri^famrod' a  ralíoar*^  mnã^ecoo»^ 
temado  na  poltrona ,  cubrhi  o  rosto  com  o  seu 
lenço,  como  Agameraiiaii  para  nfte  aasistôr  ao^a»^ 
crificio. 

A  sr.^Magdalena  ei^uíeias  ntes  aio»  cou;  Jqs- 
min  na  eseaãe,^  em  nenie  -ie  seu  aono^  ptoUbi»' 
a  entrada  ao  capitão  Filippei  As  duas  meainaf » 
sentadas^  no  oamapé^  com;  a^  mão  na  booca ,  dtt^- 
fatam  o  riso  para  n&o. espirrar  de  repente y  id-. 
trajando  a  indignação  do  autor  da»  bexigas  :do' 
Viso-rei. 

NÍDgoem  soccorria  o  abbade.  Per  fin»  eUe 
decidia-^,  e  foi  o  defensor  da  eoxa.iBfasnada^ 
rompendo  a  união  bypostalica  do  papagaio  com 
a  sua  earne.  Um  Talrâte  pontapé  cnvioa  depòtf' 
gaiola  e  pássaro  de  preseiite  á  prnnaiTai  talha,  dar 
índia,  que  arrebcaiou  peb  bojo.  O  estrondo^ 
deste  novo  desastre ,  e  o»  gritos  do)  papagaia  &- 
teram  pular  o  erudito  sobre  a  mokta;  QoMdo 
ebegou  appresshdo  a  acudir  ,^  não  ao  amigo  ge^ 
mendo  com  a  mão  no  fenmr ,  masí  à  sua  &m 
estrabusaisdot  entre  cacos  de  barrO'  preoioao»^  deu 
um  suspiro  e  levantou  os  braço»  aO'  facto.  O 
pássaro  tinha  «ma  perna  desloeida !  Biartana  af 
abbade. 


Digitized  by  VjOOQIC 


DF  D.  lOAO  Y.  807 

O  GoAmendador  dítigiunse  a  d)e  e  parou 
com  dua9  reficencias  admiraTeis ,  ama  no  gesto  ^ 
outra  na  voz ;  o  Zoilo  de  Tácito  nem  sequer  re- 
compensou com  um  volver  d^oIhoB  esta  mímica 
lacrimosa.  Eslava  fazendo  o  inventario  das  farpas 
e  arranhões;  e  ora  fechava  um  olho,  ora  outro, 
para  se  convencer  de  que  possuía  ambos  sem  íesSo. 

G  Commendador  consolava-o,  despendendo 
suavíssimas  citações  bucólicas,  sem  esquecer  o 
«  Stint  nobis  eastanew  moHes  et  prem  copia  kh 
elis ;  »  porém  o  infortúnio  obdurava  o  coração  do 
amigo ;  e  à  eloquência  do  erudito ,  elie ,  com  os 
beiços  brancos  e  a  bocca  engatilhada  em  um  sor- 
riso páliido ,  só  respondia ,  encolhendo  os  bom- 
bros: 

—  «  Quem  tem  onças ,  põe  letreiro  á  porta.  » 

—  a  É  a  primeira  vez  qaeMinete  se  exeedeu ! 
Tem  sido  um  borrego  sempre.  Ccmdidus  atque 
duldssimus!  » 

—  <x  Obrigadissimo  I  Estou  aleijado  para  três 
semanas.  )» 

—  «  Melhor  o  fará  Deus ! . . .  Nunca  vi  o  Jih 
neU  assim. . .  b 

—  «Pois  viu-0  hoje.  É  lindo,  n5o  acha?  M» 
o  Sr.  Lourenço  Telles  nio  se  desengana.  Ainda 
hei  de  vêl-o  com  um  olho»  de  mencn^,  por  obra 
e  graça  de  Mmeíe.  Deixe  e^tatl  » 


Digitized  by  VjÔOQIC 


2Ó8  A   MOCIDADE 

—  «Soc^ue,  abbftde.  Foi  tiido  casual.  N(o 
fios  admiremos.  Não  diz  o  poeta  latíno  «  Homo 
sum  et  uihíl. . .  » 

—  a  Pois  Dão  1  a  et  nihil  a  me  alienum  puto  ?  » 
Só  o  que  deve  Doter  é  que  T^encio  não  fallou 
de  gatos  assanhados ,  e  que  citando-o  mal ,  ati- 
rou ás  pombas.  Mas  é  mania!  Commendadiu:,  o 
seu  gato ,  o  seu  papagaio ,  e  seu  sobrinho ,  são 
três  selvagens  conspiradores  para  me  aleijarem. 
Declaro-lhe ,  que  não  volto  aqui  sem  prévia  re- 
clusão dos  três.  » 

— «Então  quer  que  eu  metta  Filippe  em 
uma  gaiola  ?  » 

—  «Metta-o  n^um  tonel,  ou  na  cadeia,  aoode 
quizer  I  Digo-lhe  isto :  elle  é  o  peior  de  todos. 
Quem  faz  Collecção  de  feras  sustenta-as  á  sua 
custa ,  e  não  com  o  sangue  das  visitas.  Se  a  sua 
casa  é  um  pateo  de  bichos  previna  a  gente ! . . . 
Estou  um  Lazaro.  Ahime!  » 

—  <(  Thereza  1  »  —  gritou  o  Commendador , 
corrido  desta  vez  e  com  sincera  compaixão  do 
abbade. 

—  ^<Estâ  curando  o  papagaio» — respondeu 
sua  irmã. 

—  a  Nox  vomica  era  o  remédio,  que  elle  me- 
recia ! » — rosnou  o  padre. 

—  «  Mau !  Irás  tu,  Gedilia.  Acompanha  o  nosso 

Digitized  by  VjOOQIC 


ujs  D.  JOÃO  y.  â09 

tbbade  e  ensin^he  o  meu  quarto.  Que  lhe  tra- 
gam vinagre ,  paches ,  e  agua  tépida.  Chama 
depois  Jasmin  para  o  ir  curar.  Meu  amigo,  ande 
não  se  deixe  esfriar.  O  vinagre  cura.  Bem  sabe : 
a  sero  medicina  paratur ,  cum  mala  per  longas 
invaluere  moras !  » 

O  abbade  sahiu  pela  mão  de  Gecilia;  e  o 
Conunendador,  seriamente  irritado,  levantou-se, 
e  foi  direito  â  janella  para  tomar  o  ar.  Apenas 
deitava  o  pé  adiante  e  firmava  o  passo,  sentiu 
que  lhe  estalava  uma. coisa  debaixo  do  taeSo. 
Abaixou-se  ^  olhou,  e  levantou  logo  a  vista  e  as 
mãos  ao  ceu ,  com  profunda  magua.  A  tampa  da 
sua  caixa,;  a  preciosa  miniatura  da  Vénus  de 
Medíeis,  em  vinte  bocados,  attestava  a  perda 
mais  sensivel  para  o  nosso  antiquário.  Desorieor 
tado  com  o  ultimo  revez ,  virou-se  para  Magda- 
lena,  e  disse-lhe  cheio  de  cholera: 

—  <(  Minha  sobrinha,  seu  marido  foi  uma  praga, 
que  me  cahiu  em  casa.  É  a  peste ,  a  fome ,  e  a 
guerra  do  meu  descanço!  » 

Quando  acabava  estas  palavras  ouviu  novo  ala- 
rido já  no  cimo  da  escada ,  como  se  as  vozes  de 
fora  respondessem  em  coro  á  sua  apostrophe. 
Filippe  trovejava,  o  procurador  de  S.  Domingos 
perorava ;  Jasmin  fazia  o  contralto  soíFrivelmente ; 
e  no  meio  da  altercação  dos  três,  acima  delles  todos, 
14 


Digitized  by  VjOOQIC 


210  A   MOGIÔABl 

um  tiple  racbado  e  embirrento ,  Soltava  iisá4í- 
nfaas  de  fakete ,  em  gorjeios  <]e  setnifosaí.  Lou- 
renço Telles  tapou  os  ouvidos ,  e  apertou  depois 
as  mãos  na  cabsça  exclamando  com  tombria  re- 
solução. 

—  <K  Jasmin ,  deixe  entrar^ .  .  Quero  vèr  tité 
onde  isto  chega !  HUax  in  liminê  latrat !  »  O 
Cbmmendador  alludia  aos  latidos  do  Tigte^  acor- 
rentado na  logea,  e  impaciente  de  enb*ar  lio 
festejo.  Apenas  o  velho  sábio  curvara  o  indico  e 
o  pollegar  para  colher  a  pitada ,  que  salgava  ás 
citações ;  e  achando  de  menos  a  caixa^  exhalava 
«m  suspiro  fúnebre ;  appareceu  na  sélã,  a  passos 
lentos  uma  figura,  que  não  podia  ehaitiar-^ 
ttem  satânica  nem  phantastica,  mas  que  difficul- 
losamente  caberia  no  molde  admittido  gerálosíetife 
j^ra  a  espécie  humana.  Era  um  honiem,  de 
certo ;  mas  um  homem  parodia.  Vendõ-ô,  edtra- 
nbava-se  pouco  a  opinião  do  ôscudeim  valido ,  e 
desculpava-se  o  sobresalto,  com  que  Loi^enço 
Telles  e  sua  sobrinha  o  encararam. 

Este  homem  inculcava  mais  de  quarehtã  an- 
Àos ;  e  talvez  cincoenta.  Tinha  6  cabeça ,  nua  e 
ealva ,  como  um  joelho.  Desta  superSéie  lisa  e 
espelhada  sabia  uma  estriga  de  cabell^  grisâlhdB 
e  sedosos,  erríçada  com  insolência.  A  êátiiga 
ptrfilava-se  no  meio  da  calva,   como  um  péfia- 


Digitized  by  VjOOQIC 


M  O.   JÕ40  V.  211 

tkó  de  mòtieo,  ò  que  daya  certo  ar  exótico  e 
quasi  diabólico  ao  possuidor  da  raridade.  DeA- 
tendo  da  cabeça ,  (esconça  e  um  pouco  depre- 
mída  nas  fontes)  para  o  rosto  ^  achava-se  o  oiho 
direito  desapparelhado  ^  e  o  esquerdo  perfeito  de 
mais,  isto  é  de  tal  vi  veta,  que  parecia  saltar  na 
gente.  Des{^ezando  a  moda ,  cresciam-ihe  das 
orelhas ,  largas  como  leques ,  até  â  articulação 
dá  mandibula ,  umas  suissas  ou  tufos  de  barba 
musgosa  de  três  côres ,  preta «  branca ,  e  ala- 
ranjada, que  lhe  armavam  duas  bambineilas  nos 
esquinados  queixos.  Ò  hombro  direito  era  mais 
alto  do  que  o  esquerdo ,  e  no  jogar  dos  braços 
derreava-se  a  compasso  do  quadril  desengonçado. 
Um  peito  de  rola,  excessivamente  convexo ;  um 
ventre  de  papo  de  borracho,  arredondado  e  proe- 
minente ;  a  altura  equivoca  do  corpo ,  hesitáçSo 
bnitesca  entre  a  estatura  do  garoto  e  a  altura 
do  homem  feito,  realçavam  a  pittoresca,  e  no- 
víssima configuração  desta  coisa ,  que  a  penúria 
da  lingua  nos  obriga  a  chamar  humana ,  porque 
era  muito  aplainada  para  orango-tango,  e  muito 
tosca  para  rudimento  de  qualquer  das  raças  ad- 
mittidas. 

A  sua  maior  singularidade  consistia  na  perna 
esquerda ,  torcida  como  um  parafuso,  e  servindo 
de  baíBe  a  moTimentos  heróicos,  executados  com 


Digitized  by  VjOOQIC 


212  A  UOGIDADB 

suprema  agilidade.  Andando  fincaya  o  pé  no  chão, 
e  girava  sobre  elle  como  sobre  a  ponta  de  uma 
verruma ;  quando  ria  eram  sempre  gargalhadas 
de  escarneo ,  lambidas  em  um  torcicolo  dos  bei- 
ços, e  apimentadas  de  visagens  variadas.  Se  fal- 
lava ,  (e  fallava  muito)  tinha  inflexões  doútoraes, 
e  gestos  volúveis;  fallava  a  lingua;  fallava  a 
perna-verruma  inquieta  e  aos  pulinhos ;  fallava 
o  hombro  perfurante  fazendo  negaça  ao  hombro 
correcto ;  fallava  em  fim,  mais  que  tudo ,  a  pas- 
mosa  elasticidade  do  corpo  desencadernado  em 
momices ,  e  tregeitos  origínaes ,  que  pena  foi 
perderem-se  pela  obscuridade  do  personagem, 
aliás  seriam  a  fortuna  de  um  actor  de  farças  bem 
jocosas. 

Domingos  José  Chaves  (era  o  seu  nome  chris- 
tdo)  nascera  feio  como  Bertholdo,  eloquente  como 
Demosthenes ,  ladrão  e  velhaco  como  Gusmão  de 
Alfaraxe  de  gloriosa  memoria.  Domingos  José 
Chaves  era  da  familia  de  Hoffinan  pela  figura ; 
da  de  Caillot  pela  extravagância  picaresca;  da 
de  João  Paulo  Richer  pela  verbosidade  plebeia. 
Mandrião  como  a  perguiça ,  petulante  que  nem 
mulato  rico,  e  cynico  como  o  cynismo,  fazia 
negocio  em  tudo,  e  venderia  a  carne  ao  Judeo 
de  Shakespeare ,  se  lhe  fosse  rasoavelmente  in- 
demnisada.   Por  divertimento  tinha  aberto  no 


Digitized  by  VjOOQIC 


BÊ  D.  JOÃO  V.  213 

pasmatorio  das  Chagas  uma  aula  pratica  de  pes- 
coções^  e  regra  o  curso,  vendendo  a  face  ás  bo- 
fetadas dos  discípulos ,  a  tostão  cada  uma  pagas 
á  vista ! 

A  expressão  do  semblante  era  travessa ,  jo- 
vial ,  e  profundamente  truanesca.  Lia-se-Ihe  na 
vista  a  giria  da  abençoada  raça  dos  Lasarilhos; 
achava-se-Ihe  no  sorriso  sagaz  e  pedante  um  ar 
de  parentesco  com  o  nosso  amigo  Sancho  Pança. 
Grande  vivadidade  nas  gaifonas  (tinha  uma  col- 
lecção  inexhaurivel) ;  o  talento  da  parodia ,  ele- 
vado ao  sublime,  copiando  homens  e  animaes 
admiravelmente ,  desde  o  moxo  até  á  ran ;  e  o 
geito  de  passear,  torcendo  o  corpo  em  piruetas ; 
davam-lhe  uma  phisionomia  tão  exquisita,  tão 
origina] ,  e  tão  impagável ,  que  vivera  sempre  á 
custa  alheia ,  pregando  logros  ao  género  hu^ 
mano. 

Já  dissemos :  a  cara  exprimia  finura  e  astú- 
cia, mas  tião  maldade.  Às  maçans  do  rosto  eram 
achatadas  e  largas;  os  queixos  esbrugados  em 
roda,  e  devassos  excessivamente.  O  beiço  supe- 
rior vincado,  de  ambos  os  lados  do  nariz  (que  era 
dogue  puro)  até  aos  cantos  da  bocca,  arregaçava- 
se  em  forma  de  cortina ,  diante  dos  cinco  den- 
tes ,  que  'Serviam  de  sentinellas  perdidas  ás  gen- 
givas ,  orpbans  dos  restantes.  Este  figurão  trazia 


Digitized  by  VjOOQIC 


214  A    IIOCII^ABB 

na  bocca  um  cachimbo  apagado;  e  sobre  os  cal- 
ções muito  risonhos  nas  costuras,  cinco,  oito, 
infinitas  vestias  e  perpões  de   todas  as  cores, 
esta  verde  garrafa ,  aquelle  amarello  cujo ,  uma 
asul ,  outra  encarnada ,  emfim  uma  loja  de  adelo 
completa.  A  camisa  tinha  a  alvura  de  uma  bel- 
leza  de  Guiné.  As  ^neias,  a  direita  de  seda ,  no 
.3u  tempo  côr  de  rosa ,  mostrava  as  passagens 
de  linha  enroscadas  por  ella  acima  como  lacraus. 
A  esquerda  de  lan  parda,  com  pontas  verme- 
lhas ,  parecia  arrancada  á  canella  mythologica  do 
Sr.  Thomé  das  Chagas.  A  dextra  empunhava  um 
cacete  curto  e  grosso ,   de  que  se  ajudava  para 
as  suas  corridinhas  de  gafanhoto.  Similhante  ao 
louva-Deus ,  o  Sr.  Domingos  José  Chaves  con- 
quistava o  seu  caminho  ás  cotovelladas  na  linha 
recta.  A  outra  mão  segurava  o  carapuço ,  agudo 
na  ponta ,  e  largo  na  bocca ,  parecido  ao  funil , 
quasi  pyramidal ,  de  que  a  imaginação  vesga  de 
um  poetastro  toucou  a  serombatica  fronte  do  sá- 
bio Abacadabro. 

Logo  que  se  viu  dentro  da  salla.  Domingos 
fez  o  seu  exame  em  um  abrir  e  fechar  de  olhos ; 
riu  da  talha  partida  e  dos  pagodes  chinas ;  metteu 
a  mão  na  caixa  das  ameixas  doces  e  tomou-lhe 
o  gosto ;  contrafez  as  passadas  solemnes  do  v^ 
neravel  Fr.  João  dos  Remédios ,  que  o  seguia ; 


Digitized  by  VjOOQIC 


DE  D.  JOÃO  V.  21K 

eacaboa  por  imitar  OS  equil^rios  4a  corda  bamba , 
rodando  sobre  a  perna  verruma  para  o  sitio, 
donde  o  Commendador  estupefacto  assistia  ás  suas 
evoluções  com  a  mais  furiosa  indignação.  As  pi* 
metas  do  nosso  amigo  eram  regidas  por  umas  va- 
riações de  assobio ,  executadas  com  infinitas  mo- 
mices  em  toda  a  graça  e  requebro  possivel ,  no 
meio  das  risadas  estrepitosas  de  Filippe ,  que  se 
revia  no  seu  hospede ;  apesar  da  ira  silenciosa 
de  Fr.  João  que  o  excommungava  mentalmente ; 
e  sempre  em  proporção  dos  movimentos  de  reti- 
rada de  Lourenço  Telles,  que  não  sabia  se 
acreditasse  na  ^visita  do  demónio,  em  presença 
deste  aborto ,  parodia  satânica  da  creatura  hu- 
mana. 

Fr.  João  e  Filippe  tinham  entrado  logo  atraz 
de  Domingos ;  Magdalena  e  Lourenço  Telles  ben- 
ziam-se.  As  duas  meninas  detraz  do  frade  e  de 
seu  pai ,  estendiam  o  pescoço  para  vér  melhor , 
por  cima  do  seu  hombro  as  proezas  do  nosso 
amigo.  Ninguém  tinha  dito  nada  ainda.  Por  fim 
o  Commendador,  olhando  para  Fr.  JoSo  excla- 
mou muito  cholerico : 

—  «O  que  é  isto,  Fr.  João?» 

O  padre  mestre  encolheu  os  hombros,  franziu 
a  sobrancelha ,  e  pqchou  com  anciã  o  barretinho 
para  a  nuca. 


Digitized  by  VjOOQIC 


216  A  MOCIDADS 

—  a  Filippe,  o  que  é  esta  coisa  que  me  trouxe 
para  easa?» 

—  «A  sua  bençam  tio ! »  —  respondeu  o  ca- 
pitSo ,  que  se  divertia  immenso  com  o  susto  do 
erudito.  —  «  Então  crê  ou  não  crê  no  demonipT 
Eu  n&o  lho  dizia  ? !  » 

Domingos  càquerejou  a  sua  risadinha  de  fal- 
sete ,  visitou  de  novo  as  ameixas  doces ,  e  ficou 
em  descanço  de  movimentos  geraes,  mas  sem- 
pre activo  de  tregeitos  faciaes.  O  padre  Remé- 
dios descarregava  sobre  elle ,  e  sobre  Filippe  a 
a  vista  flamejante.  O  Commendador ,  sentado, 
com  sua  sobrinha  ao  lado ,  e  suas  netas  atraz  da 
cadeira,  mais  sereno  abriu  a  conversação  po» 
uma  gesto  sublime ;  depois  com  gravidade  se- 
vera ,  poz  termo  aos  estalinhos  de  postilhão,  que 
Filippe  disparava  com  oi  dedos  : 

—  «  Meu  sobrinho ,  v.  mercê  não  descança  sem 
dar  comigo  na  sepultura.  Anda  cavando  a  mi- 
nha morte !  >» 

E  o  velho  sábio  enternecido  com  a  bypothese 
teve  a  bondade  de  derramar  duas  ou  três  lagri- 
mas sobre  a  sua  falta.  Limpando  depois  09  olhos 
proseguiu  cada  vez  mais  irritado. 

—  «Quem  é  este  palhaço?» 

—  «  È  o  nosso  guarda-portão !  » 

—  «Falle  serio;  se  não  me  respeita,  rc5* 


Digitized  by  VjOOQIC 


DB   D.  JOiO  V.  217 

peite  a  casa  de  sua  moUier  e  de  siias  filhas.  Não 
tenho  guarda-portão ,  nem  costumo  ajustar  os 
criados  no  inferno,  a 

—  «  Qual  inferno ,  tio !  Este  homem  é  o  Do- 
mingos. Pois  n&o  o  conhece  ?  » 

—  «  N5o  tenho  essa  honra  »  —  replicou  o  eru- 
dito ,  inclinando-se  irónico.  Elle  é  que  faz  o  fa- 
Yor  de  olhar  como  sua  a  minha  casa ,  saqueando 
as  melhores  ameixas  cubertas  que  este  anno  re- 
cebi. » 

—  «  Âquillo  é  graça !  » 

—  «Bastante  pezada.  Mas  quem  é  então  o 
senhor. .  . .  amável  ?  » 

—  «  É  o  mestre  do  Simão .' » 

—  «Que  Simão?  V.  mercê  falia  por  enig- 
mas!» 

—  «Eu?  estou  a  morrer  de  fome,  tio!  O 
Simão  ?  pois  não  sabe  ?  É  o  nosso  macaco .... 
aquelle  que. ...» 

Lourenço  Telles  levantou-se  horrorisado ;  cha- 
mou Jasmin ;  e  todo  tremulo  gritou-lhe : 

—  «Chame  os  criados  e  ponham  fora  a  pau 
esse  macaco.» 

—  «  Não  é  preciso. ...» 

—  «Eu  é  que  mando !  Atreve^e  a  trazer  um 
flagello  assim  para  minha  casa ,  depois  do  que 
^lle  fez.  e  eu  lhe  disse  ?  » 


Digitized  by  VjOOQIC 


218  ▲  lICkCIOAM 

•*>^«Mas,  ido  se  arrenegue,  tÍQ.  Q  toon^^ 
D&o  veia.  É  verdade  que  lhe  alluguei  quarto  « 
tomei  mestre. . . .  x> 

—  «  Mestres  ? ! »  — exckmou  Lourenço  Telles, 
cheirando  vagarosamente  a  sua  pitada ,  colhidi^ 
na  caixa  de  Fr.  João. — «  Mestres  a  um  macaco  ?  » 

— -aSim  senhor,  e  três  nada  menos.  Um 
de  esgrima ;  outro  de  exercicio  militar ;  e  este 
que  é  a  pessoa  que  o  ensina  â  dança. » 

—  a  V.  mercê  endoudeceu  ?  » 

—  a  Ê  uma  especulação  !  O  mono  faz  o  exer- 
cicio militar  de  sargento  até  soldado ,  pela  or- 
denança nova.  O  mono  joga  a  espada  preta  e  o 
pau ,  que  é  um  gosto.  O  mono  baila  excellen  - 
temente.  O  meu  Simão  é  um  portento. » 

—  «  Pois ,  sr.  Filippe ,  fará  favor  de  me  pou- 
par o  desgosto  de  admirar  os  progressos  do  seu 
alumno.  Não  quero  nem  vêr  a  sombra  do  por- 
tento ! »  —  exclamou  em  segunda  recrudescência 
de  cholera  o  conunendador. 

—  «  Tenho  pena !  Havia  de  gostar.  Em  fim  ^ 
são  antipathias.  Mas  ao  menos  concorra  com 
três  moedas  para  a  sua  educação ! . .  Está  dito. 
£  um  anno  de  sacrifício.  Depois  vendemol-o 
por  um  dinheiro  louco.  » 

Lourenço  Telles  suspendeu  nò  caminho  a  pi^ 
tada ,  e  encarou  o  capitão : 


Digitized  by  VjOOQIC 


im  j>.  ãúào.y,  219 

r-%Q&e  eu  pague  os  mestres  ao  macaeo? 
lE^  ^m  sm  jiúso?  Ha  só  uma  «despem  que  ai 
farei  de  boa  mente.  È  enterral-o. « 

—  «Deix(ç-se  disso,  tio,!» 

* — «Sabe  o  que  V.  mercê  faz  com  as  suas 
loux^uras  ?  Olhe  a  minha  cai^a  ?  n» 

—  «Está  um  caco !^)  —  respondeu  ò  capitão 
QOHi  soberano  desdém. 

—  «È  um  caço  ? !  Admiro  a  sua  indiffereiíca ; 
não  sabe  quem  ma  deu  e  o  que  valia  ?  Nem  lhe 
importa!  Vê  aquella  talha ?  » 

—  u  Parece  uma  baleie  espipada !  »  —  repli- 
cou, o  sobrinho ,  rindo, 

—  «  Acha-lhe  graça  ?  Pois  destruiu  um  jogo 
de  talhas ,  que  não  ha  outro  hoje  em  Lisboa.  » 

— : «  Eu  ?  Mas  já  estava  assim ,  quando  «i- 
trei  ?  ! » 

— « Não  estaria ,  se  V.  mercê  não  quisesse 
entrar. » 

—  «  Ah ,  é  outrp  caso ;  deixe  estar ,  tudo  se 
remedeia,  menos  a  morte.  Tenho  duas  talhas 
do  Japão  muito  melhores.  E  dou-lhas,  mais  uma 
caixa  antiga ,  de  guardar  os  grillos  de  Cleópatra, 
segupdo  me  disseram  uns  judeus ,  que  vale  dez 
bonecas ,  como  a  quç  tinha  na  tampa  da  sua 
tabaqueira.  » 

—  «Filippe,  tome  sentido.  «^Si  m'/-,  Gnna 


Digitized  by  VjOOQIC 


220  A   MOaDÁDE 

petis ,  nil  .  tibi ,  Gnna^^  nego  t »  —  exclamou  o 
erudito  mais  consolado.  —  «  Entende  este  terso 
de  Marcial?» 

—  c(  Não  senhor ,  mas  é  o  mesmo.  E  o  tio 
mtende  ?  » 

—  «Julgo  que  sim»  —  replicou  o  sábio  com 
um  sorriso  vaidoso.  — «  Diz  o  poeta  «que  se 
nada  lhe  pedirem,  nada  negará.»  Percebe? 
Aquella  caixa,  meu  sobrinho,  era  um  monu- 
mento, uma  raridade.  Foi  o  capricho  de  um 
grande  pintor.  Em  fim !  parce  sepultis !  Tome- 
mos ao  caso.  Quem  é  esta  cara  de  mau  ladrão, 
que  está  devorando  as  minhas  ameixas  ?  D^onde 
sahiu  aquella  figura  ?  » 

—  «  Domingos  José  Chaves  á  falia !  »  —  gri- 
tou o  capitão  em  voz  de  buzina.  Faça  já  a  con- 
tinência ao  tio ! « 

—  a  Aqui  estou,  illustríssimo  sr.  capitão  Filippe 
da  Gama!  Voluit  facere  uvas,  fecit  autem  2a- 
bnMcas.  » 

—  «O  que  diz  elle ? » -^ perguntou  o  Com- 
mendador  com  o  ouvido  escandalisado  dos  sole- 
cismos macarronicos  deste  Bertholdo. 

—  «  Digo ,  excellentissimo  doutor  commenda- 
dor ,  que  o  sr.  capitão ,  querendo  fazer  vinho 
fez  vinagre ! » 

Domingos,  dizendo  i^to  ría-se  com  a  bocca , 


I  Digitized  by  CjOOQ  IC 


DE  D.    JOÃO  V.  22 1 

Gom  a  perna^|»arafQso,  e  com  todo  o  corpo  ^ 
methamorphoseado  n^ama  pelotica. 

— «  Maroto  !»-r— gritou  Filippe  vermelho  de 
raiva. 

—  «  NSo  me  faz  favor  nenhum ,  illustríssimo 
senhor»  —  respondeu  o  ciníco,  arremedando  a 
luta  continua  entre  o  padre  Remédios,  o  bar- 
retinho,  e  a  nuca. 

—  «Mas,  em  fim,  quem  é  V.  mercê?»  — 
perguntou  Lourenço  Telles  aturdido. 

—  «O excellentíssimo sr. commendador ,  quer 
que  falle  em  prosa ,  ou  em  verso  ?  » 

—  <c  Falle  como  souber.  O  essencial  é  res- 
ponder^me.  O  que  faz  V.  mercê  ?  » 

—  c(  Excellentissimo  senhor ,  a  prova  de  que 
não  faço  nada  » — replicou  o  reu,  fallando  do 
papo ; «  é  que  vim  aqui  para  fazer  alguma  coisa.  » 

—  ccBem  se  vê;  e  não  esteve  ocioso!  — 
acudiu  o  velho  erudito,  olhando  com  saudade 
para  a  caixa  das  ameixas.  E  o  que  sabe  fazer  ?  » 

—  «  Sei  comer,  e  dormir ,  sei  dançar ,  e  ves- 
tii^;  nas  feiras  e  festas  canto;  e  na  comedia, 
sou  encanto ! » 

—  «Bravo!  Não  é  pouco?  Mas  enganou-se 
n^uma  coisa. » 

—  «  Qual ,  excellentissimo  senhor  ?  »  / 

—  «Na  porta.  V.  mercê4a,  pelo  que  vejo* 


Digitized  by  VjQOQIC 


ao  pateo  ddi  eomedras ,  e  aqm  é  a  rua  das  Ar- 
cas. » 

— « J&cwía  cí  justas ,  ^wíp  íí6í  /apo  queixi- 
moniasl  O  sr.  Commendador  faz-me  a  esmolia 
de  uma  pitada,  qúe  tenha  de  mais?» 

—  «  Domingos  José  Chaves  »  —  disse  o  eru- 
dito que  se  divertia  com  o  interrogatório — «o 
que  pede  quando  se  ajusta  n'uma  casa?» 

—  «Uma  bagatella,  excellentissimo  Com- 
mendador Lourenço  Telles !  Além  do  pio  quo- 
tidiano, peço  vinho  á  discrição,  e  a  minha 
pitada  vadia.  Nunquam  me  deixeê  sine  eheirare 
pitadam ! » 

—  «Gosto  do  seu  latim.  Não  pede  mais 
nada  ?  » 

— «  Sim  senhor.  Quero  os  sabbados  livres. » 

—  «Os  sabbados ? » 

—  «  Para  apanhar  rãs !  » -—  disse  o  cpica 
tiriumphante.  Apanho-as  e  depois  fumo-as!»  — 
Dito  isto  representou  em  saltos  de  louva-a-Deus 
a  pantomima  da  sua  caçada  extravagante. 

—  «  Fuma  ràá  ?  » 

—  «  É  verdade.  Vendo-as  aos  boticários  para 
comprar  tabaco.  Não  alugo,  empresto  o  meu 
zelo  ás  casas  aonde  sirvo.  Os  sabbados  sSo  as 
minhas  rendas.  r> 

—  a  Tem  estado  em  muitas  casas? )» 


Digitized  by  VjOOQIC 


DE  D.    JOio   V.  Siââ 

— • «  Servi  jâ  dezesete  amos  è  meio ,  exeel- 
lentíssimo  sr.  doator.  Com  a  sua  honrada  casa 
fáz  dezenoye. » 

—  «  Gomo  faz  essa  cóiita  ?  » 

— •  <(  O  uUimo  amo ,  que  tíve ,  foi  o  anão  dó 
Duque.  Era  meio  amo.  Em  casa  do  sr.  Com- 
mendador  ha  uma  arara ,  um  gato,  e  um  papa- 
gaio, todos  três  muito  mal  creados ;  pelo  menos 
dfib  que  fazer  por  meio  amo.  Por  isso  o  anão  é 
os  animaes ,  um ;  o  sr.  doutor  dois ;.  dezesete  e 
dois  dezenove.  Isto  é  conta  de  gis ,  que  não  far 
lha  um  tris.  » 

—  «  Soffrivel !  È  tirou  alguma  coisa  das  ca- 
Mrá ,  aonde  serviu  7  vt 

—  «  Muito ,  excellentissimo  sr. ;  porém  mu- 
déi-me. » 

—  «  Porquê  ?  » 

-^—  «  Como  faziam  de  mim  armazém ,  puz  es- 
eripfos.  Até  o  anão  trepou  por  mim  acima ,  é 
teve  a  confiança  de  me  dar  um  bofetão  I » 

—  «  Sim  ?  » 

—  «  Não  tive  remédio ,  paguei-lhe.  A  noite, 
bebeu  ópio  no  vinho  e  depois,  callado  como  uma 
liédra ,  e  embrulhado  em  uns  cueiros ,  íbi  den-^ 
tro  de  uma  condeça  para  a  roda.  LA  ficou.. >» 

— «Metteu  o  anão  na  roda?»— ejtclamou  o 
Conrniendador ,  desfechando  uma  risada  cordcal, 


Digitized  by  VjOOQIC 


224  A  MOCIDADE 

que  todos  acompanharam.  —  «E  o  que  succe- 
deu  ?  » 

—  «Houve  mosquitos  por  cordas,  excelIeiH- 
tissimo  sr.  I  Quando  em  vez  de  uma  creança  yí- 
ram  um  anão ,  que  fallava  pelos  cotovellos,  gri- 
taram «  Aqui  dei  Rei »  houve  chufas  e  beliscões ; 
elle  engalfinhou-se  na  regente ;  e  por  fím  deita- 
ram-no  â  rua  em  cueiros,  e  entrou  descalço  era 
casa.  Assim  apanhou  o  reumathismo,  que  o  to- 
lheu da  perna. 

—  c(  Muito  nos  conta  Domingos !  Filippe  este 
homem  é  seu  creado  ?  » 

—  a  Se  o  tio  manda  eu  digo  que  sim. » 

— «  Pois  que  fique.  Domingos,  eu  dou  cama 
e  mesa  aos  creados,  mas  não  dou  acepipes,  nem 
doce.  As  ameixas  e  as  cidras  são  sagradas ;  tome 
sentido ! » 

— ^^«Sim,  excellentissimo  sr.  Tractal-as-hei 
como  sagradas.  Só  em  jejum  é  que  farei  o  sa- 
crificio  de  commungar  com  ellas. » 

—  «A  ceia  está  na  mesa !  disse  Jasmin  en- 
tre portas. 

O  veího  erudito  levantou-se ,  deu  o  braço  a 
sua  sobrinha,  fazendo  signal  6s  meninas  que 
fo^em  adiante.  Caminhando,  dizia  a  Fr.  João: 

—  <c  Decididamente  é  dia  de  S.  Bartholomeu. 
O  demónio  anda  solto.  Que  é  do  abbade?i» 


Digitized  by  VjOOQIC 


D&   D.  JOÃO  T.  22S 

—  «Já  nos  espera  na  casa  de  jantar. )» 
— «  Bem.  Veremos  se  ainda  não  se  acabou  a 
noite ! » 


i3 


Digitized  by  VjOOQIC 


Digitized  by  VjOOQIC 


CAVITUIiO  XII. 


ntlPPB  BU  TBRBA   P  AMIGOS. 


Â?siíAS  O  commendador  entrava  na  casa  de 
jantar ;  e  Domingos  largava  o  eterno  rabicho  do 
Sr.  Jasmin:  mal  o  abbade  gemera  três  suspi- 
ros aflautados  conchegando  os  parches  de  di- 
versas cores,  quQ  lhe  faziam  da  cara  um  mappa- 
miindi;  outra  pancada  na  porta  da  rua  deixou 
ficar  a  todos  suspensos,  com  a  mão  nas  costas 
da  cadeira ,  porque  desta  vez  a  irregularidade  da 
visita  não  tinha  explicação  possivel. 

'^  a  Quid  rnihi  cum  Agammrum  ? — exclamou 
Lourenço  Telles ,  virando-se  com  enfado  para  o 
inventor  do  livro  dos  Pavões ;  este  encolheu  os 


Digitized  by  VjOOQIC 


228  A    MOCIDADE 

hombros ,  e  calou-se  entrincheirado  na  sua  di- 
gnidade teza  e  engomada. 

Entretanto  reluzia  a  prata  das  terrinas  e  ta- 
lheres; a  louça  chineza,  em  relevos  caprichosos, 
brilhava  pelas  variadas  cores ,  e  pela  diversidade 
das  figuras  e  flores.  O  caldo  de  arroz,  e  o  gallo 
do  estilo ;  o  prato  obrigado  de  ervas  coroado  de 
torradas  recortadas ;  as  tortas  e  outros  acepipes 
perfumavam  a  salla.  Os  vinhos  eram  excellentes 
e  faziam  sede  espelhando-se  no  christal  das  gar- 
rafas. Fructas  seccas  em  cestos  arrendados,  uns 
de  louça ,  outros  de  prata ;  e  delicados  doces  «m 
vasos  de  vidro  campeavam  nos  magnifícos  appa- 
radores  de  páo  sancto ,  levantados  de  dmhos  os 
lados  da  casa.  O  abbade ,  em  virtude  de  posse 
immemorial  exercia  o  officio  de  trinchante  mór ; 
e  apesar  dos  maiores  tormentos,  exacto 'niòdcs- 
empenho  das  augustas  funcções,  floreteava  a  faca 
e  o  garfo  sobre  o  cadáver  do  acerejado  gallo.  ^ 

Todos  esperavam  de  pé  a  volta  de  Jasintn , 
despachado  por  seu  amo  ás  regiões  sombrias  da 
logea  para  saber  o  nome  do  interruptor  das  do- 
çuras culinárias.  O  escudeiro  demoròu-se  pouco, 
voltando  com  uma  boquinha  espremida ,  que  na 
sua  opinião  tinha  a  malicia  de  um  sorriso  iró- 
nico. Da  visagem  do  fiel  correio  tirou  o  com- 
mendador  o  mais  favorável  agouro,  e  setitou-se 


Digitized  by  VjOOQIC 


DE  D.  JOÃO  V. 

completaníieQte  socegado.  O  resto  da  família  imí- 
toa-o,  com  uma  longa  interjeição  na  vista.  O 
abbede,  impassível,  recolhido,  e  solemne  como 
sinomo  sacerdote  que  era  d'aquelle  sacrifício, 
ameaçou  as  juntas  do  gallo ,  eom  o  garbo  de 
uma  pratica  feliz.  Entretanto  Jasmín  apoderava- 
se  do  ouvido  do  commendador ,  e  dizia*lhe  um 
segredo;  o  velho  sábio  deu  um  pulo,  esfregou 
as  mãos ,  olhou  para  as  meninas  e  sobre  tudo 
para  Tfaeresa ,  e .  em  voz  baixa  passou  algumas 
:ordens,  que  o  escudeiro  cumpriu  logo,  saindo 
noa  bicos  dos  pés ,  em  ar  mysterioso.  Esta  scena 
quasi  theatral  redobrou  a  curiosidade ,  e  tornou 
mats /repetidos  os  pontos  de  interrogação  de 
Ilagdalentt.para  suas  filhas,  e  de  Filippe  para 
Magdalena. 

Começou  a  cêa  pelo  caldo ;  e  Lourenço  Tel- 
1^,  bebendo  com  pausa,  corria  os  olhos  pelos 
circumstantes,  ilnpeneti^avel  con^o  um  cardeal  no 
conclave,  malicioso  que  nem  um,  critij^o  roido  de 
inveja.  Quando  os  seus  olhos  encontravam  os  de 
Thdresa,^  boca  um  pouco  sorvida  do  antiquário 
deixava  fugir  um  sorriso  equivoco.  O  nosso  ca- 
pitão tra  curioso  copio  uma  velha ,  e  remexia- 
se  impacíeQte,  ardendo  em  desejos  de  chapar  uma 
pergunta  na  bochecha  do  tio  sábio ;  porém  conti- 
nha*^e  sentindo ;  os.  signáes  com  que  o  cotovello 


Digitized  by  VjOOQIC 


230  A  MOCiBADt 

de  sua  mulher  não  cessava  de  lhe  reeomnMfidar 
a  prudência.  Lourenço  Telles  gosava  interior- 
mente da  perplexidade  de  seu  sobrinho ,  e  eada 
vez  estava  menos  disposto  a  pôr-lfae  termo.  Para 
desviar  qualquer  insinuação  dirigiu-se  de  repente 
ao  padre  mestre  Fr.  João  dos  Remédios,  aise»- 
tado  ao  pé  do  abbade  ^  perguntando^Ihe : 

— «  Então  o  que  nos  diz  dos  negócios  da  ma 
devota  communidade  o  nosso  padre  procurador?  » 

Era  tocar  na  corda  sensível.  O  procurador  so- 
bresaltou-se ;  puxou  o  barretinbo  para  a  testa ; 
dobou  os  pdllegares  um  em  roda  do  outro ;  e  res- 
pondeu com  melancholia : 

—  «  Digo  que  vão  o  peior  f^ivel ,  st.  Lou- 
renço. Está  correndo  o  prazo  fatal ,  a  todos  os 
respeitos  bem  fatal !  » 

—  «  E  depois  ?  » 

—  «O  que  quer?!  Ficaremos  espoliados ^  e 
ainda  por  cima  escarnecidos.  Seja  feita  a  vontade 
de  Deus.  EUe  o  dá ,  e  elle  o  tira ;  altos  mTste 
rios  seus !  » 

—  «  Não  gosto  de  o  vêr  assim,  tr.  João  !  — 
Horácio  diz :  —  AUior  Itali€õ  ruini$.  Seja  supe- 
perior  á  desgraça.  Pois  um  homem  lido  e  pra- 
tico em  negócios  forenses  desanima  tão  de- 
pressa ?  » 

—  «  Ah  ,  commendador ,   isso  era   n'outro 


Digitized  by  VjOOQIC 


DB  D.   JOÃO   V.  S31 

tempo  9  mjRS  boge!.;;  Em  fim  âo  eolpas,  que^se 
eMío  pagando  I 

««— «  Dtticta  m^úrum  immieritus  lues?  Est&o 
pendido  o  peccado  antigo?  Vamoei  qòe  seja 
(acudiu  o  latinista).  Animo  grande!  Talvez  el-rei 
mais  bem  informado...  » 

-~c<BI-rei?  Os  jesuit^s^,  devia  direr.  Não 
espero  nada  delles.  Saiba  que  não  descançam  em 
quanto  nós  lâo  humilharem  de  todo.  Âsám  se 
diz  em  S^  Boque  pêlo  menos.  Sed  cor  cmtrictum 
H  kumiliatfjím  Detc^itton  despiciat!  Levantaremos 
o  coirai^o  a  Deas^  .pofiado  nelle  toda  ã.  espe- 
rança* Sr.  Lourenço  Telles,  a  ord^  de  S.  Do- 
mingos itfqpellari  do  rei  4a  terra  para  o  rei  dos 
censl 

—  «  Louvo  muito :  porém  antes  de  ceder  pw 
qoe  não  tentam  lòrtqna  ainda  ?  IMga-me:  sup- 
posido  es  jninistres  do  desembargo  illudidos,  te^ 
mos  ain^a  os  secrdsams  de  estado^.  » 

—  a  Engana-se !  —  clamou  o  dominico,  dando 
loiras  h  ira — tribimaes  e  secretários  de  estado 
}unani  fidelidade. á  companhia.de  Jesus  antes  de 
•a  jurannn  ^a-  «l-^rei ;  os  siinistros  ssbem  que  o 
verdadeiro  despacho  não  é  no  Ter<reiro  do  Paço, 
mas  na  casa  professa  de  S.. Boque.  O  sceptro  está 
nas  mãos  omnipotentes  de  um  ministro,  mais 
poderoso,  que.  todo  o  clero,  mdireza  e  povo  deste 


Digitized  by  VjOOQIC 


232  A  mociDAVE 

reino.  D.  Pedro  II,  commendador,  já.nao  é.o 
mesmo  homem ;  está  ascético  edoénta;  vive  triste 
e  descon6ado  da  saWação... .  Quon  reina  em  seu 
lògar  é  o  padre  confessor  Sebastião  de  Magar*. 
Iha^!» 

—  «  Não  acredite !  São  historias.  » 

— «  São  verdades,  meu  amigo.  Nada  se  laz 
senão  pelo  voto  do  confessor;  .até  o  meteram  na 
conselho  de  estado,  entre  a  primeira  fidalguia  !..• 
Elle  é  que  animou  os  vendilhões  a  desobedecer- 
nos;  com  elle  sè  aconselharam;  e.por  eUe.foi 
dictada,  em  pleno  claustro,  essa  vergonhosa  pro- 
visão, que  poz  aos. pés  de  meia. duEia  de* rega- 
toes  a  ordem  dos  pregadores  1  Sabè-se  tudo!  » 

— «  Ahi  está  porque  vão  tão  mal  as  coisas... 
Mas  empenhem^^e  vossas  reverendiasimas,  tra- 
balhem... Preso  por  um,  preso  por  mil.  Queí- 
xemHse ;  digam  a  verdade  a  el-rei ;  smba  todo  o 
reino,  que  estamos  sendo  governados  pela  rour 
peta  de  St.**  Ignacio.  » 

—  «  Esse  é ,  e  foi  semfMre ,  o  meu  parecer ! 
Mas  vão  lá  fallar  em  tal  ao  nosso  defeiitorío? 
Meteram-se  na  demanda ,  chegaram  ás  ultimas 
extremidades,  e  agora  encolhem-se.  Esperem  e 
verão  o  resto...  Calam-se?  Os  jesniitas  lhe  dirão 
o  mais.  Vencido,  mas  não  convencido,  tentei 
resistir  e  expár-me,  sem  expor  nin^em.  dmr 


Digitized  by  VjOOQIC 


DE  d:  JoiQ  V.  233 

puz  o  sertfiio  dá  capella  real ;  e ,  tomando  para 
tèfxto  o  fermento -dos  pharhteas;  carreguei  a  mão 
no  retrato  da  soberba  e  dacabiça  da  Companhia , 
avisando  el-rei  e  a  corte.-  Dictei-o ,  decorei-o,  e 
Q%0' disse  nada  á  ninguém.  O  que  imagina  que 
succedeu?  Bebenta-me  um  aviso,  em  que  me 
dizem;,  que  estaca  dispensado  de  pregar  na  mi* 
fiba  :semàna, 'e  que.de  futuro  intendesse  que 
^a  tontade  desua  magestode/qtie  os  ^pregado- 
res da  sua  real  capella' se  abstivessem  de  discus* 
s&eS'politicas!  Fiquei' parvo  1  -O  sermão  estava 
nsí  minba  gaveta^  a  chave  no  meú*  bolso,  e  ape- 
sar <dissotrnfaam-4no  visto, /tinbaih^no  lido!')» 

.iú.  Cf. Alguém: o  descobriu! por  força:..  »  ' 
í  —«  Ninguém';  cominendador !  Se  eu  díctei 
o  sermão  <aò  escrevente  -,  'boníem  :desmemorifNlp 
e  fiel;  estivemos  sempre !sós;e'nt:nca  o  mostrei 
a  pessoa  alguma !  Agora  expliquem-me  como  o 
viu  o  padre  confessor,  porque  é  indubitável  que 
o  viu ;  e  senão  como  citou  elle  de  propósito  a 
•ordem  do  .discurso,  e  até  as  pro()rias  palavras, 
no  sen  aviso!?  Nãò  pódé  attribuir-se  senão  a 
bruxaria!  » 

— ^«  É  bixo  de  sete  cabeças'  Agua  benta 
com  ellc !  — gritou  Filippe. 

—  «Parece    incrível! — observou  Lourenço 
Telles.  E  o  que  tenciona  far©r  ?  »     ^ 


Digiti?ed  by  VjOOQIC 


234  Á  HÓdDADB 

— «  Resta-me  ainda  um  meio.  Quero  tenter 
o  ultimo  recurso;  não  o  declareis»  nem  deelaro 
a  ninguém.  Veremos  se  adivinham.  )» 

— ^^«c  Ha  de  custar  I» 

—  «Eu  digo  só — veremos l  Ha  dous  para 
três  mezes  tudo  nos  desanda ;  nunca  fui  visioná- 
rio; não  sou  supersticioso:  agora  vou-me  fa- 
zendo. Se  traço  um  plano ,  acho^  c(Nrtado :  e^ 
crevo  um  papel?  É  contar  com  oittro,  como  se 
o  meu  estivesse  á  vi^.  Os  segredos  do  definito- 
rio,  cujas  actas  tetiho  debaixo  ieciíave;,  apre** 
goçim-se  em  S.  Roque  no  dia  seguinte.  Dè  prof- 
posito,  escolhi  um  leigo  e  um  servente,  quasi 
idiotas,  que  nSo  sabem  ler  nem  escrever.  Quem 
rouba  o  segredo  dás  minhas  chaves  ,  e  copia  os 
papeis  do  méu  bofete?  Isto  dá  comigo  cbicbw» 

—  «  Melhor  o  fará  Deus,  padre  mestre;  Quer 
do  peito  ou  da  asa  do  gaik)?  Um  copo  de  barra 
a  barra?» 

— «  Obrigado  í  Trago  um  fastio :  mortal ;  baí^ 
tara  um  didal  de  vinho.  Persisto,  Sr.hoat^isíço 
Telles:  a  Companhia  de  Jesbs  acbòn  modo  de 
viver  no  meio  de  nós.  Senta-se  ao  nosso  conse- 
lho, participa  dos  nossos  segredos ,  e  Id  por  cima 
do  hombro  quanto  se  escreve.  É  horroroso!  Scwn- 
dei ,  put  escutas ,  não  vi  nada,  não  há  nada  de 
novo !   São  os  mesmos  prelados  ;  é  a  messma 


Digitized  by  VjOOQIC 


DB  D.  JOÃO  V.  23S 

gente.  £  apôzar  d'isso  juro ,  protesto :  o  auxilio 
•de  um  hemem  poderoso  allumia  os  actos  da 
companhia.  Diogo  de  M^donça,  que  é  todo 
nosso ,  como  sabe ,  acfaa-se  em  ígual  apuro ;  e 
não  cbega  mais  adiante  do  que  eu.  Se  vae  a  ex- 
por em  conselho  algum  negocio  ^.  dos  que  eUe 
costuma  estudar  comsígo,  o  padre  confessor  sorri- 
so^ e  £1-Bei.  entra  a  repetir4he  o  que  passou 
de  mais  particular !  Ah  commendador  sou  cas- 
tigado pelo  meu  orgulho.  Âttribui  á  scieocia  hu- 
mena  o  que  era  devido  ao  auxilio  divino, » 

As  lagrimas  cabiam  pela  cara  abaixo  a  Fr. 
João ;  a  voz  sonora  suifocava^-se.,  e  o  desalento 
prostrava-lhe  a  physionomia,  tao  risonha  ou  im- 
periosa d?ani;es.  Sentia-^  ferido  mortalmente^  e 
nem  tinha  a  triste  consolação  de  descubrir  o  ini- 
migo occuUo ,  que  o  desasocegava. 

-^  «  Ora  pois ,  Fr.  João ;  —  acudiu  Lourenço 
Telles— é  preciso  valor  e  conformidade.  O  môii 
tempo  ha  de  passar. » 

—  «Nao  creio.» 

—  «  Deixe  estar.  Então  Filippe  não  diz  nada  ?  » 

—  n  Digo  que  as  tortas  são  excelentes,  e  que 
o  vinho  é  soíFrivel.  »       . 

—  Não  diz  pouco.  Então  isto  sempre  é  me- 
lhor do  que  os  lagartos,  que  o  regalavam  na 
America  ?  » 


Digitized  by  VjOOQIC 


236  V  A   MOCIDADE 

'  — «  Lé  com  lé ,  e  cré  com  cré.  Cada  terra 
com  seu  uso,  cada  roca  com  seu  fuso! » 

'  —  «  Famoso  rifào !  Muito  bem ;  e  Theresi- 
nha ,  não  lhe  diz  nada  o  coraçfto  ?  Aposto ,  que 
dava  um  beijo  no  avósinho,  se  elle  lhe  dissesse 
uma  coisa. .  .  » 

—  «  Eu  não  sou  curiosa ,  meu  avô !  » 

—  «  Nem  tanto  como  Eva  ?  Pois  sim ,  mas 
está  corada  que  nem  uma  romã ;  porque  abaixa 
os  olhos !  ?  Âh ,  Theresa ,  mais  custa  a  apanhar 
um  coxo  do  que  uma  rapariga  namorada. .  . » . 

—  «  Meu  avô ,  então '  » 

'  —  «  Theresa  !  —  gritou  Filippe  —  Prohibo- 
Ihe  que  se  faça  vermelha.  )i 

«E  esta!  exclamou  o  commendadòr,  Fi- 
lippe, V.  mercê  não  está  em  si.  Prohibe  a  sua  fi> 
lha  o  mudar  de  còr.  ?  » 

—  «  Prohibo ,  sim  senhor ,  os  pães  são  senho- 
res absolutos  dos  'filhos.  Não  quero  que  Theresa 
core ;  sei  o  que  digo. » 

—  «Diz  uma  loucura.  Vamos,  abbade,  en- 
cha ò  copo  e  deite  vinho  a  Fr.  João.  Gecilia , 
peça  licencia  a  sua  mãe ,  e  seu  pae  que  lhe  dé 
um  didal  de  muscatel ,  mais  a  sua  irman.  Estão 
promptos  ?  Á  saúde  de  um  amigo  desta  casa , 
que  nos  fez  a  honra  de  a  procurar,  e  ficará 
n'ella  como  filho ,  espero  eu.  » 


Digitized  by  VjOOQIC 


DE  D.  J04O  V.  237 

i 

'  Quando  levavam  08  copos  á  bocca  abriu-^se  a 
porta  e  Jasmín  disse  alto :  a  É  o  Sr.  Jeronymo 
Guerreiro ! »  :      i 

—  «  Que  vem  corresponder  á  amisade  das  pes- 
soas que  ama  e  respeita'  como  segundos  pães ! », 
acudiu  um  mancebo  esbelto  e  bem  proporcionado, 
que  entrou  na  casa  atraz  do  escudeiro ,  e  se  di- 
rigiu logo  aocommendador  e  a  Magdalena,  a 
quen^  abraçou  muito  tempo,! depois  de  lhes  bei- 
jar a  mão.  Todos  se  levantaram  e  o  rodearam, 
6écilia  olhando  estremosa  para  sua  irman  com. 
um  sorriso  angélico:  Theresa,  com  algum  sobre- 
saftov  e  as  mais  vivas  cores  no  rosto.  Só  o  po- 
bre Filíppe  -  não  conhecia '  o  recemrcheg^do  ,  e 
fbkia  por '  isso^  um:  'papel  desgraçado  dando  &  ca- 
beça; desengonçanfio  o  corpo,'  e- chamando  Jas-. 
min  com  momices  tèlegr^pUcas;,  que  o  escu- 
deiro teve  a.níalicia  de  não  perctíber :: .  :  i 

—  «  Queni  é  este  senhor  ?  »  —  perguntou  por 
fim  ao  àbbade. ,        » 

—  «r  Seu  tio  lho  dirá  n — replicou  o,  eccle- 
siastico  seccamente.  O  capitão  ficou,  portanto, 
em  jejum ,  como  estava.         , 

Jeronymo  Guerreiro  tinha  vinte  e  oito  annos. 
A  testa  espaçosa  ábri'a-se  ampla  aos  vòosda  ima- 
ginação ,  que  brilhava  nos  seus  olhos ; ,  as  bossas^ 
frontaes  <ksinvolvidas  aceusavam-se  acima  das 


Digitized  by  VjOOQIC 


2d8  A  MécnoABE 

arcadas  superoiliares ,  tornando  maia  fanda  a 
ruga  vertical ,  que  a  reflexão  costuma  ^avar*  O 
nariz  levemente  aquilino,  nem  grande,  sem 
pequeno ,  cahia  com  graça ,  dando  vivessa  ás  fei- 
ções despidas  da  regularidade ,  que  torna  femi- 
nino de  mais  o  semblante  de  alguns  homens; 
porém  animadas  da  belleia  geral  que  é  a  terda*- 
deira  formosura  de  um  rosto  viril.  As  pupil}ds , 
pardas,  luminosas,  e  vivas  sem  excesso,  tii^ham 
aquella  força  de  penetração,  que  parece  incutir 
a  ahna  de  quem  olba  no  mais  secreto  piensa- 
mento  da  pessoa  que  é  vista. 

Pretas  e  carregadas  as  sobranodbas,  quan- 
do a  testa  se  contrakia,  uniam-se^  forman^ 
^  do  uma  linha  escura  e  continua ,  debaixo  da 
qual  as  pupillas  chamejantes ,  sem  a  bocca  fal-- 
lar ,  exprimiam  toda  a  vehemencia  de  nm  ca 
racter  forte ,  de  um  animo  robusto ,  e  de  um 
espirito  accessivel  ás  paixões,  e  á  generosida- 
de de  sentimentos.  Nestes  olhos ,  rasgados ,  fir-^ 
mes ,  e  penetrantes ,  fallava  o  ooraçfio ,  e  re- 
flectia-se  a  alma,  como  se  observa  nas  phisiono- 
mias  meridionaes ,  que  nHo  degeneram  do  Ver- 
dadeiro typo. 

Bigodes  pretos  bem  fendidos  cubriam^-lhe 
o  beiço ,  encaracolando  as  guias  á  oriental  ape- 
zar  da  moda ,  que  mandava  ra^  eserupulosa- 


Digitized  by  VjOOQIC 


menta  até  ii  mais  lofe  penugan.  O  reito  da 
cara,  barbeado  em  todo  o  rigor  da  qioclia,.  dava 
realoft  á  bocea  rmnha  e  animada.  Npo  usava 
de  pemca ;  os  próprios  cabellos  penteados  á  mi- 
litar ,  e  só  com  um  ar  de  póz ,  desciam  em  an-* 
neis,  acompanhando  as  faces,  e  cahindo  sobre 
o  hombro.  À  estatura,  duas  Unhas  acima  da 
mxiiaaría  era  levada  com  elegância;  o  corpo 
esbelto ,  os  membros  seccos,  e  nSo  magros ,  in- 
culcavam robi^test  e  agilidade  em  todos  os  mo- 
vimentos. Os  pulsos  eram  fortes ,  a  mão  regu- 
lar e  bem  feita;  a  pelle  muito  fina  tinha  a 
còr  bastante  queimada  das  estaçSes,  como  acon-- 
teceaos  trigueiros,  quando  se  exp9em  á  incle- 
mência do  tempo. 

A  conGguraçSo  da  parte  anterior  da  cabeça , 
a  expresslk)  do  rosto,  e  a  sagacidade  da  vista 
diziam  que  o  valor  do  soldado  se  unia  ao  enge- 
nho>  subtil  do  inventor;  que  mesmo  a  braços 
com  o  maior  infortúnio ,  a  ârmeza  do  coraçSo 
e  a  lucidez  do  espirito  |iaviam  de  luctar  e  ven- 
cer,  até  onde  podesse  luctar  e  venc^  o  homein. 
A  esta  organisaçfto  moral,  bem  rara,  junctava 
as  qualidades  phisicas*  Tinha  uma  força  extraor- 
dinária; um  lance  d^olbos  infallivel;  uma  des- 
treza incomparável.  Na  sua  mSo  a  espada  era 
um  raio ;  as  bailas  nfio  erravam ;  e  os  cálculos 


Digitized  by  VjOOQIC 


230  A   MOGIDADB  ^ 

do  inimigo  Buccurabiam  adivinhados  por  uma  pe^' 
neiração  maior.  i  >  ;      i . 

O  chapéu  do  uniforme \,  agaloado  ,\apifesar  de 
pouco  airoso,  assentava  com'  desgarre ;milítar.  A 
farda ,  espécie  ^  de  .  sobrecasaca  :;moderna  çi  çahiá 
um  pouco  acima' dp  joelho;  còm^ bandas  de  ffnro 
verde,  gummè^ida  por  ambos  os  lidos  de  passa-, 
manes  de  retroz,'  e  duas  ordeitô  de^bofSes  da 
goUa  ao  fím  do. saio.-  Sobre  08!quadris>,  .ciatora 
alta ,  viam-^e  .as  duas '  portinholas  de  lesootíihà , 
as  casas,  monstros:  abei:tas .  em  fio  delseda ,  e  òs^ 
hoU)és  der ródinhâ.prateados ^,  c)asÂcosr  nos  filho» 
de  Marte.  Os.catíbões  da.maiiga,  Jargoscolno.boc^ 
ca  de  morteiro,  revirados  e^pregiaudosquasi  pelo 
sangradouro  por  dois  botões,  deixavam  vér  a  ca<- 
misa  finíssima  desde  o  punido  até  meio  ante-bráço. 

O  periquito,  ou  tira  arrecada,  apparecia  com 
três  dedos  de  largura ,  entre  a  farda  e  a  vtetia , 
em  toda  a. elegância.  Á  roda  da  Icinta  estava 
passada  a  banda  com  largas  bcH^làs  de  seda ,  des- 
cendo ^até  ao:  meio  da  perna.  A  espada,  com- 
prida, de  copos  doirados,. vinha  suspensa  em, um 
talim  bordado.  Os  calções  justos  e  affiveladòs 
abaixo  do  joelho,  e  á  meiaipiídiada  com  es- 
mero ,  completavam'  o  trajo)  do  capilãaJeròByiào 
Guerreiro,  o  official  mais  eatimado  do  ȏrctto , 
e  mais  bem  acceito  das  damas.    ' 


Digitized  by  VjOOQIC 


DE  ».  JoÀo  r.  231 

Õ  comiiiendador  estremecia  este  mancebo,  que 
tinha  sido  seti  pupillo  depois  de  perder  o  pai  aos 
quinze  anoos ,  e  a  mBi  poucas  horas  depois  de 
nascer.  De  uma  casa  rica,  do  sangue  fidalgo  dos 
cavalheiros  de  provincia,  Jeronymo  Guerreiro 
ftra  desde  os  doze  anitos  educado  por  Lourenço 
Telles,  devehdo-lhe  a  variada  ihstrucçào  que 
possuia ,  e  as  delicadas  .maneiras  que  o  torna- 
vam distincto.  O  velho  erudito  amava  o  seu  pu- 
prllo  como  filho ,  applaudindo  muito  por  isso  o 
seu  amor  a  Theresa ,  á  qual  logo  destinou  uma' 
parte  na  herança  da  sua  avultada  fortuna.  A  vo- 
cação de  Jeronymo  chamava-  o  para  tf  carreira 
militar ;  e  graças  á  intimidade  do  tutor  com  os 
homens  poKticos  conseguiu  merecido  accesso. 
Tendo  servido  cinco  annos  na  marinha  real,  des- 
gostoso de  viver  ausente  das  pessoas  que  presava, 
passou  para  o  exercito  na  arma  de  cavallaria ,  e 
foi  então  que  viu  e  conheceu  a  familia  de  Fi- 
lippe  da  Gama.  Na  guerra  da  successào  obteve  o 
posto  de  capitão ,  com  que  el-rei  o  premiou  de 
serviços  relevantes. 

Forte  como  Achilles ,  e  astnto  como  Ulisses , 
tinha  um  corpo  insensivel  ás  fadigas,  e  um  eá- 
pinto  que  se  deleitava  oom  os  perigos,  arrostan- 
do-os  pelo  gosto  de  os  encontrar.  No  conflicto 
dè  iima  carga  de  cavallaria ,  viam-no  amigos  e 
16 

Digitized  by  VjOOQIC 


23S  A  JI6CIDADI 

inimigos,  risonho,  sereno  «  invulnerável ,  abrir 
eamíobo  até  chegiar  ao  nraio  arrttcado.  Debaixo 
de  um  chuveiro  de  bailas  ouviam-no  citar  fria- 
mente um  v^rso,  ou  dizer  lun  gracejo,  com  a 
placidez  do  académico  na  sua  jpoltrona  curuK  O 
Marquez  das  Minas,  o  primeiro  capitão  desta 
guerra,  só  delle  coofíava  emprezas  temerárias. 
Os  outros  generaes  respeitavam  o  seu  valor  ^  o 
seu  talento,  e  o  seu  raro  sangue  frio. 

£  verdade  que  elle  da  sua  parte  também  sa- 
bia Cazer-se  respeitar.  Um  mestre  de  campo  tra* 
ctou  grosseiramente  a  officialidade  do  sou  regi- 
mento; devoraram  todos  a  ai&onta  em  silencio; 
Jeronymo  não  disse  nada,  fez-se  branco  somente, 
e  frisou  as  guias  do  bigode  entre  o  iadice  e  o 
polqgar.  Quem  o  conhecia  previu  um  desfor^. 
Depois  de  tudo  concluído ,  o  mestre  de  campo 
recolbia-se  a  Elvas ,  quando  viu  o  nosso  capitto 
correndo  sobre  elle  com  a  velocidade  do  relâm- 
pago. Chegando  ao  pé  do  official ,  já  transido 
de  medo ,  Jeronymo  perfilou  o  cavalio  com  o 
delle ;  pegou-lhe  na  mão ,  e  disse-lhe  secamente, 
mas  sem .  alteração  de  voz :  «  lembra-se  do  ^ue 
disse  ?  »  O  mestre  de  can^  ia  descu^r-se , 
porém  não  teve  tempo ,  porque  ibi  logo  atalba- 
do :  —  «  Não  responda ,  que  posso  ter  vergonha 
de  o  ouvir.  Receio  que  a  sua  espada  seja  mais 


Digitized  by  VjOOQIC 


DB  IK   JfOAO  T.  233 

mtktt  da  ^tie  a  Ktigaar.  Estamos  sds  i  trazemos  es-'' 
padas ;  é  o  ({ue  basla.  yi  O  pobre  homem  saarsh, 
tremia,  e  càhira-se.  <»<— Percebo !  coRtmuoa  o 
capttílo.  Ora  bem!  Podia  matal-o,  ou  cortar-íhe 
a  cara  com  este  chicote;  ma*  nHo  quero.  V.  m. 
nfo  Tale  umft  carga  de  pístollà ;  e  respeito  a  farda 
apes»t  de  despresar  o  covarde  que  a  veste.  Fi-* 
que  eutendendk) ,  porém ,  que  se  tomar  a  desço-' 
medir*^ ,  torço-ftie  o  pescoço ,  e  viro-Iho  para ' 
as  costas;  ao  mettos  uma  vez  na  sua  vida  olha-' 
rá  de  fretité  para  o  itiimigo.  Tome  sentido!)»* 
Dítò   isto   flton-o    e  sacudiu-lhe  o  braço  com 
tal  doçura  que  uma  semana   esteve  em  trata- "^^ 
mento. 

Em  quanto  se  deram  estas  explicações  indis- 
pensáveis o  commendador  mandava  preparar  o 
quarto  do  capit&o,  sentâva-o  ao  lado  de  Theresa, 
e  fatfa-lhe  o  prato,  setititido-se  remoçado  com  a 
sua  pfesença.  Fifij)pe  já  tinha  obtido  algumas  in-' 
fórma^S^  e  olhava  par*  o  recem-chegado  com 
tal  curiosidade,  que  Lourenço  Telles  julgou  con- 
vénietite  apresental-o  ao  sèu  pupillo  para  acau-* 
tclar  um  relance,  qnti  delicadeza  do  sobrinho 
tornava  mais  que  provavell  .       ,  .      - 

—  <í  Jerénymb,  aqui  está  um  defuncto  ressus^ 
citado!  É  tneu  sobrinho  Filippe  da  Gama,  qué' 
julgámos  morto,  em  quanto  eHe  comia  lagartos 


Digitized  by  VjOOQIC 


234  A  }kfactDj^>s 

€  serpezàtes  nos  serUtoi^  da  America.  Veni  achar- 
Bos  mais  felizei  do  que.  nos  deixou,  a 

£'  inútil  acrescentar  que  Filippe  recebeu  do 
mancebo  «s  devidas  felicitações ,  dadas  da  abun- 
dância do  coraç&o^  como  era  natural  da  parte 
do  amante  para  o  pai  da  mulher,  que  adorava^ 
Acabado  este  incidente  tomou-ae  geral  a  coa- 
Tersac^o,  e  Lourenço  Telles  encetou  o  capítulo 
escabroso  dos  casamentos  de  inclinação»  ponto 
que  discutia  todos  os  dias  com  seu  sobrinho,  para 
o  trazer  ã  observância  dos  respeitos  consagrados 
ao  bello  sexo.  Apenas  o  antiquário  expoi  o  as- 
sumpto, Theresa  fez-se  muito  vermelha ;  Jerony mo 
sorriu  para  disfarçar  o  sobresalto;  Magdalena  sus- 
pirou ;  e  Filippe  tomou  a  palavra  e  principiou  a 
refutação  das  ideas  ultra-líberaes  do  velho  sábio : 

—  «  Com  licença  do  tio — disse  elle  cm  alta 
voz —  esses  amoricos  são  asneiras.  Um  casamento 
é  um  casamento,  e  nSo  me  contem  historias. 
Faz-se  negocio  ou  não  se  faz.  £u  tenho  dez,  a 
mulher  traz  vinte,  serve-me,  e  caso.  Magdalena 
que  o  diga ;  nunca  lhe  puz  os  olhos  em  cima 
senão  oito  dias  antes  de  irmos  á  egreja.  O  mais 
é  frioleira.  Sei  o  que  digo,  » 

O  commendador  estava  em  brasa.  Tossia,  es- 
carrava y  contorcia-se ,  e  mostrava  jpor  todos  os 
mtàos  imagináveis  o  seu  enleio. 


Digitized  by  VjOOQIC 


pfi  D.  JOÃO  y.  23S 

—  c(Ent&o  compara  as  mulheres  a  um  fard» 
e  troca-as  a  dinheiro?  Casa-se  por  uma  conta  de 
sommarTf  Que  seja  prendada  ou  tola;  que  ame 
ou  aborreça  o  marido ;  que  traga  á  discórdia  ou 
a  paz  ao  seio  da  fámilia ,  isso  nBo  vale  nada.  O 
essencial,  é  que  derreie  quatro  gallegos  com  o» 
dobroens  do  dote  ?  »   . 

—  «Tal  e  qual!  Eu  cá  penso  assim.  NSo  me 
failem  de  rolihhas  e  de  rouxinoes ;  pão  pão ,  e 
queijo  queijo ;  o  mais  é  farelorío !  » 

—  c(  Bem  se  vé  que  sahiu  do  sertão !  »  excla- 
mou ò  erudito  escandaiísado. 

—  í(  É  a  minha  birra ,  e  acabou-se !  Não  en- 
gulo gato  por  lebrfe:  Ent]!o  que  quer?  Chega  um 
bonecrito  de  alcorce  e  entra  a  suspirar  diante 
de  uma  espevitada ;  fazem-se  piegas ;  piscam  os 
olhos ;  pizam-se ,  choramingam  ,  e  dizem  aos 
pais  que  estão  namorados  e  querem  casar.  Bello ! 
Se  fosse  eu,  pegara  de  um  páu  e  curava-os  logo  ; 
mas  ba  estômagos  para  tudo.  A  mãe,  tão  tola 
como  elles,  deixa-os  ir  ou  encobre-os.  O  pae  faz 
beicinho  e  cede.  Casam ;  e  dahi  ?  No  fim  de  dois 
mezcs  fòi-sé  o  amor  e  fica  a  pobreza.  Esgata- 
nham-se  e  desquitam-se.  Ora  muito  obrigado! 
Para  cá  vinham  de  berlinda.  Meta-se  alguém 
nisso ! » 

— •' «  Filippc  ^  bem  diz  :o  abbade ,  v.  mercê  é 


Digitized  by  VjOOQIC 


2^6  A    MOCIUAUK 

um  sehagem !  »  gritou  Lourençg  Telte^  fvermelbo 
áe  raiva. 

—  «O  abbade ? l »  —  clamou  o  sobrroho,  dar- 
dejando ao  defensor  do5  reiscaligrapbos  um  olhar 
ferino  — «  Pois  o  abbade  tem  a  conãánça  de  me 
chamar  selvagem  ?  £  então  que  capo !  Meu  díwifjf> 
feche  a  bocca,  e  não  engula  gato  por  lebre.  En- 
saboe €  penteie  os  caensiohos  da  marquesa  das 
Minas^  edeixe-sede  meter  o  nariz  na  vidaidbeíi, 
senão  agouro-lbe  que  morre  sem  costellas.  -» 

—  «  Sr.  Filippe !  j»  —  bradou  o  sypok>gista  da» 
barbas  históricas  —  «  não  se  exceda  comigo !  Es- 
tou cansado  de  aturar  a  sua  brutalidade. )» 

—  ((Sim?  Porque  não  nos  deixa  em  paz? 
Quem  lhe  pega.  Favoreça-nos  com  a  sua  au- 
sência. » 

—  «  Filippe ,  disse  o  commendador,  pondo^se 
em  pé,  côr  de  purpura,  dê  immediatamente  uma 
satisfação  ao  sr.  abbade  Silva.  E  se  elle  lhe  fi- 
zer a  honra  de  a  receber,  sente-se  e  porte-se 
com  decência.  Senão  pegue  no  chapéu,  6  saia.  » 

O  capitão  9  olhando  de  revoz,  resmungou  uma 
satisfação  ao  abbade ,  que  a  ouviu  com  a  digni- 
dade Imaginável.  Esta  noite  cotouHse  a  noventa 
por  cento  acima  do  par  o  seu  ódio  ao  frescm- 
tador  das  bexigas  doidas.  Lourenço  Telles,  mais 
sereno  depois  desta  penitencia ,  suppoe  a  occa- 


Digitized  by  VjOOQIC 


M  ».  JOÃO  V.  237 

9iãa  opfXHrtuna  para  tirar  uma  eonelusão  posi- 
tiva, e  por  isso  proseguia : 

—  «  Sustento  que  o  casamento  de  interesse  4 
mu»  tyrannia ;  e  Theresa ,  que  o  diga ;  se  ella 
não  amasse  o  noivo  quasi  desde  creança ;  se  elle 
nSo  a  adorasse  também,  desde  que  a  conhece, 
daríamos  consentimento  para  a  sua  nniSo,  minh(i 
sobrinha  e  eu  ?  De  certo ,  não !  Prezamos  mais 
a  felicidade  de  Theresa  do  que  as  maiores  ri- 
quezas ;  e  graças  a  Deus ,  o  que  temos  ainda 
chega  para  a  ddar. .  .  Mas  que  tem  v.  mercê 
Filippe?  Que  olhos  tão  espantados!  Estamos  em 
família ;  isto  são  coisas  sabidas,  j» 

—  «O  que  tenho ? »  —  exclamou  Filippe  es- 
fregando a  testa  e  muito  corado.  —  «  Tenho  tudo. 
Pelo  que  vejo  trácta-se  de  casar  minha  filha ,  c 
por  muito  favor  dizem-me  duas  ou  três  palavras. 
Vae  bonito.  Aposto  que  a  idéa  sahiu  dos  cascos  da- 
quetta  saresma?  Aqui  por  força  anda  o  abbade, 
e  a  sua  mania  casamenteira !  Isto  um  dia  acaba 
mal ;  eu  deito-me  a  perder  com  este  parasita. » 

A  alloeução  de  Filippe  e  a  sua  aposirophe  ao 
al>bade  Silva  foram  tão  abruptas ,  que  desata- 
ram todos  a  rir ,  menos  a  victima ,  que  repetia 
a  meia  voz : 

—  «cNão  ha  que  vér.  Q  selvagem  cada  vez 
está  peior!» 


Digitized  by  VjOOQIC 


&3S  A    UOí^IUlVBiS 

Acalfiiado  o  vm ,  citado  Filippe  «  4é  oovo 
para  se  conter  em  termoi  hábeis  sob  pena  à% 
exclusão,  continuou  o  dialogo: 

—  a  Posso  saber  quem  é  a  jóia ,  que  o  ti^ 
me  encaixa  para  genro  ?  » 

—  «  Um  cavalheiro  de  prQvi^cia  dos  mais  il* 
lustres ;  uma  pessoa  a  todos  os  respeitos  capaz  de 
fazer  a  felicidade  de  Theresa.  Quando  v.  mercê 
andava  pelos  matos  do  Brazil  a  assar  macacos , 
sua  mulher  e  eu  demos  a  nossa  palavra ,  e  ajus- 
tou-se  o  casamento.  Cuidei  que  estava  infor- 
mado. » 

—  '<  Não  estou,  nâo  sr. ! » —  Deixa  estar  sou- 
sinha  que  tu  as  pagaras !  disse  depois  olhando 
para  Magdalena  cheio  de  cholera,  —  «  Sabes  desta 
embrulhada,  e  não  me  dizes  nada?!  Fazes  de 
teu  marido  um  pâu  mandado!  Eu  te  ensina- 
rei.» 

—  «  Filippe !  »  —  acudiu  Lourenço  Telles  in- 
dignado. —  <f  Isso  não  são  termos  de  fallar  a  uma 
senhora ;  nem  de  fallar  a  ninguém.  Não  me  obri- 
gue a  dar  algum  passo  que  lhe  seja  muito  sensí- 
vel. Se  não  sabia ,  sabe-o  agora.  Bem  vê ,  The- 
resa não  podia  casar  sem  licença  de  seu  pae. » 

— « Agradeço-lh'o  muito.  Até  ahi  chego  eu 
sem  ir  a  Coimbra.  Tanto  não  sabia  de  nada,  que 
vem  cá  amanhã  um  antigo  amigo  para  lhe  mos- 


Digitized  by  VjOOQIC 


DC;  D.  JOJk)  V.  £39 

trar  Theresa  ^ ,  e  uo  caso  de  Ifae  setvir  elle  a  le- 
var se^  o  iio  não  mapda  o  contrario. » 

—  a  O  que  é  mais  que.  pvÒTavèl !  —  Que  idade 
tem  o  seu  anligo  amigo?  » 

•—^  A,  Sessenta  e  oito  aonos.  Homem  madiiFO, 
pé  de  boi ,  ca  dos  meus;  émfim.  3» 

—  c(  Famoso !  Aladuró  que  nem  uma  soryt  ? 
E  á  %ttra  ?  » 

—  a  Sofri vlel !  Para  diser  a^  verdade,  um  pouco 
p9Íor  do  que  eu ,  níias  é*  que  eu. .  . » 

—  «  Eotendo !  E  génio  ?  d 

-e-^aO  geèio,  tio  9*  o  génio. .  .  é  (tiscoaito; 
rào  o  nego.  Homem  do;  mar  costumado  a  cingir 
com  um  cabo  o  mai»  pitítado;  mas  olhe  ^  fóiii 
dos  repentes  é:um  cordeiro.  Se  a  ultima  mulheit^ 
que  teve. .  . » 

—  «Ah,  já  é  viuvo?'» 

-*-r  a  Três  vezes !  e  o  maldicto  é  capaz  de  en* 
Vftttvar  quarta. » 

•—^«  Isso  é  consolador  l  » 

•r-  «  Então  o  que  fiei  elle  á  ultima  mulher  ?  » 
.  <^— «Quasi  nada,  tia  Dett4he  o  seu  eiisino. 
fira  atrevida  de  lingua,  e  Bernardo  era  estanco 
quaite(é  o  seu  defeito  ^  tiodos  temos  por  onde 
perdar)Qão  soffre  graças;  A  Verdlide  é  qiieihe 
qudbpou  os  braços,  e  abriu  a  cabeça  umas  pou- 
cas dé  veaes;  assim  mesmo  morria  por  elle  t» 


Digitized  by  VjOOQIC 


240  A  MOCIM0B 

-*-<(SíiB? — ^itou  O  velho  erudito  qut  st 
contWera  a  custo.  —  Pois,  sr.  Filippe,  saretse 
gaDego  tíver  a  lembrança  de  entrar,  sé  (pie seja 
entrar  aesta  casa ,  conte  que  sabe  peia  jauella 
.a  pontapés  dos  meus  lacaios.  Um  bá»do !  Um 
bruto '  Um  marujo !  V.  mercô  é  idiota ,  é  i»- 
capaz  de  estar  diante  de  gente,  n 

—  «Tio,  tudo  isso  assim  será,  mas  per«> 
guRto;  quem  é  o  pai  de  Theresa? 

—  V.  mercê  não  é  nada!  Quero  diser,  eM 
doido.  Não  se  arrisque  a  desoiKdeceivme  tra- 
zendo aqui  similèante  compendio  de  vicios !  Que 
os  meus  olhos  o  não  vejam  por  seu  bem  e  delle. 
LembiKHlhe  que  ha  torres  em  Portugal ,  e  qoa 
tenho  amigos.  Agora,  se  deseja  conhecer  o 
noivo  de  Theresa,  levante  a  vista,  e  compana, 
(se  não  tem  vergonha  de  o  faser)  o  alarve  de 
que  fallou  ao  meu  pnpilfe  Jeronymo  Guerreiro. 
Dé  graças  a  Deus !  O  amor  que  elle  tem  a  sua 
filha  ha  de  decidil-o,  apeear  do  que  ouve,  a 
ligar-se  com  um  sogro  oomo  V.  meroé.  » 

Qs  cbrcurastaiKtes  estavam  corridos  da  seena , 
que  presettoeavam.  Magdalena,  cboirosa,  solu- 
çava ;  Theresa  olhava  para  leronymo  com  ar 
flopplicante ;  Geciiia,  vormelha,  como  uma  rosa, 
pcliecia  por  sua  mie  e  por  sua  irml ,  ao  mesmo 
tempo.  O  pupillo  do  conunendador  encolhia  oi 


Digitized  by  VjOOQIC 


Dfi   P»    JOÃO   Y.  241 

'  ium3>roi(i)  IriíMiva  o  bigode  4;om  os  dedos  ^  e  aot- 
WAva  TberQsa  com  m  olhoi.  O  éMàt ,  cúm  o 
i^fito  embutido  em  paches,  re  as  «dres  da  iia 
4Mieesa$.  mss  Jaces,  encostava  a  b«rba  á  palma 
^a  mdo,  QQfA  tt^eaeiosa  dt^idade.  Fr.  Ja&xr, 
eMvulfio  e  envcargoiíbado,  amiudara  par  baigoo 
da  nica»  os  pontapés  nas  camltas  de  Filippe , 
para  ^  advertir,  da  sua  incõngriieDeía ,  e  reòeiMi 
em  paga  «ma  Uaçpbemía  oa  uma  iniieifaí^ 
jatali  Finalmente  J^raayv^  Gneireiro  levan- 
toii*se,  e  cliegaiido-se  a  Filippe,  disae-lhe  oam 
roapeito  ^  delicadeza : 

— :<(  O  sr.  Filippe  p<ide  estar  certo  de  cpiesoa 
iDcapaz  de  receber  a  mão  de  Theresi  contra 
voiHade  de  seu  pae. » 

*-r-:«  Sim?  JEkimo.  Afoa  nãe  t»ha  cuidado; 
até  ^0  levairtat  dos  ^cestos  é  a  viodtma.  i> 

— '  <c  Nfto  gaste  cêca  oom  nuns  def utitos ,  Je- 
roayraa*  »  — ,^ttdiu  Louresco  Tdka. 

— -«  Pos^  ^h^  que  defeitos  devo  corngir 
pAFâ  m^iecer  a  sua  hmináel  » 

----«Pôde,  sim  seobor.  Mas  antes,  fat  (ah 
Yor ,  respoode-me  a  «ma  coisa  ?  » 

—  c<  Com  todo  o  gosto,  yt 

— «  Esteve  íik^a  do  reioo  ?  » 

— «  Çiqeo  annos.  »    : 

— «  Bom.  Viu  tó  traetar  algum  pae  como 


Digitized  by  VjOOQIC 


243  A   MOCIDADB 

€u  SOU  tractado?  Âgcnra  quer- que*  Uie  árga  a 
verdode?  O  qué'eu  áesejo  ^ra  Theresa  é  um 
marido ,  que  não  caia  do  bote  com  o  balanço 
da  maré;  e  não  efifie  de  medo  vendo  um  jaca- 
reu  empalhado,  (^ero  má  marido  homem ,  « 
iiio  um  marid#  piegas,  enjoado,  e  todo  sopí- 
nbas  de  mel.  Percebe?  Islo  não  tem  replica.  O 
tmhor  é  um  militar  de  agua  doce ,  e^  ASo  me 
eonvèm.  Adeus  meu  amigo ,  tenho  dito.  »  ' 
..  —  «  JérooymoídehDe  esse' urso ! -^  gritou  ^ 
cttmmenda^r  com  a  ira*  a  fu»]ar  nos  olhos; 
porém  o  mancebo  fez  que  não  percebia;  e  sem 
ãe  desarmar  da  paciência ,  com  que  ouvira  tudo, 
continuou:  .  i  .        . 

—  c<  Engana-se.  Antes  desta  farda  vesti  a  dá 
marinha  rnl.  Não  ser  se  a»  ondas  da  bahia  de 
Biscaia,  e  dô^  golpho  Pérsico  tôo  doces ;  ou  ^  as 
aguas  de  Gòa,  de  Malaca,  e  da  America,  s9o 
serenas:  ^gan»  quem  as  navegou.  O  que  sei  é 
que  vi  fuetlar  os  raios  no  Gabo  da  Boa  Espe 
rança,  e  ouvi  rugir  o  pampeiro  nas  costas  dd  Brar 
si].  €reio  que  isto  chega  para  não  enfiar  no  mar.  » 

—  «  Falia  serio?  È  dos  meus?» 

—  «  Muito  serio.  » 

—  «  Bem  I  Porque  níò  dizia  iáso ,  homem  ? 
Toque!  O  que  fazia  nesses  assada,  aqui  para 
nós^,  da  pelle  do  d^nonio?  »' 


Digitized  by  VjOOQIC 


-í— .tf  Qiiaes.asaqidoí  ?  >. 

--^«  Os  pampetro&!  » 
.,-^.«  Ah!  .Foaco.mf^is  ou  menos,  a  que  fii 
•BI  Sblaca  <  em  lum  dia  de  tona^nta.  LÔmbra- 
M  da  nau.  Qm$êi§àa  da  Tijo?  » 

~^ «  PoÍ6  1^0  lemlHro  i  Bonita  quilha ,  ^ 
signall) Tanta  m^  lembro  s  V^^  se  elia  n9o  viesse 
a  Malaca  .estava  agora  na. barFÍga  de  algum  tu- 
bardo.  Foi .  sabbado ,  dia  de  S,  Barthoiomea , 
nlo  me  esquece  nunca.  SaU  do  porto,  na -minba 
lancha,  com  a  raanhS  de  rosas,  e  o  mar  de 
leite.  Sobre  o  meio  dia  carregou  o  tenipo,  e 
levantooifa  o  vento  ;---*aquelle  excomui^ad^ 
vantíiibo  qoe  sabe ;  que  é  um  cavallo  á  desfi-* 
lada.  Bomi  estamos  servidos.  Âmaina-se  a  valia ; 
vamos  a  ramos;,  qual I  Pah,  pah!  Era  eada« 
pancada  no  costado,  qiie  gemia  a  lancba.  Safa!' 
Em  fim,  psra  encurtarmos  rasães.,  uma  <Hida 
como  uma  montanha  desaba^  apfinhji  .a -casca, 
de  noz  atravessada,  e  vira*ma  de  tampos  paaa 
o  ar.  NBo  sei  como ,  açbei-me  acavallo  no  mas- 
tro, e  aganrei-me.  Digo-Ihe  que  nunca  bebi  tanta 
agua  em  minha  vida ,  pnpb !  O  caso  é  que  es- 
tava a  vinte  braças  do  porto ;  via  os  amigoa  /al- 
iando muito ,  mas  sem  holirem  pé  nènji  mão ,  e 
eu  a  afogar^me.por  um  triz.  Que  amaldiçoada  ca- 
nalha é  aquella  gente  baça !  Oe  repente  um  e»* 


Digitized  by  VjOOQIC 


344  A   «(ICIDAIDE 

ealersinho  lahe  pela  popa  dá^  »»«,  é  bãlétrdt' 
qui,  boleu  dacolá,  proa  abaixo,  prda  ditam, 
yf^yH>  ?eficerH(ii6  a  corrente,  cortar  o  tuClo,  a 
d^l^ir^ie  ao  pé  de  mim.  Nmea  o  perdi  dá 
idéa!  Trazia  só  uni  rapaz  de  den^  «Mtfos;  a 
clrara  escorria-lbe  da  cabeça  até  aos  pés.  Vinha 
amarrado  peia  cintara;  e  remava  coma  quatro 
bons  makiros  és  TezM  não  remam.  Mesmo^jt  ao 
pé  de  mim  bate  nma  rajada ,  e  orna  onda ,  <p)^ 
ntetleu  o  escaler  quasi  debaixo  de  agaa. .  .  .  Bs^ 
tamos  gualdidoê,  disse  eu!  Qual!  O  escaler tirit 
com  orna  força  tal,  e  nma  ra{nde<,  que  a  se- 
gunda onda  nio  o  apanhou  já  atraTess<RÍlo.  D^ 
pois  o  rapa*  deiton^me  um  cabo ,  eu  segui^V 
e  d^abi  a  nada.  aehei-me  dentro.  No  meio  d^ 
petígo,  com  a  morte  diante  de  si  a  cada  ins- 
tante, juro-lhe  que  a  creança  estava  socegâdí 
como  se  passeasse  por  sua  casa.  Hei  dè  lembrat'- 
me  sempre  do  sorriso,  com  que  me  díM' 
«  Chegue-se  um  pouco;  o  mdhor  da  festa àíndâ 
nSo  passíou !  »  Com  effeito  disseram-me  depois , 
que  tinha  sido  o  diabo !  » 

— «(  Dissêram-lhe?  Pois  nío  ia  dentro?» 
—  interrompeu  o  velho  erudito,  que  se  agasa- 
Ihiava  com  a  sensaçSo  égoista ,  que  dá  o  con- 
chego ,  quando  sentimos  assobiar  ó  vehle  e  (Ja- 
hir  a  chuva,  áchando-nos  ao  pè'  dè  um  bom  fo^. 


L^ 


Digitized  by  VjOOQIC 


BB  9.  joie  if^  34S' 

— 4i0Í80era]R,  sim  scsihcr:  poi«p^  un  ho- 
mem não  é  de  ferro ;  e  não  sei  tomo,  «o  eo-- 
trar  para  o  escaler  apashei  uma  brecha  n»  ca- 
beça, que  me  estaiu  em  sangue*  O  caso  é  quê 
perdi  k>go  os  sentidos,  e  quando  tomei  a  mim 
esteve  pa  eama ,  e  a  salvo  de  todo  o  perigo.  » 

-*«-«£  nuiica  soube  quem  era  o  rapaz  ?  >> 

—  a  Nunca !  Na  madrugada  do  dia  segBtote  v 
sahiu  a  nau,  e  por  mais  que  perguntei,  nem 
rasto  do  meu  tritlo*  Dava  mil  dobrões  a  quísm^ 
me  desse  noticia  delle.  ía  á  índia  outra  vetv* 
olé  se  bia.  » 

-^«Nâo  é  preciso,  sr.  Ftlippe  » —  atalhou 
Jaronymo  sorrindo.  Depois  levando  as  mãos  «os^ 
esbejios^  espalhou*^  pelo  pescoço^  deu  ao  rosto 
unu  expressão  risonha  e  audaz,  e  carregando 
os  olhos  de  luz ,  atirou  com  um  gesto  de  sum^ 
ma  ousadia  a  cabeça  para  traz,  duendo  em  voz 
firme 9  porém  juvenil:  <i  Capitão,  nestes  nMe- 
res,  os  homens  kasem  a  vida  a  juros,. e  um 
deacuido  custa  caro.  Bebe  um  copo  de  agua 
ardente  de  caju?  » 

— «  É  elle,  é  elle!  » —  gritou  Eilippc  abra- 
çando e  beijando  o  mancebo.  >>**-^  São  as  pala- 
vras que  me  disse.  É  a  sua  figura,  o  seu  mpdo, 
a  sua  voz.  Magdalena ,  filhas ,  ajoelhem !  Aqui 
este  quem  salvou  seu  pae.  »  • 


Digitized  by  VjOOQIC 


246  A  «dcíBAte' 

hso  Bio  vale  nada.  » 

—  •  É  um  hetoei  Iteto-llie  a^  vidai. »  — 
dtmavft  Filippe. 

--^•fDe?e-á  a  Deus.  Sabe  o  que  Ihè  jpeço? 
Para  outra,  vez  tenha  iftaiícharidedééoíhnoM, 
com  os  soldados  de  agua  doee.  Conheço  mil , 
mais  destemidos  do  que  éu  no  'mor.  i^        - 

-*-«  £s6a  é  que  eu  não  creio  i  Pois  sr.  Jero-' 
nymo,  corac&o  nàs  nfôos,  veja  o  que  mimda/ 
porque  tudo  o  que  teolio  é  sM.  Sem  cerèmonitft 
Gosta  de  Theresa  e  ella  do  sr.  Jeronynfio?  Ca- 
sem ,  quando  qqi2erem ;  -  dêmos  que  ella  nio 
queria,  era  o  mesmo,  casava  com  anginhoa^  nss 
dedos.  Quer  Cecília?  Prompto!  Quer  «mbasr 
faço-me  turco,  e  dou^lhas.  È  claro  comb  agfiti. 
Salvoa-me  a  vida.  Eu  cá  penso  a^im.  n 

Jeronymo  aorria^e  e  i^pondia  a  Filippe  com 
abraços.  Lourenço  Telles  esfregava  as  mãea  da 
prazer ;  e  as  meninas  choravam  de  riegria. 

—  «  Ab,  Jeronyrao!» — «disse  o  velho  eru- 
dito—  «os  rapazes  de  agora  sabem  mais  doqiie 
os  velhos.  Conheceu  Filippe,  e  calou-se.  Que- 
ria esperar  a  occasi9o,  e  confundir  esta  Epbi- 
genía  masculina,  dando-lhé  o  Orebtes,  que 
chorava  ?  »  r 

—  f(  Cartas  na  meza ,  jogo  liso !  —  respondeu 


Digitized  by  VjOOQIC 


BE  D.  JOÃO  y.  247 

o  mancebo.  Ao  principio  &ão  cooheçi:  o  sr.  Fi- 
]ippe.  Depois  de  o  vêr  e  ouvir  um  pedaço  é  que 
me  affirmei  nelle.  Estimo  infinito ,  que  um  acaso 
feliz  me  proporcionasse  a  occasião  de....  prestar 
ao  pae  de  Theresa  um  serviço  insignificante.  » 

—  «  £  sem  saber  ainda  que  o  ^a !  » 

—  «  De'  certo  j>  —  accudiu  Filippe.  —  «Eu 
casei  no  Porto ,  e  de  lâ  parti  para  a  índia.  Três 
annos  depois  deram-me  por  morto.  Minha  mu- 
lher veio  para  casa  do  tio. ...» 

—  «  Seis  mezes  depois  da  sua  partida.  É  evi- 
dente; nesse  tempo  nem  leronymo  conhecia 
ainda  Theresa.  Embarcou  também  um  mez  an- 
tes ^ella  vir  para  Lisboa.  Mas ,  diga ,  sobrinho , 
que  tal  acba  seu  genro  ?  » 

—  «  Óptimo ,  tio.  Ouve ;  se  amanhã  vier  ? . .  » 

—  «O  elephante  do  seu  amigo ?....» 

^ —  «Justo !  Domingos  que  o  sacuda.  Oh ,  tio 
quando. hão  de  elles  casar?  « 

—  «Se  Theresa nae  fizer  as  vontades ;  se  rou- 
bar ao  seu  noivo  dois  beijos  para  dar  ao  avosi- 

nho,  em  fim  se  não  pedir  muito Casam 

daqui  a  oito  dias.  » 

— «  Theresa ,  falle ,  dê  os  beijos ,  peça  ao 
avô  1 » *-^  gritou  Filippe. 

—  «  Peço  eu  ;  ella  dá-me  procurac&o  . ,  .  . » 
—  disse  Jeronymo  sorrindo. 

17 

Digitized  by  VjOOQIC 


248  A   MOCIDADE 

— ^  d  De  vagar  com  os  dois  beijos  I  Para  esses 
não  admitto  procuração  »  —  acudiu  o  yelho  cheio 
de  jubilo. 

—  «Posso  agora  dizer  duas  palavras  a  The- 
resa ,  e  dar  uma  lembrança  a  Cecilia  ?  » 

—  (xJã  lhe  disse:  o  que  è  meu,  é  seu.  O 
que  quizer.  Sei  o  que  faço  »  —  respondeu  Filippe 
sepultando  as  mãos  no  enorme  bolço  da  casaca. 

Jeronymo  disse  duas  palavras  á  sua  noiva,  que 
entrou  logo  com  a  irman  para  a  saleta  imme- 
diata ;  em  quanto  o  mancebo  ia  de  volta  buscar 
o  presente  que  trazia  à  menina  bonita  do  com- 
mendador.  —  Apenas  elles  desapsoeceram ,  Fi- 
lippe, saltando  aos  beijos  em  sua  mulher,  com 
grande  escândalo  do  abbade,  e  muitas  risadas  de 
Lourenço  Telles ,  exclamava  : 

—  «  Tens  mais  juiso  nas  solas  dos  pés  do  que 
eu  em  toda  a  cabeça  ,  Magdalena.  O  rapaz  é 
uma  pérola.  Mas  ha  de  levar  um  dote. .  .  de  ar- 
rombar o  costado  aos  invejosos.  Tu  verás  t  Hei 
de  dar  que  Jfallar  em  Lisboa !  » 

—  a  Pelo  amor  de  Deus ,  sobrinho  É  capaz 
de  me  deixar  sem  uma  cadeira,  se  lhe  dá  para 
fazer  bulha!» 

Todos  se  riram ;  e  Lourenço  Telles,  retirando- 
se  de  parte  com  Filippe  e  Magdalena  começou 
a  tractar  com  elles  das  condições  do  casamento. 


Digitized  by  VjOOQIC 


índice  dos  capítulos. 


Duas  palavras  de  explícaçSo i 

CAPITULO  1  —  A  verdade  de  um  rifto  no 

adro  de  S.  Domingos i 

CAP.  II  —  Mais  vai  só  que  ma!  acompa- 
nhado   , . . . .  17 

CAP.  IH  —  Um  retrato  em  um  convento  4t 
CAP.  IV  —  Se  o  habito  não  faz  o  monge , 

o  veu  não  faz  a  freira S6 

CAP.  V — Petrus  in  cunctis  est  Petrus  in 

vinculis 69 

CAP.  VI — De  um  argueiro  faz-se  um  ca- 

valleiro 98 

CAP.  VII  —  Ulisses  abraça  Penélope!. ..  117 

CAP,  VIII— Pelo  amor  se  ganha  o  céu. . .  146 

CAP.  IX — Donde  não  se  espera  vem  o  bem  1 63 

CAP.  X  —  Luz  e  sombra  1 « . .  17S 

GAP.  XI  —  Muita  bulha  para  nada ! 199 

GAP.  xu  —  Fílippe  eu  terra  d^amigos  .  •  227 


Digitized  by  VjOOQIC 


Digitized  by  VjOOQIC 


HOCDiWE  DE  D.  MO  V, 


POK 


Lf  A.  EEBELLO  DA  SILVAí 


TOMO  II. 


LISBOA 

TTrOGRAPHIA  DA  REVISTA  UNIVERSAL 
Rua  dof  Fanqueiros,  8S 

1852 


Digitized  by  VjOOQIC 


Digitized  by  VjOOQIC 


i     "i    '  w 


MOCIDADE  DE  D.  JOÃO  V. 

ft®Sfi£S(BB. 


CAPITULO  XIIL 

KEM  irDO  O  QUE  LUZ  É  OIRO ! 

Davam  nove  horas  na  egreja  do  Loretto.  O 
dia  agreste  e  carregado  estendia  sobre  a  cidade 
nm  toldo  de  nuvens.  A  chuva  cahía  miúda  e  con* 
tinua ;  a  espaços  os  echos  repercutiam  o  surdo 
e  rolante  estampido  dos  trovões ,  voz  lúgubre  da 
tempestade ,  que  circulava  ao  longe  os  horison- 
tes.  O  clarão  açafroado  dos  relâmpagos  lanibia 
de  vez  em  quando  a  corda  dos  montes,  que  além 
do  Xejò ,  e  defronte  de  Lisboa,  levantam  uma  li- 

T.  M  1 

Digitized  by  VjOOQIC 


%  A  UOCIDADE 

nha  cinzenta  e  irregular,  neste  momento  qoasi 
fechada  por  mna  coptína  áe- ehwcirosi.  -  - 

y iam-se  as  ruas  desertas ;  apenas  uma  ou  ou- 
tra mulher ,  encolhida  de  frio ,  embuçada  no 
manteo  até  á  altura  dos  olhos ,  pizava  as  cujas  e 
mal  unidas  calçadas.  Somente  se  divisava  o  ca- 
pote 1^  o  çhsypop  de.  qunfar  do  jwfi^m  activa,  sal- 
tando pé  aqui\  pe  acotó  os-  riachos  que  se  cru- 
zavam dos  beccos  e  travessas.  As  janellas  com  as 
rotulas  corridas ,  e  as  portas  cuidadosamente  cer- 
radas ,  inculcavam  que  a  população ,  recolhendo- 
se,  fugia  da  tormenta,  já  eminente  sobre  a  ci- 
dade. 

Na  casa  professa  de  S.  Roque ,  no  dormitório 
de  cima,  havía.um  japosefitqiÇiflsKOSo,  agasalhado, 
e  cheio  de  estantes,  que  o  vestiam  d^alto  abaixo, 
chamado  a  secretaria  reservada.  A.  imagem  do 
patriarcha  St.^  Ignacio,  curiosamente  lavrada, 
^rg^ifi-se  no  topo  em  .vulto  quasí  n^ti^al ,  qllu- 
miada,  por  duas  alampadas.  Doze  poltroiu^t  Uf- 
gas  e  maciças  circumdavam  um  dess^es  l^fete^ 
gran^qs  para  o  njiajor  aposento,,,  e  pps^dos  p^ra 
9  mdhor  sobrado.  Tinteiros  e  pdgtas^  de  papais; 
livros  de  cpmmerciq  monstruosos ;  maçoi^  4e  c9St 
tas;  ^  cofres  mafc^e^<jbs  de  dif&rçntc^.  tama- 
nhos; çybriam  9  I;^f@te.  D^e^rp^te  d^  poirt^da 
£0trad^  ^bri^-se  outci^  raa^Siejstf^ita,,  cuja  cMi9 


Digitized  by  VjOOQIC 


mata  «empre  o  Superior.  Esta  easa  fechada  er^ 
um  sagredo  impaoètrav^I  para  os  padres  que  nto 
lof mavam  o  dafiaitorío  secreto  da  companhia  àm 
Jesuf. 

Seriam  oito  minutos  depois  das  nove  horas.  O 
sino  da  egreja  toteava  á  ultima  missa,  ehamande 
os  fieis  á  oraç&o  e  ao  sacrífieiò.  Qa  eonfessores» 
efaeiòs  de  aoimo,  eiobuçavam-se  aas  capas,  açor 
diiido  a  espertar  o  selo  das  devotas.  Os  pkiksQr 
phos  e  os  litteratos  reviam  as  mais  escabrosas  par 
ginas  4os  seu»  livros,  eoaiparaiido  te^s  e  cor* 
rigindo  notas.  Os  caiseírofi  de  roupeta ,  sentados 
ao  Welb,  eseriptiiravam  a  contabilidade  da  con- 
^^^e^çiov  mais  rica  a  complicada  talvez,  do  que 
a  4a  oas»  dos  oontòs  d'el-rei.  Em  fim  os  politi*- 
cos,  os  conselfaeiíros  :occúltos ,  com  mil  catitellas , 
esqui vavanHse,  apparecepdo  logo  depois  na  secre-- 
tarm  reservada.  Em  toda  esta  religiosa  casa  uiiiiH 
se  a  actividade  á  bem  calculada  dktríbuiçlo  do 
iFahalho.  Tiido  se  mukiplicafva  desde  o  acelo  até 
i  riqueza. 

O  conselho  secreto  havia  duas  lu^as  que  áa^ 
rà^a  na  casa  indicada ;  as  portas  estavam  esoru- 
pnloaameote  fachadas;  os  reposteiros  ootridos;  as 
grossas  paredes  eram  discretas;  os-altds  sòbradsii 
lâo  deixavam  passar  a  voz.  Em  face  da  entrada 
vifl^«  a  porta  de  uma  eelb ,   á  ({cuid  de  vea  en 


Digitized  by  VjOOQIC 


f  A   ItfOCIDABS 

quando  apparecia  a  cabeça  branca  e  a  vasta 
fronte  do  padre  Ventura.  Espreitava  um  mo- 
mento, encolhia  os  hombros,  e  tornata  a  sumir- 
se  sem  mais  alteração.  Esta  scena  muda  k«pe* 
tiu*^  umas  poucas  de  vezes.  De  repente  ouviu- 
ae  o  rodar  de  uma  sege ;  sentíu-se  parar  á  por- 
taria ;  e  viram  todos  apear  um  jesuíta ;  passados 
minutos  o  passo  firme  e  a  alta  estatura  do  padre 
Dotaram-se  em  direcção  á  casa  das  conferencias^ 
Chegando  á  porta  o  jesuita  deu  com  a  mão  eerU> 
numero  de  toques ;  esperou  um  instante ;  e  foi 
immediatameiite  :admittido. 

Entfio  é  que  o  padre  Ventura  saia  da  cella , 
e  de  capa ,  com  o  chapéo  na  m&o ,  como  quem 
vinha  de  fóra,  seguiu  as  pisadas  do  outro  jesuita* 
Somente  nos  signaes  variou  de  numero  e  de  força; 
Os  seu»  eram  mais  rápidos,  e  mais  rijos.  De 
dentro  responderam  com  um  toque  de  preveni^ 
para  verificar  a  identidade  do  adepto ;  e  ouvid» 
nove  pancadas  suecessivas  a  porta  descerròu-^se ; 
a  entrada  foi-lhe  patenteada ;  e  todas  as  difficul- 
dades  desappareceram. 

Entrando,  o  padre  Ventura  achou-^  diante  do 
Superior^  e  trocou  com  elle  o  toque  symbolico 
dos  definidores  occultos  da  companhia.  Cinco  só- 
cios compunham  o  definítmo  secreto  da  provin- 
eia  de  Portugal;  e  pestes,  quatro  estavam  assenr 


Digitized  by  VjOOQIC 


todos  C0ta  grmdes  pastas  de  papeia  abertas  4iaDte 
de  si.  O  confessor  de^.  Pedro  II,  o  padre  Se- 
bastião de  Magalhães,  tiomem  gordo,  corpulento, 
e  coinpiiss9do  eiit  palavras  e  gestoç,  passeava  pela 
qasa  olbando  de  revez  para  o  recemcbegado  é 
que  provavelmente  o  viera  interromper. 

O  padre  Ventura  ndo  porecia  o  ní>esmo  homem, 
Tioba  despido  a  pbysioQomia  da  eterna  dSTabili-^ 
dad!e ,  que  lhe  servia  de  mascara.  O  sorriso  per-^ 
m^pentç  já  não  (IcMnescía  nos  lábios;  riscolhianse 
aos  cantos  da  booa  em  uma  prega  mais  severa 
do  qtue  amena«  Os  olhos  tinham  luz,  mas  refle- 
xiva o  penetrante;  as  feições  tinham  expressão, 
porém  fria  e  concentrada.  Apesar  dos  annos  o 
corpo  bem  direito  carregava  sem  fadiga  o  peso 
da  idade;  a  cabeça  nHo  descahia  nem  se  íboIÍt 
nava  para  a  terra;  pelo  contrario  firme. e  reso- 
luta «  olhava  talvez  de  mais  para  cima ,  para  as 
alturas  do  ceu.  As  maneiras,  d^antes  encolhidas 
e  humildes,  desatavam-^e  a^ra  com  o  desemba- 
raço que  dá  a  força  e  o  poder.  Do  homem  velboi 
do  antigo  jesnita  obscuro,  obedíentOi  e  passiva, 
que  todos  conheciam,  nada  restava.  A  chrysalida 
rompera  o  cárcere,  voando  sdíta  e  forte  pelos  es^ 
paços  infinitos  da  liberdade. 

Costumado  aos  segredos  tortuosos  da  politica 
jesuiUcK ,  o  Supçrjor  i^o  agourou  nada  boro  4o 


Digitized  by  VjOOQIC 


8  A  HMiDAM' 

(8os(Á>lta  tfanisforfiia^o;  e  qnit  séieltm  h''èqoelii» 
rosto  impenetrável  a  pHmeíra  ptrase  doeifygma  r 
debalde!  a  finutâ  davifila  desarmou  o  s^U  olhar; 
á  itigetioidâde ,  verdadeira  ou  Sngida,  do  sem-^ 
blante  derrotou  as  iiiterrogaçõesi  De^ta  Veí  a 
sphinge  cónfiitidía  Oedijpo !  Desesperando  da  atia« 
l^se  tacita  o  reverendo  padre  appcttoq  para  a  pa^ 
hvra,  fítnWio  do  oi^^atfao  de  levantar  sequer  uma 
pòitla  ao  vea  que  lhe  eneUbrfa  o  tinfj^teirio,  IPor 
ifl$o  compondo  o  rosto  e  a  tM  exolamoa  com  n 
ttiaift  assocárada  benevolência : 

-^(t  O  qde  é  istd!  Unhamos  entre  ndis  mnt 
irmão  distindot  T.paternidade^neubHndoa  sua 
t)ualidade  ignota  o  prejui«ò  qtie  Ytos  fez,  pénten-* 
éo-áe  u^  voto  respeitável  ?  ^  Uma  setisfoçSo  no» 
resta ;  não  foi  por  nossa  culpa !  Jii!gàmol^>  eti-^ 
tregue  â  dllrec^o  espiritual  das  ahoas  {  dízia^^^m 
que  passava  è  índia,  â  China,.,  é  o  que  nos  de-i 
trem  a  saber  de  Roma, 

Um  ^rti^mais  do  que  amarello^  fugindo  pe^ 
los  beiços  flrios  do  italilano,  provocou  no  illustre 
areópago  ^  ainda  maior  euriosifdade.  Depois  a 
bella  fronte  do  padre  Veutuira  derribou->se  sObre 
os  sobrolhos ;  a  vista  cortante  e  aguda  cratouHM 
no  coração  do  interlocutor  e  dos  ouvintes;  e  ca-r 
hiu  depois  indiferente  em  um  maço  de  papeis 
que  trazia  na  mão  o  confessor  d^el-rei.  Aateède 


Digitized  by  VjOOQIC 


réS^poriddr,'^  f aA^è  VeMãrá  Umlià  de  teve,  b  in- 
eUncfiHié  cmA  respeito:  depois,  segundo  o  teu 
eodtutlie,  dí^sé  roplicdiido  6  tàlúiUtó  ibatá  protf tnèí : 

—  ée  è  Verdade  5  a  diré6ç»<»  esj)ínt6al  íbi  é  ha  de 
ser  Mm^te  a  eeiuiraçãò  ptererida  da  riiinha  vida. 
Auxiliar  a  í)r6gaçdb  do  evangelho  nò  Oriètrte  otf 
M  Amertea;  <;ot*ar  o  fàcto  da  tQniéé  lias  ttvas 
pcrt-puras  do  naftyriò  i  padre  provincial ,  eis  0^ 
tolo  ardente  do  mea  ebraOSo,  jà  ftío  e  cançádo' 
para  eeisas  mais  aetivas.  N&tí  quíz ,  nem  qtiero  4 
aiilda  holje  tn«dar  de  èamibíio...  EHtli^taritò,  beilí 
sab^  I  déf '  mÀSo  nãó  temo^  senSo  ás  boas  obMs , 
que  se  eontam  no  eeu.  O  corpo  ha  de  it  parrf 
ènde  lhe  disserem';  a  voi^cle  ha  de  .ser  uma  es- 
eFava.,i  Pedi  qte  me  dáíassenv  morrer  nos  ser- 
tt5eí?,  cravado  ha  arvoítí^  atanéfíado  áo  bràseirW 
enfi  que  ás  iMlos  do»  selvagens  expirtfram  tantos 
sdnctos  da  nossa  eompantiia!,,.  E<^pei^aVa  esta 
graça  depois  dè  uma  vèlhíM  trabalhosa !...  nâd 
pôde  ser!  A  soberana  sabedoria  do  gera)  qnii 
èutra  Céiêa— i-S(^a  ferta  a  ^a  vontade  na  terra, 
e  a  de  Peus  no  ceu.  Nfio  mé  qàeíxo  ?  alégro-me, 
£  mais  ume  dõr  que  offereço  Aquelf^  que  pade- 
ceu tántaS  por  me  salvar...  » 

«  De  certo !  Mas  estiVeraòs  todos  até  hoje  ení 
completa  ignoi*ancía...  Apenas,  pòr  ôcéásiâo  da  sua 
vinda  se  rios  i  kz  saber  que  úm  soein'  nosso ,  v. 


Digitized  by  VjOOQIC 


paternidade,  devU  <r  .em  mavfo  i^asa.  a  InáMi ! 
!lplra  impossível  adivinhar  t-^»  insistido  provincÍAU 
derrotado  na. sua  penetração,  e  cada  vez  também 
mais  sequioso  de  devassar  um  iiegredio  importante. 
pepoí$  y,  paternidade  pela  sua; parte,  nunca  to-* 
çpu.em  ficar  ou  sair,  e  de  tudo  isto  r^esulia...  ^ 

— «  Que  não  souberam  nada,  £  exacto»  Pois 
a  mim  soccedeu^me  outro,  tapto.  Posso-]h'o  as- 
ipegurar : .  é  a  verdade.  Chaguei  aqui  deveiido 
partir,  e  achei  ordem  de  esperar,  Y.  r^verend&s-^ 
sima  até,  se  me  lembro,  (oi  quan  a  intimou* ., 
Não  soinos  sei)h,orps,.  obedepi !  Mandaramrme  tí^ 
Yer  só  e  silencioso ;  aaleir^mer  Hoje  quem  pôde 
diz-me;-«f^o  mudo  deve  fallar;  o  paraíitiet)  deve 
caminhar;  e  aqui, estou  no  meio, de  ^ÓH  tirando 
tanta  sati^façio  da  obediência,  comooutrias  coi-i 
iados  vivem  soberbos  cem  a  idolatria  do  paço  ^ 
lionde  a  nossa  pobre  e  remendada  roufieta  devia 
fipparecer  meigos,  para  não  (altar  onde.tfto.pre-^ 
cisa  é,  » 

Dizendo  isto,  os  olhos  do  padre  conio  duas 
bailas  mettiam  o  veneno  da  aUiisao  na  alma 
do  confessor  4^  el-rei ,  a  quem  visivelmente  a 
dirigia.  Este  sentiu  a  ferida  pela  dàr ,  e  levan^u 
a  cabeça  cheio  de  espanto,  Sebastilk)  de  Maga- 
lhães mediu  o  aggressor  de  alto  a  baixo  com  a 
altiva  do  poderoso;  disparou^lhe  por  baixQ  das 


Digitized  by  VjOOQIC 


lodeHas  dè  nàm  dos  iamUrnsos  oecuids  um  olhar 
de  dó;  e  «eaboa  a  siia-  repILca  tacita  per  um» 
YiSagMi,  que  chamou  o  4{iMSxe  inferior  quasi  a 
duas  linhas  de  altura  do  lafaío  superior.  Feít0 
isto'  o  reverendo  sábio  contiiiHou  a  escrel^r  se-« 
renaraente  sem  íazer  mais  caso  da  iofima  ema** 
toqa:^  qtte  se  atrevia  a  dar  t$o  gcosseiros  pipa*^ 
rotes  na  sua  corpulenta  e  conspícua  pessoa.  O 
superior  é  que  intendeu  que  lhe  coavinba  dtzei» 
duas  palavras  para  incensar  o  idolo.    ; 

-^«  V.  paternidade^iÊ  claro,  ;ndo  deseja.  ceá*« 
sixrar  as  ordens  de  Bo^a;  se  vamos  ao  paço^^ 
se  àlgiuem  moca  lá,  é  fior  tnera  obediência.  A 
nossa  littmildade  dá-se  mal  uaqaelles  ares« . . ;  * 
Lembro^Ihe  que  no  seu  zelo  demasiado  offendeii 
pessoas. virtuosas,  que  em  serviço  de  I>eus>  e,dá 
Companhia  se  resignam  âs  tribulaçõeí  è  amar-* 
guras.. .  ^ . . » 

f^—tií  Qoe  o  oiro  d6  aos  avarentos  e  o  podcnr 
aos  ambiciosos?» — ^  atalhou  o  padre  Tontura 
sorrindo  com  ironia.  Depois  em  voz  sevara  pro** 
seguiu:  —  O  peior  é  que  se  não  vé  gemer  a 
alma  desses  martyres  eúindestinos;  è^se  «  viste 
se  volta  para  a  carne ,  acha-^se  que  floresce  per 
milagre  da  penitencia ! . .  . .  Ora  bem*  Sabe  o 
padre  .provincial  aonde  Santo  Igtiaoio  escreveu  a 
nossa  rej^a  ?  Na  eruz  de  Christo^  Sabe  aonde  a 


Digitized  by  LjOOQIC 


meãfioii?  No  tnao^  e  nio^Db  fá\snib.(M.  a 
«m  dw  pabitza,  hamiidacby  e  sacriíiciói  A 
legra  quer  <|ue  o  hMiem;  no¥0  iiapa  o  kcNODeBi 
Túlho;.qtte  a  alma  delxe*>o  corpo,  «  b  sangue 
eorra ^as  teias,  ae  preeiio'fòrl  Siáriíme  dolh 
tfflflia,  ;jnn  que  o  iudividiio  é  iiBnnolido.Ã  buna-i 
BÍ^áde^  á  fionto  de  sermos  na'  mão  dps  supe^ 
tioras  a  bastão  do  cego,  um  instrumento  |nss»o) 
de  riosicbmferar-iiios  a>un»cadarrer «  coisa  morta^ 
que  vae  para:,  onde  a  leTam^  e  fioa  aofds  a 
pSe^ ..,  ••  Foi'  ò  qoa.iáe  ensindram  )  éi  o  quo  está 
na  lei. -Ageva  ae  «esto  ppoviocia  cbamsn  mar^ 
táfica^o  à  gula  y  pobrau  ao.fousta,  efawnildade 
ao  orgiribo «  digo  <aé  y  qne  ainda  é  •  innís  falso  o 
gabgpeiiaik»  o  «nraç&o  dos  maus^  io  que  á  saa 
)itaguaj  CMtt^  âs  ordens  de  que  falia,  padve 
pnmncsalv  »te  tiãram  de  Roma,  s&o  d»  Hísh 
pauha ;  e  executando-as  pecca  duas  Tezes.  Gui-i 
dei  que  sabiaitiaqiir  já ,  que  falleoeu  Tírso^jron- 
çalviea^.  e  c|ue.  Miginsi  Angelo  l^mborim  ^  sen 
socqessery  év  boja  o  geral  da  oonip«nhia<!' n 
'  O  eífeiliv  de  apostroplie-Cot  knfnedtato  e  faU 
minentej  O  fogo  qne  •dtamnieaftt  da  vista  ido  pat. 
Are  Ventura ^  a  dignidade.doi  festo ,  e  a  fihiiesB 
da  TOit  angrilentavamJhe  a  forca,,  pelrefieando 
os  accesseras.  O  cotrfessor  de  D.  Potro  ]I,  no 
qual  de  direito  reoabia  a  melhor  parte  da^^en^ 


Digitized  by  VjOOQIC 


dá  irft  apopleltea  aí  fesfUmçM  gemat  fio  |wvlo 
riNica  e  tmerudmt  ^n  UitM  <hí  áiites  fergM 
cttflntiettm  e  lifid^  n»  htê&  câdt  i^«e  Mia-» 
flieeíàm  iMíi';  M  âliraft  dós  <!}b^  dmairettM,  « 
â»  pQliínàs  4iM;aito^4  MltiVaA  M  eara  d<i«gg»9^ 
^r\,  dardejeodiy,  raids  de  cítolera.  Siunensnsn^ 
éia  «trtftfa  pei*âiéb  <itt  etfbeça.  O  q«ie»fto  itff^riof 
krgD  «tu  tirma  de pà  j^to  <ia  bailia,  ioúmm 
ft)scé9  âe  gordura  qu&  se  pèígúnfêm  detla^  b  • 
iriíiiciik]  t^ettiut»  q4ia  eiltailiavdi^'  lí  foíçM  Am  lin- 
ces, to^feiMta  d0  i}M(dr'#Éftet)Mr  iit6  M  Itigar  cwm 
a  3!^ie4ta9«l  fiapadav  ^<fo  talo  «Miéídd'  p«la 
i^to  4a  fii^a  iè  deK»0Mi|MÍtiba ,  èfuer^epava,  è 
é»íigifnrva  d^  -iim  toédo  Itnsrift^i.  ViKpsiidiad* 
«  «Beifrii^id»  Ml  pMBetíÇA  dok  ms  adiAidiittM^ 
«lie,  o  pdlciitad&  (]ii^  ttniia  fiafa  tasea  a  diarm 
èi  real  «on«èídn«ta,  a-diavè  do  poder!  A  in-»- 
dignação  tolMfií^lhe  ar  fáHâ ;  e  o  p«í^e  SdMstiao 
A^  Bfágfithde^/iiisttaff«ílifi«flte.aalô«iiM5,  exprimia 
o  horroi*  é  a  ifa  ff^  meio  dè  visageuva  fems^^ 
e  de  gésMs  ot^riipi^os.  Se  a  aloqti«aoia>  do^  odí* 
eotisegiiHitse  desatafMfte,  pôde  «ffimar««6  ifUe  as 
¥«tritiaa  ieCitttfO  achariam  fitai  maia  lemvvel^ 
do  cftfe  s%  PhifKppiícffs  de  D^eáttÉenea. 

O  pr<itiYid«l  liii<iia  ^ivfeAo  ^raéler ,  e  muito 
^eppoata  or^sAça^ph^ci.  Mègn)  ;E>€ÍMiNtefk«ji^ 


Digitized  by  VjOOQIC 


13  A  HMIPAIW    ; 

<t«an(}&  o  pungem  os  \olhos  ^^iqoiHidaSfmtural^ 
m«iit&  8i»ni»in-se  quaisi  até^.á^nuc»;,  e  06:beí- 
fofl  delgados  tornavam^e  impereeptiveis  ^  aor 
passot  que.  a  pallidez  u^ual  d^tiota«a  oon  uma, 
odr  térrea  «e  biliçça,  que  mettia  medi9.  Foi  « 
que  Ibe  $uccedeu  iieste  lance :  aomeiíte  houve 
da  maisiiin  ^ymptoma  nova;  o  «orriso  lívido,  fpi^ 
rara  vez  lhe  visitou,  os  lábios ,  voHeava  ooovulaa 
em  redor  da  bocca  parecido  6  conlra^^^  ner*^ 
losa  >  que.  arregíBça  o  bei^o  ddf  fein ,  «e  odo  a 
uib  solrrii«  bunwDO.  Mais  iiritado  do  que  o  pa^ 
éreooR&sftor^  'mmt(^  lotaisanoioso  pov  ivingaQça^ 
d&  que  0;toi]!(surado  Yitellio;  só  eapaz.de.esbra* 
vejar  em  acoe^jsos  de  i«offô|iaiva.  lOV^vIuçâiOit  a 
a<iperiar  tinha. as  palavra»  dooes^  é  as^mafl^iim 
pambosas»  que  toiniam  mais  odiefia  a.atfoeí-n 
dade.  Era  uma  crueldade  fria,  inexorável,  e 
dissimulada,  que  antes  de  (erír  .eakuliuirà  todas 
as  dores  e  tormentos  que  podia  owMr. 

Beve&tido  da  suprema  auctoridade  em  Ptirtu» 
gal,.e  affeitoé  servidão  quasi  abjecta  doa  infe- 
riores,. 0. prelado^  oom  o  rei  da  suafMirt^»  po- 
dia tiiido  no  presente,  e  ^temia^se  pouoô  do.  fo^ 
turo,  que  está  nus  ^rnSoa  de  Deus,  Sentia  menas 
a  oíFensapessoal,  do  que  a  injuria,  do  seu  go^ 
varoo.  O  que  mais  o  feriu  JSiMs.a  audácia  dofobs- 
euro  jesuíta ;  se  nlo  a  i^firtaase  a  tempo »  a  sua 


Digitized  by  VjOOQIC 


M  1>.  JOXO  V.  i% 

iMga^)experièiieto'adv«rtt(i-fhè,  que  ttão  «ra  fircil 
antever  líté  énde  podia  <;liégar.  I^etttdava  kBo^ 
gai^  A  tiasciença ,  ou  abdicar  ^  pocter ;  nentrâma 
outra  hypothesé  éra  admissível.  i)e  certo  o  pa- 
Are  i^liano  contava  com  o  apoio  de  Ron^  ^  e 
nâo  se  expunha  cegamente;  mas  de  Ròtna  a 
Portugal  é  longe ;  e  elle  em  sua  casa  e  na*  auá 
terra  era  senrlpre  absoluto,  Depois  de  salv^a  sua 
tiifluencia  responilería  ao  geral ,  e  se  nedessarió 
fosse  com  uma  ordem  regia  na  mio;  o  caso  em 
defender-se  a  tempo ,  e  suppla^tar  a  tempo  um 
emulo,  que  n«i  impenetrável  politica  da  compa^ 
n^a  nSo  ^fs^n  àlti  seài  mii$s9o  ^secreta.  Feitas 
esta»  reflexões'  arrn(ju-se  de  voirtadey  e  prepa* 
nm-sè  para  niostrm^  a  todos*  que  tinha  oèbombroft 
fortes  para  o  peso^  qde  podia  cabir  sobre  el- 
tes. 

-^  «  V.  paternidade  excedeu-se  1  »  -^  disse  ao 
italiano  com  a  brandãrahypôcrita:-^  Sinto  que 
se  e^«fecesse  Aé  sèu  logar,  e  nio  respetlasse  o  meu^ 
Esperemps  em  Deus ,  que  «sqa  a  «hima^vez !  Cot 
mo  imiSo^ad^irto^doseu  peidcado;  como  prelado 
sou  «èrigada^  a- mais;  diéfvo  eoim*gitro^  Ficai  sas* 
penso  de 'Voto  é  exercicio  por  um  anno.  Diga  a 
culpa ;  eèít  joelhos,  antes  de  iie  recolher  ao 
careelre  para  irecordar  ^os  seus  esorcicíos  espiri- 
taae$i   peça  da  joelhos  perdoo  na.  pessioia  do$ 


Digitized  by  VjOOQIC 


H  A  jmciMJm 

fendeu  com.  a*  c^lomiitii  4e  ^m  liithei^.  -p 

O  padre  Ventura  sorrí«-i;e  .q  crumra  as  bra* 
çoa,  medindo  o  tyraBDele  ewi  a  yúita,  e  fulmín 
napda^  com  a  serenidade  da  iwto.  lia  l^spoita 
que  lhe  deu»  admirava  a  eiLtreiM  doçura  da 

— a  Sabe  ba  q/unto  anitos  eo  choro  neita 
valle  de  lagrimasit  e  quantos  boje  mesmo  conto 
de.  noTÍciado  e  pix^fissJko  ?  >? 

^n-.<i  Digita  ciilpaf  eb^deçaI»-*-^baM  o 
padre  6d»aatiiQ  arremettendo  c^m  impeto. 

^^  «  Nio  <e  aga$te ,  padna  mestre  ^  heá  dedt- 
ser  as  suas,  aa  minbai,  e  as  culpas  da  todas 
dós;  o  tempo  ebe^I  Obn^re,  porém*  l^esibo 
setenta  annos  de  idade ;  e  YÍsto  esta  rm^i^eta  de 
escravo  de  Jesus  Christo ,  ha  quarenta  e  cinco 
pelo  jnenos»  Preguei  na.GbíM  e  no  ilupio;  es- 
tive na  America-  e  na  índia ;  de  and^  doa  tró- 
picos ^  e>  também  dn^  g^los  do  norte»  sei  pnr  ex- 
periência 9  ifàQ  os  onbro;  apa^ndam  por  noti- 
cia... .  Fadepi  (orno  e  seda ;, vi  a:  marte  mais 
cmel  uma9<  po^am  de  vezes  diante  dea  otbos.  Os 
idolatias  Majfam-in*e;M  braseiro ;  e  a .miseriQor'* 
dia  ile  Deus  ^aleUrme  sen^pre.até  h^.u  . ,  » 
.  —«Padre  Ventura «  era  meiber~*  gritou  o 
prfelftào*^q««  noa  obadecesae^^l  Tiide  isso  pmva 


Digitized  by  VjOOQIC 


WH?  m.  Mio  ir.  IS 

64  v^.  ^uer  ft  fSit  idade  «  a»  sois  peregrinaçd»  ^ 
Alo.  demm-  ot.qufi^dâvta  to,  «niiita  «pcpeneBcú 
e  humildade*'  Sêvà»  ^&Mm^  lobrig^do  a  notart 
4bac  ^confesse  a.  cfilpa  ^  e  fiiç^f  peniteaeia  delia  ^ 
iwffque  peeeouà  v  . 

T-^K  Saberbos  sio  oa  juiaes  qos .  senteoemMi 
^atra  a  lei  -*—  réptícou  o  padre  Ventava  cam  mai 
gasto  cbetò  de  magestasa  tqdigiiação.-*r-SdbeiÍM; 
4a  iiriqiie$»poj*<|ire  tèeai:  na  bacea  a=  paz  a  na  aor»- 
«ão  ecrfio  ;  perversos^  poaqUe  reaagam  do/i^omi*- 
flo^e  da  palavra  do  mestre  pii^a  saoiaTem  aaím^ 
fetos  dfi  vii^Qça.  CuM^  ^u^  o  renona  é  a  ver^ 
4ade  se  oaiMi^  sa  a  aúi^  lÍAgaa  ficar  sileih- 
eioaaTlolga  fua.^othés  daa  ««ptioi  nãoaMMi 
a  capado  jesuíta,,  a!  pokre  cafM  da  peaagriíiai» 
fKiatft  por  c^lla^  do  manto  caal  í  I^adrè  provtneíai 
com  a  minha  idade  viu  nunca  a  ovelha  áaompi^ 
«nbair  oop:  o  lóHao ,  «oqi  a  ave  adarniepeir  ao  pé  do 
fni^luifDeJ  Paáae.Seiíaiítiao  de  liagalhftes, aiipp8| 
^queoa  quarenta  annoa  de  habito  não  enstiiâm  a 
^sepaior  o  ti^ígo  do}oío?«  NâO'  ae  engonem.  Sei  ô 
j|iie  dígo^;  «  pafsp'0  qoe-devo;  nada  mais! )»    » 

-*<T«Nem  lima  palavra v  padre  Ventara!  ok^ 
€limoa  o^saparior^  oailondo  finalaiiepta  irarau. 
^do  tenij»  quelae  afamo  «bio  aio  afpalla?a    n 

— «Cmo  aiaDéascv  paéra ^tiperíèr !  A  jas^ 
tica  .divinaxastíga  niealí^rfèi  ente  4^  n^Mo 


Digitized  by  VjOOQIC 


étts  fiecoadoí ;  te  nlo  pmhi  ó»  hjrpecrila»^  espero 
qm  nho  puoirái  o  moradista  por  que  06  chama 
pela  odiosa  palavra  i  i|ue  es  deiígna !  » 

«  — f*J)e  íoelhp»,  diga  acutp,  obedeça^  ca... » 
— «( Manda-me  pôr  a  mordaça  na  booca,  come 
lés.  o  gcÉnd  Tirso  Gonçalves  a  qbi  deftoidor  aus- 
ierov-quenão  quiz  ouvir?  «Di^nlfae  que  o  desejr, 
«as  oào  -pôde.  Esse  padre ,  deve  eoDÍieeelH>  de 
nome,  era  Miguel  AngebiTwnbunBÍ,  hoje  summe 
pmladodr  companhia*  Sabe  o  que  soecedeii 
4'attt?  Tirso  (jonfalves  pouco  depoin  morreu,  e 
Miguel  Angeb  exaltado  pela  afihmta  e  pek  re- 
^àaçdo  sobíu  i  cadeira  do  defwicto  per  vote 
yilMime.  Pocqtie  só  pude  reger  oa  outros,  qaem 
è  capau  de  se  vencer  a  si ! .  •  a 

r-^«  É  de  mais !  £  em  despreso  da  minha  ao- 
eloridade?. .» 

.  ^^  «  Porque  a  tenbo  superior !  Porqne  posso 
precipítal-o  do  alto  da  soberba !  exclamoQ  o  pa- 
dre Ventura  em  voz  imperiosa,  e  com  gesto  so« 
berano.  Para  ler  nocoraçio  do  homem  é  preciso 
despilH)  da  mentira.  Li  no  seu,  padre  provkieíaH 
cemo  leio^  no  de. todos  tos  que  o  ajudam  a  arrui- 
Mff  a  disciplina  da  companhia*  Ora  bem!  Hn 
meia  hora  que  lhe  estou,  ensinando  o  caminho  , 
6  arredando  os  paaaoa  do  abismo*;  mes  està-es- 
effíptoque  ecego  fingirá  vér,  e  será  despenhada  t 


Digitized  by  VjOOQIC 


Be¥iá  eoadoiP  dàs  minhas  palaTlsa9(e  iMo  |lroK» 

^iie  o  logar  e:ioede  a  sua  perspicácia)  ,.que  Bestn 

idade;  e  com  os  quatro  fotos  ^  sabendo  o  ^go^ 

Terno  e  a  regra  do  lustituto  noihum  infefíor 

falta  ao  prelado  como  eu  fáUei  sem  auetoridade 

sufficiente !  Chegou  o  dia  de  acudir  aò  navio  que 

perde  o  rumoi  e  de  útst  do  leme  o  máu  pik)tOt« 

Quero  que  a  antiga  divisa  da  companhia  4  o 

verbo  de  fogo  do  seu  poder,  o  espirí  lo  da  sua  força, 

resplandeça  aos  dhos  do  mundo  como  nos.  anti* 

g€»  tempos.  Á  maior  gloria  de  Deus  I  Ad  majih' 

rem  Dei  gloriam !  Eis  as  lettras  sagradas  do  te-^ 

nente  de  Deus  na  terra!  Cumpra  1  De  hoje  em 

diante,  neska  casa,  o  g^fnl  sou  eu;  ningutm 

mais  tem  poder  aqui.  Tal  éa  minha  vontade!  tf 

Dizendo  isto^  tirava  do  seio  um  pergaminho 

revestido  do  sellodo  geraH  e  lacrado  com  astuk 

ciaes  d&  teu  annel.  Este  diploma  era  a.  nomoa^ 

ção  do  padre  Júlia  Ventura  para  o ;  carga;  de  vi-» 

sitador  assistente  nas  provrnetas  <de  Hiapanhâ  e 

Portagal,  com  direito  de  suprema  decisíko  sobre 

of  negacioá^  e  absoluta  aoctoridade  sobra  os  pre^ 

lados,  devendo  respeitar-«se  as  suas  ordens  tfia  in-^ 

teíra  e  cabalmente  coiHo  se  do  próprio  gerai  fes^ 

sem  emanados.  > 

É  imp(issivel  descrever  o  estado,  em  que  fi» 
cafam  o  confessor  ,•  o  provimeial,  e  os  accessoiea 

Digitized  by  VjOOQIC 


iiaote  th  repestís»  revelado.  O  medo^  o^ctuoe, 
c,a  raiva ,  «m  tod»  o  cabr  que  oa  abrazava,  sut* 
Wam-Ibe  ao  ro&tot  e  pintaFaiií^se  dom  \ÍYem. 
GadafrfiysiQnomia era líitia impreea^l  eádageato 
«ma  blasphemía  iaciU  eonira  o  poder  inviskd, 
que  os  desterrata  d^  governo  pai^  a  humildade 
da  obediência.  Edtretasto  eta  de  diamante  0 
kiço  qile  09  uma  a  Roma ;  nem  seqilet  imagina-* 
ram  rosifittr^  Os  titoes  TeiM$ldoa  cait^aram  com 
a  montanba «  antes  de  escalar  ú  Olymi». 

.  DepoiA  de  lera  provisão  dn  g^»U  com  a  bocca 
cheia  de  fel  4  e  de  dar  a  todos  conheeimenK^ 
delia  f  ú  superior  tiroti  tim  livro  do  seu  iirmaM 
aeereto  e  i^iston  o  (atai  diploma ;  ea  acceàMtei 
pallidos  o  túauiiksí  assignaram  com  elle  íe  a  rcH- 
voiucfio  ficou  ooDSummtda.  De  cabefá  inclinada^ 
•Ibosiio  châo^f  e  hrUços  cabidos,  esperavam  ent 
riknoio  ^  (fiAe  a  f ot  ào  novo  pir^lade  Ibei  f^U 
tuisse  a  ferça  e  o  movimento* 

Este  pbservava^s  catlado  n  sómeate  a  soa  vista 
faUava  por  eile«  quanda  feria  no  imto.à.  um^,  ^ 
^oUa  na  passagem  o  máu  pemameolo ,  q^  Ibe 
devorava  o  ooraçâo«  O  somse|)  o  sereno,  e  doce 
soBTÍso  do  antigo  padne  Ventura^  britcava^be 
outra  ve2  nos  lábios;  e  a  luz  redesiva  e  pea^. 
trante  dos  seus  olbos  realfava  a  finura  da  pbyiio^ 
nemia*  Termina^  a  leitv^a  e  ^  ragisto^  Ofáte? 


Digitized  by  VjOOQIC 


M  D.   JOiO  T.  19 

lifitio  pediUf  e  recebeu  todas  as  chaves ;  qaebrou 
à  petína  doutada  do  ptelado  para  indicar  a  suspen- 
são áú  seu  governo;  e  a  passos  lentos  mas 
firmes^  foi  sentar-se  na  cadeira  de  espaldar  cle- 
Irado  thrôno  4  donde  os  reis  da  companhia  inti^ 
mavam  ás  tndía^  e  ás  Américas ,  á  metade  do 
mundo  conhecido ,  as  suas  leis  e  vontade  omni^ 
potente ! 


Digitized  by  VjOOQIC 


Digitized  by  VjOOQIC 


eAPITULO  ZIV# 


EGCE  SACBRDOS  MAGHVSt 


Os  defiAÍdoreg  olhavam  ung  para  os  outros 
§em  força  de  proferir  a  menor  palavra.  Não  se 
ouvia  senão  a  respiração  mais  ou  menos  alta  das 
seis  pessoas  qae  alli  estavam  reuqidas.  Por  fim 
o  visitador  assistente  deixou  cabir  de  súbito  a 
vista  cheia  de  severidade  sobre  o  confessor  d^et- 
rei ,  dirtgindo-lbe  as  primeiras  palavras  que  di- 
zi4  depois  da  sua  elevação  ao  supremo  poder  na 
jfwovincia  de  Portugal  A  proDuocia  pausada  4  e 
a  aceentuação  estrangeira  davam  ainda  mais  força 
a  eada  syllaba  e  maior  expressão  a  cada  phrase. 
O  tom  em  que  fallou  era  firme  sem  ser  altivo* 
frio  aeni  ser  glacial. 

—  d  Padre  Sebastião  de  Magalhães !  Não  Ifaç 


Digitized  by  VjOOQIC 


tS  A  MOaDADB 

ppreoe  muito  pezado  o  cargo  de  confessor  d^ek 
r$3i  de  Portuga!  ?  Septe-se  com  animo  para  ar-» 
rostar  ps  perigos  da  grande  batalha  que  está  ^ 
fomper  por  ^stes  dias?  Qlhe  bem!  )> 

O  infeliz  theologo  estava  tão  pe(|uepo ,  agora  , 
fipesaf  da  corpolpncia,  quanto  costuin9va  inohar-f 
se  nos  djas  çaáiQsps  4^;  feti  ppder,  Quvindo  n 
pergunta  dp  m'à^  agouro  abaixou  ainda  mais  09 
plhos ,  e  encolheu-se  todo  n^  sua  roqpeta  sen^. 
abrir  a  boca.  O  visitador  esperou  um  instante  ^ 
p  vendo  que  n&o  respondia  proseguiu : 

—  ((  Deus  é  que  dispõe  do  coração  dos  prin-: 
cipes.  Quem  sabe  que  a  salvação  ou  a  ruína  de 
milhões  de  hon^ens  ^qiende  delles,  trenA»  di| 
mponsabili^ade  de  os  ^ingjiPt  porque  «  cJuiye 
da  consciência  é  a  «have  do  covaçtpf  dii^  rei&  Pa-^ 
drè  Magalhães,  pondere  isto ;  e  antps  de  respõn-^ 
der  vejii  bem  sp  pikle  com  a  cfusc  Q  vpi  Canelo 
prra  tem  0  iim  juiz  no  ceu,  que  ii  I)ei|s.  Q  isev. 
0onf6S8ot  tm  éoiSi  o  éo  cea  qup  ^  a  ioAnita  áe^ 
meneia ;  oiitro  da  terra,  |tjgfxro9o  na  jintioa,  qinè 
^  a  companhia.  Agora  que  p  {^ilvek-tt  ^  içi^nía^ 
Vne : «  pirtá  no  caso  de  pes  auxiitec  étn^  ímda  tfom  ' 
mdlp  ^  Porte  ?  Diz-np9  qoe  o  coraçSQ  4u  i^i  uBm 
varia  em  nepbqma  circumstâiieia  ?  £m  uima  'pli^ 
lavra  segiira-nos  o  bom  despacho  de  quMto  m 
pedir  a  sMft^iqagpstade?  p  -^ 


Digitized  by  VjOOQIC 


0B  1^  siA&b  Y.  £3 

Srooni  os  ^ikm  isravados  ntf  ^pittslonoeitta  do 
pobneíiYiteHío  de  roupeta,  o -pádrè  Ventura  caU 
feu-flé;.d&  repaote,  deixaodchlhe  3t|9pensa  sobÉo 
a  •  cabeça  i}ina  espada  de  dois  games*  O  ceofes^ 
sor  tinha  só  um  gesto  para  rpvelár  a  prostraçii^ 
doontfDO;  guando  o  temporal  era  forte,  desça-* 
hiaiii^be  as  faoes  Sobre  as  rosoas  da  segunda 
batba ,  ç  iDetade  da  cara  escondia-se  .qo  peito  ^ 
em  quMito  os  olhos  do  cdr  incerta  enviusavam 
a  idfcta  por  cima  do  ensinado  ventre ,  para  ehe^ 
gar  ao  i^rbcntor  ém  <^^  punha  <r  alvo ,  e 
deatá  pèsiçfto  (perdo&-se-nos  a  onsadia)  parecta-f 
se  aó>fa(in*a6ho  anmado  levaotando  o  papo  para 
samip  o  bieOé  * 

Eotaíiadb  entre  as  eunhas  das  fi*es  ihtaes  inter^ 
rogeçdes  ^  padre  ^confessor  tinha  mais  vbntade  de 
refvQscar^  as  fauces  com  um  :6opo  de  exoellent^ 
vinho «  «  era  apreciador ;  do  que  de  m  onterraf 
de  todo  com  uma  resposta  imprudente  e  pi!ecipi^ 
tada,  Preso  por  ter  cão,  e  preso  por  iião  o  ter« 
era  atroz  em  realidade! 

Depois  de  muito  soísmar,  julgou  melhor  sahit 
dle  i  áo  que  porem-no  fora ;  preferiu  as  hooraU 
do  sacrificio  á  apupada  de  uma  queda  desastrosa; 
Suppoe  que  o  queriam  tirar  da  oôrte,  e  que  de^ 
mtMrari-se  mais  um  dia  era  o  cumulo  da  temeria* 
dada.  for  isao  levantairiò  a  cabeça  cotA  alguma 


Digitized  by  VjOOQIC 


fif  .  A   liOGIDftDB  * 

energia',  e  fíNiendorse  branco  corna  a  cal  Tira  dea 
á  luz,  com  fisiyel  ddr,  a  reonncia  formal  dó  seu 
ekiTado  cargo*  O  visitador  ou?io-o  sorrindo ,  e 
beiigcando  a  oretha  esquerda,  gesto  oom  que  ex-^ 
pressafa  o  maior  grán  de  satisfaçfio. 
-  «rrhr  (c  Em  tempos  ordinários  aceitei  o  logar  por 
obediência ,  disse  o  padre  Sebastfto ,  expellindo 
cada  palavra  e  esbrugando  cada  syllaba  por  entre 
os  dentes,  como  se  as  letras  lhe  oortassem  p  eo-r 
ração. -«—As  coisas  mudaram,  e  nSo  dev^  fiiter 
de  mim  melbov  conceito  do  que  os  meus  supera 
riofes.  O  coraçSo  doa  reis  está  na  mio  ée  Deus, 
V.  reverendissima  o  dfôse !  e  acreseentarei ,  m 
cauda  venenum — debaixo  dos  pés  do  homem  os 
trabalhos.  Perguntado,  poia,  se  em  tudo  o  que 
8è  pedir  haverá  bom  despacho,  digo  que  nio  sei ; 
ecomo  alguém  talvez  mais-b&bil  ouse  responder 
que  sim,  resiguo  o  cargo  nas  mfios  do  prelado,  e 
peço  licença  para  viver  felfi  no  meu  antigo  col-r 
ieglo  de  Évora.  » 

Um  suspiro  involuntário  ^  mas  sincero ,  reve^ 
lott  a  peiía  que  o  pobre  jesuita  sentia  de  ir  ser 
felii.  O  visitador  acariciou-o  com  a  visto,  amt-*^ 
ihou-o  com  o  sorriso,  e  deixou  o  conduir  na  ín- 
tima persuasão  de  que  a  sege  voltava  sem  Bile  ao 
palãGto  de  Alcântara,  lionde  então  residia  D.  Per- 
dro  {L  Depots,  o  italiano  reeolheu-se  mentid;>' 


Digitized  by  VjOOQIC 


mente,  ésdiíiott  n  hit  da  fisti/e  firantiu  00  cm* 
toe  da  boca. 

-r^c  Padre  confessor -v^  disse  por  Hm  olhando 

recto  o  firme  para  a  victima  —  quk  eKpertinen«- 

tal-o.  Se  me  disaeise  que  sim  oio  podia  servir  a 

cobipandía,  e  era  preciso  liraI-*o  dà  corte.  Noto 

i»ein  o  que  ¥0&  diifr.  V..  paternidade  (aqoi  bà  só 

irniAoa)  tem  errado,  errado  muito  na  sua  ditoc^ 

$&o  espi?itttaK  Náo  somoa  jansenistas  I  À  (orça  de 

escrúpulos  e  de  terrores  moraes  sei  que  fez  de  D; 

Pedro  II  um  rei  fraco ,  e  incapas  de  pensamen- 

toê  grandea;  se  Ronui  lho  disser  uma  coisa  e  nóa 

AQtra,  eederá  ao  papa  eom  medo  das  oensuraa^i 

Bem  vè  o  perigo  que  pôde  haver.  Reia  que  nto 

-servem  para  ai ,  ndo  servem  para  os  outros ,  e 

melhor  é  levar  a  pancada  de  um  sceptro,  do  que 

estar  alado  ao  Icáto  de  um  paralytieo.  Queremos 

reia  que  tenham  vontade  sua «  e  coração  forte ; 

eusla  a  faiel«os  nossos,  bem  sei,  mas  ficam  maia 

aegmros.  Não  edifique  em  areia,  se  deseja  dura»- 

çao.  £rraram  assim  com  o  principe  D.  Theodo^ 

aiõ^  e  eile  morreu-inos  snecombido!  Padre  Se- 

bastiio,  acilda  po  mal  em  quanto  i  tempo ;  Gon«- 

ibrte  o  auimo  e  esclareça  a  rasão  d'el-rei...  não 

de  ipopente,  popico  a  pouco.  DeikoK)  vèr  petois 

«eus  olhos  algumas  coi»|s;  leve-o  pela  mão  só 

metade  do  camiohp.  A  respeito  da  euría,  iem^ 


Digitized  by  VjOOQIC 


M  «  JKMlDâDSci 

farrjMiide  que  em  ftoma  só  4  f w  núàHi^mm^k 
tramontanos.  Com  esta  regra  que  lhe  deti  4)»nfti^ 
lÉMiri  a  servir  a  Deus ,  a  aKm ,.  e  A.c#mfMAhia 
ao  ké«r  de  4M>Qfe8sor...  Tem  al^ma  .eâisa  9l^ 
ser?...  Nao  aceita 7»,.Talle'ae«i|e»9r.  » 

— «  Aoeilo ,  padre  visitador.!  ^i^^^^^rilau  o.}»t 
mita  mais  co»  o  gesto,  4o  qoe.voealineiite,  tia 
engasgado  em jidiila  se  adMiYa.--nAeeito  hmIío* 
aes» . .  a  honra  de  ser  útil  &  eoiíApaidiiA,  Mas  Và 
lovereadissifipia  dâ^me  veoia  iMfa  ivAadasoulpa?» 

-^uFallela 

-^ «  A  opioifto  de  Y«  re«eretidi8siuia(]fei  seni^ 
pre  a  minha ;  até  represeotei  para  Bona  o  anl 
<|ue  podia  «tgHirrse !  NiH)  me  ouvifam^ ,  ^  Eieh 
cutor  passivo  Qumpri  as4irdeus;  foi  ^siymrQ.deU 
la$^ » 

Como  se  yé,  o  respeitarei  thealago^ia  i^susaii* 
tendo t  e.n^uperaadk)  aqueUa  eioqueicia firme ^ 
que  assentou  eip  cheio  no  sennio  «evblnciaoa^ 
rio,  meditado  pelo  iraoundo  pràeuradbr  ém  à»^ 
asioicòs. 

;  -^M  Executou  as  ocdens^  bem  aeij^t^ acudiu 
aevenamente  o  italiaiio  *^.  por :  isso  i^  é  dâpMo 
e  continua.  ÂgCHra  entende  melhor  como  de¥6 
liaifertse  ?  Ainda  bem ;  estinio  que  o  speu  f oto  sa 
conforme:  prefiro >seropre  a  obediência lYísIuataK 
ria>:  Mas  sabe  que  uio  chiaram  a  Bomâ  «a 


Digitized  by  VjOOQIC 


iMfreiMitaçitos,  4c  fie  faMa??  Ora  JHp»!  Pénfa^ 
«MM  todos  imito  eom  isso ,  -e  v.  ^tienidade  mm 
à0  iffp»  qiágwm.  ^  ...  jha  avisos  que  dadds  jl 
È^mpo  Talam  mUlii6es.  Àh,  fradreSetiasliftoi»  a. 
^rtuna  é  muttô  £aisa  .  • ;.  YaJhaHooB  Deua.  ' Ai^ 
firmò-lha  (|ae  nãó  iei  d^  premio  bastante  (laca 
quem  na  oecaaito  pro|iría  &esie^  o  qae-  devia 
ter<4e  {eito^  Emfini^»  paeie^eía !  a 

Fallaado  àsaífli  o  pá^ra  Ventwa  mostrvra 
tabia  sinceridade  t  q^e  o  ieopfesáor  de  el*rei  coi* 
fiieçòtt  à  acrediM»p  qffe  «Ao  «alava  tio  mal  coa| 
lelle ,  Gomo  sappunha, 

C&QSBiavakiiHi^o  4p  otnmipslo  gmva;  n^s 
fSlà  tiodá  prméi  de  fiie  «aiata  ifinioceirija  nell». 
Eni  /Mas  as  nêeiísídes  delicadas  eBcreyerà  coni 
bm  itibHnaçfta  para  Roma  a  pedira  novaa  w^ 
4ensç  i^dialde  porém,  nlinoa  recebeu  raspaaka. 
Agora  percebia  a  re^o,  A  respoâta  faltava ;  por 
que  aa  suas  eosreapondencias  erêm  interceptadas 
INI  peio  menos  mutiladas  na  celIa  do  prelado ,  o 
jutnioO)  a  qqeiti  pelp  90»  «ar^  oonipètia  espe^ 
di-las  ao  geral. 

Cotti  pavfidi^  fl^tad  eaempio»  o  Sqperior « fign^ 
randorse  amigo  íntimo  roubava^^lbo  systemalica- 
mente  o  conceito  e  a  ioftirencia  om  Roma ,  sup- 
firiímiidô  y  oq  faiendo  suas  as  iofommiçdes  do 
icoiífessor.  Cooliecida  a  traição,  ateou-se  de  re^ 


Digitized  by  VjOOQIC 


n  A   UKimkííM 

fénte  00  piit*  do  pid»  Mmúíú  «|tfrfb  «£9 
intcofOt^  decidido,  e  eterno  que  se  chama  edi» 
de  finde,  m  eãa  tem.  egiial  no  mondo*  Oa  olhea^ 
primeiro,  o  gesto  depois,  deolaranim  ao  falso 
emige  a  ruptura  da  antiga  aiiiança  e  a  goerm 
impiacarel  que  ia  sufastitiii^a ; .  pata  a  lingua 
áuDCciesfr  foi  preciso  mais  tempo }  deoeneram 
alguns  ^minutos  antes  do  queixo  inferior  eahir 
iia  sua  posiçio  natorid,  desloeado  p^  raiva ;  e  das 
idéas  oonfundidas  pela  revelaçfto  do  visitador 
iMMentaaem,  pennittindo  qpaiqiieF  inanifeslaçie 
vocal* 

Porfim ,  em  quanto  o  provineial^  amarello  de 
^idm  parecia  snmmk^se  pelo  chio  abaixe,  Mr 
iminade  pelos  coriseo*  que  dardejavam  os  olhos 
<b  padro  Sebastião ,  e  pela  sorriso  cortante  que 
4es  lábios  do  pa<ke  Ventiva  lhe  ia  mordect  fie 
ceraclo.,  o  rubicundo  e  corpal^feo  confessor  reSr 
'pii««a  cem  mais  gosto,  e  tomava  melhor  o  pulso 
ás  difficuldades  que  o  cercavam.  Resolvido  a 
castigar  immediatamente  a  n)á  ié  do  superior , 
descarregando  sobre  elle  a  culpa,.. que  Ibe  impu-. 
4Bvam,  6  jesuita  aindii  convulso  da  comõçSo  que 
sentira ,  exclamou  1 

"^^«fie  o  meu  crime  é  a  falta,  que  v.  rever 
rendissitna  nota,  devojustificar-me  • . .  Acpii  eslt 
<|aem  viu  eouYtu  ler  as  informações.  ••   Âlli 


Digitized  by  VjOOQIC 


C8tár'i  égònlmeiíte ,  <(Qeni  as  reedmi  dr  midM 
mão ,  e  approTOU  em  consellidt . ;  Agora ,  aceor* 
so^me^ife  sinápKcidade  e  neglrgéneia  por  não  ei» 
cFerèt  por  duas  vias  t  accnso  a  pmke  superior  da 
ter  subtrahido^  oceuUado^  mutilado ^  não/si» 
qual ,  diversas  informafOes  que  dei  a  tempo  4 « » 
È  o  tpie  tenho  a  dizen  n     .  . 

•*—«  Quando'  fòr  occasilo  eu  ex|rfÍGarei  4  é  *  » 
^i-^  disse  o  provinèial  derrotado. 

-^  «  De  cefto !  *^  atalhou  o  vÍ6Í(Étdor..-T«^I)a»e 
explicar.  Pa^e  eofife^sc»  ^  fioo4he  Cneodo  ínais 
justiça;  Socegue ;  darer  colita  ao-  GeraL  Agora 
passemos  aos  negoetos  de  fân  9  .ás  coisas:  bIIml- 
mariíias.  Padre  Teller,  eih  que  estado  está  o 
Japão  7'  Perdmoa  ou  <  ganhamlas  muiias  alans 
para  jDeusf »  •  o  !  r.  '       : 

'  «-^^a  O  Jàpto  ato  se  eonutírte,  mai^ridali  » 
^-^  respondeu  o  acoessor  interrogado.  «•*»-«  Todos 
os  dias  o  nosso  missionário ,  o  nni<to  (pie  ninda 
lá  téméSt'  ríoi  escreve  pedindo  que^  o  dasd)»- 
giiem. .  * .  »      :         ( 

—  «Do  perigo  de  padecer  pela  fé?  NSo.páda 
serí  Qiiè  n&o  desanime'^  e  tenha  diaDtedos<>Uios 
o  exemplo  de  S.-PraDcisco  Xavier. .  ..«O  sol^ 
dado  de  "sentinella  a  um  pasto  deve  iicar «  ainda 
quet^ibá,  ainda  que <Ye}a  que  vae ^morrer;  4.4 . 
é  o  nosso  caso;  Pdh*e  Tdies ,  sei  o  «que  eslá  nas 


Digitized  by  VjOOQIC 


80  M  MÓCmàVÈ 

tsèB  JMpdifl,  nko  preetsa  dmr  nteis.  Sei  famblebl 
^e  é  amiga  do  missioDam^  que  proeiíra  tírat-o 
do  Jap&o  e  dár«-lfae  uma  tfldeta  m  Aiheríca.  Ora 
pèis!  Os  negócios  y^  malf  ponfiiè  ^  zelo  es^ 
fria. « . .  Para  outra  vez  demore  menos  a  lisspoata; 
quem  está  longe,  jà  que  nftò  yé,  preci^  mn 
?ir  os  superiores. ...  A  propósito  ^  diga  ao  pa*^ 
dre  Sihra  (creio  que  é  o  seu  nome)  ^  que  se  cum- 
prir bem  as  ordens ,  será  mudado  par»  a  ètatr» 
ttégemi  4 .  .Sé  cumprir,  percebo?  Ab v  padre 
8iiii8es  oono  vae  a  China?  TrrtiaUMhte  múto^ 
de  certo  ^  mas  a  seara  nio  amadnmse^  O  qué 
nos  di2  dé  mais  particular  f  » 

*-^<(  Que  fiio  se  tem  posto  os  mèhs^  e  por 
MO  se  (rtô  adianta  nada  » r^replifiâil  o  jesuíta, 
cruzando  a  tista  com  o  prelado.  Qiia  éb  poupa 
em  Gantlo,  em  Fekin ,  e  náa  prcnrindas,  e  que. 
se  gasta  de  mm  em  outros  paitea.  fiif  nfto  com- 
prar-moa  a  tòlorBocia  dos  mandarioaf  os  déhtes 
do  lobo  nSo  deíxani  fugir  o  cordeir».  Tudo  se 
remedeia  ^  menos  o  medo  da  morte  em  gente 
fraca.  » 

-*-«  Tem  ivsSo..  Quando  nio  se  iisnkifjí  nfeo 
se  colhe.  Orar  bem  ^  Os  bossos  missionarjoa  es^ 
queeem-^w  mnílè  dé  que  o  alo ;  e  dás  queremos 
apóstolos  na  Chifna  e  nio  sapatcaa  m  índia.  A 
cruz  }á  tem  raízes  fuadas  liaqiaailaa  partes ;  o  caso 


Digitized  by  VjOOQIC 


OK  0.  JOiO  JT.  ti 

exa  fttanlBiAtqi.  Agora  sé  dí  ntto  kbrífirciii^  ,p»« 
foifa  caiift...  08  ^are»  alti  s&o.  fiiialsi  >e  muito  sqdi'^ 
to»  a  tentpóraes.  ^  t  ^  Deixe,  cstanr,  padm  SímOi»'; 
hatemas  d^  i^oidar  da  Cbtna ;  as  soas  nàisèoê 
hão  de  floteseer. » . .  Vejamos  a  Amenea/padm 
NubeB !  O  qae  trai  o  seu  correio  ?  »         . 

— -a  Ha  dois  aiiQOS  que  peço  providencias  é 
Afio  sott  oiividoii-'^  respondeu  o  velho  defiiii4ap 
com  certo  .desgosto..  Fax-se  poueo  ou  nenkant 
easo  ilas  ordeas  de  Lisboa ;  apesar  do#  capiudoà 
entram  todos  pelas  aldeiaa  e  vexpm  os^  ifldibs. .  i 
Não  08  ensinam  ^  maltratam-nos ;  e  toâo  ^  ismfm* 
pio  é  tirar  grandes  cabedaes* ... .  ii 

-»^  «  Donde  não  os  ha%  É  verdade  l  firta  gante 
eiiida  qiie  o  Mto  nHo  è  sangue ,  e  por  uma  ru-* 
pia  arrilca  e  oorpe  e  a  alma.  Coâtinite.  » 

-r^  «  Depois  oa  últimos  deer eto»  de  Roma  des** 
agradaram.  Gastasse  muito  4^m  ostontoções ,  -em 
t^nquetes  ^  e ..  iiâo  se  melhora  mída.  Tintiaoioa 
um  enrgrahetrb  a  caualisar  os  rios  e  deapeáiram»^ 
no;  As  plantaçSes  nao  se  cuidam;  tudo  é  poueo 
para  C^las  e  regalos. . » .  » 

-**^  i<  Não  diga  mais$  vejo  que  è  sineero.  Fal- 
la*-se  na  corte  e  em  toda  a  pai*te  da  riqueaa  do 
Aosae  canimèrcio»  De  qué  s^rre^que  os  outros 
saibam  Sé  nés  cornos  pobres  m  abastados?  A 
caaa  da  Aieco  rendeu  oito  mil  jieaos  íé^a  .o  ura^ 


Digitized  by  VjOOQIC 


fl  A  ifOCWAl» 

lor  dat  mercadorias?  Bem.  Más  JHnUlfltaraBY^ 
na  a  unt  negociante  de  Gordo¥a«  Valha-iiòs  Dew  I 
Eacarevil  ao  procitrador  geral  que  desfaça  o  con-* 
tracto  por  todos  os  modos.  Eu  nfto  quero  que  a 
mio  dps  estranhos  tome  o  pezo  ao  nosso  eofre, 
ou  que  os  de  fora  vejam  tanto  como  nós  no  in- 
terior do  governo.  Entende  ?  Sai  as  ordens  que 
expediu  para  o  Braztl.  Beforme-as.  O  geral  Tirso 
Goflçalvesy  era  hispanhol,  levava  tudo  a  ferro  e 
hgf9i  TosquíanHme  as  <HreIfaas  muitos  rente,  pa- 
dre Nunes  4  e  por  um  aítatel  de  )ã  mais  não 
4|iiero.  perder  a  res/  Istd  é  figura.  As  aldeias  dos 
Índios  são  nossas,. mas  nolíssa  é,  também  a  ttrra^ 
e  nem  fút  isso  a  esgotanios. . .  ^  » 
,  r-r«  Ê  exactamente  o  meu  voto>  padre  Visi- 
tador. Representei  o  perigo  de  uma  sublevaçio 
dos  Índios ,  e  mandanam-^me  que  obedecesse/  / . » 
-T-^  Mandaram  mal  4  «stà  claro*  Se  oM  for- 
mos melhores  do  que  os  soldados,  os.  índios  fo- 
gem de  nós  e  vão  para  quem  os  chamar.  Osael** 
vagens  são  cqmo  as  creanças  querem    lÉÍmo. 
Ganhámos  aquelles  territórios  galmo  a  palme  t 
com  a  cruz  na  mão,  e  o  amor  de  Deus  na  hecca ; 
chegamos  pela  paz  a  ser  mais  fortes  do  que  os 
castellos  e  os  terços  de  el-rei. . . .  Agora  veaam- 
me ,  roubam-me  os  indios  ? !  E  se  eUes  se  le- 
vantaram? Se  os  bispanhoes,  ou  ea  franceies 


Digitized  by  VjOOQIC 


Dt  D.  Jô^b  V.  33 

vièrèfhí?''NS<y  se  apodet^aih  dà  colónia,  e  ti3o^ 
se  mettem  de  dentro,  e  nâo'  ficamos  nós  de 
fóra  ? .  ."■/.  Esta  gente  nío  vô  nada  f  Padre  Nu- 
nes é  preciso  que  a  ignorância  se  desbaste  com 
patisà,  com  tento;  ilem  sabiòs  que  intendam 
de'  thai^,'ti)Sth  rústicos '(|ue  saibam  de  menos. 
Os  rebatihos  tSo  atraz  do  (iá^or  i  os  homens  nem 
sempre.  Levém-hos  pélòamòr;  que  o  Bom  fár- 
se-ha  melhor ,  è  do  iniiàigo  far-áe-ha  um  amigo. 
Lémbrem^se  de  que  olíão,  até  o  Hão,  lambe 
as  mãos  que  o  curam :  se  o  coraçSo  dós  Índios 
não  fòr  nossb  ou  ^tiyer  com  outrem ,  que  é  o 
mesmo  ,  o  governo  da  companhia  dura  poucos 
annos  *riá  América.  Bepare  nisto,  e  acautele! 
Ah;  padre  Sities^  tem  susto  da  índia?  Estamos 
em  bloqueio  ?'Nao  ihiportá.  Deus  proverá.  Falle. 
Sabe,  e  pôde  dar 'boa  conta.  O  que  nos  diz?» 

-^«'Qiie  é  mft  qtiestao ,  padre  visitador!  A 
cttria  insiste;  os  vigários  apostólicos,  francezes  e 
italrános ,  segundo  informam  de  Roma ,  breve- 
mente vao  sahir  para  as  igrejas  do  Oriente  por 
nomeação  da  propaganda 

—  «  Para  as  apanharem  de  súbito  ?  Paliaram 
muito  alto ,  padre  Siiies ,  e  por  iáso  verá  que 
perdefm  a  partida.  A  batalha  é  perigosa ,  con- 
fesso, mas  querendo  Deus  ha  de  ganhar-se.  Deixe 
estar.  Mandam  á  índia ,  á  China*,  ao  Japão  os 

T.  II  3 

Digitized  by  CjOOQIC 


34  4  HOGIBAD^ 


vigários  aposUílicQS?  ©em!  Agora  pf^ua^:  ba 
pastor  sem  rebanho?  Quem  Ib^s  d^r^  pp3^  ou 
os.  seguirá,  se  nós  não  qvi^ermos?  Não  rede- 
ctiram  nisto;  pois  valia  9  pena.  Para  governar 
não  hasta  a  Yon^4<^^  é  preciso  o  ^a^er;  e  eUe$ 
das  missões  nãp  s^hçm  n^.  Yãq  com  09  olhos 
tap^oa. .  . .  hão  dg  cabif  f  dígMho  eM.  d 

—  «  Éntrçtapto  não  ^çs^pijii^ni;  »  —  «\cqdiu 
o  accessor — rucontapi  (\brigar  os  nossos  mt^- 
sionarios  a  rçcQnhec^r  a  sua  auctorida4^.  J^^- 
lam  dfis  çeqsuras  de  Boms^ ...» 

— «  Ou  obrigarão,  ou  não,  p^dre  Sines. 
De  longe  tildo  é  m(ul.  Depois  engançim-se ;  quem 
lhes  diz  a  elles  qye  é  lã ,  e  não  íom  perto  r  que 
nos  hão  de  encontrar?  Boma,  çqi  b^Uas  au- 
thenticas,  qão  reconheceu  o  padroado  portu- 
guez?  Pode  expedir  oqtras,  oontradizendo^se 
em  presença  de  temtos  reis  oiFendidos  pçla  i^ur- 
pação  ?  Nãp  cr^Mi  1  Os  vigários  apostólicos  não 
levam  senão  lurevc?  cl^indestinoÃ. . . .  Ora  o,  ver- 
dade é  uma  só.  Se  o  papa  disae  em  pubUco  que 
as  egrejas  do  Oriente  eram  de  qi;iem  as  íundou, 
não  pôde  dizer  em  particular  o  contrario.  Não 
defendenios  senão  a  gloria  e  a  boa  fé  do  pontí- 
fice ,  se  accusarmos  de  falsidade  os  breves ,  e  de 
calumpiadores  os  vigários. ...  Já  percebe?  Com 
o  sceptro  de  el-rei  D.  Pedro  fecha-se-lhes  a  en- 


Digitized  by  VjÒOQIC 


DB  p.  loÃo  y.  3  o 

trada.  .  .  .  Aquellas  egrejas  da  índia  tem  muito 
sangue  portuguez  nos  cimentos ,  nSo  se  largam 
aflstm  de  graça.  De  mais,  a  propaganda  quer  a 
crue  no  Oriente  ^  mas  gosta  delia  encastoada  em 

pedraria Um  prego  de  oiro  na  roda ,  que  a 

roda  iia  de  parar.  » 

«-^*E  Dto  deíxaiiioa  nenhum  padre  de  fora 
nas  missões  ?  Pareee*flie  que  é  o  mais  conve- 
niente desde  já  ?  »  —  Insistiu  o  padre  Nunes , 
olhando  para  o  vifttador  com  a  vista  cheia  de 
sagacidade» 

-^  «  Nem  am  só ,  observa  muito  bem.  Se  lá 
entram ,  gostam  ^  e  ateimam.  Prudência  e  sere- 
nidade ;  não  é  preciso  mais.  Nada  de  nos  exal- 
tarmos; nada  de  nós  excedermos.  O  nosso  es- 
cudb  é  el-rei  de  Portugal.  Cubra-se  a  compa- 
nhia   com  elle ,    que  o  ndo  ha  melhor.  ...» 

**-^it  X%  notícias  de  Roma  ainda  faliam  mui- 
to. ..  » 

—  «Em  quê?» 

—  «N^uma  reconciliação.  Parece  que  o  car- 
deal secretario  insinuou,  que  a  profiaganda  não 
eslava  longe  de  nomear  os  nossos  missionários 
seua  vigários  apostdkos. » 

--*--« Sim?  tannbem  tenho  idéas  vagas  disso. 
E  entio  ?  se  a  propaganda  o  quer,  que  remédio ! 
Oínatitoto  da  companhia  nao  è  absoluto;  neste 


Digitized  6y  VjOOQIC 


36  A  MOCIDADE 

caso  manda  obedecer.  Seremos  vigários  apostóli- 
cos. Resistindo  á  nomeação  dos  padres  de  fóra 
das  missDes  defendemos  dnrei  de  Portugal ,  se- 
nlipr  natural.  Aceitando  a  nomeação  de  Roma 
servimos  o  papa,  senhor  espiritual.  Q.mais  não 
é  comnosco.  Não  é  este  o  seu  voto,  padre  Sines  ?  » 
— «  Se  V.  reverendíssima  permitte ,  (4)servo 
s6  que  ficaremos  mal  olhados  aqui,  e  talvez  ex- 
postos. . .  » 

—  a  É  possivel.  Mas  ficaremos  bem  em  Roma. 
Depois ,  tudo  se  acommoda ;  neste  mundo  é  as- 
sim. Cá  diz-se  que  é  melhor  sermos  nós,  vas- 
sallos  da  coroa ,  e  vassallos  fieis,  do  que  estran- 
geiros tirados  das  corporações  religiosas  sera  raiz 
nem  terra  em  Portugal.  Lâ  faz-se  vakr  o  perigo, 
o  sacrificio  a  que  nos  expomos  por  mera  obe- 
diência. . .  Ainda  tem  alguma  duvida?  t» 

—  a  Ainda  ha  o  negócios  dos  quindenios,  que 
em  dinheiro  vai  muito ,  que  em  consideração 
vai  tudo.  £  os  dois  juntos  parece  impossível  que 
se  vençam.  » 

—  «  Sepei^ados  é  que  não  se  ganhavam.  Optar 
entre  dois  males  pelo  menor  é  a  verdadeira  re- 
gra. Os  quindenios  não  se  pagam  sem  razão  suf- 
ficiente.  El-rei  D.  Pedro  comprometteu  a  sua 
dignidade  a  nosso  favor ;  deste  lado  estamos  se- 
guros. Agora  veja  bem !  E  se  o  interesse  maior 


Digitized  by  VjOOQIC 


1)£  D.  JOÃO  V.  37 


I 


disser  que  se  paguem?  Não  devemos  perder  o 
menos  e  salvar  o  mais  7  Por  exemplo,  se  pagando 
nós  os  quiodenios,  a  propaganda  nos  fizer  vigários 
apostólicos  no  oriente ,  não  vale  a  pena  ?  » 

—  V.  reverendíssima  de  certo  prevê  todas  as 
consequências !  »  —  exclamou  o  provincial,  con- 
vulso e  suíFocado  de  medo  diante  da  audácia 
desta  politica. 

—  <x  Pois  não  prevejo !  ?  £  verdade ;  ha  de 
rebentar  um  temporal ,  em  que  sendo  mau  o  pi- 
loto podia  naufragar  o  baixel  de  Santo  Ignacio 
nesta  costa  de  Portugal ,  que  não  é  pouco  brava... 
às  vezes.  —  Replicou  o  visitador  sereno  e  risonho. 
Hão  de  estranhar ,  censurar ,  exterminar  até  al- 
gum de  nós,  o  padre  provincial  por  exemplo. 
Mas  quid  inde  ?  Â  companhia  ganha ,  e  o  indi- 
viduo perde.  Isso  o  que  prova  é  a  necessidade  de 
termos  amigos,  poderosos  e  muitos.  Padre  con- 
fessor ,  padre  provincial ,  o  que  ha  a  este  res- 
peito ?  Contemos  as  forças  antes  da  batalha.  . . 
Quem  rS)  é  por  pós  é  contra  nós.  Estou  ouvindo.  » 

E  encostando-se  ao  largo  espaldar  do  seu 
throno  sacerdotal,  inclinou  a  face  á  mão,  e  ficou 
immovel.  O  superior  e  o  padre  Sebastião  suspen- 
deram um  instante  a  vista  agressiva,  que  troca- 
vam ,  desde  o  principio  da  conferencia ,  para  se 
consultarem  sobre  a  resposta  mais  opportuna. 


Digitized  by  VjOOQIC 


38  A   BáOGIDADR 

Ambos  tr^niam  dos  perigos ,  que  iam  correr, 
Irrigados  a  servir  de  instrumentos  a  uma  po- 
litica, que  nos  seus  cálculos  sinuosos,  jogava 
sem  escrúpulo  coro  a  coroa  do  rei  e  a  tb^ra  do 
papa ,  desarmando  um  pela  mllo  do  outro.  Nào 
i^gnoravam,  que  a  cbolera  de  D.  Pedfo  II ,'  es^ 
carnecido  no  seu  poder,  e  ludibriado  na  sua  bae 
fé ,  cahiria  fulminante  sobre  os  motores  osteo^ 
sivos  da  companhia.  Percebiam  optimamente  que 
os  deixaram  nos  seus  cargos  para  representarem 
o  papel  de  bode  emissário  dos  hebreus.  A  socie- 
dade  impunha-Uies  os  seus  peccados ,  e  deimth 
vaH)S  lapidar  por  quem  quisesse.  Entretanto  obe- 
decer era  o  que  lhes  cumpria.  O  que  valiam  ou 
significavam  elles  diante  do  engrandecimento  e 
gloria  da  companhia? 

Òs  outros  accessores  estavam  confundidos.  De 
repente  viam  cahir  das  nuvens  no  meio  do  con- 
selho este  homem,  duas^  horas  antes  tão  obscuro, 
que  alguns  nem  o  nome  Ibe  sabiam ;  e  achavam^ 
no  senhor  absoluto  do  poder  na  opulenta  sack^ 
dade  a  que  presidiam.  Depois,  ainda  mal  resta- 
belecidos do  abalo  da  transfiguração^  repenUna , 
ouviam-no  expor  os  negócios  e  propor  as  deei'- 
soes  com  a  certeza  dos  factos,  e  a  sciencia  do 
mundo,  que  constitue  o  génio  transcendente  dos 
talentos  governativos^!   Élles  os  sábios,  os  e«pe- 


Digitized  by  VjOOQIC 


DB  B.  30kú  T.  39 

rientes,  approtados  na  paciente  politica  da  com- 
patihfa,  comparando-se  ao  visitador ,  eram  obri- 
gando» a  confessar ,  que  via  melhor ,  c  Ha  mais 
longe  do  que  os  seus  olhos  cançados  de  tantos 
annos  de  estudo ;  eram  forçados  a  reconhecer  que 
era  nma  hora  de  exame  e  de  analjse  o  novo  pre 
lado  adtaMára  méis  a  resolução  das  dilBculdades 
do  que  todos  ellea  juhtos ,  e  o  geral  de  Roma 
nos  uhimos  vinte  annos. 

Entretanto  todos  se  viravam  para  os  dois  de- 
Bnidores  rtfterpellados  pelo  visitador  e  liam  no 
seu  rosto  nma  derrota  completa.  O  provincial 
priítfétro ,  e  o  padre  Sd)astião  logo  depois «  bal- 
bctehinmi  erii  phrases  timidas,  em  explicações 
acanèadas ,  algumas  desculpas  sobre  o  desleixo 
qtte  trnba  havido  em  fortificar  a  companhia  por 
meio  de  allianças  firmes  com  os  poderosos  e  com 
o  povo.  O  quadro  qvre  traçaram  nada  tinha  de 
risonho.  Sem  actividade  nem  discernimento  go- 
saram  as  delicias  do  poder,  adorniecendo  com  o 
canto  da  «ereia ,  sem  fazerem  caso  do  passado , 
vivéndb  do  presente ,  e  de^acurando  o  futuro.  Á 
medida  que  os  ia  ouvindo ,  o  italiano  carregava 
mafe  sobre  as  duas  profundas  rugas  frontaes ,  e 
tfpagava  im  lábios  ò  sorriso.  Para  o  fim  os  que  o 
observavam  pasmaram  da  magestade  que  expri- 
mia o  gesto  e  a  phisiononiiar  do  visitador.  Crés- 


Digitized  by  VjOOQIC 


49  4  »of;i^^f>^ 

ceado  m  cadeira ,  deitando  hm%s  pelos  olbos , 
não  parecia  um  homem ,  mas  uin  Deus,  quando 
alargando  o  braço ,  impoz  silencio ,  e  desatou  a 
final  em  torrentes  a  indignação  que  UiQ  trasbpr- 
dava  da  alma :  , 

—  «  Basta ! ; —  exclamou  elle.  O  .pemjiameoto 
que  nos  fez  grandes  e  nos  deu  um  imi^rio  em 
cada  estado  ^  perdeu-se !  Q  ^pirito  que  vivia  ein 
nós,  fugiu !  Tirso  Gonçalves,  cçnsunwou-s^  a  tua 
obra !  O  orgulho  e  a  riqueza  jpaata^am  a  com- 
panhia. Padre  provincial,  a  braços  QOffí  a  maior 
íucta ,  diz-nos  que  dispoz  tudo^  para  se  perder»  e 
não  previu  nada  p^ra  se  ganhais* ,  Depois  ,de  simi- 
Ihante  confissão  não  ficam  sem  lúz.QS  seus  olhos 
e  sem  falia  a  sua  lingua?  Enterrou  os  talmtos, 
como  o  servo  mau  do  evangelhp,  e  appareçe  diante 
da  face  do  Senhor  sem  ao  menos  se  humilhar? 
Padre  confessor,  está  a  concluir. este, reinado,, 
porque  D.  Pedro  II  (já  i^ão  é  segredo)  uão  vai 
â  próxima  campanha ,  vai  para  S.  Vicente  de 
Fora  :  o  que  preparou  para  a  influencia  da  com- 
panhia na  corte  não  ficar  sepultada  com  o  mo- 
narcha?  O  príncipe  real  ó  n^Qç^,  e  generoso,  é 
grande  de  animo ,  e  maior  de  coração ;  o  que 
fez  V.  paternidade  para  que  o  filho,  continu^isse  a 
obra  do  pae?  Os  mancebo^  levam-^e  pelo  cora-, 
ção ,  que  é  o  amor ,  e  pela  cabeça ,  que  n^  sua 


Digitized  by  VjOOQIC 


Dfi  IX.'  J0ÍO  V.  4i 

idade' é  a  iauaginaçãOi-O  que  deu  ao  coração  do 
princifie?  Â:ríyalidade  louca,  ridícula,  de  seu 
irmão  o  ÍRÍaiite  D.  Francisco!  O  que  oífereceu 
à  sua  imagioaçãp?  A  vaidade  das  armas,  os  duel^ 
hf^  nocturnos  qu^  podem  entretes*  um  úiestFe  de 
esgrima,  iças  que  iiBo  oecupam  meia  hora  a  ca- 
b^  de  um  Eei!  O:  prineipiBíSÔBba  com  a>ma- 
gnigceneiã,  adora  a  formosiirav  e  à!iníbicioQa  the* 
SOUTOS,  pprque  deseja  ^r  genisreso;  quer  que  o 
aupiem  como  komem  e  não  como  senhor,  e  niti- 
guem,  nenhum,  soube  entrar  na  sua  alma  (que 
er^  tão  focil),  e  apoderar-^e  delia !  Pois  este  prín- 
cipe, que  nào  fizeram  nosso  amigo^  digo^lbo  eú, 
é  tiipído  a  acanhado,  porque  não  se  conhece; 
pi3i»ham-4he  a  coiâa  na  cabeça,  e  verão  se  mente 
ao  âaiigue  real.,  Preparem-se ,  que  vão  sentir  o 
peso  ao  scei^ro  de  Luiz  XIV !  Não  odistíiaiam ; 
não  ,0  entacem  ;iOs  turaços  apaíxottados  de  nma 
La  Yalliere,  que  o  estremeça,  e  verão  se  olha 
fito  para  nós,  e  nos  deix<a  socegados  reinar  mais 
do  «que  elle  nas  índias;  ser  tudo  e  o  rei  quasi 
nada: na  America!  O  príncipe  quando  se  chamar 
D.  João  V  mosltar  o  que  éy  e  o  que  pôde !  Espe- 
reoi,  que  hão.  de  saber  o>  orgulho,  .'B  força  ide 
vontade,  e  a  goiadeza  d'akna  que  doimem  ainda, 
mas.depressa.acçirdarão  no  heixl€{ir.Q do  t^MPono...  )> 
—  «  V.  reverendissíma  não  íginor&qnede  Ro- 


Digitized  by  VjOOQIC 


42  A   UúGl9km 

ma  w  nos  disse,  qiie  entretivessétlMs  ^em^e  a 
rivalidade  do  pdncipe  com  o  ffifáAté...  CoMMo  aa 
casa  real  muitas  veces  os  irmfio»  ^gUndos  teAi 
a  reinar,  jolgo  que  foi  a  rasão^  pcfi^e..<  » 
'  -M^«  Então  ?*  paternidade  ^6  qfnr  ô  infeiíle 
D.  Francisco  pede  ser  o  Aflfonso  III  ^  cê  o  P^ 
dro  II  desta  épi^7  Imagina  que  ú  bistoria  vífa 
é  cbmo  ft  fioMáa  de  am  livra  qnie  se  dò6#tf  d«iè 
se  quer,  e  basta  decorar^set  Os  filbos  sumidos 
reinaram,  quando  vadiam  maíís  do  que  osl  p^ímo^ 
genitoa :  o  lefto  ó  mais  forte  do  que  o  lèbo  pér- 
qoe  é  lefta.  Esta  mÁ  politica'  é  que  nos  poê  úo 
estado  em  qae  nos  vemoa;  9^m  permita  que  s0ja 
ahida  tempo  de  lhe  aeadir  f  Vei^éfinos^  sé  eú,  es^ 
tr^ngeiro,  penso  melhor  e  posso  mais  dlo  que  pa- 
dres portogue^es  e  encaneí^tdod  tia  cdfte !  Teata- 
rei  a  fortuna ;  e  $e  fòr  felk  apretfderllo  eoiMigo 
a  levar  oa  h^sMiaB  peto  eoraçSo.  I^à^aenlosa  ou- 
tro ponto.  Depois  do  principe^  ha  dois^  hometis 
que  podem  maito,  parque  merecem  tud^r  o 
marquèz  das  Minas,  e  Diogo  áé  Ifétidonça-  C&í^^ 
te-Real.  O  prt^meiro  é  hoj^e  o*  nosfeo^  conde- de 
YAh  Flor  i  a  melhèr  espada-  de  Pbt^tígal  i  o  se- 
gundo' esoonde^e;  mas  aSo  tem  medo  d^  se  Míe- 
dít  com  os  grainfitea  mi^istroã^  da^  Eai^pa^  O  qm 
fez  a  com{ia^iai  pára  os  ter  da  saa  parfeT  Naêa^T 
nem  obseqaiass  nem  louirores^  áetn  serWçoir}  Ao 


Digitized  by  VjOOQIC 


UB  ik.  mAo  V.  43 

pé  d'el-rei  o  padre  confesior  nio  se  lembrou 
deites!  Ê  preciso  que  D;  Pisdro  IÍ  escrev»  ao 
marfuez  um»  carta  do  aea  punho ;  e  que  o  hoíste 
com  as  suas  gniças«  Ainda  é  mais  M^essaPiO  que 
a  inarqueza  mha  a  qUéi»  dete  eitc»  fnvoret,  e  a 
infliwfiieia  que  os  alcançou.  Convêm  em  todos  od 
legares  faaer  boas  auaen^ii»  m  Diogo  de  Metidont» , 
,eseiiiaíFcDtaQ9es  meteis  no  rora^do  prindpe. 
O  cx)tiniHiD  do  uknifliar  é  tudo  para  af  cdmpatihift ; 
ohegAmos  á<  miierw  de  não  ter  tà  unv  rélo  nosso. 
FaREemos  só  inimigos!  O  conde  Almtrainte,  o 
conde  da  Vidigneír»,  tem-^os  ódio ;   vv.  pater- 
nidades nllo  se  Imibfam  de  que  efíe  é  descen- 
dente de  Viasooi  da  6sam,  e  qoe  nó?,  moutáftído 
o  éabo  da  (Bea  Espevanç»  todos^  os  annos  i  Mo 
podemos  estar  raajf  oom  os  neloe  de  quem  o  do- 
bro» primeira?  t  Padre  Sebastião,  no  consdbo 
ultranMiriDO  estamos  de  menos,  e  n&  conaetho  de 
estiNia  appwetemo»  de  mais.  V.  paternidade  nii> 
devia  minca  entf ar  ia.  A  fidalguia  calla^^,  po- 
rém murmura ;  acredvie ;  tiã<»  ièe  perdoa  nem  â^ 
companhia  o  arvejo  de  hombreav  com  ella.  Joio 
FsaaiO'  Oliva-  queria  na  cúria  e  M9  congregações 
os  jesuítas ,  mas  sem  roupetdv  Tinfta  rasae>.  Ê 
melhor  que  noe  sintem-  sem  nos  tér. .  .  » 

— ^«'V,  FCneveitdisBinM,  dá  lioetoça?» 

— «Diga 9  padre SdNurtii^.  » 


Digitized  by  VjOOQIC 


4*4  A  ifOCODADE  ' 

* 

•***-«  Se  entrei  para  o  conselho  de  estado  pedi 
vénia  primeiro  e  recebi  ordem  expressa*  Ente»- 
deraiii  em  Roma ,  que  era  bom  ^  estar  um  de 
nós  no  centro  da  politica  do  estado*  • .  » 

-^  «  Entenderam  mal«  Ora  drga-me :  dirigindo 

a  consciência,  do  rei  não  descobre  os  segredos  do 

seu  coração  ?  Que  necessidade  ha  de  que  os 

mais  conheçam  a  sua  iniluencia ,  se  em  particu- 

Ifiur,  e  com  humildade,  consegue  o  mesmo?  Be- 

pare ,   padre  Sebastião ;   a  com^nhift  dere  ser 

como  a  arvore ;   as  ramas  que  se  vêem  olham 

para  o  ceu;   as  raíxes,  (e  é  onde  está  a  força) 

como  vão  por  baixo  da  terra,   podem  chegar 

mais  longe.  Benovararanse  as  antigas  dísciMrdias 

com  a  inquisição?  O  que  esperam  dbto?  P«rd^ 

tempo  sem  proveito.  O  padre  Vieira  aoctor  do 

plano  morreu ;  os  apiiros  da  guetra  da  súcçessão 

passaram ;  esta  de  be}e  é  lima  briga  de  creanças 

ao  pé  deita;  os  judeus  não  podem  fazer-nos  bem 

e  pelo  contrario  fazem-Hos  muito  mal.  Não  nos 

cheguemos  de  mais  ao  lome,   porque  o  lume 

queima.  Precisamoa  dos  inquisidores  como  elles 

precisam  de  nós ;  e  quando  se  precisa «  ha  uaíão 

e  nunca  hostilidade. 

— «  V.  reverendíssima  sabe,  julgo  eu,  que 
nos  provocaram. . .  .estávamos  em  paz,  e  de 
caso  deliberado  fizeramrnos-^ et.  injuria. ...» 


Digitized  by  VjOOQIC 


DS  ]>.    J9A0  V.  4K 

-^ «  De  prender  um.soeio  nosso?  Sei  muito 
bem.  Olhe^  o  padre  Vieira,  que  era  o  bomem 
que  s^ ,  prend^am-no  elles  da  mesma  forma, 
e  até  o  condemnaram ,.  e  nem  por  isso  noá  foi 
peior.  Bastava.  obrtgaI*os  a  ^soltar  o  nosso  sócio. 
Uma  lição  pequena;  uma  correeç&o  fraterna, 
como  levaram  agora,  os  dominicoa  no  desembargo 
do  Peco. ...  Âivpadre  superior^  isto  vae  mal, 
vae  pessimamente !  Temos  uma  cr-uz  pesada ,  e 
não  vejo  o  Cyrineu,  que  ba  de  ajudar  a  le- 
vantal-a. ...  d 

— c(  Assim  mesmo  ainda  ha  muita  gentes .  .  » 
—  insinuouv  timidamente  o  si|iperior. 

—  n  Gente  ba ,  mas  devotos  da  companhia , 
homens  nossos ,  que.  é  delles  ?  D'antes ,  para 
tudo  havia  servos  de  Christo;  hoje,  falkm,  e 
não  fazem  nada;  ora,  palavras  leva-as  o  venéo; 
as  obres  é  que  ficam.  Soube-se  noutro  tempo 
mais  do  covação  humano.;  e  desaprendemos  cada 
dia ;  que*é  o  peior. .  . .  Valha-me  Deus !  Quando 
nos  persegairam ,  appareceram  os  Jacques  Cle- 
mentes, e  os  Ravaillac.  . . .  eram  assassinos,  pec- 
caram,  de  certo;  mas  sabiam  morrer.  Se  a 
desgraça  nos  visitasse  hoje ,  díga-nie ,  acha  que 
alguém  nos  conhecia?  Ora  pois!  Não  ande  ás, 
escuras ,  porque  tropeça.  Padre  superior ,  quer 
saber  a  causa  do  mal  ?  Não  ha  zelo ;  falta  a  fé. 


Digitized  by  VjOOQIC 


46    »  ÊL  MOCIBABE 

A  pafabola  do  ^o  de  noBtania  é  unia  divina 
promessa  do  SalviKlor.  i  •  esqueôemo-oos  délla. . . 
é  os  montes  cada  Yez>  sio  mab  altog  diante  de 
nésl  Ai&ottxa<-«e  mnito,  descaida-ae  tudo  no 
ensino  da  mocidade ,  padre  confessor, . , .  n 

—  Cf  £  verdade ,  qne  não  vamos  t2K>  bem  oono 
de  antes;  d -«^redarguia  o  superior  t  confuso  da 
lucidez  com  que  a  vista  do  seu  prelado  chegava 
até  ao  fimdo  das  coisas  mais  recônditas^***» «  mas 
trabalha-se..  As  outras  ordens  religiosas  por  ema- 
lação  não  nos  deixam ,  e  ás  vezes 

—  fc  Sabem  mais  do  que  nós ,  e  oflhscamHOos, 
não  é  a  verdade^  padre  superior?  x>-^ atalhe» 
Q  jesuita  com  o  seu  sorriso  frío-*^»  Ahi  está 
de  que  eu  me  queixo.  Se  elles  andam,  é  que  nós 
estamos  parados ,  acredite.  Se  ensioar-^mos  me- 
lhor e  mais  depressa,  otheque  os  nfio  vâo cha- 
mar &  elles.  Depois,  já  lh(& disse,  sei  tudo,. vi 
todo  pelos,  meus  olhos;  para  isso  vm  tnes  me*' 

zfis  nesta  easa Ora  oiça ,  e  medTte.  Sabe 

como  a  companhia  imdoQ  esse  impeario  Ião  grande, 
qne  abre  os  braços  por  todo  o  mundo  ?  Quer 
que  lhe  diga  como  conquistou  tanto  sem  exér- 
citos e  sem  generaes?  Far  viriude  só  da  pala** 
yra  de  Deus!  Os  principes  teem  a  espada;  ma» 
a  espada  fere.  Nó»fomos  de  joelhos,  como  Chfrísto, 
e  levamos  o  amor  e  a  eharidade  áquellescpie^ 


Digitized  by  VjOOQIC 


Di|  i>.  m9  y.  47 

^t^fM».  a  ferro  e  tpfô, . .  4  £Hf9s  y^neerm 

a  di^r^nfia  ?  liQmbre^ ,  que  em  Â^mft  q9  Ce- 
ssões ps^apaaí) «  ç  o  Me#^&  fii^o^  !  Ê  porqiAç 
u  ^p^dil  (^efer^-fo ,  a  çQi^oa  cabe ,  q  0  rei .  morre  ; 
ma^  o  eprac^o  ^  a  alma  cio  hwieHft  $âQ  aen^pre 
Q&  in/a»ioQs.,  Se  Mfoa  geração  aoaba »  yen»,  ^ga 
outra  «w-aj  P  (^  oasa  to4p  -.^  mmi  sobre  «  que! 
está  pçlQ  íoa^r  e.  pela  f$ ;  #  ter  a  4^  Yom  uas 
mãos  pelo .  efis^ipo  e  pela  esperança* ...  O  filbo 
respeita  o  paif,  o  4isqipM}o  cr^  00  EOestre. .... 
o  a;km  »ap  Ç3^cepçQ(3S^ 

— «  É  o  meu  Yoto;  é  o  que  tenho  (Jitoe: 
feita  sempre  »  !  -^  acudiu  o  padre  ^ba$tiaa  de 
lyiag^lbdefi»  com  ar  trij^mpbaute. 

.  —  <ii  PqÍP  dissQ  iBuito  bem^  padre  jiiesU'e  ! 
Desgraçadamente  aâo  p  atenderam. .  . .  Por  esta 
regra,  pi^i^erám^s «  e  pela  4?^pre^^  Haveoios, 
de  caJ^ir, . . .  pwrque  nàp  Ha  m^  grande,  e  fôffte 
qufi  pom  ^r  eternat .  < ». .  ao  m^n^  quc^  uao. 
seja  iK>$  uqssos  dias ,  qu^  vao  vejam  q$  uei^os 
olbfMf  a  r^U^?  \  Copsotemea  ^  afflic^ ,  ac«da-$e 
aios  pobres,  e  resgatemos  os  capl^ivos.  ;C4fi4a  que; 
Je^us  Ch,ri^  foi  cham^  os  ric<^  a  os  {elides 
para  ediin^ãff'  a  sua  egirej^?  N$o  vê,  que  lOS  po- 
br^  eo^.  humildes  é  que  a  (u^ida^ami  tào  se- 
gura  que  dezoito  sequlos  a  uílO  abalarauí :  tào 


Digitized  by  VjOOQIC 


48  A  MOCIDADE 

grande  que  nha ha  parle' do  mando,  aonde ^Mo 
tenha  muita$  portas?  O  nos90'érro\  e  oHie,  que 
DOft  ha  de  matar! ~*0'  noíso  erro  tem  dídé  es- 
qwoer^mbs  que  somos  ricos «  nSo  para  desfriH 
ctar,  mas  para  grangear.  Seíizer^-mosbem  ao 
proonmo,  elle  por  força  nHo  feje  de  nós,  Soje 
para  nós.  E  se  nos  procurarem  iodos,  astarenu» 
sós  ?  Se  iM  quiwrem  todos ,  somos  fracos  ?  » 

-»<«  Como  já  observei,  )»«-* respondeu  ocon- 
fessor  de  el-rei— -«  da  milha  parte  n&ò  me  te- 
nho descuidado.  Sou  íneansavel  na  corte.  Os 
príncipes  e  os  fidalgos  não  chamam  outros  mes- 
tres  » 

—  «A  corte  é  pouco;  a  eorté  só  Mb  é  nada, 
padre  Magalhães!  »  —  atalhou  o  visitador  severo" 
—  O  estado  comp5e-se  de  clero,  nobreza,  e 
povo ;  e  repare  que  as  duas  classes  São  muito 
peio  que  representam ,  mas  ao  pé  da  ultima  sSò 

quasi  nada  em  numero IMga-rae:  nSovê 

que  o  povo  todos  os  dias  sobe?  £  se  die  subk- 
tanto  que  chegue  ao  lado  da  fidalguia  e  do  clero? 
Acredite-me ;  é  preciso  que  todos  nos  oiçam  e 
nos  vejam ;  se  não  tivermos  o  povo  por  exenctto 
e  o  rei  por  ministro ,  não  temos  senão  apparen- 
cias ;  e  das  coisas  o  que  importa  é  a  realidade. 
Accusam-nos ,  bem  sei ,  de  quereremos  apagar 
a  sciencia ,   e  escurecer  a  rasão.  Chamam^-nos 


Digitized  by  VjOOQIC 


BE  0;  #pia  v«  49 

«imbio«0^&,  áob«!bo^ ,  é'  exclusivos. .  . :.  nSo  oos 
ceilbQQfai^,  -é  Q  que^é;  faliam  sem  «aber.o  que 
disem.  lloif^^ía  Mo  de  saber  lEUes  vivetfi  c^ada 
um-  Qm  swea^^  quando  muito  no  seu  remo; 
n6»  'memmteahtUiài^  o  mundo,  ^e  estamos  em 
toda^  a>ipfaii$/ . ...  Jutg^  que  este .seculoé  o  se-^ 
culo«pa99^0f;iicií^m  que  tudo  «ao  bucólicas « ju- 
bilas,  e  .i^cções:  de  grafias ;  esperem  pelo  tempo 
que.i»  1#iiipo<lbefr dirá  o.que  é.  Estes  reis  e  estes 
ministilo^.^  «padre: Sebastião,  aiulSío  cegos,  e  são 
muito  peqjueuQS 9  niaí^i pequenos  ainda  do. que  a 
t^rrd'9  ^e  n^o  .podem  cond  o  peso. .  .  .Ateimam 
qiiatC^tà  .tudoptiradorO  ti^  vae  a  con^er! . . . 
£ep$fim; ,  nem.  pensam,  díeêm  que  o  silencio  é  a 
consciência ,  e  que  a  rasão  humana  pôde  enc^r- 
cerarr^e:  .>.  ..icoitodosJ  .Anibas  ellas  vão  tSo  de- 
prd668^,  e  e^tS^ijà  tãQ\lon^.delle6.(e  até  de  nós) 
que  iSe  <«£io  dobr^moS:  o  passo  pafa  as  acompa- 
nhar s<fi)gQiii-OK)S,perdemTTse  no  caminho,  en- 
tmmr.a.4<ídçÍQr!  que  s3a  creançaaç  e.  deitam  por 
tenracO  ^bom  ero  mau ,:  o  sagrado  e  o  pfophaiio. 
A  pklâspphia ,  que  encetem  tanto  essa  g^nte , 
as,  ;&bulftS:^  as  novellas»,!  todas  essas  comedias  e 
tragedia^  que  açlaádMi  ^ao  maus  ^jrmptomas. » . 
doixem /correr  os  annos--  Oi  hao  de  a^barrlhe  a 
gostQwf. . .  mas  a  comfiBúQhia  é  que  atravessa  tudo, 
fóttras.  erg^eciip !  O^^l&lNós  sabemos,  e  elles 
T.  n.  4 

Digitized  by  VjOOQIC 


nfk>.  Conheeendo  o  mal,  ^?eiidò  o  perigo, 
podiatnos  dv  «  mão  ao  {irogrMo«  ({«efemoego, 
para  eAlo  sé  tido  proeipítar  do  fepOHto.  ..«.«- 
úm  id^ei  a  cnt ,  quo  é  o  €Í¥ÍKsoçÍO ,  Éã»  ¥1- 
cilasto,  e<^  throno,  qsnd  é  »  cadetiH  tido  «lAiMe. . . 
Quando  noi  perderem  dièert^  se  vhM  meliior 
do  que  nós)  A  rasâo  humano^  ba  dê  ievanlpir-se 
coptra  elles ,  e  não  a  (ImirdieneB ;  e  opr^reaso, 
perdido,  e  cego,  ha  de  pa8Bar4lkea  fop  cima 
do  éorpo,  deixando-os  no  chSo,  picados,  e 
mortos. . . .  Padre  pro? ineial ,  aúida  hte  de  oho- 
rar  por  imís  até  os  inimigos ;  digo  os  íninâgos 
porque  eedo  ou  tarde  o^  nossos  iiiimigos  lAo  de 
ser  os  reis  e  0$  minictro».  Deíxâl-<)s!  Elles 
aprenderão  A  soa  custa,  n 

Unto  lagrima  apontou  aos  olhos  desto  bomom, 
que  lia  com  tanta  sagacidade  no  fsfturo  as-Mbos 
ainda  enn^aèis  da  historia»  A  voz,  feremia  e 
yibrava  com  as  intima»  oonmioçSe»  dà  aitna.  •— 
Expondo  a  tbeoria,  a^Mlas,  mii$  lotfièa  da 
politica  jesiiitka;  fundando  nío  amor  eenatidade 
0  poder  temporal ,  a  monarofcia  uttifferaal ,  a 
que  aspirou  sempre  a  famosa  eompanbia ,  eujo 
sócio  €^ ,  olhava  com  saudade  para  ^  pásaado , 
eom  trísteia  para  0  presente ,  e  com  terror  para 
o  futuro.  O  enigma  sòeíM  (A  ^i^tlo' preoeupafa 
as  intelUgenciasextraordinâtías.  No  pritioipíodo 


Digitized  by  VjOOQIC 


msaXú  XVlII  j6  íA^mn  tremia  de  encòntt^^ 
diante  (fe  ái^  t«i^tiYithttietite  ^  <ésda  forQo  latente, 
invévieivel^  qii6  i^velAda  ^  etpfosSo,  toitiou 
t^dirpo  «  flírma  nds  atas  4e  liictá  éa  t^volui^ão 
rrabóei:^.  O  jesuíta  ainda  eria  nò  poder  da  w- 
ctoridade  para  suster  ou  desviar  a  tor^ate ;  ainda 
imagitiata«,  que  depois  ^  imprensa,  e  diante 
de  Voltaire 4  nega^  atrojáda,  elegante,  t 
earopea  de  todas  tíê  crenças ,  era  posUiVel  d(- 
cet  m  Sòl  qa«  pafadM ,  e  á  luz  que  brilhasse  me- 
nos 1 .  w 

Entretanto  as  sua^  palavra^  ^hiam  tahto  do 
tx)ràçao,  e  pintavam  com  tàntà  verdade,  que  os 
accessores^  confusos^  atterradoB,  e  mais  exacto, 
deslumbrados  4  do  clár&o  desta  immeiísa  intelK- 
geiídia^  que  vin^  sabia ^  e  previa  tudo,  nào  ou- 
^vam  tiem  descer  ao  fundo  d^alma  para  se  in- 
tettogarem  Acerca  delia.  O  visitador  desde  esta 
conferencia  oc<^upou  de  direito  o  ^ummo  poder. 
Estavam  tio  lottge  delle  todoá,  que  a  inveja 
mesmo  tí&ò  efa  possível  ^  ficata-lhe  multo  alto. 
Etoltados  pelo  etempío  e  pela  energia  de  «m  gé- 
nio di^inctov  o  setttimenté  único,  (jue  se  apossou 
delias^  fai  o  desejo  de  se  moM;iHirem  dign6s  de  o 
avxiUar  na  escabrosa  feconstrucçílo  da  influencia 
da  éom^tihia.  O  padre  Yentnhi  ^  satisfeito  deste 
pensamanta,  qne  estdva  no  rosto  e  m>  coração 


Digitized  by  VjOOQIC 


52  A  MOOiDADE 

dos  seus  executores,  despedi-ros,  ^^eodó-lhes 
com  agrado  algumas  phrases  lísoQgeiras; 

Quando  ia  a  sabir  o  padre  ^Simões ,  que  era 
o  ultimo ,  o  visitíiidoir  deteve-o  pelo  braço ,.  e  es- 
fregando depois  as  mãos^  disse  como  seu  pla> 
eido  sorriso: 

—  «Então,  padre  Sinoí^s,  não  lh'o  dizia  eu? 
Deposemos  os,  soberbos  :  agora  vamos  exaltar  os 
humildes  !  Estas  lições  .  não  cabem .  no  chão. 
Veja ,  exami  ne ,  e  avise-me  de  tudo*  como  até 
aqui. .  .  Tem  feito  á  companhia  e  ao  geral  maior 
serviço  ^  do  que  imagio^.  »        , 

E  apertàndo-lhe  a  mão  deixou-o  saUir.  È  iau- 
til  acrescentar  que  ás  informações  deste  confi- 
dente perspicaz,  e  ignorado  dos  mais.  aecessores, 
eram  devidas  as  idéas  exactas  e  o  conhecimento 
profundo  e  minucioso  dos  factos,  que  habilita- 
ram a  capacidade  extraordinária  do  visitador  a 
ser  mais  sábio  e  mais  pratico  em  cada  negpcio 
do  que  o  defínitorio,  encanecido  no  estudo  e 
meditação  das  diifficuldades  do  governo. 

Apenas  se  viu  de  todo  só  o  padre  Ventura  dea 
duas  voltas  á  chave  e  fechou-se.  na  secretaria. 
Depois  foi  direito  a  um  arn^ario  secreto  sumido 
n^um  recôncavo  da  parede ;  tocou  a  mola.,  fez 
saltar  a  gaveta,  e  tirou  delia. um  cofre,  pequeno 
folheado  de  tartaruga  com  frizos  de  oiro  embu- 


Digitized  by  VjOOQIC 


DE  D.  JOÃO  V.  S3 

tidos.  Dentro  do  cofre  estavam  só  dois  maços  de 
cartas ,  cuja  leitura  o  preocupou  tanto ,  que  a 
sineta  repicou  duas  vezes ,  chamando  ao  refeitó- 
rio ,  sem  elle  sequer  levantar  a  cabeça ,  apertada 
entre  as  palmas  da  mão ,  em  quanto  os  cotovel- 
los  se  firmavam  sobre  a  mesa.  Um  sorriso  mais 
agradável  do  que  irónico,  uma  expressão  mais 
curiosa  do  que  sagaz ,  acompanhava  os  inciden- 
tes da  leitura.  Finda  ella  o  italiano  tirou  duas 
cartas  do  primeiro  maço  e  metteu-as  no  bolço  do 
peito ;  e  repondo  tndo  no  seu  logar ,  dirigiu-se 
à  porta  9  que  abriu ,  em  quanto  dizia  a  meia  voz, 
fatiando  comsigo  mesmo : 

—  «  Veremos  se  este  papel  faz  o  milagre !. . . 
Este  homem,  dizem  elles ,  que  é  nosso  inimigo  ? 
Pois  sim,  será ;  e  se  dentro  de  quinze  dias,  por 
empenho  nosso,  o  fizermos  primeiro  ministro?... 
EsiSi  gente  não  sabe  que  só  o  Salvador  era  capaz 
de  resistir  levado  ã  montanha  da  ambição.  O 
tempo  a  ensinará.  » 

A  quem  se  referia  o  jesuita? 

Brevemente  elle  mesmo  dirá.  Escusado  é,  por 
tanto ,  sermos  indiscretos.  Por  muito  correr  não 
se  chega  primeiro. 


Digitized  by  VjOOQIC 


Digitized  by  VjOOQIC 


CAPITULO  XV. 


UMA    SERVA    DE   DEUS  ! 


Agora ,  pddindo  Ikenç*  a  um  amigo  wm^^ 
eoAraremós  na  sua  cbonfvana ,  como  dieiam  em 
estilo  pastoril  na  epocba  deâta  hmií  verídica  hts^ 
tona.  O  honrado  lliomé  das  Chagas  desapp«re* 
cett  ha  tdnpo,  e  6  preeiso  sabermos  noticias 
suas.  TeDH»  sido  ingratos  esquecendo^nos  de  o 
procurar ;  mas  elle  fino ,  como  um  coral  ^  não 
pede  ter  deixado  de  fezer-^se  uttl  ^  sobre  tudo  a 
si.  Deve  esttf  oocupodo.  Vamo^  vér. 

A  escolha  das  posições  faz  o  general  ;.e  o  noss^ 
amigo  saiiiar  estai  regra  ^*  como  sabia  a  casbistiea 
do  padhei  Baimiy ,.  o  mnitaB  coisas  mm^  O  Eaeas 
de  Évora,  salvando  os  penates,  e  .chaniande 
tempo  depoiSr  eoimo  aua  fid  €ireiisa'i  ar  vrrUiosa 


Digitized  by  VjOOQIC 


g6  A   MOCIDADE 

Perpetua  das  Dores  de  Maria  Santíssima ,  tinha 
farejado  o  sitio  mais  commodo  de  Lisboa ,  para 
assentar  um  acampamento.  Depois  de  boas  infor- 
mações e  attendidas  as  leis  da  hygiene ,  da  tác- 
tica, e  da  liberdade  de  industria,  optou  pelo 
becco  do  Manquinho ,  posição  estimável  a  todos 
os  respeitos. 

O  becco  do  Manquinho  era,  no  anno  de 
1706 ,  e  continuou  a  ser  até  ao  terremoto  de 
1755 ,  uma  espécie  de  corredor  enviusado ,  es- 
curo, ladeirento  e^  lodoso,  cheio  de  cotovellos 
como  os  pés  do  devoto ,  esbeiçado  de  paredões , 
e  de  barracas  arruinadas ,  como  o  vestido  mila- 
groso do  Bertholdo  Seraphico.  Este  logradouro 
dos  amigos  da  obscuridade ,  que  de  longe  m»is 
parecia  um  cano  de  despejo ,  do  que  uma  rua 
habitável,  tinha  nove  palmos  de  «lal-gb^  e  ses- 
senta de  comprido ,  na  segunda  v<M(li  ^que^  fazia 
para  enteslar  com  o  largo  doa  Escudeiros.  A 
estas  consoladoros  proporções  juntada  ai  «dm  uma 
->eberta  em  forma  de  boeca  de  gavpafáo  ^  à  qual 
sabia  para  a  Âlfurja,  oatra  víelki  torcida ,  na 
largura  de  sete  palmos,  até  ao  becco  dos /Na- 
morados, nome  vaidoso,  que  o  lamacènto^e  es- 
guio passadiço  devia  tx'Oear  pelo  afppéUiob  mais 
verídico  de  becco  dos  Ladrões.  .  f     '  : 

Á  vista  da  exactitóima  desorípç^Sies  q*e>i^»ba 


Digitized  by  VjOOQIC 


de  -se  lèr ,  íivaàa  .dos  moniuiientos  da  epocha^ 
poQco  resta  a  /acrescentar.  Em  dia  de  dílig^a^ 
cias  da  justiça  ^m  itectoa  das  èarracas ,  coroa* 
das  de  trap^FinUas. afuniladas^  poáiamiatoir.laQii 
escapatória  aos :  morcego».'  e^  abutres  deste  bairro ; 
e  ds  mais  delicados  de  tionscienèi^^  e  por  isso 
menos  promptos  eipi -evitar  o  contacto  dos  bder- 
guina 9  se  okòvia^.não  .qiterendo  safair  de  ema 
o(mi  agua  até  aio  joelho,  preferiam  atravessar 
uma  taboa  oomot^p^ile ,  da  janella  para  janella, 
em  toda  a  largu|:a.do  becco,  o  qufe  lhes  f^opor- 
cionava  a  commodidade  de  visitarem  os  seus  ami- 
gos, viajando,  aeriam^ote  sem.  passaroUa.  Deus 
noS'  i  livre  de  maiis  pensamentos !  Slas  estas  en- 
cruailbadas V  feitas  de^.  propósito  oomo^  tocasse 
sapos ,  não  se  pareciam  mal  com  uma  caverna 
de*  trataittes  ,>  admittida  mesmo  a  virtude  e  amor 
do  proximoi  do  principal  locatário ,  o  sr.  Tho- 
mé  das'  Chagas.  O  cortiço  estava  cheio  de  vesr 
pas ,  eomo  é  de  suppor ;  >  e  as  vespas  usam  de 
(erpão ;  qualquer,  dos  moradores  etn 'perigo ,  fu^ 
gittdo; pelos  telhados,  e  sdyiaado  aos  tenebrosos 
desaguadoiros,  podia  faotlmentâ  deixar  a  justiça 
parva  no  meio  da^  mms  bem  conoebidas  evolu* 
çftea.^ 

O  sr.  Thoihé  das  Chè^gas.  vivia  com  certo  eon*- 
chego.^  Quer  fosse  herdeiro  do  velhaco  Onofre 


Digitized  by  VjOOQIC 


è^  A  imciBAnE 

Crespo,  quer  tivesse  acfaad»  tfaesoufoeacoBdklb 
âebaiiib€^  d»  pedra  da  chamÍBé,  a  Teidade  é.<|iie 
se  tractef a  ás  mil  maravillas  para  um  viilfio 
ruim.  Todas  as  peqweoaB  eónaolaçdea,  com  «pie 
um  devoto  corrige  nos  dias  gordos  a  magnsza 
do  fameítcalelmn,  estavam  en&xAaám  m  disr 
pensa  em  gdosoo  eaobos  do  paios  e  chouríçes, 
ou  em  didettosas  K&bas  de  garrafiss  de  geaoino 
e  madofo  vinho.  Fiel  à  raodeala  fortuoc  do  seu 
pupítto,  a  tia  Perpetua  deseontavit  oito  bons 
por  dta  nos  lidas  da  saivaçio^  pasa  tractarda 
cosinha  e  da  roupa  dO' sr.  Tbomé  r  e  resnuo- 
ga«do  o  se»  padre  nosso ,  ou  esbrugando  o  seu 
rosarí<^,  ponfaa  toda  a  caso  bonita  e  cbeinsa 
como  um  palmito.  D^em  a  tenka^  em  gkariat  ^ 
tia  Perpetua! 

NoVdi»,  em  que  estamos ,  um  acto  de  r^- 
boNião-  inaudtl»  acabava  d»  se  consimniar  eo^ 
tra  os^  moradores  dk)  beeco  do  Ittanquínho,  fe- 
ridos no»  socvatíssimosr  diroitos.  de  caminb^e 
passagemi  A  barraca  doi  sr.  Tbooié  das  Chag^^ 
Ibrmav»  uat  do»  inmmieKavm  cotcnaeHos  do  csr- 
rodor  ^  aonde  0  braço  dot  pouoo»  opolentoi  mestre 
de  otnras  a  Irauitára.  &  dUa  èeacaiçii  fasia*  «ibs 
cova  grande  entre  ella  e  os  três  casebres  aiuda 
mais  eaéocosi^;  que  Ibe  fioavami  defironte ;-  s^o 
o  do  mei»  »  tenda ,  »  espelunca  db  âiitoo  baif- 


Digitized  by  VjOOQIC 


Disn,  4^àQ  V.  69 

risia»  QOfead»  do&iiiHMnsesci^eis  loire»  da  estilo, 
rortifíead»  c^m  as  gloviomis  barricas^  cpie  o  €od- 
shbkho  tirav»  ào^  porio  e  «mpmmMra  paia  a  parta. 
Á  esqperè^  habitava  vm  vat^nvw)  tíígs»^  anwkK 
tado  t  e  pro^so  a  viii^r  «  pergmça  da  nnlete 
cono  oa  saltei  ittortaes  doa»  dbdas.  Na  direita  vi*- 
via  o.  sineiro  da  j^cbía ,  entre  oa  flates  kiste- 
rieoa^  a  m  mwmuracfca  eteriuift  de  três  beata» 
velhas,  que  eram  a  cauda  da  serpente,  cuia 
cabaça  ven^Ma»  afppavecâa  na  beoco  dos  Nano- 
radoa,  qiiartel^^&aral  daa  gatimoa  da  cidade  èt 
Lisboa^  e  mvk  faftigtch 

Ei^an  siat^  bor«s  dia  manfeS  f^  aiiida<  não  o  se* 
rianr  viesm^ ;.  eomeçana  a  aailirai!  o  dia ;  e  uan 
chwíeiro  teimoso ,  puthado  |elò  vante»,,  açoiteia 
as  jandlas ,  eom  vidraoas  de  papal  de  cantodifta^ 
quando  o  illustre  vetenso^atãriíi  ft  poit»,  ttgfmmr 
toroli  e  pé  sadio,,  e  a  perva:  vádida:  fera  do  ^u 
tegudo.  S^ndo  ar  sw  betta  esipressilo,  ia>  faier 
ai  consoada  à  tenda  d<k  tía^Br»,.  cam  dais  %es 
pasaadoft  e  ma  dósei  stapeitaiirel  de  agoeraedenle^ 
pM'<9  eviuigair  asf  buowiMes  do<  eateoaago  ^  e*  le^ 
hahÂbtai^  o  sjrstdiiift  narrauK  Be  sepctite  o  f^ 
rioso  monumentcl^  dat  gitarsa  òd  snonfisa»  ik» 
um  gritoit  e  esi^peotofCM  nraa  Uasfenria  ^  a  que  > 
respondeu ,  nsya^^iei  ecb» ,  roas  à  iminansa^  boooa 
dcvJtwpradQ  teqdhíro  9  que/  d»  aito  degraa  áà  sua 


'  Digitizedby  VjOOQIC 


60  A  MOdBÁBE 

porta,  e  sepultado  «té  ás  or^lbasem  um  agudo 
carapuço  de  lã ,  amaldiçoava  em  phrase  clara  e 
voz  ialfelligivel  a  causa  dos  seus  males.  Ao  duetto 
dos  dois  bftíxos  associou-se  pouco  depois  o*  tenor 
do  siaeíro^  e  o  sopraBo  e  tiple  das  beatas ,  cujas 
coifes  e  cupeHos  mal  assentes  tremiam  com  a 
raiva  do  areópago  fèoiiniDO ,  fflitlbado^diante  dos 
degra«K^  de  punho  fechado,  e  olhos  scintillan- 
tes. 

Qual  era-  o  motivo ,  que  provocava  esta  elo- 
quência no  becco  do  Manquinho  ?  Qiiem  desa- 
fiava a  ira  guinchadora  das  matronas ;  a  faria 
pausada  do  mercieiro,  e  a  cholérá  militar,  e 
qmsi:  episcopal,  do  soldado  e  do- siMiH6?  O 
roais  exiguo<  e  desj^resivel  ente !  Utn  galopim, 
de  oito. B  nove  amios!  Olhemos  para-  a  rua  e 
adiaremos  0^  corpo  de  delicto. 

A  cova  entre  a  casa  do  sr.  Thomé,  e  as  três 
barracas  tinharanse  convertido^  em  lago ,  graças 
à  seíencia  hjidreuliea  do  gaiato  já  citado,  o  qual 
muito  senhor  de.  si,  e  a  coberto  da  vingança  dos 
inimigos,  apparecia  a  cavallo  em  um  barril  pe- 
queao,  talvez  empalmado  á  tenda.  Um  caHãxo 
de  papel  pardo  còroava-lhe  a  cabeça;  uma  canna 
de  enxqtar  peros  servia^lhe  de  sceptro.  Ta- 
pando as  saídas  á  agua  da  chuva  que  fõtà  co- 
piosa itoda  a  nottte,  o  velliaco  alagftra  o  beceo, 


Digitized  by  VjOOQIC 


08.0.  Mio  V.  6á 

guasi  até  ,à  entrada:  d/a^^Alfiiija,  e  feaíatia  iofiar 
^ido.  á;  execr^íãO:  das  \mU$ ,  da  tia  .Perpetua , 
e  4^  todQ^.o^fi»oi:ador^&»  cço^emuados  a^^^f  um 
I^sdtio  ^  barrigas  das  pe^nas^  Gaao.,t^t«ssQm  a 
tQDiciridade  de^  sair  da  porta. 

Em  virtude  deste  grave,  acoBteeiai^o  yjiaAih 
se^.^  pojs,  em  aç,ç3o.bellÍQa,,^  velbas  ^e^reahii'- 
das  e  alvoroçadas  como  jtffuxas ;  e,  jio  t^eip  p  tèfir 
deiro  teito  Júpiter  statpr^  e  Icun^atâ^ndo  o  h^r- 
ríl  dçitado  ,ao  .lago , .  e>o  si^o  de  p^pel  pardo 
convertido  em  elmo  impçríal.  Ãb  ling^as  das  ma- 
tronA$r  afiadas  pela  raiva,  esquartejavam  a  som- 
bra do  rapaz ;  a  i^uleta  do.  soldado  juravarJíie  per- 
les os^os^  e  a.jSíai^}ia  do  verd^egi^o^negoiE^i^Rtede 
quartilhos  ajtcoava  o  céu  e  a  terra... \No  meio  do 
alarido  o  gar^to.ría,.patiah4ivae  assobiava  <^mum 
desplante  capaz  dç  enfureceria  propm;pacienpia; 

Entretanto,  .vendo  o  veterano  arriscar  o  sea 
único  pé,  o  no$so  amigo,  saltou  como  um  foguete 
de  cima. do  buqephaljo  de  pâu,  e  rolounlhV  di- 
reito á  canella  quando. estaya  cortao^Q  as,  ^guas 
eqm  serena  precauçSo.  O  Marte  do  Manquinbo, 
em  perigo  flagrante,  esqueceu  a  fraqueza  dos  alin 
cerces,  perdeu  o.  equilíbrio  e  a  muleta,  e  cabiu 
de  costas  no  pântano  artificial  no  meio  dos  cla- 
mores do  tendeirp,  qne  apanhou  de  rosto  a  chuva 
poucQ.  odorífera  qu^  espirrou  do  baque  do  sol- 


Digitized  by  VjOOQIC 


62  A  M<ICI0AW 

4dfo.  fititrelaMa  HO  rapaz  mi^oís  p\Ao^  mdleir- 
se  na  Alfurja,  e  d'atkt*«VitrM  no  heccó  úús  Na- 
morados dando  tímàas  que  ounitim  tnnito  tempo 
eom  «tleneioni  indignaçSo,  e  geatos  ftiiibmidos, 
as  victímas  lodibríÀdafs.  N^  mom^ento  cttttco  a 
tia  Perpetm  foi  eonsbtin^dft  a  suspender  a  Ver- 
fina  que  pronuncíafYa  cmtm  a  depratada  moci- 
dade, acudindo  á  vok  do  sr.  Tbomé  das  Chaga!?, 
que  a  chamara.  Pouco  depois  fechou  a  soa  praia, 
deixando  oa  aHíados  em  murmurado,  entnsgues 
á  mofina  sorte  que  «  perseguia. 

A  figora  do  nobre  andador  das  almas  em  ha- 
bitoB  menores  faria  estalar  de  riso  nm  bonzo,  qae 
é  o  symbolo  da  gravidade.  Em  vet  da  capoeira 
de  crinas  e  «stopa  roça  que  na  rua  lhe  servia 
de  peruca ,  o  devoto  trazia  &s  cabritas,  empolei- 
rada na  alterosa  nuca,  uma  coifa  de  mulher,  cu- 
jos folhos  sujos  e  amarrotados  cabiam  d^ambos 
os  lados  até  ao  pescoço  como  orelhas  asininas. 
A  esguia  canella  com  a  traçada  meia  bicolor 
eheia  de  pontos,  e  o  enorme  pè  de  sete  cotovel- 
loi  acalcanhando  as  chineHas  largas  como  fahias, 
davam-lhe  exolka  apparwicta.  Em  mangas  de  ca- 
ihisa ,  o  puido  Calção ,  e  ^  babadouro  *esgaio 
todo  franzido  em  roda,  torítafvam-*no  a  pubKca- 
fiírma  de  um  barbeiro  de  entremez.  Thomé  das 
Chagas  acabava  de  fechar  O'  sobscrípto  de  um 


Digitized  by  VjOOQIC 


DB^».  Mio  t.  63 

maço  de  {^àpé»; «  qiMiiâo  a  tia  Pei^tua  entrou 
na  casa  de  jantar,  siispeiidià  ae  peito  o  relicário 
com  i>  ^MofMie  cflflar  de  eamandnlaA.  Os  elhitos 
eirritBadea  do  Hiilagreíre  ^taramnie  na^  beata ,  e 
06  dedos  tortos  e  pardos  coçaram  a  nnea ,  gesto 
niiifto  ftsual ;  ao  mesmo  tempo  exclamava : 

—  «  Torno  a  dizep4ho :  isto  é  obra  dos  meus 
inimigos  rel^iosos !  » 

— «  Anjo  brato  do  men  divino  Jesus !  — 
ffcnditt  a  sn  P^petua  persignando-se,  e  lagri* 
mejando. — Qaem  «os  hn  de  querer  mal,  filbo 
da  mínlia  abna?  ]>eixa-«te  dessas  tfiMfmM  (que- 
ria dizer  iHidMJmeusanctinho. . .  Aquilio  6  idéa 
da  Tfbora  maldicta  dotapact  Deus  o  tolha  de 
pés  e  mSes.  Nosso  Senhor  me  penioe ! » 

— txCharidade,  tia  Perpetua,  mais  chari- 
dade ! " — exclamou  o  sanUro  eom  soberana  digni^ 
dade. — Está  eseripto  tia  sagrada  paginas  Nao 
desejarás  o  mal  do^ten  próximo,  n 

-^«  Uma  paretesia  o  seque  ao  aborto  do  in- 
ferno, e  Ã  boa  refe  da  mai ;  que  rtve  ootno  um 
brutinho,  fora  da' lei  de  Cbristo. . .  Arreda-to 
tentação  do  demónio.  N9o  que  elle  se  não  ^,  pa- 
rece mesmo  o  Ante-Christo  r  sabbado  de  Nos^ 
Senhora  é  hoje. .»  E  lascarino?  Ai  e  Jesus! 
Hontem  se  me  descuido  nõo  lambia  aqueHe  ba- 
zeHsco  oespecione  ào  nbsfjo  tmimiTf  Saffâ^!  com 


Digitized  by  VjOOQIC 


6Í  é  WHmAièE^ 

o  demónio;  emif^^Q^e  Ore^do  ^lll^^(^cll>.mor- 
taU.  • .  Âye  Jtlaria,  çbim.à^gt^f^. .  .n 

Coroaitdo  a  inaledi/^poeia í^/mAi^Víífih ia |tia 
Parpatua  ,  acaiiipaiifei(Hi-^;  d^.  Xm « m^swas  .  i^ 
alto  abaiw  â  imugem.  da  sW^ora.idas  .Djartes^. 
posta  eq^  c^mp  de  lupaibaoquf^rcomsua  .t^ár: 
lha  deiqlhos  muito. lavados.    ,<;.  <. ...     '{  . 

  beata  carregava  com  mais  d^  3^$eDta  aa-^ 
nos;  e  er^  baisca^: corcovada,  e magrissima*  Uma 
bocca  sorvida,  d'onde  .serratirav^m  >os  dentes 
em  debandada.;  çlhpg  .p^qtt€^<^,  ,d)otoadQS.  de. 
marroquim,  viúvos  de.,pesli8Miiis.e  apresiU^^dos 
nos  cantos,  eomo  o)faQ$  de  fiHmti;  pêUe  çoi;  de 
cqbre,  quasi  viscosa  cqiqo  ^pelle^d^  si^pent^:jim 
nariz  adunco  d^  bico. de,  p^iptagaio;  "e  uma  barba 
revirada,  d^vam-lhe  inquestionável  .direito  a  rei- 
vindicar a.  belleza  picara  da  famosa  dama  Leo- 
nai^a,  que  Deus  tem.  Vestia  uma  tupica  sem 
cauda,  talhada  em  ÍQrma  4&ihabito,  ;Com  o  ine- 
vitável çapello  escuro,  framido,  e  affçgado  á 
roda  do  pescoço,  que  subia,  jnleriçâdo  e  eteq^o, 
com  um  feixe  de  cDidoT^ias- tesas ,  sustentan^ 
no  cimo  a  cabeça,  proporcipualmente  pequena 
de  mais,  do  mewo  modo  que  ivn  poste  suporta 
ama  lanterna.  ,; 

Quaodp  sorria,'  o  amarello  riso  desta,  bocca 
sem  deites  fugia,  como  um  reptil,  por  cima  dos 


Digitized  by  VjOOQIC 


DB  D.   JÍOAO  V.  6S 

beiço»  delgados,  palHdos  e  sumidos ;  quando  se 
if ava,  a  iuz  baça  dos  olhos ,  encovaudo-se,  pare- 
cia accesa  dentro  das  (»-bitas  yasías  de  uma  ca- 
Teira.  O  formidável  rosário  pendia  do  cinto  de 
couro  e  chegava  qoasi  aos  pés.  Um  registo  da 
Senhora  das  Dores,  com  as  sete  espadas  dis- 
postas em  forma  de  rosa  dos  ventos ,  via-se  co- 
sido sobre  o  lado  esquerdo  do  peito.  Por  baixo 
da  tjiínca  percebia-se  o  cilicio  de  propósito  mal 
occulto ;  e  de  uma  algibeira  sahia  como  por  des- 
cuido o  cabo  das  disciplinas. 

Para  maior  mortificação,  ás  sextas  feiras  o 
seu  travesseiro  era  uma  caveira ,  e  a  sua  cama 
as  taboas  duras  da  casa.  A  par  disto  uma  lingua 
viperina,  o  caracter  mais  enredador,  e  a  cons- 
ciência tão  curtida  no  erro,  que  era  de  todo 
insensivelao  remorso.  Tal  era  a  virtuosa  Perpe- 
tua, comadre  de  três  sacristães ,  e  auctora  de 
singulares  remédios  contra  sciáticas  e  sesôes.  A 
sua  avareza  igualava  a  hypocrisia  com  que  ado- 
rava a  Deus  na  própria  acçfto  do  peccado,  que 
elle  mais  condemna.  A  única  boa  qualidade,  que 
se  lhe  conhecia  era  uma  aÉFeiçSo  verdadeiramente 
maternal  pelo  sr.  Thomé  das  Chagas ,  que  para 
ella  reunia  todas  as  prendas  imagináveis,  desde 
a  formosura  de  um  Adónis  até  á  sabedoria  de 
um  Sócrates.  ^ 

5 


T.  n. 


Digitized  by  VjOOQIC 


66  A  liOGIDADB 

O  milagreiro'  passeiam  pela  a^la  ecim  desa- 
90cego,  em  quanto  a  nr.  Perpétua  feiia  mesuras 
fr  Virgem,  e  arreganhava  pára  ella  em  sorrisos 
asquéroaos  a  bocca  iendida  de  orelha  a  orelha. 
Perfiin  o  nosso  amigo  parou  diante  da  matrona, 
e  eom  a  melotia  que  lhe  conheeemos: 

—  «  Sabe,  tia  Perpetua — disse  elle  —  que  es- 
tou âneiado  de  frac{ueza  ?  Nio  se  almoça  por  cá 
èita  manhs  ?  » 

— ^  «  O  que  diE  o  méu  saBtinho  ?  »  —  replicou 
a  yelha ,  cingindo  a  orelha  e(mi  a  mão ,  como 
Qsam  06  qtíe  ouTem  pouco. 

—  tt  Digo  que  tenho  fome  e  quero  comer  »  — 
etelamon  Thòmé,  hsvatitando  a  voz,  e  sentando- 
se  eem  for(a  na  immensa  poltrona  coxa^  que 
fmá  cortejas  sobre  três  pés  â  mesa  de  jantar. 

—  «  Ai,  meu  Jesias  do  céu  I . .  Hoje  é  dia  de 
jejum,  filho;  e  úlò  deveis  tocar  em  boccadof 
iue  dè  gosto  ao  paladar. . .  Deus  nos  acuda! 
Vade  retro  tentaçáo. . .  Resai-me  um  padre  nosso 
e  uma  Ave  Maria  6s  almas;  é  a  receita  de  fr. 
Thimoteo  para  as  debilidades  de  jejum ,  com  que 
O  demónio  nos  tenta. . .  Também  eu ,  Nosso  Se- 
nhor Mbe  o  qne  tne  custa ;  até  a  luz  dos  olhos 
flte  foge  ás  vezes. . .» 

—  *  Tia  Perpetua  —  atalhou  o  sr.  Thomé,  sem 
pestenejar  sequer  nem  desengatilhar  um  só  dos 


Digitized  by  VjOOQIC 


b]^  d.  jíoão  V.  67 

musculoB  da  íáce  armaite  à  c^mpniiGfaai-^cada 
um  (az  o  bend  que  pôde  oeste  mundo  para  gsh 
uhar  o  outro !  fr.  Xhímoteo  é  um  santo;  eu  sou 
um  peccador :  e  as  almas  nao  comem  nem  be^ 
bem. .  *  Sou  débil ,  e  sujeito  a  espasmos ,  por 
isso  tirei  dispensa.  Dé-me  de  almoçar;  acabemos 
com  isto.  i> 

—  «  Âb ,  se  o  meu  santinho  tem  dispensa  é 
outra  coisa. . .  olha,  filho,  é  um  pullp  em  quanto 
a  tia  Perpetua  tempera  uma  assordinha ,  que  os 
anjos  haviam  de  gritar  por  mais. . .  Ajas  pri* 
meiro  a  salvação ! , .  mundo ,  diabo  e  carne  <  fi- 
gadais inimigos  do  homem^  eu  vo$  excommu&go ; 
não  quero  por  vós  me  perder  para  todo  o  sem-* 
pro  amen  Jesu&I. .  » 

—  «  Nem  eu ,  tia  Perpetua.  Mas  avie^se.  » 

—  «Ahi  vou,  ahi  vou  já!  —  E  virando-se 
para  a  imagem  da  Virgem  com  três  mesuras  e 
muitas  gaifonas,  a  beata  proseguiu:  —  £  vós, 
bemdita  Senhora ,  não  comeis  nem  bebeis ,  mas 
cada  vez  estais  mais  bonita.  Ave  Maria  cheia  de 
graça ! . .  Fazei ,  Estrella  do  céu ,  que  o  conde 
se  lembre  da  vossa  serva  com  os  seis  cruzados , 
que  disse,  e  prometto  uma  coroa  de  prata  para 
essa  divina  cabeça ,  e  um  vestidinho  novo,  todo 
bordadq^ .  .  Pedi  por  mim ,  bemaventurada  Se- 
nhora, e  tocai  no  coraçlío  ã  menina,  que  Quça 


Digitized  by  VjOOQIC 


68  A  MOaBADlC 

o  que  lhe  heide  pedir.  Sahre  Rainha,  estreita  dú 
mar!  Bem  sabeis,  minha  Senhora,  cfae  estio 
muito  caros  os  tempos,  e  eu  preciso  de  raaniétf 
e  çapatos ;  a  renda  da  casa  come  com  os  pdmefl 
à  meza ,  e  o  quartel  está  á  porta. . .  Se  nào  me 
faltasse,  não  tos  importunava.  EntSo,  Virgem 
Puríssima ,  nada  quereis  á  vossa  escrava ,  nem 
um  recado  para  o  nosso  Menino  Jesus ,  o  doee 
Jesus  da  minha  alma,  aiiivio  dos  adictos,  vív» 
columna  do  throno  de  Deus  Padre  ? !  Logo  em 
S.  Domingos  heide  contar-lhe  como  estais  triste 
com  saudades  suas. . .  Sante  Maria,  mãe  de  Deus, 
rogai  por  mim ,  peccadora ! . .  Perdoai  a  minha 
confiança,  divina  Senhora,  mas  se  ella  casw 
com  o  conde  hei  de  comprar-vos  um  Menino  Je- 
sus de  barro ,  e  nunca  mais  estareis  sosinha  e 
chorosa,  como  agora. . .  Pelas  sete  dores  da  Pai- 
xão ,  Virgem  Consoladora ,  fazei  este  milagre  á 
vossa  serva  e  pizai  aos  pés  com  a  serpente  a  quan- 
tos me  quizerem  mal,  que  tenham  má  hora  na 
vida  e  na  morte,  e  assim  seja  para  todo  o  sem- 
pre ,  amen ! » 

Este  desaforada  jaculatoria ,  em  que  a  beato 
peitova  a  mãe  de  Deus  para  a  converter  em  sua 
cúmplice ,  associando-a  ás  torpezas  das  suas  in- 
fames esperanças ,  era  acompanhada  de  um  sem 
numero  de  sorrisos,  e  beijos  na  imagem*  O  sr. 


Digitized  by  VjOOQIC 


M  D.  JOÃQ  y.  69 

Thomé  das  Cbagas,  mesmo,  acostumado  como  es- 
tará a  espectáculos  similhantes,  e  pratico  de 
mais  como  era  no  officio,  enjooa-^e  da  scena  es- 
caedalosa  e  poz-^lhe  termo,  gritando  pelo  almoço 
em  tom ,  que  não  admittia  replica. 

Á  TÍsta  da  peremptória  intimação  cessaram  as 
«poatrophes  da  tia  Perpetua  e  chegou  finalmente 
a  assorda  e  uma  garrafa  de  vinho.  Em  quanto 
dle  enchia  a  bocca ,  arrumava  a  beata  a  casa , 
AiUando  só  e  benzendo-se  a  miúdo  com  a  cruz 
do  seu  rosário.  Depois  do  primeiro  assalto,  mais 
tranquillo  de  estômago  o  illustre  Thomé,  de 
óculos  assestados,  virou-se  para  a  matrona  e  per- 
guntou em  voz  adocicada : 

—  «O  conde  vcúo  hontem  ?  » 

—  «  Pois  não  veio !  O  rico  fidalgo  da  minha 
alma...  Olha,  meu  santinho,  deu  um  cruzado  â 
velha  para  rapé ,  e  promessa  de  oirtros  seis  se 
arranjarmos...  » 

— «  Hum!  rosnou  o  devoto  abanando  a  ca- 
beça solemnemente.  —  Não  sei  o  que  diga...  Tia 
Perpetua,  tenho  medo  de  a  vèr  nestas  alhadas. 
Honra  e  proveito  não  cabem  n^um  saco.  » 

—  (c  Alhada!...  Alhos  são  tormentos ,  filho. 
Graças  a  Deus  sou  conhecida;  aqui  não  entra 
calção  de  homem ,  que  dé  que  fallar  ao  mundo. 
Pobre  sim ,  mas  honràdihha.  » 


Digitized  by  VjOOQIC 


70  A   MOCIDAINC 

-^c(  Qõem  falia  nisso?...  V.  mereê  mette-f e 
muito  pela  terra ,  e  um  dia  vem  uma  pechra  e 
apanha-a.  £  o.qué  eu  <figo.  »' 

—  a  Aí  Dto ,  fíiho ,  estae  quietinho.  O  meu 
Jesus  da  minha  alma  sempre  me  ba  de  Taler. 
Mas  o  conde...  bisarro  e  galante  moço,  deveras! 
£  depois  o  bonito  modo...  encanta.  Sabes?  deu- 
me  uma  carta  para  o  convento.  » 

.    —  «  Para  a  freira  de  Santa  Clara  ?  » 

— «  Freira?!...  Então  Píerpetua  das  Dores 
de  Maria  Santíssima  é  qualquer  mulherinha  psra 
aiidar  pelos  conventos  desinquietando  as  esposas 
de  Deus  Menino?  Â  sr."  D.  Catbariíia  de  Atbaide 
ainda  não  professou ,  e  se  metto  a  m9o  no  fogo 
sei  o  que  faço  pelo  amor  do  conde  e  ddla...  Ha- 
dchlhe  dar  estado ,  e  tel-a  cem  toda  a  honesti- 
dade. Não  me  ouça  o  meu  anjo  da  guarda,  se  eu 
fòr  capaz...  » 

—  a  Pois  sim ,  tia  Perpetua ;  nii^oam  j«lga 
o  contrario.  Então  o  conde  de  Aveiras  sempre 
Cf  sa  com  ella  ?...  E  o  pae  ?  » 

—  «  O  pae  está  renrlenle.  É  mn  Ékla^o  muito 
soberbo ,  e  como  vive  pobre ,  e  não  tem  para  o 
enxoval,  torce-se  todo...  Ora !  Por  fim  está  mor- 
rendo.., Anda  um  jesuita  tractando  disso,  ura 
tal  padre  Ventura...  » 

—  «  Ah,  o  padre  Ventura !  Muito  bem.  Pois 


Digitized  by  VjOOQIC 


UB  D*  joÀo  V.  71 

se  eUe  «nda  metido  na  dança,  respoado  eu  pelo 
resto.  » 

—  «c  O  meu  cantinho  conhece  jd  padre?  )i 

—  fl  Alguma  coí^...  porque?  »  halbucm  o 
devoto  tornando-ae  cor  de  rapé  {nrineeia. 

'. —  a  Olha,  nSo  sabes,  filho,  estou  muito  mal 
com  o  padre  Thimoteo...  não  gosto  <}e  confesso- 
res de  levante.  D^antes  eram  duas ,  três  horas^ 
agora  nlo  me  ouve  npm  meia  1...  Assim  não 
presta !  Vou  deixalro.  Queco  que  me  falle,  ao  pa- 
dre Ventura...  » 

—  a  Tia  Perpetua,  disse  o  andador  das  al- 
mas desenroscando  gravemente  a  longa  e  esguia 
pessoa  r-r<- o  padre  Ventura  é  meu  coafessor,  e 
não  me  convém  que  elle  saiba  todos  os  peccado$ 
da  easa.  Tenho  minhas  rasdes.  Quem  quíaér, 
menos  elle.  Deixe  vér.a  carta  do  coode.  n 

—  a  Deus  nod  acuda !  Vêr  a  carta  do  conde? 
Santa  Maria  rogae  por  nós !  O  meu  santinibo  uEo 
repara  que  ella  nem  lacrada  está  ao  menos  ?  » 

—  <x  Por  isso  mesmo«  Gosto  de  saber  o  que 
vae  pelo  mundo.  Ê  para  meu  goj^erno.  » 

—  a  Se  prometteis...  olhae  filho,  que  oiro  é 
o  que  oiro  vai.  Temos  aqui  o  peru  para  a  íesta, 
e  gordinho,  gordinho...  não  m^o  deiteis  pi  voar... 
Esta  carta ,  ah  se  eu  soube^e  lér !  » 

-f-.«  Set  eii;  dê  cé.  d 


Digitized  by  VjOOQIC 


72  A   MOCIDABB 

E  O  Dosso  Thomé  desatou  sem  ceremooia  o 
laço  d^amor,  em  que  ia  dobrado  o  bilhete  do 
conde  para  D.  Gatharina.  Leu,  releu,  e  deco-     1 
rou ;  depois  restituiu-o  com  profunda  serenidade, 
tornando-o  a  fechar  como  vinha. 

—  <K  Então  ?  »  exclamou  a  beata,  ardendo  em 
curiosidade ,  virando  e  revirando  a  carta  nos  de- 
dos. 

— «  É  tudo  santo  e  justo.  Os  meios  são  pe- 
rigosos ;  porém  os  fins ,  louvado  Deus ,  não  po- 
dem ser  melhores !  d  respondeu  eWe  arregalando 
os  olhos  devotamente. 

— «  Mas?  » 

— «  Mas  não  é  nada,  quasi  nada,  tia  Perpe- 
tua. O  conde  pede  á  menina  que  se  prepare  esta 
noite  para  sair  do  convento.  Diz-lhe  como;  e 
que  o  padre  Ventura  em  uma  sege  a  irá  depo- 
sitar em  casa  de  pessoa  virtuosa,  aonde  fique  até 
se  receberem...  O  negocio  vae  bem  encaminhado, 
vae  excellente.  Não  que  o  padre  Ventura  sabe  o 
nome  aos  bois!...  Agora  o  pae  que  se  faça  fino, 
que  resista...  Tia  Perpetua,  é  preciso  levar  esta 
carta,  que  chegue  a  horas.  » 

—  a  Bemdita  e  louvada  seja  a  Virgem  Maria  l 
Estou  aqui  e  estou  na  rua.  Em  ouvindo  as  três 
missas  do  costume ,  pernas  a  caminho...  » 

—  <c  Âpprovo  o  seu  zelo.  E  o  o&tro  fidalgo  ?  » 


Digitized  by  VjOOQIC 


DB   D.    JOÃO  V.  73 

—  («  Esse  não  diz  o  nome !  Esteve  cá,  mais  o 
conde.  É  bonito  rapaz  também ,  mas  a  gente 
com  elle  tem  menos  confiança...  tomara  saber 
quem  é ;  dava  um  cordão  novo  a  Santo  António 
se  o  bento  fradinho...  » 

—  «Tia  Perpetua ,  tome  cuidado !  Olhe  que 
pela  boca  morre  o  peixe.  N&o  meta  a  mão  na 
toca ,  ás  vezes  traznse  vibora...  Diga-me,  elle  não 
lhe  deu  recado?...  » 

—  «Ai,  pois  nfio  deu.  Por  signal  vou  logo 
levar  uma  carta  siia  á  rua  das  Arcas  a  casa  do 
commendador...  Não  sei  porque  havia  de  resus- 
citar  o  enguiço  do  tal  capitão.  Olha  se  elle  sou- 
besse o  muito  que  engraço  com  tal  figui^o  não 
me  punha  mais  os  olhos.  » 

—  «O  capitão  Filíppe  da  Gama  é  muito  amigo 
do  nosso  padre  mestre.  Livre-se  de  que  a  apanhe 
em  alguma,  olhe  que  elle  não  é  para  graças...  » 

— «  Santa  Barbara  e  S.  Jeronymo ,  advoga- 
dos dos  trovões !  Tão  nova  me  fazeis  que  deixe 
cova  debaixo  dos  pés ,  ou  me  escape  coisa  por 
onde  perca...  Perpetua  das  Dores  não  é  de  hoje 
nem  de  hontem...  elle  não  tem  senão  dois  olhos, 
e  eu  por  ora  vejo  bem  sem  óculos.  A  carta  ha  de 
ser  entr^ne ;  fica  descançado,  meu  santinho.  Aí, 
filho,  a  sr.*  Cecília  é  uma  flor,  uma  pérola! 
Olha ,  o  annel  que  me  deu  a  ultima  vez ,  estfl 


Digitized  by  VjOOQIC 


7*  A  íHWDAPB  ■> 

alU  ao  pe$cp^  dp  Menii^Q  lei^m  cie  Simiíq  Aoto- 
mo.  K  vardfide  qw  dft  teidfiS  as  y§?s^  ípie  vi«  e 
coAv^r9W  CQin  o  SdaJ^o  feibi4li^  fw  p  |:<ip^d^,  q 
ensúaei-llie  a  iii^qeii:!^..^  » 

—  «  Âh !  então  elles  já  sa  tínbflin  ft^ilado?  <i^ 

—  ii  Ha  qiie  tempos;  foi  até  .dq  convento. 
Ab  primeiras  duas  v^zes  foi  uia  inwlwtí^íi,  4k 
de  ci0i«  dQ  muro ,  eUa  de  traz  dp  caramancbaa. 
  ultima  diz  que  o  padre  Ventura  é  fue  luraih 
jou  t|id4>...  O  que  dir&  a  ocrrta?  n 

-r^«  Dqixe  jêr!  » 

— r«. Anjo  bento,  m$i$  oUia,  y.ew  lecb^*  » 
— «  Não  é  oada;  é  a  obr^ia-  Sei  abril-a.  » 
Empregando  um  ^procesao  usado  em  Santo  Aft* 
tão  o  nosso  amigo  abriu  a  carta ,  ley-a  e  dee^* 
rou-«a,  e  tornando  a  pegar  a  cibreia,  entre- 
gou*a  depois  à  beata  comp  a  dp  QO»ií^  4e  Avei- 
ras.. 

—  c<  O  que  dixeis/destaf  ãlbo?  »  f^erguntou 
a  sr."  Perp€^tua; 

— «  Que  a  daoça  é  peíor.  Gonyídam  a  sm 
pérola ,  a  sua  Gecilía  para  d^aqw  a  três  dias  ap^ 
parecer  no  mirante  do  jardim  «j^s  de«  fama 
da  ní$ite ,  onde  Uii^  dirio  poisas  que  ^e  não  po- 
dem escrever.  » 

~>€(  Ponho  as  oAos  no  ífego  e»  «leiAi 
vae.  \y       > 


Digitized  by  VjOOQIC 


UB  o.  JOio  T.  7& 

•^— x<  ká;  e  4ef0ÍB?  n  ) 

-^  «  O  que  i|t  de  iiar  «glá  qm  màoe  de  Deug;. 
Não  sou  capa  nem  i?oov«ÍTa.  So  dois  passarinho» 
fcgem  da  gaiel|a,  dei'sd-os,  eites  &aeiii  mal  a  al<- 
^[ooip ?  ilMiakGeciiia  está  mi  sua  casa ;  a  mãe e 
o  p«e  que  aguanleoi ;  eusm  de  fóra,  e  Tejo  caras 
nSò  T^  ieòraftaf...  Agnm  Deiqui  ègUs  paocàta 
nmindi9  !  Se  o  ineu  sauliolio  oão  quer  mais  nada 
you-Me  arrastando  á  pnssa,  e  de  4â  dar  ordem  á 
viés...  Âi !  esto  fiernes  estão  jâ  tnropegas.  Thomé^ 
lédiae-me  bem  a  )iOFta>  e  a  c^ave  na  mão  do 
liJB^ulio.  Se  jantas»  em  S.  Jkmvngos  diiaeÍH>,  que 
é  escusado  gastar  km^  sem  firoveíto...  Jesus  da 
mtniia  alma!  fiem  <diz' a  rifão:  «  já  fui  moça, 
já  fui  rosa,  hoje  não  tenho  senão  espinhos,  »  An- 
tes tudo  era  para  mim  um  pufe;  agora  são  lé- 
guas de  iBieus...  Adeus ^  a  benção  de  Nossa  Se^ 
nhora  te  cidira  e  te  ilUimine  I  Ave  Maria,  cheia 
de  graça...  » 

O  rosloda  oraOão  pecdeuhse  na  distancia,  por^ 
que  a  sr/  Perpétua  ia  a  sair  quando  a  princi- 
piou. Tbomé  vendo-a  cerrar  a  p^a  encolheu  os 
hombros,  e  enfiou  logo  «s  mangas  da  cosaca-gi- 
bfto ,  poz  por  cima  0  lanMMo  balandrau ,  e  pa- 
gando depois  no  seu  nicho  e  na  bandeja  partiu 
atraz  da  beata,  fechando-  a  pmrta  a  duas  soltas, 
e  deixando  a  diate  na  tenda,  como  the  fi^ra  re- 


Digitized  by  VjOOQIC 


76  A   HOCIDADK 

commendado.  Durante  o  dialogo  com  a  sr/  Per- 
petua tmha-M  escoado  toda  a  agua,  é.,o  becco 
do  Manquinho  já  se  pedia  passar  a  váu. 

O  nosso  andador  ia  a  virar  para  a  rua  doa 
Escudeiros  eogolphado  em  serias  cogitacSes,  quan- 
do sentiu  pesada,  como  chumbo ,  mio  estranlra 
sobre  o  hombro.  O  primeiro  gesto  foi  encolber 
o  lado  oiFendido ;  o  segundo  virar  a  cabeça  cau- 
tamente  e  reconhecer  o  agressor.  Achou  diante 
de  si  o  estupendo  chapéo,  a  montanhosa  peruca, 
e  o  rosto  illuminado  de  sorrisos  do  poeta  Bernardo 
Pires,  aquelle  vate  engasgado  em  um  soneto,  que 
vimos  em  S.  Domingos  jurando  pelos  ossos  ao 
Sr.  Thomé  das  Chagas,  vista  a  incontinência  da 
sua  lingua. 

O  poeta  matinal  vinha  fresco  e  gracioso  com 
a  capa  embuçada  ás  canhas ,  uma  capa  ampla , 
e  desbotada,  que  lhe  amortalhava  metade  da  burba. 
Cruzando  os  pés  com  elegância,  e  dando  ás  cw- 
tezias  a  mais  preciosa  afinação ,  o  sr.  Bernardo 
Pires  passou  a  mão  dineita  por  baixo  da  capa,  e 
levou-a  lenta  e  grave  ás  abas  do  amaçado  cha- 
péo ;  saudou  com  elle  o  seu  interiocutor ,  e  en- 
tre dois,  sorrisos  sonegados  pelos  cantos  da  boca, 
e  lambidos  á  flor  dos  beiços,  disse-lhe : 

— «  Queira  desculpar  se  o  importuno;  mas 
antes  que  o  divino  Afxillo  suba  mais  idto  com  os 


Digitized  by  VjOOQIC 


ra  0.  Joio  V.  77 

fhtOe$  de  bgb  preciso  de  duas  palaixas  em  par- 
ticalar,  sen<h>  do  seu  agrado.  » 

— f<  Mas  eu  v^o  tenho  a  honra  de  o  cohhe- 
eer!  »  acudiu  o  devoto  pasmado  com  a  lingua*- 
gem  florida ,  e  09  requebros  mesureiros  do  Nar- 
éiso  épico. 

— Nfto  importa,  meu  presadissimo  senhor; 
conbeço-o  eu.  Nilo  se  chama  o  sr.  Thomé  das  Cha- 
gas ?  Não  é  andador  das  almas  em  S.  Domingos  ?  o 

—  «  Um  seu  criado  para  o  servir !  Nesse  caso 
o  melhor  seria  voltarmos  atraz ;  d^aqui  a  minha 
casa  sfio  duas  passadas...  )> 

—  «  Nada  de  incommodo  ^  sr.  Thomé !  P«- 
rambuletnuê!  verbo  latino  que  significa  andar  de 
passeio.  Se  faz  favor ,  siga-me ;  e  de  caminho 
conversemos.  » 

— «  Mas  aonde?  Para  què?  » 

— *-«  Eu  lhe  digo :  sou  poeta,  e  as  Musas  co- 
nhecem*-me.  Faço  metaphoras  e  sonetos  e  apo- 
logos.  Vivo  de  glosas  e  idilios,  com  v.  mercê 
das  gathetas  bentas...  Tudo  isto  é  noite  escura , 
por  ord,  para  o  sr.  Thomé ;  mas  eu  lhe  abro  já 
uma  janeila  para  encher  de  claridade  a  sua  alma. 
Eu  me  explico  em  estilo  vulgar ,  e  por  um  mo-^ 
mento  desço  do  Parnaso  ao  aprisco  dos  mortaes... 
Hontem  morreu  o  mordomo  de  um  fidalgo ,  o 
mais  alto  de  quantos  eu  conheço  e  quero  que  se 


Digitized  by  VjOOQIC 


78  A  IMKWA^B. 

co&besam  69»  PoitugaL  O  ineFddq»  partiu  destfs 
inundo  um  pouco  â  Kg^^ira^  is^o  é^i  sem  coaSfir 
9ão  nem  sacramentoí»,  piNr^e  boKiem  morto  não 
tâUa,  e  a  sua  d^enga  fei  a  morta..^  Em  tal  eaao 
nSo  sei  se  íbi  bem  se  foi  mal  eom  Deas  i  e  Bóêf 
seus  amigos ,  queremos  saíval-o ,  e  metel-o  do 
céu  a  todo  o  casto;  percebe?  B«Uoj  Mas  para  o 
arrancar  do  inferno  pelos  cabeUos,  e  digarae  a 
verdade,  o  homrado  mordooio  pelo  menos  tem  os 
pés  dentro  da  caldeira  de  pex  porfoe  acabou  em 
peccado  mortal...  >» 

—  «  Ah !  »  —  acudiu  Thomé  ^  b«Mndo-se  e 
abanando  o  esganado  pescoço  com  sianma  cir- 
çumspeeção :  —  «  Ah  I  entfto  jalga  que  ella  não 
estaya  em  estado  de  graça?  É  graye,  muito 
grave !  De  que  falleceu  ?  » 

—  í(  De  uma  indigestão !  Esqueceu-^se  de  to- 
mar as.Ipffguras  ao  estômago ^  bebeu  um  garrar 
fòo  de  vinhOf  e  arrc^ntou. « . ,  Mas  tornenif» 
ao  caso :  como  ia  ditendo :  havemos  èfi  pregar 
o  logro  ao  demónio  e  metter  o  homem  vestido 
e  calçado  no  céu. .  . .  faça  favor  ^  venha  oiivindo 
e  andando,  o  passeio  é  perto*  Quantas  missas 
acha  que  serão  predsas  para  faier  estalar  a  eas^ 
tanha  na  boeca  ao  fero  Plutão  do  sombrio  r^- 
no  ?  . . . .  » 

—  «  Nao  pQreebq* .  * .  i^ 


Digitized  by  VjOOQIC 


DE  0.'  JOftD  V.  79 

*^  OK  Tmii  hisBor.  Este  máUMd  cMtumet . . .  • 
PergMto:  quâfitas  iíiíbíqb  d0\^md!i  HNMdar  dir 
i0t  pm^  pôr  o  moiiloiho  btàiicd  e  puco  coma 
um  seràphitn?  » 

O  ^tid«kr  Víh  um  exeellente  negocio  na  apo- 
Xheosé  do  beberrãm;  è  almodo  as  larga»  ofelhasv 
e  jogando  as  eternas*  pa9dadtô4  foi  indo  atrat 
da  r&ãemoi  e  seguindo  a  piteta^  em  quanto 
irespoAdia: 

-^  <t  Isso  depende.v.  ha  quem  diga  que  o  s^l^* 
crificio  é  tudo^  e  o  saoerdotô  nada ;  tettbo  ou** 
tro  modo  de  pensar.  Ainda  que  a  estnola  seja 
HftMS  aTQrttada  gánhansie  mrufto  ^n  rtet  iftn  padre 
de  c^onscieneia  o  que  se  interesse  fá»  deftin- 
cto».  * .  -  » 

-^a  beu  no  Tinte,  meu  amigo !  É  a  minha 
scisma.  Ora  eu  julguei  sempre  que  só  o  sr.  Tho- 
mé  ei^a  capaz  de  desenterrar  o  padre ,  jA  se  sabe 
mediante  um  modesto  horiorario. «...  » 

—  «  DeÍ3ie^mo-nos  disso ! » — acudiu  o  devoto 
sentindo  encarquilharem*^e  já  os  dedos  em  volta 
do  numerário,  e  pegarem  como  visco  as  palmas. 
•— *«[  Nada  de  simonia!  No  serviço,  do  pronimo 
posso  aceitar  uma  esmi^  forqúe  sou. pobre ^ 
mas  não  recebo  sallaria  Se  quef  lambrarnse  das 
almas. .  < .  » 

Estendeu-lhe  o  nicho  a  beij»  <  com  o  jallo 


Digitized  by  VjOOQIC 


80  A  MOGIOADS 

para  fi^,  inculcando  que  o  seu  thesouro  tinha 
aquella  entrada.  O  poeta  deu  pios  oaculoB  no 
santo;  tirou  o  chapéu;  e  levou  a  mão  ao  bolso  da 
vestia ;  mas  tirou-a  vasia  fingindo  mudar  de  idéa : 

—  <c  Nfio  trago  prata  »  —  exclamou  elle. — 
«  E  de  mais  estamos  áo  pé  da  casa.  É  adiante 
da  esquina ,  áquelle  beoco.  » 

—  «  Mas  aonde  vamos  nós,  no  fim  de  tudo?  » 
—  gritou  o  milagreiro  um  pouco  inquieto,  vendo 
fugir  a  esmolla ,  e  render  o  caminho ,  apezar  da 
isca  com  que  o  vate  o  ia  entretendo. 

—  (X  O  sr.  Thomé  conhece  o  sitio?  » 

—  «  Nada ;  nem  sei  onde  estou.  Fám  de  meu 
bairro  ando  ás  escuras ;  sou  mesmo  um  parvo.  » 

—  «  Pois  eu  lhe  digo !  Estamos  em  terra  co- 
nhecida. Desta  porta  para  dentro  é  aonde  a  the- 
soura  da  Parca ,  a  cruel  Atropos. . . .  h 

—  <f  Trapos?  Mora  aqui  algum  algibebe ? » 

—  «  Sim,  senhor.  Um  algibebe  de  obra  larga. 
O  coveiro  de  S.  Julião.  Foi  elle  quem  me  en- 
commendou  as  missas.  » 

Thomé  das  Chagas  deu  um  puUo  e  um  grito ; 
e  tentou  virar  para  traz.  O  grito  achou  diante 
a  mSo.  do  poeta  e  voltou  embaçado  para  a  bocca. 
O  pullo  achou  defironte  o  corpo  de  Bernardo  Pi- 
res ,  e  converteu-se  quasi  em  cabriola.  Depois 
o  pobre  devoto  sentíu-se  agarrar ,  e  metter  quasi 
á  força  para  dentro  da  porta. 

Digitized  by  VjOOQIC 


CAPITULO  XVI. 

NJEM  Bt  ,  NEM  TU. 


O  potos  Thomé  das  Chagas  principiou  a  re- 
ceiar  uma  traição ,  apenas  se  viu  nas  garras  do 
poeta,  e  na  escura  logea  para  onde  elle  o  em- 
punhou com  bastante  sem-ceremonia.  O  nosso 
amigo  era  muito  sensivel ,  e  excessivamente  ner- 
voso ;  e  tinha  suas  rasões  para  não  andar  de  dia 
sem  cautela,  e  de  noite  sem  lanterna.  Durante  a 
conversação  singular ,  que  se  ouviu ,  tinha  atra- 
vessado, sem  dar  por  isso,  umas  poucas  de  ruas, 
escorregado  por  cima  de  outros  tantos  becos  la- 
íhàcentos ;  e  quando  lhe  perguntaram  com  ar  de 
escarneo  se  conhecia  os  sítios ,  achou-«e  des- 
orientado, e  na  realidade  não  sabia  aonde  estava. 
As  ultimas  palavras  do  curioso  dialogo  tinham 
sido  proferidas  diante  de  uma  porta  quasi  cer- 
rada ,  no  meio  de  uma  viella  deserta  e  sombria, 
T.  n  6 


Digitized  by  VjOOQIC 


82  A  MOCIDADE 

cheia  de  montões  de  caliça  e  de  paredões  caídos ; 
entre  duas  ou  três  barracas  esbeiçadas  e  pendi- 
das. Â  porta  tinha  um  ar  apopletico ;  a  casa  era 
a  imagem  da  eternidade ;  as  paredes  esburaca- 
das, e  uma  seara  viçosa  de  arroz  de  telhado  e 
mais  hervas  parasitas,  crescendo  livremente  por 
entre  as  desconjuntadas  telhas,  davam-Ihe  uma 
apparencia  menos  que  humilde. 

O  poeta  encostou  o  hombro  â  porta  e  levou-a 
quasi  ás  costas  para  a  forçar  a  conceder  entrada ; 
e  ella  perra  e  dorida,  gemendo  e  estalando,  re- 
signou-se  por  fím  a  deixar  aberto  um  espaço 
suiBciente  por  onde  o  vate  introduziu  o  andader, 
e  atraz  delle  a  sua  exigua  pessoa.  Subindo  a  es- 
cada,  cujos  degraus  se  empinavam  trémulos  de 
velhice ,  e  rangendo  de  podres ,  os  dois  heroes 
acharam-se  defronte  de  outra  porta ,  irmã  gémea 
da  porta  dolorosa,  que  deixavam  ás  cortezias 
atraz  de  si.  Servia  de  fecho  um  cordel ,  e  de  a^ 
gola  um  cavaco  atado  a  elle.  O  poeta  puxou  o 
cordel ,  metteu  o  joelho ,  e  atirou  logo  para  den- 
tro o  sr.  Thomé  das  Chagas^  Apenas  os  seus  olhos 
rodearam  a  casa ,  aonde  o  introduziam ,  o  mila- 
greiro deu  um  berro ,  deixou  cair  o  nieho  e  a 
bandeja ;  e  girando  sobre  os  calcanhares ,  como 
uma  ventoinha,  quiz  investir  pela  escada  abaixo* 
A  evoluçSo ,  porém ,  estava  prevista :  o  sr.  Ber- 


Digitized  by  VjOOQIC 


BE   !).  JOÃO  V.  S3 

iiáfdò  fites ,  vitido  átraz ,  tinha  fechado  a  porta. 

A  èfflsft  mfetecía  os  terrores  do  hotiradtt  Thomê, 
e  erá  a  ahte-salft  do  cemitério.  Entre  aá  bambí- 
néltái  de  téas  de  aranha  e  os  listões  ?erdené- 
gros  y  4ué  nihnchatám  pfcredfes  e  teòtos ,  rasga- 
va-^ Uitiá  jÀnella  estreita  cdnl  rotula  de  páii. 
Cinco  ou  seis  ossadas ,  oii  faiais  eiacto ,  cinco  ou 
seis  éorpos  iíial  consumidos ,  estavam  encostados 
em  i^edor  dó  aposetlfo.  Mortalhas  quási  podres 
petidatadáS ^  gtinaldas  cujas,  caitões  arromba- 
doÁ  i  ^ftnhds  dé  enterro  pingados  de  cera ,  es- 
qiiélétdl  ineio  atmados ,  postos  em  èirames ,  e 
muitos  bims  espalhados  ^elo  sobrado ,  formavam 
as  tapeçarias  e  a  mobilia  do  antro  fúnebre.  N6 
meio  dtí  quártb  utha  thésa ,  uma  bilha ,  è  duas 
cáneóaá  pereciam  a  ironia  víta  do  espectáculo  dá 
lÃorté  no  que  a  dissolução  tem  de  lúgubre  e  de 
hò)ri'0^oso.  Qiiantò  mhii  á  vista  paraVa  no  qiia- 
dtb  i  tááto  maia  frio  ié  contrangia  o  corãçaò.  O 
pbbte  Thomé  dà^  Chagas  hão  tk>eniid  §ó ,  estáVá 
cabiiidó  no  chão  por  instahtês  tratisido  de  thèdo  f 

-^ «  Até  que  chegámos  »  —  ph)clámou  o  poeta, 
tlMtadò  á  cápb  è  descobrindo  a  prodigiosa  casaca 
de  pòlrtitibotaá  dè  escotilha  é  botões  de  rodinha. 
Lit«i1^-Se  depois  dò  ^eteráuò  chapèd ,  e  poz- 
Ihê  «cA  léitaa  dá  cò^a  úfn  pai  de  florétéé ,  que 
ttàíià  eSéondldoS  debaiirtf  dó  braço. 


Digitized  by  VjOOQIC 


84  A  MOCIDADE 

—  a  Pôde  descançar  um  minuto !  - —  dhae  elle 
respirando  e  batendo  os  pés  no  chão  com  força, 
em  risco  de  abrir  duas  clarabóias  no  sobrado 
podre.  —  Está  no  pórtico  da  eternidade ,  e  estes 
moradores  do  escuro  reino  não  dizem  nada ! »  — 
Ao  mesmo  tempo  indicava  os  defuntos  hirtos  e 
encostados  em  roda  da  casa. 

Thomé  das  Chagas  nem  pestanejava ;  a  lingua 
tinha  grude  que  a  pegava  ao  ceu  da  bocca.  Ber- 
nardo Pires,  com  um  sorriso  boçal ,  escorria  en- 
tretanto a  bilha,  dando-lhe  palmadas  no  bojo 
com  a  familiaridade  de  um  amador.  Depois  vÍt 
rou-a  de  bocca  para  baixo ,  e  a  rir  muito  ex- 
clamou : 

—  €(Nem  lagrima!  Bebemos  tudo  por  alma 
do  mordomo.  Está  nos  Elysios,  se  Charonte  lhe 
foi  propicio !  Â  propósito,  sr.  Thomé ,  as  missas 
que  lhe  disse  parece-me  que  vem  tarde :  o  ho- 
mem está  salvo ! . .  Fiquemos  no  introibo  desta 
noite,  mais  do  gosto  do  meu  defunto  amigo,  que 
não  sei  como  não  resuscitou  para  nos  acompa- 
nhar. . :  A  respeito  de  missas,  se  v.  mercê  quer, 
deixe  algumas  pratas  que  eu  as  mando  dizer  por 
sua  intenção ;  aqui  para  nós ,  em  boa  amizade , 
aquillo  era  anzol  para  o  trazer  aqui ,  e  p^ou ; 
nunca  esperei  tanto  da  sua  bondade.  Ora  como 
conto  despachal-o  depressa ,  peço-lhe  que  dé  no 


Digitized  by  VjOOQIC 


DE  D.    JOÃO   V.  8d 

outro  mundo  muitas  saudades  deste  seu  admira- 
dor ao  velho  e  pançudo  Simão  de  Oliveira ,  nâo 
se  esqueça  ! .  • . 

O  milagreiro  com  os  olhos  esgazeados,  pegou 
machinalmente  no  chapéo  do  poeta ,  cravou-o  na 
estopentada  peruca ,  e  tratou  de  sair  sem  mais 
rodeios. 

—  «O  que  é  isso,  sr.  andador  das  almas, 
assim  nos  deixa?  —  gritou  o  vate  espremendo  a 
bocca  em  um  sorriso  alambicado.  —  Vae  atraz 
das  missas ,  ou  procura  as  galhetas  por  estar 
secca  a  dorna?  (a  dorna  era  a  bilha).  Então 
leva  o  meu  chapéo?  Deixa-me  sem  o  seu  corpo 
e  a  minha  cabeça?  Sacro  Apollo!  Que  pressa!... 
onde  vae ,  onde  vae  ? 

—  «  Vou  dar  o  seu  recado !  replicou  em  voz 
rouca  o  devoto ,  -  fazendo  uma  pirueta  para  ^e 
apossar  da  porta. 

—  «  Mais  de  vagar,  mais  de  vagar !  Olhe  que  a 
viagem  é  longa.  Escolha  primeiro  o  habito  e  a 
carroagem ,  faça  favor.  Repare  que  tem  de  ir 
pela  posta  até  ao  Averno. 

—  «O  habito,  a  carroagem  ? . .  .  acudiu  o  servo 
de  Deus ,  esbugalhando  os  olhos. 

—  «  De  certo.  Não  cegue  as  duas  estrelfas  da 
alma ,  que  são  as  janellas  do  sentimento.  Sir-  , 
va-se  dos  seus  olhos,  já  que  as  Eumenides  com- 


Digitized  by  VjOOQIC 


86  A  MOCIDADE 

passivas  Ih^os  n$p  airaacam^  •  •  O  qy|e  lhe  difse 
era  metaphora  em  acçSo.  Para  qnç  Niemoii  ^^ 
aqui  ?  Para  o  mais  infeliz  se  apartar  da  bello 
seio  de  Gyhelle,  nome  qae  os  antigos  deram  á 
tefra,  nossa  mãi,  e  comparecer  no  tribunal  de 
Míqos  ,  entrandci  pela  porta  de  j^^-oserpi^a.. . « 
Não  percebe  ?  » 

—  «  Nem  meia  palavra  *  Digo-lhe  quo  vxe  deixe 
!$air ,  senão  grito  «  Aqui  d^el-rei !  » 

—  «Oh  c€ec%tas  mentis !  exclamou  o  vate  er- 
guendo anibos  os  braços  ao  ceu  com  burlesca 
veheíjiencia.  —  Oh  divina  musa,  o  que  te  £01- 
zem  estes  zotes  do  Parnaso ! . . .  Pois,  SiT.  Thomé, 
uma  vez  que  as  graças  de  Âpollo  e  das  nove  ir- 
mãs o  não  illuminam,  prepare-se  que  vai  ouvir 
,a  bosina  de  Marte.  O  habito  que  lhe  disse ,  em 
língua  do  povo,  na  lingua  tosca  e  salois^  que  v. 
mercê  falia  e  entende,  é  uma  dessas  mortalhas; ; 
a  carroagepi ,  um  desses  caixões.  Sou  clemente ! 
Antes  de  o  ferir,  como  Achilles  feriu  Heitor, 
quero  deixal-o  em  vida  determina^r  o  seu  en- 
terro ,  como  fòr  mais  do  seu  gosto.  Agora  jà 
percebe  ?  » 

E  fazendo  uma  visagem  lúgubre ,  com,  a  qual 
ampiou  as  balofas  bochechas,  ainda  inflamma- 
das  em  fogachos  vinosos ,  o  sr.  Bernardo  Pires, 
cruzou  os  braços  bem  alto  sobre  o  peito ,  qúei- 


Digitized  by  VjOOQIC 


DE  D.  JOÃO  V.  87 

mando  eom  a  laz  das  pupillas  cór  dfe  alface  a 
esquálida  fnmte  do  milagreiro. 

—  a  Então  matam-me  aqui ,  sem  cotíBssSo  nem 
sacramentos?)» — exclamou  o  devoto,  fazendo-se 
côr  de  café  e  torcendo  o  corpo,  como  se  visse  já 
no  ar  o  punhal  de  uma  quadrilha  de  malfeitores. 

£  verdade  I  respondeu  o  fabricante  de  glosas, 
pondo-se  no  recto  com  desplante.  Estou  aqui 
para  ser  a  tesoura  da  parca ,  e  cortar-lhe  os  fios 
áa  vida.  O  que  tem  a  dizer  a  isto  ? 

—  a  Tenho  muito,  tenho  tudo !  Hei  de  resis- 
tir, vou  gritar. . . » 

O  poeta,  encolhendo  os  hombros,  soltou  uma 
risada  solemne  e  harmoniosa,  e  pegon  em  um 
dos  floretes. 

— ^«Ha  de  gritar!  EtitSo  porque? 

— ' «  Essa  é  boa !  O  senhor  dfz  que  me  ha  de 
malar ,  e  admira-se. .  . » 

—  «  Mas  eu  mato-o  academrcamente,  com  pre- 
ceito e  regra.  Assim,  digo-lhV  eu ,  é  um  gosto 
morrer. » 

—  a  Morra  o  senhor.  En  estou  muito  contente 
vivo. » 

— «•  a  lilato-o  como  RoldSo  matava  os.  moiros , 
em  combata  singular. » 

—  «  Nem  singular  nem  plural  í . .  .  Eu  nffo 
sou  homem  de  brigas ;  eslá  enganado.  » 


Digitized  by  VjOOQIC 


88  A  MOCPADJE 

—  «Olhe  O  que  perde,  sr.  Thomé.  Sei  o  jo- 
go, e  prometto  varár-lhe  o  eoraçao  á  terceura 
estocada.  x> 

—  «  Obrigadissimo !  mas  eu  não  quero ;  dei- 
xe-o  assim  como  está,  que  está  muito  bem. » 

—  c(  Jesus,  que  teima!  gritou  o  poeta,  assu- 
mindo o  ar  aíFavel  de  um  paladino  de  Âriosto , 
e  forçando  a  mão  rebelde  do  devoto  a  empu- 
nhar o  florete  desembainhado, — Deixe-se  de 
contos ;  tudo  é  principiar.  Âchilles  fiou  n^uma 
roca  e  depois  foi  o  terror  de  Troya. . .  Suba 
comigo  á  altura  dos  heroes;  exercitense  na  grande 
sciencia  de  morrer  com  arte. . .  vamos ,  pegue 
no  florete;  mais  alma,  homem,  mais  alma! 
Faça-se  ainda  mais  feio.' . .  bello !  quero  dizer 
horrendo.  Asseguro-lhe  quede  viseira  caída  pôde 
desmamar  creanças.  Agora  esse  braço  esquerdo 
para  cima ;  a  mão  bem  alta  ;  arredonde  mais  o 
cotovello. .  .  óptimo ! » 

—  «Mas  o  que  esta  o  senhor  a  fazer  de  mim! 
atalhou  o  servo  de  Christo,  obedecendo  como 
um  autómato  e  cada  vez  mais  espavorido. 

—  <x  Estou-o  educando  para  não  deshonrar  as 
sabias  lições  de  Palias.  Vamos.  Firme!  Agora 
rompa.  Esse  pé ,  escorregue  sobre  esse  pé ;  li- 
geireza, flexibilidade,  sr.  Thomé!  Ah!  Mais 
largo !  mais. . .  Safa !  São  duas  pernas  de  com- 


Digitized  by  VjOOQIC 


DE   D.  JOÃO   V.  89 

passo  como  a  légua  da  Povoa.  Bom !  Agora  atire 
á  muralha.  Um  dois,  um  dois!  Tem  cinco  mi- 
nutos para  aprender  a  cahir  com  graça. » 
-  —  fi  Cahir ,  cahi  eu  nas  mãos  de  um  doido ! 
gemeu  o  milagreiro  em  voz  baixa;  depois  vi- 
rando a  cabeça  por  cima  do  hombro  para  recti- 
ficar a  posição  do  inimigo,  insistiu  com  de- 
sesperação. —  Mas  o  que  quer  o  senhor  de 
mim?i> 

—  a  Quero  matal-o !  bradou  o  assassino  das 
rimas  em  voz  cava  e  com  accionados  olympicos. 
A  vingança  é  o  néctar  dos  deuses ;  e  eu  sou  uma 
Juno  masculina.  O  sr.  Thomé  oíFendeu  mortal- 
mente um  amigo  de  Bernardo  Pires,  e  oíFender 
o  meu  amigo  é  ser  meu  inimigo.  ^Prepare-sc ! 
O  dedo  da  parca  está  sobre  o  ponteiro  da  vida. 
Nas  aguas  tenebrosas  Gharonte,  o  barqueiro  do 
inferno ,  tem  o  bote  á  espera.  . .  resigne-rse ;  e 
para  o  consolar  prometto-lhe  um  epicedio.  Avie- 
se ,  pegue  na  espada ! » 

—  «Almas  bentas,  valei-me!  Sr.  Bernardo 
Pires ,  eu  não  sei  jogar  o  florete. 

—  «  Melhor !  Morre  mais  depressa : — replicou 
o  vate  magnânimo ,  crescendo-Ihe  os  brios  com 
o  desalento  alheio. 

—  a  Mas  eu  preciso  viver !  » 

—  «  Asneira !  o  que  é  a  vida  ?  um  sonho  ...» 


Digitized  by  VjOOQIC 


9A  A  MOCIDADE 

— f  Aa  menos  dê-me  Ugnfo ,  deiie*iiie  tra- 
tar da  atma. . . » 

—  H  Yá  djeseançado :  j&  arranjei  tudo.  O  atu 
enterro  está  justo.  Ácbamo-nos  em  campo  neu- 
tro. . .  o  ceipiterio  é  alli  adiante,  n 

—  «  Santo  breve  da  marca !  n 

•^— «  Em  abrindo.  aqueUa  porta  . ..  Até  a  oova 
Iftt  de  estar  feita. » 

—  (( Santo  nome  de  Jesus !  Mas  sr.  Bernar- 
do, o  que  fiz  eu  ?  Pelas  ch«^as  de  ChrUto  l  Di- 
ga-me  o  meu  delieto.  » 

—  «Quer  saber  porque  morre.  Tem  rasão; 
e  ser&  satisfeito.  Ora  responda :  quem  é  o  du- 
que de  Cadaval ,  IX  NunO'  Alvares  Pereira^  men 
senhor? 

.  -^  <c  Um  fidalgo  temente  a  Deus ,  muito  es- 
moler, grande  amigo  de  eWci  e  dbi  santa  rdi- 
gi^. . . » 

—  c$  Ah  sr.  Tbomél . . .  Em  fim  reapeilo  a 
dignidade  dos  seus  últimos  instantes . ..  Retiro 
a  esponja  d^  fel.  Porque  nlo  feUou  v.  mereé  as- 
sim o  outro  dia  ?  Para  que  me  expoz  a  carregar 
toda  a  vida  com  o  remorso  dn  sua  morte  ? . . . . 
Díga-me :  iembira-se  do  cruzeiro  di^S.  Domin- 
gos ;  recorda-se  do  que  lá  pregou,  haxierá  una 
semana  ?  Quem  blasfemou  qun  o  òiqne  do  Ca- 
daval eca  herege  e  amigo  dos  judeas ;  quem  o 


Digitized  by  VjOOQIC 


Dfi  p.  JoIo  V.  91 

qiiiz  a^ado  tom  $^nbçDÍto  e  carocha»  no  Qutç 
da  fé?  &te9  borrores,  e  outros  jmk  fui  ^v 
Bernardo  Pir^^  ou  íqí  o  sr,  Thomé  d$is  Cba* 
gas  quem  os  deitou  pçja  boca  fora  ?  » 

O  devoto  sentii^do-se  pos  dentes  do  lojro  abaixou 
^  cabeça  e  recolheu-se  confuso  na  tristeza  do  seu 
cprf^ão.  Bernardo  Pires,  recuando  o  corpo  so- 
1^*0  fi  perna  es^querda  perfilada ;  arremettendo  ás 
nuveps  com  a  começa ;  e  pondo  o  braço  em  po- 
sição xqoiresca  p];oseguiu  de  p^ito  incbado,  c; 
çoandp  as  phrases : 

—  «Se  não  tivesse  de  cruzar  a  espada  com 
a  6^99  fazendo-lbe  a  hoqra  de  o  pôr  por  meu 
igiíaJl . ..  çhamava-Ifee  dipagâp  da  bowa,  e  gihoia 
disL  reputaçã^o  all^çia.  São  me^pboras  arrojadas  ^ 
porém  Ucitas.  Pizia-Ihe :  um  arenque  de  frade , 
qma,  toupeira  de  sacl^^ista ,  um  ipoçbila  de  dor- 
ipitoi^io,  quando  nçiorde  assim  com'  o  escorpião 
da  li.Bgua,  atassalhando  taesi  pessoas,  corta-se- 
Ihe  a  mão  direita  e  o  pé  esqueirdoí,  e  furam-se- 
Ihe  os  beiços  com  um  ferro  em  braza  . .. ». 

•^-r-«Valba-me  St/  Anna  e  S.  Jfosé! — bal- 
buciou Thomé  fuhninado  e  fugindo  com  o  corpo. 
Q  que  diz  ?  O  sr.  Bernardo  Pires^  não  ha  de  ter 
a  crueldade  ? ! . . .  Aqui  ha  gente  escondida  ? . . .  » 

—  «  Socegue.  Istp  é.  hyperbole ;  íaMei  çm  hy- 
potbese.  ÇIstQu  sii^»  Ministro  e  ve]:4ug9  4a^  mi- 


Digitized  by  VjOOQIC 


92  A   MOCIDADE 

nhãs  vindictas  sentenceio  e  executo.  Ora  bem ! 
Como  ia  dizendo :  as  carnes  tremeram  do  que 
lhe  escutei ;  os  ouvidos  recusaram  acreditar. . . 
a  ira  gritava:  mata-o!  mas  a  prudência  res- 
pondia: espeta!  optei  pela  prudência  e  parti. 
Chegando  a  casa ,  chamei  o  escudeiro  do  duque 
e  meu  particular  amigo ;  vieram  a  conselho  mais 
três  creados  velhos ;  e  decidiu-se  que  o  sr.  Tho- 
mé  fosse  apanhado  ã  noite,  metido  em  uma  casa 
solitária ,  esta  por  exemplo ,  e  ahi,  trema !  ahi 
engraixado  vivo ,  puchando-lhe  o  lustro  á  escova 
dois  robustos  pretos  de  Guiné  ! . . . » 

Ouvindo  a  segunda  hypothese,  mais  ignóbil  e 
não  menos  crua ,  o  sr.  Thomé  atirou  um  formi- 
dável pulo  á  porta ,  que  dava  para  o  cemitério. 
Esta  cedeu  e  entr'abriu-se ,  e  um  intervallo  lú- 
cido no  meio  do  delírio  do  terror  mostrou  ao 
devoto ,  que  não  podia  escolher  nielhor  posição 
para  qualquer  occorrencia.  Entre  tanto  o  sublime 
vate ,  correndo  a  vista  orgulhosa  por  toda  a  sua 
exigua  pessoa,  e  afofando  o  ar  com  a  dextra  cheia 
de  magestade,  depois  de  breve  pausa  continuou 
o  relatorio  entre  dois  sorrisos,  um  ridículo,  por- 
que era  burlesco,  outro  parvo,  porque  tentava 
ser  irónico : 

—  «  Achei  indigno  de  mim  o  supplicio  da  gra- 
xa !  Um  poeta  laureado  em  três  outeiros   não 


Digitized  by  VjOOQIC 


DH  D*  JOÃO,  V,  93 

baixa  a  mal  de  um  remendão  de  escada. .  .nió 
mancha  a  alvura  de  cysae  com  a  vil  untura  de 
pós  de  çapatos ,  mesmo  para  f^zer  preto  um  ho- 
mem branco. . .  Regeitei,  e  dissuadi-K».  Encar- 
regaram-me  então  da  vingança  geral !  lembrou- 
me  embainhar-lhe  a  espada  no  corpo  uma  noite 
ao.  canto  de  um  becco:  ha  exemplos. históricos; 
mas  tive  medo  de  subir  com  elles  a  escada  da 
forca.  Occorreu-me  fazer-lhe  sete  satyras  a  fio, 
e  apregoal*-o  em  oitavas  pelos  cegos;  mas  podia 
acontecer  que  se  não  vendessem,  e  por  cima  pa- 
gar eu  o  papel  e  a  impressão.  Até  na  vingança 
a  economia  é  santa!  Por  fim,  hontem  resolvi 
que  o  mais  simples  era  trazel-o  aquL,  e  fazer- 
lhe  a  honra  de  um  desafio  á  empada  sem  teccei-. 
roB.  . .  da  apparencia  de  um  duello ,  porque  sou 
o  melhor  discípulo  de  Vicente  Nemour ,  e  com 
uma  imbrocaSa  envio  o  inimigo  ás  Gorgones  e 
Megerai^,  sobretudo  não  jogando  outras  armas 
senão  o  hyssope  e  a  caldeirinha. . .  Tenho  tido 
trinta  desafios ,  e  sabe  porque  nunca  fui  preso 
nem  se  soube?  Porque  homem  morto  não  fal- 
ia; e  homem  que  briga  comigo,  acredite  que 
é  homem  que  não  torna  a  pisar  a  terra ;  vai  di- 
reito para]o  outro  mundo! 

Este  epiphonema  ameaçador  era  acompanhado 
de  gestos  lacrimosos.  Para  lhe  dar  mais  eíFeito, 


Digitized  by  VjOOQIC 


94  A  MOCl^AHB 

O  pdeta  limpou  àoí^  oUm  dtiáB  lagrimas  stop)^ 
tus  com  ttmkfneidhode  alvura  suspeita  e  de  «t- 
cambraia  franceza.  Esta  bda  alma^  com  o  sètt 
pranto  imagluario^  fazia  ás  hotirag  fuâebre^  da 
imaginaria  vietimai  Era  a  iombra  do  boMrô^ 
limpando  a  aombra  de  um  catallo  ci»n  a  aom- 
ln*a  de  uma  esocnra ,  segundo  resa  a  parodia  da 
Eneiada. 

£m  quanto  o  pierio  vate  sepultava  oâ  inortoa^ 
ideaes,  sacrificados  nSo  com  espada ,  niai  com  a 
lingua,  o  andador  das  almas  principiou  a  résia- 
beleeerHie  do  àUlto^  e  a  carar-nse  do  (nrimetro  »• 
bresalto  da  imàginaoão.  Mais  familiarísadd  còm 
a  casa,  e  bem  certo  de  que  todos  os  inimigos  éé 
rednsiàm  ao  paroleiro  vale,  tomou  ò  pulso  á  sM 
coragem,  e  atreveu-se  a  estudar  de  mais  perto 
o  coração  do  Rodamonte  do  Parnaso.  No  meio 
dos  rompantes  que  lhe  Saiam  pela  bocca  fâra  M 
gtrandolas,  eomo  foguetes  4  o  devoto  começou  a 
suspeitar  que  tudo  aquiiio  eram  úmm^s  áem 
baila,  trovBo  sem  raios.' O  poeta  laufieaão  pédía 
esconder  uáia  boa  dose  de  bf alurá  nc^atfi^ ,  é 
a  sua  physionomta  ff»ignifiõante  era  o  meiios  bél^ 
Itoòsa  possiveL 

Thomé  das  Chagas «  ém  quanfô  elle  delatava 
em  easeataa  de  sediças  e  Côroa^adai  íma^èné  a 
torrente  éa  aua  chdera,  foi-m  á  refleétir  de  vá- 


Digitized  by  VjOOQIC 


Dl  D.  JOÃO  V.  dS 

gar  sobre  o  caso «  e  achou  qaé  este  Ajax  ridi- 
«ido,  esbravejando  com  o  florete ^  c  talharido  o» 
ares  ^  promettia  mais  uma  soena  de  entremez  do 
que  um  éombate  serio,  a  quem  lhe  apoàtasse  ao 
peito  três  a  quatro  palmos  de  ferro.  Mais  aUi^ 
viado  da  sua  perturbaçfto^  o  servo  de  ChHsto 
lembrou-se  de  que  léra  uma  fabula,  em  que  o 
burro,  orúeando  dentro  da  peile  do  ledo,  en-^ 
obeu  as  selvfts  de  terror ;  mas  denunciado  pelas 
orelhas I  ficou  burro,  e  fugiu  do  mats  despresir' 
vel  contendor.  Por  isso  resolveu-se  a  tentar  for- 
tuna, e,  animado  pela  ferocidade  theorica  desta 
paBthera  de  metas  de  seda^  decidiu  escapar  ao 
Miles  ghriosus  de  Lisboa^  tortk  o  estratagema  das 
<)O0iedias  velhas ,  remédio  efficas  i>ara  os  valeu-' 
tes  ficarem  a  pedir  confissão.  Feito  este  çileolo, 
o  iUustre  Sactistão  me^nor  contrafeíH»e ,  sacudiu 
o  longo  e  esguio  corpo,  escorvou  as  goelas  para 
tornar  a  fi>z  clara  ^  e  cõnipomio  os  oeulos  em 
som  de  guerA ,  preludiou  a  entrada  em  soena 
p^  um  formidável  giro  ié  florete  ^  ^oe  fes  re* 
€uar  o  poeta  sohresaltado  tnais  de  quadro  pastsos. 
Ao  mesmo  tempo  o  milagreiro  exclamava : 

-^«S^.  Bernardo  Pifes,  Deus  é.}uáUyl  Cono- 
tava assassinar  o  sacristfto  die  byssope  e  cadeiri- 
nha«  pois  saiba  que  antes  de  entrar  nò  serviço 
dft  agréjft  eètíVe  ao  seirvtfò  àé  el-rer.  Quík  ex- 


Digitized  by  VjOOQIC 


96  A    ilOC1DAD£ 

perimental-K) ;  soffiri  com  paciência. .  .  mas  é  pre-^ 
ai90  dar-Ihe  uma  liçio.  Conselho  por  conselho ! 
Tome  as  suas  precauções.  Olhe  que  os  dois  últi- 
mos castelhanos  que  matei,  foi  abrindo-lhes  a 
cabeça  até  aos  dentes. — Depois  ajoelhando  e 
pondo  as  mãos  com  os  copos  da  espada  entre  el- 
ias,  proseguiu  com  devoçfto:  —  Senhor  Jesusida 
minha  alma ,  bem  o  sabeis ,  é  em  defesa  pro-^ 
pria !  Tende  misericórdia  com  este  homem,  que 
vae  apparecer  na  vossa  divina  presença,  tão  mal 
preparado  para  as  terríveis  contas  que  tem  de  dar 
diante  da  vossa  justiça!  —  Acabada  a  depreca^ 
ção,  Thomé  levantou-se,  imiteu  a  posição  mar- 
cial que  vira  em  Lisboa  e  Évora  a  alguns  offi-^ 
ciaes  ,  e  gritou :  —  Vamos  ,  sr.  poeta  !  em 
guarda  já !  x» 

Dizendo  isto ,  o  devoto  parecia  de  bronze  por 
fora ,  mas  estava  uma  abobara  por  dentro.  Este 
momento  era  terrivel.  Se  o  vate  acceitava  o  car- 
tel e  cruzaíva  a  espada,  Thomé  teifcionava  roet- 
ter  os  hombros  â  poria  do  cimiterío  e  escapar- 
se.  Hesitando  elle,  ou  evadíndo-se,  ficava  des- 
mascarado ,  e  pagava  capital  e  juros  do  medo 
que  lhe  fizera  curtir.  O  raciocinio,  portanto, 
não  peocava  nem  na  forma ,  nem  na  materia. 

O  poeta  é  que  já  não  sabia  aonde  estava.  Ho- 
mem de  pacificas  inclinações ,  tinha  ideado  este 


Digitized  by  VjOOQIC 


Dfi    D.  JOAO  V.  97 

lábce  (iomo  ideava  as  suas  trovas ,  que  os  zoilos 
chamavam  pecas.  O  sangue  mettia-lhe  horror, 
sobre  tudo  o  seu ;  uma  espada  nua  fazia-]he  agas- 
tamento  de  coração.  A  arte  de  esgrima ,  que 
alardeara ,  era  uma  impostura  famosa,  como  era 
outra  desaforada  mentira  os  dois  golpes  mortaes 
de  Thomé  nos  hispanhoes,  dos  calcanhares  dos 
quaes  teria  fugido  até  Âldea-Gallega. . .  Em  todo 
o  caso,  o  poeta  via  de  repente  um  Roldão  diante 
de  si ,  e  faltava-lhe  o  animo  para  ser  Oliveiros. 
A  gente  nasce ,  não  se  faz. 

O  plano  caía ,  portanto ,  pela  base.  Os  cálcu- 
los eram  admiráveis ,  mas  peccavam  n'uma  ba- 
gatella ;  tinha  esquecido  ao  vate  prever  a  hypo- 
these  do  andador  das  almas  levantar  a  luva ,  e 
acceitar  o  cartel.  Esta  falta  desconcertou  pela 
base  os  bem  elaborados  projectos  do  nosso  amigo. 
A  sua  idéa  era  simples ,  como  todas  as  grandes 
idéas ;  reduzia-se  a  intimidar  o  devoto,  coagindo-o 
a  desdizer-set  e  a  pedir  a  vida ;  mas  para  isso 
tornava-se  absolutamente  necessário  que  o  sr. 
Thomé  tivesse  medo ,  e  o  milagreiro ,  entalado  , 
deixou  os  logares  communs,  e  optou  pela  valen- 
tia. Diante  da  soluçSo  inaudita  do  problema,  uma 
transpiração  duvidosa ,  que  elle  chamava  excesso 
de  marcial  ardor,  borbulhou  na  magnânima  fronte 
do  filho  de  Apollo.  Em  logar  de  se  pôr  no  recto, 

T.  JI.  7 

Digitized  by  VjOOQIC 


98  Á   UOCIDAJDB 

respondendo  á  esp«da  com  a  e^Mtda ,  ainda  n^ 
cuou  dois  passos  mais;  bai^u  a  ponta  do  fio* 
relê ,  e  de  revez  observou  pelo  canto  do  olho  se 
a  porta  da  escada  lhe  ficava  perto.  Tomadas  es^ 
tas  precauções ,  virou-se  para  o  adversário «  que 
tinha  o  pierio  chapeo  atarantado  na  cabeça  ^  e 
entre  um  sorriso  mavioso  e  um  gesto  assucarado^ 
exclamou  abrindo  os  braços : 

—  «  Àve ,  bis  terque  ave  l  Achei  um  homem« 
Pelos  manes  de  Aristóteles!  O  phiiosopho  qa6 
ao  meio  dia  o  procurava  á  luz  da  lanterna ,  en^ 
trando  aqui  apagava  a  candeia,  porque  achava 
dois.  Cedant  arma !  como  diz  Tullio  Cícero.  Fa^ 
çamos  tréguas  i  e  conversemos.  » 

—  a  Sr.  Bernardo  Pires,  tenho  pressa  ;  e  agoiQ 
n&o  se  trata  de  metaphoras,  trata-se  de  brigar. 
Demais  o  tenho  eu  aturado. . .  Estou  canç»do ; 
aturdiu-me  duas  hwas. .  .  vou  livrar  a  terra  de 
um  estopador  eterno ,  e  Lisboa  de  um  malsim 
de  sonetos,  capaz  de  endoidecer  até  os  sábios  da 
Grécia.  Vanios ,  defenda-se  1 » 

£  o  devoto ,  brandindo  ao  acaso  a  longa  es- 
pada, descarregou-a  na  mesa«  que  servia  de 
trincheira  ao  vate ,  e  cravou  nella  bons  dois  de- 
dos de  ferro.  Bernardo,  mais  branco  do  que  os 
fabulosos  bofes  da  camisa,  que  eram  russos,  fur- 
tou o  corpo  ao  golpe,  apesar  de  estar  a  três  dis^ 


Digitized  by  VjOOQIC 


DB   D.   iOJkO  T.  99 

toffciQg  do  9eu  alcance ,  efi^olheu-se  por  detraz 
da  m69a  ^  e  lemt»*ado  das  tertíveis  cutiladas  ce- 
rehraés  do  sr.  Thomé  boi  çastelhaaos ,  armou-se 
da  bilha^  que  levantou  como  escudo,  em  quanto 
se  retirava  èm  degordera  direito  á  porta,  agi- 
ta&do  o  florete  como  um  moreego  agita  as  azas : 
-—  «  Viva  Marte ,  deu»  dâ  guerra !  gritou  elle, 
Mm  bellioa^  donato,  modete  a  impaciência,  e 
Dão  enroBf  ue  as  serpentes  da  calumnia  no  çapa<4 
cete  onde  pousa  o  sábio  mocho  de  Minerva  I  Fa^ 
vetP  Hiigm»!  Freio  m  Uagua,  e  abracetno-nos. 
Deixe  o  frio  Borees  tiritando,  e  a  canicula  uríd» 
abraisatdo. . » »       * 

—  «  Sr.  poeta,  isto  não  é  negocio  de  abraços. 
Briguemos ! » 

—  «Oh!  glorioso  ardor!...  sr.  Thomé ^  tt 
musa  sauda*^ !  Gomo  ReinaUoi,  dé-me  a  ^rupa 
da  «ett  coricel,  e  i&tmigos  paladinos  vamos  juntos^ 
banher  a  alma  na  divina  onda  do  Permesso ,  do 
rio  da  amizade. . ,  Ab!  i»aero  Afiosto,  quem  to^ 
poderá ,  nio  digo  e^eoder ,  senSo  imitar !  » 

— *-  <  Advirto-lhe  que  estou  45sperando ; » ^-^ 
acudiu  o  devoto ,  fazeod^^se  oadn  ve?  mais  Ct^rte 
com  >  ai  ^evoloçõas  olratoriats  do  ndr^nslirio.  ^-  «c  O 
dMife  fiio  é  com  01  vonios  e  $$  metaphoras,  é 
cpok  0  ir;  Bm^nardp  Pires.  Mande  fmmt  o  tai 
^rííoi^  »enio  engo  o  braço^  e  nSo  se  queixe...  >►: 


Digitized  by  VjOOQIC 


100  A   HOGIDADB 

—  c(  Tem  rasão,  fallarei  em  língua  vulgar.  Ea 
me  explico.  Dizia-lhe  que  isto  não  é  sangria  de- 
satada ser  hoje ,  e  já.  Temos  tempo.  Depois  re- 
flectindo, creio  que  houve  equivoco,  ouvi  mal 
talvez ;  o  sr.  Thomé  de  certo  queria  dizer  que 
desejava  assados  de  carocha  e  sambenito  os  ini- 
migos do  duque  de  Cadaval. . .  » 

—  «  Nada ,  não  houve  equivoco.  Ouviu  muito 
bem.  Sustento  o  que  disse  e  o  que  nto  disse 
Âffirmo  e  confirmo. » 

—  «  EntSo ,  meu  amigo,  dè-se  ao  mundo  um 
grande  exemplo !  Quebremos  o  alfange  da  Parca ; 
enganemos  a  morto,  que  bem  o  merece.  Betra- 
cte-se !  Tenha  a  bondade  de  dizer  o  contrario  do 
que  disse ,  duas  palavras  pro  forma  —  ou  eu  as 
digo ,  e  o  sr.  Thomé  ouve  e  cala-se ;  ora  como 
retractio  non  est  conmium ,  o  que  significa,  que 
a  emenda  não  é  infâmia,  arranjamos  o  negocio, 
e  o  sangue  de  dois  campeões  não  rega  de  pur- 
púreos veios  os  penetraes  do  tumulo. . . » 

— «  Se  tem  medo,  sr.  Bernardo,  conffesse-o  e 
vá-se  embora.  Eu  não  desdigo  nada ,  não  con- 
sinto nada.  Acabemos  com  isto.  » 

—  «  Medo !  ?  Esse  filho  da  noite  e  de  uma 
lebre  macha ,  acaso  entrou  nunca  no  coração  de 
Bernardo  Pires?  Medo,  eu,  poeta  laureado, 
adorador  constante  de  todas  as  bellas ,  e  em  es- 


Digitized  by  VjOOQIC 


BK  D»  JOÃO  V.  101 

pedal  fiel  captivo  da  maga  Belisa ,  cujo  nome 
profano  deve  ser  Isabel,  a  estreita  dos  meus 
olhos ,  cuja  doce  alcunha  é  a  Coração !  Medo ! 
Essa  palavra  vae  derramar  ondas  de  sangue, 
grosseiro  sacristão.  Primeiro  a  funda  e  depois  a 
espada.  Morre  endurecido  no  erro  já  que  des- 
presaste  a  vida.  Deus  tenha  a  tua  alma  em 
gloria!  » 

Unindo  o  acto  á  palavra ,  e  fechando  os  olhos 
para  não  vér  o  sangue  da  victima ,  o  poeta  ati- 
rou a  bilha  pelos  ares ,  abriu  a  porta ,  e  com  a 
espada  na  mão  precipitou-se  pela  escada  abaixo, 
gritando :  —  «  A  clemência  tem  limites !  » 

No  meio  da  estrepitosa  saída ,  um  dos  de- 
gráos  de  fraco  e  podre  exbalou  um  gemido  e 
foi  abaixo ;  o  pé  do  vate  desceu  com  elle ,  e  o 
sr.  Bernardo  Pires  acbou-se  preso  pela  perna, 
vendo  por  cumulo  de  desgraça  em  cima  da  ca- 
beça a  espada  do  andador  das  almas,  que  o 
perseguia  denodado. 

—  «  Renda-se !  d  —  gritou  o  devoto  açoitando 
os  degraus  a  ferro  frio ,  mas  sempre  a  rasoavel 
distancia  do  inimigo.  Este ,  apesar  disso ,  en* 
colhia  o  pescoço  e  piscava  os  olhos ,  cada  vez 
que  a  sombra  da  espada  innocente  apparecia  na 
parede. 

—  a  Pare ,  estou  rendido !  »  —  clamou  o  poeta 


Digitized  by  VjOOQIC 


Aé  ma  gaiola ,  agitando  os  braços  em  sigotl  ckr 
perigo.  —  «  Olhe  que  me  faa  partir  umacaMlto !  n 

—  «  Pois  entregue-se !  Para  cá  o  florete  »  — 
dizia  o  heróico  Thomé.  —  «  Depois  saberá  as  eoa- 
dições  com  que  lhe  perdoo.  » 

—  a  Não  abuse  da  desgraça  x»  —  ehwaiiii- 
gott  o  paladino  dos  aerostickos  e  eokhms.  — 
«  Áhi  tem  a  maldita  espada.  Faça  favor ,  aju- 
de-me  a  sacar  o  pé  de  dentro  desta  capoeira ;  e 
dé-me  esse  chapéu,  que  ienbo  frio  na  catieça.  i» 

—  «  O  chapéu  está  prisioneiro  de  guerra . .  .  >» 
-<-  gritou  o  sn  Tbomé,  recebendo  as  armas  vir- 
gens do  inimigo.  —  <<  Agora  ouça.  Conhece  a 
Coração ,  a  ciganita  do  pateo  das  Comedias  ?  Não 
era  delia  que  faltava  ha  pouco?  » 

—  a  Aime  /  »  —  suspirou  o  vate  estercendo-se 
— «  oxalá  não  conhecesse !  Adoro^a.  É  a  flor 
que  perfuma  a  minha  poesia ,  é  a  suave  Egaria 
deste  Numa. . .  » 

—  Deixe-se  de  historias ;  e  vamos  ao  caao* 
Como  o  trata  ella  ?  » 

—  H  Com  os  rigores  de  um  t^ra  hyrtano.  Ot 
seus  olhos  para  todos  de  mel  ferem  coaio  bal-, 
las ,  se  olha  para  mim.  Sou  o  seo  fiel  coptiH» , 
respiro  só  para  a  idolatrar ,  e  aquelb  mão  de 
alcorce ,  nunca  me  tocou  de  leve.  .  .  Ainda  tioo* 
tem  lhe  pedi  um  osculo ,  e  den-me. . . )» 


Digitized  by  VjOOQIC 


DS  P.   4QÍO  V.  103 

-^  «  Ab  1  devi-lbe  mn  beijo.  Bem !  &lle,  diga, 
com  mil  basiliscos!  » 

— a  Duas  tremendas  bofetada^,  uma  de  cada 
UÍQ  V  P^f^  v^  endireitar  a  cara ,  disas  ella ! . . . 
Ah,  tyranna  Belisa,  as  seta»  àã  teus  lindos 
olhos, , .  » 

—  <x  Deixe  as  setas ,  e  sentido  com  as  nava- 
lhas! » —  acudiu  o  milagreira  9  soltando  a  ri- 
sadinha fals^  do  costuma.  Não  se  meta  {»elo  Egypto, 
sr.  Beirn^rdo «  olhe  que  pôde  ir  por  seu  pé  ^  e 
¥oltar  ás  costas  de  ^rem. 

T^m  Então  e^re-^e  perigo?  «r^Melamou  0 
yatf  (sobresftltado, 

— «  C6  e  h  mkB  Í9â9»  ha !  ^  0  foa  the 
di|;o.  Qra  b^m*  Saiba  que  sou  seu  rival  segundo 
a  «anve.  Ando  eonv^r^udo  a  Coração ,  ^ftorqua 
era  pena  corpo  tão  gentil  perder  a. alma.  . .  Ora-r 
ça$  a  Dend  ella  ouve-<me.  Nao  creio  nos  meus 
mereeimejplos,  $(^  creio  no  poder  de  Jesus  Christa, 
fkOfi^  red^Piptor. . ,  Ê  uma  inclinação  honesta , 
«m  honra  da  egreja;  portanto,  sr.  Bernardo, 
ou  y.  n9erQé  jiira  de  não  t(n*nar  a  desinquietar 
a  Coração ,  m  e^  dei^  c^ír  a  espada  como  fiz 
aos  bi^panhoes,  e  enterro*^  debaixo  destes  de- 
tm«^.  Pro^iette  ? . . .  » 

-«-  tf  Tirenaia  a  vida ,  ims  deixe-me  a  escurt 
noite  dos  meus  e^idAdos.  n 


Digitized  by  VjOOQIC 


iOi  A  HOCIDA|)X 

—  a  Muito  beoi ,  ser  satisfeito.  Rese  o  acta 
de  contrição. 

—  «  Espere ,  espere !  Que  génio  assomado ! 
Pois  ha  de  degolar  um  poeta  por  causa  de  uma 
figura  de  rethorica?  » 

—  «  Então  deixe  a  rapariga  em  socege,  se 
não  quer  partir  para  a  eternidade  em  dois  mi- 
nutos. O  que  decide  ?  » 

—  ti  Fico.  Tenho  muito  que  fazer  no  mundo.  » 

—  «  Veja  bem  o  que  diz.  Promette. ...» 
— «  Não  prometto ,  reconsidero.  Se  ella  vivo 

me  esbofeteia ,  o  que  será  depois  de  morto !  Re- 
gale-se ,  e  ature-a ,  que  não  leva  mau  castigo. 
Não  lhe  seguro  os  ossos  a  um  ceitil.  » 

—  n  Isso  é  por  conta  minha  e  delia ,  não  lhe 
dé  cuidado.  Olhe  que  se  o  apanho  em  alguma 
emboscada. . .  » 

— «  Eu  não  sou  melro  para  andar  por  bos- 
ques !  Abjuro  o  traidor  Cupido ,  detesto  a  las- 
civa amante  de  Marte  Rufião,  e  protesto  viver 
e  morrer  em  puro  celibato.  Estou  curado !  Prc- 
ferir*me  a  osga  torrada  deste  sacristão ! . .  .  » 

— 1(  Então,  visto  estarmos  concordes  »  —  ata- 
lhou Thomé  que  não  ouvira  a  ultima  parte  da 
jaculatória,  nada  lisongeira  para  o  seu  amor 
próprio  —  «  não  quero  demoral-o  mais.  Sou  um 
seu  venerador,  sr.  Rernardo  Pires,  j» 


Digitized  by  VjOOQIC 


DE  D.  JOÃO  V.  105 

—  «  Um  momento !  »  —  gritou  o  vate.  — 
«  Solte-me  as  asas ,  digo  os  pés ,  que  sendo  ras- 
teiros, em  estylo  culto  se  vestem  de  pennas. 
Muito  obrigado.'  Adeus  generoso  inimigo ;  se 
qúizer  uma  decima  para  o  seu  noivado ,  procure 
Bernardo  Pires,  poeta  laureado,  morador  em 
casa  do  duque  de  Cadaval.  Adeus,  venturoso 
mortal;  diga  á  ingrata  Belisa,  que  até  morrer 
adorarei  os  lindos  pés,  que  são  zephyros  na  dança, 
e   as  castanholas,  que  dão  mate  ao  coração.  » 

— «  Olhe  a  sua  capa ,  sr.  poeta.  Ahi  vae. 
Até  mais  vêr.  » 

E  Thomé  das  Chagas ,  descobrindo  em  si  uma 
qualidade  nova,  o  valor,  depois  de  viver  trinta 
annos  antes  de  a  achar,  atirou  de  cima  da  es- 
cada a  desbotada  capa  ao  infeliz  rival.  £ste  que 
morria  por  estar  a  cem  léguas  do  theatro  da  sua 
vergonha ,  fez-lhe  uma  ultima  cortezia ,  levando 
a  mão  á  altura ,  onde  devia  estar  a  aba  do  cha- 
péu aprisionado ,  e  saip.  Já  fora  da  porta  levan- 
tou os  braços  ao  ceu  e  exclamou  : 

— «  Vou  tosquiado!  Perdi  um  florete,  um 
chapéu ,  e  uma  rapariga ;  mas  levo  o  corpo  in- 
teiro, que  é  o  essencial.  Nada  de  graças!  Se 
mato  o  sacristão  tinha  de  mudar  de  ares ,  e  ainda 
por  cima  ficava  sem  almoço,  e  cheio  de  remorsos. 
Quem  as  armou  que  as  desarme. 


Digitized  by  VjOOQIC 


lOÇ  A  UOGIDADE 

Da  &ua  parte,  o  aodador  da3  fAwí%9  apesar 
da  bravura ,  limpava  o  saor  frip  da  testa ,  en- 
direitava a  casaca ,  e  pegando  na  bandeja  e  a9 
seu  nicho,  saiu  da  casa  sem  olhar  para  traz, 
desceu  a  escada  a  furta^passo,  e  já  na  rua, 
ajoelhando  beato  e  contricto ,  desafogou  em  um 
suspiro,  exclamando: 

-*— a  Bemdito  e  louvodo  seja  Nosso  Senhor 
Jesus  Christo.  Sempre  escapei  da  boa  l » 


Digitized  by  VjOOQIC 


CAPITULO  XVII. 


MBNTISA   E   VBa»Al>8. 


Foi  sempre  um  homem  activo  e  previsto  o  sr, 
Tliomé  das  Chagas  1  O  se«  tempo  valia  dinheiro, 
e  a  sua  memoria  era  exacta  como  um  chrono^ 
metno.  Apeoas  desembaraçado  das  perseguiçõesi 
éo  poeta  laureado ,  olhou  em  redor  de  si,  orieun 
tott-^M  ^  tomou  o  caminho  mais  curto.  O  seu 
ipasso  aocelerado  disía  que  o  episodio  bellicoso 
lhe  tinha  roubado  uma  hora  pek>  nenos ,  e  que 
Bio  qaere»do  facer  es^r&r  nioguem  multiplicava 
a  comprida  pessoa,  e  era  igual  â  sua  reputa- 
ção. 

Em  virtude  deste  calculo  sim^icissimo  o  glo- 
rioso andador  das  almas  correu  direito  á  porta- 
ria de  S.  Domingos ,  e  chegava  á  cella  do  pa- 
dre fr.  João  dos  iRemedios ,  justaineote,  quando 
o  relojo  do  ooiiivento ,  dompassado  e  grav« ,  ba- 
tia as  Qove  da  manhÂ. 


Digitized  by  VjOOQIC 


108  A  MOCIDADB 

Thomé  louvou  a  Deus.  Só  meia  hora  se  tiob» 
atrazado  no  desempenho  dos  seus  deveres.  Sua 
reverendíssima  passeiava  pelo  gabinete,  e  em 
gestos  altivos ,  e  voz  sonora ,  dictava  um  papel 
forense  ao  desmemoriado  escrevente ,  cuja  dis- 
creta estupidez  o  padre  mestre  abençoara  em 
casa  de  Lourenço  Telles.  O  nosso  devoto  respi- 
rou ,  e  foi  logo  tomando  posse  da  situação.  De- 
pois, apurando  as  sensações  auriculares,  resu- 
miu espirito  e  corpo  nas  immensas  orelhas,  ávi- 
das e  curiosas. 

A  eloquência  do  procurador  desenrolava-se 
entretanto  em  períodos  extensos,  cadentes,  e 
ameaçadores,  accusando  a  companhia  de  Jesus 
de  rebellião  premeditada  contra  a  magestade  do 
throno  e  a  santidade  da  egreja.  A  minuta  da 
allegaçao  tremia  nas  mãos  do  orador,  que  a  ia 
limando,  entre  furiosas  pitadas,  e  estrugidos  as^ 
soados ,  e  tio  meio  da  commoção  vehemente  que 
retarda  ou  precipita  o  homem ,  cuja  imaginado 
laboriosa  acode  com  variadas  expressões  á  tra- 
ducção  do  pensamento. 

Passados  instantes,  Thomé  sacudiu  a  cabeça  e 
elevou  os  hombros  á  altura  das  infinitas  orelhas. 
A  este  gesto  succedeu  um  sorriso  verde,  —  bur- 
lesco arremedilho  do  fino  sorriso  do  padre  Ven- 
tura  nas  occasiões  escabrosas.  Feitos  estes  sig- 


Digitized  by  VjOOQIC 


DE  B.   JOÃO  T.  109 

fiaes  teiegraphicos  entre  a  alma  e  o  corpo,  tirou 
do  bolso  o  nosso  amigo  um  papel  e  poz-se  a  es- 
cutar, delapis  nos  dedos,  escrevendo  tanto  quanto 
dietava  o  procurador  de  S.  Domingos. 

Este  em  uma  investida  heróica  entrou  peia 
cella  dentro ,  de  braço  alto  e  lenço  fluctuante ; 
e  se  o  andador  das  almas  é  homem  menos  acau- 
telado, colhia-o  em  flagrante  delicto  de  men- 
tira capital,  descobrindo-lhe  uina  prenda  nova 
e  occulta ,  a  arte  caligraphica  reduzida  ao  me- 
tfiodo  mais  expedito. 

—  «Ah  estava  ahi,  Thomé  ?  »  —  disse  o  re- 
verendo, assoando-se  e  escorvando  o  nariz  com 
muita  complacência. 

—  «A  sua  bençSo ,  padre  mestre !  »  —  res- 
pondeu o  devoto ,  afivelado  na  contrícçâo ,  que 
lhe  servia  de  viseira.  — «  Peço  desculpa ,  vim 
mais  tarde ;  mas  espero  em  Nosso  Senhor ,  que 
n8o  fizesse  falta.  » 

—  «  Não  fez.  Como  a  noite  passada  estive  ao 
bofete  até  ás  onze,  agora  mesmo  principio  a  di- 
etar...  V.  mercê,  hontem,  é  que  sahiu tarde,  muito 
tarde  I  Que  horas  seriam,  Thomé  das  Chagas  ?  n 

—  «  Uma  hora  da  noite ,  reverendíssimo  »  — 
acudiu  o  milagreiro  com  certa  escuridão  nas  fa- 
ces ,  o  que  nelle  correspondia  a  fazer-se  bastante 
vermelho. 


Digitized  by  VjOOQIC 


110  à  lioaiUDE 

-^  «  Jintaimi^.  Uim  hora !  £  o  qttej  dmi» 
o  leigo  d»  portaria.  £  aonde  esteve  todb  ésaè 
lempO)  pôde  saber-^se?  » 

—  «  Na  capélta  de  cima ,  a  rezar.  £stWe  pa^ 
gando  uma  promessa.  » 

•— *  «  Âh !  Mvito  bèm.  Sabe  que  pegtiei  no 
somno  \úgo<i  e  de  modo  que  nio  aenli  raai$ 
nada?  -» 

^^  «  Que  admirado !  V.  reverendisaima  anda 
eançado. . .  •  »  * 

— «  De  espirito  e  de  corpo,  irmSo  Thonté; 
e  Deus  me  dé  forças  pela  sua  iafinita  miseri- 
córdia. Arranje-me  a  cella  e  nio  se  v&  em*^ 
bora.  . . .  bem !  »  E  outro  sim  » -^gritou  eUe « 
continuando  a  dictar  da  porta  do  quarto  *-^«  pro* 
Tara  na  real  presença  a  soberba  monstruasa  da 
sobredita  companhia  ^  que  nem  respeita  a  Beas, 
nem  teme  o  condigno  castigo  da  sua  terríMê' 
dade. ...» 

-^  <K  iniquidade  1  a  «^  repetiu  o  «acrevente , 
como  ecbo  infieL 

—  a  Espere  I  -~  E  fr.  Joio ,  magestoso  e  yer-' 
melho  da  etcitaçfto  mentai,  rodeou  o  grande 
eontador  de  pau  santo;  e  pondo  oa  olhes  no 
tecto  firmo«  o  período  coo  uma  tnèiewla  fut* 
nhada  na  mesa ,  que  a  fez  tremer  e  á  casa  toda* 

Duas  horas  depois  o  procurador  expedk  o  à^ 


Digitized  by  VjOOQIC 


DK  D.  joio  y.  111 

kstrc  ir.  Thofité  com  ama  earte  a  Diogo  de 
Mendonça,  e  a  passos  lentoa  encaminhava-^, 
meditando,  para  a  rua  das  Arca»,  aonde  o  es- 
peravam para  jantar  Lourenço  Telles  e  seu  so- 
brinho Filippe  da  Gama* 

O  devoto ,  depois  de  pesquisar  se  algoem  lhe 
seguia  o  rasto ,  em  vez  de  seguir  direito  6  Cal-^ 
cetaria,  tomou  para  o  lado  de  Santo  Antão,  e 
viu,  mesmo  debaixo  do  alpendre,  ama  sege 
parada,  com  os  cordões,  o  cavallo  transparente , 
e  o  esgalgado  e  faminto  bolieiro ,  que  naquelle 
tempo  constituiam  a  trilogia  de  um  vehiculo 
desta  denominaçSo ,  antes  de  aperfeiçoado  com 
outro  cavallo  espectro,  duas  rodas  de  azenha,  e 
uma  capoeira  suspensa ,  como  boje  o  vemos» 
Hia  a  pôr  o  pé  no  degrau ,  quando  se  eaoon-' 
trou  cara  a  cara  com  o  padre  Ventura ,  que  o 
recebeu  quasi  nos  braços,  entre  voa  sorriso 
mavioso  e  esta  jovial  exclamação : 

— .«  Orá,  bem  vindo  seja  o  nosso  aodador 
das  almas  1  Então  o  que  o  traz  a  esta  sua  ca- 
sa ? » 

•*—  c(  Venho  eúnfesiar-^mt  /  »  **-  replicou  o  mi-* 
lagreiro ,  beijaodo-ibe  a  osanga  ^  e  dirandu  parft 
todos  os  lados  inquieto. 

-^Ah!  E  as  culpas  pafecem-lhe  grandes  f 
Não  pôde  com  ellas  até  á  naíte?  » 


Digitized  by  VjOOQIC 


112  A  MOCIDADE 

— «  É  preciso  dizel^as  já.  Até  as  puz  neste 
papel  para  me  não  esquecer  alguma.  » 

—  «  Percebo!  É  tudo?  » 

—  «  Ainda  ha. .  . .  » 

—  c(  Espere !  Olhe ,  suba. .  . .  Não !  Venha 
comigo;  como  são  duas  palavras,  a  cella  do 
porteiro  é  bastante.  Diga-me :  vem  de  S.  Do- 
mingos? » 

—  <x  De  lá  sahi.  » 

— «  Óptimo!  £  a  devota  communidade?  » 
— «  Espera  amanhã  estar  melhor.  » 

—  «  Ora,  Deus  permitta!  Estimarei  muito.» 
Os  dois  entraram ;  e  minutos  depois  chegou 

o  padre  Sebastião  de  Magalhães,  trotando  na 
sege  do  paço,  e  apezar  do  frio  ardendo  em 
calma. 

—  «  Aonde  está  o  padre  Ventura  ?  »  —  per- 
guntou ainda  de  dentro  da  sege. 

— «  Aqui ,  aos  pés  de  V.  reverendissima  » 
—  respondeu  o  italiano  que  vinha  sahindo. 

O  confessor  de  el-rei,  apesar  da  sua  corpu- 
lência, de  um  pulo  atirou-se  ao  chão,  e  não 
bzendo  caso  de  Thomé ,  que  se  lhe  prostrava  aos 
pés  com  momices  respeitosas,  pegou  na  mão 
delicada  do  visitador,  e  antes  de  fallar  moeu- 
Iba ,  no  apertão  das  suas ,  indicando  assim  a 
gravidade  do  negocio. 


Digitized  by  VjOOQIC 


Bi  0.  iÚAÚ  V.  113 

^^  «  Mais  de  yagar ,  padre  mestre  í^rcebo 
optimamente.  Adeus,  sr.  Thomé;  nSo  se  es- 
queça.   As    culpas  São  grandes,    tinha  rasão; 

mas  a  penitencia  as  expiará e  não  ha  de 

ser  pequena.  Ora  pois !   Quer  mais  alguma  coi- 
sa? » 

—  ff  A  sua  benç&o  V  padre  mestre.  » 
""^tt  Deus  o  faça  um  santo.  » 

E  sustendo  com  um  gesto  a  impaciência  do 
confessor ,  vãú  o  deixou  fatiar  senão  depois  de 
Thomé  ter  desaparecido. 

—  «  Aquillo  é  um  pobre  fanático  que  me  des- 
assocega  todos  os  dias  com  os  seus  escrúpulos  de 
.consciência. . . .  Agora,  nós.  Então  ha  novidade 
pelo  paço?  Está  peioi^  el-rei?  » 

— «  S*  magestade  está  melhor.  » 
-^-^  <i  Ainda  bem.  E  o  príncipe  ?  » 

—  a  Sua  alteza  teve  ordem  de  prisão.  » 

—  «  Sinto  muito.  »  ^ 
«—«O  infftfite  1).  Francisco  trabalha. .  . ,  » 
— «  Também  sei.  » 

—  «  E  logo  no  conselho  de  estado. ...» 

—  «  Decide-se  o  casamento  do  princípe.  Es- 
tou avisado,  n 

O  padre  Sebastião  olhou  cheio  de  assombro 
para  o  superior.  Parecia-lhe  quasi  um  prodígio 
que  soubesse  tudo  ,e  tão  depressa. 

T.   II.  ^ 

•  Digitized  by  VjOOQ  IC 


114  DE  ]>•  mXo  V. 

.^  «  EitreUnto  receio  q«e  &  «Iteii. . .  • » — 
insistiu  elle. 

—  c  Nia  receia.  $.  altesa  ik  qm  nio  red«»- 
dimente  ao  conselho  de  astadd ,.  eoMR>  dâsse  en 
particubr  a  el-rei ,  sm  pae.  » 

—  «  Deus  nos  acuda !  Sabe  v.  reverendissima 
que  el-rei  fa|U  da  a  m^tcF  m  t^ne?  » 

—  «  Sabe  V.  paternidade «  que  t,  nMigestade 
nam  sempre  bz  o  qpia  di»?  » 

-^^  Uai  é  que  o  inbiite  embníUka  tudo!  £ 
apezar  de  ser  um  pouco  líive  e  hm  dd  ea* 
baca.* ».» 

—  «Doidot  dfoiaaAe»  díi{al»««^  «tolha 
ík  fiiYor.  a 

—  <s  Mesmo  doido  l  Sabe  v.  ceferendissima 
que  acha  quem  o  siga»  e  diM»  ou  trea  pessoas 
de  muito  coneeitK^  paca  el-<rei  noaso  seaiboi  7  Por 
isso  temo. « •  *  a 

—  «  Não  tema.  d 

—  «  Mas  pôde  vir  iwaa  onlean  peaigoast  digo- 
Iho  eu  padre  visitador. » 

—  «Não  vem  aada»  affirmi^lhoeu,  padre 
confessor.  Olbe^  os  reis  que  morrem  nanca  me- 
teram medo  aos  reis  que  ficam;  acredite  iste: 
e  apesar  das  suaa  melhoras  o  sr..  D»  Fedra  U 
esti  vmiU^  doentet  muito  ma). . .  ora  o  prineipe 
ha  de  casar,  mas  é  depois.  lia  da  casar  na  casa  de 


Digitized  by  VjOOQIC 


Áustria ,  mas  não  é  já.  QqeranoIrO  KkKqívq  uns 
dias,  mais  uns  dias.  Fallousi  %^  fAtovil^)» 

—  «Da  parte  dQ  9Q1&  mg/fito  pd?. « 
•^«E  cbffD«  £  goum^  a  rot^ii? . .  9 

«--  «  O  p«ÍQ«ipowvdi«  NãQx^poAdoM  {wlaTra  » 
— «( Ah ! . .  E  á  carta  de  s.  snagcitadlQ?  i> 
«^« A  coyrU? . « £«  rSo^  ^im^  que  l^ei  uma 
carta. » 
*^i(Diga  eu:  o  a  r^spoiti?»^ 

—  «  Trago-a  neste  papel  —  murmi^w  9  con- 
Teiaor  cadt  ^ess  nwífiwQQfaiid^  dunto  d^  copiosa 
noticia  do  podre  Ye«bira,-.ir.FalU^i9  muito  4» 
P«i3^  do  priocijpie  por  cirta  dniMi.  •  > » 

— «  «  Ab  1   .  >^ 

—  «Uma  D.  Catfaarina  de  Attiaidir,  mnm 
em  SaAta  Clar«« .  • » 

—  <x  E  vão  tomar-se  providencias. . . » 
.-*-«Sim?» 

— -ifEUiei  jurw  Dor  alma  è$  «eu  paci, « , » 

— » V.  paternidaao  oSo  deve  dwMor  jwar  •^ 
rei  •  porqua  4  poecadOf  £  dapai»  ?  » 

— -« Souba-fiaqu&f^ altasa  ovtove  npnibrefi  ve^ 
xea  am  Santa  Clat^.  • .  x> 

-^aCoift  e(feito?j> 

•M^E  dç  todaa  teye  grmdw  oolloqww  ^^^m 
a  noviça  D.  CatbaFÍlM.  P 


Digitized  by  VjOOQIC 


116  A  MOCTBAra 

— «EstSo  certos?» 

—  «  Gertissimos ! » 

—  «  Pois  não  sabem  nada ! » 

—  a  Entto  o  príncipe  nlo  esteve  em  Santa  Cla- 
ra ?  >^  —  exclamou  o  confessor  absorto  e  recuando. 

—  «  Esteve !  *> 

-^c<Não  fallou  três  vezes  á  mesma  dama?» 

—  «  Fallou ! » 

—  «  E  a  dama  nfio  é  D.  Catharina  de  Atháide  ?  » 

—  «  Não ! » 

O  padre  SebastiSo  de  MagalhSos  estacou :  com 
os  olhos  esgazeados  e  as  palmas  das  mSos  vira- 
das para  o  seu  interlocutor  parecia  repellir  a 
vis9o  de  um  fantasma  tenebroso.  Â  firmeza  da 
negativa  fulminava-o. 

—  «Se  não  é  D.  Catharina  então  quem  é?v 
— gritou  elle  no  estouvamento  causado  pelo  sea 
espanto. 

— «  V.  paternidade  esquece  que  é  só  confes- 
sor de  el-rei,  e  que  eu  pergunto  e  não  costumo 
ser  perguntado?  —  atalhou  o  padre  Ventura, 
manso  de  tom,  porém  severo  de  expresáão. — 
Basta  que  lhe  diga  que  está  ás  escuras.  S.  al- 
teza ama  tanto  D.  Catharina  de  Atbaide ,  como 
V,  paternidade  cré  em  Mafoma.  Julgo  que  nem 
a  viu  ainda.  Descanee.  Â  corte  não  dá  cuidado. 
Dos  nossos  negócios  como  vamos  ? » 


Digitized  by  VjOOQIC 


M  0.  JOÃO  ▼.  117 

•  — n  A  questão  da  America  parou; » 
^^  «  Não  importa.  )> 
-—  (( Os  domíoieos  acomodam-se. » 

—  c<  ERgana-^e :  estão  em  armas. » 

—  «  Não  transpira ! » 

—  «  Ha  mais  alguma  coisa  ?  » 

—  «Temos  el-rei  de  pedra  e  cal  no  caso  dos 
quindenios. » 

—  (xÉ  preciso  pol-o  de  oera.  Os  quiedenios 
talvez  se  paguem. » 

—  «  Pagam-se  ? !  j»  —  clamou  o  confessor  at- 
lerrado. 

—  «  É  mais  que  provável.  E  o  padroado  ?  » 
-^  « Está  nas  mãos  de  Diogo  de  Mendonça. 

Mas  D.  Tbomaz  de  Almeida  prometteu. . . » 

—  a  Se  prometteu  nada  faz.  É  o  costume. 
Falle  a  ét-rei,  e  levem  o  negocio  ao  conselho  de 
estado ;  é  melhor. » 

—  «E  se  Diogo  de  Mendonça  o  demorar  ?  » 

—  «Não  demora.  Para  a  semana  dá-o  despa- 
chado. » 

—  «Então?. .  » — acudiu  o  padre  Sebastião 
com  uma  grande  interjeição  nos  olhos. 

—  «  Confio  que  Deus  nos  ajudará. » —  repli- 
cou o  Italiano  com  um  ponto  final  na  voz. 

—  «  V.  reverendissima  sabe  tudo.  Só  me  resta 
pedir  as  suas  instrucçôés. » 


Digitized  by  VjOOQIC 


118  A  HQtlMM 

—  <i  Sfid  flMÍ9%  ^pêÈtè  SèbMiilô»  ObQH ,  teja, 
e  falle  o  menos  que  souber ;  pm^m  ^  cahr  a 
tempo  é  a  iMi^  iscíefid«.  EMims  ntts  tesperas 
de  grandes  pt/A^^  Quem  ^So  «s  (MMMsde  mais 
respeito  para  o  infante  D»  Ffimetoco^  m  eHe  res- 
peita alguém  Tu 

'^«Nio  fli«  qMt  mèl  ô  tittqw  éé  Cadayal 
D.  Nuno.»  . 

-^«Netl  belAi  vvVMs.i» 

— «Boque  Monteiro  Paim  «OM^kk^ 

•^«fetoè,  pM"  fbVi^a ! D 

—  «  Senre-o  de  rastos  o  secretario  dé  €8Mh 
D.  itfeotMtt  de  Àlni^ida.  % 

^^«f^tiÂem  é  àiAltrà).  Que  tnaiêt» 
^« OòMile  4e$.  JetM)  pi^r  ésâg^to  <)«el«fe 
de  s.  «Itdfca^ . . » 

— «  Ettá  ))èrèi«it  do  ifUMíòt  ««>  lodo*?» 

—  «  SSo  os  principaes.  » 

-^  ^  E  T.  páterttiddb  ?  Dk»etiBftn-4ne  quetam- 
lieín  tinte  M  graçaft  de  s.  nMéfea  séfenimna. » 

—  «As  vezes  faz  a  honra  de  me  ouvir,  m»...  * 
--^iiMas  V.  ^atemidtide  sabe  qttd  %  coração 

dos  príncipes  é  intoíiitottte,  o  que  é  perigos 
ÈtkT  rm  andMçSo?  A^itti  o  esperava^  Nso  ticre- 
dite  nos  médicos,  padf^  mestre !  Efle^  ^Ifeom  '^ 
el^rei  meiho^ ,  quando  s.  «nagestade  ti^ík  quasi 
na  sepultura.  Âffirmam  q«e  B.  áfteta  I^Í)  ^ 


Digitized  by  VjOOQIC 


im  Ih  Mio  V.  110 

jHÍAciíie  D.  ioSo  idto  chega  aoi  demto  «imos , 
e  emfiisegiii«HÍhB  qnlMdevèi*<i  séb]?0?ifer,  pan 
gloria  delle  e  felicidade  destos  teiíioi,  áqueÚes  de 
seus  irmiofl  que  lhe  contem  «  im  de  vida  cu- 
bicando a  herança. .  •  padre  Sebastião,  quem  0^ 
para  por  çifotos  de  defuncto  arriflca-^  a  andar 
deetalçe-^é  o  adagio.  Eãtm  mteim  de  ieiarte 
D.  Francisco ,  e  todas  as  suas  conspinçdeft  umk 
niacas  não  Talen  um  cabeilo ;  o  q«e  fMMlem  é 
oietter  na  torre  algum  tonto ,  o«  exterfliiMr  da 
corte  dois  ou  três  crédulos ;  o  mats,  digo-Hio  em^ 
é  iawú  e  deof^emee.  V«rá!  Se  o  inCinte  não 
pede  oQtnaigo,  se  elle  tião  tem  eebeça  pam  aí, 
como  ha  ie  «r  4^beça  de  um  reino,  e  chefe  4e 
tanta  getáel  •.  Em  pd«cas  lioras,  «m  «n  ac- 
cesso  de  kiocam  põe  ét  rastos  ^  fet  «em  iníflii^ 
^§m  c^Htees  a^nelles  que  mais  o  ajudarem  e  q«e 
elle  mais  procura.  £  uma  prafbeeia  ■miÍMi,  e  eiiie 
tem,  eata  »fae  certas  Depois,  a.  afteaa  está  acos- 
tumado ás  feras  do  meste,  e  por  isso  iiio  adk 
mira  que  muito  mal  conheça  os  homens.  Ás  ve- 
zes no  rio  descuida-se  com  uma  pontaria,  e  cahe 
ferido  um  marujo  das  vergas. .  .  Ora ,  quem  as- 
sim tem  a  vista  fraca  não  ha  de  nunca  achar  os 
degraus  do  throno.  Aposto  que  é  do  meu  voto , 
padre  Sebastião  ?  Os  absurdos  não  reinam ;  so- 
bretudo os  de  carne  e  osso. » 


Digitized  by  VjOOQIC 


120  A  '«OCIOABE 

O  confessor  de  el-^rei  tinha  o  rosto  vermefiio 
eomo  lacre,  e  nSo  levantava  os  olhos.  Porfiai 
em  voz  biMxa  disse : 

—  «V.  reverendissima  ordena  alguma  coisa 
mais?» 

—  cíQue  teàha  saúde. . .  A  propósito,  pode- 
rei fallar  ao  .príncipe  amanhã  e  a  s.  rai^estade 
esta  noite?»  • 

—  «Â  8.  magestade  de  cei^ito.  £l-rei  estima 
os  nossos  padres.  Agora,  estando  o  príncipe  eom 
ordem  de  prísSo  é  que  não  sei. . .  r 

--^aSe  é  difficjl  obter  audiência?  vNSo  im- 
porta; arranjaremos  isso.  Adeus,  padre  con- 
fessor. Beije  por  mim  a  mão  de  el-rei. » 

£  sorrindo  sempre  metteu^se  na  sege  e  pai^tiu 
com  toda  a  rapidez.  O  padre  Sebastião  ficou  dois 
minutos  a  olhar  para  o  chão ;  depois,  arrancando 
um  suspiro ,  exclamou : 

— «  Dez  annos  dava  eu  da  minha  vida ,  se 
entendesse  aquelle  homem !  » 


Digitized  by  VjOOQIC 


CAPITULO  XVIII. 

EM  QUANTO  VENTA  MOLHA  A  VELLA  ! 


D.  Pedro  II  fazia  a  sua  residência  nos  paços 
•de  Alcântara.  Era  alli  ^  que  sendo  ainda  infante, 
pousara  o  primeiro  osculo  de  vassallo,  já  tre- 
mulo das  anciãs  do  aiFecto ,  na  mão  da  princeza 
D.  Maria  Francisca  Isabel  de  Saboya,  que  ia 
ser  rainha ,  e  ã  qual  o  seu  coração  e  a  fortuna 
4eram  depois  o  suave  nome  de  esposa. 

Mal  cuidava  Affonso  VI,  armando  com  pompa 
estes  aposentos  reaes,  que  a  delicada  mào  de 
lima  dama  havia  de  pegar  no  sceptro  com  tanta 
força,  e  quebrar-lh^o  sem  piedade.  Mal  previa 
então  o  herdeiro  dos  duques  de  Bragança  que, 
envenenadas  por  uma  paixão  ardente ,  as  ambi- 
ções do  infante  se  levantáriam^tapto  que  olhas- 
sem destemidas  para  a  çbrôa,  rompendo  a  lucta 
dos  dois  irmãos ,  lúcta  knpJi^cwej ,  cujo  premio 
era  o  throno,  cuja  esperança  era  o  «mor,-  e  as 


Digitized  by  VjOOQIC 


A  MOaDADB 

suas  delícias  a fieço  de  umipiaailratrteidto*..  « 
Vendo-se  declinar  rapidamente,  duas  vezes 
viuvo ,  e  sentindo  sempre  o  coraçSo  carregado 
do  lucto  da  primeira  esposa ,  D.  Pedro  II ,  por 
instincto,  procurava  es  sitíos«  <Mide  a  fortuna 
o  fizera  monarcha  e  ditoso  amante.  Quando  el- 
rei  silencioso  e  solitário  pisava  as  salas  e  as  ga* 
lerias  desertas,  nas  quaes  em  dias  venturosos 
colhera  as  flores  tão  mimosas  da  paixão ,  e  ou- 
vira de  uma  bocca  adorável  as  promessas  dese- 
jada6,  a  saudade,  sombra  {riangente  d'aqpiella 
que  tanto  amou  >  aeguia-o  por  toda  a  parte,  aqoi 
lembrando  iun  sorasot  alU  uma  psJavfa,  em- 
cbeado  tudo  com  a  memoria  da  mídfaer  que 
chorava,  Proaimo  a  entrar  no  tumufe  da  cspoM» 
<»  irmão  podi«  curvar  a  cabaça  ao  remem « nw 
o  amante,  se  erguia  os  olfaos  ao  oéu  erasóptn 
attestar  a  dor  com  as  soas  lagrimas. . . . 

Elnrei  D.  Pedro  habitava  os  quartos  de  Ma 
primeira  nralher.  As  custosas  armaoics,  q«e 
tantos  8cirtx)s  cassaram  ao  iitebie  secretario  As- 
tooio  €avide ,  ainda  eram  os  mesmas ;  os  mor 
veis ,  as  guiuraiçdes »  as  tapeigarias ,  «  as  aiea- 
tiias,  disfiostns  ao  .gosto  àã  primeira  fsiaha^ 
ceaservaram-se  como  as  eUa  deixara ,  aervindo 
de  memorias  á  magw  do  monarefaa,  magua fiie 
tolvez  (>r«cipltott  os  dias  da  segfànià  «pposa,  D. 


Digitized  by  VjOOQIC 


M  n.  Joio  V.  123 

•ibría  de  NewbHrg»^  inconsdivri  for  v£r  a 
ionriíra  4e  um  septtkíre  mais  poderaaa  no  co- 
raçtío  ée  seu  matiifo  do  que  a  lat  éo»  Hidbs 
oNÍMt  dnejoflDS  do  rànar  aobre  quem  não  que- 
ria ser  «aoravo  deiks. 

Soriam  quatro  iMMriB  do  dia  4  de  daBembro 
de  1704.  Ò  teaifK)  aio  esteva  chuvoso ;  mas 
«Ofmva  um  vealD  húmido.  A  manhft  tiaba  sido 
traMÉPosa  para  o  moaaTofaa ;  o  despacho  oom  os 
aecf«tario6  de  eatedo ;  a  ctonfiBraocia  com  o  mi- 
iiiitm  iagloi  lord  icÁm  Methweo  ^  e  o  exame 
de  algitns  papeis^  oeeaparam  eWeí  «té  á  orna 
hova ,  <em  que  por  costasie  inalterável  se  assen- 
tava á  mesa  de  jantar.  iSua  mageMsde  repetia 
muitas  v«tes  «  ^nde  aMxima  de  qee — csn  nto 
se  >eoinen|Ío  bem,  por  ierçe  se  haria  de  trabalhar 
«iai;«^e  OMipria-^a  com  o  appetite  ctrioso, 
que  «ntSo  deorava  as  qualidades  de  algons  prín- 
cipes reinantes,  tomando^w  sem  disputa  os  prí- 
moiros  gastroaomos  dos  sees  estados. 

A  «escolha  e  a  qoaatidade  dos  menjares ,  na 
vaal  ucharia  de  Akantara ,  não  deificavam  nada 
a  d«»qar;  o  p6de*^  crer^  que  a  Jaminta  ima*- 
^m  da  dieta  fiigiria  honH)rísada  ^  se  penetrasse 
na  «casa ,  acede  o  filho  de  D.  Joio  iV  honrava 
«  nnemorta  celíttiiria  dos  ViteHios  em  cc^píooos 
«ecrificíMk 


Digitized  by.VjOOQlC 


124  A  M6GIDADB 

D.  Pedro  II  tinba  habites  enraizados/  D^s 
mais  firmes  e  elegantes  cavalleiros  do  seu  tempo, 
nutria  pelos  exercícios  equestres  um  goato  deci- 
dido, que  nem  a  idade  nem  os  pesares  podiam 
diminuir.  Apezar  do  conselho  dos  médicos,  e  dos 
incommodos ,  cada  vez  mais  frequentes ,  que  lhe 
minavam  a  saúde,  apenas  acabava  de  jantar, 
sua  magestade  descia  ao  picadeiro,  e  entreti- 
nhanse  dims  e  três  horas  a  cavallo  no  meio  do 
applauso  dos  camaristas  e  da  «admiraç&o  dos  pi- 
cadores ,  porque ,  sem  lisonja ,  era  um  mestia 
consummado.  Quem  o  conhecia ,  não  ignorava 
que  a  melhor  occasião  de  alcançar  delle  qual- 
quer mercê  era  á  entrada  da  missa  e  á  sabida 
do  picadeiro.  Talvez  nSo  houvesse  exemplo  de 
ninguém  achar  a  munificência  do  príncipe  infe- 
rior â  sua  devoro  ou  á  sua  satisfoção ,  se  tinha 
conseguido  emboscar-^  nas  proximidades  das 
duas  portas  da  fortuna. 

Neste  dia ,  o  mesmo  em  que  passou  a  confe- 
rencia de  Sebastião  de  Magalhães  com  o  seu  vi- 
sitador, o  sr.  D.  Pedro  fizera  prodígios,  e  re- 
c6lhia-se  radioso.  Á  porta ,  sua  magestade  achou 
o  padre  confessor.  Sacudindo  com  a  vara  o  f6 
que  lhe  cubria>  as  largas  e  pezadas  botas ;  con- 
chegando a  bella  casaca  de  picador ;  e  compondo 
os  punhos  e  a  tira  de  renda  amarrotadas ,  o  mo- 


Digitized  by  VjOOQIC 


DE  D.  JOÃO  V.  125 

narcha  sorríu-se ,  e  deu  a  mão  a  beijar  ao  menr- 
toT  espiritual.  O  jesuíta  poz  o  joelho  env  terra , 
e  murmurou  em  toz  submissa  algumas  supplicas, 
que  tiveram  favorável  acolhimento.  Depois  disto, 
el-rèi  seguido  do  primeiro  camarista  de  semana 
entrou  no  paço ,  e  chamando  o  seu  guarda-roupa 
foi-se  mudar  de  trajo. 

A  casa ,  em  que  D.  Pedro  II  expedia  o  des- 
pacho e  dava  audiência ,  era  a  antiga  casa ,  cha- 
mada do  cr  Estrado  »  toda  forrada  de  damasco 
escarlate  com  sebre-portas  e  janellas  de  brocado, 
ornadas  de  guarnições  de  oiro.  O  bofete  mar- 
cbetado,  cuberto  de  um  panno  de  veludo  azul 
com  os  escudos  reaes  nas  pontas,  servia  de 
carteira  e  carregava,  além  da  immensa  escre- 
vaninba  de  prata,  com  grande  quantidade  de 
livros  e  papeis.  Um  crucifixo  alto  de  marfim  le- 
¥antava-«e  no  t6po  da  sala ,  defronte  da  cadeira 
do  monarcha :  vinte  laminas  grandes  de  bronze, 
em  molduras  pretas  entalhadas ,  com  bellos  pai- 
néis de  fina  pintura ,  enfeitavam  as  paredes.  Se- 
guia-se  para  o  interior  a  casa  do  «  Oratório  » 
com  sobre-portas  e  guarnições  de  Ihama  carme- 
sim repassada,  abrindo  duas  sabidas  para  a  <x  gal- 
leria  da  rainha»  armada  de  telas  amarellas. 
Era  por  esta  gaHeria  que  se  passava  da  casa  do 
«Estrado  »  e  do  «  Oratório  »  para  a  alcova  e 


Digitized  by  VjOOQIC 


quartos  partíciílares  da  el-4:eL  Segundo  a  eti- 
qu/cita  Pão  lum  mais  cadatras  da  ^laoi  a  appíi- 
ratoM  iK^trona  de  veludo  franjado,  aoodâ  jpre- 
sidia  o  s^^berano,  e  assentos  de  doimasco  roso 
sem  franja  oem  espaldar,  em  qne  os  principes 
assistiam  «o  conselho »  quando  eram  chamados. 
Os  secretários  de  estado  despachavam  em  pé; 
ou  de  joelhos  nas  coxins,  collocados  em  volta 
do  bofete;  e  os  conselheiros  de  estado  davam 
o  seu  voto  em  bancos ,  dispostos  em  scmieir- 
culot  da  ambos  os  lados  da  cadeira  reaL 

Antes  da  «  casa  do  Estrado  »  havia  mais  três 
salas  exteriores:  —  a  sala  dos  Tudescos,  aonde 
estava  a  guarda  alemã;  —  a  saki  da  tocha » 
aonde  o  porteiro  da  canna ,  revestido  da  capa  a 
insignias  do  seu  cargo ,  cumpria  as  «rdens  de 
sua  magestade  — e  a  sala  do  doceU  immensa 
quadra  forrada  de  preciosas  tapeçarias  t  repror 
sentando  a  vida  do  sábio  de  Israel ,  o  rei  Salo- 
mão. Estas  salas  davam  entrada  umas  |iara  as 
outras,  e  abriam  as  estreitas,  a  altas  janellas 
para  a  bella  varanda  de  pedra,  que  deitava  so- 
bre o  Tejo ,  costeando  esta  ala  do  palácio ,  ou 
quinta  real.  Da  casa  do  «  Esteado  »  ía  uma  es- 
cada particular  até  ao  jardim ,  fechado  da  gros-^ 
SOS  muros,  a  armado  com  a  impertinente  sy-* 
metria,  que  era  impreterível  naquelle  tempo. 


Digitized  by  VjOOQIC 


BB  ».  mko  V.  1X7 

Hm  kMCa  depoíi  de  imitar  da  picaria,  D. 
PadfO  II«  preoaáMÍo  ]ido  manfuei  de  MartaNa , 
sea  gentil-honieiii  da  camará,  e  por  dois  pa- 
geii$  em  corpo,  Totidos  de  preto,  entrou  na 
caaa  do  c  Eatrado.  »  Os  pagens  correram  o  re^ 
porteira,  e  ficaram  um  didEronte  do  ontro,  guar- 
dando a  porta,  que  abria  para  a  saia  do  do- 
cdL  O  BMirqiiec^  de  pé,  é  dota  pasaos  atras 
da  cadeira  da  lett  amo,  esperava  silencioso  as 
suas  ordens. 

A  alegria  do  rei  tiniia  desapparectdo.  Um 
veu  de  melancolia  reflexiva  entríatecia*tbe  o 
roato^  cuja  expieasio  era  severa  e  carregada. 
D.  Pedro  II ,  robusto  de  corpo ,  e  na  idade  de 
cíncooBta  e  oito  annoa,  ainda  promettia  a  quem 
o  coÉkemphTa  as  forças  extraordinárias  de  que 
a  natureza  o  dot&ra.  De  elevada  estatura  e  ma- 
gestoaa  parte^  oa  ottioa  pretos,  grandes,  e  ras- 
gaA)t,  tiidiam  as  sobrancelhaa  bem  arqueadas  e 
escuras;  antes  da  moléstia,  que  o  consumia, 
bcibavam  cheios  de  vivezn ;  e  agora  ainda  eram 
faceta  de'  animar  se  alguma  repentina  comoção 
lhe  vinha  inflammar  o  animo.  Trigueiro  e  de 
pouca  còr,  o  beiço  inferior  bastante  grosso  dea- 
cahia  como  o  de  seu  pae ;  e  um  modo  áspero 
de  encarar  as  pessoas  que  o  desgostavam  des- 
pedia os  importunos.  Â  cabelleíra  descia  em  três 


Digitized  by  VjOOQIC 


128  A  MOCIDADE 

cachos  grandes  de  anneis  até  aos  bombmí^  e 
lambendo-lhe  a  testa,  dava  anta  sombra  trister 
á  phisionomta ,  já  de  si  pezada.  Sua  tnagestade 
appareceo  vestido  com  a  maior  simplicidade  ^ 
para  nAo  diz^  negligencia ;  e  distifthído  n^n 
tinha  virto  o  seu  camarista  de  semaúa,  qae  es- 
perava iomovel  qiie  os  olhos  de  el**rei  o  des- 
cubríssem,  tendo  entrado  algons;  instantes  depois. 
O  monarcha  acordou  da  sua  meditado,  e  ex-^ 
balando  um  suspiro: 

—  «  €oDde  »^— disse  elle  » — ^  chame  o  pa- 
dre confessor.  »  : 

—  Cl  S.  reverendissuna  espera  as  ordens  de 
V.  magestade.  « 

—  «  Que  venha !  E  o  conde  de  Pombeíro?  » 

—  «  Entrou  agora  mesmo  mt  sdb  da  todia.  v 

—  «  Va-o  buscar.  »  . 

Momentos  depois,  o  padre  Sebastião^,  saindo 
da  casa  do  a  Oratório ,  »  e  o  capitão  das  guar- 
das ,  conde  de  Pombeiro,  entrando^  pela  sala  do 
docel,  incUnavam-se  beijando  a  mão  de  ei-r^. 

D.  Fedro  II  olhava  para  o  jesnita  e  pareci» 
conkariado  da  seu  silencio.  Entretanto,  disfar- 
çando na  frieza  do  tom  o  grande  interesse  da 
pergunta ,  abriu  a  «conversai^ak) ;     ;    « 

—  «  Esteve  com  S.  alteza^  padre  Sebastião^?  t» 
—  interrogou  elle. 


Digitized  by  VjOOQIC 


HK  D.  XOÃO  V.  1^9 

^  «-«tt  Saberá  V.  mageslade  que  sim.  n 

-  -<—  «  Cofkimuoicou-lhe  as  ordens  de  seu  pae  T  » . 

—  «  Obedeci  a  V.  magestade.  » 
•-*-«  K  então?  » 

--^.«.S.  aUeasa  nio  se  dignou  responder.  » 

— "U  Ah!  » —  exclamou   o  monarcha  enru- 
gando a  fronte  e  com  um  grande  brilho  na  ?ista. 
—  «r  S.  alteia  não  deu  resposta?  » 

— «  Nenhuma,  dsolutunente,  meu  senhor.  » 

^— «  Ayisou  o  príncipe  de  que  ordenei  que- 
assista  hoje  ao  consdbo  de  estado?  » 

— «  Cumpri  as  ordens  dè  El-reí.  i> 
«  E  o  que  disse?  » 

— «  Que  estando  preso  não  podia  sabir  sem 
umt  ordem  expressa  de  el-rei  seu.  pae.  » 

-^«  Muito  bem !  S.  alteia  não  disse  mais 
nada  ?  i» 

' — «Mais  nada.  Afaaixou-me  de  lere  «  cabeça, 
e  virou-rme  as  costas. 

—  « .  Conde  de  Pombeiro  »  —  disse  D.  Pedro, 
virando-se  para  o  seu  capitão  das  guardas — 
«  daqui  a  meia  hora  irá  cpm  o  inCotute  D.  Fran- 
cisco, em  um  coche  da  casa,  aos  paços  da  Bi- 
beira ,  e  debaixo  de  prisão  condusirá  ò  príncipe 
real  á  minha  presença.  O  iirfante  recebeu  as 
ordens.  Pôde  retir«r-se.  Padre  Sebastião,  fi- 
que! » 

T.  H  9 

Digitized  by  VjOOQIC 


130  ▲   MMIDAOE 

— «  V.  laageflkade  ]Mnutte?  Qnem.  ha  de 
receber  a  espãa  de  S.  alteia  leal?  » — per-- 
gantou  o  Conde  de  Poiabeiro  miuto  péllido. 

—  a  Ninguém.  Dirá  o  conde  ao  príncápe  que 
el-rei  ordena  que  lha  entregue  elle  próprio.  » 

Apenas  nda  o  capitão  das  guardas ,  D«  Pedro 
II  le^vantou^^e  com  ÍBipeto «  e  olhando  para  o 
seu  confessor ,  exclamou : 

—  «Ê  poneciso  um  exemplo!  Ou  S.  alte» 
dsedece  e  tenho  fiflio ,  ou  maado  pre^rar  na 
torre  os  quartos,  em  que  Islleceu  o  príiKápe  D. 
Theodosio.  Nio  hei  de  conseirtír  que  se  levante 
uma  creança  contra  a  minha  vontade,  e  con- 
trarie projectos  úteis  á  sua  gloria,  e  á  fS^icidade 
destes  reinos.  .  .  .  Marquei,  vi  a  casa  de  O. 
Luiz  de  Athaide ,  e-  diga-lhe  dè  ardem  de  el- 
rei  ,  que  venha  amanhã  sem  falta  ao  paço ,  de- 
pois da  missa.  Se  D.  Luiz  pergwtar  o  motivo, 
deve  responder  que  é  segredo  de  estado.  Estas 
loucuras  hão  de  acabar  por  uma  vez. ...  » 

—  a  V.  magestade  permítte  uma  observaçlo  ?  » 
—acudiu  t)  confessor,  logo  que  o  marques  de 
Marialva  se  ausentou. 

—  «  Diga. » 

-~«(  SiMqpeito  (pie  os  amores  attriiiaidos  a  S. 
alteza  são  fiâlsos.  » 

—  «  Ah !  » 


Digitized  by  VjOOQIC 


k  MOCIBADti  131 

**-^«  80Í  de  boa  fonte  que  o  príncipe  meu 
senhor  nem  conhece  a  D.  Catharina  de  Athaide:  » 

—  «  infoJMflffam  tnal  o  padre! . . .  »  —  ex- 
dainoii  el-rel  colérico.  — «  S.  alteza  por  causa 
detié  é  que  liie  desobedece,  e  eu  não  quero 
quem  ííieite  resistências  ás  minhas  ordens.  D. 
Catharina  ha  de  sahir  de  Portugal,  ou  ha  de 
professar  dentro  de  três  dias. . .  Veja  se  che- 
gou Diogo  dé  Mendonça,  ou  se  estará  no  paço 
o  vedor  FemSó  de  Sousa.  » 

Eái  preciso  que  a  irritaçSo  do  monarcha 
fosse  grande  para  tractar  com  tanto  desabri- 
mento  o  seu  confessor.  Esle,  vendo  os  ares 
reVèltos,  encolheuHse  na  ádà  roupeta,  e  sahiu 
de  Goetes  viradas  para  a  ^fta ,  com  três  pro- 
fundes cortesias,  que  ínais  pareciam  genuflie- 
xSes  humiVssimas.  Depois,  nietténdo  as  mãos  na 
manga,  firaetou  de  procurar  o  vedor  para  lhe  ser- 
vir de  para-raios,  visto  estar  eminente  grande 
teiâpéstade  no  animo  dé  el-rei.  »> 

8.  tíiagestade  achou-^  então  completamente 
só.  Ia  escurecendo ,  è  tendo  mandado  vir  lur,  e  ' 
olhado^  impaeièàte  para  a  porta  umai  j^ucas  de 
vezes ,  abriu  umr  liví^  ét  capa  de  pergaminho , 
onde  égtavom  íãnçadas  as  -^c^n*»  êa  vedoría  — 
e  cometeu  *  examinar  os  castellos  de  âlgarism^  - 
que  lhe  enchiam  as  paginas,  líestes  exercícios  -^ 

Digitized  by  VjOOQIC 


132  A   MOaDADB 

arithmeticiys  o  yeio  ainda  encontrar  o  Yedtr  ía 
caw  real. 

D.  Pedro  encarou  severamente  o  yeiho  fidalgo, 
deu-Ihe  a  mão  a  beijar  com  firieaEa ,  meneaad»  a 
cabeça,  e  franzindo  o  sobrolho.  Ás  contas,  que 
tinha  diante  de  si ,  fauam  o  eífeito  de  um  caus* 
tico ,  exacerbavam  a  sua  irritação. 

—  <x  Assim  não.  admira ,  n!lo  ha  dinheiro  que 
cheguei — gritou  el*-rei,  batendo  no  livro  com 
o  punho  fechado.  —  Fernão  de  Sousa,  fazem  da 
minha  casa  um  pinhal ,  todos  me  roubam,  e  ta 
deixas  roubar. » 

—  «  Saberá  v.  magestade. . . » 

.  —  «  Sei ,  digo-te  que  sei !  Brada  ao  ceu !  Lan- 
çam-me  de  contas,  sabes  quanto?  Seis  contos  e 
oitocentos  mil  réis  este  anno.  Mas  de  qué ,  santo 
Deus,  de  quê?  Da  ucharia  da  rainha ^,  que  Nosso 
Senhor  chamou  para  si.  Depois  de  Deos  ser  ser- 
vido levar  a  s.  magestade,  depois  de  morta, 
€usta-me  tanto  ou  mais  que, durante  a  aua  pre- 
ciosa vida. . .  Fernão  de  Sousa ,  ha  quantos  an- 
nos  falleceu  a  rainha,  minha  senhora?» 

.  —  «  Em  4  de  agosto  fiassado  fez  sete  annos. » 
—Respondeu  placidamrate  o  vedor. 

—  «Para  quem  é  então  a  uçharía?. .  Qaam 
me  come  tantos  contos  de  róis,  quem  me  saqueia 
este  dinheiro  enorme?» 


Digitized  by  VjOOQIC 


M   D.   JÒAO  V.  133 

•^  u  Ninguém ,  meu  senhor. » 
--^«Ninguém? — ^exclamou  o  monarcha  ab- 
lorto  com  o  absurdo. — Ninguém^  dizes  tu?» 
— « Informe-se  v.  magestade. » 
-^(xMatam-se  as  aves?» 

—  a  Sim ,  meu  senhor. » 

— «  Compram-se  os  mantimentos  ?  » 

—  «  Compram ,  meu  senhor. » 

—  «Em  fim  gasta-se  o  dinheiro,  perto  de 
sete  contos  de  réis?  » 

—  «  Sim ,  meu  senhor,  i» 

—  «  Agora  O'  ladrSo !  Quem  é  que  me  devoí^a 
tanto  pombo  e  tairto  doce?  » 

—  «O  ladrSo ? — balbuciou  pasmado  o oificial 
mór  da  casa.  —  O  ladrão  só  se  é  a  real  munifl- 
cencia  de  v^  magestade. » 

—  «A  minha  munificência?  —  gritou  o  rei 
leTaataodo  as  màos  ao  ceu^  cheio  de  assombro. 
--^  Atreves-te  a  dizer  que  eu  sou  o  ladrão  da  mi- 
nha casa?» 

—  «V.  magestade  não  se  rouba,  deixa  gastar. » 
-^«Eu  deixo  gastac! . .  »  —  repetiu  o  prín- 
cipe ,  cujos  braços  descahiam  frouxos  de  pasmo. 

— «  É  a  verdade ,  senhor.  Todos  os  dias  tra- 
balham as  cozinhas  e  se  põem  as  mesas. » 

—  a  Como  no  tempo  de  s.  magestade  a  rai- 
nha?— atalhe^;  D.  Pedro  irónico. 


Digitized  by  VjOOQIC 


134  A  MOCIDADE 

—  d  Exaetapieote ;  e  todos  os  di«s  k  hora  do 
estilo  o  trínch^ate  e  o  copeifo  levant^pn  qb  pra- 
tos e  mandam. .  • » 

—  «Que  ^  levem  para  onde  elles  querem? 
—  gritou  o  monarc)ia.^ — Isso  esperava  eu.» 

—  a  Perdoe,  v.  magestade !  Mandam-noa  con- 
sumir, .., » —  Refriicou  o  vedor  com  um  gesto 
sublime. 

D.  Pedro  II  apertou  as  mios  na  cabeça  sem 
iizer  palavra. 

— '( É  o  costume  da  casa  real.  —  proseguiu  o 
official  mór  serenamente. — Em  quanto  el-rei 
não  ordena  o  contrario  continua  tudo. . .  ocdf- 
nados  f  mesa ,  e  despezas  avulsas,  i» 

O  vedor  fallava  com  a  grandeza  de  ahna  de 
um  creado  temente  a  Deus  e  cônscio  d^  seus  de- 
veres. O  monarcha  duvidava  se  tinha  diante  de 
si  um  velhaco ,  ou  simplesmente  um  idiota. 

—  <cE  as  rações?» — perguntou  o  soberano 
com  um  sorriso  contrafeito. 

—  «  Dão-se. » 

—  «  E  as  damas  ?  » 

—  «  Recebem  todas. » 

—  «  Sem  servirem !  E  os  creados  da  casa  da 
.rainha  ?  » 

—  a  Recebem  todos.» 

—  «  Fazem  muito  bem !  Não  morreu  nenhum?  » 


Digitized  by  VjOOQIC 


BB  B.  i0ia  V.  13l5 

-~«  Morreram  três.  O  dinheiro  desses  é  iiqp- 
plicado  em  missas  pela  soa  alma.  ^ 

—  «E  eu  pago  esta  cera  de  ruins  defonc- 
losT» 

— «  V.  magestade  paga. » 

—  a  Agora  quero  a  rasào.  Senhor  vedor,  sabe 
que  isto  nio  ha  de  sahir  barato  a  alguemi^  já  que 
me  custa  a  mim^tSo  caro?» 

-—«A  rasão  é  aão  ter  subido  ordem  de  Ei- 
reí  para  aealmr  o  real  estado  da  casa  da  senhora 
rainha. » 

— «Mas  Mleceu  ou  iiSos.  magestade  ha  sete 
aQMsT» 

•*--*-  €  Menos  para  a  sua  real  casa.  L&  n8o  consta. » 

— Aonde  aprendeste,  Fernão  de  Sousa?»  — 
exclamou  D.  Pedro  furioso. 

—  «No  ^Ilegio  de  Santo  Antão,  saberá  el- 
rei.  —  acudiu  o  vedor  com  muita  innoceneia. 

— ' aEn8Ínaram4e  bem !  r^ 

-^«  A  respeitar  e  amar  eWei,  sobre  todas  as 
coisas,  depois  de  Deus.  ^ 

— «Donde  a  tua  sabedoria coiiige  que  me  de- 
ves arruinar?» 

—  a  Meu  senhor,  os  -sobejos  do  rei  são  a  ale- 
gria do  pobre.  )> 

—  «  Grande  máxima !  £  enfâo  ?  » 

— «  E  então ,  como  estes  seis  contos  e  oito- 


Digitized  by  VjOOQIC 


13i6  A  MQCIBAIUK 

centps  mil  réis  sustentam  dusentas  luoilías,  eo- 
tendi  que  v.  ma^gjsstade  de  propósito  fechava  et 
olhos*» 

—  «Eu  nomeei-te  vedor,  ou  esmoler,  Femio 
de]  Sousa?» 

—  «Vedor,  saberá  v.  magestade. » 

—  a  Ora  bem-  De  hqje  em  diante  ficarte  en- 
tendendo que  não  fecho  os  olhos ,  mas  os  abra. 
Quero  um  risco  nas  reaes  cozinhas,  e  oirtro  maior 
se  é  possivel  nessas  mesas  e  apparadores. , .  Tens 


Fern&o  de  Sousa  extasiou  a  vista ,  e  levou  o 
dedo  indicador  á  boca  em  ar  de  suspenAo  men- 
tal Era  evid<ente  que  lhe  parecia  monstruoso  e 
inaudito,  que  o  soberano,  por  amor  de  sete  con- 
tos de  réis,  fizesse  tanto  arruido,  e  desse  ordens 
tão  rigorosas. 

D.  Pedro ,  da  sua  parte ,  estava  perplexo  en- 
tre o  riso  e  a  ira.  A  longa  e  secca  figura  do  seu 
vedor,  perfilada  e  satisfeita  de  si,  respondendo 
sobre  as  mais  estúpidas  prodigalidades  .com  o 
aprumo  do  homem  seguro  de  ter  cumprido  re- 
ligiosamente o  seu  dever,  era  um  espectáculo  tão 
original ,  tão  esquisito  e  inesperado ,  que  o  mo- 
narcha .  não  se  podendo  conter  mais ,  encostoo- 
se  á  cadeira,  e  desafogou  em  frouxos  de  estron- 
dosas gargalhadas.  Este  accesso  de  hilaridade  pas- 


Digitized  by  VjOOQIC 


M  D.  Jolo  r.  137 

80Q  por  cima  do  lembhnte  do  official  mór  da 
casa,  deixando-o  ciomo  o  aehava.  Fernão  de  Sousa 
continuava  firme  na  espasmódica  e  engomada  gra- 
vidade, incapaz  de  permittir  que  um  só  dos  mús- 
culos da  sua  pbysionomia  se  desafinasse,  descom- 
pondo a  solemne  e  tesa  importância  da  etiqueta. 
— «Porque me apparecem  estas  contas  no  fim 
de  sete  annos?  —  perguntou  el-rei. 

—  «Todos  os  annos  rem;  mas  v.  magestade 
gó  hoje  ae  dignou  examinal-as.  x> 

—  «Ah I  E  a  minha  approTação ? » 

—  «Entende-se,  que  s.  magestade  a  dè, 
quanda  íOo  censura.  » 

— «Bem!  Más  não  sou  informado  da  aiM^e- 
aentaçio?. .» 

—  «  El-rei  sabe  tudo ! » 

—  «Entfto,  el-rei  até  advinha,  Fernio  de 
Sousa  7  » 

-*-«  NSo,  meu  senhor.  Mas  o  costume  é  nllo 
se  dizer  nada-  a  v.  magestade  antes  que  se  digne 
perguntar. » 

—  «Vamos !  Quanto  rendem  as  jugadas  e  di- 
reitos reaes  de  Cintra?» 

—  «  Um  conto  quatrocentos  mil  réis.  » 

—  «  E  o  pescado  e  os  direitos  de  Aveiro  7  » 

—  «Setecentos  e  quinze  mil  réis,  nos  últi- 
mos sete  mezes. » 


Digitized  by  VjOOQIC 


138  A   KOCIBAra 

—  «  Agora  a  despessa  1  •  •  O  que  tke  íitenun  ? » 
-^«Distribuíram-^  em  esmolas  aos  confeii- 

tos  pobres. » 

—  «  Admirável  1 . .  E  depois  ?  » — exclamou  o 
principe  enfadado. 

— « Depois^  ifuiis  nada.  Eram  as  ordens  de 
s.  magestade. »  —  replicou  o  vedor,  já  nm  pouco 
tímido. 

--*« Eu  taes  ordens  n&o  dei  \  d 

—  «Deu-as  s.  magestade  a  rainha,  de  sau- 
dosa memoria ,  e  é  o  mesmot,  como  eKrei  sabe. 
Eram  relidas  da  sua  casa% » 

— «  Famoso !  Em  todos  es  negócios  da  veda- 
ria ouve  primeiro  a  Diogo  de  Mendonça,  meu 
secretario  das  mercês,  e  entende-te  com  elle.  £a 
passarei  as  ordens.  FernSo  de  Sousa,  aeho4e  li- 
beraldemais:  e  nio quero ârruinar^me  por  causa 
da  etiqueta ,  como  um  dos  reis  catholicos  soffo- 
cou  ao  seubrazeiro  por  falta  decreado^  que  lh'o 
tirasse. . .  percebes  ?  » 

* — «V.  magestade  permitte?» 

—  d  Falia  ! » 

— «  Posso  saber  se  incorri  no  real  desagra- 
do ?»  , 

—  «Para  que?» 

—  «Para  me  retirmr  ás  minhas  tenras.» 

—  «  Não !  Mas  eu  quero  saber  do  que  é  meu, 


Digitized  by  VjOOQIC 


m  D.  JOÃO  V.  139 

e  tu.  Dão  salies  do  teu,  nem  do  «Ibeio ;  por  tanto 
o  secretario  das  mercês  te  «fadará. .  •  Âh,  Diogo 
de.  Mendonça,  sabes  uma  novidade?  Soa  mages- 
tade  a  rainha  não  falleceul  Pergunta  ao  vedor 
.  Fernão  de  Sousa  ?  )> 

Diogo  de  Mendonça  entrava  neste  momento ; 
e  ouvindo  el-rei  dirigir-*lhe  esta  objurgatoria  sor- 
siu-se  com  a  metade  do  rosto,  que  tinha  virado 
para  elle ,  dando  um  ar  magoado  á  outra  me- 
tade, e:(posta  &  vista  do  fidalgo.  Para  não  res- 
ponder logo,  o  astuto  ministro,  quebrando^^  de 
corpo  para  o  lado  esquerdo^  foi  a  pasyos  vagaro- 
sos ajoelhar-se  diante  de  eKrei  e  beijar*-Ibe  a 
npjo* 

—  «y.  magestade  ordena  que  me  retire?» 
—  perguntou  o  vedor  muito  vermelho. 

—  «  Não,  espera ! » ..Diogo  de  Mendonça^  como 
te  disse,  s.  magestade  a  rainha  não  morreu. » 

—  «Por  mais  que  deseje,  não  posso  ter  a 
fortcina  de  entender  a  v.  mogesitade.  i>  —  repli- 
cou o  secretario ,  furtando-se  ao  encontro. 

— « £  verdade.  Acabo  de  pagar  sete  contos 
de  réis  da  sua  ucbaria  neste  anno ,  pelas  contas 
do  meu  vedor. » 

?—  u  A  munificência  de  v.  magestade  é  infi^- 
nita.  O  que  são  sete  contos  de  réis»?  Não  é  el- 
rei  o  paç  de  seus  vassallos  7  » 


Digitized  by  VjOOQIC 


140  A   MOCIDADK 

O  vedor  respirou;  O  ministro  tomara  o  i6u 
partido.  D.  Pedro  8orría--se. 

—  (( Parece-me,  que  és  do  Toto  do  vedor,  dei- 
xas pdr  a  mesa  aos  mortos  para  engordar  os  vivos. » 

—  «Eu,  senhor?!  cuidei  que  v.  magestade 
fallava  jocosamente.  Pois  ha  quem  roube  a  v. 
magestade ,  e  nio  esteja  castigado  ainda  ?  b 

—  «Diogo  de  Mendonça,  ninguém  me  rouba. 
Sri>erás  que  o  ladrtío  sou  eu. » 

—  «Agora  nto  percebo;  perdoe  v.  mages- 
tade !  Pois  el-reí  que  é  a  si^bedoria  mesma. . . » 

—  «Eu  me  explioo.  Nilo  se  expediu  ordem  para 
acabar  o  real  estado  da  casa  da  rainha ,  qoe 
Deus  tem ;  e  FernSo  de  Sousa,  meu  vedor,  de- 
cidiu que  a  despeça  devia  continuar ,  como  em 
vida  de  s.  magestade. » 

—  «Por  Deus!  e  decidiu  bem,  perdoe  v. 
magestade. » 

—  «Decidiu  bem?» 

—  «De  certo.  A  obediência  é  louvave).  O  ve- 
dor não  teve  ordens. . . » 

—  «Mas  quem  é  então  o  culpado,  porqqe  sem 
duvida  alguém  teve  a  culpa?» 

—  «  Quem  lhas  não  communicou ;  mas  a  be- 
nignidade de  V.  magestade  ha  de  valer-Uie. » 

— «  Visto  isso,  Roque  Monteiro  deve  á  minha 
casa  sete  contos  de  réis  por  anno?  . . » 


Digitized  by  VjOOQIC 


BC  P.  iOÃÔ  V.  141 

.  >^«Pois  eu  disse  que  era  Boque  Monteiro? 
Perdoe  t.  magestade  \  Eu  ndo  disse. » 

-"-««Que  em  sete  annos  ísacem ?»-^ prose- 
guíu  el-rei ,  figurando  nfto  oavir.  . 

-^«Quarenta  e  nove  contos  justos.» — con- 
cluiu o  vedor  com  a  sua  inevitável  certeza  de 
calculo  e  obedecendo  á  interrogação  da  vista  de 
s.^  magestade. 

Diogo  de  Mendonça  fingia-se  abismado*  O  seu 
rosto  fez-^e  a  mascara  da  tragedia  á  forca  de  ex- 
pressão dolorosa.  Ajoelbando  aos  pés  de  el-rei 
com  duas  lagrimas  quasí  visíveis  nos  olhos  e  a 
mais  artistica  rouquidAe  na  voi,  o  secretario  das 
mercês  [exclamou : 

-^«V.  magestade  é  clemente!  Foi  incúria 
delle,  mas  quem  é  perfeito,  quem  não  as  tem  ? 
Faz-se  meu  inimigo ,  bem  sei :  mas  nSo  impcMrta, 
é  bom  ministro.  Dizem  mal?  Também  de  mim ! 
Deus  sabe.  Não  os  acredite  v.  magestade.  Que- 
rem persuadir  que  elle  se  avença  com  os  com- 
pradores da  casa  real  e  recebe  alças  dos  estran- 
geiros?.  .  por  Deus !  Ponho  as  mSos  no  fogo. . . 
é  calumnia.  o 

—  «  Ah ! »  —  grHou  el-rêi,  ouvindo  os  capitu- 
les accusatorios  pela  primeira  vez. 

—  «  Nâo  Ifae  dé  V.  magestade  ouvidos.  —  ex- 
clamou o  defensor  zeloso,  r^  Ignoro  a  raifto 


Digitized  by  VjOOQIC 


142  A  HOCIBABE 

per  qoe  elle  m^  quer  ihal :  eu  nunca  lho  déte^r ; 
mas  isso  quiHfem?  A  verdade  deve^e  dízèr.  tio- 
que  Monteiro  é  devoto  e  honrado.  Até  lhe  le- 
vantanoL  que  não  ouve  missa. . .  parvos ! » 

—  «  Mátt  catholico ,  an  ?  »  —  acudiu  D.  ^Pe- 
dro, sevCTamente. 

—  «Nao  acre^e,  meu  senhor.  Elle  tomou 
capellão. . .  para  a  família ;  e  ouve-a  nmito  cedo*! 
N&o  é  hereje ;  nada  disso  tem !  Ah !  a  inveja  é 
feia.  N&o  me  imputaram  a  extori^  de  um  cru- 
cifixo de  mar&n  feito  na  índia,  dizehdo  que  desde 
a  peanha  até  ao  resplendor  todo  elle  «ram  [ie- 
dras  preciosas? . .  pobre  de  mim ! » 

—  «E  então?» 

—  «  N8o  era !. .  E  os  Velhacos  sabiam-no.  Salva 
a  reverencia  de  tSo  devota  imagem,  era  um  bocado 
de  marfim  bem  tosco  dé  lavor,  e  roido  dos  vef- 
mes. . .  Indaguei  quem  serik  o  pae  da  noticia. . » 

—  «E  deseubristes  o  teu'  Anito?» — insis- 
tiu o  monarcha ,  rindo^se. 

—  «Foi  tao  felir  quesini!  Mas  sem  ordem 
expressa  nSo  posso  declarar. . .  )i 

—  «  Vamos  ! » 

—  «V.  magestade  manda?» 

—  «Mando.» 

—  «Foi  Roque  Monteiro ^  coitado !  Sem  mal- 
dade. .  .por  desfastio. » 


Digitized  by  VjOOQIC 


DE  D.  JOÃO  V«  143 

—  cEitu  a  dafentM-o7! .  .E  áqpois?)» 

— 4(€oQVidei-o  para  almoçar,  e  mais  is  três 
pessoas  que  o  tinham  ouvido. » 

—  «I  Havia  de  ser  divertido. . .  Fallaste-lbe  do 
Santo  Cbristo?» 

— <t  Obríguei-o  adner  maravilhas  deite!  Tam-  ^ 
bem  não  linha  outro  remédio :  os  outros  estavam 
alli.  ]» 

—  «Nâo  foi  méu.  Que  ínafô?» 

—  «Tra^i-lbo.  Não  quiz  que  oln^a  tfio  pre- . 
ciosa  ficasse  em  outras  nÂos. » 

-<-*«£  €omprou-o?  x>  —  gritou  o  fNrincipe,  rindo . 
muilo. 

-^ « Que  remédio  l  EUe  até  é  que  lhe  fez  o 
preço,  ji 

— r«Sem  vêr?» 

—  «Quem  louva  estima.  Gustou-lhe  trèsentos^ 
mil  réi^.  E  salva  a  devoçfto^  o  objecto  nSo  vale 
dez :  duvido  que  mos  dessem.  i> 

— «Exodlente,  Diogo  de  Mendonça!» 

—  flc  Pedirei  a  v.  magestade  q  graça  de  no- 
tar que  não  disse  nada  em  desabono  deHé. » 

—  «Pelo  contrario I  e  iaz-te  honra.  Fernão- 
de  Souaa,  as  eòntas  da  vedoria  serão  despachadas 
por  Diogo  de  Mendonça.  Podes  «ahir.  i» 

O  sr.  D.  Pedra  II  era  jiraganoa- legítimo  no 
gosto  de  se  informar  das  anecdottó  curiosas  da 


Digitized  by  VjOOQIC 


144  A  MOCIDADS 

eorte ,  fiiiiilMrâiiido-9e  pán  ei8e  fim  coar  ai 
pessoas,  <|ue  o  podiam  satisfazer,  A  historia  do 
crucifixo  alegrou-^)  iimieiiso  e  esleve-a  crie* 
brando  com  discretos  commentaríos.  Ao  mesmo 
tempo  entranhava-se  no  seu  espirito  o  desbro- 
ravel  conceito,  que  o  Tolpino  corteiSo  sonbe  in- 
sinuar a  respeito  da  probidade  do  seà  emub* 
Desde  este  momento  Roque  Monteiro ,  justifi- 
cado pelo  secretario  das  mercês  por  niãm  bea 
fiy  perdeu  o  credito  na  opinião  do  príncipe;  e 
Diogo  de  Mendonça,  que  uma  difamação  yirt- 
gar  teria  envilecido,  arvorado  em  patrono  ofi- 
cioso do  seu  inimigo,  passou  aos  olhos  do  mo- 
narcha  por  uma  alma  generosa  e  um  cfín^o 
de  pomba.  O  vedor  que  era  amigo  de  Bofue 
Monteiro,  admirado  dia  nobreza  de  sentimentos 
do  secretario  das  mercéa,  sahiu>  da  casa  do 
c(  BMrado  »  com  as  lagrimas  nos  (rfbos^  can- 
tando os  seus  Iouv(ffes» 

Assim  que  o  vedor  sahiu,  el-rei  tomando  ar 
serio,  vÍFou-se  para  o  seu  ministro,  dizendo: 

—  «  Oxalá  que  fosse  ludo  i^radavd ,  como  a 
tua  historia,  Diogo  de  Mendonça.  O  peior  é 
esta  guerra  e  não  haver  dinheiro.  O  ultimo  car- 
reio trouxe  noticias  do  exercito?  » 

— <  Boas,  parabéns  a  v.  magestade.  » 

—.«Então?» 


Digitized  by  VjOOQIC 


1>E  D.  JOÃO  V.  f  45 

—  <c  O  visconde  de  Barbacena ,  mestre  de 
campo  general  do  Âlemtejo,  acaba  de  dar  uma 
lição  ao  marquez  de  Resburg ,  governador  de 
Badajo2.  Tomou-Ibe  os  gados ,  que  iam  á  feira 
de  Guadalupe ,  e  derrofou-lhe  tresentos  cavallos 
e  quinhentos  infantes.  » 

—  «  Viva  o  visconde !  E  o  marquez  das  Mi- 
nas?» 

— «  Sabe-se  que  entrou  em  quartéis  com  o 
seu  exercito  nas  fronteiras  de  Murcia  e  de  Va- 
lência. y>  • 

— -  c<  E  os  francezes  não  disputaram  a  passa- 
gem ?  O  marechal  de  Berwick  ^  esse  heroe  que 
nos  ha  de  pôr  sem  um  palmo  de  terra  em  Cas- 
tella,  não  lhe  oíFereceu  batalha?  » 

—  <c  O  marechal  é  habil ;  mas  confia  em  ou^ 
tro  general  melhor:  —  o  tempo!  Desgraçada- 
mente parece-me  que  elle  tem  rasão.  » 

— «  Entortaram-«e  muito  as  coisas ,  é  ver- 
dade, Diogo  de  Mendonça.  Os  hispanboes  es-* 
tão  frios;  passou  a  occasião.  Ah,  se  o  archidu^ 
que ,  digo ,  se  el-rei  eatbolico  D.  Carlos  III  se- 
gue o  nosso  conselho  e  se  reúne  em  Madrid  ao 
marquez  das  Minas. . .  » 

— «  Era  partida  ganha ,  meu  senhor !  Mas 
succedeu-nos  a  historia  do  general  Pardinhas. 
V.  magestade  ha  de  sabel-a  que  é  curiosa !  Vie- 
T.  n  V  10 


Digitized  by  VjOOQIC 


i4$  A  MOCIDADE 

ram  dizer4hec*^0  inimigo  está  h  vista. — Que 
espere ,  em  qtí^nto  acjBibo  o  meu  pltno.  — Tor- 
Daram-lbe  d'ahi  a  pouco,  exclamando:  —  ge- 
neral ,  já  atacam  as  nossas  linhas  l  —  Nâô  im- 
poitSt  deiíi^ein-me  resolver  este  equação. — ^Mnito 
tempo  depois  levantou-se  e  pediu  o  seu  cavallo. 
— 'Aonde  vae  y,  ex,%  disse  um  ajudante. — Essa 
é  boa !  vou  commandar  a  batalha.  —  Â  batalha 
está  perdídfi.  Agora  tracte  de  fugir.  —  É  pena ! 
aciíáiu  elle  muito  plaeido ,  se  esperam  meia  hora 
mais,  não  me  escapa  nem  um  tambor !  -^  £I-rei 
catbolico,  que  Deus  guarde,  fez  o  mesmo.  Se 
n$o  pár^  (res  semlinasi  ara  hoje  rei  de  Hispa- 
nha.  »^ 

—  «Então /Diogo  de  Meuà»nça,  jogamos 
sem  esperança  ?  »     - 

*—4ii  Longe  á^  mim  assustar  a  v.  magestade. 
Eu  não  disse  tutito,  Mas  a  vardade  é  que  o  mtr- 
quez  das  Minas «  entrando  em  Madrid ,  levan- 
tou o  bollo ,  e  que  s,  magestade  catholica  o  re- 
po2  outra  vez  por  não  andar  depressa.  O  resto 
está  Das  m^ãos  de  Dauf ,  a  não  pôde  estar  me- 
lhor. » 

—  «  E  o  dinheiro  ?  » 

— «  Infelizmente ! . . .  Não  ha  dinheiro.  Pois 
o  tabftco  rçtídeu!  Mas  nada  chega.  ^ 
-^  f(  Qâ  Hibsidiois  doB  IdUados  tardam » 


Digitized  by  VjOOQIC 


1)E   D.   JOÃO  V.  147 

"•«-^  d  É  «osttnne.  As  promessàà  viem  depressa. 
Sào  tão  leves !  »  ' 

*«-- «  E  leniãb  ?  » 

—  a  Desertam-nos  soldados ,  «[ueixa^se  a  eorte, 
e  o  reino  diz  que  não  pôde  com  o  pesó« ...» 

—  <f  É  preciso  que  possa !  )i 

■«^«c  Assim  digo  eU;  más  elles  respondem, 
que  madeiro  velho  não  deita  sangue.  » 

—  ((  Diogo  de  Mendonça  \  sabe  Deus  que  não 
foram  levianos^  ou  aàibicioses,  os  peilsamentos 
com  que  ajustei  a  liga  e  declarei  a  guerra^  Fi> 
lippe^  duqiie  de  Anjou^  ào  throno  4  era  el^ret 
de  França  reinbndo  sobre  HÍ9(^anfaa.  E  Castella 
ooííi  06  Pyrinneus  de  menos  muito  grande  era ; 
depois  ninguém  podia  com  ella;  ff 

—  «  Certaraehte :  Gastella  só  jâ  não  é  nada 
bom  visinho ,  o  que  seria  ceunindo-^s^  Hispanha 
e  França?  A  coroa  fica  muito  larga  para  uma 
cabeça ,  ò.  ó  muito  pequena  para  três.  Não  sou 
medroso y  v«  niágestade  sabe!  pol:ém,  digo^»  qué 
o  nmis  provável  era  não  gostairem  de  a  vèr  se- 
não em  duaSi  Se  os  déixasaem  vinham  até  Lis- 
boa. . . .  Porque  não?  Este  rio  é  tão  bom*  por- 
to 1 .. .  Lft  tem  França  ourives  finos  ^  |)ara  or- 
nar depois  o  diadema  ;  e  eKrei  Luíb  XIV  assim 
niesnio  talvez  ainda  a  achasse  pobre/  il  verdade 
qu9  mà  neto  pôde  etfiviar  a  coroa  de  Fitippe 


Digitized  by  VjOOQIC 


148  A   MOCIDADE 

II ,   feita  em  Thomar ;  essa  aposto  eu  que  ser- 
ve! » 

—  «  Diogo  de  Mendonça ,  os  francezes  teem 
espias  na  corte.  » 

-^  «  Ck>itados  l ...  E  nós  espias  aos  espiões.  » 

—  i(  Então  conheces  quem  os  avisa  ?  » 

—  «  Perfeitamente !  Úm  genovez ,  chamado 


- «  E  nfto  prendes  o  agente  ?  )» 

—  a  Deus  me  livre.  Este  conheço  eu ,  outro 
que  venha  é  que  não  sei  1 ...  •  Demais ,  assim 
com  o  homem  solto  temos  noticias  de  graça ,  e 
meténdo-o  na  cadeia ,  havemos  de  pagal-ias.  » 

—  «  Por  onde  mandam  a  correspondência?  i» 

—  «  Pelos  recoveiros  da  fronteira.  » 

—  «  Seguraste  os  recoveiros  ?  » 

—  a  Estão  seguríssimos.  Comprei-os.  » 

—  «Ah!» 

—  a  Sabe  V.  magestade  que  el-rei  Luiz  XIV 
deseja  a  amisade  de  Portugal.  Até  expediu  um 
pleno  poder  em  branco  a  certo  padre  da  com- 
panhia. Toda  a  cautela  é  pouca  com  os  jesuí- 
tas. » 

— «  Diogo  de  Mendonça,  não  quero  que  me 
entendam  com  os  padres  da  compsinhia.  » 

—  ff  Deus  nos  livre ,  senhor !  Depois ,  não  é 
comigo.  Sabe  v.  magestade  que  o  conde  da  Erí* 


Digitized  by  VjOOQIC 


DE  P.  JOÃO  V.  149 

ceíra,  D.  Francisco,  é  bom  poeta?  O  soneto 
d^elle  á  morte  do  visconde  de  Fonte  Arcada  me- 
rece lido. ...  Se  eu  estivesse  ainda  no  meu 
tempo. ...» 

—  «  Âh ,  Diogo  de  Mendonça ,  temos-te  ou- 
tra vex  com  saudades  de  Apollo?  Voltas  a  es- 
cravo das  musas  ? — disse  el-rei  sorrindo.  S.  ma- 
gestade  era  muito  inclinado  a  bons  versos ,  e  ge- 
ralmente se  attribuia  o  valimento  do  secretario 
das  mercês  ás  bellas  poesias ,  que  lhe  escapavam 
nas  horas  vagas.  Se  assim  era ,  foi  talvez  excep- 
ção da  regra. 

—  «  Escravo ,  meu  senhor?  Só  do  Santíssimo 
de  santa  Engracia  e  de  v.  magestade.  » 

— «  Bem  dito  e  louvado  seja  o  Santíssimo 
Sacramento  da  Eucharistia,  e  a  Conceição  imma- 
culada  da  virgem  puríssima  santa  Maria !  » — 
exclamou  el-rei,  pondo-se  em  pé  e  recitando  em 
alta  voz ,  segundo  costumava  sempre  que  ouvia 
fallar  no  Sacramento.  O  ministro  repetia  mais 
baixo  e  não  menos  piedoso  egual  jaculatória. 

—  «  Vejamos  o  soneto  do  conde  !  »  —  acudiu 
D.  Pedro,  depois  de  se  benzer,  e  tornando  a 
assentar-se. 

—  «V.  magestade  desculpe ,  mas  eu  nio  sei 
do  soneto  senão  uma  quadra.  » 

—  «  Dize-a.  » 


Digitized  by  VjOOQIC 


t$0  A  MOGIPABE 

— ^<(  i  esto.; 

N0k  cana}  o  iropkieijk  ámoJtt  seguro ; 
Em  Castello  Rodrigo  vence  a  Hispanh^.; 
1^  tez  áfií  Montes  Claroi  a  façanha 
$eu^  non»e  claro ,  até  no  tempo  esquço.,  x> 

— r  «  Bra^,»  çoi>dç  da  ÇiíiGoira !  -r^  gritou  elr- 
r€Í  Sdlisfei^.,  » 

—  tt  Sobrado  o  çQoceitp  do  ultino^; verso! .. .  ^ 
—  accudiu  o  muiisteo  —  a  E  era.  um  nome  clisuro 
o  de  Pedro  Jaques  de  Magalhães  ,^  visconde  de 
Fonte  Arcada.  Entrou  hoje  ^a  secretaria  o  re- 
querimento de  seu  filho  ^  pedindo  a  congrmação 
do  titulo. , , .  » 

—  «  Que  Ibje  será  expedi4H;  não  te  esqueça. 
  memoria,  do  visconde  ha  de  ser  honrada  comQ 
foram  illustres  os  serviços  à  minha  coroa,  n^ 

—  <i  Um  monarcha  assiijn  faz.  heroes  ait&  da 
gente  fraca !  » : —  exclamou  o  secretario  djas  mer- 
cês, fingindo-se  arrebatado.  O  astuto  n^injstro^ que- 
ria serwr  o  filho  do  visconde ,  e  convertia  o 
soneto  em  memorial.  Já  se  vê  que  bem  conhe- 
cia o  seu  augusto  amo! 

—  «  Heroes  sempre  nós  tivemos.  »  —  disse  o 
monarcha.  —  «  Agora  o  dinheiro  é  que  nunca 
sobejou. .  . .  E  os  vinte  mil  homens  que  estou 


Digitized  by  VjOOQIC 


DE  ••  JOÃO  V.  ISl 

apromptioda  para  »  camptiiftaf  segôinte,  c^mo 
ha  de  ser  isto  ?  » 

— «  Sé  um  empréstimo ,  seolhor.  » 

—  «0^  vinhos  teem:  tido  e^traeçSo  depois  do 
traetado  »  —  accÉdro  o  prinerpe  —  «  0$*  h<Mttefi9 
de  Degoeio  do  Porto  podiam  9Jâdar-mfe.  » 

—  c(  Os  inglezeshebem  menos  vinho  do  Douro 
do  que  Ptntu^l  Ihesf  gasta  de  fazmdasr,  depois 
de  revogada  a  pragmática.  Sabe  et-rei  que  bBo 
dá  uma  coi»a  para  a  oivtra?. . .  O  tracta^lo  de 
1703, . .  >y 

—  K  É  a  ki  mais  sabni  do  meu-  reinado'!  » 
—  interrompeu  D.  Pedro ,  sevek^amente. 

—  «, Assim  o  dizem  todos!  w — aceadiu  ase- 
cvetario ,  cubriado  a  cova  com  o  pé  —  <x  É  ver- 
dade que  {echou  as  fabricas  e  fiará  de  Portugal 
uma  vinha  grande ;  pôde  ser  que  não  haja  qúemi 
beba  tanto  vinlM> ;  mas  o  tempo  a  justf^cará. 
V.  magestade  permitte  que  proponh»  a  despa- 
cho as  mercês  que  trago  consultadas  ?  » 

-^  tt  Depois  do<  conselho  de  estado.  A  propo^ 
sito :  como  vão  as  três  fragatas  que  mandei  ar- 
mar? » 

—  a  EstSo  promptas.  Sabem  dentro  de  uma^ 
semana ,  se  houver  dinheiro.  » 

—  «Se  houver  dinheiro !  Sempre  o  mesmo 
estrebilho.  Peçam-no  aos  negociantes  da  junta 


Digitized  by  VjOOQIC 


1K2  A   MOCIDADE 

da  compaobia  do  Commercio.  Como  está  a  casa 
das  missões?  » 

—  «  Roque  Monteiro  informará  a  t.  mages- 
tade.  Os  negócios  de  Roma ,  diz  o  secretario  de 
çstado ,  que  estão  cada  vez  mais  embrulhados.  » 

—  «Já  sei.  Se  um  dia  chego  a  cançar. .  .• 
verão  os  cardeaes.  )> 

—  «  V.  magestade  não  ha  de  perder  esyi  reai 
serenidade,  que  tão  bem  lhe  fica.  Patiens  quia 
qBtemus!  È  o  motto  da  companhia  de  Jesus. 
«  Persiste  e  vencerás !  »  traduzi  eu. .  . .  El-rei 
permitte  que  eu  introduza  logo  um  official  doi 
seus  exércitos  do  Âlemtejo  ?  » 

r-7-«Quem?)) 

— «  Cbama-se  Jeronymo  Guerreiro.  Se  v. 
magestade  o  conceder ,  contarei  logo  a  sua  ul- 
tima proeza  de  Badajoz.  É  um  segundo  cavai- 
leiro  Bayard,  sans  peur  et  san$  reptvehe.  » 

—  «  Pois  sim ,  logo.  )) 

— «  S.  alteza  real  e  s.  alteza  sereníssima !  » 
•r— disse  o. conde  de  Pombeiro,  annunciando  á 
porta.  » 

—  «  Diogo  de  Mendonça  retire-se. . .  .  e  agra- 
deça a  Deus  os  bons  filhos  que  lhe  deu !  » 


Digitized  by  VjOOQIC 


CAPITULO  XIX. 

ANT£S   QUEBRAR   QUE   TORCER. 


Apenas  o  conde  de  Pombeiro  annanciou  os 
príncipes ,  escureceu-se  com  ama  nuvem  a  phi- 
sionomia  de  el-rei.  Despedindo  o  secretario  das 
mercês,  qae  diagnosticou  a  repentina  mudança 
com  a  finura  de  cortezão,  sua  magestade  encos- 
tou os  cotovellos  aos  braços  da  cadeira ,  carre- 
gou o  semblante ,  e  disse  em  voz  clara : 

—  «  Entrem ,  ss.  altezas ! » 

O  príncipe  real  vinha  adiante.  Trazia  a  ca- 
beça alta ,  os  olhos  firmes  e  aquelle  geito  da 
bocca  particular ,  com  que  depois  de  rei ,  se 
mostrava  o  seu  desagrado,  faiia  tremer  os  mais 
poderosos  da  sua  corte.  S.  alteza  chegou  ao  pé 
da  poltrona  de  seu  pae,  inclinou-se,  beijou  de 
leve  a  mão,  que  nem  lhe  oíFereciam,  nem  reti- 
ravam ;  e  endireitando-se  depois,  com  o  mesmo 


Digitized  by  VjOOQIC 


154  A  MOCIDÁDB 

silencio,  pegou  na  esfmda,  e  pousou-a  oo  es-^ 
trado  em  que  o  monarcba  dcscançava  05  pés. 

O  íorante  D.  Francisco,  mais  novo  um  anno, 
e  mais  branco  do  que  seu  irmão,  dando  nas  fei- 
ções alguma  idéa  da  belleza  feminina  de  sua  mãe 
e  recordando  huúÍo  a  seu  tio  Affonso  VI  no 
olhar  volúvel  e  quasi  alienado,  aproxímava-se 
do  outro  lado  do  bofete ,  cuja  cabeceira  occu- 
pava  a  poltrona  reaL  D.  Pedra  II  para  castigar 
o  seu  primogénito  estendeu  a  mão  ao  infante,  * 
lançou-Ihe  a  benção,  e  com  um  gesto  meigo, 
apartou-lhe  da  testa  as  madeixas  de  um  casta- 
nho tão  aberto  que  pareciam  louras,  S.  mages- 
tade  observava  aa  mesmo  tempo  no  seoablaAte 
do  príncipe  real  o  eíFeito.  das  caricias  paternas  e 
entristeceu  de  todo,,  notando  que  s.  alteza,  em 
pé  no  vão  de  uma  janella,  estava  olhando  para 
fora ,  sem  fazer  caso  do  que  passave  a  reda 
delle.  O  pae  suspirou ;  e  o  rei  ofifendjeu-se  1  En- 
tretanto do  que  estava  no  coração  dos  três ,  se 
alguma  coisa  subia  ao  rosto,  era  uma  somlura  a 
tal  ponto  fugitiva ,  que  facilmente  se  illudiria  o 
melhor  observador. 

£l-rei  continuou  a  affagar  a  cabeça  do  infante 
em .  quanto  lhe  perguntava ; 

—  c<  Estam  contentes  os  teus  mestres  ?  Foste 
ás  fragatas  novas ,  que  se  estão  armando  ?  » 


Digitized  by  VjOOQIC 


k  hociuadb  ISS 

-t^«Si«i ^  mw  «mb»^-  Toda  9  manhã  andei 

*T^.cr  O  max  éi  a.  tua,  p^ípOo.  Havonoft  de  fazer 
dí^  ti  um  almivanti^  £  Wuem  aoivdb  ^stiye3te , 
qx^  bA^  te  yi.?í>; 

-— .«.Nia  caça  todo  <>  diaw.  Salnç  v.  magestade 
qf^  ine.  a<»b^i  pei;4i<^?  »^^  E  q  inlaute  desatcMi 

-»^«  Ah,^  cuidado !  Nada  de  i^ndar  só. » 

-^  «  O  i^aBQ  João  é  que  aado  só.  Olhe^  meu 
pae,  ha  dois  dias,  se  a  ronda  nâo  acode,  mar 
ta^wi-no;  ^  esqiâaa  da  i:iia  dd$  Áreas,,  perto  do 
recanto,  do  painel  Faziât  escuro^  e  chovio. .  •  £u 
sei  Uiàfí-.  EU^r  nSiO;  gosta:  (p&.  ^-  digfi  .  •  mas  a 
mif»  qju^  me  importa  l  fk 

£  s.  alteza,  (aliando  assim,  divertia-se  em 
beliscar  a^  costas,  da  mão  oom  velocidade ,.  di- 
zendo- muito  depressa :  (c  Joanico,  Joanico,  quem 
te  deu  tamanho,  bico  ?  >x 

— ^  c(  Eu  já.  prohibi  as.  corridas  nocturnas  e  os 
desafios  á  espada  preta :  mas  y.  alteia  não  quer 
attender  a  que  são  de  perigo  para  a  sua  vida,  e 
de  inuito  desaire  para  a  casa.  real — acudiu.  D^ 
Pedrot  severamente ,  obrigando  o  príncipe  a  to- 
mar parle  na  conversação. -^ Daqui  em  diante, 
será  necessário  sahir  acompanhado  pelo  capitão 
da^^Quardus. . .  é  q  modo.  d^^  prevenirmos  maior 


Digitized  by  VjOOQIC 


1S6  A   MOGIPADB 

desgosto. — E  augmentando-se^he  a  irritação 
com  o  silencio  do  príncipe,  accresbentou.  —  A 
corte  está  escandalisada ;  e  eu  nio  devo  permit- 
tir  que  o  herdeiro  da  coroa,  alia  noite,  ande  ccht- 
rendo  as  ruas  como  um  espadachim ,  contra  as 
minhas  leis,  entrando  nas  lojas,  rivendo  com  o 
baixo  povo,  e  dizendo  galanteios  debaixo  dás  ja- 
nellás  das  familias  honestas  I . .  Não  se  lembn 
de  que  estão  em  Lisboa  os  ministros  estrangei- 
ros ,  e  que  a  Europa  v6  e  sabe  tudo  pelos  olhoi 
delles?» 

O  príncipe  deixou  fugir  pelos  cantos  da  bocca 
um  ar  de  riso ;  e  armando  o  seu  acatamento  de 
mais  orgulho,  do  que  podia  ter  uma  replica  ve- 
hemente ,  inclinando-se  á  admoestação  paterna , 
só  redarguiu : 

—  «  V.  magestade  permitte  ?  » 

-^  «  Falle ! . .  sou  pae ,  e  prezo  a  sua  gloria ; 
sou  rei,  e  alegro-me  sempre  que  acho  innocen- 
tes  e  não  culpados.  Ouviu  o  infante?  O  que 
responde?» 

—  d  Duas  palavras,  apenas  senhor ,  —  acudia 
o  príncipe.  —  Deploro  o  ter  incorrido  no  desa- 
grado de  el-rei,  mas  consola-me  a  esperança  de 
que  o  exemplo  de  v.  magestade  advogará  a  mi- 
nha causa. . .  1» 

—  «O  meu  exemplo?  v.  alteza  atreve-se?.. » 


Digitized  by  VjOOQIC 


DB  D.  JOlO  V.  ÍÍ7 

—  <(  Ouça-me  el-rei  e  julgue !  A  vida  ido  está 
menos  exposta  entre  duas  espadas  do  que  na  praça 
diante  das  marradas  de  um  touro  I  ?  .  •  e  pela 
fortaleza  do  seu  animo  e  apesar  do  susto  de  to- 
dos nós,  V.  magestade  não  se  conteve  e  arros- 
tou os  maiores  perigos.  Gommettendo  a  peito  des 
cuberto  essas  proezas,  que  nos  enchiam  de  ad- 
miração e  de  temor,  el-reí  bem  sabia  que  po- 
diam cubrir  de  luto  seus  filhos  e  o  reino. . .  Ê 
o  motivo  porque  appello  para  o  coração  de  meu 
pae,  certo  de  que  ficarei  desculpado  na  presença 
do  soberano. » 

-—  «  João — atalhou  IX  Pedro,  corando  e  mor- 
dendo os  beiços— -sabes,  quasdo  queres,  ser 
mais  velho  do  que  a  tua  idade!  Tomando, 
depois  um  tom  severo,,  acrescentou,  a  O  pa- 
dre Luiz  Gonçalves,  seu  mestra  é  quem  ensinou 
a  V.  alteza  a  deitar  em  rosto  a  seu  pae  essas 
fraquezas  ?  » 

— «  «  O  padre  Luiz  Gonçalves  ensinou-me  que 
a  fortaleza  é;  uma  das  virtudes  reaes. . .  v.  ma- 
gestade sabe,  que  D.  João  II,  que  a  historia 
chama  o  príncipe  perfeito,  não  duvidava  ex- 
por-se  ao  encontro  de  um  touro,  e  ao  punhal  da 
um  traidor;  e  ninguém  tmctou  de  fraqueza  a 
magnanimidade  do  seu  coração. . .  )> 
^    —  a  Muito  bem  l  os  tempos  são  outros :  — 


Digitized  by  VjOOQIC 


iSÂ  A  JÉOCIDAHB 

disse  ei^m  adoçado  feia  etpiieiçfiro  do  pHcieifie. 
-«-Demtit,  iiSo  ({ueroque  a  Vitfe  e  o  samgiie  lAo» 
meus  vassallofi  paguem  as  \iffl»  de  esgtimâ  é^ 
V.  alt^a. » 

*^c(  Meu  pae  n^id  ignwat  ^  alguma  ves 
correu  tangue. ««  foi  das  miato  veias ;  «  se  me 
esqueci  de  que  soa  príncipe^  tiranâo  a  espada 
para  um  fa«all<K  fui  sempre  Áltio  de  v.  mages^ 
tade  porque  neulium  ainda  se  queixou  de  mim.  » 

«^  «  Mas  T^  eltesa^  se  o  maUsse  mi  fosse  morto, 
o  que  fticia?-*-- interrompeu  o  infante  aos  pult^ 
uhos  detraz  da  poltrona  de  seu  pae» 

— -  n  Se  o  matasse  dava  uma  pensfiò  k  viuva. 
Se  fosse  morto  tifio  fazia  nada.  Òt  fieava  v.  ai^ 
teza;  e  é  natural  que  o  neino^  tendo  a  fortuna 
de  ser  bem  governado  y  nao  sentisse  a  minha 
falta.  Pe^-lbe ,  nien  irmio^  que  se  assuste  me^ 
nos  oom  os  meus  perigos.  Zele  mais  os  seus  e  os 
alheios. » 

—  «  Eu  não  preciso  de  conselhos!  »  — 
gritou  o  infente  ameaçando  oom  o  panlio  fe- 
chado. 

—  «  Francisco  t. « .  exclamou  eKrd  sevsm.  n 
-^0  principe  real  n&o  tem  acima  de  si  senfio 
seu  pae.  É  mais  velho! .  •  n 

— «  Um  anno  ma»  ou  menos  títo  é  n»- 
da,  respondeu  o  infante  ^  tíndo-se*  Aqui  está 


Digitized  by  VjOOQIC 


BB  D.  JOÃO  ¥.  1^9 

s.  inugettode,  meu  pae^.  foi  rei,  sesdo  mais 
noyo  tio  que  ãieu  tio  D.  Afonso. .  • » 

A  allusão  grosseira  moFtificKMi  D.  Pedro.  O 
rei  t  deixando  cahir  a  cabeça  com  melancolia , 
Bãa  di^se  tiflda.  O  príncipe  D.  João,  dominando 
o  íofontet  dd  toda  a  altura  e  firmeza  da  sua 
dignidade ,  replicou Jhe  «enenamente : 

—  «  Não  aconselharei  ninguém  a  que  repita 
a  expmeocia^  Os  três  estados  levati  taram  re- 
gente a  s.  magestade ,  porque  o  a:.  D.  Aífonso, 
meu  tio^  era  lim  rei. . . .  qué  não  reinava.  V. 
alteza  deve  deixar-se  de  loucuras ;  não  lhe  ficam 
bem.  Senão ,  eu  o  farei  arrepender !  »' 

—  «O  mano  João  tem  a  confiança  de  me 
chamer  louco?  » — gritou  o  infante. 

— '«  Não  lhe  quiz  chamar  peior.  Diga-me  v. 
alteza:  deitou  ao  Tejo  a  espingarda  com  que 
esta  manhã  arcabuzou  nas  vergas  da  nau  um 
marujo ,  um  vassallo  de  el-rei ,  que  lhe  estava 
dando  os  vivas?  Se  não  me  «ngano  está  a  ex- 
pirar. ...  Estas  caçadas  hão  de  sahir-lhe  caras  ^ 
meu  irmão.  Não  se  atira  aos  bomens  como  aos 
brutos ,  pcurque,  um  dia,  algum  pode  defender- 
se ,  e  v.  alteza  dâ-nos  desato  grande. ...» 

A  vista  de  D.  Pedro  II  fila  e  terrivd  fulmi- 
nou o  infante  e  gelou-the  a  liegua.  Depois  s. 
magesladò  levaQtou*<se.cou  impeto^  foi  direito 


Digitized  by  VjOOQIC 


160  DB  D.  JOiO  V* 

a  elle ,  e  sacuâiu"^  pelo  braço ,  de  filmia  que 
foi  cabir  ao  lado  opposto  da  sala ;  ao  mesmo 
tempo  el-rei  exclamava ; 

— «  Vae !   Hades   ser  a  desbonm  do  meu 
nome!  Mas  ea  te  porei  aonde  ã  tua  maldade 
Dio  sirva  de  horror  e  não  ^seja  o  martyrio  da 
minha  vida. . « .  Não  tomes  a  apparecerme .  r . . 
Sabe!  » 

— «O  marujo  está  melhor !»—* murmurava 
o  infante  recuando. 

—  «  Sabe!  »  — replicou el-rei  com  um  gesto 
absoluto. 

—  a  Deixe  estar,  mano  João,  que  ea  me  \eBt- 
brarei.  ». 

— «  y .  alteza  peça  a  Deus  que  eu  í0b  es-^ 
queça !  »  -*-  respondeu  o  príncipe  viramlo-lbe  as 
costas.  D.  Francisco  sahiu  mordendo  os  nós  dos^ 
dedos  com  tregeitos  de  maniaco. 

D.  Pedro  11  ficou  alguns  instantes  convulso  e 
abatido ,  com  a  cabeça  entre  as  mãos  e  os  co- 
tovellos  nos  joelhos ;  com  a  vista  no  chão ,  e  osr 
olhos  arrazados  de  agua.  Suspiros  de  aSlicção 
gemiam-lhe  no  peito ;  e  a  pallidez ,  entre  fortes 
arrepios  nervosos,  annunciou  a  crise  moral,  a  so- 
bre-excitação  do  espirito  provocada  por  esta  scena. 

—  «  Filho  és ,  e  pai  serás, . . .  é  verdade !  » 
-~  murmurou  elle  em  ímm  voz— «(  O  throno 


Digitized  by  VjOOQIC 


BS  D.  JOXO  V.  161 

já  md  cuãtou  caro  neste  mundo ,  e  ftSo  sei  no 
outro  o  que  será!  Tirei  a  mulher  a  seu  ma- 
rido. ...»  —  accrescentou ,  levantando-se  cada 
vez  mais  tremulo  — «  fiz  do  amor  e  do  ciúme 
degraus ,  e  subi  por  elles.  Levei  á  mão  ã  ca- 
beça do  rei  e  tírei-lhe  a  coroa.  Mau  irmão ,  le- 
vei a  deshonra  e  a  infâmia  ao  leito  de  meu  ir- 
mão, e  torneiro  a  fabula  dos  vassallos.  Deus 
puniu-me!  O  que  amei  não  existe.  O  que  dese- 
java fugiu  para  sempre.  A  minha  Isabel ,  a  única 
filha  delia ,  aquelle  anjo ,  retrato  de  sua  mãi , 
consolação  das  mais  vivas  saudades,  era  muito 
boa,  não  devia  ficar  comigo;  não  era  deste 
mundo ,  e  Deus  chamou-a.  Bemdito  sejaes ,  se- 
nhof ! ....  A  primeira  esposa ,  a  alegria  dos 
meus  dias,  o  premio  do  meu  d^icto,  penou  as 
suas  dores,  gemeu  os  meus  remorsos,  e  deixoií- 
me  sem  um  herdeiro  a  esta  coroa  de  espinhos 
do  meu  crime. . . .  Fui  obrigado  para  ter  suc- 
eessor  a  abraçar  sem  paixão  outra  mulher ,  que 
nunca  teve  marido ,  e  em  um  purgatório  de  ze- 
los e  de  maguas  pedia  ao  ceu  o  descanço  da 
morte ,  porque  já  não  podia  com  a  sua  cruz. . . 
E  era  eu  a  cruz ,  e  fui  eu  o  algoz  que  enchi  de 
fel  aquella  vida  tão  curta  nos  dias ,  tão  longa 
nas  atribulações ! . . .  Ficaram-me  estes  filhos , 
filhos  de  ddr  para  sua  mãe ,  e  de  esperança  para 
T,  n.  11 

Digitized  by  VjOOQIC 


ÍQA  a  M0C3BÁPE 

mim;  eran  o  meu  orgulbo;  a  Provideada  fez 
delles  o  açoite  do  meu  castigo.  Não  bastará  ainda 
meu  Deus? . . « » --^  proseguiu  mais  agitado  e  er- 
guendo as  mãos — a  Este  coração,  que  se  atnda 
sente  alguma  coisa  é  a  morte  da  alma ,  não  são 
sufficientes  as  dores  que  o  ferem  «  e  as  saudades 
que  o  cortam  ?  A  expiação  quando  estará  com- 
pleta ? . .  • «  A  penitencia ,  as  mortificações  ^  e  o 
temor  da  Tossa  justiça ,  não  podem  absolver  o 
peccador ,  que  poe  a  sua  confiança  no  ceu ,  e  a 
todas  as  horas  pede  ser  despenado  das  trevas  do 
seu  desterro?...» 

Uma  pausa ,  affo^da  em  lagrimas ,  succedeu 
a  esta  interrogação  sombria  de  uma  consciência 
cheia  de  terrores,  de  um  peito  ralado  de  ago- 
nias. A  pallidez  crescia ,  o  tremor  augmeutava , 
e  os  olhos  fundos,  allumiando-se  de  brilho  si- 
nistro 9  refiectiam  os  delírios  e  o  pavor ,  em  que 
o  espirito  se  abysmava. 

—  «D,  Affonso »  —  proseguiu  em  tom  cavo 
e  mysteríoso  —  «  rei  sem  corôa^  Deus  vingou-te ! 
Morreste  viuvo ^  e  tua  esposa  viva,  arrancada 
dos  teus  braços ,  repousava  sobre  o  seio  de  teu 
irmão !  Viste-me  com  o  teu  mai^to  real.  nos  hom- 
bros;  padeceste,  chifraste  por  Causa  do  ipiía 
annos inteiros.  •  . .  e  ap^ar.de  tudo,  o  teu  mar- 
tyrio  não  foi  nunca  ne»  metadie  d»  meu ,  até 


Digitized  by  VjOOQIC 


A  HoaiiABir  Í6S 

tM  minbas  boras  mais  Míml..  quuMiaeHa  existia 
ainda!  Ao  menos  tu,  em  ciida  manba  goeraBir 
pia,  farmaTas  \m  desejo  e  poáip»  oonsolar-to. 
cem  alguQia  esperaiiQa ;  ma&  os  meus  diaa  todoí 
sio  noites ,  em  qve  teobo  medo  de  olhar  para 
dentro  da  minha  alraal  Tn  atè  morrer  espor* 
raste  seippre* . .  •  e  Deus  se  ta  nto  restituiu  tm^ 
teita,  no  eçu  d<^«4e  copoa  melher  que  a  que 
eu  ... .  tirei :  a  dos  que  eberam  por  justiça ,  a> 
quem  a  sua  mão  eiixu^  as  lagrimas.  Rovbdrte 
o  amor  de  nossa  mãe ,  a  temára  de  toa  espo», 
o  respeil^  dos  vassaltos ,  e  vejo^te  s^pre ,  w^-^ 
pre  y  como  rei ,  batendo^qie  oom  o  seeptre  noi 
hmnhroy  e  onçe-te  sempre  diier-an.padepe  que 
tambeip  eu  padeci  I  Quando  ella,  a  tua  mu-r 
Ibet  y  adoeseii,  vieste  IQnaiBda  a  minha  Isabel  ^ 
foi  unir-fW  a  sua  mSe ,  apparQces1|e  ( ; .  . .  Slbo 
haTorà  soeego  para  a  tua  alma,  nfe  perdoarás^ 
nau  rendo  que  do  meu  eoraçto  tem  eorvida 
tab^  sangue,  que  jfà  nip  ba  nelle  mais  para  Ia<* 
w  a  Aodaa  dp  paecado? . ...  O  que  desqo,. 
ou  pesso  querer  de  mpndo?'  Â  merte^  fe». 
m^ts  l . . .  A  vidaf . . .  natfi-«ie ! . . .  Jlem  te. 
Kmfol  £  ella,  a  tua  miittMr,  a  miabaespesa, 
a  outrft  vitíie  do  me»  crime,  e  chama^m^  da 
sepultura ! . . .  Como  é  surda  a  sua  vos  t  Como 
aquettsa  albas  sf  m  \úz  f«uin|  frio  at4  èú  e^ntro 


Digitized  by  VjOOQIC 


164  A  MOaDÁDE 

d^alma!  Sorrí<»8e,  acena-me  que  a  siga.  Era  tua 
primeiro,  por  isso  a  levaste.  Está  alli,  aUt! 
No  mesmo  logar  sem|Hre  em  qae  jiiráraos  o 
amor  incestuoso,  unidos  pelos  homens,  separa- 
dos por  Deus!  Senhor,  este  peso  é  muito  forte 
para  o  cora^^o  de  um  homem  I  Senhw,  este  sello 
de  fogo  arde  muito,  e  a  coroa  não  chega  para  lhe 
esconder  a  nódoa.  Porque  me  persegue  até  aqui 
a  tua  Toz,  elamando :  —  Caim  aonde  está  Abel  ?  » 

O  suor  corría-lhe  em  bagas  pela  testa ;  as  fa- 
cas encovadas  tinham  a  c^  térrea  do  cadáver ; 
a  quatro  e  quatro  as  lagrimas  cahiam  pelas  fa- 
ces. O  frio  do  horror ,  aquelle  gelado  e  doloroso 
frio ,  que  faz  a  mfio  da  morte  sobre  o  coração^ 
tremia-lhe  com  todo  o  corpo.  Os  olhos  espanta- 
dos e  incertos  sumiam-se  e  n&o  viam  nada  em 
roda  de  si ,  porque  estavam  fitos  no  mundo  in- 
visivel,  seguindo  os  fantasmas  da  consciência. 
Uma  tosse  crua  e  áspera  affogou-lhe  as  ultimas 
palavras  na  bocca,  e  tingiu-lhe  a  côr  esbranqui- 
çada dos  beiços  de  sangue  vivo  e  spumante.  Com 
ambas  as  mãos  sobre  o  peito,  curvado  ás  dores 
phisicas,  como  ha  pouco  se  inclinava  á  dòr  mo- 
ral, o  monarcha  foi  sentar-se  na  sua  cadeira  com 
um  gemido,  e  encostando  a  cabeça  ao  espaldar, 
fechou  os  olhos. 

O  principe  tinha  presenciado,  primeiro  com  as^ 


Digitized  by  VjOOQIC 


Dfi  D.  JOÃO  V.  16K 

sombro ,  e  depois  com  summo  cuidado ,  este  ac- 
cesso  que  presagiava  ataque  mais  fatal.  Vendo 
seu  pae  desfallecer  lembrou-^se  de  chamar  os  mé- 
dicos, mas  receiou  que  tornando  a  si  elle  rqpe^ 
tisse  as  exclamações ,  que  seria  imprudente  con- 
fiar de  estranhos.  De  joelhos,  com  as  mãos  de 
el-rei  entre  as  suas,  cubria-as  de  beijos  af- 
fectuosos  pedindo  a  Deus  abbreviasse  os  m<Mnen- 
tos  de  uma  crise ,  que  ameaçava  encher  de  la- 
cto a  monarchia.  Por  fim  D.  Pedro  abriu  os 
olhos  e  affirmou-se  de  vagar.  D^ahi  respirando 
mais  desafogado,  disse  revestindo-se  de  espi- 
rito: 

— «  Entrou  alguém  aqui?  )> 

—  «  Ninguém,  meu  senhor.  Estivemos  sós.  » 

—  a  Ouviste  muitas  cousas  desacertadas,  que 
teu  pae  disse?  d 

—  <c  Como  el-rei  fallava  só ,  retirei-me  para 
não  o  perturbar.  » 

—  ^  Fizeste  bem.  Não  é  bom  que  saibam  des- 
tes ataques...  João,  podes  pôr  a  tua  espada; 
só  te  prohíbo  que  a  tires  sem  minha  ordem.  De 
hoje  em  diante  procura  merecer  a  amisade  de 
teu  pae,  e  a  confiança  de  el-rei...  Ainda  não 
chegou  o  conselho  de  estado?  »^ 

—  «V.  magestade  padeceu  tanto  ? !  »  —  ac- 
cudiu  o  príncipe. 


Digitized  by  VjOOQIC 


1Q6  A II0CI9AW 

*-^  a  SsttHi  melhor  >  Deus  Im  de  pmaiUir 
4«te  fique  béni  de  todoi.  » 

O  fiomeo  de  immaroha  £i2Ía  das  «suas  palavras 
o  €^ilega  da  triBte  aeeaa^  quei  acabava  de  .pasâir. 

— r'«  ^loios  |)róseguiu  í).  Pedro,  duas  causas 
ae  pii^m  «este,  muiidí»  c  a  dasobedieaGk  aofs  paas, 
è  o  sacrílega  aes  í&è.  Medi4i^  bem!  Has  de  m 
pae,  e  iMrev^atete  aerto  rei.^.  Respeka-me  jiara 
fie  te  resp^tem;  <d)eâeeeHpie,  ^  queres  que  te 
el)edeoam.  ^ 

«—  ((  V.  itiâigestade  sabe  —  respondeu  o  piÍB- 
eipe-^que  «6  Deus  pede  mudar  e  eçMraçào  4o 
homem.  Sou  o  primeiro  vassaílo  da  coroa,  sea  o 
primogénito  da  famiJía  real.  Diga  e^tí  uma  pa- 
lavra^ deshetde-me  ^em  ella«  e  obedeço  sem  me 
^«eixar...  Poabo  aos  seus  pós  o  fue  luais  iaveja 
faz.  Peçam-me  todos  os  sacrificios..^  h 

D.  Pedro  abra{«m  o  filh^  cem  teruiira  excla- 
mando : 

— «  O  ieu  am^r  aisigoi  l(»ão>  «ão  será  teu 
pie?  *>  . 

— «  Peçata-«S6  tudo»  meiíos.v.  »  —  proscguiu 
o  priocipe  com  firmeza. 

—  «  Mends?  »  —  aoudiu  et-rei  suspenso. 

—  «  Menos  a  hOnta ;  essa  é  que  eu  não  deu.  » 

—  «  Alguém  peditt-a a  v,  alteaa?  ^-—obser- 
vou D.  Pedro  seccamente. 


Digitized  by  VjOOQIC 


ÍKB  0.  JCdlO  V.  l«y 

*-^  ií  Ninguém^  TCfd  agora.  Tinha  itdo  engano 
mea.  » 

Houne  am  momeiíto  em  qiia  o  fiiht)  nos  bra- 
ços do  pae  desviara  a  visla  e  fugiti  de  fiem  oUiog, 
temendo  desmaiar  da  primeira  resol^ão.  É  que 
aekára  lierniira^  e  esperada  encontrar  rigor. 

—  «  £  ten  pae  era  capaz  de  querer  que  ex«- 
poeessésr  a  toa  hoimi?  Néo  é  «lia  também  sita?» 
disse  el-rei  carinhosamente. 

— r  c  JLQfoge  de  mim  <stippdk>.  Os  aeos  écse^ 
jos  são  jUÊSÍois  seanfure:  tnas  v.  magestâde  sabe^ 
que^  ta  tces  dltts<,  esta  ê  a  primeira  fe«  em  que 
o  achei  nos  meus  braços  como  pae,  ovrmkle^ine 
conM>  amífft.  QauAo  ãs  ordees  de  e)-rei  eram 
taes  que  'diante  do  amor  de  meu  pae  Mo  me 
qnero  lenbrar  deUas.  » 

—  «  Essas  ordens  eram. . .  ?  » — acudia  O.  Pe^ 
dro ,  soltando  o  íittio  do  abi^iço  em  ({ue  ia  aper-^ 
taw- 

—  «  Impossiveis,  para  nSo  4i«er  cruéis  1  »  — 
replioou'este  com  um  oUiar  cheio  de  decisão. 

-*^  « '  Bem  i  »>  ^-^iaeereseen tou  Criamente  o  mo- 
narcha  »  —  «  Dir-me-ha  v.  alteea  aonde  eatá  o 
impessífel  ?  » 

—  (c  Julgar-me  capaz  de  prometter,  e  ^  oão 
cmiprjr.  *» 

—  «  E  porque  ?  » 


Digitized  by  VjOOQIC 


}68  A   MOCIDADB 

"- «  Porque  sendo  príncipe  aon  o  primeiro  fi- 
dalgo portugaez ;  e  um  cavalheiro  não  engana  os 
homens,  e  muito  menos  uma  senhora.  » 

, —  a  EntSo*  V.  altesa  confessa  que  deu  pro- 
messa de  princípe  a  uma  dama  ?  » 

—  c<  Perdoe ,  v.  magestade !  Prometti  como 
cavalheiro  e  basta.  Etrei  bem  vê.  » 

«  — «  V.  alteza  não  podia  promeKer  nada!  Ti- 
nha auctoridade  minha  ?  » 

•-— -«  Tii^  mais !  O  «mor  para  jurar,  a  honra 
para. cumprir,  e  Deus  por  testemunha.  » 

-*-  a  Ah ! » -^gritou  el-rei  empàlUdecendo  com 
a  irA  — «  Eptão  reincide,  ateima?  n 

«— «  Sinto  magoar  a  v.  magestade;  mas  já 
nto  sou  senhor  da  mão  que  el-rei  me  pede.  A 
honra  de  um  príncipe  é  a  sua  palavra ,  e  essa 
não  me  pertence,  estíi  dada.  x> 

'-^«t  Eu  desligarei  a  v.  alteza !  » 

—  «  Só  uma  pessoa  pôde  desligar-me ;  e  não 
é  el-rei ,  nem  eu.  » 

-^  «  El-rei  pôde  tudo ,  príncipe  D.  João.  » 

—  «  Neste,  caso  el-rei  p4de  tanto  como  o  ul- 
timo vassallo.  » 

— «  Veremos!...  D.  Gatharina  de  Athaid«, 
cuja  ambição  é  causa...  » 

—  c(  D.  Gatharina?  » — ^ exclamou  o  prineipe 


Digitized  by  VjOOQIC 


DV  0.  JOÃO  v.  169 

—  «  liBo  se  admtfe  v.  altetô  !-*- Estou  infor- 
mado. Sei  até  as  vezes  que  fei  a  Santa  Clara. 
Em  três  dias,  ou  D.  Catharina  faz  a  sua  profis- 
são de  religiosa,  ou  casa  e  sahe  de  Portugal  por 
alguns  annos.  » 

—  ff  V.  magestade  foi  illudido!  » 

—  <x  A  honra  de  v.  alteza  também  lhe  per- 
mitte  enganar  seu  pae  7  » 

-^  «  Â  verdade  manda-me  fallar ,  quando  el- 
rei  fere  injustamente' os  innocentes.  Mas  desde 
que  V.  magestade  duvida  da  minha  honra-,  é 
meu  pai ,  é  meu  rei. . .  o  que  posso  é  incli- 
nar-me  deplorando  o  seu  engano. » 

—  «  Então  V.  alteza  nega  ?  » 

—  ff  Desculpe  v.  magestade !  —  disse  D.  João, 
pondo  os  olhos  com  altivez  nos  olhos  de  seu  pae, 
e  dando  ao  rosto  um  ar  de  nobre  orgulho.  --—  Se- 
ria indigno  que  duas  vezes  no  mesmo  dia  o  prín- 
cipe real  dissesse  a  verdade  e  não  fosse  acredi- 
tado. Diante  da  persuasão  de  el-rei  caUo->me, 
porque  não  posso  mais !  d 

—  ff  Entre ,  Duque !  —  gritou  D.  Pedro  ,ao 
duque  de  Cadaval,  que  apparecia  á  porta,  e  que 
elle  chamou  satisfeito  de  cortar  assim  as  expli- 
cações violentas.  O  príncipe  recuou  alguns  pas- 
sos e  ficou  silencioso : — São  horas  do  conselho? 
—  continuou  o  monarcha.  — *  Hoje  pouco  nós 


Digitized  by  VjOOQIC 


170  A  MOODÀDK 

^Mnòimiiflli.  Sabe  ]>.  Nvao  ?  y^a-m»  fineado 

*-^ «O  que  díiet  eu,  «eabor  7  le^ndeu  o  ^»- 
que,  sofriod<Hie.» 

—  «  Diga  o  que  quízer ,  que  nSo  é  c&fia  de 
dizer  senfto  a  yerdade.  Estou  muito  velho;  e  é 
firecíso  procurar  ^ueeeèsor.  Trictamo)  de  casar  a 
João«  O  conde  de  Villar-Maior  estt  ahí?» 

-^^  n  Acabo  de  o  deixar  na  sala  da  tocha. » 
^-^«Viaa  carta  para  o  ioiperador?» 
-^«  Sim ,  EBeu  senhor. » 
-*—  <  Ordeaei  m  secretario  de  estado  qae  Mm 
mostrasse.  r> 

—  <xE  s.  alteia  está  aatíafeito^  como  todos 
des^aniDs? — pe^gitatov  ovelhofidai^,  olhando 
para  e  pcinei^,  que  «fto  díxta  nada. » 

—  «S.  ritoia,  duque -^respondeo  h^  d--rèí 
oarregaBde  ^obre  cada  palarra  e  áitaudo  «m  seu 
filho  «s  ikilhos  oheioB  de  fHMler  e  de  magestade — 
51^  qbe  os  prineipes  oio  toem  outra  paiaciD 
senão  o  bem  do  estado.  Nestas  coisas,  a  ca- 
beça ,  e  uio  o  caraçio,  é  <pie  dectdeUíL. . .  são 
08  espkdioa  da  copoa  1  E  como  seria  p^goso 
desviar  da  regra,  esteja  oeifto  de  «pie  d  prin- 
GÍpe  neu  filho  ha  de  oaiifarisar^Ae  omn  a  vim- 
tade  da  «eu  fae^  ancon  as  éntens  ide  dket. 
(^ue  anti»  o  oénselbo  de  aitadoi )» 


Digitized  by  VjOOQIC 


Ai  ipiírta»  (âcluiramHK  s^bre  ^.  laitwo  coose- 

.Um^q  «  até  A  4^sa  do  4ocel  «e  dôspovoou,  fi- 

Mfiik  n^felite  «pejM»  ò  inlatiitâ  D.  SraacísGOi  e  os 

ctmdes  deS.  Joftoo  de  Vilkr-Maiot^osquaes  con- 

urersaY^iiii  baixo,  mas  aaimados  ao  vão. de  uma 

.Janelk. 

<  Na  i^ala  da  tocba  dava^i  s^  horas  nq  reló- 
gio do  fatacio,  'qnèiodo  eetrava  o  packo  VeDtura  ; 
^Mm^  loaiiHitps  depois,  em  unifoirme  ríco,.cho- 
.gou  t>  <afilaa  J6rooy«K)  tiuorr^ro»  que  não  re- 
paraodo  no  je^ta  ibi  dar  o  seu  noaie'  ao  por- 
teiro da  canw^.dejclaraBdo  segundo  o  estilo  q«ie 
a  ^1i  introductor  à  presença  de  el-rei  iiavia  de 
«er  Dímgo  d^  lCè«doBça  Corte-Reai.  O  porteiro, 
ak|i|[amdo«9  ^^puIoBtaifacesem  cinco  roscas  semi- 
circulares^,  sonrtu-se  bemgaafijieiíte,  e  informpu-^b 
dè  ^pie  e  aecretario  das  mercês  estava  no  paço , 
€)fif»raiião<|iije  acabasse  o  céciselho  de  estado ;  mas 
x[ue  flaturfâoieiite  despachava  em  algum  dos  ga- 
bipeti»  resbfvndos ,  por  isso  não  a{>parecia  «as 
salas.  O  mancebo  fez^Ihe  uma  ^^ortezia,  e  foi  «c^ 
costar^e  modestameitte  h  parede  aa  outra  ex- 
U^enidade  da  vasta  quadra ,  aonde  já  se  achava 
•p  visitador  da  confanhia  de  Jesus. 

Quando  o  capttSOiJerooymo  ievaaiou  a  vi^ta 
já  t  achou  oa  «Iboà  do,  jpadtfe  y«diiiui»  a  exami- 
m)-o.  o  ieMíia :  l^iia  tje$g^  kofAd  mais  Cftr 


Digitized  by  VjOOQIC 


172  A  MOeiDÀM 

Yada,  e  o  sorriso  um  pouco  vago ,  eraio,8iececle 
quando  a  memoria,  perdendo  de  rista  uma  ootta, 
chama  em  seu  auxilio  todas  as  reoerdaçõev  que 
a  podem  suscitar.  Esta  phisionomia ,  cujo  cuidio 
era  particular ,  cuja  grandesa  e  sagacidade  eram 
indeléveis,  também  despertou  mil  lembranças  ao 
noivo  de  Theresa ,  mas  não  sabia  dizer  de  re- 
pente aonde  a  vira ,  posto  estivesse  certo  de  qoe 
pelo  menos  uma  veas  na  sua  vida,  e  em  occasião 
solemne ,  já  lhe  tinha  apparecido  este  homem , 
esta  figura  plácida  e  impenetrável :  nio  lhe  oc- 
corria ,  porém,  nem  como,  nem  aonde. 

Por  isso,  sentiu  palpitar  o  coraçSo  com  força, 
e  baixou  a  vista  diante  do  padre  Ventura,  cu- 
jos olhos,  descendo  do  rosto  ao  coração,  parecia 
que  iam  queimando  por  onde  passavam. 

—  «  Não  se  lhe  figura  qae  nos  encontrámos 
já?  Longe  daqui,  em  outros  legares  desertos; 
talvez  em  dias  de  parigo  e  de  sacrificio?  » — 
perguntou  o  jesuita,  com  certa  melancholia,  e 
uma  longa  interrogação  na  vista. 

—  «  Julgo  que  V.  paternidade  se  não  engana. 
Estou-o  conhecendo,  mas  não  sei  dizer  de  donde. 
Creio  que  alguma  vez  falíamos;  estou  certo:  a 
sua  voz  não  me  é  estranha...  » 

—  a  Ora  veja !  Eu  já  achei  e  passaram  por 
tnim  roais  annos.  Talvez  que  o  ul^ap  dia ,  ea 


Digitized  by  VjOOQIC 


BB  t^  JOlO  V.  173 

qtte  nos  enoonte&moa,  fosse  o  dia  em  que  no& 
despedíssemos  para  sempre.  Acredite  em  mila- 
gres ! ...  Sem  ellés  não  estava  aqui  nenhum  de 
nós;  e  não  fuja  de  um  resuscitado,  porque  o 
vem  aòhar  cora  muitos  cabellos  brancos  e  bas* 
tantes  trabalhos  de  mais...  Ainda  não  se  re-^ 
corda?)» 

•~  ff  Eu  já  vi  a  v.  paternidade !  »  —  exclamou 
o  mancebo  com  vehemencia^ — «  Jã  estivemos 
ambos...  » 

—  a  Com  a  morte  dknte  dos  olhos,  e  Jesus 
na  boca ,  diga !  » 

t  — «  É  por  signal?...  » 

—  a  Dei-^lhe  eu  um  annel,  e  disse4he  três 
palavras.  » 

—  «  É  verdade !  Foi...  » 

—  «Na  America.  Ora,  o  annel  conserva-o 
ainda,  d^aqui  vejo.  As  três  palavras  e  o  seu  voto 
é  que  não  sei...  Esqueceram-lhe  ?  Era  natural.  » 

—  c(  Espere!  Eram?  » 

—  «  Uuitopara  quem  sabe  o  que  ellas  val^n... 
Então V ainda  não  se  lembra  do  meu  nome?  » 

— «  Ah!  O  dia  de  S.  Bartholomeu!  V.  pa- 
ternidade é...  » 

—  d  Não  diga  mais...  Esse  nome  e  o  homan 
qne  o  tinha  morreram  na  America ,  em  Roma , 
aonde  quer  que  ficou  o  missionário,  que  nós 


Digitized  by  VjOOQIC 


174  A   HOCIDAM 

canheMiioi  ambos...  Hoje  >vè  j^  «psias  «  p»» 
dre  Mio  Vmhmí ,  que  teio  beijar  a  idIq  db  ^ 
rei ,  e  dá  iDJSnitas  graças  a  Dei» ,  «Beontrando 
vivo  Q  felias^^vejo  qtie  é  feliE !  «««m  um  compa^ 
nheiro  dos  seus  trabathoa...  Esqueça  o  priaiem 
Dome ,  e  apesar  d<^  segundo  acredite  que  o  1m^ 
mem  d9o  mudou ,  e  é  o  mesmo  sempre.  » 

—  hW.  pateriíiàaiíê aalniíl  Vu^  atiidcii aa bra- 
zéiro,  ouvi  os  descatitea  barbatoa  doa  ailva- 
gens...  y>  '  .       ' 

—  »  E  toma  i  Vei^aiie  seta  inaif  leite  do^e 
algumas  cicatrizes ,  prova  da  qué  XamUem 
ha  valor  em  pregar  a  ^  entfe  0|  idolatras?  Não 
se  adimre !  &ttvemof  atnboi  em  perigia,  eu  pri- 
meiro é  verdade ;  mas  ponha  os  olhos  era  ai  ^  'ar- 
di ga-me:  quem  o  salvou  f  »' 

— «  Foi  Deus  que  trouxe  de  repente...  i» 

—  «Os  flefs  que  me  desatarain  da  arvorai «  è: 
me  livraram  dos  tractos?  Entfio,  bm  yà;.  niaá 
deixemos  essa  historia.  Aqui  me  tem,  sem  meia 
cuidados  do  que  saber  ae  posso  ajbrafar  «m  ir- 
mKo )  ou  se  estou  feHamla  a  um  estrodio.,.  Nãài 
diz  nada  ?  )> 

—  «  Digo  que  Deus  é  grande,  e  infinííe  a  Mum 
poder.  » 

—  «E  que  daremos  triibalharp^ra  maior  gte** 
rio  $uã,  não  dix?  »  .       . 


Digitized  by  VjOOQIC 


DE  ».  Joio  V,  175 

—  nAi  íkojorem  Dei...  » 

— «  Gloriam!  É  a  àism.  da  compaiilua.  At- 
tenda-Die,  filho.  Esteve  depois  com  os  nossos,  re^ 
petiu  o  Yoto  que  lhe  tomei  na  véspera  do  mar- 
t}TÍo?...  Falle  sem  receio — aqui  n5o  ha  pe- 
rigo, Aquelle  é  terceiro,  nào  ouve »  —  e 

olhando  para  o  porteiro  da  canna  traçou  com  o 
dedo  indicador  um  signal  sd;)re  o  peito  ^  a  que 
este  correspondeu  incUnando-se  quasi  até  ao  chSio. 
—  Estamos  sòs ,  bem  observa  I  »  —  proseguiu  o 
padre.  —  «Repetiu  o  seu  voto?  Vejo  que  simi 
Também  serviu  a  companhia  em  espirito  e  von«* 
tade?  Espero  que  servisse!  E  se  eu  lhe  pergun- 
tasse, irmão,  padeceria  pe\a  causa  de  Deus  e.da 
egreja?...  »  ^        ; 

— «  Respondia  que  eUa  é  paciente  poirque  é 
eterna.  » 

—  «  Muito  bem.  Patiens  quia  i»ternu  /  É  o 
symbolo.  Dé-me  um  abraço.  Raras  vezes  j^q  en- 
gano. Quando  o  vi  deliberado  diante  da  morte 
qne  ambos  esperávamos,  percebi  qciB  se .  o 
o  coração  da  creança  já  não  yacillava,  o  que  ia- 
ria  o  homem  depois  de  feito?  Irmão  Jeropymo,, 
a  companhia  precisa  de  todos  os  seus  filhos^  Ha 
de  chamal-o ;  e  eu  respondo  que  vém. 

-«-  ff  Jurei  obedieoçia,  padrç  Ventura.  » 

—  «Mas  boje  cusfaelbe?  Um  bço  carnal 


Digitized  by  VjOOQIC 


176  A<  MÒCIBABE 

prende-o?Diga,  confesse...  N8o  se  envergonhe... 
É  moço  e  n5o  fet  voto  de  castidade.  Se  ama  é 
porque  é  amado.  Filho,  a  companhia  não  eúge 
impossíveis.  Somente  acautele-se ;  ouça  o  meu 
conselho.  O  seu  coraçSo  é  grande  e  forte...  cui- 
dado! São  os  que  mais  depressa  cahem.  Não 
deixe  que  a  imagem  de  uma  mulher  o  leve  todo 
atraz  de  si...  Olhe  que  não  ha  morte  peior.  » . . 

—  í(  Meu  padre,  a  esposa  que  escolhi...,aKrr.- 

—  i<  É  virtuosa  e  bella,  ia  dízer-meí  Não 
importo,  ame-a,  mas  depois  de  Deus.  Ora  pois ! 
Alegremo-nos  em  Jesu  Christo.  Conto  com  « 
sua  firmeza.  Aonde  mora?  » 

— <c  Na  rua  das  Arcas,  em  casa  do  meu  tu^ 

tor.  »  ^ 

— «  Lourenço  Telles ,  commendador  de  S. 

Miguel  das  Minas?  » 

— «  Quem  disse  a  v.  paternidade?...  v 
— <  Sempre  me  dizem  tudo.  » 

—  a  Mas  isto?...  » 

—  «  E  a  sua  noiva  é  filha  de  um  capitão  de 
navios,  negociante  rico,  cuja  irmã  esteve  de  se- 
cular em  Santa  Clara  ?  d 

—  «  Estou  pasmado!...  » 

—  a  Admira-se  ? . .  Diga-me :  no  tempo ,  em 
que  era  marítimo,  se  lhe  dessem  um  navio  atava 
o  leme  e  deixava-se  correr  em.  anore  secca  ? 


Digitized  by  VjOOQIC 


n  p.  JOIo  V.  177 

Nfio!  Deixara-se  nayegar  sem  derrota  em  risco 
de  perder  a  emÍ>arcaçião  e  affogar  as  tripalaçdes  ? 
Também  nlo.  Ora  sapponba  que  eu  soa  o  pi- 
loto e  que  faço  diligencia  por  salvar  algum  bai- 
xel do  naufrágio. » .  E  olhe  que  o  temporal  é 
maior  do  que  se  cuida  e  vem  tão  perto  que  o 
estou  sentindo.  Affirmo-lhe  que  se  perdem  mui- 
tos que  julgam  salvar-sé!  Mas,  vamos  ao  què 
importa.  Quero  que  yã  a  S.  Roque  <  ahfianhã  — 
é  melhor  depois ;  ás  nove  horas  em  ponto.  Posso 
esperal-o?» 

— *-  a  Irei  tomar  a  bençfto  de  v.  paterni- 
dade. » 

•*— «E  fallaremos  do  noaso  tempo.  Creia  que 
posso  e  quero  ajudal-o.  Depois  qne  nos  perdemos 
de  vista  o  sr.  Jeronymo  está  capitão ,  segundo 
vejo ;  melhorou ;  eu,  com  a  minha  roupeta  sem- 
pre, se  não  .valho  mais  do  que  então,  menos 
também  não.  Os  annos  dão  auctoridade ,  final- 
mente ,  não  peiorei.  Aqui  está  o  que  é.  Não  se 
esqueça  de  que  o  espero  em  S.  Roque  ás  nove 
horas.  Acabou  o  conselho  de  estado. » 

EíFectivamente tinha  acabado;  e  el-rei  fallando 
alto  da  porta  da  casa  do  estrado ,  para  a  sala  do 
docel ,  tão  alto  que  se  ouviu  tudo  na  casa  da  to- 
cha ,  disse  para  fora ; 

— «  Conde  de  Villar  Maior ,  prepare-se  ! 
T.  u  12 

Digitized  by  CjOOQIC 


17ft  A  MOCIDADE 

Em  quinze  dias  parte  para  Vienna  meu.  em- 
baixador ,  a  pedir  a  mão  da  arcfaidoquesa  D. 
Harianna  de  Áustria  para  s.  alteza  o  príncipe 
D.  João.  » 

—  «  S.  alteza  casa  ?  »  —  perguntou  o  capit&o 
.ao  padre. 

"^  (X  El-rei  diz  que  $im ,  ò  príncipe  diz  que 
mo. .  .«—replicou  este  sorrindo-se. 

-— «£  V,  paternidade  ?  D 

•—«Eu?.,  digo  só:  veremos!  Separe-se  de 
mim.  Essa  gente,  que  sahe ,  não  é  bom  que  nos 
yeja  fallando.  Neste  mundo,  filho^  a  habilidade, 
a  grande  habilidade ,  consiste  em  mostrar  por 
féca  o  contrario  do  que  vae  por  dentro.  É  o 
que  el-rei  agoca  fez. » 


Digitized  by  VjOOQIC 


CAPITULO  3US. 


SUA  ÁLTBZA  O  INFANTE  D.  FRANCISCO ! 


'  D.  Pedro,  depois  dè  entrar  tia  salla  do  doceK 
e  de  dizer  em  alta  vez  ao  conde  de  Villar  Maior 
Fernão  Telles  da  Silva,  o  que  onvimo»  no  eapi- 
talo  antecedente ,  voltou  á  casa  do  «  Estrado  >» 
aonde  o  ficarani  esperando  o  príncipe  real,  o  du- 
que de  Cadaval ,  D.  Nuno  Alvares  Pereira ,  e 
Diogo  de  Mendonça ,  o  qual ,  simples  secretario 
das  mercês  nSo  tinha  entrada  no  conselho  de 
estado ;  apresentando-se  porém ,  apenas  viu  qne 
acabardr  8.  magestade  foi  direito  á  sua  pol- 
trma ,  deu  algumas  ordens  ao  camarista  de  se^ 
mana,  e  lançando  a  s.  altecá  real  um  olhar 
pcjfscratador,  énterroct-^e  com  certa  complacên- 
cia na  sua  cadeira ,  e  dando  a  m9o  a  beijar  ao 
fHfao  df sse  cem  anctoridade : 


Digitized  by  VjOOQIC 


18(k  A  MOaDABI 

-V-  a  Podes  recolher-te ;  mas  fica  certo »  Joio. 
O  dito,  dito!  » 

—  tt  Deus  melhore  a  prçciosa  saúde  de  v.  ma- 
gestade !  » —  respondeu  s.  alteza  com  um  sor- 
riso ,  que  era  mais  do  que  uma  repulsa ,  pcnque 
chegaya  a  ser  um  desafio. 

Apenas  saiu  o  principe,  el-rei  virando-se  para 
o  duque  de  Cadaval ,  com  agrado ,  exclamou  : 

^*-«(  Duque;  os  rapazes  de  agora  são  peiores 
que  08  do  nosso  tempo  \  Tem  sido  uma  campa- 
nha para  obrigar  Jofio  a  ter  juiso.  Veja  se  o 
duque  D.  Jaime  nos  ajuda.  Meu  filho  ouyo-o.  » 

— <K  Fait-lhe  essa  honra ,  meu  senhor...  mas 
V.  magestade  permítte?  S.  alteza  é  muito  pare- 
cido a  sua  augusta  avó,  a  sr.'^  D.  Luiza  de  Gus- 
mão, se  ouve  a  todos,  não  se  guia  senão  por  si.  » 

—  a  Bem  sei.  João  é  teimoso ,  e  isso  é  o 
meu  desgosto.  Aonde  está  o  infante?  » 

— «  Haverá  minutos  vi  a  s.  alteza  conver- 
sando na  salla  do  docel  com  o  padre  confessor 
e  o  conde  de  S.  João.  » 

—  «  Ah  l  Diga-me,  duque :  ha  algqm  segredo 
para  achar  dinheiro?  Diogo  de  Mendonça,  que 
nos  corre  com  o  armamento  da  guerra,  sustenta 
que  navios  e  soldados  temos  nós,  agora  com  que 
os  armar!...  » 

—  É  a  difficuldade  ?  » -—  acudiu  o  duque  sor- 


Digitized  by  VjOOQIC 


ns  f».  JOÃO  t.  18  i 

rindo-se.  «  No  tempo  d'el-rei  D.  Joào  IV,  4^ 
saudosa  memoria,  não  se  esteve  melhor,  e  che- 
gou a  rainha  D.  Luiza,  minha  senhora,  a  empe- 
nhar todas  as  jóias...  » 

— «  Mas  as  decimas,  duque !  Deus  me  per- 
doe ,  mas  suspeito  que  as  decimas  são  comidas 
no  caminho.  Vejo  os  contadores  muito  gordos , 
c  tudo  quanto  é  meu  tão  magro  que  faz  dó.  >» 

Diogo  de  Mendonça  riu-se  com  a  metade  do 
rosto  que  olhava  para  o  duque,  e  fez  uma  con- 
torsão  lacrimosa  com  a  outra,  que  estava  exposta 
ao  régio  exame.  O  duque  tomava  liberdades  de 
velho,  e  tinha  um  genip  forte.  Por  isso  apanhou 
a  luva  no  ar  e  respondeu  logo. 

—  «  Quer  V.  magestade  que  eu  explique,  por- 
que a  decima  rende  pouco  e  o  reino  emmagrece 
quando  os  cobradores  engordam  ?  » 

—  «  Diga !  » 

—  «  Saberá  el-rei  que  isto  não  é  meu  ;  é  de 
um  homem  que  está  no  real  desagrado,  mas  que 
não  deixa  de  ser  de  conselho ,  muito  sábio ,  e 
bom  portuguez  ?  » 

—  «  Quem  ?  » 

—  «  Luiz  de  Yasconcellos  e  Sousa  ,  conde  de 
€astelIo  Melhor ,  e  secretario  da  puridade  que 
foi  do  sr.  D.  Affonso. 

— «  Ah!...  »  — clamou   el-rei,   dando   um 


Digitized  by  VjOOQIC 


18fS  A  HOGIDADfi 

pulo  19a' cadeira  cema  se  o  mordesse  uma  yíbora, 
e  conglobando  na  sua  interjeição  o  ódio  e  as  la- 
ctas de  muitos  annos. 

—  «  Posso  continuar?  » —  perguntou  o  du- 
que ,  aífrontando  com  dignidade  a  repentina  al- 
teração, que  apparecia  no  semblante  de  Pedro  II. 

-—  <í  Continue !  » 

—  a  Luiz  de  Vasconcellos,  que  nos  governou 
com  sabedoria ,  e  que  eu  me  não  consolarei  de 
ter  ajudado  a  derribar — perdoe  v.  magestade, 
é  o  que  sinto! — jâ  estaysi  no  conselho  de  es- 
tado quando  s.  magestade  a  rainha  mãe  se  quei- 
xou um  dia  do  mesmo  que  el-rei  acabava  de  di- 
zer. O  conde  tem  um  modo  de  sorrir  que  é  só 
delle ;  do  seu  modo  de  fallar  e  conversar  só  ob- 
servarei que  até  os  próprios  inimigos  gostam.  » 

—  «O  duque  por  exemplo ?  » -—  interrompeu 
D.  Pedro  com  ironia. 

— «  È  verdade  1  Não  torna  cá  tão  cedo  mi- 
nistro como  elle :  os  seus  successores  é  que  o  fi- 
zeram bom...  Nem  vejo  capaz  de  o  su|^rir  se- 
não este,  e  havia  de  ser  menos  paceiro  e  mais 
aberto.  » 

Diogo  de  Mendonça,  para  quem  era  o  sobscri- 
pto,  fez  uma  cortezia  muito  séria  ao  duque  e  el- 
rei  desatou  a  rir. 

—  «  Vamos  ás  decimas,  duque !  — es^clamou 


Digitized  by  VjOOQIC 


DS   D.   JOÀO  V.  183 

o  monarcha.  — «  Olhe,  estamos  a  muitas  legoas 
delias...  » 

— - «  Já  vou,  senhor  1  Desculpe  v.  magestade ; 
s9o  achaques  da  idade.  Os  velhos  tem  estas  im- 
pertinências,  e  no  capitulo  das  historias  do  seu 
tempo  ainda  mais...  €k>fflo  disse,  a  rainha  mãe 
queixoo-se  e  Luiz  de  Vasconcellos  sorriu-se.  Ora 
s.  magestade,  hespanhola  e  muito  viva,  como  el- 
rei  sabe.  Mo  gostou,  e  levou  o  caso  a  mal  O 
Castello  Melhor  era  ainda  rapaz ,  e  ninguém  lhe 
fazia  a  experiência  què  ao  depois  mostrou :  era 
natural  q\ie  a  rainha  se  enganasse  com  ék.  Para 
o  confundir  s.  magestade  exclamou : 

— • «  Ri-se,  conde  ?  Melhor  seria  que  nos  dis- 
sesse o  modo  de  acudirmos  a  tamanho  erro.  b 

—  c<  Se  V.  magestade  ordena !  »  —  respondeu 
elle  muito  sereno.  ^ 

—  «Diga!  » 

—  «  V.  magestade  permitte-me  um  apologo  ?  » 

—  «O  que  quizer !  »     . 

—  «  L4iiz  de  Vasconcellos  tirou  de  cima  do  bo- 
fete  o  areeiro  e  vasou  a  areia  nas  mãos.  —  <x  Aqui 
está  —  disse  elle  —  isto  é  o  que  o  reino  paga  I  » 
Fez  correr  depois  a  areia  de  nâo  para  mão : 
quando  chegou  ás  da  rainha  vinha  na  terça  par* 
te.  »— E  aqai  este  o  que  v.  magestade  íecebe !  » 
-~  concluiu  por  fim. 


Digitized  by  VjOOQIC 


t84  ^  jwroaDADfi 

:  «Expliqne-sel»  —  obsenou  a  sr/ D.  Luits 

meia  suspensa. 

—  «É/acil,  minha  senhora!  A  areia  foi-se 
pegando  ás  mãos;  e  como  passou  por  muitas/ 
nào  se  admire  v.  magestade  se  a  maior  parte  fi- 
cou pelo  caminho.  O  mesmo  succede  ás  deci- 
mas ;  a  praia  e  o  oiro  ainda  se  pegam  mais ,  e 
por  isso  resta  apenas  o  que  v.  magestade  vè !  São 
tantos  a  contar  e  tantos  a  arrecadar  queaiodaé 
milagre  o  dinheiro  que  nos  deixam !  » 

  rainha  Bcou  pensativa ;  e  desde  esse  dia  at- 
tendeu  mais  eCastello  Melhor,  apesar  de  pouco 
engraçar  com  elle«  Eu  digo  hoje  a  el-rei  o  mes- 
mo; e  acrescento  de  minha  casa: — applíque- 
mos  a  fabula,  senhor!  e  ver-«e-ha  que  ella  é 
boa,  e  a  moralidade  certa. » 

—  «A  resposta  foi  engenhosa.  Mas  nao  me 
disseram  que  o  conde  estava  cego?»  —  observou 
el-rei. 

—  «Ainda  nào.  Vê  bastante  para  servir  el- 
rei  até  no  conselho  de  estado,  se  o  chamarem...  » 

—  «  Bem  I . .  Appareça  mais  vezes,  duque*  Faz 
sempre  muito  boa  companhia.  Então?. .  » 

—  (c  Bejo  a  mao  a  v.  magestade  e  tomo  as 
suas  ordens. » 

—  «O  duque  tem  graça  e  discrição! — re- 
flectiu el-rei  assim  que  o  velho  fidalgote  auseo— 


Digitized  by  VjOOQIC 


DB   D.   JOÃO  V.  i8S 

Um^;  demais  gosto  da  sua  Traiiqueza. . .  Diogo 
de  Mendonça ,  tu  que  toste  poeta ,  e  desconfio 
qae  ainda  o  sejas  ás  escondidas ,  a  que  o  com- 
paravas?» 

—  <xÁ  um  mealheiro  antigo  aberto  no  fim 
de  muitos  séculos. » 

—  «A  rasao ? » 

-—  «  Porque  tem  moedas  raras,  oiro  fino,  mas 
infelizmente  com  ellas  ninguém  pôde  acertar  as 
contas. . .  Não  parece  o  mesmo  a  v.  magestade  ?  » 

—  «  Achas  então ,  que  n56  corria  ?  i> 

—  «Os  cunhos  são  antigos  de  mais,  senhor !  n 

—  «E  apesar  disso  tem  juiso,  e  é  de  bom 
conselho. . .  Que  despropositadas  gargalhadas  são 
aquellas?  » 

—  «  É  s.  alteza  sereníssima  com  o  padre  con^ 
fessor  e  o  conde  de  S;  Jbão»  —  respondeu  o  se- 
cretario das  mercês ,  que  fora  á  porta  e  voltava 
encolhendo  os  hombros. 

—í-w  Porque  ri  tSo  alto  s.  alteza?» 
— -«Ignoro,  mas  é  íacil  saber-se.  O  sr.  in- 
fante tem  a  falia  tão  forte,  que  prestando  atten- 
ção,  V.  magestade  ouve. » 

— . «  Os  cabreiros — dizia  o  infante  —  estavam 
no  chão  á  roda;  a  fogueira  a  arder:  e  a  malga 
cheia  ,de  assorda  no  meio.  Rabeando  com  fome , 
cheguei-me,  e  os  villOes  julgam  que  se  levanta- 


Digitized  by  VjOOQIC 


186  A  MOGIDADB 

ram  ?  Pedí-lhes  agasalho  e  por  moitíD  &vor  duH 
aeram: — asseote-ae  e  coma  do  que  houTor. — 
Mas  não  ba  culher? — ccHrtarain  logo  um  eaiito 
de  broa,  vasou^se  por  dentro  á  ponta  da  nava- 
lha, e  deram*m*o,  espetado  em  um  caniço,  ber- 
rando :  —  não  se  esqueça  de  a  roer  depois  1  -^ 
Biram-se  da^  graça ;  e  eu  de  rastos  pelo  chão  fui 
obrigado  a  tirar  da  gamella  atraz  do  maioral, 
nem  mais  nem  menos  do  que  se  fos^e  um  men- 
digo ,  ou  um  guardador  de  porcos. » 

—  «Coitada  da  pobre  gente — acudio  o  con- 
fessor — se  elies  soubessem  que  era  v.  alteza  \  ^, . 
Assim  mesmo  deram  o  que  tinham. . . » 

— «Esperei  Mas  olhe  que  os  ensinei.  Aoa^ 
bada  a  ceia  appareceu  o  meu  veador  e  os  crea- 
dos  do  monte ;  viram-me,  e  nomearam-me.  En- 
tão é  que,  sabendo  que  era  o  infante,  os  cabrei- 
ros se  pozeram  de  joelhos  e  mãos  postas. . .  a 
boas  horas ! » 

—  c(  E  V.  alteza ,  mandou-lhes  signaes  da  sua 
grandeza?» — interrompeu  o  coude  ite  S.  João. 

—  «  Oh !  pois  não !  virei^me  para  elles  muito 
risonho ,  e  disse-lhes :  meus  amigos  Soi  o  ajuste 
comer  cada  nm  a  sua  culher.  Eu  vou  roer  a  mi- 
nha ,  hão  de  roer .  as  suas: . .  Ora  as  culheres 
delles,  eram. . «  não  advinham!|. .  )i—- gritoa  o 
inlante  rindo  como  um  perdido. 


Digitized  by  VjOOQIC 


MS  D.  wio  y.  187 

-^^Dejfio  ?  »  — dísseramo  jesuita  e  o  coDde, 
— «De  chi&el»-^ concluiu  s,  alteaO'  com 
estrondosas  risadas. 

—  «  E  elles  ?  »  —  perguntaram  os  dois. 

—  «  Roeram-nas  1  E  se  o  vcador  nào  pedisse, 
ainda  em  cima  mandavdH)s  para  a  cadéa. » 

O  confessor  e .  o  conde  olharam  um  {)ara  o 
outro.  Esta  graça  do  infante  esfriou  muito  o  zelo 
de  ambos  pelo  seu  serviço. 

—  «Ah,  Diogo  de  Mendonça  —  dizia  el-rei, 
ao  mesmo  tempo ,  corando  muito  —  haverá  cas- 
tigo igual  ao  que  Deus  me  deu  com  este  filho? 
Informa-te  amanhã,  e  manda  recompensar. essa 
pobre  gente  < .,  ^ 

—  «Perdoe  v.  9ltezal  —  disse  a  confessor, 
apenas  o  riso  do  infante  Ihe.permittiu  fallar— <- 
£l-f ei  D.  João  IV ,  seu  avô,  uma  vez  andando 
â  caça  perdeuHse  também  e  foi  dar  a  um  raucho, 
que  repartiu  com  qlle  da  sua  pobreza.  Somente 
Bo  fim ,  é  que  se  deu  a  conhecer  pelas  provas 
da  real  munificência ;  e  rogam-se  mil  bens  ainda 
boje  a  s.  ms^gestade  pela  esmola  qúe  deixou.  Pa^ 
receme  que  este  exemplo. .  .  » 

—  «  Padre  confessor ,  sabe  que  ine  disseram 
hontepi  um^  cousa  a  seu  respeito  ?  m  -r-  interrom* 
peu  o.  iufante  dando  piparotes  nas.or^has,  e 
pondo-as  côr  de  cereja. 


Digitized  by  VjOOQIC 


188  A   MOCIDADI 

—  «O que  é  meu  senhor ? »  —  perguntoir in- 
nocentemente  o  religioso. 

—  K  Que  V.  reverendíssima  era  de  Braga ,  4 
devia  andar  de  braga  «o  pé. » 

—  «  Sr.  infante ! »  —  clamou  o  padre. 

—  «Ainda  mais,  espere'  —  proseguiu  s.  al- 
teza, piscando  os  olhos  ao  conde  de  S.  Joào.  — 
Disseram-me,  que  duas  raparigas  como  duas  es- 
trellas. . . » 

—  «  Sao  sobrinhas ! »  —  gritou  s.  reveren- 
dissima. 

—  «Deus  o  sabei»  —  respondeu  o  serenís- 
simo algoz,  fazendo  tregeitos  acompanhados  de  ri- 
sadas ,  que  valiam  por  um  libello  famoso. 

—  «O  que  a  v.  alteza  vale!..  » — disse  o 
jesuita  convulso  e  côr  de  betarraba. 

—  «  Não  se  arrenegue,padre  mestre.  Sei  muita 
coisa  ainda ! . .  E  por  signal  as  dotou  em  vinte 
mil  cruzados  cada  uma ,  do  dinheiro  que  os  in- 
glezes  lhe  deram  para  enganar  meu  pae. )» 

O  confessor  passou  de  repente  de  rubro  a  côr 
de  cré,  e  foi-lhe  preciso  segurar-se  á  janella  para 
não  cahir  redondamente.  Àfflicto  e  vexado,  o 
tonde  de  S.  João  amparava  o  religioso,  que  sen- 
tia chiar  os  miolos  na  cabeça  como  elle  depois 
disse.  Uma  apoplexia  pairava  sobre  a  rotunda 
personagem :  o  conde ,  indignado,  entendeu  qu^ 


Digitized  by  VjOOQIC 


por  honra  raa  deiia  intçrpor-sè  e  acabar  com 
esta  seena. 

—  «  Repare,  y.  alteza !  s.  reverendimina  é  con- 
fessor de  el-ret  e  nSo  é  de  suppor  que  s.  mages- 
tade  leyé  a  bem  graças  tão  pesadas. . . » 

O  infante  disparou  na  cara  do  fidalgo  a  gar- 
galhada mais  insolente ;  e  recorrendo  ao  ordiná- 
rio estrebilbo  principioa  a  beliscar  as  costas  da 
níão,  dizendo  alto;  —  «Joanico,  joanico  qaem 
te  deu  tataianho  bico?» 

Em  um  momento  fez-se  de  mil  cores  o  conde. 

Violento  e  cholerico  mordeu  os  beiços  cóm  tanta 

raiva ,  que  espirrou  o  sangue  deiles.  Ao.  mesmo 

tempo,  medindo  o  príncipe  de  alto  a  baixo» 

•  dízta-Jhe  em  yoz  presa  de  furor: 

—  «Agradeça  v.  alteza  a  Deus  a  minha  pa^ 
ciência  1  Se  não  fosse  quem  é  e  eu.  respeitasse 
menos  él*rei. . .  n 

*— « H atayanne  oJoU  das  ioiiaf /»  —  gritou 
o  sr.  D.  Francisco,  fazendo  tourinha  do  yelhoi 
militar ,  e  contrafazendo-rlhe  os  gestos  em  rídi-- 
cuias  momices.  - 

A  allusão  resumia'  para  o  conde  todas  as  in-- 
jurías.  Na  campanha  de  1704,  sendo  geueral. 
aócusaram-no  da  não  scAer  aproveitar  a  occasíão» 
perdendo-se  pòr  sua  culpa  Alcântara  e  Badajoz, ' 
que  wm  podiam  cahir  na  mB6.  Em  um  pasquim; 


Digitized  by  VjOOQIC 


190  A  MOCIDAM 

affixado  na  lua  b«rraca,  escrevefa  mn  éifinuadBr 
que  a  causa  da  inac^o  foram  as  botas  de  scíte 
léguas  do  illustre  general* 

Effectivamente  sua  senhoria  era  achacado  da 
gota  e  as  enormes  botas  pareciam  doas  torres. 

O  primeiro  movimento,  tendo-se  mattraotado, 
foi  deitaiv-se  a  perder ,  lythograpbando  a  cabeça 
do  insolente  no  tae&o  das  botas  alludídas ;  o  se- 
gundo, mais  prudente,  reduiio^^  a  hitrincfaei- 
rar-se  na  dignidade  do  homem  catamniado: 

—  «V.  alteia  decora  bem  os  pasquins  dos 
meus  inimigos  1— disse  com  amargnra.*-^Ye* 
remos  se  é  do  agrado  de  el-rei  que  os  creados 
da  sua  casa  estejmi  expostos  a  ouvir  coisas,  qae 
fora  do  paço  e  em  outra  bècca  teriam  exemfátf 
castigo.  Conte  r.  alteca  que  hei  de  informar  a  s. 
magestade.  »• 

—  «Olhe,  conde,  e  nto  se  esqueça:  diga-lht 
mais  que  jft  Mnipou  a  cara  da  bofetada  do  almi- 
rante de  CasteNa^  Parece  que  ainda  a  Iam  in-^ 
chada.» 

O  fidalgo  soltou  um  rugido,  e  lirou  meia  es- 
pada. Esta  segmda  affironta  era  peior;  e  alliidía 
àt  voz  de  traidor  que  o  almirante  lhe  dera  em 
Entremos,  e  à  oerrecçlo  instantânea  afpptíoad» 
peio  conde  fr  face  do  castelhaaio,  idonde  rearitm 
a  «Bte  cahir  inMttediatamtate  oom  ooma  apofiltisia^ 


Digitized  by  CjOOQI^ 


BB  B.  JOÃO  V.  191 

de  que  expurou  hents  depois.  O  infante  tranatoF* 
nav« ;  mas  assim  mesmo  o  punkal  entrou  até  ás . 
guardas. 

—  «Não  me  tente  v.  alteza  1» — gritou  elle, 

•^->«  Conde  de  S.  Jofto  —  disse  eWei,  appa- 
recendo  de;repente  eom  semblante  severo -^con<* 
dusa  s.  alteza  sereníssima,  debaixo  de  pri^o^  á 
Corte  ReaK  O  conde  responde*me  por  elle  até 
segunda  ordem.  Infante  D.  Francisco,  peça  per-^ 
dAo  ao  padre  confessor  e  ao  conde  de  S.  João  do 
seu  atrevimento. . . » 

-r- ^Nao  quero  pedir  perdão* . . »  —  gritou  o 
iiifiiiite  em.  altos  gritos. 

*-^«  Hades  pedir,  que  mando  eu,  e  agora  de 
joelhos. .  • «— »-  exclamou  el-rei»  pondo^lhe  as  mfios 
nos  hondbros  com  tanta  íbrca  ^  que  o .  fez  cahir 
de  bruços. — Falia,  ou  pelo  sangue  de  Jesus 
Clttistoesqueçò-me  de  quem  sou  l  O  conde  acom- 
panba^e.  Toma  sentido  I  Se  te  escapar  a  menor , 
palavra  ou  a  menor  acçSo  de  offensa ,  hoje  mes- 
mo vaes  dormir  á  Torre.  Sou  eu  que  t^o  prometto. 
Sahel..» 

El*rei,  muito  pallído,  recoiheu-se  depois;  e 
o  infante,  rasgando  o  lenço  entre  os  dentes,  par-* 
tfttt  a  correr  adiante  do  conde  de  S.  JoSo,  que  a 
euato  b  ponde  seguir  de  longe,, 

D.  Pedro  firou-^  cem  «un  grande  suspiro  para 


Digitized  by  VjOOQIC 


192  A  MOaDADI 

o  seu  confessor  e  fNira  o  lecmUírío  ân  mmés^ 
«xelamando  com  a  elocfueocia  da  tristeta ,-  mais 
nos  olbos  e  no  rosto  do  que  nas  palavras : 
.    —«Estes  fiihos!. .» 

Os  dois  sinceramente  commoyidos  tnclinaram- 
96  com  respeito  diante  da  dor  do  pai,  e  da  coih 
fàsào  do  rei. 

D.  Pedro  calou-se ;  o  seu  coraçHo  jft  nfio  po- 
dia com  as  anciãs.  Também  os  conselheiros  nSo 
diziam  nada ;  porque,  um  silencio  assjra  não  ousa 
ninguém  rompel-o  senio  para  reaniiftar  a  espe^ 
rança,  e  alli  não  era  possivel  introduzil-a.  Passa- 
dos alguns  minutos,  D.  Pedro  leTantou  lenlfr- 
mente  as  pálpebras,  que  tinha  baixas,  para  es- 
conder taWez  as  lagrimas,  e  pondo  os  olhos  no 
crucifixo,  exclamou  com  as  mãos  erguidas  e 
grande  paixão  no  gesto : 

—  aÂcceitai  esta  coroa  de  espinhos,  senhor; 
e  possa  ella  resgatar-me  perante  a  vossa  justiça ! » 

«-^  «  Âmen ! »  -^  respondeu  o  padre  confessa. 
.  S.  reverendíssima  ia  espairecendo  á  «ae£da 
que  a  real  consciência  escurecia.  Medico  da  alma^ 
sabia  que  esta  precisava  delle  para  adormecer , 
ccmio  as  vigílias  do  ópio  para  socegarem.  O  seo 
predominio  nunca  estava  tão  seguro^  como  nas 
horas  de  deliquio,  em  que  o  espírito  do  príncipe^ 
quebrantado  e  timorato,  vJnfaa  ahraçarnse  ft  eruz 


Digitized  by  VjOOQIC 


BS  B.  wlo  V.  193 

4Íõ  SftW&(for,  pediâdo^lbe  paz  e  esquecimento. 
Nestas  oecasiões,  o  padre  Sebastião,  abrindo  com 
tê  promessas  divinas  as  portas  do  céu,  tinha  a 
certeza  de  obter  da  (raquesa  do  penitente  quan> 
tas  concessões  desejasse  extorqair-lhe. 

D.  Pedro,  que  o  tractava  uma  hora  antes 
quasí  com  desagrado,  olhava  agora  para  elle  com 
profunda  an#iedade.  Tinha-se  tornado  um  autó- 
mato ,  e  d»edecia  machinalmente.  Este  poder  vi- 
sível do  padre  explicava  a  sua  influencia.  Diogo 
de  Mendonça,  religioso  mas  hão  fanático,  de- 
voto sim,  mas  não  supersticioso ,  persignava-se 
mentalmente,  e  em  silencio  ia  responsando  a  di- 
gnidade da  corda  e  os  interesses  do  estado ,  offe- 
recidos  em  holocausto  pelos  remorsos  do  príncipe 
ao  jesuita,  cuja  roupeta  negra  era  neste  momento 
um  panno  fúnebre  lançado  sobre  o  throno  viuvo 
de  rei,  e  sobre  a  monarchia  privada  de  cabeça ! 

Quem  visse  a  scena  que  descrevemos,  nSo  po- 
deria negar  que  D.  Pedro  II  era  como  se  não 
existisse,  e  que  durante  o  interregno,  a  socie- 
dade de  Santo  Ignacio ,  pegando  na  mão  passiva 
do  rei ,  confirmava  com  ella  o  seu  poder ;  por- 
que o  rei  já  não  tinha  de  homem  senão  os  ter- 
rores, e  a  companhia  unia  o  arrojo  â  intelligen- 
cia  subindo  os  últimos  degraus  do  throno ,  e  en- 
costando-^ com  orgulho  ao  sceptro  da  monarchia ! 
T.  n.  13 

Digitized  by  VjOOQIC 


194  A  «OaPADB 

D.  Pedrot  eom  tok  fraca,  e  olhar  itoAtám^ 
YoItoiMe  para  o  canfessor ,  e  p^nguotoa : 

— «  P.  SebastiSo,  diaserannse  por  miiiha  ia- 
tençSo  as  trinta  missas  do  costume?  » 

—  c<  Sim ,  oieu  sr«  l  » 

<-— «  Deohse  esmola  aoa  treze  pobres  que  eu 
disse?  x> 

— «  Também  se  deu*  i» 

— ^  «  A  confraria  de  Santa  Engraeia  já  reo^* 
beu  o  frontal  novo ,  que  mandei  ?  » 

— *«  Hontem,  meu  sr.!  £  mais  o aaerario  de 
prata  para  S.  Julião.  » 

—  <x  Bemdito  e  louvado  seja  o  Santisaimo  St- 
eramento  do  altar!*..  » -^exclamou  el^r^,  peií- 
do-«e  de  pé. 

— «  E  a  immaculada  Conceito  da  Vii^gem 
Maria ,  Senhora  Nossa !  n  •«-  aocrescentou  o  je- 
suíta ,  cruzando  os  braços  devotamente, 

—  «  Está  certo ;  eu  rezaria  as  minhas  Hotas^ 
falt^  a  alguma  devoçio?» 

— «y.  magestade  é  bom  catholico;  cumpriu 
todos  os  seus  deveres. » 

—  «Mas  estes  desgostos  não  sÍo  naturaes. . . 
Que  dia  é  hoje?» 

—  «Sexta,  feira ^  dia  da  morte  e  pâixio  de 
Jesus  Christo ,  Senhor  Nosso.  » 

—  «Se^ta  feira ! . .  — gritou  D.  PedrOt  fa- 


Digitized  by  VjOOQIC 


BS  D.  JOiO  T.  \Q& 

teoikHlc  braqcQ  e  todo  tremulo -^  Sexta  feira,  e 
V.  revi^repdissíma  oao  me  avisa  ?  l  fstou  perdi-- 
do ! . « AquelUs  perdizes ,  aquelas  perdizes ! . . . 
O  qve  suooedeu  foi  castigo.  Comi  carne  á  sexta 
feira f  padre  SebaitiSo!  não  cumpri  q  jejum,  e 
dormi  descapcado  pa  mioba  pama;  esta  gente 
não  me  ài%  U9da  de  propósito.  Se  Nosso  Senhor 
me  K^bama  dp  repente  morria  em  peccado  mor- 
tal. . .  Que  sacríiegip }  Perdi?;  á  se^pta  feira \,.n 
—  <t  Observo  a  v.  magestad^  -^  at^lboigi  o  je^ 
suita,  interiormeotís  cbeio  de  jubilo^  ma3  m  ex- 
teiior  figurandoH^  perple^p — que  é  çaao  grave, 

f-^  0  JSssf  mas  custa*-me  pelo  meuQs  meio  se- 
cuk)  íg  pwgfitorio!^  clamou  D.  PedWi  pa^ 
aeíaudo  agitado.  -^  ;^  por  wa  culjpia ,  padre  Se- 
basti%9 ,  por  culpa  sua ,  Deus  o  sabe  1 » 

— «  É  grave  —  tornou  o  confessor  serena^- 
mfinb^*->^mA8  temos  remédio. » 

^^«N9o  importa 9  comi  perdiz!  £  agor«  me 
r^^l^do :  njip  me  pu?eram  m  Jfm^  um^  e^ama 
cte  peí^f  S$o  diabrur^s  dos  medico^ ,  dos  bere- 
Im  do»  mediíji^. , .  Quem  mfmd^  fiar^me  Telles 
e  tí^Q  perguptur  uada?  Pequej,  fsqm  1  devia  le- 
vaobir^fim  logo.  Autes  coippie^  p9o  secco.  Tiuba 
a  mmbft  çopwi«iiPÍa  tranq^iUa.  » 

-^«Nlio  a^ag^re  V,  m^gestadet  O  coraçio 


Digitized  by  VjOOQIC 


196  A  MOCIDADE 

eslÀ  puro,  se  peccou  fói  ignorância. . .  Entre- 
tanto, para  diíer  a  verdade  o  caso  parece^me  in- 
trincado. . .  TaWez  sessenta  missas  e  uma  boa 
esmola  ás  missSes  da  propagaçSo  da  fé. .  .  Em- 
fim^  aqui  está  o  sr.  Diogo  de  Mendonça,  excel- 
lente  canonista,  e  elle  explicará  a  y.  magestede. .  j» 

—  «  Pobre  de  mim  l  Eu  que  n9o  valho  nada ! . . 
Aonde  falia  v.  reverendíssima  citar  Direito  quem 
é  tão  esquecido,  modéstia  á  parte  . ..  Ha  de  per- 
doar ,  mas  eu  nfto  fallo. » 

El-rei  olhou  para  o  secretario  das  mercês, 
como  o  leproso  do  Evangelho  para  o  medico  di- 
vino. O  manhoso  cortezdo ,  apesar  do  seu  tacto 
e  conhecimento  dos  homens,  apesar  de  saber  de 
côr  o  caracter  e  as  fraquezas  do  monarcha  ,  es- 
tava absorto  com  a  scena,  e  não  fazia  senão  di- 
zer comsígo:  —  triste  rer,  a  que  estado  te  re- 
duziram ! 

Quando  o  jesuíta  citou  a  sua  auctoridade  em 
Cânones,  apezar  de  costumado  a  cohibir-se ,  as- 
sim mesmo  custou-lhe  muito  a  conter-se,  para 
dão  denunciar  na  physionomia  o  seu  ardente  de- 
sejo de  pegar  no  padre  ^'pela  roupeta ,  ir  a  uma 
jânella,  e  baldeal-o  sem  confissão  nem  sacra- 
mentos. Comtudo,  feita  a  profissão  de  humil- 
dade académica ,  e  ferida  a  lancetada  nos  theo- 
lógicos  talentos  do  confessor,  o  ministro ,  lendo 


Digitized  by  VjOOQIC 


DB  D.    JOÃO  V.  197 

no  semUante  de  el*rei  uma  ordem  formal  re- 
síg&ou««e ,  e  subiu  ao  palco.  Como  babil  come- 
diante obrigou  logo  o  rosto  a  moldár-se  ás  cir- 
cumstancias,  e  os  olhos  a  pasmarem  a  vista,  de 
modo  que  exprimissem  uma  longa  e  casuística 
interrogação  mental. 

Depois  da  perplexidade,  o  secretario  das  mer- 
cês ,  enrouqueceu  a  voz ,  apoutou  os  óculos  en- 
tre o  Índice  e  o  polegar ,  e  meneando  a  cabeça 
fio  tremulo  mais  artístico ,  principiou  a  repre- 
sentar, o  que  fazia  sempre,  mesmo  até  dormindo, 
acrescentavam  os  seus  inimigos. 

—  a  Que  posso  dizer,  em  caso  tão  grave,  esco- 
lho dos  maiores  doutores  que  sSo  a  gloria  da  igre- 
ja ?  »  exclamou  lançando  as  palavras  seccas  e  vi- 
bradas. «  Temos  aqui  um  sábio ,  um  theologo , 
um^  amigo  espiritual  de  v^  magestade  ?  E  quer- 
se  que  falle  eu,  o  menos  capaz  de  acertar!  Ya- 
iha-me  o  ceu  1  Em  que  escrúpulos  estou  met- 
tido.  Obedeço ,  mas  Deus  sabe  se  é  com  ddr  do 
meu  coração !  Direi  a  verdade.  V.  reverendís- 
sima rí-se?  Pois  é  assim.  Nunca  me  fez  mal 
senão  a  oimia  boa  fé,  a  minha  nimia  boa  fé ! ... 
Mas  sempre  aifirmo,  e  v.  reverendissima  co- 
nhece-o  melhor  do  que  eu ,  que  ha  muita  difFe- 
r^iça  entre  dogma  e  disciplina.  Concordam  to- 
dos nisto ,  até  o  padre  Molimi  aquelle  grande 


Digitized  by  VjOOQIC 


198  A  MOClMDt 

mestre  da  cb&scteficia !  O  jejum  líefMl9  pt^ceíto 
da  igreja  nãú  é  dogma  i  peceou  v.  mag^stáAs  ? 
De  certo !  Sou  justo ,  corto  direito*  E  tíé  pee- 
cou  bastante ;  ehtetido ,  porém  ^  que  o  caso  tillo 
pede  tantos  temores ;  e  S;  tevéire&diSsima  o  diltt. 
Sustento  eu  que  ndo ;  ha  qâèm  me  poiSft  eõfe>- 
testar?  Quanto  á  penitencia...  nSo  KèA^  não 
me  pertence  ;  tom&)ra  achal-a  òondigm  dos  mens 
grandes  pecéados ,  mais  numerosos  desgraçada- 
mente do  que  os  cabellos  da  cabeça ,  (e  tenho 
bem  poucos  já ! )  por  enfermidade  de  «spirito  e 
simplicidade  de  animo^  Depois ,  C&mò  oS  m^i- 
cos  probtbiram  a  V.  magestide. ...» 

—  «  Nao  me  fallem  dos  médicos! »*— gritou 
el-rei  irado  —  itfto  de  mettet-me  no  inferno. 
Quero  despedir  os  misdicos !  » 

—  «  Socegue  v.  magestade»^'^  acudiu  O  con- 
fessor— «  Jesus  Christo  deix?6u  na  isua  igr^a 
remédio  para  todo  o  género  dè  peccadò.  Qaiz 
ònvir  a  opiniSio  do  sr.  Diogo  dé  Meâdòtiçè  ^  ^ 
em  Cânones  é  ò  nosso  mestre,  e  esilMi  aot- 
forme. .  .  » 

—  «  Muito  òbfigàdò  «i  y.  neter^ttdiftitod !  » 

—  «  E!-rei  »  —  continuou  o  padre  -—  «  mMida 
dizer  sessenta  missas,  e  para  íua  mortifiOi^e  j^ 
jua  émánhã ,  sabbado  de  Nossa  ãeyibdfti.  (Mlb 
dias  consecutivos  nto  come  pèrdíft,  M  ootm 


Digitized  by  VjOOQIC 


DE  D*  JOio  y.  199 

ave  de  apetite.  Parece-^me  »— acrescentou  olhando 
para  D^ogo  de  Mendonça  —  a  que  asaim  ficwá 
tudo  sanado?  » 

-*— aPois  nio?  £  ainda  temos  de  sobre- 
cellente  as  indulgências  I  ?  »<•*— acudiu  esta  com 
uma  seriedade  iiresistÍTeL  » —  O  caso,  atte»- 
da^nie  t«  magestade ,  é  não  comer  perdiz  esta 
semana,  segundo  nota  s.  reverendissinia ;  e  de- 
pois as  missas ;  as  missas  per  causa  do  purgato*- 
rio. . . .  Isso ,  e  uma  esmola.  —  » 

— «  Ás  missões  e  aos  captiros?  » —  inter- 
rompeu  o  confessor. 

— -  c<  Pois  a  quem  ?  Santa  applicaçiD !  » -^ 
ooncimo  o  ministro  sem  deaengatilfaar  um  dos 
músculos  da  face  —  «  Sabe  v^  ínagestade  que  ha 
fornada  em  Roma?  Queoem  lá  os  quindenios 
atmtdos  dos  bms  da  companhia  de  Jesus.  £ 
tiles  não  são  tolos ;  a  esmola  é  menos  m&.  Soa 
santidade  amf»ça  o  geral  com  as  censuras. . .  » 

Dep^s  do  desastre  das  perdizes ,  el-rei  estava 
de  cera.  Olhando  para  o  confeasor ,  perguntou- 
Hm ,  tossindo : 

-^<(  O  que  Uie  parece,  padro  mestre?  » 

-«*4<  Sou  de  voto  que  se  espece !  »  —  replicou 
ertè  um  pouco  etathado  ~- «  é.  santidade  insis^ 
é  Mo  é  bom.  V.  magestade  Teri  se  os  pr^ados 
ék  ccnftnlM  dev^m  ekpâr-ae  ás  censuras  do 


Digitized  by  VjOOQIC 


200  A  BfOClBASE 

papa^  ou  obedecer  ao  seu  rei  legitimo. ...» 
O  secretario,  das  mercês  e  o  jesuíta  trocacao» 
um  lance  dè  olhos,  que  valia  por  duas  estoca- 
das. Diogo  de  Mendonça  conseguira  o  seu  ^m : 
tinha  obrigado  os  padres  a  desembuçarem-âe ;  e 
com  a  usual  finura  logo  percebeu  >que  o  di- 
nheiro dos  quiodenios  sahia  caro  a  Portugal, 
não  se  pagando  senão  em  proveito  da  companfaia. 
O  confessor,  obrigado  a  descubrir-se ,  meditada 
no  modo  de  castigar  a  cilada.  EWei,  olhando  ^^ 
ora  para  um*,  ora  para  outro,  não  dizia  nada , 
á  espera  que  o  esclarecessem.  Por  fim  impa* 
ciente,  perguntou: 

—  <(  Então  o  que  havemos  de  responder  aa 
núncio  apostólico  ?  » 

—  a  Se  V.'  mogestade  o  ihanda  e  s.  reveren- 
díssima o  deseja ,  esperemos !  Em  quanto  espo- 
ramos, descançamos! — disse  o  secretario  das 
mercês,  ladeando  a  posição  para  a  levar  melhor.  — 
Se  querem  a  minha  fraca  opinião,  eu  que  em 
matéria  de  escrúpulos  um  cabello  me  parece:um 
varão  de  ferro,  estou  de  pedra  e  cal  neste  ne- 
gocio. A  cúria  não  tem  direito ;  e  a  honra  -da 
coroa  ficará  comprometlida.  . .  Perdoe,  v*. ma- 
gestade  se  fallo  a  verdade,  mas  é  o  meu'  defeito.; 
e  deste  npo  me  curo.  S.  revereiídissima  dirá  qual 
seja  de  mais  utilidade  para  a  companhia ;  está 


Digitized  by  VjOOQIC 


DK   »«   JOÃO  V.  201 

de  dentro,  e  sabe  nniíto  mais.  Até  nSo  ha  ne- 
cessidade de  Ih^o  perguntannos.  Quem  viu  aquel- 
les  fiipeís  de  tanta  sabedoria ,  todos  escriptos  do 
seu. punho,  reata-lhe  admirar  a  firmeza  de  suas 
paternidades  e.  contar  com  elles. » 

—  «Ora  ahi  teem  o  grande  amigo ,  que  nos 
arranjotto  padre  Ventura!  —  rosnava  Sebastião 
de  Magalhães,  vermelho  como  lacre  e  seriamente 
atormentado.  —  Que  vibora!  Saberá  v.  mages- 
tade — disse  alto  —  que  a  companhia  não  ha  de 
querer  senão  a  gloria  de  el-rei  e  o  esplendor  da 
monarchia. . . » 

—  «Eu  não  dizia?  —  exclamou  logo  Diogo 
de  Mendonça  com  falso  enthusiasmo  —  S.  revê- 
readissima,  o  nosso  doutor  subtil,  o  nosso  Scotto, 
era  incapaz  de  emittir  voto  menos  auctorisado. 
Asseguro  a  v.  magestade  que  não  ha  maior  amigo 
da  sua  coroa.  Não  se  pagam  os  quindenios !  Como 
canonista  protesto  que  o  direito  nos  assiste ;  por- 
tuguês e  vassallo  fiel ,  ainda  que  morra ,  hei  de 
sustentar  que  o  contrario  nos  deshonra. . .  . 
V.  magestade  ordena;  respondemos  ao  núncio 
nesta  conformidade?  D.  Thomaz  de  Almeida 
encarregou*me  de  receber  as  ordens  a  este  res- 
peito. )» 

—  a  Acho  bem.  Responda  que  não.  » 

—  «Ah  padre  Ventura ,  padre  Ventura  I  — 


Digitized  by  VjOOQIC 


202  *  A  MoaDÀttB 

bramiu  o  codiessor  apopleticô -*^  olha  a*  boas 
obras  do  homemEarrfto !  FicaiiMS  bonitos  t^i 

S.  reverendíssima  mettea  a  barba  no  peito  e 
pousou  os  olhos  confusos  no  empinado  tentre; 
sem  isto  é  provável  que  a  suacholera  se  exacer- 
basse ainda  mais,  colhendo  na  passagem  o  olhar 
irónico  e  victoríoM)  com  que  o  ministro  oeiebpim 
a  sua  derrota. 


Digitized  by  VjOOQIC 


CAPITULO  SXt. 


DUAS  POTENCIAS ! 


A  NUVEM  tinha  pi^s^áo ;  o  caio  de  consèien- 
eia  das  perdíteB  estavA  esqaècido^  £l-rei,  adiando 
o  corpo  íobre  o  pé  dífeito  ^  contertiô  em  balanço 
familiar  a  sua  poltrona ,  itidicio  evidente  da  re- 
gia alacridade.  O  confessor  creacia  com  indigna- 
do ^  e  o  ministro  fana««e  peq^ieno ,  prova  de  aè 
achar  grande.  D.  Pedro  II,  tinmdOHse  para  Diogo 
éo  Mendonça ,  cujo  vttUmento  augmentóra  desde 
«I  díssert;açao  canónica  sobre  o  jejuni>  esclamon : 

— '«  Vamos  á  historia  do  teu  protegido,  » 

—  «  Qual  htotoria ,  men  sr*  ?  » 

^  A  A  ido  teu  capifâo  Bécynrão.  Não  foi  Bayardo 
^ne  disseste?  Sabes  que  mais,  Di^ò  de  Men- 
úim^t  Ainda  te  «leho  mnitò  poeta.  Emftm,  va- 
mos a  ftt.  » 

—  «  Pet*8  t.  iftagastadet  Ptós  eu  chemei 


Digitized  by  VjOOQIC 


204  A  MOCIDADB 

Bayardo  ao  homem  7  É  verdade  não  ha  mehor 
soldado ;  roas  Bayardo  Cm  demais...  por  sigoal , 
espera  alli  fóra  a  graça  de  beijar  a  mâo  de  el* 
rei.  » 

— «  Primeiro  a  historia.  Tem  algmna  coisa, 
padre  Sebastião?  » 

—  Não ,  meu  senhor.  Ousarei  lembrar  nova- 
mente a  V.  magestade  a  audiência  do  padre  Ven- 
tura? » 

—  «  Yirà  o  padre  também...  Diogo  de  Men- 
donça ,  estou  ouvindo.  » 

O  jesuíta  furioso  interiormente,  por  causa 
da  preterição^  foi  bastante  fino  para  tentar  o  su- 
premo esforço  de  um  sorriso,  que  Ibe  saiu  a  mais 
forçada  e  azeda  das  suas  visageos.  O  secretario 
das  mercês  não  perdia  de  vista  o  revm.^,  por  den- 
tro rindo-se  do  seu  desgosto,  por  fóra  aÔectande 
uma  innocencia  primitiva. 

Esta  historia  era  um  favor  de  el-rei ,  que  se 
propunha  grangear  em  proveito  doxapitão  e  do 
seu  amigo  Lourenço  Telles ;  porque ,  apesar  dos 
calumniadores,  Diogo  de  Mendonça,  accusado 
de  ser  o  mais  espirituoso  cómico  da  corte,  e  de 
fingir  no  seu  coração,  vasio  e  desamorovel,  todos 
m>  sentimentos,  estimava  pouca'  gente  e  poucas 
vezes ,  mas  quando  era  amigo  sabia  séi-o. 

—  «O  visconde  de  Barbacena,  siberà  v,  ma- 


Digitized  by  VjQOQIC 


géstade*— principiou  o  ministro-^ diz  do  capi- 
tão Jeroifymo  Guerreiro ,  que  é  a  mais  fina  em- 
pada de  cavallaría ,  e  a  melhor  cabeça  de  conse- 
lho em  ardis  de  guerra...  » 

—  «O  exórdio  promette  » — acudiu  o  mo- 
narcha  — «  Queira  Deus  que  n5o  te  cances  an- 
tes de  chegar  ao  fim...  » 

— «  Não  ha  corpo  sem  cabeça,  meu  sr. !  »  — 
respondeu  o  secretario  das  mercês  com  summa 
gravidade  — «  E  se  o  exórdio  parece  forte  a  v. 
magestade,  a  narração  me  saWará...  Tractava-se 
este  anno  da  occupaçfto  de  Alcântara  ou  de  Ba- 
dajoz, que  se  perdeu  na  outra  campanha  pelas 
demoras  do  conde  de  S.  João,  coitado!...  A  pri- 
meira dificuldade  consistia  em  achar  um  lingua 
entre  os  castelhanos ;  porque  era-  loucura  metter 
com  os  olhos  tapados  o  nosso  exercito  mesmo  na 
boçca  dos  canhões...  » 

— «De  certo!  »  —  observou  el-rei,  acele- 
rando o  vai-vem  da  sua  poltrona. 

—  <c  Mas  quem  seria  o  rato^  capaz  de  pôr  o 
guizo  ao  gato? — porque  v.  magestade  percebe 
que  os  francezes  apanhando  o  espia  roubavam-no 
para  os  não  alliciar,  e  arcabusavam-no  depois 
para  não  fallar.  Como  pouca  gente  gosta  de  ser- 
vir de  mira  aos  mosquetes  de  uma  companhia 
tíe  soldados...  i» 


Digitized  by  VjOOQIC 


306  i  «ociPiU^B 

—  a  £  Qqai  entra  nós ,  Dic^  de  MeD^eiifa  9 
ha  de  ser  iniiíto  desagradável !  — *^  tornos  a  cur- 
var el*m,  balaȍaiid(Hfe  na  cadeira, 

—  »  É  verdade !  No  ça^  fresepte  at^  se  po- 
dia apostar  noventa  contra  dois  em  como  as  pro- 
babilidades eram  de  ficar  no  meio  da  jornada  com 
doze  balas  na  cabeça ,  chumbo  de  mais  para  alvo 
tão  pequeno,  n 

—  c(  Diabólico  I  » — acudiu  D,  Pedro,  esfre- 
gando as  mãos, 

—  «  Nao  admira,  pois»  que  os  officiaesi  se  iofr 
sem  escusando  dO/modo  que  o  visconde,  muito 
cholerico,  segundo  é  publico,  fez-rse  branco,  com9 
a  tira  da  camisa  •  e  chegou  a  disser  que  iria  eUe  t 
se  ninguém  fosse,  pois  tanto  valia  morrer  de  \m 
tiro  em  batalha ,  como  levar  dej(  bejles  no  c^^-' 
ção  atrais  de  mu  fosso.  » 

—  «  Argumento  forte,  Diogo  de  Meodonça ! » 
-^notou  el-rei. 

—  «Infelizmente  nipguem  se  convenceu I  )* 
— prosegniu  o  seoreterío  sorrindoHie,  ^^  «  Nesta 
oecasi9o  entrava  Jeronyme  CriierreifQ  e  o  general 
batendo-lbe  ne.bombro,  gritou  nmito  emmado; 
--«  Aqui  estA  quem  vai  gapheir  um  [?osto,  ou 
levar  um  peitilho  de  belas,  e  ^edajenl  F<w  este 
respondo  eul  M^-^Jero^yíno  infermoi»^,  envia 
as  instrucções ,  e  muito  serio ,  muito  sei^eoo ,  fei 


Digitized  by  VjOOQIC 


"Qma  eotteía  «o  visconde,  a  sem  diaer  mais  na- 
da.. . 

—  a  O  qw  fea?  >>—r gaitou  eWei. 
<-^  fc  Partia  9  meu  senhor !  9 

—  a  Partia !?..)» —  exclamou  o  príncipe , 
levantando-se. 

r-«  HL  Immediatamente  1 « . .  E  como  suppoe  v. 
magestade  qae  elle  entrou  por  Hispanha  7  Em 
trajos  castelhanos,  a  pé  sobre  duas  muletas,  fin- 
gindo'Se  càxo  e  tartamudo. .  . .  Em  vez  de  um , 
pregou  dois  logros  aos  franeeses.  v 

—  a  Bello  estratagema !  E  fiogiu^ae  bem  ?  9 

—  <c  Tão  bem,  que  fpi  até  Madrid  sempre 
mettido  pelas  portarias  dos  conventos  e  pelos 
pateos  dos  fidalgos ,  vendo  e  ouvindo  tudo ;  e 
como  parecia  ter  a  liugua  aioda  mais  tolhida 
do  que  as  pernas,  e  a  sua  mala  era  o  alforge  á& 
pedinte ,  não  lhe  perguntou  ninguém  d'onde  era 
nem  para  onde  ia. . . «  Parvos !  » 

—  a  No  mundo  tudo  são  apparencias!  vf-^ 
interrompeu  o  padre  Sebastião ,  olhando  para  o 
historiador  coin  yisível  intenção, 

—  «  Santa  verdade  1  i>  —  exclamou  este  que*- 
brando  os  óculos,  comp  em  certos  dramas  o 
protagonista  estala  a  espada  no  joelho  —  a  E  en** 
tão?  Não  quebrei  os  ooiJos? . . .  Sâo  tudo  ap- 
parencias, V.  reverendisaima  o  disse  1  Tudo  é 
comedia. ...» 

Digitized  by  VjOOQIC 


268  A  MOaDABE 

—  a  Menos  a  morte ,  Diogo  de'  Mendonçt  i> 

—  accudiu  el-rei  entristecendo. 

—  «  Essa  é  tragedia ! . . .  Para  que  falíamos 
nós  de  morte?  V.  magestade  graças  a  Deus^  e 
todos  esperamos  Tiver  largos  e  felizes  annos. .  . 
Longe  vão  os  cuidados !  » 

—  «  E  o  nosso  capitão  ?  i>  —  perguntou  d-rei. 
— «  Quando  se  acbou  informado  voltou  co^ 

xeando  para  Elvas  com  os  alforges  cheios  de  es^ 
molas  e  de  noticias.  O  que  suppSe  el-rei  que 
lhe  havia  de  oceorrer? . . .  Pagar-se  da  jornada 
por  suas  mftos !  Fazer  dos  castelhanos  banquei- 
ros de  v.  magestade ! . .  isto  dé  rapazes  !...>» 

—  a  Como  ?  » 

—  «Eu  digo  a  V.  magestade ,  Jeronymo  é 
muito  callado,  e  quando  fónna  um  plano  rumi- 
na-o  comsigo ;  ora  em  elle  achando  a  ideia ,  al- 
guém por  forca  acha  de  menos  alguma  coisa ; 
fallo  dos  inimigos.  Quando  se  recolhia ,  notou 
que  os  gados  levados  â  feira  de  Guadalupe  iam 
formosíssimos ,  e  pareceu-Ihe  mal  nSo  serem 
delle,  e  serem  de  seus  donos. ...  V.  magestade 
sabe :  cortar  os  viveres  em  campanha  6  tio  me- 
ritório para  o  soldado,  como  dar  de  comer  a 
quem  tem  fome  na  paz  de  Deus.  » 

—  «As  obras  de  misericórdia  ás  avessas?  d 

—  disse  D.  Pedro,  rindo. 


Digitized  by  VjOOQIC 


DE  D*  Joio  V.  209 

^— •'«  Ás  direitas,  meu  senhor.  A  charidade 
benii  ordenada  começa  por  nós.  Assim ,  aquelle 
menino.  .  .  (desculpe  v.  magestade ;  é  mau  cos- 
tume que  tomei ;  chamo  até  meninos  aos  velhos 
-—a  s.  reverendissima  talvez,  pôde  bem  ser!  j 
O  caso  é  que  o  nosso  capitão  ^  sabendo  quj&  os 
gados  ficavam  dois  dias  em  um  logar  da  raia 
para  descançar ,  deixou-se  ficar  com  elles ;  e  teve 
artes  (demónio  do  rapaz ! )  de  fazer  que  lhe  of- 
ferecessem  comida  e  dinheiro  pelos  guardar  de 
noite  ^  com  promessa  do  dobro  se  quiaiesse  acom- 
panhal-os.  .  <  » 

— ^ «  E  acx^eitou  ?  » 

-^  «  Foi  tão  feliz  que  o  obrigaraiti  a  acceitat !  » 

— "  «  Mas  elle  fingia-se  tartamudo  ?  » 

— ^  «  É  o  melhor  da  historia.  Como  nào  po- 
dia gritar  derâm-lhe  um  tambor  e  disseram  que 
tocasse  nelle  em  sentindo  tropel.  Feito  o  ajuste, 
os  guardadores  dormiram  a  somno  solto ;  e  como 
a  quem  dorme^  dormem  os  cuidados,  elles  fica- 
ram, e  os  gados  foram^e.  » 

— '  a  Ah !  »  —  gritou  el-rei  com  alvoroCo.  — 
a  Como  foi ,  como  foi  ?  )> 

—  «  Com  a  maior  simplicidade.  Dormiam  ao 

pé  delle  três  soldados  de  cavallaria  ^  com  ordem 

de  não  largar  os  rebanhos;  Beberam  e  deitaram- 

seu  Na  segunda  .noite,  Jerony mo,    quando  os 

TOM.  n.  14 

_  DigitizedbyVjOOQlC 


210  A   MOCIDAPE 

yíu  ferrados  no  somno  amarrou-os,  poi-lbes 
mordaças  na  bocca ,  e  rompeu  depois  o  tambor. 
Montado  na  melhor  égua,  com  um  pampilho 
na  mão,  entrou  em  Portugal  e  chegou  a  Elvas, 
seria  meio  dia.  Os  guardas ,  que  ficavam  no  to- 
gar ,  a  meio  quarto  de  legua,  não  sentiram  nada ; 
e  acordando  ao  nascer  do  sol  trataram  de  ajun- 
tar os  bois. .  .  Não  havia  bois.  Acharam  as  mu- 
letas do  coxo ,  os  três  soldados  presos ,  e  sou- 
beram então  que  elle  tinha  duas  pernas  famo- 
sas ,  e  fallava  como  um  doutor.  Quizeram  tocar 
a  rebate  no  tambor,  estava  roto!  Quizeram 
correr  atraz  do  inimigo ,  não  tinham  cavallos. . . 
Peio  seguro  Jeronjmo  levou  os  pés  de  mais  aos 
Philisteus !  Assim ,  quando  sahiram  ao  campo , 
e  deram  aviso  ao  conde  de  Resboorg  em  Badajoz, 
andavam  já  os  nossos  batedores  &  pressa  reco- 
lhendo os  toiroB  desgarrados.  O  peior  foi  que 
em  vez  do  seu  gado ,  o  conde  de  Resbourg  en- 
controu o  visconde  de  Barbaoena,  que  lhe  as- 
sentou ainda  em  cima  a  mais  completa  der- 
rota I. . .  Aqui  tem  v.  magestade  como  este  anuo 
a  feira  passou  de  Guadalupe  para  l^vas,  lou- 
vado sqa  Deus !  n 

-^  c(  É  uma  grande  iaçaiiha ,  Di^  de  Men- 
doaga.  E  os  hispanhoes?  » 

— ^«c  Om  m  pon  se  It  eomm^mt  Disseram 


Digitized  by  VjOOQIC 


DÉ  í>.  JOÃO  V.  211 

qttê  el  %&rrò  fue  téntacion  dei  demónio, .  . .  ló- 
ios! » 

— ^«  Diogo  de  Mendonça  é  preciso  ptemeiar 
o  capiUo.  )» 

—  K  V.  HíBgestade  obrará  como  grande  rei. 
Um  habitosinho  deChristo  e  utna  tença...  » 

—  «  Elle  é  casado?  » 

—  «  Está  era  perigo  de  o  ser.  » 

— ^«  EnSk)  lhe  succedeu  mais  nada?  Os  cas- 
telhanos forte  odto  lhe  hão  de  ter !  » 

— 1<  toe  morte.  Mas  elle  com  os  gados  ficou 
melhor,  y* 

— - «  De  certo*  Introduze-o !  » 

Minutos  depoi!(  Jeronymo  inclinava  a  cabeça 
e  dobrava  o  joelho  diante  de  el-rei ;  e  s.  ma- 
gestade  dando-Ihe  a  mão  a  beijar  com  aífabili- 
dade ,  admirava  o  ar  brioso  do  capitão  do  seu 
exercito  do  Alem-Téjò. 

—  <i  Jeronymo  Guerreiro  »  —  disse  o  mõ- 
narcha  —  estou  conttfnte  com  o  teu  serviço.  Con- 
tinua e  lembra-te  que  el-^rei  deseja  ter  occasiâo 
de  premiar. ...  O  bastão  de  mestre  de  campo 
costuma  aebei^-se  Aa  triâcfaeira  de  uma  praça 
de  guerra ,  ou  apanha-se  n«  niéio  dos  terços  do 
inimigo. .  .  Diogd  de  MendoUçà  *  já  recebeu  as 
minhas  ordens  A  tetii  yespeit«r.  )P6des  Miirar^té.  >> 

O  mancebo  éheio  Aa  jiAiiò  f^  eittb  recépçiiii 

Digitized  by  VjOOQ  IC 


212  A   UOCIDADE 

dístincta ,  tornou  a  beijar  a  m5o  do  monarcba , 
e  inclinando-se  apenas  disse : 

—  «A  minha  vida  é  curta  para  agradecer  a 
munificência  de  v.  raagestade.  » 

Depois  fez  as  cortezias  da  etiqueta  e  sem 
nunca  virar  as  costas  retirou-se. 

—  «Diogo  de  Mendonça»  —  exclamou  D. 
Pedro  —  «  gostei  do  teu  protegido ;  falia  com 
muito  acerto.  Podes  dizer-lhe  que  lhe  faço  mercê 
do  habito  e  mais  da  terça. . .  » 

— «  É  de  justiça ,  roeu  senhor.  Quando  v. 
magestade  o  poz  aos  peitos  de  um  preto ,  seria 
admiração  n3o  o  conferir  a  um  official  brioso.  » 

—  «  De  um  preto  ?  »  —  gritou  el-rei  com 
Ímpeto. 

—  a  Sim,  meu  senhor.  Domingos  Pires  é  ne- 
gro como  azeviche ,  e  de  mais  a  mais  barbeiro 
de  profissão. .  « .  Sinto  na  verdade ,  mas  parece 
notável  que  assente  bem  o  vermelho  sobre  o 
.preto  e  que  a  navalha  dê  o  habito.  » 

—  «  Padre  Sebastião,  isto  o  que  quer  dizer?  » 
, —  clamou  o  monarcba  fazendo-se  branco. 

—  A  Senhor ! »  —  accudíu  tremendo  o  confes- 
sor —  não  fui  eu. .  * «  » 

— «  Tem  rasão. . .  foi  o.  infante.  Ah,  Fran- 
cisco, Francisco!  O  habito  jde  Christo  a  um 
preto  9  a  um  barbeiro !  Que  vergonha. . .  Diogo 


Digitized  by  VjOOQIC 


DB  D.  JOÃO  V.  213 

% 

de  Mendonça,  como  se  ha  de  valer  agora  a 
isto  ?  » 

— «  Só  com  o  painel  da  misericórdia !  O  ha- 
bito está  enforcado  no  preto.  Tire-se  o  negro 
para  sumir  o  habito.  Não  vejo  outro  remédio.  >» 

—  fíEntào?» 

—  «  Mandemos  o  pae  Domingos  a  tomar  ares 
pátrios.  Despacha-se  para  Guiné. ...» 

—  «Para  o  fim  do  mundo!  —  gritou  el-rei 
furioso.  —  Um  barbeiro  preto  com  o  habito !  ? . . 
Ah ,  Francisco !  Diogo  de  Mendonça  despache  o 
negro  e  salve  o  habito.  .  . » 

—  «  Occorre-me  outra  coisa; .  .  » 

—  «  Diga.  »  . 

—  «  Há  de  haver  por  força  algum  branco  deste 
nome.  Procuramol-o  e  da-se-lhc  o  habito,  tíize- 
mos  depois  ao  negro  que  foi  engano.  EJIe  acre- 
dita ! .  .  Tanto  rnais  quanto  de  noite  tudo  é  preto, 
e  até  os  gatos  brancos  são  pardos. » 

—  «Excellentet — disse  el-rei  a  rir. — Mas 
Diogo  de  Mendonça,  tu,  porque  eiiLpediste  essa 
mercê?. .  » 

—  «Eu,  setohor?  Não  sabia.  V.  magestade  è 
justo;  é  sábio,  mandou  as  suas  ordens,  obedeci. 
Não  tenho  a  rol  os  pretos  forros  que  andam  a 
eaíar  Lisboa ,  ou  a  escanhoar  as  barbas  aos  ma- 
telotes.  Ia  a  sahir  hoje ,  c  apparecê-me  na  es- 


Digitized  by  VjOOQIC 


$14  A   MOCIDADE 

ça^a  uBi  negro. . .  bom  n^o !  Vale  eem  mil 
réis,  posto  no  Brazi).  Cuidei  que  o  moleque  pe- 
dia esmola. .  .  desgraçadamente  a^radeeia-me  e 
seu  despacho.  —  Pois  eu  despocHeí-o  ?  —  v.  s/ 
deu-^-me  o  habito  de  Christo, » 
— 1<  E  vossemecê  quem  é  ?  » 

—  «  Sou  Q  barbeiro  .do$  creadoç  do  ir.  infante.  » 

—  aE  eu  dei-Ihe  o  habito,  está  bem  certo? 
— • «  Vem  neste  papel »  —  E  vinha. .  .  por  Deus ! 
—  Disse  ao  preto ,  que  voltasse ;  mas  pelo  se- 
guro esqueci-me  e  o  diploma  íieou  no  bolso. 
Aqui  o  tenho. » 

—  c(  Pois  vá ,  ]>iogo  de  Mendom^a ,  e  veja  se 
desencardimos  a  ordem  de  Christo  de  tal  bor- 
rão. .  .  padre  Magalhães ,  acabemos  a  noite.  O 
seu  recommendado  pôde  vir.  .  .  Ai  que  filhos  me 
dea  Deus ! » 

O  secretario  das  mercês  sabiu  logo,  e  instan- 
tes depois  entrpo  q  jesuíta,  com  os  olhos  hdiítm 
e  bumildes.  Á  porta  ^  quando  se  inc]ii¥>u  para 
Ql-rei  y  poz-lbe  a  vi^ta  com  a  força  de  intuição , 
que  era  o  dom  precioso  do  seu  génio ;  e  leti-}he 
na  anciedade ,  em  que  a  dor  contrahia  as  fei- 
ções, na  pallideii  cubrindo  a  (a^e  de  um  vço,  e 
na  tristesa  mortal  dli  phisionomia^  o^  progressos 
e  %  crise  de  mna  çpi«cmid^de  rápida,  que  ,^ 
médicos  não  tinbaiv  sabido. a^jvjnbar.  O.  padre 


Digitized  by  VjOOQIC 


DB  D.  JOiO  V.  215 

Ventura  entendeu  logo  que  el-rei  D.  Pedro  era 
como  se  estivesse  já  em  S.  Vicente  de  Fora,  ao 
lado  de  seus  pães. 

El-rei,  também,  com  a  firmeza  de  tacto,  que 
dá  a  pratica  de  conhecer  os  homens,  achou  o 
jesuita  superior  á  sua  humildade,  e  muito  maior 
do  que  a  obscura  posição,  que  figurava.  Exami- 
nando-o  silendosaraente ,  estendeu-lhe  a  mãp,  e 
sem  saber  porque  chamou  a  si  toda  a  penetra- 
ção, como  se  um  instincto  secreto  o  avisasse  de 
qiie  tinha  diante  de  si ,  em  vez  de  um  religioso 
vulgar ,  uma  potencia  senhora  do  coração  dos 
outros,  porque  dominava  o  seu,  exclusiva  e  abso- 
luta, porque  na  sua  mão  o  poder  era  único,  por- 
que a  vontade  e  a  intelligencia  eram  absolutas. 

O  padre  linfaa-se  curvado ;  nem  tanto  que  o 
respeito  apparecesse  como  servidão  ,  nem  tào 
pouco  que  tomasse  a  cdr  de  orgulho.  Pousados 
na  mão,  o-monarcha  sentio  que  elle  tinha  os 
beiços  ainda  mais  frios  do  que  o  sorriso. 

r — «Sebastião  de  Magalhães^ — observou  D. 
Pedro  —  pesando  as  palavras  e  pondo  os  olhos 
como  duas  sentinellas  no  descorado  semblante  do 
jemiita — o  meu  confessor,  pediu-me  ama  au- 
dteaeia  da  parte  de  r.  paternidade.  Deve  saber 
que  D.  Pedro  II  muitas  vezes  se  tem  levantado 
da  mesa  pan  deferir  aos  mtis  obscuros  vassallos. 


Digitized  by  VjOOQIC 


216  À   MOCIDADE 

NSo  precisava  de  empenhos ,  padre,  para  chegar 
á  presença  de  el-rei.  Uni  soberano  tenoi  abriga- 
çHo  de  ouvir  a  todos,  como  espera  que  Deus  o 
ouça  a  elle. » 

O  jestiita  sorriu-se,  mas  ndo  abriu  a  pbisi<K 
nomia.  Á  vista  do  principe  escorregou,  por  ella 
sem  poder  entrar  no  coraç^ão.  Aqueila  face  im- 
peiíetravel  era  o  mesmo  que  o  aço  de  Milão  nos 
guerreiros  antigos,  flexivel  como  seda,  resistente 
como  ferro. 

-^  i(  As  virtudes  d^el-rei  são  a  felicidade  do» 
seus  vassallos,  e  a  admiração  dos  estrangeiros  »  — 
respondeu  s.  paternidade  tomando  a  inclinar-se. 
n  Se  eu  viesse  por  negocio  meu ,  diria  ao  sobe- 
rano :  aggravaram-me,  sr. ,  e  peço  justiça  !  e  es 
tou  certo ,  o  ouvido  de  ei-rei ,  que  é  o  ouvido 
de  Deus,  havia  de  escutar-me.  Mas  eu  venho  fal- 
tar á  consciência ;  por  isso  espero  a  occasiâo , 
dando  a  Deus  infinitas  graças,  porque  me  atten- 
dem ,  e  me  não  despedem.  » 

— «  Então  o  padre  acha  que  a  minha  cons- 
ciência está  em^  perigo  ?  »  —  acudiu  D.  Pedro 
sobresaltndo. 

—  a  Sim ,  meu  sr. ;  mas  creio ,  tombem ,  na 
grandeza  de  v.  magestade,  e  na  graça  de  Deus.  n 

— ^ «  E  é  o  que  o  trai?  » 

—  «  E  o  meu  dever,  mais  o  serviço  de  el-rci.  » 


Digitized  by  VjOOQIC 


DE   D.  JOÃO  Y.  217 

—  «O  meu  serviço ?  » 

—  «  E  o  de  Deus!  w 
— «  Explique-se!  » 

—  «  El-rci  sabe  qae  as  lagrimas  do  innocente 
sâo  de  sangue ,  e  que  Deus  m  conta  contra  os 
perseguidores,  porque  Jesu-Christo ,  que  nunca 
chorou  por  si ,  muitas  vezes  chorou  por  nós.  A 
mâo  de  el-rei,  levantada  neste  moniento,  faz  cor- 
rer lagrimas  de  deslionra  é  de  vergonha,  que  se 
não  forem  enxutas,  hfio  de  cair  de  fogo  sobre  a 
cabeça  do  peccador.  A  coroa ,  sr. ,  fica  na  terra 
mais  o  corpo ;  e  diante  do  juiz  a  alma  do  rei 
peza  menos  ás  vezes  que  a  do  escravo ,  porque 
só  peza  segundo  os  seus  mereciniintos.  » 

—  «  Padre  Ventura ,  falle !  Se  peccámos  fa- 
remos penitencia ;  se  alguém  se  queixa  de  nós 
ha  de  ter  justiça.  A  quem  aggravou  sem  causa  a 
mâo  de  el-rei  ?  >^  —  disSe  o  principe  muito  agitado, 

—  «  Uma  innocente  foi  calumniada  ;  e  el-rei, 
sem  a  ouvir,  acreditou  a  calumnia.  É  mal  Teitò, 
sr. ,  Deus  perdoa  muito  aos  homens ,  e  esquece 
pouco  aos  reis.  » 

—  «  De  quem  falia  v.  paternidade?  p  —  ex- 
clamou D.  Pedro  II ,  cheio  de  terrores  espiri- 
tuaes,  e  curvando-se  involuntariamente. 

—  <«  De  D.  Catbarina  de  Athaide ,  noviça  em 
Santa  Clara,  n 


Digitized  by  VjOOQIC 


218  A  MOCIDADE 

—  a  Ah !  I»  —  gritou  el*rei ,  pondo^e  de  pé  . 
com  os  olhos  fitos  e  tneio  accesos  de  ira. 

—  c<  Está  innocente ,  está  pura ,  fpi  calum* 
ntada!  » —  proseguiu  o  jesuíta,  deixando  cair 
cada  pbrase,  pexada  como  ferro,  sobre  o  espi- 
rito do  príncipe. 

—  a  Mas  eu  sei  o  contrario !  r>  —  disse  o  mo- 
narcba,  recuando  diante  da  voz  do  padre,  e  dos 
seusi  olhos  irresistiveis. 

—  «  V.  magestade  jiào  sabe  nada  »  —  res- 
pondeu fríamente  o  jesuita. 

—  í<  Ah '  Então  V.  paternidade  é  que  sabe,  e 
é  que  é  o  rei  ?  » 

— «  Eu  é  que  sei,  v.  magestade  o  disse:  c 
sei  porque  não  sou  rei.  » 

—  «  Mas  el-rei  também  é  pae  ^  » 

— «  Basão  de  mais.  Os  últimos  a  saber  a 
verdade  nestas  coisas  são  sempre  os  pães.  » 

— ' «  Então  protesta-me  que  D.  Catharina  está 
innocente?  Que.  o  principe  real  não  foi  a  Santa 
*Clara  ?  » 

—  «  Não  alBrmo  senão  que  s.  alteza  nunea  viu 
nem  (aliou  a  D.  Catharina.  Não  sei,  e  não  digo 
mai3.  ». 

—  «  B  as  provas ,  padre  ?  » 

. .  —  «  Tenho-as  todas  í  —  refdicoii  •  visttad<Mr 
elevando  a  voz. 


d  by  Google 


BC  D.   JOÃO   V.  219 

—  «  Quem  deu  o  direito  a  t.  pater oidade  de 
falUr  alto  diante  de  mim?  »  ^-exclamou  o  prín- 
cipe ,  refugiando-se  atraz  da  sua  coroa ,  porque 
se  via  fraco  de  coraçSo  para  resistir. 

—  «  Quem  tem  na  sua  mão  vassallos  e  reis. 
Quem  disse  a  Lazaro,  ergue-te !  e  ao  cego,  vè  1 
Foi  Deu^,  sr.  f  E  Deus,  também,  que  fez  os 
reis  â  sua  imagem ,  foi  quem  Ih^  confiou  um 
sceptro ,  que  é  vara  de  juatiça ,  e  não  açoute  de 
tyrannos.  » 

Paliando  as^im  ,  o  padre  Ventura  assumia 
aquella  auctoridade ,  aquelle  poder  de  vontade  e 
de  eloquência ,  que  o  tornava  inspirado  nas  oc- 
casiões  perigosas.  £l-rei,  vacillante,  e  quasi  ven- 
cido senão  convencido ,  sumía-se  na  cadeira ,  e 
baixava  os  olhos  para  não  sentir  sobre  o  coração 
a  vista  profunda  e  cortante  do  jesuita ,  que  lhe 
causava  uma  dôr  mcHral ,  a<inde  quer  que  se  fi- 
tava. 

—  «  O  padre  engana-se.  Quem  lhe  disse  que 
D.  Catharina  era  innocente?  »  —  exclamou  in- 
sistindo. 

—  «  Disse-o  ella »  e  sei-o  &a\  w 

—  «  Grande  prova !  i>  —  gritou  el-rei  com  im-- 
peto.  —  «  Disse-o  ella.  E  depois  ?  » 

—  k  Depois  ainda  accrescentei  mais :  -^  e  sour 
be*o  eu.  » 


Digitized  by  VjOOQIC 


220  A   MOaDADE 

—  «  Ah  ,  então?...  » 

—  ((  É  claro.  D.  Catharina  não  recebeu  a  s. 
alteia ,  porque  o  não  podia  amar.  » 

—  «  Não  podia  amai-o !  ?  Porque  ?  »  —  acu- 
diu o  pae ,  desta  vez  mais  offendido  no  orgulho 
do  que  o  rei  na  vontade  absoluta. 

—  <i  Porque  os  ambiciosos  só  é  que  amam  por 
calculo  e  tendo  o  coração  fechado :  uma  paixão 
verdadeira  crê  em  Deus,  e  não  espera,  nem  de- 
seja mais  do  que  ser  feliz.  » 

—  «  Ah !  »  —  tornou  el-rei  a  exclamar,  ferido 
por  esta  allusão.  —  «  Continue !  » 

—  «  E  o  coração  da  mulher ,  que  está  pura , 
das  mulheres  como  D.  Catharina,  é  muito  grande 
para  se  fazer  assim  pequeno,  e  muito  nobre  para 
se  envilecer  a  esse  ponto.  >» 

—  «  Continue!  »  —  acudiu  o  principe,  cer- 
rando os  dentes ,  e  empallidecendo  mais. 

—  «  Acabei,  sr. :  D.  Catharina  ama  o  conde 
de  Aveiras ,  e  por  isso  el-rei  bem  vê  que  é  im^ 
possível  outra  paixão.  » 

—  «O  padre  esquece  que  o  amor  do  prin- 
cipe real...  iisongea  o  orgulho,  e  que  as  damas 
se  levam  todas  pela  vaidade?  » — atalhou  D.  Pe- 
dro cora  um  sorriso  frio. 

—  «  Orgulho  e  vaidade  são  duas  coisas,  e  não 
uma.  O  orgulho  sem  soberba  eleva  o  espirito , 


Digitized  by  VjOOQIC 


BE  B.  JOÃO  V.  221 

n5o  o  declina.  O  príncipe  real ,  perdoe  v.  ma- 
gestade,  para  D.  Calharína  é  muito,  e  muito 
pouco.  Muito  pelo  grande  respeito  que  lhe  deve. 
Muito  pouco ,  porque  ella  pôde  subir  até  seu  es- 
poso ,  e  não  quer  descer  até  á  sua  infâmia.  » 

—  «Não  creio!  » —  murmurou  o  príncipe 
abalado,  mas  insistindo  sempre.-— ^«  Ás  minhas 
informações...  x> 

—  «  São  falsas,  falsas!...  como  o  coraç&o  que 
as  envenenou.  » 

—  «Sabe  de  quem  falia,  padre  Ventuía?  )» 
—  gritou  el-rei  parando  diante  delle,  e  amea- 
çando-o  com  a  voz,  com  o  gesto,  e  com  a  vista. 

— «  Nào  me  pertencem  os  segredos  de  el- 
rei !  »  —  acudiu  este ,  encontrando  o  seu  olhar 
firme  com  a  vista  irritada  do  monarcha.  —  d  Mas . 
repito ;  quem  quer  que  foi ,  mentiu  a  v.  mages- 
tade ,  disse  uma  calumnia,  e  commetteu  um  cri- 
me. Isto  affirmo  eu  de  coração  tão  sereno,  e  san- 
gue tdo  quieto  como  na  America  glorifiquei  a 
Christo,  sabendo  que  arriscava  ò  corpo,  mas  exal* 
tava  a  alma.' Sou  velho;  estou  cançado;  e  depois 
de  muitos  trabalhos  sei  por  experiência,  que  um 
dia  de  mais  ou  de  menos  nSo  é  nada;  que  uma 
cella  pobre  e  estreita  como  a  minha,  ou  uiti  Ca- 
labouço sem  luz,  éqoasi  a  mesma  coisa.  De  toda 
a  parte  se  vé  a  Deus.  » 


Digitized  by  VjOOQIC 


322  A  MOaDADE   ' 

Este  valor  frio ,  esta  abnegação  pessoal ,  este 
desafio  manso  e  apostólico  do  religioso  inerme  à 
cdera  do  rei,  envergonhou  D.  Pedro<  Os  brafos 
cairam-Ihe>  sem  alento ;  e  a  vista  esmorecida  per- 
doa o  fogo.  Atando  o  dialogo,  o  príncipe  disse 
com  bondade  um  pouco  forçada : 

—  «  Ora  vamos,  padre  Ventura !  Sejamos  ra- 
soaveis.  O  interesse  que  toma  por  D.  Cdtharina 
não  me  parece  natural.  Nlio  lhe  é  nada,  creio 
eu...  » 

—  «V.  magestade  engana-se.  Sou  seu  confes- 
sor, seu  pae  espiritual,  aquelle  a  quem  Deus 
disse -^ ama  a  mitiha  filha,  e  esforça-te  por  a 
salvar.  » 

—  «  Mas  se  fôr  culpada?  »^ — observou  el-reí 
com  preoccupaçao. 

-^  «  E  se  fdr  innocente  ?  »  —  replicou  o  je- 
suíta ,  dando  á  vo2  expressão  particular. 

-— '«  Meu  Deus  iliuminae-me !  »  —  gritou  D. 
Pedro,  perdendo  a  cabeça,  e  sentindo  recrudes- 
cer as  <tóres  phisicas  pela  intensidade  desta  agi- 
taçSo.  —  «  Padre  Ventura ,  isto  não  sto  coisas 
para  decidir  de  leve.  » 

— «  Por  isso  digo  eu :  antes  de  castigar ,  eU 
rei  devia  ouvir,  m 

—  a  Mas  eu  nio  puni  aiâda...  rt 

— «  E^rei  fez  mais.  Naasó  puftiu  a  quem 


Digitized  by  VjOOQIC 


PE  D.  JOÃO  V.  223 

julga  criminoso,  mas  a  quem  sabia  que  era  ín-» 
nocente.  » 

—  «O  padre  mente!...  »  —  gritou  D.  Pedro 
exasperado. 

Alguma  c6r  veio  rosar  de  leve  as  faces  palli^ 
das  do  jesuita.  Os  olhos  accenderam-se ;  as  rei-" 
ções  mortas  animaram-se;  a  cabeça  pousou-se 
erecta  e  altiva ;  a  vista  devorou  entre  chammas 
a  palavra  affrontosa ;  e  o  gesto ,  cheio  de  força  ^ 
repelliu-a  com  magestade...  Foi  tudo  instantâneo 
porém;  o  poder  da  vontade  domou  a  ira  em 
um  momento  e  fez  descer  a  mascara  outra 
vez  sobre  o  rosto;  quando  respondeu,  a  sua  voz 
tinha  mais  doçura ,  se  é  possivel ,  do  que  antes 
de  receber  a  maior' injuria. 

—  c<  Senhor !,..  »  — ■-  exclamou  elle  —  «  Agra- 
deço a  v.  magestade.  Jesu-Christo ,  meu  mes- 
tre, também  recebeu  na  faee  uma  afironta  e 
respondeu  com  a  paciência.  A  verdade  mata, 
sr. ! . .  .  E  quando  vim  aqui  sabia  f  já ,  que  ou 
t>  méu  corpo  ou  a  minha  alma  haviam  de 
sair  martyrisados.  Y.  magestade  preferiu  a  al- 
ma*., é  mais  glorioso.  Entreg<^lh'a ;  pôde  satis^ 
fazer-se.  » 

D.  Pedro  percebeu  que  tinha  caido  moral- 
mente  aos  pés  deste  poderoâo  «dtersario.  Depoié 
da  injuria  brutal  aia  lhe  restavam  sen&o  dois 


Digitized  by  VjOOQIC 


221  A  MOCIDADE 

caminhos  —  sair  como  rei,  ou  passar  por  tyrantío; 
Escolheu  o  mais  nobre. 

Olhando  em  redor  de  si  ^  deseubriu  o  padre 
Sebastião  de  Magalhães  sumido  com  a  parede ,  e 
desejando  que  ella  se  abrisse  e  o  escondesse.  O 
confessor  tinha  a  cabeça  quasi  cosida  ao  peito; 
as  roscas  das  duas  barbas  pendiam-lhe  frouxas  e 
tornavam-lbe  as  faces  abjectas.  A  pailídez  mor- 
tal ,  a  immobtlidpde  estúpida ,  e  o  suor  (rio  em 
que  nadava^  e  que  a  miúdo  embebia  no  seu  lenço, 
faziam  delle  o  retrato  do  pavor ,  colhido  em  fla- 
grante. 

El-rei  teve  dó  do  padre  Sebastião,  e  admirava 
o  padre  Ventura*  Por  isso,  virando-se  para  ©  ul- 
timo ,  disse-lhe  com  nobreza : 

—  a  Desculpe,  se  me  excedi  sem  querer!... 
Âsseguro-lhe  que  el-rei  não  disse  nada;  e  es- 
pero que  não  lho  faça  saber ,  porque  havia  de 
magoar-se,  como  se  morresse  um  de  seus  (i- 
Ihos.  » 

—  «  V.  mag^tade  acreditará  que  só  nae  lem- 
bra... de  que  el*rei  era  digno  de  uma  coròdif  se 
a  não  tivesse  jà  »  —  respondeu  o  jesuita  ^  ineli- 
nando-se  commovido. 

—  «  Sebastião  de  Magathãçs — proseguiu  o 
monarcha  —  agradeço-lhe  o  ter-me  introduzido 
o  padre  Ventura.  Os  vm  ganham  sem^e  em  co- 


Digitized  by  VjOOQIC 


iihecer  os  homens  como  elle.   Vamos !  Eu  dizia 
que  D.  Catharioa  me  parecia  culpada.  ». 

—  (( £  eu,  que  ella  era  innoceate !  »  —  repli- 
cou o  italiano,  percebendo  a  delicadeza  do  prin- 
eipe  5  que  fora  atar  a  conversação  justamente  ao 
ponto  em  que  o  rei  se  esquecera  de  si ,  e  des- 
cera pelo  precipicio  da  cholera  a  par.  do  súbdito. 

— ^  a  £  sendo  assim  o  que  conclue  ?  » 

—  a  Que  el-rei  feriu  mortalmente  três  inno- 
cantes!  j» 

— •«  Como?  » 

—  «A  honra  vai  mais  do  que  a  vida ,  e  a 
honra  de  uma  dama,  de  uma  sr.*^,  cujo  sangue 
é  tfto  illustre ,  cuja  familia  se  enobrece  de  uma 
pobreza  gloriosa,  porque  está  sem  macula,  é  um 
thesouro  que  não  tem  preço...  » 

— «  Ainda  não  percebo,  padre  Ventura...  » 
-^■^  atalhou  el-rei  carregando  mais  o  rosto. 

—  <c  Um  momento  mais,  e  el-rei  verá!...  D. 
Catharina  accusada  de  uma  fraqueza  por  v.  ma- 
gestade,  pelo  primeiro  cavalheiro  da  monarchia... 
ficou  deshonrada  toda  a  sua  vida,  se  el-rei  a  não 
salvar.  » 

—  <c  Mas  eu  não  a  accusei :  somente...  » 

—  <c  Ahi  está:  $omente!?...  El-rei  não  pôde 
ignorar  que  duvidando  sametUe  da  honra  de  uma 
sr.^,  e  eWrei  duvida,  porque  o  disse !...  matou-a 

T.  n.  15 

Digitized  by  VjOOQIC 


226  À  1I0GIDA»B 

a  clla^  a  aei»  pae ,  e  a  seo  esposo  «o»  olbot  do 
mundo.  » 

—  «I  Padre  Vcatora,  aeredile  quo  este  s^re- 
do...  » 

-^«  Nto  é  flegiede?  Smo«o  como  r.  mages^ 
fade.  A.  oòrte ,  vendo  s.  alteia  reat  no  desagrado 
de  seu  pae,  indagou  a  eausa;  e  o  sr.  iafente, 
entrando  no  paço,  pegou  na  honra  de  uma  dama, 
e  atirou^  som  piedade  &&  bocca»  da  ealumnta.  » 

—  «  Valha-me  Deus !  Está  certo  ?  n 

— -  a  Gomo  de  estar  aos  pés  de  v.  mageslade ! 
D.  Luia  de  Âthaide  é  fidalga  antigo.  Ha  de  pedir 
jualica  a  e)-rei  da  s«a  honra  maculada ;  e  como 
el*vei  acredita  que  soa  filha  é  eaipada...  D.  Luiz 
de.  Âthaide  pado  aebar  n^  suave  um  saicidío 
do  que  a  sua  infâmia*  » 

—  «  Jesus  1 3» 

—  «  O  conde  de  Areiraa  adora  a  Ik.  Catba- 
fina ,  e  jA  tem  hcenço  de  seu  pae  para  a  pedir. 
Sahendo  da  nódoa  c[m  imprimia  no  credito  da 
sua  noiva  a  mão  de  elnrei,  mSo  que  nSo  pdde 
obrigar  a  ap«^a)«a :  a  conde  oa  er  aa  infâmia 
delia  e  padece  pela  sua  honra ;  ou  não  acredita 
e  a  desgraça  é  maior  aiada ,  porque  aio  estát  em 
sen  poder  vingar  a  íuDOoencia  que  debalde  absol- 
wfia^  se  o  mando  peta  bòoca  de  ^-rai  a  eoa* 
deauHflse...  jEm  amhop  os  casos  v.  magestade  fe- 


Digitized  by  VjOOQIC 


ns  D.  JOio  Y.  227 

nu  o  conde,  aviltou  o  pae^  e  derirnirou  a  ftlha  I 
£  isto,  sr.,  aos  olhos  de  Deos  é  tremenda  respon-* 
sabilídaée.  n 

D.  Pedro  II  apertaiva  as  mSos  na  cabeça ,  e 
sentia-se  profandamente  agitado. 

—  «  Mas  sabe  de  certo  o  padre ,  que  ella  é 
ínnoceate?  Sabe  que  foi  mal  infermado  ?  )> 

"^  f(  Juro  diante  de  Deus ,  que  s.  altesa  reai 
era  ineapai  da  trat(^o,  qae  lhe  imputam.  IK  Ca- 
tharina  é  a  noiva  do  seu  veador,  e  o  príncipe 
sabe  dos  seus  amores  ^  e  até  se  interessa  a  favor 
d'ellts. ..  Demais,  amaohà  mesmo  devia  ella 
sair  de  Santa  Glara  e  refugiar-se  no  deposito  de 
uma  £nnilia  honrada  para  se  receber  de  lá  com 
o  conde  de  Aveiras,  caso  seu  pae  negasse  o  con-* 
sentimento.  Aqui  teni  v»  majestade  a  prova. » 

E  deu-lhe  duas  cartas.  Uma  do  conde,  oatra 
da  noviça ,  em  que  se  marcava  o  dia  e  hora  da 
evasão,  e  respirava  em  cada  linkè  ^MiueNe  entra- 
nhavelamor,  quB  elnrei  pdr  experie«ieta  •  êòdhi&- 
cia ;  que  é  a  primeira  e  aHtma  paísio  quando 

cbegft  a  doelarar-sei     \      > 

.  ^^  «  £9tx>u  coh^BBcidé^.!  ^r^iexélamon  o  moaftr- 
oha-rtT*  Agora  diga-mc  oipadrb;  ctoíiosahadíítret^ 
mediar  o  mal?5i._      \/.|  r''\     :  >■'...  .•    i  fw.^ 

—  «  Como  rei ,  senhor !  —  respondeu^  o  ■je-' 
siiMtiiiciiiaiido»*se;*-t^Umat  ofdtaiit^ii  aa  se- 


Digitized  by  VjOOQIC 


228  A   MOCIDADS 

cretario  das  mercês ,  passada  a  requerimeato  da 
conde  de  Aveiras  e  D.  Catharina  pôde  saoar  me* 
tade.  Mande  el-rei  que  eu  a  tire  do  convento  e 
a  deposite  em  casa  de  Lourenço  Telles^  commen- 
dador  de  S.  Miguel  das  Minas. . . » 

—  «  Em  casa  de  homem  só  ?  » 

—  <xNio,  meu  senhor.  Vive  com  elle  uma 
sobrinha  casada,  e  estão  duas  meninas;  uma 
delias  foi  educanda  secular  em  Santa  Clm... » 

—  «  Bem !  Traz  o  requerimento  ?  i> 

—  «  Sim ,  meu  senhor ;  está  aqui.  v 

—  <x  Dé  cá ! »— E  o  monarcha  escreveu  a  ordem 
logo.  —  (K  Procure  amanha  o  secretario  Diogo  de 
Mendonça  e  vKo  ambos  a  Santa  Ciara.  Que  mais 
é  preciso  ainda  ?  » 

—  «A  outra  metade ,  para  ser  a  reparado 
perfeita.  >» 

—  «  Diga !  n 

—  «(  Conviria  mandar  chamar  D.  Laii  de 
Athaíde  amanhã,  antes  que  elle  saiba...  y^ 

—  «  Amanhft  depois  da  missa  estará  aqui. » 

—  «E  ordenar-ihe  que  dè  o  seu  eonsenti- 
melito  para  a  allíança  de  sua  filha  com  a  easa 
éb  Aveiras.  Naturalmente  v.  magestade  diz-Mie 
que  tudo  isto  se  faz  por  supplicas  de  s.  alteia 
real... » 

~  <(  Dir4liD4iei  a  elle ;  e  far-«e-lia  constar 


Digitized  by  VjOOQIC 


DB  i>.  JOÃO  V.  329 

na  corte.  O  dote  da  condeça  é  o  meu  presente 
de  noivado. » 

—  «  Feito  isto  ▼.  niagestade  sahou  os  três  in* 
noceotes ,  e  diante  de  Deus  ficará  como  um  rei 
justo.  As  graças  do  soberano  lavam  tudo ;  e  el- 
rei  constituindo-se,  protector  de  D.  Catharína,  pro- 
va que  B  estima  e  a  põe  acima  das  calumnias... 
Obrigado,  senhor !  .  Beijo  as  mitos  de  v.  mages* 
tade  quasi  como  beijaria  os  pés  a .  Chriato !  Se 
o  coração  do  pae  foi  severo,  a  alma  do  rei  foi 
grande  e  generosa. .  .  Pagou  nobremente  o  erro !  » 

—  «  Acha  ?  »  —  acudiu  D.  Pedro  sorrindo-se. 

—  a  Acho ,  meu  senhor ,  e  sem  lisonja.  Este 
acto  se  fosse  o  ultimo  de  v.  magestade  —  aceres- 
centou  o  jesuita  com  tristeza  —  era  sufficiente 
para  dizer  a  Portugal ;  perdeu^se  um  rei !  » 

— «  Diga-me ,  padre  Ventura ,  julga  que 
esta  reparação  é  bastante  aos  olhos  de  Jesus 
Christo  para  elle  interceder  por  mim  diante  de 
seu  Eterno  Pae?  » 

—  c<  Senhor ,  o»  peccados  do  homem  expiam- 
se  peia  penitencia ,  e  com  o  arrependimento.  Os 
erros  dos  principes  quer  Deus,  que  sejam  remi- 
dos por  acções  de  rei.  V.  magestade  foi  como 
Deus  neste  caso ,  restituiu  a  vida  a  três  pessoas. 
O  mais ,  o  passado ,  deve  lembrar  como  lição 
6  aviso,  mas  sem  terror. .  . .  Jesus  Christo  não 


Digitized  by  VjOOQIC 


230  Â  BioaoiíM 

monea  pelos  anjos,  paâeeen  pelos  boma»*  Se 
não  houvesse  senão  justos. ...  o  reino  da  <^eu 
era  menos  glorioso  de  aleaacar.  » 

-^  a  Adeus  ^  padre  Ventura ,  venha  vèr^ne. 
Pareee-me  que  a  noite  acabou  aidJior  do  4^ 
]«lgémos.  » 

*— «  Graças  á  grandeza  díi  el-reil  > — obaer^ 
vou  o  jesuíta  ineliaando-se  para  beijar  a  mão 
do  monardia. 

A(  Não!  Graças  k  dedicação  do  padre.  Ti* 

rou  ao  pae  um  grande  peto  de  cima  do  coração  ; 
e  salvou  o  rei  de  uma  injustiça  flagrante. .  • .  Não 
se  esqueça:  jHrocure  ]>iogo  de  AJendonça.  Eu 
farei  o  resto.  » 

Quando  passava  pelo  confessor  o  jesuita  dai- 
xou-lhe  cabir  no  ouvido  estas  palavras ,  que  en- 
cerravam muitos  volumes  de  politica  e  de  mo- 
ral i 

— «  Viu  ?  . . .  Os  reis  é  preciso  que  dles 
queiram;  e  sabendo-se  o  caminbo  do  seu  cora- 
ção, quasi  sempre  querem.  Padre  Sebastião 
dhe  o  mal !  Os  portugueses  perdem  um  bom 
monarcha ;  e  o  peior  6  qne  depois  de  mater  o 
lei,  deixar^nos  morrer  também  o  homem^Nâó 
entendeu  nem  a  alma  nem  o  coração  deste  prín- 
cipe !  Podia-mos  fazel-o  grande  a  elle ,  e  ser- 
mos grandes  nós  com  eUe. . . .  V«  patermda-r 


Digitized  by  VjOOQIC 


])E  D.    JOÃO   V.  231 

de  não  qutz !  Seja  feita  a  vontade  de  Deus.  » 
Três  minutos  depois  D.  Pedro  II  levantando 

a  cabeça  d^entre  as  mãos ,  e  formando  com  os 

olhos   uma   longa  interrogação,   perguntou  ao 

confessor : 

— «  Este  padre  Ventura ,  está  certo  de  que 

é  só  o  que  parece?  » 

—  «  Certissimo ,  meu  senhor.  »  —  Acudiu  o 
jesuita  ainda  convulso  da  jaculatória  do  visita- 
dor,  e  estremecendo  com  a  pergunta  do  real 
penitente.  » 

— «  É  pena*  Se  não  fosse  estrangeiro,  era 
um  homem  que  amanhã  fazia  secretario  de  es- 
tado ,  e  a  companhia  de  Jesus  devia  tel-o  feito 
seu  Geral  ha  muito  tempo. . . .  Venha  ajudar- 
me  a  rezar  as  minhas  Horas.  » 

Sebastião  de  Magalhães  não  disse  nada ,  mas 
tremeu  involuntariamente ,  ouvindo  as  penúlti- 
mas palavras  do  monarcha : 

—  «  Geral  ?  »  —  murmurou  seguindo  a  D. 
Pedro  até  ao  oratório  —  «  Ainda  não !  Mas  ama- 
nhã ,  mas  um  dia  cedo  ? . .  . .  Em  todo  o  caso 
tinha  rasão  o  padre  Ventura:  perdeu-se  um 
grande  rei ,  e  por  minha  culpa.  Paciência !  Se 
me  enganei  com  D.  Pedro  II,  D.  João  V.  me 
vingará;  » 

Mal  previa  o  padre  que  dizia  uma  profecia. 


Digitized  by  VjOOQIC 


Digitized  by  VjOOQIC 


CAPITULO  ZZII. 


UM  PORTUGUBZ  ANTIGO. 


D.  Pedro  II  cumpria  a  promessa.  No  dia  se- 
gainte  6s  nove  horas  da  manhO,  s.  magestade,  aò 
sair  da  missa ,  passou  a  dar  audiência  na  casa 
do  «  Estrado  »  a  D.  Luiz  de  Âthaide,  que  o  es- 
perava em  companhia  do  marquez  de  Marialva , 
genttl-homem  da  sua  camará.  Os  dois  fidalgos 
conversavam  confidencialmente ;  e  o  marquez  pro- 
curava socegar  o  animo  do  pae  de  D.  Catharina, 
cujas  faces  animadas  e  gestos  violentos  mostra- 
vam uma  grande  agitação. 

£l-rei  entrou  na  salla,  bastante  pallido  e  aba- 
tido. Respondendo  6  genuflexão  de  D.  Luiz  com 
benevolência,  insinuava-lhe  que  o  chamava  como 
amigo.  Da  sua  parte  o  vassallo,  tanto  tempo  des- 
prcsado ,  e  sujeito  As  privaçOes  de  uma  pobreza 
honrada ,  mas  orgulhosa ,  reflectia  no  semblante 


Digitized  by  VjOOQIC 


2;34  A   MOGIDÀDS 

grave  a  severidade  que  era  licito  patentear  em 
tal  occasião.  Os  dois  (Nrotogonistas  da  sceiia(p(ff« 
que  o  marquez  saiu  apenas  entrou  D.  Pedro)  me- 
diram-se  alguns  instantes  em  silencio,  preparan- 
do-se  para  sustentar  dignamente  o  seu  papel. 

D.  Luiz  teria  sessenta  e  seis  annos ;  mas  os 
trabalhos  e  os' desgostos  íaziam-no  mais  velho.  Os 
cabellos  todos  brancos ,  a  vivacidade  ainda  pouco 
amortecida  dos  olhos,  e  a  regularidade  das  fei- 
ções, davam-lhe  um  aspecto  insinuante  e  vene- 
rando :  a  voz  cheia  de  firmeza  era  agradável ;  e 
as  maneiras  a  certo  arrojo  delicado  e  cavalheiro 
uniam  a  mais  attenciosa  urbanidade. 

—  «  D.  Luiz,  estimei  esta  occasião  —  disse  d^ 
rei. — desejava  conhecel-o.  Porque  não  o  tenho 
visto  ?  » 

O  fidalgo  sorríu-se  com  amargura ,  e  respon-r 
deu,  beijando  a  mãa: 

—  a  Sou  telho ,  .sr..;  e  os  velhos  na  corte  pa- 
recem cousas  d0  outro  mundo.  Depois,  d^e 
que  me  fiz  esquecido  ninguém  mais  se  l^abrou ; 
por  isso  intendi  que  tinha  sido  prudente  reti- 
rando-me.  Para  que  havia  de  enfadar?  Já. são 
sirvo  para  nada.  »        , 

— -aOj  homens  do  seu  merecimento  não  <»« 
quecem ,  e  a  prova  e  ^ue  eu  lembreinne.  »» 
• — ^, Beijo  as  .oAos  de  v»  magestede  I  »  r^  r^U:? 


Digitized  by  VjOOQIC 


M  9.  loie  y.  Ít3& 

eou  o  paé  de  D.  Catburitta  com  a  laesma  digiiFr 
àwit  cesfmtosa.  O  sm  rosto^  porim,  mostrava  que 
sabia  o  valor  das  expressões  graciosas,  de  que 
insam  os  soberanos  para  adoçar  as  injustiças. 

—  «  Sabe  para  que  q  mandei  clwmar  ?  »  — ^ 
peiígantou  de  repente  D.  Pedro ,  olhando  muito 
fito  para  elle. 

^-r-«  V.  magestade  esp^o  que  se  dignará  di-* 
zer-m^o.  Mas  eu  estava  deteoninadp  a  vir,  ainda 
que  el*rei  mê  não  chamasse.  » 

—  «  Então  porquê  ?  » 

—  c<  Porque. a  pobreza  é honra,  mas  a  villania 
nâo  !  V.  njagestade  podia  julgar  indignos  de  pre- 
mio os  insignificantes  serviços  de  um  soldado; 
mas  el-reiy  qu^d  é  pae,  aào  pôde  cubrir  de  infâ- 
mia os  cabellos  brancos  de  outro  pae,  nem  ar- 
rastar a  reputação  de  um  nome  illustre  pelas  ma~. 
ledicencias  da  sua  corte...  Â  honra  de  minha  filhst 
não  é  só  delia,  é  da  fidalguia  portugueza ;  e  desde 
hontem  o  nosso  chefe,  el-rei,  manchou-a  par% 
toda  a  vida !  £m  Lisboa  não  se  falia  senão  dos 
amores  do  principe  real  com  uma  noviça  de  Santa 
Clara ;  e  a  calumnia,  invocando  a  palavra  de  v. 
magestade,  tem  a  audácia  de  por  a  bocca  em  D. 
Catharina  de  Atbaide !...  Saahor,  o  pae,  o  chefe 
da  familia,  sou  eu ;  e  pela  sua  gloria  só  eu  hei  da 
responder  aos  homens  e  a  Deus.  Na  casa  do& 


Digitized  by  VjOOQIC 


236  À  MOdDÁDi 

Athaides  nunca  houve  bastardos,  nem  ha  de  ha* 
Vèr,  em  quanto  D.  Luiz  fôr  vivo.  Indaguei  a  ter- 
dade ;  lancei-me  aos  pés  de  s.  alteza  real,  e  te- 
nho a  sua  fé  de  que  todo  é  falso,  falso !  percebe, 
el-rei?...  porque  sendo  exacto,  como  a  pessoa  do 
princípe  é  sagrada,  o  meu  sangue  apagaria  a  nó- 
doa... Agora  peço  justiça  a  v.  magestade;  peço 
reparação !  Queixo-me  a  el-rei  da  oíFensa  que  re- 
cebi de  D.  Pedro  11...  » 

O  monarcha  ouvia-o  com  bondade.  Longe  de 
sç  aíQigir,  o  seu  rosto  tomava  alguma  animação , 
é  com  mais  doçura  do  *que  firmeza,  respondeu, 
pegando-lhe  na  mão,  que  D.  Luiz  tractava  de  re- 
tirar : 

—  «  Veio  tarde.  El-rei  jô  fez  justiça !  » 
Apesar  da  gravidade  com  que  as  pronunciou^ 

estas  palavras  feriram  o  pae  de  D.  Gatharina,  em 
vez  de  o  tranquillisar.  Suspeitando  que  o  monar- 
cha declinava  a  reparação  por  meio  de  uma  eva- 
siva o  fidalgo  irritado  fez-se  pallido;  e  com 
semblante  severo  e  olhos  altivos  replicou  aspera- 
mente: 

—  «  Senhor,  se  ha  quarenta  annos  em  Mon 
tes  Claros  eu  soubesse  que  este  era  o  premio  do 
meu  sangue,  a  espada  ficava  na  bainha !  A  co- 
rda de  V.  magestade  eu,  nós  todos,  é  que  Ih^a  po- 
zemos  na  cabeça ;  e  para  nos  tractar  assim  el- 


Digitized  by  VjOOQIC 


0K  ©.  J0A0:V.  237 

rei  de  Cástella  era  melhor...  Ao  metios  esse  não 
nos  devia  nada !  » 

Ouvindo  a  apostrophe  orgulhosa,  D.  Pedro  II 
recuou  dois  passos.  Â  vista  faiscou,  e  a  estatura 
tornon-se  erecta  de  repente.  Lançando  ao  velho 
militar  um  desses  olhares  que  partindo  do  rei 
dizem  que  a  sua  cholera  é  a  cholera  do  ledo ,  o 
príncipe  contendo-se  a  custo,  disse-lhe  severa- 
mente : 

— «  D.  Luiz  esqueceu,  parece-me,  que  está 
faltando  ao  seu  rei !  O  duque  de  Bragança  não 
quer  ouvir ;  mas  D.  Pedro  II  sabendo  é  obrigado 
a  castigar.  » 

O  antigo  soldado  era  uma  alma  que  não  co- 
nhecia o  medo.  Tão  firme  na  honrosa  intrepidez, 
como  o  rei  na  sua  força ;  tão  altivo  do  seu  nome, 
como  elle  da  sua  corda,  respondeu  com  a  vista  irri- 
tada ao  olhar  ameaçador  do  monarcha,  e  a  voz, 
mais  alta  ainda,  proferiu  um  cartel  audacioso, 
sabendo  que  lhe  podia  custar  a  liberdade. 

— «  El-rei  deshonrou  a  minha  espada  —  el- 
clamou  com  extrema  solemnidade — fez  do  meu 
nome,  antigo  como  o  de  v.  magestade,  o  ludi- 
brio da  corte,  aonde  as  línguas  são  mais  com- 
pridas do  que  as  armas...  El-rei  falta. ao  seu  jura- 
meaio,  não  guarda  os  nossos  foros :  a  coroa  não 
nos  cobre,  fere^nos !  De  hoje  em  diante  ficámos 


Digitized  by  VjOOQIC 


à3t  A  MOCIDABB 

quite».  Nio  tornarei  a  sentr  a  casa  de  Bragança. 
A  familia  dos  Athaides,  cheia  de  gloria  na  Asta, 
e  em  toda  a  parte  aonde  se  deu  uma  batalha, 
acabou,  porque  d-rei  de  Portuga)  disse  uma  ca- 
lumnia,  e  é  rei...  nSo  responde  seiâo  a  Deus! 
Ao  menos  a  espada  de  meus  ffvós  não  ver6  esta 
vergonha ;  ahi  a  deixo  para  casttgo  dos  ingrato» 
que  sustentou !  » 

Dizendo  isto  atirou  a  espada  nua  aos  pés  da 
D.  Pedro ;  e  cruzando  os  braços,  eiclamou  com 
a  cabeça  arguida : 

—  4(  Agora  façam  do  corpo  o  que  quizereoii 
Pôde  V.  magestade  sepultar-me  em  uma  torre. 
É  o  roodo  de  occoUar  nm  borrão  nos  escudos 
da  fidalguia  portugueza.  » 

Attofiito  do  arrojo,  o  imoarcha  no  primeiro 
impulso  deu  com  o  pé  na  espada  e  atTastov^a 
cheio  de  ira.  Depois,  com  a  mfto  no  punho  do 
florete,  dirígki«*se  a  D.  Luiz.  Estse,  sen  recuar 
nem  empaltideeer^  Tsndo  a  sua  valentei  espada 
pizada  aos  pés,  clamon  cortado  de  amargara: 

-*-«  O  marquea  de  Marialva  fozia  mais  oaso 
de  uma  espada  U..  É  verdade  que^a  marques  era 
um  heroe...  Senhor !  •-^-prosegniu  exakando-se— 
dava  o  meti  saiigoe  para  outra  pessoa  pniticÉr  a 
acção  de  vi-  magestade  re  juro  que  essa  .e0pHÍA 
não  era  arrastada  pelb  chão  sem  levar  oimstgo 


Digitized  by  VjOOQIC 


olguem^.  Louve  a  Deus  el^-rei  t  Estamos  sós, 
e  a  paciência  é  maior  do  que  a  offensa.  > 

Duas  lagrimas  escaparam  pelas  faces  do  an- 
tigo soldaclo ;  e  senlindl^as  queimar,  enchugou-as 
com  99  costas  da  mão,  e  abaixou  a  cabeça,  con- 
fnso  tahea  da  primeira  firaquefla  da  sua  tida. 

O  príncipe  tinha  tido  tempo  de  reflectir ;  e 
convencido  de  que  a  sua  precipitação  em  accu- 
sar  sem  provas  fòra  causa  da  magoa  que  atríbo* 
tava  aqueHe  coração,  compadeceiHse,  e  admirou 
o  arrejo,  o  leal  orgulho  que  o  elevada  contra  a 
magestade  da  terra,  sem  outras  armas  senão  a 
constância  para  soífrer.  D.  Pedro,  jâ  o  vimos, 
sabia  apreciar  ne&tes  tonoes  a  verdadeira  gran- 
deza d'alma ;  e  conhecendo^  o  seu  logar,  perce- 
beu que  a  rei  nesta  oceasíão,  para  ser  rei,  devia 
descer  e  não  punir. 

Demais,  aqueUas  lagrimas  só  a  agonia  podia 
arrancal-as ,  porque  eram  mais  do  que  sangue ; 
pareceu-Ihe  glorioso  enchugal-as ;  e  não  traspassar 
de  mais  dore»  a  alma  do  infeliz.  Feitas  estas  re- 
flexões, a  que  deu  força  a  lembrança  das  suas 
promessas  ao  padre  Ventura,  D.  Pedro  II,  em 
toda  a  magestade  da  soa  elevada  estatura,  foi  di- 
reito â  espada,  levantou-a  do  chão,  e  chegando- 
íe  ao  veHio  fidalgo,  meteu-lha  n»  bainha,  di- 
zendo: .     .      ' 


Digitized  by  VjOOQIC 


840  .A  aioaDADiE 

—  4c  D.  Luiz,  ambos  nos  excedemos,  creio  eu ! 
Guarde  essa  espada ;  não  é  minha,  nem  sua,  é 
da  historia.  » 

A  reparação  era  digna  de  um  monarcha ;  o 
pae  de  Catharina  não  pôde  resistir-lhe.  O  joelho, 
antes  rebelde,  dobrou-se ,  e  a  yoz  de  firme  pas- 
sou a  tremula : 

—  «  Senhor !  —  acudiu  já  sem  occultar  as  la- 
grimas que  saltavam  pelos  olhos  —  é  uma  espada 
que  perdeu  a  honra,  que  nunca  roais  posso  ti- 
rar. Não  sabe  v.  magestade  o  que  todos  dizem  ? 
Minha  filha  está  sendo  amante  do  príncipe  D. 
João!...  Sou  o  pae  delia,  sei  que  é  falso,  e  não 
me  atrevo  a  levantar  a  mãol...  O  seu  único  dote 
era  a  boa  fama,  e  essa...  » 

—  a  Está  el-rei  aqui  para  dizer  que  está  pura, 
como  desejaria  a  de  suas  próprias  filhas !  —  iu- 
terrompeu  D.  Pedro  com  dignidade.  —  «  Se  um 
erro  involuntário  oiFendeu  uma  familia  distincta, 
sou  o  primeiro  cavalheiro  portuguez,  e  hei  de  cum- 
prir os  deveres  que  me  impõe  o  sangue.  D.  Luii, 
levante-se !  Se  me  ouvisse  tinha  sido  menos  in- 
justo. Também  sou  pae;  avalio  a  sua  dòr;  e  ad- 
miro o  seu  caracter...  Tudo  pôde  reparar-se  que- 
rendo Deus.  » 

—  «  Comp ,  sr. !  É  impossivel !  »  —  gritou  o 
desditoso  pae,  apertando  as  mãos  com  angustia. 


Digitized  by  VjOOQ  IC 


BE  D.   JOÃO  V.  241 

—  fc  Do  modo  que  direi.  Sabe  aonde  sua  fi- 
lha está  a  esta  hora?  » 

—  <x  Em  Santa  Clara.  » 

—  c(  Engana-se.  Ha  de  vir  em  caminho  para 
casa  de  Lourenço  Telles,  commendador  de  S.  Mi- 
guel das  Minas.  Mandei-a  tirar  do  comento  p<^ 
ordem  regia ,  e  encarreguei  o  secretario  das  mer- 
cês de  a  executar.  » 

— -  «  Senhor^  senhor  t  »  -^  exclamou  D.  Luiz 
deítando-se  de  joelhos  aos  pés  de  el-rei.  — «  V. 
magestade  acabou  de  nos  perder !  Amanhã  a  voz 
geral...  d 

—  c(  É  que  D.  Catharina  casa  em  uma  famí- 
lia tão  illustre  como  a  delia ! -^  atalhou  el^rei 
sorrindo  —  «  Diga-me :  qual  é  o  mal  de  que  se 
queixa  ?  » 

—  (c  A  calumnia  dos  amores  de  s.  alteza  com 
minha  filha !  » 

—  «  E  se  el-rei  hontem  recebesse  um  reque- 
rimento, pedindo  ordem  especial  para  o  casa- 
mento de  D.  Catharina  com  o  veador  do  prín- 
cipe, o  conde  de  Aveiras,  por  se  amarem  extre- 
mosamente ?  E  se  a  causa  de  sua  filha  se  fazer 
religiosa  sem  vocação,  e  chorando  o  mundo  pelo 
contrario,  fosse  unicamente  o  seu  respeito  e  obe- 
diência, quereria  seu  pae  a  infelicidade  eterna 
delia  ?  Confesse,  D.  Luiz,  sendo  isto  exacto,  não 

T.  n.  16 

Digitized  by  VjOOQIC 


242  A  HOCIDAPE 

Gn  bem  passando  a  ordem  e  mandando-o  cha- 
mar para  lhe  pedir  que  coqcorde,  e  permitta  o 
casamento?  » 

Extático,  o  antigo  fidalgQ,  olhava  sem  fallar. 
Achava-SG  em  um  mundo  inteiramente  novo.  £n^ 
taretanto  o  sen  orgulho  ainda  foi  bastante  para  o 
anifnar  a  exprimir  uma  espécie  de  recusa. 

—  «  Sendo  exacto  —  disse  elle  —  e  eonce- 
dendo^me  el-rei  a  graça  de  o  publicar,  estamos 
salvos,  dSo  ha  duvida ;  mas  D.  Catharina  é  muito 
pobre  para  o  conde  de  Aveiras,  e  eu  muito  al- 
tivo para  aceitar  como  esmola  uma  alliança  que 
d^ve  ser  igual  a  todos  os  respeitos,  n 

-^((  Sejamos  rasoaveíslr-*  observou  D.  Pedro 
—A  honra  primeiro  que  tudo;  mas  depois  da 
honra,  menos  fidalguia,  e  mais  ternura.  D.  Ga- 
tbarina  pré^a  o  conde ;  elle  merece-a :  o  que  ha 
de  ser,  seja!...  Dei  a  minha  palavra;  e  quero 
illustrar  a  casa  de  Aveiras,  honrando-a  com  uma 
condessa  da  minha  escolha.  É  coisa  feita,  D. 
Luís!  —  accrescentou  sorrindo.  —  Sou  o  padri- 
nho ;  e  as  jóias  «e  o  dote  da  condessa  ficam  por 
conta  do  meu  presente  de  noivado :  mas  dentro 
em  poucos  dias  casam ;  e  hoje  publica-^e  na  corte. 
Agora  fallemos  dos  serviços  do  pae.  Estou  infer^ 
mado,  e  sei  que  estão  por  galardoar.  D^  Luiz , 
faço-lhe  mercê  de  uma  commenda  de  três  mil 


Digitized  by  VjOOQIC 


jm  D.  Jolo  V.  SliS 

cruzados  cotoi  80ÍNrevivencia  no  esposo  de  sua  fi-* 
lha.  Creio  que  assim  acabaram  os  seos  escropa- 
los»? 

—  <x  Mas  resta-me  o  remorso  de  conhecer  t&o 
tarde  o  magnânimo  coraçSo'  de  ei-reh  Senhor !  -— 
exclamou  lançando-se  aos  pés  do  soberano,  e  cu-* 
brindo-lhe  a  mão  de  ósculos  respeitosos  —  dei- 
xe-me  v.  magestade  expiar  o  meu  erro  no  exer* 
cito  do  marquez  das  Minas.  Talvez  eu  lá  nfto  seja 
tão  velho  como  aqui.  x> 

'  — «  Não,  D.  Luiz,  na  idade,  em  queestamos^ 
é  preciso  descançar.  Deixemos  colher  alguns  lou- 
ros também  aos  moços.  Se  eu  fallecer  prímtriro 
—  proseguiu  com  tristeza  —  lembre-se  de  mim, 
e  conte  alguma  vez  esta  historia  aos  seus  netos. 
Os  reis  gostam  de  ser  estimados,  mesmo  depois 
de  mortos.  Ê  a  penitencia  que  lhe  imponho  pe-< 
lo...  arrebatamento  de  seu  génio.  » 

-*-  «  Deus  ha  de  aíTastar  de  nós  tamanha  oa7 
lamidade  »  —  acudiu  D.  Luiz  enternecido. 

—  «  S.  alteza  real  !»-*- annunciou  o  marquez 
de  Marialva. 

Segundo  o  estilo,  D.  João  vinha  saber  da  saúde 
de  seu  pae,  e  oíferecer*lhe  os  seus  respeitos.  De* 
pois  de  o  abençoar,  o  monarcha  abraçou-o,  e  vi- 
rando-se  para  elle  com  bondade : 

—  «  V.  alteza  —  disse  el-rei  —  ha  de  ter  gosto 


Digitized  by  VjOOQIC 


244  A  MoaDAns 

em  conhecer  um  fidalgo  do0  que  estiveram  em 
Montes  Claros  com  o  marquez  de  Marialva.  .  Se 
deseja  saber  como  foi  a  derrota  dos  castelhanos , 
pergunte  a  D.  Luiz  de  Athaide,  que  elle  lh'o  dirá. 
É  um  dos  poucos  que  restam  ainda  de  uma  das 
maiores  viotorias  da  restauração.  » 

O  principe  olhou  para  seu  pae ,  e  deu  a  mão 
a  beijar  a  D.  Luiz.  S.  alteza,  percebia-se,  não 
podia  combinar  este  agrado  repentino  com  a 
severidade  da  noite  antecedente.  Da  sua  parte^ 
D.  Pedro  desejando  evitar  qualquer  explicação, 
acudiu  logo : 

—  ((Ás  informações  que  tive  hontem  eram 
falsas ;  e  em  prova  da  minha  amizade,  saiba  v. 
alteza  que  os  seus  desejos  estão  satisfeitos.  Â  ro- 
gos meus  D.  Luiz  auctorísa  o  casamento  de  D. 
Gatharina  de  Athaide  com  o  conde  de  Aveiras, 
seu  veador ;  determinei  ser  o  padrinho  da  noiva ; 
e  espero  que  v.  alteza  estimará  sel-o  também  do 
conde.  » 

O  principe  inclinou-se  com  respeito.  Voltan- 
do-se  depois  para  D.  Luiz  accrescentou : 

—  «O  pae  de  D.  Gatharina  pôde  estar  certo  de 
que  o  marido  de  sua  filha  é  digno  das  graças  de  s. 
magestade,  e  das  virtudes  dos  seus  antepassados.  » 

— «  Obedeço  ás  ordens  de  el-rei  e  de  v.  al- 
teza! i> 


Digitized  by  VjOOQIC 


DE  D.  JOÃO  y.  Si4ii 

—  «o  conde  pae  está  na  sala  do  docel ;  po- 
dem fallar  ambos.  » 

—  «  Adeus,  D.  Luiz!  —  gritou  eWrei  —  Não 
se  esqueça.  Em  poucos  dias  faz-se  o  casamen- 
to. »  . 

Quando  oTidalgo  saiu,  D.  Pedro,  pegando  na 
mSo  de  seu  filho  com  amizade  disse-lhe : 

—  «  João,  teu  pae  foi  severo  pelo  grande  amor 
que  o  cega.  Ainda  subsiste  a  tua  repugnância  a 
casar  na  casa  de  Áustria  ?  » 

— -«A  minha  mSo  nSo  é  livre,  já  o  expuz  a 
V.  magestade.  » 

—  «  E  se  amanhã  fosses  rei  ?  » 

—  «  Era  o  mesmo.  » 

' —  «  Deves  a  honra  a  alguma  dama  ?  » 
— «  Devo  amor ,  que  não  é  menos.  » 
' —  «  E  se  ella  te  desobrigasse  ?  » 

—  «  Como  a  primeira  paixão  dos  principes  é 
o  bem  do  estado,  verdade  que  v.  magestade  hon- 
tem  me  deixou  gravada,  livre  a  minha  palavra, 
farei  o  que  mais  convier  ao  esplendor  da  coroa,  d 

—  «  E  até  lá?  » 

—  «  Até  lá...  nada!  » 

—  «O  nome  dessa  dama  ?  » 
— «  É  um  segredo.  » 

—  «  Para  teu  pae  ?  »  —  observou  D.  Pedro 
sorrindo. 


Digitized  by  VjOOQIC 


246  A  MOCIDADB 

—  c<  Sobretudio  para  el-ret!  »«— resqpondeu  o 
príncipe  com  outro  sorriso. 

— «  £  se  o  deseubrirmos  ?  » 

—  «  Gomonik^acceito  a  minha  palavra,  senão  I 
livremente  restituída  —  acudiu  s.  alteza  fria- 
mente —  é  natural  que  eUrei  nào  descubra  nada  ! » 

D.  Pedro  desgostoso  despediu  o  principe  com 
o  gesto,  e  retirou-se.  Nessa  tarde  chamou  os  mé- 
dicos e  o  seu  confessor ;  e  como  no  dia  seguinte 
não  houve  audiência  nem  despacho,  o  povo  dizia 
em  voz  geral  que  el-rei  adoecera  gravemente.     I 


Digitized  by  VjOOQIC 


índice  dos  capítulos. 


CAPITULO  xni  —  Nem  tudo  o  que  luz  é 

oiro! 1 

CAP.  XIV  —  Ecce  saccerdos  magfius! ...  21 

CAP.  XV  —  Uma  serva  de  Deus! ^  85 

CAP.  XVI  —  Nem  eu  nem  tu 81 

CAP.  XVII  —  Mentira  e  verdade 107 

CAP.  XVIII  —  Em  quanto  venta  molha  a 

VELLA  ! 121 

CAP.  XIX  —  Antes  quebrar  que  torcer. . .  151 
CAP.  XX  —  Sua  alteza  o  infante  D.  Fran- 
cisco ! 179 

CAP.  XXI  —  Duas  potencias ! 201 

CAP.  XXII  —  Um  portuguez  antigo 133 


Digitized  by  VjOOQIC 


—        '1r"€í         ^ 


Digitizedby  Google  )(^ 

V. 


Digitized  by  VjOOQIC 


Digitized  by  VjOOQIC 


Digitized  by  VjOOQIC 


Digitized  by  VjOOQIC