This is a digital copy of a book that was preserved for generations on library shelves before it was carefully scanned by Google as part of a project
to make the world's books discoverable online.
It has survived long enough for the copyright to expire and the book to enter the public domain. A public domain book is one that was never subject
to copyright or whose legal copyright term has expired. Whether a book is in the public domain may vary country to country. Public domain books
are our gateways to the past, representing a wealth of history, culture and knowledge thafs often difficult to discover.
Marks, notations and other marginalia present in the original volume will appear in this file - a reminder of this book's long journey from the
publisher to a library and finally to you.
Usage guidelines
Google is proud to partner with libraries to digitize public domain materiais and make them widely accessible. Public domain books belong to the
public and we are merely their custodians. Nevertheless, this work is expensive, so in order to keep providing this resource, we have taken steps to
prevent abuse by commercial parties, including placing technical restrictions on automated querying.
We also ask that you:
+ Make non- commercial use of the files We designed Google Book Search for use by individuais, and we request that you use these files for
personal, non-commercial purposes.
+ Refrainfrom automated querying Do not send automated queries of any sort to Google's system: If you are conducting research on machine
translation, optical character recognition or other áreas where access to a large amount of text is helpful, please contact us. We encourage the
use of public domain materiais for these purposes and may be able to help.
+ Maintain attribution The Google "watermark" you see on each file is essential for informing people about this project and helping them find
additional materiais through Google Book Search. Please do not remove it.
+ Keep it legal Whatever your use, remember that you are responsible for ensuring that what you are doing is legal. Do not assume that just
because we believe a book is in the public domain for users in the United States, that the work is also in the public domain for users in other
countries. Whether a book is still in copyright varies from country to country, and we can't offer guidance on whether any specific use of
any specific book is allowed. Please do not assume that a book's appearance in Google Book Search means it can be used in any manner
any where in the world. Copyright infringement liability can be quite severe.
About Google Book Search
Google's mission is to organize the world's Information and to make it universally accessible and useful. Google Book Search helps readers
discover the world's books while helping authors and publishers reach new audiences. You can search through the full text of this book on the web
at http : //books . google . com/|
Digitized by VjOOQIC
dbyGoOgi-
Digitized by VjOOQIC
Digitized by VjOOQIC
MOCIDADE DE D. MO V,
POK
X.. A. REBELLO DA SILVA.
TOMO I.
LISBOA
TTMflBAiPHIA DA BBTISTA DNlVlUSAt
' Rua doi Fanqueiros, 8S
18S1
f\j Digitized by CjOOg IC
lOAN STAOC
Digitized by VjOOQIC
f ^Sl
DUAS PALAmS BR lIPUaçÂO.
EscRETBNDO esta noTdla, o auetor protesta
que Bio quíz fazer senão um romance.
Serft pouco» nSo duyida , mas contenta-se. Se
a leitura entreter e as scenas não desagradaram^
fica tão satisfeito, como se lhe coroassem o li-
vro dos louros ressequidos, que teem andado
por todas oraçSes da praça publica, desde Mãsa-
oiello até Jeronymo Paturot, de ridicula memo*
ria.
Depois de acabado este quadro, quasi familiar,
dos costumes portugueses no século XVIU , de*
" íl 000 r I
Digitized by VjOOQIC
II
via conformar-se á moda e encarregar os perso-
nagens de um papel philosophico-social , profun-
damente regenerador. Apesar do lustre , que o
romance podia receber da sua novidade, resistiu
á tentação ; sempre entendeu que a arte nâo pre-
cisa do foro pequeno da politica para ser a pri-
meira entre as illustrações intellectuaes.
O que o famoso romancista escocez conseguiu
fazer dos seus heroes , procurou o auctor imitar
de longe a respeito das figuras deste ensaio. O
seu desejo era animal-as de modo , que , portu-
guezas nas feições, nas idéas^ e no viver, en-
trassem facilmente na intimidade do publico ,
como amigos, ou conhecidos seus antigos.
O seu receio é da ter ficado ainda muito atraz
da realidade poética ; por isso que na passagem
do mundo ideal para a manifestação do mundo
positive raras vezes é conservada a admirável
similhança , que faz a gloria de todos os prínci-
pes da arte.
 idéa, que houve, desenhando nas horas va-^
gas as scenás deste painel imperfeito, era com
pôr uma espécie de Trilogia que désse-Vulto e
càr á época essencialmente dramática, que entre
nós é dominada pela figura do sr. D. João V ,
espécie de rei popular no meio do seu absolu-
tismo. As qualidades e os defeitos do monarcba ;
Digitized by VjOOQIC
Ill
o seu fausto, a âua generosidade, e as paixões
que se lhe attribuem, indicaram-no como aquelle
dos nossos reis modernos, de quem o poro se lem-
braria com mais interesse. Orgulhoso como Luiz
XIV, e amigo de aventuras como o califa de
Bagdad, D. João y saiu sempre de todos os encon-
tros perfeito cavalheiro, e magnânimo Soberano.
A Mocidade^ que hoje se publica, é apenas o
prologo de todo o drama. Âs outras duas partes
mais extensas, mais vivas de acção e de colorido,
talvez, hão de seguir-se ã exposição (se ella
for feliz) e completar o quadro, começando pelo
rei , que na mocidade apparece de longe, e com
o caracter pouco assente, que a verdura dos an-
nos ainda exigia que se lhe desse. Dos outros
personagens , alguns morrem na primeira parte ,
e na segunda, em virtude da sua provecta idade ;
e os mais interessantes , com as modificações do
tempo e das idêas, continuam, concorrendo com
o Salomão portuguez, tão peccador e devoto, até
aos ultimes annos da sua vida.
Se este ensaio merecer alguma attenção do
publico, protesta o auctor não desanimar, e conta
pôr na tela do romance uma época , a seu vêr .
a mais curiosa de todo o século XVIII em
Portugal. Se o livro mergulhar no esquecimento,
ha de sentil-o infinitamente, mas ganhará ao
Digitized by VjOOQIC
jMtM ttia desengano atemp<^ ficando, livre para,
se occupar de coisas maia da eua Tocaçao.
Depois disto nada tem a accrescentar* Á eri*
tiea pertence louvar ou castigar o que a obra
trouxer de bom, ou de m6u ; e sem vaidade nem
servidão Ifae wirega a sua causa. Nada ha mais
ínsulso do que a mania de querer à força de pro*
loquiose de citações postiças, remar contra a opi-
nião incutindo a leitura do romance ou da poe-
sia , que o gosto publico oigeitou.
O milagre de animar as estatuas não cabe nos
dias em que vivemos, £9te nSo é o século das
Galatheas e Pigmaliães. Ou a obra tem valor, e
vive do seu mérito ; ou morre do frio incurável
da idéa e da execução, caso desesperado que
não remedeia o vesicatório impertinente de um
discurso de Gil Anms , aborrecido em todos os
legares e em todas as questões.
Digitized by VjOOQIC
MOCIDADE DE D. JOlO V
CAPITULO I.
«x X VEilDADB DU UH BltrÃU NO ADRO DE â. DOAUNGOS. »
— « Ninguém me diga : « eu desta agua n5o
beberei.» Padre Procurador, nào somos nada
. neste mundo. »
— « E' verdade , Thomé das Chagas. Entào
que quer ? Pagam-se os peccados. »
— « E eu sem pregar olho toda a santíssima
noite. . . e vai, e sahe-nos uma destas ! Os nossos
padres como estão?»
— « Mortiíicadissimos ! . . . Apesar de toda a
grandesa de alma isto che^a ao vivo. »
1
Digitized by VjOOQIC
2 A MOCIDADE
— c< Pois nSo ! E o excommungado papel nSo
haverá meio de se lhe acudir?»
— «A Provisão do Desembargo do Paço ? Eu
não sei, por mais que scisme. E' Ccesar in Ccb-
sare ! Sempre é ir de El^rei para £l-rei. Como
os padres de S. Roque hão de rir-se a esta hora ! »
— a Pois elles com isto tem alguma coisa ? »
— <( Teem tudo, Thomé. V. mercê não per-
cebe, mas percebo eu. A pedra veio da sua mão ;
e os padres da Companhia atiram certo. . . Não
importa! O jogo continua, e no fim se verá
quem perde. »
— « Não suppunha. Ora esta ! Com que an-
dam os Jesuitas no caso 7 d
— <( Em tudo , irmão Thomé. Nestes reinos ,
faz-se alguma coisa que elles não cubram com
a sua roupeta ? »
— « Parece impossivel ! . . . Até no Desem-
bargo do Paço ? . . . »
— « Em toda a parte. A Companhia appare-
ce á cabeceira de Eí-rei, se adoece, no seu ora-
tório se resa, á mesa dos seus tribunaes se des-
pacha. . . »
— <( Então se está em todos os legares? ...»
— « Sabe e aconselha tudo, é verdade. Só dft
Santa Inquisição não venceu por ora nada, nem
hade conseguir, era quanto florescer a Ordem do»
Digitized by VjOOQIC
BB D. JOÃO V. 3
Pregadores, institaida para confusSo dos herejes
e acoite dos hypocritas. . . Aqui tenho o texto
do primeiro sermão na capeUa real , e qae man-
dem refutar-me pelos seus casuistas e doutores. , •
O que lhe digo Thomé das Chagas, é que o pia*
no dos Jesuítas , o negro e maldicto plano dei-
les. . . »
— u Jesus da minha alma ! »
— <t E^ abolir a Santa InquisiçSo , e enterrar
nas suas ruinas a ordem de S. DcHoaingos. A in-*
veja rala-os. »
— « Por isso as prophecias s3o tantas e o povo
anda tão inquieto. Sabe V. Rev."* o que^ di-
zem ? . . . Que bade nascer em Babylonta o An-
techristo. O certo é que para as bandas da Sé
apparece já um lobishomem ; e ao pé de Santa
Engracía qoeíxam-se os visinhos de que sahe. . . »
— «Um demónio!... Pois atreye^e com
essa chécha cabeça a prescrutar os altos mysK
terios de Deus? Não são precisas maravilhas. O
Antechristo nasceu já. »
— «Santa Barbara , S. Jeronymo ! Ábrenunr'
€Ío ! Vade retro ! »
— Cale-se, homem. Que escarcéos são estes?
Mas a culpa é minha. Para que lhe estou eu
a fallar de coisas superiores á sua rasão ? Dei-
xemo-nos disto. Mas a Provisão, esta. pedra-
Digitized by VjOO^IC
4 A JIOCIDABÊ
da na cabeça, hei de ficar assim com alia? Va-
mos. » .
— ((Uma esmolinha por alma dos fieis de-
functos , minha devota ! »
Gritou o Sr. Thomé, interrompendo eshof^-
cio o dialogo , jâ cortado pela súbita meditação,
em que o padre mestre se abismou.
Em quanto este passeia preocupado e fallando
só , e aqaelle apara a esmola na pia bandeja ,
observemos de perto os protogonistas da scena.
Entremos no escorregadio campo da&expUeaçòes
E' justo principiar pelo mais graduado.
O mestre Pr. João dos Remédios , da ordem
de S. Domingos, ex-DeíiAidor e digníssimo Pro-
curador do convento de Lisboa, era um frade de
nome na corte e na égreja. A opinião dos eru-
ditos vaciHava entre elle e o ^adre Chagas, pre-
gador de grande fama. Se o padre Chagas limava
mais os sermões e possuia o segredo de commo-
ver o auditório, o Sr. Fr. João não conhecia emulo
na vehemencia dos affectos e nas explosões de
uma voz sonora. Formado ín ulroque jure gosava
nó foro da reputação de ser um segundo Pegas.
Se o negocio valia a pena, Sua Reverencia fe-
chada nariquissima livraria do convento, cobria
quatro cadernos de papel da sua lettra garrafal ,
Digitized by VjOOQIC
X>E D. JOÃO V. 8
^ lançava sdbre a parte adversa uma allegaçio
fulminante , que fazia pular a veneranda cabel-
leira ao Desembargo do Paço, e roer as unhas
Bo douto patrono contrario.
Quando muito, inculcava cincoenta annos o
sábio procurador; porém a certidão de baptismo,
menos citada por elle do que as ordenações,
addfcíonava uns cinco ou seis de mais acinoa da
conta redonda. — Apesar de gordo, os movimen-
tos ndo tinham nada de acanhados ou desairosos ;
« figura era mais vistosa do que esbelta. Arre-
dondado e muito cheio o seu rosto, com duas
covinhas aos lados das faces, quando ria, espiri-
tualísava-se com facilidade ; e a bocca fina e chis-
tosa dava-lhe grande animação: as mHos bem
tratadas e macias , e o pé bem calçado e pequeno,
tinham degancia, e distincção. Já se vé, que
vivendo no secuk), sem vaidade, podia contar com
o voto das damas, que é voto absoluto em oh-
jectos desta importância.
Sem ser Lavater, custava pouco a notar que a
applicação constante ás lettras sagradas e profa-
nas, e o uso do púlpito, imprimiam em sua
reverencia um cunho particular. As inllexôes e
os gestos do padre procurador tinham aquella
exageraçôó theatral , que é uma segunda natu-
reza para os que faliam em publico muitos annos.
Digitized by VjOOQIC
6 A MOaDÀ0E
A estatura seria desempenada, se o trabalho do
bofete a não tivesse curvado um pouco. O olhar
teria mais viveza , e o sorriso mais agrado , se
o primeiro não adormecesse tanto a miúdo, -e o
segundo brincasse com menos ironia aos cantor
da bocca. A oscillação do lábio superior, alguma
coisa grosso, e a das azas do nariz bastante víh
vas, depunham que o frade doutor não era tão
humilde e paciente, como o estado monn^tico
requer. Em fim, grandes entradas em uma testa
espaçosa e elevada , e a ruga da profunda refle*
;sSo cavada na frooite , asseguravam que a agu-
deza do espirito e o talento existiam dli para
compensarem os defeitos de um caracter sincero
e forte, mas irascivel e imperioso.
Mais gordo do que magro, como se disse,
mesmo até mais obezo do que gordo, a^ cores
florescentes do rosto eram um testemunho irre-
fragavel da sua inclinação As doçuras da vida , e
mais ainda aos prazeres da meza. O Sr. Fr. João
trazia um barretinho curto, deitado para a nuca,
deixando assim descoberta sempre a parte ante-
rior da cabeça, que era realmente bella. A Pro-
visão do Desembargo do Paço, enrolada na mão ;
servia-lhe de leque ou de compasso , segundo a
ira lhe fazia subir o sangue ao rosto, ou lhe
descompunha o gesto em accionados violentos*
Digitized by VjOOQIC
BE D. JOÃO V. 7
Durante o dialogo , que ouvimos , o padre mes-
tre tioha puchado e repellído o barretinho da
testa para a nuca umas poucas de vezes, e ba-
tido o pé com Ímpeto outras tantas. Via-se bem
que o reverendo batalhava com a ira , que era o
seu demónio familiar, e que o demonia mais
vezes ganhava a palma,, do que a santa doutrina
theologica.
Em tudo era o segundo interlocutor o anti-
poda do sábio jurisconsulto , que dado á conver-
sação e gostando muito de fallar elle só (quando
não estava preocupado), encontrava no irmão Tho-
mé o ouvinte mais paciente e convencido, que
a verbosidade podia exigir para se apascentar.
Trinta annos seriam a edade do milagreiro,
se caras, como a delle, tivessem edade possivel,
ou a deixassem colher em flagrmte. Era um
esqueleto estuando e desengonçado , com os os-
sos em reacção permanente contra a carne,
com os nervos a encordoarem a secura da pelle
verdenegra que o colffia: em fim parecia um
paradoxo da figura humana, desses que a natu-
reza forma a capricho , quebrando o molde para
Bão ficarem cópias.
Aos doze annos, tinha já a altura de um ho-
mem e a magreza de um galgo ; e até aos vinte
ainda espigou que mettia medo»
Digitized by VjOOQIC
8 A MOCÍD.VOÍÍ
O esganado pescoço sustinha a cabeça do Sr.
Thomé, cabeça esguia adiante, e alterosa na
coroa , aonde se empinava uma nuca' insolente ,
servindo de prego á peruca alaranjada, ignóbil
capacete de clinas e estopa , que vinha arri-*
piar-se em molhos estupentados sobre o cabeção
da golla., e armar nm bico de sanefa quasi á
flor das sobrancelhas , espavoridas á raiz da mais
depremida testa.
Seguia-se a cará do honradíssimo servo de
Deus. Imaginem-se uns queixos afunilados, re-
^ irando-se alguma coisa para a barba ; sobre os
queixos grude-se a pelle còr de coquilho, col
lada ás jnaçàs do rosto , acerejadas de roxo-terra
c um pouco proeminentes; arme-se esta quasi
caveira, forrada de pergaminho, de um nariz
de ponta de lanceta , com a corcova e o cava-
lete de rigor ; e depois de considerado este e^'
candalo de carne e osso, digam se era possivel-
que Deus creassc uma figura tao exótica , sem
misstlo especial.
Os gestos condiziam com a pessoa. Escarne-
cer do próximo é pcccado ; mas qual seria o
Santo, que deixasse de se rir, vendo os pés
eternos e inchados do cotovellos pondo os calca-
nhares a meia legtia um do outro? Quem fica-
ria serio, quando aquelle esqueleto rompia em'
Digitized by VjOOQIC
DE I>. JOÃO Y. 9
compasso fúnebre a sua marcha , içado em duas
pernas de cegonha, e dando aos braços com a ele-
gância dàs asas de um morcego. A todas as outras
prendas acrescia um ar de bolina que lhe der-
reiava o lado esquerdo , e um geito de pescoço ,
que o fazia cabeciar para o hombro direito. Em
ódio à linha recta a barba fincada no peito , fu^
rava-o se tivesse corte, e as costas podiam ser-
vir de modello a um arco de ponte.
Enormes óculos de azelha , apertando o na-
riz, proporcionavam ao nosso devoto a commo-
didade de lançar a sua vista de lince por de-
baixo dos vidros. As cannellas sem barrigas de
pernas , enfiavam-se em meias bicolores, de lã
grossa com pontos azués nos buracos numero-
sos ; calções velhos e cujos , com largas passagens,
e bello xadrez de remendos , serviam de bainhai
ás coxas delgadas como floretes. Cor de pulga a
vestia encolhia-se no encovado peito, para dan-
çar em plena folga sobre o súpposto ventre. Já
no fio a casaca-giteo , verde-garrafa , e de uma
baeta lansuda, fugia do corpo ao dono, como
os judeus ao fogo do Santo Officio.
O Sr. Chagas , (Deus tenha tido misericórdia
com a sua alma!) animava as graças da phisio-
nomia , por meio de um risinho amarello e beato.
Quando alguma coisa merecia o seu agrado (caso
Digitized by VjOOQIC
10 A MOCIDADE
raro) ouviain--se em applauso estrepitoso as e^tri^
dulas gargalhadas do devoto ^ desafiDadas em fal--
sete. DeSaíxo dos beiços sorvidos ^ em crua
guerra cpm as gengivas, encavalleuraLvam-se os
mais negros e limosos dentes, arremetteado
pela bocca fora. Os olho6 vesgos , enviusaudo a
ví^ por duas frestas , e a voz de tiple muita
agrodoce , salgavam as reticencias e momi-
ces abeatadas, que elle chamava as suas ma-
neiras.
Soh*e o trajo profano o irmão Thomê, ver^
dadeiro cabide huitiano , pendurava aos hombros
o inseparável balandrau das almas, desbotado e
roto, com um registo de S. Domingos e do Ro-
zario cosido & murça, e seu rdieario de prodi-
gioso tamanho pendente de um fio de vistosas
camandulas. £m uma das mdos trazia a salva ^
representando as almas do purgatório , entre ala-
baríntadas chanunas. Â outra dava a beijar aos
fieis um nicho de porta de vidro , rallo de mea-
lheiro por baixo, e dentro S. João Baptista e a
sua ovelha.
O todo deste embirrento figurão era mais as-
tuto, do que boçal. A simplicidade estava por
fora , e a velhacaria por dentro. Eis em resumo
a vera effigie do Sr. Thomé das Chagas, anda-
dor das almas, primeiro servente do padre Fr«
Digitized by VjOOQIC
:M 0. JOAQ V. il
iíi$i$iâúê Remedi€6; e sacristfto da missa dos
IMliogas e Qiiintas-feiras , no oraUMrío de Diego
^ Mendonça Corte Real ,, secretario das Merc^ ,
de.el-rei D. Pedro II, nosso senhor.
Resta dizer mais, que o logar .d« scena era o
■adro do am^ento de S. DomiiB^os de IísIkhi;
q a hora , as sete horas da manbfi do dia 20
àio mez de Novembro de 1706.
Já se vé qni$ o dialogo; que ouvimos, foi um
.pouco matinal ; mas nossos avte oram madrugin
-dores, -seguindo aipda o antigo adagio que (Uz :
€< deita-te ao sol posto, mas ergue*-te com es-
tr^Uas no céu. » Demais, tendo a Provisão do
J)eEembargo sobre o bufete podia o padre procu-
rador conciliar o somoo? Depois de voltas e
mais voltas na cama , levantcb^e ; poz««e & ja*-
,ndla a espmtioro dia; puniu o gato; acordou
os seus dois canários e o verdilhão ; e por fim
aos primeiros clarões da aurora , resolveurse a
ir tomar um banho de ar. Vestiu-se ; pegou na
Provisão ; desceu á portaria ; e como o inverno
^a secco, d'ahi a ajguns minutos, tinha o gosto
de tiritar de frio, gelado como um sorvete.
Deitando os oihos pela praça achouHi deserta.
Chegando ao cunhal viu o» vinte e cinco arcos ,
que se abriam para o rocio , desde a Ritesga até
ao adro do convento, e augmenbou a sua me-
Digitized by VjOOQIC
i2 A MOCIDADE
lancolia. Tão cedo, dormia tudo. Nem um* dm»
duzentas logeas portáteis, que se armavam de^
baixo dos arcos apparecia ainda. Ninguém fte^
gava o toldo diante da testada dos logares ; nH^
se movia um adelo^ capeHista, ou fanqueiro a
arrumar o panno de linho , as rendas , ou as chi*
tas da sua (eira. Os próprios mariolas^ tSo bali*
çosos e activos , ressonavam profundamente nas
suas possilgas. Defroifte do cunhal do primeiro
arco, ao murmúrio das aguaá o Neptuno dè
Rocio da peanha do chafariz, estendia o tri^
dente com marmórea indiíFerença.
Fr. João rondou de passeio toda a arcada até
â escadaria do grandioso Hospital de Todos os
Santos, pêlo sitio aonde ainda hoje estio S.
Domingos e a Praça da Figueira. Depois, quando
voltava scismando , perto do cruzeiro do convento ,
appareceram-lhe as estiradas pernas do irmão
Thomé , a quem o zelo dava azas e que vinha
a galope pedir alviçaras pelo resultado da de-
manda , que nSo podia suppor perdida.
Duas palavras , agora ,' para explicar o enigma
da Provissão , que tirava o somno ao padre Pro^
curador e fazia da cara do Sr. Thomé a publica-
fórma de utn « Miserere. »
O Hospital de Todos os Santos era proprie^
tario de alguns dos arcos do Rocio, e arrenda-
Digitized by VjOOQIC
vflHOfr aos h>gt9tas por dois mij réis mnuaes cada
ufli; A ocdom de S.. Domingos, possuía os arcos
do lado. ^ adro e debaixo do dormitório de
eima, e os frades contentaram-se muito tempo
com a metade do [Nref o exigido pelo Hospital.
Tudo corria em santa paz, quando eleito Pro-
yíneialiiavo, este, contara o voto do seu defini-
tofÍQ , levantou a renda para dar uma bofetada
9em mSLO c na soberba do seu visinho. Ardeu
Tríq^a J Os veodilhoes gritaram « aqui d'el-rei p ,
piX)testando sem pejo nem temor contra uma le>
6So enorme , que os fecia pagar a elles as culpas
de terçeico.
-«. Em tão melindrosas circumstancias, o ante-
cessor de Fr. João , chamado Fr. Chrisostomo
Borrego , cahiu na simplicidade de citar os re^
friK^taríos para arredarem as tendas da parede
sob pena de dot9 mil réis de multa. Não espe^
jaram por segunda intimação os vendilhões; e
requerendo vestoria ao Senado da Camará , vie-
ram pôr a feira diante da testada dos arcos. Da-
qui se originou a perdição dos frades. Com o
Auto de Vestoria os belAirinheiros provaram que
nloroecupando terreno do convento lhe não de-
viam pagar nada ; e a demanda , muito feia desde
o principio, concluiu pela famosa Provisão do
Dezembargo , declarando as testadas do?^ arcos
Digitized by VjOOQIC
If A MOGIDADC
livres, e absolyendo os feiraútes deairendomeitto
e aluguel pelas occupaf^m. Ainda por cima o*
convento pagou as custas ! Deste modo , os pa-
dres de S. Domingos d^am os seus arcos de
graça pelos quererem alugar muito caros. ,
Quando Fr. João dos Remédios entrou a ser-
vir , o negocio estava muito mal %urado ; traloii
de lhe valer ; mas era tarde. Pouco habituada a
revezes , este cahiu-lhe como um raio em cima
da cabeça ; e n9o o querendo imputar á notória
injustiça da causa, preferiu attribuiK-o ao ódio
antigo e á rivalidade entre S. Roque e S. Do^
mingos, entre os Jesuitas e os Pregadores. Se
elle se enganava nio se sabe ; mas que a Provi»-
são deu grande gosto aos padres da Companhia ,
é caso averiguado.
Desta opinião do Procurador da Communidtde
nasciam as pesadas reflexSes, que lhe ouvimos, a
respeito dos filhos de Santo Ignacio, viiinhos- e
inimigos da ordem inquisitorial.
O padre mestre Remédios ainda estava infor*<
mando o Sr. Thomé do succedido, e o noMi>
Andador , moralisando o caso com o notável ada-
gio— u ninguém me diga, eu desta agua não be-
berei » — , quando um homem , escapando pdas
costas do Dominico e do seu acolyto, ainda no
maior calor ddt sua conversação, passou por el^
Digitized by VjOOQIC
BE B. JOZO V* IS
les como uma sombra , e foi eocer^0e eom a pn
lastra do primeiro arco, depois de observar os
oradores. O cbapeo de abas largas e copa baixa
era um cbapeo de Jesuita , e carregado na testa
encobria-^Ihe a parte superior do rosto« A capa
de panno preto embuçada escondia-4he a barba
e o corpo todo. Donde se collocou, tudo podia
vér e ouyir perfeitamente.
Um quarto de hora depois, outro bomem,
atravessando do palácio do Duque de Cadaval, en-
trou na egreja, e feitas as suas devoções, tomou
agua benta , e veio para o adro assentar-se no
poyal da cruz levantada defronte da portaria*
Alii , cofiando uma cabelleira mal empoada e de
guedelhas á antiga , espécie de floresta virgem ,
poz o cbapeo de lado sobre a copa , arregaçou os
punhos de Hollanda encardidos , afinou o laço da
gravata, e sacou por fim do bolso da esbeiçada
casaca de tafetái com botões do tamanho de ro-
dinhas de fogo um tinteiro de chiífire e um cotto
de penna. Depois, montando o joelho direito a
cavallo no joelho esquerdo, principiou a rabiscar
em um papel com o maior socego do mundo.
Assim dispostas as figuras succedia, que o sá-
bio theologo tinha, nas suas costas, o homem em-
buçado, e o Andador das almas cobria com a
longa pesspa o risonho escrevente ; tudo isto de
Digitized by VjOOQIC
i6 à. MOCIDAQE
certo sem nenlnim ddles se ler ajustado, nem o
pensar , â excepção do Jesuíta. Esse é provável
que soubesse a razão por que alli se achava.
Digitized by VjOOQIC
CAPITULO II.
MAIS YAL SO QUE MAt ACOMPANHADO.
Depois do episodio da esmola o padre procu-
rador e o devoto' acolyto ficaram callados, um
defronte do outro, alguns instantes. As sobran-
celhas do Sr. Thomé das Chagas ^ ora subiam â
raiz do cabello, ora baixavam a tocar nas ca-
pellas dos olhos, o que neste digno cavalhteiro
significava que reflectia no caso, n5o percebia
nada , e desejava muito perceber. Fr. João scis-
mava carregando na ruga frontal , e brincando
com os pollegares um em roda do outro. Era o
seu gesto usual , quando compunha.
2
Digitized by VjOOQIC
18 A MOCIDADS
A íiual o andador arremetteu ás suas duvidas
Gom denodo , expelliu da garganta o pigarro ma-
tutino , e com a vozinha doce como pastilha e
arrastada como perguiça do Brazil , continuou o
dialogo , interrompido pela sua jaculatória ás al-
mas.
— « Com que — disse em tom insinuante —
V. Rev."*" julga que o papel não tem cura , e
é obra. . . »
— «Dos herejes, dos christjios novos, dos
inimigos de Deus e da sua gloria. Digo , creio ,
e affirmo , irmão Thomé » — respondeu Fr. João
irado.
— « È muito , padre mestre. Atrever-rse esta
gente. . . . Jesus! £ então no Desembargo do
Paço. . . . Bem rosna o povo , e no fim de tudo ,
é elle que tem rasão. h^ de cima, donde se
espera o exemplo vem o peccado ! Estft^mps per-
didos, devoto S. Domingos da. mipHa alma!
Mas Fr. João dos Ren^edios já o i>ão escu-
tava. Distrabido voltour^e copi^ iippaciepcia , foi
direito ao homem do tinteirp , po^rse diante delle .
^em o ver ,• e abrindo a provisão leu-a a meia
voz, fazendo-se a cada lii^ba maí^ corada do que
uma romã. Thomé d^s Chagas cuidava entre-
tanto, que o p«|dre mostre, estava dictiMido e quç
Q outro servia de seu escrevente ; pot* is&o não
Digitized by VjOOQIC
"BE D. JOiO V. 19
fez maior reparo, e entrou a scístnar também,
olhando para as barcarolas dos çapatos com a
mesma complacência, com que o peru ha de
olhar para as pernas do payfio.
Quem estava em braza era o homem do poial ,
victima innocente da hermenêutica do procura-
dor , que plantado a dois passos Mie lhe tirava
a luz, e lhe fazia ainda em cima voar o papel,
com o vento da capa , que o frade estava a tra-
çar com ímpeto repetidas vezes.
Por fim o pobre homem, desenganando-se ,
poz-se de pè , cortejou o sen algoz com ar sup-
plicante, e disse-lhe com cert^ requebro:
— «O padre mestre d& licença?. Sou poeta
de casa do Sr. Duqse , e amigo intimo. ... do
escudeiro particular dê S. Ex.^ âahi de casa e
vim até aqui por ar^ar, e para tér taitibem se
acho a chave de um soneto , que se me engas-
gou na segunda quadra. . . . Agora mesmo. ...»
De tudo isto apenas chegou aos ouvidos do
frade absorto a penúltima palavra. Nem sequer
viu aquelle homem roliço , curtinho , flexivel , e
todo cortezias, que de pé, epn quarta posiçSa
de dança, e boeca cheia de rizo, o compri-
mentava , meniando o chapelinho amaçado , do
modo mais obseqtiioso do mundo.
— « Agora ? — atalhou o aerio frade , cui-
Digitized by VjOOQIC
20 À MOCIDADE
dando que respondia ao irmào Thomé. —«- Agora !
Sabe o que se pôde fazer? »
— ^ « Sei, sim Sr, ; agora segue-se acabar o meu
soneto , ouvir a minha niissa , e ir almoçar do
que Deus nos dá , se V. Rey.™* não ordena o
contrario. . . . y>
O poeta , estava um arco dizendo isto ; tinha
o braço na mais elegante ciirva , e o pé lançado
airosamente com toda a galla da corte , esperando
talvez uma cortezia, e o campo livre em res^
posta ; mas se esperava illudiu-se.
-— « Ojptis et okufnperdidi ! » -^^ exclamou elle,
ouvindo o frade pagar os seus primores com a
mais secca e impertinente interjeição.
— <c Hum ! » — exclamou Fr. loão dando aos
hombros, e mudando de posição. Desta vez Th
cou de todo âs escuras o poeta.
— « V. Rev."* perdoará , mas , como tive a
honra de lhe dizer , medito um poema , um so^
neto. Prouvera a Deus que me visse livre delle!...
Tem conceito e consoante obrigado. . . . Mas na
verdade estou pregando aos infiéis ; o padre nem
\ê nem ouve ; e o peior ainda é que pegou de
estaca defronte de mim. E esta ! »
— r- « É caso irremediável. » — proseguta Fr^
Joào, passeiando sempre do mesmo lado e faK
lando alto ao pé do poeta»
Digitized by VjOOQIC
life b. jOAO V* 21
-^ « Que tal ! Irrremediavel ! mas veja , Re-»
Véfèúdissimo ^ tenha consciência. Deita-me a
perder — gritou o niagarefe de methaphoras com
grande impaciência. — Irretnediavel é só a morte.
Deixe-me V. Sapiência dois minutos vêr a Phebo,
to divino Apdllo pbr algutts chamado Hypérion ,
e se Consultando com elle eu nào achar a
rima. ...»
''-^«Não acha tiada, hão tem sabida
— replicou Fn João absorto. -^Digo-lhe que
t)Bo ha sahida. Não é capaz. ...»
— ^ « Pois sustento eu que sim , que ha , e que
sou capaz ; e tanto sou que já athei. . . ■. ouça o
)[mdre> ^ . .
Temendo ser enfadonho ,
Agora os sonhos envio;
Sendo que foi desvario.,,,
Fr. João parecia escutal-o attento.
— «Então? Que me diz o ftev.™"*? É ma-
gnifico, óptimo, nãò? O que foi o sonho se-
não o que São todos os áonhos: — erros do ca-
pricho , cuidados da alma , cathalogos da memo-^
ria , e enganos da idêa ? Logo o que são sonhos ?
Desvarios ! E o que é desvario ? Sonho , perfeito
^onhoi Eis aqui $mmdum artem comp o seu
agitizedby Google
22 A XOCTDADK
creado Bo-nardo Pires achoa o mais engenhoso
^neeito e a mais opulenta rima. . « . Mas isto
siifi^ede só a quem bebe do ikio era Aganij^
oomo hei de fmw na dedicatória , que servirli
de postilblo a Ap^M^ld. . , . »
Ê o modesto cuHor das Musas , lio euthusiiísmo
do seu triumpho, amarrotava de gosto as calças
imperiaes , largo e impertinente anachronisoM» a
que o (KHidenmaTa a bolsa ; e eom a outra nâo
sacudia pela manga o nosso padre procurador,
que tendo o indece curvado diante da bocoa , tm
ar de quem apanha uma idèa vadia, o fulminou
com um furilrando — « deixenne ! »
— «O frade n5o está em si , o Crade viu
bixo — resmungou o poeta descontente. — Que
demónio de hom^ai! Que o deixe? Mas é in-
verter as rimas. Eu é que morro porque elle
me desassombre a mim. Nfio se irá este espan-
talho daqui ? Ao menos , Rev.™® — gritou com
força — livre-me da sua capa , por todos 05 San-
ctos do Paraiao ! £ o manto de Niobe , é a noite
da imaginação, é o cárcere das Musas. . . ora
graças a Deus, foi-se. Por lá o tenham bastante
tempo , que nHo deixou saudades.
Sendo que foi desvario...
Veremos se fecho entretanto a quadra. »
Digitized by VjOOQIC
B« O. MOSO V. 23
N& sbStraeç^ ò paéfe jproeuradofr deixando b
^etó em pai , foi eiA^ando a tes^ta e abrindo
a caixa do tabaco , procurar o seu priíneiro pouso.
Afli íiAkotí à Saa ^itaâa de afrrostrinha , sorvida
de tfegár e fem três tempos , escorvou e carregou
t) natíz ^ e fecolhido õ lenço na manga , tocou ná
taíttph fià tatta o rufo do costume com os dois
dedo^ dá inâo direita. Foi entSío que de todo
cahiu em si,'é olhando deu por Thomé dsís
Chagas de joelhos e braços ábettos á pbfta da
Igreja, com a bandeja das alma^ e o nicho de
S. ioíto adiante de fei.
Mas o padre mestre tinha necessidade de des-
éfogo , e o aiidador das alhiàs servia-lhe de vaso
]f>ftra eipectorãt as frás.
-^ tt Thtiihé , if Md Thomé ! j) — • chamou o
íevérehdo irfipacientê.
^^tt Estou á primeira missa, meu padre. Ahi
toií àos pés de V. ftev."^ »
— ^tíAwdè. Tenho que lhe dizer. írá logo dã
ntttibá parte á rua da Calcetaria , a casa de
Diogo de llteildoíiça com ufna carta. . . . Quero
poí* fim sàbér ! .... Esta proviáio nâo é natural.
Tràctaiíi dé métter o alvião aos cunhaes do nosso
convento; tentam arrazal-o pelos alicerces. . . .
-=^<í Sâtita Maria, Mâi de Deus, orai por mim
jJéccàdot- ! -^ gfítòu o irmão das almas desenros-
Digitized by VjOOQIC
âi A XOaDÀI^
cando de um ímpeto a soa eterna pessoa. — Den
tar a baixo uma Babylonía destas, quem é o
ímpio ? . . . »
— ttThomé das Chagas, V. mercê excedeu-
se. Ào convento do nosso padre S. Domingos
chama Babylonia ? Lembre-se que era a cidade
da profana(^o , a mãi dos vicios , e veja o erro
que disse. Nâo responda. Sei que o não fez por
mal : peccou yenialmente. ... »•
— «Mea ciilpa, mea máxima culpa! Pro-
metto duas coroas a Nossa Senhora e uma esta->>
çao ao Santíssimo , mais o jejum de pão e agua
Sexta feira* ...»
— a Está bom , está bom. Não é preciso tanto..
Gosto de o vér devoto e com temor de Deus.
Está absolvido. Tornando ao que lhe ia dizendo :
esta gente não descança em quanto não subver-
ter tudo. Atiram de longe á Inquisição , porque
tem medo de se chegar ; mas em nós se vin-
gam e por nós começam. Inde ircel A Or-
dem dos Pregadores primeiro, e o Santo Of-
íicio depois, eis o plano. No íim mettem-se
de dentro como na Universidade e nas eschó-
las , como em toda a parte , segundo o costume
delles. »
— « Perdoe-me padre procurador , mas eu não
creio. Pois ha hereje capaz de tirar os autos de
Digitized by VjOOQIC
1>£ B. JOÃO IP. âà'
lè ao poYo , uma consolação tão grande aos fieis
de Christo. ...»
— « Por isso mesmo ! O amor do povo enfu*
rece-os; por elle sobre tudo é que abcNrrecem
mais a Inquisição. Da primeira vez foi o padre
António Vieira quem traçou o projecto. Deus
lhe tenha perdoado ! Ficaram mal é o mesmo ;
iresovam. £nganaram-6e da primeira vez? Não
importa ; emendam desta o golpe. ... A que
horas estará levantado Diogo de Mendonça?»
— «Com as seis o acha V. Rev.™* ao hu-
fete. »
— «Esão?»
— «isto são sete horas, o muito. Mas daqui
á Calcetaria ainda é um bocado. »
— «Não. importa, esperemos as oito. Digo-
Iho eu , Thomé das Chagas , o ultimo cometa
não appareceu debalde. Prognostica mortes, guer-
ras e ruínas. Veremos aonde tudo isto ha de ir
parar! Metteram o reino nesta guerra por causa
doallemão. ...»
— r«Do archiduque, segundo diz el-rei de
França ? »
— «Do rei catholico , D. Carlos III , segundo
diiz em Portugal el-rei D. Pedro, e em Londres
os seus amigos herejes. ...»
— ^í< Bem mo prognosticou hontem a santinha
Digitized by VjOOQIC
26 A MOCIDADS
da tia Perpetua das Dores, dando-irie a beijar
o rozario, depois do terço — Thoihé , fllho,
encommende^e muito a Deus. O Ante-Christo
corre às sottas por Híspanha, e de Hispanha a
Portugal não é dento um pulo. »
— «Coitada da serra die Deus. Oxalá que
assim eetíio ella houresse muitas ! Mas a culpa
disto sabe de quem é ? Esta provisSo ha de se
dizer que foi feita íio Terreiro do Paço. É falso ;
nSo foi. Donde veio, e quem a dtctou foram
6» padres de S. fioque. É obra da Companhia
de Jesus.
— « Pois não ha temor de Deus ? Padre mes-
tre , esses hereges são da Companbiá de Judas ,
e não da de Jesus. Mereciam, Deus me perdoe !
que lhes queimassem as roupetas na fogueira, e
os entaipassem vivos no Santo Ôffieio. >r
— « Thomé. Não diga isso. . . »
- —«Digo e affirmo. E ao Desembargo da
mesma maneira. Eu cá arrastavaH> de carocha e
sanbenito ao primeiro auto de fé. >y
— « E o presidente da mesa também ? »
— « Porque não ? ReverjBndissimo, quem acom-
panha eom herejes , bereje é. >»
— «O Dtíque de Cadaval , D. f^uno Alvaíres
Pereira, meu senhor? Exclamofi o poeta que ha
bocado roia as unhas de desesperação^ interróm'
Digitized by VjOOQIC
DB D. JOÃO V. 27
pído poh) dialogo. -^-^ Nfto é no presideiite do Dor
^mbargo do Paço, no Duque meu amo, que o
mochilla deste gato pingado põe a bocca excom^
mungada ? Ouçamos o coUòquio. Segundo parece,
promette muito. »
-«^tfThòmè das Chagas «-^observou Fr. João
que se tinha rido da justiça musnlmana dq digno
milagreiro — sabe que mais? Se o ouvisse al^
guem de easá do Duque , ou de S. Roque , Y .
mercê nSo via sol nem lua na eadôa« Tome um
conselho. Falle menos e respeite mais os padres
da Companhia e o Duque de Cadaval.
<«^<x Salva nBo bme a minha alma, padre
mjQIrtre , se eu deixasse de fazer o que disse. Je-
suitas. Desembargadores, e judeus, que são todos
o mesmo , levava-os de sociedade até ao auto da
fé. . . Quanto ao Duque, oiço rosnar, que está
sendo alma e correio dos herejes ; e apesar de
dizerem que elle é esmoler e temente a Deus ,
cá para mim sei , que nem tudo o que luz é oi-
ro. . . De El^^rei não admira, depois da doença ,
andft*^lhe a cabeça á roda. . « )i
-«-^ « Âh mofino judas ! Sezdes te peguem — ^
rogio o poeta exacerbado.--^ O que aquelle sa^
iafrairio desenrola l Felizmente apanhas-me de pa-
pel e pentta^ Os padres da Companhia e o De-
wmfanrgo ao luàie. Bera ! Cá escrevo. O Duque
Digitized by VjOOQIC
28 À JttOCIDABE
meu amo, alma e correio de herejes. Nio tenl
duvida ; cá assento. Em fim £l-rei, nosso senhor4
que Deus guarde, maluco, ou pouco menos, pois
lhe anda a cabeça á roda. Fica registado. Deixa
estar meu Longuinhos, chupado das bruxas, que
vais dar um par de voltas á roda da forca^ Deito
já a correr para o. palácio. Nós veremos, deixa
estar ! »
E o nosso poeta^ assentando o chapéo sobre a
cabelleira com o punho , arrancou a trote para
o Paço do Duque, com a espada a bater^he nas
barrigas das pernas , e as abas da ampla casaca^
enfunadas ao vento. Ia aos pulinhos , e cantaro-
lava em voz esganiçada estes maus versos hespa-
nhoes:
Non dirá rai Senor Padre ,
Si es de menor sentimienío ,
Ver muerto ai dueno querido
Que ver-lo en poder ageno.
Nem o Sr. Fr. Joio, nem o virtuoso Thomé^
o viram atravessar a praça, porque o primeiro
olhava ha bocado para um velho, que estava alli
perto fallando com um soldado, e o segundo
passava miúda revista a todas as peças do seu
mealheiro. Assim o nosso Bernardo Pires esca-^
pou ás reflexões dos dois respeitáveis inquerído^
Digitized by VjOOQIC
m j>. jolo t. 29
ires; e qual outro Ofestes, vexado das fúrias, for
depositar no seio do escudeiro , seu amigo , os
segredos , que lhe enchiam o coração de fel.
Entretanto o padre mestre não tirava os olhos
do velho ; e este a passos lentos também se apro^
ximava cada vez mais da portaria , conversando
sempre com* o soldado. Â vista do reverendo
exprimia assombro e uma espécie de terror ; o
seu espirito lutava cóm a memoria; excessiva-*
mente abertos e sem pestenejar os olhos do
theologo não largavam o recem-chegado ; estu-
dando<-lhe feições e gestos com uma tenacidade
incrível; via-se que o Procurador de S. Domingos
duvidava e cria ao mesmo tempo ; observava-^
que lhe subia do coração á bocca um nome, mas
que temia illudir-se julgando impossivel existir
ainda a pessoa , a quem pertencera. Eis a causa
da sua curiosidade , sé era só curiosidade o sen-
timento que o agitava.
Fr. João, por fim , não se ponde ter, e foi di-
reito aos dois homens, que naquelle momento
chegavam, justamente ao cruzeiro do convento. O
Sr. Thomé , apesar de ser bem pouco feminino
em tudo, herdara de nossa mãi Eva boa dose do
peccado original, e tinha terriveis cócegas de es-
cutar quanto se passava á roda da sua veneranda
pessoa ;' o Sr. Thomé, pois, como verdadeiro dis-
Digitized by VjOOQIC
30 A KOaDADB
cipulo da devota Perpetua dts Dores , a iiielh<^
bruxa golhilheíra do seu bairro, foi^se aproxi^
mando pé ante pé, com passadas de IS, e ou-^
vido â lerta, para tentar fortuna. O fociafafo pie-
doso do aantan^ dava ares do focinho do gato#
quando fareja a presa, e cosido com o cha^
faz a policia da sua gula, para quô lâo lhe es-
cape a ceia. Mas por mais cauteloso, que se mos^
trasse, o nobre Thomé perdeu o melhor daseena*
Peccou, talvez, por excesso de prudência ! Á sua
chegada , já estavam conduidos os preliminares
da conferencia , e o padre mestre , benxendo-se
e chorando de alegria, já apertava nos braços
com o maior extremo, o mesmo vdho espigado,
rijo, e esperto, que lhe causara tamanha sensa-
ção apenas o vira. O Ândador das almas foi, por
tanto , constrangido a contentar-se com a parte
menos interessante da peripécia. O Procurador
de S. Domingos estava perguntando ao seu amigo
Philippe da Gama como alli viera ter direito.
— «Eu t'o digo em duas palavras — respon-
deu este. Para se ir bater á porta duas cousaa
sao precisas, ter casa e saber aonde etla é; Com
mil demónios ! Eu estou fora ha doze annos , e
sem noticias pelo menos ha sete completos. Quem
tem bocca vai a Roma, diz o rifeo,. mas esta
Lisboa não é Roma, é uma l<Aw ; e um homem
Digitized by VjOOQIC
DãK D. JOÃO V. 3t
não pó^e andar por ella toda a perguntar á gente
que vé : « faz favor , dá*me nçticia do sujeito da
capa parda ? » Por tanto , puz^me 9 scismar , e
eis o q^e fiz* Lembrou-me o meu antigo amigo
Fr. João e o seu convento ; se não deu ainda os.
fios á teia , ningueq^ melhor sabe ensinar-*me a
casa. 3e morrão, paciência! Talvez algum do&
frades possa valer-mQ neste apuro. Vim por isso
direitinho como um fuso ao Rocio. Na rua dos.
Ot^ives vejo um homem parado e pei^unto-lhe :
is çpnhece o padre Fr, João dos Beme<ílo^ da or-
dem 4o S.Oomingoa? <tQue resposta cuidas, que
me deu o excommungado ?
« What do you say ? »
Era inglez ! Safei-me. Entro na rua dos eseu-
deiros, acho outro estafermo embasbacado para
uma porta , pergunto o mesmo , e diz-me :
« Wím verhngm sie ! »
Era allemão. Caspite! Pernas para que te
quero^ Já bem azoado chego ao {locio, e -descu-
bro um soldado, fallo-lhe, e chapa-me
M €he skíe toi pw capo di Caio Mário? »
* Digitized by VjOOQ IC
32 [A MOCIDADE
Fiquei varado! Por fortuna passava aquelfo
soldadD portuguez ou gallego, que n9o sei aindft
o que é , e com um boticão arranquei-lhe meia
dúzia de palavras, que o maldito vendeu a tostão
cada uma. . .
Dize-me Fr. João , isto é Portugal , ou que
demónio é ? O que anda por cá cheirando tanta-
gento de todas as naçSes ? »
— « Veiu na armada dos alliados, e está chu-
pando a olha da panella portugueza. Edificam a
Torre da Asneira , e fazem a confusão das lin->
guas , como vés. Vamos ao que importft. Já ali-
moçastes ? »
— n Estou em jejum natural. »
— « Então vamos á mmha ceíla. Temos muito
que fallar, e em quanto almoças saberás noti-
cias. . . »
— « Haja methodo , Fr. João. O homem não
vive só de pão. Minha mulher?»
— «Está bem. Inconsolável com a tua perda,
e chorando seu marido como deve e elle me-
rece. »
— «Obrigado, Fr. João, muito obrigado. São
favores! Com que escapou á magoa da minha
morte aquella santa creatura ? Ainda bem. E aa
pequenas ? »
— «Louvado seja Deus, esfôo lindas como
Digitized by VjOOQIC
t>E D. JOiO V. 33
doas perchas. Semente a mãi queixasse áe que
acha a mais mva um tamto leve da cabeça. Vei^
duras da idade. »
-^«Está feitot E onde está ella?»
— «Quem, Cecilía?)»
— i( Sim homem , a mais nova. »
— c<Metlei]ha a mai em SaiAa Clara no mo^
teiro, a vér se educada lá assentam dsí eahe^.
A maisjelba, tua filha Thereza^ tení mnitb
juízo e Tive com tua mulhar em caza do eom-
mendador, do tio delia, homem honrado, bom
catholico, e menos mal de bens da fortuna. »
— «Hum! ora muito me contas. Famoso!
Veremos tudo isso. »
— «( Não tens mais pressa do que eu. Almoçai
e vamos logo. »
^*^fiiMeno fima^ Fr» Joáo, como diria o ho-
mem de Caio Mário. Uma ressurreição nSo é
obra grossa que se leve assim de uma corrida.
Isto da gente sãhir da cova e if parecer á fa-
milia, é j^oco sadio. ..4 Não quero de^a-
ças. Demos tempo ao tempo. O peior está pas-
.sado. » .
— «Já não digo nada , Philippe. Tu o lés , e
tu o entendes. »
— «Está claro. A propósito, disse Philippe,
virando e revirando o cjbapeo aprezilhado e guar-
Digitized by VjOOQIC
34 À itocifiÂM
i^Í4lo à aotigni '^ iMKles âmrHÉoe se miÀeL míl^
Hier t«m0U estado ^m abundai oupcia»?»
— « Ora essa ! Uma Senhora TÍrtaosa e hcch
Ibida!. . Dms td feúàM^ Pbtf se te idigo^ que
ainda não deixou de cb^nat » tua ialtâ. »
— «Âhi< VÊmmo é que.» pulga jM^rde. Não
4[Osfto. diB feiitts,4is fegrnii»^ nem mésmor da que
hft ém CbimlM. . i mUlfal» que dborà nuita Mi
MMrtfa> é jNHrfne jj^rwriíài MtnK. Acrodttfthiu^.
£ se diimteí dcrtegulMlai diora • primeifof^ qnei^
jlbe:n)^ttev cidDMS. AH ^ jtftll Entendo ^ agera: «i^
tendai; o tío^ aOámikeoiãdut^ fue e&pmé de
homem é ? Àpost0< qui» ainda nãò fat cpiarenta
annos^ e que choram ambo» a minha tm»rie^ éfH
#aA€tt )>aa?»
— « £ eu sem te jperceber ! TeUs iotèa. Pèe
m*ÍA qiaaretitBi e acertai a idad^ dc^ Cemmen^
'dador. »>
. ^*^ « Oitenta: aiitiM? 91 :
u -^«lEncàiS. Poiay atMeVesMse aiiíeppov?»
- o^^Fr. João^ nada.cfe )uiãoa ^làepnrim !
Viat0 eonftinttar viuva mttniia mnlber^ e lero»"
tenta annos o Commendador^ mudo de epiniia^
£m abMfatido ramos de pamie toniar pesse^
Servirei de procurador aos mena íhHetèdo» d^
reilos. )> .
•^«Entíio a<ás be» da Biototitív
Digitized by VjOOQIC
BB b. JOÃO V. âo
^^^ « Fr. Joôo o (fim dizent as obras de mtsé-*
ríedíáin ? Coiisokii os trisêes e ttsitaí os enfer-
itvgís^ Y<mje cmmM os triste».
«-^« Aniéaí bem, aiiidgt bem. Mas ahnocemoo
jprimeiro. Èspere-me Thomé, ^e eu não tardo.
Tem de Yewt ^ cartar, cpie lhe disse, k Catee-
^-^iiSitáí, BéTesendisBino^ 1»
0 padre sdbfin è^ÍB para a celía con» o sea
amigo PkíUfqie, e o nossir aridador, depoodo e
%m àevêl»^ mdsõ de S. Jofto , pltntoií-se á porta
da i^ja, caçando as eàtá9]m dos fieis, que irnsi
màtttdO', oti fne vinham entrando* O seiá itf
cMipui^ido e focinho penitente eram um tman
ftbeiiçoado , qiie âiuaca deixava de atraMr a pie*
dade das iíeMas ^ sobre tudo á das v^as e |u«
bihidas;
Neste moniftntò, o homem, que no capitulo
imteeodi^te deixarmos eseoiriíão com tanta cau*-
táls alta? da píhtstva do primeiro arco, safaiu
do sai pouso a farta-^ássof toreen pelas costas
do^ milag^iffOi e pt^ndo-Uie de teve a mão n0
líonsbro , disse com grande saavidadOi
— « Irmão Thomé , p«M5 Chrísti ! %
^mú cobra , tevaotsuda aos seus pés de' t^é-=
peiile\) lâi» fazia dar ao andridor ctos aknas t^
inanfao p«lo^ como elle dèu, nem o obrigava a
Digitized by VjOOQIC
36 À MOCIDADE
YÍrar-se logo com tantp sobresalto. Âquella era
a saudação usual da Compahhia de Jesus ; restava
saber se também seria Jesuíta quem a dava. Era !
A palidez do Sr. Thomé não se enganava. Via
diante de si a fatal roupeta.
O Jesuita mostrava setenta annos ; os cabellos
eram raros e brancos como neve, naquella ca-
beça , que tinha a puresa e a poética inspiração
dos mais bellos typos do apostolado, como os
concebeu o pincel dos grandes mestres. . . Al-
guma cousa curva , a sua estatura , apezar disso ,
parecia elevada e magestosa. Segundo se via , a
idade carregando sobre ella , e ainda mais talvez
os trabalhos do que a idade , inclinavam a fronte
para o chão , como a arvore antiga se descabe do
tronco, e quebrando-se a pouco e pouco vem
beijar a terra : mas nos momentos de ardor re-
ligioso , ou de enthusiasmo vivo , a fronte do Je-
suita, sabia aliviar-^ do pezo, e sacudindo os
annos como Lazaro o sudário , era capaz de
se levantar orgulhosa e firme, de um impeto
juvenil, pondo nò céu a vista, a esperança, e
o pensamento , e doirando-se nestas occasiões de
um resplendor particular.
A» rugas , cruzavam-se na testa , cujas entra-
das altas iam per(fer-se nas raras madeixas pra^
teadas , que se annejlavam , acompanhando o
Digitized by VjOOQIC
DE D. JOÃO V. 37
rosto, cujas feições nobres eram sobre o com*
prido, cujas foces eram desmaiadas da palidez
usual nos que, vivendo de mais a vida do espirito,
trazem estampados no rosto os cuidados da intel-
ligencía. Ainda belios , eram pequenos , mas ex-
pressivos os seus olhos. Meigos no repouso do
animo , e um pouco tocados daquella doçura trans-
parente , que sabe afiar a vista e enturval-a , para
ferir ou esconder, podiam illuminar-se , que-
rendo , e reflectirem nas chamas concentradas ou
em relâmpagos terriveis 6s vezes, toda a elo-
quência da paixão , da cholera e da amizade. . .
Nestes momentos, pouco vulgares, era uma trans^
figuração completa : remoçava-se a phisionamía ,
apagavão-se òs signaes da idade , o corpo crescia
magestoso, a cabeça pousava-se erecta, os olhos
ardiam mais e diziam tanto, como os do man-
cebo mais novo na existência e mais forte nos
trabalhos.
Ninguém tão simples e affavel como o padre ;
os seus braços estavam sempre abertos para to-
dos ; o sorriso dormia e accordava com elle ; o
corado , morto para o rosto , e a alma sem es-
pelho na vista , se gemiam ou se allegravam , era
dentro de si mesmos , longe do exame e da in-
discrição dos homens. Aquella face passiva e
risonha ; aquella voz igual e sem paixão ; aquelle
Digitized by VjOOQIC
3S "^À MOGIOADff
dfatr iram^^nte « «em|ire tKo fuoáo que bío
deixava e&treyer um ^egredo^ eram ab]»mo6 aonde
perdia o esludo e a aBal]f«e o ^baervador mais
fiagaz. A irosÉad» fazia o pader do p^tã ; t á
lerça de yonlade, paca veneer ^ «miífos., prifiár-
fiioM Teeeendo-se a si. Nunoa & aembbdnte Iw-
«iittio fai iiina mascara tão perfeita ; ivaucm nifH
guem , antes ou di^ifi , soube eseravispr ikiat&
aespotjcamente o espírito e a nofeer^.
Só uma oaifia pào sabíii ocefdtar : -^o gmo \
Poucos seriam mais fauiaiidi», e apesar diaso^ e
talvez por isso , era tal a dignidade do aeu porte ,
as suas maneiras respiravam tanta grandeza, diH
quella que vf m ife Oieus ; e mesaio aereoa « de pro-
pósito apagada , a sua vista raiava com iai^ por-
der , que sem o oonfaecerem , quantos o vian ín-
clinavám-se em espirito diante delle , advidbanda
um desses homens , que sio potencias da torra
por ordena e lei da intelligencia , como o^ rei^
peto direito do sangue e do nascimento.
Ao andador das almas foi o que sueeedeu.
Apenas o enearou , e viu fitos noa seus os oibofi
do jesuitâ, dizendo tanto e pareoeiído inertes^
apenas sentíti aquelle soiriso fino deseer^lbe do
rosto á alma, e tocar-lha no mais intima, a
fndo posta de leve pareceu-lbe que pesava ^ seu
bombro como uma torre; e abysnuidio paaçoti
Digitized by VjOOQIC
hu n. JoIo y . 39 '
Ioga de roxo a azul ^ e de azul a cor de en-
xofre; em doas segundos a cara prodigiosa da
saatarrão parec4a um arco irijs na variedade dos
cambiantes. Entretanto sua paternidade não lhe
dizia mais do qiie isto :
^-^« Filho, vi dalli e ouvi tudo. Sabe,, que
gostei muito do seu inod<o? V. mercê foi bem,
foi optiniamente* Quer dar-me unia palavra ? »
Porque o seguiu q Sr. Thomé sem resistência ,
mudo cúím um 4efuncto^ e cambaleando, coma
um ébrio ?
Porque a Companhia de lesus era aquelle pa-
dre. Impenetrável nos'designios, suave nas fal-
ias ^ mas terrivel uas obras l
Digitized by VjOOQIC
Digitized by VjOOQIC
CAPITULO III.
UM RETRATO EM VM CONVENTO.
No princípio do século passado toda a Lisboa
corria ao mosteiro de Santa Clara , de religiosas
seraphicas, attrabida pela sumptuosidade das func-
coes divinas e pelo agrado seductor do locutório.
Âlli desciam as devotas bellas t9o compadeci-
das , e brilhando com tanta graça , que o mundo
desmaiava ao pé da sepultura, aonde os olhos
das defunctas eram tSío lindos e sabiam dizer
tudo!... Segundo affirmam os poetas contempo-
râneos , a prisão dos corações do calipba Haraun-
Areschild , não era nada ao pé do encanto dos
Digitized by VjOOQIC
42 A VOCIDÀDI^
maviosos sorrisos , que os seduziaiiL £ a yerda<fe'
é qw aiada hoje xescemiçaí aos perfomes frei-
raticos aquelles sonetos e glosas, em que os vates^
accesos na sacfa chamma, refinavam a vida» muita
mais ideaU que a ronceira existenoia desta época
de prosa ruim e de algarismos falsos^
Estavam então em moda «cos amores freiratí^
cos » indigno termo applicado por legulejos mal
creados á casta adwação » que ardendo sobre si
mesma « se conmví^ em vwfam% não ousando
profanar o objecto querido. Pelo menos assim ex-
plicavam os amadores estas embiocadas paixões,
tão melindrosas como sentimentaes. Se era ista
só, ou alguma. CQiisa mais « que responda a cons-
ciência delles ; a minha ha de suppor sempre a
melhor.
Mas el-rei D* Pedro ç ç3 ;rabji;^ntas miiiis-
tros do seu con^elbq ^ Siímny das paixdes f^rjsipbi-
cas qoisas capazçs de eirifiôr os cabellos * um
cçtssaco do Wolga ! Coipo a raposa achava ^s uvas
verdes , elles achacam immoral a pasmaceim na
locutório , e deitaram um alvarA contra os Nar-
cisos da clausura, que levantou alaridos medonhos.
O efiteito da ca^ancuda lei , como era de espe-
rar, foi salgar mais o^to aojieccadfi^ (se pec-
cado haWa) com a desãiediencía putdica. A ala
dos freiratico^ namorados ficou Qrme, juranda
Digitized by VjOOQIC
9B Oi. ãmo V. 43
eEtennkar os oMíiiidias e ateiides alé A qiiiotA
^erafãD* Aswii a fietnsoídade tliQfi^gK» dê «u»
mogcstade serviu apews. para.empMt de uma ih»-
vem de fMpma e aatg^ os.davQtoi (^Mleiras
do sen cpinêlMii cfejio, Mlmaii« é jfí^9 wwMe
4a josti^ii ( « aa Iratai tmmpaaa-^ ^ueôoiaa eoDr
iiainsiim a inr «honar á grade mwi osfiareiítes a
iyraafláa Iwata da 1^ , aomlmda Mnpve daa |ifr-
\»a6 da fanatíoa dw»É>ia.
£ aomi aia^iiaaia ét aucaoilar aaaiiii? Erain
tlíodelicadea.Qa aeíôa que o bmial eastig«vA, e
(do SaQtfli aa faoea f w a cioaa toalfaa aroartalbava !
9feo leria grande crueldade «abrigar eabelba ca-
pthu»^ tio cedo «aftei^adaa em ^a, t lompcrem
de (èdo oom o ieealo? IVirque e fiara que? Sfe
hem aerviani a Deaa , qae mà foitiam as imor
ceotea « ottiande par àivtnofM pnia tMi dnaa hòr
ras peca o mmda? Ê certo, que nen eBa$ ful-
giam , e alguma alé deaejavft engaMar-ae de loBge
que iaaae , eom a iua iaaagem;; oem os homens
deboairam as portas à» papatao aonde môratam An-
jos tão meigos e amigos da teira. Reinava atb
am aoda a fevça o y^tso de Ciaelhe^
aimor, ésimmartel! $&w» m&ouofml^
As memnrias do tempo nm cbeía6:destas pair-
Digitized by VjOOQIC
44 A mocidadk
xões, Qorês sem finícto, todas gelo por tira como
a sepultura em que se crearam ; mas ainda quen-
tes por dentro do incêndio, que as abrasou. Sé-
culo singular, em que as dores excmciantes do
amor se consolavam com a severidade; em que
a espiritualidade do aflfedo imperava scdire os sen-
tidos!... Escrava dos impossíveis sentimentaes, a
poesia procurava as trevas, cantando em um
limbo , donde a esperança nunca descubria o ceu
por mais que subisse, aonde os anjos nio podiam
trazer a redempc^o for mais que descessem !
E apesar disto eram felizes ou julgavam sèl-o.
Podesse fallar a sombra de D. Joto V , do rei
freíratico por excellencia, que ella o diria....
Quando o SalomUo portuguez buscava o devoto
asylo do mosteiro de Odivellas, a magia da soli-
dão era grande, pois tão' adormecido se esquecia
alli , e tanto a custo o arrancavam delia. Destas
viagens ao ceu , como rei discreto , D. João V
guardou segredo ; e dos contos que o povo fez y
e do mais que então se disse , só Deus sabe a
verdade !
No anno de 1706, todos os dias sobre a tarde,
bellos ranchos de fidalgos , mais ou menos nu-
merosos, saiam pelo postigo do arcebispo, e vi-
nham, de galope, desfillar ao adro de Santa
Clara. Á mesma hora , também , as jeiozias do
Digitized by VjOOQIC
mosteiro deixavam etitrever as lindas ca{»tivas ,
que nSo se cançavam de applaudir o garbo e a
destreza dos cavalleiros.
Até á noute recebiaiiHse as visitas no locutó-
rio ; depois de escurecer tudo vmha para o adro
illuminado , que era õ theatro desta corte primo-
rosa. O mote erusava-^ com a glosa ; as palmas
do repentista inspirado com a estrepitosa ovaçSo
do seu antecessor. Â serenata interrompia o ma-
drigal , e o solau , acompanhado á viola , suíFo-
cava o pomposo elogio de ignorada deidade. O
soneto, o poema-rei destas palestras de Apollo,
ou sem sabor ou sibilino, coxeava atraz do con-
ceito obrigado. As freiras de cima , e os cava-
lheiros do baixo, ligavam aquelles alambicados
trocadilhos , favos de mel , libados no fanokoso li-
vro dos « Ghristaes d' Alma. » Nada igualava as
delicias destes serões ao divino, em que a re-
clusa, pondo a vozinha em ponto de rebuçado
para engraçar mais, lembrava o aehrostico, esse
terrivel « capo lavoro » do outeiro , ciyo enigma
ajustado e decorado entre a musa e o vate can-
tava as finezas de um novo Petrarcha aos ouvi-
dos nada cruéis da segunda Laura.
Choviam entSo em manná de abundância so-
bre o pamaso ambulatório os papeliços de pasti-
lhas e os gulosos fartes com o sabido sobscrípto
Digitized by VjOOQIC
46 A liottMIMê
dé e^fMMf ágttáésas gid|mM^ é Âlai iiJoci>
ea(k)5. D^ ôrdíiMârio a deipeM poética' dky òateíM
era feita peia imagiiiaçM AtgsÉhi de ãoBÍÉtos
Elpínoí i dilMMg psr fe^fcm eftni $b^ sia» pen-
na^ 89 graMlai loqtiaMS , a pfe$a àt una easan
ou de um janltf .
Ife taiPdé é» masai» dttfr ê* <pi6 o 9dI Haaeâi
Oo aata^ (Mra 0 oam^nli^def Sk Daningaar a»
n<)i^iça9 e adUcandas do opufetito imrteiro^ as^
settlada9 em «slvado Mm, nas dkteitoflas M«aaH
das que civcmidaipafli as |aidnis è» daosdoy so^
Rhavam eam a kata apeleeida 4» le dahàr m
cèRtwa pefo pasMfia da laide. limas: daffodta daa
outras, esílaa lanutam o« eesimí ftwwimas Mn»
^ias ; aqaeHM botdavam de branco oa de ímn
tíz ; e algamas ftaiam as-reidi» á fran^aia^ eternri
diese^pera^o' dM bHroa €0ii«eia|Ma*ea8^
Da doa poltrona' de pair sento, <*otti aàsei^
de moBcovift e espaldar esguia, c^aifC^Jacto' de' pvc^
go6 amareHoS) a soror regétita éspiíeÉtaaa- im*
cima do lí«rro e por debaii» dm òcíàm a iiiquíiãte
fAalatige <so6íiáda á sua vigílaum. E apesar èa
seiot MMmetí^ à^ teaetatel iMdre, e erii
despreso da sua a«eto»Íd»diB ^ o cbUreada marami^
riiibo de risilês é de vMes tii^ parava. A éenspírà-'
çto trama^ar^aevicisAio eta faoe di^podie» (ieapottol^
tio sefero èm iégèt aquéSe po^ fasiiiiinai.
Digitized by VjOOQIC
á etdeira da regente^ mm ttajam o habilD ^ o
^yeH branco d» mmifBS^ e a ootra veMia à M^u^
hr^ com elegante s^frii<;tdaàe. Aymêlla i^egral,
t|ae afaria paf« a vavanifov e^via ao meio detlaâ,
€ por isBo oa dmiílí AanA» os boràiâQsy ou fal^
hrsiú ente si^ e!9|NamcHiiii a vista jpeto ^o e
jMte: ftxm 9^ «aèliic&Aií(Í0^ M^tfo inor tífliida e
'SQove^ que iy o deMta daa iU^dencias iMimas
^^basr ami^s foT»iom>r
k secufaor tem dí6iaBei9 aânoi» q;aa«i4o m»(o,
«e dira Cecitía ^ a filha da Fil^ipe da^ Gama , de
quem o ar. Fr. M^ iiltifaa^ 8e« aâtiga* amigo,
éándcHlbe motàism àef eatô» A névi^a cbmiavflHse
Cafliarfaia dfe AitÍMii(te> e porteneia a mia femi^
fia pokrê:, pasÉm ilki^e da eòittet perdendo
Bua mãe on tettfa klodd mtim pafa o eoavento
ée Mie afinoB^ a ei^ttir ^ Mmptf da« pi^ofiss&o.
Geôlia era ma tanto baka ; tíite «iqiieUa
^estetBÉa qiia 6 fefça/ A^ fffimoda e deHcMda pareee
frágil nas. donarila»; qu«: á muiiler feita acerei
«eaílft mn atraetifô aMs^, fuaiídit» a symetria das
ynoporçdeB lhe realça a gi^aça. A tl^iliilídade ,
«9SI fpie: o cof po cedia eém dfésteijt^ natural à»
aiaia 6apriohc(sa& ondulações^ («vestia óa seuâ me-
iMPes. gestos t menema dte ínfiniâi gmiièt^.
O tesfc) n&oliaèa a pareM seria e q^m s^
Digitized by VjOOQIC
44B ▲ XfOCIDADE
pre fria do typo clássico ; era aniiaado da eiqsres-
são meridional, menos correcta e mais ideal,
cuja mobilidade reflecte a alma , e traduz a vida
em toda a opulência juvenil. Â tes, sem ser da
alvura deslavada e marmórea das ruivas, era
branca , porém a miúdo illuminada das rosas
transparentes, que acende a menor comoção do
sangue ou do espirito na phisionomia portngueza.
As posições da cabeça , com o requebro da mais
casta voluptuosidade , exprimiam sempre alguma
cousa, na graça e no abandono quasi infantil,
em que se esqueciam. Pequena e engraçada a
bocca não se descompunha com o riso solto , que
tanto desforma a formosura, abria-se como a flor
abre o botão ; e se podia ser accusada era do re^
cato, com que escondia de mais dentes admi^
raveis pela igualdade e pureza do esmalte.
Sobre o coUo pousado em toda a riegancia-
grega, verdadeiro collo de garça dos poetas,
brincavam em spiras luxuriantes os cabellos cas^
tanhos cendrados. Uma fita , posta em bandó ,
retinha as tranças, que d^is de emoldurar e
rosto , esperguiçavam os anneis perfumados pelo
mantinho de seda preto, que tanto fazia sobre-
sahir o mimo e alvura da pelle. Os cabellos as-
sedados, que soltos arrastavam pelo chão, apa-
nhados na coroa de uma cabeça do mais per-
Digitized by VjOOQIC
M D. JOÃO V. 49
leito modello , pareciam seguros apenaà por nim
rosa branca ^ seu único enfeite.
Vendo-se o pé estreito e arqueado dir-se-hia
que só alcatifas saberia pisar , tão breve e subtil
se pousava no chão. As mãos na brancura trans*
parente , azulada de vei«s fínissimas e esfumadas^
ttiofitrav&m aquelle melindre aristocrático , que é
a sua belleza. Os dedos , de um côr de rosa ti-
bh , afilavamHse nas pontas com o geito provo-
cador^ que faz julgar a vida paga$ sentindo-os
castos e trementes entre outros dedos extremosos.
Mas o prestígio áà vista é que lhe dava um
enlevo irresistível. Eram negros os olhos, não
daquelle preto escuro e firme ^ que só diz impé-
rio ; mas do outro preto , também fechado como
a noite , mais raro ainda , que fuzila reflexos azu-
lados, por eifeíto da luz, subindo a iuilamijniar
a pupilla , e rosando-se ao atravessar o claro es-
curo da orbita. Debaixo de sobrancelhas , dese-
nhadas com estrema pureza em arcadas de uma
curva ideal, ostas pupillas assetinavam-se, ba-
nhando a vista em brilho cristalino, e húmidas
de fluido siiave, vinham sobresaltar a alma, in-
sinuando-se no coração !
Era fascinadora e invencivel a sensação elé-
ctrica de taes olhos! E ou os seus raios, avelu-
dados nas sombras das pálpebras, temperassem
4
Digitized by VjOOQIC
oO k MOCIDAME
« int«mi<i«de da Itu , ra na saa magnética btànê»^
parencía se accendette t fogo da paitik^, é Mto
<(ae diiia tanta coufti raira à tonhura ^lles, é
fMvavel 4ue fosse tSò terrível a M^<Mt5 ^ tnn
ira, què depois de ifistM omii tei» fieafam lúP*
dêâdo «"alma j^ «Mipe.
Nenbnma pl^rase pAde ekprimif a melattoMki
ééleste, qoé tomatam, ^qtiattdo tneio adonnecl-
d6s è elevafido-êe lânguidos pftm o eèiá^ pftrecisfli
subir èm um raio de «^1 , e fi^rdefMi-M eem elle
M infinito. A graça^ à fteduoffio» é o império fil^
^iftador de taes olhoê, mais ^Mbe» do que pe-
ninsulares , mais de israelita <iiie de cireâssistia ,
sem as eovinhas arredòfidftdes aos éanios dâ m^
rituosft bo(^a , sem « animação d«cpielltt portil^
gttèzes feições, faria Suppor que o Iwça de Gè»
eilia èra um rosal de BÂgdnd, o» mais ^«Mo^
aigmn oásis da Palestina.
O justtihò òom guarftiçdes de lelílha ^ vMfè&^
lando o seio virginal ^ apert&va sobre â esbelta
eifitura, deixando advinbar formas elegantes,
que * idade detia sfttedondar. Se no coi^ ^ eomo
}á d^, predominais o mimo delieado e um
pouco frágil da flor ; a perfeição de afguns con-
tornos , e á expresslo de outros , revelavam já em
muitas cousas ámulber, cujabellefea, rica de setVi
é ainda tenra e melindrosa de músculos. OlbMidtt
Digitizedby VjOOQIC '
it U. Jõ5l(> V. SI
^j^ f^ltíyté^^bêttíff^ o tosta, %è âà pai--
tè^Wt^iiíl^iftf iattÂdiÊ^ â^ com dlis;
que o sangue impetuoso seria prompto é^m in^
lMftÀ«íMf-($ dofá^; é ^Uè oá olIkiS) agora sère-
«d8r^iA6aib«t^ VolfêBBMi ii^adès^ j^detia^ fti-
iílÊ»'mí ai«íi4K|«ftM;e^ mm ns tem^^estadeà d'almff.
-í- »». €áft»iiift de Alfeôldei à tíotiçâ , êfa for-
HlO&a (iiMlieiÉ , pyrèm de tittà k^Ietá mái» $e^
i«fèp. A« lei^ ifitMto r^tare» é delíeôdas ti^
^Mm Wí^ mtíeà^áé^t ^ iMun^ft pespoito. Wb
imb; ê&mpm pftlíMo, p^ocb dá afma ^ i^eflè-
4Âíá i á li^nqtiíHlUtoâé efa A áâa èxpr^o úídf-
il«ria. A M ám òlhféi, civi ({ue bfi)t»áVa d fíno
« cIbí^ miA dà tofAira^ flArei^^ ui«i tafyto frocisct^
tStn^aiafétà fèOèxtVâ ^iii«láCSo a «[lié oâ ac^i^
ttfitvfi^â/^d nmisdi rm^hi^tn ób segrede» mais
iiflílínté^ db tibn^.^A eáláluta íiSt> era «cima da
líl^&l^ ihtts é/seu Ardii tiobresa ittn potioo p&t-^
pendicular a fazia suppor uma ou duas lifihas
^Bh eM. Afs msi^ hòíúte^ apesar dé magraá ; e
4( @ôè «la |)6llè tit^atífé ft ãlt\itft fria âfeiâ is&iirâft,
i$MipIé«»Vitm « ffti^tytíoiftfã dá liOViçã^ |4li»i)6^â<]^a
i^rfe^ gl^e^-^wco é^s^sitd^ é j^r isso Mesmo
i«ri(c»ttdo^ Ulfli earácftèr 6^t ^ mmit áisétos
pbtm^i, e de IMfM* diéll^g, i^e^hà^ infeliz,
^ôtti §6 buiAtehr áíè m^ènor ^teuiwe. A opjw^i-
Digitized by VjOOQIC
S2 A MOCIDADS
e a terna e concentrada amizade de Cathartnt
era sem duvida a verdadeira causa da intimidade,
que as unia.
D. Catharina de Athaide podia ter maia do»
annos do que 9 sua amiga, mas a experteacia
da reflexão é precoce quasi sempre em earacte*^
res como o seu. Costumada a conter-se e a ob-
servar, nunca cedia ás sensações repentinas, des^
confiando muito de si , e não pouco dos outros ,
também. A honrada pobreza da sua casa, cuja
fidalguia fora desattendída pela ingratidão real ,
í^ervia-Ihe de estimulo para redobrar o resguardo
do seu tracto. Se vivesse em opulência , a bon-
dade do coraçSo inclinal-a-hia á convivência fa-
miliar das outras meninas ; mas com a sua es-
treiteza de meios intendeu que devia ser cortes
e agradável, sem esquecer o sangue donde pn^
cedia, nem permittir aos outros que o esqueces-
sem.
Com Cecilía dava-se a excepção única, admit-
tida por D. Catharina no seu invariável systema.
Á educanda soffria e perdoava tudo. Com a im-
petuosidade de génio , que lhe ei;a natural , a fi-
lha de Filippe da Gama ria e chorava sem mo-
tivo , e quasi sem provocação ; e momentos de-
pois passando da altivez á humildade, e do des-
dém á compaixão, não sabia explicar a rasão des-
Digitized by VjOOQIC
D£ D. JOÃO V. dS
tas variações. Como acontece ás vezes , enganar-
se-bia com ella quem tomasse a sua exaggerada
sensibilidade por indicio de fraqueza de vontade ;
debaixo das apparencias de leviandade encobria
grande firmeza de animo. Um pouco dada á tra-
vessura e à malicia do epigramma , e viva como«
fogo, Ceciliaera o idolo do convento, aonde to-
dos a adoravam.
Julgando seu pae morto na índia havia sete
annos , amava a mãe com um extremo arreba-
tado, e. tinha ao commendador uma aíFeição quasi
filial ; este pela sua parte idolatrava a « menina
bonita*» e não podia passar um mez sem a vér.
€om sua irmã Theresa, Cecilia parecia mais secca
e reservada, o que procedia do ar de auctoridade
com que a mais velha a aconselhava em muitos
casos. No fim de tudo tinha um coração de oiro,
ainda verde das illusões da mocidade , ainda vir-
gem nos infinitos thesouros de abnegação e sen-
sibilidade , que o enriqueciam. Àquelle , a quem
uma vez ella chegasse a amar com verdadeira
ternura, devia reputar-se um homem ditoso.
Depois do retrato, que acabamos de fazer —
a um « sim » de lábios aonde o amor sorria com
tanta graça , a uma. promessa de olhos tão elo-'
quentes na paixão , só Deus podia pôr o preço ,
se é que ha na terra preço que os pague.
Digitized by VjOOQIC
Digitized by VjOOQIC
CAPITULO IV,.
»E O HABITO NÃO FAZ O MONGE, O VÉU NAO
sentaddf w ^49ft ào lavor ; C^eilia l^rdu^do aw<i
escarpa cf«» * st» aetiviáftife febril ; Catteritioi
xii«t»i9a4o im ^míhiq d« fr<¥a4ftl €Wi o costumado
soc^o,
A ^cw^» mm a ^rbawtre os ^dos, de
vez em quando jogava um «orriso tr«ve$so 6 sm
coaipaidi^ra , e , «^$ar <k {irovocaQ$o directa ,
esta não levantava QS ioi]>9S^ mas sorria-s«. Pa-
racíam ambas cainhada» dç foHar tantoí do que
tivbam longe àp .owaçlo e tâo pouoo do- qv*e «'^^'^
endtomeiite 9eiiAtam»
Digitized by VjOOQIC
o6 A MOCIDADE
Por fim Gecilia impaciente deixou escorregar
o bordado de cima dos joelhos , e atirou a agu-
lha com enfado , inclinando-se depois para a sua
amiga. Assim esteve esperando minutos que uma
palavra lhe desse a nota do dialogo ; porém es-
perou debalde : D. Catharina nSo disse nada. A
pobre Gecilia , afrontada com o silencio , e ex-
halando um grande suspiro , resolveu-^ a rom-
per o tiroteio.
— « Aborrecido dia , Catharina ! » exclamou
ella com impeto. — Ai , menina , muito feliz és
tu!»
— « E sou , bem vés >» replicou a noviça com
o mais duvidoso sorriso.
— «Olha, minha Consolação , continuou Ge-
cilia , dando-ihe este nome tomo é costume en-
tre amigas nos collegios — nSo sabes o que eu,
se fosse má , devia dizer da tua resposta ? »
— « £ porque não dizes , minha Alegria ? »
observou Catharina com toda a tranquillidade.
— « Porque tenho medo desse teu ar. Depois ,
affligias-te se eu fallasse. . »
— <( Não , minha jóia ; tu nunca me affliges. »
— «O callado é o melhor. »
— «Pois eu digo, já que tu não queres.
Achas que vivo muito triste, para ser feliz?
Enganas-te, meu amor; fui «empre seria. Que
Digitized by VjOOQIC
DE D. lOÃO V* ST
chora muito com saudades do mundo , para me
desapegar sem pena delle ? O coração , sim ,
chora, porque é de carne; mas o espirito está
contente. Sem sacrifício não se serve a Deus,
nem ha merecimento em o servir. Disse-te que era -
feliz, e sou; porque tenho tudo o que <fesejo)»
-^Não, Catharina; conheço-te, leio-te por
dentro, vés? Basta de brinco!»
— d Tu sabes que sou pouco amiga de rir.
Nio brinco , fallo serio. »
— « Falias serio ? Ora dize , dissimulada , das-
me noticia de certo retrato, que de relance vi
uma vez?...
— « Que retrato ? . . . Tens lembranças ! »
£ a bella noviça , vermelha e assustada , le-
vava as mãos depressa ao ^io , no gesto de su-
mir alguma coisa. Ceoilia olhava para ella sor-
rindo , e este olhar malicioso mais augmentou a
confusão da sua amiga.
— «Não te assustes, menina, disse a edu-
canda rindo. Não é coisa do outro mundo. Fat-
iava daquelle retrato, que disseste que se per-
deu. Ora , se me não engano , achado está , e
muito perto do teu coração. »
— «Percebo agora, acudiu Catharina grace-
jando constrangida. É verdade, trago um re-
trato , mas é o de meu pae. » .
Digitized by VjOOQIC
l^«^ com qu^m 96 parece i» teu retrata? i»
^-«-^ Nfio. Alguma idéa tua ! »
-r^fíCom c«rto o05ciaU we pw how d*
s^, todo» 06 (Uas v^ p«riid« m rttA« d»-*
fixxnte âa tua janetia * d'p^ híq tira os olbis. . .»
w-n«Pelo a»ar ^ D«ua» Cwtíia! >> .
— «Jesus, que medas l E por t9b^. pojiet fi<*
ca^ ))raQca 4^omo uma dW&nt»? Sotl^, <iti8 tem,
menina? Se vi um homem Q^m di^ ruft, |«r
is^ nã(^ m(Nrro mai^ ced«, cr^ii» «u. i»
-^«Mas ^ qui9 s3^ tiidk^ sQppo6Íete&. S^ r<^.
trato. . .digo, esse moço n9o tem nada. ^9 M
escoada, t, . . hida aer mea ire^Ks » v
— K Ora v^am.. Seado dok irmíoa Mnea me
faltaste $eiâo de um ! Estava»^ mai ow» eite-s
aio?*
Era tjk> pen^traiiitç a irama 4e q«e CeaiU(k
aíTectava a sua falsa inoceroia , que dlaaa lagri*-'
mas saltaraadi do&Olhoa da noviça, deseorolaiâo-
se vagarosa» pela$ face$. A aiougada ímmWr
ciiya travessura as folia correr), estava morta per
desatara rir; mas <h» presenoa daquella di9rviva.
e sincera, deitou-^e-lbe noa brai^ ateagandb*^
e beijando*^ eom e^iítremosa efftoss».
— ^íí Perdoa^me, Catbarina ! Foi malfeito* T»
nèo merecias. . . Mas tamben pturque teencobrat
Digitized by VjOOQIC
i^:ti» iPn%^? ' • í^^\á»& que elk jiSp i;jd)^ gm^
4í^ 1101 sc^gsredp ? ))
^ -*-. « Nâo , min,bd JQÍ9» 3ex qve t^o$ juizo , m«$
não uw delle sçpipre, »
jj -r- « Obfig^ ! EstQtt.entàQ iitacJvi4a.. & mit
nha amiga ? » , . . > f
: ^^ 1í:l&^s^, «í^H. ^ M^ çaiQ tcf ^^ Affligiste-
me , oieq amor. »
£ ^rrií^bx 6^ 4)pi^4fi4e , por entre a3 Lagri-
^n^;^rai^ .Qru2|iu<^^ D. CatlWinft deu-^lbe um
})eijo com infínita amizade.
,.>^ifrííàfl| te'rifm?dio^-7^jy<>5eg»ÍQ ella.de-
))f4^.%q(^$s^Trmçrbei a^est^^adi;^ tãp curiosa;
y/WS^r ^:V*?c¥i ^ e« ;di;(ei;, mewji^?»
^'T- tf ji^iç), Ojiero jabfír tudo. í^ E q j(içd9 de
^iUafY-;eF|^uidjgt pa^a P fir^ âjvve4C«;vci^ a j)fm^
, -.^aÇro^nettçs^egriôdo?»
,. i-iT-ítJi^re. E tu, a mm-, promçtteç?,»
; T^^cPçi^ ti9 QiQYâi já tem segredos o teu
corjiçi^, Cfci4ftK
r*Tr<f>Oh, *e tem! E foiíf^ nàp? e talvez
ff^c^ do que.jallga^. , . Â gente cresce ^r^it
depressa, Catharina. Olha , meu amor , sei muitas
çpuíi^; ^vinl^o.^mivítes n)^; q uma delias é
es^ag-tfV amas! Farín » t^a confissão pelo pri-
meiro mandame]|;itQ.».
Digitized by VjOOQIC
60 A MOClOTABtt
' — « Amo ! » — murmurou a noviça , tremult
de voz, quasi ao ouvido da sua amiga. )> Amo
sem esperança, sem mais esperança do que a
de ndo chegar a ver o fim do meu engano, se 6
engano ; da minha illusão , se me illudo. Bem
vés o triste amor que é. »
-^ <x E nSo juras em v&o? Amas e crês como
em ti f»
— « Firmemente ! Mas de que serve ? »
— «De tudo. Não professaste; és livre; diris
a tua mSo, . . »
— « Ai Cecilia , nlío ! O habito é mortalha.
Devo a meu pai este sacríficio pela sua tenrara.
Não ha logar, fio mundo, em que eu caiba senão a
cella do convento. . . Dos bens, que tivemos,
só ha em nossa casa hoje a gloria éd um nome
que deve acabar como principiou, honrado e
puro. Uma filha dos Athaides, querida , não entra
em casa de ninguém mendiga. . . Não podendo
ser esposa de nenhum homem, serei esposa de
Christo. . . é como se faz na minha famiHa. »
— «Pois levando-lhe esse coração, e tanta
belleza, não lhe levas um dote, que não tem
preço?»
— «Achas bastante? Talvez elle dissesse o
mesmo , o amor cega. E depois ? . . Não. £ re-
solvida. Ficarei sepultada aqui. »
Digitized by VjOOQIC
HS D« joiov. 61
' --*-«Mts porque o vés aioda, porque o não
desenganas?»
D. Catharína olhou fito para Cecília ; e pe-
gando-lbe na mSo depois com força, disse na-
quele tom ailbgado , que ás vezes é mais vebe^
men|^ do que a mais alta voz :
— <ç Porque a paixão que lhe tçnho pôde mais
do que o dever. No dia em que o perdesse estalava o
€OFB(}ão no peito. Tenho medo de mim, tenho medo
delle nesae dia, vês ? I Deus te Uvre, pela sua graça,
de um amor assim ; é a alma e a fé, é a salvação
ou a morte de uma vida inteira. Não o desen-
gano , porque ainda me desejo enganar a mim. Sou
•uma fraca^midher e a morte Ceiz-me horror , sobre
tudo a morte lenta e inconsolável , que me espera.
Quero esgotar de todo esta illusão suave. £ como
ac(Mrdarei eu delia meu Deus 1 ? . . . Percebes? £i^
tendes agora porque me callo, devendo fallar?
Sobes porque não lhe digo que morro , que morri
. para o mmido e para dle? Parque em cada dia
vivo só os poucos, momentos em que o vejo. » >
Ella ch<»rava dizendo isto, e Cecília unia as
suas lagrimas ao pranto amargoso , que a deses-
peração exprimia dos olhos da sua amiga. Cin-
gisdo-a com os braços o eubrindo-a de carinhos,
a pobre menina exelaoiott com wtbusiasmo ao
mesma tempo :
Digitized by VjOOQIC
6fi À MOf:iDAi»#
-^«Mífiila B¥MgÊi, mífifhft imit, h^ée sal-
var-te, porque se eu lhe disser; elte UBtflfeftí!
teée. ..» '
— «Elle! quem?-^i»tertt>ttipèil €}«t*«rflMi
ti&m um g&êU)áetérf6T *-^Gm\\é será^ceftá «Mis
uma desgraça? Aiftás cMiè «a? Dillé! àMd^ b
tiíste ^ quiiiido ^ como ? Querida meÉkiè, oito bem ^
p9e a vísia em tuim T ! i»
Cecilia ouviam sottifvdò tòM: ttiítMh. If^Mf
a p^m tê ottios^ tí^éenéctam-se / ú iíMí IháilM;
e beik domo utn attjò ^iie ^ê ^^«1 ãtt^ h(lMi4ti^
humanas tia mais i^aéíciM ínÈOòén^f^ ^ di^se tiAl-
tada e co<iteti(5idai
--^ a 0)ba Cfiftftarítia , te fei 'betíi §e ma) , «So
sei ; o que sei é que « sittlo Sempre afei^ pé de miiti
e qtie eslA em tudo 6 qti& eu ^^ é piãMò. Aimfe
elle n«o ehègdu e já itte estfi ftíllfttidci^ JA ^isffiia pii^
mim e me chama t á mfába ttkmi è§ta cbevè^-A
^a imagem f o mm e&pit^ tivé eem a <Mle
na ausência; Dia e Mvte^ o c^fr^Ko i^pettMie
cofm jubilo duas* pàlatras , que tsãd é ^u hmé,
êomeci amet. Pòr e^té hMM^'^ Cá^rinfa, dei-
tfttiHtè mà peMí", eu quÊite jBHibfty. . . Rfi«ftá éiM;
que me estendesse os brâ^, qner«ndd efte,
▼ia*me fugir alé do <5ett páfra <> Seguii^ . . i Meti
amor, nlKK^res, pKerÍMi^!'Véi; Sé'<etlè p6dèi
mais do que eu ! . . . Não padecei Mmbélfr M?
Digitized by VjOOQIC
BC D. joko *Y* 63
«OciíoApts.aiada tento: quanda duas almas que
ise amain assim ^ chegam a ^r^e^ diae^ dixe>
aié afM^^fttai «n minutos, cni um sorriso^ as
it^iiMB de iilaitDS atínoat »
«•-«1» Calaste ^ oaiarte! Bsia tida pmMttMi a
aqMaràttiâ ^ mai aSo a dá o muadoi, lifto se fè?e
aento no oeii« »
^'^nTúmimA Aa tM*a. €fè e ama €cmo ea.
AiMRaea^ ôam a fé e varáB^.,»
-!^ « Oxalá 1 Más, miiAaCedlia^ aecreica««ôa
ISatfaaríMi ceqi afiactaosa tmtezav ^ ^o nova
ainda , tiro sincera ! Esse coração tilgMMHtt,
tronfia ]iMÍto deaaak . . Toma aèntido 1 Ndo (ens
fii 4ie ta iddetidà. Meu «mer^ aòautela^te ;
Aoai^ títeste il^rafio para te Iriígar. i>
*^u Bem 8<Í5 Cathatifii. Sm orpta ^ é Pei^
dade, mas o nome de meu pÀ è «ÂrigaçSo, e
jMt i^ d^mrtreaa ea o^Mkndorei.até 4le mim.
NSo tenho irmão, mas tenho animo e contada:
e para não precisar de vingança liaita qne me
respeite como devo. Sd laainfa sarfirai de irmão
e de pai ao meu amor e a mim i m Beas que lè
na Imnha alma sabe le (irometto omM Té e se
creio com fervor. 1 . »
E por um gesto sublime , CeeiKn ^ «flectindo
nos olhos a exquisita asnsíbtMade á^ coração ,
rfjoelhou lentamente aos pés ãe €fltfcãrina, le-
Digitized by VjOOQIC
64 A MOCIDÁIIE
vantando a mSo ao ceu , como quem pronuneti
um voto irrevogável.
 noviça olhou para ella sem severidade. Co^
nhecia-a muito para davidar da abnega^^o , (fàt
exprimiam as suas palavras. Sabia, que esia pai-
:xão embora fosse uijíl mal , era já um mal irre-
mediável. Por experiência sabia mais, que no
primeiro ame»*, quando se cré e se adora assim,
esse amor é a própria vida e só com ella expira.
Foi, portanto, para sondar a chaga e sem es-
perar remédio, que D.Catharína perguntou com
melancolia :
— (( DirHne4ias como elle se chama ? »
— « O nome que todos lhe dão não sei. De
mim quer só aquelle nome tão doce, que diz só
« bocca da irmã e da esposa. Chama-se João. »
--<cÊ fidalgo?»
« Não sei ; mas todos me parecem pequenos
ao pé delle. »
— «È nobre?»
— «É; se eu o amo!»
— «É rico?»
— a Para mim. Não te disse que o amo ? »
— « E se fosse pobre ? » .
— << Amava-o. »
— «Se fosse mechanico ? »
— « Amava-<) ! . . ,
y Google
M D. JOÃO V. 65
^--- « Se te levasse longe dos teus e de mim ? »
— « Amava-o ! . . . com amor de filha , de
irmã, e de amiga ^ com todo o amor que nos
dá « ceu , e o coração encerra.
' — « E enganaíido-te não o aborrecias ? »
— « Nilo ! »
— « E preferindo outra não o odiavas ? »
— « Não ! »
- — «Eseelle não podesse, ou não quizesse
senão amar , acceitavas ? »
— « Morria , ou acceitava ! » Murmurou Ce-
cília sem hesitar.
— « Mesmo um amor sem nome , digamos
tudo , mesmo um amor sem esposo ? »
— « Sim ! Tudo menos arrancar a alma do
corpo , para arrancar a sua imagem. »
— « Então Cecilia , exclamou Catharina , so-
luçando , e com as mãos erguidas , então boa ou
má eis a tua sorte. E' o primeiro e o ultimo dos
teus amores; para ti acabou-se o riso e a ale-
gria ; fugiu a mocidade. Colheram-te, pobre co-
ração ! A tua alma , que eu conheço , está aos
pés desse homem , vencida , escrava , para elle
a perder ou a salvar! Cecilia, és mulher.
Não procures as illusôes da meninice, porque
perdidas não tornam ; cuidas que podem voar ,
livres, Jcomo d'antes? . . se o teu senhor mandar,
X 5
Digitized by VjOOQ IC
66 k MOGIBÀl^B
O coração qté do ceu ha de cahir á sua voz, coólid
a' ayesinha ferida cahe na terra para morrer. »
-^ « E que importa , ge elle amar, se fôr fe-^
liz?»
— « Feliz ! Peus o permitta. Poisam amar-te,
querido anjo , como tu deves ser amada , para
viverei?. . . Nâo è a hora do passeio? Vamos ao
jardim ; quero saber tudo. »
£ dandp o braço a Cecitia, a noviça desceu
adiante de todas para tomar o sitio que desejava.
Com effeito apenas o sino bateu a hora suspi-
rada, as agulhas ficaram no ar sem âair mais
um ponto 4 e os bastidores desert^ia i^o viram
mais um fio ; em toda a casa do trabalho se fez
uma verdadeira mutação de tbèatro, Âquelle
bando de pombinhas -, doidçsjandç e cwrendo em
tropel, rindo e fallan(io altO) foyi, a saltar os
(degraus das escadtes, precipitar-s^ na cçrea ^ Wo
eíperando por ninguém, nçm olhando para trai.
A regente depois ^ metter os ocido» entw a
íplha do livro ascético, que estava lendo, eo^
j^eaindo de sciatíca çfe^onica , e oa^Qntk) da sm
^sthma incurável , sahiu logo atraia para acQise
j^ç^nJiar o en:^a9^e , jâ dividido em ranflios « va*'
gw^ndo peta» arcadas ruas ^ jardim ; estas re-
gando a roseira ou o alecrim pr^lectf, aqaeUi^
t$migalh9.nd<) pao aos pei:<í;es do tao^nei e «^
Digitized by VjOOQIC
M D. JOÃO V. 67
Vnais novas provocando os dois caxorrinhos da
abbadessa , cuja beatifica digestão foram pertur-
bar os latidos dos seus quadrúpedes validos.
Entretanto debaixo de um carramanchão re^
tirado , Ceeilia e Catharina , as duas amigas, de
mãos dadas e com o rosto chegado^ conversavam
com a maior viveza*
Digitized by VjOOQIC
Digitized by VjOOQIC
CAPITULO V.
PETRLS IN CUNCTIS EST PETRUS IN VINCULIS.
A PASSO cheio, mas não precipitado/ o jesuíta
adiante e logo atraz o andador das almas , am-
. bos chegaram ao arco das portas de Santo AntSo.
O primeiro risonho e sereno ;• o segundo cada
vez mais escravo do terror.
O dia amanhecera limpo e claro ; o ar estava
frio e secco ; e nas ruas o silencio era completo.
Todas as portas e janellas fechadas davam testi-
munho do recolhimento dos visinhos.
O jesuita parou debaixo do arco , e de leve ,
muito de leve , pousou outra vez a mão no hom-
bro do honrado Thomé. Se visse desabar a abo-
Digitized by VjOOQIC
70 A MOCIDADE
beda não se encolhia mais o milagreiro, tre^
mendo como yaras verde».
A Yoz do padre acompanhou o gesto; era
uma voz limpida e vibrante; quasi tão suave como
o timbre da voz feminina ; mas que apesar da
melodia tinha umagrcMloce que arranhava mais,
do que a rudeza de algumas falias ásperas. Certo
geito estrangeiro na accentuação das vogaes dava
um cunho partiwlw it wlmQf^ phrases.
Algumas vezes a vista parecia desbotada, e ar-
mavanse então de uma doçura felina que fazia
esfriar as pessoas para quem olhava. O sorriso
impenetrável era acerado de ironia , e cortava
como o fio de um stilete. Nestas occasiões a ama-
bilidade do padre metia medo.
Em gefiil o sewUvi^r do íomitft qe« nesta
occasiãot eff irttaoso e i?ellwm>; a vista pitrfimda
e pfisetniQjbe ^ des^w que em nm rolatiee medem
Cl vee» hida; e a boôoa, riMiha ou «tei«,^ sei%-
pre em guarda , nuncn deicobria^ ^ p^nmne^to*
As feÍQdes. kffi aooimds^, a testo «lia ^ bom-
beedit , e o Qa^ix «tiiiUn^, viríl^, o^ boi» C^rm^do»,
caindo wm grus^i» letircieMiív^im m ows j ura a-
pressão o t^ das phisioiíomitfl ít^lioi^», ei^
íuitira e profundidade €«fHii9 {|«iJm<Mte os eb-
annndiares poucQ acodtiunados a í(ktor|re|at4is« A
idade^ oarèandoc^ eabçU<is, ctio^vt fk aan» ^,^
Digitized by VjOOQIC
DK D. iOÃO V. 71
miigestade uma figura , aoiMk o dedo de Deus
imprimia com distíncçào o cunho indelével da
génio e da grandeza.
A sorrir , e senifure um faTo de mel nas pa*
kvras, o reverendo padre, rompeu as hostilida-
des« deixando cahir amigável , mas utn pouco
m«U peiMa ^ a mão direita no bombro da sua
victima.
*^ « Como |à lhe disse ^ filho ; gostei de o
ouvir « goatei muito. Yé-se bem o seu zelo pela
religião ^ e o grande temor de Deus. Depois , é
bcmn catholico ^ ama e rebita a santa inquisi-
ção. Fallou bem, faltou optimameate. Conven-
cettHne ! »
Este elogio succarino amargava como absynto
ao honrado andador. Extático, com a peruca des-
^onhadá, e os olhos de sentinella ao sorriso do
faàíe^ Thomé afinava os ouvidos^ penando a fogo
lento e em trances mortaes todos os se«s pec-
cados. O jesuita observada, sorria-âe para dentro,
e fingia^se desentendido.
— cc Não responde ? Noto agora : V. mercê não
está bom ; tem alguma coisa ? »
— *■ « Não é nada ; estou melhor ! » O devoto
engasgouH^ sem folgo para mais. Muito desejava
•creioeiítar : « Tão bom te visses tu , desalmado
hypocrita ! » mas faltou4he o animo.
Digitized by VjOOQIC
72 A MOCIDADE .
— « Está melhor? ora ainda bem. Ndo nos
adoeça. Sabe do que isso prppede provavelmente ?
Do calor que toma pela religião. A carne não
pôde com o espirito. . . £ eu , filho, receio que
venha ainda &r fazer-lhe muito mal o seu -espi-
rito. . . Ora pois ! Repito ; gostei dé o ourvir ;
pareceu-me libio o padre Fr^ João; desconbe-
ci-o ! Será bom apertal-o. Olhe , Thomé , tenho
scismado ; o seu conselho de curar a heresia a
ferro e fogo, digo-lhe que o acho menos mau ! ?
mas dos executores vae tudo. Gom peque-
nas correcções na forma, estou em que será
muito útil e agradável a Deus e á egreja. >»
— c< Misericórdia ! Peccavi , reverendo padre^
peccavi! »
— « Quem não pecca , filho ? Como ia di-
zendo : acho-lhe razão , é das obras de miseri-
córdia castigar os que erram. Disse muito bem.
Y. mwcé tem génio e habilidade. . . para casos
de consciência. Tirei informações a seu respeito
e satisfizeram-me. Não havemos de consentir que
a luz de um entendimento claro se esconda nessa
humildade... Não deseja figurar? Pois sim!
Isso c muito louvável; mas todos hSo de co-
nhccel-o ao menos ! As nossas missões da Ame-
rica pedem homens, assim zelosos da cura das
almas c do serviço de Christo. » .
Digitized by VjOOQIC
MD. JOÃO V. 73
> — « Valha-me Deus! Errei contra a com-
panhia; mas, y. patanidade, accuda-me pelas
chagas do Salvador ! Nãa me deite a perder ! »
— a Socegue , filho. Se lhe digo que estimo
a sua habilidade ? — e que V. mercê tem muita
é inegável. Ora, fallou da Companhia de Jesus.
A esse ponto ia eu chegar agora. Ainda assim !
Teve caridade comnosco. Castiga o corpo, e
lembra-se da alma. — Foi onde gostei mais de
o ouvir. Estava inspirado ! O embusteiro , o hy-
pocríta , pondo a nossa capa , nem por isso é mais
jesuita do que o moiro ou o idolatra. No seu
corado escarneceu de Deus e da Companhia ; e
entre a salvação de um e a salvação de todos,
optar pek) interesse maior é a doutrina do ins-
tituto. >»
— « Milagrosa Vii^em do Cabo , valei-me ! »
— murmurou o irmão das almas, cujo pavor
crescia em proporção da sinistra amabilidade.
— « Invoca a Mãe de Deus ? Boa fonte pro-
cura ! Louvo-lh'o muito. Tomando á Companhia.
Dizia eu que o seu conselho era bom ; e refle-
ctindo , acrescento , que o acho óptimo. Ê pre-
ciso um exemplo , e vamos dal-o ; senão ouça :
É da. cidade de Évora, não?»
— «Sou, meu padre. Lá nasci e me crea-
ram. »
Digitized by VjOOQIC
7i À MOCIDADB
— ((Muito bem. Eattio estA^noeaâo de no»
ajudar , se quízer ^ a serrir a Deus e A relifbo^
Sendo de Évora, conheceu por forga um tal
Onofre Crespo, algum tempo familiar do nosso
padre Simões^ Havia de conhecer I « . . EUe é
da sua idade, trinta annos > pouco mais ou me^
nos. »
O Sr. Tbomé, ouvindo a eitação» fes-^se fuUo ,
e sentiu fugir o lume dos olhos. Três veies apol-'
pou o chio com os pés , como quem etperímanta
as pernas para uma boa ciHTida , e outras tantas
consultou o rosto do jesuíta com os olhos atieio^
SOS. Inutilmente I A eterna aíbbiiidade do padre
desarmava â soa penetração.
A pergunta era naturalíssima ; e não teria aiH
sustado o milagreiro , se não reflectisse que os
jesuítas 9 por desgraça, sabiiun quanto quêriasfi. A
intensidade do medo, e a violência do ataque,
restitttiram-^lhe a clareza do íntendímento« Ape^
nas percdbeu por onde vinha o assalto armouHse
de prudência e de simplicidade. O padre afdver-
tiu a mudança , e sorríuHie de novo. Applaadii^
se talvez por encontrar o adversário mais forte
do que suppunfaa.
— « Que figura tem esse Oifofre Cfeâpo ^ meu
padre? — perguntou o devoto com a possível se-
renidade, depois de poucos instantes de paosa
Digitized by VjOOQIC
BE D. JOÃO V. 7S
p^— Hft da bsiv^r aígnaes; V. paternidade^ de
c^rto oft mandou tirar. Está averiguada a histo-
ria io eriBie? . • . • se eUe eommetteu crime.
Com esse apoatamenta talvev eu podesse lenv-
brarnone. « . . Aiada que sahi tSa novo da cidade
que pouQ^ 0ie reoordõ. ...»
*-*Ê natural V. mercê tinha vinte annos^
quando mudou de terra , segundo me diss^am.
Ha de tembrar-ee« Foi por esse .|kempo. »
— cEsteja V^ paternidade certo; se eu o co-
nhecer l Nada ha que eu nio foça pelo intaresse
da santa religião.
Como bem táctico o Sr. Thomé cobria a re-
tirada com UBM demenstracio sobre a frente do
inimigo. — « Sendo comigo -^dizía para si — o
jeswta descalçardes e apanho^iii. Seado com ou-^
tso^f se o oonbeQo , deauacio-Os do céu lhe ven
aba O rwiedio; se aio o ceabeco, arahos es-
tamos salves^ Em tedooca^o a charidade começa
per aiis. »
Mais animado com este raciocinío , o aadedor
accQDimodáMi ai p^uca, afinou as oamandulas , e
a^paoiMe da sua. ajb» vulgar e disaimuiâda íhh
pudea(9iaw 0,)esiiita, com um risinho falso, es*-
tava-Of toado por daitro. Era evidante que o par
dre assiatia em espirito ã desaforada ccmiedía ^
que em monologo corria- na abna do milagreiro.
Digitized by VjOOQIC
76 A. MOCIDADE
— « Falia com juiso — respondeu sua paterni-
dade com todo o socego; nem se esperava me-
nos do seu zelo. Quer ouvir os crimes do hypo-
crita e conhecer a arvore pelo fructo ? Ê justa
Felizmente temos aqui as cópias. A Companhia
sabe que os seus inimigos não descançam , e conta
com elles. Está armada! Ora leia á sua von-
tade. »
E o jesuita , metendo a m9o no seio , tirou
um maço grosso, e entregou-o ao Sr. Thomé,
sempre com o riso na bocca; ao mesmo tempo,
disse-Ihe :
— «Sabe lèr, bem sei, e até seus princípios
de grammatica. Sei mais aonde estudou , e quem
foram seus mestres.
-^« Gosto pouco disto — rosnava o devoto
entre dentes: — Este padre sabe de mim pelo
menos a metade do que eu sei , e queira Deus ,
que não saiba tudo. Em íim, veremos! Ha
de correr, como uma lebre, aquelle que me
apanhar. )>
E abriu o maço com algum tremor nos de-
dos. Em quanto i ia, arrepiando as solnrancèlhas
e engolindo em sécco, a vista escrutadora do
padre não perdia o menor dos seus movimentos ;
era uín exame de consciência feito in anima vili
segundo o methodo jesuitico.
Digitized by VjOOQIC
QB D. joie Y. 77
Em substancia resavam os papeis das proeaas
de um Roberto Macário , verdadeáro cavalheiro
de industria ao divino, e famoso mestre na con-
sumada arte de enganar o próximo.
Onofre Crespo,, natural de Évora, e filho de
pães incógnitos , fora rectdbido por caridade em
casa de uma beata viuva, chamada Perpetiui das
Dores. Antes de ser ccMdhecida por hypocrita , a
beata era confessada do padre Simões, lente de
theologia no coUegto dos jesuítas , e engomava
a roupa para aquella piedosa casa. Quando Ono-
fre tinha doze annos entrou nas classes do col-
legio , e estudou latim , lógica , e rethorica. Aos
dezoito principiott a ouvir theologia , e a ajudar
á missa ao seu mestre e protector, o padrê Si-
mões. Parecia o exemplar do perfeito devoto.
Ninguém foliava menos , nem resava tanto , con-
servando-se mais tempo de joelhos e braços er-
guidos. Vqamos como se aperfeiçoaram estas
prendas.
O padre Simões costumava depois do jantar
disiarahir-se com um passeio pela cidade , le-
vando em sua companhia o Sr. Onofre Cre^.
'Uma tarde entrou com elle na loja de cei!to ou-
rives, seu amigo, homem rico e honrado,. e
pozrse a apreçar prata lavrada , até o valor de
cem moedas, tudo objectos diversQS. Era uma
Digitized by VjOOQIC
7S k MoQDkm
«ncomtnenda, e eomo queria servir, regateou, sà«
hindo por fim muito suado e^sem eoneluír o
ajuste i porque desejava saber a vMtade do com*
prador. Fazia vento quando voltaram para o col-
legio, o padre cobstipou-se, e fieou surdo do
defluxo. Três dias depcns^ justamente no dia em
que fazia vinte annos^ o virtuoso Ooofre a|qpaH
receu de manhi na loja para leVar a prata da
parte do jesuíta ^ diiendo ao ourives que fcsse
com elle se queria receber o dinheiro. Ainda
era cedo , e quando entoaram na egrqa , o pah
dre SimOes estava confessando a Sr/ Perpetua.
«Espere um instantinho «^«^ disse o devoto ao
ourives — eu avião o padre mestre. ^
Com eflSeito cbegou-^se a eUe, e em quanto a
penitente começa em jaculatórias espírituaes ,
que atroam a egreja , o Sr. Omrfre absí^can» e
muito chegado ao jesuita profere algumas pahK
vras , que o ourives não percebeu , graças ás ox*-
clamações da beata ; mas que não o inquietaram
em virtude da resposta cb paAr^ , dada muito
alto , como é eostume doa surdos. Viraudo^^e
para elle , o~ confessor disse : « Pois sim ^ sim.
Cerni muito gosto, é mu instantinho «m quanto
avio esta devota e logo lhe' falto, n Depois ftpa-
randano cesto, que o Sr. OMfna tramnamto,
acrescentou ; « Leve^aaie isso fsra o meu quarto^
Digitized by VjOOQIC
BK B. jroÂo V» 79
^ com cuidado. >0 meão Onofre nSo esperou
segunda ardem; n)doii sobre os calcanhares^ e
oabiu immoáiatamente da egreja ^ fatendo a sua
eortecia aos santos com a mais espremida com^
fiunc^o.
Quando a beata se leTantmi para resar a soa
peitttoncia^ o padre Simões, chamando o cre<-
êar^ assooiHfle, saudoo-o com a mSo, e disse:
H ajoeihe e diga o acto de contricçSo » -««-V. pit*
temidade pendoará, mas eu não venho oonfes^*
salame. '^^ « Essa éboa 1 Pois ndo quer que eu o
<Híiça?ik««*^SimSr. ; mas não é do confissão: vim
para receber as ordens do padre mestre. -^
^ Quaes ordens? )» ^*^ AqueUa continha que sabe«
—^ « Não percebo ! V. mertéestèemseojoíao?»
»*«^Por signal em }epim ainda; V* paternidade é
que está distvahido* Fa}Io da prata. . . «^ « Ah !
Foia não ! Desculpe I esta cabeça } Ê negocio feito^
já sabe. Appareça por cá tfsaanhãi cedo, para o
acabarmos. Não quer mais nada?»^**» Beijo as
«fios da V. paternidade. -^ « Nte se esqueça.
Traga a conta e o recibo»-^ vem tudo, pa^
én mestre.
Naqndlo dia faltou ao jesuita o sen andarilho
Onofte; mas nãa lhe deu cuidado ; tinha pedido
Koança para ir a uma romaria, a seis legoas da
distancia da cidade, e juigau-o de viajem. Na
Digitized by VjOOQIC
SO A MOCIDADE
manhft seguinte davam nove horas, é entrava o
ourives pela cella do padre mestre ccmi a sau-
dação usual: — Deus seja nesta casa! — «E o
ajirie a V . mercê ! respondeu o religioso , che-
gando-Ihe um moxo para defronte do maciço
contador de páu santo torneado a que escre-
via. » — Acpii está agora a relação da prata , e
o preço das peças marcado á margem. — «Dé
cá. Assim é que eu gosto. Contas* claras. » —
Agora se V. paternidade quer, vamos conferir o
dinheiro. ^ — « Se o acha certo para que é isso ?
E a prata ? » — Veiu a que o padre mestre man-
dou. — « Pois sim ; mas que é delia ? » — Na-
turalmente está aonde V. paternidade a poz—
rqriicou o ourives rindo. — « Aonde eu a metti ? 1
Está zombando? Pois não me dá a prata e quer
que eu saiba aonde a guardei?» — Não dei a
prata ? — acudio o mercador fazendo-se branco.
Desde hontem aonde está ella senão em po-
der do padre mestre?
— «Não brinque. Falle serio. — «Muito serio
fallo eu. Por signal que Y. paternidade me di^se
que voltasse hoje pelo dinheiro. » — « Pelo dinhei-
ro? Ahiestá outra. Oh, Sr. Irinocencio Pires, não
me faça cahir em scismas ! Pelo amor de Deus !
Pois o rapaz, o Onofre não lhe levou hontem o
dinheiro, seriam oito horas da manhã? Cetn
Digitized by VjOOQIC
DB B. JOÃO r. 81
moedas em dobrões de^oiro, contados pela mi-
nha mão?»
-^ « V. paternidade faila muita verdade^ mas
eu não i^i nerh um ceitií, quanto mais cem moe-
das em dobrões. Quando mandou buscar a pra-:
ta. . .» — «Eu? Não mandei tal! Até lhe pedi
que m'a guardasse! Não leu a minha carta ?)>
-^^ — «Â sua carta? Qual carta? Não me deram
senão este recado hohtem da parte de V. pater-
nidade, que entregasse a prata e fosse logo ao
collegio. O Sr. Onofre depois metteu a prata no
cesto, e eu acompanhei-o á igreja, onde por or-
dem do padre mestre esperei que a devota aca-^
basse a confissão. »
. Um raio fulminava menos o jesuita. Perce-
beu que estava roubado , e roubado duas ve2es.
-: — « Não recebeu o dinheiro ? perguntou convul-
so» » — «Nem cinco réis! E o padre mestre não
tem a prata ? » exclamou o ourives atterrado« —
tdVem uma culher! Meu amigo, estamos rou-
bados, V. mercê na sua prata, e eu no dinheiro
alheio. . . O que é isto?»
£ o jesuita, empurrando com força uns pa-
peis em cima do contador, deu com a vista em
uma carta, fechada^ lacrada , e com sobrescripto
para elle. Abriu-a, leu-a, e roxo de raiva,
pas8ou-a em silencio ao ourives. Este poz os
6
Digitized by VjOOQIC
82 A MOCIDADE
óculos e todo tremulo leu alto o que se se^
gue : »
« Meu respeitável mestre ! V. puternidad^ , e
eu enganamôHM)s um com o outro. Servia-o para
ganhar algum reuiedio para a telhice^ e até hoyè
áffirmo-lhe que não sei a côr do seu dinheiío. .0
padre mesUre suppos que eu me habilitava para
sasto , por isso me poi quadí a jejwn de pSo e
agoa. CÂra o nosso moralista o padre Bauntus,
previu Da Sunma Pecoatwmm^ editio quinên^'^
fug. mihi 213 e 214, esto eaao de coftscieDCia,
aonde dii : « que pôde o servo a quem nko pagam,
«pagarHie por suas mãos, com tanto que lâo
« tire mais do que lhe deverem , settdo pobre e
« desamparado. » Sou pobre , e ainda por cima
«orphao. Cà levo por tanto, s^utndo tio bom
H eoiaselbo , os vinte dobrões e mais a prata no
K valor de duientas Aioedftf . É quanto c^dculo ,
K que devia receber em oito annos de serviço , e
« nSo o (aço caro^ Ficam os calçOes e a roupeta,
4l 4ue V» paternidade me deu « porque bem etêr
a minados , estão uma rede de pardaei. Taadiaft
«deixo a Summa de Baamus, aitidA mareada
« dtãío loeo , mas descanee V. paternidade ^ de^
«eorei-a primeiro. Ajuiio que o padrt mestre
« dará o dinheiro por bem empregado , Vendo o
« frueto da(t doutrinas de um doU melhores Ca«»
Digitized by VjOOQIC
BÈ D. JOÍO V. 83
fc suisúfi da companhia. Com elles protesto vtrer
€( e morrer , dando ao exceliente mestre que m'os
«ennnou^ os parabéns pelo gosto que lhe hade
« cansar o meu exemplo. Se o dinheiro se foi, a
f( gloria da theologia ficou, e ainda assim V. pa-
<c ternidade compra barato. Conto acabar muito
« rico e ir como um foguete direito ao ceu. Re-
f( commeiMle^me a Deus nas suas orações, e seja
« amigo deste seu discípulo , que lhe beija as
«mãos. Benedicite^ padre mestre t Até ao dia
« de juízo. Ti
— «Ah patife, ah hypocrital — gritou o je-
suíta desesperado com o roubo, e sobre tudo com
a citação do padre Bauny , cuja doutrina pouco
mau, ou menos, era a tirrocada peio Sr. Onofre
Crespo. ^( Para isto aqueci a vibora 1 Bem feito 1
Sabe o que elle me disse na igreja ? Que tinha
V, mercê grande devoção de se confessar comi-
go. »'•«*- Perece V. paternidade? A prata não
sthta das attnhas mios se «ão oiço o padre mes-
tre dizer: «leve-a ao meu qcrartotn-^^Mías eu
jttlgaeí quebra a miiiha roupa !-^«Ka<]la; era
a mmha prata. i>«— « V^hacol Pdiidé ! »
Emqoanto os padecentes de^fenam ^ roubo
e tfpeitam as nãOB na cabeça , o devoto por «res
e teátos eiiega?a a Mottte-Mór. Perto <fe vilhi ,
dssmhm de img^ um carefNr^ muito bem mofi-
Digitized by VjOOQIC
84 A MOCIDADB
tado. « Álli está o que me era preciso. Vinha do
ceu um ^ cavallo assim ! » Dizendo isto comsigo
entrou a scismar e apeou-se do macho, que es-
tava no lastimoso estado da mulinha do Palito
Métrico:
« Cortabat fíos almas quicumqae vídenti ! x>
Quando o marchante (era marchante o ho-
mem) se chegou ao pé delle , achou-o â borda
do poço desfeito em lagrimas :
— «Salve-o Deus, que tem V. mercê?»
— « Ah , sr. ,. não me diga nada. »
— « Qual I O que o afflige ? Diga ; desaíTo-
gue ! )>
— «Não tem remédio. Cahiu-me no poço a
imagem de Nossa Senhora. Era de oiro, e não
sei nadar. »
— «É só isso?»
— a Acha pouco? Se não fosse prenda de mi--
nha mãe, não me affligia tanto. Más deu-m^a
ella á hora da morte... ^
' — « Console-se, que ha remédio, homem ! Eu
nado como um peixe e se lhe não tiro a imagem
do fundo do poço, ninguém a tira. Segure-me
o cavallinho , e livre-o de algum couce do ma-
cho , olhe que «lie não se confessa. Está bom.
Cuidado com essas bolças, que não estão vazias !
Digitized by VjOOQIC
DE D. JOÃO V. 88
Sentido ! — Se larga da mão esse demónio saiba
que o não apanha senão em Aldea-Gallega — é
um virote a fugir. »
Dizendo isto o marchante despia-^se na maior
boa fé e deitava-se ao poço. A agua andava funda
e o bocal não se podia alcançar debaixo com a
m^o. Apenas o pobre homem mergulhou , o de-
voto Onofre saltou no cavallo, segurou as bolças,
e enrolando a roupa n^uma trouxa , prendeu-a
á garupa. Depois chegou-se á bpcca do poço e
todo assucarado perguntou para baixo :
— «Está lá?»
— « Cá estou ! » '
— « Deixe-se estar. Ainda não achou ? »
— « Não vejo nada ! »
— « Pois eu já achei. Aonde quer que fique
o cavallo e as bolças ? »
— «Ah ladrão ! Espera ! Aqui de El-rei ! Es-
pera ! »
— «Não enrouqueça sem' precisão. Estánie
aboberando ; fique de gaiola , e dè muitas gra-
ças a Deus, porque não tem grilhão ao pé nem
grade á roda. Sahe fresquinho como uma alface.
Adeus. Saúde. Olhe , o seu fato vae na garupa ,
escusa de procurar por elle ! Para outra vez seja
mais leve em vir ao de cima d^agoa , e menos
fácil em se deitar á bóia. »
Digitized by VjOOQIC
86 A MOCIOAiHi
O triste marcfaaote eêcoajurou-se dentro do
poço uflMifl poucaâ de horas, e o honrado Onofre
não parou senão em Aldéa4iallega , aonde en-
tregou o cavailo quosi arrebentado i díiendo da
parte da sua victima , que a esperassem por todo
o dia seguinte f infaUivelinente* Depois destas
duas proeaas veio para Lisboa , e oonstou que
mudAra de nome, mettendo-«e donato na Pe-
nha de França^ A sr,^ Perpetua das Dores , di-
gna mãe adoptiva deste bom moço, vivia tansH
bem na oârte com elle, e ambos se remediavam,
comendo os ovos da gallinba de ouro apanhada
em Évora e Monte-Mór.
O andader aeabnndo de lér os papeis estava
frio de neve e cuberto de suores. O jesuíta nunca
tinha tirado os olhos de cima delle. Apenas viii
a leitura concluida, estendendo a mão, disse:
-^a Que me dit filho? Tinha génio o hypo-
crita ! Forte pena ! É verdade vamos aos signaes...
esquecel-oft-ia eu? Nada; cá estão. £ esta!...
Ê \k mercê tirado por uma penna. Nem dois ir-
mãos gémeos ? ! Que singularidade ! »
• — « Jesus bento nome de Maria ! V. paterni-
dade att^ra-me ! Isso é engano. »
— <x Esta claro ; o que ha de ser ? Um mero
acaso!... Entretanto é mau. Bem sabe o6 tnoo-
centos , que morreram de uma folsa sinúlhança ,
Digitized by VjOOQIC
DiE D. JOÃO V. 87
por íUwlu) da jui^ttça; dív-se depois, eu cuidei,
eu suppuz, mas o morto não resuscita. Deus
nos livre de inimigos , e de más parecenças , so-
Jire i«do, em devassa aberta, ou em denuncia
ao Santo Officio. »
-^^iíW, paternidade zomba ! aecudiu o devoto
sorrindo cem uma visagem avinagrada. »
«-^ H Falio nwito serio* É peior parecel-o , do
que sèl-^. Nio disse nem digo outra coisa, n
--^ « Corpo Santo do meu Deus l Ê possivel
qua o justo pague pelo peccador? Que sirva de
i^rime a cara a um innocente... »
-^ « Entio I Nnaca ouviu que pela booca morre
0 p^M? Aqui o innocente morre por ter a cara
d^ peccador. Nio se amofine , porém , o bomem
ha de appftf^eaer... »
^^alfas V. paternidade percebe que o nome,
a menor dilTerença de {ei^çÕes... o
'-^^ Vaftia-nos Deus, Thmíé, valba-nos Deus !
Eu percebo , bem v6. Os moralistes são da sua
opinião « e também eu sou ; mas que quer I Se
06 ministros ateim»n , e nio sentenceiam seiúo
pela tonb^aria ! Noto a reconvenção , não preciso
que a faça. Y, mercê defende-se com a diiFe-
reȍa do nome ? Ora muito bem. Mas os juices
bão de responder , e aqui entre nós com sua ra-
sto talvex , que os nomes mudam e as pessoas
Digitized by VjOOQIC
88 A MOCIDADB
iicam ! Terá de justificar , terá de provar , bem
sei que não é nada para ura homem honrado;
que nunca se chamou Onofre, que sempre foi
Thomé. Isto, jâ se vé, é fallar por exemplos,
nada mais. Não se assuste. »
1 — <c É que V. paternidade pinta tanto ao vivo ! »
observou o devoto arripiado como um janeiro.
• — « Ha muito do vivo ao pintado, nâo tenha
receio. Mas parece um laço do demónio. Ora
oiça : são os signaes : n Rosto comprido e olhos
pardos. Um pouco vesgo. » Observe mais, escute !
« Altura ? Um palmo acima da ordinária. » Tal e
qual \ — Thomé encolheu-se. — ►« Côr esverdeada,
tirante a cobre. » — O devoto sentia a cara em
brasa, e julgou-se côr de pimentão. — «Nariz
aquilino e uma verruga na ponta. » O nosso amigo
metteu as unhas a igual verruga para a degolar.
«( Maneiras beatas e um ar no lado esquerdo. »
r — «É mentira — berrou o milagreiro — é
. mentira !-p-* Isto foi geito de nascença.»
— Rmm habemus confitentem ! — disse o pa-
dre de modo que o andador ouvisse ; e mais aho
accrescentou : « Ora pois ! Nelle é um ar, em V.
mercê é que foi um geito de nascença ; pôde
admittir-se. Digo-lhe , porém , que a similhança
é fatal... Occorre-me ajgora ! Temos o remédio
fBio pé de casa. Dè-me um abraço polo que vou
Digitized by VjOOQIC
DE D. JOÃO V. 89
dizer. Sabe que chegou o nosso padre Simões, e
está em S. Roque? Pois é verdade. — Bem- ve-
lhinho , coitado , mas rijo ainda. Quiz assistir aos
«xames. Iremos lá , e elle nos dirá... Tem alguma
coisa, filho?»
' Toda a impudência do irmão das almas soço-
brou com este ultimo golpe. Conheceu que es-
lava dentro do laço e que todos os meios de se
«escapar tinham sido previstos com engenho e as-
túcia superior. Então , mas tarde , entendeu o
conselho salutar do dominico — « que a respeito
dos jesuitas o melhor era fatiar menos , e acau-
-telar-se mais. » A forca e a fogueira já lhe dan-
çavam diante da vista. Sentia o corpo em brasa
e a garganta preza.
Por isso , depondo a dissimulação , deitou-«e
•aos pés do jesuita , que o levantou com benevo-
lência , sem se desarmar do seu sorriso.
— «Pelo que vejo teme que se enganem os
olhos do padre Simões ? Não estranho ; é natu-
ral. Mas que remédio ? V. mercê queixava-se da
heresia e da impiedade; até confundia a nossa
roupeta com os peccadores que a vestem ; um
exemplo é indispensável : magoa-me vêl-o afflicto ;
mas , diga , no meu logar , o que fazia ? »
— « Fui temerário, meu padre, e Deus cas-
trga-^me. Se a justiça sabe estou perdido. . . »
Digitized by VjOOQIC
90 A UOQDADfi
— « Nio O quefQ eng/m^ri aio se pimpite-
Nao «reio, nSo posio Mveditar q«e V. lúerc^
tenb« medo de si a esse ponto. Seja fiMrte $ ani-
menge. (^a pois ! Fallou da companhia sem te-
mor de Deus e sem charidade ctffistST $e o sen
coração Ih^o diz,«~que e«t r<fNÍto, gostei de o
ouvir e acho que faUou muito bem^^«e o fav
coração o accusa , pensa, exoogite coisa do a(^^
viço da <M)mfanbia , em que &«« a rqMsraeio. . .
O mal pagaHse com o bem , ha de t«r ouvido^
atguma ?ez. »
— « CtealA que eu pedeMe, meu padn^! »
— <( Todos podemos a)gima caÍ9a. Ha íniim^
gos, o mal de quem os olo tem; ajudemo^noft
uns aos outros... Siga por este themo » que ha do
acertar. Diga-me ; porque se «Ao ha de p6r uma
pedra em cima do tal roubo de Évora ? Assim
como assim o dinhetno está peidido ; o que lb&
parece ? Deixemoa o homem , e nto se frUe mais
nisso. »
— « Acfao exeellonte , justtssimol >^
— «Previ logo que mereeía a sua approva--
(%o. EatSo, ainda nte achou aada no eapttido
das reparações moraes?»
— ií Meu padre— exclamou o decoto em mm^
-^nio attinjo, nlo descubro, v^
— «Admira! Ora lorne a reieçíir: irâde
Digitized by VjOOQIC
0fi D. ioiov. 91
vag«r. Q adagio dii;: ajuda-me que eu te ajuda-
rei. Temoa iniinii^oa. Ora ae V, mercê podesse,
se y. mercê <|uize8ae , a companhia por exem-
plo resistia melhor aos seus ; e eom os padres de
Jeaus da sua parte o sr. Thomé acbava-ae tam-
bém mata forte; fig4rei a hypothese: agora tice
a condhasSo. Ainda não entende?
-^K Ckmefio a peroebcar, meu padre. »
~-< £sttmo! Vamos ^imamente. Com va:-
dade , responda-me , oio leva uma carta 6 Cal-
cetaria, a casa de Diogo de Mendonça, creio
eu; da parte do padre João. dos Remédios,
de S. Donwgos, ao secretario de estado de
£lrrei nosso senhor? lesho uma idéa con^-
fusa. • . V^a se mo ajuda. Estau perdido de me-
JBorin !..,.)»
— « £ o que V, paternidade diz. Levo-a em
aendo oito horas. »
— <c Óptimo ! Pode-me diaer agora o cami-
Bhot que conta s^uír para casa de Diogo d^
Afendonça 7 »
— Irei por onde V, paternidade quizer. n «
— a Valha-o Deus , homem ! Pois eu quero,
ou peço aytgnma coisa? Se deseja aervtr a com-
panhia , se o seu. ppra^ o accnsa de ter for-
mado juiios temerários a resfieite d^ , digo só
i}ne iria de cpuninliín per Santo Antio, e re-
Digitized by VjOOQIC
92 A MOCIDADE
conciliaTa-me com algum dos padres, comigo
por exemplo , antes de entregar a carta. »
— Mas é ir a Roma para chegar a Paris ,
reverendo padre. »
— « E duvida, por um pedaço mais, ganhar as
indulgências da viagem ? ! . . . Indo pw Hespa-
nha chega mais depressa , é verdade, mas pôde
cahir nas mSos dos inimigos. Indo de volta por
Ualia demoranie, mas chega com certeza. A
paciência, filho, faz prodigios. »
— <i Mas se não levo a carta fechada, se a
entrego aberta. . . »
— « Aberta ou fechada quem fallou da carta ?
depois V. mercê deve notar que ha olhos que
Idem tudo , até por cima do sobscripto. O Sr.
l'homé põe a sua carta , aonde quer ; para tra-
tar primeiro da sua alma; ella é o importante.
Observe que não estou suggerindo traiçSo nem
inconfidência — longe de mim tal idéa. V. mercê
não abre , não mostra , nem lê a carta. Agora
se outro o fizer por interesse ou por curiosidade,
o que temos nós com isso? Non mea culpa ^
acabou-se ! »
— « Irei por Santo Antão, de caminho^ como
V. paternidade aconselha. . . »
— « Observo-lhe que eu não aconselho nada.
Deus me livre. Entenda-mo-nos ! Quem aconse-
Digitized by VjOOQIC
BK B. JOÃO Y. 93
lha parlicipa do acto praticado. . . O que tenho
feito apenas é dizer: «em seu logar, no seu
caso de V. mercê, ia â Calcetaria passando por
Santo Antão. Percebe ? »
— « Percebo de mais , meu padre. »
— «Por onde tenciona voltar? »
*-^« Virei pedir a absolvição á casa professa
de S. Roque. »
— <x Fará muito bem. É preciso tempo, sem-
pre , para se formar uma verdadeira contricção*
Vejo que intende as cousas — havemos de dar-
nos perfeitamente. Ouve? Em chiando matide
chamar logo o padre Simões ; ha de reconcilial-o
com muito gosto. »
— a O padre Simões ! Jesus do ceu ! »
— «Socegue. O nosso querido irmão tem a
vista cançada, não conhece ninguém. Haden)
tractar com muita caridade ! »
— «Posso então ficar certo?»
— « Gertissimo, filho. Tudo bem pensado, estou
pela sua opinião. Deixaremos em paz o Onofre.
Diga-me, sabe de uns papeis da inquisição, que
tinha o padre Fr. João dos Remédios , ha coisa
de dois dias? — Tenho aqui uma nota. . .»
— «Eu verei. Sendo preciso V. paternidade
pôde contar. . . »
— c< Pois nãp conto ! Por ora , não. Veremos
Digitized b^ VjOOQIC
94 A MOCIDADE
depois. Ande, vá com Deus que se fai tarde. Nlo
quero que o nosso padre procurador espere por
minha culpa. Quanto «o tal Onofre Crespo , se
ouvir faltar delle. . . »
— «O que heide feier?»—*- «clamou o de-
voto ainda tremulo*
— K Besar-lhe por alma, filho. Agora me lem-^
bra que falleceu. »
— <cDeus o tenha A sua víatâ?» exclamou o
andador , levantando os olhos ao cen.
E com um sorriso (abo ambos se apartaram
seguindo cada qual para seu lado. O Sr. Tbomé
voltou para S. Domingos ; o jesuíta entrou fira
o seu coUegio.
Digitized by VjOOQIC
CAPITUIéO VI.
O PADU Fr. Joio dos Rettiodios e ò seu amigo
Filippe^ desctodo do dormitório, cingaraiii ao
enueíro» quando o relógio dava oito horas da
mwbft ; ao inéaaio tempo^ ainda tremulo da ri*
aia do lerrivel Onofre CreiBpo, iqppareda o v.
Tknmé das Chagas, do lado de Santo Antto. O
procurador entregou-lhe a carta ^ e o doToto^
depois de beijar a manga , como Judas beijou a
Clôistot Jiartíu dinsito para o cdlegio dos je-
suítas.
*-«« Agora estamos desembaraçados; podemos
ir ^«••diise o doainico ao seu amigo»
Digitized by VjOOQIC
96 A MOCIDADE
— a Fr. João , cada qual é como Deus o fez.
Assim não quero. Sou teimoso i escusas de té
cançar ; nem que me levem arrastado ! »
— « Valha-me Deus , Filippe ! Queres que eu
appareça adiante , e prepare o animo de tua mu-
lhe\?... »
/ — «Quem te pega? Dize-lhe, ouves? que
s/u o maior amigo do heroe elogiado : e não ã
enganas. Tens até licença para fazeres um poema
épico. Anda; põe-te ao fresco; dispõe essa
gente. ...»
— «Só uma coisa te peço , Filippe ; trata o
commendador com respeito. É homem de qua-
lidade, grande sábio, e está costumado a toda
a contemplação : talvez o aches um tanto esqui-
sito ; mas é de excelletite coração. Não ha nin-
guém isempto de defeitos, tu o sabes. »
— « Pois sim , vae socegado. Poremos o coní-
mendador macio que nem um veludo, úão te-
nhas cuidado. Acredita que não me obriga a vi-
rar de bordo com toda a sabedoria ! Ao primeiro
tiro , dísparo-lhe a metralha , e bum ! leva salva
real ; tu verás. »
— -«Deus permitta! Então, daqui a meia
hora ?. . . »
— « Está dito. Daqui a meia hora. Ouve cá.
O commendador é curioso, gosta de raridades ? »
Digitized by VjOOQIC
BE D. JOÃO T. 97
^- <t Foi sempre o seu vicio. »
—^«Famoso homem I E de animaes? Tetiho
uma idéa. Bem ! Dou-lhe um presente de deitar
a mão abaito. Mas é que elle merece-o. Quem
levou para casa minha mulher, e aturou as ver-
duras das raparigas ? Adeus Fr. João. »
O c(Hnmendador Lourenço Telles morava na
rua das Arcas. A sua casa ^ de dois andares , ti-
nha varanda saccada< A parede sahia por cima
da porta ^ abocetada em forma de armário , muito
similhante a algumas, que ainda hoje vemos no
antiquíssimo bairro de Alfama. A rua era menos es-
treita e menos mal assombrada do que as da visi-
nhança ; podia até passar por alegre em vista dei-
las. Lourenço Telles occupava a casa toda ; e em
perto de cinco annos, só três ou quatro vezes
tinha sabido a pagar algumas visitas de cumpri-
mento.
Na sala , aonde ó commendador persistia mais,
rasgavam-se três janellas grandes ; e a claridade
animava-a, entrando â vontade. As paredes eram
forradas de coiro vermelho com lavores de prata ;
a papeleira de pau-santo , lavrada com primor ,
e ornada aos cantos de cabeças de cherubins , e
de columnas torcidas com capiteis floridos, attes-
tavam a opulência do velho erudito. Um escri-
ptorio (secretãiria) precioso de charão , embutido
7
Digitized by VjOOQIC
98 A MOCIDADE
em arabescos chinas , e otnado de afmarios^ de
pinrtas dè espelho, defróate da papeleira, tinha
a gaveta cabida , e Sii6tentá?a uma escrevmiffba
de feitia e dimensOes curiosas. Cadeiras de co^
tas e pés arredados, abertas eaí bellis^tiai fa-
lha, vestiam o aposento; nos assentos repre-
sentavam, em matt2 delicada, algumas scenas
da Eneiada, e os espaldares Variados trata-
vam as mais raras aves do Ganges e do Nilo.
E^an bordadas na A^«, e a perfeição do tra-
balho parecia inimitável As aHas estairtes, lot-
neadaB e entalhada» é capricho, vergavam com
o peso dos volumes. Em tim bofefe, coberto de
damasco, brilhavam duas jairras do Jâp&o, da*
quelle barro transparefttè como vidro, daquelte
axttl e oiro finissimos , Cujo segredo hoje se per-
deu talvez. Duas talhas da índia, grandes e
magestosas, aos cantos da casa, descançavam
sobre leões doirados. As cortinas das janelW, e
os reposteiros das portas, em varetas prateadas,
on^vam as pregas de vistosa tela verde , apsr^
nhadas em cordões de seda, com belotas de
oiro.
A cadeira do commendador era semi-círcular ,
assento de estofo carmesim, costas abertas em
grinaldas de rosas , imitando um açafete de flo-
res; pés de garra, com seu globo nas unhiè*
Digitized by VjOOQIC
Dl ir. JOÃO V. 99
Pèitíi» &htitib te éapríchioso , em ífm a arte se
aDnèâun^com ^ comniodidade. Diante de si um
vi^adcr gnoáe, t&aoiíeiíi de pau-santo^ de pé
taiTsHltf àè passarinhos em ramos de acantho ,
96vm de basca de escrever a Louçenço Telles^
e yimnk em cima deUe varies . livros , um eo^
^ittiete eom arroK coddb , e um pucharo de ge*
leia ««peciaL Ao tado um epatador de pa« da
Iflidiai^^ marebetadb de griphos de madre^rola ,
êim ifMngeê nos péi, sustentava dms pagodes
de marfim e uma curiosa fonte efaineza.
tí ctnpfiieniiadoir devia ter sido ò que se cos-
Uísia^ diíer um iMmitò homem; e, apesar dós
seua ottttta «nos, e dos estragos áà doíonça, a
9fiá veShíce não era repugnante. Os olhos azues
um pouco dflitiagídos de cdr, poeém de uma
kn ainda clara; a pdte branca e r(»ada, posto
çpae cheia de^ rugas ; a bocca fina e pequena ; e
M boa» pKopcxTQSes db corpo ^ dayam^lbe niíuHo
agradaível apparaiicia. As feiçSes regulares e «
af cèseiiufoso, U^ncSam respeito, e não ceos^
Ira&gíam, O sorriso , abrkido a phisionomia , era
jfmkl e^t^bistosa^ porém rara vex irónico. Via-*
sd iiosán^ o^genario o t^po corteisão em toda
a? pureia. Na rcàidade , poucos homens tinham
vúlo o obisrvado mais ó mundo; poajeos o te-
mmf^ ^oímIo tanto, vivendo na sociedade esco*-
Digitized by VjOOQIC
100 A MOCIDADE
Ifaida cÍDcoenta annos, CO01O elle, san eoimnet-*
ter um soUecismo de ceremoníal , ou esquecer «
mais insignificante fbrmali<hde. Nestes pontos
era e fôra sempre o manual da polidez ; e em
toda a parte, por onde yiajou, deixara honrosa
memoria de si. Escravo da moda, Lourenço
Telles parecia o Mathusalem mais namcMrado de
Lisboa. Um moço peralvilho — um frança , como
então se chamavam os petimetres — não o ex-
cedia^ no apuro, que ainda dedicava ás ruina»
da eclipsada elegância.
A cabelleira penteada e lustrada de preciosos
óleos , soltava em toda a frescura dos polvilhos y
sobre os hombros , as bolsas de canudos annel*
lados , a que só dava a sezão devida o calor do
forno. Os çapatos de salto , com tacões verme^
lhos , tinham o verniz transparente , que o gosto
de então exigia imperiosamente. Os topes ou
rosetas de fitas , em vez de fivelas , assentes longe
do peito do pé , disfarçavam a sua grandeza , tor^
nando-o & vista mais breve e airoso. A volta de
cambraietá de rendas era daquellas , que enro-
ladas no pescoço por uma ponta , devia o criado
apertal-as com força para ficarem justas^ e o san-
gue rebentando das faces. Calções estreitos do
corte mais moderno; botões de diamante do»
punhos do camisote; bordadura esplendida na
Digitized by VjOOQIC
BB D. JOXO V. 101
\esiia ; franjõés de oiro no canhão das luvas , es-
quecidas em cima da cadeira ; e roupas de cham-
bre de seda « primavera » , de flores e ramos lar-
gos , soltas por cima do fato , completavam o es-
merado vestido do velho-menino. O chapéu, guar-
necido e apresilhado com primor, estava ao
lado do espadim de copos dourados, e punho
cravejado. A bengala de unicome, de castão
de oiro com sua esmeralda engastada, via-se
ao lado da cadeira. Toda aquella múmia , (por-
que a mag|reza do commendador era extrema)
rescendia aos aromas mais custosos.
Um gato de casta franceza , quasi da espécie ,
hoje chamada « Angora » estava deitado aos seus
pés , branco e assedado como um arminho , in-
dolente e gordo como um sultão ; e enroscava-se
em um coxim , com as patas dobradas debaixo
da cabeça, enrolando o corpo na voluptuosa
curva , que exprime a suprema beatitude da raça
felina. Um dos olhos meio fechado espreitava a
sala, em quanto o outro dormitava piscando-
ae com delicias , como para dizer â restea do sol
que o aquecia: — sou completamente feliz!
Da outra parte , sobre meia columna de no-
gueira , pousada em uma peanha , um papagaio
cabaciava no poleiro ou dava bicadas no come-
doiro , soltando roladas stridulas.
Digitized by VjOOQIC
102 A MPCfBADIS
De vet: «m quando ^ Lourenço Tie&s 4ay« uo^
cidber de arroz ao Liado, e podia-lhe o jpé, ior
teitomiMeiído pwa isso a mais iateiasaaote kih
tora ; oa deixava engulir uma aop* de gdef a ao
gato , com eminente riwo de uma Carpa wb •cal-
ções, Ott na mm de seda c6r de rosa. Oque se
notara neste velho singular , era a g^niça inusíta ,
que lhe realçava as acçOes, ainda as mm rídi-
eulâs. Era a naturalidade e o ar de grandeza,
que reve&tiam este mixto de ancião e de mancebo,
fallaado de erudição como um sábio, discor-
rendo como um pbilosopho « e figurando oomo
peralvilho impenitente!
Em cima do v^d(»* estavam abertas mttilas
cartas com as assignatunis de D. Lim da Cu-
nha, do conde de Tarouca, e de Diogo de
Mendonça , provando que ^a activa a w» cor-
respondência com estes homens raiinentes^ Pa-
peis de versos em francez e castelhano , as obras
de Tácito e de VirgiliQ, o Orlando do Ârioâtos
e as tragedias de Pedro CorneiUe , encaderpadas
em veludo , a par do livro de Horácio , aberto
e sublinhado quasi em cada verso, attestavam
que lhe era familiar a conversa^ das musas an-
tigas e modernas.
O commendad<>r não estava só ; faria-Jhe com-
panhia um homem alto e delgado, dq presença
Digitized by VjOOQIC
D£ P. JOÃO V. 103
geatil , e tracto ma3fÂ>so. A cabeça deste Qào se
ornaya dos faUes massacrôcos de canudos, que
se enrolavam pelos homhros de Lourenço Telles ;
entradas grandes em uma testa elevada e calva ^
da mais beUa expressão ; a pelle íiua , e oor de
rosa desbotado; o rosto comprido sobre o oval, os
olhos ras^idos e cheios de animação ; e uma bocca
pequena e séria , com soíFriveis dentes , c<Hnpu-
nhaiB aquella profunda , clerical, e sareaa phi-
sioncmaía , capaz de inspirar um excellente pai-
nel de S. João Cbrisostomo. Os gestos do per-
sonagem eram graves e compassados ; o riso dis-
creto; as palavras poucas e pesadas a minutos.
A estatura arquea^a'-«e alguma coisa , como é de
uso nos erudUos; o corpo, apesar de magro,
tinha certa elegância ; as tíbias extensas e nada
grossas tornavam-lfae as passada3 longas e ma-
geatosas. Vestia sempre cdres escuras ; e o talhe
«neio secular e meio profano tího desmentia a
g;ravidade da poesia. A bengala de castão de
porcdana japonett , de £sitio exótico , servia-lhe
«ai» de taboleta , que de encosto ; assim como
ia antiquíssimo annel egypcio , de um só rubkn,
mettido no dedo à maneira episcopal , jera os-
tentado com estudado dcisleixo. Sinetes de cama-
feus, em vidrilkos pretos, pendiam dos dois re-
Í6J06 que trazia. Este uniforme sçientiSco-^irda-
Digitized by VjOOQIC
104 A MOCIDADE
ticio, tinha a vantagem de poder figurar a<i9
crédulos, que o sábio era pelo menos um bispo
in partibus infidelium. Toques originalíssimos no
gesto solemne , e na contracção mimica do rosto ,
completavam este retrato. A caixa de oiro oval ^
de tampa lavrada, abria-^e lentamente, e le*
vantava o sabor das citações ao oráculo com a
clássica pitada.
Esta figura agradável , e nada antipathica , íat-
zia*se chamar o abbade SiWa, posto que muitos
lhe negassem a abbadia , e que outros maliciosos
jurassem que nem ordens sacras tinha. O abbade
honrava as casas dos fidalgos de frequentes visitas;
e servia de conselheiro aulico aos seus illustres ami-
gos nos casos intrincados. Com as senhoras dócil
e sociável a ponto de se lhe prestar como escu-
deiro servente ; umas vezes, oh excesso de civili-
dade ! qual ama carinhosa , levando os cachorri-
nhos de fralda nos braços ; outras , feito estribeiro
ou volantim, e sustendo na fuga a hacanea valida ás
delicadas clientes. Finalmente senhor dos segre-
dos de toucador, e modista masculina , compondo
â franceza ou á alemã esses empinados toucados,
cujas grimpas foram as delicias de nossos avós.
Génio universal a arte poética e a arte da cosi-
nha, os tractados scientificos e os roteiros de
bailes e festejos eram versados por elle com
Digitized by VjOOQIC
DE D. JOAÓ V. lOK
m&o diurna. NHo admira , pois , que esta utili-
dade huniana , <;ujotbeatro era a boa companhia ,
tivesse de mais ainda a rara prenda de ser
para os estudiosos itm archivo ambulante de no*
ticia& microscópicas, um catalogo etèrrio de
supposto$ manuscriptos , que se dignava conde-
corar de títulos imaginários. O erudito cobria a
nudez do espirito e a pobreza do sizo com a Sua
dignidade perpendicular ; e affectava a sciencia
infusa , esbrugando as pbrases e deixando-as ca-
fair a uma e uma como pérolas. Era auctor de
cinco tractaditos notáveis pela magreza do texto
e bydropica inchação das notas, e ainda mõis
peia exquisitice dos assumptos.
No primeiro , confessou que dez annos cavara
os minas históricas até averiguar , se acaso certo
viso-rei da índia monreu ou nâo de bexigas doi-
das ! No segundo , (a obra prima) doze ânuos
consumiu em apurar a natureza do milagre, que
despegou as pernas a AfFonso Henriques. E para
eterna gloria da sua época ^ descobriu um perga-
minho cheio de nódoas , que era (dizia elle) uma
doação authentíca toda do punho do conquista-
dor de Lisboa « de mui buena letira » em que
se declarava ter sua mercê ElHrei sido curado pela
virtude da famosa receita da podrága, achada
na caveira de Santo Thyrso pelo seu ayo Egas Mo-
Digitized by VjOOQIC
106 A M0C1I)A{>í;
niz. No terceiro ofHisciite (coisa sublime!) ebe-
gou a reunir mm eollec^ de máximas autho^
grapbas de todos os reisdePif^tugal, eomecando
em Luso e Aludis , e acabando em D. Joio IV,
com a qual vingou os reaesgarafonhos do egqtie-
cimento calygraphieo. Fínafanenle, as paginas
mais variadas da sua penna eram sem queatio
duas memorias consagradas a provar que as bar-
bas de D. João de €astro entraram ruivas quando
as empenhou em Goa , e sahiram pretas quaado
as resgatou. Cinco pc^inas de lexto, em cada
uma^ locupletadas com setenta pagiaas de nolas
enchiam de erudiçio este ensaio capillar; só a
venda avulsa rendeu para o eacriptor chflffidoso
vestir seis orphSos de ambos os seicos.
O ccrnimendador e o alAade conversavam havia
tempo de obras clássicas e de estylos litteraiios. O
Aristarcho ecckjsiastíeo opinava a favor dos mo-
dwnos, o enidito seeular defendia a sabia anti-
guidade. Ambos revolviam nomes, datas, e tí-
tulos de livros , com a &ciUdade do anatómico
estudando i» anima vUu
— « Sustento !**<- exclamou o oenuosendador
— Alnram Tácito» e verão. Nenhum moderno era
capaz de oserever assim» Dou o meUtor diâoiante
se apparecer exemplo. »
-«-<c Ah, commendador, e a jpoesía ? Fa-
Digitized by VjOOQIC
^ftp.jolojy. 407
4a )i9ia «Off^Çte a fàmc d^ Arjosto, o divií-
no?»
*^/c< ^ísíMq^ asteB d^Ariosto ei^tâtiu Apuleo !
(AtítB$ do Ortoado houvç o Burro de Oiro. —
T^^ta de piftturas livi«6 , de phantasias vivas ?
Âbi. as i^eba» 0^ ^noderoos não o excedem. »
Observando isto LoiBsnço Telles sorvia com
ddiiciaa' uma pitada , e fechando a caixa , cuja
«t^mpa representava unia Veuus «m admirável
nadez , deu na tira da camisa dois piparotespara
•acudir o tabaco.
— r f( Nenhum dos modernos , — continuou elle
4^pois-T « nei4imi9t disse com un^ pfarase o que
Tácito insinua quando quer. Por exemplo : « ipm
etíam pwíe $wmm ! » «Era cmel até na paz ! »
— Meu amigo hoje ha outras glorias « mas em
historia ^ cof^ abnubei Esconda-se o rosto ! Os
Tácitos e os Polybios nao se repetem, a
— ^xc Mas a clareza, passando, por Tácito , faz-se
obscura como a noite? — sugeriu o padre.
-r* « jDitos escbolasticos ! Não o conhece quem
quer, é verdade; mas conversado com famili^
ridade percebe-^ iogo. » Acudiu o erudito esfre-
^ndo as mios cem velocidade.
rr-^Q qiãe é defeito., hade concordar— ^prqh
seguiu o abbade pouco lisongeado da e^e^ç^o
(le TnSuQsdo seu amigp.(«)rí-lieRd^ra-6^ da Ho-
Digitized by VjOOQIC
108 A tfOCIOÀM
Tacio? Â brevidade topna-meiibíKno? Bré-
vis esse laboro obscurus fio ?
— « Parece-lhe então Horácio claro? Pois eu
não acho ; e lido com elle todos os dias. Veja a
Ode Cur me quereUs eúcanimas tuis ! o poeta jura
ser inseparável de Mecenas até na morte. . . )»
— «Jurou falso! — interrompeu o ecclesias-
tico , rindo estrepitosamente. Mecenas se espe-
rou o amigo inseparável , fez muito mal. . . »
— « Perdoe 1 Calumnia Horácio : Non egoper-
fidum dixi sacramentum / E é verdade. Não pro-
nunciou voto perjuro. Para eterno lucto das Mu-
sas , seguiu o seu carpere iter comités parcui ;
morreu no mesmo anno. »
— «É a versão vulgar, atalhou com um sor-
riso vaidoso o critico abbacial. — Mas os homens
doutos , Sr. Lourenço Telles , separamnse do vulgo
servil dos commentadores. Em um manúscrípto
raríssimo , que achei na Bibliotheca do Duque,
enriquecido de preciosas notas de Petrarcha ,
o erudito, descubri a verdadeira data da sua
morte. »
— « Abbade , está bem certo de que o viu ?
— perguntou o commendador com ironia. -*—
Pôde saber-se o titulo desse prodigio , se existe
o titulo?»
— « Amanhã » Vi 6 manuscripto , Sr. Lou-
Digitized by VjOOQIC
BB D. JOÃO V. 109
renfio Telles. Digo^lhe que o vi»» — respondeu
o ecclesiastico , corando e balbuciando.
— « Pois , Sr. abbade , Já nao é pouco ; parece-
me que ninguém mais o tornará a vér. A mim
bojo basta-me isto. Obiit HoratÍMs q^rmo cetcais
£9^ 0odem qua Mecenas, O que significa: Ho-
rácio morreu de 39 annos de idade ^ no mesmo
aonó, em que falleceu Mecenas, £ o que dizem
todos, até nova ordem do seu manuscripto ima-
gtni^o* Será modesto mas é verdadeiro. »
-^«Imaginário? — exclamou o abbade al^
çando a dextra com dignidade — « imaginário !
Sr. Lourenço Telles, louvado Deus, sei latim e
agradeço-lhe a traducção infantil , com que me
regalou. Quanto ao Petrarcha, elle e eu rimo-
QO» da simplicidade dos remendões de livros que
são o seu Evangelho, n
' —«Linda imagem! Pois não! O Sr. abbade
jfn não pôde acompanhar senão com Petrarcha
para se rir da minha simplicidade. Exceljente!
Man áabe uma cotSa? O seu manuscripto aposto
que existe na lua, aonde pára aquelle famoso li-
vro dos Paiões , que me fez procurar três mezes
e que teve a crueldade de imputar ao pobre
Garcia de Resende, que Deus tem em santa
glorit?)!
— «Quem não vè, não acha ~- respondeu o
Digitized by VjOOQIC
IICÍ A ]|fÕaDAl5E *
ecciesiasliéa em ár de moift.— -O St. commeni^
dador entende mais de cortetia9 e meminig, áú^
que de antigas leftras. >v ~ -
— « Non e§o offmdartmgiê! ih fUpstatWíOm
me tocam. — exclamou Lourenço Telks eémoé
olhosjscintilfoiítes. -^ Conbeço^me I Oxalá ifúà
outros íhíessmt o mesiíio! »
— «C^ modéstia rara ! » — atailiMa abbaéc»
com indignação. r
— <iDe certo — prosegttíu o erudito cwn as
faces acesas— mas graças a Bei» aindai^ nS»-6%
o ridiculo papei de muita gente , tradusiida ow^
tintanui Gias , por Gias de ittio na dntiv. » .
— <cÉ fabo!)»^^ gritou o abbide dando um
pulo.
-^«Não se agoniei falio de um panro, nfio
fallo de um sábio da sua reputação. O sócio ás
Petrarehat. . iv-^-Loorenço T^es aqui abei-
lou a cabeça com malicia , e riuHie alto e imito,
tempo.
— «A alhisflk) errou o aho!*«^«« bradou 4^
reverendo critico fulo de de raita.
^— «Nío me parece!»^— respondeu ó neB»
liecamettte.
-^<*8r. Lourenço Telles.»-— continuou' o ièn
bade — c( saiba que despreso as satyras^^^^-que
thé cothppdéço dòs satjirícosv»
Digitized by VjOOQIC
DB D. jaÃOV. 111
•4^aFai tíoito hoDkl Bfto^e B^iiãa face, t
ofièrece a outra. [Que mais?»
•^«Qtte ]iiab?)»-^prosegiMii o «cleiiaslico
recmàtateBào com a sondiaria pco^oesdon do
velho sábio. — <(N8o ignoro ^ que a velfake é
eoduca e imetiL 9
-^n Obrigadbstmo lJ«o é tio fafeo como gros-
seira CoBttBue!»
-^«SÍDi 9r«^ contíiim. £ sendo , poueo ad-
mira q«e o vento da vaidade entre na cabeça
ouça de algumas múmias , e sussurre lá por denr
too. Ê disto que proeede hcrer tanto sábio iné-
dito^ tanta sangaesuga de cHafOesI. . A plebe
dos aoctores posthumos é maior do que a plebe
de Atb^ias, que vendia o voto. . • »
— «Pare um momento, abbade, deixe-me
extasiar 1 Nunca houve retrato nais parecido:
dou-lhe 09 parabéns ! »— Disoado isto Louienço
Telles esteva roxo de ehoferay tinha-se encos*
tado á soa muleta , e tomava rapé a miúdo e
com soífireguid&o , indicio vehemente do furacão
que o revolvia — « Olhe nfto falta é sw maravilha
sODfo um rotulo ^ — proseguiu exaltado. — a Po-
nha-4he o nome do indigesto collector de potra^
nhãs, do inimigo jurado da verdade e da rasão, e
diga affi^to: Eece homo l kqá está o alarve ! Per-
doe a traducç&a livre. De certo, qoem inventou as
Digitized by VjOOQIC
112 A MOCIOADS
garatujas latinas dos xeis Luso e Âbidis, e teve
o despejo de aífrontar a seriedade publica attri-"
buindo a uma caveiraa cura das pernas de Aifonso
Henriques , quem fei isto sem lhe cabírem as
faces no chão, está julgado I »
— a Não me altera com a invectiva ! )>«—ac-
-cudiu o abbade rangendo os dentes. — a Estou se-
reno, rio-me, vejal » — De feito quizrir-^et po-
rém o esforço heróico, malogrourse^ e sahiu-lbê
uma ejaculação, que era o meio tcsmo entre um
Irouxo de choro e um espirro.
— a Deixe a capa de Gesar, abbade I » -^ex-
clamou o implacável commendador. w-^Não se
ria assim, que fai dó« Sirvft-lhe isto de lição para
se expor menos de outra vez. Não fallo da carta
authentica de Affonso I , isso é abaixo da cri-
tica* São romances, que em o sr. morrendo nin-
guém faz, como ninguém os tinha feito antes . .>.
Á propósito I apuremos bem a moléstia do Viso-
Rei. Animo ! Olhe que ha muita gente boa ca-
paz de morrer de bexigas doidas. »
«— « A baba de um Bavio não deslustrou as
paginas de Ennio 1 » disse o ecciesiastico repol-
treando^se, branco-de cera , e cruzando a perna
com indiiferença olympica.
— « Julga ? II ^<" perguntou o velho erudito com
escarneo. » -^ O Sr. abbade é nm poço de sciencia.
Digitized by VjOOQIC
M D, ;roAO r. 113
toertence jáem vida â posteridade. Salve modesto
Enmol p
— « Compadeço-me da sua ignoitméia. » —
acudiu o abhade com a voz cava e irritada — «O
Sr. D. Affonso Henriques, filho da rainha D.
Thereza. . .
— » « E do Conde D- Henriqiie; * * » ^—-ajuntou
Loutenío íclles, rindo.
. -*_ a Neto do rei de Castelia. . . » — continuou
o ecciesiastico.
— « Justo ! Neto de seus avóft ? Pelo amor de
Deus; não me recite uma das suas notas im-
mortaes. »
' <^— « Chamado pdlos contemporâneos o (7on-
quistador, . . »
— ■' « Pelo contemporâneo Faria e Sousa ? Ora
ãideus l Querem vér que lhe achou a lettra coxiu)
lhe desettbriu o rétralo? ;
-r— « Nèorae confundeni as interrupções, es-
teja certo. Continuarei. Soube escrever como uni
clérigo. » '
— a Comme um clerc! Francez puro. Bellis-
simo! Ê digno da veracidade caligraphica de
Luso e Abidis In
: — ■' « Repito-lhe^ a sua ignorância é lastimosa ! »
—-acudiu 6 abbade aceso em vivissimas cores e
com «ma aiir<Mra boreal a invadir-lhe a calva.
Digitized by VjOOQIC
114 A MOCIl^AMI
— tf Tem rasão. Sem ella nSo se escreríft um
livro sobre as barbas de D.^ João de Castro. »
— <c As barbas são históricas ! »
— «As barbas sim , mas a cdr nSro, Porque
omittiu o barbeiro que as ôortou? A posteri-
dade deria conhecel-o. Tenha paciência ! Não
nos deixe a historia cdxa á falta desta perua es-
pecial. »
— tf Escarneça, zombe dos heroes* Iffetta a
ridiculo as glorias pátrias. »
— tf Río-me da miséria da apologia. »
-^ tf Os morcegos do Parnaso esfMintani-se da
novidade. . . »
— tf Fazem peíor; mordem-se de ínvqa, dih-
bade! »
— tf As grafitas honramnie nSo puUíeando
nada. »
— tf Se os papagaios abocanham tudb l »
Estava neste grau de amenidade a dii^puta, e
efaammejavam os olhos dos dois athletas ^ cpiando
Jasmin, o escudeiro do commendador, ousou
devassar o tear de Penélope , com o recado de
Filippe da Gama , que ba^a á porta durante o
conflicto dos eruditos. O padre mestre Remédios
tinha prevenida Lourenço Telles da visita do seu
amigo , e por isso era já esperado. A próxima
enjtrada de um estranho lembrou aos beJlig^aii<-
Digitized by VjOOQIC
M D. JOÃO V. 115
tes clássicos o famoso : Quos ego ! . . Sed motus
prmtat componere fluctus. »
Olharam, pois, um para o outro com indi-
zível expressão, e a um tempo correram a mão
pela testa; enchugaram a bocca com o lenço
almiscarado , e de repente deram á phisionomia
a serenidade , que muitas vezes cobre o maior
ódio , servindo de mascara aos bons actores na
sociedade culta. Depois Lourenço Telles, sen-
tou-se, engatilhou o rosto em um sorriso obse-
quioso ; consultou um espelhinho oval e doirado,
que tinha ao pé de si ; e acbando-se irreprehen-
sivel no semblante e no vestido, ordenou a Jas-
min que fizesse entrar o capitão , prcparando-se
para o receber com a graça primorosa da sua
experimentada pòlide?.
Digitized by CjOOQIC
Digitized by VjOOQIC
CAPITULO VIL
tUSSES ABRAÇA PENÉLOPE !
O domínico tinha dito ao commendador , que
Filippe era recem-chegado da índia e amigo ve-
lho do marido da senhora ; acrescentando que
trazia duas excellentes noticias , consistindo a pri-
meira em sér falsa a sua morte , e a segunda em
que o deveriam esperar por todo o mez na volta
da náu de viajem , que estava a chegar. Execu-
tando as instrucçôes recebidas , o padre preparou
o animo de Lourenço Telles para sopportar como
christào a entrada de seií sobrinho. Em quanto
os dois antiquários se feriam no seu pugilato lit-
terario Fr. João passou^ ao interior da casa e prip-
Digitized by VjOOQIC
118 A MOaDADS
cipiou a confortar a sr.* Magdalena da Gama
para a dispor a resistir à alegria repentina da
boa nova , que vinha annunciar-Ihe.
Assim precedido pelo seu embaixador , Filippe
apresentou-se no Sancta Sanctorum do sabio la-
tinista , devidamente annunciado pelo cartaz. En-
tre portas , o capitão da índia , com o tremendo
chapeo de três quinas arvorado na mão , incli-
nou-se , piscou os olhos como se lhos assombrasse
o sol , e com o balanço de corpo , característico
dos embarcadiços , decidiu-se a introduzir a sua
pessoa sem maiores preâmbulos. O commendador
aberto de phisionomia, affavel e obsequioso , pou-
sou as mãos no maciço velador , levantou-se al-
gum tanto firmado n'ellas, e fez-lhe uma pro-
funda cortezia. O abbade regis ad exemplum em-
punhou a bengala, e appoiado no seu castão,
elevou-se â altura requerida, abaixou a cabeça
as linhas precisas , e tornou a cahir lento e so-
lemne no assento da cadeira.
Filippe da Gama tinha promettido ao reli-
gioso , seu amigo , duas coisas pouco fáceis : —
luctar com a erudição do commendador , e dei-
xal-o encantado. Com a sinceridade desabrida ,
e o génio inflamável, que lhe conhecemos, a
tentação do marido da sr,* Magdalena sobre o
seu erudito parente, deyia exceder as forças do
Digitized by VjOOQIC
^ B. JOÀO V. 119
tentador. Dos bons estudos , que tinha cursado ,
. o nosso capitão apenas retinha de memoria os
farrapo^ dos «artapacios e esses mesmos não os
entendia. Quanto á cultura e delicadeza das ma-
neiras^ em eonílicto com o primoroso Lourenço
Telles, o digno Sindabd portuguez o que podia fa-
zer senão serzir alguma lentejoula mareada ás
felpudas amabilidades do marujo e do soldado,
formado nas pragas do convez, e doutorado na
aschola do sertão?
O capitão empregou a meia hora de espera,
eoncedida ao padre seii amigo , em engenhar o
plano de operações para casa do tio sábio; em
coJligir o drama, da sua vida ; e aproximar o de-
senlace ^ a peripécia fínal , em que devia dizer
o : « coaheces-me » de rigor , nos braços da es-
posa. Â par da importância do assumpto. não se
esqueceu da beliscar a memoria e de vilicar o
cérebro para obter o sacrifício de três phrases de
Cícero , e de uma sentença moral , bagagem scien-
tifíca bem leve, mas a seu ver sufliciente. De-
pois de armado dos pós até á cabeça, na sua
opinião , levantou a aldraba , e com grande con-
fiança deu entrada na sala achando-se em pre-
sença dos Âristarchos , ainda ensanguentados da
discussão horaciana.
-^«tFaz íavor de entear !>> — acudiu logo a
Digitized by VjOOQIC
120 A MOCÍ0ABB
obsequioso cotnmendador. — « Queira desculpar
se recebo tanta honra assentado, mas estou preso
por ordem de quem pôde : « — acrescentou com
um surriso amargoso. — «O sr. abbade Silva,
meu amigo , fará as minhas vezes. Então vem
cançado ? Está suado ? O seu ohapeo incom-^
moda-o !
— « Nem cançado , nem suado , muito agra-r
decido. Tenho andado milhares de legoa» pelo
sertão , sem me virem os bofes á bocea ; quanto
mais com duas passadas do Rocio aqui ; eu não
costumo suar no inverno com frio. Irra ! está de
fazer da gente caramellos ! »
— « Vé-se que o sr. viajou muito no sertão ! »
— ^suggeriu o abbàde forcejando de balde por de-
sapossar Filippe do chapeo casquete. Isto passa^
va-se ainda ao pé da porta da entrada. De re-
pente o capitão resolvido a entrar em batalha,
e um pouco agoniado pela requintada polidez
dos dois eruditos , sacudiu o pescoço , carregou o
sobr'olho , enxotou o abbade com a mão sem ne-
nhuma ceremonia , e dizendo comsigo : — « vou
deixal-o embaçado ! » — dirigiu ao commenda-
dor a seguinte phrase de Cicero ; — « Meam erga
U benevolentium fctcile pajiciesl '
* Facilmente verás a benevolência que me inspi'
Digitized by VjOOQIC
DB D. JOÃO V. ISi
Aa mesmo tempo arrefnètlia á cadeira de Lou-
renço Telles , cuja vista extática exprimia o maior
espanto , diante da vehemencia , e da crueza sa-
piente do seu hospede. O abbade Silva , enco-
lhendo os hombros , tornou a sentar-se , tocando
cravo por distracção sobre o castão japonez da
apparatosa bengala.
Entretanto o'commendador, citado em latim,
julgou da sua honra , acudir á lingua sabia no
estilo de Cicero : — « Mi/ii in vestris commodls
migendis grata animi bmevolentia defectura non
est. » *
O erudito pronunciava cada palavra com o ri-
gor , e o perfume" clássico do amador entendido.
Todavia comsígo murmurava : ~ u Que espécie
de homem será este ? »
Por desgraça , Filjppe da Gama , segundo no-
tamos, tinha o ouvido latino muito surdo; repe-
tia de c6r, e nem percebeu o que disse nem o
que lhe responderam. Por isso, em quanto o
douto interlocutor se banhava na pura latinidade ,
O capitão, perdendo os arções do primeiro bote,
ras. Filippe estropia o latim, dizendo: perjicies em
legar de perspicies.
• Tenho o maior desejo de vos ser cm tudo agra-
dável.
Digitized by VjOOQIC
122 A MOCIDíílDB
valeuHse dos caxorros da |H*oa , % segundo tinha
protestado ao frade , disparou ao acaso outra baila
. rasa. — <x Qucero cur tam suUto mansus est ? » *'
Lourenço Telles deu um pulo , e chegou para
si a campainha de prata, para esconjurar as si-
labadas e os erros que lhe escorcharam os ouvi-
dos. O despropósito era flagrante. Quanto ao ab-
bade, levantou os olhos ao céu; desencruzou as
.extensas pernas, e aproximou o chapeo de bor-
las verdes. Ambos se julgaram em presença de
uni maníaco. — « Medoro torce il nazo ! » — acu-
diu o auctor do Opúsculo sobre as bexigas do
Viso-Rei.
O capitão lanhava o latim, mas de italiano,
percebia alguma coisa, assim como de inglez e
bespanhol , em virtude da f ua intimidade com os
negociantes destas nações.- Sem demora deitou ao
abbade um olhar mortifero, e voltando-se mais
<para elle, chapou-lhe muito serio a memorável
.sentença:
, «Bellum est sua vitia nosse! >
Um salto do compilador de notas , o risito
amarelo do commendador ao epigramma clássico,
• Pergunto, qual é o motivo, porque tão de
repente amançasle ? Filippe estropia a phrase , di-
zendo mansus est em vez de tnamuetiis fu^ii!
Digitized by VjOOQIC
BB D. JOÃO V. 123
e um mio stridulo do gato valido , formaram am
accordo perfeito, depois da valente citação.
FiUppe, obedecendo aos repetidos signaes de
Lourenço Telles tinha arrastado um tamborete ,
e' .procurando a melhor posição , não reparoqi ,
que um dos pés ameaçava a cauda de Mtnete. Ao
sentar-se cahiu em peso sobre ella, e arrancou
ao mart^rísado gato os Isunentos , que retalhavam
o coração do sábio commendador. Este desespe-
rado , agitou-se fazendo por sorrhr , consolando a
victima com sopas de geleia , e dizendo ao mesmo
tempo com muito agrado ao seu hospede : — « Não
é nada! Agradeço infinitamente o seu incom-
modo ! Toma um copo de vinho , uma culbet de
doce? Se me fizesse o obsequio de se chegar
mais. « • estou um pouco surdo. »
Era um meio delicado de salvar o gato de se-
^ndo encontro; porém o raio foi cahir mais
longe. Ainda não tinha dito estas palavras já
uma espécie de terremoto abalava a columna na
sua peanha , sacudia a gaiola , e derrubava o pa-
pagjãio de cabeça para baixo, dançando, sus-
penso no grilhão, entre gritos agudissimos. Fi-
lippe voltou-se admirado , ao passo que Lourenço
Telles , branco e convulso , exclamava — « Santa
Barbara ! » — precipitando-se em soccorro do pa-
pagaio. Chegou tarde "porém ; a mão nervosa do
Digitized by CjOOQIC
12Í A MOaDADB
capifSo já empolgava a ave pela cabeça , e a re^
punha no poleiro , mais magoada do soccorro do
que da queda.
— « Pelo que vejo o sr. commendador é amigo
de brutos?» — perguntou Filippe limpando a
língua aos cantos da bocca, e introduzindo a
furto um rebuçado de tabaco.
— «Sim, Sr., sou curioso» — replicou o
velho com certa finura irónica. — «Jà creeí
quatro cães , oito gatos , e três papagaios. Mi-^
nete, que vè , é bisneto da « Sultana » que trouxe
de França na minha ultima viajem. Estou com
muita penai Morreu o meu sauguim de uma
cólica de uvas. ...»
— «Sào animaes friorentos! Sabe, este seu
papagaio não é feio. Falia bem ? »
— « Ensinei-o eu ! »
— « Pois , Sr. , se o apanhasse no Brazil ,
quando fui á rossa em Minas Geraes. . . .
— « Não o deixava escapar ? . . . »
— « Está brincando ! Sal , pimenta , e espeto
com elle ! olhe que é um bocado saboroso. »
— «O Sr. come papagaios ? »— • acudiu o Com-r
mendador espavorido , e abanando as mãos para
chamar o sangue ás extremidades.
— «Como, sim Sr.^ e também macacos*
Digo-lhe que sâo gostosos. Parecem mesmo
Digitized by VjOOQIC
DE D. JOÃO y. 12$
creanças assadas!» — E Filippe ria-se com vi-
isivel sati^façad^
— « Que homem ! » — disse o abbade recuando
a cadeira, em quanto os olhos azues do seu
amigo se espantavam com terror.
— (( E se nos nao devora , nio é por sua
culpa l » acerescentou Lourenço Telles , sorrindo
contrafeito.
O capitão estava tão contente que julgou ma-
gnifica a sensação causada pelas suas opiniões
quasi antropophagaS.
— «É verdade. » — continuou com certo or-
gulho— «Prefiro o papagaio. É carne verme-
lha, aromática, e saborosa, Quero ensinar a
cosínhal-o. Supponha o sr. conmiendador , que
matanws este. Agarram-se-lhe as azas. . * . »
Aqui a acção ia ' seguir a palavra ^ quando
Lourenço Telles seriamente assustado lhe sus-
pendeu docemente o braço , dizendo :
— « Entã^, o Sr. pretende comer o meu pa-
pagaio?»
— (<Nada, por ora não. Era dar idéa, . • ♦ »
— «Mas eu não gosto de idéas; digo, não
gosto de guizados exóticos. »
— « São scismas. Tudo vaô do costume. Na
America , por exemplo , quando me doiram carne
de cobira a primeira vez, qual! nem á mão de
Digitized by VjOOQIC
126 A HoaDAns
Deas padre. Depois chachava nella como rebu-
çado ! »
— « Cobras ! Também come serpentes ! » mur-
mnroa o commendador quasí parvo de nojo.
— «O congro nSo é tao bom. Pois o la-
garto? Delicioso ! Branco e tenro como frango. »
— « Este homem , se entra na arca de Noé
nSo deixa senão os ossos!» — rosnava o abbade
abismado. Lourenço TeHes torcia-se como um
parafoso , e a custo reprimia o que lhe vinha á
bocca. Vendo os olhos do hospede fitos no gato
com certa complacência , disse-lhe rindo de um
riso forçado :
— « Ia apostar , que também me diz que não
desgosta de gato ^ e que é bom ? »
— ^ « De certo. Parece lebre. E em mojangé :
asseguro-lhe que se grita por mais. »
— « S^il a le comr aussi ãur que la tête^ fio\íi
sommes perdus ! w ' observou o Commandante ao
abbade , que respondeu com um gesto de acquies-
cencia. E tocando a campainha com força , vi-
rando-se para Filippe , disse :
— <fVou mandar chamar a senhora. Ha de
tòtar anciosa de o vêr. »
* Se o coração do homem é duro , como a ca-
beça, estamos perdidos.
Digitized by VjOOQIC
DK D- Joio ▼. 127
— Estou &s ordens do sr. commendador. »
A cortezía refinada do erudito penava a fogo
lento. A entrada abrupta do capitão, o sen la-
tim salpicado , e. as violências commettidas con-
tra o gato e o papagaio ^ a par da nauseabunda
saliva do tabaco , e dos cruentos dogmas sobre
a arte da cosinha , causavam-lhe um tedio , um
horror , e uma aSIicçSo , que o cobriam de suo-
res frios, inspirando-lhe a deliberação de sacu-
dir pela porta ou pela janella o grosseiro perso-
nagem , que se introduzia em sua casa com tanto
desafogo. Mas , escravo da polidez , levou a he-
roicidade a ponto de continuar o dialogo :
— « Viajou muito , segundo observo. »
— <c Menos mal I Tenho visto meu bocado de
mundo. Andei pela China , pela índia , e pela
America. . . mas como o sr. commendador ainda
n^o vi senão uma pessoa. »
— « LisoDJeia-^me ! E em que me pareço com
ella?»
— « Em ser um janeiro penteado, n
— a Com effeito?»
— «Pelas sete orelhas de Belzebutl Aposto
que o sr. commendador nuo morre antes de
ençommendar a mortalha , para ir um palmito
á cova. ...»
Lourenço Telles agradeceu o insulto, como
Digitized by VjOOQIC
128 A MOaDADE
se fosse um elogio. Estava ardendo , ma» repri-
mia-se.
— « Acha-me exótico ? »
— «Nada! Acho-o divertido. Assim embo-
necrado e com os pés para a cova, sabe quem me
parece? O Ra já de Singapura. Com noventa
annos feitos deu-lhe em casar com uma rapariga
de quinze ^ e toda a noite das bodas andou
n^uma dobadoura. Por s^ignal que dois dias de-
pois foi a pique*
O abbade desatou a rir e o commendador
acompanhou-o visto não ter outro remédio.
Neste momento Jasráin y o creado francez de
Lourenço Telles , entrou na saia participando
que a senhora vinha já. Jasmin era muito for-
malista , e dez annos mais novo do que seu am^.
Trazia á cabeça uma cabelkira immensa , das
mais fartas de que havia noticia*
O abbade Silva , como bèm. educado , enten-
deu que um terceiro era demais; por isso, e
para se eximir áa aíiabilidade do nojsso Filippe
da Gama, pegou no chapéu, eomprimentou
amigavelmente o seu iiluátre adversário, e en-
caminhou-se para a porta da escada, precedida
por Jdsmin. O douto clérigo notara certo ruido
forte na ^escada , mas o calor da conversação e
a singularidade delia, tinfaam-no distrabido.
Digitized by VjOOQIC
BE D. JOÃO V. 129
Agora , aproximando-«e da porta , sentiu-o cres-
cer, e olhou para o escudeiro, que punha a
mão na chave.
O capitão perguntava nesta occasiâo a Lou-
renço Telles :
— « Como gosta de animaes , dois de mais ,
não lhe fazem transtorno ? »
— « São o meu recreio !
— « Pois , se dá licença , offereço-lhe »
NSo pôde acabar. Apenas se abriu a porta da
escada para sahir o abbade , entrou de roldão no
aposento um tropel medonho. — Um macaco dis-
forme, descomunal, horrendo, precipitou-se ,
cingido de uma corrente pela cintura. De ras-
tos , atraz delle , vinha um preto corcunda , pro-
curando contel-o inutilmente. Ladrando e arre-
mettendo, um cão de compridas felpas, e gi-
gantescas proprçôes, entrou cubrindo a reta-
guarda do ruidoso séquito. Era o presente de
Fílippe da Gama ; era o « Tigre » e o « Simão »
com que esperava captar a benevolência do seu
parente. Proh pudor! O creado velho deu um
salto de medo , gritando com força « Morbleu ! »
O abbade, sem gota de sangue no corpo, poz-
se em defeza com a bengala em guarda de flo-
rete. O commendador , aterrado com a invasão ,
segurava-se meio de pé ao seu velador. Só o
9
Digitized by VjOOQIC
130 A IIOCTDÁDB
nosso capitão ria e esfregava as mSos, gritando
ao abbade — « Torce il nazo Medoro ! »
O macaco, verdadeiro Simia Satyrus de Li-
neu , investiu pela casa , arrastando em ar de
ceppo o pobre preto atraz de si. Apenas avistou
o escudeiro e o clérigo , foi direito ao primeiro
e pelou-Ihe a cabeça da vistosa peruca , arrega-'
nhando os dentes ; foi direito ao segundo tirou-
Ihe a bengala das mãos, quebrou-lha no corpo,
por fortuna era fina ; e usurpou-lhe o respeitá-
vel chapéu abbacial , regalando o dono ao mesmo
tempo com uma sova de coices. O pobre anti-
quário cahiu , e todo amarrotado e vexado , con-
seguiu salvar-se da ira do mono. — Feita assim
a sua preza , Simão chegou-se ao espelho , en-
caixou a cabelleira e encapellando-lhe por cima
o chapéu do abbade , deu um salto â gaiola do
papagaio, aggarrou-a, poz uma das mãos no
hombro do commendador , e depois um pé , e
guindou-se deste modo á janella que dava para
o telhado , cuja beira escolhera para recosto , em
quanto embalava o « Lindo » no meio de guin-
chos e biocos infernaes.
Não é fácil pintar o pavor e a indignação de
Lourenço Telles. Tremulo de susto procurava o
florete e não o achava ; tinha-se resolvido a va-
rar o mono. Olhava inflammado- para o nosso
Digitized by VjOOQIC
DB t>. JOÃO V. 131
íoapitão, o qual ajudando a erguer o abbade, es-
gotava da janeila um copioso vocabulário de pra-
gas contra o macaca. Neste terrivel transe o
cão , espectador rosnante até alli , decidiu-se a
entrar em scena ; o que fez saltando no gato ,
que a sua presença obrigava a assoprar com o
contra-baixo de uma ronca prolongada. O infe-
liz «Minete», feito um ouriço, debaixo da ca-
deira de seu dono , repellia o dente com a unha,
e com Marte favorável sustentava o assalto de que
ficaram cruentos signaes nó focinho do inimigo
e nas pernas do commendador. O velho erudito
entre as garras do gato e os dentes do cão , per-
dido de cholera , descarregava ás mãos ambas ,
e de cutello, um volume monstro das obras de
Santo Agostinho sobre o dorso canino.
Este episodio durou minutos. Filippe, o creado,
e o preto, conseguiram por fim desapossar o
macaco da sua presa , e desalojar o cão. Simão
foi algemado com a sua corrente ; e Tigre con-
tido pela bengala de seu dono. A paz renasceu
no agitado aposento, e olhando uns para os
outros , e vendo-se quaes ficaram do combate ,
os actores da farça, proromperam n'uma gar-
galhada estrepitosa e cordeal ; Jasmin com a
calva nua ; o abbade roto e amarrotado ; e o
commendador com um mappa geographico nas
Digitized by VjOOQIC
132 A MOaDADG
meias , das unhas de « Minete. » Esta rizada ,
que celebrou a concórdia do reino animal , era
repetida da rua por quantos viam prezo à janella
sacada um mono disforme, enfeitado com sua
cabelleira de caxos, e chapéu de clérigo.
Seguiu-se Filippe da Gama a dar as explica-
ções sobre o attentado ; o orador provou a boa
intenção e absolveu-se do resto. O discurso foi
acceito ; Lourenço Telles era muito cortez para
lhe observar a diíFerença que havia entre um
sauguim e o hediondo mono, que mettia a sua
casa a saque. Âpezar disso não se esqueceu de
chamar Jasmin e de lhe dizer ao ouvido com ira
concentrada : a Empoisonnez-moi le singe au plu-
tôt ! Quel animal affreux ! »
O abbade applaudiu, e Jasmin ouviu a or-
dem cruel com visivel satisfação.
Entrava então na sala a sr.* Magdalena da
Gama, e o commendador, encostando-se ao
braço do abbade , retirou-se , precedido por Jas-
min com o papagaio , e seguido de « Minete »
que se retirava magestoso com as honras da
guerra. Lourenço Telles ao pé da porta viu o
padre Fr. João , e a despeito da sua polidez não
poude conter-se , que lhe não dissesse :
— (( Padre mestre, o seu amigo é um homem
inaudito. Come lagartos e papagaios; desfecha
Digitized by VjOOQIC
DE B. JOÃO V. 133
em latim com as pessoas , que nào conhece ; e
acaba por introduztr em minha casa um macaco ,
que moeu o abbade , roubou a peruca ao meu
escudeiro , e por um segundo não almoça o meu
papagaio. Gosto pouco de o vér com a senhora.
Em todo o caso Jasmin não o perderá de yista
Ce monsteur du lion lá
Est parent de Calígula.
Ah , inimitável Lafontaine \ Até logo Fr. João ;
é nosso hoje?»
O frade abaixou a cabeça, e encolheu os
hombros. — « Valha-me Deus com este Filippe ?
Sempre hão de parar nisto as suas graças \ » —
E foi atraz do commendador para lhe desvane-
cer os preconceitos.
Entretanto o honrado Filippe tinha o coração
melhor do que a cabeça. Vendo sua mulher com
o luto de viuva , e lendo no seu rosto as sauda-
des e as lagrimas de muitos annos, custou-lhe
a reprimir-se que a não apertasse nos braços. Pas-
sou-lhe da idéa a novella que tinha urdido , e
faltou-lhe o animo para exacerbar a dôr nas cha-
gas vivas desta alma magoada. Em presença de
Magdalena esqueceu-se do que soffrera- e lembrou-
se do muito que a sua ausência a fizera padecer.
Digitized by VjOOQIC
134 A MOGIDADS
A felicidade, que o mundo pôde dar, prome-
tia sorrir-lhe naquelies olhos ainda bellos , quando
os enchugasse ; chamava-o por aquella bocca fiel
em guardar os juramentos, que uma vez pra-
nunciava. Confuso e perplexo, o capitão ora
olhava para o chão , ora embebia a vista em sua
mulher , scismando sobre o que dôvia dizer. Ma
gdalena rompeu o silencio , depois de breve
pausa.
— « Aqui estou , sr. ! Venho receber da sua
bocca a vida ou a morte. Fr. João disse-me. . . »
— « Fr. João é um asno ! — exclamou Fi-
lippe. Se lhe disse que seu marido era morto
enganou-a. Posso jurar-lhe que está vivo. Nin-
guém o sabe melhor do que eu. »
Magdalena levantou os olhos com viveza , mas
não os fitou na pessoa que lhe fallava. Comtudo
percebia-se que o som da voz a fazia estreme-
cer.
— «Fr. João é incapaz de mentir — respon-
deu com ailguma severidade. — Apenas me in-
formou de que tinha chegado da índia um
amigo seu e de meu marido, que Deus haja;
e com um suspiro Magdalena accrescentou : —
Fr. João disse-me depois, que havia' esperanças
vagas Em fim disse-me que noticias exa-
ctas só o sr. as podia dar. »
Digitized by VjOOQIC
PI D. Joio V. 13tf
— «Fr. João fallou bem — acudiu Filippe
com entbusiasmo. — Mais exactas ninguém , sr.*
Magdalena. Ora diga*me : tinha muito apego a
seu marido?»
— « Ah , sr. ! »
— « Não ha rosa sem espinhos ; bem sei ;
Filippe é vivo , mas pôde ter casado na índia. . . »
— «Meu marido sabia que. tinha mulher •
filhas , meu marido não casava. £ o sr. se fosse
amigo delle também não dizia essas coisas â sua
viuva. »
— «Salva tal agoiro! Mas se lhe affirmo,
senhora , que Filippe não morreu ! . . . É boa !
Acredite sr.* Magdalena , o seu homem não tem
maior amigo do que eu e Fr. João. Pôde crer.
Mas a verdade primeiro. Filippe escapou duas
vezes por milagre , está vivo e são , e volta qual-
quer dia. ...»
— «Bem dito sejaes, meu Deus! — soluçou
Magdalena, levantando as mãos ao ceu com ef-
fusao. — Agora, senhor, podeis levar-me, já
não faço falta. Minhas filhas tem o amparo de
seu pae ! »
£ as lagrimas, desta vez serenas, correram de
alegria por aquellas faces , que o pranto cavara
tantos annos.
— «A sr.* Magdalena é boa mulher de seu
Digitized by VjOOQIC
136 A MOGIDÀDJB
marido , é excellente mâi de suas filhas. Deus
hade-lh^o pagar. » — Disse o capitão, que sentia
os olhos arrasados de agua, e que roia as unhas
com anciã para disfarçar.
— a Cumpro o meu dever. »
— a Por dever só não se ama assim. Extreme
é mais do que dever. »
— « Amo-K), como a mulher deve amar o es-
poso da sua alma, o pai de seus filhos, e a ale-
gria do seu coração. . . Não sei que haja no
mundo maior extremo.
— « Esquece o amor de mai ? »
— « Tem rasão. Pôde ser que estremeça mais a
minha Cecilia, talvez ame tanto a minha Thereza. »
. — « Hem ! Estimo ! Sabe que Filippe está ve-
lho , rabujento , e somitigo ? é verdade. »
— « Acha leve a sua cruz, para elle a trazer
sem tristeza e enfermidade? Quinze annos de
trabalhos, ausente de mulher e filhos, exposto a
tantos perigos mortaes , um rapaz , quanto mais
elle que não era moço, não o supportava sem ficar
velho e desenganado, sem perder o gosto do
mundo , como eu perdi. »
— « Pois eu, minha senhora. . . Faz favor de
olhar para mim. Que tal me acha ? »
— « Eu ? Que hei de achar ? »
— «Perdoe — alguma coisa acha por for-
Digitized by VjOOQIC
DB D. JOÀo y. 137
ça. Que tal ihe pareço, diga sem ceremonia?»
— « Essa é boa ! Muito bem. »
— «Um! Esperto e bem consenrado? Gra-
ças a Deus sempre rijo e valente, e mesmo
pobre como Job, alegre que nem am passari-
nho. »
— «Ê a maior fortuna que pôde ter. »
— «Diz muito bem, sr.* Magdalena. Que lhe
palpita esse corado de um marido nos meus ter-
mos?»
— «Sr. capitão! Lembre-se que sou mulher
de um amigo seu ! »
« — Lembro, lembro. Aqui para nós. Filippe
não merecia a Deus uma senhora tão bella e vir-
tuosa. . . £ um maganão ! »
— «Se para isto me desejou fallar, ha de per-
mittir. . . i>
— «Não permitto. Quero, mando que íique.
Tenho direito. . • »
— «Caia em si, veja o que diz. Sinto ser
obrigada a observar-lhe que tem bem pouca de-
licadeza de sentimentos. Como senhora deve res-
peitar-me; como mulher, e mulher infeliz de
um amigo seu , devia ter compaixão de mim. E
entre tanto ha meia hora. . .
Filippe estava extasiado; mas ainda luctava
para não revelar o incógnito. Emfim não se pôde
Digitized by VjOOQIC
13S A MOCIDADE
ter, e no estrebilho popular disse estas palavras
da cantiga :
« Aí , esposo da minha alma y
Aí , triste de mim sem ti !
— Que darias tu , senhora
A quem n^o trouxera aqui ? •
Magdalena escutou, com sobresalto, a cantiga
valida de seu marido. Via-se que os seus olbos
anciosos advinhavam o segredo, mas que receiava
enganar-se ainda.
— Ha meia hora, que te fallo, e ndo meou
ves ; que te chamo e não me respondes ? Magda-
lena, o que davas tu a quem trouxesse teu marido
aqui ? Um beijo por ti , outro por nossas filhas
querida mulher. . . Deus não quiz que morrêsse-
mos separados, quando sempre vivemos unidos. »
— « Filippe ! Filippe ! marido da minha
alma ! »
— « Muito mudado estou , pois minha mulher
me não conhece ! »
— «Agora, agora! Sinto, conheço... Per-
doa ! Custava-me a crer tanta felicidade. Estou
costumada á desgraça , Filippe ! . .
— « Pois julgaste , querida mulher , que ou-
tro , primeiro do que eu , havia diíer-te que teu
Digitized by VjOOQIC
Ds D. JOÃO y. 139
marido vivia ? Olha o teu annel , lembrag-te ? O
retrato de nossa filha , vêl-K) ? »
— «O coração devia dizer-me, os olhos de-
viam vér que eras tu , e$poso da minha alegria.
E eu duvidei! Meia hora pude estar ao pé de ti
sem te conhecer ! A voz. tinha-a na alma » sa-
bes ? as feições é que não me pareciam tuas. Es-
tás tão mudado , tão brancQ , barba e cabellos I
E não admira ; com tantos trabalhos ! £ eu pa-
reço a mesma ? n
— « Estás a mesma , a mesma és sempre ; a
minha santa mulher. Que é das nossas filhas;
quero^as vêr , . quero-as beijar. Estou soffrego.
Duas vezes que tive a morte ao pé de mim cha-
mei por elias e por ti , primeiro que chamasse
por Deus ! »
— u E sem Deus , estavas comigo agora ? Fi-
zeste mal 9 Filippe. »
— «Magdalena; tens razão. Vamos vêr.,,»
— «Hoje achas só Thereza. Cecilia está. em
Santa Clara. »
— « Não para freira espero em Deus ! Lou-
vado seja a Providencia, temos. cabedal para do-
tar nossas filhas ambas. »
Neste momento a porta da sala abriu-se, e o
commendador entrou pelo braço de Fr. João dos
Remédios , que vinha contendo o riso. O abbade
Digitized by VjOOQIC
140 A MOGIDADB
seguia-0, lamentando com Jasmín a perda do
seu chapéu.
— « Ent&o minha sobrinha fallou bastante de
seu marido com este sr. » — perguntou Lourenço
Telles, sentando-se na cadeira. — «Trouxe-lhe
boas noticias. Como se demorava. . . »
— « Âh , meu tio , trouxe-me a consolação ,
que podia dar-me neste mundo. Trouxe meu ma-
rido ! »
— «Seu marido?» — exclamou o commen-
dador estupefacto. — « Onde está elle ? »
— « Aqui em corpo e alma » — atalhou Fi-
lippe saudando-o — nEcee hamol Este é o ma-
rido, e esta é a mulher, falta só a sua benção , tio ! »
— « Seja feita a vontade de Deus ! » — gritou
Lourenço Telles engolindo uma grande culher de
geleia para se reanimar. — « Posí fata quiescit !
Sobre queda couce — murmurou contricto — So-
brínho esta casa chega , escusa de procurar ou-
tra. »
— « Obrigado , tio. Era a minha tenção. »
— « Mas podia não ser a minha. Agora como
parentes e com franqueza vou pedir-lhe três coisas. »
— « Diga , tio. »
— « Não traga monos nem caens de fila. Não
coma diante de mim cobras nem gatos. Quanto
ao papagaio. . . »
Digitized by VjOOQIC
BE D. JOÃO V. til
— « Fica perdoado ? Concedido tio , e eu ga-
nho por cima. Preste-Joâo ! »
O negro corcunda chegou-se.
— Leva o Simão e o Tigre á cella do er. Fr.
Jo%o , em S. Domingos. Depois yolta que tens
que fazer. »
— « Nada , ponho embargos ! A minha cella
não é pateo de bixos. » '
— « Cala-te, Fr. João, não lejas creança. Dei-
xa-me tiver bem com o tio. . . Dà o mono a
quem quizeres. »
— « Com essa condição. . . »
— « Agora, sobrinho , tenho a honra de lhe
apresentar o Sr. Âbbade Silva, erudito res-
peitado de toda a cdrte, e auctor de varias
obras. »
— « Sou um seu admirador. »
— « Espere ! lam-me esquecendo duas coisas
essenciaes. Se lhe não custar muito, falle-me em
portuguez; e se quizer mascar tabaco... »
— « Mau ! )) — resmungou Filippe.
— « P<ide mascal-o... n
— c< Bem ! » — exclamou o capitão animado.
. — te Na cosinha ou no quintal. Nesta sala
nunca. »
— « Amen! Se nos díi licença, tio, adeus até
ao jantar. »
Digitized by VjOOQIC
lis À MOCIDADlí
— «Sem ceremonia, se acaso se desgostar do
papagaio... »
— « V. mercê come-o ? »
' — « Isso é no Brazil. Cá dou-o de presente.
Tenho uma arara, e gostava...))
— «Veremos! A casa é grande; é natural
que chegue. Adeus, filhos, vão, estejam á sua
vontade. )) E vendo-os sair accrescentou :
*— «Então que diz a isto o nosso Fr. João?»
— « Que altos são os juisos de Deus ! )>
— « E o abbade ? »
— « Que vae tudo bem ; e melhor iria se eu
não ficasse sem chapéu. ))
— «Pois eu digo que ha meia hora tinha
vontade de deitar meu sobrinho da janelia abaixo ;
fez um barulho incrível, padre mestre! Mas
agora... ))
— Agora , commendcdor ! )>
' — Agora, para que hei de mentir? Acho-o
bom homem e de excellente coração. No fim de
tudo queria obsequiar-me... Ha de pulir-se; ha
de pulir-se com o uso da corte. Jasmin ! Hoje é
festa nesta casa. Jantam cá o abbade, o sr.
Fr. João , e meu sobrinho Filippe. . . quero um
ou dois pratos da tua mão. Um dia não são dias.
— Sabes que o macaco vae viajar — accrescentou
baixinho. — O preto leva-o á c^lla de Fr. João. >»
Digitized by VjOOQIC
HK B. JOÃO y. 143
— « Pobre ir. Fr. Jo5o! »
— « Olha , Jasmín , diz a meu sobrinho, que
o mande antes pôr em casa do abbade. Quero
que aprenda a dizer em que anno morreu Ho-
rácio. Anda , Jasmin. Ê uma idéa óptima ! »
O creado sahiu logo, e d^ahi a pouco o negro
expellia diante de si o monstruoso Simão , que
passando pelo abbade arreganhou os dentes , em
quanto o commendador ria e esfregava as mãos.
Digitized by VjOOQIC
Digitized by VjOOQIC
CAPITULO VIII.
PStO AMOR SB GANHA O GBU !
Catharina e Cecília conversaram, muito ten^
po, no jardim, na mais intima confidencia. Des-
maiou o sol na copa das arvores ; o ceu princi-
piou a. empallidecer com as primeiras sombras do
occaso ; e nos caracoleíros e madresilvas , a can-
tiga dos rouxinoes ia adormecendo em notas
expirantes, até se calar de todo. Estava pró-
xima a hora , em que a terra se banha na luz
pallida e saudosa do crepúsculo.
Entretanto^ nem o rápido fechar da tarde,
nem os raios do sol , descorados jà , e o buH-
cio nos tufos de myrtho , e nos taboleiros de
10
Digitized by VjOOQIC
146 A MOGIDABB
flores, nem a alegria das companheiras, que a
rir e a correr passavam diante delias , desaper-
tavam as m&os, unidas,. das duas amigas, ou
seccayam as lagrimas que fugiam serenas e quasi
desapercebidas dos olhos de ambas. Algumas ye-
zes as rosas do pejo acendiam-se no seu rosto;
outras a pallidez da commoção affugentava-as.
Para ellas o mundo encerrava-se no coração e na
alma que viyia do amor {arwrosp , que a espe-
rança da solidão inflama de saudades e cuidados.
Gecilia foi a primeira que fez um esforço para
romper a fascinação deste colloquio. Leyantan-
do-se de. rqiente , amosiiido a mM d^entre as
da sua amiga, olhou com yiveza em redor
de si ; Catharina seguiu-a com sobresalto. Âpe-
saa entraram na rua principal do jaidun vkam
a regente e um padre da companhia de Jesas.
Ob modos inquiatôs e escrutadores , com que erte
par aeraphico obsenraya tudo de una e eutia
parte , sem alterar a s^annidade dos passos , in-
dieayam que procurava alguém.
-^c<É soror Mónica y»'^^ exclamou Cecília.
~- « É o padre Ventura 1 » -^ disae Catharíoa
com alvoroço.
— a Não te diâa eu? » —^tornou a primeira.
r- Cecilia , não sabes ^ que. quem espera , de*
iespera 7 » — respondeu e segunda.
Digitized by VjOOQIC
ra Wé SOÃO V. 147
A presença de um padre jesuita no jardim de
Santa Clara , e sobretudo nas horas de recreio ,
era um acontecimento pouco ordinário. Comtudo
parecia evidente, que S. Paternidade tinha me^
recido as sympathias das noviças e educandas,
porque em logar de fugirem do seu encontro ,
procuravam-no beijando4he a manga, t fazen-
do-se muito vermelhas , quando tocava de leve
com o dedo na iace a alguma. Havia já três
meaes , que o conheciam , e sabendo a qualidade
de visitador e reformador , em que fora investido
pela Santa Sé, (o que o trácia ao convento re-
petidas vezes) imploravam a sua itttercessio , sem*
pre efficas, para mitigar o rigor dos castigos,
impostos pela prepotencia da abbadeça. S. Pa«
ternidade nfto se escusava , e salvo um pequem
sermão á paciente, aecudia sempre em atudUo
im opprimidsn. Assim tinha attraMdo a con-
fiança daquella população feminina , que debaixo
do glorioso pendão de S. Francisco caminham
pdb estrada da graça e da salvação.
CecBia não podia demorarnsie miúto tempo na
mesma idéa. Emquavto o padre e a regente
mediam as passadas , virou-se para Catharina e
disse em ar magoadoc
• *^«Ho}e morra 6 aède a minha roseira
branca!»
Digitized by VjOOQIC
148 A MOCIDADE .
— « E O meu craveiro amarelk) ? » — respon-
deu Catharina.
— «Olha, acudiu Cecília, o padre já nos
viu , e chama-nos ! Então ! Não éramos nós a
quem procuravam ?!...»
— « Â ti , pôde ser ; mas a mim , porque ? »
— « Porquê ? Não sei ; mas é. a ambas. Olha
o dedo da regente , que parece um ponteiro. , .
faz-nos signal ; estás desenganada ? Vamos ? »
Partiram , ligeiras e airosas , como duas gra-
ças , que fugissem ao bello grupo de Canova. No
meio da lameda encontraram o religioso e soror
Mónica. O jesuita, por caridade, encurtava o
passo para não esfalfar a pobre freira , cujo can-
caso , exacerbando-se em frouxos de tosse , lhe
tomava a respiração n^uma pieira cavernosa. A
sciatica não concorria menos para tornar des-
iguaes e lentos os seus movimentos. O padre ti-
nha os cabellos brancos , % fronte ampla e os
olhos penetrantes e reflexivos do jesuíta, que
vimos conversar amigavelmente com o sr. Thomé
das Chagas no Arco de Santo Antão. Era sem-
pre a mesma bocca , em que florescia um sor-
riso eterno, era o mesmo rosto passivamente af-
favel, e a mesma expressão diplomática. S. Pa-
ternidade, desde que chegou a distancia propria,
fallava á freira com os lábios, e ás duas amigas.
Digitized by VjOOQIC
BE D. JÒÃÓ V. 149
coíii a yista ; e é jasto ácerescentar , que a lin-
guagem muda dos olfaós foi mais eloquente do
que as doutas palavras da sua homilia.
— « Pois sim , Yae muito bem , leia a madre
Santa Thereza , que lê um santo livro: Grande
doutrina! A «Mística Cidade de Deus» tam-
isem. Vou mandar*-lha e os « Exercicios » do nosso
patriarcha Santo Ignacio. . . . verá que bons guias
lhe dou para acertar no caminho da graça ....
Mas a^nde está esta querida soror, a madre
abbadeçá ? »
— « V. Paternidade sabe , que jâ lie mandei
recado, ^o horas de já ter acordado da sua sé^ »
— respondeu soror Mónica , no tom plangente
e precioso , que é característico das freiras ve-
lhas.
— « Algum motivo ha , esteja certa. O peior
é demorar-se Se tivesse a bondade soror Mó-
nica ! Se repetíssemos o recado ! »
A regente e:2^halou um suspiro capaz de co^
mover um Adamastor , acrescentando com en-
fado:
— « Não percebo , padre mestre. Y. Paterni-
dade não é pessoa que se faça esperar. ... Eu
mesma vou. Meninas fiquem. ))
— «Os deveres desta santa casa desculpam
tudo )) — observou o jesuíta , sorrindo-se. Nào
Digitized by VjOOQ IC
IfiO À MOODAOS
lhe €rt deseenhecida a lucta capital»!* !9iid€-
aera iníinigas morUe^ as duai veneráveis religio-
sas; e tinha, boas rasSes para se limitar a orna
perlsita neutralidade.
Soror Mónica retirava^-se coxeando, quando
Gecilia é Gatharioa chegavam ao pé do jesuita ,
e beijando^lhe a manga , lhe tomavam a faen^o.
Apenas a regente esteve a boa distancia ^ o pa-
dre Ventura deu alguns passos mais para ellas,
e pegando na mão a andMis , respondeu á sau-
dação com bondade paternal. A sua voz era entre
seria e joviaL Toda a intenção estava na vista
o não nas palavras , segutido o costume.
— <( Deus as faça santas, filhas , e as abençoe !
Então D. Catharina, vamo-nos alegrando? Es-
^ tamos já mais conformados com o habito ou ha
ainda grandes saudades do mundo , <{Ue nos não
deixam amar a Deus como boa religiosa ? »
Catharina corou ; tremula e conliasa nada res-
pondia ; mas Cecilia acudiu logo com a costu-
mada impetuosidade:
— « Acha V. Paternidade , que Deus quer
promessas que excedam as nossas forças ?
— « Gecilia ! » — interrompeu a sua amiga.
— « Ah , a minha doutora ! » — *óbservou o
jesuita com o seu nso fino. — « Respondo com
outra pergunta : ponha o caso em ;sí a xnioàa
Digitized by VjOOQIC
jm D. jíoio Y. 151
donselfe Theoibni , e digt : fe iÍ!Keflie á6 eiM-
liHsr eake ^ denrecet de íksa fUfaft, e a iH«rto
doB Mtíiim, <|ae o faculo chaina amor, dei-
xava norrer aeu pae de fieoa , ou ohadeeia^lfae^
saerifioanda^^e?»
-^«Nio ha pae q^ man» da ieUeidade da
sua filha. »
"^ « MmíAd bem. Conpara eutto a jgloria de
senrír a Deus com a fallivel alegria que ilude
oaiiomei»? Eatto -que diz ? »
««^«lilfiii paàre^ dígo:$ó oque neensinacaM.
De?eHie «nar a Deus .a<Aee todas as coifas y e
defiMS a naaios irmiíQa^ mm» :a náa meamos, a
— *-«EioáUe»te!! Stfaa que aprofeita a dou*-
tiiM nerta casa?i> — rredacgaia o padre no
mesmo tom. Depois toniaiid(Hse serio disae : —
«D. Cíatbarína, Meditei sobre o sen case; e
oommuaiquei-K» sem revelar a pesaoa^ enten-
de-ae, aos mm satÂos dos nossea padres. Ê ver-
dade ; « o 4pie |ulga que disseram elles ?a.
— « Que devia professar t»
•— « Respire. Nem tanto ; disseram que ^n-
Ire o amar de Deus, e o anor humano, nlo
hafarefierenoia raaoaveL • . . não acha, tambean ? »
«-*- «Deeidemcatlkxgueeumao posso escclher?»
— « Também não decidiram. iDistínguem ! Os
nasasosfiasuiaiasiiio i^^ndos /em distinecões ! Se
Digitized by VjOOQIC
lc>2 A MOCIDADE
O coração ^ entrega exclusivamente a Deus , ha
a vocação sincera, o esposo acceita a esposa. Mas
se a alma recahe nas saudades do mundo e se
lembra mais da terra, Deus não quer , Deus não
permitte um vinculo que a bocca fónna e o co-
ração desmente. Não é este o seu caso , D. €a-
tharina ? »
— «Ah padre Ventura ! Sou indigna da graça
de Deus , bem vejo ! »
— «Âfflictos nos vemos; pois sim; mas,
animo , e resignação ! Entre dois males irreme-
diáveis , optar pelo menor é o dever do ^cbrís-
tão. Deus não manda impossiveis ; amor e obe-
diência á sua Lei , é o que EUe ordena. Abra-
ham não matou Isaac. . . . Medite neste e^i^m-
pio ; humilhe-se , e teiíha fé. »
— ^crBem humilhada estou na presencia da
minha fraqueia ! O que posso fazer; se Deus me
não chama , se tenho o coração escravo das pri-
sdes do mundo ? E meu pae , o que dirá meu
pae , se chega a saber ? . . . »
— « Seu pai não é um tyranno , ha de con-
formar-^e com a vontade de Deus. Uma alliança
virtuosa e honrada é sancta aos olhos da Infi-
nita Bondade. Nem todos podemos servir a Dens
da mesma maneira. »
— <i Ai 9 padre Ventura ! Conhece meu pai ,
Digitized by VjOOQIC
DE D. JOÃO y. 1 53
e sabe a firmeza da sua vontade. Disse uma yez
que não me podia casar ;. e essa alliança; . . i»
-^ « Ha de fazer-^se.^ . . As coisas é qae muda-
ram , não foi seu pai , D. Catharina. Uma aíFeição
honesta em que envergonha ? O Conde suspirai
pelo momento de possuir uma esposa virtuosa ;
seí-o ; disse^mo elle. Havemos de convencer seu
pai. O Conde de Aveiras ^ amigo e valido do
Principe Real , que amanhã (quero dizer) , que
de om instante para outro , altos juizos de Deus ^
pôde subir ao throno. . . »
-™^ « V. Paternidade não ignora a ingratidão
da corte , e a nossa familia. . . »
'. — <í Sei tudo 9 filha ! . . mas confiemos em
Deus. Um genro poderoso vale muito , e seu pai
tem pratica do mundo , percebe as coisas. Esteja
certa , não resiste. Peço oito dias. . . »
'—«Oito dias? E julga V. Paternidade que
meu pai approva. . . »
-^í<Ha de approvar. »
— «E Deus?»
— «LembreHse de que padeceu para a sal-
var , e veja se pôde querer um sacrificio superior
á nossa força ? Diga-me : e se houvesse meio de
conciliar-mos as duas coisas , servindo a Deus ,
e vivendo no mundo, ficava mais tranquílla? »
«— c( Oxalá , meu* padre ! »
Digitized by VjOOQIC
154 A MOCIDADS
— « Dè moitas graças a Deus; o neio existe.
O habiU) não fas o monge ha de ter oufido ; e a
verdadeira (abusara. é >o recato da alma , e a in-
noceneia do coraçio. Com o vestido seovlar , e
a liberdade do corpo pede ser escrava de Deas.
Temos os exenúoios para mortificar t> esfâríto, a
obedi^icia a. superiores espírítuaes para nos vat^
por um vinculo sagrado ; ha a afanegaçào da pesh
soa e da vontade para interesse^ santa inte-
resse 1 de muitos. . . e tudo isto faz o sacri&cb
completo. Se quizer , D. Catharina , aeii mulher
de seu marido , eesposa «de Deus , <(aantoá graça
da perfeita religiosa. . . »>
—*« Aonde, e de que siodi>^ padre Ven-
tura?»
-^w No mtitutodo Patnandia Santo l^eto.
Pôde ser ter^eim doaooiedade de Jesus. Ou*i)to
ao maê creia «m Deus e tenha esperança. A pa-
ciência vence tudo. »
O padre duplicou a força ^a este proaaissa <smk
um gesto magestosoe expressivo. Vixendo-se de-
pois para Oecília acrescentou em tem jovial :
«-^«£ a memoa bonito o que^diz? Mo ha
nesse coração pequeno e alegre nenhum peocado
escondido^ que se confesse fn
— «Ai pndre Vtsitodor , nenhum ! » — Tes-
pendeu ella vermelha come uma rosa e dando á
Digitized by VjOOQIC
faocfli O »eio MriHo trvmw», que 4Í0!eBgiifdb
a tornaTa. — «Não tesho mions.; « wm níft-
g«iem me^frar. »
-7- « Sim ? Vejam a iowcivt dbs homefts? Po^
bre freíriíihai Hei de dar«4fae uma «dtieia para
a ONí^olar. a
— «Mas 60 oSo êitoa triate!
<--*« Atoda bem. Lembra-ae de soa pai ? »
— «Oh, muito, muito I-***4Ciidiu Cecília,
cabindo logo em melatioolía rcAexiya. Tenho-o
pfeamte como le o vime, Olba padre mtetne
qwntos $&o hoje ^ mes 1}^
— «Porque?»
-^«Porque está faaando dofl» «amas que elb
me tare oos faragos e me beijou a adtima vet.
Querido pai j Partiu e não ternau maia. . % Mal
^ahia eu que^e deapedia paca aampre. »
— «EÔgane^tae; ba de vrf-Oi»
— «Jío eéu. Hle era bom; eslá iá. »
-^^.Sapero. em iem Ghrísto que lá iremos
todos. Mias. seu pai , Geeilia , dSo morreu. • . i»
— ^^tt Meu pai?*. E V. Paternidade nfto me
dtfia nada! Ab« a minha maí, a minha que-
rida mail. . »
— « Enlfto ! NSo sio eoiaas, que se levem a
chorar. . . Lagrimas e desmaios ? . . E para a
tdstem oqae veierva entio ? Aiegriaa taes » quando
Digitized by VjOOQIC
156 A MOl^lDAta
Deus as mándu, eleva-^ o é8(ril4tó «ò céâ, e
'acceítam*-se ccmi jubilo.»
— ; « Também se chora de alegria ! Meu pai
^ito ! Ainda o tomarei a tdr ! »
— «E finais depressa do que julga. Está em
Lisboa, em sua casa. Chegou hoje ; e é natural
que venha aqui amanhfi. Gomo elle ficará satis-
feito de vér uma filha. . . digna do seu amor se
proceder bem sempre. »
— «Ah, padre Ventura, se elle soubesse!
ۈtharina, querida, agora mais do que nunca
peço a tua amisade. . . Diz-me o corai^o que
chegou a hora. . . »
— « De algumi lhe ter amor ? d — atalhou o
jesuíta eto tom malicioso. Depois tomando ar
serio , mas nSo severo , proseguiu : — « D. Ca-
tharina pero^, e eu entendo. Soc^ue Ceei-
lia. O Conde de Aveiras é o maior amigo , que
tem um cavalheiro moço , que a viu em S. Do-
mingos faz hoje cinco metes ; que lhe declarou
o seu amor uma sexta feira á noite, aqui nesfe
jardim quinze dias depois ; e que , hontem , aindu
hontem , lhe escreveu por certa beata uma carta
para lhe dizer , que viria esta tarde ao convento,
custasse o que custasse. . . Nlo é tudo assim , D.
Cathariria ? »
As duas meninas olharam uma para a outra
DigitizedbyCiOOglC
BBfi. ÍQÍ0 %. 1S7
tão fiasmadas, tto coBftisas , que o padre Ventura
uSo pôde suster o riso apesar da sua gravidade.
Neabnína se atrevia a fietUar de eavergcobada.
— «Admiram-^e? Nfio estranhem^ Sâo mila-
gres da. nossa roupeta! CecSia eu não censuro,
nem approvo. Os jesuttass ha. de oonven€er'-se ,
são melhwes do que diz a madre t^^deça, que
é uma santa pessoa. . . )i,
- — « Mas quem revelou a V. Paternidade ? . . »
interrompeu Gecilia com as faces a arder.
— « Provavelmente alguém que o sabia. Fi-
lha, nada se faz , que se i^ descubra. Repito ;
nSocendemno, nem approvo, entenda-me bem !
Isto não é o casamento de D. Catbarina. . . Co-
nhece- o amigo do Conde de Aveiras? Se xtòo
sabe , pelo menos suspeita quem elle é , e o que
hade vir a. ser?. . »
— .<xÊ:o homem, que amo! Não sei mais,
nem preciso » atalhou Ceeilia em um repente de
enfado. O jesuíta olhou para eUa alguns instan-
tes, leu no seu.ro^o a verdade e a innocencia,
e meneou a cabeça com mais peear do que se-
veridade.
— « Ah , Cecília , receio que do. coração v©-:
nha a sua morte. Jactem. idade;, defve meditar.*
olhe que o sacfifieio é grande aos olhos de.Deus,-
e immensO' aos» ottios do mundo» »
Digitized by VjOOQIC
il^ Jí tfOaOADI i
múu CotharÍDa, a cpiem nio eseapoa a intençiet
com qoe o jeMHta> praferili as vltitnas palarrái.
— (cA verdade assusta ,. fiiha. — Respondeu
elle. — Se a suaaoiiga Soubesse a que Cuia« era
menor o mal Antes de entreger assim a sua
alma, dena saber a quem. • .Deus permitta que
se não arrependa e depois cbora. Nio digo mais ;
não sei seaãaittò.k>
— ccE euf-^aea(&i Cecilía exaltada *~ sei
que o amo « quç seu amada. Que nio terei es-
poso ^ ou que será eUe. ;• »
— <x Valha^nes Deus ! Quer iazer de mim seu
confidente ? Eu lAo entendo de paixões munda*
nas. Confessor posso absolver da culpa^ ima vez.
que o coraçio seja bom , e o seu é bom, Cecí-
lia, oxalá que a cabeça assentasse um pouco.
Amifo, digo-lhe que fei mal, que faz muito
mal em se fiar dos oUios. Lembre*«se de seu pai ;
veja o desgosto de sua mii. . • Sobre tudo , o
mundo, respeite, o mundo. Quanto ao mais Deus
é menos rigoroso do que alguns theologos. . . e
ha exemplos. Se a culpa aproveita a nossos ir-
mios , se a mentira os salva , peccámos sempre
mas é peccado muito próximo da virtudes . . Um
instante de síneera oontri^# píóde laval^o. Ju**
dith também peceou, gloriosa cu^, que for
Digitized by VjOOQIC
BIT D. JOto V. 1S#
a Ubenlade do seu porro ! Nada é absoluto neste
yalle de lagrimas. Se fossemos perfeitos éramos
santos. Mas de téras , nHo sabe quem é o amigo
do Conde de Ateiras?»
— K E V. Paternidade ? » — exclamou Catha-
rina.
— ^ « Eu ? ! Nao tê que estou perguntando ?
Cecília , tracte de se cíonGrmar na terdade antes
de decidir. Olhe para a sua consciência e lucte
em quanto titèr forças; se nío poder tencer-se
procure remir o peccado pêlo exercici^) da vir-
tude. . . A yo2 do mundo nem sempre é verda-
deira ; ouça antes a voz do ceu. Saiba que para
O serviço de Deus importam menos os meios do
que os fins. »
— K flSo entendo , padre Ventura ! » — repli-
cou Cecília ingenuamente.
— «Entenderá um dia. Nao é a madre ab-
badeça , que alli vem ? Pois sim , filhas , ha di-
versos modos de ganhar o ceu. Cecilia, a verda-
deira virtude dao está na bocca do mundo ; D.
Catharina lembrense do que eu disse do nosso
Instituto. . . Amem e esperem ambas , e serSo
salvas ! . . . Ora venha a nossa querida abbadeça,
que já nos ia tardando. » '
— «V. Patemidadebem sabe o peío da minha
jcrm. . . , Bens m'a tire depressa tle cima dos
Digitized by VjOOQIC
460 jA ifOCIOADfi
hoDibros!»-^ exclamou a freira com maueiráfi
beatas, e aífectadas.
— « Ora pois , louvado seja Deus por tudo ! »
— a Aonde quer V. Paternidade que o receba ?^>
— « Aonde lhe fòr mais agradável, Eu não
escolho. »
— tt Meninas , não sabem que a hora do re-
creio acabou? Beijem a mão do sr. padre Ven-
tura , e peçam-lhe vénia. . . »
— « Dá licença , querida madre ? . . . Cecília
ha de receber um recado de casa. Não sabe ^Seu
pai , que diziam morto , está vivo e chegou a
Lisboa.»
— ^«Deu graças a Deus por tamanho mila-
gre , Cecilia ? » — exclamou a abbadeça.
— «Já cumpriu os seus deveres ; parece-me
que não ha inconveniente em a deixarmos vèr o
seu parente. . . creio que é parente ? . . »
— « É primo ! ]» — atalhou . Cecilia intrepida-
mente.
— « O seu primo » — repetiu o padre com egual
denodo — «Naturalmente não são coisas^ que se
digam diante de todos em. um locutório. A.gra-
vidade do negocio desculpa. . . »
— « E onde está o seu parente , menina ? »
-^interrompeu a abbadeça.
— ff Na grade , segundo me informam » —
Digitized by VjOOQIC
DÇ B. JOÃO V. 161
obs^¥ou O jesuíta. — «É melhor irmos para a
casa da secretaria ^ que se pôde reputar extra
clausura: e deixaremos os dois primos em li-
berdade . . . bem Yé , querida abbadeça , este
caso sabe da regra geral. . . »
— « Apesar disso, é contra o uso. Entretanto
y. Paternidade manda ! Menina, vá subindo ; eu
dou as ordens. Assistirei á sua yisita. »
— aExcellente! Assim não ha peocado. Va«
mos! i>
E tomando pela rua , que ia dar â porta re-
servada, o padre Ventura mostrou que sabia
perfeitamente o caminho. A abbadeça seguia-o ,
rosnando :
— «Não percebo tal breve de Roma, nem
taí visita! O padre santo não podia nomear o
nosso guardião em logar deste jesuita? Nossa
Senhora nos acuda ! »
— «Não, soror; disse o padre virando-se
com ar severo — Sua santidade sabe que não é
permittido ao guardião ser juiz em causa própria.
Querida madre, n^o se esqueça, peço-lh^o muito,
de que não peccamos só por obras ; por temeri-
dade de pensamentos ainda ás vezes se pecca
mais • . Cuidado em não cabir ! d
Esta ultima advertência tinha dois sentidos.
Podia referir-se á lição moral , que acabava de
11
Digitized by VjOOQIC
16$ A MOGEIDADS
dsp, 6; 869 O sev tpjfhoaenifr; ou sdnteiMe rifo^
iír ao mmitikeÊàf^ sdMreMAtados fos râcftpáM â
freiras vendcMe- colhiéa ^s flamante mspiiMra^
$ãa contr» a seu visitador. Fesse o que fosse, l^«
Paternidade continuou a subir a escada eon» 9
soeego ovdtnaFio; e a abbadeça, eimrrigida pela
inura duo^ Mvido» iteliano, & seriamente^ assustada
pelo ar de* a«istoridad&, que ¥m assumir ao je-
suiCa , HSd^ profsriv um» stf^ palarmi mais. Assim
chegaram ambos á secretaria do mosteiro;
Digitized by VjOOQIC
CAPttVhO IX.
*-iÍNDlí ífiú- síÈ- íírtHrf tisai o ÉMl
As òtàem der aBfiàtíeíâ- foi'am cttihpiítfes' sem
detttona r otites db Cecilhr entrar mr safa da se-
cretaria , xã It esperara o seu- jmreiite.
Bste líSo esperou sem grande incpiíetaçao a
momentd de a vêr na. grade, a esta: hora deserta*»
ôsed desassocegò percebia-se na passeia impa-
, ciente, em que mediar o apposeiítò, cotrtandScr
oí mintitos r e no arsobresaftadb, con* qnie ofhaw
parti ff porta , se ourir aignm riííâé. Depoiff
disto ê inutir dizeir, qim se llíe abria o paraisa
diante ctes offios, ntr moAntenttr èril que mi con-
vidado a ttocíar a ímporttma puBBdida* do Io-
I
Digitized by VjOOQ IC
164 A MOCIDADE
cutorio pela casa reservada aonde podia fallar ,
sem ser escutado por freiras curiosas e ávidas de
enredos.
A disciplina do convento fora violada. O favor
que se lhe concedia ^ era uma excepção , de que
gosavam só os príncipes, os cardeaes, os bis-
pos, e os confessores da ordem ; o saudável ter-
ror incutido pelo jesuita conseguiu mover a ve-
nerável abbadeça a auctorisar uma innovação,
que ia servir de saboroso pasto ás murmurações
das filhas de S. Francisco.
Logo que o primo de Cecilia entrou , fechou-
se sobre elle a porta , e appareceram , primeiro
a abbadeça e o padre Ventura , e logo depois a
educanda, que tinha vindo de volta. Os dois
religiosos , sérios , e revestidos da gravidade fria,
que diz a um desconhecido , que o recebemos ,
mas nos acautelamos: Cecilia, vivamente agi-
tada, comprimindo o tremulo coração com a
mão ainda mais tremente. Encontrando o olhar
affectuoso , mas discreto , do hospede , a pobre
menina sorriu com tanta suavidade e timidez ,
que ojesuita deixou escapar um gesto de receio;
mas cahindo em si poude conter-se , e em um
instante os olhos explicaram tudo ao seu amante.
O parente de Ceciffa mostrava dezoito annos «
e talvez ainda os não contasse completos. Tinha
Digitized by VjOOQIC
DE D. JOÃO V. 16B
O , corpo bem proporcionado e esbelto ; a pre-
sença agradável e insinuante , apezar dos ares de
grandeza , que tornavam quasi aprumada a sua
estatura , dando certa côr altiva aos gestos. As
sobrancelhas desenhavam uma curva muito viva ,
excessivamente escuras e bastas talvez desces-
sem pezadas de mais, carregando os olhos. As
pupillas pardas raiavam luz tão clara , illumlnan-
do-se á menor commoção , que bem poucas pes-
soas poderiam soffrer , sem abaixar a vista , o
relâmpago que as fulminava. Era a mesma força
e magestade , que deu a Luiz XIV a vantagem
de atterrar tanto com um voiver d'olhos , como
com as mais severas palavra^, que profere a
bocca do rei.
O rosto do mancebo, mais trigueiro do que
alvo, pouco rosado, era animado e nobre de
feições ; correspondia bem á expressão da vista.
A testa elevada e espaçosa , serena reflectia a
intelligencia , contrahid» inculcava a impetuosi-
dade do animo. Os beiços cheios c vermelhos ,
com o superior alguma coisa revirado e terso ,
annunciavam um caracter viril ; o beiço inferior
muito mais grosso e descabido , indicava grande
propensão aos deleites sensuaes. Menos séria,
esta bocea , aonde ás vezes a ironia se espiri-
tualisava com chiste, podia adoçar repentína-
Digitized by VjOOQIC
16(S A 4ipaD4J>S
mentia a sçvieridade jda pjbjb^iooQinia. 0 nmi fiui^i
,aquiUoo jRãp descalua na poiíta, q m m^hsm
indicadas e laceis de se entum^er inculcavam
um génio forte ,e irritável. Em todo o $eu as-
pecto lia-se yontade firiije , talentiO prompto , |;e-
nio arde^te » e constância de idéas , pmito promr
pta em degeaerar em obstipação, A delicadeza
da pelje e a pureza dqis veias , azulaqdo-se trans-
parentes como únissimas spmWaç , provav/iip que
o typo aristocrático era conservado na sua far
milia em toda a perfeição.
Os cabellqs sem pós i^em peruca fugiam sol-
tos pelos bombros, enrolandp-se em annei^ de
bello castanho claro. A mâo pequena , cheifi ^ e
macia , parecia mão de senhora. O pé airoso e
pequeno pizava com jgraça ; os mpyimentos res-
piravam elegância e dignidade desafectada; a^
maneiras eram n^turaes , e dotadas de exquisita
jdistínc^. Bonitos dentes brancos e iguaes ap-
pareciam, quando sorria, no meio do carmim dos
beiços , ainda corados de todo o calor da juven-
tude. O seu porte inculcava mais o fidalgo e p
militar , do que o plebeu e o negociante. Até a
voz sonora tinha a firmeza de tom , e a inflexão
imperiosa , que dã o uso do poder hs pei^soas
mais aífeitas a mandar do que a obedecer.
Trajava uma casaca sem enfeite nem bor^
Digitized by VjOOQIC
M D. JOÃO y. 1$T
dura ; parem ^ Tolfai ^^mada 4e ^rén^fts |»raoÍ9-
sfts» posta ao pescoço com o desgarre coTtesãOi
l)rigava com a modesta ^ppareficia da vestia «
dos calções. O <3aiBÍsote de fiiui cambray esooa-
didHse mal , ^ aos botões de l^rilhaotes que o or-
navam ; dois rubis de grande vedor» os^uecidos
w& súoetes do relojo , desueotíam « sinqJícidad^
estudada do resto do fato. A espada , boa íolha
de Toledo , própria para duello , e bem lavrada ,
pe&dia de rioo talím. As luvas de oanbão viam-
se euroladas doutro dos copos da espada. De $eda
côr àd rosa, a meia vestia t9o juata que pare^
cia estalar na perua ; e os çapatos com rosetas
ou topes de fita , nada tmbam que invejar aos
do íidailgQ mais primoroso. No dedo brilhava um
anual com três diamantes, o no chapéu uma
presilha sem jóias accommodava-^ á niediania
de. pjirte do trajo. A um observador não podia
escapar que o mancebo , prívaado-se de quanto
forma a opulência do vestido , nâo se despira
dos objectos que são inherentes á verdadeira aris-
tocracia ; a finura da roupa branca 9 e o valor
das pedras, que trazia, accusavam->uo de que-
r^ disfarçar uma posição em tudo muito supe-
rior ao que r^resentava.
A sala , om que se achavam , tinha duas ja-
nellas altas, abertas em vãos profundos, uma
Digitized by VjOOQIC
168 A MOCIDADE
uma quasi ao fundo, mas do mesmo lado da
parede , a ootra , collocada ó ilharga da porta ,
por onde entrara o primo de Cecília. Quem se
recolhesse ao cubiculo formado pela primeira
janella nem via nem era visto pelas pessoas en-
tretidas no recanto da segunda. No meio da casa
levantava-se um enorme bofete de páu santo tor-
neado , carregado de livros e papeis de escriptu-
ração. Defronte , na parede opposta 6s duas ja-
nellas, estava um grande crucifixo, sobre uma
banqueta doirada , com duas alampadas accesas.
Uma dúzia de cadeiras de assento e espaldar de
muscovia acabavam de vestir o apposento.
A vista do mancebo primeiro fitou-se nos
olhos pequenos e sagazes e na bocca sumida e
barba avançada da abbadeça , que da sua parte
«ão o examinava com menor attenção. Dahi pas-
sou a estudar o rosto sereno e impassivel do pa-
dre Ventura ; porém a vista deste , não menos
firme e mais profunda , encontrou a sua sem se
abaixar , e nada disse ou deixou advinhar. A cor
subindo ás faces do primo de Cecilia , e a fronte
carregando-se de repente , apenas chamou um ar
de riso aos lábios do jesuita. O seu aspecto era
todo respeito frio e civilidade discreta ; mas os
olhos ousavam mais : e firmes declaravam que nada
do que via era para elle segredo , que sabia co-
Digitized by VjOOQIC
DE D. JOÃO V. 169
nhecer as pessoas, porém que as não descu-
bria, e que estava disposto a conter qualquer
palavra ou acto donde resultasse prejuiso aos
outros.
 abbadeça , respondendo com uma secca me-
sura â cortesia bem pouco profunda do mancebo,
rompeu o silencio.
— «O Sr. padre Ventura disse-me (expoz ella)
que o senhor é primo desta menina , e traz no-
iicias importantes. . . Entendemos que este logar
era itiais conveniente do que o locutório para
uma conversação de tal natureza. Pôde fallar. . .
desculpará de certo que o meu dever me obri-
gue a assistir á sua conversação» — O rosto do
primo de Ceeilía tomou de súbito as cores afo^
gueadas do orgulho oílbndido , os olhos, a prin-
cípio tímidos , fusilaram de cholera , e teve de
morder os beiços, fazendo-lhes sangue, para re-
primir uma resposta severa que lhe subiu á bocca ;
conteve-se, mas ficou callado. Somente ouvindo
citar o jesuita encarou-o de novo com attenção ,
examinou-o em um olhar perscrutador , e incli-
nou de leve a cabeça para elle. Era fácil perce-
ber, que scismava no modo porque um padre
que não conhecia adivinhava os seus segredos, e
lhe servia de protector silencioso. Do jesuita a
sua vista recahiu sombria c concentrada sobre a
Digitized by VjOOQIC
170 A MOGIPABE
abbad^ça , a i^uem se b8o dignou honrar asm
juma »ò palavra^
O padre Ventura sobretudo o que temia emm
as imprudências, e achava o primo de Cecília
muito moço ^e nuiito ir^ascivel , para subjugar as
paixões , diante da provocação deliberada de uma
freira contumaz e quizilenta ; além disto lia nos
olhos da educanda (e o padre visitador eabia ler
no rosto dos outros, como em livro- aberto) que
ella tremia iguaes receios , e preseutia próxima
a tempestade: por isso, o nosso jesuitâ previ«-
dente e valedor interpo&«e a tempo para evi-
tar uma s^^na violenta, recorrendo, s^undo o
seu costume « aos melifluos circumloqiAios que
ninguém empregava com mais habilidade.
— ff Se dá licença , venerável irman , inter-
rompeu elle , não acho inconveniente em fica-
rem aqui os dois primos um instante. . , são ne-
gócios de familia, negócios caseiros, como se
diz no mundo. . . Cecilia não é freira , não se
lhe pôde applicar a disciplina em todo o rigor. . «
Depois , confesso-lhe que pouco me devo demo-
rar, e vou commonicar-lhe coisas que não po-
dem passar dos seus ouvidos* »
— «Obedeço, padre visitador!)» — replicou
a abbadeça com azedume. — a São ordens de
V. Paternidade, não poií^o C^t^ir; mas sempre
Digitized by VjOOQIC
B£ D. joip y. 17t
d}gp pe lavo aè miojtias ^lSo9. e nSo respondo
seiíSQ ,poj: pain»,. »
— «íJS DàQ faz pouco, ipíaba iman« Eu res-
poniem do resto. Bem vê, não ba escândalo;
uma secular pôde repeber ps seus parentes e ou-
yil-os em .tern>.os honestos, ã vika de pessoas
maiorps de toda n, excepção.., . o perigo, respei-
tável ^padre, o grande perigo ^ os abusos, que
deçgrai^adamente vemos em tanta casa de Deus« . ^
nâo fello desta , Dens me livre. Esperemos quf
dê um exemplo útil , advertindo pela sua auste-
ridade a relaxjifião das outraSi. O peccado irre-
missiypl, como e^ di?ia, é converter-se a clau-
suj-tí em abrigo , çm çiprisco de adores profanos
e quasi públicos, e abrindp-íie qs wllos dos lo-
cutórios ao vicio e á seducçâp. Eis o mal ; mas
ha de curar-se c(m a ^uda de Peu^. Esperemos
tudo delle. »
— « Menina ! — r gritou a freira , convulsa e
suffocada, — sabe quem manda aqui? Já ouviu
as minhas ordens ? Veja p que o seu parente lhe
quer, e depois, peça-lhe licença, e retire-se
immediatamente. Irà fazer as suas orações àquelle
oratório. »
Ç o dedo mirrado e eterno da venerável serva
de S. Francisco indicava uma porta , fronteira
à.dft entrada,, que dayft;|^ra a çapíçllinha inte-
Digitized by VjOOQIC
17â A MOCIDADE
rior aonde costumava fazer as suas devoções. Ce-
cília abaixou a cabeça , pallida e desorientada ;
o mancebo desfechou uma vista de ódio mortal
tão ardente, que se a freira o visse, esfriava até
ao coração. O único a quem o rasgo de auctori-
dade da abbadeça não alterou foi ojesuita, a quem
a seta era apontada ; apenas um sorriso amargo
e desprezador lhe fugiu pelos beiços , encres-
pando levemente os cantos da bocca. Revestido
logo de ar severo, e tornando a estatura erecta
de um só movimento cheio de magestade , não
precisou senão de levantar para ella os olhos para
lhe abater a soberba, e a confundir na vaidade.
É verdade , que a chamma que luziu nos olhos
do padre brilhava tão viva ; é certo que o gesto^
de que a acompanhou era tão firme e tão pode-
roso , que o próprio parente de Cecilia , pouco
aíFeito a deixar-se dominar, não soube encubrir
as suas sensações, e recuou involuntariamente.
Entretanto nem um dos músculos da face do
jesuita se descompoz com a ira, se ira havia
nelle ; nem uma só nota acre ou resentida lhe
tremeu na voz ; somente, por eíFeito natural do
sentimento da superioridade, a sua voz lenta
encheu o aposento , sahindo vibrante , e accen-
tuada da bocca do filho de Santo Ignacio. Âpro-
ximava-se mais do timbre metálico do sermão ;
Digitized by VjOOQIC
DE D. JDAO V. 173
mas não reyia a menor expressão de cholera , ou
de paixão. Era fria , pausada , e grave como de
costume.
— «Cecilia — disse elle com a maior sereni-
dade — pôde ouvir e responder. Esteja em quanto
lhe fòr preciso; e prohibo-lhe que deixe esto
quarto sem minha venía. Falle sem temor, a
esta janella, que ha de ter muito que dizer e
que sdber l . . . Não lhe recommendo modéstia e
eircumspecç&o, porque lhe foço justiça. Não ignora
o que deve a si e a esta casa. É quanto basta. )>
— fc V. Paternidade esquece que eu estou aqui,
ott julga que já não sou a prelada deste con-
vento? )í — atalhou a abbadeça verde de orgu-
lho, e de desesperação.
— « Eu já lhe perguntei alguma coisa , , ma-
dre abbadeça? Ou essa interrogação imprópria
involve a temeridade e a desobediência de que-
rer pedir-me contas ? Ora bem ! Espero no Se-
nhor que a soberba e a rebellião não achem
guarida nesta santa casa ; mas se por desgraça
se introduziram aqui , temos na igreja de Deus
o remédio. . . por mais altas e seguras , que se
julguem. Vamos, querida irmã, já Ih^o disse,
pouco posso demorar-me. »
Balbuciante e tremula a a|)badeça seguiu o
padre visitador em um estado , que fazia com-
Digitized by VjOOQIC
174 A MOaDADE
cesse soBre cr séti dotttettfo ^ attiiátfe 4e iigc^.
Aonde ha vontade e poder a occasíão nírif Mta^y
e a sua consciência acciwava-a de gravés negligen-
cias em mais de um ponto. Decidiu-se, portanto,
a evitar segundb confRcto , e a détorar este hkí-
milhaç9o, como aviso salutar, embora losse ermar*
goso. Da Stta pairtef o^ jfesufto, saflsfeitô^ dh^ y^dkh
ria , ou fezendo poueo ca^ò délFa ,* voltotr hgtf ff
èoçntú , quer lhe êra haftituall Obtftte d* ffitt*, e^
dada a demonstràçãb precisa , entendia ò^flÚh-^
mente que o meio dte' (íolher ás rantageiír ií5o
consiste em apettaií ãb mái^o^ai^. fbi pdf isèty
que os dois reKgiosoíT se retiraram' ao cubilb- dtf
primeira janella , deixando em plena Itberdsíde^
a filhff de FiKppe dà Grài» e o sf^u atnántèf, que
seguinda o «onseffio A) padre yenttira^ se redõú
Iheram ao v9o , aonde podiam éster sefn, sttàft*
vistos nem «uvidòs: A aftbadeça' e o jèíáriUtodéSíí-^
âppareceram logo no recanto profecfor', que c»*'
separava completamtenté da educanda e do itott-*
cebo.
Digitized by VjOOQIC
fMtn .Vf"}"^ '■'■"''^'^■' "■>* '^Mmé^^m^n tij^Vin'
cAmxszo X.
ÊCai £. SMlH^it
)f9im^ o; itf8»i0^ aèíaiilotMè e recuou; quiií
gMi-4hd ifHM cK 4orftção; a «hm eimoreeia nM
olhos, e a yoz gemia nos lábios em murntorioi
teroos; Hor m^§e da oMrmoçto afocHiMHSid mi si-
leam^e ouihmi d& beèjofii o» dedo» fOSado^^ qtlc^
o lefaidwilii' ktandfliMBttto^ trmimidot èò f râsnr
eiHvQ OS seos, fM se Um ítíusnàò fittafo^ otnadoss
em os êf^ítBBT.
HieadoiwwHi com a nisto, m. ^héf « pritsc^'
era doqaente mm itieífitice. A dott^ta, ao^sò^
Digitized by VjOOQIC
176 A MOCIDADE
bresaltodo amante, gosara o seu tríumpho. Sea-
tindo-se arrebatar em radiosa agHa^, pel»
suas contava as pulsações do coração ^ que batia
alvoroçado como o delia , ambos abrazados na
chamma , que arde tanto , se é viva e vem de
dentro.
O seu nome, que na bocca do mancebo era
apenas estremecido por um suspiro , chegava-lhe
aos ouvidos, como suave exhalaçfto, em uma
nota divina desse cântico , qae o coração em ju-
bilo só entoa pelo amor. Inclinada e timida^
Cecilia não sabia de palavras, que exprimissent
o seu enlevo. Ao pé de si tínba o amante; ro-
çavam pelos delle os seus cabellos ; aquelles olbos^
reviam a sua imagem ; aquelle espirito não via
outra lux. ^ . . A donzella desfall^cida de ternura ;
com as mãos a conter o seio palpitante ; com 0
doce nome nos lábios , cedeu ao tremor eléctrico
da paixão , e deixou fugir a alma atraz das il-
lusoes.
Espirando angélica doçura , a sua vista apa-
gava-se a medo na sombra das assedadas pesta-
nas; e em delíquio pensativo , ora fugia de si
mesma entre o veu das pálpebras descabidas;
ora accesa de repente, illuminava-se raiando cheia
de brilho e de poder. Os beiços abriam-se, como
o botão abre a flor ; e perfumados da fragantia
Digitized by VjOOQIC
M B. JÕAO V. 177
da inâocencia^ entre sorrisos voavam a colber
os suspiros do mancebo. Nas faces a côr a avi-
var e a sumir-se ; na vista os desejos castos a
esconder-se e a apparecer ; na bocca o amor
brincando no meio de rosaS' e mbins. . . . Que
fascinante enlevo !
Aquelles cartos momentos viram em rapto
sublime o coração de um fundir-se no coraçio
do outro ; a vista embeber-se na vista ; e uni-
dos em espírito serem a mesma alma « o mesmo
fogo, uma só paixSo.
Era admirável a expressão que dava ao rosto
o enlace de duas almas extremosas, felizes de
({oanta ventura se pôde gozar no mundo. Com
a mão pendente e a cabeça inclinada sobre o
coUo , Cecília conao que dizia : ^- nio falles ! —
Deslumbrado e vaciUando , o mancdiK) , com os
olhos expirantes , respondia : — adoro-te ! — Pe-
los beiços de ambos passava o ligeiro frémito,
que é a melodia do affecto , quando trasborda e
vem perder-^ na palavra humana, incapaz de
o traduzir.
Nos olhos de Cecília raiou a esperança que
brilha uma vez na vida. As pupillas húmidas, e
as palpbbras languidas, a uma e uma deixavam
fugir as lagrimas , que sio tio doces e amargo-
sas, se a alegria as faz correr, e a saudade as
Digitized by VjÒOQIC
178 A MQCIDADfi
i«qol|ie ÔBfQi» como peralM aberta» ao túor
4a paiiio t o enroladas palaa bcef da betlosa*
Qttauto tempo estariftm assim oalladoi e ^n^n-
vmànào, mm e\le^ souberam 9 wm pôde di-
zar^se. Na vida ideal nio »^ cootam as boref *
Somente, serenado o primeiro impuiso» nhã-
ram-sé outra vez 9a terra, a deram o nkimo
a ena ao ceu. ,
A domseUa delicada, jÀ paUida^ jà pwada,
emia da commoçao que a arrebatava, O corpo,
e recuava um momeuto, era para flexivaJ e
ff94^um se deteucar logo para o manceba. A
mio frouxa, deseièia nas rolos erguidas para
a suster. Esquecida e carinhosa aqwlla mio,
tbesouro do amor, dei^ou-se prooènr entre os
dedos eonvidsos do amante , e estramaoendo com
a fogo dos beijos, oao fugiu A soduoolo
doa olhos o o extasis da alma , espirituaUsando o
semblante, davam ao silencio da ternura , ft qaaii
immobtUdade ebeia de delicias, uoia oxprsssio
adorável ^ que (ária em vista deUa paUidaa e frias
as caricias mais ardentes.
A booca do manc^, assastada primaiio, e
arrebatada depoift, cobria da beijos a mio de.
CoatJâft; e mais andaz ff^ ãm, quia atrever^e
a ftttbir das mios ao rosto. Bastov um muio
para a suspender. Ao mdsmo tas^ a voz da
Digitized by VjOOQIC
BB D. joXq r, t79
educanda, suaipe e Tepmadte da attraeção ilM*
sistivd , que é o maior poder da mulher , aquella
voz infantil na frescura, maviosa na doçura^ e
tão persuasiya como a paiitão , ?eio pdr termo a
uma sce&a , em que ambos gosa^am e padeeíam
muito. No meio de um sorriço, cuja ironia doce
toda era amor, a linda menina a&stou de
leve o amante, com um gesto delicado, e in-
cKnando a cabeça suavemente para elle^ excla «
mou coni ceita lânguidis oa falia :
-><-.« Ás santas nunca se beijou aenão a mfto.
A bocca é para pedir a Deua pelos peecadores. »
f«^« Olha -*^ exclamou elle erguendo as mãos
e cahindo em adorafsllo «^^ A alegria enloá-^
qu6ce! . . . .Estou ao pó de ti^ yejo^te^ ^ ^^o
o posso crer ainda. Se soubesses com que sai^
iíàe esperei este dia, e o receie ifue tive de
que elle não chegasse! . . . Cecília ^ a felicidade
imagina-se, descfa-se^ mas assim de repente ^ é
como a dôr, custa a supportar. Dize«-ni6 cpw
tão é BDiiho I Pelo meu amor te peço i oompa-
dece-te de mim; sou indigno de te vêr: faemt
sei , : ma» fierdoa«-me; nie te oíbndai ; nSo^ ou-
Te«me! SiJTaHBie! i>
•««^ K Com tão poQ^ lé achas que será possi-*
TelT-^ acudiu ella rrisonlia« ^^^ingrato 1 Hd da
pegaiute na mio e pd-a sobre o toraçiot pnra
Digitized by VjOOQIC
180 A MOCIDADE
sentires que não bate menos do que o teu ! £01
que esperas , se os blhos estão a vêr , e tu aão
acreditas?»
— <r>No teu amor! »
— «e É milagre ! E não receias. ...»
-^ « O receio é só de te perder. . . . Creio em
ti. . . . Como em mim. »
— « Como em ti? Será bastante? » — ata-
lhou ella , maliciosa na duvida que fingia.
— cc Não ! Creio como em Deus. »
— « É demais ! Mas se ama» sem féé . . »
— « Sem ella eu não podia viver !
— (( Morre-se por tão pouco ? » — perguntou
Cecilia entre seria e jovial.
— « Mor^ , se o incrédulo perdeu a espe-
rança toda. D — insinuou o mancebo; e lendo
nos seus olhos a ternura , acrescentou : — <( £
elle poderá salvar-se ? »
— « Talvez ! . . . dize-lhe que ame e creia
sempre. »
— « E promettem ouvil-o ? » — acudiu com
fiogo.
— « Estariam ao pé delle se o não ouvissem ? »
A pausa , que interrompeu o dialogo , nascia
da anciedade. Este gracejo, no estilo melin-
droso dos amores vulgares , era muito falso para
ccHrresponder ao profundo affecto, que os domi-
Digitized by VjOOQIC
DE D. JOÃO V. 181
nava ; e ambos conheciam que deviam aprovei-
tar a occasíão. Entretanto , nenhum tinha animo
de soltar a primeira phrase, tão custosa de ex-
pellir do coração , se vem delle , e não da bocca ,
os juramentos , que a consagram.
Cecilia, observando que o mancebo luctava
comsigo , e não se atrevia a fallar ,' poz os olhos
no chão , e com o rosto affogueado , ousou ser
a primeira a declarar os sentimentos da sua
alma. Na altiva innocencia , tão segura que
nada receia, e adorando com a devoção exal-
tada do amor virgem, a educanda^ pegou na
mão do amante e exclamou depois em voz tre-
mula :
— « Callas-te ? Queres que eu , mais timida ,
antes de te ouvir , diga que amo ? Acredita , se
Dão o sentisse não te illudía. Sou alegre, sou
até creança , como elles dizem , mas o coração
se uma vez prometteu nunca mais se esquece. A
occasião em que te vi , os momentos em que
foliámos , os juramentos que escrevemos , estão
firmes ; foram feitos diante de Deus , e gravei-os
com o sangue da minha alma ! A ventura , ou
a desgraça , que posso esperar , entrego-as nas
tuas mãos. ... O mundo, se me escutasse, ac-
cusava-me : é mal feito , bem sei : uma donzella ,
que se estima , não diz de repente a um homem
Digitized by VjOOQIC
183 A UQCIDADE
O que eu estou aqui disendo. Mas sAcs ! O re-
cato é dt alma ; e para me guardar, é de mm
o meu amor e a tua bonra. Confio em U ! 7 Se
abusasse!, vés ! despresara^te , e quando se des^
presa. ... o amor caUu e vão tem virtude ; ta
e eu somos incapazes de Ibe darnoies essa morte ,
não é assim! »
Elle corou e esbpemeeeu ouyindo esta confia-
sio ingénua. Bm quanto Ceciiia fallavtt , contem-
plou--a perdido no enlevo , que é a declaiaçio
aais lisonjeira. Depois , ás ultimas piírases , em
que o rosto da sua amante era uma rosa no cnr*
mim e os olhos affectoosos ibe penetravam o co*-
ração , tornou a ajoelhar e com respeitosa ter*
Biprà exclamou :
---K Fiaste na minha honra! Se a bocca t^o
não sabe dizer , pergunta ao coração , que 16 m
meu , e elle. . . )>
*-*« Responderá por ti ? a -*** aeudiu a edu-
canda sorrindo com malicia — « Mas o que lhe
bei de eu perguntar, se elle é mudo, ae nio
falia? Sabes o que jurava, sem ^ meu espe-
lho ? Que tão feia nasci , Deus me não castigue !
que até a lisonja se não atreve a enganarnne. »
— a Porque és bella de mais , porque lia nai
teus olhos a pureza de um anjo , é que os pec-
cadores não ousam levantar a vista. »
Digitized by VjOOQIC
DE D. JOÃO V. 183
-^ « EDgAoattiHse ! Sou miiUwr e deprate desço
do altar. . . n -^ atallum Cecilia , obrigando o
mancebo a ei^uer o joettu> do chSo. — «Va-
vam l ^^ prosaguiit impaciente -^ disseste-me que
Ytnha^y e. . . »
-*- a E vim }aFar*te que és a tui da minha
vida« e lâo digo ametade do qtie sinto! Tent
razão; aMi um incvedalo^ um posillanimel Es-
tremepo^te^ e callo*me e perturbo^me, quando
o eoraffio está a estalar no peito, e a alma não
pôde já com a Micidade. . . Cecilia , boje sei : o
amor é só mna ve2 na Tida. Se adivinhasses eom
qifto saudade te íaHo na ausência ; a magna com
te chanto ; e o jubilo que me alvoroça se onço
o teu nome^ o tea doee nome . «. E a^ra, ?te !
tmno como uma oreança ; affbga*se*me o cora-
ção ; e nSo posso, não sei senão deitar^meaosteu^
pá» repetindo até que tats acredites: — amo-te,
adoto4e, e é a primeira vez que. amo 1 Cecilia,
juro.pek nassa esperança ^ ainda mulher ne-
ihoma foi mais querida do que tn. Eu que não
devo inclinar a cabeça seiião a Deus , que não
ajoelho senão a Christo, olha estou prostrado, e
deixo onrrer j» lagrimas s<dire as taas mãos. . .
Diie y anjo do meu amor, estes olhos chorosos ,
este coração tremenle , não o attestam nsais do
que juramento» e promessas ? »
Digitized by VjOOQIC
184 A MOCIDADE
— « Neste instante ; agora 1 Atteode*me, Jíofo.
Tenho medo de tanta felicidade. Sempre me dis-
seram que muita ventura de repente era indicio
de desgraça. Sou fraca , sou mulher , e tremo
que o amor que é a minha luz se apague , nto
sei por que mãos , nem de què modo. Tenho
medo! . . E é tão forte que me tira a alegria ,
e ás veses o coracSo fica negro de tristeza. »
— « Que loucura ! — acudiu elle, pegando-lhe
na mão. — Não tenhas receio senão da morte :
porque só morto deixarei de amar-te. »
— a E o tempo , João ? Nunca ouviste , que
assim como nas flores a fragrância dura pouco,
o amor dos homens é .curto è facil de mur*
char?. . O mundo, aa armas, outras paixdea
consolam-D^os depressa; mas nós, coitiHkis, nto
temos seiâo memorias e saudades. . • Desculpa !
Não jures , não digas nada ! Para què ? bem sei :
estes instantes, o dia de hoje, o de amanhã ,
são ineus ainda, mas depois?. . . é o méu re-
ceio , o meu presentimento. Rainha, dava-te uma
coroa ; simples donzella , não tendo fidalguia nem
thesouros, dei-te quanto possuia de precioso: a
alma , o coração , toda a ventura que posso. . . vi-
ver. . . comtigo. . . não tinha senão isto ; entre-
guei-to! . . . Que mais queres que sacrifique?»
— « Cecilia ! E reinar sobre esse coração , é
Digitized by VjOOQIC
DE D. JOÃO V. 185
pequena glorta ? Porque choras ? Duvidas de
mim ? »
— «Não. Creio de mais: é o meu temm*.
Jn^s que vivia se me tu faltasses? O dia em
que vir morta nos teus olhos a minha esperança ,
a hora em que o coraçdo, procurando o teu , o
i^o achar , acredita-me , Joio , é o diâ e a hora
em que morreu a tua Cecilia. y>
— <c Sc^ elle também o ultimo da minha vida !
Não , anjo da minha alma , socega. Em quanto
respirar não existo senão para ti. . . Esses bellos
olhos estão tristes e chorosos ? Quero-os firmes no
império que lhes dei. . . lagrimas , e estamos jun-
tos! ... O que farás enUlo na ausência ? Vamos ;
uma bocca , que o amor formoa em um sorriso ,
hei de vel--a seria e pensativa? . . . Cecilia , Ce-
ciiia , não vés que a minha alma suspira nos tais
Idiios, e que o meu coração geme com o teu si--
lencio? »
Ella ouvia-o com jubilo. Alva e trem^te a
tcíão sem fugir deixava-se det^pela do mancebo,
nos olhos do qual ardiam mil carícias. A vista ,
cheia de ternura , quebrava os raios languidos
em doces lagrimas, que aveludando-lhe o bri-
lho , a faziam extasiar eléctrica e fascinante.^ A
cabeça descahia frouxa e negligente sobre o coUo ,
como se inclina ao sol a íflor consumida. . .
Digitized by CjOOQIC
1^ A .MOCIDADE
De repente, escutando m ultímas {Milarras do
mancebo , tremeu-lhe nos beiços um suspin> ; a
yiata iaztlou; e um sormo indefinível encheu de
espirituosa anímaçSo o rosfeo , em que as cotei)
da esperança renasciam ditosas. Neste momento
esqueceu tudo. Um dos braços , em coUar deli-*
cioso 9 cingia o corpo do amante ^ apertmdo-lhe
o coração contra o seu , . que não palpitara me-
nos apressado ; e com a face unida á diette, e os
olhos perdidos nos seus olhos, inclioouHie tanto,
que o haMto suspirara sot^re a respiração ardente
do mancebo. Depois cheia de pejo , eseairlate ds
pudor, fagitt, hesitoi», e voltando en, um im**
peto irresiatvvei , pousoihjfae a booca ligeira'*
mente na fronte.
O fogo, a flor de um beijo, peísson de lereâ
fiii eirtremeoer a alma do amante , ({ue voou aios
lábios a absorver o perfume, e gozar a.doíçuniw
O que ambos sentiram, a pureza deste. oacdo
em que desmaia- o amor virgem , só pede apre^
cntlK) quem nas anciãs deste martpio, tão cnid
e tãosnave, aprendeu a conhece quanto eile
doe , e se deseja.
Apenas a eacpbsão do aíFecto assereDou «m
pouco, Cecilia envei^onhada escondeu o rosto
entre as mãos ; e a8 li^rimaa soltas e-abrasadas
gotejaram uma atraz èk outra. De jodhos-^ raan-
Digitized by VjOOQIC
OB B. Hão V. 187
téhOf beij«m-Uie o» deão» eonvulsoif e entre
meiguiced e estremiM» foFeej^va por Ibe descobrir
00 lindos olboft^ tpm o pegar tomava tilo perigo*
99B^ Asúm decorreram minutos, até. que eUa
pallida da lucta interior^ e endiagando o pranto^
kiftt&toii a cabefa, ^iizendo com tristeza :
--^«Foi um» fraqueta, JoSo; nSo oie des-
pnstes I . • • )^
-*- <x Despresar-te ? 1 « . • quando te ddknro^, o
me fases, o mais felisi dos homens. »
<^-*^ d O temp«k é precioso. . . ouve^me. Meu
pae está ¥tvo^ ebegou hontem. Em dois dias vou
sdiír do eon¥6nlo> aonde odbi as doces e eter^
nas memorias da minha vida. Se não toraar a
vèr-^te, eite aunei è para te lembrares de mim. « ;
Promettes q^ , uma vea mv dta ao m^ios «
olhando para elte, darás ima saudade, umdi
lenbranoa è toa Ceciita ? a
E passourlfae no dedo uma <x memori)) » cuja
brilfarâte sapfaâra era pura e azul como o eeu
que os escutava.
— « Acceito ! ~ eiíclamo«. elle com fervor. -—
Será o símbolo da nossa uniSo, JuíTo diante de
Deus nao receber outra miilhef , em quanto qui*
zeres ser minha ; e solnre a mi«ha alma e a mi-
nha honra protesto antes HMxnrer do que não
eumpiír .. >>
Digitized by VjOOQIC
18B A MOCIDADE
— (( Olha — respondeu CeciKa ccfm suavidade
— o futuro nfto sei , mas sinto que talvez estas
sejam as ultimas horas de felicidade. . . Amo-te,
^ João I . . . Amo-t€ como nSo posso amar outra
vez ; e digo-f o ; nSo tenho pejo ; nSo me enver-
gonho. Seguir-te-hei a toda a parte; a minha
alma és tu, e longe de ti n&o vivo. Se me cha-
mares 9 ouvirei aonde quer que esteja ; e cheia
de orgulho , radiosa de jubilo , hei de vir , e ao
pé de ti , e juntos , a tua alegria será a minha ;
a tua dòr consolar*se-ha no meu seio ; compa-
nheira inseparável achar-me^has sempre unida á
tua vida. . . em tudo. . . Sabes o poder que tens
sobre mim ; de que servia negal-o ? Quando o
amor é assim , o coraçSo de um vé tudo no co-
ração do outro. Em paga do affecto de minha
irmã ,' e do extremo de minha mãe ; pelo res-
peito de meu pae , por quanto estremeço , por
quanto posso sacrificar ; não peço senão amor, o
teu amor , que é a única existência que hei de
viver. . . Pela terniu^a dos que mais estimas, pelo
carinho destes instantes , não me enganes I Ju-
ra-me, que a tua Gecilia, perdendo tudo, achará
o amor por que suspira ! Vês tu 1 > sem elle não
respiro , e o remorso será o teu castigo I x>
E meia ajoelhada, o pranto corria, os soluços
estalavam , e convulsas as suas mãos apertavam
Digitized by VjOOQIC
DB D. JOÃO V. 189
anciosas as, do mancebo. A eloquência do gesto
e a express&o dos olhos era quasi divina. Elle
erguía-a com ternura ; adorava-a com suspiros ;
e arrastado aos seus pés, repetia com fervor:
— « Amo-te , adoro-te ! Quem não te ha de
amar ? »
— <c Serás fiel ? »
— «Sempre! »
— « Não amas outra ? »
— « Ninguém te iguala ! »
— « Serás meu , só meu, como eu sou tua ? »
— « Cecília , Cecília ! Não vês que tanta ale-
gria mata 1 Ahres-me o ceu , e não reparas que
nos esperam as saudades ? »
— «A saudade também CQnsola. Quando penso
em ti a minha alma vive. Diísi^te que amava e
o meu amor é assim. Já te perguntei quem eras ?
Nunca'; porque o coração te conhece l Mas ha
um segredo que me occultas. Porque não decla-
ras o teu nome ? Meu igual , quem te impede ?
Meu inferior , eu descerei. « . »
— QcE fidalgo, e grande?» — atalhou elle
com um sorriso.
— « Subiria eu para te encontoar. n
— a Não, querida, eu é que preciso subir para
te igualar. . . Rainha davas-me a corda ; juro que
se desejo um tbronó, é pura te assentarei nelle.
Digitized by VjOOQIC
i90 A MOaOADB
Um dos meus. . • um dos hcmnm reis, D^ Pedio
que chamam o Crud, não coroou rainha a linda
Ignez? Senhora do meu coração, qaem diria
que um império é muito pelo teu sorriso?»
— a Lisonja ! os reis querem liberdade ,* e o
amor é escravidão. »
— c< Em que são de rosas as cadeias ? Vés ,
a poesia segue-te ; és a bella musa deate sitio. . .
Olha, Gecilia, sabes o que lhes falta a elies,
aos príncipes ? É quem os queira por amor. Fe-
liz daquelle qm foi amante antes de ser rei ! o
— « Mas responde ! Quem és ? »
— a Um homem que desejava ser Deus para
viver comtigo eternamente. »
— E que não é rei , ainda que tenha os me-
recimentos ? — accrescentou ella , sorrindo com
malícia. —*Dize 5 e conde és? »
— « Não« Mas os condes. . . . » '
— « Valem menos. Queres que diga?.De8e^
java-te grande fidalgo. Gomo haviam de cair
bem as gallas da corte em tão airoso corpo ! — ,
proseguiu Cecília , admirando^ com innoeente
desvanecimento -r—E os bordados e os diamantes
que bonitos ficavam ornando esse peito que é
tão nobre * . . . Olha , eU fisna-te rei , se fosse
Deus ! » . .
— (< Querida , — acvdiu o mancebo um pouco
Digitized by VjOOQiC
M D. JOXO V. Í9ti
perplexo^-^a yerdt^ra galle de iim.cavallmro
é a aspada ! n
•*-^« £ teu pae como se cháina? n
-«■,« Pedro ! »
^— « E o teu nome todo ! »
•~« D. João de Villa Viceja, n
^K Então âi fidalgo? y> •
^»^n Sou. »
— « És titular? »
-^ii Na fomília, de que descendo, o titulo
é o direito; e tem custado caro. »
—«És militar? »
— ^íiO& fidalgos portugueies, Cedlia, nach
tmí soldados. )»
— « £ as^im como sou querethme , amai-
me? Detisas por mim as damas, as fidalgas? i>
*-^ K Anjo da minha alma » por ti deixara a
^incesa mais põd^sa. »
— :« D. João — exclamou dia com enthi^
m^o -*^ pobre, amaYa«-te I Mecbameo, ad^aya-
ta ! Sem parentes nem riqueza , quma-^te com
igual estremo. O meu amor te serviria de pae,
;de fortuna , e de nobreza. » . .
— ** « £ eu , Cecília , pela ahna de minha mSe
protesto, que por ti esquecerei família, poder,
e gmndeza , se. . . . »
— i< Se Deus não ordenasse que respeitasse-
Digitized by VjOOQIC
192 A MOCIDADE
mos em nossos pães a imagem do Creador ! » -^
disse ama voz grave atraz delles. VirouHse e
achou o padre Ventura. Na luz dúbia do ere-
pusculo apparecia já de longe o habito da ab-
badeça , recolhendo-se ao oratório.
— « Padre , cuidei que estava só ! — excla-
mou o mancebo no mesmo tom , e com espirito
igual ao de Luiz XIV, dizendo: — «SenhMnres,
El-rei esperou ! » ,
— « É só esteve — replicou o jesuita serena-
mente— Apenas ouvi as ultimas palavras, e
essas não diziam nada , porque n%o quero crer
que dissessem muito. . . . Entenda , Gedliit , seu
primo tem deveres pesados. Roguemos a DeiEK
que o auxilie para elle os desempenhar com
gloria. Se o ama, segundo o século, pôde contar
com o seu coração ; não conte com mais nada. »
— a E que mais posso desejar? »— resp<MH
^u ella singelamente.
— c( Conforme ! Ás vezes , ignorando o yalor
das coisas, damos de graça grandes thesoiros>
e sabendo depois arrependemo-nos s^ reme^
dio Mas isto são horas de sair. Repito :
seu primo tem deveres ; e estou certo que em
poucos dias elle mesmo dirá. ... d
— « Padre ! » — gritou o mancebo mordaido
os b^os.
Digitized by VjOOQIC
Ds B. JOÃO r. 193
'—«O meu nome é JuHo Ventura! — acu-
«liu- o jesuttà oppondo esta observação cortez á
exclamação quasi inciyíl do mancebo : — seu
primo — proseguiu virando-se inalterável para
« donzeHa , — foi sempre bom e justo. Sabe que
o sangue que Ibe corre nas veias é do mais il-
lust^e, e conhece que um fidalgo portuguez é o
symbolo da honra. . . . Isto bem considerado ha
de inspirar-lhe uma resolução virtuosa ^ digna
delle 9 e em harmonia com as suas obrigações. »»
— «Se V. Paternidade sabe a quem falia,
aoonsdlho-o a que não contiuMd » • — interrompeu
o laancebo com modos rmp^iosos. O padre sor-
riu-«e ; e no mesmo tom natural , continuou :
-r- « Aconselha mal , é o que faz. Na Com-
panhia , ba de saber , costumam experimentar-
DOS desde noviços para todos os lances e traba*-
Ihos. . . . Quem prega na America, na China,
e nõ Japão , conhece ao que se expõe ; sabe que
pôde morrer pela verdade ; comtudo isso, o Evan-
gelho chegou pela nossa bocca ás regiões mais
barbaras; e a cruz arvomda por nós e regada
pelo sangue dos. nossos martyres está de pé e
floresce. . . . Cuidei que lhe tinham ensinado
isto. h
— «Sei tudo o que me diz! — accudiu o
mancebo um pouco humilhado da lição — mas
13 *
Digitized by CjOOQIC
194 A MMaDADI
O serviço de Deus fião tem nadbi com • que- es-
tava tractando, quando Y. Paternidade me in-
terrompeu indiscretamente, i»
— a Tem tudo; á censura é injieta. A sua
conversação nfio podia dmrar; e ha promessas
tombarias a que é prudente valer a tempo ....
Diga-me : era melhor que viesse a abbadeça em
meu logar , e ouvisse? . , . »
■— « Pois ella havia de atrever-se ? . . . »
-— « Â separar doas primos? Ê simples. Fa-
zia o seu dever. Sejamos rascáveis. O que lhe
disse , Cecília , é exacto. Seu primo tem grana-
dos obrigações a cumprir. Fidalgo, a sua honra
é sagradb : portuguez , ámanhft , hoje mesmo ,
pôde s&r chamado ôs armas, e ha de ir. . . ; )»
— c< Hei de ir , padre ? Ás ordens de quem ? d
— clamou o amante de Gecilia cheio de orgu-
lho e de cholera.
— « Ás de El-rei e da sua pátria julgo eu. . .
Creio que obedecerá a ambos. »
— a Mas isso tudo' o que tem com o ndsso
amor?» — perguntou com timidez a donzetta.
— « Muito ou nada , filha. Se nos limitar-
mos ao estado, em que nascemos, a nuvem
passa por cima e não nos toca. Se nos exceder-
mos , pôde acontecer que nos alcance. O raio
procura mais as emincaeias. Deixemos, poiéA,
Digitized by VjOOQIC
DE D. JOÃO V. 195
M rilègDfiae* QnBf saèèv éo tem dereres feaa-
do», seB«piriiiK)r3 Vept!»
E tirando «m carta 4o> aoio^ catoegoa*^ fria-
HMitir ao naimba^ Este apenaslea o sokcpipto
sobresaltou-se,. e <Mniièo ptra o jesaika menof
arme do qoe antes*,, perguntota :
— <(Quem lhe deu esta casl»}»
'-^c A pessoa qm 9 escrmem. »
— «Ent3o 8d)e?. . .w
-*-^ «Tudo» O' qur m& dímni;^ »
D. João abriu a carta e leu-a agitado. De re-
pente fez-se k^Dcòy e dan^ alganMS volta» pela
fasa com infieto^ mamummi;
-^ « BfsseranF-lhé Utà»}; Mó importa.. Co-
miga perdem, pekfarf» 4 qaanda tfSo eoisegueih
pela brandura. Veremos se este casarasado' se toÉ
BÕa quercÉd» eu ! »
AÔilflHulo o primeiro accesso, cbtgaa^e a- Cef-
eiiia d! disse^ tora infinita termarfei :
-^orSou obrí^of a salbit. Esta caria èna
rcdidade hnportante-s & t»mo di6se ó' padre. . .
Ventura. . . tenho deveres a cumprir : mas socegar
qfaerida , o priniMo der todos é amar-te. Em
poiHM dia» nos veremmí ;: bemi sbIks^, jAb poa^a
com as saudades da tua ausência. »
ist^foèditid anieia voa; apesar dr. pcwcatição
0 ícsuita sorriffHie, ianh? adíaiite parar Itte akrir
Digitized by VjOOQIC
196 A MOfilDADE
a porta da escada particular. Passando fov Cecí-
lia , attonita da repentina despedida , o padre se-
gredou-lhe ao ouvido estas palavras :
— • «t Eu não4he dizia que seu primo tinha de-
veres , e que havia de cumpril-os ! »
Ao sahir da porta D. João olhando para elle
com attenção, disse-Ihe:
— « Padre Ventura , fez-me um grande ser-
viço. Se houvesse dois cavallos ! ? »
— « Esperam enfreados no pateo do mos-
teiro.»
— «y. Paternidade é magico?»
— « Deus me livre. Mas sabendo de que se
tractava preveni as coisas. Acha que fiz mal?»
■ — « Padre Ventura , procure-me. Preciso fal-
lar-lhe mais de vagar. »
O jesuita inclinou-se profundamente e reco-
Iheu-se para o vfto da janella, deixando em li-
berdade os dois amantes. Vendo que o não ob<
sorvavam , o mancebo ajoelhando quasi aos pés de
Cecilia entregou-lhe um pequeno maço lacrado ,
dizendo :
— « É o meu retrato. Lembra-te com elle de
quem fica penando até tomar a ver-té. Adens,
adeus 1 x>
E arrancando-se de um impeto ao encanto
que o ligava , sahiu precipitadamente. A doo-
Digitized by VjOOQIC
BB D. JOÃO V. 197
zells , mettendo o retrato no seio , pensativa , le-
vantou os olhos , e achando callado ao pé de si
o jesuita , perguntou-lhe :
— «A carta , meu padre , é de muito valor ? »
— c( Filha , aquella carta vale uma coroa. >»
— «Então D. João é?. . .»
— « Mais baixo , de vagar ! ... £ um homem
que está a receber a maior herança de Portugal. »
£lla não 'percebendo , declinou a vista , sus-
pirando ; e seguiu o padre , que lhe offereceu a
mão com amisade para a conduzir ao oratório
da abbadeça.
Digitized by VjOOQIC
Digitized by VjOOQIC
CAPITULO XI.
MUITA ftULttA PABA NADA !
Vamos á rua das Arcas, a casa de Lourenço
TeJles.
Seriam oito horas da noite , quando uma pan-
cada forte na porta da rua , despertou da espé-
cie de somnolençjij^, em que ia cahindo, toda a
família reunida ^p escriptorio do Commenda-
dor.
O velho erudito, deu um suspiro e pousou
o livro, que estava ruminando. No meio do so-
bresalto , a sr.^ Magdalena da Gama deixou es-
capar uma estação do seu ros«*io. O abbade
Silva pulou na cadeira; e o lápis quebrou-se-
Digitized by VjOOQIC
200 A MOCIDADE
lhe nas pregas do toucado , que desenhava ; em
quanto Cecília e Thereza , uma sentada a bor-
dar ao pé da outra, levantaram a vista para
Jasmin, que sahiu do canto da sala e a um
aceno de Lourenço Telles , . acudiu á escada ^
com um castiçal de três braços , a Cm de reco-
nhecer as visitas.
Ainda fora da porta, estas faziam já uma bulha
intolerável, fallando, e rindo estrepitosamente.
No reino animal , o alvoroço era igual. Mi-
nete esperguiçou-se , apontou as orelhas , e cóm
abrimentos de bocca , assentou-se aos pés de seu
dono na conspícua posiçfio, que decidiu o ab-
bade Casti a honrar os gatos com a intendência
da policia. O papagaio espanejou-se , e entufado
viròu-se para o abbade Silva , e chapou-lhe a
pergunta, ensinada por Filippe — «O abbade
quer chapéu ? » — escoltada de três risadas rou-
cas , e discordes. A circumspecta Minerva , que
presidia ao laboratório do erudito , escandalísada
fugiu diante da invasão dos bárbaros.
Como dissemos, o Commendador pousou o
livro , e virado para o abbade , observou-lhe :
— « Sào novas loucuras de meu sobrinho ,-
quer vér ? Isto é umas sobre outras ! »
— « Ouço vozes diíFerentes » — respondeu o
sábio archaista.
Digitized by VjOOQIC
DE D; JOÃO V. 201
— a Medor túrce o nariz \ » — gargarejou o
papagaio, empertigando^e no poleiro.
— « Maldito animal! y» — rosnou o antiquá-
rio muito vermelho da risadinha das meninas ;
e oilendido com o presente de uma ameixa cu-
berta , premio de Lourenço Telles ao plumoso
satyrico.
— « Jasmin ! » — exclamou o velho erudito
com impaciência.
Ao som da campainha , tocada com força j o
escudeiro appareceu entre portas.
— « Quem fai tanta bulha ? » — perguntou
9eu amo.
— « O sr. Gapitfio. »
— « Quem vem com Filippe? »
— a O sr. JoSo dos Remédios , quasi a ras-
tos. ...»
— « Fr. Joio a rastos ? O que me diz ? E os
outros ? »
No encarquilhado rosto do escudeiro )ia-se
grande constrangimento ; seu amo e toda a fa-
mília viam-no , e por isso porfiavam no interro-
gatório.
— « Nâo conheço » — replicou Jasmin , en-
colhendo os hombros.
•»— « Nío conhece ? Quantos slo ; também nío
sabe ? »
Digitized by VjOOQIC
208 A KDCIDÀPB
— « Um só ! » '
— « Que Jãgura é ? • . . »
O escudeiro torceu-se, e deu á iuz a evasiva
segumte :
— «Não tem figura possível ! »
' — «i Ora essa? Mas Jba de parecer^ie a mn
homem, espero em Deus. »
— c( A um homem não sei, mas ao demó-
nio , parece-me que sim. Pelo menos tal e qual
o pintam nas egrejas. »
A lingua pegava-se-lhe ã cada palavra. O ea-
cudeiro nunca fòra medroso nem visionário ; a
sua opinião , e sobre tudo o susto com. que a
manifestava causaram , portanto , profunda sen-
sação em Lourenço Telles. O calafrio, que fez
aninhar a familia, e o próprio abbade, á roda da
sua cadeira, visitou-lhe também a espinha dorsal.
Na véspera ao jantar tinha ateimado com Fi-
lippe, que o diabo não podia apparecer em forma
visivel ; e seu sobrinho , partindo nozes , e re-
gando^s . de copiosas libações de excellentd vi-
nho, apostara dobrado contra singello, em como
antes de quarenta e oito horas havia de conven-
cer o tio sábio. O velho erudito riu-se e citou
o varão tenaz de Horácio, appellando para o
abbade, que encolhia os hombros com n^do de
Filippe, e bastante igualmente da forma vi*-
Digitized by VjOOQIC
^B B. .rOAO y. 2ft3
sW«e) do 4aiMiiio. FmlmeDt^ o noiao capitão,
vendo fiuas filhas muito riMobaa^ e .§ua mulber
^o^iida^, 6 J«ai9ÍJi tusaiodo {lará eogulir a gar-
^Jhadfi aac^a » quto Ibo fonuigava m garganta ,
levaotiw-se mbdadot e empraioa os iocr^u-
los pftfH recobenem o diabo em casa no dia se-
^auate. £i» a arasãOn porque mais ou menos tre-
fnermB todojsf 9 oi«viodo quo o teatqidor se achava
á (K>i!ta i na %iira om que o pintaoi os bomeos
seu kiimj^a.
— ^<< O 4Í9bo? J* — exclamou l-ourenço Tel-
les^ pondo o fispi4ÍRi *i5ohre a meza^ — « Meu
afdbríaho ati^eveu^ae amatter^me o demónio em
easa ? >i .
•— 1( Aasim o supponho:»-^ replicou o escu-
deiro owa pa¥Qr. ^
-«^ <r Fecàem a porta. Ponbam*no fora» —
gmtfou o latinifita, taxendo-ae branco, como a
Um da «na cainúsa , e olhando para o abbade ,
4iie estava cèr de cré^ e fi^m os bi^açoç. dece-'
'¥. Â quem? » — perguntou Jasmin muito
pálido -^c(.A,o damonio, ou ao sr« capitão? »
-*^«( A ambos, a an^s, eu não. exceptuo! »
— retomou o Commendador i^om a maior ve-
bameiíeiia i deixando eabir a .^ixa do tabaco ,
ixm dar por isso. Np chSo, ^Hou fóra a t^pa,
Digitized by VjOOQIC
204 A MOaDÀDB
e O pó acre e subtil subiu ao feciuho de Mi-
nete. Jasmin já tinba sabido.
Exaceii)ado com o suplicio anti-canonico do
rapé, o gato espojou a caboça no sobrado, ati-
rou uns poucos de pulos, e com o ardor dos
olhos e do focinho, investiu ás longuissimas tí-
bias do abbade , que tinha a desgraça de se achar
defronte. Entretanto o papagaio, subimfo e
descendo do poleiro , gritava , atroando tudo.
O episodio de Minete náo diminuiu o susto
da familia. Victima do attentado, o pobre ab-
bade resistia frouxamente : as unhas do aggres-
sor eram fortes e nada escrupulosas. Em quanto
dois olhos phosphoricos o fascinavam , as garras
dos pés arroteavam-lhe a meia de seda e a bar-
riga da perna , e as das mãos cfaegavam-Ihe ás
coxas , e aos calções de veludo preto. Nova re-
sistência , novos arranhões , segunda derrota !
Então , o compilador de notas , vendo-se feito
mastro da gimnastica felina , acreditou que la-
ctava com o demónio, e perdeu o animo. A
phisionomia solemne descompozHse , a dignidade
pevidosa fugiu; e gago, convulso, e torcido
em gestos de terror , deu tal espectáculo de si ,
què os circumstantes benziam-se attonitos. A
transformação do profundo oráculo em Laocoonte-
palhaço, marinhado pcír um gato, era na rea-
Digitized by VjOOQIC
BBDu JOiO V. 20B
lidadé a maior queda', que podia dar a digni-
dade do sábio, e a magestade do sacerdote.
O pugilato durou instantes. Sentido dos le-
ves repelldès do erudito , MineU subiu por elie ,
assanhado em nAios e assopros atterradores. O
ecclesíastico , inutilmente , recorria ás armas es-
piritíiaes do exorcismo, ás armas clássicas da
lingua lithurgica , e ás armas terrestres de duas
mãos tremulas e arranhadas. O gato ganhou a
yietoria. Conquistando o hombrodochronista de
Affonso Henriques , fez d^elle ponto de apoio ;
e 08 pés escorregando pelas faces rasgavam-nas
em arvoredos de planta militar. Minetey demo-
Tou-^se pouco nas alturas ; e saltou logo em pezo
á gaiola do papagaio , que veio de pancada acima
da cabeça , e de lá acima do joelho do atribu-
lado antiquário. Em epilogo de tantas desditas ,
a ave prieferiu uma coisa do critico a outra qual-
quer coisa, e pegou-lhe com o bico para não
corrsr contara seu gosto.
Não é possivel descrever o effisito do combate
nos espeeta<feres. Era a idéa de todos , que só a
presença do demónio podia arrojar Minete ao
inaudito escândalo de tractar o abbade como
rato guloso ou pardal lascarino. Lourenço Tel-
les mettia dó. Ora dirigia ao seu douto amigo
consolações patheticas , sem lhe acudir ; ora in-
Digitized by VjOOQIC
396 A IKlCiDAVJÍ
crepava o §ào com as mais severa» aptttfopheá.
A queda da gaiola ^e a fiiga cstrepitoss 4e» etfi-
minoso^ obri^famrod' a ralíoar*^ mnã^ecoo»^
temado na poltrona , cubrhi o rosto com o seu
lenço, como Agameraiiaii para nfte aasistôr ao^a»^
crificio.
A sr.^Magdalena ei^uíeias ntes aio» cou; Jqs-
min na eseaãe,^ em nenie -ie seu aono^ ptoUbi»'
a entrada ao capitão Filippei As duas meainaf »
sentadas^ no oamapé^ com; a^ mão na booca , dtt^-
fatam o riso para n&o. espirrar de repente y id-.
trajando a indignação do autor da» bexigas :do'
Viso-rei.
NÍDgoem soccorria o abbade. Per fin» eUe
decidia-^, e foi o defensor da eoxa.iBfasnada^
rompendo a união bypostalica do papagaio com
a sua earne. Um Talrâte pontapé cnvioa depòtf'
gaiola e pássaro de preseiite á prnnaiTai talha, dar
índia, que arrebcaiou peb bojo. O estrondo^
deste novo desastre , e o» gritos do) papagaia &-
teram pular o erudito sobre a mokta; QoMdo
ebegou appresshdo a acudir ,^ não ao amigo ge^
mendo com a mão no fenmr , masí à sua &m
estrabusaisdot entre cacos de barrO' preoioao»^ deu
um suspiro e levantou os braço» aO' facto. O
pássaro tinha «ma perna desloeida ! Biartana af
abbade.
Digitized by VjOOQIC
DF D. lOAO Y. 807
O GoAmendador dítigiunse a d)e e parou
com dua9 reficencias admiraTeis , ama no gesto ^
outra na voz ; o Zoilo de Tácito nem sequer re-
compensou com um volver d^oIhoB esta mímica
lacrimosa. Eslava fazendo o inventario das farpas
e arranhões; e ora fechava um olho, ora outro,
para se convencer de que possuía ambos sem íesSo.
G Commendador consolava-o, despendendo
suavíssimas citações bucólicas, sem esquecer o
« Stint nobis eastanew moHes et prem copia kh
elis ; » porém o infortúnio obdurava o coração do
amigo ; e à eloquência do erudito , elie , com os
beiços brancos e a bocca engatilhada em um sor-
riso páliido , só respondia , encolhendo os bom-
bros:
— « Quem tem onças , põe letreiro á porta. »
— a É a primeira vez qaeMinete se exeedeu !
Tem sido um borrego sempre. Ccmdidus atque
duldssimus! »
— <x Obrigadissimo I Estou aleijado para três
semanas. )»
— « Melhor o fará Deus ! . . . Nunca vi o Jih
neU assim. . . b
— «Pois viu-0 hoje. É lindo, n5o acha? M»
o Sr. Lourenço Telles nio se desengana. Ainda
hei de vêl-o com um olho» de mencn^, por obra
e graça de Mmeíe. Deixe e^tatl »
Digitized by VjÔOQIC
2Ó8 A MOCIDADE
— «Soc^ue, abbftde. Foi tiido casual. N(o
fios admiremos. Não diz o poeta latíno « Homo
sum et uihíl. . . »
— a Pois Dão 1 a et nihil a me alienum puto ? »
Só o que deve Doter é que T^encio não fallou
de gatos assanhados , e que citando-o mal , ati-
rou ás pombas. Mas é mania! Commendadiu:, o
seu gato , o seu papagaio , e seu sobrinho , são
três selvagens conspiradores para me aleijarem.
Declaro-lhe , que não volto aqui sem prévia re-
clusão dos três. »
— «Então quer que eu metta Filippe em
uma gaiola ? »
— «Metta-o n^um tonel, ou na cadeia, aoode
quizer I Digo-lhe isto : elle é o peior de todos.
Quem faz Collecção de feras sustenta-as á sua
custa , e não com o sangue das visitas. Se a sua
casa é um pateo de bichos previna a gente ! . . .
Estou um Lazaro. Ahime! »
— <( Thereza 1 » — gritou o Commendador ,
corrido desta vez e com sincera compaixão do
abbade.
— ^<Estâ curando o papagaio» — respondeu
sua irmã.
— a Nox vomica era o remédio, que elle me-
recia ! » — rosnou o padre.
— « Mau ! Irás tu, Gedilia. Acompanha o nosso
Digitized by VjOOQIC
ujs D. JOÃO y. â09
tbbade e ensin^he o meu quarto. Que lhe tra-
gam vinagre , paches , e agua tépida. Chama
depois Jasmin para o ir curar. Meu amigo, ande
não se deixe esfriar. O vinagre cura. Bem sabe :
a sero medicina paratur , cum mala per longas
invaluere moras ! »
O abbade sahiu pela mão de Gecilia; e o
Conunendador, seriamente irritado, levantou-se,
e foi direito â janella para tomar o ar. Apenas
deitava o pé adiante e firmava o passo, sentiu
que lhe estalava uma. coisa debaixo do taeSo.
Abaixou-se ^ olhou, e levantou logo a vista e as
mãos ao ceu , com profunda magua. A tampa da
sua caixa,; a preciosa miniatura da Vénus de
Medíeis, em vinte bocados, attestava a perda
mais sensivel para o nosso antiquário. Desorieor
tado com o ultimo revez , virou-se para Magda-
lena, e disse-lhe cheio de cholera:
— <( Minha sobrinha, seu marido foi uma praga,
que me cahiu em casa. É a peste , a fome , e a
guerra do meu descanço! »
Quando acabava estas palavras ouviu novo ala-
rido já no cimo da escada , como se as vozes de
fora respondessem em coro á sua apostrophe.
Filippe trovejava, o procurador de S. Domingos
perorava ; Jasmin fazia o contralto soíFrivelmente ;
e no meio da altercação dos três, acima delles todos,
14
Digitized by VjOOQIC
210 A MOGIÔABl
um tiple racbado e embirrento , Soltava iisá4í-
nfaas de fakete , em gorjeios <]e setnifosaí. Lou-
renço Telles tapou os ouvidos , e apertou depois
as mãos na cabsça exclamando com tombria re-
solução.
— <K Jasmin , deixe entrar^ . . Quero vèr tité
onde isto chega ! HUax in liminê latrat ! » O
Cbmmendador alludia aos latidos do Tigte^ acor-
rentado na logea, e impaciente de enb*ar lio
festejo. Apenas o velho sábio curvara o indico e
o pollegar para colher a pitada , que salgava ás
citações ; e achando de menos a caixa^ exhalava
«m suspiro fúnebre ; appareceu na sélã, a passos
lentos uma figura, que não podia ehaitiar-^
ttem satânica nem phantastica, mas que difficul-
losamente caberia no molde admittido gerálosíetife
j^ra a espécie humana. Era um honiem, de
certo ; mas um homem parodia. Vendõ-ô, edtra-
nbava-se pouco a opinião do ôscudeim valido , e
desculpava-se o sobresalto, com que Loi^enço
Telles e sua sobrinha o encararam.
Este homem inculcava mais de quarehtã an-
Àos ; e talvez cincoenta. Tinha 6 cabeça , nua e
ealva , como um joelho. Desta superSéie lisa e
espelhada sabia uma estriga de cabell^ grisâlhdB
e sedosos, erríçada com insolência. A êátiiga
ptrfilava-se no meio da calva, como um péfia-
Digitized by VjOOQIC
M O. JÕ40 V. 211
tkó de mòtieo, ò que daya certo ar exótico e
quasi diabólico ao possuidor da raridade. DeA-
tendo da cabeça , (esconça e um pouco depre-
mída nas fontes) para o rosto ^ achava-se o oiho
direito desapparelhado ^ e o esquerdo perfeito de
mais, isto é de tal vi veta, que parecia saltar na
gente. Des{^ezando a moda , cresciam-ihe das
orelhas , largas como leques , até â articulação
dá mandibula , umas suissas ou tufos de barba
musgosa de três côres , preta « branca , e ala-
ranjada, que lhe armavam duas bambineilas nos
esquinados queixos. Ò hombro direito era mais
alto do que o esquerdo , e no jogar dos braços
derreava-se a compasso do quadril desengonçado.
Um peito de rola, excessivamente convexo ; um
ventre de papo de borracho, arredondado e proe-
minente ; a altura equivoca do corpo , hesitáçSo
bnitesca entre a estatura do garoto e a altura
do homem feito, realçavam a pittoresca, e no-
víssima configuração desta coisa , que a penúria
da lingua nos obriga a chamar humana , porque
era muito aplainada para orango-tango, e muito
tosca para rudimento de qualquer das raças ad-
mittidas.
A sua maior singularidade consistia na perna
esquerda , torcida como um parafuso, e servindo
de baíBe a moTimentos heróicos, executados com
Digitized by VjOOQIC
212 A UOGIDADB
suprema agilidade. Andando fincaya o pé no chão,
e girava sobre elle como sobre a ponta de uma
verruma ; quando ria eram sempre gargalhadas
de escarneo , lambidas em um torcicolo dos bei-
ços, e apimentadas de visagens variadas. Se fal-
lava , (e fallava muito) tinha inflexões doútoraes,
e gestos volúveis; fallava a lingua; fallava a
perna-verruma inquieta e aos pulinhos ; fallava
o hombro perfurante fazendo negaça ao hombro
correcto ; fallava em fim, mais que tudo , a pas-
mosa elasticidade do corpo desencadernado em
momices , e tregeitos origínaes , que pena foi
perderem-se pela obscuridade do personagem,
aliás seriam a fortuna de um actor de farças bem
jocosas.
Domingos José Chaves (era o seu nome chris-
tdo) nascera feio como Bertholdo, eloquente como
Demosthenes , ladrão e velhaco como Gusmão de
Alfaraxe de gloriosa memoria. Domingos José
Chaves era da familia de Hoffinan pela figura ;
da de Caillot pela extravagância picaresca; da
de João Paulo Richer pela verbosidade plebeia.
Mandrião como a perguiça , petulante que nem
mulato rico, e cynico como o cynismo, fazia
negocio em tudo, e venderia a carne ao Judeo
de Shakespeare , se lhe fosse rasoavelmente in-
demnisada. Por divertimento tinha aberto no
Digitized by VjOOQIC
BÊ D. JOÃO V. 213
pasmatorio das Chagas uma aula pratica de pes-
coções^ e regra o curso, vendendo a face ás bo-
fetadas dos discípulos , a tostão cada uma pagas
á vista !
A expressão do semblante era travessa , jo-
vial , e profundamente truanesca. Lia-se-Ihe na
vista a giria da abençoada raça dos Lasarilhos;
achava-se-Ihe no sorriso sagaz e pedante um ar
de parentesco com o nosso amigo Sancho Pança.
Grande vivadidade nas gaifonas (tinha uma col-
lecção inexhaurivel) ; o talento da parodia , ele-
vado ao sublime, copiando homens e animaes
admiravelmente , desde o moxo até á ran ; e o
geito de passear, torcendo o corpo em piruetas ;
davam-lhe uma phisionomia tão exquisita, tão
origina] , e tão impagável , que vivera sempre á
custa alheia , pregando logros ao género hu^
mano.
Já dissemos : a cara exprimia finura e astú-
cia, mas tião maldade. Às maçans do rosto eram
achatadas e largas; os queixos esbrugados em
roda, e devassos excessivamente. O beiço supe-
rior vincado, de ambos os lados do nariz (que era
dogue puro) até aos cantos da bocca, arregaçava-
se em forma de cortina , diante dos cinco den-
tes , que 'Serviam de sentinellas perdidas ás gen-
givas , orpbans dos restantes. Este figurão trazia
Digitized by VjOOQIC
214 A IIOCII^ABB
na bocca um cachimbo apagado; e sobre os cal-
ções muito risonhos nas costuras, cinco, oito,
infinitas vestias e perpões de todas as cores,
esta verde garrafa , aquelle amarello cujo , uma
asul , outra encarnada , emfim uma loja de adelo
completa. A camisa tinha a alvura de uma bel-
leza de Guiné. As ^neias, a direita de seda , no
.3u tempo côr de rosa , mostrava as passagens
de linha enroscadas por ella acima como lacraus.
A esquerda de lan parda, com pontas verme-
lhas , parecia arrancada á canella mythologica do
Sr. Thomé das Chagas. A dextra empunhava um
cacete curto e grosso , de que se ajudava para
as suas corridinhas de gafanhoto. Similhante ao
louva-Deus , o Sr. Domingos José Chaves con-
quistava o seu caminho ás cotovelladas na linha
recta. A outra mão segurava o carapuço , agudo
na ponta , e largo na bocca , parecido ao funil ,
quasi pyramidal , de que a imaginação vesga de
um poetastro toucou a serombatica fronte do sá-
bio Abacadabro.
Logo que se viu dentro da salla. Domingos
fez o seu exame em um abrir e fechar de olhos ;
riu da talha partida e dos pagodes chinas ; metteu
a mão na caixa das ameixas doces e tomou-lhe
o gosto ; contrafez as passadas solemnes do v^
neravel Fr. João dos Remédios , que o seguia ;
Digitized by VjOOQIC
DE D. JOÃO V. 21K
eacaboa por imitar OS equil^rios 4a corda bamba ,
rodando sobre a perna verruma para o sitio,
donde o Commendador estupefacto assistia ás suas
evoluções com a mais furiosa indignação. As pi*
metas do nosso amigo eram regidas por umas va-
riações de assobio , executadas com infinitas mo-
mices em toda a graça e requebro possivel , no
meio das risadas estrepitosas de Filippe , que se
revia no seu hospede ; apesar da ira silenciosa
de Fr. João que o excommungava mentalmente ;
e sempre em proporção dos movimentos de reti-
rada de Lourenço Telles, que não sabia se
acreditasse na ^visita do demónio, em presença
deste aborto , parodia satânica da creatura hu-
mana.
Fr. João e Filippe tinham entrado logo atraz
de Domingos ; Magdalena e Lourenço Telles ben-
ziam-se. As duas meninas detraz do frade e de
seu pai , estendiam o pescoço para vér melhor ,
por cima do seu hombro as proezas do nosso
amigo. Ninguém tinha dito nada ainda. Por fim
o Commendador, olhando para Fr. JoSo excla-
mou muito cholerico :
— «O que é isto, Fr. João?»
O padre mestre encolheu os hombros, franziu
a sobrancelha , e pqchou com anciã o barretinho
para a nuca.
Digitized by VjOOQIC
216 A MOCIDADS
— a Filippe, o que é esta coisa que me trouxe
para easa?»
— «A sua bençam tio ! » — respondeu o ca-
pitSo , que se divertia immenso com o susto do
erudito. — « Então crê ou não crê no demonipT
Eu n&o lho dizia ? ! »
Domingos càquerejou a sua risadinha de fal-
sete , visitou de novo as ameixas doces , e ficou
em descanço de movimentos geraes, mas sem-
pre activo de tregeitos faciaes. O padre Remé-
dios descarregava sobre elle , e sobre Filippe a
a vista flamejante. O Commendador , sentado,
com sua sobrinha ao lado , e suas netas atraz da
cadeira, mais sereno abriu a conversação po»
uma gesto sublime ; depois com gravidade se-
vera , poz termo aos estalinhos de postilhão, que
Filippe disparava com oi dedos :
— « Meu sobrinho , v. mercê não descança sem
dar comigo na sepultura. Anda cavando a mi-
nha morte ! >»
E o velho sábio enternecido com a bypothese
teve a bondade de derramar duas ou três lagri-
mas sobre a sua falta. Limpando depois 09 olhos
proseguiu cada vez mais irritado.
— «Quem é este palhaço?»
— « È o nosso guarda-portão ! »
— «Falle serio; se não me respeita, rc5*
Digitized by VjOOQIC
DB D. JOiO V. 217
peite a casa de sua moUier e de siias filhas. Não
tenho guarda-portão , nem costumo ajustar os
criados no inferno, a
— « Qual inferno , tio ! Este homem é o Do-
mingos. Pois n&o o conhece ? »
— « N5o tenho essa honra » — replicou o eru-
dito , inclinando-se irónico. Elle é que faz o fa-
Yor de olhar como sua a minha casa , saqueando
as melhores ameixas cubertas que este anno re-
cebi. »
— « Âquillo é graça ! »
— «Bastante pezada. Mas quem é então o
senhor. . . . amável ? »
— « É o mestre do Simão .' »
— «Que Simão? V. mercê falia por enig-
mas!»
— «Eu? estou a morrer de fome, tio! O
Simão ? pois não sabe ? É o nosso macaco ....
aquelle que. ...»
Lourenço Telles levantou-se horrorisado ; cha-
mou Jasmin ; e todo tremulo gritou-lhe :
— «Chame os criados e ponham fora a pau
esse macaco.»
— « Não é preciso. ...»
— «Eu é que mando ! Atreve^e a trazer um
flagello assim para minha casa , depois do que
^lle fez. e eu lhe disse ? »
Digitized by VjOOQIC
218 ▲ lICkCIOAM
•*>^«Mas, ido se arrenegue, tÍQ. Q toon^^
D&o veia. É verdade que lhe alluguei quarto «
tomei mestre. . . . x>
— « Mestres ? ! » — exckmou Lourenço Telles,
cheirando vagarosamente a sua pitada , colhidi^
na caixa de Fr. João. — « Mestres a um macaco ? »
— -aSim senhor, e três nada menos. Um
de esgrima ; outro de exercicio militar ; e este
que é a pessoa que o ensina â dança. »
— a V. mercê endoudeceu ? »
— a Ê uma especulação ! O mono faz o exer-
cicio militar de sargento até soldado , pela or-
denança nova. O mono joga a espada preta e o
pau , que é um gosto. O mono baila excellen -
temente. O meu Simão é um portento. »
— « Pois , sr. Filippe , fará favor de me pou-
par o desgosto de admirar os progressos do seu
alumno. Não quero nem vêr a sombra do por-
tento ! » — exclamou em segunda recrudescência
de cholera o conunendador.
— « Tenho pena ! Havia de gostar. Em fim ^
são antipathias. Mas ao menos concorra com
três moedas para a sua educação ! . . Está dito.
£ um anno de sacrifício. Depois vendemol-o
por um dinheiro louco. »
Lourenço Telles suspendeu nò caminho a pi^
tada , e encarou o capitão :
Digitized by VjOOQIC
im j>. ãúào.y, 219
r-%Q&e eu pague os mestres ao macaeo?
lE^ ^m sm jiúso? Ha só uma «despem que ai
farei de boa mente. È enterral-o. «
— «Deix(ç-se disso, tio,!»
* — «Sabe o que V. mercê faz com as suas
loux^uras ? Olhe a minha cai^a ? n»
— «Está um caco !^) — respondeu ò capitão
QOHi soberano desdém.
— «È um caço ? ! Admiro a sua indiffereiíca ;
não sabe quem ma deu e o que valia ? Nem lhe
importa! Vê aquella talha ? »
— u Parece uma baleie espipada ! » — repli-
cou, o sobrinho , rindo,
— « Acha-lhe graça ? Pois destruiu um jogo
de talhas , que não ha outro hoje em Lisboa. »
— : « Eu ? Mas já estava assim , quando «i-
trei ? ! »
— « Não estaria , se V. mercê não quisesse
entrar. »
— « Ah , é outrp caso ; deixe estar , tudo se
remedeia, menos a morte. Tenho duas talhas
do Japão muito melhores. E dou-lhas, mais uma
caixa antiga , de guardar os grillos de Cleópatra,
segupdo me disseram uns judeus , que vale dez
bonecas , como a quç tinha na tampa da sua
tabaqueira. »
— «Filippe, tome sentido. «^Si m'/-, Gnna
Digitized by VjOOQIC
220 A MOaDÁDE
petis , nil . tibi , Gnna^^ nego t » — exclamou o
erudito mais consolado. — « Entende este terso
de Marcial?»
— c( Não senhor , mas é o mesmo. E o tio
mtende ? »
— «Julgo que sim» — replicou o sábio com
um sorriso vaidoso. — « Diz o poeta «que se
nada lhe pedirem, nada negará.» Percebe?
Aquella caixa, meu sobrinho, era um monu-
mento, uma raridade. Foi o capricho de um
grande pintor. Em fim ! parce sepultis ! Tome-
mos ao caso. Quem é esta cara de mau ladrão,
que está devorando as minhas ameixas ? D^onde
sahiu aquella figura ? »
— « Domingos José Chaves á falia ! » — gri-
tou o capitão em voz de buzina. Faça já a con-
tinência ao tio ! «
— a Aqui estou, illustríssimo sr. capitão Filippe
da Gama! Voluit facere uvas, fecit autem 2a-
bnMcas. »
— «O que diz elle ? » -^ perguntou o Com-
mendador com o ouvido escandalisado dos sole-
cismos macarronicos deste Bertholdo.
— « Digo , excellentissimo doutor commenda-
dor , que o sr. capitão , querendo fazer vinho
fez vinagre ! »
Domingos, dizendo i^to ría-se com a bocca ,
I Digitized by CjOOQ IC
DE D. JOÃO V. 22 1
Gom a perna^|»arafQso, e com todo o corpo ^
methamorphoseado n^ama pelotica.
— « Maroto !»-r— gritou Filippe vermelho de
raiva.
— « NSo me faz favor nenhum , illustríssimo
senhor» — respondeu o ciníco, arremedando a
luta continua entre o padre Remédios, o bar-
retinho, e a nuca.
— «Mas, em fim, quem é V. mercê?» —
perguntou Lourenço Telles aturdido.
— «O excellentíssimo sr. commendador , quer
que falle em prosa , ou em verso ? »
— <c Falle como souber. O essencial é res-
ponder^me. O que faz V. mercê ? »
— c( Excellentissimo senhor , a prova de que
não faço nada » — replicou o reu, fallando do
papo ; « é que vim aqui para fazer alguma coisa. »
— ccBem se vê; e não esteve ocioso! —
acudiu o velho erudito, olhando com saudade
para a caixa das ameixas. E o que sabe fazer ? »
— « Sei comer, e dormir , sei dançar , e ves-
tii^; nas feiras e festas canto; e na comedia,
sou encanto ! »
— «Bravo! Não é pouco? Mas enganou-se
n^uma coisa. »
— « Qual , excellentissimo senhor ? » /
— «Na porta. V. mercê4a, pelo que vejo*
Digitized by VjQOQIC
ao pateo ddi eomedras , e aqm é a rua das Ar-
cas. »
— « J&cwía cí justas , ^wíp íí6í /apo queixi-
moniasl O sr. Commendador faz-me a esmolia
de uma pitada, qúe tenha de mais?»
— « Domingos José Chaves » — disse o eru-
dito que se divertia com o interrogatório — «o
que pede quando se ajusta n'uma casa?»
— «Uma bagatella, excellentissimo Com-
mendador Lourenço Telles ! Além do pio quo-
tidiano, peço vinho á discrição, e a minha
pitada vadia. Nunquam me deixeê sine eheirare
pitadam ! »
— «Gosto do seu latim. Não pede mais
nada ? »
— « Sim senhor. Quero os sabbados livres. »
— «Os sabbados ? »
— « Para apanhar rãs ! » -— disse o cpica
tiriumphante. Apanho-as e depois fumo-as!» —
Dito isto representou em saltos de louva-a-Deus
a pantomima da sua caçada extravagante.
— « Fuma ràá ? »
— « É verdade. Vendo-as aos boticários para
comprar tabaco. Não alugo, empresto o meu
zelo ás casas aonde sirvo. Os sabbados sSo as
minhas rendas. r>
— a Tem estado em muitas casas? )»
Digitized by VjOOQIC
DE D. JOio V. Siââ
— • « Servi jâ dezesete amos è meio , exeel-
lentíssimo sr. doator. Com a sua honrada casa
fáz dezenoye. »
— « Gomo faz essa cóiita ? »
— • <( O uUimo amo , que tíve , foi o anão dó
Duque. Era meio amo. Em casa do sr. Com-
mendador ha uma arara , um gato, e um papa-
gaio, todos três muito mal creados ; pelo menos
dfib que fazer por meio amo. Por isso o anão é
os animaes , um ; o sr. doutor dois ;. dezesete e
dois dezenove. Isto é conta de gis , que não far
lha um tris. »
— « Soffrivel ! È tirou alguma coisa das ca-
Mrá , aonde serviu 7 vt
— « Muito , excellentissimo sr. ; porém mu-
déi-me. »
— « Porquê ? »
-^— « Como faziam de mim armazém , puz es-
eripfos. Até o anão trepou por mim acima , é
teve a confiança de me dar um bofetão I »
— « Sim ? »
— « Não tive remédio , paguei-lhe. A noite,
bebeu ópio no vinho e depois, callado como uma
liédra , e embrulhado em uns cueiros , íbi den-^
tro de uma condeça para a roda. LA ficou.. >»
— «Metteu o anão na roda?»— ejtclamou o
Conrniendador , desfechando uma risada cordcal,
Digitized by VjOOQIC
224 A MOCIDADE
que todos acompanharam. — «E o que succe-
deu ? »
— «Houve mosquitos por cordas, excelIeiH-
tissimo sr. I Quando em vez de uma creança yí-
ram um anão , que fallava pelos cotovellos, gri-
taram « Aqui dei Rei » houve chufas e beliscões ;
elle engalfinhou-se na regente ; e por fím deita-
ram-no â rua em cueiros, e entrou descalço era
casa. Assim apanhou o reumathismo, que o to-
lheu da perna.
— c( Muito nos conta Domingos ! Filippe este
homem é seu creado ? »
— a Se o tio manda eu digo que sim. »
— « Pois que fique. Domingos, eu dou cama
e mesa aos creados, mas não dou acepipes, nem
doce. As ameixas e as cidras são sagradas ; tome
sentido ! »
— ^^«Sim, excellentissimo sr. Tractal-as-hei
como sagradas. Só em jejum é que farei o sa-
crificio de commungar com ellas. »
— «A ceia está na mesa ! disse Jasmin en-
tre portas.
O veího erudito levantou-se , deu o braço a
sua sobrinha, fazendo signal 6s meninas que
fo^em adiante. Caminhando, dizia a Fr. João:
— <c Decididamente é dia de S. Bartholomeu.
O demónio anda solto. Que é do abbade?i»
Digitized by VjOOQIC
D& D. JOÃO T. 22S
— «Já nos espera na casa de jantar. )»
— « Bem. Veremos se ainda não se acabou a
noite ! »
i3
Digitized by VjOOQIC
Digitized by VjOOQIC
CAVITUIiO XII.
ntlPPB BU TBRBA P AMIGOS.
Â?siíAS O commendador entrava na casa de
jantar ; e Domingos largava o eterno rabicho do
Sr. Jasmin: mal o abbade gemera três suspi-
ros aflautados conchegando os parches de di-
versas cores, quQ lhe faziam da cara um mappa-
miindi; outra pancada na porta da rua deixou
ficar a todos suspensos, com a mão nas costas
da cadeira , porque desta vez a irregularidade da
visita não tinha explicação possivel.
'^ a Quid rnihi cum Agammrum ? — exclamou
Lourenço Telles , virando-se com enfado para o
inventor do livro dos Pavões ; este encolheu os
Digitized by VjOOQIC
228 A MOCIDADE
hombros , e calou-se entrincheirado na sua di-
gnidade teza e engomada.
Entretanto reluzia a prata das terrinas e ta-
lheres; a louça chineza, em relevos caprichosos,
brilhava pelas variadas cores , e pela diversidade
das figuras e flores. O caldo de arroz, e o gallo
do estilo ; o prato obrigado de ervas coroado de
torradas recortadas ; as tortas e outros acepipes
perfumavam a salla. Os vinhos eram excellentes
e faziam sede espelhando-se no christal das gar-
rafas. Fructas seccas em cestos arrendados, uns
de louça , outros de prata ; e delicados doces «m
vasos de vidro campeavam nos magnifícos appa-
radores de páo sancto , levantados de dmhos os
lados da casa. O abbade , em virtude de posse
immemorial exercia o officio de trinchante mór ;
e apesar dos maiores tormentos, exacto 'niòdcs-
empenho das augustas funcções, floreteava a faca
e o garfo sobre o cadáver do acerejado gallo. ^
Todos esperavam de pé a volta de Jasintn ,
despachado por seu amo ás regiões sombrias da
logea para saber o nome do interruptor das do-
çuras culinárias. O escudeiro demoròu-se pouco,
voltando com uma boquinha espremida , que na
sua opinião tinha a malicia de um sorriso iró-
nico. Da visagem do fiel correio tirou o com-
mendador o mais favorável agouro, e setitou-se
Digitized by VjOOQIC
DE D. JOÃO V.
completaníieQte socegado. O resto da família imí-
toa-o, com uma longa interjeição na vista. O
abbede, impassível, recolhido, e solemne como
sinomo sacerdote que era d'aquelle sacrifício,
ameaçou as juntas do gallo , eom o garbo de
uma pratica feliz. Entretanto Jasmín apoderava-
se do ouvido do commendador , e dizia*lhe um
segredo; o velho sábio deu um pulo, esfregou
as mãos , olhou para as meninas e sobre tudo
para Tfaeresa , e . em voz baixa passou algumas
:ordens, que o escudeiro cumpriu logo, saindo
noa bicos dos pés , em ar mysterioso. Esta scena
quasi theatral redobrou a curiosidade , e tornou
mats /repetidos os pontos de interrogação de
Ilagdalentt.para suas filhas, e de Filippe para
Magdalena.
Começou a cêa pelo caldo ; e Lourenço Tel-
1^, bebendo com pausa, corria os olhos pelos
circumstantes, ilnpeneti^avel con^o um cardeal no
conclave, malicioso que nem um, critij^o roido de
inveja. Quando os seus olhos encontravam os de
Thdresa,^ boca um pouco sorvida do antiquário
deixava fugir um sorriso equivoco. O nosso ca-
pitão tra curioso copio uma velha , e remexia-
se impacíeQte, ardendo em desejos de chapar uma
pergunta na bochecha do tio sábio ; porém conti-
nha*^e sentindo ; os. signáes com que o cotovello
Digitized by VjOOQIC
230 A MOCiBADt
de sua mulher não cessava de lhe reeomnMfidar
a prudência. Lourenço Telles gosava interior-
mente da perplexidade de seu sobrinho , e eada
vez estava menos disposto a pôr-lfae termo. Para
desviar qualquer insinuação dirigiu-se de repente
ao padre mestre Fr. João dos Remédios, aise»-
tado ao pé do abbade ^ perguntando^Ihe :
— « Então o que nos diz dos negócios da ma
devota communidade o nosso padre procurador? »
Era tocar na corda sensível. O procurador so-
bresaltou-se ; puxou o barretinbo para a testa ;
dobou os pdllegares um em roda do outro ; e res-
pondeu com melancholia :
— « Digo que vão o peior f^ivel , st. Lou-
renço. Está correndo o prazo fatal , a todos os
respeitos bem fatal ! »
— « E depois ? »
— «O que quer?! Ficaremos espoliados ^ e
ainda por cima escarnecidos. Seja feita a vontade
de Deus. EUe o dá , e elle o tira ; altos mTste
rios seus ! »
— « Não gosto de o vêr assim, tr. João ! —
Horácio diz : — AUior Itali€õ ruini$. Seja supe-
perior á desgraça. Pois um homem lido e pra-
tico em negócios forenses desanima tão de-
pressa ? »
— « Ah , commendador , isso era n'outro
Digitized by VjOOQIC
DB D. JOÃO V. S31
tempo 9 mjRS boge!.;; Em fim âo eolpas, que^se
eMío pagando I
««— « Dtticta m^úrum immieritus lues? Est&o
pendido o peccado antigo? Vamoei qòe seja
(acudiu o latinista). Animo grande! Talvez el-rei
mais bem informado... »
-~c<BI-rei? Os jesuit^s^, devia direr. Não
espero nada delles. Saiba que não descançam em
quanto nós lâo humilharem de todo. Âsám se
diz em S^ Boque pêlo menos. Sed cor cmtrictum
H kumiliatfjím Detc^itton despiciat! Levantaremos
o coirai^o a Deas^ .pofiado nelle toda ã. espe-
rança* Sr. Lourenço Telles, a ord^ de S. Do-
mingos itfqpellari do rei 4a terra para o rei dos
censl
— « Louvo muito : porém antes de ceder pw
qoe não tentam lòrtqna ainda ? IMga-me: sup-
posido es jninistres do desembargo illudidos, te^
mos ain^a os secrdsams de estado^. »
— a Engana-se ! — clamou o dominico, dando
loiras h ira — tribimaes e secretários de estado
}unani fidelidade. á companhia.de Jesus antes de
•a jurannn ^a- «l-^rei ; os siinistros ssbem que o
verdadeiro despacho não é no Ter<reiro do Paço,
mas na casa professa de S.. Boque. O sceptro está
nas mãos omnipotentes de um ministro, mais
poderoso, que. todo o clero, mdireza e povo deste
Digitized by VjOOQIC
232 A mociDAVE
reino. D. Pedro II, commendador, já.nao é.o
mesmo homem ; está ascético edoénta; vive triste
e descon6ado da saWação... . Quon reina em seu
lògar é o padre confessor Sebastião de Magar*.
Iha^!»
— « Não acredite ! São historias. »
— « São verdades, meu amigo. Nada se laz
senão pelo voto do confessor; .até o meteram na
conselho de estado, entre a primeira fidalguia !..•
Elle é que animou os vendilhões a desobedecer-
nos; com elle sè aconselharam; e.por eUe.foi
dictada, em pleno claustro, essa vergonhosa pro-
visão, que poz aos. pés de meia. duEia de* rega-
toes a ordem dos pregadores 1 Sabè-se tudo! »
— « Ahi está porque vão tão mal as coisas...
Mas empenhem^^e vossas reverendiasimas, tra-
balhem... Preso por um, preso por mil. Queí-
xemHse ; digam a verdade a el-rei ; smba todo o
reino, que estamos sendo governados pela rour
peta de St.** Ignacio. »
— « Esse é , e foi semfMre , o meu parecer !
Mas vão lá fallar em tal ao nosso defeiitorío?
Meteram-se na demanda , chegaram ás ultimas
extremidades, e agora encolhem-se. Esperem e
verão o resto... Calam-se? Os jesniitas lhe dirão
o mais. Vencido, mas não convencido, tentei
resistir e expár-me, sem expor nin^em. dmr
Digitized by VjOOQIC
DE d: JoiQ V. 233
puz o sertfiio dá capella real ; e , tomando para
tèfxto o fermento -dos pharhteas; carreguei a mão
no retrato da soberba e dacabiça da Companhia ,
avisando el-rei e a corte.- Dictei-o , decorei-o, e
Q%0' disse nada á ninguém. O que imagina que
succedeu? Bebenta-me um aviso, em que me
dizem;, que estaca dispensado de pregar na mi*
fiba :semàna, 'e que.de futuro intendesse que
^a tontade desua magestode/qtie os ^pregado-
res da sua real capella' se abstivessem de discus*
s&eS'politicas! Fiquei' parvo 1 -O sermão estava
nsí minba gaveta^ a chave no meú* bolso, e ape-
sar <dissotrnfaam-4no visto, /tinbaih^no lido!')»
.iú. Cf. Alguém: o descobriu! por força:.. » '
í —« Ninguém'; cominendador ! Se eu díctei
o sermão <aò escrevente -, 'boníem :desmemorifNlp
e fiel; estivemos sempre !sós;e'nt:nca o mostrei
a pessoa alguma ! Agora expliquem-me como o
viu o padre confessor, porque é indubitável que
o viu ; e senão como citou elle de propósito a
•ordem do .discurso, e até as pro()rias palavras,
no sen aviso!? Nãò pódé attribuir-se senão a
bruxaria! »
— ^« É bixo de sete cabeças' Agua benta
com ellc ! — gritou Filippe.
— «Parece incrível! — observou Lourenço
Telles. E o que tenciona far©r ? » ^
Digiti?ed by VjOOQIC
234 Á HÓdDADB
— « Resta-me ainda um meio. Quero tenter
o ultimo recurso; não o declareis» nem deelaro
a ninguém. Veremos se adivinham. )»
— ^^«c Ha de custar I»
— «Eu digo só — veremos l Ha dous para
três mezes tudo nos desanda ; nunca fui visioná-
rio; não sou supersticioso: agora vou-me fa-
zendo. Se traço um plano , acho^ c(Nrtado : e^
crevo um papel? É contar com oittro, como se
o meu estivesse á vi^. Os segredos do definito-
rio, cujas actas tetiho debaixo ieciíave;, apre**
goçim-se em S. Roque no dia seguinte. Dè prof-
posito, escolhi um leigo e um servente, quasi
idiotas, que nSo sabem ler nem escrever. Quem
rouba o segredo dás minhas chaves , e copia os
papeis do méu bofete? Isto dá comigo cbicbw»
— « Melhor o fará Deus, padre mestre; Quer
do peito ou da asa do gaik)? Um copo de barra
a barra?»
— « Obrigado í Trago um fastio : mortal ; baí^
tara um didal de vinho. Persisto, Sr.hoat^isíço
Telles: a Companhia de Jesbs acbòn modo de
viver no meio de nós. Senta-se ao nosso conse-
lho, participa dos nossos segredos , e Id por cima
do hombro quanto se escreve. É horroroso! Scwn-
dei , put escutas , não vi nada, não há nada de
novo ! São os mesmos prelados ; é a messma
Digitized by VjOOQIC
DB D. JOÃO V. 23S
gente. £ apôzar d'isso juro , protesto : o auxilio
•de um hemem poderoso allumia os actos da
companhia. Diogo de M^donça, que é todo
nosso , como sabe , acfaa-se em ígual apuro ; e
não cbega mais adiante do que eu. Se vae a ex-
por em conselho algum negocio ^. dos que eUe
costuma estudar comsígo, o padre confessor sorri-
so^ e £1-Bei. entra a repetir4he o que passou
de mais particular ! Ah commendador sou cas-
tigado pelo meu orgulho. Âttribui á scieocia hu-
mena o que era devido ao auxilio divino, »
As lagrimas cabiam pela cara abaixo a Fr.
João ; a voz sonora suifocava^-se., e o desalento
prostrava-lhe a physionomia, tao risonha ou im-
periosa d?ani;es. Sentia-^ ferido mortalmente^ e
nem tinha a triste consolação de descubrir o ini-
migo occuUo , que o desasocegava.
-^ « Ora pois , Fr. João ; — acudiu Lourenço
Telles— é preciso valor e conformidade. O môii
tempo ha de passar. »
— «Nao creio.»
— « Deixe estar. Então Filippe não diz nada ? »
— n Digo que as tortas são excelentes, e que
o vinho é soíFrivel. » .
— Não diz pouco. Então isto sempre é me-
lhor do que os lagartos, que o regalavam na
America ? »
Digitized by VjOOQIC
236 V A MOCIDADE
' — « Lé com lé , e cré com cré. Cada terra
com seu uso, cada roca com seu fuso! »
' — « Famoso rifào ! Muito bem ; e Theresi-
nha , não lhe diz nada o coraçfto ? Aposto , que
dava um beijo no avósinho, se elle lhe dissesse
uma coisa. . . »
— « Eu não sou curiosa , meu avô ! »
— « Nem tanto como Eva ? Pois sim , mas
está corada que nem uma romã ; porque abaixa
os olhos ! ? Âh , Theresa , mais custa a apanhar
um coxo do que uma rapariga namorada. . . » .
— « Meu avô , então ' »
' — « Theresa ! — gritou Filippe — Prohibo-
Ihe que se faça vermelha. )i
«E esta! exclamou o commendadòr, Fi-
lippe, V. mercê não está em si. Prohibe a sua fi>
lha o mudar de còr. ? »
— « Prohibo , sim senhor , os pães são senho-
res absolutos dos 'filhos. Não quero que Theresa
core ; sei o que digo. »
— «Diz uma loucura. Vamos, abbade, en-
cha ò copo e deite vinho a Fr. João. Gecilia ,
peça licencia a sua mãe , e seu pae que lhe dé
um didal de muscatel , mais a sua irman. Estão
promptos ? Á saúde de um amigo desta casa ,
que nos fez a honra de a procurar, e ficará
n'ella como filho , espero eu. »
Digitized by VjOOQIC
DE D. J04O V. 237
i
' Quando levavam 08 copos á bocca abriu-^se a
porta e Jasmín disse alto : a É o Sr. Jeronymo
Guerreiro ! » : i
— « Que vem corresponder á amisade das pes-
soas que ama e respeita' como segundos pães ! »,
acudiu um mancebo esbelto e bem proporcionado,
que entrou na casa atraz do escudeiro , e se di-
rigiu logo aocommendador e a Magdalena, a
quen^ abraçou muito tempo,! depois de lhes bei-
jar a mão. Todos se levantaram e o rodearam,
6écilia olhando estremosa para sua irman com.
um sorriso angélico: Theresa, com algum sobre-
saftov e as mais vivas cores no rosto. Só o po-
bre Filíppe - não conhecia ' o recemrcheg^do , e
fbkia por ' isso^ um: 'papel desgraçado dando & ca-
beça; desengonçanfio o corpo,' e- chamando Jas-.
min com momices tèlegr^pUcas;, que o escu-
deiro teve a.níalicia de não perctíber :: . : i
— « Queni é este senhor ? » — perguntou por
fim ao àbbade. , »
— «r Seu tio lho dirá n — replicou o, eccle-
siastico seccamente. O capitão ficou, portanto,
em jejum , como estava. ,
Jeronymo Guerreiro tinha vinte e oito annos.
A testa espaçosa ábri'a-se ampla aos vòosda ima-
ginação , que brilhava nos seus olhos ; , as bossas^
frontaes <ksinvolvidas aceusavam-se acima das
Digitized by VjOOQIC
2d8 A MécnoABE
arcadas superoiliares , tornando maia fanda a
ruga vertical , que a reflexão costuma ^avar* O
nariz levemente aquilino, nem grande, sem
pequeno , cahia com graça , dando vivessa ás fei-
ções despidas da regularidade , que torna femi-
nino de mais o semblante de alguns homens;
porém animadas da belleia geral que é a terda*-
deira formosura de um rosto viril. As pupil}ds ,
pardas, luminosas, e vivas sem excesso, tii^ham
aquella força de penetração, que parece incutir
a ahna de quem olba no mais secreto piensa-
mento da pessoa que é vista.
Pretas e carregadas as sobranodbas, quan-
do a testa se contrakia, uniam-se^ forman^
^ do uma linha escura e continua , debaixo da
qual as pupillas chamejantes , sem a bocca fal--
lar , exprimiam toda a vehemencia de nm ca
racter forte , de um animo robusto , e de um
espirito accessivel ás paixões, e á generosida-
de de sentimentos. Nestes olhos , rasgados , fir-^
mes , e penetrantes , fallava o ooraçfio , e re-
flectia-se a alma, como se observa nas phisiono-
mias meridionaes , que nHo degeneram do Ver-
dadeiro typo.
Bigodes pretos bem fendidos cubriam^-lhe
o beiço , encaracolando as guias á oriental ape-
zar da moda , que mandava ra^ eserupulosa-
Digitized by VjOOQIC
menta até ii mais lofe penugan. O reito da
cara, barbeado em todo o rigor da qioclia,. dava
realoft á bocea rmnha e animada. Npo usava
de pemca ; os próprios cabellos penteados á mi-
litar , e só com um ar de póz , desciam em an-*
neis, acompanhando as faces, e cahindo sobre
o hombro. À estatura, duas Unhas acima da
mxiiaaría era levada com elegância; o corpo
esbelto , os membros seccos, e nSo magros , in-
culcavam robi^test e agilidade em todos os mo-
vimentos. Os pulsos eram fortes , a mão regu-
lar e bem feita; a pelle muito fina tinha a
còr bastante queimada das estaçSes, como acon--
teceaos trigueiros, quando se exp9em á incle-
mência do tempo.
A conGguraçSo da parte anterior da cabeça ,
a expresslk) do rosto, e a sagacidade da vista
diziam que o valor do soldado se unia ao enge-
nho> subtil do inventor; que mesmo a braços
com o maior infortúnio , a ârmeza do coraçSo
e a lucidez do espirito |iaviam de luctar e ven-
cer, até onde podesse luctar e venc^ o homein.
A esta organisaçfto moral, bem rara, junctava
as qualidades phisicas* Tinha uma força extraor-
dinária; um lance d^olbos infallivel; uma des-
treza incomparável. Na sua mSo a espada era
um raio ; as bailas nfio erravam ; e os cálculos
Digitized by VjOOQIC
230 A MOGIDADB ^
do inimigo Buccurabiam adivinhados por uma pe^'
neiração maior. i > ; i .
O chapéu do uniforme \, agaloado ,\apifesar de
pouco airoso, assentava com' desgarre ;milítar. A
farda , espécie ^ de . sobrecasaca :;moderna çi çahiá
um pouco acima' dp joelho; còm^ bandas de ffnro
verde, gummè^ida por ambos os lidos de passa-,
manes de retroz,' e duas ordeitô de^bofSes da
goUa ao fím do. saio.- Sobre 08!quadris>, .ciatora
alta , viam-^e .as duas ' portinholas de lesootíihà ,
as casas, monstros: abei:tas . em fio delseda , e òs^
hoU)és der ródinhâ.prateados ^, c)asÂcosr nos filho»
de Marte. Os.catíbões da.maiiga, Jargoscolno.boc^
ca de morteiro, revirados e^pregiaudosquasi pelo
sangradouro por dois botões, deixavam vér a ca<-
misa finíssima desde o punido até meio ante-bráço.
O periquito, ou tira arrecada, apparecia com
três dedos de largura , entre a farda e a vtetia ,
em toda a. elegância. Á roda da Icinta estava
passada a banda com largas bcH^làs de seda , des-
cendo ^até ao: meio da perna. A espada, com-
prida, de copos doirados,. vinha suspensa em, um
talim bordado. Os calções justos e affiveladòs
abaixo do joelho, e á meiaipiídiada com es-
mero , completavam' o trajo) do capilãaJeròByiào
Guerreiro, o official mais eatimado do ȏrctto ,
e mais bem acceito das damas. '
Digitized by VjOOQIC
DE ». JoÀo r. 231
Õ comiiiendador estremecia este mancebo, que
tinha sido seti pupillo depois de perder o pai aos
quinze anoos , e a mBi poucas horas depois de
nascer. De uma casa rica, do sangue fidalgo dos
cavalheiros de provincia, Jeronymo Guerreiro
ftra desde os doze anitos educado por Lourenço
Telles, devehdo-lhe a variada ihstrucçào que
possuia , e as delicadas .maneiras que o torna-
vam distincto. O velho erudito amava o seu pu-
prllo como filho , applaudindo muito por isso o
seu amor a Theresa , á qual logo destinou uma'
parte na herança da sua avultada fortuna. A vo-
cação de Jeronymo chamava- o para tf carreira
militar ; e graças á intimidade do tutor com os
homens poKticos conseguiu merecido accesso.
Tendo servido cinco annos na marinha real, des-
gostoso de viver ausente das pessoas que presava,
passou para o exercito na arma de cavallaria , e
foi então que viu e conheceu a familia de Fi-
lippe da Gama. Na guerra da successào obteve o
posto de capitão , com que el-rei o premiou de
serviços relevantes.
Forte como Achilles , e astnto como Ulisses ,
tinha um corpo insensivel ás fadigas, e um eá-
pinto que se deleitava oom os perigos, arrostan-
do-os pelo gosto de os encontrar. No conflicto
dè iima carga de cavallaria , viam-no amigos e
16
Digitized by VjOOQIC
23S A JI6CIDADI
inimigos, risonho, sereno « invulnerável , abrir
eamíobo até chegiar ao nraio arrttcado. Debaixo
de um chuveiro de bailas ouviam-no citar fria-
mente um v^rso, ou dizer lun gracejo, com a
placidez do académico na sua jpoltrona curuK O
Marquez das Minas, o primeiro capitão desta
guerra, só delle coofíava emprezas temerárias.
Os outros generaes respeitavam o seu valor ^ o
seu talento, e o seu raro sangue frio.
£ verdade que elle da sua parte também sa-
bia Cazer-se respeitar. Um mestre de campo tra*
ctou grosseiramente a officialidade do sou regi-
mento; devoraram todos a ai&onta em silencio;
Jeronymo não disse nada, fez-se branco somente,
e frisou as guias do bigode entre o iadice e o
polqgar. Quem o conhecia previu um desfor^.
Depois de tudo concluído , o mestre de campo
recolbia-se a Elvas , quando viu o nosso capitto
correndo sobre elle com a velocidade do relâm-
pago. Chegando ao pé do official , já transido
de medo , Jeronymo perfilou o cavalio com o
delle ; pegou-lhe na mão , e disse-lhe secamente,
mas sem . alteração de voz : « lembra-se do ^ue
disse ? » O mestre de can^ ia descu^r-se ,
porém não teve tempo , porque ibi logo atalba-
do : — « Não responda , que posso ter vergonha
de o ouvir. Receio que a sua espada seja mais
Digitized by VjOOQIC
DB IK JfOAO T. 233
mtktt da ^tie a Ktigaar. Estamos sds i trazemos es-''
padas ; é o ({ue basla. yi O pobre homem saarsh,
tremia, e càhira-se. <»<— Percebo ! coRtmuoa o
capttílo. Ora bem! Podia matal-o, ou cortar-íhe
a cara com este chicote; ma* nHo quero. V. m.
nfo Tale umft carga de pístollà ; e respeito a farda
apes»t de despresar o covarde que a veste. Fi-*
que eutendendk) , porém , que se tomar a desço-'
medir*^ , torço-ftie o pescoço , e viro-Iho para '
as costas; ao mettos uma vez na sua vida olha-'
rá de fretité para o itiimigo. Tome sentido!)»*
Dítò isto flton-o e sacudiu-lhe o braço com
tal doçura que uma semana esteve em trata- "^^
mento.
Em quanto se deram estas explicações indis-
pensáveis o commendador mandava preparar o
quarto do capit&o, sentâva-o ao lado de Theresa,
e fatfa-lhe o prato, setititido-se remoçado com a
sua pfesença. Fifij)pe já tinha obtido algumas in-'
fórma^S^ e olhava par* o recem-chegado com
tal curiosidade, que Lourenço Telles julgou con-
vénietite apresental-o ao sèu pupillo para acau-*
tclar um relance, qnti delicadeza do sobrinho
tornava mais que provavell . , . -
— <í Jerénymb, aqui está um defuncto ressus^
citado! É tneu sobrinho Filippe da Gama, qué'
julgámos morto, em quanto eHe comia lagartos
Digitized by VjOOQIC
234 A }kfactDj^>s
€ serpezàtes nos serUtoi^ da America. Veni achar-
Bos mais felizei do que. nos deixou, a
£' inútil acrescentar que Filippe recebeu do
mancebo «s devidas felicitações , dadas da abun-
dância do coraç&o^ como era natural da parte
do amante para o pai da mulher, que adorava^
Acabado este incidente tomou-ae geral a coa-
Tersac^o, e Lourenço Telles encetou o capítulo
escabroso dos casamentos de inclinação» ponto
que discutia todos os dias com seu sobrinho, para
o trazer ã observância dos respeitos consagrados
ao bello sexo. Apenas o antiquário expoi o as-
sumpto, Theresa fez-se muito vermelha ; Jerony mo
sorriu para disfarçar o sobresalto; Magdalena sus-
pirou ; e Filippe tomou a palavra e principiou a
refutação das ideas ultra-líberaes do velho sábio :
— « Com licença do tio — disse elle cm alta
voz — esses amoricos são asneiras. Um casamento
é um casamento, e nSo me contem historias.
Faz-se negocio ou não se faz. £u tenho dez, a
mulher traz vinte, serve-me, e caso. Magdalena
que o diga ; nunca lhe puz os olhos em cima
senão oito dias antes de irmos á egreja. O mais
é frioleira. Sei o que digo, »
O commendador estava em brasa. Tossia, es-
carrava y contorcia-se , e mostrava jpor todos os
mtàos imagináveis o seu enleio.
Digitized by VjOOQIC
pfi D. JOÃO y. 23S
— c(Ent&o compara as mulheres a um fard»
e troca-as a dinheiro? Casa-se por uma conta de
sommarTf Que seja prendada ou tola; que ame
ou aborreça o marido ; que traga á discórdia ou
a paz ao seio da fámilia , isso nBo vale nada. O
essencial, é que derreie quatro gallegos com o»
dobroens do dote ? » .
— «Tal e qual! Eu cá penso assim. NSo me
failem de rolihhas e de rouxinoes ; pão pão , e
queijo queijo ; o mais é farelorío ! »
— c( Bem se vé que sahiu do sertão ! » excla-
mou ò erudito escandaiísado.
— í( É a minha birra , e acabou-se ! Não en-
gulo gato por lebrfe: Ent]!o que quer? Chega um
bonecrito de alcorce e entra a suspirar diante
de uma espevitada ; fazem-se piegas ; piscam os
olhos ; pizam-se , choramingam , e dizem aos
pais que estão namorados e querem casar. Bello !
Se fosse eu, pegara de um páu e curava-os logo ;
mas ba estômagos para tudo. A mãe, tão tola
como elles, deixa-os ir ou encobre-os. O pae faz
beicinho e cede. Casam ; e dahi ? No fim de dois
mezcs fòi-sé o amor e fica a pobreza. Esgata-
nham-se e desquitam-se. Ora muito obrigado!
Para cá vinham de berlinda. Meta-se alguém
nisso ! »
— •' « Filippc ^ bem diz :o abbade , v. mercê é
Digitized by VjOOQIC
2^6 A MOCIUAUK
um sehagem ! » gritou Lourençg Telte^ fvermelbo
áe raiva.
— «O abbade ? l » — clamou o sobrroho, dar-
dejando ao defensor do5 reiscaligrapbos um olhar
ferino — « Pois o abbade tem a conãánça de me
chamar selvagem ? £ então que capo ! Meu díwifjf>
feche a bocca, e não engula gato por lebre. En-
saboe € penteie os caensiohos da marquesa das
Minas^ edeixe-sede meter o nariz na vidaidbeíi,
senão agouro-lbe que morre sem costellas. -»
— « Sr. Filippe ! j» — bradou o sypok>gista da»
barbas históricas — « não se exceda comigo ! Es-
tou cansado de aturar a sua brutalidade. )»
— ((Sim? Porque não nos deixa em paz?
Quem lhe pega. Favoreça-nos com a sua au-
sência. »
— « Filippe , disse o commendador, pondo^se
em pé, côr de purpura, dê immediatamente uma
satisfação ao sr. abbade Silva. E se elle lhe fi-
zer a honra de a receber, sente-se e porte-se
com decência. Senão pegue no chapéu, 6 saia. »
O capitão 9 olhando de revoz, resmungou uma
satisfação ao abbade , que a ouviu com a digni-
dade Imaginável. Esta noite cotouHse a noventa
por cento acima do par o seu ódio ao frescm-
tador das bexigas doidas. Lourenço Telles, mais
sereno depois desta penitencia , suppoe a occa-
Digitized by VjOOQIC
M ». JOÃO V. 237
9iãa opfXHrtuna para tirar uma eonelusão posi-
tiva, e por isso proseguia :
— « Sustento que o casamento de interesse 4
mu» tyrannia ; e Theresa , que o diga ; se ella
não amasse o noivo quasi desde creança ; se elle
nSo a adorasse também, desde que a conhece,
daríamos consentimento para a sua nniSo, minh(i
sobrinha e eu ? De certo , não ! Prezamos mais
a felicidade de Theresa do que as maiores ri-
quezas ; e graças a Deus , o que temos ainda
chega para a ddar. . . Mas que tem v. mercê
Filippe? Que olhos tão espantados! Estamos em
família ; isto são coisas sabidas, j»
— «O que tenho ? » — exclamou Filippe es-
fregando a testa e muito corado. — « Tenho tudo.
Pelo que vejo trácta-se de casar minha filha , c
por muito favor dizem-me duas ou três palavras.
Vae bonito. Aposto que a idéa sahiu dos cascos da-
quetta saresma? Aqui por força anda o abbade,
e a sua mania casamenteira ! Isto um dia acaba
mal ; eu deito-me a perder com este parasita. »
A alloeução de Filippe e a sua aposirophe ao
al>bade Silva foram tão abruptas , que desata-
ram todos a rir , menos a victima , que repetia
a meia voz :
— «cNão ha que vér. Q selvagem cada vez
está peior!»
Digitized by VjOOQIC
&3S A UOí^IUlVBiS
Acalfiiado o vm , citado Filippe « 4é oovo
para se conter em termoi hábeis sob pena à%
exclusão, continuou o dialogo:
— a Posso saber quem é a jóia , que o ti^
me encaixa para genro ? »
— « Um cavalheiro de prQvi^cia dos mais il*
lustres ; uma pessoa a todos os respeitos capaz de
fazer a felicidade de Theresa. Quando v. mercê
andava pelos matos do Brazil a assar macacos ,
sua mulher e eu demos a nossa palavra , e ajus-
tou-se o casamento. Cuidei que estava infor-
mado. »
— '< Não estou, nâo sr. ! » — Deixa estar sou-
sinha que tu as pagaras ! disse depois olhando
para Magdalena cheio de cholera, — « Sabes desta
embrulhada, e não me dizes nada?! Fazes de
teu marido um pâu mandado! Eu te ensina-
rei.»
— « Filippe ! » — acudiu Lourenço Telles in-
dignado. — <f Isso não são termos de fallar a uma
senhora ; nem de fallar a ninguém. Não me obri-
gue a dar algum passo que lhe seja muito sensí-
vel. Se não sabia , sabe-o agora. Bem vê , The-
resa não podia casar sem licença de seu pae. »
— « Agradeço-lh'o muito. Até ahi chego eu
sem ir a Coimbra. Tanto não sabia de nada, que
vem cá amanhã um antigo amigo para lhe mos-
Digitized by VjOOQIC
DC; D. JOJk) V. £39
trar Theresa ^ , e uo caso de Ifae setvir elle a le-
var se^ o iio não mapda o contrario. »
— a O que é mais que. pvÒTavèl ! — Que idade
tem o seu anligo amigo? »
•—^ A, Sessenta e oito aonos. Homem madiiFO,
pé de boi , ca dos meus; émfim. 3»
— c( Famoso ! Aladuró que nem uma soryt ?
E á %ttra ? »
— a Sofri vlel ! Para diser a^ verdade, um pouco
p9Íor do que eu , níias é* que eu. . . »
— « Eotendo ! E génio ? d
-e-^aO geèio, tio 9* o génio. . . é (tiscoaito;
rào o nego. Homem do; mar costumado a cingir
com um cabo o mai» pitítado; mas olhe ^ fóiii
dos repentes é:um cordeiro. Se a ultima mulheit^
que teve. . . »
— «Ah, já é viuvo?'»
-*-r a Três vezes ! e o maldicto é capaz de en*
Vftttvar quarta. »
•—^« Isso é consolador l »
•r- « Então o que fiei elle á ultima mulher ? »
. <^— «Quasi nada, tia Dett4he o seu eiisino.
fira atrevida de lingua, e Bernardo era estanco
quaite(é o seu defeito ^ tiodos temos por onde
perdar)Qão soffre graças; A Verdlide é qiieihe
qudbpou os braços, e abriu a cabeça umas pou-
cas dé veaes; assim mesmo morria por elle t»
Digitized by VjOOQIC
240 A MOCIM0B
-*-<(SíiB? — ^itou O velho erudito qut st
contWera a custo. — Pois, sr. Filippe, saretse
gaDego tíver a lembrança de entrar, sé (pie seja
entrar aesta casa , conte que sabe peia jauella
.a pontapés dos meus lacaios. Um bá»do ! Um
bruto ' Um marujo ! V. mercô é idiota , é i»-
capaz de estar diante de gente, n
— «Tio, tudo isso assim será, mas per«>
guRto; quem é o pai de Theresa?
— V. mercê não é nada! Quero diser, eM
doido. Não se arrisque a desoiKdeceivme tra-
zendo aqui similèante compendio de vicios ! Que
os meus olhos o não vejam por seu bem e delle.
LembiKHlhe que ha torres em Portugal , e qoa
tenho amigos. Agora, se deseja conhecer o
noivo de Theresa, levante a vista, e compana,
(se não tem vergonha de o faser) o alarve de
que fallou ao meu pnpilfe Jeronymo Guerreiro.
Dé graças a Deus ! O amor que elle tem a sua
filha ha de decidil-o, apeear do que ouve, a
ligar-se com um sogro oomo V. meroé. »
Qs cbrcurastaiKtes estavam corridos da seena ,
que presettoeavam. Magdalena, cboirosa, solu-
çava ; Theresa olhava para leronymo com ar
flopplicante ; Geciiia, vormelha, como uma rosa,
pcliecia por sua mie e por sua irml , ao mesmo
tempo. O pupillo do conunendador encolhia oi
Digitized by VjOOQIC
Dfi P» JOÃO Y. 241
' ium3>roi(i) IriíMiva o bigode 4;om os dedos ^ e aot-
WAva TberQsa com m olhoi. O éMàt , cúm o
i^fito embutido em paches, re as «dres da iia
4Mieesa$. mss Jaces, encostava a b«rba á palma
^a mdo, QQfA tt^eaeiosa dt^idade. Fr. Ja&xr,
eMvulfio e envcargoiíbado, amiudara par baigoo
da nica» os pontapés nas camltas de Filippe ,
para ^ advertir, da sua incõngriieDeía , e reòeiMi
em paga «ma Uaçpbemía oa uma iniieifaí^
jatali Finalmente J^raayv^ Gneireiro levan-
toii*se, e cliegaiido-se a Filippe, disae-lhe oam
roapeito ^ delicadeza :
— :<( O sr. Filippe p<ide estar certo de cpiesoa
iDcapaz de receber a mão de Theresi contra
voiHade de seu pae. »
*-r-:« Sim? JEkimo. Afoa nãe t»ha cuidado;
até ^0 levairtat dos ^cestos é a viodtma. i>
— ' <c Nfto gaste cêca oom nuns def utitos , Je-
roayraa* » — ,^ttdiu Louresco Tdka.
— -« Pos^ ^h^ que defeitos devo corngir
pAFâ m^iecer a sua hmináel »
----«Pôde, sim seobor. Mas antes, fat (ah
Yor , respoode-me a «ma coisa ? »
— c< Com todo o gosto, yt
— « Esteve íik^a do reioo ? »
— « Çiqeo annos. » :
— « Bom. Viu tó traetar algum pae como
Digitized by VjOOQIC
243 A MOCIDADB
€u SOU tractado? Âgcnra quer- que* Uie árga a
verdode? O qué'eu áesejo ^ra Theresa é um
marido , que não caia do bote com o balanço
da maré; e não efifie de medo vendo um jaca-
reu empalhado, (^ero má marido homem , «
iiio um marid# piegas, enjoado, e todo sopí-
nbas de mel. Percebe? Islo não tem replica. O
tmhor é um militar de agua doce , e^ ASo me
eonvèm. Adeus meu amigo , tenho dito. » '
.. — « JérooymoídehDe esse' urso ! -^ gritou ^
cttmmenda^r com a ira* a fu»]ar nos olhos;
porém o mancebo fez que não percebia; e sem
ãe desarmar da paciência , com que ouvira tudo,
continuou: . i . .
— c< Engana-se. Antes desta farda vesti a dá
marinha rnl. Não ser se a» ondas da bahia de
Biscaia, e dô^ golpho Pérsico tôo doces ; ou ^ as
aguas de Gòa, de Malaca, e da America, s9o
serenas: ^gan» quem as navegou. O que sei é
que vi fuetlar os raios no Gabo da Boa Espe
rança, e ouvi rugir o pampeiro nas costas dd Brar
si]. €reio que isto chega para não enfiar no mar. »
— « Falia serio? È dos meus?»
— « Muito serio. »
— « Bem I Porque níò dizia iáso , homem ?
Toque! O que fazia nesses assada, aqui para
nós^, da pelle do d^nonio? »'
Digitized by VjOOQIC
-í— .tf Qiiaes.asaqidoí ? >.
--^« Os pampetro&! »
.,-^.« Ah! .Foaco.mf^is ou menos, a que fii
•BI Sblaca < em lum dia de tona^nta. LÔmbra-
M da nau. Qm$êi§àa da Tijo? »
~^ « PoÍ6 1^0 lemlHro i Bonita quilha , ^
signall) Tanta m^ lembro s V^^ se elia n9o viesse
a Malaca .estava agora na. barFÍga de algum tu-
bardo. Foi . sabbado , dia de S, Barthoiomea ,
nlo me esquece nunca. SaU do porto, na -minba
lancha, com a raanhS de rosas, e o mar de
leite. Sobre o meio dia carregou o tenipo, e
levantooifa o vento ;---*aquelle excomui^ad^
vantíiibo qoe sabe ; que é um cavallo á desfi-*
lada. Bomi estamos servidos. Âmaina-se a valia ;
vamos a ramos;, qual I Pah, pah! Era eada«
pancada no costado, qiie gemia a lancba. Safa!'
Em fim, psra encurtarmos rasães., uma <Hida
como uma montanha desaba^ apfinhji .a -casca,
de noz atravessada, e vira*ma de tampos paaa
o ar. NBo sei como , açbei-me acavallo no mas-
tro, e aganrei-me. Digo-Ihe que nunca bebi tanta
agua em minha vida , pnpb ! O caso é que es-
tava a vinte braças do porto ; via os amigoa /al-
iando muito , mas sem holirem pé nènji mão , e
eu a afogar^me.por um triz. Que amaldiçoada ca-
nalha é aquella gente baça ! Oe repente um e»*
Digitized by VjOOQIC
344 A «(ICIDAIDE
ealersinho lahe pela popa dá^ »»«, é bãlétrdt'
qui, boleu dacolá, proa abaixo, prda ditam,
yf^yH> ?eficerH(ii6 a corrente, cortar o tuClo, a
d^l^ir^ie ao pé de mim. Nmea o perdi dá
idéa! Trazia só uni rapaz de den^ «Mtfos; a
clrara escorria-lbe da cabeça até aos pés. Vinha
amarrado peia cintara; e remava coma quatro
bons makiros és TezM não remam. Mesmo^jt ao
pé de mim bate nma rajada , e orna onda , <p)^
ntetleu o escaler quasi debaixo de agaa. . . . Bs^
tamos gualdidoê, disse eu! Qual! O escaler tirit
com orna força tal, e nma ra{nde<, que a se-
gunda onda nio o apanhou já atraTess<RÍlo. D^
pois o rapa* deiton^me um cabo , eu segui^V
e d^abi a nada. aehei-me dentro. No meio d^
petígo, com a morte diante de si a cada ins-
tante, juro-lhe que a creança estava socegâdí
como se passeasse por sua casa. Hei dè lembrat'-
me sempre do sorriso, com que me díM'
« Chegue-se um pouco; o mdhor da festa àíndâ
nSo passíou ! » Com effeito disseram-me depois ,
que tinha sido o diabo ! »
— «( Dissêram-lhe? Pois nío ia dentro?»
— interrompeu o velho erudito, que se agasa-
Ihiava com a sensaçSo égoista , que dá o con-
chego , quando sentimos assobiar ó vehle e (Ja-
hir a chuva, áchando-nos ao pè' dè um bom fo^.
L^
Digitized by VjOOQIC
BB 9. joie if^ 34S'
— 4i0Í80era]R, sim scsihcr: poi«p^ un ho-
mem não é de ferro ; e não sei tomo, «o eo--
trar para o escaler apashei uma brecha n» ca-
beça, que me estaiu em sangue* O caso é quê
perdi k>go os sentidos, e quando tomei a mim
esteve pa eama , e a salvo de todo o perigo. »
-*«-«£ nuiica soube quem era o rapaz ? >>
— a Nunca ! Na madrugada do dia segBtote v
sahiu a nau, e por mais que perguntei, nem
rasto do meu tritlo* Dava mil dobrões a quísm^
me desse noticia delle. ía á índia outra vetv*
olé se bia. »
-^«Nâo é preciso, sr. Ftlippe » — atalhou
Jaronymo sorrindo. Depois levando as mãos «os^
esbejios^ espalhou*^ pelo pescoço^ deu ao rosto
unu expressão risonha e audaz, e carregando
os olhos de luz , atirou com um gesto de sum^
ma ousadia a cabeça para traz, duendo em voz
firme 9 porém juvenil: <i Capitão, nestes nMe-
res, os homens kasem a vida a juros,. e um
deacuido custa caro. Bebe um copo de agua
ardente de caju? »
— « É elle, é elle! » — gritou Eilippc abra-
çando e beijando o mancebo. >>**-^ São as pala-
vras que me disse. É a sua figura, o seu mpdo,
a sua voz. Magdalena , filhas , ajoelhem ! Aqui
este quem salvou seu pae. » •
Digitized by VjOOQIC
246 A «dcíBAte'
hso Bio vale nada. »
— • É um hetoei Iteto-llie a^ vidai. » —
dtmavft Filippe.
--^•fDe?e-á a Deus. Sabe o que Ihè jpeço?
Para outra, vez tenha iftaiícharidedééoíhnoM,
com os soldados de agua doee. Conheço mil ,
mais destemidos do que éu no 'mor. i^ -
-*-« £s6a é que eu não creio i Pois sr. Jero-'
nymo, corac&o nàs nfôos, veja o que mimda/
porque tudo o que teolio é sM. Sem cerèmonitft
Gosta de Theresa e ella do sr. Jeronynfio? Ca-
sem , quando qqi2erem ; - dêmos que ella nio
queria, era o mesmo, casava com anginhoa^ nss
dedos. Quer Cecília? Prompto! Quer «mbasr
faço-me turco, e dou^lhas. È claro comb agfiti.
Salvoa-me a vida. Eu cá penso a^im. n
Jeronymo aorria^e e i^pondia a Filippe com
abraços. Lourenço Telles esfregava as mãea da
prazer ; e as meninas choravam de riegria.
— « Ab, Jeronyrao!» — «disse o velho eru-
dito— «os rapazes de agora sabem mais doqiie
os velhos. Conheceu Filippe, e calou-se. Que-
ria esperar a occasi9o, e confundir esta Epbi-
genía masculina, dando-lhé o Orebtes, que
chorava ? » r
— f( Cartas na meza , jogo liso ! — respondeu
Digitized by VjOOQIC
BE D. JOÃO y. 247
o mancebo. Ao principio &ão cooheçi: o sr. Fi-
]ippe. Depois de o vêr e ouvir um pedaço é que
me affirmei nelle. Estimo infinito , que um acaso
feliz me proporcionasse a occasião de.... prestar
ao pae de Theresa um serviço insignificante. »
— « £ sem saber ainda que o ^a ! »
— « De' certo j> — accudiu Filippe. — «Eu
casei no Porto , e de lâ parti para a índia. Três
annos depois deram-me por morto. Minha mu-
lher veio para casa do tio. ...»
— « Seis mezes depois da sua partida. É evi-
dente; nesse tempo nem leronymo conhecia
ainda Theresa. Embarcou também um mez an-
tes ^ella vir para Lisboa. Mas , diga , sobrinho ,
que tal acba seu genro ? »
— « Óptimo , tio. Ouve ; se amanhã vier ? . . »
— «O elephante do seu amigo ?....»
^ — «Justo ! Domingos que o sacuda. Oh , tio
quando. hão de elles casar? «
— «Se Theresa nae fizer as vontades ; se rou-
bar ao seu noivo dois beijos para dar ao avosi-
nho, em fim se não pedir muito Casam
daqui a oito dias. »
— « Theresa , falle , dê os beijos , peça ao
avô 1 » *-^ gritou Filippe.
— « Peço eu ; ella dá-me procurac&o . , . . »
— disse Jeronymo sorrindo.
17
Digitized by VjOOQIC
248 A MOCIDADE
— ^ d De vagar com os dois beijos I Para esses
não admitto procuração » — acudiu o yelho cheio
de jubilo.
— «Posso agora dizer duas palavras a The-
resa , e dar uma lembrança a Cecilia ? »
— (xJã lhe disse: o que è meu, é seu. O
que quizer. Sei o que faço » — respondeu Filippe
sepultando as mãos no enorme bolço da casaca.
Jeronymo disse duas palavras á sua noiva, que
entrou logo com a irman para a saleta imme-
diata ; em quanto o mancebo ia de volta buscar
o presente que trazia à menina bonita do com-
mendador. — Apenas elles desapsoeceram , Fi-
lippe, saltando aos beijos em sua mulher, com
grande escândalo do abbade, e muitas risadas de
Lourenço Telles , exclamava :
— « Tens mais juiso nas solas dos pés do que
eu em toda a cabeça , Magdalena. O rapaz é
uma pérola. Mas ha de levar um dote. . . de ar-
rombar o costado aos invejosos. Tu verás t Hei
de dar que Jfallar em Lisboa ! »
— a Pelo amor de Deus , sobrinho É capaz
de me deixar sem uma cadeira, se lhe dá para
fazer bulha!»
Todos se riram ; e Lourenço Telles, retirando-
se de parte com Filippe e Magdalena começou
a tractar com elles das condições do casamento.
Digitized by VjOOQIC
índice dos capítulos.
Duas palavras de explícaçSo i
CAPITULO 1 — A verdade de um rifto no
adro de S. Domingos i
CAP. II — Mais vai só que ma! acompa-
nhado , . . . . 17
CAP. IH — Um retrato em um convento 4t
CAP. IV — Se o habito não faz o monge ,
o veu não faz a freira S6
CAP. V — Petrus in cunctis est Petrus in
vinculis 69
CAP. VI — De um argueiro faz-se um ca-
valleiro 98
CAP. VII — Ulisses abraça Penélope!. .. 117
CAP, VIII— Pelo amor se ganha o céu. . . 146
CAP. IX — Donde não se espera vem o bem 1 63
CAP. X — Luz e sombra 1 « . . 17S
GAP. XI — Muita bulha para nada ! 199
GAP. xu — Fílippe eu terra d^amigos . • 227
Digitized by VjOOQIC
Digitized by VjOOQIC
HOCDiWE DE D. MO V,
POK
Lf A. EEBELLO DA SILVAí
TOMO II.
LISBOA
TTrOGRAPHIA DA REVISTA UNIVERSAL
Rua dof Fanqueiros, 8S
1852
Digitized by VjOOQIC
Digitized by VjOOQIC
i "i ' w
MOCIDADE DE D. JOÃO V.
ft®Sfi£S(BB.
CAPITULO XIIL
KEM irDO O QUE LUZ É OIRO !
Davam nove horas na egreja do Loretto. O
dia agreste e carregado estendia sobre a cidade
nm toldo de nuvens. A chuva cahía miúda e con*
tinua ; a espaços os echos repercutiam o surdo
e rolante estampido dos trovões , voz lúgubre da
tempestade , que circulava ao longe os horison-
tes. O clarão açafroado dos relâmpagos lanibia
de vez em quando a corda dos montes, que além
do Xejò , e defronte de Lisboa, levantam uma li-
T. M 1
Digitized by VjOOQIC
% A UOCIDADE
nha cinzenta e irregular, neste momento qoasi
fechada por mna coptína áe- ehwcirosi. - -
y iam-se as ruas desertas ; apenas uma ou ou-
tra mulher , encolhida de frio , embuçada no
manteo até á altura dos olhos , pizava as cujas e
mal unidas calçadas. Somente se divisava o ca-
pote 1^ o çhsypop de. qunfar do jwfi^m activa, sal-
tando pé aqui\ pe acotó os- riachos que se cru-
zavam dos beccos e travessas. As janellas com as
rotulas corridas , e as portas cuidadosamente cer-
radas , inculcavam que a população , recolhendo-
se, fugia da tormenta, já eminente sobre a ci-
dade.
Na casa professa de S. Roque , no dormitório
de cima, havía.um japosefitqiÇiflsKOSo, agasalhado,
e cheio de estantes, que o vestiam d^alto abaixo,
chamado a secretaria reservada. A. imagem do
patriarcha St.^ Ignacio, curiosamente lavrada,
^rg^ifi-se no topo em .vulto quasí n^ti^al , qllu-
miada, por duas alampadas. Doze poltroiu^t Uf-
gas e maciças circumdavam um dess^es l^fete^
gran^qs para o njiajor aposento,,, e pps^dos p^ra
9 mdhor sobrado. Tinteiros e pdgtas^ de papais;
livros de cpmmerciq monstruosos ; maçoi^ 4e c9St
tas; ^ cofres mafc^e^<jbs de dif&rçntc^. tama-
nhos; çybriam 9 I;^f@te. D^e^rp^te d^ poirt^da
£0trad^ ^bri^-se outci^ raa^Siejstf^ita,, cuja cMi9
Digitized by VjOOQIC
mata «empre o Superior. Esta easa fechada er^
um sagredo impaoètrav^I para os padres que nto
lof mavam o dafiaitorío secreto da companhia àm
Jesuf.
Seriam oito minutos depois das nove horas. O
sino da egreja toteava á ultima missa, ehamande
os fieis á oraç&o e ao sacrífieiò. Qa eonfessores»
efaeiòs de aoimo, eiobuçavam-se aas capas, açor
diiido a espertar o selo das devotas. Os pkiksQr
phos e os litteratos reviam as mais escabrosas par
ginas 4os seu» livros, eoaiparaiido te^s e cor*
rigindo notas. Os caiseírofi de roupeta , sentados
ao Welb, eseriptiiravam a contabilidade da con-
^^^e^çiov mais rica a complicada talvez, do que
a 4a oas» dos oontòs d'el-rei. Em fim os politi*-
cos, os conselfaeiíros :occúltos , com mil catitellas ,
esqui vavanHse, apparecepdo logo depois na secre--
tarm reservada. Em toda esta religiosa casa uiiiiH
se a actividade á bem calculada dktríbuiçlo do
iFahalho. Tiido se mukiplicafva desde o acelo até
i riqueza.
O conselho secreto havia duas lu^as que áa^
rà^a na casa indicada ; as portas estavam esoru-
pnloaameote fachadas; os reposteiros ootridos; as
grossas paredes eram discretas; os-altds sòbradsii
lâo deixavam passar a voz. Em face da entrada
vifl^« a porta de uma eelb , á ({cuid de vea en
Digitized by VjOOQIC
f A ItfOCIDABS
quando apparecia a cabeça branca e a vasta
fronte do padre Ventura. Espreitava um mo-
mento, encolhia os hombros, e tornata a sumir-
se sem mais alteração. Esta scena muda k«pe*
tiu*^ umas poucas de vezes. De repente ouviu-
ae o rodar de uma sege ; sentíu-se parar á por-
taria ; e viram todos apear um jesuíta ; passados
minutos o passo firme e a alta estatura do padre
Dotaram-se em direcção á casa das conferencias^
Chegando á porta o jesuita deu com a mão eerU>
numero de toques ; esperou um instante ; e foi
immediatameiite :admittido.
Entfio é que o padre Ventura saia da cella ,
e de capa , com o chapéo na m&o , como quem
vinha de fóra, seguiu as pisadas do outro jesuita*
Somente nos signaes variou de numero e de força;
Os seu» eram mais rápidos, e mais rijos. De
dentro responderam com um toque de preveni^
para verificar a identidade do adepto ; e ouvid»
nove pancadas suecessivas a porta descerròu-^se ;
a entrada foi-lhe patenteada ; e todas as difficul-
dades desappareceram.
Entrando, o padre Ventura achou-^ diante do
Superior^ e trocou com elle o toque symbolico
dos definidores occultos da companhia. Cinco só-
cios compunham o definítmo secreto da provin-
eia de Portugal; e pestes, quatro estavam assenr
Digitized by VjOOQIC
todos C0ta grmdes pastas de papeia abertas 4iaDte
de si. O confessor de^. Pedro II, o padre Se-
bastião de Magalhães, tiomem gordo, corpulento,
e coinpiiss9do eiit palavras e gestoç, passeava pela
qasa olbando de revez para o recemcbegado é
que provavelmente o viera interromper.
O padre Ventura ndo porecia o ní>esmo homem,
Tioba despido a pbysioQomia da eterna dSTabili-^
dad!e , que lhe servia de mascara. O sorriso per-^
m^pentç já não (IcMnescía nos lábios; riscolhianse
aos cantos da booa em uma prega mais severa
do qtue amena« Os olhos tinham luz, mas refle-
xiva o penetrante; as feições tinham expressão,
porém fria e concentrada. Apesar dos annos o
corpo bem direito carregava sem fadiga o peso
da idade; a cabeça nHo descahia nem se íboIÍt
nava para a terra; pelo contrario firme. e reso-
luta « olhava talvez de mais para cima , para as
alturas do ceu. As maneiras, d^antes encolhidas
e humildes, desatavam-^e a^ra com o desemba-
raço que dá a força e o poder. Do homem velboi
do antigo jesnita obscuro, obedíentOi e passiva,
que todos conheciam, nada restava. A chrysalida
rompera o cárcere, voando sdíta e forte pelos es^
paços infinitos da liberdade.
Costumado aos segredos tortuosos da politica
jesuiUcK , o Supçrjor i^o agourou nada boro 4o
Digitized by VjOOQIC
8 A HMiDAM'
(8os(Á>lta tfanisforfiia^o; e qnit séieltm h''èqoelii»
rosto impenetrável a pHmeíra ptrase doeifygma r
debalde! a finutâ davifila desarmou o s^U olhar;
á itigetioidâde , verdadeira ou Sngida, do sem-^
blante derrotou as iiiterrogaçõesi De^ta Veí a
sphinge cónfiitidía Oedijpo ! Desesperando da atia«
l^se tacita o reverendo padre appcttoq para a pa^
hvra, fítnWio do oi^^atfao de levantar sequer uma
pòitla ao vea que lhe eneUbrfa o tinfj^teirio, IPor
ifl$o compondo o rosto e a tM exolamoa com n
ttiaift assocárada benevolência :
-^(t O qde é istd! Unhamos entre ndis mnt
irmão distindot T.paternidade^neubHndoa sua
t)ualidade ignota o prejui«ò qtie Ytos fez, pénten-*
éo-áe u^ voto respeitável ? ^ Uma setisfoçSo no»
resta ; não foi por nossa culpa ! Jii!gàmol^> eti-^
tregue â dllrec^o espiritual das ahoas { dízia^^^m
que passava è índia, â China,., é o que nos de-i
trem a saber de Roma,
Um ^rti^mais do que amarello^ fugindo pe^
los beiços flrios do italilano, provocou no illustre
areópago ^ ainda maior euriosifdade. Depois a
bella fronte do padre Veutuira derribou->se sObre
os sobrolhos ; a vista cortante e aguda cratouHM
no coração do interlocutor e dos ouvintes; e ca-r
hiu depois indiferente em um maço de papeis
que trazia na mão o confessor d^el-rei. Aateède
Digitized by VjOOQIC
réS^poriddr,'^ f aA^è VeMãrá Umlià de teve, b in-
eUncfiHié cmA respeito: depois, segundo o teu
eodtutlie, dí^sé roplicdiido 6 tàlúiUtó ibatá protf tnèí :
— ée è Verdade 5 a diré6ç»<» esj)ínt6al íbi é ha de
ser Mm^te a eeiuiraçãò ptererida da riiinha vida.
Auxiliar a í)r6gaçdb do evangelho nò Oriètrte otf
M Amertea; <;ot*ar o fàcto da tQniéé lias ttvas
pcrt-puras do naftyriò i padre provincial , eis 0^
tolo ardente do mea ebraOSo, jà ftío e cançádo'
para eeisas mais aetivas. N&tí quíz , nem qtiero 4
aiilda holje tn«dar de èamibíio... EHtli^taritò, beilí
sab^ I déf ' mÀSo nãó temo^ senSo ás boas obMs ,
que se eontam no eeu. O corpo ha de it parrf
ènde lhe disserem'; a voi^cle ha de .ser uma es-
eFava.,i Pedi qte me dáíassenv morrer nos ser-
tt5eí?, cravado ha arvoítí^ atanéfíado áo bràseirW
enfi que ás iMlos do» selvagens expirtfram tantos
sdnctos da nossa eompantiia!,,. E<^pei^aVa esta
graça depois dè uma vèlhíM trabalhosa !... nâd
pôde ser! A soberana sabedoria do gera) qnii
èutra Céiêa— i-S(^a ferta a ^a vontade na terra,
e a de Peus no ceu. Nfio mé qàeíxo ? alégro-me,
£ mais ume dõr que offereço Aquelf^ que pade-
ceu tántaS por me salvar... »
« De certo ! Mas estiVeraòs todos até hoje ení
completa ignoi*ancía... Apenas, pòr ôcéásiâo da sua
vinda se rios i kz saber que úm soein' nosso , v.
Digitized by VjOOQIC
paternidade, devU <r .em mavfo i^asa. a InáMi !
!lplra impossível adivinhar t-^» insistido provincÍAU
derrotado na. sua penetração, e cada vez também
mais sequioso de devassar um iiegredio importante.
pepoí$ y, paternidade pela sua; parte, nunca to-*
çpu.em ficar ou sair, e de tudo isto r^esulia... ^
— « Que não souberam nada, £ exacto» Pois
a mim soccedeu^me outro, tapto. Posso-]h'o as-
ipegurar : . é a verdade. Chaguei aqui deveiido
partir, e achei ordem de esperar, Y. r^verend&s-^
sima até, se me lembro, (oi quan a intimou* .,
Não soinos sei)h,orps,. obedepi ! Mandaramrme tí^
Yer só e silencioso ; aaleir^mer Hoje quem pôde
diz-me;-«f^o mudo deve fallar; o paraíitiet) deve
caminhar; e aqui, estou no meio, de ^ÓH tirando
tanta sati^façio da obediência, comooutrias coi-i
iados vivem soberbos cem a idolatria do paço ^
lionde a nossa pobre e remendada roufieta devia
fipparecer meigos, para não (altar onde.tfto.pre-^
cisa é, »
Dizendo isto, os olhos do padre conio duas
bailas mettiam o veneno da aUiisao na alma
do confessor 4^ el-rei , a quem visivelmente a
dirigia. Este sentiu a ferida pela dàr , e levan^u
a cabeça cheio de espanto, Sebastilk) de Maga-
lhães mediu o aggressor de alto a baixo com a
altiva do poderoso; disparou^lhe por baixQ das
Digitized by VjOOQIC
lodeHas dè nàm dos iamUrnsos oecuids um olhar
de dó; e «eaboa a siia- repILca tacita per um»
YiSagMi, que chamou o 4{iMSxe inferior quasi a
duas linhas de altura do lafaío superior. Feít0
isto' o reverendo sábio contiiiHou a escrel^r se-«
renaraente sem íazer mais caso da iofima ema**
toqa:^ qtte se atrevia a dar t$o gcosseiros pipa*^
rotes na sua corpulenta e conspícua pessoa. O
superior é que intendeu que lhe coavinba dtzei»
duas palavras para incensar o idolo. ;
-^« V. paternidade^iÊ claro, ;ndo deseja. ceá*«
sixrar as ordens de Bo^a; se vamos ao paço^^
se àlgiuem moca lá, é fior tnera obediência. A
nossa littmildade dá-se mal uaqaelles ares« . . ; *
Lembro^Ihe que no seu zelo demasiado offendeii
pessoas. virtuosas, que em serviço de I>eus> e,dá
Companhia se resignam âs tribulaçõeí è amar-*
guras.. . ^ . . »
f^—tií Qoe o oiro d6 aos avarentos e o podcnr
aos ambiciosos?» — ^ atalhou o padre Tontura
sorrindo com ironia. Depois em voz sevara pro**
seguiu: — O peior é que se não vé gemer a
alma desses martyres eúindestinos; è^se « viste
se volta para a carne , acha-^se que floresce per
milagre da penitencia ! . . . . Ora bem* Sabe o
padre .provincial aonde Santo Igtiaoio escreveu a
nossa rej^a ? Na eruz de Christo^ Sabe aonde a
Digitized by LjOOQIC
meãfioii? No tnao^ e nio^Db fá\snib.(M. a
«m dw pabitza, hamiidacby e sacriíiciói A
legra quer <|ue o hMiem; no¥0 iiapa o kcNODeBi
Túlho;.qtte a alma delxe*>o corpo, « b sangue
eorra ^as teias, ae preeiio'fòrl Siáriíme dolh
tfflflia, ;jnn que o iudividiio é iiBnnolido.Ã buna-i
BÍ^áde^ á fionto de sermos na' mão dps supe^
tioras a bastão do cego, um instrumento |nss»o)
de riosicbmferar-iiios a>un»cadarrer « coisa morta^
que vae para:, onde a leTam^ e fioa aofds a
pSe^ .., •• Foi' ò qoa.iáe ensindram ) éi o quo está
na lei. -Ageva ae «esto ppoviocia cbamsn mar^
táfica^o à gula y pobrau ao.fousta, efawnildade
ao orgiribo « digo <aé y qne ainda é • innís falso o
gabgpeiiaik» o «nraç&o dos maus^ io que á saa
)itaguaj CMtt^ âs ordens de que falia, padve
pnmncsalv »te tiãram de Roma, s&o d» Hísh
pauha ; e executando-as pecca duas Tezes. Gui-i
dei que sabiaitiaqiir já , que falleoeu Tírso^jron-
çalviea^. e c|ue. Miginsi Angelo l^mborim ^ sen
socqessery év boja o geral da oonip«nhia<!' n
' O eífeiliv de apostroplie-Cot knfnedtato e faU
minentej O fogo qne •dtamnieaftt da vista ido pat.
Are Ventura ^ a dignidade.doi festo , e a fihiiesB
da TOit angrilentavamJhe a forca,, pelrefieando
os accesseras. O cotrfessor de D. Potro ]I, no
qual de direito reoabia a melhor parte da^^en^
Digitized by VjOOQIC
dá irft apopleltea aí fesfUmçM gemat fio |wvlo
riNica e tmerudmt ^n UitM <hí áiites fergM
cttflntiettm e lifid^ n» htê& câdt i^«e Mia-»
flieeíàm iMíi'; M âliraft dós <!}b^ dmairettM, «
â» pQliínàs 4iM;aito^4 MltiVaA M eara d<i«gg»9^
^r\, dardejeodiy, raids de cítolera. Siunensnsn^
éia «trtftfa pei*âiéb <itt etfbeça. O q«ie»fto itff^riof
krgD «tu tirma de pà j^to <ia bailia, ioúmm
ft)scé9 âe gordura qu& se pèígúnfêm detla^ b •
iriíiiciik] t^ettiut» q4ia eiltailiavdi^' lí foíçM Am lin-
ces, to^feiMta d0 i}M(dr'#Éftet)Mr iit6 M Itigar cwm
a 3!^ie4ta9«l fiapadav ^<fo talo «Miéídd' p«la
i^to 4a fii^a iè deK»0Mi|MÍtiba , èfuer^epava, è
é»íigifnrva d^ -iim toédo Itnsrift^i. ViKpsiidiad*
« «Beifrii^id» Ml pMBetíÇA dok ms adiAidiittM^
«lie, o pdlciitad& (]ii^ ttniia fiafa tasea a diarm
èi real «on«èídn«ta, a-diavè do poder! A in-»-
dignação tolMfií^lhe ar fáHâ ; e o p«í^e SdMstiao
A^ Bfágfithde^/iiisttaff«ílifi«flte.aalô«iiM5, exprimia
o horroi* é a ifa ff^ meio dè visageuva fems^^
e de gésMs ot^riipi^os. Se a aloqti«aoia> do^ odí*
eotisegiiHitse desatafMfte, pôde «ffimar««6 ifUe as
¥«tritiaa ieCitttfO achariam fitai maia lemvvel^
do cftfe s% PhifKppiícffs de D^eáttÉenea.
O pr<itiYid«l liii<iia ^ivfeAo ^raéler , e muito
^eppoata or^sAça^ph^ci. Mègn) ;E>€ÍMiNtefk«ji^
Digitized by VjOOQIC
13 A HMIPAIW ;
<t«an(}& o pungem os \olhos ^^iqoiHidaSfmtural^
m«iit& 8i»ni»in-se quaisi até^.á^nuc»;, e 06:beí-
fofl delgados tornavam^e impereeptiveis ^ aor
passot que. a pallidez u^ual d^tiota«a oon uma,
odr térrea «e biliçça, que mettia medi9. Foi «
que Ibe $uccedeu iieste lance : aomeiíte houve
da maisiiin ^ymptoma nova; o «orriso lívido, fpi^
rara vez lhe visitou, os lábios , voHeava ooovulaa
em redor da bocca parecido 6 conlra^^^ ner*^
losa > que. arregíBça o bei^o ddf fein , «e odo a
uib solrrii« bunwDO. Mais iiritado do que o pa^
éreooR&sftor^ 'mmt(^ lotaisanoioso pov ivingaQça^
d& que 0;toi]!(surado Yitellio; só eapaz.de.esbra*
vejar em acoe^jsos de i«offô|iaiva. lOV^vIuçâiOit a
a<iperiar tinha. as palavra» dooes^ é as^mafl^iim
pambosas» que toiniam mais odiefia a.atfoeí-n
dade. Era uma crueldade fria, inexorável, e
dissimulada, que antes de (erír .eakuliuirà todas
as dores e tormentos que podia owMr.
Beve&tido da suprema auctoridade em Ptirtu»
gal,.e affeitoé servidão quasi abjecta doa infe-
riores,. 0. prelado^ oom o rei da suafMirt^» po-
dia tiiido no presente, e ^temia^se pouoô do. fo^
turo, que está nus ^rnSoa de Deus, Sentia menas
a oíFensapessoal, do que a injuria, do seu go^
varoo. O que mais o feriu JSiMs.a audácia dofobs-
euro jesuíta ; se nlo a i^firtaase a tempo » a sua
Digitized by VjOOQIC
M 1>. JOXO V. i%
iMga^)experièiieto'adv«rtt(i-fhè, que ttão «ra fircil
antever líté énde podia <;liégar. I^etttdava kBo^
gai^ A tiasciença , ou abdicar ^ pocter ; nentrâma
outra hypothesé éra admissível. i)e certo o pa-
Are i^liano contava com o apoio de Ron^ ^ e
nâo se expunha cegamente; mas de Ròtna a
Portugal é longe ; e elle em sua casa e na* auá
terra era senrlpre absoluto, Depois de salv^a sua
tiifluencia responilería ao geral , e se nedessarió
fosse com uma ordem regia na mio; o caso em
defender-se a tempo , e suppla^tar a tempo um
emulo, que n«i impenetrável politica da compa^
n^a nSo ^fs^n àlti seài mii$s9o ^secreta. Feitas
esta» reflexões' arrn(ju-se de voirtadey e prepa*
nm-sè para niostrm^ a todos* que tinha oèbombroft
fortes para o peso^ qde podia cabir sobre el-
tes.
-^ « V. paternidade excedeu-se 1 » -^ disse ao
italiano com a brandãrahypôcrita:-^ Sinto que
se e^«fecesse Aé sèu logar, e nio respetlasse o meu^
Esperemps em Deus , que «sqa a «hima^vez ! Cot
mo imiSo^ad^irto^doseu peidcado; como prelado
sou «èrigada^ a- mais; diéfvo eoim*gitro^ Ficai sas*
penso de 'Voto é exercicio por um anno. Diga a
culpa ; eèít joelhos, antes de iie recolher ao
careelre para irecordar ^os seus esorcicíos espiri-
taae$i peça da joelhos perdoo na. pessioia do$
Digitized by VjOOQIC
H A jmciMJm
fendeu com. a* c^lomiitii 4e ^m liithei^. -p
O padre Ventura sorrí«-i;e .q crumra as bra*
çoa, medindo o tyraBDele ewi a yúita, e fulmín
napda^ com a serenidade da iwto. lia l^spoita
que lhe deu» admirava a eiLtreiM doçura da
— a Sabe ba q/unto anitos eo choro neita
valle de lagrimasit e quantos boje mesmo conto
de. noTÍciado e pix^fissJko ? >?
^n-.<i Digita ciilpaf eb^deçaI»-*-^baM o
padre 6d»aatiiQ arremettendo c^m impeto.
^^ « Nio <e aga$te , padna mestre ^ heá dedt-
ser as suas, aa minbai, e as culpas da todas
dós; o tempo ebe^I Obn^re, porém* l^esibo
setenta annos de idade ; e YÍsto esta rm^i^eta de
escravo de Jesus Christo , ha quarenta e cinco
pelo jnenos» Preguei na.GbíM e no ilupio; es-
tive na America- e na índia ; de and^ doa tró-
picos ^ e> também dn^ g^los do norte» sei pnr ex-
periência 9 ifàQ os onbro; apa^ndam por noti-
cia... . Fadepi (orno e seda ;, vi a: marte mais
cmel uma9< po^am de vezes diante dea otbos. Os
idolatias Majfam-in*e;M braseiro ; e a .miseriQor'*
dia ile Deus ^aleUrme sen^pre.até h^.u . , »
. —«Padre Ventura « era meiber~* gritou o
prfelftào*^q«« noa obadecesae^^l Tiide isso pmva
Digitized by VjOOQIC
WH? m. Mio ir. IS
64 v^. ^uer ft fSit idade « a» sois peregrinaçd» ^
Alo. demm- ot.qufi^dâvta to, «niiita «pcpeneBcú
e humildade*' Sêvà» ^&Mm^ lobrig^do a notart
4bac ^confesse a. cfilpa ^ e fiiç^f peniteaeia delia ^
iwffque peeeouà v .
T-^K Saberbos sio oa juiaes qos . senteoemMi
^atra a lei -*— réptícou o padre Ventava cam mai
gasto cbetò de magestasa tqdigiiação.-*r-SdbeiÍM;
4a iiriqiie$»poj*<|ire tèeai: na bacea a= paz a na aor»-
«ão ecrfio ; perversos^ poaqUe reaagam do/i^omi*-
flo^e da palavra do mestre pii^a saoiaTem aaím^
fetos dfi vii^Qça. CuM^ ^u^ o renona é a ver^
4ade se oaiMi^ sa a aúi^ lÍAgaa ficar sileih-
eioaaTlolga fua.^othés daa ««ptioi nãoaMMi
a capado jesuíta,, a! pokre cafM da peaagriíiai»
fKiatft por c^lla^ do manto caal í I^adrè provtneíai
com a minha idade viu nunca a ovelha áaompi^
«nbair oop: o lóHao , «oqi a ave adarniepeir ao pé do
fni^luifDeJ Paáae.Seiíaiítiao de liagalhftes, aiipp8|
^queoa quarenta annoa de habito não enstiiâm a
^sepaior o ti^ígo do}oío?« NâO' ae engonem. Sei ô
j|iie dígo^; « pafsp'0 qoe-devo; nada mais! )» »
-*<T«Nem lima palavra v padre Ventara! ok^
€limoa o^saparior^ oailondo finalaiiepta irarau.
^do tenij» quelae afamo «bio aio afpalla?a n
— «Cmo aiaDéascv paéra ^tiperíèr ! A jas^
tica .divinaxastíga niealí^rfèi ente 4^ n^Mo
Digitized by VjOOQIC
étts fiecoadoí ; te nlo pmhi ó» hjrpecrila»^ espero
qm nho puoirái o moradista por que 06 chama
pela odiosa palavra i i|ue es deiígna ! »
« — f*J)e íoelhp», diga acutp, obedeça^ ca... »
— «( Manda-me pôr a mordaça na booca, come
lés. o gcÉnd Tirso Gonçalves a qbi deftoidor aus-
ierov-quenão quiz ouvir? «Di^nlfae que o desejr,
«as oào -pôde. Esse padre , deve eoDÍieeelH> de
nome, era Miguel AngebiTwnbunBÍ, hoje summe
pmladodr companhia* Sabe o que soecedeii
4'attt? Tirso (jonfalves pouco depoin morreu, e
Miguel Angeb exaltado pela afihmta e pek re-
^àaçdo sobíu i cadeira do defwicto per vote
yilMime. Pocqtie só pude reger oa outros, qaem
è capau de se vencer a si ! . • a
r-^« É de mais ! £ em despreso da minha ao-
eloridade?. .»
. ^^ « Porque a tenbo superior ! Porqne posso
precipítal-o do alto da soberba ! exclamoQ o pa-
dre Ventura em voz imperiosa, e com gesto so«
berano. Para ler nocoraçio do homem é preciso
despilH) da mentira. Li no seu, padre provkieíaH
cemo leio^ no de. todos tos que o ajudam a arrui-
Mff a disciplina da companhia* Ora bem! Hn
meia hora que lhe estou, ensinando o caminho ,
6 arredando os paaaoa do abismo*; mes està-es-
effíptoque ecego fingirá vér, e será despenhada t
Digitized by VjOOQIC
Be¥iá eoadoiP dàs minhas palaTlsa9(e iMo |lroK»
^iie o logar e:ioede a sua perspicácia) ,.que Bestn
idade; e com os quatro fotos ^ sabendo o ^go^
Terno e a regra do lustituto noihum infefíor
falta ao prelado como eu fáUei sem auetoridade
sufficiente ! Chegou o dia de acudir aò navio que
perde o rumoi e de útst do leme o máu pik)tOt«
Quero que a antiga divisa da companhia 4 o
verbo de fogo do seu poder, o espirí lo da sua força,
resplandeça aos dhos do mundo como nos. anti*
g€» tempos. Á maior gloria de Deus I Ad majih'
rem Dei gloriam ! Eis as lettras sagradas do te-^
nente de Deus na terra! Cumpra 1 De hoje em
diante, neska casa, o g^fnl sou eu; ningutm
mais tem poder aqui. Tal éa minha vontade! tf
Dizendo isto^ tirava do seio um pergaminho
revestido do sellodo geraH e lacrado com astuk
ciaes d& teu annel. Este diploma era a. nomoa^
ção do padre Júlia Ventura para o ; carga; de vi-»
sitador assistente nas provrnetas <de Hiapanhâ e
Portagal, com direito de suprema decisíko sobre
of negacioá^ e absoluta aoctoridade sobra os pre^
lados, devendo respeitar-«se as suas ordens tfia in-^
teíra e cabalmente coiHo se do próprio gerai fes^
sem emanados. >
É imp(issivel descrever o estado, em que fi»
cafam o confessor ,• o provimeial, e os accessoiea
Digitized by VjOOQIC
iiaote th repestís» revelado. O medo^ o^ctuoe,
c,a raiva , «m tod» o cabr que oa abrazava, sut*
Wam-Ibe ao ro&tot e pintaFaiií^se dom \ÍYem.
GadafrfiysiQnomia era líitia impreea^l eádageato
«ma blasphemía iaciU eonira o poder inviskd,
que os desterrata d^ governo pai^ a humildade
da obediência. Edtretasto eta de diamante 0
kiço qile 09 uma a Roma ; nem seqilet imagina-*
ram rosifittr^ Os titoes TeiM$ldoa cait^aram com
a montanba « antes de escalar ú Olymi».
. DepoiA de lera provisão dn g^»U com a bocca
cheia de fel 4 e de dar a todos conheeimenK^
delia f ú superior tiroti tim livro do seu iirmaM
aeereto e i^iston o (atai diploma ; ea acceàMtei
pallidos o túauiiksí assignaram com elle íe a rcH-
voiucfio ficou ooDSummtda. De cabefá inclinada^
•Ibosiio châo^f e hrUços cabidos, esperavam ent
riknoio ^ (fiAe a f ot ào novo pir^lade Ibei f^U
tuisse a ferça e o movimento*
Este pbservava^s catlado n sómeate a soa vista
faUava por eile« quanda feria no imto.à. um^, ^
^oUa na passagem o máu pemameolo , q^ Ibe
devorava o ooraçâo« O somse|) o sereno, e doce
soBTÍso do antigo padne Ventura^ britcava^be
outra ve2 nos lábios; e a luz redesiva e pea^.
trante dos seus olbos realfava a finura da pbyiio^
nemia* Termina^ a leitv^a e ^ ragisto^ Ofáte?
Digitized by VjOOQIC
M D. JOiO T. 19
lifitio pediUf e recebeu todas as chaves ; qaebrou
à petína doutada do ptelado para indicar a suspen-
são áú seu governo; e a passos lentos mas
firmes^ foi sentar-se na cadeira de espaldar cle-
Irado thrôno 4 donde os reis da companhia inti^
mavam ás tndía^ e ás Américas , á metade do
mundo conhecido , as suas leis e vontade omni^
potente !
Digitized by VjOOQIC
Digitized by VjOOQIC
eAPITULO ZIV#
EGCE SACBRDOS MAGHVSt
Os defiAÍdoreg olhavam ung para os outros
§em força de proferir a menor palavra. Não se
ouvia senão a respiração mais ou menos alta das
seis pessoas qae alli estavam reuqidas. Por fim
o visitador assistente deixou cabir de súbito a
vista cheia de severidade sobre o confessor d^et-
rei , dirtgindo-lbe as primeiras palavras que di-
zi4 depois da sua elevação ao supremo poder na
jfwovincia de Portugal A proDuocia pausada 4 e
a aceentuação estrangeira davam ainda mais força
a eada syllaba e maior expressão a cada phrase.
O tom em que fallou era firme sem ser altivo*
frio aeni ser glacial.
— d Padre Sebastião de Magalhães ! Não Ifaç
Digitized by VjOOQIC
tS A MOaDADB
ppreoe muito pezado o cargo de confessor d^ek
r$3i de Portuga! ? Septe-se com animo para ar-»
rostar ps perigos da grande batalha que está ^
fomper por ^stes dias? Qlhe bem! )>
O infeliz theologo estava tão pe(|uepo , agora ,
fipesaf da corpolpncia, quanto costuin9va inohar-f
se nos djas çaáiQsps 4^; feti ppder, Quvindo n
pergunta dp m'à^ agouro abaixou ainda mais 09
plhos , e encolheu-se todo n^ sua roqpeta sen^.
abrir a boca. O visitador esperou um instante ^
p vendo que n&o respondia proseguiu :
— (( Deus é que dispõe do coração dos prin-:
cipes. Quem sabe que a salvação ou a ruína de
milhões de hon^ens ^qiende delles, trenA» di|
mponsabili^ade de os ^ingjiPt porque « cJuiye
da consciência é a «have do covaçtpf dii^ rei& Pa-^
drè Magalhães, pondere isto ; e antps de respõn-^
der vejii bem sp pikle com a cfusc Q vpi Canelo
prra tem 0 iim juiz no ceu, que ii I)ei|s. Q isev.
0onf6S8ot tm éoiSi o éo cea qup ^ a ioAnita áe^
meneia ; oiitro da terra, |tjgfxro9o na jintioa, qinè
^ a companhia. Agora que p {^ilvek-tt ^ içi^nía^
Vne : « pirtá no caso de pes auxiitec étn^ ímda tfom '
mdlp ^ Porte ? Diz-np9 qoe o coraçSQ 4u i^i uBm
varia em nepbqma circumstâiieia ? £m uima 'pli^
lavra segiira-nos o bom despacho de quMto m
pedir a sMft^iqagpstade? p -^
Digitized by VjOOQIC
0B 1^ siA&b Y. £3
Srooni os ^ikm isravados ntf ^pittslonoeitta do
pobneíiYiteHío de roupeta, o -pádrè Ventura caU
feu-flé;.d& repaote, deixaodchlhe 3t|9pensa sobÉo
a • cabeça i}ina espada de dois games* O ceofes^
sor tinha só um gesto para rpvelár a prostraçii^
doontfDO; guando o temporal era forte, desça-*
hiaiii^be as faoes Sobre as rosoas da segunda
batba , ç iDetade da cara escondia-se .qo peito ^
em quMito os olhos do cdr incerta enviusavam
a idfcta por cima do ensinado ventre , para ehe^
gar ao i^rbcntor ém <^^ punha <r alvo , e
deatá pèsiçfto (perdo&-se-nos a onsadia) parecta-f
se aó>fa(in*a6ho anmado levaotando o papo para
samip o bieOé *
Eotaíiadb entre as eunhas das fi*es ihtaes inter^
rogeçdes ^ padre ^confessor tinha mais vbntade de
refvQscar^ as fauces com um :6opo de exoellent^
vinho « « era apreciador ; do que de m onterraf
de todo com uma resposta imprudente e pi!ecipi^
tada, Preso por ter cão, e preso por iião o ter«
era atroz em realidade!
Depois de muito soísmar, julgou melhor sahit
dle i áo que porem-no fora ; preferiu as hooraU
do sacrificio á apupada de uma queda desastrosa;
Suppoe que o queriam tirar da oôrte, e que de^
mtMrari-se mais um dia era o cumulo da temeria*
dada. for isao levantairiò a cabeça cotA alguma
Digitized by VjOOQIC
fif . A liOGIDftDB *
energia', e fíNiendorse branco corna a cal Tira dea
á luz, com fisiyel ddr, a reonncia formal dó seu
ekiTado cargo* O visitador ou?io-o sorrindo , e
beiigcando a oretha esquerda, gesto oom que ex-^
pressafa o maior grán de satisfaçfio.
- «rrhr (c Em tempos ordinários aceitei o logar por
obediência , disse o padre Sebastfto , expellindo
cada palavra e esbrugando cada syllaba por entre
os dentes, como se as letras lhe oortassem p eo-r
ração. -«—As coisas mudaram, e nSo dev^ fiiter
de mim melbov conceito do que os meus supera
riofes. O coraçSo doa reis está na mio ée Deus,
V. reverendissima o dfôse ! e acreseentarei , m
cauda venenum — debaixo dos pés do homem os
trabalhos. Perguntado, poia, se em tudo o que
8è pedir haverá bom despacho, digo que nio sei ;
ecomo alguém talvez mais-b&bil ouse responder
que sim, resiguo o cargo nas mfios do prelado, e
peço licença para viver felfi no meu antigo col-r
ieglo de Évora. »
Um suspiro involuntário ^ mas sincero , reve^
lott a peiía que o pobre jesuita sentia de ir ser
felii. O visitador acariciou-o com a visto, amt-*^
ihou-o com o sorriso, e deixou o conduir na ín-
tima persuasão de que a sege voltava sem Bile ao
palãGto de Alcântara, lionde então residia D. Per-
dro {L Depots, o italiano reeolheu-se mentid;>'
Digitized by VjOOQIC
mente, ésdiíiott n hit da fisti/e firantiu 00 cm*
toe da boca.
-r^c Padre confessor -v^ disse por Hm olhando
recto o firme para a victima — quk eKpertinen«-
tal-o. Se me disaeise que sim oio podia servir a
cobipandía, e era preciso liraI-*o dà corte. Noto
i»ein o que ¥0& diifr. V.. paternidade (aqoi bà só
irniAoa) tem errado, errado muito na sua ditoc^
$&o espi?itttaK Náo somoa jansenistas I À (orça de
escrúpulos e de terrores moraes sei que fez de D;
Pedro II um rei fraco , e incapas de pensamen-
toê grandea; se Ronui lho disser uma coisa e nóa
AQtra, eederá ao papa eom medo das oensuraa^i
Bem vè o perigo que pôde haver. Reia que nto
-servem para ai , ndo servem para os outros , e
melhor é levar a pancada de um sceptro, do que
estar alado ao Icáto de um paralytieo. Queremos
reia que tenham vontade sua « e coração forte ;
eusla a faiel«os nossos, bem sei, mas ficam maia
aegmros. Não edifique em areia, se deseja dura»-
çao. £rraram assim com o principe D. Theodo^
aiõ^ e eile morreu-inos snecombido! Padre Se-
bastiio, acilda po mal em quanto i tempo ; Gon«-
ibrte o auimo e esclareça a rasão d'el-rei... não
de ipopente, popico a pouco. DeikoK) vèr petois
«eus olhos algumas coi»|s; leve-o pela mão só
metade do camiohp. A respeito da euría, iem^
Digitized by VjOOQIC
M « JKMlDâDSci
farrjMiide que em ftoma só 4 f w núàHi^mm^k
tramontanos. Com esta regra que lhe deti 4)»nfti^
lÉMiri a servir a Deus , a aKm ,. e A.c#mfMAhia
ao ké«r de 4M>Qfe8sor... Tem al^ma .eâisa 9l^
ser?... Nao aceita 7»,.Talle'ae«i|e»9r. »
— « Aoeilo , padre visitador.! ^i^^^^^rilau o.}»t
mita mais co» o gesto, 4o qoe.voealineiite, tia
engasgado em jidiila se adMiYa.--nAeeito hmIío*
aes» . . a honra de ser útil & eoiíApaidiiA, Mas Và
lovereadissifipia dâ^me veoia iMfa ivAadasoulpa?»
-^uFallela
-^ « A opioifto de Y« re«eretidi8siuia(]fei seni^
pre a minha ; até represeotei para Bona o anl
<|ue podia «tgHirrse ! NiH) me ouvifam^ , ^ Eieh
cutor passivo Qumpri as4irdeus; foi ^siymrQ.deU
la$^ »
Como se yé, o respeitarei thealago^ia i^susaii*
tendo t e.n^uperaadk) aqueUa eioqueicia firme ^
que assentou eip cheio no sennio «evblnciaoa^
rio, meditado pelo iraoundo pràeuradbr ém à»^
asioicòs.
; -^M Executou as ocdens^ bem aeij^t^ acudiu
aevenamente o italiaiio *^. por : isso i^ é dâpMo
e continua. ÂgCHra entende melhor como de¥6
liaifertse ? Ainda bem ; estinio que o speu f oto sa
conforme: prefiro >seropre a obediência lYísIuataK
ria>: Mas sabe que uio chiaram a Bomâ «a
Digitized by VjOOQIC
iMfreiMitaçitos, 4c fie faMa?? Ora JHp»! Pénfa^
«MM todos imito eom isso , -e v. ^tienidade mm
à0 iffp» qiágwm. ^ ... jha avisos que dadds jl
È^mpo Talam mUlii6es. Àh, fradreSetiasliftoi» a.
^rtuna é muttô £aisa . • ;. YaJhaHooB Deua. ' Ai^
firmò-lha (|ae nãó iei d^ premio bastante (laca
quem na oecaaito pro|iría &esie^ o qae- devia
ter<4e {eito^ Emfini^» paeie^eía ! a
Fallaado àsaífli o pá^ra Ventwa mostrvra
tabia sinceridade t q^e o ieopfesáor de el*rei coi*
fiieçòtt à acrediM»p qffe «Ao «alava tio mal coa|
lelle , Gomo sappunha,
C&QSBiavakiiHi^o 4p otnmipslo gmva; n^s
fSlà tiodá prméi de fiie «aiata ifinioceirija nell».
Eni /Mas as nêeiísídes delicadas eBcreyerà coni
bm itibHnaçfta para Roma a pedira novaa w^
4ensç i^dialde porém, nlinoa recebeu raspaaka.
Agora percebia a re^o, A respoâta faltava ; por
que aa suas eosreapondencias erêm interceptadas
INI peio menos mutiladas na celIa do prelado , o
jutnioO) a qqeiti pelp 90» «ar^ oonipètia espe^
di-las ao geral.
Cotti pavfidi^ fl^tad eaempio» o Sqperior « fign^
randorse amigo íntimo roubava^^lbo systemalica-
mente o conceito e a ioftirencia om Roma , sup-
firiímiidô y oq faiendo suas as iofommiçdes do
icoiífessor. Cooliecida a traição, ateou-se de re^
Digitized by VjOOQIC
n A UKimkííM
fénte 00 piit* do pid» Mmúíú «|tfrfb «£9
intcofOt^ decidido, e eterno que se chama edi»
de finde, m eãa tem. egiial no mondo* Oa olhea^
primeiro, o gesto depois, deolaranim ao falso
emige a ruptura da antiga aiiiança e a goerm
impiacarel que ia sufastitiii^a ; . pata a lingua
áuDCciesfr foi preciso mais tempo } deoeneram
alguns ^minutos antes do queixo inferior eahir
iia sua posiçio natorid, desloeado p^ raiva ; e das
idéas oonfundidas pela revelaçfto do visitador
iMMentaaem, pennittindo qpaiqiieF inanifeslaçie
vocal*
Porfim , em quanto o provineial^ amarello de
^idm parecia snmmk^se pelo chio abaixe, Mr
iminade pelos coriseo* que dardejavam os olhos
<b padro Sebastião , e pela sorriso cortante que
4es lábios do pa<ke Ventiva lhe ia mordect fie
ceraclo., o rubicundo e corpal^feo confessor reSr
'pii««a cem mais gosto, e tomava melhor o pulso
ás difficuldades que o cercavam. Resolvido a
castigar immediatamente a n)á ié do superior ,
descarregando sobre elle a culpa,.. que Ibe impu-.
4Bvam, 6 jesuita aindii convulso da comõçSo que
sentira , exclamou 1
"^^«fie o meu crime é a falta, que v. rever
rendissitna nota, devojustificar-me • . . Acpii eslt
<|aem viu eouYtu ler as informações. •• Âlli
Digitized by VjOOQIC
C8tár'i égònlmeiíte , <(Qeni as reedmi dr midM
mão , e approTOU em consellidt . ; Agora , aceor*
so^me^ife sinápKcidade e neglrgéneia por não ei»
cFerèt por duas vias t accnso a pmke superior da
ter subtrahido^ oceuUado^ mutilado ^ não/si»
qual , diversas informafOes que dei a tempo 4 « »
È o tpie tenho a dizen n . .
•*—« Quando' fòr occasilo eu ex|rfÍGarei 4 é * »
^i-^ disse o provinèial derrotado.
-^ « De cefto ! *^ atalhou o vÍ6Í(Étdor..-T«^I)a»e
explicar. Pa^e eofife^sc» ^ fioo4he Cneodo ínais
justiça; Socegue ; darer colita ao- GeraL Agora
passemos aos negoetos de fân 9 .ás coisas: bIIml-
mariíias. Padre Teller, eih que estado está o
Japão 7' Perdmoa ou < ganhamlas muiias alans
para jDeusf » • o ! r. ' :
' «-^^a O Jàpto ato se eonutírte, mai^ridali »
^-^ respondeu o acoessor interrogado. «•*»-« Todos
os dias o nosso missionário , o nni<to (pie ninda
lá téméSt' ríoi escreve pedindo que^ o dasd)»-
giiem. . * . » : (
— «Do perigo de padecer pela fé? NSo.páda
serí Qiiè n&o desanime'^ e tenha diaDtedos<>Uios
o exemplo de S.-PraDcisco Xavier. . ..«O sol^
dado de "sentinella a um pasto deve iicar « ainda
quet^ibá, ainda que <Ye}a que vae ^morrer; 4.4 .
é o nosso caso; Pdh*e Tdies , sei o «que eslá nas
Digitized by VjOOQIC
80 M MÓCmàVÈ
tsèB JMpdifl, nko preetsa dmr nteis. Sei famblebl
^e é amiga do missioDam^ que proeiíra tírat-o
do Jap&o e dár«-lfae uma tfldeta m Aiheríca. Ora
pèis! Os negócios y^ malf ponfiiè ^ zelo es^
fria. « . . Para outra vez demore menos a lisspoata;
quem está longe, jà que nftò yé, preci^ mn
?ir os superiores. ... A propósito ^ diga ao pa*^
dre Sihra (creio que é o seu nome) ^ que se cum-
prir bem as ordens , será mudado par» a ètatr»
ttégemi 4 . .Sé cumprir, percebo? Ab v padre
8iiii8es oono vae a China? TrrtiaUMhte múto^
de certo ^ mas a seara nio amadnmse^ O qué
nos di2 dé mais particular f »
*-^<( Que fiio se tem posto os mèhs^ e por
MO se (rtô adianta nada » r^replifiâil o jesuíta,
cruzando a tista com o prelado. Qiia éb poupa
em Gantlo, em Fekin , e náa prcnrindas, e que.
se gasta de mm em outros paitea. fiif nfto com-
prar-moa a tòlorBocia dos mandarioaf os déhtes
do lobo nSo deíxani fugir o cordeir». Tudo se
remedeia ^ menos o medo da morte em gente
fraca. »
-*-« Tem ivsSo.. Quando nio se iisnkifjí nfeo
se colhe. Orar bem ^ Os bossos missionarjoa es^
queeem-^w mnílè dé que o alo ; e dás queremos
apóstolos na Chifna e nio sapatcaa m índia. A
cruz }á tem raízes fuadas liaqiaailaa partes ; o caso
Digitized by VjOOQIC
OK 0. JOiO JT. ti
exa fttanlBiAtqi. Agora sé dí ntto kbrífirciii^ ,p»«
foifa caiift... 08 ^are» alti s&o. fiiialsi >e muito sqdi'^
to» a tentpóraes. ^ t ^ Deixe, cstanr, padm SímOi»';
hatemas d^ i^oidar da Cbtna ; as soas nàisèoê
hão de floteseer. » . . Vejamos a Amenea/padm
NubeB ! O qae trai o seu correio ? » .
— -a Ha dois aiiQOS que peço providencias é
Afio sott oiividoii-'^ respondeu o velho defiiii4ap
com certo .desgosto.. Fax-se poueo ou nenkant
easo ilas ordeas de Lisboa ; apesar do# capiudoà
entram todos pelas aldeiaa e vexpm os^ ifldibs. . i
Não 08 ensinam ^ maltratam-nos ; e toâo ^ ismfm*
pio é tirar grandes cabedaes* ... . ii
-»^ « Donde não os ha% É verdade l firta gante
eiiida qiie o Mto nHo è sangue , e por uma ru-*
pia arrilca e oorpe e a alma. Coâtinite. »
-r^ « Depois oa últimos deer eto» de Roma des**
agradaram. Gastasse muito 4^m ostontoções , -em
t^nquetes ^ e .. iiâo se melhora mída. Tintiaoioa
um enrgrahetrb a caualisar os rios e deapeáiram»^
no; As plantaçSes nao se cuidam; tudo é poueo
para C^las e regalos. . » . »
-**^ i< Não diga mais$ vejo que è sineero. Fal-
la*-se na corte e em toda a pai*te da riqueaa do
Aosae canimèrcio» De qué s^rre^que os outros
saibam Sé nés cornos pobres m abastados? A
caaa da Aieco rendeu oito mil jieaos íé^a .o ura^
Digitized by VjOOQIC
fl A ifOCWAl»
lor dat mercadorias? Bem. Más JHnUlfltaraBY^
na a unt negociante de Gordo¥a« Valha-iiòs Dew I
Eacarevil ao procitrador geral que desfaça o con-*
tracto por todos os modos. Eu nfto quero que a
mio dps estranhos tome o pezo ao nosso eofre,
ou que os de fora vejam tanto como nós no in-
terior do governo. Entende ? Sai as ordens que
expediu para o Braztl. Beforme-as. O geral Tirso
Goflçalvesy era hispanhol, levava tudo a ferro e
hgf9i TosquíanHme as <HreIfaas muitos rente, pa-
dre Nunes 4 e por um aítatel de )ã mais não
4|iiero. perder a res/ Istd é figura. As aldeias dos
Índios são nossas,. mas nolíssa é, também a ttrra^
e nem fút isso a esgotanios. . . ^ »
, r-r« Ê exactamente o meu voto> padre Visi-
tador. Representei o perigo de uma sublevaçio
dos Índios , e mandanam-^me que obedecesse/ / . »
-T-^ Mandaram mal 4 «stà claro* Se oM for-
mos melhores do que os soldados, os. índios fo-
gem de nós e vão para quem os chamar. Osael**
vagens são cqmo as creanças querem lÉÍmo.
Ganhámos aquelles territórios galmo a palme t
com a cruz na mão, e o amor de Deus na hecca ;
chegamos pela paz a ser mais fortes do que os
castellos e os terços de el-rei. . . . Agora veaam-
me , roubam-me os indios ? ! E se eUes se le-
vantaram? Se os bispanhoes, ou ea franceies
Digitized by VjOOQIC
Dt D. Jô^b V. 33
vièrèfhí?''NS<y se apodet^aih dà colónia, e ti3o^
se mettem de dentro, e nâo' ficamos nós de
fóra ? . ."■/. Esta gente nío vô nada f Padre Nu-
nes é preciso que a ignorância se desbaste com
patisà, com tento; ilem sabiòs que intendam
de' thai^,'ti)Sth rústicos '(|ue saibam de menos.
Os rebatihos tSo atraz do (iá^or i os homens nem
sempre. Levém-hos pélòamòr; que o Bom fár-
se-ha melhor , è do iniiàigo far-áe-ha um amigo.
Lémbrem^se de que olíão, até o Hão, lambe
as mãos que o curam : se o coraçSo dós Índios
não fòr nossb ou ^tiyer com outrem , que é o
mesmo , o governo da companhia dura poucos
annos *riá América. Bepare nisto, e acautele!
Ah; padre Sities^ tem susto da índia? Estamos
em bloqueio ?'Nao ihiportá. Deus proverá. Falle.
Sabe, e pôde dar 'boa conta. O que nos diz?»
-^«'Qiie é mft qtiestao , padre visitador! A
cttria insiste; os vigários apostólicos, francezes e
italrános , segundo informam de Roma , breve-
mente vao sahir para as igrejas do Oriente por
nomeação da propaganda
— « Para as apanharem de súbito ? Paliaram
muito alto , padre Siiies , e por iáso verá que
perdefm a partida. A batalha é perigosa , con-
fesso, mas querendo Deus ha de ganhar-se. Deixe
estar. Mandam á índia , á China*, ao Japão os
T. II 3
Digitized by CjOOQIC
34 4 HOGIBAD^
vigários aposUílicQS? ©em! Agora pf^ua^: ba
pastor sem rebanho? Quem Ib^s d^r^ pp3^ ou
os. seguirá, se nós não qvi^ermos? Não rede-
ctiram nisto; pois valia 9 pena. Para governar
não hasta a Yon^4<^^ é preciso o ^a^er; e eUe$
das missões nãp s^hçm n^. Yãq com 09 olhos
tap^oa. . . . hão dg cabif f dígMho eM. d
— « Éntrçtapto não ^çs^pijii^ni; » — «\cqdiu
o accessor — rucontapi (\brigar os nossos mt^-
sionarios a rçcQnhec^r a sua auctorida4^. J^^-
lam dfis çeqsuras de Boms^ ...»
— « Ou obrigarão, ou não, p^dre Sines.
De longe tildo é m(ul. Depois engançim-se ; quem
lhes diz a elles qye é lã , e não íom perto r que
nos hão de encontrar? Boma, çqi b^Uas au-
thenticas, qão reconheceu o padroado portu-
guez? Pode expedir oqtras, oontradizendo^se
em presença de temtos reis oiFendidos pçla i^ur-
pação ? Nãp cr^Mi 1 Os vigários apostólicos não
levam senão lurevc? cl^indestinoÃ. . . . Ora o, ver-
dade é uma só. Se o papa disae em pubUco que
as egrejas do Oriente eram de qi;iem as íundou,
não pôde dizer em particular o contrario. Não
defendenios senão a gloria e a boa fé do pontí-
fice , se accusarmos de falsidade os breves , e de
calumpiadores os vigários. ... Já percebe? Com
o sceptro de el-rei D. Pedro fecha-se-lhes a en-
Digitized by VjÒOQIC
DB p. loÃo y. 3 o
trada. . . . Aquellas egrejas da índia tem muito
sangue portuguez nos cimentos , nSo se largam
aflstm de graça. De mais, a propaganda quer a
crue no Oriente ^ mas gosta delia encastoada em
pedraria Um prego de oiro na roda , que a
roda iia de parar. »
«-^*E Dto deíxaiiioa nenhum padre de fora
nas missões ? Pareee*flie que é o mais conve-
niente desde já ? » — Insistiu o padre Nunes ,
olhando para o vifttador com a vista cheia de
sagacidade»
-^ « Nem am só , observa muito bem. Se lá
entram , gostam ^ e ateimam. Prudência e sere-
nidade ; não é preciso mais. Nada de nos exal-
tarmos; nada de nós excedermos. O nosso es-
cudb é el-rei de Portugal. Cubra-se a compa-
nhia com elle , que o ndo ha melhor. ...»
**-^it X% notícias de Roma ainda faliam mui-
to. .. »
— «Em quê?»
— «N^uma reconciliação. Parece que o car-
deal secretario insinuou, que a profiaganda não
eslava longe de nomear os nossos missionários
seua vigários apostdkos. »
--*--« Sim? tannbem tenho idéas vagas disso.
E entio ? se a propaganda o quer, que remédio !
Oínatitoto da companhia nao è absoluto; neste
Digitized 6y VjOOQIC
36 A MOCIDADE
caso manda obedecer. Seremos vigários apostóli-
cos. Resistindo á nomeação dos padres de fóra
das missDes defendemos dnrei de Portugal , se-
nlipr natural. Aceitando a nomeação de Roma
servimos o papa, senhor espiritual. Q.mais não
é comnosco. Não é este o seu voto, padre Sines ? »
— « Se V. reverendíssima permitte , (4)servo
s6 que ficaremos mal olhados aqui, e talvez ex-
postos. . . »
— a É possivel. Mas ficaremos bem em Roma.
Depois , tudo se acommoda ; neste mundo é as-
sim. Cá diz-se que é melhor sermos nós, vas-
sallos da coroa , e vassallos fieis, do que estran-
geiros tirados das corporações religiosas sera raiz
nem terra em Portugal. Lâ faz-se vakr o perigo,
o sacrificio a que nos expomos por mera obe-
diência. . . Ainda tem alguma duvida? t»
— a Ainda ha o negócios dos quindenios, que
em dinheiro vai muito , que em consideração
vai tudo. £ os dois juntos parece impossível que
se vençam. »
— « Sepei^ados é que não se ganhavam. Optar
entre dois males pelo menor é a verdadeira re-
gra. Os quindenios não se pagam sem razão suf-
ficiente. El-rei D. Pedro comprometteu a sua
dignidade a nosso favor ; deste lado estamos se-
guros. Agora veja bem ! E se o interesse maior
Digitized by VjOOQIC
1)£ D. JOÃO V. 37
I
disser que se paguem? Não devemos perder o
menos e salvar o mais 7 Por exemplo, se pagando
nós os quiodenios, a propaganda nos fizer vigários
apostólicos no oriente , não vale a pena ? »
— V. reverendíssima de certo prevê todas as
consequências ! » — exclamou o provincial, con-
vulso e suíFocado de medo diante da audácia
desta politica.
— <x Pois não prevejo ! ? £ verdade ; ha de
rebentar um temporal , em que sendo mau o pi-
loto podia naufragar o baixel de Santo Ignacio
nesta costa de Portugal , que não é pouco brava...
às vezes. — Replicou o visitador sereno e risonho.
Hão de estranhar , censurar , exterminar até al-
gum de nós, o padre provincial por exemplo.
Mas quid inde ? Â companhia ganha , e o indi-
viduo perde. Isso o que prova é a necessidade de
termos amigos, poderosos e muitos. Padre con-
fessor , padre provincial , o que ha a este res-
peito ? Contemos as forças antes da batalha. . .
Quem rS) é por pós é contra nós. Estou ouvindo. »
E encostando-se ao largo espaldar do seu
throno sacerdotal, inclinou a face á mão, e ficou
immovel. O superior e o padre Sebastião suspen-
deram um instante a vista agressiva, que troca-
vam , desde o principio da conferencia , para se
consultarem sobre a resposta mais opportuna.
Digitized by VjOOQIC
38 A BáOGIDADR
Ambos tr^niam dos perigos , que iam correr,
Irrigados a servir de instrumentos a uma po-
litica, que nos seus cálculos sinuosos, jogava
sem escrúpulo coro a coroa do rei e a tb^ra do
papa , desarmando um pela mllo do outro. Nào
i^gnoravam, que a cbolera de D. Pedfo II ,' es^
carnecido no seu poder, e ludibriado na sua bae
fé , cahiria fulminante sobre os motores osteo^
sivos da companhia. Percebiam optimamente que
os deixaram nos seus cargos para representarem
o papel de bode emissário dos hebreus. A socie-
dade impunha-Uies os seus peccados , e deimth
vaH)S lapidar por quem quisesse. Entretanto obe-
decer era o que lhes cumpria. O que valiam ou
significavam elles diante do engrandecimento e
gloria da companhia?
Òs outros accessores estavam confundidos. De
repente viam cahir das nuvens no meio do con-
selho este homem, duas^ horas antes tão obscuro,
que alguns nem o nome Ibe sabiam ; e achavam^
no senhor absoluto do poder na opulenta sack^
dade a que presidiam. Depois, ainda mal resta-
belecidos do abalo da transfiguração^ repenUna ,
ouviam-no expor os negócios e propor as deei'-
soes com a certeza dos factos, e a sciencia do
mundo, que constitue o génio transcendente dos
talentos governativos^! Élles os sábios, os e«pe-
Digitized by VjOOQIC
DB B. 30kú T. 39
rientes, approtados na paciente politica da com-
patihfa, comparando-se ao visitador , eram obri-
gando» a confessar , que via melhor , c Ha mais
longe do que os seus olhos cançados de tantos
annos de estudo ; eram forçados a reconhecer que
era nma hora de exame e de analjse o novo pre
lado adtaMára méis a resolução das dilBculdades
do que todos ellea juhtos , e o geral de Roma
nos uhimos vinte annos.
Entretanto todos se viravam para os dois de-
Bnidores rtfterpellados pelo visitador e liam no
seu rosto nma derrota completa. O provincial
priítfétro , e o padre Sd)astião logo depois « bal-
bctehinmi erii phrases timidas, em explicações
acanèadas , algumas desculpas sobre o desleixo
qtte trnba havido em fortificar a companhia por
meio de allianças firmes com os poderosos e com
o povo. O quadro qvre traçaram nada tinha de
risonho. Sem actividade nem discernimento go-
saram as delicias do poder, adorniecendo com o
canto da «ereia , sem fazerem caso do passado ,
vivéndb do presente , e de^acurando o futuro. Á
medida que os ia ouvindo , o italiano carregava
mafe sobre as duas profundas rugas frontaes , e
tfpagava im lábios ò sorriso. Para o fim os que o
observavam pasmaram da magestade que expri-
mia o gesto e a phisiononiiar do visitador. Crés-
Digitized by VjOOQIC
49 4 »of;i^^f>^
ceado m cadeira , deitando hm%s pelos olbos ,
não parecia um homem , mas uin Deus, quando
alargando o braço , impoz silencio , e desatou a
final em torrentes a indignação que UiQ trasbpr-
dava da alma : ,
— « Basta ! ; — exclamou elle. O .pemjiameoto
que nos fez grandes e nos deu um imi^rio em
cada estado ^ perdeu-se ! Q ^pirito que vivia ein
nós, fugiu ! Tirso Gonçalves, cçnsunwou-s^ a tua
obra ! O orgulho e a riqueza jpaata^am a com-
panhia. Padre provincial, a braços QOffí a maior
íucta , diz-nos que dispoz tudo^ para se perder» e
não previu nada p^ra se ganhais* , Depois ,de simi-
Ihante confissão não ficam sem lúz.QS seus olhos
e sem falia a sua lingua? Enterrou os talmtos,
como o servo mau do evangelhp, e appareçe diante
da face do Senhor sem ao menos se humilhar?
Padre confessor, está a concluir. este, reinado,,
porque D. Pedro II (já i^ão é segredo) uão vai
â próxima campanha , vai para S. Vicente de
Fora : o que preparou para a influencia da com-
panhia na corte não ficar sepultada com o mo-
narcha? O príncipe real ó n^Qç^, e generoso, é
grande de animo , e maior de coração ; o que
fez V. paternidade para que o filho, continu^isse a
obra do pae? Os mancebo^ levam-^e pelo cora-,
ção , que é o amor , e pela cabeça , que n^ sua
Digitized by VjOOQIC
Dfi IX.' J0ÍO V. 4i
idade' é a iauaginaçãOi-O que deu ao coração do
princifie? Â:ríyalidade louca, ridícula, de seu
irmão o ÍRÍaiite D. Francisco! O que oífereceu
à sua imagioaçãp? A vaidade das armas, os duel^
hf^ nocturnos qu^ podem entretes* um úiestFe de
esgrima, iças que iiBo oecupam meia hora a ca-
b^ de um Eei! O: prineipiBíSÔBba com a>ma-
gnigceneiã, adora a formosiirav e à!iníbicioQa the*
SOUTOS, pprque deseja ^r genisreso; quer que o
aupiem como komem e não como senhor, e niti-
guem, nenhum, soube entrar na sua alma (que
er^ tão focil), e apoderar-^e delia ! Pois este prín-
cipe, que nào fizeram nosso amigo^ digo^lbo eú,
é tiipído a acanhado, porque não se conhece;
pi3i»ham-4he a coiâa na cabeça, e verão se mente
ao âaiigue real., Preparem-se , que vão sentir o
peso ao scei^ro de Luiz XIV ! Não odistíiaiam ;
não ,0 entacem ;iOs turaços apaíxottados de nma
La Yalliere, que o estremeça, e verão se olha
fito para nós, e nos deix<a socegados reinar mais
do «que elle nas índias; ser tudo e o rei quasi
nada: na America! O príncipe quando se chamar
D. João V mosltar o que éy e o que pôde ! Espe-
reoi, que hão. de saber o> orgulho, .'B força ide
vontade, e a goiadeza d'akna que doimem ainda,
mas.depressa.acçirdarão no heixl€{ir.Q do t^MPono... )>
— « V. reverendissíma não íginor&qnede Ro-
Digitized by VjOOQIC
42 A UúGl9km
ma w nos disse, qiie entretivessétlMs ^em^e a
rivalidade do pdncipe com o ffifáAté... CoMMo aa
casa real muitas veces os irmfio» ^gUndos teAi
a reinar, jolgo que foi a rasão^ pcfi^e..< »
' -M^« Então ?* paternidade ^6 qfnr ô infeiíle
D. Francisco pede ser o Aflfonso III ^ cê o P^
dro II desta épi^7 Imagina que ú bistoria vífa
é cbmo ft fioMáa de am livra qnie se dò6#tf d«iè
se quer, e basta decorar^set Os filbos sumidos
reinaram, quando vadiam maíís do que osl p^ímo^
genitoa : o lefto ó mais forte do que o lèbo pér-
qoe é lefta. Esta mÁ politica' é que nos poê úo
estado em qae nos vemoa; 9^m permita que s0ja
ahida tempo de lhe aeadir f Vei^éfinos^ sé eú, es^
tr^ngeiro, penso melhor e posso mais dlo que pa-
dres portogue^es e encaneí^tdod tia cdfte ! Teata-
rei a fortuna ; e $e fòr felk apretfderllo eoiMigo
a levar oa h^sMiaB peto eoraçSo. I^à^aenlosa ou-
tro ponto. Depois do principe^ ha dois^ hometis
que podem maito, parque merecem tud^r o
marquèz das Minas, e Diogo áé Ifétidonça- C&í^^
te-Real. O prt^meiro é hoj^e o* nosfeo^ conde- de
YAh Flor i a melhèr espada- de Pbt^tígal i o se-
gundo' esoonde^e; mas aSo tem medo d^ se Míe-
dít com os grainfitea mi^istroã^ da^ Eai^pa^ O qm
fez a com{ia^iai pára os ter da saa parfeT Naêa^T
nem obseqaiass nem louirores^ áetn serWçoir} Ao
Digitized by VjOOQIC
UB ik. mAo V. 43
pé d'el-rei o padre confesior nio se lembrou
deites! Ê preciso que D; Pisdro IÍ escrev» ao
marfuez um» carta do aea punho ; e que o hoíste
com as suas gniças« Ainda é mais M^essaPiO que
a inarqueza mha a qUéi» dete eitc» fnvoret, e a
infliwfiieia que os alcançou. Convêm em todos od
legares faaer boas auaen^ii» m Diogo de Metidont» ,
,eseiiiaíFcDtaQ9es meteis no rora^do prindpe.
O cx)tiniHiD do uknifliar é tudo para af cdmpatihift ;
ohegAmos á< miierw de não ter tà unv rélo nosso.
FaREemos só inimigos! O conde Almtrainte, o
conde da Vidigneír», tem-^os ódio ; vv. pater-
nidades nllo se Imibfam de que efíe é descen-
dente de Viasooi da 6sam, e qoe nó?, moutáftído
o éabo da (Bea Espevanç» todos^ os annos i Mo
podemos estar raajf oom os neloe de quem o do-
bro» primeira? t Padre Sebastião, no consdbo
ultranMiriDO estamos de menos, e n& conaetho de
estiNia appwetemo» de mais. V. paternidade nii>
devia minca entf ar ia. A fidalguia calla^^, po-
rém murmura ; acredvie ; tiã<» ièe perdoa nem â^
companhia o arvejo de hombreav com ella. Joio
FsaaiO' Oliva- queria na cúria e M9 congregações
os jesuítas , mas sem roupetdv Tinfta rasae>. Ê
melhor que noe sintem- sem nos tér. . . »
— ^«'V, FCneveitdisBinM, dá lioetoça?»
— «Diga 9 padre SdNurtii^. »
Digitized by VjOOQIC
4*4 A ifOCODADE '
*
•***-« Se entrei para o conselho de estado pedi
vénia primeiro e recebi ordem expressa* Ente»-
deraiii em Roma , que era bom ^ estar um de
nós no centro da politica do estado* • . »
-^ « Entenderam mal« Ora drga-me : dirigindo
a consciência, do rei não descobre os segredos do
seu coração ? Que necessidade ha de que os
mais conheçam a sua iniluencia , se em particu-
Ifiur, e com humildade, consegue o mesmo? Be-
pare , padre Sebastião ; a com^nhift dere ser
como a arvore ; as ramas que se vêem olham
para o ceu; as raíxes, (e é onde está a força)
como vão por baixo da terra, podem chegar
mais longe. Benovararanse as antigas dísciMrdias
com a inquisição? O que esperam dbto? P«rd^
tempo sem proveito. O padre Vieira aoctor do
plano morreu ; os apiiros da guetra da súcçessão
passaram ; esta de be}e é lima briga de creanças
ao pé deita; os judeus não podem fazer-nos bem
e pelo contrario fazem-Hos muito mal. Não nos
cheguemos de mais ao lome, porque o lume
queima. Precisamoa dos inquisidores como elles
precisam de nós ; e quando se precisa « ha uaíão
e nunca hostilidade.
— « V. reverendíssima sabe, julgo eu, que
nos provocaram. . . .estávamos em paz, e de
caso deliberado fizeramrnos-^ et. injuria. ...»
Digitized by VjOOQIC
DS ]>. J9A0 V. 4K
-^ « De prender um.soeio nosso? Sei muito
bem. Olhe^ o padre Vieira, que era o bomem
que s^ , prend^am-no elles da mesma forma,
e até o condemnaram ,. e nem por isso noá foi
peior. Bastava. obrtgaI*os a ^soltar o nosso sócio.
Uma lição pequena; uma correeç&o fraterna,
como levaram agora, os dominicoa no desembargo
do Peco. ... Âivpadre superior^ isto vae mal,
vae pessimamente ! Temos uma cr-uz pesada , e
não vejo o Cyrineu, que ba de ajudar a le-
vantal-a. ... d
— c( Assim mesmo ainda ha muita gentes . . »
— insinuouv timidamente o si|iperior.
— n Gente ba , mas devotos da companhia ,
homens nossos , que. é delles ? D'antes , para
tudo havia servos de Christo; hoje, falkm, e
não fazem nada; ora, palavras leva-as o venéo;
as obres é que ficam. Soube-se noutro tempo
mais do covação humano.; e desaprendemos cada
dia ; que*é o peior. . . . Valha-me Deus ! Quando
nos persegairam , appareceram os Jacques Cle-
mentes, e os Ravaillac. . . . eram assassinos, pec-
caram, de certo; mas sabiam morrer. Se a
desgraça nos visitasse hoje , díga-nie , acha que
alguém nos conhecia? Ora pois! Não ande ás,
escuras , porque tropeça. Padre superior , quer
saber a causa do mal ? Não ha zelo ; falta a fé.
Digitized by VjOOQIC
46 » ÊL MOCIBABE
A pafabola do ^o de noBtania é unia divina
promessa do SalviKlor. i • esqueôemo-oos délla. . .
é os montes cada Yez> sio mab altog diante de
nésl Ai&ottxa<-«e mnito, descaida-ae tudo no
ensino da mocidade , padre confessor, . , . n
— Cf £ verdade , qne não vamos t2K> bem oono
de antes; d -«^redarguia o superior t confuso da
lucidez com que a vista do seu prelado chegava
até ao fimdo das coisas mais recônditas^***» « mas
trabalha-se.. As outras ordens religiosas por ema-
lação não nos deixam , e ás vezes
— fc Sabem mais do que nós , e oflhscamHOos,
não é a verdade^ padre superior? x>-^ atalhe»
Q jesuita com o seu sorriso frío-*^» Ahi está
de que eu me queixo. Se elles andam, é que nós
estamos parados , acredite. Se ensioar-^mos me-
lhor e mais depressa, otheque os nfio vâo cha-
mar & elles. Depois, já lh(& disse, sei tudo,. vi
todo pelos, meus olhos; para isso vm tnes me*'
zfis nesta easa Ora oiça , e medTte. Sabe
como a companhia imdoQ esse impeario Ião grande,
qne abre os braços por todo o mundo ? Quer
que lhe diga como conquistou tanto sem exér-
citos e sem generaes? Far viriude só da pala**
yra de Deus! Os principes teem a espada; ma»
a espada fere. Nó»fomos de joelhos, como Chfrísto,
e levamos o amor e a eharidade áquellescpie^
Digitized by VjOOQIC
Di| i>. m9 y. 47
^t^fM». a ferro e tpfô, . . 4 £Hf9s y^neerm
a di^r^nfia ? liQmbre^ , que em Â^mft q9 Ce-
ssões ps^apaaí) « ç o Me#^& fii^o^ ! Ê porqiAç
u ^p^dil (^efer^-fo , a çQi^oa cabe , q 0 rei . morre ;
ma^ o eprac^o ^ a alma cio hwieHft $âQ aen^pre
Q& in/a»ioQs., Se Mfoa geração aoaba » yen», ^ga
outra «w-aj P (^ oasa to4p -.^ mmi sobre « que!
está pçlQ íoa^r e. pela f$ ; # ter a 4^ Yom uas
mãos pelo . efis^ipo e pela esperança* ... O filbo
respeita o paif, o 4isqipM}o cr^ 00 EOestre. ....
o a;km »ap Ç3^cepçQ(3S^
— « É o meu Yoto; é o que tenho (Jitoe:
feita sempre » ! -^ acudiu o padre ^ba$tiaa de
lyiag^lbdefi» com ar trij^mpbaute.
. — <ii PqÍP dissQ iBuito bem^ padre jiiesU'e !
Desgraçadamente aâo p atenderam. . . . Por esta
regra, pi^i^erám^s « e pela 4?^pre^^ Haveoios,
de caJ^ir, . . . pwrque nàp Ha m^ grande, e fôffte
qufi pom ^r eternat . < ». . ao m^n^ quc^ uao.
seja iK>$ uqssos dias , qu^ vao vejam q$ uei^os
olbfMf a r^U^? \ Copsotemea ^ afflic^ , ac«da-$e
aios pobres, e resgatemos os capl^ivos. ;C4fi4a que;
Je^us Ch,ri^ foi cham^ os ric<^ a os {elides
para ediin^ãff' a sua egirej^? N$o vê, que lOS po-
br^ eo^. humildes é que a (u^ida^ami tào se-
gura que dezoito sequlos a uílO abalarauí : tào
Digitized by VjOOQIC
48 A MOCIDADE
grande que nha ha parle' do mando, aonde ^Mo
tenha muita$ portas? O nos90'érro\ e oHie, que
DOft ha de matar! ~*0' noíso erro tem dídé es-
qwoer^mbs que somos ricos « nSo para desfriH
ctar, mas para grangear. Seíizer^-mosbem ao
proonmo, elle por força nHo feje de nós, Soje
para nós. E se nos procurarem iodos, astarenu»
sós ? Se iM quiwrem todos , somos fracos ? »
-»<« Como já observei, )»«-* respondeu ocon-
fessor de el-rei— -« da milha parte n&ò me te-
nho descuidado. Sou íneansavel na corte. Os
príncipes e os fidalgos não chamam outros mes-
tres »
— «A corte é pouco; a eorté só Mb é nada,
padre Magalhães! » — atalhou o visitador severo"
— O estado comp5e-se de clero, nobreza, e
povo ; e repare que as duas classes São muito
peio que representam , mas ao pé da ultima sSò
quasi nada em numero IMga-rae: nSovê
que o povo todos os dias sobe? £ se die subk-
tanto que chegue ao lado da fidalguia e do clero?
Acredite-me ; é preciso que todos nos oiçam e
nos vejam ; se não tivermos o povo por exenctto
e o rei por ministro , não temos senão apparen-
cias ; e das coisas o que importa é a realidade.
Accusam-nos , bem sei , de quereremos apagar
a sciencia , e escurecer a rasão. Chamam^-nos
Digitized by VjOOQIC
BE 0; #pia v« 49
«imbio«0^&, áob«!bo^ , é' exclusivos. . . :. nSo oos
ceilbQQfai^, -é Q que^é; faliam sem «aber.o que
disem. lloif^^ía Mo de saber lEUes vivetfi c^ada
um- Qm swea^^ quando muito no seu remo;
n6» 'memmteahtUiài^ o mundo, ^e estamos em
toda^ a>ipfaii$/ . ... Jutg^ que este .seculoé o se-^
culo«pa99^0f;iicií^m que tudo «ao bucólicas « ju-
bilas, e .i^cções: de grafias ; esperem pelo tempo
que.i» 1#iiipo<lbefr dirá o.que é. Estes reis e estes
ministilo^.^ «padre: Sebastião, aiulSío cegos, e são
muito peqjueuQS 9 niaí^i pequenos ainda do. que a
t^rrd'9 ^e n^o .podem cond o peso. . . .Ateimam
qiiatC^tà .tudoptiradorO ti^ vae a con^er! . . .
£ep$fim; , nem. pensam, díeêm que o silencio é a
consciência , e que a rasão humana pôde enc^r-
cerarr^e: .>. ..icoitodosJ .Anibas ellas vão tSo de-
prd668^, e e^tS^ijà tãQ\lon^.delle6.(e até de nós)
que iSe <«£io dobr^moS: o passo pafa as acompa-
nhar s<fi)gQiii-OK)S,perdemTTse no caminho, en-
tmmr.a.4<ídçÍQr! que s3a creançaaç e. deitam por
tenracO ^bom ero mau ,: o sagrado e o pfophaiio.
A pklâspphia , que encetem tanto essa g^nte ,
as, ;&bulftS:^ as novellas»,! todas essas comedias e
tragedia^ que açlaádMi ^ao maus ^jrmptomas. » .
doixem /correr os annos-- Oi hao de a^barrlhe a
gostQwf. . . mas a comfiBúQhia é que atravessa tudo,
fóttras. erg^eciip ! O^^l&lNós sabemos, e elles
T. n. 4
Digitized by VjOOQIC
nfk>. Conheeendo o mal, ^?eiidò o perigo,
podiatnos dv « mão ao {irogrMo« ({«efemoego,
para eAlo sé tido proeipítar do fepOHto. ..«.«-
úm id^ei a cnt , quo é o €Í¥ÍKsoçÍO , Éã» ¥1-
cilasto, e<^ throno, qsnd é » cadetiH tido «lAiMe. . .
Quando noi perderem dièert^ se vhM meliior
do que nós) A rasâo humano^ ba dê ievanlpir-se
coptra elles , e não a (ImirdieneB ; e opr^reaso,
perdido, e cego, ha de pa8Bar4lkea fop cima
do éorpo, deixando-os no chSo, picados, e
mortos. . . . Padre pro? ineial , aúida hte de oho-
rar por imís até os inimigos ; digo os íninâgos
porque eedo ou tarde o^ nossos iiiimigos lAo de
ser os reis e 0$ minictro». Deíxâl-<)s! Elles
aprenderão A soa custa, n
Unto lagrima apontou aos olhos desto bomom,
que lia com tanta sagacidade no fsfturo as-Mbos
ainda enn^aèis da historia» A voz, feremia e
yibrava com as intima» oonmioçSe» dà aitna. •—
Expondo a tbeoria, a^Mlas, mii$ lotfièa da
politica jesiiitka; fundando nío amor eenatidade
0 poder temporal , a monarofcia uttifferaal , a
que aspirou sempre a famosa eompanbia , eujo
sócio €^ , olhava com saudade para ^ pásaado ,
eom trísteia para 0 presente , e com terror para
o futuro. O enigma sòeíM (A ^i^tlo' preoeupafa
as intelUgenciasextraordinâtías. No pritioipíodo
Digitized by VjOOQIC
msaXú XVlII j6 íA^mn tremia de encòntt^^
diante (fe ái^ t«i^tiYithttietite ^ <ésda forQo latente,
invévieivel^ qii6 i^velAda ^ etpfosSo, toitiou
t^dirpo « flírma nds atas 4e liictá éa t^volui^ão
rrabóei:^. O jesuíta ainda eria nò poder da w-
ctoridade para suster ou desviar a tor^ate ; ainda
imagitiata«, que depois ^ imprensa, e diante
de Voltaire 4 nega^ atrojáda, elegante, t
earopea de todas tíê crenças , era posUiVel d(-
cet m Sòl qa« pafadM , e á luz que brilhasse me-
nos 1 . w
Entretanto as sua^ palavra^ ^hiam tahto do
tx)ràçao, e pintavam com tàntà verdade, que os
accessores^ confusos^ atterradoB, e mais exacto,
deslumbrados 4 do clár&o desta immeiísa intelK-
geiídia^ que vin^ sabia ^ e previa tudo, nào ou-
^vam tiem descer ao fundo d^alma para se in-
tettogarem Acerca delia. O visitador desde esta
conferencia oc<^upou de direito o ^ummo poder.
Estavam tio lottge delle todoá, que a inveja
mesmo tí&ò efa possível ^ ficata-lhe multo alto.
Etoltados pelo etempío e pela energia de «m gé-
nio di^inctov o setttimenté único, (jue se apossou
delias^ fai o desejo de se moM;iHirem dign6s de o
avxiUar na escabrosa feconstrucçílo da influencia
da éom^tihia. O padre Yentnhi ^ satisfeito deste
pensamanta, qne estdva no rosto e m> coração
Digitized by VjOOQIC
52 A MOOiDADE
dos seus executores, despedi-ros, ^^eodó-lhes
com agrado algumas phrases lísoQgeiras;
Quando ia a sabir o padre ^Simões , que era
o ultimo , o visitíiidoir deteve-o pelo braço ,. e es-
fregando depois as mãos^ disse como seu pla>
eido sorriso:
— «Então, padre Sinoí^s, não lh'o dizia eu?
Deposemos os, soberbos : agora vamos exaltar os
humildes ! Estas lições . não cabem . no chão.
Veja , exami ne , e avise-me de tudo* como até
aqui. . . Tem feito á companhia e ao geral maior
serviço ^ do que imagio^. » ,
E apertàndo-lhe a mão deixou-o saUir. È iau-
til acrescentar que ás informações deste confi-
dente perspicaz, e ignorado dos mais. aecessores,
eram devidas as idéas exactas e o conhecimento
profundo e minucioso dos factos, que habilita-
ram a capacidade extraordinária do visitador a
ser mais sábio e mais pratico em cada negpcio
do que o defínitorio, encanecido no estudo e
meditação das diifficuldades do governo.
Apenas se viu de todo só o padre Ventura dea
duas voltas á chave e fechou-se. na secretaria.
Depois foi direito a um arn^ario secreto sumido
n^um recôncavo da parede ; tocou a mola., fez
saltar a gaveta, e tirou delia. um cofre, pequeno
folheado de tartaruga com frizos de oiro embu-
Digitized by VjOOQIC
DE D. JOÃO V. S3
tidos. Dentro do cofre estavam só dois maços de
cartas , cuja leitura o preocupou tanto , que a
sineta repicou duas vezes , chamando ao refeitó-
rio , sem elle sequer levantar a cabeça , apertada
entre as palmas da mão , em quanto os cotovel-
los se firmavam sobre a mesa. Um sorriso mais
agradável do que irónico, uma expressão mais
curiosa do que sagaz , acompanhava os inciden-
tes da leitura. Finda ella o italiano tirou duas
cartas do primeiro maço e metteu-as no bolço do
peito ; e repondo tndo no seu logar , dirigiu-se
à porta 9 que abriu , em quanto dizia a meia voz,
fatiando comsigo mesmo :
— « Veremos se este papel faz o milagre !. . .
Este homem, dizem elles , que é nosso inimigo ?
Pois sim, será ; e se dentro de quinze dias, por
empenho nosso, o fizermos primeiro ministro?...
EsiSi gente não sabe que só o Salvador era capaz
de resistir levado ã montanha da ambição. O
tempo a ensinará. »
A quem se referia o jesuita?
Brevemente elle mesmo dirá. Escusado é, por
tanto , sermos indiscretos. Por muito correr não
se chega primeiro.
Digitized by VjOOQIC
Digitized by VjOOQIC
CAPITULO XV.
UMA SERVA DE DEUS !
Agora , pddindo Ikenç* a um amigo wm^^
eoAraremós na sua cbonfvana , como dieiam em
estilo pastoril na epocba deâta hmií verídica hts^
tona. O honrado lliomé das Chagas desapp«re*
cett ha tdnpo, e 6 preeiso sabermos noticias
suas. TeDH» sido ingratos esquecendo^nos de o
procurar ; mas elle fino , como um coral ^ não
pede ter deixado de fezer-^se uttl ^ sobre tudo a
si. Deve esttf oocupodo. Vamo^ vér.
A escolha das posições faz o general ;.e o noss^
amigo saiiiar estai regra ^* como sabia a casbistiea
do padhei Baimiy ,. o mnitaB coisas mm^ O Eaeas
de Évora, salvando os penates, e .chaniande
tempo depoiSr eoimo aua fid €ireiisa'i ar vrrUiosa
Digitized by VjOOQIC
g6 A MOCIDADE
Perpetua das Dores de Maria Santíssima , tinha
farejado o sitio mais commodo de Lisboa , para
assentar um acampamento. Depois de boas infor-
mações e attendidas as leis da hygiene , da tác-
tica, e da liberdade de industria, optou pelo
becco do Manquinho , posição estimável a todos
os respeitos.
O becco do Manquinho era, no anno de
1706 , e continuou a ser até ao terremoto de
1755 , uma espécie de corredor enviusado , es-
curo, ladeirento e^ lodoso, cheio de cotovellos
como os pés do devoto , esbeiçado de paredões ,
e de barracas arruinadas , como o vestido mila-
groso do Bertholdo Seraphico. Este logradouro
dos amigos da obscuridade , que de longe m»is
parecia um cano de despejo , do que uma rua
habitável, tinha nove palmos de «lal-gb^ e ses-
senta de comprido , na segunda v<M(li ^que^ fazia
para enteslar com o largo doa Escudeiros. A
estas consoladoros proporções juntada ai «dm uma
->eberta em forma de boeca de gavpafáo ^ à qual
sabia para a Âlfurja, oatra víelki torcida , na
largura de sete palmos, até ao becco dos /Na-
morados, nome vaidoso, que o lamacènto^e es-
guio passadiço devia tx'Oear pelo afppéUiob mais
verídico de becco dos Ladrões. . f ' :
Á vista da exactitóima desorípç^Sies q*e>i^»ba
Digitized by VjOOQIC
de -se lèr , íivaàa .dos moniuiientos da epocha^
poQco resta a /acrescentar. Em dia de dílig^a^
cias da justiça ^m itectoa das èarracas , coroa*
das de trap^FinUas. afuniladas^ poáiamiatoir.laQii
escapatória aos : morcego».' e^ abutres deste bairro ;
e ds mais delicados de tionscienèi^^ e por isso
menos promptos eipi -evitar o contacto dos bder-
guina 9 se okòvia^.não .qiterendo safair de ema
o(mi agua até aio joelho, preferiam atravessar
uma taboa oomot^p^ile , da janella para janella,
em toda a largu|:a.do becco, o qufe lhes f^opor-
cionava a commodidade de visitarem os seus ami-
gos, viajando, aeriam^ote sem. passaroUa. Deus
noS' i livre de maiis pensamentos ! Slas estas en-
cruailbadas V feitas de^. propósito oomo^ tocasse
sapos , não se pareciam mal com uma caverna
de* trataittes ,> admittida mesmo a virtude e amor
do proximoi do principal locatário , o sr. Tho-
mé das' Chagas. O cortiço estava cheio de vesr
pas , eomo é de suppor ; > e as vespas usam de
(erpão ; qualquer, dos moradores etn 'perigo , fu^
gittdo; pelos telhados, e sdyiaado aos tenebrosos
desaguadoiros, podia faotlmentâ deixar a justiça
parva no meio da^ mms bem conoebidas evolu*
çftea.^
O sr. Thoihé das Chè^gas. vivia com certo eon*-
chego.^ Quer fosse herdeiro do velhaco Onofre
Digitized by VjOOQIC
è^ A imciBAnE
Crespo, quer tivesse acfaad» tfaesoufoeacoBdklb
âebaiiib€^ d» pedra da chamÍBé, a Teidade é.<|iie
se tractef a ás mil maravillas para um viilfio
ruim. Todas as peqweoaB eónaolaçdea, com «pie
um devoto corrige nos dias gordos a magnsza
do fameítcalelmn, estavam en&xAaám m disr
pensa em gdosoo eaobos do paios e chouríçes,
ou em didettosas K&bas de garrafiss de geaoino
e madofo vinho. Fiel à raodeala fortuoc do seu
pupítto, a tia Perpetua deseontavit oito bons
por dta nos lidas da saivaçio^ pasa tractarda
cosinha e da roupa dO' sr. Tbomé r e resnuo-
ga«do o se» padre nosso , ou esbrugando o seu
rosarí<^, ponfaa toda a caso bonita e cbeinsa
como um palmito. D^em a tenka^ em gkariat ^
tia Perpetua!
NoVdi», em que estamos , um acto de r^-
boNião- inaudtl» acabava d» se consimniar eo^
tra os^ moradores dk) beeco do Ittanquínho, fe-
ridos no» socvatíssimosr diroitos. de caminb^e
passagemi A barraca doi sr. Tbooié das Chag^^
Ibrmav» uat do» inmmieKavm cotcnaeHos do csr-
rodor ^ aonde 0 braço dot pouoo» opolentoi mestre
de otnras a Irauitára. & dUa èeacaiçii fasia* «ibs
cova grande entre ella e os três casebres aiuda
mais eaéocosi^; que Ibe fioavami defironte ;- s^o
o do mei» » tenda , » espelunca db âiitoo baif-
Digitized by VjOOQIC
Disn, 4^àQ V. 69
risia» QOfead» do&iiiHMnsesci^eis loire» da estilo,
rortifíead» c^m as gloviomis barricas^ cpie o €od-
shbkho tirav» ào^ porio e «mpmmMra paia a parta.
Á esqperè^ habitava vm vat^nvw) tíígs»^ anwkK
tado t e pro^so a viii^r « pergmça da nnlete
cono oa saltei ittortaes doa» dbdas. Na direita vi*-
via o. sineiro da j^cbía , entre oa flates kiste-
rieoa^ a m mwmuracfca eteriuift de três beata»
velhas, que eram a cauda da serpente, cuia
cabaça ven^Ma» afppavecâa na beoco dos Nano-
radoa, qiiartel^^&aral daa gatimoa da cidade èt
Lisboa^ e mvk faftigtch
Ei^an siat^ bor«s dia manfeS f^ aiiida< não o se*
rianr viesm^ ;. eomeçana a aailirai! o dia ; e uan
chwíeiro teimoso , puthado |elò vante»,, açoiteia
as jandlas , eom vidraoas de papal de cantodifta^
quando o illustre vetenso^atãriíi ft poit», ttgfmmr
toroli e pé sadio,, e a perva: vádida: fera do ^u
tegudo. S^ndo ar sw betta esipressilo, ia> faier
ai consoada à tenda d<k tía^Br»,. cam dais %es
pasaadoft e ma dósei stapeitaiirel de agoeraedenle^
pM'<9 eviuigair asf buowiMes do< eateoaago ^ e* le^
hahÂbtai^ o sjrstdiiift narrauK Be sepctite o f^
rioso monumentcl^ dat gitarsa òd snonfisa» ik»
um gritoit e esi^peotofCM nraa Uasfenria ^ a que >
respondeu , nsya^^iei ecb» , roas à iminansa^ boooa
dcvJtwpradQ teqdhíro 9 que/ d» aito degraa áà sua
' Digitizedby VjOOQIC
60 A MOdBÁBE
porta, e sepultado «té ás or^lbasem um agudo
carapuço de lã , amaldiçoava em phrase clara e
voz ialfelligivel a causa dos seus males. Ao duetto
dos dois bftíxos associou-se pouco depois o* tenor
do siaeíro^ e o sopraBo e tiple das beatas , cujas
coifes e cupeHos mal assentes tremiam com a
raiva do areópago fèoiiniDO , fflitlbado^diante dos
degra«K^ de punho fechado, e olhos scintillan-
tes.
Qual era- o motivo , que provocava esta elo-
quência no becco do Manquinho ? Qiiem desa-
fiava a ira guinchadora das matronas ; a faria
pausada do mercieiro, e a cholérá militar, e
qmsi: episcopal, do soldado e do- siMiH6? O
roais exiguo< e desj^resivel ente ! Utn galopim,
de oito. B nove amios! Olhemos para- a rua e
adiaremos 0^ corpo de delicto.
A cova entre a casa do sr. Thomé, e as três
barracas tinharanse convertido^ em lago , graças
à seíencia hjidreuliea do gaiato já citado, o qual
muito senhor de. si, e a coberto da vingança dos
inimigos, apparecia a cavallo em um barril pe-
queao, talvez empalmado á tenda. Um caHãxo
de papel pardo còroava-lhe a cabeça; uma canna
de enxqtar peros servia^lhe de sceptro. Ta-
pando as saídas á agua da chuva que fõtà co-
piosa itoda a nottte, o velliaco alagftra o beceo,
Digitized by VjOOQIC
08.0. Mio V. 6á
guasi até ,à entrada: d/a^^Alfiiija, e feaíatia iofiar
^ido. á; execr^íãO: das \mU$ , da tia .Perpetua ,
e 4^ todQ^.o^fi»oi:ador^&» cço^emuados a^^^f um
I^sdtio ^ barrigas das pe^nas^ Gaao.,t^t«ssQm a
tQDiciridade de^ sair da porta.
Em virtude deste grave, acoBteeiai^o yjiaAih
se^.^ pojs, em aç,ç3o.bellÍQa,,^ velbas ^e^reahii'-
das e alvoroçadas como jtffuxas ; e, jio t^eip p tèfir
deiro teito Júpiter statpr^ e Icun^atâ^ndo o h^r-
ríl dçitado ,ao .lago , . e>o si^o de p^pel pardo
convertido em elmo impçríal. Ãb ling^as das ma-
tronA$r afiadas pela raiva, esquartejavam a som-
bra do rapaz ; a i^uleta do. soldado juravarJíie per-
les os^os^ e a.jSíai^}ia do verd^egi^o^negoiE^i^Rtede
quartilhos ajtcoava o céu e a terra... \No meio do
alarido o gar^to.ría,.patiah4ivae assobiava <^mum
desplante capaz dç enfureceria propm;pacienpia;
Entretanto, .vendo o veterano arriscar o sea
único pé, o no$so amigo, saltou como um foguete
de cima. do buqephaljo de pâu, e rolounlhV di-
reito á canella quando. estaya cortao^Q as, ^guas
eqm serena precauçSo. O Marte do Manquinbo,
em perigo flagrante, esqueceu a fraqueza dos alin
cerces, perdeu o. equilíbrio e a muleta, e cabiu
de costas no pântano artificial no meio dos cla-
mores do tendeirp, qne apanhou de rosto a chuva
poucQ. odorífera qu^ espirrou do baque do sol-
Digitized by VjOOQIC
62 A M<ICI0AW
4dfo. fititrelaMa HO rapaz mi^oís p\Ao^ mdleir-
se na Alfurja, e d'atkt*«VitrM no heccó úús Na-
morados dando tímàas que ounitim tnnito tempo
eom «tleneioni indignaçSo, e geatos ftiiibmidos,
as victímas lodibríÀdafs. N^ mom^ento cttttco a
tia Perpetm foi eonsbtin^dft a suspender a Ver-
fina que pronuncíafYa cmtm a depratada moci-
dade, acudindo á vok do sr. Tbomé das Chaga!?,
que a chamara. Pouco depois fechou a soa praia,
deixando oa aHíados em murmurado, entnsgues
á mofina sorte que « perseguia.
A figora do nobre andador das almas em ha-
bitoB menores faria estalar de riso nm bonzo, qae
é o symbolo da gravidade. Em vet da capoeira
de crinas e «stopa roça que na rua lhe servia
de peruca , o devoto trazia &s cabritas, empolei-
rada na alterosa nuca, uma coifa de mulher, cu-
jos folhos sujos e amarrotados cabiam d^ambos
os lados até ao pescoço como orelhas asininas.
A esguia canella com a traçada meia bicolor
eheia de pontos, e o enorme pè de sete cotovel-
loi acalcanhando as chineHas largas como fahias,
davam-lhe exolka apparwicta. Em mangas de ca-
ihisa , o puido Calção , e ^ babadouro *esgaio
todo franzido em roda, torítafvam-*no a pubKca-
fiírma de um barbeiro de entremez. Thomé das
Chagas acabava de fechar O' sobscrípto de um
Digitized by VjOOQIC
DB^». Mio t. 63
maço de {^àpé»; « qiMiiâo a tia Pei^tua entrou
na casa de jantar, siispeiidià ae peito o relicário
com i> ^MofMie cflflar de eamandnlaA. Os elhitos
eirritBadea do Hiilagreíre ^taramnie na^ beata , e
06 dedos tortos e pardos coçaram a nnea , gesto
niiifto ftsual ; ao mesmo tempo exclamava :
— « Torno a dizep4ho : isto é obra dos meus
inimigos rel^iosos ! »
— « Anjo brato do men divino Jesus ! —
ffcnditt a sn P^petua persignando-se, e lagri*
mejando. — Qaem «os hn de querer mal, filbo
da mínlia abna? ]>eixa-«te dessas tfiMfmM (que-
ria dizer iHidMJmeusanctinho. . . Aquilio 6 idéa
da Tfbora maldicta dotapact Deus o tolha de
pés e mSes. Nosso Senhor me penioe ! »
— txCharidade, tia Perpetua, mais chari-
dade ! " — exclamou o sanUro eom soberana digni^
dade. — Está eseripto tia sagrada paginas Nao
desejarás o mal do^ten próximo, n
-^« Uma paretesia o seque ao aborto do in-
ferno, e à boa refe da mai ; que rtve ootno um
brutinho, fora da' lei de Cbristo. . . Arreda-to
tentação do demónio. N9o que elle se não ^, pa-
rece mesmo o Ante-Christo r sabbado de Nos^
Senhora é hoje. .» E lascarino? Ai e Jesus!
Hontem se me descuido nõo lambia aqueHe ba-
zeHsco oespecione ào nbsfjo tmimiTf Saffâ^! com
Digitized by VjOOQIC
6Í é WHmAièE^
o demónio; emif^^Q^e Ore^do ^lll^^(^cll>.mor-
taU. • . Âye Jtlaria, çbim.à^gt^f^. . .n
Coroaitdo a inaledi/^poeia í^/mAi^Víífih ia |tia
Parpatua , acaiiipaiifei(Hi-^; d^. Xm « m^swas . i^
alto abaiw â imugem. da sW^ora.idas .Djartes^.
posta eq^ c^mp de lupaibaoquf^rcomsua .t^ár:
lha deiqlhos muito. lavados. ,<;. <. ... '{ .
 beata carregava com mais d^ 3^$eDta aa-^
nos; e er^ baisca^: corcovada, e magrissima* Uma
bocca sorvida, d'onde .serratirav^m >os dentes
em debandada.; çlhpg .p^qtt€^<^, ,d)otoadQS. de.
marroquim, viúvos de.,pesli8Miiis.e apresiU^^dos
nos cantos, eomo o)faQ$ de fiHmti; pêUe çoi; de
cqbre, quasi viscosa cqiqo ^pelle^d^ si^pent^:jim
nariz adunco d^ bico. de, p^iptagaio; "e uma barba
revirada, d^vam-lhe inquestionável .direito a rei-
vindicar a. belleza picara da famosa dama Leo-
nai^a, que Deus tem. Vestia uma tupica sem
cauda, talhada em ÍQrma 4&ihabito, ;Com o ine-
vitável çapello escuro, framido, e affçgado á
roda do pescoço, que subia, jnleriçâdo e eteq^o,
com um feixe de cDidoT^ias- tesas , sustentan^
no cimo a cabeça, proporcipualmente pequena
de mais, do mewo modo que ivn poste suporta
ama lanterna. ,;
Quaodp sorria,' o amarello riso desta, bocca
sem deites fugia, como um reptil, por cima dos
Digitized by VjOOQIC
DB D. JÍOAO V. 6S
beiço» delgados, palHdos e sumidos ; quando se
if ava, a iuz baça dos olhos , encovaudo-se, pare-
cia accesa dentro das (»-bitas yasías de uma ca-
Teira. O formidável rosário pendia do cinto de
couro e chegava qoasi aos pés. Um registo da
Senhora das Dores, com as sete espadas dis-
postas em forma de rosa dos ventos , via-se co-
sido sobre o lado esquerdo do peito. Por baixo
da tjiínca percebia-se o cilicio de propósito mal
occulto ; e de uma algibeira sahia como por des-
cuido o cabo das disciplinas.
Para maior mortificação, ás sextas feiras o
seu travesseiro era uma caveira , e a sua cama
as taboas duras da casa. A par disto uma lingua
viperina, o caracter mais enredador, e a cons-
ciência tão curtida no erro, que era de todo
insensivelao remorso. Tal era a virtuosa Perpe-
tua, comadre de três sacristães , e auctora de
singulares remédios contra sciáticas e sesôes. A
sua avareza igualava a hypocrisia com que ado-
rava a Deus na própria acçfto do peccado, que
elle mais condemna. A única boa qualidade, que
se lhe conhecia era uma aÉFeiçSo verdadeiramente
maternal pelo sr. Thomé das Chagas , que para
ella reunia todas as prendas imagináveis, desde
a formosura de um Adónis até á sabedoria de
um Sócrates. ^
5
T. n.
Digitized by VjOOQIC
66 A liOGIDADB
O milagreiro' passeiam pela a^la ecim desa-
90cego, em quanto a nr. Perpétua feiia mesuras
fr Virgem, e arreganhava pára ella em sorrisos
asquéroaos a bocca iendida de orelha a orelha.
Perfiin o nosso amigo parou diante da matrona,
e eom a melotia que lhe conheeemos:
— « Sabe, tia Perpetua — disse elle — que es-
tou âneiado de frac{ueza ? Nio se almoça por cá
èita manhs ? »
— ^ « O que diE o méu saBtinho ? » — replicou
a yelha , cingindo a orelha e(mi a mão , como
Qsam 06 qtíe ouTem pouco.
— tt Digo que tenho fome e quero comer » —
etelamon Thòmé, hsvatitando a voz, e sentando-
se eem for(a na immensa poltrona coxa^ que
fmá cortejas sobre três pés â mesa de jantar.
— « Ai, meu Jesias do céu I . . Hoje é dia de
jejum, filho; e úlò deveis tocar em boccadof
iue dè gosto ao paladar. . . Deus nos acuda!
Vade retro tentaçáo. . . Resai-me um padre nosso
e uma Ave Maria 6s almas; é a receita de fr.
Thimoteo para as debilidades de jejum , com que
O demónio nos tenta. . . Também eu , Nosso Se-
nhor Mbe o qne tne custa ; até a luz dos olhos
flte foge ás vezes. . .»
— * Tia Perpetua — atalhou o sr. Thomé, sem
pestenejar sequer nem desengatilhar um só dos
Digitized by VjOOQIC
b]^ d. jíoão V. 67
musculoB da íáce armaite à c^mpniiGfaai-^cada
um (az o bend que pôde oeste mundo para gsh
uhar o outro ! fr. Xhímoteo é um santo; eu sou
um peccador : e as almas nao comem nem be^
bem. . * Sou débil , e sujeito a espasmos , por
isso tirei dispensa. Dé-me de almoçar; acabemos
com isto. i>
— « Âb , se o meu santinho tem dispensa é
outra coisa. . . olha, filho, é um pullp em quanto
a tia Perpetua tempera uma assordinha , que os
anjos haviam de gritar por mais. . . Ajas pri*
meiro a salvação ! , . mundo , diabo e carne < fi-
gadais inimigos do homem^ eu vo$ excommu&go ;
não quero por vós me perder para todo o sem-*
pro amen Jesu&I. . »
— « Nem eu , tia Perpetua. Mas avie^se. »
— «Ahi vou, ahi vou já! — E virando-se
para a imagem da Virgem com três mesuras e
muitas gaifonas, a beata proseguiu: — £ vós,
bemdita Senhora , não comeis nem bebeis , mas
cada vez estais mais bonita. Ave Maria cheia de
graça ! . . Fazei , Estrella do céu , que o conde
se lembre da vossa serva com os seis cruzados ,
que disse, e prometto uma coroa de prata para
essa divina cabeça , e um vestidinho novo, todo
bordadq^ . . Pedi por mim , bemaventurada Se-
nhora, e tocai no coraçlío ã menina, que Quça
Digitized by VjOOQIC
68 A MOaBADlC
o que lhe heide pedir. Sahre Rainha, estreita dú
mar! Bem sabeis, minha Senhora, cfae estio
muito caros os tempos, e eu preciso de raaniétf
e çapatos ; a renda da casa come com os pdmefl
à meza , e o quartel está á porta. . . Se nào me
faltasse, não tos importunava. EntSo, Virgem
Puríssima , nada quereis á vossa escrava , nem
um recado para o nosso Menino Jesus , o doee
Jesus da minha alma, aiiivio dos adictos, vív»
columna do throno de Deus Padre ? ! Logo em
S. Domingos heide contar-lhe como estais triste
com saudades suas. . . Sante Maria, mãe de Deus,
rogai por mim , peccadora ! . . Perdoai a minha
confiança, divina Senhora, mas se ella casw
com o conde hei de comprar-vos um Menino Je-
sus de barro , e nunca mais estareis sosinha e
chorosa, como agora. . . Pelas sete dores da Pai-
xão , Virgem Consoladora , fazei este milagre á
vossa serva e pizai aos pés com a serpente a quan-
tos me quizerem mal, que tenham má hora na
vida e na morte, e assim seja para todo o sem-
pre , amen ! »
Este desaforada jaculatoria , em que a beato
peitova a mãe de Deus para a converter em sua
cúmplice , associando-a ás torpezas das suas in-
fames esperanças , era acompanhada de um sem
numero de sorrisos, e beijos na imagem* O sr.
Digitized by VjOOQIC
M D. JOÃQ y. 69
Thomé das Cbagas, mesmo, acostumado como es-
tará a espectáculos similhantes, e pratico de
mais como era no officio, enjooa-^e da scena es-
caedalosa e poz-^lhe termo, gritando pelo almoço
em tom , que não admittia replica.
Á TÍsta da peremptória intimação cessaram as
«poatrophes da tia Perpetua e chegou finalmente
a assorda e uma garrafa de vinho. Em quanto
dle enchia a bocca , arrumava a beata a casa ,
AiUando só e benzendo-se a miúdo com a cruz
do seu rosário. Depois do primeiro assalto, mais
tranquillo de estômago o illustre Thomé, de
óculos assestados, virou-se para a matrona e per-
guntou em voz adocicada :
— «O conde vcúo hontem ? »
— « Pois não veio ! O rico fidalgo da minha
alma... Olha, meu santinho, deu um cruzado â
velha para rapé , e promessa de oirtros seis se
arranjarmos... »
— « Hum! rosnou o devoto abanando a ca-
beça solemnemente. — Não sei o que diga... Tia
Perpetua, tenho medo de a vèr nestas alhadas.
Honra e proveito não cabem n^um saco. »
— (c Alhada!... Alhos são tormentos , filho.
Graças a Deus sou conhecida; aqui não entra
calção de homem , que dé que fallar ao mundo.
Pobre sim , mas honràdihha. »
Digitized by VjOOQIC
70 A MOCIDAINC
-^c( Qõem falia nisso?... V. mereê mette-f e
muito pela terra , e um dia vem uma pechra e
apanha-a. £ o.qué eu <figo. »'
— a Aí Dto , fíiho , estae quietinho. O meu
Jesus da minha alma sempre me ba de Taler.
Mas o conde... bisarro e galante moço, deveras!
£ depois o bonito modo... encanta. Sabes? deu-
me uma carta para o convento. »
. — « Para a freira de Santa Clara ? »
— « Freira?!... Então Píerpetua das Dores
de Maria Santíssima é qualquer mulherinha psra
aiidar pelos conventos desinquietando as esposas
de Deus Menino? Â sr." D. Catbariíia de Atbaide
ainda não professou , e se metto a m9o no fogo
sei o que faço pelo amor do conde e ddla... Ha-
dchlhe dar estado , e tel-a cem toda a honesti-
dade. Não me ouça o meu anjo da guarda, se eu
fòr capaz... »
— a Pois sim , tia Perpetua ; nii^oam j«lga
o contrario. Então o conde de Aveiras sempre
Cf sa com ella ?... E o pae ? »
— « O pae está renrlenle. É mn Ékla^o muito
soberbo , e como vive pobre , e não tem para o
enxoval, torce-se todo... Ora ! Por fim está mor-
rendo.., Anda um jesuita tractando disso, ura
tal padre Ventura... »
— « Ah, o padre Ventura ! Muito bem. Pois
Digitized by VjOOQIC
UB D* joÀo V. 71
se eUe «nda metido na dança, respoado eu pelo
resto. »
— «c O meu cantinho conhece jd padre? )i
— fl Alguma coí^... porque? » halbucm o
devoto tornando-ae cor de rapé {nrineeia.
'. — a Olha, nSo sabes, filho, estou muito mal
com o padre Thimoteo... não gosto <}e confesso-
res de levante. D^antes eram duas , três horas^
agora nlo me ouve npm meia 1... Assim não
presta ! Vou deixalro. Queco que me falle, ao pa-
dre Ventura... »
— a Tia Perpetua, disse o andador das al-
mas desenroscando gravemente a longa e esguia
pessoa r-r<- o padre Ventura é meu coafessor, e
não me convém que elle saiba todos os peccado$
da easa. Tenho minhas rasdes. Quem quíaér,
menos elle. Deixe vér.a carta do coode. n
— a Deus nod acuda ! Vêr a carta do conde?
Santa Maria rogae por nós ! O meu santinibo uEo
repara que ella nem lacrada está ao menos ? »
— <x Por isso mesmo« Gosto de saber o que
vae pelo mundo. Ê para meu goj^erno. »
— a Se prometteis... olhae filho, que oiro é
o que oiro vai. Temos aqui o peru para a íesta,
e gordinho, gordinho... não m^o deiteis pi voar...
Esta carta , ah se eu soube^e lér ! »
-f-.« Set eii; dê cé. d
Digitized by VjOOQIC
72 A MOCIDABB
E O Dosso Thomé desatou sem ceremooia o
laço d^amor, em que ia dobrado o bilhete do
conde para D. Gatharina. Leu, releu, e deco- 1
rou ; depois restituiu-o com profunda serenidade,
tornando-o a fechar como vinha.
— <K Então ? » exclamou a beata, ardendo em
curiosidade , virando e revirando a carta nos de-
dos.
— « É tudo santo e justo. Os meios são pe-
rigosos ; porém os fins , louvado Deus , não po-
dem ser melhores ! d respondeu eWe arregalando
os olhos devotamente.
— « Mas? »
— « Mas não é nada, quasi nada, tia Perpe-
tua. O conde pede á menina que se prepare esta
noite para sair do convento. Diz-lhe como; e
que o padre Ventura em uma sege a irá depo-
sitar em casa de pessoa virtuosa, aonde fique até
se receberem... O negocio vae bem encaminhado,
vae excellente. Não que o padre Ventura sabe o
nome aos bois!... Agora o pae que se faça fino,
que resista... Tia Perpetua, é preciso levar esta
carta, que chegue a horas. »
— a Bemdita e louvada seja a Virgem Maria l
Estou aqui e estou na rua. Em ouvindo as três
missas do costume , pernas a caminho... »
— <c Âpprovo o seu zelo. E o o&tro fidalgo ? »
Digitized by VjOOQIC
DB D. JOÃO V. 73
— (« Esse não diz o nome ! Esteve cá, mais o
conde. É bonito rapaz também , mas a gente
com elle tem menos confiança... tomara saber
quem é ; dava um cordão novo a Santo António
se o bento fradinho... »
— «Tia Perpetua , tome cuidado ! Olhe que
pela boca morre o peixe. N&o meta a mão na
toca , ás vezes traznse vibora... Diga-me, elle não
lhe deu recado?... »
— «Ai, pois nfio deu. Por signal vou logo
levar uma carta siia á rua das Arcas a casa do
commendador... Não sei porque havia de resus-
citar o enguiço do tal capitão. Olha se elle sou-
besse o muito que engraço com tal figui^o não
me punha mais os olhos. »
— «O capitão Filíppe da Gama é muito amigo
do nosso padre mestre. Livre-se de que a apanhe
em alguma, olhe que elle não é para graças... »
— « Santa Barbara e S. Jeronymo , advoga-
dos dos trovões ! Tão nova me fazeis que deixe
cova debaixo dos pés , ou me escape coisa por
onde perca... Perpetua das Dores não é de hoje
nem de hontem... elle não tem senão dois olhos,
e eu por ora vejo bem sem óculos. A carta ha de
ser entr^ne ; fica descançado, meu santinho. Aí,
filho, a sr.* Cecília é uma flor, uma pérola!
Olha , o annel que me deu a ultima vez , estfl
Digitized by VjOOQIC
7* A íHWDAPB ■>
alU ao pe$cp^ dp Menii^Q lei^m cie Simiíq Aoto-
mo. K vardfide qw dft teidfiS as y§?s^ ípie vi« e
coAv^r9W CQin o SdaJ^o feibi4li^ fw p |:<ip^d^, q
ensúaei-llie a iii^qeii:!^..^ »
— « Âh ! então elles já sa tínbflin ft^ilado? <i^
— ii Ha qiie tempos; foi até .dq convento.
Ab primeiras duas v^zes foi uia inwlwtí^íi, 4k
de ci0i« dQ muro , eUa de traz dp caramancbaa.
 ultima diz que o padre Ventura é fue luraih
jou t|id4>... O que dir& a ocrrta? n
-r^« Dqixe jêr! »
— r«. Anjo bento, m$i$ oUia, y.ew lecb^* »
— « Não é oada; é a obr^ia- Sei abril-a. »
Empregando um ^procesao usado em Santo Aft*
tão o nosso amigo abriu a carta , ley-a e dee^*
rou-«a, e tornando a pegar a cibreia, entre-
gou*a depois à beata comp a dp QO»ií^ 4e Avei-
ras..
— c< O que dixeis/destaf ãlbo? » f^erguntou
a sr." Perp€^tua;
— « Que a daoça é peíor. Gonyídam a sm
pérola , a sua Gecilía para d^aqw a três dias ap^
parecer no mirante do jardim «j^s de« fama
da ní$ite , onde Uii^ dirio poisas que ^e não po-
dem escrever. »
~>€( Ponho as oAos no ífego e» «leiAi
vae. \y >
Digitized by VjOOQIC
UB o. JOio T. 7&
•^— x< ká; e 4ef0ÍB? n )
-^ « O que i|t de iiar «glá qm màoe de Deug;.
Não sou capa nem i?oov«ÍTa. So dois passarinho»
fcgem da gaiel|a, dei'sd-os, eites &aeiii mal a al<-
^[ooip ? ilMiakGeciiia está mi sua casa ; a mãe e
o p«e que aguanleoi ; eusm de fóra, e Tejo caras
nSò T^ ieòraftaf... Agnm Deiqui ègUs paocàta
nmindi9 ! Se o ineu sauliolio oão quer mais nada
you-Me arrastando á pnssa, e de 4â dar ordem á
viés... Âi ! esto fiernes estão jâ tnropegas. Thomé^
lédiae-me bem a )iOFta> e a c^ave na mão do
liJB^ulio. Se jantas» em S. Jkmvngos diiaeÍH>, que
é escusado gastar km^ sem firoveíto... Jesus da
mtniia alma! fiem <diz' a rifão: « já fui moça,
já fui rosa, hoje não tenho senão espinhos, » An-
tes tudo era para mim um pufe; agora são lé-
guas de iBieus... Adeus ^ a benção de Nossa Se^
nhora te cidira e te ilUimine I Ave Maria, cheia
de graça... »
O rosloda oraOão pecdeuhse na distancia, por^
que a sr/ Perpétua ia a sair quando a princi-
piou. Tbomé vendo-a cerrar a p^a encolheu os
hombros, e enfiou logo «s mangas da cosaca-gi-
bfto , poz por cima 0 lanMMo balandrau , e pa-
gando depois no seu nicho e na bandeja partiu
atraz da beata, fechando- a pmrta a duas soltas,
e deixando a diate na tenda, como the fi^ra re-
Digitized by VjOOQIC
76 A HOCIDADK
commendado. Durante o dialogo com a sr/ Per-
petua tmha-M escoado toda a agua, é.,o becco
do Manquinho já se pedia passar a váu.
O nosso andador ia a virar para a rua doa
Escudeiros eogolphado em serias cogitacSes, quan-
do sentiu pesada, como chumbo , mio estranlra
sobre o hombro. O primeiro gesto foi encolber
o lado oiFendido ; o segundo virar a cabeça cau-
tamente e reconhecer o agressor. Achou diante
de si o estupendo chapéo, a montanhosa peruca,
e o rosto illuminado de sorrisos do poeta Bernardo
Pires, aquelle vate engasgado em um soneto, que
vimos em S. Domingos jurando pelos ossos ao
Sr. Thomé das Chagas, vista a incontinência da
sua lingua.
O poeta matinal vinha fresco e gracioso com
a capa embuçada ás canhas , uma capa ampla ,
e desbotada, que lhe amortalhava metade da burba.
Cruzando os pés com elegância, e dando ás cw-
tezias a mais preciosa afinação , o sr. Bernardo
Pires passou a mão dineita por baixo da capa, e
levou-a lenta e grave ás abas do amaçado cha-
péo ; saudou com elle o seu interiocutor , e en-
tre dois, sorrisos sonegados pelos cantos da boca,
e lambidos á flor dos beiços, disse-lhe :
— « Queira desculpar se o importuno; mas
antes que o divino Afxillo suba mais idto com os
Digitized by VjOOQIC
ra 0. Joio V. 77
fhtOe$ de bgb preciso de duas palaixas em par-
ticalar, sen<h> do seu agrado. »
— f< Mas eu v^o tenho a honra de o cohhe-
eer! » acudiu o devoto pasmado com a lingua*-
gem florida , e 09 requebros mesureiros do Nar-
éiso épico.
— Nfto importa, meu presadissimo senhor;
conbeço-o eu. Nilo se chama o sr. Thomé das Cha-
gas ? Não é andador das almas em S. Domingos ? o
— « Um seu criado para o servir ! Nesse caso
o melhor seria voltarmos atraz ; d^aqui a minha
casa sfio duas passadas... )>
— « Nada de incommodo ^ sr. Thomé ! P«-
rambuletnuê! verbo latino que significa andar de
passeio. Se faz favor , siga-me ; e de caminho
conversemos. »
— « Mas aonde? Para què? »
— *-« Eu lhe digo : sou poeta, e as Musas co-
nhecem*-me. Faço metaphoras e sonetos e apo-
logos. Vivo de glosas e idilios, com v. mercê
das gathetas bentas... Tudo isto é noite escura ,
por ord, para o sr. Thomé ; mas eu lhe abro já
uma janeila para encher de claridade a sua alma.
Eu me explico em estilo vulgar , e por um mo-^
mento desço do Parnaso ao aprisco dos mortaes...
Hontem morreu o mordomo de um fidalgo , o
mais alto de quantos eu conheço e quero que se
Digitized by VjOOQIC
78 A IMKWA^B.
co&besam 69» PoitugaL O ineFddq» partiu destfs
inundo um pouco â Kg^^ira^ is^o é^i sem coaSfir
9ão nem sacramentoí», piNr^e boKiem morto não
tâUa, e a sua d^enga fei a morta..^ Em tal eaao
nSo sei se íbi bem se foi mal eom Deas i e Bóêf
seus amigos , queremos saíval-o , e metel-o do
céu a todo o casto; percebe? B«Uoj Mas para o
arrancar do inferno pelos cabeUos, e digarae a
verdade, o homrado mordooio pelo menos tem os
pés dentro da caldeira de pex porfoe acabou em
peccado mortal... >»
— « Ah ! » — acudiu Thomé ^ b«Mndo-se e
abanando o esganado pescoço com sianma cir-
çumspeeção : — « Ah I entfto jalga que ella não
estaya em estado de graça? É graye, muito
grave ! De que falleceu ? »
— í( De uma indigestão ! Esqueceu-^se de to-
mar as.Ipffguras ao estômago ^ bebeu um garrar
fòo de vinhOf e arrc^ntou. « . , Mas tornenif»
ao caso : como ia ditendo : havemos èfi pregar
o logro ao demónio e metter o homem vestido
e calçado no céu. . . . faça favor ^ venha oiivindo
e andando, o passeio é perto* Quantas missas
acha que serão predsas para faier estalar a eas^
tanha na boeca ao fero Plutão do sombrio r^-
no ? . . . . »
— « Nao pQreebq* . * . i^
Digitized by VjOOQIC
DE 0.' JOftD V. 79
*^ OK Tmii hisBor. Este máUMd cMtumet . . . •
PergMto: quâfitas iíiíbíqb d0\^md!i HNMdar dir
i0t pm^ pôr o moiiloiho btàiicd e puco coma
um seràphitn? »
O ^tid«kr Víh um exeellente negocio na apo-
Xheosé do beberrãm; è almodo as larga» ofelhasv
e jogando as eternas* pa9dadtô4 foi indo atrat
da r&ãemoi e seguindo a piteta^ em quanto
irespoAdia:
-^ <t Isso depende.v. ha quem diga que o s^l^*
crificio é tudo^ e o saoerdotô nada ; tettbo ou**
tro modo de pensar. Ainda que a estnola seja
HftMS aTQrttada gánhansie mrufto ^n rtet iftn padre
de c^onscieneia o que se interesse fá» deftin-
cto». * . - »
-^a beu no Tinte, meu amigo ! É a minha
scisma. Ora eu julguei sempre que só o sr. Tho-
mé ei^a capaz de desenterrar o padre , jA se sabe
mediante um modesto horiorario. «... »
— « DeÍ3ie^mo-nos disso ! » — acudiu o devoto
sentindo encarquilharem*^e já os dedos em volta
do numerário, e pegarem como visco as palmas.
•— *«[ Nada de simonia! No serviço, do pronimo
posso aceitar uma esmi^ forqúe sou. pobre ^
mas não recebo sallaria Se quef lambrarnse das
almas. . < . »
Estendeu-lhe o nicho a beij» < com o jallo
Digitized by VjOOQIC
80 A MOGIOADS
para fi^, inculcando que o seu thesouro tinha
aquella entrada. O poeta deu pios oaculoB no
santo; tirou o chapéu; e levou a mão ao bolso da
vestia ; mas tirou-a vasia fingindo mudar de idéa :
— <c Nfio trago prata » — exclamou elle. —
« E de mais estamos áo pé da casa. É adiante
da esquina , áquelle beoco. »
— « Mas aonde vamos nós, no fim de tudo? »
— gritou o milagreiro um pouco inquieto, vendo
fugir a esmolla , e render o caminho , apezar da
isca com que o vate o ia entretendo.
— (X O sr. Thomé conhece o sitio? »
— « Nada ; nem sei onde estou. Fám de meu
bairro ando ás escuras ; sou mesmo um parvo. »
— « Pois eu lhe digo ! Estamos em terra co-
nhecida. Desta porta para dentro é aonde a the-
soura da Parca , a cruel Atropos. . . . h
— <f Trapos? Mora aqui algum algibebe ? »
— « Sim, senhor. Um algibebe de obra larga.
O coveiro de S. Julião. Foi elle quem me en-
commendou as missas. »
Thomé das Chagas deu um puUo e um grito ;
e tentou virar para traz. O grito achou diante
a mSo. do poeta e voltou embaçado para a bocca.
O pullo achou defironte o corpo de Bernardo Pi-
res , e converteu-se quasi em cabriola. Depois
o pobre devoto sentíu-se agarrar , e metter quasi
á força para dentro da porta.
Digitized by VjOOQIC
CAPITULO XVI.
NJEM Bt , NEM TU.
O potos Thomé das Chagas principiou a re-
ceiar uma traição , apenas se viu nas garras do
poeta, e na escura logea para onde elle o em-
punhou com bastante sem-ceremonia. O nosso
amigo era muito sensivel , e excessivamente ner-
voso ; e tinha suas rasões para não andar de dia
sem cautela, e de noite sem lanterna. Durante a
conversação singular , que se ouviu , tinha atra-
vessado, sem dar por isso, umas poucas de ruas,
escorregado por cima de outros tantos becos la-
íhàcentos ; e quando lhe perguntaram com ar de
escarneo se conhecia os sítios , achou-«e des-
orientado, e na realidade não sabia aonde estava.
As ultimas palavras do curioso dialogo tinham
sido proferidas diante de uma porta quasi cer-
rada , no meio de uma viella deserta e sombria,
T. n 6
Digitized by VjOOQIC
82 A MOCIDADE
cheia de montões de caliça e de paredões caídos ;
entre duas ou três barracas esbeiçadas e pendi-
das. Â porta tinha um ar apopletico ; a casa era
a imagem da eternidade ; as paredes esburaca-
das, e uma seara viçosa de arroz de telhado e
mais hervas parasitas, crescendo livremente por
entre as desconjuntadas telhas, davam-Ihe uma
apparencia menos que humilde.
O poeta encostou o hombro â porta e levou-a
quasi ás costas para a forçar a conceder entrada ;
e ella perra e dorida, gemendo e estalando, re-
signou-se por fím a deixar aberto um espaço
suiBciente por onde o vate introduziu o andader,
e atraz delle a sua exigua pessoa. Subindo a es-
cada, cujos degraus se empinavam trémulos de
velhice , e rangendo de podres , os dois heroes
acharam-se defronte de outra porta , irmã gémea
da porta dolorosa, que deixavam ás cortezias
atraz de si. Servia de fecho um cordel , e de a^
gola um cavaco atado a elle. O poeta puxou o
cordel , metteu o joelho , e atirou logo para den-
tro o sr. Thomé das Chagas^ Apenas os seus olhos
rodearam a casa , aonde o introduziam , o mila-
greiro deu um berro , deixou cair o nieho e a
bandeja ; e girando sobre os calcanhares , como
uma ventoinha, quiz investir pela escada abaixo*
A evoluçSo , porém , estava prevista : o sr. Ber-
Digitized by VjOOQIC
BE !). JOÃO V. S3
iiáfdò fites , vitido átraz , tinha fechado a porta.
A èfflsft mfetecía os terrores do hotiradtt Thomê,
e erá a ahte-salft do cemitério. Entre aá bambí-
néltái de téas de aranha e os listões ?erdené-
gros y 4ué nihnchatám pfcredfes e teòtos , rasga-
va-^ Uitiá jÀnella estreita cdnl rotula de páii.
Cinco ou seis ossadas , oii faiais eiacto , cinco ou
seis éorpos iíial consumidos , estavam encostados
em i^edor dó aposetlfo. Mortalhas quási podres
petidatadáS ^ gtinaldas cujas, caitões arromba-
doÁ i ^ftnhds dé enterro pingados de cera , es-
qiiélétdl ineio atmados , postos em èirames , e
muitos bims espalhados ^elo sobrado , formavam
as tapeçarias e a mobilia do antro fúnebre. N6
meio dtí quártb utha thésa , uma bilha , è duas
cáneóaá pereciam a ironia víta do espectáculo dá
lÃorté no que a dissolução tem de lúgubre e de
hò)ri'0^oso. Qiiantò mhii á vista paraVa no qiia-
dtb i tááto maia frio ié contrangia o corãçaò. O
pbbte Thomé dà^ Chagas hão tk>eniid §ó , estáVá
cabiiidó no chão por instahtês tratisido de thèdo f
-^ « Até que chegámos » — ph)clámou o poeta,
tlMtadò á cápb è descobrindo a prodigiosa casaca
de pòlrtitibotaá dè escotilha é botões de rodinha.
Lit«i1^-Se depois dò ^eteráuò chapèd , e poz-
Ihê «cA léitaa dá cò^a úfn pai de florétéé , que
ttàíià eSéondldoS debaiirtf dó braço.
Digitized by VjOOQIC
84 A MOCIDADE
— a Pôde descançar um minuto ! - — dhae elle
respirando e batendo os pés no chão com força,
em risco de abrir duas clarabóias no sobrado
podre. — Está no pórtico da eternidade , e estes
moradores do escuro reino não dizem nada ! » —
Ao mesmo tempo indicava os defuntos hirtos e
encostados em roda da casa.
Thomé das Chagas nem pestanejava ; a lingua
tinha grude que a pegava ao ceu da bocca. Ber-
nardo Pires, com um sorriso boçal , escorria en-
tretanto a bilha, dando-lhe palmadas no bojo
com a familiaridade de um amador. Depois vÍt
rou-a de bocca para baixo , e a rir muito ex-
clamou :
— €(Nem lagrima! Bebemos tudo por alma
do mordomo. Está nos Elysios, se Charonte lhe
foi propicio ! Â propósito, sr. Thomé , as missas
que lhe disse parece-me que vem tarde : o ho-
mem está salvo ! . . Fiquemos no introibo desta
noite, mais do gosto do meu defunto amigo, que
não sei como não resuscitou para nos acompa-
nhar. . : A respeito de missas, se v. mercê quer,
deixe algumas pratas que eu as mando dizer por
sua intenção ; aqui para nós , em boa amizade ,
aquillo era anzol para o trazer aqui , e p^ou ;
nunca esperei tanto da sua bondade. Ora como
conto despachal-o depressa , peço-lhe que dé no
Digitized by VjOOQIC
DE D. JOÃO V. 8d
outro mundo muitas saudades deste seu admira-
dor ao velho e pançudo Simão de Oliveira , nâo
se esqueça ! . • .
O milagreiro com os olhos esgazeados, pegou
machinalmente no chapéo do poeta , cravou-o na
estopentada peruca , e tratou de sair sem mais
rodeios.
— «O que é isso, sr. andador das almas,
assim nos deixa? — gritou o vate espremendo a
bocca em um sorriso alambicado. — Vae atraz
das missas , ou procura as galhetas por estar
secca a dorna? (a dorna era a bilha). Então
leva o meu chapéo? Deixa-me sem o seu corpo
e a minha cabeça? Sacro Apollo! Que pressa!...
onde vae , onde vae ?
— « Vou dar o seu recado ! replicou em voz
rouca o devoto , - fazendo uma pirueta para ^e
apossar da porta.
— « Mais de vagar, mais de vagar ! Olhe que a
viagem é longa. Escolha primeiro o habito e a
carroagem , faça favor. Repare que tem de ir
pela posta até ao Averno.
— «O habito, a carroagem ? . . . acudiu o servo
de Deus , esbugalhando os olhos.
— « De certo. Não cegue as duas estrelfas da
alma , que são as janellas do sentimento. Sir- ,
va-se dos seus olhos, já que as Eumenides com-
Digitized by VjOOQIC
86 A MOCIDADE
passivas Ih^os n$p airaacam^ • • O qy|e lhe difse
era metaphora em acçSo. Para qnç Niemoii ^^
aqui ? Para o mais infeliz se apartar da bello
seio de Gyhelle, nome qae os antigos deram á
tefra, nossa mãi, e comparecer no tribunal de
Míqos , entrandci pela porta de j^^-oserpi^a.. . «
Não percebe ? »
— « Nem meia palavra * Digo-lhe quo vxe deixe
!$air , senão grito « Aqui d^el-rei ! »
— «Oh c€ec%tas mentis ! exclamou o vate er-
guendo anibos os braços ao ceu com burlesca
veheíjiencia. — Oh divina musa, o que te £01-
zem estes zotes do Parnaso ! . . . Pois, SiT. Thomé,
uma vez que as graças de Âpollo e das nove ir-
mãs o não illuminam, prepare-se que vai ouvir
,a bosina de Marte. O habito que lhe disse , em
língua do povo, na lingua tosca e salois^ que v.
mercê falia e entende, é uma dessas mortalhas; ;
a carroagepi , um desses caixões. Sou clemente !
Antes de o ferir, como Achilles feriu Heitor,
quero deixal-o em vida determina^r o seu en-
terro , como fòr mais do seu gosto. Agora jà
percebe ? »
E fazendo uma visagem lúgubre , com, a qual
ampiou as balofas bochechas, ainda inflamma-
das em fogachos vinosos , o sr. Bernardo Pires,
cruzou os braços bem alto sobre o peito , qúei-
Digitized by VjOOQIC
DE D. JOÃO V. 87
mando eom a laz das pupillas cór dfe alface a
esquálida fnmte do milagreiro.
— a Então matam-me aqui , sem cotíBssSo nem
sacramentos?)» — exclamou o devoto, fazendo-se
côr de café e torcendo o corpo, como se visse já
no ar o punhal de uma quadrilha de malfeitores.
£ verdade I respondeu o fabricante de glosas,
pondo-se no recto com desplante. Estou aqui
para ser a tesoura da parca , e cortar-lhe os fios
áa vida. O que tem a dizer a isto ?
— a Tenho muito, tenho tudo ! Hei de resis-
tir, vou gritar. . . »
O poeta, encolhendo os hombros, soltou uma
risada solemne e harmoniosa, e pegon em um
dos floretes.
— ^«Ha de gritar! EtitSo porque?
— ' « Essa é boa ! O senhor dfz que me ha de
malar , e admira-se. . . »
— « Mas eu mato-o academrcamente, com pre-
ceito e regra. Assim, digo-lhV eu , é um gosto
morrer. »
— a Morra o senhor. En estou muito contente
vivo. »
— «• a lilato-o como RoldSo matava os. moiros ,
em combata singular. »
— « Nem singular nem plural í . . . Eu nffo
sou homem de brigas ; eslá enganado. »
Digitized by VjOOQIC
88 A MOCPADJE
— «Olhe O que perde, sr. Thomé. Sei o jo-
go, e prometto varár-lhe o eoraçao á terceura
estocada. x>
— « Obrigadissimo ! mas eu não quero ; dei-
xe-o assim como está, que está muito bem. »
— c( Jesus, que teima! gritou o poeta, assu-
mindo o ar aíFavel de um paladino de Âriosto ,
e forçando a mão rebelde do devoto a empu-
nhar o florete desembainhado, — Deixe-se de
contos ; tudo é principiar. Âchilles fiou n^uma
roca e depois foi o terror de Troya. . . Suba
comigo á altura dos heroes; exercitense na grande
sciencia de morrer com arte. . . vamos , pegue
no florete; mais alma, homem, mais alma!
Faça-se ainda mais feio.' . . bello ! quero dizer
horrendo. Asseguro-lhe quede viseira caída pôde
desmamar creanças. Agora esse braço esquerdo
para cima ; a mão bem alta ; arredonde mais o
cotovello. . . óptimo ! »
— «Mas o que esta o senhor a fazer de mim!
atalhou o servo de Christo, obedecendo como
um autómato e cada vez mais espavorido.
— <x Estou-o educando para não deshonrar as
sabias lições de Palias. Vamos. Firme! Agora
rompa. Esse pé , escorregue sobre esse pé ; li-
geireza, flexibilidade, sr. Thomé! Ah! Mais
largo ! mais. . . Safa ! São duas pernas de com-
Digitized by VjOOQIC
DE D. JOÃO V. 89
passo como a légua da Povoa. Bom ! Agora atire
á muralha. Um dois, um dois! Tem cinco mi-
nutos para aprender a cahir com graça. »
- — fi Cahir , cahi eu nas mãos de um doido !
gemeu o milagreiro em voz baixa; depois vi-
rando a cabeça por cima do hombro para recti-
ficar a posição do inimigo, insistiu com de-
sesperação. — Mas o que quer o senhor de
mim?i>
— a Quero matal-o ! bradou o assassino das
rimas em voz cava e com accionados olympicos.
A vingança é o néctar dos deuses ; e eu sou uma
Juno masculina. O sr. Thomé oíFendeu mortal-
mente um amigo de Bernardo Pires, e oíFender
o meu amigo é ser meu inimigo. ^Prepare-sc !
O dedo da parca está sobre o ponteiro da vida.
Nas aguas tenebrosas Gharonte, o barqueiro do
inferno , tem o bote á espera. . . resigne-rse ; e
para o consolar prometto-lhe um epicedio. Avie-
se , pegue na espada ! »
— «Almas bentas, valei-me! Sr. Bernardo
Pires , eu não sei jogar o florete.
— « Melhor ! Morre mais depressa : — replicou
o vate magnânimo , crescendo-Ihe os brios com
o desalento alheio.
— a Mas eu preciso viver ! »
— « Asneira ! o que é a vida ? um sonho ...»
Digitized by VjOOQIC
9A A MOCIDADE
— f Aa menos dê-me Ugnfo , deiie*iiie tra-
tar da atma. . . »
— H Yá djeseançado : j& arranjei tudo. O atu
enterro está justo. Ácbamo-nos em campo neu-
tro. . . o ceipiterio é alli adiante, n
— « Santo breve da marca ! n
•^— « Em abrindo. aqueUa porta . .. Até a oova
Iftt de estar feita. »
— (( Santo nome de Jesus ! Mas sr. Bernar-
do, o que fiz eu ? Pelas ch«^as de ChrUto l Di-
ga-me o meu delieto. »
— «Quer saber porque morre. Tem rasão;
e ser& satisfeito. Ora responda : quem é o du-
que de Cadaval , IX NunO' Alvares Pereira^ men
senhor?
. -^ <c Um fidalgo temente a Deus , muito es-
moler, grande amigo de eWci e dbi santa rdi-
gi^. . . »
— c$ Ah sr. Tbomél . . . Em fim reapeilo a
dignidade dos seus últimos instantes . .. Retiro
a esponja d^ fel. Porque nlo feUou v. mereé as-
sim o outro dia ? Para que me expoz a carregar
toda a vida com o remorso dn sua morte ? . . . .
Díga-me : iembira-se do cruzeiro di^S. Domin-
gos ; recorda-se do que lá pregou, haxierá una
semana ? Quem blasfemou qun o òiqne do Ca-
daval eca herege e amigo dos judeas ; quem o
Digitized by VjOOQIC
Dfi p. JoIo V. 91
qiiiz a^ado tom $^nbçDÍto e carocha» no Qutç
da fé? &te9 borrores, e outros jmk fui ^v
Bernardo Pir^^ ou íqí o sr, Thomé d$is Cba*
gas quem os deitou pçja boca fora ? »
O devoto sentii^do-se pos dentes do lojro abaixou
^ cabeça e recolheu-se confuso na tristeza do seu
cprf^ão. Bernardo Pires, recuando o corpo so-
1^*0 fi perna es^querda perfilada ; arremettendo ás
nuveps com a começa ; e pondo o braço em po-
sição xqoiresca p];oseguiu de p^ito incbado, c;
çoandp as phrases :
— «Se não tivesse de cruzar a espada com
a 6^99 fazendo-lbe a hoqra de o pôr por meu
igiíaJl . .. çhamava-Ifee dipagâp da bowa, e gihoia
disL reputaçã^o all^çia. São me^pboras arrojadas ^
porém Ucitas. Pizia-Ihe : um arenque de frade ,
qma, toupeira de sacl^^ista , um ipoçbila de dor-
ipitoi^io, quando nçiorde assim com' o escorpião
da li.Bgua, atassalhando taesi pessoas, corta-se-
Ihe a mão direita e o pé esqueirdoí, e furam-se-
Ihe os beiços com um ferro em braza . .. ».
•^-r-«Valba-me St/ Anna e S. Jfosé! — bal-
buciou Thomé fuhninado e fugindo com o corpo.
Q que diz ? O sr. Bernardo Pires^ não ha de ter
a crueldade ? ! . . . Aqui ha gente escondida ? . . . »
— « Socegue. Istp é. hyperbole ; íaMei çm hy-
potbese. ÇIstQu sii^» Ministro e ve]:4ug9 4a^ mi-
Digitized by VjOOQIC
92 A MOCIDADE
nhãs vindictas sentenceio e executo. Ora bem !
Como ia dizendo : as carnes tremeram do que
lhe escutei ; os ouvidos recusaram acreditar. . .
a ira gritava: mata-o! mas a prudência res-
pondia: espeta! optei pela prudência e parti.
Chegando a casa , chamei o escudeiro do duque
e meu particular amigo ; vieram a conselho mais
três creados velhos ; e decidiu-se que o sr. Tho-
mé fosse apanhado ã noite, metido em uma casa
solitária , esta por exemplo , e ahi, trema ! ahi
engraixado vivo , puchando-lhe o lustro á escova
dois robustos pretos de Guiné ! . . . »
Ouvindo a segunda hypothese, mais ignóbil e
não menos crua , o sr. Thomé atirou um formi-
dável pulo á porta , que dava para o cemitério.
Esta cedeu e entr'abriu-se , e um intervallo lú-
cido no meio do delírio do terror mostrou ao
devoto , que não podia escolher nielhor posição
para qualquer occorrencia. Entre tanto o sublime
vate , correndo a vista orgulhosa por toda a sua
exigua pessoa, e afofando o ar com a dextra cheia
de magestade, depois de breve pausa continuou
o relatorio entre dois sorrisos, um ridículo, por-
que era burlesco, outro parvo, porque tentava
ser irónico :
— « Achei indigno de mim o supplicio da gra-
xa ! Um poeta laureado em três outeiros não
Digitized by VjOOQIC
DH D* JOÃO, V, 93
baixa a mal de um remendão de escada. . .nió
mancha a alvura de cysae com a vil untura de
pós de çapatos , mesmo para f^zer preto um ho-
mem branco. . . Regeitei, e dissuadi-K». Encar-
regaram-me então da vingança geral ! lembrou-
me embainhar-lhe a espada no corpo uma noite
ao. canto de um becco: ha exemplos. históricos;
mas tive medo de subir com elles a escada da
forca. Occorreu-me fazer-lhe sete satyras a fio,
e apregoal*-o em oitavas pelos cegos; mas podia
acontecer que se não vendessem, e por cima pa-
gar eu o papel e a impressão. Até na vingança
a economia é santa! Por fim, hontem resolvi
que o mais simples era trazel-o aquL, e fazer-
lhe a honra de um desafio á empada sem teccei-.
roB. . . da apparencia de um duello , porque sou
o melhor discípulo de Vicente Nemour , e com
uma imbrocaSa envio o inimigo ás Gorgones e
Megerai^, sobretudo não jogando outras armas
senão o hyssope e a caldeirinha. . . Tenho tido
trinta desafios , e sabe porque nunca fui preso
nem se soube? Porque homem morto não fal-
ia; e homem que briga comigo, acredite que
é homem que não torna a pisar a terra ; vai di-
reito para]o outro mundo!
Este epiphonema ameaçador era acompanhado
de gestos lacrimosos. Para lhe dar mais eíFeito,
Digitized by VjOOQIC
94 A MOCl^AHB
O pdeta limpou àoí^ oUm dtiáB lagrimas stop)^
tus com ttmkfneidhode alvura suspeita e de «t-
cambraia franceza. Esta bda alma^ com o sètt
pranto imagluario^ fazia ás hotirag fuâebre^ da
imaginaria vietimai Era a iombra do boMrô^
limpando a aombra de um catallo ci»n a aom-
ln*a de uma esocnra , segundo resa a parodia da
Eneiada.
£m quanto o pierio vate sepultava oâ inortoa^
ideaes, sacrificados nSo com espada , niai com a
lingua, o andador das almas principiou a résia-
beleeerHie do àUlto^ e a carar-nse do (nrimetro »•
bresalto da imàginaoão. Mais familiarísadd còm
a casa, e bem certo de que todos os inimigos éé
rednsiàm ao paroleiro vale, tomou ò pulso á sM
coragem, e atreveu-se a estudar de mais perto
o coração do Rodamonte do Parnaso. No meio
dos rompantes que lhe Saiam pela bocca fâra M
gtrandolas, eomo foguetes 4 o devoto começou a
suspeitar que tudo aquiiio eram úmm^s áem
baila, trovBo sem raios.' O poeta laufieaão pédía
esconder uáia boa dose de bf alurá nc^atfi^ , é
a sua physionomta ff»ignifiõante era o meiios bél^
Itoòsa possiveL
Thomé das Chagas « ém quanfô elle delatava
em easeataa de sediças e Côroa^adai íma^èné a
torrente éa aua chdera, foi-m á refleétir de vá-
Digitized by VjOOQIC
Dl D. JOÃO V. dS
gar sobre o caso « e achou qaé este Ajax ridi-
«ido, esbravejando com o florete ^ c talharido o»
ares ^ promettia mais uma soena de entremez do
que um éombate serio, a quem lhe apoàtasse ao
peito três a quatro palmos de ferro. Mais aUi^
viado da sua perturbaçfto^ o servo de ChHsto
lembrou-se de que léra uma fabula, em que o
burro, orúeando dentro da peile do ledo, en-^
obeu as selvfts de terror ; mas denunciado pelas
orelhas I ficou burro, e fugiu do mats despresir'
vel contendor. Por isso resolveu-se a tentar for-
tuna, e, animado pela ferocidade theorica desta
paBthera de metas de seda^ decidiu escapar ao
Miles ghriosus de Lisboa^ tortk o estratagema das
<)O0iedias velhas , remédio efficas i>ara os valeu-'
tes ficarem a pedir confissão. Feito este çileolo,
o iUustre Sactistão me^nor contrafeíH»e , sacudiu
o longo e esguio corpo, escorvou as goelas para
tornar a fi>z clara ^ e cõnipomio os oeulos em
som de guerA , preludiou a entrada em soena
p^ um formidável giro ié florete ^ ^oe fes re*
€uar o poeta sohresaltado tnais de quadro pastsos.
Ao mesmo tempo o milagreiro exclamava :
-^«S^. Bernardo Pifes, Deus é.}uáUyl Cono-
tava assassinar o sacristfto die byssope e cadeiri-
nha« pois saiba que antes de entrar nò serviço
dft agréjft eètíVe ao seirvtfò àé el-rer. Quík ex-
Digitized by VjOOQIC
96 A ilOC1DAD£
perimental-K) ; soffiri com paciência. . . mas é pre-^
ai90 dar-Ihe uma liçio. Conselho por conselho !
Tome as suas precauções. Olhe que os dois últi-
mos castelhanos que matei, foi abrindo-lhes a
cabeça até aos dentes. — Depois ajoelhando e
pondo as mãos com os copos da espada entre el-
ias, proseguiu com devoçfto: — Senhor Jesusida
minha alma , bem o sabeis , é em defesa pro-^
pria ! Tende misericórdia com este homem, que
vae apparecer na vossa divina presença, tão mal
preparado para as terríveis contas que tem de dar
diante da vossa justiça! — Acabada a depreca^
ção, Thomé levantou-se, imiteu a posição mar-
cial que vira em Lisboa e Évora a alguns offi-^
ciaes , e gritou : — Vamos , sr. poeta ! em
guarda já ! x»
Dizendo isto , o devoto parecia de bronze por
fora , mas estava uma abobara por dentro. Este
momento era terrivel. Se o vate acceitava o car-
tel e cruzaíva a espada, Thomé teifcionava roet-
ter os hombros â poria do cimiterío e escapar-
se. Hesitando elle, ou evadíndo-se, ficava des-
mascarado , e pagava capital e juros do medo
que lhe fizera curtir. O raciocinio, portanto,
não peocava nem na forma , nem na materia.
O poeta é que já não sabia aonde estava. Ho-
mem de pacificas inclinações , tinha ideado este
Digitized by VjOOQIC
Dfi D. JOAO V. 97
lábce (iomo ideava as suas trovas , que os zoilos
chamavam pecas. O sangue mettia-lhe horror,
sobre tudo o seu ; uma espada nua fazia-]he agas-
tamento de coração. A arte de esgrima , que
alardeara , era uma impostura famosa, como era
outra desaforada mentira os dois golpes mortaes
de Thomé nos hispanhoes, dos calcanhares dos
quaes teria fugido até Âldea-Gallega. . . Em todo
o caso, o poeta via de repente um Roldão diante
de si , e faltava-lhe o animo para ser Oliveiros.
A gente nasce , não se faz.
O plano caía , portanto , pela base. Os cálcu-
los eram admiráveis , mas peccavam n'uma ba-
gatella ; tinha esquecido ao vate prever a hypo-
these do andador das almas levantar a luva , e
acceitar o cartel. Esta falta desconcertou pela
base os bem elaborados projectos do nosso amigo.
A sua idéa era simples , como todas as grandes
idéas ; reduzia-se a intimidar o devoto, coagindo-o
a desdizer-set e a pedir a vida ; mas para isso
tornava-se absolutamente necessário que o sr.
Thomé tivesse medo , e o milagreiro , entalado ,
deixou os logares communs, e optou pela valen-
tia. Diante da soluçSo inaudita do problema, uma
transpiração duvidosa , que elle chamava excesso
de marcial ardor, borbulhou na magnânima fronte
do filho de Apollo. Em logar de se pôr no recto,
T. JI. 7
Digitized by VjOOQIC
98 Á UOCIDAJDB
respondendo á esp«da com a e^Mtda , ainda n^
cuou dois passos mais; bai^u a ponta do fio*
relê , e de revez observou pelo canto do olho se
a porta da escada lhe ficava perto. Tomadas es^
tas precauções , virou-se para o adversário « que
tinha o pierio chapeo atarantado na cabeça ^ e
entre um sorriso mavioso e um gesto assucarado^
exclamou abrindo os braços :
— « Àve , bis terque ave l Achei um homem«
Pelos manes de Aristóteles! O phiiosopho qa6
ao meio dia o procurava á luz da lanterna , en^
trando aqui apagava a candeia, porque achava
dois. Cedant arma ! como diz Tullio Cícero. Fa^
çamos tréguas i e conversemos. »
— a Sr. Bernardo Pires, tenho pressa ; e agoiQ
n&o se trata de metaphoras, trata-se de brigar.
Demais o tenho eu aturado. . . Estou canç»do ;
aturdiu-me duas hwas. . . vou livrar a terra de
um estopador eterno , e Lisboa de um malsim
de sonetos, capaz de endoidecer até os sábios da
Grécia. Vanios , defenda-se 1 »
£ o devoto , brandindo ao acaso a longa es-
pada, descarregou-a na mesa« que servia de
trincheira ao vate , e cravou nella bons dois de-
dos de ferro. Bernardo, mais branco do que os
fabulosos bofes da camisa, que eram russos, fur-
tou o corpo ao golpe, apesar de estar a três dis^
Digitized by VjOOQIC
DB D. iOJkO T. 99
toffciQg do 9eu alcance , efi^olheu-se por detraz
da m69a ^ e lemt»*ado das tertíveis cutiladas ce-
rehraés do sr. Thomé boi çastelhaaos , armou-se
da bilha^ que levantou como escudo, em quanto
se retirava èm degordera direito á porta, agi-
ta&do o florete como um moreego agita as azas :
-— « Viva Marte , deu» dâ guerra ! gritou elle,
Mm bellioa^ donato, modete a impaciência, e
Dão enroBf ue as serpentes da calumnia no çapa<4
cete onde pousa o sábio mocho de Minerva I Fa^
vetP Hiigm»! Freio m Uagua, e abracetno-nos.
Deixe o frio Borees tiritando, e a canicula uríd»
abraisatdo. . » » *
— « Sr. poeta, isto não é negocio de abraços.
Briguemos ! »
— «Oh! glorioso ardor!... sr. Thomé ^ tt
musa sauda*^ ! Gomo ReinaUoi, dé-me a ^rupa
da «ett coricel, e i&tmigos paladinos vamos juntos^
banher a alma na divina onda do Permesso , do
rio da amizade. . , Ab! i»aero Afiosto, quem to^
poderá , nio digo e^eoder , senSo imitar ! »
— *- < Advirto-lhe que estou 45sperando ; » ^-^
acudiu o devoto , fazeod^^se oadn ve? mais Ct^rte
com > ai ^evoloçõas olratoriats do ndr^nslirio. ^- «c O
dMife fiio é com 01 vonios e $$ metaphoras, é
cpok 0 ir; Bm^nardp Pires. Mande fmmt o tai
^rííoi^ »enio engo o braço^ e nSo se queixe... >►:
Digitized by VjOOQIC
100 A HOGIDADB
— c( Tem rasão, fallarei em língua vulgar. Ea
me explico. Dizia-lhe que isto não é sangria de-
satada ser hoje , e já. Temos tempo. Depois re-
flectindo, creio que houve equivoco, ouvi mal
talvez ; o sr. Thomé de certo queria dizer que
desejava assados de carocha e sambenito os ini-
migos do duque de Cadaval. . . »
— « Nada , não houve equivoco. Ouviu muito
bem. Sustento o que disse e o que nto disse
Âffirmo e confirmo. »
— « EntSo , meu amigo, dè-se ao mundo um
grande exemplo ! Quebremos o alfange da Parca ;
enganemos a morto, que bem o merece. Betra-
cte-se ! Tenha a bondade de dizer o contrario do
que disse , duas palavras pro forma — ou eu as
digo , e o sr. Thomé ouve e cala-se ; ora como
retractio non est conmium , o que significa, que
a emenda não é infâmia, arranjamos o negocio,
e o sangue de dois campeões não rega de pur-
púreos veios os penetraes do tumulo. . . »
— « Se tem medo, sr. Bernardo, conffesse-o e
vá-se embora. Eu não desdigo nada , não con-
sinto nada. Acabemos com isto. »
— « Medo ! ? Esse filho da noite e de uma
lebre macha , acaso entrou nunca no coração de
Bernardo Pires? Medo, eu, poeta laureado,
adorador constante de todas as bellas , e em es-
Digitized by VjOOQIC
BK D» JOÃO V. 101
pedal fiel captivo da maga Belisa , cujo nome
profano deve ser Isabel, a estreita dos meus
olhos , cuja doce alcunha é a Coração ! Medo !
Essa palavra vae derramar ondas de sangue,
grosseiro sacristão. Primeiro a funda e depois a
espada. Morre endurecido no erro já que des-
presaste a vida. Deus tenha a tua alma em
gloria! »
Unindo o acto á palavra , e fechando os olhos
para não vér o sangue da victima , o poeta ati-
rou a bilha pelos ares , abriu a porta , e com a
espada na mão precipitou-se pela escada abaixo,
gritando : — « A clemência tem limites ! »
No meio da estrepitosa saída , um dos de-
gráos de fraco e podre exbalou um gemido e
foi abaixo ; o pé do vate desceu com elle , e o
sr. Bernardo Pires acbou-se preso pela perna,
vendo por cumulo de desgraça em cima da ca-
beça a espada do andador das almas, que o
perseguia denodado.
— « Renda-se ! d — gritou o devoto açoitando
os degraus a ferro frio , mas sempre a rasoavel
distancia do inimigo. Este , apesar disso , en*
colhia o pescoço e piscava os olhos , cada vez
que a sombra da espada innocente apparecia na
parede.
— a Pare , estou rendido ! » — clamou o poeta
Digitized by VjOOQIC
Aé ma gaiola , agitando os braços em sigotl ckr
perigo. — « Olhe que me faa partir umacaMlto ! n
— « Pois entregue-se ! Para cá o florete » —
dizia o heróico Thomé. — « Depois saberá as eoa-
dições com que lhe perdoo. »
— a Não abuse da desgraça x» — ehwaiiii-
gott o paladino dos aerostickos e eokhms. —
« Áhi tem a maldita espada. Faça favor , aju-
de-me a sacar o pé de dentro desta capoeira ; e
dé-me esse chapéu, que ienbo frio na catieça. i»
— « O chapéu está prisioneiro de guerra . . . >»
-<- gritou o sn Tbomé, recebendo as armas vir-
gens do inimigo. — << Agora ouça. Conhece a
Coração , a ciganita do pateo das Comedias ? Não
era delia que faltava ha pouco? »
— a Aime / » — suspirou o vate estercendo-se
— « oxalá não conhecesse ! Adoro^a. É a flor
que perfuma a minha poesia , é a suave Egaria
deste Numa. . . »
— Deixe-se de historias ; e vamos ao caao*
Como o trata ella ? »
— H Com os rigores de um t^ra hyrtano. Ot
seus olhos para todos de mel ferem coaio bal-,
las , se olha para mim. Sou o seo fiel coptiH» ,
respiro só para a idolatrar , e aquelb mão de
alcorce , nunca me tocou de leve. . . Ainda tioo*
tem lhe pedi um osculo , e den-me. . . )»
Digitized by VjOOQIC
DS P. 4QÍO V. 103
-^ « Ab 1 devi-lbe mn beijo. Bem ! &lle, diga,
com mil basiliscos! »
— a Duas tremendas bofetada^, uma de cada
UÍQ V P^f^ v^ endireitar a cara , disas ella ! . . .
Ah, tyranna Belisa, as seta» àã teus lindos
olhos, , . »
— <x Deixe as setas , e sentido com as nava-
lhas! » — acudiu o milagreira 9 soltando a ri-
sadinha fals^ do costuma. Não se meta {»elo Egypto,
sr. Beirn^rdo « olhe que pôde ir por seu pé ^ e
¥oltar ás costas de ^rem.
T^m Então e^re-^e perigo? «r^Melamou 0
yatf (sobresftltado,
— « C6 e h mkB Í9â9» ha ! ^ 0 foa the
di|;o. Qra b^m* Saiba que sou seu rival segundo
a «anve. Ando eonv^r^udo a Coração , ^ftorqua
era pena corpo tão gentil perder a. alma. . . Ora-r
ça$ a Dend ella ouve-<me. Nao creio nos meus
mereeimejplos, $(^ creio no poder de Jesus Christa,
fkOfi^ red^Piptor. . , Ê uma inclinação honesta ,
«m honra da egreja; portanto, sr. Bernardo,
ou y. n9erQé jiira de não t(n*nar a desinquietar
a Coração , m e^ dei^ c^ír a espada como fiz
aos bi^panhoes, e enterro*^ debaixo destes de-
tm«^. Pro^iette ? . . . »
-«- tf Tirenaia a vida , ims deixe-me a escurt
noite dos meus e^idAdos. n
Digitized by VjOOQIC
iOi A HOCIDA|)X
— a Muito beoi , ser satisfeito. Rese o acta
de contrição.
— « Espere , espere ! Que génio assomado !
Pois ha de degolar um poeta por causa de uma
figura de rethorica? »
— « Então deixe a rapariga em socege, se
não quer partir para a eternidade em dois mi-
nutos. O que decide ? »
— ti Fico. Tenho muito que fazer no mundo. »
— « Veja bem o que diz. Promette. ...»
— « Não prometto , reconsidero. Se ella vivo
me esbofeteia , o que será depois de morto ! Re-
gale-se , e ature-a , que não leva mau castigo.
Não lhe seguro os ossos a um ceitil. »
— n Isso é por conta minha e delia , não lhe
dé cuidado. Olhe que se o apanho em alguma
emboscada. . . »
— « Eu não sou melro para andar por bos-
ques ! Abjuro o traidor Cupido , detesto a las-
civa amante de Marte Rufião, e protesto viver
e morrer em puro celibato. Estou curado ! Prc-
ferir*me a osga torrada deste sacristão ! . . . »
— 1( Então, visto estarmos concordes » — ata-
lhou Thomé que não ouvira a ultima parte da
jaculatória, nada lisongeira para o seu amor
próprio — « não quero demoral-o mais. Sou um
seu venerador, sr. Rernardo Pires, j»
Digitized by VjOOQIC
DE D. JOÃO V. 105
— « Um momento ! » — gritou o vate. —
« Solte-me as asas , digo os pés , que sendo ras-
teiros, em estylo culto se vestem de pennas.
Muito obrigado.' Adeus generoso inimigo ; se
qúizer uma decima para o seu noivado , procure
Bernardo Pires, poeta laureado, morador em
casa do duque de Cadaval. Adeus, venturoso
mortal; diga á ingrata Belisa, que até morrer
adorarei os lindos pés, que são zephyros na dança,
e as castanholas, que dão mate ao coração. »
— « Olhe a sua capa , sr. poeta. Ahi vae.
Até mais vêr. »
E Thomé das Chagas , descobrindo em si uma
qualidade nova, o valor, depois de viver trinta
annos antes de a achar, atirou de cima da es-
cada a desbotada capa ao infeliz rival. £ste que
morria por estar a cem léguas do theatro da sua
vergonha , fez-lhe uma ultima cortezia , levando
a mão á altura , onde devia estar a aba do cha-
péu aprisionado , e saip. Já fora da porta levan-
tou os braços ao ceu e exclamou :
— « Vou tosquiado! Perdi um florete, um
chapéu , e uma rapariga ; mas levo o corpo in-
teiro, que é o essencial. Nada de graças! Se
mato o sacristão tinha de mudar de ares , e ainda
por cima ficava sem almoço, e cheio de remorsos.
Quem as armou que as desarme.
Digitized by VjOOQIC
lOÇ A UOGIDADE
Da &ua parte, o aodador da3 fAwí%9 apesar
da bravura , limpava o saor frip da testa , en-
direitava a casaca , e pegando na bandeja e a9
seu nicho, saiu da casa sem olhar para traz,
desceu a escada a furta^passo, e já na rua,
ajoelhando beato e contricto , desafogou em um
suspiro, exclamando:
-*— a Bemdito e louvodo seja Nosso Senhor
Jesus Christo. Sempre escapei da boa l »
Digitized by VjOOQIC
CAPITULO XVII.
MBNTISA E VBa»Al>8.
Foi sempre um homem activo e previsto o sr,
Tliomé das Chagas 1 O se« tempo valia dinheiro,
e a sua memoria era exacta como um chrono^
metno. Apeoas desembaraçado das perseguiçõesi
éo poeta laureado , olhou em redor de si, orieun
tott-^M ^ tomou o caminho mais curto. O seu
ipasso aocelerado disía que o episodio bellicoso
lhe tinha roubado uma hora pek> nenos , e que
Bio qaere»do facer es^r&r nioguem multiplicava
a comprida pessoa, e era igual â sua reputa-
ção.
Em virtude deste calculo sim^icissimo o glo-
rioso andador das almas correu direito á porta-
ria de S. Domingos , e chegava á cella do pa-
dre fr. João dos iRemedios , justaineote, quando
o relojo do ooiiivento , dompassado e grav« , ba-
tia as Qove da manhÂ.
Digitized by VjOOQIC
108 A MOCIDADB
Thomé louvou a Deus. Só meia hora se tiob»
atrazado no desempenho dos seus deveres. Sua
reverendíssima passeiava pelo gabinete, e em
gestos altivos , e voz sonora , dictava um papel
forense ao desmemoriado escrevente , cuja dis-
creta estupidez o padre mestre abençoara em
casa de Lourenço Telles. O nosso devoto respi-
rou , e foi logo tomando posse da situação. De-
pois, apurando as sensações auriculares, resu-
miu espirito e corpo nas immensas orelhas, ávi-
das e curiosas.
A eloquência do procurador desenrolava-se
entretanto em períodos extensos, cadentes, e
ameaçadores, accusando a companhia de Jesus
de rebellião premeditada contra a magestade do
throno e a santidade da egreja. A minuta da
allegaçao tremia nas mãos do orador, que a ia
limando, entre furiosas pitadas, e estrugidos as^
soados , e tio meio da commoção vehemente que
retarda ou precipita o homem , cuja imaginado
laboriosa acode com variadas expressões á tra-
ducção do pensamento.
Passados instantes, Thomé sacudiu a cabeça e
elevou os hombros á altura das infinitas orelhas.
A este gesto succedeu um sorriso verde, — bur-
lesco arremedilho do fino sorriso do padre Ven-
tura nas occasiões escabrosas. Feitos estes sig-
Digitized by VjOOQIC
DE B. JOÃO T. 109
fiaes teiegraphicos entre a alma e o corpo, tirou
do bolso o nosso amigo um papel e poz-se a es-
cutar, delapis nos dedos, escrevendo tanto quanto
dietava o procurador de S. Domingos.
Este em uma investida heróica entrou peia
cella dentro , de braço alto e lenço fluctuante ;
e se o andador das almas é homem menos acau-
telado, colhia-o em flagrante delicto de men-
tira capital, descobrindo-lhe uina prenda nova
e occulta , a arte caligraphica reduzida ao me-
tfiodo mais expedito.
— «Ah estava ahi, Thomé ? » — disse o re-
verendo, assoando-se e escorvando o nariz com
muita complacência.
— «A sua bençSo , padre mestre ! » — res-
pondeu o devoto , afivelado na contrícçâo , que
lhe servia de viseira. — « Peço desculpa , vim
mais tarde ; mas espero em Nosso Senhor , que
n8o fizesse falta. »
— « Não fez. Como a noite passada estive ao
bofete até ás onze, agora mesmo principio a di-
etar... V. mercê, hontem, é que sahiu tarde, muito
tarde I Que horas seriam, Thomé das Chagas ? n
— « Uma hora da noite , reverendíssimo » —
acudiu o milagreiro com certa escuridão nas fa-
ces , o que nelle correspondia a fazer-se bastante
vermelho.
Digitized by VjOOQIC
110 à lioaiUDE
-^ « Jintaimi^. Uim hora ! £ o qttej dmi»
o leigo d» portaria. £ aonde esteve todb ésaè
lempO) pôde saber-^se? »
— « Na capélta de cima , a rezar. £stWe pa^
gando uma promessa. »
•— * « Âh ! Mvito bèm. Sabe que pegtiei no
somno \úgo<i e de modo que nio aenli raai$
nada? -»
^^ « Que admirado ! V. reverendisaima anda
eançado. . . • » *
— « De espirito e de corpo, irmSo Thonté;
e Deus me dé forças pela sua iafinita miseri-
córdia. Arranje-me a cella e nio se v& em*^
bora. . . . bem ! » E outro sim » -^gritou eUe «
continuando a dictar da porta do quarto *-^« pro*
Tara na real presença a soberba monstruasa da
sobredita companhia ^ que nem respeita a Beas,
nem teme o condigno castigo da sua terríMê'
dade. ...»
-^ <K iniquidade 1 a «^ repetiu o «acrevente ,
como ecbo infieL
— a Espere I -~ E fr. Joio , magestoso e yer-'
melho da etcitaçfto mentai, rodeou o grande
eontador de pau santo; e pondo oa olhes no
tecto firmo« o período coo uma tnèiewla fut*
nhada na mesa , que a fez tremer e á casa toda*
Duas horas depois o procurador expedk o à^
Digitized by VjOOQIC
DK D. joio y. 111
kstrc ir. Thofité com ama earte a Diogo de
Mendonça, e a passos lentoa encaminhava-^,
meditando, para a rua das Arca», aonde o es-
peravam para jantar Lourenço Telles e seu so-
brinho Filippe da Gama*
O devoto , depois de pesquisar se algoem lhe
seguia o rasto , em vez de seguir direito 6 Cal-^
cetaria, tomou para o lado de Santo Antão, e
viu, mesmo debaixo do alpendre, ama sege
parada, com os cordões, o cavallo transparente ,
e o esgalgado e faminto bolieiro , que naquelle
tempo constituiam a trilogia de um vehiculo
desta denominaçSo , antes de aperfeiçoado com
outro cavallo espectro, duas rodas de azenha, e
uma capoeira suspensa , como boje o vemos»
Hia a pôr o pé no degrau , quando se eaoon-'
trou cara a cara com o padre Ventura , que o
recebeu quasi nos braços, entre voa sorriso
mavioso e esta jovial exclamação :
— .« Orá, bem vindo seja o nosso aodador
das almas 1 Então o que o traz a esta sua ca-
sa ? »
•*— c( Venho eúnfesiar-^mt / » **- replicou o mi-*
lagreiro , beijaodo-ibe a osanga ^ e dirandu parft
todos os lados inquieto.
-^Ah! E as culpas pafecem-lhe grandes f
Não pôde com ellas até á naíte? »
Digitized by VjOOQIC
112 A MOCIDADE
— « É preciso dizel^as já. Até as puz neste
papel para me não esquecer alguma. »
— « Percebo! É tudo? »
— « Ainda ha. . . . »
— c( Espere ! Olhe , suba. . . . Não ! Venha
comigo; como são duas palavras, a cella do
porteiro é bastante. Diga-me : vem de S. Do-
mingos? »
— <x De lá sahi. »
— « Óptimo! £ a devota communidade? »
— « Espera amanhã estar melhor. »
— « Ora, Deus permitta! Estimarei muito.»
Os dois entraram ; e minutos depois chegou
o padre Sebastião de Magalhães, trotando na
sege do paço, e apezar do frio ardendo em
calma.
— « Aonde está o padre Ventura ? » — per-
guntou ainda de dentro da sege.
— « Aqui , aos pés de V. reverendissima »
— respondeu o italiano que vinha sahindo.
O confessor de el-rei, apesar da sua corpu-
lência, de um pulo atirou-se ao chão, e não
bzendo caso de Thomé , que se lhe prostrava aos
pés com momices respeitosas, pegou na mão
delicada do visitador, e antes de fallar moeu-
Iba , no apertão das suas , indicando assim a
gravidade do negocio.
Digitized by VjOOQIC
Bi 0. iÚAÚ V. 113
^^ « Mais de yagar , padre mestre í^rcebo
optimamente. Adeus, sr. Thomé; nSo se es-
queça. As culpas São grandes, tinha rasão;
mas a penitencia as expiará e não ha de
ser pequena. Ora pois ! Quer mais alguma coi-
sa? »
— ff A sua benç&o V padre mestre. »
""^tt Deus o faça um santo. »
E sustendo com um gesto a impaciência do
confessor , vãú o deixou fatiar senão depois de
Thomé ter desaparecido.
— « Aquillo é um pobre fanático que me des-
assocega todos os dias com os seus escrúpulos de
.consciência. . . . Agora, nós. Então ha novidade
pelo paço? Está peioi^ el-rei? »
— « S* magestade está melhor. »
-^-^ <i Ainda bem. E o príncipe ? »
— a Sua alteza teve ordem de prisão. »
— « Sinto muito. » ^
«—«O infftfite 1). Francisco trabalha. . . , »
— « Também sei. »
— « E logo no conselho de estado. ...»
— « Decide-se o casamento do princípe. Es-
tou avisado, n
O padre Sebastião olhou cheio de assombro
para o superior. Parecia-lhe quasi um prodígio
que soubesse tudo ,e tão depressa.
T. II. ^
• Digitized by VjOOQ IC
114 DE ]>• mXo V.
.^ « EitreUnto receio q«e & «Iteii. . . • » —
insistiu elle.
— c Nia receia. $. altesa ik qm nio red«»-
dimente ao conselho de astadd ,. eoMR> dâsse en
particubr a el-rei , sm pae. »
— « Deus nos acuda ! Sabe v. reverendissima
que el-rei fa|U da a m^tcF m t^ne? »
— « Sabe V. paternidade « que t, nMigestade
nam sempre bz o qpia di»? »
-^^ Uai é que o inbiite embníUka tudo! £
apezar de ser um pouco líive e hm dd ea*
baca.* ».»
— «Doidot dfoiaaAe» díi{al»««^ «tolha
ík fiiYor. a
— <s Mesmo doido l Sabe v. ceferendissima
que acha quem o siga» e diM» ou trea pessoas
de muito coneeitK^ paca el-<rei noaso seaiboi 7 Por
isso temo. « • * a
— « Não tema. d
— « Mas pôde vir iwaa onlean peaigoast digo-
Iho eu padre visitador. »
— «Não vem aada» affirmi^lhoeu, padre
confessor. Olbe^ os reis que morrem nanca me-
teram medo aos reis que ficam; acredite iste:
e apesar das suaa melhoras o sr.. D» Fedra U
esti vmiU^ doentet muito ma). . . ora o prineipe
ha de casar, mas é depois. lia da casar na casa de
Digitized by VjOOQIC
Áustria , mas não é já. QqeranoIrO KkKqívq uns
dias, mais uns dias. Fallousi %^ fAtovil^)»
— «Da parte dQ 9Q1& mg/fito pd?. «
•^«E cbffD« £ goum^ a rot^ii? . . 9
«-- « O p«ÍQ«ipowvdi« NãQx^poAdoM {wlaTra »
— «( Ah ! . . E á carta de s. snagcitadlQ? i>
«^« A coyrU? . « £« rSo^ ^im^ que l^ei uma
carta. »
*^i(Diga eu: o a r^spoiti?»^
— « Trago-a neste papel — murmi^w 9 con-
Teiaor cadt ^ess nwífiwQQfaiid^ dunto d^ copiosa
noticia do podre Ye«bira,-.ir.FalU^i9 muito 4»
P«i3^ do priocijpie por cirta dniMi. • > »
— « « Ab 1 . >^
— «Uma D. Catfaarina de Attiaidir, mnm
em SaAta Clar«« . • »
— <x E vão tomar-se providencias. . . »
.-*-«Sim?»
— -ifEUiei jurw Dor alma è$ «eu paci, « , »
— » V. paternidaao oSo deve dwMor jwar •^
rei • porqua 4 poecadOf £ dapai» ? »
— -« Souba-fiaqu&f^ altasa ovtove npnibrefi ve^
xea am Santa Clat^. • . x>
-^aCoift e(feito?j>
•M^E dç todaa teye grmdw oolloqww ^^^m
a noviça D. CatbaFÍlM. P
Digitized by VjOOQIC
116 A MOCTBAra
— «EstSo certos?»
— « Gertissimos ! »
— « Pois não sabem nada ! »
— a Entto o príncipe nlo esteve em Santa Cla-
ra ? >^ — exclamou o confessor absorto e recuando.
— « Esteve ! *>
-^c<Não fallou três vezes á mesma dama?»
— « Fallou ! »
— « E a dama nfio é D. Catharina de Atháide ? »
— « Não ! »
O padre SebastiSo de MagalhSos estacou : com
os olhos esgazeados e as palmas das mSos vira-
das para o seu interlocutor parecia repellir a
vis9o de um fantasma tenebroso. Â firmeza da
negativa fulminava-o.
— «Se não é D. Catharina então quem é?v
— gritou elle no estouvamento causado pelo sea
espanto.
— « V. paternidade esquece que é só confes-
sor de el-rei, e que eu pergunto e não costumo
ser perguntado? — atalhou o padre Ventura,
manso de tom, porém severo de expresáão. —
Basta que lhe diga que está ás escuras. S. al-
teza ama tanto D. Catharina de Atbaide , como
V, paternidade cré em Mafoma. Julgo que nem
a viu ainda. Descanee. Â corte não dá cuidado.
Dos nossos negócios como vamos ? »
Digitized by VjOOQIC
M 0. JOÃO ▼. 117
• — n A questão da America parou; »
^^ « Não importa. )>
-— (( Os domíoieos acomodam-se. »
— c< ERgana-^e : estão em armas. »
— « Não transpira ! »
— « Ha mais alguma coisa ? »
— «Temos el-rei de pedra e cal no caso dos
quindenios. »
— (xÉ preciso pol-o de oera. Os quiedenios
talvez se paguem. »
— « Pagam-se ? ! j» — clamou o confessor at-
lerrado.
— « É mais que provável. E o padroado ? »
-^ « Está nas mãos de Diogo de Mendonça.
Mas D. Tbomaz de Almeida prometteu. . . »
— a Se prometteu nada faz. É o costume.
Falle a ét-rei, e levem o negocio ao conselho de
estado ; é melhor. »
— «E se Diogo de Mendonça o demorar ? »
— «Não demora. Para a semana dá-o despa-
chado. »
— «Então?. . » — acudiu o padre Sebastião
com uma grande interjeição nos olhos.
— « Confio que Deus nos ajudará. » — repli-
cou o Italiano com um ponto final na voz.
— « V. reverendissima sabe tudo. Só me resta
pedir as suas instrucçôés. »
Digitized by VjOOQIC
118 A HQtlMM
— <i Sfid flMÍ9% ^pêÈtè SèbMiilô» ObQH , teja,
e falle o menos que souber ; pm^m ^ cahr a
tempo é a iMi^ iscíefid«. EMims ntts tesperas
de grandes pt/A^^ Quem ^So «s (MMMsde mais
respeito para o infante D» Ffimetoco^ m eHe res-
peita alguém Tu
'^«Nio fli« qMt mèl ô tittqw éé Cadayal
D. Nuno.» .
-^«Netl belAi vvVMs.i»
— «Boque Monteiro Paim «OM^kk^
•^«fetoè, pM" fbVi^a ! D
— « Senre-o de rastos o secretario dé €8Mh
D. itfeotMtt de Àlni^ida. %
^^«f^tiÂem é àiAltrà). Que tnaiêt»
^« OòMile 4e$. JetM) pi^r ésâg^to <)«el«fe
de s. «Itdfca^ . . »
— « Ettá ))èrèi«it do ifUMíòt ««> lodo*?»
— « SSo os principaes. »
-^ ^ E T. páterttiddb ? Dk»etiBftn-4ne quetam-
lieín tinte M graçaft de s. nMéfea séfenimna. »
— «As vezes faz a honra de me ouvir, m»... *
--^iiMas V. ^atemidtide sabe qttd % coração
dos príncipes é intoíiitottte, o que é perigos
ÈtkT rm andMçSo? A^itti o esperava^ Nso ticre-
dite nos médicos, padf^ mestre ! Efle^ ^Ifeom '^
el^rei meiho^ , quando s. «nagestade ti^ík quasi
na sepultura. Âffirmam q«e B. áfteta I^Í) ^
Digitized by VjOOQIC
im Ih Mio V. 110
jHÍAciíie D. ioSo idto chega aoi demto «imos ,
e emfiisegiii«HÍhB qnlMdevèi*<i séb]?0?ifer, pan
gloria delle e felicidade destos teiíioi, áqueÚes de
seus irmiofl que lhe contem « im de vida cu-
bicando a herança. . • padre Sebastião, quem 0^
para por çifotos de defuncto arriflca-^ a andar
deetalçe-^é o adagio. Eãtm mteim de ieiarte
D. Francisco , e todas as suas conspinçdeft umk
niacas não Talen um cabeilo ; o q«e fMMlem é
oietter na torre algum tonto , o« exterfliiMr da
corte dois ou três crédulos ; o mats, digo-Hio em^
é iawú e deof^emee. V«rá! Se o inCinte não
pede oQtnaigo, se elle tião tem eebeça pam aí,
como ha ie «r 4^beça de um reino, e chefe 4e
tanta getáel •. Em pd«cas lioras, «m «n ac-
cesso de kiocam põe ét rastos ^ fet «em iníflii^
^§m c^Htees a^nelles que mais o ajudarem e q«e
elle mais procura. £ uma prafbeeia ■miÍMi, e eiiie
tem, eata »fae certas Depois, a. afteaa está acos-
tumado ás feras do meste, e por isso iiio adk
mira que muito mal conheça os homens. Ás ve-
zes no rio descuida-se com uma pontaria, e cahe
ferido um marujo das vergas. . . Ora , quem as-
sim tem a vista fraca não ha de nunca achar os
degraus do throno. Aposto que é do meu voto ,
padre Sebastião ? Os absurdos não reinam ; so-
bretudo os de carne e osso. »
Digitized by VjOOQIC
120 A '«OCIOABE
O confessor de el-^rei tinha o rosto vermefiio
eomo lacre, e nSo levantava os olhos. Porfiai
em voz biMxa disse :
— «V. reverendissima ordena alguma coisa
mais?»
— cíQue teàha saúde. . . A propósito, pode-
rei fallar ao .príncipe amanhã e a s. rai^estade
esta noite?» •
— «Â 8. magestade de cei^ito. £l-rei estima
os nossos padres. Agora, estando o príncipe eom
ordem de prísSo é que não sei. . . r
--^aSe é difficjl obter audiência? vNSo im-
porta; arranjaremos isso. Adeus, padre con-
fessor. Beije por mim a mão de el-rei. »
£ sorrindo sempre metteu^se na sege e pai^tiu
com toda a rapidez. O padre Sebastião ficou dois
minutos a olhar para o chão ; depois, arrancando
um suspiro , exclamou :
— « Dez annos dava eu da minha vida , se
entendesse aquelle homem ! »
Digitized by VjOOQIC
CAPITULO XVIII.
EM QUANTO VENTA MOLHA A VELLA !
D. Pedro II fazia a sua residência nos paços
•de Alcântara. Era alli ^ que sendo ainda infante,
pousara o primeiro osculo de vassallo, já tre-
mulo das anciãs do aiFecto , na mão da princeza
D. Maria Francisca Isabel de Saboya, que ia
ser rainha , e ã qual o seu coração e a fortuna
4eram depois o suave nome de esposa.
Mal cuidava Affonso VI, armando com pompa
estes aposentos reaes, que a delicada mào de
lima dama havia de pegar no sceptro com tanta
força, e quebrar-lh^o sem piedade. Mal previa
então o herdeiro dos duques de Bragança que,
envenenadas por uma paixão ardente , as ambi-
ções do infante se levantáriam^tapto que olhas-
sem destemidas para a çbrôa, rompendo a lucta
dos dois irmãos , lúcta knpJi^cwej , cujo premio
era o throno, cuja esperança era o «mor,- e as
Digitized by VjOOQIC
A MOaDADB
suas delícias a fieço de umipiaailratrteidto*.. «
Vendo-se declinar rapidamente, duas vezes
viuvo , e sentindo sempre o coraçSo carregado
do lucto da primeira esposa , D. Pedro II , por
instincto, procurava es sitíos« <Mide a fortuna
o fizera monarcha e ditoso amante. Quando el-
rei silencioso e solitário pisava as salas e as ga*
lerias desertas, nas quaes em dias venturosos
colhera as flores tão mimosas da paixão , e ou-
vira de uma bocca adorável as promessas dese-
jada6, a saudade, sombra {riangente d'aqpiella
que tanto amou > aeguia-o por toda a parte, aqoi
lembrando iun sorasot alU uma psJavfa, em-
cbeado tudo com a memoria da mídfaer que
chorava, Proaimo a entrar no tumufe da cspoM»
<» irmão podi« curvar a cabaça ao remem « nw
o amante, se erguia os olfaos ao oéu erasóptn
attestar a dor com as soas lagrimas. . . .
Elnrei D. Pedro habitava os quartos de Ma
primeira nralher. As custosas armaoics, q«e
tantos 8cirtx)s cassaram ao iitebie secretario As-
tooio €avide , ainda eram os mesmas ; os mor
veis , as guiuraiçdes » as tapeigarias , « as aiea-
tiias, disfiostns ao .gosto àã primeira fsiaha^
ceaservaram-se como as eUa deixara , aervindo
de memorias á magw do monarefaa, magua fiie
tolvez (>r«cipltott os dias da segfànià «pposa, D.
Digitized by VjOOQIC
M n. Joio V. 123
•ibría de NewbHrg»^ inconsdivri for v£r a
ionriíra 4e um septtkíre mais poderaaa no co-
raçtío ée seu matiifo do que a lat éo» Hidbs
oNÍMt dnejoflDS do rànar aobre quem não que-
ria ser «aoravo deiks.
Soriam quatro iMMriB do dia 4 de daBembro
de 1704. Ò teaifK) aio esteva chuvoso ; mas
«Ofmva um vealD húmido. A manhft tiaba sido
traMÉPosa para o moaaTofaa ; o despacho oom os
aecf«tario6 de eatedo ; a ctonfiBraocia com o mi-
iiiitm iagloi lord icÁm Methweo ^ e o exame
de algitns papeis^ oeeaparam eWeí «té á orna
hova , <em que por costasie inalterável se assen-
tava á mesa de jantar. iSua mageMsde repetia
muitas v«tes « ^nde aMxima de qee — csn nto
se >eoinen|Ío bem, por ierçe se haria de trabalhar
«iai;«^e OMipria-^a com o appetite ctrioso,
que «ntSo deorava as qualidades de algons prín-
cipes reinantes, tomando^w sem disputa os prí-
moiros gastroaomos dos sees estados.
A «escolha e a qoaatidade dos menjares , na
vaal ucharia de Akantara , não deificavam nada
a d«»qar; o p6de*^ crer^ que a Jaminta ima*-
^m da dieta fiigiria honH)rísada ^ se penetrasse
na «casa , acede o filho de D. Joio iV honrava
« nnemorta celíttiiria dos ViteHios em cc^píooos
«ecrificíMk
Digitized by.VjOOQlC
124 A M6GIDADB
D. Pedro II tinba habites enraizados/ D^s
mais firmes e elegantes cavalleiros do seu tempo,
nutria pelos exercícios equestres um goato deci-
dido, que nem a idade nem os pesares podiam
diminuir. Apezar do conselho dos médicos, e dos
incommodos , cada vez mais frequentes , que lhe
minavam a saúde, apenas acabava de jantar,
sua magestade descia ao picadeiro, e entreti-
nhanse dims e três horas a cavallo no meio do
applauso dos camaristas e da «admiraç&o dos pi-
cadores , porque , sem lisonja , era um mestia
consummado. Quem o conhecia , não ignorava
que a melhor occasião de alcançar delle qual-
quer mercê era á entrada da missa e á sabida
do picadeiro. Talvez nSo houvesse exemplo de
ninguém achar a munificência do príncipe infe-
rior â sua devoro ou á sua satisfoção , se tinha
conseguido emboscar-^ nas proximidades das
duas portas da fortuna.
Neste dia , o mesmo em que passou a confe-
rencia de Sebastião de Magalhães com o seu vi-
sitador, o sr. D. Pedro fizera prodígios, e re-
c6lhia-se radioso. Á porta , sua magestade achou
o padre confessor. Sacudindo com a vara o f6
que lhe cubria> as largas e pezadas botas ; con-
chegando a bella casaca de picador ; e compondo
os punhos e a tira de renda amarrotadas , o mo-
Digitized by VjOOQIC
DE D. JOÃO V. 125
narcha sorríu-se , e deu a mão a beijar ao menr-
toT espiritual. O jesuíta poz o joelho env terra ,
e murmurou em toz submissa algumas supplicas,
que tiveram favorável acolhimento. Depois disto,
el-rèi seguido do primeiro camarista de semana
entrou no paço , e chamando o seu guarda-roupa
foi-se mudar de trajo.
A casa , em que D. Pedro II expedia o des-
pacho e dava audiência , era a antiga casa , cha-
mada do cr Estrado » toda forrada de damasco
escarlate com sebre-portas e janellas de brocado,
ornadas de guarnições de oiro. O bofete mar-
cbetado, cuberto de um panno de veludo azul
com os escudos reaes nas pontas, servia de
carteira e carregava, além da immensa escre-
vaninba de prata, com grande quantidade de
livros e papeis. Um crucifixo alto de marfim le-
¥antava-«e no t6po da sala , defronte da cadeira
do monarcha : vinte laminas grandes de bronze,
em molduras pretas entalhadas , com bellos pai-
néis de fina pintura , enfeitavam as paredes. Se-
guia-se para o interior a casa do « Oratório »
com sobre-portas e guarnições de Ihama carme-
sim repassada, abrindo duas sabidas para a <x gal-
leria da rainha» armada de telas amarellas.
Era por esta gaHeria que se passava da casa do
«Estrado » e do « Oratório » para a alcova e
Digitized by VjOOQIC
quartos partíciílares da el-4:eL Segundo a eti-
qu/cita Pão lum mais cadatras da ^laoi a appíi-
ratoM iK^trona de veludo franjado, aoodâ jpre-
sidia o s^^berano, e assentos de doimasco roso
sem franja oem espaldar, em qne os principes
assistiam «o conselho » quando eram chamados.
Os secretários de estado despachavam em pé;
ou de joelhos nas coxins, collocados em volta
do bofete; e os conselheiros de estado davam
o seu voto em bancos , dispostos em scmieir-
culot da ambos os lados da cadeira reaL
Antes da « casa do Estrado » havia mais três
salas exteriores: — a sala dos Tudescos, aonde
estava a guarda alemã; — a saki da tocha »
aonde o porteiro da canna , revestido da capa a
insignias do seu cargo , cumpria as «rdens de
sua magestade — e a sala do doceU immensa
quadra forrada de preciosas tapeçarias t repror
sentando a vida do sábio de Israel , o rei Salo-
mão. Estas salas davam entrada umas |iara as
outras, e abriam as estreitas, a altas janellas
para a bella varanda de pedra, que deitava so-
bre o Tejo , costeando esta ala do palácio , ou
quinta real. Da casa do « Esteado » ía uma es-
cada particular até ao jardim , fechado da gros-^
SOS muros, a armado com a impertinente sy-*
metria, que era impreterível naquelle tempo.
Digitized by VjOOQIC
BB ». mko V. 1X7
Hm kMCa depoíi de imitar da picaria, D.
PadfO II« preoaáMÍo ]ido manfuei de MartaNa ,
sea gentil-honieiii da camará, e por dois pa-
geii$ em corpo, Totidos de preto, entrou na
caaa do c Eatrado. » Os pagens correram o re^
porteira, e ficaram um didEronte do ontro, guar-
dando a porta, que abria para a saia do do-
cdL O BMirqiiec^ de pé, é dota pasaos atras
da cadeira da lett amo, esperava silencioso as
suas ordens.
A alegria do rei tiniia desapparectdo. Um
veu de melancolia reflexiva entríatecia*tbe o
roato^ cuja expieasio era severa e carregada.
D. Pedro II , robusto de corpo , e na idade de
cíncooBta e oito annoa, ainda promettia a quem
o coÉkemphTa as forças extraordinárias de que
a natureza o dot&ra. De elevada estatura e ma-
gestoaa parte^ oa ottioa pretos, grandes, e ras-
gaA)t, tiidiam as sobrancelhaa bem arqueadas e
escuras; antes da moléstia, que o consumia,
bcibavam cheios de vivezn ; e agora ainda eram
faceta de' animar se alguma repentina comoção
lhe vinha inflammar o animo. Trigueiro e de
pouca còr, o beiço inferior bastante grosso dea-
cahia como o de seu pae ; e um modo áspero
de encarar as pessoas que o desgostavam des-
pedia os importunos. Â cabelleíra descia em três
Digitized by VjOOQIC
128 A MOCIDADE
cachos grandes de anneis até aos bombmí^ e
lambendo-lhe a testa, dava anta sombra trister
á phisionomta , já de si pezada. Sua tnagestade
appareceo vestido com a maior simplicidade ^
para nAo diz^ negligencia ; e distifthído n^n
tinha virto o seu camarista de semaúa, qae es-
perava iomovel qiie os olhos de el**rei o des-
cubríssem, tendo entrado algons; instantes depois.
O monarcha acordou da sua meditado, e ex-^
balando um suspiro:
— « €oDde »^— disse elle » — ^ chame o pa-
dre confessor. » :
— Cl S. reverendissuna espera as ordens de
V. magestade. «
— « Que venha ! E o conde de Pombeíro? »
— « Entrou agora mesmo mt sdb da todia. v
— « Va-o buscar. » .
Momentos depois, o padre Sebastião^, saindo
da casa do a Oratório , » e o capitão das guar-
das , conde de Pombeiro, entrando^ pela sala do
docel, incUnavam-se beijando a mão de ei-r^.
D. Fedro II olhava para o jesnita e pareci»
conkariado da seu silencio. Entretanto, disfar-
çando na frieza do tom o grande interesse da
pergunta , abriu a «conversai^ak) ; ; «
— « Esteve com S. alteza^ padre Sebastião^? t»
— interrogou elle.
Digitized by VjOOQIC
HK D. XOÃO V. 1^9
^ «-«tt Saberá V. mageslade que sim. n
- -<— « Cofkimuoicou-lhe as ordens de seu pae T » .
— « Obedeci a V. magestade. »
•-*-« K então? »
--^.«.S. aUeasa nio se dignou responder. »
— "U Ah! » — exclamou o monarcha enru-
gando a fronte e com um grande brilho na ?ista.
— «r S. alteia não deu resposta? »
— « Nenhuma, dsolutunente, meu senhor. »
^— « Ayisou o príncipe de que ordenei que-
assista hoje ao consdbo de estado? »
— « Cumpri as ordens dè El-reí. i>
« E o que disse? »
— « Que estando preso não podia sabir sem
umt ordem expressa de el-rei seu. pae. »
-^« Muito bem ! S. alteia não disse mais
nada ? i»
' — «Mais nada. Afaaixou-me de lere « cabeça,
e virou-rme as costas.
— « . Conde de Pombeiro » — disse D. Pedro,
virando-se para o seu capitão das guardas —
« daqui a meia hora irá cpm o inCotute D. Fran-
cisco, em um coche da casa, aos paços da Bi-
beira , e debaixo de prisão condusirá ò príncipe
real á minha presença. O iirfante recebeu as
ordens. Pôde retir«r-se. Padre Sebastião, fi-
que! »
T. H 9
Digitized by VjOOQIC
130 ▲ MMIDAOE
— « V. laageflkade ]Mnutte? Qnem. ha de
receber a espãa de S. alteia leal? » — per--
gantou o Conde de Poiabeiro miuto péllido.
— a Ninguém. Dirá o conde ao príncápe que
el-rei ordena que lha entregue elle próprio. »
Apenas nda o capitão das guardas , D« Pedro
II le^vantou^^e com ÍBipeto « e olhando para o
seu confessor , exclamou :
— «Ê poneciso um exemplo! Ou S. alte»
dsedece e tenho fiflio , ou maado pre^rar na
torre os quartos, em que Islleceu o príiKápe D.
Theodosio. Nio hei de conseirtír que se levante
uma creança contra a minha vontade, e con-
trarie projectos úteis á sua gloria, e á fS^icidade
destes reinos. . . . Marquei, vi a casa de O.
Luiz de Athaide , e- diga-lhe dè ardem de el-
rei , que venha amanhã sem falta ao paço , de-
pois da missa. Se D. Luiz pergwtar o motivo,
deve responder que é segredo de estado. Estas
loucuras hão de acabar por uma vez. ... »
— a V. magestade permítte uma observaçlo ? »
—acudiu t) confessor, logo que o marques de
Marialva se ausentou.
— « Diga. »
-~«( SiMqpeito (pie os amores attriiiaidos a S.
alteza são fiâlsos. »
— « Ah ! »
Digitized by VjOOQIC
k MOCIBADti 131
**-^« 80Í de boa fonte que o príncipe meu
senhor nem conhece a D. Catharina de Athaide: »
— « infoJMflffam tnal o padre! . . . » — ex-
dainoii el-rel colérico. — « S. alteza por causa
detié é que liie desobedece, e eu não quero
quem ííieite resistências ás minhas ordens. D.
Catharina ha de sahir de Portugal, ou ha de
professar dentro de três dias. . . Veja se che-
gou Diogo dé Mendonça, ou se estará no paço
o vedor FemSó de Sousa. »
Eái preciso que a irritaçSo do monarcha
fosse grande para tractar com tanto desabri-
mento o seu confessor. Esle, vendo os ares
reVèltos, encolheuHse na ádà roupeta, e sahiu
de Goetes viradas para a ^fta , com três pro-
fundes cortesias, que ínais pareciam genuflie-
xSes humiVssimas. Depois, nietténdo as mãos na
manga, firaetou de procurar o vedor para lhe ser-
vir de para-raios, visto estar eminente grande
teiâpéstade no animo dé el-rei. »>
8. tíiagestade achou-^ então completamente
só. Ia escurecendo , è tendo mandado vir lur, e '
olhado^ impaeièàte para a porta umai j^ucas de
vezes , abriu umr liví^ ét capa de pergaminho ,
onde égtavom íãnçadas as -^c^n*» êa vedoría —
e cometeu * examinar os castellos de âlgarism^ -
que lhe enchiam as paginas, líestes exercícios -^
Digitized by VjOOQIC
132 A MOaDADB
arithmeticiys o yeio ainda encontrar o Yedtr ía
caw real.
D. Pedro encarou severamente o yeiho fidalgo,
deu-Ihe a mão a beijar com firieaEa , meneaad» a
cabeça, e franzindo o sobrolho. Ás contas, que
tinha diante de si , fauam o eífeito de um caus*
tico , exacerbavam a sua irritação.
— <x Assim não. admira , n!lo ha dinheiro que
cheguei — gritou el*-rei, batendo no livro com
o punho fechado. — Fernão de Sousa, fazem da
minha casa um pinhal , todos me roubam, e ta
deixas roubar. »
— « Saberá v. magestade. . . »
. — « Sei , digo-te que sei ! Brada ao ceu ! Lan-
çam-me de contas, sabes quanto? Seis contos e
oitocentos mil réis este anno. Mas de qué , santo
Deus, de quê? Da ucharia da rainha ^, que Nosso
Senhor chamou para si. Depois de Deos ser ser-
vido levar a s. magestade, depois de morta,
€usta-me tanto ou mais que, durante a aua pre-
ciosa vida. . . Fernão de Sousa , ha quantos an-
nos falleceu a rainha, minha senhora?»
. — « Em 4 de agosto fiassado fez sete annos. »
—Respondeu placidamrate o vedor.
— «Para quem é então a uçharía?. . Qaam
me come tantos contos de róis, quem me saqueia
este dinheiro enorme?»
Digitized by VjOOQIC
M D. JÒAO V. 133
•^ u Ninguém , meu senhor. »
--^«Ninguém? — ^exclamou o monarcha ab-
lorto com o absurdo. — Ninguém^ dizes tu?»
— « Informe-se v. magestade. »
-^(xMatam-se as aves?»
— a Sim , meu senhor. »
— « Compram-se os mantimentos ? »
— « Compram , meu senhor. »
— «Em fim gasta-se o dinheiro, perto de
sete contos de réis? »
— « Sim , meu senhor, i»
— « Agora O' ladrSo ! Quem é que me devoí^a
tanto pombo e tairto doce? »
— «O ladrSo ? — balbuciou pasmado o oificial
mór da casa. — O ladrão só se é a real munifl-
cencia de v^ magestade. »
— «A minha munificência? — gritou o rei
leTaataodo as màos ao ceu^ cheio de assombro.
--^ Atreves-te a dizer que eu sou o ladrão da mi-
nha casa?»
— «V. magestade não se rouba, deixa gastar. »
-^«Eu deixo gastac! . . » — repetiu o prín-
cipe , cujos braços descahiam frouxos de pasmo.
— « É a verdade , senhor. Todos os dias tra-
balham as cozinhas e se põem as mesas. »
— a Como no tempo de s. magestade a rai-
nha?— atalhe^; D. Pedro irónico.
Digitized by VjOOQIC
134 A MOCIDADE
— d Exaetapieote ; e todos os di«s k hora do
estilo o trínch^ate e o copeifo levant^pn qb pra-
tos e mandam. . • »
— «Que ^ levem para onde elles querem?
— gritou o monarc)ia.^ — Isso esperava eu.»
— a Perdoe, v. magestade ! Mandam-noa con-
sumir, .., » — Refriicou o vedor com um gesto
sublime.
D. Pedro II apertou as mios na cabeça sem
iizer palavra.
— '( É o costume da casa real. — proseguiu o
official mór serenamente. — Em quanto el-rei
não ordena o contrario continua tudo. . . ocdf-
nados f mesa , e despezas avulsas, i»
O vedor fallava com a grandeza de ahna de
um creado temente a Deus e cônscio d^ seus de-
veres. O monarcha duvidava se tinha diante de
si um velhaco , ou simplesmente um idiota.
— <cE as rações?» — perguntou o soberano
com um sorriso contrafeito.
— « Dão-se. »
— « E as damas ? »
— « Recebem todas. »
— « Sem servirem ! E os creados da casa da
.rainha ? »
— a Recebem todos.»
— « Fazem muito bem ! Não morreu nenhum? »
Digitized by VjOOQIC
BB B. i0ia V. 13l5
-~« Morreram três. O dinheiro desses é iiqp-
plicado em missas pela soa alma. ^
— «E eu pago esta cera de ruins defonc-
losT»
— « V. magestade paga. »
— a Agora quero a rasào. Senhor vedor, sabe
que isto nio ha de sahir barato a alguemi^ já que
me custa a mim^tSo caro?»
-—«A rasão é aão ter subido ordem de Ei-
reí para aealmr o real estado da casa da senhora
rainha. »
— «Mas Mleceu ou iiSos. magestade ha sete
aQMsT»
•*--*- € Menos para a sua real casa. L& n8o consta. »
— Aonde aprendeste, Fernão de Sousa?» —
exclamou D. Pedro furioso.
— «No ^Ilegio de Santo Antão, saberá el-
rei. — acudiu o vedor com muita innoceneia.
— ' aEn8Ínaram4e bem ! r^
-^« A respeitar e amar eWei, sobre todas as
coisas, depois de Deus. ^
— «Donde a tua sabedoria coiiige que me de-
ves arruinar?»
— a Meu senhor, os -sobejos do rei são a ale-
gria do pobre. )>
— « Grande máxima ! £ enfâo ? »
— « E então , como estes seis contos e oito-
Digitized by VjOOQIC
13i6 A MQCIBAIUK
centps mil réis sustentam dusentas luoilías, eo-
tendi que v. ma^gjsstade de propósito fechava et
olhos*»
— «Eu nomeei-te vedor, ou esmoler, Femio
de] Sousa?»
— «Vedor, saberá v. magestade. »
— a Ora bem- De hqje em diante ficarte en-
tendendo que não fecho os olhos , mas os abra.
Quero um risco nas reaes cozinhas, e oirtro maior
se é possivel nessas mesas e apparadores. , . Tens
Fern&o de Sousa extasiou a vista , e levou o
dedo indicador á boca em ar de suspenAo men-
tal Era evid<ente que lhe parecia monstruoso e
inaudito, que o soberano, por amor de sete con-
tos de réis, fizesse tanto arruido, e desse ordens
tão rigorosas.
D. Pedro , da sua parte , estava perplexo en-
tre o riso e a ira. A longa e secca figura do seu
vedor, perfilada e satisfeita de si, respondendo
sobre as mais estúpidas prodigalidades .com o
aprumo do homem seguro de ter cumprido re-
ligiosamente o seu dever, era um espectáculo tão
original , tão esquisito e inesperado , que o mo-
narcha . não se podendo conter mais , encostoo-
se á cadeira, e desafogou em frouxos de estron-
dosas gargalhadas. Este accesso de hilaridade pas-
Digitized by VjOOQIC
M D. Jolo r. 137
80Q por cima do lembhnte do official mór da
casa, deixando-o ciomo o aehava. Fernão de Sousa
continuava firme na espasmódica e engomada gra-
vidade, incapaz de permittir que um só dos mús-
culos da sua pbysionomia se desafinasse, descom-
pondo a solemne e tesa importância da etiqueta.
— «Porque me apparecem estas contas no fim
de sete annos? — perguntou el-rei.
— «Todos os annos rem; mas v. magestade
gó hoje ae dignou examinal-as. x>
— «Ah I E a minha approTação ? »
— «Entende-se, que s. magestade a dè,
quanda íOo censura. »
— «Bem! Más não sou informado da aiM^e-
aentaçio?. .»
— « El-rei sabe tudo ! »
— «Entfto, el-rei até advinha, Fernio de
Sousa 7 »
-*-« NSo, meu senhor. Mas o costume é nllo
se dizer nada- a v. magestade antes que se digne
perguntar. »
— «Vamos ! Quanto rendem as jugadas e di-
reitos reaes de Cintra?»
— « Um conto quatrocentos mil réis. »
— « E o pescado e os direitos de Aveiro 7 »
— «Setecentos e quinze mil réis, nos últi-
mos sete mezes. »
Digitized by VjOOQIC
138 A KOCIBAra
— « Agora a despessa 1 • • O que tke íitenun ? »
-^«Distribuíram-^ em esmolas aos confeii-
tos pobres. »
— « Admirável 1 . . E depois ? » — exclamou o
principe enfadado.
— « Depois^ ifuiis nada. Eram as ordens de
s. magestade. » — replicou o vedor, já nm pouco
tímido.
--*« Eu taes ordens n&o dei \ d
— «Deu-as s. magestade a rainha, de sau-
dosa memoria , e é o mesmot, como eKrei sabe.
Eram relidas da sua casa% »
— « Famoso ! Em todos es negócios da veda-
ria ouve primeiro a Diogo de Mendonça, meu
secretario das mercês, e entende-te com elle. £a
passarei as ordens. FernSo de Sousa, aeho4e li-
beraldemais: e nio quero ârruinar^me por causa
da etiqueta , como um dos reis catholicos soffo-
cou ao seubrazeiro por falta decreado^ que lh'o
tirasse. . . percebes ? »
* — «V. magestade permitte?»
— d Falia ! »
— « Posso saber se incorri no real desagra-
do ?» ,
— «Para que?»
— «Para me retirmr ás minhas tenras.»
— « Não ! Mas eu quero saber do que é meu,
Digitized by VjOOQIC
m D. JOÃO V. 139
e tu. Dão salies do teu, nem do «Ibeio ; por tanto
o secretario das mercês te «fadará. . • Âh, Diogo
de. Mendonça, sabes uma novidade? Soa mages-
tade a rainha não falleceul Pergunta ao vedor
. Fernão de Sousa ? )>
Diogo de Mendonça entrava neste momento ;
e ouvindo el-rei dirigir-*lhe esta objurgatoria sor-
siu-se com a metade do rosto, que tinha virado
para elle , dando um ar magoado á outra me-
tade, e:(posta & vista do fidalgo. Para não res-
ponder logo, o astuto ministro, quebrando^^ de
corpo para o lado esquerdo^ foi a pasyos vagaro-
sos ajoelhar-se diante de eKrei e beijar*-Ibe a
npjo*
— «y. magestade ordena que me retire?»
— perguntou o vedor muito vermelho.
— « Não, espera ! » ..Diogo de Mendonça^ como
te disse, s. magestade a rainha não morreu. »
— «Por mais que deseje, não posso ter a
fortcina de entender a v. mogesitade. i> — repli-
cou o secretario , furtando-se ao encontro.
— « £ verdade. Acabo de pagar sete contos
de réis da sua ucbaria neste anno , pelas contas
do meu vedor. »
?— u A munificência de v. magestade é infi^-
nita. O que são sete contos de réis»? Não é el-
rei o paç de seus vassallos 7 »
Digitized by VjOOQIC
140 A MOCIDADK
O vedor respirou; O ministro tomara o i6u
partido. D. Pedro 8orría--se.
— (( Parece-me, que és do Toto do vedor, dei-
xas pdr a mesa aos mortos para engordar os vivos. »
— «Eu, senhor?! cuidei que v. magestade
fallava jocosamente. Pois ha quem roube a v.
magestade , e nio esteja castigado ainda ? b
— «Diogo de Mendonça, ninguém me rouba.
Sri>erás que o ladrtío sou eu. »
— «Agora nto percebo; perdoe v. mages-
tade ! Pois el-reí que é a si^bedoria mesma. . . »
— «Eu me explioo. Nilo se expediu ordem para
acabar o real estado da casa da rainha , qoe
Deus tem ; e FernSo de Sousa, meu vedor, de-
cidiu que a despeça devia continuar , como em
vida de s. magestade. »
— «Por Deus! e decidiu bem, perdoe v.
magestade. »
— «Decidiu bem?»
— «De certo. A obediência é louvave). O ve-
dor não teve ordens. . . »
— «Mas quem é então o culpado, porqqe sem
duvida alguém teve a culpa?»
— « Quem lhas não communicou ; mas a be-
nignidade de V. magestade ha de valer-Uie. »
— « Visto isso, Roque Monteiro deve á minha
casa sete contos de réis por anno? . . »
Digitized by VjOOQIC
BC P. iOÃÔ V. 141
. >^«Pois eu disse que era Boque Monteiro?
Perdoe t. magestade \ Eu ndo disse. »
-"-««Que em sete annos ísacem ?»-^ prose-
guíu el-rei , figurando nfto oavir. .
-^«Quarenta e nove contos justos.» — con-
cluiu o vedor com a sua inevitável certeza de
calculo e obedecendo á interrogação da vista de
s.^ magestade.
Diogo de Mendonça fingia-se abismado* O seu
rosto fez-^e a mascara da tragedia á forca de ex-
pressão dolorosa. Ajoelbando aos pés de el-rei
com duas lagrimas quasí visíveis nos olhos e a
mais artistica rouquidAe na voi, o secretario das
mercês [exclamou :
-^«V. magestade é clemente! Foi incúria
delle, mas quem é perfeito, quem não as tem ?
Faz-se meu inimigo , bem sei : mas nSo impcMrta,
é bom ministro. Dizem mal? Também de mim !
Deus sabe. Não os acredite v. magestade. Que-
rem persuadir que elle se avença com os com-
pradores da casa real e recebe alças dos estran-
geiros?. . por Deus ! Ponho as mSos no fogo. . .
é calumnia. o
— « Ah ! » — grHou el-rêi, ouvindo os capitu-
les accusatorios pela primeira vez.
— « Nâo Ifae dé V. magestade ouvidos. — ex-
clamou o defensor zeloso, r^ Ignoro a raifto
Digitized by VjOOQIC
142 A HOCIBABE
per qoe elle m^ quer ihal : eu nunca lho déte^r ;
mas isso quiHfem? A verdade deve^e dízèr. tio-
que Monteiro é devoto e honrado. Até lhe le-
vantanoL que não ouve missa. . . parvos ! »
— « Mátt catholico , an ? » — acudiu D. ^Pe-
dro, sevCTamente.
— «Nao acre^e, meu senhor. Elle tomou
capellão. . . para a família ; e ouve-a nmito cedo*!
N&o é hereje ; nada disso tem ! Ah ! a inveja é
feia. N&o me imputaram a extori^ de um cru-
cifixo de mar&n feito na índia, dizehdo que desde
a peanha até ao resplendor todo elle «ram [ie-
dras preciosas? . . pobre de mim ! »
— «E então?»
— « N8o era !. . E os Velhacos sabiam-no. Salva
a reverencia de tSo devota imagem, era um bocado
de marfim bem tosco dé lavor, e roido dos vef-
mes. . . Indaguei quem serik o pae da noticia. . »
— «E deseubristes o teu' Anito?» — insis-
tiu o monarcha , rindo^se.
— «Foi tao felir quesini! Mas sem ordem
expressa nSo posso declarar. . . )i
— « Vamos ! »
— «V. magestade manda?»
— «Mando.»
— «Foi Roque Monteiro ^ coitado ! Sem mal-
dade. . .por desfastio. »
Digitized by VjOOQIC
DE D. JOÃO V« 143
— cEitu a dafentM-o7! . .E áqpois?)»
— 4(€oQVidei-o para almoçar, e mais is três
pessoas que o tinham ouvido. »
— «I Havia de ser divertido. . . Fallaste-lbe do
Santo Cbristo?»
— <t Obríguei-o adner maravilhas deite! Tam- ^
bem não linha outro remédio : os outros estavam
alli. ]»
— «Nâo foi méu. Que ínafô?»
— «Tra^i-lbo. Não quiz que oln^a tfio pre- .
ciosa ficasse em outras nÂos. »
-<-*«£ €omprou-o? x> — gritou o fNrincipe, rindo .
muilo.
-^ « Que remédio l EUe até é que lhe fez o
preço, ji
— r«Sem vêr?»
— «Quem louva estima. Gustou-lhe trèsentos^
mil réi^. E salva a devoçfto^ o objecto nSo vale
dez : duvido que mos dessem. i>
— «Exodlente, Diogo de Mendonça!»
— flc Pedirei a v. magestade q graça de no-
tar que não disse nada em desabono deHé. »
— «Pelo contrario I e iaz-te honra. Fernão-
de Souaa, as eòntas da vedoria serão despachadas
por Diogo de Mendonça. Podes «ahir. i»
O sr. D. Pedra II era jiraganoa- legítimo no
gosto de se informar das anecdottó curiosas da
Digitized by VjOOQIC
144 A MOCIDADS
eorte , fiiiiilMrâiiido-9e pán ei8e fim coar ai
pessoas, <|ue o podiam satisfazer, A historia do
crucifixo alegrou-^) iimieiiso e esleve-a crie*
brando com discretos commentaríos. Ao mesmo
tempo entranhava-se no seu espirito o desbro-
ravel conceito, que o Tolpino corteiSo sonbe in-
sinuar a respeito da probidade do seà emub*
Desde este momento Roque Monteiro , justifi-
cado pelo secretario das mercês por niãm bea
fiy perdeu o credito na opinião do príncipe; e
Diogo de Mendonça, que uma difamação yirt-
gar teria envilecido, arvorado em patrono ofi-
cioso do seu inimigo, passou aos olhos do mo-
narcha por uma alma generosa e um cfín^o
de pomba. O vedor que era amigo de Bofue
Monteiro, admirado dia nobreza de sentimentos
do secretario das mercéa, sahiu> da casa do
c( BMrado » com as lagrimas nos (rfbos^ can-
tando os seus Iouv(ffes»
Assim que o vedor sahiu, el-rei tomando ar
serio, vÍFou-se para o seu ministro, dizendo:
— « Oxalá que fosse ludo i^radavd , como a
tua historia, Diogo de Mendonça. O peior é
esta guerra e não haver dinheiro. O ultimo car-
reio trouxe noticias do exercito? »
— < Boas, parabéns a v. magestade. »
—.«Então?»
Digitized by VjOOQIC
1>E D. JOÃO V. f 45
— <c O visconde de Barbacena , mestre de
campo general do Âlemtejo, acaba de dar uma
lição ao marquez de Resburg , governador de
Badajo2. Tomou-Ibe os gados , que iam á feira
de Guadalupe , e derrofou-lhe tresentos cavallos
e quinhentos infantes. »
— « Viva o visconde ! E o marquez das Mi-
nas?»
— « Sabe-se que entrou em quartéis com o
seu exercito nas fronteiras de Murcia e de Va-
lência. y> •
— - c< E os francezes não disputaram a passa-
gem ? O marechal de Berwick ^ esse heroe que
nos ha de pôr sem um palmo de terra em Cas-
tella, não lhe oíFereceu batalha? »
— <c O marechal é habil ; mas confia em ou^
tro general melhor: — o tempo! Desgraçada-
mente parece-me que elle tem rasão. »
— « Entortaram-«e muito as coisas , é ver-
dade, Diogo de Mendonça. Os hispanboes es-*
tão frios; passou a occasião. Ah, se o archidu^
que , digo , se el-rei eatbolico D. Carlos III se-
gue o nosso conselho e se reúne em Madrid ao
marquez das Minas. . . »
— « Era partida ganha , meu senhor ! Mas
succedeu-nos a historia do general Pardinhas.
V. magestade ha de sabel-a que é curiosa ! Vie-
T. n V 10
Digitized by VjOOQIC
i4$ A MOCIDADE
ram dizer4hec*^0 inimigo está h vista. — Que
espere , em qtí^nto acjBibo o meu pltno. — Tor-
Daram-lbe d'ahi a pouco, exclamando: — ge-
neral , já atacam as nossas linhas l — Nâô im-
poitSt deiíi^ein-me resolver este equação. — ^Mnito
tempo depois levantou-se e pediu o seu cavallo.
— 'Aonde vae y, ex,% disse um ajudante. — Essa
é boa ! vou commandar a batalha. — Â batalha
está perdídfi. Agora tracte de fugir. — É pena !
aciíáiu elle muito plaeido , se esperam meia hora
mais, não me escapa nem um tambor ! -^ £I-rei
catbolico, que Deus guarde, fez o mesmo. Se
n$o pár^ (res semlinasi ara hoje rei de Hispa-
nha. »^
— «Então /Diogo de Meuà»nça, jogamos
sem esperança ? » -
*—4ii Longe á^ mim assustar a v. magestade.
Eu não disse tutito, Mas a vardade é que o mtr-
quez das Minas « entrando em Madrid , levan-
tou o bollo , e que s, magestade catholica o re-
po2 outra vez por não andar depressa. O resto
está Das m^ãos de Dauf , a não pôde estar me-
lhor. »
— « E o dinheiro ? »
— « Infelizmente ! . . . Não ha dinheiro. Pois
o tabftco rçtídeu! Mas nada chega. ^
-^ f( Qâ Hibsidiois doB IdUados tardam »
Digitized by VjOOQIC
1)E D. JOÃO V. 147
"•«-^ d É «osttnne. As promessàà viem depressa.
Sào tão leves ! » '
*«-- « E leniãb ? »
— a Desertam-nos soldados , «[ueixa^se a eorte,
e o reino diz que não pôde com o pesó« ...»
— <f É preciso que possa ! )i
■«^«c Assim digo eU; más elles respondem,
que madeiro velho não deita sangue. »
— (( Diogo de Mendonça \ sabe Deus que não
foram levianos^ ou aàibicioses, os peilsamentos
com que ajustei a liga e declarei a guerra^ Fi>
lippe^ duqiie de Anjou^ ào throno 4 era el^ret
de França reinbndo sobre HÍ9(^anfaa. E Castella
ooííi 06 Pyrinneus de menos muito grande era ;
depois ninguém podia com ella; ff
— « Certaraehte : Gastella só jâ não é nada
bom visinho , o que seria ceunindo-^s^ Hispanha
e França? A coroa fica muito larga para uma
cabeça , ò. ó muito pequena para três. Não sou
medroso y v« niágestade sabe! pol:ém, digo^» qué
o nmis provável era não gostairem de a vèr se-
não em duaSi Se os déixasaem vinham até Lis-
boa. . . . Porque não? Este rio é tão bom* por-
to 1 .. . Lft tem França ourives finos ^ |)ara or-
nar depois o diadema ; e eKrei Luíb XIV assim
niesnio talvez ainda a achasse pobre/ il verdade
qu9 mà neto pôde etfiviar a coroa de Fitippe
Digitized by VjOOQIC
148 A MOCIDADE
II , feita em Thomar ; essa aposto eu que ser-
ve! »
— « Diogo de Mendonça , os francezes teem
espias na corte. »
-^ « Ck>itados l ... E nós espias aos espiões. »
— i( Então conheces quem os avisa ? »
— « Perfeitamente ! Úm genovez , chamado
- « E nfto prendes o agente ? )»
— a Deus me livre. Este conheço eu , outro
que venha é que não sei 1 ... • Demais , assim
com o homem solto temos noticias de graça , e
meténdo-o na cadeia , havemos de pagal-ias. »
— « Por onde mandam a correspondência? i»
— « Pelos recoveiros da fronteira. »
— « Seguraste os recoveiros ? »
— a Estão seguríssimos. Comprei-os. »
— «Ah!»
— a Sabe V. magestade que el-rei Luiz XIV
deseja a amisade de Portugal. Até expediu um
pleno poder em branco a certo padre da com-
panhia. Toda a cautela é pouca com os jesuí-
tas. »
— « Diogo de Mendonça, não quero que me
entendam com os padres da compsinhia. »
— ff Deus nos livre , senhor ! Depois , não é
comigo. Sabe v. magestade que o conde da Erí*
Digitized by VjOOQIC
DE P. JOÃO V. 149
ceíra, D. Francisco, é bom poeta? O soneto
d^elle á morte do visconde de Fonte Arcada me-
rece lido. ... Se eu estivesse ainda no meu
tempo. ...»
— « Âh , Diogo de Mendonça , temos-te ou-
tra vex com saudades de Apollo? Voltas a es-
cravo das musas ? — disse el-rei sorrindo. S. ma-
gestade era muito inclinado a bons versos , e ge-
ralmente se attribuia o valimento do secretario
das mercês ás bellas poesias , que lhe escapavam
nas horas vagas. Se assim era , foi talvez excep-
ção da regra.
— « Escravo , meu senhor? Só do Santíssimo
de santa Engracia e de v. magestade. »
— « Bem dito e louvado seja o Santíssimo
Sacramento da Eucharistia, e a Conceição imma-
culada da virgem puríssima santa Maria ! » —
exclamou el-rei, pondo-se em pé e recitando em
alta voz , segundo costumava sempre que ouvia
fallar no Sacramento. O ministro repetia mais
baixo e não menos piedoso egual jaculatória.
— « Vejamos o soneto do conde ! » — acudiu
D. Pedro, depois de se benzer, e tornando a
assentar-se.
— «V. magestade desculpe , mas eu nio sei
do soneto senão uma quadra. »
— « Dize-a. »
Digitized by VjOOQIC
t$0 A MOGIPABE
— ^<( i esto.;
N0k cana} o iropkieijk ámoJtt seguro ;
Em Castello Rodrigo vence a Hispanh^.;
1^ tez áfií Montes Claroi a façanha
$eu^ non»e claro , até no tempo esquço., x>
— r « Bra^,» çoi>dç da ÇiíiGoira ! -r^ gritou elr-
r€Í Sdlisfei^., »
— tt Sobrado o çQoceitp do ultino^; verso! .. . ^
— accudiu o muiisteo — a E era. um nome clisuro
o de Pedro Jaques de Magalhães ,^ visconde de
Fonte Arcada. Entrou hoje ^a secretaria o re-
querimento de seu filho ^ pedindo a congrmação
do titulo. , , . »
— « Que Ibje será expedi4H; não te esqueça.
 memoria, do visconde ha de ser honrada comQ
foram illustres os serviços à minha coroa, n^
— <i Um monarcha assiijn faz. heroes ait& da
gente fraca ! » : — exclamou o secretario djas mer-
cês, fingindo-se arrebatado. O astuto n^injstro^ que-
ria serwr o filho do visconde , e convertia o
soneto em memorial. Já se vê que bem conhe-
cia o seu augusto amo!
— « Heroes sempre nós tivemos. » — disse o
monarcha. — « Agora o dinheiro é que nunca
sobejou. . . . E os vinte mil homens que estou
Digitized by VjOOQIC
DE •• JOÃO V. ISl
apromptioda para » camptiiftaf segôinte, c^mo
ha de ser isto ? »
— « Sé um empréstimo , seolhor. »
— «0^ vinhos teem: tido e^traeçSo depois do
traetado » — accÉdro o prinerpe — « 0$* h<Mttefi9
de Degoeio do Porto podiam 9Jâdar-mfe. »
— c( Os inglezeshebem menos vinho do Douro
do que Ptntu^l Ihesf gasta de fazmdasr, depois
de revogada a pragmática. Sabe et-rei que bBo
dá uma coi»a para a oivtra?. . . O tracta^lo de
1703, . . >y
— K É a ki mais sabni do meu- reinado'! »
— interrompeu D. Pedro , sevek^amente.
— «, Assim o dizem todos! w — aceadiu ase-
cvetario , cubriado a cova com o pé — <x É ver-
dade que {echou as fabricas e fiará de Portugal
uma vinha grande ; pôde ser que não haja qúemi
beba tanto vinlM> ; mas o tempo a justf^cará.
V. magestade permitte que proponh» a despa-
cho as mercês que trago consultadas ? »
-^ tt Depois do< conselho de estado. A propo^
sito : como vão as três fragatas que mandei ar-
mar? »
— a EstSo promptas. Sabem dentro de uma^
semana , se houver dinheiro. »
— «Se houver dinheiro ! Sempre o mesmo
estrebilho. Peçam-no aos negociantes da junta
Digitized by VjOOQIC
1K2 A MOCIDADE
da compaobia do Commercio. Como está a casa
das missões? »
— « Roque Monteiro informará a t. mages-
tade. Os negócios de Roma , diz o secretario de
çstado , que estão cada vez mais embrulhados. »
— «Já sei. Se um dia chego a cançar. . .•
verão os cardeaes. )>
— « V. magestade não ha de perder esyi reai
serenidade, que tão bem lhe fica. Patiens quia
qBtemus! È o motto da companhia de Jesus.
« Persiste e vencerás ! » traduzi eu. . . . El-rei
permitte que eu introduza logo um official doi
seus exércitos do Âlemtejo ? »
r-7-«Quem?))
— « Cbama-se Jeronymo Guerreiro. Se v.
magestade o conceder , contarei logo a sua ul-
tima proeza de Badajoz. É um segundo cavai-
leiro Bayard, sans peur et san$ reptvehe. »
— « Pois sim , logo. ))
— « S. alteza real e s. alteza sereníssima ! »
•r— disse o. conde de Pombeiro, annunciando á
porta. »
— « Diogo de Mendonça retire-se. . . . e agra-
deça a Deus os bons filhos que lhe deu ! »
Digitized by VjOOQIC
CAPITULO XIX.
ANT£S QUEBRAR QUE TORCER.
Apenas o conde de Pombeiro annanciou os
príncipes , escureceu-se com ama nuvem a phi-
sionomia de el-rei. Despedindo o secretario das
mercês, qae diagnosticou a repentina mudança
com a finura de cortezão, sua magestade encos-
tou os cotovellos aos braços da cadeira , carre-
gou o semblante , e disse em voz clara :
— « Entrem , ss. altezas ! »
O príncipe real vinha adiante. Trazia a ca-
beça alta , os olhos firmes e aquelle geito da
bocca particular , com que depois de rei , se
mostrava o seu desagrado, faiia tremer os mais
poderosos da sua corte. S. alteza chegou ao pé
da poltrona de seu pae, inclinou-se, beijou de
leve a mão, que nem lhe oíFereciam, nem reti-
ravam ; e endireitando-se depois, com o mesmo
Digitized by VjOOQIC
154 A MOCIDÁDB
silencio, pegou na esfmda, e pousou-a oo es-^
trado em que o monarcba dcscançava 05 pés.
O íorante D. Francisco, mais novo um anno,
e mais branco do que seu irmão, dando nas fei-
ções alguma idéa da belleza feminina de sua mãe
e recordando huúÍo a seu tio Affonso VI no
olhar volúvel e quasi alienado, aproxímava-se
do outro lado do bofete , cuja cabeceira occu-
pava a poltrona reaL D. Pedra II para castigar
o seu primogénito estendeu a mão ao infante, *
lançou-Ihe a benção, e com um gesto meigo,
apartou-lhe da testa as madeixas de um casta-
nho tão aberto que pareciam louras, S. mages-
tade observava aa mesmo tempo no seoablaAte
do príncipe real o eíFeito. das caricias paternas e
entristeceu de todo,, notando que s. alteza, em
pé no vão de uma janella, estava olhando para
fora , sem fazer caso do que passave a reda
delle. O pae suspirou ; e o rei ofifendjeu-se 1 En-
tretanto do que estava no coração dos três , se
alguma coisa subia ao rosto, era uma somlura a
tal ponto fugitiva , que facilmente se illudiria o
melhor observador.
£l-rei continuou a affagar a cabeça do infante
em . quanto lhe perguntava ;
— c< Estam contentes os teus mestres ? Foste
ás fragatas novas , que se estão armando ? »
Digitized by VjOOQIC
k hociuadb ISS
-t^«Si«i ^ mw «mb»^- Toda 9 manhã andei
*T^.cr O max éi a. tua, p^ípOo. Havonoft de fazer
dí^ ti um almivanti^ £ Wuem aoivdb ^stiye3te ,
qx^ bA^ te yi.?í>;
-— .«.Nia caça todo <> diaw. Salnç v. magestade
qf^ ine. a<»b^i pei;4i<^? »^^ E q inlaute desatcMi
-»^« Ah,^ cuidado ! Nada de i^ndar só. »
-^ « O i^aBQ João é que aado só. Olhe^ meu
pae, ha dois dias, se a ronda nâo acode, mar
ta^wi-no; ^ esqiâaa da i:iia dd$ Áreas,, perto do
recanto, do painel Faziât escuro^ e chovio. . • £u
sei Uiàfí-. EU^r nSiO; gosta: (p&. ^- digfi . • mas a
mif» qju^ me importa l fk
£ s. alteza, (aliando assim, divertia-se em
beliscar a^ costas, da mão oom velocidade ,. di-
zendo- muito depressa : (c Joanico, Joanico, quem
te deu tamanho, bico ? >x
— ^ c( Eu já. prohibi as. corridas nocturnas e os
desafios á espada preta : mas y. alteia não quer
attender a que são de perigo para a sua vida, e
de inuito desaire para a casa. real — acudiu. D^
Pedrot severamente , obrigando o príncipe a to-
mar parle na conversação. -^ Daqui em diante,
será necessário sahir acompanhado pelo capitão
da^^Quardus. . . é q modo. d^^ prevenirmos maior
Digitized by VjOOQIC
1S6 A MOGIPADB
desgosto. — E augmentando-se^he a irritação
com o silencio do príncipe, accresbentou. — A
corte está escandalisada ; e eu nio devo permit-
tir que o herdeiro da coroa, alia noite, ande ccht-
rendo as ruas como um espadachim , contra as
minhas leis, entrando nas lojas, rivendo com o
baixo povo, e dizendo galanteios debaixo dás ja-
nellás das familias honestas I . . Não se lembn
de que estão em Lisboa os ministros estrangei-
ros , e que a Europa v6 e sabe tudo pelos olhoi
delles?»
O príncipe deixou fugir pelos cantos da bocca
um ar de riso ; e armando o seu acatamento de
mais orgulho, do que podia ter uma replica ve-
hemente , inclinando-se á admoestação paterna ,
só redarguiu :
— « V. magestade permitte ? »
-^ « Falle ! . . sou pae , e prezo a sua gloria ;
sou rei, e alegro-me sempre que acho innocen-
tes e não culpados. Ouviu o infante? O que
responde?»
— d Duas palavras, apenas senhor , — acudia
o príncipe. — Deploro o ter incorrido no desa-
grado de el-rei, mas consola-me a esperança de
que o exemplo de v. magestade advogará a mi-
nha causa. . . 1»
— «O meu exemplo? v. alteza atreve-se?.. »
Digitized by VjOOQIC
DB D. JOlO V. ÍÍ7
— <( Ouça-me el-rei e julgue ! A vida ido está
menos exposta entre duas espadas do que na praça
diante das marradas de um touro I ? . • e pela
fortaleza do seu animo e apesar do susto de to-
dos nós, V. magestade não se conteve e arros-
tou os maiores perigos. Gommettendo a peito des
cuberto essas proezas, que nos enchiam de ad-
miração e de temor, el-reí bem sabia que po-
diam cubrir de luto seus filhos e o reino. . . Ê
o motivo porque appello para o coração de meu
pae, certo de que ficarei desculpado na presença
do soberano. »
-— « João — atalhou IX Pedro, corando e mor-
dendo os beiços— -sabes, quasdo queres, ser
mais velho do que a tua idade! Tomando,
depois um tom severo,, acrescentou, a O pa-
dre Luiz Gonçalves, seu mestra é quem ensinou
a V. alteza a deitar em rosto a seu pae essas
fraquezas ? »
— « « O padre Luiz Gonçalves ensinou-me que
a fortaleza é; uma das virtudes reaes. . . v. ma-
gestade sabe, que D. João II, que a historia
chama o príncipe perfeito, não duvidava ex-
por-se ao encontro de um touro, e ao punhal da
um traidor; e ninguém tmctou de fraqueza a
magnanimidade do seu coração. . . )>
^ — a Muito bem l os tempos são outros : —
Digitized by VjOOQIC
iSÂ A JÉOCIDAHB
disse ei^m adoçado feia etpiieiçfiro do pHcieifie.
-«-Demtit, iiSo ({ueroque a Vitfe e o samgiie lAo»
meus vassallofi paguem as \iffl» de esgtimâ é^
V. alt^a. »
*^c( Meu pae n^id ignwat ^ alguma ves
correu tangue. «« foi das miato veias ; « se me
esqueci de que soa príncipe^ tiranâo a espada
para um fa«all<K fui sempre Áltio de v. mages^
tade porque neulium ainda se queixou de mim. »
«^ « Mas T^ eltesa^ se o maUsse mi fosse morto,
o que fticia?-*-- interrompeu o infante aos pult^
uhos detraz da poltrona de seu pae»
— - n Se o matasse dava uma pensfiò k viuva.
Se fosse morto tifio fazia nada. Òt fieava v. ai^
teza; e é natural que o neino^ tendo a fortuna
de ser bem governado y nao sentisse a minha
falta. Pe^-lbe , nien irmio^ que se assuste me^
nos oom os meus perigos. Zele mais os seus e os
alheios. »
— « Eu não preciso de conselhos! » —
gritou o infente ameaçando oom o panlio fe-
chado.
— « Francisco t. « . exclamou eKrd sevsm. n
-^0 principe real n&o tem acima de si senfio
seu pae. É mais velho! . • n
— « Um anno ma» ou menos títo é n»-
da, respondeu o infante ^ tíndo-se* Aqui está
Digitized by VjOOQIC
BB D. JOÃO ¥. 1^9
s. inugettode, meu pae^. foi rei, sesdo mais
noyo tio que ãieu tio D. Afonso. . • »
A allusão grosseira moFtificKMi D. Pedro. O
rei t deixando cahir a cabeça com melancolia ,
Bãa di^se tiflda. O príncipe D. João, dominando
o íofontet dd toda a altura e firmeza da sua
dignidade , replicou Jhe «enenamente :
— « Não aconselharei ninguém a que repita
a expmeocia^ Os três estados levati taram re-
gente a s. magestade , porque o a:. D. Aífonso,
meu tio^ era lim rei. . . . qué não reinava. V.
alteza deve deixar-se de loucuras ; não lhe ficam
bem. Senão , eu o farei arrepender ! »'
— «O mano João tem a confiança de me
chamer louco? » — gritou o infante.
— '« Não lhe quiz chamar peior. Diga-me v.
alteza: deitou ao Tejo a espingarda com que
esta manhã arcabuzou nas vergas da nau um
marujo , um vassallo de el-rei , que lhe estava
dando os vivas? Se não me «ngano está a ex-
pirar. ... Estas caçadas hão de sahir-lhe caras ^
meu irmão. Não se atira aos bomens como aos
brutos , pcurque, um dia, algum pode defender-
se , e v. alteza dâ-nos desato grande. ...»
A vista de D. Pedro II fila e terrivd fulmi-
nou o infante e gelou-the a liegua. Depois s.
magesladò levaQtou*<se.cou impeto^ foi direito
Digitized by VjOOQIC
160 DB D. JOiO V*
a elle , e sacuâiu"^ pelo braço , de filmia que
foi cabir ao lado opposto da sala ; ao mesmo
tempo el-rei exclamava ;
— « Vae ! Hades ser a desbonm do meu
nome! Mas ea te porei aonde ã tua maldade
Dio sirva de horror e não ^seja o martyrio da
minha vida. . « . Não tomes a apparecerme . r . .
Sabe! »
— «O marujo está melhor !»—* murmurava
o infante recuando.
— « Sabe! » — replicou el-rei com um gesto
absoluto.
— a Deixe estar, mano João, que ea me \eBt-
brarei. ».
— « y . alteza peça a Deus que eu í0b es-^
queça ! » -*- respondeu o príncipe viramlo-lbe as
costas. D. Francisco sahiu mordendo os nós dos^
dedos com tregeitos de maniaco.
D. Pedro 11 ficou alguns instantes convulso e
abatido , com a cabeça entre as mãos e os co-
tovellos nos joelhos ; com a vista no chão , e osr
olhos arrazados de agua. Suspiros de aSlicção
gemiam-lhe no peito ; e a pallidez , entre fortes
arrepios nervosos, annunciou a crise moral, a so-
bre-excitação do espirito provocada por esta scena.
— « Filho és , e pai serás, . . . é verdade ! »
-~ murmurou elle em ímm voz— «( O throno
Digitized by VjOOQIC
BS D. JOXO V. 161
já md cuãtou caro neste mundo , e ftSo sei no
outro o que será! Tirei a mulher a seu ma-
rido. ...» — accrescentou , levantando-se cada
vez mais tremulo — « fiz do amor e do ciúme
degraus , e subi por elles. Levei á mão ã ca-
beça do rei e tírei-lhe a coroa. Mau irmão , le-
vei a deshonra e a infâmia ao leito de meu ir-
mão, e torneiro a fabula dos vassallos. Deus
puniu-me! O que amei não existe. O que dese-
java fugiu para sempre. A minha Isabel , a única
filha delia , aquelle anjo , retrato de sua mãi ,
consolação das mais vivas saudades, era muito
boa, não devia ficar comigo; não era deste
mundo , e Deus chamou-a. Bemdito sejaes , se-
nhof ! .... A primeira esposa , a alegria dos
meus dias, o premio do meu d^icto, penou as
suas dores, gemeu os meus remorsos, e deixoií-
me sem um herdeiro a esta coroa de espinhos
do meu crime. . . . Fui obrigado para ter suc-
eessor a abraçar sem paixão outra mulher , que
nunca teve marido , e em um purgatório de ze-
los e de maguas pedia ao ceu o descanço da
morte , porque já não podia com a sua cruz. . .
E era eu a cruz , e fui eu o algoz que enchi de
fel aquella vida tão curta nos dias , tão longa
nas atribulações ! . . . Ficaram-me estes filhos ,
filhos de ddr para sua mãe , e de esperança para
T, n. 11
Digitized by VjOOQIC
ÍQA a M0C3BÁPE
mim; eran o meu orgulbo; a Provideada fez
delles o açoite do meu castigo. Não bastará ainda
meu Deus? . . « » --^ proseguiu mais agitado e er-
guendo as mãos — a Este coração, que se atnda
sente alguma coisa é a morte da alma , não são
sufficientes as dores que o ferem « e as saudades
que o cortam ? A expiação quando estará com-
pleta ? . . • « A penitencia , as mortificações ^ e o
temor da Tossa justiça , não podem absolver o
peccador , que poe a sua confiança no ceu , e a
todas as horas pede ser despenado das trevas do
seu desterro?...»
Uma pausa , affo^da em lagrimas , succedeu
a esta interrogação sombria de uma consciência
cheia de terrores, de um peito ralado de ago-
nias. A pallidez crescia , o tremor augmeutava ,
e os olhos fundos, allumiando-se de brilho si-
nistro 9 refiectiam os delírios e o pavor , em que
o espirito se abysmava.
— «D, Affonso » — proseguiu em tom cavo
e mysteríoso — « rei sem corôa^ Deus vingou-te !
Morreste viuvo ^ e tua esposa viva, arrancada
dos teus braços , repousava sobre o seio de teu
irmão ! Viste-me com o teu mai^to real. nos hom-
bros; padeceste, chifraste por Causa do ipiía
annos inteiros. • . . e ap^ar.de tudo, o teu mar-
tyrio não foi nunca ne» metadie d» meu , até
Digitized by VjOOQIC
A HoaiiABir Í6S
tM minbas boras mais Míml.. quuMiaeHa existia
ainda! Ao menos tu, em ciida manba goeraBir
pia, farmaTas \m desejo e poáip» oonsolar-to.
cem alguQia esperaiiQa ; ma& os meus diaa todoí
sio noites , em qve teobo medo de olhar para
dentro da minha alraal Tn atè morrer espor*
raste seippre* . . • e Deus se ta nto restituiu tm^
teita, no eçu d<^«4e copoa melher que a que
eu ... . tirei : a dos que eberam por justiça , a>
quem a sua mão eiixu^ as lagrimas. Rovbdrte
o amor de nossa mãe , a temára de toa espo»,
o respeil^ dos vassaltos , e vejo^te s^pre , w^-^
pre y como rei , batendo^qie oom o seeptre noi
hmnhroy e onçe-te sempre diier-an.padepe que
tambeip eu padeci I Quando ella, a tua mu-r
Ibet y adoeseii, vieste IQnaiBda a minha Isabel ^
foi unir-fW a sua mSe , apparQces1|e ( ; . . . Slbo
haTorà soeego para a tua alma, nfe perdoarás^
nau rendo que do meu eoraçto tem eorvida
tab^ sangue, que jfà nip ba nelle mais para Ia<*
w a Aodaa dp paecado? . ... O que desqo,.
ou pesso querer de mpndo?' Â merte^ fe».
m^ts l . . . A vidaf . . . natfi-«ie ! . . . Jlem te.
Kmfol £ ella, a tua miittMr, a miabaespesa,
a outrft vitíie do me» crime, e chama^m^ da
sepultura ! . . . Como é surda a sua vos t Como
aquettsa albas sf m \úz f«uin| frio at4 èú e^ntro
Digitized by VjOOQIC
164 A MOaDÁDE
d^alma! Sorrí<»8e, acena-me que a siga. Era tua
primeiro, por isso a levaste. Está alli, aUt!
No mesmo logar sem|Hre em qae jiiráraos o
amor incestuoso, unidos pelos homens, separa-
dos por Deus! Senhor, este peso é muito forte
para o cora^^o de um homem I Senhw, este sello
de fogo arde muito, e a coroa não chega para lhe
esconder a nódoa. Porque me persegue até aqui
a tua Toz, elamando : — Caim aonde está Abel ? »
O suor corría-lhe em bagas pela testa ; as fa-
cas encovadas tinham a c^ térrea do cadáver ;
a quatro e quatro as lagrimas cahiam pelas fa-
ces. O frio do horror , aquelle gelado e doloroso
frio , que faz a mfio da morte sobre o coração^
tremia-lhe com todo o corpo. Os olhos espanta-
dos e incertos sumiam-se e n&o viam nada em
roda de si , porque estavam fitos no mundo in-
visivel, seguindo os fantasmas da consciência.
Uma tosse crua e áspera affogou-lhe as ultimas
palavras na bocca, e tingiu-lhe a côr esbranqui-
çada dos beiços de sangue vivo e spumante. Com
ambas as mãos sobre o peito, curvado ás dores
phisicas, como ha pouco se inclinava á dòr mo-
ral, o monarcha foi sentar-se na sua cadeira com
um gemido, e encostando a cabeça ao espaldar,
fechou os olhos.
O principe tinha presenciado, primeiro com as^
Digitized by VjOOQIC
Dfi D. JOÃO V. 16K
sombro , e depois com summo cuidado , este ac-
cesso que presagiava ataque mais fatal. Vendo
seu pae desfallecer lembrou-^se de chamar os mé-
dicos, mas receiou que tornando a si elle rqpe^
tisse as exclamações , que seria imprudente con-
fiar de estranhos. De joelhos, com as mãos de
el-rei entre as suas, cubria-as de beijos af-
fectuosos pedindo a Deus abbreviasse os m<Mnen-
tos de uma crise , que ameaçava encher de la-
cto a monarchia. Por fim D. Pedro abriu os
olhos e affirmou-se de vagar. D^ahi respirando
mais desafogado, disse revestindo-se de espi-
rito:
— « Entrou alguém aqui? )>
— « Ninguém, meu senhor. Estivemos sós. »
— a Ouviste muitas cousas desacertadas, que
teu pae disse? d
— <c Como el-rei fallava só , retirei-me para
não o perturbar. »
— ^ Fizeste bem. Não é bom que saibam des-
tes ataques... João, podes pôr a tua espada;
só te prohíbo que a tires sem minha ordem. De
hoje em diante procura merecer a amisade de
teu pae, e a confiança de el-rei... Ainda não
chegou o conselho de estado? »^
— «V. magestade padeceu tanto ? ! » — ac-
cudiu o príncipe.
Digitized by VjOOQIC
1Q6 A II0CI9AW
*-^ a SsttHi melhor > Deus Im de pmaiUir
4«te fique béni de todoi. »
O fiomeo de immaroha £i2Ía das «suas palavras
o €^ilega da triBte aeeaa^ quei acabava de .pasâir.
— r'« ^loios |)róseguiu í). Pedro, duas causas
ae pii^m «este, muiidí» c a dasobedieaGk aofs paas,
è o sacrílega aes í&è. Medi4i^ bem! Has de m
pae, e iMrev^atete aerto rei.^. Respeka-me jiara
fie te resp^tem; <d)eâeeeHpie, ^ queres que te
el)edeoam. ^
«— (( V. itiâigestade sabe — respondeu o piÍB-
eipe-^que «6 Deus pede mudar e eçMraçào 4o
homem. Sou o primeiro vassaílo da coroa, sea o
primogénito da famiJía real. Diga e^tí uma pa-
lavra^ deshetde-me ^em ella« e obedeço sem me
^«eixar... Poabo aos seus pós o fue luais iaveja
faz. Peçam-me todos os sacrificios..^ h
D. Pedro abra{«m o filh^ cem teruiira excla-
mando :
— « O ieu am^r aisigoi l(»ão> «ão será teu
pie? *> .
— « Peçata-«S6 tudo» meiíos.v. » — proscguiu
o priocipe com firmeza.
— « Mends? » — aoudiu et-rei suspenso.
— « Menos a hOnta ; essa é que eu não deu. »
— « Alguém peditt-a a v, alteaa? ^-—obser-
vou D. Pedro seccamente.
Digitized by VjOOQIC
ÍKB 0. JCdlO V. l«y
*-^ ií Ninguém^ TCfd agora. Tinha itdo engano
mea. »
Houne am momeiíto em qiia o fiiht) nos bra-
ços do pae desviara a visla e fugiti de fiem oUiog,
temendo desmaiar da primeira resol^ão. É que
aekára lierniira^ e esperada encontrar rigor.
— « £ ten pae era capaz de querer que ex«-
poeessésr a toa hoimi? Néo é «lia também sita?»
disse el-rei carinhosamente.
— r c JLQfoge de mim <stippdk>. Os aeos écse^
jos são jUÊSÍois seanfure: tnas v. magestâde sabe^
que^ ta tces dltts<, esta ê a primeira fe« em que
o achei nos meus braços como pae, ovrmkle^ine
conM> amífft. QauAo ãs ordees de e)-rei eram
taes que 'diante do amor de meu pae Mo me
qnero lenbrar deUas. »
— « Essas ordens eram. . . ? » — acudia O. Pe^
dro , soltando o íittio do abi^iço em ({ue ia aper-^
taw-
— « Impossiveis, para nSo 4i«er cruéis 1 » —
replioou'este com um oUiar cheio de decisão.
-*^ « ' Bem i »> ^-^iaeereseen tou Criamente o mo-
narcha » — « Dir-me-ha v. alteea aonde eatá o
impessífel ? »
— (c Julgar-me capaz de prometter, e ^ oão
cmiprjr. *»
— « E porque ? »
Digitized by VjOOQIC
}68 A MOCIDADB
"- « Porque sendo príncipe aon o primeiro fi-
dalgo portugaez ; e um cavalheiro não engana os
homens, e muito menos uma senhora. »
, — a EntSo* V. altesa confessa que deu pro-
messa de princípe a uma dama ? »
— c< Perdoe , v. magestade ! Prometti como
cavalheiro e basta. Etrei bem vê. »
« — « V. alteza não podia promeKer nada! Ti-
nha auctoridade minha ? »
•-— -« Tii^ mais ! O «mor para jurar, a honra
para. cumprir, e Deus por testemunha. »
-*- a Ah ! » -^gritou el-rei empàlUdecendo com
a irA — « Eptão reincide, ateima? n
«— « Sinto magoar a v. magestade; mas já
nto sou senhor da mão que el-rei me pede. A
honra de um príncipe é a sua palavra , e essa
não me pertence, estíi dada. x>
'-^«t Eu desligarei a v. alteza ! »
— « Só uma pessoa pôde desligar-me ; e não
é el-rei , nem eu. »
-^ « El-rei pôde tudo , príncipe D. João. »
— « Neste, caso el-rei p4de tanto como o ul-
timo vassallo. »
— « Veremos!... D. Gatharina de Athaid«,
cuja ambição é causa... »
— c( D. Gatharina? » — ^ exclamou o prineipe
Digitized by VjOOQIC
DV 0. JOÃO v. 169
— « liBo se admtfe v. altetô !-*- Estou infor-
mado. Sei até as vezes que fei a Santa Clara.
Em três dias, ou D. Catharina faz a sua profis-
são de religiosa, ou casa e sahe de Portugal por
alguns annos. »
— ff V. magestade foi illudido! »
— <x A honra de v. alteza também lhe per-
mitte enganar seu pae 7 »
-^ « Â verdade manda-me fallar , quando el-
rei fere injustamente' os innocentes. Mas desde
que V. magestade duvida da minha honra-, é
meu pai , é meu rei. . . o que posso é incli-
nar-me deplorando o seu engano. »
— « Então V. alteza nega ? »
— ff Desculpe v. magestade ! — disse D. João,
pondo os olhos com altivez nos olhos de seu pae,
e dando ao rosto um ar de nobre orgulho. --— Se-
ria indigno que duas vezes no mesmo dia o prín-
cipe real dissesse a verdade e não fosse acredi-
tado. Diante da persuasão de el-rei caUo->me,
porque não posso mais ! d
— ff Entre , Duque ! — gritou D. Pedro ,ao
duque de Cadaval, que apparecia á porta, e que
elle chamou satisfeito de cortar assim as expli-
cações violentas. O príncipe recuou alguns pas-
sos e ficou silencioso : — São horas do conselho?
— continuou o monarcha. — * Hoje pouco nós
Digitized by VjOOQIC
170 A MOODÀDK
^Mnòimiiflli. Sabe ]>. Nvao ? y^a-m» fineado
*-^ «O que díiet eu, «eabor 7 le^ndeu o ^»-
que, sofriod<Hie.»
— « Diga o que quízer , que nSo é c&fia de
dizer senfto a yerdade. Estou muito velho; e é
firecíso procurar ^ueeeèsor. Trictamo) de casar a
João« O conde de Villar-Maior estt ahí?»
-^^ n Acabo de o deixar na sala da tocha. »
^-^«Viaa carta para o ioiperador?»
-^« Sim , EBeu senhor. »
-*— < Ordeaei m secretario de estado qae Mm
mostrasse. r>
— <xE s. alteia está aatíafeito^ como todos
des^aniDs? — pe^gitatov ovelhofidai^, olhando
para e pcinei^, que «fto díxta nada. »
— «S. ritoia, duque -^respondeo h^ d--rèí
oarregaBde ^obre cada palarra e áitaudo «m seu
filho «s ikilhos oheioB de fHMler e de magestade —
51^ qbe os prineipes oio toem outra paiaciD
senão o bem do estado. Nestas coisas, a ca-
beça , e uio o caraçio, é <pie dectdeUíL. . . são
08 espkdioa da copoa 1 E como seria p^goso
desviar da regra, esteja oeifto de «pie d prin-
GÍpe neu filho ha de oaiifarisar^Ae omn a vim-
tade da «eu fae^ ancon as éntens ide dket.
(^ue anti» o oénselbo de aitadoi )»
Digitized by VjOOQIC
Ai ipiírta» (âcluiramHK s^bre ^. laitwo coose-
.Um^q « até A 4^sa do 4ocel «e dôspovoou, fi-
Mfiik n^felite «pejM» ò inlatiitâ D. SraacísGOi e os
ctmdes deS. Joftoo de Vilkr-Maiot^osquaes con-
urersaY^iiii baixo, mas aaimados ao vão. de uma
.Janelk.
< Na i^ala da tocba dava^i s^ horas nq reló-
gio do fatacio, 'qnèiodo eetrava o packo VeDtura ;
^Mm^ loaiiHitps depois, em unifoirme ríco,.cho-
.gou t> <afilaa J6rooy«K) tiuorr^ro» que não re-
paraodo no je^ta ibi dar o seu noaie' ao por-
teiro da canw^.dejclaraBdo segundo o estilo q«ie
a ^1i introductor à presença de el-rei iiavia de
«er Dímgo d^ lCè«doBça Corte-Reai. O porteiro,
ak|i|[amdo«9 ^^puIoBtaifacesem cinco roscas semi-
circulares^, sonrtu-se bemgaafijieiíte, e informpu-^b
dè ^pie e aecretario das mercês estava no paço ,
€)fif»raiião<|iije acabasse o céciselho de estado ; mas
x[ue flaturfâoieiite despachava em algum dos ga-
bipeti» resbfvndos , por isso não a{>parecia «as
salas. O mancebo fez^Ihe uma ^^ortezia, e foi «c^
costar^e modestameitte h parede aa outra ex-
U^enidade da vasta quadra , aonde já se achava
•p visitador da confanhia de Jesus.
Quando o capttSOiJerooymo ievaaiou a vi^ta
já t achou oa «Iboà do, jpadtfe y«diiiui» a exami-
m)-o. o ieMíia : l^iia tje$g^ kofAd mais Cftr
Digitized by VjOOQIC
172 A MOeiDÀM
Yada, e o sorriso um pouco vago , eraio,8iececle
quando a memoria, perdendo de rista uma ootta,
chama em seu auxilio todas as reoerdaçõev que
a podem suscitar. Esta phisionomia , cujo cuidio
era particular , cuja grandesa e sagacidade eram
indeléveis, também despertou mil lembranças ao
noivo de Theresa , mas não sabia dizer de re-
pente aonde a vira , posto estivesse certo de qoe
pelo menos uma veas na sua vida, e em occasião
solemne , já lhe tinha apparecido este homem ,
esta figura plácida e impenetrável : nio lhe oc-
corria , porém, nem como, nem aonde.
Por isso, sentiu palpitar o coraçSo com força,
e baixou a vista diante do padre Ventura, cu-
jos olhos, descendo do rosto ao coração, parecia
que iam queimando por onde passavam.
— « Não se lhe figura qae nos encontrámos
já? Longe daqui, em outros legares desertos;
talvez em dias de parigo e de sacrificio? » —
perguntou o jesuita, com certa melancholia, e
uma longa interrogação na vista.
— « Julgo que V. paternidade se não engana.
Estou-o conhecendo, mas não sei dizer de donde.
Creio que alguma vez falíamos; estou certo: a
sua voz não me é estranha... »
— a Ora veja ! Eu já achei e passaram por
tnim roais annos. Talvez que o ul^ap dia , ea
Digitized by VjOOQIC
BB t^ JOlO V. 173
qtte nos enoonte&moa, fosse o dia em que no&
despedíssemos para sempre. Acredite em mila-
gres ! ... Sem ellés não estava aqui nenhum de
nós; e não fuja de um resuscitado, porque o
vem aòhar cora muitos cabellos brancos e bas*
tantes trabalhos de mais... Ainda não se re-^
corda?)»
•~ ff Eu já vi a v. paternidade ! » — exclamou
o mancebo com vehemencia^ — « Jã estivemos
ambos... »
— a Com a morte dknte dos olhos, e Jesus
na boca , diga ! »
t — « É por signal?... »
— a Dei-^lhe eu um annel, e disse4he três
palavras. »
— « É verdade ! Foi... »
— «Na America. Ora, o annel conserva-o
ainda, d^aqui vejo. As três palavras e o seu voto
é que não sei... Esqueceram-lhe ? Era natural. »
— c( Espere! Eram? »
— « Uuitopara quem sabe o que ellas val^n...
Então V ainda não se lembra do meu nome? »
— « Ah! O dia de S. Bartholomeu! V. pa-
ternidade é... »
— d Não diga mais... Esse nome e o homan
qne o tinha morreram na America , em Roma ,
aonde quer que ficou o missionário, que nós
Digitized by VjOOQIC
174 A HOCIDAM
canheMiioi ambos... Hoje >vè j^ «psias « p»»
dre Mio Vmhmí , que teio beijar a idIq db ^
rei , e dá iDJSnitas graças a Dei» , «Beontrando
vivo Q felias^^vejo qtie é feliE ! «««m um compa^
nheiro dos seus trabathoa... Esqueça o priaiem
Dome , e apesar d<^ segundo acredite que o 1m^
mem d9o mudou , e é o mesmo sempre. »
— hW. pateriíiàaiíê aalniíl Vu^ atiidcii aa bra-
zéiro, ouvi os descatitea barbatoa doa ailva-
gens... y> ' . '
— » E toma i Vei^aiie seta inaif leite do^e
algumas cicatrizes , prova da qué XamUem
ha valor em pregar a ^ entfe 0| idolatras? Não
se adimre ! &ttvemof atnboi em perigia, eu pri-
meiro é verdade ; mas ponha os olhos era ai ^ 'ar-
di ga-me: quem o salvou f »'
— « Foi Deus que trouxe de repente... i»
— «Os flefs que me desatarain da arvorai « è:
me livraram dos tractos? Entfio, bm yà;. niaá
deixemos essa historia. Aqui me tem, sem meia
cuidados do que saber ae posso ajbrafar «m ir-
mKo ) ou se estou feHamla a um estrodio.,. Nãài
diz nada ? )>
— « Digo que Deus é grande, e infinííe a Mum
poder. »
— «E que daremos triibalharp^ra maior gte**
rio $uã, não dix? » . .
Digitized by VjOOQIC
DE ». Joio V, 175
— nAi íkojorem Dei... »
— « Gloriam! É a àism. da compaiilua. At-
tenda-Die, filho. Esteve depois com os nossos, re^
petiu o Yoto que lhe tomei na véspera do mar-
t}TÍo?... Falle sem receio — aqui n5o ha pe-
rigo, Aquelle é terceiro, nào ouve » — e
olhando para o porteiro da canna traçou com o
dedo indicador um signal sd;)re o peito ^ a que
este correspondeu incUnando-se quasi até ao chSio.
— Estamos sòs , bem observa I » — proseguiu o
padre. — «Repetiu o seu voto? Vejo que simi
Também serviu a companhia em espirito e von«*
tade? Espero que servisse! E se eu lhe pergun-
tasse, irmão, padeceria pe\a causa de Deus e.da
egreja?... » ^ ;
— « Respondia que eUa é paciente poirque é
eterna. »
— « Muito bem. Patiens quia i»ternu / É o
symbolo. Dé-me um abraço. Raras vezes j^q en-
gano. Quando o vi deliberado diante da morte
qne ambos esperávamos, percebi qciB se . o
o coração da creança já não yacillava, o que ia-
ria o homem depois de feito? Irmão Jeropymo,,
a companhia precisa de todos os seus filhos^ Ha
de chamal-o ; e eu respondo que vém.
-«- ff Jurei obedieoçia, padrç Ventura. »
— «Mas boje cusfaelbe? Um bço carnal
Digitized by VjOOQIC
176 A< MÒCIBABE
prende-o?Diga, confesse... N8o se envergonhe...
É moço e n5o fet voto de castidade. Se ama é
porque é amado. Filho, a companhia não eúge
impossíveis. Somente acautele-se ; ouça o meu
conselho. O seu coraçSo é grande e forte... cui-
dado! São os que mais depressa cahem. Não
deixe que a imagem de uma mulher o leve todo
atraz de si... Olhe que não ha morte peior. » . .
— í( Meu padre, a esposa que escolhi...,aKrr.-
— i< É virtuosa e bella, ia dízer-meí Não
importo, ame-a, mas depois de Deus. Ora pois !
Alegremo-nos em Jesu Christo. Conto com «
sua firmeza. Aonde mora? »
— <c Na rua das Arcas, em casa do meu tu^
tor. » ^
— « Lourenço Telles , commendador de S.
Miguel das Minas? »
— « Quem disse a v. paternidade?... v
— < Sempre me dizem tudo. »
— a Mas isto?... »
— « E a sua noiva é filha de um capitão de
navios, negociante rico, cuja irmã esteve de se-
cular em Santa Clara ? d
— « Estou pasmado!... »
— a Admira-se ? . . Diga-me : no tempo , em
que era marítimo, se lhe dessem um navio atava
o leme e deixava-se correr em. anore secca ?
Digitized by VjOOQIC
n p. JOIo V. 177
Nfio! Deixara-se nayegar sem derrota em risco
de perder a emÍ>arcaçião e affogar as tripalaçdes ?
Também nlo. Ora sapponba que eu soa o pi-
loto e que faço diligencia por salvar algum bai-
xel do naufrágio. » . E olhe que o temporal é
maior do que se cuida e vem tão perto que o
estou sentindo. Affirmo-lhe que se perdem mui-
tos que julgam salvar-sé! Mas, vamos ao què
importa. Quero que yã a S. Roque < ahfianhã —
é melhor depois ; ás nove horas em ponto. Posso
esperal-o?»
— *- a Irei tomar a bençfto de v. paterni-
dade. »
•*— «E fallaremos do noaso tempo. Creia que
posso e quero ajudal-o. Depois qne nos perdemos
de vista o sr. Jeronymo está capitão , segundo
vejo ; melhorou ; eu, com a minha roupeta sem-
pre, se não .valho mais do que então, menos
também não. Os annos dão auctoridade , final-
mente , não peiorei. Aqui está o que é. Não se
esqueça de que o espero em S. Roque ás nove
horas. Acabou o conselho de estado. »
EíFectivamente tinha acabado; e el-rei fallando
alto da porta da casa do estrado , para a sala do
docel , tão alto que se ouviu tudo na casa da to-
cha , disse para fora ;
— « Conde de Villar Maior , prepare-se !
T. u 12
Digitized by CjOOQIC
17ft A MOCIDADE
Em quinze dias parte para Vienna meu. em-
baixador , a pedir a mão da arcfaidoquesa D.
Harianna de Áustria para s. alteza o príncipe
D. João. »
— « S. alteza casa ? » — perguntou o capit&o
.ao padre.
"^ (X El-rei diz que $im , ò príncipe diz que
mo. . .«—replicou este sorrindo-se.
-— «£ V, paternidade ? D
•—«Eu?., digo só: veremos! Separe-se de
mim. Essa gente, que sahe , não é bom que nos
yeja fallando. Neste mundo, filho^ a habilidade,
a grande habilidade , consiste em mostrar por
féca o contrario do que vae por dentro. É o
que el-rei agoca fez. »
Digitized by VjOOQIC
CAPITULO 3US.
SUA ÁLTBZA O INFANTE D. FRANCISCO !
' D. Pedro, depois dè entrar tia salla do doceK
e de dizer em alta vez ao conde de Villar Maior
Fernão Telles da Silva, o que onvimo» no eapi-
talo antecedente , voltou á casa do « Estrado >»
aonde o ficarani esperando o príncipe real, o du-
que de Cadaval , D. Nuno Alvares Pereira , e
Diogo de Mendonça , o qual , simples secretario
das mercês nSo tinha entrada no conselho de
estado ; apresentando-se porém , apenas viu qne
acabardr 8. magestade foi direito á sua pol-
trma , deu algumas ordens ao camarista de se^
mana, e lançando a s. altecá real um olhar
pcjfscratador, énterroct-^e com certa complacên-
cia na sua cadeira , e dando a m9o a beijar ao
fHfao df sse cem anctoridade :
Digitized by VjOOQIC
18(k A MOaDABI
-V- a Podes recolher-te ; mas fica certo » Joio.
O dito, dito! »
— tt Deus melhore a prçciosa saúde de v. ma-
gestade ! » — respondeu s. alteza com um sor-
riso , que era mais do que uma repulsa , pcnque
chegaya a ser um desafio.
Apenas saiu o principe, el-rei virando-se para
o duque de Cadaval , com agrado , exclamou :
^*-«( Duque; os rapazes de agora são peiores
que 08 do nosso tempo \ Tem sido uma campa-
nha para obrigar Jofio a ter juiso. Veja se o
duque D. Jaime nos ajuda. Meu filho ouyo-o. »
— <K Fait-lhe essa honra , meu senhor... mas
V. magestade permítte? S. alteza é muito pare-
cido a sua augusta avó, a sr.'^ D. Luiza de Gus-
mão, se ouve a todos, não se guia senão por si. »
— a Bem sei. João é teimoso , e isso é o
meu desgosto. Aonde está o infante? »
— « Haverá minutos vi a s. alteza conver-
sando na salla do docel com o padre confessor
e o conde de S. João. »
— « Ah l Diga-me, duque : ha algqm segredo
para achar dinheiro? Diogo de Mendonça, que
nos corre com o armamento da guerra, sustenta
que navios e soldados temos nós, agora com que
os armar!... »
— É a difficuldade ? » -— acudiu o duque sor-
Digitized by VjOOQIC
ns f». JOÃO t. 18 i
rindo-se. « No tempo d'el-rei D. Joào IV, 4^
saudosa memoria, não se esteve melhor, e che-
gou a rainha D. Luiza, minha senhora, a empe-
nhar todas as jóias... »
— « Mas as decimas, duque ! Deus me per-
doe , mas suspeito que as decimas são comidas
no caminho. Vejo os contadores muito gordos ,
c tudo quanto é meu tão magro que faz dó. >»
Diogo de Mendonça riu-se com a metade do
rosto que olhava para o duque, e fez uma con-
torsão lacrimosa com a outra, que estava exposta
ao régio exame. O duque tomava liberdades de
velho, e tinha um genip forte. Por isso apanhou
a luva no ar e respondeu logo.
— « Quer V. magestade que eu explique, por-
que a decima rende pouco e o reino emmagrece
quando os cobradores engordam ? »
— « Diga ! »
— « Saberá el-rei que isto não é meu ; é de
um homem que está no real desagrado, mas que
não deixa de ser de conselho , muito sábio , e
bom portuguez ? »
— « Quem ? »
— « Luiz de Yasconcellos e Sousa , conde de
€astelIo Melhor , e secretario da puridade que
foi do sr. D. Affonso.
— « Ah!... » — clamou el-rei, dando um
Digitized by VjOOQIC
18fS A HOGIDADfi
pulo 19a' cadeira cema se o mordesse uma yíbora,
e conglobando na sua interjeição o ódio e as la-
ctas de muitos annos.
— « Posso continuar? » — perguntou o du-
que , aífrontando com dignidade a repentina al-
teração, que apparecia no semblante de Pedro II.
-— <í Continue ! »
— a Luiz de Vasconcellos, que nos governou
com sabedoria , e que eu me não consolarei de
ter ajudado a derribar — perdoe v. magestade,
é o que sinto! — jâ estaysi no conselho de es-
tado quando s. magestade a rainha mãe se quei-
xou um dia do mesmo que el-rei acabava de di-
zer. O conde tem um modo de sorrir que é só
delle ; do seu modo de fallar e conversar só ob-
servarei que até os próprios inimigos gostam. »
— «O duque por exemplo ? » -— interrompeu
D. Pedro com ironia.
— « È verdade 1 Não torna cá tão cedo mi-
nistro como elle : os seus successores é que o fi-
zeram bom... Nem vejo capaz de o su|^rir se-
não este, e havia de ser menos paceiro e mais
aberto. »
Diogo de Mendonça, para quem era o sobscri-
pto, fez uma cortezia muito séria ao duque e el-
rei desatou a rir.
— « Vamos ás decimas, duque ! — es^clamou
Digitized by VjOOQIC
DS D. JOÀO V. 183
o monarcha. — « Olhe, estamos a muitas legoas
delias... »
— - « Já vou, senhor 1 Desculpe v. magestade ;
s9o achaques da idade. Os velhos tem estas im-
pertinências, e no capitulo das historias do seu
tempo ainda mais... €k>fflo disse, a rainha mãe
queixoo-se e Luiz de Vasconcellos sorriu-se. Ora
s. magestade, hespanhola e muito viva, como el-
rei sabe. Mo gostou, e levou o caso a mal O
Castello Melhor era ainda rapaz , e ninguém lhe
fazia a experiência què ao depois mostrou : era
natural q\ie a rainha se enganasse com ék. Para
o confundir s. magestade exclamou :
— • « Ri-se, conde ? Melhor seria que nos dis-
sesse o modo de acudirmos a tamanho erro. b
— c< Se V. magestade ordena ! » — respondeu
elle muito sereno. ^
— «Diga! »
— « V. magestade permitte-me um apologo ? »
— «O que quizer ! » .
— « L4iiz de Vasconcellos tirou de cima do bo-
fete o areeiro e vasou a areia nas mãos. — <x Aqui
está — disse elle — isto é o que o reino paga I »
Fez correr depois a areia de nâo para mão :
quando chegou ás da rainha vinha na terça par*
te. »— E aqai este o que v. magestade íecebe ! »
-~ concluiu por fim.
Digitized by VjOOQIC
t84 ^ jwroaDADfi
: «Expliqne-sel» — obsenou a sr/ D. Luits
meia suspensa.
— «É/acil, minha senhora! A areia foi-se
pegando ás mãos; e como passou por muitas/
nào se admire v. magestade se a maior parte fi-
cou pelo caminho. O mesmo succede ás deci-
mas ; a praia e o oiro ainda se pegam mais , e
por isso resta apenas o que v. magestade vè ! São
tantos a contar e tantos a arrecadar queaiodaé
milagre o dinheiro que nos deixam ! »
 rainha Bcou pensativa ; e desde esse dia at-
tendeu mais eCastello Melhor, apesar de pouco
engraçar com elle« Eu digo hoje a el-rei o mes-
mo; e acrescento de minha casa: — applíque-
mos a fabula, senhor! e ver-«e-ha que ella é
boa, e a moralidade certa. »
— «A resposta foi engenhosa. Mas nao me
disseram que o conde estava cego?» — observou
el-rei.
— «Ainda nào. Vê bastante para servir el-
rei até no conselho de estado, se o chamarem... »
— « Bem I . . Appareça mais vezes, duque* Faz
sempre muito boa companhia. Então?. . »
— (c Bejo a mao a v. magestade e tomo as
suas ordens. »
— «O duque tem graça e discrição! — re-
flectiu el-rei assim que o velho fidalgote auseo—
Digitized by VjOOQIC
DB D. JOÃO V. i8S
Um^; demais gosto da sua Traiiqueza. . . Diogo
de Mendonça , tu que toste poeta , e desconfio
qae ainda o sejas ás escondidas , a que o com-
paravas?»
— <xÁ um mealheiro antigo aberto no fim
de muitos séculos. »
— «A rasao ? »
-— « Porque tem moedas raras, oiro fino, mas
infelizmente com ellas ninguém pôde acertar as
contas. . . Não parece o mesmo a v. magestade ? »
— « Achas então , que n56 corria ? i>
— «Os cunhos são antigos de mais, senhor ! n
— «E apesar disso tem juiso, e é de bom
conselho. . . Que despropositadas gargalhadas são
aquellas? »
— « É s. alteza sereníssima com o padre con^
fessor e o conde de S; Jbão» — respondeu o se-
cretario das mercês , que fora á porta e voltava
encolhendo os hombros.
—í-w Porque ri tSo alto s. alteza?»
— -«Ignoro, mas é íacil saber-se. O sr. in-
fante tem a falia tão forte, que prestando atten-
ção, V. magestade ouve. »
— . « Os cabreiros — dizia o infante — estavam
no chão á roda; a fogueira a arder: e a malga
cheia ,de assorda no meio. Rabeando com fome ,
cheguei-me, e os villOes julgam que se levanta-
Digitized by VjOOQIC
186 A MOGIDADB
ram ? Pedí-lhes agasalho e por moitíD &vor duH
aeram: — asseote-ae e coma do que houTor. —
Mas não ba culher? — ccHrtarain logo um eaiito
de broa, vasou^se por dentro á ponta da nava-
lha, e deram*m*o, espetado em um caniço, ber-
rando : — não se esqueça de a roer depois 1 -^
Biram-se da^ graça ; e eu de rastos pelo chão fui
obrigado a tirar da gamella atraz do maioral,
nem mais nem menos do que se fos^e um men-
digo , ou um guardador de porcos. »
— «Coitada da pobre gente — acudio o con-
fessor — se elies soubessem que era v. alteza \ ^, .
Assim mesmo deram o que tinham. . . »
— «Esperei Mas olhe que os ensinei. Aoa^
bada a ceia appareceu o meu veador e os crea-
dos do monte ; viram-me, e nomearam-me. En-
tão é que, sabendo que era o infante, os cabrei-
ros se pozeram de joelhos e mãos postas. . . a
boas horas ! »
— c( E V. alteza , mandou-lhes signaes da sua
grandeza?» — interrompeu o coude ite S. João.
— « Oh ! pois não ! virei^me para elles muito
risonho , e disse-lhes : meus amigos Soi o ajuste
comer cada nm a sua culher. Eu vou roer a mi-
nha , hão de roer . as suas: . . Ora as culheres
delles, eram. . « não advinham!|. . )i—- gritoa o
inlante rindo como um perdido.
Digitized by VjOOQIC
MS D. wio y. 187
-^^Dejfio ? » — dísseramo jesuita e o coDde,
— «De chi&el»-^ concluiu s, alteaO' com
estrondosas risadas.
— « E elles ? » — perguntaram os dois.
— « Roeram-nas 1 E se o vcador nào pedisse,
ainda em cima mandavdH)s para a cadéa. »
O confessor e . o conde olharam um {)ara o
outro. Esta graça do infante esfriou muito o zelo
de ambos pelo seu serviço.
— «Ah, Diogo de Mendonça — dizia el-rei,
ao mesmo tempo , corando muito — haverá cas-
tigo igual ao que Deus me deu com este filho?
Informa-te amanhã, e manda recompensar. essa
pobre gente < ., ^
— «Perdoe v. 9ltezal — disse a confessor,
apenas o riso do infante Ihe.permittiu fallar— <-
£l-f ei D. João IV , seu avô, uma vez andando
â caça perdeuHse também e foi dar a um raucho,
que repartiu com qlle da sua pobreza. Somente
Bo fim , é que se deu a conhecer pelas provas
da real munificência ; e rogam-se mil bens ainda
boje a s. ms^gestade pela esmola qúe deixou. Pa^
receme que este exemplo. . . »
— « Padre confessor , sabe que ine disseram
hontepi um^ cousa a seu respeito ? m -r- interrom*
peu o. iufante dando piparotes nas.or^has, e
pondo-as côr de cereja.
Digitized by VjOOQIC
188 A MOCIDADI
— «O que é meu senhor ? » — perguntoir in-
nocentemente o religioso.
— K Que V. reverendíssima era de Braga , 4
devia andar de braga «o pé. »
— « Sr. infante ! » — clamou o padre.
— «Ainda mais, espere' — proseguiu s. al-
teza, piscando os olhos ao conde de S. Joào. —
Disseram-me, que duas raparigas como duas es-
trellas. . . »
— « Sao sobrinhas ! » — gritou s. reveren-
dissima.
— «Deus o sabei» — respondeu o serenís-
simo algoz, fazendo tregeitos acompanhados de ri-
sadas , que valiam por um libello famoso.
— «O que a v. alteza vale!.. » — disse o
jesuita convulso e côr de betarraba.
— « Não se arrenegue,padre mestre. Sei muita
coisa ainda ! . . E por signal as dotou em vinte
mil cruzados cada uma , do dinheiro que os in-
glezes lhe deram para enganar meu pae. )»
O confessor passou de repente de rubro a côr
de cré, e foi-lhe preciso segurar-se á janella para
não cahir redondamente. Àfflicto e vexado, o
tonde de S. João amparava o religioso, que sen-
tia chiar os miolos na cabeça como elle depois
disse. Uma apoplexia pairava sobre a rotunda
personagem : o conde , indignado, entendeu qu^
Digitized by VjOOQIC
por honra raa deiia intçrpor-sè e acabar com
esta seena.
— « Repare, y. alteza ! s. reverendimina é con-
fessor de el-ret e nSo é de suppor que s. mages-
tade leyé a bem graças tão pesadas. . . »
O infante disparou na cara do fidalgo a gar-
galhada mais insolente ; e recorrendo ao ordiná-
rio estrebilbo principioa a beliscar as costas da
níão, dizendo alto; — «Joanico, joanico qaem
te deu tataianho bico?»
Em um momento fez-se de mil cores o conde.
Violento e cholerico mordeu os beiços cóm tanta
raiva , que espirrou o sangue deiles. Ao. mesmo
tempo, medindo o príncipe de alto a baixo»
• dízta-Jhe em yoz presa de furor:
— «Agradeça v. alteza a Deus a minha pa^
ciência 1 Se não fosse quem é e eu. respeitasse
menos él*rei. . . n
*— « H atayanne oJoU das ioiiaf /» — gritou
o sr. D. Francisco, fazendo tourinha do yelhoi
militar , e contrafazendo-rlhe os gestos em rídi--
cuias momices. -
A allusão resumia' para o conde todas as in--
jurías. Na campanha de 1704, sendo geueral.
aócusaram-no da não scAer aproveitar a occasíão»
perdendo-se pòr sua culpa Alcântara e Badajoz, '
que wm podiam cahir na mB6. Em um pasquim;
Digitized by VjOOQIC
190 A MOCIDAM
affixado na lua b«rraca, escrevefa mn éifinuadBr
que a causa da inac^o foram as botas de scíte
léguas do illustre general*
Effectivamente sua senhoria era achacado da
gota e as enormes botas pareciam doas torres.
O primeiro movimento, tendo-se mattraotado,
foi deitaiv-se a perder , lythograpbando a cabeça
do insolente no tae&o das botas alludídas ; o se-
gundo, mais prudente, reduiio^^ a hitrincfaei-
rar-se na dignidade do homem catamniado:
— «V. alteia decora bem os pasquins dos
meus inimigos 1— disse com amargnra.*-^Ye*
remos se é do agrado de el-rei que os creados
da sua casa estejmi expostos a ouvir coisas, qae
fora do paço e em outra bècca teriam exemfátf
castigo. Conte r. alteca que hei de informar a s.
magestade. »•
— «Olhe, conde, e nto se esqueça: diga-lht
mais que jft Mnipou a cara da bofetada do almi-
rante de CasteNa^ Parece que ainda a Iam in-^
chada.»
O fidalgo soltou um rugido, e lirou meia es-
pada. Esta segmda affironta era peior; e alliidía
àt voz de traidor que o almirante lhe dera em
Entremos, e à oerrecçlo instantânea afpptíoad»
peio conde fr face do castelhaaio, idonde rearitm
a «Bte cahir inMttediatamtate oom ooma apofiltisia^
Digitized by CjOOQI^
BB B. JOÃO V. 191
de que expurou hents depois. O infante tranatoF*
nav« ; mas assim mesmo o punkal entrou até ás .
guardas.
— «Não me tente v. alteza 1» — gritou elle,
•^->« Conde de S. Jofto — disse eWei, appa-
recendo de;repente eom semblante severo -^con<*
dusa s. alteza sereníssima, debaixo de pri^o^ á
Corte ReaK O conde responde*me por elle até
segunda ordem. Infante D. Francisco, peça per-^
dAo ao padre confessor e ao conde de S. João do
seu atrevimento. . . »
-r- ^Nao quero pedir perdão* . . » — gritou o
iiifiiiite em. altos gritos.
*-^« Hades pedir, que mando eu, e agora de
joelhos. . • «— »- exclamou el-rei» pondo^lhe as mfios
nos hondbros com tanta íbrca ^ que o . fez cahir
de bruços. — Falia, ou pelo sangue de Jesus
Clttistoesqueçò-me de quem sou l O conde acom-
panba^e. Toma sentido I Se te escapar a menor ,
palavra ou a menor acçSo de offensa , hoje mes-
mo vaes dormir á Torre. Sou eu que t^o prometto.
Sahel..»
El*rei, muito pallído, recoiheu-se depois; e
o infante, rasgando o lenço entre os dentes, par-*
tfttt a correr adiante do conde de S. JoSo, que a
euato b ponde seguir de longe,,
D. Pedro firou-^ cem «un grande suspiro para
Digitized by VjOOQIC
192 A MOaDADI
o seu confessor e fNira o lecmUírío ân mmés^
«xelamando com a elocfueocia da tristeta ,- mais
nos olbos e no rosto do que nas palavras :
. —«Estes fiihos!. .»
Os dois sinceramente commoyidos tnclinaram-
96 com respeito diante da dor do pai, e da coih
fàsào do rei.
D. Pedro calou-se ; o seu coraçHo jft nfio po-
dia com as anciãs. Também os conselheiros nSo
diziam nada ; porque, um silencio assjra não ousa
ninguém rompel-o senio para reaniiftar a espe^
rança, e alli não era possivel introduzil-a. Passa-
dos alguns minutos, D. Pedro leTantou lenlfr-
mente as pálpebras, que tinha baixas, para es-
conder taWez as lagrimas, e pondo os olhos no
crucifixo, exclamou com as mãos erguidas e
grande paixão no gesto :
— aÂcceitai esta coroa de espinhos, senhor;
e possa ella resgatar-me perante a vossa justiça ! »
«-^ « Âmen ! » -^ respondeu o padre confessa.
. S. reverendíssima ia espairecendo á «ae£da
que a real consciência escurecia. Medico da alma^
sabia que esta precisava delle para adormecer ,
ccmio as vigílias do ópio para socegarem. O seo
predominio nunca estava tão seguro^ como nas
horas de deliquio, em que o espírito do príncipe^
quebrantado e timorato, vJnfaa ahraçarnse ft eruz
Digitized by VjOOQIC
BS B. wlo V. 193
4Íõ SftW&(for, pediâdo^lbe paz e esquecimento.
Nestas oecasiões, o padre Sebastião, abrindo com
tê promessas divinas as portas do céu, tinha a
certeza de obter da (raquesa do penitente quan>
tas concessões desejasse extorqair-lhe.
D. Pedro, que o tractava uma hora antes
quasí com desagrado, olhava agora para elle com
profunda an#iedade. Tinha-se tornado um autó-
mato , e d»edecia machinalmente. Este poder vi-
sível do padre explicava a sua influencia. Diogo
de Mendonça, religioso mas hão fanático, de-
voto sim, mas não supersticioso , persignava-se
mentalmente, e em silencio ia responsando a di-
gnidade da corda e os interesses do estado , offe-
recidos em holocausto pelos remorsos do príncipe
ao jesuita, cuja roupeta negra era neste momento
um panno fúnebre lançado sobre o throno viuvo
de rei, e sobre a monarchia privada de cabeça !
Quem visse a scena que descrevemos, nSo po-
deria negar que D. Pedro II era como se não
existisse, e que durante o interregno, a socie-
dade de Santo Ignacio , pegando na mão passiva
do rei , confirmava com ella o seu poder ; por-
que o rei já não tinha de homem senão os ter-
rores, e a companhia unia o arrojo â intelligen-
cia subindo os últimos degraus do throno , e en-
costando-^ com orgulho ao sceptro da monarchia !
T. n. 13
Digitized by VjOOQIC
194 A «OaPADB
D. Pedrot eom tok fraca, e olhar itoAtám^
YoItoiMe para o canfessor , e p^nguotoa :
— « P. SebastiSo, diaserannse por miiiha ia-
tençSo as trinta missas do costume? »
— c< Sim , oieu sr« l »
<-— « Deohse esmola aoa treze pobres que eu
disse? x>
— « Também se deu* i»
— ^ « A confraria de Santa Engraeia já reo^*
beu o frontal novo , que mandei ? »
— *« Hontem, meu sr.! £ mais o aaerario de
prata para S. Julião. »
— <x Bemdito e louvado seja o Santisaimo St-
eramento do altar!*.. » -^exclamou el^r^, peií-
do-«e de pé.
— « E a immaculada Conceito da Vii^gem
Maria , Senhora Nossa ! n •«- aocrescentou o je-
suíta , cruzando os braços devotamente,
— « Está certo ; eu rezaria as minhas Hotas^
falt^ a alguma devoçio?»
— «y. magestade é bom catholico; cumpriu
todos os seus deveres. »
— «Mas estes desgostos não sÍo naturaes. . .
Que dia é hoje?»
— «Sexta, feira ^ dia da morte e pâixio de
Jesus Christo , Senhor Nosso. »
— «Se^ta feira ! . . — gritou D. PedrOt fa-
Digitized by VjOOQIC
BS D. JOiO T. \Q&
teoikHlc braqcQ e todo tremulo -^ Sexta feira, e
V. revi^repdissíma oao me avisa ? l fstou perdi--
do ! . « AquelUs perdizes , aquelas perdizes ! . . .
O qve suooedeu foi castigo. Comi carne á sexta
feira f padre SebaitiSo! não cumpri q jejum, e
dormi descapcado pa mioba pama; esta gente
não me ài% U9da de propósito. Se Nosso Senhor
me K^bama dp repente morria em peccado mor-
tal. . . Que sacríiegip } Perdi?; á se^pta feira \,.n
— <t Observo a v. magestad^ -^ at^lboigi o je^
suita, interiormeotís cbeio de jubilo^ ma3 m ex-
teiior figurandoH^ perple^p — que é çaao grave,
f-^ 0 JSssf mas custa*-me pelo meuQs meio se-
cuk) íg pwgfitorio!^ clamou D. PedWi pa^
aeíaudo agitado. -^ ;^ por wa culjpia , padre Se-
basti%9 , por culpa sua , Deus o sabe 1 »
— « É grave — tornou o confessor serena^-
mfinb^*->^mA8 temos remédio. »
^^«N9o importa 9 comi perdiz! £ agor« me
r^^l^do : njip me pu?eram m Jfm^ um^ e^ama
cte peí^f S$o diabrur^s dos medico^ , dos bere-
Im do» mediíji^. , . Quem mfmd^ fiar^me Telles
e tí^Q perguptur uada? Pequej, fsqm 1 devia le-
vaobir^fim logo. Autes coippie^ p9o secco. Tiuba
a mmbft çopwi«iiPÍa tranq^iUa. »
-^«Nlio a^ag^re V, m^gestadet O coraçio
Digitized by VjOOQIC
196 A MOCIDADE
eslÀ puro, se peccou fói ignorância. . . Entre-
tanto, para diíer a verdade o caso parece^me in-
trincado. . . TaWez sessenta missas e uma boa
esmola ás missSes da propagaçSo da fé. . . Em-
fim^ aqui está o sr. Diogo de Mendonça, excel-
lente canonista, e elle explicará a y. magestede. . j»
— « Pobre de mim l Eu que n9o valho nada ! . .
Aonde falia v. reverendíssima citar Direito quem
é tão esquecido, modéstia á parte . .. Ha de per-
doar , mas eu nfto fallo. »
El-rei olhou para o secretario das mercês,
como o leproso do Evangelho para o medico di-
vino. O manhoso cortezdo , apesar do seu tacto
e conhecimento dos homens, apesar de saber de
côr o caracter e as fraquezas do monarcha , es-
tava absorto com a scena, e não fazia senão di-
zer comsígo: — triste rer, a que estado te re-
duziram !
Quando o jesuíta citou a sua auctoridade em
Cânones, apezar de costumado a cohibir-se , as-
sim mesmo custou-lhe muito a conter-se, para
dão denunciar na physionomia o seu ardente de-
sejo de pegar no padre ^'pela roupeta , ir a uma
jânella, e baldeal-o sem confissão nem sacra-
mentos. Comtudo, feita a profissão de humil-
dade académica , e ferida a lancetada nos theo-
lógicos talentos do confessor, o ministro , lendo
Digitized by VjOOQIC
DB D. JOÃO V. 197
no semUante de el*rei uma ordem formal re-
síg&ou««e , e subiu ao palco. Como babil come-
diante obrigou logo o rosto a moldár-se ás cir-
cumstancias, e os olhos a pasmarem a vista, de
modo que exprimissem uma longa e casuística
interrogação mental.
Depois da perplexidade, o secretario das mer-
cês , enrouqueceu a voz , apoutou os óculos en-
tre o Índice e o polegar , e meneando a cabeça
fio tremulo mais artístico , principiou a repre-
sentar, o que fazia sempre, mesmo até dormindo,
acrescentavam os seus inimigos.
— a Que posso dizer, em caso tão grave, esco-
lho dos maiores doutores que sSo a gloria da igre-
ja ? » exclamou lançando as palavras seccas e vi-
bradas. « Temos aqui um sábio , um theologo ,
um^ amigo espiritual de v^ magestade ? E quer-
se que falle eu, o menos capaz de acertar! Ya-
iha-me o ceu 1 Em que escrúpulos estou met-
tido. Obedeço , mas Deus sabe se é com ddr do
meu coração ! Direi a verdade. V. reverendís-
sima rí-se? Pois é assim. Nunca me fez mal
senão a oimia boa fé, a minha nimia boa fé ! ...
Mas sempre aifirmo, e v. reverendissima co-
nhece-o melhor do que eu , que ha muita difFe-
r^iça entre dogma e disciplina. Concordam to-
dos nisto , até o padre Molimi aquelle grande
Digitized by VjOOQIC
198 A MOClMDt
mestre da cb&scteficia ! O jejum líefMl9 pt^ceíto
da igreja nãú é dogma i peceou v. mag^stáAs ?
De certo ! Sou justo , corto direito* E tíé pee-
cou bastante ; ehtetido , porém ^ que o caso tillo
pede tantos temores ; e S; tevéire&diSsima o diltt.
Sustento eu que ndo ; ha qâèm me poiSft eõfe>-
testar? Quanto á penitencia... nSo KèA^ não
me pertence ; tom&)ra achal-a òondigm dos mens
grandes pecéados , mais numerosos desgraçada-
mente do que os cabellos da cabeça , (e tenho
bem poucos já ! ) por enfermidade de «spirito e
simplicidade de animo^ Depois , C&mò oS m^i-
cos probtbiram a V. magestide. ...»
— « Nao me fallem dos médicos! »*— gritou
el-rei irado — itfto de mettet-me no inferno.
Quero despedir os misdicos ! »
— « Socegue v. magestade»^'^ acudiu O con-
fessor— « Jesus Christo deix?6u na isua igr^a
remédio para todo o género dè peccadò. Qaiz
ònvir a opiniSio do sr. Diogo dé Meâdòtiçè ^ ^
em Cânones é ò nosso mestre, e esilMi aot-
forme. . . »
— « Muito òbfigàdò «i y. neter^ttdiftitod ! »
— « E!-rei » — continuou o padre -— « mMida
dizer sessenta missas, e para íua mortifiOi^e j^
jua émánhã , sabbado de Nossa ãeyibdfti. (Mlb
dias consecutivos nto come pèrdíft, M ootm
Digitized by VjOOQIC
DE D* JOio y. 199
ave de apetite. Parece-^me »— acrescentou olhando
para D^ogo de Mendonça — a que asaim ficwá
tudo sanado? »
-*— aPois nio? £ ainda temos de sobre-
cellente as indulgências I ? »<•*— acudiu esta com
uma seriedade iiresistÍTeL » — O caso, atte»-
da^nie t« magestade , é não comer perdiz esta
semana, segundo nota s. reverendissinia ; e de-
pois as missas ; as missas per causa do purgato*-
rio. . . . Isso , e uma esmola. — »
— « Ás missões e aos captiros? » — inter-
rompeu o confessor.
— - c< Pois a quem ? Santa applicaçiD ! » -^
ooncimo o ministro sem deaengatilfaar um dos
músculos da face — « Sabe v^ ínagestade que ha
fornada em Roma? Queoem lá os quindenios
atmtdos dos bms da companhia de Jesus. £
tiles não são tolos ; a esmola é menos m&. Soa
santidade amf»ça o geral com as censuras. . . »
Dep^s do desastre das perdizes , el-rei estava
de cera. Olhando para o confeasor , perguntou-
Hm , tossindo :
-^<( O que Uie parece, padro mestre? »
-«*4< Sou de voto que se espece ! » — replicou
ertè um pouco etathado ~- « é. santidade insis^
é Mo é bom. V. magestade Teri se os pr^ados
ék ccnftnlM dev^m ekpâr-ae ás censuras do
Digitized by VjOOQIC
200 A BfOClBASE
papa^ ou obedecer ao seu rei legitimo. ...»
O secretario, das mercês e o jesuíta trocacao»
um lance dè olhos, que valia por duas estoca-
das. Diogo de Mendonça conseguira o seu ^m :
tinha obrigado os padres a desembuçarem-âe ; e
com a usual finura logo percebeu >que o di-
nheiro dos quiodenios sahia caro a Portugal,
não se pagando senão em proveito da companfaia.
O confessor, obrigado a descubrir-se , meditada
no modo de castigar a cilada. EWei, olhando ^^
ora para um*, ora para outro, não dizia nada ,
á espera que o esclarecessem. Por fim impa*
ciente, perguntou:
— <( Então o que havemos de responder aa
núncio apostólico ? »
— a Se V.' mogestade o ihanda e s. reveren-
díssima o deseja , esperemos ! Em quanto espo-
ramos, descançamos! — disse o secretario das
mercês, ladeando a posição para a levar melhor. —
Se querem a minha fraca opinião, eu que em
matéria de escrúpulos um cabello me parece:um
varão de ferro, estou de pedra e cal neste ne-
gocio. A cúria não tem direito ; e a honra -da
coroa ficará comprometlida. . . Perdoe, v*. ma-
gestade se fallo a verdade, mas é o meu' defeito.;
e deste npo me curo. S. revereiídissima dirá qual
seja de mais utilidade para a companhia ; está
Digitized by VjOOQIC
DK »« JOÃO V. 201
de dentro, e sabe nniíto mais. Até nSo ha ne-
cessidade de Ih^o perguntannos. Quem viu aquel-
les fiipeís de tanta sabedoria , todos escriptos do
seu. punho, reata-lhe admirar a firmeza de suas
paternidades e. contar com elles. »
— «Ora ahi teem o grande amigo , que nos
arranjotto padre Ventura! — rosnava Sebastião
de Magalhães, vermelho como lacre e seriamente
atormentado. — Que vibora! Saberá v. mages-
tade — disse alto — que a companhia não ha de
querer senão a gloria de el-rei e o esplendor da
monarchia. . . »
— «Eu não dizia? — exclamou logo Diogo
de Mendonça com falso enthusiasmo — S. revê-
readissima, o nosso doutor subtil, o nosso Scotto,
era incapaz de emittir voto menos auctorisado.
Asseguro a v. magestade que não ha maior amigo
da sua coroa. Não se pagam os quindenios ! Como
canonista protesto que o direito nos assiste ; por-
tuguês e vassallo fiel , ainda que morra , hei de
sustentar que o contrario nos deshonra. . . .
V. magestade ordena; respondemos ao núncio
nesta conformidade? D. Thomaz de Almeida
encarregou*me de receber as ordens a este res-
peito. )»
— a Acho bem. Responda que não. »
— «Ah padre Ventura , padre Ventura I —
Digitized by VjOOQIC
202 * A MoaDÀttB
bramiu o codiessor apopleticô -*^ olha a* boas
obras do homemEarrfto ! FicaiiMS bonitos t^i
S. reverendíssima mettea a barba no peito e
pousou os olhos confusos no empinado tentre;
sem isto é provável que a suacholera se exacer-
basse ainda mais, colhendo na passagem o olhar
irónico e victoríoM) com que o ministro oeiebpim
a sua derrota.
Digitized by VjOOQIC
CAPITULO SXt.
DUAS POTENCIAS !
A NUVEM tinha pi^s^áo ; o caio de consèien-
eia das perdíteB estavA esqaècido^ £l-rei, adiando
o corpo íobre o pé dífeito ^ contertiô em balanço
familiar a sua poltrona , itidicio evidente da re-
gia alacridade. O confessor creacia com indigna-
do ^ e o ministro fana««e peq^ieno , prova de aè
achar grande. D. Pedro II, tinmdOHse para Diogo
éo Mendonça , cujo vttUmento augmentóra desde
«I díssert;açao canónica sobre o jejuni> esclamon :
— '« Vamos á historia do teu protegido, »
— « Qual htotoria , men sr* ? »
^ A A ido teu capifâo Bécynrão. Não foi Bayardo
^ne disseste? Sabes que mais, Di^ò de Men-
úim^t Ainda te «leho mnitò poeta. Emftm, va-
mos a ftt. »
— « Pet*8 t. iftagastadet Ptós eu chemei
Digitized by VjOOQIC
204 A MOCIDADB
Bayardo ao homem 7 É verdade não ha mehor
soldado ; roas Bayardo Cm demais... por sigoal ,
espera alli fóra a graça de beijar a mâo de el*
rei. »
— « Primeiro a historia. Tem algmna coisa,
padre Sebastião? »
— Não , meu senhor. Ousarei lembrar nova-
mente a V. magestade a audiência do padre Ven-
tura? »
— « Yirà o padre também... Diogo de Men-
donça , estou ouvindo. »
O jesuíta furioso interiormente, por causa
da preterição^ foi bastante fino para tentar o su-
premo esforço de um sorriso, que Ibe saiu a mais
forçada e azeda das suas visageos. O secretario
das mercês não perdia de vista o revm.^, por den-
tro rindo-se do seu desgosto, por fóra aÔectande
uma innocencia primitiva.
Esta historia era um favor de el-rei , que se
propunha grangear em proveito doxapitão e do
seu amigo Lourenço Telles ; porque , apesar dos
calumniadores, Diogo de Mendonça, accusado
de ser o mais espirituoso cómico da corte, e de
fingir no seu coração, vasio e desamorovel, todos
m> sentimentos, estimava pouca' gente e poucas
vezes , mas quando era amigo sabia séi-o.
— «O visconde de Barbacena, siberà v, ma-
Digitized by VjQOQIC
géstade*— principiou o ministro-^ diz do capi-
tão Jeroifymo Guerreiro , que é a mais fina em-
pada de cavallaría , e a melhor cabeça de conse-
lho em ardis de guerra... »
— «O exórdio promette » — acudiu o mo-
narcha — « Queira Deus que n5o te cances an-
tes de chegar ao fim... »
— « Não ha corpo sem cabeça, meu sr. ! » —
respondeu o secretario das mercês com summa
gravidade — « E se o exórdio parece forte a v.
magestade, a narração me saWará... Tractava-se
este anno da occupaçfto de Alcântara ou de Ba-
dajoz, que se perdeu na outra campanha pelas
demoras do conde de S. João, coitado!... A pri-
meira dificuldade consistia em achar um lingua
entre os castelhanos ; porque era- loucura metter
com os olhos tapados o nosso exercito mesmo na
boçca dos canhões... »
— «De certo! » — observou el-rei, acele-
rando o vai-vem da sua poltrona.
— <c Mas quem seria o rato^ capaz de pôr o
guizo ao gato? — porque v. magestade percebe
que os francezes apanhando o espia roubavam-no
para os não alliciar, e arcabusavam-no depois
para não fallar. Como pouca gente gosta de ser-
vir de mira aos mosquetes de uma companhia
tíe soldados... i»
Digitized by VjOOQIC
306 i «ociPiU^B
— a £ Qqai entra nós , Dic^ de MeD^eiifa 9
ha de ser iniiíto desagradável ! — *^ tornos a cur-
var el*m, balaȍaiid(Hfe na cadeira,
— » É verdade ! No ça^ fresepte at^ se po-
dia apostar noventa contra dois em como as pro-
babilidades eram de ficar no meio da jornada com
doze balas na cabeça , chumbo de mais para alvo
tão pequeno, n
— c( Diabólico I » — acudiu D, Pedro, esfre-
gando as mãos,
— « Nao admira, pois» que os officiaesi se iofr
sem escusando dO/modo que o visconde, muito
cholerico, segundo é publico, fez-rse branco, com9
a tira da camisa • e chegou a disser que iria eUe t
se ninguém fosse, pois tanto valia morrer de \m
tiro em batalha , como levar dej( bejles no c^^-'
ção atrais de mu fosso. »
— « Argumento forte, Diogo de Meodonça ! »
-^notou el-rei.
— «Infelizmente nipguem se convenceu I )*
— prosegniu o seoreterío sorrindoHie, ^^ « Nesta
oecasi9o entrava Jeronyme CriierreifQ e o general
batendo-lbe ne.bombro, gritou nmito emmado;
--« Aqui estA quem vai gapheir um [?osto, ou
levar um peitilho de belas, e ^edajenl F<w este
respondo eul M^-^Jero^yíno infermoi»^, envia
as instrucções , e muito serio , muito sei^eoo , fei
Digitized by VjOOQIC
"Qma eotteía «o visconde, a sem diaer mais na-
da.. .
— a O qw fea? >>—r gaitou eWei.
<-^ fc Partia 9 meu senhor ! 9
— a Partia !?..)» — exclamou o príncipe ,
levantando-se.
r-« HL Immediatamente 1 « . . E como suppoe v.
magestade qae elle entrou por Hispanha 7 Em
trajos castelhanos, a pé sobre duas muletas, fin-
gindo'Se càxo e tartamudo. . . . Em vez de um ,
pregou dois logros aos franeeses. v
— a Bello estratagema ! E fiogiu^ae bem ? 9
— <c Tão bem, que fpi até Madrid sempre
mettido pelas portarias dos conventos e pelos
pateos dos fidalgos , vendo e ouvindo tudo ; e
como parecia ter a liugua aioda mais tolhida
do que as pernas, e a sua mala era o alforge á&
pedinte , não lhe perguntou ninguém d'onde era
nem para onde ia. . . « Parvos ! »
— a No mundo tudo são apparencias! vf-^
interrompeu o padre Sebastião , olhando para o
historiador coin yisível intenção,
— « Santa verdade 1 i> — exclamou este que*-
brando os óculos, comp em certos dramas o
protagonista estala a espada no joelho — a E en**
tão? Não quebrei os ooiJos? . . . Sâo tudo ap-
parencias, V. reverendisaima o disse 1 Tudo é
comedia. ...»
Digitized by VjOOQIC
268 A MOaDABE
— a Menos a morte , Diogo de' Mendonçt i>
— accudiu el-rei entristecendo.
— « Essa é tragedia ! . . . Para que falíamos
nós de morte? V. magestade graças a Deus^ e
todos esperamos Tiver largos e felizes annos. . .
Longe vão os cuidados ! »
— « E o nosso capitão ? i> — perguntou d-rei.
— « Quando se acbou informado voltou co^
xeando para Elvas com os alforges cheios de es^
molas e de noticias. O que suppSe el-rei que
lhe havia de oceorrer? . . . Pagar-se da jornada
por suas mftos ! Fazer dos castelhanos banquei-
ros de v. magestade ! . . isto dé rapazes !...>»
— a Como ? »
— «Eu digo a V. magestade , Jeronymo é
muito callado, e quando fónna um plano rumi-
na-o comsigo ; ora em elle achando a ideia , al-
guém por forca acha de menos alguma coisa ;
fallo dos inimigos. Quando se recolhia , notou
que os gados levados â feira de Guadalupe iam
formosíssimos , e pareceu-Ihe mal nSo serem
delle, e serem de seus donos. ... V. magestade
sabe : cortar os viveres em campanha 6 tio me-
ritório para o soldado, como dar de comer a
quem tem fome na paz de Deus. »
— «As obras de misericórdia ás avessas? d
— disse D. Pedro, rindo.
Digitized by VjOOQIC
DE D* Joio V. 209
^— •'« Ás direitas, meu senhor. A charidade
benii ordenada começa por nós. Assim , aquelle
menino. . . (desculpe v. magestade ; é mau cos-
tume que tomei ; chamo até meninos aos velhos
-—a s. reverendissima talvez, pôde bem ser! j
O caso é que o nosso capitão ^ sabendo quj& os
gados ficavam dois dias em um logar da raia
para descançar , deixou-se ficar com elles ; e teve
artes (demónio do rapaz ! ) de fazer que lhe of-
ferecessem comida e dinheiro pelos guardar de
noite ^ com promessa do dobro se quiaiesse acom-
panhal-os. . < »
— ^ « E acx^eitou ? »
-^ « Foi tão feliz que o obrigaraiti a acceitat ! »
— " « Mas elle fingia-se tartamudo ? »
— ^ « É o melhor da historia. Como nào po-
dia gritar derâm-lhe um tambor e disseram que
tocasse nelle em sentindo tropel. Feito o ajuste,
os guardadores dormiram a somno solto ; e como
a quem dorme^ dormem os cuidados, elles fica-
ram, e os gados foram^e. »
— ' a Ah ! » — gritou el-rei com alvoroCo. —
a Como foi , como foi ? )>
— « Com a maior simplicidade. Dormiam ao
pé delle três soldados de cavallaria ^ com ordem
de não largar os rebanhos; Beberam e deitaram-
seu Na segunda .noite, Jerony mo, quando os
TOM. n. 14
_ DigitizedbyVjOOQlC
210 A MOCIDAPE
yíu ferrados no somno amarrou-os, poi-lbes
mordaças na bocca , e rompeu depois o tambor.
Montado na melhor égua, com um pampilho
na mão, entrou em Portugal e chegou a Elvas,
seria meio dia. Os guardas , que ficavam no to-
gar , a meio quarto de legua, não sentiram nada ;
e acordando ao nascer do sol trataram de ajun-
tar os bois. . . Não havia bois. Acharam as mu-
letas do coxo , os três soldados presos , e sou-
beram então que elle tinha duas pernas famo-
sas , e fallava como um doutor. Quizeram tocar
a rebate no tambor, estava roto! Quizeram
correr atraz do inimigo , não tinham cavallos. . .
Peio seguro Jeronjmo levou os pés de mais aos
Philisteus ! Assim , quando sahiram ao campo ,
e deram aviso ao conde de Resboorg em Badajoz,
andavam já os nossos batedores & pressa reco-
lhendo os toiroB desgarrados. O peior foi que
em vez do seu gado , o conde de Resbourg en-
controu o visconde de Barbaoena, que lhe as-
sentou ainda em cima a mais completa der-
rota I. . . Aqui tem v. magestade como este anuo
a feira passou de Guadalupe para l^vas, lou-
vado sqa Deus ! n
-^ c( É uma grande iaçaiiha , Di^ de Men-
doaga. E os hispanhoes? »
— ^«c Om m pon se It eomm^mt Disseram
Digitized by VjOOQIC
DÉ í>. JOÃO V. 211
qttê el %&rrò fue téntacion dei demónio, . . . ló-
ios! »
— ^« Diogo de Mendonça é preciso ptemeiar
o capiUo. )»
— K V. HíBgestade obrará como grande rei.
Um habitosinho deChristo e utna tença... »
— « Elle é casado? »
— « Está era perigo de o ser. »
— ^« EnSk) lhe succedeu mais nada? Os cas-
telhanos forte odto lhe hão de ter ! »
— 1< toe morte. Mas elle com os gados ficou
melhor, y*
— - « De certo* Introduze-o ! »
Minutos depoi!( Jeronymo inclinava a cabeça
e dobrava o joelho diante de el-rei ; e s. ma-
gestade dando-Ihe a mão a beijar com aífabili-
dade , admirava o ar brioso do capitão do seu
exercito do Alem-Téjò.
— <i Jeronymo Guerreiro » — disse o mõ-
narcha — estou conttfnte com o teu serviço. Con-
tinua e lembra-te que el-^rei deseja ter occasiâo
de premiar. ... O bastão de mestre de campo
costuma aebei^-se Aa triâcfaeira de uma praça
de guerra , ou apanha-se n« niéio dos terços do
inimigo. . . Diogd de MendoUçà * já recebeu as
minhas ordens A tetii yespeit«r. )P6des Miirar^té. >>
O mancebo éheio Aa jiAiiò f^ eittb recépçiiii
Digitized by VjOOQ IC
212 A UOCIDADE
dístincta , tornou a beijar a m5o do monarcba ,
e inclinando-se apenas disse :
— «A minha vida é curta para agradecer a
munificência de v. raagestade. »
Depois fez as cortezias da etiqueta e sem
nunca virar as costas retirou-se.
— «Diogo de Mendonça» — exclamou D.
Pedro — « gostei do teu protegido ; falia com
muito acerto. Podes dizer-lhe que lhe faço mercê
do habito e mais da terça. . . »
— « É de justiça , roeu senhor. Quando v.
magestade o poz aos peitos de um preto , seria
admiração n3o o conferir a um official brioso. »
— « De um preto ? » — gritou el-rei com
Ímpeto.
— a Sim, meu senhor. Domingos Pires é ne-
gro como azeviche , e de mais a mais barbeiro
de profissão. . « . Sinto na verdade , mas parece
notável que assente bem o vermelho sobre o
.preto e que a navalha dê o habito. »
— « Padre Sebastião, isto o que quer dizer? »
, — clamou o monarcba fazendo-se branco.
— A Senhor ! » — accudíu tremendo o confes-
sor — não fui eu. . * « »
— « Tem rasão. . . foi o. infante. Ah, Fran-
cisco, Francisco! O habito jde Christo a um
preto 9 a um barbeiro ! Que vergonha. . . Diogo
Digitized by VjOOQIC
DB D. JOÃO V. 213
%
de Mendonça, como se ha de valer agora a
isto ? »
— « Só com o painel da misericórdia ! O ha-
bito está enforcado no preto. Tire-se o negro
para sumir o habito. Não vejo outro remédio. >»
— fíEntào?»
— « Mandemos o pae Domingos a tomar ares
pátrios. Despacha-se para Guiné. ...»
— «Para o fim do mundo! — gritou el-rei
furioso. — Um barbeiro preto com o habito ! ? . .
Ah , Francisco ! Diogo de Mendonça despache o
negro e salve o habito. . . »
— « Occorre-me outra coisa; . . »
— « Diga. » .
— « Há de haver por força algum branco deste
nome. Procuramol-o e da-se-lhc o habito, tíize-
mos depois ao negro que foi engano. EJIe acre-
dita ! . . Tanto rnais quanto de noite tudo é preto,
e até os gatos brancos são pardos. »
— «Excellentet — disse el-rei a rir. — Mas
Diogo de Mendonça, tu, porque eiiLpediste essa
mercê?. . »
— «Eu, setohor? Não sabia. V. magestade è
justo; é sábio, mandou as suas ordens, obedeci.
Não tenho a rol os pretos forros que andam a
eaíar Lisboa , ou a escanhoar as barbas aos ma-
telotes. Ia a sahir hoje , c apparecê-me na es-
Digitized by VjOOQIC
$14 A MOCIDADE
ça^a uBi negro. . . bom n^o ! Vale eem mil
réis, posto no Brazi). Cuidei que o moleque pe-
dia esmola. . . desgraçadamente a^radeeia-me e
seu despacho. — Pois eu despocHeí-o ? — v. s/
deu-^-me o habito de Christo, »
— 1< E vossemecê quem é ? »
— « Sou Q barbeiro .do$ creadoç do ir. infante. »
— aE eu dei-Ihe o habito, está bem certo?
— • « Vem neste papel » — E vinha. . . por Deus !
— Disse ao preto , que voltasse ; mas pelo se-
guro esqueci-me e o diploma íieou no bolso.
Aqui o tenho. »
— c( Pois vá , ]>iogo de Mendom^a , e veja se
desencardimos a ordem de Christo de tal bor-
rão. . . padre Magalhães , acabemos a noite. O
seu recommendado pôde vir. . . Ai que filhos me
dea Deus ! »
O secretario das mercês sabiu logo, e instan-
tes depois entrpo q jesuíta, com os olhos hdiítm
e bumildes. Á porta ^ quando se inc]ii¥>u para
Ql-rei y poz-lbe a vi^ta com a força de intuição ,
que era o dom precioso do seu génio ; e leti-}he
na anciedade , em que a dor contrahia as fei-
ções, na pallideii cubrindo a (a^e de um vço, e
na tristesa mortal dli phisionomia^ o^ progressos
e % crise de mna çpi«cmid^de rápida, que ,^
médicos não tinbaiv sabido. a^jvjnbar. O. padre
Digitized by VjOOQIC
DB D. JOiO V. 215
Ventura entendeu logo que el-rei D. Pedro era
como se estivesse já em S. Vicente de Fora, ao
lado de seus pães.
El-rei, também, com a firmeza de tacto, que
dá a pratica de conhecer os homens, achou o
jesuita superior á sua humildade, e muito maior
do que a obscura posição, que figurava. Exami-
nando-o silendosaraente , estendeu-lhe a mãp, e
sem saber porque chamou a si toda a penetra-
ção, como se um instincto secreto o avisasse de
qiie tinha diante de si , em vez de um religioso
vulgar , uma potencia senhora do coração dos
outros, porque dominava o seu, exclusiva e abso-
luta, porque na sua mão o poder era único, por-
que a vontade e a intelligencia eram absolutas.
O padre linfaa-se curvado ; nem tanto que o
respeito apparecesse como servidão , nem tào
pouco que tomasse a cdr de orgulho. Pousados
na mão, o-monarcha sentio que elle tinha os
beiços ainda mais frios do que o sorriso.
r — «Sebastião de Magalhães^ — observou D.
Pedro — pesando as palavras e pondo os olhos
como duas sentinellas no descorado semblante do
jemiita — o meu confessor, pediu-me ama au-
dteaeia da parte de r. paternidade. Deve saber
que D. Pedro II muitas vezes se tem levantado
da mesa pan deferir aos mtis obscuros vassallos.
Digitized by VjOOQIC
216 À MOCIDADE
NSo precisava de empenhos , padre, para chegar
á presença de el-rei. Uni soberano tenoi abriga-
çHo de ouvir a todos, como espera que Deus o
ouça a elle. »
O jestiita sorriu-se, mas ndo abriu a pbisi<K
nomia. Á vista do principe escorregou, por ella
sem poder entrar no coraç^ão. Aqueila face im-
peiíetravel era o mesmo que o aço de Milão nos
guerreiros antigos, flexivel como seda, resistente
como ferro.
-^ i( As virtudes d^el-rei são a felicidade do»
seus vassallos, e a admiração dos estrangeiros » —
respondeu s. paternidade tomando a inclinar-se.
n Se eu viesse por negocio meu , diria ao sobe-
rano : aggravaram-me, sr. , e peço justiça ! e es
tou certo , o ouvido de ei-rei , que é o ouvido
de Deus, havia de escutar-me. Mas eu venho fal-
tar á consciência ; por isso espero a occasiâo ,
dando a Deus infinitas graças, porque me atten-
dem , e me não despedem. »
— « Então o padre acha que a minha cons-
ciência está em^ perigo ? » — acudiu D. Pedro
sobresaltndo.
— a Sim , meu sr. ; mas creio , tombem , na
grandeza de v. magestade, e na graça de Deus. n
— ^ « E é o que o trai? »
— « E o meu dever, mais o serviço de el-rci. »
Digitized by VjOOQIC
DE D. JOÃO Y. 217
— «O meu serviço ? »
— « E o de Deus! w
— « Explique-se! »
— « El-rci sabe qae as lagrimas do innocente
sâo de sangue , e que Deus m conta contra os
perseguidores, porque Jesu-Christo , que nunca
chorou por si , muitas vezes chorou por nós. A
mâo de el-rei, levantada neste moniento, faz cor-
rer lagrimas de deslionra é de vergonha, que se
não forem enxutas, hfio de cair de fogo sobre a
cabeça do peccador. A coroa , sr. , fica na terra
mais o corpo ; e diante do juiz a alma do rei
peza menos ás vezes que a do escravo , porque
só peza segundo os seus mereciniintos. »
— « Padre Ventura , falle ! Se peccámos fa-
remos penitencia ; se alguém se queixa de nós
ha de ter justiça. A quem aggravou sem causa a
mâo de el-rei ? >^ — disSe o principe muito agitado,
— « Uma innocente foi calumniada ; e el-rei,
sem a ouvir, acreditou a calumnia. É mal Teitò,
sr. , Deus perdoa muito aos homens , e esquece
pouco aos reis. »
— « De quem falia v. paternidade? p — ex-
clamou D. Pedro II , cheio de terrores espiri-
tuaes, e curvando-se involuntariamente.
— <« De D. Catbarina de Athaide , noviça em
Santa Clara, n
Digitized by VjOOQIC
218 A MOCIDADE
— a Ah ! I» — gritou el*rei , pondo^e de pé .
com os olhos fitos e tneio accesos de ira.
— c< Está innocente , está pura , fpi calum*
ntada! » — proseguiu o jesuíta, deixando cair
cada pbrase, pexada como ferro, sobre o espi-
rito do príncipe.
— a Mas eu sei o contrario ! r> — disse o mo-
narcba, recuando diante da voz do padre, e dos
seusi olhos irresistiveis.
— « V. magestade jiào sabe nada » — res-
pondeu fríamente o jesuita.
— í< Ah ' Então V. paternidade é que sabe, e
é que é o rei ? »
— « Eu é que sei, v. magestade o disse: c
sei porque não sou rei. »
— « Mas el-rei também é pae ^ »
— « Basão de mais. Os últimos a saber a
verdade nestas coisas são sempre os pães. »
— ' « Então protesta-me que D. Catharina está
innocente? Que. o principe real não foi a Santa
*Clara ? »
— « Não alBrmo senão que s. alteza nunea viu
nem (aliou a D. Catharina. Não sei, e não digo
mai3. ».
— « B as provas , padre ? »
. . — « Tenho-as todas í — refdicoii • visttad<Mr
elevando a voz.
d by Google
BC D. JOÃO V. 219
— « Quem deu o direito a t. pater oidade de
falUr alto diante de mim? » ^-exclamou o prín-
cipe , refugiando-se atraz da sua coroa , porque
se via fraco de coraçSo para resistir.
— « Quem tem na sua mão vassallos e reis.
Quem disse a Lazaro, ergue-te ! e ao cego, vè 1
Foi Deu^, sr. f E Deus, também, que fez os
reis â sua imagem , foi quem Ih^ confiou um
sceptro , que é vara de juatiça , e não açoute de
tyrannos. »
Paliando as^im , o padre Ventura assumia
aquella auctoridade , aquelle poder de vontade e
de eloquência , que o tornava inspirado nas oc-
casiões perigosas. £l-rei, vacillante, e quasi ven-
cido senão convencido , sumía-se na cadeira , e
baixava os olhos para não sentir sobre o coração
a vista profunda e cortante do jesuita , que lhe
causava uma dôr mcHral , a<inde quer que se fi-
tava.
— « O padre engana-se. Quem lhe disse que
D. Catharina era innocente? » — exclamou in-
sistindo.
— « Disse-o ella » e sei-o &a\ w
— « Grande prova ! i> — gritou el-rei com im--
peto. — « Disse-o ella. E depois ? »
— k Depois ainda accrescentei mais : -^ e sour
be*o eu. »
Digitized by VjOOQIC
220 A MOaDADE
— « Ah , então?... »
— (( É claro. D. Catharina não recebeu a s.
alteia , porque o não podia amar. »
— « Não podia amai-o ! ? Porque ? » — acu-
diu o pae , desta vez mais offendido no orgulho
do que o rei na vontade absoluta.
— <i Porque os ambiciosos só é que amam por
calculo e tendo o coração fechado : uma paixão
verdadeira crê em Deus, e não espera, nem de-
seja mais do que ser feliz. »
— « Ah ! » — tornou el-rei a exclamar, ferido
por esta allusão. — « Continue ! »
— « E o coração da mulher , que está pura ,
das mulheres como D. Catharina, é muito grande
para se fazer assim pequeno, e muito nobre para
se envilecer a esse ponto. >»
— « Continue! » — acudiu o principe, cer-
rando os dentes , e empallidecendo mais.
— « Acabei, sr. : D. Catharina ama o conde
de Aveiras , e por isso el-rei bem vê que é im^
possível outra paixão. »
— «O padre esquece que o amor do prin-
cipe real... iisongea o orgulho, e que as damas
se levam todas pela vaidade? » — atalhou D. Pe-
dro cora um sorriso frio.
— « Orgulho e vaidade são duas coisas, e não
uma. O orgulho sem soberba eleva o espirito ,
Digitized by VjOOQIC
BE B. JOÃO V. 221
n5o o declina. O príncipe real , perdoe v. ma-
gestade, para D. Calharína é muito, e muito
pouco. Muito pelo grande respeito que lhe deve.
Muito pouco , porque ella pôde subir até seu es-
poso , e não quer descer até á sua infâmia. »
— «Não creio! » — murmurou o príncipe
abalado, mas insistindo sempre.-— ^« Ás minhas
informações... x>
— « São falsas, falsas!... como o coraç&o que
as envenenou. »
— «Sabe de quem falia, padre Ventuía? )»
— gritou el-rei parando diante delle, e amea-
çando-o com a voz, com o gesto, e com a vista.
— « Nào me pertencem os segredos de el-
rei ! » — acudiu este , encontrando o seu olhar
firme com a vista irritada do monarcha. — d Mas .
repito ; quem quer que foi , mentiu a v. mages-
tade , disse uma calumnia, e commetteu um cri-
me. Isto affirmo eu de coração tão sereno, e san-
gue tdo quieto como na America glorifiquei a
Christo, sabendo que arriscava ò corpo, mas exal*
tava a alma.' Sou velho; estou cançado; e depois
de muitos trabalhos sei por experiência, que um
dia de mais ou de menos nSo é nada; que uma
cella pobre e estreita como a minha, ou uiti Ca-
labouço sem luz, éqoasi a mesma coisa. De toda
a parte se vé a Deus. »
Digitized by VjOOQIC
322 A MOaDADE '
Este valor frio , esta abnegação pessoal , este
desafio manso e apostólico do religioso inerme à
cdera do rei, envergonhou D. Pedro< Os brafos
cairam-Ihe> sem alento ; e a vista esmorecida per-
doa o fogo. Atando o dialogo, o príncipe disse
com bondade um pouco forçada :
— « Ora vamos, padre Ventura ! Sejamos ra-
soaveis. O interesse que toma por D. Cdtharina
não me parece natural. Nlio lhe é nada, creio
eu... »
— «V. magestade engana-se. Sou seu confes-
sor, seu pae espiritual, aquelle a quem Deus
disse -^ ama a mitiha filha, e esforça-te por a
salvar. »
— « Mas se fôr culpada? »^ — observou el-reí
com preoccupaçao.
-^ « E se fdr innocente ? » — replicou o je-
suíta , dando á vo2 expressão particular.
-— '« Meu Deus iliuminae-me ! » — gritou D.
Pedro, perdendo a cabeça, e sentindo recrudes-
cer as <tóres phisicas pela intensidade desta agi-
taçSo. — « Padre Ventura , isto não sto coisas
para decidir de leve. »
— « Por isso digo eu : antes de castigar , eU
rei devia ouvir, m
— a Mas eu nio puni aiâda... rt
— « E^rei fez mais. Naasó puftiu a quem
Digitized by VjOOQIC
PE D. JOÃO V. 223
julga criminoso, mas a quem sabia que era ín-»
nocente. »
— «O padre mente!... » — gritou D. Pedro
exasperado.
Alguma c6r veio rosar de leve as faces palli^
das do jesuita. Os olhos accenderam-se ; as rei-"
ções mortas animaram-se; a cabeça pousou-se
erecta e altiva ; a vista devorou entre chammas
a palavra affrontosa ; e o gesto , cheio de força ^
repelliu-a com magestade... Foi tudo instantâneo
porém; o poder da vontade domou a ira em
um momento e fez descer a mascara outra
vez sobre o rosto; quando respondeu, a sua voz
tinha mais doçura , se é possivel , do que antes
de receber a maior' injuria.
— c< Senhor !,.. » — ■- exclamou elle — « Agra-
deço a v. magestade. Jesu-Christo , meu mes-
tre, também recebeu na faee uma afironta e
respondeu com a paciência. A verdade mata,
sr. ! . . . E quando vim aqui sabia f já , que ou
t> méu corpo ou a minha alma haviam de
sair martyrisados. Y. magestade preferiu a al-
ma*., é mais glorioso. Entreg<^lh'a ; pôde satis^
fazer-se. »
D. Pedro percebeu que tinha caido moral-
mente aos pés deste poderoâo «dtersario. Depoié
da injuria brutal aia lhe restavam sen&o dois
Digitized by VjOOQIC
221 A MOCIDADE
caminhos — sair como rei, ou passar por tyrantío;
Escolheu o mais nobre.
Olhando em redor de si ^ deseubriu o padre
Sebastião de Magalhães sumido com a parede , e
desejando que ella se abrisse e o escondesse. O
confessor tinha a cabeça quasi cosida ao peito;
as roscas das duas barbas pendiam-lhe frouxas e
tornavam-lbe as faces abjectas. A pailídez mor-
tal , a immobtlidpde estúpida , e o suor (rio em
que nadava^ e que a miúdo embebia no seu lenço,
faziam delle o retrato do pavor , colhido em fla-
grante.
El-rei teve dó do padre Sebastião, e admirava
o padre Ventura* Por isso, virando-se para © ul-
timo , disse-lhe com nobreza :
— a Desculpe, se me excedi sem querer!...
Âsseguro-lhe que el-rei não disse nada; e es-
pero que não lho faça saber , porque havia de
magoar-se, como se morresse um de seus (i-
Ihos. »
— « V. mag^tade acreditará que só nae lem-
bra... de que el*rei era digno de uma coròdif se
a não tivesse jà » — respondeu o jesuita ^ ineli-
nando-se commovido.
— « Sebastião de Magathãçs — proseguiu o
monarcha — agradeço-lhe o ter-me introduzido
o padre Ventura. Os vm ganham sem^e em co-
Digitized by VjOOQIC
iihecer os homens como elle. Vamos ! Eu dizia
que D. Catharioa me parecia culpada. ».
— (( £ eu, que ella era innoceate ! » — repli-
cou o italiano, percebendo a delicadeza do prin-
eipe 5 que fora atar a conversação justamente ao
ponto em que o rei se esquecera de si , e des-
cera pelo precipicio da cholera a par. do súbdito.
— ^ a £ sendo assim o que conclue ? »
— a Que el-rei feriu mortalmente três inno-
cantes! j»
— •« Como? »
— «A honra vai mais do que a vida , e a
honra de uma dama, de uma sr.*^, cujo sangue
é tfto illustre , cuja familia se enobrece de uma
pobreza gloriosa, porque está sem macula, é um
thesouro que não tem preço... »
— « Ainda não percebo, padre Ventura... »
-^■^ atalhou el-rei carregando mais o rosto.
— <c Um momento mais, e el-rei verá!... D.
Catharina accusada de uma fraqueza por v. ma-
gestade, pelo primeiro cavalheiro da monarchia...
ficou deshonrada toda a sua vida, se el-rei a não
salvar. »
— <c Mas eu não a accusei : somente... »
— <c Ahi está: $omente!?... El-rei não pôde
ignorar que duvidando sametUe da honra de uma
sr.^, e eWrei duvida, porque o disse !... matou-a
T. n. 15
Digitized by VjOOQIC
226 À 1I0GIDA»B
a clla^ a aei» pae , e a seo esposo «o» olbot do
mundo. »
— «I Padre Vcatora, aeredile quo este s^re-
do... »
-^« Nto é flegiede? Smo«o como r. mages^
fade. A. oòrte , vendo s. alteia reat no desagrado
de seu pae, indagou a eausa; e o sr. iafente,
entrando no paço, pegou na honra de uma dama,
e atirou^ som piedade && bocca» da ealumnta. »
— « Valha-me Deus ! Está certo ? n
— - a Gomo de estar aos pés de v. mageslade !
D. Luia de Âthaide é fidalga antigo. Ha de pedir
jualica a e)-rei da s«a honra maculada ; e como
el*vei acredita que soa filha é eaipada... D. Luiz
de. Âthaide pado aebar n^ suave um saicidío
do que a sua infâmia* »
— « Jesus 1 3»
— « O conde de Areiraa adora a Ik. Catba-
fina , e jA tem hcenço de seu pae para a pedir.
Sahendo da nódoa c[m imprimia no credito da
sua noiva a mão de elnrei, mSo que nSo pdde
obrigar a ap«^a)«a : a conde oa er aa infâmia
delia e padece pela sua honra ; ou não acredita
e a desgraça é maior aiada , porque aio estát em
sen poder vingar a íuDOoencia que debalde absol-
wfia^ se o mando peta bòoca de ^-rai a eoa*
deauHflse... jEm amhop os casos v. magestade fe-
Digitized by VjOOQIC
ns D. JOio Y. 227
nu o conde, aviltou o pae^ e derirnirou a ftlha I
£ isto, sr., aos olhos de Deos é tremenda respon-*
sabilídaée. n
D. Pedro II apertaiva as mSos na cabeça , e
sentia-se profandamente agitado.
— « Mas sabe de certo o padre , que ella é
ínnoceate? Sabe que foi mal infermado ? )>
"^ f( Juro diante de Deus , que s. altesa reai
era ineapai da trat(^o, qae lhe imputam. IK Ca-
tharina é a noiva do seu veador, e o príncipe
sabe dos seus amores ^ e até se interessa a favor
d'ellts. .. Demais, amaohà mesmo devia ella
sair de Santa Glara e refugiar-se no deposito de
uma £nnilia honrada para se receber de lá com
o conde de Aveiras, caso seu pae negasse o con-*
sentimento. Aqui teni v» majestade a prova. »
E deu-lhe duas cartas. Uma do conde, oatra
da noviça , em que se marcava o dia e hora da
evasão, e respirava em cada linkè ^MiueNe entra-
nhavelamor, quB elnrei pdr experie«ieta • êòdhi&-
cia ; que é a primeira e aHtma paísio quando
cbegft a doelarar-sei \ >
. ^^ « £9tx>u coh^BBcidé^.! ^r^iexélamon o moaftr-
oha-rtT* Agora diga-mc oipadrb; ctoíiosahadíítret^
mediar o mal?5i._ \/.| r''\ : >■'... .• i fw.^
— « Como rei , senhor ! — respondeu^ o ■je-'
siiMtiiiciiiaiido»*se;*-t^Umat ofdtaiit^ii aa se-
Digitized by VjOOQIC
228 A MOCIDADS
cretario das mercês , passada a requerimeato da
conde de Aveiras e D. Catharina pôde saoar me*
tade. Mande el-rei que eu a tire do convento e
a deposite em casa de Lourenço Telles^ commen-
dador de S. Miguel das Minas. . . »
— « Em casa de homem só ? »
— <xNio, meu senhor. Vive com elle uma
sobrinha casada, e estão duas meninas; uma
delias foi educanda secular em Santa Clm... »
— « Bem ! Traz o requerimento ? i>
— « Sim , meu senhor ; está aqui. v
— <x Dé cá ! »— E o monarcha escreveu a ordem
logo. — (K Procure amanha o secretario Diogo de
Mendonça e vKo ambos a Santa Ciara. Que mais
é preciso ainda ? »
— «A outra metade , para ser a reparado
perfeita. >»
— « Diga ! n
— «( Conviria mandar chamar D. Laii de
Athaíde amanhã, antes que elle saiba... y^
— « Amanhft depois da missa estará aqui. »
— «E ordenar-ihe que dè o seu eonsenti-
melito para a allíança de sua filha com a easa
éb Aveiras. Naturalmente v. magestade diz-Mie
que tudo isto se faz por supplicas de s. alteia
real... »
~ <( Dir4liD4iei a elle ; e far-«e-lia constar
Digitized by VjOOQIC
DB i>. JOÃO V. 329
na corte. O dote da condeça é o meu presente
de noivado. »
— « Feito isto ▼. niagestade sahou os três in*
noceotes , e diante de Deus ficará como um rei
justo. As graças do soberano lavam tudo ; e el-
rei constituindo-se, protector de D. Catharína, pro-
va que B estima e a põe acima das calumnias...
Obrigado, senhor ! . Beijo as mitos de v. mages*
tade quasi como beijaria os pés a . Chriato ! Se
o coração do pae foi severo, a alma do rei foi
grande e generosa. . . Pagou nobremente o erro ! »
— « Acha ? » — acudiu D. Pedro sorrindo-se.
— a Acho , meu senhor , e sem lisonja. Este
acto se fosse o ultimo de v. magestade — aceres-
centou o jesuita com tristeza — era sufficiente
para dizer a Portugal ; perdeu^se um rei ! »
— « Diga-me , padre Ventura , julga que
esta reparação é bastante aos olhos de Jesus
Christo para elle interceder por mim diante de
seu Eterno Pae? »
— c< Senhor , o» peccados do homem expiam-
se peia penitencia , e com o arrependimento. Os
erros dos principes quer Deus, que sejam remi-
dos por acções de rei. V. magestade foi como
Deus neste caso , restituiu a vida a três pessoas.
O mais , o passado , deve lembrar como lição
6 aviso, mas sem terror. . . . Jesus Christo não
Digitized by VjOOQIC
230 Â BioaoiíM
monea pelos anjos, paâeeen pelos boma»* Se
não houvesse senão justos. ... o reino da <^eu
era menos glorioso de aleaacar. »
-^ a Adeus ^ padre Ventura , venha vèr^ne.
Pareee-me que a noite acabou aidJior do 4^
]«lgémos. »
*— « Graças á grandeza díi el-reil > — obaer^
vou o jesuíta ineliaando-se para beijar a mão
do monardia.
A( Não! Graças k dedicação do padre. Ti*
rou ao pae um grande peto de cima do coração ;
e salvou o rei de uma injustiça flagrante. . • . Não
se esqueça: jHrocure ]>iogo de AJendonça. Eu
farei o resto. »
Quando passava pelo confessor o jesuita dai-
xou-lhe cabir no ouvido estas palavras , que en-
cerravam muitos volumes de politica e de mo-
ral i
— « Viu ? . . . Os reis é preciso que dles
queiram; e sabendo-se o caminbo do seu cora-
ção, quasi sempre querem. Padre Sebastião
dhe o mal ! Os portugueses perdem um bom
monarcha ; e o peior 6 qne depois de mater o
lei, deixar^nos morrer também o homem^Nâó
entendeu nem a alma nem o coração deste prín-
cipe ! Podia-mos fazel-o grande a elle , e ser-
mos grandes nós com eUe. . . . V« patermda-r
Digitized by VjOOQIC
])E D. JOÃO V. 231
de não qutz ! Seja feita a vontade de Deus. »
Três minutos depois D. Pedro II levantando
a cabeça d^entre as mãos , e formando com os
olhos uma longa interrogação, perguntou ao
confessor :
— « Este padre Ventura , está certo de que
é só o que parece? »
— « Certissimo , meu senhor. » — Acudiu o
jesuita ainda convulso da jaculatória do visita-
dor, e estremecendo com a pergunta do real
penitente. »
— « É pena* Se não fosse estrangeiro, era
um homem que amanhã fazia secretario de es-
tado , e a companhia de Jesus devia tel-o feito
seu Geral ha muito tempo. . . . Venha ajudar-
me a rezar as minhas Horas. »
Sebastião de Magalhães não disse nada , mas
tremeu involuntariamente , ouvindo as penúlti-
mas palavras do monarcha :
— « Geral ? » — murmurou seguindo a D.
Pedro até ao oratório — « Ainda não ! Mas ama-
nhã , mas um dia cedo ? . . . . Em todo o caso
tinha rasão o padre Ventura: perdeu-se um
grande rei , e por minha culpa. Paciência ! Se
me enganei com D. Pedro II, D. João V. me
vingará; »
Mal previa o padre que dizia uma profecia.
Digitized by VjOOQIC
Digitized by VjOOQIC
CAPITULO ZZII.
UM PORTUGUBZ ANTIGO.
D. Pedro II cumpria a promessa. No dia se-
gainte 6s nove horas da manhO, s. magestade, aò
sair da missa , passou a dar audiência na casa
do « Estrado » a D. Luiz de Âthaide, que o es-
perava em companhia do marquez de Marialva ,
genttl-homem da sua camará. Os dois fidalgos
conversavam confidencialmente ; e o marquez pro-
curava socegar o animo do pae de D. Catharina,
cujas faces animadas e gestos violentos mostra-
vam uma grande agitação.
£l-rei entrou na salla, bastante pallido e aba-
tido. Respondendo 6 genuflexão de D. Luiz com
benevolência, insinuava-lhe que o chamava como
amigo. Da sua parte o vassallo, tanto tempo des-
prcsado , e sujeito As privaçOes de uma pobreza
honrada , mas orgulhosa , reflectia no semblante
Digitized by VjOOQIC
2;34 A MOGIDÀDS
grave a severidade que era licito patentear em
tal occasião. Os dois (Nrotogonistas da sceiia(p(ff«
que o marquez saiu apenas entrou D. Pedro) me-
diram-se alguns instantes em silencio, preparan-
do-se para sustentar dignamente o seu papel.
D. Luiz teria sessenta e seis annos ; mas os
trabalhos e os' desgostos íaziam-no mais velho. Os
cabellos todos brancos , a vivacidade ainda pouco
amortecida dos olhos, e a regularidade das fei-
ções, davam-lhe um aspecto insinuante e vene-
rando : a voz cheia de firmeza era agradável ; e
as maneiras a certo arrojo delicado e cavalheiro
uniam a mais attenciosa urbanidade.
— « D. Luiz, estimei esta occasião — disse d^
rei. — desejava conhecel-o. Porque não o tenho
visto ? »
O fidalgo sorríu-se com amargura , e respon-r
deu, beijando a mãa:
— a Sou telho , .sr..; e os velhos na corte pa-
recem cousas d0 outro mundo. Depois, d^e
que me fiz esquecido ninguém mais se l^abrou ;
por isso intendi que tinha sido prudente reti-
rando-me. Para que havia de enfadar? Já. são
sirvo para nada. » ,
— -aOj homens do seu merecimento não <»«
quecem , e a prova e ^ue eu lembreinne. »»
• — ^, Beijo as .oAos de v» magestede I » r^ r^U:?
Digitized by VjOOQIC
M 9. loie y. Ít3&
eou o paé de D. Catburitta com a laesma digiiFr
àwit cesfmtosa. O sm rosto^ porim, mostrava que
sabia o valor das expressões graciosas, de que
insam os soberanos para adoçar as injustiças.
— « Sabe para que q mandei clwmar ? » — ^
peiígantou de repente D. Pedro , olhando muito
fito para elle.
^-r-« V. magestade esp^o que se dignará di-*
zer-m^o. Mas eu estava deteoninadp a vir, ainda
que el*rei mê não chamasse. »
— « Então porquê ? »
— c< Porque. a pobreza é honra, mas a villania
nâo ! V. njagestade podia julgar indignos de pre-
mio os insignificantes serviços de um soldado;
mas el-reiy qu^d é pae, aào pôde cubrir de infâ-
mia os cabellos brancos de outro pae, nem ar-
rastar a reputação de um nome illustre pelas ma~.
ledicencias da sua corte... Â honra de minha filhst
não é só delia, é da fidalguia portugueza ; e desde
hontem o nosso chefe, el-rei, manchou-a par%
toda a vida ! £m Lisboa não se falia senão dos
amores do principe real com uma noviça de Santa
Clara ; e a calumnia, invocando a palavra de v.
magestade, tem a audácia de por a bocca em D.
Catharina de Atbaide !... Saahor, o pae, o chefe
da familia, sou eu ; e pela sua gloria só eu hei da
responder aos homens e a Deus. Na casa do&
Digitized by VjOOQIC
236 À MOdDÁDi
Athaides nunca houve bastardos, nem ha de ha*
Vèr, em quanto D. Luiz fôr vivo. Indaguei a ter-
dade ; lancei-me aos pés de s. alteza real, e te-
nho a sua fé de que todo é falso, falso ! percebe,
el-rei?... porque sendo exacto, como a pessoa do
princípe é sagrada, o meu sangue apagaria a nó-
doa... Agora peço justiça a v. magestade; peço
reparação ! Queixo-me a el-rei da oíFensa que re-
cebi de D. Pedro 11... »
O monarcha ouvia-o com bondade. Longe de
sç aíQigir, o seu rosto tomava alguma animação ,
é com mais doçura do *que firmeza, respondeu,
pegando-lhe na mão, que D. Luiz tractava de re-
tirar :
— « Veio tarde. El-rei jô fez justiça ! »
Apesar da gravidade com que as pronunciou^
estas palavras feriram o pae de D. Gatharina, em
vez de o tranquillisar. Suspeitando que o monar-
cha declinava a reparação por meio de uma eva-
siva o fidalgo irritado fez-se pallido; e com
semblante severo e olhos altivos replicou aspera-
mente:
— « Senhor, se ha quarenta annos em Mon
tes Claros eu soubesse que este era o premio do
meu sangue, a espada ficava na bainha ! A co-
rda de V. magestade eu, nós todos, é que Ih^a po-
zemos na cabeça ; e para nos tractar assim el-
Digitized by VjOOQIC
0K ©. J0A0:V. 237
rei de Cástella era melhor... Ao metios esse não
nos devia nada ! »
Ouvindo a apostrophe orgulhosa, D. Pedro II
recuou dois passos. Â vista faiscou, e a estatura
tornon-se erecta de repente. Lançando ao velho
militar um desses olhares que partindo do rei
dizem que a sua cholera é a cholera do ledo , o
príncipe contendo-se a custo, disse-lhe severa-
mente :
— « D. Luiz esqueceu, parece-me, que está
faltando ao seu rei ! O duque de Bragança não
quer ouvir ; mas D. Pedro II sabendo é obrigado
a castigar. »
O antigo soldado era uma alma que não co-
nhecia o medo. Tão firme na honrosa intrepidez,
como o rei na sua força ; tão altivo do seu nome,
como elle da sua corda, respondeu com a vista irri-
tada ao olhar ameaçador do monarcha, e a voz,
mais alta ainda, proferiu um cartel audacioso,
sabendo que lhe podia custar a liberdade.
— « El-rei deshonrou a minha espada — el-
clamou com extrema solemnidade — fez do meu
nome, antigo como o de v. magestade, o ludi-
brio da corte, aonde as línguas são mais com-
pridas do que as armas... El-rei falta. ao seu jura-
meaio, não guarda os nossos foros : a coroa não
nos cobre, fere^nos ! De hoje em diante ficámos
Digitized by VjOOQIC
à3t A MOCIDABB
quite». Nio tornarei a sentr a casa de Bragança.
A familia dos Athaides, cheia de gloria na Asta,
e em toda a parte aonde se deu uma batalha,
acabou, porque d-rei de Portuga) disse uma ca-
lumnia, e é rei... nSo responde seiâo a Deus!
Ao menos a espada de meus ffvós não ver6 esta
vergonha ; ahi a deixo para casttgo dos ingrato»
que sustentou ! »
Dizendo isto atirou a espada nua aos pés da
D. Pedro ; e cruzando os braços, eiclamou com
a cabeça arguida :
— 4( Agora façam do corpo o que quizereoii
Pôde V. magestade sepultar-me em uma torre.
É o roodo de occoUar nm borrão nos escudos
da fidalguia portugueza. »
Attofiito do arrojo, o imoarcha no primeiro
impulso deu com o pé na espada e atTastov^a
cheio de ira. Depois, com a mfto no punho do
florete, dirígki«*se a D. Luiz. Estse, sen recuar
nem empaltideeer^ Tsndo a sua valentei espada
pizada aos pés, clamon cortado de amargara:
-*-« O marquea de Marialva fozia mais oaso
de uma espada U.. É verdade que^a marques era
um heroe... Senhor ! •-^-prosegniu exakando-se—
dava o meti saiigoe para outra pessoa pniticÉr a
acção de vi- magestade re juro que essa .e0pHÍA
não era arrastada pelb chão sem levar oimstgo
Digitized by VjOOQIC
olguem^. Louve a Deus el^-rei t Estamos sós,
e a paciência é maior do que a offensa. >
Duas lagrimas escaparam pelas faces do an-
tigo soldaclo ; e senlindl^as queimar, enchugou-as
com 99 costas da mão, e abaixou a cabeça, con-
fnso tahea da primeira firaquefla da sua tida.
O príncipe tinha tido tempo de reflectir ; e
convencido de que a sua precipitação em accu-
sar sem provas fòra causa da magoa que atríbo*
tava aqueHe coração, compadeceiHse, e admirou
o arrejo, o leal orgulho que o elevada contra a
magestade da terra, sem outras armas senão a
constância para soífrer. D. Pedro, jâ o vimos,
sabia apreciar ne&tes tonoes a verdadeira gran-
deza d'alma ; e conhecendo^ o seu logar, perce-
beu que a rei nesta oceasíão, para ser rei, devia
descer e não punir.
Demais, aqueUas lagrimas só a agonia podia
arrancal-as , porque eram mais do que sangue ;
pareceu-Ihe glorioso enchugal-as ; e não traspassar
de mais dore» a alma do infeliz. Feitas estas re-
flexões, a que deu força a lembrança das suas
promessas ao padre Ventura, D. Pedro II, em
toda a magestade da soa elevada estatura, foi di-
reito â espada, levantou-a do chão, e chegando-
íe ao veHio fidalgo, meteu-lha n» bainha, di-
zendo: . . '
Digitized by VjOOQIC
840 .A aioaDADiE
— 4c D. Luiz, ambos nos excedemos, creio eu !
Guarde essa espada ; não é minha, nem sua, é
da historia. »
A reparação era digna de um monarcha ; o
pae de Catharina não pôde resistir-lhe. O joelho,
antes rebelde, dobrou-se , e a yoz de firme pas-
sou a tremula :
— « Senhor ! — acudiu já sem occultar as la-
grimas que saltavam pelos olhos — é uma espada
que perdeu a honra, que nunca roais posso ti-
rar. Não sabe v. magestade o que todos dizem ?
Minha filha está sendo amante do príncipe D.
João!... Sou o pae delia, sei que é falso, e não
me atrevo a levantar a mãol... O seu único dote
era a boa fama, e essa... »
— a Está el-rei aqui para dizer que está pura,
como desejaria a de suas próprias filhas ! — iu-
terrompeu D. Pedro com dignidade. — « Se um
erro involuntário oiFendeu uma familia distincta,
sou o primeiro cavalheiro portuguez, e hei de cum-
prir os deveres que me impõe o sangue. D. Luii,
levante-se ! Se me ouvisse tinha sido menos in-
justo. Também sou pae; avalio a sua dòr; e ad-
miro o seu caracter... Tudo pôde reparar-se que-
rendo Deus. »
— « Comp , sr. ! É impossivel ! » — gritou o
desditoso pae, apertando as mãos com angustia.
Digitized by VjOOQ IC
BE D. JOÃO V. 241
— fc Do modo que direi. Sabe aonde sua fi-
lha está a esta hora? »
— <x Em Santa Clara. »
— c( Engana-se. Ha de vir em caminho para
casa de Lourenço Telles, commendador de S. Mi-
guel das Minas. Mandei-a tirar do comento p<^
ordem regia , e encarreguei o secretario das mer-
cês de a executar. »
— - « Senhor^ senhor t » -^ exclamou D. Luiz
deítando-se de joelhos aos pés de el-rei. — « V.
magestade acabou de nos perder ! Amanhã a voz
geral... d
— c( É que D. Catharina casa em uma famí-
lia tão illustre como a delia ! -^ atalhou el^rei
sorrindo — « Diga-me : qual é o mal de que se
queixa ? »
— (c A calumnia dos amores de s. alteza com
minha filha ! »
— « E se el-rei hontem recebesse um reque-
rimento, pedindo ordem especial para o casa-
mento de D. Catharina com o veador do prín-
cipe, o conde de Aveiras, por se amarem extre-
mosamente ? E se a causa de sua filha se fazer
religiosa sem vocação, e chorando o mundo pelo
contrario, fosse unicamente o seu respeito e obe-
diência, quereria seu pae a infelicidade eterna
delia ? Confesse, D. Luiz, sendo isto exacto, não
T. n. 16
Digitized by VjOOQIC
242 A HOCIDAPE
Gn bem passando a ordem e mandando-o cha-
mar para lhe pedir que coqcorde, e permitta o
casamento? »
Extático, o antigo fidalgQ, olhava sem fallar.
Achava-SG em um mundo inteiramente novo. £n^
taretanto o sen orgulho ainda foi bastante para o
anifnar a exprimir uma espécie de recusa.
— « Sendo exacto — disse elle — e eonce-
dendo^me el-rei a graça de o publicar, estamos
salvos, dSo ha duvida ; mas D. Catharina é muito
pobre para o conde de Aveiras, e eu muito al-
tivo para aceitar como esmola uma alliança que
d^ve ser igual a todos os respeitos, n
-^(( Sejamos rasoaveíslr-* observou D. Pedro
—A honra primeiro que tudo; mas depois da
honra, menos fidalguia, e mais ternura. D. Ga-
tbarina pré^a o conde ; elle merece-a : o que ha
de ser, seja!... Dei a minha palavra; e quero
illustrar a casa de Aveiras, honrando-a com uma
condessa da minha escolha. É coisa feita, D.
Luís! — accrescentou sorrindo. — Sou o padri-
nho ; e as jóias «e o dote da condessa ficam por
conta do meu presente de noivado : mas dentro
em poucos dias casam ; e hoje publica-^e na corte.
Agora fallemos dos serviços do pae. Estou infer^
mado, e sei que estão por galardoar. D^ Luiz ,
faço-lhe mercê de uma commenda de três mil
Digitized by VjOOQIC
jm D. Jolo V. SliS
cruzados cotoi 80ÍNrevivencia no esposo de sua fi-*
lha. Creio que assim acabaram os seos escropa-
los»?
— <x Mas resta-me o remorso de conhecer t&o
tarde o magnânimo coraçSo' de ei-reh Senhor ! -—
exclamou lançando-se aos pés do soberano, e cu-*
brindo-lhe a mão de ósculos respeitosos — dei-
xe-me v. magestade expiar o meu erro no exer*
cito do marquez das Minas. Talvez eu lá nfto seja
tão velho como aqui. x>
' — « Não, D. Luiz, na idade, em queestamos^
é preciso descançar. Deixemos colher alguns lou-
ros também aos moços. Se eu fallecer prímtriro
— proseguiu com tristeza — lembre-se de mim,
e conte alguma vez esta historia aos seus netos.
Os reis gostam de ser estimados, mesmo depois
de mortos. Ê a penitencia que lhe imponho pe-<
lo... arrebatamento de seu génio. »
-*- « Deus ha de aíTastar de nós tamanha oa7
lamidade » — acudiu D. Luiz enternecido.
— « S. alteza real !»-*- annunciou o marquez
de Marialva.
Segundo o estilo, D. João vinha saber da saúde
de seu pae, e oíferecer*lhe os seus respeitos. De*
pois de o abençoar, o monarcha abraçou-o, e vi-
rando-se para elle com bondade :
— « V. alteza — disse el-rei — ha de ter gosto
Digitized by VjOOQIC
244 A MoaDAns
em conhecer um fidalgo do0 que estiveram em
Montes Claros com o marquez de Marialva. . Se
deseja saber como foi a derrota dos castelhanos ,
pergunte a D. Luiz de Athaide, que elle lh'o dirá.
É um dos poucos que restam ainda de uma das
maiores viotorias da restauração. »
O principe olhou para seu pae , e deu a mão
a beijar a D. Luiz. S. alteza, percebia-se, não
podia combinar este agrado repentino com a
severidade da noite antecedente. Da sua parte^
D. Pedro desejando evitar qualquer explicação,
acudiu logo :
— ((Ás informações que tive hontem eram
falsas ; e em prova da minha amizade, saiba v.
alteza que os seus desejos estão satisfeitos. Â ro-
gos meus D. Luiz auctorísa o casamento de D.
Gatharina de Athaide com o conde de Aveiras,
seu veador ; determinei ser o padrinho da noiva ;
e espero que v. alteza estimará sel-o também do
conde. »
O principe inclinou-se com respeito. Voltan-
do-se depois para D. Luiz accrescentou :
— «O pae de D. Gatharina pôde estar certo de
que o marido de sua filha é digno das graças de s.
magestade, e das virtudes dos seus antepassados. »
— « Obedeço ás ordens de el-rei e de v. al-
teza! i>
Digitized by VjOOQIC
DE D. JOÃO y. Si4ii
— «o conde pae está na sala do docel ; po-
dem fallar ambos. »
— « Adeus, D. Luiz! — gritou eWrei — Não
se esqueça. Em poucos dias faz-se o casamen-
to. » .
Quando oTidalgo saiu, D. Pedro, pegando na
mSo de seu filho com amizade disse-lhe :
— « João, teu pae foi severo pelo grande amor
que o cega. Ainda subsiste a tua repugnância a
casar na casa de Áustria ? »
— -«A minha mSo nSo é livre, já o expuz a
V. magestade. »
— « E se amanhã fosses rei ? »
— « Era o mesmo. »
' — « Deves a honra a alguma dama ? »
— « Devo amor , que não é menos. »
' — « E se ella te desobrigasse ? »
— « Como a primeira paixão dos principes é
o bem do estado, verdade que v. magestade hon-
tem me deixou gravada, livre a minha palavra,
farei o que mais convier ao esplendor da coroa, d
— « E até lá? »
— « Até lá... nada! »
— «O nome dessa dama ? »
— « É um segredo. »
— « Para teu pae ? » — observou D. Pedro
sorrindo.
Digitized by VjOOQIC
246 A MOCIDADB
— c< Sobretudio para el-ret! »«— resqpondeu o
príncipe com outro sorriso.
— « £ se o deseubrirmos ? »
— « Gomonik^acceito a minha palavra, senão I
livremente restituída — acudiu s. alteza fria-
mente — é natural que eUrei nào descubra nada ! »
D. Pedro desgostoso despediu o principe com
o gesto, e retirou-se. Nessa tarde chamou os mé-
dicos e o seu confessor ; e como no dia seguinte
não houve audiência nem despacho, o povo dizia
em voz geral que el-rei adoecera gravemente. I
Digitized by VjOOQIC
índice dos capítulos.
CAPITULO xni — Nem tudo o que luz é
oiro! 1
CAP. XIV — Ecce saccerdos magfius! ... 21
CAP. XV — Uma serva de Deus! ^ 85
CAP. XVI — Nem eu nem tu 81
CAP. XVII — Mentira e verdade 107
CAP. XVIII — Em quanto venta molha a
VELLA ! 121
CAP. XIX — Antes quebrar que torcer. . . 151
CAP. XX — Sua alteza o infante D. Fran-
cisco ! 179
CAP. XXI — Duas potencias ! 201
CAP. XXII — Um portuguez antigo 133
Digitized by VjOOQIC
— '1r"€í ^
Digitizedby Google )(^
V.
Digitized by VjOOQIC
Digitized by VjOOQIC
Digitized by VjOOQIC
Digitized by VjOOQIC