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Full text of "Antologia Brasileira: Coletânea Em Prosa E Verso de Escritores Nacionais ..."

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ilDtoloi Bnsileifii 



SELETA EM PROSA E VERSO 
DE ESCRITORES NACIOHAES 



Edição atualizada 




L1TR&RI& FRANCISCO ALTES 



0869.808 W495A 1942 
LAC 



w 



THE UBRARY 
OF 

THE UNIVERSITY 
OF TEXAS 

W405â ■ 
1942 - 



E:s^ún^^^:%i'^ma imErmí 




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This Book is Due on the L^test Date Stamped 


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FEB 2 9 l%i 




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ANTOLOGIA BRASILEIRA 



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^>y^i*Q^õCÓ'&0^ 




ANTOLOGlil BRASILEIRll 

COLETÀNEA EM PROSA E VERSO 

DB 

ESCRITORES NACIONAIS 



APROVADA E: mandada AbOTAK NAS ESC0L4fc DO DISTRITO FEDERAL, 

APROVADA PELOS CONSELHOS SUPERIORES DE INSTRUÇÃO DOS ESTADOS DO RH) DE 

JANEIRO, MINAS, PARÁ, PARANÁ E SANTA CATARINA; 

ADOTADA NA ESCOLA NORMAL DE BELO HORIZONTE, NO COLÉGIO 

N. S. DE SION (PETRÓPOLIS) E EM 

OUTROS ESTABELECIMENTOS DE ENSINO DA CAPITAL FEDERAL E DOS ESTADOS. 



22.» EDIÇÃO 



LIVRARIA FRANCISCO ALVES 
166, Rua do Ouvidor, 166 — Rio de Janeiro 

S. PAULO I BELO HORIZONTE 

292, Rua Libero Badaró | Rua Rio de Janeiro, 655 
1842 



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1 



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THE LIBR.XRY 

THE UNIVERSITY 

OF TEXAS 



índice analítico 



IHáicM V 

- P»reo0r«i 3CVIÍ 

M u^ Ô^iniées vnlíesss « HCIX 



.^ 



0^ 



^ 



PRIMEIRA PARTE 



PR48A 



w I* D^aprivões e narrstçdes 

Jçíé de Alencar 1 

A Í0t«fl<lft9&o ,....«,. 2 

Morte de Iracema ........ 5 

A Mlavra 7 

A Tijuea ., I 

O jogo das ar^elifihas . . . , ^0 
Manuel Ant. dg Almeié» 

Entrada para a MCola .... ÍZ 

Joaquim M. de Maçeà» . < . 14 

f. Btrçe pitri» 15 

O eaM 16 

^ T^Uewa # S^usa 17 

g>9, O Campo d6« Çi^no* ,... 17 

"^ Bê*íu^¥éo Quim$rãéê 19 

A teba ú% ca«i<|Ué ....... 19 

ViscêHéê áa Tâuna^ ...... ai 

Aspectos 4« Mrti^ ..,<{. 31 




10. 



íll. 



E^cert(fs 



Pagh 



Machad» Í9 4smí$ ♦ . . 24 

13. Fim do \>;»nqwete ^ 9S 

U. "Quinca» Borba" ...;\..., a# 

/o«í|Hiw HabHca , 28 

14 . Oj escravos , jMl 

CqvIqs d9! l^aft 30 

U. A Matrij do S. Jos< d*E!tHei 31 

/fj^ yerU4^tnê II 

10. O tapuio e a SMCurijô .,4. 33 

Inglês de Sousa 34 

17. O caboclo de Amaionas .. 35 
Américo IVemcck 36 

18. A derribada 36 

AhUiff Asevfdo 40 

19. A p«dr«ira 40 

Ferwêirtí dê Araújo 41 

20. O eorafãe humano , . . 43 

DomÍHíM>s Olímpia ...»**.. 44 

31- Cenas 4a lêea .......... 44 



622812 



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\n[ 



ÍNDICE ANALÍTICO 



Excertos 



Pags. Excertos 



Garcia Redondo 46 

22. Plantas carnívoras 47 

Afonso Celso 48 

2Z. S. João d'El-Rei 49 

Raul Pompeia 50 

24. Festa escolar 51 

Olavo Bilac 53 

25 . Entre ruínas 54 

26. A gruta de pedra 55 

Coelho Neto 57 

27. A mata-virgera 57 

Virgilio Várzea 58 

28. Manhã na roça 59 

Xavier Marques 60 

29. O combate 60 

Medeiros e Albuquerqut .... 63 

30 . O filho do inspetor 64 

Euclides da Cunha 66 

31 . O sertanejo 67 

Afonso Arinos 69 

32 . Os tropeiros 70 

ZZ . Buriti perdido 72 

Graça Aranlia Ji 

34 . Queimada 74 

35 . Os pirilampos 75 

Afranio Peixoto 77 

36 . Saudade 77 

Humberto de Campos 79 

Z7 . A primeira escola 80 

38. Um general que não chegou 

a soldado 81 

II. Contos 

Machado de Assis. 

39. Um apólogo 85 

Lúcio de Mendonça 87 

40 . Ura hóspede 88 

Artur Azevedo 91 

41. Plebiscito 91 

D. Júlia Lopes de Almeida 94 

42 . O sino de ouro 95 



Pags. 



\ 



Domicio da Gama 98 

43 . Maria sem tempo 98 

Olavo Bilac. 

44. O velho rei 101 

Coelho Neto . 

45 . As formigas 103 

46 . A flauta e o sabiá 106 

III. Humorismo 

França Júnior 109 

47 . Jantares . . . '. 109 

Urbano Duarte 112 

48. O matuto mineiro 113 

IV. Teatro 

António José da Silva .... 115 

49. Visita de médico 116 

Martins Pena 119 

)0. A família e a festa na roça 119 
França Júnior. 

51. Como se fazia um deputado 124 

V. Retratos — Caracteres 

João Francisco Lisboa .... 129 

52. Vieira na escola 129 

53. António Vieira pregador .. 132 

54. Vieira e D. João IV 134 

55. Vieira preso 135 

Vasconcelos de Drumond . . 136 

56. Inteireza dos Andradas .... 137 
Mons. Pinto de Campos . . 138 

57. O duque de Caxias 138 

Machado de Assis. 

58. O Visconde do Rio Branco 139 
Luiz Guimarães 141 

i9. Infância de Carlos Gomes ., 141 

Visconde de Taunay. 

60 . O padre José Mauricio .... 144 



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ÍNDICE ANALÍTICO 



VII 



Excertos 



Pags. 



Carlos de Laet. 

61. José de Anchieta 148 

Araripe Júnior 151 

62. Machado de Assiz 152 

Joaquim Nabuco. 

63. Zacarias e Paraná 153 

Rui Barbosa 156 

64. Osvaldo Cruz 156 

Silvio Romero 159 

65 . Evaristo da Veiga 159 

José do Patrocínio 162 

66. Silva Jardim 162 

Afonso Celso. 

67 . Joaquim Nabuco 167 

Eduardo Prado 169 

68. O Barão do Rio Branco .. 170 
Alcindo Guanabara 172 

69. O Marechal Floriano 173 

Oliveira Lima 1 75 

70 . Rocha Pita 176 

VI. Dissertações; Questões 
sociais 

José Bonifácio 179 

71. Sobre a questão da escra- 
vidão 180 

Azeredo Coutinho, bispo . . 182 

72 . Civílizamento dos índios ... 1 83 
D. Romualdo de Seixas . . 185 

73. Pela paz e concórdia .... 185 
Sales Torres Homem .... 187 

74. Sobre a crise de 1848 ... 188 
Tavares Bastos 190 

75. A abertura do 'Amazonas .. 190 
D. Ant. de Macedo Costa .. 193 

76. Solução da questão religiosa 193 
Ferreira Viana 195 

77. A obediência 196 

General Couto de Magalhães 198 

78. A língua Tupi 199 



Excertos Pags. 

{ 

Ramiz Galvão 202 

79. Os livros 202 

João Ribeiro 204 

80. Como versar os clássicos? .. 203 

VII. História e Geografia 

Rocha Pita 209 

81. O Brasil 209 

. Capistrano de Abreu 211 

82. Descobrimento do Brasil .. 212 
Pereira da Silva 214 

83. O nome de "Brasil** .... 214 
Gonçalves Dias 216 

84. O indígena do Brasil 217 

Fr. Vicente do Salvador . . 219 

85. Fundação do Rio de Janeiro 220 
Varnhagen 221 

86. A Insurreição Pernambucana 222 
Joaquim Norberto 224 

87. Duas Sessões dos Conjura- 
dos 225 

João Ribeiro. 

88. A execução de Tiradentes .. 227 
Euclides da Cunha. 

89. A Independência 230 

Raul Pompeia . 

90. Uma noite histórica 234 

Eduardo Prado . 

91. A História do Brasil 239 

VIII. Tradições — Lendas 

Melo Morais (filho) 241 

92. S. Sebastião 242 

Franklin Távora 244 

93. A Cruz do Patrão 245 

IX. Contos populares 

94 . A mochila de ouro 249 

95. O cágado e a festa do céu 250 

96. O veado e a onça 251 



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^ít 



ÍKDt&ft AMALf¥iao 



EJteMos 

9^. A taposa « a dàÇà .. 

9È. Õ inacaee e d cofelhd 

9^. A ohçà fc G tato 



^B^í. Excifios 



252 
25J 
254 



Xi Sisrmões^e discursos 

Fr. Êrancisco de S. Carlos 255 

lOÔ. A viftttée da Fé ...*;** 255 

Fr. Sáfhpaêo ...... i..».. 256 

lÔi; Diés Irae ...*.. 257 

Aí«w»ír A^eH^ 2S1Í 

idá. A causa das Kevoltt^õeii .. 258 

Pudre }míí MarU ....;. 260 

lôi. A Grafa 260 

íosé dv ÈUi^a Liib&ú .... 262 
104. última Swsão dá Coiteti- 

túihté 26á 

António Cariot 264 

lôi; ÚltUftá SeiéiG dà CohsH- 

ttíihtí ; . . . . 265 

EváriAo dá Vei^ '. 26? 

Idê. Detnissão da regência per* 

manente ....;..... 268 

J9sé SéHifáció (e ttloçò) .. 270 

107. Uma peroraçSo 271 

Tt>biúà Barreto 273 

108. A propósito dia Capitulação 

dt Montevideu 273 



fa^l. 



Joaquim Nabueo. 

1Ô9. Camões 2Í% 

Rui Barbosa, 

1 10 . Aos moços 27é 

111. A pátria 278 

D. Aquino Carreia ....>. 280 

112. Palavras de Fé ^.... 280 

XI. CaílúS 

Aiêxàfiãfré âé Cuinião 283 

llà. Carta a Diogo Barbosa Ma- 
chado 283 

ll4. Carta a uni enviado de Por- 
tugal na corte <Íe Inglá* 

terra 284 

Alvares de Aseveào 285 

\\$, Carta de saudação 286 

XIl. Máximas e pensamento^ 

M^rqkêi dg Maricá ...... iBf 

116. Máximas e t>ehsamentos .. 287 
Gonçalves de Magalhães . . 289 

117. Pensamentos 289 

118. Máximas t seikttttfas de vá» 

rios autores » . 290 



SEGUNDA PARtE 
PÒE6IA 



Excertos 



Pags. 



L 0miètoB 



Gr^tório dw Múi&s 295 

1. Tempestade 295 

â. CohtH«ão 296 

Cláudio Maneei da Costa 297 

3. Sohètô XXXi 297 



Excertos 



Pags. 



4. Soneto XCVIIt 298 

Alvarenga Peixoio 298 

5. A Maria Ifigênia 299 

Tomas António Gonsagà .. '299 

6 . Soneto 300 

António Curiós. 

7. Liberdade 301 



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ÍX 



Excertos 



Pags. Excertos 



Muhíé aêtnf9 ...o..*>. 301 

8. O CrUto tw Oél^ola .... 302 

I. ImptQvitç w 302 

Maciel Monteiro 303 

10. Softteú* i 303 

Laurindo Rabelo 304 

11. Leandro é ttôihefo 304 

Machado de Assis. 

li. Círculo vicieto ......»»».. 305 

13. A Caroliiit S9Í 

Luiz Guimn^ãé* J%ni$¥. 

H. T^A ^ barra .......... 306 

15. Visita à casa paterna .... 307 

16. O fiUii) ....»».. 307 

Artur Axçvpfip, 

17. Velha anedota 306 

Silva Ramo* .*..»... ^ .. . 309 

18. A partida >..... 309 

Albertfi de 0/ft^a 310 

10. O ninho 310 

20 . A vingança da portt .... 311 
Raimúndú Ci^rrH 311 

21. Anoitfctr ..* k.^... 312 

22 . As pombas ! . . 312 

23. Mal secreto 313 

Olazo Bilac. 

24. A Gou^aivei Diiit 313 

25. Ouvir estrálM ..*..,.#... 314 

26. O votder 315 

2f. A um poeta 315 

Augutfó dt Lima ^ 3 16 

2i. Paisagem liottálgicft 316 

B. Lopes 317 

29. Qu»di-0 317 

30. Cromo 318 

Afonso Celso. 

31. Porto eele«t« *..... 318 

32. Alvgriat 3i9 

CriMr e Sotma 320 

í% . DolHui Aur«a láO 

Rodrigo Otévi» ..!....«.. 321 

14. Ouviftdo Bettbovth v»..\. Hl 



Pags. 



ViçfnU de C«^««f^ 332 

Í5. Soneto ...... ,.v.....»»»*. 322 

Gmlifi 4$ Mf^m ...... 313 

26. No lago ái GftA»s«t«ill .. 323 

37. O Sôho df dnwr» ..*... 324 

Guimarhi P^oi ...<»... 324 

3i. Sonetd .......*».. 324 

Batista C9pH»s 325 

H. O fundador d« •• ftnH 326 

Pedro RêèH9 326 

#0. Mort« de Halw 32f 

Magalhães de Aferedo ... 32^ 

41. Dante 32« 

D. Francisca /iW» Silv4 328 

42. Cega » ÍÍ9 

Félix Pachecp • 329 

43. Estranhas lágrimas ....^^ 330 
Bárilio de èít^higt .... 330 

44. A wcola w *. Ul 

Olegário Mariano ........ 33 1 

45 . Conselho d* •«rtígo ...... 332 

4«. Recife de cora} 312 

Luís Carhe dá Fansi^m .. 333 

47 . Exortação 333 

48. Destinos opostos 334 

Martins Fof^tcs .......... 335 

4f. Deli:ad«za 335 

Sa. Anchieta 336 

IL LMvik 

Tomas António Contra. 

íl. Ut« KXVIU 3â7 

52. Lira XXXVL 338 

SHvá Alvarenga 339 

53 . Glaura dormindo 340 

54. Madrigal I ;.... 342 

Gonçátws Díês. 

55. Caii4«d do exilio ....*... 342 
Sé. Seus olkos 343 

FroMcite^ Of«4/fOllo ..;... 344 

Sf. Fior d« vftle 345 



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ÍNDIGB ANALÍTICO 



Excertos 

58. IllusSes da vida 346 

Junqueira Freire 346 

•59. A órfS na costura 347 

Laurindo Rabelo, 

60. A minha resolução 349 

Alvares de Axevedo. 

61 . Si eu morresse amanha . . 350 
Teixeira de Melo 351 

62. Ignotae Dea 351 

Casimiro de Abreu 353 

63. Juriti 353 

64. Deus 354 

65. No jardim 355 

Castro Alves 356 

66. A duas flores 356 

Mudo Teixeira 357 

67. As mães 358 

Fontoura Xavier 358 

68. Paráfrases 359 

69. Ambições 359 

Raimundo Correia. 

70. Três esUncias 360 

Vicente de Carvalho. 

71. Cair das folhas 361 

Olavo Bilac. 

72. A avó 362 

Lui£ Murat 363 

73. Súplica 363 

F. de Paula M. de Barros 365 

74. Igualdade ilusória 365 

Mário de Alencar 366 

75 . Marinha 366 

76. Quadras (Poesia popular). 367 



III. Cânticos 



Hinos 



Gonçalves Dias. 

77. O canto do guerreiro .... 369 
Gonçalves d^ Magalhães. 

78. Hino dos bravos 372 

Osório Duque-Estrada .... 373 

79. Hino Nacional 373 



Excertos 

Medeiros e Albuquerque. 

80. Hino à proclamação da 

República 375 

Olavo Bilac. 

81. Hino à bandeira nacional .. 377 

IV. Elegias 

Fagundes Varela 379 

82. Cântico do Calvário 379 

Machado de Assis. 

83. A morte de Gonçalves Dias 384 

V. Odes — Poesia Pa- 
triótica 

/. Bonifácio de Andrade e 
Silva. 

84 . Ode . aos Baianos 387 

Sousa Caldas (Padre) .... 391 

85. Ode Sacra 391 

Gonçalves de Magalhães. 

86. Napoleão em Waterloo ... 393 
Pedro Luís 397 

87. Terribilis dea 397 

Tobias Barreto. 

88 . Partida dos voluntários . . 400 
Bernardo Guimarães. 

89. O Ipiranga e o Sete de Se- 
tembro 401 

Magalhães de Azeredo 

90. A Carlos Gomes 403 

VI. Poesia descritiva — 
Narrações 

Luiz Delfino 405 

91. A cidade da Luz 405 

Bruno Seabra 407 

92. Canto extremo de um cego 407 
Luie Guimarães, 

93. No deserto 409 



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ÍNDICE ANALÍTICO 



XI 



Excertos 

Fagundes Varela. 

94. Avel Maria! *. 411 

95. O Vizir 412 

Teófilo Dias 412 

96. Procdárias 413 

Augusto de Lima, 

97. O inquisidor 414 

98. Cólera do mar 415 

Alberto de Oliveira. 

99. A torrente 416 

100. O ninho e a cobra 417 

Raimundo Correia. 

101 . Os ciganos 418 

102. A leoa 419 

VII. Apólogos — Fábulas 

VUela Barbosa 421 

103. O rio e o regato 421 

A. L. de Bonsucesso 423 

104. vento e a poeira 423 

105 . O moinho 424 

106 . Temores 425 

Barão de Paranapiacaba . . 425 

107. O carvalho e o caniço .... 426 
João Ribeiro. 

108. O Califa 427 

Eugénio Werncek 428 

109. A abelha e a formiga .... 428 

110. O vagalume c o sapo .... 430 

111. O coelho e o periquito . . 430 

VIU. Poesia épica 

José Basílio da Gama 431 

112. Lindóia 431 



Excertos 

Santa Rita Durão 433 

113. Moema 433 

Porto Alegre 435 

114. Descoberta da América .. 435 
Gonçalves Dias» 

115. I-Juca-PJrama i.... 43* 

Castro Alves. 

116. Votes d'Africa 449 

• IX. Poesia dramática 

D. J. Gonçalves de Maga- 
lhães. 

117. Monólogo 453 

X. Sátiras — epigramas 

Gregário de Matos. 

118. Sátira 455 

119. Epigrama 456 

120. A um músico que levara 

uma sova de pau 457 

D. J. Gonçalves de Maga- 

Ihães. 

121. Epigrama 457 

Correia de Almeida 458 

122 . A um galeno 458 

125 . O doutor Saracura 458 

124 . Epigrama 459 

Joaquim Manuel de Macedo. 

125. Menina a la moda 459 

Laurindo Rabelo. 

126. A um calvo pretensioso .. 459 
Fagundes Varela. 

127. A língua humana 460 

Lúcio de Mendonça. 

128. Epigrama ^ 460 



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índice alfabético dos autore» 



Autores Pags . 

Hfonso Arinos G^, 70 e 12 

Afonso Celso 48, 49, 167, 318 e 319 

Afvânio Peixoto , 77 

Alberto de Oliveira , 310, 31}, 416 e 417 

Alcincjo Guanabara , 172 o 173 

Alexanclre de Gusmão 283 e 284 

Aluizio Azevedo 40 

Alvarenga Peixoto 298 o ^99 

Alvares de Azevedo 285, 286 e 350 

Amér jco Wernecl^ 36 

António Carlos 264, 265 e 301 

António José da Silva 115 e 116 

equino Correia, D 280 

A?pripe Jiinior 151 e 152 

Artur Azevedo ..,., 91 e 308 

Augusto de Lin]a . , 316,414 c 41p 

A?ieredo Coutinho, Bispo 182 e 183 

Rutista Cepelos 3^5 o 320 



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xiv índice alfabético dos autores 

Autores Pags. 

Barão de Paranapiacaba 425 e 426 

Basílio de Magalhães 330 e 331 

Bernardo Guimarães 19 e 401 

B. Lopes 317 e 318 

Bonsucesso (A. L. de) 423, 424 e 425 

Bruno Seabra '. 407 

Capistrano de Abreu 211 e 212 

Carlos de Laet 30, 31 e 148 

Casimiro de Abreu 353, 354 e 355 

Castro Alves 356 e 449 

Cláudio Manoel da Costa 297 e 298 

Coelho Neto 57, 103 e 106 

Correia de Almeida, padre 458 e 459 

Couto de Magalhães, General 198 e 199 

Cruz e Souza 320 

Domício da Gama 98 

Domingos Olímpio 44 

D. Romualdo de Seixas, Marquês de Santa Cruz 185 

D. Francisca Júlia da Silva 328 e 329 

D. Júlia Lopes de Almeida 94 e 95 

Eduardo Prado 169, 170, 238 e 239 

Emílio de Menezes 323 e 324 

Euclides da Cunha 66, 67 e 230 

Eugénio Werneck 428 e 430 

Evaristo da Veiga 267 e 268 

Fagundes Varela 379, 411, 412 e 460 

Félix Pacheco 329 e 330 

Ferreira de Araújo 43 

Ferreira Viana 195 e 196 

Fontoura Xavier 358 e 359 

França Júnior 109 e 124 



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\ 



índice alfabético dos autores xv 

Autores Pags . 

Francisco Otaviano 344, 345 e 346 

Francisco de Paula Monteiro de Barros 365 

Franklin Távora 244 e 245 

Fr . Francisco de S . Carlos 255 

Fr . Sampaio 256 e 257 

Fr. Vicente do Salvador 219 e 220 

Qarcia Redondo 46 e 47 

Gonçalves Dias 216, 217, 342, 343, 369 e 438 

Gonçalves de Magalhães 289, 372, 393, 453 e 457 

Graça Aranha 73, 74 e 75 

Gregório de Matos 295, 296, 455, 456 e 457 

Guimarães Passos 324 e 325 

Humberto de Campos 79, 80 e 81 

Inglês de Souza 34 e 35 

João Francisco Lisboa 129, 132, 134 e 135 

João Ribeiro 204, 205, 227 e 427 

Joaquim Manuel de Macedo 14, 15, 16 e 459 

Joaquim Nabuco 28, 29, 153 e 275 

Joaquim Norberto 224 e 225 

José Basílio da Gama 431 

José Bonifácio, o Patriarca 179, 180 e 387 

José Bonifácio, o moço 270 e 271 

José de Alencar 1, 2, 5, 7, 9 e 10 

José do Patrocínio 162 

Jos^ da Silva Lisboa, V. de Cairú 262 

José Veríssimo 32 e 33 

Júlio Maria, Padre 260 

Junqueira Freire 346 e 347 

Laurindo Rabelo 304, 349 e 459 

Lúcio de Mendonça 87, 88 e 460 

Luiz Carlos da Fonseca 333 e 334 



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XVI ÍNDICE ALFABÉTICO DO!l AUTORÈ^ 



Autores Pags. 

Luiz Delfino 405 

íiUiz Guimarães 141, 306, 307 e 40Í9 

Luiz Murat 363 

Macedo Gosta, Bispo »» 193 

Machado de Assiz 24, 25, 26, 85, 130, 305 e 384 

Maciel Monteiro 303 

Magalhães, V. Araguaia 289, 290, 372,393,453, e 457 

Magalhães de Azeredo 327, 326 e 403 

Manoel António de Almeida w » . 12 

Mário de Alencar 366 e 36? 

Marquês de Maricá 28* 

Martins í^ontes 335 e 336 

Martins Pena 119 

Medeiros e Albuquerque 63, 64 e 375 

Melo Morais, Filho 241 e 242 

Monteiro de Barros, F . de Paula 365 

Monte Ah erne 25fi 

Mucio teixeira 357 e 358 

Muniz Barreto 301 e 302 

Olavo Bilac .. 53, 54 55, 101, '313, 314, 315, 302 e 377 

Olegário Mariano 331 e 332 

Oliveira Lima 175 e 176 

Osório Duque-Estrada 373 

Pedro Luiz Pereira de Souza i 397 

Pedro Rabelo 326 e 327 

Pereira da Silva, Conselheiro 214 

Pinto de Campos, Monsenhor 138 

Porto Alegre, Barão de S . Angelo 435 

tiamiz Galvão 20S 

Raul Pompeia ; 50, 51 e 234 

Raimundo Correia 311, 312, 313, 360, 418 e 419 



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índice alfabético dos autores xvii 

Autores Pags . 

Rocha Pita 209 

Rodrigo Otávio 321 

Rui Barbosa, Gonselh.* 156, 276, 278 o 291 

Sales Torres Homem, V. de Inhomirim 187 e 188 

Santa Rita Durão 433 

Silva. Alvarenga , 339, 340 e 342 

Silva Ramos 309 

Souza Caldas, Padre 391 

Sílvio Romero 159, 249, 250 e 254 

Tavares Bastos 190 

Teixeira de Melo 351 

Teixeira e Souza , 17 

Teófilo Dias 412 e 413 

Tomaz António Gonzaga 299, 300, 337 e 338 

Tobias Barreto 273 e 400 

Urbano Duarte 112 e 113 

Varnhagen, Vise. de Porto Seguro 221 e 222 

Vasconcelos de Drumond 136 e 137 

Vicente de Carvalho 322 e 361 

Vilela Barbosa, Marquês de Paranaguá 421 

Virgílio Várzea 58 e 59 

Visconde de Araguaia (Vêr Magalhães) . 
Visconde da Pedra Branca (Vêr Domingos B. de 
Barros) . 

Visconde de Taunay 21 e 144 

W. * 428 e 430 

Xavier Marques 60 



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Pareceres 



Sobre o livro Antologia Brasileira — organizado pelo 
Sr. Professor Eugênio Werneck, assim se pronunciou 
a comissão nomeada para examiná-lo, pelo Sr. Dr. Ma- 
noel Cícero Peregrino da Silva, Diretor Geral da Instrução 
Pública Municipal: 

"Encarregado de dar parecer acerca do valor da 
Antologia Brasileira, obra de autoria do Professor Eu- 
gênio Werneck, que requereu a sua aprovação e adoção 
nas escolas primárias e na Escola Normal e institutos 
profissionaes, desempenho-me ora desse dever. Tenho 
como livro excelente a Antologia Brasileira, cuidadosa- 
mente môlhorada em edições 'sucessivas, das quais a 
que se acha sob a minha vista é já a sexta. Não há no 
género trabalho que exceda em método e cópia de assun- 
tos variados e atraentes, além de primar pelas seguintes 
razões, sobre a maior parte das coletâneas, florilégios 
e seletas que se encontram em nosso mercado de livros: 
a) A Antologia Brasileira contém exclusivamente excer- 
tos de escritores brasileiros, o que acode a uma das 
mais importante faces do problema educativo desde a 
escola primária a nacionalização do ensino pela assídua 
leitura dos fatos, tradições, usos, costumes e tendências 
pátrias; b) Presidiu à escolha dos passos literários o mais 
apurado gosto estético, extreme de esclusivismos de 
escola como de exagerações pinturescas; c) Os assuntos 
dos diversos trechos nunca frizam as raias da aridez abs- 
trata nem são vestidos ambiciosamente de estilo rebus- 
cado ou arcaico, defeito que as novéis e ainda pouco vi- 
gorosas inteligências certo repeliriam por incompatíveis 
com a sua índole e tendências concretas; d) Aos diversos 
excertos precede notícia literária, resuniidíssima embora 
escrupulosa, da vida e obras dos autores, ao que acresce 
quasi constantemente o respectivo retrato; dessa arte se 



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XX PARECERES 



unem, se associam cedo, no espírito das crianças ou dos 
jovens, o escritor e sua produção literária, consórcio de 
que vai surgindo insensivelmente no educando a admi- 
ração e culto respeitoso dos homens que se tém esfor- 
çado pelo engrandecimento o progresso da Pátria, pela 
conquista da felicidade mora! da Nação. 

Por tais e paralelas razões * qu»^ não seriam perti- 
nentes neste breve e sucinto parfH5er, opina favoravel- 
mente à aprovação e adoyão da Antologia Brasileira, para 
uso nas escolas primárias (curso complementar), no# jns* 
titutoa profissionais, e até na Escola Normal, para o pri» 
meiro ano do curso. 

Balvo melhor juizo. Rio, 8 de Abril de 1037. ^ Dr. 
Alfredo Gomes, Professor de português o Uleratura da 
Escola Normal." 

"A Antologia Brasileira, ctilelâneo em prosa õ om v^r^o 
de autores nacionais, é um Mvro já oansatrado pelos m^S'» 
treg e penso que está nas condições de eer aprovado e 
adotado ngo só no curso aoipplemcntnr de nospãs escolas 
primárias, mas também como livro cje leitura f» anáIÍ90 
na primeiro ano na Escola Normal do Distrito Federal. 

E' ôste o meu parecer, salvo melhor jui>o ou vç\W 
bem orientada crítica. 

Rio, 26 de Março de 1917.. — Dr. Sérvulo Joêé (te 
^iquêifa Lima." 

"Louvorme noa paréeereç dos grã.DPf... Alfredo Go» 
me? Sérvulo de Lima. 

Rio, 10 de Abril d^ 1917, — Mavia Clara C, de M\ 
Lepçs ." 

k vipta de taííJ pareceres a obra foi aprovada ^ mau» 
d^da adotar- 



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opiniões valiosas 



"O seu trabalho está feito com muito critério e es- 
crúpulo. E' o íiielhor, no seu género, que conheço em 
português. Presidiu à escolha dos excertos fino gosto 
literário. Encerram grande cópia de informações as no- 
tícias biográficas e bibliográficas. 

Dou-lhe sinceros parabéns, e o concito a ir prepa- 
rando outro livro, mas A.-íse de produções originais suas." 

Afonso Celso. 

"O Sr. Eugênio Werneck, professor no Estado do 
Rio, publicou uma "ANTOLOGIA BRASILEIRA". As 
seletas de autores nacionais e portugueses não são raras. 
Raras, porém, são as que prestam. Entendem muitos que 
a questão é apenas de paciência, tesoura e goma-arábica : 
paciência para colecionar livros de escritores diversos; 
tesoura para cortar-lhes uns pedaços aqui e ali, e goma 
para colá-los em folhas de papel, que, reunidas, devem 
dar uma seleta. O difícil é encontrar nelas critério e 
bom gosto na escolha. Na Antologia do Sr. Werneck há 
estas duas raras e preciosas qualidades." (/. Santos.) 

Medeiros e Albuquerque. 

"ANTOLOGIA BRASILEIRA" — coletânea de autores 
nacionais, etc. De todos os livros deste género, publi- 
cados no Brasil, é, talvez, este o mais opulento e completo. 
Cada trecho de prosa ou poesia vem acompanhado de uma 
rápida biografia de respecctivo autor." 

Artur Azevedo. 
Eloy, o Herói. 

ANTOLOGIA BRASILEIRA — Excelentemente escolhida. 

João Ribeiro. 



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) 



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PRIMEIRA PARTE 

PROSA 



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THE UBRARY 

THE UNIVERSITY 

OF TEXAS 



i. DESCRIÇÕES E NARRAÇSES 



J08B PE ALENCAR 






José Martiniano de Alencar, o mais fecundo ta|vez e, sem 
contestação, o mais brasileiro dos escritores nacionais, nota- 
bdlizou-aie principalmente como romancista, mas íoi também 
«^raiwaturarQ % copiedií^graío, or^^dor parlamentar, jornalista po^ 
U^icçi, çríticQ e Jurisconsulto. 

Pelo seu estllQ primoroso — origfinal e inconfundível, pe^o 
seu brasileirismo de assunto e de forma, pelo seu nativlsmo, 
flUâ Q levou a trabalhar pela lomiaQ^o do djal^to brasileiro, 
Alencar tem um lugar de superior destaque na história 4a 
Utçr^tura brasileira. 

Corpo político, saiu deputado g^ral pelo Ceará em» quatro 
legislaturas e ohe^ou a ministro de Kstado, ocup^^ndo a past^ 
âa Justiça, no j^pin^te <íe H <ie Julhq de 1868. 

Bibliografia — O Guarani (1857), romÉ^noe brasileiro; C»nop 
'}llflin^to8 e 4 v»Ví^í»*<» <1S60), 43 mi^fias de praia e Luciala (1862), 
Diva (1864), Iracema (1865), O Gaúcho è A pata da gazela (1870), 
O tronco do ipê e Guerra dos mascçttes (1871), Sonhos d^euro 
(IJITa), AHarrdhÍQ9 (Q ganttuJQ, Q evmitdo da QIótíq^ A alma de 
Lázaro) (1873), Uhirajára^ Til e Senhora (1875), Q ^çrtQnç^Q 
(U7§i, tpdQs romíinces, novelas e crOnicas- além de pumerosas 
peças de teatro, panfletos políticos, etc. 



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f 



— 2 — 

1. A Inundação 

Tudo era ágiia e céu. 

A inundação tinha coberto as margens do rio até 
onde a vista podia alcançar; as grandes massas d'água 
que o temporal, durante uma noite inteira, vertera sôHre 
as cabeceiras dos confluentes do Paraíba, desceram das 
serranias, e, de torrente em torrente, haviam formado essa 
tromba gigantesca que se abatera sobre a várzea. 

A tempestade continuava ainda ao longo de toda a 
cordilheira, que aparecia coberta por um nevoeiro escuro: 
mas o céu, azul e límpido, sorria mirando-se no espelho 
das águas. 

A inundação crescia sempre; o leito do rio elevava- 
se gradualmente; as árvores pequenas desapareciam e a 
folhagem dos soberbos jacarandás sobrenadava já, como 
grandes moitas de arbustos. 

A cúpula da palmeira em que se achavam Perí e 
Cecília parecia uma ilha de verdura, banhando-se nas 
águas da corrente; as palmas que se abriam formavam no 
centro um berço mimoso, onde os dois amigos, estreitan- 
do-se, pediam ao céu para ambos uma só morte, pois uma 
só era sua vida. 

Cecília esperava o seu último momento com a su- 
blime resignação evangélica, que só dá a religião do Cris- 
to; morria feliz; Perí tinha confundido as suas almas na 
derradeira prece que expirara de seus lábios. 

— Podemos morrer, meu antigo! disse ela com uma 
expressão sublime. 

Perí estremeceu, ainda nessa hora suprema seu es- 
pírito revoltava-se contra aquela ideia e não podia con- 
ceber que a vida de sua senhora tivesse de perecer como 
a de um simples mortal. 

— Não! exclamou èle. Tu não podes morrer. — A 
mepina sorriu docemente. 

— Olha! disse ela com a sua voz maviosa, a água 
Bobe, sobe . . . 

— Que importa! Perí vencerá a água, como venceu 
todos os teus inimigos. 

* — Se fosse um inimigo, tu o vencerias, Perí. Mas 
é Deus... E' o seu poder infinito. 



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-. 3 - 

— Tu não sabes? disse o índio, como inspirado pelo 
seu amor ardente; o Senhor do céu manda às vezes 
àqueles a quem ama um bom pensamento. 

E o índio ergueu os olhos com uma expressão ine- 
fável de reconhecimento. 

Falou com um tom solene: 

"Foi longe, bem longe dos tempos de agora. As águas 
caíram e começaram a cobrir toda a terra. Os homens 
subiram ao alto dos montes; um só ficou na várzea com 
sua esposa. 

"Era Tamandaré; forte entre os fortes; sábio mais 
que todos. 

"O Senhor falava-lhe de noite; e de dia êle ensinava 
aos filhos da tríbu o que aprendia do céu. 

"Quando todos subiram aos montes, êle disse: 

— "Ficai comigo; fazei como eu e deixai que ve- 
nha a água". 

"Os outros não o escutaram e foram para o alto; 
e deixaram êle só na várzea com sua companheira, que 
não o abandonou. 

"Tamandaré tomou sua mulher nos braços e subiu 
com ela ao olho da palmeira; aí esperou que a água 
viesse e passasse; a palmeira dava frutos que os ali- 
mentavam . 

"A água veio, subiu e cresceu; o sol mergulhou e 
surgiu uma, duas e três vezes. A terra desapareceu, a 
árvore desapareceu, a montanha desapareceu. 

"A água tocou ao céu, e o Senhor mandou então 
que parasse. O sol olhando, só viu céu e água e, entre 
a água e o céu, a palmeira, que boiava, levando Taman- 
daré e sua companheira. 

"A corrente cavou a terra; cavando a terra, arran- 
cou a palmeira; arrancando a palmeira, subiu com ela: 
subiu acima do vale, acima da árvore, acima da montanha. 

"Todos morreram; a água tocou o céu três sóis com 
três noites; depois baixou, baixou, até que descobriu a 
terra. 

"Quando veio o dia. Tamandaré viu que a palmeira 
estava plantada no meio da várzea, e ouviu a avezinha do 
céu, o guanumbí, que batia as asas. 

"Desceu com sua companheira e povoou a terra". 



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Perí linha falado com o tom inspirado que dão a? 
crenças profundas, com o entusiasmo das almas ricas de 
poesia e sentimento. 

Cecília o ouvia sorrindo e bebia uma a uma as suas 
palavras, como se fossem as partículas do ar que res- 
pirava; perecia-lhe que a alma do seu amigo, essa alma 
nobre e bela, se desprendia do seu corpo em cada uma 
das frases solentís e vinha embeber-se no seu coração, 
que se abria para recebô-la. 

A água, subindo, molhou as pontas das largas folhas 
da palmeira e uma guta, resvalando pelo leque, foi em- 
beber-se na alva cambraia das roupas de Cecília. 

A menina, por um movimento instintivo de terror, 
conchegou-se ao seu amigo; e nesse momento supremo, 
em que a inundação abria a fauce enorme, parj^ t^^agá-los, 
murmurou docemente: 

— Meu Deus!... Perí!... 

Então passou-so sobre ôsse vasto des.erto d'água e 
céu uma cena estupenda, heróica, sobrehumana, um es- 
petáculo grandioso, uma sublime loucura. 

Perí, alucinado, suspendeu-se aos cipós que se eu- 
trielaçavam pêlos ramos das árvores já cobertas de água, e 
com um esforço desesperado, cingindo o tronco da pal- 
meira nos seus braços hirtos, abalou-o até às raízes. 

Três vezes os seus músculos de aço, estorcendo-se, in- 
clinaram a haste robusta; e três vezes o seu corpo vergou, 
cedendo â retraçâo violenta da árvore, que voltava ao 
lugar que a natureza lhe havia marcado. Luta terrível, 
espantosa, louca, esvairada; luta da vida contra a ma- 
téria; luta do homem contra a terra; luta da força eontra 
a imobilidade. 

Houve um momento de repouso, eni que o homem, 
nopcentrando todo o seu poder, estorceu-se de novo cqu- 
t.ra a árvore: o ímpeto foi terrível, o pareceu que o cor- 
po ia despedaçar-se nessa distensão horrível. Ai^ibos, árr 
vore e homem, embalançaram-se no seio das águas; t^ 
haste oscilou; as raizes desprenderam-se da terra, já 
minada profundamente pela torrente. A cúpula da pal- 
meira, embalançando-se graciosamente, resvalou pela flòp 
d'água, como um ninho de garças ou alguma ilha flur 
tuànte, formada pelas vegetações aquáticas. 



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^ 5 ^ 

Perí estava de novo sentado Junto <[e sua senhora 
quasi inanimada; e, tomando-a nos braços, disse-lhe com 
um acento de ventura suprema: 

— Tu viverásl... 

Cecília abriu os olhos e, vendo seu amigo Junto dela, 
ouvindo ainda as suas palavras, sentiu o enlevo que deve 
ser o gozo da vida eterna. 

— Sim?... murmurou ela; viveremos!. •. iá ao céu, 
no seio de Deus, junto daqueles que amamos. •«• O anjo 
espanejava-se para remontar o berço. 

— Sobre aquele azul que tu vôs, continuou ela. Deus 
mora no seu trono, rodeado dos que o adoram. Nós 
iremos lá, Períl Tu viveras com tua irmã, semprel... 

£;ia embebeu os olhos nos olhos do seu amigo, e 
lânguida reclinou a loura fronte. 

O hálito ardente de Perí bafejou-lhe a face. 

Fez-se no semblante da virgem um ninho de castos 
rubores e límpidos sorrisos; os lábios abriram-se como as 
asas purpúreas de um beijo soltando o vôo. 

E a palmeira, arrastada pela corrente impetuosa, 
fugia... 

E sumiu-se no horizonte. 

"O Cfuarani" — 2.» ecUcão — B. L. Garníer. 



2. Morte de Iracema 



o cristão moveu o passo vacilante. De repente, entre 
os ramos das árvores, seus olhos viram, sentada à porta 
da cabana, Iracema com ò filho no regaço e o cão a brin- 
car. Seu coração o arrojou de um ímpeto» e a alma lhe 
estalou nos lábios: 

Iracema I... 

A triste esposa e mãe soabriu os olhos, ouvindo a 
voz amada. Com esfôrçp grande pôde erguer ò filho nos 



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— 6 — 

braços e apresentá-lo ao pai, que olhava estático em 
seu amor. 

— Recebe o filho de teu sangue. £ra tempo: meus 
seios ingratos Já não tinham alimento para dar-lhel 

Pousando a criança nos braços paternos, a desventu- 
rada mãe desfaleceu como a jetíca, si lhe arrancam o 
bulbo. O esposo viu então como a dòr tinha consumido 
seu belo corpo; mas a formosura ainda morava nele, 
como o perfume na flor caída do manacá. 

Iracema não se ergueu mais da rede onde a pousaram 
os aflitos braços de Martim. O terno esposo, em quem 
o amor renascera com o júbilo paterno, a cercou de ca- 
rícias, que encheram sua alma de alegria, mas não a pu- 
deram tornar à vida; o estame de sua flor se rompera. 

— Enterra o corpo de tua esposa ao pé do coqueiro 
que tu amavas. Quando o vento do mar soprar nas folhas, 
Iracema pensará que é a tua voz que fala entre os seus 
cabelos. 

O doce lábio emudeceu para sempre; o último lam- 
pejo despediu-se dos olhos baços. 

Potí amparou o irmão na grande dôr. Martim sentiu 
quanto um amigo verdadeiro ó precioso na desventura; ô 
como o outeiro que abriga do vendaval o tronco forte e 
robusto do ubiratã, quando o "cupim lhe broca o âmago. 

O camocim que recebeu o corpo de Iracema, embe- 
bido de resinas odoríferas, foi enterrado ao pé do co- 
queiro, à borda do rio. Martim quebrou um ramo de 
murta, a folha da tristeza, e deitou-o no jazigo de sua 
esposa. 

A jandaia, pousada no olho da palmeira, repetia tris- 
temente : 

Iracema! 

Desde então os guerreiros pitiguaras que passavam 
perto da cabana abandonada e ouviam ressoar a voz plan- 
gente da ave amiga, afastavam-se, com a alma cheia de 
tristeza, do coqueiro onde cantava a jandaia. 

E foi assim que um dia veio a chamar-se Geará o rio 
onde crescia o coqueiro, e os campos onde serpeja o rio. 

IraoetML — 4.* edição -i- B. Ii. Qamler «- 1891. 



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- 1 - 



3. A palavra 



A palavra, ôsse dom celeste que Deus deu ao homem 

e recusou ao animal, é a mais sublime expressão da na- 
tureza: e!a revela o poder do Criador e reflete-^toda a 
^andeza de sua obra divina. 

Incorpórea como o espírito que a aniina, rápida como 
a eletricidade, brilhante como a luz, colorida como o 
prisma solar, comunica-se ao nosso pensamento, apode- 
ra-se dele instantaneamente, e o esclarece com os raios 
da inteligência que leva no seu seio. 

Mensageira indivisível da ideia, íris celeste do nosso 
espírito, ela agita as suas asas douradas, murmura ao 
nosso ouvido docemente, brinca ligeira c travessa na ima» 
ginação, embala-nos em sonhos fagueiros, ou nas suaves 
recordações <io passado. 

Reveste todas as formas, reproduz todas as variações 
e nuances do pensamento, percorre todas as notas dessa 
gama sublime do coração humano, desde o sorriso até à 
lágrima, desde o suspiro até o soluço, desde o gemido até 
o grito rouco e agonizante. 

Às vezes é o buril do estatuário, que recorta as for- 
mas graciosas de uma criação poética, ou de uma cópia 
fiel da natureza: aos retoques deste cinzel delicado a 
ideia se anima, toma um corpo e modela-se como o bronze 
ou como a cera. 

Outras vezes é o pincel inspirado do pintor, que faz 
surgir de repente ao nosso espírito, como de uma tela 
branca e intacta, um quadro magnífico, desenhado com 
essa correção de linhas e esse brilho de colorido que ca- 
racterizam os mestres. 

Muitas vezes é a nota do hino, que ressoa doce- 
mente, que vibra no ar, e vai perder-se alôm no espaço, 
ou vem afagar-nos brandamente o ouvido, como o eco 
de uma música em distância... 

A ciência tem nela um escalpelo, com que faz a autóp- 
sia do ôrro; descarna-o dos sofismas que o ocultam e 
o mostra claramente àqueles que, iludidos por falsas apa- 
rências, julgam ver nele a verdade. 



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o sentimento faz dela a chave dourada que abre o 
coração às suas emoções do prazer, como o raio do sol 
que desata o botão de uma rosa cheia de viço e fragrância. 

A justiça deu-a 6 inocência como a sua arma de de- 
fesa, arma poderosa e irresistível, que tantas vezes tem 
suspendido o cutelo do algoz e quebrado as pesadas ca- 
deias de ferro de uma masmorra. 

Para o tribuno é uma alavanca gigantesca, com que 
desloca as imensas mójes do povo e atira-as de enoon- 
iro às colunas do edifício social, que estremece, vacila 
e se abate ao peso dessas massas impelidas por um poder 
quasi sobrehumano. 

Eis o que é a palavra, meu amigo: simples e deli- 
cada flor do sentimento, nota palpitante do coração, ata 
pode elevar-se até o fastígio da grandeza humana, e im- 
por leis ao mundo do alto desse trono, que tem por de- 
grau o coração e por cúpula a inteligência. 

Assim, pois, todo o homem, orador, escritor, ou poeta, 
todo homem qu« usa da palavra, não como um meio de 
comunicação às suas ideias, mas <5omo um instrumento 
de trabalho; todo aquele que fala ou escreve, não por 
uma necessidade da vida, mas sim para cumprir luna alta 
missão social; todo aquele que faz da linguagem, não um 
prazer, mas uma bela e nobre profissão, deve estudar e 
conhecer a fundo a força e os recursos desse elemento 
de sua atividade. 

A palavra tem uma arte e uma ciência: como ciên- 
cia, ela exprime o pensamento com toda a sua fidelida- 
de e singeleza; como arte, reveste a ideia de todos os 
relevos, de todas as graças, e de todas as formas neces- 
sárias para fascinar o espirito. 

O mestre, o magistrado, o padre, o historiador, no 
exercício do seu respeitável sacerdócio da inteligência, 
da justiça, da religião e da humanidade, deverá fazer da 
palavra uma ciência; mas o poeta e o orador devem ser 
artistas, e estudar no vocabulário humano todos os seud 
segredos maia íntimos, como o músico que estuda as 
mais ligeiras ibrações das cordas de seus instrumentos, 
ootno o pintor que estuda todos os efeitos da luz nos 
claros-escuros. 

Carta aôlfre a Confederação ãoe Tamoioe. 



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-* 9-. 



4. A Tijuca 

Aqui tudo é puro e são. O oorpo banha-se em águas 
cristalinas» como o espírito aa limpidez deste céu azul. 

Respira-se à larga, não somente os ares finos que 
vigoram o sopro da vida, porém aquele hálito celeste do 
Criador, que bafejou o mundo recém-nascido. 

Só nos ermos em que não caíram ainda as fezes da 
civilização, a terra conserva essa divindade do berço. 

Elevando-se a estas eminências, o bomem aproxima* 
se de Deus. 

A Tijuca é um escabelo entre o pântano e a nuvem, 
entre a terra e o oóu. O coração que sobe por ôste genu- 
flexório, para se prostrar aos pés do Onipotente, conta 
três degraus: em cada um deles, uma contrição. 

No alto da 6oa-*Vista, quando se descortina longe, 
serpejando pela várzea, a grande cidade réptil, onde as 
paixões rastejam, a alma, que se havia atrofiado nesse 
íóco de materialismo, sente-se homem. 

Embaixo era uma ambição; em cima, uma eon* 
templação. 

Transposto este primeiro estádio, além, para as ban- 
das da Gávea, há um lugar que chamam Vista Chinesa- 
Este nome lembra naturalmente um sonho oriental, pin- 
tado em papel de arroz. E* uma tela sublima» uma deco- 
ração magnífica deste inimitável cenário íliunineose. 
Dir»8e*ia que Deus entregou a algum de seus arcanjos o 
pincel de Apeles, e mandou-ihe encher aquela paoo áè 
horizonte. 

Então, o homem sente-se religioso. 

Finalmente, chega*>8e ao Pico da Tijuca, o ponto ouU 
minante da serra, que fica do lado oposto. 

Daí os olhos deslumbrados vêem a terra como uma 
vasta ilha a submergir-se entre os dois oceanos, o oceano 
do mar e o oceano do éter. Parece que estes dois infi» 
nltos, o abismo e o céu, abrem-se para absorver um ao 
outro. 

£ no meio dessas imensidades, um átomo, mas om 
átomo rei de tanta magnitude. Ai» o ímpio ó cristão e 
adora o Deus verdadeiro. 



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— 10 — 

Quando a alma desce destas alturas e volve ao pó da 
civilização, leva consigo uns pensamentos sublimes, que 
do mais baixo remontam à sua nascença, pela mesma lei^ 
que faz ao nível primitivo a água derivada do topo 
da serra. 

o broa de Castro Alves — Oarnier, 



5. O jogo das argolinhas 



Seguiu-se o jogo das argolinhas. 

Tinham passado um torçal de soda, gue prendendo-se 
ao teto agudo das tendas, dividia ao meio a estacada; 
no centro, presos por fio de retroz, pendiam vinte anéis 
de ouro, que balouçavam com o sopro da aragem; os 
raios do sol no ocaso, tremulando sobre as argolinhas, 
ainda as tornavam mais vacilantes ao olhar. 

As duas alas de cavaleiros, empunhando lanças muito 
mais longas e maneiras que as de combate, alinharam-se 
em suas primeiras posições, uma à direita, outra à es- 
querda; ao som da música deviam partir ambas à rédea 
solta, e dando mela volta à teia, unirem-se na entrada da 
liça, afim de correrem direito a argolinha contra o pavi- 
lhão do governador. 

Assim tinham os cavaleiros de passar sucessivamen- 
te dois a dois, um da ala azul, outro da ala escarlate; 
afastando-se depois, circulariam de novo a teia, conti- 
nuando sem interrupção o jogo, que só terminaria tirado 
o último anel. 

De todos os jogos era talvez o mais apreciado dos 
mancebos gentis e namorados; porque, alem do preço de 
ligeireza e agilidade, tinham o direito de oferecer as ar- 
golinhas que enfiassem com a ponta da lança a qualquer 
das damas presentes, que em retribuição da galanteria os 
prendavam com dixes e mimos. 

A música tocou uma marcha rápida; a cavalhada 
partiu. 

riu 



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>- 11 - 

Os primeiros cavaleiros eram Cristóvão de Ávila 8 
Fernando de Ataíde, par a par; seguiam-se logo Es- 
tado e D. José de Aguilar; vinha após o resto dos 
campeões . 

Cristóvão enfiou a primeira argolinha e passou; 
mas, em vez de oferecê-la, guardou como já tinha feito 
com o bracelete que recebera em preço; Fernando de 
Ataíde e D. José nem roçaram os anéis, Estácio atirou 
a lança por cima do cordel, e foi apanhá-la no ar muitos 
passos além. 

— E* altivo aquele mancebo! — disse o governador. 
Como lhe negaram o primeiro preço, desdenha os mais. 

— E no seu caso, o senhor governador não faria o 
mesmo? replicou Inezita. 

— Talvez! respondeu o fidalgo sorrindo. 

A corrida continuara; só restava uma argolinha; as 
outras tinham sido tiradas, muitas por Cristóvão, algu- 
mas por D. José e outros cavalheiros; Fernando não con- 
seguira enfiar uma só. 

^ Estácio estava satisfeito e contente, como si tivera 
ganho todos os prémios; pára êle, a grande recompensa 
não eram, nem as jóias dadas pelos juizes, nem os aplau- 
sos do povo; era a humilhação de seu rival diante de 
Inezita; essa, tinha-a já conseguido de uma maneira es- 
trondosa. 

Restava, porém, uma argolinha; Cristóvão falhou-a, 
e Fernando, que moderara o galope do cavalo, ia com a 
lança direito enfiá-la; percebendo isto, o sangue afluiu 
ao coração de Estácio; pareceu-lhe que via já o cava- 
leiro oferecendo o anel a Inezita e recebendo em troca 
uma prenda. 

O moço fincou as esporas nos flancos no nobre corcel, 
que saltou, e, alongando-se como um flecha, devorou 
o espaço. 

No momento em que Ataíde ia tocar a argolinha, o 
cavaleiro passou envolto em uma nuvem de poeira. Foi 
como uma águia que voasse, arrebatando a presa no bico 
adunco. 

A celeuma do povo saudou esse admirável esforço 
de agilidade. 



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- i2 - 



MANUEL ANTÓNIO DE ALMEIDA 



BIO DB JANMRO — IT-XI-IMO 

t MACAB* (B. do Bio) — 28.XI-1M1 



O dr. Manuel AntOnlo áé Almeida, de Quem Ararlpe Jii* 
iilor diz que "6 o romanolflta de ooetumee talvez de mala 
talento que tem nascido entz« nõe*', publicou, entre outros, o ro- 
mance *" Memórias de um sargento de milícias" e colaborou eá> 
diversos Jornais. 



6. Entrada para a escola 



£* mister agora passar em silêncio sobre alguns anos 
dji vida do nosso memorando, para não oansar o leitor, 
repetindo a história de mil travessuras de menino, no gé- 
nero das que já se conhecem; foram diabruras de todo o 
tamanho, que exasperaram a vizinha, desgostaram a co- 
madre, mas que não alteraram em cousa alguma a amizade 
do barbeiro pelo afilhado, cada vez esta aumentava se 
era possível, tornava-se mais cega. Com ôle cresciam as 
esperanças do belo futuro com que o compadre sonhava 
para o pequeno, e tanto mais que durante esse tempo 
fizera ôste alguns progressos: lia soletrando sofrivelmente 
e, por inaudito triunfo da paciência do compadre, apren- 
dera a ajudar a missa. A primeira vez em que êle con- 
seguiu praticar com decência e exatidão semelhante ato, 
o padrinho exultou, foi um dia de orgulho e de prazer; 
era o primeiro passo no catninho para que êle o destinava. 

— E dizem que não tem jeito para padre I — pensou 
consigo — oral acertei o alvo, dei-lhe com a balda, êle 
nasceu mesmo para aquilo, há de ser um clérigo de truz. 
Vou tratar de metê-lo na escola e depois... toca. 

Com efeito, foi cuidar nisso e falar ao mestre para 
receber o pequeno; morava este em uma casa da rua 



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j 



Vala, pequena e escura. Foi o barbeiro recebido na sala, 
que era mobiliada por quatro ou cinco longos bancos de 
pinbo, sujos ii pelo seu uso, uma mesa pequena, que 
pertencia ao mestre, e outra maior, onde escreviam os dis* 
cípulos, toda cbeia de pequenos buracos para os tinteiros; 
nas paredes e no teto bavia penduradas uma porção 
enorme de gaiolas de todos os tamanhos e feitios, dentro 
das quais pulavam e cantavam passarinhos de diversas 
qualidades: era a paixão predileta do pedagogo. 

Era este um homem todo em proporções infinite- 
simais, baizinho, magrinho, de carinha estreita e chu- 
pada, excessivamente calvo; usava de óculos, tinha pre- 
tensões a latinista e dava bolos nos discípulos por dá cá 
aquela palha. Por isso era um dos mais acreditados da 
cidade, O barbeiro entrou acompanhado pelo afilhado, 
que ficou escabriado à vista do aspecto da escola, que 
nunca tinha imaginado. Era em um sábado, os bancos 
estavam ^cheios de meninos, vestidos quasi todos de ja- 
quetas ou robissões de lila, calças de brim escuro e uma 
enorme pasta de couro ou papelão pendurada por um 
cordel a tiracolo; chegaram os dois exatamente na hora 
da tabuada cantada. Era uma espécie de ladainha de nú- 
meros, que se usava então nos colégios, cantada todos os 
sábados em uma espécie de canto-chão monótono e in- 
suportável, mas de que os meninos gostavam muito. As 
vozes dos meninos junto ao canto dos passarinhos faziam 
uma algazarra de doer os ouvidos; o mesti^e, acostumado 
àquilo, escutava impassível, com uma enorme palmatória 
na mão, e o menor erro que algum discípulo cometia 
não lhe escapava no meio de todo o barulho; fazia parar 
o canto, chamava o infeliz, emendava, cantando, o erro 
cometido e oasoava-lbe pelo menos seis puxados bolos. 
Era o regente da orquestra, ensinando a marcar o com- 
passo. O compadre expôs, no meio do ruído, o objeto de 
sua visita e apresentou o pequeno ao mestre, 

— Tem muito boa memória : soletra já alguma cousa, 
não lhe há de dar muito trabalho, disse com orgulho. 

— > £ se mo quiser dar, tenho aqui o remédio: Santa 
férula! Disse o mestre brandindo a palmatória. O com- 
padre sorriu-se, querendo dar a entender que tinha per- 
cebido o latim. 



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— 14 — 

— Ê verdade; faz santas até as feras, disse traduzindo. 
O mestre sorriu-se da tradução. 

— Mas espero que não há de ser necessária, acres- 
centou o compadre. 

O menino percebeu o que tudo isto queria dizer, e 
mostrou não gostar muito. 

— Segunda-feira cá vem e peço-lhe que não o poupe, 
disse por fim o compadre, despedindo-se. Procurou pelo 
menino e já o viu na porta da rua prestes a sair, pois 
que ali não se julgava muito bem. 

— Então, menino, sai sem tomar a bênção ao mestre? 
O menino voltou constrangido, tomou de longe a bênção 
e saíram então. 

Memórias de um sargento de Miliciaê. 



JOAQUIM MANUEL DE MACEDO 

ITABORAl (E. do Rio) — 24-VI-1820 
t BIO DE JANEERO — 11-IV.1882 

Nenhum escritor influiu mais no seu tempo e conseguiu se 
popularizar tanto. O aparecimento de A Moreninha foi mesmo 
um acontecimento literário. 

Max:edo formou-se em niediclna em 1844. 

Leclonou História do Brasil no Colégio Pedro II, pertenceu 
ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. 

Bibliografia — A moreninha (1844), O moço louro (1845), 
Os dois amores (1848), Rosa (1849), Vicentina (1858), O FO' 
rasteiro (1855), A carteira de meu tio (1859), Romances da se- 
mana (1861), O culto do dever (1865), Memórias do solyrinho 
de meu tio (1867-68), Mazelas da atualidade (1867)« A luneta 
m^ágica. As vitimas algozes, O rio do Quarto e Nina (1869). 
As mulheres de mantilha (1870), A namoradeira (1870), Um 
noivo a duas noivas (1871). Os quatro pontos cardeais e A mis- 
teriosa (1872), e A baronesa de Amor (1876), todos romances. 
Publicou ainda inúmeras crónicas, peças para teatro, discurso*» 
acadêmcios e políticos, estudos históricos, folhetins e artigos de 
jornais e revistas. 



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». 15 ~ 



7. Berço pátrio 



Um célebre poeta polaco, descrevendo em magníficos 
versos uma floresta encantada do seu país, imaginou 
que as aves e os animais ali nascidos, si por acaso longe 
se achavam, quando sentiam aproximar-se a hora da sua 
morte, voavam ou corriam e vinham todos expirar à som- 
bra das árvores do bosque imenso, onde tinham nascido. 

O amor da pátria não pode ser explicado por mais 
bela e delicada imagem. Coração sem amor é um campo 
árido, quasi sempre ou sempre cheio de espinhos e sem 
uma única flor que nele se abra e o amenize. Haveria 
somente um homem em quem palpitasse coração tão seco, 
tão enregelado e sem vida de sentimento: o homem que 
não amasse o lugar do seu nascimento. 

Depois dos pais, que recebem o nosso prihieiro grito, 
o sólo pátrio recebe os nossos primeiros passos: é um 
duplo receber que é duplo dar. As ideias grandes e ge- 
nerosas dilatam o horizonte da pátria: a religião, a lín- 
gua, os costumes, as leis, o governo, as aspirações fazem 
de uma nação uma grande família e de um país imenso 
a pátria de cada membro dessa família. 

Mas, f^eixem-me dizer assim, a grande não pôde fazer 
olvidar a pequena pátria; dessa árvore majestosa, que se 
chama nação, o país, não há quem não sinta que a raiz 
é a famíjia e o berço pátrio. Há nesse santo amor uma 
escala ascendente, que vai do lar doméstico à paróquia, 
da paróquia ao município, do município à província, da 
província ao império: ama-se o todo, porque se ama cada 
uma de suas partes. 

Com efeito, é impossível negar que em suas natu> 
rais e suavíssimas predileções, o coração distingue sem> 
pre entre todos os distritos, cidades e diversos pontos 
do país, o torrão limitado do berço pátrio; pobre ou mes- 
quinho, esquecido ou decadente, agreste ou devastado, e 
sempre amado por nós e sempre grato para nós. 



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-.16-. 



&0 Café 



No entanto, começava a declinar a tarde; uma voz 
reuniu todas as senhoras em um 8Ò ponto; servia-se o ca- 
fé num belo caramanchão; mas, como fosse èle pouco 
espaçoso para conter tão numerosa sociedade, aí só se 
abrigaram as senhoras, enquanto os homens se conser- 
vavam da parte de fora. Escravas decentemente vestidas 
ofereciam chávenas de café fora do caramanchão; e, 
apesar disso, D. Carolina se dirigiu com uma para Fa- 
brício, Que praticava com Augusto. 

*- Eu quero fazer as pazes, Sr. Fabrício; vejo que 
deve estar muito agastado comigo, e venho trazer-lhe 
uma chávena de café temperado pela minha mão. Fa- 
brício recuou um passo e colocou--se à ilharga de Augusto: 
éle desconfiava das tenções da menina; sua primeira ideia 
foi esta: o café não tem açúcar. Então começou entre os 
dois um duelo de cerimónias, que durou alguns instan- 
tes; finalmente, o homem teve de ceder à mulher. 

Fabrício ia receber a chávena, quando esta estremeceu 
no pires... D. Carolina, temendo que sobre ela se entor- 
nasse o café, recuou um pouco. Fabrício, também: o 
café derramou-Se inopinadamente. Fabrício recuou ainda 
mais com vivacidade; mas, encontrando a raiz de um cho- 
rão, que Sombreava o caramanchão, perdeu o equilíbrio e 
caiu redondamente na relva. 

Uma gargalhada geral aplaudiu o sucesso* 

— Fabrício espichou-se completamente 1 exclamou 
Filipe. 

O pobre estudante ergueu-se com ligeireza, mas na 
verdade, corrido do que acabava de sobrevir-lhe: as ri- 
sadas continuavam, as terríveis consolaçOes o atormen- 
tavam; todas as senhoras tinham saído do caramanchão 
e riam-se, por sua vez, desapiedadamente. Fabrício multo 
daria para se livrar de apuros em que se achava, quando 
de repente soltou também a sua risada e exclamou: 

— Vivam as calças de Augusto! 

Todos olharam. Com efeito, Fabrício tinha encon- 
trado um companheiro na desgraça: Augusto estava de 



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— 17 — 

oalcas brancas, e a maior porção de café entornado havia 
caído nelas. 

Continuaram as risadas, redobraram os motejos. Dua» 
eram as vitimas* 



TEIXEIRA E SOUZA 

CABO FRIO (B. do Rio) -^ a8-m-1812 

t RIO DE jANBii^o -** i-xn-isai 



António Gonçalves Teixeira e Sousa deixou páginas de Iti- 
contestável valor, em que descreve lugares, cenas e costume* 
ou retrata tipos de outros tempos. 

Bibliografia — Publicou Cantos lAricoa, O filho do peacããor, 
Tardeê de um pintor. As fatalidades de doia jovens, eto. Também 
foi poeta, mas medíoore. 



9. O Campo dos Ciganos 



Esta cidade chamada Rio de Janeiro, assentada sôhre 
a aba ocidental da baía de Niterói, hoje tfto populosa, 
tão comercial, tão vasta, e que, como um empório da 
América Meridional, ameaça de, dentro em pouco, ser um 
colosso americano, crescendo Sem descontinuar, a olhos 
vistos, há um século (jue nem a sombra do que é hoje, 
então era. O bairro da Misericórdia, como então se cha- 
mava, era o principal da cidade; e daí até à Prainha, e 
das praias de D. Manuel, do Peixe e de Braz de Pina, 
hoje dos Mineiros, até um tanto acima da rua da Vala, é 
o que era a principal parte da cidade; tudo mais eram 
casas salteadas aqui e alí; edifícios que começavam a 
aparecer e uma nascente cidade, que principiava a sair 
do nada, estendendo-se íor entre as gargantas das colinas. 



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— 18 — 

aproveitando algumas pequenas elevações, já entre um. Já 
entre outro pântano de águas lamacentas e paludosas, de 
que todo o terreno estava coberto, e de cerrado mangue, 
cujos fugitivos restos ainda hoje vemos bordando o Ater- 
rado da cidade nova. 

A bela praça, chamada hoje da Constituição, era na- 
quele tempo o Campo dos Ciganos, e não passava de um 
pequeno campo irregular, pantanoso, cheio de árvores, 
onde algumas pequenas e rasteiras casas rareavam, flan- 
queando o campo, que mais tarde deveria ser uma for- 
mosa e bela praça espaçosa. 

Daí seguia-se por um lado, e a sair ao grande cam< 
po, que hoje chamamos da Aclamação, a rua dos Ciga- 
nos, que outra cousa não era além de uma larga estrada 
entre algumas pequenas casas, cujas janelas eram guar- 
necidas de esteiras ou rótulas de taquara, em vez das vi- 
draças de hoje e das venezianas; e essas pequenas e irre- 
gulares palhoças pareciam mais capoeiras cie aves, que 
habitações humanas. 

Tanto o Campo dos Ciganos como a rua, não tinham 
es^s nomes porque fossem dados arbitrariamente, não, 
que nesse bairro nascente da cidade e coberto de toda a 
sorte de imundícies, ó onde se haviam estabelecido uma 
multidão de ciganos, dados a toda a sorte de vícios e de 
maus costumes; e à proporção que a educação e a civili- 
zação avançavam pela cidade dentro, estes ciganos re- 
cuavam e se iam embrenhando, como se fossem antípodas 
da civilização e bons costumes. Ainda hoje os vemos ha- 
bitando a beira do Aterrado, ladeira do Saco, etc. 

Ora, como este bairro da cidade era o menos fre- 
quentado e o mais deserto, principalmente de noite, era 
também ali onde se homisiavam soldados desertores, ma- 
rinheiros que abandonavam a marinha real, escravos fu- 
gidos a seus senhores, os evadidos de prisões, degre- 
dados que haviam acabado seu degredo e, enfim, toda a 
sorte de bandidos, que se uniam com os gitanos para 
roubarem, matarem, etc. 

{At tardeê de um pintor ou ou intrigas de um 
^esuita *- Rle de Janeiro. 1847) • 



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<- 19 ^ 



BERNARDO GUIMARÃES 

OURO PRETO (Minas) -~ 15-Vin-1827 
t OURO PRETO (Minas) — 9-ni.l884 

Bernardo José da Silva Guimarães, poeta e romancista. $ 
um escritor genuinamente brasileiro. As suas melhores con»- 
posições poéticas são as peças líricas; nos seus romances, todos 
de assuntos nacionais, as páginas que mais encantam são Jus- 
tamente aquelas que retratam as paisagens locais e descrevem 
a vida e os costumes da terra, e da gente sertaneja. 

Bibliografia — Publicou Cantos da solidão. Poesias, O Ermi" 
tão de Muquem, Lendas e Romances, etc. 



10. A Taba do cacique 

A taba do velho cacique Oriçanga, mais vasta e mais 
sólida que todas as outras, com sua porta guarnecida de 
flechas e lanças enfeitadas de vistosos penachos, com o 
teto de palmas de bagussú tingidas de óca e uruçú, mi- 
rava-se galhardamente na corrente do Tocantins, e ele- 
vava-se entre as outras cabanas como a garça, rainha dos 
lagos, entre um bando de pequenas aves. A noite se apro- 
ximava. Sentado à porta da taba sobre a pele enorme 
de uma onça negra, Oriçanga esperava com impaciência 
que lhe trouxessem vivo ou morto o audacioso estran- 
geiro, que assim ousava resistir a seus guerreiros, indig- 
nado de que tantos combatentes gastassem tanto tempo 
e achassem tamanha dificuldade em matar ou prender 
um só homem. Em pé junto dele, como tímida corça 
junto ao leão deitado, a gentil Guaraciaba tinha também 
os olhos fitos com ansiosa curiosidade nas canoas que da 
outra margem vinham ligeiramente singrando. 

Dentro em poucos minutos o corpo de Gonçalo inani- 
mado e banhado em sangue, conduzido em uma rode com 
todas as suas armas, foi posto aos pés do velho cacique. 
Inimá e seus companheiros precediam o cadáver, sol- 



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•^ to ~ 

tando clamores de feroz alegria. O cacique, porém, os 
recebeu com o semblante. torvado e ouviu com iibpacièn- 
cia a narração que lhe fez Inimá do combate e da de- 
sesperada resistência do estrangeiro e dos estragos que fez 
em sua gente. Depois, abanando a cabeça com ar descon- 
tente e gesto merencório, exclamou: 

— Ahl Inimál Inimá! Já não pareces o filho do 
valente e invencível laboro t Quem diria que não ousaste 
ir sozinho arrostar a sanha do estrangeiro e que deixaste 
morrer teus companheiros como uma vara de caitetús às 
garras da onça esfaimada I... Mancebos fracos e dege- 
nerados de hoje, sois incapazes de encurvar o arco de 
vossos antepassados I £m outros tempos, quando a idade 
não tinha ainda branqueado estes cabelos, nem quebrado 
estes pulsos, eu só ou qualquer de meus valentes, teria es- 
magado este mancebo com a mesma facilidade com que 
espedaco este cachimbo. — £ esmagou entre os dedos o 
canudo pelo qual aspirava a fumaça da pituma. 

A este gesto, a estas duras palavras, bagas de suor 
frio escorreram pela testa do Joven guerreiro, que, ba- 
tendo 08 dentes como um queixada enfurecido, com voz 
convulsa e abafada respondeu : 

— Oricangal Oricangal não profiras tais palavras 1 
A cólera te cega, velho cacique, e torna-te injusto. Não 
penses que esse estrangeiro que acabamos de garrotear 
era um inimigo vulgar! Não, era um enviado de Anhangá, 
e estou certo que com ôle combatiam contra nós os ma- 
nitós das trevas, ocultos entre os ramos da floresta. Se 
lá te acharas, se presenciasses ôsse estranho combate e 
visses por que modo sobrenatural o maldito emboaba se 
furtava aos nossos golpes, por certo não nos Julgarias com 
tão iíijusto rigor. Mas seja como queres; ao que parece, 
esse temerário estrangeiro não está morto ainda e ó bem 
possível que ainda volte à vida; de propósito sopeei a 
forca do meu pulso ao vibrar-lhe o último golpe. Procurem 
chamá-lo à vida, curem-se as suas feridas e quando de 
todo tiver recobrado suas fârcas, que venha medir suas 
armas comigo. Se aos primeiros botes eu não calcar-lhe 
o peito debaixo do meu Joelho e não escachar-lhe o crA- 
nio com um golpe deste tacape, possam os meus olhos 
nunca mais se encontrar com os da formosa Quaraciaba. 



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*-. 21 — 

— Seja como dizes, replicou Oricanga; seja o es- 
trangeiro recolhido a um dos aposentos da minha tal)a; 
os pagés pensem suas feridas e ministrem-lhe todos os 
cuidados que reclama seu estado, e vejam se lhe restituem 
a vida. Bi ôle recuperar os sentidos e viver, Inimá, será 
um sacrifício de excelentes auspícios para o dia em que 
receberes por esposa em tua taba a gentil Guaraciaba. 

Ditas estas palavras, como descia a noite, o velho 
cacique levantou-se e, a passos lentos, recolheu-se para o 
interior da cabana.' 

o Ermitão de Muquem. 



VISCONDE DE TAUNAY 

BIO DE JANEIRO ~ 2a-n-JLS48 
t RIO DE JANEIRO ~ 25.MS9d 

O Visconde de Taunay (Alfredo d^EscragnoUe Taunay) en- 
genheiro militar e oficial do exército (fez a campanha do 
Para£:uai), professor, politico (deputado sreral. presidente de 
província e senador), romancista, historiador, compositor mu- 
sical: nas variadas e diversas manifestações do seu belo ta- 
lento, mostrou aptidões especiais. A nota primordial, a face 
principal da sua obra é o seu IrasUeiriamo, não só na escolha 
dos assuntos e nas descrições e nas paisaerens que pintou, como 
atô na lingruagem e na maneira de escrever: caracteristica- 
mente brasileiro no sentimento e na expressão. 

Pertenceu à Academia BrasUeira, da qual foi um dos fun« 
dadores, — cadeira Francisco Otaviano. Usava o pseudónimo 
Bilvio Dinarte. 

Bibliografia — Publicou Mocidade de Trajano, La retraite de 
Laguna, Inocência, Oeue e Terraê do Brasil, Ouro gôbre aeul, etc. 



11« Aspectos do sertão 

A estrada que atravessa essas regiões incultas desen- 
rola-se à maneira de alvejante faixa, aberta que ó na 
areia,' elemento dominante na composição de todo aquele 



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~ 22 — 

solo, fertilizado aliás por um sem número de límpidos e 
borbulhantes regatos, cujos contingentes sâo outros tantos 
tributários do rio Paraná e do seu contravertente, o Pa- 
raguai . 

Essa areia solta e um tanto, grossa tem côr uniforme, 
que reverbera com intensidade os raids do sol, quando 
nela batem de chapa. 

Em alguns pontos é tão fofa e movediça, que os ani- 
mais das tropas viageiras arquejam de cansaço, ao ven- 
cerem aquele terreno incerto, que lhes foge de sob os 
cascos e onde se enterram até meia canela. 

Frequentes são também os desvios, que da estrada 
partem de um e outro lado e proporcionam na mata ad- 
jacente trilha mais firme, por ser menos pisada. 

Si parece sempre igual o aspecto do caminho, em com- 
pensação mui variadas se mostram as paisagens em tórno. 

Ora é á perspectiva dos cerrados, não desses cerra- 
dos de árvores raquíticas, enfezadas e retorcidas de São 
Paulo e Minas Gerais, mas de garbosos e elevados madei- 
ros que, se . bem não tomem todo o corpo de que são 
capazes à beira das águas correntes ou regados pela linfa 
dos córregos, contudo ensombram com folhuda rama o 
terreno que lhes fica em derredor e mostram na casca 
lisa a força da seiva que os alimenta; ora são campos a 
perder de vista, cobertos de macega alta o alourada, ou 
de viridente e mimosa grama, toda salpicada de silvestres 
flores; ora sucessões de luxuriantes capSes, tão regulares 
e simétricos em sua disposição, que surpreendem e en- 
feitiçam os olhos; ora, enfim, charnecas meio apauladas, 
meio secas, onde nasce o altivo buriti e o gravata en^ 
trança o seu tapume espinhoso. 

Nesses campos tão diversos pelo matiz das cores, o 
capim crescido e ressicado pelo ardor do sol transforma- 
se em vicejante tapete de relva, quando lavra o incêndio 
que algum tropeiro, por acaso ou mero desenfado, ateia 
com uma faúlha do seu isqueiro. 

Minando à surda na touceira, queda a vívida centelha. 
Gorra daí a instantes qualquer aragem, por débil que 
seja, e levanta-se a língua de fogo esguia e trémula, como 
que a contemplar medrosa e vacilante os espaços imen- 
sos que se abrem diante dela. Soprem então as auras 
com mais força, e de mil pontos a um tempo arrebentam 



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^"^^^""""""■^"■■■IHinPBVlKi-. 



— 23 - 

sôfregas labaredas que se enroscam umas nas outras, de 
súbito se dividem, se deslisam, lambem vastas superfícies, 
despedem ao céu rolos de negrejante fumo e voam, 
roncando pelos matagais de tabocas e taquaras, até esbar- 
rarem de encontro a alguma margem de rio, que não 
possam transpor, caso não as tanja para além o vento, 
ajudando com o valente fôlego a obra de destruição. 

Acalmado aquele ímpeto por falta de alimento, fica 
tudo debaixo de espessa camada de cinzas. O fogo, detido 
em pontos, aqui, ali, a consumir com mais lentidão algum 
estorvo, vai aos poucos morrendo até se extinguir de 
todo, deixando como sinal da avassaladora passagem o 
alvacento lençol, que lhe foi seguindo os velozes passos. 

Através da atmosfera enublada mal pôde então coar 
a luz do sol. A incineração é completa, o calor inten- 
so, e nos ares revoltos volitam palhinhas carboretadas, 
detritos, argueiros, e grânulos de carvão, que redemoi- 
nham, sobem, descem e se emaranham nos sorvedouros 
e adelgaçadas trombas, caprichosamente formadas pelas 
aragens, ao embaterem umas^ de encontro às outras . 

Por toda a parte melancolia; de todos os lados té- 
tricas perspectivas. 

E' cair, porém, daí a dias copiosa chuva, e pare- 
ce que irnia varinha de fada andou por aqueles som- 
brios recantos a traçar às pressas jardins encantados e 
nunca vistos. Entra tudo num trabalho íntimo de espan- 
tosa atividade. Transborda a vida. 

Não há ponto em que não brote o capim, em que não 
desabrochem rebentões com o olhar sôfrego de quem 
espreita azada ocasião para buscar a liberdade, despeda- 
çando as prisões de penosa clausura. 

Àquela instantânea ressurreição nada, nada pode pôr 
peias. Basta uma noite, para que formosa alfombra verde, 
verde-claro, verde gaio, assetinado, cubra todas as tris- 
tezas de há pouco. Aprimoram-se depois os esforços; 
rompem as flores do campo, que desabotoam às carícias 
da brisa as delicadas corolas e lhe entregam as primícias 
dos seus cândidos perfumes. 

Si falham essas chuvas vivificadoras, então, por 
muitos e muitos meses aí ficam aquelas campinas, de- 
vastadas pelo fogo, lugubremente iluminadas por averme- 



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— «I — 

Ihadoa clarões, sem uma sombra, um sorriso, umt espe- 
rança de vida, com todas as suas opulências e verdejantes 
pimpolhos ocultos, como que raladas de dôr e mudo de- 
sespero por não poderem ostentar as riquezas e galas ea* 
cerradas no ubertoso seio. 

Nessas aflitas paragens, nfto mais se ouve o piar da 
esquiva perdiz, tão frequente antes do incêndio. Só de 
vez em quando eoôa o arrastado guincho de algum ga- 
vifio, que paira lá em cima ou bordeja ao achegar-se à 
terra, afim de agarrar um ou outro réptil chamuscado do 
fogo que lavrou. 

Inocência — I^aemmert & C. Bio, 1896. 



MACHADO DE A33IZ 

BIO DE JANEIRO — 21-IV-18dO 
t RIO DB JANEIRO — 21-IX-1909 

Joaquim Marta Machado de Asslz, o mestre consagrrado, ê 
o escritor distinto, único no seu género em- língua portuguesa, 
figura eminente das letras brasileiras, cuja obra perdurará 
pelo pensamento, pela expressão literáxia, pela excelência do 
estilo e língua. Tendo começado a vida como tipógrafo, ** filho 
das prôpria^s obras, Machado de Assiz não deve o que é» nem 
o nome que tem, sinão ao trabalho e a uma contínua preo- 
cupação de cultura literária" — escreveu Araripe Júnior C'He- 
vista Brasileira", n. 1. de 1 de Janeiro de 1895); e acres- 
centou: "**0 autor do Quincas Borha foi sucessivamente crí- 
tico, poeta arcaico, poeta romântico, romancista de salão e 
contista; por último afirmou-se escritor humorista de pri^ 
meira ordem", • 

Machado de Asslz foi um dos fundadores da- Academia Bra- 
sileira, da qual foi o primeiro presidente: ocupou a cadeira 
Josó de Alencar. 

Bibliografia — Publicou Crisálidas, Poesias Completas, A mão 
e a luva. Helena, MeTnórias póstumas de Braz Cuhas, Quincas 
Borha, Dom Casmurro, etc. 



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1 



— 25 -* 



12. Fim do banquete 

Era h sobremesa; ninguém Já pensava em eomer. 

No intervalo das glosas» corria um borborinho alegre, 
um palavrear de estômagos satisfeitos; os olhos moles 
e húmidos, ou vivos e cálidos, espreguiçavam-se ou sal- 
titavam de uma ponta à outra da mesa, atulhada de doces 
e frutas, aqui o ananaz em fatias, ali o melão em talha- 
das, as compoteiras de cristal dei:tando ver o doce de coco, 
finamente ralado, amarelo como uma gema, — ou en- 
tão o melado escuro e grosso, não longe do. queijo e 
do cará. De quando em quando um riso jovial, amplo, 
desabotoado, um riso de família, vinha quebrar a gravi- 
dade política do banquete. No meio do interesse grande e 
comum, agitavam-se também os pequenos e particulares. 
As moças falavam das modinhas que haviam de cantar 
ao cravo e do minuete e do solo inglês; nem faltava ma- 
trona que prometesse bailar um oitavado de compasso, 
só para mostrar como folgara nos seus bons tempos de 
criança. Um sujeito, ao pé de mim, dava a outro notícia 
recente dos negros novos, que estavam a vir, segundo 
cartas que recebera de Loanda, uma carta em que o 
sobrinho lhe dizia ter já negociado cerca de quarenta ca- 
beças, e outra carta em que... 

Trazia-as justamente na algibeira, mas não as podia 
ler naquela ocasião. O que afiançava é que podíamos con- 
tar, só nessa viagem, uns cento e vinte negros pelo menos. 

— Trás... trás... trás... fazia o Vilaça, batendo 
com as mãos uma na outra. O rumor cessava de súbito, 
como um estacado de orquestra, e todos os olhos se vol- 
tavam para o glosador. Quem ficava longe aconcheava a 
mão atrás da orelha para não perder palavra; a mór par- 
te, antes mesmo da glosa, tinha já um meio riso de aplau- 
so, trivial e cândido. 

Quanto a mim, lá estava, solitário e deslumbrado, a 
namorar certa compota da minha paixão. No fim de cada 
glosa ficava muito contente, esperando que fosse a última, 
mas não era, e a sobremesa continuava intacta. Ninguém 
fie lembra de dar a primeira voz. Meu pai, k cabeceira, 



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- 26- 

saboreava a goles extensos a alegria dos convivas, mira* 
va-se todo nos carões alegres, nos pratos, nas flores, de- 
liciava-se com a familiaridade travada entre os mais dis- 
tantes espíritos, influxo de um bom jantar. Eu via isso, 
porque arrastava os olbos da compota para êle, e dôle 
para a compota, como a pedir-lhe que ma servisse; mas 
fazia-o em vão. Êle não via nada; via-se a si mesmo. E 
as glosas sucediam-se, como bátegas d'água, obrigando- 
me a recolher o desejo e o pedido. 

Pacientei quanto pude; e não pude muito. Pedi em 
voz baixa o doce; enfim bradei, berrei, bati com os pés. 
Meu pai, que seria capaz de me dar o sol, si eu lho 
exigisse, chamou um escravo para me servir o doce; mas 
era tarde. 

A tia Emerenciana arrancara-me da cadeira e entre* 
gara-me a uma escrava, não obstante os meus gritos e 
repelões. 

Memári€L8 Póstumas de Bra^ OuIhu, -- Oar- 
nier, ecUtor. 



13. "Quincas Borba" 

— Quincas Borba I exclamou, abrindo-lhe a porta. 

O cão atirou-se fora. Que alegria I que entusiasmo! 
que saltos em volta do amo! chega a lamber-lhe a mão 
de contente, mas Rubião dá-lhe um tabefe que lhe dói; 
ôie recua um pouco, triste, com a cauda entre as pernas; 
depois o senhor dá um estalinho com os dedos, e ei-io 
que volta novamente com a mesma alegria. * 

— Sossegai sossegai 

•*Quincas Borba** vai atrás dôle pelo jardim fora, 
contorna a casa, ora andando, ora aos saltos. Saboreia a 
liberdade, mas não perde o amo de vista. 

Aqui fareja, ali pára a coçar uma orelha, acolá cata 
uma pulga na oarriga, mas de um salto galga o espaço e 
o tempo perdido, e cose-se outra vez com os calcanhares 
do senhor. Parece-lhe que Rubião não pensa em outra 



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^27 — 

cousa, que anda agora de um lado para o outro unicamente 
para fazê-lo andar também e recuperar o tempo em que 
esteve retido. Quando Rubião estaca, êle olha para cima, 
à espera; naturalmente, cuida dele; é algum projeto. saí- 
rem juntos, ou cousa assim agradável. Não lhe lembra 
nunca a possibilidade de um pontapé ou de um tabefe. 

Tem o sentimento da confiança, e muito curta a me- 
mória das pancadas. Ao contrário, os afagos ficam-lhe 
impressos e fixos, por mais distraídos que sejam. Gosta 
de ser amado. Contenta-se de crer que o é, 

A vida ali não é completamente boa, nem comple- 
tamente má. Há um moleque que o lava todos os dias em 
água fria, usança do diabo, a que èle se não acostuma. 
Jean, o cozinheiro, gosta do cão; o criado espanhol não 
gosta nada. Rubião passa muitas horas fora de casa, mas 
não o trata mal, e consente que vá acima, que assista ao 
almoço e ao jantar, que o acompanhe à sala ou ao gabinete . 

Brinca às vezes com êle: fá-lo pular. Si chegam vi- 
sitas de alguma cerimónia, manda-o levar para dentro ou 
para baixo, e, resistindo êle sempre, o espanhol toma-o 
a princípio com muita delicadeza, mas vinga-se daí a 
pouco, arrastando-o por uma orelha ou por uma perna, 
atira-o ao longe e fecha-lhe todas as comunicações com 
a casa. 

— Perro dei infiemol 

Machucado, separado do amigo, Quincas Borba vai 
então deitar-se a um canto, e fica ali muito tempo, calado; 
agita-se um pouco, até que acha posição definitiva, e cer- 
ra os olhos. Não dorme, recolhe as ideias, combina, re- 
lembra; a figura vaga do finado amigo passa-lhe acaso ao 
longe, niuito ao longe, aos pedaços, depois mistura-se à 
do amigo atual, e parecem ambas uma só pessoa; depois 
outras ideias. 

Mas já são muitas ideias, — são ideias demais; em 
todo caso são ideias de cachorro, poeira de ideias — menos 
ainda que poeira, explicará o leitor. Mas a verdade é que 
ôste olho que se abre de quando em quando para fixar o 
espaço, tão expressivamente, parece traduzir alguma cousa 
que brilha lá dentro, lá muito ao fundo de outra cousa 
que não sei como diga, para exprimir uma parte canina, 
que não ó a cauda nem as orelhas. Pobre língua humanai 



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Aíinal adormece. Então as imagens da vida brincam 
nele, em sonho, vagas, recentes, farrapo daqui, remendo 
dali. Quando acorda, esqueceu o mal; tem em si uma ex- 
pressão, que não digo seja melancolia, para não agravar 
o leitor. Diz-se de uma paisagem que é melancólica, mas 
não se diz igual cousa de um cão. A razão não pode ser 
outra sinão que a melancolia da paisagem está em nós 
mesmos, enquanto que atribuí-la ao cão é deixá-la fora 
de nós. Seja o que fòr, é alguma cousa que não a alegria 
jde há pouco; mas venha um assobio do cozinheiro, ou 
um gesto do senhor, e lá vai tudo embora, os olhos bri- 
lham, o prazer arregaca-lhe o focinho e as pernas voam 
que parecem asas. 

Quincaê Borha — Gaml«r, tdltor. 



JOAQUIM NABUCO 



PERNAMBUCO — 19-Vin-1M9 
t WASHINGTON ^ 17-1-1910 



Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de Araújo é uma da» 
nossas glórias mais puras e de que mais legitimamente no« 
ufanamos. Pensador e filósofo, poeta, historiador, tribuno, no- 
tabilizou-se como ardoroso parlamentar e Jornalista, servindo- 
se da imprensa e da tribuna em pròl da abolic&o da escravl** 
d&o, de que foi um dos mais valentes propagandistas. Nos 
últimos anos dedlcou-se Nabuco às letras, produzindo obras 
verdadeiramente not&veis, sob todos os pontos de vista. Na- 
buco foi deputado geral, tendo entrado para a Cftmara em 
1879. Na qualidade de enviado extraordinário e ministro ple- 
nipotenciário, defendeu os nossos direitos na célebre questão 
de limites com a Guiana inglesa, de que foi árbitro o rei 
da Itália. Quando morreu era Nabuco Em-baixador da Repú- 
blica nos EstadOÉ Unidos; antes havia representado o Brasil 
em Liondres. Nabuco foi do Instituto Histórico e da Academia 
Brasileira, de que era um dos fundadores e o secretário geral 
— cadeira Madel Monteiro. 

Bibliografia — Publicou: O Gigante da Polónia, Oamõ^a e 
os Luêiadaa, O aJ>olÍGioniaino, Um eêtadiata do império. Minha 
formaçdo, eto. 



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— 89 -. 



14. Os Escravod 



Tornei a visitar doze anos depois a capelinha de São 
Mateus, onde minha madrinha, D. Ana Rosa Falc&o de 
Carvalho, Jaz na parede ao lado do altar, e pela pequena 
sacristia abandonada penetrei no cercado onde eram en- 
terrados os escravos... Cruzes, ciue talvez não existam 
mais, sobre montes de pedras escondidas pelas ortigas, 
era tudo que restava da opulenta fábrica, como se chama- 
va o quadro da escravatura. . . Em baixo, na planície, bri- 
lhavam, como outrora, as manchas verdes dos grandes 
canaviais, mas a usina agora fumegava e assobiava com 
um vapor agudo, anunciando uma vida nova. A alman jar- 
ra desaparecera no passado. O trabalho livre tinha toma- 
do o lugar, em grande parte, do trabalho escravo. O en- 
genho apresentava do lado do "porto" o aspecto de uma 
colónia; da casa velha não ficara vestígio... O sacrifício 
dos pobres negros, que haviam incorporado as suas vidas 
ao futuro daquela propriedade, não existia mais talvez 
sinão na minha lembrança. . . Debaixo de meus pés estava 
tudo o que restava dôles, defronte dos columbaria, onde 
dormiam na estreita capela aqueles que eles haviam ama- 
do e livremente servido. Sozinho ali, invoquei todas aç 
minhas reminiscências, chamei-os a muitos pelos nomes, 
aspirei no ar carregado de aromas agrestes, que entre- 
tém a vegetação sobre suas covas, o sopro que lhes di- 
latava o coração e lhes inspirava a sua alegria perpétua. 
Foi assim que o ploblema moral da escravidão se de- 
senhou pela primeira^ vez aos meus olhos em sua niti- 
dez perfeita e com sua solução obrigatória. Não só esses 
escravos não se tinham queixado de sua senhora, como a 
tinham até o fim abençoado... A gratidão estava do 
lado de quem dava. Eles morreram acreditando-se os de- 
vedores... Seu carinho não teria deixado germinar a 
mais leve suspeita de que o senhor pudesse ter uma obri- 
gação para com eles, que lhe pertenciam. 

Deus conservara ali o coração do escravo, como o do 
animal fiel, longe do contacto com tudo, que o pudesse 
revoltar contra a sua dedicação. Este perdão espontâneo 



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— 30 — 

da dívida do senhor pelos escravos figurou-se-me % 
anistia para os países, que cresceram pela escravidão, o 
meio de escaparem a um dos piores tal iões da história.^ 
Ôhl os santos pretos I seriam eles os intercessores pela 
nossa infeliz terra, que regaram com seu sangue, mas 
abençoaram com seu amori 

Eram essas as ideias que me vinham entre aqueles tú- 
mulos, para mim, todos ôles, sagrados, e então ali mesmo, 
aos vinte anos, formei a resolução de votar a minha 
vida, se assim me fosse dado, ao serviço da raça gene- 
rosa entre todas, que a desigualdade de sua condição en- 
ternecia, em vez de azedar, e que por sua doçura no so- 
frimento emprestava até mesmo à opressão de que era 
vítima um reflexo de bondade... 

Minha Formação, 



CARLOS DE LAET 

MO DE JANEIRO — 8-X-1847 
f RIO DE JANEIRO — 7-12-1927 



O Dr, Carlos Maximiano Pimenta de Laet, bacharel em 
letras pelo Colégio Pedro II e engenheiro geógrafo pela Esco- 
la Politécnica, foi professor de Português naquele colégio. 
O notável publicista sustentou porfiada polémica com Camilo 
Castelo Branco a propósito de questões de Português. 

De Carlos de Laet, podemos dizer o que disse o mestre a 
respeito de António Feliciano de Castilho: "E' profundamente 
versado nos arcanos melódicos da nossa língua**. 

Pertenceu à Academia Brasileira de Letras: cadeira Por- 
to Alegre. 

Publicou: Em Minas, Minha História Sagrada, Antologia 
Nacional, etc, além de valiosos estudos de filologia e de crítica 
literária, páginas de polémica, religião, hmnorismo, etc, em 
excelente português castiQO. 



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— si- 



lo. A Matriz de S. José d'El-Rei 

E* uma bela igreja a matriz — e com muda elo- 
quência reconta ao viajor a história da antiga prosperidade 
de S. José d'Ei-Rei. 

Em 1711 tinha esta localidade a denominação de 
Arraial Velho de S. António do Rio das Mortes. Data de 
19 de Janeiro de 1718 a elevação do povoado a vila e a 
criação de seu município, sendo então governador o conde 
de Assumar. A freguesia da cidade foi criada em 16 de 
Fevereiro de 1724. 

Os terrenos, descobertos por João Afonso de Ser- 
queira, bem depressa foram reconhecidos como auríferos. 
Em dez anos, que tantos vão das descoberta ao termo da 
Junta do Governo que criou o município, o povoado me- 
drou extraordinariamente, graças ao atrativo que sobre 
a imaginação dos povos sempre exerceu o vil metal. 

Nessa época S. José era a cabeça de todas as suas 
cercanias; e S. João d'El-Rei, então Arraial do Rio das 
Mortes, prestava obediência à vizinha, tendo a sua primei- 
ra igreja como simples capela filial da paróquia de San- 
to António, que depois foi a matriz da vila de S. José. 

Exhaustas as betas auríferas, S. José entrou a decair 
e tanto que pelo art. 1.** da lei provincial n. 360, de 1848. 
chegou a ser suprimido o município, aliás pouco depois 
restaurado por outra lei provincial (n. 452, de 1849). Em 
7 de Outubro de 1860 (lei n. 1.092) assumiu S. José a 
categoria de cidade, que conserva. 

As amplas dimensões do templo dão a medida do 
número de fiéis que era destinado a conter; diz-se que 
outrora aí foram celebrados ofícios a que concorreram 
cincoenta sacerdotes. 

Na fachada não se nos ostentaram os primores es- 
culturais que tivemos ocasião de admirar no Carmo e 
em S. Francisco, de S. João d'El-Rei; porém a ornamen- 
tação interna luta em riqueza com a dos primeiros tem- 
plos do Brasil. 

Toda a formosa obra de talha manteve a douradura 
de 1739, que foi quando se concluiu a obra da igreja: e 
diz-se que só nos dourados se gastaram então vinte e 



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— 32 — 

oito contos de réis, quantia enormíssima considerados os 
tempos . 

O órgão, posto à esauerda e separado do coro ou tri- 
buna da música, é belíssimo, e talvez o primeiro de 
Minas. 

f^a capeia-mór ha duas pinturas laterais dignas de 
nota: uma, representando as bodas de Gana e a outra a 
última Geia do Senhor. 

£m prataria, «— tooheiros, lâmpadas, castiçais e reli- 
cários — existirão quarenta e oito arrobas de metal pre* 
cioso. 

Nem eram estas as únicas riquezas do célebre templo. 
Em outros objetos, b6 a arte» e não Juntamente eom a 
matéria, faria o enlevo do observador. 

Havia na Igreja uma soberba oolecãq de móveis, ao 
gosto da época, magnificamente lavrados. Foram ven- 
didos e dispersos, e portai além se acham em mãos que 
talvez nem lhes conheçam a valia 1 

Em Minoê *- Cunha & Irmão, e<Utore«« 



JOSÉ VERÍSSIMO 



PARA* — 8-IV-1857 

f RIO DB iAJSmBO ~ 8.X1.19ie 

Novellsta, historiador da nossa Uteratura • orftloo eonetên- 
cioso. José Verí;ssimp foi um estudioso e um sabedor das coisas 
brastteiraa. Educador — dirigiu a Instrução PubUca do Para, 
foi diretor do Ginásio Nacional, hoje Ck>légrio Pedro II, e da 
Escola Norma] do Rio de Janeiro, onde ledonou História Uni- 
versal. Também militou na imprensa: escreveu no *^ Jornal do 
Comércio" e em outras folhas do Rio de Janeiro e do Part. 
Fundou e dirigiu (1895) a terceira '«Revista Brasileira** cujos 
serviços as letras pátrias são inestimáveis. 

Pertenceu ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro 
desde 16-IX-1887 • á Academia Brasileira de Letras desde a sua 
fundac&o: cadeira João Francisco LisbOa. 

Publicou: Primeiras Páginas, Cenas da vida amazôntca, 
A Educação nacional, A pesca na Amazónia, História da lAtera» 
tura Brasileira, eto. 



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"isr-- 



- 33 — 



16. O tapuio e a sucurijú 

Com a habilidade de tapuio, José seguia avante, fa- 
zendo singrar a piroga em verdadeiros ziguezagues por en- 
tre aqueles troncos, sem tocar em nenhum. 

Deixara o remo no fundo da canoa, e pegando ora 
num olpó» ora numa rama que descia mais abaixo, ora 
num tronco, puxava daqui, empurrava d'acolá, quasi dei- 
tando-se às vezes para livrar a cabeça. 

De súbito, uma cousa que dír-se-ia um daqueles cipós 
mais grossos por ali pendidos, e no qual a beira da mon- 
taria acabava de tocar, desenroscou-se de sobre um tronco 
apodrecido de uma velha árvore derribada pela acão das 
águas, e silvou no ar na diregão do fndio. Era uma su*- 
curijú enorme. José, que só a vira no ato do bote, apenas 
teve tempo de fincar a mão num tronco mais perto e 
empurrar a canoa para trás. 

Este impulso fô-lo perder o equilíbrio e caiu sentado 
no banco da popa. 

Fora bem dado o bote da cobra; êle sentiu passar-lhe 
o corpo quasi rente à face. Mal, porém, lançara os olhos 
na direção em que ela seguira como que voando, viu-a 
assanhada, o pescoço engorgitado, a língua bífida fora das 
fauces, fitá-lo ameaçadora, Já de cauda firmada sobre o 
dorso de outro pau caído pronta para novo ataque. José 
pegou no remo, afim de safar-se mais depressa. A cobra, 
vendo-o tomar aquele pau, sentiu talvez uma ameaça, e, 
mais irada ainda atirou a toda a força o bote, sibilando no 
ar. Quando o atirou, porém, Já a canoa ia impelida pelo 
remo, de sorte que apenas lhe apanhou a borda com a 
boca, donde logo firmada lançara a cauda na direção do 
tapuio, colhendo-lhe o braço esquerdo e o remo, com os 
quais fora êle ao seu encontro. Então levantou a cabeça^ e 
harpoou furiosa, a boca rasgada, o próprio pescoço de 
José, que metendo a mão direita em defesa da cara, con- 
seguiu segurar-lhe logo abaixo da cabeça o corpo escor- 
regadio, que se debatia furiosamente por desprender-se 
dos seus dedos possantes, aos quais o perigo multiplicava 
as forças, dando-lhes um vigor de rijas tenazes. Ele 
sentia, porém, que a cobra mudava de tátioa e que lar- 



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— 34 — 

gando-lhe o braço esquerdo, a cauda ia enroscar-lhe ao 
pescoço os seus anéis de ferro e estrangulá-lo sem custo. 
Rápido como o pensamento, mal pressentira afrouxar-se 
o laço com que ela prendia-lhe aquele braço, fez um he- 
róico e supremo esforço, e conseguindo trazer-lhe a ca- 
beça hedionda até em baixo, ao fundo da canoa, calcou-lht- 
em cima o pé rijamente. 

Era tempo, que a cauda da cobra caira-lhe no pescoço 
mergulhando a extremidade sob o sovaco esquerdo, donde 
logo ela o retirou para melhor apertar o oó. Antes que 
o fizesse, porém, a compressão da cabeça fazia-a perder 
a força e José ainda pudera tirar de sob o banco a sua 
faca curta de pescador, com a qual lha decepou de um 
golpe. Aquele primeiro anel feito desprendeu-se, o tronco 
rolou inerte para a água e a cabeça ficou palpitando, 
com a língua fora, no fundo da canoa. 

Terminado este incidente, José seguiu tranquilamente 
a sua derrota através dos embaraços do igapó, que todos 
salvou com admirável perícia. Chegando ao cabo, saltou 
em terra, puxou a canoa por sobre a areia escura da mar- 
gem e tomando de dentro a cabeça da sucurijú, jogou-a 
por sobre a mata o mais longe que pôde. 

Era uma precaução, para que o tronco da cobra se 
não viesse juntar à cabeça e se refizesse, como êle o acre- 
ditava ingenuamente. Isto feito, tomou da faca e embre- 
nhou-se na densa floresta, calcando fortemente o espesso 
tapete de folhas e gravetos secos, que estalavam com som 
crú sob os seus pés de índio. 

Cenas da Vida Amazônica — Laeminert & Cia. 



INGLÊS DE SOUZA 

PABA* — ÓBIDOS — 28.Xn-1858 
t DISTRITO ^HEDEaiAL — 6-9-1918 



O Dr. Herculano Marcos Inglês de Souza, Jurisconsulto e 
professor de Direito, como escritor de ficção, no romance e no 
conto, tem colocação definitiva e distinta na história literária do 



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— 35 — 

Brasil; deram-lhe o seu romance O Missionário e os Contos 
AmazônicoSj duas obras em que a língua e o estilo são ôtimos. 

Era da Academia Brasileira de Letras, cadeira Manuel An- 
tónio de Almeida. 

Publicou ainda: Hiâtória de um pescador, O Coronel Ban^ 
grado e diversas obras de direito. 



IT. O caboclo do Amazonas 

E' naturalmente melancólica a gente da beira do rio. 
Face a face toda a vida com a natureza grandiosa e so- 
lene, mas monótona e triste do Amazonas, isolada e 
distante da agitação social, concentra-se a alma num apá- 
tico recolhimento, que se traduz externamente pela tris- 
teza do semblante e pela gravidade do gesto. 

O caboclo não ri, sorri apenas; e a sua natureza con- 
templativa revela-se no olhar fixo e vago, em que se lêem 
os devaneios íntimos, nascidos da sujeição da inteligência 
ao mundo objetivo, e dôle assoberbada. 

Os seus pensamentos não se manifestam em palavras, 
por lhes faltar, a esses pobres tapuias, a expressão co- 
municativa, atrofiada pelo silêncio forçado da solidão. 

Haveis de ter encontrado, beirando o rio, em viagens 
pelos sítios, o dono da casa sentado no terreiro, a olhar 
fixamente para as águas da correnteza, para um bem-te-vi 
que canta na laranjeira, para as nuvens brancas do céu. 
levando horas e horas esquecido de tudo. imóvel e mudo, 
numa espécie de ôxtasi. Em que pensará o pobre tapuia? 
No encanto misterioso da mãe d'água, cuja sedutora voz 
lhe parece estar ouvindo no murmúrio da corrente? No 
curupira, que vagabundeia nas matas, fatal e esquivo, com 
o olhar ardente cheio de promessas e de ameaças? No dia- 
bólico sacipêrô, cujo assobio sardónico dá ao corpo o ca- 
lafrio das sezões? Em que pensa? Na vida? E* talvez um 
sonho, talvez nada. E* uma contemplação pura. 

Dessa melancolia contínua dão mostra principalmente 
as mulheres, por causa da vida que levam. Os homens 
sempre andam, vêem uma ou outra vez gente e coisas 
novas. As mulheres passam toda a vida no sítio, no mais 



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-- 36 -« 

completo isolamento. Assim, a tapuia Roea. que de nada 
se podia queixar, com a vida material segura, suprema 
ambição do caboclo, foi sempre dada à tristeza;, a fronte 
alta e calma, os olhos pequenos e negros e a boca séria 
tinha uma expressão de melancolia que impressionava à 
primeira vista. Teria a natureza estampado naquele rosto 
o pressentimento de futuras desgraças, ou a mesquinhes 
da alma humana, ante a majestade do rio e da floresta a 
predispunha a não oferecer resistência aos embates da 
adversidade? Era a saudade do esposo morto, ou o receio 
vago dos fracos diante do arcanos do futuro? 

Oontoê Amatònieoê — Laemmert ft Cia. 189$. 



AMÉRICO WERNECK 

ESTADO DO BIO — BEMPOSTA — IQ-m-lSM 

Escritor imaginoso e fluente, como Alencar, o grande mes* 
ire ,0 aeu guia literário (Ôle o declara algures), Américo Wer- 
neck é exímio pintor de quadros, cenas e tipos da roça. 

Publicou: Graciema, Jucury, Mçrena, Arte de educar os fi* 
lhos, Lucrécia, A heroína da Inconfidência, etc. 



18. A derribada 

A mata era imponente. Erguiam-se na grota uma su- 
cupira de trinta palmos de circunferência; mais abaixo, 
uma gameleira, menos gigante, quasi emparelhava a sua 
rama à rama do colosso. 

Os mais possantes africanos, cujos braços de ferro 
manejavam o machado como um brinco de criança, des- 
filavam junto à majestosa árvore, à semelhança de for- 
migas. 

Um a um, paravam para medi-la de alto a baixo, mas 
nenhum teve a coragem de derribá-la. A todos a sucupira 
olhava com despreso, farfalhando orgulhosamente sobre 
a sólida base. Primeiro passou um cabinda, parou embas- 



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— 37 — 

bacado, e foi-se moscando, receioso de lhe ser confiada a 
empreitada. 

— CruzI Hoje é hoje! com esse pau ninguém pode. 
Tem serviço para uma semana. 

Passou depois um cassange, o qual, arqueando-se de 
flanco, à guisa de bodoque, parou assombrado a mirar-lhe 
a copa. 

— Huál maravilha do mundo! Vou-me embora: não 
sou pimpão para esse bicho, não. 

Em seguida passou um inhambane, que, tropeçando 
na grossa raiz, escarrapachou em regra, de braços abertos 
e focinho no chão. Ergueu-se o derribador e, cuspindo 
terra, desceu a biboca no meio de pragas e exclamações 
cómicas. 

— Uô-ê-ê-êl Já está mostrando o que ha de ser. Puahí 
Judeu do inferno! 

Afinal, aproximou-se um moçambique que, arriman- 
do-se ao cabo do machado, ali ficou estatelado, de pernas 
abertas, a grunhir uma lenga-lenga indecifrável. 

Nessa ocasião despontou Fernando no aceiro supe- 
rior e vibrou a vista, dominando o serviço de um golpe. 
Ele era o derribador mais famoso daquele sertão, que 
nesse tempo os contava de mão cheia. 

Não havia pontaria mais certeira. Quando êle lançava 
o olhar calculista aos galhos de uma árvore, estivesse esta 
no prumo, marcava a direção de sua queda e não errava 
o tiro. 

Quando o fazendeiro soltou do largo peito o berro 
que enchia o vale e despertava o eito, a floresta tremeu 
de medo até à raiz. Acabava de chegar o raio que devia 
fulminá-la. 

Ao avistar na grota a gigantesca sucupira, em pé, 
atirando aos derribadores o formidável desafio, que nin- 
guém ousava aceitar, o fazendeiro ficou contente, era 
com esses colossos altaneiros que êle gostava de se en- 
tender. Censurou energicamente os escravos por haverem 
fugido covardemente da árvore, desceu a grota e gritou 
por Chico Congo. 

Acudiu um africano hercúleo. Era o seu braço di- 
reito: não havia em todo o Brasil machado mais valente, 
nem mais vigoroso tapir. O fazendeiro escolheu mais dois 

Antologia Brasileira S 

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— 38 — 

derribadores para contrapeso ao negro e distribuiu-os em 
torno da sucupira. Ao Gongo sozinho coube a tarefa de 
entalhar a barriga do pau até o âmago; mas a-pesar-de 
árdua a tarefa, andassem ligeiros os seus malungos, pois 
não tardaria em deixá-los atrás. 

Fernando marcou a pontaria para a forquilha da ga- 
meleira e ordenou que não cortassem esta. Conforme seus 
cálculos» o poso da sucupira, aliado ao choque, seria bas- 
tante para deitar abaixo sua grossa vizinha, de fibra me- 
nos rija; os dois colossos, unidos no abraço da morte 
caindo juntos sobre a floresta, arrazariam a grota até 
à várzea. 

Ponderou o Congo que, se a gameleira resistisse, como 
seria certo, a sucupira enganchada na sua forquilha, for- 
maria um perigoso mundéu. Os seus companheiros apoia- 
vam este parecer, achando prudente entalhar a gameleira, 
embora se consumisse mais tempo. O lavrador, confiado 
no seu plano temerário, persistiu; então o trabalho co- 
meçou. 

O Congo, fincando um pé atrás, arremessou o ma- 
chado, que foi encravar-se no rijo lombo do gigante. O 
aço cantou e o cabo solto brandiu, como a cauda da jara- 
raca retraida para bote. O negro cuspiu entre as mãos, 
esfregou as palmas uma na outra e arrancou a arma ter- 
rivel. Os golpes sucederam-se. A cada golpe, voava um 
estilhaço de pau, zunindo. Os outros derribadores porfia- 
vam em imitar o Congo, mas faltava-lhes a força e des- 
treza de pulso. Também o africano gostava de provocá-los, 
alardeando seu vigor. Sempre que o seu machado tinia no 
cerne, êle bradava aos parceiros, em tom de chacota: 

— Acocha, malungol 

— Hoje quebro-te a proa, respondia o mais encafifado. 

— Vamos ver. 

E os seus golpes redobravam, ecoando além; e os ca- 
vacos zuniam no espaço, como a bala do arcabuz. 

Passava do meio dia, quando a sucupira deu o pri- 
meiro gemido. 

Os derribadores soltaram uma interjeição uníssona de 
entusiasmo; o eito em coro respondeu com outra Mas 
faltava muito para o colosso cair. 

O Congo malhava sempre, enquanto os parceiros fa- 
tigados deixavam, às vezes, pender os braços frouxa- . 



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— so- 
mente. Mas também, recomeçavam logo. A cada vai-vem 
do machado, entoava o Congo uma breve cantiga, a que 
respondiam os parceiros em coro, quando vibravam os 
golpes simultâneos: 

— Acocha, malungo. 

— Batecum gererê. 

— Acocha com força. 

— Batecum gererê. 

— O gavião é quem governa. 

— Batecum gererê. 

Essas frases e outras acompanhadas de estribilho 
marcavam o compasso regular dos machados. O fazen- 
deiro dirigia o serviço com o olhar vigilante no gavião da 
árvore, donde dependia a certeza da pontaria. Ora man- 
dava cortar mais à direita, ora mais à esquerda, conforme 
a necessidade. 

A atenção do eito convergia para esse ponto; não se 
falava noutra coisa; sustentavam alguns que a gameleira 
não cairia; apostavam outros que ela não resistiria ao 
choque. Só pai Bento não falava... Trazia os olhos arre- 
galados no espaço, como se estivesse vendo uma visão 
sinistra. 

Às onze horas pararam para tomar a refeição. 

Pai Bento não comeu. 

O trabalho recomeçou com mais entusiasmo. Enfim, 
às duas horas da tarde, o colosso vegetal estalou no âmago 
e os três algozes soltaram o grito de aviso: 

— Foge, gente I 

Então os trabalhadores que andavam por ali perto, 
escafederam-se à pressa. 

A sucupira estava equilibrada sobre a aresta de um 
prisma. Apenas os derribadores disseminados pela floresta 
puseram-se longe do perigo, o Gongo atirou mais alguns 
golpes. De repente rangeram as fibras do tronco, e a ca- 
beça enorme do rei daqueles vales, descrevendo um arco 
de círculo sobre um raio de cento e vinte palmos, e acom- 
panhado pelo coro selvagem dos derribadores, abateu-se 
na forquilha da gameleira, desgrenhada a coma e estre- 
mecendo o deserto com seu rugido de moribundo. 

Qradema, Capitulo XL.III. 



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«^ I0«- 



ALUIZIO AZEVEDO 

BfARANHÃO — 14-IV.1858 

t BUEXO AIRES, RepúbUca Argentina, 81-1-1018 

Romancista 4e merecida nomeada, Alulzlo Azevedo foi o 
Inldador, no Brasil, do naturalismo, o representante aqui de 
mais talento e mais fecundo da escola. 

Na obra do nosso romancista sobressaem as paisageni^ e 
as descrições, que primam pela verdade, relevo e colorido. 

Desde muito mogo, dedicouse & imprensa, tendo redigido, 
ainda no Maranhão, os jornais •'Pensador" e "Pacotilha"; 
AluiEio foi tudo: professor, empregado público, guarda-livroc, 
retratista, caricaturista (trabalhou no ''Mequetrefe** e na "Ck»- 
média Popular**): chegou mesmo, nuro momento crítico da 
vida, a ser gerente de hotel... 

Aluizio Azevedo foi da Academia Brasileira, cadeira Basí- 
lio da Oama. 

Bibliografia — Deixou Uma lágrima de mulher, O cortiço, 
O Mulato, etc.,alêm de v&rias pegas de teatro de parceria quast 
sempre com seu irmão Artur. 



19. A Pedreira 



Meio-dia em ponto. O sol estava a pino; tudo re- 
verberava à luz irreconciliável de Dezembro, num dia 
sem nuvens. A pedreira, em que ela batia de chapa em 
cima, cegava, olhada de frente. Era preciso martirizar a 
vista para descobrir as nuances dã pedra; nada mais que 
uma grande mancha branca e luminosa, terminando pela 
parte de baixo no chão coberto de cascalho miúdo, que ao 
longe produzia o efeito de um betume cinzento, e pela 
parte de cima, na espessura compacta do arvoredo, onde 
se não distinguiam outros tons mais do que nódoas negras, 
bem negras, sobre o verde escuro. 

À proporção que os dois se aproximavam da im- 
ponente pedreira, o terreno ia-se tornando mais e mais 
cascalhudo; os sapatos enfarinhavam-se de poeira clara. 



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-- 41 — 

Mais adiante, por aí e por ali, havia muitas carroças, 
algumas em movimento, puxadas a burro e cheias de ca- 
lhaus partidos; outras já prontas para seguir, à espera 
do animal, e outras, enfim, com os braços para o ar, como 
se acabassem de ser despejadas naquele instante Ho- 
mens labutavam. 

À esquerda, por cima de um vestígio do rio, que 
parecia ter sido bebido de um trago por aquele sol se- 
dento, havia uma ponte de tábuas, onde três pequenos, 
quasi nús, conversavam assentados, sem fazer sombra, ilu- 
minados a prumo pelo sol de meio-dia. Para adiante, na 
mesma direção, corria um vasto telheiro, velho e sujo, 
firmado sobre colunas de pedra tosca; aí muitos por- 
tugueses trabalhavam de canteiro, ao barulho metálico 
do picão, que féria o granito. Logo em seguida surgia 
uma oficina de ferreiro, toda atravancada de destroços e 
objetos quebrados, entre os quais avultavam rodas de car- 
ros; em volta da bigorna, dois homens, de corpo nú, ba- 
nhados de suor e alumiados de vermelho como dois diabos, 
martelavam cadenciosamente sobre um pedaço de ferro em 
brasa; e ali mesmo, perto deles, a forja escancarava uma 
goela infernal, donde saíam pequenas línguas de fogo, 
irrequietas e gulosas. 

João Romão parou à entrada da oficina e gritou para 
um dOB ferreiros. 

— O' Bruno* não se esqueça do varal da lanterna 
do portão! 

Os dois homens suspenderam por um instante o tra- 
balho. 

— Já lá fui ver, respondeu o Bruno. Não vale a pena 
consertá-lo; está todo comido de ferrugem! Faz-se-lhe 
um novo, que é melhor I 

— Pois veja lá isso, que a lanterna está a cairi 

E o vendeiro seguiu adiante com o outro, enquanto 
atrás recomeçava o martelar sobre a bigorna. 

£m seguida yia-se uma miserável estrebaria, cheia de 
oapim soco e excremento de bostas, com lugar para meia 
dúzia de animais. Estava deserta, mas, no vivo fartum 
exalado de lá, sentia-se que fora habitada ainda aquela 
noite. Havia depois um depósito de madeiras, servindo 
ao mesmo tempo de oficina de carpinteiro, tendo ^ porta 



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-" 42 — 

troncos de árvores, algims já serrados, muitas tábuas em- 
pilhadas, restos de cavernas e mastros de navio. 

Daí à pedreira restavam apenas uns cincoenta passos, 
e o chão era já todo coberto por uma farinha de pedra 
moida que sujava como a cal. 

Aqui, ali, por toda a parte, encontravam-se trabalha- 
dores, uns ao sol, outros debaixo de pequenas barracas 
feitas de lona, ou de folhas de palmeira. De um lado cunha- 
vam pedra cantando; de outro a quebravam a picareta; de 
outro, afeiçoavam lajedos à ponta de picão; mais adiante, 
faziam paralelepípedos a escopro e macete. E todo aquele 
retintim de ferramentas e o martelar da forja, e o coro 
dos que lá em cima brocavam a rocha para lançar-lhe fogo. 
e a surda zoada ao longe, que vinha do cortiço, como de 
uma aldeia alarmada; tudo dava ideia de uma atlvidade 
feroz, de uma luta de vingança e de ódio. Aqueles ho- 
mens gotejantes de suor, bêbedos de calor, desvairados 
de insolação, a quebrarem, a espicaçarem, a torturarem a 
pedra, pareciam um punhado de demónios revoltados na 
sua impotência contra o impassível gigante que os con- 
templava com desprezo, imperturbável a todos os golpes 
e a todos os tiros que lhe desfechavam no dorso, deixan- 
do, sem um gemido, que lhe abrissem as entranhas de 
gianito. 

O membrudo cavouqueiro havia chegado à fralda do 
orgulhoso monstro de pedra; tinha-o cara a cara, mediu-o 
de alto a baixo, arrogante, num desafio surdo. 

A pedreira mostrava nesse ponto de vista o seu lado 
mais imponente. Decomposta, com o escalavrado flan- 
co exposto ao sol, erguia-se altaneira e desassombrada, 
afrontando o céu, muito íngreme, lisa, escaldante e cheia 
de cordas, que mesquinhamente lhe escorriam pela ci- 
clópica nudez, com um efeito de teias de aranha. Em certos 
lugares, muito alto do chão, lhe haviam espetado alfinetes 
de ferro, amparando sobre um precipício, miseráveis tábuas 
que, vistas cá de baixo, pareciam palitos, mas em cima das 
quais uns atrevidos pigmeus de forma humana equilibra- 
vam-se, desfechando golpes de picareta contra o gigante. 

O Cortiço ^ Oamier. editor. 



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— 43 ^ 



FERREIRA DE ARAÚJO 

BIO DE JANEIRO, 25-10-1846 
t RIO DE JANEIRO, 21-Vin.l900 

O mestre do jornalismo brasileiro, que assim tem sido cha- 
mado, fundador e redator da "Gazeta de Noticias", escrevia 
Ferreira de Araújo as Coisas Politicas, admiráveis crónicas 
sobre a vida política do país, artigos de ' primeira coluna, dou- 
trinadores e graves, e, na folha do mesmo dia, colunas adian- 
te, publicava os Macaquinhos no sótão, de Zé Telha, ou as 
Balas de Estalos, de Lulu Sénior, chistosos artiguetes humorís- 
ticos de crítica Inofensiva e alegre... 

De Ferreira de Araújo disse Quintino Bocaiuva, nunt mo- 
mento célebre, "que o diretor da "Gazeta de Noticias" reunia 
em si os três espíritos dominantes do jornalismo francês; Emi- 
le Gi/rardin, Armand Carré e Jules Janin** , 

Publicou: Cousas Politicas, Balas de estalo. Macaquinhos no 
sótão, A haroneza, etc. 



20. O coração humano 

E' um teatro em que se representam todas as cenas, 
das mais trágicas às mais burlescas. É um manequim 
a que se acomodam todas as máscaras, a do tirano e a do 
hipócrita. E' um instrumento em que todas as cordas vi- 
bram, e que nem sempre anda afinado. Umas vezes, res- 
trito e quieto como o altar em que só pode estar um santo, 
outras vezes amplo e bulbento como uma hospedaria em 
que entram caras novas todos os dias. 

£ nada lhe altera a natureza. Puro e sereno como o 
céu sem nuvens, negro e sombrio como uma noite de 
tempestade, é sempre ô mesmo coração humano* 

Fala uma língua que em todas as nações se entenda, 
mas de que ninguém pôde fixar as regras. Aninha todas as 
virtudes e todos os vícios, tendo uma moral sua, que o 
leva com igual impulso, pelo bem ou peio mal, pare o 
fim almejado: a satisfação do eu. 



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— 44 — 



"1 



Aquilo mesmo que se combinou chamar abnegação, 
sacrifício, é o egoísmo depurado, a quinta essência do 
gozo, que consiste em sofrer, para ter o prazer de evitar 
o sofrimento àquele a quem o coração se dedica. 

Eu creio que no coração humano ha um germe de 
tudo o que ha de bom e mau na natureza: o suco de 
todas as plantas, as que nutrem e as que matam; um 
pouco de todos os animais indistintamente, leões, e cor- 
deiros, o pelicano e o abutre, os que voam e os que se 
arrastam; as mariposas, que morrem na luz, e os micró- 
bios, que nascem na podridão. 

Gomo estranhar que ôle seja sublime e covarde, ado- 
rável e repugnante, heroicamente grande ou micros- 
copicamente mesquinho? 



DOMINGOS OLÍMPIO 

CEABA* — SOBRAL — 18-IX-1850 
t RIO DE JANEIRO — 6.X-1006 

O Dr. Domingos Olímpio Braga Cavalcanti formou-se em* 
direito no Recife, em 1873. 

Intemerato jornalista e escritor politico, auspiciosamente 
fez Domingos Olímpio a sua estrela no romance; o seu Luzia 
Homem foi uma consagração. K, efetivamente, foi um escritor 
de merecimento. 

Bibliografia — Além do romance citado, deixou prontos: 
O Negro (romance), DomHilia (comédia), História da Missão 
Especial de Washington, etc. 



21. Cenas da seca 

Na construção da cadeia havia trabalho para todos. 
Os mais fracos, debilitados pela idade ou pelo sofrimento, 
carregavam areia e água; aqueles que não suportavam 



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— 45 — 

mais a fadiga de andar, amoleciam cipós para amarradio 
de andaimes, outros menos escarvados amassavam cal; os 
mocos ainda robustos, homens de rija têmpera, superiores 
ás inclemências, sóbrios e valentes, reluziaip de suor bri- 
tando pedra, guindando material aos pedreiros, ou condu* 
zindo às costas, de longe, das matas do sopé da serra, 
grossos madeiros enfeitados de palmas virentes, de ramos 
de pereiro de um verde fresco e brilhante, em festivo 
contraste com o sítio ressequido e desolado. £ davam conta 
da tarefa, suave ou rude, uns gemendo, outros cantando 
álacres, numa expansão de alivio, de esperança renascida, 
velhas canções, piedosas trovas inolvidáveis, ou contem- 
plando com tristeza nostálgica, o céu impassível, sempre 
límpido e azul, deslumbrante de luz. 

Esse concerto esdrúxulo de vozes humanas em cân- 
ticos e queixumes, de rugidos da matéria transformando-se 
aos dentes dos instrumentos, aos golpes dos martelos, de 
brados de comando .dos mestres e feitores, essa melo- 
peia dô trabalho amargurado ou feliz, era, às vezes, inter- 
rompida por estrídulos assobios, alaridos de gritos, garga- 
lhadas rasgadas e as vaias de meninos, que se esganiça- 
vam : era uma velha alquebrada, que deixara cair a trouxa 
de areia; um cabra alto, de hirsuta cabeleira marrafenta e 
lambusada de cal que escorregara, ao galgar uma descon- 
juntada e vacilante escada, e lançava olhares ferozes à 
turba que o chasqueava; era a carreira constante das mo- 
ças e meninas, para as quais o trabalho era um brinquedo; 
eram gritos de dôr de um machucado, rodeado pela mul- 
tidão curiosa e compassiva, ou os gemidos de algum in- 
feliz, tombando prostrado de fadiga, pedindo pelo amor 
de Deus, no estertor da hora extrema, não o deixassem 
morrer sem confissão, sem luz, como um bicho. 

Cercava o edifício em construção um exótico arraial 
de latadas, de choupanas, de ranchos improvisados, onde 
trabalhavam carpinteiros falqueando longas vigas de pau- 
d'arco, frechais de frei Jorge e Gonçalo-Alves, ou ser- 
rando e aplainando cheirosas tábuas de cedro. Marcando 
a subida do morro, se alinhavam em rua tortuosa pe- 
quenas barracas feitas de costaneiras, casca e sarrafos, as 
quais serviam de abrigo às costureiras, fazendo, dos sa- 
cos de víveres, roupa para os esmolambados, envoltos em 



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— 46 — 

nojentos trapos, que lhes mal disfarçava o pudor e a hor- 
renda magreza esquálida. 

De outras barracas subia ao ar, em novelos espessos 
ou espirais azuladas, o fumo de lareiras, onde, sobre tos- 
cas trempes de pedra, ferviam, roncando aos borbotões, 
grandes panelas de ferro, repletas de comida. 

Ao cair da tarde, quando cálida neblina irradiava 
da terra abrasada, esbatia o recorte das montanhas ao 
longe, e adelgaçava o colorido da paisagem em tons par- 
dacentos e confusos, o sino da Matriz, com um colossal 
lamento, troava a Ave-Maria. Cessava o rumor e o mestre 
da obra batia com o pesado martelo o prego em solene 
cadência, anunciando o termo do trabalho. 

A multidão de operários, depois de silenciosa e con- 
trita prece, se agrupava em torno dos feitores; e, respon- 
dido o ponto, desfilava, depositando em determinado sítio 
a ferramenta e vasilhame. Fatigada, suarenta, dispersava- 
se dividindo-se em grupos, seguindo várias direções em 
busca de pousada, ou desdobrando-se na curva dos cami- 
nhos, nas forquilhas das encruzilhadas, até se sumir como 
sombras desgarradas, imersas na caligem da noite 
iminente. 

Luzia Homem, 



GARCIA REDONDO 



BIO DE JANEIRO — 7-1-1854 
t S. PAULO — 6-X-I919 



Jornalista, prosador, o Dr. Manuel Ferreira Garcia Redondo 
hâ de figurar nas letras brasileiras como novelista, que o foi 
e dos melhores que temos tido, pela língua e pelo estilo; e o seu 
nome ficará como um dos nossos mais estimáveis escritores de 
ficção. 

Foi da Academia Brasileira de Letras, cadeira JuUo Ribeiro. 

Bibliografia — Publicou, entre muitas outras: Arminhos, 
tiarícias. Botânica amorosa. Salada de frutas, etc. 



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— 47 — 



22. Plantas carnívoras 



— Mas, afinal, que vem a ser uma planta carnívora? 

— E' um ser quasi como tu ou eu, porque, como 
nós, alimenta-se de carne. Chamá-la-ias animal, si este ve- 
getal caminhasse. No entanto a locomoção falta a alguns 
animais, tais como os pólipos e a esponja, que têm a 
aparência de um vegetal e, como êle, são destituídos da 
locomoção. E sendo assim a planta carnívora, aparente- 
mente é mais animal do que vegetal, porque tem o mo- 
vimento paçcial das folhas, que falta absolutamente à es- 
ponja e ao coral. 

De resto, a planta carnívora é, como diz Darwin, uma 
planta que se fixa ao solo pelas raizes e se alimenta pelas 
folhas. 

— Tem então estômago a planta carnívora? 

— Mais do que isso: tem o suco gástrico; a planta 
digere com qualquer de nós as substâncias azotadas, e, 
como (iualquer de nós, assimila o que digere. 

— Assombroso I... 

— Tu já viste, minha linda curiosa, que as plantas 
têm coração e alma para amar, nervos para sentir, racio- 
cínio ou instinto para gozar, e vais agora ver que elas 
também possuem vísceras para digerir. 

Entre a grande variedade de plantas carnívoras que 
existem, as mais curiosas são a Drosera rotundifolia, a 
Dionaea muscipula e o Nepenthes. 

 primeira é uma planta da flora europeia, de pe- 
queno porte, que vive de preferência nos lugares húmi- 
dos, e cujas folhas têm a forma aproximada a uma co- 
lher, cuja concha, quasi chata, é coberta de pêlos, ou fila- 
mentos, que se vão alargando do centro da concha oara 
as bordas. 

Cada um desses filamentos possúe na extremidade 
uma glândula que produz uma secreção viscosa e bri- 
lhante. 

Assim armada de pêlos, a folha da drosera tem o 
aspecto de uma cabeça chata coberta de cerdas viscosas 



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— le- 
vamos a ver agora como a planta, opera para ali- 
meniar-se. 

Imagina que uma mosca descuidosa pousa na folha 
da drosera. Gomo os pêlos do centro são os mais cur- 
tos e estão sempre cobertos de visgo, o inseto que pou- 
sa entre eles sente logo dificuldade em mover-se, por- 
que o visgo o retém pelas pernas e pelas asas ao limbo 
da folha. 

Mas, para que ôle absolutamente não possa escapar- 
se dessa armadilha, ps pêlos dos lados da folha, mal o 
inseto pousa entre os pêlos centrais, começam a curvar- 
se lentamente para o lado do animal, e dentro de alguns mi- 
nutos cobre-o com uma rede de tentáculos, que o não 
deixam mais sair. Fica assim aprisionado o inseto e, des- 
se momento em diante, começa a planta a operar no sen- 
tido de o matar e de o digerir. Desse trabalho se incum- 
bem 08 próprios pêlos que excretam o líquido viscoso, o 
qual representa o* papel do nosso suco gástrico, destinado 
a dissolver ou digerir as substâncias azotadas. 

Assim atacado por esse líquido em extremo viscoso, 
o pobre inseto morre entre as garras da drosera, e ó por 
ela assimilado como um manjar precioso. 
f — Mas é a descrição do polvo, a que tu acabas de 
fazer I 

— Precisamente, minha adorada amiga; a drosera 
rotundifolia é a pieuvre, que enlaçou o pobre Gilliat entre 
os rochedos do Oceano. 

Botânica Amoroêa, 



AFONSO CELSO 

ESTADO BE MINAS — OURO FRETO — 81-ni.lSeO 
f RIO DE JANEIRO — ll-VX-lOSS 

O Dr. Afonso Celso, Conde de Afonso Celso, filho do Vis- 
conde de Ouro Preto, ô uma das figuras mais slmp&tieas das 
nossas letras, poeta e prosador: lírico de delicada • Umpida ins* 
piracão, romancista e novelista e ainda consumado orador. Fer- 



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-- 49 --^ 

voroBo católico, o Santo Padre o agraciou com o título de Conde, 
e é oficial da Legião de Honra da Franca. 

Sócio efetivo do Instituto Histórico e Qeogrâíico Bra«il«Íro 
desde 2-XII-1892, perteceu também à Academia Brasileira de 
Letras e à Academia de Oiências de Lisboa. 

De sua vasta bibliografia destacam-se: Prelúdios, Deva-^ 
neioa, Camões, Minha filha, O Imperador no exílio. Porque me 
ufano do meu pais. Aventuras de Manuel João, eto. 



23. S. João d'El-Rei 

Pitoresca localidade, S. João d*El-Rei! Tiradentes, M 
um século, reservava-a para capital do estado livre que 
sonhara fundar. Como nas grandes metrópoles europeias, 
corta-a ura rio pelo meio. Risonho e ôttraente o aspecto 
geral. Outrora opulento empório de mineração. Cidade de 
verão das mais procuradas hoje em dia, — delicioso clima, 
casando o conforto de um centro civilizado à salutar sim- 
pleza campezina. 

População genuinamente mineira: lhana, afável, in- 
dependente. 

Magníficas igrejas dominam-lhe as eminências. 

S. João goza da justa celebridade de ser talvez o 
ponto do Brasil onde mais solene pompa revestem as 
cerimónias da liturgia cristã. Música religiosa, não ouvi 
ainda tão impressionadora como ali. 

Num dos templos, mostra-se imagem devida, no di- 
zer da crónica, ao celebre Aleijadinho, vulto lendário de 
Minas, artista inculto e genial, cuja tradição bizarra vive 
na imaginação popular, em cu^riosos traços sobrenaturais. 
Contam que, depois de levar anos estudando o mecanis- 
mo das asas dos pássaros, fabricou um aparelho com o 
qual conseguiu voar. A-pesar-da deformidade física de 
que lhe resultou o apelido, artista insigne era-o, sem dú- 
vida: escultor e arquiteto. Produções realmente notá- 
veis atestam o seu valor. Contratava a confecção de figu- 
ras de santos, sua especialidade; encerrava-se semanas in- 
teiras num aposento, sem instrumentos visíveis de traba- 
lho e recusando tomar alimentação. Sumia-se um belo 
dia misteriosamente deixando a obra acabada, quasi sem- 
pre um primor. 



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^ 50 — 

Em virtude de prescrição médica, saíamos quoti- 
dianamente, minha esposa e eu, perambulando sem rumo. 
Recordávamos essas tocantes legendas e admirávamos a 
incomparável natureza, respirando o ar diáfano e puro. 
Subíamos a ladeira de um morro que sobranceia a povoa- 
entrada, esquecíamos as horas, observando as casas, — 
mçmchas brancas orladas de verde, — os campos ondula- 
dos e, serpejando ao longe, o rio das Mortes, assim sinis- 
tramente denominado, por causa de obscuras guerras nos 
tempos coloniais. 

Seguíamos outras ocasiões pela rua larga, à mar- 
gem do rio. Eleva-se aí a cadeia. Em monótona inação 
penduram-se os condenados às grades, metendo a ca- 
beça por entre os varões. Distraem-se a ver os transeun- 
tes. Caras sinistras e lívidas — grenhas imundas. Cau- 
savam-nos pena e vago terror. Em certas horas suscita- 
vam-nos admiração. 

Custava-nos a crer houvesse nò mundo crimes e cri- 
minosos I 

Minha filha (1893). 



RAUL POMPEIA 



ANGRA DOS REIS, ESTADO DO RIO — 12-IV.1863 
t RIO DE JANEIRO — » 25-Xn.l895 

Extraordinária organização de artista, ten>peramento ner- 
voso e impressionável, talento fulgurante, logo à publicação 
do seu primeiro livro, Raul Pompeia grangeou a reputação de 
grande escritor, distinto pela sua -arte superior, original sob 
todos os aspectos. 

Formou-se em direito no Recife, tendo feito uma parte do 
curso em S, Paulo; aí, estudante, ao lado dos abolicionistas, 
chefiados por Luiz Gama, trabalhou pela abolição do cativeiro. 

Era exímio desenhista e pintor e cultivou ainda a escultura. 

Raul Pompeia suicidou-se num dia de Natal, varando o peito 
com um tiro de revolver. 

Bibliografia — Publicou: O Ateneu, Uma tragédia no Ama^ 
^,onas. Canções sem metro, etc. 



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— 51 — 



24. Festa escolar 



Em frente, um gramai vastíssimo. Rodeava-o uma ala 
de galhardetes, contentes no espaço, com o pitoresco dos 
tons enérgicos cantando vivo sobre a harmoniosa surdi- 
na do verde das montanhas. 

Por todos os lados apinhava-se o povo. Voltando-me, 
divisei, ao longo do muro, duas linhas de estrado com 
cadeiras quasi exclusivamente ocupadas por senhoras, ful- 
gindo os vestuários em violenta confusão de colorido. Al- 
gumas protegiam o olhar com a mão enluvada, com o 
leque, à altura da fronte, contra a rutilação do dia, num 
bloco de nuvens que crescia do céu. 

Acima do estrado, balouçavam docemente e sussurra- 
vam bosquetes de bambu, projetando franjas longuíssimas 
de sombra pelo campo de relva. 

Algumas damas empunhavam binóculos. Na direção 
dos binóculos distinguia-se um movimento alvejante. Eram 
os rapazes. "Aí vêm! disse-me meu pai; vão desfilar por 
diante da princesa". 

A princesa imperial. Regente nessa época, achava-se 
à direita em gracioso palanque de sarrafos . 

Momentos depois adiantavam-se por mim os alunos 
do "Ateneu". Cerca de trezentos; produziam-me a impres- 
são do inumerável. 

Todos de branco, apertados em larga cinta vermelha, 
com alças de ferro sobre os quadris e na cabeça um pe- 
queno gorro cingido por um cadarço de pontas livres. 
Ao ombro esquerdo traziam laços distintivos das turmas. 

Passaram a toque de clarim, sopesando os petrechos 
diversos dos exercícios. Primeira turma, os haltéres; se- 
gunda, as masscbs; terceira, as barras. 

Fechavam a marcha, desarmados, os que figurariam 
simplesmente nos exercícios gerais. 

Depois de longa volta, a quatro de fundo, dispuse- 
ram-se em pelotões, invadiram o gramai, e, cadenciados 
pelo ritmo da banda de colegas, que os esperava no 
meio do campo, com a certeza de amestrada disciplina, 
produziram as manobras perfeitas de um exército sob o 



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— 52 ~ 

« 
comando do mais raro instrutor. Diante das fileiras, Ba- 
taillard, o professor de ginástica, exultava, envergando 
a altivez do seu sucesso na extremada elegância do talhe, 
multiplicando por milagroso desdobramento o compêndio 
inteiro da capacidade profissional, exibida em galeria por 
uma série infinita de atitudes. 

A admiração hesitava a decidir-se pela formosura 
masculina e rija da plástica de músculos a estalar o brim 
do uniforme, que êle trajava, branco como os alunos, ou 
pela nervosa celeridade dos movimentos, efeito elétrico 
de lanterna mágica, respeitando-se na variedade prodi- 
giosa a unidade da correção suprema. Ao peito tilintavam- 
Ihe as agulhetas do comando, apensas de cordões verme- 
' lhos em trança. Êle dava as ordens fortemente, com uma 
vibração penetrante de corneta, que dominava à distân- 
cia, e sorria à docilidade mecânica dos rapazes. Como ofi- 
ciais subalternos, auxiliavam-no os chefes de turma, pos- 
tados devidamente com os pelotões, sacudindo à manga 
distintivos de fita verde e canutilho. 

Acabadas as evoluções apresentaram-se os exercícios. 
Músculos do braço, músculos do tronco, tendões dos jar- 
retes, a teoria toda do corpore sano foi praticada valen- 
temente, ali, precisamente, com a simultaneidade exata 
das extensas máquinas. Houve após o assalto aos apare- 
lhos. Os aparelhos alinhavam-se a uma banda do campo, 
a começar do palanque da Regente. Não posso dar ideia do 
deslumbramento que me ficou desta parte. 

Uma desordem de contorsões, deslocadas e atrevidas; 
uma vertigem de volteios à barra fixa, temeridades acrobá- 
ticas ao trapézio, às perchas, às cordas, às escadas; pirâ- 
mides humanas sobre as paralelas, deformando-se para os 
lados em curvas de braços e ostentações vigorosas de 
tórax; formas de estatuária viva, trémulas de esforço, 
deixando adivinhar de longe o estalido dos ossos desar- 
ticulados; posturas de transfiguração sobre invisível 
apoio; aqui e ali uma cabecinha loura, cabelos em de- 
sordem cacheados à testa, úm rosto injetado pela inversão 
do corpo, lábios entre-abertos ofegando, olhos semicer- 
rados para escapar à areia dos sapatos, costas de suor, co- 
lando a blusa em pasta, gorros sem dono que caíam do 
alto e juncavam a terra; movimento, entusiasmo por toda 



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— 53 — 

a parte e a soalheira» branca nos uniformes, queimando os 
últimos fogos da glória diurna sobre aquele triunfo es- 
petaculoso da saúde, da f^rça, da mocidade. 

O professor Bataillard, enrubecido de agitação, rouco 
de comandar, chorava de prazer* Abraçava os rapazes in- 
distintamente. 

Duas bandas militares revçzavam-se ativamente, co- 
municando a animação à massa dos espectadores. O co- 
ração pulava-me no peito com um alvoroço novo, que me 
arrastava para o meio dos alunos, numa leva ardente de 
fraternidade. Eu batia palmas; gritos escapavam-me, de 
que me arrependia quando alguém me olhava. 

Deram fim à festa os saltos, os páreos de carreira, 
as lutas romanas e a distribuição dos prémios de ginás- 
tica, que a mão egrégia da Sereníssima Princesa e a pouco 
menos do Esposo Augusto alfinetavam sobre os peitos 
vencedores. Foi de ver-se os jovens atletas aos pares afer- 
rados, empuxando-se, constringindo-se, rodopiando, rolan- 
do na relva com gritos satisfeitos e arquejos de arranca- 
da; os corredores, alguns em rigor, respiração medida, bei- 
ços unidos, punhos cerrados contra o corpo, passo miúdo 
e vertiginoso; outros, irregulares, bracejantes, prodigali- 
zando pernadas, rasgando o ar a pontapés, numa preci- 
pitação desengonçada de avestruz, chegando esbofados, com 
placas de poeira na cara, ao poste da vitória. 

o Ateneu — Francisco Alves & Comp. -> 190C. 



OLAVO BILAC 

BIO DE JANEIRO — 16-Xn.l865 
t RIO DR JANEIRO — 28-Xn.l918 

Olavo dos Guimarães BUac cursou as Faculdades de Medicina 
do Rio de Janeiro e de Direito de São Paulo, as quais abandonou, 
para se entregar inteiramente às letras, a que votou toda uma 
existência de poeta e artista. Como poeta, Bilac forma com 
Raimundo Corrêa e Alberto de Oliveira a grande trindade pap- 



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— 64 — 

nasiana. Grande poeta, não só pelo vlgror da Insplrac&o e pela 
espontaneidade do estro como ainda pela correção da forma im- 
pecável, pela força, colorido e brilho de expressão. Bilac, que 
teve em grande estima a formosa língua em que escreveu não 
foi menos cuidadoso e correto na prosa. Notável orador. 

Foi da Academia Brasileira, cadeira Gonçalves Dias. 

Bibliografia — Poesias: Panóplias, Via Látea e Sarças de 
fogo (1888) — Crónicas e novelas (1804) — Sagres, poemeto 
(1898) — Poesias, edição definitva, contendo, além das partes da 
edição de 1888, mais: Alma inquieta. As viagens e O caçador de 
esmeraldas (1902) — Crítica e fantasia (1904) — Poesias <w/an- 
tis (1904) — Conferências literárias (1906) — Ironia e Piedade 
(1916) — Tarde, livro póstumo. Em colaboração com M. Bon- 
fim: Livro de Composição e Livro de Leitura (1899) Através do 
Brasil (1913); com Coelho Neto: Contos Pátrios e Teatro in^ 
fantil (1905) — Pátria Brasileira (1511); com Guimarães Pas- 
sos: Tratado de versificação (1905) — Melhorou, aumentando-o, 
o Dicionáxio de rimas de Guimarães Passos: traduziu: Jucá e 
Chico, livro para crianças. 



25. Entre Ruínas 

Sobre os rosais silvestres, abertos em flores, nas fai- 
xas de ouro dos últimos raios do sol, dansa o vôo leve 
das abelhas, e apenas o seu sussurro povoa a solidão des- 
tes sítios ermos. 

As gameleiras — as amigas de todas as ruínas — 
'estão quietas e mudas, sem uma só palpitação de folha, 
com a ramaria dura, irrompendo dos escombros desta rua 
fantástica e deserta, como uma rua de sonho, cujo calça- 
mento antigo, de grandes lájeas avermelhadas, quasj de- 
saparece sob um tapete espesso de mato curto. 

Estamos entre as ruínas da rua da Água Doce, em 
Ouro-Preto, artéria principal da vida de há duas centenas 
de anos, longa avenida que sobe em declive suave desde 
o centro do bairro do Padre Faria, até perto das Aguas 
Férreas, de onde já se avista a estrada de Mariana. 

De todas as ruínas, entre as quais a minha. extrava- 
gância andou por sete meses de solidão passeando, é esta 
a mais triste e, ao mesmo tempo, a mais bela. 



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— 55 -^ 

Nos outros pontos em que se amontoam destroços 
de habitações, as massas de pedra aparecem de espaço, a 
espaço, deixando ver que entre as casas havia quintais, 
pastos, roças, campos incultos. Mas aqui a construção á 
compacta e cerrada; os alicerces de uma casa encostam-se 
aos alicerces da outra, as paredes tocam-se, e, com quasi 
uma hora de marcha, segue-se por uma verdadeira rua 
èentral de cidade, como a rua do Ouvidor. A diferença 
é que, desta rua do Ouvidor dos bandeirantes, somente 
as paredes das casas subsistem. 

O mato cobre as calçadas de banda a banda. E se 
alguma coisa, além do sussurro das abelhas, que voam 
sobre os rosais silvestres, quebra o silêncio profundo, que 
pesa sobre estes lugares, é o rumor surdo dos nossos pas- 
os abafados pelas ervas que pisamos. 

Vamos, dois curiosos, sem falar, de ouvido aberto 
à voz misteriosa das coisas mortas, que só em sonho se 
ouve, caminhando de vagar, com um recolhimento piedo- 
so na alma, como se estivéssemos seguindo a alameda de 
um cemitério. 

Critica e Fantasia — A. M. Pereira, ed. — Liisbôa. 



26. A gruta de pedra 



Às nove horas, munidos de archotes, entrámos na 
formosa Gruta de Pedra, uma maravilha natural: Dentro 
da gruta, um frio fino e cortante. Grandes salões, de 
cujo teto escuro pendem colossais candelabros de pedra, 
sucedom-se, unidos por galerias mudas, de chão húmido 
e escorregadio. 

De quando em quando, o caminho sobe. E o visi- 
tante, surpreso, chega a uma nova sala, a um segundo 
andar da espantosa gruta. À luz do archote, que vascila 
8 desmaia, resvalando pelas paredes rugosas, de anfracto 



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— 56 — 

em anfracto, de furna em fuma, aparecem e desapare- 
cem, como por encanto, abismos negros, vultos formidan- 
dos de penedos acastelados uns sobre os outros. 

Às vezes, de uma eminência, o olhar mergulha pelos 
corredores vagamente alumiados, e percebe ao longe, 
caída de uma fenda da rocha sobre um chfio que brilha 
dubiamente, a luz do dia, incerta, azulada, fantástica. 

E, prestando atenção, num silêncio absoluto, ouve-so 
o tique-taque das gotas de água pingando sobre as lajes, 
filtradas pelas estalactites, continuando o trabalho secular 
da formação daquelas assombrosas colunas de pedra. Nos 
pontos raros em qué a abóbada se rasga, deixando apa- 
recer um palmo de céu azul, a claridade põe no solo hú- 
mido uma nódoa de côr indefinivel. Há um sítio, de que 
irrompe, em plena treva, em pleno subterâneo, um tronco 
de árvore secular. Há quantas centenas de anos terá ali 
caído abandonada e triste, a semente que foi o berço da- 
quele colosso? Sem ar, sem luz, o pequenino rebento 
cresceu talvez uma polegada de d^z em dez anos. 

Subiu a custo, como uma cobra, pelas paredes da im- 
mensa caverna. 

Engrossou, desenvolveu-se, cresceu. 

E, já tronco, prosseguiu a sua viagem desesperada e 
heróica para a luz, para aquele céu, que adivinhava lá 
em cima. .. 

Hoje, é curioso seguir esse percurso: o tronco vai 
de pedra em pedra, confundindo-se com a rocha, subindo 
sempre, acompanhando aqui uma anfractuosidade, gal- 
gando ali uma cavidade, até que emerge da treva por um 
buraco aberto no teto da gruta, e abre-se, e expande-se 
e pompeia, e triunfa, e irradia, e canta em plena luz, 
alastrando pelo ar a sua gloriosa copa verde, onde gar- 
ganteiam pássaros, onde vivem ninhos, e de onde pendem 
08 grandes reposteiros fulvos das barbas de velho, como 
mantos régios... 

Critica e Fantasia — A. M. Pereira, ed. 
— Lisboa. 



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— 57 — 



COELHO NETO 

HAR/LSWLO — 21-n.l865 

f RIO DE JANEraO •— 28-XI-19M 

Artista da palavra, Hexirlque Coelho Neto, romancista e no- 
velista. ê um escritor de visrorosa imaglnac&o, cultor da língua, 
exprimindo-se com elegância, graça e originalidade: o seu voca- 
bulário é rico e copioso, o seu dizer — correto; o seu estilo — 
límpido, cristalino e colorido. 

Professor, Coelho Neto lecionou na Kscola de Belas Artes, 
no Ginásio de Campinas e no Colégio Pedro II; dirigiu a Escola 
Dramática. 

Foi da Academia Brasileira de Letras — cadeira Alvares de 
Azevedo. 

Bibliografia — Suas obras principais s&o: Rapsódias (con- 
tos), A Capital Federal, Miragem, Inverno em flor, A Conquista, 
Tormenta (romances), Baladilhas, Fruto proibido, BUhetes poS'' 
tais (contos), Romanceiro, Bertão (novelas)» Compêndio da litB" 
ratura brasileira, crónicas, peças de teatro, livros escolares pri- 
mários de colaboração com Bilac e Manuel Bonfim, etc. 



27. A mata virgem 

Cifavei as esporas no meu cavalo e, em pouco, alcan- 
çava a orla da mata. 

Era a grande, a inexplorada selva primitiva, a vene- 
rável floresta das eras bárbaras, templo augusto das tríbus. 

A alma forte, a alma selvagem e ingénua da raça 
banida parecia errar, peregrina, pelos meandros obscuros, 
fazendo com que a selva contasse a sua tradição gloriosa. 
A princípio, com uma leve aragem, era um sussuro de 
mistérios como o canto profético do page, e crescia: 
era já o coro guerreiro da tribu, cantado, nos tempos 
cruentos da peleja, antes da marcha heróica contra a taba 
inimiga; mas um vento forte passava, debatiam-se os ga- 
lhos convulsivamente e o estridor subia grande, ressoante, 
épico, como o de um encontro válido de bravos, ao es- 
trupidar enfurecido das tangapemas brandidas, ao silvo 
agudo das flechas, através da algazarra, enquanto as inú* 
bias, sopradas com fúria, espalhavam, uivando soturna- 
mente, de palmar em palmar, o vozeirão tremendo do 
combate. 



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— 58 — 

Selva augusta! de velhos troncos intactos, jamais fe- 
ridos pelo gume dos ferros. Galhos caíam, encanecidos 
de musgos, folhas acumulavam-se no solo macio e fofo, 
amarelecidas, encarquilhadas, sob a proteção da imensa 
abóbada dos ramos, sempre verdes, e a vida continuava 
num renovamento perene, a podridão fecundava a pri- 
mavera; a folha, que se convertia em lama, ressurgia em 
seiva; um fluido vital corria ininterrompidamente, reju- 
venescendo a floresta. 

Brotavam flores em árvores centenárias e, pelos tron- 
cos vetustos, quasi apodrecidos, renovos apontavam de 
folhas tenras, já abotoando; lianas cruzavam-se em cordo- 
alhas grossas duma árvore a outra, filandras caíam em 
chuva douro franjando garridamente os galhos, e para- 
sitas em flor arrecamavam jequitibás severos. À tona de 
uma lagoa, coalhada de mururú, insetos voavam em lú- 
cido bando subindo e descendo por um raio de sol, como 
por uma teia lúcida, e nimbos de luz fulguravam n'água 
dormente, como nelumbos de ouro. Aves penserosas, tris- 
tonhas, num pé só, miravam a lagoa imóvel; nos altos 
ramos araçarís chocarreiros taralhavam, e, de quando em 
quando, num vôo pesado, uma arara atravessava o labirinto 
da folhagem com um grito agudo, que repercutia. 

Longo e de enlevo foi todo o tempo da travessia; 
vinha caindo suavemente o crepúsculo, quando surgi em 
um campo de samambaias e de bertiogas, onde havia 
ruínas . 

Sertão — Tip. — Leuzlnger — 1897. 



VIRGÍLIO VÁRZEA 

S. CATARINA — CANA VIEIRAS — 6-1-1865 

Poeta e novelista, Virgílio Várzea tem não vulgares quali- 
dades de narrador; como pintor de marinhas e cenas de paisa- 
gens da sua terra ninguém se lhe avantaja. Língua e estilo, 
bons. 

Virgílio Várzea foi professor e Inspetor de ensino no Dis- 
trito Federal. 

Bibliografia — Publicou: Traços azues. Trapos e fantasias. 
contos de colaboração com Cruz e Souza, Mares e Campos, Con^ 
tos de amor. Os argonautas, etc. 



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— 59 — 

28. Manhã na roça 

E- pleno inverno. ^ 

Aqui e além, galos acordam cantando à aproxima- 
ção do dia. Uma ténue mancha de claridade argêntea re- 
corta em laca a linha ondulada das colinas verdes. Pouco 
a pouco, uma poeira de ocre transparente, que se esbate 
para o alto, cobre todo o horizonte e o sol aponta, des- 
lumbradoramente, como uma gema de ouro flamante. 
Vapores diáfanos diluem-se lentamente, em meio dos 
listrões vivos que purpureiam o Nascente. Fundem-se no 
ar tons delicados de azul e rosa; e eleva-se da floresta uma 
orquestração triunfal . 

Despertam de súbito ao alagamento tépido da luz, as 
culturas adormecidas. 

Abrem-se as casas. 

Pelos terreiros, húmidos da serenada da noite, ho- 
mens de cócoras, em camisa, de cangirão na mão, brancos 
de frio, ordenljam as grossas tetas das pacientes e mugi- 
doras vacas, que criam amarradas aos finos paus das 
parreiras, e que, expelindo fumaça no ar frígido, rumi- 
nam ainda restos de grama numa mansidão ingônua de 
animal digno. 

Mulheres de chalé pela cabeça chamam as galinhas, 
com um ruído seco de beiço tremido, fazendo brúrrr e 
sacudindo-lhes mãos cheias de minho e pirão esfarelado. 

Um carro atopetado de raizes de mandioca, arranca- 
das de fresco, empoeiradas de areia, compridas, tortas, com 
o aspecto e a côr exquisita das plantas que se avolumam 
e vegetalizam enterradas, chia monotonamente, em di- 
reitura ao engenho, solavancado pela aspereza do caminho, 
chilreante e aromatizado por florações vigorosas e ger- 
minativas, pelas emanações do gado e pelo cheiro acre das 
laranjas vermelhas, que caem de maturidade. 

Cantigas rústicas, amorosas, de uma sinceridade ingé- 
nua, com toadas prolongadas e vibrantes, misturam-se à 
alacridade do campo. 

E pela compridão majestosa e verde dos alagados e 
das pastagens, o colorido movimentoso e variado das reses. 

Mares e Campos — Cunha & Irmão, editores. 

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— 60 — 
XAVIER MARQUES 

£. DA BAÍA ~ ILHA DE ITAPARIOA — 8-Xn.l861 

Francisco Xavier Ferreira Marques, romancista e poeta, ô 
um formoso talento, servido por notô.vel cultura literária: o que 
acentuadamente carateriza o escritor baiano ê o seu estilo ori- 
ginal e próprio, e a correção, pureza e elegância de sua língua. 

O Jornalista, n&o desmerece do romancista. 

E' da Academia Brasileira de Letras — Cadeira Manuel 
de Almeida. 

Bibliografia — Temas e Variações, versos; Uma família 
baiana, romance; Insulares, versos; Pin€h>ramxL, O sargento 
Pedro, Vida de Castro Alves, A arte de escrever, Ensaio histó' 
rico sobre a Independência, etc. 



29. O combate 

Ao amanhecer, a esquadra do general Madeira, su- 
perior a quarenta vasos, apareceu disposta em duas li- 
nhas: uma se estendia de Amoreiras até o Convento; a 
outra, na contra-costa, partia do Contrato e prolongava-se 
ató o Mocambo. Formavam assim um ângulo, cujo vértice 
era a fortaleza de S. Lourenço. 

Os barcos da flotilha, conchegados com a terra, su- 
miam-se como exíguas tartarugas num círculo de cacha- 
lotes e baleias. 

Estranho e misterioso silêncio reinava nas praias 
quasi desertas, apenas transitadas por algum raro oficial 
que passava a cavalo, fugazmente, à ourela do mar, ou 
pelas sombras dos galeirões e andorinhas que, papeando, 
caíam como balas da atmosfera cheia de luz, estremeci- 
da pela brisa fresca do norte. 

Junto às baterias do litoral, pequenas turmas de vo- 
luntários se conservavam retraídas, como em tocaia. 

Rumores abafados saíam detrás do mato marginal, 
das estacadas de coqueiros, dos mangues, das trincheiras 
e dos fundos dos valos. 

Mas a praia continuava silenciosa. 



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— 61 — 

Ouvia-se o murmúrio discreto das pequenas ondas no 
cascalho e o flabelar dos coqueiros, cujas palmas verdes, 
de um frescor insidioso, chamavam os inimigos como 
mãos de gigantes. Fora desses acenos nenhuma vida se 
acusava. 

Dir-se-ia a costa de um rochedo só habitado por aves 
do oceano. 

A custo quem a observasse de largo, descobriria sobre 
as terras cegas de algumas quebradas, entre as moitas 
e os barrancos dos outeiros, um ou outro vulto incerto 
que depressa desaparecia. 

O golfo brilhava em todo o seu vasto âmbito, com 
reflexos móveis de espelhos. 

Com o sol pouco acima do horizonte. Barros Gal- 
vão saiu do quartel de Amoreiras, montou em seu cavalo 
russo crinalvo e desceu à bateria. Ao contato do ar ain- 
da fresco, tinha as mãos e o rosto coloridos de púrpura; 
a farda de miliciano azul ferrete, agaloada de prata, 
apertava-lhe o peito amplo. Deu um lance d*olhos à bar- 
raca onde se escondia o paiol ;i|repetiu algumas ordens, 
olhou para a linha dos vasos inimigos e passava às trin- 
cheiras, quando uma barca e um lanchão, destacando-se da 
esquadra, se aproximaram a reconhecer os pontos. 

A barca passou a defrontar os muros da fortaleza. 
Daí partiu o primeiro tiro. Um novelâo de fumaça bai- 
lou no ar, espargiu-se, apagou-se. A esquadra não res- 
pondeu. 

As lanchas recolheram-se à linha, e a espectativa du- 
rou uma eternidade. 

Só uma hora depois decidiu-se o inimigo a atacar. 

De varredouras entumecidas, a esquadra pôs-se em 
marcha evitando a cúrôa de noroeste que o refluxo come- 
çava a descobrir, como a oferecer uma ponte aos ata- 
cantes. 

Pedro, perfilado na bateria, viu o capitão descer ao 
friso d'água, e repentinamente subir, a articular palavras 
curtas e rápidas. Depois nada mais ouviu, nada mais viu, 
senão rochedos que andavam, fortalezas embandeiradas 
que se moviam para a Ponta frágil, asas brancas de enor- 
mes rapineiros a voar pesadamente sobre as ondas. — 
Seria êle uma presa que também voaria, mas nas suas 



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— 62 — 

garras, para a morte?... E o pontal resistiria acaso ao 
choque daqueles penedos de ferro que não tardariam 
chover? Iria reproduzir-se o velho cataclismo de que 
tanto falava o pai André?... Brigues, escunas, barcas, 
fragatas e corvetas, corriam em bordos lentos por entre 
o fulgor azul do espaço. 

— Romaria tremenda!... E pelo espírito do sar- 
gento Pedro atravessaram as imagens dolorosas do velho 
pescador, de Mercês, da Manuela, de tantos mais que tal- 
vez nem chegariam a ver o seu cadáver mutilado entre os 
restos sangrentos da hecatombe... Caiu num sonho hor- 
rível, de que só despertou ao ribombar estupendo dos tiros. 

A artilharia de bordo começava a entoar o mais ter- 
rível canto de guerra que jamais ouviram as praias e co- 
linas da ilha e jamais repetiram os ecos dos seus boquei- 
rões. Do Balaústre à Eminência, do pontal ao Mocambo, 
o ângulo de fogo soava com frémitos, lampejos e silvos 
de ferro. Uma mortalha negra de fumo se estendia pelo 
céu: rasgava-se aqui, emendava-se acolá. 

Barros Galvão proc^Amou rapidamente: 

— Soldados da independência! Meus patrícios I O 
inimigo quer expulsar-nos desta terr^ onde nascemos, e 
apoderar-se dela para trucidar com as nossas próprias 
armas a Baía e o Brasil independente! 

Juremos perante o céu que êle só pisará nestas praias 
quando não restar mais de pé nem um de nós. . . Juremos, 
camaradas, pela nossa honra, que havemos de ser fiéis 
à divisa do batalhão expedicionário: vencer ou morrer!. .. 
Viva o Príncipe Regente! 

Uma procela de aclamações trovoou ao longo da costa. 

Então, ao grito da corneta que se fez ouvir na praia, 
Pedro mandou tocar a trança abrasada no ouvido da sua 
peça. 

Toda a costa reboou numa escala de estampidos, que 
a bateria da fortaleza de S. Lourenço dominava com as 
suas dezesseis bocas. 

Os ecos so fundiam sobre os montes, as balas do 
mar batiam na areia, o fumo nascia em jorros negros, 
dilataudo-se. Na bateria de Pedro já os serventes, por 
algum tempo mudos de comoção, atinavam com as vozes 
do ofício. "O soquete!... A trança... Vá...", 



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- 63 — 

A peça juntava o estrondo aos longínquos trovões 
da esquadra e da flotilha. E pouco a pouco , o ronco dos 
outeiros, que pareciam ter alma e gemer, deixou de aba- 
lar o coração do sargento. Não o afligiam mais remi- 
niscências de amor nem cuidados da vida. Tornava a pos- 
suir a força calma do seu ser, indiferente às balas que lhe 
caíam em torno: as mãos negras, o rosto negro de pól- 
vora, o braço em movimentos certos, jogando o soquete 
como girava o trado no madeiro dos barcos. 

Já durava horas o combate e, si não havia mortos 
em terra, não havia esperança de vitória tão cedo. 

No meio dessa luta sem praso, foi a guarnição de 
Amoreiras surpreendida pelo salto de um cavalo que 
esbarrou na praia, junto ao capitão Galvão. Era o ajudante 
do governador da ilha que chegava anunciando o que 
passava nas praias e águas do oeste. 

— A vovó destroçada I. . . Um brigue encalhado no 
baixio de Mocambo... 

Botas ataca-o. 

A espada estremecia no punho de Galvão. A Vovó 
era uma das maiores barcas de guerra dos lusitanos. 

No mar, na fortaleza, ao longo da costa e da con- 
tra-costa, as bocas de fogo continuavam a troar . . . 

o Sargento Pedro — Tipografia Baiana, de C. 
Melchiades, Baía — 1910. 



MEDEIROS E ALBUQUERQUE 

PERNAMBUCO — RECIFE — 4-IX.1867 
f RIO DE JANEIRO — 1934 

Medeiros e Albuquerque (José Joaquim de Campos da Costa 
de) fez a sua estreia como poeta com os Pecados; depois afir- 
mou-se um novelista de fino quilate; e foi ainda jornalista, 
orador, cronista, ensaísta, crítico e pedagogo. 

Ê o autor da poesia do Hino ãa Proclamação ãa Repútlica, 
cuja música ê do malog^rado Leopoldo Miguez. 

Exerceu o cargo de professor da mitologia na Escola Na- 



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cional de Belas Artes, tendo ocupado o lugar de Biretor Geral 
da Instrução pública no Distrito Federal. 

Pertenceu fí Academia Brasileira, cadeira José Bonlf&cio, 
o moço. 

Deixou publicados: O remorso. Pecados, Mãe tapuia» Poesias, 
Em voz alta, O silêncio é de ouro. Literatura alheia, etc. 



30. O filho do Í2isp6tor 

o Raposinho — como nós lhe chamávamos — era 
realmente a mais meiga das criaturas. A despeito da pri- 
meira prevenção, fez-se amar por todos. 

Por todos, não. Havia um grupo de dez ou doze 
que o detestava: a escória do colégio, os rebeldes, os de 
mau carater. Um deles principalmente, o 69, a quem nós 
chamávamos o Fuinha, multíplicava-lhe as picardias, as 
pilhérias de mau gosto. 

Mas, assombroso de dedicação era o procedimento do 
velho inspetor. 

Adorando o filho, chegava a privar-se de falar com 
èle a semana inteira, só para não acusarem o menino 
de ser o espião de seus colegas. 

Dava-lhe apenas pela manhã e à noite a sua bênção e 
acompanhava-a de um beijo; isto mesmo fazia-o bem cla- 
ramente, à vista de todos. 

Quando um fato ocorria, digno de castigo e cujos 
autores não eram conhecidos, e que o obrigava a punir 
o grupo dos mais próximos, o Raposo incluía sempre d 
filho. O velho ficava às vezes com os olhos cheios de 
lágrimas. A injustiça revoltante era para èle que a pra- 
ticava concientemente, só para não o acusarem de prote- 
ger o pequeno, uma dôr de alma. 

Temia perder aquele emprego, interromper os estudos 
do menino. Estava pronto a submeter-se a tudo. 

Certa vez, na classe, alguém, no meio do silêncio geral, 
pisou a cabeça de um fósforo de estalo. O inspetor per- 
guntou quem fora. 

Ninguém se acusou. Insistiu. 

Viu-se então o Fuinha, cinicamente, levantar-sé e 
dizer : 

— Eu sei quem foi, seu inspetor. Foi seu Raposinho. 



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— 65 — 

Era a mais evidente das falsidades; o estalo partira 
da outra banda da sala. Mas o velho teve apenas um mo- 
mento de hesitação. Voltou para o filho os olhos mansos, 
os seus tristes olhos de cão batido, e mandou-o de castigo. 

Houve em toda a classe um movimento de revolta. 
O 63, um bom e leal companheiro, que estava ao lado 
do Raposinho, olhou para o Fuinha como a dizer-Ihe 
**Tu me pagas I^e levantou-se: 

— E' mentira. Quem fez ò barulho fui eu. 

Todos nós compreendemos que êle se estava acusan- 
do em falso, indignado pela infâmia do Fuinha. Mas o 
Raposinho, que já se erguera para o castigo e viu também 
a generosidade do colega, atalhou logo: 

— Não, senhor, fui eu mesmo . . . 

O inspetor ficou perplexo. Logo, porém, o verdadei- 
ro autor confessou sua falta. Gomo, porém, saber qual 
dos três que se acusavam fora, do fato, o responsável? 
Toda a sala ansiava por ver como se decidiria o caso. O 
inspetor voltou-se para o filho: 

— Só uma pessoa pode ter feito o mal. Deve ter 
sido o senhor, porque, além de se acusar, foi visto pelo 
seu colega, que o denunciou. . Vá para o castigo. 

.Nós tremíamos de raiva — raiva do Fuinha. Minutos 
depois tocou a sineta do recreio. Descemos, em forma, 
dois a dois, como um l)atalhão. Mas assim que chegámos 
ao páteo, mal o inspetor dera a ordem para debandar ou- 
via-se um formidável sopapo, que o 63 aplicava na bo- 
checha do Fuinha e todos, com a fúria que estávamos, 
caímos-lhe em cima aos socos, aos pontapés... 

O Diretor, chamado, veio a saber da "realidade do fato 
e, fingindo-se, embora, muito zangado, deu-nos um simu- 
lacro de punição.' 

O Raposo tinha conquistado a estima geral. Fez-se 
respeitar pela brandura, pela delicadeza com que nos 
tratava. 

Nos colégios, um dos motivos porque os inspetores 
não infundem respeito aos alunos, é pela sua habitual 
ignorância: são para os meninos um motivo de troça. 
Com êle, porém, não sucedia isto. Era para nós um 
auxiliar, um tira-dúvidas solícito, bondoso, instruído, que 



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^ 66 — 

sabia explicar as coisas claramente. Do seu antigo ofício 
de jornalista, ficara-lhe uma certa elegância de linguagem; 
Si havia um que raramente o consultava, era o fi- 
lho; o velho evitava que o acusassem de preparar as lições 
do pequeno. Este, porém, inteligente e aplicado, só tinha 
notas boas e ó timos. 

- Todas estas virtudes do Raposo não impediam que 
nós brincássemos, que lhe déssemos spbejos motivos de 
aborrecimento: travessuras naturais, que não podíamos 
reprimir. 

Mãe Tapuia — H. Garnier, editor. 



EUCLIDES DA CUNHA 

ESTADO DO RIO, 20-1.1868 

t RIO DE JANEIRO,15-Vin-1909 

Euclides da Cunha é um dos maiores vultos das letras bra- 
sileiras: num estilo forte e poderoso, o escritor fluminense é, a 
um tempo, homem de letras e homem» de ciências . O seu» ex- 
traordinário livro Os Sertões, "uma das bíblias da moderna li- 
teratura brasileira" é obra de um grande pensador, filósofo 
e sábio. 

Foi professor (por concurso) de lógica no Colégio Pedro II. 

Pertenceu ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro 
e â Academia Brasileira de Letras — cadeira Castro Alves. 

Euclides da Cunha morreu tragrlcamente, vencido pela bala 
assassina, vítima do crime mais hediondo . . . 

Bibliografia — Os Sertões (Campanha de Canudos) (1902) 
— Contrastes e Confrontos (Porto, 1907) — Peru versus Bo- 
lívia (1907), traduzido em espanhol pelo presidente da Bolívia, 
o sr. Eliodoro Villazon — Martin Oarcia (1908), trasladado 
para o espanhol pelo sr, Augustin Vedia (Buenos Aires) — 
Castro Alves e seu tempo (1908), con|eçência, em S. Paulo — 
A Margem da História (1909); — além de diversos trabalhos, 
esparsos por jornais e revistas, e ainda o Relatório da Comis- 
são Mixta Brasileira-Peruana de Reconhecimento do Alto Purús 
(1906) — trabalho em que colaborou o Comissário peruano, Pedro 
Alejandro Buenano. 



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— 67 — 

31. O sertanejo 

o Sertanejo é, antes de tudo, um forte. 

Não tem o raquitismo exhaustivo dos mestiços neu- 
rastênicos do litoral. 

A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de 
vista, revela o contrário. Falta-Ihe a plástica impecável, o 
desempeno, a estrutura corretíssima das organizações atlé- 
ticas. E* desgracioso, desengonçado, torto. Hercules- 
Quasímodo reflete no aspecto a fealdade típica dos fra- 
cos. O andar sem firmeza, sem aprumo, quasi gingante e 
sinuoso, aparenta a translação de membros desarticula- 
dos. Agrava-o a postura normalmente acurvada, num 
manifestar de displicência que lhe dá um caráter de hu- 
mildade deprimente. A pé, quando parado, recosta-se in- 
variavelmente ao primeiro umbral ou parede que encon- 
tra; a cavalo, se sofreia o animal para trocar duas pala- 
vras com um conhecido, cai logo sobre um dos estribos, 
descansando sobre a espenda da sela. Caminhando, meámo 
a passo rápido, não traça trajetória retilínea e firme. 
Avança celeremente, num bambolear característico, de que 
parecem ser o traço geométrico os meandros das trilhas 
sertanejas. E, si na marcha estaca pelo motivo mais vulgar, 
para enrolar um cigarro, bater o isqueiro ou travar ligeira 
conversa com um amigo, cai logo — cai é o termo — 
de cócoras, atravessando largo tempo numa posição de 
equilíbrio instável, em que todo o seu corpo fica suspenso 
pelos dedos grandes do^ pés, sentado sobre os calca- 
nhares, com uma simplicidade a um tempo ridícula e 
adorável . 

E* o homem permanentemente fatigado. 

Reflete a preguiça invencível, a atonia muscular pe- 
rene em tudo: na palavra remorada, no gesto contrafeito, 
no andar desaprumado, na cadência langorosa das modi- 
nhas, na tendência constante à imobilidade e à quietude. 

Entretanto, toda esta aparência de cansaço ilude. 
Nada é mais surpreendedor do que vê-la desaparecer de 
improviso. Naquela organização combalida operam-se, em 
segundos, transmutações completas. Basta o aparecimen- 
to de qualquer incidente exigindo-lhe o desencadear das 
energias adormidas. 



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- 68 — 

O homem transfigura-se. Impertiga-se estadeando no- 
vos relevos, novas linhas na estatura e no gesto; e a ca- 
beça firma-se-lhe, alta, sobre os ombros possantes, acla- 
rada pelo olhar dessassombrado e forte; e corrigem-se-lhe 
prestes, numa descarga nervosa instantânea, todos os efei- 
tos do relaxamento habitual dos órgãos; e da figura vul- 
gar do tabaréu achamboado, reponta, inesperadamente, o 
aspecto dominador de um titã acobreado e potente, num 
desdobramento inesperado de força e agilidade extraor- 
dinárias. 

Este contraste impõe-se à mais leve observação. Re- 
vela-se a todo o momento, em todos os pormenores da 
vida sertaneja — caracterizado sempre pela intercadênoia 
imipressionadora entre extremos impulsos e apatias longas. 

É impossível idear-se cavaleiro mais descuidado e 
deselegante; sem posição, pernas coladas no bojo da mon- 
tada, tronco pendido para a frente e oscilando à feição 
da andadura dos pequenos cavalos do sertão, desferrados 
e maltratados, resistentes e rápidos como poucos. Nesta 
posição indolente, acompanhando morosamente, a passo, 
pelas chapadas, o passo tardo das boiadas, o vaqueiro pre- 
guiçoso quasi transforma o campeão que cavalga na rede 
amolecedora em que atravessa dois terços da existência. 

Mas si uma rês alevantada envereda, esquiva, adiante 
pela caatinga garranchenta, ou si uma ponta de gado, ao 
longe, se trasmalha, ei-lo em momento transformado, cra- 
vando os acicates de rosetas largas nas ilhargas da monta- 
ria, e partindo como um dardo, atufando-se velozmente nos 
dédalos inextricáveis das juremas. 

Vimo-lo neste "steeple-chase" bárbaro. 

Não há contê-lo, então, no ímpeto. Que se lhe anto- 
lhem quebradas, acervos de pedras, coivaras, moutas de 
espinhos ou barrancas de ribeirões, nada lhe impede en- 
calçar o garrote desgarrado, porque por onde passa o boi, 
passa o vaqueiro com seu cavalo . . . 

Colado ao dorso deste, confundindo-se com êle, gra- 
ças à pressão dos jarretes firmes, realiza a criação bizar- 
ra de um centauro bronco: emergindo inopinadamente nas 
clareiras; mergulhando, adiante, nas macegas altas; sal- 
tando valos e ipueiras; vingando cômoros alçados; rom- 



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— 69 — 

pendo, célere, pelos espinheirais mordentes; iHreoipitando- 
se, a toda brida, no largo dos taboleiros... 

A sua compleição robusta ostenta-^se nesta ocasião, 
em toda a plenitude. 

Como que ó o cavaleiro robusto que empresta vigor 
ao cavalo pequenino e frágil, sustentando-o nas rédeas 
improvisadas de caruá, suspendendo-o nas esporas, arro- 
jandQ-o na carreira — estribando curto, pernas encolhidas, 
joelhos fincados para a frente, torso colado no arção, — 
escanchado no rasto do novilho esquivo; aqui curvando-se 
agilíssimo, sob uma galhada, que lhe roça quasi pela sela; 
além desmontando, de repente, como um acrobata, agar- 
rado às crinas do animal, para fugir ao embate de um 
tronco percebido no último momento, e galgando logo de- 
pois, num pulo, o selim; — e galopando sempre, através 
de todos os obstáculos, sopesando à dextra sem a perder 
nunca, sem a deixar no emaranhado dos cipoais, a longa 
aguilhada de ponta de ferro encastoada em couro, que por 
si só constituiria, noutras mãos, sérios obstáculos à tra- 
vessia... 

Mas, terminada a refrega, restituída ao rebanho a rês 
dominada, ei-lo, de novo caído sobre o lombilho retovado, 
outra vez desgracioso e indolente, oscilando à feição 
d^ andadura lenta, com a aparência triste de um inváli- 
do fatigado. 

iOã Bertões, Campanha de Canudos — 2.* e^digão 
— 1903 — Ijaemmert & Comp.)« 



AFONSO ARINOS 

ESTADO DE MINAS — PARACATU' — 1.V-Í86S 
t BABCEIiONA — ESPANHA — 19-0-1916 

O Dr. Afonso Axiatoa d6 Melo Franco era formado pela 
Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais de S. Paulo (1«S9). 
Advogou na capital paulista. 

Afonso Arlnos, cujo formoso livro de contos ^-- Pelo 8cr-^ 
tão — livro de estreia — foi reoebido com os mais francos e me* 

Antologia Brasileira 4 

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— 70 — 

recidos aplausos, revelou-se, logo & primeira prova, um escri- 
tor feito, narrador simples, elegante e correto. 

Afonso Arinos pintava e descrevia con> mão de mestre os 
costumes e as cenas da província, do campo e do sertão, e re- 
tratou com pulso firme mais de umf tipo de sertanejo. 

Foi do Instituto Histórico e da Academia Brasileira, ca- 
deira Visconde do Rio Branco. 

Bibliografia — Publicou: Pelo Sertão, Notas do Dia, Os ja^ 
gunços. Contratador de diamantes, etc. 



32. Os tropeiros 

(Do Assombramento) 

O escampado se enoitecera, e com ôle o rancho e a 
tapera. O rolo de cera, há pouco aceso e pregado ao pé 
direito do rancho, fazia uma luz fumarenta. Em baixo 
da tripeça, o fogo estalava ainda. De longe vinham aí mor- 
rer as vozes do sapo-cachorro, que latia, lá num brejo 
afastado, sobre o qual os vagalumes teciam uma trama 
de luz vacilante. De cá se ouvia o resfolegar da mulada, 
pastando espalhada pelo campo. E o cincerro da madri- 
nha, badalando compassadamente aos movimentos do ani- 
mal,, sonorizava aquela grande ex:tensão erma. 

As estrelas em divina faceirice, furtavam o brilho às 
miradas dos tropeiros, que, tomados de languor, banza- 
vam, estirados nas caronas, apoiadas as cabeças nos seri- 
gotes, com o rosto voltado para o céu. 

Um dos tocadores, rapagão do Geará, pegou a tirar 
uma cantiga. E, pouco a pouco, todos aqueles homens 
errantes, filhos dos pontos mais afastados desta grande pá- 
tria, sufocados pelas mesmas saudades, unificados no 
mesmo sentimento de amor à independência, irmanados 
nas alegrias e nas dores da vida em comum, responderam 
em coro, cantando o estribilho. A princípio, timidamente, 
as vozes meio veladas deixaram entre-ouvir os suspiros; 
mas, animando-se, animando-se, a solidão foi-se enchendo 
de melodia, foi-se povoando de sons dessa música espon- 
tânea e simples, tão bárbara e tão livre de regras, onde a 



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^ 71 — 

alma sertaneja soluça ou geme, campeia vitoriosa ou 
ruge traiçoeira — irmã gémea das vozes das feras, dos 
roncos da cachoeira, do murmulho suave do arroio, do 
gorjeio delicado das aves e do tétrico fragor das tormen- 
tas. O idílio ou a luta, o romance ou a tragédia viveram 
no relevo extraordinário * desses versos mutilados, dessa 
linguagem brutesca da tropeirada . 

E, enquanto um deles, rufando um sapateado, gra- 
cejava com os companheiros, lembrando os perigos da 
noite nesse ermo — consistório das almas penadas — 
outro, o Joaquim Pampa, lá das bandas do Sul, interrom- 
pendo a narração de suas proezas na campanha, quando 
corria àcola da bagualada, girando as bolas no punho 
erguido, fez calar os últimos parceiros, que ainda acom- 
panhavam nas cantilenas o cearense peitudo, gritando-lhes : 

— Chê, povol Tá chegando a hora! 

O último estribilho : 

Deixa estar o jacaré 
Que a lagoa hâ de secar! 

expirou magoado na boca daqueles poucos amantes re- 
signados, que esperavam um tempo mais feliz, onde os 
corações duros das morenas ingratas amolecessem para 
seus namorados fiéis: 

Deixa estar o jacaré 
Que a lagoa há de secar! 

O tropeiro . apaixonado, rapazinho esguio, de olhos 
pretos e fundos, que -contemplava absorto a barra do céu, 
ao cair da tarde, estava entre estes; e, quando emude- 
ceu a voz dos companheiros ao lado, êle concluiu a qua- 
dra com estas palavras, ditas em tom de fé profunda, como 
se evocasse mágoas longo tempo padecidas: 

Rio Preto há de dar vau 
Té p'ra cachorro passar! 

Pelo Sertão — Laemmert & Comp., editores. 



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— 72 -. 

33. Buriti perdido 

Velha palmeira solitária, testemunha sobrevivente do 
drama d^ conquista, que de magestade e de tristura não 
exprimes, venerável epónimo dos campos I 

No meio da campina verde, de um verde esmaiado 
6 merenc<}rio, onde tremeluzem às vezes as florinhas dou- 
radas do alecrim do campo, tu te ergues altaneira, levan- 
tando ao céu as palmas tesas, — velho guerreiro petrifi- 
cado em meio da pelejai 

Tu me apareces como o poema vivo de uma raça 
quasi extinta, como a canção dolorosa dos sofrimentos 
das tríbus, como o hino glorioso de seus feitos, a nar- 
ração comovida das pugnas contra os homens de além! 
Porque ficaste de pé, quando teus coevos já tombaram? 

Nem os rapsodistas antigos, nem a lenda cheia de 
poesia do cantor cego da Ilíada comovem mais do que 
tú, vegetal ancião, cantor mudo da vida primitiva dos ser- 
tões! Atalaia grandioso dos campos e das matas — junto 
de ti passe tranquilo o touro selvagem e as potrancas 
ligeiras, que não conhecem o jugo do homem. São teus 
companheiros, de quando em quando, os patos pretos que 
arribam ariscos das lagoas longínquas em demanda de 
outras mais quietas e solitárias, e que dominas, velha 
palmeira, com tua figura erecta, queda e magestosa como 
a de um velho guerreiro petrificado. 

As varas de queixadas bravios atravessam o campo 
e, ao passarem junto de ti, talvez por causa do ladrido 
do vento em tuas palmas, rodomoinham e rangem os 
dentes furiosamente, como rufar de tambores de guerra. 

O corcel lubuno, pastor da tropilha, á sombra de 
tua fronde, sacode vaidosamente a cabeça para arrojar fora 
da testa a crina basta do topete, que lhe encobre a vista; 
relincha depois, nitre com força apelidando a favorita da 
tropilha, que morde o capim mimoso da margem da lagoa. 

Junto de ti, à noite, quando os outros animais dor- 
mem, passa o cangussú em monteria; quando volta, a 
carne da prêa lhe ensanguenta a fauce e seu andar é 
mais lento e ondulante. 

Talvez passassem junto de ti, há dois séculos, as pri- 
meiras bandeiras invasoras; o guerreiro tupi, escravo dos 



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— 73 — 

de Piratininga, parou então extático diante da velha pal- 
meira e relembrou os tempos de sua independên(»ia, quan- 
do as tríbus nómadas vagavam livres por esta terra. 

Poeta dos desertos, cantor mudo da natureza virgem 
dos sertões, evoél Gerações e gerações passarão, ainda, 
antes que. seque esse tronco pardo e escamoso. 

A terra que te circunda e os campos adjacentes to- 
miiram teu nome, ó epónimo, e o conservarão. 

Si algum dia a civilização ganhar essa paragem lon- 
gínqua, talvez uma grande cidade se levante na campina 
extensa que te serve de soco, velho Buriti Perdido. 

Então, como os hoplitas atenienses cativos em Sira- 
cusa, que conquistaram a liberdade enternecendo os duros 
senhores à narração das próprias desgraças nos versos 
sublimes de Eurípedes, tu impedirás, poeta dos desertos, 
a própria destruição, comparando teu direito à vida com 
a poesia selvagem e dolorida que tu sabes tão bem co- 
municar. 

Então, talvez, uma alma amante das lendas primevas, 
uma alma que tenhas movido ao amor e à poesia, não 
permitindo a tua destruição, fará com que figures em 
larga praça, como um monumento às gerações extintas, 
uma página aberta de um poema que não foi escrito, mas 
que referve na mente de cada um dos filhos desta terra. 

Laemmert d Oomp, — 1898. 



GRAÇA ARANHA 

MABANHÃO — 21-VI.1869 

t IttO DE JANBIBO — 21.1-1931 

Foi em Londres que o Dr. Graça Aranha publicou o seu 
livro de estreia, o romance ''Chanaan*' — obra de poeta, de pen- 
sador e de filósofo. Este livro, escreve José Verissimo, estreia 
como não me lembra outra em nossa literatura, é a revelação 
nela de um grande escritor**. 

Um dos fundadores da Academia Brasileira, Gra^a Aranha 
ocupou a cadeira Tobias Barreto. 

Bibliografia — Suas obras principais são: Chanaan, ro- 
mance; Malasarte, peça de teatro; A Estética da Vida, A Via-- 
gem maravilhosa, etc. 



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~ 74 — 

^ 34. Queimada 

Começara a queima. O fogo, erguera-se e lambia num 
anseio satânico os troncos das árvores. Estas estremeciam 
num delicioso espasmo de dôr. Toda a ramagem da base 
foi ardendo, e as parasitas, como rastilho de pólvora leva- 
vam as chamas à copa, e a fumaça aumentando entu- 
pia as veredas e arremessava para frente o bafo quente do 
fogo, que lhe seguia no encalço. Muitas árvores estavam 
contaminadas, ardiam como tochas monstruosas, e, es- 
tendendo os braços umas às outras, espalhavam por toda 
a parte a voragem do incêndio. O vento penetrava pelos 
claros abertos e esfusiava, atiçando as chamas. Pesados 
galhos de árvores que caíam, troncos • verdes que estala- 
vam, resinas que se derretiam estrepitosas, faziam a mú- 
sica desesperada de uma imensa e aterradora fuzilaria. 
Os homens olhavam-se atónitos diante do clamor geral das 
vítimas. Línguas de fogo viperinas procuravam atin- 
gi-los. Recuavam, fugindo à perseguição das colunas que 
marchavam. Pelos cimos da mata se escapavam aves es- 
pantadas, remontando às alturas num vôo desesperado, 
pairando sobre o fumo. Uma araponga feria o ar com um 
grito metálico e cruciante. Os ninhos dependurados ar- 
deram, e um piar choroso entrou no coro como nota suave 
e triste. Pelos abertas do mato corriam os animais desto- 
cados pelo furor das chamas. Alguns libertavam-se do 
perigo, outros caíam inertes na fornalha. 

Num alvoroço de alegria, os homens viam amarele- 
cer a folhagem verde, que era a carne, e fender-se os tron- 
cos firmes, erectos, que eram a ossadura do monstro. 
Mas o fogo avançava sobre eles, interrompendo-lhes o 
prazer. Surpresos, atónitos, repararam que a devastação 
tétrica lhes ameaçava a vida e era invencível pelo mato a 
dentro, quasi pelas terras alheias . E feros e duros atira- 
vam-se à enxada para cavar o aceiro. Do lado da praia o 
trabalho foi fácil; o terreno estava desbastado e limpo. Aí 
abriram rápido o sulco protetor. Do outro lado, no meio 
da floresta, nos limites da área do lote, a luta foi tremenda. 

A nevrose do pavor centuplicou-lhes as forças. Os 
pigmeus, que se não mediam com as árvores e que, não 
podendo vencê-las, tinham recorrido ao fogo, agora, sob 



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— 75 — 

o aguilhão da defesa própria, se arrojavam contra os paus 
com o denodo de gigantes. E afogueados, enegrecidos, 
cavaram a trincheira pelo rumo, e, si encontravam o em- 
baraço de algum tronco, atacavam-no a machado, com 
raiva, com ânsia, com febre. O aceiro foi sendo aberto 
até que o fogo se aproximou; a coluna, como um ser 
animado, avançava solene, sôfrega por saciar o apetite. 

Sobre a terra queimada na superfície, aquecida até 
ao seio, continuava a queda dos galhos. 

O fogo não tardou a penetrar num pequeno taqua- 
ral. Ouviram-se sucessivas e medonhas descargas de um 
tiroteio, quando a taboca estalava nas chamas. O fumo 
crescia e subia ao ar rubro, incendiador; os estampidos re- 
dobravam, as labaredas esguinchavam, enquanto a fogueira 
circundava num abraço a moita de bambus. A cem metros 
de separação, os colonos cavavam sempre. Farto de devo- 
rar a carne dura do bambual, o fogo desafogou-se, e cé- 
lere, e lépido, foi veredeando por um atalho, sorvendo os 
arlpustos, que se erguiam, à margem, até chegar ao aceiro. 
Já os homens, num esforço imenso, se tinham adiantado. 
As chamas abeiraram-se da vala e, diante do espaço 
aberto e intransitável, detiveram-se e espalharam-se para 
a direita e para a esquerda, continuando a sua obra. 

Os colonos e trabalhadores semi-mortos voltavam à 
casa, logo que se reconheceram senhores do perigo, inven- 
cíveis sacrificadores da terra. 

Chanaan — 2.' edição — H. Garnier. 



35. Os pirilampos 

Os primeiros vagalumes começavam no bojo da mata 
a correr suas lâmpadas divinas . . . 

No alto, as estrelas miúdas e sucessivas principia- 
vam também a iluminar... Os pirilampos iam-se multi- 
plicando dentro da floresta, insensivelmente brotavam 
silenciosos e inumeráveis nos troncos das árvores, como 
se as raizes se abrissem em pontos luminosos ... A des- 
graçada, abatida por um grande torpor, pouco a pouco 



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W.76 — 

foi vencida pelo sono; e, deitada às plantas da árvore, 
começou a dormir... Serenavam aquelas primeiras ânsias 
da Natureza, ao penetrar no mistério da noite. 

O que havia de vago, de indistinto, no desenho das 
cousas, transformava-se em límpida nitidez. 

As montanhas acalmavam~se na imobilidade perpé« 
tua; as árvores esparsas na várzea perdiam o aspecto de 
fantasmas desvairados... No ar luminoso tudo retomava a 
fisionomia impassível. Os pirilampos já não voavam, e 
miríades e miríades dôles cobriam os troncos das árvores, 
que faiscavam cravados de diamantes e topázios. Era uma 
iluminação deslumbrante e gloriosa dentro da mata tropi- 
cal, e os fogos dos vagalumes espalhavam aí uma clari- 
dade verde, sobre a qual passavam camadas de ondas ama- 
relas, alaranjadas e brandamente azues. As figuras das ár- 
vores desenhavam-se envoltas numa .fosforeoôncia zo- 
diacal. E os pirilampos se incrustavam nas folhas e aqui, 
ali e além, mesclados com os pontos escuros, cintilavam 
esmeraldas, safiras, rubis, ametistas e as mais pedras que 
guardam parcelas das cores divinas e eternas. 

Ao poder dessa luz o mundo era de um silêncio re- 
ligioso, não se ouvia mais o agouro dos pássaros da 
morte; o vento que agita e perturba, calara-se. . . Por toda 
a parte a benfazeja tranquilidade da luz... Maria foi 
cercada pelos pirilampos que vinham cobrir o pó da ár- 
vore em quç adormecera. A sua imobilidade era absoluta, 
e assim ela recebeu num halo dourado a cercadura triun- 
fal; e, interrompendo a combinação luminosa da mata, 
a carne da mulher desmaiada, transparente, era como 
uma opala encravada no seio verde de uma esmeralda. 
Depois os vagalumes incontáveis cobriram-na, os andrajos 
desapareceram numa profusão infinita de pedrarias, e a 
desgraçada, vestida de pirilampos, dormindo imperturbá- 
vel como tocada de uma morte divina, parecia partir para 
uma festa fantástica no céu, para um noivado com Deus... 
E os pirilampos desciam em maior quantidade sobre ela, 
como lágrimas das estrelas. Sobre a cabeça dourada bri- 
lhavam reflexos azulados, violáceos, e daí a pouco braços, 
mãos, colo, cabelos sumiam-se no montão de fogo ino- 
cente. E vagalumes vinham mais e mais, como se a 
floresta se desmanchasse toda numa pulverização de luz. 



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— 77 

caindo sobre o corpo de Maria até o sepultarem n\ima 
tumba mágica. 

Um momento, a rapariga inquieta ergueu docemente 
a cabeça, abriu os olhos, que se deslumbravam. Pirilam- 
pos, espantados, faiscavam relâmpagos de cores... Maria 
pensou que o sonho a levara ao abismo dourado de uma 
estrela, e recaiu adormecida na face iluminada da Terra. 

Chanaan — 2.» ©dição — H. Oarnier. 



AFRANIO PEIXOTO 

BAÍA — LEXÇÓIS, 17-Xn-1876 

Cientista — professor e médico, homem de letras — roman- 
cista e autor didátlco, o Dr. Afrânio Peixoto revelou- se com 
a publicação do seu romance a A esfinge, um escritor feito. O 
seu "estilo não tem escarpas, diz Araripe Júnior; é fluido, cor' 
rentio e cantante'*. 

O Dr. Júlio Afrânio Peixoto exerceu o cargo de Diretor 
Geral da instrução pública do Distrito Federal, tendo antes 
dirigido a Escola Normal. 

Professor das Faculdades de Medicina e Livre de Ciências 
Jurídicas e Sociais. 

A Esfinge, o seu formoso romance, abriu-lhe as portas da 
Academia Brasileira de Letras, onde substituiu Euclides da 
Cunha, na cadeira Castro Alves. 

Bibliografia — Epilepsia e crise (1898) — Rosa mística 
(1900) — <7Kma e doenças do Brasil (1907) — Elementos de me- 
dicina legal (1910) — A Esfinge, romance (1911) — Manual de 
Tqnatoscopia Judiciária — Elementos de higiene (1914) — 
Maria Bonita, romance (1914) — Elementos de psico-patologia 
forense — Noções de higiene, de parceria com- o Dr. Graça 
Couto — Minha terra* e minha gente (1916) — Parábolas, etc. 



36. Saudade 

Paulo via e sentia aproximar-se o seu velho lar ami- 
go. Tinha um ar tão sereno e tão doce que ninguém lhe 
perscrutaria o segredo da lenda sinistra... os lugares 
trágicos recebem sempre do tempo a compensação de 



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— 78 — 

uma velhice pacífica e amável na decadência . Não há ruí- 
nas cruéis; as masmorras vazias não são* temerosas. . . 
tudo o que foi tem no presente um aspecto suave de me- 
lancolia, porque aí mora a saudade, a grande alma triste 
do passado. 

Olhava enternecido a alvenaria cinzenta e desnudada 
daquelas paredes, furadas pela sombra quadrada e pro- 
funda das janelas abertas, que se levantava diante dele, 
não para o exprobrar do longo abandono, mas, resignada e 
carinhosa, para o agasalhar e o entreter, na lembrança dos 
dias alegres e tristes que se foram . . . 

Alegres e tristes... Já a encontraria deserta a velha 
casa. . . Já não veria enchê-la a serenidade grave e pensa- 
tiva do pai, sempre indulgente e bom, sem uma palavra 
mais alta..: 

Desde muito cedo foram grandes amigos, procuran- 
do-se cada dia para longos passeios na sala para lá e 
para cá, de mãos dadas, conversando como dois homens . . . 
Contava-lhe histórias, ensinava-lhe coisas que êle ouvia 
atento ou interrompia para novas explicações ou contos 
já conhecidos... 

E sempre no fim achava meios de conversar coisas 
sérias, das quais saía dignificado, porque o pai afirma- 
va que êle era um homem de bem. 

Os homens de bem não faziam isto, não faziam aqui- 
lo... não brincavam com fogo, não respondiam aos mais 
velhos, não faziam macriações, não judiavam com os ani- 
mais, não tiravam nada às escondidas, bebiam os remé- 
dios que as mães lhes davam, não mentiam, eram obe-' 
dientes, tomavam banho frio. E êle fazia ou devia fa- 
zer tudo isto, porque era um homem de bem . . . Algu- 
mas coisas lhe desagradavam ... Os homens de bem não 
deviam tomar banho frio... nem remédios ruins. Mas o 
pai insistia, o pai aabia que era assim... quereria êle, 
tão pequeno, consertar o mundo?. . . 

Não sabia bem o que seria consertar o mundo, mas, 
tão pequeno, não queria consertar o mundo. 

Êle, pai, não tomava banhos e remédios, sem cho- 
rar? Assim eram. os homens de bem... E se conforma- 
va... prometendo ao menos . A sua pequena vaidado 
fora criada assim... e tanto como os conselhos, lhe 



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— 79 — 

agradava o fato mesmo da conversa com o pai, a sós 
os dois, passeando seriamente como gente grande. Nem 
os brinquedos, nem as gulodices, nem as histórias, nem 
os carinhos maternos, nada o distraía, à tardinha, de sua 
palestra . . . Achegava-se, esperando o momento, espiando , 
se o pai estava só . . . Quando se esquecia, êle ousava : 
Papai, vamos dar o nosso passeio? Era o sinal... Assim, 
fizera-o homem desde cedo; não era muito que se en- 
ternecesse agora, como uma criança, evocando a grande 
figura amada, boa, simples, amiga e indulgente que se 
fora e que não passearia nem conversaria com êle, para 
convencê-lo de que devia ser um homem de bem . . . 

A Esfinge, — 2. a edição — Francisco Alves & 
Comp., 1911. 



HUMBERTO DE CAMPOS 

MUBITIBA — MARANHÃO — 25-X-1886 
f RIO DE JANEIRO — 5-Xn-1934 

"Escrevo a história da minha vida, não porque se trate de 
mim; mas porque ela constitue uma lição de coragem aos tími- 
dos, de audácia aos pobres, de esperança aos desenganados, • e, 
dessa maneira, um roteiro útil à mocidade que a manuseie". 
Foi com estas palavras que Humberto de Campos apresentou 
suas "Memórias". Com efeito, pobre, caixeiro a principio e de- 
pois tipógrafo, cedo começou a escrever na imprensa do Norte 
e veio para o Rio de Janeiro em 1912, onde se tornou em breve 
o escritor mais lido do seu tempo. Para isto dispunha de natu- 
ralidade, clareza e graça. Também consagrou-se como crítico. 
Foi deputado federal pelo seu Estado e membro da Academia 
Brasileira de Letras, cadeira de Joaquim Manuel de Macedo. 

Bibliografia — Poesias (la e 2a Séries), Memórias (auto-bio- 
grafia), Á sombra das tamureiras. Lagartas e lAhélulas, Critica 
(1% 2a e aa Séries), etc. . 



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«- 80 — 



37. A primeira escola 



A primeira coisa que de algum modo me atemorizou 
neste mundo antes dos sete anos, nSo foi, assim, nem a 
Morte, com seu mistério, nem minha Mãe, com seu chi- 
cote, nem o Anti-Gristo, com o seu uivo apavorante: foi 
um homem terrível e estranho, cuja figura passeia, ainda 
hoje, sinistramente, nos sombrios subterrâneos da minha 
memória. 

Próximo à nossa casa havia uma escola primária, 
cujo professor tinha sido muito amigo de meu pai. Gha- 
mava-se Agostinho Simões. Era um homem alto, forte, 
moreno, de grandes e trágicos bigodes negros. Comple- 
tando a gravidade do aspecto, usava, por sofrimentos da 
vista, óculos pretos. Falecido meu pai, é continuando eu 
a progredir no meu curso livre de vadiação, resolveu 
minha mãe prender-me na gaiola do professor Agostinho, 
para beliscar a alpista graúda do alfabeto. E, um dia, 
tendo eu seis anos e meses, fui conduzido à escola como 
um cabrito que se leva ao matadouro. 

A impressão que tive dessa primeira casa de ensino 
em que entrei, foi, positivamente, a mais ingrata revela- 
ção da minha infância. Era uma sala escura, pavimen- 
tada de barro batido. Golocados uns atrás dos outros, e 
todos na mesma direção, os bancos estreitos, sem encosto 
nem apoio para os pés. Neles, os alunos, gente humilde e 
amedrontada. E, diante destes, em uma pequena mesa 
colocada sobre um estrado, o Sr. Agostinho Simões. Do- 
minando a mesa do Sr. Agostinho, a palmatória, a indis- 
pensável "Santa Luzia", terror das mãos infantis. 

Entregue ao professor, este me designou uma ponta 
de banco. Sentei-me. A pessoa que me conduzira regres- 
sou, deixando-me abandonado nas mãos do carrasco. 
E este, como se estivesse esquecido de mim, iniciou a aula. 
De minuto a minuto um grito estrondava. Urro de onça 
em curral de bezerros. A bigodeira do professor Agos- 
tinho, os seus óculos pretos, a sua cara fechada, as rugas 



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■■l«*ll'l) 



— si- 
da sua testa, e aqueles roncos gue pareciam de trovão 
entre montanhas, acompanhados, não raro, pelo estalar 
da palmatória nas mãos sujas daqueles pobres filhos de 
pescadores, acabaram por aterrorizar-me. Duas horas 
depois de ter chegado, eu não podia mais. De vez em 
quando olhava para a porta de saída, num desejo angus- 
tioso de. liberdade. Em um ramo de ateira, que se via da 
minha ponta de b^nco, dois passarinhos brincavam, per- 
seguindo-se. Até que, em determinado momento, marquei 
o rumo, e abalei na carreira, porta afora, como lim fo- 
guete orientado em sentido horizontal. Vinha de tal modo, 
que entrei em casa pela porta da rua, atravessei três 
ou quatro peças, passei pela cozinha e fui parar por não 
poder ir mais longe, no fundo do segundo quintal. 

Ao fim de alguns minutos, aparecia, porém, a pe- 
quena distância, o vulto de minha mãe, com um pedaço 
de corda na mão. 

— Já! Volte para a escola! Vai ou apanha! ' 
Preferi apanhar; não fui. À tarde, o Sr. Agostinho 
Simões surgia em nossa casa, rindo à vontade do susto 
que me pregara, por encomenda de minha mãe. Abra- 
çou-me; fez-mo agrados ligeiros, disse-me palavras ale- 
gres e amigas. Mas a figura que eu guardei na lembrança, 
foi a do homem de fisionomia trágica e de voz tonitroante, 
que parecia desafiar o mundo, com os seus óculos, com 
os seus bigodes e com a sua palmatória. 

{Memórias — Primeira Parte). 



38. Um general que não chegou a soldado 

Com a conciència da minha culpa, eu procurei, na- 
turalmente, todos os modos de não aumentar os desgostos 
de minha mãe. Contribuía, talvez, para ôsse esforço, a 
gratidão que lhe devia pela maneira corajosa por que 
me defendera, amparando-me, protegendo-me, quasi me 
absolvendo, na hora em que todos me condenavam. Eia 



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— 82 — 

estava, provavelmente, convencida de que eu não era ino- 
cente. Mas, eu era seu filho. E quem me levantaria da 
lama a que me havia arrojado, si ela se não pusesse ab- 
neg'adamente entre. mim e o mundo, afrontando as iras 
dêle, guardando com o seu próprio corpo o adolescente 
culpado, mas que era sangue do seu sangue, carne da 
sua carne. 

Compreendi que devia pagar com a correção da mi- 
nha conduta aquele excesso de dedicação maternal. Pela 
manhã, após o café, e de regresso da "feira", aonde vol- 
tara a fazer as compras domésticas, sentava-me à má- 
quina de fabricar meias, e punha-me a trabalhar. Fazia 
meias de senhora, de homens e de crianças. Fazia as 
primeiras "fechadas" ou "abertas", à moda do tempo ou 
ao gosto da freguesa. Fazía-as de ponto frouxo, ou aper- 
tado, conforme a grossura da perna. Fazía-as graduando 
o tamanho do pé, imprimindo cento e dez voltas ao ci- 
lindro quando a encomenda vinha da coroa ou dos Tucuns 
e sessenta e cinco, apenas, quando procedia de alguma 
casa aristocrática da rua Grande. E a minha tarefa subia, 
não raro, a cinco pares diários, os quais minha mãe ia 
"fechando" à mão, isto é, serzindo no ponto terminal, no 
bico do pé, e passando a ferro, para a venda ou entrega 
no dia seguinte. Senhoras da Paraíba, então jovens, hoje 
matronas, tiveram, ha trinta e três anos, a perna moça 
e morena comprimida por meias de dois fios, ou de um 
só, fabricadas por esta mão que devia», mais tarde, es- 
crever livros alegres ou tristes, 'legislar para o seu país, 
e segurar, enluvada, por benignidade do Destino, o punho 
de ouro de um espadim académico! 

Qual seria, entretanto, por essa época, o alvo do meu 
pensamento? Em que poria, nesse deserto material e mo- 
ral, a minha esperança? Creio que trabalhava com entu- 
siasmo, e até com sofreguidão, mas sem objetivo. Traba- 
lhava porque o trabalho correspondia a uma necessidade 
do meu temperamento e constituía um derivativo das 
energias que acordavam em mim. 

Essa foi, aliás, sempre, uma das características da 
minha personalidade, mesmo quando ela se não havia ainda 
definido. Em qualquer situação que me encontre, deso- 



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/ 



^ 83 — 

brígo-me das atribuições • que me cabem sem qualquer 
ideia das consequências. Vóu, sempre, para diante, de 
olhos fechados. Si tivesse nascido no século XV e me hou- 
vessem confiado uma frota, eu teria descoberto a América 
sem o ínenor pensamento na glória do feito. Posto o leme 
em determinada direção, viajo até descobrir um Novo- 
Mundo ou rebentar num rochedo a proa de minha cara- 
vela. Navego mais pelo gosto de navegar do que pela 
ideia de saber o que existe no fim da viagem. 

Certa vez, porém, uma senhora que alimentava paixão 
pela farda, reminiscência de um cadete do Ceará que lhe 
ficara no pensamentp, abriu diante dos meus olhos es- 
pantados o futuro que me aguardava, e que se tornaria 
realidade si eu seguisse a carreira militar. Com uma vi- 
vacidade atordoante, descreveu-me, ela, o meu destino 
vitorioso e seguro, a minha ascenção através dos postos, 
com o braço enrolado em galões de ouro e o quépi enfei- 
tado de folhas de loureiro, na indumentária oficial dos 
heróis. Viu-me alferes aos dezenove anos; tenente, aos 
vinte e dois; e capitão, e major, e tenente-coronel, e co- 
ronel, e, finalmente, general. 

— General, como Artur Oscar! — leipbrou-me, com o 
pensamento, ainda, na campanha de Canudos. 

Foi isso por ocasião de uma visita, em companhia âs 
minha mãe. Era à noite. De regresso, arranjei em ca- 
minho, com um antigo alferes aluno desligado da Escola 
Militar do Ceará, uma álgebra. E chegando em casa, 
comecei a estudar. A lousa pousada na mesa, a cabeça 
pousada na mão esquerda, buscava, com simples auxílio 
do raciocínio, interpretar as regras formuladas literaria- 
mente no livro. E já me imaginava embainhado no meu 
uniforme vistoso, marchando à frente das minhas tropas, 
quando minha mãe, vendo que se aproxima\a a madru- 
gada, saiu do seu quarto mansamente. A claridade lúgu- 
nre do lampeão de querozene, eu meditava, cabeceando 
de sono diante do método de Trajano. Minha mãe apro- 
ximou-se docemente e pôs a mão, meiga, em minha testa. 

— Em que pensa, meu filho? 

— Na Escola Militar, mamãe... No princípio do ano 
que vem vou a Terezina tirar os prenaratórios. . . Depois 



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— 84 — 

sigo para o Rio de Janeiro e me matriculo na Escola 
Militar. 

Minha mãe sorriu com amargura. Beijou-me a ca- 
beça: 

— Com que dinheiro, meu filha? 

Fechei o livro. £ o futuro general brasileiro viu-se, 
de repente, degradado a reduzido, de novo, à sua condição 
real, e irremediável, de humilde, pequeno e obscuro fa- 
bricante de meias na cidade piauiense de Parnaíba... 



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11. CONTOS 



MACHADO DE ASSIZ 

{Bio^bibliografia à pág. 24) 

39. Um apólogo 

Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de 
linha : 

— Porque está você com esse ar, toda cheia de si. 
toda enrolada, para fingir que vale alguma cousa neste 
mundo? 

— Deixe-me, senhora. 

— Que a deixe? Que a deixe porque? Porque lhe 
digo que está com um ar insuportável? Repito que sim, 
e falarei sempre queime der na cabeça. 

— Que cabeça, senhora? A senhora não ó alfinete, 
é agulha. Agulha não tem cabeça. Que importa o meu 
ar? Gada qual tem o ar que Deus lhe deu. Importe-se 
com a sua vida e deixe a dos outros. 

— Mas você é orgulhosa. 

— De certo que sou. 

— Mas porque? 

— E* bôal por que coso. Então os vestidos e en- 
feites de nossa ama, quem é que os cose, sinão eu? 



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^ 86 — 

— Você? Esta agora é melhor. Você é que os cose? 
Você ignora que quem os cose sou eu, e muito eu? 

— Você fura o pano, nada mi^is; eu é que coso, 
prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados... 

— Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, 
vou adiante, puxando por você, que vem atrás, obede- 
cendo ao que eu faço e mando . . . 

— Também os batedores vão adiante do imperador. 

— Você, imperador? 

— Nãò digo isso. Mas a verdade é que você faz 
um papel subalterno indo adiante; vai só mostrando o 
caminho, vai fazendo trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que 
prendo, ligo, ajunto ... 

Estavam, nisto, quando a costureira chegou à casa 
da baronesa. Não sei se disse qiie isto se passava em 
casa de uma baronesa, que tinha a modista ao pé de si, 
pa'ra não andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou do 
pano, pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha 
na agulha e entrou a coser. Uma e outra iam andando 
orgulhosas pelo pano adiante, que era a melhor das se- 
das, entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos de 
Diana — para dar a isto uma côr poética. E dizia a 
agulha : 

— Então, senhora linha, ainda teima no que dizia 
há pouco? Não repara que esta distinta costureira só se 
importa comigo; eu é que vou entre os dedos dela, uni- 
dinha a eles, furando abaixo e acima ... 

A linha não respondia nada; ia andando. Buraco aber- 
to pelo agulha era logo enchido por ela, silenciosa e ativa, 
como quem sabe o que faz e não está para ouvir pala- 
vras loucas. A agulha, vendo que ela não lhe dava res- 
posta, calou-se também e foi andando. E era tudo si- 
lêncio na saleta de costura; não se ouvia mais do que 
o plic-plic-plic-plic da agulha no pano. Caindo o sol, 
a costureira dobrou a costura para o dia seguinte, con- 
tinuou ainda nesse e no outro, até que no quarto acabou 
a obra, e ficou esperando o baile. 

Veio a noite do baile e a baronesa vestiu-se. A cos- 
tureira, que a ajudou a vestir-se, levava a agulha espetada 
no corpinho, para dar algum ponto necessário # E enquanto 
compunha o vestido da bela dama e puxava a úm lado. 



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-- 87 — 

ou outro, arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando, 
acolchetando, a linha, para mofar da agulha pergun- 
tou-lhe : 

— Ora, agora diga-me, quem é que vai ao bailí*- 
no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da ele- 
gância? Quem é que vai dansar com ministros e diplo- 
matas enquanto você^ volta para a caixinha da costureira, 
antes de ir para o balaio das mucamas? Vamos, diga lá. 

Parece que a agillha não disse nada; mas um alfi- 
nete de cabeça grande e não menor experiência, murmu- 
rou à pobre agulha: 

— Anda, aprende, tola. Gansas-te em abrir caminho 
para ela e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí fi- 
cas na caixinha de coâtura. Faze como eu, que não abro 
caminho para ninguém. Onde me espetam, fico. 

Contei essa história a um professor de melancolia, 
que me disse, abanando a cabeça: — Também eu tenho 
servido de agulha a muita linha ordinária! 

Várias Histórias — 1896 — Laemmert & Comp. 



LÚCIO DE MENDONÇA 



ESTADO DO RIO — PmAHI — lO.ni-1854 
t BIO DB JANEIBO — 29-XI-1009 

Poeta e prosador. Jurisconsulto e Magistrado, Lúcio de Dru- 
mond Furtado de Mendonça, que escreveu com admirável çorre- 
ção e elegância a língua, possuia. como poucos o dom da expres- 
são literária (observa José Veríssimo) . De fato, êle é um nar- 
rador que encanta: lê-lo é sempre um gôzo e um prazer. Foi um 
dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, onde ocupou 
a cadeira Fagundes Varela. 

Bibliografia — Suas principais obras são: Névoas matutinds. 
Horas do hom tempo. Murmúrios e Clamores, etc. 



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88 — 



40. Um Hóspede 



Êle aí está que o diga, o Oliveira, aquele rapagão 
de bigode louro e olhar azul, gue viajou como caixeiro 
de cobranças, "cometa", e hoje é repórter. Por sinal 
que foi a última viagem de cobrança que fez, e de tão 
horrorizado mudou de vida e profissão. Foi êle mesmo 
quem me referiu o caso. Aqui o dou polo custo, sem nada 
de meu. 

Ao cair de uma tarde chuvosa de Março, chegava 
o cobrador, extenuado e faminto, a uma vendola à beira 
de cobranças, "cometa", e hoje é repórter. Por sinal 
vai de Alfenas ao Machado, no Sul de Minas. 

Junto à venda havia a casa de morada, pequena, 
tosca c suja, dum velho casal português, que ali se fixara 
e vendia os produtos da pequena lavoura, cultivada nas 
suas torrinhas, e os furtos trazidos à noite pelos escravos 
da vizinhança. 

Pousada, não era costume dar-se ali. Alfenas ficava 
a uma légua e os donos da casa diziam despachadamente 
que aquilo não era hospedaria. Mas, com o Oliveira, o 
caso era especial; trazia já as suas oito léguas bem pu- 
xadas e uma fome de carrapato, e depois, com tanta car- 
ga d'água, não havia meio de continuar viagem. Pediu 
pousada e ceia, — pagando eu — acrescentou. 

— Ceia, arranja-se-lhe, disse o Zé Manuel, o taver- 
neiro velho; lá a cama é que está mais difícil, que não 
recebemos hóspedes para dormir. 

E com o olhar consultava a mulher, a mulheraça, 
anafada e pachorrenta, aboborada para dentro do balcão. 

— Não, por isso não seja opinou ela; dá-se-lhe o 
quarto do Jêquim . . . 

— Bem lembrado, concordou o vendeiro; temos ali 
assim um quarto agora desocupado, que é o de nosso 



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^ 89 — 

rapaz, que anda por fora; lá para o Carmo do Rio Cla- 
ro; tem cama e colchão, que é o preciso para dormir... 
Se lhe serve. .. 

— Serve, serve — aceitou logo o Oliveira. E dôem- 
me alguma coisa que se coma; estou morto de fome! 

Enquanto se punha a janta, desarreou a besta, guar- 
dou os arreios no quarto que lhe destinaram, contíguo à 
saleta da frente e com janela para a estrada; levou o 
animal ao pasto, um pastinho fechado, muito, perto; e 
voltou para cuidar de si. 

Antes, porém, de sentar-se à mesa, onde já fumegava 
o feijão com couves e a canjiquinha, pediu que lhe trou- 
xessem uma peneira. 

— Uma peneira! ora essa! 

— E* cá para uma precisão I 

Trouxeram-lha, e ôle então sacou do bolso das cal- 
ças um maço de dinheiro em papel, uma bolada de no- 
tas húmidas da chuva que apanhara, e estendeu pelo cri- 
vo da taquara as cédulas grandes, de duzentos, de cem, 
de cincoenta mil réis, uma boa meia dúzia de contos. 
Passou a peneira para a ponta da mesa a que não che- 
gava a toalha, e entrou a servir-se da ceia no prato de 
louça azul, com a colher de ferro. 

Ao levar à boca uma colherada, surpreendeu à por- 
ta da saleta o olhar aceso com que lhe comiam o es- 
tendal das notas, a velha portuguesa, que o servia, e o ma- 
rido que entrava com uma garrafa de vinho. 

Tão cubiçoso era o olhar d' ambos, que coou na alma 
do rapaz um frio de modo e um clarão de pressentimento. 
Logo, ali mesmo, resolveu acautelar-se, arrependido da im- 
prudência de ter mostrado tanto dinheiro. 

Acabando de cear, declarou que muito cedo, ao rom- 
per o dia, seguia para Alfenas, e por isso deixava paga 
a hospedagem; deram-lhe a boa-noite, e recolheu, com 
uma vela de sebo, ao quarto do Joaquim. 

Mal se viu só tratou de ajuntar as notas que espa- 
lhara na peneira, tornou a enfiá-las no bolso, e apenas a 
casa sossegou em silêncio, ali por volta de meia noite, sal- 



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— 90 — 

tou pela jaiíela, com os arreios e a mala à cabeça, foi ao 
pastihho fechado, selou a besta e tocou para a cidade, ao 
belo clarão da lua que despontava. 



Nem bem se perdera ao longe o estrupido da besta 
que levava o cobrador, quando novo tropel d'animal soou 
no terreiro da venda; era outro cavaleiro, que saltou do 
lombilho abaixo e em três tempos desarreou o cavalo em 
que veio e com um chupão dos beiços apmhados tocou^o 
para o campo. 

— Diacho! minha janela aberta! — murmurou con- 
sigo. — Melhor! entro sem precisar bater e acordar os 
velhos a esta hora. 

E, agarrando-se com o braço direito ao peitoril da 
janela, saltou para dentro, levando na outra mão o lom- 
bilho, o baixeiro e o freio, e logo tornou a fechar a ja- 
nela, que o frio não era graça. 



A alta madrugada, quando começava a amiudar o 
canto dos galos, dois vultos, cautelosos, sorrateiros, sur- 
diram do interior da saleta da frente; um deles, o mais 
alto impeliu de manso a porta, apenas cerrada, e pene- 
trou no quarto. 

Da cama, ao fundo, ouvia-se a respiração compassada 
e forte de um bom sono ferrado. Aproximou-se o vulto, 
guiado pelo resfolegar do que dormia e pela ténue cla- 
ridade que vinha da saleta, onde* o outro vulto, agachado e 
trémulo sustentava e velava com a mão encarquilhada 
um candieiro de azeite. 

Súbito, no silêncio da habitação, soaram, soturnas, re- 
petidas, machadadas rápidas, uma. duas, três, muitas, re- 
gulares a princípio, depois desatinadas. 

— Anda! traze a luz! — estertorou uma voz estran- 
gulada . 

Entrou no quarto o outro vulto, a velha gorda, com 
a candeia acesa. 



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^ 91 — 

Apenas a luz, bateu na cama, numa horrível massa 
de roupas e carnes ensanguentadas, dois gritos sufocados 
misturaram o seu horror: 

— O JêquimlII 

— O filho II o meu rapaz III 



Fora, na estrada deserta, voejavam os bacuraus, como 
almas penadas. 

JSorcLs do hom tew,po — Laemmert & Comp., 
Editores — 1901. 



ARTUR AZEVEDO 

MARANHÃO — 7-Vn-1855 

t BIO D£ JANEraO. — 22-X-1908 

Artur Azevedo aos 13 anos entrou para o comércio, carreira 
que abandonou pela do emprego publico; mas conta-se que; por 
ter publicaxio uma sátira contra o presidente da província, foi 
demitido. Em 1875, achou-se Artur no Rio de Janeiro e, nomeado 
amanuense, entrou então para a Secretaria da Agrricultura . Foi 
funcionário exemplar. 

Comediógrafo e dramaturgo, a reputação de Artur Azevedo 
como escritor de teatro atravessou o Atlântico: efetivamente, 
êle é tão estimado em» Portugal como aqui. O mais fecundo autor 
que tem contado o teatro brasileiro em todos os tempos. Nove- 
lista e poeta excelente. Humorista. Jornalista. 

Foi da Academia Brasileira de Letras, csideira Martins Pena. 

Bibliografia — Deixou muitas obras de que se destacam: 
Amor por anexim, A jóia, O hadejo, O dote (teatro). Carapuças, 
Sonetos (poesia). Contos efémeros. Contos fora da moda, etc. 



41. Plebiscito 

A cena passa-se em 1890. 

A família está toda reunida na sala de jantar. O se- 
nhor Rodrigues palita os dentes, repimpado numa cadeira 



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— 92 — 

de balanço. Acabou de comer como um abade; dona Ber- 
nardina, sua esposa, está muito entretida a limpar - 
gaiola de um canário belga. Os pequenos são dois, um 
menino e uma menina. Ela distrai-se a olhar para o ca- 
nário. Êle, encostado à mesa, os pés cruzados, lô com 
muita atenção uma das nossas folhas diárias. 

De repente, o menino levanta a cabeça e pergunta: 

— Papai, que é Plebiscito? 

O senhor Rodrigues fecha os olhos imediatamente 
para fingir que dorme. 
O pequeno insiste: 

— Papai? 
Pausa . 

— Papai? 

Dona Bernardina intervém: 

— O' seu Rodrigues, Manduca está lhe chamando. 
Não durma depois do jantar que lhe faz mal. 

O senhur Rodrigues não tem remédio sinão abrir 
os olhos. 

— Que é? que desejam vocês? . 

— Eu queria que papai me dissesse o que é ple^ 
biscito . 

— Ora essa, rapaz I Então tu vais fazer doze anos 
e não sabes ainda o que é plesbiscitol 

— Si soubesse não perguntava. 

O senhor Podrigues volta-se para dona Bernardina, 
que continua muito ocupada com a gaiola : 

— O* senhora, o pequeno não sabe o que é píe- 
biscitol 

— Não admira que èle não saiba, porque eu tam- 
bém não sei. 

— Que me diz?I pois a senhora não sabe o que 
ó plebiscito? 

— Nem eu, nem você; aqui em casa ninguém sabe 
o que é plebiscito. 

— Ninguém, alto lál Eu creio que tenho dado pro- 
vas de não ser nenhum ignorante! 

— A sua cara não me engana. Você o que é, é muito 
prosa. Vamos: si sabe diga o que é plebiscito! Então? 
a gente está esperando I Diga f . . . 

— A senhora o que quer é enfezar-mel 



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— 93 — 

— Mas, homem de Deus, para que você não há de 
confessar que não sabe? Não é nenhuma vergonha igno- 
rar qualquer palavra. Já outro dia foi a mesma cousa, 
quando Manduca lhe perguntou o que era proletário. 
Você falou, falou, falou, e o menino ficou sem saber! 

— Proletário. . . — acudiu o senhor Rodrigues, ó o 
cidadão que vive do seu trabalho mal remunerado. . . 

— Sim, agora sabe porque foi ao Dicionário. Mas 
dou-lhe lun doce si me disser o que é plebiscito, sem se 
arredar desta cadeira. 

— Que gostinho tem a senhora em tornar-me ridículo 
na presença destas crianças! 

— Oh! ridículo é você mesmo quem se faz. Seria 
tão simples dizer: Não sei. Manduca, não sei o que é 
plebiscito; vai buscar o Dicionário, meu filho. 

O senhor Rodrigues ergue-se de um ímpeto e brada: 
- — Mas si eu sei. .. 
—7 Pois, si sabe diga! 

— Não digo para não me humilhar diante de meus 
filhos! Não dou o braço a torcer! Quero conservar a for- 
ça moral que devo ter nesta casa! vá para o diabo! — 
E o senhor Rodrigues, exasperadíssimo, nervoso, deixa a 
sala de jantar e vai para o seu quarto, batendo violenta- 
mente a porta. No quarto havia o que êle mais precisava 
naquela ocasião; algumas gotas de água de flor de la- 
ranja e um Dicionário... 



A menina toma a palavra: 

— Coitado de papai! Zangou-se logo depois do jan- 
tar! Dizem que é tão perigoso! 

— Não fosse tolo, observa dona Bernardina, e con- 
fessasse francamente que não sabia o que é plebiscito, 

— Pois sim, acode Manduca, muito pesaroso por 
ter sido o causador involuntário de toda aquela discussão; 
pois sim, mamãe, chame papai e façam. as pazes. 

— Sim! sim! façam as pazes! diz a menina num 
tom meigo e suplicante. Que tolice! duas pessoas que se 
estimam tanto, zangarem-se por causa de plebiscito. 



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— 94 — 

Dona Bernardina dá um beijo na filha e vai bater 
à porta do quarto. 

— Seu Rodrigues, venha sentar-se, não vale a pena 
zangar-se por tão pouco. 

O negociante esperava a deixa. A porta abre-se 
imediatamente. Êle entra, atravessa a casa e vai sentar- 
se na cadeira de balanço. 

— E' bôa! brada o senhor Rodrigues, depois de largo 
silêncio; é muito bôa! Eu ignorar a significação da pa- 
lavra plebiscito! Eu! 

A mulher e os filhos aproximaram-se dele. O ho- 
mem continua num tom profundamente dogmático: 

— Plebiscito . . . 

E olha para todos os lados a ver se há por ali mais 
alguém que possa aproveitar a lição. 

— Plebiscito é uma lei romana, percebem? E que- 
rem introduzi-la no Brasil! E' mais um estrangeirismo. 



D. JÚLIA LOPES DE ALMEIDA 



RIO DE JANEIRO .— 24-IX-1862 
t RIO DE JANEIRO — 80-V-1934 

D. Júlia Lopes de Almeida, sem contestação a mais notável 
escritora brasileira de todos os ten>pos, é autora de romances 
e contos que lhe assinalam lugar e posição de destaque na 
história da literatura brasileira. Júlia Lopes de Almeida produziu 
páginas, diz Lúcio de Mendonça, que mais de uma vez hão sido 
comparadas às do mais vigoroso conteur de França, Guy de 
Maupassant. 

D. Júlia foi também oradora justamente aplaudida na tri- 
buna das conferências literárias; escreveu nos jornais e revistas 
do Rio de Janeiro e de S. Paulo. 

Bibliografia — Deixou, entre outras obras: A família MC' 
deiros, O Livro das Noivas, A Falência, Livro das Dona^ e Don- 
zelas, Histórias da nossa terra, Eles e Elas, Contos Infantis (de 
colaboração com D. Adelina Lopes Vieira), etc. 



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— 95 — 



42. O sino de ouro 



Maria Matilde tinha um sonho: fazer construir rente 
à baía de S. Marcos, na sua linda cidade de S. Luiz 
do Maranhão, uma torre muito alta, muito alta, encimada 
por um enorme sino de ouro com os í nomes de todos os 
Estados do Brasil, formados com pedras preciosas. Quan- 
do o sino badalasse reboariam na atmosfera as suas so- 
noridades acompanhadas pelo ritmo das ondas, e quando 
os astros o iluminassem, rutilaria no espaço esplendi- 
damente . 

Mas a velha louca parecia não ter um vintém de seu. 
Morava num casebre em ruína, vestia-se de trapos imun- 
dos, comia só raizes e ervas do mato e bebia água, na 
concha da mão encarquilhada e ossuda. Não tinha di- 
nheiro para as necessidades da vida, porque, se lhe davam 
uma esmola, ela corria a escondê-la para — o sino de 
ouro — e ia iludir a fome com os sobejos atirados pela 
caridade, ou um rabo de peixe chupado à porta de um 
pescador. Ninguém o sabia, mas o colchão estava já 
tão cheio de moedas, que lhe magoava o corpo miserável, 
a ponto dela preferir estender-se no chão duro, sobre 
uma esteira esgarçada. 

Lá tinha a sua ideia fixa, e para realizá-la seria pre- 
ciso uma fortuna! A sua torre de ouro, com um sino 
cravejado de pedras preciosas, maravilharia o mundo in- 
teiro... Em casa ou na rua a visionária falava só, gesti- 
culando, movendo no ar os dedos nodosos, de unhas 
grandes . 

As crianças fugiam atropeladamente ao ver-lhe de 
longe o busto esguio; os adultos afastavam-se daquela 
imundície, ""e ela passava sem ver ninguém, resmungan- 
do: — Quando o sino de ouro fizer: ba-ba-la-ãol ba-ba- 
la-ãol todo o mundo dirá: — E* o coração do Brasil que 
está batendo... Que lindo é e como bate bem! E ela 
ria-se, sacudindo os longos braços magros, a repetir pelas 
ruas sossegadas: — O coração do Brasil est^ parado... 



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— 96 — 

quero fazê-lo palpitar com força... Ba-ba-la-ão. . . 
Dão! Dão! 

Uma noite de chuva e de relâmpagos, Maria Matilde 
chegou encharcada e tremendo com o frio da febre à sua 
choça; mas, logo ao entrar, esbarrou com uma pobre ra- 
pariga da vizinhança, que se ajoelhou chorando a seus pés. 

Qual não foi o seu espanto 1 si ninguém a procurava 
nunca... Uns tinham medo da sua morada de louca, 
supunham-na outros feiticeira, bruxa, o diabo em pessoa! 

Ela parou no umbral, estarrecida; a outra exclamou 
de mãos postas: 

— Maria Matilde, tem dó de mim! Minha madrasta, 
aquela má mulher, expulsou-me de casa e aos meus ir- 
mãozinhos, que foram mendigar por essas ruas quasi 
nús . . . E' por ôles que eu choro . Dá-me um filtro, Maria 
Matilde, para abrandar o coração de minha madrasta e 
fazer com que meu pai abra a sua porta aos filhos pe- 
queninos, que são inocentes e estão passando fome, so- 
frendo frio, com medo do escuro, por essas praias. Si 
fôr preciso o meu sangue para salvar os anjinhos, toma-o! 
Abre-me as veias, aqui tens o meu corpo! 

E a moça desnudava-se oferecendo os pulsos e o colo 
suplicemente. 

Maria Matilde de olhos arregalados, dobrou-se toda so- 
bre a linda moça: 

— Darás a vida por teus irmãos? 

— Darei a vida! 

— Jura! 

— Jurol aqui me tens, mata-me, si para bem deles 
a minha morte fôr precisa. 

— Dizem que és feiticeira, mas o que tu és é surda! 
Não prolongues a agonia de meus irmãos, Maria Matilde! 
aqui me tens! 

A velha considerou a rapariga com espanto; depois 
rapidamente, correu ao catre, sumiu as mãos trigueiras 
nos rasgões da enxerga e atirou punhados de moedas, ver- 
tiginosamente, para o regaço da moça estupefacta. 

— Teus irmãos estão nús? Toma, vai comprar aga- 
salho para ôles! Têm fome? Dá-lhes pão... muito pão... 



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— 97 — 

Tomai Tomai Toma! Vai para junto dôles, bôa irmã. 
Vai com Deusl 

A moça aparava aquelas moedas inesperadas num 
delírio de felicidade; a velha deu-lhe tudo, tudo; depois 
empurrou-a violentamente pela porta fóra, fechou-se por 
dentro e desatou a chorar. 

Como haveria ela agora de comprar o sino de ouro 
e construir a sua alta torre rutilante? Teria de recomeçar 
pelo primeiro vintém... e as costas doíam-lhe tanto... 
tanto! Ao menos nessa noite poderia dormir sobre o seu 
colchão ... O que a fazia tremer eram aquelas cobrinhas 
de golo que andavam a passear pela sua espinha. . . a ca- 
beça estalava-lhe. 

Era a febre! Maria Matilde debateu-se toda a santa 
noite, com os lábios secos, os olhos em fogo, as roupas, 
ainda alagadas da chuva, unidas aos membros doloridos. 

Pela madrugada serenou; e rompia a manhã gloriosa, 
quando ela ouviu a voz dulcíssima de um anjo dizer-lhe 
à cabeceira: 

— Construiste esta noite a tua torre e por ela subi- 
rás ao céu! 

Maria Matilde atirou para fóra do catre as pernas 
finas, aconchegou aos rins os mulambos da saia, aos 
ombos os farrapos de um chalé e correu ansiosa para 
a praia. 

A cidade dormia ainda; só os, passarinhos desperta- 
vam cantando. No iargo mar azul o sol nascente espe- 
lhava uma coluna de ouro tão larga e tão longa, que 
ninguém poderia calcular-lhe as dimensões. 

No ar voavam gaivotas até além, às nuvens de ame- 
tistas e de rubis, que engrinaldavam no horizonte a torre 
deslumbrante. Era a pedraria do sino que reluzia! Su- 
mindo nela os olhos felizes e fascinados, Maria Matilde 
sacudiu os longos braços, gritando vitoriosa, antes de 
cair redondamente na areia fria: 

— Ba-ba-la-âol Ba-ba-la-ãol , , . Dão,., Dã,,, âo! 

Quando a miragem do sol se desfez, já a louca ti- 
nha subido pola torre de ouro até ao céui 



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— 98 

DOMÍCIO DA GAMA 

ESTADO DO RIO - - MARICÁ' — 23.X-1863 
t RIO DE JANEIRO — 8'XI-1925 



Domício da. Gama manifestou cedo vocação decidida pelas 
letras e, observador inteligente e argruto, logo se foi tornando 
o fino analista, o escritor sóbrio e distinto, que nos deu as His- 
tórias Curtam, livro distinto, um livro (escreveu José Veríssimo) 
que se destaca no monte da nossa novela por qualidades não 
comuns de concepção e de fexprefisão. 

Foi diplomata de grande prestígio e pertenceu à Academia 
Brasileira de Letras, cadeira Raul Pompeia, 

Bibliografia* — No meio de suas obras destacam-se: Contos 
a meia tinta. Histórias curtas. Atlas de Qçoprafia Física e Po- 
lítica, etc. 



43. lilaria sem tempo 



Era magra, pequena, escura. Tinha a extrema humil- 
dade dos que vivem longos auos sob o céu destruidor, 
sem pensar ao menos em resistir à sorte, com a passivi- 
dade inerte da folha que o vento rola pelos caminhos. 
Era assim mirrada e seca e sombria, como se tivesse per- 
dido a seiva ao ardor dos estios, como se guardasse das 
noites sem estrelas o negrume cada vez mais denso. Era 
louca, porque só tinha uma ideia, e a criatura humana, 
pode não ter ideias, mas não pode ter só uma. A sua era 
o angustioso desassossego das r^^tâiMudades malogradas. 
Perdera um filho e o procurava. Andava pelos caminhos 
para buscá-lo e só levantava a voz para chamá-lo ansiosa- 
mente, carinhosamente : "Luciano! Meu filhol..." E es- 
cutava longo tempo por trás das cercas, no aceiro dos 
matos, à entrada dos terreiros das fazendas, nos desertos e 
nos povoados, onde quer que a levasse a sua dolorosa es- 
perança. Aquela figura miserável, toda feita num gesto 



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— 99 — 

indagador, com a mão abrigando os olhos, à espreita, ou 
levantando o chalé que lhe encobria a cabeça de cabelos 
hirtos, para ouvir melhor a resposta ideal, aquela encar- 
nação de um desejo sempre iludido enturvava o esplendor 
do mais radioso meio-dia. 

Gente compassiva, donas de casa a quem se apertava 
o coração ouvindo ecoar pelas estradas o seu reclamo 
desolador, quiseram r«tê-la, dar-lhe amparo e agasalho: 
"Aonde vâi sinhá Maria? Fique com a gente, mulher! 
Por estes sóis que matam assim ao desabrigo do tempo, 
o quê faz uma criatura de Deus? Descanse uns dias e vá 

então " Mas a louca escusava-se resolutamente: "Não 

tenho tempo, minha senhora, vou ao encontro do meu 
Luciano, que me. disse que havia de voltar. Como não 
tenho mais casa, preciso de estar no caminho. Não vá êle 
passar enquanto aqui estou..." E se precipitava para 
fora, exalando o seu grito: "Lucianol Meu filho Lucia- 
no!..." E Maria Sem Tempo não era uma lição, nem 
um castigo, nem um exemplo. Se alguma cousa ela pro- 
vava, era que há sofrimentos que nada provam e que 
nada justificam, que são, pela razão obscura daquilo que 
tem de ser. A sua miséria nem mesmo era trágica, por- 
que não exclamava, não lutava, não indagava. O céu rigo- 
roso era-lhe como um senhor cruel, que a pobre escrava 
não entendia e sob cujos golpes encolhia-se apenas. Vi- 
vera para ser mãe: sofria disso, como disso outras ju- 
bilam. 

Quem a encontrava pelos desertos, longe de todo o 
amparo, às horas tristes do dia, pensava logo com pie- 
dade na solidão da sua alma. Mas, se iam falar-lhe, ela 
não se mostrava agradecida à sociedade que lhe queriam 
dar; recaía logo no seu silêncio absorto, tão ocupado pelo 
seu sentimento. 

O meu Luciano! dizer estas palavras era para ela o 
mesmo que sentir-se viva! Dizia-as alto, gritando, cla- 
mando, enchendo as grotas e os recantos das florestas com 
o seu alarido de araponga louca; dizia-as baixinho, sus- 
pirando, fundindo o coração num ajoelhamento de prece, 
na prostração suprema do supremo amor. E às vezes, 
caminhando horas ao longo da praia, com os cabelos sa- 
cudidos pelo vento do largo, vacilando sobre a areia bran- 



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— 100 — 

ca e infirme que entontece, ela cantava ao mar em fúria 
a canção monotonamente sublime da sua pena sem fim. 

Eles eram dois humildes e mansos e os soberbos e 
violentos lá de longe fizeram imia guerra para mal dôles, 
uma guerra de tantos anos durando já, que os cabelos 
da mulata tiveram tempo de embranquecer. E o seu Lu- 
ciano sempre por lá, longe da sua velha, que só tinha a 
êle no mundo e que não pudera opôr-se a que partisse, 
porque com o poder de homens, que o vieram buscar na- 
quela noite, tinha-se juntado todo o poder celeste, es- 
trondando numa trovoada de arrasar o mundo. Quando 
chegaram os homens malditos, ela estava com o filho 
rezando a Magnificai, k claridade da vela benta acesa em 
frente ao registro da advogada contra o raio. A voz dele 
tinha imia toada grave e cheia de fervor, que lhe quebrava 
a ela a friúra ao medo no coração. Ai! não era dos raios 
e coriscos do céu que a pobre mulata devia recear! Num 
silêncio entre dois refegões de vento, bateram de repente 
à porta. Luciano foi abrir e logo um homem entrando, 
antes de dizer uma palavra, lhe foi deitando a mão. O 
rapaz deu um pulo, esquivando-se, mas o outro gritou e 
a casa se encheu de gente armada, soldados, que sub- 
jugaram seu filho e o amarraram. Ela conhecia imi dos 
homens, o que tinha entrado primeiro: de joelhos, como 
tinha ficado diante da santa, arrastou-se aos pés dôle. 

— Seu capitão, não me tire o meu filho, que não 
cometeu crime. Tenha piedade de uma pobre mãe... 

O capitão, meio embaraçado, sem convicção, resmun- 
gou umas frases, falou em defesa de pátria, em honra 
nacional ofendida, dever de todo brasileiro, e não sei 
que mais. Mas a mulher não lhe deu ouvidos; viu que 
lhe tiravam o filho para a matança nos campos do Sul 
e desatinou de todo, a pedir, a suplicar, de rastos pelo 
chão, beijando os pés e abrançando pelos joelhos os. seus 
carrascos, sem poder mais chegar ao fflho das suas en- 
tranhas. O capitão começou a se incomodar com a cena 
e deu ordem de partir, a-pesar-da tempestade no seu auge. 
Então, Maria se endireitou arquejante sobre os joelhos e 
viu, enquadrado pela porta aberta sobre a noite negra 
cortada de relâmpagos, o seu belo rapaz, que sem chapéu, 
de roupas rotas, mostrando o peito nú, levantava para ela 



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• — iOl — 

as mftos algemadas, num gesto de adeus e lhe dizia oom 
voz trémula e sentida : 

— Não se desconsole, Mãe, que ainda hei de voltar^ 
Nesse instante, um fuzil cegou-a e o estampido ira^«* 
diato de um trovão derribou-a por terra. Quando tornou 
a si, estava sozinha, no seio da noite escura. Papece Que 
esta lhe entrou deveras pela mente e lhe apagou as últimas 
claridades que lá luzi|in^. Ela âe desinteressou de tudo o 
<iue ocupa as vidas^mais humildes, desprendeu-se, por 
uma Ina tenção absoluta, dos fatos que podem servir d^ 
marca aos dias, perdeu a noção do tempo, perdeu as suas 
afeições menores, enclausurou-se, absorveu-se no seu 
único sentimento, transformado em culto, endoideceu. 

Histórias Curtaa — 1910 -^ Francisco Alves 
& Comp. 



OLAVO BILAC 

(Bio-bibliografia à pág. 53) 



44. O velho rei 

Houve, em tempos' que já vão longe, um rei pode- 
roso, senhor de muitos povos e de muitas léguas de terras. 
Ainda que viajasse sem cessar por muitos e muitos anos 
a fio, não conseguiria êle correr todos os seus domínios. 
E todos os povos o temiam, porque era conhecida de todo 
mundo a fama das suas riquezas. 

De mês em mês, chegavam ao seu palácio os emis- 
sários dos súbditos, (jrazendo-lhe, com as homenagens de- 
les, os presentes riquíssimos: marfim e pêrt)las, ouro e 
diamantes, sodas e rebanhos. 

E os seus celeiros estavam tão abundantemente provi- 
dos de grãos, que êle poderia, numa época de fome geral, 

Antologia Brasileira 5 

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— 102^ 

abrindo-os a todos os seus vassalos, que não tinham con- 
ta, alimentá-los fartamente durante todo um ano. 

Esse poder sem limites e essa riqueza sem termo ha- 
viam embriagado a alma do velho rei. Já se não supu- 
nha homem, mas Deus. Tanta gente via a seus pés, ado- 
rando-o, que o seu coração se habituara a desprezar a 
humanidade, imaginando que ela só fora feita para o 
servir e temer. Só se lembrava dos súbditos para os opri- 
mir. Aumentava os impostos e alargava as prisões. E a 
sua mão direita, que tanta gente podia fazer feliz, distri- 
buindo esmolas e bênçãos, somente servia para assinar 
sentenças de morte. Condenava à pena última cem ho- 
mens sem ler ao menos os seus nomes. E, se os lia, es- 
quecia-os dali a um minuto, para só pensar na febre de 
festas e de loucuras, em que empregava as noites e os 
dias, e em que perdia a saúde ê a alma. 

E sucediam-se as festas. Do escurecer ao alvorecer, 
seu palácio, imenso como uma cidade, suntuoso como 
um templo, resplandescente de luzes como um céu estre- 
lado, ecoava com o barulho das dansas, da música e do 
tinir dos copos. 

Um dia, no esplêndido terraço, em que costumava dor- 
mir à sesta, o velho rei tinha diante de si uma lista de 
acusados. Não sabia nem queria saber quem eram, si 
eram inocentes ou criminosos, si tinham cometido algu- 
ma falta, ou si eram apenas homens ricos, cuja fortuna 
os seus ministros cobiçavam. E preparava-se para, com 
indiferença, assinar a lista, quando se deteve a olhar um 
momento o filho mais moço, que brincava junto dele. , 
Era um principezinho louro e branco, de olhos azues e 
inocentes como os de um anjo. Ajoelhado sobre o mo- 
saico precioso, que ladrilhava o terraço, estava inclinado 
para um aquário, e divertia-se vendo dentro deles os pei- 
xes dourados que nadavam . O velho rei, com o sorriso 
que lhe iluminava as barbas, ficou mirando com amor a 
criança, tão bela e tão casta, filha do seu sangue e da sua 
alma. E tinha, esquecida na mão a pena fatal, de cujo bico 
pendia a vida de tantos homens . . . 

De repente, o principezinho teve uma exclamação 
aflita. O rei viu-o curvar-se mais sobre o aquário, e me- 
ter na água as mãozinhas ansiosas. E a criança veio para 



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— 103 — 

êle, segurando com as pontas dos dedos alguma cousa 
que se não via, de tão pequena que era. 

— Olha, Pai! Salvei-a! ia afogar-se... salveia-a! 

O velho rei curvou-se para ver o que o filho trazia 
na mão. Era uma mosca feia, negra, pequenina, miserável, 
nojenta. Tinha as asas molhadas e não podia voar. O 
principezinho colocou-a na palma da mão microscópica, 
e virou-a para o Hdo do sol. Daí a pouco a mosca re- 
animou-se e voou. A criança batia palmas: 

. — Na fi2 bem. Pai? Não é um crime deixar mor- 
rer uma criatura qualquer por falta de piedade, Pai? Dis- 
seram-me que há homens que se matam uns aos outros . . . 
Pai? Como é que se pod.e ter a maldade de matar um 
homem? — E o principezinho fixava no velho rei os seus 
olhos azues e inocentes como os de um anjo. 

Nessa tarde o velho rei não assinou nenhuma sen- 
tença de morte. 

Contos Pátrios — Francisco Alves & Con^p. 



COELHO NETO 

{BiO'bibliografia à pág, 57) 



45. As formigas 

 sombra duma faia, no parque, enquanto o prín- 
cipe, que era um menino, corria perseguindo as borbole- 
tas, abriu o velho preceptor o seu Virgílio e esqueceu-se 
de tudo, enlevado na harmonia dos versos admiráveis. 

Os melros cantavam nos ramos, as libélulas esvoaça- 
vam nos ares e êle não ouvia as vozes das aves nem 
dava pelos insetos; se levantava os olhos do livro, era 
para repetir, com entusiasmo, um hexâmetro sonoro. Saiu, 



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— . 104 — 

poréfti, o príncipe a interrompê-lo com um comentário 
pueril sobre as pequeninas formigas, que tanto se afadi- 
gavam conduzindo uma folhinha 3Ôca; e disse: 

— Deus devia tô-las feito maiores. São tão peque- 
ninas que cem delas não bastam para arrastar aquela fo- 
lha, que eu levanto da terra q atiro longe com um sopro. 
O preceptor, que não perdia ensejo de educar o seu im- 
perial discípulo, aproveitando as lições e os exemplos da 
natureza, disse-lhe: 

— Lamenta V. A. que sejam tão pequeninas as for- 
migas... Ahl meu príncipe, tudo é pequeno na vida: a 
união é que faz a grandeza. Que é a eternidade? um 
conjunto de minutos. Os minutos são as formigas do 
Tempo. São rápidos, e a rapidez com que passam fá-los 
parecer pequeninos,; mas são ôles que, reunidos, formam 
as horas, as horas fazem os dias, os dias compõem as se- 
manas, as semanas completam os meses, os meses perfa- 
zem os anos e os anos. Alteza, são os elos dos séculos. 

"Que é um grão de areia? terra; uma gota d'água? 
oceano; uma centelha? chama; um grão de trigo? seara; 
uma formiguinha? força. 

"Quem dá atenção à passagem de um minuto? é 
uma respiração, um olhar, um sorriso, uma lágrima, um 
gemido; juntai, porém, muitos minutos e tereis a vida, 

"Ali vai um rio a correr — • as águas passam acele- 
radas, ninguém as olha. 

"Que fazem elas na corrida? regam, refrescam, de- 
salteram, brilham, cantam e lá vão, mais ligeiras que os 
minutos. 

"Quereis saber o valor de um minuto, disso que não 
sentis, como não avaliais a força da formiga? entrai de 
mergulho n'água a tende-vos úo fundo — todo o vosso 
organismo, antes que passe um minuto, estará protestando, 
a pedir o ar que lhe falta. Oral o ar de um minuto, que 
é isso? direis: é a vida. Alteza. 

"Vedes a formiguinha que vai e vem procurando mi- 
galhas na terra: si a encontra e pode carregá-la, leva-a; 
si é superior à sua própria força, recorre à companheira 
que passa; outras chegam, ajuntam-se em chusma e ei-las 
fazendo com facilidade o trabalho que seria impossível a 
uma só. 



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.^105 — 

"Si a formiga desanimasse, nunca iria provisão ao 
formigueiro. Assim vós, meu príncipe, pretendeis um co- 
nhecimento, ides ao livro que o contém e inclinai-vos 
sobre êle. No primeiro instante tudo vos parece obscuro; 
desanimais, aborrevei-vos . Si lançardes de vós o livro, fi- 
careis sempre em ignorância, mas si persistirdes, apelan- 
do para todas as forças do vosso engenho, pouco a pouco 
ireis removendo as dificuldades e chegareis ao caminho 
franco da certeza. 

"Assim é em tudo na vida. O que pretende gover- 
nar deve ver o trabalho da formiga, porque é um ensina- 
mento. Não pôde o príncipe alhanar um embaraço só com 
o seu juizo, chama a conselho os homens de mais expe- 
riência e tino, ouve-os, delibera com eles e juntos facil- 
mente, arredam o que, no princípio, parecia inamovível. 
Tudo é proporcional na vida. 

"Deus não fez o insuperável. O "Impossível" é uma 
expressão inventada pelos fracos. O que é para a formiga 
um carreto, vôa com o sopro débil de uma criança; o que 
é para o homem empecilho, ás águas levam de roldão; 
onde não pode a força de um braço, supre-a o instru- 
mento e, si ainda o embargo se obstina, então o homem 
apela para o homem como a formiga reclama a compa- 
nheira e, conjuntamente, afastam o pesado entrave. 

"Si eu vos pudesse levar ao labirinto, que é o rei- 
no subterrâneo das formigas, veríeis a perfeita ordem que 
nele ha^ a disciplina que as compõe, a harmonia que as 
rege; e, si cá fora pudesse ser aplicada a lei que regula 
á sociedade dos insetos exemplares, fácil vos seria gover- 
nar o povo, porque todos os homens dar-se-iam por feli- 
zes nos seus postos, não haveria inveja nem ambição, ma- 
les que tanto malsinam as sociedades. 

"Qual ó a força da formiguinha? é pouca para um 
grão de açúcar; entretanto, a formiga pode mudar mon- 
tanhas, si o formigueiro se ajunta em esforço solidário. 

"Que é uma gota de orvalho? um nada para o calor 
de um raio do sol, lançai-a ao mar, entrará na vaga, con- 
correndo para o sossôbro das maiores naus de guerra. 

"Quereis ver a força da formiga, procurai-a no for- 
migueiro,' que é a união". 



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— 106 — 

Assim falou o preceptor. E, como passasse uma bor- 
boleta azul, e o príncipe saísse a perseguí-la, abriu de 
novo o seu Virgílio e continuou, delicadamente, a leitura 
interrompida. 

JPahuldrio — Porto — 1907 — Livraria Char- 
jdron. Leio & Irmão. 



46. A flauta e o sabia 

Em rico estojo de veludo, pousado sobre uma mesa 
de xarão, jazia uma flauta de prata. 

Justamente por cima da mesa, em riquíssima gaiola, 
suspensa do teto, morava um sabiá. 

Estando a sala em silêncio e descendo um raio de 
sol sobre a gaiola, eis que ò sabiá, contente, modula uma 
volata. Logo a flauta escarninha põe-se a casquinhar no 
estojo, como a zombar do módulo cantor silvestre. 

— De que te ris? indaga o pássaro. E a flauta, em 
resposta : 

— Ora esta! pois tens coragem de lançar tais guin- 
chos diante de mim? 

— E tu quem és, ainda que mal pergunte. 

— Quem sou? Bem se vê que és um selvagem. Sou 
a flauta. Meu inventor, Marsias, lutou com Apolo e ven- 
ceu-o, por isso o deus, despeitado, imolou-o. Lê os 
clássicos. 

— Muito prazer em conhecer. . . Eu sou um mísero 
sabiá da mata. Pobre de mimi fui criado por Deus muito 
antes das invenções. Mas deixemos o que lá foi. 
Dize-me: que fa^es tu? 

— Eu canto. 

— O ofício rende pouco. Eu que o diga, que não 
faço outra coisa. Deixarei, todavia, de cantar — e antes 
nunca houvesse aberto o bico, porque, talvez, sendo mudo, 
não me houvessem escravizado — si, ouvindo a tua voz, 
convencer-me de que és superior a mim. Cantai Que eu 
aprecie o teu gorjeio e farei como fôr de justiça, 

— Que eu cante...?! 



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— 107 — 

— Pois não te parece justo o meu pedido? 

— Eu canto para regalo dos reis nos paços, a mi- 
nha voz acompanha os hinos sagrados na& igrejas. Ao 
ritmo dos meus delicados trilos bailam íií^ damas, guiam- 
se as endeixas das serenatas de amor, ao luar, O meu 
canto é a harmoniosa inspiração dos génios ou a rapsódia 
sentimental do povo. 

— Pois venha de lá esse primor. Aqui eston para 
ouvi-lo e para proclamar-te, sem inveja, a rainha do 
canto . 

— Isso agora não é possível. 

— Não é possível! porque? 

— Não está cá o artista. 

— Que artista? 

— O meu senhor, de cujos lábios sai o sopro que 
transformo em melodia. Sem êle nada posso fazer- 

— Ah! e assim. . .? 

— Pois como há de ser? 

— Então, minha amiga — modéstia à parte — vi- 
vam os sabiás! Vivam os sabiás e todos os pássaros doa 
bosques, que cantam quando lhes apraz, 1 irando do pró- 
prio peito o alento com que fazem a mc^lodia. Assim, da 
tua vanglória há muitos que se ufanam. Nada valem si 
os não socorre o favor de alguém; não se movem s! 
os não amparam, não cantam si lhes não dão sopro, não 
sobem si os não empurram. O sabiá v6a c canta — vai 
à altura porque tem asas, gorjeia pomoe tem voz. E 
sucede sempre serem os que vivem do prestígio alheia 
os que mais alegam triunfos. Flautas.,. Flautas..* 
Cantas nos paços e nas catedrais... Pois vem daí a um 
dueto comigo. 

E, ironicamente, a toda a voz, pôs-se a cantar o 
sabiá e a flauta de prata, no estojo de veludo,*, moita I 
Faltava-lhe o sopro. 

Fahulário — Porto — 1907 — I^ívraria Char- 
dron, Leio & Irmão. 



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m. PHOBISHO 



FRANÇA JÚNIOR 



mo DE JANEIRO — 19.IV-18a8 

t OAIiDAS — ESTAIK) BE MINAS GERAIS -- 27-IX-1800 

França Juriioi' (Joaquim José da) foi comediÓÉrrafo, folheti- 
nista e fino humorista: as suas comédieus de costumes, engra- 
çadisslmas, cdnda hoje sobem à cena com sucesso; como folheti- 
nista, no seu género, ainda, entre nós, não foi excedido. Cultivou 
também a pintura. 

Bibliografia — Fizeram sucesso as comédias: Meia hora de 
'OinUmo, Repuhlica modelo, O defeito de famiUa, O Carnaval no 
Rio de Janeiro, Como ae fa^a um deputado, etc. 



47. Jantares 

Um jantar! Quem há por aí que não tenha recebido 
este amável convite: "Amigo F... Amanhã faço anos; 
vem comer comigo um peru. Não faltes. Teu do co- 
ração — iV..." 

Pois bem, por minha vez digo também ao leitor: 
— Venha comer comigo um peru em casa de pes- 
soas que nos são intimas* Não há necessidade de enver- 
gar a casaca. Lá não há pomposo menu doré sur tranche 
ao lado de cada convidado; não se bebe o louro vinho 
do Reno depois do peixe, e o ponche entre o primeiro 
serviço e os assados é um mito. E' a burguesia flumi- 



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— 110 — 

nense em todo o seu puritanismo, que ainda não conhece as 
subtilezas da cozinha francesa e os estilos alambicados da 
velha Europa. 

Venha comigo e verá. 



Eis-nos na sala do banquete. Ninguém ousa sentar- 
se, porque incontestavelmente há mais convidados que lu- 
gares. O dono da casa não pensou siquer nesta hipótese 
e grita com ar jovial: 

— Sentem-se, meus senhores, sentem-se. 

Um arrasta a cadeira indeciso, outro executa o mtes- 
mo movimento, este chama uma senhora, aquele vê si há 
alguma cadeira vaga . . . E afinal, depois de muitas instân- 
cias, sentam-se quasi todos, conservando-se alguns de pé, 
por não haver lugares. 

O dono da casa salva a situação, dirigindo-se àqueles 
e dizendo-lhes : 

— Nós cá ficamos para a segunda mesa; melhor, 
porque comeremos mais à vontade. 

Felizmente nem eu nem o leitor fazemos parte des- 
ses assinantes da série B. 

Já estamos sentados. 

Todas as iguarias estão sobre a mesa e cada qual 
mais suculenta. 

Dois moleques encadernados em alvos paletós, em- 
punhando cada um viçoso galho de pitangueira, limitam- 
se apenas a enxotar as moscas com a serena imperturba- 
bilidade de estátuas de ferro fundido. 

Serve-se a sopa. 

O convidado que está à cabeceira vai passando os 
pratos, que giram de mão em mão, como espécie de jogo 
de anel. 

Agora o leitor há de ter a bondade de servir o peixe, 

E a sua missão não pára aí. 

Há de servir também o peru, o leitão, a torta... 

— Tudo quanto está em cima da mesa, enfim? 

— Sim, senhor, porque para isto é que foi con- 
vidado. 

— E o que fazem aqui esses dois moleques, como 
Morfeu agitando o seu ramo de dormideiras! 

Estão aí só para abanar. 



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w^i^^^H MíL. ...mnj L: _ „ 



— 111 — 

— Mas no fim de contas eu vim para comer e ainda 
não comi nadai 

E o leitor lança as suas vistas para uma torta, dis- 
posto a saboreá-la, como um bom gostrônomo que é. 
Neste momento tim sujeito €)rgue-se e grita: 

— Meus senhores: em pé. Vou fazer uma saúde obri- 
gatória. 

— Levantemo-nos todos. 

. "À saúde do homem eminentemente honrado, do 
amigo zeloso e dedicado, do pai de família extremoso, 
desse belo caráter, em suma, que... 

Entre este que, pronunciado com ênfase gutural, e 
o que se vai seguir há sempre uma pausa, martírio de 
todos, inclusive do orador. 

— não poupando sacrifícios 

de qualidade alguma, sabe obsequiar os amigos e dar-lhes 
momentos de inefável prazer. À saúde do recem-nascido, 
o nosso idolatrado F.., (o dono da casa), Ip! Ip! Ipí 
Húrrahl Húrrahl 

— Sr. F... 

— Sr. F... 

— À mesma Sr . F . . . 

— À razão da mesma. 
Sentemo-nos . 

— Ora graças a Deus, vamos ver que tal está a torta. 
Levanta-se um velho e bate palmas: 

— Em pé, meus senhores. Levantemo-nos. 

— Eu peço um aditamento. À saúde de sua digna 
consorte, modelo de virtude, a Sra. D. N... 

— Apoiado! 

— Muito bem. 

O leitor senta-se com o resto da sociedade, e já não 
encontra o prato que havia preparado. Dispõe-se a comer 
o arroz, única iguaria que tem em frente. 

Outra saúde, e desta vez cantada: 

"Aos amigros 
"Um brinde feito; 
"Reina a alegria 
"Em nosso peito". 



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— 112 — 

E o leitor entra no oôro com o estômago vazio. 
Senta-se. O prato de arroz já. desapareceu como a torta. 
Estamos à sobremesa. Outro brinde: 

— À saúde daqueles, que longe de nós, de nós se 
lembram. 

A dona da casa que é a amabilidade em pessoa, passa- 
lhe uma compoteira especial, para que prove daquele doce 
e diga de que é. 

Esta adivinhação é um requinte de bom tom nos jan- 
tares da boa burguesia. 

— E' abóbora, diz ôste. 

— B' maracujá, grita aquele. 

— E' manga. 

— Pois não é: é ananás. 

— Não vê, ó jaca. 

— Qual jaca, é carambola. 

Ahl Ah! Ahl ninguém adivinhou — é melancia I 

As saúdes continuam; e no meio de grande algazar- 
ra, arrastando as cadeiras, levantam-se todos. 

A segunda mesa é a imagem viva do pandemonium 
de que nos fala o poeta. Os tais assinantes da série B 
são endiabrados e nunca deixam pedra sobre pedra. 

Agora um conselho ao leitor* 

— Dispa o rodaque de riscadinho côr de rosa, en- 
saie um riso jovial, despeça-se do dono da casa e repita 
comigo : 

— Não há nada como jantar foral 

Folhetins. 



URBANO DUARTE 

ESTADO DA BAfA — IiBNÇk)IS — 81-Xn-1855 
t BIO DE JAXEIKO — 10-n.l0<>2 

O major Urbano Duarte cursou a Escola MiUtar e foi pro- 
fessor da Escola de Tática. Jornalista e publicista, criticou, 
como França Júnior, os costumes, sestros e tipos da sociedade 
fluminense: o cronista foi um fino observador e contou o que 



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— H3 — 

observou com bfiístante ' naturalidade e chiste. B também, cotio 
Frttnça Júnior, foi autor dramático. ^ 

Urbano Duarte pertenceu à Academia Brasileira de Letíras» 
cadeira França Júnior. 

Bibliografia — Suas obras mais conhecidas sào: JBTumofft* 
mos, O anjo da vingança e O escravocrata, dois dramas de oolar 
boração com Artur Azevedo, etc. 



48. O matuto mineiro 

Neste mundo há muita gente finória, sagaz e manho- 
sa; porém, não creio que ninguém leve vantagem neste 
ponto ao oompônio dos sertões de Minas. O tabaréu mi- 
neiro, com os seus ares simplórios e ingénuos, é uma 
criatura capaz de engazopar até o Fígaro de Boaumar» 
chais. 

Êle, porém, é inimbrulhável, invencível em finura, e 
quem se meter a embaí-lo com ardis e ciladas, pode -con- 
tar com o arrependimento. 

Note-se que o matuto de Minas ó homem honrado 
e cumpridor da sua palavra, quando trata com gente que 
faz o mesmo. Porém, desde que desconfie do cm tão, ai 
meu Deus! Quebra o corpo manhosamente e põe-se em 
guarda, como quem diz aos seus botões : Então vosmecâ 
está cóidando que eu sou algum pateta^ 

O seu semblante nada demonstra; continua a sorrir 
oom ares inocentes pitando o seu cigarro. E a cada leria 
ou balela que o outro pretende impingir-lhe, o matuto 
responde com um gesto de hipócrita credulidade:. 

— ApoiSj hein? Ora veja vosmecê! 

Quando se pensa que o roceiro está cantado, êle 
sai-se com uma refinada astúcia, lenta e maduramente 
combinada, que nos deixa de orelha em pé e queixo caído. 

Lembro-me de uma partida que se deu com um cai- 
pira lá para as bandas de Paracatú. 

Gomo todo mineiro da gema, este não era lá muito 
amigo dos progressos e não gostava da estrada de ferro. 

Tendo-se construido uma ferro-yia em sua província, 
o homem torceu-lhe o nariz e protestou jamais embarcar 



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~ 114 — 

em semelhante trapizonga, E durante muitos anos conti- 
nuou a viajar no seu burrico, pelas suas estradinhas, fa- 
zendo o meio dia para comer à beira d'água o seu tútú 
com torresmos, armando a rede em dois pés de árvores, 
quentando fogo e contando anedotas do tempo de quóreU" 
ta e dois. 

O agente de uma estação férrea procurava seduzi-lo 
e catequizá-lo, demonstrando-lhe em como a viagem pelo 
trem era mais rápida, barata e cómoda. 

Porém, o matuto não se convencia. 

Um dia, contudo, tem urgência de chegar a certa 
cidade e vè que a cavalo não o poderia fazer. Vai à es- 
tação e pergunta quanto custa o bilhete. O agente rego- 
zija-se. 

— Ora, até que afinal convenceu-se, hein? 

— Não, senhor; eu quero saber quanto custa o bi- 
lhete para um burro. . . 

— Para um burro?! 

— Sim, seu compadre. 

O agente consulta a tabela e diz: 

— Treze mil e trezentos. 

— Então, dè-me um. 

Vendido o bilhete, o muar foi metido dentro do va- 
gão próprio, e o dono também entrou, na ocasião em 
que o comboio se punha em movimento. 

— Então — grita — o agente — o senhor não salta? 

— Não senhor, eu também vou. 

— Como assim? Não comprou bilhete! 

O matuto meteu o pé no estribo, montou no ani- 
mal e gritou ijfiuito ancho, quando o carro já saía fora 
da estação. 

— Eu vou a cavalo! 

Humorismoa — Imprensa Nacional. 



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IT. TEATRO 



ANTÓNIO JOSÉ DA SILVA 



RIO DJB JANEIRO, — S-V-ITOS 
t liISBOA, — 19-X-1789 

António José era filho do advogado brasileiro e poeta João 
Mendes da Silva e de sua mulher Lourença Coutinho; ax>s 8 
anos de idade teve de acompanhar sua família para a metrópole 
portuguesa, para onde foi então conduzida sua mãe, que, per- 
tencendo à grei dos cristãos-novos, sofreu a acusação de ju- 
daizar. Concluída a primeira educação de António José, em 
Lisboa, seguiu êle para Coimbra a estudar Cânones. Estava de 
volta ã capital do reino e advogava jâ com o pai, quando 
se viu agrarrado e metido nos cárceres da Inquisição ( 8- VIII- 
1726): tendo escapado a esta primeira acusação de Judaizan- 
te, o mesmo não lhe sucedeu quando foi da segunda em que, 
denunciado por uma escrava, foi êle, recolhido aos calabouços 
do Rocio (5-X-1737), e, condenado, sofreu pena capital: no 
Campo da Lã foi decapitado e depois pelo fogo consumido o 
seu cadáver. 19-X-1739. 

Bibliografia — Produziu numerosas comédias-óperas, como 
se chamavam então, destacando-se : Vida do Grande D. Quixote 
de la Mancha e do grande Sancho Pança, Os encantos de Afe- 
déia, Esopaida ou Vida de Esopo, Guerras do Alecrim e Mange* 
rona, etc* 

As óperas de António José notabilizaram-se pelo chiste, 
pela graça, por vezes picante, pelo seu sabor popular e pela 
habilidade na invenção do enredo, como se expressa Ferdinando 
Wolf . O Judeu deixou como poeta, belíssimas composições líricaa. 



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— 116 — 



49. Visita de médico 

D. Langerote — O que tarda este médico! 

Sevadilha — Não pode tardar muito; pois me disse 
que já vinha. 

D. Langerote — Gomo estais agora, meu sobrinho? 

D. TiBURGio — Depois que arrotei acho-me mais 
aliviado. 

D. NizE — Vaso ruim não quebra (à parte) . 

D. Çloris — Si fora cousa boa não havia de esca- 
par (à parte) . 

D. Langerote — Não sabeis quanto folgo com a vos- 
sa melhora, pois me estava dando cuidado o enterro, e 
me podeis agradecer a boa vontade, pois vos asseguro 
que havia de ser- luzido; vós o vereis. 

D. TiBÚRCio — Outro tanto desejo eu fazer a Vossa 
Mercê {Saem D. Gil e Semicúpio, vestidos de médicos). 

Semigúpio — Deo gratias. . 

D. Langerote — Entrem, senhpres doutores. 

Semigúpio — Qual de Vossas Mercês é aqui o doente? 

D. Langerote — E' este que aqui está de cama. 

Semigúpio — Logo me pareceu pelos sintomas. 

Di Tibúrgio — Ai, minha barriga, que morro! Acuda- 
me, senhor doutor! 

Semigúpio — Agora vou a isso; ora diga-me o que 
lhe dói? 

D. Tibúrgio — Tenho na barriga umas dores mui 
finas. 

Semigúpio — Logo as engrossaremos: e tem o ventre 
tremido, inchado e pululante? 

D. Tibúrgio — Alguma cousa. 

Semigúpio — Vossa Mercê ó casada ou solteira? 

D. Langerote — Ui, senhor doutor! Digo que meu 
sobrinho é varão. 

Semigúpio — De aço ou de ferro? 

D. Langerote — E* homem; não me entende? 

Semigúpio — Ora acabe com isso: eis aqui como 
por falta de informs^ções morrem os doentes: pois, si eu 
não especulara isso com miudeza, entendendo que era ma- 
cho lhe aplicava uns cravos, e si fosse varão, umas li- 



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— 117 — 

mas; e como já sei que é homem, logo veremos o que 
se lhe há de fazer. 

D. Lancerote — Eis aqui como eu gosto de ver os 
médicos assim especulativos. 

Sbmigúpio — Pois o mais é asneira: diga-me mais, 
ceou demasiadamente a noite passada? 

D. TiBÚRGio — Tanto cpmo a futura, porque, desde 
que se me acabaram as chouriças que trouxe no alforje, 
me tem meu tio posto a pão e laranja. 

D. Lancerote — Aquilo são delírios, senhor doutor. 

Semigúpio — Assim deve ser por força, ainda que 
não queira; pois conforme ao aforismo: cum barriga do- 
let, coetera membra dolent. 

D. TiBÚRCio — Não são delírios, senhor doutor, que 
eu estou no meu juizo perfeito, 

Semigúpio — Peor, pois quem diz que tem juizo 
não o tem. 

D. Lancerote — Senhqr doutor, o homem está alu- 
cinado depois que um fantasma, que saiu duma caixa, o 
desancou . 

D. TiBÚRCio — Deixemos isso; o caso é que a minha 
barriga não está bôa. 

SBMictrpio — Cale-se, que ainda há de ter uma bôa 
bárrigada- Deite a língua fora. 

D. TiBÚRGio — Ei-la aqui. 

Semigúpio — Deite mais. 

D. TiBÚRCio — Não há mais. 

Semigúpio — Esta bastará: é forte linguado! Tem 
muito boa ponta de língua! Vejam Vossas Mercês, senho- 
res doutores. 

D. Gil — A língua é de prata. 

D. Fúas — Húmida está bastantemente. 

Semigúpio — Venha o pulso; está intermitente, lân- 
guido e convulsivo. 

D. Lancerote — Ah! senhor, que grande médico! 

D. NizE E D. FuAS — Gomo está tão melancólico! 
ipara D-. Cloris) . . 

D. Cloris — Estará cuidando na receita. 

SpMiGÚPio — Ora, senhores, capitulemos a queixa. 
Este fidalgo (si é o que é, que isso não pertence à me- 
dicina) teve uma colérica procedida de paixões internas. 



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^ 118 — 

porque o espírito agitado da representação fantasmal e da 
investida feminil, retraindo-se o sangue aos vasos linfá- 
ticos, deixando exhaufidas as matrizes sanguinárias, fez 
uma revolução no intestino reto; e como a matéria crassa 
e viscosa que havia de nutrir o suco pancreático, pela 
sua turgôncia se achasse destituída de vigor por falta de 
apetite famélico, degenerou em líquidos; estes, pela sua 
virtude acre e mordaz, vUicando e pungindo as túnicas e 
membranas do ventrículo, exaltaram-se os sais fixos e vo- 
láteis por virtude do ácido alcalino... 

D. Langerote — Eu não lhe entendi palavra. 

D. TiBÚRGio — Eu morro sem saber de que. 

Semigúpio — Conhecida a queixa, votem o remédio, 
que eu, como mais antigo, votarei em último lugar. 

D. Gil — Eu sou de parecer que o sangrem. 

D. FuAS — Eu, que o purguem. 

Semigúpio — Senhores meus, a grande queixa, gran- 
de remédio; o mais eficaz é que tome umas bichas nas 
meninas dos olhos, pgira que o humor faça retrocesso de 
baixo para cima. 

D. TiBÚRGio — Como é isso de bichas nas meninas 
dos olhos? 

Semigúpio — E' um remédio tópico, não se assuste, 
que não é nada. 

TiBÚRGfo — Vossa Mercê me quer cegar? 

Semigúpio — Cale-se aí, quantas meninas tomam bi- 
chas e mais não cegam? 

D. Langerote — Calai-vos sobrinho, que êle médico 
é, e bem o entende. 

TiBÚRCio — Por vida de D. Tibúrcio, que primeiro 
há de levar o diabo o médico e a receita do que eu tal 
consinta . 

Semigúpio — Deite-se, deite-se; o homem está ma- 
níaco e furioso. 

Teatro — Edição popular, por João Ribeiro — 
Garnier, editor. 



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~ H9 — 



MARTINS PENA 

RIO BE JANEIRO — 5.XI-1815 
t liISBOA -— 7-Xn-1848 

Luiz Carlos Martins Pena é o mestre da coniédia nacional. 

Órfão de pai com um ano e de mãe aos dez, seu av6 ma- 
terno e depois um tio, seus tutores, o destinaram à vida co- 
mercial; e assim, feitos os primeiros necessários estudos, ma- 
triculou-se Luiz Carlos — era o seu nome de batismo — na aula 
do comércio (III-1832), cujo curso com-pletou em fins de 1835. 
Mas a sua inclinação e pendor natural era para as artes e para 
as letras: cultivou com talento a música e frequentou a Acade- 
mia de Belas- Artes. 

Diz o autor da "História da Literatura Brasileira** que o 
caráter geral de todas as composições, género comédia, de Pena, 
é o da clássica comédia de costumes, comx> nos foi transmitida 
por Menandro, Planto e Terêncio, passando por Gil Vicente e 
António José. 

Bibliografia — Suas principais obras são: O juiz de paz na 
roça, O Judas em sábado de Aleluia, O irmão das almas. Os três 
médicos. Os ciúmes de um pedestre, A barriga do m,eu tio, etc. 



50. A família e a festa na roça 

CENA XI 

Domingos João, Joana, Quitéria, Inacinho e António. 

Inaginho {entrando) — Quitéria! 

Quitéria — Minha mãe! eu morro!.., (Cai senta- 
da na cadeira) , 

Domingos /oao — Inacinho, corre, vai à casa da 
Angélica e dize-lhe que venha cá depressa. {Sai Inaci- 
nho correndo) . 

{Domingos João e António andam de um lado para 
outro sem saberem o que fazer) . 



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— 12a — 

Joana -— Quitéria! Quitéria!... que tens, minha fi- 
lha?... Responde!... Oh! mexi Deus! está desmaiada!... 
Minha filha morre!... {chora). 

Domingos João — O diabo da Angéiica não chega. 

- António — Sinhá doninha!.... Sinhá doninha!... 

(pára Joana) Sinha dona, dê-lhe a cheirar ôste cartucho 

de pólvora, talvez faça bem. {Tira o cartucho de pólvora 

e o dá a Joana) . 

Joana [jogando o cartucho no chão) — O- senhor está 
doido!... Pois minha filha há de cheirar pólvora!... 

António — Está bom, não se azanguel... a senhora 
entende? 

Joana — Minha filha morrei minha filha morre!... 
Hil hi! hil .(chora fortemente). 

Domingos Joâo — Ora esta! Ora esta! 

António — Não há de ser nada, não há de ser nada! 

Domingos João — {chega à porta e grita) : — ó Inaci- 
nhol... O* Inacinho!... 

Inacinho {ao longe) — Lá vou!... 

Domingos João (Voltando) . — Já aí vem a Angélica. 

Joana — Diga que venha depressa. 



CENA xn 
Os mesmos, Inacinho e Angélica. 

Todos — Entre, entre, Sra. Angélica. 

Angélica — Então o que é isto? 

Joana — Deu um ataque em Quitéria e está sem 
fala. 

Angélica — Vamos a ver. (Chegasse para Quitéria e 
a examina). Isto não ó nada, são flatos... 

Joana — Flatos!... Pois flatos fazem perder a fala? 

Angélica — Mas a menina não tem só flatos... 

Domingos JoÂo — Então o que tem? 

Angélica — Está com quebranto. 

Joana — Lá isso sim. . . 

Angélica — Mande buscar um ramo d'arruda. (Sai 
Inacinho) . Não se assustem, que não há de ser nada. 
Algum mau olhado que botaram na menina. Verão como 
a curo em um instante. 



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— 121 — 

GBNA Xni 

Os piesmos è Itiacitiho 

Angélica — Com efeito, o olhado fôi maU. 

Joana — Minha filha!. . . (chota) . 

Inacinho — Si meu pai quer, eu vou chamar o 
Sr. doutor, filho do capitâo-mór, que chegou ontem da 
cidade. 

Domingos JoAo — Sim. Vai depressa, éle não pode es- 
tar longe (Sai, Inacinho) . 

Angélica — Quem sabe se a menina nao tem o diabo 
no corpo?.. . 

Joana — Jesus, Maria, Josél que diz, senhora! 
(benzem-se todos) . 

Domingos João — Pois minha filha está endemoni- 
nhada? 

Angélica — Quer me parecer que sim. 

António — Que desgraça! 

Angélica — Ou talvez mosmo que esteja com a eè* 
pinhela caída... 

Domingos João — Quanta cousa... quebranto, o dia- 
bo no corpo, espinhela caída! 

CRNA XIV 

0$ mesmos, Jucá e Inacinho. 

JucA — Que há de novo? 

Joana — Sr. doutor, minha filha está para morrer. 

JucA {chega-se para Quitéria, toma^lhe o pulso) . — 
Nfto é nada. Mande vir um copo com água {sai Joana) . 

JtiCA — Quando digo que não é nada, falto um pouco 
à verdade, porque sua filha tem uma inflamação de car- 
bonato de potassa. 

DoMiNQod João (Muito espantado) • — ^ Inflamação 
de que? 

JuGA — De carbonato de potassa. 

António — E isso é perigoso, Sr. doutor? 

JúCA — Muito, não só para ela, como para a pessoa 
que cem ela casar. 

António (d parte) — Maul 



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— 122 — 

CENA XV 

Os mesmos e Joana 



Joana — Aqui está a água. 

JuGA {tomando o copo d' água e fingindo que lhe deita 
alguma cousa dentro) . — Este remédio vai curá-la ime- 
diatamente. (Quitéria bebe e logo ao primeiro gole abre 
os olhos) . 

Domingos João — Viva o Sr. licenciado! 

Quitéria (levantando-se) — Minha mãe! 

Joana — Minha filha, o que tens? 

JuGA — Esta menina é preciso ter muito cuidado na 
sua saúde e eu acho que^ si ela casar com um homem 
que não entenda de medicina, está muito arriscada a 
sua vida. 

Domingos João — Mas isto é o diabo! Já prometí-a 
ao senhor {apontando para António) . 

António — Mas eu . . . 

JucA «— Arrisca assim a vida de sua filha. 

Domingos João — Já dei minha palavra. — {Jucá 
coça a cabeça) . 

Quitéria — Ai! Ai! eu morro! {cai na cadeira). 

Todos — Acuda, acuda, Sr. doutor! 

JuCA {chegando-se) — Agora é outra doença. 

Domingos João — Então o que é agora? 

JucA — E' um eclipse. 

Domingos João — Ai {Jucá esfrega as mãos e passa- 
as pela testa de Quitéria) . 

Quitéria {abrindo os olhos) — Já estou melhor. 

JucA — Vê, Sra. D. Joana? si sua filha não tiver 
sempre quem trate dela, morrerá certamente. Não é assim, 
Sra. Angélica? 

{Quando diz estas últimas palavras, dá ocultamente a 
Angélica uma bolsa com dinheiro) . 

Angélica — Sr. doutor, tem razão, a menina morre. 
Domingos João — Então, que havemos de fazer? 



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— 123 — 

JuGA — Si eu não estivesse estudando . . . 

Joana — O Sr. licenciado bem podia... 

JucA — Si meu pai ... 

Domingos João — Tenho uma bôa fazenda e o ma- 
rido de minha filha fica bem aquinhoado. 

JuCA — Si o Sr. Domingos quisesse... 

DoMiNoos João — Explique-se. 

JuGA — Conhecendo as boas qualidades de sua filha ç 
estimando muito sua família, me ofereço ... 

Joana {com presteza) — E o consentimento de 
seu pai? 

JuGA — Esse, o terei. 

Domingos João — Mas, a palavra que dei ao Sr. 
António. 

António — Não se aflija, pois não desejo mais casar 
com uma mulher que tem eclipses. 

JuGA — Visto isto, cede? 

António — De boa vontade. 

Joana — Sr. Domingos João diga ao senhor que 
sim. 

Angéliga — Olhe que sua filha. morre. 

Inaginho — Meu pai, case-a, com os diabos; o Sr. 
licenciado é boa pessoa. 

Domingos João — Já que todos o querem, vá feito 
{Para Jucá) Minha filha será sua mulher {Quitéria le- 
vanta-se) . 

JuGA — Gomo consente, quisera que se afetuasse o 
mais breve possível. 

Domingos João — Iremos agora mesmo falar ao vi- 
gário e de caminho podemos ver a festa. 

Joana — Diz bem. 

Domingos João — Vão se vestir {saem ots duas) . 

JuGA, — Quando acabar meus estudos, voltarei para 
ajudar a meu pai. 

Domingos João — Dê-me um abraço. {Para Inaci- 
nho) . Já agora não irás amanhã para a cidade. Quem 
havia de dizer que seu Jucá seria meu genro? 

Angéliga — Deus assim o quis. 

Domingos João — E o quebranto, não?... Dizija 
esta mulher, Sr. Jucá, que minha filha tinha quebranto, 



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— 124 — 

o diabo no corpo, espinhela caída, quando ela não tinha si- 
não um carbonato de eclipse. 

JUOA {rindo-^e sem se poder conter) . — E* verdade! 

Domingos João {desconfiado) . -^ De que ri? 

JuGA — Da asneira da senhora.. .^ 

Comédias — H. Gamior, Uvrelro editor. 



FRANÇA JÚNIOR 

{Bio-bibliografia à pág, 109) 



51. Como se fazia um deputado 

CENA VI 

Limoeiro e Chico Bento 

Limoeiro — Então, que diz do nosso doutor? 

Chico Bento — Não é de todo desajeitado. 

Limoeiro — Desajeitado l E' um rapaz de muito ta- 
lento! 

Chico Bento — E diga-me cá uma cousa : a respeito 
de política, quais são as ideias déle? 

Limoeiro — Tocou o tenente-coronel justamente no 
ponto que eu queria ferir. 

Chico Pento — Omnibus tulit punctos, qui mUcuit 
útil et dolcet (*) . 

Limoeiro {gritando) — Olá de dentro! tragam duas 
cadeiras. O negócio é importante, devemos discutir com 
toda a calma. 

Chico Bento -r- Estou às suas ordens. {Entra um 
negro e põe duas cadeiras em cena) . Tem a palavra o su- 
plicante. {Sentam-se) . 



(*) — Corr^to: omne lulit punçtum, qui mi9cuit utile 

dulci, — N. do çoletor. 



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— 125 -. 

LiMoàmo — Tenente-coronel, cartas na mesa e jogo 
franco. E' preciso arrumar o rapaz; e nSo há negócio 
neste país, como a política. Pela política cheguei a major 
6 a comendador, e o meu amigo a tenente-coronel e a 
inspetor da instrução pública cá da freguezia. 

Chico Bento — Pela política, nSo, porque estava o 
partido contrário no poder; foi pelos meus merecimentos. 

Limoeiro — Seja como fôr, ò fato é que, a-pesar-de 
estar o meu partido de cima, o tenente-coronel é e será 
sempre a primeira influência do lugar. Mas vamos ao 
caso. Gomo sabe, tenho algumas patacas, não tanto quanto 
se diz... 

Chico Bento — Oxalá que eu tivesse só a metade 
do que possue o major. 

Limoeiro — Ouro é o que ouro vale. Si a sorte não 
o presenteou com uma grande fortuna, tem-lhe dado to- 
davia honras, considerações e amigos. Eu represento o 
dinheiro; o tenente-coronel, a influènéia. O meu partido 
está escangalhado, e é preciso olhar seriamente para o fu- 
turo de Henrique antes que a reforma eleitoral nos ve- 
nha por aí. 

Chico Bento — Quer então tjue. . . 

Limoeiro — Que o tome sob a sua proteção quanto 
antes, apresentando-o seu condidato do peito nas pró- 
ximas eleições. 

Chico Bento — Esêis modus in rebuê (*) . 

Limoeiro — Deixemo-nos de latinórios. O rapaz é 
meu herdeiro universal, casa com a sua menina, e assim 
conciliam-se as cousas da melhor maneira possível. 

Chico Bento (com alegria concentrada) . — Confesso 
ao major que nunca pensei em tal; uma vez, porém, que 
esse negócio lhe apraz . . . 

Limoeiro — E' um negócio» diz muito bem, porque, 
no fim das contas, estes casamentos por amor dão sempre 
em água de barreia. O tenente-coronel compreende... 
Eu sou liberal... o meu amigo conservador... 

Chico Bento — Já atinei I Já atinei! quando ò par- 
tido conservador estiver no poder... 



(•) — Corretor — Est moduê in rehus, N. de coletor. 

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— 126 — 

Limoeiro — -Temos o governo em casa. 'E quando 
o partido liberal subir ... 

Chico Bento — Não nos saiu o governo de casa. 

Limoeiro (batendo na coxa de Chico Bento) — Ma- 
ganão! — 

Chico Bento {batendo-lhe no ombro) . — Vivóriol 
E si se formar um terceiro partido?... Sim, porque deve- 
mos prevenir todas as hipóteses ... 

Limoeiro — Ora, ora. . . Então o rapaz é algum bobo? 
Encaixa-se no terceiro partido, e ainda continuaremos com 
o governo em casa» O tenente coronel já não foi progres- 
sista no tempo da Liga? 

Chico Bento — Nunca. Sempre protestei contra aque- 
le estado de cousas; ajudei o governo, é verdade, mas no 
mesmo caso está também o major, que foi feito co- 
mendador naquela ocasião. 

Limoeiro — E' verdade, não nego; mudei de ideias 
por altas conveniêi^cias sociais. Olhe, meu amigo, si o 
virar a casaca fosse crime, as cadeias do Brasil seriam 
pequenas para conter os inúmeros criminosos que por aí 
andam. 

Chico Bento — Vejo que o major é homem de vistas 
largas . 

Limoeiro — E eu vejo qiie o tenente-coronel não 
fica atrás. 

Chico Bento — Então, casemos os pequenos ... 

Limoeiro — Casam-se os nossos interesses. 

Chico Bento — Et ccetera e tal . . . 

Limoeiro — Pontinhos... {vendo Henrique) Aí vem 
o rapaz, deixe-me só com êle. 

Chico Bento — Fiam voluntatis tue ( * ) . Vou mudar 
estas botas (sai) . 

CENA VII 

Limoeiro e Henrique 

Henrique — Como se está bem aqui! Disse um es- 
critor que a vida da roça arredonda a barriga e estreita o 



(*) — Correto: Fiat Voluntaa tua — N. do coletor. 



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— 127 — 

cérebro. Que amargo epigrama contra esta natureza gran- 
diosa I Eu sinto-me aqui poeta. 

Limoeiro — Toma tenência rapaz. Isto de poesia não 
dá para o prato, e é preciso que te ocupes com alguma 
óousa séria. 

Henrique — Veja, meu tio, como está aquele hori- 
zonte; o sol deita-se em brilhantes cochins de ouro e púr- 
pura e a viração, embalsamada pelo perfume das flores, 
convida a alma aos mais poéticos sonhos de amor. 

Limoeiro — Está bom, esta bom. Esquece estes so- 
nhos de amor, que no fim de contas, são sempre sonhos, 
e vamos tratar da realidade. Vira-te para cá. Deixa o sol, 
que tens muito tempo para ver, e responde-me ao que te 
vou perguntar. 

Henrique — Estou às suas ordens. 

Limoeiro — Que carreira pretendes seguir? 

Henrique — Tenho muitas diante de mim. A ma- 
gistratura... 

Limoeiro — Podes limpar as mãos à parede ... 

Henrique — A advocacia, a diplomacia, a carreira ad- 
ministrativa ... 

Limoeiro — E esqueceste a principal, aquela que pode 
elevar-te às mais altas posições em um abrir e fechar 
de olhos. 

Henrique — O jornalismo? 

Limoeiro — A política, rapaz, a política! Olha, para 
ser juiz municipal, é preciso um ano de prática; para 
seres juiz de direito, tens que fazer um quatriênio; an- 
darás a correr montes e vales por todo este Brasil, su- 
jeito aos caprichos de quanto potentado e mandão há por 
aí, sempre com a sela na barriga I Quando chegares a de- 
sembargador, estarás velho, pobre, cheio de achaques, e 
sem esperança de subir ao Supremo Tribunal de Justiça . 
Considera agora a política. Para deputado não é preciso 
ter prática de cousa alguma. Começas logo legislando para 
o juiz municipal, para o juiz de direito, para o desem- 
bargador, para o ministro do Supremo Tribunal de Jus- 
tiça, para mim, que sou quasi teu pai, para o Brasil in- 
teiro, em suma... 



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— 1E8 — 

Hbnriour — Mas para isso é preciso. . . 

Limoeiro — Não é preciso cousa alguma. Desejo so- 
mente que me digas quais são as tuas opiniões políticas. 

Henrique — Foi cousa em que nunca pensei. 

Limoeiro -— Pois olha, és . mais político do que eu 
pensava. E' preciso, porém, que adotes um partido seja 
éle qual fôr. Escolhe. 

Henrique — Neste caso serei do partido de meu tio. 

Limoeiro — E por que não serás corservador? 

Henrique — Não se me dá de sé-lo, si fòr de seu 
agrado. 

Limoeiro — Bravo! Pois fica sabendo que serás am- 
bas as cousas. 

Henrique — Mas isto é uma indignidade! 

Limoeiro — Indignidade é ser uma coisa só! 



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V. RETBATOS - CARACTERES 



JOÃO FRANCISCO LISBOA 

MARANHÃO -4- 2a-V.1812l 
t liISBOA — a6-IV-18Q8 

Pilho de lavradores, João Francisco Lisboa, nascido em Ita- 
piciirú-mirim, teve a sua primeira educação literária muito des- 
curada e só mais tarde, devido aos próprios esforços, pOde fazer 
estudos proveitosos de humanidades. Na sua província dedl» 
cou-se ao jomallsnK). Havia sido deputado provincial na prl- 
hieira legislatura, tendo mais tarde desempenhado o cargo de 
secretário da Presidência; deu-se também & advocacia. Vindo 
ao Rio Ce Janeiro em 1855, foi pelo governo imperial incumbido 
de Ir a Portugal coligir documentos relativos à história pátria, 
o que fazia com o maior zelo, quando em Lisboa o surpreendeu 
a morte. Foi do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro . 

O brilhante jornalista, reputado um dos nossos mais corre- 
tos prosadores, foi conhecedor profundo do vernáculo, que culti- 
vou e estudou com amor 

Bibliografia — Suas produções principais foram: JomaZ de 
Timon (Maranhão, de 1852 a 1854), Apontamentos, noticiaè e 
observações para servirem à história do Maranhão, Obras com" 
pletast etc. 



52. Vieira na escola 

Mostrava-se António Vieira assíduo e fervoroso nos 
estudos, « lidava deveras por avíintajar-se aos demais seus 
condiscípulos; mas conta-se que nos primeiros tempos, 
a-pesarcda natural vivacidade que desde os mais tenros 



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— 130 — 

anos manifestara, não pudera fazer grandes progressos, 
pelo não ajudar a memória, rude e pesada, e como toldada 
de espessa nuvem. Era o estudante grande devoto de Vir- 
gem; e um dia que, ajoelhado ante a sua imagem e cheio 
do pesar e abatimento que lhe causava aquela natural in- 
capacidade, a implorava em fervorosa oração, para que o 
ajudasse a vencer semelhante obstáculo, de repente sen- 
tiu como um estalo e dôr aguda na cabeça, que lhe pare- 
ceu que ali acabaria a vida. 

Era a Virgem que sem dúvida escutara e deferia a 
súplica ardente e generosa; e era o véu espesso que tra- 
zia em tão indigna escuridade aquele juvenil engenho, que 
num momento se rasgava e. desfazia para sempre. 

Guiou dali Vieira para a escola com grande alvoroço, 
e sentiu-se tão outro do que fora até então, que logo ani- 
mosamente pediu para argumentar com os mais sabedo- 
res e adiantados. E a todos venceu e desbancou, com 
estranhável assombro do mestre, que bem conheceu anda- 
va naquilo grande novidade. Assim o referem pelo menos 
as crónicas da ordem; e, si a anedota não é verdadeira, 
é pelo menos calculada para dar uma cór romanesca e 
maravilhosa aos primeiros lampejos deste engenho novel, 
que mais tarde havia de deslumbrar o mundo pelo seu 
extraordinário fulgor. Daí por diante nunca mais a me- 
mória e as outras faculdades do entendimento mentiram 
ao seu ardor imenso de aprender; e como lhe batesse no 
peito um coração generoso e cheio de impulsos e aspi- 
rações para as grandes e nobres cousas, já em tão ver- 
des anos cogitava o mancebo nos meios de pôr por obra 
as suas ideias e desígnios. E, ou fosse que a sua inteli- 
gência e ambição precoce lhe desse a conhecer que nos 
jesuítas estava concentrado todo p poder da época, e que 
abraçando o instituto, entrava pela porta mais fácil e 
azada para quem queria seguir os caminhos que guiam á 
grandeza humana; ou fosse que os twwíres, sondando com 
um só lanço do seu olhar profundo e penetrante tudo 
quanto o porvir reservava àquela flor apenas desabrocha- 
da, e fiéis às máximas da ordem, empregassem todos os 
meios para captá-lo e seduzi-lo; o certo é que Vieira fugiu 
de casa, e recolheu-se ao colégio dos jesuítas, em 1625, 
tendo pouco mais de quinze anos de idade. 



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— 131 — 

Debalde os pais, que lhe reservavam outros destinos, 
envidaram todos os esforços pelo dissuadir; Vieira perse- 
verou, despontando nele por este modo, em ocasião tão 
solene, e desde a aurora da vida, aquele ferrenho des- 
prêso dos sentimentos mais ternos e suaves, e aquela am- 
bição aspérrima e insaciável que dominaram depois em 
todo o curso dela. 

Passados dous anos completos de noviciado. Vieira 
professou; e bem que continuasse a fazer progressos ma- 
ravilhosos nos estudos, com igual aplauso dos mestres ' e 
condiscípulos, a glória tranquila e modesta das letras não 
o tentou assas; e, aspirando incessantemente a cousas mais 
árduas e lustrosas, fez consigo voto de despender a vida 
na doutrina e conversão dos escravos africanos e sel- 
vagens do Brasil, e ôsse intento deu-se para logo ao estu- 
do das línguas de uns e outros. Quando aos vinte e um 
anos de sua idade, quiseram os padres que Vieira come- 
çasse um curso de filosofia, para passar depois aos de 
teologia, declarou êle o voto que até então guardara se- 
creto. Os superiores lho irritaram, é certo, mas não foi 
sem repugnância que o futuro missionário, adstrito aos 
preceitos severos da ordem sobre a obediência, abciu mão 
dos projetos que lhe sorriam na mente, para continuar a 
cultivar as letras, e a aprofundar aqueles conhecimen- 
tos que, no entender dos padres, ajustavam melhor com a 
elevação e brilho do seu talento. 

Que poderemos nós dizer que responda aos prodí- 
gios operados nas escolas por esta aguiazinha ainda mal 
emplumada? Aos dezoito anos já Vieira ensinava retóri- 
ca no colégio de Olinda; e, quer na sua cadeira de pro- 
fessor, quer nos bancos de filosofia e teologia, era sem- 
pre o mesmo portentoso mancebo que, antecipando o tem- 
po e o trabalho, mostrava-se com mais aptidão para 
mestre que para discípulo. Compunha dissertações e tra- 
tados sobre os assuntos mais elevados, comentava os li- 
vros mais obscuros e difíceis das sagradas escrituras, e 
arguia com tanta sutileza, ardor e vivacidade, que era o 
pasmo de quantos o viam o ouviam. 



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— 132 



53. António Vieira pregador 



Em 1635, foi Vieira ordenado presbítero, e disse a suâ 
primeira missa. 

Apontamos esta .circunstância pela sua data para 
deduzir dela uma observação; e vem a ser que, segundo 
parece naquela época não era cousa fácil a promoção ao 
sacerdócio, cujas tremendas obrigações se confiaram a um 
homem tal como Vieira, só depois de. vinte e oito anos 
de idade e de tantos e tão elevados estudos. 

Escreve André de Barros que por estes tempos gas- 
tara Vieira cinco anos na conversão dos gentios do Bra- 
sil Te o mesmo Vieira em uma carta escrita em 1695 ao 
P. Manuel Luiz (é a 144.' do T. 2.*), diz também que es- 
tivera cinco anos em todas as aldeias da Baía, sem to- 
davia particularizar mais circunstância alguma, por onde 
se possa avaliar a época e importância dos serviços, com 
que desde então buscava satisfazer a sua vocação. 

O que não pai^ece dúvida é que, tanto antes como 
depois de receber as ordens, já ôle pregava nas igrejas 
da Baía e seus arredores, desdobrando desde então as 
grandes qualidades oratórias com que depois encheu de 
admiração Lisboa e Roma. Que dizemos nós? no seu fa- 
moso — "Sermão pelo bom sucesso das armas de Por- 
tugal contra as de Holanda" — pregado em 1640, elevou- 
se o P. António Vieira a um tão alto grau de eloquên- 
cia, a que raras vezes atingiu depois. 

Então contava ôle apenas trinta e dois anos, e em 
todo o viçQ da mocidade, o seu talento virgem e vigoro- 
so rompeu em vivos lampejos, sobrepujando a falsa ciên- 
cia, que em idade mais crescida por ventura lhe ofuscava 
o brilho, e lhe impedia a liberdade dos movimentos. 

O patriotism^o português, paixão dominante, que sem- 
pre ocupou o seu coração, o enchia e abrasava então 
mais que nunca, não desfalecido ainda, nem pelos gelos 
da velhice, nem pelas ingratidões e desenganos, que mais 
tarde tantas vezes encontrou nas cortes. 



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— 133 — 

As circunstâncias, de resto, eram próprias a excitar 
todos os seus sentimentos de português, de católico e de 
membro de uma ordem religiosa. Os holandeses haviam 
conquistado uma parte considerável do Brasil; o príncipe 
Maurício de Nassau, com um formidável armamento de 
terra e mar, tinha vindo tentar em 1638, a tomada da 
Baía; e, posto que a empresa se malograsse, não se fez 
todavia sentir menos pesada nas devastações que se lhe 
seguiram. A guerra continuou depois, e o ano de 1640 
foi logo nos seus começos assinalado por batalhas encar- 
niçadas e incessantes entre a esquadra holandesa e a lu- 
so-hispana, sôb o comando do conde dá Torre. 

Essas batalhas, cujo resultado foi sempre favorável 
aos holandeses, pelejaram-se tanto à vista das costas do 
Brasil, que, pode-se dizer, a população as contemplava 
das praias. 

Sob a impressão dos sentimentos de terror e de es- 
perança que estes grandes acontecimentos excitavam em 
todos os ânimos, ordenaram-se preces públicas na Baía, 
e os melhores oradores subiam sucessivamente ao púlpito. 
No último dia coube ao P. António Vieira a sua vez de 
pregar. A vida dos oradores está principalmente nos seus 
discursos: e um grande triunfo oratório é para eles, como 
para um general o ganho de uma batalha. Não fare- 
mos, pois, como os seus outros biófragos que, com culpá- 
vel omissão, deixaram em completo silêncio, ou apenas 
assinalaram este notável acontecimento. 

Dominado de uma soberba inspiração, e, desdenhando 
seguir os trilhos usados pela retórica fria e rotineira 
dos outros pregadores, desde as primeiras palavras afron- 
tou-se op orador com a divindade, com uns meneios e 
formas tão estranhas, e com uma tal audácia de pensa- 
mentos, que faz involuntariamente recordar a passagem de 
Homero, citada por Longino entre os exemplos de sublime. 
— Exurge (disse ôie, começando) quare obdormis, domine^ 

VidcL do Padre António Vieira. (Na Europa), 



Antologia Brasileira ê 

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— 134 — 



54- Vieira e D. João IV 



Para acudir ao Brasil, propôs igualmente o padre 
a compra de quinze fragatas de trinta peças, que em 
Amsterdão lhe ofereceram por vinte mil cruzados cada 
uma, postas em Lisboa aparelhadas de todo o necessá- 
rio, p alvitre agradou, mas pára o pôr por obra eram 
necessários trezentos mil cruzados, e não os havia à mão. 
Indicou Vieira um leve imposto sobre a frota que havia 
chegado do Brasil naqueles dias, opulentíssima de mais 
de quarenta mil caixas de açúcar. Mandou-lhe Sua Ma- 
jestade que pusesse tudo aquilo em um papel sem lábia, 
e passados poucos dias fez-lhe saber que, mandando con- 
sultá-lo por seus ministros, responderam estes que o negó- 
cio estava muito crú. Mas eis que apenas passam seis 
meses, e chegam notícias de como Segismundo apertava 
com a Baía, e fazia grande falta a armada que não compra- 
ra nem mandara. Interpelado Vieira por el-rei, acerca 
desta dificuldade com as seguintes palavras: — Que vos 
parece que façamos? — "O negócio, senhor (respondeu êle) 
é mui fácil. Não disseram a V. M. os ministros que 
aquele negócio era muito crú? Pois então cozam-no 
agora". 

O cortezão triunfava sem muita caridade dos em- 
baraços dos ministros e ainda do seu próprio rei. Esses 
embaraços não pararam aqui. Assentou-se em conselho 
que era indispensável socorrer a Baía, e para isso se 
havia mister de trezentos mil cruzados, sem ocorrer to- 
davia a maneira de achá-los. Tornou el-rei a comunicar 
o caso com o padre, e este lhe respondeu indignado: 
"Basta, senhor, que a um rei de Portugal hão de dizer 
seus ministros que não há meio de haver 300.000 cruza- 
dos com que acudir ao Brasil, que é tudo o que hoje 
temos! Ora, eu com essa roupeta remendada espero em 
Deus que hoje mesmo hei de dar a V. M. toda esta 
quantia". — E assim foi, que a obteve imediatamente de 
empréstimo por intermédio de um negociante, seu amigo 
e antigo conhecido do Brasil. 



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— 135 — 



55. Vieira preso 
(revolta popular do parA) 

Triunfantes os sediciosos do Maranhão, não se dei- 
xaram adormecer no seio da vitória; e enviaram pron- 
tamente diversos emissários, quer para Belém, afim de 
promoverem uma sublevação igual à de S. Luiz, quer para 
Lisboa, a representarem suas queixas e desculparem a 
sedição. Para esta última missão foi escolhido o famoso 
Jorge de S. Paio de Carvalho, cidadão ativo e empreen- 
dedor, que já de então se lançava nessa carreira fatal 
das revoluções, por onde, vinte anos mais tarde, devia 
chegar ao cadafalso. 

Divulgados, enfim, no Pará os sucessos do Maranhão, 
e nem o segredo se podia guardar por muito tempo, 
começou o povo a alvorotar-se . Em vão procuraram o 
senado e os nobres acalmar o seu furor; as suas mesmas 
diligências redundaram em prejuízo da paz, si não é que 
de propósito foram encaminhadas a esse fim, como sus- 
peitaram os escritores jesuítas. O certo é que, resolvendo 
o senado convocar os moradores para a eleição de três 
nobres dos mais qualificados que, com o mesmo senado, 
provessem à segurança pública, e começando a eleição a 
13 de Julho, aconteceu, como dois meses antes se tinha 
visto em S. Luiz, que do mesmo concurso da multidão 
derivou o perigo que se pretendia remover. No dia 17, 
recolhida a corporação do senado, depois da procissão do 
anjo custódio, rompeu o povo em altos brados, pedindo 
a nomeação de um juiz, que para logo obteve. 

Infatuados com este primeiro triunfo, guiaram os se- 
diciosos tumultuariamente para o colégio da companhia, 
invadirajn-no de mão armada, e ali prenderam todos os pa- 
dres que acharam, inclusive António Vieira, e conduziram- 
nos a diversas prisões, no meio de vaias, ameaças e es- 
padas nuas, sendo Vieira recluso na ermida de S. João, 
separado de todos os mais companheiros. Sem dar inteiro 
crédito a André de Barros, o qual afirma que os mesmos 



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— 136 — 

padres enfermos e moribundos foram arrastados, e que a 
António Vieira até se negava o indispensável alimento, é 
de. presumir, contudo, que a multidão vitoriosa se dema- 
siasse em toda a casta de excessos. António Vieira, em 
particular, foi objeto das maiores afrontas; guardado à 
vista e incomunicável em uma prisão solitária, a plebe 
vil e desprezível vinha insultá-lo sem piedade. Este o 
chamava hereje, aquele de judeu, tanto que fora batizado 
em pé; estoutro, enfim, feiticeiro, que trazia consigo um 
génio familiar, com que lograva enganar a todos. 

Quando, entre as vaias da gentalha e soldadesca, era 
conduzido do colégio para a prisão, um dos principais 
da terra chegou-se a ôle, e perguntou-lhe em tom de. 
xiíofa: Onde está agora, P, António Vieira, a sua sabedo- 
ria e arte, ^i não sabe livrar-se deste conflito? 

Fosse sobranceria ou abatimento, o padre nada lhe 
respondeu; mas a injúria devia pungí-lò no íntimo d*alnla, 
a ôle sempre tão desvanecido, da sua imensa superiori- 
dade, agora miserável prosa e baldão de alguns obscuros 
sediciosos, eterno objeto do seu ódio, para não dizer do 
seu desprezo. 

Vida do Padre António Vieira. (,No Brasil), 



VASCONCELOS DE DRUMOND 

MO DB JANBSmO — 21.V-17M 
t PABIS — 16-1-1805 

Jornalista, AntOnlo de Menezes Vasconcelos de Drumond pres- 
tou servlgos inestimáveis ô. causa da Independência da Pátria. 
Apoiou o grabinete dos Andradas e, quando, dissolvida %. Consti- 
tuinte, José Bonifácio e os Irmãos exilados, partiram para a 
França, 1823, Vasconcelos de Drumond quis ter e teve a mesma 
sorte. Voltou ao Brasil em 1829 e posteriormente representou o 
Brasil em vários países da Europa. Publicou diversos trabalhos 
sobre as nossas questões diplomáticas e suas Memórias de onde 
foi extraído o trecho abaixo. 



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^ 137 — 

66. Inteireza dos Andrãdas 

Acerca da pobreza de José Bonifácio, que não pos- 
suía mais de trinta mil réis, quando foi preso e deportado, 
contarei uma anedota, (Ç[ue não será lida sem interesse. 

Os ministros da regência de D. Pedro reduziram seus 
ordenados a metade do que eram no tempo de D. João 
VI. Ficaram em quatro contos e oitocentos mil réis anuais, 
pagos mensalmente. 

José Bonifácio recebeu quatrocentos mil réis em bi- 
lhetes do Banco, de um mês do seu ordenado, os meteu 
no fundo do chapéu, e no teatro lhe roubaram o chapéu 
e o conteúdo. 

O primeiro ministro do Império do Brasil acha-se 
no dia seguinte sem ter com que mandar comprar o jantar. 
Não possuia nem um vintém mais, e seu sobrinho Belchior 
Fernandes Pinheiro foi quem pagou as despesas do dia. 

Em conselho José Bonifácio referiu esta ocurrência 
e a extrema necessidade a que ela o reduziu e a sua 
família. 

O imperador entendeu que o ministro, visto a pe- 
núria em que se achava, devia ser indenizado, pagando- 
se-lhe outro mês de ordenado, e, neste sentido, deu ali 
suas ordens ao ministro da fazenda. 

Martim Francisco não obedeceu. Disse ao imperador 
que não havia lei que pusesse a cargo do Estado os des- 
cuidos dos empregados públicos; que o ano tinha para 
todos doze meses e não treze para os protegidos; e, fi- 
nalmente, pedia a sua Majestade que retirasse a sua or- 
dem, porque era exequível que êle, Martim Francisco, 
repartisse com seu irmão o seu ordenado e que viveriam 
ambos com mais parcimônia aquele mês, o que era me- 
lhor do que dar ao país o funesto exemplo de se pagar 
ao ministro duas vezes o ordenado de um só mês. 

Este incidente não foi mais adiante. Martim Fran- 
cisco repartiu com seu irmão o dinheiro que tinha, e 
José Bonifácio daí por diante tomou mais cuidado no 
chapéu e no dinheiro que recebia. 

Memórias , 



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— 138 — 



MONSENHOR PINTO DE CAMPOS 

PERNAMBUCO — 4.IV-1819 
t liISBOA — 5-Xn-lM7 

Monsenhor Joaquim Pinto de Campos, orador sagrado e 
parlamentar, foi escritor e conhecedor da língua, que pre- 
zava. Militou na política, tendo sido deputado à. assembleia pro- 
vincial de Pernambuco e à geral, eleito em cinco legislaturas. 

Membro correspondente do Instituto Histórico e Geográfico 
Brasileiro, sócio da Academia Geral de Ciências de Lisboa e de 
outras associações literárias e científicas estrangeiras. 

Bibliografia — Publicou: Jerusalém (1874), A Igreja e o 
Estado, Vida do grande cidadão brasileiro Luis Alves de lAma 
e Silva, sermões, discursos, etc. 



57. O Duque de Caxias 

Nas mais diversas aplicações da sua inteligência, 
soube êle permanecer sempre o mesmo. Por mais alto que 
subisse, em cada degrau da sua esplêndida vida, nunca 
foi visto vacilar. Soube administrar, combater, governar, 
tudo em máxima escala, ficando sempre simples e mo- 
desto. Distinguiu-o invariavelmente a austera simplici- 
dade de um Gincinato, mas a quem nunca o Estado per- 
mitiu voltar do triunfo para a charrua, pois não têm sido 
dadas férias a tão constante lidar. 

Por mais que barafuste a inveja, a história não acei- 
tará que o nome de outro algum dos nossos cidadãos 
se superponha ao deste; e ao nosso compatriota passará 
também o cognome de Duque de Ferro, com que outro 
general foi saudado. Já lhe conheceis as qualidades mo-^ 
rais e físicas. Duma sobriedade exemplar, suporta as 
maiores fadigas, sem demonstrar cansaço. Nunca foi visto 
desmentir-se-lhe o vigor do ânimo ou a placidez do espí- 
rito, nem nos mais críticos momentos, que a responsabi- 
lidade de um comando em chefe devia converter em sé- 
culos de ansiedade. Sempre achou tempo para Deus, para 
a pátria, para os amigos, para a humanidade. 

Essa estrela que lhe atribuem, acredita nela, não 
como os fatalistas, mas sim como predomínio da inteli- 



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— 139 — 

gência sobre as ações, caso esse em que a sorte, como 
diz Vieira, não está nas mãos dos fados, senão nas nos- 
sas. Si o acaso venturoso entra por um décimo nos gran- 
des resultados obtidos, nove décimos são devidos ao cál- 
culo, à inteligência, à perspicácia, à prontidão. - 

Sim, homens destes não deviam morrer. São esteio 
da pátria, farol seu, sua glória, sua esperança. Si um 
Caxias, durante meio século tem prestado toda a casta de 
serviços a este país, na sua separação, no seu organizar-se, 
na sua pacificação, na sua segurança, interna e externa, 
quem sabe si d'ora avante, mais que nunca, essa coajuva- 
ção possante não virá a ser-nos necessária e urgente? 
Não se tem a pátria costumado, em todos os seus transes 
angustiosos, a apontar para este homem, invocando-o com 
o brado: Tu es ille vir? 

Vida do grande cidadão brasileiro, Luiz Alves 
de lAma e Silva, Barão, Conde, Marquês» 
Buque de Caxias (Lisboa, 1878) . 



MACHADO DE ASSIZ 

{Bio-bibliografia à pág, 24) 



58. Visconde do Bio Branco 

Contrastando com Souza Franco, vinha a figura de 
Paranhos, alta e forte. 

Não é preciso dizé-lo a uma geração que o conheceu 
e admirou, ainda belo e robusto na velhice. Nem é preciso 
lembrar que era uma das primeiras vozes do Senado. 

Eu trazia de cór as palavras que alguém me confiou 
haver dito, quando êle era simples estudante da Escola 
Cantral: "Sr. Paranhos, você ainda há de ser ministro". 
O estudante respondia modestamente, sorrindo: mas o pro- 
feta dos seus destinos tinha apanhado bem o valor e a 
direção da alma do moço. 

Muitas recordações me vieram do Paranhos de então, 
discursos de ataque, discursos de defesa, mas uma basta: 



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— 140 — 

a justificação do convénio de 20 de Fevereiro. A notícia 
deste ato entrou no Rio de Janeiro, como as outras desse 
tempo, em que não havia telégrafo.' Os sucessos do ex- 
terior chegavam-nos às braçadas, por atacado, e uma 
batalha, imia conspiração, um ato diplomático eram co- 
nhecidos com todos os seus pormenores. Por um paquete 
do Sul, soubemos do convénio da vila União. O pacto 
foi mal recebido, fez-se uma manifestação de rua, e um 
grupo de populares, com três ou quatro chefes à frente, 
foi pedir ao governo a demissão do plenipotenciário. Pa- 
ranhos foi demitido e, aberta a sessão parlamentar, cuidou 
de produzir a sua defesa. 

Tomei a vé-lo aquele dia, e ainda agora me parece 
vê-lo. Galerias e tribunas estavam cheias de gente, ao 
salão do Senado foram admitidos muitos homens polí- 
ticos ou simplesmente curiosos. Era uma hora da tarde 
quando o presidente deu a palavra ao Senador por Mato- 
Grosso; começava a discussão do voto de graças. Para- 
nhos costumava falar com moderação e pausa; firmava os 
dedos, erguia-os para o gesto lento e sóbrio, ou então 
para chamar os punhos da camisa, e a voz ia saindo medi- 
tada e colorida. Naquele dia, porém, a ânsia de produzir 
a defesa era tal, que as primeiras palavras foram antes 
bradadas que ditas: "Não a vaidade, Sr. Presidente..." 
Daí a um instante, a voz tomava ao diapasão habitual, 
e o discurso continuou como nos outros dias. Eram nove 
horas da noite, quando ôle acabou; estava como no prin- 
cípio, nenhum sinal de fadiga nele, nem no auditório, que 
o aplaudia. 

Foi uma das mais fundas impressões que me deixou 
a eloquência parlamentar. A agitação passara com os su- 
cessos, a defesa estava feita. Anos depois do ataque, 
esta mesma cidade aclamava o autor da lei de 28 de Se- 
tembro de 1871, como uma glória nacional; e ainda depois, 
quando éle tornou da Europa, foi recebê-lo e conduzi-lo 
até à casa. Ao clarão de um belo sol, rubro de comoção, 
levado pelo entusiasmo público, Paranhos seguia as mes- 
mas ruas que, anos antes, voltando do Sul, pisara sozi- 
nho e condenado. 

Páginas recolhidas. — H. Garnier. 

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— 141 — 



LUIZ GUIMARÃES 

RIO DE JANEIRO — 17-n-1845 
t liISBOA — 19.V-1897 

Prosador e poeta lírico dos mais estimados, tendo vindo do 
romantismo, Luiz Caetano Pereira Guimarães Júnior foi, desde 
a publicação dos Sonetos e Rimas, um perfeito parnasiano, não 
s6 pela expressão poética, como ainda pelo esmero da forma 
e correção do verso: como Joséphin Soulary, Luiz Guimarães 
cinzela os seus sonetos com uma dexterldade maravilhosa. 

Pertenceu a v&riaB associações de letras e clônciae estrangei- 
ras e foi da Academia Brasileira.de Iietras. cadeira Pedro Lui«. 

Bibliogrrafia — Deixou, entre outros trabalhos; OoHmhos, 
História para gente alegre. Filigranas, Contos sem pretensão» 
Noturnos, Sonetos e Rimas, MonVAlverne» A. Carlos Oomes 
e outros perfis biográficos, etc. 



59. Infância de Carlos Gomes 



A infância do nosso maestro passou como a de 
Haydn, Berliqz e os outros originais espíritos, que vêm 
ao mundo, como a guarda avançada da Providência. Vol- 
tava da escola e corria a estudar a música; fechava os 
ouvidos aos gritos dos companheiros foliões, para recolher 
os murmúrios misteriosos e as santas harmonias, que a 
mão invisivel do destino pusera no seu coração. 

Saiu da escola com onze anos de idade e entregou- 
se completamente à arte, para a qual impeliam-no os 
seus desejos e a ambição de seu pai. 

Nas festas das igrejas foi onde fez-se distinta 
reputação de António Carlos, vinte léguas nos arredores. 
Circunstância notável dessa rara organização musical: até 
08 dezesseis anos possuia a mais clara e vibrante voz de 



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•—142 — 

soprano sffogato. Poder-se-ia compará-lo à Patti, no gor- 
jeio e nas volatas caprichosas! 

Nas soirées familiares reclamavam a esbelta cantora 
com o maior empenho e insistência. Como a graciosa mjo- 
dinha e a ária séria fugiam inspiradas de sua cristalina 
garganta I 

Diziam todos ao velho Gomes que mandasse o filho 
à Corte. O Rio de Janeiro é o sonho dos artistas bra- 
sileiros. Consideram isto Paris, pouco mais ou menos em' 
miniatural 

O rígido mestre campineiro, por amor ao seu Tónico 
(tratamento familiar de Carlos Gomes) e pela necessidade 
que tinha dele para os seus misteres profissipnais, re- 
pelia os conselhos e abafava a ideia de separar-se do filho. 

Aos vinte anos António Carlos compunha as mar- 
chas para a banda militar e fazia descansar o velho, gui- 
ando êle mesmo os músicos que o interpretavam. Ia, como 
se diz, a veia musical do moço em pleno mar de rosas. 
Não parava um minuto a sua inspiração indomável. Duas 
missas da escola paciniana, que êle compôs nesse tempo, 
tiveram incontestável sucesso artistico. 

— Mas mande o António para o Rio! repetiam-lhe 
os amigos. O velho movia negativamente a cabeça 9 es- 
tava tudo dito. 

O instinto, o sentimento, o valor que à verdadeira 
arte acompanham não o deixavam nunca. À mesa, nos 
passeios, à cabeceira da cama, as melodias voavam-lhe em 
torno, como enxame invisível de colibris -e rosas. Êle 
apoderava-se da pena, abria o papel de música, e com- 
punha, compunha, sem limpar o suor, que molhava-lhe 
as faces! 

Os instrumentos que aprendera enquanto fez parte 
da banda marcial, lançou-os para longe. 

— Sou compositor! gritou como César; e hei de en- 
cher mil resmas de papel por força! 

O velho Gomes, a-pesar-dos esforços que fez, não 
conseguiu do filho mais um som da rabeca ou de clari- 
nete. António Carlos concebia um pensamento qualquer e 
traduzia-o febril nas teclas do piano, companheiro fiei. 

A admiração pelos mestres ilustres da Itália avultava 
em sua alma de dia para dial Em Campinas encontrava- 



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— 143 — 

se sobre algum piano uma ou outra ária destacadas dos 
eloquentes poemas líricos, Trovador, Norma, Lúcia de 
Lamemoor, Traviata, etc. Êle devorava um por um os 
trechos sublimes com sofreguidão de um faminto insa- 
ciável ! 

Aconteceu que num belo dia — da data é que eu 
nem êle nos lembramos hoje! — tinha o maestrozinho 
quinze anos apenas: caiu-lhe nas mãos, por obra do aca- 
so, um exemplar do spartito completo do Trovador. O 
nosso herói agarrou com os dez dedos vitoriosos o te- 
souro inapreciável e às quatro horas, enquanto a famí- 
lia ia admirar os pulos e os pinotes de uma companhia 
de cavalinhos ambulante, êle, pretextando dôr de den- 
tes ou de cabeça, ficou em casa e voou ao fundo do pomar, 
com o seu livro da Trovador debaixo do braço e, ocultan- 
do-se entre as espessas sombras do arvoredo, abriu fre- 
nético a grande paríiíMra italiana. 

O que sentiria aquele espírito distinto, aquele cora- 
ção especial, perante as ideias mágicas do maestro, que 
se desenrolavam como um sonho oriental, fulgurante e 
voluptuoso? Desde o ruído metálico dos clarins, que 
abrem o primeitro ato, até a ultima nota da zíngara, nada 
escapou ao olhar terrivelmente perscrutador do menino 
artista! Êle cantava, marcava o compasso com ambas as 
mãos, sonhava, revivia, suspirava, ambicionava, vitoriava 
o maestro, como si de sua própria inteligência tivesse 
saído a obra monumental, que palpitava-lhe sobre os 
joelhos vacilantes! 

A tarde descambava aos poucos; a sombra obscurecia 
a natureza, um bando de sabiás cantava escondido nas 
moitas tranquilas. Imaginem que quadro para o pincel 
de Pedro Américo. A noite surpreendeu-o, embargan- 
do-lhe a vista ansiosa. António Carlos de um salto chegou 
à casa, sentou-se à mesa de trabalho e compôs de um 
fôlego só uma marcha sobre motivos do Trovador, de 
Verdi. A família voltava do circo e a primeira cousa que 
viu em casa o velho professor foi o seu querido António, 
cantarolando a marcha, gesticulando, movendo a cabeça, 
com as faces pálidas, por onde caíam, baga a baga, um . 
milhão de lágrimas. 

— Estás chorando? o que tens? mas o que é isso, 
menino? Êle mostrou apenas a partitura italiana e o 



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^ 144 — 

papel em que rabiscara a marcha, redobrando de pranto 
e rindo-se no meio dos soluços, que o sufocavam 1 

Santas I oh! santas lágrimas de entusiasmo! Vós fos- 
tes o batismo revelador do gônio da Joana de Flandres, 
da Noite do Castelo e do Guarani! 

Abençoados prantos, mais salutares do que os sorrisos 
da alma! Felizes os que vos podem derramar um dial 

A, Carlos Gomes. — Perfil biográfico, 1870, 



VISCONDE DE TAUNAY 

{Bio-bibliogr^fia à pág. 21) 



O Padre José Maurício 

Foi em 1811 e não em 4813, que desembarcou no 
Rio de Janeiro o famigerado Marcos Portugal, cujo nome, 
conseguindo tranpôr as raias da pátria, era com aplauso 
repetido cm toda a Itália e repercutira até na longínqua 
Rússia, onde foram, de 1793 a 1796, representadas, de- 
pois de traduzido o libreto, 3 das suas 40 óperas. 

Apenas de chegada, correu Marcos Portugal à quinta 
da Bôa Vista a beijar as mãos dá augusta família e dela 
teve tal recebimento de agrados e amabilidades, que aos 
desafetos de José Maurício pareceu irremediável a sua 
desgraça, como então se chamava o retraimento do fa- 
vor dos príncipes. 

— Há aqui um homem de côr, disse a princesa D. 
Carlota para o famoso maestro, que é notável na música. 

— Já ouvi contar, respondeu Marcos Portugal. 

— Mas quero o seu juizo . . . 

— Obedecerei a Vossa Alteza Real . . . Creio que 
domingo ... 



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— 145 — 

— Não esperarei pyor domingo. Venha cá amanhã, que 
mandarei chamar o José Maurício. Traga algum trecho 
novo para piano. . . Veja bem que o regente costuma cha- 
má-lo o novo Marcos. 

Empalideceu de despeito o autor do Demofoonte, in- 
clinou-se e despediu-se. 

No dia seguinte, com efeito, encontraram-se à tarde 
em São Cristóvão, os dois artistas, um todo cheio de 
seus triunfos e glórias, uaturalmente arrogante, cercado 
do imenso prestígio que lhe haviam dado as ovações das 
plateias de todo mundo civilizado, possuido do seu papel 
de autoridade incontrastável e árbitro supremo; outro, 
José Maurício, mulato, pobre, tímido, personalidade to- 
talmente desconhecida fora de limitado círculo, alheio à 
influição dos grandes centros da Europa, desajudado do 
exemplo e da audição dos mestres, sem nunca ter saído 
da colónia e até da cidade natal, entregue às suas próprias 
inspirações e havendo ganho o pouco que era, a poder de 
muita vocação natural, aturado estudo e penosas elocubra- 
ções, dispondo só de apoucados recursos em todos os sen- 
tidos a bem da expansão da sua índole artística. 

Dirigiram-se ôles pára os aposentos particulares da 
princesa D. Carlota; Marcos Portugal adiante com a com- 
postura de sobranceiro juiz, "tão grande a sua impostura, 
escrevia pouco tempo depois Santos Marrocos em carta 
para Lisboa, que os mesmos que o obsequiaram, contra 
ôle se levantam, natural a sua circunspeçâo, olhos car- 
regados, cortejos de superioridade, enfím aparências ri- 
dículas e de charlatão". Atrás seguia José Maurício, todo 
perturbado, fulo de comoção e tão inquieto, do que lhe 
ia suceder, que as mãos lhe tremiam, muito embora todo 
o esforço por se dominar. 

Já estavam os príncipes sentados numa sala em que 
se ostentava, não um modesto cravo, mas soberbo piano, 
de fabricação inglesa, rodeado de pessoas da corte espe- 
cialmente convidadas para aquela inesperada exibição 
dos méritos do organista da Sé antiga, com exercício tam- 
bém na capela real. 

Depois de obtida vénia, desenrolou Marcos Portugal, 
com calculada solenidade, uma peça de música que tra- 



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^ 146 — 

zia, e passou-a a José Maurício, perguntando-lhe si já 
ouvira falar naquele autor. 

Era uma das mais difíceis sonatas de Francisco José 
Haydn. 

Com voz sumida e a gaguejar, respondeu o padre 
que, há muito, conhecia grande parte do repertório do 
exímio mestre a quem dedicava culto especial. E com 
efeito, José Maurício, nas suas palestras sobre arte, co- 
locava Haydn acima de Haendel, a par de Mozart e só 
abaixo de Beethoven, que costumava denominar divino. 

Mostrou-se Marcos Portugal não pouco admirado. 
— Então por cá já sabem disso? — exclamou com en- 
fado. — Na Itália é nome quasi desconhecido. 

— Pois sr. José Maurício, — ordenou a princesa D. 
Carlota, — faça-nos ouvir tão grande novidade, 

— Nunca toquei esta sonata, — objetou o padre, — 
e Vossa Alteza. .. 

— Mas dizem que você tira música, como quem lô 
letra redonda... Sente-se, sente-se ao piano. 

Não havia recuar. 

Obedeceu o artista, e, aos primeiros acordes, fez-se 
completo silêncio. 

Começou a sonata. 

A princípio, José Maurício, si não claudicou, pelo 
menos mostrou tibieza na execução. 

A pouco e pouco, porém, foi-lhe voltando a salvadora 
calma. Concentrou-se, chamou a si toda a sua energia e, 
reagindo contra o abalo que lhe escurecia a vista e lhe 
prendia as mãos, foi levando de vencida todas as difi- 
culdades da primorosa obra, já esquecido do local em que 
se achava e de corpo e alma entregue às maravilhosas 
deduções harmónicas do insigne alemão, cujas páginas 
interpretava com expressão e facilidade cada vez mais 
acentuadas . 

Daí a instantes também pertencia ôle exclusiva- 
mente à grandeza da concepção que ia vivificando por 
modo todo seu, fazendo, dos seus dedos já firmes e de 
novo escravos submissos da inteligência e do sentimento, 
jorrar belezas sem conta, que em todos os ouvintes in- 
fundiam pasmo e indizível enleio. 



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— 147 — 

Muitos, voltados para Marcos Portugal, liam na fi- 
sionomia do orgulhoso mestre a sucessão das impressões 
que gradualmente o estavam avassalando, fisionomia no 
começo fria, desdenhosa, irónica, logo depois, atenta, sur- 
presa, e por fim cheia desse entusiasmo expansivo, que 
a alma verdadeiramente artística não pode reprimir, nem 
ocultar e irrompe com força incoercível na lealdade do 
seu arrebatamento. 

José Maurício, porém, nada via; estava todo com 
Haydn. 

No andante deu tal melancolia ao tema dominante, 
fez por tal força realçar a fase melódica, que nas com- 
posições de Haydn perpassa insistente, como indecisa 
chama por sobre torrentes de harmonias encadeadas, ar- 
rancou do piano tais vozes, tão plangentes e novas — 
as lágrimas, de que fala Mozart — que por toda a sala 
e contra as regras da etiqueta circulou um sentido bravo. 

Gontinha-se, porém, o árbitro de quem tudo dependia; 
mas quando José Maurício atacou o presto final e, sem 
discrepância de uma nota, com a nitidez de magistral in- 
terpretação, destrinçou os motivos que aos quatro e cinco 
intimamente se travam naquele estilo fugado de pasmosa 
riqueza e exuberância, Marcos Portugal não tove mais 
mão em si, pôs-se, talvez mau grado seu, de pé e. ao 
morrerem os últimos e vigorosos sons da sonata, preci- 
pitou-se para aquele que de repente se constituirá seu 
igual e, no meio de calorosos aplausos dos príncipes e 
da corte, apertou-o nos braços com imensa efusão.^ 

— Belíssimo, bradou êíe, belíssimo! E's meu irmão 
na arte; com certeza para mim serás um amigo! 

Voto sincero, partido do fundo do coração, mas que 
se não realizou senão muitos anos depois, separados aque- 
les dois robustos talentos, dignos da estima e dò respeito 
recíprocos,, por baixas intrigas e violentos ódios, de que 
foi vítima nobre e resignada o glorioso compositor bra- 
sileiro. 

Revista Brasileira, 



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^ 148 — 

CARLOS DE LAET 

(Bio-bibliografia à pág. 30) 



61. José de Anchieta 

José de Anchieta veio ao mundo, como não ignorais, 
na cidade de Laguna, antiga capital do arquipélago das 
Canárias, situada na ilha de Tenerife, onde se eleva o 
famoso pico de Teyde. Nascido no dia de S. José, aos 19 
de Mai^oo de 1534, exatafiente o ano em que D. João 
;n completava os lineamentos do seu projeto de povoa- 
mento do Brasil, segundo o plano das capitanias here- 
ditárias, Anchieta foi recebido pelos Jesuitas, na sua casa 
de Coimbra, no dia 1 de Maio de 1551. Cousa extraor- 
dinária para os nossos tempos! 

Os portugueses de então não faziam em religião, a 
menor diferença entre religiosos nacionais e estran- 
geiros I O novo filho de S. Inácio foi tão bem recebido 
como se tivera visto a primeira luz em terras de Por- 
tugal; e o provincial Simão Rodrigues não opôs o menor 
embaraço a que, de mistiu^a com os outros religiosos, 
viesse o^joven Anchieta trabalhar no Brasil, quando para 
cá foi despachado Duarte da Costa, segundo governador. 

Senhores, sei que falo a pessoas assas lidas na his- 
tória pátria para que julgue necessário, já não direi uma 
narração desenvolvida, porque esta demandaria longas ho- 
ras, mas um esboço siquer dos trabalhos de Anchieta em 
nosso país. 

Êle foi visto onde quer que o exigiam os interesses 
da religião do nascente Brasil. 

Catequizou o selvagem e, pela palavra e com o exem- 
plo, saneou a moralidade dos primeiros habitadores. 

Foi o élo de paz, foi o iris da aliança entre o co- 
lono ávido, lascivo, deshumano e o selvícõla suspeitoso, 
traiçoeiro e feroz. 

Este frade estrangeiro, tendo começado o seu serviço 
do catequese na Baía, passou-se á capitania de São Vi- 



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— 149 -^ 

cente, onde, a 25 de Janeiro de 1554 se dizia, em uma 
paupérrima e estreitíssima casinha a missa comemora- 
tiva da conversão de S. Paulo. 

Foi ôste o berço do colégio, da cidade e da capitania 
de S. Paulo, depois província, hoje Estado do mesmo 
nome, é, certamente, uma das regiões mais prósperas do , 
nosso Brasil. 

De como aí viviam Anchieta e outros frades estran- 
geiros dão testemunho as memórias coetâneas. 

Um casebre feito de paus e barro, coberto de sapé, 
servia ao mesmo tempo de escola, de enfermaria, de re- 
feitório, de cozinha e de despensa. 

Em poucas e singelas palavras, não dirigidas à pos- 
teridade, à qual, decerto, jamais imaginou que logras- 
sem chegar, Anchieta nos dá uma ideia de tamanhas pe- 
núrias. 

"Em tais estreitezas nos achamos em verdade colo- 
cados (escreveu êle) que é muitas vezes necessário aos 
irmãos ex5)licarem a lição de gramática no campo; e 
como ordinariamente o frio nos incomoda da parte de 
fora, e dentro de óasa o fumo, preferimos sofrer o in- 
cómodo do frio de fora do que o fumo de dentro". 

Que opulência, senhores a desses religiosos estran- 
geirosl E como a toleravam? Longe de com tal paupérie 
anojar-se, dela dizia Anchieta: "Não invejamos os es- 
paçosos aposentos de que em outras partes gozam os nos- 
sos irmãos, pois Nosso Senhor Jesus Cristo se colocou 
em mais estreito lugar, e dignou-se nascer em pobre man- 
gedoura, entre dois bn:^tos animais, e morrer em altís- 
sima cruz por nós**. (Carta inserta nos ** Anais da Biblio- 
teca Nacional do Rio de Janeiro". Vol. 1). 

Acrescia à pobreza o excesso de trabalho: "Muitas 
vezes, contra o missionário, — para acudir a batizar ou 
confessar um escravo de um português, se andam seis ou 
sete léguas a pé, e às vezes sem comer..." (Informações 
e fragmentos históricos do Padre José Anchieta, Rio, 
1886, pág. 20). 

Não há quem não tenha ouvido falar na confederação 
dos tamoios, fato importantíssimo da nossa quadra co- 
lonial, e do qual fez uma epopeia o génio de Gonçalves 
de Magalhães, visconde de Araguaia. Aos franceses que 



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— 150 — 

tentavam estabelecer-se nesta nossa baía de Guanabara, 
coligaram-sé os Tamoios. Conciliados pela habilidade do 
recente invasor, os indígenas constituíam um perigo for- 
midável para os portugueses. 

De uma e de outra parte faziam-se temerosos aprestos. 

O sangue humano ia correr a jorros. Ora, foi nestas 
conjunturas que o frade estrangeiro José de Anchieta se 
ofereceu para desarmar com a palavra o índio ofendido 
e vingativo. 

Southey, o historiador insuspeito, porque era protes- 
tante, opina que "de mais perigosa embaixada nunca nin- 
guém se encarregara". 

Anchieta parte em um navio do genovês Francisco 
Adorno. Veleja para Ubatuba que naquele tempo se dizia 
Iperoig. Quando o barco se aproximava da costa, estava 
ela coalhada de gente feroz embravecida... Parecia , um 
meeting! 

Tomam os índios canoas e dispõem-se a agredir o 
navio de Anchieta. 

O frade estrangeiro aparta-se dos seus e apresenta-se 
sozinho . 

Gomo arma única eleva bem alto o Crucifixo, a ima- 
gem do sacrifício resignado, ensinando aos homens todas 
as resignações no sacrifício. 

Diante desse homem, tão sereno em sua fraqueza cor- 
pórea, hesitam as cóleras mais impetuosas. Consente-se 
em ouvi-lo, o que já era meia vitória para a causa da 
bôa razão. Ouvem-no. Celebra-se o armistício. Confiado 
na lealdade daqueles filhos da natureza, o padre deixa-se 
levar por eles, e entre eles permanece como refém. Ta- 
manha coragem subjuga, conquista a admiração dos 
bravos; tamanha doçura angaria a afeição dos mais des- 
confiados. 

Celebra-se finalmente o pacto . . . Estava frustada a 
maquinação dos novos invasores, estava salva a incipiente 
America Portuguesa. Para tal fim, em nossos dias ter- 
se-ia mandado um diplomata, ou, peor ainda, um general 
com seus soldados — e o sangue houvera corrido. 

Então mandou-se um religioso e tudo se pacificou. 
Confessai senhores, que este frade estrangeiro não pouco 
fez pela causa de Portugal e do Brasil! 



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^^nap^n^ 



— 151 — 

Não foi tudo. Quem hoje passa pela praia de Santa 
Luzia vê um edifício notável, o Hospital da Santa Casa 
da Misericórdia. Quais os primórdios da instituição que 
boje ali tem o seu principal estabelecimento, nos refere, 
no seu Santuário Mariano, Frei Agostinho de Santa Maria. 

São poucas linhas, permiti que vo-las cite: — "Pelos 
anos de 1582 (diz o cronista) se entende, teve princí- 
pio a Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, ou 
poucos anos antes; porque neste ano chegou àquele por- 
to uma armada de Castela, de que era general Diogo Flo- 
res Baldez. 

Com os temporais padeceu esta armada muito, porque 
lhe adoeceu muita gente. 

Achava-se naquela cidade o venerável Padre José de 
Anchieta, visitando o colégio que ali teve a companhia, 
fundado no ano de 1567. E como o venerável Padre 
José de Anchieta era varão santo, levado da caridade, to- 
mou muito por sua conta a cura e o remédio de todos 
aqueles enfermos, dando traça como se lhes assinasse 
uma casa, em que pudessem ser curados todos e assistidos 
— entendendo muitos que então tivera princípio a Casa 
da Santa Misericórdia, que hoje é nobilíssima". (Op. 
cit., vol. X) . 

. Em Iriritiba, que depois foi Benevente e hoje tem o 
nome de Anchieta, faleceu este religioso estrangeiro a 9 
de Junho de 1597. 



ARARIPE JÚNIOR 

CEARA» — FORTALEZA — 27-VI-1848 
f RIO 1>E JANEIRO — 29-X-1911 

Jurisconsulto e escritor, Tristão de Alencar Araripe Júnior 
nasceu a 27 de Junho de 1848. Rom-ãncista no começo da sua 
carreira literária dedicou-se Araripe Júnior nos últimos tem- 
pos, com alta competência ô. análise literária e á crítica. Ba- 
charelou-se em* direito pela faculdade do Recife e exerceu vários 
câ-rgos públicos, por último o de Consultor Geral da República. O 
Uustre cearence foi sócio do Instituto Histórico e Geográfico 
Brasileiro, do Instituto Histórico do Ceará, da American Academy 
of Politicai and Social Science, de Filadélfia e da Academia Bra- 



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— 152 — 

sileira de Letras, de que foi um dos fundadores — cadeira Gre- 
gório de Matos. 

Bibliografia — Dentre suas numerosas obras destacamos: 
Contos Brasileiros, O ninho do teija-flor, Jadna, a marahá (cró- 
nica dos tempos coloniais), O reino encantado, José de Alencar, 
Dirceu, Raul Pompeia, SUvio Roméro polemista, Gregório de 
Matos, etc. 



62. Machado de Assiz 

Tipo acabado do homem de letras, beneditino da 
arte, Machado de Assiz constitue no Brasil, um dos raros 
exemplos de poeta e romancista, que, resistindo ao meio 
e vencendo as hostilidades do próprio temperamento, fiel 
à vocação, conseguiu completar a sua carreira. Filho das 
próprias obras, êle nãp deve o que é, nem o nome que 
tem, senão ao trabalho e a uma contínua preocupação 
de cultura literária. 

Nascido aos 21 de Julho de 1839, nesta capital, do 
sonsórcio de Francisco José de Assiz e Maria Leopoldina 
Machado de Assiz, o autor do . Quincas Borba, filho de 
operário, foi destinado em princípio ao comércio, onde 
apenas permaneceu três dias como caixeiro de uma loja 
de papel . Dedicando-se logo depois à arte tipográfica, 
parece que aí as suas aptidões naturais se desenvolve- 
ram rapidamente, já pelo contacto com a imprensa, esse 
poderoso instrumento de irradição literária, já pela apro- 
ximação dos jornalistas que naquela época brilhavam no 
mundo político ou se ensaiavam na prosa ou na poesia. 

Afirma-se que nesta situação, animado por um grupo 
de rapazes, pela maior parte mortos, entre eles Casimiro 
de Abreu, Macedo Júnior, Caetano Filgueiras e Gonçal- 
ves Braga, começou a versejar, e em 1860 entrou para 
o Diário do Rio de Janeiro, a convite de Quintino Bo- 
caiuva, o qual fazia parte da respectiva redação, ao lado 
de Henrique César Muzzio, um prosador de muito ta- 
lento, e de Manuel António de Almeida, autor das Memó- 
rias de um sargento de Milícias, o romancista de costu- 
mes, talvez, de mais talento que tenha nascido entre nós. 

Em 1867 transferiram-no para o Diário Oficial, na 
qualidade de ajudante do Diretor, e aí o encontramos 



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— 153 -~ 

ainda em 31 de Dezembro de 1873, época em que foi 
nomeado primeiro oficial da . Secretaria da Agricultura, 
Comércio e Obras Públicas, por ocasião de reformar- 
se essa repartição, na qual, conservando-se até hoje, fo- 
ram os seus serviços galardoados com a promoção, em 7 
de Dezembro de 1876, a chefe de seção, e em 30 de Mar- 
ço de 1889, a Diretor da Diretor ia do Comércio. 

Eis, em rápidos traços, a vida oficial do poeta, que, 
ao primeiro lance d'olh08, se nos afigura destituída de 
acidentes, sem lutas, e semelhante, na tranquilidade, h 
daquelas matronas romanas, em cujas sepulturas os coe- 
vos epigrafaram o célebre dístico: foi honesta e fiou 
lã, O segredo, porém, desta tranquilidade observada na 
carreira burocrática de Machado de Assiz, encontra-se na 
correção do fuhciohário e no mais decidido horror à vida 
política ativa, cortezã desbragada, que às letras brasilei- 
ras tem arrebatado os seus mais belos talentos. 

Não tendo a política conseguido seduzi-lo, volveu-se 
o seu espírito inteiro para a arte e para o belo. Nas suas 
produções, nos seus livros, pois, é que se poderá encon- 
trar a sua verdadeira história, história das suas lutas pelo 
ideal, que não devem ter sido pequenas,, atenta a circuns- 
tância de que o poeta tem assistido ao advento de três 
revoluções ou escolas literárias. 

Da Revista Brasileira, 



JOAQUIM NABUCO 

(BiO'hihliografia à pag, 28) 



63. Zacarias e Paraná 

Zacarias era um espírito de combate indiferente a 
ideias, exceto os dogmas e preceitos da Igreja, da qual 
mais tarde se fará no Senado; o atleta; ríspido e escarne- 
cedor no debate, não poupando a menor claudicação, mes- 
mo do amigo e do partidário, fossem elas em algum artigo 



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— 154 — 

da Constituição ou na pronúncia de alguma língua es- 
trangeira. Metódico em toda a sua vida, minucioso como 
um hurenucrata em cada traço de pena, chamando tudo 
e todos a contas com a férula do pedagogo constitucional, 
êle foi o mais implacável e também o mais autorizado 
censor que a nossa tribuna parlamentar conheceu. Sua 
existência política pode ser comparada â do religioso a 
quem são vedadas as amizades, pessoais e que se deve 
dedicar todo à sua Ordem e obedecer só à sua regra. O par- 
tido era a sua família espiritual; a ela> êle sacrificava o 
coração, a simpatia, as inclinações próprias; êle podia 
dizer da política o que disse o Padre Fàber da vida es- 
piritual: "que o mais repulsivo dos seus vícios era a 
sentimentalidade". Não havia nele traço de sentimenta- 
lismo; nenhuma afeição, nenhuma fraqueza, nenhuma 
condescendência íntima projetavam sua sombra sobre 
seus atos, as palavras, os pensamentos, mesmo do polí- 
tico. A sua posição lembrava um navio de guerra, com os 
portalós fechados, o convés limpo, os fogos acesos, a 
equipagem a postos, solitário, inabordável, pronto para 
a ação. A frieza do seu modo conservava os seus parti- 
dários sempre a distância; bem poucos foram os que, 
chegados ao pináculo, êle tratou intelectualmente como 
seus iguais. O estadista que êle mais admirava era Pa- 
raná e com Paraná tinha algumas semelhanças: o tem- 
peramento, a natureza, a formação, tudo neles fora di- 
verso; ao contrário de Zacarias, Paraná era um homem 
de dedicações e amizades pessoais extremas, e que se 
entregava todo aos que lhe inspiravam confiança, arre- 
batado e violento, mas, igualmente generoso, franco e 
aberto. Zacarias, pelo contrário, era o que já vimos, frio, 
marmóreo, inflexível. Chefe de partido, êle o foi, mas 
não como Paraná nem à moda de Paraná; intimamente 
entre êle e os seus partidários a distância era grande, 
porque a incomunicabilidade era perfeita. Paraná era 
pessoalmente uma força de atração: Zacarias, uma for- 
ça de repulsão: a eletricidade do primeiro era positi- 
va, a do segundo negativa. Zacarias tinha, porém, de 
Paraná a sobranceria, a marca do domínio, o mesmo modo 
desdenhoso, expedito, quasi comercial, de tratar os as- 



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— 155 — 

pirantes, os pretendentes, os ambiciosos, por último a in- 
tuição do valor dos homehs e dos talentos, não só do 
valor venal, mas do valor real, a adivinhação da futura 
trajetória, como o mostrou na formação do seu último 
gabinete. Foi esse golpe de vista que lhe inspirou sua 
aliança com Silveira Lobo, a qual lhe deu na deputação 
mineira como que a sua base permanente, a garantia 
contra o seu aliado Teófilo. A separação dos dois era 
inevitável, como a dos grupos que eles representavam. 
Zacarias era, entretanto, uma menor figura do que Pa- 
raná, porque este tinha a primeira qualidade de estadista 
que o outro não possuia: a impersonalidade. A atitude 
de Zacarias votando no Senado contra a lei de 28 de Se- 
tembro, que, como veremos, se pode dizer um projeto do 
seu próprio ministério, basta para mostrar que êle deixa- 
va o estadista, que deve ser o intérprete inamolgável do 
interesse nacional, ceder a palavra e o voto ao chefe de 
partido, mesmo nos maiores episódios da história na- 
cional. Mais do que Paraná, êle tinha, porém, a vasti- 
dão, a agudeza, as aptidões diversas, a intensa cultura da 
inteligência, cuja irradiação fria mostrava não haver 
nela nenhum foco de imaginação ou de sentimento. Mais 
ainda do que Paraná êle tinha também, é forçoso con- 
fessar, a força do isolamento em que se mantinha; a sua 
extranheza a negócios, interesses e influências que cer- 
cam sempre a política; a espinhosidade que o revestia, 
força essa que o habilitou a ser o censor, à moda romana, 
do nosso meio político, dos seus menores erros, desvios e 
azares. A verdade, para ser completo este traço de Za- 
carias, é que, aos poucos que lhe decifraram o enigma, 
ou para quem, a seu modo, êle se abriu e se mostrou tal 
como era em política, êle inspirou uma admiração tanto 
mais valiosa como testemunho histórico quanto era de- 
sinteressado. 

XJm Estadista do Império. 



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156 — 



RUI BARBOSA 



S. SAIiVADOR — BAÍA — 5.XI.1840 

t PETRóPOLlB — l-in.1928 

i 

Publicista, parlamentar, Jurisconsulto, Rui Barbosa era 
reputado, dentro e fora do^país, uma das mais pujantes menta- 
lidades da América hodierna. No meio intelectual brasileiro íoi, 
sem contestação, o primua inter pares. Como escritor Rui 
Barbosa é o mestre consagrado: corre to como Vieira, melo- 
dioso como Castilho; na riqueza e variedade do vocabulário e 
propriedade dop termos só o podemos comparar a Camilo. 

Foi presidente da Academia Brasileira de Letras — onde 
ocupava a cadeira Evaristo da Veigra. 

Bibliogrrafia — Deixou inúmeros trabalhos sobre questões 
de direito, opúsculos sobre política, finanças, jurisprudência, 
além de preciosos discursos, pareceres, etc. 

Citemos alguns: Alexandre Herculano, Castro Alves, Refor- 
ma do ensino secundário e superior, O marquês de Pom,'bah Re- 
forma do ensino primário, José Bonifácio (o moço), Finanças 
€ politica da RepúWoa, Cartas de Inglaterra, Machado de Assisa, 
Osvaldo Cruz, etc. . 



64. Osvaldo Cruz 



Quaiido se lhe entregou a missão de livrar e desinfetar 
esta e outras cidades ou regiões brasileiras da insa- 
lubridade, que as afligia; quando, especialmente, o go- 
verno lhe cometeu a direção da saúde pública neste dis- 
trito, a inveja zânaga e maninha, a que não minguam 
nunca objeções, para excluir o verdadeiro merecimento, 
o averbara de não possuir atributos de administrador. 
Desses predicados só o da experiência não teria, então, o 
homem de atividade, energia e método, que, ao empos- 



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— 157 — 

sar-se naquele cargo, adotou por lema dos seus atos 
a divisa de "trabalho e justiça", as duas condições má- 
gicas, <3e que depende, acima de tudo, a sorte das admi- 
nistrações . 

Mas a experiência, que lhe escasseava, supriu-lha, 
como que tresdobrada, o génio, o bom senso, a vontade 
inteligente do bem, a fé, o entusiasmo, que transporta as 
almas, que as inspira de clarões inesperados na luta com 
as dificuldades; e das imprudências, dos repentes, das 
invenções desse inexperiente, a cuja ação direta nada 
escapava, cujo tino criador acudia a tudo, sob cuja pres- 
são tudo se eletrizava, tudo se harmonizava, tudo vibra- 
va, resultou a mais completa, a mais extraordinária, a 
mais criadora, a mais exemplar das administrações, a 
que o Brasil tem assistido. 

O homem que a exerceu, terminou-a coroado pelo 
consento geral dos sábios como "um dos grandes ben- 
feitores da humanidade". E' a personalidade, que "re- 
presenta o Brasil moderno saneado". Dele se disse que, 
"honrando a sua pátria com a extinção da febre ama- 
rela, honrou o continente americano". Dele se escreveu 
que, "com só tentar imitá-lo, se nos dignifica e enche a 
vida". Por tê-lo produzido, ainda há pouco, num país 
estrangeiro, se proclamava o Brasil uma "nação feliz". 

O mundo científico não o conhecia: foi Osvaldo 
Cruz quem o revelou a esse mundo; e entre o Brasil 
pesteado, que êle encontrou, o o Brasil desinfetado, que 
nos veio a legar, entre esses dois Brasis, tão diversos um 
do outro, essa administração mal agoirada pela eterna 
tacanharia dos práticos se levanta, abençoada hoje por 
todos, sem mancha, sem declínio, sem medo a rivais, 
como uma exceção venturosa, uma antecipação do fu- 
turo, um oásis solitário no seu meio. 

Que seria de nós hoje, se a Providência não nô-la 
houvesse permitido? Que seria de nós, se...? Suponha- 
mos que Deus não houvesse criado o sol . . . A terra seria 
deserta, núa, tenebrosa, e os mais planetas, que, com ela, 
estendem as suas órbitas derredor daquele disco abra- 
sado, reverberando-lhe os raios luminosos, vagariam, som- 



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— 158 — 

bras errantes pelo espaço à ténue claridade das estrelas. 
Para o nosso mundo toda a fecundidade toda a beleza, 
toda a alegria vem do sol. Grande criador, porém, o sol é, 
ao mesmo tempo, "o grande putrefator". Ao calor, ema- 
nação dos seus raios, nascem as plantas, nascem os ani- 
mais, nasce o homem, surge, respira e se alimenta a vida. 
Mas, também, ao mesmo calor que dele deriva, se desen- 
volvem todos os processos da morte: as fermentações, as 
decomposições, as putrescências . Ao sol riem os jardins, e 
abrem as flores. Ao sol esfergulham as vermineiras, e se 
decompõem os monturos. Aquece-nos o sangue; mas, ao 
mesmo passo, aviventa os germens, que nô-lo destroem. 
Entre essas duas funções a ignorância não sabe dis- 
cernir, e aproveitar. A ciência as discrimina e utiliza. 
Com a ignorância o sol torra, derranca, e mata; com a 
ciência o sol fecunda, preserva e cria. Se Deus nos não 
suscitasse a missão de Osvaldo Cruz, o Brasil teria o 
mesmo sol, com a mesma exuberância de maravilhas, mas 
o sol com a peste, com impaludismo, com a febre ama- 
rela, com a doença do barbeiro, com a úlcera do Bauru, 
com todas essas desgraças, até então irremediáveis, que 
esse homem, superior ao seu tempo e ao seu país, deixou 
extintas ou em via de se extinguirem. Dar o sol, e não 
dar a ciência, é deixar apenas meio sol, ou um sol ma- 
logrado: o sol com a doença, a esterilidade e o luto. Deus 
nos havia dadivado os benefícios do sol tropical. Com 
Osvaldo Cruz nos acrescentou os da ciência, que o cor- 
rige. Podemo-nos congratular, agora, de termos o sol es- 
treme dos seus descontos, o sol sem as suas malignida- 
des, o bem logrado sol dos países saneados. 



Osvaldo Cruz — A obra científica do glorioso 
criador da medicina experimental no Bra- 
sil, apreciada pelo Conselheiro Rui Barbosa, 
na sessão cívica de 28 de Maio de 1917, no 
Teatro Municipal {Págs, 38-39). 



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~ 159 — 



SÍLVIO HOMERO 



SERGIPE — liAGARTO — 20-IV-1S51 
t BIO DE JANEIRO — 18-Vn-1914 

Crítico, historiógrafo, poeta e filósofo — Silvio Romero ê 
principalmente o historiador da nossa literatura, que êle estu- 
dou sob todos os aspectos e ainda o investigador das tradições: 
o folclore, os cantos e os contos populares. O escritor sergipano 
diplomou-se em direito, no Recife, em 1863. 

Vindo para o Rio de Janeiro, aí exerceu a advocacia. 
Conquistou depois em concurso o lugar de lente de filosofia do 
colégio Pedro II. Foi professor de direito. 

Pertenceu ao Instituto Histórico e à Academia Brasileira de 
Letras, cadeira Hipólito Costa. 

Suas obras principais são: A poesia contemporânea. Etno- 
logia selvagem, A filosofia no Brasil, Cantos do fim do séciUo, 
Contos popuUures do Brasil, Estudos de literatura contemporâ- 
nea. Estudos sôhre a poesia popular no Brasil, Compêndio de 
história da literatura bra^leira (de colaboração com João Ri- 
beiro), etc. 



65. Evaristo da Veiga 



No meio dos homens notáveis do primeiro reinado 
e da regência, entre os que figuram distintamente e no- 
tavelmente influíram, êle teve certas notas que foram só 
dele: era o mais novo, o que não tinha tradições, o que 
não possuía títulos académicos, o que apareceu mais 
inesperada e mais rapidamente, o que morreu mais moço, 
mais a tempo e mais a jeito; foi o que nunca saiu do 
Brasil. Estas circunstâncias têm mais valor do que à pri- 



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— 160 - 

meira vista pode parecer. Para bem compreendê-lo basta 
comparar Evaristo aos seus amigos ou adversários. Os 
Andradas, os Silvas Lisboas, os Ferreiras Franças, os 
Vilelas Barbosas, ok Carneiros de Campos e outros na 
política do tempo entraram levados por prestígios de fa- 
mília, entraram como influências tradicionais e Ipcais, en- 
traram quasi como nobres, entraram quasi par droit de 
naissance, e su^ -ideias representavam o doutrinarismo 
académico, letrado abstrato da Universidade de Coimbra. 
Êle, não; ôle saía sem títulos nenhuns do fundo de uma 
loja de livros; representava o individualismo persistente 
e honesto, pertinace e calmo. Bem como na ordem lite- 
rária era preciso que indivíduos saídos do povo e inspi- 
rados no seu sentir, levantassem o brado contra o acade- 
micismo clássico, assim na esfera social era mister que 
um homem saído do povo, em nome da simples justiça e 
bom senso do mesmo povo, se fizesse adorado deste, 
desse batalha aos poderosos do dia, e desmantelasse as 
malhas do velho classismo politico. 

Este é o significado teórico da ação social e polí- 
tica de Evaristo, e tanto basta para dar-lhe importância 
imensa. Há uma outra consideração a juntar, que vem 
completar esta nota: a arma de que se serviu e o rumo que 
deu à sua doutrinação foram as mais poderosas e acer- 
tadas para o tempo; a arma foi o jornal, o rumo o libe- 
ralismo da Carta. Desfarte, êle é um dos mais elevados 
representantes do jornalismo no Brasil, é mesmo o mais 
distinto como força, atividade e coerência, depois de 
Hipólito; e é/um dos mestres do nosso constitucionalis- 
mo liberal. Hipólito foi o propagandista (la independên- 
cia, Evaristo foi o doutrinador da revolução de 31 e das 
reformas constitucionais de 34; foi o publicista da Regên- 
cia. Sua biografia não deve ser perdida de vista para 
ser ôle bem compreendido. Nascendo no fim do últi- 
mo ano do século passado, quando os Andradas já eram 
homens feitos, passou rapidamente pela vida e morreu 
antes deles. Quando os homens da revolução emancipa- 
dora do Brasil contribuíam para a obra comum por seus 
feitos, êle, rapaz de vinte anos, contribuía com versos, 
oferecia canções. O Hino da Independência é uma delas. 



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— 161 — 

De repente, nos últimos dias de 1827, o obscuro li- 
vreiro atira aos quatro ventos o seu jornal, a sua Aurora 
Fluminense. Era a primeira manifestação séria do jor- 
nalismo indígena. O Correio Brasiliense seria a primeira, 
si não fora publicado no estrangeiro. A folha fluminense, 
em todo caso, seguia a larga intuição de Hipólito. 

O jornalismo era ainda então planta quasi exótica 
entre nós. Durante os três séculos coloniais não se pu- 
blicara no Brasil um só jornal ou periódico, nem mesmo 
um livro, um folheto qualquer. Não havia tipografias. 
As próprias pubjicações holandesas do tempo, datadas do 
Recife, eram feitas na Europa. 

Com a vinda de D. João VI é que se estabeleceu a 
Imprensa Régia e foram aparecendo outras oficinas ti- 
pográficas na corte e nas províncias. Datam daí os pri- 
meiros passos do jornalismo no Brasil. Nos dias da In- 
dependência e do primeiro imperador tomou êle certo 
incremento. 

Eram, porém, tempos de grandíssima agitação, os 
partidos agrediam-se terrivelmente, e a linguagem jorna- 
lística era a linguagem grosseira de espíritos bulhentos, 
que se insultavam. Nada de doutrina e de apreciação cal- 
ma de princípios. 

Evaristo seguiu caminho diverso; seu jornal era plá- 
cido, delicado, mas correto e firme, como o seu caráter. 

Durante os últimos três anos e meio do reinado de 
Pedro I, a Aurora fez-lhe assídua oposição; o príncipe 
descia em popularidade e o jornalista subia. Começou 
a ser procurado pelos liberais do tempo e começou a in- 
fluir pelo modo original da conversação, das palestras. 
Há espíritos estimulantes e comunicativos que distri- 
buem ideias e entusiasmos com os outros. Espíritos assim 
influem, às vezes, mais por seu contato pessoal do que 
por seus escritos. ' 

História da Literatura Braaileira, — Tomo I. 
B. L. Garnier — 1888. 



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— 162 — 



JOSÉ DO PATROCÍNIO 

CAMPOS (ESTAJK) DO BIO) — 8-X.1854 
t RIO DE JANEIRO — 29-1-1905 

José Carlos do Patrocínio, cujo nome está, ligado para senrif- 
pre à história das nossas conquistas liberais, como a abolição 
da escravidão, e a implantação da República, notabilizou-se como 
publicista e como orador. 

Agitador político, impetuoso, violento, às vezes, houve quem 
o cognominasse o Rochefort brasileiro. 

Nos últimos tempos de sua vida. Patrocínio dedlcou-se com 
ardor e entusiasmo ao problema da navegação aérea, tendo che- 
gado a construir o aeróstato 8. Cruz. 

Patrocínio se achava em Lisboa, quando se deu a desgraça 
da morte desastrosa do malogrado Silva Jardim*, e escreveu 
então no Jornal "O Século*', daquela cidade o belo artigo que 
se lê em seguida. 

, Usando de uma frase dele a propósito de Silva Jardim, po- 
dengos dizer que Patrocínio foi o operário de ai mesmo . 

Foi da Academia Brasileira, cadeira Joaquim Serra. 

Bibliografia — Deixou: Mota Coqueiro ou A pena de morte. 
Os retirantes, Pedro Espanhol (romances) ; Conferência aboli- 
cionista. Manifesto da Confederação abolicionista, etc. 



66. Silva Jardim 

Ghamava-se António da Silva Jardim. Magro, esta- 
tura de Thiers, pálido de argila, barba inteira, rente, pon- 
teaguda, vestindo corretamente, parecia, à primeira vista, 
uma dessas nulidades elegantes, a que a natureza, sa- 
tisfeita por afeminar-lhes o aspecto, regateia lugar no 
espaço. Bastava, porém, reparar na flexão das suas so- 
brancelhas espessas, na expressão imperativa do seu olhar, 
para descobrir dentro dsesa míngua orgânica um homem, 
um caráter em carne viva. 

A fortima nunca lhe sorriu: foi o operário de si 
mesmo. Nascido na antiga província, hoje Estado do Rio, 
veio adolescente para a capital brasileira e entrou pela 



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— 163 — 

secretaria de Instrução Pública, na época dos exames, 
lembrando um pássaro selvagem, a voejar a esmo numa 
tonteira de luz. As suas notas foram verdadeira conquista, 
tamanho era o seu atrevimento no ataque ao ensino 
oficial. 

Feitos os preparatórios, entrou na Faculdade de Di- 
reito, em S. Paulo, como um invasor, quebrando os ve- 
lhos moldes académicos, apavorando os mochos do clas- 
sicismo com o clarão aurorial da filosofia positiva. Fi- 
cou algum tempo só, águia pairando no isolamento da 
sua excentridade, mas, pouco a pouco, outros talentos, 
outras energias se lhe congregaram, e Silva Jardim tor- 
nou-se um centro de prestígio académico. Quando se 
doutorou, já o seu nome era repetido pela estima pública. 

Parece que sentiu então necessidade de concentrar todo 
o ardor juvenil para amadurecer o espírita. Em vez de 
entregar-se logo à política, recolheu-se ao magistério: 
ensinou história na Escola Normal, convertendo os discí- 
pulos em outros tantos amigos e fazendo-se respeitar como 
professor modelo. A cadeira oficial era, porém, uma 
prisão, e Silva Jardim precisava de toda a sua liberdade; 
a sua palavra, como a de Jesus, aspirava a um dorso de 
montanha, uma tribuna para a multidão. Demitiu-se, 
pois, e foi armar tenda em Santos, berço do patriarca da 
independência brasileira, cidade emancipada de todos os 
preconceitos e de todos os servilismos pela vida comer- 
cial. Foi aí que o ouvi pela primeira vez, à noite, ao 
clarão de archotes, no momento em que se recolhia uma 
passeata cívica de abolicionistas. A sua voz atenorada, 
monótona, produziu-me a impressão de uma labareda 
imóvel, aquecendo forte, mesmo à distância, mas de onde 
não escapava uma fagulha para atear incêndio. 

Silva Jardim era então positivista ortodoxo e' evan- 
gelizava segundo a sua igreja. O seu discurso não tinha 
uma aresta; era uma onda mansa que espumava, de quan- 
do em quando, sem estrépido, uma aspiração popular. 
Confesso que foi grande a minha decepção: contava com 
um agitador e deparava com um pedagogo. 

PeMemo-nos de vista até Maio de 1888, data em que 
o partido republicano de S. Paulo deliberou entrar em 



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— 164 — 

fase revolucionária, declarando guerra sem tréguas ao 
terceiro reinado. Silva Jardim começou então a ser o pri^ 
mus inter pares. 

Na reunião de 24 de Maio de 1888, convocada pelos 
republicanos paulistas para formar a caixa revolucionária, 
capitalistas presentes assinaram quantias relativamente 
ridículas. Silva Jardim era pobre, tinha já cargo de fa- 
mília, porque aliara-se a uma das ilustres descendentes 
de José Bonifácio, mas, para dar exemplo de dedicação 
âs suas ideias, comprometeu-se por soma maior. Va- 
leu alguma cousa o estímulo, mas, a-pesar-disto, êle veri- 
ficou mais tarde que não era possível confiar nesse re- 
curso, como o principal instrumento de êxito revolu- 
cionário. Deliberou, pois, agir por si só, sem pedir con- 
selhos, sem receber ordens dos chefes. Querendo revo- 
lucionar, começou revolucionando-se . Agora já não era 
o orador calmo e frio, o filósofo, enfim, era o propa- 
gandista impetuoso, violento e sanguinário. Os seus dis- 
cursos estrelejavam chamas, como um ferro em tempe- 
ratura branca. Parecia uma maré de fogo, avançando 
contra o trono. Tendo começado o incêndio em Santos, 
estendeu-se à província de S. Paulo inteira, à capital 
do império, às províncias do Rio e Minas Gerais. Falava 
em três e quatro cidades no mesmo dia, com o relógio 
na mão para obedecer ao horário das estradas de ferro. 
Após o seu discurso, aparecia no lugar um centro re- 
publicano . 

O império, mole e bonancheirão, encolheu, a princí- 
pio, os ombros: Que falasse; outros haviam feito o mes- 
mo; porém, a inércia popular, a mór parte das vezes, e 
outras o couce d'armas do exército, tinham bastado para 
impedir que a semente republicana germinasse. 

A propaganda de Silva Jardim tomou, entretanto, ta- 
manhas proporções, era tão evidente a sua eficácia, os 
seus resultados eram tão imediatos, que a monarquia 
tomou a deliberação de resistir-lhe. 

Cada vez que o orador republicano assomava à tri- 
buna, corria iminente perigo de vida; pedradas, tiros de 
revólver, tumultos, lutas a mão armada interrompiam- 



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~ 165 — 

lhe o discurso, e ôle, calmo, de pé na tribuna, com os bra- 
ços cruzados, o sorriso nos lábios, esperava que a tor- 
menta passasse e continuava. Quando era de todo impos- 
sivel dominar o tumulto, e se dissolvia a reunião, Silva 
Jardim se retirava, arriscando tanto a vida como o njais 
humilde dos seus correligionários. 

K muito conhecido o episódio da viagem do conde 
d'Eu, esposo da herdeira da coroa, às províncias do 
Norte. Como sua Alteza se embarcasse a bordo do pa- 
quete Alagoas, o mesmo que devia transportar para a 
Europa a família imperial banida, Silva Jardim tomou 
passagem no mesmo paquete. A viagem principesca tinha 
por fim avigorar no Norte, abolicionista, a fé monár- 
quica, que a lei de 13 de Maio havia abalado no Sul, até 
os seus alicerces. 

O tribuno republicano apercebeu-se do manejo e re- 
solveu contrapor, com risco de vida, uma corrente repu- 
blicana à forte corrente monárquica, que ia inundar o 
Norte. 

,Só uma província, a da Baía, pode ouvir Silva 
' Jardim, mas aí mesmo, atacado a mão armada desde o 
momento do desembarque e obrigados os republicanos a 
travar luta, de que resultaram ferimentos e mortes, força 
foi interomper essa viagem em Pernambuco. Os repu- 
blicanos dessa província, ainda que se sentissem com força 
para garantir a palavra a Silva Jardim, considerando que 
se daria fatalmente grande efusão de sangue, de que re- 
sultaria uma revolução, que, sendo parcial, não aprovei- 
tava imediatamente à causa republicana em toda a pá- 
tria, conseguiram o silêncio do tribuno, publicando um 
protesto coletivo. 

Avalie-se, porém, o efeito desse golpe de audácia 
temerária, pela declaração que o príncipe itinerante ise 
viu obrigado a fazer pública e solenemente. Sua Alteza, 
em nome da família imperial, declarou que a monarquia 
não pretendia resistir à opinião pública; ao contrário, com- 
prometia-se a submeter-se ao pronunciamento dela, feito 
pelos meios regulares. 

Dois ou três meses depois desse incidente, a monar- 
quia era deposta, em 15 de Novembro de 1889. 



Antologia Brasileira 



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— 166 — 

Para os que acreditam, na Europa, que o advento da 
República foi exclusivamente devido ao pronunciamento 
militar desse dia, sirva este rápido bosquejo da vida de 
Silva Jardim para despersuadi-los. A República estava 
feita nas conciências, precisava apenas de ser consagrada 
na lei. 

Proclamada a República, a figura de Silva Jardim 
ganha ainda maiores proporções na sua história. O futuro 
historiador, quando tiver de julgar as alianças partidá- 
rias que o grande batalhador celebrou para dispor de um 
partido, poderá ser rigoroso, mas, ao ver tanto devota- 
mento esquecido, tanto sacrifício mal aquinhoado, e ao 
mesmo tempo, tanta altivez da parte da vitima, há de 
lembrar-se destas palavras de Guizot: "Duas cousas tão 
grandes quanto difíceis são necessárias à glória de um 
homem: suportar o infortúnio, resignando-se com fir- 
meza e crer no bem e confiar nele com perseverança". 

A República, a que Silva Jardim sacrificara a sua 
vida, não teve um cargo de confiança para dar-lhe. Para 
não deixar trair-se a sua justa queixa, o sacrificado vol- 
tou costa? à pátria e veio para a Europa pedir ao estudo 
maior força de resignação e de patriotismo. 

Morreu tão tragicamente como tinha vivido e ainda 
no último momento afirmou a sua extraordinária força 
de vontade, muitas vezes temerária. 

Queria ver de perto o Vesúvio. Estava em erupção; 
tanto 'melhor, assim era mais belo. Em vão o seu compa- 
nheiro e amigo reclama; em vão o guia aconselha; em 
vão o solo, queimando já as plantas dos caminheiros, lhe 
faz muda advertência. O homem das grandes audácias ca- 
minha sempre, até que uma garganta, subitamente aberta, 
vomitando fumo, engole-o. Ainda neste momento supre- 
mo, o herói não se trai por um grito, limita-se a levar 
as mãos à cabeça, como único testemunho da sua agonia 
silenciosa. 

Bela sepultura, o vulcão; extraordinário destino do 
grande Brasileiro: até para morrer converteu-se em lava. 

D'0 Século, de Lisboa, 



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— 167 — 

AFONSO CELSO 

{Bio-bibliografia à pág. 48) 



67. Joaquim Nabuco 



A figura de Nabuco formava por si só o melhor 
dos exórdios. Bastava assomar à tribuna para empolgar a 
atenção e a simpatia. 

Muito alto, bem proporcionado, a cabeça e o rosto 
de uma pureza de linhas escultural, olhos magníficos, 
expressão, a um tempo, meiga e viril, nobre conjunto 
de força e graça, delicado gigante, NalDuco sobressairia 
em qualquer turba, tipo de eleição, dêèses que a natu- 
reza parece fabricar para modelo, com cuidado e amor. 

A voz estridulava como um clarim; dominava os ru- 
mores; cortava, penetrante e poderosa, as interrupções. 
De ordinário, despedia rajadas, como um látego sonoro. 
Não enrouquecia, antes adquiria, com o exercício, vibra- 
ções cada vez mais metálicas e rijas. Voz de combate, — 
a do comandante excitando os soldados, no aceso da 
batalha . 

A gesticulação garrida, as atitudes plásticas de Na- 
buco contribuíam para a grande impressão produzida 
pelos seus discursos. Consistia um dos seus movimentos 
habituais em meter as mãos nos bolsos das calças, ou, 
então, em enfiar dois dedos da mão direita na algibeira 
do colete. 

Desses e outros gestos provinha-lhe vantajoso ar de 
desembaraço e petulância. Articulava sílaba por sílaba 
os vocábulos, sublinhando os mais significativos. 

A tantos preciosos predicados, juntavam-se imensa 
verbosidade, vivaz imaginação poética, corroborada por 



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— 168 — 

aturados estudos literários, fértil em radiantes metáfo- 
ras, entusiasmo, natural eloquência, inspiração. 

Nabuco, demais, sempre escolhia para tema assun- 
tos elevados, — problemas sociais, filosóficos e religio- 
sos, de alcance universal. Fugia às polémicas indivi- 
duais, às intrigas da politiquice. Não se submetia à dis- 
ciplina e às conveniências partidárias; desconhecia chefe. 
A questão abolicionista atingira ao auge, apaixonada e 
brilhante. Nabuco, que já havia ligado seu nome à causa 
dos cativos^ tribuno consagrado das vítimas, reentrara 
na. Câmara, em 1887, de modo excepcionalmente triun- 
fante, derrotando nas urnas o ministro do Império, Ma- 
chado Portela, homem bom e influente, cujo desastre a 
todos stirpreendera. 

Concorriam nessa quadra em Nabuco copiosos e va- 
riados encantos: o de herói da sociedade, o das viagens, 
em que convivera com as sumidades estrangeiras, o de 
jornalista, o da popularidade, o da sublime bandeira que 
empunhava. A imprensa abolicionista vivia a endeusá-lo. 
Tudo, em suma, cooperava para determinar e encarecer 
os seus inolvidáveis triunfos oratórios de então. Fasci- 
nava; os próprios adversários, que tamanhas superiori- 
dades irritavam, oonheciam-lhe e proclamavam-lhe o 
imenso valor. Acorria gente de todas as condições, nu- 
merosas senhoras para vê-lo e ouvi-lo. As galerias o 
aclamavam. 

Mal o presidente proferia a frase regimental: "tem 
a palavra o Sr. Joaquim Nabuco" — corria um calafrio 
pela assistência excitada; eletrizava-se a atmosfera. A 
oração não tinha um curso contínuo e seguido; fazia-se 
por meio de jatos. Nabuco disparava um pedaço mais ou 
menos longo, rematado por uma citação justa, imia bela 
imagem, um mot à la fin. Parava, descansava, consentia 
que se cruzassem os apartes e os aplausos. Olímpico, 
sobrepujando a multidão com a avantajada estatura, ma- 
nuseava vagarosamente as notas, sorria, os olhos entre- 
fechados, refletia, aguardava a cessação do rumor, des- 
presava os apartes, ou levantava o que lhe convinha, e, 
de repente, partia em novo arremesso. 

Mal descerrava os lábios, restaurava-se o silêncio. 



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— iô9 — 

Nem era possível detê-lo mais. Continuasse o ruído, 
e a portentosa voz, a vertiginosa dição de Nabuco prestes 
o abafariam. 

As perorações, de ingente sopro lírico, eram cuida- 
dosa e habilmente preparadas. Para aí a imagem mais 
pomposa, a declaração de maior alcance, o gesto mais 
teatral. Provocavam estrepitosas ovações nas galerias. 
Bentava^-se Nabuco, e, durante minutos, ficavam os tra^ 
balhos virtualmente suspensos, enquanto não se esvae- 
ciam as ressonâncias de seus possantes e mágicos acentos, 
repercutidos no que a inteligência e o coração possuem de 
mais elevado e sensível. 

Oito An09 de Parlamento. 



EDUARDO PRADO 

S. PAUIiO, — 27.n-i8ao 
t s, PAULO, so-vm-iooi 

Eduardo da Silva Prado formou-se em 1881 pela Faculdade 
de Direito de São Paulo. Iniciou no ano seguinte as suas longas 
e repetidas viagens à América do Sul primeiro^ depois à Europa, 
Ásia, Africa, Austrália, tendo transposto os Andes, visitado a 
Sicilia, Malta, o Egito, as ilhas de Sandwich, etc. Humorista 
Qos seus escritos dos tempos académicos, Eduardo, que se tornou 
depois um dos nossos melhores estilistas, deixou obras de in- 
contestável valimento . 

Ein Lisboa e Paris, conviveu Eduardo Prado com» as sumi- 
dades literárias, gozando da estima e da consideração de Oli- 
veira Martins, Ega de Queiroz. Bamialho Ortigão. Maria Amá- 
lia e outros. 

Eduardo Prado foi do Instituto Histórico de S. Paulo, do 
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Bra- 
sileira — cadeira Visconde do Rio Branco. 

Pela sua vasta erudição, pela sua esmerada cultura artía- 
tica, era Eduardo Prado admirado dentro e fora do país. 

Patriota esclarecido, amou de coração a sua terra e a sua 
gente, a sua história e os seus grandes homens, o seu passado 
e as suas tradicóes... 

De sua bibliografia destacamos: Fastos da ditadura militar 
no Brasil, A ilusão americana. Viagens, A Bandeira nacional, 
Coletâneaa, O Catolicismo, a > ympanhia de Jesus e a Coloniza' 
çâo do BraMl, etc. 



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— 170 — 



68. O Barão do Bio Branco 

Os escritores que tratam das superioridades políticas 
da Inglaterra mencionam, como sendo das principais, a 
existência de uma classe de homens que hereditariamente 
transmitem uns aos outros uma continuada tradição e uma 
apropriada educação na arte da política e naquilo que se 
pode chamar a Ciência do Estado. 

No Barão do Rio Branco encontra-se essa rara su- 
perioridade: a de ser, por herança e por educação, um 
homem votado, exclusivamente, às cousas da Pátria. Por 
esse lado o Barão do Rio Branco, vivendo numa época 
em que, em toda parte, o interesse coletivo e nacional 
parece diminuir, cada dia mais, diante das paixões e das 
comodidades de cada um, constitue uma individualidade 
fora do seu tempo. 

Não tivesse êle um coração organicamente bom e to- 
lerante e não fosse a diferença dos tempos, a sua bela figu- 
ra, onde a Natureza traçou linhas corretas e solenes, como 
que destinadas a perpetuar-se no cunho das medalhas, e 
veríamos nele uma reprodução daqueles magníficos se- 
nadores venezianos que os Palmas e os Veronesos nos 
deixaram pintados e nos quais o tipo do indivíduo, tor- 
nado superior, quasi inipessoal, parece viver animado 
por um ideal de majestade, resumido na alevantada aspi- 
ração: a grandeza do Estado. 

Na vida moderna, toda de individualismo, organiza- 
ções destas não se acham bem. E muito menos podem 
ter uma expansão eficaz, nas chamadas democracias sul- 
americanas. O gueri^eiro não tem ali com quem guerrear, 
e, não tendo ocasião de vencer, desaprende essa arte e 
nem sempre consegue vencer a si mesmo, antepondo o 
bem da Pátria à vantagem de sua classe. Dentro da polí- 
tica, também não cabem esses homens de ideal. Excepcio- 
nalmente, pode um Visconde do Rio Branco fazer gran- 
des cousas, quando há realmente grandes cousas por fazer. 
O homem superior por todos os títulos, o primeiro Rio 
Branco, teve por destino coi':«umar o plano que o Brasil 
será sempre forçado a seguir, sob pena de um suicídio 



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— 171 — 

mais ou menos rápido : a hegemonia brasileira em toda a 
vertente atlântica do continente sul-americano . As inter- 
venções no Rio da Prata e a guerra do Paraguai foram 
apenas frases do desenvolvimento desse plano. Foi então 
que se viu esse diplomata do Império, vencido o Para- 
guai, receber o singular e pesado . encargo de conservar 
a existência política daquele país, indispensável para a 
segurança do Brasil, de formar um governo provisório 
paraguaio e de criar, êle estadista de uma Monarquia, 
toda a maquina de um governo republicano. Não se viu,, 
outrora, a República Romana regulando a sucessão dos 
reis nos tronos, seus aliados, ou vassalos? Que gran- 
diosa afirmação não foi essa obra da existência da nação 
brasileira, personificada na força do Estado prestigiado e 
obedecido além das suas fronteiras! Outra ocasião de 
energia e de glória teve o Visconde do Rio Branco, ven- 
cendo, a força de eloquência, os sustentadores da escra- 
vidão. Nas duas empresas, o filho secundou o pai. Termi- 
nado, porém, esse período heróico, a figura do velho fun- 
diu-se na auréola da glória e da morte, e o moço, renun- 
ciando às ambições da política e às agitações do jor- 
lismo em que estreara — êle que recebera como he- 
rança a onerosa responsabilidade de um grande nome — 
preferiu a obscuridade de um consulado geral, um posto 
cujo expediente simples lhe deixasse tempo para melhor 
servir à sua pátria pela Ciência. 

Foi para poder isolar-se inteiramente nos estudos, que 
já eram os da sua predileção desde o Colégio D. Pedro II 
e a Faculdade de Direito de São Paulo, que êle desejou 
essa posição modesta na Europa, onde, com tanto proveito 
para a pátria, estudaram e trabalharam antes dele os 
Andradas, Varnhagen, Magalhães, Porto Alegre, Odorioo 
Mendes e outros brasileiros ilustres. 

O fim de sua vida, fim que não conseguiu sem longos 
anos de um sacrifício aturado e ignorado, foi conhecer 
o Brasil, no seu solo, nos seus produtos, no seu céu, 
na? suas raças, na sua vida no passado, nas condições 
de sua existência no presente e na sua capacidade de cres- 
cimento e de grandeza no futuro. A erudição que con- 
seguiu ter a respeito do Brasil é, por assim diz-er, salo- 
mônica. O rei de Judá conhecia, segundo a Bíblia, desde 



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— 172 — 

O hissope, ou musgo apegado às pedras das muralhas 
até o cedro do Líbano, desde o inseto que se e*sconde na 
relva, até o leviatã dos mares. O que o Barão do Rio 
Branco sabe do Brasil é uma cousa vertiginosa. E' capaz 
de escrever, sem esquecer uma minúcia, como eram feitas 
as naus de Pedro Alvares Cabral, de que tecido vinham 
vestidos os seus marinheiros e os nomes das plantas mais 
vulgares na praia de Porto Seguro, onde ancoraram 
aquelas naus. Leu tudo quanto há impresso, copiou, ou 
fez copiar todos os manuscritos, fez dôles eJdratos, dis- 
tribuiu ôsses extratos, em forma de notas, pelas páginas 
de todos os livros que tratam do Brasil; retificou, escla- 
receu, corrigiu, explicou, emendou e ampliou todos esses 
livros; e, com o mundo das suas notas, poderá ôle um 
dia publicar uma história e uma descrição geral do Brasil, 
que será um monumento. 

Conta-se que o velho Moltke dormia profundamente 
quando um de seus ajudantes de ordens entrou uma noite, 
no quarto com o telegrama anunciando a guerra com 
a França, acordou-o e leu-lhe a grande notícia. Moltke 
disse sossegadamente: 

— Veja na secretária a segunda gaveta à esquerda; 
— e voltou-se para a parede, para continuar o seu sono. 

Na tal segunda gaveta, à esquerda, estava, com todas 
as explicações e todas as minúcias, tudo quanto dizia 
respeito à mobilização das forças alemãs, no caso de uma 
guerra com a França. 

Coletâne<is. -r- Vol. I. — Escola Tip. Salesiana. 
— S. Paulo. •— 1904. 



ALaNDO GUANABARA 

MAGE' (ESTADO DO BIO) — 19-Vn-18e5 
t BIO DE JANEIRO — 20-Vin.l918 

Filho dos próprios esforços, não sem grande trabalho con- 
segruiu Alcindo Guanabara cultivar o espírito, desenvolvendo e 
dirigindo as suas aptidões e vocação decidida para o jornalismo, 
e assim Ô que o seu nome, como Jornalista, hâ. de figurar nta 



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^ 173 — 

dia entre os de Evaristo,. Quintino, Ferreira de Araújo e 
Patrocínio. 

Foi da Academia Brasileira de Lietras, cadeira Joaquim 
Caetano. 

Bibliografia — Afora sua vasta colaboragâo em numerosos 
jornais do Brasil e seus muitos discursos na Câmara e no Se- 
nado, publicou: A presidência Campos Sales, Discursos fora da 
Câmara, etc. 



89. O Marechal Floriano 

o tipo do marechal Floriano é dos mais curiosos que 
o historiador futuro terá de estudar. 

Raramente haverá um homem político de quem se 
tenha dito tanto bem e tanto mal; cujo caráter tenha 
provocado tantas e tão contraditórias opiniões; cuja per- 
sonalidade e cuja acão tenham suscitado, ao mesmo 
tempo, tanto entusiasmo e tanto ódio. Isto basta para 
significar que êle não é um homem vulgar, e quem o 
conhecer poderá dizer, até, que é excepcionalmente raro, 
tão raro, que dificilmente encontrará uma fórmula pre- 
cisa para defini-lo. 

Gabloco do norte, homem de quarenta e quatro a qua- 
renta e seis anos, de estatura mediana, cabeça bem con- 
formada, testa larga, nariz grosso e reto, lábios grossos, 
cobertos de um bigode escasso, queixo rigorosamente es- 
canhoado, suissas imperceptíveis, duas rugas sensíveis e 
fortes descendo das abas das narinas ao canto dos lábios, 
que lhe animam e adoçam a fisionomia rude; olhos par- 
dos, grandes, fundos e de extrema mobilidade, mal ve- 
lados pelos cílios, quasi sempre baixos, eis em duas pale- 
tadas o aspecto do vice-presidente da República. 

Quasi nunca aparece em público; e, quando o faz, 
veste sempre a sua farda de marechal do exército trazendo 
ao peito as medalhas de campanha, ganhas no Paraguai. 
Em casa, de ordinário, as suas vestes habituais consistem 
na calça e no Jaleco de brim, camisa sem goma. 

Tem o tipo do indolente das zonas tropicais; mas 
ninguém o julgue por tais aparências : é dotado de um 
raríssimo poder de trabalho. Fala pouco; si dá ordens, 
dá-as em tom rápido e incisivo e da forma mais lacónica 



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— 174 — 

possível; si conversa, ouve mais do que fala, e, quando 
fala, só diz o que lhe convém dizer. Difepõe dessa pre- 
ciosa faculdade de entreter o interlocutor durante horas, 
sem que este tenha de se queixar da sua polidez e sem 
também ter-lhe apanhado mais do que frases gerais. 

E' um chefe de família modelo. 

A sua honestidade pessoal é conhecida e reconhe- 
cida. E' de uma economia rigorosa: a sua casa é dirigida 
com a ordem e parcimônia da de qualquer burguês, que 
deseja pôr no mealheiro uma parte de suas escassas ren- 
das anuais. 

Intelectualmente, não dispõe de uma instrução que 
o habilite a ser um sábio ou um erudito; mas dispõe da 
instrução necessária para estar ao nivel dos homens po- 
líticos de seu tempo. 

E' arguto e sagaz, apreende rapidamente as ques- 
tões, tem uma inteligência lúcida. Não fala senão a sua 
língua e, além desta, lê somente o francês. 

No fundo, é um céptico voltaireano, e esse cepticis- 
mo armou-o de uma desconfiança geral, absoluta, pro- 
funda, contra tudo e contra todos. 

Desconfia: portanto, vigia, inquire, esquadrinha. Pode 
ouvir o que lhe dizem — e é raro que o faça; — mas 
ninguém jamais pôde gabar-se de que o determinou a 
fazer isto ou aquilo; delibera por si exclusivamente. Desta 
modalidade de seu caráter resultou que o regime pre- 
sidencial se transformou em regime pessoal. Os ministros 
são entidades que não existem: nem agem por si, como 
chefes de suas repartições, nem agem nos conselhos do 
governo, porque o chefe não recebe conselhos. Concentrou 
em suas mãos todos os negócios do Estado, convencido 
de que, sendo sua a responsabilidade, necessária se torna- 
va que tudo fosse feito segundo a sua vontade, e assim ó 
desde a nomeação do último contínuo. 

Sem nenhuma questão, o marechal Floriano é essen- 
cialmente um militar, dominado do espírito militar, apai- 
xonado pela classe militar. O seu governo seria sempre 
um reflexo dessa tendência de seu espírito; mas, dada a 
sua serenidade, poderia ter sido — e naturalmente seria 
— muito menos acentuada do que foi, si o fato de se 
achar sempre ameaçado, não o houvesse colocado na 



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— 175 — 

contingência de preparar os elementos de defesa. Porque 
— verão quando serenarem as paixões — o serviço que 
êle prestou, de. haver resistido â revolução e de mantcr-se 
no posto em que a lei o colocou, foi o maior que se podia 
prestar à nossa Pátria, ameaçada de se engolfar no abis- 
mo da caudilhagem. E essa intenção foi sempre a sua. 
Não há homem político que lhe não tenha ouvido dizer 
um ror de vezes, desde muito tempo: 

— Desta cadeira, só duas forças são capazes de me 
arrancar: a Lei ou a Morte. 

Porque — é um fenómeno curioso dessa psicologia 
conpl içada — o marechal Flori ano, que tem, tantas 
vezes, passado por cima da Lei, tem por ela uma vene- 
ração sincera. Concientemente, é absolutamente incapaz 
de violá-la. 

Si lhe provarem que tal ato fere de frente o artigo 
tal, de tal lei, por mais que o deseje, desiste dele ime- 
diatamente. Esta preocupação da Lei só é menor, no seu 
espírito do que a preocupação da República. Muito se 
tem contestado — e talvez não sem razão — que sob o 
seu governo tenhamos vivido em República, nome aliás, 
que tem a^ virtude singular de dizer tudo sem expri- 
mir nada. 

Mas o fato é que o marechal Floriano não obedece, 
não sente e não se guia por mais forte intensão senão essa 
de manter, defender e sustentar a República. 



OUVEIRA LIMA 

PERNAMBUCO — RECIFE — 25-Xn.l867 
t WASHINGTON — 24-01-1028 

, Historiador, homem de letras e crítico. Professor e diplo- 
mata. 

O Dr. Oliveira Lima fez em Lisboa a s.ua educação literária 
e aí tirou o curso superior de letras (1887). Discípulo de Oli- 
veira Martins. 

As obiras valiosas que publicou revelam a preferência 
e a predileção dos seus estudos: a história e a literatura brasl- 



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— 176 — 

leira; o historiador Ô um Investigador conciftncloso e o crítico 
6 estudioso, justo e lmi>arclal. 

O Dr. Manuel de OUvelra Uma pertenceu à Academia Bra- 
•sUelra de lietras, cadeira Varnhagen (Visconde de Porto Se- 
gniro): Interessantíssimo é o seu estudo, Udo por ocasião de ser 
recebido. SÒbre o nosso grande historiador. 

Fez, parte também do Instituto Histórico, e do Instituto 
Arqueológico e Geográfico de Pernambuco. 

Bibliografia — De sua extensa blbllogrrafla sobressaem: 
Pernambuco, seu desenvolvimento histórico. Aspectos da litera- 
tura colonial. Nos Estados Unidos, Memórias sobre o descobri- 
mento do BrasU, História diplomática do Brasil, No Japão, Dom 
João VJ no Brasil, etc. 



70. Bocha Pita 



Era Rocha Pita (1660-1738) um fazendeiro abas- 
tado, bacharelado em Coimbra, e que, começando por 
entregar-se às letras como passatempo, dedicou-lhes a 
pouco e pouco o máximo de seu fervor espiritual, sobre- 
tudo quando o empolgou o pensamento, levado a cabo, de 
compendiar os acontecimentos e enaltecer os heroísmos 
de que o Brasil fora então teatro. O entusiasmo inicial 
da ideia sustentou-se durante toda a sua execução, e flo- 
resce no estilo em excesso imaginoso da obra, na qual, 
debaixo das exagerações retóricas, sentem-se pulsar uma 
comoção sincera e um patriotismo, ou melhor, um ame- 
ricanismo eloquente. Rocha Pita tem sido acusado de não 
se mostrar bastante brasileiro, no Sentido de render con- 
victa dedicação ao domínio português. O próprio título 
do. seu livro parece indicar tal tendência, que o sr. Sílvio 
Romero qualifica de lusismo: "História da América Por* 
tuguesa" e não do Brasil, escreveu o sócio da Academia 
de História de Lisboa. Acho, contudo, fraco motivo para 
censuras semelhante ausência em um escritor dos prin- 
cípios do século XVni, de um sentimento de pátria, o 
qual na realidade era ainda forçosamente embrionário, 
vago ou pelo menos mal definido, portador, para mais, 
de poucas esperanças e reclamando, para adquirir consis- 



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— 177 — 

ténoia e ihteno&o, a sugestiva atmosfera das seâio5es« 
No nosso historiador impera, entretanto, a simpatia pelo 
que é da sua terra. Leiam-se na exposição da entSo recen- 
tíssima guerra dos mascates, os doestos sentenoiosos por 
ôle lançados no governador e aos mercadores portugue- 
ses, e a defesa da nobreza pernambucana ^- à qual aliás 
pertencia a família do escritor — sen&o exercida com 
parcialidade ou mesmo com desassombro, enérgica quanto 
lho parmitiam a gravidade e a cortezania do seu estilo. 
Estas e outras narrações históricas são geralmente esbqça- 
das no livro de Rocha Pita com esorupXilosa exatidão, e 
com uma fluência e elevação de estilo que o gongorismo 
não corrompe em demasia. Nas descrições é que as ima- 
gens se agrupam mais cerradas, as hipérboles se desen- 
tranham mais facilmente, as comparações e antíteses es- 
grimem com maior presteza. Comparações e antíteses 
que são constantemente bebidas no manancial clássico, 
mercê do sestro da erudição, porquanto no humanismo 
entronca sempre o culteranismo do século XVII, ao in- 
verso da moderna reação romântica, que pede diretamen- 
te à natureza o melhor da sua inspiração. 

Não deixava, no entanto, o autor de perceber que 
sob a influência da corrente néo-clássica, transladada da 
Corte de Luiz XIV e facilmente aclimatada na de D. João 
V, pelos esforços do conde de Ericeira, o elegante tra- 
dutor de Boileau, os seus figurinos já iam passando de 
moda. Por isso, no prólogo da América Portuguesa des- 
tacam-se estas palavras ao leitor discreto: "Si em alguns 
termos o estilo te parecer encarecido, ou em algumas ma- 
térias demasiado o ornato, reconhece que em mapa dila- 
tado a variedade das Jfiguras carece da viveza das cores e 
das valentias do pincel ..." . 

Com efeito, si, como creio, merece desculpa o gon- 
gorismo, deve Rocha Pita ser um dos seus discípulos 
mais perdoados; não somente por ter fygido, no meio da 
sua exuberância retórica, às extravagâncias em que de- 
generaram as primordiais sutilezas dos culteranistas e 
que se assemelham sensivelmente com as atuais excen- 
tricidades do simbolismo, decadismo e outras escolas poé- 
ticas anárquicas, de desesperadora esterilidade, como pela 
razão que éle justamente invoca — a da magnitude do 



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— 178 — 

assunto esoolhiao ou, para melhor dizer, do cenário 
em que o assunto tinha de ser tratado. O estilo do 
baiano forceja por acompanhar os esplendores do meio 
físico, por ostentar as galas da natureza ambiente, e em 
tais tentativas de mero caráter exterior, de pura exe- 
cução técnica, busca os efeitos pinturescos que a his- 
tória modernamente empresta um distintivo romântico: 
o sentimento da diversidade das épocas históricas. 



Aspecto da Literatura Colonial Brasileira — 
Leipzig ~ F. A. Brockhaus — 1896. 



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VL DISSERTAÇÕES " QUESTOES SOCUIS 



JOSÉ BONIFÁCIO 



SÃO PAUIiO — SANTOS — 13-VI-1768 

t NICTERÓI — ESTADO DO RIO — 6-IV-1838 



Sábio, poeta e estadista. 

José Bonifácio de Andrada e Silva, o patriarca da Indepen- 
dência, formou-se na Universidade de Coimbra en> Filosofia 
e Leis. 

Viajou dez anos pela Europa« em excursões científicas 
entregando-se a investigações práticas de Mineralogia; desco- 
,briu diversas espécies novas de minerais e algumas variedades. 

Andrada foi sócio e secretário perpétuo (1812) da Real Aca- 
demia de Ciências de Lisboa. Exerceu o cargo de intendente 
geral das minas e o de lente de geognosia e metalurgia (ca- 
deira então criada na Universidade de Coim-bra para o sábio 
brasileiro). A Universidade conferiu-lhe o título de doutor em 
história natural. 

E' o Washington brasileiro. Organizador do Império e mi- 
nistro do Estado (1822), foi depois deputado à Constituinte; 
e dissolvida esta violentamente (13-XI-1823), foi José Bonifá- 
cio deportado, permanecendo em França até 1829, quando vol- 
veu à pátria. 

Nomeado por Pedro I, José Bonifácio exerceu, depois de 7 
de Abril, o cargo de tutor dos príncipes, entre os quais, D. 
Pedro de Alcântara, depois Pedro II, comissãp da qual foi de- 
mitido, tendo sido preso e processado. 



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— 180 — 

Absolvido, enfii»> retirou-se para a ilha de Paquetâ, onde, 
desde 1829. residia; em S. Domingos (Niterói) faleceu o grande 
brasileiro . 

Bibliografia — Apontamentos para a civilização dos índios 
hrayvos do Império do Brasil, 1823, Rio de Janeiro; Representa- 
ção à A9sem,hléia Geral Constituinte e Legislativa do Império 
do Brasil sobre a escravatura. Paris, 1825, Rio de Janeiro, 1840; 
— Poesias avulsas de Américo Elisio, 1825, Bordéus e 1861, Rio 
de Janeiro, etc. £3. e H. Liaemert (com acréscimos e um esbOco 
biográfico) ; alénk de discursos académicos e memórias sobre 
08 Diamaoítes do Brasil, a Pesca da Baleia, Viagem mineraló- 
gica péla provinda da Extremadura até Coimbra, Viagem geo* 
gnóstica aoè montes Euganeos, etc, eto. 



71. Sobre a questão da escravidão 

Chegada a época feliz da regeneração política da 
nação brasileira, e devendo todo o cidadão honrado e ins- 
truído concorrer para tão grande obra, também eu me li- 
sonjeio que poderei levar ante a Assembleia Geral Cons- 
tituinte e Legislativa algumas ideias, que o estudo e a ex- 
periência têm em mim excitado e desenvolvido. 

Como cidadão livre e deputado da nação dois obje- 
tos me parecem ser, fora a Constituição, de maior inte- 
resse para a prosperidade futura deste Império. 

O 1.* é um novo regulamento para promover a ci- 
vilização geral dos índios no Brasil, que farão com o 
andar do tempo inúteis os escravos, cujo esboço já co- 
muniquei a esta Assembleia. 2.* — Uma nova lei sobre 
o comércio da escravtura, e tratamento dos miseráveis 
cativos. 

Este assunto faz o objeto da atual representação. 

Nela me proponho mostrar a necessidade de abolir 
o tráfico da escravatura, de melhorar a sorte dos atuais 
cativos, e de promover a sua progressiva emancipação. 

Quando verdadeiros cristãos e filantropos levanta- 
ram a voz pela primeira vez em Inglaterra contra o tráfi- 
co de escravos africanos, houve muita gente interesseira 
ou preocupada, que gritou ser impossível ou impolítica 
semelhante abolição» porque as colónias britânicas não 
podiam escusar imi tal comércio sem uma total destrui- 



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— 181 - 

qSo: todavia passou o BUI e não se arruinaram as coló- 
nias . Hoje em dia, que Wilberf orces e Buxtons trovejam 
de novo no parlamento a favor da emancipação progres- 
siva dos escravos, agitam-se outra vez os inimigos da hu- 
manidade como outrora; mas, espero da justiça e da ge- 
nerosidade do povo inglês que se conseguirá a emanci- 
pação, como já se conseguiu a abolição de tão infame 
tráfico. 

E porque os brasileiros somente continuarão a ser 
surdojs aos gritos da razão, e da religião cristã, e direi 
mais,' da honra e brio nacional? 

Pois somos a ilnica nação de sangue europeu que ain- 
da comercia clara e publicamente em escravos africanos. 

£u também sou cristão e filantropo; e Deus me 
anima para ousar levantar a minha fraca voz no meio 
desta augusta assembleia a favor da causa da justiça, e 
ainda da sã política, causa a mais nobre» e santa, que 
pode animar corações generosos e humanos. Legisladores, 
não temais os urros do sórdido interesse; cumpre pro- 
gredir sem pavor na carreira da justiça e da regeneração 
política; mas todavia cumpre que sejamos precavidos e 
prudentes. Si o antigo despotismo foi insensível a tudo, 
assim lhe convinha ser por utilidade própria: queria que 
fôssemos um povo mesclado e heterogéneo, sem naciona- 
lidade e sem irmandade, para melhor nos escravizar. Gra- 
ças aos céus, e à nossa posição geográfica, já somos um 
povo livre e independente. 

Mas como poderá haver uma Constituição liberal e 
duradoura em um país continuamente habitado por uma 
multidão imensa de escravos brutais e inimigos? Come- 
cemos, pois, desde já esta grande obra pela expiação 
dos nossos crimes e pecados velhos. Sim, não se trata so- 
mente de sermos justos, devemos também ser penitentes; 
devemos mostrar à face de Deus e dos outros homens, 
que nos arrependemos de tudo o que nesta parte temos 
obrado há séculos contra a justiça e contra a religião, que 
nos bradam acordes "que não façamos aos outros o que 
queremos que não nos façam a nós**. £* preciso, pois, 
que cessem de uma vez os roubos, incêndios e guerras 
que fomentamos entre os selvagens de Africa. E' preciso 
que não venham mais a nossas portas milhares e milhares 



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— 182 — 

de negros, que morriam abafados no porão de. nossos na- 
vios, mais apinhados que fardos de fazenda : é preciso, que 
cessem de uma vez todas essaâ mortes e martírios sem 
conta, com que flagelávamos e flagelamos ainda esses des- 
graçados em nosso próprio território. E' tempo, pois, e 
mais que tempo, que acabemos com um tráfico tão bár- 
baro e carniceiro; é tempo também que vamos acabando 
gradualmente até os últimos vestígios da escravidão entre 
nós, para que venhamos a formar em poucas gerações 
uma naçáo homogénea, sem o que nunca seremos verda- 
deiramente livres, respeitáveis e felizes. E' da maior he- 
cessidade ir acabando tanta heterogeneidade física e civil; 
cuidemos desde já em combinar sabiamente tantos elemen- 
tos discordes e contrários, e em amalgamar tantos metais 
diversos, para que saia um todo homogéneo e compacto, 
que não se esfarele ao pequeno toque de qualquer nova 
convulsão política. 



AZEREDO COUTINHO, BISPO 



MO DE JANEIRO — CAMPOS — 8-IX-1748 
t LISBOA — 12-IX.1821 



Azeredo Coutinho (D. José Joaquim da Cunha de), ilus- 
tre pela posição que teve na Igreja e ainda pelos seus escri- 
tos económicos e sociais, doutorou-se na Universidade de Coim- 
bra (1775) e foi nomeado arcediago da Sé do Rio de Janeiro. 
Bispo de Pernambuco em- 1794, governou interinamente a Ca- 
pitania. 

Daqui passou-se para Portugal onde exerceu vários cargos 
eclesiásticos. Faleceu dois dias depois de tomar assento nas 
Cortes Constituintes portuguesas como deputado eleito pela pro- 
víncia do Rio de Janeiro. 

O reputado economista era sócio da Academia Real da 
Ciências de Lisboa. 

Bibliografia — Deixou: Ensaio económico sôhre o comércio 
ãe Portugal e suas colónias, publicado por ordem da Academia 
Real das Ciências — Discurso sôhre o Esta^ atual da^ minas 
no Brasil, etc, além de sermões, pastorais e muitas memórias 
científicas e políticas. 



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— 183 — 



72. Cívílizamento dos índios 

Al arte de pôr em ação a máquina de cada indivíduo 
consi^ttí ^»m pesqúizar qual a sua paixão mais forte e 
dominante. 

Achada ela> póde-se dizer que está descoberto o se- 
gredo e a mola real do seu movimento. 

Aquele que tiver a vista aguda e penetrante e um 
tato fino o delicado para distinguir as paixões dos ho- 
mens, poderá conduzi-los, sem dúvida, por cima das maio- 
res dificuldades. O homem, e ainda o bruto, levado por 
força, está sempre em uma contínua luta e resistência; 
levado, porém, pelo caminho da sua paixão, êle segue 
voluntariamente e muitas vezes corre mesmo adiante da- 
quele que o conduz, sem jamais temer, nem ainda os hor- 
rores da morte. 

O índio selvagem, entre a raça dos homens, parece 
anfíbio, parece feito para as águas; é naturalmente incli- 
nado à pesca, por necessidade e por gosto . Esta é a 
sua paixão dominante e, por consequência, a mola real 
do seu movimento; é por esta parte que se deve fazer 
trabalhar a sua máquina em benefício comum, dele e de 
toda a sociedade. 

•O índio, a-pesar-da sua inclinação pela pesca, encon- 
tra, contudo, uma certa dificuldade em saciar a sua pai- 
xão; o método vagaroso e tardio, com que êle, pela falta 
de indústria, faz a sua pesca, o aparta muitas vezes 
daquilo mesmo de que êle gosta, apenas contente com o 
pouco de que se nutre. 

Mas, logo que êle vir a facilidade com que o homem 
industrioso arma redes, forma laços, nos quais de uma 
vez colhe milhares de peixes, este espetáculo maravilho- 
so, que, de um só golpe de vista, debaixo da sua rude 
compreensão, o encherá de alegria e de entusiasmo, fá- 
. lo-á ir, mesmo sem ser rogado, larçar-se á caça como 
a pesca no meio da cojheita e da abundância. 

Este arrebatamento de gosto o irá insensivelmente 
atraindo e convidando a viver e comunicar-se com os ho- 



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'— 184 — 

mens daquela profissão, que para éle se representa ex- 
traordinária. Esta comunicação lhe fará ver a dife- 
rença do homem selvagem e do civilizado; pouco a pouco 
se irá domesticando e conhecendo que o homem é capaz 
de mais o mais comodidades. 

Logo que ôle vir que aquele supérfluo, que ôle até 
então lançava às aVes e às feras, pelo benefício do sal se 
conserva e lhe serve de meio para adquirir as comodi- 
dades de que êle fôr gostando, a sua paixão irá crescen- 
do e, à proporção, obrigando-o a fazer-se mais hábil; êle 
já não quererá ser. um simples marinheiro, quererá logo 
ser um mestre e senhor de uma rode. 

Ele quererá saber quanto toca a cada um dos com- 
panheiros e por consequência se verá na necessidade de 
aprender a aritmética, para com toda a facilidade saber 
dividir; quanto ôle fôr adiantando o seu comércio, tanto 
há de ir aumentando a sua comunicação, não só com as 
pessoas presentes, mas também com as ausentes. Daqui 
virá logo a necessidade de saber ler e escrever, e quan- 
do êle já não esteja em idade de aprender, êle fará que 
seus filhos supram a sua falta. 

Da mesma sorte a camisa, o chapéu, a vestia, o calção, 
o sapato, que ôle até então despresava como cousas su- 
pérfluas o mesmo como um fardo pesado e enfadonho 
para com êle romper os matos e as brenhas, se lhe irão 
fazendo úteis e necessários; já não será preciso que os 
pais persuadam estas utilidades a seus filhos, bastará que 
os filhos olhem para seus pais. 

Esta concurrênoia de necessidades e de utilidades »e- 
lativas os irá gradualmente ensinando a obedecer e a 
mandar; então eles encherão as ideias daqueles qu6 até 
agora têm inutilmente trabalhado para os civilizar. A ex- 
periência lhes fará ver que a mesma conservação do in- 
divíduo e as comodidades da vida são incompatíveis com 
uma liberdade absoluta e com uma independência sem 
limites. Eles conhecerão que é necessário perder alguma 
parte da liberdade absoluta, para gozar de outras muitas 
partes de uma maior liberdade relativa. 

Ensaio económico sobre o oomérdo de Portugal 
e êuaa colónias, ' 



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~ 185 — 
D. ROMUÂLDO DE SEIXAS 

Marquês de 8ta. Crux^ Arcebispo da Baia 

PARáL* — OaiMETA' ~ 7-U-X787 

t S. SAIiVABOR DA BAfA — 29.Xn.1860 

Este preclaro brasileiro, que se notabiliaou pela sua gran- 
de ilustração e não menor modéstia, como escritor — opina 
o autorizado João Ribeiro — é exemplaríssimo. Reconhece- se 
em b7 Romualdo o Inexcedivel mérito da conveniente proprie- 
dade do estilo, pureza e correcão de linguagem, clareza, ele- 
gância. 

O sábio arcebispo pertenceu a diversas instituições cientí- 
ficas e literárias, nacionais e estrangeiras, entre as quais o Ins- 
tituto Histórico e a Academia Real de Ciência, de Munich. 

Bibliografia — Ohrae completas do JExmo, e Mevmo. 8r. 
JD. Rormuíldo António de Seixas... 6 volumes — Pernambuco 
e Baía, 1839 — 1858. — Memórias, publicadas pelo padre Fon- 
seca I/ima, Hio de Janeiro, 1861. 



73. Pela paz e concórdia 

Depois de havermos implorado, entre o vestíbulo e 
o Altar, o inapreciável benefício da paz e tranquilidade 
desta bela Província e de todo o Império, pedindo com 
especialidade ao Pai das Misericórdias e Deus de toda a 
consolação, a exemplo do grande arcebispo de Milão S. 
Ambrósio, em igual crise qae poupasse a efusão de san- 
gue e a guerra civil; não permite a ternura e o zôlo que 
anima o ijosso coração pela vossa felicidade que guarde- 
mos silêncio em uma tão importante ocasião, em que os 
nossos ditames e advertências paternais podem, se não 
auxiliar e dirigir o vosso patriotismo, ao menos patentear- 
vos o verdadeiro interesse que tomamos pela glória e 
prosperidade desta mimosa porção do nosso Império . 

Mas sem envoWer-nos em teorias e questões polí- 
ticas, alheias do nosso ministério, e nas quais a Religião 
participa ordinariamente do ódio que o calor dos partidos 



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— <86 — 

pode atrair sobre os eclesiásticos menos circunspectos, 
só vos diremos que esta religião divina e amável, que se 
acomoda maravilhosamente a toda a sorte de sistemas 
ou formas de governo, porque ela baixou do céu para 
iluminar e- aperfeiçoar todos os homens, e todos os po- 
vos do Universo, esta religião celestial só é inflexivel o 
incapaz de transigir sobre a necessidade da obediência e 
respeito às leis e autoridades constituídas, porque não há 
sistema nem forma de governo, nem espécie alguma de 
associação que possa subsistir sem o laço da obediência, 
primeira condição de todo o pacto social. E' esse dever 
sagrado que o mesmo filho de Deus persuadiu com o 
seu exemplo e doutrina e que os seus discípulos procla- 
maram altamente, ensinando que toda a alma, isto é, todo 
o cidadão, de qualquer classe ou jerarquia que seja, deve 
estar sujeito aos poderes estabelecidos, obedecendo-lhes, 
non ad ociílum, ou por um temor servil, mas por convic- 
ção e por um princípio de conciência — non solum pro- 
pter iram, sed etiam propter conscientiam. 

Ohl e quanto nos consolamos, amados filhos, e se 
moderaram os nossos receios, ao vermos que, no seio 
mesmo dos elementos que costumam produzir a confusão 
e a revolta, vós destes o magnífico exemplo de subordi- 
nação à voz das autoridades, mostrando a par da mais 
intrépida coragem uma submissa docilidade ao império 
da leil 

Si é próprio das discórdias civis e reações popula- 
res desenfrear todas as paixões e transformar quasi em 
feras ainda os homens mais cultos e polidos, como infe- 
lizmente atestam as histórias de todas as nações, um povo 
com as armas na mão e eletrizado pelo fogo da li- 
berdade, que escuta mais a voz da razão e da lei que a 
do ódio e da vingança, é certamente um povo heróico e 
de quem não pode deixar de esperar-se toda a grandeza 
dos mais generosos sentimentos. 

Nós confiamos, amados filhos, que não desmentireis 
jamais a ideia que havemos formado do vosso caráter 
religioso e político. Nada mais natural, mais legítimo e 
louvável do que o zelo e os sacrifícios pela defesa da 
Independência e Liberdade; nunca pode ser demasiada 
a vigilância e atenção para sustentar uma tão preciosa 



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-mmmemtmse. 



— 187 — 

conquista : mas é preciso não perder da lembrança que, 
quanto este bem é mais inestimável, tanto o seu abuso 
pode ser nocivo e fatal à sua própria conservação. Sim, 
os extremos tocam-se quasi sempre, e não é raro yer-se 
passar da anarquia e da licença ao jUgo do mais feroz 
despotismo. Roma, esquecida da sua antiga virtude e à 
força de depurar essa Liberdade, que levantara o colossal 
edifício da sua grandeza, viu-se, enfim, reduzida á vergo- 
nhosa necessidade de fazer-se escrava da mais implacável 
tirania, como observa um dos seus mais profundos e li- 
berais historiadores (i) ; e não vimos nós em os nossos 
próprios dias a mais ilustrada nação do Universo, cansa- 
da de violentas agitações e deploráveis excessos produzi- 
dos pela licença, lançar-se nos braços de um soldado, que 
a escravizou por tantos anos, pretendendo até sufocar 
os monumentos daquela santa Liberdade com que a Re- 
ligião ousara ensinar aos reis os seus deveres, à face de 
uma corte corrompida e na presença do mais absoluto 
monarca da Europa (2) . 

Pastoral exortando os seus Diocesanos à paz 
e concórdia — Coleção das Obras — tomo I . 



(1) — Tácito — Anais — Livrd II. 

(2) — Refére-se a Bonaparte, que não consentiu se reim- 
primissem os Sermões de Massillon, senão com a condição de se 
suprimirem todas aquelas passagens, onde o pregador fala dos 
direitos do povo e dos deveres dos príncipes. 



SALES TORRES HOBfEM 



RIO DE JANEmO — 20-1-1812 
t PABIS — 8-VI.1876 

O Conselheiro Francisco de Sales Torres Homem, Visconde 
de Inhomárim, formou-se em Medicina pela Faculdade médico- 
cirurgica do Rio de Janeiro, 1832, e, mais tarde, em direito pela 
Universidade de Paris. 

Admitido como sócio da Sociedade Defensora da Liberdade e 
Independência Nacional^ a cujo conselho diretor passou logo 



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— 188 — 

a pertencer, e cujo órgão redigiu com outros, começou então a 
envolver-se na política. Foi deputado pela província de Minas 
pela do Rio de Janeiro. Senador pela provncía do Rio Grande 
do Norte e duas vezes ministro da Faxenda. 

Pertenceu ao Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, ao 
Instituto Histórico de França e a outras associações científicas 
e literárias. 

Bibliografia — A oposição e a Coroa, 1848 — O Uhelo do 
povo, por Timandro, 1849 — Pensamentoê acerca da condliaçào 
doa partidos, 1853 — QueatõcM sobre impostos, 1856 — Slemen- 
to servil. £ mais discursos na Câmara e no Senado e ainda ar- 
tigos nos muitos jornais que redigiu ou em que colaborou. 



74. Sobre a crise de 1848 

o que os liberais pleiteiam hoje nas margens do Be- 
beribe, debaixo do fogo da metralha, não é um interes- 
se local; é a causa do direito geral e do interesse comum: 
as liberdades do Brasil inteiro estão lançadas na mes- 
ma balança, em que ora pesam os destinos de Pernam- 
buco. Êle foi a primeira vitima arrastada ao altar do 
sacrifício; e, se sucumbir em sua resistência magnânima, 
igual sorte aguarda as demais províncias, onde ninguém 
se reputará seguro contra o furor da proscrição. 

O país o sabe e é por isso que a fermentação e o 
alarma derramam-se por todas as classes da população: é 
por isso que os cidadãos perguntam uns ao outros, cheios 
de ansiedade — quando e como terminará esta lide hor- 
rível entre o poder e a massa do povo? Onde estão as 
portas da saída desta desgraçada situação? 

A imensidade da crise que nos ameaça confunde a 
imaginação e não deixa abertas à mesma esperança, que 
em outras épocas do excesso dos males renascia. O des- 
potismo da tríplice aliança, embargando o curso das re- 
formas e dilacerando o país acabou com todas as solu- 
ções regulares do problema social e privou até do remé- 
dio ordinário sofrimentos para que são precisos meios 
heróicos e radicais. 

Gonsidere-se a lastimável posição de nossa Pátria I 
Uma constituição nominal, direitos sem exercício, inte- 



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^ 189 — 

resses sem satisfação, liberdades sem garantias, ministé- 
rios sem dogmas e sem nacionalidade; um senado vitalí- 
cio e facioso em plena revolta contra o princípio do go- 
verno, pretendendo-o transformar em oligarquia à ve- 
neziana; o direito de propriedade sem segufança, porque 
a justiça civil é distribuída por magistrados políticos, que 
sacrificam às paixões de partido a imparcialidade do jul- 
gamento; a justiça criminal entregue a inumeráveis har- 
pias de uma polícia que atropela, desípoja e escraviza o 
cidadão pacífico; a indústria nacional monopolizada pelo 
querido português, enquanto o povo, enjeitado, geme sob 
. a carga dos tributos que exige a dívida de 400 milhões, 
despendidos na bela empresa de afogar em sangue seus 
clamores e de enriquecer seus inimigos; a nação envi- 
lecida, desprezada, conculcada por uma corte que sonha 
com o direito divino e só respira a aura corrompida da 
baixeza, da adulação e do estrangeirismo; nada de ge- 
neroso, de nacional e de grande; nada para a glória, para 
a liberdade, para a prosperidade material; o entusiasmo 
extinto; o torpor do egoísmo percorrendo gradualmente, 
como a frialdade do veneno, do coração às extremidades e 
amortecendo as carnes mórbidas de uma sociedade que 
supura e dissolve-se. . . tal o estado do Brasil 1 

Mas quem acordará do letargo nossa independência 
natural» nossas tendências americanas, nossa vitalidade, 
nossas esperanças e nossa grandeza? Quem nos salvará 
desta grangrena social a que a política antiprogressista 
condenou-nos? Quem salvará a liberdade, das persegui- 
ções brutais sistemáticas do governo do privilégio? Quem 
fará da exceção a regra, do Brasileiro um cidadão e das 
forças de todos a base e o gônio do Estado? Quem? 

O ato de soberania nacional, que nomear uma As- 
sembleia Constituinte! 

Quando raiará o dia da regeneração? 

Quando estiver completa a revolução, que há muito 
se opera nas ideias e sentimentos da nação; revolução que, 
caindo gota a gota, arruinou a pedra do poder arbitrá- 
rio; revolução que não poderão conter, nem as cabalas 
palacianas, nem baionetas, nem a corrupção; revolução 
que trará insensivelmente a renovação social e política 
8em convulsões e sem combate, da mesma maneira que a 



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— 190 — 

natureza prepara, de dia em dia. de hora em hora, a mu- 
dança das estações; revohição, finalmente, que será o 
triunfo definitivo do interesse brasileiro sobre o capri- 
cho dinástico, da realidade sobre a ficção, da liberdade 
sobre a tirania! 

o Libelo do Povo — Tinuindro. — 3.* ed. — 
Lisboa — Tip. da Nação, 1870. 



TAVARES BASTOS 



ALAGOAS — 20.IV-1839 
t NICE — 8-Xn.l875 

Aureliano Cândido Tavares Bastos, notável publicista, dis- 
tinguiu-se ainda como parlamentar, tendo representado na Câ- 
mara dos Deputados a sua provinda natal de 1861 a 1868. 

Foi secretário de Saraiva na delicada missão especial no 
Uruguai . 

Tavares Bastos, desde os verdes anos apresentava cultura 
e aptidões extraordinárias. 

Bibliografia — Publicou: Cartas do Solitárío, O Vale do 
Amazonas j A Província, etc, além de opúsculos, discursos e ar- 
tigos políticog. 



75. A abertura do Amazonas 

Não há riqueza natural que se esperdice hoje. O in- 
teresse do mundo — eu diria — o princípio da civili- 
zação, do Evangelho, do Cristianismo, da verdade, igual- 
dade, — o bem estar dos povos regula o direito dos 
povos . 

Todas as questões internacionais resolvem-se hoje 
por este princípio. Da altura dele, tudo é pequeno, nada 
inspira interesse, nem o prejuízo dos reis, nem o orgulho 



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das dinastias, nem a cegueira da plebe, nem o egoísmo 
das oligarquias, nem o fanatismo dos padres. A política 
democrata, a política do. mundo, qual existe na cabeça de 
Bright e de Cobden, é combater o mal e favorecer o 
triunfo do bem. 

Os eixos do mundo foram de ferro, são hoje de raios 
de luz. A terra era um campo de batalha; é hoje o con- 
gresso dos povos livres. 

Liberdade! fraternidade! eis a palavra, meu amigo, 
que redemoinha* pelos golfos e pelos mares da Europa, 
atravessa o oceano, derrama-sé pelas índias, abraça-se 
com a América, arroja-se contra os gelos do Norte e as 
tempestades do Sul, murmura . nas virações, ouve-se no 
gemer das ondas, lê-se nos astros, soletra-se nas flores das 
campinas e sente-se enobrecer e consolar a alma huma- 
na, humilhada por tantos crimes, por tantos ódios, por 
tantos vícios, por tantas deshonras I . . . 

Penetrai no leito imenso do Amazonas, assisti à 
luta gigantesca da pororóca, estudai a fertilidade daque- 
las margens, a abundância, daquelas águas, a multidão 
daqueles rios, a extensão daquelas províncias, a varie- 
dade daquelas . florestas; combinai todas essas impres- 
sões, e dizei-me si aquilo pode ser um tesouro improdu- 
tivo de dois ou três povos somente, si aquela parte de 
um mundo que Colombo deitou aos pés da humanidade 
pode ser a propriedade exclusiva dos comerciantes e dos 
navegantes de alguns pequenos estados. 

Si a região amazônica é o que há na terra de mais 
portentoso e de mais incrível, como se concebe que deva 
ela permanecer inculta e inútil? Não pode o mundo civi- 
lizado fazer valer contra nós o mesmo direito com que 
arrancou as concessões do Celeste Império e domou o 
Japãb? 

Consideremos a outra face da questão. Um povo 
reduzido em número, raro em artistas, em agricultores, 
em operários, em construtores, em navegantes,, habita as 
margens do Amazonas. Si esse povo se comunicasse di- 
retamente com o europeu e com o norte americano, é 
fora de dúvida que teria mais barato o pão, mais cómo- 
do o pano, mais abundante o transporte, mais fácil a 



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^ 192 -^ 

vida. Si êle, porém, continua a ser explorado por um 
comércio mesquinho, pela pequena navegação de cabo- 
tagem ou por uma campanha privilegiada, é evidente que 
dificilmente crescerá, desenvolver-se-á, adquirirá, forças 
e acumulará capitais. Esse povo, ajudado pelo colono 
europeu ou pelo americano, aprenderia a arte da agri- 
cultura afeiçoar-se-ia à terra, abandonaria os hábitos da 
vida errante, engrandeceria o Estado e aumentaria as 
forças da nação. 

Não tem esse povo, portanto, o direito de exigir que 
o deixem viver livre, que não lhe suprimçim o ar, não 
lhe confisquem a luz? 

A questão é simples, é clara e não admite dúvidas. 
Venham agora responder a esse povo, contrariado no seu 
interesse, e à humanidade, ofendida nas suas pretensões, 
venham responder-lhes com as letras frias de tratados do 
tempo de Luiz XIV, com os ajustes das metrópoles de 
Espanha e Portugal, num século em que a antiguidade 
não é fiador de nada e está, pelo contrário, sujeita a 
fiança da utilidade geral, do interesse de todos, do bem 
estar do povo, esse abismo insaciável, que devora os tro- 
nos mais envelhecidos na história e as instituições mais 
arraigadas na índole, nos hábitos e nos prejuízos do 
mundo! 

Eis aí, amigo, o meu ponto de partida. Esboçan- 
do-o ligeiramente, excuso de pôr em evidência os corolá- 
rios da doutrina, que vós adivinhais melhor do que eu 
formularia . 

Não vos admire, entretanto, que eu tenha me eleva- 
do às nuvens para discutir uma questão que parece tão 
simples. Mas não é do cume dos Andes que se sente me- 
lhor a magestade do Amazonas e a imensidade do Pa- 
cífico? 

Vosso amigo, o 

SOUTÁRIO 

Março, 23. 

Cartas do Bolitário — Carta XXV. — 2.' edição 
— 1863 — Rio de Janeiro. 



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193 — 



D. ANTÓNIO DE MACEDO COSTA 

BAÍA ^ MABAOOGIPE — 7*V]II.1880 
tMINAS — BARBACENA ^ 21-in-1891 

D. António de Macedo Costa, orador sagrado e escritor, 
pela sua cultura e erudição, pela correçâo dos seus escritos e 
elevação de suas ideias, terá sempre um lugar distinto na his- 
tória da literatura brasileira. 

D. António tomou parte na célebre questão religiosa em 
que esteve empenhado D. Frei Viltal de Oliveira, bispo de Per- 
nanubuco; com este prelado, foi o bispo do Pará processado pelo 
governo Imperial e encerrado na fortaleza da ilha das Cobras 
(1873-75). 

E* (afirma-se) autor da notável pastoral coletiva dos bis- 
pos brasileiros, em que o episcopado declara aceitar a Repú- 
blica e Igual procedimento aconselha ao clero e aos fiéis. 

Bibliografia Pio IX, Pontifice-rei, Bala, 1860 — Resu- 
mo da Hiatória Bi&Iico, New York, 1872 — Direito contra di- 
reito ou o Estado sôhre tudo, 1874 — Compêndio da CiviUdaâe 
Cristã, 1880 — Catecismo da Doutrina Cristã, etc, além de 
sermões, de inúmeras caKas pastorais e discursos diversos, en- 
tre os quais merece menção: Discurso pronunciado em 28*IX> 
1888, por ocasião da entrega da Rosa de Ouro á Princesa 
imperial. 



76. Solução da questão religiosa 

Tal é o alcance imenso do doloroso conflito em que, 
já agora, nenhum homem pensador e amigo- de seu país 
pode ficar neutro. 

E* o choque de duas doutrinas que se encontram 
frente a frente. 

De um lado, o catolicismo verdadeiro, apoiando-se 
no magistério infalivel da Igreja; do outro lado, um 
catolicismo bastardo, apoiando-se no governo e na ma- 
çonaria. De um lado, a religião segundo o Evangelho e a 
lei eterna de Deus; do outro lado, uma religião segundo 
as constituições e as leis mudáveis dos homens. 



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— 194 — 

De um lado, a conciência católica reclamando para 
si o direito de crer livremente na Igreja de Jesus Cristo 
e obedecer-lhe; do outro lado, o regalismo despótico, de- 
clarando que ó um crime crer na Igreja e obedecer-lhe, 
sem o beneplácito de Gesar. 

De um lado, o (íireito de Deus, o direito da con- 
ciência humana, o verdadeiro e eterno direito; do outro 
lado, um pretenso direito constituído, um falso direito, 
que não é outra coisa senão o arbítrio dos políticos. 

Eis aqui a questão. 

Qual é o meio de resolvô-la? prosseguir no caminho 
das violências, das opressões e das tiranias? Povoar as 
gemonias de bispos, de sacerdotes, de católicos fieis; 
condená-los aos horrores do ostracismo, ou ao horror, inda 
maior, de um chisma? 

Isto é impossível. 

Não, repito com toda a convicção da minha alma, 
isto é impossível! 

Não estamos na Alemanha de Bismarck, nem na Suí- 
ça de Ceresole, estamos no Brasil, terra católica e livre. 
Pertencemos a uma nação pia, mansa, generosa, a cuja 
índole repugna os excessos daqueles déspotas revolucio- 
nários . 

A solução da questão religiosa resume-se numa só 
palavra : 

Liberdade! Dai liberdade à Igreja de Jesus Cristo! 
Ela não vos invade, ela não vos violenta; deixa-vos se- 
guir o vosso regalismo, ou quaisquer doutrinas ou seitas 
que queirais abraçar. Deixai-a também livre de regular- 
se conforme suas leis. 

Oh! bem-aventuradas cadeias, que darão de si a li- 
berdade da Igreja do Brasil! Bem-aventuradas opressões 
e injustiças, que estão despertando em tantas almas o 
fervor, que andava tão amortecido, das verdadeiras cren- 
ças católicas. 

O que parece um pôr de sol, é uma aurora! A Cruz 
núa do Calvário está anunciando uma ressurreição! Esta 
crise dolorosa, que a muitos se afigura mortal, é a pas- 
sagem para a vida! A Cruz irá seu caminho para o fu- 
turo, para um futuro esplêndido e glorioso, a-pesar-das 
trevas e desfalecimentos do presente. Ruja a tormenta 



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_ 195 — 

eiílbora, cerre-se a noife sobre este triste mundo, que pa- 
rece querer voltar para o paganismo. 

Os faróis estão acesos^ a costa toda iluminada! 

A doutrina católica se afirma em toda sua força, 
em toda a sua beleza. 

Havemos de transmitir a todos esta luz da verdade, 
que faz a felicidade de nossa vida. À força de sofrimen- 
tos, de esforços, de sacrifícios, meneando as armas pacífi- 
cas da oração e da palavra, conseguiremos chamar nossos 
irmãos desviados à suave comunhão da Igreja de Jesus 
Cristo. 

Quanto a mim, a-pesar-de ijiinhas cadeias, sinto-me 
feliz de viver para lutar e sofrer, de viver para dar um 
testemunho da fidelidade com que devemos servir à pá- 
tria do céu. Conde^èm-me os homens como um fascí- 
nora e um rebelde. 

Quando, com a mão trémula, eles tiverem lavrado 
e assinado minha sentença, firme na minha conciência, 
certo de ter feito o meu dever, olharei tranquilo para o 
céu e direi: 

"Apelo para a justiça de Deue!" 

Direito contra Direita ou o Estaclo sobre tudo (1874). 



FERREIKA VIANA 

PELOTAS — RIO CÍRANDE DO SUL» — Xl.V-1833 
t RIO DE JANEIRO — 10-IX-190S 

Jurisconsulto notável. Orador. Jornalista político 
O conselheiro António Ferreira Viana é uma das figuras 
políticas mais brilhantes e simpáticas do 2." reinado, onde ocupou 
importantes cargos: promotor público da côrte, vereador, mi- 
nistro da Justiça, deputado. 

Bibllogrrafia — Conferência dos Divinos, 1867 — lAhelos 
políticos, 1878 — E mais: Discursos parlamentares, orações no 
júri, no Supremo Tribunal, conferências religiosas e de cari- 
dade, além de artigos de Jornais. 



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— 196 ^ 



77. A obediência 

Reconheço que é tempo de falar-vos um pouco da 
obediência. Há na história um estigma, que se perpetua 
sobre a fronte do jesuíta — perinde ac cadáver. . . 

Mas não vi ainda mais bela nem mais florificadora 
legendai 

Que grandeza d^alma, que heroísmo sôbre-humano, 
que onipotência de vontade e de virtude encerra esta 
síntese! Ter o homem o poder de, vivo, fazer-se um ca- 
dáver pela obediência, pelo amor de seus irmãos e pelo 
serviço de Deusl E como se fora este, criar a própria 
vontade, dar à sua natureza um predicado sôbre-humano. 

Senhores, o espetáculo contristador da vida pública 
e privada; a baixeza e degradação da sociedade hodierna; 
as torpezas em que se abisma a liberdade; a nihilidade 
deplorável do homem nestes tempos tão preconizados, nos 
forçam a ter menos orgulho e muita modéstia, ou, antes, 
muita humildade. 

Mas. túmidos de vaidade, lançamos olhares desdenho- 
sos para os claustros e atacamos os pacíficos habitantes 
destas solidões abençoadas, por causa da obediência, im- 
posta pela disciplina: obediência que foi um dos florões 
da coroa do nosso Patriarca. 

Em nossos dias o servilismo — coisa diferente da 
obediência — é inseparável dos caracteres sem crenças, 
sem ideias e sem fó; corrompidos pelos vícios, enfraqueci- 
dos pelos deleites, escravizados à sordidez do interesse, 
submissos à onipotência do Estado, aos caprichos dos 
governos. 

Eis aí uma das faces do mimdo atual. 

A outra — é a revolta da vontade, são a impotência 
6 as estólidas pretensões da liberdade, as estéreis agita- 
ções dos povos, a hipocrisia do poder, ,que viola as leis, 
tiraniza os povos, e as aberrações irrisórias da ciência. 

Quando destas alturas contemplais o frade, que, por 
força da regra, presta ilimitada obediência ao superior, o 
condenais como um ente aviltado. Eu protesto em nome 
dos invioláveis direitos da conciôncia humana contra ôsse 
estigma, que parece queimar a fronte do jesuita. Eu pro- 



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— 197 — 

testo em nome da verdade e da justiça contra ^ssa irri- 
são, que o bom senso deste século deve repelir. 

Gomol Chamais aviltamento, chamais negação da li- 
berdade a obediência, que justamente é o ato que afir- 
ma poderosamente a firme resolução de minha vontade, o, 
reconhecimento de minha força, a mais alta proclamação 
da minha liberdade I 

O homem que voluntariamente se impôs o dever da 
obediência, não é um instrumento nôm um cadáver; é^ 
ao contrário, a vida e esplêndida encarnação duma gran- 
de virtude — a da abnegação! 

Dominar-se, ser senhor de si mesmo a ponto de se 
governar, de concentrar toda a energia da natureza em 
cumprir e observar a lei, que estabeleceu em sua conciên- 
cia, por escolha de sua razão, é o que só podem praticar 
as naturezas viris e heróicas I 

Estes heroismos são mais belos, mais grandiosos do 
que aqueles que a história rememora; são mais meritó- 
rios, embora passem ignorados e obscuros. 

Quando Múcio Scevola, mancebo audaz, queima co- 
rajosamente a mão no braseiro, os aplausos de vossa 
admiração o proclamam herói e grande patriota. 

O que neste ato provoca a vossa admiração? E* a 
energia da vontade; é a renúncia que faz da sua vida; ç, 
sem dúvida, o sacrifício e abnegação; é a beleza moral 
de uma ação que não sabeis praticar I... 

No homem que se curva k obediência — não por 
servilismo — mas pela ideia viva, imaculada e grandio- 
sa do dever; pelos votos de sua conciência em prol de 
uma causa sagrada; pela pureza e intensidade de sua fé, 
não podeis ver outra cousa senão a santidade de uma per- 
sonalidade enérgica, sublime e heróica. 

Equiparais o soldado ao frade; dizeis que são dois 
instrumentos de obediência passiva; duas matérias iner- 
tes, perinde ac cadáver: duas sombras que se movem ao 
capricho de uma força estranha! dois entes aviltados! 

Pois bem; há nestas injustiças inevitável punição; 
nunca fica triunfante a violação das leis supremas da 
verdade; o vitimado exeede em superioridade aos seus 
detratores.. . 

Antologia Brasileira 8 



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~ 198 — 

Quando o inimigo cerca a cidade, ameaça o vosso 
lar, calca o solo sagrado da pátria, devasta vossos cam- 
pos, polúe vossos altares, está prestes a degolar vossos 
filhos, quem vos salva a pátria, os altares, o lar e os 
filhos? Dizei-o: são as inimitáveis vítimas da abnegação, 
são esses soldados, que consagram a sua vida ao sacrifí- 
cio pela salvação do que vos é tão caro! Dizei — si eles 
são sombras, instrumentos, cadáveres, ou si são os heróis 
da grandeza moral da virtude maravilhosa da obediência! 

A pira do sacrifício está acesa; reune-se o capítulo, 
entra solene o geral, e, com seu dedo fatídico, aponta 
os frades, que devem correr a afrontar a morte inevitá- 
vel no meio das florestas, entre hordas ferozes. ' 

Os frades indicados curvam-se, obedecem, partem... 

Nem um murmúrio!... Lá se vão esses impávidos 
soldados da fé; esses apóstolos da lei evangelizando a pa- 
lavra da redenção, abrasa^dos no amor do próximo! 
Quanto é sublime essa resignação de uma obediência que 
aos estultos provoca riso e estigma; mas 'que as almas 
escolhidas admiram e veneram. 

Os séculos passam, as gerações sucedem-se, os már- 
mores gastám-rse: mas ainda correm os povos a contem- 
plar os s^nfiteatros, onde gotejara o sangue dos márti- 
res da fé, daqueles que, obedientes à lei divina, a soube- 
ram cumprir. Si a história, que guarda os estigmas, não 
lhes registra os nomes, a veneração e a piedade, porém, 
levantam-Ihes altares, a humanidade lhes consagra cultos 
e hinos de adoração! 

Da conferência aôbre 8. Francisco de Assis, na 
Ordem 3.» da Penitência. 



I 



GENERAL COUTO DE MAGALHÃES 

MINAS GERAIS — DIAMANTINA — l-XI-1837 ' 
t RIO DE JANEIRO — 14-IX.1898 

O general José Vicente Couto de Magalhães, doutor pela 
Faculdade de Direito de S. Paula em 1859. serviu como se- 
cretário do governo de Minas. 1860-1861; presidiu Goiaz. 186L- 



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^ 199 — 

1864; Pará. 1865-1866; Mato Grosso, em 1868, tempo da guerra 
do Paraguai, sendo então tan*bém comandante das armas; S. 
Paulo, 1889, de Junho a Novembro, até a proclamação da 
República. 

O general Couto de Magalhães, historiador, linguista, indla- 
nólogo, explorador dos nossos sertões, administrador, militar, 
político, escritor, foi com justiga reputado um sábio: poliglota 
era-o sem dúvida, pois falava o francês, o inglês, o alemão, o 
italiano, o espanhol, o tupi, e ainda outros dialetos indígenas. 

Pertenceu ao Instituto Histórico e a diversas outras asso- 
ciações literárias e científicas nacionais e estrangeiras. 

Bibliografia — Os Guaia/nazes ou a fundação de 8. Paulo, 
romance histórioco, 1860 — A Revolta de Filipe dos Santos em 
1820, 1862 — Viagem ao rio Araguaia, 1863 — Dezoito mil mi- 
lhas no interior do Brasil, 1872 — O aprendiz de maquinista, 1873 
— Ensaio de antropologia, 1874 — O Selvagem., Anchieta, a lín- 
gua e as raças dos indígenas do Brasil, memórias, relatórios e 
artigos de jornais e revistas. 



78. A língua Tupi 



Nenhuma língua primitiva do mundo, nem mesmo 
o sânscrito, ocupou tão grande extensão geográfica como 
o tupi e os seus dialetos; com efeito, desde o Amapá 
até o Rio da Prata, pela costa oriental da América me- 
ridional, em uma extensão de mais de mil léguas, rumo 
do norte a sul; desde o cabo de S. Roque, até a parte 
mais ocidental de nossa fronteira com o Peru, no Ja- 
varí, em uma extensão de mais de oitocentas léguas, es- 
tão, nos nomes dos lugares, das plantas, dos rios e das 
tríbus indígenas, que ainda erram por muitas destas re- 
giões, os imperecedores vestígios dessa língua. 

Confrontando-se as regiões ocupadas pelas grandes 
línguas antigas, antes que elas fossem línguas sábias e li- 
terárias, nenhuma encontramos nò velho mundo, Ásia, Afri- 
ca ou Europa, que tivesse ocupado uma região igual à 
da área ocupada pela língua tupi. De modo que ela pode 
ser classificada, em relação à região geográfica em que 
domina, como uma das maiores línguas da terra, senão 
a maior. / 

Pelo lado da perfeição, ela é admirável; suas for- 
mas gramaticais, embora em mais de um ponto embrio- 



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— 200 — 

liarias, sSo, contudo, tfio engenhosas que, na opinião de 
quantos a estudaram, pode ser comparada às mais céle- 
bres. Esta proposição parecerá estranha a muita gente, 
mas o curso que começo agora a publicar e que, com o 
favor de Deus, espero levar a cabo de um modo com- 
pleto, o deixará demonstrado. Muitas questões hoje obs- 
curas em filologia e linguística encontrarão, no estudo 
desta, que constitúe uma nova família, a sua decifração. 

Estas duas palavras tupi e guarani não significavam 
entre os selvagens que delas usavam, senão tríbus ou 
famílias que assim se denominavam. Estas duas expres- 
sões: língua tupi ou língua guarani, seriam como si nós 
disséssemos: a língua dos mineiros ou a língua dos 
paulistas . 

Si no Paraguai qualquer disser: guarani nhenhen, 
para traduzir a expressão — língua guarani, ninguém o 
entenderá, porque, para ôles, o nome da língua é : ava 
nhenhen, literal: língua de gente. 

Desde que o homem fale duas línguas, compreende 
que aqueles que não falam a sua se possam exprimir tão 
bem, quanto êle o faz na própria. Mas entre povos pri- 
mitivos, que não tinham a arte de escrever, e para quem 
as línguas estrangeiras eram tão ininteligíveis como o 
canto dos pássaros, ou os gritos dos animais, muito na- 
tural era que eles só considerassem como língua de 
gente a sua. própria. A expressão ava nhenhen, para ex- 
exprimir a língua falada por eles, mostra-nos que a ideia 
que tinham das outras é que elas não eram línguas de 
gente . 

Observa o sr. Max Miiller, com muita verdade, que 
nós, os homens do século XIX dificilmente podemos com- 
preender toda a influência que exerceu sobre as socie- 
dades bárbaras este admirável instrumento chamado 
língua. 

Para o selvagem, aquele que fala à sua língua é 
um seu parente, portanto, seu amigo, e é natural. 

Êle não tem ideia alguma da arte de escrever; não 
compreende nenhum método de aprender uma língua, 
senão aquele pelo qual adquiriu a própria, isto é: pelo 
ensino materno; por isso, quando um branco fala a sua 
lingua, éle julga que esse branco é seu parente e que en- 



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— 201 — 

Ire a gente de sua tríbu e na infância é que tal branco 
aprendeu a falar. 

Em uma das vezes em que os Gradaús apareceram 
à margem do Paraguai, eu acompanhei-os sozinho em 
uma longa excursão, levado pela curiosidade de obser- 
var grandes aldeamentos inteiramente selvagens; esses 
Gradaús achavam-se em número superior a mil, eram 
havidos por ferozes, e meus companheiros julgavam te- 
meridade visitá-los. 

Eu, porém, o fiz, sem coragem alguma, porque fa- 
lando um pouco da língua deles, tinha plena e absoluta 
certeza, não só de que minha vida não corria o menor 
risco, como eles me procurariam obsequiar por todos os 
modos; e assim sucedeu. 

Assim como, para o selvagem, aquele que fala a sua 
língua, êle reputa de seu sangue, e, como tal, seu amigo, 
assim também julga que é inimigo aquele que a não 
fala. O citado Sr. Max Môller nota: que entre todos 
os povos europeus a palavra que traduz a ideia de inimi- 
go significava primitivamente aquele que não fala a noí- 
sa língua; que muito é que o mesmo se desse entre os 
nossos selvagens? 

Foi partindo dôsse importante fato que os jesuítas 
em menos de cincoenta anos tinham amansado quasi to- 
dos os selvagens da costa do Brasil. 

Seu segredo único foi assentar a sua catequese na 
base do interprete, base esquecida pelos catequistas mo- 
dernos, que por isso tão pouco hão conseguido. 

Assim, pois, dizíamos que a palavra guarani não é 
o nome de uma língua e que a língua que nós designa- 
mos por esta expressão, eles designam como a de — lín- 
gua de gente ou ava nhenhen, O mesmo diremos a pro- 
pósito da língua tupi. 

Tupi era o nome de uma tríbu, que, ao tempo da 
descoberta, dominava grande parle da costa. 

Si dissermos a qualquer índio civilizado do Ama/o- 
nos: fale em língua tupi, êle não entende o que lhe que- 
remos dizer; para que êle entenda que queremos que êle 
se expresse na sua própria língua, mister é dizer-lhe; 



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— 202 — 

Renhenhen nhenhengatú rupi, literal : fale língua boa péla, 
isto é: fale pela língua bôa. 

Estes fatos fizeram-se adotar os vacábulos ava nhe- 
nhen e nhenhengatú para exprimir: o primeiro, a língua 
guarani; o segundo, a língua tupi. 

o Selvagem, 



RAMIZ GALVÃO 

BIO GRANDE DO SULi — 16.VI-1846 
-l- RIO DE JANEIRO — 9-m-1038 

Escritor, historiador e filósofo, o Dr. Benjamim Franklin de 
Kamiz Galvão bacharelou-se no Colégio Pedro II em I86I1 e dou- 
torou-se em medicina em 1866. Antigo professor de Botânica 
na Faculdade de Medicina e, mais tarde, lente de Grego no Co- 
légio Pedro II, exerceu ainda os cargos de diretor da Biblioteca 
Nacional, Diretor Geral de Instrução pública no Distrito Fe- 
deral, preceptor dos príncipes imperiais, filhos da Condessa d'Eu. 
Diretor do Asilo Gonçalves de Araújo. 

Foi do Instituto Histórico e da Academia Brasileira de 
Letras. 

Bibliografia — O púlpito no Brasil, Galeria ãa Historia Bra^ 
siJeira, Vocaòulário étÍ7nológico ortográfico e prosódico das pato- 
vras portuguesas vindas do grego, etc. 



79. Os livros 



A biblioteca é para o homem de letras o jardim 
de delícias, nem compreendo que haja espírito culto ca- 
paz de trocar as doçuras inefáveis, que nela se gozam, 
pelas honras mais aparatosas do mundo, a menos que 
obrigações particulares e deveres de outra ordem não im- 
ponham este sacrifício. 



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— 203 — 

O que se pode comparar na terra ao suave comér- 
cio com os livros — estes mestres que nos instruem sem 
castigo — veneráveis anciãos que nos abrem a cada hora 
o tesouro da sua experiência, ou virgens graciosas que 
nos oferecem todo o encanto das suas galas — amigos 
de todos os dias que, si os chamamos, acodem (i), si 
os interrogamos se não calam, si caímos em erro, aju- 
dam-nos, si os importunamos, não murmuram nem se 
negam? 

Sempre juntos de quem os ama, sempre fontes de 
consolação ou de alegria, os livros tanto deleitam ao ho- 
*mem feliz como suavizam as máguas do que padece os 
embates da fortuna (2) : àquele dirigem e desviam da 
torrente vertiginosa dos prazeres mundanos; a este desa- 
nuviam o espírito e confortam o coração ou seja atrain- 
do-o a cogitações de outra ordem, ou seja robustecendo-o 
na resignação e^ na própria dôr pelas lições da moral e 
pelos ensinamentos da história. 

O naturalista que perscruta os segredos da criação, 
estudando as formas misteriosas e sabiamente concate- 
nadas do mundo orgânico, ou devassando as origens e as 
aplicações utilitárias do reino mineral; o astrónomo que 
arranca dos céus as leis que regem o movimento dos 
mundos siderais; o artista que se extasia ante os quadros 
da natureza, e os imobiliza e perpetua na tela ou no 
mármore; o mecânico que segue pertinaz uma ideia, e 
projeta um invento; o matemático que consome noi- 
tes de vigília no descobrimento de um princípio genera- 



(1) — Rich. de Bury, Phnobiblon, cap. I: "Hi sunt ma- 
gistri, qui nos instruunt sine virgris et ferula, sine verbis et 
cholera, sine panis et pecunia. Si accedis. non dormlunt, si 
Inquirens interrogas, non se abscondunt, non remurmurant, si 
oberres, cacchinus nesciunt, si ignores. O libri soli liberales 
et liberi qui orani petenti tribuits. et omnes manumittilis volis 
sedulo servientes ! " As páginas deste livro estão cheias de con- 
ceitos síSbre o amor dos livros, e, posto de parte o estilo cle- 
rical e místico do seu autor, ninguém as percorrerá sero pra- 
zer e sem proveito. 

(2) — Rich. de Bury. op. cit., cap. XV: "Delectant libri 
prosperitate feliciter arridente; consolantur individue nubila 
fortuna torrente; pactis humanis robur attribuunt, nec feruntur 
sententiae graves sine libris". 



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~ 204 — 

lizador; o filósofo que estuda os arcanos do invisível; 
— todos êles têm no trabalho assíduo e nos gozos de sua 
obra um grande consolo e uma ocupação feliz. 

Mas o bibliotecário digno dôste nome, o devotado 
amador dos livros possue mais do que todos porque tem 
a seus pés o universo inteiro, o passado e o presente, o 
visível e o invisível; as formas da natureza tangível e os 
inúmeros sóis da imensidade, as belezas da criação e to- 
dos os inventos humanos, os cálculos e as fórmulas, os 
sistemas de todas as escolas, e as grandes verdades de 
toda a filosofia — ^ em uma palavra, o escrínio de todas 
as jóias amontoadas pelos séculos à custa do labor de 
um milhar de sábios. 

Que prazer se pode equiparar no mundo à contem- 
plação desta infinita riqueza, ao uso quotidiano dôste ma- 
nancial imenso que concretiza os esforços hercúleos da 
inteligência humana, ao cavar noite e dia nesta mina in- 
sondável, que produz à saciedade a gema preciosíssima 
e inapreciável do saber? 

Biografia de Fr. Camilo de Monserrate — 
Págs. 106-108. 



JOÃO RIBEIRO 

SERGIPE — LARANJEIRAS — 24-VI.1860 
t RIO DE JANEIRO — 18-IV-1084 

João Ribeiro, filósofo, professor de portugruês e lente de 
história no Colégio Pedro II, é um- dos nossos melhores prosa- 
dores, excelente cultor da língua; como poeta nâo é menos 
notável. Veio para o Rio de Janeiro em 1881. Lecionou pri- 
meiro em estabelecimentos particulares de ensino; em 1885 
entrou, após concursos, para a Biblioteca Nacional; entrou num 
concurso de português no Colégio Pedro IL em 188^7 e- em 
1890 foi nomeado para a cadeira de história. 

Pertenceu à Academia Brasileira — cadeira Pedro Luiz. 

Bibliografia — Tenebrosa Luz — Dias de Sol — JB3studo9 
Filológicos — Avena e Citara (1886), Morfologia e Colocação 



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— 205 — 

dos pronomes. Gramática Portuguesa — curso primário, curso 
médio, curso superior, — Dicionário Chram,atical; Bistória An» 
tiga. Oriente e Grécia; Autores Contemporâneos, História do 
Brasil — curso primário, curso médio e curso, superior — Seleta 
clássica, lAvros de Exercícios para o curso prmário de portu- 
guês, Frades feitas, dois volumes; Páginas de Estética, Páginas 
escolhidas da Academia Brasileira, Fahordão, Exame de admis" 
êão, com Haja Gabaglia, etc. 

Traduziu o Coração de Ed. de Amicis. 

Sscreveu nas principais revistas e Jornais do país. 



80. Como versar os clássicos? 



Parece razão áspera aos ouvidos, 
Camões — Luz, 



Head the book you do honestl^^ 
feel a wish and curiosity to read. 
Our wishes' are presentíments of our 
capabilities. 

Johnson. 



Perguntando-lhe alguém que livros havia de ler, res- 
pondeu Carlyle que em verdade a resposta era nenhuma. 
E suposto não haver nesse ponto alguma regra indispen- 
sável (acrescentava), o melhor seria seguir o velho con- 
selho de Johnson, a saber que cada um lesse o que lhe 
viesse à mente de ler, segundo a própria inclinação e na- 
tural apetite. 

Grande verdade esta, desconhecida e talvez raro pra- 
ticada: porque todo o alimento há de ser precedido de 
desejo e apetência ou não é alimento, não satisfaz nem 
se lhe aproveitam as qualidades nutrientes e talvez é ve- 
neno. E', pois, o livro que se intenta ler, o verdadeiro e 
o mais próprio e o mais desejado que se busca é tam- 
bém o inais conveniente que se alcança. 



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— 206 — 

Donde se tira e concilie que assim como há dife- 
renças entre os alimentos, assim as haverá quanto aos li- 
vros que formam a nutrição e mantimento do espírito. 
Mas há de todas as substâncias tais, uma que é principal 
e perene e da qual não se fala nunca. E* aquela que se 
não adia, não sofre interrupção ou estorvo e é sustento 
contínuo e perpétuo da vida; é, enfim, o ar, ôste mesmo 
ar que respiramos. Sem este, tudo o mais seria inútil e 
impossivel . 

Si, pois, há os que não querem (ou não possuem 
a inclinação própria) ou não desejam ler os clássicos, ver- 
sá-los e meditá-los com amor, a razão é que a nós outros 
nos falta o ar,, a atmosfera própria em que viveram os 
grandes escritores da nossa língua. 

Mas essa falta também pode ter o seu remédio. 

E' mister não só ler, mas viver, conviver, respirar e 
conspirar com os clássicos no mundo em que se moveram 
e comoveram. 

Então a leitura, transposta a séculos, é decerto uma 
arte difícil e para poucos; não é linear, e há de ser sen- 
tida em duas dimensões do tempo: o passado no pre- 
sente e até, si se lhe ajunta algum dom profético, no 
futuro. 

Os livros antigos, não só a Odisseia ou a Eneida, 
mas falo dos clássicos da nossa língua, exigem e re- 
querem essas necessárias transfigurações com os seus ce- 
nários já mortos. 

Não são, pois, o alimento comum da turba que lô 
a salário e jornal, dia por dia, a qual se não vê para 
diante, também não vê para trás, que tudo é um, e é a 
mesma cegueira. 

Os nossos clássicos escreviam com lenteza e com va- 
gar é que compunham. Não podem, pois ser devorados 
dum trago como os livros de hoje improvisados num 
lanço. Aquilo que com vagar se compôs, durante anos 
se castigou e poliu, do esboço a derradeira mão, guarda 
sempre coisas e ideias, subentendidas, elipses e segredos 
mentais e rascunhos de palimpsestos, sentimentos ines- 
critos, outrora claros e hoje invisíveis, que é mister 
subentendidos, aclarados, decifrados, resuscitados, enfim, 
na própria atmosfera em que brilharam à luz. 



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— 207 — 

Não é, pois, compreendê-los o mero rastejar pela 
rama sem penetrar o subsolo, que era outrora ao lume 
da terra, e no qual agora se sepultam profundos como 
raízes . 

Naquele evo, a medida era outra e outra era a ba- 
lança do mundo. A Guerra e a Fé imperavam e, ao cre- 
pitar do lume doméstico, outras histórias não se contavam 
que as dos soldados e dos monges. 

E só assim, a quem faça a experiência d'alma daque- 
le tempo, é que os clássicos poderão ser exemplares de 
clareza e suavidade. Então, ó surpresa e milagre! Tudo 
ressurge e se anima! a floresta mirrada reverdece e desa- 
botoa toda em flor, revivem os pastores e os montes, os 
cavaleiros e os santos; acordam todos os ecos das fon- 
tes e dos ventos que andavam movendo os álamos e as 
madre-silvas... 

E superior a todas, -acorda a voz do homem, do poeta 
e do artista, com as suas ricas e copiosas caudais da 
eloquência e da poesia, com o seu estilo breve ou er- 
guido, galante ou fero, em todo o luzimento de seus 
mais finos quilates. 

Foi essa, decerto, a língua do pequenino Portugal, que 
como flor perfumada rebentou na extremidade da árvo- 
re do mundo antigo, flor que havia de voltar a corola e 
o pólen para os oceanos desconhecidos. 

Foi essa, e não outra, a língua que primeiro pra- 
guejou com a tempestade oceânica e a primeira que tra- 
duziu a alma das imensas distâncias, a saudade. . . 

Foi também a primeira que com os seus destemidos 
lusiades, bracejando sobre as ondas, levou o anúncio da 
Fé e da Civilização às terras incógnitas . . . Porque muito 
maior que as civilizações que se sepultam comias suas 
ciências e vaidades, é aquela que ama e se reproduz e 
se revê nos filhos e na eternidade da história. 

E como, pois, dizer que a língua dessas almas e 
dessas energias, à qual (como dizia João de Barros) 
pertenciam "a monarquia do mar e o tributo dos infiéis" 
não é mais digna do progresso e do presente? 

A verdade é que nós e o presente não somos mais 
dignos dela. À energia dos que fecundaram os desertos 



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— 208 — 

e fundaram novas pátrias sucede agora o frio terror de 
perdermos a que temos e talvez a não sabemos ter. 

Já se exalta o que impiamente rouba a alma alheia 
de outras literaturas e não se poupam tolos escárneos ao 
qjue dispõe das riquezas maternas que por direito de he- 
rança lhe pertencem. 

Esse confronto é como um alvorecer de evidências 
malsãs. Seja. Mas não se chame progresso a expiação 
ou a má fortuna daqueles que há quatro séculos eram 
capitães e hoje não podem ou não querem ser mais que 
soldados e bandoleiros. 

Paginou de Matética, X4sboa, 1905. 



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TIL msTOBii E mmm 



ROCHA PITA 

OIBADB DA BAf A, — a.V-1660 
t BAIA, — 2-XI-1788 

Já, na sua idade madura, tomou Sebastião da RocKa Pita 
a resolução de escrever a história do Brasil; então, na Baía, Rio 
de Janeiro e S. Vicente examinou as livrarias e oa arquivos 
dos conventos e das Câmaras Municipais; partiu ainda para 
Ldsboa, onde fez pesquizas Importantes e onde também se dedi- 
cou ao estudo do francSs, italiano e holandês.. B foi assim que 
publicou a sua História da América Portuguesa, obra de real 
valor e baseada em ' documentos e que lhe valeu ao seu autor 
ser nomeado, em recompensa, membro da Academia de História 
de Portugal e cavaleiro da Ordem de Cristo. 

Foi um patriota sincero, historiador conciendoso e amante 
entusiasta da sua terra. 

Bibliografia — História da América Portuguesa, desde o 
ano mil e quinhentos, do seu descobrimento, até o de niil sete- 
centos e vinte e quatro, Lisboa, 1730. — Além de versos è 
outros escritos, existe ainda do historiador baiano, o Tratado 
Político, inédito de propriedade de Salvador de Mendonça, se- 
gundo nos informa Oliveira Lima, nos Aspectos da Literatura 
Colonial do Brasil, 



81. O Brasa 

Do novo Mundo, tantos séculos escondido e de tantos 
sábios caluniado, onde não chegaram Hanon com as suas 
navegações, Hércules Libico com as suas colunas, nem 



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— 2i0 — 

Hércules Tebano com as suas empresas, é a melhor porção 
o Brasil: vastíssima região, felicíssimo terreno, em cuja 
superfície tudo são frutos, em cujo centro tudo são 
tesouros, em cujas montanhas e costas tudo são aromas, 
tributando os seus campos o mais útil alimento, as suas 
minas o mais fino ouro, os seus troncos o mais suave 
bálsamo e os seus mares o âmbar mais seleto; admirável 
país, a todas as luzes rico, onde prodigamente profusa a 
natureza se desentranha nas férteis produções, que em 
opulência da monarquia e benefício do mundo, apura a 
arte, brotando as suas canas exprimido netar e dando as 
suas frutas sazonada ambrozia, de que foram mentida som- 
bra o licor e a vianda que aos seus falsos deuses atribuía 
a culta gentilidade. Em nenhuma outra região se mostra 
o céu mais sereno, nem madruga mais bela a aurora; o 
sol em nenhum outro hemisfério tem os raios mais dou- 
rados, nem os reflexos notumos tão brilhantes; as estre- 
las são as mais benignas e se mostram sempre alegres; 
os horizontes, ou nasça o sol, ou se sepulte, estão sem- 
pre claros; as águas, ou se tomem nas fontes pelos campos, 
ou dentro das povoações nos aquedutos, são as mais puras : 
é, enfim, o Brasil terreal paraíso descoberto, onde têm 
nascimento e curso os maiores rios; domina salutífero 
clima; influem benignos astros e respiram auras suavís- 
simas, que o fazem fértil e povoado de inumeráveis ha- 
bitadores, posto que, por ficar debaixo da tórrida zona, 
o desacreditassem e dessem por inhabitavel Aristóteles, Cí- 
cero e Plínio; e, com os gentios, os padres da igreja S. 
Agostinho e Í3eda, que, a terem experiência deste feliz 
orbe, seria famoso assunto das suas elevadas penas, onde 
a minha receia voar, posto que o amor da pátria me dè 
as asas e a sua grandeza me dilate a esfera. 

Jaz o opulento império do Brasil no hemisfério an- 
tártico, debaixo da zona tórrida, correndo do meio dela 
(em que começa) para a parte austral ao trópico de Ca- 
pricórnio, donde entra na zona temperada meridional 
grandíssimo espaço. É de forma triangular: principia 
pela banda do Norte do imenso rio das Amazonas e ter- 
mina pela do Sul, no dilatadíssimo rio da Prata; para 
o Levante o banham as águas do Oceano Atlântico; para 
o Ocidente lhe ficam os reinos de Congo e Angola, e 



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— 211. — 

tem por antípodas os habitadores da Áurea Chersoneso, 
onde está o reino de Malaca. 

Na sua longitude grandíssima contam os cosmógra- 
fos mil e cincoenta léguas de costa, a mais formosa que 
cursam os navegantes; pois em toda ela e em qualquer 
tempo estão as suas elevadas montanhas e altos arvoredos 
cobertos e vestidos de roupas e tapeçarias verdes, por 
onde correm inumeráveis caudalosos rios, que em copiosas 
e diáfanas correntes precipitam cristais nas suas ribei- 
ras ou levam tributo aos seus mares, em que há grandes 
enseadas; muitos e continuados portos, capacíssimos dos 
maiores baixeis e das mais numerosas armadas. 

A sua latitude pelo interior da terra é larguíssima; 
mais de quatrocentas léguas se acham já cultivadas com 
as nossas povoações, sendo muitas as que estão por desco- 
brir. Este famoso continente é tão digno das suspensões 
humanas, pelas distâncias que compreende e pelas rique- 
zas que contém, como pelas perspectivas que mostra;, por- 
que até em algumas partes, em que por áspero parece im- 
penetrável, aquela mesma rudeza, que o representa horrí- 
vel o faz admirável. 

História da América Portuguesa. 



CAPISTRANO DE ABREU 



CEARA' — 23-X.1858 

t MO DE JANEIRO — 18-Vm-1927 



João Capistrano de Abreu, historiador, geógrafo, foi lente 
por concurso, do Colégio Pedro II, cargo em- que se aposentou. 

Grande estudioso de nossa história e de nossa geografia, 
que conhecia como poucos. Capistrano de Abreu muito con- 
correu para o progresso desses estudos entre nós, já divul- 
gando e anotando os trabalhos a respeito, publicados no estrangei- 
ro, já dando à luz estudos próprios, baseados em documentos en- 
contrados rios arquivos e bibliotecas, comentando-os e vulgarl- 



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— 212 — 

zando-os. Trabalhou na Biblioteca Nacional, à qual prestou 
serviços relevantíssimos. 

O erudito professor foi ainda um grande conhecedor da 
história da literatura brasileira. 

Pertenceu áo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. 

Bibliografia — O Brasil no SéctUo XVI (1880); De9COl)ri' 
mento do BratU (1888); A Geografia Física, de Wapoeus, refun- 
dida e condensada, com a colaboração de Vale Cabral, Derby, 
Saldanha da Gama. Homem de Melo, Martins Costa. etc. (1884); 
Geografia Oeral do Brasil, de W. Sellin, traduzida e muito acres- 
centada (1889); A língua dos bacaerís; Sôhre uma história do 
Ceará; Viagens pelo Brasil; Memórias sobre o descobrimento 
do Brasil; História Geral do Brasil, do Visconde do Porto Se- 
guro^ revista e anotada; Capítulos de História ColoniaJ. 

Colaborou na imprensa diária e periódica: ''Gazeta de Notí- 
cias'', Jornal do Comércio**, "Revista Brasileira**, etc. 



82. Descobrimento 4o Brasil 



Comandando uma armada de treze navios, partiu 
(Cabral) de Belém segunda-feira, 9 de Março de 1500. O 
domingo passara-se em festas populares. O rei tivera a 
seu lado na tribuna o capitão-mór, pusera-lhe na cabeça 
um barrete bento mandado pelo papa, entregara-lhe uma 
bandeira com as armas reais e a cruz da Ordem áe Cristo, 
a Ordem de D. Henrique, o descobridor. 

Sentia-se bem a importância desta frota, a maior saí- 
da até então para terras alongadas. 

Mil e quinhentos soldados, negociantes aventurosos, 
aventureiros, mercadorias variadas, dinheiro amoedado, 
revelavam o duplo caráter da expedição: pacífico, si na 
índia preferissem a lisura e o comércio honesto, beli- 
cosa si quisessem recorrer às armas. Alguns francisca- 
nos, tendo por guardião frei Henrique de Coimbra, co- 
municavam ao conjunto a sagração religiosa. 

A 14 foram avistadas as Canárias, a 22 as ilhas de 
Cabo Verde. Um mês mais tarde, a 21 de Abril, boiaram 
ervas marinhas muito compridas, sinais de proximida- 
de de terra, no dia seguinte confirmados por aves, e rea- 



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— 213 — 

lizados à tarde. "Neste dia, a horas de véspera, houve- 
mos vista de terra: primeiramente dum grande monte 
mui alto e redondo e doutras serras mais baixas do Sul 
dele, e de terra chã com grandes arvoredos, ao qual 
monte alto o capitão pôs nome o monte Pascoal", es- 
creve Pêro Vaz de Caminha, testemunha de vista, escri- 
vão da feitoria a fundar em Calecut. Ao sol posto surgi- 
ram em 23 braças, ancoragem limpa. O monte Pascoal, 
no Estado da Baía, é visivel a mais de sessenta milhas 
do mar. Na quinta-feira continuou a derrota lenta e cuida- 
dosamente, indo os navios menores adiante, sondando. 
À distância de meia légua, em direito a • boca de um rio, 
fundearapa. Nicolau Coelho, companheiro de Vasco da 
Gama, desembarcou e pôde observar alguns naturais, 
atraídos pela curiosideiíe, dar e receber presentes. 

Um Sudoeste, acompanhado de chuvaceiros mostrou 
a convenijência de procurar situação mais abrigada. Sexta- 
feira velejaram para o Norte, os navios maiores mais afas- 
tados, os navios menores mais chegados à terra: ao pôr 
do sol, em distância de dez léguas, encontraram um reci- 
fe, abrigando um porto de larga entrada. "Ao sábado 
pela manhã mandou o capitão fazer vela, e fomos deman- 
dar a entrada, a qual era muito larga e alta, de 6 e 7 
braças e entraram todas as naus dentro e ancoraram-se 
em 5 e 6 braças, a qual ancoragem dentro é tão grande 
e tão fremosa, e tão segura que podem jazer dentro mais 
de duzentos navios e naus". O nome de Porto Seguro, 
dado pelo capitão-mór, resume bem suas impressões: ain- 
da o conserva uma localidade vizinha. Em um ilhéu da 
baía, coiístruído um altar, cantou-se missa domingo da 
Pascoela, 26. Frei Henrique pregou sobre o Evangelho 
do dia. A ressurreição do Salvador, as aparições miste- 
riosas aos discípulos, a incredulidade de Tomé, o após- 
tolo das índias, diziam bem com a situação estranha. No 
fim da pregação o frade "tratou da nossa vinda, e do 
achamento desta terra, conformando-se com o sinal da 
cruz, sob cuja obediência viemos". A bandeira de Cristo 
com que o capitão-mór saiu de Belém, esteve sempre 
alta à parte do Evangelho. 

Reuniram-se a bordo da capitânea os comandantes 
dos outros navios, e o capitãó-mór perguntou si conviria 



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— 214 — 

mandar a el-rei a nova do achamento da terra pelo navio 
de mantimentos, para S. A. a mandar descobrir. Concor- 
daram que sim. Os dias seguintes passaram-se na baldea- 
ção dos géneros e na lavrança í|e uma cruz para assina- 
lar a posse tomada em nome da coroa de Portugal. 

A cruz foi chantada a 1 de Maio; a 2, partiram o 
navio mandado ao Reino e a poderosa frota para a índia, 
deixando lacrimosos dois degredados incumbidos de in- 
quirirem da terra e irem aprendendo a língua; alguns 
marujos (^esertaram, segundo parece. 

Capítulos de História Colonial — M. Orosco & 
C, impressores — 1907. 



PEREIRA DA SILVA 

ESTADO DO RIO — I6UASSU* — 30-Vni.l817 
t PARIS — 14-VI-1898 

João Manuel Pereira da Silva tem. como historiador, o seu 
lugar determinado na história de nossa literatura. Os críticos 
e antologistas, que todos lhe apontam os defeitos como histo- 
riador, £U3 falhas do escritor, são entretanto, acordes em re- 
conhecer-lhe certas qualidades e méritos incontestáveis. 

Além de ter pertencido a várias associações letradas na- 
cionais e estrangeiras, foi do Instituto Histórico e Geográfico 
Brasileiro e da Academ-ia Brasileira — cadeira Sousa Caldas. 

Bibliografia — Publicou, entre muitas outras obras: Varões 
ilustres do Brasil durante os tempos coloniais. História da fun^ 
dação do Império Brasileiro, A História e a Legenda, trabalhos 
de crítica literária, discursos, etc. 



83. O nome de "Brasil" 

Cumpre aproveitar a ocasião para explicar as razões 
por que se trocou o nome da terra descoberta, ou me- 
Ihormente, achada por Cabral, e a qual êle intitulara 
Vera Cruz, nome trocado ao depois pelo de Santa Cruz, 



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— 215 _ 

e por fim desaparecido diante do de Brasil, que lhe 
ficou, mau grado dos portugueses conquistadores. A prio- 
ridade do descobrimento efetuado por Pinzon, meses 
antes de Cabral, considerou o governo espanhol acaso e 
declarou que, sendo em terra que devia pertencer a Por- 
tugal, a esta nação cedia quaisquer direitos que lhe cou- 
bessem . 

Não se suscitaram, pois, dúvidas nem conflitos, 
a-pesar~de ser o Brasil avistado e empossado antes por 
Pinzon, em nome da Espanha. 

Desenvolvendo desde logo os franceses mais ou me- 
nos regular navegação pelas costas e formando o seu me- 
lhor comércio a madeira que lhes proporcionava e aos 
portugueses maiores vantagens, e que apelidavam 6ra- 
sil, por causa de ser vermelha como brasas de fogo e de 
produzir uma tinta encarnada de precioso valor, ma- 
deira que anteriormente a Europa recebia das índias, por 
via do Egito e da Siria, persistiam, no entanto^ em 
chamar ao país Brasil, e em cartas geográficas, que es-- 
palhavam, por este título faziam conhecer a terra. 

Que importava aos europeus que o dono chamasse 
à sua propriedade diferentemente? Desde o princípio do 
século corriam mapas geográficos fabricados em Fran- 
ça e Alemanha, desenhando o país como uma ilha e sus- 
tentando-lhe a denominação de Brasil. 

Não se sabia ainda na Europa que a América for- 
mava um continente próprio, separado da Ásia, correndo 
do pólo sul ao do norte. 

Eram por todos os povos reputadas índias Ociden- 
tais as terras que os espanhóis, portugueses e ingleses 
haviam descoberto ao ocidente do Oceano Atlântico, e 
que os franceses e até os holandeses trataram logo igual- 
mente de visitar, em procura de riquesas e aventuras . Não 
se conjeturavam todos os descobrimentos anteriores na 
• América, ilhas separadas da Ásia, e derramadas por suas 
costas em maiores ou menores distâncias? 

Bem que em seu tempo ainda os governos, o povo 
e os escritores portugueses porfiassem em chamar sua 
conquista de Santa Cruz; a-pesar-de que o famoso histo- 
riador João de Barros, infeliz donatário de uma das capi- 
tanias doadas por D. João III, estigmatizasse com a sua 



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— ái6 — 

voz poderosa os ignorantes e teimosos, que a apelida- 
vam Brasil, vingou esta denòminaçSo dos navegantes 
franceses, desenvolvida a propaganda pelas cartas geo- 
gráficas. 

Foi, por fim, Portugal compelido a acompanhar o 
título de crisma e a deixar em olvido o de batismo com 
que a mimoseara. 

Não sucedeu o mesmo à América, a preciosa coló- 
nia descoberta por Colombo em 1492? 

Na História e na Legenda — Primeira série. 



GONÇALVES DIAS 



I2STADO DO HABANHÂQ — CAXIAS — 
10-Vin.l828 — 8-XI-1864 

O maior poeta lirica brasileiro — na literatura nacional, 
representa António Gonçalves Dias na poesia, o mesmo impor- 
tante papel que Alencar no romance: o cantor dos Timbiras o 
o romancista de Iracema têm a face comum do indkunism^; o 
maranhense foi ainda um dos chefes do movimento que liber- 
tou as nossas letras do velho classicismo portusruês. 

Gonçalves Dias completou os seus estudos em PortugaJ» 
para onde partiu em 1838. 

Formou-se em Coim-bra. De volta ao Maranb&o em 1845 
no ano seguinte veio ao Rio de Janeiro pela primeira ves. 

Lecionou história pátria e latinidade no Colégio Pedro II. 
Em comissão do governo voltou à Europa em 1855. 

Em 1«62, doente, pela terceira vez partiu para a Europa 
em busca de naelhoras; regressou, sem as ter conseguido, em 
1864, embarcando no Havre em Setembro. 

António Gonçalves Dias, nascido a 10 de Agosto, morreu 
n&ufrago do Ville de Boulongne, que abriu água nos baixos dos 
Atins, próximo ao farol de Itacoloml (3 de Novembro). * 

Bibliografia — Primares Oantos, Segundos Cantos e Sexti" 
lhas de Fr. Antão, Últimos Cantos, Os Tim,hiras, Dicionário da 
língua tupi (Leipzig); Arnazonàs; Obras póstumas (Maranhão 
— 1868-1869); A noiva de Messina, de Schiller, tradução; — 
Meditação, em estilo bíblico; — Leonor de Mendonça, Beatriz 
Cenci, Boahdil, PathiUl — ^ dramas; — História dos JesuÂtas no 
Brasil, inédito; além de artigos nQ Guanabara, por êle redigido, 
e na Revista do Instituto Histórico, e outras revistas e jornais. - 



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— 217 



84. O Indígena do Brasil na época do 
descobrimento 

Aproximava-se o tempo em que o novo mundo, por 
tantos séculos ignorado, ia como surgir do meio das on- 
das e aparecer rico de toda a juventude da natureza em 
suas louçanias aos olhos dos mortais assombrados. Co- 
lombo acrescentaria um mundo novjo ao mundo anti- 
go e Pedro Alvares, afastado da sua derrota, e impelido 
pelas grandes correntes do Oceano, vinha aportar às ter- 
ras de Santa Cruz, e com a sua descoberta provar à hu- 
manidade vaidosa de suas anteriores conquistas, com esta 
que não é de todas a somenos, que o acaso, o destino, 
a fatalidade valem mais muitas vezes, do que as fôroas 
todas da inteligência, combinadas com os esforços da co- 
ragem, da perseverança e da magnanimidade. 

No entanto a linha marítima formada pelos invaso- 
res tupis estendia-se por todo o litoral: a invasão tinha 
chegado ao seu termo e todavia o movimento comuni- 
cado a essas massas de tríbus divididas continuava na 
mesma direção, como para provar de que ponto haviam 
partido. Pará, Maranhão, Geará, só mais tarde foram vi- 
sitadas dos europeus. Do Rio Grande dos Tapuias para 
o Sul ficavam os Potiguares, demorando os limites das 
suas terras entre ôste rio e a baía da Traição na Pa- 
raíba, por eles chamada Acajutibiro (i) ; mas suas corre- 
rias passavam Itamaracá e chegavam até Pernambuco. 
"Povoado esse rio (da Paraíba), escreveu o autor d'A 
Noticia do Brasil, ficam seguros os engenhos da capitania 
de Itamaracá e alguns da de Pernambuco, que não la- 
vram com temor dos Pitaguares". 

••Faziam guerra, não só aos Tabajaras — acrescenta 
Jaboatam — mas também aos Caetés, que tiveram de 
ceder-lhes o campo na Paraíba**, até que foram ambos 
lançados de Goiana e Itamaracá, e depois também de 
Olinda de Pernambuco, e "nisto (diz o autor) mostravam 
ser guerreiros atrevidos e ambiciosos". 



(1) — Acajú, fruto; W6a abundância; r'v. rio — N. do autor. 

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— 218 ~ 

Os Caetés, porém, batidos pelos Potiguares na Pa- 
raíba, continham os Tabajaras em Pernambuco, chega- 
vam até o rio de S. Francisco, cuja margem esquerda lhes 
pertencia; obedecendo ao mesmo impulso faziam guerra 
aos Tupinambás, que ficavam da outra banda do rio. Em 
canoas de peri-peri, atadas com timbós, que não tinham 
capacidade para conter mais de dez ou doze pessoas, atra- 
vessavam o rio e vinham ao longo da costa assaltar os 
Tupinambás. Destes, diz Jaboatam que traziam guerra 
com os Caetés, mas só quando procurados por eles. E 
suposto se jactassem de ser os primeiros povoadores da 
costa, o mesmo autor opõe-lhes igual pretensão da parte 
dos Tabajaras, pretensão que reputa mais bem fundada. 

Os Tupiniquíns demoravam além dos Tupinambás 
para o Sul, começando o seu território em Cananéia e 
acabando em Porto Seguro. Se os não vemos apertados 
pelos Tupinambás, é porque já os Aimorés haviam des- 
cido de suas terras e os tinham em contínuo alarme; no 
entretanto, para prova de que também eles caminhavam 
na direção Norte-Sul, Laet nos refere que os Tupiniquíns, 
estabelecidos ali havia muitos anos, tinham sido expul- 
sos de Pernambuco. 

Entre os Tupiniquíns e os Tamoios e entre estes úl- 
timos e os Carijós, há como uma solução de continuida- 
de; as tríbus que mais os hostilizavam vinham do interior 
e tomavam, portanto, direção diferente: caminhavam 
do ocaso para o oriente e, chegando ao litoral, tomavam 
indiferentemente um ou outro rumo, para o Norte ou 
para o Sul. 

Os Tupiniquíns ligaram-se com os portugueses con- 
tra os Tamoios do Rio e Cabo-Frio. Os Papanazes, que 
ficavam entre Porto Seguro e Espírito-Santo, retiraram- 
se diante deles, até confinarem com os Goitacazes, que 
se estendiam desde ^erigtiga (quinze léguas ao Sul do 
Espírito-Santo) até a Paraíba do Sul. Da Paraíba até 
Angra estavam os Tamoios e depois deles vinham os 
Goianazes, que confinavam por um lado com os Carijós 
e por outro tinham guerra com os Tamoios, mas só quan- 
do provocados. 

Os Carijós, no entanto, continuando na sua emigra- 
ção, faziam pelo lado do Prata uma corrente contrária à 



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— 219 — 

que pouco tempo depois se observou no Amazonas. En- 
quanto os Tupinambaranas desciam este rio e se estabele- 
ciam no Madeira, fugindo, segundo se escreveu (i), à re- 
cordação do insulto que um dos seus tinha recebido dos 
espanhóis, sendo açoitado pelo furto de uma vaca, — á)s 
Guaranis, sob a denominação de Ghiriguanos, chegavam 
até os Andes, cuja desmarcada altura não era obstáculo 
seguro às suas correrias e depredações. 

Si a pressão dos indígenas do norte para o sul -^ 
pressão que ainda podemos observar, bem que a socieda- 
de Tupi já tivesse tido um começo de desmoronamento, 
se isto, digo, não ó por si só prova bastante da direção 
que em sua marcha deverão ter levado os conquistadores 
Tupis, serve ao menos de auxiliar e, porque assim o di- 
gamos, de completar as outras provas que em outros lu- 
gares apresentamos. 

Tal era, aproximadamente, a distribuição dos grupos 
indígenas do Brasil, quando o acaso dilatou, de um modo 
tão inesperado, os domínios já tão extensos do felicíssi- 
mo rei de Portugal. 

^ Ol>raa Póstumas, Vol. VI. 



FR. VICENTE DO SALVADOR 



BAÍA — MATUIM — 1564 
t entre 1686 — 1639 

Fr. Vicente do Salvador (Vicente Rodrigues Palha, antes 
de professar) doutorou-se em Coimbra, ordenou-se na Baía e 
professou na ordem franciscana em 1599. Deixou duas obras: 
a Crónica da Custódia do Brasil, cujo paradeiro se Igrnora, e 
uma História do Brasil, mandada publicar em 1889 pela Bi- 
blioteca Nacional. Si a História do BraMl não repovoa sô'bre 
estudos arquivais, tem entretanto qualidades superiores, como 
observou Capistrano de Abreu: é escrita em tom, popular, quasi 
folclórico . . . 



(1) — Gomberville, Relation de la rivière des Amazonea. 



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— 220 — 



85. Fundação do Rio de Janeiro 

Posto que o governador Mem de Sá não estava ocio- 
so na Baía, não deixava de estar com o t)ensamento nas 
cousas do Rio de Janeiro, e assim sacundindo-se de todas 
as mais, aprestou uma armada, e com o bispo D. Pedro 
Leitão, que ia visitar as capitanias do Sul, que todas em 
aquele tempo eram da sua diocese e jurisdição, e com 
toda a mais luzida que pôde levar desta cidade, se em- 
barcou e chegou brevemente ao Rio, onde em dia de 
S. Sebastião, 20 de Janeiro de ano de mil e quinhentos, 
e sessenta e sete, acabou de lançar os inimigos de toda 
a enseada, e os seguiu dentro de suas terras, sujeitando-os 
a seu poder e arrasando dois lugares em que se haviam 
fortificado os franceses, posto que em um deles, que foi 
na aldeia de um índio principal chamado Iburaguassúmi- 
rim, que quer dizer "páu grande pequeno", lhe feriram 
seu sobrinho Estácio de Sá de uma mortífera flechada, 
de que depois morreu. 

Sossegadas as cousas da guerra, escolheu o governa- 
dor sítio acomodado ao edifício de uma nova cidade, à 
qual mandou fortalecer com quatro castelos, e a barra 
ou entrada do Rio com dois; chamou a cidade de S. Se- 
bastião, não só por ser nome de seu rei, sinão por agra- 
decimento dos benefícios recebidos do Santo, pois a vi- 
tória passada se ganhou no dia de S. Sebastiãor; e em 
este dia, dois anos antes, partiu Estácio de Sá de S. Vi- 
cente para o Rio de Janeiro, e começou a guerra invo- 
cando o seu favor, o qual reconheceram bem os Portugue- 
ses, assim em a batalha naval das canoas, como em outras 
ocasiões de perigo. Pelo que, ainda em memória da vi- 
tória das canoas, se faz todos os anos em aquela baía, 
defronte da cidade, no dia do glorioso S. Sebastião, 
uma escaramuça de canoas com grande grita dos índios, 
que as remam e se combatem, cousa muito para ver. 

O sítio em que Mem de Sá fundou a cidade de S. 
Sebastião foi o cume de um monte, donde facilmente se 
podiam defender dos inimigos, mas depois, estando a ter- 
ra de paz, se estendeu pelo vai ao longo do mar, de sorte 
que a praia lhe serve de rua principal, e assim, sendo lá 



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_ 221 — 

capitão mór Afonso de Albuquerque, se achou uma ma- 
nhã defronte da porta do Convento do Carmo, que ali 
está, uma baleia morta que de noite havia dado à costa; 
e as canoas que vêm das roças ou granjas dos morado- 
res, ali ficam desembarcando, cada uma à sua porta ou 
perto dela, com o que trazem, sem lhe custar trabalho de 
carretos, como custa pela ladeira acima. 

Nem eles próprios lá subiram em todo o ano e me- 
nos as mulheres, si não fora estar lá a igreja matriz e 
a dos padres da Companhia, pela qual causa mora ainda 
lá alguma gente. 

Fundada, pois, a cidade pelo governador Mem de Sá 
em o dito outeiro, ordenou logo que houvesse oficiais 
e ministros da milícia, justiça e fazenda; e porque haviam 
ido na armada n^rcadores, que, entre outras mercadorias, 
levaram algumas pipas de vinho, mandou-lhes o governa- 
dor que o vendessem atavernado; e, pedindo eles que lhes 
pusesse a canada por um preço excessivo, tirou êle o 
capacete da cabeça com cólera e, disse que sim, mas que 
aquele havia de ser o quartilho, e assim foi, e é ainda 
hoje, por onde se afilam as medidas, donde vem serem 
tão grandes, que a maior peroleira hão leva mais de cinco 
quartilhos. 

História do Brasil — 1889 — Livro III, Cap. 
XII. págs. 79 e 80. 



VARNHAGEN 

VISCONDE DO PORTO ÔEGURO 

B. DE S. PAXJIiO — S. JOÃO DE IPANEMA — IT-H-ISIO 
t VIENNA D» ÁUSTRIA — 29-VI.1878 

Francisco Adolfo de Vamhagen, Barão e depois Visconde 
de Porto Seguro, era filho do tenente-coronel Frederico Luiz 
Guilherme de Varnhagen, oficial alemão que viera contratado 
para administrar a fabrica de ferro de Ipanema. Retirando-se 
a família Varnhagen para Portugal, aí viveu Francisco Adolfo 
até 1840; e tendo servido no exercito português de D. Pedro, 
foi pelo príncipe galardoado, pelos seus serviços, comi o posto 



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— 222 — 

de 2.«» tenente de artilharia (1834). Em 1839, concluiu seus 
estudos na Real Academia de Fortificação. De volta ao Brasil, 
por decreto de 24-VII-1841 foi reconhecido cidadão brasileiro. 
Vamhagen iniciou em 1842 sua carreira diplomática como 
adido da legação de Lisboa; foi removido em 1844 para Madrid. 
Em» 1859 era ministro residente no Paraguai, de onde passou 
em 1861 para Venezuela, Nova-Granada e Equador. Serviu no 
Equador, Peru e Chile em 1864. e em 1868, finalmente, o 
governo imperial o nomeou enviado extraordinário e ministro 
plenipotenciário em Viena d' Áustria. 

Historiador, geógrafo, escritor, matemático, m-ilitar e diplo- 
mata — Varnhagen era um erudito e um sábio. E, si como 
escritor não se pode dizer um estilista, forçoso é reconhecer que 
escreveu com correção o vernáculo. 

Varnhagen pertenceu ao Instituto Histórico e Gíeográfico 
Brasileiro, à Real Academia de Ciências de Lisboa e a outras 
muitas associações de letras e ciências. 

Bibliografia — História Geral do Brasil, História completa 
das lutas holandesas no Brasil, História da Independência do 
Brasil, Florilégio da poesia 'brasileira, O Caimmurú perante a 
história. Da literatura dos livros de CUwalaHas, Amador Bueno 
(drama histórico), 8umé (lenda mito-religiosa), etc. 



86. A Insurreição Pernambucana 

E ANDRÉ VIDAL DE NEGREIROS 

Com a partida de Nassau para a Europa, ficaram as 
rédeas do Brasil holandês confiadas a três negociantes 
tão obscuros, Hamel, Van Boolestrate e Bas, que de um 
deles se disse haver sido carpinteiro, lojista outro e ouri- 
ves em Harlem o terceiro. Terra demasiado aristocrata 
era a de Pernambuco, para prestar, sem repugnância, obe- 
diência a estrangeiros de tão baixa relê, cuja vaidade, 
cobiça e intolerância faziam, ainda para mais, notável 
contraste com a lhaneza, desprendimento e generosidade 
do principe de Orange. Ora, os esforços espontâneos dos 
Maranhenses e Cearenses acabavam de ser coroados de 
triunfantes resultados, quando nenhum êxito haviam 
produzido, nem as tropas e navios do conde da Torre, 
nem as diplomacias de Montalvão. 

Não «era, pois, de admirar que a muitos Brasileiros, 
residentes, quer na extensão que decorre do Rio Grande 



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— 223 — 

do Norte até o Rio Real, quer no território fora do. do- 
mínio holandês, o amor da pátria indicasse que lhes cum- 
pria tentar esforços semelhantes para de todo sacudir de 
seu país o jugo estranho. 

Pensamentos tais, que estão no coração de todos, 
não têm autor determinado. 

Necessitam só uma alma grande que deles se apo- 
dere e lhes dê impulsQ. Tinha-a André Vidal de Negrei- 
ros, filho da Paraíba, e que já em seções precedentes 
deixamos conhecido por notáveis feitos de guerra, em 
consequência dos quais foi sucessivamente promovido por 
distinção até o posto de tenente de mestre de campo, 
que podemos dizer de tenente-coronel, pois que ainda 
que a alguns postos da milícia se davam nomes diferen- 
tes dos de hoje, eram eles já quasi os mesmos, e se 
haviam de todo introduzido no Brasil durante esta guerra. 
E bem que não faltassem escritores que, contradizendo 
às vezes sua afirmativa com os próprios fatos que nar- 
ravam, quisessem, em parte por disfarce político, outor- 
gar toda a glória a João Fernandes Vieira, chamando- 
Ihe já valoroso Lucideno, já Castrioto Lusitano, nós ape- 
lamos unicamente para os fatos comprovados, e, ao exa- 
miná-los, o leitor julgará se, dando a palma a André Vidal, 
no mais minimo sentenciamos com paixão. Lisonjeiro 
nos é, sem dúvida, ter de exaltar a memória de um ilus- 
tre patrício; mas no caso atual, em que, para enaltecer 
a um herói, há que deixar um tanto deprimido outro, 
até agora injustamente exaltado em demasia, não o exe- 
cutaremos, se a conciência guiada pela justiça nos não 
alentara a ponto de conhecer que nos não cega a grande 
simpatia que temos pelas virtudes do herói paraibano, 
que não hesitamos apresentar como digno até de figurar 
em uma epopeia nacional. 

Na história da civilização das nações em particular, 
como na da humanidade em g^ral, há sempre grandes 
caracteres ou grandes inteligências, que são como os pre- 
cursores ou verdadeiros criadores do pensamento de novas 
eras, e ao historiador cumpre descortiná-los. 

Muitas vezes contemporaneamente essas grandes ca- 
pacidades, esses grandes homens viveram confundidos 
com as turbas ou foram por estas ou pêlos poderosos da 



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— 224 — 

terra perseguidos ou desprezados, se tiveram bastante co- 
ragem e dignidade para não adular estes nem aquelas; 
mas a verdade triunfa por fim, e o galardão póstumo 
é tanto maior, quanto mais clamorosa foi a injustiça dos 
antepassados . 

O martírio também dá a palma da glória. Pela nos- 
sa parte, que começamos por tributar a Raimundo Lúlio, 
a Colombo e Diogo de Gouvêa o louvor devido ao talen- 
to, àâ vezes a uma só ideia fecunda, não poderíamos aqui 
deixar de reivindicar a glória que cabe, em nosso en- 
tender, ao modesto paraibano André Vidal, que mais de 
uma vez derramou seu sangue pela Pátria. 

Em presença dos fatos, tais como são contados pe- 
los próprios apologistas de Fernandes Vieira, nos con- 
venceremos de que, se houve naquele mesmo século, 
por motivos políticos e razões de estado, necessidade de 
proclamar os seus serviços como superiores aos de Vidal, 
hoje há que tributar a este a justiça devida e concordar 
que, abstraindo da proteção do governo, exercida dis- 
farçadamente pelo governador António Teles, a êle prin- 
cipalmente foi, pela maior parte, devido o êxito da Insur- 
reição de Pernambuco. 

História Gerai do Brasih 1857. Tomo. II. 



JOAQUIM NORBERTO 

RIO DE JANEIRO — 6-VI.1820 

t NITERÓI, ESTADO DO RIO — 14-V.1891 

Joaquim Norberto de Sousa e Silva, o laborioso escritor flu- 
minense, íoi novelista e poeta, historiador e biógrafo, crítico 
Uterário e dramaturgo. 

Os trabalhos de crítica literária e de história de Joaquim 
Norberto têm a maior importância: hoje é impossível escrever 
a história, principalmente a história literária do BraMl, sem 
recorrer às publicações deste laborioso escritor — escreveu Síl- 
vio Romero. 

Joaquim Norberto dirigiu a publicação das obras de Gon- 
zaga, Silva Alvarenga, Alvarenga Peixoto, Gonçalves Dias, Al- 
vares de Azevedo, Casimiro de Abreu e Laurindo Rabelo, paxá 



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— 225 — 

sm quais escreveu excelentes estudos biográficos, acompanhados^ 
de notas e comentários valiosos. 

Bibliografia — Modulações poéticas — Cantos çie um tro- 
vador — O livro dos meus amores — Am,ador Bueno ou a fíde- 
lidade paulistana, 1854 — Memória Histórica e documentada das 
aldeias dos índios da Provindç. do Rio de Janeiro — História 
da Conjuração mineira — O descoJ)rim,ento do Brasil por Pedro 
Alvares Cobrai foi devido a um, aca^o ou teve êle alguns indí- 
cios para issof — Gaiicismos — O martírio de Tiradeiites, etc. 



87. Duas Sessões dos Conjurados 

Achava-se Alvarônga Peixoto uma noite em casa do 
célebre contratador João Rodrigues de Macedo, a con- 
versar com algumas pessoas, quando o capitão Vicente 
Vieira da Mota lhe veio trazer um bilhete fechado, que 
lhe tinham entregue à porta da rua. Alvarenga Peixoto 
abriu-o imediatamente e leu o seguinte: 

"Alvarenga — Estamos juntos e venha Vmcô já, etc. 
Amigo Toledo". 

Era o vigário da freguesia da vila de S. José, Car- 
los Correia de Toledo, que lhe recordava que éle e outros 
conjurados se deviam reunir em casa do tenente-coro- 
nel Francisco de Paula Freire de Andrade. Chovia, e 
Alvarenga Peixoto respondeu que comparecia logo que 
parasse a chuva. 

Não faltou o poeta à sua palavra. 

Era a primeira vez que se reuniam os conjurados. 
Aí estavam o dono da casa, o tenente-coronel Fr^mcisco 
de Paula e seu cunhado José Alves Maciel, o vigário de 
São José, Carlos Correia de. Toledo; o desembargador 
Tomaz António Gonzaga, o padre José da Silva de 
Oliveira Rolim, a quem Alvarenga Peixoto via pela pri- 
meira vez e que lhe disse ser-lhe muito obrigado pelas 
obsequiosas atenções com que tratara a seu irmão, o Dr. 
Plácido da Silva e Oliveira, no tempo em que foi ouvi- 
dor da comarca de São João El-Rei, e o alferes Joaquim 
José da Silva Xavier, o Tiradentes, 

Cada um dos conjurados quis ser o expositor do que 
se havia tratado na ausência do recem-chegado, e Al- 
varenga Peixoto ficou sabendo como se havia elaborado 
o plano para a revolução. Era cousa assentada entre eles 



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— 226 — 

que se esperasse pela notícia do movimento insurrecio- 
nal do Rio de Janeiro, segundo as asserções afirmativas, 
ou antes, imaginárias do alferes Joaquim José, e bem 
assim, que se deixasse igualmente publicar a derrama, que 
necessariamente deveria levaijtar clamores em toda a ca- 
pitania, pela excessiva contribuição a que eram os povos 
obrigados. No meio da geral consternação e favorecido 
pelas sombras da noite, se apresentaria o alferes Joaquim 
José com alguns companheiros gritando pelas ruas de 
Vila-Rica: **Viva a Liberdade!" O povo, vexado pelo 
pesado tributo, acudiria ao alarme e apoiaria a revolução. 
Acudiria ao tumulto o tenente-coronel Francisco de Paula 
à frente da tropa, e, como parte dos oficiais e soldados 
não era estranha ao movimento, segundo a fácil credu- 
lidade do Tiradentes, o tenente-coronel daria tempo a que 
o alferes fosse a Cachoeira, à casa de campo do governa- 
dor, onde se achava o general visconde de Barbacena, 
para conduzi-lo com toda a sua iamília até à serra, onde 
lhe diria que fizesse muito boa jornada e dissesse em 
Portugal que já se não precisava de generais na Amé- 
rica, ou então, que sacrificá-lo-iam, levando a sua ca- 
beça a Vila-Rica para com ela impor ao povo o respeito 
pela nova república. Então, no meio do geral entusias- 
mo, o tenente-coronel arengaria a multidão perguntando 
ao povo o que queria, que niotivo tinha para aquele le- 
vante, e que os conspiradores responderiam que deseja- 
vam a sua liberdade, e o tenente-coronel acabaria por di- 
zer que o motivo era tão justo que êle não se podia opor. 

Anuiu Alvarenga Peixoto ao plano da revolução, 
refletindo, todavia, que não era necessário que o tenente- 
coronel dirigisse fala alguma ao povo, pois bastava-lhe 
dizer que quem tinha tirado aquela cabeça podia tirar 
outras . 

Escolhido o plano, restava dividir os papeis do drama 
pelos principais conspiradores. 

A Alvarenga Peixoto incumbia angariar gente entre 
òs habitantes da Campanha do Rio Verde, onde gozava 
de grande influência como coronel do primeiro regi- 
mento da cavalaria auxiliar. Houve ainda outra confe- 
rência em que se achou Alvarenga Peixoto. Os conjura- 
dos reuniram-se desta vez em casa de Cláudio Manuel 



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— 227 — 

da Costa e tratou-se da adoção da bandeira para a nova 
república. 

Propôs o alferes Joaquim José que se tomassem por 
símbolo três triângulos entrelaçados em comemoração da 
Santíssima Trindade. 

Cláudio Manuel da Costa lembrou que o emblema da 
bandeira dos Estados-Unidos era o gônio da América 
quebrando as cadeias do cativeiro com esta inscrição: 
Libertas aequo spiritus, e que nenhuma inconveniência 
havia em que se adotasse a mesma. 

Alvarenga Peixoto impugnou a ideia como pobre. 
Cláudio propôs ainda a seguinte inscrição: Aut libertas, 
aut nihil! 

Alvarenga Peixoto propôs então o versículo de Vir- 
gílio: Libertas quae sç.xa tameni 

E os conjurados a aprovaram, achando-a muito apro- 
priada. 

Noticias sobre I. J, de Alvarenga Peixoto e suas obras. 



JOÃO RIBPRO 

(Bio-bibliografia à pág. 204) 



88. A execução de Tiradentes 

No dia 19 de Abril entrava na cadeia pública do Rio 
de Janeiro, rodeado de outros ministros da justiça, o 
desembargador Francisco Alves da Rocha para ler a sen- 
tença aos réus, que desde a noite da véspera haviam sido 
transferidos de vários segredos da cidade para a sala 
chamada do Oratório. Eram onze os criminosos que ali 
esperavam algemados e cercados de força embalada, a 
última palavra de seus destinos. 

A leitura da sentença, erudita e cheia de citações, 
durou duas longas horas; ao cabo delas, eram todos os 
infames condenados à forca e a alguns cabia ainda mais 
o horror de, insepultos e esquartejados, servirem os seus 
membros, espetados evt^ postes, de padrão de execravel 
perfidia. 



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— 228 — 

Quando o desembargador se retirou, diz uma teste- 
munha do acontecimento, viu-se representar a cena mais 
trágica que se podia imaginar. Mutuamente pediram per- 
dão e o deram; porém cada um fazia imputar a su^ infe- 
^licidade ao excessivo depoimento do outro. 

Como tinham estado três anos incomunicáveis, era 
neles mais violento o desejo de falar que a paixão que 
a tal sentença cavaria nos cansados corações. 

Nesta liberdade de falarem e de se acusarem mu-^ 
tuamente estiveram quatro horas; mas, quando se lhes 
puseram os grilhões e manietados viram-se obrigados a 
deitar-se, por menos incómoda posição, abateram-se-lhes 
os espíritos e entraram então a meditar sobre o abismo 
da sua sorte. Dentro em pouco, porém, um raio de espe- 
rança iluminou-lhes a torva existência. O mesmo mi- 
nistro que lera a rude sentença, veio horas depois anun- 
ciar a clemência da rainha, que aos conjurados, exceto 
Tiradentes, poupava o suplício da morte. Então foram 
grandes os extremos da alegria e com aquela inesperada 
piedade sentiram-se rejuvenescer. Tiradentes também, 
conforme o seu coração bem formado e leal, participou 
. desses transportes e dizia que só êle, em verdade, devia 
ser a Títima da lei e que morria jubiloso por não levar 
após si tantos infelizes que desencaminhara. Tiradentes 
era um espírito grandemente forte e na religião achou 
mais largo e substancioso conforto do que os outros com- 
panheiros, de espírito leviano ou inconsiderado. 

Na manhã de 21 de Abril entrou na sua cela o al- 
goz para vestir-lhe a alva e ao despir-se dizia o mártir 
que o seu "Redentor morrera por êle também nú". 

A cidade estava aparelhada como para uma grande 
festa em honra à divindade do governo supremo. Aos 
sons marciais das fanfarras sairam de todos os quartéis 
os regimentos da guarnição, luzidios, com os uniformes 
maiores: seis regimentos e duas companhias de cavala- 
ria que em tropel corriam a cidade, guardada agora mo- 
mentaneamente pelos auxiliares. 

No campo da Lampadosa erguia-se o lúgubre patí- 
bulo, alto, sobre vinte degraus, destinado ao memorável 
exemplo. 



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— 229 — 

Na frente da cadeia pública organizou-se a procissãjo 
em ato declarado fúnebre, com ai Irmandade dgi Miseri- 
córdia e a sua colegiada, e o esquadrão de cavaleiros da 
guarda do Vice-Rei. 

Saiu o réu, <iue foi posto entre os religiosos que 
iam para confortá-lo e o clero e as irmandades, guarda- 
dos pela cavalaria. 

Tiradentes tinha "as faces abrasadas", caminhava 
apressado e intrépido e monologava com o Crucifixo que 
trazia à mão e à altura dos olhos. Nunca se vira tanta 
constância e tamanha consolação. 

Ao préstito juntou-se a turba de curiosos, e, avolu- 
mando a multidão, era mister que de vez em quando dois 
cavaleiros a destroçassem. 

Pelas 11 horas do dia, que fora de sol descoberto 
e ardente, entrou na larga praça,. por um dos ângulos, que 
faziam os regimentos postados em triângulo, o réu com 
todo o acompanhamento. Subiu ligeiramente os degraus, 
sem desviar os olhos do santo Crucifixo que' trazia e se- 
renamente pediu ao carrasco que não demorasse e abre- 
viasse o suplício. O guardião do convento de Santo An- 
tónio, imprudentemente, por mal entendida caridade ou 
por não saber conter talvez o 3eu zBlo demasiado, tomou 
a palavra, admoestando a curiosidade do povo, sem to- 
davia esquecer o elogio da clemência real. Depois do 
credo, a um frémito de angústia da multidão, viu-se cair 
suspenso das traves o cadáver do mártir. 

Foi profunda a impressão no povo, que, apertado e 
numerosíssimo em todo o campo, abalara para vêr o abo- 
minável espetáculo. As janelas apinhavam-se de gente e 
nas ruas e praças era impossível o movimento. Ás pes- 
soas mais delicadas, contudo, haviam desde a véspera 
abandonado a cidade para não testemunharem a execução. 

Após o suplício, um dos religiosos falou, tomando 
o tema de Eclesiastes: In cogitatione tua negi ne dettã- 
has.., quias aves coeli portabnnt vocem-tuam. 

Não atraiçoes o teu rei nem por pensamentos: as 
próprias aves levar-te-iam o sentido dôles. 

História do Brasil — Curso Superior — tilvrá- 
rla Francisco Alves. 4.a edição. 1912. 

Antologia Bcasileira 9 

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— 230 -^ 

EUCLIDES DA CUNHA 

{Bio-bibl{ografia à pág. 66) 



89. A Independência 



Não vacilemos em reconhecô-lo. Somos o único caso 
histórico de uma nacionalidade feita por uma teoria po- 
lítica. Vimos, de um salto, da homogeneidade da colónia 
para o regime, constitucional: dos alvarás para as leis. 
E, ao entrarmos de improviso na órbita dos nossos des- 
tihos, fizemo-lo com o único equilíbrio possível naquela 
quadra: o equilíbrio dinâmico entre as aspirações popu- 
lares e as tradições dinásticas. Somente estas, mais tarde, 
permitiriam que, entre os "Exaltados", utopistas avan- 
tajando-se demasiado para o futuro até entestarem com 
a República prematura, e os "Reacionários", absolutis- 
tas em recuos excessivos para o passado, repontasse o 
influxo conservador dos "Moderados", ou liberais mo- 
narquistas da Regência, o que equivalia à conciliação en- 
tre • o Progresso e a Ordem, ainda não formulada em 
axioma pelo mais robusto pensador do século. 

Desta arte, a luta da Independência teve, no englo- 
bar elementos destruidores e reconstrutores, o caráter 
positivo de uma revolução. E desenrolou-se com uma fi- 
nalidade irresistível. Mas o princípio foi exparso, dispar- 
tindo nos mesmos atos sem solidariedade, tão caraterís- 
ticos da nossa história. As "juntas governativas", que 
para logo se fundaram, constituiram-se em pequenos es- 
tados; e volviam ao aspecto exato dos tempos coloniais, 
numa espécie de decomposição espontânea. Algumas, 
como a de Pernambuco, ainda reassumindo a atitude ba- 
talhadora, tendo suplantado o elemento português na 
"Capitulação do Beberibe" (Outubro de 1821), subtraíam- 
se do mesmo passo ao influxo dos governos do Rio e 
do Reino, revivendo o antigo sonho da existência autó- 
noma. Outras, as demais do norte, volvendo a obede- 
cer aos antigos dominadores, facilitavam o programa 



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— 231 — 

da recolonização . Apenas quatro — Minas, S. Paulo, flio 
de Janeiro e Rio Grande do Sul — aceitaram desde logo 
o governo do príncipe, forrando-se igualmente à autono- 
mia completa e à dependência colonial. 

Nessa instabilidade de três situações contrapostas, é 
claro que o pensamento libertador, adstrito à contingên- 
cia de captar o beneplácito preliminar dos agrupamentos 
de novo dissociados, tinha um destino duplo: confun- 
diam-se, penetrando-se entrelaçados, o ideal da Indepen- 
dência e o da unidade nacional. Assim se traçou limpi- 
damente, em que pese ao caráter da indeterminação que 
lhe davam três incógnitas, envolvendo três soluções dis- 
tintas, a equação fundamental de nossos destinos. 

E coube ao sul resolvê-la, a começar pelo Rio. de 
Janeiro, onde chegavam diretamente os decretos retró- 
grados da metrópole. 

Ocorrera ademais, ali, uma transigência forçada, 
contraproducente no irritar os ânimos: as tropas do ge- 
neral lusitano Jorge de Avilez haviam, desde Junho, im- 
posto o juramento da Constituição das Cortes portugue- 
sas, vivamente combatido pelos deputados brasileiros, e 
a formação de uma junta governativa destinada a agir 
em correspondência direta com o governo de Lisboa, a 
quo devera submeter-se. Foi no regime transitório desta 
vitória efémera, que entraram os decretos recoloniza- 
dores. Declaravam-se independentes do Rio de Janeiro 
os governos das províncias, e suprimidos todos os tribu- 
nais superiores. Impunha-se, por fim, a partida impror- 
rogável de D. Pedro para a Europa. Esta última cláu- 
sula rompeu as represas da revolta. Amotinou-se a mul- 
tidão no Rio (9 de Janeiro de 1822), estimulada pela 
propaganda anterior de Joaquim Gonçalves Ledo e Ja- 
nuário da Cunha Barbosa, chefiada pelo presidente do 
Senado da Camará, José Clemente Pereira, português adi- 
to aos mais ferventes nativistas, impondo ao príncipe, 
talvez vacilante, a permanência no Brasil . 

Impondo — é o termo. A representação de oito mil 
assinaturas, que lhe foi lida, não era um pedido; era 
uma intimativa. Redigira-a um lutador, que ainda não 
tem o renome merecido, Fr. Francisco de Sampaio; e 
o sacerdote rebelde fora singularmente franco na pri- 



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— 232 — 

meira frase que traçara: "a partida de S. A. seria o 
decreto que teria de sancionar a independência do Brasil". 

O príncipe cedeu, siibstantivando-se num verbo único 
— fico, o primeiro capítulo da história da independên- 
cia: e este rompimento, não já da solidariedade política, 
senão do sangue, completado, três dias depois, pela capi- 
tulação da divisão auxiliadora do general Avilez, apoio 
material e último resquício da ação longínqua do ultra- 
mar, foi o traço mais intenso, naquela quadra, da reação 
naiivista. 

Ao mesmo tempo definiam-se as províncias. A junta 
de S. Paulo, cujo presidente, João Carlos Augusto 
Oyenhausen, se norteava pela vontade firme de José Bo- 
nifácio, ligara-se em manifesto enérgico aos sucessos 
anteriores e, no norte, a antiga fidelidade à metrópole 
partia-se (19 de Fevereiro), precisamente na terra onde 
era clássica, a Baía, levantada em massa contra o gene- 
ral Madeira de Melo. 

Estava declarada a campanha libertadora. Dado o pri- 
meiro choque vitorioso contra o exército estrangeiro, an- 
tes mesmo que a sua repercussão nas provínciag se co- 
roasse de idêntico sucesso, o governo recém-organizado, 
dirigido por José Bonifácio, a quem se confiara o cargo 
de Ministro do Reino e Estrangeiros, começou a delibe- 
rar sobranceando os tumultos, como se o não rodeassem 
as maiores dificuldades. ' Garacterizaram-no para logo 
três medidas radicais de pronto decretadas: a chamada 
dos representantes das províncias para concertarem nas 
reformas urgentes; a preliminar do "cumpra-se" do prín- 
cipe D. Pedro, imposta à efetividade das leis portugue- 
sas; e por fim, medida mais séria, porque valia por um 
ato de independência, a convocação de uma Assembleia 
Constituinte Legislativa (decreto de 3 de Julho de 1822) . 

Enquanto isto sucedia, o príncipe, numa viagem 
triunfal a Minas Gerais, em Março, onde à sua chegada 
se deliram nocivas discórdias emergentes, representava 
o seu papel real e único — o da ação de presença — 
como si nas transformações sociais se torne também pre- 
ciso, às vezes, essa misteriosa força catalítica que se de- 
sencadeia às afinidades da matéria. 



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— 233 — 

D título que anteriormente lhe fora oferecido pela 
Câmara Municipal do Rio de Janeiro numa data que se 
tornaria ainda mais célebre (13 de Maio) de "Defensor 
Perpétuo do Bíasir, já valia por um pálido eufemismo, 
escondendo o de Imperador, em que desfechariam todos 
os acontecimentos. Àmpliou-o a proclamação de 1."* de 
Agosto. Aí êle se' intitula defensor da independência das 
províncias, e pede "que o grito de união dos Brasileiros 
ecoe do Amazonas ao Prata". Redigida por Gonçalves 
Ledo, agitador que recorda um girondino desgarrado em 
nossa terra, ela foi por isto mesmo altamente expressiva. 
Expunha o único destino da monarquia entre n<5s, o de 
transitório agente unificador; e como este seria* nulo sem 
o alento das expansões populares, o pensamento do futu- 
ro imperante devia realmente vibrar na pena de um ner- 
voso chefe liberal. 

E' inexplicável, por isto, que aquela data tenha es- 
capado à consagração do futuro. Falta-lhe, talvez, como 
já se observou, a exterioridade de outras, menos eloquen- 
tes e mais ruidosas: a de 7 de Setembro, por exemplo. 

Com efeito, o interessante episódio da viagen^ que 
levara o príncipe a S. Paulo, com o seu efeito — em 
nada modificou o curso natural dos fatos. Apenas teve, 
diante da compreensão tarda e rudimentar do povo, a 
clareza sugestiva das imagens, e deu-lhe a minúcia sin- 
gularmente valiosa de um símbolo, o tope nacional, auri- 
verde, substituindo a tradicional divisa portuguesa, quan- 
do esta foi violentamente despedaçada pelo régio iti- 
nerante, ao receber, sobre a colina do Ipiranga, a notícia 
das decisões arbitrárias das Cortes de Lisboa, que lhe 
anulavam todas, as reformas praticadas . . . 

"Independência ou morte I" — bradou varonilmente 
no meio da comitiva eletrizada. E a revolução teve, afi- 
nal, uma fórmula sintética, armada ao apercebimento 
imediato do povo, encantando-o pela nota romântica e 
teatral, e, como tantas outras por igual detonantes, des- 
ferindo o repentino surto da energia potencial das ideias. 



A Margem da História — Porto, 1909. — Edi- 
tores: Livraria Chardron, de Leio & Irmão 
— 144, Rua dos Carmelitas. 



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— 234 — 

RAUL POMPEIA 

{Bio-hihliografia à pág, 50) 



90. Uma noite histórica 

Às três horas da madrugada de domingo, enquanto 
a cidade dormia tranquilizada pela vigilância tremenda 
do Governo Provisório, foi o Largo do Paço teatro de 
uma cena extraordinária, presenciada por poucos, tão 
grandiosa no seu sentido e tão pungente, quanto foi sim- 
ples e breve. 

Obedecendo k dolorosa imposição das circunstâncias, 
que forçavam um procedimento enérgico para com os 
membros da dinastia dos príncipes do ex-império, o go- 
verno teve a necessidade de isolar o paço da cidade, ve- 
dando qualquer comunicação do seu interior com a vida 
da capital. 

A todas as portas do edifício principal, na manhã 
do sábado e às portas das outras habitações dependentes» 
ligadas pelos passadiços, foram postadas sentinelas de 
infanteria e numerosos carabineiros montados. O saguão 
transformou-se em verdadeira praça de armas. 

Muitos personagens eminentes do império e diversas 
famílias, ligadas por aproximação de afeto à família im- 
perial, apresentaram-se a falar ao Imperador e aos seus 
augustos parentes, retrocedendo com o desgosto de uma 
tentativa perdida. À proporção que passavam as horas, 
foi se tornando mais rigorosa a guarda das imediações 
do palácio. As sentinelas foram reforçadas por uma li- 
nha de baionetas que a pequenos intervalos estendeu-se 
pelo passeio, em todo o perímetro da imperial residência 
transformada em prisão de Estado. 

Novas determinações anunciadas por ajudantes de or- 
dens que chegavam frequentemente do quartel general, 
desenvolviam ainda as manobras da guarnição do edifício. 

Depois que anoiteceu, foi fechado o trânsito pelas 
ruas que o rodeiam. Às onze horas, havia sentinelas até 



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— 235 — 

o meio da grande área compreendida entre o pórtico do 
palácio e o cais. Por todas as imediações vagueavam 
soldados de cavalaria, empunhando clavinotes, de coro- 
nha pousada no joelho. 

Adiantava-se à noite, adiantavam-se gradualmente 
para o mar os cordões de sentinelas. 

Um boato oficial, inspirado pela conveniência do 
interesse público, espalhava a notícia de que o Sr. D. Pe- 
dro de Alcântara (que se sabia dever embarcar para a 
Europa em consequência da revolução dó dia 15) só iria 
para bordo no domingo de manhã. A polícia excepcional, 
do Largo do Paço, porém, durante a noite de sábado, deu 
a certeza de que o embarque se faria muito antes da hora 
do propalado consta. 

Demorados por esta suspeita, muitos curiosos esta- 
cionavam pelas vizinhanças do Mercado, das pontes das 
barcas, na Rua Fresca, na rua da Jíisericordia, na esqui- 
na da rua Primeiro de Março. De 1 hora da madrugada 
em diante, as patrulhas de cavalaria começaram a dis- 
persar os ajuntamentos. Para os últimos passageiros das 
barcas Ferry não havia mais caminho, do lado do Mer- 
cado, se não beirando rentinho áo cais. Depois da úl- 
tima barca, o trânsito foi absolutamente impedido. 

Também os mais renitentes curiosos tornaram-se 
muito raros, mesmo nas proximidades do largo sitiado. 

Um grande sossego, com uma nota acentuada de pâ- 
nico, reinava neste ponto da cidade. Para mais carregar 
a fisionomia do momento, circulavam nessa hora as 
notícias de um conflito entre mai*inheiros e praças do 
exército, havendo troca de tiros. A-pe.sar-da brandura de 
modos com que os militares convidavam as pessoas do 
povo a se retirarem, a-pesar-da completa abstenção de 
atos de violência que tem caracterizado o sistema poli- 
cial, enérgico, mas extraordinariamente prudente do Go- 
verno Provisório, sentia-se ali como que uma atmosfera 
de vago terror, como se a calada áz noite, a escuridão do 
lugar, a amplitude insondável da praça evacuada respiras- 
se à presença de uma realidade formidável. Sentia-se 
todo aquele imenso ôrmo ocupado pela vontade pode- 
rosa da revolução. Em cima, o céu tristíssimo, povoado de 



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em 



^, muito densas, qu^ x^xn fraco bordava de 
^cias pálidas, 
im^t^ f ^ Quando, das per5pectivà& ^^ sombra, saia 
iior ae A^ozes abafadas, logo feitas ein silêncio; de 
tra esnn *^*^' ^^ rumor seco de bainhas de folha con^ 

í'* Calca ^^^ ^ ^^m esirépido de patas de cavalo, e^^carvando 
<*m n^*^^*^^ ' batendo a passos regulares, espallíando-se 
Ent ^^ galope. Em gera), silêncio de morte, 
^'^i^e as poucas pessoas que, iludJpdo o congecti- 



SOS stt^ ^ polícia, tinham oonseguicio ocuitar-se em d.iver 
dir <^ ^^^ ^^ obser\-aQâo murmurava-se que não devia jtar 
o embarque do ex^Imperador* 



do ^^^ lioras da madrugada, entretanto, tinham marcia 
r^^ ^^ f ^l^^gios das torres, e nada de novo dos lados ào 
Pc ÇQ viera agitar o solene sossego do largo. A 

Pouco antes dessa hora, houvera um grande moviX 
^^nio do lado do mar. Daf soara repentinamente uml 
^^io de alarma. 

A notícia divulgada de assaltos prováveis de gente] 
armada contra a tropa, assaltos que seriam razoavel- 
^^BUte^ favorecidos pelo negrume da noite, que suhia do 
""^B-r sobre os cais como uma muralha preta furada apenas 
P<ila linha de pontos lúcidos da iluminação de Niterói, 
dava para impressionar de susto um grito perdido da sen- 
tinela. Houve um tropel de cavalos, e logo uma, duas, 
outra, outivas muitas detonações de espingardas, em de- 
sordenado tiroteio. 

Nada havia de grave. Um indivíduo que tentara em- 
barcar-se contra a vontade da ronda, fora preso: esca- 
pando ás mãos da patrulha de infantaria que o prendera, 
tinha-se lançado ao mar para fugir nadando. Alguns sol- 
dados atiraram a esmo para assustá-lo, enquanto outros 
tomavam um bote, com o qual pegaram de novo o evadido- 
Logo em seguida foi visto o preso passar, à luz dos 
lampeões, empurrado pelo^ guardas. 

Houve quem supusesse que os tiros foram um si- 
nal. Com efeito, tal qual si assim fosse, ouviu-ge pouco 
depois no meio das trevas da haia, o rebate chocalhado 
da hélice de uma lancha a vapor. 

Uma pequena luz vermelha estrelou-se no escuro 
diante do cais e ao fim de poucos momentos, ao lado do 



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t 



^237 — 

molhe de embarque do Pharoux, vinha cessar o Baru- 
lho da hélice, com duas pancadas de um tímpano de bor- 
do" e a passagem de uma rápida sombra flutuante sobre 
a sombra inquieta das águas. 

— E' a lancha do Imperador; pensaram os que viam 
com a opressão natural que devia provocar aquele anún- 
cio da iminência de um grande momento. 
.' Bastante tempo se passou dQpois deste incidente, an- 
tes que de novo fosse alterada a monotonia do sossego 
da noite. 

A suspeita de que acabava de atracar a embarcação 
que devia receber o monarca deposto, a ansiedade de 
perceber o movimento significativo no portão do paço 
prolongava indefinidamente a duração desta espectativa. 

O* profundo silêncio do lugar pareceu fazer-se maior, 
nesta ocasião, como se a noite compreendesse que se ia, 
ali mesmo em poucos momentos, estrangular a última hora 
de um reinado. A tranquilidade que havia era lúgubre. 
Ouyiarse com certo estremecimento o barulho do mor- 
der dos freios dos corcéis da cavalaria em recantos afas- 
tados. Frouxamente clareados pela iluminação urbana, 
as casas. ao redor do largo, os edifícios públicos pareciam 
adormecidos . Nenhuma luz nas janelas, a não ser nos úl- 
timos andares de uma casa de saúde. 

A-pesar-disso, que se acreditaria indicar a completa 
ausência dos espectadores para a cena que se ia passar, 
algumas janelas abertas apareciam qpmo retábulos ne- 
gros, nas mais altas sacadas, e percebia-se uma agitação 
fácil de reconhecer nos peitoris escuros... 

Pobre D. Pedro! Em homenagem à severidade da de- 
terminação do governo revolucionário, ninguém queria 
ter ^ido testemunha da misteriosa eliminação de um so- 
berano. 

Às três horas da madrugada nienos alguns minutos, 
entrou pela praça um rumor de carruagem. Para as ban- 
das do largo houve um ruidoso tumulto de armas e ca- 
valos. As patrulhas què passeavam de ronda retiraram-se 
todas a ocupar as entradas do largo, pelo meio do qual, 
através das árvores, iluminando sinistramente a solidão, 
perfilavam-se os postes melancólicos dos lampeeõs de gás. 

Apareceu, então, o préstito dos exilados. 



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— 238 — 

Nada mais triste . Um coche negro, puxado a passo 
por dois cavalos que se adiantavam de cabeça baixa, 
como si dormissem andando*. À frente duas senhoras de 
negro, a pé, cobertas de véus como a buscar caminho para 
o triste veículo. Fechando a marcha, um grupo de cava- 
lheiros que a perspectiva noturna detalhava em negro 
perfil. 

Divisavam-se vagamente, sobre o grupo, os penachos 
vermelhos das barretinas da cavalaria. 

O vagaroso comboio atravessou em linha reta, do 
paço em direção ao molhe do cais Pharoux. Ao apro- 
ximar-se do cais, apresentaram-se alguns militares a ca- 
valo, que formava^m em caminho. 

— E' aqui o embarque? perguntou timidamente uma 
das senhoras de preto aos militares. O cavaleiro, que 
parecia um oficial, respondeu com gesto largo de braço 
e uma atenciosa inclinação de corpo. 

Por meio dos lampeões que ladeiam a entrada do mo- 
lhe passaram as senhoras. Seguiu-as o coche fechado. 

Quasi na extremidade do molhe, o carro parou e o 
Sr. D. Pedro de Alcântara apeou-se -- um vulto in- 
distinto, entre outros vultos distantes — para pisar pela 
última vez a terra da pátria. 

Do posto de observação em que nos achávamos, com 
a dificuldade, ainda mais, da noite escura, não pudemos 
distinguir a cena do embarque. 

Foi rápida, entretanto. Dentro de poucos minutos 
ouvia-se um ligeiro apito, ecoava no mar um rumor 
igual da hélice da lancha, reaparecia o clarão da ilumi- 
nação interior do barco, e, sem que se pudesse distinguir 
nem um só dos passageiros, a toda a força de vapor,^ o 
ruído da hélice e o clarão vermelho afastavam-se da terra. 



EDUARDO PRADO 

{Bio-bibliografia à pág. 169) 



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— 239 — 



91. A História do Brasil 

Quem se dedica à História do Brasil não se encerra 
dentro de uma especialidade árida e estreita. Desde a 
época da descoberta, nenhum grande fato europeu dei- 
xou de ter a sua repercussão no Brasil, ou de influir em 
nossos destinos. Si alguém entre nós fizesse a experiência 
de ensinar a um adolescente a História do Brasil, expli- 
cando-lhe sucessivamente os acontecimentos da história 
da Europa e pintando-lhe os seus personagens, à medida 
que em nossa história fossem aparecendo os efeitos da- 
queles acontecimentos, ou a influência daquelas figuras 
— esse adolescente acabaria sabendo, não só a história da 
sua pátria, mas também quasi que a história completa do 
Ocidente do velho mundo dos últimos três séculos. 

A Reforma repercutiu no Brasil na tentativa da co- 
lonização huguenote de Villegaignon e, à sombra dos al- 
terosos rochedos da Baía do Rio de Janeiro, discutiram 
teólogos de Genebra com teólogos católicos, e perante 
os selvagens nús, a mais elevada teologia e terçaram os 
argumentos mais sutís sobre a Graça e a Presença Real 
e a Predestinação . Surge no campo católico a reação orga- 
nizada na Companhia (Je Jesus, e dos primeiros dos seus 
soldados vêm muitos ao Brasil, cuja história fica então 
ligada à dos Jesuitas. 

A Espanha quasi realiza o sonho da monarquia uni- 
versal e nessa monarquia entra o Brasil, como parte do 
domínio de Filipe II. Há o primeiro anúncio da futu- 
ra supremacia marítima da Inglaterra, quando Elisabeth 
promove por todos os meios o tlesenvolvimento naval e 
Edward Fenton, um dos vencedores futuros da Invencí- 
vel Armada, penetra em Santos, que Cavendish mais tar- 
de saqueia; Withrington assola os arredores da Baía. 
Lancaster ataca o Recife. 

Nasce o poder marítimo dos Holandeses e Olivier 
van Noort surge diante do Rio de Janeiro; van Carden 
tenta apossar-se da Baía; Joris van Spilbergen hostiliza 
Santos. Prenúncios estes de que a revolta dos Países 
Baixos contra a Espanha ia ter também como teatro de 
ação, a nossa terra; e assim foi nos trinta anos das in- 



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— 240 — . 

vasões e das guerras holandesas ao norte do Brasil. Desdo 
então, na solução das grandes crises europeias, por oca- 
sião das pazes de Westphalia e de Munster no século 
XVII; na paz de Utrecht no século XVIII; er em nosso 
século, nos tratados de Viena em 1815, o Brasil, isto é, 
a questão da legitimidade e dos limites da soberania por- 
tuguesa na América, foi objeto de discussão e de tran- 
sação. 

No século XVin, a maior vitória do filosofismo foi 
a destruição dos jesuitas, fato da maior gravidade para 
o Brasil. 

E, noutra ordem de ideias, de que alcance não foi para 
a vida económica e social do mundo inteiro toda a inun- 
dação do ouro saído do Brasil, quando houve ano em que, 
só a capitania de Minas produziu mais de 500 arrobas 
de ouro? 

E, mais perto de nossos dias, a tormenta revolucio- 
nária e a passagem de Napoleão pelo mundo tiveram 
como consequência, dôste lado do oceano, a forma extra- 
ordinária pela qual, sem sacrifício, foi ganha a nossa In- 
dependência. 

Um ilustre poeta inglês prestou um imenso e ines- 
timável serviço a nós todos, escrevendo uma notável His- 
tória do Brasil. 

Meditando sobre a nossa história, Roberto Southey 
ficou compenetrado da importância e do valor futuro do 
Brasil. E, ao terminar a sua grande obra, diz-nos que es- 
colheu esta grande tarefa *'na sua virilidade madura e 
que a propôs como objeto de uma vida dedicada à litera- 
tura, no que esta tem de mais elevado e digno" (i) . 

E isto fez aquele estrangeiro ilustre, porque, como 
êle próprio o diz, ficou convencido, ao estudar os traba- 
lhos dos fundadores do Brasil, ''que das empresas des- 
ses homens obscuros surgiram consequências mais am- 
plas e provavelmente mais duradouras que as conquista? 
de Alexandre e Carlos Magno" (2) . 

"Coletâneas" — vol. III. S. Paulo — Escola 
Tipográfica Saleoiana — 1906. 



(1) RoTíert Southey — História do BraaU — Tradução por- 
tuguesa. Rio de Janeiro, 1862. 

(2) Ibidem, 539, pág. 5. 



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- ^'íí^S'^r7!s^:^:rjt^5?'-^^vSí^^r, 



YIII. TRADIÇÕES -LENDAS 



MELO MORAIS (filho) 

BAfA — 23.n.lS44 

t RIO DE JANEIRO — I-IV-IOIO 



Bibliografia — Melo Morais filho ô o "nosso poeta nacl©" 
nal", na frase de Sílvio Romero, é o cronista das nossas festas* 
tradições e costumes populares. O Dr. Alexandre José de Melo 
Morais filho estudou e recebeu ordens menores no Seminário 
de S. José (Rio de Janeiro) e chegou a pregar sermões em di- 
versas igrejas. Em 1867 partiu para a Baía, onde pensava or- 
denar-se; não o fez, porém. Mais tarde foi residir na Europa, 
onde, em Londres redigiu o "Eco Americano". Na Bélgica for- 
mou-se em medicina. De volta ao Brasil, dedicou-se primeiro 
ao jornalismo e depois às letras e estudou as tradições, as len- 
das, as festas, os costumes nacionais, etc. ; neste particular. me<^ 
recém especial menção as suas contribuições etnográficas sobre 
os ciganos. O Dr. Melo Morais dirigiu o Arquivo Público Mu- 
nicipal. 

Suas obras principais são: Cantos do Equador, 1881; Jíítos 
e PoeTMLS, 1884; Festas e Tradições PoptUares do Brasih Qua- 
dros e Crónicas, Pátria Belvagem, Fatos e Memórias, Artistas 
de Meu Tempo, Os ciganos no Brasil, Cancioneiro dos Ciganos, 
Cancioneiros do Brasil, História e Costumes, 1904; Serenatas e 
Saraus, Curso de Literatura Brasileira, Parnaso Brasileiro, 1885; 
Prosadores Contemporâneos Brasileiros, Poetas Brasileiros Con-- 
tempordneos. 



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— 242 — 

92. S. Sebastião 

FUNDAÇÃO DA CIDADE DO RIO DB JANEIRO 

O dia de S. Sebastião, que relembra o da fundação 
da cidade do Rio de Janeiro, nos leva direito à pesquiza 
de fatos reais, embora desabrochados sob a influência do 
maravilhoso e rescendentes de odores misticos. 

Era no ano de 1563. À rainha D. Catarina, de Por- 
tugal, Anchieta e Nóbrega fazem chegar notícias de pa- 
zes celebradas com os Tamoios, índios canibais e guer- 
reiros, que dominavam a costa do Brasil desde Cabo Frio 
até à província de S. Paulo. Prevenindo sublevações fu- 
turas, apressou-se aquela soberana em fazer expedir para 
este porto Estácio de Sá, sobrinho do goveçAador Mem 
de Sá, que foi ter à Baía, com duas galeras armadas, 
devendo aí receber ordens de seu tio e partir sem delon- 
gas a senhorear o Rio. Mem de Sá, de posse de instru- 
ções escritas, não vacila, fá-lo acompanhar por uma fro- 
ta com guarnição de terra e mar, seguindo ôle viagem 
para este porto. 

Consolidar as pazes com os Tamoios e rechaçar os 
franceses era o ideal do governador e de Estácio de Sá, 
que, ao -entrar da barra, em 1565, alterou este plano, à 
vista das revelações que lhe fizeram em terra — de que 
os mesmos índios haviam violado o pacto e acometido 
os aldeamentos portugueses. 

A esquadra, à mingua de embarcações pequenas, con- 
servava-se fora da barra; não obstante algumas sortidas, 
frustadas pela disciplina dos franceses e seus aliados 
Tamoios, Estácio de Sá resolve-se, antes de atacá-los, ir 
a S. Vicente, que se achava em guerra, calculando que 
disso resultaria prover-se dos mantimentos, que lhe fal- 
tavam e de canoas armadas, que dessem desembarque à 
sua gente. 

Sem recursos para corresponder às represálias do ini- 
migo, que lhe aprisionara alguns bateis, flechando-lhe 
soldados, fez-se de vela e foi largar âncora no porto de 
Santos. Os guerrei|:'os gentios, entesando o arco no semi- 
círculo das praias,' escureciam com a sombra a transpa- 
rência azulada das áçuas. . . 



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^ 243 — 

Nas montanhas estrugiram os búzios e buzinas de 
guerra, enquanto que o mar, à semelhança da pele mos- 
queada das onças, era marchetado de canoas balouçantes. 

À noite, as fogueiras acendiam-se fumantes, os pa^' 
gés consultavam os oráculos; e as feiticeiras, evocando os 
génios de suas cabanas, espumavam epilépticas nas suas 
dansas diabólicas. 

A-pesar-de manterem-se as relações amistosas com os 
Tamoios de Iperf, missionados por Anchieta e Nóbrega, 
frequentes sobressaltos aquebrantavam o ânimo esforçado 
de Estácio de Sá, visto como, por circunstâncias de séria 
gravidade, considerava a guerra que devera declarar aos 
exércitos confederados, uma luta na qual, com probabili- 
dades irrecusáveis, seria vencido. 

Nóbre^ e Anchieta, porém, amparando-lhe o espí- 
rito abatido, vaticinaram-lhe êxito feliz, entendendo An- 
chieta que era servido o céu que desta vez se fundasse 
a cidade real do Rio de Janeiro, E o Jesuita das Caná- 
rias, que a julgarmos pela frase citada de Simão de 
Vasconcelos, representa o principal papel neste aconteci- 
mento, incorpora-se à frota de Estácio de Sá, e a 20 de 
Janeiro, dia de S. Sebastião, a quem tomam por padroei- 
ro da empresa, parte de S. Vicente, arriando ferros no 
Rio de Janeiro, no mês de Março, ao açoute das vagas 
empoladas e ventos contrários. 

Chegados que foram, a infantaria desembarca for- 
mando trincheiras, cavam-se fossos estratégicos em Vila 
Velha, junto ao Pão dé Açúcar. 

Fitando a imensidade, o olhar penetrante de An- 
chieta destaca nas serras e nas praias os Tamoios em- 
plumados e aguerridos; nos mares que o circundam, as 
canoas inúmeras dos adversários, que subiam à tona 
d^água, como o vómito negro do inferno sobre aquela su- 
perfície, que vozeava nos gritos selvagens dos íncolas fe- 
rocíssimos . 

Êle falava em nome de Deus aos soldados e flechei- 
ros bárbaros, acendendo-lhes o valor, relembrando-lhes 
as glórias de seus pais e as tradições de sua terra. 

O sibilo das setas de parte a parte, a troca de pro- 
jetís de arcabuzaria, a abordagem dos navios e o aprisio- 



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— 244 — 

namento das canoas entretinham indecisa a sorte da guer- 
ra, a decisão da contenda. 

Entretanto, das pelejas os inimigos deixavam os ma- 
res coalhados de cadáveres e as fileiras vitoriosas dos 
portugueses opulentas de cativos. Anchieta, porém, re- 
clamado pelo superior da Baía, teve de separar-se da ação 
e obedecer... 

fíessa viagem, tocando no Espirito Santo, levou pa- 
lavras de consolação àquelas aldeias, assistia ao enter- 
ramento do Padre Diogo Jácome e providenciou com re- 
ferência às forças militares existentes, preocupado com 
os sucessos do momento. 

Aportando à Baía, sem perda de tempo, conferen- 
ciou com o governador Mem de Sá, narrou-lhe os herói- 
cos feitos de Estácio dé Sá e dos seus soldados, pon- 
derando-lhe que, para tornar-se definitiva a vitória dos 
portugueses e construir as fortificações marítimas, toma- 
vam-se imprescindíveis mais reforços de embarcações e 
tropas. 

O governador, depois de ouvi-lo, dispôs-se a vir 
pessoalmente comandar a esquadra em evoluções, para 
o que determinou que aparelhassem os melhores navios, 
bem' tripulados e artilhados. 

Feataa populares, do Brasil. 



FRANKLIN TÁVORA 

CBARA^ —- SERRA HE BATUBITB* — 13-1-1842 
t RIO BE JANEIRO — 18-Vni.l88S 

João Franklin da Silveira Távora foi romancista, drama- 
turgo, crítico, jornalista. Formou-se em direito no Recife. Ai 
dirigiu a instrução pública e foi deputado provincial (1868-69): 
secretáxio da presidência do Pará. Veio para o Rio de Janeiro 
em 1875 e entrou para a Secretapia do Império. Franklin Tá- 
vora foi do Instituto Geográfico e Arqueológico de Pernambuco 
e fundou a Associação dos homens de letras. 

Bibliografia — A Trindade Maldita, Um Tnistério de Fa^ 
Tnilia, Os Índios do Jaguarihe, A Casa de PaXha, Um casamento 
no Arrabalde, Três Lágrim^as, Cartas de Sempronio a Cincinato, 
O Cabeleira, O Matuto, Lourenço, Lendas e tradições Populares 
do Norte, 



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zis*^í;:nsHMS&i i-j"i_ 



-- 245 -- 

93. Â Cru2 do Patrão 

o Beberibe é a mais rica e bela página da história 
do domínio holandês nas províncias do Norte do Brasil. 
Cada uma das suas ilhas representa um capítulo da homé- 
rica epopeia, que por muito tempo trouxe assombrado o 
velho mundo no século XVII. A Cruz do Patrão, posto 
<iue não houvesse figurado nesses tempos heróicos, veio 
a ser depois vulto importante das muitas tradições do vale 
de Beboribe. 

A Cruz do Patrão está situada no istmo — gigan- 
tesco traço de união — posto pela natureza entre o Re- 
cife e Olinda. E' uma cruz de pedra; está colocada no 
cimo çle elevada coluna e serve para indicar aos nave- 
gantes o poço onde surgem os navios, entre o istmo e 
o Recife natural que borda a província. Tem, ao Norte, o 
Forte do Buraco e ao Sul a Fortaleza do Brum, aí plan- 
tados pelo gônio batavo. 

Por muito tempo foi crença que todo aquele que 
passasse de noite por perto dela, ouviria gemidos angus- 
tiosos, veria almas penadas ou seria perseguido por infer- 
nais espíritos. Circunstâncias acidentais davam autori- 
dade e estas crenças de remotas eras. Mais de um vian- 
dante, passando por ali em horas mortas, encontrara o 
termo de seus dias. O sítio é de seu natural deserto e 
como próprio para se cometerem violências e atrocida- 
des. De um lado corre o rio, profundo nas marés vivas; 
do outro raiva bramando e espadanando ondas, o ocea- 
no, túmulo insondável e medonho; o istmo ó estreito, 
longo e ermo . Fácil sepultura pode abrir na areia frouxa, 
nas águas mansas do Beberibe, ou nas ondas cruzadas 
do Atlântico, a mão amestrada a ocultar as vítimaà de 
punhal, que ela brande. 

Um dia apareceu um estudante morto junto da Criíz 
do Patrão. As suspeitas da justiça cairam sobre certo 
soldado de uma das fortalezas vizinhas do lugar do de- 
lito. Nas velhas roupas do indiciado depararam-se nó- 
doas que à justiça' pareceu serem de sangue, mas que ôle 
afirmou ser ferrugem. 

Julgou-se escusado, pela evidência do fato, o exa- 
me da ciência para completo esclarecimento da verdade; 



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— 246 — 

e o infeliz, condenado a galés, foi cumprir na ilha de 
Fernando o seu degredo perpétuo. Passados alguns anos, 
um eiifermo confessou ser êle, e não o soldado, o autor 
do hoipicidio. Ordçns foram expedidas ' para que voltas- 
se a meter-se de posse da suí^ liberdade aquele que fora 
injustamente privado dela. Çstfts ordens não tiveram 
resultado, porque, durante o longo sono da justiça da 
terra, havia entregado a alma ao Creador a vítima ino- 
cente . 

Anos depois foi espingardeado junto da Cruz do Pa- 
trão outro soldado, por haver erguido a arma contía seu 
superior. Si bem me recordo, foi esta a última execução 
capital que testemunhou Pernambuco. 

Era presidente dessa província Honório Hermeto 
Carneiro Leão, nomeado tempos depois Marquês do Pa- 
raná. Por esses fatos de próxima data e por outros se- 
melhantes de data remota, a Cruz' dx) Patrão foi até certo 
tempo fonte de superstições populares. Antes de se ha- 
ver feito a nova estrada que por S, Amaro põe o Recife 
em comunicação com Olinda, ninguém' se animava a 
passar desacompanhado, de noite, pelo istmo. Os matutos 
que tinham de vir desta ou voltar daquela cidade aguar- 
davam para o fazer, a maré-sêca, que lhes permitia bei- 
rar o rio, em certos pontos por entre mangues, deixando 
a alguns passos a cruz fatídica. Os canoeiros tinham 
o cuidado de navegar por dentro, afim de escusar a 
sua vista. 

Porém, o que mais particularizou a Cruz do Patrão 
foram tradições de espíritos infernais, bruxarias e outras 
queijandas. Dizia-se que os feiticeiros iam celebrar ali os 
seus sortilégios em noite de S. João, que eles escolhiam 
para iniciar nos asquerosos mistérios os neófitos. Apa- 
recia o diabo e fazia cousas de arrepiar o cabelo. Foi 
por uma dessas ocasiões que teve existência a presente 
lenda. Estava celebrando a sua sessão anual o congresso 
dos negros feiticeiros no Recife. Cada um deles tinha 
na mão um cacho de flores de arruda. O povo diz que 
em noite de S. João esta planta dá flores, as quais são 
logo arrebatadas pelos feiticeiros para as suas bruxarias. 
À meia noite começou a coreia dos mandingueiros. 



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■ I . V — _»J»rT 



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— 247 — 

Tripudiavam estes à roda da Cruz, rezando orações 
de tenebrosa virtude. O rei das trevas não se fez esperar 
por muito tempo. Tinha a forma de um animal desco- 
nhecido. Era preto como carvão. Os olhos acesos despe- 
diam chispas azues. Brasas vivas caiam-lhe da boca 
escancarada e ameaçadora. Pela garganta se lhe viam as 
entranhas, onde o fogo fervia. A visão horripilante a 
todos meteu horror. 

Entre os que tinham ido tomar mandiga, achava-se 
uma negra de grosso toutiço e largas ancas, que lhe da- 
vam a forma de tanajura. Foi a primeira vez que passpu 
pelas duras provas. 

O animal informe atirou-se a ela por entre uma 
chuva de faiscas abrasadoras: ela, porém,, deitou a correr 
pelo istmo a fora, como se tivesse perdido a razão. 
Quando pensava que havia escapado à provação cruel, to- 
mou-lhe a adianteira o animal, cada vez mais ameaçador 
e terrível. Levada pelo desespero, e pelo que via e sentia 
em derredor de si, a negra correu ao mar para atirar-se 
nas águas gemedouras. O mar mostrava-se mais medonho 
que o demónio solto e as suas vozes puseram no coração 
dela mais pavor, do que as dos feiticeiros, que tripudia- 
vam à roda da Cruz, em sua infernal coreia. Retrocedeu 
mais horrorizada que antes. Tendo dado de rosto com o 
inimigo pela vigésima vez, correu ao rio que volvia as 
águas tão de manso, que parecia adormecido. 

Meteu-se por elas a dentro, para escapar à terrível 
perseguição . 

Enganado pela vista dos mangues, o demónio atirou- 
se após a fugitiva, julgando entrar em uma floresta. 
Assim, porém, que o seu corpo ígneo se pós em contacto 
com as águas frias, súbita explosão destruiu a furiosa ali- 
mária. O estampido ribombou como descarga elétrica. 
Nuvem de fumo espesso,, que tresandou a enxofre, cobriu 
a face do Beberibe. 

No outro dia, na baixa-mar, apareceu no lugar onde 
a negra se tinha afundado, não o seu corpo, mas a Coróa- 
preta, que indicou daí por diante aos feiticeiros a vin- 
gança do espírito das trevas. 

Há bem poucos anos via-se ainda, na altura da Cruz 
do Patrão, quando a maré deixava de fora o formoso 



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— 24B — 

arquipélago que a natureza situou no leito do Beber ibe, 
a Corôa-preta, assim conhecida entre os canoeiros pela 
vCÔr dos detritos que ali se Jiaviam acumulado, que con- 
trastava, por sua nudez, com as ilhas circunstantes. 

Nestas a natureza sorria com gentil e variável ame- 
nidade; naquela dominava a aridez e o deserto. Nenhum 
mangue fora beber em seu seio maldito o húmus que 
as florestas de mangues sugam nos. seios boleados das 
ilhas de contínuo refrigeradas pelas águas lustrais do Be- 
beribe. As ilhas, vestidas de viçosos e alegres arvoredos, 
podiam oferecer residência às fadas amigas e bonançosos 
génios; a coroa escalvada só poderia servir, pela sua fei- 
ção tumular e triste, de morada a algum peregrino espí- 
rito, precursor de tempestades e de enchentes destruidoras. 

Dizia o povo que, quando tivesse desaparecido de 
todo a Corôa-preta, teria cessado também o encanto da 
Cruz do Patrão. O que é certo é que hoje não se fala 
nà Coroa, nem na Cruz; aquela foi de todo comida pelas 
águas do rio, enquanto esta a ninguém mais mete medo, 
porque já ninguém passa pelo istmo, excôto os soldados 
que guarnecem as fortalezas. 

O Recife e Olinda comunicam-se assídua e diaria- 
mente pela estrada de S. Amaro, por onde as locomotivas 
correm, de espaço a espaço, enchendo a margem direita 
do Beberibe de fumos e ruído, que indicam o percurso 
da civilização por aquelas solidões pitorescas. 

O istmo há de desaparecer também de todo, como 
desapareceu a Coroa e cessou o encanto da Cruz. 

À proporção que Olinda aumento ao Sul e o Re- 
cife ao Norte, encurta nas extremidades a língua de areia 
que ainda as separa. Daqui a algumas dezenas de anos 
sobre sua face, rasa e núa, ter-se-á levantado entre as 
águas azues do oceano e as águas claras do rio um quar- 
teirão de casas gentis, de quasi meia légua de comprido. 

O Recife poderá então dizer à sua esposa de cara 
memória esta letra de um dos seus imortais poetas: 

Não nos separa 
Momento algrum; 
De dois que fomos, 
Somos só um. 



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IX. CONTOS POPULARES 

(Folc-loré) 



94. A mochila de ouro 

Conto de origem europeia 

Havia dois homens, um rico e outro pobre, que gos- 
tavam de fazer peças qm ao outro. Foi o compadre po- 
bre à casa do rico pedir um pedaço de terra para fa- 
zer uma roça. O rico, para fazer peça ao outro, lhe deu 
a pior terra gúe tinha. Logo que o pobre teve o sim, 
foi para casa dizer à mulher, e foram ambos ver o terre- 
no. Chegando lá nas matas, o marido viu uma mochila 
de ouro, e, como era em terras do compadre rico, o po- 
bre não a quHs levar para casa, e foi dizer ao outro 
que em suas matas havia aquela riqueza. O rico ficou 
logo todo agitado, e não quis que o compadre traba- 
lhasse mais nas suas terras. Quando o pobre se retirou, o 
outro largou-se com a sua mulher para as matas a ver 
a grande riqueza. Chegando lá, o quô achou foi uma gran- 
de casia de maribondos; meteu-a num grande saco e to- 
mou o caminho da casinha do pobre e, logo que o avis<^ 
tou, foi gritando: 

— ''O' compadre, fecha as portas e deixa somente 
uma banda da janela aberta*"* O compadre assim fez, e o 



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— 250 — 

rico, chegando perto da janela, atirou a casa de maribon- 
dos dentro da casa do amigo, e gritou: — "Fecha a ja- 
nela, compadre I" Mas os maribondos bateram no chão, 
transformaram-se em moedas de ouro, e o pobre chamou 
a mulher e os filhos para as ajuntar/ O ricaço gritou en- 
tão: — - "O' compadre, abre a porta!" Ao que o outro res- 
pondia: — "Deixa-me, que os . maribondos estão me ma- 
tando!" E assim ficou o pobre rico e o rico ridículo. 

Contos Populares — Sílvio Romero. 



95. O cágado e a festa do céu 

Conto de origem europeia 



Uma vez houve três dias de festas no céu; todos os 
bichos lá foram; mas nos dois primeiros dias o cágado 
não pôde ir, por andar muito devagar. Quando os outros 
vinham de volta, êle ia no meio do caminho. No úl- 
timo dia, mostrando êle grande vontade de ir, á garça 
se ofereceu para levá-lo nas costas. O cágado aceitou, e 
montou-se; mas a malvada ia sempre perguntando si êle 
ainda via terra, e quando o cágado disse que não avistava 
mais a terra, ela o largou no ar e o pobre veio rolando 
e dizendo. 

"Léu, léu, léu; 

Si eu desta escapar. 

Nunca mais bodas ao céu".., 

E • também : " Arredem-se, pedras, paus, se não vos 
quebrareis". As pedras e paus se afastaram, e éle caiu; 
porém, todo arrebentado. Deus teve pena e ajuntou os pe- 
dacinhos e deu-lhe de novo a vida, em paga da grande 
vontade que êle teve de ir ao céu. Por isso é que o cá- 
gado tem o casco em forma de remendos. 



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— 251 — 

96. o veado e a onça 

Conto de origem indígena 

O veado disse: "Eu estpu passando muitq trabalhp 
e por isso vou ver um íuçar pttra fazer miíiha casa". 

Foi pela beira do rio, achou um lugar bom e disse: 

"E' aqui". ^ ' 

A onça também disse: "Eu estou passando muito 
trabalho, e por isso vou procurar lugar para fazer mi- 
nha casa". 

Saiu e chegando no mesmo lugar que o veado ha- 
via escolhido, disse: "Que bom lugar; aqui vou fazer 
minha casa". 

No dia seguinte veio o veado, capinou e roçou o 
lugar. 

No outro dia veio a onça e disse: "Tupã me está 
ajudando". Afincou as fotquilhas, armou a casa... 

No outro dia veio q veado e disse: Tupã me está 
ajudando". Cobriu a casa e fez dois cómodos: um para 
si, outro para Tupá. 

No outro dia, a onça achando a casa pronta, mu- 
dou-se para aí, ocupou um cómodo e pós-se a dormir. 

No outro dia veio o veado e ocupou o outro cómodo . 

No outro dia se acordaram, e quando se avistaram, 
a onça disse ao veado: "Era você que estava me ajudan- 
do?" O veado respondeu: "Era eu mesmo". 

A onça disse: "Pois bem agora vamos morar juntos". 
O veado disse: "Vamos". 

No outro dia, a onça disse: "Eu vou caçar. Você 
limpe os tocos, veja água, lenha, que eu hei de chegar 
com fome". 

Foi caçar, matou um veado muito grande, trouxe para 
casa e disse ao seu companheiro: "apronta para nós 
jantarmos". 

O veado aprontou, mas estava triste, não quis co- 
mer, e de noite não dormiu, com medo de que a onça o 
•pegasse. 

No outro dia, o veado foi caçar, encontrou-se com 
outra onça grande e depois com um tamanduá; disse ao 
tamanduá: "Onça está ali falando mal de você". 



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— 252 — 

O tamanduá veio, achou a onça arranhando um pau, 
chegou por detrás de vagar, deu-lhe um abraço, meteu- 
Ihe a unha, a onça morreu. 

O veado a levou para a casa, e disse à sua compa- 
nheira: "Aqui está, apronta para nós jantarmos". 

A onça aprontou, mas não gantou, e estava triste. 

Quando chegou a noite, os dois não dormiram, a 
onça espia^ido o veado, o veado espiando a onça. 

À meia noite, eles estavam com muito soiio; a ca- 
beça do veado esbarrou no girau e fez: tá 1 A onça pensou 
que éra o veado que já a ia matar, deu um pulo. 

O veado assustou-se também- e ambos fugiram, um 
correndo para um lado, outro correndo para o outro. 

I>'0 Selvagem — .Couto de Magalhãea. 



97. Â raposa e a onça 

Conto de origem indígena 

O sôl secou todos os rios e só ficou um poço com 
água. 

A onça então disse: "Agora sim; pilho a raposa, por- 
que vou fazer espera no poço da água". A raposa, quan- 
do veio, olhou para a frente e avistou a onça; não pôde 
beber água, e foi-se embora, imaginando um plano para 
poder beber. 

Vinha uma mulher pelo caminho com um pote de 
mel à cabeça. A raposa deitou-se no caminho e fingiu-se 
morta; a mulher arredou-a e passou. A raposa correu 
pelo cerrado, saiu-lhe adiante no caminho, e fingiu-se 
morta; a mulher arredou-a e passou adiante. 

A raposa correu pelo cerrado e fingiu-se morta; a 
mulher chegou e disse: — "Si eu tivesse apanhado as 
outras, já eram três**. Arriou o pote de mel no chão, pôs 
a raposa dentro do cesto, deixou-o aí e voltou para tra- 
zer as outras raposas. 



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— 253 — 

Então a raposa lambusou-se no mel, deitou-se por 
cima das folhai verdes, chegou ao poço e assim bebeu 
água. 

Quando a raposa entrou na água ^ bebeu,, as folhas 
se soltaram; a onça conheceu-a, mas, (luando quis saltar- 
Ihe em cima, a raposa fugiu. 

A raposa estava outra vez com muita sôde, bateu 
num pé de aroeira, lambusou-se bem na sua resina, es- 
pojou-se entre as folhas secas e foi para o poço. 

A onça perguntou: — "Quem és?" — "Sou o bicho 
Folha Seca''. A onça disse: "Entra na água, sai e de- 
pois bebe**. 

A raposa entrou, não lhe cairam as folhas, porque 
a resina nSo se derreteu dentro d' água; saíii e depois 
bebeu, e assim fez sempre, até chegar o tempo da chuva. 

Colhido entre 08 Índios pelo general Couto de 
Maffdlhãea, 



98. O macaco e o coelho 

Conto de origem africana 

O macaco e o coelho fizeram um contrato para o 
macaco matar as borboletas e o coelho as cobras . Estan- 
do o coelho dormindo, veio o macaco e puxou-lhe pelas 
orelhas, julgando que eram borboletas. 

Zangado por esta brincadeira, o coelho jurou vingar-se. 

Estando o macaco dcjscuidado, assentado numa pe- 
dra, veio o coelho devagarinho, arrumou-lhe uma paula- 
da no rabo, e o macaco, sarapantado, gritou e subiu pôr 
uma árvore acima a guinchar. 

Então o coelho ficou com inedo e disse: 

"Por via das dúvidas. 
Quero me acautelar; 
Por baixo das folhas 
Tenho de morar" . 

Contos poptUares do Brasih Sílvio Homero. 



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— 254 -^ 

99. A onça e o gato 

Conto de origem africana 

A onça pediu ao gato para lhe ensinar a pular, e o 
gato prontamente lhe ensinou. Depois, indo juntos para 
a fonte beber água, fizeram uma aposta para ver quem 
pulava mais. ' 

Chegando à fonte, encontraram lá o calangro, e en- 
tão disse a onça para o gato: "Compadre, vamos ver 
quem de um só pulo pega o camarada calangro?" 

— "Vamos", — disse o gato — "Só você pulando 
adiante", — disse a onça. O gato pulou em cima do ca- 
langro; a onça pulou em cima do gato. Então o gato 
pulou de banda e se escapou. 

A onça ficou desapontada e disse: 

— "Assim, compadre gato, é que você me ensinou?! 
principiou e não acabou..." — O gato respondeu: — 
"Nem tudo os mestres ensinam aos seus aprendizes". 

Contos populares do Brasil, Sílvio Romero. 



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X. sermOes e discursos 



FR. FRANCISCO DE S. CARLOS 

RIO Í)E JANEIRO — 10-Vni.l763 
t RIO DE JANEIRO — 6-V.Í829 

Bio-bibliografia — Fr. Francisco dô S. Carlos era francis- 
cano, tendo tomado o hábito aos 18 anos de idade. Orador 
fluente e fácil, os seus sermões Impressionaram profunda- 
mente a D. João VI, que o nomeou pregador régio. Foi pro- 
fessor de eloquência no seminário de S. José. Deixou um poe- 
ma, a Assunção da Virgem, en» rimas pareadas, no qual teve 
a origrinalíssima ideia de colocar o parafsò terreal no novo 
continente . 



100. A virtude da Fé 

Que tesouro tão precioso será este, meus irmãos, 
que o negociante do Evangelho não duvida sacrificar to- 
dos os seus bens, contanto que o chegue a possuir? 

Embora s sagrados intérprôt^s se dividam em seus 
pareceres; embora uns digam que é a doutrina evangéli- 
ca; outros, que é o reino do céu; outros, o desprezo dos 
bens terrenos, como S. Gregório; outros que é o mes- 
mo Jesus Cristo, como S. Agostinho; enquanto a mim, 
eu penso que é a virtude da fé, esta virtude sem a qual, 
diz S. Paulo, não se pode agradar a Deus. Ela foi o 
sinal característico dos maiores santos e das mais ilustres 



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— 256 — 

personagens da antiga lei. Pelo sacrifício que Abraão 
fez do seu filho no alto do Mória, conheceu-se o heroís- 
mo da virtude e da fé deste, pai dos crentes. Ela é quem 
nutria na vida espiritual, quem sustinha, quem consolava 
os justos do Antigo Testamento nos seus trabalhos e adver- 
sidades, ou eles descessem ao Egito, impelidos da fome 
e esterilidade; ou fossem conduzidos à Caldeia em ca- 
tiveiro pelos reis d'Assíria; ou vissem assentado no sólio 
de David um Idumeu, senhor do cetro de Judá. 

A f é é quem adoçava o ferro dos seus grilhões, quem 
enxugava as lágrimas dos seus desterros, quem os sus- 
tinha no meio de provas tão rudes. Ela é quem os sepa- 
rava dessa massa geral da corrupção, que dominava então 
sobre a face da terra, quem os distinguia das nações in- 
circuncisas, que curvavam o joelho e queimavam incenso 
às obras de suas mãos, que os fazia um povo à parte, uma 
crença à parte, em uma palavra, um povo santo,- depó- 
sito da fé das promessas divinas. A esperança de um re- 
parador, que havia de sair desta nação privilegiada, era 
uma tradição inalterável, que no seio da família se perpe- 
tuava de pais a filhos, de geração em geração e de século 
em século; e que, na ordem da graça, fazia vegetar esta 
porção escolhida da humanidade. 

Panegírico de 8, Ana — (1788). 



FREI SAMPAIO 

mo DE JANEIRO — Vin-1778 
t RIO BE JANEIRO — 18.IX-1880 

Frei Francisco de S. Teresa de Jesks Sampaio pertenceu à 
, ordem franciscana (desde 1793) e foi notável pregador, de gran- 
de fama e nomeada. Obteve o diploma de lente de teologia e 
professor de eloquência, merecendo ser nomeado pregador régio 
por D. João VI. 

Frei Sampaio foi membro da Academia de Belas Letras 
de Munich e deixou inúmeras orações fúnebres e sermões. Foi 
êle quem redigiu a celebre representação ao príncipe D. Pedro, 
que continha oito mil assinaturas e que começava por um modo 
singularmente franco: "A partida de S. A. seria o decreto 
que teria de sancionar a Independência do Brasil **. Era uzíi 
patriota. 



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— 257 - 



101. Dies Irae 

Oh céusl Oh Deus! quem poderá descrever o apa- 
rato de vossa Igreja nesse dia? Vinde em meu socor- 
ro, ilustres Padres da Igreja, discípulos da Sabedoria in- 
criada, dizei vós mesmos o que pensastes sobre este dia. 
- Eu tremo, diz S . Anselmo, quando me apresento diante 
deste tribunal, vendo, de uma parte, os pecados acusan- 
do-me dos deleites que eu gozava, de outra, a justiça im- 
pondo-me silêncio, ou rejeitando minhas escusas; debaixo 
dòs meus pés, a garganta do abismo aberta para me en- 
golir; de cima, um Juiz que não se dobra nem a lágrimas, 
nem a súplicas; no meu interior, a conciência atassa- 
Ihando-me; fora, o mundo em chamas. Eu tremo, diz 
S. Bernardo, contemplando na face deste Deus irado, sen- 
tindo os efeitos da sua cólera, os sinais do seu furor; 
ouvindo a voz do Arcanjo que reanima as cinzas de to- 
dos os mortos, desde o Oriente até o Ocidente; vendo es- 
tes leões famintos que aguçam na terra sus unhas para 
estrangularem mais depressa suas vítimas; eu me hor- 
rorizo, quando considero neste inseto que se nutrirá nas 
entranhas do pecador sem nunca morrer. Será nesse dia, 
continua o mesmo Padre, què tudo quanto agora nos pa- 
rece ouro, se converterá em espuma; que conheceremos a 
impureza das nossas ações; será ali que os ídolos do 
nosso coração, rebelândo-se contra nós, agravarão ainda 
mais o pôsodas nossas desgraças. Ah I si eu tivesse mil 
fontes de lágrimas, ainda seriam poucas para prevenir 
estas lágrimas eternas. Eu tremo, diz S. Gregório Nanzia- 
zeno, quando se me representa o dia em que Jesus Cris- 
to entrará comigo em juizo, convèncendo-me de crimea 
que eu julgava perdoados^ apresentando-me em face os 
meus pecados como acusadores, opondo contra as mi- 
nhas iniquidades os benefícios que recebi dôle; pedindo- 
me contas da formosura da sua imagem impressa sdbre 
mim e desfigurada pelas nódoas mais vergonhosas; obrl- 
gando-me, enfim, a pronunciar a sentença contra mim 
mesmo, para que eu não possa queixar-me de que sofro 
injustamente. 

Quem me servirá de advogado diani^ deste Juiz? 



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— 258 — 

Com que pretextos, com que falsas escusas, com que 
artificiosas cores, com que invenções sutís, poderia dis- 
farçar a verdade na presença deste soberano tribunal, 
onde tudo será contra mim e nada em meu favor? Ahl 
pronunciada a sentença, à vista da balança em que fo- 
rem pesadas minhas ações, eu não terei outro juizo para 
onde apelar, não terei me^os de destruir por nova con- 
duta o mal que fiz; expirou o tempo; caiu um véu de 
chamas sobre a cena onde eu representava; eis aí a porta 
da eternidade I Que nova perspectivai 

Sermão pregado em 1811. 



MONTE ALVERNE 



RIO DB^ JANEIRO — »-Vin-1784 
t NITERÓI — 2.Xn-1858 

Monte Alverne, Francisco José de Carvalho, antes de pro- 
fessar, era frade franciscano. Professou em 1802. Na cadei- 
ra sagrada, não foi, entre nós. excedido, tendo igualado ãos 
mais notáveis pregadores de Pdrtugal. Foi professor de filo- 
sofia, retórica e teologia. 

Vítima de atroz cegueira (1836), o grande sermonista, re- 
colhido à sua cela, esteve mudo e silencioso por espaço de 
dezoito anos, até que, a convite do imperador, de novo subiu 
ao púlpito no dia 19 de Outubro de 1854, festa de S. Pedro de 
Alcântara: então obteve completo e esplênddio triunfo orató- 
rio: este memorável sermão foi o seu canto de cisne. 

Bibliografia — Obras Oratórias, Com^pêndio de Filosofia, 
Trabalhos Oratórios e lAterários, coligridos por Câmara Bitten- 
court. 



102. Â causa das Revoluções 

E' uma injustiça reconhecer nas revoluções políticas 
dos povos a influência exclusiva das paixões e dos crimes 
individuais. E' um absurdo pretender que as nações se 
deixem arrastar por uma cega fatalidade sobre abismos 



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— 259 — 

onde vão perder sua grandeza e sua glória. Folheando os 
anais dos povos, consultando os monunientos que ates- 
tam a passagem destas lavas que têm engolido as monar- 
quias e as mais florentes repúblicas, a filosofia assinala 
com segurança a causa destas comoções violentas que 
têm sacudido as gerações e tantas vezes ameaçado a exis- 
tência do género humano. Há um sentimento de felici- 
dade que levanta o seu gfito poderoso no seio dos povos, 
como domina imperiosamente no coração de cada homem. 
Esta expressão de magnanimidade, estas inspirações do 
heroismo, esta necessidade de glória, que lançam nos mais 
soberbos teatros estes génios, destinados a marcar uma 
época nos bastos do universo, pulsam na arena as dife- 
rentes frações do género humano, que por um instinto 
da razão, por um sentimento da dignidade nacional, pre- 
cipitam-se após esta liberdade, sem a qual são perdidas 
sua consideração e granldeza. 

Por o abuso mais escandaloso, roubou-se às nações 
este florão da sua glória. Por a mais iníqua de todas as 
injustiças, o homem aparece no seio do universo como 
uma besta feroz, dilacerando os seus semelhantes, que- 
brando os monumentos da civilização, destruindo na sua 
raiva os troféus consagrado^ pelas artes e levantando 
sobre as ruínas, como um génio da motte, de destruição e 
carnagem . 

Todavia, a despeito de todas estas sombras melancó- 
licas, logo que os prejuizos Hão influem mais sobre a ra- 
zão, desde que as paixões cessam de empregar suas cores 
factícias, é fácil de entrever nessas reações espantosas e 
formidáveis da luta sublime da razão contra os abusos de 
um poder que, fazendo-se tirânico e opressor, tenha ces- 
sado de encher seus fins importantes e sublimes: não 
é difícil de reconhecer a nobre expressão de vingança, 
com que os povos, cansados de suportar o seu avilta- 
mento fazem em pedaços esses tronos, esses cetros, essas 
machadinhas, essas cadeiras de marfim, que manchando- 
se no sangue dos povos que os haviam criado para a 
sua felicidade, eram um título de opressão e um mo- 
numento do opróbrio, de escravidão e de vingança. 

O sábio tinha já dito que as revoluções dos povos 
eram causadas por a perfídia, os ultrages, as violências e 



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*- 260 — 

injustiça que se lhes faziam sofrer. Êle linha visfo as 
cadeiras dos orgulhosos da terra engolidas no meio des- 
ses terremotos políticos, que seus excessos tinham provo- 
cado. E' nessas barreiras formidáveis que se despedaçam 
todos esses opressores que fundam a sua grandeza e a 
sua glória nas lágrimas, nos gemidos e na miséria dos 
povos. 

Sermão ãe 25 de Março de 1S81. 



PADRE JÚUO MARIA 



ESTADO DO RIO — ANGRA DOS REIS — aO-Vni-1850 
t RIO DE JANEIRO — 2.IV-1916 

O Padre Júlio Maria, no século Dr. Júlio César de Morais 
Carneiro, o evangelizador e o propugnador da fé católica, foi 
um dos mais notáveis dos nossos oradores sagrados. Douto- 
rou-se em direito, em borla e capelo pela Faculdade de São 
Paulo (1875). O dr. Júlio César foi promotor público e advo- 
gou na cidade de Mar. de Espanha; enviuvando em 1889, pela 
segunda vez, nesse mesmo ano entrou no seminário de Ma- 
riana de onde saiu ordenado em 1891; começou então o padre 
Júlio Maria a sua missão apostólica, tendo percorrido, na pro- 
pagação da religrião do Evangelho, todos os Estados brasileiros, 
do Rio Grande à Amazónia. 

Bibliografia — O fervoroso apóstolo da fé publicou: A Pai- 
xão, O Deus desprezado, A Virgem, As imÂtadoras da Virgem, 
Conferências Católicas, A Oraça, Pensamentos e Reflexões e 
Apóstrofes, 



103. A Graça 

A Graça! Todas as maravilhas do mundo físico; to- 
dos os prodígios do mundo intelectual; todos os heroís- 
mos do mundo moral não são suscetiveis de comparação 
com a Graça! 

Sim: nem no espetáculo variado das cenas da na- 
tureza; nem nos esplendores do firmamento; nem nos 
mais peregrinos produtos do engenho humano; nem fi- 
nalmente, nos devotamentos mai3 sublimes do coração 



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— 261 — 

podemos encontrar uma beleza que rivalize com a beleza 
da Graça! 

A ciôncia não a pode sondar; a arte nSo a pode 
reproduzir; a poesia não a pode exprimir. Ela excede aos 
termos e às comparações da pobre linguagem humana; 
transcende todas as concepções da estética; sobreleva to- 
das as fórmulas da imaginação. 

Quantas maravilhas no universo visivell 

As florestas, e os mares, e as massas brilhantes que 
se equilibram no espaço — quantas belezas! Pois resu- 
mi-as todas; fazei de tantas belezas variadas uma só be- 
leza; e não tereis ainda, uma pálida imagem da formosu- 
ra da Graça! 

^Quantos ornatos na superfície; quantas riquezas nas 
entranhas do Globo! 

Pois reuni tudo isso, — as árvores, as flores, os dia- 
mantes; e não podereis imaginar ainda nem a beleza, nem 
a riqueza da Graça! 

A-pesar-do erro e do vício, que tantas vezes defor- 
mam as produções do espírito, quanta grandeza nas con- 
cepções do engenho humano! Pois bem; as sublimidades 
da ciência, os primores das artes, o brilho de todas as 
literaturas desaparecem como sombras fugaces diante dos 
esplendores da Graça! 

Não obstante o pecado, há também no mundo moral 
exemplos heróicos de devotamento e de amor. O mal 
presentemente ocupa um grande lugar no mundo, onde 
procura preponderar; mas ainda assim há na vida da 
família, da pátria ou da humanidade cousas belas e pu- 
ras, que podemos cohtemplar com alegria. 

Pois bem; tudo que há de grandeza épica na histó- 
ria, ou de sensibilidade lírica no coração nã£) ó compa- 
rável à Graça, que eclipsa toda £^ luz, confunde toda a 
formosura, amesquinha todo o heroísmo, transcende todos 
os fenómenos do belo; todos os arrojos da bondade hu- 
mana, e nas trevas profundas do nosso exílio resplandece. 
Sol Divino, nos horizontes da Fé. 

Ela excede a tudo: a beleza, o gônio, o heroísmo. 
Não pode ser confrontada nem com os modelos da plás- 
tica, nem com as fulgurações da inteligência, nem com 
as delicadezas mais requintadas no coração humano. A 

Antologia Brasileira 10 



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— 262 — 

fronte que ela transfigura é mais formosa que todos os 
primores da estatuária; o espírito que ela esclarece é mais 
iluminado que todas as ciências; o coração que ela ani- 
ma é mais harmonioso que todos os poemas. 

Mas, si a Graça é o dom supremo; que mal não deve 
ser a perda da Graça? I 

A Oraça — Prédicas — Tip. Americana, Juiz 
de Fora, 1895. 



JOSÉ DA SILVA LISBOA 

(visconde de cairú) 

BAIA — 16-Vn-175e 

t RIO DE JANEIRO — 16-VIIt-1835 

O sábio brasileiro, bacharel em Direito Canónico e Filo- 
sofia, magristrado e administrador, foi moralista, jurisconsulto 
e parlamentar. 

Professor, deputado à Junta do Comércio. Diretor da Im- 
prensa Nacional, Desembargador do paço aposentado, Diretor 
geral dos estudos e Senador do Império, Cairú fez parte da 
Constituinte, onde se salientou pela sua moderação, bom senso 
e amor à ordem. 

O Conselheiro José da Silva Lisboa foi quem aconselhou, ao 
passar D. João, ainda príncipe regente, pela Baía em 1808, a 
abertura dos portos do Brasil ao comércio das nações. 

Era formado em Coimbra e pertenceu a várias associações 
literárias e científicas nacionais e estrangeiras. 

Bibliografia — Princípios de direito Tnercantil e leis de Ma- 
rinha, Princípios ie economia politica. Observações sôhre o co- 
inércio franco do BraMl e outras. 



104. Última sessârO da constituinte 

Sôhre a situação 'politica 

Sr. Presidente: para que se figura a retirada dos 
corpos militares e a sua atitude atual em S. Cristóvão, 
em ponto de vista odioso e como em bloqueio desta ca- 
pital? O povo está e tem estado tranquilo; ontem bem 



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— 263 — 

se viu que esteve nas galerias desta assembleia, sem aue 
entrasse na sala, como no dia antecedente; não havendo 
aliás ordem alguma em contrário, e só porque, foram cer- 
tificados que o regimento lhe designava o lugar somente 
nas mesmas galerias e se manifestaram opiniões dos 
deputados contra a licença concedida na sessão de 10. 
Isto prova ser o povo fluminense um povo de ordem. 
Sinto que um dos Srs. deputados então me arguisse, di- 
zendo que eu temia o povo generoso do Brasil e não te- 
mia a tropa. 

Eu, não obstante os cabelos brancos da mirrada ca- 
beça, não sei o que é temor, quando encho o que é de- 
ver; mas sei também qual é o perigo de ajuntamentos 
populares, que podem degenerar em tumultos, preso-me 
de ser cauteloso, sem fantasiar de ser capoeira; e perdoe- 
me esta augusta assembleia o ter-me escapado este nome 
do vulgo, impróprio ao lugar e objeto. Não é racional 
o pôr em contraste, e menos em conflito, o corpo do povo 
com o corpo militar, que aliás faz parte, e mui impor- 
tante parte, do mesmo povo, por ter especial atrilpuição 
da defesa nacional; o que constitue e sua profissão mui 
honorífica, vivendo os que a ela se dedicam de heróicos 
sacrifícios da própria vida pela segurança dos seus con- 
cidadãos e glória do Estado. 

Ouvi falar com entusiasmo sobre os objetos desta 
sessão permanente, até invocando-se os manes dos brasi- 
leiros e hidras da fábula. 

Eu também sei chamar as almas dos mortos e apos- 
trofar aos montes, vales e rios, çom as mais artes do 
estilo declamatório. 

Mas prescindo destes expedientes, porque só interessa 
ao império tratar tais assuntos com serenidade, para se 
prevenirem os males da pátria. Não é compatível com 
o sistema constitucional erigir-se, o poder legislativo na 
competência do poder executivo, que tem a confiança na- 
cional para providenciar à segurança pública. 

A tropa é essencialmente uma força armada; estar 
ou não atualmente debaixo das armas e com munições 
de guerra, evidentemente se mostra ser medida de precau- 
ção para prevenir desordens pelos boatos, que a maligni- 
dade de paixões particulares tem espalhado por ocasião 



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— 264 — 

dos delitos noturnos, sobre que se tem discutido nesta 
assembleia com grande agitação, pelo tumultuário concurso 
do povo no dia 10, dentro e fora da assembleia, de que 
poderiam resultar efervescências populares. Examinar- 
se com severo escrutínio agora pela assembleia que corpos 
militares primeiro se moveram, com ordem ou sem ela, 
de seus aquartelamentos não pode ter efeito útil. 

A história mostra exemplos semelhantes em convul- 
sões dos estados ou dissencões de autoridades: as irregu- 
laridades muitas vezes são momentâneas e sem consequên- 
cia, quando o governo é respeitado e firme, que põe tudo 
em ordem pela disciplina do exército. Si os corpos mili^ 
tares confluem para o seu legal centro de movimento e 
cessam os conflitos de poderes antagonistas, não há mau 
resultado; do contrário, aparece o fenómeno político se- 
melhante ao fenómeno físico, quando pequenas- nuvens 
concorrem, por atracão elétrica a se aproximarem a al- 
guma maior, até que, englobando, fa^em explosão. 

Ouvi com pasmo a lun Sr. deputado propor que esta 
assembleia nada delibere anies de que o governo asse- 
gure a tranquilidade pública fazendo repor a tropa nos 
seus aquartelamentos; e, do contrário, estabelelpa as suas 
sessões em outro lugar. Em que lugar? Estamos no mun- 
do da lua? Andaremos de capa em colo, em busca de 
pouso? A quem daremos ordens? Quem as executará? 
Sem dúvida então se verificaria o que disse o político Tá- 
cito — que em perigos iminentes todos mandam e nin- 
guém obedece — quod in rebus trepidis fit, omnes jubere, 
neminem exequi. 



ANTÓNIO CARLOS 

SANTOS — S. PAULO, — l-XI-1778 
t RIO DE JANEIRO , — 5.Xn-1845 

António Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Silva, de 
quem diz Macedo que foi o tipo da eloquência parlamentar 
no Brasil, chamando-lhe Mirabeau brasileiro, formou-se em 
Coimbra, foi deputado às Cortes portuguesas, tomou parte nas 
lutas da Independência. Em 1817, AntOnio Carlos, ouvidor de 
Olinda, aderiu à revolução de Pernambuco e fez parte do Con- 



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— 265 — 

selho Revolucionâxio, pelo que foi preso e processado. Depu- 
tado à Constituinte, António Carlos foi o relator da Comissão 
que apresentou o projeto da Constituição; dissolvida aquela 
assembleia prenderam-no ao sair da Câmara, e> com outros, foi 
deportado para a Franga. António Carlos, que pugmou pela 
maioridade, foi o Ministro do Invpério do 1.® Ministério orga- 
nizado por Pedro II (24-VII-1840) . Deputado por S. Paulo e 
por fim Senador por Pernambuco, em 1845, poucos meses depois 
de eleito, nesse mesmo ano, morreu. 

Foi do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e per- 
tenceu a outras assoclagOes literárias e científicas nacionais e 
estrangeiras. 

Bibliografia — Eahôço Biográfico de José Bonifácio, 1834, 
Guanabara,, tomo 3.*, Projeto da Constituição para o Império 
do Brasil, 1823, etc. 



105. Última Sessão da Constituinte 

Sabre a liberdade de imprensa 

Sr. Presidente: Em verdade não compete à Assem- 
bleia conhecer si houve ou não abuso nesses periódicos (i), 
que se apontam : é negócio inteiramente do Poder Judiciá- 
rio, a quem toca declarar si os seus autores são ou não 
culpados. O que é, na verdade, célebre é que o Governo 
acuse só aqueles dois periódicos, quando há outros ain- 
da piores; mas como neles se falava do Ministério desa- 
gradaram; eu não posso descobrir outro motivo. 

A comissão teve a delicadeza de desprezar, como 
devia, insinuações escandalosas e odiosas e sem funda- 
mento algum; porém é do meu dever declarar que o mi- 
nistério avançou uma falsidade, a mais vergonhosa possí- 
vel. Eu não tive influência em semelhantes papeis, refe- 
ridos no ofício do ministro; por consequência o ministé- 
rio mentiu, quando tomou semelhante pretexto para fazer 
acusação tão falsa e tão indigna. 

Si acaso há abuso de liberdade de imprensa nesses 
papeis, faça o governo a sua obrigação, chame a jurados 
os autores deles. 



(1) — Tamoio e Sentinela da Praia Grande. 

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Todavia sempre agradeço ao Governo escollier-me 
para alvo de seus tiros (honra que não esperava), como 
fez a outros meus colegas, iguais a mim em sentimentos 
de liberdade, pois em todos considero a versão devida à 
escravidão . 

Sei que posso desagradar, que me comprometa, que 
não tenho segurança, a-pesar-do título de deputado; mas 
em minha coneiôncia devo falar com imparcialidade; e 
então digo: Que liberdade temos nós? Que somos, nós 
aqui? Quanto ao caráter de deputado, diz-se que sou 
perturbador, apontam-me como assassino e autor de ber- 
nardg^s e pede-se a minha cabeça e as de outros depu- 
tados! E por que serão os nossos nomes escolhidos? E' 
porque se deseja que não tenhamos assento aqui porque 
somos contra abusos e contra a escravidão! 

Julgo, pois, Sr. Presidente, o parecer manco, e, como 
deputado desta assembleia, digo francamente que não 
temos segurança, que a assembleia está coacta e que não 
podemos deliberar assim, porque nunca se delibera debai- 
xo de punhais de assassinos; por consequência, quero 
que se acrescente e se diga ao governo que, não haven^ 
do motivo que justifique os movimentos da tropa, expo- 
nha o fim verdadeiro dôles e que proponha quais são 
as medidas que quer postas em prática; e que diga a 
razão por que apontou que se desejava que a assembleia 
expulsasse do seu seio os ditos deputados, e o motivo 
por que os designou. Mostre-se-lhe que, ainda que somos 
obrigados a morrer pelo povo brasileiro, isto se entende 
quando esta morte fôr útil, quando servir para aniquilar 
a escravidão; e que, estando a assembleia nesta corte ro- 
deada da força armada, está coacta e não pode continuar 
a deliberar. Faça-se, enfim, saber ao governo que não há 
sinão as baionetas que perturbam ô sossego público; e 
que apoiados do povo nunca se podem considerar coipo 
provas de inquietação; e que até é ridículo, e induz a crer 
que o governo não tem a que se apegar, o querer per- 
suadir que a inquietação de toda a capital, procede de 
apoiados das galerias e que este desassossego exige medidas 
extraordinárias. A comisão lembra-se de restrições à 
liberdade de imprensa; mas é necessário não esquecer que 
uma lei sobre este objeto há de fazer-se como outra 



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- 267 — 

qualquer, nem as que há são mancas a respeito de escri- 
tos incendiários. 

Em uma palavra: se há abuso, ao governo pertence 
tomar medidas contra êle, fazendo chamar a jurados os 
infratores; o governo tem na sua mão tíido que é neces- 
sário, não se precisam novas restrições e nisso me opo- 
nho inteiramente ao parecer da comissão. O que eu de- 
sejava é que ela falasse com mais clareza; que dissesse 
que o que nos faltava na capital era o sossego e nada 
mais. E como haverá, vendo-se toda a tropa reunida ao 
chefe da nação, sem se saber para que fimi? O governo, 
pois, é que pode evitar esse desassossego; o remédio está 
na sua mão; mande para longe essa tropa, que com tanta 
energia chama subordinada. Não se crimine o povo bra- 
sileiro pelo que aconteceu ante-ontem: êle é muito man- 
so, ninguém executa melhor o Evangelho do que êle. 

Não admito, pois, restrições à liberdade de impren- 
sa; o que quero é que se diga ao governo que a falta 
de tranquilidade procede ^da tropa e não do povo; e que 
a assembleia não se acha em plena liberdade, como é in- 
dispensável, para deliberar, o que só poderá conseguír-se 
removendo-se a tropa para maior distância. 



EVARISTO DA VEIGA 

RIO DE JANEIRO — 8-X-1799 
t RIO DE JANEIRO — 12-V-18S7 

Evaristo Ferreira da Veiga, fez os seus estudos secundários 
no Seminário de S. José, e entrou depois como caixeiro da loja 
de livros que seu pai então mantinha. Mais tarde foi êle mesmo 
negociante de livros. Depois foi jornalista e redigiu "A Aurora 
Fluminense", prestando, com a publicação do seu jornal, servi- 
ços valiosos à causa nacional; de fato nenhum jornal tanto e 
tão beneficamente Influiu na política brasileira como "A Aurora 
Fluminense". 

Patriota desinteressado, foi êle quem redigiu a célebre repre- 
sentação de 17 de Março, subscrita por 23 deputados e 1 senador. 



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— 268 — 

onde «e pedia ao Imperador que ''desafrontasse o Brasil, vilipen- 
diado e pungido". 

Fundador da Sociedade Defensora da Liberdade e Indepen- 
dência Nacional. 

Sócio benemérito da Sociedade Amante da Instrução, perten- 
ceu também ao Instituto ' Histórico de Franca e à Arcââia 
Romana. 

BibliograAa — História do Brasfl (de 1808 a 1831). tradu- 
ção de Armitasre, Hinos patrióticos. Discursos, opúsculos sobre 
assuntos patrióticos, poesias, etc. 



106. Demissão da regência permanente 

Eu estou inteiramente convencido do princípio de que 
todos os indivíduos, que compõem os poderes nacionais, 
desde o maior até o ínfimo, são empregados públicos, e 
que nenhum pôde ser forçado a exercer contra a sua 
vontade e sentimentos de sua conciôncia um emprego 
qualquer que seja. Julgo, portanto, que se deve aceitar a 
demissão dos membros da regência permanente. A regên- 
cia aluai nos oficia, e nos oficia em que sentido? Di- 
zendo que não pode continuar no alto encargo, que lhe 
foi atribuído e que outros cidadãos poderão, aí melhor 
preencher as vistas e os de§ejos da nação. Último teste- 
munho de patriotismo, que acaba de ser dado pelos mem- 
bros da regência! Eles preferem o bem da pátria ao 
bem próprio; à sua consideração pessoal a felicidade da 
nação governada por outros homens, que tanto têm cen- 
surado os atos da administração, e que têm dado a co- 
nhecer por seus discursos que a esta censura os movem 
não já os princípios seguidos pelo ministério, que acabou, 
mas os nomes dos homens, que o compunham. 

Façam, pois, outros a ventura do Brasil, promovam 
outros o bem da pátria, se o podem fazer com os meios 
que existem^ cercados de tantas dificuldades, como as 
que aparecem, dificuldades que não devemos esconder 
de nenhum modo aos nossos olhos. Não é com hipér- 
boles e figuras de retórica que havemos de c^cultar nas 
trevas o que é manifesto aos olhos de todos. Um prínci- 
pe, que se retirou, deixando nos grandes empregos muitos 



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^ 269 — 

homens de sua escolha, devia deixar necessariamente tam- 
bém aí muitos dos seus afeiçoados com a revolução de 
7 de Abril, ambiciosos de primeira, segunda e terceira 
ordem, deviam nascer em toda a extensão do império, co- 
locar o governo supremo em sérios embaraços. De um 
lado, estão os mal contentes, porquê julgam que a noísa 
constituição é escassa, e que não dá toda a soma de li- 
berdade de que a nação carece. . . Eu não a entendo assim; 
sou sincero amigo e entusiasta da constituição; admi- 
to as reformas, çorque desejo sempre sacrificar o meu 
voto particular ao desejo e vontade nacional, mas não por- 
que entenda que a constituição, tal qual está, não possa fa- 
zer a ventura do Brasil, dando às províncias a soma de 
liberdade que desejam. 

Porém o voto contrário se tem pronunciado geral- 
mente, e eu estou pronto a ceder de minhas opiniões 
individuais, para acompanhar o que parece desejo nacio- 
nal. Poderei enganar-me, mas ninguém pode com justiça 
condenar a minha opinião a tal respeito. Além desta 
porção de descontentes, outros há que entendem não po- 
der-so estabelecer ordem e monarquia constitucional sem o 
regresso de Pedro I. Não quero dizer que todos os que 
pertencem a esta opinião sejam malvados e absolutistas. 
Não, senhores, alguns há dentre eles, persuadidos de boa 
fé que Pedro I pode salvar o Brasil, e conservar a ordem 
e tranquilidade públicas, mas a esse grupo se agregam 
anarquistas, malvados, que pretendem a restauração só 
para saciarem ambições e vinganças privadas, e cujo fim 
não é o bem da pátria. Temos,' por consequência, uma 
massa formidável de descontentes, que em marcha enérgi- 
ca, e sempre progressiva, caminham em oposição aos ho- 
mens, que foram da escolha da representação nacional. 
Indivíduos dessa massa ocupam ainda altas funções admi- 
nistrativas, os cargos mais elevados se deram a homens 
do coração daquele príncipe, que deixou para sempre de 
imperar ho Brasil: eu não quero compreender a todos, 
mas poder-se-á negar que muitos são ainda amigos e sa- 
télites de Pedro I? No senado, no conselho de estado, na 
suprema magistratura e em outras repartições públicas, se 
encontram estes embaraços à marcha serena e legal da re- 
volução de 7 de Abril. E* assim que a regência e o go- 



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— 270 — 

vôrno têm de encaminhar com leis fracas, com meios in- 
completos, com códigos que foram feitos quando todo o 
prestígio estava colocado no trono I E' com estes meios, 
ou com menos ainda, porque a lei das atribuições da re- 
gência cerceou muitas das atribuições do poder executivo, 
que a administração há de marchar? 

Atam-se-lhe os pés, agrilhoam-se as mãos, e quer-se 
que a administração ande; senhores, não se acrescente ao 
sofrimento a zombaria. 

Cercada de tantas dificuldades, a regência supôs que 
se devia demitir, bem como fizera o ministério. Cumpre- 
nos, portanto, acceder ao seu desejo e lançar mão desses 
homens de pulso forte e enérgico, que possam salvar a 
pátria. Quanto a mim, declaro que ainda quando esses 
cidadãos não pertençam ao círculo dos meus amigos, logo 
que preencham os seus deveres, venturoso serei em sus- 
tentá-los com toda a energia de minha alma, com toda 
a franqueza e força de que sou capaz. 

Senhores, eu sei avaliar os perigos dos grandes mo- 
vimentos revolucionários; estremeço de chegar o facho fi 
mina, e nunca concorrerei para perturbar a ordem pública. 

Quero sustentar, pois, a regência, que fôr legalmente 
eleita para substituir a que ora existe. 



JOSÉ BONIFÁCIO (o moço) 

BOBDÉOS, FRANÇA — 8-XI-1827 
t S. PAUIiO — 26-X-1886 

Professor de direito, estadista, orador parlamentar e poeta. 
Era neto do Patriarca da Independência. 

Como poeta, José Bonifácio foi lirico e épico-lirico, dei- 
xando num e noutro grênero, composições que llie garantem um 
lugrar entre os melhores poetas que têm escrito em português. 

Notável orador: a eloquência de José Bonifácio arrebatava 
pelo brilho das imagens, pela vivacidade da palavra, pela poesia 
com que bordava todos os seus discursos. 

Bibliografia — Rosas e Goivos (poesias); Discursos parla» 
mentares, afora poesias e artigos esparsos na imprensa da 
época. 



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- 271 — 



107. ITma peroração 

Vou terminar; mas, antes, quero dirigir um apelo 
aos nobres ministros. E' a invocação do patriotismo aos 
depositários do poder público. 

Si podem êles dar corpo a todas as suas reminis- 
cências; se é possível ressuscitar o que lá se foi erguen- 
do-se aos olhos do governo; si cada um dos ministros 
pode ainda ouvir voz misteriosa, que lhe recorde o cum- 
primento de sagrados deveres: imagino que desfila pela 
frente da bancada ministerial mais de um vulto fantástico, 
a reavivar-lhe honrosas lei^fibr ancas de outro tempo, que 
lhes íala ao ouvido, cada um por sua vez. 

Ao nobre presidente do conselho dirige-se o primeiro: 

— Aqui estou eu: sou o passado com toda sua he- 
rança; carrego sessenta e oito anos de serviços feitos à 
pátria; defendi e amei a liberdade de meu país, amei-o 
loucamente na mocidade, subi pelog degraus da constitui- 
ção, quero respeitá-la; pois bem, não me arranqueis a 
memória, para que eu possa ao menos ter ainda saudades I 

Ao nobre ministro da guerra: — Eu sou a glória, 
venho do Paraguai; pousei um instante no campo da 
batalha de 24 de Maio; atravessei os banhados; dormi na 
barranca em que primeiro cravastes a vossa gloriosa lança; 
sentei-me, sonhando, ao vosso lado sobre os muros de 
Humaitá; ainda hoje julguei descobrir-vos por entre os 
nevoeiros que desciam do cabeço dos montes e ouvir a 
vossa voz nas ventanias que atravessavam o rio; já não 
achei flores na Solidão da morte para tecer-vos uma coroa; 
trago-vos um rosário de lágrimas; guardai-o para enfei- 
tar a vossa empada; porém, olhai — a banda que vos 
cinge não é cadeia de escravos, é flâmula de homens livres. 

Ac nobre ministro da fazenda: — Eu sou a tribuna 
ou antes — o povo. — Foi nos meus braços, pelos vos- 
sos próprios esforços, que subistes às altas posições do 
Estado. Ministro, deputado, senador, eu ainda quero ter 
mãos para bater -vos palmas ruidosas, ainda quero saudar- 
vos no caminho triunfal. Mas lembrai-vos: a púrpura 
do poder não tem mais preço do que os gloriosos pa- 
drões da vossa vida; não me roubeis o direito de acom- 



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— 272 — 

panhar-vos, repetindo o que já deveis ter lido: o reconhe- 
cimento é a memória do coração I 

Ao nobre ministro da justiça: — Eu sou a demo- 
cracia; no tempo em que, trabalhador pertinaz e talentoso 
vos ocultáveis no modesto gabinete de advogado, eu es- 
tava convosco; quando infatigavelmente defendieis na im- 
prensa os altos princípios da liberdade, eu era ainda a in- 
separável companheira do jornalista. Fostes para as al- 
turas e eu fiquei: não vos acuso; não vos fiz um crime 
da ascenção ao poder; toda ideia antes de ser ação é um 
apostolado, e neste país há lugar para todos I Pois bera, 
deixai também lugar para mim! 

Ao nobre ministro do império: — Eu sou a imprensa, 
combatemos juntos; segui vossos passos; cobri de flores 
vosso caminho; solícita ajudei-vòs em vosso vôo rápido 
do meu berço às alturas do ministério. Pois bem, guar- 
dai as vossas ideias, porque eu guardo o vosso lirogramfii. 
Si as esquecêsseis, a quem poderia restituir o legado que 
me deixastes? 

Ao nobre ministro da marinha: — Depois da pátria, 
eu sou quasi vossa segunda mãi, criei-vos em meus pei- 
tos, embaiei-vos em meus braços; eu sou a heroina her- 
cúlea de seios titânicos, essa que trazia do exílio as som- 
bras dos desterrados para coroá-las de luz; os arminhos 
da fortuna não valem as verdes relvas onde brincastes 
criança. 

Lá vos espero de mãos postas para curvar-me em 
nome da pátria; lá de joelhos, onde tantos bravos morre- 
ram; não me esqueçais, eu sou a Baíal 

Senhores, reuni todas as recordações *que vos são ca- 
ras. E' a soberania nacional que vos suplica; é a de- 
mocracia que se dirige a uma câmara -de liberais. O 
amor da liberdade deve ser, na frase bíblica, invencível 
como é a morte; deve, como o apóstolo, ter a sôde do 
infinito; deve ser grande como o universo que o contém. 
Em nosso país, na pedra isolada do vale, na árvore gi- 
gante da montanha, no píncaro agreste da serrania, na 
terra, no céu e nas águas, por toda a parte. Deus estam- 
pou o verbo eterno da liberdade criadora na face da na- 
tureza, antes de gravá-lo na conciôncia do homem. 



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— 273 — 
TOBIAS BARRETO 

SERGIPE, VILA DE CAMPOS — 7-VI-1880 
t RECIFE — 20-VI*1889 

ToblaB Barreto de Menezes formou-se em Direito em 1S69, 
na Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais do Recife, dessa 
escola tendo sido lente por co^ncurso desde 1882. Liecionou Latim 
e Filosofia no comêQO da sua brilha9te carreira, e, c<Hn aptidão 
especial para o estudo das língruas, aprofundou-se no do idioma 
alemão, o qual chegou a conhecer tão bem que nele escrevia 
com "casta dição", como reconheceu Haeckel (Sílvio Romero); 
escreveu também em francês. Foi Tobias o iniciador no Bra- 
sil do alemaiamo na critica e do transformiemo darviniano no 
direito. 

Filósofo, jurista, professor de direito, critico, poeta, foi um 
dos criadores e dos mais conspícuos seguidores da chamada es- 
cola condoreira; un> dos mais genuínos representantes do li- 
rismp brasileiro. 

Bibliografia — De T. Barreto existem as seguintes obras: 
Dias e noites (poesias) — Ensaios e Estudos de Filosofia e Cri- 
tica — Estudos Alemães — Questões Yjigentes de Filosofia e de 
Direito — Estudos de Direito — Vários Escritos — Menores e 
Loucos em Direito Criminal — Polémicas — Discursos. Deixou 
mais os dois opúsculos: Ein offener Brief an die deutsche Presae 
e Broêilien toie es ist. 



108. A propósito da Capitulação de Montevideu 

Meus senhores. -— E* inútil preambular. Um pensa- 
mento fraterno, radiante, supremo, flutua sobre as nossas 
cabeças, de parelha com o estandarte da glória. Acesa 
em nossas almas a ideia de engrandecimento, sentimo-nos 
grandes — queremos lutar. E' neste momento que, afun- 
dando-nos na abundância de uma existência de moços, 
esperançosa e vívida, achamos, tocamos alguma cousa de 
mais; — e essa demasia, senhores, é que, somos brasilei- 
ros, essa demasia é que, ao livro desse povo épico e ge- 
neroso, ajunta-se a estrofe montanhosa e sublime de um 
de seus grandes feitos. 



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— 274 — 

O Brasil agita-se — a mocidade o rodeia, o Brasil 
triunfa — a mocidade ajoelha-se com êle para contem- 
plar nos pátrios céus o vôo de suas vitórias. E na face 
de tudo (|ue tem um pouco de alma para sentir, um pouco 
de sangue para derramar, um pouco de vida para mor- 
rer — lavra a claridade de um sentimento, que absor- 
ve todo o viver positivo e ordinário: paixão nobilitante, 
purificadora, que o coração de um homem mal pode con- 
ter com os seus Ímpetos, que tendem ao passado, que 
tendem ao futuro, — com todas as suas avançadas para a 
morte e para a vida, para o céu, para a glória, para a luz, 
•para Deus... 

E esse sentimento, senhores, é o patriotismo. Pode 
haver quem diga: tempo virá em que o grito dos alar- 
mas, o lampejar das espadas nada. signifiquem; sim; — 
mas, lá mesmo adiante, aonde nos prometem levar os 
pontífices do progresso, quando o gládio tiver sido subs- 
tituído pela palavra, a força pela ideia, o raio que fulmi- 
na pelo raio que esclarece, lá mesmo, o homem deixar- 
se-á vibrar dessa paixão, que será sempre no seu peito o 
estremecimento enorme das selvas, dos campos, das soli- 
dões da pátria. 

O Brasil era o colosso da paz; o Brasil, ôsse pe- 
daço do globo, cuja sombra bastará para eclipsar qual- 
quer sol que se lhe pusesse diante, tolerou por muito 
tempo os insultos tle ridículas pequenesas. Dizem que as 
águias só depois de muito sofrer, determinam-se a punir 
com a morte as avezinhas insignificantes, cujos pios as 
incomodam. Tal aconteceu. O gigante principia a vin- 
gar-se, o panteon da história principia a renovar-se de 
grandes vultos, os campos de grandes mortos, os céus de 
grandes astros. 

A morte que se conquista pela pátria, não é uma destas 
mortes lúgubres, choradas, misteriosas, comuns, — não; 
morrer assim, ao fumegar das batalhas, é desembaraçar-se 
de um dos enigmas do nosso destino; é resolver o problema 
da grandeza humana; morrer assim é engrandecer-sel 



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— 275 — 

f 



JOAQUIM NABUCO 

(BiO'bibliogrqfia à pág. 28) 



109. Camões 

Agora só me resta inclinar-me diante da tua está- 
tua, ó glorioso criador de Portugal moderno. Na plêiade 
dos génios que roubaram o fogo ao céu para dar à hu- 
manidade uma nova força, tu não és o primeiro, mas es- 
tás entre os primeiros. Tua glória não precisa mais dos 
homens. Portugal pode desaparecer submergido pela 
vaga europeia: éle terá um dia em cem milhões de brasi- 
leiros a mesma vibração luminosa e sonora. 

O Brasil pode deixar de ser uma nação latina, de 
falar a tua língua, dividido em campos inimigos: o teu 
génio viverá intacto nos Lusíadas, como o de Homero na 
Iliada. Os Lusíadas podem ser esquecidos, perdidos para 
sempre: tu brilharás ainda na tradição imortal da nossa 
espécie, na grande nebulosa dos espíritos divinos, como 
Empédocles, e Pitágoras, como Apeles e Praxíteles, dos 
quais apenas resta o nome. A tua figura então será mui- 
tas vezes invocada; ela aparecerá por algum génio cria- 
dor, como tu, foste, à foz do Tejo, qual outro Adamas- 
tor, convertido pelos Deuses nessa ocidental praia lusita- 
na. . . alma errante de uma nacionalidade morta, transfor- 
mada no próprio solo que ela habitou. 

Sempre que uma força estranha e desconhecida agi- 
tar e suspender a nacionalidade portuguesa, a atração 
virá do teu génio, satélite que se desprendeu dela, e que 
esplandece como a lua no firmamento da terra, para agi- 
tar e revolver os oceanos. 

Mas até lá, ó poeta divino, até ao dia da legenda e 
do mito, tu viverás no coração do teu povo; o teu tú- 
mulo será como o de Maomé, o ímã de uma raça, e 
por muito tempo ainda o teu centenário convocará em 
torno das tuas estátuas, espalhadas pelos vastos domínios 



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^ 276 — 

da língua portuguesa, as duas nações, eterna* tributárias 
da tua glória, que, unidas hoje pela primeira vez pela 
paixão da arte e da poesia, aclamam a tua realeza eleti- 
va e perpétua e confundem o teu génio e a tua obra numa 
salva de admiração, de reconhecimento e de amor, que 
há de ser ouvida no outro século. 

Discurso pronunciado por ocasião do tricentená- 
rio de Camões. 



RUI BARBOSA 

(BiO'bibliografia à pág. 156) 



110. Aos moços 

(Trechos de um discurso) 

Quanto mais largas vastidões abcange o saber, tanto 
mais razão de serem modestos os seus cultores. 

A circunferência visual se ensancha, à medida que a 
luneta do observatório alcança mais longe. 

Mas o observador é um ponto, que se reduz cada vez 
mais no centro do horizonte sensível. 

Muito há que alguém disse: ''O sábio sabe que 
não sabe". 

Considerai agora quanto mais discretos, quanto me- 
nos desvanecidos não devemos de ser os que não trans- 
pomos a condição ordinária da mediocridade, e, como 
esses, os principiantes, os novos, as crianças, todos os que, 
no revolver desses latifúndios, estão ainda à flor da terra. 
Não vos desacoroçôo do estudo, meus amigos: tão so- 
mente vos acautelo da presunção. Por menor que seja 
a safra intelectual de cada um, pode ser um tesouro: um 
dia afortunado enriquece às vezes o explorador. Nem 
só os lau**eados entre os demais, os que aumentem de 



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— 277 — 

novos cabedais o patrimônio comum, se hão de ter por 
bem pagos da lida estudiosa. 

Saber estudar, possuir a arte de aprender, habilitar- 
se a navegar seguro por essas águas e através desses es- 
colhos, já ó ser abastado nas posses, e ter aproveitado o 
tempo . Conhecer da natureza quanto seja mister, para ado- 
rar com discernimento a Deus, e governar com acerto a 
vida, sobejamente compensa as maiores canseiras do en- 
tendimento, < desde as porfias da escola até às meditações 
do gabinete. Por distintos, porém, que vos logreis fazer 
entre todos, ainda que o mundo vos enrame a fronte de 
coroas, e o nome se vos grave entre os dos privilegiados, 
na fama, não seja nenhum de vós confiado na sua sufi- 
ciência, nem da sua glória se envaideça. Porque só há 
uma glória verdadeiramente digna deste nome: é a de ser 
bom; e essa não conhece a soberba, nem a fatuidade. 

Depois, a ciência é grande, mas os cientes, na In- 
finidade do seu número, são peqUeninos,^ como pequeni- 
nos são, contemplados do espaço, os maiores acidentes da 
superfície terrestre. 

Mocidade vaidosa não chegará jamais à virilidade útil. 
Onde os meninos camparem de doutores, ts doutores não 
passarão de meninos. A mais formosa das idades nin- 
guém porá em dúvida que seja a dos moços: todas as 
graças a enfloram e coroam. Mas de todas se despiu, em 
sendo presunçosa. Nos tempos de preguiça e ociosidade 
cada indivíduo nasce a regorjitar de qualidades geniais. 
Mal esfloraram os pripieiros livros, e já- se sentem com 
força de escrever tratados. Dos seus lentes desdenham, nos 
seus maiores desfazem, chocarreiám dos mais adiantados 
em anos. 

Para saber a política, não lhes foi mister conhecer o 
mundo, ou tratar os homens. Extasiados nas frases pos- 
tiças e nas ideias ressonantes, vogam à discrição dos en- 
xurros da borrasca e colaboram nas erupções da anarquia . 
Não conhecem a obediência aos superiores e a reverência 
aos mestres. São os árbitros do gosto, o tribunal das le- 
tras, a última instância da opinião. Seus epigramas cri- 
vam de sarcasmos as senhoras nas ruas; Suas vaias sobem, 
nas escolas, até à cátedra dos professores. E' uma super- 
ficialidade satisfeita e incurável, uma precocidade embo- 



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— 278 — 

tada e gasta, mais estéril que a velhice. Deus a livre a esta' 
de tais sucessores, e vos prescreva de setnelhantes modelos. 

Sede, meus caros amiguinhos, tais quais o verdor 
florescente de vossos anoB o exige: afervorados, entu- 
siastas, intrépidos, cheios das aspirações do futuro e ini- 
migos dos abusos do presente. Mas não vos reputeis o sal 
da terra. 

Habituai-vos a obedecer, para aprender a mandar. 
Gostumai-vos a ouvir, para alcançar a entender. Afazei- 
vos a esperar, para lograr concluir. Não delireis nos vos- 
sos triunfos. Para não arrefecerdes, imaginai que po- 
deis vir a saber tudo; para não presumirdes, refletí que, 
por muito que souberdes, mui pouco tereis chegado a sa- 
ber. Sede, sobretudo, tenazes, quando o objeto almejado 
se vos furtar na obscuridade avara do ignoto. Profundai 
a excavação, incansáveis como o mineiro no garimpo. De 
um momento para outro, no filão resistente se descobrirá, 
talvez, por entre a ganga, o metal precioso. 



111. Â Pátria 

A. pátria é a família amplificada. 

E a família, divinamente constituída, tem por ele- 
mentos orgânicos a honra, a disciplina, a fidelidade, a 
benquerença, o sacrifício. E' uma harmonia instintiva de 
vontades, uma desestudada permuta de abnegações, um 
tecido vivente de almas entrelaçadas. Multiplicai a célu- 
la, e tendes o organismo. 

Multiplicai a família, e tereis a pátria. Sempre o 
mesmo plasma, a mesma substância nervosa, a mesma cir- 
culação sanguínea. Os homens não inventaram, antes adul- 
teraram a fraternidade, de que o Cristo lhes dera a fór- 
mula sublime, ensinando-os a se amarem uns aos outros: 
Diliges praximum tuum sicut te ipsum. 

Dilatai a fraternidade cristã, e chegareis das afeições 
individuais às solidariedades coletivas, da família à nação, 
da nação à humanidade. Objetar-me-eis com a guerra? 



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_ 279 — 

Eu vos respondo com o arbitramento. O porvir é assas 
vasto, para comportar esta grande esperança. Ainda entre 
as nações, independentes, soberanas, o dever dos deveres 
está em respeitar nas outras os direitos da nossa. 

Aplicai-o agora dentro das raias desta : ó o mesmo re- 
sultado: benqueiramo-nos uns aos outros, como nos que- 
remos a nós mesmos. Si o casal do nosso vizinho cres- 
ce, enrica e pompeia, não nos amofine a ventura, de que 
não compartimos. Bendigamos, antes, na rapidez da sua 
medrança, no lustre da sua opulência, o avultar da rique- 
za nacional, que se não pode compor da miséria de todos. 
Por mais quedos sucessos nos elevem, nos comícios, 
no foro, no parlamento, na administração, aprendamos a 
considerar no poder um instrumento de defesa comum, 
a agradecer nas oposições as válvulas essenciais de se- 
gurança da ordem, a sentir no conflito dos antagonismos 
descobertos a melhor garantia da nossa moralidade. 

Não chamemos jamais de inimigos da pátria aos nos- 
sos contendores. Não averbemos jamais de traidores à 
pátria os nossos adversários mais irredutíveis. 

A pátria não ó ninguém: são todos; e cada qual 
tem no seio dela o mesmo direito à ideia, à palavra, à 
associação . 

A pátria não é um sistema, nem uma seita, nem um 
monopólio, nem uma forma de governo: é o céu, o solo, 
o povo, a tradição, a conciência, o lar, o berço dos filhos 
e o túmulo dos antepassados, a comunhão da lei, da 
língua e da liberdade. Os que a servem são os que não 
invejam, os que não inflamam, os que não conspiram, os 
que não sublevam, os que não desalentam, os que não 
emudecem, os que não se acobardam, mas resistem, mas 
ensinam, mas esforçam, mas pacificam, mas discutem, mas 
praticam a justiça, a admiração, o entusiasmo. Porque 
todos os sentimentos grandes são benignos e residem ori- 
ginariamente no amor. No próprio patriotismo armado o 
mais difícil da vocação,, e a sua dignidade, não está no 
matar, mas no morrer. A guerra, legitimamente, não pode 
ser o extermínio, nem a ambição: é, simplesmente, a de- 
fesa. Além desses limites, seria um flagelo bárbaro, que o 
patriotismo repudia. 



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— 280 — 
D. AQUINO CORREIA 

MATO GROSBO — CUIABÁ — 2-IV-1S85 

Dom Aquino Correia, da Congregação Salesiana, arcebispo 
de Cuiabá desde 1915, demonstrou muito cedo suas tendências 
llterái'ias, em breve consagrando- se notável poeta e orador sacro. 

E' membro da Academia Brasileira de Letras, cadeira de 
Souza Caldas. 

Bibliografia — Odes, Melodias, Discursos, Pastorais, além de 
artigos e poesias esparsos pela Imprensa periódica. 



112. Palavras de fé 

Tal como o peregrino do país bretão, áspero de ro- 
chedos e ventos, também eu venho de longe, mas dos ser- 
tões cheios de sol e de flores, onde o cristianismo aclimou 
os seus ideais de celeste poesia, tSo bem como naqueles 
mares sombrios do norte, ou sob os céus claros e risonhos 
da Hélade. 

Mas não venho maldizer como êle, senão antes aben- 
çoar num hino de gratidão e amor, ôsses "sacerdotes de 
estranho culto, provindo dos sírios da Palestina", que 
educaram a minha juventude, e, há duzentos anos, lá vão 
tragando nas solidões bravias da minha terra algumas das 
mais fúlgidas estrofes da nossa epopeia bandeirante. 

Os templos que lá eles ergueram, não são "fantasias 
de bárbaros, que se esboroam ao cabo de quinhentos ou 
seiscentos anos"; mas são desses monumentos injperecí-r 
veis no simbolismo eterno, cujas harmonias fundiram em 
lágrimas o coração do grande Agostinho de Hipona, e cuja 
eloquência sobrehumana tem arrebatado a alma artística 
dos Huysmans, no surto maravilhoso das suas Ogivas e dos 
seus símbolos para o azul do infinito. 

Não venho, como éle, apostatar desse culto, cujo en- 
canto nem ôle próprio soube negar, o doce culto à Virgem 
Maria. Ela, a "Estrela da manhã" no céu da minha in- 
fância, a "torre de marfim" dos sonhos mais puros da 



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— 281 — 

minha adolescência, a "rosa mística" dos meus cantares 
de moço, a "casa de ouro" das minhas esperanças; Ela, 
cuja formosura esplende nos séculos, através das telas in- 
comparáveis de Rafael; Ela, a musa do Tasso, a que não 
coroa a fronte com os louros caducos do Helicão, mas com 
as estrelas imortais do céu; Ela, a suprema inspiração do 
Dante, no êxtase luminoso do Paraíso. 

Não venho, em suma, abjurar nas aras de uma arte 
paganizante os cânones sublimes do cristianismo, os quais, 
longe de contrariarem a verdadeira arte, a espiritualizam 
e elevam, convencido como estou, de que a mesma ^ex- 
pressão grega da beleza, como a romana do direito, mais 
não foram do que 9 natural aperfeiçoamento da huma- 
nidade, para o batismo resplandecente do evangelho; da 
mesma forma que a argila bruta do éden amoldara-se nas 
feições do primeiro homem para receber na fronte o sopro 
divino da vida. 

Venho, sim, denunciar perante vós, essa literatura do 
ceticismo e da dúvida, literatura que, por parecer ori- 
ginal e profunda, blasfema de tudo que é sagrado e puro, 
de tudo que ignora ou não quer entender; literatura in- 
conciente, que fajã frases como esta: "O' abismo, tu és 
o único deusl" como se também o nada não fora um 
abismo. 

Mas creio na literatura da razão e da fé, da esperauça 
e do amor, da religião e do patriotismo; creio na lite- 
ratura, que é uma alavanca de ouro elevando os corações 
para o ideal e para a virtude; creio na literatura, que, 
à semelhança da olímpica Hebe, propina aos espíritos, 
em vasos de filigrana, os manjares da imortalidade; creio, 
enfim, na literatura, que à imitação dos cânticos de Moisés 
no deserto, acompanha, orienta e suaviza as marchas glo- 
riosas da civilização, para a Ganaan dos seus eternos 
destinos. 

ÇDiscurso de posse na Academia Brasileira de 
de Letras). 



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I 



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1. 

i 



XL CARTAS 



ALEXANDRE DE GUSMÃO 



S. l^AXJLO — 1695 

t SANTOS — Sl-Xn-1758 

Irmão do Padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão, o voador, 

O secretário de D. João V tem um- lugar distinto na Hlstd- 
rla da Literatura Brasileira como epistológraf o . 

Alexandre de Gusmão pertenceu à Academia Real da His- 
tória Portuguesa e foi membro do Conselho Ultramarino. 

Além de poesias, memórias, decisões e pareceres, publicou-se 
no Porto uma Coleção de vários escritos inéditos políticos e 
literários de Alexandre de Gusmão, dados à luz por J. M. F, 
de O. 1841 ibi, 1844. 



113. Carta a Diogo Barbosa Machado 

Sinto muito que V . Mcô . tomasse o incómodo de 
buscar-me e que o não achar-me em casa me roubasse o 
gosto da sua estimável conversação, da qual procurarei 
aproveitar-me sem moléstia sua. Muito tenho que agrade- 
cer a V. Mcê. ocorrer-lhe meu nome ao formar um ca- 
tálogo dos Portugueses eruditos, sendo maior o agradeci- 
mento quanto menos razão havia para que eu devesse lem- 
brar-lhe; e, suposto que não desconheça ou deixe do 
apreciar a honra que V. Mcê me faz, é justo também que 
me não induza o amor próprio a abusar dela. 



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^284 — 

Alguns amigos me fazem a mercê de espalhar no pú- 
blico um conceito vantajoso dos meus estudos; porém, 
como estes, enquanto se não dão a conhecer pelas obras, 
dependem de nmi pia fé para se acreditarem, não devo 
atribuir o estabelecimento daquela fama sinão à benevo- 
lência dos que me favorecem; pois até o presente não te- 
nho mostrado composição por onde pudesse adquiri-la e, 
fazendo contas com o meu talento, tenho por mui pro- 
vável que o perderia de todo, saindo aliás com algum 
volume. 

Suposta esta verdade, que sou obrigado a confessar, 
ainda que me cause confusão, discorro que também V. 
Mcê se tem deixado enganar com aquela não merecida 
opinião, e que seria estranhada a boa exação e boa crí- 
tica de Y. Mcê contar na Biblioteca Lusitana entre os 
autores a um indivíduo que não o é; assim como não 
tenho que responder ao interrogatório das obras princi- 
pais que compus, julgo supérMo dar satisfação aos mais 
requisitos que contém a carta de V. Mcê. 

No seu livro terei que invejar aos varões que pelos 
seus trabalhos se fizeram merecedores dos elogios de tão 
discreto e inteligente juiz, e sempre conservarei uma viva 
lembrança do lugar que a bondade de V. Mcê me que- 
ria dar nele, que será um novo motivo para desejar re- 
petidas ocasiões em que possa servir a V. Mcê. mui- 
tos anos. 

De casa, 2 de Maio de 1740. 

Alexandre de Gusmão, 



114. Carta a um enviado de Portugal na Corte 
de Inglaterra 

Meu amigo e senhor. — Estimo as notícias de Vos- 
sa Senhoria, e lhe dou o parabém de ter chegado feliz- 
mente a essa c^rte, aonde se acha livre de animais, que o 
molestavam, e goza da liberdade que Deus conferiu ao 
homem, sem ofender os preceitos de sua lei. 



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— 285 ^ 

Os ingleses ignorantes aborrecem os católicos, sem 
saberem o porquê; mas os bem instruídos e civis são ex- 
celentes para a sociedade, sem ofenderem a nossa crença. 
Logram-se em Inglaterra muitas, outras delícias que aqui 
são ignoradas; e, como vossa senhoria não vai a negociar 
coisa alguma, pode levar boa vida, sem ofensa do seu ca- 
ráter, que só correria risco querendo encher as obriga- 
ções do seu ministério: mas como aqui não querem isso, 
está vossa senhoria desobrigado. 

Não se esqueça vossa senhoria dos amigos, que dei- 
xou lutando com as ondas do mar da superstição e da 
ignorância; è agradeça aos seus amigos o mimo de que 
átualmente goza. Eu também havia de descompor os meus, 
si tivesse a certeza de lhes merecer semelhante dester- 
ro; mas lembra-me a queixa de Camões a respeito do des- 
concerto do mundo, e por isso me empenho em esquecer- 
Ihes; no que serei afortunado se o puder conseguir. 

Não há mais novidades que arder o palácio do La-^ 
vra... e ainda que el-rei já não arde, sempre suavizou 
a mágoa com o pôsame, e com várias madeiras e outros 
oferecimentos. — Fiòo para dar gosto a vossa senhoria, 
que Deus guarde. — Lisboa, 16 de Fevereiro de 1750. 

Alexandre' de Gusmão. 

{Extraidoã do Curso Elementar de Literatura 
Nacional, do Cónego Fernandes Pinheiro) . 



ALVARES DE AZEVEDO 

S. PAUIiO ~ 12.IX-1881 
t S. PAUIiO — 25-IV-ld52 

Alvares de Azevedo (Manuel António), o genial talento, aue 
se apagou para sempre, quando ainda não tinha completado 
vinte e um anos, ê o poeta da Lira dos vinte anos, em que há 
notas de uma doçura lamartiniana ao lado de vibrantes acordes 
hugoanos. Em tenra idade. Alvares de Azevedo apresentava 
uma cultura literária e uma erudição de causar espanto e 
admiração ! 

Nasceu Alvares de Azevedo na sala da biblioteca da Acade- 
mia de Direito de S. Paulo, a 12-IX-1831. Bacharelou-se no 
Colégio Pedro II — 1847. Em 1848 matriculou-se no cUrso 



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— 286 — ^ 

jurídico de S. Paulo, que cursou até o 4.® ano — 1851. No ano 
seguinte, em 1852, apagava-se na morte o grande génio, que se 
chamou Alvares de Azevedo. — "Que fatalidade^ m-eu pai!" fo- 
ram as suas derradeiras palavras. 

Bibliografia — Ohras Completas de Alvares de Azevedo, H. 
Garnier, 7.» edição, 3 volumes: 1° volume: Poesias diversas e 
Poema do Frade. 2** volume: Lira dos vinte anos; Z° volume: 
Obras em prosa — Cartas, Discursos académicos. Orações: fúne^ 
bres. Estudos literários. Literatura e Civilização em. Portugal, 
sobre a atualidade do teatro entre nós, Macário, Noite na ta~ 
vemcu, ' 



115. Carta de saudação 

Minha irmã: No dia de teus anos que queres que 
eu te diga? 

One os anos da virgem são como as manhãs das 
flores? E que na aurora da vida flores e donzelas, cin- 
tilantes do orvalho de Deus têm mais pureza e perfume? 

Não. Dir-te-ei somente uma coisa. E' que lá no Rio 
vale talvez a pena fazer anos . Numa tarde de prima- 
vera, e d'esperança vivendo e sentindo-se viver, é doce por 
ventura sentir que mais um ano passou como um sonho, 
mais um ano de saudade e felicidade. 

Aqui não acontece assim. O céu tem névoas, a ter- 
ra não tem verdura, as tardes não têm perfume . E' uma 
miséria! E' para desgostar um homem toda a sua vida de 
ver ruinas! Tudo aqui parece velho e centenário... até 
as moças! São insípidas como a velhice! 

O dia 12 de Setembro está para chegar. Estou qua- 
si não fazendo anos desta vez. 

Adeus, minha irmã. A página nova da vida que se 
abriu hoje seja tão feliz como a que se fechou ontem. O 
dia seja belo como a aurora, — o futuro Ião suave como 
a saudade é doce. Adeus! 

E a palavra que de entre as taipas em ruína da 
nossa terra te envia 

Teu irmão. 



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Xn. HÍXIMAS E PENSAMENTOS 



MARQUES DE MARICÁ 

RIO DE JANEIRO — 18-V-177S 
t RIO DE JANEIRO — 16-IX-1848 

Bibliografia — Moralista e filosofo, homem ^e estado, se- 
nador, ministro da fazenda de 1823-25, administrador, é como 
pensador, como o escritor de Máximas, Pensamentos e Reflexões 
que o Marquês de Maricá tem um» lugar distinto na história da 
literatura brasileira. Produto da experiência, do estudo, do reco- 
lhimento, as sentenças filosóficas do Marquês de Maricá fo- 
ram escritas no período da mais plena madureza da sua inte- 
ligência: publicou-as êle dos setenta aos setenta e três anos. 

Eis o epitáfio que Maricá escreveu para a própria sepultura: 

"Aqui jaz o corpo apenas 
Do Marquês de Maricá: 
Quem quiser saber- lhe da alma. 
Nos seus livros a achará". 



116. Máximas e pensamentos 

— A mocidade viciosa foz ^provisão de achaques para 
a velhice. 

— O homem que cala e ouve não dissipa o que sabe 
e aprende o que ignora. 

— Viver é doce; viver é agro: nesta alternativa se 
passa a vida. 

— A virtude é comunicável, mas o vício é conta- 
gioso. 



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— 288 — 

— A atividade sem juizo é mais ruinosa que a pre- 
guiça. 

— A vaidade de muita ciência é prova de pouco 
saber. 

— Os bons folgam quando os maus pelejam. 

— A prudência é uma arma defensiva, que supre ou 
desarma todas as outras. 

— A misantropia é a sátira da espécie humana. 

— A modéstia é a moldura do merecimento, que o 
guarnece, e realça. 

— Não ó dado ao saber humano conhecer toda a ex- 
tensão da sua ignorância. 

— Os vícios e os crimes andam sempre em com- 
panhia. 

— Quem não tem medo vive sem resguardo e acaba 
cedo. 

— Bem merecem o sono da noite os qíie aprovei- 
tam utilmente as horas do dia. 

— A realidade nunca dá quanto a imaginação pro- 
mete. 

— A soberba não perdoa, a humildade não se vinga. 

— Homens I Aprendei a vencer-vos, e triunfareis 
de todos. 

— O juizo, que falta a muitos, a ninguém sobeja. 

— O homem que não ó indulgente com os outros, ain- 
da não se conhece a si próprio. 

— Lêr sem refletir é comer sem digerir. 

— . A virtude ofendida se desagrava perdoando. 

— Os bons podem não ter amigos, aos maus nunca lhes 
faltam inimigos. 

— Vale mais ser invejado que lastimado. 

— Os tolos nos incomodam, os velhacos nos pre- 
judicam . 

— Os rouxinóis emudecem, quando os jumentos or- 
nejam. 

— A história é a biografia da espécie humana. 

— A força que sobeja na língua, falta, de ordinário 
no braço. 

— Verdades há que amargam como fel e mentiras que 
têm o sabor do mel. 

— - O fogo destrói e consome iluminando. 



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— 289 — 

— A fome boceja, a fartura arrota. 

— Com juizo, trabalho, inteligência e economia» é po- 
bre quem não quer ser rico. 

— Os tolos aprendem à sua custa, os avisados à 
custa deles. 

— Uma cabeça má arruina o corpo inteiro. 

— Pobreza não excita inveja: por mais que procuro, 
não lhe descubro outra vantagem. 

' Máximas, pensamentos e reflexões — H. Gar- 
nier. 1905. 



GONÇALVES DE MAGALHÃES 

RIO DE ÍANEmO — 13-Vni-1811 
t ROMA — lO-VI-1882 

Dozxúngos José Gonçalves de Magalhães, Visconde de Ara- 
gruaia, representou ln>portante papel no movimento romântico 
entre nós, colocando-se à frente áêle com o seu célebre artigo 
da revista "Niterói", e, pouco depois, com a publicação dos 
"Suspiros Poéticos e Saudades". Filósofo, historiador, poeta, es- 
critor de teatro, Magalhães foi ainda político e diplomata de 
relevo. 

Lecionou Filosofia no Colégio Pedro II. Pertenceu ao Ins- 
tituto Histórico. 

Bibliografia — Ohras completas, Viena, 1864-65, oito vo- 
lumes, a saber: 1.*, Poesias avtãsas. 2.*, Suspiros Poéticos e 
Saudades. 3.*, Tragédias: Olgiato, António José e Otelo. 4.', 
Uranta. 5.*, Confederação dos Taw,oios, 6.®, Cânticos Fúnebres. 
7°, Fatos do Espírito Humano, 8.*, Opúsculos Históricos e Li' 
terdrios. Alma e o Cérebro. 

Redigiu em Paris a revista "Niterói", onde publicou mui- 
tas das suas obras jâ citadas. 



117. Pensamentos 

— A ciência das cousas da natureza é como a luz 
que, quanto mais forte esclarece os corpos de um lado, 
tanto mais escura se projeta a sombra do outro. 



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— 290 — 

— O fatalismo, aplicado à ordem moral, absolve o 
crime e desaprecia a virtude. 

— A ciência humana é como uma ponte suspensa 
sobre o abismo, e cujas extremidades se perdem em es- 
pessos nevoeiros: tudo nos parece claro e seguro, se ca- 
minhamos sobre a sua superfície; tudo é obscuro e pro- 
blemático, se examinamos os seus pontos de apoio. 

— A crença é um reflexo da razão no meio da nossa 
ignorância; como a luz da lua é um reflexo da do sol 
no meio das trevas. 

— Cuidamos muitas vezes corrigir velhos erros, ado- 
tando outros novos. 

— A igualdade perante a lei consiste na justiça re- 
lativa ao mérito e ao demérito de cada indivíduo. 

— Os que mais pugnam pelos seus direitos são os 
que mais se esquecem, às vezes, dos seus deveres. 

— Ninguém se julgue infeliz na adversidade, nem 
feliz na prosperidade: porque um estado, às vezes, pre- 
para o outro. 

— A natureza humana é tão misteriosa que uma 
grande ventura nos faz chorar e uma grande desgraça nos 
faz rir. 

•— De todas as paixões que agitam a sociedade, a mais 
funesta e sanguinária é a ambição de poder. 

Comentárioa e Pensamentos — H. Garnier. 



118. Máximas e sentenças de vários autoxes 

— - Embora contra nós uive e ronque o egoismo e 
a vil cobiça, sua perversa indignação e seus desentoados 
gritos sejam para nós novos estímulos de triunfo, se- 
guindo a estrada limpa da verdaSelfà Tolítica, que é filha 
da Razão e da Moral. 

— Sem liberdade individual não pode haver civili- 
zação nem sólida riqueza; não pode haver moralidade e 
justiça; e sem estas filhas do céu não há, nem pode haver 
brio, força e poder entre as nações. 

José Bonifácio. 



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— 291 — 

— Só a ignorância aceita e a, indiferença tolera o 
reinado das mediocridades. 

José de Alencar. 



— O passado é um lago mágico de gozos deleitosos, 
quando a conciência não tem de que acusar o homem e 
os r*emorsos não pesam sobre o coração. 

— A saudade pertence tanto ao passado, como a es- 
perança é toda inteira do porvir. 

Jjoaquim Manuel de Macedo, 

— Disse o Cristo que o homem não vive só do pão. 
Sim; porque vive do pão e do ideal. O pão é o ventre, 
o centro da vida orgânica. O ideal é o martírio, órgão 
da vida eteína. 

— Mocidade vaidosa não chegará jamais à virilida- 
de útil. 

— Onde os meninos camparem de doutores, os dou- 
tores não passarão de meninos. 

Rui Barbosa. 

— Imaginar uma sociedade impenetrável às trans- 
formações das épocas é imaginar um corpo sem poro- 
sidade. 

— A realidade da vida é cada um dar até o fim o 
que foi criado para dar, o bombix dando a seda, a ove- 
lha dando a lã... Trabalham em vão os que trabalham 
pensando na glória. 

— A religião é a única força intelectual que não pode 
perder terreno, porque, si a comprimis e apertais, ela sobe . 

Joaquim Xabuoo. 

— Si nos meus pensamentos e reflexões acharem al- 
guma valia, continuarei a pensar e refletir; si não acha- 
rem nenhuma, continuarei também. 

— Há um mar sem praias: a gota dágu^. 

— Todo o mal do Brasil é que a política é uma 
profissão; mas os políticos não são profissionais. 



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— 292 — 

— Em outros países ter uma posição elevada é ser 
sério; no Brasil ser sério é ter uma posição elevada. 

— Quantos doutores cheios de vento e que não sabero 
o que é o veilto! 

Padre Júlio MaHa. 

— O espírito religioso é irredutível. Para destruí-lo 
é preciso que o homem explique o universo e à vida. 

— Sentir a vida é sofrer; a <5onciência só é des- 
pertada pela dôr. '^ 

— A marcha da ciência é como a nossa na planície 
do deserto: o horizonte foge sempre. 

— A alegria dos velhos é um mandamento para a 
vida. 

Graça Aranha. 

— Sobre conciências avassaladas não há senão um 
império possível — o império despótico. — E do dia em 
que esse império se funda pode-se datar a hégira da pro- 
bidade política, da sã razão e da liberdade legal. 

— À opressão consolidada só há um meio de opo- 
sição: a resistência organizada. E desde que chega esta 
colisão, podemos considerar destruídos todos os elemen- 
tos constitutivos de uma sociedade regular. 

Quintino BocaiuTA. 



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SEGUNDA PARTE 

POESIA 



Antologia Brasílctra H 



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I. SONETOS 



GREGÓRIO DE MATOS 

BAIA — 7-IV-1628 

t PERNAMBUCO — 1696 

Qregrório de Matos, o maior poeta satírico do seu tempo 
em Portugal e no Brasil — foi ainda notável lírico. Fo -mado 
em Coimbra, exerceu Gregório de Matos em Lisboa os cargos 
de curador de órfãos e juiz do crime e na Baia as funções ecle- 
siásticas de vigário geral e tesoureiro-mór da Catedral, lugares 
que teve de deixar, por lhe ter sido exigido que completasse as 
suas ordens, pois então não era mais que mdnorista. Si bem que 
muito popular em sua terra, por causa de sua inexgotável veia 
satírica, cuja mordacidade não poupava nem mesmo os grandes 
e poderosos, foi o nosso poeta degredado para Angola; vol- 
tando ao Brasil, foi residir em Pernambuco e aí morreu. 

Diz o Cónego Fernandes Pinheiro ter sido Gregório de Matos 
o introdutor, na métrica portuguesa, do verso decassílabo ita- 
liano . 

"Gregório de Mçitos Guerra é o genuíno iniciador da nos- 
sa poesia lírica e de nossa intuição étnica" — pensa Sílvio 
Romero. 

Bibliografia — Obras poéticas de Gregório de Matos Ouer~ 
ra... tomo I (único publicado) — Tipografia Nacional, 1882. Pu- 
blicação feita por Alfredo do Vale Cabral, da Biblioteca Nacio- 
nal, precedida da Vida do Dr. Gregório de Matos Guerra pelo 
licenciado Manuel Pereira Rebelo. — Na Biblioteca Nacional 
existe a sua Tese de doutoramento, escrita em latim. 



1. Tempestade 

Na confusão do mais horrendo dia, 
Painel da noite, em tempestade brava, 
De fogo e ar o ser se embaraçava. 
De terra e ar o ser se confundia. 



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— 296 — 

Bramava o mar, o vento embravecia, 
A noite em dia, enfim, se equivocava, 
E com estrondo horrível se assombrava 
A terra; e se abalava, e estremecia... 

Desde os altos aos côncavos rochedos, 
Desde o centro aos roais alto» obeliscos, 
Houve temor nas nuveoa e penedos; 

Pois dava o céu, ameaçando riscos, 

Com assombros, com pannoa o eom medos. 

Relâmpagos, trovões, raio?, coriscos... 



2. Oonta:lsSo 

Meu Deus, que eatais pendente em um madeiro, 
Bsa ouja U protaato de viver; 
£m ciija saQta lei hei^e morrer 
Amoroso, constante, firme e inteiro. 

Neste transe por ser o derradeiro, 
Pois veio a minha vida anoitecer, 
£* meu Jesus, a hora de se ver 
A brandura de um pai, manso cordeiro. 

Mui ffrande é o vosso amor e o meu delito, 
Porém pode ter fim todo o pecar. 
Mas n&o o vosso amor que é infinito. 

Esta razão me obriga a confiar 

Que por mais €|ue pequei, nesse conflito 

Espero em vosso amor de me salvar. 



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— 297 — 



CLÁUDIO MANUEL DA COSTA 

MIXAS — MARIANA — 1729 

t MINAS MAKIANA — 4-Vn-1789 

'Cláudio Manuel da Costa iQlauce9t& Batúrnioy^ reputado 
poeta lírico, celebrizou-se sobretudo como sonetlsta^ Os seus 
sonetos — opina João Ribeiro — em todas as literaturas latinas, 
só têm superiores nos de Petrarca e nos de Camões. 

Almeida Qarret fâ(-lo o Hval da Metflistaaiio e C^onUo Cas- 
telo Branco considera-o, sob muitos aspectos, superior a Bocage, 
o consagrado mestre <Jo soneto em português. Cláudto Manoel da 
Costa é recomendado como ciftssico pela Academia de Ciências 
de Lisboa. Fonnaâo em Coimbra (1753)« esítabeleceu depois 
Cláudio banca de advogado em Vila Rica; foi secretário do 
governo da Capitania (1762). 

Cláudio Manuel da Costa tomou parte na conspiração de 
Tiradentes: suicldou-se na prii^ <4rVII-1789>; tr6s anos de- 
pois a sentença da alçada declarou iníome a tua menuória e iu' 
fames oa seus filhos e netos e confiscou os seus bens (1792). 

Bibliografia — Monúsculo métrico, romance heróico; Epi^ 
cédio. Labirinto de Amor, Números harmónicos, Flte-Bico. 



3. Soneto XXXI 

Estes os olhos são da minha amada: 
Que belos, que gentis e que formosos I 
Não são para os mortais ião preciosos 
Os doces frutos da estação doirada. 

Por eles a alegria derramada, 
Tornam-se os campos de prazer gostosos, 
Em zéfiros suaves e mimosos 
Toda esta região se vô banhada; 

Vinde, olhos belos, vinde; e, enfim, trazendo 
Do rosto de meu bem as prendas belas, 
Dai alívios ao mal, que estou gemendo: 

Mas ah) delírio meu, que me atr(H)e]ast 
Os olhos, que eu cuidei que estava vendo, 
Eram (quem crôra tall) duas estrêlasl 



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— 298 — 



4. Soneto XCVHI 

Destes penhascos fez a natureza 
O berço em que nasci: ohl quem cuidara 
Que entre penhas tão duras se creara 
Uma alma terna, um peito sem dureza! 

Amor, que vence os tigres, por empresa 
Tomou logo render-me: éle declara 
Contra o meu coração guerra tão rara 
Que não me foi bastante a fortaleza. 

Por mais que eu mesmo conhecesse o dano, 
A que dava ocasião minha brandura, 
Nunca pude fugir ao cego engano : 

Vós que ostentais a condição mais dura, 
Temei, penhas, temei; que Amor tirano, 
Onde há mais resistência, mais se apura. 

Ohras poéticas — Garnier — 1903. 



ALVARENGA PEIXOTO 

RIO DE JANEIRO — 1744 

t AMBACA — AFRICA 1-1-1798 

Inácio José de Alvarenga Peixoto, o poeta- magistrado, estu- 
dou primeiro com os jesuítas e formou-se depois em Coim- 
bra (1769). Voltando ao Brasil em 1776, foi Alvarenga Peixoto 
nomeado ouvidor da comarca do Rio das Mortes, em Minas, 
cargo de que se demitiu para entregar-se à mineração. Aivare-iga 
teve parte importante na conjuração mineira chefiada pelo ma- 
logrado Tiradentes, foi êle quem propôs o lil>erta8 quae será 
tamen da bandeira republicana. Preso no dia 20 de Maio d3 
17 S9. encerrado nas masmorras da Ilha das Cobras, condenado 
à morte, foi a pena comutada em degredo para Ambaca, na 
Africa, onde nwrreu em 1793 (1.* de Janeiro). 

Lírico cheio de vigor e de graça, os sentimentos que domi- 
naram os seus versos foram» o amor da família e o entusiasmo 
pelas cousas da pátria. 



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^ 299 — 

Bibliografia — Merope, tragédia de Maffey, tradução, 1776: 
— Enéaa no Lácio, drama em verso, composto em Minas Ge- 
rais; Obras poéticas. 

ífÁ quem lhe atribua ainda a autoria das célebres "Cartas 
chilenas''. 



5. Â Maria Ifígênia 

Em 1786, quando completada sete anos 

Amada filha, é já chegado o dia, 

Em que a luz da razão, qual tocha acesa, 

Vem conduzir a simples natureza: 

— E' hoje que o teu mundo principia. 

A mão, que te gerou, teus passos guia; 
Despresa ofertas de uma vã beleza, 
E sacrifica as honras e a riqueza 
Às santas leis do Filho de Maria. 

Estampa na tu'alma a Caridade^ 

Que amar a Deus, am^r ao^ semelhantes, 

São eternos preceitos da verdade; 

Tudo o mais são ideias delirantes; 

Procura ser feliz na Eternidade, 

Que o mundo são brevíssimos instantes. 

(Obras poéticas) — Garnier, 1865, 



TOMAZ ANTÓNIO GONZAGA 

PORTO — 1744 

t MOÇAMBIQUE — 1807 

Gonzaga formou-se em Coimbra; e depois de exercer cargos 
de magistratura em Portugal, passou a ouvidoir da Comarca de 
Vila Rica (Ouro Preto). Minas; estava despachado desembar- 
gador da Relação da Safa, quando, envolvendo-se na Conjura- 
ção mineira, 1789, foi preso e remetido para o Rio de Janeiro, 
sendo julgado e condenado a degredo perpétuo num presídio em 



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— 800 — 

AnjBola. pena comutada depois em outra de dez anoe eu» ICoçam- 
Wque. onde 15 anos mais tarde velo a morrer, é fama que lonco. 

Ê, muito ax^ertadamente, considerado nosso, pelo seu lirismo 
todo brasileiro, por ter passado no Brasil a sua InfSLncia (na 
Bafa) e a maior e a melhor parte de sua vida (em Vila Rica,), 
além de filho de pais brasileiros e máxtir das liberdades pátrias: 
Brasileiro pelo sangue e pelo destino. 

Garret que considera algumas das liras de Gonzagra "de 
perfeita e incomparável beleza", lamenta entretanto, que êle 
"não pintasse os seus painéis com as cOres do país onde os 
situou*'. Dirceu é o nome de Gonzaga como árcade. 

A Marília de IHroeu era D. Maria Doroteia de Seixas, de 
rara formosura e maravilhosa beleza. 

Seu livro Marília de Dirceu tem tido numerosas edições e 
foi traduzido para o francês, inglês, italiano, espanhol e latim. 



6. Soneto (1) 

Obrei quanto o discurso me guiava. 
Ouvia os sábios «piando errar temia; 
Aos bons no gabinete o peito abria; 
Na rua a todos como iguais honrava. 

Julgando os crimes nunca o voto dava 
Mais duro ou pio do que a Lei pedia: 
Mas devendo salvar o justo, ria 
E devendo punir o réu, chorava. 

Não foram. Vila Rica, os meus projetos 

Meter em férreo cofre cópia d'oiro 

Que sobre aos filhos e que chegue aos netos. (2) 

Outras sâo as fortunas que me agoira, 
— Ganhei saudades, adquiri afetos, 
Vou fazer destes bens melhor tesoiro. 



. (1) ^^ Feito auando o Autor acabou o lugax de ouvidor de 
Vila Bbica, e foi despachado para desenvbargador da Baia. 
(Nota da edição de 1824). 

<3) — Que farte aos filhos e que chegue aos netof <Bd. 
de ISSl). Que chegue aos fUbos, e que passa aos netos (£kL 
de 1S24>. 



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— 301 — 

ANTÓNIO CARLOS 

(Biú-Mblioffrafía à pag. 264) 



1. Liberdade 

Sagrada emanação da Divindade, 
Aqui do cadâfâlsfo eu te saúdo; 
Nem com tormentos, eom reveseáf mudo, 
Fui teu votárío e soti, é Liberdade f 

Pode a vida brutal ferocidade 
Arrancar-me em tormento mâís agud^; 
Mas das fúrias do déspota sanhudo 
Zombft éfalma a nativa dignidade. 

Livre naseí, vivi, e livre espero 

Encerrar-me na fria sepultura, 

Onde império náo tem mando severo. 

Nem da morte a medonha catadura 
Incutir pode horror a mn peito fero. 
Que aos fracos tão somente a morte é dura. 



MUNIZ BARRETO 

BAfA — iO^rSÈ-lSM 
t BAIA — 2-VI*lM0 

Francisco Muniz Barreto ê o improvisador e repentista baia- 
no. Era assombrosa a facilidade e a espoiktaneiâaâe como« sen- 
do-lhe dado um mote quaíatier. Muniz Barreto incúntinenti o 
restituía glosado-; o» uerêos hroienxrrrt-the dos táMos correntes e 
límpidos, cúmo íe fifmwí. áecorudoi. Ac mi&ê nellxótes compo- 
sições foram as proâu^âa» de improviso. Foi o seu talento 
de repentista que lhe marcou um lugar na história da litera- 
tura brasileira. 

Bibliografia — CtáêHcm e româmticKH, Bafa. Ifí4-55, 2 vols., 
in-S.°. DiverMui powista em piili^icagâo avolsOr. Colaborou em 
vâxios joroai». 



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— 302 — 



8. O Cristo no Gólgota 

Ao martírio da Cruz, de bens fecundo, 
De Deus caminha o plácido Cordeiro; 
Em denso véu de trevas o luzeiro 
Do dia se retrai com dó profundo; 

Ao vozear do bando furibundo, 
Treme do Gólgota o sagrado outeiro; 
Dos rebatidos cravos do madeiro 
Brotam faíscas que dão luz ao mundo I 

Ali, de sangue lágrimas vertendo. 

Das virgens a suprema Majestade 

Ao suplício do Filho assiste, horrendo! 

Cumpre-se a farisaica atrocidade. 

Aos seus algozes o perdão dizendo, 

Morre o Cristo e... renasce a humanidade I 



9. Improviso 

Ver... e do que se vê logo abrasado, 
Sentir o coração de um fogo ardente, 
De prazer um suspiro de repente 
Exalar, e após êle um ai magoado I 

Aquilo que não foi inda logrado 
Nem será talvez, lograr na mente; 
Do rosto a côr mudar constantemente 
Ser feliz e ser logo desgraçado; 

Desejar tanto mais quão mais se prive, 
Calmar o ardor que pelas veias corre, 
Já querer, já ^ buscar que êle se ative; 



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— 303 — 

O que isto é a todos nós ocorre: 

— Isto é amor, e deste amor se vive! 

— Isto é amor, c deste amor se morrei 



MACIEL MONTEIRO 



PERNAMBUCO — 80.IV-1804 
t LISBOA — 5-1-1868 

Antõnio Peregrrino Maciel Monteiro, barão de Itamaracà, mó- 
dico, político, ministro do exterior, foi notável orador parlamen- 
tar e delicado poeta lírico. Joaquim Manuel de Macedo diz que 
Maciel Monteiro improvisava quasi sempre, quer quando dis- 
cursava na Câmara, quer quando fazia versos. 

Bibliografia — Poesias, Recife, 1905; Diseursos diversos noa 
anais da Câmara, etc. 



10. Soneto 

Formosa, qual pincel em tela, fina 
Debuxar jamais pôde ou nunca ousara; 
Formosa, qual jamais desabrochara 
Ma primavera a rosa purpurina; 

Formosa, qual si a própria mão divina 
Lhe alinhara o contorno e a forma rara; 
Formosa, qual no céu jamais brilhara 
Astro gentil, estrela peregrina; 

Formosa, qual si a natureza e a arte. 
Dando as mãos em seus dons, em seus lavores, 
Jamais soube imitar no todo ou parte; 

Mulher celeste, oh! anjo de primores! 
Quem pode ver-te, sem querer amar-te? 
Quem pode amar-te sem morrer de amores?! 



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— 304 — 



LAURINDO RABELO 

RIO DE JANEIRO — 8-Vn-1826 
t RIO DE JANEIRO — 28-IX-1864 

Médico, profesK»v autor notável e poeta. 

Lutando contra os reveses 'da sorte, chegou a conhecer de 
perto a miséria. A perda de sua irmã, que estremecia e que 
foi a musa inspiradora de não poucas de suas tormooBm «Atro* 
fes, amorgurou-lhe a existência até a hora em que a mão da 
morte veio tomar-lhe o leme do batel da 'iHda. 

Como poeta satírico Laurindo Rabelo era justamente temádo 
9 irespeftadot esta feiçS/o do eea talento valeu-lhe graades des- 
I^OBtofl, chegando a ser, como Gregório de Matos, por causa dela, 
perseguido. 

Lamiliilo «ra repentista; glosava, como Munlz Barreto, ootn 
a maior facilidade. 

BlblSOgratia — Trovoê, 1SS3; PoeêUi^, 1667; 02>ra9 Poétícaa; 
Comrpêndio de Gravriática da língua portuguesa. Rio de Janeiro. 
Deixou inéditos, entre outros, diversos dramas e um romance. 



11. Leandro e Homero 

o facho do Helesponto apaga o dia^ 
Sem ^lue aos olhos de Homero o sono traga; 
Que dentro de sua alma não se apaga 
O fogo com Que o facho se acendia. 

Aflita o seu Leandro ao mar pedia, 
Que, abrandado por ela, a prece afaga, 
E traz-lhe o morto amante numa vaga, 
(Talvez vaga de amor, ainda que fria...) 

Ao vê-lo pasma e calma num transporte: 

— "Leandro 1. . . és morto!?. . . Que destino infando 
"Te conduz aos meus braços desta sorte?! 

"Morreste!.., mas... (e, às ondas se arrojando, 
Assim termina, já sorvendo a morte) 

— Hei-de, mártir de amor, morrer te amando I" 

Ohras Poéticas — 1876 — B. L. Oarnler. 



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— 305 — 

MACHÂJM) DE ÂSSa 
{Bio^-hibUogrofia à pâg, 24) 



12. C&ciúo vicioso 

Bailando no ar, gemf« inquieto vagtltanMi: 

— "Quem mé â«ra que f<»se «quéU Umra attrôla, 
Que arde no eterno azul, como uma eterna velai" 
Mas a estrela, filando a lua, wwn ciúme: 

— **Pudesse eu copiar o transparente lume, 
Que, da grega coluna à gótica janela. 
Contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela!" 
Mas a lum, fitando o sol com «xeduoia: 

— *'Mísera( Tivesse eu aquela enorme, aquela 
Claridade imortal, que toda a luz resume I" 
Mas o sol. Inclinando a rútila capela: 

— "Pesa-me esta brilhante auréola de nume... 
Enfara-me esU asul e desmedida umí)ela... 
Porque não nasci eu um simples vagalume?** 

Po«6àis comvtetii^ — OM,ent<U8 — H. Gar- 



18. A GaarolinA 

Querida, ao pé do leito derradeiro, 
£m que descansas dessa longa vida. 
Aqui venho e virei, pobre querida. 
Trazer-te o corarão do companheiro. 



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— 306 — 

Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro 
Que, a despeito de toda a humana lida, 
Fez a nossa existência apetecida 
E num recanto pôs o mundo inteiro. 

Trago-te flores, restos arrancados 
Da terra que nos viu passar unidos 
E ora mortos nos deixa e separados, 

Que eu, se tenho nos olhos mal feridos 
Pensamentos de vida formulados 
São pensamentos idos e vividos. 



Relíquias de Casa Velha — H. Gamier, edi- 
tor — Rio. 



LUIZ GUIMARÃES JÚNIOR 

{Bio-Bibliografia à pag, 141) 



14. Fora da barra 



Adeus! Adeus! Nas cerrações perdida 
Vejo- te apenas. Guanabara altiva. . . 

Varela — Ao Rio de Janeiro» 



Já vamos longe... Os morros benfazejos 
Metem na bruma os cimos alterosos . . . 
Ventos da tarde, ventos lacrimosos, 
Vós sois da Pátria os derradeiros beijos! 

As alvas plagas, os profundos brejos, 
Ficam além, além! Adeus, gostosos 
Tormentos do passado! Adeus, oh gozos! 
Adeus, oh velhos e infantis desejos! 



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— 307 — 

Na fugitiva luz do sol cadente 

Vai-se apagando — ao longe — ' tristemente 

Do Corcovado a majestosa serra: 

O mar parece todo um só gemido... 
E eu mal sustenho o coração partido, 
Oh terra de meus pais! Oh minha terral 



15. Visita à casa paterna 

Como a ave que volta ao ninho antigo. 
Depois de um longo e tenebroso inverno, 
Eu quis também rever o lar paterno, 
O meu primeiro e virginal abrigo: 

Entrei. Um gônío carinhoso e amigo, 
O fantasma, talvez, do amor materno, 
Tomou-me as mãos, — olhou-me grave e terno, 
E, passo a passo, caminhou comigo. 

Era esta a sala. . . (Oh! se me lembro! e quanto!) 
Em que da luz noturna à claridade, 
Minhas irmãs e minha mãe ... O pranto 

Jorrou-me em ondas... Resistir quem há-de? 
— Uma ilusão gemia em cada canto. 
Chorava em cada canto uma saudade... 



16. O filho 

A vida dôle era uma gargalhada, 
A vida dela um pranto. Ela chorava 
Sob o cruel trabalho que a matava, 
Êle ria na tasca enfumaçada. 



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— 308 — 

Jamais nos lábios dela a asa doirada 
De uxx^ sorriso passon; jamais xia cava 
E horrenda face dele resvalava 
Sequer de um pranto a pérola nevada. 

Mas D^ASr Que deu à eniranha de Maria 
O Kedttitór dos bomensy Deius lhes íea 
Uma esmola: — Deus fê-los pais um dia: 

E ambos, beijando ao fíCbo os níveos pés, 
Pela primeira vez ela sorria, 
£ êle obCHTOu pela primeira vez. 

Lírica — Sonetos e Rimas — Lisboa — Tavares 
Cardoso êc Ixuã» f- ias&. 



ARTUR AZEVEDO 
{Bio^tibUogra/ia à pág. 9i) 



17. Velha anedota 

Tertuliano, frívolo peralta. 
Que íoi um paspalbão desde fedelho. 
Tipo incapaz de ouvir um bom conselho, 
Tipo (iue iDorio nãc faria falta; 

Lá num dia deixou de andar k malta, 
E, indo à casa do pai, honrado velho , 
A sós na sala, em frente de um espelho, 
À própria imagem disse em voz bem alta: 

— Tertuliano, és um rapaz formoso! 
E's simpático, é» rito, és talentoso! 
Que mais no mundo se te faz preciso? 

Penetrando na sala, o pai sisudo 
Que por trás da cortina ouvira tudo. 
Severamente respondeu: — Juíiol 



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-- 309 



SILVA RAMOS 

PERNAMBUCO — KECIE^ — 6-ni-lB»^ 
t BIO DE JANEIBO — 16-Xn^l980 

O Dr. José Jullo da Silva Hamos formoti-se era Coimbra, 
onde conviveu com Guerra Junqueiro. Macedo Papança e outros 
notáveis escritores portugueses e foi professor de português no 
Colégio Pedro 11. 

Poeta e prosador; como poeta primou no soneto, e os seus 
sonetos são corretos como os de Csaaõea e formosos como os 
de Quental. 

Era da Academia Brasileira — cadeira Tomaa António 
Gonzaga. 

Bibliografia — Adejos, versos, 1S7X — Pecado veniaí, tra- 
dução da comédia de Míllaud "Feche vénlel". 

Silva Ramos escreveu crónicas (subscritas por Júlio Vctt- 
trutr) e publicou versos em vâxias folhas e revistas, nas auals 
se encontram excelentes estudos de filologia portuguesa e (lues- 
toes gramaticais e ainda poesias e trabalhos literários em prosa. 



18. A partida 



Tenbo-a pres^te, eomo agora, aquela 

Dura noite da triste despedida; 

A aragem levemente arrefecida 

Da lancha enfuna a desfraldada vela. 

Distante^ como em íundo de aguarela, 
Some-ae a mansa vila, adormecida, 
E a branda Inz dos astros refletida 
No rio as águas límpidas estrela. 

Cena viva que a mente me descreve^ 
Dos amigos em grupas pelo caís 
Vozes perpassam num sussurro leve; 

Troeam-se as doces expressões finais.... 
B^ enquanto os lábios dizem: até breve, 
Os corações murmuram: nunca maisl 



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— 310 — 
ALBERTO DE OLIVEIRA 

ESTADO DO RIO — SAQUAREMA — 28-IV-1850 
t RIO DE JANEIRO — 19-1-1987 

Ternura e melancolia, entusiasmo e paixão -r- eis os traços 
principais característicos da poesia de António Mariano Alber- 
to de Oliveira, que é ainda cultor apaixonado da forma e da 
língua, que preza antes e acima de tudo; à excelência da líng^ua 
e da forma, cumpre acrescentar o seu grz^nde amor à natureza, 
que pinta com verdade e vigor, 

Dirigiu a Instrução Pública no Estado do Rio e lecionou 
português na Escola Normal e na Escola Dramática. 

Alberto Te Oliveira foi da Acaddinia Brasileira — cadeira 
Cláudio Manuel da Costa. 

Bibliografia — Canções Românticas, Meridionais, Sonetos 
e Poemas^ Versos e Rimais, Por amor de uma lágrima e Livro de 
Ema: todos reunidos no volume PoéHas\ Poesias — segrunda 
série; Poesias — terceira série; Páginas de Ouro da Poesia Bra- 
sileira, Céu Terra e Mar; Poesias — quarta série, etc. 



19. O ninho 

O musgo mais sedoso, a úsnea mais leve 
Trouxe de longe o alegre passarinho, 
E um dia inteiro ao sol paciente estevf% 
Com o destro bico a arquitetar o ninho. 

Da paina os vagos flocos côr de neve 
Colhe, e por dentro alfombra-o com carinho; 
E armado, pronto, enfim, suspenso, em breve, 
Ei-lo balouça à beira do caminho. 

A ave sobre êle as asas multicores 

Estende e sonha. Sonha que o áureo pólen- 

E o nétar suga às mais brilhantes flores; 

Sonha... Porém a um súbito e violento 
Abalo acorda. E' o vento! As folhas bolem... 
O vento! E o ninho lhe arrebata o vento. 

Poesias — Terra Natal, 



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— 311 — 



20. Â vingança da porta 

Era um hábito antigo que êle tinha: 
Entrar dando com a porta nos batentes. 

— Que te fez esta porta? a mulher vinha 
E interrogava. Êle, cerrando os dentes: 

Nadai Traze o jantar. — Mas à noitinha 

Calmava-se; feliz, os inocentes 

Olhos revê da filha e a cabecinha 

Lhe afaga, a rir, com as rudes mãos trementes. 

Uma vez, ao tornar à casa, quando 
Erguia a aldraba, o coração lhe fala: 

— Entra mais devagar... Pára, hesitando... 

Nisso nos gonzos range a velha porta, 
Ri-se, escancara-se . E êle vê na sala 
A mulher como doida e a filha mortal 

Versos e Rimas, 



RAIMUNDO CORREIA 



MARANHÃO — 18.V-1860 
t PARIS — la-IX-lOll 

Raimundo Correia exerceu cargos de magistratura, de admi- 
nistração e de diplomacia: foi juiz na Capital Federal e no 
Estado do Rio, dirigiu o Ginásio Fluminense em» Petrópolis e 
foi Secretário de Legação em Lisboa. Professor de direito. 

Pertenceu à Academia Brasileira — cadeira Bernardo Gui- 
marães. 

Bibliografia — Primeiros Sonhos, Sinfonias, Versos e Ver- 
sões, Colaborou em diversos jornais e revistas. Raimundo 
Correia pertence ao número dos nossos grandes poetas artistas, 
e é por certo um dos maiores, de todos os tempos, que possuí- 
mos. "Raimundo Correia — escreveu D. João da Câmara — é 
dos primeiros poetas brasileiros, e é portanto uma glória por- 
tuguesa" . 



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— 312 — 

21. Anoitecer 

Esbraseia o Ocidente na agonia 
O Sol. . . ATes, em bandos destacadofi, 
Por céu$ de <mro e de púii)ura raúukxs, 
Fogem... Feeha-se a pátpebfa do áiã..^ 

Delineiam, além, da serrania 

Os vértices de ehama aureoUidos, 

E em tudo, em tòroo, esbat^on derramaáioB 

Uns tons suaves de melancolia... 

Um mundo de vapores no ar flutua . . . 
Como uma informe nódoa, avulta e cresce 
A sombra, à propor^^ que a luz recuia . . « 

A natureza apática esmaece... 

Poupo a pouco, entre as árvores, a lua 

Surge trémula, trémula... Anoitece. 

Poeêiãs — ISâiQio portusoeM. — I90€. 



22. As Pombas 

Yai-se a primeira pomba despertada. . . 
Vai-se outra mais... mais outra... enfim dezenas 
De pombas vão-se dos pombais, apenas 
Raia sanguínea e fresca a madrugada... 

E à tarde, quando a rígida nortada 
Sopra, aos pombais de novo, elas, serenas, 
Rufiando as asas, sacudindo as penas, 
Voltam todas em bando e em revoada . . . 

Também dos corações onde abotoam. 
Os sonhos, um por um, céleres voam, 
Ck)mo voam as pombas dos pombais; 

No azul da adolescência as asas soltam. 
Fogem . . . Mas aos pombais as pombas voltam 
E eles aos corações não voltam mais... 



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1 



— 313 — 

23. Mal secreto 

Si a cólera que espuma, a dôr que mora 
N'alma e destrói cada ilusão que nasce; 
Tudo o que pimge, tudo o que devora 
O coração, no rosto se estampasse; 

Si eu pudesse o espírito que chora, 
Ver através da máscara da face, 
Quanta gente, talvez, que inveja agora 
Nos causa, então piedade nos causasse; 

Quaota gente que ri, talvez, consigo 
Guarda um atroz recôndito inimigo, 
Gomo invisível cha^a cancerosa I 

Quanta gente que ri, talvez existe, 

Cuja ventura única consiste 

Em parecer aos outros venturosa I 

Pax^erla António Maria Pereira — lAuboa. 
Poesias — edição portuguesa. 



OLAVO BILAC <1) 

(Bio-bibliografia à pág, 53) 



24u A Gtonçatves Dias 

CelelDraste o domínio soberano 
Das grandes tríbus, o tropel fremente 
Da guerra bruta, o entrechocar insano 
Dos tacapes vibrados rijamente. 



(1) — o grande poeta deixou de existir no dia 28 de Dezem- 
bro de 1918; às 5,30 da manhã disse as derradeiras palavras: 
**Já raia a madrugada, dêem-na» café. vou escrever..." 



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i 



— 314 — 

O maracá e as flechas, o estridente 
Troar da inúbia, e o canitar indiano.. • 
E, eternizando o povo americano, 
Vives eterno em teu poema ingente. 

Estes revoltos, largos rios, estas 
Zonas fecundas, estas seculares, 
Verdejantes e amplíssimas florestas 

Guardam teu nome : e a lira que pulsaste 
Inda se escuta, a derramar nos ares 
O estridor das batalhas que contaste T 

Panóplias. 






25. Ouvir estrelas 

— Ora (direis) ouvir estrelas! Certo 
Perdeste o senso! — e eu vos direi, no entanto 
Que, para ouvi-las, muita vez desperto 
E abro as janelas, pálido de espanto... 

E conversamos toda a noite, enquanto 

A via látea como uj?i pálio aberto, 

Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto, 

Inda as procuro pelo céu deserto. 

Direis agora: — Tresloucado amigo! 
Que conversas com elqis? Que sentido 
Tem o que dizem, quando estão contigo? 

E eu vos direi: — Amai para entendê-las I 
Pois só quem ama pode ter ouvido 
Capaz de ouvir e de entender estrelas. 

Via Látea, 



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mnmmm 



^ 315 



26. O toador 

"Padre Bartolomeu Lourenço de 
Gusmão, inventor de aerostato, 
mo<T:eu miseravelmente num con- 
vento, em Toledo, sen» ter quem 
lhe velasse a agonia". 

Em Toledo. Lá fora, a vida tumultua 
E canta . A multidão em festa se atropela . . . 
E o pobre, que o suor da agonia enregela, 
Cuida o seu nome ouvir na aclamação da rua. 

Agoniza o Voador. Piedosamente a lua 
Vem velar-lhe a agonia, através da janela... 
A Febre, o Sonho, a Glória enchem a escura cela, 
E entre as névoas da morte uma visão flutua: 

**VoarI Varrer o céu com as asas poderosas, 
Sobre as nuvens I correr o mar das nebulosas, 
Os continentes de ouro e fogo da amplidão I. .." 

E o pranto do luar cai sobre o catre imundo... 
E em farrapos, sozinho, arqueja moribundo. 
Padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão... 

As Viagens 



27. Â um poeta 

Longe do estéril turbilhão da rua. 
Beneditino escreve. No aconchego 
Do claustro, na paciência e no sossego 
Trabalha, teima, liína, sofre, sua. 

Mas que na forma se desfaça o emprego 
Do esforço. E a trama viva se construa 
De tal modo que a imagem fique nua. 
Rica, mas sóbria como um templo grego. 



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^ 316 — 

Não se mostre na fábrica o suplício 
Do mestre, e natural o eferito agrade 
Sem lembrar os andaimes do edifício. 

Porque a beleza, gémea da Verdade, 
A arte pttra^ inimiga do artifício, 
E^ a força e a graça na simplicidade. 



AUGUSTO DB UMA 

ESTADO BE MIKAft — VILA NOVA I>£ UMA -- 7-IV-1858 
t BIO ]»B JIANEIBO — 2ã>IV-l984 

Augusto de Lima (António) é um dos melhores poetas da 
get*açâo que costunianíios assinalar pelos uomea de Raiiiiundo, 
Alberto e Bílac; caracteriza- se a sua poesia pela coíreção re- 
quintada da forma # pefo^ fundo f!Ios<Sfloo-«cicÍal. Atfgtrato de 
Lima bacUar^ou-^se na Fãeuldado d« Dlrâlto de %^ Psmio; foi 
magistrado, professor de direito e administrador; deputado por 
seu Estado natal. Pertenceu à. Academia Bcasileira, cadeira 
França Júnior. 

Bibíiogfrafía — Contemporânea*, SimòoUí», Poesias, ccn tendo 
"Gontemporâiteas'% "Sfmbolofli" e ''Laiiâa» inédita»"; Tira^ 
dentes, drama em verso, diversos discursos, conferências, etc, 
além de artigos em revistas e jornais. 



28. Paisagem nostálgica 

Deixei meu berço por destino incerto; 
Mas a paisagem guardo-a na pupila, 
Guardo-a no corarão, donde se estila 
Toda a essénoia das lágrimas que verto-^ 

Sons de sino perdidos no deserto.*. 
Campanários da quasi ocuíia vila«^. 
Serros saudosos que a distância anila, 
Mais formosos de longe c^uè de pertoL«# 



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— 317 - 

Não vos esquecerei, por me lembrardes 
Enquanto prantear do alto das tardes 
A estrela Vésper, que me viu partir. 

Do astro do sonho em que minha alma adeja, 
Quando colher as asas, só deseja 
Em vosso seio maternal dormir. 

Poesias — Garnier. 



B, LOPES 

ESTADO DO RIO — RIO BONITO — 19.1-1850 

t ESTADO DO RIO — RIO BONITO — 18.IX.1916 

Bernardino da Costa Lopes, poeta lírico, notabilizou-se no 
género descritivo. João Ribeiro, poeta e crítico, diz que B. Lopes 
é um dos maiores poetas da nossa geração. 

Bibliografia — Cromos, Pizzioatos, D. Ca/rmen, Brazôes, 
8inhá Flor, Vai de Lírios: — Helenos, — Plumárioj colaborou em 
diversos jornais e revistas. 



29. Quadro 



Cairá o sol no horizonte! 
A rapariga travessa 
Vai, de cântaro à cabeça, 
Pelo caminho da fonte. 

Fumega o rancho. Defronte 
Azula-se a mata espessa... 
•Antes, pois, que a noite desça, 
Voam as aves ao monte. 

Aponta Vésper brilhante... 
E o largo silêncio corta 
Uma toada distante. •• 



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^ 318 — 

Irado, enxotando o galo, 
Está um homem na porta, 
Dando ração ao ca^valo... 

Crônios, 



30. Cromo 

Na alcova sombria e quente, 
Pobre demais, se não erro, 
Repousa um moço doente. 
Sobre uma cama de ferro; 

Pede-lhe baixo, inclinada, 
Sua mulher — que adormeça. 
Em cuja. perna curvada 
Êle reclina a cabeça... 

Vem uma loura figura. 
Com a colher da "tintura", 
Que êle recusa num — ail 

Mas o solícito anjinho, 
Diz-lhe com riso e carinho: 
— "Bebe, que é doce, papai". 



Cromos, 



AFONSO CELSO 

{Bio~bibliografia à pág, 48) 



31. Porto celeste 

Andei em longas excursões distantes: 
Vi palácios, sacrários, monumentos, 
Focos da indústria, artísticos portentos. 
Praças soberbas, capitais gigantes. 



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— 3ift — 

Mas lia, em toda a parte, nos semblantes, 
Dores... lutas... idênticos tormentos. . . 
— Onde a pátria dos risos?!... Desalentos 
Golhí apenas, mais cruéis que dantes. 

Achei, enfim, num pequenino porto. 
Crenças, consolações, calmíi, conforto. 
Tudo que anima, enleva e maravilha: 

Ninho de encantos que a inocência habita. 
Promontório do ceu, plaga bendita, 
E' junto ao berço teu, ó minha filha. 

Poesias éfècolhidaa — H. Garnier. 



32. Alegrias 

Muita vez à janela desta casa, 
Que um velho triste, solitário habita, 
De avezinhas um par, asa com asa. 
Faz, a trinar, idílica visita. 

Quanta graça, que encanto se extravasa, 

Do par sobre a janela, onde saltitai 

Mas... um toque... um rumor, ou que lhe apraza, 

E para além o par se precipita . . . 

Oh! alegrias minhas, semelhantes 
Sois àquelas fugazes visitantes, 
Frágeis, aladas, tímidas, sutís... 

De alentos enfeitais meu desalento; 
Quero reter-vos, faço um movimento, 
Desamparais-me, rápidas fugis!... 

Da Renascença — Fevereiro. 1^05. 



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— 320 — 



CRUZ E SOUZA 

S. CATARINA ~ fXOBlANdPOLIS — M*33.1Ma 
t SFnO — ESTADO DE MIXAS — 19-in-1898 

Crnz e Souxa (João da), poeta nespro» é considerado o chefe 
da chamada escola simboliata. 

Individualidade multo discutida na época em que deu com- 
bate à escola então mais em voga — o parnasianismo, Cruz e 
Sousa é jA boje Julgado com mais justiQa, e 09 critlooa de mais 
responsabilidade e crédito lhe recoáhecem o alto valor e mere- 
cimento incon tostáveis. 

Bibliografia — Mi9imh Broquéis, Fnrátê, Jí^vohições, Últi- 
mos Sonetos, os três últimos, deixados inéditos pelo poeta, foram 
dados à «Btampa por Iniciativa doa mus amigos. 



33. Domiu Anrea 

De bom amor de bom fogo claro 
Uma casa feliz se acaricia. . . 
Basta-Ihe luz e basta-lbe harmoiiia» 
Para ela não ficar no desamparo* 

O sentimento, quando é nobre e raro» 
Veste tudo de cândida poesia... 
Um bem celestial dele irradia. 
Um doce bem que não é parco e av&ro. 

Um doce bem que se derrama em tudo. 
Um segredo imortal, risonho e mudo, 
Que nos leva debaixo da sua asa. 

E os nossos olhos ficam rasos d^água. 
Quando^ rebentos de uma oculta mágoa, 
São nossos filhos todo o céu da casa. 

últimos Sonetos — Aillaud & Comp., 1905. 



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--321 — 



RODRIGO OTaVIO 



ESTADO DE S. PAULO — CAMPINAS — ll-X«iaoe 

Homem de letras, prosador e poeta, jurisconsulto e pro- 
fessor c|e direito, o~Dr. Rodrigo Otávio de Xianggard Meneses se 
tem salientado em todos os géneros literários a que se tem de- 
dicado: poesia, novela, conto, drama, crónica, hlstOrta^ 

Rodrigo Otávio é membro da Academia de Ciências de Lis- 
boa, do Instituto Histórico, do Instituto dos Advogados e da 
Academia Brasileira,, cadeira Tavares Bastos. 

Bibliografia — Pampano&j Pçeinas e Idílios, versos; Aristo, 
Boda de Sangue, novelas ; Sonhos funestos, drama, em versos; 
Festas ntmiowUs^ FeKsherto Oaldelúra^ crônic^ dos tempo» co- 
laniadbB» etc. 



34. Ouvindo Beethoven 

Quando os teus dedos hábeis do teclado 
Ebúrneo arrancam as celestes notas 
Dessa música estranha, eu sou levado 
De um triste sonho às regiões ignotas: 

Deixo o mundo; s<5 tu vens a meu lado, 
Tu somente, e, deixando em baixo grotas, 
Serras, cidades — fujo, ascendo, alado, 
Da fantasia pelas ínvias rotas; 

E vejo um sol na tela purpurina 
Do ocaso, e subo ainda, penetrando, 
Alfim, do céu no páramo profundo; 

E então escuto, pávido, a argentina 
Voz das estrelas trémulas, falando 
Sobre as cousas tristíssimas do mundo . . . 

lyA Renaêcença" , 



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, r 322 — 



VICENTE DE CARVALHO 

S. PAUIiO — SANTOS — 6-IV.1S86 
t SANTOS — 2â-IV-1024 

Ó Dr. Vicente de Carvalho exerceu vários cargos públicos; 
presidiu a Câmara Municipal de Santos; foi deputado à Consti- 
tuinte paulista e secretário do Interior e Justiça na Adminis- 
tração do Dr. Cerqueira César. Ocupou lugar de destaque na 
magistratura. 

Com o aparecimento dos ToetnaB e Canções tiveram as 
letras pátrias a revelação de Mwt grande poeta. "O que para 
logo se destaca nos Poemas e Canções, alentando o subjetivls- 
mo equilibrado de um verdadeiro poeta, é um grrande sentin»en- 
to da natureza" — escreveu Buclides da Cunha. 

Foi da Academia Brasileira, cadeira Martins Pena. 

Bibliografia — Ardentias, Poemas do Mar, O Relicário, 
poema; Bosa de Atnor, Rosa. . . (1902) ; Poemas e Canções, 
1908; Páginas saltas. Vicente de Carvalho colaborou na» revistas 
literárias do Kio e de São Paulo e redigiu a "^ Cidade de Santos". 



35. Soneto 

Só a leve esperança, em toda a vida, 
Disfarça a pena de viver, mais nada; 
Nem é mais a existência, resumida, 
Que uma grande esperança malograda. 

O eterno sonho da alma desterrada, 
Sonho que a traz ansiosa e embevecida, 
E* uma hora feliz, sempre adiada 
E que não chega nunca em toda a vida. 

Essa felicidade que supomos. 
Árvore milagrosa que sonhamos 
Toda arreada de dourados pomos, 

Existe, sim: mas nós não n'a alcançamos, 
Porque está sempre apenas onde a pomos 
E nunca a pomos onde nós estamos. 



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— 323 — 



EMIUO DE MENEZES 

ESTADO DO PARANÁ — CURITIBA — 4-Vn-1867 
t RIO DB JANEIRO — 6-VI-1918 

Classificado com justeza entre os parnasianos, Emílio de 
Menezes grravou os seus poemas a buril: foi um dos mais ex- 
tremados na perfeição artística e no lavor da forma cuidada. 
No soneto em que primou iffuala os melhores poetas brasi- 
leiros da escola a que se filiou. 

Foi da Academia Brasileira de Letras, cadeira Joaquim Ma- 
nuel de Macedo. 

Bibliografia — Marcha Fúnebre, 1892. Poemas da morte, 
1901; Poesias, Últimas rirruís. Mortalhas, sátiras, além de poe- 
sias publicadas em diversas revistas e de sátiras e eplgrramas 
nas secções humorísticas dos jornais. 



36. No lago de Genesareth 

Homem de pouca fé, porque duvidaste? 
Mateus. C. XIV. V. 31. 

— **Nau da Fé porque, em ti, tornas o incenso em fumo? 
'Porque, de um porto bom, para outro porto zarpas? 
Nau da Esperançai em. ti, já os sonhos não resumo; 
Teu porto se antolhou de abrolhos e de escarpas I 

Desarvorada Nau da Caridade! as harpas 
Do teu velame já se não ouvem, presumo. 
Pois as cordas sutís aos vendavais esfarpas 
E lá segues também sem velas e sem rumo I . . • 

E a humanidade toda, entre queixas e mágoas. 

Entre as fúrias do mar e a cólera celeste, 

Fere e apúà dos bons a alma em ardentes fráguas. 

Mas Cristo despe então o manto que o reveste 
E diz, ao desdobrá-lo, assim, por sobre as águas: 

— Este manto resume as três naus que perdeste. 



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— 324 — 



37. O salto de Guaíra 

Largo oceano azul, ora margeando 
Campina extensa, ora frondosa mata, 
Léguas e léguas marulhoso e brando» 
O rio enorme todo o céu retrata. 

Súbito, as águas, brusco, represando, 
£m torvelins de espuma se desata; 
Vertiginoso, indómito, raivando 
Ruge, fracassa e tomba em catarata. 

Tomba, e de novo em arco se levanta» 
Nada a brancura esplêndida lhe turva. 
Em tanto resplendor e glória tanta. 

E na apotedse em que a caudal se expande, 
Do sol aos raios, multicor se encurva 
Rútilo arco-iris, luminoso e grande... 



GUIMARÃES PASSOS 

ALAGOAS — MACEIÓ — 22.in.1867 
t PARIS — 0-IX.1009 

Sebastião de Guimarães Passos, com 18 anos já. escrevia 
nos jornais provincianos. Veio pára o Bio de Jajíieiro em 1886. 
Tendo tomado parte na revolta de 1893, teve Guimarães Passos 
de exilar-se em Buenos- Aires, para não ser preso; aí escreveu 
nos grrandes jornais, "La Prensa" e *La Nadon". 

Lírico, Guimarães Passos foi um poeta espontâneo, de estro 
fácil e de £rrande delicadeza e inspiração. 

Foi da Academia Brasileira, cadeira Laurindo Rabelo. 

Bibliografia — Versos de um simples — 1891 — Horas mor- 
tcís, poesias. 1901: — Dicionário de rinuis, 1905; —r Tratado ée 
versificação (com Olavo Bilac) 1905: — e mais poesias, contos, 
humorismo, etc, nos jornais e nas revistas em que colaborou. 



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— 325 — 



38. Soneto 

Figuremos; tu vais (é curta a viagem), 
Tu vais e, de repente, na tortuosa 
Estrada vês, sob árvore frondosa, 
Alguém dormindo à beira da passagem; 

Alguém cuja fadiga angustiosa 
Cedeu ao sono, em meio da romagem, 
E exausto dorme... Tinhas tu coragem 
De acordá-lo? responde-me, formosa. 

Quem dorme esquece .. . Pode ser medonho 
O pesadelo que entre o horror nos fecha; 
Mas sofre menos o que sofre em sdnho... 

Oh! tu que turvas o palor da npve, 
Tu que as estrelas escureces, deixa 
Meu coração <lormir... Pisa de leve. 



BATISTA CEPELOS 

S. PAULO — 1868 

t RIO DE JANEIRO — 8-V-1915 

Batista Cepelos foi um legítimo e verdadeiro poeta: criador 
espontâneo, original e simples. 

Olavo Bilac, o mestre consagrado, prefaciando Os bandeiran- 
tes, diz que o poeta paulista, com o seu poema, parece-lhe ter 
adivinhado ou descoberto um caminho novo k nossa poesia; e 
acrescenta: "Toda a alma da terra paulista estremece, vibra e 
canta nos versos- deste poeta paulista" . 

Bibliografia — A Derrubada, 1894 — O Cisne encantado, 
1902; — Os bandeirantes. Tip. da "Fanfula". S. Paulo, 1906; * 
— Vaidades — Os Corvos, prosa. 



Antologia Brasileira 12 

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— 326 ^ 



39. O fundador de S. Paulo 

Rumoreja a cidade, em febril movimento. 
Ondeia como um rio a imensa populaça; 
E, maculando o olhar azul do firmamento, 
Erguem-se as chaminés, golfejando fumaça. 

Estende-se o comércio, em soberbo incremento; 
Circula como um satigue a riqueza na praça; 
E, numa rapidez superior à do vento, 
Os prelos dão à luz e o trem de ferro passa . . . 

E, enquanto o poviléu rola de rua em rua, 
Onde o lux^ se ostenta e a vida tumultua, 
Eu mergulho no sonho e na contemplação. 

E, na sua modéstia e na sua roupeta. 

De repente me surge a figura de Anchieta, 

Melancolicamente apoiada a um bordão. .. 

Os Bandeirantes — 1906 — S. Paulo. 



PEDRO RABELO 

RIO DE JANEIRO — 10-X-18e8 

t RIO DE JANEIRO — 27-Xn-1905 

Poeta lírico de incontestável valia, Pedro Rabelo foi ainda 
notável como prosador; nos seus contos descobiiu José Verís- 
simo a influência de Machado de Assiz; e Coelho Neto. 

Foi da Academia Brasileira, cadeira Pardal Malet. 

Bibliografia — Ópera Lírica, Aiwa Alheia, contos, Filhota^ 
das, versos humorísticos. Pedro Rabelo redigiu com Bilac A Ci- 
garra, em 1895 e colaborou em diversos jornais e revistas. 



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— 327 — 



40. Morte de Halza 

Fora há um brusco rumor. Ergo-me e digo: 

— "Bendita Halza que em meu encontro acode!" 
Abro. Ninguém. — "Que é que este ruído pode 
Motivar? — penso, em tenebras, comigo". 

E de súbito o trémulo postigo 
Uma pancada, rápida, sacode . . . 

— "Que é — pergunto — que em tal noite pode 
Vir com^ar inimigo ao lar amigo?" 

Abro. Ninguém. Deserta a rua; fora 
Dorme a casa entre as árvores. Distante, 
Morre uma estrela solitária é fria . . . 

Ahl Que o não possa eu ver senão agora I 
Naquele lúgubre e fatal instante, 
Halza, distante, pálida, morria... 



MAGALHÃES DE AZEREDO 



RIO DE JANEIRO — 7.IX.1872 

Escritor consagrado: prosador e poeta. São qualidades do 
estilo de Carlos Magalhães de Azeredo, como novelista, a sobrie- 
dade e a elegância; como poeta, colocamo-lo distintamente en- 
tre os melhores que possuímos, pela beleza e perfeição da forma, 
inspiração, emoção e pensamento. 

Diplomata, foi embaixador no Vaticano. Mejnbro da Aca- 
demia Brasileira, cadeira Gonçalves de Magalhães. 

Bibliografia — Alma primitiva. Baladas e Fantasias, Proce-^ 
lúrias, A Portugal no centenário das índias; Horas Sagradas » 
O poema da paz, etc. 

Magalhães de Azeredo tem escrito em vários jornais e re- 
vistas de Portugal e daqui. 



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— 328 — 



41. Dante 



Dicean: chi è costui che benza mortfr 
Va per lo regno delia morta gente? 

Dante, Inferno, Canto VIII. 

Sempre anda só, no exílio de Ravena, 
Daate, o Poeta. O seu perfil agudo 
De águia doente, o fosco olhar, que o estudo 
Gastou, dizem a um tempo orgulho e pena. 

Em vão, nas ruas, pela tarde amena» 
Crianças brincam, moças riem. Mudo, 
Êle prosegue, indiferente a tudo, 
Salvo a dôr incurável Que o envenena. 

Si, torvo, envolto em rubro-esouro manto. 
Um fantasma o julgais, seu iracundo 
E triste aspecto não vos cause espanto. 

Quem, depois de sofrer o ódio profundo 
Da pátria, viu o Inferno, e chorou tanto, 
Já não é criatura deste mundo. 

Soras Sagradas — H. Gamler, 1903. 



D. FRANCISCA JÚLIA DA SILVA 



S. PAUIiO ~ 81-VHI-1874 

# . 

Bibliografia — D. Francisca JúUa da Silva é reputada 
uma das primeiras e a mais artista áaM poetisas brasileiraa 
contemporâneas . 

O seu livro **MArnw>re8" apareceu em 1895 e foi prefa- 
ciado por João Ribeiro, com grandes elogios. 



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— 329 — 



42. Cegai 

Trôpega, os braços nús, a fronte pensa, várias 
Vezes, quando no céu o louro sol desponta, 
Vejo-a, no seu andar de sonâmbula tonta, 
Despertando a mudez das vielas solitárias. 

Arrimada ao bordão, lá vai... Imaginárias 
Cousas pensa... Verões e invernos maus afronta.. 
Dores que tem sofrido a todo mundo conta 
Na linguagem senil das suas velhas árias. 

Cegai que negra mão entre os negros escolhos, 
Do caos, foi procurar a treva, que enegrece. 
Para cegar-te a vista e escurecer*<te os olhos? 

Cegai quanta poesia existe, amargurada, 
Nesses olhos que estão sempre abertos e nesse 
Olhar, que se abre para o céu, e não v4 nadai... 



FÉLIX PACHECO 

j 

PlÀUf — TXSEUCZINA — 2-Vin-ia79 

t BIO Tm jANEoaio -^ a«xn*i986 

Publicista © poeta. Como poeta. Félix Pacheco cievç «er 
classificado entr© os pamasianos-slmbolistas. Seus versos, in- 
confundível» pela orlginaUdade da Idéia e pelo lavor da for- 
ma, fazem lembrar os de Antero do Quental. Jornalista, fe? 
parte da redaçâo d* **0 Debate" e foi redator-chefe do "Jornal 
do Comércio", 

Félix Pacheco foi do Instituto Histórico e da Academia 
BrasUelra. cadeira Grei^rórlo ' de Matos. 

BlbUogrrafla — UorB^Amor, D<H$ egre8809 da farda, o Br, 
JBuçlides da Cunha e o Br. Alherto Rangel, Poesiaê, etc. 



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— 330 — 



43. Estranhas lágrimas 

Lágrimas . . . Noutras épocas vertí-as, 
Não tinha o olhar enxuto como agora. 
— Alma, dizia então comigo, chora 
Que o pranto diminue as agonias. 

Ah! quantas vezes, pelas faces frias, 
Por mal do meu amor, que se ia embora, 
Gota a gota rolando, elas outrora. 
Marcaram noite e marcaram diasl 

Vinham do oceano «-d' alma, imenso e fundo. 
Ondas de angústia em suspiroso afrarico. 
Numa desesperança acerba e louca... 

Nos olhos, hoje, as lágrimas estanco, 

Mas rolam todas, sem que as vejia o mundo, 

Sob a forma de risos, pela boca! 



BASÍLIO DE MAGALHÃES 

MINAS — S. JOÃO D'EIi-REI — 14.VI-1875 

Basílio de Magalhães é uma ilustração fora do comum, ser- 
vida por uma inteligência verdadeiramente notável. 

Votando-se, desde <5êdo, às letras, trabalhou assiduamente 
na imprensa mineira e na paulista. Lente de História no gi- 
násio de Campinas. O nome do professor Basílio de Magalhães 
figura no quadro social do Instituto Histórico e Geográfico Bra- 
sileiro, do Instituto Histórico e Geográfico de S. Paulo, da Aca- 
demia Paulista de Letras, do Centro de Ciências, Letras e Artes 
de Camíninas; e é um dos três vice-presldentes brasileiros da 
Internacional Prohi^ition Confederation, 

Bibliografia — íris, versos, 1899; Tratamento e educação 
da^ crianças anormais de inteligência, 1913; O Estado de São 
Paulo € o seu progresso na atualidade, 1913; O 2)andeirism,o no 
Brasil, Expansão geográfica do Brasil até fins dp século XVII, 
lAra de Stecchetti, etc, além de obras didáticas e de vários 
opúsculos sobre história, politica, etc. 



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--. 331 — 



44. A escola 

A escola é o foco de onde a luz radia, 
A luz que aclara os tempos e as nações; . 
Ora é luz que descanta, é cotovia; 
Ora é centelha de revoluções! 

Por onde é que o soldado balbucia 
O nome "Pátria", que enche os corações? 
Onde é que nasce o amor? onde a poesia? 
Onde as mais santas das inspirações? 

Na escola irrompe, em solitário afeto, 
O altruístico e elevado sentimepto, 
Graças ao fogo, de paixão repleto, 

Das lavas do vulcão do entendimento: 

— "E' que há mais luz nas letras do alfabeto 

Que nas constelações do f irmqimento T 



OLEGÁRIO MARIANO 



PERNAMBUCO — RECIFE — 24-01.1380 

Olegário Mariano Carneiro Ribeiro, fill^o do grande político 
pernambucano José Mariano, começou a poetar muito jovem, 
conseguindo /tornar-se, em curto lapso, o vate preferido das mu- 
lheres, pois, no dizer de Agripino Grieço "ha nele mais sensibi- 
lidade do que pensamento". Após o desaparecimento de Alberto 
de Oliveira, em concurso público promovido pela imprensa da 
Capital do país, foi eleito "príncipe dos poetas brasileiros". 

Olegário Mariano ocupou o cargo de inspetor do ensino se- 
cundário, foi deputado pelo Distrito Federal à Constituinte de 
1934 e pertence á Academia Brasileira de Letras, cadeira de 
Joaquim Serra. 

Bibliografia — O canto do dane. Destino, Ultimas Cigarras, 
Vida, Caixa de "brinquedos, O amor na poesia brasileira, 'Poemas 
do amor e da saudade. Cidade maravilhosa. Canto da minha terra^ 
O enamorado da vida, etc. , 



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-" 332 — 



45. Conselho de amigo 

Cigarra! Levo a ouvir-te o dia inteiro, 
Gosto da tua frívola cantiga, 
Mas vou dar-te um conselho, rapariga: 
Trata de abastecer o teu celeiro. 

Trabalha, segue o exemplo da Formiga, 
Aí vem o inverno, as chuvas, o nevoeiro, 
E tu, não tendo um pouso hospitaleiro, 
Pedirás... e é bem tristeser mendiga! 

£ ela ouvindo os conselhos que eu lhe dava, 
(Quem dá conselhos sempre se consome...) 
Continuava cantando... continuava... 

Parece que no canto ela dizia: 

— Se eu deixar de cantar morro de fome... 

Que a cantiga é o meu pão de-cada-dia. 

iVltimas cigarras) 



46. Recife de coral 

(Traduzido de J. M. Heredla) 

O sol dentro do mar, em misteriosa aurora, 
O profundo brenhal dos corais ilumina; 
Mesclando, ao fundo da bacia esmeraldina, 
A fauna florescente e a luxuriante flora ^ 

È tudo que de sal e de iodo se colora, 

O musgo, a actínia, o ouriço e a pobre alga franzina. 

Põe desenhos irreais de sombra purpurina 

No chão rendado a que o pólipo se encorpora. 



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— 333 — 

Apagando o esplendor da espuma iriada, passa 
Um peixe a navegar na trama que se enlaça; 
Ora as águas alisa, ora as águas desfralda. •• 

Súbito agita em . leque a * barbatana enorme, 
E à tona do cristal da água mansa que dorme, 
Corre um frémito de ouro e nácar e esmeralda. 

{Poesias Escolhidas — Freitas, Bfistos & Cia.) 



LUIZ CARLOS DA FONSECA 



BIO DE JANBmO — 10-IV-ld80 
t RIO DE JANEIRO — 1982 

Luiz Carlos da Fonseca, engrenheiro, começou a aparecer nos 
meios literários como conferencista e prosador. Em 1920 publi- 
cou o primeiro livro de versos — "Colunas", bastante para re- 
velar um grande poeta. Vieram depois outros que o consa^rra- 
ram definitivamente. 

Desfrutava de grande prestígio em sua classe e checou a 
ocupar o cargo de diretor da Estrada de Ferro Central do Brasil^. 

Foi sócio da Academia BrasUeira de Letras, cadeira de João 
Francisco Lisboa. 

Bibliografia — O Mendigo (conferencia), Colunas, EncrtuH* 
Ihada, Astros e Abismos^ Rosal de Ritmos, etc. 



47. Exortação 

Sofre, mas não declines da confiança 
Que sereno puseste no futuro. 
Si és bom, tens o caminho mais seguro: 
O bem é uma subida que não cansa. 



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— 334 ^ 

Sofre, que o sofrimento é uma esperança 
Em quem deseja revelar-se puro. 
— Que fora o claro si não fora o escuro? 
Sem sofrimentos a glória não se alcança. 

Não te assustem pedradas. Olha o mundo 
Com os olhos virgens dos relances da ii;a. 
Vê que o solo, ferido, é mais fecundo. 

E si tens n'alma o Céu, porque temê-las? 
As pedras que o homem contra Deus atira. 
Ao contacto do Céu, tornam-se estrelas! 

(Rosal de Ritmos) 



48. Destinas opostos 

Caudal ansiosa. Rio Paraíba, 
E' pelo mar que o teu marulho anseia. 
Não ha diques a opôr-te: vem a cheia 
E a tua força indómita os derribai 

Nesta em que moro solitária riba, 
Que a passagem triunfal te sobranceia, 
Vai-me a vida, igualmente, a estorvo alheia. 
Na conquista do bem, que em sonho liba. 

Queres o eterno turbilhão do oceano. 
Quero eu a luz sobre o destino humano. 
Aspiras à descida; eu à escalada. 

Anseias pelo mar; eu pela Altura, 
Mas, tal no anseio, opostos na ventura. 
Rolarás sobre o mar; eu sobre o nada! 

(Astros e alHsmos) 



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'1 

\ 



— 335-- 



MARTINS FONTES 

SAÒ PAULO — SANTOS — 23-VI-1884 
t SANTOS — DEZEMBRO-1987 

Martins Pontes foi um grande poeta, exímio na forma e 
profundo na ideia. Sua inspiração abraçava todos os géneros, 
desde o jocoso, que se tomava logo popular na sua cidade natal 
e em que residia, até a mais delicada filigrana do sentimento 
humano. 

Era médico de coração, cheio de cuidados com os sofredores 
humildes e por isso geralmente adorado. 

Nos últimos anos de sua vida, propôs-se a escrever Nos 
Jardins de Augusto Comte, obra dedicada aos grandes vultos 
do calendário positivista e que deixou inacabada. 

Verão ficou sendo seu mais belo livro, dando-lhe grande 
nomeada aqui e em Portugral. 



49. Delicadeza 

Tranco-me, quando sofro, a SQte chaves, 
Fujo dos seres o infernal tumulto, 
E tanto as dores físicas ocu,lto, 
Quanto as outras mais íntimas e craves. 

Alegremente me comparo às aves, 
Carinhosas amigas do meu culto, 
Que vão morrer, longe do mundo estulto, 
Nos bosques ermos, de sonoras naves . 

Tendo o brilho e a beleza da saíúde, 
A elegância do traje e das maneiras, 
Quando apareço meu aspeto ilude. 

O pudor torna as horas prazenteiras, 

E a gentileza, máxima virtude. 

Em mim roseia a sombra das olheiras 



(Escarlate) 



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— 336 — 



50. Anchieta 

Tudo quanto é branoor: o luar, a espuma, 
A açucena, o jasmim, o lírio, a neve, 
Palidamente o que êle foi descreve, 
Mas da sua pureza se perfuma. 

Nenhum nardo claríssimo, nenhuma 
Pomba, em nossa existência, triste e breve, 
Se lhe compara pelo aroma leve. 
Maciez de pétala ou paladar de pluma. 

Quando penso, sonhando, em pleno encanto. 
Que a minha terra é filha deste Santo, 
As velhas pedras de São Paulo adoro... 

E, na alegria que alvoroça os ninhos, 
Com a timidez das ervas nos caminhos. 
Dobro a cabeça, consolado, e choro. 

(PauUatániay 



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11. lírica 



TOMAZ ANTÓNIO GONZAGA 

(Bio-bibliografia à pág. 299) 



51. Lira XXVIII 

Alexandre, Marília, qual o rio 

Que engrossando no inverno tudo arrasa, 

Na frente das coortes, 

Cerca, vence, abrasa 

As cidades mais fortes ... 
Foi na glória das armas o primeiro: 
Morreu na flor dos anos, e já tinha 

Vencido o mundo inteiro . 

Mas este bom soldado, cujo nome 
Não há poder algum que nâo abata, 
Foi, Marília somente 
Um ditoso pirata. 
Um salteador valente. 
Se não tem uma fama baixa e escura, 
f Foi por se pôr ao lado da injustiça 

! A insolente ventura. 



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— 338 — 

O grande César, cujo nome voa, 
À sua mesma pátria a fé quebranta, 

Na mão a espada toma, 

Oprime-lhe a garganta. 

Dá senhores a Roma, 
Consegue ser herói por um delito!... 
Se acaso não vencesse,* então seria 

Um vil traidor proscrito I 

O ser herói, Marília, não consiste 

Em queimar os impérios: move a guerra. 

Espalha o sangue humano, 

E despovoa a terra 

Também o mau tirano. 
Consiste o ser herói em viver justo: 
E tanto pode ser herói o pobre. 

Como o maior Augusto. 



52. Lira XXXVI 

Meu sonoro passarinho, 
Se sabes do meu tormento, 
E buscas dar-me, cantando,' 
Um doce contentamento, 

Ah! não cantes mais, não cantes, 
Se me queres ser propício. 
Eu te dou em que me faças 
Muito maior benefício. 

Ergue o corpo, os ares rompe, 
Procura o porto da Estrela, 
Sobe a serra, e, se cansares. 
Descansa num tronco dela. 

Toma de Minas a estrada. 
Na igreja nova que fica 
Ao direito lado e segue 
Sempre firme a Vila Rica. 



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^ 339 — 

Entra nessa grande terra, 
Passa uma formosa ponte, 
Passa a segunda, a terceira 
Tem um palácio defronte. 

Êle tem ao pé da porta 
Uma rasgada janela; 
E' da sala aonde assiste 
A minha Marília bela. 

Para bem a conheceres, 
Eu te dou os sinais todos 
Do seu gesto, do seu talhe, 
Das suas feições e modos. 

O seu semblante é redondo, 
Sobrancelhas arqueadas, 
Negros e finos cabelos. 
Carnes de neve formadas . . • 

A boca risonha e breve, 
Suas faces côr de rosa. 
Numa palavra, a que vires 
Entre todas mais formosa. 

Chega então ao seu ouvido. 
Diz que eu sou que te mando, 
Que vivo nesta masmorra, 
Mas sem alívio penando. 



Marília de Dirceu — vol. II. 



SILVA ALVARENGA 

MINAS — VELiA RICA (OURO PRETO) — 1749 
t RIO DE JANEIRO — l-XI-1814 

Manuel Inácio da Silva Alvarenga (Alcindo Palmireno na 
Arcádia), o suavíssimo cantor de Glaura. é. pela doçura do seu 
lirismo, comparável a Gonzaga, o mavioso poeta da Marília. 

Formou-se em Cânones na Universidade de Coimbra; em 
1777 tornou Silva Alvarenga ao Brasil, e no Rio de Janeiro se 



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— 340 — 

estabeleceu como advogado; por êsae tempo o vice-rei Luiz de 
YaBconcelos o nomeou professor de retórica e poética: Monte 
Alverne, S. Carlos e o cOneero Januário foram os seus discípulos. 

Membro da "Academia Científica**, transformada em "So- 
ciedade Liiterária (1786), dissolvida violentamente esta associação 
pelo suspeitoso vice-rei Conde de Rezende, foi Silva Alvarenga 
preso e encerrado, por mais de dois anos, nos cárceres da ilha 
das Cobras... 

Bibliografia — Silva Alvarenga deixou: O Desertor, poema 
heroi-cOmico; As Artes^ poema did&tico; Qlaura, poemas eró- 
ticos; e mais sonetos, odes, cançOes, epístolas, ek:. 



53. Glaura dormindo 

RONDO XXVII 

Voai, zéfiros mimosos, 
Vagarosos, com cautela; 
Glaura bela está dormindo; 
Quanto é lindo o meu amori 

Mais me elevam sobre o feno 
Suas faces encarnadas, 
Do que as rosas orvalhadas 
Ao pequeno beija-flôr. 

O descanso, a paz contente 
Só respiram nestes montes: 
Sombras, penhas, troncos, fontes, 
Tudo sente um puro ardor. 

Voai, zéfiros mimosos; 
Vagarosos, com cautela; 
Glaura bela está dormindo; 
Quanto é lindo o meu amorI 

O silêncio, que nem ousa 
Bocejar e só me escuta, 
Mal se move nesta grutia, 
E repousa sem rumor. 



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L 



— 341 — 

Leve sono, por piedade, 
Ahl derrama em tuas flores 
O pesar, a mágoa, as dores, 
E as saudades do pastor! 

Voai, zéfiros mimosos, 

Vagarosos, com cautela; 

Glaura bela está dormindo; i 

Quatito é lindo o meu amor! 

Se nos mares aparece 
Vénus terna e melindrosa, 
Glaura, Glaura mais formosa 
Lhe escurece o seú valor. 

No vestido azul e nobre 
E' sem ouro e sem diamante 
Qual a filha de Tauihante, 
Que se cobre de explendor. 

Voai, zéfiros mimosos. 
Vagarosos, com cautela; 
Glaura bela está dormindo; 
Quanto é* lindo o meu amorl , 

E' suave b $eu' agrado 
A meus olhos nunca enxutos. 
Como são os doces frutos 
Ao cansado lavrador. 

Mas fcem longe da ventura 
Às mudanças vivo afeito. 
Encontrando no teu peito . 
Já brandura e Já rigor! 

Voai, zéfiros mimosos. 
Vagarosos, com cautela; 
Glaura bela está dormindo; 
Quanto é lindo o meu amor! 

Ofrtas poéticas — Tomo II — B. T^. Gar- 
nier — 1864. 



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— 342 — 

54. Madrigal I 

Suave fonte pura, 
• Que desces murmurando sobre a areia, 
Êu sei quQ a linda Glaiira se recreia 
Vendo em ti de seus olhoát a ternura; 

Ela já te procura; 
Ah! como vem formosa e sem desgosto I 

Não lhe pintes o rosio; 
Pinta-lhe, ó clara fonte, por piedade. 
Meu terno amor, minha infeliz saudade. 



GONÇALVES ©IAS 

{Bio-bibliografia à pág. 21Ç) 



55. Canção do exílio 

Minha terra tem palmeiras, 
Onde canta o sabiá; 
As aves, que aqui gorjeiam. 
Não gorjeiam como lá. 

Nosso céu tem mais cmtrôlas. 
Nossas várzeas têm mais flores, 
Nossos bosques têm mais vida. 
Nossa vida mais amores. 

Em cismar, sozinho, h noite, 
Mais prazer encontro eu lá; 
Minha terra tem palmeiras. 
Onde canta o sabiá. 

Minha terra tem primores. 
Que tais não encontro eu cá; 
Em cismar — sozinho, è^ noite — 
Mais prazer encontro eu lá; 



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— 343 — 

Minha terra tem palmeiras, 
Onde canta o sabiá, 
Não permita Deus que eu morra, 
Sem que. eu volte para lá; 

Sem que desfrute os primores 
Que não encontro por cá; 
Sem que inda aviste as palmeiras, 
Onde canta o sabiá. 

Poesias — Tomo I — Laemmert & C, 1896. 



56. Seus olhos 

Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros, 

De vivo luzir. 
Estrelas incertas, que as águas dormentes 

Dò mar vão ferir; 

Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros, 

Têm meiga expressão, 
Mais doce que a brisa, — mais doce que o nauta 
De noite cantando, — mais doce que a frauta 

Quebrando a soidão. 

Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros, 

De vivo luzir, 
São meigos, infantes, gentis, engraçados. 

Brincando a sorrir. 

São meigos, infantes, brincando, saltando 

Em jogo infantil, 
Inquietos, travessos; — causando tormento. 
Com beijos nos pagam a dôr de um momento. 

Com modo gentil. 

Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros, 

Assim é què são; 
Às vezes luzindo, serenos, tranquilos, 

Às vezes vulcão I 



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— 344 — 

Às vezes, ohl sim, derpanwn tão iracoj 

Tão frouxo brilhar, 
Que a mim me parece que o ar lhes falece, 
E os olhos tão meigos, que o pranto humedece, 

Me fazem chorar. 

Assim lindo infante, que dorme tranquilo, 

Desperta a chorar; 
E mudo e sisudo, cismando mil cousas,, 

Não pensa — a pensar. 

Nas almas tão puras da virgem, do infante 

Às vezes do céu 
Cai doce harmonia duma harpa celeste. 
Um vago desejo; e, a mente se veste 

De pranto co' um véu. 

Quer sejam saudades, quer sejam desejos 

Da pátria melhor; 
Eu amo seus olhos que choram sem causa 

Um pranto sem dôr. 

Eu amo seus olhos, tão negros, tâp puros, 

De vivo fulgor; 
Seus olhos que exprimem tão doce harmonia, , ; 
Que falam de amores com tanta^pòesia, 

Com tanto pudor. 

Seus olhos tão negros, tãò belos, tão puros, 

Assim é que são; 
Eu amo esses olhos que falam de amores 

Com tanta paixão. 

Poe^ioã — Laemmert & Cm 1896* 



FRANCTSCO OTAVIANO 

BIO DE JANEIRO — a6-VI.1825 
t MO DE JANEIRO — 28-V.1889 

Francisco Otaviano de Almeida Hosa bacharelouree tm di- 
reito pela Faculdade jurídica de S. Paulo e exerceu vários car- 



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— 345 — 

f^>s públicos. Como enviado extraordinário e ministro plenipo- 
tenciário do Brasil no Prata, negociou o tratado Óa trífilice 
aliança contra Lopez/o ditador do Paragruai. Deputado e senador 
pela provincia do Rio de Janeiro; por vezes recusou a pasta 
de ministro. 

Inspirado poeta, F. Otaviano deixou-nos, além, das poesias 
origrinais, excelentes traduções de Byron, Shakespeare. Th. Hood. 
e outros poetas celebres. 

Bibliografia — Traduções e poesias de F* Otaviano, publi- 
cadas pelo Dr. Amorim Carvalho, Rio de Janeiro/ 1881 (s6 se 
tiraram 50 exemplares); os Cantos de Selma com prefácio de 
Salvador de Mendonça tip. da "República". 1872. Rio de Ja- 
neiro. (Edição de 7 exemplares), e muitas poesias dispersas por 
jornais, revistas, folhetos e coletftneas. Como Jornalista, F. 
Otaviano redigiu várias folhas e colaborou em muitas. 



57, Flor do vale 

Ouviste um dia os cânticos do anjo? 
Viste em seu rosto da beleza as cores? 
£ na manhã de doce primavera, 
Flor do vale brilhando entre as mais flores? 

Então puro era o céu e verde o campo, 
E a vida alegremente lhe corria; 
Folgava em seu primor de mocidade, 
E nos braços de Deus adormecia. 

E tão bela e tão casta! Descuidosa 
Do futuro em presente tão risonho, 
Apenas em su'alma, quasi a furto, 
Vaga imagem de amor sorria em sonho. 

Tanto mancebo esbelto que a cercava 
Com olhares de cândidos amores I 
Porém ela, mais pura e mais formosa. 
Flor do vale brilhando entre as mais flores» 

A brisa da manhã lhe ouvia os cantos 
E o eco da campina os repetia! 
À tarde, sobre a relva perfumada. 
Cantando novamente adormecida. 



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— 346 — 

E cantava e sorria! — E veio o inverno, 

E trouxe suas névoas, seus rigores; 

E acharam-na sem vida e descorada, 

Flor do vale, morrendo entre as mais flores! 

Quando voltou depois a primavera, 
As florinhas e o campo vicejaram; 
O vale fez-se verde e o céu sereno, 
Mas os cantos do anjo não voltaram! 

Eu lhe escutei a vòz harmoniosa, 
Eu vi a flor do vale em seus verdores; 
Hoje só ouço o murmurar do vento*.. 
A flor do vale abandonou as flores. 



58. Ilusões da vida 

Quem passou pela vida em branca nuvem, 
E em plácido repouso adormeceu; 
Quem não sentiu o frio da desgraça, 
Quem passou pela vida e não sofreu; 
Foi espectro de homem — não foi homem, 
Só passou pela vida — não viveu. 



JUNQUEIRA FREIRE 

BAIA — 81-Xn.l832 
t BAIA — 24-VI.1855 

A òurta existência de Luiz José Junqueira Freire foi cheia 
de sofrimentos, dissabores e desenganos; para os seus desgostos 
íntimos pensou achar remédio fazendo-se frade, mas, não en- 
contrando na vida claustral alívio à dôr que o martirizava, ao 
fim de 3 anos deixou o mosteiro. No ano seguinte falecia na 
sua cidade natal o malogrado poeta. 

Junqueira Freire é um genuino representante do lirismo 
brasileiro. 

Bibliografia — Inspirações do claustro. Contradições poéti' 
cos, Obr<is poéticas. Elementos de retórica nacional. 



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— 347 



59. A órfã âa costura 

Minha mãe era bonií^, 
Era toda a minha dita, 
Era todo o meu amor; 
Seu cabelo era tão louro 
Que nem uma fita de ouro 
Tinha tamanho esplendor. 

Suas madeixas luzidas 
Lhe caíam tão compridas. 
Que vinham-lhe os pés beijar; 
Quando ouvia as minhas queixas 
Em suas áureas madeixas 
Ela vinha me embrulhar. 

Também quando toda fria 
A minha almí| estremecia, 
Quando ausente estava o sol, 
Os cabelos comptidos, 
Como fios aquecidos, 
Serviam-me de lençol. 

Minha mãe era bonita, 
Era toda a minha dita, 
Era todo o meu ^mor; 
Seus olhos eram suaves 
Como o gorjeio das aves, 
Sobre a choça do pastor. 

Minha mãe era mui bela, 
— Eu me lembro tanto dela, 
De tudo quanto era seu! 
Minha mãe era bonita, 
Era toda a minha dita, 
Era tudo e tudo meu. 

Os meus passos vacilantes 
Foram por largos instantes 
Ensinados pêlos seus. 



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— 348 — 

Os meus lábios mudos, quedos, 
Abertos pelos ^eus dedos, 
Pronunciaram-me — Deus! 

Mais tarde quando acordava, 
Quando a aurora despontava, 
Erguia-me a sua mão; 
Falando pela voz dela,. 
Eu ropetia singela 
Uma formosa oração. 

Minha mãe eia miui bela, 

— Eu me lembro tanto dela. 
De tudo quanto era seuI 
Tenho em meu peito guardadas 
Suas palavras sagradas, 

Co' os risos que ela me deu. 

Estes pontos que eu imprimo. 
Estas quadrinhas que eu rimo. 
Foi ela quem me ensinou; 
As vozes que eu pronuncio. 
Os cantos que eu balbucio, 
Foi ela quem mos formou. 

Minha mãe! — diz-me esta vida, 

Diz-me também esta lida, 

Este retroz, esta lã; 

Minha mãe! — diz-me este canto; 

Minha mãe! — diz-me este pranto; 

Tudo me diz: — Minha mãe! 

Minha mãe era mui bela, 

— Eu me lembro tanto dela. 
De tudo quanto era seu! 
Minha mãe era bonita, 

Era toda a minha dita. 
Era tudo e tudo meu. 



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— 349 — 

LAURINDO RABELO 

(Bio-bibliografia à pág. 304) 



60. A minha resolução 

o que fazes, ó minha alma! 
Coração, porque te agitas? 
Coração, porque palpitas? 
Porque palpitas em vão? 
Si aquele que tanto adoras 
Te despreza, como ingrato, 
Coração, sê mais sensato, 
Busca outro coração! 

Corre o ribeiro suave 
Pela terra brandamente. 
Si o plano condescendente 
Dele se 'deixa regar; 
Mas, si encontra algum tropeço, 
Que o leve ciwso lhe prive, 
Busca logo outro declive, 
Vai correr noutro lugar. 

Segue ó exemplo das águas, 
Coração, porque te agitas? 
Coração, porque palpitas? 
Porque palpitas em vão? 
Si aquele que tanto adoras 
Te despreza, como ingrato. 
Coração, sê mais sensato, 
Busca outro eoração! 

NaSce a planta, a planta cresce, 
Vai contente vegetando, 
Só por onde vai achando 
Terra própria a seu viver; 



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— 350 — 

Mas, si acaso a terra estéril 
Às raízes lhe é veneno, 
Ela vai noutro terreno 
As raízes esconder. 

Segue o exemplo da planta, 
Coração, porque te agitas? 
Coração, porque palpitas? 
Porque palpitas em vão? 
Si aquele que tanto adoras 
Tç despreza, como ingrato. 
Coração, sê mais sensato! 
Busca outro coração! 

Saiba a ingrata que punir 
Também sei tamanho agravo! 
Si me trata como escravo. 
Mostrarei que sou senhor; 
Como as águas, como a planta, 
Fugirei dessa homicida; 
Quero dar a uma alma fida 
Minha vida e meu amor. 

Obras poéticas — B. L. Garnier. 1876. 



ÁLVARES DE AZEVEDO 

{Bio-hibliografia à pág. 285) 



61. Si eu morresse amanhã 

Si eu morresse amanhã, viria ao menos 
Fechar meus olhos minha triste irmã; 
Minha mãe de saudades morreria, 
Si eu morresse amanhã! 



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— 35l — 

Quanta glória pressinto em meu futuro! 
Que aurora de porvir e que manhã! 
Eu perdera chorando essas coroas, 
Si eu morresse amaphâ! 

Que sol! aue céu azul! q\ie doce n'alva 
Acorda a natureza mais IdUçã! 
Não me batera tanto amor no peito, 
Si eu morresse amahhã! 

Mas essa dôr da vida que devora, 
A ânsia de glória, o dolorido afã . . . 
A dôr no peito emudecera ao menos, 
Si eu morresse ainanhã!... 



TEIXEIRA 1>E MELO 

ESTADO DO RIO — CAMPOS — 28-Vm.ld33 
t RIO DE JANEIRO — lO.IV-1908 

O Dr. José Alexandre Teixeira de Melo doutorou-se em 
medicina pela faculdade do Rio de Janeiro e nomeado, em 1876, 
chefe de secção de manuscritos da Biblioteca Nacional, dirigiu 
depois esse importante estabelecimento. 

Poeta lírico e historiador. Como poeta, Sílvio Romero o so- 
brepõe a Casimiro de Abreu, seu contenuporâneo e amigo. 

Teixeira de Melo foi da Academia Brasileira (cadeira Ca- 
simiro de Abreu) e do Instituto Histórico. 

Bibliografia — Sombras e Sonhos e Miosótis, poesias; J5/e- 
mérides Nacionais, Limites do Brasil com a Confederação Ar" 
gentina, memória; Caifnpos dos Ooitacazes, etc. 



62. Ignotae Dese 

Quando eu dormir à sombra do salgueiro 
Que em minha cova arrebentar por si, 
Tu, que nem sabes por meus frios cantos, 
O que sou, o que fui e o que sofri; 



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^ 352 — 

Sobre o meu nome, pobre grão de areia 
Que uma criança arremessou ao mar, 
Deixa uma gota, a ijnica de pranto, 
Sobre o meu nome lenta escorregar; 

Como uma per'la que gentil princesa 
Dos seus cabelos desprendesse rindo, 
E aos pés lançasse de voraz mendigo, 
Que em seu caminho adormeceu pedindo. 

Ai! Tu não sabes como o leito é gélido 

Aos que no seio as ilusões secaram! 

Ai! tu não sabes como é quente o túmulo 

Aor. que entre os vivos como um som passaram. 

Eu, que por flores suspirei da terra, 
Que não dormi por tanta flor do céu. 
Que descorei por tanto Olhar de fogo, 
Coado a furto do zeloso véu; 

Que mergulhei em tanto mar de amores, 
E me enxuguei a tanto àol de outono. 
Que vejo o mundo ao pé de mim e durmo. .. 
Despertarei do meu pesado sono. 

E, quando o mar por alta noite estenda 
Lençóis de espuma em que se deite a lua. 
"Aerolito" que incendeia o espaço, 
Virei banhar de luz a fronte tua. 

E, quando um dia a tempestade as asas 
Por sobre o azul de teu viver abrir, 
Eu, da tormenta asserenando o grito, 
Virei ao pé do teu dormir — dormir. 



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— 863 — 



CASIMIRO DE ABREU 

ESTADO DO KIO — BARRA DE S. JOÃO — 4-1-1887 
t NOVA FRIBURGO — IS-X-lSeO 

Casimiro José Marques de Abreu, o maia popular, sem dúvi- 
da, dos poetas brasileiros, e um dos mais notáveis líricos da 
secunda geração romântica, 6 o poeta do amor e da saudade. 

O pai o destinara k carreiía comercial, para á qual, entre- 
tanto, não sentia a menor vocação. Mandado para Portugal, 
dali voltou quatro anos depois, então jâ. minado o frágil orga- 
nismo pela pertinaz doença que o devia levar em pouco ao 
túmulo; o poeta pôde ainda ouvir, na laranjeira, à tarde, cantar 
o aahiá. , , 

Primaveras, versos publicados em 1850, é sua principal obra. 



63. Juriti 

Na minha terra, no bolir do mato. 

A juriti suspira; 
E como o arrulho dos gentis amores, 
São os meus cantos de secretas dores 

No chorar da lira. 

De tarde a pomba vem gemer sentida 
À beira do caminho; 

— Talvez perdida na floresta ingente — 
A triste geme nessa vo35 plangente 

Saudades de seu ninho. 

Sou como a pomba, e como as vozes dela 
p]' triste o meu cantar; 

— Flor dos trópicos — cá na Europa fria 
Eu definho, chorando noite e dia 

Saudades do meu lar. 

A juriti suspira sobre as folhas secas ' 

Seu canto de saudade; 
Hino de angústia, férvido lamento, 
Um poema de amor e sentimento, 

Um grito de orfandade I 



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^ 354 — 

Depois ... o caçador chega cantando, 

À pomba faz o tiro. . . 
A bala acerta, e éla cai de bruços 
E a voz lhe morre nos gentis soluços, 

No final suspiro 

E como o caçador, a morte em breve 

Levar-me-á comsigò; 
E descuidado, no sorrir da vida. 
Irei sozinho, a voz desfalecida. 

Dormir no meu jazigo. 

E — morta a pomba nunca mais suspira 

À beira do caminho; — 
E, como a juriti, longe dos lares. 
Nunca mais chorarei nos meus cantares 

Saudades do meu ninho I 



64. Deus 

Eu me lembro I eu me lembro I — Era pequeno 
E brincava na praia; o mar bramia, 
E, erguendo o dorso altivo, sacudia 
A branca escuma para o céu sereno. 

E eu disse a minha mãe nesse momento: 
** — Que dura orquestral Que furor insano I 
Que pode haver maior da que o oceano 
Ou que seja mais forte do que o vento?" 

Minha mãe a sorrir olhoij p'r'os céus 
E respondeu : "— Um Ser, que nós não vemos, 
E' maior do que o mar, que nós tememos. 
Mais forte que o tufão! Meu filho, é — DeusT 



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— 355 — 



63* No Jardim 



•*Tête sacrée! enfant 
aux cheveux blonds ! " 

V. Hugo. 



Ela. estava sentada em meus joelhos 
E brincava comigo — o anjo lotiro, 
E passando as mãozinhas no meu rosto 
Sacudia rindo os seus cabelos de ouro. 

E eu, fitando-a abençoava a vida! 
Feliz sorvia nesjífe olhar swàve 
Todo o perfume dessa flor da infânôia, 
Ouvia àlegi^è o gazear dessa ave! 

pepois, a borboleta da campinai 

Toda azul — como os olhos grandes dela — ' 

A doudejar gentil passou bem junto, 

E beijou-lhe da face a rosa bela. 

— "Oh! como é linda! disse o lourq anjinho, 
No doce acento da virgítlia fala — 
Mamãe me ralha si eu ficar cansada, 
Mas — dizia a correr — hei-de apanhá-la". 

Eu seguí-a, châmando-a, e ela rindo 
Mais corria gentil por entre as flores, 
E a flor dos ares, abaixando o vôo, 
Mostrava as asas de brilhantes cores. 

Iam, vinham, à roda das acácias, 
Brincavam no rosal, nas violetas, 
E eu de longe dizia: — "Que doidinhas! 
Meu Deus! Meu Deus! são duas borboletas!. 



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— n5fi — 



CASTRO ALVES 



BAfA — 14-in.l847 
t BAIA — 6-VI.1871 

António de Castro Alves estudou preparatórios no Ginásio ' 
Baiano e matriculóu-se em 1864 ná FôCftldade. <íe .Direito do 
Recife, tendo se passado em 1868 pata a de S. Paulo; mas 
nâo logrou concluir o curso jurídico, porque, em Novembro do 
mesmo ano, tehdo-se ferido desastrosamente num pér quando 
caçava, foi preciso amputar-se-lho, sobrevindo, pouco depois a 
doença pulmonar, de que veio a falecer na capital da Baía, em 
6 de Julho de 1871. 

Castro Alves, um dos criadores da chamada escola condo- 
reira, é o cantor épico dos escravos e o brilhante lírico que ta- 
manha influência exerceu entre os mfocos do seu ten>po.. Castro 
Alves, em quem tãx) poderosamente influiu Vitor Hugo, como o 
têm constatado os críticos, é o nosso poeta poclal: liberal, abo- 
licionista (quando ainda nenhum partido havia hasteado a ban- 
deira da abolição) e republicano. 

Castro Alves é, ainda hoje, um dos poucos poetas popula- 
res do Brasil: é talvez o poeta mais publicado do Brasil; o que 
é, de certo, a realização da profecia de Alencar en> carta a 
Machado de Assiz, apresentando o poeta, em 1868. 

Bibliografia — Espumas FlutuanteSy poesia. Baía 1870; 
Oonzaga, ou a Revolução de Min<is, drama, B«LÍa, 1870; A ca- 
choeira de Paulo Afonso, poema. Baía, 1876; Manuscritos de 
Btênio, Baía, 1876; Ohras completai, edição do cincòentenàrio da 
morte do poeta, comentada, anotada' é*"- ôoritendo numerosos 
inéditos, por AirasUo Peixoto (2 vols. — Livraria Francisco 
Alves — 1921). 



66^ A duas flores 

Sãò duas flores unidas, 
São duas íosas nascidas 
Talvez no mesmo arrebol, 
Vivendo no mesmo galho. 
Da mesma gota de orvalho, 
Do mesmo raio de sol. 



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-• 857 — 

Unidas, bem como as penas 
Das duas asas pequenas 
De um passarinho do céu . . . 
Gomo um casal de rolinhas, 
Gomo a tríbu de andorinhas, 
Da tarde no frouxo véu. 

Unidas, bem como os pran-os, 
Que em parelha descem tangos 
Das profundezas do olhar . . . 
Gomo o suspiro e o desgosto. 
Como as covinhas do rosto. 
Como as estrelas do mar. 

Unidas ... Ai I quem pudera 
Numa eterna primavera 
Viver, qual vive esta flor: 
Juntar as rosas da vida 
Na rama verde e florida, 
Na verde rama do amor! 

JEspumaa Flutuantes — cíarnler, 1913. 



MUCIO TEIXEIRA 

RIO GRANDE DO SUL— PORTO ALEGRE — 18-1X.1«58 



Múcio Teixeira é um dos nossos melhores poetas; e si por 
certas composições parece filiar*8e à chamada escola condo- 
reira constatamros nos seus versos, bem nítida e clara, a nota 
lírica. Algumas de suas poesias têm sido traduzidas em fran- 
cês, italiano, inglês e castelhano. 

Múcio Scoevola Lopes Teixeira foi membro de diversas ins- 
tituições literárias e científicas, nacionais e estrangeiras. 

Bibliografia — Vozes trémulas, versos dos quinze anos, 
Violetas, SoTtihras e Clarões, Novos Ideais, Cérebro e Coração, 
Fausto e Marr/arida, poema dramático, Prir,ma!i e Vibrações, 
Poesias e Poemas, Campo tíanto, poesias; O imperador visto de 
perto, além de traduções, peças* de teatro, poesias avulsas e ar- 
tigos em jornais e revistas. 



Antologia Brasileira 13 

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— 358 — 



67. As mães 

O' Mães! Da Mãe de Deus vós despertais lembranças 
Nessa augusta missão, tão cheia de poesia; 
Quando embalais ao colo as tímidas crianças, 
Eu penso ver Jesus nos braços de Maria I 

Vós sois uns anjos bons! de amor e de piedade 
Tendes um ninho em flor nos seios virtuosos; 
Nos filhos refletís a vossa felicidade, 
Gomo um límpido espelho os corpos luminosos. 

Vós sois a inspiração primeira dos poetas, 
Vós sois o pensamento extremo dos doentes... 
Quem antes osculou a fronte dos profetas. 
Vindo a cerrar mais tarde os olhos dos videntes? 

O' Mães! Da minha Mãe vós me trazeis lembranças. . . 
Encheis-me de saudade!... Eu amo-vos por isto... 
Quando embalais cantando, aos seios, as crianças, 
Eu sonho ver Maria acalentando o Cristo!... 

Meu Deus! não sei dizer que há de mais ungido 
Do bálsamo do céu ... si há mais sublime coisa 
Que a mãe que embala ao berço o filho adormecido. 
Ou si o filho que reza ante a materna lousa! 

Dos N0VO8 Ideais, 



FONTOURA XAVIER 



RIO GRANDE DO SUIi — 7-VI-1858 

António de Fontoura Xavier cursou a Escola Central ie a 
Faculdade de Direito de São Paulo. 

Foi cônsul em Baltimore, Genebra, Buenos Aires e Nova 
York. Passando da carreira consular para a diplomática, foi 
nosso ministro em Guatemala e Portugal. 

Caracteriza principalmente este poeta o fundo filosófico- 



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— 359 — 

social da maior parte das suas poesias; Fontoura Xaxier é 
um poeta origrinal, mas sem a menor preocupação de parecê-lo. 
Bibliografia — Opalas. Carlos Pinto & Cia., Pelotas, 1884; 
— O Régio Saltimbanco, poemeto, 1867. Pontotira Xavier pu- 
blicou formosos versos, alguns dos quais são bem feitas tra- 
duções de poetas ingleses, americanos, franceses, espanhóis* etc. 



68. Paráfrases 

Sondai a terra... no seu ventre aflito 
Revolvei-lhe o recôndito tesouro; 
E, envolto nas agruras do granito, 
Encontrarei o ouro... 

Sondai o mar ... no seu profundo arcano 
Agita-se a tremer a vaga quérula; 
E fundo, bem no fundo do oceano, 
Encontrareis a pérola... 

Sondai o céu.., a noite o sobreleva 
De treva espessa, que não há rompê-la; 
E fundo, bem no fundo dessa treva, 
Encontrareis a estrela . . . 

Sondai o coração... no paroxismo 
Ou no transporte entrai, mergulhador! 
E á tona ou bem no fundo desse abismo 
Encontrareis a Dôr... 



69. Ambições 

Pobres... num só colchão podem caber uns três; 
Mas o maior império é pouco p'ra dois reis... 



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— 360 — 

RAIMUNDO CORREU 

(Bio-bibliografia à pág. 311) 



70. Três estâncias 



Interrogastes o lírio imaculado 

Na leda estância, na vernal sazão; 

Interrogaste o lírio imaculado 

E respondeu-te o infante, louro irmão 

Dos querubins, no limiar sentado 

Da existência, a sorrir — lírio em botão, 

II 

Interrogaste a flor da laranjeira, 
Entre corimbos, na sazão do amor; 
Interrogaste a flor da laranjeira, 
E respondeu-te a virgem, sob o alvor 
Da gaze, "eu amo" a segredar fagueira, 
Noiva, a cingir da laranjeira a flor. 

III 

Hoje interrogas o cipreste esguio, 
Hoje, que em torno tudo é morto já; 
Hoje interrogas o cipreste esguio, 
Que junto às campas, de atalaia está: 
As derradeiras folhas tombam, frio 
Soluça o vento . . . 

— Quem responderá?! 

Poesias — Edição Portuguesa — 1906. 



VICENTE DE CARVALHO 

{Bio-bibliografia à pág. 322) 



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w. 361 — 

71. Cair das folhas 

"Deixa-me, fonte!" Dizia 
A flor tonta de terror. 
E a fonte, sonora e fria, 
Cantava, levando a flor. 

"Deixa-me, deixa-me, fonte", 
Dizia a flor a chorar: 
"Eu fui nascida no monte. . . 
Não me leves para o mar", 

E a fonte, rápida e fria, 
Com um sussurro zombador^ 
Por sobre a areia corria, 
Corria levando a flor. 

"Ail balanços do meu galho. 
Balanços do berço meu; 
Ai! claras gotas de orvalho 
Caídas do azul do céu!" 

Chorava a flor, e gemia, 
Branca, branca de terror, 
E a fonte sonora e fria, 
Rolava, levando a flor . 

** Adeus, sombra das ramadas 
Cantigas do rouxinol! 
Ail festa das madrugadas. 
Doçuras do pôr do sol!** 

"Carícias das brisas leves 
Que abrem rasgões de luar..» 
Fonte, fonte, não me leves. 
Não me leves para o mar!.,." 

As correntezas da vida 
E os restos do meu amor 
Resvalam numa descida 
Como a da fonte e da flor... 

Poemas e Canções — S. Paulo. 1908, 



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— 362 — 

OLAVO BILAC 

{Bio-bibliografia à pág. 53) 



72. A avó 

A avó, que tem oitenta anos, 
Está tão fraca e velhinha!... 
Teve tantos desenganos! 
Ficou branquinha, branquinha, 
Com os desgostos humanos. 

Hoje. na sua cadeira, 
Repousa, pálida e fria, 
Depois de tanta canseira: 
E cochila todo o dia, 
E cochila a noite inteira. 

Às vezes, porém, o bando 
Dos netos invade a sala . . . 
Entram rindo s papagueando: 
Este briga, aquele fala. 
Aquele dansa, pulando... 

A velha acorda sorrindo, 
E a alegria a transfigura; 
Seu rosto fica mais lindo, 
Vendo tanta travessura, 
E tanto barulho ouvindo. 

Chama os netos adorados, 
Beija-os, e, tremulamente. 
Passa os dedos engelhados. 
Lentamente, lentamente, 
Por seus cabelos dourados. 

Fica mais moça, e palpita, 
E recupera a memória, 
Quando um dos netinhos grita: 
"O' vóvól conte uma história! 
Conte uma história bonita!" 



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— 363 — 

Então, com frases pausadas, 
Conta histórias de quimeras, 
Em que há palácios de fadas, 
F feiticeiras, e feras, 
E princesas encantadas . • . 

E os netinhos estremecem, 
Os contos acompanhando, 
E as travessuras esquecem, 
— Até que, a fronte inclinando 
Sobre o seu colo, adormecem ... 

poesias infantis — Francisco Alves & C. 



LUIZ MURAT 

ESTADO DO RIO — ITAGUAl — 4-V-1861 
t DISTRITO FEDERAL — 8.Vn-1929 

Luiz Barreto Murat nasceu a 4 de Maio de 1861 è formou- 
se na Faculdade de Direito de S. Paulo em 1883. Secretário 
do governo do seu Estado na primeira administração republicana 
(Portela), fez parte da Constituinte e foi deputado geral. 

O lírico fluminense, desde a publicação das suas primei- 
ras Ondas, foi conceituado um dos melhores poetas parnasia- 
nos brasileiros. 

Pertenceu à Academia Brasileira, cadeira Adelino Fontoura. 

Bibliografia — Ondas (I), Ondas (II), Sara (poema), Ondas 
(III), Ritmos e Ideiam, etc. 

Luiz Murat colaborou assiduamente em diversos jornais e 
nas revibtas literárias. 



73. Súplica 

Guarda em teu seio impoluto, 
Guarda no altar de teu sonho, 
A minha imagem de luto 
No seu sepulcro tristonho. 

A vaga levou, querida, 
A endeixa que te embalava, 
Desfolhou-se a minha vida 
Quando a manhã despontava. 



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— 864 — 

Agora, sozinho, vago, 
Como um navio sem norte, 
E, sem saber como, trago 
À proa a estátua da morte. 

Tu me encadeias aos ventos, 
Tu me abandonas às águas, 
Não te movem meus lamentos. 
Não te abrandam minhas mágoas. 

Da antiga felicidade 
Que resta, para que eu viva?l 
Uma larva de saudade 
Que do amor se fez cativa. 

Está deserto o meu ninho, 
Não tem flores o meu vaso. 
Gomo um espectro caminho 
Nas sombras do meu Ocaso. 

"Viajor sem esperança 
E que não tem pouso certo, 
Minh'alma, louca, se lança 
Por ôste espaço deserto. 

Deixa que eu viva cantando, 
Deixa que eu morra sentindo 
A dôr de te ver gozando, 
A dôr de te ver sorrindo. 

Que importa cair na estrada, 
E morrer, si assim o ordenas? 
Minha sorte está cansada 
De carregar tantas penas. 

Guarda em teu seio impoluto. 
Guarda no altar de seu sonho, 
A minha imagem de luto 
No seu sepulcro tristonho. 



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— 365 — 



F. DE PAULA MONTEIRO DE BARROS 

BIO DE JANEIRO — 12-n-1871 
t BIO DE JANEIBO — 8-X.Í915 

Bacharel em letras pelo Colégio Pedro II e em ciências ju- 
rídicas e sociais, pela Faculdade de Direito do Rio de Janeiro. 
Francisco de Paula fez ambos os cursos com brilhantismo. 
Seguiu a magistratura e exerceu a advocacia. 

Poeta lírico de larga espontaneidade, o verso flu£a-lhe cheio 
de inspiração e afinado pelo diapasão mais doce. Tempera- 
mento fiel à estética finalista de Bocage, além de grande lí- 
rico foi também poeta satírico como Elmano. 

Bibliografia — Vozes íntimas « Poema da Dor, 1890. Dei- 
xou inéditos mais três volumes de versos: Íris, Decadentes e 
Coração. Colaborou em diversos jornais. 



74. Igualdade ilusória 

A primavera ó uma estação florida, 
Cheia de imenso, divinal fulgor; 
De flores enche o coração da vida, 
E enche de vida o coração da flor. 

A mocidade é uma estação ditosa. 
Cheia de risos, de ideal prazer; 
E as almas sentem um viver de rosa, 
Na mocidade, a rosa do viver. 

Na primavera, há profusão de cores; 
As flores brotam no rochedo bruto 
Depois. . . o fruto que há de vir das flores, 
E as novas flores que hão de vir do fruto. 

Na mocidade, há melopeias calmas; 
Tremem dos lábios os vermelhos frisos; 
Os risos cantam no brotar das almas, 
Cantam as almas no brotar dos risos. 



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— 366 — 

Ambas se adocnam de um viver risonho, 
Iguais parecem — ambas são de amor 
Si a mocidade faz nascer o sonho, 
A primavera faz nascer a flor. 

Iguais parecem quando a vida as solta, 
E no entretanto, elas não são iguais: 
A primavera passa e depois volta, 
E a mocidade não nos volta mais. 



MÃRIO BE ALENCAR 

RIO DE JANEIRO — 30-1-1872 
+ RIO DE JANEIRO — 8-Xn.l926 

Poeta distinto que se revelou aos dezeseis anos, Mário de 
Alencar tem- **um lug:ar não somenos e, o que êle talvez mais 
preze, como quer que seja, â parte, entre os nossos poetas 
atuais, da nova ou velha geração, parnasianos ou simbolistajs*' 
— escreveu José Veríssimo (Estudos de Literatura Brasileira, 
5.' série). Mário de Alencar é um escritor que "tem e preza 
o grôsto das letras e a seriedade no cultivo delas". 

Bibliografia — Lágrimas, Versos, Alguns escritos, 8i eu fosse 
político... DicionáiHo de rimas portuguesas, etc. 

Mário de Alencar escreveu na imprensa diária e em revistas 
literárias e foi bibliotecário da Câmara dos Deputados. 



75. Marinha 

Sopra o terreal. A noite é calma e faz luar. 

Intercadente 

Sôa na praia mansamente 

A voz do mar. 

Os homens dormem: dorme a terra, e no ar sereno 

Nenhum ruído 

Perturba o encanto recolhido 

Do luar pleno. 



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— 367 — 

No azul profundo a lua branca pelo céu 

Sem nuvens vaga 

E cobre o mar, vaga por vaga 

De um branco véu. 

uonge, à mercê da branda aragem, vai passando 

Tarda falua; 

Nas pandas velas bate a lua 

De quando em quando. 

Sobre a falua alguém, de amor talvez, lá vai 
Cantando, e o vento 
Traz para a terra o sonolento 
Som que se esvai; 

Som que se esvai no espaço e ao qual o rumor d'água 
Como um gemido, 
Faz o estribilho indefinido 
De inquieta mágoa. 

Algum marujo vai talvez do coração 
As brandas queixas 
Dizendo assim nessas endeixas 
À viração. 

Enquanto lá no azul profundo em que flutua, 
Indiferente 
À terra, ao mar, à humana gente, 
Abre-se a lu?^. 



POESIA POPULAR 
76. Quadras 

Muito vence quem se vence,* 
Muito diz quem não diz tudo: 
Pois a um discreto pertence 
A tempo tornar-se mudo. 



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— 368 — 

Sobrancelhas como as tuas 
Não é possível bavô-las: 
São laços de fita preta 
Que prendem duas estrelas. 



De muita gente que existe 
E que julgamos ditosa. 
Toda a ventura consiste, 
Em parecer venturosa. 



As rosas é que são belas, 
Os espinhos ó que picam; 
Mas são as rosas que caem, 
São os espinhos que ficam. 



Ninguém deve neste mundo 
De alheias desgraças rir... 
Quando o céu troveja, o raio 
Não faz ponto onde cair. 



Sofre, si tens de sofrer, 
Corre os maiores perigos: 
— Tuas crenças não renegues, 
Não renegues teus amigos. 



Até nos flores se encontra 
A diferença da sorte! 
Umas enfeitam a vida. 
Outras enfeitam a morte 



Mente quem diz nesta vida 
Muitos males ter sofrido; 
Só de um mal a gente sofre: 
E' do mal de ter nascido... 



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IIL CÂNTICOS - HINOS 



GONÇALVES DIAS 

{Bio-bibliografia à pág. 216) 



77. O canto do guerreiro 
I 

Aqui na floresta 
Dos ventos batida, 
Façanhas de bravos 
Não geram escravos, 
Que estimem a vida 
Sem guerra e lidar. 

— Ouví-me guerreiros, 

— Ouvi meu cantar I 

II 

Valente na guerra 
Quem há como eu sou? 
Quem vibra o tacape 
Com mais valentia? 
Quem golpes daria 
Fatais, como eu dou? 

— Guerreiros, ouví-me: 

— Quem há como eu sou? 



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— 370 — 

ra 

Quem guia nos ares 
A flecha implumada, 
Ferindo uma prêsa. 
Com tanta certeza, 
Na altura arrojada 
Onde eu a mandar? 

— Guerreiros, ouví-me, 

— Ouvi meu cantar I 

IV 

Quem tantos imigos 
Em guerras preou? 
Quem canta seus feitos 
Com mais energia? 
Quem golpes daria 
Fatais, como eu dou? 

— Guerreiros, ouví-me: 

— Quem há como eu sou? 



Na caça ou na lide. 
Quem há que me afronte?! 
A onça raivosa 
Meus passos conhece, 
O imigo estremece, 
E a ave medrosa 
Se esconde no céu. 

— Quem há mais valente, 

— Mais dextro do que eu? 

TI 

Si as matas estrujo 
Co'os sons do boré, 
Mil arcos se encurvam. 
Mil setas lá voam. 
Mil gritos reboam. 
Mil homens de pé 
Eis surgem, respondem 



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^ 371 — 

Aos sons do boré! 

— Quem é mais valente, 

— Mais forte, quem é? 

VII 

Lá vão pelas matas 
Não fazem ruído; 
O vento gemendo, 
E as matas tremendo 
E o triste carpido 
De uma ave a cantar. 
São eles — guerreiros, 
Que faço avançar. 

VIII 

E o piaga se ruge 
No seu maracá, 
A morte lá paira 
Nos ares frechados; 
Os campos juncados 
De mortos são já: 
Mil homens Viveram, 
Mil homens são lá. 

IX 

E então, se de novo 
Eu toco o boré; 
Qual fonte que salta 
De rocha empinada, 
Que vai marulhosa, 
Fremente e queixosa, 
Que a raiva apagada 
De todo não é; 
Tal eles se escoam 
Aos sons do boré. 

— Guerreiros, dizei-me: 

— Tão forte quem é? 

Poesias Americanas — Poesias — Tomo I. 
Laemmert & C, 1896. 



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— 372 — 

GONÇALVES DE MAGALHÃES 

(BiO'bibliografia à pág. 289) 



78. Hino dos bravos 

Brasileiros, às armas corramos, 

Que hoje a Pátria afrontada nos chama: 

Não ouvis esses ecos terríveis? 

E' a voz do canhão que rebramal 

ímpia gente, de sangue sedenta, 

Contra nós arrogante se ostentai 

Eia, às armas, e à Pátria juremos 
Que o inimigo feroz venceremos. 

Defendendo esse solo sagrado, 
Agredido por hordas de escravos, 
Corajosos à luta corramos, 
Que homens somos, e livres, e bravos. 
Tremam eles ao ver-nos unidos, 
A vencer ou morrer decididos. 

Eia, às armas, e à Pátria juremos 
Que o inimigo feroz venceremos. 

Nossos pais, nossas mães, nossa Pátria 
'Stão vingança, vingança bradando; 
Que salvemos a honra ultrajada. 
Do inimigo a insolência domando. 
Pois que louco chamou-nos à guerra, 
Com seu sangue lavemos a terra. 

Eia, às armas, e à Pátria juremos 
Que o inimigo feroz venceremos. 



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byGcJogle 



— 373 — 

Um só grito, que atroa espantoso, 
Pelo Imenso Brasil se dilata; ' 
E da terra se elevam guerreiros, 
Do longínquo Amazonas ao Prata. 
Todos querem, correndo à vitória, 
Colher louros no campo da glória. 

Eia, às armas, e à Pjítria juremos 
Que o inimigo feroz venceremos. 



OSÓRIO DUQUE-ESTRADA 

ESTADO DO RIO — PATf DO ALFERES — 1870 
t RIO DE JANEIRO — 5-n.l927 

Joaquim Osório Duque Estrada bacharelou-se em letras no 
Colégio Pedro II. Foi secretário de legarão no Paraguai, em 
1892. Exerceu o cargo, por concurso, de "Inspetor de En- 
sino" no Estado do Rio e lecionou no Ginásio Fluminense; 
foi professor da Escola Normal do Rio de Janeiro. 

Pertencia à Academia Brasileira de Letras. 

Osório Duque estrada escreveu em quasi todos os jornais 
fluminenses; redigiu a secção de crítica literária d'0 Imparcial 
e "Jornal do Brasil." E* autor da letra oficial do hino nacional. 

Bibliografia — Alvéolos, verãos, Questões de Português, 
Noçõçs elementares de Gramática Portuguesa, Flora de Maio, 
versos, Leituras Militares; A arte de fazer versos, Luiz Delfino, 
sonfei-ência, A abolição — Noções de História do Brasil, 1U18, etc. 



79. Hino Nacional <^) 



Ouviram do Ipiranga as margens plácidas 
De um povo heróico o brado retumbante, 
E o sol da liberdade, em raios fúlgidos, 
Brilhou no céu da Pátria nesse instante. 



(1) Música de Francisco Manuel 



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— 374 ^ 

Se o penhçr dessa igualdade 
Conseguimos conquistar coro braço forte 

Em teu seio, (5 liberdade, 
Desafia o nosso feito a próptia morte I 

O' Pátria am^da, 
Idolatrada, 
Salve! salvei 

Brasil, um sonho intendo, i:|m raio vívido 
De amor e de esperança à terra (jesce. 
Se em teu formoso céu, risonho e límpido, 
A imagem do Cruzeiro resplandece! 

Gigante péla própria naturezfi, 
E's belo, és forte, impávido colosso, 
E o teu futuro espalha essa grandeza 

Terra adorada, 
Entre outras mil, 
E's tu, Brasjl, 
O' Pátria amada! 

Dos filhos deste solo és mãe gentil, 

Pátria amada, 
^ Brasil! 

II- 

Deitado eternamente em berço esplêndido, 
Ao som da mar e à luz do céu profundo 
Fulguras, ó Brasil florão da América, 
Iluminado ao sol do novo mundo! 

Do que a terra mais garrida 
Teus risonhos lindos campos têm mais flores, 

"Nossos bosques têm mais vida, 
Nossa vida no teu seio mais amores '\ 

O' Pátria amada, 
Idolatrada, 
Salve! Salvei 



i 



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— 375 — 

Brasil, de amor eterno seja símbolo 

O lábaro que ostentas estrelado, 

E diga o verde-louro dessa flâmula: 

— "Paz no futuro e glória no passado" — 

Mas, se ergues da justiça a clava forte. 
Verás que um filho teu não foge à luta, 
^'em teme, quem te adora, a própria morte. 

Terra adorada, 
Entre outras mil, 
E's tu, Brasil, 
O' Pátria amada I 

Dos filhos deste solo és mãe gentil, 
Pátria amada, . 
Brasil I 



MEDEIROS E ALBUQUERQUE 

{Bio-bibliografia à pág. 63) 



80. Hino à proclamação da República ^^> 

Seja um pálio de luz desdobrado 
Sob a larga amplidão destes céus 
Este canto rebel, que o passado 
Vem remir dos mais torpes labéus I 
Seja um hino de glória que fale 
De esperança de um novo porvir I 
Com visões de triunfo embale 
Quem por ôle lutando surgir! 



(1) — Música do maestro Leopoldo Miguez. 



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— 376 — 

Liberdade! Liberdade! 
Abre as asas sobre nós! 
Das lutas na tempestade 
Dá que ouçamos tua voz! 

Nós nem cremos que escravos outrora 
Tenha havido em tão nobre pais, 
Hoje o rubro lampejo da aurora 
Acha irmãos, não tiranos hostis. 
Somos todos iguais! Ao futuro 
Saberemos, imidos, levar 
Nosso augusto estandarte, que, puro, 
Brilha, ovante, da Pátria no altar l 

Liberdade! Liberdade! 
Abre as asas sobre nds! 
Das lutas na tempestade 
Dá que ouçamos tua voz! 

Si é mister que de peitos valentes 
Haja sangue no nosso pendão 
Sangue vivo do herói Tiradentes 
Batizou este audaz pavilhão! 
Mensageiros de paz, paz queremos; 
E' de amor nossa força e poder, 
Mas da guerra nos transes supremos 
Heis de ver-nos lutar e vencer! 

Liberdade! Liberdade! 
Abre as asas sobre nós! 
Das lutas na tempestade 
Dá que ouçamos tua voz! 

Do Ipiranga é preciso que o brado 
Seja um grito soberbo de fé! 
O Brasil já surgiu libertado 
Sobre as púrpuras régias de pé: 
Eia, pois, brasileiros, avante! 
Verdes louros colhamos louçãosl 
Seja o nosso país triunfante, 
Livre terra de livres irmãos! 



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— 377 — 

Liberdade I Liberdade! 
Abre as asas sobre nós! 
Das lutas na tempestade 
Dá que ouçamos tua voz! 



OLAVO BILAC 

{BiO'bibliografia à pág, 53) 



81. Hino à bandeira nacional <^> 

Salve, lindo pendão da esperançai 
Salve, símbolo augusto da paz! 
Tua nobre presença à lembrança 
A grandeza da Pátria nos traz. 

Recebe o afeto que se encerra 
Em nosso peito juvenil, 
Querido símbolo da terra, 
Da amada terra do Brasil! 

Em teu seio formoso retratas 
Este céu de puríssimo azul, 
A verdura sem par destas matas, 
O esplendor do Cruzeiro do Sul . . . 

Recebe o afeto que se encerra 
Em nosso peito juvenil, 
Querido símbolo da terra. 
Da amada terra do Brasil! 

Contemplando o teu vulto sagrado, 
Compreendemos o nosso dever: 
E o Brasil por seus filhos amado, 
Poderoso e feliz há de ser! 



(1) — Música do maestro Francisco Braga. 



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— 378 — 

Recebe o afeto que se encerra 
Em nosso peito juvenil, 
Querido símbolo da terra, 
Da amada terra do Brasil! 

Sobre a imensa nação brasileira, 
Nos momentos de festa ou de dôr, 
Paira sempre, sagrada bandeira, 
Pavilhão da justiça e do amor! 

Recebe o afeto que se encerra 
Em nosso peito juvenil, 
Querido símbolo da terra, 
Da amada terra do Brasil! 

Poesias Infantis — Francisco Alves & C. 



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lY. ELEGIAS 



FAGUNDES VARELA 

ESTADO DO RIO — RIO CLARO — 17-Vni-1841 
t BSTADO DO RIO — RIO OIíARO — 18-n-1875 

Luiz Nicolau Fagundes Varela era um temperamento de 
boémio, irrequieto, quasi nómade. 

Sílvio Romero considera-o "um poeta de grande mérito- e 
uma singular figura digna de reverência e atenções"; é um dos 
nossos primeiros líricos, distinguindo-se pelo seu amor à natu- 
reza, pela melodia dos seus versos, pela abundância e riqueza 
das imagens. 

Bibliografia — Noturnas, Pendão Auri-verde, Vozes da Amé- 
rica, Cantos e fantasias. Cantos meridionais. Cantos do ermo da 
cidade, Anchieta ou o Evangelho nas selvas. Deixou numerosos 
inéditos. 



82. Cântico do Calvário 

Eras na vida a pomba predileta 
Que sobre um mar de angústias conduzia 
O ramo da esperança!... eras a estrela 
Que entre as névoas do inverno cintilava, 
Apontando o caminho ao pegureiro I. . . 
Eras a messe de um dourado estio!... 
Eras o idílio de um amor sublimei.... 



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~ 380 — 

Eras a glória, a inspiração, a pátria, 
O porvir de teu pail... Ah! no entanto, 
Pomba — varou-te a flexa do destino ! 
Astro — enguliu-te o temporal do norte! 
Teto — caíste I Crença — já n^o vives! 
Correi, correi, oh! lágrimas saudosas. 
Legado acerbo da ventura extinta. 
Dúbios archotes que a tremer clareiam 
A lousa fria de um sonhar que ó morto! 
Correi! um dia vos verei mais belas 
Que os diamantes de Ofir e de Golgonda, 
Fulgurar na coroa de martírios 
Que me circunda a fronte cismadora! 
São mortos para mim da noite os fachos 
Mas Deus vos faz brilhar, lágrimas santas, 
E à vossa luz caminharei nos ermos! 
Estrelas do sofrer, gotas de mágoa. 
Brando orvalho do céu! sôde benditas! 
Ohl filho de minh^alma! última rosa 
Que neste solo ingrato vicejava! 
Minha esperança amargamente doce! 
Quando as garças vierem do ocidente, 
Buscando um novo clima onde pousarem. 
Não mais te embalarei sobre os joelhos. 
Nem de teus olhos no cerúleo brilho 
Acharei um consolo a meus tormentos! 
Não mais invocarei a musa errante 
Nesses retiros onde cada folha 
Era um polido espelho de esmeralda 
Que refletia os fugitivos quadros 
Dos suspirados tempos que se foram! 
Não mais perdido em vaporosas cismas 
Escutarei ao pôr do sol, nas serras. 
Vibrar a trompa sonorosa e leda 
Do caçador que aos lares se recolhe! 
Não mais! A areia tem corrido, e o livro 
De minha infanda história está completo! 
Pouco tenho de andar! Um passo ainda, 
E o fruto de meus dias, negro, podre. 
Do galho eivado rolará por terra! 
Ainda um treno! e o vendaval sem freio 



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— 381 — 

Ao soprar quebrará a última fibra 
Da lira infausta que nas mãos sustenho! 
Tornei-me o éco das tristezas todas 
Que entre os homens achei! o lago escuro 
Onde, ao clarão dos fogos da tormenta, 
Miram-se as larvas fúnebres do estrago! 
Por toda parte em que arrastei meu manto 
Deixei um traço fundo de agonias!... 
Gh! quantas horas não gastei, sentado 
Sobre as costas bravias do oceano, 
Esperando que a vida se esvaísse 
Como um floco de espuma, ou como o friso 
Que deixa n'água o lenho do barqueiro! 
Quantos momentos de loucura e febre 
Não consumi perdido nos desertos 
Escutando os rumores das florestas, 
E procurando nessas vozes torvas 
Distinguir o meu cântico de morte! 
Quantas noites de angustias e delírios 
Não velei, entre as sombras espreitando 
A passagem veloz do génio horrendo 
Que. o mundo abate ao galopar infrene 
Do selvagem corcel!... e tudo embalde! 
A vida parecia ardente e douda 
Agarrar-se a meu ser!. . . E tu, tão joven, , 
Tão puro ainda, ainda na alvorada, 
Ave banhada em mares de esperança, 
Rosa em botão, crisálida entre luzes, 
Fostes colhido na tremenda ceifa! 

Ah! quando a vez primeira em meus cabelos 

Senti bater teu hálito suave; 

Quando em meus braços te cerrei, ouvindo 

Pul^ar-te o coração, divino ainda; 

Quando fitei teus olhos sossegados. 

Abismos de inocência e de candura, 

E baixo e a medo murmurei: meu filho! 

Meu filho! frase imensa, inexplicável, 

Grata como o chorar de Madalena 

Aos pés do Redentor ... ah ! pelas fibras 

Senti rugir o vento incendiado 



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— 382 — 

Desse amor infinito que eterniza 

O consórcio dos orbes que se enredam 

Dos mistérios do ser na teia augusta, 

Que prende o céu à terra e a terra aos anjos! 

Que se expande em torrentes inefáveis 

Do seio imaculado de Maria! 

Cegou-me tanta luz! Errei, fui homem! 

Jl de meu erro a punição cruenta 

Na mesma glória que elevou-me aos astros, 

(chorando aos pés da cruz, hoje padeço! 

O som da orquestra, o retumbar dos bronzes 

A voz mentida de rafeiros bardos, 

Torpe alegria que circunda os berços, 

Quando a opulência doura-lhes as bordas, 

Não te saudaram no sorrir primeiro, 

Clicia mimosa rebentada à sombra! 

Mas ah! se pompas e esplendor faltaram-ter 

Tiveste mais que os príncipes da terra 

Templos, altares de afeições sem termos, 

Mundos de sentimento e de magia, 

Cantos ditados pelo próprio Deus! 

Oh! quantos reis, que a humanidade aviltam 

E o génio esmagam dos soberbos tronos. 

Trocariam a púrpura romana 

Por um verso, uma nota, um som apenas 

Dos fecundos poemas que inspirastes! 

Que belos sonhos! que ilusões benditas 
Do cantor infeliz lançaste à vida, 
Arco-iris de amor! luz da aliança. 
Calma e fulgente em meio da tormenta! 
Do exílio escuro a cítara chorosa 
Surgiu de novo e às virações errantes 
Lançou dilúvios de harmonia. O gozo 
Ao pranto sucedeu; as férreas horas 
Em desejos alados se mudaram... 
Noites fugiam, madrugadas vinham. 
Mas sepultado num prazer profundo. 
Não te deixava o berço descuidoso, 
Nem de teu rosto meu olhar tirava 
Nem de outros sonhos que dos teus vivia! 



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— 383 — 

Como eras lindo I Nas rosadas faces 

Tinhas ainda o tépido vestígio 

Dos beijos divinais 1 Nos olhos langues 

Brilhava o brando raio, que acendera 

A bênção do Senhor, quando o deixaste I 

Sobre o teu corpo a chusma dos anjinhos, 

Filhos do éter e da luz, voavam, 

Riam-se alegres das caçoilas níveas 

Celeste aroma te vertendo ao corpo! 

Eu dizia comigo: — Teu destino 

Será mais belo que o cantar das fadas 

Que dansam no arrebol, mais triunfante 

Que o sol nascente, derribando ao nada 

Muralhas de negrume! Irás tão alto 

Como o pássaro-rei do Novo Mundo! 

Ah ! doudo sonho ! . . . Uma estação passou-se, 

E tantas glórias tão risonhos planos 

Desfizeram-se em pó! O génio escuro 

Abrasou com seu facho ensanguentado 

Meus soberbos castelos. A desgraça 

Sentou-se em meu solar, e a soberana 

Dos sinistros impérios de além-mundo 

Com seu dedo real selou-te a fronte! 

Inda te vejo pelas noites minhas, 

Em meus dias sem luz vejo-te ainda, 

Creio-te vivo, e morta te pranteio ! . . . 

Ouço o tanger monótono dos sinos, 

E cada vibração contar parece 

As ilusões que murcham-se contigo! 

Escuto em meio de confusas vozes, 

Cheias de frases pueris, estultas, 

O linho mortuário que retalham 

Para envolver teu corpo! Vejo esparsas 

Saudades e perpétuas, sinto o aroma 

Do incenso das igrejas, ouço os cantos 

Dos ministros de Deus, que me repetem 

Que não és mais da terra!... E choro embalde f 

Mas não! Tu dormes no infinito seio 
Do Criador dos seres! Tu me falas 
Na voz dos ventos, no chorar das aves, 



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— 384 — 

Talvez das ondas no respiro flóbil! 
Tu me contemplas lá do céu, quem sabe? 
No vulto solitário de uma estrela... 
E são teus raios que meu estro aquecem! 
Pois bem! Mostra-me as voltas do caminhol 
Brilha e fulgura no azulado manto, 
Mas não te arrojes, lágrima da noite, 
Nas ondas nebulosas do ocidente! 
Brilha e fulgura! Quando a morte fria 
Sobre mim sacudir o pó das asas, 
Escada de .Taco serão teus raios 
Por onde asinha subirá minh'alma. 

Cantos e Fantasias — Obras completas — 
Garnier. 



MACHADO DE ASSIZ 

{Bio-bibliografia à pág, 24) 



83. Â morte de G-onçalves Dias 

"Morto, é morto o cantor dos meus guerreiros! 

Virgens da mata, suspirai comigo! 

A grande água o levou como invejosa. 

Nenhum pé trilhará seu derradeiro 

Fúnebre leito: êle repousa eterno 

Em sitia onde nem olhos de valentes. 

Nem mãos de virgem poderão tocar-lhe 

Os frios restos. Sabiá da praia 

De longe o chamará saudoso e meigo, 

Sem que êle venha-lhe repetir-lhe o canto. 

"Morto, é morto o cantor dos meus guerreiros! 

Virgens da mata, suspirai comigo! 

Ele houvera do Ibaque o dom supremo 
De modular nas vozes a ternura, 
A cólera, o valor, tristeza e mágoa» 



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- 385 — 

E repetir aos namorados ecos 

Quanto vive e reluz no pensamento. 

Sobre a margem das águas escondidas, 

Virgem nenhuma suspirou mais terna. 

Nem mais valida a voz ergueu na taba, 

Suas nobres ações cantando aos ventos 

O guerreiro tamoio. Doce e forte, 

Brotava-lhe do peito a alma divina. 

"Morto, é morto o cantor dos meus guerreiros I 

Virgens da mata, suspirai comigo I 

"Coema, a doce amada de I ta juba, 

"Coema não morreu; a folha agreste 

Pode em armas ornar-lhe a sepultura, 

E triste o vento suspirar-lhe em torno; 

Ela perdura, a virgem dos Timbiras, 

Ela vive entre nós. Airosa e linda. 

Sua nobre figura adorna as festas 

E enflora os sonhos dos valentes. Ele, 

O famoso cantor quebrou da morte 

O eterno jugo; e a filha da floresta 

Há-de a história guardar das velhas tabas 

Inda depois das últimas ruínas. 

"Morto, é morto o cantor dos meus guerreiros r 

Virgens da mata, suspirai comigo! 

"O piaga, que foge a estranhos olhos, 

E vive e morre na floresta escura. 

Repita o nome do cantor; nas águas 

Que o rio leva ao mar, mande-lhe ao menos 

Uma sentida lágrima, arrancada 

Do coração que êle tocara autrora, 

Quando o ouviu palpitar sereno e puro, 

E na voz celebrou de eternos carmes. 

"Morto, é morto o cantor dos meus guerreiros! 

Virgens da mata, suspirai comigo! 

Americanas — Poesias completas — H. Gar- 
nier, 1901. 



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T. ODES " POESIA PiTRlDTICi 



J. BONIFÁCIO DE ANDRADA E SILVA 

(Amérioo Elísio) 

{Bio-bibliografia à pág. 179) 



84. Ode aos Baianos 

Altiva musa, ó tu, que nunca incenso 
Queimaste em nobre altar ao despotismo; 
Nem insanos encómios proferiste 

De cruéis demagogos; 
Ambição de poder, orgulho e fausto, 
Que os servis amam tanto, nunca, ó musa, 
Acenderam teu estro; a só virtude 

Soube inspirar louvores. 

Na abóbada do templo da memória 
Nunca comprados cantos retumbaram; 
Ah! vem, ó musa! vem! na lira de ouro 

Não cantarei horrores. 
Arbitrária fortuna! desprezível 
Mais que essas almas vis que a ti se humilham 
Prosterne-se a teus pés o Brasil todo; 

Eu nem curvo o joelho. 

Beijem o pé que esmaga, a mão que açouta 
Escravos nados, sem saber, sem brio; 
Que o bárbaro Tapuia, deslumbrado, 
O deus do mal adora. 



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— 388 — 

Não! reduzir-me a pó, roubar-me tudo, 
Porém nunca aviltar-me, pôde o fado; 
Quem a morte não teme, nada teme; 
Eu nisto só confio. 

Inchado de poder; de orgulho e sanha, 
Treme o vizir se o grã-senhor carrega, 
Porque mal digeriu, sobr'olho iroso, 

Ou mfil dormiu a sesta. 
Embora nos degraus de excelso trono 
Rasteje a lesma, para ver se abate 
A virtude, que odeia — a mim me alenta 

Do que valho a certeza. 

E vós também, Baianos, desprezastes 
Ameaças, carinhos — desfizestes 
As cabalas, que pérfidos urdiram 

Inda no meu desterro. 
Duas vezes, Baianos, me escolhestes 
Para a voz levantar a pró da pátria, 
Na essemblóia geral; mas duas vezes 

Foram baldados votos. 

Porém, enquanto me animar o peito 
Este sopro de vida, que ainda dura, 
O nome da Baía, agradecido, 
Repetirei com júbilo. 
Amei a liberdade e a independência 
Da doce cara pátria, a quem o Luso 
Oprimia sem dó, com riso e mofa: 
— Eis o meu crime todo! 

Cingida a fronte de sanguentos louros. 
Horror jamais inspirará meu nome; 
Nunca a viúva há-de pedir-me o esposo. 

Nem seu pai a criança. 
Nunca aspirei a flagelar humanos; 
Meu nome acabe, para sempre acabe 
Si para libertar do eterno olvido 

Forem precisos crimes. 



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— 389 — 

Morrerei no desterro, em terra estranha, 
Que no Brasil só vis escravos medram; 
Para mim o Brasil não é mais pátria, 

Pois faltou a justioa. 
Vales e serras, altas matas, rios, 
Nunca mais os verei! Sonhei outrora 
Poderia entre vós morrer contente; 

Mas não! monstros o vedam. 

Não verei mais a viração suave 
Parar o aéreo vôo, e de mil f liares 
Roubar aromas, e brincar travessa 

Go'o trémulo raminho. 
O' país sem igual, país mimoso! 
Se habitassem em ti sabedoria, 
Justiça, altivo brio, que enobrecem 

Dos homens a existência... 

De estranha emulação aceso o peito, 
Lá me ia formando a fantasia 
Projetos mil para vencer mil ócios, 

Para criar prodígios! 
Jardins, vergéis, umbrosas alamedas, 
Frescas grutas então, piscosos lagos 
E pingues campos, sempre verdes prados 

Em novo Éden fariam. 

Doces visões, fugi! Ferinas almas 

Querem que em França um desterrado morra: 

Já vejo o génio da certeira morte 

' Ir afiando a fouce. 
Galicana donzela, lacrimosa, 
Trajando roupas lutuosas, longas, 
Do meu pobre sepulcro a tosca lousa 
Só cobrirá de flores. 

Que o Brasil inclemente ingrato ou fraco. 
Às minhas cinzas um buraco nega: 
Talvez tempo virá que inda pranteie 
Por mim com dôr pungente. 

Antologia Brasileira 14 

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— 390 — 

Exulta, velha Europa: O novo império. 
Obra prima do céu, por fado ímpio 
Não será mais o teu rival altivo 
Em comércio e marinha. 

Aquele que gigante inda no berço 

Se mostrava às nações, no berço mesmo 

É já cadáver de cruéis harpias, 

De malfazejas fúrias. 
Como, oh! Deus! que portento! A Urania Vénus 
Ante mim se apresenta? Riso meigo 
Banha-lhe a linda boca que escurece 

Fino coral nas cores. 

"Eu consultei os fados que não mentem 
(Assim me fala piedosa a deusa) 
Das trevas surgirá sereno dia 

Para ti, para a pátria. 
O constante varão que ama a virtude, 
Com os berros da borrasca não se assusta, 
Nem, como folha de álamo fremente. 

Treme à face dos males. 

Escapaste a cachopos mil ocultos 

Em que há de naufragar, como até agora. 

Tanto áulico perverso. Em França, amigo, 

Foi teu desterro um porto. 
Os teus baianos, nobres e briosos. 
Gratos serão a quem lhes deu socorro 
Contra o bárbaro luso, e a liberdade 

Meteu no solo escravo. 

Há de, enfim, essa gente generosa 
As trevas dissipar, salvar o império; 
Por eles liberdade, paz, justiça, 

Serão nervos do Estado. 
Qual a palmeira que domina ufana 
Os altos topos da floresta espessa, 
Tal bem presto há de ser no Mundo novo 

O Brasil bem fadado. 



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- 391 — 

Em vão de paixões vis cruzados ramos 
Tentarão impedir do sol os raios: 
A luz vai penetrando a copa opaca; 

O chão brotará flores". 
Calou-se, então — voou. E as soltas tranças 
Em torno espalham mil sabeus perfumes, 
E os zéfiros, as asas adejando, 

Vasam dos ares rosas. 



SOUSA CALDAS (PADRE) 

RIO DE JANEIRO -r- 24-XI.1762 
t RIO DE JANEIRO — 12.ni.l814 

O Padre António Pereira de Sousa Caldas, multo criança, 
foi mandado para Portugal, onde matriculou-se na Universidade 
de Coimbra. Por causa da sua célebre óde "Ao homem selvagem" 
foi acusado e preso por ordem inquisitorial. Formado em direito, 
fez uma viagem à França; de volta, não quis seguir a magis- 
tratura e foi ordenar-se em Roma. 

De 1801 a 1805 viveu no Rio de Janeiro, para onde tornou, 
então de vez, com a família real portuguesa, por ocasião da 
invasão francesa. ^ 

Sousa Caldas é o mais notável poeta sacro da língua por- 
tuguesa. Faleceu a 12 de Março de 1814. 

Bibliografia — Ohras poéticas, constando da tradução dos 
Salmos de Davi e das Poesias sacras e profanas; Poesias sacras. 
Cartas de Abdir a Irzerumo, imitadas do Montesquieu. 



85. Ode sacra 

O' Sinai! ó montanha assinalada 

Dos pés do Onipotentel 
Eu sinto ainda soar a voz sagrada, 
Que entre raios promulga a lei gravada, 

No espírito inocente 
Do homem justo. O' livro grande e santo! 
Tu me enches de assombro, horror e espanto. 

Um povo antigo atesta a integridade 

De tudo que em ti leio; 
Com vivo fogo, augusta majestade 
Me retratas do Eterno a potestade; 



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— 392 -« 

Do inundo firme esteio, 
único, providente e bom o aclamas, 
E em fervoroso amor minh'alma inflamas. 

Quem do comum naufrágio, 
Que o orbe inteiro em erros submergia, 
Este povo salvou, e do contágio 

Da cega idolatria? 
Quem no meio do inhóspito deserto 
Do imenso a mão lhe fez notfar de perto? 
E ainda temes, ó prezada lira. 

Levantar às estrelas 
O sublime mortal, que Deus inspira, 
Que de celeste força revestira, 

E mil virtudes belas? " 
O* Moisés I tua voz não me alucina: 
A voz que soltas — é a voz divina. 

Fervendo em santa ira abrasadora 

Os crimes repreende 
Do Hebreu ingrato, cuja fé traidora 
A luz quebranta, que tua alma adora: 

Seguro a vara estende; 
Eis vejo a natureza espavorida 
A teus pés humilhar a frente erguida. 

O povo, de que és guia, 
Mil vezes entre as brenhas estremece: 
Ao ver que a terra, o mar, a noite e o dia, 

Que tudo te obddece; 
Mensageiro fiel da Divindade 
Te reconhece, e afirma em toda a idade. 

Serás tu porventura, o prometido 

Medianeiro amável?... 
Ahl tu vens predizô-lo e em tom subido 
Entoas de Jacó o recebido 

O oráculo adorável 
Quem é, pois, esse augusto mensageiro, 
Que o pranto ha de enxugar ao mundo inteiro? 



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— 393 -~ 

GONÇALVES DE MAGALHÃES 

{Bio-bibliografia à páfl^. 289) 



86. Napoleão em Waterloo 

Eis aqui o lugar, onde eclipsou-se 

O meteord fatal às régias frontes I 

E nessa hora em que a glória se obumbrava. 

Além o sol em trevas se envolvia, 

Rubro estava o horizonte, e a terra rubra I 

Dois astros ao ocaso caminhavam; 

Tocado ao seu zénite haviam ambos; 

Ambos iguais no brilho, ambos na queda 

Tão grandes, como em horas de triunfo I 

Waterloo I. .. Waterloo I. . . Lição sublime 
Este nome revela à Humanidade: 
Um oceano de pó, de fogo e fumo 
Aqui varreu o exército invencível. 
Gomo a explosão outrora do Vesúvio 
Até seus tetos inundou Pompeia! 
O pastor que apascenta seu rebanho, 
O corpo que sanguíneo pasto busca, 
Sobre o leão de granito esvoaçando, 
O éco da floresta e o peregrino 
Que indagador visita estes lugares: 
Waterloo I... Waterloo I.. dizendo passam. 

Aqui morreram de Marengo os bravos I 
Entretanto esse herói de mil batalhas, 
Que o destino dos reis nas mãos continha. 
Esse herói que com a ponta de seu gládio 
No mapa das nações traçava as raias 
Entre seus marechais ordens ditava I 
O hálito inflamado de seu peito 
Sufocava as falanges inimigas, 
E a coragem nas suas acendia. 



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— 394 — 

Sim, aqui estava o gônio das vitórias 
Medindo o campo com seus olhos de água! 
O infernal retintim do embate de armas, 
Os trovões dos canhões que ribombavam, . 
O sibilo das balas que gemiam, 
O horror, a confusão, gritos, suspiros. 
Eram como uma orquestra a seus ouvidos I 
Nada o turbava. Abóbadas de balas, 
Pelo inimigo aos centos disparadas, 
A seus pés se curvaram respeitosas. 
Quais submissos leões, e, nem ousando 
Tocá-lo, ao seu ginete os pés lambiam ! . . . 

Oh! porque não venceu? — Fácil lhe fora! 

Foi destino ou traição? — A águia sublime 

Que devassava o céu, com o vôo altivo 

Desde as margens do Sena até ao Nilo, 

Assombrando as nações com as largas asas. 

Porque se nivelou aqui com os homens? 

Oh! porque não venceu? — O anjo da Glória 

O hino da vitória ouviu três vezes, 

E três vezes bradou: — "E' cedo ainda!*' 

A espada lhe gemia na bainha, 

E inquieto relinchava o audaz ginete 

Que soia escutar o horror da guerra, 

E o fumo respirar de mil bombardas; 

Na pugna os esquadrões se encarniçavam, 

Roncavam pelos ares os pelouros. 

Mil vermelhos fuzis se emaranhavam; 

Encruzadas espadas, e as baionetas, 

E as lanças faiscavam retinindo. 

Ele só, impassível, como a rocha. 

Qual de ferro fundido estátua equestre, 

Que invisível poder, mágico anima, 

Via seus batalhões cair feridos. 

Como muros de bronze, por cem raios; 

E no céu seu destino decifrava . . . 

Pela última vez com a espada em punho, 

Rutilante na pugna se arremessa; 

Seu braço é tempestade, a espada é raio! 

Mas invencível pião lhe toca o peito! 



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-- 395 — 

E' a mão do Senhor! barreira ingente: 

-— "Basta, guerreiro! Tua glória é minha; 

Tua força em mim está; tens completado 

Tua augusta missão! — E's homem. — Pára! 

Eram poucos, é certo; mas que importa? 

Que importa que Grouchy, surdo às trombetas, 

Surdo aos trovões da guerra, que bradavam: 

— "Grouchy! Grouchy! a nós eia! ligeiro I 

O teu imperador aqui te aguarda! 

Ah! não deixes teus bravos companheiros 

Contra a enchente lutar, que mal vencida 

Uma após outra em turbilhões se eleva. 

Como vagas do oceano encapelado, 

Que furibundas se alçam, lutam, batem 

Contra o penedo, e como em pó recuam, 

E de novo no pleito se arremessam''. 

Eram poucos, é certo; e contra os poucos 

Armadas as nações aqui pugnavam! 

Mas esses poucos vencedores foram 

Em lena, em Montmirail, em Austerlitz. 

Antes eles o Tabor, e os Alpes, curvos, 

Viram passar as águias vencedoras! 

E o Reno, e o Manzanar e o Adige, e o Eufrates 

Embalde à sua marcha se opuseram. 

Eram os poucos que, jamais vencidos, 

Os seus dias contavam por batalhas, 

E do cãs se cobriram nos combates; 

O sol do Egito ardente assoberbaram, 

A peste em Jafa, a sede nos desertos, 

A fome e os gelos dos Moscóvios campos - 

Poucos, que se não rendem, mas que morrem I 

Oh! que para vencer bastantes eram! 

A terra em vão contra eles pleiteara, 

Si Deus, que os via, não dissesse — "Ba5:ta"l 

Dia fatal de opróbrio aos vencedores' 

Vergonha eterna à geração que insulta 

O leão que magnânimo se entrega! 

Ei-lo sentado em cima do rochedo, 
Ouvindo o éco fúnebre das ondas. 
Que murmuram seu cântico de morte; 



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— 396 — 

Braços cruzados sobre o largo peito, 
Qual náufrago escapado da tormenta, 
Que as vagas sobre o escolho rejeitaram! 
Ou qual marmórea estátua sobre um túmulo. 
Que grande ideia ocupa, e turbilhona, 
Naquela alma tão grande como o mundo? 

— Ele vô esses reis, que levantara 
Da linha de seus bravos, o traírem. 
Ao longe mil pigmeus rivais divisa, 
Que mutilam sua obra gigantesca; 
Gomo do Macedónio outrora o Império 
Entre si repartiram vis escravos. 
Então um riso d'ira e de despeito 
Lhe salpica o semblante de piedade. 

O grito inda inocente de seu filho 
Sóa em seu coração, e de seus olhos 
A lágrima primeira se deslisa; 
E de tantas coroas que ajuntara, 
Para dotar seu filho, só lhes resta 
Esse nome, que o mundo inteiro sabe! 
Ah! tudo ôle perdeu! A esposa o filho. 
A pátria, o mundo e seus fieis soldados. 
Mas firme era sua alma como o mármore 
Onde o raio batia e recuava! 

Jamais, jamais mortal subiu tão alto! 
Ele foi o primeiro sobre a terra: 
Só, êle brilha sobranceiro a tudo, 
Gomo sobre a coluna de Vendôme 
Sua estátua de bronze ao céu se eleva. 

— Acima dele, Deus — Deus tão somente í 
Da liberdade foi o mensageiro. 

Sua espada, cometa dos tiranos. 
Foi o sol, que guiou a humanidade. 
Nós um bem lhe devemos, que gozamos; 
E a geração futura, agradecida, 
NAPOLEÃO — dirá, cheia de assombro. 

iBuspiros poéticos e Saudades) — Gamier. 



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397 — 



PEDRO LUIZ 

ESTADO DO BIO — 18-Xn.l889 
t ESTADO DO BIO -— 16-Vn.l884 

Pedro Luiz Soares de Sousa estudou no Colégio Freese, em 
Friburgo, formou-se em S. Paulo em 1860, advogou na Capital 
do Império e entrou logo a escrever naa folhas liberais. 

Pedro Luiz é um genuíno representante da gerac&o inte- 
lectual do romantismo no Brasil. Os seus versos, uns suave- 
mente líricos como os de Lamartine, outros animados de um 
ingente sopro épico como os de líugo, ainda esperam a sua pu- 
blicação em edição completa e definitiva. 

A sua província natal o elegeu duas vezes (1864 e 1878) 
deputado geral e no Ministério Saraiva (28 de Março de 1880) 
teve a pasta dos negócios estrangeiros; foi presidente da pro- 
víncia da Baia. 



87. Terribilis dea 

Quando ela apareceu no escuro do horizonte, 
Õ cabelo revolto. . . a palidez na fronte. . . 
Aos ventos sacudindo o rubro pavilhão, 
Resplandente de sol, de sangue fumegante, 
O raio iluminou a terra... nesse instante 
Fi-enética e viril ergueu-se uma nação! 

Quem era? De onde vinha aquela grande imagem, 

Que turbara do céu a límpida miragem, 

E de luto cobrira a senda do porvir? 

De què abismo saiu?... Do túmulo?... do inferno? 

Pode o anjo do mal desafiar o Eterno? 

Da fria sepultura o espectro ressurgir? 

Deixai que se levante a grande divindade I 

Seu templo é a terra e o mar; seu culto — a mortandade: 

Enche-lhe o peito largo o sopro das paixões... 

E' a mulher fantasma! uma visão do Dante... 

Dos campos da batalha a hórrida bacante, 

Que mergulha no sangue e ri das maldições! 



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— 398 — 

A deusa do sepulcro! A pálida rainha! 
A morte é a vida. Impávida caminha, 
Ora, grande, ora vil, nas trevas ou na luz; 
A corte que a rodeia é lúgubre coorte; 
Tem gala e traja luto: é o séquito da morte, 
A miséria que chora, a glória que seduz. 

Desde que o mal nasceu, nasceu aquele espectro; 
De raios coroou-se! Ao peso de seu cetro, 
A terra tem arfado em transes infernais!... 
Do mundo as gerações têm visto em toda idade, 
Sinistra, aparecer aquela divindade, 
Celebrando no sangue as grandes saturnais. 

No seu olhar de fogo há raios de loucura... 
Tem cantos de prazer! Tem risos de amargura! 
Muda sempre de céu, de rumo, de farol! 
Aqui — pede ao direito a voz forte e serena; 
Ali — ruge feroz, feroz como uma hiena... 
Assassina na treva ou mata à luz do sol ! . . . 

Levanta o gládio nú em nome da verdade, 

Acorda em fúria acesa à voz da liberdade . . . 

E no punho viril derrete-se o grilhão! 

Gomo é bela!... Depois... sem fé, sem heroísmo. 

Despedaça a justiça e atira com cinismo 

A virgem liberdade aos braços da opressão! 

E' uma deusa fatal! Quer sangue e atira flores! 
Abraça, prende, esmaga os seus adoradores, 
Embriaga-os de glória e os cerca de esplendor; 
E esses loucos, depois de feitos de gigantes, 
A túnica lhe beijam, ardentes, delirantes, 
E morrem a seus pés, na febre desse amor. 

Quando Atila — o monstro, o tigre-cavaleiro, 
Espumando a correr, calcava o mundo inteiro, 
A deusa o acompanhara, e ria-se ... a cruel I 
Tinha a face vermelha, ardia de coragem, 
Dava beijos de amor, na fronte do selvagem, 
Enterrando o aguilhão no flanco do corcel I 



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^ 399 — 

Era ela que em Roma erguia-se funesta, 
O ídolo do povo em sempiterna festa! 
O amor de Cipião, de César, de Pompeu I 
Vergava com seu braço o braço do destino, 
Prendeu nações e reis ao monte Palatino 
E em doida bacanal depois desfaleceu. 

Foi de Carlos, o grande a excelsa companheira! 
Deu-lhe o trono de bronze, a espada aventureira, 
E o globo imperial... e glórias... e troféus; 
Quando, no escuro vai, Rolando, moribundo 
Embocava a trombeta a despertar o mundo, 
Erguia o colo a deusa além dos Pirinéus I... 

Seguiu Napoleão da França até o Egito. 
Nos mares, no deserto, e em busca do infinito, 
Das terras do Evangelho às terras do Cora... 
Dos delírios da Europa aos sonhos do Oriento. 
Teve medo, afinal, daquela febre ardente... 
Lá no meio do mar prendeu esse Titã. 

Ela estava a sorrir, serena e triunfante. 
Aos pés de Farragut, o intrépido almirante, 
Lá no tope do mastro, enquanto o monitor 
Em doidas convulsões, das túmidas entranhas 
Vomitava metralha a derribar montanhas 
E do mundo arrancava um grito de terror. 

Ela estava também — espectro pavoroso — 
Do "Amazonas" a bordo, ao lado de Barroso, 
De pólvora cercada em pé, sobre o convez . . . 
Quando, à voz do valente, o monstro foi bufando, 
Calados os canhões, navios esmagando, 
A deusa varonil de amor caíu-lhe aos pés!... 

Salve, da guerra deusa, arcanjo da batalha! 
Quo voas no vapor, que ruges na metralha, 
Que cantas do combate aos infernais clarões ! . . . 
Quando arrancas do bronze os cânticos malditos, 
O céu é fogo e aço; o ar — pólvora e gritos. . . 
E ferve e corre o sangue em quentes borbotões! 



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— 400 — 

Salve, tu! que nos deste o sonho da vingança, 
O gládio da justiça, o raio da esperança, 
E da glória cruenta o mágico esplendor 1 
E' para te saudar que brame a. artilharia 
E que repete ao longe a voz da ventania 
Das trombetas da morte o hórrido clangorl 

Quando ela apareceu no escuro do horizonte 
O cabelo revolto. . . a palidez na fronte. . . 
Aos ventos sacudindo o rubro pavilhão, 
Resplandente de sol, de sangue fumegante, 
O raio iluminou a terra... nesse instante 
Frenética e viril ergueu-se uma nação I 



TOBIAS BARRETO 

(BiO'bibliografia à pág. 273) 



88. Partida dos voluntários 

São eles que partem... Nos olhos vermelhos 
Que acende a coragem, que inflama o valor, 
São raios do Norte. Lopes, de joelhos I 
'Stão quentes ainda das mãos do Senhor. 

A pátria chamara-os. O espectro da morte 
Lançou-se adiante: puseram-se a rir... 
Chamara-os de novo: pancada mais forte 
Soou-lhes no peito: quiseram partir... 

Sentiram-se presos. De um ímpeto os laços 
Rebentam-se todos dos seus corações; 
Infresses, afetos, caprichos, abraços. 
Cadeias de palha não prendem leões I 



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-. 401 — 

BERNARDO GUIMARÃES 

{BiO'bibliografia à pág, 19) 



89. O Ipíranga e o Sete de Setembro 

A JOSÉ BONIFÁCIO 



Salve, Ipiranga, glorioso ninho, 

De onde expandindo os voos altaneiros, 

No espaço por insólito caminho, 

O génio tutelar dos brasileiros 

De cativeiro atroz, rude e mesquinho, 

Quebrou sem custo os elos derradeiros. 

Salve, Ipiranga!... hoje a posteridade 

Já te sagrou — Altar da Liberdade l 

II 

Salve, imortal colina sacrossanta! 
Três vezes salve, encosta vicejante, 
Tu, que ouviste da válida garganta 
Irromper o bramido de gigante, 
Que contra seus tiranos se levanta! 
Em ti ergueu-se eterna e rutilante 
Da independência a aurora prasenteira 
A se expandir na terra brasileira. 

III 

Erga-se em ti soberbo monumento, 
Em que se exalce, nacional Paládio, 
Da liberdade o vulto em brônzeo assento, 
Não empunhando sanguinoso gládio; 
Mas sim com a palma, o símbolo incruento, 
Nos apontando o glorioso estádio, 
Onde ela veio ao tropical gigante 
Abrir as sendas do porvir brilhante. 



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— 402 — 
IV 

Desse tranquilo berço, a Liberdade 
Surgiu sorrindo à Pátria Brasileira, . 
Do vasto solo em toda a imensidade 
Se propagou a nova lisongeira, 
Gomo luz de celeste claridade. 
Que num momento invade a terra inteira, 
E, quasi por encanto, um novo império 
Se ergue de Colombo no hemisfério. 



Sim, foi ali, nos visos de um outeiro, 
A cuja falda plácido (Jeslisa, 
Lambendo a areia, plácido ribeiro, 
Por onde brinca sussurrando a brisa 
A farfalhar nos leques do coqueiro. 
Em campos que de flores se matiza, 
À luz de um sol que purpureia os montes. 
Inundando serenos horizontes. 

VI 

Foi lá, no seio de um recesso ameno. 
Em face da festiva natureza, 
E não da guerra ao carrancudo aceno. 
Ao troar dos canhões em luta acesa, 
Que um herói, com altivo olhar sereno 
Afrontando dos fados a incerteza, 
Aos ecos do Brasil, de Sul a Norte, 
Soltou o brado — Independência ou Morte I 

VII 

E o éco, entre clamores de alegria, 
Vai retumbando do Oiapoc ao Prata. 
Desde os topes da erguida serrania. 
Té às profundas solidões da mata; 
E como por si mesmo em um só dia. 
Da escravidão a algema se desata, 
E sem luta, sem dôr, sem comoção, 
Quebra-se o jugo — e surge uma nação í 



..Coo,e ^ 



^ 403 — 



MAGALHÃES DE AZEREDO 

{BiO'bibliografia à pág. 327) 



90. A Carlos Ofomes 

(1896) 

Não há-de a terra muda, que abre o seio 
Ao forte e ao débil com amor igual, 
E o justo e o criminoso,, sem receio, 
Une no mesmo amplexo maternal; 

Não há-de a terra, nes$e ingrato olvido. 
Em que os vermes dão pasto à eterna fome, 
Devorar, com teus restos de vencido, 
Teu nobre esforço e teu augusto nomel 

Não há-de vir, por certo, a turba louca, 
Que na orgia conspurca a honra e a lei, 
Saudar com grita embriagada e rouca 
Teu funeral, mais belo que o de um reil 

Não virão ajuntar-se ao teu cortejo 
As megeras políticas, desnudas. 
Bramindo, uivando; nem com torpe beijo 
Te hão-de a fronte manchar lábios de Judas, 

Não te erguerão o féretro em seus braços 
Esses que, olhando o génio com desdém 
Fazem da pátria um circo de palhaços, 
E mofam da virtude que não têml 

Mas vai contigo o verdadeiro Povo, 
Que sofre sem perder a fé sincera, 
E em seu fecundo núcleo sempre novo 
Santos, heróis, artistas, sábios gera. 



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— 404 — 

Vão contigo, no préstito esplendente, 
Aclamandò-te, Espírito gentil 
Todos os que amam, religiosamente, 
Mesmo de longe, a glória do Brasill 

Velho Mestre de juba leonina 
Rude cenho e pupilas abrasadas, 
Onde brilhava o, inspiração divina, 
Como o sol brilha no aço das espadas; 

Durma o teu corpo nas riBgiões sombrias, 
Onde não chega nunca a humana voz; 
Tua alma, criadora de harmonias, 
Há de viver perpetuamente em nósl 

Ela irá palpitar, livre e sonora, 
Na virgem natureza americana, 
Árias compondo, pelo espaço em fora 
No monte, no sertão e na savana! 

Ressoará sob os leques da palmeira, 
Nos queixumes da rola e do sabiá; 
E de envolta com o pranto da cachoeira 
Pela boca da Iara cantará. 

Voejando com a aíagem fugitiva, 
Que da ninféia o cálice desata, 
Irá chamar a raça primitiva 
Nos recessos balsâmicos da mata. 

t 
E ainda, do porvir nos dúbios trilhos, 
Quando de nós já nada existir mais. 
Filhos de nossos filhos e seus filhos 
Repetirão teus hinos imortais! 

Horas Sagradas — H. Garnier — 1903. 



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TI. POESIA DESCRITITi " NAISÍçOES 



LUIZ DELFINO 

SANTA CATARINA — 25-IX-1884 
t KIO DE JANEIRO -* 31-1-1910 

O Dr. Delfino dos Santos, nasceu a 25 de Agosto de 1834, 
formou-se em medicina pela Faculdade do Rio de Janeiro e teve 
uma bela reputação de clínico notável. O seu nomo, porém, se 
imortalizará como poeta que foi dos maiores que lemos tido: 
primou como sonetista. Seus versos, esparsos por jornais e 
revistas, reunidos, dariam para muitos volumes, mas não deixou 
publicado nem um só livro. 

Luiz Delfino representou na Constituinte Republicana, como 
senador, o seu estado natal. 

O grande poeta colaborou na "Vida Moderna", "A Semana", 
"Jornal das Famílias", '* Revista Popular", "A Estação", etc, 
e em muitas das folhas diárias da capital da República. 



91. A Cidade da Luz 

A ESCOLA 

Vós, que buscais a senda da esperança, 

Entrai: aqui há mundos luminosos 

Num céu, que a mão, por mais pequena, alcança. 

A alma aqui se refaz de etéreos gozos; 

Vindes para o país da primavera. 

Vós, que deixais os mundos tenebrosos. 



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— 406 — 

Tanta luz aqui dentro vos espera, 

Que saireis estrelas redivivas, 

Gomo as que brilham na azulada esfera. 

Almas das treví^s lúgubres cativas» 
Abri as vossas asas rutilantes, 
Entrai, bando de pombas fugitivas. 

Nas curvas destes pórticos gigantes 
Haveis de lêr uma inscrição que alente 
Os vossos voos inda vacilantes. 

É aqui o país do amor ardente: 

Quem entra leva um peso aos pés atado, 

Como mergulhador do mar do Oriente, 

Que s(5be à tona leve e festejado 

E vem de tantas pérolas coberto. 

Que nem se lembra do labor passado. 

Para encravar um Éden no deserto, 
Fazer um sol de um monte de granito, 
E para ver melhor o céu de perto. 

Encostar uma escada no infinito, 
Entrar pela estelífera coragem, 
Ser razão e fanal, verdade e mito, 

E armado de tenaz, feroz coragem, 
Arrazando os enigmas da vida, 
Cavar nas trevas lúcida passagem... 

A isto esta cidade vos convida: 

Entrai: por mais que a noite em vós se note, 

Tereis um astro à fronte na saida. 

Da cidade moderna é luz o tnote 
Que na porta da entrada arde e flameja; 
Entrai: a escola é catedral, igreja; 
Hóstia, a ciência; o mestre, sacerdote. 



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407 



BRUNO SEABRA 



PARA — 6-X.1837 
t BAIA — 8-IV.1876 

Bruno Henrique de Almeida Seabra foi poeta lírico, roman- 
cista, comediógrafo e folhetinista. 

Cultivou em prosa e verso o humorismo e gostava de es- 
crever sobre assuntos pátrios. Foi exímio pintor de cenas, cos- 
tumes e tipos nacionais. 

Bibliografia — Um fenómeno do tempo presente, poemeto, 
O Dr, Pancrácio, romance; Paulo, romance, Memórias de um 
pobre dia1)o. Flores e Frutos, etc. 



92. Canto extremo de um cego 



Eu tinha um único amigo; 
Tinha só um e não mais; 
Vivia sempre comigo 
No exílio da desventura; 
Por mais feliz criatura 
Não me deixava jamais. 

Na minha infância primeira, 
Meus débeis passos guiou; 
Na pobreza, na cegueira, 
Meu condão amenizava; 
E quando a esmola faltava, 
Ele nunca me faltou. 

Era o meu único afeto. 
Na cegueira o meu bordão; 
Debaixo do humilde teto, 
Quando a febre me prostrava, 
Quem dos meus males cuidava 
Era só êle — o meu cão. 



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^ 408 — 

Todo o dia de ontem chamei-o, 
^ão latiu, não respondeu! 
Já, como dantes, não veio! 
Quem sabe si anda perdido, 
Ou de algum ferro transido. 
Quem sabe si não morreu?. . . 

Ou quem sabe si a velhice 
Do cego o amedrontou? 
Talvez, o ingrato... o Que disse? 
Chamei-te de ingrato, amigo! 
Perdão! não sei o que digo! 
Quem nem já sei o que sou! 

Ingrato — não! Tu não tinhas 
No peito envolto de cão, 
Uma irmã dessas mesquinhas 
Afeições vis dos traidores. 
Que vão sorrir aos senhores, 
Nos régios palácios, não! 

Ai de mim! Tão desgraçado. 
Que nunca mais te hei-de teri 
Quem hoje ao cego acurvado 
Ao peso de tantos anos 
Quem virá, dentre os humanos, 
Piedosa mão lhe estender?! 

Quem lhe há-de guiar os passos, 
Mendingando o escasso páo? 
Ou quem lhe há-de abrir os braços. 
Quando, à míngua de alimento. 
Ficar na rua, ao relento? 
Ninguém, ninguém... nem um oãol 

Quem me vir o meu "Pardinho", 
Por piedade, pelos céus! 
Tenha dó do coitadinho, 
Que talvez definhe à fome, 
E dô-lhe do pão que come, 
Uma migalha, por Deusl 



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— 409 — 

Mas, si o topar moribundo. 
Pelo amor que a mãe lhe tem! 
Diga-lhe que neste mundo, 
O cego que êle guiou, 
Quando o seu cão lhe faltou, 
Morreu de fome também I 

Flores e Frutos. 



LUIZ GUIMARÃES 

{Bio-bibliografia à pag. 141) 



93. No deserto 

Quando a Virgem, fugindo à lança dos sicários 
Unia ao casto seio o Redentor Bendito, 
A noite os surpreendeu nos plainos solitários 
Onde Menon eleva o tronco de granito. 

Nem um astro siquer da cúpula divina 
No profundo docel, nem um vislumbre apenas; 
Era a hora em que o vento arqueja entre, a ruína, 
Aos gritos do chacal e aos uivos das hienas. 

A José, cujos pés em chagas latejavam 
Sobre a areia cruel, disse a Virgem Maria: 
"Repousemos aqui". — Seus braços vacilavam — 
"Seguiremos depois, quando romper o dia". 

Tateando na sombra espessa e lutuosa 
José o roto manto ao longo desdobrava 
E a Virgem Mãe de leve, e pálida e medrosa, 
Sobre o manto deitou Jesus que ressonava. 

"Dorme", disse aò esposo a Virgem brandamente: 
"Por nós o doce Pai atento está velando". 
Ele triste inclinou a fronte humildemente. 
Ela aos pés de Jesus adormeceu chorando. 



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^ 410 — 

E sonhou . , . O futuro horrífico e sangrento 
Do seu. loiro Senhor, do seu divino filho, 
Drama de pranto e luz — veio nesse momento 
Encher-lhe o coração de um pavoroso brilho, 

Viu-o crescer tranquilo e puro, abençoando 
As negras multidões, torvas de saciedade. 
Ouviu-lhe a grande voz, como um clarim lançando 
Ao mundo espavorido os sons da Liberdade. 

Viu-o, por entre o povo, inhóspito e implavável, 
Forte como os heróis e — débil como as flores — 
Colhendo em seu regaço, eternamente afável, 
As crianças gentis e os rudes pescadores. 

Viu-o sereno e nobre e firme, interpretando 
Os mistérios da vida efémera e terrena: 
E a multidão pasmada o ia acompanhando, 
E sagrava-o de amor o olhar de Madalena . . . 

Viu-o chorar então as lágrimas primeiras, 
Ele — o augusto ideal do Bem e da Ternura — 
No sombrio jardim das triste oliveiras. 
Bebendo gota a gota, o cálix de amargura. 

Yiu-o depois sorrir ao beijo tenebroso 
Que Judas lhe imprimiu na imaculada fronte. 
Gomo sorri o oceano ao lenho aventuroso, 
E como acolhe o raio o alcantilado monte. 

Por fim o viu convulso e esquálido arrastando 
O próprio cadafalso e lúgubre sudário... 
Viu-o amarrado à cruz, — viu-o morrer penando, 
Entre infames ladrões, no cimo do Calvário. 

E Maria, a gemer, extenuada, exangue, 
Despertou num soluço, e olhou: Jesus dormia: 
A aurora lhe formava um ninho côr de sangue, 
E o divino Cordeiro, extático, sorria . . . 

(Sonetos e Rimas), 1886. 



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— 411 — 

FAGUNDES VARELA 

{Bio-bibliografia à pág. 379) 



94. Âvei Maria! 

A noite desce, lentas e tristes 
Cobrem as sombras a serrania. 
Calam-se as aves, choram os ventos, 
Dizem os génios: Ave! Maria! 

Na torre estreita de pobre templo 
Ressoa o sino da freguesia, 
Abrem-se as flores, Vésper desponta 
Cantam os anjos: — Ave! Maria! 

No fosco albergue de seus maiores, 
Onde só reinam paz e alegria, 
Entre os filhinhos o bom colono 
Repete as vozes: — Ave! Maria! 

E, longe, longe, na velha estrada, 
Pára e saudades à pátria envia 
Romeiro exhausto que o céu contempla, 
E fala aos ermos: — Ave! Maria! 

Incerto nauta por feios mares, 
Onde se estende névoa sombria, 
Se encosta ao mastro, descobre a fronte. 
Reza baixinho: — Ave! Maria! 

Nas soledades, sem pão nem água. 
Sem pouso e tenda, sem luz nem guia. 
Triste mendigo, que as praças busca, 
Curva-se e clama: — Ave! Maria! 

Só nas alcovas, nas salas dúbias 
Nas longas mesas de longa orgia 
Não diz 9 ímpio, não diz o avaro, 
Não diz o ingrato: — Ave! Maria I 



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^ 412 — 

Avel Maria I — No céu, na terral 
Luz da aliançai Doce harmonia! 
Hora divina! Sulplime estância! 
Bendita sejal Ave! Maria! 



96. vizir 

Não derribes meus cedros! murmurava 
O génio da floresta aparecendo 
Adiante de um vizir: senão eu juro 
Punir-te rijamente! E no entanto 
O vizir derrubou a santa selva; 
Alguns anos depois foi condenado 
Ao cutelo do algoz. Quando encostava 
A cabeça febril no duro cepo, 
Hecuou aterrado: — Eternos deuses!? 
Este cepo é de cedro! E sobre a terra 
A cabeça rolou banhada èm sangue. 



TEÓFILO DIAS 

MARANHÃO — CAXIAS — 8-XI-1854 
t S. PAULO — 29-in.l889 

Teófilo Dias de Mesquita, sobrinho do cantor dos Timbiras, 
recebeu o grau de bacharel pela E^aculdade de Direito de S. 
Paulo em 1881. Na capital paulista exerceu a magrlstério, tendo 
lecionado português na Escola Normal. Foi deputado provin- 
cial. 

"Salientou-se como orador, polemista, professor* advogado, 
funcionôTio público (escreveu Afonso Celso), mas. s6 se des- 
tacou realmente como poeta". 

Teófilo Dias é um parnasiano: mas um* parnasiano, observa 
um crítico, que nâo sacrifica a emoção k forma. 

Bibliografia — Flores e amores, poesias, ZAra dos verdes 
anos. Cantos tropicais. Fanfarras, poesias, A comédia dos deuses, 
poema . 

Teófilo Dias escreveu em diversas folhas políticas e re- 
vistas literárias. 



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— 413 — 



%. Procèlárias 

Rasgando a flor de um mar sem rumor, largo e plano 
Um sulco de ouro e luz — teso côncavo pano, 
Ao galerno fugaz, que as velas arredonda, 
O navio veloz resvala de onda em onda. 

E' transparente o céu; liso o mar; calmo o espaço; 
E do vento e da vaga ao ritmo, ao compasso 
Que faz rolar sobre um — outro bordo, a pupila 
Do gajeiro perscruta a vastidão tranquila, 
Gravado no horizonte o olhar profundo e agudo. 
Tudo é límpido, azul; é paz, bonança tudo. 

Mais eis que de improviso umas aves estranhas, 
Que parecem o vôo arrancar das entranhas 
Do horizonte longínquo, ainda há pouco vazio, 
Em nuvens sobrevêm, demandando o navio. 
Mosqueadas de negro, audazes, agoureiras, 
Contornam o massame e as vergas altaneiras, 
Sinistras pipilando entre as velas redondas, 
Rasgando a superfície intérmina das ondas. 

São elas que lá vêm, as "procèlárias"! — Logo, 
Fosforecendo, o mar vibra súlfur e fogo; 
Torna-se escuro o ar, negro o céu; e a tormenta, 
De súbito caindo, horríssona rebenta; 
Pesa no espaço a treva e esfusiam os ventos; 
Cortam a escuridão relâmpagos sangrentos; 
A voz do temporal desfeito sobrepuja 
A grita de terror que levanta a maruja 
Ao tenebroso céu transida de agonia. 

Mas, renascendo a calma e repontando o dia. 
Na deserta amplidão das vagas solitárias. 
Té onde alcança o olhar, já não há "procèlárias", 
Assim vêm, assim vão as bravas avezinhas. 
Afrontando o terror das tormentas marinhas^ 
Desdenhosas da paz, fugindo à calmaria, . 
Libradas nos tufões. — A luta as inebria. 



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— 4i4 — 

Os génios são assim : como as filhas do oceano, " 
Pairam eôbre os bulcões do pensantento humano, 
Arrostando do mal a infrene tempestade, 
— Precursores do bem e núncios da verdade: 
O torpor lhes repugna: o combate os convida; 
Só a luta os atrai — porque a luta é a vida. 



AUGUSTO DE LIMA 

{Bio-bibliografia à pág. 316) 



97. O inquisidor 



o grande Inquisidor escreve à luz de um círio. 

Corre de seu tinteiro o sangue do martírio. 

Súbito, uma mulher acerca-se da mesa 

E prostra-se: "Senhor I um dia a natureza 

Bradará por meu filho, a vítima inocente, 

Que amanhã vai ser posLa à morte iniquamentel 

Da sentença riscai, com generoso traço, 

O confisco, o pregão o anátema e o baraço; 

E mandai demolir a forca que abre a cova 

À decrépita mãe, à esposa inda tão nova 

E a três filhos, Senhor, entes que o Cristo adorai 

A maldição não tisna, é certo, a luz da aurora, 

E nem pode manchar a fronte encanecida. 

Que a tarde da velhice é a aurora da outra vida. 

Como Xerxes punindo o mar com ferro em brasa, 

Em vão buscais cortar a inacessível asa 

Do pensamento: — o ideal é um lúcido oceano 

E uma invencível águia o pensamento humano; 

Mas, si preciso fôr, em nome dele abjuro 

A razão, a ciência, os astros, o futuro". 



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- 415 — 

Fez-se solene pausa; e com acento triste 

Fala o grande juiz: "Pois bem! mulher, feriste 

A fibra paternal do inquisidor austero; 

Volta tranquila ao lar, choraste, e não quero 

Espalhem os clarins da vil maledicência 

Que a justiça de Deus mais pôde que a clemência. 

Acolhi teu clamor humilde e o réu perdoo, 

Vai na paz de Jesus, por êle te abençoo; 

Quanto a teu filho amado, ileso das mais penas. 

Há de ser, para exemplo, esquartejado apenas". 

Contemporâneas — G. Leuzinger & Filho — 1887. 



98. Cólera do mai 

(A Assiz Brasil) 

Disse o rochedo ao mar, que plácido dormia: 
"Quantos milénios há que, tu, negro elefante. 
Tragas covardemente esses, cuja ousadia 
Arriscou-se em teu dorso enorme e flutuante? 

O mar não respondeu; mas um tufão horrendo 
Gavou-lhe a entranha e fez estremecer de medo 
O coração do abismo. Então o mar se erguendo, 
Atirou um navio aos dentes do rochedo I 

Contemporâneas . 



ALBERTO DE OLIVEIRA 

(Bio-bibliografia à pág. 310) 



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— 416 — 



99. A torrente 

Da serra azul, onde a palmeira medra, 
Onde paira a neblina, se deriva, 
Entre abertos lisins de esconsa pedra, 

Um fio d'água viva; 
Exíguo e frouxo, palmo a palmo, avança 
Pela escarpada; a folha, de passagem, 
Leva, rodeia os troncos, não descansa, 

Não pára na viagem. 
Ora entre os liquens verdes serpenteia, 
Corre entre os feios, geme na fragura, 
Ora caminho aberto em livre areia 

Acha — avança, murmura,- 
Desce depois mais volumoso, arreda 
Quanto encontra e, aumentando em pada frágua, 
Recua e salta, erguendo em cadOí queda 

O seu penacho d'água; 
Com a chuva engrossa, rue no chão da gruta. 
Cascata agora — a penedia bronca 
Mina-a em redor, desloca-a, imensa e bruta 

Leva-a, espumeja e ronca; 
A tudo investe, abala, desimplanta. 
Destrói, derruba na evulsão crescente, 
E ruge das quebradas na gargantu 

A impetuosa torrente. 
Negra, socava, tétrica, soturna, 
Treme e retumba; as águas passam; — tudo 
Geme; — os ninhos, a flor, o antro, a furna, 

Àquele embate rudo. 
No vale, enfim, torcendo a cristalina 
Juba, se atira e em ecos se propaga 
A torrente caudal, e ora a campina 

E as florestas alaga 
Em rio audaz que as fertiliza e banha. 
Calma agora, volvendo as ondas fundas: 
Pois, como à ideia, as águas da montanha 
Querem ser livres para ser fecundas. 



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~ 417 — 



100. o ninho e a cobra 

o ninho armou e suspenso, 
A ave respirando o incenso 
Das flores, consigo diz: 

— Sou feliz 

Sai. Vai procurar a vida. 
Erra na veiga florida, 
Cata na seara luzente 
A semente. 

Yoltà quando o sol declina, 
Vem de colina em colina 
E o ninho lembrando diz: 

— Sou feliz 

Chega. No berço macio 
Que ergueu, sente um luzidio 
Repelente corpo, a um lado 
Enroscado . 

Grita. O' natureza, em luta, 
Desde a ave ao homem se escuta 
Em tudo, triste ou feroz 
Essa voz! 

Grita, inutilmente grita! 
Vôa, inutilmente aflita! 
Entrou a cobra em teu ninho, 
Passarinho! 

E no que é teu repousando, 
Vê: no leito fofo e brando 
Ela a seu turno ora diz: 

— Sou feliz 

Poesias — Flores çUt Serra — H. Garnier. 



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— 4IS — 

RAIMUNDO CORREIA 

{Bio -bibliografia à pág. 311) 



401 Os ciganos 

A JOSÉ VERÍSSIMO 



Um dia, ao fim de incómoda jornada, 
De uma longa jornada por mim feita, 
Com perigos não menos do que danos, 
Ao crepúsculo vi, na volta estreita 

De sinuosa estrada. 
Três farrapados, míseros ciganos. 

Um — da viola amiga, unida ao peito. 
Dedilhando as cordas, indolente, 
Tirava brandos sons... Que ar satisfeito! 
Que ar de satisfação completa havia 
No seu moreno rosto, que o poente 
De rubra e vigorosa côr tingia! 

Outro — aspirando o seu cachimbo, ocioso, 
Nas espirais do fumo azul deixava 
Pascerem-se-lhe os olhos, descuidoso . . . 
E tinha, entre farrapos, o ar tranquilo, 
O ar de quem de mais nada precisava, 
O ar de quem para quem bastava aquilo. 

Dormia o último à sombra da ramagem, 
E sobre êle a oscilar — quadro risonho! — 
Pendia um par de címbalos que a aragem 
Ressonava ao passar, leve e fugace . . . 
TamjDém a doce aragem de algum sonho 
Pelo seu coração talvez passasse... 



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— 419 — 



II 



Os três ciganos míseros... Que digo? 
Míseros somos nós; mísero o louco, 

Como eu ou tu, amigo. 
Que, tendo eiíi muito o que eles têm em pouco, 
Em pós de um sonho vão em vão se cansa. 
Qual! nem esse apetite imoderado 

De glória e de fortuna; 
Nem viver da saudade e da esperança; 

Nem rever o passado. 
Ou prever o futuro a alma conforta. 

Antes pela existência andar à tuna: 

Sono, viola e fumo, e ao Deus dará... 

O que passou, já lá se foi — que importa? — 

E o que liá de vir, por sua vez virá! 

Para a dôr do viver, que nos devasta 

E que beijo nenhum de amor consola, 

Os ciganos fizeram-me sentir, 

Qu^, das três coisas, uma só nos basta : 
Tocar viola, 

Fumar cachimbo, ou dormir. 

Poesias — Edição portugruesa, 1906'. 



102. A leoa 

Não há quem a emoção não dobre e vença, 
Lendo o episódio da leoa brava. 
Que, sedenta e famélica, bramava, 
Vagando pelas ruas de Florença. 

Foge a população espavorida, 
E na cidade deplorável e erma 
Topa a leoa só, quasi sem vida. 
Uma infeliz mulher débil e enferma. 



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— 420 — 

Em frente à fera, um estupor do assombro. 
Não já por si tremia, ela, a mesquinha, 
Porém, porque era mãe, e o peso tinha. 
Sempre caro p'r'as mães de um filho ao ombro. 

Cegava-a o pranto, enrouquecia-a o choro, 
Desvairava-a o pavor ! . . . e entanto, o lindo, 
O tenro infante, pequenino e louro 
Plácido estava nos seus braços rindo. 

E o olhar desfeito em pérolas celestes 
Crava a mãe no animal, que pára e hesita, 
Aquele olhar de súplica infinita. 
Que é só próprio das mães em transes destes. 

Mas a leoa, como si entendesse 
O amor de mãe, iYicólume deixou-a.., 
E' que esse amor até rias feras vê-sel 
E é que era mãe talvez essa leoal 



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Til. APdLOGOS " FÍBULAS 



VILELA BARBOSA 

MARQUÊS DE PARANAGUÁ 

RIO DE JANEIRO — 20-IX.1769 
t RIO DE JANEIRO — 11 -IX. 1846 

Homem de estado, professor, matemático, administrador. 

Como poeta, não se lhe pode negar sentimento lírico, do- 
çura e delicadeza de expressão. 

Pormou-se em matemática na Universidade de Coimbra, 
serviu na armada portuguee^a e foi lente catedrático da Aca- 
demia Real de Marinha, tendo sido jubilado em 1882. 

O Marquês de Paranaguá pertenceu k Academia Real das 
Ciências, de Ijisboa, e ao Instituto Histórico e Geográfico 
Brasile'ro. 

Bibliografia — Poemas, Coimbra, 1794; Elementos de Oeo^ 
metria, Lisboa, 1815, Rio de .Taneiro, 5.' edição, 1846: Breve 
TratcLdo de Geometria Esférica, em aditamento aos Ele^nentos 
de Geometria^ Lisboa, 1816. Encontram-se ainda poesias de 
Vilela Barbosa em» antigas colet&neas, como o " Florilégrio " de 
Varnhasjen e o "Parnaso" de Pereira da Silva. 



103, O rio e o regato 

Ao manso regato um dia 
Soberbo rio dizia: 
"Desgraçado, on le lamento 
"Em teu curso pobre e lento 
"Pois, fazendo voltas tantas, 
"Por entre rasteiras plantas, 

Antologia Brasileira IS 

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— 422 — 

"Corres, sem nome, escondido; 
"Entanto que eu conhecido 
**Nas cidades mais famosas 
"Minhas ondas copiosas 
"Meto, levando a abundância 
"À mais remota distância. 
"Cem regatos orgulhosos, 
"De minha aliança ansiosa, 
"Se vêm meter no meu seio 
"Sem fazer um só rodeio. 
"De mais, eu tenho coragem, 
"E nada em minha passagem 
"Encontro que eu não arrede, 
"Pois, tudo a meu valor cede". 
Disse; e ainda mais falara, 
Quer de sua origem rara. 
Quer das suas qualidades, 
Quando a tais fatuidades. 
Mais sábio, o pobre regato 
Lhe responde e mui pacato: 
"Que, amigo! da matriz 
"Ou lago donde saís, 
"Não tenho eu também saído? 
"Logo depois de nascido 
"Um e outro nesta selva 
"Debaixo da mesma relva 
"Nossas águas não correram? 
"De onde é, pois, que vos vieram 
"Tantos fumos de altivez? 
"Só ó acaso é que nos fez, 
"Deixando o materno berço, 
"Correr por lugar diverso; 
"Vós em terreno inclinado 
"GAminhais mais apressado, 
"Absorvendo estes ribeiros, 
"Que em vós se metem ligeiros, 
"Vossas águas engrossando; 
"Eu ao longe costeando 
"Estas formosas colinas, 
"Minhas águas cristalinas 
"Conduzo tranquilamente. 



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- 423 — . 

"Mas por isso francamente, 
"Julgais ser mais, do que eu, nobre? 
"E' verdade que mais pobre 
"Eu sou d'água, porém ela 
"Não é clara, pura c bola? 
"Vós causais o medo e o espanto 
"Por onde passais, entanto 
"Que eu com murmúrio sereno, 
"Regando mais de um terreno, 
"Fertilizo estas campinas, 
"Sem causar essas ruínas, 
"Que por vós causadas vejo, 
"Antes sempre benfazejo; 
"Aié que minha corrente 
"Se confunda finalmente 
"Neste mar vasto e profundo, 
"Onde um dia, sem segundo, 
"Tocando os mesmos extremos, 
"Ambos juntar-nos devemos". 



A. L. DE BONSUCESSO 

RIO DE JANEIRO — 1833 
t RIO DE JANEIRO — 1899 

O Dr. Anastácio Luiz de Bonsucesso, poeta, professor e 
médico, é o nosso primeiro fabulista. 

O seu apreciado livro de Fábulas, coleção de apólogos ori- 
ginais em* versos, foi publicado en> edição completa em 1895. 

nedigiu a Biblioteca do Instituto dos Bacharéis em Letras, 
onde publicou a bela poesia A Glória e o estudo crítico Quatro 
vultos. Deixou ainda um livro de Versos de Cisnato Luzio e 
outros trabalhos literários. Era formado pela faculdade m«édica 
do Rio de Janeiro e bacharel T>elo Colégio Pedro II. 



104. O vento e a poeira 

O vento sem ter medo, 
Levanta em turbilhão 
O pó, que estava quedo, 
No seu canto dormindo em feio chão. 



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— 424 — 

E lá pelas alturas 
O pó julga-se um rei; 
Fazendo diabruras 
Governa a todos com austera lei. 

O vento, porém, cessa; 
O pó na terra lisa 
Caiu muito depressa; 
O rico, e o poBre, tudo nele pisa. 

"Pensei ser grande cousa, 
Diz ôle tristemente, 
Agora assim repousa 
Quem nos ares andou garbosamente! 

Aquele que se eleva 
Sem mérito real, 
Muitas horas não leva 
Na bela posição que exerce mal; 

Pois logo que lhe falta 
A protetora mão, 
De posição bem alta 
Vem, como deve, rastejar no chão! 

Fábulas — Companhia Imjuressora — 1895. 



105. O moinho 

Num engenho veloz pôs um mocinho 

A mão, e logo o braço, 
Depois o corpo todo, no moinho 

Foram arrebatados! 

No caminho do vício, dado um passo, 
Os outros estão dados! 



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— 425 



106. Temores 

Um rato se assustava 
Do gato do vizinho; 
Gato que também leme 
A vim cão de mau focinho, 

O qual, por sua vez, 
Do lobo não gostava, 
Do lobo que tremia 
Quando o leão passava. ^ 

Os homens são assim: mútuos temores 
Curva-os ainda a lei, e finalmente 
Vem o temor de Deus avassalá-los I 



BARÃO DE PARANAPIACABA 

JOÃO CARDOSO DE MENEZES B SILVA 

S. PAULO — SANTOS — 27-IV-1827 
t S. PAULO SANTOS — 2-n.l915 

Biobiblioirrafla — ^Formado pela escola de direito de S. Paulo 
o Barão de Paranapiacaba exerceu primeiro o magistério se- 
cundai io c advogou, sendo depois empregado de fazenda: apo- 
sentou-se no lugar de diretor do contencioso. Representou 
Goiaz na Câmara dos Deputado» e era do Concelho do Im- 
perador. 

Poeta inspirado, Paranapiacaba deu à publicidade a Harpa 
gemedora. Escreveu ainda: O CriatUmismo^ Cristo e o isocia- 
Usmo, Teses de colonização no Brasil, Camxmiana brasileira, etc. 
Traduziu as Fábulas de La Fontaine. o Jocelyn de Lamartine 
e ainda outras composições do mesmo vate francês, de Lord 
Byron, etc, etc. 

Paranapiacaba escreveu com? perfeito conhecimento da lín- 
gua portuguesa, que lhe deve formosas páginas de p'rosa ame- 
na e versos simples e melodiosos. 



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— 426 — 



107. O carvalho e o caniço 



Dizia ao caniço robusto carvalho: 

"Sou grande, sou forte; 
E's débil e podes, com justos motivos 

Queixar-te da sorte! 

**Inclinas-te ao peso de frágil carriço; 

E a leve bafagem, 
Que enruga das águas a linha tranquila, 

Te averga a folhagem. 

"Mas minha cimeira tufões assoberba, 

Com serras entesta; 
Do sol aos fulgores barreiras opondo, 

Domina a floresta. 

"Qual rija lufada, do zéfiro o sopro 

Te soa aos ouvidos; 
E a mim se afiguram suaves favônios 
Do norte os bramidos. 

"Si desta ramagem, que ensombra os contornos, 

Ao abrigo nasceras, 
Amparo eu te fora de sues e procelas, 

E menos sofreras. 

"Mas tens como berço brejais e alagados, 

Que o vento devasta; 
Confesso que sobram razões de acusares 

A sorte madrasta". 

Responde o caniço — "Das almas sensíveis 
E' ter compaixão; 
Mas crede que os ventos, não menos que aos fracos, 
Minazes vos são. 



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— 427 — 

Eu vergo e não quebro. Da luta com o vento 

Fazeis grande alarde; 
Julgais que heis de sempre zombar das borrascas? 

Té ver não é tarde". 

Mal isto dissera dispara do fundo, 

Dum céu carregado 
O nw^is formidável dos filhos que o Norte 

No seio há gerado. 

Erecto o carvalho, faz frente à refrega; 

E o frágil arbusto, 
Vergando flexível, do vento aos arrancos, 

Resiste sem custo. 

Mas logo a nortada, dobrando de força, 

Por terra lançava 
O roble que às nuvens se erguia e as raízes 

No chão profundava. 

Fábulas de La Fontaine — Livro I. 



JOÃO RIBEIRO 

{Bio-bibliografia à pág. 204) 



108. O Califa 

No outro tempo em Bagdá Almansor, o Califa, 
Um palácio construiu todo de ouro: a alcatifa 
De jaspe, a colunata em pórfiro e o frontal 
De toda a pedraria asiática, oriental; 
Em frente desse asilo em piscinas de luxo 
Chovia áurea poeira as fontes em repuxo. 



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— 428 — 

Ora, ali perto havia em frente ao monumento 
Uma choça mesquinha, esfarrapada ao vento, 
Quasi a cair, humilde e tristonha mansão 
De um velho pobre, velho e simples tecelão. 
Essa mísera casa, ao certo transtornava 
A suntuosa impressfto do Palácio. Causava 
Não sei que dôr, talvez asco. Desagradável, 
Tanta riqueza ao pé de choça miserável! 
Convinha, pois destruí-la. E ao velho tecelão 
Oferecem dinheiro, e o velho disse: 

**— Não 
Guardai vosso ouro todo; esta casa que habito 
Nunca será vendida, antes seja eu maldito, 
Arrasai-a, porquanto é-vos fácil poder. 
Nela morreu meu pai e nela hei de eu morrer**. 
E à resposta do velho o califa Almansor 
Esteve a meditar. Um dos servos: — "Senhor! 
Sois poderoso e rei, vós podeis sem vexame 
Essa casa arrasar, já e já, sem exartie, 
Pois vósl retroceder diante de um tecelão!" 
Almansor, o Califa ergueu-se e disse: 

"— Não! 
Eu não quero destruir a mesquinha choupana, 
Quero-a de pé, bem junto a mim, essa cabana. 
Porquanto a geração dos meus filhos se expande, 
E quero que cada um a refletir, sem custo. 
Vendo o palácio diga: — "Ave! Almansor foi grande!' 
E vendo a pobre choça: — "Ele foi mais: — foi justo!" 

Poesias, 



w 
109. Â abelha e a fonniga 

Na pétala perfumada 
De linda rosa vermelha, 
Travaram prosa animada 
Uma formiga e uma abelha. 



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— 429 — 

Conversam. Diz a formiga: 
'*Como somos diferentes I 
Quão diversos são, amiga. 
Os destinos dos viventes I 

"Enquanto das estimadas 
Abelhas se faz cultura, 
As formigas maltratadas 
São da humana criatura I 

"Ao extermínio votadas, 
Para n6s> outras — a morte! 
E vós? vós sois procuradas; 
Desigualdades da sorte! 

Responde a abelha zumbindo 
As asas: "E' que viveis 
Roças, campo destruindo; 
Sem razão não vos queixeis I 

"Não fazeis sinão o mall 
Nós prestamos bom serviço 
À indústria nacional . . . 
Somos queridas por issol 

••Adejando pelos ramos, 
Entre boninas e rosas, 
O doce mel fabricamos: 
Somos úteis, proveitosas!" 

E termina a abelha assim. 
Voando para a colmeia: 
Cada um — diz velho anexim 
Colhe conforme semeia". 



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— 430 — 



110. O vagalume e o sapo 

Entre o gramado do campo, 
Modesto, em paz, se escondia 
Pequenino pirilampo, 
Que sem o saber luzia. 

Feio sapo repelente 
Sai do córrego lodoso 
Cospe a baba de repente 
Sobre o inseto luminoso. 

Pergunta-lhe o vagalume: 

— "Porque me vens maltratar?" 
E o sapo com azedume: 

— "Porque estás sempre a brilhar". 



111. O coelho e o periquito 

Um pobre coelho cai de uma fera na garra, 

— "Que fizeste dos pés?" — pergunta um periquito. 
Eis um gavião que passa e o passarinho agarra. , 

— "Das asas que fizeste?" — indaga-lhe o coelhito. 



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VIU. POESIA ÉPICA 



JOSÉ BASÍLIO DA GAMA 

MINAS — S. JOSÉ DO BIO DAS MORTES (TIRADENTES) 

22.Vn.1740 
t LISBOA — 31-Vn-1795 

O grande épico brasileiro nasceu a 22 de Julho de 1740; 
tendo leito seus estudos no colégio dos Jesuítas, no Rio de 
Jax^elro, seguiu para Lisboa e passou-se depois para Roma, 
onde lecionou num seminário; aí logrou ser adraitido na Ar- 
cádia, sob o nome de Termindo Sipílio. 

Voltou Basilio da Gama ao Rio; pouco depois, porém teve 
de volver à capital portuguesa, de onde por suspeita de jesui- 
tismo, teria de partir para o degredo, si lhe não valesse o seu 
talento poético: conseguiu a liberdade e captou as boas graças 
do Marquês de Pombal, Que o nomeou oficial da secretaria 
dos Negócios Estrangeiros. 

Pertenceu à Academia de Ciências de Lisboa. 

O Uruguai é, di-lo Almeida Garrett, a melhor coroa da 
poesia brasileira . 

Em Lisboa faleceu José Basilio da Gama a 31 de Julho 
de 1795, tendo sido sepultado na matriz da Boa Hora, em Belém. 

Bibliografia — Uruguai, A Declamação trágica, Quitubia, 
poemas . 



112. Lindóia 

Um frio susto corre pelas veias 

De Caitetii, que deixa os seus no campo; 

E a irmã, por entre as sombras do arvoredo, 

Busca co'a vista e treme de encontrá-la. 



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— 432 - 

Entram, enfim, na mais remota e interna 

Parte do antigo bosque, escuro e negro, 

Onde, ao pé de uma lapa cavernosa, 

Cobre uma rouca fonte, que murmura, 

Curva latada de jasmins e rosa. 

Este lugar delicioso e triste, 

Cansada de viver, tinha escolhido 

Para morrer a mísera Lindóla. 

Lá, reclinada, como que dormia. 

Na branda relva e nas mimosas flores; 

Tinha a face na mão e a mão no tronco 

Dum fúnebre cipreste, que espalhava 

Melancólica sombra. Mais de perto 

Descobrem que se enrola no seu corpo 

Verde serpente, lhe passeia e cinge 

Pescoço e braços, e lhe lambe o seio. 

Fogem de a ver assim sobressaltados 

E param cheios de temor ao longe; 

E nem se atrevem a chamá-la, e temem 

Que desperte assustada e irrite o monstro, 

E fuja, e apresse no fugir a morte. 

Porém o dextro Caitetú, que treme, 

Do perigo da irmã, sem mais demora 

Dobrou as pontas do arco, e quis três vezes 

Soltar o tiro, e vacilou três vexes 

Entre' a ira e o temor. Enfim sacode 

O arco e faz voar a aguda seta, 

Que toca o peito de Lindóia e fere 

A serpente na testa, e a boca e os dentes 

Deixa cravada no vizinho tronco • 

Açouta o campo com, a ligeira cauda 

O irado monstro, e em torturosos giros 

S'enrosca no cipreste, e verte envolto 

Em negro síingue o lívido veneno 

Leva nos braços a infeliz Lindóia 

O desgraçado irmão, que ao despertá-la 

Conhece (com que dôr!) no frio rosto 

Os sinais do veneno, e v6 ferido 

Pelo dente sutil o brando peito; 

Os olhos em que o amor reinava um dia, 

Cheios do morte; e muda aquela língua 



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— 433 — 

Que ao surdo vento e aos ecos tantas vezos 
Contou a larga história dos seus males* 
Nos olhos Gaitetú não sofre o pranto 
E rompe em profundíssimos suspiros, 
Lendo na testa da fronteira gruta 
De sua mão já trémula gravado 
O alheio crime e a voluntária morte, 
E por todas as partes repetido 
O suspirado nome de Colombo. 
Inda conserva o pálido semblante 
Um não sei que de magoado e triste, 
Que corações mais duros enternece. 
Tanto era bela no seu rosto a morte! 

Uruguai, 



SANTA RITA DURÃO 



MINAS OBRAIS — 1722 
t MINAS GERAIS — 1784 

Tendo-se doutorado em Coimbra, Fr. José S. Rita Durão 
professou na ordem- de S. Agostinho, em 1788, cotn^ando 
então a sua nomeada como orador sagrado. Em viagem para 
a Eispanha, o frade braellelro» por suspeita d« espl^., foi preso 
e encerrado no castelo de Sisgovia, de onde sÔ saiu em 1763, 
quando houve a paz entre Portugal e aquele país. 

Bibliografia — Caramurú, poema épico dO descobrimento 
da Baía, traduzido em francês por E. de Monglave. 

Há ainda do poeta mineiro diversos sermões e poesias. 

O valor do Caramurú como produto nacional, pensa Síl- 
vio Romero, está em ser uma espécie de resumo da vida his- 
tórica do Brasil nos três séculos em que fomos coldttiaé 



113. Moema 

Copiosa multidão da nau francesa 
Corre a vér o espetáculo assombrada; 
E, ignorando a ocasião da estranha empresa, 
Pasma da turba feminil, que nada; 



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— 434 — 

Uma, que ks mais precede em gentileza, 
Não vinha menos bela, do que irada; 
Era Moema que de inveja geme, 
E já vizinha à nau, se apega ao leme. 

— Bárbaro (a bela diz) tigre, e não homem... 

Porém o tigre, por. cruel que brame. 

Acha força, amor, que enfim o domem; 

Só a ti não domou por mais que eu te ame; 

Fúria, raios, coriscos, que o ar consomem, 

Gomo não consumis aquele infame? 

Mas pagar tanto amor com tédio e asco..» 

Ah ! que o corisco és tu . . . feio . . . penhasco ! 

Bem puderas, cruel, ter sido esquivo. 
Quando eu a fé rendia ao teu engano; 
Nem me ofenderas a escutar-me altivo, . 
Que é favor, dado a tempo, um desengano: 
Porém, deixando o coração cativo 
Com fazer-te a meus rogos sempre humano, 
Fugiste-me, traidor, e desta sorte 
Paga meu fino amor tão crua morte? 

Tão dura ingratidão menos sentira, 

E esse fado cruel doce me fora. 

Si a meu despeito triunfar não vira 

Essa indigna, essa infame, essa traidora: 

Por serva, por escrava te seguira, 

Si não temera de chamar senhora 

A vil Paraguassú, que, sem que o creia, 

Sobre ser-me inferior, é néscia e feia. 

Enfim, tens coração de ver-me aflita. 

Flutuar moribunda entre estas ondas. 

Nem o passado amor teu peito incita 

A um ai somente, com que aos meus respondas I 

Bárbaro, si esta fé teu peito irrita, 

(Disse, vendo-o fugir) ah! não te escondas; 

Dispara sobre mim teu cruel raio... 

E indo a dizer o mais, cai num desmaio. 



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— 435 — 

Perde o lume dos olhos, pasma e treme, 
Pálida a côr, o aspecto moribundo; 
Com a mão já sem rigor, soltando o leme, 
Entre as salsas escumas desce ao fundo; 
Mas na onda do mar, que irado freme, 
Tornando a aparecer desde ao profundo: 
Ahl Diogo cruel — disse com mágoa, 
E, sem mais vista ser, sorveu-se n'água. 

Choraram da Baía as ninfas belas, 
Que nadando a Moema acompanhavam; 
E, vendo que sem dôr navegam delas 
À branca praia com furor tornavam I 
Nem pode o claro herói sem pena vê-las, 
Com tantas provas que. de amor lhe davam; 
Nem mais lhe lembra o nome de Moema, 
Sem que ou amante a chore, ou grato gema. 

Caramurú — Canto VI. 



PORTO-ALEGRE 

RIO GRANDE DO SUL — RIO PARDO — 29-XI-1806 
t BERLIM — 29-Xn-1879 

Manuel de Araújo Porto-Alegre, Barão de S. Angelo, um 
dos fautores do movimento romântico no Braáil, foi poeta, dra- 
maturgo, crítico", pintor e arquiteto. 

Bibliografia — Porto- Alegre, que em Paris (1836) redigiu 
com Magalhãçs e Torres Homem a célebre revista Niterói, pu- 
blicou, além de estudos e outros escritos nessa revista e na 
Minerva Braailiense: Brasilianos — poesia (Viena — 1863), 
Angélica e Firmino e Colombo — poema, a sua obra prima; o 
poeta abusa aí do emprego de termos quasi desconhecidos e de 
latinismos escusáveis, parecendo querer ostentar erudição; en- 
tretanto Colombo tem páginas primorosas e passagens de incon- 
testável beleza. 



114. Descoberta da América 

Mais uma hora velou. Deu meia noite, 
Rendeu-se o quarto no maior silêncio. 
Acalmada a emoçãt), e mais convicto, 



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~ 436 — 

^^ Fez sinal, e a esquadra pôs à capa, 

Sem que alguém da manobra visse a causa. 
Sentado e enfraquecido por vigílias. 
Ainda olhava, mas cedendo ao corpo, 
Ali mesmo dormiu, tá que de um salto, 
Erguido ao trom de festival bombarda 
E da grita dos seus, que repetiam 
<^om Bermejo, na "Pinta" — Terra! Terral... — 
:m olhar, convepcidp da verdade, 
V >»or grato impulso, ajoelhou-se orando, 
Antes que a terra lhe alegrasse a vista! 
Vinha o dia rompendo e descobrindo 
Sobre a linha do mar a terra ansiada! 
Como ao empaste das fecundas tintas 
A natureza e a luz na teia fulgem, 
Assim fulgia o ondulado aspecto 
De frondente floresta, e pouco a pouco, 
Ao 3orriso das horas fugitivas, 
No ar se abriram graciosas palmas. 
Como guerreiros de emplumados elmos. 
Vindos à plaga a festejar as naves. 
Com o prumo na mão, sondando a costa, 
Entrou numa abra que no fundo tinha 
Surgidouro seguro. Manda o chefe 
A manobra de paz! e a um tempo viu-se 
Cair o pano, atravessar a frota, 
Morder o ferro a desejada areia. 
Os descrentes então se convenceram 
De que um homem de Deus vê mais que os outros. 
Baixam dos turcos o ligeiro esquife 
E o real escaler apendoado. 
O prazer, que remoça, agita o Nauta 
Larga o burel da devoção, e o peito 
De lúcida couraça veste; cinge 
A espada de Almirante, e sobre os ombros 
Traça um manto escarlate, mimo régio. 
Protege a fronte co^um brilhante almafre, 
De cujo cimo ponteagudo rompe 
Trífida palma de recurvas plumas. 
Toma o pacto real, feito em Granada 
E o pendão de Isabel, o novo lábaro, 



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— 437 -« 

Que há-de em breve vencer mais que o de Roma. 

Descem com ôle os empregados régios, 

E os Pinzões, a quem dera a honra e guarda 

Do estandarte real. Acena ao mestre: 

Alam as prontas vagas à ribeira; 

Qual amplexo de amor, todos sentiram 

O doce abalo do encontrão da praia. 

De um salto juvenil pisa Colombo 

A nova terra, e, com seguro braço, 

A bandeira real do solo planta. 

Beija a plaga almejada, ledo chora: 

Foi geral a emoção! Disse o silôi^io 

Na mudez respeitosa mais que a língua. 

Ao céu erguendo os lacrimosos olhos, 

Na mão sustendo o Crucifixo, disse: 

"Deus Eterno, Senhor Onípotente, , 

A cujo verbo criador o espaço 

Fecundo soltou o firmamento, 

O sol, e a terra, e os ventos do oceano, 

Bendito sejas. Santo, Santo, Santo I 

Sempre bendito em toda parte sejas. 

Que se exalte tua alta majestade 

Por haver concedido ao servo humilde 

O teu nome louvar nestas distâncias. 

Permite, ó meu Senhor, que agora mesmo, 

Como primícias deste santo empenho, 

A teu Filho Divino humilde ofreça 

Esta terra, e que o mundo sempre a chame 

"Terra de Vera Cruz"! E que assim seja". 

Ergue-se e o laço do estandarte afrouxa: 

Sopra o «vento, desdobra-o, resplandecem 

De um lado a imagem do Cordeiro, e do outro 

As armas espanholas. Como assenso 

Da divina mansão, esparge a brisa 

Um chuveiro de flores sobre a imagem, 

Flores não vistas da europeia gente! 

(Colombo) — Poema. 



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— 438 — 

GONÇALVES DIAS 

{Bio-bibliografia à pág , 216) 



115. I-Juca-Pirama 
I 

No meio das tabas de amenos verdores, 
Cercadas de troncos — cobertos de flores, 
Alteiam-se tfetos de altiva nação; 
São muitos seus filhos, nos ânimos fortes, 
Temíveis na guerra, que em densas coortes, 
Assombram das matas a imensa extensão. 

São rudos, severos, sedentos de glória. 
Já prélios incitam, já cantam vitória. 
Já meigos atendem à voz do cantor. 
São todos Timbiras, guerreiros valentes, 
Seu nome lá vôa na boca das gentes. 
Condão de prodígios, de glória e terror I 

As tríbus vizinhas, sem forças, «em brio, 
As armas quebrando, lançando-as ao rio, 
O incenso aspiraram dos seus maracás; 
Medrosos das guerras que os fortes acendem, 
Custosos tributos ignavos lá rendem. 
Aos duros guerreiros sujeitos na paz. 

No centro da taba se estende um terretro 
Onde ora se aduna o concílio guerreiro 
Da tríbu senhora das tríbus servis: 
Os velhos sentados praticam d'outrora 
E os moços inquietos, que a festa enamora, 
Derramam-se em torno dum índio infeliz. 

Quem é? — Ninguém sabe: seu nome é ignoto. 
Sua tríbu não diz: — mas de um povo remoto 
Descende por certo — dum povo gentil; 



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^ 439 — 

Assim lá na Grécia ao escravo insulano 
Tornavam distinto do vil mussulmano 
As linhas corretas do nobre perfil. 

Por casos de guerra caiu prisioneiro 
Nas mãos dos Timbiras; — no extenso terreiro 
Assola-se o teto, que o teve em prisão: 
Convidam-se as tríbus dos seus arredores. 
Cuidosos se incumbem do vaso das cores, 
Dos vários aprestos da honrosa função. 

Acerva-se a lenha da vasta fogueira, 
Entesa-se a corda da embira ligeira, 
Adorna-se a maça com penas gentis; 
A custo, entre as vagas do povo da aldeia. 
Caminha o Timbira que a turba rodeia, 
GarJ)oso nas plumas de vário matiz. 

Em tanto as mulheres com leda trigança, 

Afeitas ao rito da bárbara usança, 

O índio já querem cativo acabar; 

A coma lhe cortam, os membros lhe tingem 

Brilhante enduape no corpo lhe cingem, 

Sombreia-lhe a fronte gentil canitar. 



II 



Em fundos vasos de alvacenta argila 

Ferve .o cauim; 
Enchem-se as copas, o prazer começa: 

Reina o festim. 

O prisioneiro, cuja morte anseiam, 

Sentacjo está, 
O prisioneiro, que outro sol no ocaso 

Jamais verá! 

A dura corda que lhe enlaça o colo, 

Mostra-lhe o fim 
Da vida escura que será mais breve 

do que o festim! 



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- 440 — 

Contudo os oihos de ignóbil pranto 

Secos estão; 
Mudos os lábios não descerram queixas 

Do coração. 

Mas um martírio que encobrir não pode, 

Em rugas faz 
A mentirosa placidez do rosto 

Na fronte audaz! 

Que tem, guerreiro? que temor te assalta 

No passo horrendo? 
Honra das tabas que nascer te viram, 

Folga morrendo. . 

Folga morrendo; porque além dos Andes 

Revive o forte, 
Que soube ufano contrastar os medos 

Da fria morte. 

Rasteira grama, exposta ao sol, à chuva, 

Lá murcha e pende: 
Somente ao tronco, que devassa os ares 

O raio ofendei 

Que foi? Tupã mandou que êle caísse, 

Como viveu; 
E o caçador que o avistou prostrado 

Esmoreceu! 

Que temes, oh guerreiro! Além dos Andes 

Revive o forte, 
Que soube ufano contrastar os medos 

Da fria morte. 

III 

Em larga roda de novéis guerreiros 
Ledo caminha o festival Timbira, 
A quem do sacrifício cabe a honra. 
Na fronte o canitar sacode em ondas/ 
O enáuape na cinta se embalança. 
Na dextra mão sopesa a iverapeme. 



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~- 44i — 

Orgulhoso e pujante. — Ao menor passo 
Colar d'alvo marfim, insígnia de honra, 
Que lhe orna o oolo e o peito, ruge e freme, 
Como que por feitiço não sabido 
Encantadas álí as almas grandes 
1)08 vencidos Tapuias, inda chorem 
Serem glória e brazão d'imigos feros. 
"Eis-me aqui, diz ao índio prisioneiro; 
"Pois que fraco, e sem tríbu, e sem família, 
"As nossas matas devassaste ousado, 
"Morerrás morte vil da mão dé um forte". 
Vem a terreiro o mísero contrário; 
Do colo à cinta a mussurana desce: 
"Dize-nos tu quem és, teus feitos canta, 
"Ou, se te apraz, defende-te". Começa, 
O índio, que ao redor derrama os olhos, 
Com triste voz que os ânimos comove* 



IV 



Meu canto da morte, 
Guerreiros, ouvi: 
Sou filho das selvas. 
Nas selvas cresci; 
Guerreiros, descendo 
Da tribu tupi. 

Da tríbu pujante^ 
Que ajgora anda errante 
Por fado inconstante, 
Guerreiros, nasci; 
Sou bravo, sou forte, 
Sou filho do norte; 
Meu canto de morte, 
Guerreiros, ouvi. 

Já vi cruas brigas 
De tríbus imigas, 
E as duras fadigas 
Da guerra provei; 
Nas ondas mendaces 



Senti pelas faces 
Os silvos fugaces 
Dos ventos que amei. 

Andei longes terras, 
Lidei cruas guerras, 
Vaguei pélas serras, 
Dos vis Aimorés; 
Vi lutas de bravos, 
Vi fortes — escravos! - 
De estranhos ignavos 
Calcados aos pés. 

E os campos talados, 
E os arcos quebrados, 
E os piagas, coitados. 
Já sem maracás; 
E os meigos cantores. 
Servindo a senhores. 
Que vinham traidores, 
Com mostras de paz. 



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— 442 — 



Aos golpes do imigo 
Meu último amigo, 
Sem lar sem abrigo 
Caiu junto a mi! 
Com plácido rosto, 
Sereno e composto, 
O acerbo desgosto 
Comigo sofri; 

Meu pai a meu lado, 
Já cego e quebrado, 
De penas ralado, 
Firmava-se em- mi: 
Nós ambos, mesquinhos, 
Por ínvios caminhos, 
Cobertos de espinhos 
Chegámos aqui! 

O velho no entanto, 
Sofrendo já tanto 
De fome e quebranto. 
Só qu'ria morrer! 
Não mais me contenho. 
Nas matas me embrenho, 
Das frechas que tenho 
Me quero valer. 

Então, forasteiro, 
Caí prisioneiro 
De um troço guerreiro 
Com que me encontrei: 



O crú dessossêgo 
Do pai fraco e cego. 
Enquanto não chego, 
Qual seja, — dizei! 

Eu era o seu guia 
Na noite sombria, 
A só alegria 
Que Deus lhe deixou: 
Em mim se apoiava, 
Em mim se firmava, 
Em mim descansava, 
Que filho lhe sou. 

Ao velho coitado. 
De penas ralado. 
Já cego e quebrado, 
Que resta? — Morrer. 
Enquanto descreve 
O giro tão breve 
Da vida que teve, 
Deixai-me viver! 

Não vil, não, ignavo. 
Mas forte, mas bravo. 
Serei vosso escravo: 
Aqui virei ter. 
Guerreiros, não coro 
Do pranto que choro: 
Si a vida deploro. 
Também sei morrer. 



Soltai-o! — diz o chefe. Pasma a turba; 
Os guerreiros murmuram: mal ouviram. 
Nem pude nunca um chefe dar tal ordem! 
Brada segunda vez, com voz mais alta, ' 
Afrouxam-se as prisões a embira cede, 
A custo sim; mas cede: o estranho é salvo. 
— Timbira, diz o índio enternecido. 
Solto apenas dos nós que o seguravam: 



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^ 443 — 

E's um guerreiro ilustre, um grande chefe, 
Tu que assim do meu mal te comoveste, 
Nem sofres que, transposta a natureza, 
Com olhos onde a luz já não cintila, 
Chore a morte do filho o pai cansado, 
Que somente por seu na voz conhece. 

— E's livre; parte! 

— E voltarei. 

— Debalde! 

— Sim, voltarei, morto meu pail 

— Não voltes! 
E' bem feliz, se existe, em que não Veja, 
Que filho tem, qual chora: és livre; parte! 

— Acaso tu supões que me acobardo. 
Que receio morrer?! 

— E's livre; parte! 

— Ora, não partirei; quero provar-te 
Que um filho dos Tupis vive com honra, 
E com honra maior, se acaso o vencem. 
Da morte o passo glorioso afronta. 

— Mentiste, que um Tupi não' chora nunca, 
E tu choraste!... parte; não queremos 
Com carne vil enfraquecer os fortes! 

Sobreste ve o Tupi: arfando em ondas 

O rebater do coração se ouvia 

Precipite; do rosto afogueado 

Gélidas bagas de suor corriam: 

Talvez que o assaltava um pensamento... 

Já não., que, na enlutada fantasia. 

Um pesar, um martírio ao mesmo tempo. 

Do velho pai a moribunda imagem 

Quasi bradar-lhe ouvia: — Ingrato! ingrato! - 

Curvado o colo, taciturno e frio. 

Espectro de homem, penetrou no bosque. 

VI 

— Filho meu, onde estás? 

— Ao vosso lado; 
Aqui vos trago provisões: tomai-as. 



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— 444 — 

As vossas forças restaurai perdidas, 
E a caminho, e já! 

— Tardaste muito! 
Não era nado o sol, quando partiste, 
E frouxo o seu calor já sinto agora! 

— Sim, demorei-me a divagar sem rumo, 
Perdí-me nessas matas intrincadas 
Reaviei-me e tornei; mas urge o tempo; 
Convém partir, e já! 

— Que novos males 
Nos resta de sofrer? que novas dores, 

Que outro fado pior Tupâ nos guarda? 

— As setas da aflição já se esgotaram, 
Nem para novo golpe espaço intacto 
Em nossos corpos resta. 

— Mas tu tremes! 

— Talvez do afã da caça . .* . 

— O' filho caro! 
Um quô misterioso aqui me fala, 

Aqui no coração; piedosa fraude 

Será por certo, que não mentes nunca! 

Não conheces temor, e agora temes? 

Vejo e sei: é Tupã que nos aflige, 

E contra o seu querer não valem brios. 

Partamos!... — 

E com r»ão trémula incerta 
Procura o filho, tateando as trevas 
Da sua noite lúgubre e medonha. 
Sentindo o acre odor das frescas tintas, 
Uma ideia fatal correu-lhe à mente... 
Do filho 08 membros gélidos apalpa, 
E a dolorosa maciez das plumas 
Conhece estremecendo: foge, volta, 
Encontra sob as mãos o duro crânio, 
Despido então do natural ornato! 
Recua aflito e pávido cobrindo 
Às mãos ambas os olhos fulminados; 
Como que teme ainda o triste velho 
De ver, não mais cruel, porém mais clara. 
Daquele exício grande a imagem viva 
Ante os olhos do corpo afigurada. 



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— 455 — 

Não era que a verdade conhecesse 
Inteira e tão cruel qual tinha sido; 
Mas que funesto azar correra o filho, 
Ele o via; êle o tinha ali presente; 
E era de repetir-se a cada instante, 
A dÒr passada, a previsão futura 
E o presente tão negro, ali os tinha; 
Ali no coração se concentrava, 
Era num ponto só, mas era a morte! 

— Tu prisioneiro, tu? 

— Vós o dissestes 

— Dos índios? 

— Sim 

—De que nação! 
— Timbiras. 

— E a mussurana funeral rompeste, 
Dos falsos manitós quebraste a maça... 

— Nada f iz . . . aqui estou . 

— Nada! — 

Emudecem; 
Curto instante depois prossegue o x^elho: 

— Tu és valente bem o sei; confessa, 
Fizeste-o, certo, ou já não foras vivol 

— Nada fiz, mas souberam da existência 

De um pobre velho, quem em mim só vivia... 
—E depois?... 

— Eis-me aqui. 

— Fica essa taba? 

— Na direção do sol, quando trasmonta. 

— Longe? 

— Não muito. 

— Tens razão; partamos. 

— E queres ir?... 

— Na direção do ocaso. 

vn 

"Por amor de um triste velho, 
Que ao termo fatal já chega 
Vós, guerreiros, concedestes 



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— 446 — 

A vida a um prisioneirp. 
Àção tão nobre vos honra, 
Nem tão alta cortezia 
Vi eu jamais praticada 
Entre os Tupis —. e mais foram 
Senhores em gentileza. 
Eu, porém, nunca vencido, 
Nem nos combates por armas, 
Nem por nobreza nos atos, 
Aqui venho, e o filho trago. 
Vós o dizeis prisioneiro, 
Seja assim como o dizeis; 
Mandai vir a lenha, o fogo, 
A massa do sacrifício 
E a mussurana ligeira; 
Em tudo o rito se cumpra! 
E quando eu fôr só na terra, 
Certo acharei entre os vossos, 
Que tão gentis se revelam. 
Alguém que meus passos guie: 
Alguém, que vendo o meu peito 
Coberto de cicatrizes, 
Tomando a vez de meu filho, 
De haver-me por pai se ufane!" 
Mas o chefe dos Timbiras 
Os sobrolhos encrespando. 
Ao velho Tupi guerreiro 
Responde com torvo acento: 
— Nada farei do que dizes; 
E' teu filho imbele e fraco! 
Aviltaria o triunfo 
Da mais guerreira das tribus 
Derramar seu ignóbil sangue; 
Ele chorou de cobarde; 
Nós outros, fortes Timbiras, 
Só de heróis fazemos pasto. 
Do velho Tupi Guerreiro 
A surda voz na garganta 
Faz ouvir uns sons confusos. 
Como os rugidos dé um tigre, 
Que pouco a pouco se assanha! 



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— 447 — 

vin 

"Tu choraste em presença da morte? 
Na presença de estranhos choraste? 
Não descende o cobarde do forte; 
Pois choraste, meu filho não és: 
Possas tu, descendente maldito, 
De uma tríbu de nobres guerreiros, 
Implorando cruéis forasteiros, 
Seres prosa de vis Aimorés. 

"Possas tu, isolado na terra, 
Sem arrimo e sem pátria vagando, 
Rejeitado da morte na guerra. 
Rejeitado dos homens na paz. 
Ser das gentes o espectro execrado. 
Não encontres amor nas mulheres; 
Teus amigos, si amigos tiveres, 
Tenham alma inconstante e falaz! 

"Não encontres doçura no dia 

Nem as cores da aurora te ameiguem, 

E entre as larvas da noite sombria 

Nunca possas descanso gozar: 

Não encontres um tronco, uma pedra, 

Posta ao sol, posta às chuvas e aos ventos 

Padecendo os maiores tormentos, 

Onde possas a fronte pousar. 

"Que a teus passos a relva se torre, 
Murchem prados, a flor desfaleça, 
E o regato que límpido corre, 
Mais te acenda o vesano furor; 
Suas águas depressa se tornem 
Ao contacto dos lábios sedentos, 
Lago impuro de vermes nojentos, 
Donde fujas com asco e terror! 

"Sempre um céu, como um teto incendido 
Creste e punja teus membros malditos 
E o oceano de pó denegrido 
Seja a terra ao ignavo Tupi! 



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— 448 - 

Miserável, faminto, sedento, 
Manitós lhe não falem nos sonhos, 
E de horror os espectros medonhos 
Traga sempre o cobarde após si. 

"Um amigo não tenhas piedoso 
Que o teu corpo na terra embalsame. 
Pondo em vaso de argila cuidoso 
Arco e flecha e tacape a teus pésl 
Sê maldito e sozinho na terra; 
Pois que a tanta vileza chegaste, 
Que em presença da morte choraste; 
Tu, cobarde, meu filho não és". 

IX 

Isto dizendo, o miserando velho 

A quem Tupã, tamanha dôr, tal fado 

Já nos confins da vida resers^ara, 

Vai com trémulo pé, com as mãos já frias 

Da sua noite escura as densas trevas 

Palpando. — Alarmai alarma! — O velho pára; 

O grito que escutou é voz do filho, 

Voz de guerra que já ouviu tantas vezes 

Noutra .quadra melhor. — Alarmai alarmai 

— Esse momento só vale apagar-lhe 

Os tão compridos transes, as angústias, 

Que o frio coração lhe atormentaram 

De guerreiro e de pai: — vale, e de sobra. 

Ele, qiie em tanta dôr se contivera, 

Tomado pelo súbito contraste, 

Desfaz-se agora em pranto copioso, 

Que o exaurido coração remoça. 

A taba se alborota, os golpes descem: 

Gritos, imprecações profundas soam. 

Emaranhada a multidão braveja, 

Revolve-se, enovela-se confusa, 

E mais revolta em mór furor se acende. 

E os sons dos golpes que incessantes fervem, 

Vozes, gemidos, estertor de morte 

Vão longe pelas ermas serranias 

Da humana tempestade propagando 



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^ 449 _ 

Quantas vagas de povo enfurecido 
Contra um rochedo vivo se quebravam. 

Era ôle, o Tupi; nem fora justo 

Que a fama dos Tupis — o nome, a glória. 

Aturado labor de tantos anos, 

Derradeiro brazão da raça extinta, 

De um jato e por um só se aniquilasse. 

— Basta! já clama o chefe dos Timbiras, 

— Basta, guerreiro ilustre! assaz lutaste; 

— E para o sacrifício é mister forças. 
O guerreiro parou, câíu nos braços 

Do velho pai, que o cinge contra o peito, 
Com lágrimas de júbilo bradando: 
"Este, sim, que é meu filho muito amado! 
"E pois que o acho enfim, qUal sempre o tive, 
"Corram livres as lágrimas que choro, 
"Estas lágrimas, sim, que não deshonraml 

Poesias — Laemmert & Cia., 1896 



CASTRO ALVES 

{Bio-bibliografia à pág. 356) 



116. Vozes d^África 

Deus! ó Deusl onde estás que não respondes? 
Em que mundo, em que estrela tu te escondes. 

Embuçado nos céus? 
Há dois mil anos te mandei meu grito. 
Que embalde desde então corre o infinito... 

Onde estás. Senhor Deus? 

Qual Prometeu, tu me amarraste um dia 
Do deserto na rubra penedia. 

Infinito galé ! . . . 
Por abutre — me deste o sol ardente I 
E a terra de Suez foi a corrente 

Que me ligaste ao pé . . . 



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— 450 — 

O cavalo estafado do beduíno 
Sob a vergasta tomba ressupino 

E morre no areal; 
Minha garupa sangra, a dôr poreja, 
Quando o chicote o ^'simum" dardeja, 

O teu braço eternal. 

Minhas irmãs são belas, são ditosas... 
Dorme a Ásia nas sombras voluptuosas 

Dos "haréns" do Sultão... 
Ou no dorso dos brancos elefantes 
Embala-se coberta de brilhantes 

Nas plagas do Indostão. 

Por tenda — tem os cimos do Himalaia... 
O Ganges amoroso beija a praia 

Coberta de corais ... 
A brisa de Misora o céu inflama; 
E ela dorme nos templos do Deus Brama, 

Pagodes colossais . . . 

Europa — é sempre Europa, a glpriosal..» 
A mulher deslumbrante e caprichosa, 

Rainha e cortezã; 
Artista — corta o mármor de Garrara; 
Poetisa — tange os hinos de Ferrara, 

No glorioso afãl. . . 

Sempre o laurel lhe cabe no litígio... 
Ora uma c'rôa, ora o barrete frígio 

Enflora-lhe a cerviz; 
O universo após ela — doido amante — 
Segue cativo o passo delirante 

Da grande meretriz ! . . . 

Mas, eu, Senhor!. . . Eu. triste, abandonada, 
Em meio dos desertos esgarrada. 

Perdida, marcho em vão! 
Si choro... bebe o pranto a areia ardente! 
Talvez... p'ra que o meu pranto, ó Deus clemente, 

Não descubras no chão . . . 



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— 451 — 

E nem tenho uma sombra na floresta 
Para cobrir-me, nem um templo resta 

No solo abrasador . . . 
Quando subo às pirâmides do Egito, 
Embalde aos quatro céus. chorando, grito: 

"Abriga-me, Senhor!" 

Como o profeta em cinza a fronte envolve, 
Velo a cabeça no areal que volve, 

O siroco feroz . . . 
Quando eu passo no Saara amortalhada, 
Ai! dizem: "L^ vai Africa embuçada 

No seu branco albornoz ..." 

Nem vêem que o deserto é meu sudário. 
Que o silêncio campeia solitário 
Por sobre o peito meu ! 
Lá, no solo onde o cardo apenas medra 
Boceja a Esfinge colossal de pedra. 
Fitando o morno céu. 

De Tebtis nas colunas derrocadas 
As cegonhas espiam debruçadas, 

O horizonte sem fim . . . 
Onde o branqueja á caravana errante 
E o camelo monótono, arquejante 

Que desce de Efraim. . . 



Não basta ainda de dôr, ó Deus terrível?!.. 
É, pois, teu peito eterno, inexaurível 

De vingança e rancor?! 
E o que é que diz. Senhor? que torvo crime 
Eu cometi jamais, que assim me oprime 

Teu gládio vingador?! 

Foi depois do dilúvio... Um viandante, 
Negro, sombrio, pálido, arquejante, 

Descia do Arará ... 
E eu disse ao peregrino fulminado: 
"Chan, serás meu esposo bem amado. 

Serei tua Eloá. .." 
FxD 



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— 452 ^ 

Desde esse dia o vento da desgraça 
Por meus cabelos ululando passa 

O anátema cruel; 
As tríbus erram do areal nas vagas 
E o nómade faininto corta as plagas 

No rápido corcel. 

Vi a ciência desertar do Egito 

Vi o meu povo seguir — Judeu maldito — 

Trilho de perdição. . . 
Depois vi minha prole desgraçada 
Pelas g\ ^rras d'Europa — arrebatada, 

— Amestrado falcão I . . . 

Cristo! embalde morreste sobre um monte.,. 
Teu sangue não lavou da minha fronte 

A mancha original; 
Ainda hoje são, por fado adverso, 
Meus filhos — alimária do universo... 

Eu — pasto universal! 

Hoje em meu sangue a América se nutr^ 
— Condor quo transformara-se em abutre, 

Ave da escravidão, 
Ela juntou-se às mais... irmã traidoral 
Qual de José os vis irmãos outrora 

Venderam seu irmão!... 

Basta, Senhor! De teu potente braço 
Role através dos astros e do espaço 

Perdão para os crimes meus^ 
Há dois mil anos eu soluço um grito... 
Escuta o brado meu lá no infinito. 

Meu Deus! Senhor, meu DeusI. . . 

08 escravos — Manuscrito de Stenlo — "Obras 
de Castro Alves*' — H. Gamier. 



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IX. POESIA DRAMÁTICA 



MAGALHÃES (D. J. GONÇALVES DE) 

{Bio-bibliografia à pág. 289) 



117. Monólogo 

António José (tornando uma larga respiração) 

O ar me falta . . . 
Creio que morrerei nesta masmorra 
De fraqueza e tormento... O meu cadáver 
Será queimado e em cinzas reduzido! 
Ohl que irrisão!... Quão vis são estes homens! 
Como abutres os mortos despedaçam 
P*ra saciar seu ódio quando a vida 
De suas tristes vítimas se escapa! 

{Com indignçição) 

Não, eu não fugirei à vossa raiva. 
Não mancharei meus dias derradeiros, 
; Arrancando-me a vida; não, malvados. 

Antologia Brasileira 16 

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— 154 — 

Assas tenho valor para insultar-vos 
De cima da fogueira. A minha morte 
Quero que sobre vós toda recaia. 

(Pausa. Abaixa a cabeça como ab- 
sorvido em algum pensamento e, sacudin- 
do-tty diz com voz compassada e baixa) : 

Morrer!... morrer!... Quem sabe o que é a morte?... 

Porto dé salvamento ou de naufrágio!?. . . 

E a vida? um sonho num baixel sem leme. ... 

Sonhos entremeados d*outros sonhos, 

Prazer que em dôr começa e em dôr acaba . . . 

O que foi minha vida e o que é agora? 

— Uma masmorra alumiada apenas, 

Onde tudo se vê confusamente, 

Onde a escassez da luz o horror aumenta 

E interrompe o recôndito mistério. 

Eis o que é a vida! Mal que a luz se extingue, 

O horror e a confusão desaparecem, 

O palácio e a masmorra se confundem, 

Completa-se o mistério. . . eis o que é a morte, 

iAntônio José, ato V). 



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X. SÁTIRAS "EPIGRAHiS 



GREGÓRIO DE MATOS 

{Bio-bihliografia à pág. 296) 



118. Sátira 

Destes que campam no mundo. 
Sem ter engenho profundo, 
E, entre gabos dos amigos, 
Os vemos em papafigos, 
Sem tempestade, nem vento: 

Anjo Bento! 

De quem com letras secretas 
Tudo o que alcança é por tretas, 
Baculejando sem pejo, 
Por matar o seu desejo, 
Desde manhã té a tarde: 

Deus me guardei 

Do que passeia farfante, 
Muito prezado de amante, 
Por fora — luvas, galões; 
Insígnias, armas, bastões; 
Vor dentro — pão bolorento: 

Anjo Bento I 



X 



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— 456 ^ 

Destes beatos fingidos, 
Cabisbaixos, encolhidos, 
Por dentro fatais maganos, 
Sendo nas caras uns Janos, 
Que fazem do vício alarde: 

Deus me guardei 

Que vejamos teso andar. 
Quem mal sabe engatinhar, 
Muito inteiro e presumido. 
Ficando o outro abatido. 
Com maior merecimento: 

Anjo Bento! 

Destes avaros mofinos, 
Que põem na mçsa pepinos, 
De toda a iguaria isenta. 
Com seu limão e pimenta. 
Porque diz que queima e arde: 

Deus. me guardei 



119. Epigrama 



(A um livreiro a quem acusaram de ter comido 
todo um canteiro de alfaces) 

Levou um livreiro a dente 
D'alfaces todo um canteiro, 
E comeu, sendo livreiro, 
Desencadernadamente ; 
Porém eu digo qiie mente 
A quem disso o quer taxar; 
Antes é para notar 
Que trabalhou como um mouro. 
Pois meter folhas no couro 
Também é encadernar. 



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— 457 



120. A um músico que levara uma 
sova de pau 

Uma grave entoação 
Vos cantaram, Braz Luiz, 
Segundo se conta e diz, 
Por solfa de fá borâão; 
Pelo compasso da mão, 
Onde a valia se apura, 
Parecia solfa escura; 
PDrque a mão nunca parava, 
Nem no ar nem no chão dava. 
Sempre em cima da figura. 



MAGALHÃES (D. J. GONÇALVES DE) 

{Bio-bibliografia à pág. 289) 



121. Epigrama 



— E' verdade que da Europa 
Voltaste feito doutor? 

— Parece-te isto impossivel? 
E* verdade, sim, senhor. 

— E por qual Academia? 
E qual a ciência então? 

— Isso não sei: o diploma 
E* escrito em alemão. 



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— 458 — 



CORREIA DE ALMEIDA (padre) 

MIXAS GERAIS — BARBACENA — 1820 
t MINAS GERAIS — BARBACENA «^ 1905 

Bio-bibllo&raf ia — O Padre Correia Almeida (José Joaquim) 
chamado o Tolentino brasileiro, é talvez, depois de Gregório 
de Matos, o nosso mais notável poeta satírico. O velho pro- 
fessor de latim publicou mais de quinze volumes de versos, 
entre os quais sete de Sátiras e Epigramas, dois de Sonetos, 
4. República dos tolos, Sensaborias métricas (dois volumes), 
Decrepitude m,etromaniaca. Puerilidades de um macróbio... 

O Padre Correia de Almeida cultivou ainda os mais géneros 
de poesia e notabilizou-se como sonetista ; . correto na língua 
e na feitura do verso, que lhe saia fácil, correntio e espon- 
tâneo, mereceu elogios de Castilho e Camilo, os mestres da 
nossa língua. 

O Padre poeta escreveu ainda uma interessante Monogra- 
fia da cida(^ e do município de Barbacena, trabalho que lhe 
deu ingresso no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. 



122. A um galeno 

Um galeno foi à caça; 
Encontrou um passarinho; 
— Espera lá que eu te curo. 
. . . E matou o coitadinho . . . 



123. O doutor Saracura 

o doutor Saracura 
A curar começara; • 
Mas enquanto êle cura, 
O doente não sara. 



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— 459 — 

124. Epigrama 

Vossemecê inda ignora 
Que eu sou um homem de bem? 
— Ficarei sabendo agora! 
Que data a promoção tem? 



JOAQUIM MANUEL DE MACEDO 

(Bio-bibliografia à pdg, 14) 



125. Menina a la moda 

— "Ai, Maria! vem depressa, 
Desaperta ôste colete! 

Eu me sufoco... ai, já temo 
Estourar como um foguete!" 

— "Nhanhãzinha está tão bela! 
Mas, enfim, dá tantos ais . . . " 

— "Oh! espera! Estou bonita? 
Pois então aperta mais". 



LAURINDO RABELO 

{Bio-bibliografta à pág. 304) 



126. A um calvo pretensioso 

Cabeçal... que desconsolo! 
Cabeça!. . . força é dizô-lo: 
Por fora não tem cabelo, 
Por dentro não tem miolo. 



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— 460 — 

FAGUNDES VARELA 

(Bio-bibliografia à pág. 379) 



127. A língua humana 

Qual a mais forte das armas, 

A mais firme, a mais certeira? 

A lança, a espada, a clavina, 

Ou a funda aventureira? 

A pistola? O bacamarte? 

A espingarda ou a flecha? 

O canhão, que em praça forte 

Faz em dez minutos brecha? 

— Qual a mais firme das armas? 

O terçado, a fisga, o chuço, 

O dardo, a maça, o virote? 

A faca, o florete, o laço, 

O punhal ou o chifarote? 

A mais tremenda das armas, 

Pior do que a durindana^ 

Atendei, meus bons amigos. 

Se apelida — a língua humana. 



LÚCIO DE MENDONÇA 

(Bio^hibliografia à pág. 87) 



128. Epigrama 

A natureza tem sanções felizes; 
Rodeia o mal de penas pouco leves: 
Assim, tu tens de ouvir tudo o que dizes, 
E tens de ler também tudo o que escreves. 

N.o 3.289 — Oficinas Gráficas da Livraria Francisco Alves 



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EKtrato do Catálogo da Livraria Fraacisco Mves 



aOAO RIBEIRO: 

(irariKUí*:;^ PoHuguot*íi ~ Cm^^ú Superior 
Jijstorlii díi Braâíl — ílursti Buperlor 

BASÍLIO DE MAaALMACS: 

lU^lMri.i ái\ f;íviltMc5o — Pfimêira Sén%^ 

SeguDda Série 
Tnrceira Sérin 
Quartil Série 
QyÍDtii ^rie 

NEtSOn nOMÉRO: 

A rmeurdÃueíii t"' mh mw^ ^-tH hnWm 

CAMDJOO JUCÁ (fimo): 

Novo iiRUndii úí< anâlieo íla IJngiiaífinn 

OJALMA HASSEkMANNt 
MIÕUEL MILAJVO: 

Tert-^^ira 

ni»€DeiR08 E ALBUQUERQUE: 

VocahuiAno BrasMwiro de «irtognHk^ Oíícial 

ARLINDO FRdlt; 

,Qtiliii(i.M — O y ar ta Sérir 
Quinta í^érh* 

a. DE L AMARE SAO PAULO; 

FERNANDO RAJA BABAOLIA; 

Príihcai- til- ijeu grafia 

RICARDO RODRiaUEt VtEtRA e ELCIA8 LOPES: 

Gramática PríitU^a da liti#fua Ki-Rrjr-^ < 



I>ifii'Hi(Ja*Ii*t< íl,i 

CARL08 RAMOS 

Verbos \àk^\^^^