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Full text of "Ao de leve"

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LIVRARIA 

CASTRO 

E     SILVA 

LISBOA 


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AO   DE   LEVE 


Composto  e  impresso  na  Imprensa 
^^  de  Manuel  Lucas  Torres  ^  ^ 
^  Rua  do  Diário  de  Noticias,  g'3  ^ 


BRITO  CAMACHO 


Ao  de  leve 


\ 


1913 

Livraria  Eòitora 

GUIMARÃES  8í  C: 
68,  Rua  òo  Mundo,  70 

LISBOA 


o  estudante  que  hontem^  no  Rocio ^  foi 
attingido  por  uma  bala  na  cabeça, 
já  falleceu, 

(Dos  jornaes). 


Como  não  havia  de  adorai- o,  se  era  seu  filho 
único  ! 

Para  mais,  elle  era  o  retrato  vivo  do  pae,  com 
todas  as  qualidades  e  todos  os  defeitos  —  se  um 
filho  pôde  ter  defeitos  para  a  mãe  que  o  estre- 
mece ! 

Ficara  com  elle  nos  braços,  viuva  pela  maior 
das  fatalidades,  quando  ainda  não  tinham  seccado 
de  todo  as  flores  de  laranjeira  que  lhe  tinham  posto 
no  cabello  no  dia  do  seu  casamento,  e  nas  suas 
faces  havia  ainda  um  pouco  do  rubor  intenso  com 
que  as  haviam  tingido  os  beijos  loucos  que  elle 
lhe  dera,  já  seu  marido,  ao  voltarem  da  Egreja. 

Annos  e  annos  chorara  a  sua  viuvez,  e  mesmo 
quando  o  filho  lhe  extendia  os  bracitos  gordos, 
muito  risonho,  as  suas  lagrimas  não  estancavam. 


6  Ao  de  leve 

Mas  o  sau  pranto  já  não  era  só  de  dor ;  a  desgra- 
ça ainda  lhe  escaldava  a  garganta  com  soluços  que 
lhe  vinham  do  coração,  mas  já  lhe  nimbava  a  alma 
a  promessa  d'uma  felicidade  remota.  No  filho  via 
o  marido  —  era  como  se  dentro  de  um  tumulo 
assistisse  ao  esplendor  d'uma  aurora. 

Se  não  havia  de  adoral-o,  a  pobre  mãe ! 

Quando  elle  lhe  saiu  de  casa  para  continuar  os 
estudos,  pareceu-lhe  que  ficava  viuva  pela  segun- 
da vez.  As  suas  cartas  mitigariam  a  sua  saudade, 
e  ella  havia  de  lel-as  com  tamanha  devoção,  evo- 
cal-o  com  tanto  amor,  que  a  leitura  seria  afinal  uma 
conversa  entre  ambos,  elle  a  enxugar-lhe  os  olhos 
com  beijos,  e  ella  a  lavar-Ihe  as  faces  com  lagri- 
mas. 

]á  então  elle  era  quasi  um  homem,  alto  e  desem- 
penado,  uma  pennugem  leve  prenunciando  um  bi- 
gode negro,  que  seria  talvez  farto  e  provocador  co- 
mo o  do  pae.  Muito  estudioso,  e,  ao  mesmo  tempo, 
muito  intelligente,  contava  as  distincções  pelos  exa- 
mes, nunca  se  rebaixando  a  esmolar  uma  prote- 
cção, mantendo  sempre  perante  os  mestres  uma  atti- 
tude  que,  nem  por  ser  respeitosa,  deixava  de  ser 
altiva.  Ainda  n'isso  elle  era  como  o  pae,  orgulho- 
so sem  presumpção,  delicado  sem  maneirismos, 
altivo  sem  arrogâncias. 

Como  não  havia  de  adoral-o ! 

Surprehendia-se  a  fazer  projectos  de  vida  em 
commum,  quando  elle  acabasse  os  estudos,  e  fos- 
se, para  aqui  ou  para  além,  exercer  a  sua  profis- 


Ao  de  leve  7 

são.  ]á  a  deixariam  livre  os  negócios  da  sua  casa, 
que  a  retinham  agora  separada  d'elle,  a  contar  o 
tempo  pelo  seu  amor,  e  a  achar  os  mezes  infini- 
tamente mais  compridos  do  que  dizem  os  kalen- 
darios. 

Talvez  elle  um  dia  casasse;  mas  nem  assim  o 
deixaria,  humilde  na  casa  alheia,  fazendo-se  útil, 
sendo  prestimosa,  realizando  quantos  milagres  fos- 
sem precisos  para  se  tornar  indispensável.  Pois  se 
elle  era  a  única  razão  da  sua  vida,  como  poderia 
alguém  roubar-lh'o  sem  ao  mesmo  tempo  a  matar  ? 

Recebia  as  suas  cartas  em  dias  certos,  e  nunca 
elle  deixara  de  lhe  escrever  com  a  mais  rigorosa 
pontualidade.  A's  vezes  eram  apenas  quatro  linhas, 
meia  dúzia  de  palavras  que  ella  humedecia  com 
os  olhos,  para  as  enxugar  com  os  lábios. 

Como  não  havia  de  adoral-o,  a  pobre  mãe,  se  elle 
era  o  seu  filho  único,  para  mais  o  retrato  vivo  do 
pae,  com  todas  as  suas  qualidades  e  defeitos  — 
defeitos  que  para  ella  eram  qualidades! 

Ora  succedeu  que  n'aquelle  dia,  estando  como 
de  costume  á  espera  do  carteiro,  viu  que  elle  pas- 
sava pela  sua  porta,  sem  entrar.  Era  lá  possível 
não  ter  carta  ?  Provavelmente  confundira-a  no 
maço,  e  só  daria  por  ella  finda  a  distribuição.  Vi- 
ria então  entregar-lh'a. 

Passou  uma  hora,  passaram  duas  horas,  passou 
uma  eternidade,  e  o  carteiro  não  voltou. 

Estaria  doente?  Ter-lheia  acontecido  alguma 
desgraça  ? 


8  Ao  de  leve 

Distrahidamente,  quasi  sem  intenção,  pega  n'um 
jornal.  O  coração  deu-lheum  salto  dentro  do  pei- 
to, como  se  a  um  leão  dentro  de  uma  jaula  lhe 
enterrassem  nas  carnes  uma  choupa  em  braza. 

Houvera  tiros,  houvera  espadeiradas,  como 
n'uma  batalha.  Do  campo  tinham  retirado  muitos 
feridos,  tendo  lá  ficado  alguns  mortos. 

Foi  lendo,  lendo  tudo,  devorando  as  columnas 
do  jornal,  á  procura  d'um  nome,  na  anciã  d'um 
condemnado  á  pena  ultima,  que  um  indulto  pôde 
salvar. 

Esse  nome  lá  estava.  Ferido  com  uma  bala  na 
cabeça,  fora  levado  ao  hospital,  onde  os  médicos 
verificaram  o  óbito. 

Não  chorou,  não  soluçou,  não  gemeu,  anniqui- 
lada  por  completo. 

Quando  voltou  á  consciência  da  realidade,  ainda 
tinha  nas  mãos  o  jornal. 

Serena  e  trágica,  como  se  debruçada  sobre  uma 
sepultura  visse  lá  dentro  o  próprio  coração;  trá- 
gica e  dolorida  como  se  lhe  pezasse  n'alma  todo 
o  soffrimento  humano ;  morta  para  o  amor,  abra- 
zada  em  ódio: 

—  Mataram  o  meu  pobre  filho !  Maldito  seja 
para  sempre,  na  sua  descendência,  o  miserável 
assassino ! 

Como  não  havia  de  adoral-o,  a  pobre  mãe,  se 
elle  era  o  seu  filho  único ! 


Se  fores  um  dia  ao  ma?% 
Que  a  fot^tiina  te  não  deixe ; 
Bota  a  rede  e  vaete  embora, 
—  Quanto  mais  burro  mais  peixe. 


Fora  creado  de  medico,  e  como  a  Natureza  o 
dotara  com  bastante  intelligencia  e  um  notável  es- 
pirito de  observação,  aprendeu  mil  coisas  com  o 
doutor,  a  ponto  de  se  julgar  apto  a  fazer  o  que 
elle  fazia.  Depois  chocava-o  aquella  subalternida- 
de de  moço  de  consultório,  as  pessoas  que  entra- 
vam nem  reparando  n'elle,  e  algumas  que  n'elle 
reparavam  tratando-o  sem  cortesia.  Farto  d'aquelle 
viver,  reconhecendo-se  talhado  para  mais  altos 
destinos,  um  dia  pediu  contas  ao  patrão,  e  aba- 
lou sem  dizer  para  onde. 

Mezes  passados,  enchia  a  cidade  a  fama  de  um 
doutor  novo,  que  fazia  verdadeiros  milagres,  ha- 
vendo quem  affiançasse  que  dera  vista-  . .  a  uns 
poucos  de  aleijados,  e  cegara  uma  meia  dúzia  de 
coxos.  Por  acaso  o  doutor  topou  o  milagrante  col- 


10  Ao  de  leve 

lega  na  rua,  e  reconheceu  n'elle  o  seu  velho  crea- 
do,  muito  correcto,  muito  bem  posto,  tal  qual  um 
intrujão  com  diploma.  Ao  outro  dia,  era  um  do- 
mingo, foi  procural-o  ao  consultório,  curioso  de 
saber  como  aquillo  era  feito.  No  largo,  junto  ao 
adro  da  Egreja,  havia  uma  extraordinária  multi- 
dão. 

—  Quantas  pessoas  calcula  o  dr.  que  estejam 
além  ? 

—  Uns  milhares. 

—  E  quantas  d'essas  lhe  parece  que  serão  in- 
telligentes  ? 

—  Algumas  dúzias. 

—  Pois  essas  formam  a  sua  clientella;  o  resto 
pertence-me. 

Vinha  isiO  a  propósito- ^.  a  propósito...  Ahí 
sim  ;  a  propósito  da  tiragem  do  jornal,  que  o  admi- 
nistrador acha  pequena. 


^ 


A  necessidade  de  equilibrar  o  orça- 
mento pode  obrigar  o  governo  a  im- 
por sacrifícios  aos  funccionarios. 

(Dos  jornaes). 


Era  manso  como  um  cordeiro,  e  leal  como  um 
velho  amigo. 

O  general  montava  raras  vezes;  mas  ia  todos 
os  dias  visitar  o  seu  Turco,  limpar-Ihe  a  mange- 
doira,  pentear-lhe  a  crina,  passar-lhe  a  mão  pelo 
lombo,  n'uma  caricia  que  o  animal  agradecia, 
olhando- o  com  ternura. 

A's  vezes,  a  caminho  do  tanque,  encabritava-se 
com  o  impedido,  dando  saltos,  como  se  quizesse 
fugir  pelos  campos  fora,  no  goso  d'uma  liberdade 
que  não  conhecia,  mas  que  adivinhava. 

Lá  em  baixo,  na  várzea,  as  éguas  pastavam 
tranquillamente;  e  os  poldros,  virgens  de  toda  a 
domesticidade,  pulavam  como  cabritos,  mettendo  a 
cabeça  entre  as  mãos,  e  logo  desatando  n'uma 
correria  doida,  bebendo  os  ventos,  o  pescoço  muito 


12  Ao  de  leve 

extendido,  o  focinho  alto,  as  narinas  muito  aber- 
tas, respirando  com  estrondo.  E  era  então  que 
elle  se  encabritava  com  o  impedido,  firmando-se 
nas  patas  trazeiras,  dando  grandes  sacões  inúteis, 
porque  a  arreata  era  firme,  e  a  mão  que  a  segu- 
rava era  forte. 

Que  bom  devia  ser  a  liberdade! 

Por  certo  o  tratavam  bem ;  mas  aborrecia-lhe 
aquella  vida  ociosa  do  quartel,  todos  os  dias  a 
mesma  coisa  —  comendo  e  bebendo  por  toques  de 
clarim,  n'um  automatismo  de  machina,  com  uma 
regularidade  pendular.  Mas  era  manso  como  um 
cordeiro,  leal  como  um  velho  amigo,  —  umacrean- 
ça  faria  d'elle  o  que  quizesse.  Ora  succedeu  que 
um  dia  foram  dizer  ao  general  que  o  seu  Turco 
tinha  rebentado  o  impedido  com  uma  parelha  de 
coices.  Não  acreditou,  mas  entrando  na  cavallari- 
ça,  viu  o  pobre  diabo  extendido,  soffrendo  horri- 
velmente. 

—  Tu  que  fizeste  ao  cavallo ! 

—  Nada,  meu  general. 

—  E'  mentira.  Eu  conheço-o  muito  bem.  Que 
lhe  fizeste  ? 

—  Saberá  V.  Ex.^  que  elle  estava  a  comer  a 
ração,  e  vou  eu,  por  brincadeira,  mexi-lhe  na  bar- 
riga. 

—  Pois  ahi  está.  Não  se  mexe  na  barriga  de 
quem  come. 

Era  um  grande  philosopho,  o  general. 


Uma  sogra  nem  de  barro  á  porta. 


Andava  elle  pelo  Algarve  a  tratar  de  negócios, 
quando  o  chamaram  a  Lisboa,  por  telegramma, 
com  a  máxima  urgência.  Não  lhe  diziam  do  que  se 
tratava;  mas,  como  era  o  medico  quem  lhe  tele- 
oraphava,  ficou  n'um  susto  de  morte,  calculando 
que  ou  a  mulher  ou  o  filho  se  encontrasse  grave- 
mente doente.  Pouco  habituado  a  ser  feliz,  ima- 
ginou logo  o  peor. 

O  primeiro  comboio  partia  d'alli  a  doze  horas 
e,  como  ainda  pudesse  servir-se  do  telegrapho, 
correu  a  pedir  informações.  Disseram-lhe  que  era 
p.  sogra  que  adoecera  no  mesmo  dia  em  que  elle 
deixara  Lisboa,  e  que  a  doença  se  aggravava  de 
momento  para  momento,  receando-se  um  desen- 
lace fatal.  N'um  grande  ah!  deallivioe  satisfação, 
como  precisava  de  assignar  uma  escriptura  dahi  a 
três  dias,  foi-se  deixando  ficar,  pedindo  que  o  in- 
formassem, por  via  telegraphica  e  postal,  dos  pro- 
gressos da  doença. 


14  Ao  de  leve 

Receava  elle,  pouco  habituado  a  ser  feliz,  que 
a  doença  não  fosse  em  progresso,  e  por  isso  que- 
ria receber  noticias  amiudadas,  se  fosse  possivel 
a  toda  a  hora.  A  doente  peorava  a  olhos  vistos, 
e  dizia  o  medico  que  a  pneumonia  degenerava  em 
typho,  sendo  possivel  que  houvesse  meningite  á 
mistura.  Elle  tinha  uma  enorme  confiança  no  dou- 
tor, que  já  lhe  assistira  á  morte  de  toda  a  familia, 
e  a  quem  elle  conservara  o  partido,  não  para  o 
tratar  a  elle,  á  mulher  ou  ao  filho,  mas  tão  so- 
mente para  a  sogra.  Rematados  os  seus  negócios, 
metteu-se  no  primeiro  comboio,  com  o  coração 
aos  baques,  como  quem  aguarda  uma  sentença. 
Descia  o  medico  a  escada,  quando  elle  a  subia  es- 
bodegado, e  com  bagas  de  suor  perlando-lhe  a 
vasta  fron+e. 

—  . . .  Vi-a  morta,  meu  caro  amigo.  Lancei  mão 
de  todos  os  soccorros,  e  posso  dar-lhe  a  boa 
nova  de  que  passou  todo  o  perigo.  A  crise  fez-se 
hoje  mesmo,  e  agora  é  só  questão  de  tempo. 

Subiu  o  resto  das  escadas  a  cambalear,  como 
um  ébrio,  e  atirando-se  para  cima  do  sophá  que 
havia  na  sala  de  entrada,  n'um  abandono  de  quem 
se  vê  irremediavelmente  ludibriado : 

—  E  eu  que  tinha  tanta  confiança  n'esta  besta 
do  doutor!. . . 


A  policia^  ajudada  pela  guarda  mu- 
nicipal^ fartou-se  de  espancar  os  ci- 
dadãos pacificas^  realistando  muitas 
pi^isÕes. 

(Dos  jornaes). 


A  estrada,  larga  e  poeirenta,  passava  junto  á 
porta  sempre  aberta  do  jardim,  marginada  de  chou- 
pos e  eucalyptos. 

Toda  a  gente  das  aldeias  próximas  por  alli  fa- 
zia caminho,  no  giro  da  vida  ordinária,  homens, 
mulheres  e  creanças,  alguns  descalços,  e  outros 
rotos,  a  maior  parte  sem  pau  nem  pedra,  gente 
pacifica  como  bois  de  trabalho,  muito  pacifica  e 
muito  humilde. 

Aos  domingos,  nos  dias  santos,  quando  havia  fes- 
ta n'alguma  egreja  do  sitio,  poralH  passavam  ran- 
chos de  moças  garridas,  em  cabello,  cantando  e 
rindo,  cada  qual  pelo  braço  do  seu  namorado,  pa- 
rando aqui  e  além,  aos  abraços  e  beijos,  como 
^numa  kermesse  flamenga. 


16  Ao  de  leve 

Pois  era  n'esses  dias  que  o  Pandorga,  locatá- 
rio do  jardim,  quasi  escondido  por  detraz  de  uma 
parede  de  buxo,  atirava  os  cães  para  a  estrada, 
açulando-os  ás  canelas  de  quem  passava.  Csi,  csi, 
e  arregalava  o  olho,  guardado  no  seu  esconde- 
rijo, rindo  muito,  sem  fazer  barulho,  quando  os 
cães  rasgavam  as  saias  das  raparigas  ou  as  cal- 
ças dos  homens,  e  muito  mais  quando  lhe  appare- 
ciam  de  rojo,  após  a  lucta,  levando  ainda  nos  den- 
tes boccados  de  carne  em  sangue. 

Ora  succedeu  que  um  dia  havia  festa  alli  per- 
to ;  como  o  Pandorga  açulasse  os  cães  —  csiy  csi 
—  contra  um  bando  alegre  de  camponezes,  ra- 
pazes e  raparigas  que  iam  passando  a  cantar,  pa- 
cíficos como  bois  de  trabalho,  ouviu-se  um  estalo 
sêcco,  como  um  rebentar  de  escorva,  e  o  baque 
d'um  corpo  que  cae,  lá  adeante,  por  detraz  da  pa- 
rede de  buxo.  Soube-se  depois  que  tinha  morrido 
o  Pandorga,  e  os  cães  nunca  mais  assaltaram  as 
gentes  que  passavam  pela  estrada,  larga  e  poei- 
renta, e  de  quando  em  quando  paravam,  abraçan- 
do-se  e  beijando-se,  como  n'uma  kermesse  de  Ru- 
bens. 


% 


Hontem,  na  praça  de  touros^  houve 
uma  ligeira  manifestação  de  des- 
agrado á  Familia  Real.  O  rei  não 
assistia  ao  espectáculo. 

(Dos  jornaes). 


Falava-se  muito  das  suas  valentias,  embora 
ninguém  citasse  d'elle  uma  façanha  authentica, 
com  testemunhas  de  vista.  Era  volumoso,  e  d'ahi 
concluiam  que  era  forte;  eragabarola;  muita  gen- 
te acreditava  que  elle  tivesse  nos  músculos  tanta 
força  como  na  lingua.  Contava  elle  que  d'uma  vez 
matara  um  boi  com  um  soco,  e  n'um  dia  em  que 
passava  rente  a  um  acampamento  de  ciganos,  ar- 
mados de  cacetes  e  espingardas,  como  percebes- 
se que  lhe  faziam  troça,  desatou  aos  pontapés  a 
toda  aquella  malta,  pregando  com  o  mais  atrevi- 
do no  alto  d'uma  azinheira  que  estava  longe  d'alli 
uns  poucos  de  metros. 

Os  que  melhor  o  conheciam,  mofavam  das  suas 
farroncas ;  mas  não  faltava  quem  acreditasse  nas 


18  Ao  de  leve 

proezas  de  Ferrabraz,  intrépido  até  ao  sacrifi- 
cio  da  vida,  sem  lhe  bulir  um  cabello.  Ora  suc- 
cedeu  que  um  dia,  vindo  com  a  familia  a  caminho 
do  arraial,  n'uma  aldeia  da  visinhança,  alguém  o 
preveniu  de  que  se  preparava  uma  emboscada,  lá 
adeante,  n'um  cotovelo  da  estrada  antes  de  che- 
gar á  ribeira.  E  vae  elle  então,  muito  volumoso, 
pallido  como  se  todo  o  sangue  lhe  refluísse  ao  co- 
ração, os  cabellos  em  pé,  como  se  visse  deante  de 
si  a  guela  escancarada  d'um  leão  com  fome,  apal- 
pa-se  como  quem  procura  alguma  coisa,  e  baten- 
do no  hombro  da  companheira  : 

—  Vão  lá  andando,  vão  lá  andando,  que  eu  não 
me  demoro;  esqueceram-me  os  charutos. 

Não  voltou,  está  bem  de  ver,  e  no  outro  dia, 
quando  lhe  contaram  o  succedido,  ameaçou  o  céu 
e  a  terra,  espumando  como  um  javaH  ferido. 

—  Se  lá  estivesse,  rachava-os. 

E  pregou  tamanho  murro  no  cinzeiro  de  barro, 
que  o  fez  em  boccadinhos. 


^ 


Hontem  o  sr.  Maf^que:{  de  Soveral  teve 
com  El-Rei  uma  conferencia  de  duas 
horas, 

(Dos  jornaes). 


—  Franqueza,  franquezinha,  ó  coiso,  essa  histo- 
toria  da  intervenção. . . 

—  Era  pela  certa.  Hoje  a  politica  é  só  de  inte- 
resses, quem  governa  é  a  finança. 

—  Bem  sei,  governa  a  finança ;  mas  olha  que 
isso  de  intervir  sem  mais  nem  menos  em  negócios 
por  assim  dizer  caseiros.  • . 

—  Peço  perdão ;  mas  não  se  trata  d'um  nego- 
cio caseiro,  nem  m'esmo  d'um  negocio  exclusiva- 
mente nacional. 

—  Hom'essa!  Queres  então  dizer. . . 

—  Quero  dizer  que  em  torno  d'este  negocio  se 
formou  uma  atmosphera  de  interesses  internacio- 
naes. .  • 

—  Olha  que  não  tens  publico,  e  essas  lerias,  cá 
para  mim  .  . 


20  Ao  de  leve 

—  Cumpro  o  dever  que  me  impõe  a  minha  po- 
sição, e  testemunho  assim,  dizendo  a  verdade  in- 
teira, sem  restricções,  a  minha  sympathia  pes- 
soal . . . 

—  Sim,  senhor,  és  um  artista.  Vocês,  os  diplo- 
matas, são  como  os  homens  de  theatro  —  mesmo 
quando  estão  fora  do  palco,  representam. 

—  ]ulgava-me  com  direito  a  maior  considera- 
ção da  parte.  • . 

—  Também  eu  julgava  que  me  tivesses  na  conta 
de  menos  tolo.  Não  me  conheces  d'hoje  nem 
d'hontem,  para  saberes  que  ninguém  me  faz  o  ni- 
nho atraz  da  orelha. 

—  O  que?  Pois. . . 

—  Qual  historia!...  Acreditei  todas  as  lerias 
que  me  impingiste,  com  uma  seriedade  á  altura 
das  tuas  prosapias . . . 

~  Não  o  fiz  por  menos  respeito ;  o  uso  das 
formulas ... 

—  E'  como  o  uso  do  cachimbo  —  faz  a  bocca 
torta.  Sempre  me  sahiste  um  gajo!... 

—  Espero  que  não  fique  zangado. . . 

—  Peior.  .  .  Essa  agora  não  é  de  diplomata,  é 
d'alarve. 

—  Sempre  amável ! . .  • 

—  Sempre  justo.  Mas  falando  agora  de  coisas 
serias.  Tu  achas  que  eu  devo .  • . 

—  Ora  essa  !  Está  claro  que  deve.  Da  fama  nin- 
guém o  livra,  e  as  honras  sem  proveito.  • . 

—  E  quanto  achas  tu. . . 


Ao  de  leve  21 

—  Em  negocio  de  tanta  monta,  nunca  se  pede 
de  mais. 

—  Pois  sim,  tudo  tem  limites.  Ahi  uns  duzen- 
tos contitos,  mais  vintém,  menos  vintém . . .  Que 
te  parece  ? 

—  Parece-me  que,  pedindo  essa  bagatela,  dá 
provas  d'uma  grande  generosidade. 

—  Bem  se  vê  que  não  és  tu  quem  tem  de  es- 
portular  as  massas.  Pois  está  dito;  faço  a  coisa 
pelos  duzentos. 

—  E'  como  se  lhes  desse  a  elles  trezentos  e 
vinte,  o  que  não  é  barro. 

--  Quero  ser  generoso.  • . 
-  Do  pão  do  nosso  compadre. . . 

—  Pois  sim,  canta-lhe  d'essas ;  mas  se  as  coi- 
sas se  complicam  e  me  põem  a  viola.  . . 

—  Qual  põem !  Chego  ás  vezes  a  imaginar  que 
tem  medo. 

—  Tu  não  me  digas  isso  outra  vez,  olha  que  te 
ponho  os  queixos  á  banda.  Eu  nunca  tive  medo. 
]á  d  uma  vez,  n'uma  feira,  se  ergueu  tudo  contra 
mim,  sem  saber  quem  eu  era,  e  não  arredei  pé, 
de  cacete  em  punho,  sem  ninguém  pelo  meu 
lado. 

—  Bem  sei,  bem  sei ;  mas  se  amanhã  houves- 
se qualquer  coisa,  em  menos  de  nada  estavam  alli 
08  cavalinhos  de  pau,  e  tudo  entraria  na  ordem. 

—  E  se  me  puzessem  a  andar  antes  delles  cá 
chegarem  ? 

—  Isso  então  era  o  diabo  Uma  intervenção  tar- 


22  Ao  de  leve 

dia,  depois  do  facto  consumado . . .  Mas  é  absur- 
do o  suppôr- . . 

—  Será  absurdo,  será ;  mas,  pelo  sim  pelo  não, 
vou  dobrar  a  parada.  Os  gajos  repontarão  ? 

—  Que  tem  lá  que  repontem  ?  •  . . 

—  Está  claro.  Isto  é  como  dizia  o  de  Draga  — 
ou  comem  todos,  ou  ha-de  haver  moralidade. 


^ 


S.  M.  a  Rainha,  acompanhada  da  sua 
dama  de  serviço,  andou  hontem  dis- 
tribuindo esmolas  no  bairro  de  Al- 
fama, sem  se  dar  a  conhecer. 

(Dos  jornaes). 


Não  queria  que  a  conhecessem. 

Abalava  de  casa,  vestida  como  toda  a  gente,  sem 
nada  que  pudesse  chamar  as  attenções  de  quem 
quer  que  fosse.  Era  uma  creatura  como  qualquer 
outra,  e  passava,  como  qualquer  outra,  no  meio  da 
geral  indifferença.  Os  que  a  conheciam  cumpri- 
mentavam-na  —  bons  dias,  minha  senhora  !  —  e 
os  que  a  não  conheciam  nem  sequer  davam  por 
cila.  O  passo  meudinho,  muito  apressado,  como 
quem  marcha  para  um  certo  fito,  sem  se  impor- 
tar com  o  resto.  Entrava  aqui,  entrava  além,  fazia 
o  bem  que  podia,  e  nem  esperava  que  lhe  agra- 
decessem 08  miseráveis  a  quem  extendia  a  mão, 
deixando  cahir  uma  esmola.  Como  não  se  sabia 
quem  fosse,  chamavam-lhe  a  Caridade.  Envelhe- 


24 


Ao  de  leve 


ceu  muito,  como  toda  a  gente  que  teima  em  viver 
e  morreu  um  dia,  encarquilhada  e  secca,  como  a 
maior  parte  das  velhas.  Era  a  Caridade  Evan- 
gélica. 

Tempos  depois,  nos  mesmos  bairros  pobres  en- 
trou de  apparecer  uma  creatura  exótica,  dando  nas 
vistas  de  toda  a  gente,  obrigando  a  parar  quem 
passava,  para  a  fixar  com  attenção.  O  passo  lar- 
go, muito  lento,  como  quem  não  tem  pressa,  e 
que  quer  por  força  dar  nas  vistas.  Entrava  aqui, 
entrava  além,  como  quem  passeia  um  reclame, 
e  gostava  que  lhe  enchessem  as  mãos  de  lagrimas 
agradecidas  os  miseráveis  a  quem  dava  esmola- 
Como  não  se  sabia  quem  fosse,  n'um  dia  que  ella 
passava,  o  passo  largo,  muito  lento,  quasi  rythmi- 
co,  dois  miseráveis  que  a  viam  passar,  como  quem 
passeia  um  reclame: 

—  E'  a  Dona  Caridade  ? 

—  Não ;  é  a  Exploração  da  Miséria. 


\ 


o  Priticipe  Realfa'{  immensos  progres 
SOS  nos  seus  estudos^  causando  a  ad- 
miração dos  seus  professores. 

(Dos  jornaes). 


Era  um  prodígio,  o  garoto. 

Contava  a  parteira  que  elle  olhara  para  traz, 
quando  nasceu  piscando  um  pouco  os  olhitos  ramel- 
losos,  como  quem  pretende  ver  melhor.  Aos  três 
mezes,  já  tocava  com  os  deditos  cor  de  rosa  nos 
bicos,  pouco  salientes,  dos  peitos  da  ama,  pondo - 
os  em  erecção,  para  mammar  melhor.  Viam  todos 
que  era  um  pequeno  muito  talentoso,  e  um  bocca- 
dinho  brejeirote.  Aos  noves  mezes  dizia  —  bolas  ! 
—  e  foi  essa  a  sua  primeira  palavra.  Comia  de  tudo, 
antes  de  fazer  o  anno,  e  larachava  com  os  crea- 
dos  finos,  como  se  fosse  uma  pessoa  grande.  Era 
um  prodigio,  o  demónio  do  garoto,  d'uma  preco- 
cidade verdadeiramente  excepcional.  Um  familiar 
da  casa  perguntava  d'uma  vez  ao  medico,  a  pro- 
pósito do  fedelho  —  Naturalmente^  um  génio, 


26 


Ao  de  leoe 


doutor  ?  E  o  doutor,  encolhendo  os  hombros  em 
ar  de  duvida  —  Naturalmente  um  idiota ! 

Aos  cinco  annos  já  sabia  tudo  —  quantas  per- 
nas tem  um  cão,  quantas  orelhas  tem  um  burro, 
quantos  rabos  tem  um  gato.  Era  prodigioso,  e  ca- 
da dia  que  passava  como  que  accrescia  de  muitos 
metros  aquelle  talento  incommensuravel.  Aos  no- 
ve annos  era  umgeometra  como  Euclides,  era  um 
historiador  como  Tácito,  era  um  philosopho  como 
Platão,  era  um  pintor  como  Raphael,  era  um  poe- 
ta como  Camões,  um  romancista  como  Balzac,  um 
cabo  de  guerra  como  Napoleão,  um  estadista  co 
mo  o  sr.  Lapin.  A  tal  ponto  lhe  cresceu  o  génio, 
que  já  não  havia  espaço  para  o  conter,  a  dentro 
das  fronteiras  nacionaes. 

Foi  então  que  se  reconheceu  a  necessidade  de 
o  mandar  para  longe,  onde  fossem  mais  largos  os 
horizontes,  que  os  génios,  como  os  gazes  quando 
os  comprimem  além  d'um  certo  grau,  são  eminen- 
temente explosivos. 

E  porque  era  ainda  muito  novinho,  sem  expe- 
riência do  mundo,  apezar  do  seu  immenso  talen- 
to, foi  a  familia  com  elle,  e  por  lá  ficaram  todos 
—  para  bem  de  todos  nós. 


X 


aE  melhor  tratar  d' outro  oficio.  O  jor- 
nal ha  de  morrer  d  falta  de  leito- 
res^  porque  você  ter  d  geito  para 
tudo,  mettos  para  jornalista.)^ 

(Carta  anonYma). 


Oh !  la  pauvre  bete!, . . 

Era  na  verdade,  um  animal  perfeito.  De  côr 
acastanhada,  a  anca  alta,  largo  dos  peitos,  uma 
estreita  branca  na  testa,  talvez  demasiadamente 
sellado,  a  perna  delgada  e  nervosa,  a  cauda  farta 
e  comprida,  era  um  burro  que  fazia  parar  quem 
passava,  admirando-o,  e  succedeu  a  mais  de  uma 
beata,  ferida  de  tamanha  belleza  e  correcção,  es- 
tacar no  caminho  das  suas  devoções,  e  não  poder 
reprimir  nas  arcas  santas  do  peito  esta  exclama- 
ção blasphema :  —  Benza-o  Deus,  como  é  bo- 
nito!. . . 

Procopio  então  passava  horas  no  enlevo  do  seu 
burro,  afagando- lhe  o  focinho  e  alisando-lhe  o 
pello,  não  consentindo  que  sobre  elle  poisasse  uma 


28  Ao  de  leve 

mosca,  ou  lhe  manchasse  a  pelle  acastanhada  um 
grãosinho  de  poeira.  Era  uma  espécie  de  burro- 
latria,  um  culto  religioso  que  lhe  enchia  a  alma, 
dando-lhe  todas  as  satisfações  espirituaes  que  re- 
sultam para  um  crente  da  adoração  do  seu  feti- 
che. E  porque  se  lhe  afigurasse  que  o  burro  não 
era,  como  os  outros  burros,  uma  simples  cavalga- 
dura, desatou  a  alimental-o  com  o  melhor  da  sua 
mesa,  dando  todas  as  coisas  boas  e  raras  que  en- 
contrava na  sua  despensa  ou  se  confeccionavam 
na  sua  cozinha.  Mas  nem  o  burro  lhe  pegava  nos 
acepipes,  nem  ao  menos  se  mostrava  agradecido 
aos  seus  disvelos  e  blandícias.  Procopio  lamenta- 
va-se  da  sua  má  sorte,  chorava  a  sua  desdita,  sem- 
pre amigo  do  seu  burro,  sempre  idolatra  do  seu 
Ídolo,  sempre  adorando  o  seu  fetiche.  E  como  quer 
que  um  dia,  desabafando  n'um  peito  amigo,  se 
queixasse  da  ingratidão  dos  burros,  vae  o  outro, 
grande  philosopho,  com  larga  experiência  da  vi- 
da, aconselha-o  assim : 

—  A  culpa  é  tua,  Procopio,  e  de  mais  ninguém. 
O  burro  não  foi  feito  para  comer  á  tua  mesa,  co- 
mo tu  não  foste  feito  para  comer  á  mangedoura* 
Queres  vel-o  gordo,  alegre,  contente,  a  lamber- te 
as  mãos  reconhecido  ? 

E  como  Procopio  estendesse  o  pescoço,  a  be- 
ber-lhe  as  palavras.  ■  - 

—  Dá- lhe  palha,  Procopio  amigo. . . 


S.  M.  a  Rainha  visitou  hontem  o  Hos- 
pital de  S,  José, 

(Dos  jornaes). 


Estava  perdida. . . 

Começava  asoffrer  do  peito,  havia  annos,  e  co- 
mo precisava  de  trabalhar  sempre,  trabalhar  sem 
descanço,  para  não  vir  a  fome  juntar-se  á  doença 
encurtando-lhe  a  vida,  o  mal  foi  augmentando  cons- 
tantemente, aquelle  terreno  sendo  próprio  para 
aquella  vegetação,  e  as  circumstancias  ajudando 
como  n'um  bom  anno  agricola.  Que  era  uma  cons- 
tipação, tinha  dito  o  medico  do  monte-pio,  n'uma 
visita  em  automóvel,  a  trinta...  réis  a  consulta. 
O  certo  é  que  as  dores  augmentavam-lhe,  como 
se  tivesse  o  peito  mettido  n'uma  prensa ;  a  tosse 
era  funda,  como  se  lhe  viesse  do  mais  intimo  dos 
pulmões;  manchas  de  febre  punham-lhe  nódoas 
vermelhas  na  cera  do  rosto  emmagrecido,  e  sentia 
o  sangue  subir-lhe  á  bocca,  em  golfadas,  que  a 
muito  custo  reprimia.  Despediram-n'a  da  fabrica, 


30  Ao  de  leve 

incapaz  de  trabalhar,  e  como  recuasse  perante  a 
morte,  uma  noite,  a  olhar  as  aguas  do  rio,  foi  á 
consulta  no  hospital,  e  ficou  na  enfermaria.  Esta- 
va tisica. 

Ninguém  a  visitava,  porque  não  tinha  ninguém, 
e  como  fosse  naturalmente  pouco  communicativa, 
passava  os  dias  e  as  noites  a  sentir-se  morrer  aos 
boccados,  amaldiçoando  a  sorte  que  a  fizera  pobre, 
e  attribuindo  á  miséria  o  descalabro  da  sua  vida. 
Por  maneira  que  naquelle  dia,  á  hora  do  silencio, 
quando  acordou  do  seu  alheiamento,  e  sentiu  perto 
da  sua  cama  como  um  frou-frou  de  sedas,  muito 
pallida,  muito  magra,  quasi  cadavérica,  ergueu-se 
na  cama  como  se  a  movesse  uma  mola,  e  fixando 
na  visitante  os  seus  grandes  olhos  negros,  disse- 
Ihe  como  na  vehemencia  d'um  delirio : 

—  Não  é  verdade,  minha  senhora,  que  a  socie- 
dade é  infame  quando  a  uns  dá  o  supérfluo,  sem 
dar  a  todos  o  que  é  preciso  ? 


^ 


S.  M.  andou  hontem  pelos  bairros  po- 
bres distribuindo  esmolas  no  mais 
rigoroso  incógnito. 

(Dos  jornaes). 


Que  frio  cortante,  meu  Deus! 

O  sol  é  como  um  brazeiro  apagado,  que  ainda 
conservasse  luz  nas  cinzas  —  uma  luz  fria  e  baça. 
O  vento  retalha-nos  a  cara,  e  põe  nas  pobres  ar- 
vores sem  folhas  umas  tremuras  de  velhinho,  a 
esconder  sob  os  farrapos  as  carnes  enregela- 
das. 

Que  frio  cortante.  Deus  do  céu ! 

A  miséria  é  insupportavel  no  inverno,  porque 
tudo  se  conjuga  para  lhe  dar  uma  agudeza  de  ex- 
piação, um  requinte  de  pena  bíblica,  sem  laivos 
de  misericórdia.  Não  ha  fogo  no  lar,  não  ha  pão 
no  armário,  não  ha  cobertores  no  leito,  ás  vezes 
nem  leito  ha. 

Que  frio  cortante.  Senhor! 

E  é  então  que  a  Opulência  desce  ao  antro  on- 


32  Ao  de  leve. 

de  agoniza  o  miserável,  pondo-Ihe  na  mão  resse- 
quida o  quanto  baste  para  illudir  a  fome. 

Mas  porque  haverá  no  mundo  esta  tremenda 
desegualdade,  se  lá  nos  altos  céus  existe  uma  jus- 
tiça absoluta,  e  se  existe  cá  em  baixo  uma  vulgar 
noção  do  que  seja  a  equidade  ? 

Que  frio  cortante,  meu  Deus! 

Dá  vontade  de  morrer,  para  fugir  d'este  infer- 
no, e  ao  mesmo  tempo  dá  vontade  de  accender 
uma  grande  fogueira,  a  que  se  aqueçam  todos  os 
desgraçados. 

Se  os  poderosos  soubessem  como  se  soffre  no 
inverno!  Ou  não  tirariam  nada  aos  pobres,  ou 
lhes  restituiriam  quanto  lhes  tiram,  n'um  desejo 
sincero  e  grande  de  fazer  obra  meritória. 

Mas  elles  nem  sonham,  meu  Deus !  como  é  hor- 
rivel  a  miséria  no  inverno. 


\ 


SS.  MM.  foram  muito  acclamadas  na 
estação  do  Rocio. 

(Dos  jornaes). 


—  Peço  desculpa  a  V.''  Ex.'\  mas  como  tenho 
umas  continhas. .  • 

—  Pois  sim ;  mas  eu  já  lhe  disse  que  antes  do 
fim  do  mez  não  posso  pagar-lhe. 

—  E'  verdade  que  disse ;  mas  como  V.  Ex.^ 
agora  tem  dinheiro . . . 

—  Qual  dinheiro,  nem  qual  carapuça!  O  sr. 
imagina  que  me  morreu  algum  tio  no  Brazil,  que 
apanhei  a  sorte  grande,  ou  que  levei  alguma  banca 
á  gloria  ? 

—  Não  senhor ;  não  imagino  nada  d'isso.  Mas 
ccmo  V.  Ex.*  foi  encarregado  do  vivorio,  acho  que 
pode  muito  bem  regular  já  as  nossas  contas,  para 
eu  me  não  ver  envergonhado  com  os  meus  cre- 
dores. 

—  O  sr.  está  doido,  com  certeza !  Imagina  tal- 
vez que  se  paga  aquelle  serviço  á  larga,  pelo  me* 


34  Ao  de  leve 

nos  com  certa  generosidade,  como  seria  justo  que 
se  fizesse  ?  > . . 

—  Como  isso  é  feito,  não  sei  eu  ;  o  que  eu  sei 
é  que  ao  pé  de  mim  estava  um  sujeito  todo  bem 
posto,  de  cartola,  que  deu  apenas  dois  vivas,  e 
abalou  muito  risonho  esfregando  as  mãos,  e  a  di- 
zer para  o  companheiro :  —  já  cá  cantam  dois 
mil  réis.  E  toda  a  gente  dizia  por  alli  que  V.  Ex.'\ 
tinha  recebido  um  conto  e  duzentos  mil  réis  para 
dirigir  aquella  manobra. 

—  Sim,  senhor,  para  dirigir  aquella  manobra... 
e  para  pagar  aquella  gente.  Imagina  que  se  dão 
vivas  de  graça?  í-ois  engana-se  redondamente. 
Quem  menos  ganha,  é  quem  mais  grita,  e  ha  me- 
nino que  recebe  as  massas  e  fica  mudo  como  um 
peixe. 

—  Mas  V.  Ex.^  bem  vê  que  eu  já  tenho  espe- 
rado muito,  e,  se  o  importuno  agora,  é  porque  me 
parece  a  occasião  favorável. 

—  Desfavorável,  é  que  elia  é.  Em  primeiro  lo- 
gar,  eu  ainda  não  recebi  a  teca ;  depois  tenho  que 
pagar  á  minha  gente  melhor  que  das  outras  ve- 
zes, porque  elles  estavam  falados  para  não  se 
prestarem  á  coisa.  Isto,  meu  amigo,  foi  chão  que 
deu  vinha.  N'outro  tempo,  um  diabo  que  enrou- 
quecia  a  dar  vivas,  contentava-se  com  dois  tostões» 
doze  vinténs,  e  ás  vezes  com  um  simples  habito 
de  Chrisío,  ou  uma  commenda  da  Conceição.  Vão 
lá  agora  acenar-lhes  com  isso,  a  vêr  quantos  lhe 
pegam  ! .  • . 


Ao  de  leve  35 

—  De  maneira  que. . . 

—  De  maneira  que  o  amigo  terá  de  esperar 
mais  algum  tempo,  e  como  realmente  eu  lhe  sou 
grato,  não  quero  que  perca  o  freguez,  tanto  mais 
que  o  senhor  trabalha  bem.  Lá  me  tem  amanhã, 
a  escolher  a  fatiota  da  estação. 

—  Que  pagará. . . 

—  Quando  houver  outra  manifestação  espontâ- 
nea. 

Resmungava  o  alfaiate,  descendo  a  escada  — 
Que  grande  pulha ! 

Dizia  o  vivographo,  fechando  a  porra  -  Que 
grande  idiota! 


\ 


Honiem  a  sessão  teve  de  ser  interrom- 
pida na  Camará  dos  Deputados^  por 
causa  do  chinfrim,  O  sr,  José  Lu- 
ciano  mostrou-se  satisfeito* 

(Dos  jornaes). 


Durante  muito  tempo,  por  largos  annos,  o  seu 
ar  recolhido  e  severo  deu  a  muita  gente  a  impres- 
são d'um  pensador,  alheiando-se  propositadamen- 
te do  mundo  para  melhor  se  engolfar  nas  suas 
cogitações.  E  porque  nada  resultasse  das  suas  lo- 
cubrações  d'espirito,  assentou-sft  em  que  aquelle 
vasio  significava  profundeza.  Não  era  talvez  um 
philosopho,  mas  era  um  homem  d'Estado.  E  assim 
foi  trepando  a  escadaria  Íngreme  da  carreira  po- 
litica, sempre  solemne,  sempre  severo,  sempre  re- 
colhido, e  sempre  oco.  Não  havia  duvida  possivel 
—  estava  alli  um  prodigioso  talento,  uma  organi- 
zação rara  d'estadista,  a  que  só  faltava  ter  uma 
ideia  e  produzir  um  facto.  Senão  quando,  um  irre- 
verente que  attentou  n'aquella  austeridade  de  ma- 


Ao  de  leoe  37 

nequim,  n'aquelle  ar  fúnebre  de  cypreste,  n'aquel- 
la  fronte  larga  sem  reverbero  intellectual,  um  irre- 
verente apontou-o  á  multidão,  e  gritou-Ihe  nas 
bochechas  -    é  fundamentalmente  estúpido ! 

Por  maneira  que  outro  dia,  apoz  aquelle  chin- 
frim no  parlamento,  quando  o  presidente  do  con- 
selho ria,  como  quem  se  banha  em  agua  de  ro- 
sas, e  a  camará  inteira  se  põe  ao  fresco,  domina- 
da pelo  vago  presentimento  de  que  fizera  o  jogo 
do  governo,  o  pobre  grande  homem,  antecipando 
a  amargura  dos  seus  desatres,  encostado  á  pare- 
de, como  quem  soffre  uma  vertigem,  deixou  cahir 
dos  lábios  murchos  estas  palavras  desconsoladas 
—  Parece-me  que  fiz  asneira ! 

E,  pela  primeira  vez  na  vida,  reconhecendo  que 
fizera  asneira,  o  grande  homem  se  mostrou  intel- 
ligente. 


X 


A  situação  do  rei  é  de  cada  rei  '"^^^ 
gi^ave.  O  único  remédio  ainda  pos- 
sivel  é  a  abdicação. 

(Nas  entrelinhas  ôos  jornaes). 


Era  uma  conspirata. 

Reuniani-se  todas  as  noites  fora  de  portas,  em 
casa  d'um  tasqueiro  de  boa  reputação,  homem  de 
lettras  gordas,  mas  de  princípios  severos,  incapaz 
de  faltar  á  sua  palavra,  preferindo  mil  vezes  a 
morte  a  uma  vilania.  De  modo  que  para  este  não 
havia  segredos,  nem  para  a  sua  companheira,  uma 
velhota  gordunchuda  que  teimara  em  não  ter  fi- 
lhos depois  de  casada,  farta  de  os  ter  em  solteira. 
Bem  entendido,  o  tasqueiro  não  tomava  parte  nas 
discussões ;  mas  quando  elle  entrava  com  o  peixe 
frito  e  a  caneca,  de  chinellas,  com  um  lenço  en- 
carnado a  chupar-lhe  o  suor  da  cachaceira,  nin- 
guém recolhia  a  fala  ao  buxo,  porque  se  sabia  que 
elle  era  incapaz  de  uma  traição,  ou  mesmo  d'uma 
imprudência. 


Ao  de  leve  30 

Elle  bem  sabia  do  que  se  tratava ;  mas  fingia 
não  saber  nada,  correspondendo,  com  extremos 
de  correcção,  á  penhorante  confiança  que  tinham 
n'elle.  Tratava-se  de  substituir  um  porco  por  um 
leitão,  o  que  tudo  vinha  a  dar  n'uma  trem.enda 
porcaria.  Mas  os  conspiradores  mostravam-se  en- 
carniçados na  sua  ideia,  crendo  n'ella  como  nas 
pílulas  Pink,  ou  no  xarope  da  mãe  Seigel.  A  una- 
nimidade não  era  completa,  e  como  uma  noite 
resolvessem  não  sair  d'alli  sem  assentarem  em  al- 
guma coisa  de  definitivo,  um  d'elles  lembrou  que 
se  ouvisse  a  opinião  do  tasqueiro,  homem  de  let- 
tras  gordas,  mas  de  principios  severos,  mais  intel- 
ligente  do  que  seria  preciso  para  exercer  a  sua 
profissão,  e  discreto  como  um  tumulo.  Por  ma- 
neira que  quando  elle  entrou,  o  lenço  encarnado 
a  chupar-lhe  o  suor  do  cachaço,  a  travessa  do 
peixe  frito  na  mão  esquerda,  e  na  direita  um  for- 
midável cangirão,  espumante  de  vinho  verde,  um 
dos  conspiradores  poz-lhe  nitidamente  a  questão, 
e  pediu  o  seu  parecer : 

—  Eu  cá,  por  mim,  não  entendo  d'essas  coisas; 
mas  sempre  ouvi  dizer  que  a  racha  sae  ao  ma- 
deiro, e  meu  avô,  que  andou  nas  guerras,  e  sof- 
freu  primeiro  por  causa  de  D.  Miguel,  e  soffreu 
depois  por  causa  de  D.  Pedro,  costumava  dizer  á 
gente,  quando  se  falava  dessas  coisas  —  creio  que 
ha  uns  reis  peores  do  que  outros;  que  haja  me- 
lhores, não  acredito. 


Di:{-sc  que  a  questão  politica  rae  ser 
tratada  no  Parlamento  com  violên- 
cia^ não  se  poupando  ataques  ao 
Chefe  de  Estado. 

(Dos  jornaes). 


Se  tivesse  echo  !• . . 

Era  positivamento  uma  obsessão ;  mas  queria 
por  força  uma  quinta  que  tivesse  echo,  e  não  se 
importava  pagar  esse  capricho  a  peso  de  dinhei- 
ro. Deixara  a  Pátria  muito  novo,  e  no  Brasil,  á 
força  de  trabalho  e  economia,  a  sorte  ajudando 
um  pouco,'conseguira  fazer  fortuna.  Todas  as  noi- 
tes, ao  fechar  da  loja,  consultava  o  livro  de  z'a- 
zão,  e  como  visse  que  os  negócios  lhe  corriam 
bem,  ganhando  sempre,  tomava  o  chásinho  com 
torradas,  entretinha-se  um  pouco  com  os  garotos, 
e  ia  metter-se  na  cama  tranquillo  e  satisfeito,  co- 
mo um  patriarcha  bibhco.  Sonhava  então  com  a 
sua  aldeia  ;  via-se  outra  vez  no  modebío  casinhoto 
em  que  nascera;  encontrava  se  de  novo  com  os 


Ao  de  leve  41 

rapazes  da  sua  geração,  e  abalavam  todos  de  res- 
tolhada,  a  caçar  os  ninhos  ou  a  roubar  amoras, 
este  sem  chapéu,  aquelle  sem  jaqueta,  e  todos  não 
lhe  pesando  o  pé  uma  onça,  quando  o  vinheiro 
se  apercebia  do  grupo,  e  fazia  estalar  a  funda  ou 
rebentar  uma  escorva,  no  momento  em  que  estes 
saltavam  o  vallado,  para  colherem  uvas.  O  que 
fazia  o  principal  encanto  de  seus  sonhos,  era  a 
conversa  com  o  echo,  um  echo  muito  perfeito 
que  havia  perto  da  aldeia,  no  sitio  chamado  das 
Antas.  ]á  accordado,  ainda  lhe  parecia  que  tinha 
realmente  ouvido  o  echo  —  quem  está  lá!  —  e 
fechava  os  olhos,  n'um  esforço  enorme  de  concen- 
tração, parecendo- lhe  que  talvez  assim  o  ouvisse 
ainda.  E  então,  principiava  a  dbsedial-o  aquella 
ideia  do  echo,  que  já  ouvia  mesmo  acordado  — 
quem  está  lá !  -  -  victima  d'uma  allucinação  do 
ouvido.  Por  maneira  que  passados  annos,  voltan- 
do á  sua  terra,  deitou-se  a  procurar  uma  quinta 
que  tivesse  echo,  não  se  importando  pagar  o  seu 
capricho  a  peso  de  dinheiro.  Soube  d'isso  o  Tho- 
mé  Cantigas,  e  logo  se  poz  a  instruir  o  velho  João, 
um  creado  que  já  estava  na  casa  quando  elle 
nascera,  por  maneira  a  funccionar  d  echo  quando 
lá  fosse  o  brasileiro,  com  quem  tinha  a  quinta 
ajustada.  Ora  succedeu  enfão  esta  coisa  curiosa : 
—  quando  o  Thomé,  em  companhia  do  brasilei- 
ro, do  escrivão  e  das  testemunhas,  para  verifica- 
rem o  echo,  gritou  com  toda  a  força  dos  seus  pul- 
mões —  O'  João !  —  o  pobre  diabo,  escondido  por 


42  Ao  de  leve 

detraz  d'uma  pedra,  ouvindo  aquella  voz  tão  sua 
conhecida,  e  sentindo  acordar  em  si  quarenta  an- 
nos  de  obediência  e  domesticidade,  o  pobre  dia- 
bo respondeu  n'um  tom  humilde  —  Meu  senhor ! 

Imaginem  agora  que  o  rei  chegava  alli  abaixo, 
perto  de  S.  Bento,  espectral  como  o  principe  da 
Dinamarca,  quando  nas  duas  camarás,  que  func- 
cionam  agora  como  dois  bilhares,  se  joga  a  caram- 
bola politica,  a  maior  parte  dos  parceiros  esque- 
cendo-se  de  dar  giz  no  taco,  picando  as  bolas  ao 
contrario,  e  todos  jogando  pela  tabeliã,  como  se 
não  vissem  a  encarnada  e  fosse  prohibido  atirar- 
Ihe  para  cima. . .  Sim,  imaginem  que  o  rei  che- 
gava alli,  sem  ninguém  dar  por  elle,  e  no  mais 
acceso  da  balbúrdia,  no  meio  encarniçado  do  jogo, 
gritava  com  a  sua  bella  voz  de  barytono :  —  Que 
é  lá  isso  ó  seus  gajos  ? 

Quantas  vozes  deixariam  de  responder  como  o 
velho  creado  João,  ouvindo,  lá  onde  estava,  por 
detraz  de  uma  pedra,  ensaiado  para  o  echo,  a 
voz  do  sr.  Thomé,  seu  patrão  de  tantos  annos? 


^ 


Vaidade  das  vaidades  —  tudo  c  vai- 
dade ! 


Viera  ao  mundo  com  a  mania  de  que  tudo  an- 
dava torto,  e  lhe  competia  endireitar  tudo.  Era 
assim  uma  espécie  de  messianismo  arte  nova,  que 
lhe  hypertrophiava  a  personalidade,  tornando-o 
impertinente.  Todas  as  injustiças  o  offendiam,  to- 
das as  asneiras  o  irritavam,  pondo-lhe  os  nervos 
em  tal  estado  de  vibração,  que  seria  fácil  rompe- 
rem-se.  Mas  ao  mesmo  tempo  essas  injustiças  que 
o  offendiam,  essas  asneiras  que  o  irritavam,  eram 
a  própria  condição  da  sua  existência,  todo  o  esti- 
mulo da  sua  actividade,  a  sua  única  razão  de  ser. 
Que  um  bello  dia  entrassem  as  coisas  na  boa  or- 
dem, o  bem  tendo  vencido  o  mal,  o  amor  tendo 
vencido  o  ódio,  a  justiça  tendo  vencido  a  iniqui- 
dade, o  direito  tendo  vencido  a  força,  a  verdade 
tendo  vencido  a  mentira,  que  um  bello  dia  se  reali- 
zasse tudo  isto,  e  elle  encontrar-se-ia  como  homem 
que  se  desequilibrasse  no  espaço,  sem  ponto  de 


44  Ao  de  leve 

apoio,  uma  creatura  que  se  visse  sem  lic^ações 
com  o  Universo,  isolada  como  n'uma  ilha  deserta, 
um  ser  de  geração  espontânea,  olhando  para  traz, 
e  não  adivinhando  o  seu  passado,  olhando  para 
deante  e  reconhecendo-se  sem  destino.  Conside- 
rava-se  o  ser  por  excellencia,  a  suprema  vontade, 
a  suprema  intelHgencia,  a  mais  alta  sabedoria,  a 
mais  extremada  virtude.  Tinha  um  calcanhar  esse 
gigante,  como  o  heroe  da  Iliada  ;  mas  o  Paris, 
que  pretendesse  feril-o,  escusava  de  molhar  a 
setta  em  veneno,  bastava  que  a  molhasse  em  li- 
sonja, que  é  uma  droga  pouco  toxica  e  muito  cor- 
rosiva. Succedeu-lhe  um  dia  adoecer  gravemente» 
e  como  lhe  perguntassem,  in  articulo  mortis,  se 
não  receava  pela  salvação  da  sua  alma,  respon- 
deu, tartamudeando  muito  —Receio  que  me  met- 
fam  no  céo.  Que  tortura  não  será  a  minha  se 
caio  na  mansão  dos  justos. 

Por  subscripção  entre  amigos,  ergueram-lhe  um 
mausoléu,  coisa  barata  e  modesta,  e  fizeram-lhe 
gravar  na  frontaria,  em  bronze  amarello,  estes  di- 
zeres bibHcos :  —  Vanitas  uanitatum,  o  que  tra- 
duzido em  portuguez  quer  simplesmente  dizer : 

—  Ora  bolas  para  tanta  embofial. . . 


% 


Parece  vingar  a  interpretação  que 
attribue  ao  sr.  ministro  das  finanças 
a  qualidade  de  portugue^. 

(Dos  jornaes) 


—  Contente  que  nem  um  rato,  não  é  verdade  ? 

—  Não  sei  porquê. .  • 

—  Não  sabe  porquê  ?  Pois  você  chega  ao  ul- 
timo quartel  da  vida  sem  saber  de  que  terra  é,  e 
d'um  momento  para  outro,  sem  trabalho  nem  can- 
ceiras,  apparece  cidadão  d'um  paiz  glorioso,  e  guin- 
dado ás  maiores  culminancias  sociaes,  e  ainda  per- 
gunta porque  deve  estar  contente  ? 

—  Por  certo.  Não  sendo  d'uma  pátria  determi- 
nada, eu  podia  tirar  muito  proveito  de  todas,  con- 
forme as  circumstancias. 

■ —  Mas  os  seus  direitos. . . 

—  Perdão ;  os  meus  direitos  são  os  meus  inte- 
resses, dada  a  minha  qualidade  de  homem  de  ne- 
gócios. Ter  um  certo  direito,  significa  apenas,  no 
meu  entender,  a  faculdade  de  realizar  um  certo 


46  Ao  de  leve 

lucro,  da  mesma  forma  que  ter  uma  certa  obri- 
gação significa  uma  perda.  A  equação  da  vida 
commercial  faz-se  com  estes  dois  termos  —  ga- 
nhos e  perdas. 

—  Está  muito  bem;  mas  parece-me  que  sob 
todos  os  pontos  de  vista  o  amigo  ganhou. 

—  Isso  é  conforme.  A  operação,  considerada 
nos  seus  resultados  immediatos,  e  não  olhando 
para  além  do  momento  actual,  é  de  resultados 
vantajosos  ;  mas. . . 

—  Mas. . . 

—  Mas  o  futuro  a  Deus  pertence,  e  esta  natu- 
ralização definitiva  pôde  prejudicar-me  muito,  se 
ainda  tiver  necessidade  de  mudar  de  nacionalida- 
de mais  um.a  vez. 


\_ 


o  príncipe  D.  Luís  Fílippe  restituiu 
ao  t besouro  o  dinheiro  que  lhe  sobe- 
jou da  viagem. 

(Dos  jornaes). 


Era  doida  pelo  neto ;  mas,  se  o  tivesse  junto 
de  si,  n'aquelle  momento,  pregava-lhe  duas  bofe- 
tadas. 

Era  aquillo  um  proceder  de  príncipe? 

Não  havia  memoria,  na  sua  familia,  dalguem 
ter  restituido  fosse  o  que  fosse,  muito  menos  di- 
nheiro. 

Raivosa,  sentindo-se  ferida  no  seu  orgulho  de 
raça,  mordia  os  beiços  até  quasi  sangrarem,  e 
amarrotava  nas  mãos  o  jornal,  com  muita  força, 
como  se  quizesse  desfazel-o.  Era  de  entontecer 
aquella  vergonha. 

De  repente  acalmava-se  um  pouco,  como  se  en- 
trasse n'um  banho  morno. 

Quem  sabe  ? 

Talvez  aquillo  não  fosse  verdade.  Dizem  tanta 


48  Ao  de  leve 

mentira  os  jornaes!- . .  Ha  gazeteiro  que  não  va- 
cilla  perante  a  mais  baixa  calumnia,  muitas  vezes 
por  interesse,  algumas  vezes  por  capricho,  não 
raramente  por  maldade. 

E  logo  mandou  vir  todas  os  jornaes  d'aquelle 
dia,  absolutamente  todos,  mesmo  os  que  ella  nun- 
ca lia,  por  saber  que  sempre  alguma  coisa  traziam 
que  lhe  fosse  desagradável. 

—  Todos  quantos  se  publicam  em  Lisboa,  ou- 
viste ? 

Pois  em  todos  elles  vinha  a  noticia,  a  vergonho- 
sa noticia  d'aquelle  neto  infamante,  que  ficaria  lu- 
zindo como  uma  nódoa  na  pureza  alvíssima  e  até 
alli  immaculada  dos  seus  pergaminhos  dynasticos. 

Era  doida  pelo  neto ;  mas  se  o  tivesse  junto  de 
si,  n'aquelle  momento,  era  capaz  talvez  de  um 
arrebatamento  criminoso,  atirando-o  pela  janella. 

Vestiu -se  n'uma  pressa,  sem  olhar  para  o  espe- 
lho, surda  ás  sugestões  do  seu  coquetismo  de  car- 
cassa. Iria  procural-o,  exprobar-lhe  a  sua  baixeza* 
que  nem  mesmo  os  poucos  annos  poderiam  des- 
culpar. 

Um  príncipe,  quando  se  trata  de  honrar  as  tra- 
dições dos  seus  maiores,  é  sempre  de  maior  eda- 
de... 

Pisava  o  primeiro  degrau  da  escada,  quando  o 
neto  subia  quasi  aos  saltos,  como  de  costume,  a 
estender-lhe  os  braços. 

—  Ias  sair,  avozinha  ? 

—  Ia  procurar-te. 


Ao  de  leoe  49 

—  Parece  que  não  estás  contente  ? 

—  E  com  razão. 

Mal  entraram  na  sala,  apanhou  um  jornal,  ao 
acaso,  e,  apontando  a  noticiazinha  da  restituição, 
perguntou- lhe : 

—  Isto  é  verdade  ? 

O  garoto  desatou  a  rir,  a  rir  desalmadamente, 
a  fazer-lhe  cócegas. 

—  E'  então  mentira  ? 

—  Se  é  mentira ! ...  Na  verdade,  avozinha,  sem- 
pre te  julguei  mais  intelligeníe.  Restituir  dinhei- 
ro! Sei  honrar  as  tradições  da  nossa  casa,  pelas 
quaes  tenho  um  verdadeiro  culto. 

Teve  um  grande  suspiro  d'allivio,  como  se  lhe 
tirassem  de  cima  um  peso  de  cem  arrobas.  Aper- 
tou muito  o  neto  nos  braços  e,  tendo-o  beijado 
loucamente,  deixou-se  cair  no  sophá,  muito  que- 
brada, como  ao  sair  d'uma  lucta. 

E  com  os  olhos  fechados,  a  respiração  alta,  ofe- 
gante, murmurava  para  não  ser  ouvida : 

—  Estúpida  que  eu  sou !  O  pequeno  era  inca- 
paz de  semelhante  infâmia.  Revejo  n'elle  toda  a 
nobreza  da  raça. 

E  adormeceu. 


\ 


Passa  hoje  o  primeiro  anniversario 
deste  jornal^  dia  propicio  á  come- 
moração dos  que  foram  nossos  com- 
panheiros de  lucta,  e  hoje  luctariam 
comnoscOj  se  a  morte  os  tivesse  pou- 
pado. 

(«A  Lucta>). 


Morrer,  dormir,  sonhar  quem  sabe ! . . . 

A  fogueira  crepita  no  meio  do  bosque  sagrado, 
e  o  ramalhar  das  folhas,  cortando  o  silencio  au- 
gusto d'uma  noite  de  luar,  é  como  a  prece  er- 
guida aos  céus  por  milhares  de  lábios  virginaes. 

Morrer,  dormir!. . . 

Em  volta  ha  uma  turba  alegre,  como  se  alH  fos- 
se realizar-se  um  ágape  festivo,  os  esponsaes 
d'uma  nobre  castella  com  o  pagem  dos  seus  so- 
nhos, reluzente  de  pedrarias,  esplendido  de  mo- 
cidade. 

Dormir,  sonhar!. . . 

A  fogueira  crepita  erguendo  uma  chamma  có- 


Ao  de  leve  51 

nica  de  uma  regularidade  geométrica,  e  um  fumo- 
zinho  branco,  muito  ténue,  muito  esparso,  é  como 
um  boccado  de  gaze  que  alli  estivesse  preso  á  cham- 
ma,  tocando-lhe  sem  se  inflammar. 

Morrer,  dormir,  sonhar,  quem  sabe!. . . 

E  mal  o  cadáver  pousa  na  fogueira,  crepitante 
e  rútila  no  meio  do  bosque  sagrado,  logo  sobre 
elle  se  lança  aquella  virgem  loira  e  meiga,  que  uns 
padres  druidas  estavam  ha  pouco  dispondo  para 
a  viagem  de  que  não  se  volta. 

Quem  sabe! 

Se  n'esses  mundos  longínquos,  para  onde  dizem 
que  vão  as  almas,  se  conserva  lembrança  da  vida 
que  aqui  tivemos,  bem  sabem  vocês,  queridos  e 
inolvidáveis  mortos!  que  é  para  nós  de  lagrimas 
este  dia,  visto  que  esta  pagina  é  hoje  um  canto 
do  cemitério! 


\ 


A  morte  perdendo  a  foice 
Creu  sua  força  desfeita. 
Disse- lhe  um  medico  insigne : 
Aqui  tens  esta  receita. 


Chamava-se  Corvo,  e  era  alfaiate. 

Pouco  trabalhava  pelo  officio,  quasi  sempre 
pelo  campo,  a  caçar  lebres  ou  perdizes,  lá  de  lon- 
ge em  longe  mettendo-se  na  jolda,  e  só  então 
aventurando-se  por  aquelles  mattos  espessos,  on- 
de deixava  metade  da  farpela,  em  bcccados.  A  sua 
grande  paixão,  a  sua  mania  de  caçador  era  pelos 
pombos,  á  negaça.  Abalava  de  casa  muito  cedo, 
o  pombinho  mettido  na  aljabra,  o  farnel  mettido 
nos  bolsos,  a  aguilhada  ao  hombro,  a  espingarda 
a  tiracolo,  e  uma  garrafinha  de  aguardente  sem 
confecção,  que  o  frio  era  de  rachar,  por  aquelles 
dias  molhados  de  novembro.  Chegava  ao  sitio^ 
circumdava  os  montados,  n'uma  extensão  enorme, 
com  a  sua  vista  de  lynce,  e  toca  a  fazer  a  choça, 
não  fossem  os  pombos  dar-se  pressa  de  vir  alli, 


Ao  de  leoe  53 

apanhando-o  desprevenido.  A's  vezes  não  matava 
nada ;  outras  vezes  matava  quantos  se  faziam ; 
mas  sempre  se  divertia  immenso,  a  puxar  a  nega- 
ça e  a  aperrar  a  caçadeira,  não  se  esquecendo 
nunca  de  beijar  a  garrafinha  da  aguardente,  que 
valia  pelo  melhor  dos  lumes,  no  desabrigo  da  cho- 
ça, por  aquelles  dias  gelados  de  novembro. 

Ora  succedeu  que  um  dia,  ao  voltar  dos  pom- 
bos, chegando  a  casa,  subitamente,  o  Corvo  sen- 
tiu-se  mal,  horrivelmente  mal,  gritando  que  lhe 
accudissem.  Wesse  mesmo  dia,  áquella  mesma 
hora,  por  assim  dizer,  n'aquelle  mesmo  instante, 
tinha  chegado  o  medico  novo,  que  ainda  ninguém 
tinha  visto.  Correram  a  chamal-o,  n'uma  afflicção, 
que  o  Corvo  sentia-se  morrer  e  gritava  como  um 
perdido.  Vae  o  doutor,  muito  solicito,  observa  o 
doente,  faz  uma  receita,  enche  uma  seringa  e  era- 
va-a  n'uma  nádega  do  alfaiate,  que  não  tugiu  nem 
mugiu. 

Estava  morto  o  pobre  Corvo,  velho  caçador  de 
pombos,  que  durante  largos  annos,  todas  as  ma- 
nhãs, em  dias  gelados  de  novembro,  abalava  de 
casa  para  as  montanhas,  a  aguilhada  ao  hombro 
e  o  farnel  nos  bolsos,  sem  nunca  se  esquecer  da 
garrafinha  daguardente,  que  valia  por  um  bom 
fogo  no  desabrigo  da  choça,  encostada  a  um  so- 
breiro. 

O  caso  fez  barulho  na  aldeia,  e  como  alguém 
lamentasse  a  perda  de  tão  eximio  caçador : 

—  Lá  quanto  a  isso,  perorou  um  mariola  d'um 


54  Ao  de  leve 

barbeiro,  não  vejo  razão  para  se  lamentar  a  gen- 
te. O  nosso  doutor  parece  ser  homem  de  boa 
pontaria.  Mal  disparou  a  seringa,  logo  o  Corvo  en- 
rolou as  azas,  cor  )  se  fosse  um  pombo  que  se 
fizesse,  e  apanhas  ..  a  carga  em  cheio. 


o  sr.  ministro  da  fazenda  ficou  a  tra- 
balhar em  sua  casa» 

(Dos  jorna  es). 


A  ordem  fora  terminante,  e  não  admittia  excep- 
ções; s.  ex.^  não  estava  para  ninguém,  absoluta- 
mente ninguém. 

Andava  a  estudar  um  plano  geral  de  reformas, 
e,  como  tivesse  de  ir  passar  uns  dias  na  província, 
queria  deixar  os  seus  papeis  arrumados,  cada  coi- 
sa no  seu  logar,  como  n'um  museu  ou  n'uma  bi- 
bliotheca. 

Fora  sempre  uma  creatura  methodica,  e  em 
grande  parte  o  seu  talento,  que  ainda  assim  mui- 
tos negavam,  era  feito  de  trabalho  e  de  methodo- 
Entrara  na  politica  com  uma  bagagem  de  estu- 
dante, apenas  preparado  para  no  parlamento  man- 
dar uma  representação  para  a  mesa,  e  requerer  que 
se  desse  a  matéria  por  discutida,  a  um  signal  do 
leader.  Mas  trabalhava  muito,  estudava  muito,  am- 
bicioso de  renome,  atormentado  pela  obscuridade 


56  Ao  de  leve 

em  que  vivia,  mal  supportando  que  os  outros  tre- 
passem, subissem,  servindo  elle  próprio  de  degrau 
a  bastantes  creaturas  mediocres. 

Um  bello  dia,  quasi  sem  elle  próprio  saber  como 
nem  como  não,  fizeram-n'o  ministro.  E  logo  pen- 
sou n'uma  larga  reforma  de  serviços,  remediando 
muitas  insufficiencias,  preenchendo  muitas  lacunas, 
pondo  cobro  a  muitos  escândalos. 

Lá  quanto  a  honestidade,  reconheciam-na  os 
próprios  inimigos. 

ColHgira  todos  os  elementos  de  que  necessitava 
para  a  sua  obra  reformadora,  e  resolveu  aprovei- 
tar aquelle  dia  para  os  classificar,  em  termos  de 
servir-se  d'elles  com  a  maior  facilidade  e  proveito. 

Estava  inteiramente  absorvido  n'essa  tarefa, 
quando  lhe  apareceu  junto  da  mesa  um  continuo, 
muito  vermelho,  muito  atrapalhado,  a  revirar  o 
bonet  na  mão,  a  querer  falar,  e  não  se  atrevendo 
a  abrir  a  bocca. 

—  Que  ha  ? 

—  Um  senhor  que  deseja  falar  a  v.  ex.'. 

—  Então  eu  não  lhe  disse  que  não  estava  para 
ninguém  ? 

—  E'  verdade,  mas  elle  disse-me  qae  se  mata- 
va alli  mesmo,  á  porta,  se  v.  ex.^  não  o  recebesse. 

Mandou  entrar  immediatamente. 

—  E'  você  ? . . . 

—  Sou  eu.  Sabe  que  o  Chico  está  irremedia- 
velmente perdido  ? 

—  O  quê? 


Ao  de  leve     '  .57 

—  Talvez  não  dure  48  horas. 

—  Coiíado !  E  a  família  ? . . . 

—  Ora  ahi  está.  E'  por  causa  da  família  que  eu 
cá  venho. 

—  Mas  que  posso  eu  fazer  ? 

—  Uma   coisa   muito  simples  —  um  adeanta- 
mento. 

—  Mas  se  elle  está  a  morrer ! . . . 

—  Por  isso  mesmo.  Desconta  pelo  terço  do  or- 
denado emquanto  viver. 

—  E  depois  de  morto  ? 

—  Contínua  a  descontar...  no  outro  mundo. 
E  assim  se  fez.  —  Era  uma  bagatela  de  dez 

contos  redondos. 


^ 


o  sr,  D.  Carlos  manda  para  o  Salon 
dois  quadros. 

(Dos  jornaes). 


Era  dia  de  assignatura. 

Como  de  costume,  na  sala  de  espera,  emquan- 
1o  não  chegava  a  hora,  uns  fumavam  estendidos 
em  sophás  de  molas  doces,  e  outros  falavam  de  coi- 
sas varias,  —  as  occorrencias  banaes  da  véspera, 
ou  os  successos  prováveis  do  dia  seguinte.  Pelas 
janellas,  abertas  de  par  em  par,  entrava  uma  ara- 
gem fresca  e  quasi  perfumada,  tanto  as  flores  do 
jardim  embalsamavam  o  aposento  n'aquelle  dia 
lindo. 

Avistava-se  ao  longe  o  rio,  d'aguas  tranquillas,  e 
lá  para  além  da  barra,  empennachado  de  fumo,  um 
navio  cortava  as  aguas,  sem  estremeções,  deixando 
atraz  de  si,  como  uma  passadeira  de  rendas,  um 
largo  traço  de  espuma.  N'isto  abre-se  uma  porta  ao 
fundo,  e  um  homem  apparece,  de  casaca,  trazendo 
debaixo  do  braço,  muito  enrolado  em  papeis,  qual- 


Ao  de  lece  59 

quer  coisa  que  logo  se  adivinhav'a  ser  um  quadro 
com  a  respectiva  moldura. 

Os  que  hima\.»am,  estendidos  em  sophás  de  mo- 
las doces,  ergueram-se  a  cumprimentar,  quasi  en- 
vergonhados do  seu  â  vontade,  como  n'um  ca- 
sino, e  os  que  estavam  á  janella  olhando  para  o 
rio,  d^aguas  tranquillas,  notando  como  corria  leve 
um  vapor  que  sahia  a  barra,  empennachado  de 
fumo,  esses  deixaram- se  ficar  onde  estavam,  bai- 
xando ligeiramente  a  cabeça,  com  cerimonia,  ne- 
nhum d'elles  sabendo  quem  era  aquelle  senhor. 

—  Não  sei  se  incommodo  v.  ex.^  ? . . . 

—  Ora  essa !  Por  forma  nenhuma. 

—  V.  ex.*  é . . . 

—  O  pintor  da  casa. 

E  logo  poz  em  cima  da  mesa,  procurando  po- 
sição conforme  a  luz,  duas  telasinhas  de  meio  me- 
lro, ricamente  emmolduradas,  uma  reproduzindo 
um  trecho  de  paysagem  alemtejana,  n*um  entar- 
decer d'agosto,  e  outra  representando  uma  com- 
missão  de  sardinhas  vindo  cumprimentar  um  go- 
raz,  pelos  seus  trabalhos  maritim.os, 

—  E  V.  ex.*  traz  isto . .  • 

—  São  03  meus  decretos;  trago-os  á  assigna- 
tura. 


». 


K 


o  sr  D.  Carlos  também  honlem  não 
assistiu  á  tourada  no  Campo  Pe- 
queno, 

(Dos  jornaes). 


—  Está  aqui  tudo  ? 

—  Creio  que  não  falta  nada. 

Poz  a  mala  em  cima  d'uma  cadeira,  para  não 
estar  a  dobrar-se  muitas  vezes,  e  foi  tirando  pe- 
ça por  peça.  D'ahi  a  pouco  estava  inteiramente 
transfigurado.  As  suissas  assentavam-lhe  na  per- 
feição, e  os  óculos  de  ouro,  com  vidros  sem 
grau,  transformaram-lhe  de  tal  modo  a  physiono- 
mia,  que  ninguém,  mesmo  dos  seus  familiares,  o 
conheceria  sob  aquelle  disfarce.  As  calças  é  que 
lhe  ficavam  um  boccadinho  justas  nas  pernas,  e  o 
collete,  se  fosse  um  tudo  nada  mais  comprido,  dir- 
se-ia  ter  sido  feito  para  elle  —  por  medida  e 
com  prova.  Pegou  na  bengala,  de  castão  de  pra- 
ta, poz  na  cabeça  um  Panamá,  quebrado  na  fren- 
te, e  carregou  no  botão  d'uma  campainha  eléctrica. 


Ao  de  leve  61 

—  Se  não  soubesse ... 

—  De  primeira  ordem,  não  é  verdade  ? 

—  Uma  transfiguração  á  Rocambole. 

—  Obrigado  pelo  cumprimento ;  mas  como  tu 
é  que  me  escolheste  a  farpela. . . 

—  Limitei-me  a  cumprir  fielmente  as  indicações 
recebidas. 

—  De  modo  que  não  haverá  perigo.  • . 

—  Absolutamente  impossível  conhecei- o,  disfar- 
çado como  está. 

—  Pois  olha,  já  que  entrei  n^este  caminho,  que- 
ro fazer  a  coisa  completa.  Has  de  comprar-me 
um  bilhete  de  sol. 

Quando  entrou  na  praça,  ainda  as  cortesias  não 
tinham  começado.  Arranjou  um  logar  ao  pé  da 
musica,  e  poz-se  a  fumar  um  cigarro  ainda  por 
disfarce.  A'  hora  marcada,  com  uma  pontualidade 
fora  do  costume,  a  função  principiou.  Estava  in- 
teressado, contente  e  ancioso,  como  se  pela  pri- 
meira vez  assistisse  a  um  espectáculo  ardente- 
mente desejado.  Surprehendia-se  a  gritar  com  toda 
a  força,  quando  o  sol  inteiro  gritava  e  ainda  teve 
o  chapéu  na  mão,  para  o  atirar  ao  redondel,  en- 
thusiasmadissimo  com  um  cambio. 

No  intervallo,  como  não  sahisse  o  visinho  da 
direita,  pedindo-lhe  fogo,  entrou  a  dar-lhe  con- 
versa. 

—  Vê-se  que  o  amigo  é  amador. 

—  Como  poucos.  Isto  é  um  divertimento  real. 

—  Lá  isso  real . . . 


^2  Ao  de  leve 

—  Pois  sim. . .  Mas  o  rei  vem  aqui  muitas  ve- 
zes ? . . . 

—  Vinha  muitas  vezes,  é  o  que  você  quer  dizer... 

—  E  agora  já  não  vem  ? 

—  Acho  que  cortou  a  coleta. 

—  Elle,  afinal,  tudo  aborrece. 

—  Ora  ahi  está.  E  foi  exactamente  por  ver  que 
aborrecia,  que  elle  deixou  de  apparecer.  Sabe  o 
amigo  uma  coisa  ?  Tenho  estado  a  reparar  que 
você  se  parece.  •  . 

Não  acabou  a  phrase.  ]á  o  outro  se  tinha  le- 
vantado, a  fingir  que  alguém  o  chamava. 

D  ahi  a  pouco,  no  mesmo  quarto  em  que  mu- 
dara de  farpela,  dava-se  a  um  trabalho  de  mil 
demónios  para  se  desembaraçar  das  calças,  muito 
justas  nas  pernas. 

—  Ninguém  desconfiou,  é  claro  ? 

—  E'  claro  que  desconfiaram.  Um  gajo  que  es- 
tava sentado  ao  pé  de  mim,  se  me  não  safo  tão  de- 
pressa . . . 

—  E  disse-lhe  alguma  inconveniência  ? 

—  Lá  bem  inconveniência . . . 

—  O  melhor,  para  outra  vez . . . 

—  O  melhor  para  a  outra  vez,  é  não  ir  lá.  Corto 
definitivamente  a  coleta. 

—  E  a  quadrilha  ? 

—  Lá  isso  fica  como  estava. 

E  atirando  com  as  suissas  para  cima  da  cama, 
a  meia  voz  com  despreso: 

—  Isto  é  que  é  uma  cambada !. .  . 


o  sr,  João  Franco  acompanhou  o  Prín- 
cipe Real  á  festa  das  creanças^  e 
pionunciou  alli  um  gratide discurso. 

(Dos  jornaes). 


—  Muito  interessante  a  festa,  não  é  verdade  ? 

—  Sim,  foi  interessante. 

—  Muitas  creanças,  muitas  flores,  um  dia  lindo 
de  sol. . .  Aposto  que  estava  a  saltar-te  o  pé  para 
o  meio  do  rancho,  rindo  e  brincando  como  todos 
como  se  fossem  todos  do  mesmo  collegio  ? 

—  Tu  estás  doida,  avósinha  ?  Comprehendo 
muito  bem  os  deveres  do  meu  cargo,  e  em  ne- 
nhuma situação  me  esqueço  de  quem  sou,  e  do 
que  represento. 

—  Bravo,  meu  filho  1  gosto  de  te  ouvir  falar 
assim,  porque  isso  me  prova  que  serás  um  dia 
o  representante  illustre  dos  teus  illustres  antepas- 
sados. 

—  Assim  o  espero. 

—  Assim  o  creio.  E  falaste  ás  creanças  ? 


64  Ao  de  leve 

—  Não,  avósinha.  Ninguém  me  disse  para  lhes 
falar,  nem  eu  sabia  o  que  havia  de  dizer-lhes. 

—  Por  certo,  não  sabias;  mas  se  isso  fosse 
uma  razão  para  não  falar,  muita  gente  estaria  ca- 
lada n'este  paiz  de  palradores.  Quem  falou  en- 
tão ? 

—  Houve  só  um  discurso. . . 

—  Sim,  está  claro,  falou  s.  ex.^  E  o  que  disse  ? 

—  Para  te  falar  com  franqueza,  avósinha,  eu 
pouco  ouvi  do  que  elle  disse.  Mesmo  na  minha 
frente  estava  um  garoto  vestido  de  marinheiro, 
muito  interessante,  que  passou  todo  o  tempo  a  fa- 
zer cócegas  no  pescoço  de  uma  senhora  muito 
gorda,  de  nariz  abatatado,  que  estava  adiante 
d'elle,  na  fila  immediata.  De  cada  vez  que  o  ra- 
pazinho lhe  passava  um  canudinho  de  papel,  muito 
delgado,  pela  pennugem  do  cachaço,  atraz  das  ore- 
lhas, a  velha  fazia  umas  caretas  muito  exquisitas, 
aflicta,  com  medo  de  perder  a  linha  em  momento 
tão  solemne.  Não  imaginas  como  era  divertida  a 
velhota.  Divertida  e  estúpida,  porque  nunca  des- 
confiou do  garoto,  que  se  encolhia  todo  para  não 
desatar  ás  gargalhadas.  De  modo  que. . . 

—  De  modo  que  não  ouviste  o  discurso  de  s. 
exA 

—  Não  ouvi  tudo,  é  certo ;  mas  alguma  coisa 
ouvi.  Por  exemplo,  ouvi-lhe  dizer  que  n'outros 
tempos  os  povos  eram  dos  reis,  e  que  hoje  os  reis 
são  dos  povos.  Que  quer  dizer,  isto  avósinha  ? 

—  Quer  dizer,  meu  filho,  que  n'outro  tempo, 


Ao  de  leve  65 

os  creados  recebiam  ordens  dos  patrões,  e  cum- 
priam-nas;  hoje  os  patrões  recebem  ordens  dos 
creados,  e  cumprem-nas. 

—  Credo !  Mas  isso  é  o  fim  do  mundo. 

—  Pede  a  Deus  que  não  seja  o  fim  da  dynas- 
tia. 


\_ 


o  enterro  de  hontem  foi  uma  extraor- 
dinária ajffirmação  da  força  do  par- 
tido republicano  em  Lisboa. 

(Dos  jornaes). 


Estava  inquieto,  n'uma  anciã  por  noticias,  quan- 
do lhe  f0i'am  dizer  que  estava  o  jantar  na  mesa. 

Que  teria  havido ! 

Por  certo  o  cortejo  seria  numeroso,  mas  apra- 
zia-lhe  acreditar  que  a  manifestação,  embora  si- 
gnificativa, não  fosse  de  molde  a  tomar  ainda  mais 
evidente  o  desprestigio  do  seu  nome,  já  bastante 
desprestigiado.  Esquecia- se  de  comer,  e  não  des- 
pregava os  olhos  da  porta,  esperando  vel-o  appa- 
recer  a  cada  momento,  portador  da  boa  nova,  dan- 
do-lhe  a  segurança  de  que  era  já  outra  a  atmos- 
phera  da  cidade,  onde  elle  poderia  respirar  com 
desafogo,  quando  quizesse,  farto  de  correrias  fora 
de  portas,  a  monte  como  os  leprosos  na  antigui 
dade,  e  como  os  criminosos  ainda  hoje,  quando 
puderam  fugir  á  justiça. 


Ao  de  leve  67 

Que  teria  havido  ! 

Todos  lhe  notavam  a  preoccupa;ão  na  physio- 
nomia  transtornada,  e  todos  sabiam  o  que  lhe  dava 
origem,  a  verdadeira  causa  daquelle  mal-estar. 
De  modo  que  o  jantar  ia  correndo  silencioso, 
quasi  fúnebre,  ninguém  se  atrevendo  a  arriscar 
uma  palavra  banal,  o  mais  leve  dito  que  pudesse 
desafiar  o  mau  humor  do  pobre  tomate  recheiado. 
Fazia  dó,  mas  ao  mesmo  tempo  mettia  medo,  co- 
mo se  fosse  um  obuz  carregado  de  grosserias,  que 
uma  creança  maldosa  pretendesse  descarregar 
contra  um  homem  deHcado.  Parecia  aquella  ceia 
da  Lucrécia  Borgia,  em  Ferrara,  descripta  por 
Victor  Hugo. 

De  repente,  abre-se  a  porta,  e  um  reposteiro 
annuncia  o  homem.  Estava-se  nas  fructas. 

—  Então  ?. . . 

—  Muito  maior  do  que  seria  licito  esperar.  A 
cidade  inteira,  pôde  dízer-se,  tomou  parte  na  ma- 
nifestação, grandiosa  como  nenhuma  outra,  d'essas 
que  andam  na  memoria  dos  homens. 

—  De  modo  que  o  prestigio  d'essa  creatura- . . 

—  Peço  desculpa ;  o  que  atravessou  a  cidade, 
por  entre  alas  compactas  de  povo,  seguido  de  mi- 
lhares de  pessoas,  não  foi  o  cadáver  d'um  ho- 
mem. . . 

—  Foi  então  ? . . . 

—  Foi  o  prestigio  d'uma  ideia. 

Ficou  por  instantes  suspenso,  como  se  lhe  fugis- 


68  Ao  de  leve 

se  o  espirito  para  uma  região  de  trevas.  Logo  vol- 
tou a  si,  como  quem  acorda  d'um  mau  sonho,  e 
acabando  de  descascar  uma  laranja,  voltando-se 
para  o  peniculario  que  lhe  ficava  mais  perto : 

—  Olha  lá,  ó  marquez,  dize  aos  teus  collegas  da 
cozinha  que  não  deitem  fora  estas  cascas. 

No  outro  dia  annunciava-se  uma  crise  em  to- 
dos os  jornaes. 


\_ 


o  rei,  que  hontem  devia  presidir  ao 
conselho  de  ministros^  partiu  para 
Biarril\^  onde  se  encontra  sua  noi- 
va. 

(Telegramma  òe  MaÒriò). 


Pois  se  elle  tem  vinte  annos!. . 

Queriam  então  vel-o  amarrado  ao  throno,  re- 
cebendo conselheiros  e  ministros,  aturando  repos- 
teiros e  mordomos,  quando  a  noiva  está  alli,  a  al- 
gumas horas  apenas  da  capital,  chamando-o  com 
insistência  de  quem  nada  pôde  e  tudo  offerece 
porque  tudo  espera  receber  em  troca. 

Pois  se  elle  tem  vinte  annos  apenas!. . . 

Talvez  que  no  seu  sanque  toda  a  podridão  d'uma 
raça;  mas  a  mocidade  é  uma  espécie  de  azougue, 
capaz  de  fazer  erguer  um  morto,  dando-lhe  uma 
vida  ephemera. 

Pois  se  elle  é  tão  novo!- .  . 

Queriam  então  prendel-o  alli,  n'aquelle  deserto 
de  Madrid,  aturando  conselheiros  e  ministros,  gen- 


70  Ao  de  leve 

te  da  burocracia  e  bugigangas  heráldicas,  quando 
ella  está  a  poucas  horas  da  capital,  talvez  a  alon- 
gar os  olhos  na  direcção  da  Hespanha,  na  espe- 
rança de  vel-o  surgir  na  sua  frente,  radiante  de 
mocidade. 

Pois  se  elle  tem  vinte  annos  apenas !  . . 

E  estranham  então  vel-o  partir  como  um  fo- 
guete, abandonando  as  rédeas  do  governo,  doido 
d'amor  como  um  Quichote  real,  para  ir  colher  em 
Biarritz  as  promessas  d'uma  felicidade  sem  limi- 
tes prelibando  uma  ventura  sonhada. 

Pois  se  elle  é  tão  novo ! . . . 

Depois  ella  é  tão  bella ! . . . 


\_ 


I 


Amanhã ^anniversario  da  rainha  Maria 
Pia,  não  haverá  recepção  no  Paço. 

(Dos  jornaes). 


—  Venho  dizer- te  adeus.  • . 

—  Para  onde  vaes  ? 

—  Para  o  mar.  Na  terça  feira  cá  estou,  para  te 
dar  os  parabéns.  Imaginavas  que  ia  esquecer-me 
do  teu  anniversario  ? 

—  E'  verdade,  o  meu  anniversario .  • .  Nem  me 
lembrava. 

Emquanto  elle  accendia  um  charuto,  olhando 
distrahidamente  uma  illustração  ingleza,  deixava 
ella  pender  a  cabeça  sobre  o  collo  mirrado,  e  evo- 
cava um  tempo  muito  remoto,  tão  remoto  que  lhe 
parecia  agora,  na  desolação  da  sua  viuvez,  mais 
phantastico  do  que  real. 

O  seu  anniversario ! 

O  throno  era  pequeno  para  a  sua  magestade, 
mas,  em  summa,  sempre  era  um  throno  e  ella  nas- 
cera para  reinar.  Na  sua  cabelleira  loira,  como  a 


72  Ao  de  leve 

das  virgens  de  Raphael,  o  diadema  régio  tinha 
scintillações  estranhas  e  coruscantes,  que  ainda 
assim  pareciam  pallidas  em  comparação  dos  seus 
olhares,  em  que  havia  toda  a  ardência  do  sol  dos 
trópicos,  e  toda  a  limpidez  do  crystal  da  rocha. 

Também  ella  reinara ! 

Outros  imperantes  se  tinham  curvado  na  sua 
presença,  e  milhares  de  cortezãos  tinham  solici- 
tado a  esmola  d'um  sorriso  ou  d'um  olhar,  que 
ella  nem  sempre  lhes  concedia,  muito  altiva,  muito 
sobranceira,  no  throno,  julgando-se  muito  perto 
do  Olympo,  efóra  do  throno  vendo-se  muito  acima 
da  humanidade  vulgar. 

O  seu  anniversario ! 

Fechava  os  olhos  para  tornar  mais  intensa  a 
evocação,  e  logo  via  o  desfile  do  immenso  e  luzi- 
do cortejo  —  os  diplomatas  com  os  seus  farda- 
mentos ricos,  bordados  a  oiro;  os  ministros  com 
as  suas  librés  de  luxo,  salpicadas  de  veneras;  os 
bravos  militares  suffocando  Ímpetos  guerreiros, 
n'uma  attitude  de  respeitosa  fidelidade,  e  o  nume- 
ro infinito  de  fidrlgos  e  fidalgas  dobrando  o  joe- 
lho no  primeiro  degrau  do  throno  e  babujando- 
Ihe  a  mão  aristocrática  com  a  saliva  do  coríeza- 
nismo  mais  rasteiro  e  mais  falso. 

O  seu  anniversario! 

De  repente,  e  como  se  reatasse  uma  conversa 
interrompida  pousando  o  charuto  sobre  o  cinzei- 
ro de  prata,  e  tomando-lhe  entre  as  mãos  a  face 
apergaminhada,  n'uma  caricia  muito  terna : 


Ao  de  leoe  73 

—  Não,  fica  certa  que  não  me  esqueço  dos  teus 
annos,  e  verás  como  sou  gentil . . . 

—  Sim,  não  te  esqueças.  E  pois  que  desejas 
mostrar-te  gentil  para  commigo,  mais  uma  vez, 
poupa-me  ao  desejo  e  á  baixeza  de  receber  os 
teus  creados  de  pasta. 

E  não  houve  recepção. 


\_ 


Amanhã  tem  logar  a  abertura  do  con- 
gresso republicano  no  Poria.  Espe- 
ra-se  que  o  sr.  D.  Carlos  assisla 
hoje  á  tourada^  no  Campo  Pequeno. 

(Dos  jornaes.) 


—  Está  doente  ?- . . 

—  Pdo  contrario,  nunca  me  senti  com  tanta 
saúde  como  agora.  De  certo,  se  estivesse  doen- 
te, era  natural  que  fizesse  chamar  um  medico,  e 
não  o  presidente. . . 

—  Sem  duvida;  mas  chamado  tanto  á  pressa, 
com  a  máxima  urgência. . . 

—  E'  que  na  verdade  o  caso  é  urgente.  Não 
adivinhas  do  que  se  trata? 

—  Por  mais  voltas  que  dê  á  imaginação- . . 

—  Não  vale  a  pena  dar-lhe  grandes  voltas, 
porque  pode  transtornar-se.  Sabes  que  dia  é  ama- 
nhã ? 

—  E'  domingo. 

—  E  sabes  que  ha  tourada  no  Campo  Pequeno  ? 


I 


Ao  de  leve  75 

—  Como  não  sou  aficionado- .  • 

—  Não  sabias  ?  Pois  ficas  sabendo  agora.  Ha 
tourada,  e  trabalha  o  Fueníes.  Quer  isto  dizer  que 
será  uma  tarde  cheia.  Como  os  typos  estão  lá 
para  o  norte,  a  pairar,  eu  resolvi  ir  aos  touros 
amanhã. 

—  Isso  não  pode  ser!  Eu  não  posso  tomar  a 
responsabilidade. . . 

—  Tomo-a  eu,  deixa  lá.  Em  não  apparecendo 
os  cabecilhas,  a  arraia  miúda  não  abre  bico ! 

—  Ahi  é  que  está  o  engano.  Aquella  gente  não 
se  move  por  cordeliishos ;  pensa  pela  sua  cabeça ; 
tem  iniciativa  própria,  e  procede  como  lhe  parece 
melhor. 

—  E  tu  imaginas  que  hei  de  passar  n*isío  a 
vida  inteira  ? 

—  A  vida  inteira,  não ;  mas  por  ora  tem  de  ser 
assim. 

—  E  se  eu  não  quizer  que  seja  assim  ? 

—  Se  não  quizer  que  seja  assim . . . 

—  Como  será  então? 

—  Então. . .  será  peior! 


o  teu  amor  e  uma  cabana! 


Fora  uma  loucura  aquelle  amor. 

Tinham- se  encontrado  na  Figueira,  estava  ella 
a  banhos,  e  elle  fora  alH  de  visita  a  uns  parentes 
da  Bairrada,  que  não  via  desde  annos.  Como  se 
andassem  pelo  mundo  á  procura  um  do  outroi 
apenas  se  viram  uma  manhã,  na  Praia,  amaram - 
se  doidamente,  e  foi  milagre  que  não  desatassem 
logo  a  tagarelar,  tu  cá,  tu  lá,  e  tomassem  banho 
juntos. 

A'  noite,  no  Casino,  a  indispensável  apresen- 
tação, e  logo  se  seguiu  um  pas  de  quatre,  em 
que  os  dois  eram  eximios.  Marchou  aquillo  tão 
depressa,  que  já  eram  noivos  quando  regressaram 
ao  Porto,  onde  ella  tinha  os  pães  e  elle  o  em- 
prego, um  modesto  emprego  de  despachante,  que 
lhe  rendia  vinte  mil  réis  por  mez. 

Todas  as  noites  ia  falar-lhe,  já  recebido  como 
da  familia  e  sempre  a  encontrava  encostada  a  uma 
pequenina  mesa  quadrada,  um  livro  de  versos  na 


Ao  de  leoe  77 

mão  esquerda,  marcando  a  paqina  com  o  dedo,  e 
em  toda  a  sua  gracil  pessoinha  um  ar  de  alheia- 
mento  e  de  sonho,  que  o  fazia  estacar  á  entrada 
da  sala,  n'um  êxtase  de  devoto. 

—  Que  languidez,  Virgem  Santa ! 

Casaram,  está  bem  de  ver,  e  foram  padrinhos 
aquelles  parentes  da  Bairrada,  que  elle  tinha  ido 
visitar  á  Figueira,  onde  ella  estava  a  banhos.  Nin- 
guém a  ensinara  a  trabalhar,  e  como  elle  só  ti- 
nha o  seu  ordenado  de  despachante,  uns  vinte  mil 
réis  por  mez,  era  impossivel  metter  creada,  de  modo 
que  andava  tudo  desarrumado,  a  comida  era  mal 
feita,  nunca  estava  prompta  a  horas,  e  quando 
uma  rabanada  de  vento  entrava  pela  janella,  era 
como  redemoinho  correndo  ao  longo  d'uma  es- 
trada poeirenta.  Mas  todas  as  noites,  quando  re- 
colhia, farto  de  cuspir  no  café,  ia  encontrai  a,  co- 
mo n'outro  tempo,  encostada  a  uma  pequenina 
mesa  quadrada,  um  livro  de  versos  na  mão  es- 
querda, marcando  a  pagina  com  o  dedo.  E  ao 
vel-a  assim  descuidada  n'um  grande  ar  de  alheia- 
mento  e  de  sonho,  toda  a  sua  gracil  pessoinha 
como  que  envolvida  n'uma  atmosphera  de  langui- 
dez quasi  mórbida,  estacava  á  entrada  da  sala, 
como  n'outro  tempo,  murmurando  por  entre  den- 
tes: 

—  Que  desmazelo,  meu  Deus ! 


Dio  dei  oro,  dei  mundo  siguor. 


Noite  de  festa. 

Tinham -se  vendido  todos  os  logares,  e  ninguém 
dispensava  o  seu  bilhete  como  se  fosse  um  decimo 
de  loteria,  com  probabilidades  conhecidas  de  sair 
n'elle  a  sorte  grande. 

—  Compra-se  uma  cadeira ! 

—  Ha  quem  venda  uma  geral  ou  camarote  ? 

Eram  vozes  clamando  no  deserto. . .  d'uma  mul- 
tidão compacta,  junto  ao  guichet,  todos  sabendo 
que  não  entrariam,  mas  ninguém  tendo  a  cora- 
gem de  se  ir  embora.  —  Quem  sabe  ?  Uma  familia 
que  se  enlutou  á  ultima  hora,  e  manda  vender  o 
seu  camarote ;  um  honrado  negociante  que  pre- 
cisou de  abalar  para  o  Alemtejo,  e  manda  ven- 
der o  seu  fãuteuil. 

Era  noite  de  festa. 

Havia  flores  por  toda  a  parte;  colchas  ricas 
pendiam  dos  camarotes,  em  todas  as  ordens,  de 
modo  que  a  sala  tinha  assim,  por  virtude  d'aquel- 


Ao  de  leve  79 

Ia  polychromia  bizarra,  um  aspecto  singularmente 
phantastico,  em  que  se  perdiam  os  olhos,  n'um 
encanto.  Mulheres  ricamente  vestidas,  largamente 
decotadas,  eram  como  fructos  de  carne  em  papel 
de  seda,  e  formavam  uma  galeria  de  bustos  sem 
egual,  em  que  tivessem  collaborado  todos  os  es- 
culptores  de  génio. 

Era  noite  de  festa. 

Quando  se  ergueu  o  panno,  sobre  as  ultimas  no- 
tas da  orchestra,  pareceu  que  um  jogo  hábil  de 
espelhos  transferira  ao  palco  aquellas  flores  ma- 
gnificas que  havia  por  toda  a  parte,  aquellas  col- 
chas ricas  que  pendiam  dos  camarotes,  n'uma  po- 
lychromia bizarra,  no  meio  da  qual  se  destacavam 
bustos  admiráveis  de  mulheres,  como  se  fossem 
outros  tantos  peccados  irresistiveis,  servidos  em 
papel  de  seda  pelo  demo  tentador. 

No  segundo  acto,  quando  Ella  appareceu,  foi 
como  se  uma  corrente  eléctrica,  mysteriosa  e  di- 
vina, percorresse  toda  a  sala,  visto  como  todos  se 
levantaram,  n'um  movimento  egual  e  isochrono, 
para  a  mais  amoravel  e  sincera  ovação  de  que 
possa  haver  registo. 

Muito  fria,  muito  pallida,  as  lagrimas  gelando- 
se-lhe  a  meio  das  faces  apergaminhadas,  um  sor- 
riso apagando-se-lhe  nos  lábios  resequidos,  avan- 
ça para  agradecer,  n'um  automatismo  quasi  de 
somnambula,  e  logo  recua,  soltando  um  grito,  dei- 
xando-se  cahir,  ao  desamparo,  n'um  dii/an,  que 
para  alli  tinham  posto. 


80  Ao  de  leve 

Estava  morta. 

No  escriptorio,  verificando  o  producto  da  ré- 
cita, n'aquella  noite  festiva  em  que  havia  floreS 
por  toda  a  parte,  e,  entre  colchas  d'uma  poiychro- 
mia  bizarra  bustos  escuUuraes  de  mulheres  eram 
como  grandes  fructos  de  carne  servidos  em  papej 
de  seda,  o  emprezario  commentava: 

—  Que  raio  de  sorte !  ]á  estavam  passados  to- 
dos os  bilhetes  para  amanha ! 


\. 


Quando  o  cortejo  se  dirigia  da  Egreja 
para  o  Palácio  uma  bomba  foi  ati- 
rada diurna  janella^  fa\eudo  gran- 
des estragos.  Os  reis  nada  soffre- 
ram. 

(Dos  jornaes,  em  telegramma  õe  Maòriò). 


Emfim ! 

Acabavam  de  ligar-se  para  sempre,  ella  radiante 
de  belleza,  elle  radiante  de  felicidade,  os  dois  so- 
nhando mil  cousas  loucas,  n'uma  ebriedade  d'amor 
que  os  punha  fora  do  mundo  real. 

—  Querida  Eugenia ! 

—  Querido  Affonso ! 

Parecia-lhes  pequeno  o  templo,  para  conter  a 
sua  ventura,  e  aquella  multidão  que  os  rodeava, 
fixando-Oíi  com  muita  insistência,  tinha  assim  os 
ares  de  quem  espreita  com  inveja,  e  se  compraz 
em  ser  incommodo.  Por  maneira  que  ao  chega- 
rem ao  adro,  ella  radiante  de  belleza,  elle  radian- 
te de  mocidade,  respiraram  com  muita  força,  e 


82  Ao  de  leve 

teriam  caido  nos  braços  um  do  outro,  ébrios  de 
amor,  se  um  grito  de  saudação,  reboando  pelos 
ares,  não  os  chamasse  á  realidade ! 

]á  no  trem,  por  ahi  fora,  marchando  lentamen- 
te, como  n'uma  procissão,  os  ouvidos  cerrados  a 
tudo  que  não  fosse  o  encanto  dos  seus  próprios 
gestos  intencionaes,  elles  architectavam  mil  coisas 
loucas  na  sua  mente  escandecida,  e  como  que  pre- 
libavam  o  infinito  prazer  d'uma  posse  ardentemen- 
te desejada. 

N'isto  ouve-se  uma  explosão  horrível,  e  um  gri- 
to formidável  de  terror  sae  de  milhares  de  boccas, 
n'um  unisono  perfeito.  E'  um  momento  de  confu- 
são indescriptivel,  e  nem  se  ouvem  os  gemidos  dos 
que  sofrem,  nem  se  dá  pelas  convulsões  dos  que 
agonisam,  porque  a  attenção  dos  que  não  fugiram 
concentra-se  totalmente  n'aquellas  duas  creanças 
—  ella  radiante  de  belleza,  elle  radiante  de  mo- 
cidade, os  dois  ainda  ha  pouco  sonhando  mil  coi- 
sas loucas,  n'uma  ebriedade  d'amor,  que  os  punha 
fora  do  mundo  real. 

Estavam  salvos. 

A  commoção  fora  extraordinária,  sendo  milagre 
que  um  estilhaço  de  bomba  não  tivesse  reduzido 
aquelle  idilio  esponsalicio  a  um  noivado  de  sepul- 
cro —  como  se  não  fosse  abominável  atirar  para 
o  nada  uma  existência  que  alvorece. 

—  Vo  te  probaré  hoy  que  soy  digna  de  ser 
tu  mujev. 

Fora  realmente  extraordinária  a  commoção,  de 


Ao  de  teve  83 

modo  que  já  no  leito,  sob  a  luz  muito  baça,  muito 
ténue  d'uma  lâmpada  ao  centro  da  alcova,  tendo 
ainda  nos  ouvidos  o  estrondo  d'uma  bomba  que 
rebenta,  e  como  que  vendo  alli,  no  isolamento 
d'aquelle  ninho,  creaturas  que  estremecem  nos  pa- 
roxismos de  uma  morte  irremediável,  elle  que  mos- 
trara uma  coragem  estóica  no  meio  do  perigo,  re- 
commendando  a  todos  calma,  mucha  calma  !  No 
ha  pasado  nada,  elle  sente-se  agora  d'uma  fra- 
queza infantil,  quasi  covarde,  anniquilado  como  se 
entrara  n'uma  lucta  com  cyclopes.  E  então  muito 
calmo,  muito  resignado,  como  quem  acceita  os  fa- 
dos, mordendo-lhe  os  beiços  que  ella  estendia 
n'uma  momice  cheia  de  graça: 

—  Vo  te  probaré  manãna  que  soy  digno  de 
sev  tu  marido. 

E  foi  como  se  na  virgindade  d'aquelle  leito  re- 
pousassem duas  creanças  gémeas. 


\ 


o  governo  resolveu  supprimir  todas  as 
gratificações  por  serviços  extraor- 
dinários. 

(Dos  jornaes). 


Iam  alli  implorar  a  protecção  de  S.  Ex/^. 

—  -  De  que  se  trata  então  ? 

—  Somos  três  chefes  de  família,  ires  honrados 
servidores  do  Estado  que  vimos. . . 

—  Está  bem ;  mas  o  que  desejam  ? 

—  Como  V.  Ex/"'  sabe,  acabaram  as  gratificações, 
e  aquelle  de  nós  três  que  mais  ganha  não  chega 
a  ganhar  trinta  mil  réis  mensaes,  sujeitos  a  des- 
contos. 

—  Perfeitamente ;  mas  os  senhores  são  empre- 
gados. . . 

—  Saberá  V.  Ex/*^  que  da  Alfandega. 

—  Ora  é  isso  mesmo,  da  Alfandega.  Eu  não 
posso  augmentav-lhes  o  ordenado,  e  como  ã  ver- 
ba das  gratificações  foi  supprimida. 

—  Se  V.  Ex.'^  dá  licença. . . 


Ao  de  leve  85 

—  Como  a  verba  das  gratificações  foi  supprimi- 
da,  e  não  depende  de  mim  restaural-a. . . 

—  Se  V.  Ex.^  quizesse  ter  a  bondade  de  se  in- 
teressar por  nós,  mesmo  sem  nos  augmentarem 
os  ordenados  e  sem  restabelecerem  as  gratifica- 
ções . . . 

—  A  accumulação  de  serviços  equivale  a  uma 
gratificação.  • . 

—  Queira  V.  Ex.^  desculpar,  mas  tudo  se  arran- 
jaria facilmente  se  o  sr.  conselheiro  quizesse  ter 
a  bondade  de  nos  tomar  sob  a  sua  protecção. . . 

—  E'  que  não  vejo  maneira. . . 

—  O  que  nós  pedimos  é  muito  pouco,  e  não  é 
preciso  tiral-o  ao  Estado,  ou  a  quem  quer  que 
seja. 

—  Em  summa,  o  que  é  que  os  senhores  dese- 
jam ? 

—  Nós  desejávamos  ser  nomeados. . .  gatos  da 
Alfandega. 

—  Gatos  da  Alfandega  ?!!... 

—  E'  verdade,  sr.  conselheiro,  gatos  da  Alfan- 
dega. Isso  daria  uns  9$000  réis  por  mez,  a  cada 
um,  o  que  seria  uma  ajudasinha  para  a  renda  da 
casa. 

—  Os  senhores  vieram  aqui  para  se  divertirem 
commigo  ? 

—  O'  sr.  conselheiro,  pelo  amor  de  Deus !  Nós 
viemos  aqui  implorar  a  valiosissima  protecção  de 
V.  Ex.^  juramol-o  pela  boa  saúde  das  nossas  mu- 
lheres e  dos  nossos  filhos.  • 


86  Ao  de  leve 

—  Gatos  da  Alfandega!  Mas  então  os  senho- 
rer  perderam  o  juizo  ? 

—  Não,  senhor  conselheiro ;  o  que  nós  perde- 
mos foi  a  gratificação. 

—  Ou  anda  tudo  doido,  ou  eu  não  sei  onde  te- 
nho a  cabeça.  Mas  o  que  vem  a  ser  isso  de  gatos 
de  Alfandega  ? 

—  Saberá  V.  Ex.^  que  havendo  milhões  de  ratos 
na  Alfandega,  sem  respeito  nenhum  pelas  merca- 
dorias que  alli  se  acham  depositadas,  e  havendo 
todos  os  dias  reclamações  por  causa  dos  prejui- 
zos  que  estes  causam,  foi  creada  a  corporação  dos 
Gatos  da  Alfandega y  para  a  sustentação  da  qual 
ha  uma  verba  de  proximamente  trinta  mil  réis  por 
mez. 

—  Está  bem ;  mas  se  essa  verba  é  para  susten- 
tação dos  gatos. .  • 

—  Desculpe  V.  Ex.^ ;  mas  se  esses  empregados 
cumprem  rigorosamente  o  seu  dever,  apanhando 
os  ratos,  não  precisam  que  os  sustentem,  porque 
aíranjam  elles  próprios  os  seus  sustentos ;  e  se  alli 
estão  só  para  receberem  o  ordenado,  deixando 
os  ratos  em  liberdade,  não  é  justo  que  se  gaste 
com  elles  um  dinheirão,  ao  passo  que  honrados 
chefes  de  famiha . . . 

—  Pois  está  bem ;  vou  informar-me  do  caso  e 
prometto-lhes  interessar-me  pelos  senhores. 

—  Muito  obrigado,  sr.  conselheiro,  muito  agra- 
decido a  V.  Ex.^ 

Tinham  dito  a  verdade  os  honrados  chefes  de 


Ao  de  leoe  87 

familia,  e  porque  o  conselheiro  não  era  homem 
que  faltasse  á  sua  promessa,  foram  os  três  nomea- 
dos gatos  da  Alfandega,  como  poderiam  ser  no- 
meados secretários  do  ministro,  ou  revisores  do 
caminho  de  ferro. 

Os  verdadeiros  gatos  emigraram,  e  uma  com- 
missão  de  ratos  foi  cumprimentar  os  três  honra- 
dos chefes  de  familia,  quando  viram  as  nomeações 
no  Diário  do  Governo. 


\ 


Deve  se  ao  sr.  Casimiro  José  de  Lima, 
director  da  casa  da  moeda^  omouu- 
meuto  a  Sou^a  Martins ^  erecto  no 
Campo  de  San f  Anua. 

(Dos  jornaes). 


Eram  congressistas. 

Desemboccaram  no  Campo  de  SanfAnna,  vindo 
da  Carreira  dos  Cavallos,  e  como  se  approximassem 
da  estatua,  a  alguns  passos  de  distancia,  pararam 
de  repente,  em  geito  de  quem  examina  com  in- 
teresse. Um  do  grupo,  o  mais  velho,  typo  acaba- 
do de  sábio  allemão,  género  Topsius,  de  sobre- 
casaca e  óculos  d'ouro,  erguendo  ligeiramente  o 
chapéu,  n'um  cumprimento  respeitoso,  em  que  ha- 
via muito  de  admiração,  exclama  com  grande 
convencimento  :  —  Schõn  I  Schr  schon  !  E  logo 
os  outros  todos,  em  unisono,  como  se  fosse  um 
echo  alli  próximo,  possuídos  d'aquelle  arrouba- 
mento  esthetico,  que  é  vulgar  nos  homens  da  Al- 
lemanha,  exclamaram  também j  —  Sc/zz'  schõn! 


Ao  de  leve  89 

O  mais  velho,  erguendo  os  óculos  d'ouro  para  a 
testa  ampla,  como  a  querer  illuminar  o  pensa- 
mento, feita  uma  ligeira  reverencia  á  estatua  im- 
movel  explicou :  —  Ribeiro  Sanches...  Foi  um  me- 
dico notável  do  século  dezoito,  um  sábio  do  mais 
alto  valor.  Formado  em  Coimbra,  graduado  em 
Salamanca,  visitou  successivamente  os  hospitaes 
de  Londres,  Marselha,  Toulon,  Montpellier  e  Pa- 
ris. Estudou  com  Doerhaave  —  todos  se  desco- 
briram —  em  Leyder,  durante  três  annos,  e  a  tal 
ponto  se  impoz  á  estima  e  á  consideração  do 
Mestre,  que  d'ahi  a  pouco  tendo-lhe  pedido  a  im- 
peratriz da  Rússia  a  indicação  de  três  grandes 
médicos,  que  fossem  exercer  cargo  de  professor 
em  Moscow,  o  primeiro  nome  que  Iheaccudiu  foi 
o  de  Ribeiro  Sanches.  Medico  dos  exércitos  im- 
periaes,  fez  a  campanha  da  Polónia,  em  1735,  e 
ainda  n'essa  qualidade  andou  pelo  Paiz  dos  Tár- 
taros, sobre  os  quaes  fez  estudos  de  anthropolo- 
gia,  que  muito  aproveitaram  ao  sábio  francez  Buf- 
fon  —  e  todos  se  descobriram  de  novo.  —  Viveu 
em  Paris,  com  muitas  difficuldades,  sempre  estu- 
dando, sempre  cultivando  a  sciencia,  produzindo 
trabalhos  valiosos  sobre  economia,  historia  e  me- 
dicina. 

Formara  a  sua  intelligencia  no  estudo  de  Ba- 
con e  Descartes,  e  temperou  o  seu  caracter  pe- 
los conselhos  de  Montaigne. 

Accusado  de  judaismo,  não  podia  vir  a  Portu- 
gal, e  os  livros  que  para  cá  mandava  eram  uma 


90  Ao  de  leoe 

espécie  de  contrabando,  que  o  marquez  de  Pom- 
bal fez  passar  como  sendo  d'um  phantastico  dr. 
João  Mendes  Sachetti. 

A  Imperatriz  Catharina  II,  da  Rússia,  grata  por 
a  haver  curado  d'uma  doença  grave,  era  ella 
princeza,  estabeleceu-lhe  uma  mezada  sufficiente, 
quando  elle  se  viu  na  capital  da  França,  a  braços 
com  a  miséria. 

E  assim  pôde  viver  e  publicar  o  seu  Metho- 
do  de  estudar  a  medicina,  e  um  tratado  de  Con- 
servação da  saúde  dos  povos,  e  outros  muitos 
trabalhos  de  valia,  que  lhe  marcaram  logar  dis- 
tincto  entre  os  sábios  do  seu  tempo.  Um  grande 
sábio!  Ein  gross  gelehrt!  Viel  berúhmht !  — 
E  todos  em  unisono,  como  se  fosse  um  echo  ali 
perto :  —  SJiel  berúhmht! 

Ia  a  passar  uma  mulhersinha,  typo  de  mulher 
que  esfrega,  e  como  os  visse  embasbacados,  ap- 
proximou-se  do  grupo: 

—  E'  o  Sousa  Martins,  os  senhores  haviam  de 
conhecer.  Quem  mandou  alli  pôr  isto,  foi  o  sr* 
Casimiro  da  Casa  da  Moeda  —  talvez  os  senho- 
res tenham  ouvido  falar. 

Pois  não  conheciam  um,  nem  tinham  ouvido  fa- 
lar do  outro,  aquellas  cavalgaduras! 


\ 


Montem  a  policia  deitou  a  mão  a  um 
gatuno  de  on:{e  annos^  que  roubou 
um  pão  numa  padaria  da  Baixa- 

(Dos  jornaes). 


Tinha  roubado  um  pão. 

A  mãe  dissera-lhe  que  fosse  pedir  esmola,  ha- 
via muitas  horas  sem  comer,  e  elle  abalara  por 
essas  ruas,  descalço  e  roto,  extendendo  a  mão  a 
toda  a  gente.  Entrava  nos  cafés,  e  ninguém  lhe 
dava  nada ;  entrava  pelas  lojas,  descalço  e  roto,  e 
os  caixeiros  enxotavam-n'o  como  se  fosse  um  cão. 
Dá-me  cincoreisinhos,  meu  senhor  ? 

Ninguém  lhe  dava  nada,  e  todos  o  maltratavam, 
chegando  um  policia  a  deitar*lhe  a  unha  para  o 
levar  para  a  Correcção.  Infatigável,  entrando  agora 
n'um  café,  onde  os  freguezes  nem  ouviam  o  seu 
estribilho— ^á-^?e  cincoreisinhos,  meu  senhor? 
—  entrando  além  n'uma  loja,  d'onde  os  caixeiros 
o  enxotavam  como  um  cão  sem  dono,  já  tinha 
percorrido  a  cidade  inteira,  extendendo  a  mão  a 


92  Ao  de  leve 

toda  a  gente,  e  toda  a  gente  olhando  para  elle 
com  desprezo  ou  com  enfado,  e  ninguém  se  com- 
padecendo da  sua  miséria.  E,  comtudo,  era  nada, 
que  elle  pedia  a  toda  a  gente  que  passava,  exten- 
dendo  a  mão  suplicante.  —  Dâ-me  cincoveisi- 
nhos,  meu  senhor? 

Cangado,  cheio  de  fome,  ahi  volta  elle  a  casa, 
onde  a  mãe  o  aguardava,  n'uma  afflicção,  chum- 
bada ao  leito,  havia  muitas  horas  sem  comer.  Uma 
senhora  muito  bem  vestida,  com  brilhantes,  car- 
ruagem brazonada,  quasi  encalhando  n'elle  á  porta 
d'uma  Egreja,  estendeu-lhea  mão  enluvada,  e  dei- 
xou cahir  na  sua  mãosita  suja,  sem  olhar  para  elle, 
os  cincoreisinhos  que  elle  andava  a  pedir  corren- 
do a  cidade  inteira,  extendendo  a  mão  a  toda  a 
gente  que  passava,  entrando  nos  cafés,  onde  os 
freguezes  eram  surdos  ao  seu  pedido,  e  entrando 
nas  lojas,  descalço  e  roto,  e  d'onde  os  caixeiros 
o  enxotavam,  como  um  cão  vadio. 

Talvez  não  fosse  de  propósito,  mas  os  cinco- 
reisinhos telintaram  nas  pedras  da  calçada,  em- 
quanto  a  senhora  que  lh'os  dera,  muito  bem  ves- 
tida, genuflectia  á  porta  do  templo,  e  cortava  o 
rosto  fresco  e  moreno  com  o  signal  da  cruz. 

Foi  então  que  o  garoto  deu  com  os  olhos  n'um 
cesto  de  verga,  á  porta  d'uma  padaria,  cheio  de 
pão  alvo  e  fresco. 

Alli  perto  estava  a  mãe,  chumbada  ao  leito,  so- 
frendo horrivelmente,  noites  e  noites  sem  dormir, 
havia  muitas  horas  sem  comer.  Quasi  nem  teve 


Ao  de  leve  93 

tempo  de  acommodar  o  pão  debaixo  do  braço,  es- 
condendo-o  com  uns  frangalhos  da  jaqueta.  O  pa- 
deiro grita,  o  garoto  foge,  a  policia  apanha-o,  e  a 
multidão  horroriza-se  deante  d  aquelle  ladrão  de 
onze  annos,  que  tinha  a  mãe  alli  perto,  n'uma  po- 
cilga, chumbada  ao  leito,  soffrendo  horrivelmente, 
noites  e  noites  sem  dormir,  havia  muitas  horas 
sem  comer. 

Na  esquadra,  mettido  no  segredo,  como  um  fa- 
cínora, o  garoto  dá  o  nome  e  a  morada ;  mas  o 
terror  nem  o  deixa  desafogar  em  lagrimas  —  ve- 
jam o  cynismo  do  malandro !  —  e  a  vergonha  faz- 
Ihe  esconder  a  cara  —  admirem  a  astúcia  do  pa- 
tife! 

O  policia,  que  foi  prevenir  a  família,  ao  outro 
dia,  encontrou  extendido  no  leito,  ainda  quente,  o 
cadáver  d'uma  mulher  nova,  muito  sêcca,  muito  mir- 
rada, o  ar  de  quem  passou  largo  tempo  chumba- 
da ao  leito,  ainda  quente,  soffrendo  horrivelmente, 
muitas  horas  sem  comer,  muitas  noites  sem  dor- 
mir. 

]á  não  lhe  puderam  dizer  que  era  um  ladrão  o 
seu  filho,  aquelle  garoto  descalço  e  esfrangalhado, 
que  percorrera  a  cidade  inteira,  incommodando 
toda  a  gente  —  dâ-me  cincoreisinhos,  meu  se- 
nhor ? 


\ 


o  rei  podia  impôr-se  por  um  acto  de 
abnegação  e  patriotismo^  acceilando 
a  Republica, 

(D'um  jornal  republicano). 


Era  um  povosinho  pacato,  que  moirejava  nas 
suas  terras,  sempre  alegre,  sempre  satisfeito,  sem 
recordações  tristes  do  passado,  sem  apprehensões 
pelo  futuro. 

Enlevava -se  na  contemplação  do  mar,  quando 
elle  era  sereno,  e  como  se  esquecesse  então,  os 
olhos  pregados  na  sua  superficie  espelhenta  e  lisa, 
os  ladrões  aproveitavam-se  daquella  espécie  de 
somno  hypnotico  para  lhe  aligeirarem  os  bolsos. 

Bem  se  importava  elle  com  isso  !  Tirava  da  terra, 
quasi  sem  esforço,  tudo  quanto  lhe  era  necessá- 
rio, e  ainda  lhe  ficava  muito  tempo  para  se  enlevar 
como  um  sabeista,  na  contemplação  dos  astros,  de 
dia  piscando  os  olhos  aos  raios  d'um  sol  que  não 
queima,  de  noite  como  a  querer  enchel-os  d'um 
uar  que  adormenta. 


Ao  de  leve  95 

Era  feliz. 

Os  outros  invejavam  aquella  tranquillidade  pa- 
radisíaca, alguns  milhões  de  bananas  governados 
consoante  a  rima,  e  com  um  rei  cor  de  laranja. 

Succedeu,  porém,  que  um  dia,  no  meio  d'aquelle 
povo  pacato  que  moirejava  nas  suas  terras,  sem- 
pre alegre,  sempre  satisfeito,  sem  recordações  tris- 
tes do  passado,  sem  apprehensões  pelo  futuro,  caiu 
uma  semente  de  revolta,  que  logo  germinou  e  for- 
tificou, avassallando  todos  os  espíritos.  A'quella 
gente  pacifica  repugnavam  os  actos  violentos,  e 
só  comprehendia  que  se  derramasse  sangue  para 
fazer  cabidela,  ou  então  para  evitar  congestões, 
quando  assim  o  entendesse  a  medicina. 

Mas  havia  o  rei. .  • 

Foi  então  que  um  patriota,  inspirado  como  um 
propheta  antigo,  teve  uma  ideia  genial,  um  pensa- 
mento sublime  —  convidar  o  rei  a  adherir.  Elimi- 
na-se  o  rei  e  cria-se  um  cidadão,  exclamava  com 
muita  eloquência,  pondo  arrepios  de  commoção 
na  espinha  de  todos  os  ouvintes. 

S.  M.  adheriu. 

Como  todos  os  bons  cidadãos  quizeram  sacri- 
ficar-se  na  presidência  da  Republica,  houve  ne- 
cessidade de  não  crear  essa  funcção,  e  isso  se  fez 
por  consenso  unanime,  cada  um  não  querendo 
para  os  outros  o  que  não  poderia  haver  para  si. 

Alvitrou-se  a  anarchia,  mas  como  viesse  a  re- 
conhecer-se,  ao  cabo  de  longa  discussão,  que  no 
relógio  do  tempo  ainda  não  tinha  soado  essa  ho- 


96  Ao  de  leve 

ra  suprema  d'amor  e  de  justiça,  tratou-se  de  ele- 
ger um  governo,  como  nas  outras  republicas. 

Um  velho  de  aspecto  venerando,  com  um  sa- 
ber só  de  experiências  feito,  propoz  que  na  cons- 
tituição do  governo  entrassem  elementos  novos  e 
aguns  dos  antigos  homens  de  governo,  já  com  pra- 
tica de  negócios  públicos. 

—  Os  cidadãos  que  approvam  esta  proposta  er- 
gam as  duas  mãos. 

Como  se  visse  no  ar  uma  floresta  de  mãos : 

—  Approvada  por  unanimidade. 

Logo  uma  voz  se  ergue,  fazendo-se  ouvir  em 
toda  a  vasta  assembléa: 

—  Eu  voto  contra.  No  governo  só  deve  entrar 
gente  nova. 

O  homem  que  assim  falava  protestando  com 
energia,  era  o  cidadão  que  fora  rei,  o  que  deu  to- 
gar a  esta  observação  do  presidente. 

—  Mas  o  cidadão,  quando  era  monarcha. . . 

—  Pois  sim,  quando  era  monarcha ;  mas  agora 
sou  contribuinte.    . 


\ 


Parece  que  S.  M.  a  Rainha  não  acom- 
panhará El- Rei  na  sua  próxima  via- 
gem. 


—  Confessa  que  te  era  mais  agradável  ir  só .  • . 

—  A  falar  a  verdade. . . 

—  Ao  menos  és  franco,  e  a  franqueza  não  pas- 
sa por  ser  qualidade  vulgar  na  tua  nobilissima  fa- 
milia. 

—  Falas-me  da  minha  familia  n'um  tom  de  su- 
perioridade e  desdém,  como  se  descendesses  d'al- 
guma  d'essas  divindades  soberbas,  de  que  estão 
cheias  as  mytholcgias  antigas.  A  esse  respeito,  mi- 
nha filha,  talvez  seja  melhor  nãoadeantarmos  con- 
versa. Ha  um  anexim  portuguez  que  resa  assim; 
—  disse  o  tacho  â  certa,  tira-te  para  lá  não 
me  tisnes. 

—  Não  conheço  o  calão  dos  toureiros. . . 

—  Nem  eu  a  giria  dos  jesuítas. 

—  Ao  menos  podias  ser  delicado  com  uma  se- 
nhora. 

7 


98  Ao  de  leve 

—  Por  certo  se  essa  senhora  quizesse  ser  de- 
licada commigo. 

—  Nunca  eu  tivesse  aqui  posto  os  pés. 

—  Inteiramente  d'accordo.  Tinha  sido  magnifico 
para  os  dois. 

—  Se  não  fossem  os  filhos  e. . . 

—  Bem  sei ;  se  não  fosse  isto  de  pairar  no  alto, 
estar  acima  dos  outros. . . 

—  Je  m'en  fiche  de. . . 

—  Temos  calão  boulevardiano  ? 

—  Se  um  dia  perderes  o  logar,  podes  ir  para 
Marrocos :  o  sultão,  supponho  eu,  não  terá  ciúmes 
de  ti. 

—  Nem  tu  saudades  minhas. 

—  Se  te  parece!. . . 

—  Apezar  de  todos  os  pezares,  minha  filha, 
tu  ainda  me  podias  dar  um  prazer  enorme,  uma 
satisfação  infinita. 

—  Deixando-te  ir  em  liberdade? 

—  Não  ;  deixando-me.  •  .  viuvo. 


\ 


No  congresso  medico  do  Porto,  o  dr, 
Eduardo  d' Abreu  apresentou  um  ve- 
lho de  log  annos. 

(Dos  jornaes). 


—  Vou  dar  a  palavra  ao  illustre  congressista, 
nosso  collega,  que  apresentará  á  assembléa  o  ho- 
mem mais  velho  do  mundo. 

Quando  o  presidente  acabou  de  pronunciar  es- 
tas palavras,  fez- se  na  sala,  até  então  rumorosa, 
c  silencio  dos  momentos  augustos.  Um  congres- 
sista avançou  para  junto  da  mesa  da  presidência, 
acompanhado  d'um  velhote  rabitezo,  de  peitilhos 
bordados,  endomingado  como  para  a  desobriga. 
Era  o  homem  mais  velho  do  mundo,  como  disse- 
ra o  presidente.  Nascido  no  século  dezoito,  atra- 
vessara todo  o  século  dezenove,  e  alli  estava 
muito  fresco,  bem  disposto,  nas  felizes  disposições 
de  acompanhar  o  século  vinte  até  por  ahi  adeante 
sem  cansaço  de  maior. 


100  Ao  de  leve 

Estavam  alli  cento  e  nove  annos,  bonita  somma 
feita  com  parcelas  de  três  séculos,  muito  dese- 
guaes  em  valor. 

Tão  bem  conservado  o  velhinho! 

Dir-se-ia  que  adormecera  quando  ia  a  entrar 
na  velhice,  ao  cabo  de  uma  florente  mocidade,  e 
a  dormir  deixara  de  fazer  annos,  o  bom  velhote. 
Por  certo  aquella  alma  nunca  fora  batida  das  tor- 
mentas, não  experimentara  nunca  as  grandes  ale- 
grias nem  as  grandes  contrariedades,  porque  umas 
e  outras  consomem  como  ofogo,  abbreviam  a  exis- 
tência, —  diluindo-a  em  risos  ou  afogando-a  em 
lagrimas. 

Tão  bem  conservado,  o  velhinho! 

Ha  rugas  na  sua  face ;  mas  ellas  são  apenas  as 
dobras  avelludadas  dos  lagos  adormecidos,  d'uma 
paz  magestosa  e  inalterável. 

Os  olhares  de  todos  aquelles  médicos  conver- 
giam para  o  bom  do  velho,  muito  rabitezo,  com 
os  seus  peitilhos  bordados  á  moda  de  1820  —  a 
única  coisa  limpa  que  resta  das  grandes  aspira- 
ções d'aquella  época,  explicou  o  congressista  que 
apresentava  o  phenomeno.  Parecia  uma  evocação, 
um  phantasma  que  surgisse  da  noite  dos  tempos 
para  contar  historias  trágicas.  Mas  havia  tanta 
candura  .no  seu  olhar  curioso  !  tanta  alegria  infan- 
til no  seu  riso  mal  contido,  como  se  tivesse  ver- 
gonha de  não  se  mostrar  grave  alli,  no  meio  de 
tantos  senhores !  Aquella  seriedade  tinha  o  ar  de 
uma  meninice  robusta  e  florida. 


Ao  de  leve  101 

Tão  bem  conservado,  o  velhinho !  Parecia  ven- 
der saúde. . . 

Um  dos  congressistas,  ch'nico  de  larga  nomea- 
da, approximando-3e  do  velhote : 

—  E  de  saúde,  que  tal  ? 

—  O'  meu  senhor,  graças  a  Deus. . . 

—  Mas  nunca  esteve  doente  ? 

—  Uma  vez,  ainda  era  novo,  ahi  por  volta  dos 
setenta  annos. 

—  E  tomou  muitos  remédios  ? 

—  Lá  quanto  a  isso. . .  não  tomei  nenhum.  Eu 
sempre  tive  muito  amor  á  vida. 

Tão  bem  conservado,  o  velhinho ! . . . 


\_ 


fíonle)n,  em  conjerencia  dos  delega- 
dos, foi  resolvido  querellar  dalguns 
joniaes» 

(Dos  jornaes). 


A  sessão  estava  marcada  para  as  onze. 
O  ultimo  que  entrou,  saudando  os  dois  que  já 
lá  estavam,  teve  esta  observação  maliciosa: 

—  A  justiça  é  pontual!. . . 

—  E  algumas  vezes. . .  justa,  accrescentaram  os 
collegas. 

Cada  qual  desembaraçou-se  do  sobretudo,  pôz  em 
cima  da  mesa  um  masso  de  jornaes,  e  assentou-se. 

—  Ha  que  fazer  ? 

—  Pela  parte  que  me  toca. .  • 

O  que  assim  falou,  ergueu  os  óculos  para  a 
testa,  abriu  um  dos  jornaes  que  tinha  na  sua  fren- 
te, e  leu  pausadamente :  —  E'  fóva  de  duvida  que 
o  nosso  Monarcha  é  dos  imperantes  mais  ho- 
nestos e  mais  intelligcntes  não  só  da  Europa, 
mas  de  todo  o  mundo. 


Ao  de  leve  103 

Pousou  o  jornal  sobre  a  mesa,  deixou  cair  os 
óculos  para  os  olhos,  e  attentou  nos  collegas,  á  es- 
pera. 

—  E  depois  ?  O  collega  com  certeza  não  pre- 
tende querellar  d'esse  jornalista,  com  certeza  mo- 
narchico.  •  • 

—  Engana-se  o  collega  redondamente.  Pretendo 
querellar  a  passagem  do  jornal,  que  acabo  de  ler, 
porque  a  encontro  incursa  no  artigo.  • . 

—  Mas  isso  não  tem  pés  nem  cabeça,  collega. 
Quereria  então  que  amanhã  se  dissese  que  este 
augusto  tribunal  querellára  d'um  jornalista  por  ter 
elle  escripto  que  o  monarcha  é  honesto,  é  intelli- 
gente,  dos  mais  honestos  e  intelligentes  que  o  sol 
cobre  ? . . . 

—  E'  como  acaba  de  dizer. 

—  Mas  isso  é  uma  loucura!. .  • 

—  Um  pouco  mais  pequena  do  que  lhe  parece. 
Estamos  aqui  para  cumprir  a  lei,  e  a  lei,  n'este 
ponto,  é  clara. 

—  O  que  faria  então  o  collega  se  o  jornalista 
tem  escripto  que  o  monarcha  é  destituido  de  in- 
telligencia  e  honestidade? 

—  O  que  faria  ?  Querellava-o  com  fundamento 
no  artigo. . . 

—  Mas  é  então  o  caso  de  ser  preso  por  ter 
cão . . . 

—  Não  é  nada  d'isso.  E'  o  caso  da  lei  prevenir 
as  duas  hypotheses  —  a  da  calumnia  e  a  da 
troça. 


104  Ao  de  leoe 

Concordaram  os  três  em  que  eram  de  troça  as 
palavras  incriminadas,  e  assim  fundamentaram  a 
sua  petição  de  querella.  Nunca  mais,  desde  então, 
os  jornalistas  se  atreveram  a  escrever  aquillo  a  se- 
rio. 


\ 


o  sr.  Teixeira  d' Abreu  foi  hontem 
cumprimentado  por  uma  commissão 
de  Jm\es^  que  o  procurou  no  seu  mi- 
nistério, 

(Dos  jornaes). 


Era  uma  commissão  de  juizes  da  provincia,  que 
vinha  apresentar  os  seus  cumprimentos  a  s.  ex/\ 

Ageitou  o  laço  da  gravata,  kaiserizou  um  pouco 
os  bigodes,  pousou  a  mão  direita,  levemente  es- 
palmada, sobre  a  pasta  de  marroquim,  deixou  cair 
o  braço  esquerdo  ao  longo  do  corpo,  muito  á 
vontade,  e  disse  ao  continuo  que  mandasse  en- 
trar. 

—  Vimos  apresentar  a  v.  ex.*  as  nossas  home- 
nagens, felicitando-o  pela  justa  e  merecida  distin- 
cção  que  acaba  de  lhe  ser  feita. 

Muito  grave,  tendo  ouvido  aquella  pequena  fala 
como  se  fosse  um  acto  de  vassalagem  por  parte 
de  rebeldes  submettidos,  pausadamente  como  quem 
mede  as  palavras  : 


106  Ao  de  leve 

—  Agradeço  as  felicitações  que  me  dirigem,  e 
tomo-as  como  partindo  de  toda  a  magistratura, 
aqui  representada  por  v.  ex.^l 

Ordenou  que  se  sentassem,  n'um  gesto  brando 
e  attencioso,  e  elle  próprio  sentou-se,  com  muita 
solemnidade,  não  fosse  desmanchar  a  pose  que 
estudara  de  véspera  para  actos  officiaes. 

E  explicou : 

—  Desejo  fazer  obra  útil,  que  vinque  a  minha 
passagem  pelos  conselhos  da  coroa.  O  complexo 
de  medidas  que  tenciono  apresentar,  subordina- 
das umas  ás  outras  como  partes  integrantes  d'um 
todo  harmónico,  constituirá  o  que  eu  chamo  A 
reforma  da  bola. 

—  A  reforma. . . 

—  Da  bola.  Não  fazem  ideia  do  que  seja?  Não 
admira;  írata-se  d'uma  coisa  inteiramente  nova. lá 
na  Universidade  iniciei  o  meu  plano  reformador, 
embora  n'outro  campo,  e  com  o  melhor  resultado. 

—  Se  V.  ex.'^ . . . 

—  E'  simples.  Em  vez  de  chamar  á  lição  pela 
caderneta,  chamava  pelo  saco  das  bolas.  Numero 
tal  ?  Era  o  que  dava  a  sorte.  Assim  os  rapazes, 
receando  cada  qual  que  saisse  a  bola  do  seu  nu- 
mero, estudavam  todos  a  sebenta.  E'  engenhoso 
não  é  verdade? 

—  Sem  duvida.  Qualquer  que  não  tivesse  o  im- 
menso  talento  de  v.  ex.^  consideraria  que  os  ra- 
pazes, esperando  cada  qual  que  não  saisse  a  bola 
do  seu  numero,  nenhum  pegaria  na  sebenta. 


Ao  de  leve  107 

—  Pois  ahi  está.  A  bola,  applicada  ás  coisas  da 
justiça,  espero  que  dará  os  melhores  resultados 
Assim,  por  exemplo,  tratando-se  da  collocação  de 
juizes  e  delegados. . .  A  cada  comarca  correspon- 
de uma  bola.  Estão  a  ver?. . .  Acaba  o  favoritis- 
mo; torna-se  impossivel  a  perseguição  ou  a  em- 
penhoca. 

—  E'  maravilhoso ! 

—  Pois  não  é  ?. .  .  E  ao  mesmo  tempo  é  sim- 
ples. Espero  que  a  minha  passagem  pelos  conse- 
lhos da  coroa,  curta  ou  demorada  que  seja,  não 
resulte  improficua  para  os  sagrados  interesses  da 
justiça  e  dos  seus  agentes. 

Ergueu-se  gravemente,  e  premiu  o  botão  elé- 
ctrico. Logo  appareceu  o  continuo,  que  acompa- 
nhou até  á  escada  aquella  commissão  de  juizes,  que 
tinham  ido  apresentar  os  seus  cumprimentos  a  s. 
ex.^ 

]á  na  Arcada,  olhando  uns  para  os  outros,  co- 
mo que  interrogando- se: 

—  Com  que  então,  a  bola  ? 

—  Redonda  e  de  escaravelho,  levada  as  arre- 
cúas  até  ao  gabinete  negro. 


\. 


o  illustre  deputado  F.  fe\  hontem  um 
grande  discurso^  muito  caloroso  e 
muito  espontâneo^  sendo  no  final 
cumprimentado  por  quasi  todos  os 
seus  cal  legas, 

(Dos  jornaes). 


Passou  por  alli  e  entrou. 

Era  um  espectáculo  novo  para  elle,  uma  sessão 
parlamentar.  Vinha  a  Lisboa,  muitas  vezes,  estan- 
do as  Camarás  abertas,  mas  em  geral  tinha  muito 
que  fazer,  e  não  podia  demorar-se  por  fora  de 
casa. 

O  cavallo  engorda  só  com  a  vista  do  dono, 
e  elle  sabia  bem  como  o  seu  emmagrecia,  isto  é, 
como  lhe  corriam  mal  os  negocies  quando  se  au- 
sentava por  certo  tempo.  Mas  uma  vez  não  são 
vezes  e  elle  poderia  fazer  á  sua  curiosidade  o  sa- 
crifício das  suas  commodidades.  Em  vez  de  partir  no 
comboio  da  tarde,  que  era  rápido,  partiria  no  com- 
boio da  noite,  muito  ronceiro,  parando  em  todas 


Ao  de  leve  109 

as  estações,  esó  chegando  á  sua  terra  a  uma  ho- 
ra bastante  incommoda,  de  madrugada. 

Entrou,  e  dirigindo-se  ao  primeiro  porteiro  que 
viu,  entregou-lhe  um  cartão  de  visita  para  o  de- 
putado do  seu  circulo,  pedindo  uma  entrada,  para 
a  galeria  do  presidente.  Tinham-lhe  dito  que  era 
d'alli  que  melhor  poderia  disfructar  o  espectáculo. 
S.  ex.*  mandou  o  bilhete  de  admissão,  e  pedia 
desculpa  de  não  vir,  porque  estava  conversando 
com  o  ministro  a  respeito  d'um  melhoramento  que 
tinha  pedido  lá  para  o  circulo,  a  ponte  de  alve- 
naria sobre  a  ribeira,  que  no  inverno,  chovendo 
muito,  estorvava  a  passagem  de  carros. 

Acabava  de  ler-se  a  acta,  quando  elle  se  ins- 
tallou  no  seu  logar.  Um  deputado  já  velho,  com 
óculos,  mandou  para  a  mesa  uns  papeis,  reque- 
rendo que  fossem  publicados  no  Diário,  e  um  dos 
ministros  declarou- se  habilitado  a  responder  á  in- 
terpelação que  lhe  tinha  annunciado,  na  véspera, 
um  illustre  deputado  da  maioria. 

Pareceu-lhe  aquillo  pouco  interessante,  e  já 
quasi  se  arrependia  de  ter  alli  ido,  quando  o  pre- 
sidente, não  havendo  mais  quem  pedisse  a  pala- 
vra, declarou  que  se  ia  entrar  na  ordem  do  dia. 
E  logo  a  seguir: 

—  Tem  a  palavra  o  sr. . . . 

Era  o  seu  deputado  que  tinha  a  palavra.  Não 
pensou  mais  em  ir-se  embora,  está  bem  de  ver, 
e  como  o  homem  tivesse  a  palavra  foi  te  e  o  ges- 
to largo,  prendeu-lhe  a  attenção  desde  o  começo. 


110  Ao  de  Leve 

A  Camará  estava  um  pouco  distraída,  cada  qual 
cochichando  com  o  seu  visinho,  mas  elle  tinha  a 
impressão  que  o  discurso  era  bem  alinhavado,  tal- 
vez um  pouco  vulgar  nos  conceitos,  mas  bastante 
correcto  na  forma,  e  deduzido  com  certa  lógica  e 
habihdade.  Quando  faltavam  apenas  cinco  minu- 
tos para  se  encerrar  a  sessão,  o  presidente,  in- 
terrompendo o  orador,  perguntou-lhe  se  deseja- 
ria ficar  com  a  palavra  reservada. 

—  Vou  concluir,  sr.  presidente ;  os  cinco  minu- 
tos de  que  ainda  disponho,  chegam  muito  bem 
para  o  que  me  falta  dizer. 

Quando  acabou,  muitos  deputados  foram  cum- 
primentado, alguns  apertando-lhe  a  mão  com  muita 
força  e  outros  abraçando-o  com  enternecimento. 

Esperou-o  ao  pé  do  elevador,  e  mal  o  viu  es- 
tendeu-lhe  as  duas  mãos: 

—  Muito  bem!  muito  bem! 

Elle  então  explicou,  modestamente,  que  não  con- 
tava usar  da  palavra,  n'aquella  sessão,  e  que  por 
isso  não  se  tinha  preparado. 

—  Foi  o  que  acudiu  na  ocasião;  para  a  outra 
vez  será  melhor. 

]á  fora  do  edifício  das  Cortes,  atravessando  o 
largo,  um  rapaz  de  blusa  azul,  com  uns  papeis 
nas  mãos,  approximou-se  d'elles. 

—  Que  deseja  ? 

—  São  as  provas  do  discurso ;  v.  ex.^  manda-as 
á  typographia,  ou  quer  que  vá  buscal-as  ? 


I 


A  continuarem  as  coisas  assim ^  aos 
republicanos  bastará  um  pouco  de 
audácia  para  fazerem  a  Republica, 

(Dos  jornaes  nionarchicos). 


Era  um  pego  largo,  pouco  fundo,  com  moitas 
de  juncos  pelas  barreiras  que  se  esboroavam  a 
cada  instante.  De  cada  vez  que  caía  um  pequeno 
torrão,  acudiam  do  fundo  peixes  em  cardume,  al- 
guns doirados,  outros  de  prata.  Andavam  á  roda 
do  pego  uns  homens  graves,  sem  instrumentos  de 
pesca,  varando  os  peixes  com  olhares  de  fogo  — 
olhares  de  guloso  ou  de  avaro. 

Bem  se  importavam  os  peixes  que  elles  os  olhas- 
sem assim,  com  uma  insolência  quasi  dolorosa,  se 
lá  da  camada  funda  em  que  andavam  apercebiam- 
se  do  minimo  gesto  que  elles  fizessem,  estenden- 
do a  mão,  e  logo  mergulhavam  mais,  pondo-se  in- 
teiramente a  salvo. 

AlH  perto,  debaixo  d'uma  arvore  frondosa,  an- 
davam creanças  a  brincar. 


112  Ao  de  leve 

Como  as  chamassem,  n'um  prompto,  correram 
para  junto  daquelles  homens  graves  que  anda- 
vam á  roda  do  pego,  devorando  com  os  olhos 
aquelles  peixes  de  oiro  e  prata,  que  se  viam  lá 
em  baixo,  na  transparência  da  agua,  e  de  quando 
em  quando  vindo  á  superficie,  quando  das  bar- 
reiras caía  um  pequeno  torrão,  que  os  atraía  em 
vez  de  os  espantar. 

—  Ganha  um  vintém  cada  um,  se  atirarem  pa- 
ra o  pego  muita  poeira  e  muita  lama. 

Os  pequenos  olharam  uns  para  os  outros,  co- 
mo que  interrogando-se,  e  logo  desataram  a  cor- 
rer, por  alli  fora,  rindo  ás  gargalhadas,  deixando 
estupefactos  aquelles  homens  graves  que  estavam 
havia  muito  namorando  os  peixes,  varando-os  com 
olhares  de  fogo  —  olhares  de  guloso  ou  de  avaro. 

]á  a  distancia,  para  além  da  arvore  debaixo  da 
qual  ha  pouco  brincavam,  estacaram  todos  ao  mes- 
mo tempo,  como  se  obedecessem  a  uma  voz  de 
comm.ando.  O  mais  ladino,  apontando  na  direcção 
do  pego,  com  um  grande  ar  de  superioridade  des- 
denhosa : 

—  Queriam  pescar  nas  aguas  turvas,  os  gajos... 
E  todos  riram  á  gargalhada. 


k 


Toda  tu  és  formosa,  amiga  minha,  e 
em  ti  não  ha  mancha. 

(Cântico  òos  Cânticos). 


Que  os  seus  lábios  toquem  os  meus  lábios,  dan- 
do-me  o  osculo  da  sua  bocca,  e  as  minhas  mãos 
toquem  os  seus  peitos,  fragrantes  como  os  bálsa- 
mos mais  preciosos- . . 

Bem  me  importa  que  ella  seja  trigueira,  se  fo 
o  sol  que  lhe  mudou  a  cor  beijando-a  doidamente 
n'um  dia  em  que  ella  andava  pelas  encostas,  apas- 
centando os  gados,  esbelta  como  a  açucena... 

Hei  de  fundir  os  meus  desejos  loucos  no  fogo 
dos  seus  olhos  negros,  para  afogar  n'uma  garga- 
lheira d'ouro  o  seu  pescoço  de  rola. 

Ella  é  a  flor  do  campo,  o  lírio  immaculado  dos 
valles,  olorosa  como  o  nardo,  rescendendo  como 
um  ramalhete  de  açafrão  que  alguém  tivesse  col- 
locado  entre  as  suas  pomas  virgens,  appetitosas  co- 
mo um  cacho  de  Chypre,  de  bagos  húmidos  e  fres 

cos. 

8 


114  Ao  de  leoe 

Não  a  acordem  no  seu  thalamo  de  flores,  que 
eila  assim  é  linda  como  a  Sulamita,  cujo  coração 
vela  emquanto  ella  dorme,  e  na  volúpia  do  seu 
sonho,  perfumado  de  todas  as  essências  do  Líba- 
no, percebe  a  voz  do  seu  amado,  que  lhe  bate  á 
porta,  a  escorrer-lhe  do  cabello  em  anneis  todo  o 
orvalho  da  noite. 

Os  seus  lábios  são  como  uma  fita  de  escarlate, 
mal  cobrindo  os  seus  dentes  de  marfim,  e  as  ma- 
çãs do  seu  rosto,  como  romã  partida,  accendem  fo- 
me de  beijos  nos  próprios  cedros  do  Libano. 

Que  airosos  são  os  seus  passos,  e  que  harmo- 
nioso é  o  seu  talhe,  similhante  ás  palmeiras  do 
deserto,  em  torno  das  quaes  esvoaçam  pombas 
nitentes  como  frocos  de  espuma,  que  o  vento  er- 
guesse do  mar  quando  as  ondas  saltam  como  ca- 
britos do  monte,  procurando  as  folhas  verdes ! 

Não  lhe  perturbeis  o  somno,  linda  como  é  ador- 
mecida, o  leito  em  que  repousa  tendo  o  olor  de 
um  canteiro  de  plantas  aromáticas,  onde  floresce 
o  nardo  e  o  açafrão,  o  cinamomo  e  a  mirrha. 

Bem  me  importa  que  ella  seja  trigueira,  se  foi 
o  sol  que  lhe  queimou  as  faces,  beijando-a  doi- 
damente, n'um  dia  em  que  a  apanhou  no  campo, 
esbelta  como  as  açucenas.  . . 


\ 


Ci  gil  Pirou ^  qui  fui  rieni . . . 


Accumulava  com  o  emprego  burocrático ...  de 
não  fazer  nada,  o  encargo  social.  • .  de  dizer  mai 
de  todofi  e  de  íudo.  Assim  o  tempo  não  lhe  che- 
gava para  ir  aqui  e  além,  apparecendo  em  toda  a 
parte,  informando-se  da  ultima  novidade,  e  com- 
mentando  o  ultimo  escândalo.  Estava  convencido 
de  que  nascera  com  immensas  aptidões,  um  enor- 
me talento  de  escriptor,  um  profundo  génio  d  ar- 
tista, e  que  tudo  isso  lhe  fora  roubado,  ainda  no 
berço,  uma  noite,  estava  elle  a  dormir  e  a  sonhar 
—  um  lindo  sonho  cor  de  rosa,  que  punha  estre- 
mecimentos rithmicos  nas  suas  caminhas  de  leite. 
Teria  sido  um  philosopho  como  Littré,  um  escul- 
ptor  como  Miguel  Angelo,  um  historiador  como 
Mommsen,  um  critico  como  Taine,  um  poeta  co- 
mo Victor  Hugo,  um  pintor  como  Rubens,  um 
romancista  como  Balzac,  se  lhe  não  tivessem  rou- 
bado em  pequeno  as  immensas  aptidões  com  que 
o  dotara  a  Natureza. 


116  Ao  de  leve 

Quando  se  punha  a  escrever,  emperrava-lhe  a 
penna  ao  cabo  de  poucas  linhas,  e  não  havia  ma- 
neira, por  mais  que  torturasse  os  miolos,  de  lan- 
çar ao  papel  uma  ideia.  Quando  se  punha  a  fa- 
zer pintura,  escorregava-lhe  o  pincel  borrando  a 
lona,  e  succedia  então  que  tendo  feito  o  desenho 
para  uma  rosa,  lhe  saía  inevitavelmente  uma  couve- 
flôr.  Uma  única  vez  conseguiu  levar  a  cabo  uma 
esculptura;  mas  succedeu  que  tendo  modelado  no 
barro  um  cupidinho  alado,  quando  o  passou  ao 
gesso  se  encontrou  com  um  kanguru.  Vinham-lhe 
então  raivas  tremendas,  um  ódio  enorme  aos  que 
tinham  um  nome,  aos  que  faziam  livros  ou  faziam 
estatuas,  affirmando  de  qualquer  forma  uma  com- 
petência superior  —  o  talento,  que  não  é  com- 
mum,  ou  o  génio  que  ainda  é  mais  raro.  Era  a 
impotência  gerando  a  inveja ;  era  a  inveja  trans- 
mudando-se  em  ódio. 

Um  dia  morreu  e,  como  não  tivesse  amigos, 
quasi  ninguém  o  acompanhou  ao  cemitério.  Quan- 
do iam  a  descel-o  á  cova  na  sua  mortalha  de  po 
bre,  um  bohemio  que  alli  chegou,  informando-se 
de  quem  era,  disse: 

—  Deviam  fazer-lhe  a  cova  redonda. .  .  A  ul- 
tima morada  d'um  nulo,  deve  ter  a  forma  d'um 
zero. 


% 


S.  M.  tem  recebido  milhares  de  cartas^ 
bilhetes  e  telegrammas^  felicitando-o 
pelo  mallogro  do  projectado  movi- 
mento revolucionário. 

(Dos  jornaes). 


Estendeu  o  braço  e  premiu  o  botão  eléctrico, 
que  ficava  um  pouco  ao  lado  da  secretaria. 

—  Pareceu-me  ouvir  chamar. . . 

—  Chamei,  sim.  Vieram  cartas,  bilhetes,  tele- 
grammas,  não  é  verdade  ? 

—  E  todos  elles. . . 

—  Todos  elles  dizem  a  mesma  coisa.  Até  pa- 
rece que  foram  expedidos  pela  mesma  pessoa  ou 
então . .  . 

—  Ou  então  foram  redigidos  segundo  uma  for- 
mula combinada,  não  é  isso  ? 

—  Exactamente,  segundo  uma  formula  combi- 
nada. 

—  E  já  os  colleccionaste,  conforme  te  disse  ? 

—  De  certo.  A'  medida  que  chegavam  ia. .  . 


118  Ao  de  leve 

—  Está  bem.  Traze  aquelles  que  sabes  e  met- 
te-os  além,  n'aquella  caixa. 

—  Waquella  caixa  ? 

—  Sim,  n'aquella  caixa.  Vou  lei- os  de  monó- 
culo. 

Eram  algumas  dúzias  de  telegrammas,  vindos 
d'aqui  e  d'além,  uns  do  norte  outros  do  sul,  to- 
dos com  muitas  felicitações,  muitos  protestos  de 
respeito,  de  estima  e  dedicação.  Parecia,  na  ver- 
dade, que  tinham  sido  redigidos  segundo  uma  for- 
mula combinada,  tão  eguaes  eram  os  seus  dize- 
res. 

—  Prompto,  já  lá  estão. 

—  Olha,  põe-lhes  em  cima  aquelle  folheteco  que 
está  além,  n'aquelle  étagère,  de  capa  verde  • .  • 

—  Mas  é  a  Carta . . . 

—  Pois  já  se  vê  que  é.  Anda,  p5e-a  lá,  e  ras- 
pa-íe. 

D'ahi  por  um  quarto  d'hora,  pouco  mais  ou  me- 
nos, sentado  á  secretaria,  na  descuidosa  negligen- 
cia d'um  nababo  feliz,  a  mordicar  um  charuto  for- 
temente aromático,  estendeu  o  braço  e  premiu  o 
botão  eléctrico. 

—  Não  sei  se  é  a  mim  que  •  .  • 

—  E'  com  o  que  está  de  serviço  ao  bispote. 

—  Então  sou  eu. 
Despeja  aquella  caixa. 


A  alma  das  creaiiças  que  morrem  sem 
baptismo  não  entra  no  céo, 

(Crenòices  populares). 


No  dia  seguinte  era  o  baptizado. 

Havia  mais  d'uma  hora  que  estava  a  devoral- 
0  com  os  olhos,  debruçada  sobre  a  canastrinha  de 
verga  em  que  elle  dormia,  envolto  em  rendas, 
muito  harmonioso  na  minusculidade  das  sua  for- 
mas —  como  se  fosse  uma  esculpturazinha  de  Do- 
natello,  copiada  de  frei  Angélico,  em  um  vagopre- 
sentimento  da  Renascença. 

EUa  própria  o  enfaixaria,  subtiHzando  os  dedos 
leves,  ao  calçar-lhe  os  sapatinhos  de  seda,  não 
fosse  magoar-lhe  as  caminhas  tenras,  d'uma  rije- 
za  de  fructa  verde  e  sadia.  Não  iria  com  elle  á 
Egreja,  fraca  ainda  como  se  sentia;  mas  já  recom- 
mendára  á  parteira  que  o  não  entregasse  a  nin- 
guém, nem  mesmo  ao  padre,  receosa  de  que  mãos 
pesadas  tomassem  aquelle  fardozinho  ligeiro,  que 
era  a  melhor  fibra  do  seu  coração,  animada  do 


120  Ao  de  leve 

mais  puro  effluvio  da  sua  alma.  Sem  saber  como, 
entrou  a  philosophar  sobre  o  baptizado,  o  santo 
sacramento  do  baptismo  como  ensinam  os  livros 
sagrados. 

Seria  então  um  peccador,  o  seu  filhinho. 

Quantas  creanças  por  esse  mundo  além,  mor- 
rem sem  baptismo,  quasi  ao  nascer,  pequeninos 
botões  de  rosa,  que  não  chegam  a  abrir,  porque 
a  aragem  soprou  mais  forte  e  os  lançou  por  ter- 
ra!. .  O  espirito  d'estes  anjinhos  irá  então  soffrer 
as  torturas  do  purgatório,  espiando  uma  culpa  que 
não  tinham,  purificando-se  de  um  mal  que  não  fi- 
zeram ? 

Se  o  seu  filho  morresse  perderia  a  crença  em 
Deus,  e  se  pudesse  acreditar  que  a  alma  das  crean- 
ças, mortas  antes  de  baptizadas  não  ascende  directa 
e  immediatamente  á  vista  do  Altissimo,  radiosa 
como  um  olhar  da  Virgem  Mãe,  negaria  a  justiça 
divina,  muito  peor  que  a  dos  homens. .  . 

Mas  então  o  santo  sacramento  do  baptismo  na- 
da mais  será  que  uma  mentira  ?.  . . 

. . .  Envolto  em  rendas,  a  dormir  na  sua  canas- 
trinha,  o  petiz  estremeceu,  e  elía  ficou  suspensa 
na  corrente  dos  seus  pensamentos,  enlevada  na 
contemplação  d'aquella  esculptura  minúscula,  de 
formas  harmoniosas,  que  dir-se-ia  modelada  por 
Donatello,  a  copiar  Frei  Angélico,  n'um  vago  pre- 
sentimente  da  Renascença. 

No  dia  seguinte  lá  foi  d  petiz  a  baptizar. 


I 
I 


Um  rapa:{  da  Beira,  allegando  que  o 
pae  é  pobre ^  furou  a  greve,  pelo  que 
foi  espancado  d  porta  férrea, 

(Dos  jornaes). 


Nunca  fora  á  escola. 

Os  filhos  da  gente  pobre  não  teem  o  direito  de 
ser  creanças,  e  os  pães  d'elle  eram  pobresinhos.  Aos 
sete  annos  já  era  um  valor,  em  linguagem  de  eco- 
nomistas. Fazia  dó  ver  o  garotito  queimando  os 
músculos  tenrinhos  n'um  trabalho  com  que  não 
podia.  Mas  os  pães  d'elle  eram  tão  pobres  !. . . 

Quando  entrou  nas  sortes,  já  era  orphão  de 
mãe,  e  como  tirasse  um  numero  alto,  o  mais  alto 
que  havia  na  urna,  livrou-se  de  ir  servir  o  rei,  dei- 
xando o  seu  velhote  quasi  cego  e  inteiramente  trô- 
pego a  viver  da  caridade  publica.  Por  aquelles  sí- 
tios não  havia  trabalhador  como  elle,  sempre  a  li- 
dar com  a  terra,  de  semana  trabalhando  para  os 
outros,  nos  domingos  trabalhando  para  si.  Não 
bebia  nem  fumava,  todos  os  seus  ganhos  eram 


122  Ao  de  leve 

para  sustentar  a  casa,  onde  não  faltava  nada,  a 
não  ser  a  alegria.  Como  não  ha-de  ser  triste  o 
lar  onde  não  explude  um  riso  de  mulher,  onde 
não  ha  petizes  que  ponham  tudo  fora  dós  seus  lo- 
gares,  n'uma  adorável  desenvoltura.  .  Casou,  e 
pareceu-lhe  que  tinha  ido  buscar  á  Egreja  mais 
força,  mais  energia,  mais  saúde.  Quando  lhe  nas- 
ceu o  primeiro  filho,  que  foi  também  o  ultimo,  já 
o  pae  tinha  acabado  de  morrer,  pobre  velho  cego 
e  trôpego,  que  um  delgado  fio  prendia  á  vida,  des- 
de que  ficara  viuvo. 

—  Este  não  ha-de  ser  para  ahi  um  animal  co- 
mo o  pae,  dizia  apontando  o  filho. 

Aos  seis  annos  mandou-o  para  a  escola,  e  como 
o  rapaz  :^osse  intelligente  e  applicado,  com  muita 
facilidade  aprendeu  a  ler,  excedendo  todos  os  seus 
condiscípulos.  Ficou  distincto  na  instrucção  prima- 
ria, e  como  fosse  notável  a  sua  queda  para  os  es- 
tudos, matriculou-se  no  lyceu.  Vencidos  os  pre- 
paratórios lá  foi  o  pae  leval-o  a  Coimbra,  inchado 
como  a  rã  da  fabula,  já  a  remirar-se  no  seu  doutor. 

—  Evite  as  occasiões ;  mas  quando  se  encontrar 
n'ellas,  não  faça  má  figura. 

Foi  esta  a  única  reconjmendação  que  lhe  fez,  de 
volta  á  sua  aldeia,  tendo-o  installado  na  casa  d'um 
conhecido  com  ordem  de  lhe  abonarem  o  que 
fosse  preciso. 

Outro  dia  á  saida  da  missa,  no  adro  da  Egreja, 
falou-se  de  coisas  graves  em  Coimbra.  Vinha  nos 
papeis. . . 


Ao  de  leoe  123 

--  Que  foi  ? 

Um  dos  que  estavam  no  grupo,  explicou : 

—  Houve  lá  o  diabo.  Sete  estudantes  foram  ex- 
pulsos, e  os  outros,  por  camaradagem,  declararam- 
se  em  greve.  Mas  alguns,  diz  o  jornal,  abandona- 
ram os  companheiros  e  foram  ás  aulas.  O  seu 
rapaz . .  . 

—  O  meu  rapaz  não  foi  ás  aulas  com  certeza  •' 
Três  dias  depois,  como  o  governo  mandasse  fe- 
char as  escolas,  appareceu-lhe  o  rapaz  em  casa, 
sem  ter  avisado  como  era  costume. 

—  Ouve  lá,  quantos  romperam  a  greve? 

—  Poucos,  talvez  uns  quatro  ou  cinco. 

—  Mas  tu.  .  < 

—  Considerei  os  immensos  sacrificios  que  tem 
feito  para  me  dar  uma  posição,  e  para  lhe  pou- 
par . . . 

—  Sim,  para  me  poupares  alguns  dias  de  tra- 
balho honrado,  não  achaste  nada  melhor  que  pra- 
ticar a  má  acção  de  abandonar  os  collegas,  victi- 
mas  da  injustiça. 

Nunca  o  tinham  m.andado  á  escola,  mas  aben- 
çoava agora  a  sua  ignorância,  severo  nos  seus 
princípios  d'honra,  intransigente  na  sua  lealdade 
de  camponio  para  com  os  seus  irmãos  da  gleba, 
crendo  na  simplicidade  do  seu  espirito  que  o  sa- 
ber deforma  o  caracter. 


Deus  fe:[  as  almas  aos  pares. 

(Da  sabeõoria  òas  nações). 


Tinham-se  encontrado  alli  no  ponto  onde  se  bi- 
furca a  estrada. 

O  sol  descahia  ao  longe,  por  traz  dos  montes, 
n'um  esbraseamento  de  fogo  amortecido,  e  na  char- 
neca immensa  havia  tanta  paz  e  doçura,  como 
n'uma  cathedral  augusta  a  horas  mortas  da  noite. 

Cançados,  cheios  de  pó,  via-se  bem  que  tinham 
feito  uma  longa  jornada  por  caminhos  difficeis,  ras- 
gando o  fato  e  as  carnes  nas  silvas  e  pitas  dos 
vallados,  e  magoando  os  pés  descalços  nas  vere- 
das e  atalhos  Ínvios. 

O  sol  descahia  ao  longe,  por  traz  dos  montes, 
e  não  se  avistava  um  casal  na  extensão  quasi  in- 
finita da  charneca,  silenciosa  como  uma  cathedral 
augusta  a  horas  mortas  da  noite. 

Dir-se-ia  que  se  procuravam  sem  nunca  se  te- 
rem visto,  o  acaso  tendo- os  reunido  alli,  no  pon- 
to onde  se  bifurca  a  estrada,  cançados,  cheios  de 


Ao  de  leve  Í25 

pó,  o  fato  rasgado,  e  as  carnes  feridas,  como  se 
tivessem  atravessado  um  bosque  selvagem,  sob  a 
ameaça  d'um  perigo.  Pois  que  a  sorte  os  reu- 
nia . . 

—  Seria  bom  ficar  aqui,  ficando  ambos,  tortu- 
rada como  venho  de  muito  longe,  sem  um  braço 
amigo  a  que  me  encoste,  sem  um  coração  amigo 
que  por  mim  palpite  !• . . 

—  Juntos  faremos  o  resto  do  caminho,  queren- 
do-nos  muito,  amando-nos  muito,  cada  qual  riva- 
lizando em  dar  ao  outro  a  maior  porção  de  so- 
nho, a  maior  somma  de  ventura !.  . . 

Por  sobro  a  charneca  immensa  pairava  uma  paz 
bemdita,  e  a  lua  muito  pallida,  como  se  fora  um 
pingo  de  leite,  deixara  cahir  uma  luz  frouxa  e  ba- 
ça —  tal  uma  lâmpada  mortiça  no  silencio  d'uma 
cathedral  augusta. 


^ 


Era  dia  de  finados. 

Desde  que  a  mulher  lhe  morrera,  havia  três  me- 
zes,  nem  um  só  dia  passava  sem  que  elle  fosse 
ao  cemitério,  rezar  sobre  a  sua  sepultura,  offertar- 
Ihe  flores  orvalhadas  de  lagrimas. 

Tinham-se  amado  tanto! 

Por  certo  não  se  morre  de  felicidade,  visto  que 
elle  não  tinha  morrido  no  dia  em  que  a  recebera 
sua  esposa  legitima  á  face  da  santa  madre  egre- 
ja,  e  também  não  se  morre  de  dor,  visto  elle  não 
ter  morrido  no  dia  em  que  lhe  cerrou  os  olhos^ 
colando-lhe  os  olhos  ás  pálpebras,  n'um  derradei- 
ro beijo. 

Era  dia  de  finados,  e  como  não  quizesse  dar 
em  espectáculo  a  sua  dor,  o  cemitério  cheio  de 
visitantes,  deixou  que  toda  a  gente  saisse,  já  quasi 
ao  pôr  do  sol,  para  elle  então  cumprir  a  dolorosa 
missão  que  se  impuzera  de  ir  todos  os  dias  reta- 
lhar o  coração,  ajoelhado  sobre  a  pedra  que  co- 
bria metade  da  sua  alma,  que  era  toda  a  sua  fe- 
licidade. 

Ajoelhou,  chorou,  rezou  e  quando  já  tinha  os 
olhos  secos  de  muito  hnver  chorado,  e  já  não  ti- 
nha o  coração  dorido  de  tanto  que  a  dor  o  tinha 


Ao  de  leve  127 

feito  soffrer,  espalhando  pela  sepultura  o  seu  bra- 
çado de  flores,  as  mãos  postas,  o  chapéu  debai- 
xo do  braço,  os  olhos  erguidos  ao  alto,  anniquilado 
como  se  cairá  sobre  elle  a  maldição  de  Deus,  di- 
rigiu-se  para  a  porta  do  cemitério. 

A  poucos  passos  andados,  cruza  com  elle  um 
rapaz  alto,  vestido  de  negro,  com  um  grande 
ramo  de  flores  na  mão. 

Parou,  e  sem  quasi  se  aperceber  da  sua  curio- 
sidade, poz-se  a  seguil-o  com  os  olhos.  O  outro 
foi  seguindo,  o  andar  estugado,  caminhando  a  di- 
reito sem  hesitar.  Como  elle  fizera  havia  instan- 
tes, sobre  a  mesma  sepultura,  ajoelhou,  chorou^ 
rezou  e  quando  já  não  tinha  mais  lagrimas  para 
chorar,  automaticamente,  como  se  na  pedra  da 
sepultura  tivesse  deixado  colada  a  alma,  dirigiu-se 
para  a  porta  do  cemitério. 

—  Devia  tel-a  amado  muito,  para  soffrer  as- 
sim! 

—  Se  amei !  Daria  a  vida  para  a  resuscitar,  ou 
para  ir  apodrecer  ao  lado  d'ella,  debaixo  da  mes- 
ma pedra. 

—  Era  então  sua  mulher  ! . .  - 

—  Era  simplesmente  minha  amante,  porque  ti- 
vera a  infelicidade  de  casar  antes  de  nos  conhe- 
cermos. 


1 

128  Ao  de  leve 


Havia  três  mezes  que  a  mulher  morrera,  que 
nem  um  só  dia  passava  sem  que  elle  fosse  rezar 
sobre  a  sua  sepultura,  offertando-lhe  flores  orva- 
lhadas de  lagrimas. 


% 


Não  ha  bella  sem  se f ião. 


A's  vezes,  quando  a  beijava,  sentia-lhe  as  faces 
quentes  dos  beijos  que  outro  lhe  dera.  Parecia- 
ihe  então  absurdo,  quasi  inverosimil  que  a  Natu- 
reza fizesse  tão  linda  uma  creatura  tão  pérfida. — 
Era  como  se  alguém  mettesse  lama  das  ruas  n'uma 
urna  de  alabastro. 

Tão  linda! 

Punha-se  então  a  fixal-a  muito,  muito  —  como 
se,  debruçado  sobre  um  abysmo,  quizesse  sondar 
um  mysterio.  Pareciam  feitos  de  treva  os  seus 
olhos  luminosos !  Brincava  um  sorriso  leve  nos 
seus  lábios  sensuaes,  em  que  havia  o  perfume  in- 
tenso das  violetas  e  o  sabor  casto  das  rosas. 

Tão  Hnda! 

Não  se  acredita  que  haja  vulcões  na  lua,  sere- 
na e  palHda,  ás  vezes  escondendo- se  por  traz  das 
nuvens,  como  se  fosse  uma  mulher  nua  que  per- 
cebesse no  espaço  olhos  brejeiros  a  fital-a. 

Tão  linda! 

9 


130  Ao  de  leve 

Manchava-lhe  o  pescoço  um  fio  d'ouro  muito 
delgado  suspendendo  um  Christo  de  marfim  per- 
feito como  se  o  fizera  Donatello,  vago  e  poético 
como  se  o  desenhara  Frei  Angélico. 

Tão  lindai 

Mas  parecia-lhe,  quando  a  beijava,  que  ella  ti- 
nha as  faces  quentes  dos  beijos  que  outro  lhe 
dera.  —  As  plantas  venenosas  nunca  deviam  ser 
bellas,  attrahindo  para  matar  —  nem  as  mulheres 
bellas  deviam  ser  pérfidas,  como  se  um  tigre  habi- 
tasse no  cálice  branco  d'um  Hrio,  ou  uma  cobra 
se  escondesse  entre  as  folhas  d'uma  rosa ! 

Tão  linda ! 


\ 


Soupent  femme  varie 
Bien  fou  qui  sy  fie. . . 


—  Tontinho ! 

—  Imaginas,  então,  que  eu  poderia  viver  sem 
ti,  privada  dos  teus  beijos,  sem  a  loucura  das  tuas 
caricias!  Arranca  a  planta  pela  raiz,  e  diz-lhe  de- 
pois que  floresça  e  fructifique,  que  erga  os  bra- 
ços onde  não  circula  a  seiva,  offerecendo  aos  re- 
vérberos d'um  sol  quente  e  luminoso  as  suas  fo- 
lhas mirradas,  dum  amarello  chlorotico,  que  pre- 
cede a  morte  decisiva .  •  • 

-   Tontinho! 

—  ]á  me  afizera  ás  fatalidades  do  meu  desti- 
no, e  habituada  a  olhar  nas  trevas,  a  cerração 
da  minha  noite  parecia-me  ás  vezes  que  tinha 
vagos  lampejos  d'aurora,  as  incertas  claridades 
d'um  crepúsculo.  Acreditei  nas  tuas  palavras,  e 
logo  senti  quente  o  sangue  que  se  me  gelava  nas 
veias,  e  o  coração  inquieto,  na  desenvoltura  d'um 
pássaro  que   apanha  a  gaiola  aberta,  pulsar  com 


¥ 


í32  Ao  de  leve 

força  desusada,  no  alvoroço  d'uma  alegria  doi- 
da. 

—  Tontinho ! 

—  Se  te  fosses,  havias  de  levar-me  comtigo,  ou 
havias  de  matar-me  primeiro,  desembaraçando-me 
d'uma  vida  inútil,  trágica  na  sua  dor  recalcada,  e 
ao  mesmo  tempo  burlesca  na  sua  dedicação  hu- 
milde, nem  espirrando  como  a  lama  quando  a  pi- 
sam na  rua. 

—  Tontinho ! 

Dentro  do  caramanchão,  ao  fundo  do  jardim,  a 
luz  branca  da  lua  era  baça,  como  a  flor  da  ma- 
gnólia, e  discreta  como  uma  tia  velha,  ou  uma 
bonne  siússa.  Mal  se  ouvia  oramalhar  das  folhas, 
como  'im  cicio  brando  e  perfumado,  quando  a 
brisa  passava,  na  leveza  imperceptivel  d'uma  bor- 
boleta branca,  que  fosse  a  alma  errante  d'uma 
creancinha  tisiça. 

Colleante,  os  braços  nus,  humedecendo  os  lá- 
bios sêccos  da  febre  em  que  toda  ella  ardia,  mer- 
gulhou nos  seus  olhos  castanhos  os  seus  grandes 
olhos  negros,  e  foi  como  se  aquellas  almas  se 
fundissem,  enlaçados  aquelles  corpos  no  contacto 
mais  affecíuoso  e  mais  intimo.  Não  teriam  ouvido 
o  ramalhar  das  folhas,  ainda  que  por  alli  tivesse 
passado  algum  cyclone  devastador,  tudo  arrasan- 
do no  seu  caminho- . . 

Tontinhos ! 

Mezes  volvidos,  tendo  regressado  sem  se  fazer 


Ao  de  leoe  133 

annunciar,  mal  saccudido  o  pó  da  viagem,  sentiu 
necessidade  de  ir  reviver  todas  as  venturas  pas- 
sadas no  logar  onde  as  fruirá. 

Era  uma  noite  de  luar  escasso,  e  tão  froixamente 
passava  a  brisa,  que  as  folhas  não  boliam  nas  ar- 
vores, e  uma  borboleta,  que  alli  abrisse  as  azas, 
faria  um  grande  ruido.  Approximou-se  do  cara- 
manchão, pé  ante  pé,  como  se  tivesse  medo  que 
acordassem  todos  aquelles  vegetaes  adormecidos, 
e  entrassem  a  gritar  por  soccorro,  tomando-o  por 
um  ladrão  ou  um  assassino. 

Lá  dentro  no  caramanchão,  a  luz  da  lua  era 
baça  como  a  flor  da  magnólia,  e  discreta  como 
uma  velha  tia,  ou  uma  bonne  suissa.  Pareceu-lhe 
que  alguém  falava,  muito  perto  d'alli,  e  como  se 
approximasse  mais  e  mais,  cautelosamente,  quasi 
sem  pisar  o  chão,  não  fosse  denunciai- o  o  ruido 
d'alguma  folha  sêcca,  subitamente,  como  se  fossem 
gotas  de  chumbo  fundente  que  lhe  instillassem  nos 
ouvidos : 

—  Imaginas  então  que  eu  poderia  viver  sem  ti, 
privada  dos  teus  beijos,  sem  a  loucura  das  tuas 
caricias!  Se  te  fosses,  havias  de  levar-me  com- 
tigo,  ou  havias  de  matar- me  primeiro,  desemba- 
raçando-me  d'uma  vida  inútil. 

—  Tontinho  ! 

Quando  saiu,  a  correr  como  um  ladrão  perse- 
guido, ou  como  um  doido  que  se  escapa,  nem  pen- 
sou no  escândalo  que  causaria  a  sua  presença  alli 


134 


Ao  de  Leve 


I 


já  noite  velha,  se  o  jardineiro  o  visse.  E  era  tão 
grande  a  sua  perturbação,  quasi  a  raiar  pela  lou- 
cura, que  parou  junto  á  porta,  deante  d'um  mo- 
lho de  cactos,  a  insultal-os,  parecendo-lhe  que  eram 
creaturas  maldosas,  chasqueando  do  seu  ludibrio, 
em  grandes  risadas  vermelhas. 
Coitadinho ! 


\ 


Os  milagres  não  se  discutem  —  ou  se 
negam  ou  se  acceitam. 


Chegou  á  porta  da  Egreja  no  momento  pre- 
ciso em  que  o  sacristão,  com  o  chapeo  debaixo  do 
braço,  se  preparava  para  a  fechar. 

Levava  na  mão  uma  almotolia  d'azeite,  obra 
d'uma  canada,  e  explicou  que  fizera  aquella  pro- 
messa á  senhora  Santa  Luzia,  da  sua  particular 
devoção,  no  anno  passado,  quando  estivera  mal 
dos  olhos.  Deixara  um  homem  fazendo  a  sua  obri- 
gação, pagando-lhe  meio  dia,  e,  como  a  jornada 
era  comprida,  não  pudera  chegar  mais  cedo.  Se- 
ria um  grande  transtorno  ter  de  voltar,  e  só  mui- 
to tarde  poderia  fazei- o,  porque  o  patrão  já  lhe 
dissera  que  iria  para  as  herdades  do  Sado,  e  era 
natural  que  por  lá  se  conservasse  até  ao  fim  da 
temporada.  De  resto,  poucos  minutos  lhe  chega- 
vam para  cumprir  a  sua  promessa,  e  como  ha  vi- 
ver e  morrer,  não  queria  ser  chamado  á  presença 
do  Senhor  sem  se  pôr  em  contas  direitas  com  os 


136  Ao  de  leve 

santinhos.  Ainda  no  domingo  passado  tinha  ido  le- 
var um  alqueire  de  trigo  a  Santo  António ;  por 
causa  de  um  atalho  de  cabras  que  se  tinha  sumi- 
do, e  que  elle  receava  que  fosse  parar  á  bocca  dos 
lobos.  Felizmente  que  nem  só  uma  cabeça  se  per- 
dera, e  isso  fora  sem  duvida  um  milagre  do  san- 
to, que  os  lobos,  na  charneca  onde  andam,  são  tan- 
tos como  as  mães. 

Tanta  piedade  commoveu  o  sacristão,  aliás  d'uma 
crença  muito  precária,  como  quasi  toda  a  gente 
que  vive  muito  no  grémio  da  Egreja.  Dentro  em 
nada  era  sol  posto,  e  elle  tinha  de  ir  á  villa  com- 
prar mantimentos  e  dar  informações  da  mulher, 
havia  duas  semanas  de  cama.  Disse-lhe  que  fosse 
rezar  as  suas  orações  no  altar  da  Santa,  e  que 
despejasse  a  almotolia  no  potezinho  de  lata,  com 
tampa  de  madeira,  que  estava  na  sacristia,  logo  á 
entrada,  lado  direito,  e  que  servia  só  para  reco- 
lher o  azeite  das  promessas,  geralmente  impró- 
prio para  as  comidas.  Que  em  saindo  fechasse  bem 
a  porta,  e  entregasse  a  chave  á  rapariguinha  que 
lá  tinha  em  casa,  para  acompanhar  a  doente,  quan- 
do elle  precisava  sair. 

No  dia  seguinte,  pela  manhã,  quando  foi  pre- 
parar a  egreja  para  a  missa  do  domingo,  notou 
que  a  Senhora  Santa  Luzia  não  tinha  o  cordão  e 
os  brincos  que  lhe  tinha  offerecido  um  brasileiro, 
também  doente  dos  olhos  —  o  cordão  por  ella  o 
ter  livrado  do  mal,  e  os  brincos  por  o  ter  livrado 
dos  especialistas. 


Ao  de  leve  137 

—  Foi  aquelle  grandíssimo  ladrão ! 

Posta  a  policia  em  campo,  d'ahi  a  pouco  esta- 
va preso  o  indigitado  gatuno,  que  o  sacristão  re- 
conheceu mal  o  viu. 

Não  negou  estar  na  posse  dos  objectos  que  se 
dizia  terem  sido  roubados,  mas  jurou  pela  salva- 
ção da  sua  alma  que  tal  roubo  não  commettêra- 
E  que  só  falaria  na  presença  do  sr.  prior,  que  era 
uni  homem  de  muita  santidade,  e  d*uma  grande 
sabedoria.  Sem  saber  do  que  se  tratava,  acompa- 
nhado do  official  de  diligencias,  foi  o  prior  a  casa 
do  juiz.  Então  o  homemzinho  explicou:  —  A  Se- 
nhora, mal  eu  acabei  as  minhas  rezas,  entrou  a 
olhar-me  com  muita  compaixão.  Contei-lhe  todas 
as  misérias  da  minha  vida,^  disse-lhe  como  aquelle 
azeite  que  alli  levava  para  a  sua  lâmpada,  fora  ti- 
rado á  bocca  dos  meus  filhos.  Quando  acabei,  su- 
bi os  três  degraus  do  altar  para  lhe  beijar  a  barra 
do  vestido.  Então  a  Senhora,  tirando  o  cordão  que 
tinha  ao  pescoço,  e  os  brincos  que  tinha  ás  ore- 
lhas, entregou-m'os  com  as  suas  bemditas  mãos, 
dizendo  que  a  ella  não  lhe  faziam  falta  aquellas 
coisas,  e  que  eu  podia,  com  o  dinheiro  que  ellas 
me  rendessem,  comprar  o  pão  e  o  fato  para  os  meus 
filhos.  Observei-lhe  que  poderiam  tomar-me  por 
ladrão,  vendo-me  na  posse  de  taes  objectos,  e  isso 
seria  a  minha  desgraça  e  a  minha  vergonha.  Vae 
então  a  Senhora  respondeu-me: 

—  Se  duvidarem  da  tua  innocencia,  invoca  a 
autoridade  do  prior.  Elle  é  um  crente  sincero,  e 


138  Ao  de  leve 

quando  toda  a  gente  negasse  o  milagre,  elle  o 
affirmaria  como  possível. 

Na  verdade  o  prior  affirmou  a  possibilidade  do 
milagre,  e  como  não  fosse  possível  demonstrar 
que  elle  não  se  realizara,  foi  mandado  o  homem 
em  paz,  com  os  brincos  e  o  cordão. 

Dizia  então  o  sacristã,  vendo  partir  o  penitente : 

—  Grandíssimo  ladrão  I 

E  olhando  compassivamente  o  prior,  n*um  mur- 
múrio, por  entre  os  dentes: 

—  Reverendíssimo  burro! 


%. 


Saudade !  gôsío  amargo  de  infeli\es.. 

(Garrett). 


—  Fizeste  bem  em  vir. .  • 

Cançou  de  dizer  estas  palavras,  e  espalmando 
a  mão  no  peito,  ainda  não  havia  muito  opulento 
e  agora  mirrado,  absorveu  o  ar  com  muita  força, 
a  bocca  largamente  aberta,  como  se  lhe  parara  o 
coração  no  supremo  esforço  de  fazer  girar  mais 
uma  onda,  talvez  a  ultima,  de  sangue  arterializado. 

—  Se  soubesses  como  eu  soffro .  • . 
Brancos  e  delgados,  muito  delgados  e  muito 

brancos,  os  seus  lábios  eram  duas  folhas  sêccas, 
muito  ricas  de  nervuras,  frias  como  a  neve  dos 
poios.  Eram  botões  de  fogo,  n'outro  tempo,  os  seus 
beijos,  que  só  por  milagre  não  queimavam. 

—  Havias  de  querer-me  muito,  se  soubesses 
como  eu  soffro . . . 

Via-se  bem  que  soffria  immenso,  a  febre  a  quei- 
mar-lhe  os  pulmões,  um  suor  frio  e  viscoso  a  ba- 
bar-lhe  a  pelle,  e  um  torniquete  de  ferro  a  aper- 


Í40  Ao  de  leve 

tar-lhe  o  tronco,  inexoravelmente,  como  n'um  cár- 
cere da  Inquisição. 

—  Havias  de  querer- me  muito  se  soubesses  co- 
mo eu  soffro ;  mas,  havias  de  querer- me  ainda  mais» 
se  soubesses  como  eu  te  amo-  •  . 

Na  magreza  do  seu  rosto,  d'uma  paliidez  cada- 
vérica, os  seus  grandes  olhos  negros,  muito  en- 
covados, guardavam  tudo  o  que  lhe  restava  de 
vida,  um  sopro  apenas  de  vida,  que  era  um  bafejo 
da  morte.  Parecia-me  ás  vezes,  quando  se  fecha- 
vam, que  não  tornariam  a  abrir-se,  e  punha-me 
então  a  espreitar,  na  translucidez  das  suas  pálpe- 
bras, o  momento  preciso  em  que  se  apagassem. 

—  Custa  tanto  morrer,  sabes?.  -  • 
Sentou-se  no  leito,  a  muito  custo,  e  levando  as 

mãos  á  cabeça,  sem  dizer  nada,  poz-se  a  desman- 
char o  cabello.  Um  ou  outro  fio  de  prata,  muito 
raro,  manchava  as  suas  tranças  d'ebano,  que  lhe 
desciam  quasi  aos  calcanhares  quando  as  deixava 
cahir  pelas  costas. 

—  V/ê  como  se  envelhece  depressa. . . 

Fez  dois  molhos  do  cabello,  e  tomando  um  em 
cada  mão,  emmoldurou  com  elles  o  rosto,  muito 
magro,  d'uma  paliidez  cadavérica. 

—  Lembras- te  ?. . . 

Pelos  seus  lábios  brancos  e  delgados,  muito  del- 
gados e  muito  brancos,  perpassou  um  sorriso  leve 
de  creança  adormecida,  e  nos  seus  olhos  negros, 
muito  encovados,  brilhou  mais  intensa  aquella  lu- 
cilação,  que  era  tudo  o  que  lhe  restava  de  vida 


Ao  de  leve  141 

—  um  sopro  apenas  de  vida,  que  era  um  bafejo 
da  morte.  .  • 

—  Doidos  que  nós  éramos!   .  • 

Revivi  n'um  minuto  todo  o  poema  do  nosso 
amor,  as  loucuras  d'um  amor  prohibido,  a  que  não 
tinha  faltado  a  dor  cruciante  das  paixões  extremas, 
para  dar  ao  goso  uma  intensidade  quasi  infinita. 
Instinctivamente,  como  n'outro  tempo,  collei  os 
meus  lábios  aos  seus,  e  nem  percebi  que  estavam 
gelados,  folhas  sêccas  muito  ricas  de  nervuras,  frias 
como  a  neve  dos  poios. 

Durou  o  sonho  toda  a  eternidade  d'um  segundo, 
talvez  menos  ainda.  Mal  acordei,  attentando  na 
magreza  do  seu  rosto,  d'uma  pallidez  cadavérica ; 
vendo  fechados  os  seus  grandes  olhos  negros,  já 
sem  brilho  na  translucidez  das  pálpebras  enruga- 
das, tive  a  impressão  de  me  encontrar  dentro  d'um 
jazigo,  para  violar  uma  morta. 


%_