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LIVRARIA
CASTRO
E SILVA
LISBOA
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C^-2'ff
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AO DE LEVE
Composto e impresso na Imprensa
^^ de Manuel Lucas Torres ^ ^
^ Rua do Diário de Noticias, g'3 ^
BRITO CAMACHO
Ao de leve
\
1913
Livraria Eòitora
GUIMARÃES 8í C:
68, Rua òo Mundo, 70
LISBOA
o estudante que hontem^ no Rocio ^ foi
attingido por uma bala na cabeça,
já falleceu,
(Dos jornaes).
Como não havia de adorai- o, se era seu filho
único !
Para mais, elle era o retrato vivo do pae, com
todas as qualidades e todos os defeitos — se um
filho pôde ter defeitos para a mãe que o estre-
mece !
Ficara com elle nos braços, viuva pela maior
das fatalidades, quando ainda não tinham seccado
de todo as flores de laranjeira que lhe tinham posto
no cabello no dia do seu casamento, e nas suas
faces havia ainda um pouco do rubor intenso com
que as haviam tingido os beijos loucos que elle
lhe dera, já seu marido, ao voltarem da Egreja.
Annos e annos chorara a sua viuvez, e mesmo
quando o filho lhe extendia os bracitos gordos,
muito risonho, as suas lagrimas não estancavam.
6 Ao de leve
Mas o sau pranto já não era só de dor ; a desgra-
ça ainda lhe escaldava a garganta com soluços que
lhe vinham do coração, mas já lhe nimbava a alma
a promessa d'uma felicidade remota. No filho via
o marido — era como se dentro de um tumulo
assistisse ao esplendor d'uma aurora.
Se não havia de adoral-o, a pobre mãe !
Quando elle lhe saiu de casa para continuar os
estudos, pareceu-lhe que ficava viuva pela segun-
da vez. As suas cartas mitigariam a sua saudade,
e ella havia de lel-as com tamanha devoção, evo-
cal-o com tanto amor, que a leitura seria afinal uma
conversa entre ambos, elle a enxugar-lhe os olhos
com beijos, e ella a lavar-Ihe as faces com lagri-
mas.
]á então elle era quasi um homem, alto e desem-
penado, uma pennugem leve prenunciando um bi-
gode negro, que seria talvez farto e provocador co-
mo o do pae. Muito estudioso, e, ao mesmo tempo,
muito intelligente, contava as distincções pelos exa-
mes, nunca se rebaixando a esmolar uma prote-
cção, mantendo sempre perante os mestres uma atti-
tude que, nem por ser respeitosa, deixava de ser
altiva. Ainda n'isso elle era como o pae, orgulho-
so sem presumpção, delicado sem maneirismos,
altivo sem arrogâncias.
Como não havia de adoral-o !
Surprehendia-se a fazer projectos de vida em
commum, quando elle acabasse os estudos, e fos-
se, para aqui ou para além, exercer a sua profis-
Ao de leve 7
são. ]á a deixariam livre os negócios da sua casa,
que a retinham agora separada d'elle, a contar o
tempo pelo seu amor, e a achar os mezes infini-
tamente mais compridos do que dizem os kalen-
darios.
Talvez elle um dia casasse; mas nem assim o
deixaria, humilde na casa alheia, fazendo-se útil,
sendo prestimosa, realizando quantos milagres fos-
sem precisos para se tornar indispensável. Pois se
elle era a única razão da sua vida, como poderia
alguém roubar-lh'o sem ao mesmo tempo a matar ?
Recebia as suas cartas em dias certos, e nunca
elle deixara de lhe escrever com a mais rigorosa
pontualidade. A's vezes eram apenas quatro linhas,
meia dúzia de palavras que ella humedecia com
os olhos, para as enxugar com os lábios.
Como não havia de adoral-o, a pobre mãe, se elle
era o seu filho único, para mais o retrato vivo do
pae, com todas as suas qualidades e defeitos —
defeitos que para ella eram qualidades!
Ora succedeu que n'aquelle dia, estando como
de costume á espera do carteiro, viu que elle pas-
sava pela sua porta, sem entrar. Era lá possível
não ter carta ? Provavelmente confundira-a no
maço, e só daria por ella finda a distribuição. Vi-
ria então entregar-lh'a.
Passou uma hora, passaram duas horas, passou
uma eternidade, e o carteiro não voltou.
Estaria doente? Ter-lheia acontecido alguma
desgraça ?
8 Ao de leve
Distrahidamente, quasi sem intenção, pega n'um
jornal. O coração deu-lheum salto dentro do pei-
to, como se a um leão dentro de uma jaula lhe
enterrassem nas carnes uma choupa em braza.
Houvera tiros, houvera espadeiradas, como
n'uma batalha. Do campo tinham retirado muitos
feridos, tendo lá ficado alguns mortos.
Foi lendo, lendo tudo, devorando as columnas
do jornal, á procura d'um nome, na anciã d'um
condemnado á pena ultima, que um indulto pôde
salvar.
Esse nome lá estava. Ferido com uma bala na
cabeça, fora levado ao hospital, onde os médicos
verificaram o óbito.
Não chorou, não soluçou, não gemeu, anniqui-
lada por completo.
Quando voltou á consciência da realidade, ainda
tinha nas mãos o jornal.
Serena e trágica, como se debruçada sobre uma
sepultura visse lá dentro o próprio coração; trá-
gica e dolorida como se lhe pezasse n'alma todo
o soffrimento humano ; morta para o amor, abra-
zada em ódio:
— Mataram o meu pobre filho ! Maldito seja
para sempre, na sua descendência, o miserável
assassino !
Como não havia de adoral-o, a pobre mãe, se
elle era o seu filho único !
Se fores um dia ao ma?%
Que a fot^tiina te não deixe ;
Bota a rede e vaete embora,
— Quanto mais burro mais peixe.
Fora creado de medico, e como a Natureza o
dotara com bastante intelligencia e um notável es-
pirito de observação, aprendeu mil coisas com o
doutor, a ponto de se julgar apto a fazer o que
elle fazia. Depois chocava-o aquella subalternida-
de de moço de consultório, as pessoas que entra-
vam nem reparando n'elle, e algumas que n'elle
reparavam tratando-o sem cortesia. Farto d'aquelle
viver, reconhecendo-se talhado para mais altos
destinos, um dia pediu contas ao patrão, e aba-
lou sem dizer para onde.
Mezes passados, enchia a cidade a fama de um
doutor novo, que fazia verdadeiros milagres, ha-
vendo quem affiançasse que dera vista- . . a uns
poucos de aleijados, e cegara uma meia dúzia de
coxos. Por acaso o doutor topou o milagrante col-
10 Ao de leve
lega na rua, e reconheceu n'elle o seu velho crea-
do, muito correcto, muito bem posto, tal qual um
intrujão com diploma. Ao outro dia, era um do-
mingo, foi procural-o ao consultório, curioso de
saber como aquillo era feito. No largo, junto ao
adro da Egreja, havia uma extraordinária multi-
dão.
— Quantas pessoas calcula o dr. que estejam
além ?
— Uns milhares.
— E quantas d'essas lhe parece que serão in-
telligentes ?
— Algumas dúzias.
— Pois essas formam a sua clientella; o resto
pertence-me.
Vinha isiO a propósito- ^. a propósito... Ahí
sim ; a propósito da tiragem do jornal, que o admi-
nistrador acha pequena.
^
A necessidade de equilibrar o orça-
mento pode obrigar o governo a im-
por sacrifícios aos funccionarios.
(Dos jornaes).
Era manso como um cordeiro, e leal como um
velho amigo.
O general montava raras vezes; mas ia todos
os dias visitar o seu Turco, limpar-Ihe a mange-
doira, pentear-lhe a crina, passar-lhe a mão pelo
lombo, n'uma caricia que o animal agradecia,
olhando- o com ternura.
A's vezes, a caminho do tanque, encabritava-se
com o impedido, dando saltos, como se quizesse
fugir pelos campos fora, no goso d'uma liberdade
que não conhecia, mas que adivinhava.
Lá em baixo, na várzea, as éguas pastavam
tranquillamente; e os poldros, virgens de toda a
domesticidade, pulavam como cabritos, mettendo a
cabeça entre as mãos, e logo desatando n'uma
correria doida, bebendo os ventos, o pescoço muito
12 Ao de leve
extendido, o focinho alto, as narinas muito aber-
tas, respirando com estrondo. E era então que
elle se encabritava com o impedido, firmando-se
nas patas trazeiras, dando grandes sacões inúteis,
porque a arreata era firme, e a mão que a segu-
rava era forte.
Que bom devia ser a liberdade!
Por certo o tratavam bem ; mas aborrecia-lhe
aquella vida ociosa do quartel, todos os dias a
mesma coisa — comendo e bebendo por toques de
clarim, n'um automatismo de machina, com uma
regularidade pendular. Mas era manso como um
cordeiro, leal como um velho amigo, — umacrean-
ça faria d'elle o que quizesse. Ora succedeu que
um dia foram dizer ao general que o seu Turco
tinha rebentado o impedido com uma parelha de
coices. Não acreditou, mas entrando na cavallari-
ça, viu o pobre diabo extendido, soffrendo horri-
velmente.
— Tu que fizeste ao cavallo !
— Nada, meu general.
— E' mentira. Eu conheço-o muito bem. Que
lhe fizeste ?
— Saberá V. Ex.^ que elle estava a comer a
ração, e vou eu, por brincadeira, mexi-lhe na bar-
riga.
— Pois ahi está. Não se mexe na barriga de
quem come.
Era um grande philosopho, o general.
Uma sogra nem de barro á porta.
Andava elle pelo Algarve a tratar de negócios,
quando o chamaram a Lisboa, por telegramma,
com a máxima urgência. Não lhe diziam do que se
tratava; mas, como era o medico quem lhe tele-
oraphava, ficou n'um susto de morte, calculando
que ou a mulher ou o filho se encontrasse grave-
mente doente. Pouco habituado a ser feliz, ima-
ginou logo o peor.
O primeiro comboio partia d'alli a doze horas
e, como ainda pudesse servir-se do telegrapho,
correu a pedir informações. Disseram-lhe que era
p. sogra que adoecera no mesmo dia em que elle
deixara Lisboa, e que a doença se aggravava de
momento para momento, receando-se um desen-
lace fatal. N'um grande ah! deallivioe satisfação,
como precisava de assignar uma escriptura dahi a
três dias, foi-se deixando ficar, pedindo que o in-
formassem, por via telegraphica e postal, dos pro-
gressos da doença.
14 Ao de leve
Receava elle, pouco habituado a ser feliz, que
a doença não fosse em progresso, e por isso que-
ria receber noticias amiudadas, se fosse possivel
a toda a hora. A doente peorava a olhos vistos,
e dizia o medico que a pneumonia degenerava em
typho, sendo possivel que houvesse meningite á
mistura. Elle tinha uma enorme confiança no dou-
tor, que já lhe assistira á morte de toda a familia,
e a quem elle conservara o partido, não para o
tratar a elle, á mulher ou ao filho, mas tão so-
mente para a sogra. Rematados os seus negócios,
metteu-se no primeiro comboio, com o coração
aos baques, como quem aguarda uma sentença.
Descia o medico a escada, quando elle a subia es-
bodegado, e com bagas de suor perlando-lhe a
vasta fron+e.
— . . . Vi-a morta, meu caro amigo. Lancei mão
de todos os soccorros, e posso dar-lhe a boa
nova de que passou todo o perigo. A crise fez-se
hoje mesmo, e agora é só questão de tempo.
Subiu o resto das escadas a cambalear, como
um ébrio, e atirando-se para cima do sophá que
havia na sala de entrada, n'um abandono de quem
se vê irremediavelmente ludibriado :
— E eu que tinha tanta confiança n'esta besta
do doutor!. . .
A policia^ ajudada pela guarda mu-
nicipal^ fartou-se de espancar os ci-
dadãos pacificas^ realistando muitas
pi^isÕes.
(Dos jornaes).
A estrada, larga e poeirenta, passava junto á
porta sempre aberta do jardim, marginada de chou-
pos e eucalyptos.
Toda a gente das aldeias próximas por alli fa-
zia caminho, no giro da vida ordinária, homens,
mulheres e creanças, alguns descalços, e outros
rotos, a maior parte sem pau nem pedra, gente
pacifica como bois de trabalho, muito pacifica e
muito humilde.
Aos domingos, nos dias santos, quando havia fes-
ta n'alguma egreja do sitio, poralH passavam ran-
chos de moças garridas, em cabello, cantando e
rindo, cada qual pelo braço do seu namorado, pa-
rando aqui e além, aos abraços e beijos, como
^numa kermesse flamenga.
16 Ao de leve
Pois era n'esses dias que o Pandorga, locatá-
rio do jardim, quasi escondido por detraz de uma
parede de buxo, atirava os cães para a estrada,
açulando-os ás canelas de quem passava. Csi, csi,
e arregalava o olho, guardado no seu esconde-
rijo, rindo muito, sem fazer barulho, quando os
cães rasgavam as saias das raparigas ou as cal-
ças dos homens, e muito mais quando lhe appare-
ciam de rojo, após a lucta, levando ainda nos den-
tes boccados de carne em sangue.
Ora succedeu que um dia havia festa alli per-
to ; como o Pandorga açulasse os cães — csiy csi
— contra um bando alegre de camponezes, ra-
pazes e raparigas que iam passando a cantar, pa-
cíficos como bois de trabalho, ouviu-se um estalo
sêcco, como um rebentar de escorva, e o baque
d'um corpo que cae, lá adeante, por detraz da pa-
rede de buxo. Soube-se depois que tinha morrido
o Pandorga, e os cães nunca mais assaltaram as
gentes que passavam pela estrada, larga e poei-
renta, e de quando em quando paravam, abraçan-
do-se e beijando-se, como n'uma kermesse de Ru-
bens.
%
Hontem, na praça de touros^ houve
uma ligeira manifestação de des-
agrado á Familia Real. O rei não
assistia ao espectáculo.
(Dos jornaes).
Falava-se muito das suas valentias, embora
ninguém citasse d'elle uma façanha authentica,
com testemunhas de vista. Era volumoso, e d'ahi
concluiam que era forte; eragabarola; muita gen-
te acreditava que elle tivesse nos músculos tanta
força como na lingua. Contava elle que d'uma vez
matara um boi com um soco, e n'um dia em que
passava rente a um acampamento de ciganos, ar-
mados de cacetes e espingardas, como percebes-
se que lhe faziam troça, desatou aos pontapés a
toda aquella malta, pregando com o mais atrevi-
do no alto d'uma azinheira que estava longe d'alli
uns poucos de metros.
Os que melhor o conheciam, mofavam das suas
farroncas ; mas não faltava quem acreditasse nas
18 Ao de leve
proezas de Ferrabraz, intrépido até ao sacrifi-
cio da vida, sem lhe bulir um cabello. Ora suc-
cedeu que um dia, vindo com a familia a caminho
do arraial, n'uma aldeia da visinhança, alguém o
preveniu de que se preparava uma emboscada, lá
adeante, n'um cotovelo da estrada antes de che-
gar á ribeira. E vae elle então, muito volumoso,
pallido como se todo o sangue lhe refluísse ao co-
ração, os cabellos em pé, como se visse deante de
si a guela escancarada d'um leão com fome, apal-
pa-se como quem procura alguma coisa, e baten-
do no hombro da companheira :
— Vão lá andando, vão lá andando, que eu não
me demoro; esqueceram-me os charutos.
Não voltou, está bem de ver, e no outro dia,
quando lhe contaram o succedido, ameaçou o céu
e a terra, espumando como um javaH ferido.
— Se lá estivesse, rachava-os.
E pregou tamanho murro no cinzeiro de barro,
que o fez em boccadinhos.
^
Hontem o sr. Maf^que:{ de Soveral teve
com El-Rei uma conferencia de duas
horas,
(Dos jornaes).
— Franqueza, franquezinha, ó coiso, essa histo-
toria da intervenção. . .
— Era pela certa. Hoje a politica é só de inte-
resses, quem governa é a finança.
— Bem sei, governa a finança ; mas olha que
isso de intervir sem mais nem menos em negócios
por assim dizer caseiros. • .
— Peço perdão ; mas não se trata d'um nego-
cio caseiro, nem m'esmo d'um negocio exclusiva-
mente nacional.
— Hom'essa! Queres então dizer. . .
— Quero dizer que em torno d'este negocio se
formou uma atmosphera de interesses internacio-
naes. . •
— Olha que não tens publico, e essas lerias, cá
para mim . .
20 Ao de leve
— Cumpro o dever que me impõe a minha po-
sição, e testemunho assim, dizendo a verdade in-
teira, sem restricções, a minha sympathia pes-
soal . . .
— Sim, senhor, és um artista. Vocês, os diplo-
matas, são como os homens de theatro — mesmo
quando estão fora do palco, representam.
— ]ulgava-me com direito a maior considera-
ção da parte. • .
— Também eu julgava que me tivesses na conta
de menos tolo. Não me conheces d'hoje nem
d'hontem, para saberes que ninguém me faz o ni-
nho atraz da orelha.
— O que? Pois. . .
— Qual historia!... Acreditei todas as lerias
que me impingiste, com uma seriedade á altura
das tuas prosapias . . .
~ Não o fiz por menos respeito ; o uso das
formulas ...
— E' como o uso do cachimbo — faz a bocca
torta. Sempre me sahiste um gajo!...
— Espero que não fique zangado. . .
— Peior. . . Essa agora não é de diplomata, é
d'alarve.
— Sempre amável ! . . •
— Sempre justo. Mas falando agora de coisas
serias. Tu achas que eu devo . • .
— Ora essa ! Está claro que deve. Da fama nin-
guém o livra, e as honras sem proveito. • .
— E quanto achas tu. . .
Ao de leve 21
— Em negocio de tanta monta, nunca se pede
de mais.
— Pois sim, tudo tem limites. Ahi uns duzen-
tos contitos, mais vintém, menos vintém . . . Que
te parece ?
— Parece-me que, pedindo essa bagatela, dá
provas d'uma grande generosidade.
— Bem se vê que não és tu quem tem de es-
portular as massas. Pois está dito; faço a coisa
pelos duzentos.
— E' como se lhes desse a elles trezentos e
vinte, o que não é barro.
-- Quero ser generoso. • .
- Do pão do nosso compadre. . .
— Pois sim, canta-lhe d'essas ; mas se as coi-
sas se complicam e me põem a viola. . .
— Qual põem ! Chego ás vezes a imaginar que
tem medo.
— Tu não me digas isso outra vez, olha que te
ponho os queixos á banda. Eu nunca tive medo.
]á d uma vez, n'uma feira, se ergueu tudo contra
mim, sem saber quem eu era, e não arredei pé,
de cacete em punho, sem ninguém pelo meu
lado.
— Bem sei, bem sei ; mas se amanhã houves-
se qualquer coisa, em menos de nada estavam alli
08 cavalinhos de pau, e tudo entraria na ordem.
— E se me puzessem a andar antes delles cá
chegarem ?
— Isso então era o diabo Uma intervenção tar-
22 Ao de leve
dia, depois do facto consumado . . . Mas é absur-
do o suppôr- . .
— Será absurdo, será ; mas, pelo sim pelo não,
vou dobrar a parada. Os gajos repontarão ?
— Que tem lá que repontem ? • . .
— Está claro. Isto é como dizia o de Draga —
ou comem todos, ou ha-de haver moralidade.
^
S. M. a Rainha, acompanhada da sua
dama de serviço, andou hontem dis-
tribuindo esmolas no bairro de Al-
fama, sem se dar a conhecer.
(Dos jornaes).
Não queria que a conhecessem.
Abalava de casa, vestida como toda a gente, sem
nada que pudesse chamar as attenções de quem
quer que fosse. Era uma creatura como qualquer
outra, e passava, como qualquer outra, no meio da
geral indifferença. Os que a conheciam cumpri-
mentavam-na — bons dias, minha senhora ! — e
os que a não conheciam nem sequer davam por
cila. O passo meudinho, muito apressado, como
quem marcha para um certo fito, sem se impor-
tar com o resto. Entrava aqui, entrava além, fazia
o bem que podia, e nem esperava que lhe agra-
decessem 08 miseráveis a quem extendia a mão,
deixando cahir uma esmola. Como não se sabia
quem fosse, chamavam-lhe a Caridade. Envelhe-
24
Ao de leve
ceu muito, como toda a gente que teima em viver
e morreu um dia, encarquilhada e secca, como a
maior parte das velhas. Era a Caridade Evan-
gélica.
Tempos depois, nos mesmos bairros pobres en-
trou de apparecer uma creatura exótica, dando nas
vistas de toda a gente, obrigando a parar quem
passava, para a fixar com attenção. O passo lar-
go, muito lento, como quem não tem pressa, e
que quer por força dar nas vistas. Entrava aqui,
entrava além, como quem passeia um reclame,
e gostava que lhe enchessem as mãos de lagrimas
agradecidas os miseráveis a quem dava esmola-
Como não se sabia quem fosse, n'um dia que ella
passava, o passo largo, muito lento, quasi rythmi-
co, dois miseráveis que a viam passar, como quem
passeia um reclame:
— E' a Dona Caridade ?
— Não ; é a Exploração da Miséria.
\
o Priticipe Realfa'{ immensos progres
SOS nos seus estudos^ causando a ad-
miração dos seus professores.
(Dos jornaes).
Era um prodígio, o garoto.
Contava a parteira que elle olhara para traz,
quando nasceu piscando um pouco os olhitos ramel-
losos, como quem pretende ver melhor. Aos três
mezes, já tocava com os deditos cor de rosa nos
bicos, pouco salientes, dos peitos da ama, pondo -
os em erecção, para mammar melhor. Viam todos
que era um pequeno muito talentoso, e um bocca-
dinho brejeirote. Aos noves mezes dizia — bolas !
— e foi essa a sua primeira palavra. Comia de tudo,
antes de fazer o anno, e larachava com os crea-
dos finos, como se fosse uma pessoa grande. Era
um prodigio, o demónio do garoto, d'uma preco-
cidade verdadeiramente excepcional. Um familiar
da casa perguntava d'uma vez ao medico, a pro-
pósito do fedelho — Naturalmente^ um génio,
26
Ao de leoe
doutor ? E o doutor, encolhendo os hombros em
ar de duvida — Naturalmente um idiota !
Aos cinco annos já sabia tudo — quantas per-
nas tem um cão, quantas orelhas tem um burro,
quantos rabos tem um gato. Era prodigioso, e ca-
da dia que passava como que accrescia de muitos
metros aquelle talento incommensuravel. Aos no-
ve annos era umgeometra como Euclides, era um
historiador como Tácito, era um philosopho como
Platão, era um pintor como Raphael, era um poe-
ta como Camões, um romancista como Balzac, um
cabo de guerra como Napoleão, um estadista co
mo o sr. Lapin. A tal ponto lhe cresceu o génio,
que já não havia espaço para o conter, a dentro
das fronteiras nacionaes.
Foi então que se reconheceu a necessidade de
o mandar para longe, onde fossem mais largos os
horizontes, que os génios, como os gazes quando
os comprimem além d'um certo grau, são eminen-
temente explosivos.
E porque era ainda muito novinho, sem expe-
riência do mundo, apezar do seu immenso talen-
to, foi a familia com elle, e por lá ficaram todos
— para bem de todos nós.
X
aE melhor tratar d' outro oficio. O jor-
nal ha de morrer d falta de leito-
res^ porque você ter d geito para
tudo, mettos para jornalista.)^
(Carta anonYma).
Oh ! la pauvre bete!, . .
Era na verdade, um animal perfeito. De côr
acastanhada, a anca alta, largo dos peitos, uma
estreita branca na testa, talvez demasiadamente
sellado, a perna delgada e nervosa, a cauda farta
e comprida, era um burro que fazia parar quem
passava, admirando-o, e succedeu a mais de uma
beata, ferida de tamanha belleza e correcção, es-
tacar no caminho das suas devoções, e não poder
reprimir nas arcas santas do peito esta exclama-
ção blasphema : — Benza-o Deus, como é bo-
nito!. . .
Procopio então passava horas no enlevo do seu
burro, afagando- lhe o focinho e alisando-lhe o
pello, não consentindo que sobre elle poisasse uma
28 Ao de leve
mosca, ou lhe manchasse a pelle acastanhada um
grãosinho de poeira. Era uma espécie de burro-
latria, um culto religioso que lhe enchia a alma,
dando-lhe todas as satisfações espirituaes que re-
sultam para um crente da adoração do seu feti-
che. E porque se lhe afigurasse que o burro não
era, como os outros burros, uma simples cavalga-
dura, desatou a alimental-o com o melhor da sua
mesa, dando todas as coisas boas e raras que en-
contrava na sua despensa ou se confeccionavam
na sua cozinha. Mas nem o burro lhe pegava nos
acepipes, nem ao menos se mostrava agradecido
aos seus disvelos e blandícias. Procopio lamenta-
va-se da sua má sorte, chorava a sua desdita, sem-
pre amigo do seu burro, sempre idolatra do seu
Ídolo, sempre adorando o seu fetiche. E como quer
que um dia, desabafando n'um peito amigo, se
queixasse da ingratidão dos burros, vae o outro,
grande philosopho, com larga experiência da vi-
da, aconselha-o assim :
— A culpa é tua, Procopio, e de mais ninguém.
O burro não foi feito para comer á tua mesa, co-
mo tu não foste feito para comer á mangedoura*
Queres vel-o gordo, alegre, contente, a lamber- te
as mãos reconhecido ?
E como Procopio estendesse o pescoço, a be-
ber-lhe as palavras. ■ -
— Dá- lhe palha, Procopio amigo. . .
S. M. a Rainha visitou hontem o Hos-
pital de S, José,
(Dos jornaes).
Estava perdida. . .
Começava asoffrer do peito, havia annos, e co-
mo precisava de trabalhar sempre, trabalhar sem
descanço, para não vir a fome juntar-se á doença
encurtando-lhe a vida, o mal foi augmentando cons-
tantemente, aquelle terreno sendo próprio para
aquella vegetação, e as circumstancias ajudando
como n'um bom anno agricola. Que era uma cons-
tipação, tinha dito o medico do monte-pio, n'uma
visita em automóvel, a trinta... réis a consulta.
O certo é que as dores augmentavam-lhe, como
se tivesse o peito mettido n'uma prensa ; a tosse
era funda, como se lhe viesse do mais intimo dos
pulmões; manchas de febre punham-lhe nódoas
vermelhas na cera do rosto emmagrecido, e sentia
o sangue subir-lhe á bocca, em golfadas, que a
muito custo reprimia. Despediram-n'a da fabrica,
30 Ao de leve
incapaz de trabalhar, e como recuasse perante a
morte, uma noite, a olhar as aguas do rio, foi á
consulta no hospital, e ficou na enfermaria. Esta-
va tisica.
Ninguém a visitava, porque não tinha ninguém,
e como fosse naturalmente pouco communicativa,
passava os dias e as noites a sentir-se morrer aos
boccados, amaldiçoando a sorte que a fizera pobre,
e attribuindo á miséria o descalabro da sua vida.
Por maneira que naquelle dia, á hora do silencio,
quando acordou do seu alheiamento, e sentiu perto
da sua cama como um frou-frou de sedas, muito
pallida, muito magra, quasi cadavérica, ergueu-se
na cama como se a movesse uma mola, e fixando
na visitante os seus grandes olhos negros, disse-
Ihe como na vehemencia d'um delirio :
— Não é verdade, minha senhora, que a socie-
dade é infame quando a uns dá o supérfluo, sem
dar a todos o que é preciso ?
^
S. M. andou hontem pelos bairros po-
bres distribuindo esmolas no mais
rigoroso incógnito.
(Dos jornaes).
Que frio cortante, meu Deus!
O sol é como um brazeiro apagado, que ainda
conservasse luz nas cinzas — uma luz fria e baça.
O vento retalha-nos a cara, e põe nas pobres ar-
vores sem folhas umas tremuras de velhinho, a
esconder sob os farrapos as carnes enregela-
das.
Que frio cortante. Deus do céu !
A miséria é insupportavel no inverno, porque
tudo se conjuga para lhe dar uma agudeza de ex-
piação, um requinte de pena bíblica, sem laivos
de misericórdia. Não ha fogo no lar, não ha pão
no armário, não ha cobertores no leito, ás vezes
nem leito ha.
Que frio cortante. Senhor!
E é então que a Opulência desce ao antro on-
32 Ao de leve.
de agoniza o miserável, pondo-Ihe na mão resse-
quida o quanto baste para illudir a fome.
Mas porque haverá no mundo esta tremenda
desegualdade, se lá nos altos céus existe uma jus-
tiça absoluta, e se existe cá em baixo uma vulgar
noção do que seja a equidade ?
Que frio cortante, meu Deus!
Dá vontade de morrer, para fugir d'este infer-
no, e ao mesmo tempo dá vontade de accender
uma grande fogueira, a que se aqueçam todos os
desgraçados.
Se os poderosos soubessem como se soffre no
inverno! Ou não tirariam nada aos pobres, ou
lhes restituiriam quanto lhes tiram, n'um desejo
sincero e grande de fazer obra meritória.
Mas elles nem sonham, meu Deus ! como é hor-
rivel a miséria no inverno.
\
SS. MM. foram muito acclamadas na
estação do Rocio.
(Dos jornaes).
— Peço desculpa a V.'' Ex.'\ mas como tenho
umas continhas. . •
— Pois sim ; mas eu já lhe disse que antes do
fim do mez não posso pagar-lhe.
— E' verdade que disse ; mas como V. Ex.^
agora tem dinheiro . . .
— Qual dinheiro, nem qual carapuça! O sr.
imagina que me morreu algum tio no Brazil, que
apanhei a sorte grande, ou que levei alguma banca
á gloria ?
— Não senhor ; não imagino nada d'isso. Mas
ccmo V. Ex.* foi encarregado do vivorio, acho que
pode muito bem regular já as nossas contas, para
eu me não ver envergonhado com os meus cre-
dores.
— O sr. está doido, com certeza ! Imagina tal-
vez que se paga aquelle serviço á larga, pelo me*
34 Ao de leve
nos com certa generosidade, como seria justo que
se fizesse ? > . .
— Como isso é feito, não sei eu ; o que eu sei
é que ao pé de mim estava um sujeito todo bem
posto, de cartola, que deu apenas dois vivas, e
abalou muito risonho esfregando as mãos, e a di-
zer para o companheiro : — já cá cantam dois
mil réis. E toda a gente dizia por alli que V. Ex.'\
tinha recebido um conto e duzentos mil réis para
dirigir aquella manobra.
— Sim, senhor, para dirigir aquella manobra...
e para pagar aquella gente. Imagina que se dão
vivas de graça? í-ois engana-se redondamente.
Quem menos ganha, é quem mais grita, e ha me-
nino que recebe as massas e fica mudo como um
peixe.
— Mas V. Ex.^ bem vê que eu já tenho espe-
rado muito, e, se o importuno agora, é porque me
parece a occasião favorável.
— Desfavorável, é que elia é. Em primeiro lo-
gar, eu ainda não recebi a teca ; depois tenho que
pagar á minha gente melhor que das outras ve-
zes, porque elles estavam falados para não se
prestarem á coisa. Isto, meu amigo, foi chão que
deu vinha. N'outro tempo, um diabo que enrou-
quecia a dar vivas, contentava-se com dois tostões»
doze vinténs, e ás vezes com um simples habito
de Chrisío, ou uma commenda da Conceição. Vão
lá agora acenar-lhes com isso, a vêr quantos lhe
pegam ! . • .
Ao de leve 35
— De maneira que. . .
— De maneira que o amigo terá de esperar
mais algum tempo, e como realmente eu lhe sou
grato, não quero que perca o freguez, tanto mais
que o senhor trabalha bem. Lá me tem amanhã,
a escolher a fatiota da estação.
— Que pagará. . .
— Quando houver outra manifestação espontâ-
nea.
Resmungava o alfaiate, descendo a escada —
Que grande pulha !
Dizia o vivographo, fechando a porra - Que
grande idiota!
\
Honiem a sessão teve de ser interrom-
pida na Camará dos Deputados^ por
causa do chinfrim, O sr, José Lu-
ciano mostrou-se satisfeito*
(Dos jornaes).
Durante muito tempo, por largos annos, o seu
ar recolhido e severo deu a muita gente a impres-
são d'um pensador, alheiando-se propositadamen-
te do mundo para melhor se engolfar nas suas
cogitações. E porque nada resultasse das suas lo-
cubrações d'espirito, assentou-sft em que aquelle
vasio significava profundeza. Não era talvez um
philosopho, mas era um homem d'Estado. E assim
foi trepando a escadaria Íngreme da carreira po-
litica, sempre solemne, sempre severo, sempre re-
colhido, e sempre oco. Não havia duvida possivel
— estava alli um prodigioso talento, uma organi-
zação rara d'estadista, a que só faltava ter uma
ideia e produzir um facto. Senão quando, um irre-
verente que attentou n'aquella austeridade de ma-
Ao de leoe 37
nequim, n'aquelle ar fúnebre de cypreste, n'aquel-
la fronte larga sem reverbero intellectual, um irre-
verente apontou-o á multidão, e gritou-Ihe nas
bochechas - é fundamentalmente estúpido !
Por maneira que outro dia, apoz aquelle chin-
frim no parlamento, quando o presidente do con-
selho ria, como quem se banha em agua de ro-
sas, e a camará inteira se põe ao fresco, domina-
da pelo vago presentimento de que fizera o jogo
do governo, o pobre grande homem, antecipando
a amargura dos seus desatres, encostado á pare-
de, como quem soffre uma vertigem, deixou cahir
dos lábios murchos estas palavras desconsoladas
— Parece-me que fiz asneira !
E, pela primeira vez na vida, reconhecendo que
fizera asneira, o grande homem se mostrou intel-
ligente.
X
A situação do rei é de cada rei '"^^^
gi^ave. O único remédio ainda pos-
sivel é a abdicação.
(Nas entrelinhas ôos jornaes).
Era uma conspirata.
Reuniani-se todas as noites fora de portas, em
casa d'um tasqueiro de boa reputação, homem de
lettras gordas, mas de princípios severos, incapaz
de faltar á sua palavra, preferindo mil vezes a
morte a uma vilania. De modo que para este não
havia segredos, nem para a sua companheira, uma
velhota gordunchuda que teimara em não ter fi-
lhos depois de casada, farta de os ter em solteira.
Bem entendido, o tasqueiro não tomava parte nas
discussões ; mas quando elle entrava com o peixe
frito e a caneca, de chinellas, com um lenço en-
carnado a chupar-lhe o suor da cachaceira, nin-
guém recolhia a fala ao buxo, porque se sabia que
elle era incapaz de uma traição, ou mesmo d'uma
imprudência.
Ao de leve 30
Elle bem sabia do que se tratava ; mas fingia
não saber nada, correspondendo, com extremos
de correcção, á penhorante confiança que tinham
n'elle. Tratava-se de substituir um porco por um
leitão, o que tudo vinha a dar n'uma trem.enda
porcaria. Mas os conspiradores mostravam-se en-
carniçados na sua ideia, crendo n'ella como nas
pílulas Pink, ou no xarope da mãe Seigel. A una-
nimidade não era completa, e como uma noite
resolvessem não sair d'alli sem assentarem em al-
guma coisa de definitivo, um d'elles lembrou que
se ouvisse a opinião do tasqueiro, homem de let-
tras gordas, mas de principios severos, mais intel-
ligente do que seria preciso para exercer a sua
profissão, e discreto como um tumulo. Por ma-
neira que quando elle entrou, o lenço encarnado
a chupar-lhe o suor do cachaço, a travessa do
peixe frito na mão esquerda, e na direita um for-
midável cangirão, espumante de vinho verde, um
dos conspiradores poz-lhe nitidamente a questão,
e pediu o seu parecer :
— Eu cá, por mim, não entendo d'essas coisas;
mas sempre ouvi dizer que a racha sae ao ma-
deiro, e meu avô, que andou nas guerras, e sof-
freu primeiro por causa de D. Miguel, e soffreu
depois por causa de D. Pedro, costumava dizer á
gente, quando se falava dessas coisas — creio que
ha uns reis peores do que outros; que haja me-
lhores, não acredito.
Di:{-sc que a questão politica rae ser
tratada no Parlamento com violên-
cia^ não se poupando ataques ao
Chefe de Estado.
(Dos jornaes).
Se tivesse echo !• . .
Era positivamento uma obsessão ; mas queria
por força uma quinta que tivesse echo, e não se
importava pagar esse capricho a peso de dinhei-
ro. Deixara a Pátria muito novo, e no Brasil, á
força de trabalho e economia, a sorte ajudando
um pouco,'conseguira fazer fortuna. Todas as noi-
tes, ao fechar da loja, consultava o livro de z'a-
zão, e como visse que os negócios lhe corriam
bem, ganhando sempre, tomava o chásinho com
torradas, entretinha-se um pouco com os garotos,
e ia metter-se na cama tranquillo e satisfeito, co-
mo um patriarcha bibhco. Sonhava então com a
sua aldeia ; via-se outra vez no modebío casinhoto
em que nascera; encontrava se de novo com os
Ao de leve 41
rapazes da sua geração, e abalavam todos de res-
tolhada, a caçar os ninhos ou a roubar amoras,
este sem chapéu, aquelle sem jaqueta, e todos não
lhe pesando o pé uma onça, quando o vinheiro
se apercebia do grupo, e fazia estalar a funda ou
rebentar uma escorva, no momento em que estes
saltavam o vallado, para colherem uvas. O que
fazia o principal encanto de seus sonhos, era a
conversa com o echo, um echo muito perfeito
que havia perto da aldeia, no sitio chamado das
Antas. ]á accordado, ainda lhe parecia que tinha
realmente ouvido o echo — quem está lá! — e
fechava os olhos, n'um esforço enorme de concen-
tração, parecendo- lhe que talvez assim o ouvisse
ainda. E então, principiava a dbsedial-o aquella
ideia do echo, que já ouvia mesmo acordado —
quem está lá ! - - victima d'uma allucinação do
ouvido. Por maneira que passados annos, voltan-
do á sua terra, deitou-se a procurar uma quinta
que tivesse echo, não se importando pagar o seu
capricho a peso de dinheiro. Soube d'isso o Tho-
mé Cantigas, e logo se poz a instruir o velho João,
um creado que já estava na casa quando elle
nascera, por maneira a funccionar d echo quando
lá fosse o brasileiro, com quem tinha a quinta
ajustada. Ora succedeu enfão esta coisa curiosa :
— quando o Thomé, em companhia do brasilei-
ro, do escrivão e das testemunhas, para verifica-
rem o echo, gritou com toda a força dos seus pul-
mões — O' João ! — o pobre diabo, escondido por
42 Ao de leve
detraz d'uma pedra, ouvindo aquella voz tão sua
conhecida, e sentindo acordar em si quarenta an-
nos de obediência e domesticidade, o pobre dia-
bo respondeu n'um tom humilde — Meu senhor !
Imaginem agora que o rei chegava alli abaixo,
perto de S. Bento, espectral como o principe da
Dinamarca, quando nas duas camarás, que func-
cionam agora como dois bilhares, se joga a caram-
bola politica, a maior parte dos parceiros esque-
cendo-se de dar giz no taco, picando as bolas ao
contrario, e todos jogando pela tabeliã, como se
não vissem a encarnada e fosse prohibido atirar-
Ihe para cima. . . Sim, imaginem que o rei che-
gava alli, sem ninguém dar por elle, e no mais
acceso da balbúrdia, no meio encarniçado do jogo,
gritava com a sua bella voz de barytono : — Que
é lá isso ó seus gajos ?
Quantas vozes deixariam de responder como o
velho creado João, ouvindo, lá onde estava, por
detraz de uma pedra, ensaiado para o echo, a
voz do sr. Thomé, seu patrão de tantos annos?
^
Vaidade das vaidades — tudo c vai-
dade !
Viera ao mundo com a mania de que tudo an-
dava torto, e lhe competia endireitar tudo. Era
assim uma espécie de messianismo arte nova, que
lhe hypertrophiava a personalidade, tornando-o
impertinente. Todas as injustiças o offendiam, to-
das as asneiras o irritavam, pondo-lhe os nervos
em tal estado de vibração, que seria fácil rompe-
rem-se. Mas ao mesmo tempo essas injustiças que
o offendiam, essas asneiras que o irritavam, eram
a própria condição da sua existência, todo o esti-
mulo da sua actividade, a sua única razão de ser.
Que um bello dia entrassem as coisas na boa or-
dem, o bem tendo vencido o mal, o amor tendo
vencido o ódio, a justiça tendo vencido a iniqui-
dade, o direito tendo vencido a força, a verdade
tendo vencido a mentira, que um bello dia se reali-
zasse tudo isto, e elle encontrar-se-ia como homem
que se desequilibrasse no espaço, sem ponto de
44 Ao de leve
apoio, uma creatura que se visse sem lic^ações
com o Universo, isolada como n'uma ilha deserta,
um ser de geração espontânea, olhando para traz,
e não adivinhando o seu passado, olhando para
deante e reconhecendo-se sem destino. Conside-
rava-se o ser por excellencia, a suprema vontade,
a suprema intelHgencia, a mais alta sabedoria, a
mais extremada virtude. Tinha um calcanhar esse
gigante, como o heroe da Iliada ; mas o Paris,
que pretendesse feril-o, escusava de molhar a
setta em veneno, bastava que a molhasse em li-
sonja, que é uma droga pouco toxica e muito cor-
rosiva. Succedeu-lhe um dia adoecer gravemente»
e como lhe perguntassem, in articulo mortis, se
não receava pela salvação da sua alma, respon-
deu, tartamudeando muito —Receio que me met-
fam no céo. Que tortura não será a minha se
caio na mansão dos justos.
Por subscripção entre amigos, ergueram-lhe um
mausoléu, coisa barata e modesta, e fizeram-lhe
gravar na frontaria, em bronze amarello, estes di-
zeres bibHcos : — Vanitas uanitatum, o que tra-
duzido em portuguez quer simplesmente dizer :
— Ora bolas para tanta embofial. . .
%
Parece vingar a interpretação que
attribue ao sr. ministro das finanças
a qualidade de portugue^.
(Dos jornaes)
— Contente que nem um rato, não é verdade ?
— Não sei porquê. . •
— Não sabe porquê ? Pois você chega ao ul-
timo quartel da vida sem saber de que terra é, e
d'um momento para outro, sem trabalho nem can-
ceiras, apparece cidadão d'um paiz glorioso, e guin-
dado ás maiores culminancias sociaes, e ainda per-
gunta porque deve estar contente ?
— Por certo. Não sendo d'uma pátria determi-
nada, eu podia tirar muito proveito de todas, con-
forme as circumstancias.
■ — Mas os seus direitos. . .
— Perdão ; os meus direitos são os meus inte-
resses, dada a minha qualidade de homem de ne-
gócios. Ter um certo direito, significa apenas, no
meu entender, a faculdade de realizar um certo
46 Ao de leve
lucro, da mesma forma que ter uma certa obri-
gação significa uma perda. A equação da vida
commercial faz-se com estes dois termos — ga-
nhos e perdas.
— Está muito bem; mas parece-me que sob
todos os pontos de vista o amigo ganhou.
— Isso é conforme. A operação, considerada
nos seus resultados immediatos, e não olhando
para além do momento actual, é de resultados
vantajosos ; mas. . .
— Mas. . .
— Mas o futuro a Deus pertence, e esta natu-
ralização definitiva pôde prejudicar-me muito, se
ainda tiver necessidade de mudar de nacionalida-
de mais um.a vez.
\_
o príncipe D. Luís Fílippe restituiu
ao t besouro o dinheiro que lhe sobe-
jou da viagem.
(Dos jornaes).
Era doida pelo neto ; mas, se o tivesse junto
de si, n'aquelle momento, pregava-lhe duas bofe-
tadas.
Era aquillo um proceder de príncipe?
Não havia memoria, na sua familia, dalguem
ter restituido fosse o que fosse, muito menos di-
nheiro.
Raivosa, sentindo-se ferida no seu orgulho de
raça, mordia os beiços até quasi sangrarem, e
amarrotava nas mãos o jornal, com muita força,
como se quizesse desfazel-o. Era de entontecer
aquella vergonha.
De repente acalmava-se um pouco, como se en-
trasse n'um banho morno.
Quem sabe ?
Talvez aquillo não fosse verdade. Dizem tanta
48 Ao de leve
mentira os jornaes!- . . Ha gazeteiro que não va-
cilla perante a mais baixa calumnia, muitas vezes
por interesse, algumas vezes por capricho, não
raramente por maldade.
E logo mandou vir todas os jornaes d'aquelle
dia, absolutamente todos, mesmo os que ella nun-
ca lia, por saber que sempre alguma coisa traziam
que lhe fosse desagradável.
— Todos quantos se publicam em Lisboa, ou-
viste ?
Pois em todos elles vinha a noticia, a vergonho-
sa noticia d'aquelle neto infamante, que ficaria lu-
zindo como uma nódoa na pureza alvíssima e até
alli immaculada dos seus pergaminhos dynasticos.
Era doida pelo neto ; mas se o tivesse junto de
si, n'aquelle momento, era capaz talvez de um
arrebatamento criminoso, atirando-o pela janella.
Vestiu -se n'uma pressa, sem olhar para o espe-
lho, surda ás sugestões do seu coquetismo de car-
cassa. Iria procural-o, exprobar-lhe a sua baixeza*
que nem mesmo os poucos annos poderiam des-
culpar.
Um príncipe, quando se trata de honrar as tra-
dições dos seus maiores, é sempre de maior eda-
de...
Pisava o primeiro degrau da escada, quando o
neto subia quasi aos saltos, como de costume, a
estender-lhe os braços.
— Ias sair, avozinha ?
— Ia procurar-te.
Ao de leoe 49
— Parece que não estás contente ?
— E com razão.
Mal entraram na sala, apanhou um jornal, ao
acaso, e, apontando a noticiazinha da restituição,
perguntou- lhe :
— Isto é verdade ?
O garoto desatou a rir, a rir desalmadamente,
a fazer-lhe cócegas.
— E' então mentira ?
— Se é mentira ! ... Na verdade, avozinha, sem-
pre te julguei mais intelligeníe. Restituir dinhei-
ro! Sei honrar as tradições da nossa casa, pelas
quaes tenho um verdadeiro culto.
Teve um grande suspiro d'allivio, como se lhe
tirassem de cima um peso de cem arrobas. Aper-
tou muito o neto nos braços e, tendo-o beijado
loucamente, deixou-se cair no sophá, muito que-
brada, como ao sair d'uma lucta.
E com os olhos fechados, a respiração alta, ofe-
gante, murmurava para não ser ouvida :
— Estúpida que eu sou ! O pequeno era inca-
paz de semelhante infâmia. Revejo n'elle toda a
nobreza da raça.
E adormeceu.
\
Passa hoje o primeiro anniversario
deste jornal^ dia propicio á come-
moração dos que foram nossos com-
panheiros de lucta, e hoje luctariam
comnoscOj se a morte os tivesse pou-
pado.
(«A Lucta>).
Morrer, dormir, sonhar quem sabe ! . . .
A fogueira crepita no meio do bosque sagrado,
e o ramalhar das folhas, cortando o silencio au-
gusto d'uma noite de luar, é como a prece er-
guida aos céus por milhares de lábios virginaes.
Morrer, dormir!. . .
Em volta ha uma turba alegre, como se alH fos-
se realizar-se um ágape festivo, os esponsaes
d'uma nobre castella com o pagem dos seus so-
nhos, reluzente de pedrarias, esplendido de mo-
cidade.
Dormir, sonhar!. . .
A fogueira crepita erguendo uma chamma có-
Ao de leve 51
nica de uma regularidade geométrica, e um fumo-
zinho branco, muito ténue, muito esparso, é como
um boccado de gaze que alli estivesse preso á cham-
ma, tocando-lhe sem se inflammar.
Morrer, dormir, sonhar, quem sabe!. . .
E mal o cadáver pousa na fogueira, crepitante
e rútila no meio do bosque sagrado, logo sobre
elle se lança aquella virgem loira e meiga, que uns
padres druidas estavam ha pouco dispondo para
a viagem de que não se volta.
Quem sabe!
Se n'esses mundos longínquos, para onde dizem
que vão as almas, se conserva lembrança da vida
que aqui tivemos, bem sabem vocês, queridos e
inolvidáveis mortos! que é para nós de lagrimas
este dia, visto que esta pagina é hoje um canto
do cemitério!
\
A morte perdendo a foice
Creu sua força desfeita.
Disse- lhe um medico insigne :
Aqui tens esta receita.
Chamava-se Corvo, e era alfaiate.
Pouco trabalhava pelo officio, quasi sempre
pelo campo, a caçar lebres ou perdizes, lá de lon-
ge em longe mettendo-se na jolda, e só então
aventurando-se por aquelles mattos espessos, on-
de deixava metade da farpela, em bcccados. A sua
grande paixão, a sua mania de caçador era pelos
pombos, á negaça. Abalava de casa muito cedo,
o pombinho mettido na aljabra, o farnel mettido
nos bolsos, a aguilhada ao hombro, a espingarda
a tiracolo, e uma garrafinha de aguardente sem
confecção, que o frio era de rachar, por aquelles
dias molhados de novembro. Chegava ao sitio^
circumdava os montados, n'uma extensão enorme,
com a sua vista de lynce, e toca a fazer a choça,
não fossem os pombos dar-se pressa de vir alli,
Ao de leoe 53
apanhando-o desprevenido. A's vezes não matava
nada ; outras vezes matava quantos se faziam ;
mas sempre se divertia immenso, a puxar a nega-
ça e a aperrar a caçadeira, não se esquecendo
nunca de beijar a garrafinha da aguardente, que
valia pelo melhor dos lumes, no desabrigo da cho-
ça, por aquelles dias gelados de novembro.
Ora succedeu que um dia, ao voltar dos pom-
bos, chegando a casa, subitamente, o Corvo sen-
tiu-se mal, horrivelmente mal, gritando que lhe
accudissem. Wesse mesmo dia, áquella mesma
hora, por assim dizer, n'aquelle mesmo instante,
tinha chegado o medico novo, que ainda ninguém
tinha visto. Correram a chamal-o, n'uma afflicção,
que o Corvo sentia-se morrer e gritava como um
perdido. Vae o doutor, muito solicito, observa o
doente, faz uma receita, enche uma seringa e era-
va-a n'uma nádega do alfaiate, que não tugiu nem
mugiu.
Estava morto o pobre Corvo, velho caçador de
pombos, que durante largos annos, todas as ma-
nhãs, em dias gelados de novembro, abalava de
casa para as montanhas, a aguilhada ao hombro
e o farnel nos bolsos, sem nunca se esquecer da
garrafinha daguardente, que valia por um bom
fogo no desabrigo da choça, encostada a um so-
breiro.
O caso fez barulho na aldeia, e como alguém
lamentasse a perda de tão eximio caçador :
— Lá quanto a isso, perorou um mariola d'um
54 Ao de leve
barbeiro, não vejo razão para se lamentar a gen-
te. O nosso doutor parece ser homem de boa
pontaria. Mal disparou a seringa, logo o Corvo en-
rolou as azas, cor ) se fosse um pombo que se
fizesse, e apanhas .. a carga em cheio.
o sr. ministro da fazenda ficou a tra-
balhar em sua casa»
(Dos jorna es).
A ordem fora terminante, e não admittia excep-
ções; s. ex.^ não estava para ninguém, absoluta-
mente ninguém.
Andava a estudar um plano geral de reformas,
e, como tivesse de ir passar uns dias na província,
queria deixar os seus papeis arrumados, cada coi-
sa no seu logar, como n'um museu ou n'uma bi-
bliotheca.
Fora sempre uma creatura methodica, e em
grande parte o seu talento, que ainda assim mui-
tos negavam, era feito de trabalho e de methodo-
Entrara na politica com uma bagagem de estu-
dante, apenas preparado para no parlamento man-
dar uma representação para a mesa, e requerer que
se desse a matéria por discutida, a um signal do
leader. Mas trabalhava muito, estudava muito, am-
bicioso de renome, atormentado pela obscuridade
56 Ao de leve
em que vivia, mal supportando que os outros tre-
passem, subissem, servindo elle próprio de degrau
a bastantes creaturas mediocres.
Um bello dia, quasi sem elle próprio saber como
nem como não, fizeram-n'o ministro. E logo pen-
sou n'uma larga reforma de serviços, remediando
muitas insufficiencias, preenchendo muitas lacunas,
pondo cobro a muitos escândalos.
Lá quanto a honestidade, reconheciam-na os
próprios inimigos.
ColHgira todos os elementos de que necessitava
para a sua obra reformadora, e resolveu aprovei-
tar aquelle dia para os classificar, em termos de
servir-se d'elles com a maior facilidade e proveito.
Estava inteiramente absorvido n'essa tarefa,
quando lhe apareceu junto da mesa um continuo,
muito vermelho, muito atrapalhado, a revirar o
bonet na mão, a querer falar, e não se atrevendo
a abrir a bocca.
— Que ha ?
— Um senhor que deseja falar a v. ex.'.
— Então eu não lhe disse que não estava para
ninguém ?
— E' verdade, mas elle disse-me qae se mata-
va alli mesmo, á porta, se v. ex.^ não o recebesse.
Mandou entrar immediatamente.
— E' você ? . . .
— Sou eu. Sabe que o Chico está irremedia-
velmente perdido ?
— O quê?
Ao de leve ' .57
— Talvez não dure 48 horas.
— Coiíado ! E a família ? . . .
— Ora ahi está. E' por causa da família que eu
cá venho.
— Mas que posso eu fazer ?
— Uma coisa muito simples — um adeanta-
mento.
— Mas se elle está a morrer ! . . .
— Por isso mesmo. Desconta pelo terço do or-
denado emquanto viver.
— E depois de morto ?
— Contínua a descontar... no outro mundo.
E assim se fez. — Era uma bagatela de dez
contos redondos.
^
o sr, D. Carlos manda para o Salon
dois quadros.
(Dos jornaes).
Era dia de assignatura.
Como de costume, na sala de espera, emquan-
1o não chegava a hora, uns fumavam estendidos
em sophás de molas doces, e outros falavam de coi-
sas varias, — as occorrencias banaes da véspera,
ou os successos prováveis do dia seguinte. Pelas
janellas, abertas de par em par, entrava uma ara-
gem fresca e quasi perfumada, tanto as flores do
jardim embalsamavam o aposento n'aquelle dia
lindo.
Avistava-se ao longe o rio, d'aguas tranquillas, e
lá para além da barra, empennachado de fumo, um
navio cortava as aguas, sem estremeções, deixando
atraz de si, como uma passadeira de rendas, um
largo traço de espuma. N'isto abre-se uma porta ao
fundo, e um homem apparece, de casaca, trazendo
debaixo do braço, muito enrolado em papeis, qual-
Ao de lece 59
quer coisa que logo se adivinhav'a ser um quadro
com a respectiva moldura.
Os que hima\.»am, estendidos em sophás de mo-
las doces, ergueram-se a cumprimentar, quasi en-
vergonhados do seu â vontade, como n'um ca-
sino, e os que estavam á janella olhando para o
rio, d^aguas tranquillas, notando como corria leve
um vapor que sahia a barra, empennachado de
fumo, esses deixaram- se ficar onde estavam, bai-
xando ligeiramente a cabeça, com cerimonia, ne-
nhum d'elles sabendo quem era aquelle senhor.
— Não sei se incommodo v. ex.^ ? . . .
— Ora essa ! Por forma nenhuma.
— V. ex.* é . . .
— O pintor da casa.
E logo poz em cima da mesa, procurando po-
sição conforme a luz, duas telasinhas de meio me-
lro, ricamente emmolduradas, uma reproduzindo
um trecho de paysagem alemtejana, n*um entar-
decer d'agosto, e outra representando uma com-
missão de sardinhas vindo cumprimentar um go-
raz, pelos seus trabalhos maritim.os,
— E V. ex.* traz isto . . •
— São 03 meus decretos; trago-os á assigna-
tura.
».
K
o sr D. Carlos também honlem não
assistiu á tourada no Campo Pe-
queno,
(Dos jornaes).
— Está aqui tudo ?
— Creio que não falta nada.
Poz a mala em cima d'uma cadeira, para não
estar a dobrar-se muitas vezes, e foi tirando pe-
ça por peça. D'ahi a pouco estava inteiramente
transfigurado. As suissas assentavam-lhe na per-
feição, e os óculos de ouro, com vidros sem
grau, transformaram-lhe de tal modo a physiono-
mia, que ninguém, mesmo dos seus familiares, o
conheceria sob aquelle disfarce. As calças é que
lhe ficavam um boccadinho justas nas pernas, e o
collete, se fosse um tudo nada mais comprido, dir-
se-ia ter sido feito para elle — por medida e
com prova. Pegou na bengala, de castão de pra-
ta, poz na cabeça um Panamá, quebrado na fren-
te, e carregou no botão d'uma campainha eléctrica.
Ao de leve 61
— Se não soubesse ...
— De primeira ordem, não é verdade ?
— Uma transfiguração á Rocambole.
— Obrigado pelo cumprimento ; mas como tu
é que me escolheste a farpela. . .
— Limitei-me a cumprir fielmente as indicações
recebidas.
— De modo que não haverá perigo. • .
— Absolutamente impossível conhecei- o, disfar-
çado como está.
— Pois olha, já que entrei n^este caminho, que-
ro fazer a coisa completa. Has de comprar-me
um bilhete de sol.
Quando entrou na praça, ainda as cortesias não
tinham começado. Arranjou um logar ao pé da
musica, e poz-se a fumar um cigarro ainda por
disfarce. A' hora marcada, com uma pontualidade
fora do costume, a função principiou. Estava in-
teressado, contente e ancioso, como se pela pri-
meira vez assistisse a um espectáculo ardente-
mente desejado. Surprehendia-se a gritar com toda
a força, quando o sol inteiro gritava e ainda teve
o chapéu na mão, para o atirar ao redondel, en-
thusiasmadissimo com um cambio.
No intervallo, como não sahisse o visinho da
direita, pedindo-lhe fogo, entrou a dar-lhe con-
versa.
— Vê-se que o amigo é amador.
— Como poucos. Isto é um divertimento real.
— Lá isso real . . .
^2 Ao de leve
— Pois sim. . . Mas o rei vem aqui muitas ve-
zes ? . . .
— Vinha muitas vezes, é o que você quer dizer...
— E agora já não vem ?
— Acho que cortou a coleta.
— Elle, afinal, tudo aborrece.
— Ora ahi está. E foi exactamente por ver que
aborrecia, que elle deixou de apparecer. Sabe o
amigo uma coisa ? Tenho estado a reparar que
você se parece. • .
Não acabou a phrase. ]á o outro se tinha le-
vantado, a fingir que alguém o chamava.
D ahi a pouco, no mesmo quarto em que mu-
dara de farpela, dava-se a um trabalho de mil
demónios para se desembaraçar das calças, muito
justas nas pernas.
— Ninguém desconfiou, é claro ?
— E' claro que desconfiaram. Um gajo que es-
tava sentado ao pé de mim, se me não safo tão de-
pressa . . .
— E disse-lhe alguma inconveniência ?
— Lá bem inconveniência . . .
— O melhor, para outra vez . . .
— O melhor para a outra vez, é não ir lá. Corto
definitivamente a coleta.
— E a quadrilha ?
— Lá isso fica como estava.
E atirando com as suissas para cima da cama,
a meia voz com despreso:
— Isto é que é uma cambada !. . .
o sr, João Franco acompanhou o Prín-
cipe Real á festa das creanças^ e
pionunciou alli um gratide discurso.
(Dos jornaes).
— Muito interessante a festa, não é verdade ?
— Sim, foi interessante.
— Muitas creanças, muitas flores, um dia lindo
de sol. . . Aposto que estava a saltar-te o pé para
o meio do rancho, rindo e brincando como todos
como se fossem todos do mesmo collegio ?
— Tu estás doida, avósinha ? Comprehendo
muito bem os deveres do meu cargo, e em ne-
nhuma situação me esqueço de quem sou, e do
que represento.
— Bravo, meu filho 1 gosto de te ouvir falar
assim, porque isso me prova que serás um dia
o representante illustre dos teus illustres antepas-
sados.
— Assim o espero.
— Assim o creio. E falaste ás creanças ?
64 Ao de leve
— Não, avósinha. Ninguém me disse para lhes
falar, nem eu sabia o que havia de dizer-lhes.
— Por certo, não sabias; mas se isso fosse
uma razão para não falar, muita gente estaria ca-
lada n'este paiz de palradores. Quem falou en-
tão ?
— Houve só um discurso. . .
— Sim, está claro, falou s. ex.^ E o que disse ?
— Para te falar com franqueza, avósinha, eu
pouco ouvi do que elle disse. Mesmo na minha
frente estava um garoto vestido de marinheiro,
muito interessante, que passou todo o tempo a fa-
zer cócegas no pescoço de uma senhora muito
gorda, de nariz abatatado, que estava adiante
d'elle, na fila immediata. De cada vez que o ra-
pazinho lhe passava um canudinho de papel, muito
delgado, pela pennugem do cachaço, atraz das ore-
lhas, a velha fazia umas caretas muito exquisitas,
aflicta, com medo de perder a linha em momento
tão solemne. Não imaginas como era divertida a
velhota. Divertida e estúpida, porque nunca des-
confiou do garoto, que se encolhia todo para não
desatar ás gargalhadas. De modo que. . .
— De modo que não ouviste o discurso de s.
exA
— Não ouvi tudo, é certo ; mas alguma coisa
ouvi. Por exemplo, ouvi-lhe dizer que n'outros
tempos os povos eram dos reis, e que hoje os reis
são dos povos. Que quer dizer, isto avósinha ?
— Quer dizer, meu filho, que n'outro tempo,
Ao de leve 65
os creados recebiam ordens dos patrões, e cum-
priam-nas; hoje os patrões recebem ordens dos
creados, e cumprem-nas.
— Credo ! Mas isso é o fim do mundo.
— Pede a Deus que não seja o fim da dynas-
tia.
\_
o enterro de hontem foi uma extraor-
dinária ajffirmação da força do par-
tido republicano em Lisboa.
(Dos jornaes).
Estava inquieto, n'uma anciã por noticias, quan-
do lhe f0i'am dizer que estava o jantar na mesa.
Que teria havido !
Por certo o cortejo seria numeroso, mas apra-
zia-lhe acreditar que a manifestação, embora si-
gnificativa, não fosse de molde a tomar ainda mais
evidente o desprestigio do seu nome, já bastante
desprestigiado. Esquecia- se de comer, e não des-
pregava os olhos da porta, esperando vel-o appa-
recer a cada momento, portador da boa nova, dan-
do-lhe a segurança de que era já outra a atmos-
phera da cidade, onde elle poderia respirar com
desafogo, quando quizesse, farto de correrias fora
de portas, a monte como os leprosos na antigui
dade, e como os criminosos ainda hoje, quando
puderam fugir á justiça.
Ao de leve 67
Que teria havido !
Todos lhe notavam a preoccupa;ão na physio-
nomia transtornada, e todos sabiam o que lhe dava
origem, a verdadeira causa daquelle mal-estar.
De modo que o jantar ia correndo silencioso,
quasi fúnebre, ninguém se atrevendo a arriscar
uma palavra banal, o mais leve dito que pudesse
desafiar o mau humor do pobre tomate recheiado.
Fazia dó, mas ao mesmo tempo mettia medo, co-
mo se fosse um obuz carregado de grosserias, que
uma creança maldosa pretendesse descarregar
contra um homem deHcado. Parecia aquella ceia
da Lucrécia Borgia, em Ferrara, descripta por
Victor Hugo.
De repente, abre-se a porta, e um reposteiro
annuncia o homem. Estava-se nas fructas.
— Então ?. . .
— Muito maior do que seria licito esperar. A
cidade inteira, pôde dízer-se, tomou parte na ma-
nifestação, grandiosa como nenhuma outra, d'essas
que andam na memoria dos homens.
— De modo que o prestigio d'essa creatura- . .
— Peço desculpa ; o que atravessou a cidade,
por entre alas compactas de povo, seguido de mi-
lhares de pessoas, não foi o cadáver d'um ho-
mem. . .
— Foi então ? . . .
— Foi o prestigio d'uma ideia.
Ficou por instantes suspenso, como se lhe fugis-
68 Ao de leve
se o espirito para uma região de trevas. Logo vol-
tou a si, como quem acorda d'um mau sonho, e
acabando de descascar uma laranja, voltando-se
para o peniculario que lhe ficava mais perto :
— Olha lá, ó marquez, dize aos teus collegas da
cozinha que não deitem fora estas cascas.
No outro dia annunciava-se uma crise em to-
dos os jornaes.
\_
o rei, que hontem devia presidir ao
conselho de ministros^ partiu para
Biarril\^ onde se encontra sua noi-
va.
(Telegramma òe MaÒriò).
Pois se elle tem vinte annos!. .
Queriam então vel-o amarrado ao throno, re-
cebendo conselheiros e ministros, aturando repos-
teiros e mordomos, quando a noiva está alli, a al-
gumas horas apenas da capital, chamando-o com
insistência de quem nada pôde e tudo offerece
porque tudo espera receber em troca.
Pois se elle tem vinte annos apenas!. . .
Talvez que no seu sanque toda a podridão d'uma
raça; mas a mocidade é uma espécie de azougue,
capaz de fazer erguer um morto, dando-lhe uma
vida ephemera.
Pois se elle é tão novo!- . .
Queriam então prendel-o alli, n'aquelle deserto
de Madrid, aturando conselheiros e ministros, gen-
70 Ao de leve
te da burocracia e bugigangas heráldicas, quando
ella está a poucas horas da capital, talvez a alon-
gar os olhos na direcção da Hespanha, na espe-
rança de vel-o surgir na sua frente, radiante de
mocidade.
Pois se elle tem vinte annos apenas ! . .
E estranham então vel-o partir como um fo-
guete, abandonando as rédeas do governo, doido
d'amor como um Quichote real, para ir colher em
Biarritz as promessas d'uma felicidade sem limi-
tes prelibando uma ventura sonhada.
Pois se elle é tão novo ! . . .
Depois ella é tão bella ! . . .
\_
I
Amanhã ^anniversario da rainha Maria
Pia, não haverá recepção no Paço.
(Dos jornaes).
— Venho dizer- te adeus. • .
— Para onde vaes ?
— Para o mar. Na terça feira cá estou, para te
dar os parabéns. Imaginavas que ia esquecer-me
do teu anniversario ?
— E' verdade, o meu anniversario . • . Nem me
lembrava.
Emquanto elle accendia um charuto, olhando
distrahidamente uma illustração ingleza, deixava
ella pender a cabeça sobre o collo mirrado, e evo-
cava um tempo muito remoto, tão remoto que lhe
parecia agora, na desolação da sua viuvez, mais
phantastico do que real.
O seu anniversario !
O throno era pequeno para a sua magestade,
mas, em summa, sempre era um throno e ella nas-
cera para reinar. Na sua cabelleira loira, como a
72 Ao de leve
das virgens de Raphael, o diadema régio tinha
scintillações estranhas e coruscantes, que ainda
assim pareciam pallidas em comparação dos seus
olhares, em que havia toda a ardência do sol dos
trópicos, e toda a limpidez do crystal da rocha.
Também ella reinara !
Outros imperantes se tinham curvado na sua
presença, e milhares de cortezãos tinham solici-
tado a esmola d'um sorriso ou d'um olhar, que
ella nem sempre lhes concedia, muito altiva, muito
sobranceira, no throno, julgando-se muito perto
do Olympo, efóra do throno vendo-se muito acima
da humanidade vulgar.
O seu anniversario !
Fechava os olhos para tornar mais intensa a
evocação, e logo via o desfile do immenso e luzi-
do cortejo — os diplomatas com os seus farda-
mentos ricos, bordados a oiro; os ministros com
as suas librés de luxo, salpicadas de veneras; os
bravos militares suffocando Ímpetos guerreiros,
n'uma attitude de respeitosa fidelidade, e o nume-
ro infinito de fidrlgos e fidalgas dobrando o joe-
lho no primeiro degrau do throno e babujando-
Ihe a mão aristocrática com a saliva do coríeza-
nismo mais rasteiro e mais falso.
O seu anniversario!
De repente, e como se reatasse uma conversa
interrompida pousando o charuto sobre o cinzei-
ro de prata, e tomando-lhe entre as mãos a face
apergaminhada, n'uma caricia muito terna :
Ao de leoe 73
— Não, fica certa que não me esqueço dos teus
annos, e verás como sou gentil . . .
— Sim, não te esqueças. E pois que desejas
mostrar-te gentil para commigo, mais uma vez,
poupa-me ao desejo e á baixeza de receber os
teus creados de pasta.
E não houve recepção.
\_
Amanhã tem logar a abertura do con-
gresso republicano no Poria. Espe-
ra-se que o sr. D. Carlos assisla
hoje á tourada^ no Campo Pequeno.
(Dos jornaes.)
— Está doente ?- . .
— Pdo contrario, nunca me senti com tanta
saúde como agora. De certo, se estivesse doen-
te, era natural que fizesse chamar um medico, e
não o presidente. . .
— Sem duvida; mas chamado tanto á pressa,
com a máxima urgência. . .
— E' que na verdade o caso é urgente. Não
adivinhas do que se trata?
— Por mais voltas que dê á imaginação- . .
— Não vale a pena dar-lhe grandes voltas,
porque pode transtornar-se. Sabes que dia é ama-
nhã ?
— E' domingo.
— E sabes que ha tourada no Campo Pequeno ?
I
Ao de leve 75
— Como não sou aficionado- . •
— Não sabias ? Pois ficas sabendo agora. Ha
tourada, e trabalha o Fueníes. Quer isto dizer que
será uma tarde cheia. Como os typos estão lá
para o norte, a pairar, eu resolvi ir aos touros
amanhã.
— Isso não pode ser! Eu não posso tomar a
responsabilidade. . .
— Tomo-a eu, deixa lá. Em não apparecendo
os cabecilhas, a arraia miúda não abre bico !
— Ahi é que está o engano. Aquella gente não
se move por cordeliishos ; pensa pela sua cabeça ;
tem iniciativa própria, e procede como lhe parece
melhor.
— E tu imaginas que hei de passar n*isío a
vida inteira ?
— A vida inteira, não ; mas por ora tem de ser
assim.
— E se eu não quizer que seja assim ?
— Se não quizer que seja assim . . .
— Como será então?
— Então. . . será peior!
o teu amor e uma cabana!
Fora uma loucura aquelle amor.
Tinham- se encontrado na Figueira, estava ella
a banhos, e elle fora alH de visita a uns parentes
da Bairrada, que não via desde annos. Como se
andassem pelo mundo á procura um do outroi
apenas se viram uma manhã, na Praia, amaram -
se doidamente, e foi milagre que não desatassem
logo a tagarelar, tu cá, tu lá, e tomassem banho
juntos.
A' noite, no Casino, a indispensável apresen-
tação, e logo se seguiu um pas de quatre, em
que os dois eram eximios. Marchou aquillo tão
depressa, que já eram noivos quando regressaram
ao Porto, onde ella tinha os pães e elle o em-
prego, um modesto emprego de despachante, que
lhe rendia vinte mil réis por mez.
Todas as noites ia falar-lhe, já recebido como
da familia e sempre a encontrava encostada a uma
pequenina mesa quadrada, um livro de versos na
Ao de leoe 77
mão esquerda, marcando a paqina com o dedo, e
em toda a sua gracil pessoinha um ar de alheia-
mento e de sonho, que o fazia estacar á entrada
da sala, n'um êxtase de devoto.
— Que languidez, Virgem Santa !
Casaram, está bem de ver, e foram padrinhos
aquelles parentes da Bairrada, que elle tinha ido
visitar á Figueira, onde ella estava a banhos. Nin-
guém a ensinara a trabalhar, e como elle só ti-
nha o seu ordenado de despachante, uns vinte mil
réis por mez, era impossivel metter creada, de modo
que andava tudo desarrumado, a comida era mal
feita, nunca estava prompta a horas, e quando
uma rabanada de vento entrava pela janella, era
como redemoinho correndo ao longo d'uma es-
trada poeirenta. Mas todas as noites, quando re-
colhia, farto de cuspir no café, ia encontrai a, co-
mo n'outro tempo, encostada a uma pequenina
mesa quadrada, um livro de versos na mão es-
querda, marcando a pagina com o dedo. E ao
vel-a assim descuidada n'um grande ar de alheia-
mento e de sonho, toda a sua gracil pessoinha
como que envolvida n'uma atmosphera de langui-
dez quasi mórbida, estacava á entrada da sala,
como n'outro tempo, murmurando por entre den-
tes:
— Que desmazelo, meu Deus !
Dio dei oro, dei mundo siguor.
Noite de festa.
Tinham -se vendido todos os logares, e ninguém
dispensava o seu bilhete como se fosse um decimo
de loteria, com probabilidades conhecidas de sair
n'elle a sorte grande.
— Compra-se uma cadeira !
— Ha quem venda uma geral ou camarote ?
Eram vozes clamando no deserto. . . d'uma mul-
tidão compacta, junto ao guichet, todos sabendo
que não entrariam, mas ninguém tendo a cora-
gem de se ir embora. — Quem sabe ? Uma familia
que se enlutou á ultima hora, e manda vender o
seu camarote ; um honrado negociante que pre-
cisou de abalar para o Alemtejo, e manda ven-
der o seu fãuteuil.
Era noite de festa.
Havia flores por toda a parte; colchas ricas
pendiam dos camarotes, em todas as ordens, de
modo que a sala tinha assim, por virtude d'aquel-
Ao de leve 79
Ia polychromia bizarra, um aspecto singularmente
phantastico, em que se perdiam os olhos, n'um
encanto. Mulheres ricamente vestidas, largamente
decotadas, eram como fructos de carne em papel
de seda, e formavam uma galeria de bustos sem
egual, em que tivessem collaborado todos os es-
culptores de génio.
Era noite de festa.
Quando se ergueu o panno, sobre as ultimas no-
tas da orchestra, pareceu que um jogo hábil de
espelhos transferira ao palco aquellas flores ma-
gnificas que havia por toda a parte, aquellas col-
chas ricas que pendiam dos camarotes, n'uma po-
lychromia bizarra, no meio da qual se destacavam
bustos admiráveis de mulheres, como se fossem
outros tantos peccados irresistiveis, servidos em
papel de seda pelo demo tentador.
No segundo acto, quando Ella appareceu, foi
como se uma corrente eléctrica, mysteriosa e di-
vina, percorresse toda a sala, visto como todos se
levantaram, n'um movimento egual e isochrono,
para a mais amoravel e sincera ovação de que
possa haver registo.
Muito fria, muito pallida, as lagrimas gelando-
se-lhe a meio das faces apergaminhadas, um sor-
riso apagando-se-lhe nos lábios resequidos, avan-
ça para agradecer, n'um automatismo quasi de
somnambula, e logo recua, soltando um grito, dei-
xando-se cahir, ao desamparo, n'um dii/an, que
para alli tinham posto.
80 Ao de leve
Estava morta.
No escriptorio, verificando o producto da ré-
cita, n'aquella noite festiva em que havia floreS
por toda a parte, e, entre colchas d'uma poiychro-
mia bizarra bustos escuUuraes de mulheres eram
como grandes fructos de carne servidos em papej
de seda, o emprezario commentava:
— Que raio de sorte ! ]á estavam passados to-
dos os bilhetes para amanha !
\.
Quando o cortejo se dirigia da Egreja
para o Palácio uma bomba foi ati-
rada diurna janella^ fa\eudo gran-
des estragos. Os reis nada soffre-
ram.
(Dos jornaes, em telegramma õe Maòriò).
Emfim !
Acabavam de ligar-se para sempre, ella radiante
de belleza, elle radiante de felicidade, os dois so-
nhando mil cousas loucas, n'uma ebriedade d'amor
que os punha fora do mundo real.
— Querida Eugenia !
— Querido Affonso !
Parecia-lhes pequeno o templo, para conter a
sua ventura, e aquella multidão que os rodeava,
fixando-Oíi com muita insistência, tinha assim os
ares de quem espreita com inveja, e se compraz
em ser incommodo. Por maneira que ao chega-
rem ao adro, ella radiante de belleza, elle radian-
te de mocidade, respiraram com muita força, e
82 Ao de leve
teriam caido nos braços um do outro, ébrios de
amor, se um grito de saudação, reboando pelos
ares, não os chamasse á realidade !
]á no trem, por ahi fora, marchando lentamen-
te, como n'uma procissão, os ouvidos cerrados a
tudo que não fosse o encanto dos seus próprios
gestos intencionaes, elles architectavam mil coisas
loucas na sua mente escandecida, e como que pre-
libavam o infinito prazer d'uma posse ardentemen-
te desejada.
N'isto ouve-se uma explosão horrível, e um gri-
to formidável de terror sae de milhares de boccas,
n'um unisono perfeito. E' um momento de confu-
são indescriptivel, e nem se ouvem os gemidos dos
que sofrem, nem se dá pelas convulsões dos que
agonisam, porque a attenção dos que não fugiram
concentra-se totalmente n'aquellas duas creanças
— ella radiante de belleza, elle radiante de mo-
cidade, os dois ainda ha pouco sonhando mil coi-
sas loucas, n'uma ebriedade d'amor, que os punha
fora do mundo real.
Estavam salvos.
A commoção fora extraordinária, sendo milagre
que um estilhaço de bomba não tivesse reduzido
aquelle idilio esponsalicio a um noivado de sepul-
cro — como se não fosse abominável atirar para
o nada uma existência que alvorece.
— Vo te probaré hoy que soy digna de ser
tu mujev.
Fora realmente extraordinária a commoção, de
Ao de teve 83
modo que já no leito, sob a luz muito baça, muito
ténue d'uma lâmpada ao centro da alcova, tendo
ainda nos ouvidos o estrondo d'uma bomba que
rebenta, e como que vendo alli, no isolamento
d'aquelle ninho, creaturas que estremecem nos pa-
roxismos de uma morte irremediável, elle que mos-
trara uma coragem estóica no meio do perigo, re-
commendando a todos calma, mucha calma ! No
ha pasado nada, elle sente-se agora d'uma fra-
queza infantil, quasi covarde, anniquilado como se
entrara n'uma lucta com cyclopes. E então muito
calmo, muito resignado, como quem acceita os fa-
dos, mordendo-lhe os beiços que ella estendia
n'uma momice cheia de graça:
— Vo te probaré manãna que soy digno de
sev tu marido.
E foi como se na virgindade d'aquelle leito re-
pousassem duas creanças gémeas.
\
o governo resolveu supprimir todas as
gratificações por serviços extraor-
dinários.
(Dos jornaes).
Iam alli implorar a protecção de S. Ex/^.
— - De que se trata então ?
— Somos três chefes de família, ires honrados
servidores do Estado que vimos. . .
— Está bem ; mas o que desejam ?
— Como V. Ex/"' sabe, acabaram as gratificações,
e aquelle de nós três que mais ganha não chega
a ganhar trinta mil réis mensaes, sujeitos a des-
contos.
— Perfeitamente ; mas os senhores são empre-
gados. . .
— Saberá V. Ex/*^ que da Alfandega.
— Ora é isso mesmo, da Alfandega. Eu não
posso augmentav-lhes o ordenado, e como ã ver-
ba das gratificações foi supprimida.
— Se V. Ex.'^ dá licença. . .
Ao de leve 85
— Como a verba das gratificações foi supprimi-
da, e não depende de mim restaural-a. . .
— Se V. Ex.^ quizesse ter a bondade de se in-
teressar por nós, mesmo sem nos augmentarem
os ordenados e sem restabelecerem as gratifica-
ções . . .
— A accumulação de serviços equivale a uma
gratificação. • .
— Queira V. Ex.^ desculpar, mas tudo se arran-
jaria facilmente se o sr. conselheiro quizesse ter
a bondade de nos tomar sob a sua protecção. . .
— E' que não vejo maneira. . .
— O que nós pedimos é muito pouco, e não é
preciso tiral-o ao Estado, ou a quem quer que
seja.
— Em summa, o que é que os senhores dese-
jam ?
— Nós desejávamos ser nomeados. . . gatos da
Alfandega.
— Gatos da Alfandega ?!!...
— E' verdade, sr. conselheiro, gatos da Alfan-
dega. Isso daria uns 9$000 réis por mez, a cada
um, o que seria uma ajudasinha para a renda da
casa.
— Os senhores vieram aqui para se divertirem
commigo ?
— O' sr. conselheiro, pelo amor de Deus ! Nós
viemos aqui implorar a valiosissima protecção de
V. Ex.^ juramol-o pela boa saúde das nossas mu-
lheres e dos nossos filhos. •
86 Ao de leve
— Gatos da Alfandega! Mas então os senho-
rer perderam o juizo ?
— Não, senhor conselheiro ; o que nós perde-
mos foi a gratificação.
— Ou anda tudo doido, ou eu não sei onde te-
nho a cabeça. Mas o que vem a ser isso de gatos
de Alfandega ?
— Saberá V. Ex.^ que havendo milhões de ratos
na Alfandega, sem respeito nenhum pelas merca-
dorias que alli se acham depositadas, e havendo
todos os dias reclamações por causa dos prejui-
zos que estes causam, foi creada a corporação dos
Gatos da Alfandega y para a sustentação da qual
ha uma verba de proximamente trinta mil réis por
mez.
— Está bem ; mas se essa verba é para susten-
tação dos gatos. . •
— Desculpe V. Ex.^ ; mas se esses empregados
cumprem rigorosamente o seu dever, apanhando
os ratos, não precisam que os sustentem, porque
aíranjam elles próprios os seus sustentos ; e se alli
estão só para receberem o ordenado, deixando
os ratos em liberdade, não é justo que se gaste
com elles um dinheirão, ao passo que honrados
chefes de famiha . . .
— Pois está bem ; vou informar-me do caso e
prometto-lhes interessar-me pelos senhores.
— Muito obrigado, sr. conselheiro, muito agra-
decido a V. Ex.^
Tinham dito a verdade os honrados chefes de
Ao de leoe 87
familia, e porque o conselheiro não era homem
que faltasse á sua promessa, foram os três nomea-
dos gatos da Alfandega, como poderiam ser no-
meados secretários do ministro, ou revisores do
caminho de ferro.
Os verdadeiros gatos emigraram, e uma com-
missão de ratos foi cumprimentar os três honra-
dos chefes de familia, quando viram as nomeações
no Diário do Governo.
\
Deve se ao sr. Casimiro José de Lima,
director da casa da moeda^ omouu-
meuto a Sou^a Martins ^ erecto no
Campo de San f Anua.
(Dos jornaes).
Eram congressistas.
Desemboccaram no Campo de SanfAnna, vindo
da Carreira dos Cavallos, e como se approximassem
da estatua, a alguns passos de distancia, pararam
de repente, em geito de quem examina com in-
teresse. Um do grupo, o mais velho, typo acaba-
do de sábio allemão, género Topsius, de sobre-
casaca e óculos d'ouro, erguendo ligeiramente o
chapéu, n'um cumprimento respeitoso, em que ha-
via muito de admiração, exclama com grande
convencimento : — Schõn I Schr schon ! E logo
os outros todos, em unisono, como se fosse um
echo alli próximo, possuídos d'aquelle arrouba-
mento esthetico, que é vulgar nos homens da Al-
lemanha, exclamaram também j — Sc/zz' schõn!
Ao de leve 89
O mais velho, erguendo os óculos d'ouro para a
testa ampla, como a querer illuminar o pensa-
mento, feita uma ligeira reverencia á estatua im-
movel explicou : — Ribeiro Sanches... Foi um me-
dico notável do século dezoito, um sábio do mais
alto valor. Formado em Coimbra, graduado em
Salamanca, visitou successivamente os hospitaes
de Londres, Marselha, Toulon, Montpellier e Pa-
ris. Estudou com Doerhaave — todos se desco-
briram — em Leyder, durante três annos, e a tal
ponto se impoz á estima e á consideração do
Mestre, que d'ahi a pouco tendo-lhe pedido a im-
peratriz da Rússia a indicação de três grandes
médicos, que fossem exercer cargo de professor
em Moscow, o primeiro nome que Iheaccudiu foi
o de Ribeiro Sanches. Medico dos exércitos im-
periaes, fez a campanha da Polónia, em 1735, e
ainda n'essa qualidade andou pelo Paiz dos Tár-
taros, sobre os quaes fez estudos de anthropolo-
gia, que muito aproveitaram ao sábio francez Buf-
fon — e todos se descobriram de novo. — Viveu
em Paris, com muitas difficuldades, sempre estu-
dando, sempre cultivando a sciencia, produzindo
trabalhos valiosos sobre economia, historia e me-
dicina.
Formara a sua intelligencia no estudo de Ba-
con e Descartes, e temperou o seu caracter pe-
los conselhos de Montaigne.
Accusado de judaismo, não podia vir a Portu-
gal, e os livros que para cá mandava eram uma
90 Ao de leoe
espécie de contrabando, que o marquez de Pom-
bal fez passar como sendo d'um phantastico dr.
João Mendes Sachetti.
A Imperatriz Catharina II, da Rússia, grata por
a haver curado d'uma doença grave, era ella
princeza, estabeleceu-lhe uma mezada sufficiente,
quando elle se viu na capital da França, a braços
com a miséria.
E assim pôde viver e publicar o seu Metho-
do de estudar a medicina, e um tratado de Con-
servação da saúde dos povos, e outros muitos
trabalhos de valia, que lhe marcaram logar dis-
tincto entre os sábios do seu tempo. Um grande
sábio! Ein gross gelehrt! Viel berúhmht ! —
E todos em unisono, como se fosse um echo ali
perto : — SJiel berúhmht!
Ia a passar uma mulhersinha, typo de mulher
que esfrega, e como os visse embasbacados, ap-
proximou-se do grupo:
— E' o Sousa Martins, os senhores haviam de
conhecer. Quem mandou alli pôr isto, foi o sr*
Casimiro da Casa da Moeda — talvez os senho-
res tenham ouvido falar.
Pois não conheciam um, nem tinham ouvido fa-
lar do outro, aquellas cavalgaduras!
\
Montem a policia deitou a mão a um
gatuno de on:{e annos^ que roubou
um pão numa padaria da Baixa-
(Dos jornaes).
Tinha roubado um pão.
A mãe dissera-lhe que fosse pedir esmola, ha-
via muitas horas sem comer, e elle abalara por
essas ruas, descalço e roto, extendendo a mão a
toda a gente. Entrava nos cafés, e ninguém lhe
dava nada ; entrava pelas lojas, descalço e roto, e
os caixeiros enxotavam-n'o como se fosse um cão.
Dá-me cincoreisinhos, meu senhor ?
Ninguém lhe dava nada, e todos o maltratavam,
chegando um policia a deitar*lhe a unha para o
levar para a Correcção. Infatigável, entrando agora
n'um café, onde os freguezes nem ouviam o seu
estribilho— ^á-^?e cincoreisinhos, meu senhor?
— entrando além n'uma loja, d'onde os caixeiros
o enxotavam como um cão sem dono, já tinha
percorrido a cidade inteira, extendendo a mão a
92 Ao de leve
toda a gente, e toda a gente olhando para elle
com desprezo ou com enfado, e ninguém se com-
padecendo da sua miséria. E, comtudo, era nada,
que elle pedia a toda a gente que passava, exten-
dendo a mão suplicante. — Dâ-me cincoveisi-
nhos, meu senhor?
Cangado, cheio de fome, ahi volta elle a casa,
onde a mãe o aguardava, n'uma afflicção, chum-
bada ao leito, havia muitas horas sem comer. Uma
senhora muito bem vestida, com brilhantes, car-
ruagem brazonada, quasi encalhando n'elle á porta
d'uma Egreja, estendeu-lhea mão enluvada, e dei-
xou cahir na sua mãosita suja, sem olhar para elle,
os cincoreisinhos que elle andava a pedir corren-
do a cidade inteira, extendendo a mão a toda a
gente que passava, entrando nos cafés, onde os
freguezes eram surdos ao seu pedido, e entrando
nas lojas, descalço e roto, e d'onde os caixeiros
o enxotavam, como um cão vadio.
Talvez não fosse de propósito, mas os cinco-
reisinhos telintaram nas pedras da calçada, em-
quanto a senhora que lh'os dera, muito bem ves-
tida, genuflectia á porta do templo, e cortava o
rosto fresco e moreno com o signal da cruz.
Foi então que o garoto deu com os olhos n'um
cesto de verga, á porta d'uma padaria, cheio de
pão alvo e fresco.
Alli perto estava a mãe, chumbada ao leito, so-
frendo horrivelmente, noites e noites sem dormir,
havia muitas horas sem comer. Quasi nem teve
Ao de leve 93
tempo de acommodar o pão debaixo do braço, es-
condendo-o com uns frangalhos da jaqueta. O pa-
deiro grita, o garoto foge, a policia apanha-o, e a
multidão horroriza-se deante d aquelle ladrão de
onze annos, que tinha a mãe alli perto, n'uma po-
cilga, chumbada ao leito, soffrendo horrivelmente,
noites e noites sem dormir, havia muitas horas
sem comer.
Na esquadra, mettido no segredo, como um fa-
cínora, o garoto dá o nome e a morada ; mas o
terror nem o deixa desafogar em lagrimas — ve-
jam o cynismo do malandro ! — e a vergonha faz-
Ihe esconder a cara — admirem a astúcia do pa-
tife!
O policia, que foi prevenir a família, ao outro
dia, encontrou extendido no leito, ainda quente, o
cadáver d'uma mulher nova, muito sêcca, muito mir-
rada, o ar de quem passou largo tempo chumba-
da ao leito, ainda quente, soffrendo horrivelmente,
muitas horas sem comer, muitas noites sem dor-
mir.
]á não lhe puderam dizer que era um ladrão o
seu filho, aquelle garoto descalço e esfrangalhado,
que percorrera a cidade inteira, incommodando
toda a gente — dâ-me cincoreisinhos, meu se-
nhor ?
\
o rei podia impôr-se por um acto de
abnegação e patriotismo^ acceilando
a Republica,
(D'um jornal republicano).
Era um povosinho pacato, que moirejava nas
suas terras, sempre alegre, sempre satisfeito, sem
recordações tristes do passado, sem apprehensões
pelo futuro.
Enlevava -se na contemplação do mar, quando
elle era sereno, e como se esquecesse então, os
olhos pregados na sua superficie espelhenta e lisa,
os ladrões aproveitavam-se daquella espécie de
somno hypnotico para lhe aligeirarem os bolsos.
Bem se importava elle com isso ! Tirava da terra,
quasi sem esforço, tudo quanto lhe era necessá-
rio, e ainda lhe ficava muito tempo para se enlevar
como um sabeista, na contemplação dos astros, de
dia piscando os olhos aos raios d'um sol que não
queima, de noite como a querer enchel-os d'um
uar que adormenta.
Ao de leve 95
Era feliz.
Os outros invejavam aquella tranquillidade pa-
radisíaca, alguns milhões de bananas governados
consoante a rima, e com um rei cor de laranja.
Succedeu, porém, que um dia, no meio d'aquelle
povo pacato que moirejava nas suas terras, sem-
pre alegre, sempre satisfeito, sem recordações tris-
tes do passado, sem apprehensões pelo futuro, caiu
uma semente de revolta, que logo germinou e for-
tificou, avassallando todos os espíritos. A'quella
gente pacifica repugnavam os actos violentos, e
só comprehendia que se derramasse sangue para
fazer cabidela, ou então para evitar congestões,
quando assim o entendesse a medicina.
Mas havia o rei. . •
Foi então que um patriota, inspirado como um
propheta antigo, teve uma ideia genial, um pensa-
mento sublime — convidar o rei a adherir. Elimi-
na-se o rei e cria-se um cidadão, exclamava com
muita eloquência, pondo arrepios de commoção
na espinha de todos os ouvintes.
S. M. adheriu.
Como todos os bons cidadãos quizeram sacri-
ficar-se na presidência da Republica, houve ne-
cessidade de não crear essa funcção, e isso se fez
por consenso unanime, cada um não querendo
para os outros o que não poderia haver para si.
Alvitrou-se a anarchia, mas como viesse a re-
conhecer-se, ao cabo de longa discussão, que no
relógio do tempo ainda não tinha soado essa ho-
96 Ao de leve
ra suprema d'amor e de justiça, tratou-se de ele-
ger um governo, como nas outras republicas.
Um velho de aspecto venerando, com um sa-
ber só de experiências feito, propoz que na cons-
tituição do governo entrassem elementos novos e
aguns dos antigos homens de governo, já com pra-
tica de negócios públicos.
— Os cidadãos que approvam esta proposta er-
gam as duas mãos.
Como se visse no ar uma floresta de mãos :
— Approvada por unanimidade.
Logo uma voz se ergue, fazendo-se ouvir em
toda a vasta assembléa:
— Eu voto contra. No governo só deve entrar
gente nova.
O homem que assim falava protestando com
energia, era o cidadão que fora rei, o que deu to-
gar a esta observação do presidente.
— Mas o cidadão, quando era monarcha. . .
— Pois sim, quando era monarcha ; mas agora
sou contribuinte. .
\
Parece que S. M. a Rainha não acom-
panhará El- Rei na sua próxima via-
gem.
— Confessa que te era mais agradável ir só . • .
— A falar a verdade. . .
— Ao menos és franco, e a franqueza não pas-
sa por ser qualidade vulgar na tua nobilissima fa-
milia.
— Falas-me da minha familia n'um tom de su-
perioridade e desdém, como se descendesses d'al-
guma d'essas divindades soberbas, de que estão
cheias as mytholcgias antigas. A esse respeito, mi-
nha filha, talvez seja melhor nãoadeantarmos con-
versa. Ha um anexim portuguez que resa assim;
— disse o tacho â certa, tira-te para lá não
me tisnes.
— Não conheço o calão dos toureiros. . .
— Nem eu a giria dos jesuítas.
— Ao menos podias ser delicado com uma se-
nhora.
7
98 Ao de leve
— Por certo se essa senhora quizesse ser de-
licada commigo.
— Nunca eu tivesse aqui posto os pés.
— Inteiramente d'accordo. Tinha sido magnifico
para os dois.
— Se não fossem os filhos e. . .
— Bem sei ; se não fosse isto de pairar no alto,
estar acima dos outros. . .
— Je m'en fiche de. . .
— Temos calão boulevardiano ?
— Se um dia perderes o logar, podes ir para
Marrocos : o sultão, supponho eu, não terá ciúmes
de ti.
— Nem tu saudades minhas.
— Se te parece!. . .
— Apezar de todos os pezares, minha filha,
tu ainda me podias dar um prazer enorme, uma
satisfação infinita.
— Deixando-te ir em liberdade?
— Não ; deixando-me. • . viuvo.
\
No congresso medico do Porto, o dr,
Eduardo d' Abreu apresentou um ve-
lho de log annos.
(Dos jornaes).
— Vou dar a palavra ao illustre congressista,
nosso collega, que apresentará á assembléa o ho-
mem mais velho do mundo.
Quando o presidente acabou de pronunciar es-
tas palavras, fez- se na sala, até então rumorosa,
c silencio dos momentos augustos. Um congres-
sista avançou para junto da mesa da presidência,
acompanhado d'um velhote rabitezo, de peitilhos
bordados, endomingado como para a desobriga.
Era o homem mais velho do mundo, como disse-
ra o presidente. Nascido no século dezoito, atra-
vessara todo o século dezenove, e alli estava
muito fresco, bem disposto, nas felizes disposições
de acompanhar o século vinte até por ahi adeante
sem cansaço de maior.
100 Ao de leve
Estavam alli cento e nove annos, bonita somma
feita com parcelas de três séculos, muito dese-
guaes em valor.
Tão bem conservado o velhinho!
Dir-se-ia que adormecera quando ia a entrar
na velhice, ao cabo de uma florente mocidade, e
a dormir deixara de fazer annos, o bom velhote.
Por certo aquella alma nunca fora batida das tor-
mentas, não experimentara nunca as grandes ale-
grias nem as grandes contrariedades, porque umas
e outras consomem como ofogo, abbreviam a exis-
tência, — diluindo-a em risos ou afogando-a em
lagrimas.
Tão bem conservado, o velhinho!
Ha rugas na sua face ; mas ellas são apenas as
dobras avelludadas dos lagos adormecidos, d'uma
paz magestosa e inalterável.
Os olhares de todos aquelles médicos conver-
giam para o bom do velho, muito rabitezo, com
os seus peitilhos bordados á moda de 1820 — a
única coisa limpa que resta das grandes aspira-
ções d'aquella época, explicou o congressista que
apresentava o phenomeno. Parecia uma evocação,
um phantasma que surgisse da noite dos tempos
para contar historias trágicas. Mas havia tanta
candura .no seu olhar curioso ! tanta alegria infan-
til no seu riso mal contido, como se tivesse ver-
gonha de não se mostrar grave alli, no meio de
tantos senhores ! Aquella seriedade tinha o ar de
uma meninice robusta e florida.
Ao de leve 101
Tão bem conservado, o velhinho ! Parecia ven-
der saúde. . .
Um dos congressistas, ch'nico de larga nomea-
da, approximando-3e do velhote :
— E de saúde, que tal ?
— O' meu senhor, graças a Deus. . .
— Mas nunca esteve doente ?
— Uma vez, ainda era novo, ahi por volta dos
setenta annos.
— E tomou muitos remédios ?
— Lá quanto a isso. . . não tomei nenhum. Eu
sempre tive muito amor á vida.
Tão bem conservado, o velhinho ! . . .
\_
fíonle)n, em conjerencia dos delega-
dos, foi resolvido querellar dalguns
joniaes»
(Dos jornaes).
A sessão estava marcada para as onze.
O ultimo que entrou, saudando os dois que já
lá estavam, teve esta observação maliciosa:
— A justiça é pontual!. . .
— E algumas vezes. . . justa, accrescentaram os
collegas.
Cada qual desembaraçou-se do sobretudo, pôz em
cima da mesa um masso de jornaes, e assentou-se.
— Ha que fazer ?
— Pela parte que me toca. . •
O que assim falou, ergueu os óculos para a
testa, abriu um dos jornaes que tinha na sua fren-
te, e leu pausadamente : — E' fóva de duvida que
o nosso Monarcha é dos imperantes mais ho-
nestos e mais intelligcntes não só da Europa,
mas de todo o mundo.
Ao de leve 103
Pousou o jornal sobre a mesa, deixou cair os
óculos para os olhos, e attentou nos collegas, á es-
pera.
— E depois ? O collega com certeza não pre-
tende querellar d'esse jornalista, com certeza mo-
narchico. • •
— Engana-se o collega redondamente. Pretendo
querellar a passagem do jornal, que acabo de ler,
porque a encontro incursa no artigo. • .
— Mas isso não tem pés nem cabeça, collega.
Quereria então que amanhã se dissese que este
augusto tribunal querellára d'um jornalista por ter
elle escripto que o monarcha é honesto, é intelli-
gente, dos mais honestos e intelligentes que o sol
cobre ? . . .
— E' como acaba de dizer.
— Mas isso é uma loucura!. . •
— Um pouco mais pequena do que lhe parece.
Estamos aqui para cumprir a lei, e a lei, n'este
ponto, é clara.
— O que faria então o collega se o jornalista
tem escripto que o monarcha é destituido de in-
telligencia e honestidade?
— O que faria ? Querellava-o com fundamento
no artigo. . .
— Mas é então o caso de ser preso por ter
cão . . .
— Não é nada d'isso. E' o caso da lei prevenir
as duas hypotheses — a da calumnia e a da
troça.
104 Ao de leoe
Concordaram os três em que eram de troça as
palavras incriminadas, e assim fundamentaram a
sua petição de querella. Nunca mais, desde então,
os jornalistas se atreveram a escrever aquillo a se-
rio.
\
o sr. Teixeira d' Abreu foi hontem
cumprimentado por uma commissão
de Jm\es^ que o procurou no seu mi-
nistério,
(Dos jornaes).
Era uma commissão de juizes da provincia, que
vinha apresentar os seus cumprimentos a s. ex/\
Ageitou o laço da gravata, kaiserizou um pouco
os bigodes, pousou a mão direita, levemente es-
palmada, sobre a pasta de marroquim, deixou cair
o braço esquerdo ao longo do corpo, muito á
vontade, e disse ao continuo que mandasse en-
trar.
— Vimos apresentar a v. ex.* as nossas home-
nagens, felicitando-o pela justa e merecida distin-
cção que acaba de lhe ser feita.
Muito grave, tendo ouvido aquella pequena fala
como se fosse um acto de vassalagem por parte
de rebeldes submettidos, pausadamente como quem
mede as palavras :
106 Ao de leve
— Agradeço as felicitações que me dirigem, e
tomo-as como partindo de toda a magistratura,
aqui representada por v. ex.^l
Ordenou que se sentassem, n'um gesto brando
e attencioso, e elle próprio sentou-se, com muita
solemnidade, não fosse desmanchar a pose que
estudara de véspera para actos officiaes.
E explicou :
— Desejo fazer obra útil, que vinque a minha
passagem pelos conselhos da coroa. O complexo
de medidas que tenciono apresentar, subordina-
das umas ás outras como partes integrantes d'um
todo harmónico, constituirá o que eu chamo A
reforma da bola.
— A reforma. . .
— Da bola. Não fazem ideia do que seja? Não
admira; írata-se d'uma coisa inteiramente nova. lá
na Universidade iniciei o meu plano reformador,
embora n'outro campo, e com o melhor resultado.
— Se V. ex.'^ . . .
— E' simples. Em vez de chamar á lição pela
caderneta, chamava pelo saco das bolas. Numero
tal ? Era o que dava a sorte. Assim os rapazes,
receando cada qual que saisse a bola do seu nu-
mero, estudavam todos a sebenta. E' engenhoso
não é verdade?
— Sem duvida. Qualquer que não tivesse o im-
menso talento de v. ex.^ consideraria que os ra-
pazes, esperando cada qual que não saisse a bola
do seu numero, nenhum pegaria na sebenta.
Ao de leve 107
— Pois ahi está. A bola, applicada ás coisas da
justiça, espero que dará os melhores resultados
Assim, por exemplo, tratando-se da collocação de
juizes e delegados. . . A cada comarca correspon-
de uma bola. Estão a ver?. . . Acaba o favoritis-
mo; torna-se impossivel a perseguição ou a em-
penhoca.
— E' maravilhoso !
— Pois não é ?. . . E ao mesmo tempo é sim-
ples. Espero que a minha passagem pelos conse-
lhos da coroa, curta ou demorada que seja, não
resulte improficua para os sagrados interesses da
justiça e dos seus agentes.
Ergueu-se gravemente, e premiu o botão elé-
ctrico. Logo appareceu o continuo, que acompa-
nhou até á escada aquella commissão de juizes, que
tinham ido apresentar os seus cumprimentos a s.
ex.^
]á na Arcada, olhando uns para os outros, co-
mo que interrogando- se:
— Com que então, a bola ?
— Redonda e de escaravelho, levada as arre-
cúas até ao gabinete negro.
\.
o illustre deputado F. fe\ hontem um
grande discurso^ muito caloroso e
muito espontâneo^ sendo no final
cumprimentado por quasi todos os
seus cal legas,
(Dos jornaes).
Passou por alli e entrou.
Era um espectáculo novo para elle, uma sessão
parlamentar. Vinha a Lisboa, muitas vezes, estan-
do as Camarás abertas, mas em geral tinha muito
que fazer, e não podia demorar-se por fora de
casa.
O cavallo engorda só com a vista do dono,
e elle sabia bem como o seu emmagrecia, isto é,
como lhe corriam mal os negocies quando se au-
sentava por certo tempo. Mas uma vez não são
vezes e elle poderia fazer á sua curiosidade o sa-
crifício das suas commodidades. Em vez de partir no
comboio da tarde, que era rápido, partiria no com-
boio da noite, muito ronceiro, parando em todas
Ao de leve 109
as estações, esó chegando á sua terra a uma ho-
ra bastante incommoda, de madrugada.
Entrou, e dirigindo-se ao primeiro porteiro que
viu, entregou-lhe um cartão de visita para o de-
putado do seu circulo, pedindo uma entrada, para
a galeria do presidente. Tinham-lhe dito que era
d'alli que melhor poderia disfructar o espectáculo.
S. ex.* mandou o bilhete de admissão, e pedia
desculpa de não vir, porque estava conversando
com o ministro a respeito d'um melhoramento que
tinha pedido lá para o circulo, a ponte de alve-
naria sobre a ribeira, que no inverno, chovendo
muito, estorvava a passagem de carros.
Acabava de ler-se a acta, quando elle se ins-
tallou no seu logar. Um deputado já velho, com
óculos, mandou para a mesa uns papeis, reque-
rendo que fossem publicados no Diário, e um dos
ministros declarou- se habilitado a responder á in-
terpelação que lhe tinha annunciado, na véspera,
um illustre deputado da maioria.
Pareceu-lhe aquillo pouco interessante, e já
quasi se arrependia de ter alli ido, quando o pre-
sidente, não havendo mais quem pedisse a pala-
vra, declarou que se ia entrar na ordem do dia.
E logo a seguir:
— Tem a palavra o sr. . . .
Era o seu deputado que tinha a palavra. Não
pensou mais em ir-se embora, está bem de ver,
e como o homem tivesse a palavra foi te e o ges-
to largo, prendeu-lhe a attenção desde o começo.
110 Ao de Leve
A Camará estava um pouco distraída, cada qual
cochichando com o seu visinho, mas elle tinha a
impressão que o discurso era bem alinhavado, tal-
vez um pouco vulgar nos conceitos, mas bastante
correcto na forma, e deduzido com certa lógica e
habihdade. Quando faltavam apenas cinco minu-
tos para se encerrar a sessão, o presidente, in-
terrompendo o orador, perguntou-lhe se deseja-
ria ficar com a palavra reservada.
— Vou concluir, sr. presidente ; os cinco minu-
tos de que ainda disponho, chegam muito bem
para o que me falta dizer.
Quando acabou, muitos deputados foram cum-
primentado, alguns apertando-lhe a mão com muita
força e outros abraçando-o com enternecimento.
Esperou-o ao pé do elevador, e mal o viu es-
tendeu-lhe as duas mãos:
— Muito bem! muito bem!
Elle então explicou, modestamente, que não con-
tava usar da palavra, n'aquella sessão, e que por
isso não se tinha preparado.
— Foi o que acudiu na ocasião; para a outra
vez será melhor.
]á fora do edifício das Cortes, atravessando o
largo, um rapaz de blusa azul, com uns papeis
nas mãos, approximou-se d'elles.
— Que deseja ?
— São as provas do discurso ; v. ex.^ manda-as
á typographia, ou quer que vá buscal-as ?
I
A continuarem as coisas assim ^ aos
republicanos bastará um pouco de
audácia para fazerem a Republica,
(Dos jornaes nionarchicos).
Era um pego largo, pouco fundo, com moitas
de juncos pelas barreiras que se esboroavam a
cada instante. De cada vez que caía um pequeno
torrão, acudiam do fundo peixes em cardume, al-
guns doirados, outros de prata. Andavam á roda
do pego uns homens graves, sem instrumentos de
pesca, varando os peixes com olhares de fogo —
olhares de guloso ou de avaro.
Bem se importavam os peixes que elles os olhas-
sem assim, com uma insolência quasi dolorosa, se
lá da camada funda em que andavam apercebiam-
se do minimo gesto que elles fizessem, estenden-
do a mão, e logo mergulhavam mais, pondo-se in-
teiramente a salvo.
AlH perto, debaixo d'uma arvore frondosa, an-
davam creanças a brincar.
112 Ao de leve
Como as chamassem, n'um prompto, correram
para junto daquelles homens graves que anda-
vam á roda do pego, devorando com os olhos
aquelles peixes de oiro e prata, que se viam lá
em baixo, na transparência da agua, e de quando
em quando vindo á superficie, quando das bar-
reiras caía um pequeno torrão, que os atraía em
vez de os espantar.
— Ganha um vintém cada um, se atirarem pa-
ra o pego muita poeira e muita lama.
Os pequenos olharam uns para os outros, co-
mo que interrogando-se, e logo desataram a cor-
rer, por alli fora, rindo ás gargalhadas, deixando
estupefactos aquelles homens graves que estavam
havia muito namorando os peixes, varando-os com
olhares de fogo — olhares de guloso ou de avaro.
]á a distancia, para além da arvore debaixo da
qual ha pouco brincavam, estacaram todos ao mes-
mo tempo, como se obedecessem a uma voz de
comm.ando. O mais ladino, apontando na direcção
do pego, com um grande ar de superioridade des-
denhosa :
— Queriam pescar nas aguas turvas, os gajos...
E todos riram á gargalhada.
k
Toda tu és formosa, amiga minha, e
em ti não ha mancha.
(Cântico òos Cânticos).
Que os seus lábios toquem os meus lábios, dan-
do-me o osculo da sua bocca, e as minhas mãos
toquem os seus peitos, fragrantes como os bálsa-
mos mais preciosos- . .
Bem me importa que ella seja trigueira, se fo
o sol que lhe mudou a cor beijando-a doidamente
n'um dia em que ella andava pelas encostas, apas-
centando os gados, esbelta como a açucena...
Hei de fundir os meus desejos loucos no fogo
dos seus olhos negros, para afogar n'uma garga-
lheira d'ouro o seu pescoço de rola.
Ella é a flor do campo, o lírio immaculado dos
valles, olorosa como o nardo, rescendendo como
um ramalhete de açafrão que alguém tivesse col-
locado entre as suas pomas virgens, appetitosas co-
mo um cacho de Chypre, de bagos húmidos e fres
cos.
8
114 Ao de leoe
Não a acordem no seu thalamo de flores, que
eila assim é linda como a Sulamita, cujo coração
vela emquanto ella dorme, e na volúpia do seu
sonho, perfumado de todas as essências do Líba-
no, percebe a voz do seu amado, que lhe bate á
porta, a escorrer-lhe do cabello em anneis todo o
orvalho da noite.
Os seus lábios são como uma fita de escarlate,
mal cobrindo os seus dentes de marfim, e as ma-
çãs do seu rosto, como romã partida, accendem fo-
me de beijos nos próprios cedros do Libano.
Que airosos são os seus passos, e que harmo-
nioso é o seu talhe, similhante ás palmeiras do
deserto, em torno das quaes esvoaçam pombas
nitentes como frocos de espuma, que o vento er-
guesse do mar quando as ondas saltam como ca-
britos do monte, procurando as folhas verdes !
Não lhe perturbeis o somno, linda como é ador-
mecida, o leito em que repousa tendo o olor de
um canteiro de plantas aromáticas, onde floresce
o nardo e o açafrão, o cinamomo e a mirrha.
Bem me importa que ella seja trigueira, se foi
o sol que lhe queimou as faces, beijando-a doi-
damente, n'um dia em que a apanhou no campo,
esbelta como as açucenas. . .
\
Ci gil Pirou ^ qui fui rieni . . .
Accumulava com o emprego burocrático ... de
não fazer nada, o encargo social. • . de dizer mai
de todofi e de íudo. Assim o tempo não lhe che-
gava para ir aqui e além, apparecendo em toda a
parte, informando-se da ultima novidade, e com-
mentando o ultimo escândalo. Estava convencido
de que nascera com immensas aptidões, um enor-
me talento de escriptor, um profundo génio d ar-
tista, e que tudo isso lhe fora roubado, ainda no
berço, uma noite, estava elle a dormir e a sonhar
— um lindo sonho cor de rosa, que punha estre-
mecimentos rithmicos nas suas caminhas de leite.
Teria sido um philosopho como Littré, um escul-
ptor como Miguel Angelo, um historiador como
Mommsen, um critico como Taine, um poeta co-
mo Victor Hugo, um pintor como Rubens, um
romancista como Balzac, se lhe não tivessem rou-
bado em pequeno as immensas aptidões com que
o dotara a Natureza.
116 Ao de leve
Quando se punha a escrever, emperrava-lhe a
penna ao cabo de poucas linhas, e não havia ma-
neira, por mais que torturasse os miolos, de lan-
çar ao papel uma ideia. Quando se punha a fa-
zer pintura, escorregava-lhe o pincel borrando a
lona, e succedia então que tendo feito o desenho
para uma rosa, lhe saía inevitavelmente uma couve-
flôr. Uma única vez conseguiu levar a cabo uma
esculptura; mas succedeu que tendo modelado no
barro um cupidinho alado, quando o passou ao
gesso se encontrou com um kanguru. Vinham-lhe
então raivas tremendas, um ódio enorme aos que
tinham um nome, aos que faziam livros ou faziam
estatuas, affirmando de qualquer forma uma com-
petência superior — o talento, que não é com-
mum, ou o génio que ainda é mais raro. Era a
impotência gerando a inveja ; era a inveja trans-
mudando-se em ódio.
Um dia morreu e, como não tivesse amigos,
quasi ninguém o acompanhou ao cemitério. Quan-
do iam a descel-o á cova na sua mortalha de po
bre, um bohemio que alli chegou, informando-se
de quem era, disse:
— Deviam fazer-lhe a cova redonda. . . A ul-
tima morada d'um nulo, deve ter a forma d'um
zero.
%
S. M. tem recebido milhares de cartas^
bilhetes e telegrammas^ felicitando-o
pelo mallogro do projectado movi-
mento revolucionário.
(Dos jornaes).
Estendeu o braço e premiu o botão eléctrico,
que ficava um pouco ao lado da secretaria.
— Pareceu-me ouvir chamar. . .
— Chamei, sim. Vieram cartas, bilhetes, tele-
grammas, não é verdade ?
— E todos elles. . .
— Todos elles dizem a mesma coisa. Até pa-
rece que foram expedidos pela mesma pessoa ou
então . . .
— Ou então foram redigidos segundo uma for-
mula combinada, não é isso ?
— Exactamente, segundo uma formula combi-
nada.
— E já os colleccionaste, conforme te disse ?
— De certo. A' medida que chegavam ia. . .
118 Ao de leve
— Está bem. Traze aquelles que sabes e met-
te-os além, n'aquella caixa.
— Waquella caixa ?
— Sim, n'aquella caixa. Vou lei- os de monó-
culo.
Eram algumas dúzias de telegrammas, vindos
d'aqui e d'além, uns do norte outros do sul, to-
dos com muitas felicitações, muitos protestos de
respeito, de estima e dedicação. Parecia, na ver-
dade, que tinham sido redigidos segundo uma for-
mula combinada, tão eguaes eram os seus dize-
res.
— Prompto, já lá estão.
— Olha, põe-lhes em cima aquelle folheteco que
está além, n'aquelle étagère, de capa verde • . •
— Mas é a Carta . . .
— Pois já se vê que é. Anda, p5e-a lá, e ras-
pa-íe.
D'ahi por um quarto d'hora, pouco mais ou me-
nos, sentado á secretaria, na descuidosa negligen-
cia d'um nababo feliz, a mordicar um charuto for-
temente aromático, estendeu o braço e premiu o
botão eléctrico.
— Não sei se é a mim que • . •
— E' com o que está de serviço ao bispote.
— Então sou eu.
Despeja aquella caixa.
A alma das creaiiças que morrem sem
baptismo não entra no céo,
(Crenòices populares).
No dia seguinte era o baptizado.
Havia mais d'uma hora que estava a devoral-
0 com os olhos, debruçada sobre a canastrinha de
verga em que elle dormia, envolto em rendas,
muito harmonioso na minusculidade das sua for-
mas — como se fosse uma esculpturazinha de Do-
natello, copiada de frei Angélico, em um vagopre-
sentimento da Renascença.
EUa própria o enfaixaria, subtiHzando os dedos
leves, ao calçar-lhe os sapatinhos de seda, não
fosse magoar-lhe as caminhas tenras, d'uma rije-
za de fructa verde e sadia. Não iria com elle á
Egreja, fraca ainda como se sentia; mas já recom-
mendára á parteira que o não entregasse a nin-
guém, nem mesmo ao padre, receosa de que mãos
pesadas tomassem aquelle fardozinho ligeiro, que
era a melhor fibra do seu coração, animada do
120 Ao de leve
mais puro effluvio da sua alma. Sem saber como,
entrou a philosophar sobre o baptizado, o santo
sacramento do baptismo como ensinam os livros
sagrados.
Seria então um peccador, o seu filhinho.
Quantas creanças por esse mundo além, mor-
rem sem baptismo, quasi ao nascer, pequeninos
botões de rosa, que não chegam a abrir, porque
a aragem soprou mais forte e os lançou por ter-
ra!. . O espirito d'estes anjinhos irá então soffrer
as torturas do purgatório, espiando uma culpa que
não tinham, purificando-se de um mal que não fi-
zeram ?
Se o seu filho morresse perderia a crença em
Deus, e se pudesse acreditar que a alma das crean-
ças, mortas antes de baptizadas não ascende directa
e immediatamente á vista do Altissimo, radiosa
como um olhar da Virgem Mãe, negaria a justiça
divina, muito peor que a dos homens. . .
Mas então o santo sacramento do baptismo na-
da mais será que uma mentira ?. . .
. . . Envolto em rendas, a dormir na sua canas-
trinha, o petiz estremeceu, e elía ficou suspensa
na corrente dos seus pensamentos, enlevada na
contemplação d'aquella esculptura minúscula, de
formas harmoniosas, que dir-se-ia modelada por
Donatello, a copiar Frei Angélico, n'um vago pre-
sentimente da Renascença.
No dia seguinte lá foi d petiz a baptizar.
I
I
Um rapa:{ da Beira, allegando que o
pae é pobre ^ furou a greve, pelo que
foi espancado d porta férrea,
(Dos jornaes).
Nunca fora á escola.
Os filhos da gente pobre não teem o direito de
ser creanças, e os pães d'elle eram pobresinhos. Aos
sete annos já era um valor, em linguagem de eco-
nomistas. Fazia dó ver o garotito queimando os
músculos tenrinhos n'um trabalho com que não
podia. Mas os pães d'elle eram tão pobres !. . .
Quando entrou nas sortes, já era orphão de
mãe, e como tirasse um numero alto, o mais alto
que havia na urna, livrou-se de ir servir o rei, dei-
xando o seu velhote quasi cego e inteiramente trô-
pego a viver da caridade publica. Por aquelles sí-
tios não havia trabalhador como elle, sempre a li-
dar com a terra, de semana trabalhando para os
outros, nos domingos trabalhando para si. Não
bebia nem fumava, todos os seus ganhos eram
122 Ao de leve
para sustentar a casa, onde não faltava nada, a
não ser a alegria. Como não ha-de ser triste o
lar onde não explude um riso de mulher, onde
não ha petizes que ponham tudo fora dós seus lo-
gares, n'uma adorável desenvoltura. . Casou, e
pareceu-lhe que tinha ido buscar á Egreja mais
força, mais energia, mais saúde. Quando lhe nas-
ceu o primeiro filho, que foi também o ultimo, já
o pae tinha acabado de morrer, pobre velho cego
e trôpego, que um delgado fio prendia á vida, des-
de que ficara viuvo.
— Este não ha-de ser para ahi um animal co-
mo o pae, dizia apontando o filho.
Aos seis annos mandou-o para a escola, e como
o rapaz :^osse intelligente e applicado, com muita
facilidade aprendeu a ler, excedendo todos os seus
condiscípulos. Ficou distincto na instrucção prima-
ria, e como fosse notável a sua queda para os es-
tudos, matriculou-se no lyceu. Vencidos os pre-
paratórios lá foi o pae leval-o a Coimbra, inchado
como a rã da fabula, já a remirar-se no seu doutor.
— Evite as occasiões ; mas quando se encontrar
n'ellas, não faça má figura.
Foi esta a única reconjmendação que lhe fez, de
volta á sua aldeia, tendo-o installado na casa d'um
conhecido com ordem de lhe abonarem o que
fosse preciso.
Outro dia á saida da missa, no adro da Egreja,
falou-se de coisas graves em Coimbra. Vinha nos
papeis. . .
Ao de leoe 123
-- Que foi ?
Um dos que estavam no grupo, explicou :
— Houve lá o diabo. Sete estudantes foram ex-
pulsos, e os outros, por camaradagem, declararam-
se em greve. Mas alguns, diz o jornal, abandona-
ram os companheiros e foram ás aulas. O seu
rapaz . . .
— O meu rapaz não foi ás aulas com certeza •'
Três dias depois, como o governo mandasse fe-
char as escolas, appareceu-lhe o rapaz em casa,
sem ter avisado como era costume.
— Ouve lá, quantos romperam a greve?
— Poucos, talvez uns quatro ou cinco.
— Mas tu. . <
— Considerei os immensos sacrificios que tem
feito para me dar uma posição, e para lhe pou-
par . . .
— Sim, para me poupares alguns dias de tra-
balho honrado, não achaste nada melhor que pra-
ticar a má acção de abandonar os collegas, victi-
mas da injustiça.
Nunca o tinham m.andado á escola, mas aben-
çoava agora a sua ignorância, severo nos seus
princípios d'honra, intransigente na sua lealdade
de camponio para com os seus irmãos da gleba,
crendo na simplicidade do seu espirito que o sa-
ber deforma o caracter.
Deus fe:[ as almas aos pares.
(Da sabeõoria òas nações).
Tinham-se encontrado alli no ponto onde se bi-
furca a estrada.
O sol descahia ao longe, por traz dos montes,
n'um esbraseamento de fogo amortecido, e na char-
neca immensa havia tanta paz e doçura, como
n'uma cathedral augusta a horas mortas da noite.
Cançados, cheios de pó, via-se bem que tinham
feito uma longa jornada por caminhos difficeis, ras-
gando o fato e as carnes nas silvas e pitas dos
vallados, e magoando os pés descalços nas vere-
das e atalhos Ínvios.
O sol descahia ao longe, por traz dos montes,
e não se avistava um casal na extensão quasi in-
finita da charneca, silenciosa como uma cathedral
augusta a horas mortas da noite.
Dir-se-ia que se procuravam sem nunca se te-
rem visto, o acaso tendo- os reunido alli, no pon-
to onde se bifurca a estrada, cançados, cheios de
Ao de leve Í25
pó, o fato rasgado, e as carnes feridas, como se
tivessem atravessado um bosque selvagem, sob a
ameaça d'um perigo. Pois que a sorte os reu-
nia . .
— Seria bom ficar aqui, ficando ambos, tortu-
rada como venho de muito longe, sem um braço
amigo a que me encoste, sem um coração amigo
que por mim palpite !• . .
— Juntos faremos o resto do caminho, queren-
do-nos muito, amando-nos muito, cada qual riva-
lizando em dar ao outro a maior porção de so-
nho, a maior somma de ventura !. . .
Por sobro a charneca immensa pairava uma paz
bemdita, e a lua muito pallida, como se fora um
pingo de leite, deixara cahir uma luz frouxa e ba-
ça — tal uma lâmpada mortiça no silencio d'uma
cathedral augusta.
^
Era dia de finados.
Desde que a mulher lhe morrera, havia três me-
zes, nem um só dia passava sem que elle fosse
ao cemitério, rezar sobre a sua sepultura, offertar-
Ihe flores orvalhadas de lagrimas.
Tinham-se amado tanto!
Por certo não se morre de felicidade, visto que
elle não tinha morrido no dia em que a recebera
sua esposa legitima á face da santa madre egre-
ja, e também não se morre de dor, visto elle não
ter morrido no dia em que lhe cerrou os olhos^
colando-lhe os olhos ás pálpebras, n'um derradei-
ro beijo.
Era dia de finados, e como não quizesse dar
em espectáculo a sua dor, o cemitério cheio de
visitantes, deixou que toda a gente saisse, já quasi
ao pôr do sol, para elle então cumprir a dolorosa
missão que se impuzera de ir todos os dias reta-
lhar o coração, ajoelhado sobre a pedra que co-
bria metade da sua alma, que era toda a sua fe-
licidade.
Ajoelhou, chorou, rezou e quando já tinha os
olhos secos de muito hnver chorado, e já não ti-
nha o coração dorido de tanto que a dor o tinha
Ao de leve 127
feito soffrer, espalhando pela sepultura o seu bra-
çado de flores, as mãos postas, o chapéu debai-
xo do braço, os olhos erguidos ao alto, anniquilado
como se cairá sobre elle a maldição de Deus, di-
rigiu-se para a porta do cemitério.
A poucos passos andados, cruza com elle um
rapaz alto, vestido de negro, com um grande
ramo de flores na mão.
Parou, e sem quasi se aperceber da sua curio-
sidade, poz-se a seguil-o com os olhos. O outro
foi seguindo, o andar estugado, caminhando a di-
reito sem hesitar. Como elle fizera havia instan-
tes, sobre a mesma sepultura, ajoelhou, chorou^
rezou e quando já não tinha mais lagrimas para
chorar, automaticamente, como se na pedra da
sepultura tivesse deixado colada a alma, dirigiu-se
para a porta do cemitério.
— Devia tel-a amado muito, para soffrer as-
sim!
— Se amei ! Daria a vida para a resuscitar, ou
para ir apodrecer ao lado d'ella, debaixo da mes-
ma pedra.
— Era então sua mulher ! . . -
— Era simplesmente minha amante, porque ti-
vera a infelicidade de casar antes de nos conhe-
cermos.
1
128 Ao de leve
Havia três mezes que a mulher morrera, que
nem um só dia passava sem que elle fosse rezar
sobre a sua sepultura, offertando-lhe flores orva-
lhadas de lagrimas.
%
Não ha bella sem se f ião.
A's vezes, quando a beijava, sentia-lhe as faces
quentes dos beijos que outro lhe dera. Parecia-
ihe então absurdo, quasi inverosimil que a Natu-
reza fizesse tão linda uma creatura tão pérfida. —
Era como se alguém mettesse lama das ruas n'uma
urna de alabastro.
Tão linda!
Punha-se então a fixal-a muito, muito — como
se, debruçado sobre um abysmo, quizesse sondar
um mysterio. Pareciam feitos de treva os seus
olhos luminosos ! Brincava um sorriso leve nos
seus lábios sensuaes, em que havia o perfume in-
tenso das violetas e o sabor casto das rosas.
Tão Hnda!
Não se acredita que haja vulcões na lua, sere-
na e palHda, ás vezes escondendo- se por traz das
nuvens, como se fosse uma mulher nua que per-
cebesse no espaço olhos brejeiros a fital-a.
Tão linda!
9
130 Ao de leve
Manchava-lhe o pescoço um fio d'ouro muito
delgado suspendendo um Christo de marfim per-
feito como se o fizera Donatello, vago e poético
como se o desenhara Frei Angélico.
Tão lindai
Mas parecia-lhe, quando a beijava, que ella ti-
nha as faces quentes dos beijos que outro lhe
dera. — As plantas venenosas nunca deviam ser
bellas, attrahindo para matar — nem as mulheres
bellas deviam ser pérfidas, como se um tigre habi-
tasse no cálice branco d'um Hrio, ou uma cobra
se escondesse entre as folhas d'uma rosa !
Tão linda !
\
Soupent femme varie
Bien fou qui sy fie. . .
— Tontinho !
— Imaginas, então, que eu poderia viver sem
ti, privada dos teus beijos, sem a loucura das tuas
caricias! Arranca a planta pela raiz, e diz-lhe de-
pois que floresça e fructifique, que erga os bra-
ços onde não circula a seiva, offerecendo aos re-
vérberos d'um sol quente e luminoso as suas fo-
lhas mirradas, dum amarello chlorotico, que pre-
cede a morte decisiva . • •
- Tontinho!
— ]á me afizera ás fatalidades do meu desti-
no, e habituada a olhar nas trevas, a cerração
da minha noite parecia-me ás vezes que tinha
vagos lampejos d'aurora, as incertas claridades
d'um crepúsculo. Acreditei nas tuas palavras, e
logo senti quente o sangue que se me gelava nas
veias, e o coração inquieto, na desenvoltura d'um
pássaro que apanha a gaiola aberta, pulsar com
¥
í32 Ao de leve
força desusada, no alvoroço d'uma alegria doi-
da.
— Tontinho !
— Se te fosses, havias de levar-me comtigo, ou
havias de matar-me primeiro, desembaraçando-me
d'uma vida inútil, trágica na sua dor recalcada, e
ao mesmo tempo burlesca na sua dedicação hu-
milde, nem espirrando como a lama quando a pi-
sam na rua.
— Tontinho !
Dentro do caramanchão, ao fundo do jardim, a
luz branca da lua era baça, como a flor da ma-
gnólia, e discreta como uma tia velha, ou uma
bonne siússa. Mal se ouvia oramalhar das folhas,
como 'im cicio brando e perfumado, quando a
brisa passava, na leveza imperceptivel d'uma bor-
boleta branca, que fosse a alma errante d'uma
creancinha tisiça.
Colleante, os braços nus, humedecendo os lá-
bios sêccos da febre em que toda ella ardia, mer-
gulhou nos seus olhos castanhos os seus grandes
olhos negros, e foi como se aquellas almas se
fundissem, enlaçados aquelles corpos no contacto
mais affecíuoso e mais intimo. Não teriam ouvido
o ramalhar das folhas, ainda que por alli tivesse
passado algum cyclone devastador, tudo arrasan-
do no seu caminho- . .
Tontinhos !
Mezes volvidos, tendo regressado sem se fazer
Ao de leoe 133
annunciar, mal saccudido o pó da viagem, sentiu
necessidade de ir reviver todas as venturas pas-
sadas no logar onde as fruirá.
Era uma noite de luar escasso, e tão froixamente
passava a brisa, que as folhas não boliam nas ar-
vores, e uma borboleta, que alli abrisse as azas,
faria um grande ruido. Approximou-se do cara-
manchão, pé ante pé, como se tivesse medo que
acordassem todos aquelles vegetaes adormecidos,
e entrassem a gritar por soccorro, tomando-o por
um ladrão ou um assassino.
Lá dentro no caramanchão, a luz da lua era
baça como a flor da magnólia, e discreta como
uma velha tia, ou uma bonne suissa. Pareceu-lhe
que alguém falava, muito perto d'alli, e como se
approximasse mais e mais, cautelosamente, quasi
sem pisar o chão, não fosse denunciai- o o ruido
d'alguma folha sêcca, subitamente, como se fossem
gotas de chumbo fundente que lhe instillassem nos
ouvidos :
— Imaginas então que eu poderia viver sem ti,
privada dos teus beijos, sem a loucura das tuas
caricias! Se te fosses, havias de levar-me com-
tigo, ou havias de matar- me primeiro, desemba-
raçando-me d'uma vida inútil.
— Tontinho !
Quando saiu, a correr como um ladrão perse-
guido, ou como um doido que se escapa, nem pen-
sou no escândalo que causaria a sua presença alli
134
Ao de Leve
I
já noite velha, se o jardineiro o visse. E era tão
grande a sua perturbação, quasi a raiar pela lou-
cura, que parou junto á porta, deante d'um mo-
lho de cactos, a insultal-os, parecendo-lhe que eram
creaturas maldosas, chasqueando do seu ludibrio,
em grandes risadas vermelhas.
Coitadinho !
\
Os milagres não se discutem — ou se
negam ou se acceitam.
Chegou á porta da Egreja no momento pre-
ciso em que o sacristão, com o chapeo debaixo do
braço, se preparava para a fechar.
Levava na mão uma almotolia d'azeite, obra
d'uma canada, e explicou que fizera aquella pro-
messa á senhora Santa Luzia, da sua particular
devoção, no anno passado, quando estivera mal
dos olhos. Deixara um homem fazendo a sua obri-
gação, pagando-lhe meio dia, e, como a jornada
era comprida, não pudera chegar mais cedo. Se-
ria um grande transtorno ter de voltar, e só mui-
to tarde poderia fazei- o, porque o patrão já lhe
dissera que iria para as herdades do Sado, e era
natural que por lá se conservasse até ao fim da
temporada. De resto, poucos minutos lhe chega-
vam para cumprir a sua promessa, e como ha vi-
ver e morrer, não queria ser chamado á presença
do Senhor sem se pôr em contas direitas com os
136 Ao de leve
santinhos. Ainda no domingo passado tinha ido le-
var um alqueire de trigo a Santo António ; por
causa de um atalho de cabras que se tinha sumi-
do, e que elle receava que fosse parar á bocca dos
lobos. Felizmente que nem só uma cabeça se per-
dera, e isso fora sem duvida um milagre do san-
to, que os lobos, na charneca onde andam, são tan-
tos como as mães.
Tanta piedade commoveu o sacristão, aliás d'uma
crença muito precária, como quasi toda a gente
que vive muito no grémio da Egreja. Dentro em
nada era sol posto, e elle tinha de ir á villa com-
prar mantimentos e dar informações da mulher,
havia duas semanas de cama. Disse-lhe que fosse
rezar as suas orações no altar da Santa, e que
despejasse a almotolia no potezinho de lata, com
tampa de madeira, que estava na sacristia, logo á
entrada, lado direito, e que servia só para reco-
lher o azeite das promessas, geralmente impró-
prio para as comidas. Que em saindo fechasse bem
a porta, e entregasse a chave á rapariguinha que
lá tinha em casa, para acompanhar a doente, quan-
do elle precisava sair.
No dia seguinte, pela manhã, quando foi pre-
parar a egreja para a missa do domingo, notou
que a Senhora Santa Luzia não tinha o cordão e
os brincos que lhe tinha offerecido um brasileiro,
também doente dos olhos — o cordão por ella o
ter livrado do mal, e os brincos por o ter livrado
dos especialistas.
Ao de leve 137
— Foi aquelle grandíssimo ladrão !
Posta a policia em campo, d'ahi a pouco esta-
va preso o indigitado gatuno, que o sacristão re-
conheceu mal o viu.
Não negou estar na posse dos objectos que se
dizia terem sido roubados, mas jurou pela salva-
ção da sua alma que tal roubo não commettêra-
E que só falaria na presença do sr. prior, que era
uni homem de muita santidade, e d*uma grande
sabedoria. Sem saber do que se tratava, acompa-
nhado do official de diligencias, foi o prior a casa
do juiz. Então o homemzinho explicou: — A Se-
nhora, mal eu acabei as minhas rezas, entrou a
olhar-me com muita compaixão. Contei-lhe todas
as misérias da minha vida,^ disse-lhe como aquelle
azeite que alli levava para a sua lâmpada, fora ti-
rado á bocca dos meus filhos. Quando acabei, su-
bi os três degraus do altar para lhe beijar a barra
do vestido. Então a Senhora, tirando o cordão que
tinha ao pescoço, e os brincos que tinha ás ore-
lhas, entregou-m'os com as suas bemditas mãos,
dizendo que a ella não lhe faziam falta aquellas
coisas, e que eu podia, com o dinheiro que ellas
me rendessem, comprar o pão e o fato para os meus
filhos. Observei-lhe que poderiam tomar-me por
ladrão, vendo-me na posse de taes objectos, e isso
seria a minha desgraça e a minha vergonha. Vae
então a Senhora respondeu-me:
— Se duvidarem da tua innocencia, invoca a
autoridade do prior. Elle é um crente sincero, e
138 Ao de leve
quando toda a gente negasse o milagre, elle o
affirmaria como possível.
Na verdade o prior affirmou a possibilidade do
milagre, e como não fosse possível demonstrar
que elle não se realizara, foi mandado o homem
em paz, com os brincos e o cordão.
Dizia então o sacristã, vendo partir o penitente :
— Grandíssimo ladrão I
E olhando compassivamente o prior, n*um mur-
múrio, por entre os dentes:
— Reverendíssimo burro!
%.
Saudade ! gôsío amargo de infeli\es..
(Garrett).
— Fizeste bem em vir. . •
Cançou de dizer estas palavras, e espalmando
a mão no peito, ainda não havia muito opulento
e agora mirrado, absorveu o ar com muita força,
a bocca largamente aberta, como se lhe parara o
coração no supremo esforço de fazer girar mais
uma onda, talvez a ultima, de sangue arterializado.
— Se soubesses como eu soffro . • .
Brancos e delgados, muito delgados e muito
brancos, os seus lábios eram duas folhas sêccas,
muito ricas de nervuras, frias como a neve dos
poios. Eram botões de fogo, n'outro tempo, os seus
beijos, que só por milagre não queimavam.
— Havias de querer-me muito, se soubesses
como eu soffro . . .
Via-se bem que soffria immenso, a febre a quei-
mar-lhe os pulmões, um suor frio e viscoso a ba-
bar-lhe a pelle, e um torniquete de ferro a aper-
Í40 Ao de leve
tar-lhe o tronco, inexoravelmente, como n'um cár-
cere da Inquisição.
— Havias de querer- me muito se soubesses co-
mo eu soffro ; mas, havias de querer- me ainda mais»
se soubesses como eu te amo- • .
Na magreza do seu rosto, d'uma paliidez cada-
vérica, os seus grandes olhos negros, muito en-
covados, guardavam tudo o que lhe restava de
vida, um sopro apenas de vida, que era um bafejo
da morte. Parecia-me ás vezes, quando se fecha-
vam, que não tornariam a abrir-se, e punha-me
então a espreitar, na translucidez das suas pálpe-
bras, o momento preciso em que se apagassem.
— Custa tanto morrer, sabes?. - •
Sentou-se no leito, a muito custo, e levando as
mãos á cabeça, sem dizer nada, poz-se a desman-
char o cabello. Um ou outro fio de prata, muito
raro, manchava as suas tranças d'ebano, que lhe
desciam quasi aos calcanhares quando as deixava
cahir pelas costas.
— V/ê como se envelhece depressa. . .
Fez dois molhos do cabello, e tomando um em
cada mão, emmoldurou com elles o rosto, muito
magro, d'uma paliidez cadavérica.
— Lembras- te ?. . .
Pelos seus lábios brancos e delgados, muito del-
gados e muito brancos, perpassou um sorriso leve
de creança adormecida, e nos seus olhos negros,
muito encovados, brilhou mais intensa aquella lu-
cilação, que era tudo o que lhe restava de vida
Ao de leve 141
— um sopro apenas de vida, que era um bafejo
da morte. . •
— Doidos que nós éramos! . •
Revivi n'um minuto todo o poema do nosso
amor, as loucuras d'um amor prohibido, a que não
tinha faltado a dor cruciante das paixões extremas,
para dar ao goso uma intensidade quasi infinita.
Instinctivamente, como n'outro tempo, collei os
meus lábios aos seus, e nem percebi que estavam
gelados, folhas sêccas muito ricas de nervuras, frias
como a neve dos poios.
Durou o sonho toda a eternidade d'um segundo,
talvez menos ainda. Mal acordei, attentando na
magreza do seu rosto, d'uma pallidez cadavérica ;
vendo fechados os seus grandes olhos negros, já
sem brilho na translucidez das pálpebras enruga-
das, tive a impressão de me encontrar dentro d'um
jazigo, para violar uma morta.
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