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Full text of "Apostilas aos dicionários portugueses"

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APOSTILAS  AOS  DICIONÁRIOS  PORTUGUESES 


POR 


A.  R.  GONÇÁLVEZ  VIANA 


a:  r.  gonçálvez  viana 


APOSTILAS 


AOS 


DICIONÁRIOS  PORTUGUESES 


TOMO  I 


LISBOA 
LIVRAKIA  CLÁSSICA  EDITORA  — A.  M.  TEIXEIRA  &  CJ"" 

20,   PEAÇA  DOS  EESTAUEADORES,   20 
1906 


PôRTO— Imprensa  Portuguesa  —  Rua  Formosa,  112 


A  excelentíssima  senhora 


DONA  CAROLINA  MIÇHAÉLÍS  DE  VASCONCELOS, 


A    QUEM    AS    LETRAS   PORTUGUESAS    TANTO   DEVEM, 


como  tributo  e  homenajem  da  sua  admiração 
e  do  seu  resijeito 


DEDICA  ESTA  OBEA 


O   AUTOR. 


PREFÁCIO 


Não  há  para  nenhum  idioma  vivo  dicionário  que  se  possa 
dizer  completo,  mesmo  até  a  data  da  sua  ultimação.  Uma  parte 
não  pequena  do  lécsico,  já  no  que  respeita  a  vocábulos,  já  no 
que  se  refere  a  acepções,  fica  sempre  omissa,  e  esses  tesouros 
da  língua  teem  de  ser  completados  por  trabalhos  avulsos,  que 
ao  depois  se  encorporam  em  novas  edições  dos  dicionários  já 
existentes  ou  em  obras  novas  da  mesma  espécie. 

Com  a  publicação  destas  Apostilas  venho  também  contribuir 
para  a  futura  compilação  de  outro  dicionário,  em  que  se  tenha 
em  vista  aumentar  o  copioso  cabedal  de  termos  portugueses, 
mais  ainda  do  que  se  fêz  no  Novo  Diccionáeio  da  língua 
PORTUGUESA,  dc  Cándido  de  Figueiredo,  o  mais  abundante  de 
quantos  se  teem  publicado  em  Portugal,  mesmo  descontando 
muitas  dições  que  figuram  nele  sem  que  sejam  ou  tenham  sido 
portuguesas. 

Todavia,  assim  como  tive  em  mira  acrescentar  mais  dições  e 
acepções,  fruto  de  longos  anos  de  estudo  e  de  leitura,  procurei 
igualmente  criticar,  mormente  com  relação  a  etimolojia,  muito 
do  que  na  nossa  língua  se  tem  escrito.  Não  me  ocuparei  todavia 
dos  devaneios  insensatos  que  tanto  avultam  em  certas  obras 
lecsicolójicas,  mas  apenas  do  que  mereça  discussão  séria  e  pro- 
fícua, porque  os  autores  criticados  foram  escrupulosos  na  redac- 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


ção  das  suas  monografias,  ou  dos  seus  dicionários  ou  glossá- 
rios. 

A  ordenação  das  palavras  e  locuções  aqui  tratadas  é  rigorosa- 
mente alfabética;  mas,  como  na  discussão  ou  exposição  de  dou- 
trina acerca  de  cada  vocábulo  figuram,  para  termos  de  compara- 
ção principalmente,  outros,  vocábulos  em  número  considerável 
que  são  explicados  simultaneamente  com  os  de  cada  epígrafe,  o 
leitor  encontrará  no  fim  da  obra  um  índice,  também  alfabético» 
de  todos  eles,  com  a  designação  daqueles  a  que  ficaram  subordi- 
nados, ou  em  cuja  discussão  se  introduziram. 

No  decurso  da  obra  tive  muitas  vezes  de  citar  palavras  & 
formas  pertencentes  a  idiomas  cujos  sistemas  gráficos  diferem 
muito  do  romano,  de  que  usamos;  e  fui  conseguintemente  obri- 
gado a  transliterar  os  caracteres  desses  sistemas  em  letras- 
romanas.  Para  este  fim  escolhi  os  versaletes,  emtanto  que  as- 
palavras  latinas  as  cito  em  romano  espacejado,  e  as  do  latim 
popular,  hipotéticas  ou  reais,  e  do  latim  bárbaro  as  figuro  em 
caracteres  itálicos,  igualmente  espacejados  para  sobressaírem  no 
texto. 

Na  transliteração  do  alfabeto  grego  substituí  pelo  sinal  de 
aspiração  (')  o  h  que,  em  harmonia  com  a  transcrição  romana» 
se  costuma  empregar  na  figuração  das  letras  gregas  6,  cp,  x» 
transliterando-as  eu  portanto  com  os  símbolos  monogramáticos 
t',  p',  k',  em  vez  de  th,  ph,  ch;  do  nfesmo  sinal  me  sirvo  para 
a  representação  do  espírito  áspero,  que,  à  maneira  dos  romanos, 
é  uso  designar  pelo  h  latino.  Dissolvi  também  o  ^  grego  nos- 
seus  elementos,   ks,   à  semelhança  do  que  sempre  se  fêz  com 

o  cjj,  PS. 

No  alfabeto  devanágrico,  ou  Índico,  represento  semelhante- 
mente as  aspiradas  por  ('),  g',  por  exemplo,  e  em  tudo  mais  sigo 
muito   de  perto  a  transliteração  do  indianista  português  Gui- 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  ix 

Iherme  de  Vasconcelos  Abreu;  com  a  diferença  de  figurar  por 
minúsculas,  promíscuamente  com  os  versaletes  designativos  das 
letras,  os  sinais  das  vogais,  quando  estas  não  são  iniciais  de 
sílaba,  mas  acompanham  a  letra  consoante,  formando  parte  inte- 
grante  dela:    assim    transcrevo,    por   exemplo,    KaNGi,    e   não, 

KANGl. 

No  alfabeto  arábico  represento  por  versaletes  as  letras,  e  por 
minúsculas  intercaladas  as  três  vogais,  ou  moções  escritas, 
quando  o  são,  a  i  u.  Como  este  alfabeto  é  mais  numeroso  que  o 
romano  e  contém  letras  representativas  de  sons  que  são  estranhos 
ao  português,  e  alguns  mesmo  a  qualquer  idioma  não  semítico, 
tomei  por  base  para  a  sua  transliteração  o  alfabeto  hebreu,  menos 
numeroso  e  já  perpetuado  tradicionalmente  no  grego  e  no  romano, 
trausliterando  os  caracteres  hebraicos,  quanto  possível,  pelas 
letras  que  lhes  correspondem  historicamente  no  abecedário  la- 
tino; e  ampliei  com  artifícios,  sempre  os  mesmos,  o  número  de 
caracteres  necessários  para  a  transliteração  do  alfabeto  arábico, 
quer  na  sua  aplicação  ao  árabe,  quer  na  sua  acomodação  a  idio- 
mas de  outras  famílias  que  o  usam,  todas  as  vezes  que  me  foi  in- 
dispensável citar  vocábulos  de  qualquer  desses  idiomas.  Para  o 
malaio,  contudo,  seguindo  autorizados  exemplos,  preferi  dar  trans- 
crição europeia,  caracterizadamente  portuguesa,  dos  sons,  e  não 
das  letras. 

Devo  advertir  que  ^transliteração  dos  alfabetos  semíticos 
muitas  vezes  não  representa  a  pronúncia;  é  mera  convenção  com 
base  histórica,  já  o  disse.  ¥j  por  isso  que,  desatendendo  na  trans- 
literação do  hebreu  muitas  das  minuciosas  convenções  e  parti" 
cularidades  da  notação  massorética,  figuro  sempre  por  k,  p,  t 
tanto  as  consoantes  momentâneas  iniciais  de  sílaba,  como  as  con- 
tínuas correspondentes,  finais  de  sílaba,  à  semelhança  do  que  já 
se  pratica  a  respeito  de  b,  g,  d. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


Deste  modo,  o  alfabeto  hebraico  é  transliterado  da  seguinte 
maneira,  conforme  a  ordem  dos  seus  caracteres: 

ABGDEUZHTIKLMNSOPSQRXT 

O  acento  circunflecso  subscrito  diferença  da  última  letra  a 
nona,  e  da  décima  quinta  a  décima  oitava.  Em  fim  de  sílaba 
K,  p,  T,  G,  D  valem  respectivamente  pelas  letras  arábicas  que 
transcrevo  por  h,  f,  §,  y,  8,  e  que  vou  descrever  já  em  segui- 
mento. O  B  em  tal  situação  vale  por  b  intervocálico  português. 

O  alfabeto  arábico  é  assim  transliterado: 

ABT§GHTID&EZSXSI)TZ0YFQKLMNEUI<1 

O  1  elevado  denota  o  chamado  emza,  ou  consoante  explosiva 
faucal.  O  circunflecso  já  ficou  explicado  no  alfabeto  hebraico,  como 
designando  as  letras,  denominadas  enfáticas,  s  t,  e  aqui  mais 
D,  z.  ò  símbolo  h;  (if)  representa  o  valor  do  j  castelhano  actual; 
o  §  o  th  inglês  surdo  de  think,  z  castelhano  com  pequena  di- 
ferença, &  o  th  sonoro  inglês  de  they,  aprossimadamente  o  nosso 
d  intervocálico.  O  h  é  uma  aspiração  surda,  mais  funda  e  mais 
perceptível  do  que  a  aspiração  expressa  por  h  em  inglês  ou  em 
alemão;  e,  essa  mesma  aspiração,  porém  acompanhada  de  voz; 
em  fim  de  palavra  é,  conforme  os  dialectos,  proferida  como  à,  ou 
como  è.  O  H,  o  TI  e  o  E  inicial  de  sílaba  aparecem  representados 
por  /  na  Península.  O  g  vale  por  dj,  e  no  árabe  do  Ejipto  por  g, 
qualquer  que  seja  a  vogal  que  se  lhe  siga.  O  y  é  um  g  fricativo, 
proferido  no  véu  do  paladar,  e  nos  vocábulos  arábicos  qiie  pas- 
saram à  Península  Hispânica  foi  substituído  quási  constantemente 
por  g,  gu.  O  q  é  um  k  pronunciado  também  no  véu  do  paladar, 
com  grande  ênfase;  às  vezes  equivale  a  g,  ou  ao  emza  (^).  O  x 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


tem  o  mesmo  valor  que  o  x  português  de  xadrez.  O  o  expressa 
aqui  uma  articulação  formada  mais  abaixo  da  farinje,  sem  re- 
presentante nas  línguas  europeias,  e  que  se  eliminou  na  passajem 
dos  vocábulos  arábicos  para  os  idiomas  da  Península  Hispânica. 

Quem  mais  amplas  informações  desejar  obter  acerca  da  re- 
presentação peninsular  dos  sons  arábicos  lerá  com  muito  proveito 
as  seguintes  obras,  exemplares  a  todos  os  respeitos:  Doz}"  &  En- 
gelmann,  Gtlossaiee  des  mots  espagnols  et  portugais  deri- 
ves DE  l' AR  ABE,  Lcida,  1869,  Introductipn,  ii;  Eguílaz  y  Yan- 
guas.  Estúdio  sobre  el  valor  de  las  letras  arábigas  en  el 
ALFABETO  CASTELLAíío,  Madrid,  1874;  David  López,  Textos  em 
aljamía  portuguesa,  Lisboa,  1897,  principalmente  esta  última, 
por  ser  portuguesa  e  digna  de  todo  o  encarecimento. 

O  alfabeto  arábico  aplicado  ao  persa  tem  mais  quatro  letras, 
que  são  aqui  transliteradas  por  p,  ó,  j,  g,  e  em  que  c  íigura  o 
valor  do  eh  português  do  norte,  castelhano  e  inglês,  quási  tx, 
e  o  G  o  gui  do  português  guiar.  O  j  tem  o  seu  valor  normal  na 
nossa  língua.  Em  turco  há  mais  o  u  com  valor  de  v. 

Para  os  idiomas  da  índia  que  se  escrevem  com  caracteres 
arábicos,  como  o  indostano,  temos  ainda  a  acrescentar  as  cha- 
madas letras  cacuminais,  que,  do  mesmo  modo  que  no  silabá- 
rio  devanágrico,  são  representadas  pelas  bases  t  d  n  l  (r),  com 
um  ponto  subscrito,  tdnlr,  e  se  proferem  no  ponto  em  que  pro- 
nunciamos o  r  de  caro. 

Outros  sinais  convencionais  são  íi  para  h  aspirado  (h')  sonoro, 
e  Av  (ai)  para.  denotar  o  ng  final  de  sílaba  nas  línguas  germâni- 
cas, como  o  inglês  ou  o  alemão,  isto  é  a  consoante  nasal  póstero- 
palatal,  um  n  proferido  com  a  raiz  da  língua  no  ponto  em  que 
articulamos  o  ^,  e  que  em  português  se  ouve,  associado  a  ^  ou  ^, 
em  franco,  frango. 

Na  maioria  dos  casos,  quando  qualquer  destas  letras  de  valor 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


desusado  ou  convencional  aparece  na  citação  de  vocábulos  pe- 
regrinos, o  valor  dela  é  apontado  em  nota,  para  comodidade  dos 
leitores. 

E  sabido  que  o  z  e  o  j  no  castelhano  actual  valem  por  con- 
soantes fricativas  surdas:  a  primeira  genjival,  como  o  th  inglês  de 
think;  a  segunda  velar,  como  o  eh  alemão  de  bach,  ou  ainda 
mais  funda,  pelo  menos  no  castelhano  como  é  rigorosamente  pro- 
nunciado na  Castela-Velha.  Na  Andaluzia  o  z  equivale  ao  nosso  f, 
que  como  som  e  como  letra  desapareceu  do  castelhano  normal 
moderno. 

Na  antiga  ortografia  e  pronúncia  castelhana  o  ^,  o  j,  o  ç  e 
o  X  tinham  os  valores  que  lhes  damos  em  português. 

Advertirei  ainda  que  a  curva  fechada  subscrita  às  letras  q 
e  e  representa  o  valor  que  elas  teem  nas  palavras  portuguesas 
ãq  ãfí;  e  que  este  mesmo  sinal  sobrescrito  a  i,  u  denota  que 
estas  duas  vogais  não  formam  sílaba  por  si,  mas  com  a  vogal 
que  as  precede  ou  segue,  constituindo  a  parte  fraca  dos  ditongos 
decrescentes,  como  em  pai,  pau  (pái,  páu),  ou  dos  ditongos 
crescentes,  como  em  fiar,  suar  (fiar,  suar).  Os  ápices  sobre 
ô  ú  significam  õ,  ú  alemães,  eu  (aberto),  u  franceses;  o  o  õ  fe- 
chado alemão  de  schõn,  eu  francês  de  feu.  Os  ápices  sobre  o  t 
designam  o  i  guturalizado  de  navio,  como  esta  palavra  se  pro- 
nuncia em  vários  dialectos  açorianos,  o  y  polaco. 

Para  os  vocábulos  pertencentes  a  idiomas  cujas  letras  não 
representam  nem  fonemas  nem  sílabas  uso  de  transcrições, 
quanto  possível,  portuguesas,  e  o  mesmo  faço  com  outros  idio- 
mas que  são  analfabéticos,  como  por  exemplo  o  tupi,  os  ca- 
friais,  etc. 

O  sinal  (j)  quere  dizer  «derivado  de»,  e  este  mesmo  in- 
vertido (j),  «que  é  orijem  de». 

A  ortografia  seguida  no  texto  desta  obra  é  a  que  expus, 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


discuti  e  defendi  na  Ortogsafia  Nacional,  dada  à  estampa 
em  Lisboa  no  ano  de  1904,  e  já  adoptada  pelo  Dr.  Júlio  Cornu 
na  2.''  edição  da  sua  preciosa  Gramática  histórica  portuguesa 
publicada  no  Geundeiss  der  romanischen  Philologie,  bem 
como  ultimamente  pela  snr.*  D.  Carolina  Michaêlis  de  Vascon- 
celos o  que  a  consagrou,  e  ainda  pelo  snr.  Alberto  da  Cunha 
Sampaio,  na  revista  Portugália. 

Ficou  pois  sancionada  por  aquelas  duas  maiores  autoridades 
actuais  em  filolojia  portuguesa,  e  com  isto  me  contento. 

Na  reprodução  de  documentos  antigos,  principalmente  anó- 
nimos, busquei  uniformizar  a  escrita  por  padrão  artificial,  sim, 
mas  a  meu  ver  correcto,  evitando  quanto  pude  escritas  diversas  do 
mesmo  vocábulo,  ou  de  formas  análogas,  no  mesmo  documento. 

Nas  inúmeras  citações,  com  que  me  abono,  segui  rigorosa- 
mente o  modo  de  escrever  que  encontrei  impresso,  e  raríssimas 
vezes  o  assinalo  ou  critico,  por  mais  incongruente  que  êle  seja, 
ou  me  pareça. 

E  do  meu  dever  tributar  aqui  a  minha  gratidão  ao  senhor 
G.  de  Vasconcelos  Abreu,  meu  antigo  mestre  na  especialidade 
de  estudos  orientais  que  abalisadamente  cultiva,  por  muitas  pon- 
derações e  observações  judiciosas  que  me  subministrou,  e  bem 
assim  pelo  escrúpulo  intelijentíssimo  com  que  me  aussiliou  na 
revisão  de  uma  grande  parte  das  provas.  Agradecimento  e  louvor 
devo  igualmente  ao  benemérito  editor  desta  obra  e  ao  estabeleci- 
mento onde  é  impressa,  pelo  esmero  e  solicitude  com  que  para  a 
sua  laboriosa  composição  tipográfica  teem  dilijentemente  contri- 
buído. 

Das  erratas  somente  faço  menção  especial,  quando  são  essen- 
ciais à  intelijéncia  do  texto. 


A.  R,  Gonçalves  Viana. 


APOSTILAS  AOS  DICIONÁRIOS  PORTUGUESES 


APOSTILAS  AOS  DICIONÁRIOS  PORTUGUESES 


aba 


Este  vocábulo,  tam  português,  que  nas  suas  várias  acepções 
não  tem  correspoudente  exacto  nas  outras  línguas  românicas,  é 
de  orijem  muito  problemática.  Os  nossos  dicionaristas  teem-lhe 
atribuído  étimos  diferentes.  Pondo-se  de  parte  fantasias  diversas 
que  fôra  iuiitil  citar,  aquele  que  maiores  probabilidades  oferece 
em  seu  abono  é  o  apontado  por  F.  Adolfo  Coelho  ^  do  seguinte 
modo:  —  «(Hespanhol]  cilabea,  rumo  [aliás,  ramo],  curvo  na  ma- 
deira [aliás,  encurvamento],  goteira ;  do  basco  alabea,  o  que  pende 
ou  goteja)»  — . 

Haveria  muito  que  ponderar  sobre  o  enunciado  desta  etimo- 
lojia,  mesmo  sem  insistir  em  rumo,  em  vez  de  ramo,  por  ser 
evidente  erro  tipográfico. 

Limito-me  ao  seguinte:  nem  alabear(se)  significou  jamais 
« gotejar »  ou  « goteira »  em  espanhol  ou  em  vasconço,  nem  álàbea 
é  palavra  espanhola,  mas  sim  alabeo  (=^alahéo),  que  o  Dicioná- 
rio da  Academia  define  assim :  — « vicio  que  toma  una  tabla  ú 
otra  pieza  de  madera,  torciéndose  de  modo  que  su  superficie  no 
este  toda  en  un  plan  »  — . 

O  mesmo  Dicionário  dá  como  orijem  do  verbo  alabearse 
(«empenar-se  a  madeira»),  de  que  alabeo  é  substantivo  verbal 
expressando  acto,  a  palavra  álàbe,  com  vários  significados,  e  cujo 


1      DiCCiOXARIO  MANUAL  BTYMOLOGICO  DA  LIKGUA  PORTUGUBZA. 
1 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


étimo  seria  o  árabe  ALauA,  «curvo»,  que  Eguílaz  y  Yaugiias  * 
refere  ao  verbo  Lauí,  flexit,  preferindo-lhe  outro  étimo  igual- 
mente arábico,  que  não  cito  por  ser  foneticamente  inadmissível. 

Diez  2,  citando  Larramendi,  aponta  o  vasconço  alahe(a),  «(o) 
que  pende»,  preferindo-lhe  o  étimo  proposto  por  Mahn,  e  do 
mesmo  modo  vasconço,  adar(ra)  «ramo»,  e  he,  «para  baixo»,  e 
com  este  explica  a  palavra  portuguesa  aba,  contraída  de  alàba, 
como  paço,  de  palaço. 

Efectivamente,  nos  derivados  em  que  o  primeiro  a  perde  o 
acento  tónico,  conserva  êle  o  seu  valor  alfabético,  o  que  é  prova 
de  resultar  de  dois  aa;  ex.:  desabar,  abada,  etc. 

A  não  ser  esta  circunstância  importantíssima,  talvez  fosse 
também  admissível  como  étimo  o  latim  ala  J  aua  |  ava  \  aba, 
visto  ser  este  o  proposto  por  Zanardelli  para  o  sardo  aba,  «asa», 
comparável  a  candeba,  que  na  mesma  língua  corresponde  ao 
latim  candeia. 

Temos,  porém,  de  o  rejeitar  para  o  português,  não  só  por  ser 
neste  a  permutação  de  ?  em  6  talvez  facto  isolado,  mas  também 
em  razão  áe  o  a  átono  permanecer  aberto,  à,  como  resultante  da 
contracção  de  a -{-a. 

Como  curiosidade  direi  ainda  que  na  província  de  Leão  se 
usa  um  verbo  de  identificação  difícil,  abar(se),  siguiíicaudo  o 
que  dizemos  alar(-se),  «fujir»,  como  no  provérbio — Aba!  que 
va  grande  el  rio,  aunque  me  ãé  ai  tobillo — «Ala!  que  vai 
grande  o  rio,  apesar  de  (só)  me  chegar  ao  tornozelo » — ,  rifiio  que 
se  emprega  quando  se  quere  dizer  — « que  el  hombre  prevenido 
debe  huir  de  la  apariencia  dei  peligro»  •''. — Abaos  (=abad-os) 
significa  «arreda! ». 

Informa-me  também  um  amigo  meu,  da  Estremadura  Espa- 


1  Glosario  etimológico  de  las  palauras  espanolas  de  ori- 
GEN  ORIENTAL,  Granada,  1886,  sub  v.  alabes. 

2  Etymologischbs  Wõrterbuch  der  romanischen  Sprachen, 
Bonn,  1870,  2.^  parte,  sub  v.  Alabe. 

3  DicciOKARio  enciclopédico  hispano-americano. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


nhola  ^  que  ali  se  emprega  abate  interjectivamente,  em  frases 
como  as  seguintes.  ^  Abate  que  me  caigo,  abate  que  Io  cojo, 
« cautela  que  eu  caio  > ,  «  cautela,  que  o  apanho » ,  tudo  formas  do 
mesmo  verbo  abarse. 

Curioso  rifão  é  um  em  que  ahas  está  por  « abrigo,  sombra » : 
às  abas  dos  ciganos  roubam  os  aldeanos  - ;  como  interessante 
é  também  a  forma  aldeanos,  por  aldeãos,  aldeões,  mantida  pela 
rima. 

Devemos  todavia  conjecturar  que  não  é  aldeanos  castelha- 
nismo,  pois  ainda  é  usada  na  índia  portuguesa  a  forma  aldeano, 
abonada  por  Monsenhor  Rodolfo  Dalgado  no  seu  interessante 
estudo  sobre  O  dialecto  ixdo-português  de  Goa  ^.  —  «Com 
ajuntamento  dos  Aldeanos  da  Camará»,  « Commuuidades  Aldea- 
nas » — . 

(a)bada 

Qualquer  que  seja  o  sentido  em  que  os  nossos  escritores  an- 
tigos empregaram  este  vocábulo,  ou  designando  a  fêmea  do  rino- 
ceronte, como  é  a  opinião  geral,  ou  referindo-se  a  outro  paqui- 
derma  análogo,  como  declara  Rafael  Bluteau  no  Vocabulakio 
poBTUGUEz-LATixo,  tcm-se-lhc  atribuído  duas  orijens  diversas, 
uma  arábica  e  a  outra  malaia,  e  no  «Glossário  de  palavras  e 
frases  anglo -índias »  de  Yule  e  Burnell  *,  dá-se  em  certo  modo 
preferencia  à  primeira.  A  aceitar-se  a  orijem  arábica,  teríamos 
de  acentuar  abada,  e  assim  o  indica  o  Diccioxario  Conteítpo- 
RANEO,  conquanto  declare  ser  termo  indiano  este,  o  que  é  quanto 
ser  pode  vago,  pois  as  línguas  da  índia  são  muitas,  pertencentes^ 
pelo  menos,  a  três  ou  quatro  famílias  absolutamente  distintas. 


1  O  snr.  A.  Baselga,  natural  da  província  de  Badajoz. 

2  Revista  Lusitana,  vol.  vii,  p.  148. 

3  Ih.  vol.  VI,  p.  76. 

*  <The  usual  form  abada  is  certainly  somewhat  in  favour  of  such  an 
origin  > :  Hobson-Jobson,  being  a  Glossary  of^Anglo-Indian  coli.oquial 
TKRMS  AXD  PHR.\SES;  Londres,  1886. 


A])08tilas  aos  Dicionários  Portugueses 


Se  considerarmos  que  outra  forma  portuguesa  deste  vocábulo 
é  bada,  somos  levados  a  concluir  que  o  acento  é  na  sílaba  ba,  e 
neste  caso  teremos  de  optar  pelo  malaio  báãaq  « rinoceronte », 
como  étimo.  Um  parónimo  deste  vocábulo,  abada  derivado  de 
aba,  deve  ser  marcado  com  a  inicial  à  para  se  diferençar  do  que 
faz  o  objecto  deste  artigo  e  se  pronuncia  abada,  com  a  surdo 
inicial. 

Além  do  passo  com  que  Bluteau  abona  o  vocábulo,  e  da  indi- 
cação que  faz  da  Etiópia  Oriental  de  Frei  João  dos  Santos, 
para  justificar  a  outra  forma  bada,  pode  ainda  autorizar-se  o  seu 
emprego  com  as  Batalhas  da  Companhia  de  Jesus  na  sua 
gloriosa  província  do  Japão,  do  Padre  António  Francisco 
Cardim  ' :  — 

« O  benjoim  amendoado  desce  pelo  rio  abaixo  do  reino  dos 
Laos,  com  as  pontas  de  abada» — . 

F.  Méndez  Pinto  usa  da  forma  bada  no  seguinte  passo  da 
Peregrinação,  referindo-se  à  Ásia  insular: — «outros  muitos 
animaes  muito  piores  inda  que  as  aves,  como  são  alifautes, 
badas,  liões,  porcos,  búfaros  e  gado  vacum  em  tanta  quantidade, 
que  cousa  nenhúa  que  os  homens  cultivem  para  remédio  de  sua 
vida  lhe  deixaõ  em  pé  »  —  °. 

A  letra  final,  q,  da  palavra  malaia  bádaq  é  quási  impercep- 
tível e  é  proferida  na  fariíije. 


abafador,  afogador;  abafar,  afogar 

Guilherme  de  Vasconcelos  Abreu,  num  erudito  artigo,  pu- 
blicado no  Correio  da  Noite,  de  2õ  de  outubro  de  1886,  re- 
feriu-se  à  seita  dos  abafadores,  e  descreveu  em  que  consistia 
abafar  o  moribundo,  o  que  reputava  prática  relijiosa  da  antiga 
seita  dos  herejes  Cátaros  («puros»),  afim  de  impedirem  o  que 


•     Lisboa,  Imprensa  Nacional,  1894,  p.  251. 
2     Capitulo  XLi. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


está  a  morrer  de  cometer  pecado,  depois  de  receber  pela  impo- 
sição das  mãos  do  sacerdote  o  consolamento,  correspondente  à 
extrema  unção  da  Igreja  Católica.  No  mesmo  artigo  se  vê  que 
esse  homicídio  relijioso  foi,  e  ainda  é  atribuído  a  seitas  judaicas, 
tanto  em  Portugal,  como  fora  dele,  mas  especialmente  em  Bra- 
gança e  na  Covilhã,  onde  abundam  os  cristãos  novos.  Aí  vemos 
também  a  razão  pela  qual  tam  nefanda  prática  foi  assacada  aos 
judeus,  com  fundamento  em  outra  prática  judaica,  inofensiva,  de 
meter  debaixo  da  cabeça  do  moribundo  uma  almofadinha  de  pe- 
nas de  galinha,  para  o  ajudar  a  bem  morrer. 

O  indivíduo  que  no  norte  é  chamado  ahafaãor,  denomina-se 
na  Beira-Baixa  afogaãor,  com  o  mesmo  signiíicado  infamante, 
que,  se  é  real,  entende  o  douto  professor  não  poder  com  justiça 
atribuir-se  a  seita  nenhuma  propriamente  judaica.  E  sabido  que 
os  verbos  abafar  e  afogar  se  encontram  em  uma  acepção  co- 
mum, a  de  «sufocar»,  conquanto  tenham  outras  em  que  não  são 
sinónimos. 

O  termo  afogaãor,  como  correspondente  a  abafador,  vem 
assim  definido  na  Revista  Lusitana  ':  — « Christão  novo  en- 
carregado de  estrangular  ou  abafar  com  as  roupas  da  cama  os 
moribundos  da  mesma  comm unhão  religiosa;  pois,  segundo  é  cor- 
rente, passa  como  preceito  de  certa  seita  judaica  que  os  prose- 
lytos  não  devem  morrer,  mas  serem  mortos.  O  afogador  cumpre 
a  triste  e  repugnante  missão  com  a  serenidade  com  que  o  sacer- 
dote pratica  os  actos  mais  santos  do  seu  ministério.  Nos  conce- 
lhos de  Penamacor  e  Covilhã,  onde  abundam  os  chamados  chris- 
tãos  novos,  são  apontados  pelo  povo  os  afogadores.  Conta-se  que 
muitas  pessoas  teem  sido  instadas  pelos  moribundos  para  que  os 
não  abandonem  emquanto  não  expirarem,  horrorizados  com  a 
idéa  do  estrangulamento» — . 


1    Vol.  II,  1890-1892,  p.  244:  Notas  sobre  a  linguagem  vulgar 
DA  Aldeia  de  Santa  Margarida  (Beira-Baixa),  por  A.  Alfredo  Alves. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


abafarete 

Emprega-se  este  vocábulo,  em  linguajem  de  gíria  parlamen- 
tar, para  designar  o  acto  de  pôr  termo  a  uma  discussão,  mediante 
moção  de  confiança  ao  governo,  ou  requerimento  para  se  consi- 
derar a  matéria  discutida: — «Se  não  houver  abafarete,  —  e  é 
muito  provável  que  o  haja  —  a  discussão  sobre  a  troca  de  tele- 
grammas  deve  proseguir  por  toda  a  próxima  semana» — ^ 

É  evidente  a  orijem  da  expressão,  que  provém  do  verbo  abafar, 
no  sentido  de  «sufocar». 

abismo 

No  Economista  de  4  de  janeiro  de  1891,  deu-se  como  usua- 
líssima  uma  acepção  deste  vocábulo,  que  não  é  fácil  apurar  qual 
seja,  pelo  modo  por  que  ali  se  empregou,  e  é  o  seguinte:  —  «Di- 
zem do  Algarve :  chove  a  valer.  Não  ha  falta  que  não  dê  em  far- 
tura. No  entretanto,  como  ha  sempre  discordantes,  os  das  alturas 
querem  mais  agua,  porque  os  abijsmos,  expressão  muito  popular, 
estão  seccos»  — . 

A  palavra  abismo  provém  de  uma  forma  superlativa  latina 
abyssimus,  do  adjectivo  abyssus,  correspondente  ao  adjectivo 
grego  ÁBussos,  que  se  observa  nos  Setenta,  ou  versão  grega  do 
Velho  Testamento  hebreu,  onde  traduz  o  adjectivo  boeu,  que  na 
Vulgata,  ou  versão  latina,  é  interpretado  por  inanis:  terra 
autem  erat  inanis  et  uacua,  em  grego  kaí  gê  êtton  ábus- 
sos  KAi  ap'aniasmós.  O  grcgo  ÁBUSSOS  é  um  adjectivo  negativo 
do  substantivo  bussós,  «mar  fundo»,  na  Ilíada  de  Homero 
[xxiv,  80].  No  Novo  Testamento  a  hê  ábussos  do  texto  ^  cor- 
responde na  Vulgata  inferni,  «as  profund(id)a(de)s » ,  que  é  o 


1  O  Século,  de  9  de  agosto  de  1905. 

2  1 7.  w.  Pape,  GRiECHisCH-DBUTSCHBS  WÒRTBRBUCH,  Brunsvique, 

1880. 


Apostilas  nos  Dicionários  Portugueses 


adjectivo  iuíeruiis,   superlativo  de  infer,   «que  fica  por  bai- 
xo» ^  mas  substantivado. 


abozinado 

Este  adjectivo  muito  bem  formado  do  substantivo  hozina, 
assim  como  abof incido,  de  botina,  afunilado,  de  funil,  abona-se 
com  o  seguinte  trecho,  extraído  do  jornal  O  Século,  de  13  de 
janeiro  de  1902:  —  «...elle...  de  barrete  verde,  orlado  de 
vermelho,  calça  abuzinada,  ar  gingão.  . .» — . 

E  locução  mais  curta  e  mais  expressiva,  que  a  usual,  calça 
de  boca  de  sÍ7io. 

abrasado 

Este  particípio  do  verbo  abrasar  é  usado  na  Africa  Ocidental 
Portuguesa  num  sentido  muito  especial,  como  vemos  no  vi  Rela- 
tório da  Liga  Filafricana  ^  pájiuas  34: 

—  un  de  ses  sekulus  qui  se  trouvait  par  hasard  à  Kahala... 
fut  abrasado  (en  portugais  local);  c'est-à-dire,  il  fut  appelé  au 
monde  des  esprits  par  le  revenant  de  Petelu  assassine  — . 


absent(e)ísta,  absent(e)ísmo 

Neolojismo  empregado  por  Alberto  Sampaio  no  seu  trabalho, 
por  todos  os  títulos  notável.  As  «villas»  do  Noete  de  Portu- 
gal ^ :  —  «Só  mais  tarde,  tornando-se  absenteístas  [os  proprietá- 
rios], o  regime  cultural  tomou  caracter  differente» — . 

E  copiado  este  vocábulo  do  francês  absentéiste,  de  introdu- 


1  V.  M.  Theil,  DiCTiOKXAiRB  latix-français,  Paris,  1880. 

2  La  Ligue  Philafkicaine. 
*     ín  <  Portugália  >,  I,  p.  282. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


ção  recente,  formado  de  ahsentéisme,  que  é  derivado  do  inglês 
àbsenteism,  conforme  E.  Littré  '. 

Melhor  forma  fora  sem  diivida  absentista,  com  absorção  do  e 
de  ábsente,  «ausente»,  à  semelhança,  por  exemplo  de  dentista, 
que  se  não  profere,  nem  escreve  denteísta. 

A  Gazeta  das  Aldeias  usou  absenteísmo  —  «  cesse  o  absen- 
teísmo, que  o  proprietário.  . .  explore  directamente»  —  -. 

O    Novo    DlCCIONÁRIO    DA    LÍNGUA    PORTUGUESA    admitiu    UO 

Suplemento  o  termo  absenteismo,  dando-o  como  brasileiro. 

Melhor  seria  com  certeza  absentismo,  sem  aquele  e  a  dificul- 
tar a  pronunciação,  visto  que  de  protestante  dizemos  protestan- 
tismo, e  não  protestanteísr)%o. 


abside,  ábside 

Na  Revista  Lusitana  [vi,  p.  9õ]  mostrou  J.  Leite  de  Vas- 
concelos que  a  acentuação  usual  desta  palavra,  ábside,  é  errada. 
Teoricamente  tem  razão:  em  latim  o  i  de  absis,  absidis  deve 
ser  longo,  como  o  era  em  grego  o  de  apsís,  apsídos,  «ligação  »í 
do  qual  os  romanos  o  tomaram.  O  facto,  porém,  é  que  quási 
todos,  se  não  todos,  os  lecsicógrafos  portugueses  acentuam  ábside, 
naturalmente  para  se  conformarem  com  o  uso  dos  arquitectos,  e 
esta  acentuação  é  commum  ao  castelhano  e  ao  toscano.  No  úl- 
timo livro,  que  trate  de  arquitectura,  escrito  em  português  acen- 
tua-se  graficamente  ábside,  contra  o  sistema  ortográfico  do  autor, 
que  raras  vezes  marca  acentuação  ^,  do  que  se  depreende  insistir 
êle  em  que  deva  ser  assim  acentuado.  Conquanto  em  questões  de 
linguajem  não  tenhamos  por  dever  seguir  caprichos  ou  particu- 
larismos de  quem  não  tenha  a  competência  especial  nessas  ques- 
tões, não  devemos,  contudo,  dispensar  absolutamente  o  seu  voto. 


^      DiCTIONNAIRE  DE  LA  LANGUE  FRAXÇAISE. 

2     de  9  de  julho  de  1905. 

'    Augusto  Fuschini,  A  Architbgtuka  religiosa  da  buade  media, 
Lisboa,  1904,  passí/n. 


ApodílaH  aos  Dicionários  Portugueses 


acabador 

O    Novo    DiCCIONÁRIO    DA    LÍNGUA    PORTUGUESA    incllli    êste 

vocábulo,  dando-lhe  como  definição — «o  que  acaba». 

É  iusuficiente  esta  defiuição  (que  aliás  era  bem  escusada  por 
ser  intuitiva)  para  o  sentido  em  que  êste  substantivo  é  tomado, 
e  que  parece  trivial,  comquanto  técnico,  no  anúncio  n.°  321  B, 
publicado  no  jornal  O  Século,  de  19  de  abril  de  1901  —  «Aca- 
bador. Com  as  melhores  referencias  [aliás,  abonações,  informa- 
ções] de  trabalho . . .  admitte-se  na  fabrica  de  lanifícios  »  — • . 

Pelo  teor  do  anúncio  vê-se  que  é  um  « operário  a  quem  se  in- 
cumbe o  acabamento,  ou  última  mão  em  uma  peça  de  tecido 
de  lã». 

acarrejar 

Em  Caminha  tem  o  sentido  especial  de  «fazer  fretes».  Vem 
já  consignado  em  dicionários  como  equivalendo  a  carrejar. 

acarretador  (Algarve) 

O  emprego  particular  que  na  província  mais  meridional  do 
continente  português  adquiriu  esta  palavra  deduz-se  claramente 
da  seguinte  defínição,  dada  por  J.  Núnez  no  seu  estudo  Costu- 
mes ALGARVIOS  ^ :  — « Tem  o  nome  de  acarretador  o  indivíduo 
que  anda  recolhendo  o  trigo  para  o  moinho,  para  cuja  conducção 
se  serve  d"uma  muar  ou  d'um  carro  onde  transporta  os  saccos » — . 

Acém 

Este  termo  de  carniçaria,  ou  açougue,  é  usualmente  escrito 
assem,  escrita  com  certeza  incorrecta,  conquanto  seja  a  adoptada 
por   Bluteau   no   Vocabulário  portuguez-latino,   e  repetida 


^    in  Portugália,  i,  p.  388. 


10  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


ainda  no  Suplemento,  acompanhada  porém  da  que  tenho  por 
preferível. 

O  termo,  como  qnási  todos  os  que  pertencem  aos  ofícios  de 
magarefe,  esfolador,  etc,  deve  ser  de  orijem  arábica,  e  aos  ss 
arábicos  correspondeu  sempre  ç  em  português. 

O  arabista  José  Benoliel  sujere-me  como  étimo,  entre  outros 
menos  prováveis,  osn,  «gordura»,  que  na  realidade  vem  incluído 
por  Belot  no  Vocabulário  árabe-francês  ^  com  a  significação  de 
«graisse»,  e  no  Dicionário  árabe-francês  de  Cherbonneau  -,  com 
as  de  « graisse,  embonpoint » . 

A  definição  do  termo  português  é,  conforme  o  Diccionario 
Contemporâneo  :  —  « parte  do  lombo  da  vacca,  ou  do  boi,  entre 
a  pá  e  a  extremidade  do  cachaço» — . 

Veja-se  febra. 

acenha,  azenha 

Os  dicionários  consignam  em  geral  ambas  as  formas,  dando 
quási  sempre  a  preferência  à  segunda,  que  é,  a  bem  dizer,  a 
única  literária  modernamente.  O  povo  emprega  comummente 
a  primeira,  e  em  escrito  recente,  J.  Núnez  ^,  referindo-se  ao 
Algarve  cita  as  duas:  —  «mas  ha  também  os  (moinhos)  chama- 
dos de  rodízio  e  as  azenhas  ou  acenhas» — ,  Vê-se  que  a  forma 
com  c  é  a  local,  e  está  mais  conforme  com  o  seu  étimo  arábico. 

Os  lecsicógrafos  que  teem  tratado  dos  termos  árabes  que 
passaram  às  línguas  hispânicas,  a  começar  em  João  de  Sousa  *, 
deram  há  muito  a  etimolojia  deste  vocábulo,  AL-saNiE,  e  este 
arabista  aponta  como  mais  correcta  a  forma  assania,  no  foral 
dado  por  D.  Afonso  Henríquez  à  cidade  de  Coimbra,  mas  escreve 


1  VoCABULAiRB  ARABE-FRANÇAis,  Beirute,  1S93,  p.  692,  col.  I. 

2  DiCTIONNAIRE  ARABE-FRANÇAI8,  Paris,  1876,  II,  p.  716,  col.  11. 

^  Costumes  algarvios,  in  <  Portugália  >,  i,  p.  388. 

<  Vestígios  da  lingoa  arábica  em  Portugal,  Lisboa,  1830. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  11 

azenha.  No  Glossário  de  Engelmann  e  Dozy  *,  citam-se,  a  par  da 
castelhana  acena,  as  formas  portuguesas  azena,  azenia,  asenha, 
todas  duvidosas,  e  o  assania  citado,  dando-se  como  étimo  al-sa- 
NiE,  com  A  longo,  e  acusando-se  a  pronúncia  deste  como  e, 
que  é  peculiar  da  Península  Hispânica.  Eguílaz  y  Yanguas,  no 
seu  Glossário,  ^  precioso  nomeadamente  pelas  muitas  abonações 
fidedignas  que  o  ilustram,  aponta  mais  a  forma  castelhana  açen- 
na,  que  confirma  a  preferência  que  se  deve  dar  ao  c,  com  pre- 
juízo do  z,  e  as  catalãs  céyiia,  sinia,  malhorquina  cínia,  valen- 
cianas sénia,  sinia,  galega  acéa,  confirmando,  porque  a  adopta, 
a  forma  arábica  com  a  longo,  valendo  na  Península  por  e. 

No  Kiba-Tejo  é  também  acenha,  pronunciado  acênha,  com  e 
fechado,  e  não  com  a  surdo  como  em  Lisboa,  a  forma  popular, 
que  devera  ser  preferida  por  mais  correcta;  sendo  presumível 
que  a  errónea  ortografia  com  s,  asenha,  concorresse  para  a  falsa 
pronúncia  e  escrita  azenha,  que  literariamente  se  difundiu,  con- 
siderando-se  hoje,  em  geral,  como  defeituosa  a  pronunciação  e 
escrita  com  c,  única  popular  e  fiel  ao  étimo. 


Achada,  chada 

Esta  palavra,  que  nada  tem  que  ver  com  o  verbo  achar,  de 
problemática  orijem,  pois  é  simplesmente  derivada  do  radical 
planum,  }  applanata,  já  recentemente  entrou  nos  nossos  di- 
cionários, com  o  significado  de  «chã,  chapada,  planície  elevada, 
pequena».  O  dr.  Gonçálvez  Guimarães  ^  adoptou-a,  para  subs- 
tituir o  termo  moderno  e  de  duvidosa  propriedade  planalto, 
com  que  se  procurou  arremedar  o  francês  plateaa,  que  João 


•      GlOSSAIRE    DE8    MOTS    ESPAGXOLH    ET    PORTUGAIS    DÉRIVÉ3    DE 

l'arabe,  Leida,  1869. 

2  GlOSARIO   de   LAS   P  AL  ABRAS   ESP  ANGLAS   DE  ORIGEN  ORIENTAL, 

Granada,  1836,  sub  v.  acena. 

3  Elementos  de  Geologia,  Coimbra,  1897. 


12  :4^     Ajwstilas  aos  Dicionários  Portugueses 

Eélix  Pereira  dilijenciou  acomodar  a  português  com  a  forma 
plató,  a  qual  vingou  por  algum  tempo,  mas  hoje,  e  ainda  bem, 
está  quási  desterrada.  Almeida  d'Eça  usa  também  o  termo  achada 
na  sua  Choeographia. 

O  passo  em  que  o  erudito  professor,  a  quem  acima  me  referi, 
emprega  os  dois  termos  reza  assim :  — « e  finalmente  as  adiadas 
ou  planaltos  de  Moncorvo » — . 

E  precioso  aquele  livro  pela  propriedade  de  linguajem,  toda 
portuguesa  de  lei,  e  muito  bem  explicada,  no  que  se  refere  a  ter- 
minolojia. 

O  vocábulo  achada  figura  na  toponímia,  como  se  pode  ver 
no  DiccioNABio  Choeogeaphioo  de  João  Maria  Baptista  S  e  é 
a  denominação  de  um  largo,  e  de  uma  rua  de  Lisboa,  que,  res- 
pectivamente, vêem  apontadas,  com  os  números  1  e  2,  no  qua- 
drado (JS  da  Planta  de  Lisboa,  publicada  em  1880  em  portu- 
guês, francês  e  inglês.  São  essas  denominações  largo  da  Achada, 
rua  da  Achada,  e  ficam  para  os  lados  do  Castelo  de  S.  Jorje. 

Conquanto,  que  eu  saiba,  o  verbo  achar  não  seja  empregado 
actualmente  em  parte  alguma  do  território  português  no  sentido 
correspondente  ao  castelhano  allanar  |  applanare,  no  copioso 
Glossário  do  dr.  A.  A.  Cortesão  ^  encontramos  o  particípio  passivo 
achãado,  de  um  verbo  achãar,  da  mesma  orijem,  abonado  com 
o  seguinte  exemplo: — «De  guisa  que  em  breve  foi  todo  achãado 
[Azurara,  Crónica  do  Conde  Dom  Pedro]»  — . 

Em  Mértola  diz-se  chada  \  planata,  e  é  possível  que  seja 
esta  a  forma  primitiva,  a  que  se  soldasse  o  artigo  femenino,  como 
em  arrã,  arraia. 

Sobre  achada  com  outra  significação,  veja-se  achar. 


1  VI  volume  da  Chorographia  moderna  do  reino  de  Portugal, 
p.  o,  col.  I.  Lisboa,  1878. 

2  Subsídios  para  um  Diccionário  completo  (históricÒ-etymo- 
LÓGico)  DA  LÍNGUA  PORTUGUESA,  Coimbra,  1903. 


Apostilas  aos  Dicionános  Portugueses  13 


achaque 

Ao  exemplo  de  achaqice  na  acepção  de  «pretexto»,  aduzido 
no  DicciONAEio  CoNTEiíPOBÁXEO,  pode  acrescentar-se  o  seguinte 
passo  das  Batalhas  da  Companhia  de  Jesus  na  pjboviníiia 
DO  Japão  ^  do  Padre  António  Francisco  Cardim:  —  «foi  inti- 
mada nova  sentença  de  desterro,  tomando  por  achaque  um  incên- 
dio que  na  sua  corte . . .  sucedera »  — . 

Sobre  a  etimolojia  deste  vocábulo,  que  desde  Marina  e  João 
de  Sousa  ^  se  afirma  ser  árabe,  com  o  que  concordaram  Dozy-e 
Engelmann  ^,  e  Eguílaz  y  Yanguas  *,  veja-se  o  que  diz  Kõrtiug  ^ 
citando  Canello,  que  lhe  atribui  orijem  germânica. 

Com  efeito  o  eh  com  que  sempre  se  escreveu  esta  palavra, 
tanto  em  português  como  em  castelhano,  é  incompatível  com  o 
étimo  arábico  a  que  o  subordinam  e  que  tem  por  primeira  con- 
soante X  ((ji). 

achar;  achar  (substantivo) 

A  etimolojia  deste  verbo,  que  maiores  probabilidades  oferece 
é,  sem  dúvida,  o  latim  afflare,  que  entre  outras  acepções  incom- 
patíveis, tem  a  de  «bafejar»,  que  também  pouco  se  coaduna  com 
as  muitas  que  êle  apresenta  na  nossa  língua.  Pelo  sentido,  pois, 
deveríamos  repelir  este  étimo,  e  é  isso  o  que  F.  Adolfo  Coelho  e 
Cândido  de  Figueiredo  fizeram  nos  seus  dicionários,  não  obstante 
a  coincidência  de  se  encontrarem  em  outros  dialectos  românicos 


1  Lisboa,  1894,  p.  181. 

2  Vestígios  da  lingoa  arábica  em  Portugal,  Lisboa,  1830. 

^  Gloss.\ire  DBS  mots  espagxols  et  portugais  derives  de 
l'arabe,  Leida,  1869. 

<  Glosario  de  las  palabras  ESP  anglas  de  origex  oribxtal, 
Granada,  188G. 

»  Lateinisch-romanischbs  WÒRTERB0CH,  Paderborn,  1891,  i».  71, 
col.  II. 


14  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


várias  formas  a  esta  correspondentes,  por  exemplo  o  romeno  aflá  ', 
e  com  o  mesmo  significado. 

Todos,  porém,  teem  confessado  que  o  étimo  é  tentador,  e 
que  pela  sua  constituição  formal  lhe  corresponde  perfeitamente: 
cf.  chama  \  fiamma,  cheirar  |  flagrare. 

Vejamos,  porém,  se,  mesmo  foneticamente,  o  vocábulo  pode 
subordinar-se  a  esse  étimo.  O  correspondente  verbo  em  castelhano 
moderno  é  hallar,  pronunciado  alhar  (cf.  llama  j  flamma),  e 
portanto  poderíamos  supor  que  aquele  h  seja  etimolójicamente 
erróneo,  como  o  é  o  de  heyichir  \  implere,  «encher».  Todavia, 
em  muitos  vocábulos  o  h  é  ainda  proferido  em  vários  dialectos, 
tais  os  andaluzes  e  os  estremenhos,  e  era-o  dantes  quando  tinha 
sido  precedido  de  formas  em  que  anteriormente  figurava  o  /. 

Ora  este  verbo  hallar  tinha  antigamente  a  forma  fallar,  o 
que  torna  inadmissível  que  procedesse  de  afflare;  pois,  ainda 
que  admitíssemos  a  pouco  provável  inserção  de  uma  vogal  anap- 
tíctica  a  desunir  o  grupo  de  consoantes  ffi,  do  que  resultaria 
uma  forma  hipotética  affalare,  necessária  para  explicar  o  í?  da 
primeira  sílaba,  deixaria  de  existir  o  dito  grupo,  a  que  em  cas- 
telhano corresponde  11  {l  palatino)  e  em  português  eh  (flam- 
ma j  llama,  chama). 

Vê-se,  portanto,  que  o  étimo  proposto  carece  de  explicação 
satisfatória,  mesmo  foneticamente,  e  que  o  verdadeiro  está  ainda 
tam  lonje  de  ser  averiguado,  como  o  do  verbo  correspondente  em 
outras  línguas  românicas,  trovare  italiano,  trouver  francês,  acerca 
do  qual  tanto  se  tem  escrito. 

De  achar  provém  o  particípio  achado  e  achada.  Estes  par- 
ticípios  substantivados  diverjem  de  significado:  o  masculino 
achado  quere  dizer  « aquillo  que  se  acha » ;  o  femenino  achada 
significava  dantes — «Coimas  ou  penas,  que  se  levão  aos  que  fa- 
zem algum  furto,  roubo,   ou  detrimento  nos  lugares,  frutos  e 


i  Hunfalvy  derivou  aflá  do  grego  alp'axõ  :  Du  peuplb  roumain  ou 
VALAQUE,  46"  Congrès  de  la  Société  d'archéologie  française  (1879),  «Com- 
pte-rendu>. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  15 


terras  que  estão  coutadas,  ou  são  alheias;  quando  os  Autliores 
são  achados,  ou  descubertos  na  execução  deste  crime»  — '. 

Isto  diz  Santa  Kosa  de  Viterbo,  abonando-se  com  as  Obde- 
XAçõEs.  O  vocábulo  porém  ainda  é  usado  em  Trás-os-Montes  no 
sentido  de  «multas»,  como  sou  informado  por  indÍAÍduo  de  Miran- 
dela, e  este  facto  não  está  acusado  em  nenhum  dicionário,  que 
eu  saiba. 

Pôr  uma  achada  corresponde  lá  actualmente  ao  que  em 
Lisboa  se  diz  vulgarmente  pregar  uma  condenação,  isto  é,  « im- 
por uma  multa». 

Achar,  substantivo,  como  nome  de  imia  conserva  de  frutos, 
hortaliças  em  azeite  e  vinagre  com  outros  adubos,  é  o  persiano 
ACAE  (=  achar),  que  pelo  malaio  passou  às  línguas  europeias  -. 
Garcia  da  Orta  descreve-o  ^. 


acinzeirado  (encinzeirado) 

Este  vocábulo  é  um  neolojismo  que  não  está  incluído  em 
nenhum  dicionário  da  língua,  mesmo  no  mais  copioso  deles,  o 
Xôvo  DicciONÁBio  de  Cândido  de  Figueiredo.  Digo  ser  neolo- 
jismo, individual  talvez,  porque  outro  da  mesma  signiíicação  e 
constituição  aprossimada  encinzeirado,  suposto  não  ligure  tam- 
bém nos  dicionários,  é  todavia  muito  usado  pelo  povo,  pelo  menos 
de  Lisboa.  Eis  aqui  a  abonação: —  «Havia  desaparecido  o  nevoeiro 
e  o  dia  apresentava-se  esplendido,  cheio  de  sol,  vendo-se  apenas 
no  horisoute  [sic],  sobre  as  aguas,  o  acinzeirado  que  produz  o 
norte  forte»  — *. 


1  Elucidário  de  termos,  frases,  etc,  que  antiguamente  se 
USARÃO,  Lisboa. 

2  Mareei  Devic,  Dictioxnaire  étymologique  des  mots  d'origixb 
ORiENTALE,  Paris,  1876. 

J    Colóquios  dos  Simples  e  drogas  da  Ixdia,  i.  Lisboa,  1891,  p.  185. 
4     O  Século,  de  6  de  dezembro  de  1900. 


1'3  Apostilas  aos  Dicionánog  Portugueses 


Açougue 

Quando  a  anarquia  e  a  guerra  civil  começaram  a  desenca- 
dear-se  no  império  de  Marrocos,  nos  periódicos  e  revistas  estrau- 
jeiras  apareceram  frequentes  descrições  dos  domínios  do  xarife, 
que  eram  avidamente  traduzidas  nos  jornais  portugueses,  com 
maior  ou  menor  vernaculidade. 

Liam-se  então,  reproduzidas  com  todas  as  letras  com  que  os 
estranjeiros  as  figuravam,  muitas  palavras  e  denominações  arábi- 
cas, e  entre  elas  me  lejubro  de  ter  visto  solik,  como  designação 
de  «  mercado  » . 

A  nenhum  dos  indivíduos  que  para  português  vertiam  essas 
interessantes  notícias  ocorreu  que  este  vocábulo  já  existia  cá  há 
um  milénio,  com  forma  portuguesa,  açougue,  a  qual,  se  no  uso 
corrente  de  hoje  apenas  significa  a  loja  onde  se  vende  a  carne, 
principalmente  a  de  reses  bovinas  e  ovinas,  em  tempos  anterio- 
res servia  para  denominar  um  mercado  qualquer.  Ao  sentido 
especial  e  restrito  que  a  palavra  adquiriu  se  refere  sem  dúvida 
um  articulista,  que,  pela  maneira  por  que  se  expressa,  parecia 
não  ignorar  que  tivera  outros  sentidos :  —  «A  accepção  que  vul- 
garmente se  dá  á  palavra  açougue  logo  nos  evoca,  com  arrepios 
e  náuseas,  os  logares  de  venda  de  carnes»  — '. 

O  Glossário  de  Bugelmann  e  Dozy  -,  a  pájinas  228,  subordi- 
nado à  inscrição  afogue,  castelhano,  azougue,  português,  e  por- 
tanto fora  do  seu  lugar,  porque  o  étimo  desta  é  diferente 
[al-zauqeJ,  diz-nos: — «  Dans  la  signification  de  marche  (dimi- 
nutif  azoguejo),  c'est  un  autre  mot  árabe,  à  savoir  as-souc,  ou 
as-sôc  [al-suq]  qui  a  le  même  sens  »  — . 

p]  em  seguida  mais  este  trecho,  que  é  de  Doz}-:  —  «Dans  le 
Fuero  de  Madrid .  . .   azoche.  En  portugais  açougue  (ancieune- 


>     O  Século,  de  20  de  março  de  1902. 

2    Glossairb   des  mots  bspagkols  et  portugais  déhivês  mo 
i/auabe,  Leidii,  1869. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  17 


ment  arougai),  qui  signifiait  aiitrefois  marche  en  géuéral,  mais 
qui  plus  tard  désignait  spécialement:  le  marche  oíi  Ton  veiidait 
de  la  viande,  la  boucherie.  De  ce  mot  vieut  le  terme  açougayem 
siir  leqiiel  on  pent  consiúter  S.*^  Kosa  » — . 

Como  não  é  o  vocábulo  nrougajem,  o  qual,  conforme  o  aba- 
lisado  autor  do  pjlucidário  S  significava  um  tributo  imposto  aos 
vendedores,  mas  sim  a  palavra  açougue  o  que  por  agora  nos  in- 
teressa, se  recorrermos  ao  precioso  repositório,  que  Dozy  tanto 
encarece,  (éminent  savant  iwrtugais,  lhe  chama),  o  que,  seja 
dito,  não  era  seu  costume,  achamos  lá  esta  informação :  — 
<  AçouGui.  Assim  se  chamarão  os  lugares,  onde  antigamente 
se  vendião.  e  compra  vão  todas,  e  quaesquer  mercadorias» — . 

O  Suplemento  ao  Novo  Diccionário  de  Cândido  de  Figuei- 
redo consigna  esta  acepção  lata  do  vocábulo  por  um  modo  mais 
'4-enérico,  pois  o  define,  com  a  cota  de  antigo: — «arruamento 
de  mercadores»,  o  que  me  parece  temerário,  pois  lhe  falta  abo- 
uação. 

Em  todo  o  caso,  é  de  aplaudir  a  inserção  do  sentido  mais 
lato  do  vocábulo,  visto  como  nem  ainda  no  primeiro,  e  até  agora 
único,  volume  d:)  Dicionário  da  Academia  -,  para  o  seu  tempo 
monumental,  se  faz  menção  deste  significado. 

Dispenso-me  de  citar,  ainda  que  interessantes,  as  considera- 
ções apresentadas  por  Eguílaz  y  Yanguas  sobre  esta  palavra,  por 
se  basearem  em  que  desconheceu  as  acepções  que  ela  tinha  anti- 
gamente em  Portugal,  muito  mais  latas,  que  as  que  lhe  atribui 
de  —  «carnicería,  que  es  la  que  tiene  la  voz  portuguesa» — ^. 

A  conclusão,  pois,  é  que  açougue  designou  mercado,  princi- 
palmente de  comestíveis,  e  que,  portanto,  é  escusado  empregar- 


1  Fr.  Joaquim  de  S.inta  Rosa  de  Viterbo,  Elucidário  das  palavras, 

TERMOS   E   FRASES,  QUE   EM  PORTUGAL  AXTIGUAMBNTE  SB  USARÃO,  etc, 

Lisboa,  179S. 

2  DlCCIOXA^IO  DA  LINGOA  PORTUG^UBZA,  Lisboa,  1793. 

^      GlGSARIO   DE   tiAS  PALABRA9   ESPAN0L.\S   DE  ORIOEN  ORIENTAL, 

■Granada,  188G. 


18  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


inos,  com  letras  grifas,  o  termo  sokk,  malíssimamente  ortografado, 
quando  quisermos  designar  tais  mercados  nos  países  barbarescos ; 
e  isto  com  tanto  mais  razão,  quanto  é  sabido  que,  no  sentido 
restrito  de  mercado,  loja,  onde  se  vendem  carnes,  a  denominação 
mais  usual  hoje  é  talho.  Já  o  mesmo  jornal,  O  Século  *,  disse: 
— « Mas  a  realidade  é  que  não  temos  senão  açougues,  e  precisa- 
mos de  ter  talhos». 
Assim  seja! 

acudia,  acudia 

No  Novo  DicciONÁEio  admitiu-se  este  vocábulo,  precedido 
do  asterisco  a  indicar  que  a  sua  inserção  em  dicionários  portu- 
gueses é  feita  pela  primeira  vez.  Não  é  exacta  a  afirmação,  por- 
que já  J.  Inácio  Koquete  no  Dictionnaiee  poktugais-fbançais  - 
infelizmente  o  incluíra  com  a  seguinte  definição:  — « -j-  acudia, 
acudie,  iusecte  lumiueux  de  TAmérique  méridionale»  — .  O  sinal 
que  precede  o  vocábulo  indica  também  a  sua  primeira  inserção. 
Que  ânsia  de  novidade! 

A  definição  dada  pelo  lecsicógrafo  português  suprimiu  o 
meridional,  pois  nos  diz  tam  somente.  —  «acudia,  insecto  lu- 
minoso, da  America» — .  Deu-lhe  pois  muito  mais  dilatada  vi- 
venda. Feliz  bicho! 

Rufino  José  C  nervo  na  li  o  mania  ^  deu-nos  a  história  deste 
curioso  termo,  que  até  época  muito  recente  figurava  em  todos  os 
dicionários  franceses,  onde  os  dois  lecsicógrafos  portugueses  o 
foram  buscar,  em  má  hora,  sem  indagarem  se  algum  escritor 
nacional  o  havia  empregado,  sem  o  quê,  fosse  êle  francês,  que 
não  é,  nenhum  direito  havia  de  o  rejistar. 

Eis  o  resimio  do  interessante  artigo  de  Cuervo. 

No  primeiro  e  único  volume  do  Dicionário  da  Academia  Es- 


1  de  20  de  março  de  1902,  citado  antes. 

2  Paris,  1855. 

3  Vol.  XXIX  (1900),  p.  574  e  ss. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  19 


panhola,  reimpresso  em  1770,  vem  uma  advertência,  em  que  se 
ponderou  o  erro  cometido  por  Trévoux,  no  seu  dicionário  e  na  En- 
ciclopédia, ao  incluir  o  vocábulo  acudia,  que  foi  tomado  como 
no}ue  por  De  la  Goste,  na  sua  infeliz  versão  *  da  História  das 
índias  de  António  de  Herrera.  O  texto  rezava  assim,  referindo-se 
a  certo  pirilampo  de  Cuba: — «tomábanle  de  noche  con  tizones, 
porque  acudia  á  la  lumbre,  y  Uamándole  por  su  nombre,  acudia, 
y  es  tan  torpe  que  en  cayendo  no  se  podia  levantar » — . 

O  texto  é  claríssimo,  pelo  menos  para  qualquer  espanhol  ou 
português.  De  la  Coste  traduziu-o  para  francês,  do  estupendo 
modo  que  se  vai  ver:  —  «L'on  prenait  ces  animaux  de  nuit  avec 
des  tisons  ardaus,  parce  qu'ils  venoieut  voltiger  autour  de  la  lu- 
mière;  leur  propre  nom  est  acudia» — . 

Este  acudia,  com  esta  forma,  ou  com  a  de  acudia,  e  também 
acudie,  ora  masculino,  ora  femenino,  foi  passando  de  uns  para 
outros  dicionários,  e  no  Universal  de  Boiste ,  -,  com  a  forma 
acudia,  era  assim  definido: — «insecte  volant  et  lumineux  des 
Indes  Occidentales » — . 

Littré  teve  o  bom  juízo  de  o  não  admitir,  cautela  que,  por 
fortuna,  já  tivera  o  dicionário  da  nossa  Academia,  cujo  primeiro 
volume,  único  publicado  em  1793,  é  um  bom  livro,  para  o  seu 
tempo. 

E  pois  necessário  proscrever  semelhante  vocábulo,  falsíssimo, 
de  todos  os  dicionários  portugueses  que  venham  a  publicar-se. 

Citarei,  a  título  de  curiosidade,  outro  disparate  de  versão, 
de  proveniência  igualmente  francesa.  M.  A.  Marrast  traduziu 
em  1866  o  notabilíssimo  estudo  de  Guilherme  de  Humboldt 
Prúfung  díb  TJnteesuchung  úbek  die  Urbewohxee  Spa- 
xiENs,  « Investigações  acerca  dos  primitivos  habitadores  da  Espa- 
nha», com  o  título  Recherches  sur  les  habitaxts  primitifs 

DE    l'EsPAGNE,     À    l'aIDE    DE    LA    LANGUE    BASQUE    ^,    traduÇãO 


1  1G59-1671. 

2  1803. 

5    Paris,  1866. 


20  Apostilas  nos  Dicionários  Portugueses 


bastante  correcta,  e  acompanhada  de  algumas  valiosas  notas. 
A  pájiuas  45  lemos  o  seguinte  extraordinário  trecho: — «Lism 
des  Jaccétans  (Ptol  ii,  6,  p.  48),  de  lizarra,  eu  dialecte  de  La- 
bourd  leizarra  cendre.  Cette  étymologie  pourrait  •  être  taxée 
d'arbitraire  si  Tlbérie  n'eút  renfermé  deux  localités  du  nom  de 
Fraxinus,  Tuue  en  Lusitauie  et  Fautre  chez  les  Bastetans » — . 

Eran  las  dos  y  sin  embargo  llovia! 

O  leitor  preguntará  espantado  e  perplecso  em  quê  o  liaver 
nas  Espanhas  duas  povoa-^-ões  com  o  n^ome  de  Freixo  (Fraxi- 
nus) concorre  para  se  admitir  como  provável  que  Lissa,  nome 
de  outra  povoação,  se  possa  identificar  com  um  vocábulo,  lizarra, 
cujo  significado  se  declara  ser  « cinza » ! 

A  explicação  é  esta.  Em  alemão  Esche  quere  dizer  «freixo», 
e  Ascíie,  « cinza » .  O  tradutor  tomou  Exche  por  Asche,  e  cometeu 
esta  inadvertência,  pouco  desculpável,  visto  que  o  disparate  lhe 
devia  ter  dado  nos  olhos,  e  porque  tinha  todos  os  meios  de  ave- 
riguar o  significado  próprio  do  vasconço  lizar,  (=Jirar),  decla- 
rando-se,  como  se  declara,  «Procureur  imperial  à  Oboron-Saiute- 
Marie  (Basses  Pyréuées)»,  isto  é,  em  terras  vascongadas.  Ora, 
lizar,  em  vasconço  corresponde  ao  Jraxinus  latino,  frêne,  e 
não,  cendre,  em  francês,  freixo  em  português. 


adega,  bodega,  botica;  botiqueiro,  botiquim 

Em  última  análise,  existe  como  étimo  extremo  destes  três 
vocábulos  diferentes  o  grego  t'êkê,  substantivo  derivado  da  base 
do  verbo  tít'êmi  *,  cujo  aoristo,  ou  pretérito  indeterminado,  é 
ét'êka,  e  a  significação  «pôr  no  seu  lugar».  O  substantivo 
t'ékê  quere  pois  dizer  «arrecadação».  Palavras  portuguesas,  de 
orijem  artificial,  em  que  o  étimo  grego  figura  menos  alterado 
são  hiijoteca,  e  o  muito  moderno  pinacoteca,  que  para  nós  veio 


^    W.  Pajie,  Gribchisch-deutschbs  Handwòrterbuch,  Brunsvi- 
que,  1880.  ■ 


Apostilas  nos  Dicionários  Portugueses  21 

do  francês  pimicothèque,  o  qual,  pela  sua  parte,  é  provavelmente 
mera  acomodação  do  alemão  pinakotliek-. 

O  5  romanos  receberam  dos  gregos  o  vocábulo  apotbeca 
(apot'eké),  com  o  siguiticado  de  « armazém  de  arrecadação, 
principalmente  de  mantimentos»  ^;  e  deste  se  derivaram  na  Pe- 
nínsula Hispânica,  ade.ja  e  hodega.  ambos  os  quais  querem  dizer 
«casa  de  arrecadação  de  vinhos  em  cubas»,  desaparecendo  no 
primeiro  a  sílaba  átona  po.  e  no  segundo  o  a  inicial.  O  último 
passou  depois  do  castelhano  ao  português  num  sentido  pejorativo, 
muito  bem  explicado  por  Bluteau,  pelas  seguintes  palavras: — 
«He  palavra  castelhana,  que  vai  o  mesmo,  que  Adega:  e  de 
Bodega  fizerão  os  Castelhanos  Bodegon.  que  vai  o  mesmo,  que^ 
lugar  subterrâneo  na  Adega,  aonde  quem  não  tem  quem  lhe  faça 
o  comer,  o  acha  as  mais  das  vezes  mal  guisado.  Por  isso  cha- 
mamos vulgarmente  à  Bodega:  O  mal  cozinhado.  Por  Bodega 
entendemos  huraa  taverna  a  modo  de  barraca,  ou  cabana,  que  se 
arma  commummente  no  campo  com  paos,  e  pannos,  em  ocasião 
de  feira,  ou  festa  popular,  ou  outro  concurso,  aonde  se  cozinha, 
e  vende  o  comer  ao  povo» — -. 

Botica  deriva  Bluteau.  com  razão,  do  francês  boutique — 
«que  é  o  nome  geral  de  todas  as  lojas,  em  que  estão  mercancias 
em  venda» — "^  e  na  realidade  assim  é,  e  era,  tanto  em  francês, 
como  em  português,  pois  ainda  hoje  chamamos  botica  do  chèché, 
a  uma  loja  de  miudezas  diversas,  expressão  que  provavelmente 
nos  proveio  de  Macau,  e  aí  quererá  dizer  o  mesmo,  e  na  qual  o 
epíteto  deve  corresponder  ao  chinês  chau-chau  *,  «conservas»,  ou 
a  outro  vocábulo  análogo. 

Em  italiano,  também  a  palavra  bottega  quere  dizer  «loja  de 
venda,  em  geral»,  e  o  próprio  deminutivo  botequim,  provavel- 
mente antes,  botiquim,  indica  que  o  termo  botica  se  não  limitava 
a  designar  «farmácia». 


'     M.  Theil,  DiCTioxNAiRE  LATiN-FRAXÇAis,  Paris,  18S9. 
2  e  '  Vocabulário  portuguez-latixo,  Cuimbra,  1712. 
*     Revista  Lusitana,  iv,  p.  97. 


22  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


A  forma  boittíque  francesa  não  tem  aspecto  de  ser  imediata- 
mente derivada  do  latim  apotlieca,  visto  que  tem  i  por  ê,  e 
que  excepcionalmente  por  ca,  em  vez  de  che:  cf.  cheval  \  cabal- 
lum,  vaclie  j  vacca. 

E.  Littré  ^  é  de  parecer  que  o  vocábulo  tivesse  vindo  de  Itália, 
atenta  a  queda  do  a  inicial,  o  que  nos  leva  a  crer  que  o  caste- 
lhano bodega  provenha  igualmente  de  hottega  toscano,  onde  tal 
supressão  é  frequente  (Cf.  hadessa,  por  abhatessa).  Esta  solução, 
porém,  ainda  não  explica  o  i,  a  que  não  encontro  outra  explica- 
ção senão  esta: 

O  vocábulo  passou  de  Itália  a  França  por  intermédio  de  uma 
forma  dialectal  que  fosse  botica,  ou  bottica,  em  vez  da  toscana 
bottega,  e  assim  se  explicaria  igualmente  o  português  botequim, 
visto  como  em  veneziano  se  diz  boteghin,  por  « lojinha » ;  e  pre- 
sumivelmente os  primeiros  botequins  pertenceram  a  italianos, 
assim  como  as  primeiras  perfumarias  e  as  primeiras  pastelarias. 
Essa  forma  bottica,  ou  botica,  cuja  existência  resta  averiguar  em 
qualquer  dialecto  italiano  em  contacto  com  a  população  grega, 
receber-se-ia  desta,  quando  já  certíssimamente  o  ê  havia  adquirido 
o  valor  de  i,  que  tem  no  grego  moderno,  e  já  tinha  no  medieval, 
de  modo  que  a  palavra  apot'Ekê,  fosse  pronunciada,  como  hoje 
em  dia  o  é  pelos  romaicos,  apo§iki  2. 

Bluteau,  no  Suplemento,  rejistando  o  substantivo  Butiqueiro 
diz: — «Em  Goa  e  outras  cidades  da  índia  Oriental,  Butiqueiro 
é  tendeiro,  porque  os  portuguezes  da  índia  chamam  Biitica  á 
loge,  ou  tenda.  Em  Goa,  Butiqueiros  vendem  toda  a  casta  de 
comestiveis,  e  também  mezinhas  [remédios],  tabaco,  etc.  (Que- 
rendo comprar  de  hum  China  Butiqueiro).  Fr.  Jacintho,  Vergel 
de  plantas  143»  — . 

O  próprio  vocábulo  tenda,  que  a  princípio  significava  «bar- 
raca», ao  depois   «loja»,  veio  por  fim  a  especializar-se  no  seu- 


1  DiCTIOXNAIRB  DE  LA  LANGUE  FRANÇAISE,  Paris,  18S1. 

2  O  sinal  §  iniica  a  pronúncia  do  th  inglês  de  tlmig,  pouco  mais  ou 
menos  o  c  castelhano  antes  de  e,  i. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  23 


tido,  já  hoje  quási  obsoleto,  de  «loja  onde  se  vendem  comestí- 
veis » ,  o  que  no  Porto  se  dizia  loja  de  peso,  e  em  Lisboa  mais 
modernamente  se  denominou  mercearia,  palavra  que  do  mesmo 
modo  variou  muito  de  sentido  com  o  tempo,  pois  antes  queria  di- 
zer «loja  de  capela»  ^  como  o  merceria  espanhol. 

Adema,  adémia 

Xo  Elucidário  de  Santa  Rosa  de  Viterbo  figura  este  vocábu- 
lo, com  remissão  a  admenas,  com  o  qual  o  douto  frade  o  identi- 
fica, um  tanto  hesitante. 

Pela  definição  que  dá  do  último,  isto  é, — «alemedas,  passeio^ 
rua  de  quaesquer  arvores  frondosas  e  copadas» — ,  confrontada  com 
a  que  atribui  a  adernas,  é  impossível  a  identificação,  pois  estas 
são  definidas  por  ele  próprio  nos  seguintes  termos — «Em  mui- 
tos documentos  que  fallão  no  Campo  da  Gollegã,  e  nas  ribeiras 
de  Torres,  Brescos,  e  outras  no  termo  de  Santiago  do  Cacem  no 
Século  XV,  e  xvi  se  chamão  Adernas :  as  terras  planas,  e  de 
veiga,  ou  seara,  e  mesmo  quaesquer  outras  reduzidas  a  cultura» — . 

Ora  aderna,  ou  adémia  já  eu  o  defini,  como  sendo  usado 
em  Coimbra,  por  informação  de  Guilherme  de  Vasconcelos  Abreu, 
que  o  empregou  na  Chand-Bibi  -:  —  «O  campo . .  .  é  adémea 
situada  entre  montanhas » — . 

Veja-se  em  adil. 

adiça,  adiceiro 

O  Novo  DicciONÁEio  3  de  Cândido  de  Figueiredo  traz  o 
termo  adira  « com  o  significado »  « mina  de  ouro » ,  capitulado 
de  antigo;  não  incluiu  porém  adiceiro,  que  o  próprio  autor  em- 
pregou depois  no  Diário  de  Xoticias  de  11  de  junho  de  1904. 


1  V.  Bluteau,  ib. 

2  Lisboa,  1893,  p.  15. 

3  Novo  DicciONÁRio  DA  LíKGUA  PORTUGUESA,  Lisboa,  1898-1900. 


24  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


ãdil 


p]sta  palavra,  já  apontada  uo  Suplemeuto  ao  Novo  Diccioná- 
Eio,  é  assim  definida  ali,  como  transmontana:  —  «o  mesmo  que 
poisio.  Diz-se  «um  adil»;  mas,  especialmente:  «estar  ou  ficar 
a  terra  de  adil  (Termo  de  Miranda)» — . 

Logo  após  este,  consignam-se  também  o  verbo  adilar  e  o  seu 
particípio  passivo  adílado.  Nenhum  dos  três  está,  porém,  abo- 
nado, por  não  entrarem  tais  abonações  no  plano  do  dicionário,  o 
que  é  de  sentir,  mormente  em  vocábulos  de  novo  colijidos. 
^  Para  o  primeiro  tenho  eu  notada  abonação,  de  escritor  trans- 
montano ^  e  é  a  seguinte: — «vê  a  luz,  vagando  inquieta  e  solu- 
çante, da  alma  penada  de  Santa  Cruz,  que  percorre . . .  milhões 
de  vezes  aquelle  urzedo,  esteval  e  adil,  da  fralda  á  cumiada» — . 

Se  bem  que  o  termo  é  referido  ás  terras  de  Miranda  no 
Novo  DiccioNÁRio,  não  se  encontra  êle  no  Vocabulário  etimoló- 
jico,  que  forma  de  páj.  145  a  225  a  Parte  v  do  volume  ii  dos 
EsTUDOB  DE  Philologia  Mieandesa  de  J.  Leite  de  Vascon- 
celos; e,  atento  o  escrúpulo  e  minuciosidade  com  que  o  seu  autor 
compôs  esta  notabílissima  obra,  é  de  supor  que  o  termo  não  seja 
propriamente  mirandês,  mas  geral  transmontano,  e  como  tal  o 
inclui  eu  no  vocabulário  de  Kio-Frio  que  publiquei  no  primeiro 
volume  da  Revista  Lusitana  -,  (p.  203),  onde  o  defini,  «terra 
de  pousio»,  acrescentando: — Cf.  adémia,  aderna,  «terra  no  sopé 
de  monte»,  ou,  «entre  monte  e  rio,  susceptível  de  qualquer 
lavoura » — . 

Este  último,  com  a  forma  única  aderna,  vem  apontado  no 
Novo  DiccioNÁRio,  mas  capitulado  de  antigo. 

Veja-se  este  vocábulo. 


1  M.  Ferreira  Deusdado,  O  Kecolhimbnto  da  Mófreita,  in  <Revista 
de  educação  e  ensino>,  1891,  e  também  tirado  em  separado,  simultaneamente. 

2  Materiais  para  o  estudo  dos  dialectos  portugueses,  Falar 
de  Rio-Frio. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


acUia 


Este  vocábulo,  que  se  pronuncia  aãáa,  é  dado  como  antigo, 
pelo  DiccioNARio  Contemporâneo  com  a  significação  de  «reba- 
nho», e  pelo  Novo  Diccionário,  como  alentejano,  querendo  dizer 
«matilha  de  cães».  Ambos  lhe  atribuem  como  étimo  um  ad-duUa, 
arábico;  o  segundo,  porém,  com  um  ponto  de  interrogação,  e  com 
razão,  visto  que,  a  estar  bem  escrito  o  vocábulo  arábico,  o  /  não 
haveria  desaparecido,  por. estar  duplicado. 

Xos  meus  apontamentos  tenho  esta  palavra  como  usada  em 
Castelo-Branco  com  a  segninte  significação:  «chão  público  onde 
pastam  porcos,  cujo  porqueiro  é  pago  em  comum».  Infelizmente 
não  está  abonada  esta  definição,,  que  provavelmente  foi  dada  de 
viva  voz  não  sei  já  por  quem. 

Ainda  no  Novo  Dicc,  e  em  seguida  a  adua.  lemos  aduada, 
como  termo  beirão,  definido  desta  maneira — «manada  (de  por- 
cos) » — .  E  evidente  derivado  da  adua.  que  é  diferente  de  outro 
adua.  anúd uva,  anúdiva.  incluído  em  ambos  os  dicionários  in- 
dicados,  com  a  significação  de  uma  espécie  de  imposto,  e  sobre 
o  qual  se  podem  consultar  com  muito  proveito,  além  de  Bluteau, 
no  Suplemento,  o  Elucidário  de  Santa  Kosa  de  Viterbo,  e  princi- 
palmente o  Glossário  de  Dozy  e  Eugelmann,  bem  como  o  de  Eguí- 
laz  y  Yanguas,  anteriormente  citados,  e  cujo  étimo,  também  ará- 
bico, é  diferente  (nudbe),  e  difícil  de  se  acomodar  com  a  forma 
(Ldua. 

No  Suplemento  ao  Novo  Digo.  dão-se  mais  os  seguintes 
subsídios  para  o  entendimento  do  significado  de  adua,  «reba- 
nho»:—  «local  onde  os  porcos,  pertencentes  a  diversos  habitan- 
tes da  mesma  povoação,  permanecem  durante  o  dia.  Colhido  no 
Fundão  »  — .  Este  esclarecimento  aprossima-se  bastante  da  minha 
informação  acima  referida. 

Disse  que  adduJla  não  pode  ser  a  escrita  certa  do  vocábulo 
arábico  que  se  dá  como  étimo;  na  realidade,  João  de  Sousa  ', 


•     Vestígios  da  lixgoa  arábica  em  Portugal,  Lisboa,  1830. 


Aj)ostiIns  nos  Dicionários  Portugueses 


011  antes  Frei  José  de  Santo  António  Moura,  que  reviu  e  aumen- 
tou a  2.*  edição,  que  cito  sempre  por  já  não  ter  a  primeira, 
transcreve  o  vocábulo  com  um  só  /,  Adchãa  (al-dule),  e  dá 
uma  excelente  definição,  que  tudo  congraça,  e  é  pena  não  haver 
sido  aproveitada: — «  Rebanho  de  bois  e  bestas  de  qualquer  Villa 
ou  Cidade,  que  sahe  a  pastar,  pastoreado  por  hum  ou  mais  indi- 
viduos  aos  quaes  hum  dos  donos  paga  mensalmente  um  tanto  por 
cabeça»  — . 

Bluteau  ^  diz  ser  palavra  alentejana,  significando  «matilha», 
como  tenno  de  caçador, 

O  termo  adiia  está  empregado  no  seguinte  documento  oficial: 
— « Art.  I.  Associações  de  proprietários  ou  hereos  das  levadas  da 
Ilha  da  Madeira,  ou  de  qualquer  outra  região  onde  haja  o  mesmo 
regimen  de  aguas,  ou  das  aditas  são  reconhecidas  como  asso- 
ciações legaes  para  todos  os  actos  jurídicos,  especialmente  para 
por  meio  dos  seus  juizes,  direcções  ou  commissões  directoras, 
quando  devidamente  auctorizadas  pela  assembléa  dos  consortes, 
ou  como  proprietários  adquirir,  por  qualquer  titulo  legitimo,  os 
bens  immobiliarios  precisos,  com  destino  á  conservação,  accres- 
centamento  ou  melhor  aproveitamento  dos  mananciaes  de  agua 
dessas  levadas »  — -. 

Tanto  as  águas,  como  as  aduas,  são  bens  comuns. 


adufe 


Vem  incluído  no  Dicc.  Contemporâneo  e  muito  bem  defi- 
nido, sem  abonação  porém  antiga,  ou  moderna,  visto  que  o  ins- 
trumento ainda  é  usado,  em  Pjvora,  por  exemplo,  onde  o  ouvi 
tocar  na  noute  de  Santo  António,  há  uns  cinco  anos. 

Como  abonação  pode  servir  a  seguinte: — «Ouviam-se  já  des- 


^     Vocabulário  portuguez-latin-o,  Lisboa,  1712. 
2    Cauta  de  lei  de  20  de  julho  de  18S8. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugnescs  27 

cantes  pelas  ruas  [de  Lisboa],  pandeiretas  e  adnfes  para  as  bandas 
do  Rocio» — *. 

Abonações  clássicas  podem  ver-se  no  volume  único  do  Dicio- 
nário da  Academia,  no  qual  é  dado  erradamente  o  étimo  arábico, 
que  os  mais  lecsicógrafos  teem  copiado,  quando  podiam  vê-lo 
certo  em  João  de  Sousa  ^  adãofe  (ou  aãdufe),  isto  é.  al-duf,  e 
não  aãdafo,  que  no  Dic.  da  Academia  é  erro  tipográfico,  ou  lapso. 

afagar,  fagueiro 

Vários  étimos  teem  sido  propostos  para  este  vocábulo,  par- 
tindo todos  os  nossos  lecsicógrafos  da  acepção  « acariciar » ,  que 
desde  Bluteau  lhe  é  dada,  ou  exclusivamente,  ou  como  a  primá- 
ria, e  nenhum  deles  se  deu  ao  incómodo  de  averiguar  se  tais 
étimos  se  compadeciam  com  as  correspondentes  formas  em  outras 
línguas  românicas,  halagav,  castelhana,  antiga  /alagar,  catalã 
a/alegar. 

O  Contemporâneo  absteve-se  de  aventar  um  despropósito 
qualquer,  como  houvera  sido  prudente  que  o  fizesse  com  tantos 
outros  vocábulos.  F.  Adolfo  Coelho  ^  fez  avisadamente  apenas  a 
comparação  com  as  formas  castelhanas,  antiga  e  moderna.  Cân- 
dido de  Figueiredo  *  deu  mais  um  passo  identificando  o  vocábulo 
afagar  com  uma  forma  sem  a  inicial,  abonada  com  Filiuto  Elisio,. 
Jagar,  que  é  mais  compatível  com  a  castelhana  /alagar  (cf.  ca- 
lahaza  e  cabaça);  e  no  Suplemento  aduziu  outra  acepção  que 
por  mim  lhe  foi  indicada — «desfazer  as  asperezas,  aplanar»  — , 
com  a  etimolojia  proposta  em  tempo,  e  depois  rejeitada,  pelo 
Dr.  Júlio  Cornu  •\  (ad)faciem  lagare,  para  lhe  substituir  outra 


1  António  de  Campos,  Luiz  db  Camões,  2.*  Parte,  xiv. 

2  Vestígios  da  lingoa  arábica  em  Portugal,  Lisboa,  1830. 

3  DiCCIONARIO  ETYMOLOGICO  DA  LÍNGUA  PORTUGUEZA. 
í  XÓVO  DlCCtONÁRlO  DA  LIKGUA  PORTUGUESA. 

^  Eornania  ix,  p.  131,  (1880). 


28  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


inadmissível  fonética,  e  mesmo  ideolójicamente,  fallax  ^  porque 
o  l  geminado  não  haveria  desaparecido  em  português,  e  em  cas- 
telhano teria  produzido  l  palatal  (U)^  visto  que  o  vocábulo  é  em 
ambas  as  línguas  de  orijem  evolutiva,  popular;  e  ainda  porque  é 
sempre  de  bom  aviso  em  palavras  desta  espécie  averiguar  se  há 
um  sentido  material  por  elas  expresso,  e  que  em  regra  é  a  sua 
primeira  acepção,  da  qual  as  outras  são  desenvolvimento. 

Outras  etimolojías  teem  sido  propostas  por  diferentes  roma- 
nistas  abalisados,  como  Frederico  Diez,  João  Storm,  Gastão  Pa- 
ris, e  outros  citados  por  Kõrting  2,  nenhuma  das  quais  porém 
satisfaz  completamente,  nem  resolve  as  dificuldades  fonolójicas, 
que  o  vocábulo  apresenta,  comparadas  que  sejam  as  formas  por- 
tuguesas afago,  (a)fajar,  faguewo  (fagueiro,  ou  fagueiro),  as 
castelhanas  f alagar,  halagar,  halago,  halagilefio.  a  catalã  afa- 
legar,  e  a  asturiana  afalagar.  Até  agora,  portanto,  a  mais  plau- 
sível é  ainda  a  primeira  proposta  por  Cornu,  apesar  das  suas 
pequenas  dificuldades  fonéticas,  principalmente  se  tivermos  em 
atenção  que  o  sentido  em  que  o  vocábulo  é  usualmente  tomado 
de  «acariciar»,  não  pode  ser  o  primitivo,  o  qual  sem  dúvida  foi 
o  que  ainda  perdura  como  termo  de  marcenaria,  isto  é,  «pôr  à 
face,  alisar»;  ou  mais  rigorosamente,  como  terminolojia  técnica, 
já  restrita  esta  acepção  lata,  «chegar  ao  (mesmo)  livel  a  madeira 
ensamblada,  alisando-a,  ou,  como  dizem  «afagando-a». 

Já  em  tempo,  na  revista  belga  Mttsêon,  porém  menos  cir- 
cunstanciadamente, me  referi  a  esta  etimolojia,  ao  dar  ali  conta 
dos  estudos  de  gramática  portuguesa,  publicados,  como  já  disse, 
em  1880,  na  Komania,  pelo  actual  professor  de  línguas  e  lite- 
raturas românicas  na  universidade  de  Graz,  para  a  qual  foi  trans- 
ferido da  de  Praga,  onde  rejia  cadeira  análoga.  Mencionei  então 
apenas  a  mais  os  vocábulos  castellianos  lagotear,  lagotero,  «ba- 
jular, bajulador»,  cuja  relação  com  o  de  que  trato  aqui  me  pa- 
rece agora  incerta. 


1  GiíuxuRiss  DER  RoMAXisCHBN  Philologie,  I,  p.  756,  n."  131. 

2  Lateinisch,  R0MANI8CHES  Wòrtbrbuch,  Pixclerbom  1890:  300. 


A2)ostilas  aos  Dicionários  Portugueses  20 


Assim,  todas  as  investigações  que  no  futuro  se  fizerem  sobre 
a  etimolojia  destes  vocábulos  devem,  a  meu  ver,  basear-se  numa 
forma  peninsular /«Za^ízr,  significando  «alisar». 


afreimar 

O  Xóvo  DiccioxÁRio  traz  esta  forma,  remetendo  o  leitor 
para  afie/mar.  e  desta  para  afieiímar,  aparentemente  mais 
próssima  de  peuma  \  phlegma,  e  à  qual  dá  como  definição 
«tornar  fieumático,  pachorrento». 

Não  me  parece  que  as  remissões  estejam  bem  feitas,  pois 
nos  Açores  este  verbo  quere  dizer  «inflamar-se,  piorar»,  e  pa- 
rece extraordinário  que  o  étimo  dele  seja  o  que  se  lhe  atribui; 
saria  mais  corrente  dar-lhe  como  étimo  imediato  o  substantivo 
freima,  que  o  mesmo  dicionário  inclui  no  respectivo  lugar,  e 
em  dúvida  deriva  de  flegma. 

Em  todo  o  caso  ficará  consignada  aqui  a  acepção  em  que  é  to- 
mado, pelo  menos  em  S.  Miguel,  o  verbo  afreimar,  derivado  de 
freima.  que  vem  já  em  Bluteau.  no  sentido  em  que  hoje  empre- 
gamos fieimão.  de  phlegmone,  vocábulo  grego,  adoptado  em 
latim  ^ 

agostadouro 

Este  vocábulo  não  está  incluído  nos  nossos  dicionários,  nem 
mesmo  como  provincialismo,  apesar  de  muito  bem  formado  e 
muito  expressivo.  Merece  bem  que  aí  se  lhe  dé  cabida. 

Abonação  excelente  é  a  seguinte,  que  encontramos  na  pri- 
morosa publicação  intitulada  Portugália,  vastíssimo  repositório 
de  dições,  usos  e  indústrias  do  nosso  povo,  e  cujo  segundo  volu- 
me está  já  sendo  publicado: — «Entretanto  o  rendeiro  antigo  tem 
ainda  o  direito  de  aproveitar  o  agostadouro  da  seara  última .  . . 


Vide  O  Século,  de  5  de  julho  de  1901. 


30  AjwstilaH  ao-i  Dicionários  Portugueses 


comendo-lhe  a  espiga  e  sementes  com  o  gado  suino  que  enten- 
der, e  bem  assim  com  o  numero  de  bois  ou  bestas  estrictamente 
necessárias  ao  acarreto  respectivo»  —  ^ 

Este  substantivo  pressupõe  a  existência  de  um  adjectivo  agos- 
taão,  particípio  passivo  de  agostar,  derivado  de  agosto,  e  que  não 
sei  se  existe  em  português,  mas  vem  apontado  no  Dicionário 
da  Academia  espanhola,  com  a  seguinte  definição,  que  aclara  o 
sentido  da  palavra  portuguesa — «pastar  el  ganado  durante  el  ve- 
rauo  en  rastrojeras  ó  en  dehesas  » — . 

A  forma  agostaãouro  portuguesa  corresponde  à  castelhana 
agostaãero,  que  o  Dicionário  da  Academia  não  incluiu,  mas  que 
é  usada,  pelo  menos,  na  província  de  Badajoz,  onde,  como  estou 
informado  por  pessoa  daquella  província,  a  meúdo  é  confundida 
com  ahrehadero,  «bebedouro». 

agra,  agro:  campo;  agrela,  agrelo 

Palavras  muito  corriqueiras  no  norte  de  Portugal,  não  só 
como  nomes  comuns,  mas  também  na  toponímia,  com  alguns  de- 
rivados, dos  quais  provêem  apelidos,  por  demais  conhecidos.  Lemos 
no  primeiro  volume  de  publicação  a  que  já  nos  referimos,  Por- 
tugália, o  seguinte,  em  uma  monografia  a  todos  os  respeitos 
digna  do  maior  encarecimento: — «ager...  na  última  [acepção] 
e  também  da  sub-unidade,  apparece  repetidas.  .  .  vezes  em  agro, 
agra .  .  .  agrelo  ou  agrela  »  —  2. 

Agua : 

Certos  derivados  deste  vocábulo  e  várias  acepções  deles  ainda 
não  entraram  nos  dicionários,  e  por  isso  apontarei  aqui  alguns. 


^    J.  Silva  Picão,  Ethnograpuia  do  Alto  Alemtejo,  p.  280. 

2    Alberto  Sampaio,  As  «villas»  do  noktb  de  Portugal,  p.  123 

e  581. 


Apu-^tiud  a')!i  J hi:ioiiári(is   l'(irti((juc>í('S 


aguado 

Este  particípio  passivo  do  verbo  aguar  (àguár)  tem  em  Ca- 
minha a  siguificação  de  «guloso». 

aguardente 

Esta  palavra,  que  em  Lisboa  é  pronunciada  aguardente,  em 
vários  pontos  do  país  revela  ainda  a  consciência  da  sua  formação 
por  parte  de  quem  a  emprega,  pois  é  pronunciada  aguardente, 
devendo  os  que  assim  a  proferem  conservar  os  dois  elementos 
separados  na  escrita  por  hífen:  água-ardente.  Na  Collecção  de 
LEGISLAÇÃO  POETUGUEZA,  referente  aos  anos  de  17Õ3-17G2,  Su- 
plemento, ainda  se  imprimiu  agoa  ardente. 

A  lei  de  14  de  junho  de  1901,  publicada  no  Diakio  do  Go- 
TEExo  de  15  do  dito  mês  e  ano,  traz  uma  interessante  nomen- 
clatura das  várias  espécies  de  aguardentes  (ou  águas-ard entes), 
que  tem  por  bases  a  graduação  centésima],  a  matéria  prima  de 
que  são  distiladas,  a  procedência,  e  as  denominações  por  que  são 
conhecidas  geralmente,  quer  no  comércio,  quer  no  público.  Inú- 
til fora  reproduzir  aqui  essa  nomenclatura,  mas  não  o  é  recomen- 
dar que  na  feitura  de  novo  dicionário  da  língua,  ou  na  reedição 
de  algum  dos  já  publicados,  ela  seja  tida  em  atenção  com  as 
rigorosas  definições  que  ali  são  dadas. 

agiiista 

Este  vocábulo  para  ser  bem  figurado,  no  que  respeita  à  sua 
pronúncia,  deveria  ser  escrito  com  três  acentos  àgàista:  o  pri- 
meiro, grave,  para  indicar  que  o  a  se  profere  aberto;  o  segundo, 
também  grave,  para  avisar  que  se  profere  o  u;  q  o  terceiro,  agu- 
do, como  sinal  de  que  o  i  não  forma  ditongo  com  aquele  u,  isto 
é  que  êle  se  não  lê  aguista,  nem  agúista.  Basta  porém  o  que 
marquei  na  epígrafe. 


'Ò2  Apostilas  aos  DicionàrloH  Portutjucscs 


É  de  iutrodução  recente  e  significa  « o  indivíduo  que  está  em 
sítio  de  águas  medicinais,  para  fazer  uso  delas: — «Vi  um  tele- 
gramma  do  gerente  da  empreza  de  Mondariz,  dizendo  que  os 
hospedes  se  oppõem  á  ida  de  aguistas  do  Porto» — ^ 

E  provável  que  seja  castelhanismo.   Também  se  diz  aquista. 

agude,  agúdia,  agúida 

O  Contemporâneo  define  agádea,  como  « formiga  de  asas » 
e  dá  como  variante  agude.  O  Novo  Digcionário  dá  a  mesma 
definição  da  forma  ajúdia,  e  atribui-lhe,  em  dúvida,  o  étimo 
agudo. 

José  Joaquim  Núnez  no  seu  escrito  Dialectos  algarvios, 
publicado  na  «Revista  Lusitana»  -  apresenta-uos  as  seguintes 
formas  do  mesmo  vocábulo,  e  de  nm  seu  derivado: — <^aguidào,» 
espécie  de  formiga.  í]mbora  o  suficso  ão  seja  próprio  de  aumen- 
tativos agudião  designa  uma  formiga  de  grandeza  inferior  á  de 
agudia,  que  o  povo  diz  aguida,  como  também  aguidão » — . 

Faltam  aqui  acentos  indispensáveis  para  se  lerem  bem  os  dois 
vocábulos,  agúida,  agÍÁÍdão,  pois  de  outro  modo  o  u  deixará  de 
ser  proferido,  errando-se  a  pronúncia  dos  dois  vocábulos.  A  forma 
agúida,  poi'  agúdia,  é  análoga  à  verba  seguinte  aihto,  por  hábito. 
E  fenómeno  conhecido  este,  em  português,  de  o  /  átono  penúltiino 
de  um  esdrúxulo  passar  à  sílaba  acentuada,  formando  ditongo, 
resultando  muitas  vezes  dessa  passajem  vocábulos  parocsítonos ; 
ex.:  Antoino,  forma  popular  de  António,  desvairar  por  desva- 
riar, chuiva,  no  norte,  por  chuvia,  de  pluuia,  eira,  de  área,  etc. 

alagar,  alago 

Este  verbo,  além  das  várias  acepções  apontadas  nos  dicioná- 
rios modernos,  tem  mais  a  de  «deitar  ao  chão»,  como  palavra 


1  O  Século,  de  17  de  agosto  de  1899. 

2  vn,  p.  104. 


Apoitilas  aos  Dicionários  Portugueses  33 


alentejana,  mas  que  eu  ouvi  também  em  Vizela  e  foi  consignada 

no   COXTEMPOEAXEO. 

Xo  volume  único  do  Dicionário  da  Academia  *  vem  indicada 
já  esta  significação,  pelas  seguintes  palavras: — ^alluír,  subver- 
ter»— .  Dá  três  abonações,  uma  das  quais,  colhida  nas  Décadas 
de  João  de  Barros,  é  apropriadíssima:  —  «Dizia  que  com  punha- 
das de  terra  sem  mais  armas,  os  seus  alagarião  a  Fortaleza» — . 

E  difícil  saber  o  sentido  exacto  em  que  o  Padre  Cardim  em- 
prega o  que  parece  mu  substantivo  rizotónico  derivado  deste 
verbo,  no  seguinte  passo — «mandou  publicar  [o  rei  de  Cochin- 
chma]  uma  chapa  ou  provisão  contra  a  lei  de  Deus  e  contra  os 
padres  [da  Companhia  de  Jesus],  a  qual  foi  a  primeira  que 
naquelle  reino  se  pôs  em  público  e  se  íixou  á  porta  da  igreja 
que  os  padres  tinham  em  Taifó.  Cahiu  a  porta  com  os  alagos, 
accusou  a  aldeia  ao  padre,  que  na  casa  estava,  deante  de  um 
mandarim,  culpando-o  de  tirar  a  chapa»  — -.  Confrontado  o  vocá- 
bulo alago  com  alagar  no  passo  de  João  de  Barros,  citado,  de- 
duz-se  que  é  um  substantivo  verbal,  significando  talvez  «ruína». 

Em  Leiria  alagar  é  usado  no  sentido  de  « deitar  a  baixo » , 
por  exemplo,  parede  alagada,  « derribada » . 


alavão,  alabão 

D.  Rafael  de  Bluteau,  no  Vocabulário  poetuguez  latino, 
dá  à  primeira  destas  formas,  que  escreve  alavam,  o  significado 
—  «manada  das  ovelhas  que  dão  leite» — ,  considerando  o  termo 
alentejano. 

J.  Inácio  Roquete  rejistou  este  vocábulo  no  seu  dicionário 
português-francês  ^  como  adjectivo: — «(gado)  brebis  qui  donne 


1  Lisboa,  1793. 

2  Batalhas  da  Companhia  de  Jesus  na  província  uo  Japão, 
p.  1S2,  Lisboa  1804. 

2      DiCTIONNAIRE  PORTUGAIS-fRANÇAIS,  Paris,  1855. 
i 


31  ApoHtilaH  aoi  Dicionários  Portugueses 

du  lait  (poiír  faire  le  fromage)» — .  Cândido  de  Figueiredo  no 
Novo  Dicionário  da  língua  portuguesa  inclui-o  como  provin- 
cialismo,  definindo-o  assim: — «gado  que  ainda  mama» — .  Não 
sei  com  que  fundamento  lhe  é  dada  aí  esta  acepção,  que  toda- 
via não  contesto. 

O  Conde  de  Ficalho,  numa  série  de  artigos  publicados  na 
interessantíssima   revista   de  Serpa  «A  Tradição»,  intitulados  O 

ELEMENTO  ÁRABE  NA  LINGUAGEM  DOS  PASTORES  ALENTEJANOS  *, 

consagrou  duas  colunas  ao  termo,  examinando  a  sua  significa- 
ção em  todos  os  aspectos,  e  diz-nos  que  a  pronúncia  constante 
dos  pastores  é  alcwão.  í]  natural  que  no  norte  do  reino,  se  a  pa- 
lavra lá  é  usada,  ela  se  pronuncie  com  h.  Critica  o  doutíssimo 
escritor  as  definições  dadas  por  vários  lecsicógrafos,  portugueses 
ou  estranjeiros,  estes  últimos  principalmente  arabistas,  e  define 
o  termo  do  seguinte  modo:  —  «alavão  no  Alentejo  significa  uni- 
camente o  rebanho  que  dá  leite  pela  ordenha,  nunca  aquelle  em 
que  os  borregos  ainda  raammam.  O  nome  do  rebanho  anda  ligado 
sempre  ao  facto  de  dar  leite  para  os  queijos:  começa  a  cha- 
mar-se  alcwão  no  dia  em  que  os  borregos  se  apartam;  deixa  de 
se  chamar  alcwão  no  dia  em  que  a  ordenha  cessa.  Esta  é  a  si- 
gnificação da  palavra  no  Alentejo;  seria  interessante  saber  o 
sentido  que  lhe  dão  na  Serra  da  Estrella,  onde  as  coisas  se  pas- 
sam de  modo  um  pouco  differente» — . 

Creio  inútil  acrescentar  uma  palavra  que  seja  a  tam  lúcida  e 
decisiva  descrição,  feita  por  quem  tinha  toda  a  autoridade  e  to- 
das as  competências  para  a  fazer  certíssima. 

Diz-se  ali,  citando  João  Sousa  ^,  que  o  vocábulo  é  arábico^ 
al-làban,  «o  leite» — .  Pois,  apesar  deste  étimo  tam  claro,  Eguílaz 
y  Yanguas  ^  atribui-lhe  como  orijem  ar-raf,  conforme  diz — «me- 
diante el  conubio  de  r  por  la  l,  y  de  la /por  la  v» — .  Já  é\ 


1  I,  p.  93-103  (1899). 

2  Vestígios  da  lingoa  arabiCa  em  Portugal. 

3  Glosario  UB  vocBS  ESP  ANGLAS  DE  ORiGBíí  ORIENTAL,  Granada, 

18iG. 


Apostilai  aos  Dicionários  Portugueses  35 


Cora  o  mesmo  acerto  poderia  derivá-lo  do  latim  o  vis,  com  mu- 
dança de  o  em  aZ  e  de  vis  em  amo:  AJfana  vient  cVequus,  sans 
doufe  ! 

Para  que  se  não  suponha  que  os  nossos  dicionaristas  foram 
insensatos  em  atribuírem  ao  termo  álamo,  ou  alabão,  o  signifi- 
cado de  «rês  que  ainda  mama»,  devo  acrescentar  que  no  Dicio- 
nário árabe  francês  de  Belot  *  se  dá  AiLTasax  com  a  significação 
de  «mamar»  (sucer  le  lait),  como  derivado  de  LasaN,  «dar  a 
beber  leite » ;  o  que  talvez  os  levasse  à  conjectura  criticada  pelo 
Conde  de  Ficalho;  é  possível  também  que  em  alguma  parte  do 
reino  a  palavra  tenha  aquela  acepção. 

alberto 

Este  nome  próprio,  conforme  informação  pessoal  que  me  de- 
ram, significa  no  Alentejo  «cântaro  pequeno».  Não  me  sou- 
beram dizer,  porém,  o  motivo  por  que  lhe  foi  imposto.  Te- 
mos mais  substantivos  comuns,  derivados  de  nomes  de  pessoas, 
como  guilherme  «espécie  de  plaina»,  já  apontado  em  vários  dicio- 
nários portugueses;  e  muito  modernamente,  iancredo,  como  de- 
signando um  candeeiro  pintado  de  branco,  que  serve  para  indicar 
os  pontos  da  via  pública,  onde  há  parajens  dos  carros  eléctricos, 
em  Lisboa,  e  que  lhe  foi  dado  por  comparação  popular  com  um 
saltimbanco  estranjeiro,  que  apareceu  nas  praças  de  touros,  muito 
recentemente,  todo  vestido  de  branco,  tal  qual  uma  estátua  de 
gesso  ou  pedra.  Confronte-se  ainda  josézinho,  que  no  princípio 
do  século  passado  designava  uma  espécie  de  capote: 

Inda  que  por  moda  querem 
Que  lhes  repitam  rersinhos, 
Tem  por  modas  de  mais  gosto 
Convulsões  e  josézinhos  2. 


1  VocABULAiRE  Arabe-français,  Beirute,  1893,  p.  717,  col.  ir,  718, 
col.  I. 

2  Nicolau  Tolentino,  Carta  a  um  cabelleireiro  :  Obras,  11,  Lisboa, 
1801,  p.  103. 


36  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


alcoiice 

Este  termo,  ainda  lioje  não  de  todo  desusado,  vem  definido  no 
Elucidaeio  de  Viterbo  ^  como  — « casa  em  que  se  dão  cómmc- 
dos  para  lascivos  commercios» — .  Dá-lhe  o  douto  lecsicógrafo 
como  étimo  um  arábico  Alcoueã,  «alcoviteiro» — ,  o  que  não 
explica  o  ce. 

A  etimolojia  proposta  por  Dozj  ^  alcoceifa,  dá  razão  do  c, 
mas  é  inadmissível  por  ter  a  mais  a  sílaba . .  .  fa,  que  levaria  ca- 
minho, sem  se  saber  porquê.  Eguílaz  y  Yanguas  ^  propõe  para 
substituir  a  de  Dozy,  que  não  admite,  a  que  escreve  aJjoçç,  « do- 
mus  ex  arúndine»  — ,  casa  de  canas  — ,  que  tampouco  se  pode 
aceitar,  porque  sendo  a  palavra  antiga  na  língua,  como  o  prova 
a  inclusão  dela  no  Elucidário,  a  7.*  letra  do  abecedário  ára- 
be, equivalente  ao  j  castelhano  actual,  estaria  representada  por 
/  em  português,  e  não  por  c  *,  e  ao  oio  corresponderia  au  em 
árabe. 

O  imico  vocábulo  que  pode  satisfazer  às  leis  fonéticas  que 
regularam  a  admissão  de  vocábulos  arábicos  em  português,  rece- 
bidos por  audição,  é,  que  eu  saiba,  Qaus  «arco»,  e  é  possível  que 
a  situação  de  algum  prostíbulo  perto,  ou  dentro  de  um  arco,  ou 
de  uma  arcada,  tivesse  dado  orijem  a  ser  denominado  assim  qual- 
quer bordel. 

Em  Coimbra  houve  uma  porta  de  Belcouce  ^,  no  tempo  de 


1  Elucidário  das  palavras,  tejrmos  b  frases  que  em  Portu- 
gal ANTIGÚAMBNTB  SB  USARÃO,  Lisboa,  1798. 

2  Glossaire  des  mots  espagnols  et  portugais  derives  de 
l' ÁRABE,  Leida,  18(39. 

3  Glosario  de  vocês  espanolas  DE  GRiGEX  ORIENTAL,  Granada, 
1886. 

*  A.  R.  Gonçálvez  Viana,  Dbux  paits  db  phonologie  historiqub 
PORTUGAiSB,  Lisboa,  1892,  p.  10. 

5  A.  de  Campos,  Luís  db  Camões,  in  «O  Século,  de  10  de  junho 
de  1«00. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  37 


Camões,  e  esse  nome  deveria  significar  em  árabe  «no  arco»  (naL- 
Qaus). 

alcimha 

Este  vocábulo  é  hoje  por  nós  empregado  no  sentido  em  que 
os  castelhanos  usam  apodo,  os  franceses  f<ohriqiiet,  os  ingleses 
nick-name ;  "^oxém  antes  estava  mais  era  harmonia  com  a  sua 
aplicação  na  língua  de  onde  o  tirámos,  o  árabe,  e  a  que  moder- 
namente se  dá  ao  termo  cognome.  O  Dicionário  da  Academia,  vo- 
lume único,  assim  o  declara,  e  autoriza-se  com  um  trecho  de  João 
de  Barros;  errou-lhe,  porém  a  etimolojia  arábica,  a  qual  diz  ser 
alquenna  (.<?/c).  Não  é  isso. 

Garcin  de  Tassy,  na  sua  interessante  memória  sobre  os  no- 
mes e  títulos  mocelemanos  ^  diz  a  páj.  6-7,  que  cada  árabe 
tem  em  geral,  pelo  menos,  três  nomes:  1.*^  o  ólame,  o  nome  pró- 
prio, de  baptismo,  como  dizemos,  (prénom);  2.°  húnia,  o  sobre- 
nome (suruom),  mas  que  designa  paternidade,  ou  filiação,  e  é 
composto  quási  sempre  com  a  palavra  ahu,  « pai »,  ou  abn  « filho », 
seguida  do  nome  daquele,  ou  deste;  3."  o  láqab,  ou  verdadeira 
alcunha,  uo  sentido  desta  palavra,  hoje  em  dia. 

Este  étimo  já  tinha  sido  indicado  nos  Vestígios  da  lixgoa 
ARÁBICA  Eii  Portugal  -,  transcrito  alconia.  E  a  mesma  cousa. 

Com  o  significado  de  cognome  encontra-se  a  palavra  alcunha 
em  português  em  Damião  de  Góis  ^ :  — « e  ha  Infanta  dona  Isabel, 
que  casou  com  o  Duque  Philippe  de  Borgonha,  dalcunha  ho 
bom»  — . 

Covarrubias,  contemporâneo  de  Mariana  [séculos  xvi  e  xvii], 
dá  como  antiquada  alcufia — «vale  linage,  casta,  descendência; 
latine,    genus,    stemma.    Es   muy   usado  término  en  la  lengua 


1  MÉMOIRE   SUR   LES    KOMS    PROPRES   ET   LES  TITRB8  MUSULMANS, 

Paris,  1878. 

2  2.a  Edição,  1830. 

'    Chronica  de  El-rei  Dom  Emmanuel,  cap.  iii. 


38  Apostilas  aos  Dicio?iário8  Portugueses 


castellana  antigua,  así  eu  las  crónicas  como  en  las  leys  y  con- 
tractas»—  *. 

aldeagante] 

Palavra  trasmontana  ainda  não  colijida  nos  dicionários  portu- 
gueses, no  significado  de  «viandante»,  «caminhante».  —  «Se 
seguir  o  caminho  em  direcção  á  Cova  da  Lua  vê  o  aldeagante 
(individuo  errante)  outro  milagroso  castigo  — é  um  lameiro  (pra- 
do) convertido  n'um  profundo  lago» — ^. 

No  Suplemento  do  Novo  Diccionákio  de  Cândido  de  Figuei- 
redo vem  esta  palavra,  bem  como  o  verbo  de  que  deriva,  aldeã- 
gar,  mas  noutra  acepção:  —  «pessoa  alegre,  desinvolta».  Colhido 
em  Lagoaça  — « falar  á  toa ;  alanzoar ;  tagarelar ;  falar  com  ani- 
mação; gracejar  ruidosamente»; — , 

Antecede-os  nesse  copioso  dicionário  o  substantivo  alãeaga, 
como  termo  beirão,  assim  definido :  — « tareio,  tagarela,  pal- 
radôr » — . 

Difícil  será  decidir  qual  é  a  acepção  primária,  se  a  que  é  dada 
nesse  dicionário,  se  a  que  acima  apontámos,  autorizada.  Desco- 
nhecido é  igualmente  o  seu  étimo. 


aleixar 

Este  verbo,  afim  do  castelhano  antigo  alexar,  moderno  alejar 
(pron.  alei[ar),  derivado  de  lexos,  lejos,  cuja  orijem  parece  ser, 
conforme  F.  Diez  -^  o  latim  laxus,  e  a  significação  «afastar», 


1  apud  Ramón  Menéndez  Pidal,  Antologia  de  prosistas  caste- 
LLAN08,  Madrid,  1899,  p.  105. 

2  Ferreira  Deusdado,  O  recoí.himbnto  de  Mófreita.  in  Revista 
db  educação  b  ensino,  1891. 

3  Etymologisches  Wòrterbuch  der  Rdmanischen  Sprachex, 
Bonn,  1870,  p.  148. 


Apostilai  aos  Dicionários  Portugueses  39 


<deitar  a  lonje»,  segundo  a  expressão  camoniana  ',  vem  abo- 
nado por  F.  Adolfo  Coelho  no  seu  estudo  intitulado  A  Peda- 
gogia DO  POVO  PORTUGUÊS,  publicado  na  revista  Portugália 
(i,  p.  485): — «Quem  dos  seus  se  aleixa  a  Deus  leixa» — .  E  in- 
teressante o  conceito  do  adájio,  como  o  é  a  existência  deste 
verbo  em  português,  que  assim  ficou  docimientada. 


alfa 


Este  vocábulo,  não  colijido  em  nenhum  dicionário  da  língua, 
vemo-lo  abonado  e  definido  n.um  estudo  de  Albino  dos  Santos 
Pereira  -Lopo,  intitulado  Beagaxça  e  Beiiqueeença,  publicado 
no  Boletim  da  Sociedade  de  Geografia  de  Lisboa  -,  e  reza  assim 
o  texto: — «era  costume  nas  vesj)eras  de  Entrudo,  quando  se  iam 
revistar  as  « alfas » ,  ou  os  marcos  divisórios  das  propriedades 
particulares,  ir  o  homem  mais  velho  de  Donae  abrir  no  « Sagrado » 
uma  pequena  cova  como  signal  de  que  o  povo  estava  de  posse 
d'elle>  — . 

Com  respeito  ao  que  o  autor  chama  O  Sagrado  lê-se 
algumas  linhas  antes: — E  como  tradição  dos  «Loca  Sacra»  dos 
povos  desta  epocha  [pre-romana]  tem  sido  considerado  o  local  a 
que  os  habitantes  de  Donae  chamam  «o  Sagrado»,  que  é  um 
pequeno  castro  de  forma  elliptica.  coberto  de  fi"ondosos  carva- 
lhos ...  a  norte  da  povoação .  .  .  Denominam-no  também .  .  . 
<Igreja  Velha» ...  a  igreja  desappareceu,  mas  o  sitio  onde  ficou 
lá  se  conhece  ainda  hoje,  formando  uma  pequena  depressão  e  é  a 
ella  que  mais  particularmente  chamam  o  «Sagrado» — . 


1     Deixas  criar  às  portas  o  inimigo 
Por  ires  buscar  outro  de  tão  longe, 
Por  quem  se  despovoe  o  reino  antigo, 
Se  enfraqueça  e  se  vá  deitando  a  longe. 

Lusíadas,  iv,  101. 
2     17.»  Série,  1898-1899,  p.  198. 


40  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 

No  vocabulário  que  faz  parte  do  estudo  que  publiquei  no 
vol.  I  da  «Kevista  Lusitana»  ^  já  eu  incluíra,  como  sendo  usado 
em  Moimenta,  o  vocábulo  alfa,  o  qual,  segundo  a  informação  que 
dali  me  fora  prestada,  como  declarei,  significa,  marco  entre 
bens  comuns  e  particulares. 

No  Suplemento  ao  Novo  Diccionário  foi  incluído,  como 
termo  antigo,  o  plural  alfaia,  no  sentido  de  «fronteiras». 

alfacinha;  tripeiro 

São  conhecidas  as  significações  destes  dois  vocábulos,  que 
por  derisão  se  aplicam,  respectivamente,  aos  naturais  de  Lisboa 
e  Porto,  naturalmente  porque  em  cada  uma  destas  cidades  se  dá 
preferencia  a  certos  manjares,  na  primeira  à  salada  de  alface,  na 
segunda  a  um  guisado  feito  de  dobrada  de  vaca.  E  também  pro- 
vável que  tais  alcunhas  lhes  fossem  por  escárnio  postas  por  indi- 
víduos nascidos  em  povoações  convizinhas. 

Abonação  de  ambos  os  termos  é  a  seguinte:  —  Vemos  que  a 
Exposição  de  Paris  é  também  o  que  mais  preoccupa  a  attenção 
tanto  do  « alfacinha »  como  do  « tripeiro »  -. 

E  de  notar  que  lechuguino,  em  castelhano,  derivado  de  le- 
chuga  \  lactuca,  «alface»,  se  aplica  a  um  «peralvilho»  em 
Espanha. 

A  palavra  alface,  é  de  orijem  arábica,  como  se  sabe  desde 
João  de  Sousa  ^  (AL-^as),  e  também  é  usada  em  várias  partes  de 
Espanha,  conforme  f]guílaz  y  Yanguas  *.  Por  outra  parte,  leituga 
em  português  equivale  a  alface  brava. 


1  1887-1889  — Falar  de  Rio-Frio  (Trás-os-Montes),  p.  203. 

2  O  Século,  de  00  de  abril  de  1900. 

^  Vestígios  da  lingoa  arábica  em  Portugal,  Lisboa,  1830. 

'*  Glosario  de  vocês  ESP  anglas  de  origen  oriental,  Granada, 


188(5. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portiajuc^es  41 


alfândega 

Esta  palavra  é  liá  muito  tempo  empregada  em  Portugal  e 
seus  domínios  com  a  significação  dada  geralmente  na  Europa  la- 
tina ao  vocábulo  aduana,  assim  mesmo  em  castelhano,  dogana 
em  italiano,  douane'em  francês,  isto  é,  «repartição  em  que  se 
arrecadam  direitos  das  mercadorias,  para  que  se  considerem 
francas  para  o  seu  consumo».  Antes,  porém,  alfândega  queria 
dizer  «albergaria»  ^  sendo  a  mesma  dição  que  a  castelban a  mo- 
derna fonda,  «hospedaria»,  isto  é  a  palavra  arábica  (AL)-T'aN- 
DaQ,  FUNoaQ,  derivada  do  grego  medieval  paxdokeíon  -. 


alfavaca,  alfabega,  alfadega 

Este  termo  usual  de  botânica,  o  qual  procede,  conforme  o 
volume  único  do  Dicionário  da  Academia,  citando  Pedro  de  Al- 
calá,  do  árabe  habaca,  «manjericão»,  é  aplicado  a  duas  plantas 
enteiramente  distintas;  só,  serve  para  designar  uma  planta  aro- 
mática, e  com  um  epíteto,  alfavaca  de  cobra,  é  o  nome  popular 
de  uma  parietária. 

Conforme  informação  fidedigna,  designa  no  Kiba-Tejo,  quer 
coin  esta  forma,  quer  sem  o  preficso  ai,  «a  fior  da  oliveira», 
favaca,  e  neste  sentido  não  figura  em  nenhum  dicionário,  que 
i'u  saiba. 

Em  árabe,  segundo  o  Vocabulário  árabe-francês  de  Belot  ^,  a 
forma  é,  transcrita,  nasa-j,  e  portanto,  o  vocábulo  dado  por  Pe- 
dro de  Alcalá  tem  a  mais  o  suficso  de  unidade. 


1  Santa  Rosa  de  Viterbo,  Elucidário  das  palavras  que  antigua- 
MENTE  8E  USARÃO,  Lisboa,  179S. 

2  Henrique  Yule,  The  Book  of  Ser  Marco  Polo,  the  Venetian, 
Londres,  1875,  i,  p.  401. 

5      VOCABULAIRB  ARABE-KRANÇAI8,  Bcirute,  1593,  p.  101,  Col.  IL 


42  Apostilas  aos  I>icionários  Portugueses 

O  étimo  arábico  dado  no  Novo  Diccionário,  alcahaque,  é 
errado  evidentemente  no  c  por  h,  e  não  sei  de  onde  foi  copiado. 

Em  castelhano,  conforme  o  Dicionário  da  Academia,  existem 
duas  formas  alfabega  e  alhahaca,  numa  das  acepções  da  palavra 
portuguesa  alfavaca.  Na  primeira  dessas  formas  o  q  foi  repro- 
duzido por  g,  que  parece  ter  sido  em  vários  vocábulos  a  sua  pro- 
núncia no  dialecto  arábico  das  Espanhas  (Cf.  açougue,  q.  v.):  na 
segunda,  que  pressupõe  uma  forma  mais  antiga  albafaca,  houve 
metátese  entre  as  duas  sílabas  internas. 

Relacionemos  estes  vocábulos  todos. 

No  Novo  DicoioNÁBio  vem  inscrita  esta  palavra,  com  a  si- 
gnificação de  «manjerona»  e  sem  acento  marcado,  o  que  indica 
ser  preceituada  a  pronúncia  alf adega,  e  cita-se  um  dicionário 
manuscrito  arquivado  na  Torre  do  Tombo;  Cândido  de  Figuei- 
redo acrescenta:  —  «supponho  que  é  alter[ação]  de  alfabega,  uma 
das  formas  castelhanas,  correspondentes  á  nossa  alfavaca*  — . 

No  Suplemento,  porém,  o  vocábulo  é  outra  vez  inserido,  e 
marcada  a  pronúncia  ai f adega,  com  a  seguinte  explicação: — 
« ainda  hoje  se  usa,  designando  o  mangericão  de  folhas  largas, 
ou  a  mangerona »  — . 

Segundo  as  informações  que  tenho,  designa  somente,  pelo 
menos  em  Coimbra,  «manjericão  de  folha  larga»,  e  não,  «man- 
jerona». 

No  mesmo  Suplemento  declara-se  que  alfabega  por  alfavaca 
é  também  português,  usado  em  Vizela. 

O  Dic.  da  Ac.  Esp.  acentua  alfabega. 

O  povo  diz  majaricão,  e  não  manjericão,  e  dele  deriva  U3na 
forma  deduzida,  majarico. 


alfeça,  alfece;  alferça,  alferce 

Bluteau,  no  Suplemento  ao  seu  Vocabulabio  portuguez 
LATixo,  dá  ao  vocábulo  alfeça  a  significação  de  «safradeira,  fer- 
ramenta de  ferreiro»,  e  descreve-a  pelas  seguintes  palavras:  — 
« Tem  figura  redonda,  com  altura  de  uma  mão  travessa.  Serve 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  43 

para  abrir  os  olhos  das  enxadas,  alvioens,  machados,  e  martellos, 
pondo-se  em  cima  quando  estão  em  braza» — . 

Francisco  Adolfo  Coelho,  no  seu  artigo,  a  todos  os  respeitos 
excelente,  intitulado  Alfaia  agrícola  portuguesa  *,  dá-uos 
alfece  como  sinónimo  de  picareta,  estribaudo-se  nos — «nossos  le- 
xicologos» — ,  mas  infelizmente  não  nos  oferece  gravura  dessa 
alfaia. 

J.  I.  Roquete,  no  Diccioxario  da  língua  portugueza,  que 
é  imi  simples  vocabulário,  define  alfeça  como  ferramenta  de  fer- 
reiro, tal  qual  Bluteau,  e  alferce  como  «enxadão,  alvião,  picareta». 

O  Contemporâneo  e  o  Novo  Diccionário  repetem  isto 
mesmo,  mas  este  último  dá  a  forma  subsidiária  alfece,  a  par  de 
alfeça,  e  chama  a  atenção  para  alferce. 

Efectivamente,  a  palavra  alicerce,  actualmente  usada,'  tinha 
como  forma  antiga,  considerada  mais  correcta,  alicece,  hoje  de- 
susada: e  na  realidade  o  r  não  existe  no  seu  étimo  arábico,  alasas, 
plural  de  (al)as3  como  declara  o  Glossário  de  Engelmann  e  Doz\-  2, 
e  no  plural  é  o  vocábulo  mais  freqiientemente  usado  em  portu- 
guês, onde  a  forma  com  ;•  não  é  facilmente  explicável, 

A  ser  exacta  a  etimolojia  apresentada  por  Coelho  e  colhida 
em  Yj.  e  Dozy,  alfa's  (onde  o  sinal  '  está  pelo  emze),  ou  indica- 
ção de  que  o  a  vale  por  consoante,  formando  a  segunda  letra 
radical  do  trilítero,  e  que  bem  se  ouve  na  pronunciação,  seria 
esse  r  a  imitação  de  tal  consoante,  e  conseguintemente  lejítima  a 
sua  inserção,  tendo  pois  as  palavras  alfece  e  alferce  a  mesma 
orijem. 

Como,  porém,  tal  motivo  se  não  pode  alegar  para  que  se 
explique  o  r  de  alicerce,  e  como,  por  outra  parte  o  Glossário  ci- 
tado dá  para  alfece,  como  possível  étimo,  o  berbere  AFASseN, 
plural  de  afus,  «cabo  de  ferramenta»  ^,  é  temerário,  sem  inves- 
tigação ulterior,  identificar  os  dois  vocábulos,  alfece  e  alferce. 


i     in  Portugália,  i,  p.  400. 

2  GlOSSAIRE    DE3    MOTS    ESPAGNOLS    ET    PORTUGAIS    DERIVES    Dl 

l' ÁRABE,  Leida,  1869,  sub  v.  alizace,  castelhana. 

3  ib,  sub  V.  ALFBIZAR. 


44  Apostilas  nos  Dicionários  Portugueses 


alfóstico,  alfóstigo,  fóstico 

Esta  palavra,  bem  acentuada  em  Koquete  S  aparece  defor- 
mada no  Contemporâneo  com  a  pronúncia  alfóstigo,  que  tam- 
bém inconsideradamente  foi  copiada  para  o  Novo  Dicc.  Em  caste- 
lhano as  formas  são  alfóntico,  alfóstigo,  alfócigo,  todas  esdrúxu- 
las. Outra  forma  portuguesa  é  fístico  (lloquete),  omissa  nos  outros 
dois  dicionários,  mas  que  no  Vocabulário  de  Bluteau  está  incluí- 
da, marcada  a  pronunciação  como  esdrúxula  igualmente  (flstlco). 

Para  português,  como  para  castelhano,  procede  imediatamente 
do  árabe  (AL)pusTaQ,  correspondente  ao  grego  pistákion,  latim 
pis  taci  um,  do  qual  proveio  o  francês  j9tó'iíac/í.e,  e  qne  em  última 
análise  é  vocábulo  semítico.  Os  árabes  trousseram-no  talvez  da 
Pérsia.  Os  franceses  receberam-no  da  forma  italiana  pistaccio, 
que  concorre  com  pisfacchio  para  designação  do  mesmo  fruto, 
ou  da  árvore  que  o  produz. 


alfresses,  alfrezes 

No  Elucidário  de  Viterbo  vem  ê-íte  vocábulo  (alfvezes)  assim 
definido: — «Alfaias  e  moveis  de  uma  casa» — ,  abonado  com  o 
seguinte  trecho: — Calças,  Alfresef>.  especial,  bacias,  agumys, 
e  outras  cousas  que  tragem  pêra  si—,  documento  de  1352» — . 

O  Novo  DiccioNÁRio  incluíu-o  no  Suplemento  como  antigo, 
e  ampliou-lhe  o  significado  com  —  «variedade  de  panos  ricos,  pró- 
pria para  armações;  certos  enfeites  do  vestuário»  — . 

Num  curioso  artigo  de  Sousa  Viterbo,  intitulado  As  candeias 

NA    INDUSTRIA    E    NAS    TRADIÇÕES    POPULARES    PORTUGUEZAS   ",   e 

oude,  seja  dito  de  passajem,  as  gravuras  representando  candeias 
não  vem  a  propósito,  pois  este  vocábulo  nos  textos  aduzidos  tem 


'      DiCTIONNAIRE  PORTUGAIS-FRANÇATS,  Paris,  1855. 

2    in  Portugália,  i,  p.  365-368. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  45 


O  seu  significado  autigo  de  « vela  > ;  nesse  artigo,  dizemos,  ao  citar 
um  documento,  extrata  dele  vários  vocábiiloá,  entre  os  quais, 
porém,  não  figura  o  que  nos  interessa  aqui  e  no  mesmo  docu- 
mento vem  citado  por  estas  palavras: — «folha  douro  e  de  prata 
e  dalfrezes  trenas,  retrós. . ,  » — o  que  seria  inintelijível  se  al- 
freses  ali  estivesse  por  alfaias,  móveis. 

Parece  pois  ter  razão  o  Novo  Dicc.  em  lhe  atribuir  a  acep- 
ção citada,  ou  a  de  « guarnições »  para  vestiduras,  ou  tapeçarias. 

Eguílaz  5'  Yanguas  ^  traz  este  vocábulo,  e  dá-lhe  o  étimo 
arábico  ALFasxE,  <  tapetum » ;  e  deve  ser  no  sentido  de  « tapete » 
que  ali  está  empregada  a  palavra,  ou  noutro  muito  perto  deste. 

Yê-se  por  aqui  também  que  a  escrita  com  z  é  errónea,  pois 
no  documento  o  s  está  por  ss,  visto  proceder  do  x  arábico: 
cf.  alvíssaras  (e  não,  alvlçaras),  de  albíxaee.  sobre  o  qual  veja 
o  leitor  OBToasAFiA  Nacional,  páj.  113,  em  que  se  provou  que 
a  ortografia  dos  antigos  escritores  é  com  ss  e  não  com  ç,  e  na  sua 
correspondência  a  x  arábico  se  fundamentou  a  excepção  aparente 
de  s  português  em  palavras  dessa  orijem. 

No  Dicionário  árabe-francês  de  Belot  -  dão-se  como  corres- 
pondentes franceses  de  rauxE  « lit,  natte ;  matelas » . 

Assim  alfrezes,  no  artigo  a  que  me  referi,  é  erro  de  transcri- 
ção e  não  será  o  único  do  texto  aduzido. 


algar(a)via 

Esta  palavra,  que  no  uso  actual  quere  dizer  «modo  confuso 
de  falar,  linguajem  estranj eirada,  ou  estranjeira»,  é  defeituosa- 
mente definida  no  Coiítemporaneo  : — modo  de  falar  próprio  dos 
habitantes  do  Algarve  — ,  acepção  que  ninguém  lhe  dá,  e  que  seria 
disparatada,  pois  não  é  tam  indistinta  e  especial  a  pronúncia 


1  Glosario  de  vocês  espanolas  de  origbx  oriental.  Grana-la, 
1880. 

2  Beirute,  p.  581,  col.  i. 


46  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 

dos  naturais  daquela  fonnosa  província,  que  justificasse  tal  deno- 
minação. 

O  Novo  DicciONÁEio  define  bem: — «linguajem  árabe;  con- 
fusão de  vozes;  cousa  [melhor  fora  linguajem]  difícil  de  in- 
tender » — . 

O  a  depois  do  r  é  uma  vogal,  como  tecnicamente  se  diz, 
anaptíctica,  ou  intercalar,  desunindo  o  r  do  v  (cf.  o  popular 
carapinteiro,  por  carpinteiro). 

Algarvia,  ou  algaravia,  é  o  árabe  alorbie,  e  quere  dizer 
«o  árabe».  A  primeira  forma  sem  a  vogal  intercalar  figura  em 
um  adájio  citado  por  P.  Adolfo  Coelho,  no  seu  estudo  sobre 
A  Pedagogia  do  povo  poetuguês  ': — «Em  casa  de  mouro 
não  falles  algarvia» — . 

No  Roteiro  da  viagem  de  Vasco  da  Gama  ^  a  palavra 
aravia  tem  o  mesmo  significado :  — « e  alguns  delles  [índios] 
sabem  alguma  pouca  d'aravia» — . 

O  g  está  ali  como  figurando  a  pronúncia  da  18.'"^  letra  do 
abecê  arábico,  o  ^,  que  acima  transcrevi  por  o;  ao  passo  que  em 
Algarve  a  mesma  letra  está  pela  19.%  que  transcrevo  por  y, 
e  que  é  um  g  fricativo  proferido  no  palato  mole:  AL-YaRs  «o 
poente»,  vocábulo  diferente  e  que  só  remotamente  é  afim  de 
oaRaB,  « árabe » . 

Outra  forma  do  vocábulo  algar(a)via  é  algravia,  com  o  a  de 
-gar-  elidido,  citada  por  Bluteau  3,  e  abonada  com  Bernárdez 
■ — «Não  imaginemos  que  ha  aqui  mais  Algr avias,  nem  cousas 
escondidas,  e  secretas».  (Luz  e  Calor,  p.  249) — . 

A  definição  dada  pelo  doutíssimo  lecsicólogo  é  perfeita:  — 
Termo  Arábico,  que  significa  a  lingoa  que  os  Arábios  faliam. — 
Onde  o  Contemporâneo  foi  desencantar  a  significação  que  lhe 
dá,  é  que  ninguém  poderá  descobrir. 

O  derivado  alg(a)raviada  é  mais  usado  popularmente  do  que 
o  primitivo.  Cf.  alarve,  que  significou  «o  árabe». 


1     in  Portugália,  i,  p.  488. 

»     Lisboa,  1861,  p.  46. 

'    Vocabulário  portugubz-latino,  sxib  v.  Algaravia. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


alhora! 

Esta  interjeição,  contraída  provavelmente  de  olhe  ora!,  é  dada 
por  Henrique  Lang  *  como  usada  nos  Açores. 


aliás 


Fêmea  do  elefante:  Frei  Gaspar  de  Santo  Agostinho,  Itine- 
EÁRio  DA  IxDiA,  cap.  XV.  Esta  nota  foi-me  subministrada  pelo 
snr.  Guilherme  de  Vasconcelos  Abreu. 


aljamia,  aljemia;  aljám(i)a? 

A  primeira  forma  é  a  preferida  pelo  arabista  David  López  2, 
e  na  escrita  a  que  se  emprega  em  castelhano;  mas  nos  nossos 
antigos  escritores  parece  que  era  mais  usada  a  segunda.  Duarte 
Núnez  de  Leão,  por  exemplo,  diz:  —  «e  ainda  entre  Mouros,  que 
a  tem  por  sua  algemia  [a  língua  castelhana] » — . 

Denominava-se  assim  o  castelhano,  o  português,  qualquer  das 
línguas  românicas  da  Península  Hispânica,  por  oposição  a  algar- 
via, (q.  V.)  que  era  o  árabe.  A  aljamia,  ou  aljemia,  conforme 
vemos  em  Eguílaz  y  Yanguas  ^  designava  também  o  árabe  cor- 
ruto  falado  pelos  mouros  de  Espanha.  AOGaiiiE  é  o  femenino 
de  AoaaMi,  que  significa  «o  que  fala  língua  [românica],  de 
Espanha»,  e  neste  sentido  o  vemos  empregado  no  trecho  citado 
pelo  douto  arabista  espanhol  — « Ordenamos  i  mandamos  que 
pasados  três  anos,  el  qual  dicho  tiempo  damos  para  que  puedan 


1  KeVISTA   LUSITANA,   II,  p.  52. 

2  Textos  em  aljamia  portugueza,  Lisboa,  p.  189. 

3  Glosario  de  toces  ESP  anglas  de  origen  oriental.  Grana- 
da, 18S6. 


48  Apostilas  nos  Dicionários  Portugueses 


los  Moriscos  aprender  á  hablar  i  escribir  niiestra  lengua  castella- 
na,  qne  diceu  ellos  aljamia  etc.»  Le}^  13,  tít.  2.",  lib.  viii,  Niieva 
Recoi)ilaciÓ7i » — . 

A  palavra  significa  também  «assemblea»,  mas  esta  talvez 
tenha  de  acentuar-se  aljámia,  visto  que  a  forma  dada  por  Viterbo 
no  Elucidário  ó  aljamas,  «congregações». 

aljibe,  aljibé  (?);  aljube 

O  Novo  DiocioNÁRio  inclui  as  duas  formas,  abonando  so- 
mente a  primeira,  que  parece  ser  a  verdadeira.  Outra  abonação 
dela  é  a  seguinte,  em  que  se  contém  a  sua  definição,  como  termo 
de  marinhas  de  sal: — «D'ahi  [a  água  salgada]  passa  para  outros 
[tanques]  menores,  chamados  algibes»  —  K 

A  palavra  já  existia  colijida  em  outros  dicionários,  com  a  sig- 
nificação de  «cisterna  onde  se  recolhe  a  água  da  chuva»,  como 
se  lê  no  Contemporâneo. 

Existe  também  em  castelhano  aV.jibe,  hoje  pronunciado  nl- 
tlihe  -,  e  parece  ser  uma  forma  paralela  de  aljube,  o  qual  em 
árabe  quere  dizer  «calabouço»,  e  propriamente  «furna»  (algubb). 
No  sentido  de  prisão  é  bem  conhecido  em  Lisboa  este  nome,  por 
ser  o  de  uma  cadeia  quási  fronteira  à  do  Limoeiro;  mas  o  vocá- 
bulo continua  a  ter  o  significado  geral  de  «prisão  pública». 

aljofaina 

Esta  palavra,  ou  sem  o  preficso  àl,  simplesmente  jofaina,  que 
significa  no  castelhano  hodierno  «bacia  de  lavar  as  mãos,  a  car^» 
(pronunciada  t[ofáina),  é,  conforme  todos  os  etimólogos,  a  forma 
deminutiva  arábica  auFaiNE,  deminutivo  de  gífne,  «alguidar», 
com,  ou  sem  o  artigo  al. 


1  O  Século,  de  10  de  junho  do  1901. 

2  Y  representa  o  valor  doj  castelhano  actual. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  49 


Não  incluiria  aqui  este  vocábulo,  se  o  não  visse  escrito  no 
artigo  As  Olarias  do  Peado,  de  Kocha  Peixoto  *,  no  seguinte 
passo,  em  que  parece  indicar  ser  português:  —  «Atribuiu-se  o 
moringue  a  uma  importação  da  índia  e  americana,  aos  árabes 
o  alguidar,  a  aljofaina  e  a  almotolia*  — . 


alma 


Esta  palavra,  além  do  sentido  geral  que  expressa,  tem  muitos 
outros,  quer  só  por  si,  quer  acompanhada  de  epítetos,  e  quási 
todos,  se  não  todos,  teem  sido  apontados  nos  dicionários. 

Um  de  que  ainda  não  vi  menção  e  que  é  difícil  perceber  qual 
seja,  encontrei-o  no  seguinte  passo  de  uma  fôIha  diária,  que  há 
muito  tempo  se  converteu  em  mensal,  mudando  a  sua  antiga 
índole  para  outra  mais  conforme  com  o  título  -: — «O  Jornal  de 
Estarreja  conta  o  seguinte  caso :  « Um  d'e&tes  dias  foi  encontrado 
junto  ás  almas  de  Cristello . . .  um  pobre  homem  quasi  nu,  preso 
a  um  pinheiro» — .  i^Qxk  imiíiel  das  almas? 

No  PoBTUGAL  Antigo  e  moderno  ^,  de  Pinho  Leal,  obra  que, 
a  par  de  muitos  desacertos,  contém  muita  matéria  utilíssima, 
procurei  debalde  no  artigo  Estarreja  e  naqueles  para  que  faz 
chamadas,  Antuã,  Beduido,  Laranja,  qualquer  referência  às 
ahnas,  de  que  fêz  menção  o  dito  jornal.  Cf.  alminhas,  q.  v. 


almandra,  almandrilha 

Num  anúncio,  publicado  no  periódico  O  Economista,  de  4  de 
novembro  de  1882,  encontra-se  o  segundo  vocábulo,  não  colijido, 
significando  uma  espécie  de  «contaria»,  ou  «avelório>. 


^    iw  Portugália,  I,  p.  241. 

2  O  Ecoxo MISTA,  de  12  de  agosto  de  1885. 

3  Lisboa,  1873-1886. 


i 


50  A2)osUla8  aos  Dicionários  Portugueses 


Almandra  é  definido  no  Novo  Dicc.  como  vocábulo  antigo, 
com  as  significações  de  « colcha,  alcatifa » ,  que  não  estão  abo- 
nadas, mas  sem  dúvida  foram  adoptadas  do  Elucidário  de 
Viterbo,  onde  se  conclui  com  estas  palavras  a  inscrição:  — 
«Parece  que  Almandra  é  colcha  ou  alcatifa  de  linho  e  lãa. 
Vlide]  Ducangs  v.  Tiretanus-»  — . 

Eguílaz  y  Yanguas  ^  admite  o  vocábulo,  citando  o  Elucida- 
Eio,  e  deriva-o  de  um  arábico  AL-Maxia,  que  seria  o  mantum  a 
que  se  refere  Isidoro  Hispalense  ^,  o  que  não  tem  visos  de  pro- 
babilidade, pois  não  explica  nem  o  d,  nem  o  r.  Parece  ter  rela- 
ção com  alma(n)trixa,  cujo  étimo  está  ainda  por  averiguar,  ape- 
sar do  seu  aspecto  arábico. 

Almandrilha  vem  já  no  Suplemento  ao  Novo  Dicc.  definida 
como  «conta  alongada»,  e  abonada  com  Capelo  e  Ivens  ^,  mas  a 
citação  foi  omitida  e  é  assim: — «O  explorador  pode  levar  com- 
sigo  missanga  grossa,  missanga  miúda,  Maria  segunda  (*),  que  é 
indispensável,  cassungo  (*)  de  variadas  cores,  almandrilha  (-) 
apipada  e  riscada» — . 

As  notas  dizem:  —  «(*)  conta  encarnada  pequena,  interior- 
mente branca,  de  0,003  de  diâmetro» — .  «(*)  conta  de  borda- 
do»— .  «(^)  conta  alongada  de  0,01  de  comprido» — . 

O  adjectivo  apipado  « em  forma  de  inpo »  vêmo-lo  também 
aplicado  a  contaria,  junto  ao  substantivo  coral,  em  um  anúncio 
publicado  no  jornal  O  Economista,  de  4  de  novembro  de  1882. 

Almandrilha  parece  não  ter  relação  com  almandra. 


alma-negra,  ou  anjinho 

É  nas  ilhas  da  Madeira  e  de  Porto-Santo  o  nome  de  uma 
ave,  como  vemos  na  valiosa  monografia  do  P.  Ernesto  Schmitz, 


1  Glosario  db  V0CE3  ESPANOLAS  DE  ORiGEN  ORIENTAL,,  Granada» 

188(3. 

2  EtYMOLOGIARUM  SEU  ORIGINUM  LlBRI  XX. 

3  De  Bbnguella  ás  terras  de  Iácca,  Lisboa,  1831,  i,  cap.  i,  p.  6-7. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  51 

iutitulada  Die  Vòoel  Madeiras.  O  nome  desta  ave  na  nomen- 
clatura zoolójica  é,  conforme  o  dito  autor,  Bulweria  Bulweri  ^ 

almanxar;  almeixar,  almeixiar,  almixar,  almexar,  almexiar 

O  Novo  DicioNÁBio  inclui  a  segunda  destas  formas,  com 
chamada  à  primeira,  que  ortografa  almanchar,  mas  que  se  deve 
escrever  almanxar,  se  na  realidade  a  forma  é  lejítima,  e  defiue-a 
do  modo  seguinte :  —  « (prov[incialismo])  logar  onde  se  seccam  os 
figos»  — .  A  escrita  errónea  com  eh  foi  copiada  da  citação  que  já 
vou  fazer. 

Nos  meus  apontamentos  tenho  a  forma  almeixiar,  que  encon- 
trei no  Economista  de  5  de  novembro  de  1885,  em  citação  do 
JoENAL  DA  Manhã,  a  qual  é  assim: — «Roda  depois  para  o  al- 
meixiar onde  é  lançado  em  esteiras  [o  figo]» — . 

O  vocábulo  vem  já  entre  os  aditados  por  Moura  aos  Vestí- 
gios  DA  LINGOA  AEABICA  EM  PoRTUGAL,   dC  JoãO  de  SoUSa  ^,   C 

dá-se-lhe  como  étimo  o  árabe  ALMaNxas,  e  como  definição  a 
seguinte :  —  «O  estendedouro.  Assim  se  chama  no  Algarve  á  eira, 
aonde  se  põem  os  figos,  e  outras  fructas  a  seccar» — . 

O  Glossário  de  Engelmann  e  Dozy  ^  traz  a  forma  almanchar, 
de  Moura,  remetendo  porém  para  almixar  castelhana  (hoje  es- 
crita almijar  e  pronunciada  almiiiar),  usada  na  Andaluzia,  de- 
rivando-a  do  árabe  AL-MixasB,  deduzido  do  radical  xaiiRa — «ex- 
poser  quelque  chose  au  soleil  afin  de  le  sécher » — ,  « expor  ao 
sol  para  secar». 

Dozj  anota  Engelmann,  declarando  lejítima  a  forma  portu- 
guesa almanxar,  procedente  de  outro  verbo  NaxaRa  « estender » , 
e  acrescenta: — «mais  comme  on  étend  les  choses  qu'on  veut  sé- 


1  in  «  Ornithologisches  Jahrbuch  >,  1899,  i  fascículo. 

2  Lisboa,  1830. 

3  Glossairb  des  mots  espagnols  et  portugais  derives  de 
l'arabe,  Leida,  1869. 


52  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 

cher  (Ibn-al-'Anwaii,  i,  669  emploie  le  participe  manchour  en 
décrivant  la  manière  dont  il  faut  sécher  les  figues),  almanchour 
a  reçu  le  sens  de  séchoir,  lieu  oíi  Fon  fait  sécher  les  toiles,  etc. 
(Bocthor) » — . 

O  douto  arabista  diz  mais  que  almixar  deve  ser  corrutela 
de  almanxar,  porque  o  verbo  xarra  no  sentido  de  «secar»  não 
era  popular,  e  porque  a  forma  devera  ser  almaxar  « sequeiro  >, 
e  não  almixar,  que  significaria  «aquilo  com  que  se  seca». 

Seja  como  fôr,  vê-se  que  as  duas  formas  existem,  e  que  a 
segunda  se  deverá  escrever  almixar,  almexar,  almaxar,  ou 
mesmo  almexiar,  mas  não,  almeix(i)ar. 

almeidina 

Esta  palavra,  que  parece  derivada  artificialmente  do  nome 
próprio  Almeida,  veio  no  Economista  de  7  de  agosto  de  1885 
explicada  como  querendo  dizer — «borracha  branca  de  Mossá- 
medes>— . 

almeixar,  almixar 
V.  em  almanchar. 

alminha,  alminhas 

No  singular,  significa  no  Minho  o  «mealheiro  das  almas»  ^; 
no'plural  «painel  das  almas».  V.  almas. 

almuadem,  almuédano,  mK£ZZÍn 

No  Suplemento  ao  Novo  Diccionário  declara-se,  com  razão, 
ser  afrancesada  a  forma  muezzin,  que  para  aí  usam  escritores 
pouco  lidos  em  livros  portugueses  de  boa  nota.  A  forma,  porém, 


1    Arnaldo  da  Gama,  O  Segredo  do  Abbadb,  p.  56. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  53 

que  no  mesmo  dicionário  se  propõe  para  a  substituir  nenhuma 
vantajem  traria,  pois  equivalia  a  trocar  um  galicismo  por  um 
castelhanismo,  sendo  ambos  inúteis  porque  existe  a  forma  portu- 
guesa ahnuadem,  pronunciada  ahnuádem,  ou  niuádem,  sem  o 
artigo,  a  qual  perfeitamente  corresponde  à  arábica  AL-Mua&ÍN, 
« pregoeiro  >.  E  o  indivíduo  incumbido  de  chamar,  do  alto  do 
alcorão  da  mezquita,  os  fiéis  às  rezas  diárias.  O  próprio  autor 
havia  rejistado  no  corpo  do  dicionário  este  vocábulo,  escrevendo-o 
almuhádem,  com  um  h  a  mais. 

Alberto  de  Oliveira  emprega  a  forma  muedãin,  que  é  leji- 
tima,  porém,  inútil,  visto  que  a  palavra  já  de  há  muito  existe 
aportuguesada,  como  disse: — «E  de  repente  surgiram  em  todos 
os  minaretes. . .  os  vultos  direitos  ephantasmaticos  dos  mued- 
dins^  —  ^ 

Cumpre  notar  que  também  emprega  no  mesmo  escrito,  aliás 
de  grande  interesse,  as  formas  minarete  e  soco,  errónea  esta  em 
vez  de  açougue  (q.  v.) 

A  forma  francesa  muezzin,  que  tem  de  ser  pronunciada 
muezine,  e  não  muLeze,  explica-se  porque  a  nona  letra  do  alfabeto 
arábico  é  proferida  por  muitos  barbarescos  defeituosamente  como 
z,  em  vez  de  lhe  darem  o  seu  verdadeiro  valor,  o  do  nosso  d 
entre  vogais,  diferente  do  d  inicial,  a  que  corresponde  a  oitava. 
Por  todas  estas  razões,  e  ainda  porque  o  acento  tónico  é  em  fran- 
cês deslocado  para  a  última  sílaba,  se  vê  que  a  mais  perfeita 
representação  do  árabe  ALMuaSÍN  é  o  português  almuádem. 
A  figura  &  representa  aquela  nona  letra.  V.  muezzin. 


'  almoçadeira 

Em   Caminha   este  vocábulo  significa  o  que   em  Lisboa  se 
chama  chícara  de  almoço. 

A  propósito  de  chícara  veja-se  chávena. 


1    O  Século,  de  23  de  outubro  de  1905. 


54  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


almofada,  almofadinha 

No  sul  do  reino  chama-se  almofada  da  cama,  ou  almofadi- 
nha, ao  que  no  centro  e  norte  se  denomina  travesseira,  isto  é, 
«a  almofada  que  na  cama  se  põe  sobre  o  travesseiro»,  que  em 
francês  se  chama  oreiller. 

Esta  acepção  é  já  antiga,  pois  o  Padre  António  Francisco 
Cardim  no  xvii  século  emprega  o  vocábulo  neste  mesmo  sentido 
— « o  dormir  era  sobre  uma  esteira  velha,  um  pau  ou  pedra  por 
travesseiro  e  almofada» — "*. 


aloés 


Hoje  é  moda  acentuar-se  este  vocábulo,  como  se  fosse  latino, 
áloès,  pronúncia  inadmissível  em  português.  A  acentuação  antiga 
era  aloés,  e  nenhuma  razão  plausível  existe,  que  justifique  o  pe- 
dantismo da  pronúncia  moderna.  Frei  Gaspar  de  Santa  Cruz  es- 
creveu:—  «babosa,  ou  erva  aloés»  —  ^.  Sobre  este  vocábulo  ve- 
ja-se  a  erudita  nota  do  Conde  de  Ficalho  aos  Colóquios  dos  sim- 
ples E  DEOGAS  DA  India,  de  Garcia  da  Orta  ^. 


alojo 

Esta  dição,  talvez  usada  no  sul  com  o  significado  de  «alo- 
jamento», e  muito  bem  formada,  é  um  substantivo  verbal  rizo- 
tónico,  isto  é,  com  o  acento  tónico  sobre  a  última  sílaba  do  ra- 
dical, e  vem  exemplificado  no  seguinte  passo  da  Ethnogeaphia 


1  Batalhas  da  Companhia  dk  Jesus  na  província  do  Japão, 
Lisboa,  1894,  p.  206. 

2  Itinerário  da  Índia,  cap.  ix. 

3  Lisboa,  1892,  vol.  ii,  p.  60  e  seguintes. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  55 


DO  Alto  Alemtejo,  de  J.  da  Silva  Picão  ^: — «com  pateo,  ou 
sem  elle,  ao  rez  do  chão,  outros  com  sobrados,  reuuem  em  ge- 
ral alojo  sufficiente  para  uma  lavoira  mediana» — .  Refere-se  o 
autor  aos  montes,  ou  « casais >,  e  a  citação  contém  abonação 
também  para  a  palavra  sobrado. 

Todo  o  estudo,  que  é  de  muito  interesse,  abunda  em  termos 
e  locuções  locais,  o  que  lhe  dá  grande  valor  como  documento 
lecsicográfico  dialectal. 


aloquete 

E  uma  forma  derivada  com  a  prostético,  variante  da  palavra 
loqiiete,  já  rejistada  em  vários  dicionários,  com  o  significado  de 
«cadeado  de  argola».  A.  A.  Cortesão  abona  a  forma  aloquete, 
com  um  passo  de  Camilo  Castelo-Branco  -. 


alquilar,  alquile 

Tanto  o  primeiro  destes  vocábulos  como  o  segundo  são  cas- 
telhanismos,  significando  o  primeiro  «alugar»,  e  o  segundo  (al- 
quiler),  « aluguer » ,  ou  com  assimilação  do  r  ao  l,  « aluguel » ; 
mas  em  português  tomaram  o  sentido  restrito  de  «alugar»  e 
«aluguer»,  com  relação  a  cavalgaduras.  Modernamente,  alquile 
significa  especialmente  a  pessoa  que  se  ocupa  em  compras,  ven- 
das e  trocas  de  jumentos,  cavalos,  ou  gado  muar;  os  espanhóis 
chamam-lhe  chalán,  os  franceses  maquignon. 

O  vocábulo  alquilé(r)  é  indubitavelmente  arábico,  entanto 
que  o  português  aluguel,  alugar  provém  do  latim  ad-locare, 
com  uma  mudança,  de  o  em  u,  anormal  e  inexplicada. 


1  in  Portugália,  i,  p.  356. 

2  Subsídios  para  um  dicciokário  completo  ...  d  a  LíxauA  por- 
tuguesa, Coimbra,  1900. 


56  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


alquitete 

Este  aportuguesamento  popular  da  palavra  culta  arquitecto 
tomou  já  uma  acepção  especial,  que  lhe  dá  direitos  a  figurar 
nos  dicionários,  como  palavra  independente  e  expressiva.  Eis 
aqui  um  exemplo: — «O  império  dos  mestres  d'obras,  vulgar- 
mente conhecidos  por  alquitetes,  foi  sem  duvida  a  causa  prima- 
ria d'essa  variedade  de  gaiolas  que  por  ahi  se  vêem,  e  a  que  se 
dá  o  pomposo  nome  ò.q  prédios  q  palacetes-» — ^ 


altamado 

Tenho,  sem  abonação,  este  vocábulo  nos  meus  apontamentos, 
como  termo  çaloio,  com  a  significação  «de  tudo,  de  todos,  uns 
por  outros»;  exemplo,  panos  altamaãos,  «de  todas  as  qualida- 
des». Parece  ser  uma  contracção  de  alta  e  mala,  de  que  se  for- 
masse um  verbo  altamar,  do  qual  se  deduzisse  este  particípio 
passivo,  empregado  como  adjectivo. 

Numa  das  Sátiras  do  portuguesíssimo  Nicolau  Tolentino 
lê-se  2; 

Feita  a  geral  cortesia, 
Pé  atrás,  segundo  a  moda, 
Daremos  á  mãe  e  á  tia, 
E  depois  a  toda  a  roda 
Alto  e  maio  a  senhoria. 

O  NOVO  DicciONABio  rejista  a  expressão  altamala,  no  sentida 
de  «à  pressa»,  «sem  escolha»  e  aventura-lhe  como  étimo,  mas 
em  dúvida,  ata  -j-  mala,  o  que  é  inadmissível.  Declarando  o  seu 
autor  que  a  locução  é  antiga,  sem  aboná-la,  é  manifesto  que  não 


1  O  Dia,  de  18  de  julho  de  1905. 

2  Obras,  i,  p.  178. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  57 

podia  ter  por  étimo  uma  palavra  que  é  de  introdução  moderna, 
mala,  e  pouco  empregada  pelo  povo. 


alude 

Este  vocábulo,  usado  por  Gronçálvez  Gruimarães  para  traduzir 
o  francês  avalanche,  é  assim  definido  pelo  douto  professor: — 
« Os  crystaes  ou  frocos  de  neve,  accumulando-se  uns  sobre  os  ou- 
tros no  mesmo  local,  comprimem-se  reciprocamente  em  virtude 
do  seu  peso,  e  agglutinam-se . . .  para  se  formarem  esses  peri- 
gosos aludes  (=fr.  avalanches),  que  se  precipitam  pela  encosta 
da  montanha,  arrastando  com  a  sua  massa  grandes  pedregulhos, 
lascas  de  rochedo  e  tudo  quanto  se  lhes  depara  na  passagem; 
até  que  a  final,  quando  a  temperatura  excede  o  limite  de  O",  a 
fusão  da  neve  torna-se  inevitável,  e  a  agua  passa  a  incorporar-se 
em  qualquer  torrente  ou  ribeira  vizinha,  ao  mesmo  tempo  que  os 
materiaes  sólidos  se  depositam  pela  maior  parte» — . 

A  palavra  aludes  lê-se  no  pé  da  pájina  a  nota  seguinte: — 
« Nas  regiões  montanhosas  da  Hespanha  este  phenómeno  é  desi- 
gnado pela  palavra  alud,  de  emprego  hoje  corrente  na  litteratura 
scientífica,  donde  a  transcrevemos,  por  nos  parecer  mais  conforme 
com  a  índole  da  nossa  língua  do  que  o  fr.  avalanche.  A  palavra 
é  de  origem  árabe,  e  decompõe-se  no  artigo  ai  e  na  raiz  ad  que 
significa  precipitar-se  ou  cair  pesadamente.  Em  italiano  diz-se 
valanga  e  em  ali.  Laivine» — ^ 

Na  Selecta  de  Autoees  franceses  que,  editada  pela  casa 
Aillaud  &  C*  em  1897,  foi  presente  ao  concurso  de  livros  esco- 
lares e  aprovada,  pusera  eu  uma  nota  ao  trecho  n°  20  ^,  extraído 
de  Eliseu  Keclus,  com  o  nome  de  «Une  tourmente  dans  les 
Alpes » . 

Não  sabia  eu  então  que  o  autor  dos  Elementos  de  Geolo- 


1  Elemextos  de  Geologia,  2.*  ed.,  Coimbra,  1897,  p.  167. 

2  p.  146. 


58  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


GiA  tivesse  tido  a  mesma  lembrança,  sem  um  saber  do  outro. 
A  minha  nota  é  assim  concebida  —  <^déblayé  j;ar  les  avalan- 
ches^ varrida  pelas  avalanches.  «Não  há,  ao  que  parece,  vocá- 
«bulo  português  que  traduza  este;  em  castelhano  chama-se-lhes 
<^  aludes,  palavra  que  poderia  passar  para  português.  Avalanche 
«significa  mole  de  neve  e  gelo,  que  vae,  lentamente  ao  princí- 
«pio,  precipitadamente  depois,  deslizando  pela  serra  abaixo  e 
«despedaçando  tudo  que  encontra  no  caminho» — . 

No  singular,  a  adoptarmos  o  vocábulo  espanhol,  teremos  de 
escrever  um  e  final,  alude;  cf.  saúde  com  o  castelhano  salud, 
cidade  com  ciudad. 

Quanto  à  etimolojia  árabe,  parece-me  duvidosa.  A  Academia 
espanhola,  no  seu  Dicionário  dá  como  étimo  o  latim  alfda, 
«pele  curtida»,  o  que  é  absurdo  conio  sentido,  sendo  já  por  si  a 
forma  incompatível  com  a  espanhola. 

Como  abonação  de  alude  em  português,  já  em  sentido  figu- 
rado, temos  a  seguinte: — «era  um  dilúvio,  um  alude  de  pergun- 
tas»—  *. 

Outro  étimo,  alluuium,  que  já  foi  aduzido,  conquanto  sa- 
tisfatório no  significado,  é  formalmente  inaceitável,  visto  como  o 
u  latino  não  poderia  dar  o  d  final  castelhano,  o  qual,  a  ser  latino 
o  étimo,  pressupõe  uma  terminação  -utem;  cf.  salud  |  salutem. 

alustre 

Em  Bragança  usa-se  este  vocábulo  no  sentido  de  «relâm- 
pago» 2. 

alvela,  alvéloa,  arvéloa,  alverôa 

Esta  galantíssima  ave,  que  tantos  nomes  tem,  conforme  as 
rejiões  da  nossa  terra,  é  em  Lisboa  conhecida  pelo  de  arvéloa. 


*    Miss  Tbmpête,  tradução  portuguesa,  ii  parte,  xi,  in  «  O  Século », 
de  13  de  abril  de  1901. 

2    Kevista  Lusitana,  ni,  p.  67. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  59 


Em  Gil  Vicente,  a  forma  é,  porém,  alvela,  como  vemos  no  Auto 
DAS  Fadas: 

Alvela  —  Esta  avezinha  formosa 
Faz  que  aguarda, 
Mas,  pardeos,  muy  bem  se  guarda ; 

O  que  perfeitamente  condiz  com  o  adájio  citado  por  Bluteau  no 
YocABULAEio  POKTUGUEz-LATixo :  —  « Diz  0  adagio  portuguez, 
Quem  mata  Alveloa,  sabe  mais  que  ella. . . » — No  Voe.  vem  o 
vocábulo  acentuado  como  Alvéola,  isto  é  alvéola,  que  é  a  acentua- 
ção comum ;  mas  o  Novo  Diccionáeio  consigna  uma  forma  alve- 
rôa  como  provincial,  abonando-a  i. 

O  radical  desta  pala^Ta  é,  sem  dúvida,  alvo  \  lat.  albus; 
o  modo  de  derivação,  todavia,  é  difícil  de  explicar.  F.  Adolfo 
Coelho  -,  parte  da  forma  alvela  como  mais  correcta,  de 
alva  -f-  'suficso  ela.  Todavia,  se  confrontarmos  as  formas  haga 
hago  (ant.  bágoo)  com  mágoa  {  macula,  teremos  de  concluir 
que  alvéloa  é  a  forma  inicial  portuguesa,  e  que  deste  modo  o 
seu  étimo  é  obscuro. 


ama 


Esta  palavra,  cuja  identificação  e  orijem  são  problemáticas, 
pois  se  encontra,  com  significações  muito  aprossimadas,  em  idio- 
mas de  famílias  diferentes  e  irredutíveis  a  um  só  tipo,  como  são 
o  vasconço  ama,  «mãe»,  o  hebraico  (A)êM,  <mãe»,  a  par  de 
(A)ãMã,  «serva,  moça»,  e  o  alemão  amme,  «ama  de  leite»  sem 
que  se  possa  supor  proveniência  directa  de  uma  delas  a  respeito 
de  qualquer  das  outras;  esta  palavra,  digo,  além  de  outras  acep- 
ções que  tem  recebido  em  português,  e  das  quais  as  mais  co- 
mims  são  «ama  de  leite»,  e  «patroa»,  adquiriu  no  Brasil  signi- 
ficado enteirameute  oposto  ao  segundo,  e  naturalmente  deduzido 


1  Suplemento. 

2  DlCClONARIO  ETYMOLOGICO  DA  LÍNGUA  PORTUGUEZA,  Lisboa. 


60  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


do  primeiro,  como  se  vê  do  passo  que  vou  transcrever:  —  < Che- 
guei de  regresso  a  casa,  quando  a  nossa  ama  (criada),  veio  cha- 
marme  para  o  jantar»  —  ^. 

Análoga  a  esta  especialização,  e  talvez  orijem  imediata  dela, 
é  a  palavra  ama,  quando  se  emprega  na  locução  ama  de  clérigo, 
ou  na  castelhana  ama  de  llaves,  « governante » ;  funda-se  em  que, 
se  tal  ama  é  serviçal  do  patrão  ou  patroa,  é  por  outra  parte 
quem  governa  a  mais  criadajem. 

Aparentada  com  esta  locução  é  ainda  ama  da  roupa,  que  na 
ilha  de  Sam  Miguel  se  usa  para  designar  « lavadeira »  -. 


âmago,  âmago 

Júlio  Cornu  dá  como  étimo  a  este  obscuro  vocábulo,  cujas 
formas  antigas  cita,  meiagoo,  maiagoo,  maagoo,  meoogo,  meogoo, 
meogo,  o  latim  medius  locus,  «lugar  do  meio»  ^.  A  ser  certo 
o  étimo,  que  na  forma  actual  está  bastante  desfigurado,  temos 
de  supor  que  a  acentuação  actual  é  errónea,  e  que  a  verdadeira 
seria  amâgo.  Não  era  de  estranhar  que,  tendo  saído  do  uso  vulgar 
a  palavra,  os  doutos  a  revivessem  com  erro  de  acentuação,  como 
aconteceu  a  pântano  (q.  v.),  hoje  acentuado  pântano,  não  obs- 
tante a  forma  femenina  pantána,  e  o  castelhano  pântano,  que 
mostram  qual  era  a  verdadeira  acentuação. 


amassaria 

Esta  dição  já  foi  no  Novo  Diccionábio  apontada,  com  o  seu 
significado  de — «casa,  logar  onde  se  amassa  farinha» — mas  sem 


1  «  Bosquejo  de  uma  viagem  no  interior  da  Parahyba  e  de  Pernambuco», 
in  O  Século,  de  8  de  julho  de  1903. 

2  O  Século,  de  5  de  julho  de  1901. 

3  V.  também  Kevista  Lusitaka,  iii,  p.  150. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  61 


abonação.  Está  autorizada  com  o  seguinte  passo  de  J.  Inácio 
Ferreira  Lapa  ^  escritor  douto  e  escrupulosíssimo  na  pureza  e 
propriedade  da  linguajem:  —  «A  amassadura  a  braço  é  geral- 
mente praticada  na  mesma  casa  em  que  se  acha  estabelecido  o 
forno  de  cozer;  algumas  vezes  este  trabalho  veriíica-se  em  casa 
contigua  que  tem  o  nome  de  casa  da  amassaria* — . 

Não  é  pois  neolojismo  o  emprego  deste  vocábulo  no  seguinte 
trecho,  que  transcrevo  do  curioso  estudo  de  J.  da  Silva  Picão, 
Ethnogbaphia  do  Alto  Alemtejo  ^: — «Amassaria. — E  a  casa 
do  fabrico  do  pão  de  todas  as  qualidades,  que  se  consome  no 
monte  [casal].  Tomando-se  por  base  a  importância  do  consumo, 
temos  em  primeiro  logar  o  pão  de  centeio,  denominado  marrocate, 
que  se  dá  aos  creados  e  « maltezes » ;  em  segundo  o  pão  de  trigo, 
—  branco  e  ralo,  que  é  respectivamente  para  amos  e  creados  de 
portas  a  dentro;  em  terceiro  e  ultimo,  as  perrumas,  pão  de  fa- 
relos de  centeio  com  que  alimentam  os  cães  de  gado» — . 

Se  perrumas  não  é  aqui  erro  tipográfico  por  perrunas  e  por- 
tanto castelhanismo,  como  outros  da  linguajem  dessa  província, 
pois  em  castelhano  perruna  é  também  — « espécie  de  pan  muy 
moreno  y  grosero,  que  ordinariamente  se  dá  á  los  perros  ^  [cães]; 
se  não  é  erro  tipográfico,  repito,  e  parece  que  não,  pois  o  vo- 
cábulo já  está  rejistado  no  Contemporâneo,  é  êle  uma  forma 
curiosa  do  adjectivo  femenino  perrua,  de  perrum,  substantivado, 
no  qual  se  deu  a  consonantização  do  nasalamento  da  vogal  u, 
como  em  uma  de  ua  j  lat.  una,  em  vez  de  se  dar  a  apócope 
do  a  final,  como  em  commum,  fem.  pelo  antigo  comua,  ou  a 
desnasalização  do  u,  como  em  comua  substantivo,  lua,  antigo 
lua  j  luna,  e  ainda  camoniano. 

Apesar  da  definição  genérica,  dada  no  Novo  Dicc.  parece 
que  o  vocábulo  amassaria  se  não  aplica  ao  local  em  que  se  tra- 


1  Technologia  Eural,  Lisboa,  1868,  p.  233. 

2  in  Portugália,  i,  p.  538. 

'    DicciONARio  DE  LA  LEXGUA  CASTELtiANA,  de  la  Real  Acad.,  Ma- 
drid, 1899. 


62  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 

balha  nas  massas  alimentícias,  visto  que  a  Technologia  Kubal 
não  faz  menção  dele  na  Secção  Aletriaria,  com  que  dá  quási  fim 
ao  livro. 

J.  Leite  de  Vasconcelos  define  a  ^wrruma  do  seguinte  modo : 
- — « pão  feito  de  farelo,  sem  fintar,  de  bagaço,  etc,  para  os  cães 
de  gado» — ^ 

ámbria 

Este  termo  de  gíria,  relativamente  moderno,  não  é  mais  que 
o  castelhano  hambre,  «fome»,  mal  pronunciado,  e  tem  a  mesma 
significação. 

amigo-fechado 
Termo  da  África  Oriental  Portuguesa,  chamuar  (q.  v.). 

amoroso 
No  Minho  e  nos  Açores,  quere  dizer  «liso»,  «macio». 

amuado 

E  palavra  muito  conhecida,  e  muito  usada,  como  significando 
—  «o  que  desgostado  se  afasta,  e  persiste  no  enfado,  sem  mani- 
festar a  causa.  He  próprio  dos  rapazes» — ^. 

Acrescentarei  que  tal  hábito  ainda  é  mais  próprio  das  meni- 
nas, pequenas,  ou  já  crescidinhas. 

E  esta  palavra  o  particípio  passivo  do  verbo  amuar(-se),  e 
também  se  emprega  como  adjectivo,  com  o  mesmo  significado 
virtual  do  verbo  de  que  deriva. 


^    Kbvista  Lusitana,  ii,  p.  36. 

2    E.  Bluteau,  Vocabul.  port.-latino. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  63 


Bliiteau  dá-llie  como  étimo  o  substantivo  mu — « animal  duro 
de  domar > — ,  isto  é,  mulo,  macho;  e  parece  que  é  certo,  por 
pouco  lisonjeira  e  delicada  que  seja  a  expressão,  com  tal  orijem, 
aplicada  a  alguma  das  gentilíssimas  damas  que  teem  a  graciosa 
astúcia  de  se  enfadarem  com  aqueles  a  quem  bem  querem,  e  da 
qual  diz  o  épico  amador: 

Que  se  aqueixa  e  se  ri  num  mesmo  instante, 
E  se  torna  entre  alegre  magoada.  ^ 

Outro  menos  épico,  mas  não  menos  amavioso  e  conhecedor  de 
tam  suaves  astúcias,  o  terno  e  apaixonado  Torquato  Tasso,  falando 
da  maga  Armida  e  do  seu  Keinaldo,  na  Jerusalém  Libertada,  diz: 

Teneri  sdegni,  placide  e  tranquille 
Kepulse,  e  cari  vezzi  e  liete  paci, 
Sosi^iri,  parolette,  e  dolci  stille 
Di  pianto,  e  sospir  tronchi,  e  molli  baci. 

Para  se  consolarem,  as  damas  podem  subordinar  o  verbo 
amuar  ao  francês  moue  (faire  la  moue),  que,  para  ser  mais 
bonito,  basta  que  seja  francês,  conquanto  o  étimo  que  para  esta 
língua  se  lhe  atribui  pareça  ser  também  comparação  com  irra- 
cional, o  holandês  mouwe,  parente  de  meeuive  « gaivota » . 

Tornando  aos  nossos  amuado  e  amuar,  já  o  mesmo  Bluteau 
nos  dá  outro  significado,  ainda  na  língua  comum  usadíssimo,  o 
que  bem  se  vê  na  citação  que  faz: — «Se  o  tumor  Amuar, 
e  não  madurar» — ;  hoje  dizemos  «amadurecer»,  isto  é  «atra- 
sar-se  em  resolver»,  e  neste  sentido,  ou  análogo,  o  vemos  em- 
pregado no  CoMMERCio  DO  PoETO  dc  18  de  julho  de  1885, 
referindo-se  ao  atraso  produzido  pelas  trovoadas  no  amanho  do 
sal: — «E  provável  que  as  marinhas  fiquem  amuadas  por  mais 
quinze  dias» — . 


1    Lusíadas,  ii,  est.  38. 


64  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


amuso 

Neolojismo  que  vemos  indicado  na  Eevista  Lusitana  [ii, 
p.  161],  com  a  significação  «contrário  ás  musas». 


anámica  (adj.  fem.) 

•  Este  adjectivo  vemo-lo  empregado  na  Obra  do  Padre  António 
Francisco  Cardim,  Batalhas  da  Companhia  de  Jesus  na  peo- 
viNciA  DO  Japão  ^: — «o  padre  Gaspar  do  Amaral. .  .  que  neste 
anno  se  applicou  á  lingua  anamica» — ,  isto  é,  à  língua  do 
Annam,  ou  Ananie. 

E  duvidoso  se  a  terminação  am  se  há  de  ler  ali  como  ã, 
ame,  ou  ão.  Conveniente  seria  que  assentássemos  em  pronunciar 
e  escrever  Aname,  para  se  não  confundir  este  nome  próprio 
com  o  comum  anão,  anã,  e  com  tanto  mais  razão,  quanto  é 
certo  que  de  Siam  {=sião,  siã,  ou  siame)  fizeram  os  nossos 
escritores  Siamês  ^,  os  povos  de  Siame,  diferençando  nós  deste 
modo  o  reino  de  Siame,  do  monte  e  castro  de  Sião  em  Jeru- 
salém. 

Teríamos  pois:  anámico  j  aname  \  Aname;  siamês,  siá- 
mico  j  siame  \  Siame;  formas  bem  portuguesas  e  perfeitamente 
deduzidas. 

Disse  que  deveríamos  diferençar  Siame  da  Sião  bíblica,  e 
;assim  o  creio  necessário;  não  porém,  como  já  incautamente  se 
fez,  adoptando  para  a  última  a  forma  Sion,  conquanto  a  latina 
seja  Sion,  copiada  do  grego  siÓn,  transcrição  da  forma  hebraica 
siuM,  porque  a  forma  Sião  já  há  muito  é  portuguesa,  e  foi  em- 


1  Lisboa,  1894,  p.  78. 

2  ihid,  p.  288,  mãe  siame;  Peregrinações,  de  Pernám  Méndcz  Pinto, 
■cap.  LVii,  e  passim. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  65 


pregada  em  rima  por  Luís  de  Camões,  ua  formosíssima  redoudi- 
Iba  que  principia  assim: 

Sobolos  rios,  que  vão 
Por  Babilónia,  me  achei, 
Onde  sentado  chorei 
As  lembranças  de  Sião. 


ancestral:  avito 

Este  barbarismo  tem  a  pouco  e  pouco  penetrado  na  lingua- 
jem pretensiosa  ou  afrancesada  dos  jornais,  e  por,  incúria  de 
certos  escritores,  ainda  mal  até  em  obras  didácticas.  Foi  tomado 
directamente  do  francês  ancestral,  onde  é  neolojismo,  que  Littré 
ainda  não  rejista.  A  palavra  é  inglesa  ances'tral,  derivada  de 
ancesHor,  o  qual  provém  do  francês  antigo  ancestres,  boje  ancê- 
tres  (latim  antecessor).  O  adjectivo  inglês  ancestral  é  assim  defi- 
nido por  Webster: — «relating  or  belonging  to  ancestors  or  des- 
cending  fron  ancestors» — que  se  refere  a  antepassados  ou  Ibes 
pertence,  ou  deles  descende  — :  faz  parte  de  uma  família  de  vocá- 
bulos composta  de  anee^tor,  ancesto' rial,  ancesHral,  ancesHress 
e  an'cestry.  Em  inglês,  pois,  está  muito  bem,  e  em  francês  ainda 
se  tolera.  Em  português,  porém,  é  tam  absurda  a  sua  adopção, 
como  a  do  ridículo  feérico,  também  muito  do  gosto  dos  literatos 
estranj  eirados,  pois  nenbum  radical  português  lhe  serve  de  encosto 
ou  explicação.  O  termo  português  que  Ibe  corresponde,  con- 
quanto latinismo,  é  avito  \  auitus,-a,-um  {  auus,  «avô>,  tanto 
no  sentido  de  «pai  do  pai»,  como  no  de  <avoengo>,  «ascenden- 
te», «  antepassado »,  já  rejistado  como  termo  poético  por  J.  I.  Ko- 
quete  *,  e  no  Contempobajíeo,  que  o  abona  com  Alexandre  Her- 
culano. — « Por  medo  ou  conveniência  haviam  renegado  da  religião 
avita»  — . 


1      DiCTIOXXAIRE  PORTUGAIS-FRAXÇAIS,  Paris,  1855. 


66  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 

Martinho  Brederode  usa  duas  vezes  o  vocábulo  avito  nos  seus 

formosos  poemetos,  intitulados  Sul  * : 

O  Fado,  o  mysterioso,  avito  encanto. 
Das  guitarras,  á  noite,  por  ahi; 
Vozes  de  treva,  tremulas  de  pranto. 
Fontes  gementes,  onde  o  Sol  não  ri! 


Que  choras  tu,  ó  Mar,  que  heróica  historia 
Evoca  a  imprecação  da  tua  voz? 
Es  tu  chorando  a  nossa  avita  gloria, 
És  tu,  ó  Mar,  és  tu  ou  somos  nós? 

O  Novo  DiccioNÁRio  deu-lhe  também  cabida,  assim  como  ao 
extravagante  ancestral,  o  que  é  de  sentir,  pois  o  devera  ter  re- 
pudiado, ou  pelo  menos  criticado  no  Suplemento,  como  fêz  a 
outros  vocábulos  estranj eirados. 


anchão 
Em  Groa  esta  palavra  significa  «boião»  -. 

ancinho,  ancinhar 

Além  da  sua  acepção  usual  de  um  instrumento  rústico,  de 
que  no  Kiba-Tejo  derivaram  o  verbo  encinhar,  equivalente  a  es- 
gravinhar,  e  que  aí  significa  «limpar  com  ancinho»,  designa 
este  vocábulo  na  rejião  do  Mondego  uma  rede,  como  vemos  na 
revista  Portugália  ^i — «Eede  de  suspensão  que  se  emprega 
principalmente  para  a  captura  do  berbigão» — . 


1  p.  86  e  137,  Lisboa,  1905. 

2  <  Revista  Lusitana  >,  vi,  p.  76.  Dialecto  português  de  Goa,  por 
Monsenhor  Rodolfo  Dalgado,  que  lhe  não  aponta  étimo  plausível. 

3  I,  p.  381. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  67 


Sobre  esta  palavra  diz  F.  Adolfo  Coelho,  na  mesma  Revista, 
o  seguinte :  —  «A  palavra .  .  .  é,  creio,  a  mesma  que  a  italiana 
ancino,  croque,  remontando  ambas  a  um  latim  vulgar  hamicinus, 
do  latim  hamus  anzol» — ,  que  o  mesmo  escritor  '  deriva  de 
outro  demiuutivo  de  hamus,  hamiciolus. 

Todavia,  para  ancinho  a  etimolojia  mais  aceitável,  e  já 
proposta,  é  o  latim  uncinum.  Efectivamente,  se  o  étimo  primor- 
dial fosse  hamicinus  para  ancinho,  hamiciolum  para  anzol, 
r;como  se  explicaria  que  do  c  latino,  resultasse  no  primeiro  vocá- 
bulo z,  e  no  segundo,  c,  sendo  em  ambos  os  casos  o  c  pretónico 
em  latim? 

A  favor  de  uncinum  milita  ainda  a  circunstância  de  a  forma 
popular  ser  encinho  no  sul,  incinho  no  centro  do  reino:  cf.  in- 
gàento  e  imhiyo,  por  unguento  e  umbigo. 

Há  outra  consideração  de  maior  peso  ainda,  e  é  a  seguinte. 
De  c  ou  ti  latino  resultou  z  em  português,  logo  que  antes 
daquele  havia  uma  vogal,  o  que  muito  bem  exemplifica  a  pa- 
lavra anzol  \  hamiciolum. 

Se  hamicinum  fosse  o  étimo  de  ancinho  teríamos,  em  vez 
desta  forma  com  c,  outra  com  z,  anzinho,  como  aconteceu  com 
a  citada,  e  também  com  onze,  quinze,  benzer,  cinza,  em  todas 
as  quais  o  c  latino  era  precedido  de  vogal,  undecim,  quinde- 
cim,  beuedicere,  cinicia:  visto  que,  por  exemplo,  uncia 
deu  onça,  sapientia,  sabença,  credentia,  crença,  etc,  porque 
nestes,  cojno  em  ancinho  j  uncinum,  o  c  não  estava  precedido 
de  vogal.  A  conclusão  é  que  hamicinum  não  pode  ser  o  étimo 
de  ancinho,  como  hamiciolum  o  será  de  anzol. 


andejar,  andejo 

O  Novo  DiccioNÁEio  rejista  o  verbo  andejar  no  Suplemento, 
com  o  significado  «vaguear»,  e  abona-se  com  Francisco  Manuel 


ihid,  p.  635. 


68  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


do  Nascimento.  O  adjectivo  andejo  já  estava  incluído  em  outros 
dicionários,  na  acepção  de  « quem  anda  muito »  (Contemporâneo), 
e  em  sentido  figurado  «versátil,  desvairado».  Conforme  informa- 
ção, no  Alentejo  e  em  Coimbra  mulheb  andeja  quere  dizer 
«rameira»  e  esta  expressão  tanto  pode  filiar-se  no  sentido  natu- 
ral da  palavra,  e  corresponde  neste  caso  ao  francês  coureuse, 
como  no  figurado  «volúvel,  mudável».  Todavia,  Bluteau  no  Vo- 
cabulário POETUGUEZ  LATINO,  admitindo  a  locução  mulher  an- 
deja, interpreta-a  do  modo  seguinte:  —  «Andeja,  ou  Andeira,  ou 
Andadoura,  Molhar  andeja,  chamamos  vulgarmente  à  que  não 
pára  em  casa,  e  sempre  anda  pella  Cidade,  de  huma  parte  para 
outra» — ,  o  que  perfeitamente  se  harmoniza  com  o  adájio.  Co- 
madre andeja,  não  vou  a  parte  alguma  onde  a  não  veja,  apon- 
tado por  Delicado  ^  e  rejistado  no  Dicionário  publicado  pela 
Academia  de  Lisboa,  vol.  imico. 

andorinha 

Esta  forma  é  explicada  por  F.  Adolfo  Coelho  como  deri- 
vada do  latim  hirundinem,  isto  é  hirundi(ni)na  ^,  e  melhor, 
a  meu  ver,  por  J.  Leite  de  Vasconcelos,  como  um  adjectivo 
hirundinea,  com  metátese  nas  primeiras  sílabas,  hinduri- 
nea,  \  hirundo  ^  igualmente. 

Qualquer  que  seja  dos  dois  étimos  o  preferido,  actuou  em 
ambos  a  influencia  do  verbo  andar. 


aneiro 

Este   adjectivo,   deduzido   em  português   de   ano,   ou   deri- 
vado do  latino  annuarium,  por  annuale  {  annus  (cf.  ja- 


^    Adágios  Portuguezbs,  Lisboa,  1651. 

2  Revista  Lusitana,  i,  p.  135. 

3  ih.  Ill,  p.  268. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  69 


neiro  |  ianuarium),  é  definido,  no  Novo  DiccionAeio,  do  modo 
seguinte: — «dependente  da  maneira  como  correr  o  anno;  con- 
tingente, incerto » — . 

Todavia,  no  trecho  que  se  vai  ler  o  significado  é  bastante 
diferente,  e  não  foi  ainda  apontado,  que  eu  saiba: — «Possuo 
uns  malapeiros  antigos  que  são  anneiros,  isto  é,  dão  muito 
num  anno,  e  no  seguinte  não  dão  nada» — ^ 

Pelo  contrário,  caclaneiro  quere  dizer  « que  produz  cada  ano, 
todos  os  anos». 

Tanto  um  como  o  outro  adjectivo  são  muito  expressivos, 
mesmo  pela  oposição  que  entre  si  apresentam.  V.  cadaneíro, 
em  cada. 

anglicano,  ánglico 

Este  adjectivo,  que  usualmente  só  se  aplica  às  palavras  reli- 
jião,  igreja,  para  significar  igreja  anglicana,  a  oficial  de  Ingla- 
terra, foi  por  Manuel  Severim  de  Faria  empregado  com  o  substan- 
tivo língua,  para  expressar  a  forma  mais  antiga  do  inglês,  que 
sucedeu  ao  anglo-saxão,  e  que  eu  na  Selecta  de  leituras  in- 
glesas ^  denominei  língua  ánglica: — «as  causas  publicas  se  não 
tratassem  senão  na  lingoa  anglicana »  —  ^. 

Os  ingleses  chamam  Anglian  ou  Anglo-Saxon,  ao  que  eu 
denominei  ánglico  ou  língua  ánglica,  idioma  germânico  usado 
entre  meados  do  século  vi  e  meados  do  xii,  abranjendo  portanto 
seiscentos  anos. 

ani(e)lado 

Xo  « Archeologo  Português »  *  era  um  artigo  de  José  Pessanha 
intitulado  O  Cálix  de  oueo  do  Mosteiro  de  Alcobaça,  faz-se 


1  Gazeta  das  Aldeias,  1905,  p.  247. 

2  Discursos  políticos,  in  «Dicc.  da  Academia  >,  i,  xxx,  col.  2. 

3  Lisboa,  1897,  p.  287. 
*  v,p.  3. 


70  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


menção  de  «um  tecido  de  ouro  anilado* — .  É  evidente  que 
anilado  está  por  anielaão,  isto  é,  esmaltado,  e  que  em  anilado 
se  deu  a  absorção  do  e  átono  no  i  igualmente  átono.  Anielado 
é  o  particípio  passivo  do  verbo  anielar,  mal  formado  do  subs- 
tantivo nielo,  «esmalte  preto >,  que  rejistou  o  Novo  Dicc-ioná- 
Eio,  como  procedente  do  latim  nigella,  o  que  deve  ser  exacto, 
mas  por  intermédio  do  italiano  niello. 

Anilado,  como  significando  « esmaltado »,  vem  já  em  Bliiteau  S 
devidamente  abonado  com  um  passo  da  Crónica  de  El-Kei  Dom 
Manuel. 

É  de  estranhar  que  nem  o  Contemporâneo,  nem  o  Novo 
Digo.  rejistassem  o  vocábulo  neste  sentido,  que  também  escapou 
ao  Dicc.  da  Academia. 


anta;  antela,  antinha;  mamoa,  mámua, 

mamuinha,  mamunha,  mamuela,  mamaltar;  montilhão;  madorra; 

orca;  arcainha,  q.  v. 

Sobre  todos  estes  vocábulos,  quer  primitivos,  quer  derivados, 
ver-se  há  com  muito  proveito  o  opúsculo  de  J.  Leite  de  Vascon- 
celos, intitulado  Portugal  pbe-históbico  ^,  páj.  46-48,  para* 
o  qual  remeto  o  leitor  que  deseje  obter  noções  exactas  e  minu- 
ciosas acerca  destes  termos  portugueses  de  nomenclatura  arqui- 
tectónica pre-histórica,  e  das  suas  rigorosas  definições. 

Com  respeito  à  orijem  do  vocábulo  anta,  eis  o  que  nos  diz 
•Guilherme  Smith:  —  «^antae:  pilares  quadrados  que  se  acrescen- 
tavam em  geral  às  paredes  laterais  de  um  edifício,  de  cada  lado 
do  portal,  para  ajudarem  a  formar  o  pórtico.  Earas  vezes  se  en- 
contram estes  termos  [o  latino  e  o  correspondente  grego  paeastá- 
DEs]  no  singular,  porque  o  fim  a  que  se   destinavam  as  antas 


^    Vocab.  port.  lat. 

2     O  número  lOG  (1885)  da  <Bibliotheca  do  povo  e  das  escolas>,  meri- 
tória colecção  do  editor  David  Corazzi,  de  barateza  inexcedível. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  71 


era  que  ficassem  fronteiras  e  sustentassem  as  extremidades  de 
um  mesmo  teto» — '. 


antenal;  mangas  de  veludo 

Este  vocábulo  empregado  como  substantivo,  e  que  propria- 
mente parece  ser  um  adjectivo  substantivado,  derivado  de  antena, 
não  ocorre,  que  eu  saiba,  em  dicionário  algum  da  língua  portu- 
guesa, mas  só  num  bilingue. 

Na  interessante  e  fidedigna  obra  de  Jurien  de  la  Gravière, 
Les  Anglais  et  les  Hollandais  dans  les  mebs  polalees 
ET  DANS  LA  MEK  DES  Indes  ^,  a  páj.  148  do  tômo  I  lemos  o 
seguinte: — «Vers  le  20  mars,  on  avait  vu  beaucoup  de  ces 
oiseaux  de  la  grosseur  d'un  oison  [«patinho»],  que  les  Portugais 
nomment  antenales.  Maintenant  on  était  entouré  de  mangas  de 
veludo, — manches  de  velours, — qu'on  appelle  ainsi  parce  qu'au 
bout  de  leurs  ailes  il  y  a  quelques  marques  noires  imitant  le 
velours,  le  reste  étaat  blanc  et  gris.  La  rencontre  de  ces  oiseaux 
est  un  Índice  certain  qu'-on  n'est  pas  loin  de  la  partie  orientale 
du  Cap  [Cabo  da  Boa-Esperança] » — . 
'     Refere-se  o  autor  à  narrativa  de  Linschoten. 

Se  as  duas  expressões  antenal  (pi.  antenais,  e  não  antena- 
les) e  mangas-de-veludo,  como  denominações  vulgares,  impostas 
provavelmente  por  marítimos,  figuram,  ou  não,  em  escritores  por- 
tugueses do  século  XVI,  ou  posteriores,  e  se  ainda  são  usuais  em 
qualquer  parte  do  reino,  é  o  que  não  ousarei  afirmar,  nem  negar. 
Entendi,  contudo,  não  desaproveitar  a  ocasião  de  tomar  delas 
apontamento,  para  base  de  futuras  indagações.  Apresentarei  mais 
o  seguinte: 


1  G.  Smith,  Smaller  Dictioxary  of  Greek  axd  Eoman  antiqui- 
TiKS,  Londres,  1871. 

2  Paris,  1890. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


No  DicciONÁBio  POETUOUEZ-FBANCEZ  de  J.  I.  Roqiiete  * 
vemos  inserida  a  palavra  antennal,  como  portuguesa,  traduzida 
para  francês  por — «anténale,  albatros:  oiseau  de  mer» — . 

apale 

Esta  palavra,  pertencente  à  língua  dos  cafres  da  Beira,  na 
Africa  oriental,  é  assim  definida  nuns  interessantes  estudos  pu- 
blicados no  Jornal  das  Colónias  *,  acerca  de  usos  e  costumes 
de  Marromeu,  por  Jorje  Epifânio  Berkeley  Cotter,  funcionário  ao 
serviço  da  Companhia  portuguesa: — «Quando  um  ajjale  (rapaz) 
chega  á  edade  de  oito  a  dez  annos» — . 

apanha(s) 

Na  publicação  periódica  Portugália  ^  vem  a  seguinte  des- 
crição do  tear  ordinário,  usado  no  distrito  de  Viana-do-Castelo, 
na  qual  apenas  suprimo  os  algarismos  que  se  referem  ao  desenho, 
que  aqui  não  reproduzo. 

—  «As  duas  pernas  de  prumo  da  frente;  as  à.\\ai^  pernas  de 
prumo  das  costas;  as  duas  ynezas;  os  dois  capiteis;  as  duas 
tramações  dos  capiteis;  os  dois  p)ombos  do  órgão  do  panno;  o 
órgão  do  fiado  ou  das  costas;  o  orgck>  do  peito;  o  órgão  do 
panno;  os  dois  malhetes  do  órgão  do  peito;  os  dois  pombos  do 
órgão  das  costas;  a  roda  dentada  do  órgão  do  panno,  e  sua 
espera;  as  duas  varetas  das  queixas;  a  maçã  ou  pega  das  quei- 
xas; as  duas  peças  das  queixas;  o  eixo  das  queixas;  os  dois 
moitões  para  as  lisseiras;  o  travessão  dos  moitões;  as  quatro 
chavelhas  para  o  órgão  das  costas;  as  duas  apanhas,  premedei- 
ras  ou  pedaes;  o  tempereiro;  os  dois  compostouros ;  as  lisseiras* 


1  Paris,  1855. 

2  30  de  maio  de  1903. 
J    I,  p.  374. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  73 

Aponto  aqui  em  itálico  os  termos  constantes  desta  nomen- 
clatura vulgar,  que  ainda  não  foram  ou  colijidos  em  lécsicos  por- 
tugueses ou  neles  definidos  nestas  acepções;  considerando  não 
rejistados  os  termos  ou  acepções  que  não  figuram  no  mais  com- 
pleto desses  lécsicos,  o  Novo  Diocionábio,  ou  no  Vocabulabio 
PORTUGUEZ  LATINO  de  Bluteau,  tam  rico  em  meudíssimas  defini- 
ções de  termos  vulgares. 

apani(a)guado 

Passando  por  alto  como  inaceitável  a  palavra  jyano  que  o 
NOVO  Diocionábio  propõe  por  étimo  do  verbo  apanicar,  para  o 
qual  remete  apaniguar,  identificando-os,  vejo  que  duas  etimolo- 
jias  teem  sido  propostas  para  o  nome  que  encabeça  este  artigo: 
a  primeira,  por  Duarte  Núnez  de  Leão  ^  a-pan-e-água;  a  se- 
gunda por  F.  Adolfo  Coelho  ^,  exposta  nos  seguintes  termos:  — 
<^(A  pref.  e  thema  pani  pão;  para  a  formação  que  nada  tem  que 
ver  com  agua,  como  suppoz  N.  Leão,  vid.  Apaziguar  e  Sancti- 
guar» — .  Seguindo  este  raciocínio,  vemos  em  Apaziguar,  no 
mesmo  dicionário: — «A  pref.  e  pacificar,  cf.  para  a  forma  apa- 
niguado por  apanificado,  averiguar  de  verificar,  ant.  amorti- 
guar  de  mortificar,  etc. 

Não  seria  muito  fácil  suprir  o  etc,  e  apesar  de  tam  perentó- 
ria  afirmativa,  tanto  amortiguar  de  mortificar,  como  averiguar 
de  verificar  não  são  tam  seguros,  que  não  precisem  larga  expli- 
cação, a  qual  ali  se  não  encontra  em  nenhuma  das  palavras  apon- 
tadas para  confronto,  nem  nas  remissões  feitas  em  san(c)tiguar. 

Ora,  as  formas  averiguar,  santiguar,  apaziguar,  aniortiguAir 
são  naturalmente  erros  de  interpretação  de  gu,  que  do  antigo 
expediente  ortográfico  por  g  passaram  às  ortografias  posteriores, 
alterando  a  pronunciação,  por  má  leitura,  pois  se  o  w  houvesse 


1  Convém  saber:  Origem  da  lingoa  portuguesa,  cap.  viii. 

2  DicciosARio  manual  etymolggico. 


74  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 

de  ler-se,  a  sua  escrita  antiga  teria  sido  guo,  como  em  loguo, 
por  logo,  aguoa,  por  água.  Esta  indução  é  confirmada  pela  cir- 
cunstância de  nenhum  desses  vocábulos  ser  popular,  sendo  dois 
deles  obsoletos,  amortiguar,  santiguar. 

Se  porém  a  todas  essas  dições  se  podem  atribuir  as  formas 
reais  amortigar,  apazigar,  averigar,  santigar,  o  mesmo  não 
acontece  com  apaniguado,  particípio  passivo  aparente  de  um 
verbo  apaniguar,  que  parece  não  existir,  e  cuja  forma  antiga  é 
apaniaguado,  confirmada  pela  castelhana  (a)paniaguado,  de  que 
proveio.  Em  Fernám  Méndez  Pinto  lemos:  —  «E  sem  embargo 
de  tudo  isto  o  padre  [Francisco  Xavier]  se  embarcou  nesta  mesma 
nao  para  a  China,  mas  bem  diiferente  do  que  ouvera  de  yr  se 
fora  com  Diogo  Pereyra,  mas  elle  ficou  em  Malaca,  e  a  nao  foy 
toda  por  conta  do  capitão  e  dos  seus  apaniaguados,  e  com  capi- 
tão posto  de  sua  mão,  e  o  padre  foy  Íngreme,  sem  autoridade 
nenhúa,  ás  esmolas  do  contramestre  e  sem  levar  outra  cousa  mais 
que  só  húa  loba  que  levava  vestida»  —  ^ 

Este  passo  é,  em  todos  os  pontos  de  vista,  de  muito  interesse, 
não  só  por  se  referir  ao  apóstolo  das  índias,  mas  ainda  como 
texto  de  linguajem,  pois  contém,  além  de  outras  locuções  verná- 
culas, o  vocábulo  apaniaguado,  e  Íngreme  num  sentido  muito 
especial,  desusado  hoje,  e  que  talvez  possa  contribuir  para  se 
aclarar  a  sua  orijem  e  verdadeira  acentuação,  pois  a  literária 
íngreme  está  em  oposição  com  a  popular  ingríme. 

A  forma  completa,  pois,  da  palavra  de  que  estou  tratando 
vêmo-la  aqui,  a-pan-i-agua-do,  aportuguesamento  da  castelhana 
(a)-pan-i-agua-do,  visto  que  é  nesta  língua,  e  não  na  portuguesa, 
que  pan  quere  dizer  « pão » .  Assim,  ser  de  alguém  apaniaguado 
equivalia  ao  que  hoje  dizemos  «estar  às  sopas  de  alguém». 

Vê-se  bem  que  tinha  razão  o  grande  humanista  do  sé- 
culo xv-xvi,  D.  Núnez  de  Leão,  e  que  bem  fêz  Bluteau  ^  em 


1  Peregrinação,  Lisboa,  1829,  cap.  ccxv. 

2  Vocabulário  portuguez  latino,  sub.  v.  paniguado. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


O  seguir,  explicando-o  nestes  termos: — «Aquelle  que  como  do- 
mestico da  casa,  recebe  todos  os  annos  do  senhor  delia  alguma 
cousa  para  seu  sustento.  Chama-se  « assim  >  porque  antigamente 
a  ração  do  paniaguado  era  pão  e  agua.  Nos  livros  das  Ordena- 
ções está  Panigado,  e  Apanigado,  mas  o  author  do  Eepertor.  das 
Ordenaç.  diz.  Paniaguado»  — .  D.  Núnez  escrevera,  loc.  cit.: — 
«Apaniguado,  de  pane  et  aqua,  quasi  paniaguado»  — . 

õFoi  isto  uma  conjectura,  um  desejo  de  interpretar  etimoló- 
jicamente  um  vocábulo,  cujo  verdadeiro  sentido  se  perdera  e  cuja 
formação  se  ignorava?  E  esta  a  opinião  de  F.  Adolfo  Coelho,  e 
neste  caso  apanigar  seria  uma  forma  parassintéctica,  um  derivado 
com  preficso  e  suficso. 

Nos  termos  em  que  D.  Núnez  e  Bluteau  a  analisaram  é  ela, 
pelo  contrário,  um  caso,  mais  raro  nas  línguas  românicas,  de  po- 
lissíntese,  isto  é,  uma  palavra  composta,  flecsionada  como  se  fora 
simples,  tal  como,  por  exemplo,  afidalgado  j  fidalgo  }  filho-de- 
algo,  e  em  cuja  composição  os  elementos  estão  em  relação  cir- 
cunstancial. 

Se  analisarmos  os  verbos  citados  por  F.  Adolfo  Coelho,  e  que 
transcrevi  mais  acima,  vemos  claramente  que  em  nenhum  deles 
a  terminação  -guar  está  com  o  radical,  na  mesma  relação,  que 
em  apani(a)guado.  Três  teem  por  primeiro  elemento  adjectivos 
vero,  morto,  santo,  e  significam  «fazer  que  fique  verdadeiro 
morto,  santo».  O  outro  tem  por  base  o  substantivo  _pa2'.  e  quere 
dizer  «fazer  que  fique  em  paz».  Ora,  apaniguar,  ou  apaniaguar, 
se  existisse,  não  equivaleria  a  « fazer  que  fique  (em)  pão » ,  e 
portanto  essa  derivação  que  se  pretende  dar  a  apaniguado  é 
absurda,  comparada  com  a  dos  vocábulos  com  os  quais  se  con- 
frontou. 

Se  as  formas  averiguar,  amortiguar ,  apaziguar,  santiguar 
se  podem  substituir  pelos  seus  equivalentes  formais  e  significati- 
vos verificar,  mortificar,  pacificar,  santificar,  outro  tanto  não 
aconteceria  a  apaniguar,  que  não  corresponderia  a  panificar  no 
sentido,  como  lhe  não  corresponde  na  formação. 

Por  todos  estes  motivos  parece  preferível  adoptar  a  explica- 
ção dada  por  Duarte  Núnez  e  perfilhada  por  Bluteau,  a  qual  é 


7tí  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


exactamente  a  que  os  dicionários  castelhanos  dão  ao  paniguaão  * , 
de  que  procede  o  português  apani(a)guado,  sem  verbo  de  que 
seja  particípio,  mas  como  adjectivo  substantivado. 

Para  confirmação  do  que  fica  exposto  aduzirei  uma  informa- 
ção decisiva.  No  excelente  estudo  de  Paalo  Groussac,  intitulado 
Le  Commentateue  du  Laberinto  [de  João  de  Mena],  lemos  o 
seguinte:  —  «II  s'agit  de  la  petite  rente  appelée  pan  y  agua, 
remplaçant  Tancienue  ration  en  nature  des  chevaliers  pauvres 
(paniaguaãos)  agrégés  à  une  commanderie » — .  í]  em  nota  acres- 
centa, citando  Dormer,  Progeesos  de  la  historia  en  Aragón 
(Çaragoça,  1680,  páj.  540),  um  trecho  da  carta  de  Fernám  Núnez, 
o  Pinciano,  a  Zurita,  em  que  lhe  diz:  —  «De  la  tardanza  de  mi 
libramiento  estoy  en  sospecha  si  ha  venido  alguna  suspensión  de 
Sa  Majestad  [Carlos  v]  en  que  nos  quite  ese  pan  y  agua  que 
nos  daba»  — . 

Creio  ser  decisiva  a  citação. 


aparadeira 

Em  Caminha,  e  provavelmente  em  outras  partes  da  província 
do  Minho,  dá-se  este  nome  a  uma  bandejinha  que  apara  os  pin- 
gos da  vela,  no  castiçal.  É  pois  este  um  termo  excelente  para 
traduzir  o  vocábulo  francês  hohèche,  substituindo-o  em  português. 

Nem  é  de  estranhar  a  formação  e  aplicação  deste  derivado 
femenino  do  verbo  aparar,  visto  que  já  temos  o  correspondente 
masculino  aparador,  que  pelo  sentido  menos  que  aquele  se  liga 
ao  expresso  pelo  verbo. 

aparamentos 

Esta  forma,  equivalente  a  paramentos,  não  vem  rejistada  nos 
nossos  dicionários,  e  está  para  o  substantivo  paramentos,  como 


^     DiCCIONARIO  DE  LA  KbâL.  ACADEMIA,  1S99. 


Apostilas  aoa  Dicionários  Portugueses 


O  verbo  aparamentar,  já  colijido,  para  o  verbo  paramentar. 
Abona-se  com  o  seguinte  trecho  do  Padre  António  Francisco 
Cardim:  —  «preparou-se  a  varanda  de  alcatifas,  e  cadeiras  de 
veludo  bordado  para  os  dois  fidalgos,  outra  diferente  para  o 
embaixador,  posta  na  cabeceira,  com  outros  aparamentos  visto- 
sos»—  ^ 

ápeto,  atom 

O  conhecido  etnógrafo  A.  Tomás  Pírez,  na  revista  Portugá- 
lia ',  publicou  um  seu  estudo  descritivo  dos  amuletos  usados 
pelos  povos  do  concelho  de  Elvas.  Entre  outros  vocábulos  inte- 
ressantíssimos vem  apontado  este  numa  rima  popular: — Onde 
está  o  ap[e]to  e  o  atom  /  não  faz  o  demo  seu  tom.  Antes  diz:  — 
«Usam  o  aipo  e  o  atom  (Talaspia),  mettidos  em  bolsinhas,  ao 
pescoço,  para  preservarem  do  feitiço  e  do  demónio»  — . 

E  singular  esta  forma  ápeto,  e  não,  apto,  a  medida  do  verso 
o  está  indicando,  para  designar  o  aipo,  e  não  atino  com  a  sua 
orijem.  Outro  tanto  direi  de  atom,  que  apresenta  uma  terminação 
rara  no  português  do  sul. 

E  evidente  que  o  grupo  pt  é  inadmissível  em  vocábulos 
de  orijem  popular,  e  por  isso  ou  se  haveria  reduzido  a  ato 
(cf.  atar  \  aptare),  ou  uma  vogal  anaptíctica  desuniria,  como 
desuniu,  as  duas  consoantes  incompatíveis. 

apojar 

Este  verbo  é  usado  no  Algarve,  com  a  pronúncia  apojar 
{ô  átono  na  2.*  sílaba),  e  a  significação  «demorar-se>.  O  étimo 
é  naturalmente  podium,  como  supõe  J.  Leite  de  Vasconcelos  ^. 


1  Batalhas  da  Companhia  de  Jesus  na  província  do  Japão, 
Lisboa,  1894,  p.  50. 

2  I,  p.  618-622. 

3  Revista  Lusitana,  vn,  pag.  107. 


78  Apostilas  aos  Dicioyiàrios  Portugueses 


apolentar 

Este   verbo   está  registado  no  Novo  Dicc,  assim  definido 

—  «engordar  com  polenta» — . 

A  polenta,  no  mesmo  dicionário  é  descrita  do  seguinte  modo; 

—  «papas  de  farinha  com  manteiga  e  queijo  ralado» — ;  e  no 
Suplemento  acrescenta-se — «polendã  o  mesmo  (i^q  polenta.  Em 
Veneza,  é  uma  pasta  grossa,  teita  de  farinha  de  milho  com  água 
e  sal,  e  serve  de  pão  em  certas  refeições.  Parece  que  também 
há  polenda  de  farinha  de  castanhas»  — . 

Efectivamente  a  polenta  que  lá  comi  era  a  que  aqui  se  des- 
creve. Quanto  à  forma  polenda,  é  sabido  que  em  certas  partes 
de  Itália  nd  alterna  com  nt,  ou  o  substitui,  onde  houve  influen- 
cia do  grego  moderno,  no  qual  nt  se  profere  nd,  em  meio  de 
palavra,  ou  de  um  para  outro  vocábulo,  e  como  d  no  princípio 
de  vocábulo. 

O  termo  polenta  já  era  usado  pelos  romanos,  aplicado  a  um 
«mantimento  que  se  fazia  de  farinha  de  cevada  torrada  e  prepa- 
rada de  diversos  modos»  ^ 

Conforme  Petròcchi,  a  forma  mais  usada  é  polenda;  mas 
eu,  em  Veneza,  ouvi  chamar-se-lhe  polenta. 

Não  é  porém  da  poleyita  romana  ou  italiana  que  eu  tratarei 
aqui,  visto  não  ser  tal  nome  conhecido  cá  pelo  povo,  e  se  fiz  a 
citação  referida,  extratada  do  Novo  Diccionáeio,  foi  apenas 
para  pôr  em  dúvida,  visto  não  estar  ali  abonado  o  vocábulo,  a 
existência  do  verbo  apolentar,  com  a  significação  que  lá  se  lhe 
atribui. 

Nos  meus  apontamentos  tenho  o  verbo  apolentar,  colhido  na 
tradição  oral,  como  termo  da  Beira-Baixa,  querendo  dizer  « palpar 


1  Magnum  Lejxicgx,  Lisboa,  1819,  onde  se  abona  com  Ovídio;  Theil 
(DiCT.  LAT.  FR.)  cita  MacTóbio.  V.  também  Septbm  linguarum  Calepi- 
Nus,  1758. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  79 

cora   as   pontas   dos   dedos  a  fruta,  para  experimentar  se  está 
madura». 

E  duvidoso  que  este  verbo  com  tal  significado  se  possa  rela- 
cionar com  o  substantivo  pólen  ta  latino. 


apo(u)sentamento 

E  este  um  dos  poucos  vocábulos  portugueses  em  que  o  cor- 
responde a  au  latino,  sem  derivação  imediata  do  castelhano, 
como  bobo  (q.  v.),  ou  do  latim  popular,  como  j;o6re  J  p  opere, 
por  pauperem.  Outro  é  apoquentar,  e  seus  derivados,  cujo 
étimo  é  jmuco.  Todavia,  é  esta  uma  condensação  moderna  do 
ditongo  ou,  pois  as  formas  antigas  eram  apouquentar,  apousen- 
tar: — «hua  escada  de  pedra  per  bonde  sobem  as  casas  de  apou- 
sentamento  do  dito  castello» — *. 

Outros  vocábulos  são  foz  |  faucem,  afogar  [  effaucare, 
e  poucos  mais  -. 

aquela,  aquelar 

Assim  como  empregamos  o  substantivo  cousa  para  suprir  um 
nome,  que  na  ocasião  nos  não  ocorre  ou  não  sabemos,  e  coiso 
por  pessoa,  do  mesmo  modo  que  os  franceses  usam  machin  \  ma- 
chine,  e  ainda  como  usamos  aquela  por  « afeição » ;  usam  em 
Caminba  aqicela,  querendo  significar  «pessoa  rica>  e  aquelar 
por  «fazer  qualquer  cousa»,  e  em  sentido  restricto  por  « limpar >. 

São  exemplos  da  vitalidade  criadora  que  ainda  possui  a  lín- 
gua na  boca  do  povo  inculto. 


1  Auto  de  posse  do  castelo  de  Sines,  de  24  de  novembro  de  1533,  in 
Archeologk)  português,  X,  p.  101. 

*  V.  J.  Cornu,  Gramraatik  der  portugiesischen  Sprache,  2.''  edição,  in 
Grundriss  der  Romanisch.  Philoi.ogie,  Estrasburgo,  1906,  i,  p.  937. 


80  Aj)ostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


araça,  araça,  araçai 

Esta  palavra,  que  g  Dicc.  Contemporâneo  e  o  Novo  Dicc. 
acentuam  araçá,  e  o  Diotionaire  portugats-prançais  de 
J.  I.  Roqiiete  *  escreve  araçaz,  vêmo-la  escrita  sem  acento  grá- 
fico, araça,  entendendo-se  que  será  lida  aráça,  no  «Bosquejo  de 
uma  viagem  no  interior  da  Parahyba  e  de  Pernambuco»  ^. 
Designa  diversos  vejetais  e  seus  frutos,  e  deve  ser  palavra  indí- 
jena  do  Brasil. 

Como,  porém,  no  Vocabulário  y  Tesoro  de  la  lengua 
GUARANI,  ó  MAS  BiEN  TUPI  ^,  do  Padre  António  Ruiz  de  Mon- 
toya,  ela  figura  na  ii  Parte  com  as  formas  Araçá,  definida  como 
Espécie  de  guayabas,  e  Araçaí,  Arhol  destas  guayabas,  vê-se 
que  a  verdadeira  acentuação  é  a  que  os  dicionários  citados  indi- 
caram. Por  aí  vemos  também  que  o  nome  da  árvore  é  ampliação 
do  nome  do  fruto,  e  portanto  denominação  distinta,  o  que  os 
ditos  dicionários  não  apontam.  A  palavra  não  foi  incluída  no 
DicoioNARio  DE  VOCÁBULOS  BRAziLEiROs,  do  Vizcoudc  de  Beau- 
repaire-Rohan  *. 

aragão,  pai-dos-caixeiros 

Em  uma  correspondência  do  Brasil  lia-se  este  vocábulo,  em- 
pregado como  substantivo  comum  e  explicado  pelo  seguinte  modo: 
— « sino  grande  da  igreja  de  Sam  Francisco  de  Paula,  que  dá 
o  toque  para  se  fecharem  os  estabelecimentos  no  Rio  de  Ja- 
neiro»— .  Outro  nome  que  tem  o  festivo  sino  é  pai-dos-caixeiros. 

Eis  aqui  o  trecho  do  qual  extraí  a  definição: — «O  meu  amigo 
talvez  não  saiba  que  ás  10  horas  da  noite  corre  aqui  um  grande 


1  Paris,  1855. 

2  inO  Século,  de  8  de  junho  de  1900. 

3  Nueva  edición,  Paris- Viena,  1876. 
*  Kio-de-Janeiro,  1889. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  81 


sino  da  igreja  de  S.  Francisco  de  Paula,  o  que  indica  a  hora  a 
que  são  obrigados  a  fechar  todos  os  estabelecimentos  que  não 
teem  licença  especial.  Chamam  geralmente  a  este  toque — o  Ara- 
gão— ,  ou  o  pae  dos  caixeiros.  .  .  a  segunda  [denominação] 
claro  é  que  provém  de  ser  aquella  a  hora  que  os  caixeiros  aca- 
bam a  tarefa  da  noite » — . 

A  orijem  da  primeira  denominação  dá-se  na  mesma  corres- 
pondência por  estas  palavras:  —  «Deriva-se  de  ter  sido  um  chefe 
de  policia  d'aquella  cidade  que  estabeleceu  que  o  sino  corresse 
ás  dez  horas» — ^ 

aragoês,  aragonês 

Hoje  dizemos  aragonês,  limitaudo-nos  a  transcrever  o  caste- 
lhano aragonês,  muito  bem  derivado  de  Aragón,  naquela  língua. 
Na  portuguesa,  porém,  visto  que  o  nome  próprio  de  que  se  forma 
o  adjectivo  está  aportuguesado,  e  bem,  no  uso  comum,  Aragão, 
o  dito  adjectivo  deve  ser  aragoês,  como  se  dizia  e  escrevia  dan- 
tes:—  «Porque  como  os  Aragoeses  que  tem  a  mesma  lingoa  que 
os  castelhanos  » — - . 

A  forma  aragonês  é  um  castelhanismo,  como  o  são  leo- 
nês \  leonês  j  León,  castelhano  \  castellano  \  Castiella,  forma 
antiga,  correspondente  à  moderna  Castilla,  «Castela»,  pois  anti- 
gamente dizíamos  castelão.  Luís  de  Camões,  porém,  usou  da  forma 
espanholada  castelhano : 

Deu  sinal  a  trompeta  castelhana 
Horrendo,  fero,  ingente  e  temeroso 
Ouvi-o  o  monte  Artabro,  e  Guadiana  ^. 

O  nome  próprio  do  rio  é  castelhanismo  também,  pois  a  forma 


•     O  Economista,  de  12  de  agosto  de  1885. 

2  Duarte  Núnez  do  Leão,  Origem  da  lingoa  portuguesa,  cap.  xxv. 

3  Os  Lusíadas,  iv,  28. 
6 


82  Aj)Ostilas  aos  Dicionários  Portugueses 

portuguesa  é  Odiana.  Cf.  Odemira,  Odeceixe,  Odelouca,  nas 
quais  a  palavra  arábica  uad,  «rio»,  está  condensada  em  odi,  ode. 

Com  efeito,  Kui  de  Pina  ^  e  Damião  de  Gróis,  por  exemplo, 
escreveram  Odiana  2,  e  não  Guadiana,  que  a  pouco  e  pouco  se 
foi  difundindo,  a  ponto  de  ser  hoje  a  única  forma,  pelo  menos 
escrita,  em  português. 

O  mesmo  aconteceu  com  Badajoz,  que  dizíamos  Badalhouce, 
escrita  e  pronúncia  mais  conforme  com  a  arábica  naxaLius.  Vê-se 
porém  que  esta  última  designação  geográfica  entrou  em  português 
pelos  olhos,  e  não  pelos  ouvidos,  por  isso  que  pronunciamos  aí  o 
y  e  o  ^^  ao  nosso  modo,  e  não  ao  do  castelhano  actual. 

arcainha;  arquinha 

É  este  mais  um  termo  vulgar  para  designar  a  anta  ou  arca, 
e  Yêmo-lo  assim  definido  era  uma  monografia  intitulada  Mate- 
EiAEs  PARA  o  ESTUDO  DO  POVO  POBTUGUEZ  ^:  — « Os  proprietarios 
e  visinhos .  . .  deram  o  nome  de  arcainhas  aos  monumentos,  e 
também  o  applicaram  aos  sitios  em  que  se  achavam» — . 

Arcainha  parece  ser  um  deminutivo  de  arca,  mas  diferente 
de  arquinha,  que  tem  a  significação  de  « maquineta » — « deu 
uma  arquinha  de  prata,  para  estar  nella  um  Santíssimo  Sacra- 
mento»— *.  V.  anta. 

arco  celeste,  arco-da-velha,  arco-da-chuva, 
arco-de-Deus,  arco-íris 

A  primeira  destas  denominações  é  erudita,  como  a  última,  e 
coincidem  ambas  com  as  castelhanas,  igualmente  cultas.  O  nome 


1  Crónica  de  Dom  Afonso  v,  cap.  138. 

2  Crón.  de  El-rbi  Dom  Emmanuel,  cap.  vi.  V.  também  G.  Viana, 
Ortografia  Nacional,  p.  199.  Lisboa,  1904. 

J    in  Portugália,  i,  p.  13. 

*    O  Archeologo  português,  V,  p.  3. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  83 

vulgar  em  português  é  no  continente  arco-da-veJha,  que  Fr.  Heitor 
Pinto  *  explica  haver  sido  dado  —  «porque  na  Lei  velha  disse 
Deus  que  nas  nuvens  poria  este  arco  por  sinal  de  paz  entre  si 
e  os  homens»  — .  Assim  será;  mas  nesse  caso  teria  esta  deno- 
minação também  orijem  não  popular. 

Os  outros  dois  nomes,  arco-de-Deus  e  arco-ãa-chuva,  vêem 
apontados  pelo  Dr.  Hugo  Schuchardt  nos  Estudos  Crioulos  ^ 
sendo  o  primeiro  análogo  ao  explicado  por  Heitor  Pinto,  porém 
menos  artificial,  e  o  segundo  de  carácter  enteiramente  popular, 
que  por  si  mesmo  se  explica.  Não  sei  se  algum  deles  é  também 
usado  no  reino, 

areisco,  arisco 

Este  adjectivo,  cuja  orijem  é  o  substantivo  areia  (cf.  pedrisco, 
de  pedra),  é  hoje  quási  somente  empregado  em  sentido  translato, 
equivalendo  a  «rebelde»,  «arredio»,  «bravio». 

Como  já  temos  a  locução  terra  areisca,  terra  arisca,  rejistada 
no  Contemporâneo,  e  em  que  o  adjectivo  citado  tem  o  seu  signi- 
ficado natural,  poderíamos  muito  vernaculamente  substantivar 
este  femenino,  subentendendo  a  palavra  (xwdra),  areisca,  ou 
arisca,  usando  deste  adjectivo  substantivado  para  designarmos 
o  que  por  galicismo  se  diz  grés,  e  que  A.  Gonçálvez  Guimarães  ^ 
propõe  se  diga,  com  menos  propriedade,  arenito.  Os  espanhóis 
chamam-lhe  com  muito  acerto  (piedra)  arenisca,  como  chamam 
ao  calcáreo  (piedra)  caliza,  e  eu  tenho  nos  meus  apontamentos 
ainda  outro  nome,  pedra-grão. 

Assim,  se  continuam  os  geólogos  e  os  mineralojistas  a  dar- 
Ihe  nome  francês,  não  é  por  falta  de  nomes  portugueses:  pedra- 
grão,  arenito,  arenisca,  (pedra)  areisca,  pedra  arisca,  os  últi- 
mos dos  quais,  com  serem  portugueses  lejítimos,  coincidem  per- 


»  apud  Bluteau,  Voe.  port.  latin. 
2  Krbolische  Studiex,  IX,  p.  129. 
5    Elementos  de  Geologia,  2.*  ed.,  Coimbra  1897,  p.  130,  n.  g.  v. 


84  Ajyostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


feitamente  com  a  denominação  espanhola  areyiisca,  e  com  a 
inglesa  sandstone,  ou  alemã  sanãstein,  que  ambas  significam 
«  pedra-areia » . 

Poderia  portanto  usar-se  simplesmente  areisca,  como  substan- 
tivo, suprimindo-se  a  palavra  jmdra,  como  aconteceu  a  cantaria, 
que  dantes  era  adjectivo,  pois  se  dizia  pedra  cantaria,  como 
vemos  em  Eui  de  Pina.  —  «E  tanta  ordem  e  diligencia  se  pôs 
nisso  acerca  da  pedra  cantaria,  e  cal,  e  madeira»  —  ^ 


argamassa 

Qualquer  que  seja  o  étimo  deste  vocábulo,  que  também  existe 
em  castelhano,  argamasa,  o  certo  é  que  se  deve  escrever  com 
5.9;  e  não  com  ç,  atenta  a  forma  espanhola,  e  haja,  ou  não,  ali  a 
palavra  massa;  ao  contrário  do  nome  que  dão  a  um  bolo,  maça- 
2)ão,  em  que  tal  vocábulo  não  existe,  pois  em  castelhano  se  diz 
mazapán,  o  que  prova  dever  escrever-se  em  português  com  ç  e 
não  com  ss. 

A  palavra  argamassa,  como  termo  de  calão,  quere  dizer  « co- 
mida», o  que  se  encontra  documentado  pelo  trecho  seguinte: — 
«Lavaram-me,  cortaram-me  o  cabello,  mas  a  respeito  de  arga- 
massa. . .  pão  e  agua,  porque  era  dia  de  jejum» — -. 


arlequim 

No  Suplemento  ao  Novo  Diccionábio  inscreveu-se  este  vo- 
cábulo, como  de  gíria,  com  a  significação  de — «restos  de  carne, 
peixe  ou  de  qualquer  iguaria,  que  ficam  das  refeições,  dos  cria- 
dos das  casas  ricas » — .  Duvido  da  existência  em  português  de 
semelhante  palavra,  que  creio  foi  empregada  numa  afamada  tra- 


1  Crónica  de  El-rei  Dom  Afonso  v,  cap.  cxm. 

2  O  Dia,  de  25  de  setembro  de  1902. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  85 

dução  do  romauce  de  Eugénio  Sué  Os  mistérios  de  Paeis,  na 
qual  se  procurou,  bem  ou  mal,  verter  todas  as  muitas  expressões 
de  gíria  que  ali  se  encontram,  inventando-se  umas,  aportugue- 
sando-se  outras  temeráriamente,  com  o  fim  de  reproduzir,  com 
uma  afectada  e  imajinária  exactidão,  as  locuções  do  argot  francês. 
Ora,  arlequin,  nesse  calão  parisiense,  quere  dizer,  pouco  mais  ou 
menos,  o  que  os  espanhóis  denominam  7-opa  vieja,  isto  é,  con- 
forme a  definição  de  Emílio  Littré :  — « débris  de  repas,  et  sur- 
tout  débris  de  viandes,  ainsi  dit  parce  que  ce  plat,  que  Ton  veud 
pour  la  nourriture  des  animaux  domestiques  et  que  les  pauvres 
ne  dédaigneut  pas,  est  composé  de  morceaux  assemblés  au  ha- 
sard» — '.  O  nome  pois  foi-lhe  imposto  por  comparação  com  a 
vestimenta  dos  arlequins,  feita  de  remendos  de  várias  cores. 


armada 

—  «E  com  elle  [o  visgo]  que  se  apanham  nas  armadas  os 
pintasilgos  e  pintarroxos ...  As  armadas  são  unicamente  feitas 
ás  aves  que  costumam  de  preferencia  pousar  nas  pontas  dos  ra- 
mos»— -. 

Cf.  armadilha,  e  armar  aos  pássaros. 


armamento;  armar,  armado 

Este  substantivo  conhecido,  derivado  do  verbo  armar,  tem, 
além  dos  seus  diversos  significados,  mais  ou  menos  relacionados 
com  o  étimo  primordial  arma,  outro  muito  especial,  exemplificado 
pela  seguinte  definição: — «Curioso  amuleto  composto  de  sino- 
saimão,  meia  lua  e  coração;  deve  ser  de  ferro  ou  aço  e  traz-se 


1      DiCTIONJÍAIRE  DE  LA  LANGUE  FRANÇAI8B,  Paris,  1881. 

*     G.  Pinho,  Ethnographia  Amarantina,  A  Caça,  in  Portugália, 
II,  p.  96. 


86  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 

ao  pescoço  para  preservar  de  ataques  epilépticos» — ^.  Quere 
dizer  «guarnição  completa». 

Armado,  indicando  « vestido  de  armadura » ,  usava-se  dantes 
não  só  com  relação  às  pessoas,  mas  também  aos  cavalos,  cor- 
respondendo neste  caso  ao  qiie  em  francês  se  dizia  barde: — 
«E  saíram  logo  delles  quatrocentos  de  cavalo  em  cavalos  ar- 
naados»  —  -. 

A7'mar  no  sentido  do  francês  monter,  que  modernamente 
por  galicismo  se  traduz  por  montar,  significa  « dispor  e  ligar  as 
peças  de  um  qualquer  maquinismo  (por  exemplo),  de  maneira 
que  fiquem  todas  conjugadas  e  no  seu  lugar». 


armazém 

O  povo  diz  almazém,  e  diz  bem,  mas  já  não  é  tempo  de  re- 
mediar a  emenda  falsa.  Os  nossos  autores  antigos  escreveram 
sempre  almazem,  como,  por  exemplo,  Kui  de  Pina;  —  «foi  en- 
viar-lhe  [ao  infante  Dom  Pedro]  El-rei  [Dom  Afonso  v]  com  muita 
estreiteza  requerer  entrega  das  armas  do  seu  almazem» — ^. 

Este  passo  do  cronista  patenteia  claramente  a  influência  exer- 
cida pelo  vocábulo  arma  na  deturpação  da  palavra  almazem. 

Bluteau,  conquanto  já  rejiste  armazém,  forma  preferida  pelos 
lecsicógrafos  modernos,  dá  a  primazia  à  antiga  forma,  que  é  ainda 
hoje  a  castelhana,  almacén,  do  árabe  AL-Ma^zaN,  ou  AL-ManzaiN  *, 
do  qual  os  franceses  tiraram  também  o  seu  magazín,  com  su- 
pressão do  artigo  al.  A  palavra  árabe  significa  « (casa  de)  arre- 
cadação», e  é  um  substantivo  verbal,  correspondente  à  nossa 
terminação   -ouro,   isto    é,   designa   o   lugar  onde  se  exerce   a 


1  Portugália,  i,  p.  603. 

2  Kui  de  Pina,  CiióxiCA  de  El-rbi  Dom  Afonso  v,  cap.  Cxli. 
^    Crónica  de  El-rei  Dom  Afonso  v,  cap.  xciv. 

*     O  ?/  é  transliteração  da  5.*  letra  do  abecedário  arábico,  equivalente  ao 
;  castelhano  actual. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  87 


acção  expressa  pelo  verbo  de  que  deriva,  convém  saber,  Hazaxa, 
«  arrecadar » . 

Nem  pode  duvidar-se  de  que  a  forma  armazém  sofreu  a 
influencia  do  vocábulo  arma,  visto  que,  se  na  palavra  argola 
o  artigo  arábico  al  está  representado  por  ar,  é  porque  houve 
dissimilação  do  l  da  última  sílaba:  cf.  o  suficso  al,  como  em 
social,  que  passa  a  ar,  quando  no  radical  há  l;  ex.:  regular, 
dissimilação  que  já  se  dava  em  latira. 

O  n  da  palavra  árabe,  que  por  ser  final  passara  em  português 
a  nasalizar  a  vogal  que  o  precedia,  reaparece  no  verbo  armazenar, 
como  acontece  em  vintena  comparado  com  vintém,  em  ajardinar 
comparado  com  jardim. 

A  etimolojia  de  almazém  foi  já  apontada  por  João  de  Sousa  ^ 


aro 


Xa  Beira-Alta,  e  Alto-Minho  é  o  nome  que  se  dá  ao  cmto 
que  circunda  e  aperta  os  queijos  discoides,  e  que  no  sul  se  chama 
«  cincho »  -. 

arrasta,  arrastador 

O  Novo  DicciONÁKio  rejista  o  primeiro  destes  vocábulos  duas 
vezes,  a  primeira  no  corpo  da  obra,  com  a  significação  de  «zorra», 
como  termo  transmontano,  a  segunda  no  Suplemento,  como  pala- 
vra do  Riba-Tejo,  significando  a — « corda  com  que  se  laçam  os 
bois  pelas  hastes».  Y.  corda. 

O  segundo  destes  vocábulos  não  vem,  que  eu  saiba,  especial- 
mente consignado  em  nenhum  dicionário,  e  não  obstante  isso, 
designa  êle  na  ilha  da  Madeira  o  «ascensor». 

E  evidente  que,  tanto  uma  como  a  outra  palavra,  se  derivam 


J-    Vestígios  da  lingoa.  arábica  em  portugal,  Lisboa,  1830. 
^    Revista  lusitana,  ii,  p.  33. 


88  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 

do  verbo  arrastar,  sendo  a  primeira  um  substantivo  rizotónico, 
do  tipo  lavra  }  lavrar,  espera  j  esperar,  a  segunda  um  adjectivo 
verbal  substantivado  como  coador  j  coar,  atacador  j  atacar, 
assentador  j  assentar^  etc. 

Em  castelhano  o  verbo  correspondente  tem  a  fonna  arras- 
trar  j  rastro,  e  nesta  não  se  deu  a  dissimilação  que  observamos 
nas  formas  portuguesas,  com  relação  ao  seu  étimo  latino  ras- 
trum;  rastro  em  português  é  desusado. 

Numa  acepção  especial,  filiada  na  mesma  terminolojia,  há 
em  espanhol  a  palavra  arrastradero,  que  se  aplica  ao  sítio 
por  onde  se  arrastam  para  fora  da  praça-dos-touros  os  ani- 
mais mortos  na  corrida.  Como  é  sabido,  o  suficso  -ero  corres- 
ponde a  -ouro  em  português,  e  designa  o  lugar  onde  se  exerce 
a  acção  expressa  pelo  verbo,  como  em  lavadero  \  lavar,  port, 
lavadouro;  quemadero  [  quemar,  port.  queimadouro  j  quei- 
mar; abrevadero  \  abrevar  «dar  de  beber»,  «abeberar»,  port. 
bebedouro  !  beber. 


(de)  arredio:  arredar 

Esta  locução  adverbial,  formada  com  a  preposição  de  e  o 
adjectivo  arredio,  pronunciado,  em  geral,  arredio,  no  Continen- 
te, o  que  dificulta  a  sua  identificação  com  o  latim  erratiuum 
(Cf.  sadio,  antigo  saadio  \  sanatiuum),  tem  na  ilha  de  S.  Mi- 
guel a  significação  «de  longe»  ^  que  parece  deduzida  da  que 
apresenta  o  verbo  arredar,  o  qual  todavia  se  não  pronuncia  arre- 
dar, mas  sim  arredar. 

Como  em  castelhano  arredar  se  diz  arredrar  \  a  d-  re- 
trare  \  retro  (?),  e  arredio,  ao  contrário,  tem  nesta  língua  a 
forma  radio,  incompatível  com  o  mesmo  étimo,  é  claro  que 
arredio  tem  de  separar-se  de  arredar,  com  o  qual  o  parentesco 
é  apenas  aparente,  sendo  a  coincidência  quási  absoluta  de  forma 


V.  O  SacuLO,  de  5  de  julho  de  1901. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  89 

nas  duas  palavras  arredar  e  arredio  puramente  casual,  conver- 
jéucia  do  efeito  das  leis  fonéticas  que  operaram  nos  seus  étimos 
latinos. 

No  verbo  redrar  \  rutrare  \  rutrum  (?),  ou  de  retro  (?) 
não  se  deu  a  dissimilação  de  que  oferece  exemplo  arredar,  com 
a  perda  do  r  do  grupo  dr  \  tr,  se  o  étimo  oferecido  por  Coelho  ' 
é  certo,  do  que  duvido. 

Em  resumo,  arredio  pode  considerar-se  como  provavelmente 
derivado  de  erratiuum,  o  que  é  corroborado  pelo  castelhano 
radio  (cf.  entrevado  por  entravado),  e  de  todo  independente 
de  arredar,  arredrar,  que  pode  ser  desenvolvimento  de  re- 
drar \  reiterare,  sendo  neste  caso  redra  um  substantivo  verbal, 
rizotónico. 

arredores 

Esta  palavra  tem  no  Algarve  (Lagos  pelo  menos)  uma  acep- 
ção especial,  que  julgo  não  estar  consignada  nos  nossos  dicioná- 
rios, mas  que  vemos  perfeitamente  definida  no  seguinte  trecho: 
—  «A  meia  altura  d'ellas  [mós]  ha  uma  travessa  d'uns  quatro 
dedos  de  largo,  a  rodeal-as,  excepto  no  sitio  em  que  cahe  a  fari- 
nha: chamam-lhe  os  arredores  > — -. 


arrelicas,  arrelíquias 

A  segimda  destas  duas  formas  populares,  a  par  da  culta  re- 
Uquia(s),  e  que  parece  devida  a  se  haver  soldado  a  esta  o  artigo 
a  (cf.  arraia),  é  assim  aduzida  por  J.  Leite  de  Vasconcelos:  — 
« Na  moderna  tradição  portuguesa  não  conheço  amuleto  algum 


1  Dicc.  Man.  Etym.  da  likgua  portugueza. 

2  J.  Núnez,  Costumes  algarvios:  Os  moinhos,  in  Portugália,  i, 
p.  386. 


90  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


craniano;  apenas  tem  voga  as  arrequias  dos  ossos  de  santos, 
trazidas  em  saquinhos  ao  pescoço»  —  ^ 

A  primeira,  redução  do  esdrúxulo  a  vocábulo  parocsítono 
(cf.  povo,  aut.  povoo  I  populum,  hravo  j  barbarum)  está  defi- 
nida, em  sentido  mais  especial,  no  seguinte  passo:  —  «As  arreli- 
CAS.  Um  pequeno  objecto  de  prata,  em  que  estão  promiscua- 
mente  representadas  a  meia-lua,  a  figa,  o  signo-sámão,  o  coração, 
a  chave,  a  argola,  tudo  encimado  pela  effigie  de  Nossa  Senho- 
ra*—2. 

A  escrita  ultra-etimolójica  signo-sámão  não  deve  iludir  qual- 
quer pessoa  que  conheça  a  denominação  dos  dois  triângulos  com- 
binados, o  pentágono,  a  qual  se  pronuncia  sino-sà(i)mão,  e  que 
procede  do  latim  signum  Salomonis,  o  que  é  sabido.  Como 
ninguém  escreve  sino,  sineta,  sineiro,  com  g  nulo,  por  isso 
chamo  àquela  escrita  ultra-etimolójica. 

A  palavra  arrelíquias,  arrelicas  é  semi-erudita,  visto  que  se 
manteve  nela  o  q  latino:  cf.  águia  {  aquila. 

arrenega,  greve,  grevista 

O  vocábulo  francês  greve  tomou  já  foros  de  cidade  em  Por- 
tugal, o  que  não  é  de  estranhar,  pois  o  costume,  bom  ou  mau, 
conforme  o  conceito  ou  o  interesse  de  cada  um,  e  cuja  crítica 
não  seria  apropriada  nesta  simples  resenha  de  palavras  e  locu- 
çõeS;  o  costume,  digo,  veio  de  fora,  e  por  emquanto  ainda  se  não 
enraizou  cá.  Esta  forma  de  protesto  colectivo  e  solidário,  a  que 
os  franceses  chamaram  greve,  do  nome  de  uma  praça,  a  de  Greve, 
onde  se  reuniam  os  ganhões  que  vinham  ajustar-se  para  trabalhar, 
denomina-se  huelga,  «folga»  e  pare,  «parajem»,  em  Espanha,  e 
cá  poderia  chamar-se  {as)sueto  ^.  A  palavra  greve,  porém,  está 


1  Portugal  pre-historico,  p.  36. 

2  Portugália,  i,  p.  019. 

3  —  «Na  quarta-feira  [depois  da  Páscoa]  que  alguns  lentes  considera- 
vam dia  de  sueto  ou  assueto,  como  então  se  dizia  > — .  António  de  Campos, 
Luís  DE  Camões,  in  <0  Século >  de  10  de  julho  de  1900. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  91 


em  perfeita  concordância  formal  com  outras,  como  neve,  breve, 
leve,  e  não  há  pois  motivo,  para  a  rejeitar.  Sucedeu-lhe  como  a 
outro  vocábulo  também  francês,  morgue,  que,  pela  sua  forma  sim- 
ples e  fácil  de  proferir  e  de  conservar  na  memória,  nunca  popular- 
mente será  substituída  pelo  longuíssimo  necrotério^  apesar  de 
que  a  existência  de  cemitério  poderia  favorecer  a  adopção. 

Outro  vocábulo  castelhano  para  designar  sueto,  on  folga,  mas 
que  não  vem  rejistado  no  Dicionário  da  Academia  Espanhola,  é 
huena,  abonado  pelo  trecho  seguinte,  ainda  que  português:  — 
«Era  o  que  faltava,  perderem-se  as  horas  de  buena  a  compor  a 
taiimba»  — '.  ■     - 

Tudo  isto  vem,  ou  não,  a  propósito  de  um  sentido  particu- 
laríssimo, um  tanto  calão,  em  que  vimos  empregado  o  substantivo 
verbal  arrenega  \  arrenegar,  correspondente  popular,  mas  tam- 
bém clássico  do  verbo  renegar,  usado,  por  exemplo,  na  obra  do 
Padre  António  Cardira,  Batalhas  da  Companhia  de  Jesus  na 
província  do  Japão  ^. 

Esse  sentido  particular  induz-se  do  seguinte  trecho: — «E  ou- 
tros dias  anda  a  gente  na  arrenega,  e  não  trabalha» — ^. 

Está  aqui  o  vocábulo,  na  acepção  de  «folga»  ou  «folgança». 

E  sabido  que  arrenegar-se  tem  na  linguajem  familiar  o  si- 
gnificado de  «zangar-se»,  e  que  uma  'pessoa  arrenegada,  é 
aquela  que  facilmente  se  irrita,  que  mostra  mau  modo,  a  quem 
os  franceses  chamam  bourru,  e  os  ingleses  cantankerous. 


arribas 

Conquanto  muito  usado  este  vocábulo,  no  plural  [cf.  riba  e 
(ar)raia],  no  sentido  de  «fragas  à  beira-mar»,  correspondente  per- 


1  Ethnographia  do  Alto- Alentejo,  in  Portugália,  i,  p.  542. 

2  Lisboa,  1894,  p.  64. 

3  O  Dia,  de  30  de  março  de  1903. 


92  Âj)ostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


feito  do  francês  falaises,  não  o  vi  ainda  rejistado,  em  tal  acep- 
ção restrita,  em  nenhum  dicionário  português. 

Usei  deste  termo,  para  traduzir  falaises,  nas  notas  á  Selecta 

DE  AUTOEES  FRANCESES    ',   a  p.    148. 


arrilhada 

Nos  meus  apontamentos,  mas  sem  abonação,  tenho  este  vocá- 
bulo, como  usado  em  Montemor-o-Novo,  com  a  significação  de 
«bico  de  ferro  da  aguilhada». 

Não  está  consignado  nos  dicionários  portugueses,  que  eu  saiba, 
nem  tampouco  em  outra  acepção,  usada,  como  me  informa  o 
editor  deste  trabalho,  desde  Cezimbra  até  a  Nazaré.  E  uma 
espécie  de  raspador  composto  de  ferro  triangular,  de  um  palmo 
de  comprimento,  cuja  base  é  o  gume,  e  em  cujo  vértice  se  insere 
um  cabo  de  madeira:  serve  para  arrancar  da  rocha  a  serrada, 
ou  minhoca  de  água  salgada.  Serve  para  isco  a  serrada. 


arrió,  arriós,  arrioz,  arriol 

A  terceira  destas  formas  é  definida  no  Novo  Diccionáeio 
como  significando — «pedrinha  redonda  com  que  se  joga  o  alguer- 
gue;  pelouro  de  arcabuz».— No  Suplemento  ao  mesmo  copioso  di- 
cionário diz-se  ser — «jogo  de  rapazes  com  a  pedra  do  mesmo 
nome» — ,  equivalendo  portanto  ao  citado  alguergue. 

Como  o  mesmo  dicionário  dá  também  a  forma  arriol  tras- 
montana,  segue-se  que  temos  aqui  um  caso  como  o  de  eirós  \  ei- 
ró \  areola,  e  conseguintemente  a  escrita  arrioz  deve  ser  orto- 
grafia errónea.  Cândido  de  Figueiredo  atribui  ali  ao  vocábulo  um 


Lisboa,  1897. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  93 


étimo  arábico  muito  problemático;  mas  o  outro,  alguergue,  é  sem 
dúvida  de  tal  proveniência. 

,-:Qual  é  porém  a  orijem  de  arrió,  arriós,  ou  arrioh  e  qual 
o  seu  primitivo  significado,  pois  vemos  que  tem  três:  «pedra 
redonda»,  «pelouro  (de  pedra)  para  arcabuz»,  e  um  «jogo  em 
que  figura  uma  pedra  como  elemento » ? 

Vê-se  perfeitamente  que  o  desenvolvimento  de  significação  da 
primitiva  «pedra  esférica»  poderia  ter-se  dado,  por  uma  parte 
aplicando  o  vocábulo  a  qualquer  pedra  redonda,  ou  arredondada, 
por  outra  denominando  o  jogo  pelo  instrumento  dele,  como  dize- 
mos a  malha,  pelo  jugo  da  malha. 

Para  a  investigação  do  seu  étimo  não  é  porém  indiferente  a 
ordem  por  que  se  desenvolveu  a  significação  primordial  desta  pa- 
lavra. 

Como,  para  justificar  a  acepção  de  «pedra»,  não  há  nem  em 
latim,  nem  em  árabe,  nem  em  qualquer  língua  germânica  vocá- 
bulo que  possa  apresentar-se  como  orijem  deste,  que  parece  ser 
antigo  na  língua,  é-nos  lícito  procurá-lo  em  outro  idioma,  do 
qual  o  português  haja  recebido  palavras,  ainda  que  raras,  e  com 
que  estivesse  em  possível  contacto. 

Não  resisto  à  tentação  de,  como  simples  hipótese,  o  conside- 
rar um  dos  poucos  vocábulos  vasconços  que  passaram  a  Portu- 
gal, assim  como  na  realidade  passou  esquerdo,  formas  antigas, 
esquerdo,  escequerdo,  castelhana  izquie^-do,  em  vasconço  ez- 
quer  \  escu,  « mão »  e  oquer,  « torto,  canho » ;  palavra  que  tanto 
em  português  como  em  castelhano  substituiu  as  antigas  dições 
se(e)stro,  siniestro  \  sinistrum,  a  primeira  das  quais  ainda 
perdura  em  port.  como  substantivo,  com  a  significação  de  «bal- 
da», «hábitos  ruins»  e  a  segunda  em  espanhol,  com  a  de  «desas- 
tre». Outra  palavra  de  orijem  vasconça  parece  ser  gualdir  j  ^«7- 
du,  « perder(se) » . 

Neste  idioma  pirenaico  pedra  diz-se  ar7'i,  que  vemos  no  ape- 
lido Arriaga,  procedente  de  Espanha,  e  que  lá  é  também  o 
nome  de  um  lugar  na  província  de  Alava  (ou  Alava,  como  acen- 
tuam os  castelhanos,  ao  contrário  da  acentuação  orijinal),  e  de 
lugarejos  nos  subúrbios  de  Vergara,  Vitória,  Guernica,  tudo  nas 


94  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 

Vascongadas,  onde  também  se  encontra  o  radical  arri  em  Arrio- 
la,  nome  de  povoação  naquela  e  na  de  Guipúzcoa  ^ 

O  suficso  -aga  de  Arriaga  tem  valor  colectivo,  equivalendo 
o  derivado  a  «pedreira,  ou  pedraria,  pedregal»  (V.  em  azi- 
nhaga). 

Se,  porém,  partirmos  da  hipótese  que  a  acepção  primitiva 
haja  sido  «espécie  de  jogo»,  neste  caso  ser-nos  há  inútil  ir  pro- 
curar o  étimo  a  idioma  tam  exótico,  pois  o  temos  muita  à  mão 
na  fonte  principal  do  nosso  vocabulário.  Em  castelhano  o  jogo  a 
que  nos  referimos  denomina-se  rayuela,  forma  deminutiva  de 
raya  «risca»,  do  latim  radia,  plural  de  radium  {oí.  piniien- 
ta  {  pigmenta,  pi.  de  pigmentum),  e  este  nome  procede  do 
traço  ou  risco  feito  no  chão  pelos  jogadores,  e  que  serve  de  meta 
para  a  projecção  da  pedra,  arremessada  com  uma  pancada  de  um 
pé,  emquanto  o  outro  está  no  ar.  Ora,  à  forma  rayuela,  corres- 
ponde em  português  raiola,  ou  rayoula  (cf.  lentejoula  com  len- 
tejuela,  tejolo  com  tejuelo),  e  do  primeiro,  raiola,  com  a  adjun- 
ção do  artigo  a  (cf.  arraia  \  raia),  resultaria  a  forma  arraiola, 
da  qual  proviria  arraio  (cf.  abuela  com  avó),  e  pela  condensa- 
ção do  ditongo  (cf.  rial,  arraial)  arrió,  cujo  plural  arriós,  seria 
ao  depois  tomado  como  singular:  [cf.  eiró(s),  e  a  forma  popular 
poses,  por  pós\  ilhó(s),  ilhós(es),  (q.  v.). 

Como,  porém,  a  palavra  é  masculina,  o  processo  de  deriva- 
ção pode  ainda,  com  menor  probabilidade,  ter  sido  o  seguinte: 
radiolum  \  raiolo,  \  raiol,  j  riol  \  riô,  menos  plausível  visto 
que  por  ele  se  não  poderia  explicar  nem  o  a  inicial,  nem  o 
ó- aberto  (cf.  avô  |  auolum.  Paço  \  palatiolum,  Mostei- 
ro j  monasterioium,  com  Orijó  \  ecclesiola). 

Em  qualquer  caso  a  forma  arrioz,  com  z,  é  injustificável. 


1     «Geografia  General  de  Espana >,  DicciONARIO  de  todos  1,08  pite- 
BLOS  DE  Espana,  Madrid,  1862,  p.  2C,  col.  i. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  95 


arrunhar,  arriunhar,  arrunhar 

É  forma  conveijente  de  dois  vocábulos  euteirameute  dis- 
tintos, 

1.**  arrunhar  \  arruinar. 

2."  arrunhar,  correspondente  ao  proençal  reãonhar,  francês 
royner,  de  aã-roiundeare,  verbo  derivado  de  rotiindum, 
« redondo » . 

Veja-se  Kevista  Lusitana,  ii,  p.  82,  onde  José  Leite  de 
Vasconcelos,  em  nota,  deixou  o  caso  perfeitamente  averiguado, 
acrescentando  mais  a  forma  minhota  arruinhar,  tetrassílabo, 
para  explicar  arrunhar  =  <^  arminhar  ^ ,  e  para  a  qual  deve  ter 
havido  outra  forma  ainda,  intermédia,  arrular. 


artemajes 

Esta  palavra,  popular  uo  Alto-Alentejo,  vem  assim  definida 
no  belo  estudo  de  J.  da  Silva  Picão,  intitulado  Ethnogeaphia 
DO  Alto-Alextejo  *: — «São  para  a  rapaziada  fazer  artemages. 
nome  que  em  calão  local  significa  exercidos  gymnasticos  e  acro- 
báticos » — . 

(altesa)  artesa,  artesão 

No  estudo  de  J.  da  Silva  Picão,  já  por  vezes  citado  aqui,  e 
que  se  intitula  Ethxogeaphia  do  Alto-Alentejo  ^,  vem  este 
vocábulo: — maltesas  de  madeira  e  alguidares  de  barro  para  os 
amassilhos»  — . 

É  corrutela  de  artesa,  que  vemos  rejistado  no  Contemporâ- 
neo, e  no  Novo  Diccionáeio,  mal  escrito  com  z  em  vez  de  s. 


1    ?■«  Portugália,  I,  p.  542. 
*     »i  Portugália,  I,  p.  539. 


96  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 

Em  castelhano,  como  em  português,  artesa,  ainda  que  actual- 
mente com  pronunciação  diversa  dada  ao  s,  quere  dizer:  caixote 
de  quatro  faces  iguais,  que  vai  estreitando  para  o  fundo,  e  serve 
para  amassadouro  do  pão. 

O  étimo  é  desconhecido,  pois  o  grego  ártos  que  se  lhe  atribui 
não  oferece  confiança  alguma.  De  artesa  vem  artesão,  como  termo 
de  arquitectura,  o  qual  também  se  deve  escrever  com  s,  como 
em  castelhano  artesôn. 

arujo 

Em  Trás-os-Montes  é  o  mesmo  que  «argueiro». 
Em  castelhano  orujo  é  o  «bagaço  da  uva». 


arvoar 

Este  verbo  quere  dizer,  conforme  os  dicionários  «entonte- 
cer». D.  Carolina  Michaelis  já  lhe  deu  a  orijem;  é  o  latim  her- 
bulare,  «envenenar»  ^  com  hervas».  Cf.  hervar,  no  mesmo  sen- 
tido, por  exemplo  em  frechas  hervaãas. 


asada,  asado 

A  forma  masculina  deste  adjectivo  substantivado,  como  nome 
de  um  vaso  com  asas,  já  está  consignada  no  Novo  Diccionário, 
e  é  muito  freqiiente  no  norte  do  reino.  A  forma  femenina  parece 
ser  usual  no  Alentejo,  visto  que  a  encontramos  empregada  por 
J.  da  Silva  Picão,  na  Ethnogeaphia  do  Alto-Alentejo  *:  — 
«azadas  para  a  coagulação  do  leite,  para  a  coalhada,  como  vul- 
garmente se  diz»  —  -. 


1  Revista  Lusitana,  i,  p.  298. 

2  in  Portugália,  I,  p.  540. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  97 

Há  aqui  mais  a  rejistar  a  abonação  do  termo  coalhada. 

Parece  que  nem  asada,  nem  asado  são  usados  no  centro  do 
reino,  ou  pelo  menos  em  Lisboa, 

O  Dicionário  da  Academia  define  asado  como  «panela  com 
asas». 

E  sabido  que  asa  é  o  ansa  latino  e  que,  além  do  significado 
deste,  compendia  também  o  de  ala,  que  depois  de  ter  passado  a 
««^desapareceu  enteiramente  do  uso,  visto  que  o  latinismo  ala  tem 
sentido  muito  restrito.  Exemplo  de  aa  ainda  o  encontramos  no 
KoTEiBo  DA  Viagem  de  Yasco  da  Gama  *: — «non  tem  penas 
nas  aas  >  — . 


ascoitar 

Esta  forma  popular  minhota,  correspondente  à  do  sul  escutar, 
forma  antiga  escuitar,  e  como  esta  derivada  do  latim  auscul- 
tare,  é  quasi  igual  à  galega  escoitar,  que  vemos  empregada 
nestes  hiperbólicos,  mas  formosos  versos,  consagrados  por  Alberto 
Garcia  Ferreiro  ^  à  Corimha,  ao  avistar  esta  cidade: 


Chorei,  qu'eu  non  saberia, 
— ;  e  San  Pedro  non  m'escoite ! ,  ■ 
d'e3Coller,  qu'escollería, 
;s'entrar  n-a  Cruna  de  noite 
ou  entrar  n-o  ceo  de  dia! 


Este  elojio  à  formosa  cidade  galega  em  nada  é  inferior  ao 
consagrado  à  risonha  Granada: 


Hízo  Dios  á  la  Alhambra  y  á  Granada, 
Por  si  le  cansa  un  dia  su  morada. 


1  Lisboa,  1861,  p.  U. 

2  Follas  de  papel,  Madrid,  1892. 

7 


98  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


aselha 

Conquanto  este  vocábulo  não  seja  tam  evidentemente  um 
deminutivo  de  asa  como  parece  e  os  lecsicógrafos  modernos  o 
afirmam,  tem  o  significado  de  «asa  pequena  de  vasilha»  no  trecho 
seguinte  ^: — «Manufacturados  os  primeiros  vasos  sob  a  inspira- 
ção floral  ou  dos  fructos,  apodes,  sem  aselhas  e  cabos» — . 

A  acepção  usual  é  «laçada»,  o  que  em  inglês  se  diz  hop,  e 
substitui  a  casa,  para  se  abotoar  um  vestido,  entrando  nela  o 
botão.  J.  Cornu  deriva-o  de  ansicula. 

asneiro,  asneira 

Como  adjectivo  quere  dizer  o  que  procede  de  asno,  «burro». 
O  Novo  DiccTONÁEio  define  assim: — «diz-se  da  besta  que  pro- 
cede de  burro  e  égua,  ou  de  cavallo  e  burra» — .  Não  é  exacta 
a  definição;  a  verdadeira  contém-se  na  seguinte  citação:  —  «Bas- 
taria a  creação  de  algumas  candelárias,  onde  se  ensaiasse  a  crea- 
ção  de  muares  asneiras  (filhas  de  cavallo  e  burra),  muito  mais 
resistentes  a  horse-sieJcness  do  que  as  [muares]  eguariças  (filhas 
de  burro  e  egoa)» — ^. 

Vê-se:  1.°  que  as  bestas  são  muares;  2.°  que  há  diferença, 
determinada  pela  mãe,  que  é  quem  dá  o  nome:  se  é  jumenta,  a 
muar  é  asneira,  se  é  égua,  eguariça. 

Já  Bluteau  mostrava  bem  que  havia  distinção,  ao  citar  Galvão, 
Tratado  da  Gineta: — «As  bestas  muares  egoariças  e  asnei- 
ras-»— ^ 

assedajem 

Este  vocábulo,  ainda  não  incluído  nos  dicionários,  é  assim 
definido  por  Belchior  da  Cruz  no  seu  interessante  estudo  intitu- 


1  Eocha  Peixoto,  As  olarias  do  Prado,  in  Portugália,  i,  p.  229. 

2  Jornal  das  Colónias,  de  15  de  julho  de  1905. 

'    Vocabulário  portugubz  latino,  sub  v.  asneiro. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  99 

lado  <  Industria  caseira  de  fiação,  tecelagem  e  tingidura  de  subs- 
tancias textis  no  districto  de  Vianna  do  Castello»  ^  e  onde  tantos 
curiosos  termos  se  encontram:  —  «A  assedagem  é  uma  operação 
que  tem  por  fim  endireitar  e  apurar  os  filamentos  (do  linho), 
continuando  a  separar  d'elles  quaesquer  substancias  estranhas, 
como  as  arestas.  Faz-se  com  cardas  ou  pentes.  As  cardas  do 
linho  teem  o  nome  especial  de  sedeiros-»  — . 

É  provavelmente  formado  pelo  autor,  derivando-o  natural- 
mente de  assedar,  já  definido  em  vários  dicionários.  Asseda- 
mento  seria  talvez  preferível,  se  assedajem  se  não  divulgou 
ainda. 

assobio;  assobiar,  sobiote 

É  sabido  que  este  verbo  procede  do  latim  ad-sibilare,  e 
que  a  pronúncia  predominante  antes  era  assoviar,  com  v  e  não  b. 
O  o  pelo  i  latino  foi  produzido  pela  influencia  da  labial. 

O  substantivo  assobio,  ou  assovio,  ora  designa  o  acto  de 
«assobiar»,  ora  o  instrumento  com  o  qual  se  produz  o  «assobio» 
soprando,  e  a  que  também  se  chama  apito,  em  castelhano  pito, 
de  orijem  desconhecida. 

Sobiote,  é  um  deminutivo  do  tipo  caixote,  franganote,  ve- 
lhote, e  em  Trás-os-Montes  é  nome  de  um  apito  de  metal,  ou 
de  madeira  *. 

Assobio  d'água,  é  uma  espécie  de  ocarina,  de  barro,  com  a 
qual  se  imita  o  canto  do  cuco  ^. 

assorear,  assoreamento 

Este  verbo  e  o  substantivo  dele  derivado  são  muito  usados 
modernamente,  ora  escritos,  com  ss,  como  considero  ser  a  verda- 


1  in  Portugália,  i,  p.  371. 

2  Trindade  Coelho,  abc  do  povo,  p.  5. 

^    Kochi  Peixoto,  As  olarias  do  prado,  ím  Portugália,  i,  p.  258. 


100  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 

deira  ortografia,  e  mesmo  a  mais  comum,  ora  com  ç,  açorear, 
que  tenho  por  errónea,  pois  é  impossível  que  tais  vocábulos  pro- 
venham de  açor,  ou  de  Açores.  O  étimo,  não  provado,  mas  pro- 
vável, será  a-sorear,  sendo  sorear  uma  contracção  de  so-arear, 
pois  à  preposição  e  ao  preficso  latino  sub  correspondia  no  portu- 
guês antigo  só,  e  não  soh,  que  é  de  introdução  moderna,  talvez 
feita  por  Alexandre  Herculano. 

Eis  aqui  dois  exemplos,  que  abonam  o  verbo  e  o  nome: — 
« O  mar  não  cessa  de  lamber  a  areia  que  forma  a  praia  de  Espi- 
nho. Nas  chamadas  Pedras  do  Brito  deixou  a  descoberto  cacho- 
pos, que  desde  tempos  immemoraveis  se  achavam  assoreados» — '. 

—  «No  anno  de  1895,  em  poucos  mezes  os  assoriamentos 
tomaram  tal  incremento. .  . » — ^. 

No  primeiro  destes  trechos,  vê-se  bem  a  significação  e  a  pro- 
veniência presumível  da  palavra. 

A  hipótese  de  que  em  assorear  haja  como  principal  elemento 
a  palavra  areia  é  corroborada  pelo  facto  de  também  se  empre- 
gar a  expressão  « o  rio  está  areado » ;  cf.  o  francês  ensabler. 


(a)tabefe 

E  um  vocábulo  de  orijem  arábica,  que  em  português  ora 
se  diz  com  o  artigo  arábico,  ora  sem  êle  (cf.  zarcão  e  azarcão); 
designa,  como  é  sabido,  um  preparado  de  leite,  que  o  Dicciona- 
mo  Contemporâneo  descreve  deste  modo: — «massa  formada 
por  manteiga  e  caseína,  levantada,  pela  addição  de  uma  certa 
dose  de  coalheira,  do  soro  do  leite  que  ficou  depois  de  separado 
o  coalho» — . 

Na  Kevista  Portugália  ^  está  abonado  o  termo  como  usado 


1  O  Economista  de  5  de  janeiro  de  1890. 

2  Portugália,  i,  p.  609. 

3  J.  da  Silva  Picão,  Ethnographia  do  Alto-Albmtbjo,  a  p.  540, 
vol.  I. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  101 

no  Alentejo: — «tacho  grande  de  cobre  para  o  alraeice  (soro)  ir 
ao  lume  e  produzir  o  atabefe» — . 

A  palavra  àlmeice,  ou,  segundo  a  forma  mais  usual,  almece, 
é  também  arábica,  AL-Mais,  «soro  de  leite»,  à  qual  a  forma  alen- 
tejana é  mais  fiel. 

atazanar,  atenazar 

Este  verbo  costuma  ser  corrijido  nos  dicionários  em  atenazar, 
como  derivado  de  tenaz. 

O  Novo  DiccioNÁRio,  no  Suplemento,  consigna  a  forma  ata- 
zanar como  a  verdadeira,  e  na  realidade  é  ela  a  única  empregada 
pelo  povo.  Parece  ser  o  árabe  Lâ  Tazaxa(i),  correspondente  ao 
ne  mechaboeris  do  sexto  mandamento  do  decálogo  na  Vulgata. 

Não  é  pois  metátese  de  atenazar,  a  qual  seria  pouco  presu- 
mível, visto  a  palavra  tenaz  ser  do  domínio  popular,  com  esta 
forma,  ou  com  as  de  tanaz,  atanaz,  no  singular,  ou  no  plural 
tenazes,  como  substantivo,  nome  de  um  conhecido  instrumento, 
que  no  uso  actual  melhor  corresponde  ao  francês  pinces,  visto 
que  tenailles  nesta  língua  quere  dizer  torquês.  Todavia,  como 
ferramenta  em  diversos  ofícios,  continua  tenaz  a  ter  os  significa- 
dos antigos,  que  vemos  em  Bluteau  ^ 

No  periódico  do  Porto,  intitulado  A  Eevista,  de  15  de  abril 
de  1905  (ano  ii,  n."  10),  publicou  a  insigne  romanista  D.  Caro- 
lina Michaêlis  de  Vasconcelos  um  interessantíssimo  artigo  acerca 
da  famosa  lejenda,  em  caracteres  góticos  minúsculos,  das  Capelas 
Imperfeitas  do  mosteiro  da  Batalha,  infinitamente  repetida  com 
diversas  variantes  gráficas,  e  que  tem  espertado  a  curiosidade  e 
aguçado  a  sagacidade  de  tantas  pessoas.  Nesse  erudito  estudo 
conclui  a  notável  escritora  pela  interpretação  tãHas  ser ey= tenaz 
serei,  interpretação  que  satisfaz  completamente  ao  sentido,  mas 
deixa  no  espírito  ainda  uns  vizlumbres  de  dúvida,  pois  a  ser 


1     Vocabulário  port.  latino. 


102  Apostilas  nos  Dicionários  Portut/ueses 

aceita,  temos  de  considerar  o  s  (!)  final  de  tenaz  incluído  no  s 
inicial  de  serey,  visto  que  não  é  possível  encontrar  na  lejenda 
mais  que  um  s;  além  disto,  temos  de  admitir  que  um  mesmo 
símbolo  se  há  de  interpretar  no  primeiro  vocábulo  como  a  figura- 
ção emblemática  de  uma  tena^:,  e  no  segundo  por  y,  sendo  eles 
sempre  tam  semelhantes  entre  si.  Na  realidade,  a  hipótese  é 
muito  engenhosa  e  muito  bem  estabelecida;  está  ainda  lonje, 
porém,  de  demonstrada  a  exactidão  dessa  leitura.  O  conceito 
total  do  emblema  e  da  letra  seriam  portanto  correspondentes  à 
conhecida  divisa  italiana  chi  dura  vinee. 

Crawford,  no  curioso  e  ameno  livro  que,  com  o  título 
Teavels  IN  Portugal  e  o  pseudónimo  Latouche,  publicou  em 
tempo,  considerava  a  famosa  lejenda  como  anagramática,  e  en- 
contrava nela  uma  frase  elíptica  latina,  arte  lineis,  devendo 
ler-se,  portanto,  para  esse  efeito  a  segunda  letra  como  sendo  l, 
e  não  «  como  a  quinta. 

No  número  da  citada  Eevista,  correspondente  a  15  de  julho 
de  1905  voltou  a  questão  da  lejenda  a  ser  tratada.  Brito  Rebelo, 
em  data  de  15  de  maio  do  mesmo  ano  expôs  os  resultados 
da  sua  investigação,  a  qual,  é  força  confessar,  deixou  bem  clara  a 
significação  deste  enigma. 

Para  o  erudito  investigador  a  lejenda  não  é  grega,  nem  latina 
nem  portuguesa:  é  francesa,  como  as  de  todos  os  ínclitos  in- 
fantes, e  nesta  língua  cortesã  representa  a  divisa  de  El-Rei 
Dom  Duarte,  fundador  das  Capelas  Imperfeitas,  pois  mandou 
dar  começo  às  obras  delas  em  sua  vida,  começo  que  teve  exe- 
cução. A  lejenda,  que  principalmente  adorna  o  arco  da  entrada, 
enlaçada  nos  ramos  de  hera  que  são  o  motivo  predominante  da 
sua  ornamentação,  mas  que  também  se  vê  em  outras  partes  do 
mosteiro,  é  na  sua  opinião,  difícil  de  refutar,  o  mote  tan  que  seray, 
«emquanto  viver»,  segundo  membro  de  outro  em  cuja  interpre- 
tação Brito  Rebelo  não  foi  a  meu  ver  tam  feliz,  e  que  não  men- 
cionarei aqui.  A  este  resultado  não  chegou  Rebelo  por  exame 
especial  e  detido  das  muitíssimas  repetições  da  célebre  lejenda, 
mas  sim  em  virtude  da  leitura  de  um  documento,  arquivado  na 
Torre  do  Tombo,  e  publicado  após  o  dito  estudo,  o  qual  consiste 


Apostilas  aos  Diciotiãrios  Portugueses  103 

em  uma  quitação  passada  por  Estêvão  Vás,  com  autorização  do 
infante  Dom  Pedro,  a  João  Vasques  Bombarral,  que  exerceu  o 
ofício  de  copeiro  da  Casa  Keal,  e  tinha  confiada  à  sua  guarda 
valiosa  baixela,  cuja  descrição  consta  do  mesmo  documento. 
Como  nas  várias  peças  da  dita  baixela,  além  dos  ornatos  e  lavores 
minuciosamente  descritos,  estava  gravada  a  divisa  francesa  de 
Dom  Duarte  tam  que  seray,  tan  que  serey,  com  diversas  orto- 
grafias, compara  Kebêlo  essa  divisa  com  a  lejenda,  e  conclui 
serem  idênticos  os  dois  letreiros. 

Conquanto  pareça  completamente  explicada  com  esta  aprossi- 
mação  a  lejenda  da  Batalha,  em  um  aviso  citado  no  indicado 
número  da  Kevista  prometeu-se  que  o  conhecido  crítico  de 
arte  Joaquim  de  Vasconcelos  responderia  ao  artigo  de  que  fiz 
aqui  extensa  e  bem  merecida  menção. 

atuado 

J.  Leite  de  Vasconcelos,  no  vol.  ii  da  Revista  Lusitana 
páj.  43,  dá  este  vocábulo  alentejano  como  derivado  de  attenua- 
tum  j  attenuare  i  tenuis.  É  provável  que  a  forma  antiga 
fosse  atuado, 

augueiro,  agueiro 

A  forma  correcta  é  sem  dúvida  a  segunda,  mas  a  primeira, 
com  retrocessão  do  u  de  gu  para  a  primeira  sílaba,  formando 
ditongo  com  «,  é  a  local  popular: — « Accessoriamente  os  oleiros 
das  duas  regiões  [Trás-os-Montes,  e  Minho]  dispõem  ainda  d'um 
augtceiro,  pote  já  inutilisado,  com  a  agua  de  que  carecem  fre- 
quentemente no  trabalho  > — *. 


1    Rocha  Peixoto,  Sobrevivência  da  primitiva  roda  de  oleiro 
EM  Portugal,  in  Portugália,  u,  p.  76. 


104  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


avelar;  avela 

Palavra  que  muitos  dicionários  dão  como  verbo,  significando 
engelhar,  e  nenhum  como  substantivo  comum,  pois  como  pró- 
prio é  bem  conhecido  o  apelido,  que  deriva  de  Avelar,  nome 
de  uma  vila,  de  três  lugares,  de  um  casal  e  de  uma  quinta  ^ 
Ora  avelar,  como  substantivo  comum,  significa,  à  imitação  do 
avellanar  castelhano,  que  também  é  denominação  de  um  casal, 
um  sítio  plantado  de  aveleiras,  e  daí  provieram  os  nomes  de 
povoações  ou  sítios  referidos. 

O  verbo  avelar  deriva  igualmente  de  avelã  (avelanar),  cf. 
acerejar  }  cereja,  e  é  parelho  do  verbo  avellanar  castelhano, 
que  também  quere  dizer  «engelhar,  secar,  como  a  avelã». 'Por 
outra  parte,  avelã  português,  avellana  castelhano  são  o  latim 
auellana,  ou  abellana,  adjectivo  derivado  do  nome  da  cidade 
de  Abella,  ou  Avella,  e  já  os  romanos  chamavam  ao  fruto  da 
aveleira  nux  avellana,  por  o  receberem  daquela  cidade  da  Cam- 
pánia. 

O  verbo  avelar,  querendo  dizer  «melar»,  vêmo-lo  empregado 
neste  trecho: — «As  uvas,  como  a  chuva  chegou  ás  raízes  das 
cepas,  avellaram  e. . .  apodrecem» — -. 

Está,  pois,  aqui  num  sentido  absolutamente  oposto  àquele 
em  que  geralmente  se  emprega,  isto  é,  «encolher  por  falta  de 
umidade». 

Neste  iiltimo  significado  usam  na  ilha  de  Sam  Miguel  o  verbo 
azougar,  aplicando-o  à  fruta  que  começa  a  apodrecer  ^. 

O  Novo  DiccioNÁEio  inclui  o  vocábulo  avela  como  usado  na 
Índia,  com  o  significado  de  « arroz  torrado » .  Nada  tem,  contudo, 


1  João   Maria  Baptista,   Chorographia  Moderna  do   rkino  de 
Portugal,  vol.  vi,  Lisboa,  1878. 

2  O  Século,  de  25  de  setembro  de  1901. 

3  y.  O  Sb€ULO,  de  5  de  julho  de  1901. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  105 


este  termo  com  o  verbo  avelar,  pois  é  palavra  malabar,  como  se 
declara  na  Eevista  Lusitana,  vi,  páj.  77  ^ 

aventar 

Além  das  várias  acepções,  quer  naturais,  quer  figuradas,  já 
rejistadas  nos  dicionários,  cumpre  acrescentar  a  de  «botar  fora», 
usada  no  Alentejo  (Vila- Viçosa). 

avergoar 

No  Novo  DiccioNARio  vem  incluído  este  verbo,  muito  ex- 
pressivo, derivado  de  vergão,  que  o  Coiítempohaneo  define  nos 
termos  seguintes: — «verga  grossa  //  Marca  ou  vinco  resultante 
de  uma  pancada  forte  e  sobretudo  da  que  é  dada  com  vara  ou 
azorrague» — .  A  orijem  do  vocábulo  é  evidentemente  verga,  do 
lat.  virga.  Modernamente,  encontramos  o  verbo  avergoar,  na 
tradução  de  um  conto  não  sei  de  que  autor,  nem  em  que 
língua  escrito,  e  que  em  folhetim  foi  publicado  no  excelente 
periódico  semanal  portuense  Gazeta  das  Aldeias;  intitula-se 
«Os  horrores  da  Sibéria».  O  trecho  é  assim: — «[os  cavalos] 
arremeçaram-se  numa  corrida  furibunda,  soltando  de  quando 
em  quando  roucos  relinchos,  arrancados  pêlo  chicote  que  lhes 
avergoava  as  poderosas  ancas»  — . 

Neste  sentido  ouvi  eu  empregar  outro  verbo  muito  pitoresco, 
já  colijido  no  Nôvo  Dicc,  cardear.  Ouvi  esta  expressão,  há 
vinte  e  tantos  anos,  a  um  cocheiro  de  dilijéncia,  indo  de  jornada 
de  Alcobaça  para  a  Nazaré.  Reparando  eu  nuns  vincos  que  os 
cavalos, ('ôwrro^  lhe  chamava  êle)  tinham  no  pêlo,  preguntei-lhe 
o  que  aquilo  era;  ao  que  me  respondeu:  «estão  cardeados  do 
açoute». 


1    Dialecto  indo-portugués  de  Goa,  por  Monsenhor  Sebastião  Eo- 
dolfo  Dalgado. 


106  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


Aqui  o  verbo  carãear  tem  exactamente  o  mesmo  sentido  que 
avergoar,  isto  é,  «vincar»,  e  a  primeira  acepção  deve  ter  sido 
«fazer  nódoa  negra >,  visto  que  o  adjectivo  cárãeo  significa 
«arroixado,  denegrido»,  correspondendo  ao  castelhano  cárdeno, 
como  o  vemos  empregado  por  Espronceda  no  Diablo  mundo  ^ 

E  de  notar  também  que  a  palavra,  roixo,  que  antes  signifi- 
cava «encarnado»,  hoje  é  pelo  povo  muito  bem  aplicada  à  cor 
que  os  franceses  chamam  víolet,  e  que  por  cá  se  teima  em  arre- 
medar com  violeta,  sem  se  atender  a  que  a  forma  popular  para 
o  nome  da  flor  é  viola,  e  não  violeta. 

Sentido  análogo  e  opposição  semelhante  à  expressada  por  Es- 
pronceda nos  versos  do  Canto  a  Teresa,  no  Diablo  Mundo,  e 
que  acima  citei,  vêmo-lo  entre  a  palavra  roixo  e  a  locução  côr 
de  rosa,  nos  seguintes  do  canto  iv  do  Dom  Jaime,  de  Tomás 
Kibeiro : 

Que  ás  tuas  faces  mimosas 
Combanidas  do  martírio 
Cobriram  frescura  e  rosas 
As  roixas  tintas  do  lírio ! 

Com  o  significado  de  vergão,  existe  o  substantivo  cardeal. 

O  adjectivo  roixo,  como  designando  côr  mais  escura  que  a 
encarnada,  é  muito  usado  em  português,  por  ex.:  roioco-lirio, 
roixo-rei,  roixo-terra,  roixo-túnica,  etc. 

Eeferi-me  á  tradução  de  um  conto,  e  aproveitarei  o  ensejo 
para  algumas  observações  a  este  respeito.  Disse  que  essa  tradução 
é  esmerada,  direi  igualmente  que  nem  sempre  é  feliz;  assim  no 
trecho  que  citei,  furibunda  seria  com  vantajera  substituída  por 
furiosa,  louca,  desordenada,  como  ancas  possantes  é  preferível 
a  poderosas  ancas.  Acrescentarei  ainda:  O  sistema  de  acentua- 


1     Cuando  ya  su  color  tus  lábios  rojos 
En  cárdenos  matices  cambiaban-, 

Quando  já  dos  teus  lábios  o  rubor 
E.n  roixa  e  negra  côr  se  transmudava; 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  107 


ção  adoptado  na.  Gazeta  das  Aldeias  é  o  de  Cândido  de  Figuei- 
redo, convém  saber:  todos  os  esdrúxulos,  todos  os  agudos  termi- 
nados em  vogal  e  os  vocábulos  enteiros  terminados  em  consoante 
acentuam-se  graficamente ;  além  disto  e  e  o  fechados  são  sempre 
marcados  com  o  circunflecso,  para  se  diferençarem  de  e  e  o 
abertos.  Posto  isto,  parece  que  alguns  dos  vocábulos  russos  en- 
tremeados na  descrição  deveriam  ser  marcados  nesta  conformi- 
dade, mas  não  o  são:  izbá,  e  não  isha,  é  a  cabana  dos  campo- 
neses russos,  diigá,  e  não  diiga,  é  em  russo  «arco>,  e  aplica-se 
àquelle  em  que,  por  cima  da  cabeça  do  cavalo,  se  dependura 
uma  campainha.  Semelhantemente,  Fedor  como  está  escrito  pa- 
rece cousa  muito  feia;  isto  nem  é  russo,  nem  português:  em 
russo  diz-se  Fiador,  e  em  português  Teodoro.  Na  mesma  narra- 
ção chama-se  ao  cocheiro  jemskik,  vocábulo  que  não  existe  em 
russo;  cocheiro  diz-se  iamaxchik,  que  se  pronuncia  ièmestchí- 
que:  e  assim  várias  outras  palavras. 

Não  se  cuide,  porém,  que  isto  envolva  grande  censura;  ao 
contrário:  são  pequenos  desprimores  numa  versão  que  é  por 
vezes  primorosa,  e  sempre  feita  com  o  maior  escrúpulo,  e  vasto 
conhecimento  das  riquezas  do  nosso  idioma,  bem  como  aproveita- 
mento discreto  e  abundante  das  suas  rigorosas  propriedades  de 
expressão;  se  assim  não  fosse,  nem  mereceria  a  pena  fazer  men- 
ção aqui  da  versão  a  que  me  retiro. 


azeite,  azeitona,  azeitou  eira 

Estas  palavras,  evidentemente  relacionadas,  figuram  entre  as 
línguas  românicas  unicamente  nas  duas  da  Península  Hispânica, 
a  castelhana,  e  a  galega-portuguesa.  São  arábicas,  significando  a 
primeira,  AL-zarr,  o  mesmo  que  em  português,  e  a  segunda, 
AL-zarruNE,  tanto  o  fruto,  azeitona,  em  castelhano  aceituna, 
como  a  árvore,  que  por  singularidade  tem,  no  português  oli- 
veira, no  castelhano  olivo,  orijem  latina,  oliva,  que  quere  dizer 
o  fruto.  Não  sei  se  jamais  àquela  se  chamou  azeitoneira,  em 
castelhano  aceituno,  como  seria  de  esperar. 


108  Apostilas  aos  Dicionários  Portujueses 

Outro  emprego  da  palavra  azeitona  é  ser  nome  de  uma  ár- 
vore da  África  portuguesa,  boa  para  construções,  de  porte  ele- 
vado, que  chega  ás  vezes  a  25  e  a  30  metros  de  altura  ^ 

Com  relação  aos  vocábulos  azeite  e  azeitona  diz  Alberto  Sam- 
paio, na  sua  erudita  e  curiosa  monografia,  intitulada  As  villas 
DO  Norte  de  Portugal  ^  o  seguinte:  — « admittindo-se  que 
azeite,  sendo  um  termo  especial,  não  só  tornou  óleo  (oleum) 
uma  palavra  genérica,  mas  ajudou  também  a  sustentar  azeito- 
na y> — . 

Ao  nome  da  vila  de  Azeitão,  dá  João  de  Sousa  a  mesma  ori- 
jem. 

Azeite  em  português  tem  emprego  mais  restrito  do  que  em 
castelbano,  pois  apenas  se  aplica  ao  de  oliveira,  ao  de  pur- 
gueira  e  ao  de  peixe,  entanto  que  em  castelhano,  não  só  se  diz 
aceite  de  higados  de  hacalao,  «óleo  de  fígado  de  bacalhau», 
mas  também  se  aplica  a  muitos  outros  óleos. 

Um  adjectivo  derivado  de  azeitona,  azeitonado,  serve  para 
qualificar  certos  peros-camoeses  muito  lustrosos,  que  teem  na 
casca  uma  mancha,  maior  ou  menor,  mais  escura,  que  na  reali- 
dade parece  de  óleo,  e  com  esta  acepção  particularíssima  não 
está  este  adjectivo  rejistado  nos  dicionários  portugueses, 

O  derivado  azeitoneira,  azeitoneiro,  prato  para  azeitonas, 
já  foi  inscrito  em  vários  dicionários. 

De  orijem  arábica  do  mesmo  modo  parece  ser  a  palavra  que 
designa  a  oliveira  brava  zambujo  ou  zambujeiro,  em  português, 
zaNBUG,  acebuche  era  castelhano,  onde  tem  a  mais  o  artigo  al, 
que  também  vemos  no  nome  de  vila  de  Azambuja,  ao  passo  que 
em  zambujal,  azambujal  se  lhe  acrescentou  o  suficso  colectivo 
-al,  como  em  laranjal^  pinhal,  etc.  Dozy  ^  põe  em  dúvida  que 
zaNBUG,  ou  AL-zaNBUGE,  azzombuja,  que  vem  em  Pedro  de  Al- 


1  F.  O  Economista,  d3  õ  de  agosto  de  1885. 

2  in  Portugália,  I,  p.  319. 

5    Globsairb  dms  mots  espagnols  bt  portugais  derives  db 
l'arabe,  Leida,  18tí(3. 


Apostilas  nos  Dicionáríos  Portugueses  109 


calá,  seja  vocábulo  arábico,  opinando  ser  antes  berbere  arabizado, 
o  que  Eguílaz  y  Yanguas  *  refuta,  atribuindo-lbe,  a)  contrariei 
como  étimo  o  latim  acerbus,  o  que  é  enteiramente  infundado. 
E  sabido  que  este  arabista,  de  grande  competência  no  seu  campo 
de  investigação,  a  nenbuma  autoridade  tem  jus  como  romanista, 
e  assim  o  demonstrou  todas  as  vezes  que  a  etimolojias  latinas  se 
referiu. 

João  de  Sousa  ^  deu  a  zamhujo  como  étimo  o  arábico  já 
citado,  e  o  Dicionário  da  Academia  fez  o  mesmo. 

azevinho 

No  Tramagal  esta  palavra  designa  uma  casta  de  uva  muito 
meúda,  que  nunca  cbega  a  amadurecer. 

Na  língua  comum  é  o  nome  de  um  arbusto,  e  como  tal  está 
incluído  em  todos  os  dicionários.  É  uma  forma  deminutiva,  ou 
talvez  antes  adjectival,  correspondente  a  azevo,  de  que  derivou  o 
nome  de  lugar  Azevedo,  e  deste  o  apelido  conhecido. 

F.  Adolfo  Coelho,  Júlio  Cornu  e  outros  dão  como  étimo  de 
azevo,  em  castelhano  acebo,  o  latim  aquifolium,  como  trevo 
de  trifolium.  E  força  porém  confessar  que,  se  pelo  que  respeita 
á  terminação  -evo  já  é  difícil  de  explicar  satisfatoriamente  a  trans- 
formação de  folium,  é  a  bem  dizer  insuperável  a  dificuldade 
que  apresenta  o  primeiro  componente  aqui-,  para  dele  provir 
ace-,  aze-,  e  acebo,  azevo: 

Para  vir  de  lá  até  cá 
Mudou  muito  no  caminho  ^. 


1  Glosario  de  vocês  ESP  anglas  de  ORiOEX  ORiEXTAL,  Granada, 
1886. 

2  Vestígios  da  lingoa  arábica  em  Portugal,  Lisboa,  1830. 

'     Alfana  vient  d'equus  sans  doute. 
Mais  il  faut  avouer  aussi, 
Qu'en  venant  de  là  jusqu'ici, 
II  a  bien  changé  sur  la  route. 


110  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


azinhaga 

Os  nossos  etimólogos  dão  como  orijem  deste  vocábulo  um 
nome  árabe,  que  foi  primeiro  proposto  por  João  de  Sousa  ^  es- 
crevendo porém  Azenhaga,  sem  por  isso  todavia  pretender  que 
tenha  alguma  cousa  que  ver  com  azenha  (q.  v.).  Diz  ser  a  pala- 
vra portuguesa  corrutela  de  uma  forma  arábica  AL-zaNQE,  que 
transcreve  Azzancha,  e  relaciona  com  uma  raiz  verbal  zaxaga, 
«apertar,  estreitar».  Os  mais  dicioaários,  a  começar  no  da  Aca- 
demia, limitaram-se  a  copiar  o  étimo,  com  eh  e  tudo,  sem  darem 
mais  razões  do  seu  dito,  nem  da  mudança  de  símbolo  na  trans- 
crição. 

Ora,  em  português  existe  um  nome  de  árvore  muito  conhe- 
cido, azinho,  em  castelhano  encina,  que  tem  por  orijem  um 
adjectivo  ilicinum,  derivado  de  ilex,  em  latim  com  a  mesma 
significação.  Júlio  Cornu  dá  esse  adjectivo  como  étimo  do  por- 
tuguês azinha,  e  D.  Carolina  Michaêlis  de  Vasconcelos  ^  perfilha 
esta  opinião,  que  me  parece  irrefutável.  Na  forma  castelhana  o  n 
está  pelo  l  da  dição  latina. 

Temos  pois  em  português  as  formas  azinha,  para  o  fruto  e 
para  a  árvore,  azinho,  azinheira,  esta  última  derivada  com  o 
suficso  -eira,  muito  usual  para  designar  árvores,  arbustos,  etc, 
como  em  castanheiro,  a  par  de  castanho,  castanha,  ^pinheiro, 
de  pinho,  pinha,  etc.  É  sabido  que  em  castelhano  se  designa  em 
geral  pela  terminação  -o  a  árvore,  e  pela  terminação  -a  o  fruto, 
por  ex.:  naranjo  e  naranja,  manzano  e  manzana. 

Eesta  averiguar  se  azinhaga  poderá  ser  um  derivado  de 
azinha,  ou  azinho,  que  primeiro  designasse  um  caminho  por 
entre  azinhos,  e  ao  depois  tomasse  o  sentido  menos  especial  de 
«caminho  estreito  entre  árvores»,  e  mais  genérico  ainda,  de 
«caminho  estreito»,  como  aconteceu  com  alameda,  que  primeiro 


1    Vestígios  da  lingoa  arábica  em  Portugal,  Lisboa,  1830. 
*    Ebvista  Lusitana,  iii,  p.  135. 


Apostilas  aos  Diciotiârios  Portugueses  111 


significou  «rua  de  álamos»,  depois  «rua  de  árvores»,  e  por  fim 
«uma  rua»,  «um  caminho»,  o  fr.  allée. 

(íMas  como  se  há  de  explicar  o  suficso  -aga?  Não  existe  ele 
em  mais  nenhum  vocábulo  português  derivado,  pois  mesmo  em 
veniaga  (q.  v.)  é  primitivo.  Creio  ser  o  suficso  vasconço  -aga, 
que  é  colectivo,  e  também  se  aplica  a  arvoredo,  como  em  liçar- 
raga,  «freixeal»,  j  liçar,  «freixo»,  Arteaga,  \  arte  «azinho», 
nome  de  lugarejo  na  província  de  Navarra. 

Cf.  Arriaga  e  v.  arriol. 

Azinhaga,  como  Azinhal  e  Azinhais,  figura  abundante- 
mente na  toponímia  portuguesa,  onde  sem  dúvida  não  quis  o 
primeiro  dizer  «caminho»,  mas  sim  azinhal. 


babaré 

O  Novo  DiocioNAEio  consigna  esta  palavra  como  desusada, 
com  a  significação  de  «rebate,  aviso  de  que  há  ladrões  na  vizi- 
nhança», e  declara — que  é  termo  asiático,  o  que  é  muito  vago, 
para  se  lhe  descobrir  o  étimo. 

Monsenhor  Sebastião  Eodolfo  Dalgado,  no  seu  estudo  sobre  o 
Dialecto  indo-poetuguês  de  G-oa  insere  o  termo  como  goense 
com  a  seguinte  definição: — «grito  emittido  batendo  na  bocca 
com  a  palma  da  mão;  rebate  (hoh  em  k[oncani]. — Do  k[oncani] 
habá  rê,  voc[ativo]  de  babá»,  [menino] — . 

Veja-se  cucuiada. 


babiruça,  babirussa 

Esta  palavra,  que  o  Contemporâneo  escreve  erroneamente 
com  um  só  s  e  manda  pronunciar  babiruza,  com  maior  erro 
ainda,  é  directamente  tirada  do  francês.  A  palavra  é  malaia, 
composta  de  bãbi  «porco»,  e  rusa  (pron.  ruça),  «veado».  Pode- 
ria também  escrever-se  em  português  com  ss,  babirussa. 


112  Apostilas  aos  Diciotiários  Portugueses 


bacalhau:  bacalhaus,  bacalhoeiro,  bacalhoa;  badejo 

Há  perto  de  trinta  anos  D.  Carolina  Michaêlis  de  Vasconce- 
los ^  identificou  esta  palavra,  em  castelhano  hacallao  e  hacalao, 
com  o  latim  artificial  haccalaureus  e  o  francês  hachelier, 
derivado  de  baccalarius,  e  do  qual  procedem  tanto  o  caste- 
lhano hachiller,  como  o  português  bacharel:  cf.  a  forma  antiga 
chançarel  \  chancelier,  o  que  hoje  se  diz  chanceler. 

A  aplicação  de  um  termo  com  a  significação  de  «bacharel» 
a  denominar  um  peixe  não  é  caso  único,  pois  o  mesmo  peixe  se 
chama  também  (ajhadejo,  palavra  que  é  um  deminutivo  caste- 
lhano de  abad,  «abade»,  e  foram  sem  dúvida  os  trajes  daquele 
e  deste  que  determinaram  as  denominações:  cf.  batina  por  aba- 
tina,  «a  veste  do  abade».  Temos  ainda  outra  denominação  aná- 
loga em  peíxe-frade;  e  com  relação  a  aves,  o  francês  moineau 
«pardal»,  deminutivo  de  moine,  «monje»,  obedece  à  mesma 
suposta  semelhança  com  o  traje,  como  acontece  igualmente,  com 
as  denominações  portuguesas  de  aves,  cardeal,  viuva,  etc. 

Outro  nome  do  bacalhau  em  espanhol  é  curadillo,  e  a  esta 
expressão  dá  a  ilustre  romanista  (ib.)  como  étimo  o  substantivo 
cura,  «padre».  Todavia,  curadillo  não  é  mais  que  o  deminutivo 
de  curado,  particípio  passivo  de  curar,  « conservar  por  meio  de 
fumo,  sal,  exposição  ao  sol»  etc,  particípio  que  se  adjectivou  e 
ao  depois  se  substantivou,  como  aconteceu  a  pescado,  pescada, 
2)escaãinha,  que  provêem  do  verbo  pescar. 

Como  em  holandês  a  palavra  que  denomina  aquele  peixe  é 
habeljaauw  (pron.  cabeliâu),  supuseram  alguns  que  o  vocábulo 
português  ou  castelhano  fosse  o  holandês,  com  metátese  das  duas 
primeiras  sílabas;  é  porém  provável  que,  ao  contrário,  seja  o 
holandês  que  sofreu  a  metátese,  derivando-sç  portanto  das  formas 
peninsulares,  e  com  tanto  mais  razão,  quanto  é  certo  haverem 
os  espanhóis  e  os  portugueses  conhecido  o  dito  peixe  e  a  sua 


1    Studibn  zur  romaxischbx  Wortschõpfung,  Lípsia,  1876,  p.  169. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  113 

vivenda  antes  dos  holandeses,  devendo-se  ter  ainda  em  atenção 
que  o  vocábulo  holandês,  desusadamente  extenso  para  ser  primi- 
tivo nesta  língua,  também  se  não  pode  decompor  em  elementos 
significativos. 

Littré  *  refere-se  a  esta  palavra  nos  seguintes  termos:  — 
«CABiLLAu  (kabillô,  11  mouillé)  ou  cabliau  (kabliô)  s.  m.  Nom 
donné  dans  les  marches  à  la  morue  fraiche . . .  Etym.  Wallon 
càbiawe,  namurois  cahouau,  holl.  hábeljaauw,  derive  par  renver- 
sement  de  hacailaba,  nom  basque  de  la  morue,  d'oú  Tespagnol 
hamlao  et  le  flamand  baícJceljau» — . 

Foi  isto,  pouco  mais  ou  menos,  traduzido  do  que  a  respeito 
de  cabliau  dissera  Frederico  Diez  no  Dicionário  etimolójico  das 
línguas  românicas.  Dom  Rafael  de  Bluteau  ',  porém,  já  muito 
antes  escrevera  o  seguinte: — «Peixe  do  mar  septentrional  da 
America  a  que  os  biscainhos  derão  o  nome,  quando  o  trouxerão 
á  Europa. . .  Bacalhao,  e  Badejo  são  o  mesmo:  o  Bacalhao  hé  o 
que  põem  ao  ar  a  secar  nas  partes  da  America,  donde  se  pesca. 
O  Badejo  nos  vem  mais  fresco»  — .  E  este  último  o  que  também 
se  denomina  bacalhau  frescal. 

Custa-me  ter  de  contradizer  Bluteau,  Diez  e  Littré,  com  re- 
lação à  orijem  vasconça  do  vocábulo. 

Verdade  é  que  Bluteau  apenas  asseverou  que  os  biscainhos 
lhe  puseram  este  nome,  sem  afirmar  que  pertencesse  à  língua 
das  Vascongadas;  e  na  realidade,  êle  é  tam  vasconço  como  é 
holandês.  E  senão,  vejamos:  a  forma  vasconça  citada  por  Littré, 
bacailaba,  é  simplesmente  o  castelhano  bacallao,  com  a  forma 
hacaílau,  seguida  do  artigo  a,  e  a  mudança  do  u  final  em  h; 
como  de  gau,  «noute»,  on,  «bom>,  e  a,  artigo,  se  faz,  em  vários 
dialectos  do  mesmo  idioma,  a  saudação  gaboná,  por  gau  on  a, 
«boa  noute!».  Bacailau  não  é  explicável  em  vasconço,  e  mesmo 
não  figura  no  dicionário  de  Van  Eys  ^,  nem  como  termo  verná- 


1  DiCTIOXXAIRE  DE  la  LAXGUE  PRANÇAISB,  Suh  V.  CABILLAU. 

2  Vocabulário  portuguez  latino. 

3  dlctioiínaire  basque-français,  1873. 


114  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


ciilo,  nem  sequer  como  castelhauismo.  ISÍem  é  de  admirar:  uma 
grande  parte  do  vocabulário  vasconço  castelhano  é,  ou  outro  mais 
antigo,  latino. 

*  O  peixe  e  o  seu  nome  foram  mencionados  por  Pedro  Mártire 
de  Anguiera  (Anghiera),  geógrafo  italiano  que  viveu  em  Espanha 
no  século  XVI  e  compôs  em  latim  várias  obras  de  merecimento 
acerca  de  viajens,  descubrimentos  e  etnogi-afia.  E  citado  por 
H.  P.  Biggar,  na  excelente  monografia  em  que  reivindica  para 
os  portugueses  a  exploração  marítima  da  Groenlândia,  primeiro 
chamada  Terra  do  Lavrador,  e  a  do  Canadá.  Intitula-se  a  mono- 
grafia   VOYAGES     OF    THE     CaBOTS    (CãbotoS,    OU    Gãbotos)    AND 

Corte-Reals  e  foi  publicada  na  «Revue  Hispanique»  ^  Pedro 
Mártire,  pois,  atribui  ao  vocábulo  bacalhau  orijem  americana  por 
estas  palavras: — «Bacallaos  Cabottus  ipse  illas  terras  appellavit: 
«eo  quod  eorum  pélago  tantam  repererit  magnorum  quorun- 
«dam  piscium,  tjnnos  emulantium  sic  vocatorum  ab  indigenis 
« multitudinem,  ut  etiam  illi  navigia  interdum  detarderent  — 
« Caboto  denominou  aquelas  terras  dos  Bacalhaus,  porque  no  mar 
que  as  banha  encontrou  grandes  cardumes  de  enormes  peixes, 
parecidos  com  os  atuns,  e  assim  chamados  pelos  indíjenas,  e 
tantos  eram  que  estorvavam  o  navegar  das  embarcações». — Biggar 
acrescenta  com  muita  razão :  — « This  origin  of  the  word  can 
hardly  be  correct.  It  is  more  likely  that  the  Spanish  and  Por- 
tuguese  sailors  gave  the  name»  — . 

Efectivamente,  o  vocábulo,  com  esta  ou  outra  forma  parecida, 
nem  em  groenlandês  ou  esquimó,  nem  em  qualquer  dos  idiomas 
dos  índios  bravos  daquelas  rejiões  americanas  se  encontra. 

Nestes  termos,  não  há  remédio  senão  contentarmo-nos  por 
emquanto  com  o  étimo  baccalaureus,  há  trinta  anos  proposto, 
como  disse. 

A  palavra  bacalhau  indica  ainda  um  açoute  usado  no  Brasil, 
e  com  esta  definição  já  se  encontra  no  Dicc.  Contemporâneo, 
mas  sem  estar  ai  abonada.  O  trecho  seguinte  apresenta  a  palavra 


T.  X  (1903),  p.  556. 


Apostila'*  aos  Dicionários  Portugueses  115 


com  esta  significação:  —  «empunhou  o  bacalhau,  e  como  ins- 
trumento da  lei,  fez  correr  o  sangue  d*aquelle  que  já  foi  seu 
irmão  na  desgraça !  >  —  ^ 

No  plural  indica  esta  palavra  um  enfeite  de  cambraia  branca, 
usado  nos  fins  do  século  xviii  pelos  homens.  Foi  a  forma  que 
lhe  deu  o  nome,  como  também  o  deu  às  casacas  muito  compri- 
das usadas  pela  mesma  época  e  que  se  chamaram  em  Portugal 
casams-de-rabo-ãe-bacalhau. 

Outra  significação  análoga  de  bacalhau  é  a  seguinte: — «ca- 
deiras de  pinho  (chamadas  de  bacalhau)» — 2.  Este  nome  foi-lhes 
dado  em  razão  da  forma  que  tem  o  espaldar. 

O  femenino  de  bacalhau  é  bacalhoa,  formado,  assim  como  o 
substantivo  bacalhoeiro,  de  um  tema  bacalhõ,  bacalhão,  como 
leoa  de  leão,  pavoa  de  pavão,  cordoeiro  de  cordão,  latoeiro  de 
latão,  relojoeiro  de  relojão,  pois  de  relojo,  ou  relójio  seria  relo- 
jeiro, ou  relojieiro,  como  de  livro,  livreiro. 


bacia;  bacio;  bátega 

Estas  palavras,  que  provêem  do  latim  da  decadência  bassi- 
num,  mas  cuja  orijem  é  problemática  ainda,  tem  em  português 
significações  várias,  subordinadas  todas  à  noção  de  « vaso  » .  A  pri- 
meira indica  forma  de  vaso  mais  larga  e  menos  funda,  a  segunda 
o  contrário,  menos  largura  e  maior  profundidade,  diferença  de 
sentido  que  em  geral  expressa  a  forma  masculina,  com  distinção 
da  femenina,  quando  em  português  existem  ambas  para  um  só 
vocábulo  orijinário:  cf.  canela  e  canelo,  cesta  e  cesto,  etc. 

Acepções  destas  duas  formas,  hoje  desusadas,  são  as  seguin- 
tes: bacia,  «prato  grande  e  largo  de  metal,  que  se  tanje  com 
uma  vaqueta,  e  supre  o  sino,  entre  vários  povos  da  Ásia».  Neste 


1  O  Economista,  de  4  de  dezembro  de  1885. 

2  Marcelino  de  Mesquita,  O  Tio  Pedro. 


116  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 

sentido  foi  o  vocábulo  empregado  por  Fernám  Méndez  Pinto  *, 
e  por  António  Francisco  Cardim  ^,  no  seguinte  passo:  obedecem 
[os  habitantes  da  ilha  de  Áinão]  ao  sinal,  parando  ou  marchando 
ao  som  da  bacia»  — . 

É  o  que  hoje  indevidamente  chamamos  tanta,  que  na  índia 
significa  «tambor».  O  verdadeiro  nome  da  bacia  de  arame  que 
se  tanje  com  vaqueta  é  gom. 

Outro  nome  português  do  mesmo  instrumento  é  bátega: — 
«Vigia  toda  a  noute  com  bátega  e  soldados» — ^.  E  este  que 
deveria  substituir  o  erróneo  tanta. 

Bacio:  O  que  também  chamamos  pratos  fundos,  tejelas. 
José  Pestana,  na  monografia  O  cálix  de  ouro  do  Mosteieo 
DE  Alcobaça,  publicada  no  «Archeologo  Português»  (v)  diz: — 
« D.  Manuel  ordenara  ao  seu  thesoureiro  . . .  que  entregasse  a 
Fructos  de  Groes  os  dois  bacios  dourados,  e  o  gomil»  — . 

O  Elucidário  de  Santa-Kosa  de  Viterbo  *  diferença  assim 
bacio  de  bacia: — «bacio  na  provincia  de  Traz-dos-Montes  ainda 
conserva  o  seu  antigo  significado;  pois  chamam  Bacios  aos  pra- 
tos. Mas  note-se,  que  antigamente  Bacio  se  tomava  por  todo  o 
vaso  de  boca  larga,  como  gomis,  canecas,  etc,  e  nisto  se  diferen- 
çavão  das  Bacias,  que  erão  de  mais  bojo,  e  fundas,  e  aquelles 
erão  mais  chatos,  espalmados,  a  modo  das  nossas  bande- 
jas»— . 

Esta  definição  parece  estar  em  contradição  com  o  uso  actual 
dos  dois  vocábulos,  visto  que  na  bacia,  como  forma  femenina, 
a  superfície  predomina  sobre  a  altura,  o  que  é  o  oposto  do 
bacio. 


1  Peregrinação,  cap.  clxi. 

2  Batalhas  da  Companhia  de  Jesus,  Lisboa,  1894,  p.  229. 

3  P.  António  Francisco  Cardim,  Batalhas  da  Companhia  db  Jesus, 
Lisboa,  1894,  p.  103. 

*    Elucidário  das  palavras  termos  e  frases  que  em  Portu- 
gal ANTIGUAMENTE  SE  USARÃO,  Lisboa,  1798. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  117 


bádur,  badur 

O  Novo  DiccioNÁRio  dá  este  vocábulo  com  a  significação 
de  —  «chefe  indígena  de  algum  districto,  dependente  do  Estado 
da  índia  portuguesa» — ,  escreve-o  porém  Badhur,  e  como  o  não 
acentua  graficamente,  subentende-se,  em  harmonia  com  o  sistema 
de  acentuação  gráfica  empregado  pelo  lecsicógrafo,  que  se  há  de 
ler  haãàr.  O  termo  é  persiano  BasADUR,  «valente»  ^  e  o  fi, 
antepenúltima  letra  do  respectivo  abecedário  e  que  aqui  repre- 
sento por  E  maiúsculo,  foi  deslocado  para  depois  do  d,  quando  a 
escrita  orijinal  o  marca  antes,  formando  a  segunda  sílaba  com 
o  A.  A  acentuação  e  a  escrita  portuguesas  devem  ser  hâdur,  e 
assim,  sem  h,  ortografaram  os  nossos  antigos  escritores. 

bafo,  bafejar,  abafar,  bafio 

Estes  vocábulos  são  entre  si  indubitavelmente  aparentados,  e 
para  o  primeiro  deles  existe  em  castelhano  a  forma  vaho,  na 
qual  o  V  é  provavelmente  capricho  ortográfico  em  vez  do  6,  que 
a  forma  portuguesa  demonstra  ^er  a  verdadeira  inicial,  visto  que, 
ao  contrário  do  castelhano,  o  português  diferença  perfeitamente 
V  de  h,  do  Mondego  para  baixo. 

F.  Diez  ^  pretende  que  seja  voz  imitativa  e  como  ainda  se 
lhe  não  descobriu  étimo  plausível,  apesar  de  que  as  vozes  ono- 
matopoéticas  são  por  via  de  regra  suspeitas,  quando  não  são 
meramente  interjectivas,  à  falta  de  melhor,  aceitaremos  proviso- 
riamente o  parecer  do  fundador  inexcedido  da  filolojia  românica. 

Bafo  tem  uma  significação  muito  diferente,  porém,  no  se- 
guinte passo: — «Por  monturos  classificam-se  os  ferragiaes  con- 
tíguos ao  monte  [casal],  ou  os  bafos  do  monte,  como  também 


1  V.  Garcin  de  Tassy,  Mémoire  sur  les  noms  propres  et  les 
TiTRES  MusuT^MAKS,  Paris,  1878,  p.  42. 

2  Etymologisches  Wõrterbuch  der  romanischen  Sprachen, 
Bonn,  1869,  ii. 


118  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


alguns  lhes  chamam,  se  uão  lhe  encontram  a  feição  própria  dos 
ferragiaes»  — '. 

baforeira,  bêvera;  abeberar 

Tem-se  fantasiado  étimos  extravagantes  para  este  termo  vul- 
gar de  botânica,  e  todavia  D.  Carolina  Michaêlis  de  Vasconcelos 
já  deu  o  verdadeiro,  bifera(ria),  na  Ee vista  Lusitana,  i, 
páj.  298,  assim  como  bêvera  j  bifera,  em  castelhano  breva. 
O  verbo  (a)beberar,  porém,  corresponde  ao  castelhano  abrevar, 
francês  abreuver,  ant.  abeuvrer,  italiano  abbeverare,  de  ad  e 
bibere,  por  intermédio  de  uma  forma  transitiva  adbiberare. 

baga,  bagada,  bágoa,  bago 

Em  galego  a  palavra  bágoa  significa  «lágrima».  PJm  portu- 
guês comum  dizemos  bagas  de  suor;  mas  no  Minho  bagadas 
querem  dizer  « lágrimas »  ^.  Esta  última  forma  é  derivada,  e  pres- 
supõe a  existência  de  baga  na  acepção  de  «lágrima»,  correspon- 
dente ao  vocábulo  galego  citado. 

A  orijem  de  todas  estas  formas  é  o  latim  b  a  cuia,  plural  de 
baculum  j  bágoo,  antigo,  moderno  bago,  que  foi  depois  substi- 
tuído pelo  latinismo  báculo,  quando  se  refere  à  insígnia  episcopal. 

No  Suplemento  ao  Novo  Diccionábio  vê-se  inscrita  a  pala- 
vra bago,  como  adjectivo,  abonada  com  um  passo  da  D.  Be  anca 
de  Almeida  Garrett,  páj.  23,  não  sei  de  que  edição  para  o 
conferir: — «  ...  o  abbade,  homem  prudente,  que  o  bago  regedor 
metteu  em  meio  da  contenda. . .  » — . 


^    J.  S.  Picão,  Ethnographia  do  Alto  Albmtejo,  in  Portugália,  i, 
p.  280. 

2    Fui  ao  jardim  da  alegria 
Espalhar  [as]  minhas  penas : 
Onde  as  bagadas  caíram 
Kábentaram  açucenas. 

FoLKLORE  TRANSMONTANO  ín  Portugalia,  11,  p.  107. 


Apostilai  aos  Dicionários  Portugueses  119 


Ora  neste  passo,  refira-se  ele  a  que  se  referir,  hago  é  o  subs- 
tantivo, e  regedor  o  adjectivo,  sem  a  menor  dúvida,  e  hago  deve 
aí  estar  por  háculo.  Não  há  pois  tal  adjectivo. 


bailique;  bailéu 

O  Novo  Dicc.  inclui  este  vocábulo  como  de  gíria,  com  a 
significação  de  «quarto  na  prisão;  tarimba».  Neste  último  sen- 
tido, que  me  parece  ser  o  próprio  e  mais  usual,  encontra-se  a 
palavra,  perfeitamente  definida,  no  jornal  O  Século,  de  28  de 
abril  de  1902:  —  «A  prisão  [no  Aljube,  ou  cadeia  para  as  mulhe- 
res, em  Lisboa]  semelha  qualquer  das  enxovias  do  Limoeiro  [ca- 
deia para  os  homens,  na  mesma  cidade],  pois  que  lá  se  vêem  em 
volta  os  mesmos  hailiques,  espécie  de  taboleiros,  que,  girando 
sobre  um  fulcro,  descem  da  posição  vertical  para  se  armarem 
em  largos  leitos» — . 

Parece  haver  relação  de  forma  entre  este  vocábulo  e  a  pala- 
vra bailéu,  «estrado,  suspenso  por  cordas  em  que  se  colocam  os 
trabalhadores  para  fazerem  obras  nos  edifícios»,  e  que  tem  outras 
várias  acepções,  que  se  podem  ver  no  Dicc.  Contemporâneo. 
Apesar  da  afirmação  em  contrário,  feita  nos  dois  dicionários  cita- 
dos, não  creio  que  haja  a  mínima  relação  entre  estes  dois  vocá- 
bulos e  o  verbo  bailar. 

Ambos  eles  tem  forma  de  derivados  de  um  primitivo  bailo, 
que  em  tal  sentido  não  existe,  que  eu  saiba. 


bainha:  bainhar,  abainhar,  embainhar,  vajem 

Este  substantivo,  do  latim  uagina  (j  baía  \  bainha)  signi- 
fica tanto  a  da  espada,  faca,  etc,  como  a  dobra  que  se  faz  na 
extremidade  de  um  vestido,  e  na  qual  se  metia  antes  um  cordão 
para  lhe  dar  consistência,  ou  franzi-lo.  Os  puristas  distinguiam 
abainhar,  «fazer  bainha  em  vestido»,  de  embainhar  «meter  a 
espada  na  bainha » .  No  uso  comum  ninguém  faz  já  tal  distinção, 


120  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 

pois  em  ambos  os  casos  se  emprega  embainhar,  e  abainhar 
tornou-se  obsoleto. 

No  Minho  o  antigo  abainhar  diz-se  hoje  em  dia  bainhar, 
sem  preficso. 

O  substantivo  vajem,  é  um  alótropo,  ou  forma  diverjente  do 
mesmo  étimo  uagina,  com  deslocação  do  acento  tónico  (vagi- 
na), e  que  tem  outras  formas,  vaje,  baje,  e  designa  a  bainha, 
ou  folhelho  dos  legumes. 

Tanto  no  francês  gaine,  como  no  castelhano  váina,  o  acento 
foi  igualmente  deslocado  para  a  primeira  sílaba  de  uagina. 


bairro,  bairrista,  bairrismo;  barro,  barreira,  barreiro, 
barroso,  barrista 

A  palavra  bairro  é  de  procedência  arábica  sai,  «terra», 
BaÊi,  «de  fora»,  e  a  sua  primitiva  acepção,  ainda  usual  em  Es- 
panha (barrio),  foi  de  « subúrbio » ;  a  de  divisão  interna  de  uma 
cidade  é  posterior :  cf.  a  expressão,  « fora  da  terra » ,  e  o  substan- 
tivo castelhano  afueras,  «cercanias,  arredores». 

Do  mesmo  modo,  o  derivado  bairrista  tem  também  as  duas 
acepções;  na  segunda  significa  o  habitador  do  mesmo  bairro; 
na  primeira,  vemo-lo  exemplificado  no  seguinte  trecho: — «La- 
mego 12.  Existem  ainda  por  estes  sitios  uns  restos  da  antiga 
barbaria  bairrista,  que  faz  ver  no  povo  visinho  o  inimigo,  cujos 
ódios  se  transmittem,  intensamente  selváticos,  de  geração  em 
geração»  —  ^ 

É  palavra  muito  expressiva  para  designar  o  indivíduo  cujo 
amor  à  terreola  natal  é  levado  ao  extremo  odioso  de  aborrecer 
os  naturais  das  terras  próssimas;  e  à  semelhança  desta  formação 
poderíamos  denominar  bairrismo  esse  capricho  e  timbre  intransi- 
jente  e  exclusivista. 


^    O  Economista,  de  16  de  novembro  de  1890. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  121 


Santa  Rosa  de  Viterbo  *  define  assim  o  vocábulo  bairro: — 
«Lugar  pequeno,  quinta,  Aldêa,  casa  de  campo,  ou  de  abegoa- 
ria  >  — . 

Esta  definição  é  a  que  no  Dicionário  da  Academia  Espa- 
nhola 2  vemos,  com  pequena  diferença,  atribuir-se  à  palavra  bar- 
rio,  na  segunda  acepção,  em  que  é  sinónimo  de  arrobai: — 
«Grupo  de  casas  ó  aldehuela  dependiente  de  otra  población, 
aunque  está  apartado  de  ella» — . 

A  palavra  barro,  portuguesa  e  castelhana,  parece  ter  a  mesma 
orijem,  e  o  mesmo  se  pode  dizer  de  barreira,  no  sentido  de  lugar 
onde  se  colhe  o  barro,  como  vemos  empregado  o  vocábulo  no  es 
crito  de  Rocha  Peixoto  intitulado  As  olabias  de  Peado  ^:— 
«  Adquirida  a  argilla  necessária  nas  barreiras  de  Cabanellas » — . 

O  nome  de  vila,  ao  sul  do  Tejo,  Barreiro,  deve  de  ser  uma 
forma,  masculina,  da  mesma  dição,  e  outro  tanto  podemos  dizer 
de  Barreiros  ou  Barreiras,  nomes  de  muitas  povoações  portu- 
guesas, de  Barroca,  e  de  Barrosa,  Barroso,  Barrosã,  Barrosão, 
adjectivos  substantivados  em  nomes  próprios. 

Barroso  como  substantivo  comum  é  nome  de  um  peixe,  que 
também  se  chama  queime  *. 

Outro  vocábulo  da  mesma  família,  empregado  noutro  escrito 
de  Rocha  Peixoto,  na  acepção  de  fabricantes  e  pintores  de  figuras 
de  barro,  é  barrista: — «os  barristas  do  século  xvin,  os  coro- 
plastas  de  Gaya,  e  os  oleiros  do  Prado» — ^. 

Bar7'os  tem  no  Alentejo  uma  significação  especial,  que  se 
encontra  no  seguinte  passo  da  Ethnogeaphia  do  Alto  Alem- 
TEJO,  de  J.  S.  Picão: — «As  planícies  que  ficam  a  leste  entre 
Elvas  e  Badajoz  e  aquella  cidade  e  Campo  Maior  chamam-se-lhe 


1  Elucidário  das  palavras,  termos  e  frases  que  em  Portu- 
gal AXTiGUAMENTE  SE  USARÃO,  Lisboa,  1798. 

2  Madrid,  1899. 

'    in  Portugália,  i,  p.  236. 

'     ICHTHiOLOGiA,  por  D.  Carlos  de  Bragança,  in  O  Dia,  de  7  de  junho 
de  1904. 

^    in  Portugália,  I,  588. 


122  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 

[sic]  barros  em  virtude  da  natureza  do  solo,  em  geral  bastante 
argilloso»  —  *. 

bajoujo,  bajoujar 

D.  Carolina  Micbaélis  de  Vasconcelos  ^  já  detenninou  a  for- 
mação deste  vocábulo:  bajoujar  é  o  latim  baioliare,  por  baio- 
lare,  que  figura  na  Vulgata,  com  assimilação  de  -li-  ao  j  da 
sílaba  anterior,  o  qual  é  consonantização  e  africção  do  i  de  baiu- 
lus. 

Bajoujar  é  pois  idêntico  a  bajular. 


baldio,  valadio,  vadio;  baldo,  baldar,  balde,  baldão; 
Valdevinos 

Alberto  Sampaio,  no  valioso  estudo  intitulado  As  villas  do 
NOETE  DE  PoETuaAL,  ^  diz :  — « outro  termo  equivalente  [a  mani- 
nho] quasi  popular  é  baldio,  que  parece  provir  do  ajectivo  alle- 
mão  bald»  — .  Semelhante  conjectura  carece  de  fundamento,  pois 
se  lhe  opõe  manifestamente  a  significação  do  vocábulo  portu- 
guês, e  a  do  citado  advérbio  alemão.  Este,  conforme  Frederico 
Kluge  *,  tem  por  base  um  adjectivo  alto  alemão  antigo,  o  qual 
significa  «rápido,  afouto,  valente»  (schnell,  Icilhn,  tapfer),  o 
inglês  bold,  e  de  que  procede  o  italiano  baldo,  «afouto»  e  o 
nome  próprio  Balduim,  de  que  em  português  se  fez  Valdevinos, 
provavelmente  por  intermédio  de  um  nominativo  latino  Baldui- 
nus,  ou  Valduinus,  Valdevinus. 

Em  Évora  há  uma  rua  de  Valdevinos,  que  certamente  pro- 


1  ih.  I,  272. 

2  Revista  Lusitana,  iir,  p.  133. 

3  in  Portugália,  i,  p.  117. 

*    ETYMOLOGmCHBS  WÕRTBRBUCH  DBR  DBUTSCHBN  Sprachb,  Es- 
trasburgo, 1889. 


Apostilas  aos  Dicionários  Pm'tugueses  123 


cede  do  nome  próprio,  e  não  do  apelativo,  com  o  significado 
< vadio,  estróina»,  em  que  hoje  se  usa,  na  língua  comum. 

A  palavra  baldio  é  sem  dúvida  o  adjectivo  arábico  BaLaoi, 
derivado  do  substantivo  saLaD,  «terra,  país»,  de  que  proveio  o 
castelhano  haladi,  «reles,  de  pouco  valor >,  significado  que  tam- 
bém não  é  estranho  à  forma  arábica. 

O  termo  baldio,  castelhano,  além  da  sua  significação  mais 
comum,  correspondente  à  que  tem  o  português  baldio,  quer 
como  adjectivo,  quer  como  substantivo,  de  «comum  e  inculto» 
oferece  a  mais  a  de  «vagabundo»  «^ vadio»,  e  este  último  vocá- 
bulo considero-o  eu  também  derivado  do  baladi  arábico,  e  não 
do  latim  uagatinum  j  uagare,  como  até  agora  se  tem  su- 
posto. Note-se  ainda  que  o  povo  usa  vadio,  no  sentido  de 
«ruim». 

Assim  constituo  a  descendência  portuguesa  do  árabe  saLaDi, 
com  as  seguintes  vozes:  baldio,  com  supressão  da  vogal  da 
2.*  sílaba;  valadio,  com  a  simples  mudança  do  b  em  v:  diz-se 
do  telhado  feito  de  telhas  soltas,  sem  cal  nem  argamassa  e  é 
oposto  ao  termo  telhado  mouriscado  (note-se),  no  qual  se  em- 
pregou a  argamassa,  ou  cal-e-areia;  vadio  (pron.  vadio),  com 
supressão  do  l,  e  consequente  a  aberto  na  sílaba  átona,  « cf.  jjà- 
ceiro  por  palaceiro.  De  vadio  procedem  vadiar,  vadiajem, 
etc. ». 

Resta  averiguar  se  os  vocábulos  da  família  baldo,  balda, 
baldar,  de  balde  teem  a  mesma  orijem,  como  parece,  con- 
quanto se  possam  subordinar  a  outro  étimo  arábico,  batíl, 
« vão,   inútil » . 

E  difícil  determinar  o  sentido  em  que  o  epíteto  vadio  foi 
empregado  por  António  Francisco  Cardim,  no  seguinte  trecho: — 
«Os  dois  levantados  [insurrectos]  Li  e  Cam  ficaram  com  cinco 
províncias  do  norte  [da  China],  o  tártaro  com  a  corte  de  Pequim, 
e  pouco  a  pouco  foi  conquistando  todas  as  outras  províncias,  de 
que  em  breve  se  viu  senhor,  não  por  força  de  armas,  mas  por 
fraqueza  e  deslealdade  dos  chinas,  que  só  com  cortar  o  cabello 
faziam  profissão  de  tártaro,  e  chegavam  onde  elles  podiam;  por- 
que se  tem  por  certo  que  na  China  não  entraram  trinta  mil 


124  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 

tártaros,  mas   seus  exércitos  constariam  pela  maior  parte  dos 
chinas  vadios  e  disfarçados» — ^ 
(i  Quere  dizer  « gente  dos  campos » ? 

balguesa 

—  «Hoje  [os  barcos  moliceiros]  adoptam  a  vela  chamada 
balgueza» — ^. 

balhão,  bailão;  bailadeira;  balhadouro 

O  Novo  DicoioNÁEio  rejista  uma  acepção  especial  deste  vo- 
cábulo, que  no  seu  sentido  natural  significa  «o  que  muito  baila». 
Essa  acepção  é  a  de  «fadista»,  que  vemos  abonada  no  seguinte 
trecho: — «O  Tàboada,  um  bailão  ali  do  sitio,  convidou  o  Nava- 
lhadas, seu  collega,  com  duas  ditas  [navalhadas]  no  peito» — ^. 

É  conhecido  o  sestro  do  fadista  de  andar  sempre  jingando, 
e  em  brigas  é  notória  a  sua  lijeireza,  quer  no  arremeter,  quer  no 
fujir,  quer  em  furtar  o  corpo  às  investidas  do  contendor.  Em  cas- 
telhano bailón,  como  termo  de  gíria  (germanía),  quere  dizer 
« ladrão  velho » . 

A  palavra  bailadeira  de  que  os  franceses  fizeram  bayadère, 
vem  no  Suplemento  ao  Vocabulário  poetuguez  latino  de 
Bluteau  assim  definida  com  muita  exactidão: — «Bailadeieas 
se  chamão  na  Índia  as  mulheres  publicas,  que  habitão  nos  Pago- 
des, porque  todas  bailão  e  cantão.  Oriente  Conquist,  tom.  2, 
pag.  25»  — . 

Os  dicionários  portugueses  em  geral  omitem  esta  particu- 


1  Batalhas  da  Companhia  de  Jesus,  Lisboa,  1894,  p.  25. 

2  Luís  de  Magalhães,  Os  barcos  da  ria  de  Aveiro,  in  Portugá- 
lia, 11,  p.  59. 

3  O  Economista,  de  22  de  agosto  de  1885. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  125 

larização  de  sentido;  todavia  o  dicionário  português-francês  de 
J.  L  Roquete  *  incluiu  o  termo,  com  a  mesma  definição  já  dada 
por  Bluteau. 

Bailadeiras  se  denomina  o  ponto  do  rio  Tejo,  perto  de  Caci- 
lhas, na  marjem  esquerda,  onde  o  movimento  das  águas  é  consi- 
derável. Nesta  acepção  vemo-lo  abonado  neste  trecho:  —  «Quando 
no  dia  12  do  corrente  appareceu  o  cadáver  da  infeliz  Casimira  á 
tona  d'agua  no  sitio  das  bailadeiras» — -. 

Outra  forma  de  hailão,  «jingão»  é  halhão,  como  popular- 
mente balhar  substitui  bailar,  e  vemo-la  empregada  no  mesmo 
periódico  ^: — «e  lá  foi  todo  bailhão  para  o  calaboiço» — . 

No  termo  de  Leiria  há  um  descampado  chamado  charneca  do 
Balhadoiro,  onde  é  crença  que  se  reúnem  as  bruxas  em  sumblea 
do  diabo,  como  se  diz  no  norte,  para  aí  celebrarem  as  suas  fol- 
ganças. 

E  de  advertir  que  na  linguajem  local  baile  se  diz  bolho,  e 
conseguintemente  balhar,  de  que  balhadoiro  é  nome  do  logar 
em  que  se  exerce  a  acção  do  verbo,  como  em  lavadouro,  de 
lavar,  matadouro,  de  matar,  etc. 


balufera 

Instrumento  músico  africano,  conforme  a  menção  que  vimos 
dele  no  jornal  O  Economista,  de  5  de  agosto  de  1885: — «En- 
contro [na  secção  portuguesa  da  exposição  de  Antuérpia]  o  balvr- 
fera  que  já  vira  na  secção  do  Senegal  (colónias  francesas).  Este 
instrumento  curioso,  espécie  de  marimba,  compõe-se  de  uma  serie 
de  peças  de  madeira  justa-postas  sobre  uma  dupla  ordem  de 
cabaças  de  diversos  tamanhos.  Batendo-se-lhes  produz-se  uma 
espécie  de  escala  irregular» — . 


i    Paris,  1855. 

2  O  Século,  de  29  de  agosto  de  1899. 

3  ih.  10  de  setembro  de  1900. 


126  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


No   museu  a  cargo  da  Sociedade  de  Greografia  de  Lisboa 
existe  um  destes  instrumentos. 


bambolim,  bambolina 

Este  vocábulo  está  definido  no  Novo  Dicc.  da  seguinte  ma- 
neira:—  «sanefa,  sobreposta  aos  cortinados  das  portas  ou  jane- 
las. (De  bambo):» — .  De  bambolina  diz  o  mesmo  dicionário: — 
«parte  do  scenário,  que  liga  superiormente  os  bastidores  e  finge 
o  tecto»  — . 

Deveria  acrescentar,  «o  céu»,  «folhagem»,  etc. 

Estes  termos  teem  aspecto  muito  italiano,  conquanto  actual- 
mente não  sejam  empregados  em  toscano  com  tal  significação. 

Outra  acepção  de  bambolim  é  a  que  vemos  no  jornal  O  Sé- 
culo, de  2  de  janeiro  de  1902: — «o  chamado  bambolim,  o 
Bombay  duck  [«pato  de  Bombaim»]  dos  mercados  da  China,  é 
abundante  em  Diu» — . 

bandulho 

J.  Joaquim  Núnez  *  propõe  como  étimo,  muito  plausível, 
para  esta  palavra,  que  o  Novo  Diccionáeio  compara  com  razão 
ao  castelhano  banãujo  [também  banãullo],  dando-lhe  orijem  in- 
certa, o  latim  panduc(u)lum,  que  deve  ser  um  deminutivo  do 
adjectivo  pandum,  «curvo»,  substantivado. 


banheiro,  banheira 

Este  substantivo  está  empregado  no  sentido  de  «banho»  ou 
banhadouro»  no  seguinte  trecho: — «Já  agora,  vinde  também 


1     «Eevista  Lusitana»,  iii,  p.  292,  Phonbtica  histórica  portu- 
guesa. 


Apostilas  nos  Dicionános  Portugueses  127 


comnosco  até  aquella  gruta. . .  É  n'ella  o  banheiro  publico» — *. 
Cf.  banheira^  «tiua  para  banho».  No  Porto  chama-se  antes  à 
banheira  canoa,  em  razão  da  forma. 


banzé 


Esta  palavra  de  gíria,  que  quere  dizer  «folgança,  função»  e 
também  « desordem,  tumulto »,  pode  ser  o  japonês  banzai  « viva! », 
como  me  sujere  Z.  Consiglieri  Pedroso: — «Ainda  há  gente  bôa 
por  ahi,  mas  não  são  dos  que  fazem  banzé  nos  jornaes» — -. 

Neste  passo  a  palavra  significa  « pregão  » . 


baptizar,  baptizo,  bautizar,  bautismo 

As  formas  mais  antigas  e  ainda  populares  portuguesas  teem 
u  assilábico  pelo  p  latino,  assim  como  o  teem  por  c  em  aicfo, 
latim  actum:  bautizar,  bautismo,  Bautista.  Depois  entraram 
na  língua  as  formas  alatinadas  baptizar,  etc,  nas  quais,  porém, 
o  ^j  é  actualmente  nulo,  mas  o  não  foi  antes,  visto  que  o  a  átono 
permanece  aberto,  bàtizar,  Batista,  etc:  cf.  activo=àtivo.  Nulo 
é  igualmente  o  ^^  no  substantivo  alentejano  baptizo,  «baptizado», 
que  parece  ter  sido  trazido  de  Espana,  onde  se  diz  bautizo. 


barão,  varão,  varonil 

Qualquer  que  seja  a  etimolojia  do  primeiro  destes  vocábu- 
los, é  certo  que  o  seu  significado  nos  Lusíadas  (i,  1),  é  o  de 
«homem  valoroso»,  e  não  simplesmente  o  do  latim  uir,  a  que 


1  Bosquejo  de  uma  viagem  no  interior  da  Parahyba  b  de 
Pernambuco,  in  <0  Século»,  de  17  de  junho  de  1900. 

2  O  Dia,  de  25  de  setembro  de  1902. 


128  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 

damos  como  correspondente  varão,  que  dele  não  deriva,  sendo  pelo 
contrário  o  mesmo  que  o  Barão  dos  Lusíadas.  A  identificação 
resulta  do  significado  que  tem  o  adjectivo  varonil. 

Nos  antigos  Cantares  de  gesta  franceses  haron  designa 
«homem  de  grande  valor  e  alta  jerarquia»,  e  no  Livro  dos  Salmos 
[século  xiii]  francês  encontra-se  o  advérbio  harnilment,  « varonil- 
mente » ^. 

Em  latim  existia  o  substantivo  baro,  baronis,  com  signifi- 
cação de  «homem  tosco,  homem  vigoroso». 

E  claro  que  varão,  aumentativo  de  vara,  nenhuma  relação 
tem  com  esta  palavra. 

barbado 

Termo  brasileiro,  cujo  significado  se  depreende  do  trecho  se- 
guinte:—  «Saber  menos,  não  prejudicava;  saber  mais  desqualifi- 
cava o  individuo,  difficultava-lhe  a  collocação.  Passava  á  catego- 
ria de  barbado,  isto  é,  de  suspeito» — ^. 

bar(e);  matuca 

Vemos  este  vocábulo  num  sentido  muito  especial,  como  usado 
na  Zambézia,  no  seguinte  trecho:  —  «Nestes  territórios  e  espe- 
cialmente nos  situados  entre  Tete  e  Zumbo,  encontram-se . . . 
vestígios  de  antigas  explorações  auríferas,  conhecidas  na  Zam- 
bézia sob  a  denominação  de  «bares»  e  ás  quaes  alludem  to- 
dos os  nossos  antigos  auctores,  que  escreveram  sobre  aquelle 
paiz» — ^. 

Por  exemplo.  Frei  João  dos  Santos,  Etiópia  Oeiental,  liv.  ii, 
cap.  11  a  13,  no  último  dos  quais  se  encontra  um  vocábulo  não 


1  Emílio  Littré,  Histoire  de  la  langue  prançaisb,  n. 

2  O  Século,  de  20  de  setembro  de  1905. 

3  O  Século,  de  31  de  março  de  1900. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  129 


colijido  nos  nossos  dicionários: — «Também  se  tira  ouro  de  pe- 
dras, a  que  chamara  ouro  de  matúca,'  como  já  dissemos  que  se 
tirava  no  reino  de  Manica.  De  todas  estas  sortes  de  ouro,  o  de 
lascas  feitas  em  raminhos,  ou  esgalhos,  esse  é  o  mais  fino,  e 
de  mais  quilates,  e  o  que  chamam  de  matúca  é  o  mais  baixo  de 
todos,  e  o  de  menos  quilates  >  — . 


barlaque,  barlaquear-se 

Nas  Notas  ethnogeaphicas  sobke  os  povos  de  Timor,  de 
J.  S.  Pereira  Jardim  *,  vemos  definido  o  substantivo,  e  abonado 
o  verbo  português,  que  se  formou  dele: — «O  barlaque  é  a  com- 
pra da  mulher,  que  vale  tanto  mais  quanto  maior  for  a  gerarchia 
a  que  pertence»  — . 

—  «Se  for  christão,  casa-se  com  uma,  e  barlaqueia-se  com 
quatro » — . 

barra 

Além  de  muitos  outros  significados,  era  o  nome  de  uma  moeda 
de  convenção,  em  Benim,  com  o  valor  de  ÕOO  réis  ^. 


barreleiro 

Na  praia  da  Nazaré  dá-se  este  nome,  derivado  de  barreia,  a 
uma  tripeça  de  madeira,  com  tabuleiro  de  perímetro  circular, 
rematado  lateralmente  por  um  prolongamento  quadrado,  e  sul- 
cado por  dois  ou  três  regos.  Serve  para  a  lavajem  da  roupa. 


^    in  Portugália,  i,  p.  357. 

2    Relatório  de  Jacinto  Pereira  Carneiro,  in  «Annaes  do  Conselho 
Ultramarino  >,  il. 


9 


130  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


barril 


Na  praia  da  Nazaré  tem  este  uome  uma  bilha  de  barro,  com 
grande  bojo,  e  gargalo  e  fundo  estreitos;  a  sua  capacidade  regula 
por  quatro  litros:  tem  duas  asas,  junto  à  boca,  para  suspensão. 
Serve  para  água  a  bordo  dos  batéis  de  pesca. 


barroco,  barroca,  barrocal 

A  primeira  destas  formas  ouvi-a  em  1888  a  um  cocheiro, 
indo  de  Alpedrinha  para  Castelo-Branco  em  dilijéncia;  prometeu 
êle  a  um  çapateiro,  que  lhe  pedira  uma  pedra  de  bater  sola,  que 
lha  traria,  e  fez  a  promessa  nos  seguintes  termos: — «Deixe  estar 
que  eu  lhe  arranjarei  um  barroco  muito  grande» — .  Em  Kui  de 
Pina  vemos:  —  «um  serro  alto  de  pedras  e  barrocas  mui  fi-a- 
goso» — K 

A  palavra  é  conhecida  e  substitui  muito  bem  o  galicismo 
bloco,  como  barroca,  barrocal,  ou  barranco  esse  outro  galicismo 
ainda  mais  escusado,  ravina,  que  se  tem  propagado  em  livros 
científicos,  sem  vizlumbre  de  propriedade,  por  isso  que  para 
francês  é  êle  aparentado  com  ravir  \  rapere,  procedendo  ime- 
diatamente de  rapina,  no  sentido  de  «acção  de  arrebatar»; 
e  também  sem  a  mínima  necessidade,  pois  temos  barranco,, 
barrocal  e  barroca. 

Barroca  é  intensivo  de  barroco,  e  é  sabido  que  barroco,  ou 
o  seu  correspondente  castelhano  barrueco  com  menor  probabili- 
dade, deu  orijem  ao  francês  baroque,  como  termo  de  arquitec- 
tura, o  qual  por  êle  deve  ser  traduzido  em  poiiuguês. 

E  por  todas  estas  razões  que  eu  estranho  haver  encontrada 
numa  publicação,  em  geral  redijida  em  castiça,  e  por  vezes  ver- 
nácula e  pitoresca  linguajem,  o  termo  ravina,  agravado  com  um 


1    Crónica  de  El-rei  Dom  Afonso  v,  cap.  cl, vi. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  131 


voluntário  derivado  neolójico,  tanto  menos  desculpável,  quanto  é 
empregado  em  tradução  de  francês: — «resolveu  enravinar  os 
vencidos,  isto  é,  fazê-los  despenhar  nas  ravinas  da  região > — ^ 
Para  hloco  temos  ainda  penedo,  que  quere  dizer  «pedra 
solta  >,  e  já  foi,  para  substituir  aquele,  proposto  por  Eduardo 
Augusto  Vidal  na  Kevista  Lusitana,  n,  páj.  83.  Seria  portanto 
preferível  mesmo  a  barroco,  visto  este  designar  propriamente 
«pedra  de  forma  irregular >,  e  na  acepção  de  «pérola  de  forma 
irregular»  ter  dado  orijem,  como  disse,  ao  baroque  francês. 

baruísta 

Este  neolojismo  é  empregado  por  João  de  Azevedo  Coutinho  ^ 
para  designar  os  naturais  do  Barué: — «Os  baruistas  primitivos, 
os  que  com  orgulho  se  julgam  sem  mistura,  dizem-se  acuro 
á  Bargué  (grandes  filhos  do  Barué)» — .  Convém  advertir  que 
Bargué  tem  de  ser  lido  báruè,  e  que  o  gu  é  transcrição  incon- 
veniente, pois  poderia  ser  lida  a  palavra  como  bar-gué;  melhor 
fora  que  tivesse  escrito  Bargoé  (^^bar-gu-é),  se  queria  indicar 
o  valor  do  u  consoante,  w  inglês. 

A  indivíduos  vindos  de  lá  ouço  acentuar  a  palavra  Barue 
na  1.*  sílaba,  proferindo  como  e  aberto  o  e  final  átono,  isto  é, 
báruè. 

É  violenta  em  português  corrente  aquela  acentuação,  e  por 
conseguinte  pode  este  nome  acentuar-se  Barué,  que  é  o  que  se 
faz  usualmente :  cf.  Biê  por  Biiè. 

basto,  bastante,  bastio 

Este  adjectivo  é  usado  pelo  Padre  António  Francisco  Cardim, 
no  sentido  de  «possante,  robusto»: — «o  cavalo  em  que  estava 


1  Gazeta  das  Aldeias,  de  9  de  julho  de  1905. 

2  Campanha  do  Barué.  . .  em  1902. 


132  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


era  bastante,  o  rio  porém  arrebatado»  —  ^  É  um  derivado  do 
verbo  bastar,  como  basto,  no  sentido  de  «espesso,  grosso».  Subs- 
tantivo da  mesma  orijem  é  bastio,  o  qual  no  Alentejo  é  «mouta 
fechada»,  e  em  Trás-os-Montes  significa  «pinhal  rasteiro». 

O  adjectivo  basto  parece  derivar-se  do  latim  vastum  ^,  ou, 
como  propôs  J.  Cornu,  de  p  as  tus,  particípio  passado  passivo  de 
pasço r,  o  que  me  parece  menos  provável. 


bastos 

Em  uma  resenha  de  termos  pertencentes  à  jíria  dos  ladrões 
do  Porto,  publicada  no  jornal  O  Economista,  de  28  de  fevereiro 
de  1885,  vem  este  vocábulo  com  a  significação  de  «mãos». 
É  palavra  pertencente  ao  calo,  ou  dialecto  dos  ciganos  de  Espa- 
nha, como  muitos  outros  de  calão,  incluindo  este  nome  da  jíria 
de  malfeitores  e  da  ralé,  alguns  dos  quais  se  tem  difundido  em 
linguajem  mais  elevada,  tornando-se  gerais,  mas  conservando  o 
seu  sabor  pitoresco.  Muitos  serão  incluídos  neste  trabalho,  com 
os  seus  correspondentes  nesse  dialecto.  Basto  é  em  calo  bate, 
baste  ^,  e  nele  significa,  na  realidade,  «mão». 

Em  outro  dialecto  cigano,  o  da  Roménia,  tem  a  forma  vast  *. 


batata,  semilha,  castanhola 

A  primeira  destas  palavras,  ao  contrário  do  que  é  uso  no 
continente,  quere  dizer  na  ilha  da  Madeira  «batata  doce»,  por- 
que a  outra  se  denomina  semilha;  eis  aqui  um  exemplo: — «Um 


1  Batalhas  da  Companhia  de  Jesus  na  província  do  Japão, 
Lisboa,  1894,  p.  38. 

2  Ebvista  Lusitana,  iv,  p.  273. 

3  El  Gitanismo,  por  Francisco  de  Sales  Mayo,  Madrid,  1870. 

4  Grammaikb,  dialogues  et  vocabulaire  de  la  langue  DBS 
BOHÉMIENS  OU  CiGAiNS,  por  J.  A.  VaiUaut,  Paris,  1 868,  p.  53. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  133 


correspondente  de  Boaventura  escreve  que  está  sendo  abundante 
a  colheita  da  semilha  (batata) > — ^ 

Em  Trás-os-Montes  este  tubérculo  é  designado  pelo  nome  de 
castanhola,  aumentativo  de  castanha: 

Lhebemus  nossa  merenda 
(Yera  de  trigo  bíê  guapo!); 
Para  cenar  a  la  nuite, 
Las  castanholas  num  saco. 

Esta  quadra  vai  emendada  na  pontuação,  pois  a  da  obra  de 
onde  a  extratei  está  errada: 

Lhebemus  nossa  merenda 
(Yçra  de  trigo  bfê  guapo!) 
Para  cenar  a  la  nuite. 
Las  castanholas  num  saco.  ^ 


bate 


Esta  palavra  na  índia  portuguesa  quere  dizer  «arroz  em  casca», 
em  concani  B'ãT(a),  e  não  «arroz  descascado»,  como  se  vê  no  Novo 
DiccioNÁBio.  O  que  o  vocábulo  também  lá  significa  é  «arroz 
cozido»,  como  em  indostano.  Em  malaio  cbama-se  pádi,  ao  arroz 
em  herva  na  terra,  e  é  natural  que  seja  a  mesma  palavra,  a 
qual,  porém,  parece  orijinária  da  índia,  pelo  menos  no  sentido 
de  «arroz  cozido».  Sobre  este  objecto,  veja-se  Bumell  &  Yule, 
A  Glossary  of  Anglo-Indian  words  and  Pheases  ^,  sub.  v. 
Paddy. 

O  que  é  singular  é  que  bate  seja  o  nome  que  em  Caminha 


1  «Notícias  da  Madeira >,  in  O  Economista,  de  5  de  agosto  de  1891. 

2  José  Leite  de  Vasconcelos,  Estudos  de  Philologia  Mirandesa,  n, 
Lisboa,  1901,  p.  32. 

3  Londres,  1896. 


ff 

134  Apostilas  aos  Dicionânos  Portugueses 


se  dá  ao  loão-de-ló,  outra  locução  de  orijem  obscura;  parece  não 
ter  a  mínima  relação  com  o  bate  asiático,  a  não  ser  na  coinci- 
dência casual  da  forma. 


batel,  batela;  batelo;  bote,  bateira 

O  Suplemento  do  Novo  Diccionário  rejistou  o  segundo 
destes  vocábulos  cora  a  siguificação  de — «barco  chato,  de  peque- 
nas dimensões,  usado  ao  norte  do  Minho» — .  Parece  ser  uma  va- 
riante mais  antiga  de  hatel  j  hatellum  \  hatum,  latinização 
do  alto  alemão  antigo  hot,  de  que  também  procedeu  hote,  se  este 
não  é  importação  posterior  do  inglês  hoat  hoje  pronunciado  hõut, 
mas  no  inglês  médio  proferido  òóòt,  *  em  anglo-saxão  hát,  isto  é, 
háàt, 

Batelo,  no  Ribatejo,  designa  ura  aparelho  para  tirar  água 
dos  poços,  e  parece  ser  vocábulo  independente  destes. 

Bateira  é  norae  conhecido  de  barca,  que  navega  no  Tejo,  e 
figura  em  todos  os  dicionários. 


batoque 

Não  respondo  pela  forma,  visto  que  o  periódico  onde  a  en- 
contro vem  crivado  dos  mais  inverosímeis  erros  tipográficos.  No 
entanto,  entendo  que  devo  rejistar  este  vocábulo  (talvez  batuque) 
na  acepção  nova  que  se  lhe  atribui  no  trecho  seguinte:  —  «Os 
batoques  de  que  usam  na  guerra  são  de  três  espécies.  O  goma, 
o  cinzete  e  o  birihiri» — 2.  (V.  estes  vocábulos). 

Batoque  será,  pois,  um  tambor. 


1  V.  Henrique  Sweet,  The  Students  Dictionary  of  Anglo-Saxon, 
Ocsónia,  1897;  A  history  of  English  Sounds,  Londres,  1874,  p.  96. 

2  Azevedo  Coutinho,  A  campanha  do  Barué  bm  1902,  in  *  Jornal 
das  Colónias  >,  de  19  de  agosto  de  1905. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  135 


batuque,  bataúda 

O  primeiro  destes  vocábulos  vem  em  todos  os  dicionários 
modernos,  como  significando  «dança  de  pretos»;  o  segundo  parece 
ter  significado  análogo  no  trecho  seguinte  das  Notas  etnográfi- 
cas sobre  os  povos  de  Timor,  de  J.  S.  Pereira  ^:  —  «Depois  co- 
meça a  vida  de  noctambulo:  horas  e  horas  de  batuque.  . .  canti- 
gas de  bataúda  > — , 

beata,  beateiro 

O  primeiro  destes  termos,  chulo,  vem  já  rejistado  no  Novo 
DiccioNÁEio,  como  algarvio,  com  a  significação  de  «ponta  de 
cigarro».  É  também  usajio  em  Lisboa,  com  o  mesmo  significado, 
e  dele  provém  o  derivado  beateiro,  que  está  perfeitamente  defi- 
nido no  seguinte  trecho  do  jornal  O  Século,  de  28  de  maio 
de  1902:  —  «para  dar  aos  heateiros,  que  durante  a  noite  per- 
correm os  passeios  e  as  portas  dos  cafés  á  procura  de  pontas  de 
cigarro  e  de  charuto » — . 


bebedouro 

Este  vocábulo  significa,  não  só  a  vasilha  onde  as  aves  domés- 
ticas bebem,  mas  também  o  sítio  onde  os  animais  livres  vão  de 
ordinário  beber. 

Na  realidade,  a  terminação  -douro  indica  o  local  em  que  se 
exerce  a  acção  expressa  pelo  verbo,  a  cujo  radical  essa  termina- 
ção se  junta,  como  lavadouro  «o  sítio  onde  se  lava»,  matadouro, 
«o  lugar  onde  se  mata»,  etc.  Em  castelhano  corresponde-lhe  a 
terminação  -dero,  e  assim  dizem  abrehadero,  lavadero,  matadero, 
etc: — «  .  . .   empregam.  . .  o  visgo  (q.  v.)  branco,  collocando  as 


1    tn  Portugália,  I,  p.  357. 


136  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 

varas  no  chão  ao  longo  dos  bebedouros,  sítios  onde  as  aves  cos- 
tumam ir  beber,  de  forma  que  estas  não  possam  chegar  á  agua 
sem  lhes  tocar»  —  K 

bedem,  bedém 

O  DiccioN.  CoNTEMPOEANEo  define  esta  palavra  como  signi- 
ficando—  «capa  de  esparto  ou  junco,  para  livrar  da  chuva» — . 
Não  me  consta,  que  estas  capas  características,  que  provavel- 
mente importámos  do  Japão,  onde  são  muito  usadas,  tenham 
em  qualquer  parte  do  reino  este  nome;  sei  que  são  conhecidas 
pelos  seguintes:  c(o)rossa,  ou  c(o)roça,  palhota,  capa  palhiça. 
O  Novo  DicciONÁRio  define  o  vocábulo  como — «túnica  moirisca, 
curta  e  sem  mangas;  capa  palhíça,  ou  de  coiro  ou  esparto,  contra 
a  chuva» — .  Dá,  pois,  em  um  dos  significados  a  definição  do 
Contemporâneo,  mas  atribui-lhe  outra,  como  primária,  o  de 
« túnica  mourisca » . 

J.  I.  Roquete  ^,  mais  prudentemente,  limitou-se  a  dizer  que 
é  «capa  de  mouro»,  manteau  maure;  mas  antes,  no  Diccionario 
DA  língua  portugueza  ''\  dísscra  ser — « capa  mourisca,  ou  de 
agua » — . 

Sem  contestar  absolutamente  a  segunda  acepção,  direi  so- 
mente que  desejaria  vê-la  abonada. 

Quanto  à  primeira  acepção,  Bluteau  *  dá  apenas  o  significado 
«capa»  ou — «capa  de  agoa»— ;  mas  não  diz  que  seja  feita  de 
palha,  ou  cousa  semelhante,  antes  se  abona  com  João  de  Barros 
e  Diogo  de  Couto,  por  sua  ordem  nestas  duas  citações: — «Vinha 
vestido  ao  modo  Mourisco,  camisa  branca,  e  seu  Bedem  em 
cima; — Hum  Bedem  de  setim  preto,  com  grandes  cadilhos» — . 


í  J.  Pinho,  Ethnographia  Amar ANTiNA,  A  Caça,  m  Portugália,  ii, 
p.  97. 

2  DiCTiONN.  PORT.  FRANÇAIS,  Paris,  1855. 

5  Paris,  1843. 

*  Voe.  PORT.  LATINO. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  137 


A  palavra  é  arábica,  como  todos  declaram,  e  Engelmann  e 
Dozy  *  dizem  ser  BaDax,  «túnica  sem  mangas». 

Pareceria  que  a  verdadeira  acentuação  devera  ser  hédem,  e 
não,  hedém,  como  todos  marcam. 

Todavia,  se  o  vocábulo  nos  veio  dos  países  berberiscos,  é 
possível  que  a  sílaba  acentuada  seja  a  segunda,  se  bem  que  breve 
a  vogal  dela. 

Aqui  apresento  outra  abonação  do  vocábulo:  —  «bem  vestido 
com  sua  camisa  mourisca  e  um  bedem  por  cima  de  tudo,  e  o 
capelo  metido  na  cabeça,  por  cima  da  touca» — -. 

beduí,  beduim,  beduíno 

As  únicas  formas  portuguesas  são  as  duas  primeiras;  a  ter- 
ceira é  uma  versão  mal  feita  do  francês  hédouin.  Bluteau  ^  dá 
no  Suplemento  a  forma  beduim,  remetendo  o  leitor  para  biduim, 
e  aí  cita  também  beduínos.  E  esta  feição  da  palavra  que,  ainda 
mal,  aceitaram  Koquete,  o  Contemporâneo  e  o  Novo  Diccio- 
NÁEio,  conquanto  este  último  rejiste  também  beduim  no  Suple- 
mento. O  vocábulo  é,  como  se  sabe  e  todos  dizem,  arábico, 
BaDauí,  de  badíie  *,  «nómade  no  deserto»,  de  naou,  «deserto». 
Ora,  assim  como  de  rubi  se  fêz  riibim,  e  não  rubino,  assim  de 
beduí,  se  fêz  beduim,  mas  não  beduíno,  forma  que  os  escritores 
antigos  não  conheceram. 

beijo;  beijinho;  beijocador 

O  primeiro  derivado,  deminutivo,  significa  em  sentido  res- 
trito, não  só  uma  cavaca,  mais  pequena  e  estreita,  que  se  faz 


*  GlOSSAIRB  DBS  MOTS  ESP.  ET  PORT.  DERIVES  DE  L'aRABE. 

*  J.  Gamara  Manuel,  Missões  dos  jesuítas  no  Oriente,  p.  102, 
Lisboa,  1«94. 

'     Voe.  PORT.  lat. 

*  Belot,  VocABULAiRB  ARABE-PRANÇ.\i3,  Beirute,  1893. 


13S  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


nas  Caldas-da-Kainha,  mas  também  um  amuleto,  com  o  feitio  e  o 
tamanho  de  uma  ameixa,  como  vemos  na  revista  Portugália,  i, 
páj.  620. 

Beijúcador,  nome  verbal  de  ajente  do  verbo  beijocar,  freqiien- 
tativo  de  beijar,  designava  no  século  xviii  um  « sinal  postiço 
ao  canto  da  boca»  ^ 


bejoga,  bijoga,  bojega 

O  termo  transmontano  bejoga  é  o  latim  uesucula,  e  a  forma 
da  Beira-Alta,  que  lhe  corresponde  na  significação,  ébojega  {  uesi- 
cula,  conforme  J.  Leite  de  Vasconcelos  ^,  significando  qualquer 
deles  « empola  nos  pés » .  E  possível,  porém,  que  ambos  procedam 
de  u es i cuia,  e  que  houvesse  metátese  das  vogais,  como  houve 
na  forma  algarvia  boleta,  em  vez  da  geral  belota  por  bolota,  do 
árabe  saluTE.  O  o  da  1.*  sílaba  é  devido  em  bojega  a  influência 
do  b,  e  na  forma  bijoga  o  «  a  influência  do  j,  pelo  quê  melhor 
escrita  será  bejoga,  visto  como  o  e  surdo  vale  por  i  surdo  em 
conjunção  com  uma  consoante  palatina,  aqui  o^";  cf.  chegar  pro- 
nunciado chigar,  privilejiado,  para  ])revelijiado,  e  assim  muitas 
vezes  escrito  erroneamente. 


bejula 

— « Bebida  fermentada,  feita  de  farinha  de  milho,  ou  de 
outro  qualquer  mantimento» — ^.  E  termo  da  Africa  Oriental 
Portuguesa. 


1  A.  Campos,  O  Marquez  de  Pombal,  in  «O  Século»,  de  7  de  abril 
de  1899. 

2  Revista  Lusitana,  ii,  p.  105. 

3  Diocleciano  Fernández  das  Neves,  Itinerário  db  uma  viagem  k 
Cava  dos  elephantes,  Lisboa,  1878,  p.  49. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  139 


belfa 


Esta  palavra,  que  antigamente  queria  dizer  «fera»  e  se  de- 
riva do  latim  bellua,  como  o  italiano  helva,  significa  actual- 
mente em  Leiria  meiga  (de  medica)  mosquito  grande,  a  que  os 
franceses  chamam  cousin. 

A  abonação  da  palavra  no  seu  antigo  significado  é  a  seguinte : 
—  «e  uirom  belfas  marynhas  que  eram  fortes  e  esquivas»  — '. 


belhó 


O  nome  deste  bolo,  conforme  J.  Cornu,  deriva-se  de  biliola 
por  libiola,  e  na  opinião  de  D.  Carolina  Michaêlis  de  Vascon- 
celos de  pílióla  j  pila. 

Todavia,  como  o  e  se  profere  aberto,  bèlhó,  ambas  as  etimolo- 
jias  são  pouco  prováveis. 

Para  filho  já  eu  propus  em  tempo  folióla,  sendo  o  i  devido 
a  consoante  palatal  seguinte: 

Francisco  Adolfo  Coelho,  no  Diccioxabio  maxual  etymolo- 
Gico,  deriva  belhó  de  beignot,  beignet  francês,  forma  deminutiva 
de  bigne,  beugne,  « tumor  >,  e  acrescenta  como  comparação  ca- 
lhamaço, por  canhamaço,  para  explicar  o  Ih  por  nh,  advertindo 
também  que  o  e  de  belhó  é  aberto,  como  o  ei  de  beignot. 

Todavia,  em  calhamaço  por  canhamaço,  de  cânhamo,  houve 
dissimilação  da  nasal  m  da  sílaba  seguinte,  facto  que  se  não 
podia  dar  com  belhó,  a  proceder  de  beignot. 

Conquanto  sejam  dignas  de  atenção  as  ponderações  de  F.  A. 
Coelho,  parece  que  temos  de  ir  buscar  a  outra  fonte  a  orijem  da 
palavra. 

Se  acertei  em  atribuir  a  filho  o  étimo  folióla  ou  follióla, 


1    Oto  Klob,  A  VIDA  DE  Santo  Amaro,  texte  portugais  du  xiv**  siè- 
cle,  m  Romani  a,  t.  xxx,  p.  508. 


140  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


creio  não  estar  lonje  da  verdade  considerando  hèlhó  como  deri- 
vada de  uma  forma  latina  halaneóla,  deminiitivo  de  hala- 
neum,  forma  adjectival  substantivada,  derivada  de  b  ai  anus, 
«castanha».  A  sucessão  de  formas  seria  então:  balaneola:  ba- 
naleola:  baneleola:  haelhola:  baelhó:  hèlhó. 


bengala,  pingalim 

São  os  portugueses  o  único  povo  europeu  que  chama  ao  bas- 
tão bengala.  Primeiro  se  denominou  cana  de  Bengala,  por  ser 
a  haste  feita  de  cana-da-índia;  depois  suprimiu-se  o  primeiro 
termo: — «Que  cousa  hé  esta,  senhor  Afonso  de  Alboquerque? 
quisestes  que  dissessem  as  regateiras  de  Lisboa  que  vós  tomastes 
primeiro  terra  neste  vosso  Calecut  de  que  fazeis  a  El-rei  Nosso 
Senhor  tantos  espantos?  Ora  eu  irei  a  Portugal,  e  direi  a  Sua 
Alteza  que  com  esta  cana  de  Bengala  na  mão,  e  com  este 
barrete  vermelho  que  trago  na  cabeça,  entrei  em  Calecut;  e  pois 
não  acho  com  quem  pelejar,  não  me  hei  de  contentar,  senão  de 
ir  ás  casas  de  Elrei,  e  jantar  hoje  nellas»  — '. 

Saíu-lhe  cara  a  basófia,  e  aos  desgraçados  que  o  acompanha- 
ram, pois  quasi  todos  foram  mortos  com  ele,  o  maríehal  1).  Fer- 
nando Coutinho,  que  assim  desdenhava  dos  traiçoeiros  naires. 

Pengalim  parece  ser  um  deminutivo  de  bengala,  com  mu- 
dança da  inicial. 


bem-aventurado,  bem-aventurança 

Estas  duas  palavras  teem  de  escrever-se  com  uma  linha  di- 
visória, para  que  não  sejam  lidas  be-maventurado,  be-maventii- 
rança. 


'     João  de  Barros,  Da  Ásia,  Década  ii,  liv.  4.",  cap.  i. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  141 


benjoim,  beijoim 

A  etimolojia  deste  vocábulo  foi  primeiro  dada  por  Garcia  da 
Orta,  nos  Colóquios  dos  Simples  e  das  dbogas  da  Índia:  é  o 
árabe  luban  gaui,  «incenso  de  Java>.  Na  segunda  forma,  que 
é  a  mais  usual,  influiu  a  palavra  beijo. 


bento 


Em  Viseu  esta  palavra  quere  dizer  « curandeiro » :  —  «O  dono 
da  casa  tem  um  filho  doente  ha  muito  tempo . . .  por  suggestões 
de  amigos  lançou-se  nas  mãos  de  um  bento» — *. 


berço 

Esta  palavra,  cuja  etimolojia  é  incerta,  mas  que  para  portu- 
guês, como  para  o  galego  berce,  parece  ter  tido  orijem  francesa, 
ainda  que  remota,  pois  em  castelhano  o  mesmo  objecto  se  chama 
cuna  j  cunae,  figura  no  trecho  seguinte  em  uma  acepção  não 
rejistada  nos  dicionários:  —  «o  pessoal. . .  tenciona  cotizar-se  para 
collocar  berços  nas  sepulturas  das  duas  victimas» — .  Estes 
berços  são  uns  gradeamentos  em  torno  do  coval,  e  nos  quais  se 
dispõem  plantas  de  ornato,  ou  vasos'  com  elas. 


besigue 

No  Suplemento  ao  Novo  Diccionáeio  inseriu-se  uma  palavra 
bezígne,  que  aí  é  definida  como  certo  jogo  de  cai-tas,  dando-se-lhe 
em  dúvida  como  étimo  bis  e  signo. 


1    O  Viriato,  in  <  O  Economista  »,  de  4  de  setembro  de  1884. 


142  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


Ora,  o  nome  do  jogo  em  francês  é  hézigue,  ou  bésigue,  e  não 
bezigne,  e  o  autor  do  dicionário  viu-o  provavelmente  citado  em 
português  com  um  erro  tipográfico,  n  por  u.  Aqui  fica  feita  a 
emenda,  que  inclui  a  rejeição  do  étimo  proposto.  Qual  seja  a  ori- 
jem  de  tal  nome  ignoro-o;  Littré,  que  o  inscreveu  no  seu  grande 
dicionário  francês,  não  aventa  qualquer  hipótese,  dando-lhe  ape- 
nas como  variantes  as  abreviaturas  bézy  e  bési.  Na  enciclopédia 
NouvEAU  Larousse  illustsé  vem  a  descrição  minuciosa  do 
jogo,  que  é  francês,  e  de  lá  passou  para  cá  juntamente  com  o 
nome. 

São  bastantes  os  erros  tipográficos  que  vão  passando  de  uns 
para  outros  dicionários,  o  que  motivou  em  França  os  curiosos 
artigos  de  A.  Thomas  intitulados  Coquilles  lexiologiques, 
«Gralhas  lecsiolójicas»,  publicados  no  volume  xxii  da  revista 
Komania,  correspondente  ao  ano  de  1893. 

Exemplos  de  tais  equívocos  são  neste  meu  trabalho  os  que 
subordinei  às  epígrafes  acudia,  e  hererós. 


besouro,  besoiro,  bisouro,  bisoiro 

A  forma  mais  comum  em  Lisboa  é  bisoiro;  a  que  se  considera 
mais  correcta  é  besouro,  sem  grande  fundamento,  pois  é  desco- 
nhecido o  étimo.  Que  a  escrita  é  com  s  e  não  com  z  prova-se 
com  a  pronúncia  transmontana  besouro,  com  s  sonoro  subCacu- 
minal,  quási  j,  e  não  com  o  ^  de  zelo,  por  exemplo,  e  é  sabido 
que  em  Trás-os-Montes,  e  parte  do  Minho,  Douro  e  Beira-Alta, 
o  2:  G  s  entre  vogais  se  não  confundem  actualmente,  como  se 
não  confundiam  há  três  séculos  em  parte  alguma  do  reino,  pelo 
menos  até  o  Tejo,  diferençando-se  perfeitamente  coser  \  consue- 
re,  e  cozer  \  coquere,  como  se  diferençavam  e  ainda  se  diferen- 
çam no  norte  paço  \  palatium,  e  passo  }  passus. 

Com  relação  ao  ou  ou  oi,  a  forma  transmontana  não  nos 
pode  dar  regra  que  autorize  a  preferência,  pois  ali  predomina  o 
ditongo  ou  (=ôu)  sobre  o  ditongo  oi  (=ôi). 

O  i  por  e  (=e)  da  primeira  sílaba  explica-se  por  mais  clara 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  143 


enunciação,  como  acontece  com  didal,  tisoiro,  formas  populares, 
em  vez  de  dedal,  tesouro. 


bétele,  (bétere,  betre,  betle) 

E  esta  a  melhor  escrita  portuguesa,  porque  é  a  mais  antiga, 
ou  então  bétere,  betre,  e  não  bétel.  Não  há  dúvida  também  que 
o  acento  tónico  é  na  primeira  sílaba,  como  o  encurtamento  bet7-e  o 
está  indicando,  e  não  na  segunda,  como  marca  o  Dicc.  Coxtem- 
POKAXEO  erroneamente,  erro  que  por  lapso  escapou  ao  erudito  e 
escrupuloso  autor  dos  Subsídios  paka  a  leituea  dos  Lusía- 
das *. 

Fernám  Méndez  Pinto  usou  três  vezes  a  forma  bétere,  por  ex. : 
—  «bétere  que  são  húas  certas  folhas  como  de  tanchagem» — ^. 
O  Padre  António  Francisco  Cardim,  pelo  contrário,  deu  a  prefe- 
rência a  bétele: — «a  este  fim  lhe  deram  na  prisão  veneno  em 
um  bétele  > — ^. 

Esta  palavra  trouxemo-la  nós  da  índia;  é  da  língua  malabar, 
e  conforme  o  Glossário  de  Yule  &  Burnell  *  significa  «folha  sim- 
ples >,  vettila  (de  veru,  « simples  >,  e  ila,  « folha  >). 

A  forma  bet(e)re  explica-se  perfeitamente.  Suprimido  que 
seja  o  e  da  segunda  sílaba  de  bétele,  resulta  betle,  e  ti  não  é 
grupo  de  sons  tolerável  em  português;  além  disto,  como  os  tt, 
que  no  nome  dravídico  figuram,  são  cacuminais,  o  l  passou  a  r 
em  português,  por  ser  cacuminal  também  esta  consoante  na  nossa 
língua. 

O  Conde  de  Picalho,  no  seu  opúsculo  Floka  dos  Lusíadas  ^, 
a  páj.  69,  referindo-se  à  menção  feita  na  estanca  Õ8  do  vii  Canto- 


1  Lisboa,  1904,  p.  206. 

2  Peregrinação,  cap.  clxxvii. 

'  Batalhas  da  Companhia  de  Jesus,  Lisboa,  1894,  p.  111. 

*  A  Glossary  of  Anglo-Indian  words  and  phrasbs,  Londres,  1886> 

s  Lisboa,  1880. 


144  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


do  poema  à  verde  folha  da  herva  ardente,  escreve  hetle,  e 
adiiz  o  outro  nome,  arábico,  pelo  qual  foi  conhecido  dos  nossos, 
atambor  (AL-TaNBUL),  e  que  no  Eoteieo  da  viagem  de  Vasco 
DA  Gama  ^  se  emprega  para  a  designar:  —  «e  tinha  á  mão  es- 
querda huma  copa  d'ouro ...  na  boca  engaço  de  humas  ervas 
que  os  homens  desta  terra  comem  pela  calma,  a  qual  chamam 
atambor» — .  E  de  advertir  que  este  nome  é  índio  também, 
mas  árico,  e  não  dravídico;  é  o  sánscrito  TãMBULa,  arabizado,  e 
depois  aportuguesado. 

Veja-se  o  vasto  comentário  do  Conde  de  Ficalho  aos  Coló- 
quios DOS  Simples  e  das  drogas,  de  Grarcia  da  Orta,  na  pri- 
morosa edição  da  Imprensa  Nacional  ^  dirijida  pelo  Conde;  aí  se 
encontrarão  todos  os  esclarecimentos,  que  seria  longuíssimo  repro- 
duzir aqui:  o  índice,  perfeitamente  organizado,  encaminhará  o 
leitor  na  averiguação  de  tudo  o  que  resumidamente  expus. 


beto  (=^héto) 

Por  informação  do  snr.  Francisco  Teixeira,  natural  de  Miran- 
dela, este  vocábulo  designa  em  Trás-os-Montes  uma  espécie  de 
meia-pá  de  madeira,  correspondente  à  raquette  francesa.  Com 
ele  se  joga  o  toque-emhoque. 

Beto  é  também  ali  o  nome  de  um  jogo,  parecido  com  o 
cricket  inglês. 

betume 

Em  Caminha,  e  provavelmente  em  outros  pontos  do  Minho, 
se  não  em  toda  a  província,  betume,  ou  batume,  quere  dizer 
«  caldo  grosso  > . 


1  Lisboa,  1861,  p.  59. 

2  Lisboa,  1891-1892,  dois  volumes,  afora  a  introducção  intitulada  Gar- 
cia DA  Orta  e  o  seu  tempo,  ura  vol.,  Lisboa,  1886. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  145 


bexigas 

A  varíola  já  assim  é  denominada  pelo  Padre  António  Fran- 
cisco Cardim,  que  lhe  chama  <í peste»: — <No  anno  de  1637 
houve  na  ilha  [de  Áinão]  uma  universal  peste  de  bexigas,  de 
que  morreu  muita  gente» — *. 

O  nome  lhes  proveio  das  vesículas  que  na  pele  se  formam, 
do  latim  vesica,  < empola»,  com  a  mudança  do  s  em  x,  por 
iníluéncia  do  i,  e  a  do  c  em  ^,  por  estar  depois  de  vogal: 
cf.  fogo  }  focum,  e  Xisto  j  Sixtus. 

A  terrível  doença  chamam  os  médicos  varíola,  não  se  sabe 
por  que  razão,  visto  a  palavra  ser  artificialmente  fabricada,  deri- 
vando-a  de  varius,  pois  em  latim  não  existia;  parece,  pelo  con- 
trário, que  devera  acentuar-se  varíola,  como  a  comparação 
com  o  francês  (petite)  vérole,  o  castelhano  viruelas,  e  o  italiano 
vaiuòlo  o  está  indicando. 

O  que  é  de  estranhar  é  que,  entre  as  nove  pragas  que  a  so- 
berana de  Póhiola  desencadeou  sobre  os  fineses,  por  lhe  terem 
arrebatado  ardilosamente  o  Sampo,  ou  <  penhor  de  prosperida- 
de», como  se  conta  no  Kalevala,  não  estejam  incluídas  as  bexi- 
gas, que  parece  não  eram  conhecidas  na  Finlândia.  Essas  pra- 
gas foram:  Pleuresia,  cólica,  reumatismo,  tísica,  úlcera,  sarna, 
cancro,  peste,  e  a  última  e  peor  de  todas,  a  que  não  tem  nome, 
o  demónio  da  enveja  2. 

bezerro 

Termo  de  Leiria,  e  provavelmente  de  toda  a  Estremadura 
rural: — < buraco  feito  por  uma  fagulha,  no  fato,  quando  se  está 
a  engomar,  a  cozinhar,  a  meter  pão  no  forno,  etc. » — ^. 


1  Batalhas  da  Companhia  de  Jesus,  Lisboa,  1894,  p.  238. 
~    Kalevala,  runa  4.5. 

2  Informação  do  snr  Acácio  de  Paiva,  dali  natural. 
10 


146  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


bica;  biquinlia;  bico;  bicuda,  bicudo,  bicudez 

Além  dos  significados  colijidos  em  vários  dicionários,  tem  a 
palavra  bica  mais  dois:  em  Caminha  quere  dizer  «sémea  fina>, 
e  na  ilha  da  Madeira  (Pôrto-Santo)  é  o  nome  de  uma  planta 
(Anthus  trivialis),  à  qual  também  se  ali  chama  hiqiiinha. 

Por  outra  parte,  a  forma  masculina  hico  tem,  além  das  já 
apontadas,  mais  as  seguintes  acepções:  Caminha:  « beijo >;  Ma- 
deira :  « focinho  de  cavalo » .  Geral :  « aves  de  capoeira » :  —  «O 
gallinheiro  é  provido  de  poleiros  suficientes  para  repouso  dos 
bicos»  —  K 

Em  calão:  «moeda  de  dois  tostões». 

Termo  faceto:  «bebedeira»,  como  nestes  versos  de  Manuel 
Koussado : 

—  Como  a  scena  é  de  taberna, 
Armei  os  versos  em  bico  — . 

Bicuda:  «galinhola»:  —  «Já  chegaram  as  bicudas,  como  lhe 
chamam  os  caçadores» — ^. 

Bicudo:  difícil,  ex.:  temiios  bicudos,  negócio  bicudo. 

Bicudez:  (neolojismo  faceto): — «apesar  da  bicudez  dos  tem- 
pos»— ^. 

bicha,  bicho;  bichar,  bicharengo,  bicheiro 

Bicha :  Trás-os-Montes :  « víbora » . 
Ilha  da  Madeira:  «milhafre». 

Greral:  figura  de  dança,  em  que  todos  os  pares  dão  as  mãos 
uns  aos  outros  em  fileira. 


1  J.  da  Silva  Picão,  Ethnographia  do  Alto  Albmtejo,  iw  Portu- 
gália, I,  p.  545. 

2  O  Século,  de  1  de  novembro  de  1901. 

3  O  Dia,  de  20  de  setembro  de  1902. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  147 


Bicho:  peliça  para  o  pescoço: — < Peles,  romeiras,  bichos  ^ 
E  o  que  em  francês  se  chama  boa  (=boá). 

Bicho  do  areeiro,  ou  boieiro,  Pôrto-Santo  (Puffinus  An- 
glo rum):  < mergulhão»,  ave. 

Bichar:  «criar  bicho  a  fruta»: — «Elvas,  30...  A  colheita 
da  azeitona  está  começada,  e  é  apenas  uma  meia  novidade,  se 
tanto,  porque  ultimamente  bichou  a  de  alguns  vidonhos  (redon- 
dil, conserva  e  cordovil)» — 2. 

Bicharengo:  Certa:  «texugo>. 

Bicheiro:  já  rejistado  no  Novo  Diccioítáeio,  como  termo 
alentejano,  com  a  seguinte  definição: — «tubozinho  de  lata,  por 
onde  sái  a  extremidade  superior  da  torcida  das  lanternas.  (De 
bicha,  por  aJlusão  á  torcida)»  — . 

O  étimo  é  sem  dúvida  o  castelhano  mechero,  de  mecha,  « tor- 
cida», o  qual  tem  significação  análoga,  e  que  provavelmente 
passou  ao  Alentejo,  por  audição,  como  muitos  outros  castelhanis- 
mos  ali  usados. 

Difícil  de  identificar  é  o  animal  a  que  Fernám  Méndez  Pinto  ^ 
chama  bicho  de  voo,  no  que  o  compara  ao  morcego.  Não  me 
atrevo  a  alcunhar  a  descrição  de  fabulosa,  para  que  me  não  caiba 
na  cabeça  a  carapuça  a  que  linhas  antes  êle  alude  na  sua  inte- 
ressante narrativa :  — « gente  que  vio  pouco  do  mundo,  por  que 
esta  como  vio  pouco,  também  costuma  a  dar  pouco  crédito  ao 
muito  que  outros  virão» — . 

Eis  a  descrição  do  bicho  de  voo: — «Vimos  aquy  também 
húa  munto  nova  mane3'ra,  &  estranha  feyção  de  bichos,  a  que  os 
naturaes  da  terra  [Batas,  na  Polinésia]  chamão  Caquesseitão,  do 
tamanho  de  húa  grande  pata,  muyto  pretos,  conchados  pelas 
costas,  com  húa  ordem  de  espinhos  pelo  fio  do  lombo  do  compri- 
mento de  húa  penna  de  escrever,  e  com  asas  da  feição  das  do 
morcego,  e  o  pescoço  de  cobra,  e  húa  unha  a  modo  de  esporão 


*     Anúncio  no  jornal  O  Século,  de  14  de  novembro  de  1902. 

2  O  Economista,  de  4  de  dezembro  de  1892. 

3  Peregrinação,  cap.  xiv. 


148  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


de  gallo  na  testa,  e  o  rabo  muyto  comprido  pintado  de  verde  e 
preto,  como  são  os  lagartos  desta  terra.  Estes  bichos  de  voo, 
a  modo  de  salto,  cação  os  bugios,  e  bichos  por  cima  das  árvo- 
res, dos  quais  se  mantém» — . 

Devemos  confessar,  que  como  descrição  leva  a  palma  às  de 
Cuvier;  assim  ela  seja  a  verdadeira! 


bigode,  mostacho 

A  palavra  bigode  é  antiga  na  língua,  e  existe  também  em 
castelhano  com  a  forma  bigote,  ou  antiga  vigote.  No  Diálogo 
ENTEE  Lain  Calvo  y  Nuno  Kasuea,  texto  castelhano  do  xvi  sé- 
culo (1570),  publicado  na  «Revue  Hispanique»,  t.  x,  (1903), 
encontram-se  ambos  os  vocábulos:  —  «Otro  estilo  an  tomado  es- 
tos nuevos  alcavaleros  [judios]  de  poço  tiempo  aca,  pasearse 
tiesso  quatro  dellos  en  cuadrilla  [sic],  oliendo  olores,  putos  de 
almizcle,  algalia,  benjui,  perfumes,  encrespandose  los  cabellos 
para  arriba,  i  tirando  sus  viles  vigotes  i  mostachos,  por  pare- 
cer mas  valientes  i  rrobustos» — ^ 

O  termo  mostacho  veio  para  o  castelhano,  como  para  o  fran- 
cês moustache,  do  italiano  mostaccio  ou  mostacchio,  hoje  em 
geral  substituído  nesta  língua  por  baf)i,  e  cuja  orijem  parece  ser 
o  grego  moderno  moustákion,  ou  moustáka,  que  tem  a  mesma 
significação  que  já  tinha  no  grego  antigo  mústaks,  juntamente 
com  a  de  «beiço  de  cima»  -:  cf.  barba  em  português,  que  quere 
dizer  «a  ponta  do  queixo»  e  «o  pêlo  da  cara». 

Ao  mesmo  passo,  porém,  que  Luís  de  Camões  já  emprega  o 
plural  do  vocábulo  bigode  nos  Lusíadas,  Torquato  Tasso,  na 
Jerusalém  Libertada,  serve-se  de  uma  circunlocução  para  o 
designar: — «Lascia  barbuto  il  labbro  e'I  mento  rade» — . 


í     p.  177. 

2    W.  Pape,  Griechisch-dbutsohbs  Handwôrtekbuch,  Bruusvique, 

1880. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  149 


Persas  feroces,  Abassis  e  Rumes, 
Que  trazido  de  Roma  o  nome  tem, 

Era  sangue  português  juram  descridos 
De  banhar  os  bigodes  retorcidos  — '. 

Já  antes,  Gil  Vicente  usou  o  deminutivo  higoãezinho : 

Poro  —  Elle  pôs  desta  maneira 

A  mão  na  barba  e  jurou 

De  meus  dinheiros  pagá-los. 
Vasco — ^;Essa  barba  era  enteira 

A  mesma  em  que  te  jurou, 

Ou  bigodezinhos  ralos?  —  -. 

A  orijem  do  castelhano  vigoie  parece  ser  a  palavra  viga,  cujo 
significado  é  o  mesmo  que  em  português;  pelo  menos  é  esta  a 
opinião  da  maioria  dos  etimolojistas,  mas  bastante  problemática. 


bilhafre 

Esta  variante  de  milhafre  é  usada  por  Francisco  Kodríguez 
Lobo  na  Corte  na  Aldeia  ^. 

Na  ilha  da  Madeira  designa  o  «francelho». 

A  mudança  de  m  inicial  em  h,  e  vice-versa,  conquanto  pouco 
frequente,  não  é  sem  exemplo  em  português:  cf.  herrão  com 
marrão;  bicheiro  (q.  v.),  «canudo  para  a  torcida,  com  m£chero 
castelhano,  que  tem  o  mesmo  significado » ;  batota  « tavolagem » 
com  matute,  « candonga »  em  castelhano,  etc. 


1  Os  Lusíadas,  x,  68. 

2  Farsa  dos  Almocreves. 

3  Diálogo  III,  ed.  de  1774,  p.  56. 


150  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


bilro 


É  uma  interjeição  usada  em  Sam  Miguel,  dos  Açores,  com 
a  significação  de  bravo!  K 

bíri-bíri 

—  «Os  batoques  [q.  v.J  de  que  usam  na  guerra  são  de 
três  espécies. . .  O  òiri-biri  tem  a  forma  de  um  charuto  grosso 
e  curto,  com  a  ponta  cortada;  é  enorme  e  geralmente  tem  os 
dois  extremos  cobertos  com  pelle.  Amarra-se  a  uma  arvore  ou 
poste  e  é  tocado  com  bocados  de  pau.  O  hiri-hiri  é  que  dá 
signal  para  as  povoações  visinhas  de  que  ha  guerra  ou  prepara- 
tivos para  ella  . .  .Tocado  em  combate,  do  lado  do  maior  diâ- 
metro, dá  signal  de  avançar,  e  do  lado  do  menor,  signal  de  reti- 
rada. . .  O  hiri-hiri  desempenha  ainda,  entre  as  populações  sel- 
vagens, o  horroroso  serviço  de  cepo  de  carrasco» — ^. 


bisbis 

Na  ilha  da  Madeira  é  o  nome  de  uma  ave,  que  também  é 
conhecida  por  ahibe,  termo  já  colijido  no  Contemporâneo. 


biscato,  biscalho,  biscalheira 

Biscalho  se  chama  ao  alimento  que  as  aves  levam  no  bico 
para  os  filhos;  outras  formas  do  mesmo  vocábulo  são  hiscate  e 
biscato,  e  todas  estas  três  formas  teem  aspecto  de  ser  derivadas 


i    O  Século,  de  5  de  julho  de  1901. 

2    Azevedo  Coutinho,  A  campanha  do  Barué  em  1902,  in  c  Jornal 
das  Colónias  >,  de  19  de  agosto  de  1905. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  151 

de  um  primitivo  bisco,  ou  besco,  do  latim  uescus  «magro», 
como  propõe  em  dúvida  o  Novo  Diccionário.  A  existir  a  pala- 
vra besco,  a  escrita  dos  derivados  deveria  ser  bescato,  etc. 

Biscalheira,  em  Arcos-de-Yal-de-Vez,  é  o  nome  que  se  dá  a 
uma  vara  raxada  na  extremidade  e  destinada  a  colher  o  bisca- 
Iho,  que  nesta  acepção  quere  dizer  «fruta  pendente  da  árvore»; 
outro  nome  é  ladra,  que  provavelmente  se  aplica  quando  a  fruta 
não  é  colhida  com  permissão  do  seu  dono,  o  que  parece  aconte- 
cer muito  frequentemente  ^ 

biscouto,  biscoito;  biscoiteira 

Além  do  conhecido  significado  do  primeiro  vocábulo,  aduz 
mais  o  Suplemento  ao  Novo  Diccionábio  o  de — «seixo,  frag- 
mento (de  pedra) » —  como  antigo,  e  aboua-o  com  o  seguinte 
passo  da  Historia  Ixsulaxa: — «...  se  chama  este  caminho 
do  Pedregal,  por  ser  de  huma,  e  outra  parte 'de  biscouto  de 
pedra  >  —  -. 

Nos  meus  apontamentos  tenho  este  vocábulo,  com  a  seguinte 
explicação:  «Termo  dos  Açores:  a  camada  de  lava  ondulada,  que 
cobre  certos  terrenos».  Biscoitos  é  também  o  nome  de  uma  lo- 
calidade na  Ilha  Terceira,  e  deste  substantivo  comum  lhe  veio 
com  certeza  o  nome. 

Biscouteira:  «redoma  com  tampa  volante,  para  arrecadar 
biscoutos,  bolachas,  bolos».  É  um  excelente  neolojismo,  já  divul- 
gado, para  traduzir  o  vocábulo  francês  bonbonnière. 

biselho 
Quere  dizer  «atilho»  ^. 


1  Veja-se  J.  Leite  de  Vasconcelos,  Eespigos  camonianos,  p.  4(3. 

2  II,  p.  80. 

3  Trigueiros  Martel,  Culturas  hortícolas. 


152  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 

bitácula 
Como  termo  de  calão,  «o  nariz», 

bitafe.  V.  pitafe 

bitar 
Voz  transmontana,  que  quere  dizer  «entornar». 


bisnaga 

O  Novo  DicciONÁEio  diz  provir  este  vocábulo  do  árabe  has- 
tinage,  de  orijem  latina,  pastinaca.  É  natural  que  os  árabes 
encontrassem  a  palavra  na  Península,  e  a  afeiçoassem  à  sua 
pronunciação.  Ora,  o  latim  pastinaca  deveria  passar  ao  portu- 
guês, ou  ao  castelhano,  com  abrandamento  do  c  em  g,  x>astinaga. 
Não  existindo  em  árabe  nem  p,  nem  g  póstero-palatal  (como  em 
paga),  mudaram  a  primeira  consoante  para  6,  e  a  última  para  g, 
palatal  africata,  quási  igual  a  dj,  pois  é  esta  a  pronúncia  clás- 
sica da  5.*  letra  do  seu  alfabeto,  que  no  Ejipto  se  profere  como 
o  ^  de  gato,  e  em  vários  pontos  da  Barbaria  como  o  j  português. 
Deste  modo,  o  romanço  peninsular  pastinaga  passou  a  BasxiNAGE, 
e  deste  procedeu  o  português  bisnaga,  com  supressão  da  2,*  sí- 
laba átona  ti.  Cf.  Beja  do  latim  Pax,  ou  Pace(m)  no  acusa- 
tivo  (Pax  lulia),  conforme  demonstrou  David  López  no  seu  belo 

estudo  TOPONYMIA  ÁRABE  DE  POBTUGAL  ^ 


1    in  «Eevue  Hispanique>,  t.  ix,  p.  39,  (1902). 


Apostilas  aos  Dicionários  PorUigueses  153 


bísaro,  bízaro;  sedeúdo,  molariuho 

Este  termo,  que  o  Eecexseamento  Gebal  dos  gados  '  es- 
creve bísaro,  e  cujo  étimo  é  descouhecido,  sendo  difícil  ficsar-lhe 
a  ortografia,  designa  uma  raça  de  porcos  própria  do  norte  do 
reino,  e  assim  definida  na  mesma  interessante  publicação  oficial: 
—  «cabeça  comprida  e  estreita;  orelhas  também  muito  compri- 
das e  pendentes,  chegando  a  dois  terços  e  mais  da  extensão  da 
cabeça.  O  pescoço  é  delgado:  a  extensão  que  vae  desde  a  nuca 
até  á  origem  da  cauda  é  muito  considerável,  chegando  a  medir 
l'",40  e  mais:  linha  dorso-lombar  muito  convexa  ou  arqueada; 
peito  muito  estreito  e  achatado  ou  espalmado,  assim  como  o 
ventre,  que  é  muito  mais  alto  que  largo.  As  pernas  são  também 
muito  altas  e  ossudas.  As  cerdas  são  compridas  e  grossas,  sendo 
a  côr  geralmente  preta.  Ha-os  também  brancos  e  malhados,  e 
tendo  somente  a  frente  aberta,  uma  lista  branca  sobre  a  agulha 
e  as  espáduas,  e  baixo  calçados. 

São  geralmente  muito  corpulentos. 

Os  porcos  de  cerdas  ou  pellos  mais  densos  compridos  e  gros- 
sos são  chamados  sedeudos  [sedeúdos],  ou  cerdosos;  e  aquelles 
em  que  ellas  são  menos  grossas  e  compridas,  mais  raras  e  a 
pelle  mais  fina  se  chamam  mollarinhos  >  — . 


blasonar 

Este  verbo  está  definido  em  um  sentido  especial  no  jornal 
O  Século,  de  12  de  agosto  de  1900,  nos  termos  seguintes: — 
«Ao  entrarem  nos  logares  destinados  á  realização  das  justas,  o 
rei  d"armas  descrevia,  em  voz  alta,  os  emblemas  do  escudo  do 
recemvindo,  e  assim  se  ficava  sabendo  quem  elle  era.  A  isto  se 
chamava  blasojiar» — . 


Lisboa,  1873. 


154  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


A  forma  blasonar,  em  qualquer  acepção,  e  a  apontada  parece 
ser  a  primitiva,  é  castelhanismo,  pois  ao  blasón  castelhano  cor- 
responde em  português  brasão,  substantivo  do  qual  se  derivaria 
um  verbo  (ajbrasoar,  e  não  blasonar. 


bobo 


Júlio  Cornu  *  atribui  a  orijem  deste  vocábulo  ao  latim  pu- 
pus,  «rapazinho».  Não  creio:  ao  u  longo  corresponde  u  em 
português,  e  não  o. 

Parece-me  que  para  o  português  veio  este  vocábulo  do  caste- 
lhano bobo,  em  que  ainda  perdura  como  adjectivo  usual,  no  sen- 
tido em  que  empregamos  tolo,  e  que  procede  nessa  língua  do 
latim  balbus,  «gago».  Que  a  palavra  portuguesa  não  pode  deri- 
var-se  imediatamente  do  mesmo  étimo  que  a  castelhana  prova-se 
com  a  circunstância  de  que,  a  ser  directa  a  derivação,  a  forma 
portuguesa  seria  boubo,  como  é  em  mirandês,  com  ditongo: 
cf.  outeiro,  cast.  otero,  de  altarium,  poupar,  de  palpare, 
mouco,  de  Malchus. 

Outra  circunstância  que  concorre  para  aceitarmos  a  prove- 
niência castelhana  é  que  bobo,  em  português,  quere  dizer  apenas 
«jogral»,  e  não  produziu  derivados,  por  ser  termo  de  significado 
muito  restrito,  e  de  aplicação  especial;  entanto  que  em  caste- 
lhano êle  tem  várias  acepções,  e  deu  orijem  a  nada  menos  de 
onze  derivados  por  suficso,  e  três  por  preficso.  Nesta  língua  teve 
vitalidade;  em  português  foi  e  é  uma  palavra  estéril. 


boçudo 

Este  adjectivo,  que  suponho  não  ter  existência  independente, 
vemo-lo  empregado  junto  ao  substantivo  paus,  paus  boçudos, 


»    Grunuriss  deu  RoMAKisCHEN  Philologie,  I,  p.  72G,  n."  27. 


Apostilas  aos  jyicionãrios  Portugueses  155 

locução  assim  definida: — «mocas  usadas  como  arma  de  guerra 
pelo  gentio  da  Africa  Occidental  Portuguesa»  — '. 

bofarinha,  bofarinheiro :  V.  bufarinba 


bogacho 

Na  Beira-Baixa  quere  dizer  « novelo »  ^. 
Era   Lisboa   chama-se   hagochinho  ao  resto  de   um  novelo, 
quando  já  perdeu  a  forma  globular:  cf.  hogalho. 

boi;  boi-bento;  boi  (de)-cavalo,  boi  de  monta(da) 

Na  procissão  do  Corpo-de-Deus,  celebrada  em  Caminha,  vai 
adeante  um  boi,  nédio,  formoso  e  corpulento,  enfeitado  de  flores, 
e  com  uma  altíssima  cruz,  formada  também  de  flores,  erguida 
entre  as  armas.  Chamam-lhe  o  boi-bento,  como  lá  me  disseram. 

Boi  (de)-cavalo,  ou  boi  de  monta  ou  de  montada  se  deno- 
mina na  nossa  África  aquele  que  lá  substitui  o  cavalo,  como 
montada.  A  primeira  expressão  está  abonada  no  jornal  O  Econo- 
mista, de  11  de  agosto  de  1885,  e  é  a  mais  usual;  a  segunda  é 
empregada  na  obra  de  Henrique  de  Carvalho,  Expedição  poetu- 

GUEZA  AO  MUATIÂJÍVUA  '^. 

bolçar 

A  forma  antiga  deste  verbo  é  boomçar,  bonçar,  o  que  indica 
claramente  o  seu  étimo  uomitiare,  como  já  o  aponta  D.  Caro- 
lina Michaêlis  de  Vasconcelos,  na  Kevista  Lusitana,  i,  páj.  299. 


•     P.  Saturnino,  Conferencia  feita  na  Sociedade  de  Geografia  de  Lisboa 
em  2  de  maio  de  1900,  publicada  nos  Avulsos. 

2  Informação  do  editor,  natural  de  Almeida. 

3  Lisboa,  1890. 


15(j  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


boliço 

O  vocábulo  reboliço  é  muito  usado;  não  assim  porém  o  seu 
primitivo,  que  era  frequente  dantes,  e  que  vemos  empregado  pelo 
cronista  liui  de  Pina: — «encomendarão  ao  Daião  que  fosse  falar 
com  ella  [a  Rainha],  para  que  quisesse  repousar  á  vontade,  e  não 
dar  causa  a  boliços,  de  que  tanto  mal  se  podia  seguir»  —  *. 


bolo;  bola 

Bolo-ãe-vinte-e-quatro-horas  se  chama  em  Aveiro  a  uma  es- 
pécie de  arrufada,  que  leva  24  horas  a  aprontar-se:  tem  farinha, 
ovos  e  açúcar. 

No  Alentejo  denomina-se  bola  o  chamado  «queijo  de  correr», 
que  em  outras  partes  se  diz  queija. 

a  boma,  (e  não)  o  boma 

E  palavra  da  África  Oriental  Portuguesa,  e  o  seu  significado 
está  exposto  no  seguinte  passo  do  Joenal  das  Colónias,  de 
24  de  dezembro  de  1904: — «no  boma  ou  forte  só  pernoita  a 
guarda » — . 

Deu-se-lhe  aqui  o  género  masculino,  infundadamente,  pois  as 
línguas  cafriais  não  diferençam  géneros  gramaticais,  e  a  palavra, 
pela  sua  terminação,  é  femenina  em  português. 

bomba,  bombo,  bumbo,  zabumba 

Estes  vocábulos,  mais  ou  menos  onomatopoéticos,  isto  é,  imi- 
tativos  de  sons,  com  os  seus  derivados,  como  bombarda,  bom- 


^    Crónica  de  El-uei  Dom  Afoxso  v,  cap.  liii. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  157 


heiro,  dariam  causa  a  uma  extensa  monografia,  (tam  abundante 
e  minuciosa  como  a  que  Hugo  Schuchardt  consagrou  aos  deriva- 
dos do  latim  cochlea  ')  a  começar  pela  interjeição  hum!,  só, 
ou  repetida,  humhum! 

Consignarei  aqui  apenas  o  seguinte: 

A  forma  bumbo  é  a  popular,  talvez  por  influencia  da  inter- 
jeição, e  ampliada  ainda  com  a  sílaba  za-  prelicsada,  o  que  apros- 
sima  o  vocábulo  do  castelhano  zambomba  (pr.  §ambomba),  nome 
que  em  Espanha  se  dá  ao  instrumento  grosseiro  e  importuno  a 
que  em  português  se  chama  ronca,  o  qual  consiste  numa  caixa 
de  resouáncia  mais  ou  menos  cilíndrica,  aberta  num  topo,  e  cu- 
berta  no  outro  com  uma  pele  esticada,  a  que  está  preso  interna- 
mente um  cordel  encerado,  pelo  qual  se  corre  a  mão  para  o  fazer 
soar. 

A  forma  tida  por  culta,  bombo,  designa  um  tambor  ou  caixa, 
antigamente  muito  alto,  hoje  de  altura  inferior  ao  diâmetro,  o 
qual  se  tauje  com  uma  maçaneta. 

A  palavra  parece  que  veio  para  cá  do  italiano,  como  outros 
nomes  de  instrumentos:  em  italiano  dá-se  o  nome  de  bombo  a 
uma  nota  musical,  repetida,  sem  variação  alguma  (ronca),  e  o 
bombo,  na  realidade,  não  dá  mais  que  uma  nota,  se  nota  musical 
se  pode  chamar  o  soído  de  uma  pancada,  sempre  a  mesma. 

Em  razão  da  forma,  dão  os  pescadores  da  tartaranha,  no 
Tejo,  seixalenses  e  barreirentos,  o  nome  de  bumbo  a  uma 
selha  alta  onde  expõem  à  venda  o  peixe  no  mercado  da  lota,  no 
Aterro  da-Boa-Vista. 

Os  bumbos  são  feitos  de  um  barril  serrado  ao  meio,  e  por- 
tanto, de  cada  barril  fazem-se  dois  bumbos,  ou  selhas  dessas. 


1     RoMANisCHE  Etymologieex,  II,  in  <  Sitzungberichten  der  Kaiserli- 
chen  Akademie  der  Wissenschaften  in  Wien  >,  1899. 


158  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


bombaça 

No  estudo  de  Rocha  Peixoto  intitulado  Os  palheiros  do 
LiTTORAL  *  lê-se: — «Cuma  cobertura  de  duas  aguas  [de  duas 
correntes],  telhada,  raro  colmo,  irrompe,  para  escoante  do  fumo 
da  cozinha,  uma  bombaça,  quando  não  é  uma  simples  abertura, 
ou  mesmo  nada» — . 

Antes  ^  dissera  o  mesmo  escritor,  referindo-se  a  edificações 
portuguesas  várias: — «Dos  telhados,  resaltando  á  frente  sobre 
cachorros  de  madeira,  recortadas  e  ligadas  ao  frechai . . .  sobem 
chaminés  de  tipos  vários,  como  a  bombaça  (Minho  e  Douro) 
ou  as  que  semelham  túmulos  (Alemtejo),  minaretes  e  zimbórios 
(Algarve);  n'outros  nem  existem:  é  na  serra,  onde  as  paredes 
parecem  uniformemente  vestidas  de  fuligem  > — . 

Estes  dois  trechos  completam-se  um  ao  outro. 

E  pois  a  bombaça  uma  espécie  de  chaminé,  e  é  vocábulo 
ainda  não  rejistado  em  dicionários. 

A  propósito  direi  que  o  povo  pronuncia  melhor  que  os  cul- 
tos a  palavra  chaminé,  pois  diz  cheminé,  do  francês  chemi- 
née;  a.  forma  literária  chaminé  é  devida  a  falsa  aualojia  com 
chama  \  flamma,  vocábulo  com  o  qual  não  tem  nenhuma  re- 
lação. 

O  francês  provém  de  caminata  j  camlnus,  palavra  que 
os  romanos  receberam  dos  gregos. 


,  bombeiro 

Designa  este  vocábulo,  nas  marinhas  do  sal,  um  tabuleiro 
sobre  o  comprido,  com  um  cabo,  e  um  pau  roliço  atravessado  a 
meio  por  dois  buracos  abertos  nas  paredes  laterais. 


1  ín  Portugália,  I,  p.  87. 

2  ib.  p.  83. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portuguesen  159 

Vera  íigurado  no  jornal  O  Século,  de  10  de  junho  de  1901, 
juntamente  com  outras  alfaias  usadas  na  lavra  do  sal. 

bomboteiro 

Esta  palavra,  usada  no  Funchal,  é  o  aportuguesamento,  com 
o  sulicso  -eiró  do  vocábulo  inglês  bumboat: — «Logo  que  fundeou 
o  « Donne-Castle » ,  foi  rodeado  por  grande  quantidade  de  barcos, 
conduzindo  bomboteiros.  Dá-se  este  nome  aos  homens  que  se 
empregam  na  venda,  a  bordo,  dos  productos  da  ilha,  entre  os 
quaes  aguardente  e  vinho  > — *. 

bondoso,  bondadoso 

Bondoso  significa  o  que  tem  bondade,  e  também  existe  o 
adjectivo  bondadoso,  de  que  o  primeiro  é  forma  simplificada  -. 

Não  são  poucos  estes  casos  de  haplolojia  em  português,  e 
exemplos  análogos  temos  em  saudoso  por  saudadoso,  de  saudade, 
caridoso  por  caridadoso,  de  caridade,  cuidoso,  por  cuidadoso 
de  cuidado,  sendo  a  segunda  forma  do  adjectivo  a  mais  usual 
hoje;  mas  que  o  não  era  no  tempo  de  Camões  depreende-se  do 
emprego  que  fez  de  cuidosos: 

Do  foturo  castigo  não  cuidosos  '. 

Outro  caso  de  haplolojia  com  polissíntese  é,  por  exemplo, 
fidalgo,  por  iílho  de  algo. 

Para  evitar  a  haplolojia,  ou  simplificação  dos  vocábulos  me- 
diante supressão  de  uma  sílaba,  quando  duas  sílabas  consecuti- 


1  O  Século,  de  2  de  março  de  1900. 

2  J.  Leite  de  Vasconcelos,  Eevista  Lusitana,  iii,  p.  272. 
2    Os  Lusíadas,  ih,  p.  132. 


160  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 

vas  começam  pelos  mesmos  elementos  consonánticos,  muda-se  a 
meúdo  a  vogal  surda  da  primeira  delas,  em  outra  mais  distinta; 
assim  temos:  diclal,  por  dedal  [  dedo,  se  não  de  digitale,  pois 
dizemos  dedeira,  sem  haplolojia;  ^'/j/z^w,  q  jajum,  -por  jejum;  2>i- 
pino,  por  pepino,  etc. 

Haplolojia  notável  é  a  que  simplificou  antigamente  consi- 
derar em  consirar,  que  vemos,  por  exemplo,  em  Kui  de  Pina, 
Crónica  de  El-rei  Dom  Afonso  v  (cap.  ii).  O  povo,  ainda  hoje, 
porque  o  verbo  nas  formas  arrizotónicas,  como  o  infinito,  tem  um  e 
escrito,  que  se  não  lê,  pois  pronunciamos  considrar,  e  não,  con- 
siderar, conjuga-o  nas  rizotónicas  sem  esse  e,  dizendo  considro, 
por  CDYisidéro,  assimilando-o  a  vidro,  de  vidrar,  que  não  é  vidéro. 


bonideco 

Esta  expressão  adverbial,  usada  nos  Açores  no  sentido  em  que 
empregamos  de  boa  vontade,  ou  em  francês  volontiers,  tem  ori- 
jem  erudita:  é  o  latim  bono  et  aequo,  com  supressão  do  o  do 
primeiro  vocábulo. 

bonzo 

É  vocábulo  japonês,  e  como  tal  sempre  foi  considerado, 
havendo  sido  introduzido  na  Earopa  pelos  portugueses.  E  frequente 
nos  nossos  escritores,  quando  se  referem  à  China,  Japão,  Aname, 
Siame,  Camboja,  a  toda  a  parte  da  Ásia  onde  impera,  como  re- 
lijião  dominante,  o  budismo,  mais  ou  menos  adulterado. — «De- 
pois da  morte  de  seu  pai  foram  os  bonzos  que  assistiram  ao  pa- 
gode»— ^ 

Os  nossos  dicionários  e  os  alheios  dão  como  étimo  a  esta  voz 
peregrina  a  forma  japonesa  hozu;  mas  a  verdadeira  escrita  seria 


1    António  Francisco  Cardini,  Batalhas  da  Companhia  ue  Jesus, 

Lisboa,  1894. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  161 


então  hôuzu,  dando-se  ao  ou  o  valor  que  tem  em  português. 
Não  é  desta  forma,  porém,  que  o  vocábulo  foi  tirado,  mas  sim 
de  outra  dialectal,  hónzu,  o  que  explica  a  vogal  que  adquiriu 
em  português. 

E  frequente  esta  adjunção  de  n  às  consoantes  sonoras  entre 
vogais,  em  certos  dialectos  da  língua  do  Japão,  e  assim  se  moti- 
vam as  escritas  portuguesas  Nangassáqui,  Cangoximâ,  etc. 

O  mesmo  aconteceu  ao  vocábulo  biombo,  em  japonês  biõbu, 
ou  biómbu. 

boqueirão 

O  Novo  DiccioNÁBio  rejista  este  substantivo  como  nome  de 
um  peixe,  cuja  vivenda  é  no  Algarve  e  nos  Açores. 

Todavia,  no  jornal  O  Economista,  de  14  de  setembro  de  1888, 
citando  o  Campeão  das  Peovincias,  de  Aveiro,  lemos:  —  «No 
mercado  não  ha  positivamente  nada.  Um  pouco  de  boqueirão 
que  restava  das  últimas  pescas,  vendeu-se  logo  que  aqui  chegou 
a  700  réis  o  milheiro»  — . 

Parece  portanto  que  se  encontra  em  outras  águas  mais  ao 
norte. 

Em  castelhano  há  boquerón,  que  o  Dicionário  da  Academia 
descreve  do  seguinte  modo:  —  «Pez  dei  orden  de  los  malacopte- 
rigios  abdominales,  muy  comun  en  el  Mediterrâneo,  de  unos  ocho 
centímetros  de  longitud,  cuerpo  largo  [«comprido»]  y  compri- 
mido, verdoso  por  el  lomo  («lombo»)  y  plateado  en  lo  demás,  y 
boca  que  se  prolonga  hasta  detrás  de  los  ojos»  — .  Parece  ser 
este  último  característico  o  que  lhe  deu  o  nome.  Ignoro  se  o 
peixe  que  em  português  se  chama  boqueirão  é  este  mesmo. 

borco  (pi.  borcos);  emborcar 

Tanto    no   Diccionabio   Contempoeaneo,    como   no   Novo 
DiccioNÁEio  dá-se  este  vocábulo  por  somente  usado  na  locu- 
ção adverbial  de  borco,  o  que  inspirou  a  Júlio  Cornu  a  etimolo- 
jia  de  porco,  bastante  singular  e  inverosímil.  No  Suplemento  ao 
11 


162  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


Novo  Dicc.  relaciona-se  horco  com  bolear,  dado  no  corpo  do 
dicionário  como  vocábulo  transmontano,  com  o  significado  de — 
«fazer  cair,  voltando» — .  Borco,  porém,  existe  como  substantivo 
independente. 

No  meu  trabalho  sobre  o  falar  bragançano,  inserto  no  i  vo- 
lume da  Revista  Lusitana,  a  páj.  212  \  incluído  no  vocabulá- 
rio transmontano  que  ali  publiquei,  rejistei  o  verbo  emholcar, 
comparando-o  com  o  castelhano  volcar,  «tombar»  um  carro,  por 
exemplo,  e  o  português  comum  emborcar,  subordinando-os  todos 
ao  latim  inuolioicare,  de  uoluere.  Ainda  mantenho  a  mesma 
opinião,  que  é  confirmada  pelo  substantivo  borco,  «tombo»  em- 
pregado no  seguinte  trecho: — «[cambalhota]  de  cima  para  baixo, 
aos  borcos  como  cobras» — ^. 

bordão 

Esta  palavra,  na  acepção  de  modo-de-dizer  que  se  repete  a 
meúdo,  tornando-se  habitual,  e  a  bem  dizer  inconsciente,  o  que 
em  castelhano,  com  a  mesma  relação  figurada,  se  diz  muletilla, 
é  já  antiga  em  português,  pois  a  vemos  empregada  neste  sentido 
por  António  Francisco  Cardim  nas  Batalhas  da  Companhia 
DE  Jesus  ^: — «o  bordão  com  que  se  defendem  nas  respostas  é 
dizer  que  assim  está  nos  seus  livros»  —  . 

bornudo 

—  «Ave  de  formosas  pennas»  —  *.  Difícil  definição  para  se 
poder  iderítificar,  pois  tanto  poderia  ser  um  pavão,  como  um 
canário;  em  todo  o  caso,  a  ave,  descrita  com  tanta  parcimónia, 
é  da  África  Oriental  Portuguesa. 


1  1887-1889. 

2  Marcelino  de  Mesquita,  O  Tio  Pedro. 

3  Lisboa,  1894,  p.  259. 

*    Diocleciano  Fernández  das  Neves,  Itinerário  de  uma  viagem  á 
caça  dos  elephantes,  Lisboa,  1878,  p.  58. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  163 


borracheiro 

Este  vocábulo  está  definido  no  Kôvo  Diccionáeio  como  signi- 
ficando:—  «fabricante  ou  vendedor  de  borrachas»  — . 

Tem,  porém,  outro  sentido,  que  não  está  rejistado:  é  «o  in- 
divíduo de  Rio-Maior  que  daquela  povoação  conduz  vinho  para 
Alcobaça»,  naturalmente  em  odres,  ou  borrachas.  Assim  me 
informou  uma  criada  natural  daquela  freguesia. 

Que  o  mesmo  nome  se  dá  na  Ilha  da  Madeira  aos  trabalha- 
dores ocupados  em  análogo  mester  prova-se  com  um  bilhete  pos- 
tal ilustrado,  o  n°  111  da  colecção  b.  p.,  o  qual  representa  uma 
dúzia  de  homens,  com  borrachões  ao  ombro,  junto  ao  casal,  em 
cuja  parede  exterior  estão  enfileirados  alguns  cascos,  com  um 
dos  tampos  virado  para  essa  parede  e  o  outro  para  os  homens: 
a  lejenda  diz: — «MADEIRA  bokracheieos » — . 

Há  porém  uma  diferença  entre  os  borracheiros  do  Riba-Tejo 
e  os  da  Madeira:  é  que  estes  transportam  em  borrachões  o  mosto, 
dos  lagares  para  as  adegas,  entanto  que  os  outros,  em  iguais 
vasUhas,  conduzem  o  vinho  já  feito,  como  fica  dito. 


bostear;  besteiro 

O  Novo  Dicc.  rejista  este  verbo,  como  sinónimo  de  «  embos- 
tar»,  derivado  de  bosta. 

Na  índia  portuguesa,  conforme  informação  do  capitão-de-mar- 
-e-guerra  Júlio  Elesbão  Pereira  Sampaio,  que  ali  serviu  por  muito 
tempo,  bostear   significa: — «revestir  de  bosta  as  paredes» — . 

O  Novo  DiccioNÁEio  define  o  vocábulo  bosteiro  do  modo  se- 
guinte:—  «escaravelho  que  vive  na  bosta» — . 

O  CoNTEMPOEANEO  coutcntara-se  com  dar  o  vocábulo,  cuja 
orijem  é  evidente,  como  sinónimo  de  escaravelho,  e  creio  que 
teve  razão.  Com  efeito,  na  Gazeta  das  Aldeias,  de  24  de  se- 
tembro de  1905,  lê-se: — «O  escaravelho,  como  a  maioria  das 
espécies  do  género,  sustenta-se  dos  dejectos  dos  herbívoros,  prin- 


164  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


cipalmente  da  bosta  dos  bois  e  dos  cavallos.  Dahi  lhe  veio  o 
nome  popular  de  bosteiros,  por  que  a  gente  das  aldeias  mais 
usualmente  os  conhece » — .  Vê-se,  portanto,  que  não  é  nome  de 
qualquer  espécie  diferente,  mas  sim  alcunha  que  lhe  foi  posta 
em  razão  dos  seus  hábitos.  Nem  êle  vive  na  bosta,  o  que  lhe 
traria  existência  muito  precária;  se  a  busca,  é  para  alimento,  e 
não  para  fazer  nela  vivenda. 

A  mesma  útil  publicação  acrescenta: — «Julgou-se  durante 
muito  tempo  que  o  escaravelho  preparava  esta  bola  [que  forma 
da  bosta]  pára  nella  depor  os  ovos,  mas  está  recentemente  pro- 
vado que  ella  é  única  e  exclusivamente  destinada  á  alimentação 
do  insecto»  — . 

Como  a  Gazeta  das  Aldeias  segue  à  risca  o  sistema  de 
acentuação  e  quási  pontualmente  o  ortográfico  adoptado  no  Novo 
Dicc,  ao  leitor  do  centro  do  reino  depara-se  por  vezes  indicação 
de  pronunciações  que  lhe  são  estranhas,  e  nas  linhas  que  trans- 
crevi há  duas  dessas:  a  primeira  que,  conquanto  diversa  da  que 
é  corrente  em  Lisboa,  é  menos  singular,  escaravelho,  que  na 
capital  se  pronuncia  escaravâlho;  e  a  outra,  mais  inesperada, 
género,  que  em  todo  o  litoral  no  sul,  desde  o  extremo  Algarve 
até  Figueira  da  Foz,  pelo  menos,  se  profere  género,  com  e  aberto 
na  sílaba  predominante,  que  é  a  primeira. 

Entendo  ser  defeituoso  este  sistema  de  uma  parte  do  reino 
impor  pela  escrita  as  suas  pronunciações  locais  ao  resto  das  pro- 
víncias, mormente  à  capital,  que  decerto  as  não  seguirá.  E  em 
razão  disto  que  eu,  apesar  de  adoptar  um  sistema  rigoroso  de 
acentuação  gráfica,  marco  sempre  com  o  sinal  geral  do  acento 
tónico,  o  agudo  ('),  as  vogais  a,  e,  o  antes  de  consoante  nasal, 
por  o  seu  valor  variar  muito  de  uns  para  outros  pontos,  e  não 
com  o  circunflecso,  que  particular  e  unicamente  serve  para  indi- 
car, em  caso  de  necessidade,  o  e  e  o  o  que  são  proferidos  como 
fechados  em  toda  a  parte  ^ 


»     V.  sobre  este  assunto  Ortografia  Nacional,  do  autor,  Lisboa, 
1904,  p.  179-181. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  165 


bota-d'água 

Este  calçado,  apropriado  a  resistir  à  agua,  especialmente  nas 
passajens  a  vau,  está  já  designado  com  este  nome  no  Suplemento 
à  CoLLEcçÃo  DE  LEaisLAçÃo  POETUGUEZA,  referente  aos  anos 
de  17ÕO-1762,  em  um  aviso  de  23  de  outubro  de  1753:  —  «se  dê 
aos  Kegimentos  de  Dragões  do  seu  Exercito  botas  de  agoa» — . 


bouça 

Esta  palavra,  formalmente,  parece  provir  de  b  ai  te  a,  plural 
neutro  do  adjectivo  balteus,  baltea,  balteum,  substantivado, 
que  em  latim  significa  «o  que  cinje»,  e  do  qual  o  Magnum 
Lexicon  de  José  António  Kamalho  *  nos  diz  ser  mais  usado 
como  substantivo  no  plural.  E  definida  no  Dicc.  Contemporâ- 
neo, como  termo  minhoto,  com  a  significação  de  — « terreno  onde 
se  cria  matto  para  adubo,  por  não  ser  próprio  para  cultura  > — . 
Mas  na  monografia  de  Alberto  Sampaio  As  villas  do  nobte  de 
Portugal,  ^  lemos  o  seguinte: — «as  bouças  (hauzas,  hustelos) 
que  forneciam  o  matto  para  a  cama  dos  aniraaes,  e  a  lenha» — : 
donde  se  deduz  que  a  acepção  é  mais  lata. 


braga,  bragal 

O  primeiro  destes  vocábulos,  do  latim  braça,  e  mais  trivial- 
mente bracae  no  plural,  como  acontece  entre  nós  também  com 
objectos  geminados,  de  que  se  faz  uso,  por  ex.:  calças,  óculos, 
brincos,  çapatos,  etc,  não  designa  em  português,  como  na  língua 
de  onde  provém,  «calças  compridas,  até  os  pés>,  mas  calçotas 


1  Lisboa,  1819. 

2  tw  Portugália,  I,  p.  324. 


166  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


curtas,  ainda  mais  que  os  calções,  como  as  que  usam  os  serrado- 
res de  madeira.  Designa  também,  no  singular,  a  argola  de  ferro 
ou  grilheta  onde  prendia  a  cadeia  de  ferro  dos  condenados  a 
trabalhos  públicos,  e  que  se  via  frequentemente  há  cinqiienta 
anos  em  Lisboa  nos  calceteiros,  quando  o  ofício  destes  era  de- 
sempenhado por  bandos  de  galeotes,  acorrentados  a  dois  e  dois,  e 
que  se  denominavam  também  grilhetas.  V.  calceta. 

Alberto  Sampaio,  na  excelente  monografia  As  Villas  do 
NoETE  DE  Portugal  *,  refere-se  deste  modo  aos  dois  vocábulos 
da  epígrafe: — «A  terminologia  [da  cultura,  cura,  fiação  e  tece- 
dura  do  linho  no  norte  de  Portugal]  tem  a  mesma  procedência 
[romana];  assim  bragal,  designando  tanto  a  roupa  branca  como 
o  pano  que  lhe  é  destinado,  e  braga,  bragas  (de  braça,  palavra 
gallo-latina),  massar  (massare,  esmagar  as  hastes  do  linho),  es- 
topa (stuppa),  tomentos  (tomentmn),  espadella  (diminutivo  de 
spatha),  espadar  ou  espadelar  (bater  com  a  spatha  ou  espadella), 
estriga  (striga),  fuso  (fusus)^  maunça  ou  mainça  (manuncia  pi. 
de  manuntium,  ou  de  mayiicia,  pi.  de  manicium),  e  roca  (rukka, 
got.,  em  esp.  rueca,  em  ital.  rocca) — todos  estes  termos  provêm 
do  latim,  excepto  o  ultimo,  cuja  origem  germânica  nas  três  lín- 
guas é  singular» — . 

No  Elucidário  de  Santa  Kosa  de  Viterbo  vem  um  longo 
discurso  sobre  o  termo  bragal;  nem  aí,  porém,  nem  em  nenhum 
outro  dicionário  vejo  apontada  uma  acepção  especial  que  tem 
esta  palavra,  e  é  o  «pano  com  que  se  cobre  a  farinha  depois  de 
amassada»  —  -. 


breca 


O  significado  deste  vocábulo  é  cãibra,  e  a  êle  se  devem  su- 
bordinar as  várias  locuções  compendiadas  no  Suplemento  ao 
Novo  DicciONÁEio :  levado  da  breca  « travesso » ;  foi-se  com  a 


^    in  Portugália,  I,  p.  317. 

2    Revista  Lusitana,  t.  vi,  p.  126. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugxieses  167 


breca,   « foi-se   espantado » ;  faz  cousas   da  breca,   <  faz  cousas 
diabólicas»,  «como  se  estivesse  atacado  de  cãibras >. 


brejo,  brejeiro  (=^hrèjeiro) 

O  étimo  do  primeiro  destes  vocábulos  é  desconhecido,  pois  o 
mais  plausível,  em  grego  bragós,  «paul>,  oferece  grandes  di- 
ficuldades fonéticas  e  mesmo  históricas,  para  de  leve  poder  acei- 
tar-se. 

De  brejo  parece  provir  brejeiro,  com  è  aberto  átono  na  pri- 
meira sílaba,  isto  é,  sem  enfraquecer  o  é  do  radical,  o  que  aliás 
sucede  quási  sempre  antes  de  consoante  palatal,  quando  o  e  é 
aberto:  cf.  frecheiro,  de  frecha,  sèjeiro,  de  séje,  velhice  de  velho; 
e  nem  obsta  a  esta  lei  envejoso,  de  envéja,  pois  o  e  antigamente 
era  fechado,  como  procedente  do  í  de  inuidia,  e  o  ser  aberto 
provém  de  se  haver  tomado  como  substantivo  verbal. 

Xão  me  ocorre  em  que  dicionário  português  se  explicava  bre- 
jeiro como  derivado  de  hrejo, —  «porque  nos  brejos  se  fazem 
cousas  brejeiras»  — . 

Este  adjectivo  significa  «obsceno»,  e  «ordinário»,  e  neste 
sentido  se  empregava  para  denominar  certos  cigarros  do  antigo 
Contrato  de  tabacos,  anterior  a  1864,  feitos  com  péssimo  e  fétido 
rolo  picado,  escorrendo  melaço,  e  com  as  mortalhas  de  ruim  pa- 
pel, manchado  de  nódoas  alambreadas,  do  reçumar  da  himiidade 
do  tabaco:  custavam  a  três  õ  réis.  Parece  que  ainda  hoje  assim 
se  denominam  os  cigarros  piores,  comprados  já  feitos,  como  se 
depreende  do  seguinte  passo,  primor  de  observação  rigorosa:  — 
«ar  jingão  e  andar  de  fadista,  cigarro  brejeiro  sempre  ao  canto 
da  bocca,  cuspindo  a  meudo  por  entre  os  dentes» — *. 


1    O  Século,  de  10  de  setembro  de  1900. 


168  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


brelho 

O  latim  imbrex,  imbrícis,  que  provém  de  imber,  imbris 
«aguaceiro»,  e  significa  «telha»  (}  te  gula),  está  provavelmente 
representado  em  francês  pela  palavra  brique,  e  em  italiano  por 
'bricca,  «barranco  por  onde  a  água  se  despenha»,  e  que  num 
sentido  especial  foi  talvez  o  étimo  imediato  do  termo  francês.  Em 
português  temos  no  Minho  um  vocábulo,  não  derivado  directa- 
mente do  imbricem,  mas  do  deminutivo  imbricalum:  é  brelho, 
«(fragmento  de)  tejôlo»,  colijido  por  J.  Leite  de  Vasconcelos, 
que  lhe  atribui,  com  razão,  esta  etimolojia  K 

Vocábulos  modernos  da  mesma  orijem  são  imbricar,  imbri- 
cado }  imbricare.  Outra  etimolojia  proposta  para  o  francês 
brique  é  o  inglês  brich  {  break  «quebrar». 


brendò 

Na  Beira-Baixa  denomina-se  assim  uma  espécie  de  garfo,  de 
quatro  a  seis  dentes,  fabricado  de  madeira  pelo  carpinteiro,  em 
oposição  a  tomadeira  (q.  v.)  ^. 


brinco,  brincar 

Ou  brincar  provenha  de  springan,  no  sentido  de  «pular», e 
de  bli{n)Jcan,  no  de  «gracejar,  entreter-se » ,  sendo  portanto  for- 
mas converjentes;  ou  proceda  de  um  só  destes  verbos  germâni- 
cos, sendo  a  segunda  acepção  desenvolvimento  da  primeira;  ou 
ainda,  o  substantivo  brinco  significando  «pinjente»  seja  o  latim 
uinc(u)lum,  independente  portanto  de  brinco,  substantivo  ver- 


1  Ebvista  Lusitana,  m,  p.  207. 

2  Iníormação  do  editor,  natural  de  Almeida. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  169 


bal  rizotónico  do  verbo  brincai-:  o  que  é  certo  é  que  este  em 
português  adquiriu  significados  em  que  o  seu  correspondente  cas- 
telhano brincai',  « pular » ,  o  não  seguiu,  pois  na  segunda  acepção 
se  diz  ali  jugar,  juguetear. 

Entre  o  povo,  no  continente,  o  verbo  brincar  era  usual  no 
sentido  de  < bailar»,  e  ainda  hoje  não  perdeu  de  todo  essa  acep- 
ção, que  vemos  exemplificada  na  seguinte  quadra,  vulgar  há 
cinquenta  anos: 

—  O  menina  das  laranjas, 
^Você  que  dá  e  que  tem? 
Você  está  tam  coradinha, 
Você  brincou  com  alguém. 


Este  significado  conserva  o  substantivo  verbal  na  índia  por- 
tuguesa, em  Goa  pelo  menos,  como  se  lê  no  seguinte  trecho  de 
uma  correspondência  de  lá,  publicada  no  jornal  O  Século,  de  26 
de  julho  de  1902:  —  «Danças  chamadas  brincos,  populares,  de 
christãos  brahamenes  [sic],  moiros  e  outros  gentios,  com  suas 
musicas  características »  — . 

O  mesmo  substantivo,  que  também  significa  «brinquedo  de 
criança  > ,  foi  por  António  Francisco  Cardim  empregado  num  sen- 
tido muito  especial,  o  de  «galantarias»,  «bujigangas»,  correspon- 
dente ao  francês  bibelots,  e  que  o  traduz  perfeitamente:  —  «Era 
força  ir  o  padre  ao  paço  beijar  a  mão  ao  príncipe  pela  mercê,  e 
apresentar-lhe  agradecido  alguns  brincos  da  Europa  e  China» — *. 

Brincos  da  China  é  também  expressão  de  que  já  se  servira 
Femám  Méndez  Pinto,  no  mesmo  sentido  de  « galantarias » :  — 
«o  embaixador  comprou  muitas  peças  ricas»  ebrincosda  Chma 
que  aquy  se  vendião  muyto  baratos,  em  que  entrou  grande  quan- 
tidade de  almizcre,  porcellanas  finas,  seda,  retrós,  e  pelles  de 
arminhos» — -. 


1    Batalhas  da  Companhia  de  Jesus,  Lisboa,  1894,  p.  145. 
'    Peregrinação,  cap.  clxvi. 


170  Apostilas  nos  Dicionários  Portugueses 


(de)  bruços 

Este  modo  adverbial,  cuja  significação  é  «de  peito  para 
baixo»,  «estendido  com  o  rosto  para  o  chão»,  e  à  qual  corres- 
ponde o  castelhano  de  hruces,  é  explicada  imperfeitamente  por 
buz,  com  fundamento  em  que  os  dicionários  castelhanos  consig- 
nam também  a  variante  de  biices,  que  suponho  não  ser  lejítinia. 
Com  respeito  ao  bus:  com  o  qual  o  relacionam,  pode  ver-se  o 
DiccioNARio  MANUAL  ETYMOLOGico  dc  F.  Adolfo  Coclho,  0  qual 
resume  a  argumentação  de  Diez,  que  aqui  não  repito,  por  me 
parecer  de  pequeníssimo  peso. 

A  expressão  parece  não  ser  antiga  em  português,  visto  que 
Bluteau  a  não  incluiu  *.  Partindo  desta  omissão,  suponho  que  a 
locução,  muito  trivial  hoje,  e  da  qual  se  derivou  o  verbo  de- 
bruçar-se,  proveio  de  líspanha,  por  intermédio  do  castelhano,  o 
qual,  todavia,  não  derivou  verbo  da  sua  expressão  de  bruces, 
como  aconteceu  em  português  com  debruçar. 

A  orijem  deste  modo  adverbial  parece-me  ser  o  vasconço 
buruz  (pronunciado  burúç),  caso  modal  de  buru,  «cabeça».  E 
certo  que  o  Dicionário  vasconço-francês  de  Van  Eys  ^  só  dá  a 
este  caso  modal  buruz  a  significação  «de  cor»,  «de  cabeça», 
como  também  dizemos;  é  possível,  porém,  que,  assim  como  por 
meio  do  mesmo  suficso  -ez,  de -on,  ou  oin,  «pé»,  se  forma  oneZy 
oinez,  «a  pé»,  a  forma  buruz,  significasse  «de  cabeça  [para 
baixo]»,  e  que  dessa  acepção  restrita,  em  qualquer  parte  das 
Vascongadas  o  caso  modal  indicado  viesse  a  significar  também 
« de  cara  para  baixo » . 

É  isto  uma  simples  hipótese,  que  me  parece  mais  aceitável 
do  que  a  proposta  por  Diez,  e  por  isso  aqui  a  rejisto,  para  funda- 
mento de  mais  rigorosa  investigação. 


1  Vocabulário  portugubz  latino. 

2  DiCTiONAiRB  BASQUE-FRANÇAis,  París,  1873,  sub  voc.  buru. 


Apostilas  aos  Dicionános  Portugueses  171 


bruxa,  bruxo;  bruxulear 

Instintivamente  se  faz  a  aprossimação  dos  dois  primeiros  vo- 
cábulos com  o  terceiro.  Até  agora,  porém,  as  investigações  etimo- 
lójicas  levam-nos  a  considerá-los  distintos.  Dá-se  como  étimo  mais 
verosímil  do  bruxulear,  português  e  castelhano  antigo,  hruju- 
Jear,  (pron.  brui[ulear)  castelhano  moderno,  em  última  análise 
um  verbo  latino  perustulare,  que  seria  orijem  também  do 
italiano  hrustolare,  hruciare  e  brusciare,  os  quais,  como  o  fran- 
cês antigo  brusler,  e  o  moderno  briller,  significam  «queimar», 
e  «arder». 

Não  mencionarei  aqui  outras  hipóteses,  a  não  ser  a  título  de 
curiosidade,  e  por  ser  de  quem  é,  a  de  João  Storm,  a  qual  con- 
siste em  admitir  a  influência  do  germânico  brunst,  «queima», 
derivado  de  brennen, « queimar»,  num  latim  bustiare  \  bustum, 
«fogueira»  (cf.  comburere,  «queimar»),  de  que  resultaria  uma 
forma  nova  no  latim  popular  brustulare,  brustiare,  de  que 
se  derivariam  as  formas  italianas  e  a  francesa. 

Se  algumas  conjecturas  mais  ou  menos  plausíveis  se  teem 
feito  acerca  da  etimolojia  de  bruxulear,  nenhuma  se  apresentou 
ainda  de  bruxa,  que  apresente  probabilidade;  não  serei  eu  de 
certo  quem  tente  nem  mesmo  descerrar  o  véu  que  encobre  a 
orijem  deste  interessante  e  tam  popular  vocábulo,  porque  me 
faltam  absolutamente  investigações  que  ofereça  ao  leitor  como 
abono  de  opinião  minha. 

Chamarei  apenas  a  atenção  para  os  seguintes  factos.  O  fenó- 
meno denominado  fogo  fátuo  não  tem  nome  vulgar  conhecido 
em  todo  o  país,  e  somente  em  alguns  pontos  dele  me  consta  lhe 
chamam  alminhas,  porque  em  geral  é  freqiiente  nos  cemitérios 
a  sua  aparição.  Outro  tanto  acontece  em  Espanha. 

Ora  não  ó  crível  que  tam  visível  fenómeno  ficasse  sem  nome, 
até  que  os  especialistas  lhe  pusessem  a  alcunha  que  agora  tem, 
desconhecida  do  povo  meúdo  porém,  e  que  é  um  arremedo  ala- 
tmado  da  expressão  francesa  feu-follet  A  minha  conjectura  é 
que  existe  em  bruxa  e  bruxulear  íntima  conecsão;  e,  signifi- 


172  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 

cando  o  verbo  bruxulear,  «lampejar»,  dar  clarões  incertos  e  de 
intensidade  variável,  êle  seja  derivado  de  bruxa,  tendo  esta 
palavra  sido,  em  qualquer  tempo  ou  lugar,  tanto  em  Espanha 
como  em  Portugal,  a  designação  popular  do  fenómeno. 

Parece-me  que  neste  sentido  se  devem  nortear  as  investiga- 
ções que  se  façam  para  descortinar  o  étimo  do  vocábulo  bruxa, 
considerando-se  bruxulear  um  derivado  romanico-peninsular  desse 
vocábulo. 

Como  subsídio  para  essa  investigação  apresento  aqui  um  texto 
extraído  de  obra  antiga  de  muito  interesse,  e  que  serve  de  am- 
paro à  minha  hipótese. —  «Por  conclusiou  noto  aqui,  que  aquella 
vision  nocturna  que  en  algunos  Paises  llaman  Hueste,  y  quieren 
que  sea  procesion  de  brujas,  es  mera  fabula,  a  que  dieron  oca- 
sion  las  exalaciones  encendidas,  que  los  Físicos  llamam  Fuegos 
fátuos.  El  vulgo,  viendo  aquellas  luces  y  no  pudiendo  creer  que 
fuese  cosa  natural,  la  atribuyó  á  la  operacion  diabólica» — ^ 

A  hueste,  «hoste»,  a  que  o  autor  aqui  se  refere,  é  a  Estan- 
tiga,  em  castelhano  Estantigua,  a  procissão  de  mortos  da 
superstição  medieval,  das  wutende  Heer,  acerca  da  qual  se  lerá 
com  muito  proveito  o  que  D.  Carolina  Michaêlis  de  Vasconcelos 
escreveu  no  vol.  iii  da  Revista  Lusitana,  e  onde  deixou  per- 
feitamente averiguada  a  etimolojia  do  vocábulo,  hueste  antigua. 

É  sabido  que  no  Brasil  se  chama  ao  fogo-fátuo  caipora,  termo 
tupi  (Cahapora),  que  também  designa  o  deus  das  selvas,  protector 
dos  animais  silvestres,  hostil  ao  caçador,  a  cuja  manifestação  os 
índios  bravos  atribuem  o  dito  fenómeno,  conforme  todas  as  pro- 
babilidades. 

Concluirei  com  uma  observação  justa.  Pondera-me  em  carta 
o  snr.  Acácio  de  Paiva  que  é  talvez  temerária  a  suposição  de 
que  bruxa  algures  no  reino  se  aplique  ao  fogo  fátuo,  visto  que 


1    Theatro  Critico  Universal.  Discursos  vários  en  todo  gé- 
nero DE  matérias  para  DESENGANO   DE  ERRORES  COMUNES,  ESCRITO 

POR  EL  M.  I.  S.  D.  Fr.  Benito  Geronimo  Feijoo  Montenegro,  t.  ii,  60,  p.  196, 

MDCCXLV. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  173 


em  parte  nenhuma  o  vocábulo  designa  ahna-ão-outro-munão, 
sendo  certo  que  na  opinião  do  vulgo  o  poder  ou  condão  fatal  da 
bruxa  lhe  provém  do  diabo,  e  que  ela  é  sempre  criatura  viva  e 
maléfica. 

bubela 

Por  este  nome  se  designa  em  Trás-os-Montes  a  poiqm,  como 
se  vê  do  trecho  seguinte: — «Outra  [tradição],  a  da  hubela  (poupa) 
disfarçada  milagrosamente  em  Nossa  Senhora» — ', 

Incluí,  no  vocabulário  transmontano  que  publiquei  no  i  vo- 
lume da  «Revista  Lusitana»  -  o  mesmo  vocábulo,  e  para  aqui 
transcrevo  a  sucinta  observação  que  ali  lhe  consagrei: — «6«- 
hela,  poupa  (ave):  latim  upupella,  deminutivo  de  upiipa  pela 
queda  do  u  [inicial]  e  abrandamento  de  j;  em  b :  cf.  port.  bisp>o, 
castelhano  obispo;  port.  baço,  catalão  ubach,  opacium,  opa- 
cum.  Em  galego  é  também  bubela,  em  mirandês  boubela,  em 
castelhano  abubilla,  havendo-se  dado  igual  abrandamento  de  p 
em  ambas  as  sílabas,  como  se  deu  no  italiano  bubbola,  que  per- 
deu a  vogal  inicial.  Tanto  a  forma  portuguesa,  como  a  miran- 
desa e  as  dialectais  italianas  poppa,  ])opo  fazem  pressupor  uma 
forma  latina  uppupa^ — .  Depois,  em  nota  acrescentava:  — 
«O  dr,  Hugo  Schuchardt  ^  admite  upúpa,  que  não  explicaria  o 
ditongo  ou,  nem  a  reduplicação  da  consoante  ou  o  o,  dialectais 
italianos  >  — . 

bucho,  bucha 

Este  vocábulo  no  sentido  de  «estômago»,  como  no  de  «mús- 
culo da  coxa  e  do  braço»,  provém  do  latim  musculam,  que  já 


1  Ferreira  Deusdado,  O  recolhimento  de  Mófreita,  in  <KeTÍsta 
KQ  Educação  e  Ensino,  1891,  p.  544. 

2  Falar  de  Rio-Frio,  p.  205. 

'      LlTTERATURBLATT  FtJR  GbRMANISCHE  UND  ROMANISCHE  PHILO- 

logie,  1883,  3. 


174  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


tinha  o  sentido  expresso  na  segunda  acepção,  conquanto  a  pri- 
mitiva significação  fosse  «ratinho»,  como  deminutivo  de  mus, 
«rato».  Em  castelhano  à  acepção  de  «músculo»  corresponde 
muslo,  e  à  de  estômago  huclie,  ambos  os  quais  teem  a  mesma 
orijem  latina,  sendo  formas  diverj entes  naquele  idioma. 

O  Suplemento  ao  Novo  Diccionáeio  aduz  também  uma  forma 
femenina,  bucha,  que  escreve  buxa,  abonando-se  com  Camilo  Cas- 
telo Branco;  mas  esta  escrita  é  evidentemente  errónea. 


buço,  embuçar,  boçal,  rebuçado 

No  Novo  Diccionáeio  atribui-se,  em  dúvida,  como  étimo  a 
este  verbo,  o  substantivo  buço.  D.  Carolina  Michaêlis  de  Vascon- 
celos opina  por  este  étimo,  cuja  orijem  seria  o  latim  bucceus, 
adjectivo  postulado,  me  parece,  por  buccea,  «bocado»  }  bucca. 
Conforme  a  douta  romanista,  embuçar-se  quererá  dizer — « cobrir 
a  metade  inferior  do  rosto  até  ao  buço  com  capa  ou  capote» — . 
Em  confirmação  deste  modo  de  ver  aduz  a  mesma  escritora  as 
formas  castelhanas  agora  escritas  bo^o,  embozo,  rebozo  e  seus 
derivados,  e  de  buço  deriva  bucal  (boçal).  Assim  será,  conquanto 
a  forma  portuguesa  com  u  por  ú  latino  seja  um  óbice  impor- 
tante, por  existir  o  vocábulo  boca,  no  qual  desse  ú  resultou  ô  nor- 
malmente. Por  outra  parte,  parece-me  violenta  a  metáfora,  que 
atribuiria  ao  particípio  de  rebuçar  o  significado  que  tem  o  subs- 
tantivo rebuçado.  Em  todo  o  caso  é  enjenhosa  a  hipótese,  e  ofe- 
rece bastantes  probabilidades,  visto  não  ser  admissível  que  buço, 
português,  tenha  orijem  diferente  de  bozó  castelhano,  o  que  pres- 
supõe igual  parentesco  nos  competentes  derivados. 

bufarinha,  bufarinheiro 

O  primeiro  destes  termos  é  definido  por  Cândido  de  Figuei- 
redo, no  Nôvo  Diccionáeio,  como  significando — «cosméticos  de 
pouco  valor;  bugiganga;  quinquilharias»  — ;  e  o  segundo  como 
—  «vendedor  de  bufarinhas» — . 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  175 


D.  Carolina  Michaêlis  de  Vasconcelos  *  dá  como  primitivo 
bufarias,  de  que  proviria  biifa7'inha,  como  de  escrevania,  es- 
crevaninha,  de  endemoniado,  endemoninhado. 

A  esta  conjectura  há  apenas  a  opor  que  nos  dois  vocábulos 
aduzidos  como  termos  de  comparação  a  nasal  nh  foi  ali  atraída 
pela  nasal  da  sílaba  anterior,  e  prevaleceu  a  palatal  nh  e  não  a 
ginjival  n,  em  virtude  do  i,  que  é  vogal  palatal;  assim  se  explica 
que  uinum  desse  vio  e  depois  vinho,  ao  passo  que  de  unam 
proveio  ua  e  depois  uma,  por  ser  o  u  labial.  Ora,  não  se  deu  a 
primeira  dessas  condições,  para  que  de  bufarias  resultasse  bufa- 
rinhas,  e  conseguintemente  é  duvidoso  que  o  vocábulo  português 
bufarinheiro  seja  o  correspondente  formal  do  castelhano  buho- 
nero,  que  com  êle  condiz  na  significação;  e  portanto  o  étimo  pro- 
posto está  lonje  de  demonstrado,  apesar  de  ser  tam  tentador,  que 
já  occorrera  a  Bluteau,  que  se  expressa  deste  modo:  —  «Bofari- 
nheiro.  Deriva-se  do  Castelhano  Buhonero,  e  este  de  Bufonero, 
porque  segundo  Cobarruvias  vê  de  híís  toucados,  que  em  Castella 
se  chamam  Bufos,  e  por  outro  nome  Papos.  O  Bofarinheiro 
leva  a  sua  tenda  ás  costas  em  huma  arquinha,  chea  de  varias 
meudezas,  como  são  fitas,  pentens,  estojos,  etc . .  .  Segundo  o 
adagio.  Cada  bofarinheiro  louva  os  seus  alfinetes» — ^.  O  étimo 
extremo  seria  o  latim  bufo,  do  qual  também  procede  bufão. 

Por  tudo  isto  se  vê  que  a  definição  do  Isôvo  Dicgionábio  é 
inexacta,  por  muito  restrita. 

Quando  eu  era  criança  pequena,  aí  por  1847,  percorria  as 
ruas  de  Lisboa  um  bufarinheiro,  com  a  competente  arquinha 
ou  tabuleiro  de  tampa  de  vidro,  que  num  pregão  cantado,  com 
muitas  variações,  mas  sempre  as  mesmas,  anunciava  a  mercancia 
numa  lenga-lenga  extensíssima,  a  qual  começava  assim:  «Pentes 
de  tartaruga,  travessinhas ;  pentes  da  moda  bonitos  para  as  se- 
nhoras; etc...»;  findando  sempre  deste  modo:  «Va  lá  leques, 
leques  para  as  senhoras!». 


1  in  Revista  Lusitana,  iii,  p.  135. 

2  Vocabulário  portuguez  latino. 


176  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


bufo 


Esta  palavra,  que  designa  uma  ave  nocturna,  foi  transferida 
metaforicamente  para  indicar  um  indivíduo  da  polícia  secreta, 
do  mesmo  modo  que  nos  tempos  de  D.  Miguel  os  esbirros  da 
ronda  nocturna  se  chamavam  morcegos.  O  termo  bufo,  neste 
sentido,  está  abonado  no  seguinte  trecho:  —  «Tinham  sido  os  dois 
bufos. . .  que  me  tinham  mandado  prender» — K 


bui;  bule 

Como  vocábulo  de  jíria  torpe,  com  a  significação  do  latim 
anus,  é  o  calo  hil,  que  quere  dizer  isso  mesmo;  cf.  chaleira, 
no  mesmo  sentido  obsceno. 

Como  peça  do  aparelho  em  que  se  serve  o  chá  (q.  v.),  o  vo- 
cábulo bule  é  malaio.  Podem  perfeitamente  diferençar-se  os  dois 
termos,  escrevendo  aquele  sem  o  e  íinal,  e  formando-lhe  o  plural, 
conforme  a  regra  geral,  buis. 


buliceira 

Nos   arredores   de  Lisboa  quere  dizer   «chuva  meúda».    O 

termo  foi  colhido  da  tradição  oral  pelo  snr.  Martinho  Brederode. 

E  a  chuva,  como  que  peneirada,  a  que  chamamos  ynoinha. 


burel 


Como  o  seguinte  trecho  é  definição  perfeita  da  significação 
deste  vocábulo,  para  aqui  o  transcrevo: — A  lã  no  districto  [de 


1    O  Século,  de  23  de  abrU  de  1902. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  177 


Viana]  é  própria  para  o  burel,  que  antes  de  ser  submettido  á 
fula  é  um  tecido  de  lã  simples,  raro  a  ponto  de  se  contarem 
facilmente  os  fios,  por  entre  os  quaes  se  vê  o  dia» — ^ 


burra 

Em  Leiria:   «saliência  de  terra  fora  do  limite  de  uma  pro- 
priedade» -. 


burro,  burrinho 

O  Novo  DicciONÁEio,  o  mais  copioso  que  existe  em  portu- 
guês, dá  o  vocábulo  burro  em  nada  menos  de  dezasseis  acepções 
diversas,  incluindo-se  as  que  foram  acrescentadas  no  Suplemento. 
Aqui  apresento  mais  uma,  que  se  deduz  do  seguinte  trecho:  — 
« Perto  da  chaminé  estão  os  burros  (bancos  rústicos  de  pernadas 
de  azinheira)» — ^. 

O  deminutivo  burrinho  é  usado  no  norte  para  designar  uma 
<frijideira  de  barro  com  cabo». 

E  sabido  que  os  nomes  de  animais  são  a  meúdo  transferidos 
para  objectos  nos  quais  se  supõe  haver  deles  aparência;  tais  são: 
cachorro,  macaco,  bivjio,  machos,  cegonha,  cão  (de  espingarda), 
gatilho,  cavalo  (na  vinha),  burra;  bordão  \  burdonem,  «mulo». 

Exemplo  disso  já  o  vimos  na  inscrição  anterior. 


bus:  V.  chus 


1  Portugália,  i,  p.  377. 

2  Informação  do  Snr.  Acáeio  de  Paiva,  dali  natural. 

3  J.  da  Silva  Picão,  Ethnographia.  do  Alto  Alemtbjo,  in  Portu- 
gália, I,  p.  542. 

12 


178  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


butaca 

No  Kelatoeio  official  de  João  de  Azevedo  Coutinho,  acerca 
da  campanha  do  Barué  em  1902  \  encontra-se  este  vocábulo, 
que  parece  ser  africano: — «A  entrada  de  Manuel  de  Sousa  para 
a  butaca» — ,  e  em  nota  explica-se: — «butaca,  throno» — . 

É  singular  a  exacta  conformidade  desta  palavra  com  a  caste- 
lhana butaca,  assim  definida  no  Dicionário  da  Academia  Espa- 
nhola, sem  se  lhe  apresentar  etimolojia:  —  «Sillón  de  brazos,  al- 
mohadillado,  entapizado,  cómodo  y  comunmente  con  el  respaldo 
echado  hacia  atrás» — . 

Só  se  o  vocábulo  foi  de  Espanha  para  a  Africa  com  os  herre- 
ros,  nome  com  que  os  nossos  jornalistas  teimam  era  alcunhar  os 
hererós  (q.  v.). 

búzio 

Este  vocábulo,  que  provém  do  latim,  buccinum,  designa, 
como  se  sabe,  uma  concha  univalva,  que  em  muitas  partes  da 
África  serve  de  moeda. 

Em  Ajuda  1  búzio  valia  0,15  real,  e  2:000  búzios  denomina- 
vam-se  um  peso  de  búzios  ^,  perfazendo  6:000  búzios  Ij^OOO  réis. 

Os  búzios  na  índia  deuominam-se  caurms,  (q.  v.). 

Búzio,  na  acepção  de  «mergulhador»  parece  ser  outro  vocá- 
bulo, e  em  castelhano  diz-se  bu2:o,  de  orijem  desconhecida. 

cabaça,  cabação,  cabacinha,  cabaço 

A  orijem  destes  vocábulos  é  ignorada:  sabe-se  apenas  que 
em  castelhano  tam  o  primeiro  uma  sílaba  a  mais,  calabaza,  o 


1  Jornal  das  Colónias,  de  9  de  julho  de  1904. 

2  Carlos  Eujénio  Correia  da  Silva,  Uma  viagem  ao  estabeleci- 
mento PORTUGUEZ  DE  S.  JoÃO  BAPTISTA  d'Ajudá  EM  1SG5,  Lisboa,  1866. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  179 

que  nos  levaria  a  crer  que  a  antiga  pronúncia  portuguesa  fosse 
cãháça  (cf.  fagueiro  e  fagueiro,  castelhano  halagúeno,  afagar, 
cast.  halagar). 

Na  Chamusca,  e  naturalmente  em  todo  o  Riba-Tejo,  o  au- 
mentativo cabação,  plural  cahações,  designa  «pimento  grande >, 
em  oposição  a  comicho,  que  quere  dizer  «pimento  pequeno»,  e  é 
comparável  ao  francês  comichou,  o  qual  denota  uma  espécie 
de  pepino  pequeno,  e  como  o  termo  português  se  deriva  de 
corne,  como,  de  que  são  formas  deminutivas. 

Cabaço,  em  Caminha  e  outras  partes  do  Minho,  é  uma  me- 
dida de  12  litros,  equivalendo  portanto  ao  antigo  alqueire. 

Cabaço,  no  sentido  de  « virjindade»,  é  o  vocábulo  quimbundo 
cabásu,  deminutivo  de  quibásu,  «pedaço,  taUiada,  lasca»,  e  é 
usado  em  Angola  com  a  mesma  significação,  que  de  lá  passou 
para  poi^tuguês,  na  Imguajem  de  indivíduos  que  ali  o  aprende- 
ram: (cujbasa  quere  dizer  «raxar». 

Cabacinhas  (ãe  cheiro)  eram  há  uns  cinqiienta  anos,  em 
Lisboa,  umas  cápsulas  de  cera,  feitas  em  forma,  imitando  várias 
frutas,  cheias  de  água  aromatizada,  e  com  as  quais  se  jogava  o 
entrudo  nas  salas  entre  gente  fina,  arremessando -as;  quebran- 
do-se  elas  com  o  embate,  derramavam  o  conteúdo  na  cara,  ou 
no  fato  de  quem  levava  com  elas. 

Era  um  brinquedo  engraçado  e  inofensivo,  que  ao  depois  foi 
substituído  por  projécteis  muito  mais  grosseiros,  como  ovos  de 
gema,  ou  cheios  de  farinha  ou  pós,  e  outros  arremessos  não 
menos  abrutados. 

No  Alentejo  levar  cabaço  significa  ser  rejeitado  em  preten- 
sões de  namoro.  E  modo-de-dizer  castelhano,  llevar  calabazas. 


cabana,  cabanela,  cabanal,  cabanão,  cabaninha 

O  primeiro  destes  vocábulos  é  o  latim  vulgar  capanna,  e 
está  muito  difundido  em  todas  as  línguas  românicas,  com  ex- 
cepção do  romeno,  havendo  dado  orijem  a  muitas  formas  deriva- 
das por  suficsos. 


180  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


Eis  aqui  algumas  definições  e  abonações  da  palavra  cabana, 
extratadas  de  várias  monografias  de  muito  interesse  publicadas 
na  revista  Portugália.  —  «No  Alentejo  o  termo  de  cabana  é 
um  nome  genérico  que  se  aplica  indistintamente  a  todos  os  casa- 
rões toscos  e  espaçosos  que  se  adaptam  a  quaesquer  usos>. —  K 

—  «Cabanas.  Por  este  nome  designam-se  as  seguintes  diífe- 
rentes  accommodações :  a  loja  dos  carpinteiros  de  carros  e  ara- 
dos, o  deposito  de  madeiras,  as  arrecadações  de  vehiculos  e  ucha- 
ria  de  lavoira,  as  arribanas  para  gados,  etc,  etc. » — ^. 

— « Cabanas  no  onomástico  locativo  portuguez  é  ainda  a  de- 
nominação de  algumas  freguesias  e  aldeias  que. . .  tiveram  a 
sua  origem  em  barracas  de  tabuado » —  ^. 

—  «Cabanelas,  Cabaninhas  e  Cabanões  formam  uma  topony- 
mia  de  similar  procedência»  —  *. 

Cahanal  em  Trás-os-Montes  significa  «alpendre»,  como 
vemos  do  trecbo  seguinte:  —  «disse  zangado  a  seguinte  praga 
uma  noite  no  cabanal  (alpendre).  —  Oxalá  se  afundasse  este  la- 
meiro»— ^. 

Cabano,  cabanilho,  cabaneiro,  designando  várias  formas  de 
cestos,  são  com  cabana  apenas  aparentados  por  afinidade,  e  sobre 
os  dois  primeiros  veja-se  neste  livro  a  palavra  covo. 


cabeça,  cabeceira,  cabeçalha,  cabeçalho,  cabecilha,  cabecinha 

Tem  muitíssimas  acepções  o  primeiro  vocábulo,  do  latim  vul- 
gar capitia,  plural  neutro  de  capitium,  tomado  como  feme- 
nino,  o  que  é  frequentíssimo  nas  línguas  românicas,  e  deriva-se 
de  caput,  capitis,  «cabeça>. 


1  2    José  da  Silva  Picão,  Ethnographia  do  Alto  Alemtbjo,  p.  544. 
3  *    Eocha  Peixoto,  Habitação,  p.  84. 

5    M.  Ferreira  Deusdado,  O  recolhimento  da  Móprbita,  in  « Re- 
vista de  Educação  e  Ensino  >,  1891. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  181 


Entre  outras  acepções  assinalarei  aqui  algumas  mais  espe- 
ciais, e  raras  vezes  indicadas  em  dicionários. 

Cabeça:  «quem  manda»,  correspondente  ao  francês  chef: — 
«A  principal  igreja  que  visitei  naquellas  provincias  [do  reino 
de  Aname]  foi  a  de  um  christão,  cabeça  de  aldeia,  chamado 
Paulo» — ^ 

Ainda  hoje  se  diz  cabeça  de  motim,  locução  muito  usual. 

Neste  sentido  usam  os  espanhóis  cabecilla,  que  por  imitação 
deu  o  português  cabecilha,  castelhanismo,  pois  o  suficso  demi- 
nutivo  -ilho,  -ilha,  não  é  português. 

Cabeça  é  usado  com  a  significação  de  peça  de  gado,  rês, 
sendo  este  iiltimo  a  palavra  árabe  eas,  «cabeça»,  empregada 
nessa  língua  com  o  mesmo  significado,  que  também  passou  ao 
castelhano  i-es.  mas  igualmente  designa  «o  cabeça  de  tribo*. 

No  sentido  de  rês,  com  referencia  a  gado  suíno,  é  mais  usual 
no  Alentejo  o  termo  cabeça: — «A  avaliação  dos  montados  faz-se 
por  cabeças,  quer  dizer  pelo  numero  de  porcos  adultos,  que  en- 
gorda a  bolota  em  cada  anno»  —  -. 

Outro  sentido  especial  do  vocábulo  cabeça,  acompanhado  de 
uma  locução  adjectiva,  é  cabeça-de-pau,  para  designar  os  indi- 
víduos que  teem  lojas  de  móveis  usados:  —  «as  casas  dos  cabeças 
de  pau,  nome  de  giria  por  que  são  conhecidos  os  negociantes 
de  tarecos  > — ^. 

Com  a  mesma  significação  de  cabeça,  «principal»,  usou-se 
também  cabeceira,  como  vemos  em  Kui  de  Pina,  Crónica  de 
El-bei  Dom  Afonso  v  (cap.  x): — «seria  povo  e  gente  meúda, 
que  sem  cabeceiras  não  teriam  forças,  nem  dariam  ajuda > — . 
Nesta  acepção  ainda  o  encontramos  modernamente,  no  Kelatóbio 
de  Carlos  Eujénio  Correia  da  Silva  [1866],  com  referência  ao 
Daomé.  É  forma  muito  aproveitável  e  expressiva,  que  pode  ser 


1  Batalhas  da  Companhia  de  Jesus,  Lisboa,  1894,  p.  170. 

2  J.  Silva  Picão,  Ethnographia  do  Alto  Albmtbjo,  in.  <  Portugá- 
lia», i,  p.  275. 

'    O  Século,  de  18  de  novembro  de  1901. 


182  Apostilas  aos  Dicúmârios  Portugueses 

empregada  actualmente,  conquanto  a  significação  mais  trivial 
seja  a  «de  parte  superior»,  como  cabeceira  da  mesa,  cabeceira 
do  leito,  cabeceira(s)  de  um  rio,  etc. 

— «  Cabeçalha:  Dos  jugos  [dos  carros]  destaca-se  breve  a  de- 
coração profusa  que  os  caracterisa  na  região  [Minho],  os  arcos, 
ensogaduras  e  tendilhas,  a  chavelha  e  o  pigarro,  a  sôga 
emfim  » —  ^ 

E  palavra  derivada  de  cabeça,  e  significa  « o  temão,  ou  lança 
de  um  carro  de  bois » ,  e  também,  em  especial,  « a  parte  deanteira 
desse  temão». 

Uma  forma  masculina  deste  vocábulo,  cabeçalho,  designa, 
além  de  cabeçalha,  o  título,  títulos  ou  dizeres  a  que  se  subordi- 
nam vários  averbamentos,  e  que  ocupam  a  parte  superior  da 
folha,  o  que  os  franceses  chamam  en-tête. 

Cabecinha  é  um  deminutivo  evidente  de  cabeça,  e  além  de 
outros  significados,  deduzidos  do  vocábulo  de  que  é  formado, 
tem  também  o  de — «farinha  grossa  que  resulta  do  rolão  passado 
por  peneiro  largo  [de  pano  aberto]  para  o  separar  da  sémea» — , 
como  diz  o  DiccioNÁEio  Contemporâneo.  Na  pauta  de  consumo 
(de  Lisboa),  anterior  a  1880,  o  produto  da  moenda  do  trigo  era 
classificado  em  quatro  espécies:  farinha  espoada,  farinha  expur- 
gada de  sémea  e  farelo,  rolão,  e  cabecinha,  a  cada  uma  das 
quais  competia  uma  taxa  de  imposto  diferente,  de  mais  para 
menos;  a  sémea  era  livre  de  imposto. 

Como  nome  de  ave  é  o  vocábulo  cabecinha,  acompanhado  de 
vários  epítetos  que  o  diversificam,  muito  usado  na  Ilha  da  Ma- 
deira, como  vemos  na  monografia  de  P.  Ernesto  Schmitz,  intitu- 
lada DiE  VõGEL  Madeiras  ^i — cabecinha  encarnada,  «pin- 
tassilgo», no  Estreito;  —  cabecinha  negra,  «toutinegra»  em 
Gaula; — cabecinha  rosada,  «pintassilgo»,  na  Fajã. 

É  sabido  que  toutinegra  (q.  v.)  significa  também  «cabeça 
preta»,  capite  nigra. 


1     Rocha  Peixoto,  As  olarias  do  Prado,  in  Portugália,  i,  p.  253. 
*    in  <  Ornithologisches  Jahrbuch»,  x,  1899,  1,  n. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  183 


cabelo,  cabeleiro 

Na  língua  comum  cabelo  ora  é  colectivo,  correspondendo  ao 
francês  chevelure,  ora  nome  de  unidade,  equivalente  ao  francês 
cheveu.  Nesta  última  acepção  usa-se  em  vários  pontos  do  Minho, 
Caminha  por  exemplo,  o  derivado  cabeleiro.  E  galicismo  usar 
cabeleira,  na  acepção  de  chevelure  francês,  pois  corresponde  a 
perruque;  deve  traduzir-se  chevelure  por  cabelo,  ou  cabelos.  Em 
castelhano,  porém,  usa-se  neste  sentido  cabellera,  pois  « cabeleira » 
se  diz  peluca. 

cabide,  cavide 

Em  alguns  dicionários  portugueses  é  dado  como  étimo  deste 
vocábulo  o  latim  capitulum,  deminutivo  de  caput,  de  que 
proveio  a  palavra  cabido,  antigamente  cabídoo,  da  qual  cabide 
viria  a  ser  forma  diverjente,  ao  que  se  opõe  não  só  o  significado 
de  capitulum,  mas  até  a  forma  do  vocábulo  cabide. 

Santa  Rosa  de  Viterbo,  no  seu  Elucidário  das  palavras, 

TEBMOS,   E   FRASES   QUE  EM  PoBTUGAL  ANTIGAMENTE  SE  USARÃO 

(Lisboa  M.DCc.xcviii)  sub  voe.  cavidado,  a  que  dá  como  defini- 
ção—  «Evitado,  acautelado,  resguardado» — ,  indica  a  palavra 
cabide,  como  provindo  daquela,  e  define-a: — «o  lugar,  onde  os 
vestidos,  e  outras  cousas  se  põe  a  seguro  do  pó,  e  do  mais  que 
as  pôde  inficionar,  e  destruir »  — . 

E  evidente  que  cavidado  é  particípio  passivo  de  cavidar, 
que  pressupõe  o  latim  *  cauitare,  fruqiientativo  de  cauere, 
cujo  particípio  cautus  é  contracção  de  cauitus,  como  é  sabido. 
Ideolójicamente  o  étimo  satisfaria;  morfolójicamente,  porém,  é 
inadmissível.  É  rara  em  português  essa  formação,  que  consiste 
em  derivar-se  um  substantivo  concreto  de  um  particípio  passivo, 
com  perda  da  terminação  característica  deste,  -ado,  e  a  suficsa- 
ção  de  e,  convém  saber,  substantivo  do  tipo  aceite.  Todavia,  a 
forma  antiga  do  vocábulo  é  cavide  ^  e  não  cabide,  como  hoje 


Fernáni  Méndez  Pinto,  Pbrbgriííavão,  cap.  ccxv. 


184  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 

se  usa,  e  ainda  Bluteau  (Vocabuláeio  pobtuguez  e  latino)  é 
a  única  que  cita. 

Da  definição  de  cavide,  dada  por  este  douto  lecsicógrafo  e 
escritor  de  há  dois  séculos,  se  verá  quara  infundada  é  a  explica- 
ção do  vocábulo  proposta  por  Santa  Rosa  de  Viterbo  e  que 
acima  transcrevi: — «He  nas  estribarias  buraa  taboa  pregada  em 
a  parede,  em  uns  buracos  da  taboa  metidos  huns  paos,  para 
nelles  pendurarem  os  freios»  — .  (Voe.  port.  e  lat.). 

Esta  definição  é  exactíssima,  e  a  aplicação  do  vocábulo,  ou, 
melhor  dito,  da  armação  que  ele  designava,  a  outros  usos  é  pos- 
terior. 

Desviados  por  inaceitáveis  os  dois  étimos  apontados,  capitu- 
lum,  que  tem  sido  o  mais  admitido,  e  cavidado  que  ninguém 
aceitou  a  Viterbo,  teremos  de  ir  buscar  a  outro  idioma,  dos  que 
ministraram  palavras  ao  lécsico  português,  um  étimo  plausível, 
se  não  perfeitamente  justificado. 

Ninguém  ignora  que  existem  na  nossa  língua  uns  mil  vocá- 
bulos de  procedência  arábica,  demonstrada  principalmente  por 
Engelmann  e  Dozy  [Glossaire  des  mots  espagnols  et  pobtd- 
aAis  DÉEivÉs  DE  l' ÁRABE,  Leida,  1869],  de  grande  parte  dos 
quais  já  havia  sido  averiguada  por  João  de  Sousa  e  José  de 
Santo  António  Moura  [Vrstigios  da  língua  arábica  em  Por- 
tugal] ^.  Deve  haver,  há  com  certeza,  número  maior  deles, 
abstraindo  mesmo  dos  nomes  próprios  de  lugares,  incluídos  em 
grande  cópia  no  lécsico  dos  arabistas  portugueses,  mas  excluídos 
do  Glossário  que  citámos,  e  que  até  hoje  é  o  trabalho  mais  com- 
pleto e  mais  bem  feito  que  existe  nesta  espécie,  visto  que  o  de 
Eguílaz  y  Yanguas  ^  apenas  lhe  leva  vantajem  no  grande  nú- 
mero de  abonações. 

Nas  minhas  peregrinações  pelos  nossos  vocabulários  talvez 
tenha  ensejo  de  avolumar  a  parte  arábica  do  nosso  lécsico. 


1  Lisboa,  1830. 

2  Glosario  de  vocês  B8P anglas...  DE  ORiGEN  ORIENTAL,  Gra- 
nada, 1886. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  185 


Existe  em  árabe  um  radical,  q-b-d,  o  qual  tem  como  signifi- 
cado principal  «agarrar,  pegar  em  qualquer  cousa»,  e  que,  com 
a  2.*  letra  duplicada,  q-S-d,  quere  dizer  « apanhar  e  pôr  de 
parte  >,  conforme  o  Dicionário  arábico-francês  de  Belot  ^  Aí  vemos 
um  substantivo  derivado,  MaQBiD,  com  o  significado  de  manche, 
poignée,  «cabo,  punho,  pega».  São  os  jjaus  da  definição  de  Blu- 
teau.  Outro  derivado  do  mesmo  radical,  aanoa,  com  igual  signifi- 
cação, encontra-se  no  Dicionário  francês-arábico  de  Cherbonneau  ^, 
e  não  explicaria  o  nosso  cabide;  mas  no  dicionário  arábico- 
francês  do  mesmo  autor  ^  encontramos  líiQsid,  plural  MaQABiD 
—  «manche,  poignée;  anse»  — . 

Creio  ser  esta  a  orijem  do  nosso  cabide.  Nos  países  barbares- 
cos  o  preficso  ma  é  muitas  vezes  reduzido  na  pronúncia  ao  m, 
fujmqabid',  *  e  poderia  ter  sido  considerado  como  o  artigo  por- 
tuguês indefinido  um,  separando-se  do  resto  do  vocábulo,  que 
ficou  palavra  independente:  cf.  a  locução  uma  tuta  e  meia,  por 
macuta  e  meia.  O  b,  segunda  letra  do  radical  trilítero,  modifi- 
cou-se  em  v  (cf.  alcavala,  alvaiade,  etc),  e  resultou  pois  o  vocá- 
bulo cavide  dos  nossos  antigos  escritores  e  admitido  por  Blu- 
teau,  sendo  a  forma  cabide  posterior,  devida  talvez  à  influencia 
de  cabido,  erudita  provavelmente  (cf.  aspar,  em  vez  de  raspar). 

Há  uma  quinta  ao  pé  da  Chamusca,  cujo  nome,  pelo  menos 
o  popular,  é  Cabide,  talvez  do  Cabido,  e  neste  nome  parece  ter 
influído  a  palavra  de  que  trato  aqui. 

Na  Beira-Alta  cabide  tomou  a  forma  popular  cabido,  de  que 
resultou  uma  forma  converjente,  ou  homeótropo  ^. 


1  Beirute,  1893,  p.  613,  i  col. 

2  Paris,  1884,  p.  322,  col.  ii. 

í    Paris,  1876,  2.o  vol.,  p.  911,  i  col. 

*  V.  Caussin  de  Perceval,  Grammairb  árabe  vulgairk,  Paris,  1880, 
p.  17;  e  Lerchundi,  Rudimentos  del  árabe  vulgar,  Tangere,  1889,  p.  13, 
nota. 

5  Já  publicado  na  Revista  Lusitana,  vi,  1900-1901,  com  leves  diver- 
jéncias. 


18G  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


caboclo 

E  sabido  que  este  vocábulo  designa  um  índio  do  Brasil. 
É  dado  por  F.  Adolfo  Coelho  *  como  termo  tupi  mas  não  se 
encontra  no  Dicionário  tupi-guarani  de  António  Ruiz  de  Mon- 
toya  ^.  Eis  a  sua  abonação: 

—  «Ao  gentio  manso,  ou  reduzido  á  civilisação,  se  começou 
desde  logo  a  denominar  caá-boc,  que  quer  dizer — tirado  ou  pro- 
cedente do  matto,  donde  nos  veio  o  vocábulo  cahõco,  como  ainda 
hoje  o  pronuncia  o  homem  rústico  ou  caboclo,  como  já  o  adoptou 
o  português  brasílico» — ^. 

cabouco 

Além  de  outros  significados,  designa  também,  no  Norte  do 
reino,  «estribo  de  pau». 

cabreiro 

Emprega-se  como  adjectivo,  junto  ao  substantivo  queijo, 
queijo  cabreiro,  para  designar  o  queijo  feito  de  leite  de  cabras. 
Em  qualquer  mercearia  se  encontra  rotulado  com  este  nome;  não 
tenho  porém  nota  de  trecho  com  que  o  abone. 

cabresto 

Nome  de  um  calabre  nos  moinhos  algarvios,  e  não  sei  se 
também  das  mais  províncias: — «Quando  se  carece  de  ferrar  ou 


1  DiCCIONARIO    MANUAL    ETYMOLOGICO    DA   LÍNGUA   PORTUGUEZA, 

Lisboa,  s/datã. 

2  Vocabulário  y  tbsoro  de  la  lengua  guarani  (ó  mas  biek 
tupi)  —  Viena-Paris,  1878,  nueva  edicion. 

3  Teodoro  Sampaio  O  Tupi  na  gbographia  nacional,  S.  Paulo, 
1901,  p.  67. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  187 


soltar  as  velas  ao  moinho . . .  prende-se  o  mastro  a  uma  argola, 
fixa  na  parede,  servindo-se  para  isso  d' um  calabre  chamado  ca- 
bresto*—  *. 

cabrita 

E  um  termo  do  Douro,  na  acepção  especial  em  que  vou 
exemplificá-lo:  —  «Cabrita,  leitor  de  longas  terras,  é  o  costume 
de  aquelle  que  compra  uma  junta  de  bois  em  feira  pagar  uma 
conveniente  quantidade  de  vinho  a  todos  os  que  entraram  na 
transacção,  quer  como  partes  principaes,  quer  secundarias  > — -. 


cabula  (=cabúla) 

Conforme  informação  da  minha  criada,  natural  da  Chamusca, 
cabula  designa  lá  «meda  de  trigo,  com  forma  piramidal». 


caça,  caçar 

Como  termo  de  pesca,  não  colijido  nos  nossos  dicionários,  en- 
contra-se  definido  na  monografia  de  Pedro  Fernández  Tomás, 
intitulada  A  pesca  em  Buaecos  ^:  —  «Estas  redes. . .  são  dis- 
postas verticalmente  em  longas  caças  ou  aparelhos  de  ÕO  a  80 
redes  cada  um>  — . 

É  sabido  que  em  várias  partes  do  reino,  onde  as  povoações 
não  avistam  o  mar  e  a  pesca  é  só  de  rios,  se  diz  caçar  peixe, 
em  vez  de  pescar,  termo  que  é  lá  desconhecido.  Caçar,  de  cap- 
tiare  \  capere,  significa  propriamente  «apanhar». 


1    J.  Núnez,  Costumes  algarvios,  in  «Portugália»,  i,  p.  387. 
*    O  Penafidelense,  de  14  de  março  de  1882. 
'    in  «  Portugália  >,  i,  p.  148. 


188  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


caçamba 

E  termo  brasileiro,  que  vem  definido  no  Novo  Diccionábio 
como  «alcatruz»;  no  respectivo  Suplemento  acrescentam-se  mais 
as  seguintes  acepções:  —  «balde  preso  numa  corda  enrolada  num 
sarilho  ou  nora,  pára  se  tirar  água  dos  poços;  (ext.)  qualquer 
balde;  estribo  em  forma  de  chinela»  — . 

Falta  ainda  outra  acepção  em  que  o  vocábulo  é  usado  uo 
Brasil  e  que  vemos  no  Bosquejo  de  uma  viagem  no  interiob 
DA  Paeahyba  e  de  Peenambuco:  —  «meu  filho  mal  accomodado 
na  sua  caçamba,  á  moda  do  paiz:  tosco  caixote  de  madeira,  for- 
rado, sobre  uma  das  ilhargas  do  animal,  e  equilibrado  por  egual 
caixote,  collocado  na  outra  ilharga  e  tarado  com  carga»  —  K 


cachalote,  cacholote,  caixalote,  queixalote 

Este  termo,  o  francês  cachalot,  aportuguesado  artificialmente, 
designa  um  cetáceo,  com  dentes,  e  daí  provém  provavelmente  o 
nome.  H.  Stappers  ^  dá-lhe  como  orijem  o  castelhano  cachalote, 
que  é,  sem  dúvida,  o  catalão  quixalot,  deminutivo  de  quixal,  ou 
então  caixal,  que  se  pronuncia  como  a  palavra  portuguesa  quei- 
xai, e  teih  a  mesma  significação,  isto  é,  «dente  (molar)»,  o  que 
em  castelhano  se  diz  muela. 

Em  português  da-se-lhe  também  a  forma  cacholote,  que  J. 
Inácio  Koquete  inseriu  ^,  e  que  parece  ser  uma  aprossimação  ao 
vocábulo  cachola,  «cabeça  de  peixe». 


1  in  <0  Século  »,  de  8  de  julho  de  1900. 

2  Dictionnaire  synoptique  d'étymologib  françaisb,  2.*  edição, 
Paris,  s/data. 

3  Dictionnaire  portugais-français,  Paris,  1855. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  189 


cachaiolete 

Palavra  muito  conhecida,  como  termo  de  botiquim,  e  já 
rejistada  no  Diccionabio  Contemporâneo,  que  a  define  com 
exactidão — «bebida  alcoólica  formada  pela  mistura  de  diversos 
licores»  — .  Eis  aqui  uma  abonação  do  seu  emprego: — «O  Termo, 
o  CoUares,  o  grog  e  o  cabaz,  o  cacharolete  e  o  geripiti,  ou 
os  seus  equivalentes,  não  servem  lá>  [nos  bailes  da  Opera,  em 
Bruxelas]  —  * 

É  uma  nomenclatura  completa  de  venenos,  principalmente 
quando  tomados  em  lojas  de  bebidas. 

cacho 

Esta  palavra,  a  que  o  Novo  Diccionário  atribui  orijem  in- 
certa e  o  DiccioNÁEio  Manual  Etymologico  uns  étimos  muito 
problemáticos,  foi  por  Frederico  Diez  -  considerada  romanização 
hispânica  do  latim  capulus,  «punhado,  mancheia»,  mediante  a 
forma  caplus,  comparando-o  a  ancho  |  amplus.  Todavia,  já 
por  J.  Leite  de  Vasconcelos  foi  ponderado  que  dos  grupos  latinos 
mediais  -cl-,  -pi-,  -ti-,  -fl-  só  resultou  em  português  e  castelhano 
eh,  quando  esses  grupos  estavam  em  latim  precedidos  de  con- 
soante, como,  por  exemplo,  em  macho  \  masc^lum,  encher, 
(hjenchir  j  implere,  inchar  [  inflare,  etc. 

Na  realidade,  uma  excepção  aparente,  cach-orro,  não  provém 
de  cat'1-us,  pois  é  metátese  das  duas  primeiras  sílabas  do  vas- 
conço  chacur,  deminutivo  de  çacur,  «cão>.  Catulus,  pois,  de- 
veria produzir  calho  em  português,  cajo  em  castelhano,  como 
vetulus  deu  velho  e  viejo,  manuplum,  molho  e  manojo, 
nova  cl  a,  navalha  e  navaja,  etc. 


*    Diário  de  noticias,  de  20  de  fevereiro  de  1903. 
2    Etymglogischbs  Wõrterbuch  der  romanischen  Sprachbn 
Bonn,  1870,  ii,  b. 


190  Apostilas  aos  Dicio7tários  Portugueses 


Não  obstante  esta  ponderosa  circunstância,  é  ainda  capulum 
o  étimo  que,  por  emquanto,  apresenta  maiores  probabilidades,  ao 
menos  para  o  português  cacho.  O  próprio  Leite  de  Vasconcelos, 
que  formulou  a  lei,  não  hesitou  em  derivar  cacheira  de  c apu- 
lar ia  e  cacheiro  de  capularium  ^  Outro  tanto  não  direi  para 
o  castelhano  cacho,  ao  qual  corresponde,  segundo  parece,  o  por- 
tuguês caco  \  calculus. 

Além  de  outras  acepções  da  palavra  portuguesa  cacho,  já  re- 
jistadas  nos  dicionários,  tenho  a  acrescentar  uma,  a  de  «espiga 
de  trigo  depois  de  esbagoada»,  a  qual  lhe  é  dada  no  Kiba-Tejo, 
como  estou  informado  por  pessoa  fidedigna,  que  a  empregou 
deante  de  mim,  e  preguntada,  assim  ma  explicou.  Esta  acepção 
relaciona-se  com  outra  usada  no  Alentejo,  dada  no  Novo  Diccio- 
NÁEio,  da  qual  é  variante,  e  que  vem  a  ser — « espigas  ou  réstias 
de  espigas,  que  resistem  á  primeira  debulha  e  que  se  juntam 
para  formar  eiras  de  cachos-» — . 

Cachorro  designa  vários  objectos,  Com  significados  já  apon- 
tados nos  dicionários,  e  um  deminutivo  no  plural,  cachorrinhos, 
é  nome  que  se  dá  no  Kiba-Tejo  à  «herva  moleirinha»  (fumaria 
officinalis). 

cachola;  cacholeira 

Em  Lisboa  designa  o  primeiro  destes  vocábulos  «cabeça»,  e 
principalmente  « cabeça  de  peixe » .  Em  castelhano  cholla  é  um 
termo  chulo  que  significa  somente  «cabeça  de  gente >. 

Parece  haver  relação  entre  os  dois  vocábulos;  todavia  não  é 
fácil  de  explicar  a  primeira  sílaba  da  palavra  portuguesa,  cujo 
étimo,  bem  como  o  da  castelhana,  é  desconhecido. 

Cacholeira,  que  só  muito  a  medo  se  poderá  considerar  como 
derivado  de  cachola,  pelo  menos  no  sentido  que  damos  a  este 
vocábulo,  é  o  nome  pelo  qual  é  conhecida  uma  casta  de  chou- 


1    Ebvista  Lusitana,  ii,  p.  31. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  191 


rico,  « enchido  fumado,  em  que  entram  aparas  de  carne  de  porco, 
misturadas  com  pedaços  da  entranha». 

cachondé 

Mistura  de  areca,  âmbar,  açúcar  e  outros  ingredientes,  para 
mascar,  que  serve  para  perfumar  a  boca,  e  é  muito  usada  na 
índia  e  na  Malásia  K 

(andar  aos)  cachopinhos 

Diz-se,  nos  arredores  de  Lisboa,  do  andar  usual  dos  coe- 
lhos, aos  pulinhos,  não  porém  da  corrida  desabalada  que  seguem 
quando  são  perseguidos. 

A  informação  foi-me  dada  pelo  snr.  Martinho  Brederode. 

cachucho 

Como  termo  faceto,  quere  dizer  « anel  grosso  de  ouro » .  Deve 
de  ser  o  mesmo  vocábulo  que  o  espanhol  cachucho,  que  na  jíria 
castelhana,  ou  germania,  significa  «ouro». 

A  etimolojia  dada  por  Salillas  ^,  latim  capsula,  é  absurda. 

cacifo 

—  «O  cacifo  em  que  [os  caçadores]  levam  o  furão  para  o 
monte  é  um  pequeno  cesto  de  vime  em  forma  de  cabaça,  com 
porta  de  madeira» — ^. 


1  Hugo  Schuchardt,  Kreolische  Studien,  ix. 

2  Kafael  Salillas,  El  delincuextb  espanol,  Lexguage,  Madrid, 
1896,  p.  270. 

3  José  Pinho,  Ethnographia  Amarantixa,  A  Caça,  in  Portugália, 
II,  p.  98. 


192  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


cacimba,  cacimbo 

O  primeiro  destes  vocábulos  tem  duas  acepções: 

Como  termo  da  Africa  Portuguesa,  tanto  Ocidental,  onde  se 
orijinou,  como  Oriental,  para  a  qual  foi  levado  pelos  portugueses, 
é,  como  define  o  Novo  Diccionáeio, —  «poço  que  recebe  a  água 
pluvial,  filtrada  por  terrenos  circumjacentes,  e  da  qual  se  servem 
as  povoações» — .  Neste  sentido  é  o  quimbundo  quíxima,  (e  não, 
quichima,  como  está  escrito  no  dito  dicionário): — «A  ilha  dos 
Elephantes.  . .  dista  18  milhas  de  Lourenço  Marques.  . ,  A  ágiia 
que  bebem  [os  leprosos  da  gafaria,  e  não,  gafeira,  como  se  inti- 
tulou, pois  este  vocábulo  é  o  nome  da  doença]  é  fornecida  por 
cacimbas » —  ^ 

Como  se  vê,  trata-se  da  África  Oriental. 

A  segunda  acepção,  «chuva  meúda»,  é  mais  usada  no  Conti- 
nente do  que  na  África  Ocidental,  onde  lhe  chamam  de  prefe- 
rencia cacimbo. 

E  naturalmente  outro  vocábulo  diverso,  mas  não  sei  dizer 
qual.  Veja-se  cachimbo  em  tabaco. 

cacique,  cacico,  caciquismo 

Esta  palavra,  de  orijem  americana,  caribe,  segundo  se  afirma, 
que  em  castelhano  denota  «cabeça  de  tribo»,  é  de  uso  raro  em 
português.  No  entanto  vemo-la  empregada  com  referencia  ao 
Brasil  no  seguinte  trecho  do  Bosquejo  de  uma  viagem  xo 
INTEE.IOE  DA  Parahyba  e  DE  PERNAMBUCO  '^\  — « Carirjs,  raça 
indolente,  sem  embargo  essencialmente  bellicosa,  como ...  o 
eram ...  os  tabajuras  e  os  petyguares,  a  que  pertenceram  al- 
guns caciques  alliados  dos  portuguezes,  como  o  celebre  Cama- 
rão (Poty)»  — . 


Jornal  das  Coloxias,  de  24^ de  julho  de  1905.  V.  gafo. 
in  O  Século,  de  17  de  junho  de  1900. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  193 


É  preferível  o  emprego  deste  vocábulo  ao  de  chefe,  que  em 
tal  sentido  é  galicismo,  conquanto  muito  generalizado  já  para  se 
poder  desterrar. 

Bluteau  *  rejistou  outra  fonna  do  mesmo  vocábulo,  cacico: 
ignoro  se  foi  por  aportuguesamento  arbitrário,  ou  porque  assim 
a  encontrou  também  em  castelhano. 

O  termo  cacique  em  Espanha  designa  um  influente  eleitoral 
que  exerce  pressão  e  domínio  em  certa  rejião,  e  dele  se  derivou 
caciquismo:  ambos  os  termos  já  de  Espanha  passaram  a  Por- 
tugal. 

caço;  cacete 

Este  termo,  correspondente  ao  castelhano  cazo,  e  cujo  deri- 
vado deminutivo  camela  produziu  o  português  caçoula  (cf.  len- 
tejoula  e  lentejuela,  tijolo  e  tejuelo),  designa  « colher  de  con- 
cha» no  Alentejo,  e  provavelmente  em  outros  pontos  do  reino, 
visto  que  o  Novo  Dicc.  rejista  a  palavra,  sem  limitação.  E  o  ins- 
trumento que  os  espanhóis  denominam  cucliarón,  aumentativo 
de  cuchara,  « colher » . 

A  orijem  do  vocábulo  cago,  que  também  figura  em  toscano, 
cazza  e  cazzo  (=catço),  é  duvidosa. 

O  cazzo  italiano,  que,  além  de  outras  acepções  obsoletas,  tem 
um  significado  obsceno,  deu  talvez  orijem  ao  verbo  poiiuguês 
caçoar,  o  qual,  como  mangar,  foi  também  termo  obsceno,  mas 
se  vulgarizou,  obliterando-se  a  significação  imunda  que  tinha. 
Xo  entanto,  é  conveniente  que,  à  cautela,  quem  quere  usar  limpa 
linguajem  evite  o  emprego  de  qualquer  destes  dois  verbos,  ou 
dos  seus  derivados,  substituindo-os  por  zombar,  escarnecer,  mo- 
tejar, chalaç(e)ar,  etc. 

De  caço,  no  sentido  de  <  moca » ,  vem  provavelmente  a  palavra 
cacete,  e  não  do  francês  casse-tête. 


Vocabulário  portuguejz  e  latino,  Suplemento. 

13 


191  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


cada 


Esta  palavra,  que,  sem  a  menor  dúvida,  tem  por  orijem  o 
grego  KATÁ,  o  qual  já  aparece  no  latim  dos  escritores  eclesiásti- 
cos, no  mesmo  emprego  que  tem  em  português  e  castelhano, 
verhi gratia,  na  locução  da  Vulgata,  cata  mane,  «cada  manhã  », 
é  uma  verdadeira  preposição  invariável,  e  não  adjectivo  como 
os  gramáticos  a  classificam  e  como  o  é  o  francês  chaque,  ou  o 
italiano  qualche.  A  prova  é  que  se  usou  antigamente  antes 
de  nomes  no  plural,  como  por  exemplo  nesta  frase:  —  «cada 
huns  tinham  seu  senhor»  *  —  «gentes  darmas  que  cada  hfuis 
dariam»  —  -. 

Emprego  bem  evidente  de  cada  como  preposição  é  o  seguinte 
trecho  castelhano,  do  título  xxvi  da  Partida  ii: — «Et  por  este 
son  llamados  quadrilleros  [em  português  coireleiros,  quairelei- 
ros;  quadrilheiro  é  castelhanismo] ;  porque  cada  uno  dellos  han 
de  saber  las  herechas  que  cayeren  en  la  su  quadrilla» — ^. 

É  claro  que  o  sujeito  gramatical  do  verbo  Jian  (e  não,  ha)  é 
o  substantivo  plural  quadrilleros,  e  não  o  pronome  singular  uno: 
portanto  o  pronome  não  é  aqui  cada  uno,  mas  sim  uno  somente, 
governado  pela  preposição  cada. 

Em  antigo  toscano  encontra-se  catana  (cafuna),  equivalendo 
ao  moderno  ciascuna,  *  o  que  confirma  aquele  étimo,  proposto 
por  Diez  e  aprovado  por  todos  os  romanistas. 

Ainda  hoje,  valendo  por  advérbio,  se  emprega  cada  em  frases 
elípticas,  como  a  que  vou  citar,  e  que,  a  meu  ver,  é  um  tri- 


1  EOTEiRO  DA  VIAGEM  DE  Vasco  DA  Gama,  Lisboa,  1861,  p.  37. 

2  Rui  de  Pina,  Crónica  de  El-rbi  Dom  Afonso  v,  i,  cap.  lx. 

3  Júlio  Pu^-ol  y  Alonso,  Una  puebla  bn  el  siglo  xiii,  in  «Eevue 
Hispanique»,xi,  p.  283:  — <erecha  Uaman  en  Espana  á  las  emiendas  que  los 
homes  han  de  rescibir  por  los  danos  que  resciben  en  las  guerras  >  — .  [ib.  n]. 

^  Versão  toscana  do  Livro  de  Marco  Paulo  Véneto,  Milão,  1886, 
p.  12. 


Apostilas  nos  Dicionários  Portugueses  195 


vialisrao  defeituoso:  —  «Esta  fornada  representa  3  carros  de  loiça, 
que  o  oleiro  venderá  a  12)5000  reis  cada»  —  K 

Formando  com  qiie  locução  adverbial,  vemos  cada  nos  dois 
passos  seguintes,  citados  nas  «Villas»  do  norte  de  Portugal: 

— « Item,  Marina  de  Várzea  recebeu  Pçtro  Onriguiz  por  filo 

et  deu  li  una  casa  in  que  pousa  cada  que  y  A'em  « »  cani- 

zos  cada  que  os  pedirem » —  - :  isto  é,  toda  a  vez  que,  quando. 

Xo  seu  estudo  sobre  o  Livro  de  Alexandre,  publicado  no 
tomo  IV  da  Romauia  (1875),  Morel-Fatio,  cita  a  frase  —  «Sal- 
drian  de  cada  cal  (des  toiírs)  c. mil  combatentes» — ,  e  acrescenta: 
—  «Cette  expression  ne  convient  pas  au  passage,  il  faudrait  de 
cada  una»  — .  E  evidente  que  o  douto  hispanista  desconhecia  a 
esse  tempo  a  locução  portuguesa  cada  qual,  correspondente  à 
berciana  cada  cal,  e  muito  popular:  — 

«  O  ciranda,  ó  cirandinha, 
Toca,  toca  a  cirandar; 
Dêem  todos  meia  volta, 
Cada  qual  ao  seu  lugar »  — . 

Mas  não  é  só  popular,  é  também  literária,  e  Bluteau  teve  o 
cuidado  de  a  rejistar  —  «Cada  himi,  e  cada  hua,  ou  cada  qual. 
Quisque...  Unusquisque»  — .  No  Suplemento  aduz,  no  lugar 
competente,  as  seguintes  locuções:  —  «Cada  qual  com  seu  igual; 
cada  qual  em  seu  oíficio;  cada  qual  sente  o  seu  mal» — e  ainda 
outras  três,  menos  características. 

Um  adjectivo  muito  curioso,  de  construção  parassintética,  é 
cadaneira,  que  se  aplica  no  Douro  à  «árvore  que  dá  fruto  todos 
os  anos».  V.  aneiro. 


1  Rocha  Peixoto,  As  Olarias  do  Prado,  in  Portugália,  i,  p.  267, 
nota  ^. 

2  Portugália,  I,  p.  780  e  783;  extraídos  de  Portttgaliae  Moxu- 
MEXTA  Histórica,  Inquisiciones,  p.  413,  i  col.,  e  p.  314,  i  col. 


19(5  Apostilas  aos  Dicionâríos  Portugueses 


cadafalso 

Este  vocábulo  é  hoje  usado  quási  exchisivamente  na  acepção 
restrita  de  «patíbulo». 

Antes,  porém,  significava  um  « estrado  alto,  armado  em  praça, 
para  actos  solenes». 

Nas  ilhas  dos  Açores  designa  cadafalso  uma  casa,  destinada 
às  festas  do  Espírito-Santo.  São  os  cadafalsos  geralmente  situa- 
dos em  sítios  chamados  ramadas,  porque  se  adornam  com  fron- 
des e  ramos. 

Neste  sentido  vemos  o  vocábulo  empregado  no  seguinte  tre- 
cho:—  «explica  a  camará  que  cadafalso  nos  Açores  é  o  pequeno 
ediíicio,  também  chamado  theatro,  onde  se  armam  alguns  im- 
périos do  Espirito-Santo » —  K 

Veja-se  império. 

cadeira 

Além  das  várias  acepções  rejistadas  nos  dicionários  para  esta 
palavra,  vemos  no  jornal  O  Economista,  de  5  de  agosto  de  1885, 
que  na  África  portuguesa  designa  uma — «arvore  de  onde  se  ex- 
trahe  borracha »  — . 

cadelo  (=cadêlo) 

Esta  palavra  é  definida  como  «cão  pequeno»  e  procede  de 
um  deminutivo  catellum,  por  catulus,  sendo  a  forma  mascu- 
lina correspondente  à  feminina  cadela  =  cadela,  com  a  metafonia 
usual  em  português;  cf.  canelo  e  canela.  Além  deste  significado, 
o  Novo  DiociONÂRio  dá-lhe  mais  o  seguinte,  como  termo  mi- 
nhoto:—  «cruzeta  de  pau,  presa  ao  adelhão  e  sacudida  pela  mó 
em  movimento»  — .  Neste  sentido  parece  ter  sido  empregada  na 


1    O  Século,  de  8  de  julho  de  1901. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  197 


revista  Portugália  ',  no  seguinte  trecho:  —  «Este  [o  tabuleiro] 
inclinado  sobre  o  olho  da  mó,  é  posto  em  movimento  por  um  pau- 
sinho  circular,  o  cadello»  — . 

E  um  dos  muitos  nomes  de  animais  aplicados  a  objectos: 
V.  em  burro. 

cadilho,  cadilha 

Como  é  sabido,  cadilhos  é  termo  muito  conhecido  e  há  muito 
tempo  para  designar  uma  espécie  de  franja,  ou  guarnição  entran- 
çada e  pendente.  O  feraenino  cadilha  parece  ter  significado  aná- 
logo àquele  com  que  se  define  a  primeira  acepção  de  cadilhos 
nos  dicionários,  isto  é, — «fios  do  urdurae  que  não  levam  trama, 
e  formam  no  final  da  teia  uma  como  franja» — -.  Na  revista 
Portugália  ^  lê-se:  —  «O  desenvolvimento  dos  fios  [da  urdidura] 
até  este  torno  do  conjuncto  (cadilha)  de  fios  tem  o  nome  de 
signal* — . 

Um  exemplo  antigo  do  emprego  de  cadilhos,  como  signifi- 
cando certa  guarnição,  pode  ver-se  em  bedem. 


cafajeste,  cafazeste 

O  Novo  DiccioNÁEio  rejista  a  primeira  destas  formas,  defi- 
nindo-a  do  seguinte  modo:  — « (bras[ileirismo])  homem  de  ínfima 
condição;  indivíduo  sem  préstimo»  — .  No  Suplemento,  porém, 
acrescenta — « (brasíileirismo]  esc[olar])  aquelle  que  não  é  estu- 
dante e  que,  em  Coimbra,  se  denomina /wínm » — .  Na  primeira 
acepção  vemo-lo  empregado  no  Bosquejo  de  uma  viagem  ao 

INTERIOR  DA    PaRAHYBA   E  DE  PERNAMBUCO   * :  —  <  ConhCÇO  CSSO 


1  I,  p.  337,  MoixHOS. 

2  Dicc.  Contemporâneo. 
a  I,  p.  374. 

*  inO  Século,  de  17  de  junho  de  1903. 


198  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


vaqueiro.  É  um  D.  Juan  dos  meus  sitios;  cafazêste  de  marca; 
exemplar  de  anthropologia  criminal.  . .  Ladrão  de  mulheres >< — . 
Por  este  trecho  ficamos  sabendo  que  o  e  da  sílaba  tónica  é 
fechado.  Ignoro  absolutamente  a  orijem  do  vocábulo,  que,  apesar 
de  brasileiro  e  desconhecido  enteiramente  em  Portugal,  não  tem 
aspecto  de  ser  nem  abanheenga  ou  de  outro  idioma  de  índios  da 
América  do  sul,  nem  tampouco  oriundo  de  qualquer  das  línguas 
africanas,  caf riais  ou  outras. 


cágado 

O  extravagante  nome  que  em  português  se  dá  a  este  batrá- 
quio,  e  que  os  pudibundos  escritores  modernos  velam,  para  o 
disfarçar,  com  uma  inicial  grega,  Icágaão,  não  figura  em  outro 
idioma,  nem  com  esta  forma,  nem  com^  qualquer  que  com  ela  se 
pareça,  a  não  ser  em  japonês,  onde  o  vocábulo  kâuazu  significa, 
segundo  Hepburn  ^  —  '^frog  (rã),  toad  (sapo)» — .  Ora  no  norte 
de  Portugal  o  cágado  é  chamado  sapo  concho,  isto  é,  «de  con- 
cha » . 

A  palavra  cágado  já  figura  em  Gil  Vicente,  no  «Auto  das 
Fadas»  (sortes): 

Cágado:  Quem  tiver  este  animal 
Não  é  muito  que  o  leixe, 
Pois  não  é  carne  nem  peixe. 

Portanto,  a  não  ser  mera  coincidência  como  tantas  outras, 
foi  o  nome  levado  de  cá  para  o  Japão,  com  mais  alguns  poucos 
vocábulos,  e  não  de  lá  trazido  como  outros,  tais  biombo,  qui- 
mão,  catana  (q.  v.),  e  poucos  mais. 

Não  sei  com  que  fundamento  o  coordenador  do  Liveo  da 


1    A    Japanese-English    axd    English-Japanbsb   Dictionary. 
Tóquio,  1897:  cm  letra  romana. 


Apostilas  aos .  Dicionários  Portugueses  199 

Maeinhahia,  de  João  de  Lisboa  *,  no  i  índice  acentua  duas 
vezes  Cayáão  (o  ilhéu  1.°  e  2.*^).  O  texto  traz  Caguado,  a 
páj.  120,  Caguado  e  Cagado  a  páj.  136.  E  natural  que  em 
ambos  os  passos  a  leitura  seja  cágado,  a  não  ser  que  por  di- 
ferenciação o  vocábulo  haja  mudado  de  sílaba  acentuada,  o  que 
o  coordenador  deveria  advertir,  se  o  sabe  com  certeza  e  tem 
maneira  de  o  demonstrar;  de  outro  modo,  foi  uma  temeridade 
pueril  empregar  ali  na  penúltima  sílaba  acentuação,  que  é  a  nor- 
mal quando  na  palavra  se  não  marca  outra,  para,  provavelmente, 
indicar  uma  leitura  errada. 

O  dr.  Júlio  Cornu  relaciona  cágado  com  uma  forma  latina 
cacitus,  citando  em  seu  abono  Isidoro  Hispalense  ^.  O  passo 
abonatório  é: — lutabiae,  id  est  iíí  coexo  et  paludibus  viven- 
tes—  «lodosos,  isto  é,  que  vivem  na  lama  e  nos  charcos».  As 
transformações  que  a  palavra  cacitus  sofreu,  para  chegar  à  forma 
portuguesa  ainda  vernácula,  hão  de  ter  sido:  cacidu:  cac' du: 
cag' du:  cáguedo:  cágado,  se  a  etimolojia  *é  certa,  como  parece. 

Cágueda,  que,  segundo  o  Novo  Diccionário,  designa  no 
Alentejo — travinca,  com  que  ás  vezes  se  prende  o  chocalho  á 
coUeira» — ,  é  sem  dúvida  um  femenino  de  cáguedo,  por  cágado. 
É  frequente,  como  já  disse,  o  uso  de  nomes  de  animais  aplicados 
a  objectos,  em  atenção  à  semelhança,  verdadeira  ou  suposta,  da 
forma  ou  de  qualquer  atributo  deles. 

Essa  orijem  evidente  tem  o  epíteto  de  pregos  de  asa  de 
mosca,  por  exemplo.  V.  burro. 


cagairo 

Este   termo    da   Beira-Alta   quere  dizer   «ânus,  ou  mucosa 
anal » . 


Lisboa,  1903. 

GrUXDRISS  der  ROMAXISCHBX  PHILOL.OGIB,  I,  p.  746. 


200  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 

cagarra 
Na  Ilha  da  Madeira  é  sinónimo  de  pardela,  (q.  v.). 

caída 

E  o  particípio  passivo  do  verbo  cair,  substantivado  no  fe- 
menino  e  boje  quasi  desusado,  porque  se  contraiu  em  queda, 
como  mestre  de  m  agis  trem,  caente  em  quente,  acaecer  em 
aquecer,  no  sentido  em  que  antigamente  era  empregado,  de 
«acontecer»,  e  bem  assim  no  de  «aquentar»  |  acalentar,  que 
subsiste  em  outra  significação,  e  deve  de  ser  castelhanismo,  em 
razão  da  manutenção  do  l  medial. 

Dizemos  todavia  descaída,  recaída,  formas  derivadas  nas 
quais  se  não  deu  a  contracção  de  aí  em  e. 

cai]  eira 

Este  vocábulo  usado  em  Arcos-de-Val-de-Vez,  apontado 
já  no  Suplemento  ao  Novo  Diccionáeio,  atribuindo-se-lhe  aí 
como  étimo  provável  calijem,  foi  já  explicado  perfeitamente  por 
J.  Leite  de  Vasconcelos  ^  como  procedendo  de  c ali gin ária  {  ca- 
ligo,  caliginis.  As  formas  intermédias  seriam  caligiaria, 
caijaira,  caijeira. 

caim 

Este  nome  próprio  é  empregado  como  apelativo  na  ilha  de 
Sam  Miguel,  no  sentido  de  «mau  homejn»,  como  vemos  decla- 
rado no  jornal  O  Século,  de  5  de  julho  de  1901. 


Rb3 VISTA  Lusitana,  iv,  p.  275. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  201 


caíque 

Costuma  escrever-se  esta  palavra  com  h  medial,  a  desunir  as 
duas  vogais  a  e  i,  e  não  porque  seja  nela  orgânico,  etimolójico- 

O  vocábulo  é  turco,  qaiq,  conforme  Marcelo  Devic,  no  Suple- 
mento ao  dicionário  francês  de  Emilio  Littré  ^ ;  aí  vemos  defi- 
nida esta  palavra  do  seguinte  modo: — «Caíque,  petite  embar- 
cation  en  usage  dans  rArchipel  et  à  Constantinople » — . 

Bluteau  não  rejista  o  vocábulo,  e  difícil  será  dizer  hoje  quando 
êle  entrou  na  língua  e  por  que  via,  para  se  tornar  vulgaríssimo 
no  Algarve,  a  não  ser  que  chegasse  lá  por  intermédio  dos  mouros 
dos  países  barbarescos. 

Dozy  2  define  deste  modo  o  vocábulo,  que  não  incluiu  no 
Glossário  de  palavras  espanholas  e  portuguesas  derivadas  de 
árabe  ^  o  que  parece  excluir  a  minha  hipótese: — «embarcação 
pequena,  usada  no  mar  Negro.  E  a  palavra  turca  Mil;  a  qual 
passou  a  muitas  outras  línguas;  veja-se  Jal,  Glossaire  Kaiitique, 
sub  V.  cate,  caico,  caiq,  caíque.  Em  Constantinopla  é  o  caíque 
uma  embarcação  bonita  e  lijeira,  com  um  ou  mais  remeiros,  e 
muito  comum;  aos  particulares  não  é  permitido  guarnecê-la  cora 
mais  de  cinco  remeiros;  os  ministros  do  Sultão,  e  os  embaixado- 
res estranjeiros  podem  empregar  sete  remadores» — . 

J.  Inácio  Roquete  no  dicionário  português-francês  *,  não  sei 
com  que  fundamento,  traduziu  caíque,  por — <quaiche,  petit  bâ- 
timent  du  Tage,  de  la  cote  de  Portugal  et  de  la  Manche» — , 
entanto  que  Littré  define  quaiche,  como  sendo  —  «petite  embar- 
cation  des  mers  du  nord » —  ^,  mandando  pronunciar  kèche. 


1      DiCTIOXAIRE   ÉTYMOt.OGlQUE   DES    MOTS   d'OKIGINE   ORIEXTALB, 

Paris,  1876. 

^    OosTERLiNGEN,  Haia,  18(37,  p.  46,  em  holandês. 

3    Glossaire  des  mots  espagnols  et  portugais  derives  de 
l'ababe,  Paris,  1869. 

^    Paris,  1855. 

s    Dictioxxaire  de  la  langue  française,  Paris,  1881. 


202  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


cairo;  Cairo 

Este  termo,  que  designa  uma  substância  vejetal  tenacíssima, 
de  que  se  fazem  cordas  e  calabres,  troussemo-lo  nós  da  índia, 
com  o  objecto  que  tem  este  nome. 

E  a  fibra  da  casca  do  coco,  e  a  esta  chamam  os  malabares 
na  sua  língua  Tcãyar,  do  verbo  Miyara  «estar  entretecido». 

João  de  Barros  ^  diz  que  parece  feito  de  couro,  e,  na  opinião 
dos  autores  do  Glossário  de  palavras  anglo-índias  ^,  a  semelhança 
dos  dois  vocábulos  deve  ter  contribuído  para  a  aceitação  do  pri- 
meiro. Todos  os  nossos  cronistas  da  Ásia  fazem  menção  do  em- 
prego que  desta  fibra  faziam  os  índios. 

Nada  tem  esta  palavra  que  ver  com  Cairo,  cidade  no  Ejipto 
maometano,  a  qual  em  árabe  se  chama  al-qaeibe  (pron.  alqáhira, 
«a  vitoriosa». 


cairo 


É  vocábulo  transmontano  e  significa  « dente  canino,  colmilho » . 
E  o  latim  canariu  \  canis  «cão»,  conforme  J.  Leite  de  Vas- 
concelos ^  e  as  formas  intermédias  hão  de  ter  sido  *  caneiro, 
cãeiro. 


caixa 


Este  termo,  designativo  de  uma  moeda  asiática,  é  íreqiiente 
nos  nossos  escritores  dos  séculos  xvi  e  xvii.  Conforme  Fernám 
Mendéz  Pinto  *,  valia  real  e  meio: — «duas  caixas,  que  erão  três 
réis  da  nossa  moeda»  — . 


1    Da  Ásia,  Década  iii,  livro  iii,  cap.  7. 

*  Yule  &  Burnell,  A  Glossary  of  Anglo-Indian  words  axd  phra- 
SES,  Londres,  1886. 

3    Kevista  Lusitana,  ii,  p.  116. 

*  Perbgrikação,  cap.  cix. 


Apostilas  ao«  Dicionários  Portugueses  203 


A  palavra  encontra-se  já  em  sánscrito,  com  a  forma  KaRsa, 
mas  é  natural  que  os  portugueses  a  recebessem  ou  directamente 
do  támul  hlsu,  ou  por  intermédio  do  marata  ou  do  concaui,  como 
se  diz  no  Glossário  de  Yule  &  Burnell  '  (q.  v.j. 


caixa-d'água 

Em  Évora  quere  dizer  « mãe-ã' agua » ,  isto  é,  «depósito  de 
água».  A  expressão  é  comparável  à  castelhana  arca  de  agua, 
que  tem  o  mesmo  sentido. 


cajuri  (cajury) 

Arvore  da  índia  Portuguesa: — «a  população  rural  do  dis- 
tricto  [Damão]  usa. . .  as  aguardentes  de  flor  de  maura. . .  e  as 
de  cajury» — -, 


calarabá,  calambac,  calambuco 

O  Novo  DiccioííÁKio  remete  a  primeira  forma  para  outra, 
caJamba,  a  que  portanto  dá  a  preferência :  com  pouco  fundamento, 
porém,  visto  que  na  Peregrinação  de  Fernám  Méndez  Pinto  a 
palavra  está  escrita  calamhaa  ^,  representando  portanto  o  malaio 
kalámhaq,  mas  com  o  acento  na  última  sílaba. 

E  duvidoso  se  calambuco   S  ou   calambuque,  designava  a 


1  A  Glossary  of  Anglo-Ixdiax  words  axd  phrases,  Londres, 
1886,  stib  V.  Cash. 

^  F.  X.  Ernesto  Fernández,  O  regimen  do  sal,,  abkary  e  alfan- 
degas NA  IxDiA  PoRTUGUBZA,  íii  <  Bolctim  da  Sociedade  de  Geographia  de 
Lisboa»,  23.*  serie,  p.  221. 

3     Cap.  XLi. 

^     ib,  xviii. 


204  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 

mesma  substância  vejetal  aromática,  e  sobre  estes  dois  vocábulos 
pode  consultar-se  o  Vocabulábio  de  Bluteau,  onde  também  se 
rejistou  a  forma  calamha. 

Garcia  da  Orta  escreveu  calambac: — «Chama-se  agalugem 
e  hauã  em  arábio;  e  os  Guzarates  e  Decanins  ud,  que  é  casi  o 
arábio;  os  Malaios  garro,  e  estes  chamam  ao  muyto  fino  calam- 
bac. A  arvore  é  como  a  oliveira,  e  ás  vezes  muyto  maior;  fruito 
nem  frol  não  lhe  sey» — ^ 

Veja-se  sobre  esta  essência  aromática  o  erudito  comentário 
do  Conde  de  Ficalho,  a  páj.  60-65  da  edição  dos  Colóquios, 
citada  em  nota.  Outro  nome  do  cheiroso  pau  era  aquila,  vo- 
cábulo cuja  acentuação  é  duvidosa,  e  que  sem  dúvida  proveio, 
como  supõe  o  douto  comentador,  das  formas  indicas  agar,  agir, 
ágil,  modificações  do  sánscrito  agueu, —  «que  os  árabes  con- 
verteram em  agalaãjin  [AYaLAoiN]  ( « agalugem »  de  Orta) » — . 
Pela  forma  arábica  da  palavra  se  vê  que  a  acentuação  tem  de 
ser  agalujém,  e  não,  agalújem.  Mas  será  agalugem  erro  tipo- 
gráfico por  agalagém? 

Pelo  contrário,  a  forma  sanscrítica  aguru,  com  o  u  breve, 
aconselha-nos  a  acentuar  águila,  o  que  explica  a  confusão  que 
se  deu  entre  este  nome  e  a  palavra  latina  aquila,  «águia»,  e 
motivou  a  extravagante  denominação  inglesa  eagle-wood. 


calão 


O  DiccioNAEio  Contemporâneo,  conforme  o  seu  costume, 
atribui  a  esta  palavra  imi  étimo  extravagante:  diz-nos  que  pro- 
vém de  cala  -{-  ão.  Que  será  este  cala,  e  mais  este  ão  é  o  que, 
se  não  fica  sabendo,  e  cada  um  suporá  o  que  mais  lhe  agradar; 
mas  pode  conjecturar-se  que,  visto  calar  querer  dizer — «não 
falar» — ,  e — ^ão,  suficso  subst.  derivado  de  verbos» — denotar 


1    Colóquios  dos  simples  b  das  drogas  da  Índia,  ii,  Lisboa,  1892, 
p.  58. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  205 

acção,  segundo  o  mesmo  dicionário,  calão  deve  significar  «a 
acção  de  não  falar >,  convém  saber,  «de  estar  calado».  Bonita 
etimolojia! 

Xa  realidade,  calão  é  o  calo  espanhol,  que  designa  «o  ci- 
gano »  (plural  cales,  femenino  callí,  pi.  callías)  e  o  dialecto  deles 
na  sua  própria  linguajem. 

O  calo  concorreu  bastante  para  a  formação  da  jíria  portu- 
guesa e  castelhana.  Sobre  este  objecto  vejam-se  as  seguintes 
obras:  F.  A.  Coelho,  Os  ciganos  de  Poetugal,  e  Kafael  Sa- 
lillas,  El  deliíícuente  espaíígl,  El  lenguajr  ^. 

Outra  acepção  de  calão,  que  deve  ser  vocábulo  diferente, 
vemo-la  no  seguinte  trecho:  —  «As  mangas  partem  da  boca  do 
saco  [rede],  em  posições  oppostas . . .  diminuindo ...  na  ponta . . . 
ou  calão  ^. 

calceta,  calcetar,  calceteiro 

O  Novo  DicciONÁBio  define  calceta  como  sendo — «grilheta, 
argola  com  que  se  prendia  a  perna  do  condemnado» — ,  e  tam- 
bém—  «o  condemnado  a  trabalhos  forçados»  — . 

O  vocábulo  calceta  parece  ter  orijem  castelhana,  sendo  pro- 
vavelmente o  termo  de  germania,  ou  jíria  de  malfeitores  espa- 
nhóis, calza,  «grilheta»,  corrente  com  que  se  prendem  os  en- 
carcerados; na  mesma  jíria  calcetero  é  o  nome  que  os  presidiários 
davam  a  quem  prendia  essas  correntes  aos  presos  ^. 

Os  galeotes,  a  que  me  referi  no  artigo  braga,  eram  também 
denominados  simplesmente  grilhetas,  por  alusão  à  cadeia  que  os 
acorrentava.  Em  malaio,  pelo  mesmo  motivo,  chamam-se  óram- 
-rante,  «gente  (de)  grilheta»,  e  esta  denominação  designa,  por 


1  Lisboa,  1892;  Madrid,  1896. 

2  Fernández  Tomás,  A  pesca  em  Buarcos,  in  Portugália,  i,  p.  151. 

3  Rafael  Salillas,  El  delincubxte  bspanol,  El  Lbnguaje,  Ma- 
drid, 1896,  p.  276. 


206  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


amplificação  de  sentido,  nesta  língua  um  qualquer  «preso  em 
cadeia  pública». 

Em  meados  do  século  passado  os  grilhetas,  ou  calcetas, 
acorrentados  a  dois  e  dois  por  uma  cadeia  de  ferro  (grilheta),  de 
metro  e  meio  de  comprimento,  presa  à  perua  por  uma  argola 
(calceta  ou  braga),  eram  ocupados  em  ranchos  no  calçamento 
das  ruas,  e  foram  esses  ranchos  que,  por  desenho  e  direcção 
superior  do  general  Cândido  Cordeiro  Pinheiro  Furtado,  gover- 
nador do  Castelo  de  Sam  Jorje,  executaram  o  formoso  mosaico 
da  Praça  de  Dom  Pedro,  ou  Kossio  de  Lisboa;  foram  eles  os 
calceteiros,  e  tanto  este  nome,  como  o  verbo  calcetar  e  seus 
derivados,  calcetamento,  calcetaria  daí  procedem. 

Muitos  desses  indivíduos,  cumprida  que  foi  a  pena,  con- 
tinuaram a  exercer  essa  profissão,  em  que  tam  peritos  se  mos- 
traram. 

A  tradição  perpetuou-se,  aperfeiçoando-se,  e  hoje  em  dia  esse 
ofício  é  tam  honrado  e  tam  honroso  como  qualquer  outro  ma- 
nual, e  tem-se  difundido  em  muitas  outras  cidades  e  vilas  do 
reino. 

caldeiro,  caldeirada,  caldeireiro 

Eis  aqui  abonações  destes  três  vocábulos,  em  sentidos  espe- 
ciais : 

—  «Para  que  a  duração  das  redes  seja  maior,  usam  os  pes- 
cadores mergulhal-as  n'uma  infusão  de  casca  de  salgueiro,  para 
o  que  possuem .  . .  grandes  vasos  de  cobre  (caldeiros),  onde  as 
redes  são  mettidas»  —  ^ 

—  «Da  outra  parte  [da  pesca]  que  pertence  aos  pescado- 
res que  formam  a  companha,  tira-se  um  terço  para  a  ca/- 
deiraãa.  E  o  peixe  reservado  para  as  refeições  dos  pescado- 
res»— *. 


1  Portugália,  A  pesca  em  Buarcos,  i,  p.  15.3. 

2  ib.  p.  154. 


Apostilas  aos  Dicionàri.os  Portugueses  207 

—  «acabar  com  o  uso  das  senhas  aos  caldeireiros  (cozedores 
de  cortiça)» — '. 

caleiro 

Em  Trás-os-Montes  é  a  «goteira  do  telhado». 


calha 


— « Essa  corrediça  assenta  sobre  uma  viga,  mais  forte  e  mais 
larga,  que  se  chama  draga  ou  calha  ^ — -. 


calhau 

O  étimo  mais  provável,  tanto  da  palavra  portuguesa  como 
da  francesa  caillou,  ambas  as  quais  tem  aspecto  de  derivados 
por  meio  dos  suficsos  -aii  e  -ou  (=u  }  -òu  \  -ol),  é  um  primitivo 
calho,  cail  \  calculum,  «pedrinha»,  mediante  a  evolução  se- 
guinte: calclum:  caldo:  calho,  para  o  português,  e  calcle: 
cail,  para  o  francês. 


cali  (Marrom eu) 

Africa  Oriental  Portuguesa: — « Os  nomes  dos  principaes  objec- 
tos de  uso  domestico  são  cali  (panela  d'agua) .  . . » — ^.  Xão 
posso  deixar  de  citar  a  coincidência  de  kuáli  em  malaio  tam- 
bém ser  o  nome  que  dão  à  panela  onde  se  faz  o  caldo  e  sopas. 


O  Economista,  de  13  de  setembro  de  1892. 
O  Século,  de  2  de  outubro  de  1901. 
Jornal  das  Colónias,  de  4  de  julho  de  1903. 


208  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


calo 


No  Alentejo  este  termo  significa  uma  extensão  de  terreno 
arjiloso,  encravado  entre  outras  formações.  É  evidente  a  orijem 
do  termo :  destaca-se,  por  diferença  de  aspecto,  esse  retalho  entre 
os  terrenos  circunjacentes,  como  um  calo  realça  na  pele.  Compa- 
ração análoga,  mas  com  relação  a  dureza,  levou  a  aplicar-se  a 
mesma  denominação  à  « grossura  de  terra,  entremeada  e  presa 
pelas  raízes  das  varas,  que  se  forma  em  torno  das  videiras  que 
se  cortaram  na  poda»,  sentido  este  já  consignado  no  Novo  Dic- 

CIONÁEIO. 

calombo;  carimbo;  carcunda 

Colombo  no  Minho  significa  «abóbora».  O  Novo  Diccioná- 
Eio  diz-nos  que  como  termo  brasileiro  quere  dizer — «tumor,  in- 
chaço duro  em  qualquer  parte  do  corpo» — ,  e  atribui-lhe  em 
dúvida  orijem  africana.  O  aspecto  é  na  realidade  cafrial,  mas 
o  vocábulo  não  parece  quimbundo,  pois  nesta  língua  calombo 
quere  dizer  «mulher  infecunda»,  conforme  Joaquim  da  Mata  ^ 
Não  seria  porém  de  estranhar  que  o  fosse,  pois  esta  e  outras 
línguas  bantas  ministraram  e  ainda  ministram  copioso  vocabulá- 
rio à  nossa. 

O  preficso  ca  é  deminutivo  em  quimbundo,  e  a  palavra, 
muito  usual  carimbo  é  simplesmente  o  deminutivo  de  quirimbu 
« marca »  ^,  como  carcunda  é  o  quimbundo  caricunda,  « costi- 
nhas » ,  « o  das  costas » ,  e  significa  « quem  tem  as  costas  defei- 
tuosas» e  o  próprio  defeito. 


1  Ensaio  do  Diccionario  kimbúndu-portuguez,  Lisboa,  1893. 

2  ih.  suh  voe.  kirimbu. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  209 


calote 

Este  vocábulo,  no  sentido  de  «dívida  não  paga»,  parece  ser 
o  francês  culotte,  como  termo  de  jogo  do  dominó,  o  qual  designa 
« as  pedras  com  que  cada  parceiro  fica  na  mão,  por  as  não  poder 
colocar » . 

Também  se  diz  naquele  sentido  caurim,  (q.  v.). 


caluete 

O  Novo  DicciONÁEio  rejista  como  inédito  este  vocábulo,  que 
escreve  caluete,  o  que  é  erro  manifesto,  pois  o  vemos  escrito  nos 
nossos  cronistas  da  Ásia  também  caloete,  e  é  sabido  que  do  o  se 
serviam  dantes,  em  caso  de  dúvida,  quando  o  u,  que  na  forma, 
quer  escrita,  quer  impressa,  se  confundia  com  o  v,  se  poderia  ler 
como  hoje  lemos  este.  É  sabido  também  que  o  V  era  o  desenho 
inicial,  u  o  medial  e  final  da  palavra,  tendo  ambos  promíscua- 
mente  os  dois  valores,  e  sendo  o  u  para  o  da  vogal  u  a  meúdo 
substituído  por  o,  se  ficava  no  meio  da  palavra,  pelo  expediente 
gráfico  hu,  principalmente  se  no  começo  dela:  huivar,  por  exem- 
plo, assim  diferençado  de  viver  ^ 

O  termo  é  malabar  kaluehhi,  e  designava  o  instrumento  de 
um  suplício  atroz,  descrito  por  Fernám  Méndez  Pinto,  nos  se- 
guintes termos:  —  «porém  o  moço  foi  espetado  vivo  em  um  ca- 
luete de  arrezoada  grossura,  que  lhe  meterão  pelo  sesso,  e  lhe 
sahio  pelo  toutiço» — -. 

Para  se  ver  quanto  os  nossos  escritores  eram  escrupulosos 
em  representar,  conforme  a  ortografia  do  seu  tempo,  os  nomes  e 
vocábulos  peregrinos  que  intercalavam  nas  suas  relações  e  des- 


1    V.,  do  autor,  Ortografia  Nacional,  Lisboa,  1904,  p.  61,  99,  103, 
215  e  218. 

•^    Peregrinação,  cap.  clxxvii. 

li 


210  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


crições,  cumpre  advertir  que  o  vocábulo  malabar,  que  na  letra 
da  terra  se  escreve  kaluehhi,  é  pronunciado  káluètti  ^ 

Bluteau  ortografou  também  erroneamente  calvete,  pelo  quê  se 
fica  sabendo  que  antes  do  Novo  Diccionário  já  a  palavra  havia 
sido  rejistada. 

Kepito  que  a  escrita  caloete  tira  todas  as  dúvidas,  mesmo 
que  não  soubéssemos  pelo  seu  étimo,  como  sabemos,  que  ali  o  U 
não  tinha  o  valor  de  v,  mas  de  u  vogal. 


camacheiro 

E  termo  usado  no  Funchal,  com  a 'significação  de  «vento 
leste».  A  orijem  desta  denominação  é  evidente.  Chama-se-lhe 
assim  porque  esse  vento  sopra  ali  do  lado  da  freguesia  de  Ca- 
macho, capela  de  Santa  Cruz,  fora  da  cidade.  Cf.  (vento)  pal- 
melão  {  Palmela,  «o  sueste»,  no  Tejo. 


cama-quente 

—  «Dá-se  em  horticultura  o  nome  de  cama  quente  a  todo 
o  amontoado  de  adubo  constituído  por  folhas  sêccas  ou  detrictos 
vários  próprios  para  entrarem  em  fermentação  e  desenvolverem 
calor»— 2. 

câmara,  camarim,  camai'inha,  camarote, 
beliche,  caramanchão 

O  termo  camarim,  derivado  do  italiano  camerino,  significa 
nos  teatros  portugueses,  como  nos  de  Itália,  o  quarto  em  que  os 


1  Yule  &  Burnell,  A  Glossary  of  Anglo-Indian  words,  Londres, 
1896. 

2  Gazeta  das  Aldeias,  de  20  de  agosto  de  1905. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  211 


actores  se  vestem  e  preparam  para  a  cena.  É  já  autigo  na  nossa 
língua,  pois  vem  mencionado  neste  sentido  no  Aviso  de  17  de 
julho  de  17Õ1  ^  relativo  ao  teatro  da  Ópera. 

Outro  tanto  acontece  a  camarote,  como  se  vê  no  mesmo 
Aviso:  —  «os  camarotes  a  que  Sua  Magestade  não  deu  certeza, 
destribuirá  V.  Ex.*» — . 

O  italiano  deu  ao  português  gi-ande  número  de  termos  de 
arte.  (V.  poltrona). 

Camarote,  como  termo  de  bordo,  no  mesmo  sentido  que  beli- 
che (de  orijem  oriental,  provavelmente  malaia,  hiliq,  « alcova  >),  é 
natural  que  italiano  seja  também,  mas  já  foi  usado  na  Peregri- 
nação (cap,  ccxiv).  E  possível  que  beliche  represente  o  malaio 
biliq  hechil,  «alcova  pequena»,  com  deslocação  do  acento  do 
adjectivo  para  o  substantivo,  e  supressão  do  q,  quási  imperceptí- 
vel, e  da  terminação  il.  Em  italiano  camarote-de-bordo  diz-se 
camerino. 

Camarim  é  excelente  tradução  do  francês  boudoir,  e  nesta 
acepção  foi  muito  usado,  significando  « quarto  reservado,  secreto » ; 
e  é  como  tal  que  o  termo  se  aplica  ao  andor  coberto  em  que, 
por  exemplo,  a  imajem  do  Senhor  dos  Passos  da  Graça  vai  cada 
ano  processionalmente  para  a  igreja  de  Sam  Koque,  em  Lisboa, 
na  segimda  sexta-feira  da  quaresma. 

Camarinha  está  empregado  num  sentido  especial  no  seguinte 
passo  do  Bosquejo  de  uma  viajem  no  interior  da  Parahyba 
E  DE  Pernambuco  ^: — «no  interior  da  nossa  «camarinha»,  co- 
berta de  telha  vã,  como  é  geral  no  norte  do  Brazil» — .  . 

Com  efeito,  no  Suplemento  ao  Nôvo  Diccionário  vemos  este 
vocábulo  definido  do  modo  seguinte:  —  «(bras.  do  N.)  quarto  de 
dormir;  pequena  prateleira  no  canto  da  sala» — . 

Na  Beira-Baixa  camarinha  e  o  « quarto  de  dormir » . 

Camarinha  é  também  o  nome  de  uma  baga,  fruto  de  imaa 
planta  do  mato,  a  que  no  Alentejo  se  chama  copo-d'água. 


1      COLLBCÇÃO  DE  LEGISLAÇÃO  PORTUGUEZA,  1750-1762,  p.  338. 

=2    in  O  Século,  de  8  de  junho  de  1 900. 


212  AjMstilas  aos  Dicionários  Portugueses 

Outra  palavra  composta,  não  derivada,  de  câmara  é  cara- 
manchão, de  camaranchão,  com  metátese  das  sílabas  médias, 
formado  de  câmara  ancha,  com  elisão  do  a  final  de  câmara,  e 
mudança  de  género  gramatical:  ef.  mulherão,  substantivo  mas- 
culino, aumentativo  do  femenino  mulher,  casão,  masc,  de  casa, 
femenino. 

A  palavra  câmara,  que  deu  avultado  número  de  derivados 
em  todas  as  línguas  românicas,  é  o  latim  camêra,  camâra,  do 

grego  KAMÁEA. 


camba,  cambo,  cambai,  cambeira,  cambeirada,  cambada, 
cambulhada,  cambulhão 

O  Novo  DicciONÁEio,  no  Suplemento,  incluiu  a  palavra  cam- 
òeiras,  com  a  seguinte  definição:  —  «(t.  da  Bairrada),  a  farinha 
mais  fina  que,  nos  moinhos  de  água,  se  evola  [?]  da  mó,  poisando 
nas  paredes  e  objectos  circunjacentes » — . 

Acrescenta  um  derivado  cambeirada,  como  também  perten- 
cente ao  vocabulário  daquela  rejião,  definindo-o — «arremesso 
de  cambeiras  ou  enfariuhadela  com  cambeiras,  nos  folguedos  do 
entrudo;.  .  .  pequena  porção  de  farinha» — . 

(i Porque  se  chama,  porém,  cambeira,  ou  cambeiras,  a  essa 
farinha  finíssima? 

No  corpo  do  dicionário  incluíu-se  o  termo  cambai,  assim 
definido: — «resguardo  de  pano,  madeira  ou  farinha,  para  que  se 
não  espalhe  a  farinha  que  se  vai  moendo» — . 

Bluteau  dissera: — «Cambais  chamão  os  Moleiros  à  farinha 
(segundo  imajina  quem  mo  disse)  que  põem  em  roda  da  pedra 
que  moe,  como  reparo  da  que  se  está  moendo;  ou  são  umas  ta- 
boinhas,  que  pela  mesma  sorte  se  põem»  —  *. 

A  palavra  deve  provir  de  camba,  a  que  o  mesmo  dicionário 


1    Vocabulário  portugubz  b  latino,  Suplemento 


ApnHtilns  aos  DicionâHos  Portugueses  213 


dá  as  seguintes  definições:  —  «peça  curva  das  rodas  dos  carros, 
pina;  nesga;  (ant.)  moinho  de  mão;  pequena  cambota»  — . 

Camba  parece  derivar-se  do  latim  campe,  termo  grego  que 
significava  « curvatura » . 

O  Elucidakio  de  Santa  Rosa  de  Viterbo  diz-nos  que  antiga- 
mente camba  era: — < moinho  pequeno,  molinheira,  moinho  de 
mão» — e  cambai — «a  farinha,  que  faz  lábio  na  mó  debaixo» — . 

Na  monografia  Moinhos  *  vemos  o  seguinte  trecho  em  que 
se  descreve  o  que  são  cambeiras: — «por  sobre  estes  [os  arre- 
dores, q.  vj  assenta.  .  .  um  aateparo  de  madeira,  a  que  dão  o 
nome  de  cambeiras  > — . 

Creio  ficarem  assim  bem  estremadas,  com  as  citadas  defini- 
ções e  com  este  trecho,  várias  acepções  das  palavras  camba, 
cambai,  cambeira,  cambeiraãa.  De  camba  e  cambota  há  cla- 
ríssimas definições  no  Dicgioxario  Contempokaneo. 

Com  relação  a  cambada,  —  «enfiada  de  coisas  penduradas  no 
mesmo  gancho,  cordel,  etc,  como  declara  este  último  dicionário, 
parece  ser  um  derivado  colectivo  de  camba,  cambo,  porque  tais 
objectos,  fazendo  peso,  obrigam  o  cordel,  vara,  etc,  a  curvar-se; 
ou  de  cambo,  que  significa  «enfiada,  vara  (curva,  geralmente  de 
salgueiro)» — .  Cambada,  «súcia»,  tem  a  mesma  orijem. 

Outros  derivados  são  cambulhada,  cambulhão,  que  pressu- 
põem uma  forma  cambulho,  ou  cambulha,  da  mesma  orijem. 


cambola 

No  «Jornal  das  Colónias»,  de  27  de  maio  de  1905  ^  encon- 
tra-se  este  termo,  próprio  da  África  Oriental  Portuguesa,  perten- 
cente ao  vocabulário  das  línguas  bantas,  e  que  assim  é  ali  de- 
finido—  «corda  feita  com  fibras  vejetais». 


1     in  Portugália,  I,  p.  386. 

'    Campanha  de  Barué  em  1902,  relatório  oficial. 


214  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


cambolar,  cambolação,  cambolador 

O  Novo  DiccioNÁEio  traz  o  segundo  destes  vocábulos,  com 
a  significação  de  —  «engajamento  (P)  de  comitivas  de  carregadores 
do  interior  da  África» — . 

O  étimo  de  camhulhaãa,  que  em  dúvida  lhe  dá,  é  inadmis- 
sível. Tanto  o  segundo  como  o  terceiro  vocábulo  pressupõem  um 
verbo  cambolar,  que  não  é  mais  que  o  aportuguesamento  do 
verbo  quimbundo  cucombola,  «negociar,  traficar»,  de  que  se  de- 
rivou o  substantivo  cambolador,  correspondente  ao  quimbundo 
ritombo  ^  «negociante». 

caminheira,  caminhão 

O  Novo  DiocioNÁBio  rejista  como  provincialismo  o  vocábulo 
caminhão,  no  sentido  de  « carro  do  quatro  rodas » , 

Outro  substantivo,  do  mesmo  modo  derivado  de  caminho, 
é  nome  aplicado  a  uma  espécie  de  locomotiva,  como  se  vê  do 
trecho  seguinte:  —  «Ha  dias  eífectuou-se  em  Inglaterra  a  expe- 
riência d'uma  caminheira  para  o  Soldão  [aliás,  Sudão]. . .  Com 
um  carro  atrelado  levando  dentro  mais  d'uma  tonelada  de  peso, 
a  caminheira  pegou-se  diversas  vezes» — -;  — «pessoal  e  ma- 
terial relativos  ás  caminheiras  e  outras  machinas  a  vapor» — ^. 

camisa-de-onze-varas ;  camisão 

Como  já  foi  explicado  na  Ke vista  Lusitana  *,  esta  estranha 
denominação  queria  dizer — «a  alva  dos  padecentes» — . 


1  Héli  Chatelain,  Grammática  elementar  do  Kimbundu,  Gene- 
bra, 1888-1889,  p.  121.  — D.  Cordeiro  da  Mata,  Ensaio  de  dicCionário 
KiMBÚNDU-PORTUGTJEZ,  Lisboa,  1893. 

2  Jornal  das  Colónias,  de  21  de  outubro  de  1995. 

3  Diário  db  Noticias,  de  30  de  janeiro  de  1906. 
*     vol.  VI,  p.  129. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  215 

Camisão,  na  ilha  de  Sam  Miguel,  significa  <  disfarçado,  hipó- 
crita, sonso >. 

Notarei  aqui,  a  propósito  de  alva,  que  este  vocábulo  não  de- 
signava só  a — «veste  de  padecentes  nos  antigos  autos  de  fé»  — 
como  diz  o  Suplemento  ao  Novo  Diccionáeio,  mas  principal- 
mente a  camisa  branca,  que  levava  vestida  « o  padecente  que  ia  a 
enforcar,  como  ainda  a  vestiram  os  últimos  que  em  Lisboa  pade- 
ceram essa  pena.  Matos  Lobo  e  Diogo  Alves,  antes  de  meados 
do  século  passado». 

camocho 

Termo  de  calão  que  quere  dizer  «tostão». 

campa,  campa,  campana,  campainha,  campainheiro 

O  primeiro  destes  vocábulos  tem  duas  acepções,  a  primeira, 
«(laje  que  cobre  a)  sepultura»,  não  é  fácil  de  subordinar  a  um 
étimo. 

Na  segunda  acepção,  é  um  primitivo  suposto,  formado  pelo 
que  se  considerou  derivado,  campa  j  eampãa  j  campana,  cam- 
pana, ainda  usado  no  concelho  de  Pinhel,  e  que  já  em  latim 
significava  «sino»  *;  como  venta,  foi  induzido  de  venta  j  ven- 
tana,  e  aço  j  aceiro,  que  era  o  nome  do  metal,  como  actual- 
mente o  é  em  castelhano  acero.  Supôs-se,  em  vista  da  termina- 
ção, que  a  palavra  estava  na  mesma  relação  que  ferreiro  com 
ferro.  Também  se  disse  azeiro,  e  Alexandre  Herculano  empregou 
azeirado,  no  sentido  em  que  usamos  o  castelhanismo  acei-aão  2. 

Campanus  em  latim  é  um  adjectivo,  empregado  por  exem- 
plo em  aes  Campanum,  e  em  (uasa)  Campana. 


*     V.  Wõlflin,  in  Jahresbericht  fúr  die  Fgrtschritte  der  Eo- 

MANISCHEN  PhILOLOGIE,  VI,  I,  p.  126. 

^    — <A  seta  de  ura  epigramma  azeirado» — .  O  Bobo,  ii. 


216  Apostilas  nos  Dicionários  Portugueses 

Um  derivado  de  campainha  é  campainheiro,  que  no  conce- 
lho de  Vila-Nova-de-Oiirém,  e  provavelmente  em  todo  o  distrito 
de  Santarém,  designa  o  vendedor  de  campainhas  e  chocalhos 
para  gado,  na  feira,  e  que  anuncia  a  fazenda  tocando  alternada- 
mente duas  campainhas  que  empunha,  uma  em  cada  mão. 

campido;  campo,  campina,  campinação 

E  um  particípio'  passivo  substantivado  de  campir — «fazer  a 
perspectiva  do  horizonte  em  um  quadro» — ,  como  define  o  Novo 
DicoioNÁRio.  J.  Gomes  Monteiro,  na  Caeta  áceeca  da  Ilha 
DOS  Amores  \  empregou  aquele  substantivo  explicando-o : — a 
confusa  distribuição  dos  elementos  que  entram  no  quadro,  a  falta 
dos  campidos,  como  lhe  chama  Philippe  Nunes,  isto  é  os  longes, 
os  ceos,  os  horisontes » — . 

O  verbo  campir  é  de  orijem  italiana,  campire,  como  muitíssi- 
mos termos  de  arte.  (V.  em  poltrona). 

Campo,  além  de  muitas  outras  acepções,  que  dos  dicionários 
constam,  tem  uma  muito  especial  em  português,  a  de  « espaço 
onde  pode  caber  alguma  cousa,  ou  alguém;  eis  um  exemplo:  — 
«custando  a  acreditar  como  alli  [sala  da  audiência  do  tribunal 
em  Vila-Franca]  possa  viver  [síc]  umas  dezenas  de  pessoas,  no 
espaço  de  algumas  horas,  sem  ar,  sem  campo,  entre  bancos  e 
estrados» — -. 

De  campo  se  deriva  caynpina,  e  deste  talvez  um  verbo  cam- 
pinar,  que  deu  orijem  ao  substantivo  campinação,  que  vemos 
empregado  por  M.  Ferreira  Ribeiro  ^.  — « As  polainas  de  laços 
são  as  melhores  e  mais  úteis  nos  trabalhos  de  campinação, 
passagem  de  florestas,  etc. » — . 


1  Porto,  1849,  p.  60. 

2  O  Século,  de  3  de  maio  de  1900. 

3  KbGRAS  E  preceitos  de  HYGIBNE  COLONIAL,  p.  90. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  217 


cana-yerde;  cana,  caninha,  canicinho 

O  Novo  DiccioNÁRio  inseriu  este  termo  composto,  dando- 
-Ihe  a  significação  restrita  de — «caução  popular  do  Minho» — , 
acepção  em  que  toda  a  gente  o  conhece.  Todavia,  no  seguinte 
excerto  a  locução  tem,  sem  dúvida,  outro  significado,  que  talvez 
possa  aclarar  o  nome  que  puseram  à  cantiga  minhota:  —  «ainda 
haverá  os  vinhos,  ou  canna-verde,  produzidos  por  vinhas  doen- 
tes»— ^ 

Cana,  por  «aguardente  de  cana  de  açúcar»,  vemo-lo  empre- 
gado no  seguinte  passo: — «Dê-nos  canna» — -. 

Caninha,  como  designando  a  cana-doce,  ou  cana-de-açúcar, 
foi  assim  definida  no  jornal  O  Economista,  de  3  de  maio  de  1891: 
—  «Constou  que  o  sur.  Brandy  mandara  vir  de  Moradnagar, 
índia,  sementes  de  cana  «Alapoor  Jowart»  que  pertence  a  uma 
casta  inteiramente  nova  e  produz  assucar  e  aguardente.  Diz  a 
noticia  que  resiste  muito  á  seca  e  pode  por  isso  ser  plantada  em 
terrenos  onde  haja  falta  d'agua.  Não  é  da  familia  Sarghos,  a  que 
chamam  caninha.  Forma  soqueira  e  dá  semente»  — . 

O  deminutivo  canicinho,  na  ilha  de  Sam  Miguel,  quere  dizer 
«motejo»,  como  o  vemos  muito  plausívelmente  explicado  no  jornal 
O  Século,  de  5  de  julho  de  1901: — Estar  com  o  canicinho 
n'agua,  estar  a  brincar,  a  gracejar.  Pela  forma  açoriana  se  vê 
que  a  nossa  locução  «estar  com  a  carinha  n'água»,  que  realmente 
não  faz  sentido,  é  corruptela  da  seguinte:  «Estar  com  a  caninha 
n'água»,  de  fácil  comprehensão » — . 

Estes  modos  de  dizer  triviais,  que  se  empregam  tendo-se  em 
vista  o  teor  da  frase  enteira,  e  não  o  valor  dos  seus  elementos, 
são  muito  sujeitos  a  ser  deturpados,  substituindo-se  qualquer 
desses  elementos  por  outro,  cujo  valor  fonético  seja  quási  equi- 


1    O  Skculo,  de  5  de  outubro  de  1902. 

*      BOSQUKJO    DE3   UMA    VIAGEM    NO    INTERIOR   DA    PaRAHYBA   E    DE 

Pernambuco,  in  <0  Século»,  de  17  de  junho  de  1900. 


218  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 

valente:  é  o  que  aconteceu  a  outro  anexim,  «não  se  pescam  tru- 
tas a  bragas  enxutas»,  onde  bragas  é  geralmente  substituído 
por  barbas. 

canado 

Na  Beira-Baixa  tem  este  nome  a  « armação  de  canas  ou  ra- 
mos, em  torno  do  carro,  para  conter  o  estrume»  ^ 
É  um  derivado — evidente  de  caíia. 

canajeira 

É  um  termo  que  designa  nas  marinhas  uma  espécie  de  pá,  que 
veio  figurada  no  jornal  O  Século,  de  10  de  janeiro  de  1901. 

•    canastro 

Esta  palavra,  formação  masculina  correspondente  à  femeniua 
canastra,  designa  em  geral  o  arcabouço,  a  armação,  o  esqueleto, 
e  nestes  significados  traduz  perfeitamente  o  carcasse  francês,  o 
qual  só  é  português,  no  uso  comum,  com  a  forma  carcassa,  talvez 
melhor  carcaça,  no  sentido  de  «cousa,  pessoa  velhíssima». 

Em  sentido  especial  designa  no  Minho  a  palavra  canastro  o 
mesmo  que  espigueiro  ou  caniço,  isto  é,  « um  celeiro  provisório, 
o  qual  consiste  em  uma  construcção  levantada  sobre  estacas  ou 
pegões  de  pedra,  e  em  que  se  arrecadam  espigas  e  maçarocas, 
ficando  a  salvo  da  humidade  e  dos  animaes  daninhos». 

cánave,  cáneve,  canaveira 

Estas  duas  formas,  a  segunda  das  quais  está  para  a  primeira 
como  cámera  para  câmara,  são  os  lejítimos  derivados  do  substan- 


Informação  do  editor,  natural  de  Almeida. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  219 

tivo  latino  femenino  cannabe[m],  e  foram  ao  depois  substituídos 
pela  forma  castelhana  cânhamo  (cánamo),  procedente  de  outra 
forma  latina  neutra  cannabum,  com  assimilação  parcial  do 
h  ao  nn. 

Do  adjectivo  cannabaceum  ^  provém  o  derivado  canha- 
maço,  também  acastelhanado,  popularmente  modificado  em  ca- 
lhamaço, por  dissimilação  da  nasal  inicial  da  3.*  sílaba:  nh 
passou  a  Jh,  isto  é,  a  nasal  palatal  à  líquida  palatal,  por  dissi- 
milação regressiva  da  nasal  labial  m. 

O  Novo  DiccioxÁETO  define  canaveira  por  estas  palavras: 
—  <(ant.)  logar  onde  cresce  o  cânave?  canavial?  Cf.  Sousa, 
Ann.  de  D.  João  iii»  — . 

canavieira 
Na  Ilha  da  Madeira  dá-se  este  nome  ao  carro  de  roca. 

candeia,  candeeiro,  candil  (1);  candil  (2) 

Hoje,  na  linguajem  comum  significa  o  primeiro  vocábulo  uma 
lâmpada  pequena  de  folha,  com  um  gancho  para  se  dependurar; 
e  candeeiro  toda  e  qualquer  lâmpada,  que  em  geral  não  é  de 
suspensão,  mas  que  também  pode  estar  suspensa.  Antigamente 
não  era  assim. 

Candeia  designava  o  que  actualmente  chamamos  vela,  e  can- 
deeiro o  «fabricante  de  velas,  o  cirieiro»,  como  hoje  dizemos. 
Isto  se  vê  claramente  dos  seguintes  trechos  de  um  artigo  publi- 
cado por  Sousa  Viterbo  na  revista  Portugália  [i,  p.  366-368], 
analisando  uma  carta  réjia  de  Dom  Afonso  v:  —  «e  entre  as 
[candeias]  que  vinham  de  fora  eram  especialmente  reputadas  as 
candeas  de  rezar  de  Aragão — que  os  candeeiros  moradores  na 
dita  vila  de  Santarém»  — . 


1    J.  Leite  de  Vasconcelos,  Revista  Lusitana,  ii,  p.  31. 


220  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


Ao  fabricante  de  candeeiros  de  metal  chamou-se  ao  depois 
candeeireiro.  Sousa  Viterbo  *  adverte  haver  diferença  entre  can- 
deeiro,—  «o  official  que  faz  candêas  de  cera,  a  que  hoje  cha- 
mamos 7^o?o» —  e  cerieiro — «que  fazia  velas,  tochas,  e  bran- 
dões»— .  Aliás,  cirieiro  j  círio. 

Candeia,  no  sentido  de  «vela»,  foi  empregado  por  Damião 
de  Gróis: — «lhe  pedirão  algumas  mercês,  as  cartas  das  quaes 
assinou,  tendo  na  mão  ezquerda  a  candea,  e  na  outra  a  pena 
com  que  assinava » —  ^. 

Ainda  muito  depois  escreveu  Cardim :  — « pedindo  que  á  hora 
da  morte  os  ajudem  metendo-lhes  a  candeia  na  mão»  —  «fui 
benzer  as  candeias  á  igreja  de  Homac,  convidando  os  por- 
tugueses para  a  festa» — 3.  Ainda  hoje  se  diz  A  Senhora  das 
Candeias. 

Outro  trecho,  que  dissipa  todas  as  dúvidas,  é  o  seguinte:  — 
« O  curioso  andor  das  candeias  foi  salvo . . .  Este  andor  era 
conduzido  na  procissão  das  marafonas  ou  dos  pães  bentos .  . . 
O  andor  ia  adornado  de  vellas  de  cera,  que  perfaziam  o  pezo 
do  rolo  com  que  se  devia  cercar  a  muralha  da  cidade  [de  Gui- 
marães] » — *. 

Candil,  de  orijem  imediata  arábica  QaNDiL,  mas  remota  do 
grego  KANTALA  (?)  5,  siguiíica  um  candeeiro-de-mão.  O  Novo  Dic- 
ciONÁEio,  além  desta  acepção  conhecida,  aduz  outra:  —  «(pesc[a]) 
phosphorecência  das  águas»  — . 

Como,  porém,  não  está  abonada,  creio  ser  informação  errada, 
e  que  o  vocábulo  candil,  está  por  candeio;  «luzeiro  que  se  usa 
na  caça  ou  na  pesca,  para  atrair  a  presa». 


1  Elucidário  dos  termos.  . .  que  em  Portugal  antiguamente 
SE  USARÃO,  Lisboa,  1798. 

2  Chronica  de  El-rei  Dom  Emmanuel,  cap.  ix. 

"  Batalhas  da  Companhia  de  Jesus  na  província  do  Japão, 
Lisboa,  1894,  p.  23  e  162. 

*    O  Século,  de  23  de  fevereiro  de  1902. 

•"*  Dozy  &  Engelmann,  Glossairb  des  mots  bspagnols  et  port. 
derives  de  l'arabe. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  221 


Quanto  a  outras  acepções  de  candil,  as  primeiras  que  se  dão 
no  mesmo  dicionário;  —  «medida  de  capacidade,  na  índia» — , 
«e  antiga  moeda  asiática»  —  são  vocábulo  distinto  deste;  deveria 
ali  ser  subordinado  a  inscrição  separada,  conforme  a  economia 
adoptada  nele.  Qualquer  dessas  acepções  pertence  ao  vocábulo 
malabar  kandi,  que  é  o  raarata  K'aNDi,  unidade  de  peso  de 
250  kilos  próssimamente  ^  A  forma  portuguesa  candil  foi  erra- 
damente induzida  do  plural  candis:  cf.  javali,  javalis,  com 
funil,  funis. 

caneca,  caneco 

E  um  par  de  nomes,  um  masculino  e  outro  femenino,  como 
há  tantos  na  nossa  língua:  caneca  é  um  vaso  pequeno  de  louça, 
cilíndrico,  com  maior  altura  que  diâmetro,  e  guarnecido  de  asa; 
caneco  é  uma  espécie  de  barril  de  madeira,  de  forma  cónica,  e 
aberto  por  cima,  no  que  no  Norte  se  diferença  do  barril  propria- 
mente dito,  que  geralmente  tem  dois  tampos. 

Todavia  os  canecos  de  madeira  para  água,  no  Porto,  teem 
dois  tampos,  mas  são  semelhantemente  cónicos,  e  não  com  a 
forma  de  dois  cones  unidos  pelas  bases,  como  os  dos  aguadeiros 
de  Lisboa,  e  os  que  servem  a  transportar  vinho,  aguardente,  vi- 
nagre, etc. 

canga,  cangalhas,  cangalho,  cangueiro 

Além  de  indicar  uma  espécie  de  jugo  para  os  bois,  usado  no 
sul  do  reino,  designou,  por  analojia  de  forma  ou  de  aplicação,  a 
tábua  que  serve  de  suplício  na  China..  No  curioso  livro  Bata- 
lhas DA  Companhia  de  Jesus  na  província  do  Japão,  do 
Padre  António  Francisco  Cardim  -,  vem  mencionado  o  dito  tor- 


1  Yule  &  Burnell,  A  Glossary  of  Anglo-Indian  words,  Londres, 
1886,  suh  V.  Candy. 

2  Lisboa,  1894,  p.  85;  v.  também  a  p.  185,  199,  217. 


222  Ajmstilas  aos  Dicionários  Portugueses 


mento  por  este  nome:  —  «lhe  tinha  lançado  ao  pescoço  uma 
canga,  com  dois  pesados  paus,  a  modo  de  escada. 

Desta  palavra  se  derivaram,  segundo  parece,  cangalho,  e 
cangalhas,  armação  geminada  que  se  põe  no  dorso  das  cavalga- 
duras, para  transporte  de  cestos,  canastras,  barris,  etc,  e  que 
pode  ser  de  ferro,  ou  de  madeira: — «colocam-lhe  por  sobre  a 
albarda  [do  burro  dos  aguadeiros]  as  cangalhas,  nome  que  aqui 
[Algarve]  se  dá  a  um  objecto  feito  mais  vezes  de  madeira  que 
de  ferro »  —  ^ 

Exemplo  de  cangalho,  na  acepção  primitiva  de  — « cada  um 
dos  dois  paus  que  ajustam  e  seguram  a  carga  ao  pescoço  dos 
bois» — ,  como  define  o  Dioc.  Contemporâneo,  é  o  seguinte: — 
«tinha  ido  próximo  de  um  ribeiro  arrancar  um  pedaço  de  ma- 
deira, para  d'ahi  fazer  um  cangalho» — ". 

Cangalho,  como  é  sabido,  significa  também  um  objecto  ve- 
lho, inútil,  e  desta  acepção  proveio  o  verbo  escangalhar,  «des- 
manchar, destruir». 

A  orijem  do  vocábulo  canga  é  o  verbo  cangar  j  con- 
iugare  ^. 

O  substantivo  cangueiro  vem  já  inscrito  no  Novo  Diccioná- 
Rio  numa  acepção  especial,  «barco  chato,  usado  no  Tejo»,  atri- 
buindo-se-lhe  por  orijem  a  palavra  canga.  No  mesmo  dicionário 
está  rejistada  outra  acepção,  como  própria  do  Brasil,  —  «pregui- 
çoso, negligente» — .  Nos  meus  apontamentos,  sem  abonação 
porém,  porque  levou  esta  sumiço,  encontro  cangueiro  como  bar- 
queiro de  certa  embarcação,  que  nunca  abre  caminho,  desvian- 
do-se,  a  outros  barcos  mais  pequenos,  evitando  unicamente  os 
que  são  maiores,  para  não  çoçobrar. 


1  Portugália,  i,  p.  385. 

2  O  Economista,  de  22  de  outubro  de  1892. 

3  J.  Leite  de  Vasconcelos,  in  Eevista  Lusitana,  ii,  p.  34. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  223 


cangarra 

E  natural  que  seja  este  vocábulo,  usado  na  Africa  Oriental 
Portuguesa,  um  aumentativo  de  canga,  (cf.  bocarra  j  hôca),  e 
não,  termo  indíjena: —  «transportam  o  ferido  em  combate,  na  can- 
garra (padiola  de  ramos) » —  * . 


cangosta:  v.  congosta 


cânhamo:  V.  cánave 


canho,  canha,  canhona 

No  Minho  canhos  são  «sobejos  de  comida». 

Para  os  outros  significados  de  canho,  e  seus  derivados,  veja-se 
o  Novo  DiccioNÁEio  e  o  seu  Suplemento. 

Comparável  a  canho  no  sentido  indicado  é  o  termo  alente- 
jano caolhas,  rejistado  no  dito  dicionário,  com  a  significação  de 
—  «migas  que,  depois  de  feitas,  se  comem  com  leite» — ,  acep- 
ção que  confirma  o  étimo  caneus,  canea,  caneum,  adjectivo 
derivado  de  canis,  «cão»,  provavelmente  porque  tais  migas  se 
dariam  a  cães,  para  os  desmamar,  pois  vemos  no  mesmo  dicio- 
nário que  no  Douro  canhol  significa  cão  pequeno,  caneólum. 
O  vocábulo  trasmontano  canhona,  «ovelha»,  é  naturalmente 
ainda  um  derivado  do  mesmo  adjectivo  latino,  no  parecer  de 
J.  Leite  de  Vasconcelos,  talvez  por  ser  mais  fraca,  comparada 
ao  carneiro  ^. 


1  Azevedo  Coutinho,  A  campanha  do  Barué  em  1902,  Í7i  «  Jornal  das 
Colónias >,  de  19  de  agosto  de  1905. 

2  Eevista  Lusitana,  ii,  p.  116. 


224  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


canhongo 

Termo  da  Africa  Oriental  Portuguesa: — «Os  canhongos,  e  o 
feiticeiro  usam  rabo  cie  guerra  [q.  v.]y> — K 

canipa 

E  termo  de  Timor — « O  régulo  bom  é  como  a  canipa  doce » 
[Nota]:  «mistura  de  álcool  e  melaço» — ^. 

canja 

Este  termo  indiano,  que  em  todo  o  Portugal  se  difundiu  para 
designar  o  caldo  de  arroz,  principalmente  feito  com  galinha  e 
presunto,  mas  que  também  se  emprega  quando  outra  carne  se 
utiliza,  vem  no  Suplemento  ao  Novo  Diccionáeio  com  o  seu 
verdadeiro  étimo  apontado;  mas  esqueceu  notar  que  à  segunda 
acepção  que  ao  vocábulo  é  dada  no  corpo  do  dicionário — «em- 
barcação do  Nilo,  de  quilha  recurva» — não  cabe  a  indicação — 
«T[ermo]  as[iático] » — ,  pois  nada  tem  que  ver  com  a  palavra 
concani  kangi  procedente  do  tamul  Jcánxi,  «cousa  fervida,  co- 
zida em  água»,  só  aplicável  ao  caldo  indicado,  para  o  qual  os 
franceses  empregam  a  forma  cange,  tirada  do  português,  e  os 
ingleses  congee,  que  directamente  trousseram  da  índia. 

O  Padre  Coeurdoux  parece  ter  sido  quem  primeiro  divulgou 
em  França  o  termo,  que  definiu:  —  «du  Cauje  chaud,  c'est-à-dire 
de  Teau  dans  laquelle  on  ait  fait  cuire  le  riz» — ^. 


*  Azevedo  Coutinho,  A  campanha  do  Barué  em  1902,  in  <  Jornal 
das  Colónias»,  de  19  de  agosto  de  1905. 

2  J.  S.  Pereira  Jardim,  Notas  bthnographicas  sobre  os  povos 
DE  Timor,  in  Portugália,  i,  p.  356. 

•^  LeTTRES  ÉDIFIANTES  et  CURIBUSBS  ÉCRITBS  DBS  MISSIOXS 
ÉTRANGÈRBS  PAR  QUBLQUES  MIS8IONAIRBS  DE  LA  COMPAGNIB  DE  JÉSUS, 

t.  XXVI,  p.  185,  18  de  janeiro  de  1742. 


Ajiostilas  aos  Dicionários  Portugueses  225 


canoura 

Este  termo  não  está,  que  eu  saiba,  colijido  em  dicionário 
algum  da  língua.  Vejo-o  empregado  sem  mais  explicação  no  se- 
guinte trecho  de  um  jornal  de  Elvas,  transcrito  no  Economista 
de  3  de  outubro  de  1888: — «Esta  [azeitona]  saindo  da  canoura 
[da  máquina  de  tulhar]  cae  sobre  um  cylindro  liso» — .  Parece 
ser  um  « canudo » . 

cantadoura 

Além  dos  muitos  derivados  de  ca7ito  e  cantar  cumpre  re- 
jistar  mais  este,  que  vemos  empregado  no  seguinte  trecho  da 
monografia  de  Rocha  Peixoto,  As  olaeias  do  Peado:  *  —  «Por 
vezes  o  tradicional  carro  de  bois  exhibe-se  em  rara  particulariza- 
ção de  minudencias.  No  chadeiro  e  a  vincos  limitam-se  as 
chêdas  do  resto  do  leito  e  da  cabeçalha;  esta  obliqua  ^  na- 
turalmente até  encontrar  o  tamoeiro;  os  fueiros  ornam  as 
chêdas;  nos  logares  respectivos  indicam-se  as  cp^ntadouras; 
no  rodeiro  acentua-se  o  miul;  nas  cambas,  ás  vezes,  aparecem 
as  meias-luas»  — . 

Este  trecho  é  obscuríssimo  em  virtude  do  uso  de  termos 
técnicos,  populares  e  pouco  conhecidos,  insertos  em  um  discurso, 
no  qual  os  verbos  empregados  são,  pelo  contrário,  pertencentes 
à  linguajem  convencional  e  artificial,  como  exhibe-se,  obliqíoa, 
acentua-se,  limitam-se,  ornam,  aproveitados  em  acepções  que 
não  são  as  suas  naturais.  Espacejei  todos  os  termos  desusados, 
que  procurarei  explicar  com  aussílio  do  dicionário.  Principiando 
por  chadeiro,  se  consultarmos  o  Novo  Diccionáeio,  encontramos 
aí  uma  remissão  a  chedeiro;  visto  este,  achamo-lo  definido  como 


1  in  Portugália,  I,  p.  253. 

2  Sobre  esta  conjugação  errada  veja-se  Ortografia  Nacional,  Lis- 
boa, 1904,  p.  90  e  91. 

15 


22G  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 

—  «leito  do  carro  de  bois» — .  Chêda,  diz-nos  o  mesmo  dicioná- 
rio ser  — « cada  uma  das  pranchas  lateraes  do  leito  do  carro,  nas 
quaes  se  encaixam  os  fueiros» — ,  e  na  província  do  Minho — 
«plataforma  do  carro  de  lavoira» — .  Parece,  porém  que  chedas 
sejam  as  «pranchas»,  visto  que  cheãeiro  é  o  leito,  isto  é,  o  que 
o  mesmo  dicionário  chama  plataforma.  Cabeçalha  vemos  aí,  que 
é  o  temão  do  carro,  ou  a  parte  deanteira  desse  temão.  Tamoeiro, 
sempre  no  mesmo  dicionário,  é — «peça  central  do  carro  de  bois 
que  se  prolonga  até  á  canga  e  serve  de  tirante » — .  Cambas,  são 
■ — «peças  curvas  das  rodas  dos  carros» — . 

Buscando  miul  ou  miulo  no  mesmo  dicionário,  vemos  que  nos 
remete  para  meul,  onde  nos  diz  que  vem  a  ser — «o  mesmo  que 
meão  do  carro» — .  Procurado  este,  acha-se  como  deíinição: — 
«peça  central  da  roda  dos  carros,  na  qual  se  imbebe  o  eixo» — , 
explicação  que  o  autor  nos  poderia  dar  também  em  meul,  para 
nos  poupar  a  caminhada. 

Cantadouras  ninguém  nos  diz  o  que  seja.  Portanto  se  o 
leitor  ainda  não  entendeu  o  trecho  transcrito,  é  porque  é  tam 
bronco  como  eu  sou. 

Segundo  informação,  cantadeiras  são  a  parte  do  eixo  onde 
prendem  as  rodas:  devem  ser  as  cantadouras  do  trecho. 

Cumpre  advertir  que  a  descrição  é  aplicada  a  uma  imitação 
do  carro,  como  brinquedo,  feito  de  barro. 


cante 


Na  Nazaré  equivale  a  «canto»,  «cantiga»,  cf.  descante.  Em 
castelhano  é  usual  cante  por  canto. 


cantiga,  cántigo 

É  evidente  que  esta  palavra  não  provém  do  plural  cantica 
de  canticum  em  latim,  visto  que,  se  esse  fosse  o  seu  étimo,  a 
acentuação  seria  cantiga.  Deve  pois  ser  um  substantivo  verbal 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  227 


feraenino  de  *  cantígar  j  cantícare,  como  fabrico  o  é,  mascu- 
lino, de  fabricar,  não  obstante  a  palavra  fábrica. 

Em  Carregosa  usa-se  o  vocábulo  cântigo,  que  é  derivado  di- 
recto do  latim  cantícum  ^ 


canutilho 

Este  vocábulo  é  fusão  de  dois:  o  primeiro  português,  canudo, 
o  segando  castelhano,  canutillo  (pron.  canhutilho),  ou,  o  que 
será  talvez  mais  exacto,  é  o  castelhano  canutillo  que  sofreu  in- 
fluencia da  palavra  portuguesa  canudo. 

O  significado  é  o  mesmo  em  ambas  as  línguas:  «canudinhos 
de  vidro,  para  com  eles  se  formarem  vários  enfeites  e  guarnições 
em  vestidos». 

Advirta-se,  porém,  que  na  Bolívia  é  vulgar  a  forma  canio- 
tillo  ^,  dissimilação  de  canutillo  (n  apical  por  n  dorsal),  mais 
próssima  da  portuguesa,  do  que  a  literá4"ia  castelhana. 


capa,  capa-de-honras  ou  capa  de  Miranda;  capindó 

Vem  assim  descrita  no  Inqueeito  Industrial,  de  1881  ^: 
— « Fazem  também  umas  capas  de  burel,  notáveis  pelo  seu  feitio 
especial  e  pelos  muitos  ornatos,  sendo  estes  formados  por  capri- 
chosas applicações  do  mesmo  tecido,  capas  que  aparecem  geral- 
mente nas  grandes  festividades,  e  por  isso  são  denominadas  capas 
de  honras.  São  igualmente  conhecidas  por  capas  de  Miranda  •!> — . 

No  museu  da  Sociedade  de  Geografia  de  Lisboa  há  um  ma- 
nequim assim  vestido. 


1  J.  Leite  de  Vasconcelos,  Eevista  Lusitana,  iii,  p.  73. 

2  E.  J.  Cuervo,  Apuntaciones  críticas  sobre  el  lbnguaje  bo- 
GOTANO,  Bogotá,  1881,  p.  532. 

3  vol.  II,  3.«,  p.  67. 


228  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


Uma  forma  moderna,  a  que  a  palavra  co/^a  serviu  de  orijem, 
é  capindóf  que,  além  do  sentido  pejorativo  que  lhe  dá  o  Suple- 
mento ao  Novo  DiccioNÁEio,  é  também  o  nome  de  uma  capa 
de  grande  roda,  chegando  até  o  joelho,  a  qual  constitui  uma  parte 
do  uniforme  da  marinha  portuguesa. 

Capa  é  um  latim  cap(p)a,  que  produziu  numerosos  deriva- 
dos nas  diversas  línguas  românicas,  e  cuja  verdadeira  orijem  é 
problemática. 

capada 

—  «um  dia  que  me  roubéram  uma  capada  (rebanho)» — *. 
Kepresentou-se  aqui  a  linguajem  de  um  pastor  da  Beira-Baixa. 


capaz 

Conquanto  os  dicionários  dêem  «amplo»  como  significado 
primordial  deste  adjectivo,  é  ele  menos  usado  nessa  acepção 
actualmente  em  português,  do  que  o  é  em  castelhano. 

Exemplo  dessa  acepção  primordial  é  o  seguinte :  —  «41  thuy en- 
gia  (são  umas  embarcações  mais  capazes  que  as  suas  galés)» — ^. 


capelana  . 

Termo  da  África  Oriental  Portuguesa — «Panno  de  1  braça 
quadrada  que  lhes  serve  de  capa» — ^  [aos  pretos]. 


1  Joaquim  Manuel  Correia,  Antiguidades  do  concelho  do  Sabu- 
gal, in  <Archeologo  português >,  x,  p.  201. 

2  Batalhas  da  Companhia  de  Jesus,  de  António  Francisco  Cardim, 
Lisboa,  1894,  p.  217. 

3  Diocleciano  Fernández  das  Neves,  Itinerário  de  uma  viagem  á 
CAÇA  DOS  elephantes,  Lisboa,  1878. 


Apostilas  aos  J)icionários  Portugueses  229 


capitão 

Na  África  Oriental  Portuguesa  é  tomado  este  termo  em  si- 
gnificação muito  particular,  como  vemos  no  relatório  da  Cam- 
panha DO  Barué  em  1902:  —  «capitão  é  o  capataz  ou  feitor 
quando  indigena  » — . 

capitel,  chapitel,  chapitéu 

A  primeira  destas  palavras,  como  quási  todos  os  termos  de 
artes  nobres  em  português,  proveio  do  italiano,  onde  se  diz  ca- 
pitello,  do  latim  capitellum,  deminutivo  de  caput,  que  junta- 
mente com  outro  deminutivo  mais  usado  ainda,  capitulum,  se 
empregava  já  para  designar  «o  remate  superior  do  fuste  da  co- 
luna, ou  pilar».  Conforme  a  conhecida  lei  de  que  a  ca  latino 
corresponde  cha,  che  francês,  capitellum  deu  nesta  língua  a 
forma  chapiteau,  da  qual  resultou  chapitéu  em  português,  saindo 
de  outra  forma,  chapitel,  o  nosso  chapitel,  hoje  desusado,  mas  que 
lêraos,  por  exemplo,  na  Gr  a  zeta  de  Lisboa  Occidental,  de 
22  de  maio  de  1738:  — « ...  e  se  reconhecem  ainda  muytas  ba- 
ses e  chapiteis  de  colunas» — ^ 

Capitel  designa  uma  peça  de  tear,  como  vemos  na  publicação 
Portugália,  i,  páj.  374. 

capoeira 

Como  parte  do  moinho,  é  este  vocábulo  definido  do  modo 
seguinte :  — « [do  frechai]  parte  um  ripado  que,  indo  terminar 
em  ponta,  é  coberto  de  palha  de  centeio  e  algumas  veses  folhas 
de  lata;  chama-se  capoeira.  É  evidente  a  orijem  da  denomina- 
ção: semelhança  com  o  encmzamento  das  ripas  das  capoeiras  ^. 


1     in  «Archeologo  português»,  v.  p.  3. 
■^     MoixHOs,  in  Portugália,  i,  p.  386. 


230  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


capotim 

—  «Duas  braças  de  fazenda> — K  África  Oriental  Portu- 
guesa. 

caqui 

Este  neolojismo,  que  também  se  escreve  Jchaki  e  de  outros 
modos  não  menos  arrevesados,  é  o  nome  de  uma  fazenda  de  al- 
godão côr  de  barro,  que  actualmente  se  usa  muito  em  fardamen- 
tos das  tropas  que  vão  fazer  serviço  em  África. 

O  vocábulo  é  persa  na  orijem,  kák,  «barro»  que  passou  ao 
indostano,  onde  produziu  o  adjectivo  haki,  «barrento,  côr  de 
barro»  ^.  Eis  aqui  uma  abonação  do  vocábulo:  —  «É  alto,  traz 
trunfa  branca,  casaco  de  kaki  com  platina  e  pudvém  branco» — ^. 


carabelina,  cravina 

O  cravo  sinjelo,  a  que  vulgarmente  se  chama  cravina,  é  de- 
nominado carabelina  em  Trás-os-Montes.  Esta  forma  pressupõe 
outra,  cràbel,  correspondente  ao  castelhano  clavel,  mas  com  vo- 
gal anaptíctica  entre  o  c  e  o  r.-  cf.  as  formas  populares  carapin- 
teiro,  crapinteiro,  por  carpinteiro,  e  canivete,  do  alemão  antigo 
knif,  passando  talvez  pelo  catalão  ganivet,  onde  já  se  houvesse 
dado  a  anaptíctise  do  a,  e  que  parece  um  derainutivo,  cuja  si- 
gnificação actual  é  «faca». 

J.  Leite  de  Vasconcelos  deriva  crabelina  directamente  de 


1  Diocleciano  Fernández  das  Neves,  Itinerário  de  uma  viagem  á 
CAÇA  DOS  ELBPHANTES,  Lisboa,  1878,  p.  20. 

'  Yule  &  Burnell,  A  Glossary  of  Anglg-Indian  words,  Lonc^rcs, 
1886,  sub  V.  Khakee. 

3    O  Século,  de  1  de  abril  de  1902. 


Apostilas  aos  Dicionãynos  Portugueses  231 


cl  a  nus  ^  o  que  me  parece  provável  em  vista  da  existência  de 
análoga  forma  em  castelhano,  davelina,  indubitavelmente  deri- 
vada de  clavel. 

A  palavra  cravina,  no  uso  vulgar,  está  abonada  por  esta  for- 
mosa quadra  de  Acácio  de  Paiva:  — 

Juntou-se  a  cravina  ao  cravo 
Entre  as  mãos  d'uma  menina; 
Quem  me  dera  num  raminho 
Ser  eu  cravo,  e  tu  cravina  2. 


caramelo,  carambelo 

Em  castelhano  caramelo  é  o  nome  de  uma  guloseima,  a  que 
nós  chamamos  «rebuçado»,  entanto  que  azucarillo  corresponde 
ao  nosso  caramelo.  Neste  sentido,  como  no  de  «gelo»,  o  étimo 
parece  ser  calamellum,  deminutivo  de  calamura,  «colmo», 
com  dissimilação  do  primeiro  l  e  supressão  do  segundo  a  em 
português,  caTmellum,  carmelo,  caramelo  ^:  carambelo  está 
para  caramelo,  como  o  português  lombo  para  o  castelhano  lomo. 


carangueja;  caranguejo 

Esta  palavra  tem  uma  acepção  que  ainda  não  foi  inserta  nos 
dicionários  e  se  vê  no  trecho  seguinte: — «Por  este  meio  a 
locomotiva  que  vem  rebocar  um  comboio  até  á  gare  segue  sobre 
a  carangueia,  espécie  de  ponte  movediça,  e  entra  na  via  que  se 
pretende» — *. 

Carangttejo  é  na  provincia  do  Minho  «abrunho  grande». 


1  Revista  Lusitana,  ii,  p.  105. 

2  O  Século,  de  12  de  junho  de  1905. 

3  Revista  Lusitana,  ii,  p.  105. 

•*  O  Economista,  de  15  de  abril  de  1890. 


232  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


(em)  carapuça;  (em)  pelote 

São  vulgares  estas  expressões,  significando  a  primeira  « com 
a  cabeça  descuberta»  e  a  segunda  «nu»,  como  também  se  diz, 
«em  pêlo». 

A  segunda  ainda  se  poderia  explicar  pelo  seguinte  modo: 
pelote  é  apenas  um  aumentativo  faceto  da  palavra  ])êlo,  referida 
já  também  por  gracejo  à  pele. 

Não  me  parece  que  seja  assim. 

Nos  Subsídios  para  um  diccionáeio  completo  da  língua 
poETuauÊsA,  preciosos  pelo  grande  mimero  de  citações,  está  in- 
cluído o  vocábulo  pelote,  com  referencia  a  pelico,  onde  se  lê  o 
seguinte: — «Darem  a  cada  huum  dos  ditos  pobres  para  vestyr 
pelotes  e  ssayas  em  cada  huum  ano,  e  de  dous  em  dous  anos 
pelicos  e  cerames  á  estanferee  (Figanière,  Meni.  das  R.  de  P., 
p.  292)»—. 

Vê-se  daqui  que  pelotes  não  eram  pelicos,  e  que  estes  por 
sua  natureza  deviam  ter  maior  duração,  o  dobro  da  dos  outros, 
e  tanta  como  os  cerames,  comparados  com  as  saias,  que  dura- 
riam menos  que  estes  últimos. 

Conforme  o  Elucidário  de  Viterbo  pelote  era  capa  forrada  de 
peles,  — « á  diíferença  da  que  não  era  forrada »  — . 

A  descrição  minuciosíssima,  porém,  dos  pelotes  que  pertence- 
ram à  guarda-roupa  de  El-rei  Dom  Manuel  ^  por  nenhum  modo 
confirma  esta  definição:  poucos  pelotes  são  forrados  de  peles, 
entre  as  dezenas  e  dezenas  deles,  escrupulosamente  descritos,  nú- 
mero quási  infindo  de  vestiduras  ricas  de  aparato,  que  contrasta 
singularmente  com  a  escassez  de  roupa  branca,  quási  toda  em 
mau  uso,  relacionada  no  mesmo  interessantíssimo  inventário,  e 
que  me  trousse  á  memória,  quando  pacientemente  o  li,  um  rol 
de  roupa  qui  vi  escrito  na  parede  caiada  de  uma  hospedaria  na 
cidade  da  Guarda,  no  qual  se  enumeravam  doze  colarinhos,  seis 


Archivo  Histórico  Portuguesz,  vol.  ii,  p.  399  e  ss. 


Ajtostilas  aos  Dicionários  Portugueses  233 


pares  de  punhos,  seis  camisas,  quatro  gravatas,  e  um  só  par  de 
peúgas.  A  par  deste  rol,  por  outra  letra,  lia-se  o  seguinte  co- 
mentário:— Por  fora  cordas  de  viola;  por  dentro,  puh! — ,  muito 
aplicável  à  vestimenta  do  aparatoso  rei. 

Prossigamos.  Nos  muitos  pelotes  de  El-rei,  forrados  de  lãs, 
de  sedas,  de  cetim,  etc,  borlados  de  ouro,  debruados  de  veludo, 
raros  se  encontram  com  peles,  e  estas  de  somenos  valor,  e  so- 
mente como  guarnição,  por  exemplo :  — « Item  outro  pelote  de 
cetim  avehitado  preto  de  fralda  e  mea  debruado  de  cetim  preto 
com  prefis  de  gatos  com  as  mangas  e  quartos  forrado(s)  de 
fustam  pardo  e  a  fralda  de  pano  encarnado  e  de  baixo  do  forro 
fustam  das  mamgas  e  corpinho  esta  (está)  outro  forro  de  da- 
masco emcarnado  o  quall  forro  das  mamgas  não  chega  a  baixo 
por  quamto  servyram  nelle  bocaes  de  martas» — . 

Devia  de  ser  muito  bonito.  O  que  mais  me  surpreendeu  à 
primeira  leitura,  na  minha  qualidade  de  tam  amigo  de  gatos 
como  Madame  Michelet,  foi  a  devoção,  a  graça  de  enfeitar  com 
focinhos  do  meu  animal  predilecto  a  tal  garrida  vestimenta,  o 
que  um  pouco  me  congraçou  com  a  penúria  de  roupas  brancas 
do  monarca.  Como,  porém,  ^os  pelotes  com  caras  de  gatos,  de 
perfil,  como  que  a  disfarçar  o  serem  todos  cegos  de  um  olho, 
fossem  nada  menos  de  cinco,  todos  a  seguir,  estranhei  tanto  gato 
junto;  e  como  em  outro  item  se  leia — «Outro  pelote  de  cetim 
preto  com  prefis  de  gato  e  o  corpinho  e  mamgas  forradas  de 
fustam  pardo  e  a  frallda  de  pano  encarnado» — ,  concluí  que  este 
gato  e  aqueles  gatos  eram  as  peles  deles,  e  que  os  prefis 
eram  as  frentes,  as  bandas,  como  hoje  se  diz,  ou  as  ourelas  das 
tais  vestimentas.  Pobres  gatos,  que  deram  pêlo  e  peles  para 
tantos  enfeites!  Santa  Kosa  de  Viterbo  no  Elucidário  refere-se 
a  (manto)  gatum,  e  acrescenta: — «talvez  forrado  de  pelles  de 
gato» — .  Cordeiros,  por  peles  de  cordeiro,  foi  também  usado. 

Concluí  ainda  outra  cousa  importante,  e  é  que  o  pelote  nunca 
foi  capa,  forrada  ou  por  forrar,  visto  que  tinha  corpo,  mangas  e 
saia;  mas  sim  uma  espécie  de  sobrecasaca  moderna,  sobre  a  qual 
se  podia  vestir,  para  abafo  ou  por  luxo,  uma  roupa,  ou  roupão, 
ou  pôr  uma  capa:  e  assim  se  explica  o  gastarem-se  num  ano  os 


234  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


pelotes,  e  só  em  dois  os  pelicos,  os  quais  seíiam  então  as 
vestiduras  de  cima,  que  por  menos  trazidas  duravam  mais. 

Enganou-se  portanto  o  bom  Viterbo,  e  para  nos  convencer- 
mos disso  nem  mesmo  era  necessária  tal  conclusão,  visto  que 
aquela  peça,  que  no  rico  tesouro  da  igreja  de  Nossa  Senhora  da 
Oliveira,  de  Guimarães  se  arrecada  e  se  amostra  como  sendo  o 
pelote  de  Dom  João  i,  nem  de  perto  nem  de  lonje  se  pode  consi- 
derar capa  ou  capote. 

Assim,  ir  em  pelote  quis  dizer  o  mesmo  que  hoje  ir, em 
corpo  bem  feito,  sem  segundo  casaco,  ou  qualquer  outra  vesti- 
menta de  agasalho,  e  daí  ir  nu. 

Passemos  à  expressão  em  carapuça,  que  se  interpreta  por 
modo  análogo. 

Este  vocábulo  é  assim  definido  por  Bluteau  ^:  —  «Espécie  de 
capacete  de  pano,  com  aba  estreita  por  deante»  — .  Pode  ver-se 
em  qualquer  retrato  de  Luís  xi  de  França,  e  foi  moda  que  du- 
rou bastante  tempo.  Por  cima  dela  punha-se  o  chapéu;  e  assim 
quem  tirava  o  chapéu  ficava  em  carapuça:  e  como  quando  se 
deixou  de  usar  carapuça  quem  tira  o  chapéu  fica  em  cabelo,  ou 
em  careca,  conforme  a  sua  fortuna,  em  carapuça  passou  a  signi- 
ficar em  cabelo,  ou,  com  a  calva  à  mostra. 

No  uso  actual  a  palavra  carapuça  e  o  seu  derivado  mascu- 
lino carapuço  significam,  com  lijeira  mudança  ou  modificação 
de  sentido,  «qualquer  cobertura  mole,  para  a  cabeça,  com  forma 
já  a  ela  acomodada,  sem  abas  ou  pala,  e  que  serve  para  a  tapar». 

Com  relação  à  orijem  e  formação,  é  o  vocábulo  em  última 
análise  afim  do  castelhano  antigo  caperuça,  moderno  caperuza, 
(com  o  ceceio  da  consoante  da  última  sílaba),  tendo-se  dado  na 
palavra  portuguesa  metátese  das  duas  sílabas  mediais;  e  deve 
de  ser  um  derivado  terciário  de  capa,  visto  que  em  castelhano 
antigo  temos  caparaçôn,  de  que  derivou  o  francês  caparaçon,  e 
em  latim  bárbaro  existe  documentada  a  forma  caparo.  Cf.  ainda 
o  francês  carapasse,  «casca  de  crustáceo»,  no  qual  se  deu  igual 


1    Vocabulário  portuguez  b  latino. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  235 


metátese  -rapa-  em  vez  de  -para-,  comparado  com  o  castelhano 
capar  azón. 

Fernám  Méndez  Pinto  na  Peregrinação  empregou,  pelo 
menos  duas  vezes,  a  palavra  carapução: — «dez  ou  doze  Jani- 
çaros  de  carapuções  verdes» — *;  — «vestidos  de  húa  cachejTa 
muyto  felpuda,  com  seus  carapuções  do  mesmo  nas  cabeças» — -. 


carcas 

Este  vocábulo  tinha  dantes  um  sentido  diverso  do  que  se  lhe 
dá  actualmente,  pois  significava — «bomba  composta  de  duas 
ou  três  granadas,  com  metralha,  tudo  envolto  em  estopas  ba- 
nhadas em  betumes  e  outras  matérias  oleosas,  e  por  fora  um 
pano  breado,  a  qual  se  mette  n'uma  lanterna,  na  qual  vái  lume 
aceso» — 3^ 

Hoje  em  dia  emprega-se  na  literatura  como  sinónimo  de 
aljava,  mas  o  povo  não  conhece  o  termo.  Em  francês  é  carquois 
(^^carciiá),  e  no  texto  italiano  do  Livro  de  Marco  Paulo  Yéneto 
tarcasci,  termo  que  Henrique  Yule  explica  do  modo  seguinte: 
—  «E  transcrição  do  persiano  tarJcaxi,  e  o  c  inicial  da  palavra 
francesa  procede  talvez  da  constante  confusão  do  c  com  o  í  em 
manuscritos» — *. 

A  forma  persiana,  conforme  Marcelo  Devic  ^,  é  terTcex,  vo- 
cábulo composto  que  quere  dizer  «estojo  para  frechas»  e  que 
passou  para  árabe  com  a  forma  TaRKAX,  da  qual  provêem  as 
europeias. 


*  cap.  X. 

*  cap.  cxxiv. 

3    António  de  Morais  e  Silva,  Diccionario  da  língua  portugueza, 
Lisboa,  1823. 

*  The  Book  of  Ser  Marco  Polo  the  Venetiax,  newly  translated 
and  edited  with  notes  and  other  illustrations,  Londres,  lS7õ,  i,  p.  358. 

5      DiCTiONNAIRE   BTYMOLOGIQUB  DBS  MOTS  d'ORIGINB  ORIENTALE, 

Paris,  1876,  sub  v.  Carquois. 


23  íJ  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 

Quanto  ao  seu  sinónimo  aljava,  arábico  é  também,  AL-oaoBS, 
que  tem  a  mesma  significação  ^ 

cardanbo,  cardenho 

Termo  de  jíria,  « furto » : — « Quando  [a  ladra  Giraldinha]  fazia 
um  cardanho,  tratava  de  fugir  de  Lisboa» — ^. 

Parece  um  derivado  artificial  do  verbo  cardar.  A  escrita  é 
duvidosa,  visto  que  na  capitai  -anho  e  -enho  teem  a  mesma  pro- 
nunciação;  todavia,  no  Kiba-Tejo  pronuncia-se  cardâtiho. 

careca 

E,  no  seu  sentido  natural,  um  termo  burlesco  para  designar 
a  « calva » ,  e  um  « calvo » . 

Além  do  emprego  figurado,  já  inscrito  no  Novo  Diccionâeio, 
de  —  «moço  de  praça  de  toiros,  encarregado  de  abrir  a  gaiola 
aos  toiros  que  vão  ser  lidados  na  arena» — ,  tem  outro  sentido 
esta  palavra,  conforme  se  vê  no  Século,  de  29  de  março  de  1902: 
—  1- careca  é,  no  norte,  aquelle  que  deita  fogo  ás  peças  de  arti- 
ficio»— . 

Tanto  uma  como  a  outra  acepção  é  natural  que  provenham 
de  indivíduos  calvos,  que  em  algum  tempo  exerceram  um  desses 
mesteres.  A  mesma  orijem  temos  de  atribuir  a  palavras  como 
carrasco,  por  exemplo,  que  de  apelido  passou  a  designar  o 
«algoz»,  por  ter  havido  um  com  esse  nome,  derivado,  como 
muitos  outros,  de  nome  de  terra,  a  qual  o  recebeu  de  árvore  que 
nessa  terra  era  acidente  notável. 

Quanto  à  etimolojia  de  careca,  direi  só  que  tem  aspecto  ca- 
frial  o  vocábulo  (cf.  carcunda,  q.  v.)  ^,  mas  não  é  quimbundo, 
visto  não  haver  nesta  língua  r  senão  antes  de  i. 


*    Eguílaz  y  Yanguas,  GIíOsario  dej  las  palabras  bspanolas  db 
ORIGEN  ORIENTAL,  Granada,  1886. 

2  O  Século,  de  1  de  dezembro  de  1901. 

3  y.  em  calombo,  c  carrasco. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  237 


caril 


Esta  palavra,  que  significa  um  adubo  muito  condimentado, 
usado  na  índia  e  no  sul  da  Ásia,  é  o  canarim  A-ar/7,  « molho  »^ 
correspondente  ao  támul  kari,  de  que  os  inglezes  derivaram  o 
seu  currie  *  (pron.  cari): — «E  deste  coquo  pisado,  e  tirado 
o  leite . . .  cozem  arroz  com  elle,  e  he  como  arroz  de  leite 
de  cabras.  Fazem  comeres  das  aves  e  carnes  (a  que  chamam 
caril)  ^  —  -. 

A  orijem  desta  palavra  parece  ser  o  concani  hori,  a  que  se 
daria  um  plural  caris,  do  qual  se  deduzisse  ao  depois  o  singu- 
lar caril:  cf.  funil,  plural  funis,  e  canclil,  (q.  v.). 

Este  condimento  é  muito  usado  em  toda  a  índia,  e  moderna- 
mente mesmo  na  Europa.  A  sua  composição,  conforme  o  livro  de 
José  Maria  de  Sá,  Pboductos  industriaes  do  Coqueieo  3,  é  a 
seguinte : 

—  «  Coentro 20  gramas 

Kaizes  frescas  de  gengibre     ....  15       > 

Semente  de  dormideira 5       » 

Pimenta  redonda 4       > 

Açafrão 4       » 

Canela 1        > 

Semente  de  caminho 1       > 

Alhos 2  dentes 

Cravo  da  índia 8  sementes 

Cardamomo 5         > 

Pimenta  longa á  vontade 

Limão uma  metade 


1  Bumell  &  Yule,  A  Glossary  of  Anglo-Indiax  words  and  phra- 
8ES,  Londres,  1886. 

2  Garcia  da  Orta,  Colóquios  dos  simples  e  das  drogas  da  Íxdia, 
Lisboa,  1891,  p.  238. 

3  Nova-Goa,  1893,  p.  72. 


233  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 

Forma-se  uma  massa  de  todos  estes  ingredientes,  moendo-os 
primeiro  separadas,  e  depois  juntamente,  e  ajunta-se  o  leite  d'uma 
metade  de  coco.  Estas  quantidades  bastam  para  preparar  o  caril 
d'uma  ave  ou  d'uma  libra  de  carne  > — . 

carinhosa 

Em  Vila-Real-de-Santo- António  designa  este  adjectivo,  subs- 
tantivado, um  «capuz  de  senhora». 

carioca 

O  Novo  DiccioNÁRio  dá  duas  acepções  a  este  vocábulo  bra- 
sileiro:—  «pessoa  preta  ou  mulata;  pessoa  do  Rio-de- Janeiro » — . 
Na  segunda  acertou;  na  primeira  creio  que  não,  e  ainda  menos 
na  etimolojia  que  lhe  atribui.  —  «N[ome]  p[róprio]  de  uma  ri- 
beira » — . 

Conforme  o  Vizconde  de  Porto-Seguro  ^  o  epíteto  carioca, 
de  cari  «branco»  e  oca,  «casa» — casa  do  branco — foi  pelos  in- 
díjeuas  tupis  aplicado  a  uma  ribeira  do  Rio-de- Janeiro,  perto  da 
qual  se  estabeleceram  os  primeiros  colonos  portugueses,  e  ao 
depois,  por  ampliação  a  todos  os  naturais  do  Rio-de-Janeiro,  de- 
nominação por  eles  aceita  e  que  passou  ao  Continente,  servindo 
em  tempos  para  os  designar,  não  só  a  eles,  mas  a  todos  os  indi- 
víduos nascidos  no  Brasil. 

Conforme  o  referido  autor,  a  palavra  cari  era  empregada 
pelos  tupis  meridionais  para  se  intitularem  a  si  próprios,  e  até 
aos  europeus,  com  quem  conviviam  em  boa  paz. 

Vê-se,  portanto,  que  a  acepção  «preto»  ou  «mulato»  não 
pode  estar  compreendida  no  vocábulo  carioca,  a  não  ser  por  vi- 
tupério. 


1      L'0RIGINE    TOURANIENXE    DE8    AmÉRICAINS.    TUPIS-CARIBES    ET 

DES  ANCIEN'8  Égyptiens,  Viena,  1876,  p.  2. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  239 


Na  minha  infância  era  facultativo  de  nossa  casa  um  brasi- 
leiro, natuial  do  Kio-de- Janeiro,  por  nome  Caldas,  a  quem  toda 
a  gente  chamava  O  Carioca.  Era  branco,  muito  alto,  bom  mé- 
dico, e  por  sinal  hábil  marceneiro.  É  a  idea  que  dele  conservo. 


carlagã 
Fazenda  da  Índia  ^ 

carmoso 

Termo  de  jíria  em  Lisboa:  um  tostão:  —  «Dê-me  agora  só 
um  carmoso. . .  não  sabe  o  que  é?. . .  cinco  chetas» — -  [vinténs]. 

carneiro,  ou  carreiro,  carreirote  ^ 
Na  Ilha  da  Madeira,  ceiia  ave  (Anthus  trivialis). 

carocha  (=carócha),  carocho  (=  carocho) 

Carocha  é  nome  vulgar  de  um  coleóptero  peutámero,  cara- 
bus,  e,  conforme  o  Dic(!Ionakio  Contemporâneo,  o  seu  corres- 
pondente masculino  designa  uma  espécie  mais  pequena,  e  também 
um  peixe,  que  recebeu  naturalmente  este  nome  por  ser  negrão: 
cf.  carapau  negrão. 


1  Diocleciano  Fernández  das  Neves,  Itinerário  de  uma  tiaGem  á 
CAÇA  DOS  ELEPHAXTES,  Lisboa,  1878,  p.  94. 

2  O  Dia,  de  25  de  setembro  de  1902. 

3  Ernesto  Schmitz,  DiE  Võgel  Madeiras,  in  *  Omithologisches  Jahr- 
buch>,  X,  1899,  i-iu. 


240  Ajwstilas  aos  Dicionários  Portugxieses 


Como  adjectivo,  carocho,  femenino  carocha  quere  dizer  «es- 
curo, preto»,  e  deste  adjectivo  provém  que  ao  gato  preto  se  dá  em 
geral  o  nome  de  carocho,  nome  que,  naturalmente  pela  mesma 
razão,  se  aplica  em  Caminha  a  um  barco  pequeno  de  pesca,  o 
qual,  como  tive  ocasião  de  ver,  é  pintado  de  preto. 

Carocha  se  chamava  a  mitra  que  se  punha  na  cabeça  aos 
penitentes,  condenados  pela  Inquisição,  quando  iam  para  o  patí- 
bulo. Essa  mitra  era  de  papelão,  e  nela  se  pintavam  figuras  de 
diabos  monstruosos,  requinte  de  perversidade,  inventado  para 
desviar  a  compaixão  que  poderiam  inspirar  aqueles  infelizes, 
despertando  um  sentimento  contrário  de  horror  e  asco  em  quem 
os  visse.  A  esta  mitra  alude  Gril  Vicente  no  Velho  da  Hoeta: 

—  Com  cent'  açoutes  no  lombo, 
E  ua  carocha  por  capela  — . 

É  singular  a  analojia  que  se  dá  entre  carocha  e  o  adjectivo 
caro,  comparados  estes  dois  vocábulos  com  barato  e  barata, 
insecto,  o  qual  provém  de  blatta,  latino. 


carola,  carolo 

A  palavra  carola  tem  três  acepções,  uma  das  quais  indepen- 
dente, e  que  portanto  deve  ser  considerada  como  vocábulo  dis- 
tinto. 

Temos  pois:  Carola  (1):  «dança  de  roda>. 

E  o  francês  carole,  o  inglês  carol,  o  italiano  carola,  que  é,  ou 
vocábulo  próprio  das  línguas  célticas,  como  pretende  Skeat  *;  ou 
o  latim  choreola,  como  outros  pretendem. 

Carola  (2):  do  latim  corolla,   deminutivo  de  corona,  a 


*      A   CONCISE   ETYMOLOGICAIi  DiCTIONARY  OP  THE  EnGLISH  LAN- 

OUAGE,  Ocsónia,  1887. 


Apostilas  aos  IHcionários  Portugueses  241 


coroa,  que  os  padres  abrem  no  cabelo,  no  alto  da  cabeça,  o 
cerquilho.  Por  extensão:  «o  indivíduo  que  tem  coroa  aberta», 
o  padre;  o  irmão  que,  de  cabeça  descuberta,  acompanha  as  pro- 
cissões, com  capa  e  tocha;  a  cabeça  descuberta;  o  indivíduo  que 
se  compraz  em  íigurar  em  festividades  relijiosas;  o  devoto;  o 
entusiasta  por  qualquer  causa,  e  que  se  presta,  por  vaidade,  por 
interesse,  ou  por  dedicação,  a  tomar  parte  activa  em  qualquer 
sociedade,  grémio,  partido,  facção,  etc. » . 

Carola  (3),  como  nome  próprio,  é  abreviatura  de  Carolina. 

De  carola,  cabeça  descuberta,  derivou-se  um  masculino  cor- 
respondente, carolo,  com  o  tónico  fechado,  como  é  de  regra,  que 
quere  dizer :  « pancada  na  cabeça » . 

O  substantivo  carolo,  «maçaroca  esbagoada,  pão  de  farinha 
grossa,  papas  de  farinha  grossa  de  milho,  etc»,  é  decerto  outro 
vocábulo. 

Carolo,  além  das  acepções  contidas  nos  dicionários  tem  mais, 
pelo  menos  em  Lisboa,  a  de  uma  massa  grossa,  de  farinha  de 
trigo  e  água,  de  que  usam  os  çapateiros,  ou  usavam  ainda  até 
há  pouco  tempo. 

carpinteiro 

Como  termo  teatral,  significa  «o  indivíduo  que  arma  o  cená- 
rio no  palco». 

carranca 

Este  vocábulo  português  tam  expressivo,  e  cujos  matizes  de 
significação  estão  perfeitamente  compendiados  no  Vocabulário 
POETUGUEZ  E  LATINO  do  iusigne  Eafael  Bluteau,  é  considerado 
por  todos  os  nossos  lecsicógrafos  como  uma  modificação  de  cara, 
sem  nos  declararem  os  processos  de  derivação  que  o  produziram, 
e  por  que  motivo  o  r  se  profere  e  escreve  dobrado,  sendo  certo 
que  nas  línguas  das  Espanhas  jamais  se  confundiram  rr  e  r. 

Não  aventarei  étimo  algum,  mas  apenas  chamarei  a  atenção 
para  o  vocábulo  sanscrítico  xaEaAiKa,  o  qual,  segundo  Monnier 

16 


242  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 

Williams  S  significa  «crânio,  cabeça»  (the  skull,  the  head),  e 
além  disso,  note-se,  uma  casca  de  coco,  vazia,  e  preparada  para 
servir  de  copo,  ou  vasilha  (a  cocoa-nut  hoUowed  to  form  a  cup  or 
vessel). 

Em  outra  inscrição  do  mesmo  dicionário,  em  TãMBULa, 
«bétele»,  vemos  a  seguinte  explicação:  —  t^  Tâmhúla-lcararfka, 
the  Fãn-dcln  or  hetel-box  (this  box  generally  resembling  a 
karan*ka  or  hollowed  cocoa-nut)» — *. 

Esta  singular  coincidência,  e  já  vou  explicar  em  que  ela  con- 
siste, autorizaria  talvez  a  suposição  de  que  o  vocábulo  tivesse 
vindo  da  índia,  não  digo  directamente  do  sánscrito,  mas  de 
qualquer  das  línguas  vernáculas  de  lá,  principalmente  se  a  pa- 
lavra não  existe  em  outro  dos  vários  idiomas  da  Península 
Hispânica  com  este  significado,  nem  em  nenhuma  outra  do  do- 
mínio românico. 

A  coincidência  está  no  seguinte  facto: 

Carranca  quere  dizer  « cara  feia » ,  e  coco,  como  ê  sabido, 
significava  em  português,  e  hoje  ainda  em  castelhano,  o  que 
actualmente  chamamos  jmpão,  isto  ê,  uma  figura  de  catadura 
ruim,  com  que  se  mete  medo  às  crianças.  Os  portugueses,  ao 
verem  pela  primeira  vez  o  fruto  do  coqueiro,  compararam-no  a 
uma  dessas  caras  de  arremeter,  e  aplicaram-lhe  o  nome  com  que 
desde  então  ê  conhecido  em  toda  a  Europa. 

E  esta  a  orijem  que  lhe  dão  João  de  Barros,  Garcia  da  Orta; 
e  o  Roteiro  da  Viagem  de  Vasco  da  Gama,  sem  primeiro  o 
nomear,  descrê ve-o  do  seguinte  modo: — «As  palmeiras  dam  uma 
fruta .  . .  como  mellõees,  e  o  miollo ...  he  o  que  comem  e  sabe 
como  junca  avellanada» — ^.  Mais  adeante,  porém,  já  o  designa 
pelo  seu  nome:  —  «e  o  mantimento  era  coquos» — *. 

Eis  aqui  o  final  do  interessante  passo  de  João  de  Barros,  no 


1  A  Saxskrit-English  Dictionary,  Ocsónia,  1872. 

2  ih.,  p.  369,  col.  III. 

3  Lisboa,  1861,  p.  28. 

4  ib.  p.  94. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugtieses  243 


qual  descreve  longamente  o  coco  e  o  coqueiro.  — « Esta  casca  per 
onde  aquelle  pomo  recebe  o  nutrimento  vegetavel,  que  é  pelo  pé, 
tem  uma  maneira  aguda,  que  quer  semelhar  o  nariz  posto  entre 
dous  olhos  redondos,  por  onde  elle  lança  os  grelos,  quando  quer 
nascer:  por  razão  da  qual  figura,  sem  ser  figura,  os  nossos  lhe 
chamaram  coco,  nome  imposto  pelas  mulheres  a  qualquer  cousa, 
com  que  querem  fazer  medo  ás  crianças;  o  qual  nome  assi  lhe 
ficou,  que  ninguém  lhe  sabe  outro,  sendo  o  seu  próprio,  como  lhe 
os  Malabares  chamam,  Tenger,  e  os  Canaris  Narle»  —  ^ 

Garcia  da  Orta  -  diz: — «e  nós,  os  Portugueses,  por  ter 
aquelles  três  buracos,  lhe  pusemos  o  nome  coquo;  porque  parece 
rosto  de  bugio  ou  de  outro  animal»  — . 

Ora,  significando  karaaiJca  «cabeça»  e  «noz  de  coco»,  re- 
presentando a  boceta  do  bétele  era  geral  uma  cabeça  ou  crânio, 
l-ara^nka,  e  tendo  os  nossos  denominado  coco  a  fe^iga  ou  narle 
da  índia,  por  semelhar  uma  cara  feia,  é  possível  que  o  vocábulo 
larcunka  passasse  para  cá  com  a  significação  de  cara  disforme, 
como  aquela  que  as  bocetas  do  bétele  semelhavam,  e  que  os 
nossos  julgaram  ver  no  fruto. 

Kepito  que  isto  é  apenas  uma  conjectura,  cuja  probabilidade 
é  muito  precária,  e  desaparecerá  se  o  vocábulo  carranca  fôr 
mais  antigo  na  língua  que  as  nossas  relações  com  a  índia;  para 
que  não  suceda  o  que  aconteceu  à  palavra  varanda,  que  se 
supôs  indiana,  quando  ela  já  existia  em  português  e  em  cas- 
telhano, antes  de  aparecer  nas  narrações  dos  nossos  descubrimen- 
tos  do  século  xv  e  xvi. 

Devo  ainda  advertir  que,  se  carranca  não  existe  em  caste- 
lhano, nem  com  as  significações  portuguesas  nem  com  outras, 
encontra-se  em  galego,  querendo  dizer,  conforme  o  dicionário 
de  Cuveiro  Pinol  3, —  «carrancas — patizambo,  contrahecho,  de 


1  Da  Ásia,  Década  iii,  1.  iii,  cap.  7,  Lisboa,  1777. 

2  Colóquios  dos  Simples  e  das  drogas  da  Índia,  i,  p.  234, 
Lisboa,  1891. 

3  Diccioxario  gallego,  Barcelona,  1876. 


244  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 

piernas  especialmente » ;  e  — « carrancudo  —  (ant.)  tieso,  espeta- 
do»— . 

O  vocábulo  coco  designa  nos  Açores  « inhame  >  *. 

carrapiço 

Em  Trás-os -Montes  significa  «pedaço  de  velo  difícil  de  car- 
mear  (desembaraçar)». 

No  Novo  DicciONÁRio  é  este  vocábulo  dado  como  provin- 
cial, com  o  sentido  de  —  «espécie  de  pequenino  ouriço,  que  en- 
cerra as  sementes  de  certas  ervas  e  que  se  agarra  facilmente  ao 
fato  da  gente  e  á  lan  do  gado  lanígero» — . 

carrapito,  carrapiteiro 

Conforme  informação  da  minha  criada  Maria  do  Kosário,  na- 
tural da  Chamusca,  designa  este  nome,  no  Riba-Tejo,  a  roseira 
brava. 

A  significação  primordial  de  carrapito  é  « chifre » . 

carrasco,  carrasca,  carrascão 

Carrasco  é  um  termo  de  botânica  vulgar,  a  que  cientifica- 
mente corresponde  quercus  cocei  fera,  e  deste  vocábulo,  cujo 
étimo  é  desconhecido,  mas  ao  qual  corresponde  em  castelhano 
carrasca,  se  derivam  os  substantivos  carrasqueiro,  carrascal, 
« sítio  em  que  existem  carrascos » ,  carrasca,  « lenha » ,  « casca  de 
pinheiro»,  e  «espécie  de  oliveira»,  e  os  adjectivos  carrasquenho, 
carrascão  (vinho),  etc. 

Com  o  primitivo  carrasco,  ou  seus  derivados,  se  denomina- 


Rbvista  Lusitana,  ii,  p.  47. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  245 


ram  muitos  lugares  em  Portugal:  Carrasca,  Carrascal,  Carras- 
cais, Carrascalinho,  Carrascas,  Carrascosa,  Carrasqueira,  Car- 
rasqueiro,  Carrasco;  e  é  sabido  que  nomes  de  plantas  contri- 
buem consideravelmente  para  a  toponímia  em  todos  os  idiomas, 
e  nomeadamente  nas  línguas  românicas.  Frequente  é  também 
que  esses  nomes  de  localidades  passem  a  apelidos  de  família,  e 
deste  modo  é  muito  usual  o  de  Carrasco.  Deste  apelido,  con- 
forme Bluteau,  proveio  a  acepção  que,  como  substantivo  comum, 
tem  este  vocábulo  em  português: — «Desde  o  tempo  de  Belchior 
Nunes  Carrasco,  que  na  cidade  de  Lisboa  era  Algoz,  chamou  o 
vulgo  aos  Algozes  Carrascos-» — ^ 

Algoz  dizem  os  arabistas  ser  o  nome  de  uma  tribo  turca, 
cruelíssima,  cujos  indivíduos  eram  empregados  pelos  mouros 
nos  mesteres  de  carniceiros  e  de  verdugos.  Esta  última  pala- 
vra é  também  um  enigma. 

Kõrting  2  diz-nos  ser  um  latim  vulgar  viriducum,  deri- 
vado de  viridem,  «verde».  Designava  verdugo  uma  «vara 
verde  >  (cf.  verdasca),  que  servia  de  açoute,  e  de  instrumento 
de  tortura  passou  o  nome  a  designar  o  homem  incumbido  de  a 
aplicar. 

Deve  ter-se  em  atenção  que,  havendo  tantos  nomes  de  luga- 
res formados  em  Espanha  com  o  substantivo  carrasco  e  seus 
derivados,  e  sendo  o  apelido  Carrasco  lá  vulgar,  a  começar  no 
bacharel  Sansão  Carrasco,  amigo  de  Dom  Quixote,  não  tem  em 
castelhano  o  vocábulo  carrasco  a  acepção  de  «algoz»,  o  que 
confirma  o  étimo  proposto  por  Bluteau. 

Digna  de  reparo  é  também  a  coincidência  de  o  algoz  de 
Luís  XVI  de  França  se  chamar  Sansão,  e  ser  carrasco;  entanto 
que  o  Sansão  Carrasco  do  Dom  Quixote  era  excelente  criatura. 
O  espanhol  era  Sansão  Carrasco,  o  francês  era  Sansão  e  foi 
carrasco  de  veras. 


Vocabulário  portuguez  e  latino. 
Lateinisch-rgmaxisches  Wõrterbuch,  Paderborn,  1890,  8758. 


246  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


carregar,  carrego,  carga,  cargo,  descarregar 

Do  verbo  carregar  derivou-se  um  substantivo  verbal  rizotó- 
nico,  que  deveria  ser  carrega,  mas  que,  na  realidade,  é  carga. 
Análogo  a  este  há,  em  português,  folgar,  folga,  a  par  de  fôlego, 
que  melhor  se  escreverá  folgo,  para  evitar  uma  excepção  que,  se- 
gundo a  pronúncia  comum,  seria  só  ortográfica.  Em  castelhano 
o  verbo  correspondente  a  carregar  é  cargar,  em  que  se  deu  a 
elisão  da  vogal  medial,  como  aconteceu  em  português  com  fol- 
gar j  follicare,  como  carregar  \  carricare. 

Acepção  especial  de  carregar  é  esta  que  vemos  na  publicação 
Portugália  ^:  —  «A  fiandeira  põe  a  roca  á  cinta,  depois  de 
carregada» — ,  isto  é,  «depois  de  lhe  ter  posto  o  linho,  que  vai 
fiar » . 

Cargo  é  derivado  masculino  de  car(re)gar,  em  qualquer  acep- 
ção em  que  seja  tomado,  incluindo  a  de  certa  fogaça,  ou  arma- 
ção piramidal  enfeitada  de  bolos,  flores  e  frutas,  que  se  vende 
em  leilão  nos  arraiais,  ou  festas  populares  a  algum  santo. 

O  verbo  descarregar  tem  várias  acepções  que  se  relacionam 
com  carga. 

Antigamente  tinha  ainda  outra,  em  relação  com  encargo, 
cargo,  ou  carrego,  como  se  dizia:— « Deste  cometimento  do  In- 
fante ficou  El-rei  descarregado  e  mui  ledo» — ^,  isto  é,  «exone- 
rado, aliviado  » . 

carreirão 

O  suficso  -ão  é  em  português,  como  em  espanhol  o  seu  cor- 
respondente -ón,  com  u  sem  inficso,  z,  c  (hoynemzarrão),  au- 
mentativo, e  conseguintemente  vocábulos  como  cordão  oferecem 
todas  as  probabilidades  de  ser  de  orijem  francesa,  onde,  ao  con- 


1  I,  p.  372. 

2  Eui  de  Pina,  Crónica  db  El-rei  Dom  Afonso  v,  cap.  lxxxix. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  247 

trário,  o  suficso  -on  é  demiuutivo,  oison  = « petit  de  Toie » ;  con- 
quanto em  algumas  dições  tomadas  a  esta  língua,  o  suficso 
português  -ão,  que  se  deu  como  correspondente  ao  -oji  francês, 
readquirisse  em  português,  por  analojia,  o  seu  valor  próprio,  do 
que  é  exemplo  salão,  derivado  de  salon,  sendo  que  em  português 
é  aumentativo  de  sala,  e  em  francês  orijináriamente  um  demiuu- 
tivo de  salte. 

A  regra,  porém,  não  é  geral,  visto  que  em  Trás-os-Montes 
carreirão  é  deminutivo  de  carreiro,  no  sentido  de  «caminho 
para  carros»,  e  no  Algarve  agúidão,  é  deminutivo  de  agúida, 
agádia  (q.  v.). 

.  Que  a  palavra  carreirão  é  deminutivo,  e  não  aumentativo, 
como  poderia  conjecturar-se,  prova-o  a  menção  expressa  que  vou 
citar:  —  «A  subida  do  rio  até  ao  cabeço  que  conduz  á  chã  ou 
praina,  faz-se  por  atalhos  ou  carreirões  de  grande  acclive.  . .  » — , 
e  em  nota: — « deminutivo  de  « carreiro »,  caminho  de  carros » — K 


carrejar,  carrejo 

São  formas  duplas  com  carrear,  carreio.  Todavia,  carrejo 
tem  um  significado  muito  especial  como  termo  da  Estremadura» 
correspondente  ao  castelhano  aearreo:  é  o  que  os  ingleses  desig- 
nam com  a  palavra  ãrift  j  ãraw,  « arrastar,  puxar »  isto  é,  são 
as  várias  substâncias  que  as  águas  correntes  trazem  em  suspen- 
são até  que  as  depositam,  e  o  depósito  que  consiste  nessas 
substâncias  assim  carrejadas.  É  termo  muito  expressivo,  usado 
no  Ribatejo,  e  com  vantajem  da  vernaculidade,  da  nomenclatura 
científica  poderia  ser  adoptado  em  geolojia. 


1     Manuel  Ferreira  Deusdado,  O  recolhimexto  da  Mófreita,  in 
«Eevista  de  educação  e  ensino»,  1891. 


248  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


carretilho 

Na  Beira-Baixa  dá-se  este  nome  ao  «carrinlio  de  mão>  S 
que  os  franceses  chamam  brouette,  termo  de  que  o  beirão  é  tra- 
dução excelente,  que  merece  ser  generalizada.  É  um  evidente 
deminutivo  duplo  de  carro  j  carrete  |  carretilho. 


carriço,  carriça;  encarriçado 

No  Suplemento  ao  Novo  Diccionáeio  vemos  a  primeira 
destas  formas,  como  termo  da  Bairrada,  com  o  mesmo  signifi- 
cado de  carrapiço  (q.  v.). 

No  corpo  do  dicionário,  porém,  fora  essa  forma  masculina  de- 
finida como — «planta  cji^erice^L  (currex  ambígua) » — .  A  forma 
femenina  é  aí  dada  apenas  como  designando  certa  ave,  da  qual 
uma  espécie  se  denomina  carricinha. 

Nos  meus  apontamentos  tenho  ambas  as  formas,  em  significa- 
ções análogas,  mas  não  em  absoluto  idênticas,  como  pertencen- 
tes ao  vocabulário  transmontano  (Rio-Frio):  carriça,  «monte  de 
herva,  tufo  de  cabelo»;  carriço,  «indivíduo  de  cabelo  crespo». 

Ao  adjectivo  participial  encarriçado  dá  o  dito  Suplemento 
como  significado  o  seguinte: — «(prov.  beir.).  Diz-se  da  gallinha 
toda  occupada  em  chocar  os  ovos.  (Talvez  por  encarniçado,  se 
não  vem  de  acarrado)»  — . 

E  evidente  que  procede  de  carriço,  e  que  a  aplicação  do 
epíteto  à  galinha  que  está  no  choco  provém  de  ela  ali  estar  en- 
tufada, com  as  penas  arripiadas.  Vê-se  pois  que  carriça  e  qs 
seus  derivados  se  não  limitam  a  tam  pequena  parte  do  reino, 
como  a  respeito  de  qualquer  destes  vocábulos  se  depreende  do 
que  em  separado  se  diz  deles:  são  mais  gerais. 

No  capítulo  que,  com  o  título  Kaças  k  tipos  humanos,  es- 


Informação  do  editor,  natural  de  Almeida. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  249 

crevi  para  os  «Elementos  de  Geographia  Geral»  de  Manuel 
Ferreira  Deusdado,  usei  do  adjectivo  encarriçaão  para  descrever 
o  aspecto  do  cabelo  dos  papuas: — «cabelo  negro,  encarriçado  e 
emmaçarocado » —  ^ 

carrinha 

O  Novo  DiccioNÁRio  dá  este  vocábulo  como  alentejano, 
dizendo-nos  que  é — «pequena  carroça» — .  Todavia,  no  jornal 
O  Século,  de  14  de  agosto  de  1903,  lê-se  o  seguinte  trecho, 
que  amplia  o  nome  a  veículo  algarvio: — «outros  dirigiram-se  a 
Portimão  no  transporte  característico  da  região  [Lagos],  as  de- 
nominadas carrinhas » — . 


cartapaço,  cartapácio,  cartapele 

A  palavra  cartapácio  está  rejistada  em  todos  os  dicionários 
com  os  dois  significados  principais,  de  «caderno  de  apontamen- 
tos», e  de  «livro  volumoso  e  de  pouco  préstimo». 

Conforme  F.  Adolfo  Coelho  ^,  é  um  latim  da  decadência 
charta  pacis,  e  é  termo  escolar. 

Uma  forma  um  tanto  mais  portuguesa,  cartapaço,  porém, 
tem  em  Trás-os-Montes  acepção  muito  diferente,  como  se  vê  do 
seguinte  passo: — «cartonagem  de  molduras  para  estampas  de 
santos,  para  cartapaços  de  rocas  e  camandulas» — ^.  E  pois  um 
cartucho  de  papel,  que  se  põe  na  roca  de  fiar. 

Outro  nome  do  mesmo  amparo  é  cartajyele,  usado  na  Beira, 
como  vemos  no  Novo  Diccionário. 


1  Lisboa,  1891,  p.  219. 

2  Diccionário  manual  ktymologico. 

5    Manuel  Ferreira  Deusdado,  O  recolhimento  da  Mófreita,  in 
;  Revista  de  educação  e  ensino,  1891. 


250  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 

cartazeiro 
O  indivíduo  incumbido  de  pregar  os  cartazes  nas  paredes  *. 

caruma 

Este  vocábulo  é  dado  no  Novo  Diccionário  com  a  signifi- 
cação de — «folha  de  pinheiro» — ,  isto  é,  a  agulha  ou  agulheta. 

No  Suplemento  acrescenta-se — «(prov.  beir.)  a  pellícula  que 
reveste  as  castanhas  ainda  verdes  e  tenras» — .  O  Dicoionábio 
Manual  etymoloo-ico  declara  ser  termo  provincial  e  significar 
— « resina  de  pinheiro » — .  Creio  que  a  primeira  acepção  é 
muito  concreta,  e,  com  relação  à  ultima,  tenho-a  por  inexacta. 

Na  Soberania  do  Povo,  jornal  de  Águeda,  de  21  de  se- 
tembro de  1882,  lia-se:  —  «ao  pé  do  lar  estava  uma  porção  de 
caruma  e  lenha,  que  se  incendiaram  ao  calor  do  fogo  próximo» — . 
Por  este  trecho  é  caruma  um  colectivo,  que  poderá  talvez  de- 
signar «rama  de  pinbo»,  e  não,  «uma  folha  de  pinheiro». 

carunho 

No  Novo  DiccioNÁEio  vem  esta  voz  como  transmontana,  com 
a  significação  de  caroço;  nos  meus  apontamentos  tenho-a  como 
minhota,  com  o  mesmo  significado. 

casa,  e  seus  derivados 

Este  substantivo,  que  em  português  unicamente,  mas  não  em 
todo  o  reino,  significa  qualquer  dos  repartimentos  internos  de 


O  Economista,  de  13  de  novembro  de  1887. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  251 


uma  habitação,  além  de  expressar  o  edifício  todo,  como  em  cas- 
telhano ou  italiano,  sofre  inúmeras  particularizações  de  sentido, 
quer  só,  quer  acompanhado  de  epítetos,  expressos  por  adjecti- 
vos, por  aposição  de  substantivos,  ou  por  complementos  circuns- 
tanciais. Eis  aqui  algumas  dessas  locuções,  ainda  não  rejistadas. 

Casa-tôrre:  —  «Logo  em  seguida  deparam-se-nos  as  casas- 
-tõrres  (linguagem  do  Minho)  > — ^ 

V.  castelo. 

Casa-palhoça :  —  «Ha  as  coberturas  de  palha  centeia  nas  cha- 
madas casas-palhoças  (Amarante,  Marco,  etc.)» — *. 

Casa-ãe-entrada: — «A  casa  de  entrada  só  tem  de  notável 
as  cantareiras  de  loiça,  estanho,  arame  e  cobre  que  orna- 
mentam as  paredes  de  alto  a  baixo,  em  flammantes  estanhei- 
ras  e  sanefas  de  pinho,  tintas  de  azul  e  encarnado» — ^. 

Há  para  apontar  aqui,  além  do  colectivo  loiça,  excluindo  a 
de  metais,  o  termo  estanheira. 

Casinha,  termo  alentejano: — «O  nome  «casinha»  couside- 
ramol-o  impróprio.  Na  maioria  dos  montes  o  alojo  está  longe  de 
ser  um  pequeno  cubículo,  é  pelo  contrario  uma  casa  ampla,  que 
acommoda  á  vontade  vinte  e  trinta  homens» — *. 

Casinhola:  —  «O  galinheiro  é  provido  de  poleiros  suflficientes 
para  repouso  dos  bicos  [q.  v.J,  e  de  casinholas  ou  cestos  para 
postura  dos  ovos »  —  ^. 

Casinholo: — «Em  alguns  montes  o  galinheiro  serve  também 
de  pombal,  para  o  que  tem  nas  paredes  os  casinholos  indispensá- 
veis para  a  creação  dos  pombos» — ^. 

Caseiro,  além  de  significar  quem  tomou  casal  de  renda,  ou 
o  cultiva  por  conta  do  dono,  tem,  conforme  as  rejiões,  mais  dois 
significados,  entre  si  opostos:  «^  «o  senhorio»,  como  em  caste- 
lhano casero :  —  «O  caseiro . . .  lançou  o  padre  fora  das  casas  em 


'     J.  Leite  de  Vasconcelos,  Portugal  prbhistorico,  p.  19. 
■^    Os  Palheiros  do  littoral,  w  Portugália,  i,  p.  83. 
3    ib.  Ethnographia  do  Alto  Albmtejo,  p.  537 
*  5  6    ii^  p,  541  e  545, 


252  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


que  morava. .  .  o  mesmo  fizeram  mais  os  três  caseiros,  para  cujas 
casas  o  padre  se  mudava» — ^ 

Nesta  acepção  parece  ser  obsoleto. 

b)  «o  inquilino » :  —  «Os  caseiros . .  .  foram  pagar  as  impor- 
tâncias dos  seus  alugueres  em  notas  de  5)5(000  réis.  O  senho- 
rio. .  .  recebeu  as  notas» — 2. 

Casa  designa  em  português,  singularmente,  «a  abertura  em 
que  entra  o  botão»,  que  em  castelhano  se  denomina  ojal,  em  fran- 
cês willet,  que  correspondem  ao  nosso  vocábulo  ilhó(s),  no  qual 
o  i  átono  está  por  o  por  influência  da  palatal  Ih:  ilhó  por  olho, 
de  olho,  com  um  suficso  ó(l)a. 

De  easa  nesta  acepção  se  derivaram  casear  e  caseadeira, 
que  significa  « a  mulher  que  abre  as  casas  no  fato  e  as  guarnece 
ou  remata». 

O  que  é  menos  conhecido  é  o  verbo  casear,  com  a  significa- 
ção de  «fazer  moradas  de  casas»,  como  o  vemos  empregado  no 
passo  seguinte: — «impoz  este  tributo  ao  vinho,  para  casear  Villa 
Nova»  —  '^. 

casaca,  casaco 

Casaca,  de  que  se  formou,  além  de  outros  derivados,  um 
masculino  com  a  significação  de  qualquer  peça  de  vestuário  que 
se  põe  por  cima  do  colete  ou  de  outro  casaco,  veio  para  Por- 
tugal provavelmente  de  França,  onde  casaque  queria  dizer  um 
«sobretudo».  Para  o  francês,  em  oposição  ao  que  afirma  Littré  *, 
escudando-se  com  Diez,  veio  casaque,  presumivelmente  designan- 
do primeiro  «farda»,  do  roupão  usado  pelos  cossacos,  que  em 
russo  se  denominam  kozaki,  pronunciado  hazàki. 


1  Batalhas  da  Companhia  de  Jesus,  Lisboa,  1894,  p.  241. 

2  O  Século,  de  1  de  outubro  de  1901. 

3  E.  Freire  de  Oliveira,  Elementos  para  a  historia  do  município 
DE  Lisboa,  i,  p.  178. 

^      DiCTIONNAIRE  DE  LA  LANGUE  FRANÇAISB,  Paris,  1881. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  253 


No  termo  de  Lisboa,  entre  çaloios,  um  casaca  quere  dizer 
«o  indivíduo  de  Lisboa,  da  cidade,  que  não  usa  jaleca»,  natural- 
mente porque,  quando  tal  apodo  foi  introduzido  na  linguajem 
deles,  a  casaca  era  trajo  obrigado  da  gente  fina,  a  toda  a  hora 
do  dia,  isto  é,  a  casaca,  o  frac  francês  e  castelhano,  com  as  abas 
somente  na  parte  posterior  e  compridas,  porque,  se  eram  curtas, 
essa  peça  de  vestuário  denominava-se  niza. 

Quando  eu  era  rapazote,  as  pessoas  de  certa  representação, 
ou  que  pretendiam  tê-la,  trajavam  sempre  casaca  quando  esta- 
vam de  luto,  e  ainda  há  pouco  tempo  deixou  esse  trajo  de  ser  o 
próprio  dos  funerais  e  outras  solenidades  diurnas. 

Exemplo  de  casaca  como  « indivíduo  da  cidade »  é  o  seguinte : 
—  «um  ou  outro  saloio  que  não  se  intimida  com  o  casaca» — *. 

Como  se  vê,  a  citação  é  moderna;  mas  o  termo  tende  a  obli- 
terar-se,  em  razão  de  maior  convivência  entre  a  gente  de  Lisboa 
e  a  dos  subúrbios,  e  porque  a  diferença  radical  no  trajar  se  vai 
abolindo  pouco  a  pouco  numa  promiscuidade  quási  absoluta:  o 
povo  acrescentou  as  abas  às  jaquetas,  convertendo -as  em  casacos, 
paletós,  e  as  pessoas  de  distinção  cercearam-nas,  de  forma  que 
acrescentando-as  uns  e  encolhendo-as  os  outros,  resultou  ficarem 
do  mesmo  comprimento.  Nada  mais  igualitário  do  que  as  modas, 
e  ainda  bem! 

casqueira 

—  <É  toda  feita  [a  ratoeira  de  raposa]  de  madeira  de  pinho, 
geralmente  casqueiras  ou  taboas  velhas,  afim  de  incutir  menos 
desconfiança» — ^. 

Há  um  provérbio  que  diz:  «Ou  dá  tábua  ou  casqueira». 

O  sentido  do  provérbio  é:  «todo  o  indivíduo  tem  uma  ser- 


1  O  Século,  de  18  de  junho  de  190L 

2  José  Pinho,  Ethnographia  Amarantina,  A  caça,  in  Portugá- 
lia, II,  p.  90. 


254  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


ventia  qualquer»,  como  a  árvore,  com  relação  à  madeira,  boa  ou 
mim,  que  se  aproveita  dela. 

cassungo 

Esta  palavra,  propriamente,  significa  um  povo  da  Guiné: — 
«Os  principaes  povos  espalhados  pelos  sertões,  margens  dos  rios 
6  costas,  ou  littoral  na  Guiné  são:  «os  fulos,  os  jalofos,  man- 
dingas, felupes,  churos,  banhames,  burames  ou  papeis,  bijagoz, 
cassungos,  beafares,  nalins,  balantas,  lapes  e  sacalages » —  ^' 
Felizmente  quem  escreveu  isto,  ortografoii  tudo  à  portuguesa, 
era  contrário  da  pretenciosa  moda  actual. 

Deste  nome  étnico  se  derivou  sem  dúvida  o  de  uma  espécie 
de  contaria,  naturalmente  bem  aceita  por  tal  povo  na  permuta, 
termo  já  rejistado  no  Suplemento  do  Novo  Dicc,  abonado  com 
Capelo  e  Ivens,  mas  que  em  vista  de  um  anúncio  publicado  no 
Economista,  de  4  de  novembro  de  1882,  vou  explicar  também: 
— « contaria,  que  se  vende  aos  massos ;  é  de  varias  cores,  tais 
como  branco,  preto,  encarnado,  azul-celeste » — . 

castelhano 

Quere  dizer  propriamente  de  Castela,  em  espanhol  castellano, 
de  Castilla,  antes  Castiella. 

Castelhanismo  é  também  esta  forma  em  português,  pois  antes 
se  dizia  castelão: 

— Aqui  jaz  Simora  Antom, 
Que  matou  muito  castelão, 
E  debaixo  do  seu  covom 
Desafia  a  quantos  são  —  *. 


1  O  Século,  de  23  de  abril  de  1902. 

2  D.  Eafael  de  Bluteau,  Vocabulário  portuguez  b  latino,  siib 
V.  Covam. 


Apostilas  aos  Dicioruirios  Portugueses  255 


No  Algarve  é  o  nome  de  uma  casta  boa  de  figo: — «O  mais 
aristocrático  é  o  «Beriacote. . .  e  o  Castelhano  > — ^ 


castelo;  castelário,  Casteleiro 

Aqui  vão  mais  duas  acepções  especialíssimas  desta  pala- 
vra, devidamente  abonadas. —  «A  mesma  aparência  de  casaes 
térreos,  castellos,  ou  torres  (assim  se  chamavam  as  casas  de  so- 
brado) >  —  -. 

—  «Castellos  se  denominavam  uns  mastros  de  maçaneta  doi- 
rada com  muitos  enfeites  de  fitas  e  galhardetes» — ^. 

Castelo  é  também  uma  peça  de  moinho:  v.  segurelha. 

O  derivado  alatinado  castelário  \  castellum,  deminutivo  de 
castrum,  a  que  em  português  corresponde  Casteleiro,  é  usado 
por  Alberto  Sampaio  na  monografia  As  «  villas  ■»  do  noete  de 
Poetugal: — «os  nossos  castellos  também  não  foram  instrumento 
de  oppressão  ou  rapina,  [como  os  de  outros  países  em  que  mais 
predominou  o  feudalismo]  porque  serviam  de  defesa  de  terras 
nas  mãos  dos  castellarios  ou  castelleiros,  delegados  do  rei» — *. 

castro,  castrelo,  castrejo,  crasto,  cristelo,  crasta,  crasteiro 

O  Novo  Dicc.  dá-nos  os  dois  primeiros  vocábulos,  e  define 
o  primeiro  como  — « castello  de  origem  romana »  — :  cumpre 
acrescentar  « ou  pre-romana » .  Castrejo,  com  o  femenino  castreja, 
apenas  o  incluiu  com  a  significação  de — «natural  de  Castro- 
-Laboreiro»  — .  Todavia,  tanto  castreja  com  o  castrejo,  e  assim 
também  crasto  e  cristelo,  são  igualmente  substantivos,  com  sig- 
nificados análogos,  e  todos  eles  muito  frequentes  na  toponímia 


1  O  Jornal  da  Manhã,  de  4  de  novembro  de  1885. 

2  Portugália,  I,  p.  178. 

3  António  de  Campos,  Luís  de  Camões,  u  parte,  cap.  xiv. 
•*  in  Portugália,  i,  p.  580. 


256  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


do  norte  de  Portugal,  onde  por  toda  a  parte  os  castros  coroam 
as  eminências,  como  é  sabido.  O  último  citado,  como  nome  de 
localidade,  costuma  escrever-se  erroneamente  christello,  como  se 
absurdamente  tivesse  alguma  cousa  que  ver  com  Christo;  outro 
tanto  aconteceu  a  sachristão  e  sachristia,  que  provêem  do  latim 
sacrum,  e  não  de  Christo,  e,  portanto,  em  qualquer  ortografia, 
devem  escrever-se  sem  o  h,  sacristão,  sacristia. 

Crasto  é  pois  o  mesmo  que  castro,  de  que  é  metátese: — «em 
Portugal  os  monumentos  arcbaicos,  luso-romanos  ou  pre-romanos, 
são  conhecidos  por  diversos  nomes:  —  castêllo,  castéllo,  crasto 
(do  latim  castrum)» — ^ 

Crasta  significava  claustro,  e  é  natural  que  seja  o  plural 
latino  claustra,  de  claustrum,  de  claudere,  «encerrar».  As 
formas  intermédias  podem  reconstituir-se :  claustra  j  clastra 
(cf.  agosto  de  Au  gu  st  um)  }  crastra,  crasta,  por  dissimilação 
(cf.  C7^avo  j  clauum,  e  rosto  \  rostrum). 

E  vocábulo  independente,  portanto,  de  crasto  ^. 

Crasteiro  é  adjectivo  derivado  de  crasta,  e  foi  usado  mo- 
dernamente, conquanto  provavelmente  colhido  em  documentos 
antigos: — «esse  que  fora  prior  crasteiro  de  Santa-Cruz»  ^. 

O  vocábulo  vem  no  Dictionnaibe  poetugais-fbançais  de 
J.  Inácio  Roquete,  com  remissão  a  Clausteal  *. 


catana,  catanar 

O  último  dicionário  português  publicado.  Novo  Diccionáeio 
DA  LÍNGUA  PORTUGUESA,  dc  Cáudido  dc  Figuciredo,  define  da 
seguinte  maneira  o  vocábulo   Catana:  —  «alfange  asiático;  pe- 


1  Leite  de  Vasconcelos,  Portugal  prehistorick),  p.  C2. 

2  Veja-se  A.  A.  Cortesão,  Subsídios  para  um  diccionario  com- 
pleto DA  LÍNGUA  PORTUGUESA,  Coimbra,  1900. 

3  António  de  Campos,  Luís  de  Camões,  in  «O  Século,  de  26  de 
julho  de  1900. 

*    Paris,  1855. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  257 


qiiena  espada  curva;  espada  com  bainha  de  madeira,  em  uso 
entre  os  timôres»  — ,  e  dá-lhe,  em  dúvida,  orijem  japonesa. 
No  Suplemento  ao  mesmo  dicionário  [2.''  vol.,  p,  775,  col.  ii] 
atribui-se-lhe  orijem  italiana  presumível,  cattana,  femenino  de 
cattano,  contraído  de  capitano,  coutracçtlío  que  designaria  «es- 
pada de  capitão».  Efectivamente,  Petròcchi  ^  aduz  como  desusado 
o  vocábulo  cattano;  todavia,  apresenta-nos  também  catana,  que 
deíine — «sorta  di  scimitara  o  di  pugnale  giapponese»  — . 

Bluteau,  no  Vocabulaeio  poetuguez  e  latixo,  diz-nos:  — 
«Catana,  catana.  He  palavra  do  Japão.  Viã.  Alfange.  Terçado. 
(Todo  o  primor  vay  em  alimpar  a  Catana  com  o  rosto  sereno 
&  alegre:  Lucena,  Vida  de  S.  Franc.  Xav.  foi.  473,  col.  2)» — . 

Cumpre  notar  que  em  Lucena,  lugar  citado  [Liv.  vii,  cap.  2.°], 
se  acentua  catana;  como,  porém,  duas  linhas  mais  abaixo  vem 
um  erro  tipográfico,  « tatisfeitos »  por  « satisfeitos » ,  e  em  toda  a 
interessantíssima  obra  mais  algumas  incoerências  de  acentuação, 
seria  mester  compulsar  pacientemente  essa  edição  [Lisboa,  1600], 
para  se  averiguar  se  o  dito  vocábulo  é  mais  vezes  citado,  com 
esta  ou  outra  acentuação.  Não  o  faço  agora  porque  me  falta 
ocasião  e  tempo,  e  por  ser  provável  que  o  próprio  Bluteau,  es- 
crupulosíssimo como  se  uos  revela  em  todo  o  seu  famoso  Voca- 
bulário,- não  assentasse  na  acentuação  que  indica,  sem  para  isso 
ter  motivos  ponderosos,  tanto  mais  que  é  ela  a  certa. 

A  acentuação  catana  é  corroborada  pela  segunda  citação  abo- 
natória,  tirada  do  poema  Malaca  Conquistada,  de  Francisco 
de  Sá  e  Meneses,  que  transcreverei,  com  os  dois  versos  que  a 
antecedem  no  poema: 

[Com  pouca  ocasião  que  procurarão 
Descobrirão  seu  fim  sanguinolento] 
E  nos  derão  do  mal  já  tardo  aviso 
Mil  crizes,  mil  catanas  d'improviso. 

Canto  iii,  est.  49. 


*      Novo   DlZIONÀRIO   UNIVERSALB   DELL.A  LIxNiGUA  ITALIANA,  MilãO, 

1887,  t.  I. 

17 


258  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 

Há  ainda  terceira  citação,  de  Francisco  Rodríguez  Lobo, 
CôETE  NA  Aldeia.  Como  porém  é  em  prosa,  fora  inútil  para 
o  caso  reproduzi-la  aqui. 

Morais  [Diccionaeio  da  língua  pobtugueza,  3."  edição, 
Lisboa,  1823]  transcreve  esta  última  citação. 

O  Ge  ANDE  DiccioNAEio  PoETUGUEz,  chamado  de  Domingos 
Vieira,  reproduz,  com  cento  e  sessenta  anos  de  intervalo,  as  cita- 
ções de  Bluteau,  modificando,  todavia,  a  definição  do  vocábulo: 
aí  Catana  é — «alfanje  asiático»  — .  O  mesmo  fizeram  outros 
dicionaristas  anteriores  e  posteriores  aos  editores  do  Geande 
DiccioNAEio,  omitindo  as  citações  e  transcrevendo  essa  defini- 
ção mais  lata  de  «alfanje  asiático»,  a  qual  provavelmente  foi 
sujerida  pelas  duas  últimas  citações,  que  se  não  referem  ao  Japão. 

Seria  de  interesse  compulsar  toda  a  literatura  portuguesa  do 
tempo  de  Lucena  e  imediatamente  anterior  ou  posterior,  em  cata 
deste  curioso  termo,  que  de  tam  longe  nos  veio;  por  agora  con- 
tentar-me  hei  com  esta,  que  aproveitei  sem  maior  trabalho. 

No  vocábulo  Alfanje,  para  onde  Bluteau  nos  remete,  nada 
se  acrescenta  à  definição  que  a  elucide;  antes  ficou  prejudicada, 
levando  talvez  essa  remissão  os  lecsicógrafos  posteriores  a  darem 
os  dois  vocábulos  como  sinónimos,  pois  nos  dizem  que  ambos 
designam  «espadas  curvas  asiáticas».  Roquete,  quer  no  Nouveau 
DiCTioNNAiEE  poETUGAis-FEANÇAis  [Paris,  18ÕÕ],  oude  se  limita 
a  traduzir  catana  por  cautelas,  quer  no  Diccionaeio  poetugltez 
[Paris,  1867],  em  que  a  define  como  terçado,  suprimiu  a  espe- 
cificação de  japonês,  dada  e  autenticada  por  Bluteau,  o  que 
outros  também  fizeram;  e  no  Diccionaeio  de  synonymos  omitiu 
catana,  quando  dá  a  sinonímia  de  espada,  discriminando,  com 
maior  ou  menor  artifício,  os  termos  espada,  gládio,  terçado,  du- 
rindana,  alfanje,  cimitarra. 

F.  Ad.  Coelho,  no  seu  Diccionaeio  manual  etymologigo 
da  língua  poetugueza  (Lisboa,  sem  data)  aceitou,  sem  reparos, 
a  etimolojia  apontada  por  Bluteau,  definindo  também  o  vocábulo 
como  significando —  « alfanje  asiático » — . 

Não  tenho  ao  meu  alcance  agora  todas  as  muitas  edições  de 
todos  os  dicionários  portugueses,  para  averiguar  se  outros  seme- 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  259 

lliantemente  nos  dizem  ser  a  catana  «um  alfanje  asiático >,  sem 
limitação  de  povo  ou  povos  da  Ásia  que  o  usassem,  mesmo  con- 
cordando, ou  não,  em  que  o  vocábulo  seja  japonês. 

F.  Diez  '  não  dá  o  vocábulo,  nem  em  italiano,  nem  em  por- 
tuguês. Kõrtiug  ^,  em  o  n.°  1628,  dá-nos  o  italiano  catana  como 
presumivelmente  modificado  de  um  étimo  hipotético,  captana, 
com  a  significação  de — «casacca  dei  cacciatori» — ,  ao  que  o 
Xôvo  Dicc.  em  certo  modo  alude,  quando  diz  no  Suplemento: 
—  «designando  veste  de  capitão,  e,  entre  nós,  a  espada  de  capi- 
tão >  — . 

O  Novo  Dicc.  às  definições  anteriormente  dadas,  a  que  nos 
referimos,  acrescenta  que  o  termo  é  também  aplicável  ás  espa- 
das dos  timores.  E  possível  que  assim  seja;  é  lícito,  porém,  hesi- 
tar em  admitir  essa  atribuição  do  nome,  não  só  porque  Hão  está 
abonada,  mas  também  porque  «espada»  na  língua  dos  timores 
se  diz  sàric,  conforme  o  Dicctoxaeio  poktuguez-tétum  de 
Sebastião  Maria  Apparício  da  Silva  [Macau,  1889];  e  principal- 
mente por  ignorarmos  o  fundamento  com  que  Sá  e  Meneses  deu 
este  nome  às  espadas  malaias. 

Que  o  vocábulo  é  japonês,  como  afirmara  Bluteau  e  acei- 
taram Morais,  Ad.  Coelho  e  Cánd.  de  Figueiredo,  não  há  dúvida, 
pois  nessa  língua  katana  significa  realmente  não  só  «espada», 
mas  também  «faca»;  posto  que  este  último  objecto  seja  mais 
especialmente  designado  por  um  substantivo  composto  de  ho, 
«criança»,  e  Tcatana,  isto  é,  ko-gatana,  com  o  abrandamento  da 
inicial  do  segundo  componente,  que  é  de  regra,  e  por  uma  ca- 
tacrese  injéuua,  como  a  que  em  malaio  se  emprega  para  designar 
a  chave  com  o  epíteto  de  «filho  da  fechadura»  (ának  húnchi), 
e  o  degrau  como  «filho  da  escada»  (ának  tactiga).  Que  o  vocá- 
bulo katana  denomina  na  actualidade  não  somente  a  espada 
levemente   curva  japonesa,   mas   até   a   espada   usual    de   mu- 


1  Etymologisches  Wõrterbuch  der  romaxischen  Sprachen, 
Bonn,  1869-1870,  3.*  edição. 

2  Lateinisch-romaxisches  Wõrterbuch,  Paderborn,  1871. 


2G0  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 

nição,  europeia,  vemo-lo  no  vocabulário  apenso  à  gramática  ja- 
ponesa de  Seidel  ^  muito  recente,  conjuntamente  com  ken,  turigi, 
ivakisassi  (sic:  =uàkizáci). 

O  que  ocorre  preguntar  é  se  o  vocábulo  catana  veio  para 
português  directamente  do  japonês,  ou  por  intermédio  do  italiano. 
Tenho  como  certo  que  a  primeira  solução  é  a  única  aceitável, 
não  só  pela  definição  de  Bluteau  e  primeira  citação  com  que  a 
abonou,  mas  também  atentando  nas  estreitas  relações  que  os 
portugueses  tiveram  com  o  Japão  nos  séculos  xvi  e  xvii. 

É  igualmente  ponderosa  em  favor  desta  solução  a  circunstân- 
cia seguinte:  A  tradução  italiana,  quási  contemporânea,  da  obra 
de  Lucena,  feita  pelo  P.  Luís  Mansoni,  como  Lucena  da  Com- 
panhia de  Jesus  [Roma,  mdcxiii],  traduz  no  indicado  passo 
catana  por  scimitarra,  o  que  testemunha  não  ter  sido  ainda 
admitido  em  italiano  o  referido  vocábulo  japonês,  que  natural- 
mente passaria  de  Portugal  ao  depois  para  lá,  por  meio  da  li- 
teratura. 

Devemos,  sem  embargo,  confessar  que  Fernám  Méudez  Pinto  ^ 
chama  sempre  treçado  (sic)  á  espada  dos  japões,  e  já  vimos 
que  Bluteau  lhe  dá  igualmente  esta  sinonímia. 

Seja  como  fôr,  o  vocábulo  por  tal  modo  se  naturalizou  cá,  e 
disso  já  se  queixava  Francisco  Rodríguez  Lobo  no  passo  que 
constitui  a  terceira  citação  de  Bluteau,  que  deu  o  substantivo 
derivado  catanaãa,  como  «golpe  dessa,  ou  de  outra  espada»,  e 
em  sentido  figurado,  hoje  o  único  vulgar,  como  equivalendo  a 
«censura  áspera» ;  porque  o  vocábulo  catana,  no  sentido  natural  só 
se  emprega  como  termo  burlesco.  Produziu  também  pelos  modos, 
o  que  menos  sabido  é  e  não  está  por  emquanto  mencionado  em 
dicionários  portugueses,  o  verbo  catanar,  que  no  Riba-Tejo  quere 
dizer  «ceifar  herva»  com  a  gadanha,  segundo  o  que  me  informa 
a  minha  criada  Maria  do  Rosário,  natural  da  Chamusca,  e  seu 


1  Hartlbbbn's  Verlag,  Viena,  Peste,  Lípsia,  p.  184. 

2  Peregrinação,  iii,  e  passim. 


Apnatilas  aos  Dicionários  Portugueses  261 

irmão,  consultado  independentemente,  e  que  foi  trabalhador  rural 
nos  campos  vizinhos  daquela  vila  '. 

cauchu;  cacho,  cáchu 

Na  Secção  Falae  e  esceevek  do  « Diário  de  Noticias »  *  de 
Lisboa,  com  os  números  dccxiii  e  dccxvi,  vêem  dois  artigos 
referentes  ao  primeiro  destes  vocábulos,  o  qual  ordinariamente 
se  escreve,  à  francesa  e  errado,  caoutchouc.  Cita-se  ali  E.  Littré 
para  se  lhe  atribuir  orijem  americana.  Com  efeito,  o  grande  es- 
critor e  lecsicógrafo  francês  expressa-se  do  seguinte  modo  acerca 
dele: — * (ka-ou-tchou ;  le  c  final  ne  se  prononce  jamais, . .)  étym. 
Cahuchu,  nom  indien  de  cette  substance » — ,  que  primeiro  de- 
finira:— « Yulgairement  gomme  élastique;  sue  coagule  du/aíro- 
pha  elástica,  L,  arbre  de  la  famille  des  euphorbiacées  tithyma- 
les  et  d'autres  plantes,  telles  que  le  figuier  d'Inde,  le  jaquier, 
etc. » — , 

Na  Ortografia  Nacional  ^  aludira  eu  em  nota  às  escritas 
usuais  e  erróneas  cautchu,  cautchuc,  caoutchouc,  e  propusera  no 
texto  a  ortografia  aportuguesada  cauchu,  que  mantenho,  con- 
quanto prefira  a  este  inútil  galicismo  algum  dos  três  ou  quatro 
nomes  que  temos  para  a  mesma  substância,  e  adeante  men- 
ciono. Em  qualquer  caso,  o  c  final,  e  mesmo  o  t  são  erros  evi- 
dentes, copiados  da  defeituosa  escrita  francesa,  indiscretamente 
imitada. 

liodolfo  Lenz,  no  fidedigno  Diccionario  etimolójico  de  vocábu- 
los chilenos  *,  traz  a  forma  caucho,  referindo-se  a  ela  como  estran- 


*  Já  publicado  este  artigo  na  Ebvista  Lusitana,  vi,  1900-1901,  de 
onde  o  extratei  com  pequenas  alterações. 

2  De  9  e  16  de  janeiro  de  1906. 

3  Lisboa,  1904,  p.  174. 

*  Diccionario  etimolójico  de  las  voces  chilenas  derivadas 
DE  LBNGUAs  INDÍJENAS  AMERICANAS,  Santiago  de  Chile,  1904-1905,  p.  186, 
publicação  que  ainda  não  está  concluída.  O  asterisco  significa  <  de  uso  corrente 
em  Santiago  >. 


2G2  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


jeira  nos  termos  seguintes: — «*  caucho,  m[asculino]  -lit[erario]- 
el  jugo  lechoso,  resinoso  de  varias  plantas  sudamericanas  que  se 
cuaja  cuando  se  espone  ai  aire;  goma  elástica.  La  palavra  uo  es 
propiamente  cMlena,  pêro  conocida  en  las  ciudades  por  el  mucho 
uso  industrial  de  la  mateiia. . .  La  voz  mejicana  hule,  que  signi- 
fica lo  mismo,  se  usa  solo  para  la  tela  encerada  [em  português, 
oleado].  Variante:  cautchuc,  poço  usado...  Etimologia:  Segun 
el  Standard  Didionary  dei  indio  cahuchu.  Segun  una  noticia 
de  Barberena  que  no  puedo  comprobar,  la  voz  seria  de  la  lengua 
de  los  Índios  mainaf;  de  las  márgenes  dei  Amazonas» — . 

O  primoroso  poeta  e  prosador  Eduardo  Augusto  Vidal,  que 
sabe,  como  poucos  actualmente,  a  nossa  língua,  chamou  a  minha 
atenção,  em  carta,  para  a  confusão  aparente  que  nos  artigos  a 
que  me  referi  se  faz  entre  o  cauchu,  ou  caucho,  de  que  estou 
tratando,  e  outro  vocábulo,  semelhante  na  forma,  cacha,  ou  ca- 
cho, de  orijem  e  significado  muito  diversos,  e  sobre  o  qual  o 
Conde  de  Ficalho,  nas  notas,  aos  Colóquios  dos  Simples  e  drogas 
tia  índia,  de  Garcia  da  Orta,  nos  diz  ^:  —  «O  «cate»  de  Orta, 
«cato»  da  Pharmacopêa  portugueza,  substancia  mais  conhecida 
pelo  nome  de  catechu,  é  um  extracto  da  madeira  da  Acácia 
Cafechu,  Wild.  (Mimosa  Catechu,  Linu.  fil.)  uma  arvore  bas- 
tante commum  na  índia,  mais  a  leste,  nas  terras  de  Burmá,  e 
por  outro  lado  na  Africa  Oriental;  é  também  obtido  este  extra- 
cto de  uma  espécie  próxima,  Acácia  Suma,  Kurz.,  que  se  en- 
contra igualmente  na  índia. — «Cate»,  a  designação  empregada 
por  Orta,  é  a  natural  orthographia  portugueza  do  seu  nome  hin- 
dustani,  que  hoje  escrevem  kat  ou  kath.  Drury  diz  que  a  palavra 
cate  significa  arvore  e  chu  sueco,  donde  catechu;  mas  não  sei  se 
esta  aflfirmação  tem  fundamento.  Duarte  Barbosa ...  dá  á  mesma 
substancia  o  nome  de  cacho,  que  é  a  designação  tamil,  canarim 
(lingua  do  Canará)  e  malaya,  kashú,  ou  kachú;  e  «cate»,  em- 
pregado em  Malaca,  segundo  Orta,  é  uma  simples  alteração  de 
cate,  ou  de  cacho» — . 


í    vol.  II,  Lisboa,  1892,  p.  76. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  263 


Acrescentarei  algumas  cousiderações  a  este  douto  comentário. 
No  dicionário  indostano-inglês  de  Nataniel  Brice  ^  encontram-se 
os  vocábulos  kath,  — « an  astringent  vegetable  extract,  which  the 
natives  eat  witli  betel-leaf — extrato  vegetal  adstrinjente,  que  os 
naturais  [da  índia]  comem  com  o  bétele » — ,  e  ainda  outro  vo- 
cábulo parecido,  kãth,  com  a  longo  e  t  aspirado  cacuminal  % 
designando  « madeira »  e  « madeiro »  (timber,  block). 

MoDsenbor  Rodolfo  Dalgado  traz  o  vocábulo  kâta,  (isto  é, 
Mt(a),  traduzindo-o  por  «cato,  terra  japónica»,  e  dá-o  como 
sendo  marata,  no  Diccionaeio  komkaní  poetuguez  ^,  e  no 
DiccioNAEio  POETUGUEz-KoiíKANí  *  traduz  cãto  por  Mt,  sem 
mais  explicação. 

A  Phaemacopêa  poetuguez  a  5,  citada  pelo  Conde  de  Fica- 
Ibo,  dá-nos  a  sinonímia  seguinte: — ^Cachou,  fr. — Black  cate- 
chu,  ingl. — Katechu,  ali.  —  Cato;  Catecu  [sic],  hesp. » — ,  o 
que  nada  adeanta. 

Quem  deixou  o  caso  perfeitamente  averiguado  foi  o  copioso  e 
erudito  Glossário  de  Henrique  Yule  e  Artur  Coke  Burnell,  inti- 
tulado Hobson-Jobson,  being  a  Glossaey  of  Anglo-Indian 

COLLOQUIAL    WOEDS    AND    PHEASES,    AND    OF    KINDEED    TEEMS   ^: 

—  «O  cacho,  catechu,  cate,  cato  ou  cacho  (em  inglês  catechu, 
cutch  e  caut)  é  uma  substância  vejetal,  extraída  de  várias  espé- 
cies de  Acácia,  e  chama-se  em  indostano  Mf:  mas  a  forma 
cacho  provém  do  sul  da  índia  e  é  ou  o  tamil  Mxu,  ou  o  cana- 
rim  e  malaio  hlchu;  [e  não,  kashu,  i.  e.  Tcàxu,  como  escreveu  o 
Conde  por  distracção:  não  há  em  malaio  o  som  do  x  simples, 


1  A   ROMANIZE3D   HiNDÚSTÁNÍ   AXD    ExGLISH  DiCTiOXARY,  Calcutá, 

1847. 

2  É  um  t  proferido  no  ponto  era  que  pronunciamos  o  r  Iene  de  caro,  e 
aspirado. 

3  Lisboa,  1893. 
*  Lisboa,  1905. 
5  Porto,  1887. 

8  Londres,  1886,  p.  133  ('g.  v.). 


264  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


como  em  xadrez,  mas  sim  uma  consoante  que  se  parece  com  o 
eh  beirão]. 

Traduzi,  resumindo,  o  que  nos  diz  o  Grlossário. 

Quanto  à  estranha  denominação  terra  japónica,  vemos  no  dito 
artigo  ser  a  misnomer,  «equívoco»,  de  Schrõder,  que  era  1654 
publicou  a  Phaemacopea  Medigo-chymica,  e  aí  denominou  e 
definiu  assim  esta  substância  vejetal: — «  Catechu,  terra  ja}jónica, 
genus  terrce  exoticcB» — ,  quando  a  dita  substância,  ao  depois, 
foi  importada  do  Japão. 

Temos  pois  dois  A^ocábulos  diferentes  em  português,  cacho, 
cáchu,  cate,  cato,  voz  asiática,  extrato  de  várias  acácias;  cauchu 
ou,  se  quiserem  caucho,  voz  americana,  extrato  de  várias  árvores 
diferentes,  por  outro  nome  goma  elástica. 

Cumpre  não  confundir  um  com  o  outro  na  escrita,  como,  do 
mesmo  modo,  se  não  devem  confundir  na  pronúncia. 

O  cauchu  denomina-se  também  borracha,  e  guta-percha 
(=perxa,  e  não  perca,  como  erradamente  se  profere:  o  vocá- 
bulo é  malaio,  gata-percha,  pron.  quási  gueta,  ou  gata-pertcha, 
goma  da  árvore  percha  ou  «goma  de  Percha,  id  e.  Çamatra»). 
O  nome  veio  de  França  para  Portugal,  e  para  lá  foi  de  In- 
glaterra, o  que  explica  a  escrita  gutta,  onde  o  u  vale  próssima- 
mente  â  português,  como  ó  regra  em  inglês  para  o  u  breve  em 
sílaba  tónica  fechada  por  consoante.  Outro  tanto  aconteceu  com 
o  sinónimo  goma-guta,  que  também  nos  veio  de  Inglaterra  por 
intermédio  da  França  ^ 

Outro  nome  ainda  da  borracha,  mais  conhecido  no  norte  do 
Brasil,  é  seringa,  denominando-se  as  árvores  que  a  produzem 
seringueiras,  e  o  plantio  seringai  ^. 

A  orijem  de  seringa,  e  bem  assim  a  de  borracha  neste  sen- 
tido são  desconhecidas. 


*  Marcelo  Devic,  Dictionnaiue  étymglogique  des  mots  d'ori- 
GINE  ORiENTALB,  Paris,  1876. 

2  Vizconde  de  Beaurepaire-Kohan,  Diccioxario  de  vocábulos  bra- 
ZILEIROS,  Eio  de  Janeiro,  18S9. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  265 


O  Conde  de  Ficalho  e  também  o  Glossário  citado  referi- 
ram-se  ao  livro  de  Duarte  Barbosa,  a  respeito  de  café,  cacho. 
Folheei-o  cuidadosamente,  e  só  pude  encontrar  nele  referencia 
ao  cacho  a  páj.  289,  formando  o  vocábulo  composto  cachopucho, 
no  trecho  seguinte: — «outras  drogarias  que  nós  não  conhe- 
cemos, e  em  Malaca  e  China  saom  muyto  estimadas,  e  tem 
grande  valia,  silicet  cachopucho,  e  muyto  encenso  que  vem 
de  Xaer» — ^. 

Kefere-se  aos  reinos  de  Guzarate  e  de  Cambaia,  e  é  sem 
dúvida  este  o  passo  a  que  aludiu  o  Glossário  de  Yule  &  Burnell, 
com  a  seguinte  citação,  que  transcreveu  da  tradução  inglesa  de 
H.  E.  J.  Stanley,  publicada  pela  Sociedade  Hakluyt,  conquanto 
a  pudesse  ter  feito  do  orijinal  que  incluiu  na  bibliografia,  e 
decerto  devia  conhecer: — «drugs  from  Cambay;  amongst  which 
there  is  a  drug  which  we  do  not  possess,  and  which  they  call 
puchô  and  another  called  cacho  ^ — ^,  Os  acentos  são  a  mais,  e 
a  versão  está  mal  feita,  como  se  vê;  a  substância  é  uma  só. 

António  Núnez,  a  quem  também  cita,  chama-lhe  cacho  e  cate: 
—  «O  baar  do  cate,  que  aqui  [índia]  chamam  cacho,  he  em  tudo 
como  ho  arroz,  quanto  ao  peso» — ^. 

Conforme  Leôncio  Eichard  *  puchol-,  (2.*'  termo  de  cacho- 
pucho) é  o  nome  malaio  da  herva  cidreira  (mélisse). 


caudel,  candelária,  coudel,  acaudelar;  caudilho 

O  substantivo  caudilho  já  por  Bluteau  ^  foi  declarado  cas- 
telhanismo,  dando-lhe  como  correspondentes  portugueses  guia  ou 
capitão.  Escusado  era  ir  tam  longe,  pois  da  mesma  orijem  re- 


*  Noticias  para  a  historia  e  geografia  das  nações  ultra- 
marinas, Lisboa,  II,  1812. 

2  ih. 

3  Livro  dos  pesos  da  Índia,  Lisboa,  18tí8,  p.  22. 

*  COURS  DE  LA  LANGUE  MALAISE,  Bordéus,  1872,  II,  p.  102. 

s    Vocabulário  portuguez  e  latino. 


2G6  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


jistou  O  mesmo  doutíssimo  escritor  a  palavra  portuguesa  couãel, 
a  que  deu  por  étimo  erroneamente  o  espanholado  caudilho. 
Define-se  coudel,  no  Vocabulário,  do  modo  seguinte: — «Por 
ordem .  . .  del-Key  D.  Aftbnso  v  os  homens  de  armas  Escudey- 
ros,  que  serviam  a  cavallo  nos  exércitos  foram  reduzidos  ao 
mando,  ou  capitania  de  hum  Capitão  que  os  repartisse  por  Coii- 
ãeis,  dando  a  cada  Coudel  vinte.  Pelo  que  chamaram  aos  Ca- 
pitaens  desta  gente  Coudeis,  Coudel  Mor.  Este,  como  por  o  re- 
gimento da  guerra  ficava  capitaneando  a  gente  de  cavallo,  despois 
se  ve3^o  a  encarregar-lhe  a  execução  das  leys,  que  se  fizerão, 
para  conservar  as  boas  raças  dos  cavallos  do  Keyno,  e  assi  tem 
a  seu  cargo  os  cavallos  destinados  a  cobrir  as  egoas,  e  para  este 
eífeito  obriga  huns  homens  a  comprar  egoas»  — .  A  seguir,  a 
palavra  Candelária  é  definida — «olíicio  que  tem  a  seu  cargo 
a  criação  dos  cavallos» — . 

Ora,  tanto  coudel,  como  caudel,  como  o  caudilho  acastelha- 
nado  procedem  de  uma  forma  latina  capitellum  }  ca^ptello. 
Em  castelhano  de  captello  fez-se  primeiro  caudiello  {=cau- 
dielho),  e  por  contração  do  ditongo  ie  em  i,  caudillo  (cf.  cas- 
tellum  j  castiello  \  castillo,  e  v.  castelhano);  em  português 
captello  deu  caudel,  e  deste  provém  imediatamente  coudel 
(cf.  touro  j  taurum).  Portanto,  ao  castelhano  caudillo  corres- 
ponde em  português  coudel,  ou  caudel,  do  último  dos  quais  pro- 
cede o  verbo  acaudelar,  empregado  pelo  cronista  Kui  de  Pina:  — 
«Conde,  ficai  com  estes  mouros,  porque  lhe  conheceis  melhor  as 
manhas,  e  acaudelai  esta  minha  gente» — ^ 

Do  primitivo  caput,  de  que  se  derivou  o  deminutivo  capi- 
tellum, resultou  o  português  cabo,  em  quási  todas  as  suas 
acepções,  e  deste  o  verbo  acabar,  (q.  v.). 

O  vocábulo  capitel  (q.  v.)  tem  a  mesma  orijem  e  entrou  na 
língua  provavelmente  por  intermédio  do  italiano  capitello. 

Não  vejo  o  fundamento  com  o  qual  o  Novo  Diccionáeio 


1    Crónica  de  El-rei  Dom  Afonso  v,  cap.  clv. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  207 


declara  serem  caiidel  e  seus   derivados   melhores   formas   que 
couãel,  couãelaria,  que  são  mais  portuguesas  ainda. 


caurim 

Este  vocábulo,  conforme  Yule  &  Burnell,  é  o  indostano  Jcaiirz, 
•ou  o  marata  kavaãi,  e  é  na  Índia  o  nome  de  um  búzio  pequeno 
e  branco  (Cyprae  moneta),  que  corre  como  dinheiro  na  Ásia 
meridional,  e  na  África,  onde  também  se  chama  búzio  (q.  v.). 

Figuradamente,  e  com  certa  graça,  designa  o  mesmo  que 
calote  (q.  v.),  isto  é  «dívida  que  se  não  paga»,  que  o  mesmo  seria 
pagá-la  em  caurins. 

cavalaria 

Além  das  significações  gerais,  que  vêem  em  todos  os  dicioná- 
rios, €  das  especiais  rejistadas  no  Suplemento  ao  Novo  Dicc, 
cumpre  acrescentar  esta: — «Das  herdades  em  que  se  não  ins- 
tallam  centros  de  lavoira. . .  diz-se  que  andam  de  cavallaria»  —  *. 


cavalheiro,  cavaleiro;  caval(h)ariça 

A  primeira  destas  formas  é  castelhana,  como  o  prova  a  con- 
soante palatina  \h  pelo  11  de  caballarium;  a  segunda  é  a  corres- 
pondente portuguesa:  cf.  lat.  castellum  j  português  castelo, 
castelhano  antigo  castiello,  moderno  castillo  (ll  =  lh). 

Confusão  entre  um  dos  significados  que  tinha  em  português 
cavaleiro,  «o  que  tem  cavalo  e  nele  anda  montado»,  e  cava- 
lheiro, «fidalgo,  pessoa  de  certa  categoria»,  produziu  a  forma  po- 
pular  defeituosa   cavalhariça   por   cavalariça,   a  qual  se  deve 


1     J.  da  Silva  Picão,  Ethnographia  do  Alto-Alemtejo,  m  Portu- 
gália, I,  p.  271. 


2'jS  Apostilas  aoi  Dicionários  Portugueses 


cautelosamente  evitar,  pois  se  cavalheiro  usurpou  algumas  das 
acepções  de  cavaleiro,  nunca  a  quem  vai  ou  anda  a  cavalo,  e  só 
por  isso,  chama  ninguém  cavalheiro,  vocábulo  este  que  em  por- 
tuguês não  sujere  a  idea  cavalo  em  ocasião  nenhuma. 


cavaqueira 

A  palavra  cavaca,  entre  outros  significados,  designa  uma  es- 
pécie de  conhecido  biscouto,  duro,  muito  leve,  cuberto  com 
uma  capa  de  açúcar  branco  em  pó,  e  principalmente  fabricado  na 
vila  das  Caldas-da-Kainha,  em  que  é  a  especialidade  da  terra, 
quanto  a  doçaria,  e  que  tem  o  nome  de  beijinho,  quando  mais 
pequeno,  isto  é,  quási  do  tamanho  de  uma  cabeça  de  dedo. 
A  mulher  que  os  fabrica  e  vende  tem  lá  o  nome  de  cava- 
queira:—  «Mais  uma  vez  logradas  as  casas  de  pasto,  cavaquei- 
ras, lojas  de  louça,  etc»  — '. 

Note-se  que  a  designação  se  aplica  principalmente  às  fa- 
bricantes, como  vemos  pela  distinção  feita  na  citação  entre  ca- 
vaqueiras e  lojas  de  louça,  não,  louceiros  ou  louceiras. 


caxa,  caixa 

Como  nome  de  uma  moeda  de  deminuto  valor  na  índia  e 
outras  partes  da  Ásia,  falta  nos  dicionários  portugueses.  A  pala- 
vra, conforme  Yule  &  Burnell  -,  é  o  tamil  kásu: — «lhe  mandou 
logo  duas  mil  caixas» — ^. 


1  Diário  de  N,oticias,  de  24  de  outubro  de  1905. 

2  A  Glossary  of  Anglo-Indian  wouds,  Londres,  1886. 

J    António  Francisco  Cardim,  Batalhas  ua  Companhia  de  Jesus, 
Lisboa,  1894,  p.  194. 


Ajwstiloíi  aos  Dicionários  Portugueses  269 


cazembe 

E  termo  da  África  Oriental  Portuguesa:  —  *  Cazembe,  com- 
maudante  de  eusaca» — '. 


ceifarda,  ceifardajem 

Estes  neolojismos,  que  não  sei  se  chegaram  a  difundir-se, 
foram  propostos  pelo  vizconde  de  Coruche  na  Gazeta  dos  La- 
VR ADOBES,  em  fevereiro  de  1883,  para  traduzirem  os  termos 
francezes  fauchard  e  fauchage,  isto  é,  « certo  instrumento  para 
ceifar  herva»,  e  essa  ceifa. 


cemitério,  cementerio 

A  forma  alentejana  é  cementerio,  talvez  por  influencia  cas- 
telhana, e  nela  se  deu  a  inserção  da  nasal,  por  assimilação 
ao  711,  como  em  mançana  \  matiana,  comparado  ao  portu- 
guês maçã.  A  palavra  latina  é  coemeterium,  e  o  ^  por  e  do 
português  cemitério  teve  por  fim  evitar  a  haplolojia  centério 
(cemitério).  O  vocábulo  é  de  orijem  douta,  ou  semi-douta. 


cediço  (=  cediço)  sediço 

Epifânio  Díaz,  na  Kevista  Lusitana  ^,  atribuiu  a  este 
adjectivo,  muito  comum  no  sentido  de  «em  começo  de  putrefac- 
ção,  incapaz  de  consumo,  ou  fora  de  uso»,   o  adjectivo  latino 


*  Azevedo  Coutinho,  A  campanha  do  Barué,  in  « Jornal  das  Coló- 
nias >,  de  13  de  agosto  de  1904. 

*  vol.  I,  p.  175. 


270  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 

sedititius,  alterado  em  sedetitius  }  sedere,  «pousar>. 
Não  advertiu  porém  o  douto  latinista  em  que  à  forma  sediço, 
que  é  já  a  que  dá  Bluteau  ^  deve  corresponder  outra  mais  an- 
tiga em  português,  ee(e)diço,  análoga  à  castelhana  cedizo,  como 
em  carne  cediza,  «carne  que  já  tem  (mau)  cheiro». 

António  Morais  e  Silva  ^  aduz  um  exemplo,  que  mais  se 
conforma  com  a  verdadeira  significação  de  cediço: — «Anexim, 
dito  sediço;  mui  velho,  sabido  e  trilhado»  — . 

O  étimo,  pois,  deve  de  ser  cedititius  |  cedere,  «passar, 
estar  gasto»,  como  o  aponta  o  Dicionário  da  Academia  espa- 
nhola ^,  e  consegiiintemente  há  de  escrever-se  com  c,  e  não  com  s 
inicial,  em  português. 


cerco 


Além  das  acepções  definidas  nos  dicionários  conheço  duas, 
de  que  vou  apresentar  exemplo: — «Estas  redes  são  lançadas 
com  dois  cabos ...  e  são  dispostas  ou  em  linha  recta,  ou  for- 
mando cerco»  —  *. 

— « os  cercos . . .  consistiam  nisto.  Por  motivo  de  voto  antigo, 
e  depois  da  Paschoa,  a  maioria  das  pessoas  d'uma  freguesia,  com 
pendões,  cruzes  e  andores,  começava  a  percorrer  os  limites  da 
parochia.  Á  frente  um  grupo  de  atiradores . . .  disparava  frequen- 
temente, em  regra  ao  desafio» — ^. 


cerne,  cernar,  cerneira,  cernandi 

Estes  vocábulos,  menos  o  último,  vêem  perfeitamente  defini- 
dos no  Novo  UicciONÁEio,  e  os  seus  significados  são  mais  ou 


*  VOCAB.  PORT.  E  LAT. 

2  DicciONAnio  DA  língua  portugubza,  Lisboa,  1 823. 

3  Madrid,  1899. 

4  Fernández  Tomás,  A  pesca  em  Buarcos,  in  Portugália,  i,  p.  149. 
s  Rocha  Peixoto,  Portugália,  i,  p.  624. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  271 


menos  couliecidos,  relacionaudo-se  os  derivados  com  o  seu  primi- 
tivo cerne — <a  parte  interior  e  mais  dura  das  árvores» — . 

O  último  foi  me  subministrado  por  indivíduo  que  residiu  lar- 
gos anos  na  provincia  do  Pará,  especulando  com  a  exploração 
das  seringueiras,  ou  árvores  productoras  de  borracha,  e  me 
disse  que  cernandi  significa  lá  a  « borracha  mais  grosseira  > . 


cernideira,  cernir 

Xa  Beira-Baixa  denomina-se  assim  uma  « espécie  de  caixa, 
caixilho  ou  grade  em  que  trabalha  a  peneira»  *. 

A  existência  deste  vocábulo  em  português  pressupõe  a  do 
verbo  cernir,  «peneirar»,  como  em  castelhano. 


cetim,  citim 

Esta  palavra,  por  influência  do  vocábulo  seda,  já  em  Blu- 
teau  -  aparece  escrita  com  s  inicial,  pelo  c  com  que  antes  se  orto- 
grafava,  no  tempo  em  que  a  diferença  de  pronúncia  entre  s  e  ç  era 
geral  no  reino.  Todavia,  o  grande  lecsicógrafo  ainda  cita  a  forma 
cetim,  com  a  definição — «panno  de  seda» — e  remissão  à  escrita 
setim,  onde  lhe  dá  uma  etimolojia  falsa,  a  palavra  italiana  seta, 
reproduzindo  a  orijem  hebraica  que  outros  no  seu  tempo  lhe 
atribuíam. 

Que  o  douto  frade  não  tem  razão  é  evidente,  visto  que  seda 
sempre  se  escreveu  com  s,  e  cetim  com  c. 

Xa  mesma  inscrição  vêem-se  várias  espécies  de  cetins,  dife- 
rençados por  epítetos,  como  cetim  raso,  cetim  chão,  cetim  ave- 
lutado,  etc.  Raso  em  castelhano  é  hoje  o  nome  dado  ao  cetim. 

A  orijem  do  vocábulo,  que  maiores  probabilidades  apresenta 


1  Informação  do  editor,  natural  de  Almeida. 

2  Vocabulário  portuguez  e  latixo,  Coimbra,  1712-1720. 


272  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 

em  seu  favor,  é  o  árabe  zaiTUNiE,  adjectivo  derivado  de  nome  da 
cidade  de  Zaitune,  afamada  pelo  fabrico  de  tais  tecidos.  E  esta, 
pelo  menos,  a  opinião  de  Henrique  Yule,  na  segunda  edição  da 
versão  inglesa  do  livro  de  Marco  Paulo  Véneto  ^ 

Já  K.  Dozy,  no  Glossário,  ^  havia  dito  o  seguinte,  a  propósito 
da  forma  aceituni,  castelhana,  frequente  na  Vida  del  gean  Ta- 
MORLÁN,  de  Gonçález  de  Clavijo,  como  designando  um  tecido  que 
vinha  da  China:  —  «Cest  Tarabe  zeitounl...  La  AÍUe  chinoise 
Tseu-thoung,  actuellement  Thsiuan-tchou-fou,  s'appelait  chez  les 
Árabes  Zeitoun.  On  y  fabriquait  des  étoífes  damassées  de  velours 
et  de  satin,  qui  avaient  une  três  grande  réputation  et  qui  por- 
taient  le  nom  de  zeitounl.  Voyez  Ibn-Batouta,  iv,  269»  — . 

Em  catalão  antigo  escrevia-se  atzeijtoni: 

—  «311  Item  un  dosser  de  drap  daur  domesqui  ab  lo  cumper 
vermey  ab  les  orles  de  atzeytoni  blau,  ab  senyals  Keyals  entoru 
brodat  ab  sotana  de  tercepell  vermey» — ^. 

Não  há,  portanto,  a  mínima  dúvida  que  a  escrita  certa  é  a 
antiga  com  c,  não  s.  A  forma  usada  por  Fernám  Méndez  Pinto, 
na  Peregrinação  *,  e  por  outros  escritores  do  seu  tempo,  citim, 
é  devida  a  assimilação  do  e  ao  i  da  sílaba  seguinte,  como  em 
mintir,  piclir,  por  mentir,  pedir,  e  minino,  que  vemos  constante- 
mente no  mesmo  autor. 

chá,  chávena,  pires,  bule 

A  palavra  chá  é  de  orijem  chinesa,  como  a  planta,  e  está 
muito  disseminada  nas  línguas  esclavónicas,  cal  ^  em  russo  e 


1  The  Book  of  Ser  Marco  Polo  the  Vexetian,  Londres,  1875,  ii. 
cap.  Lxxxii,  1).  224,  n.  2. 

2  Glossaire  des  mots  espagnols  et  portugais  derives  de 
l' ÁRABE,  Leida,  1869,  sub  v.  Sbtuni. 

"    Inventari  del  Eey  Marti,  in  Kevue  Hispanique,  xii,  j).  457. 
■*    cap.  IX,  XXI,  LU,  XIII,  XIV,  LI,  etc. 

5     Cora  esta  letra  marcada  figuro  o  sora  do  eh  castelhano  e  português  dn 
norte,  quási  tx. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  273 


búlgaro,  por  exemplo.  O  outro  nome  da  planta  e  sua  infusão,  te, 
quer  êle  se  orijinasse  do  termo  botânico  thea,  latinização  do 
chinês  ca,  como  creio,  quer  seja  também  chinês  dialectal,  como 
opinam  quási  todos  os  que  teem  investigado  a  etimolojia  deste 
último  vocábulo,  foi  o  adoptado,  com  pequenas  excepções,  em 
outras  línguas  da  Europa,  quer  românicas,  quer  germânicas. 

Com  a  palavra  chá  vieram  do  Oriente  para  Portugal  os 
nomes  das  várias  peças  do  aparelho  em  que  êle  é  servido:  chá- 
vena é  chinês  também,  ca-van,  «vasilha  para  o  chá».  Bule  é  o 
malaio  húli;  «frasco»;  pires,  o  indostano  pirix,  m2Í\úo  píriai  ^, 
«pratiuho»,  cuja  orijem  é  incerta,  mas,  com  todas  as  probabili- 
dades, oriental. 

Entre  todos  os  idiomas  europeus  é  o  português  o  único  a 
usar  estas  denominações,  como  é  sabido,  pois  nem  mesmo  em 
castelhano  elas  são  conhecidas ;  aí  diz-se  te,  taza,  tetera,  platillo. 

Como  a  palavra  hule  é  malaia,  e  pires  em  malaio  existe 
igualmente,  e  sendo  este  idioma  nos  séculos  xv,  xvi  e  xvii,  e 
ainda  hoje,  de  geral  comunicação  no  sul  da  Ásia,  é  natural  que 
por  seu  intermédio  os  recebêssemos  nós,  ou  por  qualquer  das 
línguas  da  índia,  para  as  quais  houvessem  passado,  o  que  no 
emtanto  carece  de  demonstração.  É  de  notar  que  ao  chá,  propria- 
mente dito,  ainda  hoje  se  chama  chá-da-India,  especialização 
que  ou  proveio  de  que  de  lá  o  recebêssemos  directamente,  ou 
então  de  que  por  índia  se  entendesse  toda  a  Ásia  de  que  tí- 
nhamos conhecimento,  em  razão  das  nossas  navegações,  conquis- 
tas e  comércio.  Notável  é  também  que  ainda  hoje  se  ouça 
apregoar  laranja  da  China,  locução  com  a  qual  se  diferença  da 
(laranja)  tanjerina. 

Que  o  malaio  foi  dos  nossos  viajantes  e  aventureiros  conhe- 
cido e  praticado  prova-se  com  a  circunstância  de  que  nas  Peee- 
GEiNAçõEs   de   Fernám   Méndez    Pinto    a   cada  passo  ocorrem 


1     O  sinal  m,  designa  aqui  o  ng  germânico,  isto  é,  um  n  proferido  no 
extremo  do  palato  duro  com  a  raiz  da  língua.  Aplique-se  esta  nota  aos  vocá- 
bulos citados  a  p.  241-243,  e  passim. 
18 


274  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


expressões,  nomes,  quer  próprios,  quer  comuns,  que  pelo  malaia 
se  explicam,  conquanto  se  reíiram  à  China;  e  exemplo  frisante  é 
este  passo  da  mesma  interessantíssima  obra:  —  «e  era  lugar  de 
torres  ou  baluartes  té  [os  chins]  húas  goaritas  de  dous  sobrados 
armados  sobre  esteos  de  pao  preto,  a  que  elles  chamão  Caubes}% 
que  quer  dizer  pao  ferro»  —  K  Ora  o  vocábulo,  ou  melhor,  vocá- 
bulos citados,  e  que  na  realidade  significam  «pau-ferro»,  são  ma- 
laios e  não  chineses :  Jcáiic,  « pau  » ,  e  bési,  « ferro » . 

Voltando  ao  chá,  a  primeira  menção  desta  bebida,  vemo-la 
feita,  na  Europa,  por  Frei  Gaspar  da  Cruz  -,  por  estas  palavras: 
— « Qualquer  pessoa  ou  pessoas  que  chegara  a  qualquer  casa  de 
horaem  lirapo  tem  por  custume  ofereceremlhe  em  húa  bandeja  ga- 
lante húa  porcelana,  ou  tantas  quantas  sara  as  pessoas,  cora  húa 
agoa  morna  a  que  chamam  Cha,  que  he  tamalavez  verraelha  e 
mu}^  medicinal,  que  elles  custumara  a  beber,  feita  de  hú  cozi- 
mento de  ervas  que  amarga  tamalavez»—. 

Note-se  que  o  curioso  frade  ainda  não  conhecia  a  palavra 
chávena,  visto  que  lhe  chama  porcelana 

A  propósito  de  chávena  direi  ainda  que  hoje  se  confunde 
com  chicara,  mas  que  dantes  não  era  assim.  Ainda  na  rainha 
raocidade  a  chávena  servia  para  se  tomar  o  chá,  era  um  vaso 
mais  baixo  que  alto,  alargando  para  a  boca,  e  não  tinha  asa; 
pela  chicara  tomava-se  o  café,  e  esta  era  mais  estreita,  de  forma 
cilíndrica,  com  asa,  como  as  de  agora. 

A  chávena  chinesa  tem  dois  pires:  um  era  que  assenta  num 
largo  orifício  circular,  aberto  no  meio,  onde  encaixa  a  base  da 
chávena,  e  outro  cheio  com  que  esta  se  cobre,  sorvendo-se  a  be- 
bida por  entre  êle  e  a  chávena,  aos  golinhos. 

Bluteau  ^  define  chávena,  que  escreve  chavana,  sem  dúvida 
a  forma  mais  antiga,  do  seguinte  modo: — «Palavra  da  Índia. 
É  como  meia  chicara»  — .  Isto  confirma  em  certo  raodo  o  que 


1  cap.  xcv.  Ediç<ão  rolandiana,  Lisboa,  1829. 

2  Tratado  da  China,  cap.  xiii,  Lisboa,  1829. 
8    Vocabulário  portuguez  e  latino. 


i 


Apostilas  aos  Diciojiários  Portugueses 


acima  eu  disse,  que  os  aparelhos  do  chá,  talvez  uos  viessem  da 
iudia ;  e  como  é  sabido,  ainda  actualmente  chamamos  à  porcelana 
«louça  da  índia».  Quanto  a  chícara,  é  palavra,  segundo  dizem, 
mexicana,  e  Bluteau,  que  a  mencionou  na  definição  de  chávena, 
omitiu-a  no  corpo  do  Vocabulário  e  no  Suplemento. 

Cumpre  advertir  (\\iq  bule,  como  termo  de  jíria,  com  a  sig- 
nificação de  «ânus»,  é  o  calo  bui  (q.  v.). 


chacina 

Júlio  Cornu  ^  dá-nos  como  étimo  deste  vocábulo  o  latim 
siccina  {  siccus,  «seco»,  o  que  não  parece  muito  acertado, 
apesar  de  o  douto  romanista  o  declarar  manifesto  (offenbar). 
D.  Carolina  Michaelis  de  Vasconcelos  "^,  para  adoçar  a  pílula, 
admite  a  influencia  do  nome  próprio  Chacim,  vila  da  província 
de  Trás-os-Montes,  onde,  consoante  a  informação  de  um  proprie- 
tário instruído  e  idoso  da  mesma  província,  nos  diz  que  se  pre- 
para muito  bem  a  carne  de  porco  salgada  e  fumada.  Assim  será, 
mas  nada  com  isso  adeantámos:  — 

Coll'i  ali  egro  fanci.ul  porgiamo  aspersi 
Di  soave  licor  gli  orli  dei  vaso ; 
Succhi  amari  ingannato  intanto  ei  bevc. 

Não  ponho  aqui  o  remate  da  formosa  estanca  de  Torquato 
Tasso,  por  não  ter  aplicação  ao  caso  sujeito,  segundo  me  parece  ^. 

Conforme  o  Novo  Diccionáeio  chacim  significa  «porco», 
faltando  abonação  do  termo. 

Em  castelhano  existe  o  vocábulo  cecina,  com  significação  pa- 


1  Grundriss  dkr  romanischbn  Philologie,  Estrasburgo,  1888,  i, 

2  Revista  Lusitana,  iii,  p.  139. 

3  «E  dair  inganno  suo  vita  riceve>  —  Gbrusalemme  liberata,  i,  3. 


276  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 

recida,  e  cujo  aspecto  mais  se  conforma  cora  o  étimo  apontado 
siccina:  secina:  cecina,  por  assimilação  da  inicial  da  1.*  sílaba 
à  da  2A 

Cornu  dá  como  forma  intermediária  hipotética  sachina,  de 
que  chacina  seria  metátese  nas  consoantes  das  duas  primeiras 
sílabas;  mas  não  explica  como  é  que  de  cci  latino  proveio  chi, 
fenómeno  tanto  menos  admissível,  quanto. para  o  castelhano  ce- 
cina resultou  dele  ci,  como  era  de  esperar.  Cumpre  ainda  adver- 
tir que  este  fenómeno  estaria  em  circunstâncias  muito  diversas 
das  que  se  deram  em  chuchar  j  ex-suctiare,  pois  neste  houve 
assimilação  da  inicial  da  2.*"^  sílaba  à  da  l.'"^. 

Acresce  ainda  outra  singularidade,  a  conservação  de  n  puro, 
anormal  (cf.  uinum,  castelhano  vino,  português  vinho,  mas  an- 
tes vío),  visto  que  os  vocábulos  citados  por  Cornu  para  confir- 
mação, bovina  e  ovina,  nunca  foram  nem  são  evolutivos  ou 
populares.  Siccina  daria  secinha. 

E  de  notar,  apenas  talvez  como  ementa,  que  a  terminação 
-ina,  ora  tónica,  ora  menos  frequentemente  átona,  serve  nas  lín- 
guas esclavónicas  para  de  nomes  de  animais  se  formarem  subs- 
tantivos femeninos  que  designam  a  carne  deles,  como,  por  exem- 
plo, em  russo  baranina,  « carne  de  carneiro »  j  baran,  svinína, 
«carne  de  porco»  {  sviniá. 

Para  que  tal  terminação  seja  a  que  vemos  em  chacina,  fora 
necessário,  porém,  explicar  satisfatoriamente  o  radical,  e  encon- 
trarmos palavra  análoga  em  qualquer  dialecto  italiano  oriental, 
pelo  qual  pudéssemos  justificar  a  transmissão. 

Averiguado,  como  me  parece  estar,  que  o  cecina  castelhano 
proveio  do  latim  siccina,  insistamos  um  tanto  nas  significações 
de  cecina  e  de  chacina,  para  nos  certificarmos  se  são,  ou  não, 
idênticas. 

O  castelhano,  conforme  o  Dicionário  da  Academia  *,  é  assim 
definido: — «Carne  salada,  enjuta  y  seca  ai  aire,  ai  sol,  ó  ai 
humo» — .  Deste  substantivo  derivou-se  um  verbo,  acecinar: — 


Madrid,  1899. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  277 

« Salar  las  caraes  y  ponerlas  ai  humo  y  ai  aire  para  que  enjutas 
se  conserven> — ;  e  figuradamente: — «Quedar-se  uno,  por  vejez 
ú  otra  causa,  muy  enjuto  de  carne»  — . 

O  substantivo  chacina  português  é  assim  definido  por  Blu- 
teau  * :  — « Postas  de  carne  salgada,  que  se  guardam,  e  se  con- 
servam em  pipa,  tonel,  ou  outros  vasos» — .  Deste  se  deriva  um 
verbo,  chacinar,  que  Bluteau  diz  significar:  —  «Salgar  pedaci- 
nhos ou  postas  de  carne,  e  polias  em  sal  de  conserva» — .  Não 
nos  apresenta  sentido  figurado  no  verbo;  mas  no  nome  acrescenta: 
—  «Fazer  chacina  em  alguém.  Fazello  era  postas» — . 

No  verbo  chacinar  dá-nos  uma  abonação: — «Em  que  cha- 
cinão,  e  defumão  todas  as  sortes  de  caças  e  carnes» — . 

Há,  como  se  vê,  grande  diferença  no^  significados.  Cecina, 
em  sentido  natural,  quere  dizer  «carne  seca  por  qualquer  pro- 
cesso, para  se  conservar » ;  chacina,  « carne  cortada  e  salgada, 
mas  não,  seca,  note-se,  único  fundamento  ideolójico  com  o  qual 
lhe  poderíamos  racionalmente  atribuir  o  étimo  proposto,  siccina 
de  siccus.  Em  sentido  figurado  diferem  igualmente  as  significa- 
ções: do  vocábulo  castelhano  deriva  um  verbo  que  expressa  a 
idea  de  «definhar-se,  mirrar»,  «perder  carnes»;  do  português 
outro,  que  expressa  o  contrário  deste,  convém  saber,  «fazer  ma- 
tança, carnificina». 

Depois  de  todas  estas  ponderações  concluo: 

1.°  Cecina,  castelhano  provém  de  siccina. 

2°  Chacina  deve  ter  outro  étimo,  que  exclua  a  idea  de 
«secar». 

3.''  Chacim,  como  nome  próprio,  procede  de  chacim  «porco», 
ou  deu-se  o  caso  contrário,  é  do  nome  próprio  que  resultou  o 
comum. 

4.°  E  duvidoso  que  chacina  tenha  relação  com  chacim,  na 
segimda  hipótese;  presumível  na  primeira. 

õ.°  Resta  averiguar  qual  seja  a  etimolojia  de  chacim,  se  na 


Vocabulário  portugubz  e  latino. 


"278  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 

realidade  tem  a  significação  que  lhe  dá  o  Novo  Diccionábio, 
visto  não  estar  ali  abonada. 

6.°  O  vocábulo  chacina  é  de  orijem  ignorada. 

chafardel 

O  Novo  Dicc.  dá-nos  esta  palavra  como  transmontana,  com 
a  significação  de  safardana,  que  no  lugar  competente  define 
« biltre » . 

Em  sentido  muito  diverso  deste,  isto  é,  no  de  «rebanho», 
vemo-la  empregada,  como  própria  do  Alentejo,  no  seguinte  passo: 
—  «um  chapeo  de  terra  [terreno  pouco  espaçoso],  que  não  lhe 
cabe  dentro  um  chafardel  de  ovelhas» — K 

chafarica,  chafariqueiro 

O  Novo  DiccioNÁEio  dá  ao  primeiro  destes  vocábulos  duas 
acepções: — «loja  maçónica;  baiuca,  taberna» — .  Subordinado  à 
segunda  acepção  é  o  termo  chafariqueiro  no  passo  seguinte: — 
«Porto,  11.  Com  o  título  Apprehensão  de  vinho  falsificado 
— Prisão,  lê-se  na  Voz  Publica  o  seguinte: — «o  visinho  partiu 
para  o  Porto,  e  voltou  pouco  depois  trazendo  um  chafariqueiro 
emérito. . .  » — ^. 

Neste  sentido  usou-se  mais  recentemente  mistureiro :  —  «a 
protecção  que  está  resolvido  a  dispensar  aos  falsificadores  e  mis- 
tureiros» — ^. 


1  J.  S.  Picão,  Ethxographia  do  Alto-Albmtejo,  in  Portugá- 
lia, i,  p.  275. 

2  O  Economista,  de  12  de  junho  de  1S94. 
8    O  Dia,  de  14  de  novembro  de  líK)2. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  279 


chalar-se 

E  termo  de  jíria,  que  quere  dizer  « escapulir-se » .    É  uma 
forma  pronominal  que  nos  veio  do  calo  chalar  « andar  >. 


chama 

O  significado  especial  deste  vocábulo  em  Cezimbra  vê-se  do 
seguinte  trecho:  —  «elles  [os  pescadores  de  Cezimbra]  correram 
sobre  ella  [a  força  militar]  insultando-a,  e  munidos  de  chamas 
(pequenos  paus)  parecia  quererem  envolver  a  força» — ^ 


chamada 

Em  Leiria,  conforme  informação  do  snr.  Acácio  de  Paiva, 
quere  dizer  «braçado  de  lenha,  que  se  deita  no  forno»: — «com 
mais  esta  chamada  fica  o  forno  quente»  — .  E  um  derivado,  me 
parece,  de  chama,  «labareda»,  pela  que  ateia  abrasando-se. 


chambo 

O  mesmo  que  hangue,  «cânhamo»,  na  Africa  Oriental  Por- 
tuguesa:—  «Fumam  com  delicia  e  sofreguidão  o  chambo,  a  que 
no  sul  se  dá  o  nome  de  bangue» — ^. 


1    O  Século,  de  15  de  abril  de  1900. 

*    Azevedo  Coutinho,  A  campakha  do  Barué,  in  t  Jornal  das  Coló- 
nias >,  de  30  de  julho  de  1904. 


280  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


chamiça,  chamiç.o,  chamiceiro;  chafurdo 

Chamiça,  conforme  o  Novo  Diccionábio,  tem  vários  signi- 
ficados, e  entre  eles  o  de  «carqueja».  Chamiço  é  ali  definido 
como — «acendalhas;  lenha  miúda;  ramos  secos;  tição»  — .  Cha- 
miceiro—  «aquelle  que  apanha  e  vende  chamiço»  — . 

Na  Beira-Baixa  (Fundão)  chamiceiro  é  «o  fogueiro  que 
mete  a  lenha  no  forno » . 

Poderia  aplicar-se  este  termo,  ampliando-lhe  a  significação, 
para  denominar  o  que  em  francês  se  chama  chauffeur,  nos  auto- 
móveis, e  que  o  povo,  meio  a  sério,  meio  gracejando,  já  apor- 
tuguesou em  chafurdo: — «Emquanto  eu  ia  entretido  com  o 
travão  [do  automóvel]  o  chafurdo  entretinha-se  a  gritar  que  se 
arredassem»  —  ^ 


chamo,  chamariz 

—  «Os  reclamos  naturaes,  chamarizes  ou  chamos,  como  bem 
se  comprehende,  não  passam  de  uma  ave  da  espécie  d'aquella 
que  se  vae  caçar,  e  que  pelos  seus  pios  ou  canto . . .  attrae  a 
outra  que  a  ouviu» — 2. 

V.  reclamo. 


chamuar(e) 

— «  Chamuares  ou  amigos  fechados;  rapazes  da  mesma  po- 
voação e  idade,  que  vão  juntos  a  todas  as  emprezas  perigosas,  e 
que  na  guerra  se  não  abandonam.  São  os  chamuares  que  trans- 


1  O  Século,  Supplemento,  de  4  de  julho  de  1905. 

2  José  Pinho,  Ethnographia  Amarantina,  A  Caça,  in  Portugá- 
lia, 11,  p.  95. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  281 


portam  o  ferido  em  combate .  . .  e  que  o  enterram  quando  morto, 


longe  do  lugar  do  combate  > 


.1 


chana 

Esta  forma,  estranha  em  português,  pois  o  femenino  de 
(hão  {  planum  é  chã,  antigo  chãa,  é  definida  como  significando 
—  «planicie  ou  campina  alagada,  em  Africa» — ,  num  ofício, 
assinado  por  Capelo  e  Ivens,  expedido  da  cidade  do  Cabo  à 
Sociedade  de  Geografia  de  Lisboa,  com  data  de  22  de  julho 
de  1885. 

E,  pois,  mais  um  alótropo  para  juntar  aos  muitos  que  existem 
em  português,  e  teem  por  fonte  primordial  o  latim  planum. 
Formam  diferentes  séries,  que  seria  longuíssimo  coordenar  com 
todas  as  formas  derivadas  e  suas  variadas  acepções.  Essas  séries 
distinguem-se  pelas  iniciais,  que  aqui  vou  apresentar,  exemplifi- 
cando cada  uma  com  um  vocábulo  típico: 


:3 


forma  mais 

antiga 

eh: 

chão 

posterior 

pr: 

prão,  pràmo 

secundária 

por 

:  porão  (q.  v.) 

recente 

pi: 

plano 

castelhana 

Ih: 

lhano 

italiana 

pi: 

piano 

changaço 

Yj  a  parte  do  atum  menos  apreciada  para  cozinhar,  isto  é,  a 
cabeça  e  o  rabo.  O  termo  é  muito  conhecido  dos  pescadores, 
pexeiros  e  gente  que  negoceia  em  atum.  O  changaço  vale  sem- 
pre menos  que  as  outras  partes  do  atum,  mais  estimadas. 


*     Azevedo  Coutinho,  A  campanha  do  Barué  em  1902,  m  <  Jornal 
das  Colónias  >,  de  19  de  agosto  de  1905. 


282  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


chapa;  chapada 

Qualquer  que  seja  a  orijem  deste  vocábulo,  no  sentido  de 
«lâmina  metálica,  folha  delgada  e  chata»,  e  cujo  étimo  mais  pro- 
vável é  um  klap,  ou  plak  germânico;  com  o  significado  especial 
de  «ordenança,  permissão,  ordenação,  prescrição»,  é  termo  asiá- 
tico, devendo  ser  o  indostano  c'a/9  «selo,  sinete» — .  «A  chapa 
se  foi  publicando  por  todo  o  reino» — K  Chapado  queria  dizer 
« assinalado » . 

Como  termo  de  calão  moderno  chapada,  significa  « bofetada  > : 
—  «Vês  aquelle  gajo?  Já  em  tempos  me  deu  mndi  chapada  *  —  -. 

No  sentido  de  «planície  alta»,  o  vocábulo  figura  em  todos 
os  dicionários. 

chapéu,  chapei,  chapelada 

Qualquer  dos  dois  primeiros  é  de  orijem  francesa,  representan- 
do o  primeiro  a  forma  chapeau,  actualmente  pronunciada  xapô, 
porém  na  idade  média  lida  como  chapéu;  o  segundo,  outra  forma 
da  mesma  palavra  (cf.  heau  e  hei),  provindo  ambas  do  latim 
capellum,  deminutivo  neutro  de  cappa,  como  cappela  é  de- 
minutivo  femenino.  A  primeira  forma  é  hoje  corrente  para  desig- 
nar «cobertura  da  cabeça,  com  forma  e  abas»;  a  segunda  designava 
um  «elmo»,  como  vemos  no  Suplemento  ao  Novo  Diccionáeio, 
que  aponta  vagamente  abonação. 

A  noção  de  que,  a  par  de  chapéu,  havia  a  forma  chapei 
prova-se  com  os  derivados  chapeleira,  «caixa  para  chapéus», 
chapelmho,  «chapéu  pequeno»,  chapeleiro,  «fabricante  ou  ven- 
dedor de  chapéus»,  chapelada,  «cortesia  com  o  chapéu». 

Este  último  derivado  é  usado  frequentemente  num  sentido 
que  os  dicionários  não  apontam:  «masso  de  listas,  deitadas  frau- 


1    A.  Francisco  Cardim,  Batalhas  da  Companhia  de  Jesus,  Lisboa, 
1894,  p.  104. 

*    O  Século,  de  10  de  setembro  de  1900. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  283 


dulentameute  na  urna,  no  acto  eleitoral,  pela  autoridade  que  a 
êle  preside»: — «A  parte  os  sucessos. .  .  como  chapeladas,  uo 
dizer  do  argot  eleitoral» — ^ 

O  chapéu  tem  diversas  formas,  e  é  feito  de  várias  substân- 
cias; e  conforme  umas  e  outras  adquire  epítetos  pelos  quais  um 
chapéu  se  diferença  de  outro,  pelo  nome  especial  que  lhe  dão. 
Deste  modo  há  chapéu  alto,  ou  de  copa  alta,  mais  ou  menos  ci- 
líndrico: chapéu  de  coco,  que  na  Ilha  da  Madeira  se  denomina 
chapéu  de  queijo;  chapéu  à  serrana,  duro  e  com  largas  abas 
reviradas;  chapéu  de  pasta,  «o  que  por  meio  de  molas  se  pode 
fechar,  licando  o  tampo  unido  às  abas » ;  chapéu  armado,  « o  de 
dois  bicos»,  isto  é  duas  pontas  da  aba;  chapéu  de  três  bicos, 
«o  que  tem  abas  triangulares»,  etc. 

Chapéu  designa  também  «abrigo,  resguardo»,  e  nesta  acep- 
ção dizemos  chapéu  de  chuva,  chapéu  de  sol,  que  dantes  se  cha- 
mava sombreiro,  objecto  que  provavelmente  importámos  da  índia, 
da  China  ou  do  Japão,  onde  eram  e  são  muito  usados. 

Emíim,  é  este  um  dos  vocábulos  franceses  que  desde  tempos 
muito  remotos  se  aportuguesou  e  difundiu  mais  fértilmente,  pois 
produziu  grande  número  de  derivados. 

Também  foi  usado  em  castelhano,  como  vemos  neste  retrato 
de  um  valentão  espanhol: 

—  Calo  el  chapeo,  requirió  la  espada, 
Miro  ai  soslayo,  fueso,  y  no  hubo  nada — . 

Esta  pintura  fidelíssima  lembra  outra  do  pimpão  português, 
de  quem  Eduardo  Garrido  disse  na  cena  cómica,  representada 
em  1864  por  José  Carlos  dos  Santos,  A  Bengala: 

—  Homem  bulhento  em  cafés, 
Que  a  toda  a  gente  arremete 
Que  rapa  do  casse-tête. . . 

E  apanha  dois  pontapés — . 


O  Século,  de  28  de  novembro  de  1900. 


284  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 

Outro  vocábulo  francês  derivado  do  mesmo  radical  é  chape- 
ron,  que  deu  em  português  chapeirão,  em  castelhano  chapirón  *, 
com  a  significação  de  « capuz » : 


—  Ao  ombro  um  chapeirão, 
Que  pasmava  todo  o  povo — *. 


charabasco,  cbarabasca,  charavasca,  charabasqueira, 
charaviscal;  chavasco,  chavascal,  achavascado 

Os  primeiros  quatro  destes  vocábulos,  conforme  o  Novo 
DiccioNÁBio  e  Suplemento  dele,  designam,  como  termos  trans- 
montanos, «terra  de  pouco  valor  ou  estéril».  O  último  está 
definido  na  monografia  de  J.  S.  Picão,  Ethnographia  do  Alto 
Alemtejo,  no  seguinte  passo: — «Ha  herdades  muito  grandes, 
medianas  e  pequenas.  Entre  as  maiores,  algumas  conhecem-se 
pelo  augmentativo  de  defeza,  ou  por  tal  se  denominam  quando 
se  querem  engrandecer.  As  pequenas  distinguem-se  pelo  dimi- 
nutivo de  malatécafi  ou  charaviscáes,  quando  por  ventura  se 
pretende  amesquinhal-as » — ^. 

Vemos  aqui  o  vocábulo  defesa  \  latim  defensa,  caste- 
lhano antigo  defesa,  moderno  dehesa,  sem  o  abrandamento  do 
/  em  V,  que  se  deu  na  forma  geral  devesa,  como  aconteceu  com 
ávrego  \  Africus  (uentus),  e  com  Estêvão  \  Stephanus. 

Ignoro  a  orijem  da  palavra  charavasco;  mas  vê-se  que  cha- 
rabasco é  nortismo,  com  mudança  de  v  em  i,  por  não  existir  v 
nos  dialectos  transmontanos. 

Há  certa  analojia  de  forma  entre  estes  vocábulos  e  chavasco, 
chavascal,  de  que  apenas  se  diferençam  na  sílaba  ra  que  teem  a 
mais,  sendo  quási  conformes  no  sentido,  visto  que  chavasco  quere 


1  Ebvur  Hispanique,  X,  p.  172. 

2  Bernardim  Ribeiro,  Écloga  ii. 

3  m  Portugália,  I,  p.  275. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  285 


dizer  «tosco»,  e  chavascal,  «terreno  inculto,  cheio  de  hervas, 
moitedo  > .  Em  castelhano  existe  o  adjectivo  chabacano,  « gros- 
seiro, achavascado  * ,  e  em  calo,  ou  dialecto  cigano  de  Espanha, 
chacán,  com  a  significação  de  « herva » .  Parece  haver  relação 
entre  todos  estes  vocábulos;  porém  falta  explicar  por  que  leis  se 
foram  modificando  até  chegarem  à  forma  mais  extensa  portu- 
guesa, charaviscal. 


-charachina  =  eh  ara  China 

Esta  locução  é  peculiar  das  Pebeobinações  de  Fernám 
Méndez  Pinto,  e  ainda  não  foi,  que  eu  saiba,  rejistada  em  dicio- 
nários portugueses.  Ocorre  várias  vezes  naquela  formosíssima 
obra,  e  nomeadamente  nos  capítulos  xlvii,  lxii,  sem  explica- 
ção, e  no  cap.  lxxvii  por  forma,  que  o  seu  significado  fica 
manifesto — «abraçandoo  então  e  pedindolhe  muitos  perdões  ao 
seu  modo,  que  eles  chamam  de  charachina» — . 

Ora,  como  no  cap.  clxv  o  autor,^  em  vez  desta  locução,  usa 
de  uma  equivalente,  —  ao  modo  da  China — ^  e  no  cap.  cci  em- 
pregou estoutra  locução — à  eh  ar  a  Japão — ,  segue -se  que  a  voz 
chara  significava  «modo»,  ou,  como  hoje  diríamos,  «moda»;  que 
China  não  é  adjectivo  femenino  concordando  com  chara,  mas 
nome  próprio,  como  Japão,  e  que  a  construção  em  português  é 
defeituosa,  pois  se  elidiu  a  preposição  de  que  a  sintasse  pedia, 
como  aconteceu  em  Madre-Deus  por  Madre-de-Deus,  mas  sem 
a  haplolojia,  ou  simplificação  da  repetição  consecutiva  de  d,  que 
a  justificasse. 

Quanto  ao  substantivo  chara,  que,  como  disse,  ainda  não  foi 
admitido  nos  dicionários  portugueses,  é  êle  simplesmente  o  ma- 
laio  tara,  «feição,  feitio»,  sendo  a  supressão  da  preposição  sin- 
tasse malaia. 


1     António  Francisco  Cardim,  mais  culteranamente,  diz  —  «ao  modo  sí- 
nico»  — .  Batalhas  da  Companhia  de  Jesus,  Lisboa,  1894,  p.  45. 


28G  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 

O  f  palatal  malaio,  quási  ti  (tiara),  foi  imitado  cora  o  eh 
português,  geral  então,  e  ainda  lioje  beirão,  minhoto  e  transmon- 
tano, quási  tx,  como  é  sabido.  Assim  representaram  os  portu- 
gueses sempre  as  consoantes  explosivas  fortes,  palatinas  nos  vocá- 
bulos e  nomes  asiáticos  pertencentes  a  línguas  que  as  possuíam, 
como  as  da  índia,  o  chinês,  o  japonês,  etc. 

Exemplos  do  malaio  tara,  citados  no  vocabulário  malaio-fran- 
cês  que  constitui  a  2.^  parte  do  Curso  de  malaio  de  Leôncio 
Richard  ^  são  os  seguintes:  tara  rada  ioxti  besar,  «a  modo  de 
príncipe»  [literalmente,  «modo  (do)  príncipe,  que  (é)  grande >]; 
tara  ioigris,  «à  (moda)  inglesa»,  este  último  perfeitamente  aná- 
logo ao  usado  por  Méndez  Pinto,  e  por  êle  aportuguesado, 

Camões,  nos  Lusíadas  -,  empregou  modo  no  mesmo  sentido, 
porque  moda  ainda  então  não  era  moda  cá. 

Vestido  o  Gama  V3m  ao  modo  hispano, 

Por  aqui  se  vê  que  não  tem  fundamento  a  conjectura  expressa 
no  Glossário  de  Burnell  &  Yule  '^\  que  relaciona  esta  locução 
com  a  saudação  usual  chinesa  cin  cin. 


charão,  acharão,  (a)charoar,  acharoado 

O  substantivo  charão  designa  em  português  certo  verniz  da 
China,  e  os  objectos  de  madeira  com  êle  revestidos.  E  próprio 
da  nossa  língua,  pois  os  outros  idiomas  europeus  servem-se  de 
várias  formas  do  vocábulo  laca,  que  designa  em  português  outro 
verniz,  mais  da  índia,  e  certa  resina  ou  tinta. 


1  COURS   THÉORIQUE   ET   PRATIQUE   DB   LA  LANGUE  COMMBRCIALE 
DE  l'ARCHIPEL  d'A8IE,  DITE  MALAISE,  1872. 

2  Canto  II,  97. 

3  A  Glossary  of  Anglo-Indian  words  and  phrasbs,  Londres, 
188G,  p.  154. 


Apostileis  nos  Dicionários  Portugueses  287 


A  palavra  uão  é  chinesa  ou  japonesa,  como  poderia  supôr-se, 
pois  existe  em  castelhano,  charol,  que  também  designa  «verniz  e 
puliraeuto».  Outra  forma  portuguesa  é  acharão,  que  se  lê  no 
Tratado  da  China  de  Frei  Gaspar  da  Cruz,  cap.  xiii: — «estes 
[sacerdotes]  criam  cabello  e  trazera-no  no  cume  da  cabeça,  arre- 
matado cora  um  pao  muito  bem  feito . .  .  envernizado  de  muito 
bom  verniz,  que  chamam  acharam» — . 

De  charão  se  derivou  o  verbo  charoar,  e  o  particípio  passivo 
deste  vemo-lo  usado  por  A.  Francisco  Cardim:  —  «bandejas  cha- 
roadas  e  douradas»  — .  Da  forma  acharão  tirou  se  acharoar,  e 
ainda  hoje  dizemos  folha  acharoada  ^. 

A  título  de  curiosidade  apenas,  e  porque  talvez,  para  estudo 
mais  detido  do  vocábulo  charão  e  da  sua  introdução  na  litera- 
tura portuguesa,  possa  trazer  alguma  luz,  apontarei  aqui  uma 
das  inscrições  de  entre  as  cento  e  vinte  de  vocábulos  chineses 
usados  em  malaio,  admitidas  por  Aristides  Marre,  e  é  a  seguinte: 
— «  Tchat — Couleur  broyée  et  détrempée  avec  de  Phuile;  tein- 
ture,  vernis  de  bois  employé  par  les  Chinois  et  qui  provient  de 
Tarbre  nommé  rèngas  en  malais» — ^. 

Reunindo  os  dois  chat-rengás,  com  a  supressão  do  t,  obtém-se 
charengás :  mas  desta  palavra  composta  vai  uma  distância 
enorme  à  forma  charão,  que  é,  repito,  inseparável  da  castelhana 
charol. 

Note-se  ainda  que  tarana  em  malaio  quere  dizer  «bandeja», 
e  que  o  mesmo  significado  tem  charol  na  Bolívia :  — « Nuestras 
bandejas  son  en  castellano  fuentes  [travessas],  nuestros  charoles 
son  bandejas» — ^. 


1  Batalhas  da  Compaxhia  de  Jesus,  Lisboa,  1894,  p.  80. 

2  Mélanges  Charles  de  Harlez,  Leida,  1896,  p.  193. 

"    K.  J.  Cuervo,  Apuntaciones  críticas  sobre  el  lenguaje  bo- 
GOTANO,  Bogotá,  1881,  p.  376. 


288  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


charola 

Além  dos  dois  significados  principais  deste  vocábulo,  já  apon- 
tado nos  dicionários  portugueses,  o  de  «andor»,  e  o  de  —  «corre- 
dor semi-circular  entre  o  corpo  da  igreja  e  a  fábrica  do  altar- 
-mor» — *,  indicarei  aqui  mais  o  seguinte,  que  sem  dúvida  provém 
do  primeiro  citado. 

Na  ilha  da  Madeira  denomina-se  charola  um  cargo  ou  fôrmii 
alta  guarnecida  de  frutas,  hortaliças,  doces,  ovos  e  garrafinhas 
de  vinho,  que  figura  nos  arraiais,  ou  impérios  (q.  v.). 

Bluteau,  no  Suplemento  refere-se  à  charola  cuberta  com 
—  «papel,  ou  papelão,  ao  modo  de  arco,  ou  abobeda  com  suas 
varas  atravessadas,  em  que  lhe  pegavam  os  rapazes,  e  com  ella 
andavão  pela  Quaresma  cantando  cantigas  da  Paixão,  porque  leva- 
vão  na  charola  imagemsinhas  de  barro  da  Paixão  de  Christo» — . 

Era  também  um  arremedo  de  andor. 


chaspa 

Em  Trás-os-Moutes  é  uma  espécie  de  panela  ou  tacho,  com 
tampa,  baixo  e  largo.  Ali  dá-se  o  nome  de  panela  à  que  tem 
três  pés,  para  se  lhe  acender  lume  por  baixo,  ao  contrário  da 
chaspa,  que  assenta  na  fornalha  e  não  tem  pés. 


chau 


E  palavra  chinesa,  e  como  vemos  do  trecho  seguinte,  expressa 
saudação: — «disse  a  Aquileu  que  queria  chão  (que  é  fazer  as  cor- 
tesias de  vasalo  a  rei,  que  são  bem  enfadonhas)  >  —  -. 


1  Bluteau,  Vocabulário  portuguez  b  latino. 

2  Batalhas  da  Companhia  de  Jesus,  p.  45. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  289 


cheiro,  cheiros 

Este  substantivo,  do  verbo  cheirar  \  flagrare,  que  é  ora 
transitivo  no  sentido  de  «tomar  o  cheiro»,  ora  intransitivo,  no 
de  «deitar  cheiro»,  tem  duas  acepções  que  os  dicionários  não 
rejistam  bem. 

Assim  o  Contemporâneo  só  no  plural  dá  o  vocábulo  com  a 
significação  de  «substâncias  aromáticas»,  quando  em  tal  sentido, 
o  vemos  empregado  no  singular  pelo  Padre  António  Francisco 
Cardim :  —  « queimou  cheiro » —  ^ 

No  plural  significa  êle,  em  Lisboa  pelo  menos,  quatro  hervas 
aromáticas  empregadas  como  tempero  na  cozinha  portuguesa, 
isto  é,  salsa,  coentro,  hortelã  e  segurelha,  e  diz-se  uvi  ramo  de 
cheiros. 

A  estas  plantas  parece  referir-se  Gil  Vicente  no  Velho  da 
HoETA,  ora  no  plural,  ora  no  singular: 

— Vinha  ao  vosso  hortelão 
Por  cheiros  para  a  panela  — . 

—  a  couve  e  o  cheiro  — 

O  Novo  DiccioNÁEio  dá  ao  singular  cheiro  a  significação 
de — «salsa,  hortelan,  ou  qualquer  outra  erva  aromática,  de 
applicação  culinária»  — ;  mas,  pelo  menos  em  Lisboa,  a  definição 
é  a  que  apontei. 

cheia 

Africa  Oriental  Portuguesa:  «fazenda,  tecido»  -. 


1  Batalhas  da  Companhia  de  Jesus,  p.  236. 

2  Diocleciano  Fernández  das  Neves,  Itinerário  de  uma  viagem  á 
CAÇA  DOS  ELBPHANTES,  Lisboa,  1878,  p.  203. 

19 


290  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


cheminé,  chaminé 

A  forma  popular  e  mais  exacta  cheminé  encontra-se  num 
documento  do  xvi  século: — «liúa  antecâmara  grande  que  tem 
húa  cheminé.  . .  húa  janela  grande  peguada  com  cheminé» — ► 
Antes,  no  mesmo  documento,  uma  variante,  também  popular  no 
norte  do  reino: — «húa  sala  pequena  com  chomine» — ^  O  o 
provém  do  m  que  se  lhe  segue.  A  forma  hoje  corrente  chaminé 
é  devida  a  influência  da  palavra  chama;  porém  a  forma  popular 
cheminé  está  mais  próssima  do  seu  étimo,  o  francês  cheminée. 


cherelo  (=  cherêh) 

No  Minho  dá-se  este  nome  a  um  peixe  pequeno,  que  parece 
corresponder  ao  que  no  sul  se  chama  carapau. 


cherundo 
África  Oriental  Portuguesa:  «cesto»  -. 

chicopa 

Termo  da  África  Oriental  Portuguesa:  —  <i^chicopas — An- 
gonis  armados  de  azagaia  e  escudo  de  couro  ou  de  palha  entre- 
laçada»— ^. 


1  Auto  de  posse  do  castelo  de  Sines,  de  24  de  novembro  de  lõ3:í,  in 
O  Archbologo  português,  X,  p.  101. 

2  Diocleciano  Fernández  das  Neves,  Itinerário  de  uma  viagem  á 
Caça  dos  elephantes,  Lisboa,  1878,  p.  26. 

8    Azevedo  Coutinho,  A  campanha  do  Barué  bm  1902,  in  «Jornal 
das  Colónias  >,  de  30  de  julho  de  1904. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  291 


cbiciia,  chicero,  chituredo,  coba  (Marromeu) 

Espécies  de  cestos  da  Africa  Oriental  Portuguesa  —  «chitur 
vedo,  chisseiro,  coba,  chicua  (cestos)» — ^ 

Azevedo  Coutinho  -  escreve  f chicero.  A  forma  preferível 
portanto,  conforme  a  escrita  usual  portuguesa,  será  chicero. 


chicuangué 

Incluo  aqui  esta  palavra,  sem  saber  ao  certo  a  que  idioma 
africano  de  negros  ela  pertence,  qual  a  sua  pronúncia  (gchicuan- 
gué,  chicuangu-é?)  e  qual  a  sua  lejítima  escrita  Qchicuangué, 
xicuangaé?).  No  caso  de  que  o  w  se  profira  depois  do  g,  melhor 
fora  escrevê-la  em  português  chicimngoé,  ou  xicuangoé,  con- 
forme o  som  inicial  seja  o  eh  beirão  e  transmontano  (quási  tx), 
ou  o  X  inicial,  de  xadrez,  por  exemplo. 

Encontrei-a  definida  no  seguinte  passo :  —  «A  base  da  alimen- 
tação do  indigena  na  maior  parte  do  Estado  do  Congo,  e  também 
no  nosso  enclave  de  Cabinda,  é  a  farinha  de  mandioca  ou  chi- 
euangué» — ^. 

Note-se  o  galicismo  inútil  enclave,  pelo  qual  podemos  dizer 
encrave,  ou  nesga. 

chieira 
No  Porto  quere  dizer  «vaidade,  basófia». 


1  ib.  4  de  julho  de  1903. 

2  ib. 

3  Gazeta  das  Colónias,  de  16  de  dezembro  de  1905 


292  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


chila  (caiota),  gila 

O  Novo  DiccioNÁEio  apresenta  as  três  formas,  que  escreve 
chila,  chilacaiota  e  gila,  referindo  à  primeira  as  outras  duas; 
não  apresenta  etimolojia.  No  perfeitíssimo  Diccionário  de  vozes 
chilenas,  de  Eodolfo  Lenz,  que  se  está  publicando  S  encontramos 
o  termo  acayota  como  usado  no  Chile.  Eis  o  que  acerca  dele  nos 
diz  o  douto  filólogo: — «alcayóta,  n.  vulg.  de  una  cucurbitácea 
mejicana  cuyos  frutos  sirven  para  la  preparacion  de  un  dulce; 
el  cidracayote  (Dicc.  Ac.  cidra  acayote)  de  los  espanoles  (Cucur- 
bita  ficifolia  Bouché).  Vaeiantes:  acayota  en  Gay,  Bot.  viii 
e  II  403.  Forma  falsa:  alcajota  Gay  Agr.  ii  112;  ortografia  falsa: 
acallota.  Etimolojia:  Segun  Philippi,  Anales  dei  Museo  Na- 
cional, seg.  seccion  1892,  dei  nahuatl  tsila  cayotti. . .  segun 
Eamos  532,  en  Méjico  se  dice  chilacayote,  dei  azteca  tzila 
cayotli  >  — . 

Cumpre  advertir  que  nahuatl  e  azteca  são  a  mesma  língua, 
e  ainda,  que  as  palavras  mexicanas  são  idênticas,  mas  com  di- 
ferente ortografia,  sendo  o  fe  e  o  ts  iguais  a  tç,  e  os  dois  tt  da 
primeira  denominação  erro  tipográfico  em  vez  de  ti  da  segunda, 
que  em  mexicano  é  suficso  de  unidade,  e  se  profere  como  um  t 
lateral,  seguido  de  l  sibilante  surdo,  sem  vogal  intermédia. 

O  nome  desta  casta  de  abóbora,  hoje  completamente  acli- 
matada em  Portugal,  veio  para  cá  de  Espanha,  naturalmente 
como  fruto,  trazido  do  México.  Vê-se  que  devemos  escrever 
chila-caiota  em  duas  palavras. 

Quanto  à  forma  gila,  principalmente  usada  em  Lisboa,  é 
provável  que  seja  eufemismo,  adoptado  para  se  evitar  o  verda- 
deiro nome  chila,  que  aí  adquiriu  o  significado  de  «excremento 
humano»,  acepção  que  falta  nos  dicionários. 


1  Diccionário  etimolójioo  de  las  vooes  chilenas  derivadas 
DE  línguas  indíjenas  AMERICANAS,  Santiago  de  Chile,  1904-1905,  i 
fase,  n.°  15. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  293 

Na  ilha  da  Madeira,  conforme  informação  do  snr.  João  de 
Freitas  Branco,  o  nome  da  abóbora  com  que  se  faz  o  dito  doce 
é  moganga,  ou  trivialmente  hoganga,  que  tem  aspecto  africano; 
aplicando-se  a  denominação  cJiila  caiota,  ou  simplesmente  chila, 
línicamente  ao  doce. 

Em  Lisboa  também  se  lhe  chama  abóhora-chila,  e  abóbora 
moganga. 

chimabanda 

Termo  da  Africa  Oriental  Portuguesa:  —  <Faz  ainda  parte 
do  mobiliário  a  chimabanda  (pilão)  onde  as  mulheres  reduzem 
a  farinha  a  mapira,  e  a  mapira-manga,  as  pedras  chatas  e  planas 
em  que  pelo  attricto  é  polvilhada  a  mexoeira,  das  quais  a  infe- 
rior e  fixa  tem  o  nome  de  limbué,  e  a  superior  e  movei  se  chama 


m£nacana  > 


.1 


V.  mapira  e  mexoeira. 


chincha,  chinchorra 

—  <  As  bateiras  chinchorras,  assim  chamadas  por  serem . . . 
as  que  mais  se  usam  para  o  lançamento  da  chincha,  teem,  como 
os  moliceiros,  a  particularidade  de  ser  ornamentadas,  á  proa  e  á 
ré,  de  varias  pinturas  e  emblemas* — -. 

Chincha  foi,  algumas  linhas  antes,  explicado  como — «rede 
de  arrastar  pequena»  — . 


1  Azevedo  Coutinho,  A  Campanha  do  Barué  em  1902,  m  «Jornal  das 
Colónias  >,  de  3C  de  julho  de  1904. 

*  Luís  de  Magalhães,  Os  barcos  da  ria  de  Aveiro,  in  Portugá- 
lia, II,  p.  60. 


294  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


chincho,  chincha 

Nos  Açores  significam  « menino  e  menina,  pequenos » ,  e  tam- 
bém «cousa  pequena». 

Em  Aveiro  chincha,  que  deve  ser  outro  vocábulo  diverso,  é 
o  nome  de  uma  rede,  e  também,  ao  que  parece,  de  certo  barco 
de  pesca. 

chingue 

No  Bailundo: — «chingues  são  casas  pequenas»  —  K 

chipapala 

Quadrúpede  da  África  Oriental  Portuguesa,  assim  descrito 
por  Diocleciano  Fernández  das  Neves: — «Qualidade  de  animaes 
a  que  os  landins  chamam  chipapala.  Observados  de  longe  parece 
[sicj  um  boi,  e  eífectivamente  os  chifres  eram  exactamente  como 
os  deste  animal.  O  cabello  da  pelle  era  côr  de  castanha  e  curto 
como  o  dos  bois  e  tinha  a  crina  á  similhança  dos  cavallos,  porém 
mais, curta.  O  focinho  e  as  patas  eram  como  os  do  veado > — '. 

chiqueiro 

Esta  palavra  é  definida  nos  nossos  dicionários  como  «pocilga, 
lugar  onde  se  recolhem  porcos  >  — . 

Todavia,  pelo  menos  no  Alentejo,  o  significado  é  mais  res- 
trito, como  se  vê  da  explicação  que  do  termo  dá  J.  da  Silva 


1     O  Dia,  de  29  de  junho  de  1903. 

'    Itinerário  de  uma  viagem  á  caça  dos  elbphantbs,  Lisboa, 

1878,  p.  280-281. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  295 


Picão,  na  Etnogbaphia  do  Alto-Alemtejo  : — «chiqueibo. — 
Curralorio  que  encerra  dois  ou  três  porcos  adultos  para  se  irem 
engordando  a  pouco  e  pouco  com  os  sobejos  das  comidas . .  . 
etc.  >  —  *.  [V.  choco]. 


chisca,  chisco,  chisquinho,  chizinho 

O  Suplemento  ao  Novo  Diccionákio  dá  à  primeira  destas 
formas,  como  peculiar  da  Beira,  o  significado — «pequenina  por- 
ção, gota» — ,  declarando  haver  sido  colhida  no  Fundão,  O  se- 
gimdo,  como  termo  algarvio,  identifica-o  com  cisco,  que  define 
(ib.): — «aparas  miúdas,  lixo» — .  No  Porto,  como  é  sabido, 
esta  última  acepção  é  a  que  corresponde  a  cisco  j  cinisculum  2. 
De  cisco  provém  cisqueiro,  que  no  Porto  é  o  nome  da  pá  (para 
a  apanha)  do  lixo,  a  qual  também  se  denomina  apanhador. 

Conforme  os  meus  apontamentos,  chisca,  chisco  e  chisquinho 
significam  todos  três  «pedaço  pequeno». 

O  mesmo  Suplemento  acrescenta  mais  outra  forma  beirã,  chi- 
zinho, com  o  mesmo  significado  de  «porção  pequena». 


chitão,  chitom 

A  primeira  forma  é  mais  portuguesa,  a  segunda  está  mais 
perto  da  sua  orijem,  a  locução  francesa  chui  donc!  «caluda!», 
e  é  este  o  significado  que  teem,  ou  antes,  tinham,  porque  estão 
quási  fora  de  uso.  Foram  porém  bastante  vulgares,  e  tanto  que 
com  a  primeira  se  formou  um  adájio: — «Com  el-rei  e  a  Inquisi- 
ção, chitão» ! — ^. 


1     t»  Portugália,  I,  p.  545. 

'  D  Carolina  Michaélis  de  Vasconcelos,  in  «Eerista  Lusitana»,  ui, 
p.  140. 

3  Francisco  Adolfo  Coelho,  A  Pedagogia  do  povo  português,  in 
Portugália,  i,  p.  492. 


296  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


choco  (=ch6ço) 

E  um  masculino  deduzido  da  forma  femenina  choça  \  latim 
plútea  ^  adjectivo  substantivado,  designando  «armação,  an- 
daime, ripado»,  e  cujo  ú  nos  leva  a  crer  que  mesmo  a  forma 
femenina  se  pronunciasse  dantes  choça,  a  não  ser  que  a  primitiva 
haja  sido  a  masculina,  derivada  do  neutro  pluteum,  do  mesmo 
adjectivo,  substantivado.  Cf.  poço,  poça. 

Choco  no  Alentejo  tem  significação  particular,  que  se  deduz 
do  seguinte  trecho  da  Ethnographia  do  Alto-Alemtejo,  de 
J.  da  Silva  Picão  ^ — «O  chiqueiro  [q.  vj  abrange  o  espaço  de 
uns  vinte  metros  quadrados,  em  parte  resguardado  por  uma 
alpendrada  ou  choco,  onde  se  abrigam  os  cevões,  nome  especifico 
por  que  se  designam  os  suínos  assim  sustentados  [com  sobejos 
de  comida] » — . 


choramingas,  choramigas 

Parece-me  fora  de  duvida  que  a  primeira  destas  formas  é  a 
con*ecta,  e  a  mais  popular,  quer  o  seu  étimo  seja  chorame,  como 
pretende  D.  Carolina  Michaélis  de  Vasconcelos,  quer  chora-min- 
gas,  por  chora-mínguas,  que  me  parece  mais  provável. 


choupa,  choupo 

Talvez  as  verdadeiras  formas  sejam  chôpa,  chõpo  \  clúpea, 
clúpeum. 

Em  três  significados  dá  o  Novo  Diccionabio  a  forma  feme- 


*  Kevista  Lusitana,  ii,  p.  37:  J.  Leite  de  Vasconcelos;  mas  já  antes 
dado  por  Frederico  Diez. 

*  Eevista  Lusitana,  iii,  p.  135. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  297 

nina:  a) — «ponta  de  ferro  ou  aço;  b)  peixe  esparoide;  c)  árvore 
semelhante  ao  choupo»  — . 

A  terceira  acepção  é  o  latim  pop'lus,  por  metátese,  plopus. 
Na  2.*  acepção  é  o  latim  clupea,  com  o  mesmo  significado. 
Exemplo  da  forma  masculina  na  1.*  acepção  é  o  seguinte:  — 
« Elvas,  20 . .  ,  Foi  isto  o  bastante  para  que  lhe  cravasse ...  no 
peito  um  choupo  que  trazia» — ^ 

choutar 

Conforme  J.  J.  Núnez,  do  latim  t(o)lutare  -:  seria  pois  o 
mesmo  vocábulo  que  trotar. 

chuá 
—  «Onde  mora  o  chuá  ou  governador  [no  An  ame] » — ^. 

chuanga 

— «  Chuanga  é  o  preto  que  apresenta  os  contendores  a  quem 
resolve  as  questões,  e  resume  as  suas  exposições:  na  Baixa-Zam- 
bezia  é  interprete» — *. 

chucharrão,  chocharrão 

Sendo  ignorada  a  orijem  deste  vocábulo  dialectal,  é  incerta  a 
sua  escrita :  — « Levado  pela  curiosidade,  fui  examinar  um  montão 


*  O  Economista,  de  22  de  outubro  de  1892. 

*  Revista  Lusitana,  iii,  p.  28õ. 

'    António  Francisco  Cardira,  Batalhas  da  Companhia  de  Jesus, 
Lisboa,  1894,  p.  68. 

*  Azevedo  Coutinho,  A  campanha  do  Barué  em  1902,  in  «Jornal 
das  Colónias  >,  de  13  de  agosto  de  1904. 


298  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


de  pedregulhos  que  o  pastor  me  indicou,  e  que  era  escoria  (chu- 
charrões,  dizia)  havendo  indicios  de  ter  ali  havido  algum  forno 
para  derreter  minério,  o  que  se  explica  porque  a  pequena  dis- 
tancia ha  um  filão,  não  sei  de  que  minério,  dando-se  ao  sitio  o 
nome  de  Ferrarias» — ^ 

Em  castelhano  existe  o  vocábulo  chicharrón,  que  parece  pela 
forma  ser  aumentativo  de  chicharro,  ou  chicharra,  «cigarra»,  e 
que  o  Dicionário  da  Academia- espanhola  ^  define  do  seguinte 
modo: — «(voz  imitativa  dei  ruido  de  freir)  Kesiduo  de  las  pellas 
dei  cerdo,  depues  de  derretida  la  mauteca.  Dícese  también  de 
la  manteca  de  otros  animales  y  dei  sebo.  //  fig.  Carne  ú  otra 
vianda  requemada.  //  fig.  y  fam.  Persona  muy  tostada  por  el 
sol»  — .  Corresponde  nos  dois  primeiros  sentidos  ao  que  chama- 
mos torresmos. 

Para  confirmar  o  parentesco  do  vocábulo  português  chu- 
charrão  com  '  o  castelhano  chicharrón,  vemos  que  a  palavra 
pella,  que  entra  na  primeira  definição  deste,  além  do  signi- 
ficado natural,  que  tem,  de  «banha  de  porco  em  rama», 
adquire  também,  conforme  o  dicionário  citado,  os  de — «Masa 
de  los  metales  fundidos  ó  sin  labrar — Masa  de  amalgama  de 
plata  que  se  obtiene  ai  beneficiar  con  azogue  minerales  argen- 
tíferos » — . 

O  termo  dialectal  chucharrão,  ao  que  parece  mais  usado 
no  plural,  corresponde  portanto  ao  termo  mais  geral  escur 
malha. 

O  primitivo  chicharra  designa  em  Espanha  também  o  ins- 
trumento que  em  Portugal  se  denomina  cegarrega. 

Ambos  os  termos  parecem  ter  orijem  onomatopaica,  isto  é, 
serão  imitação  do  som. 


1  Joaquim  Manuel  Correia,  Antiguidades  do  concelho  do  Sabu- 
gal, in  <0  Archeologo  português»,  x,  p.  201. 

2  Madrid,  1899. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  299 


ctiiié(s),  chué-chué 

Este  adjectivo  invariável,  que  significa  « reles,  de  pouco  preço, 
ruim»,  é  conforme  Júlio  Moreira  ^  confirmando  o  que  Dozy 
propusera,  o  árabe  chuié  chuié  [sic],  xuaiE  xuaiE,  deminutivo 
de  XAi,  «cousa». 

A  aceitar-se  a  etimolojia,  a  escrita  deveria  ser  xué. 


chulo,  chula,  chuleira 

E  termo  castelhano,  que  em  português  como  adjectivo  adqui- 
riu o  significado  de  « ordinário,  brejeiro,  quási  obsceno » ;  em  caste- 
lhano, porém,  designa  « moço  de  matadouro  ou  de  praça  de  touros, 
um  tanto  afadistado».  No  Século,  de  23  de  fevereiro  de  1902, 
lê-se  a  locução  à  chula,  «ao  modo  dos  chulos,  ou  das  chulas» : — 
«Ultimamente,  vestindo  com  elegância  umas  vezes,  e  á  chula 
outras,  parecia  regenerada» — . 

Chula  é  o  nome  de  uma  dança  e  de  uma  música  popular, 
hoje  provinciana.  Viola  chuleira  é  uma  viola  ordinária:  —  «Aqui 
o  portuguez  ao  zãozão  da  viola  chuleira» — ^. 

Conforme  Dozy,  chulo,  chula  é  termo  de  ciganos,  mas  de 
orijem  arábica  xul,  «rapaz».  E  duvidoso  o  étimo. 


chumbeira,  chumbada 

Tanto  o  Diccionabio  Contempoeaneo,  como  o  Novo  Dicc. 
dão  a  este  vocábulo  o  significado  de  uma  espécie  de  rede. 
Todavia,  nos  passos  que  vão  ler-se  qner  êle  dizer  « peso  de  chumbo 
na  rede » :  — « São  lançadas  [as  petisqueiras]  em  compridas  coças 


1  Revista  Lusitana,  iv,  p.  266. 

2  Alberto  Pimentel,  A  princbza  db  Boivão,  p.  44. 


300  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


[q.  v.J,  e  aguentadas  por  bóias  de  cortiça  e  chumbeiras  ^  — 
« tem  pesos  de  chumbo,  chumbeiras  »  —  ^. 

No  mesmo  sentido  de  « peso  de  chumbo »  é  empregado  no 
dito  artigo  outro  derivado  de  chumbo,  chumbada: — «A  tralha 
superior  tem  fluctuadores  de  cortiça,  e  a  inferior  pesos  de  chumbo, 
chamados  chumbadas^ — . 


churinar 

O  Novo  DicciONARio  inclui  este  vocábulo  como  de  jíria, 
com  o  significado  de  «esfaquear».  Nunca  o  ouvi  em  Portugal,  e 
é  possível  que  seja  simples  aportuguesamento  do  francês  chovy- 
riner,  que  na  jíria  dos  malfeitores  de  lá  tem  a  mesma  significa- 
ção. A  existir  no  calão  português,  é  o  calo  espanhol  churinar,  de- 
rivado de  churí,  «faca»,  e  que  tem  um  nome  de  agente  derivado 
do  verbo,  churinaró,  «matador»,  ao  qual  corresponde  o  termo 
de  jíria  francesa  chourineur,  alcunha  de  uma  das  personajens 
do  afamado  romance  de  Eugénio  Sue,  Les  mystkres  de  Pabis. 


chupão 

—  «a  chaminé  ornamental  de  fuste  prismático  e  adjunta  a 
ella,  caiada  de  branco,  outra  chaminé,  de  secção  quadrada,  a  que 
chamam  chupão  em  todo  o  Alemtejo  e  que  tem  por  effeito  reali- 
sar  a  tiragem  que  a  chaminé  ornamental  não  eífectua  convenien- 
temente. 

Deve  accrescentar-se  ainda,  que  a  tiragem  por  meio  dos  chu- 
pões é  activíssima  e  por  isso,  ao  passo  que  não  deixa  o  fumo, 


1  P.  Fernández  Tomás,  A  pesca  em  Buarcos,  in  Portugália,  i, 
p.  149. 

2  ih.  p.  151. 


Apostilas  aos  I>icionário8  Portugueses  301 


arrasta  o  calórico  de  tal  modo,  que  ainda  no  verão  não  aquece 
demasiadamente  o  compartimento  em  que  se  fogueia  ■>  —  K 

Tanto  o  substantivo  chupão,  como  o  verbo  foguear  são  vo- 
cábulos que  merecem  ser  adoptados  na  língua  comum,  com  os 
sentidos  que  aqui  expressam. 


chus 


Este  advérbio  é  antigo,  do  latim  plus,  e  vemo-lo,  por  exem- 
plo, na  Demanda  do  Santo  Graal,  —  «e  era  muito  leterado, 
mas  a  donzela  chus»  —  -.  Ainda  hoje  é  usado  na  locução  não  distei' 
chus  nem  mus,  ou  bus. 

^Que  tnus  ou  bus  é  este? 

Dois  étimos  se  lhe  podem  atribuir,  conforme  se  considere 
mais  antiga  a  primeira  ou  a  segunda  forma.  A  aceitar-se  iiius, 
poderia  ser  uma  contracção  violenta  do  latim  minus,  com  des- 
locação do  acento,  e  portanto  pouco  provável,  existindo  na  língua 
o  verdadeiro  correspondente  menos,  que  ainda  assim  não  pode 
pertencer  às  orijens  dela,  atenta  a  conservação  do  n  medial: 
(cf.  ceia  }  cena). 

Outra  explicação  aplicável  a  bus  seria  que  a  frase  fosse 
muito  popular,  e  recebida  em  parte  dos  ciganos  de  Espanha,  em 
cujo  dialecto  bus  quere  dizer  «mais>.  Assim,  a  locução  signifi- 
caria: «não  dizer  mais,  nem  em  português,  nem  em  cigano». 

Fr.  Diez  ^  dá  como  étimo,  que  se  pode  ver  no  Diccionario 
Manual  etymologico  de  F.  Adolfo  Coelho,  um  vocábulo  bus, 
buz,  que  se  encontra  em  várias  línguas,  mas  que  não  concorda 
com  o  sentido  que  tem  bus  na  locução  referida. 


*     Melo  de  Matos,  As  chaminés  alemtbjanas,  i«  Portugália,  ii, 
p.  83. 

2  in  Revista  Lusitana,  vi,  p.  334. 

3  Etymol.  Wôrterbuch   der  romanischbn   Sprachen,  Bonn, 

1869. 


302  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


Exemplo  recente  de  chus  e  bus  é  o  seguinte: — «Recebeu 
trezentas  varadas .  . .  mas  outro . .  .  levou  mil,  sem  dizer  chus 
nem  bus» — K 

chusma 

Já  o  DicoioNAEio  Contemporâneo  deu  como  étimo  a  este 
vocábulo  o  latim  celeusma;  todavia,  não  explicou  o  modo  como 
se  realizou  a  evolução.  Deu-o  J.  J.  Núnez  na  Kevista  Lusitana 
[iii,  páj.  277]:  celeusma  j  cleusma  \  *  cheusma  ]  chusma. 
Camões  empregou  a  forma  alatinada  celeuma: — 

«  A  medonha  celeuma  se  levanta  >  — 

Hoje  faz-se  diferença  entre  celeuma  e  chusma,  visto  que  o 
primeiro  vocábulo  quere  dizer  «grita»,  e  o  segundo  «multidão». 


cibo,  cevo 

Do  latim  cíbum  proveio  cevo,  com  ê  \  i,  ^  v  \  b  medial, 
como  é  regra  na  evolução  portuguesa  do  latim  vulgar.  Ou  por 
influencia  literária,  ou  por  distinção  dialectal  que  se  propagou, 
temos  formas  derivadas  do  mesmo  radical  em  que  figuram  i  e  b 
latinos;  tais  são  cibalho,  cibato,  e  cibo,  o  último  dos  quais  pa- 
rece puro  latinismo.  Cibato  foi  empregado  por  Camões  na  Can- 
ção xvt: 

Aqui  Progne,  de  um  ramo  em  outro  ramo, 
Com  o  peito  ensangvientado  anda  voando, 
Cibato  para  o  ninho  indo  buscando. 


Gazeta  das  Aldeias,  de  25  de  março  de  190G. 


Apostilas  aos  I>icionários  •  Portugueses  303 


Não  sei  se  cigalho,  «porção  pequena >,  é  ainda  um  derivado 
4e  cibum,  com  mudança  de  h  em  g,  como  o  andaluz  agilelo 
comparado  ao  castelhano  abueh  \  auólum,  e,  procedente  de  v, 
o  português  gastar  \  uastare,  goraz,  de  uorace.  Apresento  isto 
apenas  como  simples  conjectura,  que  oferece  poucas  probabilida- 
des de  ser  acertada. 

ciciar;  cecear,  ceceoso 

Estes  dois  verbos,  diferentes  na  significação,  andam  geral- 
mente confundidos  nos  dicionários,  e  assim  também  os  substan- 
tivos rizotónicos  derivados  deles,  ceceio  e  cicio  (=cicío). 

Ciciar  expressa:  1°  sussurro  indistinto  e  ténue;  2."  a  fala 
em  segredo,  sem  voz,  «ao  ouvido >,  como  costuma  dizer-se,  o 
cochichar,  que  em  francês  se  diz  chuchoter.  Nesta  última  acep- 
ção empregou  Alexandre  Herculano  o  substantivo  cicio: — «assim 
o  canto  melancholico  e  melodioso  das  virgens  foi  pouco  a  pouco 
enfraquecendo  até  expirar  no  cicio  de  orações  submissas  > — ^ 

Como  termo  de  fonética,  cicio  é  a  ausência  de  voz,  o  que 
em  terminolojia  técnica,  se  diz  em  francês  le  chuche,  em  inglês 
the  ivhisper. 

As  consoantes  sonoras,  quando  proferidas  em  segredo,  são 
ciciadas,  ficando  muito  semelhantes  às  surdas  correspondentes, 
de  modo  que  casa  fica  quási  igual  a  cassa,  vaso,  quási  igual  a 
faço;  o  mesmo  acontece  entre  Já  e  chá,  quási  iguais,  proferidos 
em  segredo. 

Em  português  existem  permanentemente  vogais  ciciadas,  ou 
afónicas,  todas  as  vezes  que  u  (ou  o  =u),  e  surdo  e  i  estão 
precedidos  de  uma  consoante  surda,  quando  finais,  ou  entre  duas 
consoantes  surdas;  por  exemplo : /«ío,  comparado  com.  fado;  ouço, 
comparado  com  ouso;  testar,  comparado  com  distar,  etc. 

Ceceio  é  outra  cousa:  é  o  defeito,  ou  antes  a  particularidade 
de  proferir  o  s  como  ç.  Este  nome,  conforme  o  carácter  de  cada 


1    Eurico  o  Prbsbytero,  xir,  O  Mosteiro. 


304  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


dialecto,  tem  significações  mais  ou  menos  especificadas.  Para  o 
indivíduo  da  Beira-Alta  ceceio  designa  o  proferirem-se  os  ss  e 
os  çç,  à  maneira  de  Lisboa,  e  não  como  lá,  onde  são  pronuncia- 
dos no  ponto  em  que  se  profere  o  r  brando,  o  que  lhes  dá  grande 
semelhança  com  x,  e,  em  relação  ao  z,  com .;'. 

Para  os  indivíduos  de  Trás-os-Montes,  que  diferençam  s  de  ç, 
e  s  brando  de  z,  ceceio  é  não  fazer  tal  distinção,  pronunciando-os 
como  em  Lisboa. 

Para  os  indivíduos  de  Lisboa  ceceio  é  a  pronúncia  brasileira 
de  5  e  ,s  seguidos  de  consoante,  ou  finais,  com  os  seus  valores 
alfabéticos,  em  vez  dos  de  x,  j  que  se  usam  no  sul  de  Portugal. 
O  brasileiro  em  geral  diz  paçtaç,  por  pastas,  mezmoç  por  mesmos 
(=mêjmux). 

O  contrário  de  ceceio,  é  o  que  se  chama  chahancas,  particu- 
laridade que  consiste  em  pronunciar  os  ss,  como  na  Beira-Alta, 
subcacuminais,  no  ponto  em  que  r  brando  se  profere,  isto  é  quási 
como  X,  Q  o  z  quási  como  j. 

Ceceio  se  chama  também  o  defeito,  porque  esta  particulari- 
dade é  individual,  de  aprossimar  dos  dentes  a  ponta  da  língua 
demasiadamente. 

Em  Espanha  ceceo  é  a  pronúncia  do  c  ou  do  z,  idênticos,  e 
diferentes  de  s,  aprossimando  a  língua  dos  dentes,  como  é  ne- 
cessário para  bem  articular  aquelas  letras  em  castelhano. 

Chamam  lá  também  ceceo,  ou  zeteceo  à  pronúncia  dos  ss  e 
dos  zz  como  ç  português,  usada  na  Andaluzia,  e  nas  nações 
americanas  de  orijem  espanhola. 

Em  português  chama-se  ceceoso  àquele  que  pronuncia  os  ss 
com  ceceio. 

cifra,  decifrar,  zero;  algarismo 

O  primeiro  destes  vocábulos  foi  o  de  preferencia  usado  em 
português,  antes  da  influência  francesa  em  toda  a  nossa  litera- 
tura, mesmo  na  científica,  vai  em  sessenta  anos.  O  que  a  maioria 
das  pessoas  não  sabe  é  que  são  um  só  e  o  mesmo  vocábulo  cifra 
e  zero,  que  os  franceses  escrevem  zero,  pronunciando  zê-rô. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  305 


A  palavra  é  arábica,  sífr,  «vazio,  oco>,  tradução  do  ter- 
mo sanscrítico  xúNia  xiixia,  que  tem  a  mesma  significação,  e 
também  designava  a  cifra,  ou  « nulidade,  ausência  de  quanti- 
dade», tendo  só  valor  de  posição  para  se  localizarem  os  outros 
algarismos,  no  sistema  de  numeração  decimal  que  os  árabes 
aprenderam  dos  índios.  Com  este  valor  passou  o  vocábulo  ará- 
bico para  português  e  castelhano,  sendo  nestes  representada  a 
consoante  inicial  por  ç  (ce,  ci),  como  de  regra,  na  transcrição  de 
qualquer  dos  dois  ss  arábicos,  o  Iene  e  o  enfático,  ou  gutura- 
lizado,  que  aqui  represento  por  s.  Das  duas  línguas  hispânicas, 
ou  da  forma  alatinada  do  vocábulo  arábico,  zephirum  ou  ze- 
phyrum,  passou  a  palavra  ao  francês  ciffre,  deste  ao  inglês 
cypher,  e  ao  italiano  cifera,  do  qual  foi  transplantado  outra  vez 
para  França  com  a  forma  chiffre,  arremedo  do  toscano  cifera,  pro- 
nunciado tchifera,  pois  no  dialecto  veneziano  se  escrevia  zif(e)ra, 
e  se  proferia  tcíf(e)ra,  o  que  estava  mais  conforme  com  o  valor 
da  inicial  arábica  e  peninsular. 

Foi  Leonardo  de  Pisa  quem  no  século  xii  latinizou  este  vocá- 
bulo em  zephirum  ^  e  os  italianos  abreviaram-no  ao  depois  em 
zero,  talvez  primeiramente  pronunciado  tcèro,  mas  actualmente 
dzèro,  que  os  franceses  adoptaram,  acomodando  à  sua  pronun- 
ciação  a  escrita  italiana.  Em  português,  como  disse,  é  provável 
que  a  forma  zero  provenha  directamente  da  francesa  escrita,  com 
acomodação  igualmente  à  nossa  leitura.  Os  alemães  chamam-lhe 
nulle,  do  latim  nu  11  a,  «nada». 

Mássimo  Planúdio,  monje  grego  do  xiv  século,  escreveu  um 
livro,  que  intitulou  psêp'op'oeía  kat'  Indoús  [Cálculo  entre  os 
índios],  onde  diz,  a  respeito  dos  algarismos  o  seguinte: — «Há  só 
nove  figuras,  e  são  estas :  1.2.3.4.5.6.7.8.9,  e  teem  também 
outra  figura  que  chamam  tzíp'ka,  e  para  os  índios  esta  não  vale 


*     Conforme  Libri,  Histoire  des  Sciences  mathématiqites  en  Italie,  t.  ii, 
p.  29,  citado  por  F.  Woepke,  Mémoire  sur  la  propaGation  des  chiffres 
INDIEN8,  Paris,  1863,  do  qual  é  extratado  em  grande  parte  este  artigo. 
30 


306 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


nada,  e  as  nove  ditas  figuras  são  indicas,  e  a  tzíp'ra  escreve-se 
assim  O»  —  *. 

Portanto,  desde  o  xiv  século  estava  a  Europa  de  posse  do 
sistema  de  numeração  dos  índios,  com  as  formas  arábicas,  mo- 
dificação das  indianas,  e  das  quais  com  pequenas  diferenças  ainda 
usamos.  A  diferença  maior  é  que  num  dos  sistemas  arábicos,  o 
asiático,  o  algarismo  5  é  figurado  por  O»  ou  quási,  e  a  cifra  por 
um  ponto  ( • ).  Dos  árabes  os  receberam  os  gregos,  os  quais  os 
propagaram  pela  Europa,  que  adoptou  as  formas  mais  cursivas 
berberiscas,  consagradas  definitivamente  pela  imprensa. 

Os  romanos,  como  não  conheceram  a  cifra,  que  pela  sua  inser- 
ção entre  os  outros  algarismos  indica  o  valor  destes  no  sistema 
decimal,  usavam  uma  tabela  quadriculada,  chamada  aba  cus, 
ábaco  (em  grego  ábaks),  bastante  enjenhosa  na  realidade,  mas 
inferior  ao  uso  da  cifra  em  clareza  e  facilidade  para  o  cálculo.  Era, 
pouco  mais  ou  menos  como  a  figura  seguinte,  que  explico: 


1000000  100000  10000  1000   100   10 


1 

1 

1 

1 

i 

1 

1 

1 

1 

õ 

4 

i 

1 

7 

o 

2 

5| 

! 

4 

1 

1 

1 

1 

1 

1 

1 

1  Woepke,  oj).  cit,  p.  193-194.  O  texto  está  em  grego;  apresento-o  aqui 
traduzido  literalmente :  apenas  empreguei  os  algarismos  correntes  por  me  fal- 
tarem os  sinais  que  nesse  texto  foram  reproduzidos. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  307 


Onze 11 

Cento  e  um 101 

Mil  cento  e  um 1101 

Quinze  mil  e  quatro 15004 

Setecentos  e  três  mil  e  vinte  e  cinco     .      .  703025 

Quatrocentos  e  um  mil  e  um     ....  401001 

Um  milhão  dez  mil  e  cem 1010100 

Algarismo  é  vocábulo  também  arábico,  mas  deduzido  da 
forma  alatinada  algorismus,  que  na  Idade-Média  designava 
«compêndio  de  aritmética >,  e  procedeu  do  nome  do  autor  árabe 
de  um  desses  compêndios  *.  Cifra  no  sentido  de  «algarismo»  é 
palavra  afrancesada;  mas  é  muito  portuguesa  com  o  significado 
de  «escrita  enigmática»,  de  que  procede  decifrar. 


cigano 

Este  termo  é  já  antigo  na  língua,  pois  o  vemos  nas  Ordena- 
ções Felipinas,  no  Titulo  lxix  do  Livro  v;  —  «Mandamos  que 
os  Ciganos,  assi  homens  como  mulheres,  nem  outras  pessoas,  de 
qualquer  nação  que  sejão,  que  com  elles  andarem,  não  entrem 
em  nossos  Keynos  e  Senhorios» — . 

Gil  Vicente,  na  Faesa.  das  Ciganas,  imitou-lhes  o  falar 
castelhano  andaluzado  e  estranj eirado,  com  o  costumado  primor 
com  que  em  outras  peças  remedou  a  pronúncia  mourisca  e  a  dos 
negros  da  Gruiné,  bem  como  os  falares  provinciais  ^. 

Ciganas  designam  também  «brincos  para  as  orelhas»,  na- 
turalmente parecidos  com  os  usados  pelas  ciganas:  —  «As  es- 


1     Marcelo  Devic,  Suplemento  ao  Dicionário  francês  de  Littré,  sub.  v. 

ALGORITHMB. 

~  V.  A.  R.  Gonçálvez  Viana,  Deux  faits  de  phonologie  histori- 
QUE  PORTUGAISB,  Lisboa,  1892,  e  Corrbspoiídance  philologique  avec 
LE  Princb  L.  L.  Bonaparte  [em  1894],  in  «Revue  Hispanique»,  t.  vi,  p.  13 
e  32  (1S99). 


308  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


trellas,  annéis,  ciganas,  circules  ou  afogadores» — ^  O  Novo 
DiccioNÁKio  já  traz  o  vocábulo  neste  sentido  especial,  e  de- 
fine-o: — «arrecadas  de  um  só  pingente»  — .  A  definição  é  pouco 
clara. 

As  tribos  vagabundas  dos  ciganos  receberam  nomes  diversos 
em  cada  nação. 

Os  espanhóis  cbamam-llies  gitanos,  isto  é,  egitanos,  «do 
Ejipto»,  e  nome  idêntico  lhes  dão  os  ingleses,  Gypsies.  Os  fran- 
ceses denominaram-nos  Bohémiens,  naturalmente  porque  para  lá 
vieram,  ou  disseram  que  vinham,  da  Boémia.  Em  alemão  em 
italiano,  em  português,  zigeuner,  zingari,  ciganos,  o  nome  é 
étnico  deles  próprios,  conquanto  os  de  Espanha,  por  exemplo,  o 
não  usem  já,  substituindo-o  por  cincallés. 

É  pois  absurdo  designar  essas  tribos  em  português  com  o 
nome  de  boémios;  não  o  sendo  menos  disfarçar  a  palavra  cigano 
em  tsigano,  pois  o  italiano  zingari,  alemão  zigeuner,  ou  o  ro- 
meno tsigani,  com  os  sons  tç  iniciais,  nada  querem  dizer  que 
difira  essencial  ou  acidentalmente  do  termo  português,  o  qual, 
ao  contrário  do  que  acontece  em  francês,  inglês  ou  espanhol,  é 
a  denominação  lejítima  dessas  tribos,  já  usada  até  em  francês, 
com  a  forma  tsiganes,  desde  que  a  palavra  bohémiens  adquiriu 
a  acepção  de  «tunante,  estúrdio». 

Em  português  também  se  chamou  ao  cigano  ejipcio,  e  ejíta- 
nato  ^. 

cigarro;  cigarrinho 

Para  cigarro,  que  primeiro  quis  dizer  « charuto  >  em  portu- 
guês, como  no  castelhano  ainda  hoje,  veja-se  tabaco. 

Cigarrinho  em  Santa  Cruz,  ilha  da  Madeira,  é  o  nome  de 


1    O  Dia,  de  27  de  outubro  de  1903. 

»    J.  Leite  de  Vasconcelos,  Tradições  populares  portuguesas,  do 
SÉCULO  xviii,  in  «Revista  Lusitana >,  vi,  p.  294,  (q.  v.). 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  309 

uma  ave,  sylvia  compicillata,  conforme  Ernesto  Schmitz  [Die 
VõGEL  Madeiras]. 

Deve  ser  deminutivo  de  cigarra,  e  não,  de  cigarro. 

cimeiro 

Como  adjectivo  já  o  rejistou  o  Novo  Diccioxábio 
Na  Sertã  porta  cimeira  é  a  «porta  de  cima»,  por  oposição 
à  porta  da  rua. 

cipai(o) 

Este  vocábulo,  que  designa  «milícia  indíjena»  na  índia,  apa- 
rece escrito  por  modos  verdadeiramente  singulares,  entre  outros 
um  estravagante  sypaes,  com  y,  sem  se  saber  porquê,  por  exem- 
plo no  seguinte  trecho: — *Santobá  Ran  Banes...  cypae  da 
Companhia  do  Infante» — ^ 

O  vocábulo  é  persiano  sípahi,  sípai,  «hoste»,  que  parece 
provir  de  asp,  « cavalo »  ^.  Os  ingleses  escrevem  Sepoy,  Seapoy, 
e  lêem  sipói. 

cirata 

O  Novo  DiccioNÁEio  dá  a  este  vocábulo  como  significação 
—  «espécie  de  xairel»,  e  declara-o  desusado.  No  Suplemento 
ao  Vocabulabio  postuguez  e  latino  de  Bluteau  vem  um  artigo 
um  tanto  longo,  pelo  qual  se  pode  deduzir,  da  citação  que  faz, 
ser  já  obsoleto  no  seu  tempo  e  mesmo  no  de  Dom  Sebastião.  No 
entanto,  vemo-lo  ainda  empregado  no  seguinte  trecho:  —  «Esta 
dignidade    [de   camarista  de  Sua  Santidade],  alem  das  honras 


1  O  Século,  de  1  de  abril  de  1902. 

2  Yule  &  Burnell,  A  Glcssary  op  Anglo-Indian  Words,  1886, 
p.  612-613. 


310  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 

prelaticias  dá-lhe  o  direito  de  montar  uma  mula  branca  com 
cirata  vermelha,  e  esporas  de  ouro» — *.  Bluteau  traduz  por 
Pellis  ephippiaria.  José  Inácio  Eoquete,  que,  ua  sua  quali- 
dade de  eclesiástico  de  bastante  erudição  apropriada,  deve  ser 
considerado  autoridade,  no  Dictionnaire  portugais-fbançais  ^ 
declara  ser  a  significação  de  c/raía  — «bord  d'une  selle» — . 

cirieiro,  cerieiro;  círio,  cirial 

A  verdadeira  escrita  é  sem  dúvida  com  i  na  primeira  sílaba, 
pois  o  vocábulo  quere  dizer  «fabricante  de  círios».  Todavia,  a 
escrita  com  e  é  muito  antiga,  e  à  pronúncia  naturalmente  é 
devida,  pois,  como  é  sabido,  numa  série  de  sílabas  cuja  vogal 
seja  i,  somente  o  último  tem  este  valor;  os  das  sílabas  antece- 
dentes passam  a  valer  e  surdo  ^,  como  por  exemplo  militar,  mi- 
nistro, que  toda  a  gente,  à  excepção  de  um  pequeno  número  de 
pessoas  que  escolhem  para  seu  uso  pronunciação  afectada,  aí 
não  profere  o  i  da  sílaba  mi  com  o  seu  valor  alfabético.  Antiga- 
mente, mesmo,  escrevia-se  melitar,  como  se  escrevia  vezinho, 
que  é  a  verdadeira  ortografia  da  palavra.  Em  cerieiro,  por  ci- 
rieiro, influiu  também  a  palavra  cera,  visto  que  os  círios  eram 
e  são  fabricados  desta  substância — «Sabede  que  loham  Coelho 
e  Luís  Míz  e  Gill  Frz,  e  Manoel  Grill,  cerieiros  moradores  em 
essa  villa  de  Santarém» — *. 

Círio  tem  outra  acepção,  a  de  «romaria»,  que  provavelmente 
lhe  foi  dada  por  motivo  de  ser  levado  na  procissão  algum  círio 
bento. 


1    O  Economista,  de  24  de  setembro  de  1892. 
'^     Paris,  1855. 

3     V.  A.  E.  Gonçálvez  Viana,  Ortografia  Nacional,  Lisboa,  1904, 
p.  99-104. 

■*     Carta  réjia  de  D.  Afonso  v,  m  Portugália,  i,  p.  366. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  311 


O  Novo  DiccioNÁKio  dá  ao  vocábulo  terceira  acepção,  pois 
nos  diz  ser  nome  de  cacto. 

Quarta  acepção  diferente  de  todas  estas,  e  que  não  pode  ter 
a  mesma  orijem,  lê-se  na  Ethnographia  do  Alto  Alemtejo, 
de  J.  da  Silva  Picão  ^: — «Os  antigos  silos  (cirios)  ou  tulhas 
subterrâneas » — . 

Cumpre  não  confundir  cirial,  «tocheiro  portátil  em  que  se 
põe  o  círio >,  com  cereal,  «grão  paniíicável » ,  do  latim  cerea- 
lis  }  Ceres;  como  aconteceu  a  um  rejedor,  a  quem  o  adminis- 
trador do  concelho  pedira  uma  nota  dos  cereais  que  havia  em 
depósito  na  freguesia,  e  que  respondeu  em  ofício  não  lhe  constar 
haver  outros  ceriais  além  daqueles  que  acompanhavam  Xosso- 
-Pai,  quando  se  ia  levar  o  viático  aos  enfermos. 


citánia,  citaniense,  cidade,  cividade 

Este  termo  de  arqueolojia  prehistórica,  o  qual  desde  o  con- 
gresso de  1880  em  Lisboa,  e  em  resultado  dos  trabalhos  prepa- 
ratórios e  subseqiientes  com  ele  relacionados,  adquiriu  grande 
notoriedade,  é  do  seguinte  modo  descrito  por  pessoa  tam  com- 
petente como  José  Leite  de  Vasconcelos,  actual  director  do  Mu- 
seu Etnolójico,  acomodado  no  edifício  do  mosteiro  de  Belém: 
—  «Outras  designações  de  ruínas  são  cividade,  cidade  e  citá- 
nia. . .  A  etymologia  de  citania  tem  dado  que  fazer  aos  archeo- 
logos,  mas  ella  parece-me  simples,  salvo  melio7'i:  o  português 
cidadão  vem  de  um  derivado  latino  civitatanus . . . ;  ora  desta 
palavra  podia  formar-se  civitatania . .  .  » — -. 

Para  aceitar-se  este  étimo,  que  me  parece  muito  plausível, 
basta  considerar-se  que  do  latim  ciuitatem  procedeu  primeiro 
cividade,  que  ainda  persiste  neste  sentido  restrito,  e  que  civi- 


*  in  Portugália,  i,  p.  539. 

*  p.  62,  Colecção  de  Duvid  Corrazi,  Bibliotheca  do  Povo  e  das 
Escolas. 


312  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 

ãaãe  em  castelhano  se  reduziu  primeiro  a  cihdad  e  depois  a 
ciuãad,  o  contrário  de  Paulus  que  deu  Pablo;  e  assim  como 
de  cividaãe  proveio  o  actual  cidade,  assim  também  de  um  civi- 
tánia  resultou  citânia. 

Martinz  Sarmento  derivou  deste  substantivo  um  adjectivo: 
—  «firmariam  a  sua  dominação  sobre  os  Lígures  citanien- 
ses»  —  ^ 

O  vocábulo  cividade  é  também  empregado  por  Alberto  Sam- 
paio, conjuntamente  com  citânia: — «as  ruinas  dos  oppida,  co- 
nhecidas hoje  tradicionalmente  por  cividades,  citanias,  castros 
ou  crastos» — ^. 

Vê-se  que  são  sinónimos,  os  quais  ficam  deste  modo  definidos. 

civilista 

Este  neolojismo  foi  empregado  por  Duarte  Gustavo  Roboredo 
de  Sampaio  e  Mello,  num  projecto  de  lei,  apresentado  às  Cortes 
em  1  de  março  de  1900,  acerca  do  divórcio:  —  «Traduziu  elle 
[o  Código  Civil]  talvez  ao  tempo  da  sua  publicação  a  melhor 
obra  da  legislação  civilista  até  então» — . 

clamor,  cramor,  cramação 

O  Dic(!iONABio  Contemporâneo  já  definiu  esta  palavra  num 
sentido  especialíssimo  que  tem  no  norte  do  reino: — «Procissão 
de  preces  em  que  os  fieis  vão  rezando  alto  em  coro» — .  E  o 
pardon  da  Bretanha  Francesa. 

Todavia,  a  forma,  pela  qual  ó  conhecida  a  dita  procissão,  não 
é  a  literária  que  dá  o  dito  dicionário,  mas  sim  cramol  (cf.  frol, 
do  latim  flore)  e  caramol  (cf.  carapinteiro,  por  carpinteiro). 


*     Portugália,  i,  p.  12. 

2    As  «  ViLLAS»  DO  Norte  de  Portugal,  in  Portugália,  i,  p.  107. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  313 

Sobre  estas  procissões  típicas  veja-se  Portugália,  i,  páj.  624 
6  664: — <Mais  do  que  os  clamores,  cramoes  ou  caramoes,  accu- 
sam  os  cercos. . .  vestigios  menos  distantes  de  religiosidade»  — . 
Na  ilha  da  Madeira  cramação  quere  dizer  «clamores,  grita- 
ria » . 


clan 


Esta  palavra  escocesa  (clann  «filhos»,  «projénie»)  muito 
usada  em  Inglaterra,  onde  a  tornaram  conhecida  as  afamadas 
novelas  de  Grualtério  Scott,  passou  também  para  França,  e  de  lá 
foi  trazida  a  Portugal  por  intermédio  da  literatura,  mesmo 
científica,  com  a  pronúncia  errada  clã,  sendo  que  a  verdadeira  é 
cláne. 

Se  o  vocábulo  se  aplica  a  escoceses,  tem  êle  cabimento;  o  que 
é  abuso  é  trasladá-lo  a  outras  tribos  de  constituição  mais  ou 
menos  análoga  à  dos  serranos  da  Alta-Escócia  (Highlanders),  de 
orijem  e  linguajem  céltica. 

Acerca  desta  expressão  escrevi  eu  a  nota  seguinte  na  Selecta 
INGLESA  DE  LEITURAS  FÁCEIS,  apiovada  para  o  ensino  do  inglês 
nos  nossos  liceus,  comentando  a  expressão  the  clan  of  Mac  Do- 
nald  do  texto:  —  «da  grei  de  Mac-Donald. . .  O  vocábulo  clan 
corresponde  ao  gens  latino  e  designa  na  Alta-Escócia,  entre  as 
populações  que  falam  gael,  uma  «parentela  inteira»,  um  ajunta- 
mento de  famílias  que  obedecem  á  autoridade  de  um  único  chefe, 
e  usam  appellido  commum  a  todas  ellas,  presumindo-se  descende- 
rem de  um  só  avoeugo.  Assim,  em  Mac-Donald,  esse  avoengo 
chamava-se  Donald,  e  Mac  significa  «filhos»,  «progénie».  O  vo- 
cábulo clan  é  em  inglês  applicado  a  grupos  de  famílias  de  cons- 
tituição análoga  em  outros  povos,  e  os  franceses  já  o  adopta- 
ram»— '. 

Ora,  em  português  podemos  dizer  «parentela»  ou  «grei>, 
para  evitarmos  o  neolojismo.  Em  sentido  muito  semelhante  usou 


1    Lisboa,  1897,  p.  2:30. 


314  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


Gabriel  de  Annunzio,  com  relação  à  rejião  dos  Abruzos,  o  termo, 
talvez  local,  parentaão  ^ 

Qualquer  que  seja  a  ortografia  que  se  adopte,  é  absurdo  es- 
crever, como  é  muito  comum,  o  vocábulo  grei  }  grex,  gregis, 
com  y,  grey,  quando  se  escrevem  com  i  lei  \  lex,  legis,  e 
rei  \  rex,  regis. 

claro 

Este  vocábulo,  como  substantivo,  significa  «intervalo»,  mas 
tem  sentido  muito  especial  no  trecbo  seguinte:  —  «Aos  claros, 
que  constituem  as  extremidades  das  redes,  pendem  as  cordas, 
cabos  de  linbo,  cada  um  com  30  ou  40'"  de  comprimento» — -. 

clises 

É  termo  de  jíria  e  significa  « olhos » ;  daí  procede  o  verbo 
clisar,  por  « olhar » .  E  o  calo  clisé  « olho » ,  com  deslocação  do 
acento  para  a  1.*^  sílaba. 

coa-das-pichas 

—  «Alem  destas  [redes  envolventes  volantes]  usam  os  pesca- 
dores do  Mondego  uma  outra  a  que  chamam  Coa  das  pichas^  — ^. 

cobrinha 

No  concelho  de  Vila  Nova  de  Ourém  este  deminutivo  de 
cohra  aplica-se  como  nome  ao  que  chamamos  alfavaca  de  cobra, 
isto  é,  à  parietaria. 


1  La  Figlia  dIorio. 

2  P.  Fernández  Tomás,  A  PESCA  em  Buarcos,  in  Portugália,  i, 
p.  151. 

3  Portugália,  I,  p.  330. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  315 


cocho;  copo;  coche 

Conforme  J.  Leite  de  Vasconcelos  este  vocábulo,  que  serve 
para  designar  um  < tabuleiro  para  transportar  cal  amassada»,  é 
uma  forma  latina,  cop(u)lum,  metátese  de  poculum,  copo. 
Este  último  será  talvez  um  alótropo  do  mesmo  vocábulo  latino 
poculum,  que  tivesse  antes  passado  pela  forma  intermediária 
cópoo,  com  manutenção  excepcional  do  p  intervocálico,  por  ser  a 
forma  semi-erudita. 

A  palavra  coche,  «carruajem  de  estadão»,  é  porém  de  orijem 
húngara,  kocsi  (=cóchi). 


codeão 

No  Alentejo  significa  este  aumentativo  de  côdea  «terra  en- 
durecida pela  geada»  ^ 


coicao 

Na  Beira-Baixa  tem  este  nome  « a  parte  do  carro  que  assenta 
no  eixo»  *. 


colcha,  colchão;  côcedra,  côzedra,  cocêdra,  cozêdra;  coxim 

Os  vocábulos  3.°,  4,*',  õ."  e  6."  são  alótropos,  formas  diverjen- 
tes  do  latim  culcitra;  se  porém  a  acentuação  dos  dois  últimos 
era  na  segunda  sílaba,  o  que  me  parece  menos  provável,  atenta  a 
forma  italiana  cóUrice,  com   metátese,  por   cólcitre,  temos  de 


*    J.  Leit3  de  Vasconcelos,  Revista  Lusitana,  ii,  p.  22. 
2     Informação  do  editor,  natural  de  Almeida. 


316  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


supor  como  étimo  deles  uma  forma  deminutiva  culcitula  que 
desse  cocêãra.  Com  respeito  à  queda  do  l,  confronte-se  doce  de 
dulcem. 

Colchão  é  simples  aumentativo  de  colcha,  que  pressupõe  uma 
violenta  absorção  da  sílaba  medial  cí  do  deminutivo,  ou  outra 
forma  culcita  igualmente  dificultosa.  Kõrting  ^  propõe  também 
que  sejam  derivados  de  collocare,  castelhano  colgm\ 

Coxim  será,  segundo  o  parecer  do  mesmo  autor,  o  latim 
culcitinum,  o  que  também  apresenta  dificuldades. 


colheira 

Esta  peça  dos  arreios  das  cavalgaduras  veio  provavelmente 
de  Espanha,  onde  se  chama  collera  (pron.  colhera)  \  cuello 
(pron.  cuelho),  « colo » ;  em  português  deveria  dizer-se  coleira, 
tanto  a  do  cavalo,  como  a  do  cão. 

A  pronúncia  coelheira  é  viciosa,  pois  o  vocábulo  nada  tem 
que  ver  com  coelho,  que  em  castelhano  é  conejo. 


combo 
África  Oriental  Portuguesa:  «infelicidade»  ^. 

comédias 

Na   praia   da  Nazaré  ouvi  assim  denominar  a   «praça  dos 
arlequins » . 


1  Lateinisch-romanisches  Wõrterbuch,  Paderborn,  1890,  n.***  2013 
e  2813. 

2  Diocleciano  Fcrnández  das  Neves,  Itinerário  de  uma  viagem  á 
CAÇA  DOS  ELEPHANTES,  Lisboa,  1S7B,  possim. 


Aimstilas  aos  Dicionários  Portugueses  317 


cómodo 

—  «O  conjunto  de  herdades  que  constituem  uma  lavoira 
designa-se  por  cómmodo»  —  ^ 

Confronte-se  o  emprego  do  mesmo  vocábulo  para  designar 
os  « repartimentos  de  uma  habitação». 


companha 

—  «As  companhas  são  grupos  de  pescadores  que  se  reúnem 
para  exercerem  a  industria  da  pesca,  e  se  compõem' de  um  chefe, 
o  arraes,  e  dos  companheiros» — -.  Conforme  J.  Leite  de  Vas- 
concelos deriva-se  do  verbo  companhar  \  cumpaniare  }  cum 
-f-  panis  ^  «pão». 

comparança 

Este  substantivo,  formado  de  comparar,  como  esperança  de 
esperar,  não  vem  nos  dicionários,  e  todavia  êle  concorre  popular- 
mente em  todo  o  reino  com  o  literário  comparação:  o  mesmo 
acontece  com  declareza,  a  par  de  declaração. 


compassar 

Eis  aqui  um  sentido  muito  especial  deste  verbo:  —  «Quando 
o  atirador  queria  fazer  uso  do  arcabuz,  abria  a  caçoleta,  «com- 


1    J.  da  Silva  Picão,  Ethnographia  do  Alto-Alemtejo,  in  Por- 
tugália, I,  p.  271. 

'    ib.  P.  Fernández  Tomás,  A  pesca  em  Buarcos,  p.  154. 
3    Eevista  Lusitana,  ii,  p.  33. 


318  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


passava»   a  mecha,  isto  é,  dava-lhe  o  comprimento  sufficiente 
para  chegar  á  caçoleta,  apertava  o  gatilho,  e  o  tiro  partia  >  —  ^ 


coudessar,  condessa,  condessilho 

No  Suplemento  ao  Novo  Diccionário  vemos  o  verbo  conde- 
çar,  nos  seguintes  termos: — «(ant.)  guardar,  pôr  em  depósito. 
(De  condeça)y> — . 

Santa  Rosa  de  Viterbo  traz  efectivamente  como  antigo  o  verbo 
condesar: — «Guardar."  Daqui  Condessa,  ou  Condessilho:  aquillo, 
em  que  alguma  cousa  se  guarda. — Condessilho:  o  mesmo  que 
Deposito,  segundo  Duarte  Nunes  do  Lião» — ^. 

Na  realidade,  o  filólogo  citado  por  Viterbo  inclui  na  lista  do 
cap.  XVII  da  Origem  da  lingoa  portuguesa,  como  antigo,  o 
indicado  condessilho. 

A.  A.  Cortesão,  no  Aditamento  aos  Subsídios  para  um  dic- 
cionário   COMPLETO    DA   LÍNGUA   PORTUGUESA,    diz-UOS  : «  COU- 

dessa  ou  condessa ...  [o  arch . . .  condesar,  do  hisp.  condesar 
(do  latim  cõndére. .  .) — emende-se  [na  obra]: — o  arch.  eondes- 
sar,  do  hisp.  condesar,  do  latim  condère. .  .].  Cf.  também  o 
hisp.  condensa  (do  latim  condensa),  logar  onde  se  guarda  alguma 
coisa,  por  exemplo,  a  despensa,  o  guarda-roupa,  etc.  >  — . 

A  parte  a  preocupação  do  autor  deste  utilíssimo  repositório 
em  converter  o  castelhano  numa  espécie  de  crivo  pelo  qual  o 
latim,  o  árabe,  o  germânico,  etc.  hão  de  passar  para  chegarem  ao 
português,  teoria  evidentemente  errónea,  pois  o  português,  se  não 
é  mais  antigo,  é  contemporâneo  do  castelhano  em  toda  a  sua 
evolução,  que  é  mais  fiel  quási  sempre  às  formas  orijinais;  à 
parte  este  senão,  repito,  o   autor  deixou  a  claro  a  orijem  do 


1  Portugália,!,  p.  603. 

2  Elucidário  dos  termos  e  frases  que  antiguamente  se  usa- 
rão, Lisboa,  1798. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  319 


vocábulo  condessa  (com  ss,  e  não  ç)  e  do  verbo  deste  derivado, 
conãessar. 

Como  não  tenlio  ao  meu  alcance  abonação  portuguesa,  e  as 
tenho  castelhanas,  darei  estas: — «Dicen  que  un  religioso  habia 
cada  dia  limosna  de  casa  de  un  mercader  rico,  pan  é  mantega  é 
mil  otras  cosas,  et  comia  el  pan,  é  lo  ai  condesaba,  e  ponia  la 
miei  e  la  manteca  en  una  jarra»  —  ^.  C  a  mi  sienpre  me  tienew 
ornado,  |  de  Qnixo  en  buenas  cubas  co?idesado  -. 

E  claro  que  condessa,  no  sentido  de  « cesta  de  verga,  de  forma 
circular  ou  oval,  sem  asa,  e  com  tampa  ligada»,  nada  tem  que 
ver  com  outro  vocal) ulo,  condessa,  femenino  de  conde  \  comitem. 


confeito;  confetti 

Este  particípio,  do  verbo  confazer,  do  qual  se  derivou  o 
verbo  confeitar,  que  produziu  confeiteiro  e  confeitaria,  (no 
norte,  doceiro,  doçaria)  não  está  colijido  nos  dicionários,  nem 
como  particípio,  nem  como  adjectivo;  todavia,  vemo-lo  muito 
bem  empregado  nesta  última  categoria  por  F.  Adolfo  Coelho, 
no  seguinte  passo: — «Não  sei  quando  começaram  a  preparar 
era  Portugal  amêndoas  confeitas» — ^. 

Bluteau  no  mesmo  sentido  usou  confeitado. 

Confeito  como  substantivo,  designando  uma  espécie  de  pasti- 
lha doce,  esférica,  deve  ser  imitação  do  italiano  confeito,  plural 
confetti. 

Em  Portugal  era  uso,  e  não  sei  se  ainda  o  é,  arremessar 
confeitos  aos  noivos,  ao  saírem  da  igreja,  e  em  Itália  servem 
eles  de  projéctil  para  jogar  o  entrudo.  A  moda  passou  a  França, 
onde  à  imitação  se  fabricam  uns  discos  de  papel  de  várias  cores, 


1  Biblioteca  de  autores  espanoles,  tomo  li,  p.  57,  col.  i.  —  Calila  É 
Dyxna. 

*  Dbsuejstos  DEL  AGUA  Y  EL  viNO,  texto  do  xiii  século,  hl  <  Revue 
Hispaniquo,  xiii,  p.  617. 

3    A  PEDAGOGIA  DO  POVO  PORTUGUÊS,  iti  Portugália,  I,  p.  484. 


320  Apostilas  aos  Dicionários  Porhigueses 

menos  contundentes  e  mais  baratos  que  os  verdadeiros  confeitos 
italianos.  Vieram  para  cá  os  tais  discos  substituir  os  afamados 
papelinhos  nacionais,  e,  como  aos  franceses  não  chega  a  língua 
para  pronunciarem  correctamente  o  italiano  confétti,  estropia- 
ram-no  em  confetí,  parvuíce  que  também,  por  ser  francesa,  se 
espalhou  em  Lisboa,  entre  a  gente  que  presume  de  tina. 

A  se  não  querer  adoptar  o  nome  muito  português  e  tradicio- 
nal papelinhos,  o  que  temos  a  fazer,  o  que  faz  quem  quere  falar 
português  em  Portugal,  é  dizermos  confeitos,  designando  com 
este  termo  não  só  os  doces,  mas  a  sua  imitação,  tal  qual  fazem 
os  italianos  ao  seu  co7ifeUo. 

E,  a  propósito  deste  singular,  sempre  desejaria  saber  se  os 
que  acentuam  confettí,  dirão  no  singular  confétti,  ou  confettó!. 

congosta,  cangosta 

Este  vocábulo,  cuja  forma  mais  correcta  é  cangosta,  porém 
a  mais  usual  congosta,  é  um  exemplo  muito  característico  de 
polissíntese  em  português.  E  um  composto,  por  elisão  da  sílaba 
final  no  primeiro  elemento  e  da  sílaba  inicial  no  segundo,  pois  o 
seu  étimo  é  canale  e  angosta  ^  de  que  resultou  canalan- 
gosta  j  canangosta  j  cãangosta  \  cangosta  \  congosta,  por  fim, 
em  virtude  de  assimilação  da  vogal  da  primeira  sílaba  à  da  se- 
gunda. Cf.  para  a  última  destas  formas  ò  contracção  de  ao: 

Condensação  das  várias  sílabas  de  um  vocábulo  exemplifica 
também  quelha  \  canalicula  j  canaUlha  \  canalelha  \  cãale- 
Iha  \  cãelha  \  caelha  j  quelha. 

consertador 

—  «Para  as  redes  de  arrasto  ha  mesmo  um  certo  numero 
de  indivíduos  a  que  chamam  redeiros,  atadores  ou  concertadores, 


J.  Leite  de  Vasconcelos,  Revista  Lusitana,  iv,  p.  273. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  321 


que  exclusivamente  se  dedicam  a  este  serviço  na  época  de  mais 
abundância  de  peixe» — *. 

O  serviço  aqui  mencionado  é  o  de  «consertar  e  encascar> 
as  redes,  isto  é,  de  emendá-las  e  tinji-las. 

Sobre  a  escrita  deste  verbo  consertar,  de  consertus,  par- 
ticípio  pretérito  passivo  de  conserere,  diferente  de  concertar, 
de  que  deriva  concerto,  < ajuste,  combinação»,  veja-se  Obto- 
GBAFiA  Nacional  *,  páj.  121. 

consoar 

Este  verbo,  conforme  D.  Carolina  Michaêlis  de  Vasconcelos, 
deriva-se  de  cum  -f-  suh  -\-  unare,  e  consoada,  de  cum  -|-  sub 
-f-  un  4~  3'^3,,  sendo  -ata  a  terminação  femenina  do  particípio 
pretérito  passivo  do  dito  verbo  ^.  Estanislau  Prato  propusera 
consonata,  ao  que  se  opõe  a  locução  de  consum,  «em  comuni- 
dade».—  «Consoámos  por  ser  dia  de  quaresma  e  jejum» — *. 
Consoar,  como  pode  ver-se  nos  dicionários,  quere  dizer  «tomar 
uma  refeição  leve,  por  preceito  relijioso». 

Cf.  assuada,  que,  conforme  a  mesma  abalisada  romanista, 
provém  de  ad  -|-  sub  -j-  uno  ^. 


conto,  conta,  contaria 

A  unidade  de  contajem  de  cereal  em  rama  usada  em  Trás-os- 
-Montes  é  a  pousada,  que  se  compõe  de  quatro  molhos.  O  termo 
é  próprio  dos  arredores  de  Bragança.  O  cereal  em  grão  tem  por 


1  F.  Fernández  Tomás,  A  pesca  em  Buarcos,  in  Portugália,  i, 
p.  383. 

2  Lisboa,  1904. 

3  Eevista  Lusitana,  t,  p.  124,  130;  m,  362,  365. 

*    António  Francisco  Cardim,  Batalhab  da  Companhia  de  Jesus, 
Lisboa,  1894,  p.  80. 

5    Revista  Lusitana,  i,  p.  130. 

.21 


322  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


unidade  a  conta,  que  é  igual  a  quarenta  alqueires,  isto  é,  uns 
seis  hectolitros. 

Uma  singularidade  da  mesma  rejião  é  o  número  20,  tomado 
como  básico  para  a  contajem,  à  maneira  do  vasconço  oguei,  do 
francês  vingt,  do  dinamarquês  tyve. 

Deste  modo  oitenta  diz-se  quatro  vezes  vinte,  em  francês  qiiar 
tre-vingts,  em  dinamarquês  fiirsindstyve,  « quatro  vezes  vinte » ; 
em  vasconço  lauroguei,   «quatro  vintes»,  de   lau(r)  «quatro». 

A  expressão  conto  só  hoje  se  emprega,  com  a  significação  de 
«milhão»,  com  referencia  a  dinheiro,  equivalendo  um  conto  de 
réis  a  «um  milhão  de  réis». 

Bluteau  *  insiste  em  que  cojito  não  é  mais  que  milhão,  e  que 
conto  se  diz  de  réis,  e  milhão,  de  cruzados,  censurando  o 
Padre  António  Vieira,  porque  os  diferençou. 

Fernám  Méndez  Pinto  -  diz-nos :  — « São  estas  fejras  ambas 
francas  e  livres,  sem  pagarem  nenhum  direyto,  pela  qual  causa 
concorre  a  ellas  tanta  gente,  que  se  afirma  que  passa  de  três 
contos  de  pessoas»  — . 

(iQuis  o  autor  dizer  «três  milhões  de  pessoas»? 

Assim  parece,  se  compararmos  esta  expressão  de  número  com 
a  que  se  lhe  segue:  —  «E  porque,  como  disse,  os  trezentos  mil 
homens  que  estão  em  depósito  nesta  prisão  andão  todos  soltos » — . 
Se  só  presos  eram  trezentos  mil,  não  é  de  admirar  que  dez  vezes 
esse  número  fosse  a  gente  livre  que  à  feira  concorria.  Passa-se 
isto  na  China,  o  que  deve  diminuir  o  espanto  que  nos  causaria 
tamanha  concorrência. 

Acerca  do  termo  conto  num  sentido  especial,  transcrevo,  por 
ser  perfeita  a  definição  e  a  demonstração  da  orijem,  o  seguinte 
trecho  do  notável  estudo  de  Alberto  Sampaio,  intitulado  As 
«ViLLAs»  DO  NORTE  DE  Poetugal: — « Os  mcsmos  bens  doados 
não  eram  privilegiados  senão  por  graça  real,  pois  era  o  rei  quem 
os  contava  ou  honrava,  prescindindo  dos  direitos  de  que  fazia 


1  Vocabulário  portuguez  e  latino. 

2  Peregrinação,  cap.  cviii. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  323 


mercê;  estes  contos  ou  honras,  onde  em  geral  não  entram  os 
mordomos  reaes,  conteem  talvez  os  germens  dos  concelhos,  cujos 
foraes  ou  cartas  serão  também  dados  pela  coroa  > — ^ 

A  palavra  conta  é  muito  portuguesa,  no  sentido  de  «globo 
pequeno  de  vidro,  louça,  madeira,  ou  outra  substância,  furado 
para  se  enfiar». 

O  nome  provém-lhe  naturalmente  dos  globos  dessa  natureza 
empregados  nos  rosários,  para  « contar »  maquinalmente  as  ora- 
ções que  se  vão  rezando,  correndo-se  as  contas  a  uma  e  uma 
pelo  fio  ou  cordão  em  que  estão  encarreiradas. 

Toma.  como  objecto  de  enfeite,  diversos  epítetos  que  a 
qualificam.  Aqui  está  um  não  colijido: — «Conta  de  leite:  Grlobulo 
de  ágata,  de  côr  leitosa  e  azulada.  Amuleto  para  manter  abun- 
dante o  leite  ás  mulheres  que  criam  > — ^. 

Contaria  é  um  colectivo,  uma  ou  muitas  «enfiadas  de  con- 
tas^. 

convidar,  convite 

Estes  dois  vocábulos  tinham  dantes  a  acepção -de  «obsequiar, 
presentear,  presente,  banquete»,  cuja  reminiscência  ainda  hoje 
em  dia  perdura  ironicamente: — «o  Taboada,  um  bailão  ali  do 
sitio,  convidou  o  Navalhadas,  seu  collega,  com  duas  ditas  no 
peito» — 3. 

Abonação  antiga  é  a  seguinte:  —  «ainda  oje  ey  de  cear  hú 
pedaço  dessa  tua  carne,  cõ  que  ej  de  convidar  dous  cães  que 
tenho» — *. 

Em  Rui  de  Pina,  Cbónica  de  El-eei  Dom  Afonso  v,  lê-se: 
—  «E  houve  aquelle  dia  convite  real  de  vinhos  e  fruitas,  em 


1  in  Portugália,  i,  p.  579. 

2  Portugália,  I,  p.  619. 

3  O  Economista,  de  22  de  agosto  de  1885. 

^  Fernám  Méndez  Pinto,  Peregrinação,  cap.  cxcviii. 


324  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


uma  notável  perfeição,  e  assi  muitas  danças  e  festas  em  toda  a 
noite»  —  K 

copa 

Na  acepção  ordinária  copa,  como  « arrecadação » ,  só  se  aplica 
ao  móvel  ou  quarto  onde  se  põem  a  resguardo  comidas,  louças 
ou  trem  de  mesa. 

No  Alentejo  porém  o  significado  é  diferente,  como  vemos 
do  trecho  seguinte: — «tudo  aquillo  está  em  desordem,  assim 
como  a  copa  (vestuário)» — ^. 


copa,  copo 

Em  Caminha,  e  provavelmente  em  outros  pontos  do  Minho, 
o  vocábulo  co2)o  corresponde  ao  vaso  que  mais  para  o  sul  se 
denomina  caneca,  isto  é,  vaso  cilíndrico,  de  maior  altura  que 
diâmetro,  munido  de  asa. 

Como  termo  de  pesca  é  uma  peça  da  rede,  e  também  nome 
de  uma  rede:  —  «Destes  apparelhos  o  mais  usado  em  Buarcos 
é  o  copo — que  serve  para  a  pesca  do  camarão» — ^. 

Copa,  pelo  que  hoje  chamamos  cojyo,  taça,  vêmo-lo  em  Kui  de 
Pina: — «o  Infante  Dom  Fernando,  por  melhor  justador,  venceu 
então  o  grado,  que  foi  uma  rica  copa,  de  que  fêz  logo  mercê  a 
Diogo  de  Mello» — *. 

Hoje  diz-se  para  aí  reeord,  à  inglesa,  e  não  grado,  que  seria 
uma  vantajosa  substituição  do  anglicismo,  pronunciado  à  fran- 
cesa, recór.  Então,  como  actualmente,  era  uma  taça  o  prémio 
grande. 


*  cap.  cxxxi. 

2  José  da  Silva  Picão,  Ethnographia  do  Alto-Albmtejo,  iw  Por- 
tugália, I,  p.  542. 

3  Fernández  Tomás,  A  pbjsca  bm  Buarcos,  i«  Portugália,  i,  p.  152. 

*  Crónica  de  El-rbi  Dom  Afonso  v,  cap.  cxxxi. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  325 


coração;  coração 

E  conhecido  em  quási  todas  as  suas  acepções  o  primeiro 
destes  dois  vocábulos. 

Em  dois  sentidos  porém  não  está  colijido,  que  eu  saiba,  e  de- 
duzem-se  dos  trechos  seguintes:  —  «Possuímos  alguns  d'esses 
pesos,  corações  como  as  tecedeiras  lhes  chamam»  — ,  São  pesos 
de  tear,  em  forma  de  coração.  —  «Quando  Physicus,  há  dias,  nos 
ensinou  que  a  forquilha  tem  onze  paus,  a  tipografia  partiu  um 
delles,  e  não  nomeou  o  principal, — o  coração,  em  que  se  implan- 
tam os  dentes  e  o  cabo  K 

O  segundo  é  um  neolojismo,  derivado  do  verbo  corar  (=^ co- 
rar), que  tem  de  ser  diferençado  do  primeiro,  porque  a  pronun- 
ciação  do  o  é  diversa,  proferindo-se  aberto,  entanto  que  o  de 
coração  soa  como  u: — «Entrevíamos  um  bacillo  que  microscopi- 
camente revestia  a  morphologia  do  da  peste — ^curto,  atarra- 
cado, coração  bipolar,  espaço  branco  intermédio» — ^.  Este  tre- 
cho, em  que  as  palavras  tomam  acepções  desusadas,  não  é  de- 
certo modelo  de  boa  linguajem;  apesar  disso,  porém,  o  vocábulo 
coração,  por  coloração,  está  bem  derivado  do  verbo  corar,  e 
merece  rejisto.  Quanto  a  morphologia,  que  não  quere,  nem  quis 
nunca  dizer  «forma»,  mas  sim  teoria  das  formas,  ou  das  for- 
mações, não  pode,  nem  deve  figurar  em  dicionários  naquela 
acepção.  Singular  é  também  o  epíteto  atarracado,  aplicado  a  um 
organismo  só  visível  por  microscópio. 


coral 


Os  dicionários  não  mencionam  que  este  nome,  não  só  designa 
o  «coral  verdadeiro»,  mas  também  o  falso,  mesmo  sem  aposição 


1     DiAKio  DE  Noticias,  de  7  de  dezembro  de  1905. 

*     Ricardo  Jorge,  A  pkste  buboxica  no  Porto,  1899,  p.  44. 


326  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


deste  epíteto,  que  é  indispensável  que  acompanhe  pérola,  quando 
ela  não  é  verdadeira.  Assim,  ainda  com  epíteto  que  o  realça, 
coral  fino  denota  apenas  «imitação  do  coral  verdadeiro»,  como 
quando  denomina  uma  contaria,  coral-fino  Mareia,  que  se  lia 
num  anúncio  publicado  no  jornal  O  Economista,  de  4  de  no- 
vembro de  1882. 


coriscar,  corisco 

É  conhecido  o  étimo  deste  verbo,  que  poderia  ser  considerado 
como  derivado  de  corisco,  quando  a  verdade  é  que  se  deu  o  caso 
contrário.  Coriscar  procede  do  latim  coruscare,  com  dissimi- 
lação  da  vogal  átona  da  segunda  sílaba,  com  relação  ao  o  da 
primeira;  corisco  é  um  nome  verbal  rizotónico,  derivado  de  coris- 
car, já  dentro  do  português. 

Corisco,  não  só  na  Bairrada,  como  diz  o  Novo  Diccioííá- 
Eio,  mas  também  em  outros  pontos  e  no  Brasil,  é  o  que  em 
geral  o  povo  chama  pedra-de-raio. 


corja 


Esta  palavra,  que  actualmente  signiíica  apenas,  em  sentido 
pejorativo  e  ofensivo,  o  mesmo  que  <^ matula»,  (q.  v.),  «quadri- 
lha» (espanholismo),  «turba»,  é  declarado  termo  da  índia,  com 
a  significação  de  «vinte»,  no  Vocabulário  portuquez  e  latino 
DE  Bluteau  (1712).  Vê-se  pois  que  há  dois  séculos  ainda  não 
havia  adquirido  o  sentido  deprimente  que  ao  depois  prevaleceu: 
— « Sinalou-lhes  dez  Corjas  de  cotonias.  São  cotonias  lenço  da 
terra,  que  serve  para  vestido.  A  Corja  he  numero  de  vinte- 
3.  part.  da  Hist.  de  S.  Doming.  pag.  337»  —  .  V.  cotonia. 

Era  pois  corja  um  dos  freqiientes  nomes  numerativos,  equi- 
valentes aos  nossos  dúzia,  conto,  mão,  etc,  tam  usados  em 
muitas  das  línguas  asiáticas,  e  nomeadamente  nas  do  sul  da 


Apostilas  aos  Dicioiíãrios  Portugueses  327 


índia,  nas  malaias,  na  japonesa,  mas  também  em  persiano,  con- 
quanto pertencente  à  grande  família  árica. 

A  etiraolojia  é  questionável,  como  vemos  no  Glossário  de 
Yule  &  Burnell  ',  atribuiudo-se-lhe  uma  orijem  telinga  (draví- 
dica),  e  outra  arábica. 

Em  Fernám  Méudez  Pinto  ocorre  este  vocábulo  pelo  menos 
duas  vezes  -,  e  muitas  em  todos  os  nossos  cronistas  da  Ásia. 


cornaca 

É  antigo  já  na  língua  este  termo,  o  qual  significa  « a  pessoa 
que  vai  guiando  o  elefante»,  na  índia. 

Bluteau  traz  o  vocábiúo,  com  duas  abonações  portuguesas, 
na  inscrição  Coenaca,  e  emprega-o  também  na  inscrição  Ele- 
fante. 

O  Glossário  de  Yule  &  Burnell  ^,  citando  o  dr.  Rost,  dá 
como  étimo  o  cingala  kuraica-nãyaka  [RúEaua-xãiaxa],  cuja 
significação  é,  segundo  declara,  «maioral  de  elefantes». 

Vê-se  pois  que  não  é  galicismo  esta  palavra,  visto  que  existe 
em  português  desde,  pelo  menos,  1685,  data  da  segunda  cita- 
ção feita  pelos  ditos  indianistas,  extraída  da  Fatalidade  His- 
tórica, de  J.  Ribeiro.  Galicismo  é  a  abreviação  cornac,  que  às 
vezes  se  lê,  em  ruins  traduções  de  francês. 

Xa  edição  da  História  Trájico-Marítima,  de  Bernardo  Gómez 
de  Brito,  publicada  recentemente  na  Bibliotheca  de  Clássicos 
portuguezes,  no  vol.  xli,  duas  vezes  se  imprimiu  comaca  em 
vez  de  cornaca,  a  páj.  82  e  83. 


1  A  Glossary  of  Anglo  Ixdian  words  axd  phrasbs,  Londres,  1886, 
sub.  V.  corge. 

»    Peregrixação,  cap.  Lxxin  e  clxvu. 

3  A  Glossary  op  Anglo  Indiax  words  and  phrases,  Londres, 
1886. 


328  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


corneta 


Como  termo  de  jíria,  já  antigo,  quere  dizer  «cara: 


«  Venha  cá,  senhor  malhado, 
Meta  a  mão  nesta  gaveta, 
Dê  vivas  a  Dom  Miguel, 
Senão,  parto-lhe  a  corneta >, 


coroa 


—  «Todos  [os  barcos]  são  de  fundo  chato — o  que  é  imposto 
pela  natureza  do  leito  da  ria,  de  grandes  espraiados  e  cheia  de 
bancos  de  areia  ou  coroas» — K 

E  esta  uma  acepção  da  palavra  c(o)roa  que  os  dicionários 
não  rejistam,  e  por  isso  aqui  fica  apontada. 


coroca,  palhota,  palhoça,  capa-de-palhas,  capa  palhiça 

Esta  capa,  usada  tanto  em  Portugal,  como  na  Nova  Caledó- 
nia, como  no  Japão,  donde  provavelmente  veio  para  cá  no  sé- 
culo XVI  ou  XVII,  já  motivou  esta  nota  a  páj.  170,  do  livro 
de  Jouan  Les  íles  du  Pacifique  ^: — «Les  Japonais  et  les 
paysans  du  Portugal  ont  des  manteaux  tout-à-fait  semblables» — . 

Veja-se  um  artigo  que  publiquei,  sobre  a  língua  do  Japão, 
no  jornal  O  Século,  de  8  de  agosto  de  1904,  no  qual  me  referi 
a  este  especialíssimo  abrigo;  v.  também  a  palavra  dáimio. 


1  Luís  de  Magalhães,  Os  barcos  da  ria  de  Aveiro,  in,  Portu- 
gália, II,  p.  53. 

2  vol.  Lxv  da  BiBiiiOTHÊQUB  Utilb. 


Apostilas  nos  Dicionários  Portugueses  329 


coroplasta 

É  um  neolojismo,  que  Kocha  Peixoto  empregou  na  sua  mo- 
nografia intitulada  As  olaeias  do  Prado,  tiraudo-o  imediata- 
mente do  francês  coroplaste,  vocábulo  tomado  nesta  língua  do 
grego  KOEOPLÁsTÊs  composto  de  kókos,  «moço»,  e  plástês  S 
«fabricante».  O  significado  é  «imajinário  de  figuras  de  barro  ou 
cera» : — «quando  de  louceiro  o  ceramista  de  Prado  passa  a  coro- 
plasta»— 2^ 

corpo-santo-de-Pedro-Gonçálvez 

Este  composto  polimórfico  encontra-se  mencionado  por  Jurien 
de  la  Grravière: — «ces  lueurs  bleuâtres  et  sautillantes  que  les 
Portugais  appelaient  Corpo  Santo  de  Pedro  Gonsalvez,  et  les 
Espagnols  Sant-Elmo»  —  ^. 

Não  sei  se  vem  mencionada  por  enteiro  a  expressão  em 
qualquer  escritor  português,  mas  designa  o  Corpo  Santo,  ou 
fogo-Sam- Telmo,  a  que  se  refere  Camões,  nos  Lusíadas,  Canto  v, 
est.  18:  — 

Vi  claramente  visto  o  lume  vivo 
Que  a  marítima  gente  tem  por  santo 
Em  tempo  de  tormenta  e  vento  esquivo, 
De  tempestade  escura  e  triste  pranto. 

corre-caminho 

Na  ilha  da  Madeira  é  o  nome  vulgar  de  uma  ave,  Anthus 
trivialis,  de  Lineu  *. 


1  W.  Pape  Griechisch-deutschbs  Wõrtbrbuch,  Brunsvique,  1880, 
t.  I,  p.  1487,  col.  I,  t.  11,  p.  625,  col.  ii. 

2  Portugália,  i,  p.  2.50. 

'    Les  Anglais  et  les  HoiitiAJíDAis  dans  les  mbrs  polairbs,  et 
DAXS  LA  MER  DBS  Indes,  Paris,  1890,  t.  i,  p.  144. 

*     P.  Ernesto  Schmitz,  Die  Vogbl  Madeiras,  1899. 


330  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


corre -costas 

—  «chegaram  dois  corre-costas  que  andavam  ao  serviço  das 
auctoridades  na  praia»  —  *.   É  termo  brasileiro  e  designa  barco. 


corriqueiro 

Os  dicionários  definem  este  adjectivo,  —  «que  corre  ou  circula 
habitualmente;  vulgar,  trivial»  — .  Na  primeira  acepção  nem  é 
usual,  nem  o  vi  ou  ouvi  jamais  empregado;  no  Minho,  porém, 
chama-se  corriqueira  à  pessoa  que  sai  de  casa  frequentemente. 


corsa  (=  corsa) 

Na  ilha  da  Madeira  tem  este  nome,  ou  o  de  arrasta,  « o  carro 
de  arrastar,  sem  rodas»  e  seriam  termos  muito  aceitáveis  para 
expressar  o  francês  tralneau  |  tratner,  «arrastar»,  que  já  passou 
para  cá,  com  a  forma  trenó;  cf.  trumó,  ou  tremo  de  trumeau. 


corso  (^  corso) 

E  um  italianismo  de  introdução  muito  recente,  nome  de  uma 
rua  de  grande  movimento  em  Koma:  —  «as  ruas  do  corso,  como 
se  deliberou  chamar-se  ao  espaço  comprehendido  entre  o  largo 
de  Camões  e  as  ruas  do  Carmo,  do  Ouro,  e  Nova  do  Almada» — ^. 
Esta  deliberação,  que  se  não  diz  por  quem  foi  tomada  com 
tamanha  autoridade  e  intimativa,  por  emquanto  só  teve  curso 


*    O  Economista,  de  1  de  setembro  de  1887,  <  Correspondência  do  Rio 
de  Janeiro». 

2    O  Século,  de  7  de  março  de  1905. 


A])ostilas  aos  Dicionários  Portugueses  331 


em  Lisboa,  no  carnaval  de  1905,  entre  certa  gente  que  pre- 
sume de  fina.  Parece  que  o  termo  não  pegou,  o  que  não  é  de 
sentir. 


cortada 

E  termo  de  marinhas,  próprio  de  Aveiro:  —  «As  marinhas 
ainda  produzem — mau  grado  dos  criados  que  desejam  a  cessa- 
ção da  safra,  e  tanto  que  nas  cortadas  do  sul  da  Eia  já  houve 
tentativa  de  alagamentos* — ^ 

Este  segundo  termo  parece  não  ter  a  significação  usual,  mas 
talvez  outra  relacionada  com  uma  acepção  especial  do  verbo 
alagar,  (q.  v.). 

cortiça,  cortiço,  corticeiro 

Cortiça  é  o  nome  da  casca  do  sobreiro  depois  de  arrancada 
em  pedaços  grandes;  cortiço  qualquer  canudo  de  cortiça,  e  não, 
somente  o  que  serve  aos  enxames  de  abelhas. —  «Bate-se  o  linho 
com  a  espadela  de  encontro  á  beira  superior  e  externa  de  um 
cylindro  vertical  de  casca  de  sovereiro,  chamado  cortiço,  tendo 
pouco  mais  ou  menos  1  metro  de  comprimento  e  0™,3  a  0°',4  de 
diâmetro  >  —  -. 

Em  calão  cortiço  é  «casa  de  habitação >. 

Corticeiro,  «operário  que  trabalha  em  cortiça»  e,  como 
adjectivo,  «que  se  refere  a  essa  indústria»,  são  neolojismos,  de 
muito  conveniente  emprego:  —  «Tem  continuado  a  greve  dos  cor- 
ticeiros  da  fabrica  do  sr.  Rankin,  no  Alfeite» — ^. 


1    O  Economista,  de  2  de  outubro  de  1891. 

'     Portugália,  i,  p.  370. 

3    O  EcoNOMiST.'^,  de  23  de  setembro  de  1892. 


332  Apostilas  aos  DicAonários  Portugueses 


costume;  costumar 

Conforme  Carlos  Eujénio  Correia  da  Silva,  em  Ajuda  designa 
esta  palavra  «tributo  pago  ao  rei  do  Daomé»  e  festa  periódica  *. 

Costumar,  como  verbo  transitivo,  tendo  por  complemento 
objectivo  um  nome,  foi  usado  antigamente,  como  vemos  em  Kui 
de  Pina:  —  «Foi  algum  tanto  envolto  em  carne  [o  rei],  e  por  en- 
cuberta  disso  custumava  sempre  vestiduras  soltas» — ^. 

Presentemente  diz-se  costumava  usar. 

O  emprego  todavia  do  particípio  passivo  deste  verbo,  como 
adjectivo,  na  acepção  de  «usual»,  perdura  ainda:  — «  E]  deu  ao 
seus  armas  além  das  custumadas» — ^. 

O  costumado,  empregado  em  absoluto,  significa  «o  habitual». 


costume;  trajo,  ou  traje 

Este  vocábulo,  que  antes  se  escrevia  custume,  significa  « uso, 
usança,  hábito».  Muito  modernamente  é  empregado  na  acepção 
de  trajo,  ou  traje,  por  galicismo,  não  só  inútil,  mas  ambíguo;  e 
porque  é  um  desacerto,  adquiriu  voga  imediatamente.  Desta  ma- 
neira, não  só  serviu  de  título  a  uma  colecção  de  trajes  portugue- 
ses, desenhados  por  Bordalo  Pinheiro  com  a  maior  exactidão, 
o  Álbum  de  costumes  portuguezes,  mas  também  serve  para 
classificar  uma  colecção  de  bilhetes  postais  com  a  mesma  designa- 
ção de  Costumes  ])ortugueses.  Ora,  costumes  são  hons  ou  maus, 
morijerados  ou  devassos;  mas  nunca  tal  palavra  serviu  para  de- 
nominar traje,  e  em  parte  alguma  dos  domínios  portugueses  o 
povo  entende  semelhante  nome  em  tal  sentido,  nem  pessoa  que 


1  Uma  viagem  ao  bstabblejcimexto  portugubz  de  S.  João 
Baptista  de  Ajuda,  jía  costa  da  Mina  em  18G5,  Lisboa,  1866. 

2  Crókica  de  El-rbi  Dom  Afonso  v,  cap.  213. 

3  ih,  cap.  xxxiii. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugtieses  333 


se  preze  de  escrever  na  língua  pátria  o  empregará.  Quem  o  usa 
inadvertidamente  deve  ter  em  atenção  que  traje,  em  francês,  se 
diz  costume,  mas  que  costume  é  coutume,  e  lá  portanto  não 
se  pode  dar  a  confusão,  que  o  emprego  deste  escusado  galicismo 
ocasiona  em  português:  —  «Ne  possédons-nous  pas  quelques  vues 
donant  la  caractéristique  de  tèle  ou  tèle  grande  vile,  des  détails 
tipiques  sur  les  meurs,  les  coutumes  et  les  costumes  d'une 
réjion?>  — K 

cota 

O  termo  é  dado  como  transmontano  pelo  Novo  Diccionáeio, 
com  a  significação  de — «lado  oposto  ao  gume  da  ferramenta» — . 
Não  me  parece  que  a  limitação  imposta,  quer  ao  significado, 
quer  a  rejião  onde  o  vocábulo  é  usado,  seja  exacta.  Em  Lisboa, 
desde  a  minha  infância,  ouvi  chamar  cota  à  parte  oposta  ao  gume, 
ou  « fio »  da  faca,  isto  pelo  que  diz  respeito  à  significação ;  e  com 
relação  à  difusão  do  termo,  vejo  que  é  também  empregado  em 
outros  pontos,  pelo  seguinte  passo: — «A  espadela  é  uma  espécie 
de  podoa  de  madeira,  em  que  se  distingue  a  cota,  o  fio  ou  gume 
e  o  punho»  — -. 

cote 

É  um  termo  de  jíria  cidadã,  que  talvez  provenha  de  propo- 
sitada corrutela  do  inglês  cottage,  pron.  coi'idje,  e  designa  uma 
casa  que  não  é  a  própria  habitação,  mas  sim  outra,  reservada 
para  actos  secretos,  às  escondidas  da  família.  Eis  aqui  uma 
abonação  do  termo :  —  «O  cuté  da  rua  da  Gloria  é  num  primeiro 
andar  baixo . . .  tem  duas  salas  exíguas,  mal  mobiladas,  com 
os  banaes  décors  destas  alfurjas  próprias  para  amores  de  occa- 
sião> — ^. 


1    Le  Eéformiste,  de  15  de  novembro  de  1905. 
*    B.  D.  Coelho,  Industria  caseira  de  fiação,  tecelagem  e  tin- 
GiDURA  de  substancias  textis,  (síc),  w  Portugali a,  I,  p.  374. 
3     O  Dia,  de  12  de  janeiro  de  1905. 


334  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


cotio  (figo) 

Quere  dizer  «de  lodos  os  dias»  !  quotidie,  e  figuradamente 
« comum,  trivial » .  —  «A  arraia  miúda  é  constituida  pelo  « Cotio » 
[figo],  que  pela  quantidade  e  numero  se  pode  chamar  soberano. 
E  o  figo  de  embarque  que  regula  por  800  réis  a  arroba,  ao  passo 
que  os  primeiros  [berjaçote,  sofeno  (?),  castelhano  e]  o  bello 
«Incbario»,  por  exemplo,  regula  por  3000  réis  a  arroba» — ^ 

cotonia 

Koupa  de  algodão.  Pronuncia-se  cotonia,  e  não,  cotónia, 
como  indica  o  Diccionario  Contempoe aneo  ;  em  árabe  qutnIe. 

cotovia 
Como  termo  de  calão,  quere  dizer  «garrafa». 

couça 

—  «Por  couça  é  aqui  [Braga]  denominado  um  morcão  [la- 
garto grande]  que  apparece  em  alguns  cortiços  e  destroe  as  abe- 
lhas»—  ^. 

couce 

Uma  peça  do  arado:  —  «Xoutros  tj^pos  d'arado  em  vez  dessa 
peça  inteira,  a  rabiça,  ha  duas  ou  três  ligadas:  uma  inferior, 
que  se  chama  dente  ou  coice,  em  que  assenta  a  relha» — '. 

Nesta  acepção  não  vem  nos  dicionários. 


1  O  Economista,  de  5  de  novembro  de  1885,  citando  o  Jornal  da 
Manhã. 

2  Gazeta  das  Aldeias,  de  25  de  fevereiro  de  1906. 

3  Francisco  Adolfo  Coelho,  Alfaia  agrícola  portuguesa,  in  Por- 
tugália, I,  p.  407. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  335 


coveiro;  coveiro 

Coveiro  é  indivíduo  que  tem  por  ofício  abrir  as  covas,  ou 
covais,  nos  cemitérios,  e  é  palavra  que  figura  em  todos  os  dicio- 
nários. O  segundo  vocábulo,  que  se  deve  diferençar  deste  pela 
acentuação  marcada  no  o  átono  mas  aberto,  coveiro,  é  termo 
alentejano,  assim  definido  por  quem  me  prestou  a  informação: 
—  «cabana  junto  à  malhada,  onde  se  guardam  os  cabritos,  para 
se  lhes  ordenharem  as  mães» — . 


covo,  cova,  covão;  covão;  cofre;  alcofa 

Meyer-Lúbke  admite  duas  formas  novas  latinas  cophus  e 
copha,  derivadas  por  via  de  regressão  do  latim  cophínus, 
vocábulo  de  orijem  grega,  sendo  elas  postuladas  por  certas 
formas  populares  italianas. 

Além  desses  dois  substantivos  devemos  admitir  igualmente 
um  adjectivo  triforme,  cophus,  copha,  cophum,  do  qual  os 
dois  substantivos  citados  hão  de  ser  simples  mudança  de  catego- 
ria gramatical.  O  adjectivo  a  que  me  refiro  tem  de  supor-se 
para  explicar  o  adjectivo  covo,  «fundo,  concavo»,  que  se  emprega 
como  qualificativo  de  j;raío  na  locução  ^jr«ío  covo,  a  qual  designa 
na  Estremadura  o  que  na  Beira-Baixa  se  denomina  jn-ato  fundo, 
e  no  norte  prato  sopeiro. 

Covo  como  adjectivo  foi  empregado  por  Bocage: 


Esquentado  frisão,  brutal  masmarro, 
Vagava  de  Santarém  na  pobre  feira; 
Eis  que  divisa  de  lonje  em  cova  seira 
Seus  bons  irmãos  seráficos  de  barro. 


Ao  femenino  deste  adjectivo,  copha,  temos  de  atribuir  a  ori- 
jem tam  disputada  da  palavra  cova,  a  que  se  dava  a  medo  como 
étimo  caua,  sem  explicar  a  transformação;  como  à  forma  neutra 


336  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 

cophum  se  há  de  atribuir  o  substantivo  covo,  meia-esfera  de 
verga  que  serve  de  gaiola  aos  galináceos,  nos  mercados.  Quanto 
ao  substantivo  covão,  diferente  de  covão,  aumentativo  de  cova, 
tem  orijem  no  primitivo  cophinus,  como  o  correspondente  cas- 
telhano cuévano  (cf.  Estêvão,  Estéòan  }  Stephanus)  e  o  italiano 
còfano,  o  que  já  conjecturara  há  tantos  séculos  Isidoro  Hispa- 
lense,  e  do  qual  cahanilho,  « cesto  alto  e  cilíndrico  >  é  um  deri- 
vado, em  cuja  forma  influiu  a  palavra  cabana,  de  que  ainda  se 
tirou  cabano,  por  via  de  reversão  a  um  primitivo  suposto. 

Vê-se  pois  que  as  formas  populares  latinas  cophum,  copha 
não  são  já  hipotéticas,  mas  na  realidade  existiram  a  par  de 
cophinus,  no  latim  vulgar. 

Por  outra  parte  a  palavra  cofre  é  de  orijem  imediata  fran- 
cesa e  de  introdução  relativamente  moderna  e  artificial  nas 
línguas  peninsulares,  como  o  demonstra  a  mudança  do  n  latino 
em  r;  cf.  pampanus  j  pampre. 

Não  param  porém  aqui  os  derivados  de  cophum,  copha, 
pois  existe,  pelo  menos,  outra  palavra  que,  tendo  a  mesma 
orijem,  passou  a  português  por  intermédio  do  árabe;  é  alcofa 
(al-qufe),  que  também  foi  parar  a  França  e  Itália,  talvez  sem 
tal  intervenção;  com  as  formas  couffe  e  coffa,  cofa,  venezianas. 

Temos  pois: 

Grego  KÓp'iNos  |  lat.  literal  cophinus  }  italiano  còfano, 
cast.  cuévano,  port.  covão. 

Latim  vulgar,  cophum,  copha  j  port,  covo,  cova,  cast. 
cueva;  árabe  qufe;  ital.  coffa,  cofa,  fr.  couffe. 

Árabe  alqufe  j  português  alcofa. 

Português  covão  \  cabanilho,  cabano,  cova  \  aumentativo 
covão,  ocsítono,  e  outros  muitos  mais  derivados,  covinha,  enco- 
var, etc.  e  coveiro,  diferente  de  coveiro,  (g.  v.). 


côvodo,  côvedo,  côvado 

Há  muito  tempo  que  este  vocábulo  no  sentido  de  cotovelos, 
foi  por  este  substituído,  conservando  apenas  a  acepção  de  um, 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  337 


medida  de  três  palmos,  que  deixou  de  ser  usada,  pelo  quê  pas- 
sará em  breve  o  termo  a  ser  completamente  obsoleto.  Côvado, 
em  castelhano  codo,  é  o  latim  cubitum,  como  é  sabido,  e  cotovelo 
um  deminutivo,  cubitellum,  com  metátese  das  sílabas  médias. 
Cávado  na  sua  primitiva  acepção  encontra-se,  por  exemplo,  na 
Drmaxda  do  Santo  Geaal,  com  a  forma  covodo  =  côvodo: 
—  «Entom  a  lançou  o  mais  que  pôde  e  quando  chegou  preto  da 
agua  viu  húa  mão  sair  do  lago  que  parecia  ates  o  covodo,  mas 
do  corpo  nom  y'm  nada  >  —  ^ 


coxia 


Quer  como  termo  de  bordo,  quer  como  vocábulo  próprio 
de  teatros  é  coxia  de  orijem  italiana,  do  mesmo  modo  que  outras 
muitas  dições  pertencentes  a  essas  duas  nomenclaturas.  Em  tos- 
cano corsia,  a  coxia  no  teatro,  é  definida  assim  por  P.  Pe- 
tròcchi  -:  —  «lo  spazio  che  nella  platèa  d'un  teatro  è  libero 
dalle  panche  [«bancos»],  e  piii  spezialm[ente]  quello  di  mezzo 
[«o  do  meio»] » — . 

A  forma  portuguesa,  se  não  provém  directamente  de  qualquer 
dialectal  italiana,  resultou  do  concurso  de  rs  antes  de  i. 


cozinha 

Este  vocábulo  e  o  seu  étimo  são  bem  conhecidos:  do  latim 
cocina,  por  coquina,  proveio  cozinha,  como  de  cocere,  por 
coquere,  «^cozer^,  que  se  não  deve  confundir  com  coser  \  consuere. 

Em  Caminha,  e  outras  partes  do  Minho  naturalmente,  a  pa- 
lavra cozinha  designa  o  «fogão  da  cozinha». 


1    Oto  Klob,  in  <  Revista  Lusitana  >,  vi,  p.  344. 

'      Novo   DIZIONÀRIO  UNIVBR8ALE  DELLA   LÍNGUA  ITALIANA,  MilãO, 

1887. 


333  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


crasto:  v.  castro 


crebar 

Esta  forma  minhota  não  é,  como  poderia  supor-se,  metátese 
da  nsual  quebrar,  cuja  significação  tem;  pelo  contrário,  na  forma 
geral  quebrar  é  que  se  deu  a  metátese  com  relação  a  crebar^ 
mais  antiga  e  mais  conforme  com  o  seu  étimo  latino  crepare, 
coníirmando-se  a  etimolojia  que  já  se  atribuía  a  quebrar.  O  qu 
por  c  na  sílaba  inicial  foi  mero  expediente  ortográfico,  para  se 
evitar  a  leitura  cebrar. 


criar,  criado,  criança,  etc. 

Quási  todos  os  dicionários  portugueses,  modernos  pelo  menos, 
escrevem  o  verbo  criar  com  e,  isto  é,  crear,  e,  em  conseqiiéncia 
desta  ortografia,  rejistam  igualmente  creador,  creado,  creação, 
creança,  etc. 

Alguns  autores  distinguem  duas  séries:  Crear,  creador, 
creado,  creatura,  creação  (do  mundo),  creança  por  uma  parte; 
e  criar,  cria,  criador,  criação  (de  gado),  criação  («aves  do- 
mésticas»), etc. 

Nenhuma  razão,  histórica  ou  outra,  existe  que  justifique,  ou 
sequer  explique  esta  distinção  fictícia:  a  palavra  é  uma  única,  e 
conquanto  o  seu  étimo  seja  o  latim  creare,  o  facto  é  que  em 
português  o  verbo  dele  derivado  é  um  só,  criar,  que  tem  de  ser 
escrito  com  i,  e  não  e,  visto  que  nas  linguajens  rizotónicas 
convém  saber,  nas  que  tem  o  acento  no  radical,  a  conjugação  é 
sempre  com  i  proferido  e  não  com  e:  crio,  crias,  cria,  criam, 
crie,  criem.  Seria  pois  insensato  fabricar  irregularidades  aparen- 
tes, que  a  pronúncia  não  confirma,  entre  estas  formas  rizotónicas 
e  as  acentuadas  nas  desinências,  escrevendo  estas  com  e  valendo  i, 
crear,  creamos,  creais,  creeis,  crearão,  etc;  ou  fazendo  distin- 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  339 


ção  na  escrita  dos  radicais  crear,  criar,  conforme  a  significação, 
apenas  nas  linguajeus  de  desinência  acentuada. 

Deste  modo,  a  única  solução  é  conformar  em  tudo  a  ortografia 
com  a  pronúncia  efectiva  e  que  já  não  pode  ser  alterada,  reduzin- 
do-se  a  um  só,  criar,  os  dois  verbos  crear  e  criar,  com  todos 
os  seus  derivados,  afins  e  flecsões:  criador,  criatura,  criado, 
criança,  em  razão  de  cria. 

Deve  advertir-se  ainda  que  os  vocábulos  criado  (=  serviçal) 
e  criança  nunca  tiveram,  até  época  recente,  outra  escrita  que 
não  fosse  com  i  na  primeira  sílaba,  em  harmonia  com  as  corres- 
pondentes formas  castelhanas  criado,  criança,  (crianza)  « criação, 
educação » ;  conquanto  nesta  língua  subsista  a  distinção  entre 
crear  e  criar,  não  só  na  escrita,  mas  também  na  pronúncia,  visto 
que  em  espanhol  o  e  átono  não  adquire  nunca  o  valor  de  i,  como 
acontece  em  português  antes  de  vogal,  existindo  ali  na  realidade 
duas  séries,  na  pronúncia  e  na  escrita,  as  quais  se  não  podem 
manter  em  português  por  aquela  se  opor  a  tal  distinção,  como 
vimos:  crear,  creado.  creador,  creatura:  criar,  criador,  cria, 
criadero,  crianza,  criado,  etc. 

Com  i  se  escreveu  sempre  também  criação,  no  sentido  de 
«aves  domésticas  de  capoeira»,  acepção  em  que  vemos  o  vocá- 
bulo, conquanto  erroneamente  escrito  com  e,  no  trecho  seguinte: 
—  «A  creação  tem  sempre  papel  preponderante  nas  receitas  de 
uma  exploração  rural»  —  ^ 

Os  termos  criado  e  criada  modificam-se  no  significado,  con- 
forme a  localidade,  por  meio  de  epítetos;  por  ex.:  criada  de 
dentro,  em  Coimbra,  criada  de  sala,  no  Porto,  correspondem, 
pouco  mais  ou  menos,  ao  que  em  Lisboa  se  chama  criada  de 
quartos,  isto  é,  « criada  que  cuida  da  limpeza » . 

'Criado  de  acompanhar  vemo-lo  empregado,  com  relação  ao 
século  XVIII,  por  António  de  Campos,  mas  mal  escrito :  -  — « e  o 
falso  creado  de  acompanhar,  como  então  se  dizia» — . 


1     O  Século,  de  23  de  fevereiro  de  1902. 

■2    O  Marquez  de  Pombal,  in  <  O  Século  »,  de  24  de  dezembro  de  1899. 


340  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 

Recrear,  porém,  que  se  conjuga  recreia,  deve  escrever-se 
com  e. 

cristalino 

Este  adjectivo,  não  como  termo  poético,  mas  em  prosa,  sig- 
nificando «de  cristal»,  foi  empregado  por  António  Francisco 
Cardim,  no  livro  Batalhas  da  Companhia  de  Jesus: — «Copos 
cristalinos  de  Veneza»  —  ^ 

criveiro 

Este  substantivo,  designando  o  «fabricante  de  crivos  e  pe- 
neiras», não  está  rejistado  nos  dicionários,  mas  faz-se  dele  menção 
no  seguinte  passo: — «Estas  ratoeiras  são  feitas  pelos  crivei- 
ros,  que  as  vendem  na  praça  pelos  respectivos  preços  de  80 
e  100  réis» — ^. 

cubículo 

No  sentido  de  «cela»,  «quarto  de  dormir»,  conforme  o  seu 
significado  em  latim,  vê-se  no  trecho  seguinte  das  Batalhas 
DA  Companhia  de  Jesus,  páj.  222:  —  «quatro  cubiculos  e  um 
refeitório» — . 

cubrir,  cuberto,  descuberto 

Este  verbo  é  usado  no  distrito  de  Bragança  com  uma  sin- 
tasse  especial,  como  se  pode  ver  com  os  dois  exemplos  que  vou 
dar:  cubrir  o  chapéu,  «cubrir-se  (com  o  chapéu),  pôr  o  chapéu 
na  cabeça » ;  cubrir  o  capote,  « cubrir-se  com  o  capote,  embru- 
Ihar-se  nele». 


1  Lisboa,  1894,  p.  44. 

2  J.  Pinho,  Ethnographia  Amabantina,  A  Caça,  in  Portugália, 
11,  p.  89. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  341 

Nesta  última  sintasse  usou  José  Maria  da  Costa  e  Silva  o 
verbo  cubrir,  no  último  verso  do  poema  O  espectro  ou  a  Ba- 
ronesa DE  Gaia,  paráfrase  do  Bernal  Francês:  — 

<  Ramiro  cobre  o  manto,  e  retirou-se>. 

Do  imperativo  do  verbo  cubrir  formaram-se  vários  substan- 
tivos compostos,  tipo  muito  peculiar  das  línguas  românicas  e 
cuja  vitalidade  ainda  perdura,  como  com  outros  muitos  verbos, 
por  ex.:  guardar,  que  deu  guarãa-portão,  guarda-roupa,  etc. 

Uma  dessas  formações,  que  não  foi  rejistada,  é  a  seguinte, 
usada  no  Ceará:  cobre-peitos,  <coura  de  que  usam  os  campo- 
neses 011  matutos,  especialmente  os  vaqueiros»  ^  E  feita  de 
couro. 

Em  Lisboa  faz-se  um  doce  da  casca  da  abóbora  branca,  cor- 
tada em  tiras  e  cozida  em  calda  de  açúcar,  a  que  nas  confeita- 
rias se  chama  abóbora  cuberta,  «de  açúcar >,  entende-se. 

O  termo  cuberto,  neste  sentidQ,  parece  que  se  generalizou 
em  várias  rejiões  a  outros  doces,  pois  era  Aveiro  se  chama  doce 
descuberto  aquele  «que  não  é  polvilhado  de  açúcar»,  em  oposi- 
ção a  cuberto  no  sentido  indicado. 

cucuiada:  v.  cuquiada 

cudar 

Nos  Açores  persiste  esta  antiga  forma,  alótropo  de  cui- 
dar \  cogitare:  cf.  chuiva  e  chuva  \  pluvia. 

cúli,  cule,  coli 

Cúli  ou  cule  deve  em  português  ser  a  escrita  desta  palavra, 
muito  conhecida  na  Ásia,  nomeadamente  no  Arquipélago  Malaio, 


1     Sena  Freitas,  Cathedral  de  Burgos,  1884. 


342  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


na  China  e  na  índia.  O  étimo  é  incerto,  pois  uns  dizem  ser  o 
tamil  Mili,  « soldado >,  outros  o  turco  kol  ou  hule,  «escravo», 
ou  o  nome  étnico  koll  \  «raça»  ou  povo,  no  sul  da  índia.  A  es- 
crita coolie  é  inglesada,  e,  pelas  indicações  da  possível  orijem  do 
nome,  desarrazoada  em  outra  língua  que  não  seja  a  inglesa,  na 
qual  00  tem  o  valor  de  u. 

culibeca,  curibeca 

—  «Nenhum  d'elles,  que  saibamos  pertence  á  seita  dos  culi- 
hecas.  E  sabem  os  leitores  o  que  são  os  culibecas,  a  respeito  dos 
quaes  a  insistência  em  os  fazer  influentes  e  poderosos  no  animo 
dos  governadores  de  Angola,  seria  asquerosa,  se  não  fosse  ridí- 
cula? Pois  são  os  pacatos  e  comedidos  membros  d'uma  associação 
chamada  Geemio  Littekario  de  Loanda. . . 

Qual  seria  o  governador .  ,  .  que  se  julgasse  mais  se- 
guro tendo  o  apoio  dos  curibecas  do  que  as  sympathias  de 
S.  Thomé?»— 2. 

A  forma  correcta  há  de  ser  curibeca,  e  não,  culibeca,  se  a 
palavra  é  quimbunda,  como  parece,  pois  nesta  língua  só  ha  l- 
antes  de  a,  e,  o  u,  sendo  substituído  por  r  brando  antes  de  i. 

cumerim 

O  Novo  DiccioNÁRio  define  este  vocábulo  da  índia  Por- 
tuguesa do  modo  seguinte: — «desbaste  e  corte  de  árvores >  — . 
Parece  não  ser  exacta  a  definição.  Monsenhor  Sebastião  Kodolfo 
Dalgado  traduz  a  palavra  concani  kumeri  por  «boucha>,  e  este 
vocábulo  o  mesmo  Novo  Dicc.  declara-o  provincial  e  atribui-lhe 
como  significado — «mato  que  se  queima  para  cultivar  a  terra 
que  elle  occupava»  — . 


1  Veja-se  Yule  &  Burnell,  A  Glossary  ov  Anglo-Indiax  wouds 
AND  PHRA8ES,  Londrcs,  1880,  sub.  v.  cooly. 

2  Jornal  das  Colónias,  de  22  de  juUio  de  1905. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  343 


F.  X.  Ernesto  Fernández,  na  sua  monografia  intitulada  Re- 
gimen DO  SAL,  ABKARY  E  ALFANDEGAS  NA  InDIA  PoHTUGUEZA, 

define  cumerim  da  seguinte  forma :  — « é  o  campo  da  cultura  de 
legumes  preparado  com  a  dissipação  da  matta  e  adubado  com 
cinza  de  arbustos  do  mesmo  terreno» — ^ 


cunca 

O  termo,  que  tem  outra  forma,  conca  \  latim  concha,  sig- 
nifica em  Caminha  «tijela». 


cupa 

O  Novo  DiociONÁEio  diz-nos  ser  o  nome  de  uma  planta 
brasileira.  Em  Groa  é  nome  de  uma  qualidade  de  sal:  —  «Ainda 
ha  uma  outra  qualidade  de  sal,  leve  e  finíssimo,  denominado 
cupá,  destinado  exclusivamente  para  o  mercado  de  Bombaim. 
Este  obtem-se  fraccionando  os  taboleiros  em  pequenas  subdivi- 
sões » — -. 

cuquiada,  cucuiada 

Esta  palavra  foi  rejistada  por  Bluteau,  com  as  abonações 
devidas: — «(Termo  náutico  da  índia)  Derão  huma  Cuquiada, 
que  entre  elles  he  appellidar  terra  por  uma  denotação  de  voz. 
Barr.  i.  Dec.  foi.  81,  col.  1>— s. 

Francisco  Adolfo  Coelho  define-a  do  modo  seguinte,  sem  ci- 
tar autoridade: — « T.  ant.  Vozes  com  que  na  índia  se  chamava 
o  povo  ás  armas  e  que  eram  propagadas  pelas  pessoas  que  as 


*     «Boletim  da  Sociedade  de  Geographia  de  Lisboa >,  23.*  série,  p.  256. 

2  F.  X.  Ernesto  Fernández,  Ebgiíibíí  do  sal,  abkary  e  alfan- 
degas NA  Índia  Portugueza,  in  «Boletim  da  Sociedade  de  Geographia 
de  Lisboa  >,  série  23.*,  p.  251. 

3  Vocabulário  portuguez  e  latino. 


344  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


ouviam.  Vozes  com  que  no  alto  mar  se  anunciava  a  approxima- 
ção  da  terra.  Fig.  Gritaria,  vozearia» — K  O  Novo  Diccionário 
repetiu  isto  mesmo.  No  Suplemento  porém  dá  como  preferível  a 
escrita  cucuiada,  e  como  orijem  do  vocábulo,  que  os  outros  não 
mencionaram,  o  tamil  IcuJcJcuia,  que  nos  não  diz  o  que  significa. 

Na  edição  das  Décadas  da  Ásia  de  João  de  Barros,  feita  no 
3.°  quartel  do  século  xviii  (i.  Livro  vii,  cap.  2),  e  portanto  de 
menos  fé  que  a  que  foi  vista  por  Bluteau,  lemos,  não  obstante, 
a  palavra  também  escrita  com  qu,  sendo  provável  que,  se  a 
pronúncia  que  se  quisesse  indicar  fosse  com  u  proferido,  ela 
houvesse  sido  ortografada  com  cu,  e  não  com  qu,  em  qualquer 
das  edições.  A  citação  é: — «acudio  tanto  gentio...  por  tra- 
zerem entre  si  huma  maneira  de  se  chamar  a  que  elles  chamam 
Cuquiaãa» — . 

Graspar  Correia,  nas  Lendas  da  Índia  (ii,  2,  26),  escreveu 
cucuyada,  e  esta  escrita  não  deixa  a  menor  dúvida  acerca  da 
pronúncia  que  se  lhe  deva  atribuir  cu-cu-iá-da: — «e  o  Cai- 
mal. .  .  mandou  dar  suas  gritas,  a  que  chamam  cucuyadas» — . 

Se  a  forma  cucuiada  é  a  certa,  a  etimolojia  proposta  por 
Yule  &  Burnell  ^  tem  todas  probabilidades  de  ser  exacta: 
huMuya  na  língua  de  Malabar,  significa  «bradar»  (to  cry  out); 
conquanto  o  suficso  -ada  não  seja  explicável,  à  falta  de  um 
verbo  cucuiar,  que  não  consta  existisse,  e  sem  o  qual  a  com- 
paração que  os  abalisados  indianistas  fazem  com  crisada,  de  cris 
«punhal»,  não  convence,  pois  nesta  formação  o  suficso  inclui  a 
idea  de  «  golpe » ,  como  de  faca,  facada,  e  pressupõe  um  étimo 
português  imediato.  Os  nossos  antigos  escritores  usaram  neste 
sentido  o  verbo  apupar,  «bradar  chamando»,  denominando  esse 
brado  apupo: — «pelo  quê,  apupando  todos  por  diversas  par- 
tes»— 3. 

Se  porém  a  forma  exacta  é  cuquiada  apesar  da  afirmação 


1  Diccionário   manual  btymologico  da  língua  portugubza. 

2  A  Glossary  CF  Anglo-Ixdian  words,  Londres,  1886. 

3  História  trájico-niarítima,  in  Bibl.  de  clássicos  port.,  t.  XL,  p.  81. 


Ajyostilas  aos  Dicionários  Portugueses  345 

de  João  de  Barros,  e  da  afirmação  e  escrita  de  Gaspar  Correia, 
o  vocábulo  poderia  ser  português  lejítimo,  porque  pelo  menos 
em  mais  uma  língua  românica  ele  existe,  e  para  essa  não  po- 
deria vir  da  índia.  Em  provençal  couquiado,  e  sabe-se  que  o 
átono  é  a  terminação  femenina  nos  mais  dos  dialectos  da  Pro- 
vença, couquiado,  digo,  quere  dizer  «cotovia»,  em  francês  co- 
chevis:  cf.  chamariz,  nome  de  ave,  e  de  um  artifício  para  chamar 
as  aves,  e  cuja  orijem  é  sem  dúvida  o  verbo  chamar.  O  vocábulo 
couquiado  está  abonado  com  um  verso  da  Mirèio  de  Frederico 
Mistral: 

—  O  Viacèn,  ié  faguè  Mirèio 

D'entre-initan  li  vèrdi  leio, 

Passes  bèn  vite,  que!  —  Vincenet  tout-dun-têm 

Se  revire  vers  la  plantado, 

E,  sus  un  amourié  quihado 

Coume  une  gayo  couquihado  * 

Destousquè  la  chatouno,  e  ié  lande,  countènt. 

O  glorioso  poeta  provençal  numa  nota  a  este  verso  acres- 
centa: couquihado,  (cochevis,  alauda  cristata,  Lin.). 

O  mesmo  poeta,  no  seu  monumental  dicionário  provençal, 
intitulado  Lou  Teesoe  dóu  Felibrige,  aduz  as  seguintes 
formas  do  mesmo  vocábulo,  conforme  os  vários  dialectos:  cou- 
quiado, couquilhado,  cucullado,  cucuiado,  coucouiado,  e  cio- 
gullada  (catalão),  cogujada  (castelhano),  e  dá-lhe  como  étimo, 
que  é  evidente,  couquiha  [...há],  latim  cuculla,  cucullatus. 

Cita  Buffon,  que  empregou  em  francês  coquillade,  vocábulo 
que  Littré  admitiu  como  termo  de  caça,  correspondente  a  alouette 
huppée  (sp.),  sem  mais  definição,  nem  etimolojia. 

No  PicHOT  Tresoe,  dicionário  provençal-francês,  de  Xavier 
de  Fourvières,  vem  também  couquiado,  com  o  correspondente 
francês  cochevis  ^. 


1     Paris,  1882,  Canto  ii,  4. 
«    Avinhão,  1902. 


3Í6  Ajwstilas  nos  Dicionários  Portugiceses 


Vê-se  que  estas  formas  couquihado,  nuguUada,  e  cucuiado, 
poderiam  ser  análogas  às  duas  abonadas  portuguesas,  cuquiada 
e  cucuiada.  sem,  que  estas  portanto  houvessem  vindo  da  índia. 

Por  outra  parte,  a  coincidência  pode  ser  casual,  como  tantas 
outras. 


curbá 


Em  São  João  Baptista  de  Ajuda  é  uma  selha,  que  serve  de 
medida  para  a  venda  do  óleo  de  palma,  e  cuja  capacidade  é  va- 
riável *. 

curral 

Como  termo  local,  vem  perfeitamente  definido  este  vocábulo 
na  monografia  As  «Villa-s»  do  Noete  de  Poetuo-al,  de 
Alberto  Sampaio:  —  «na  serra  do  Gerez  os  gados  descançam  de 
noite  em  rurraes,  glebas  cercadas  de  paredes^  que  só  produzem 
centeio;  cada  curral  tem  uma  cabana,  geralmente  redonda,  para 
o  pastor  dormir  e  cozinhar»  —  -.  Cf.  curralorio,  em  chiqueiro. 


curveiro 

Na   Figueira-da-Foz  dá-se  este  nome  a  um   « remoinho  de 
água  no  mar». 

caraça 

Bluteau,  que  só  no  Suplemento  incluiu  este  vocábulo,  es- 
creve-o   com   s   inicial,  sarara,  e    define-o   assim:  —  «He  hum 


*    Carlos  Eujénio  Correia  da  Silva,  Uma  viagem  ao  estabelecimento 
PORTUGUKZ  DE  S.  JoÃo  Baptista  DE  AjUDÁ  EM  1865,  Lisboa,  18GG. 
2     m  Portugália,  i,  p.  116. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  347 


género  de  panuos,  que  vem  de  Cabo-Verde,  e  do  Maranhão, 
pintados  como  chita,  e  servem  de  cobrir  bofetes,  camas,  etc. 
Ordinariamente  são  pintados  de  vermelho.  Os  da  índia  são  pin- 
tados de  negro  com  bordas  vermelhas,  vem  de  S.  Thomé  e  ser- 
vem ás  Portuguezas  em  lugar  de  mantos;  ha  saraça  que  custa 
trinta  mil  reis » — . 

Transcrevi  na  íntegra,  exactamente  porque  a  definição  nos 
deixa  perplecsos. 

Duas  vezes  se  afirma  que  as  caraças,  que  pela  descrição 
correspondiam  ao  que  hoje  diríamos  cuhertas,  procedem  de 
Sam  Tomé;  notando-se  porém,  que  são  usadas  no  Brasil  (Ma- 
ranhão) e  na  índia.  Ora,  como  em  Cabo-Verde  não  houve 
nunca  língua  vernácula,  ou  este  nome  foi  do  reino  para  lá,  como 
para  as  outras  rejiões  indicadas,  ou  a  orijem  do  termo  é  da  íudia, 
ou,  mais  latamente,  asiática,  porque  brasileiro  não  pode  êle  ser, 
visto  que  os  indíjenas  das  terras  de  Santa-Cruz  só  fabricavam 
tecidos  de  penas  de  aves. 

Em  malaio  existe  o  vocábulo  sarasa,  o  qual  designa  um  te- 
cido de  algodão  ^ 

Parece  portanto  que  o  termo  é  malaio,  ou  de  qualquer  das 
línguas  da  Ásia,  que  para  malaio  passasse,  como  tantos  outros; 
e  conseguintemente  a  escrita  portuguesa  tem  de  ser  com  ç,  e  não 
com  s,  visto  que  o  s  dos  nomes  asiáticos,  como  o  dos  america- 
nos, sempre  foi  pelos  nossos  autores  transcrito  com  ç.  Esta 
escrita  e  orijem  são  confirmadas  pela  forma  castelhana  caraça, 
segimdo  a  ortografia  moderna  zaraza,  vocábulo  que  o  Dicionário 
da  Academia  Espanhola  ^  detfne  assim :  — « Tela  de  algodón  muy 
ancha,  tan  fina  como  la  holanda  j  con  listas  de  colores  ó  con 
flores  estampadas  sobre  fundo  blanco,  que  se  traía  de  Ásia  y  era 
muy  estimada  en  Espana»  —  ^. 


1  Leôncio  Richard,  Cours  de  la  langue  malaise,  Bordéus,  1872, 
II  Parte,  p.  117,  col.  i. 

^     Madrid,  1899. 

3  Este  artigo  foi  acrescentado,  e  por  isso  está  fora  da  ordem  alfabética, 
o  que  se  adverte  no  índice  (q.  v.). 


348  Apostilas  nos  Dicionários  Portugueses 


dacorna 

—  «As  raparigas  usam  uns  brincos  grandes  de  missanga  que 
chamam  dacoma »  — ' . 


daião,  adaião,  deão,  dião 

Daião  é  directamente  derivado  do  francês  doyen  (=ãualê 
antes,  dolê),  o  qual  procede  do  latim  decanus,  que  em  português 
deveria  ter  dado  degão.  Conseguintemente,  a  forma  moderna 
deão  é  encurtamento  de  outra  intermédia,  deião,  a  qual  se 
contraiu  em  dião,  que  deveria  ser  a  escrita  portuguesa,  como 
jnor  (q.  v.). 

O  a  de  adaião  é  difícil  de  explicar:  —  «á  vista  de  todos  se 
celebraram  os  esposoiros  entre  El-rei  e  a  Kainba,  nas  mãos  de 
um  Daião  de  Évora,  que  servia  a  El-rei  de  seu  físico»  —  -. 

dáimio 

O  Novo  DicciONÁRio  uão  marca  o  acento  neste  vocábulo 
composto  japonês,  o  que,  segundo  o  sistema  de  acentuação  grá- 
íica  nele  usado,  quere  significar  a  acentuação  daimío.  Esta  acen- 
tuação porém  é  errónea.  A  verdadeira  em  japonês  é  dáimio,  ou 
quando  muito  daimió  (dai-miyau). 

Compõe-se  esta  palavra  dissílaba  de  dai,  «grande»  e  miyau 
(miô),  «excelente»,  e  no  composto  o  acento  tónico  é  atraído  para 
a  sílaba  mais  longa,  a  qual  é  a  primeira,  por  conter  ditongo  ^. 

Dáimio  era  o  título  que  competia  a  um  cabo  de  guerra, 
cujo  rendimento  anual  excedesse  dez  mil  cocos  (cóku)  de  arroz. 


1  Jornal  das  Colónias,  de  18  de  julho  de  1903. 

2  Kui  de  Pina,  Crónica  de  El-rei  Dom  Afonso  v,  cap.  lxxvi. 

3  V.  Étúdb  phonétique  de  la  langue  japonaisb,  Lípsia,  1903, 
§144. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  349 


porque  a  riqueza  de  cada  um,  bem  como  os  proventos,  tinham 
por  unidade  a  quantidade  de  arroz  a  que  montavam  as  suas 
rendas.  Os  dez  mil  cocos  de  arroz  equivaliam  a  uns  vinte  e  cinco 
contos  de  réis  K  Até  muito  recentemente  os  funcionários  públicos 
eram  pagos,  pelo  menos  nominalmente,  em  arroz,  no  Japão. 

Este  vocábulo  é  de  introdução  recente  em  português,  para 
onde  veio  por  via  indirecta,  provavelmente  francesa,  por  inter- 
médio dos  periódicos.  ^ 

Os  vocábulos  japoneses  de  importação  directa  são  poucos, 
e  entre  eles  banzé  (q.  v.),  biombo,  bonzo,  catana,  chávena, 
qu(e)imão,  (timono), -funé,  e  poucos  mais.  Biombo,  catana  (q.  v.), 
entraram  no  tesouro  comum  da  língua;  quimão,  do  qual,  por 
influência  de  queimar,  é  variante  a  forma  queimão,  é  ainda 
usado  no  oriente,  e  mesmo  na  Africa  Oriental  Portuguesa;  bonzo 
tem  emprego  muito  restrito,  continuando  a  designar  «frade  bú- 
dico»; funé  (q.  V.),  «navio»,  só  foi  empregado  com  referência 
ao  Japão  ^. 

Objectos  que  do  Japão  importámos,  mas  sem  o  nome,  são 
«japona»,  femenino  do  adjectivo  japão,  «japonês»,  designando 
uma  espécie  de  «jaquetão >  ou  «camisola»;  a  capa-ãe-chuva, 
coroca  (q.  v),  palhoça,  capa  palhiça,  que  tantos  nomes  tem,  e 
que  em  japonês  se  denomina  hama-kâtsupa,  pronunciado  hama- 
Icappa:  convindo  notar  que  a  palavra  Tcapxpa,  é  portuguesa.  Outras 
palavras  portuguesas,  que  deixámos  no  Japão,  são  pan,  «pão», 
tábâku,  «tabaco»,  berúdu,  «veludo»;  e  poucas  mais  serão. 


dala 


O  Dtccion.  Contempoeaneo  dá  duas  acepções  a  este  vocá- 
bulo, que   parece  de  orijem  germânica,  do  baixo-alemão,  pro- 


*  V.  Hofmann,  Japaaksche  Spraakleer,  1867,  com  uma  versão 
inglesa. 

'  António  Francisco  Cardim,  Batalhas  da  Companhia  de  Jesus, 
Lisboa,  1894,  p.  53  e  54. 


350  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


vávelmente.  Como  termo  de  bordo,  diz  ser — «calha  adjacente  á 
muralha  do  navio,  para  dar  vazão  á  agua»  — ,  e  cora  significado 
mais  geral,  —  «terreno,  caminho  entre  montanhas» — .  O  Novo 
Dicc.  diz,  pouco  mais  ou  menos  a  mesma  cousa.  Na  última  acep- 
ção é  o  inglês  dale,  sueco  dal,  « vale » ;  e  não  é  natural  que  os 
dois  significados  sejam  de  um  só  vocábulo  germânico  orijiuário. 

Não  é,  porém,  nenhuma  destas  significações,  já  dadas,  a  pri 
meira  das  quais  fora  apontada  por  Bluteau  ^  que  eu  vou  con- 
signar aqui,  mas  sim  aquela  que  tem  no  Porto,  convém  saber: 
«mesa  de  cozinha,  com  tabuleiro  de  pedra,  ou  lousa».  Neste  sen- 
tido parece  ser  o  francês  dalle,  «laje»,  a  que  também  se  atribui 
orijem  germânica  2. 

Emquanto  investigação  ulterior  não  demonstre  pertencerem 
estes  três  significados  a  um  só  vocábulo,  de  que  sejam  desenvol- 
vimento ideolójico,  devem  eles  ter  inscrições  separadas  nos  dicio- 
nários. 

danda 

Termo  da  África  Oriental  Portuguesa,  que  no  Jorual  das 
Colónias,  de  18  de  julho  de  1903,  vem  assim  definido:  — «pe- 
queno trapo  com  que  [os  negros]  tapam  as  partes»  — . 


daroez,  daroês,  daruez,  darviz,  darvízio,  dervixe,  derviche 

Qualquer  das  três  primeiras  formas  é  lejítimaraente  portu- 
guesa; derviche  é  que  nunca  o  foi  na  pena  dos  nossos  escritores, 
que  de  perto  conheceram  esses  frades  mocelemanos. 

Bluteau,  citando  Godinho,  Viagem  da  Índia,  aduz  as  formas 
darviz,  dm'vizio,  com  remissão  a  derviz,  onde  nos  dá  mais  der- 


1  Vocabulário  portuguez  e  latino. 

2  H.  Stappers,  Dictionxairb  Synoptique  d'étymologie  fran- 

ÇAiSE,  Paris,  n.°  3062. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  351 


visio,  que  parece  preferir,  abonando-se  com  a  Histoeia  Univer- 
sal de  Frei  Mauuel  dos  Anjos. 

Não  tenho  à  mão  esses  dois  autores  para  me  certificar  se 
eles  assim  escreveram  o  vocábulo,  e  se,  como  suponho,  o  u  ali 
vale  u,  ou,  pelo  contrário,  v,  como  Bluteau  o  interpretou.  O  que 
sei  é  que  a  forma  portuguesa  anterior  é  daroez,  ou  ãamês,  se 
quiserem,  que  representa  a  arábica-persiana  oaRuix.  A  forma 
ãerviche  foi  tomada  do  francês  ãerviche,  que  deve  representar 
pronúncia  turca  do  vocábulo,  pois  é  em  turco  que  existe  o  v,  % 
não  em  árabe,  ou  persiano.  Quando  mesmo,  porém,  se  adoptasse 
a  pronúncia  turca  do  vocábulo,  deve  êle  escrever-se  com  x, 
dervixe,  e  não  com  cli,  que  é  transcrição  francesa,  mas  não  pe- 
ninsular, do  xin  do  respectivo  abecedário. 

Modernamente  restabeleu-se  a  forma  portuguesa  daruez: — 
«tem  a  Turquia  os  seus  daruezes» — '. 

Abonações  do  vocábulo  são,  por  exemplo,  as  seguintes: — «bom 
e  fiel  daroez — daroezes  da  casa  de  Meca» — 2. 

data;  dádiva 

E  sabido  que  este  vocábulo  é  um  latinismo,  o  particípio 
passado  passivo  do  verbo  dare,  e  quere  pois  dizer  <dada>.  Com 
referencia  a  tempo  substantivou-se  data,  como  em  castelhano 
aconteceu  a  fecha,  forma  antiga  correspondente  à  moderna  hecha, 
particípio  passivo  de  hacer,  como  fecha  o  era  de  facer,  corres- 
pondendo ao  latim  facta  de  facer e;  nenhuma  relação  tendo, 
como  poderia  siipor-se,  visto  dizermos  fecho  de  carta,  com  o 
y^úio  fechar,  ou  o  substantivo /ecA,o,  que  são  pestulum  e  pes- 
tulare,  latinos,  em  galego  pechar,  pecho,  diferente  de  ^;e- 
char  ^,  castelhanismo,  de pectare,  «pagar»,  latim  bárbaro  muito 


1     < Revista  de  Educação  e  Ensino»,  1892,  Do  Espirito  das  ordens 

RELIGIOSAS. 

-    Fernám  Méndez  Pinto,  Peregrinação,  cap.  xxxi  e  lix. 
3    Saco  de  Arce,  Diccionario  Gallego,  Barcelona,  187(3. 


352  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 

frequente  na  nossa  antiga  lejislação,  bem  com  a  sua  forma  por- 
tuguesa peitar,  peita  \  que  lhe  corresponde.  A  forma  pecha 
portuguesa  é  também  castelhanismo,  como  já  advertiu  Viterbo  -, 
quer  signifique  «paga»,  quer  «defeito». 

O  vocábulo  data,  além  da  acepção  apontada,  tem  outras,  que 
também  se  relacionam  com  a  significação  primordial  de  «cousa 
que  se  dá»,  como  se  pode  ver  no  Contempoeaneo: — «data  de 
agua,  de  bofetões,  de  impropérios»  —  e  ainda — «porção,  dose»  — 
sendo  este  ultimo  o  vocábulo  grego  dósis,  que  significa  « dádiva  >. 

No  sentido  de  «dádiva»  vemos  empregado  data,  nas  Bata- 
lhas DA  Companhia  de  Jesus,  do  Padre  António  Francisco 
Cardim  —  «divertiu  da  data» — ^,  «recusou  a  dádiva». 

A  forma  dádiva,  à  qual  Frederico  Diez  *  atribui  por  étimo  o 
latim  datiua  por  donatiua,  com  mudança  de  acento  da  2.* 
para  a  1.*  sílaba,  é  pelo  povo  pronunciada  dáuita,  ou  por  in- 
fluência de  dívida,  ou  porque  seja  esta  a  forma  orijinária  da 
palavra,  que  também  existe  em  castelhano,  e  portanto  com  outro 
étimo,  por  emquanto  desconhecido;  ou  porque  na  realidade  se  deu 
uma  metátese  das  iniciais  das  sílabas  postónicas  do  esdrúxulo, 
como  acontece  na  deturpação  vulgar  diágolo,  por  diálogo,  em 
razão  de  se  ouvirem  mal  as  duas  sílabas  átonas  de  um  vocábulo 
douto,  que  o  povo  não  sabe  identificar  com  outro  da  sua  lin- 
guajem vernácula. 

decorar,  de  cor;  decorar,  decoramento,  decoração 

O  verbo  decorar  tem  dois  significados  enteiramente  distintos, 
aos  quais  correspondem  étimos  diversos,  devendo  portanto  se- 
parar-se  nos  dicionários  em  duas  verbas  diferentes. 


1  Santa  Kosa  de  Viterbo,  Elucidário. 

2  ib,  sub  voe.  pechoso. 

3  Lisboa,  1894,  p.  145. 

*      EtYMOLOGISCHES   WõRTERBUCH   der    R0MANI8CHBN  SpRACHEN, 

Bonn,  1870,  ii,  6. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  353 


O  primeiro,  na  língua  antiga  único,  provém  da  expressão 
aprender  de  cór,  quer  este  cór  seja  o  latim  cor,  cordis,  «co- 
ração», como  até  muito  recentemente  se  afirmava,  principalmente 
por  se  lhe  comparar  a  expressão  francesa  par  coeiír,  ou  a  inglesa 
by  heart,  que  parece  tomada  à  letra  do  francês;  quer  a  locução 
de  cor,  castelhana  de  coro,  proceda  de  se  aprender  de  memória 
com  ouvir  repetir  por  muitos  uma  leitura,  um  preceito  qualquer, 
como  opina,  se  não  estou  enganado,  Rufino  José  Cuervo,  com 
muita  probablidade.  Confirmação  deste  modo  de  ver  seria  o  se- 
guinte passo :  — « y  a  los  que  saben  escrivir  mando  que  las  escri- 
van,  e  sepan  de  coro» — *. 

Efectivamente,  sendo  cor  de  o  tema  da  voz  latina  e  derivan- 
do-se  dele  acordar,  discordar,  note-se,  e  recordar,  que  equivale 
a  «passar  pela  memória»,  é  natural  que,  a  provir  de  cor,  cordis 
a  locução  de  cor,  de  coro,  ela  fosse  de  corde.  Nem  obsta  à 
etimolojia  proposta  a  perda  do  o  final  de  coro  em  português, 
visto  que  a  expressão  castelhana  de  coro,  hoje  substituída  em 
geral  por  de  memoria,  não  pode  ter  orijem  diversa  da  portuguesa; 
e  por  outra  parte  Gril  Vicente  empregou  for  por  foro,  caste- 
lhano/tt^^  ^OT  fuero,  no  formosíssimo  Auto  da  Alma: — 

Diabo  —  Ainda  é  cedo  pêra  a  morte; 
Tempo  há  de  arrepender, 
E  ir  ao  ceo. 

Ponde-vos  á  for  da  corte, 
Desta  sorte 
Viva  vosso  parecer, 
Que  tal  naceo. 

E  possível  mesmo  que  o  francês  2>«^  coeur  seja  alteração 
ortográfica  de  par  chceur,  *  em  coro » . 

Outra  hipótese  é  igualmente  plausível:  uma  forma  latina  po- 
pular cor,  coris,  por  cor,   cordis,  daria  orijem  ao  italiano 


*     «Carta  do  Padre  Mestre  Francisco  Xavier  aos  Irmãos  de  Roma», 
in  Missões  dos  Jesuítas  no  Oriente,  Lisboa,  1894. 

S3 


354  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 

euore,  ao  francês  cosur,  ao  português  cór  ^  castelhano  cuer, 
« coração » ;  e  a  locução  ãe  coro  castelhana  seria  outra  forma, 
corum,  como  fuer,  português  fór,  é  o  latim  fórum. 

O  segundo  significado  do  verbo  decorar  é  «ornar»,  e  pro- 
cede do  latim  decora re,  que  já  tinha  a  mesma  significação, 
como  derivado  de  decus,  decóris,  «enfeite».  E  vocábulo  de 
orijem  artificial,  relativamente  moderno  na  língua,  visto  que 
Bluteau  o  não  inseriu,  conquanto  incluísse  no  Vocabulário  o 
substantivo  decoro,  que,  diga-se  de  passajem,  se  deve  pronunciar 
decoro,  e  não  decoro,  visto  ser  vocábulo  erudito,  e  em  latim 
lermos  decórum  e  não  decôrum,  o  que  já  adverte  o  Suplemento 
ao  Novo  DiccioNÁBio,  comparando  forma,  palavra  douta,  com 
forma,  de  orijem  popular;  decoro  acentuam  Bluteau,  Koquete,  etc. 

O  substantivo  de  acção  e  resultado,  derivado  deste  verbo,  é 
decoração;  todavia  José  Leite  de  Vasconcelos  usou  decora- 
mento: — «O  decoramento  do  palco  precede  sempre  a  chegada 
do  actor» — ^. 

Equivale  aqui  decoramento  a  cenário,  italianismo,  e  é  o 
que  os  franceses  chamam  décor,  palavra  cujo  emprego  em  por- 
tuguês é  galicismo  escusado  e  moderníssimo,  só  empregado  por 
quem  qúere  finjir  que  desconhece  a  língua  da  sua  pátria,  e  natu- 
ralmente lhe  atribui  pobreza,  que  só  existe  para  quem  a  não 
estuda  como  deve. 


defender;  delivrar 

Quem  hoje  empregasse  este  verbo  no  sentido  do  francês 
défendre,  «proibir», "seria  apodado  de  galicista;  e  todavia  nessa 
mesma  acepção  a  palavra  é  pelo  menos  tam  antiga  em  por- 
tuguês, como  a  Crónica  de  El-kei  Dom  Afonso  v,  de  Kui  de 
Pina: — «alguns  requereram  ao  Infante  licença  para  ainda  lhes 


1  Gil  Vicente,  Auto  da  Lusitânia. 

2  Portugal  pre-historico,  p.  10. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  355 


irem  no  encalço,  mas  o  Infante  o  não  consentiu,  antes  lho  de- 
fendeu, dizendo  que  os  leixassem  ir  embora» — ^ 

Outro  tanto  acontece  com  ãelivrar,  que  o  cronista  emprega 
no  sentido  do  délivrer  francês: — < Dormiu  El-rei  ali  aquela  noite, 
e  ao  outro  dia  alegre  e  contente  se  tornou  a  Pena-Fiel,  e  trouxe 
preso  o  dito  conde,  cuja  guarda  encomendou  ao  conde  de  Penelas, 
que  o  teve  emquanto  não  foi  delivrado»  —  -. 


derrete 

Esta  forma  verbal  substantivada  tem  um  significado  muito 
especial  no  lugar  de  Nossa  Senhora  das  Mercês,  concelho  de 
Sintra: — «Pelas  3  horas  da  tarde  começaram  chegando  as  mo- 
çoilas, que  se  dispunham  a  tomar  assento  no  tradicional  muro 
Ao  derrete,  esperando  ali  os  seus  conversados^ — ^. 

O  significado  é  « namoro » ,  «  galanteio » . 


desastrado,  desastre,  (des)astroso 

O  Novo  DiccioxÁKio  e  o  seu  Suplemento  corrijem  o  adjec- 
tivo desastrado  em  desestrado,  a  que  dão  por  étimo  estro, 
alegando,  em  favor  da  correcção,  desestrada  no  Eomanceieo  de 
Garrett,  desestrado  e  desestramento  em  Francisco  Manuel  do 
Nascimento.  Nenhuma  abonação  mais  antiga  apresentam,  e  o 
facto  é  que  nem  estas  duas,  nem  outras  modernas  que  se 
pudessem  aduzir  poderiam  desterrar  a  forma  desastrado,  única 
dada  por  Bluteau  e  aprovada  pelos  lecsicógrafos  portugueses 
posteriores  a  este,  o  maior  de  todos,  que  subordinou  o  adjectivo 
desastrado  a  astro  na  definição  que  deu : — « Infelice,  e  em  certo 


1  cap.  cv. 

2  ih,  cap.  CLXxx, 

5    O  Século,  de  23  de  outubro  de  1905. 


356  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


modo  Desfavorecido  dos  Astros,  ou  sem  favorável  Estrella» — , 
étimo  que  repete  em  desastre: — «De.s  negativo. . .  A  outra  pa- 
lavra é  Astro,  que  quer  dizer  estrella,  e  assi  Desastre  que- 
rerá dizer  sem  estrella-»  — . 

Esta  etimolojia  ainda  não  foi  desdita  por  etimólogo  ou  ro- 
manista algum,  e  é  confirmada  por  outro  adjectivo  derivado  de 
astro,  astroso,  «infeliz»,  tanto  em  castelhano  S  como  em  português, 
e  cujo  derivado  negativo  desastroso  é  comparável  a  desinquieto, 
desmazelado,  desabado,  e  ao  popular  desinfeliz,  por  infeliz,  em 
que  o  preficso  des,  com  ser  pejorativo,  não  implica  a  idea 
oposta  à  que  é  expressa  pelo  vocábulo  a  que  se  junta. 

Às  abonações  modernas  de  Filinto  e  Grarrett  basta  con- 
trapor a  abonação  antiga  de  Gril  Vicente  na  peça  O  Velho  da 
Oeta: — 

Se  os  jóvenes  amores 

Os  mais  tem  fins  desastradas  — . 

É  ela  suficiente  para  provar  que  a  forma  ãesestrado  é  um 
enfraquecimento  posterior  de  sílaba  átona,  comparável  O-fantesia 
por  fantasia,  cámera  por  câmara,  popular  estifeito  por  satis- 
feito, castinheiro  por  castanheiro,  apesar  de  castanha  ser  deste 
vocábulo  inseparável,  etc. 

Sem  nenhuma  destas  razões,  porém,  em  abono  de  ser  desas- 
trado a  forma  correcta,  e  derivada  de  desastre,  ou  de  astro, 
como  astroso  e  desastroso,  o  simples  raciocínio  está  a  indicai- 
que  de  estro,  palavra  relativamente  recente,  grega  e  ultra-literá- 
ria,  que  jamais  desceu  ao  domínio  da  linguajem  vulgar,  onde  é 
totalmente  ignorada,  se  não  poderia  ter  derivado,  antes  da  sua 
adopção  pelos  doutos,  um  adjectivo  antigo,  de  uso  trivial  e  que 


1  Em  castelhano  antigo  encontra-se  o  adjectivo  astrosa,  oposto  a  fer- 
mosa,  nos  seguintes  versos  dos  Dbnubstos  del  agua  y  el  vino,  de  Lopo 
de  Moros:— «antes  amariyella  yastrosa|  agora  uermeia  e  fermosa».  [in 
Ehvub  Hispaniqub,  xni,  p.  615]. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  357 


toda  a  gente,  por  mais  rude  que  seja,  entendeu  e  entende,  em- 
pregou e  emprega,  acomodando-o,  há  certo  tempo,  à  mais  fácil 
enunciação  desestrado,  imitada  por  Filinto  e  Garrett. 

Astro  foi  vocábulo  tam  conhecido  do  povo,  provavelmente 
com  a  forma  astre,  de  importação  francesa,  tanto  em  português, 
como  em  castelhano,  que  operou  a  transformação  de  stella 
latino  no  português  (e  castelhano)  estrela,  estrella,  fazendo  que 
a  estela  se  acrescentasse  um  r  que  stella  não  tinha. 

Mas  não  fica  só  nisto  o  improvável  do  étimo  estro,  que  se 
propõe.  O  vocábulo  desastre  existe;  existiu  o  verbo  ãesastrar,  de 
que  desastrado  é  o  particípio  passivo,  que  se  adjectivou  como 
tantos  outros,  a  bem  dizer,  os  mais  deles:  estro  é  o  latim  oes- 
trus,  vocábulo  tomado  do  grego  oístbos,  «moscardo»,  «tavão>, 
que  os  gregos,  por  metáfora,  aplicaram  a  qualquer  estímulo 
exajerado,  e  depois  à  inspiração,  à  y eia.  profética,  e  daí  à  veia 
poética,  no  que  os  romanos,  seus  copistas,  os  imitaram.  Neste 
sentido  é  ou  foi  a  palavra  cucaracha,  «bicho-de-conta»,  empre- 
gada na  América  Espanhola,  na  quadra  seguinte,  que  se  canta, 
ou  cantava,  para  expressar  que  o  entusiasmo  se  apoderara  do 
cantador : — 

;Ay  que  me  pica, 
ay  que  me  arana 
com  sus  patitas 
la  cucaracha! 


Em  locução  análoga  dizemos  em  português  de  um  indivíduo 
disparatado,  sujeito  a  repentes,  que  por  veneta  diz  ou  faz  uma 
loucura,  está  com  a  mosca,  deu-lhe  a  mosca;  e,  desculpem-me 
os  poetas,  o  estro  para  os  gregos  e  para  os  romanos  era  um  re- 
pente, uma  veneta,  a  manifestação  de  uma  faculdade  fora  do 
normal,  um  condão  de  poucos  e  de  loucos. 

A  orijem  da  locução  está  com  a  mosca  pode  ver-se  em 
Bluteau:  o  caprichoso  é  por  metáfora  comparado  ao  cavalo  pi- 
cado pelo  tavão. 

Ora,  um  indivíduo  desastrado,  desmanado,  como  dizem  os 


358  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 

espanhóis,  desjeitoso,  não  tem  tal  defeito,  por  ter  estro  poético, 
nem  o  adjectivo  se  aplica  popularmente  a  um  qualquer  versador, 
senão  quando  ele  tem  para  versar  pouquíssimo  jeito. 

Exemplo  frisante  do  verdadeiro  valor  da  palavra  desastrado 
encontra-se  no  seguinte  passo:  —  «alguns  vasos  de  barro,  des- 
maiado, que  desastradamente  se  quebraram» — :  isto  é,  por 
descuido  ou  casualidade. 

Havia  de  ser  curioso  o  querer  explicar  esta  acepção,  que  é  a 
mais  comum,  pelo  grego  estro  ^,  «mosca»,  ou  «veia  poética». 

Não  é  portanto  desastrado  o  indivíduo  falto  de  estro,  mas 
sim  aquele  a  quem  falta  habilidade,  jeito,  ou  cujas  acções  teem 
mau  resultado,  que  nasceu  com  má  estrela. 

Desastrado  significa  também  «desairoso»,  «mal  feito  de 
corpo»,  e  nada  disto  tem  que  ver  com  estro,  vocábulo,  repito? 
que  a  maioria  das  pessoas,  mesmo  de  mediana  cultura  desco- 
nhece absolutamente  ^,  em  qualquer  acepção  que  seja. 

Disse  antes  que  a  forma  desastre  revelava  influência  francesa, 
tanto  em  português,  como  em  castelhano.  Efectivamente,  como 
em  italiano  se  diz  disastro,  em  que  a  palavra  astro  não  sofreu 
modificação  na  vogal  final,  necessário  se  torna  averiguar  porquê 
essa  alteração  se  manifestou  nas  duas  línguas  hispânicas,  nas 
quais  ao  -um  latino  corresponde  -o.  Comparando  outros  vo- 
cábulos portugueses  em  que  se  observa  a  mesma  alteração, 
tais  como  milagre  \  mirac'lum,  segre  (antigo)  j  saec'lum, 
monje  \  monachum,  vemos  que  se  produziu  modificação  idên- 
tica, e  que,  por  outra  parte,  eles  patenteiam  alteração  de  con- 
soantes, que  não  é  a  normal,  visto  que  os  vocábulos  dos  tipos 
graculum,  speculum,  são  gralho,  espelho,  e  monachum  deu 
primeiro  mónago  ^  (cf.  o  castelhano  monigote,  monaguillo) ;  ou, 
se  de  segunda  formação,  hágo(o)  \  baculum.   Houve  pois  in- 


1  O  Economista,  de  20  de  março  de  1892. 

2  V.  R.  Bluteau,  Vocabulário  portuoubz  e  latino,  Suplemento. 
8    D.  Carolina  Michaelis  de  Vasconcelos,  in  Ebvista  Lusitana,  iii, 

p.  174. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  359 


fluência  que  perturbou  a  evolução  natural,  ou  aquelas  palavras 
não  provierarà  directamente  do  latim. 

Entre  as  línguas  românicas  que  unificaram  em  e  surdo  pos- 
tónico  o  o  e  a  românicos  são  a  francesa  e  a  provençal  as  que 
sobressaiem:  é  lójico,  pois,  atribuir  a  essa  procedência  imediata 
os  vocábulos  milagre,  segre,  monje;  e  com  efeito,  tais  vocábulos 
aparecem  em  francês  com  as  formas  miracle,  siède,  e  monje 
com  a  forma  monge  em  provençal.  Em  milagre  deu-se  metátese 
mútua  de  r  e  Z  (cf.  o  castelhano  milagro),  e  em  segre  a  mu- 
dança de  Z  em  r  para  formar  ditongo  consonantal  português 
(cf.  grude  [  glúten):  monje  ê  reprodução  fiel  do  provençal 
monge,  como  é  evidente,  conquanto  haja  outra  forma,  também 
provençal,  mónegue,  e  seja  talvez  licito  supor  que  monge  seja 
mais  francês  que  provençal. 

Em  português  antigo  há  a  palavra  mogo,  a  qual,  conforme  o 
Elucidário  de  Viterbo  *,  significava  «marco  divisório»,  termo  que 
perdura  no  onomástico  corográfico,  já  no  singular,  já  no  plural, 
só,  ou  acompanhado  de  epítetos,  como,  por  exemplo,  Mogo  de 
Anciães. 

Júlio  Moreira  ^  relacionou  mogo  com  mogote,  magote,  pa- 
rece-me  que  sem  fundamento,  atribuindo-lhe  um  étimo  vasconço 
muga,  com  o  mesmo  significado,  conforme  Frederico  Diez  3,  e 
que  na  realidade  foi  admitido  no  dicionário  de  Van  Eys  *.  Eu, 
porém,  estou  inclinado  a  supor  que  mogo  é  a  forma  portuguesa 
do  latim  monachum,  e  que  a  aplicação  deste  termo  a  um 
marco  ou  sinal  de  divisão  de  terrenos,  naturalmente  pedra 
erecta,  é  perfeitamente  análoga  à  que  se  fêz,  em  Lisboa  pelo 
menos,  da  palavra  frade,  a  designar  uma  coluna  de  pedra,  da 


1    Santa  Rosa  de  Viterbo,  Elucidário  dos  termos  b  frases  que 

ANTIGAMENTE  SB  USARÃO,  Lisboa,  1798. 

*  Revista  Lusitana,  iv,  p.  268. 

3      EtYMOLOGISCHBS    WoRTERBUCH    DER   ROMANISCHEN   SpRACHBN, 

II,  b. 

*  DiCTIONNAIRB  BASQUB-FRANÇAIS,  Paris,  1873. 


360  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 

altura  de  ura  metro,  pouco  mais  ou  menos,  e  cujo  remate  su- 
perior arredondado  se  assemelhava  à  cabeça  tonsurada  de  um 
frade.  Ainda  hoje  em  dia  se  vêem  alguus  em  ruas,  contornando 
praças,  adros,  ligados,  ou  não,  entre  si  por  correntes  de  ferro. 
A  palavra  mogo  foi  ao  depois  substituída  por  monje,  fran- 
cesa ou  provençal,  como  segre,  e  o  adjectivo  dele  derivado  segral, 
ainda  usados  por  Gil  Vicente,  cederam  o  lugar  aos  latinismos 
século,  secular. 

desbulhar,  debulhar 

O  povo  diz  desbulhar,  os  cultos  debulhar,  forma  a  que  já 
Bluteau  deu  a  preferencia,  conquanto  cite  a  outra,  que  quási 
desapareceu  dos  dicionários  portugueses.  Pois  é  o  povo  quem  diz 
bem  (como  quási  sempre  acontece,  quando  os  vocábulos  perten- 
cem à  sua  linguajem  habitual),  visto  que  o  étimo  é  o  latim 
de-expoliare  ou  dis-spoliare  ^  com  dois  ss  em  vez  de  um. 
A  forma  desbulhar  corresponde  à  castelhana  despojar,  que  com 
outro  sentido  entrou  em  português:  cf.  as  acepções  do  verbo 
francês  dépouiller,  que  tem  a  mesma  orijem,  e  o  português  filho 
com  o  castelhano  hijo. 

A  simplificação  de  desbulhar  em  debulhar  é  análoga  à  de 
despois,  forma  antiga,  ainda  hoje  a  única  popular,  em  depois, 
que  é  a  exclusiva  literária.  Em  castelhano,  porém,  não  se  conhece 
outra  que  não  seja  después  j  de-ipso-postea  *. 

D.  Carolina  Michaêlis  atribuiu  a  debulhar  o  étimo  de  pi- 
leare,  que  também  me  parece  provável. 

Com  desbulhar  é  conecso  esbulhar  \  expoliare. 


1    F.  Adolfo  Coelho,  Diccionario  manual  ETyMOLOGico  da  língua 

PORTUGUEZA. 

*    G.  Kõrting,  Lateinisch-romanisches  Wõrterbuch,  Paderborn, 
1891,  D.»  2401. 


Aiiostilas  aos  Dicionários  Portugueses  361 


desconfiar,  desconfiado 

Na  linguajem  usual  este  adjectivo  quere  dizer  « que  não  tem 
confiança»,  «que  receia  ser  enganado»,  por  uma  particulari- 
dade gramatical  peninsular,  que  atribui  a  particípios  passivos 
significação  activa,  como  esquecido,  «aquelle  que  esquece»,  atrai- 
çoado, «aquele  que  atraiçoa»,  etc.  Está  neste  caso  o  vocábulo 
desconfiado,  no  uso  comum  de  hoje,  pois  quere  dizer,  não  «  aquele 
de  quem  se  desconfia»,  mas  sim,  «quem  desconfia»,  em  francês 
méfixint,  particípio  activo  de  (se)  méfier. 

No  uso  antigo,  todavia,  desconfiado  tinha  outra  acepção, 
que  correspondia  ao  que  hoje  dizemos  desenganado,  desesperan- 
çado, e-  que  em  castelhano  se  expressa  com  o  particípio  desahu- 
ciado  \  de-ex-ad-fiduciatum,  de  fiducia,  «confiança»,  o 
antigo  fiúza  português:  —  «chegou  muito  doente,  esteve  descon- 
fiado, recebeu  os  Santos  Sacramentos»  — '. 

Hoje  diríamos:  «esteve  desenganado». 

Em  sentido  análogo  usou-se  também  desesperado,  equivalendo 
a  desesperançado,  como  se  vê  neste  passo  da  Cbónica  de  í]l-eei 
Dom  Afonso  v,  de  Rui  de  Pina:  —  «E  destas  voltas  de  fortuna 
que  a  Kainha  D.  Lionor  viu  padecer  aos  Infantes  seus  irmãos, 
foi  da  esperança  que  nelles  tinha  desesperada  de  todo » — ^ ; 
e  na  «Eelação  do  naufrájio  da  nau  Sam  Tiago»,  de  Manuel 
Godinho  Cardoso :  — « assentou  o  mestre . . .  que  se  mandasse 
aquella  almadia,  porque  soubesse  o  que  lhe  tinha  acontecido, 
porque  não  desconfiasse  de  todo» — ^. 

Ainda  hoje  se  diz  de  um  doente,  que  está  em  estado  desespe- 
rado. 


*    António  Francisco  Cardira,  Batalhas  da  Companhia  de  Jesus, 
Lisboa,  1894,  p.  95. 
'    cap.  Lxxxiv. 

'      in  BlBL.  DE  CLÁSSICOS  PORTUGUEZES,  Vol.  XLIII,  p.  116. 


362  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


desistória 

Este  pitoresco  vocábulo  parece  ter  sido  inventado  por  Frei 
Gaspar  da  Cruz,  não  está  colijido  em  dicionário  nenhum,  que 
eu  saiba,  e  significa  «patranhas»,  «contos»:  —  «Porque,  além  do 
que  está  dito,  tem  [os  frades  budistas  na  China]  muitas  desisto- 
rias  e  mintiras  gentilicas  de  homens  que  se  tornaram  cães,  e 
depois  se  tornaram  em  homens,  e  de  cobras  que  se  tornaram  em 
homens,  e  outras  muitas  ignorâncias» — ^ 

desleixado,  desdeixado 

A  forma  antiga  do  verbo  deixar  era  leixar,  de  laxare=Zac- 
sare,  latino,  com  vocalização  do  c  em  i,  como  em  seixo  j  sa- 
X um =5«c5Mm,  e  palatalização  do  a  em  e,  e  do  s  em  x,  por 
influencia  desse  i,  vogal  palatal. 

A  partir  do  século  xvi  prevaleceu  a  forma  deixar,  equiva- 
lente à  castelhana  dexar,  hoje  dejar  [=dei[ar  -],  que  se  diz 
provir  de  de-laxare,  etimolojia  que  oferece  grandes  dificuldades 
em  castelhano,  visto  que  nesta  lingua  o  l  entre  vogais  permanece. 

Memória  das  duas  formas  portuguesas  leixar  e  deixar,  são 
os  dois  adjectivos  desleixado  e  desdeixado,  que  teem,  ambos,  a 
significação  de  «neglijente,  descuidado». 

deslumbrar 

Esta  palavra,  e  seus  derivados,  assim  como  vizlumhre,  são 
de  orijem  castelhana,  visto  que  é  nesta  língua,  e  não  em  portu- 


1  « Tratado  em  que  se  contam  muito  por  extenso  as  cousas  da  China. . . >, 
cap.  xxvii.  A  1.^  edição  é  de  1569:  servi-me  da  Rolandiana  de  1829,  que 
é  a  2.». 

*  O  símbolo  ?/  representa  aqui  a  fricativa  surda  póstero-palatal,  valor 
do  j  castelhano  actual. 


Apostilas  aos  DicionâHos  Portiiguesen  363 

guês,  que  o  latim  lumínem  produziu  lumbre,  com  mudança 
de  n  em  r,  e  intercalação  de  h  entre  estas  duas  consoantes,  como 
aconteceu  com  homhre  \  hominem,  em  português  lume,  homem, 
popular  orne:  e  digo  himinem,  acusativo  masculino,  porque  lú- 
men, acusativo  neutro,  deu  lume  em  português,  e  não  podia  pro- 
duzir lumbre  em  castelhano. 

Mudança  de  género  gramatical  idêntica  temos  de  atribuir 
uimen  para  uiminem,  para  explicarmos  a  forma  castelhana 
mimbre,  correspondente  à  portuguesa  vime. 

Alteração  de  n  em  r  com  perda  da  vogal  i  se  deu  também 
em  castelhano  no  vocábulo /em6r«,  moderno  hembra  {  femina, 
que  em  português  áeu.  Jhnea  [femena  por  femina,  com  perda 
do  n  entre  vogais,  que  é  de  regra:  cf.  cheio,  antigo  cheo  j  ple- 
num,  em  castelhano  lleno. 

Com  deslumbrar  se  relaciona  o  castelhano  alumbrar,  que 
em  português  é  alumiar. 


desmaio,  desmaiar,  desmaiado 

Actualmente  desmaio  equivale  a  delíquio,  e  desmaiar  a 
« perder  os  sentidos »  o  que  em  francês  se  diz  perdre  connais- 
sance,  s^évanouir. 

Antigamente,  porém,  desmaiado  quis  dizer  <  desanimado » : 
—  «Ficou  o  principe  Tai  senhor  do  campo  com  a  morte  dos  re- 
beldes, e  elle  favorecido  do  pai,  jurado  principe  e  herdeiro  do 
reino,  desmaiados  os  competidores,  obedecido  e  temido  de 
todos  > — K 

E  este  ainda  hoje  o  significado  do  inglês  dismay,  que,  assim 
como  as  formas  hispânicas,  parece  provir  de  ura  radical  germâ- 
nico magan,  que  vive  ainda  no  inglês  maij,  no  alemão  môgen 
e  macht,  e  cuja  significação  é  « poder  >. 


*    A.  F.  Cardim,  Batalhas  da  Companhia  dej  Jesus,  Lisboa,  1894, 
p.  143. 


364  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


O  adjectivo  desmaiado,  com  aplicação  a  cores,  equivale  a 
desvanecido,  «pálido»:  —  «Amarante,  15.  Ha  dias,  por  excava- 
ção,  apparecerara  em  Paschoaes,  na  margem  direita  do  Tâmega, 
alguns  vasos  de  barro  desmaiado,  que  desastradamente  se 
quebraram»  —  ^ 

Exemplo  de  desmaio,  « desânimo » ,  como  em  inglês,  vê-se  em 
Kui  de  Pina: — «E  os  seus  que  leixou,  como  souberam  da  sua 
partida. . .  foram  postos  em  grande  desmaio,  e  cada  um  como 
pôde  se  apressou  de  o  seguir,  não  sem  grande  desmando  e  ne- 
nhum acordo»  —  -. 


desmochar,  desmoche 

—  «Chamam-se  desmochaãas  ou  encabeçadas  aquellas  [árvo- 
res] em  que  se  decotou  o  tronco  a  pequena  altura,  de  ordinário 
a  3  ou  4  metros  ou  no  ponto  em  que  se  bifurca,  conservan- 
do-se  depois  só  os  ramos  que  nascem  na  sua  parte  mais  alta,  os 
quaes  são  submettidos  a  cortes  periódicos,  vindo  o  tronco  a  for- 
mar em  cima,  passados  annos,  uma  cabeça  ou  grossura  bastante 
volumosa . . .  e  desta  mutilação  [a  escamonda,  q,  vj,  ainda  mais 
do  que  dos  desmoches,  arruinar  muito  as  árvores  e  estragar  a 
madeira » —  ^. 

desvisgar 

—  «A  distancia  estão  occultos  o  chefe  da  armada  [q.  v.]  e 
um  ou  mais  ajudantes,  encarregados  de  preparar  e  pôr  as  varas 
e  apanhar  as  aves,  a  que  aquelle  cuidadosamente  desvisga  as 
azas  com  terra . . .  é  raro  que  a  ave,  obedecendo  ao  chamo  [q.  v.], 


1  O  Economista,  de  20  de  março  de  1892. 

2  Crónica  de  El-rei  Dom  Afonso  v,  cap.  cv. 

3  Gazeta  das  Aldeias,  de  11  de  março  de  1906. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  365 


não  vá,  depois  de  dar  algumas  voltas,  pousar  no  ramo,  onde  a 
traidora  vara  se  lhe  prende  ás  azas,  tolhendo-lhe  o  voo»  —  K 
V.  visgo. 

deúdo 

São  já  raros  os  particípios  em  -uão,  que  na  língua  antiga, 
eram  os  próprios  da  2.**  conjugação. 

Com  valor  de  particípios  apenas  me  ocorrem  teúdo  e  man- 
teúão,  numa  frase  já  feita,  antiquada,  mas  ainda  não  de  todo 
desusada: — «um  cão  atravessado,  teudo  e  manteudo  Gan3'medes 
de  um  fidalgo»  —  -.  Em  Kui  de  Pina  vemos  ainda  feãdos  ^  e  de- 
teúdos  *,  em  Fernám  Méndez  Pinto  reteúdos  ^,  como  se  vè, 
todos  derivados  do  verbo  ter.  De  outros  verbos,  vemos  conhe- 
çuda  numa  carta  de  1308,  publicada  na  Revista  Lusitana: 
—  «Conaçuda  (aliás,  conhoçuda)  cousa  seva»— '^,  e  no  Alentejo 
deúdo  }  debutum,  por  debitnm  "',  italiano  dovuto. 

Com  valor  de  substantivos  subsistem  alguns  desses  particípios, 
como  provincialismos:  mexuda,  «papas  de  milho»  (Beira-Baixa)^ 
Temudo,  como  apelido. 

Ao  mesmo  passo  que  a  terminação  -udò  é  já  rara,  na  for- 
mação de  particípios  passivos,  ou  de  adjectivos  verbais,  tem  ainda 
vitalidade  em  adjectivos  derivados  de  substantivos,  como  peludo, 
de  pêlo,  felpudo,  de  felpa,  cabeludo,  de  cabelo,  trombudo,  de 
tromba,  etc. 

Do  particípio  debutum  derivou-se  em  castelhano  deúdo, 
actualmente  déudo,  no  sentido  de  « parente  >,  português  antigo 


^  José  Pinho,  Ethnographia  Amarantina,  A  Caça,  in  Portugá- 
lia, II,  p.  96. 

»  O  Sbculo,  de  6  de  julho  de  1904,  Bulhão  Pato. 

3  Crónica  de  El-rei  Dom  Afonso  v,  cap.  cxxxi. 

*  ih.  cap.  xxxvii. 

*  Peregrinação,  cap.  cxcvi. 
«  Vol.  m,  p.  294. 

'  ih.  vol.  vin,  p.  39. 


366  Apostilas  nos  Dicionários  Portugueses 


divido  }  debitum,   «parentesco  muito  chegado»: — «e  assi  por 
elle  ter  com  a  rainha  divido  mui  conjunto» — K 


devasso,  devassar,  devassa 

Este  adjectivo,  em  sentido  material,  diz-se  do  que  «não 
ajusta  bem,  está  solto  > ;  é  o  contrário  de  iJêrro,  que  significa 
«preso  em  demasia,  apertado,  que  se  não  move,  ou  não  cede». 

Em  sentido  moral  aplica-se  o  adjectivo,  já  como  tal,  já  subs- 
tantivado, a  pessoas,  a  costumes  «soltos,  dissolutos». 

Na  Ckónica  de  El-eei  Dom  Afonso  v,  de  Eui  de  Pina, 
este  adjectivo  está  empregado  na  acepção  de  « aberto,  livre, 
desembaraçado»,  que  perdeu  no  uso  moderno: — «porque  o  lugar 
em  que  estava  era  campo  devasso  e  sem  disposição  de  se  poder 
defender» — ^.  Cf.  devassar,  «descubrir,  examipar»,  devassa, 
« inquérito » . 

diabo-a-quatro,  diabrura 

—  «Punham  antigamente  em  scena  peças  sacras  em  que. . . 
faziam  apparecer  diabos. . .  intitulavam-se  Pequena  diabrura 
—  Orande  diabrura ...  na  grande-diabrura . . .  era  de  rigor 
apparecerem  sempre  quatro  diabos. . .  » — .  Esta  informação  que 
é  uma  definição  completa,  lê-se  no  jornal  O  Bocage,  n.**  13,  ci- 
tado na  «Kevista  Lusitana»,  vi,  páj.  128. 

Hoje  são  freqiientes  as  expressões  o  diabo  a  quatro,  levado 
do  diabo,  que  assim  ficaram  explicadas. 

A  forma  diabo,  corresponde  à  antiga  diaboo  j  diabolum, 
com  supressão  do  l  intervocálico ;  diabrura  provém  de  outra 
forma  do  mesmo  vocábulo  diabro  \  diab'lum,  com  a  mudança 
de  l  em  r,  normal  em  português  nos  grupos  de  consoantes  lati- 


Eui  de  Pina,  Crójíica  de  El-rei  Dom  Afonso  v,  cap.  lxxiv. 
cap.  cxx. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  367 


nas,  das  quais  a  2."  era  l  líquido,  em  palavras  de  orijem  secun- 
dária; visto  que,  nas  mais  antigas,  os  grupos  latinos  cl,  fl,  pi  pro- 
duziram eh,  quando  iniciais,  chave  }  clauem,  *  chor  \  florem, 
chão  }  planum,  ou  depois  de  consoante,  como  macho  \  mas- 
cUurn,  e  Ih,  quando  intervocálicos,  coelho  \  cunicUum. 


dico 

Na  África  Oriental  Portuguesa,  « cabaça  que  serve  de  copo  > : 
V.  cali  *. 

diro 

Na  África  Oriental  Portuguesa   « prato  de  pau » :  v.  cali  ^. 

discrição,  discreção 

O  DiccioNÁEio  OoNTEMPOEANEO  foi  O  primeiro,  e  era  de  es- 
perar que  fosse  o  último,  a  dar  cabida  à  segunda  destas  formas, 
mandando  porém,  entre  parêntese,  que  ela  seja  pronunciada  dis- 
crição. Para  quê  se  alterou  a  escrita  deste  vocábulo,  que  figurara 
antes  em  todos  os  dicionários  da  língua,  é  o  que  se  não  sabe: 
o  que  porém  se  sabe  e  ,se  vê  é  que  tal  mudança  é  disparatada. 
Efectivamente,  se  a  pronúncia  tem  de  ser  com  i,  e  não  com  e 
surdo  na  segunda  sílaba,  nenhum  motivo  plausível  milita  em 
favor  da  escrita  com  e.  Este  vocábulo  discrição  está  para  dis- 
creto, como  profissão  para  professo,  como  procissão  para  pro- 
cesso, como  prisão  para  preso,  etc,  e  não  creio  que  alguém 
aconselhe  a  que  se  escreva  professão,  processão,  presão,  apesar 
do  e  da  segunda  silaba  dos  adjectivos  correspondentes:  cf.  ainda 


1  Jornal  das  Colónias,  de  4  de  julho  de  1904. 

2  ib. 


868  Apostilas  aos  Dicionários  Portugneses 

confissão  e  confesso,  não  obstante  o  castelhano  confesión,  aná- 
logo ao  português  antigo  co7ifessão,  que  ainda  lemos  na  Peee- 
GRiNAçÃo  ^  de  F.  Méndez  Pinto. 

Estas  formas  seguiram  a  analojia  de  outras,  como  aboli- 
ção, petição,  demissão,  comissão,  e  tantas  mais. 

Abonar  a  forma  discrição  com  autores  clássicos  fora  iniitil; 
o  que  havia  de  ser  difícil  era  encontrar  neles  o  barbarismo  dis- 
creção,  que  deverá  quanto  antes  ser  desterrado  da  escrita  por- 
tuguesa, pois  a  adopção  de  tal  forma  ortográfica  patenteia  a 
completa  ignorância  da  história  da  língua  e  do  seu  desenvol- 
vimento. 

Como  porém  tal  escrita  é  um  desacerto,  tem-se  propagado 
na  imprensa  diária,  onde  se  tornou  já  chavão  impertinente  e  in- 
sensato, quando  não  sofre  ainda  maior  tortura,  aleijado  em  des- 
çreção. 

Outro  vocábulo,  que  na  pronúncia  do  sul,  em  que  o  s  final 
de  sílaba  é  palatalizado,  se  confunde  com  este,  é  descrição,  em 
ortografia  clássica  escrito  com  p,  descripção,  do  latim  descri- 
ptionem  |  descriptum  j  describo. 

Neste  porém  o  preficso  é  des-,  e  não  dis-.  V.  A.  E.  Gron- 
pálvez  Viana,  Oetografia  Nacional  -. 


dizouho 
Significa  « respondão » . 

docíssimo 

Na  linguajem  dos  cultos  o  superlativo  de  doce  é  dulcíssimo, 
por  uma  reversão  artificial  ao  étimo  latino  dulce.  No  entanto, 


1  cap.  ccxv. 

2  Lisboa,  1904,  p.  78  e  80. 


Apostilas  nos  Dicioyiãrios  Portugueses  369 


vê-se  a  forma  docíssimas  laranjas  no  Bosquejo  de  uma  viagem 

NO  INTEBIOR  DA  PaRAHYBA  E  DE  PERNAMBUCO   ^   O  pOVO,  entre 

o  qual  se  foi  a  pouco  a  pouco,  desde  o  século  xvi,  difundindo  a 
forma  superlativa  em  -íssimo,  não  conhece  essas  derivações  arti- 
ficiais, e  de  amigo,  pohre,  por  exemplo,  forma  amiguissimo,  po- 
brissimo,  em  vez  dos  latinísmos  amicíssimo,  ijaupérrimo. 


dójico 

Este  vocábulo,  o  qual  designa  uma  espécie  de  noviço  nas 
confrarias  búdicas  dos  bonzos  no  Japão,  não  figura  em  nenhum 
dicionário  português,  nem  tampouco  francês,  com  a  forma  do- 
gique,  empregada  pelo  Padre  de  Charlevoix-.  E  todavia  neces- 
sário dar-lhe  neles  cabimento,  visto  encontrar-se  em  autores  dos 
séculos  XVI,  XVII  e  xviii,  que  se  lhe  referiram,  avisadamente 
romanizado,  tanto  numa,  como  na  outra  língua. 

Dois  étimos  se  podem  atribuir-lhe.  O  primeiro  é  a  palavra 
japonesa  transcrita  por  J.  C.  Hepburn  -  com  a  forma  dõgi,  a 
que  dá  a  significação  de  —  «a  bo}^  under  lõ  years,  a  child  — 
moço  de  menos  de  quinze  anos,  menino  >  — .  O  segundo  étimo 
possível  é  pelo  mesmo  autor  transcrito  dõgahu,  e  explicado  deste 
modo :  — « learning  or  studying  together  with  the  same  teacher, 
the  same  studies,  a  schoolmate»  — ,  isto  é:  «condiscípulo,  aluno 
na  mesma  disciplina  >. 

Ainda  que  à  primeira  vista  o  não  pareça,  atenta  a  forma  da 
palavra,  é  o  segimdo  étimo  que  devemos  admitir  como  o  ver- 
dadeiro, não  só  em  razão  do  significado,  mais  conforme  com  a 
definição  do  vocábulo,  mas  também  porque,  sendo  o  h  muitas 
vezes  nulo  entre  vogais,  em  japonês,  nas  terminações  adverbiais 
em  -Teu,  resulta  de  dõgaJcu,  a  pronunciação  dogo,  por  isso  que 


*  in  O  Século,  de  8  de  junho  de  1900. 

*  A    Japaxbse-Exglish,  axd    Ekglish-Japanese  Dictioxary, 

Tóquio,  18S7. 


370  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 

au  se  profere  ò,  forma  perfeitamente  concordante  com  o  ãbgo 
inserto  no  vocabulário  de  1603  •,  e  de  que  se  derivou  para  por- 
tuguês o  adjectivo  dójico,  como  do  grego  lógos,  se  derivou 
lójico. 

O  sinal  (v),  ou  circunflecso  invertido,  foi  empregado  pelos 
jesuítas  portugueses  que  escreveram  gramáticas,  vocabulários  etc.^ 
do  japonês,  assim  como  outros  sinais  diacríticos  com  outras 
aplicações,  nas  transcrições  de  vários  idiomas  asiáticos,  para  in- 
dicar o  o  longo  aberto,  visto  que  o  circunflecso  designava  o  o 
fechado  em  português.  Para  o  u  longo  usaram  porém  ú. 

dolménico 

Adjectivo  derivado  de  dólmen,  ou  dólmin  como  escreveu  o 
Dr.  Costa,  palavra  imediatamente  tirada  do  francês,  que  artificial- 
mente a  derivou  de  uma  língua  céltica.  O  correspondente  portu- 
guês é  anta,  que  designa  uma  construção  tumular  pre-histórica. 


dolório 
Em  Sam  Miguel  (Açores)  quere  dizer  «desgosto»  2. 

dómaa,  doma 

Era  o  antigo  nome  para  designar  a  semana,  do  latim 
hebdomãdam,  no  acusativo,  em  grego  'ebdómada,  com  o  mes- 
mo significado  que  o  latim  septimana,  que  o  substituiu,  isto  é^ 
«sete  dias»;  literalmente:  «relativo  a  sete». 


1  V.  João  de  Freitas,  Subsídios  para  a  bibliographia  portu- 
GUEZA,  RELATIVA  AO  ESTUDO  DA  LÍNGUA  JAPONBZA,  Coimbra,  1905,  notas. 

2  o  Século,  de  5  de  julho  de  1901. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  371 


domóvi,  domovói 

No  Novo  DiccioNÁEio  introduziu-se  o  primeiro  destes  vocá- 
bulos, que  foi  colhido  nos  Elogios  Académicos,  de  Latiuo  Coelho, 
como  se  declara.  Está  assim  definido: — «espírito  doméstico  que, 
segundo  a  mythologia  moscovita,  está  velando  de  além  do  túmulo 
sobre  a  família  que  fundou» — . 

Há  engano  manifesto  nesta  definição,  seja  ela,  ou  não,  de 
Latino  Coelho,  mas  que  pela  redacção  é  evidentemente  traduzida 
de  francês.  Há  dois  vocábulos  russos  derivados  de  dom,  <  casa » : 
um  é  domóvú,  « doméstico,  caseiro » ;  o  outro  é  domovói,  que 
corresponde  a  «trasgo»,  ao  e?/ germânico,  às  jens  (q,  v.)  do  Al- 
garve. Deu-se  pois  confusão  entre  um  e  outro  derivado. 


doninha,  doninha 

Conquanto  na  essência  sejam  o  mesmo  vocábulo,  deminutivo 
de  dona  \  domina,  o  uso  fê-los  distintos,  provavelmente  porque, 
ou  a  antiga  acentuação  dos  deminutivos  em  -inho  era  dupla, 
como  ainda  o  é  no  norte,  por  exemplo  em  covinha,  pronunciado 
no  sul  cuvinha  \  cova,  e  como  o  é  nos  que  são  formados  com  o 
inficso  z,  còvazinha;  ou  porque  este  nome  do  animalejo  carni- 
ceiro nos  veio  do  norte,  com  a  sua  pronúncia  especial:  desta 
maneira,  doninha,  e  tam  somente  esse  nome,  deve  de  ser  diferen- 
çado do  deminutivo  consciente  de  dona,  que  é  doninha,  profe- 
rido no  sul  com  o  átono=^í,  duninha,  pouco  usado,  mas  existente. 

Que  o  termo  doninha  é  indubitavelmente  um  deminutivo 
de  dona,  no  sentido  antigo  de  «dama  casada»,  por  oposição  a 
donzela  }  dominicella,  «dama  solteira >,  provam-no  a  denomi- 
nação do  furão  ou  da  doninha  em  galego,  donacinha  ^  como 


1     D.  Carolina  Michaêlis  de  Vasconcelos,  in  Revista  Lusitana,  iii, 
p.  187;  cf.  Saco  y  Arce,  DiCC.  Gallego,  Barcelona,  1876. 


372  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 

quem  diria  em  português  donaziyiha,  e  a  da  doninha  em  cas- 
telhano, comadreja,  « comadrinha » . 

dor,  dorido,  dolorido,  doloroso,  doroso 

Do  substantivo  dor  derivamos  hoje  um  adjectivo  dorido, 
que  tem  também  uma  forma  dolorido,  mais  próssima  da  latina 
d  olor  em,  da  qual  tirámos  doloroso,  mas  a  que  na  língua  antiga 
correspondia  doroso,  directamente  derivado  de  dor: — «suas  con- 
tínuas lagrimas  e  dorosas  palavras  davam  claro  testemunho  do 
sentimento  do  seu  coração» — ^ 


duna 


É  galicismo  este  termo:  o  português  lejítimo  é  r)ièdão  (de 
areia).  Infelizmente  está  já  tam  arraigado  na  literatura  geral, 
para  onde  inconscientemente  passou  da  científica  incorrecta  e 
falta  de  vernaculidade,  que  será  já  difícil  expunji-lo:  — «De 
Algezur  ao  cabo  de  Sines  apparece-nos  coroada  de  imponentes 
dunas» — ^.  Eis  aqui  exemplos  de  mèdão:  —  «Entre  Douro  e 
Neiva  avultam  os  medões  de  A-vel-o-mar  [id  e.  A-vê-lo-mar]  ^ ;  e 
mais  antigo:  —  «Vivem  estes  Eeys  arábios  entre  hums  medões 
de  área» — *. 

dundum,  dunduns 

É  esta  a  escrita  que  convém  adoptar,  no  singular  e  no  plural, 
visto  ser  a  única  conforme  com  os  hábitos  ortográficos  portu- 


1  Eui  de  Pina,  Crónica  de  El-rbi  Dom  Afonso  v,  cap.  xvn. 

2  Portugália,  i,p.  609. 

3  ih.  p.  610. 

*  Godinho,  Viagem  da  Índia,  109,  citado  por  Bluteau,  Voe.  port. 

LAT, 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  373 


gueses,  em  harmonia  com  os  quais  se  não  escreve  m  antes  de  d, 
e  o  m  fiual  se  muda  em  n  ao  acrescentar-se  o  5  do  plural. 

Esta  palavra  designa  uma  espécie  de  pelouro,  ou  bala  de 
espingarda:  — « O  arsenal  de  Dum  Dum,  perto  de  Calcuttá,  e^ 
depois  os  da  metrópole  começaram  a  fazer  grandes  provisões  de 
cartuchos  com  aquella  bala» — *. 

O  nome  já  agora  está  como  está;  mas  aquela  escrita  Dum 
Dam  inglesa  quere  dizer  ãamedame  na  portuguesa.     . 


durázio 

Este  adjectivo,  correspondente  do  castelhano  durazno  j  dura- 
cínum,  indica,  a  respeito  de  frutos,  um  termo  médio  entre 
mole  e  duro,  estabelecendo-se  assim  uma  gradação  de  rijeza: 
mole,  molar,  durázio,  duro. 

O  que  é  singular  é  dizermos  de  uma  mulher  para  cima  dos 
quarenta  que  é  ^já  durázia»,  e  nesta  expressão  a  gradação 
estabelece-se  às  avessas,  pois  a  que  passou  de  durâzia  se  deno- 
mina madura,  estado  de  moleza  a  que  se  segue  sorvada  e  podre, 
na  fruta.  Para  prosseguimento  da  singularidade  destes  epítetos, 
a  fruta  verde  não  se  pode  tragar,  e  faz  mal  à  saúde;  o  que  se 
quere  é  fruta  madura:  exactamente  o  contrário  do  que  se  ape- 
tece na  porção  mais  formosa  do  género  humano:  quanto  mais 
verde  melhor. 

êaugar 

Este  vocábulo  transmontano  *,  de  aspecto  bastante  singular, 
pois  que  é  necessário  pronunciar-se  ê  em  hiato  com  o  «  de  augar, 
é  um  derivado,  mediante  o  preficso  em,  do  verbo  augar  j  auga 


1  O  Século,  de  12  de  janeiro  de  1900. 

2  Augusto  Moreno,  Vocabulário  transmontano  (Mogadouro  e 
Lagoaça),  in  «Kevista  Lusitana»,  v,  p.  45. 


374  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


por  água,  pronunciação  muito  usual  também  em  Lisboa,  frequen- 
tíssima no  português  falado  até  o  xvii  século,  conforme  o  prova 
a  escrita  augu(o)a:  o  ditongo  au,  isto  é,  o  w  depois  do  a  desen- 
volveu-se  por  eco,  por  influência  proléptica,  assimilação  progres- 
siva ao  u  líquido  que  está  depois  do  g,  como  na  forma  popular 
se  desenvolveu  um  ditongo  ãi,  na  palavra  sangue,  proferida 
sãingui,  em  virtude  da  influência  desse  i,  que  substituiu  o  e  surdo 
final.  Confronte-se  esta  formação  êaugar  com  o  antigo  êaãer  ^ 
correspondente  do  castelhano  anadir  \  ad-j-in-j-^ddere,  e  o 
castelhano  enarenar,  com  o  português  arear.  Vocábulos  de  es- 
trutura análoga  são  hem-aventurado,  hem-avenim-ança,  em-as- 
prear,  em-aspreamento,  nos  quais  se  deve  pôr  uma  linha  divisó- 
ria, para  que  se  não  leiam  be-maventurança,  e-masprear,  etc: 
—  «vendo  que  o  mastro  com  a  grossura  e  em-asprearaento  dos 
mares  os  çoçobrava » — .  Morais  transformou  este  substantivo  em 
ensapreamento  ^. 

A  definição  dada,  loe.  cit.  pela  Eevista  Lusitana  ao  verbo 
êaugar,  é  a  seguinte:  —  «(pronuncia-se:  im-au-gar). — Apanha- 
rem [as  creanças  e  as  bestas:  salva  seja  a  comparança!]  moléstia 
que  as  faça  definhar,  ás  creanças  por  não  se  lhes  dar  de  qual- 
quer coisa  que  nos  vejam  comer,  e  ás  bestas  por  lhes  não  darmos 
também  um  mordo  á  entrada  de  uma  porta  em  que  parem,  ou 
noutro  sitio  onde  estejam  acostumadas  a  comer.  Diz-se  de  três 
maneiras:  enaugar,  augar  e  ougar;  e  em  contraposição,  respe- 
ctivamente: desenaugar,  desaugar  e  desougar^ — . 

Aguar  (pron.  àguár),  desaguar  são  os  vocábulos  comuns.  Com 
efeito  nada  há  peor  que  ficar  aguado,  ou  com  a  água  na  boca: 

No  hay  desdicha  mayor, 
que  una  esperanza  fallida. 


1  Eui  de  Pina,  Crón.  dh  El-rei  Dom  Afonso  v,  cap.  xxix  e  lii. 

2  V.  J.  Cornu,  Eevista  Lusitana,  vi,  p.  87. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  375 

Com  êaguar,  reduzido  a  agiim',  confronte-se  o  castelhano  ena- 
genar  \  inalienare,  simplificado  em  alhear,  moderno,  mas  cuja 
forma  antiga  era  enlhear  ^ 

eça:  v.  essa 

eclosão,  eclusa 

São  dois  galicismos  modernos  e  absolutamente  inúteis,  éclo- 
sion  e  écluse:  o  primeiro,  já  censurado  no  Suplemento  ao  Novo 
DicciONÁRio,  é  derivado  de  eclore,  do  latim  exclaudere;  o 
segundo  imediatamente  tirado  de  exclusa. 

Em  português  são  absurdos  tais  vocábulos,  porque  o  s  latino 
antes  de  consoante  permanece  nas  línguas  hispânicas,  como  em 
italiano,  e  de  entre  as  românicas  somente  no  francês  moderno 
(desde  o  século  xvi)  êle  foi  desaparecendo  pouco  a  pouco,  sendo 
as  palavras  em  que  ainda  aí  o  vemos  cópia  recente  do  latim  li- 
teral. 

Se,  à  falta  de  outro  termo,  quando  o  não  houvesse  (que  há, 
açude,  do  árabe  al-sude  -,  «represa  de  água»),  ainda  era  admis- 
sível o  vocábulo  francês,  conquanto  desconforme  com  a  índole 
do  nosso  idioma,  por  ser  preciso  nome  para  construção  tam  fre- 
qíieute  em  terra  tam  regada  como  a  nossa;  é  absolutamente  dis- 
paratado ir-se  buscar  já  feito,  e  mal  feito,  um  termo  abstracto  a 
uma  língua,  cuja  formação  vocabular  bastante  difere  da  portu- 
guesa, nas  palavras  de  orijem  latina  principalmente.  Em  portu- 
guês diz-se  desabrochar,  quer  como  verbo,  pelo  francês  eclore, 
quer  como  nome  verbal,  pelo  francês  eclosion.  Infelizmente,  não 


1  enlheaão,  em  Eui  de  Pina,  Crónica  db  El-rei  Dom  Afonso  v, 
cap.  cxxiv. 

2  João  de  Sousa,  Vestígios  da  lingoa  arábica  em  Portugal, 
Lisboa,  1830. 


376  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


SÓ  como  termo  de  nomenclatura  botânica,  mas  também  de  no- 
menclatura zoolójica,  em  vez  de  nascença,  vai-se  difundindo  a 
estravagante  palavra: — «Nos  dias  immediatos  á  eclosão  (nasci- 
mento) do  insecto  [gafanhoto]»  —  ^  Quem  isto  escreveu  conven- 
ceu-se  de  que  eclosão  era  muito  bom  latim,  e  como  tal,  muito 
apto  a  substituir  por  termo  mais  fino  o  trivial  nascimento  [ou 
nascença],  com  que  o  explicou;  porque,  na  realidade,  para  por- 
tugueses, que  só  saibam  português,  com  ou  sem  latim,  seme- 
lhante vocábulo  é  verdadeiramente  uma  charada  mal  feita. 

É  de  sentir  que  os  nossos  professores  e  escritores  técnicos 
sejam  em  geral  tam  pouco  escrupulosos  na  vernaculidade  da  lin- 
guajem, empecendo  deste  modo  a  criação  e  o  desenvolvimento 
de  verdadeira  literatura  científica,  sem  a  qual  a  outra  literatura 
é  insuficiente  para  congraçar  a  ciência  com  o  idioma  nacional  e 
fazer  dele  uma  língua  culta.  O  facto  é  que  a  este  respeito  quem 
pode  não  quere,  e  quem  quere  não  sabe. 


edu 

O  Novo  DicciONÁRio  diz-nos  ser  eãu  uma  árvore  da  índia 
portuguesa,  mas  não  abona  o  termo,  nem  dá  maior  explicação. 

Não  sei  que  árvore  seja.  Sebastião  Kodolfo  Dalgado,  no 
DicdioNAEio  KoMKANí-PORTUGUEz  ^^  traz  um  vocábulo,  elu, 
com  l  cacuminal,  e  dá-lhe  a  significação  de  «cardamomo».  Como 
esse  l  cacuminal,  que  não  tem  correspondente  nas  línguas  da 
Europa,  a  não  ser  um  som  análogo  em  alguns  dialectos  escandi- 
navos, costuma  também  ser  expresso  por  d  (e  por  r),  é  provável 
que  seja  a  mesma  árvore. 

Garcia  da  Orta  não  cita  este  entre  os  vários  termos  indianos 
para  o  cardamomo  ^. 


1    O  Século,  de  8  de  junho  de  1900. 
*     Bombaim,  1893,  p.  69,  col.  ii:  m  é  n^  germânico. 
5    Colóquios  dos  simples  e  drogas  da  Índia,  Lisboa,  i,  1891, 
p.  174. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  377 

eido 
A  orijem  deste  vocábulo  é  o  latim  aditiim  '. 


eiró(s) 

De  areóla  }  areia,  por  serem  as  eirós  transportadas  vivas 
nas  selhas,  envolvidas  em  areia  molhada.  O  termo  não  é  geral; 
enguia  é  o  nome  deste  peixe  na  língua  comum. 


eito 


Tem  dois  significados,  com  étimos  diferentes:  eito,  «se- 
rie» }  ictum;  eito  «lançamento»  {  iactum  -. 

Não  sei  a  qual  dos  dois  se  há  de  subordinar  a  acepção  que 
está  definida  no  Novo  Diccionábio,  como  termo  brasileiro,  com 
a  significação  de  —  «roça  onde  trabalhavam  escravos»  — .  A  eti- 
molojia  ali  proposta  actum  é  improvável,  visto  que  deste  pro- 
cederam as  formas  portuguesas  aito  e  auto. 


eivigar 

Este  vocábulo  obsoleto  procede  do  latim  aedificare,  com  a 
supressão  normal  do  d  intervocálico,  e  o  abrandamento  do  /, 
igualmente  intervocálico,  em  v:  cf.  devesa  j  defensa. 


*  D.  Carolina  Michaêlis  de  Vasconcelos,  in  Eevista  Lusitana,  m, 
p.  62. 

*  D.  Carolina  Michaêlis  de  Vasconcelos,  in  Revista  Lusitana,  iii, 
p.  145-147. 


378  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


êl 


É  esta  a  forma  transmontana  do  pronome  êle,  cujo  plural  é 
eis,  por  eles.  O  singular  el  é  frequente  em  documentos  antigos, 
bem  como  aquel.  Em  castelhano  diz-se  él  \  ille,  e  no  plural 
ellos  \  illos.  Em  português,  tanto  a  forma  geral,  como  a  espe- 
cial, êle,  êl  formaram  o  plural  por  analojia,  eles,  eis,  já  dentro 
do  português. 

eleiçoeiro 

Não  direi  que  este  adjectivo  esteja  muito  bem  deduzido 
do  substantivo  eleição,  porque  a  formação  é  mais  própria  de 
substantivos  (cf.  pregoeiro  de  pregão),  mas  em  todo  o  caso  é 
expressivo: — «O  governo  que  dissolvera,  por  motivos  eleiçoei- 
ros,  36  camarás  municipaes»  —  ^ 


elo 


Do  latim  an(n)ellum,  forma  comprovada  pelo  castelhano 
anillo  \  aniello,  resultou  ãelo  ^,  contraído  depois  em  elo;  cf.  rela 
de  rãela  \  ranella,  deminutivo  de  rana. 


embala 

Termo    do   Bailundo: — «a   embala   (a   lihata   onde  vive   o 
soba) » — ^. 


1  O  Secui.o,  de  3  de  novembro  de  1900. 

2  D.  Carolina  Michaêlis  de  Vasconcelos,  in  Revista  Lusitana,  i, 
p.  301. 

3  O  Dia,  de  29  de  junho  de  1903. 


Apostilas  aos  Uicionários  Portugueses  379 


embarrar 

Vocábulo  transmontano,  que  corresponde  ao  geral  esbarrar. 
Vem  já  no  Novo  Diccionáeio,  como  termo  da  língua  comum,  o 
que  não  parece  exacto. 

embondeiro ;  empipa 

E  o  nome  português  da  árvore  agigantada  a  que  os  franceses 
chamam  haohab,  conforme  a  nomenclatura  científica,  Adansonia: 

— « Chamaram-lhe  por  isso  a  arvore  de  Lifan  (povoação 
que  os  portugueses  incendiaram  em  Timor).  Era  da  família  dos 
baobabs,  imbondeiros  e  micondós,  gigantes  vegetaes  de  que 
abundam  todas  as  nossas  colónias  tropicaes» — *. 

E  preferível  escrever  com  e  inicial  este  nome  africano 
(mbondo),  visto  que  o  i  inicial,  com  que  também  se  escreve 
em  português,  imhondeiro,  forma  ortográfica  que  adoptaram  o 
Dico.  CoNTEMPOEANEo  c  0  Nôvo  Dicc,  é  preficso  significativo 
nas  línguas  cafriais,  designativo  do  plural  dos  substantivos 
da  classe  iii;  como  em  quimbundo,  kinda,  «quinda,  cesto»,  inda, 
«cestos»  —  -. 

No  mesmo  caso  de  transcrição  portuguesa  em,  por  m  -j-  con- 
soante, e  en,  por  n  -f-  consoante,  iniciais,  grupos  próprios  das 
línguas  africanas  da  família  banta,  ou  cafrial,  estão  outros 
vocábulos,  que  hajam  de  ser  adoptados  em  português,  como 
empipa: — «Fabricam  também  uma  outra  bebida  adocicada  cha- 
mada m^pipa,  resultado  da  fermentação  incompleta  da  batata 
doce»  —  ^. 

V.  Oetogsafia  Nacional,  páj.  256  e  257. 


'     Carta  de  Timor,  in  <0  Século  >,  de  16  de  janeiro  de  1906. 

*  Héli  Chatelain,  Grammatica  elementar  do  Kimbundu  ou  lín- 
gua DE  Angola,  Genebra,  1888-1889,  p.  3. 

3  Azevedo  Coutinho,  A  campanha  do  Baruê  em  1902,  in  <  Jornal 
das  Colónias  >  de  30  de  julho  de  1904. 


380  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


emboutar 

Na  Beira-Baixa  significa  este  vocábulo  «pôr  de  parte,  depois 
de  ter  encetado  >,  abocanhar. 


empacassa,  empacasseiro 

O  Novo  DicciONÁEio  inseriu  estes  dois  vocábulos,  definindo 
o  primeiro — «vacca  silvestre  das  margens  do  Ganges;  búfalo»  — ; 
e  o  segundo  —  «caçador  de  búfalos»  — . 

Tenho  muitas  dúvidas  acerca  da  exactidão  destas  definições. 
A  palavra  empacassa  não  tem  feitio  índio,  mas  antes  africano, 
cafrial,  e  neste  caso  poderia  ter  sido  pelos  portugueses  ou  por 
banianes  levada  da  África  Oriental  para  a  nossa  índia,  se  se 
apurasse  que  ela  fosse  vernácula  num  e  no  outro  destes  dois 
pontos.  Ora,  na  realidade,  empacassa  não  é  termo  conhecido  na 
Índia,  e  nem  mesmo,  ao  que  parece,  em  qualquer  rejião  da 
África  Oriental  Portuguesa. 

Com  efeito,  na  língua  de  Tete  o  principal  termo  com  que  o 
búfalo  se  designa  ali  é  nháti  ^ 

Disse  que  o  termo  tem  aspecto  cafrial,  e  na  verdade  é  êle 
vernáculo,  porém  na  África  Ocidental  e  não  na  Oriental:  em 
quimbundo  pahasa  é  o  vocábulo  pelo  qual  « búfalo »  é  traduzido 
por  Joaquim  da  Mata,  no  ^^hn^l  jipahasa:  «boi  selvagem;  bú- 
falo»—  -.  A  sílaba  inicial  da  forma  portuguesa  empacassa  in- 
dica ser  ela  tomada  de  qualquer  dialecto  do  quimbundo,  em  que 
o  p  seja  nasalizado,  fenómeno  frequente  nas  consoantes  iniciais 


1  Victor  José  Courtois,  DiCCiONARio  portxtguez-cafrb  tetbnse, 
Coimbra,  1899,  p.  81. 

2  Ensaio  de  diccionario  kimbúndu-portuguez,  Lisboa,  1893, 
p.  127. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  381 

de  vocábulos  dessa  família  de  línguas,  quando  são  substantivos 
principalmente. 

Como  não  é  natural  que  o  termo  transitasse  da  costa  ociden- 
tal de  África,  onde  não  vão  os  banianes,  para  a  índia  Portu- 
guesa, é  provável  que  a  vivenda  do  bicho  não  seja,  nem  nunca 
fosse,  as  marjens  do  Ganjes,  como  nos  diz  a  definição  do  Novo 
Dicc,  pelo  menos  com  semelhante  nome.  As  espécies  africanas 
mesmo  são  diferentes  das  da  Índia,  e  de  todas  as  mais  asiáticas. 

A.  Réville,  no  livro  Les  keligioxs  des  peuples  nox-civi- 
LisÉs  *,  cita  os  vocábulos  empacasso  e  empacasseiro  no  seguinte 
passo,  que  me  foi  apontado  pelo  snr.  G.  de  Vasconcelos  Abreu: 
—  <0n  parle  encore  d'une  société  qui  se  serait  formée  depuis 
le  seizième  siècle  chez  les  Kimboundas  [sic]  sud-est  [sid]  de 
TAfrique,  et  dont  les  Portugais  appelaient  les  membres  des 
Empacasseiros,  parce  que  chaque  initié  devait  sacrifier  un 
buffle,  empacasso» — .  O  autor  cita  R.  Hartmann  *,  e  refere-se  à 
dita  seita  como  adversária  da  antropofajia,  e  que  deste  modo 
substituíra  o  sacrifício  humano  pelo  de  uma  rês. 

É  claro  que  o  vocábulo  dado  aqui  como  português  o  não  é, 
mas  quimbundo,  segundo  vimos.  Por  outra  parte,  a  vivenda  dos 
povos  ambundos,  propriamente  ditos,  a  sueste  da  Africa,  se  não 
é  erro  tipográfico,  mas  do  autor,  serait  de  sa  part  une  sin- 
gulière  bévue,  a  não  ser  que  parta  da  hipótese,  perfilhada  em 
certo  modo  por  Henrique  de  Carvalho  3,  de  que  os  povos  ca- 
friais  tivessem  vindo  do  leste  para  oeste,  e  que  ainda  a  sueste 
demorassem  naquele  século,  o  que  tudo  assenta  em  conjecturas. 

Temos  porém  aqui  um  passo,  que  nos  subministra  mais 
uma  acepção  do  vocábulo  empacasseiro,  a  de  membro  de  uma 
seita  relijiosa  indíjena,  que  tinha  como  credo  a  abolição  dos  sa- 


1     Paris,  1883,  p.  113. 

'  Les  peuples  de  l'Afrique  (Bibliothèque  scientifique  intematio- 
nale),  Paris,  1880,  p.  218  (q.  v.J. 

3  Expedição  portugueza  ao  Muatiânvua.  Ethnographia  b 
HISTORIA  tradicional,  Lisboa,  1890,  cap.  i,  p.  54  e  ss. 


382  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


crifícios  humanos,  mediante  uma  prática  cultual  menos  cruel, 
a  substituição  da  vítima  humana  por  um  búfalo,  mpalcasa,  pa- 
lavra cafrial  que  lhe  haveria  dado  o  nome  imposto  pelos  portu- 
gueses residentes  em  Africa,  entre  os  quais  fosse  aquele  animal 
conhecido  também  por  este  nome  aportuguesado,  empacassa. 

Parece,  portanto,  serem  inexactas  as  definições  que  dos  dois 
vocábulos  nos  dá  o  Novo  Dioc,  sem  as  abonar. 

Evidente  é  igualmente  que  o  autor  a  quem  citei,  Hartmann, 
obteve  aquela  informação  de  qualquer  escritor  português;  mas 
nem  êle  cita  a  autoridade  em  que  se  fundou,  nem  eu  a  pude 
por  emquanto  encontrar. 

Concluirei  advertindo  que  J.  I.  Koquete,  no  Dicionário  por- 
tuguês francês  *  já  inscrevera  o  substantivo  (emjjjacassa,  nos 
termos  seguintes:  —  «empacassa  ou  pacassa,  t.  hist.  nat.  em- 
pacassa ou  pacassa,  buffle,  bubale  du  Congo».  —  Não  é  provável 
todavia  que  Hastmann  fosse  lá  desencantar  o  vocábulo,  que  não 
figura  nem  no  Dicionário  francês  de  Littré,  nem  também  no  de 
Larousse.  Parece  pois  que  Roquete,  sem  autoridade,  afrancesou 
a  palavra,  que  vemos  deu  como  denominação  do  animal  na  África 
Ocidental,  e  não  na  índia. 


empapelar,  empapelo 

O  Novo  Dicc.  dá-nos  como  significado  de  empapelo,  nome 
verbal  rizotónico  de  empapelar,  «embrulhar  em  papel >,  o  signi- 
ficado—  «invólucro  de  papel» — ,  declarando  desusado  o  vocá- 
bulo. Nesta  acepção  concreta  creio  que,  na  realidade,  está  fora 
do  uso,  se  é  que  em  algum  tempo  foi  empregado.  Na  acepção 
abstracta,  porém,  de  «acção  de  empapelar»,  existe  abonação, 
colhida  provavelmente  em  flagrante:  —  «Na  officina  de  empa- 
pello  (sic),  havia  5  magnificas  machinas  de  cortar  papel» — *. 


1  DiCTIONAIRE  PORTUGAIS-FRANÇAIS,  Paris,  1855. 

2  O  Século,  de  25  de  abril  de  1900. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  383 


Refere-se  o  articulista  à  fábrica  de  tabacos,  denominada  de 
João  Paulos  Cordeiro,  em  Lisboa. 

empargado 

No  Riba-Tejo  diz-se  do  «trigo  amontoado  na  meda»,  con- 
forme informação  de  pessoa  da  Chamusca. 

empeçar 

Este  verbo  antigo,  correspondente  do  castelhano  antigo  em- 
peçar, moderno  empenar  (=empe§ar)  *  é  ainda  usado  em 
Trás-os-Montes,  talvez  por  influencia  espanhola  raiana.  Nada  tem 
que  ver  com  outro  empeçar,  que  o  Contempoeaneo  define — 
«enredar. .  .,  pôr  obstáculo. .  .  topar. . . » — . 

empena,  empenar:  v.  pena 

empolgar 

Conforme  J.  Joaquim  Núnez,  de  impollicare  "^  j  pollex, 
pollicis,  «dedo  polegar»:  cf.  poUicaris,  «que  mede  uma  po- 
legada » :  O  próprio  adjectivo  português,  substantivado,  polegar 
é  pronunciado  normalmente  polgar,  e  assim  pode  ser  escrito, 
como  o  é  o  verbo. 

encaixe 

Em  Sam  Martinho  dá-se  este  nome  à  renda.  Em  castelhano 
é  encaje. 


1  §  designa  a  sibilante  surda  ginjival  ou  dental,  o  z  castelhano  actual. 

2  Kevista  Lusitana,  ni,  p.  256. 


384  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


encalir 


No  Minho:  «engrolar,  ferver  mal,  entalar,  como  se  diz  em 
Lisboa,  carne  ou  peixe,  para  se  não  estragar,  afim  de  serem  cozi- 
nhados ao  depois». 

O  Novo  DiccioNÁEio  traz  este  vocábulo,  com  definição 
aprossimada.  Atribui-lhe  um  de  dois  étimos:  latim  calere, 
que  apresenta  a  dificuldade  da  permanência  do  l  intervocálico 
(cf.  quente  |  calentem),  que  no  entanto  vemos  em  calor, 
provavelmente  de  orijem  semi-erudita.  Aponta  como  segundo 
étimo,  um  hebraico,  que  não  cita,  remetendo  o  leitor  para 
Pereira  Caldas. 

Não  se  dê  esse  leitor  a  semelhante  busca,  partindo  com  toda 
a  segurança  do  seguinte  princípio:  as  etimolojias  hebraicas  de 
Pereira  Caldas,  à  parte  aquelas  que  toda  a  gente  sabe  que  o 
são,  tem  apenas  uma  utilidade  reconhecida,  a  de  servirem  de 
assunto  de  riso,  se  não  de  lástima;  porque  de  três  cousas  uma 
é  verdadeira:  inventou-as  para  nosso  divertimento,  esteve  zom- 
bando comnosco,  ou  estava  doido  quando  as  publicou. 


encanelar 

O  Novo  DiccioNÁEio  incluiu  este  verbo,  dando-lhe  como 
definição: — «dobrar  em  canelas  ou  novelos;  fazer  canelas  em, 
acanelar » — . 

O  vocábulo  novelos  é  de  mais,  pois  novelos  não  são  canelas, 
e  neles  enrola-se  o  fio,  não  se  dobra,  como  nas  meadas  ou  ma- 
deixas. 

No  trecho  seguinte,  porém,  encanelar  tem  outra  acepção: 
—  «Lamego,  21...  o  ficarem  as  videiras  sem  rebentar  foi  de- 
vido a  varias  influencias  atmosphericas,  e  na  maior  parte  geadas 
que  receberam  já  no  tempo  em  que  a  vide  principiava  a  desen- 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  385 


volver  para  a  rebentação,  e  que  assim  ficaram  encauelladas, 
— termo  que  n'este  caso  usam  os  lavradores» — K 


encaraçado 

No  noi-te  do  reino  usa-se  este  adjectivo  participial  substanti- 
vado, derivado  de  caraça,  para  significar  o  que  no  sul  se  diz 
mascarado,  e  antes  se  dizia  emmascarado,  como  vemos  no 
romance  de  António  de  Campos,  Luís  de  Camões  [Parte  ii,  14]: 
—  «Iam  a  cavallo,  em  trage  de  disfarce,  muito  garrido,  masca- 
rados, ou  emmascarados,  como  então  se  dizia »  — . 


encardir,  cardir 

Cardida,  que  pressupõe  um  verbo  cardir,  de  que  é  particí- 
pio  passivo,  diz-se  da  madeira  que  esteve  muito  tempo  debaixo 
de  água,  e  apodreceu.  Esta  informação  foi-me  dada  pelo  snr. 
G.  de  Vasconcelos  Abreu.  Do  verbo  primitivo  cardir  se  derivou 
encardir,  <çujar»,  hoje  em  dia  e  desde  muito  tempo  empre- 
gado no  sentido  de  «lavar  mal»,  pois  se  diz  roupa  encardida 
aquela  em  que,  depois  de  lavada,  transparece  a  çujidade  ante- 
rior. 

O  verbo  cardir  parece  ser  afim  do  adjectivo  cárdeo,  (q.  v. 
em  avergoar). 

endoenças 

Tanto  o  Diccionaeio  Contempobaneo,  como  o  Manual 
Etymologico  de  F.  Adolfo  Coelho,  como  o  Novo  Diccionaeio 
de  Cândido  de  Figueiredo,  são  concordes  em  atribuir  a  este 
vocábulo,  como  étimo,  o  latim  dolentia.  D.  Carolina  Michaelis 


1    O  Economista,  de  26  de  maio  de  1891. 

25 


386  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


explica-0  pelo  latim  indulgentias  ^  Com  efeito,  confira-se  o 
passo  seguinte: — «Vendo  Vasquo  da  Gama  ho  que  se  passava 
sesta  feira  de  Indulgências  se  fêz  à  vela ...  se  informou  da  ci- 
dade de  Melinde,  diante  da  qual  foi  surgir  dia  de  Páscoa  de 
Kessurreição  pela  menhã» — -, 

Esta  expressão  sesta  feira  de  Indulgências  volta  a  ser  em- 
pregada por  Gróis  no  capítulo  v  da  iii  Parte,  citado  por  Bluteau 
[Vocabulário,  sub  v.  Endoenças],  que  já  aponta  este  étimo,  o 
qual,  apesar  de  certas  dificuldades  fonolójicas,  é  indisputável.  O 
douto  lecsicógrafo  acrescenta  a  forma  popular  andoenças,  alterada 
pela  influencia  do  verbo  andar: — «pelo  muito  que  naquelle  dia 
[quinta  feira  de  endoenças]  se  anda  correndo  as  Igrejas»  — . 


endrómina(s) 

O  Novo  Dicc,  em  dúvida,  dá  como  étimo  a  este  vocábulo, 
que  apoda  de  chulo,  o  vasconço  androminac,  e  como  para  o  com- 
provar, cita  outra  forma  andromina,  mais  conforme  com  o  caste- 
lhano andrómina,  que  naturalmente  passou  a  Portugal  no  sé- 
culo XVII.  O  Dicionário  da  Academia  espanhola  ^  aponta  para 
étimo  o  italiano  andirivieni — «subterfúgio» — ,  e  francamente 
não  se  lhe  podem  dar  parabéns  pela  invenção. 

Examinemos,  no  entanto,  de  relance  as  dificuldades  que 
apresenta  o  vasconço  indicado,  conquanto  plausível,  e  que  pri- 
meiro foi  proposto  pelo  famoso  criador  da  filolojia  vasconça,  o 
Padre  Manuel  de  Larramendi,  em  princípios  do  século  xviii. 
O  vocábulo  diz-se  composto  de  andré  «mulher  casada»,  e  min, 
«dor,  queixa».  Ora,  andré  não  é  andró,  e  o  plural  andreminac 
teria  naturalmente  de  ser  acentuado  no  i  de  min,  andreminac. 


1    Eevista  Lusitana,  iii,  p.  150. 

•2    Daiiiiáo  de  Góis,  Crónica  de  El-rbi  Dom  Emmasuel,  i,  cap.  37. 

3     Madrid,  lá99. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  387 


enfarelar 

—  «Ulteriormente  enchem  a  vasilha  [de  barro  poroso]  com 
farinha  de  milho  e  agua,  collocam-a  ao  fogo  e,  uma  hora  passada, 
consideram  obtida  a  vedação.  Está  a  loiça  enfarellada» — ^ 


engar,  enguiço,  enguiçar 

O  Novo  DiccioNÁEio  dá  a  este  verbo  a  significação  de: 
— « habituar-(se),  preferir  (um  pasto)»  — . 

D.  Carolina  Michaêlis  tratou  deste  vocábulo  num  artigo  muito 
bem  deduzido,  dando-lhe  como  significação  própria  e  primordial 
a  seguinte: — ^engar-se  a  alguma  cousa  significa  avezar-se  ao 
qice  é  ruim^ — ,  e  exemplificou  este  significado  com  o  adájio: 
—  «Engou-se  a  velha  aos  hredos:  souber am-lhe  hem,  lambeu 
os  dedos  ^ — ,  a  que  corresponde  a  forma  mais  moderna — *  Ave- 
zotírse  a  velha  aos  bredos,  etc. » — . 

O  étimo  proposto  pela  autora  desta  luminosa  inquirição, 
que  merece  atenta  leitura,  é  o  latim  iniquare  ^.  Cf.  a  etimo- 
lojia  proposta  pela  mesma  romanista  para  enguiçar  \  iniqui- 
tiare  \  iniquum,  e  que  parece  indubitável,  sendo  enguiço  um 
substantivo  verbal,  rizotónico,  deste  verbo. 

Júlio  Cornu,  todavia,  opõe  com  razão  a  esta  etimolojia,  en- 
gar \  iniquare,  outra,  enecare,  que  em  latim  significa  «ator- 
mentar», acrescentando  o  seguinte: — somente  no  caso  de  se  encon- 
trar a  forma  êiguar,  se  poderia  apelar  para  o  étimo  iniquare  ^. 

Na  realidade,  a  quantidade  longa  do  segundo  i,  torna  difícil  de 


1  Kocha  Peixoto,  Sobrevivência  da  primitiva  roda  de  oleiro 
EM  Portugal,  in  Portugália,  ii,  p.  76. 

2  Kevista  Lusitana,  iii,  p.  151-154. 

3  Grammatik  der  portugibsischen  Sprache,  hl  <  Grundriss  der 
romanischen  Philologio,  2.*  edição,  Estrasburgo,  1905,  p.  966,  nota. 


388  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 

admitir-se  o  seu  desaparecimento,  postulado  na  outra  etimolojia 
a  que  me  referi. 

enguiado 

Não  é  claro  o  sentido  deste  epíteto,  aplicado  à  cortiça  no 
trecho  seguinte :  —  «as  cortiças  enguiadas  não  eram  por  via  de 
regra  impróprias  para  rolha;  somente  valiam  menos,  por  não 
poderem  ser  fabricadas  á  machina  de  rolha  que  dispensa  o  qua- 
dro»—  *. 

Fica  no  entanto  rejistado  o  vocábulo,  se  não  há  nele  erro 
tipográfico. 

enha= minha 

No  Novo  DiccioNÁEio  vem  apontada  esta  forma,  abonada 
com  Gil  Vicente.  Efectivamente,  como  proclítica,  le-se  no  « Auto 
da  Lusitânia » : 

—  Florida,  enha  filha  — 

—  Granado,  enha  filha  — , 

como  vemos  ta  na  « Farsa  do  Clérigo  da  Beira » : 

Que  filho  és  de  bom  pai, 
E  ta  mãe  boa  mulher. 

São  abreviaturas  de  minha,  tua. 

É  de  notar  que  enha  é  pelo  poeta  empregado  num  romance, 
com  todas  as  aparências  de  antigo,  tradicional,  para  ser  can- 
tado, e  que  os  versos  são  de  cinco  sílabas  até  a  última  acentuada: 

—  Donde  vindes,  filha. 
Branca  e  colorida  — , 


1    O  Século,  de  19  de  julho  de  1905. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  389 


O  e  de  enha  tem  de  ser  elidido,  como  provavelmente  o  era  na 
pronúncia,  porque  servia  apenas  de  amparo  à  sílaba  nha,  que 
não  é  inicial  de  vocábulos  portugueses.  Este  enha  é  pois  a  redu- 
ção de  minha  por  próclise. 

Também  no  <Auto  da  barca  do  Purgatório»  figura  o  feme- 
nino  enha,  na  boca  de  um  lavrador,  que  fala  linguajem  arcaica 
e  viciosa: 

E  de  tudo  fiz  aquesta, 
Como  omem  diz,  avantairo : 
Leixei  ó  cura  enha  besta. 

Aqui  empregou  Gril  Vicente,  como  quási  sempre,  a  redondi- 
Iha,  e  o  e  de  enha  tem  também  de  ser  elidido. 

No  Suplemento  ao  mesmo  dicionário  dá-se-lhe,  porém,  um 
masculino  enho,  que  nunca  existiu,  nem  podia  existir,  pois  a 
forma  masculina  é  meu,  e  não,  minho,  e  que  foi  deduzido  infun- 
dadamente do  femenino. 


enjendrar,  gerar 

O  verbo  enjendrar  é,  como  arranjar,  um  galicismo  antigo, 
tanto  em  português  como  em  castelhano;  todavia,  para  o  segundo 
destes  verbos  somente  em  português  se  dá  o  galicismo,  pois  os 
espanhóis  criaram  o  verbo  arreqlar,  que  o  substitui  em  quási 
todas  as  suas  acepções.  Não  me  ocuparei  do  segundo  destes  ver- 
bos, porque,  à  parte  escritores  pouco  esmerados,  todos  evitam 
o  seu  emprego,  a  não  ser  nos  sentidos  populares  de  «conser- 
tar, compor >,  ou  no  translato  de  < alcançar»,  significados  que 
não  tem  o  verbo  (ar)ranger  francês,  o  qual  significa  principal- 
mente «arrumar»,  em  sentido  natural  ou  em  sentido  figurado. 
Na  acepção  de  < obter»  diz-se  em  francês  (se)  procurer. 

Que,  tanto  o  verbo  arranjar,  como  o  verbo  enjendrar  são 
galicismo,  prova-se  com  a  sua  formação:  arranger  provém  de 
rang,   substantivo    a   que   em   português   corresponde   o   quási 


390  Apostilas  nos  Dicionários  Portugueses 


desusado  renque;  vê-se,  pois,  que  a  este  primitivo  não  corres- 
ponde aquele  derivado. 

O  mesmo  acontece  com  enjendrar.  Do  latim  genus,  gene- 
ris  procedia  o  verbo  generare,  de  que  em  português  proveio 
gerar,  com  perda  do  n  intervocálico,  e  que  por  isto  se  pronun- 
ciava dantes  gerar,  que  J.  I.  Koquete  ainda  manda  proferir  com 
e  aberto,  e  de  que  o  povo  fêz  jarar,  obedecendo  à  influencia  que 
o  r  exerce  no  e  átono  que  o  precede:  cf.  para  J  pêra).  Ainda 
hoje  a  pronúncia  geral  é  geração,  e  não,  geração. 

Em  francês,  de  ingen(e)rare  fez-se  engenãrer,  como  de 
gener,  generis,  «genro»,  se  fêz ^en6?re,  com  í?  intercalar  entre 
o  n  e  o  r,  que  a  supressão  do  e  que  os  separava  pôs  em  con- 
tacto. Tal  d  eufónico  não  pertence  à  fonolojia  portuguesa  (cf. 
genro),  e  portanto  enjendrar  não  é  português,  a  não  ser  como 
plebeísmo,  no  sentido  de  « enjenhar,  aldrabar,  fabricar  mal  e  sem 
preceito » . 

É  pois  defeituosa  a  seguinte  frase: — «As  formas  nobres.  .  . 
que  traziam  na  sua  plasticidade  evolutiva  a  possibilidade  de  en- 
gendrar o  cavallo,  o  elephante,  etc. » —  ^ 

Onde  se  empregou  este  verbo  afrancesado,  deveria  ter-se  es- 
crito gerar,  que  lhe  corresponde  na  significação  e  orijem. 

Não  é  porém  sem  exemplo  o  emprego  de  tal  verbo,  em  passos 
de  autores  antigos,  e  Bluteau  cita  dois,  ambos  os  quais,  todavia, 
conteem  a  idea  subsidiária  de  artifício,  que  torna  a  obra  imper- 
feita ou  impossível. 

enjogar 

Este  verbo  derivado  de  jogo  (=jôgo),  vocábulo  transmontano 
que  quere  dizer,  como  forma  subsidiária  de  gogo  (^=gógo),  « seixo 
boleado  pelas  águas  que  o  acarrearam»,  significa  no  mesmo  dia- 
lecto «empedrar,  calçar  as  ruas  com  jogos». 


*    O  Século,  de  25  de  setembro  de  1905. 


Apostilas  aos  Dicionános  Portugueses  391 


enlaga 

—  «A  enlaga  [do  linho]  tem  por  fim  dissolver  na  agua  uma 
espécie  de  gomma  resinosa,  que  liga  entre  si  as  fibras  do  linho 
e  da  casca»  — *. 

enoque 

No  Boletim  da  Sociedade  de  Greografia  de  Lisboa  -  ve- 
mos esta  palavra,  empregada  num  acórdão  municipal  de  1862, 
transcrito  em  parte  pelo  autor  do  escrito,  de  sumo  interesse,  ali 
publicado: — «todo  o  cortidor  (síc),  que  não  despejar  a  surrada 
das  pelles  no  rio  e  não  deitar  fora  das  portas  de  seus  e  no  quês 
ao  rio  as  misturas  que  n'estes  se  fazem  incorrerá  na  pena  de 
6000  réis,  pelo  damno  que  causará  á  cidade  do  mau  cheiro»  — . 

Vê-se  que  a  transcrição  está  modernizada  na  ortografia,  e 
ficamos  na  incerteza  do  que  seriam  os  enoques,  vocábulo  que 
me  não  consta  haja  sido  encontrado  em  outra  parte. 


enoz 


Ignoro  o  significado  exacto  deste  vocábulo  que  aparece  nas 
Batalhas  da  Companhia  de  Jesus,  do  Padre  António  Fran- 
cisco Cardim  [Lisboa,  1894,  páj.  44],  e  pode  ser  erro  de  lei- 
tura:—  «uma  enoz  de  pedra  vitorina» — .  Vê-se  que  é  uma  jóia, 
um  enfeite,  com  forma  especial. 


1  Portugália,  i,  p.  370. 

2  17.*  Série,  1898-1899,  p.  168— Bragança  e  Bbmqubrbnça,  por 
Albino  dos  Santos  Pereira  Lopo. 


392  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


enristar,  enriste 

O  verbo  vem  em  todos  os  dicionários;  não  assim  o  substan- 
tivo dele  derivado,  enriste,  que  vemos  no  seguinte  passo  das 
Batalhas  da  Companhia  de  Jesus  :  — « repetiu  o  algoz  o  en- 
riste»—  K  Antes  dissera: — «enrista  com  elle»  — . 


ensaca 

Não  é  o  nome  verbal  derivado  de  ensacar,  que  falta  nos  di- 
cionários, a  par  de  ensaque,  neles  rejistado,  mas  um  termo  da 
África  Oriental  Portuguesa,  cuja  definição  se  vê  nos  trechos  se- 
guintes:—  «A  gente  de  guerra  era  dividida  em  ensacas,  com- 
mandadas  pelos  malukua,  os  quaes  tinham  como  auxiliares  o 
fchicango,  e  o  dembo,  autoridades  que  correspondem  respectiva- 
mente aos  cazembes,  sachecundas  e  mucatas  da  Zambezia» — ^. 
Antes,  lê-se: — «Ensacas  agrupamento  de  cypaes  commandados 
por  um  cazembe,  correspondente  á  companhia» — . 

Na  escrita  destes  vocábulos,  para  que  fiquem  portugueses, 
temos  de  emendar  malucua,  chicango,  além  do  absurdo  cypaes 
em  cipais  (q.  v.),  ou  sipais. 

ensanzorar 

— « Nos  bivaques,  e  quando  temem  surpreza  [os  cipais],  ou  se 
ensanzoram,  ou  construem  abrigos  ligeiros,  com  troncos  de 
arvores,  ou  terra»  —  ^. 

É  termo  da  África  Oriental  Portuguesa. 


1  Lisboa,  1894,  p.  192. 

2  Azevedo  Coutinho,  A  campanha  do  Barué  em  1902,  in  «Jornal 
das  Colónias  >,  de  13  fle  agosto  de  1904. 

3  Azevedo  Coutinho,  A  campanha  do  Barué  em  1902,  in  «Jornal 
das  Colónias»,  de  19  de  agosto  de  1905. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  393 


ensarranhar 
No  Minho,  conforme  infonnação  pessoal,  « eiifarniscar  > . 

entrevistar 

Este  neolojismo  pretende  substituir  o  estrambótico  interview 
inglês,  que  para  cá  passou  por  intermédio  do  francês,  onde  é 
anglicismo;  mas  também  não  é  português,  nem  cá  é  preciso. 
Muito  mais  antigos,  e  mais  expressivos,  temos  visitar  alguém, 
avistar-se  com  alguém. 

entrujão 

Em  jíria  castelhana  entruchón  quere  dizer  «sabido,  ladino». 
Existem  também  entruchar  e  eniruchada.  O  verbo  é  assim  de- 
finido no  Dicionário  da  Academia  *: — «atraer  á  uno  con  disi- 
mulo  y  engano,  usando  de  artifícios  para  meterle  en  un  nego- 
cio » — . 

Conquanto  o  termo  em  Portugal  tenha  grandes  ressaibos  de 
linguajem  ordinária,  direi  mesmo  chula,  a  pouco  e  pouco  foi  en- 
trando no  uso  comum;  ainda  assim  afigura-se-me  um  lapsus  ca- 
lami  o  seu  emprego  em  estilo  sério,  como  o  vejo  no  trecho 
seguinte,  de  escritor  esmerado: — «O  vaqueiro  honesto  tem  sem- 
pre ensejo  de  mostrar  a  sua  boa  fé.  .  .  e  o  vaqueiro  intrujão  de 
conhecer  o  caminho  da. . .  Boa  Hora  [edifício  dos  tribunais  de 
justiça  em  Lisboa]» — ^. 


1  Madrid,  1899. 

2  D.  Luís  de  Castro,  in  Diário  de  Noticias,  de  22  de  fevereiro  de 

190tí. 


394  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


envés 


É  usado  no  Minho,  com  o  significado  que  no  sul  damos  a 
avesso  }  aduersum,  como  envés  \  inuerse. 


enxada 

No  excelente  estudo  de  Francisco  Adolfo  Coelho  intitulado 
Alfaia  agrícola  portuguesa,  publicado  na  revista  Portu- 
gália ^  vêem-se  os  seguintes  epítetos,  que  diferençam  outras 
tantas  qualidades  de  enxadas:  enxada  de  peto,  enxada  de  in- 
çar eta,  enxada  larga,  enxada  de  ganchos. 


enxadrez 

E  o  nome  antigo  do  xadrez,  que  ainda  subsiste  no  adjectivo 
participai  enxadrezado : 

—  Negro  é  o  pez, 

Negro  é  o  rei  do  enxadrez  —  ^. 

Em  castelhano  é  ajedrez,  antigo  axedrez,  de  orijem  imediata- 
mente arábica,  proveniente  do  sánscrito,  por  intermédio  do  per- 
siano, que  o  recebeu  de  qualquer  língua  vernácula  do  Indostão. 

Em  última  análise  o  vocábulo  é  sanscrítico:  KaTURaMGa  ^,  as 
quatro  partes  (componentes  de  um  exército),  infantes,  cavaleiros, 
carros  e  elefantes. 


1    I,  p.  399. 

*    Gil  Vicente,  Auto  das  Fadas. 

3  O  símbolo  Av  vale  pelo  ng  germânico,  ou  nasal  póstero-palatal.  O  vo- 
cábulo sanscrítico  pronuncia-se  quási  como  se  em  português  escrevêssemos 
(t)chatorânga,  isto  conforme  a  prosódia  convencional,  clássica  na  Europa. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  395 


enxalabar,  enxalavar 

Esta  rede  é  assim  descrita  no  artigo  A  pesca  em  Buaecos 
de  P.  Fernández  Tomás: — «Redes  especiaes,  tendo  na  boca  um 
arco  de  ferro,  chamadas  enxalavares^ — ^  A  forma  com  h  en- 
contra-se  no  seguinte  passo: — «Um  pescador,  tendo  mergulhado 
mais  uma  vez  o  seu  enxalabar  > — 2. 


enxame 

Em  Leiria  aplica-se,  em  sentido  geral  e  não  por  metáfora, 
esta  palavra  para  designar  «grupo  de  gente  que  anda  rezando  e 
visitando  os  passos  no  domingo  de  Páscoa».  Esta  informação  é 
do  conhecido  poeta  Acácio  de  Paiva,  dali  natural. 

Como  é  sabido,  enxame  é  o  latim  examen,  «tropel,  ajun- 
tamento de  gente  que  segue  caminho»;  «enxame  de  abelhas» 
é  sentido  especial  que  o  vocábulo  adquiriu. 


enxaravia 

O  Novo  DiccioNÁRio  define  este  vocábulo  como  significando 
—  «toucado  de  mulheres,  principalmente  de  meretrizes»  — ,  e 
dá-o  como  termo  antigo.  Num  artigo,  publicado  por  Sousa  Vi- 
terbo, intitulado  As  candeias  na  industria  e  nas  tradições 
POPULARES  portuguesas  3,  vcm  transcrito  um  documento  de 
1454,  no  qual  entre  os  de  outros  objectos  está  mencionado  este 
nome: — «  enxaravias  de  seda  e  linho»  — . 


1  i»  Portugália,  I,  p.  152. 

2  O  Economista,  de  26  de  outubro  de  1888,  citando  o  Campeão  das 
Províncias,  de  Aveiro. 

3  in  Portugália,  i,  p.  367. 


396  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


O  Elucidário  de  Santa  Kosa  de  Viterbo  já  traz  a  pala- 
vra:—  «Também  se  chama  Polaina.  Era  a  insignia  oprobriosa 
das  alcoviteiras.  Consistia  n'huma  Beatilha  de  seda  vermelha, 
que  traziam  na  cabeça,  emquanto  não  partiam  para  o  des- 
terro»— .  Cita  o  Livro  v  das  Ordenações,  Título  32,  §  6.'', 
onde  na  realidade  se  lê  o  seguinte:  —  «Em  todos  os  casos  em 
que  algúa  mulher  for  condenada,  por  alcoviteira  em  algumas  das 
penas  sobre-ditas  [nos  §§  antecedentes],  onde  não  haja  morrer, 
ou  hir  degradada  para  o  Brasil,  traga  sempre  polaina,  ou  en- 
xaravia  vermelha  na  cabeça,  fora  de  sua  casa,  e  não  a  trazendo 
seja  degradada  para  sempre  para  o  Brasil» — . 

Do  texto  citado  vê-se  que  a  definição  de  Santa  Kosa  de  Vi- 
terbo tem  dois  erros.  Primeiro,  provável:  não  se  depreende  clara- 
mente se  ])olaina  é  a  enxaravia,  ou  outra  peça  de  vestuário; 
segundo,  certo:  a  enxaravia  era  obrigatória,  quando  não  havia 
morte  ou  degredo,  e  não,  como  diz,  sempre  e  precedendo  o  de- 
gredo. 

Conforme  Eguílaz  y  Yanguas  é  o  vocábulo  arábico  AL-xaEBÍiR 
«faxa  para  a  cabeça»,  de  xaRs  «linho  delgado».  O  arabista 
espanhol  acrescenta:  —  «En  la  2.^  [Polaina]  és  el  ár[abe]  GaRAB, 
medias» — ^.  Este  último  étimo  é  inexacto,  mas  lejitima  a 
dúvida,  de  que  polaina  equivalha  a  enxaravia. 


eiixó(s) 

Xo  Alentejo  é  o  nome  de  uma  armadilha  de  alçapão,  para 
apanhar  perdizes. 

O  Novo  DiccioNÁRio,  escreve  enxó(s),  e  diz  ser  termo  da 
Beira-Baixa,  com  significação  análoga.  É  possível  que  seja  uma 
acepção  especial  de  enxó  \  latim  ascióla,  deminutivo  de  ascia. 


•    Glosario  de  las  palabras  espanolas  de  origbn  oriental, 
Granada,  1886. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  397 


enxoval,  ajiuir 

À  primeira  vista  parecem  muito  diferentes  estes  vocábulos, 
o  primeiro  português,  o  segundo  castelhano  pronunciado  actual- 
mente ai(uar,  com  a  fricativa  póstero-palatal  surda  do  castelhano 
moderno,  em  vez  da  dorsal  x  do  português. 

No  castelhano  antigo  a  forma  era  porém  axu(v)ar,  e  o  íc 
tinha  então  o  mesmo  valor  que  tem  em  português. 

Enxoval,  não  se  deriva,  como  diz  o  Novo  Diccionáeio,  de 
exuuiae:  é  o  árabe  al-xuae,  <dote»,  quer  em  dinheiro,  quer  em 
jóias,  quer  em  trem  de  casa  ^  No  testamento  de  Pedro  Kodrí- 
guez  (1419),  publicado  na  Kevue  Hispanique  [x,  páj.  230] 
lê-se :  di  a  leonor  rrodriguez  axuar  bien  rico » — . 

O  a  representa  o  artigo  arábico  al,  com  assimilação  do  l 
à  consoante  seguinte  x,  por  esta  ser  o  que  em  terminolojia  técnica 
se  diz  letra  solar,  porque  por  ela  começa  a  palavra  xaMs,  « sol » . 
Letras  solares  são  nessa  terminolojia  as  que  se  proferem  com  a 
ponta  da  língua,  como  d,  l,  n,  r,  s,  t,  x;  lunares,  as  outras. 

Com  relação  à  mudança  de  ax. .  .  em  enx. . .  da  forma 
portuguesa,  cf.  a  forma  valenciana  enxovar,  com  a  aragonesa 
axovar  -,  e  ainda  o  castelhano  azufre,  azada,  com  o  português 
enxofre,  enxada.  Compare-se  também  enxame  e  exame,  ambos 
do  latim  examen.  Pelo  que  respeita  à  inserção  do  v,  confron- 
tem-se  ig\ialmente  as  formas  castelhanas  loor,  loar  com  as  por- 
tuguesas louvor,  louvar,  dantes  loar,  de  que  proveio  loa,  em 
latim  lauda re,  e  laus,  landis;  ouvir,  português  com  oir  cas- 
telhano j  audire;  goivo  j  gaudium,  etc.  Este  v  intercalar  ma- 
nifestou-se  nas  formas  de  orijem  latina,  depois  da  queda  do  d, 
para  se  evitar  o  conflito  das  vogais,  ou  hiato:  a  esta  causa  é 


1  Veja-se  Eguílaz  y  Yanguas,  Glosario  de  las  palabras  espano- 
LAS  DE  ORiGEx  ORIENTAL,  Granada,  1886. 

'  Dozy  &  Engelmann,  Glossairb  des  mots  espagsols  et  por- 
TUGAis  DERIVES  DE  l'arabe,  Leida,  1869. 


398  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 

devida  a  sua  inserção  em  enxoval.   Cf.  ainda  viúva,  do  latim 
iiidua,  passando  por  uiua,  viua,  viúa. 

Modernamente  alguns  periodiqueiros,  que  se  envergonham  de 
escrever  em  português  tudo .  que  querem  dizer  aos  leitores,  co- 
meçam a  empregar,  em  vez  de  enxoval,  a  palavra  francesa 
trousseau,  nas  tediosas  descrições  que  fazem  de  qualquer  casa- 
mento rico,  nas  quais  nunca  também  omitem  o  ridículo  corbeille. 


eólito 


—  «em  todas  as  épocas  da  pre-historia  se  fabricaram  eoli- 
thos,  isto  é,  peças  [de  pedra  lascada]  que  apresentam  um  mí- 
nimo de  talha  intencional»  —  *. 

O  termo  é  moderníssimo,  derivado  artificialmente  do  grego 
'eõs,  «aurora»,  e  lit'os,  «pedra»,  e  importa  a  noção  de  «pri- 
meiros vestíjios  do  talho  da  pedra  feito  pelo  homem». 


ermo,  ermar,  ermamento 

O  substantivo  ermo  seguiu  a  acentuação  grega  érêmos,  em 
vez  da  latina  erê'mus,  que  ao  depois  passou  a  ser  érémus. 
Deste  substantivo  derivou-se  o  verbo  ermar,  de  que  por  neolo- 
jismo  se  fêz  ermamento,  como  de  armar,  armamento: — «mas 
que  nunca  houve  ermamento  conhece-se  com  toda  a  clareza 
dos  documentos  da  época»  — . 

Significa  «despovoamento»  ^. 


*    O  Archeologo  português,  vol.  X,  p.  407. 

2    Alberto  Sampaio,  As  «  villas  »  do  norte  db  Portugal,  in  «  Por- 
tugália», I,  p.  283. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  399 


érvodo,  érvedo 

O  Novo  DiccioxÁKio  inclui  este  vocábulo,  com  remissão  a 
ervedeiro,  mas  acentua  ervôdo,  o  que  me  parece  erróneo,  visto 
que  a  palavra  procede  do  latim  arbútus,  «medronho»,  arbú- 
tum,  «medronheiro». 

A  existência  deste  substantivo  é  postulada  pelos  seus  deriva- 
dos, ervedeiro,  ervedal,  que  com  outros  figuram  no  onomástico 
corográfico.  Ervedo  equivale  a  «medronheiro»,  e  no  Minho  cha- 
ma-se-lhe  ervedeiro. 


esbandalhar,  esbandalha 

O  verbo  eshandalhar  analisa-se  como  escangalhar :  es-band- 
-alh-ar.  Desta  forma  derivou-se  um  substantivo  rizotónico,  de 
acção,  esbandalha,  que  não  figura  nos  dicionários: — «Logo  após 
as  primeiras  chuvas  do  outomno  procede-se  ao  que  se  chama  a 
esbandalha  das  moreias,  que  consiste  em  regularizar  as  terras, 
aplanando-as » — K 

Ignoro  se  o  termo  é  geral,  ou  somente  alentejano. 


esbarar 

Termo  transmontano,  que  significa  «escorregar»: — «mas  o 
de  cima,  sentindo  pouca  força  nas  mãos,  que  lhe  esbaravam» — *. 


í  Melo  de  Matos,  Cultura  dos  trigaes  xo  Alemtejo,  in  Portu- 
gália, I,  p.  623. 

2  M.  Ferreira  Deusdado,  O  Recolhimeiíto  da  Mófreita,  in  «Re- 
vista de  Educação  e  Ensino  »,  1891. 


400  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


escada,  escadaria 

A  palavra  escada  não  provém  de  se  ai  a  com  mudança  de  l 
em  d,  que  seria  absurda,  pois  o  se  ai  a  latino  daria  em  português 
escâ(a),  mas  sim  de  escalada,  escaada,  como  já  afirmou  Júlio 
Cornu. 

A  noção  da  orijem  da  palavra  perdeu-se  porém,  visto  que 
se  pronuncia  escadaria  e  não  escadaria:  cf.  pàção  \  palacia- 
num,  e  fagueiro  ou  fagueiro,  castelhano  halagueiio  K 

A  forma  escaada,  não  contraída,  existiu: — «Et  todos  desta 
coUatione  levavam  as  tabolas  e  a  madeira  ao  Castello,  et  faziam 
o  tavoado  et  as  escaadas» — ^.  Notem-se  as  formas  tabolas  e 
taboado,  a  primeira  com  ?,  e  a  segunda  sem  ele. 


escalavrar 

Conforme  D.  Carolina  Michaêlis  de  Vasconcelos  3,  este  verbo 
corresponde  a  um  castelhano  descalaverar  j  calavera  {  caiu  ária, 
com  a  anaptíctico.  Mas  como  a  calavera  corresponde  em  portu- 
guês caveira,  segue-se  que  escalavrar  seria  castelhanismo,  atenta 
a  permanência  do  Z,  e  o  adjectivo  participial  escàveirado  que 
pressupõe  um  verbo  escàveirar.  Maior  castelhanismo  será  ainda 
descalabro,  substantivo  verbal  espanhol  j  descalabrar. 

Cf.  ainda  escalvado  \  calvo. 

O  étimo  proposto  pelo  Contempoeaneo,  scalpellare,  é  im- 
provável. 


1  V.  A.  R.  Gonçálvez  Viana,  Études  de  Grammairb  portugaise, 
in  «Muséon>,  1884. 

*  PoRTUGALiAE  MONUMBNTA  HISTÓRICA,  Inquirições  de  D.  Afonso  iii, 
II,  p.  416,  col.  II. 

3    Ebvista  Lusitana,  iii,  p.  178. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  401 

escaleres 
Como  termo  de  jíria,  quere  dizer  « olhos  >. 

escalfar 

Este  verbo  significa  « cozer  em  água  quente  > . 
O    étimo    parece   ser   ex-cal(idum)-fa(ce)re,    conforme 
G.  Kõrting  *. 

escamalhar 

J.  Leite  de  Vasconcelos  dá  este  verbo  como  pertencente  ao 
vocabulário  de  Trás-os-Montes,  e  com  a  significação  de  « escan- 
galhar >.  Como  este,  decompõe-se  em  es-cam-alhar  \  cama,  e 
quere  propriamente  dizer  ães-a-cam-ar  -. 

Cf.  esbandalhar  (q.  v.). 


escamei 

Na  língua  comum:  «banco  de  espadeiro».  Deve  ser  o  latim 
scamnellum;  mas  scamnum  J  escano. 

Como  termo  alentejano  significa  um  moço  que  avia  recados, 
ou  como  lá  dizem,  mandados  ^. 

Há  de  ser  outro  o  étimo.  J.  Leite  de  Vasconcelos  sujere  o 
latim  casmillus,  com  metátese  do  s,  scamillus,  forma  para- 
lela a  camillus,  camilla,  «donzel  ou  donzela,  que  auxiliava  o 


1  Citado  por  G.  Kydberg,  Jahresbericht  úber  die  Fortschritte 

DER  ROMANISCHEN  PhILOLOGIE,  VI,  I,  p.  288. 

2  Kevista  Lusitana,  ii,  p.  117. 

3  V.  Kevista  Lusitana,  u,  p.  37. 

26 


402  Apostilas  aos  Dicionários  Portugutses 


sacerdote  nos  sacrifícios»  *,  o  que  parece  pouco  provável.  No  en- 
tanto, cf.  escamillo,  castelhano. 


escamondar,  escamonda 

—  «-No  país  só  tenho  visto  applicar  muito  este  tratamento 
[o  desmoche,  q.  v.J  aos  freixos  e  aos  grandes  salgueiros,  mas 
pouco  aos  choupos,  os  quaes  de  ordinário  são  escamonãaãos, 
isto  é,  desramados  ao  longo  do  tronco» — ^. 


escamudo 

Este  adjectivo,  comparável  a  peludo  j  jJêlo,  espadaúdo  |  es- 
pádua,  equivale  a  escamoso,  mas  com  uma  diferenciação  de  sen- 
tido: escamoso  quere  dizer  «que  tem  escamas»,  escamudo,  «que 
tem  muitas  escamas»:  —  «Setúbal,  26...  Peixe  maneiro  %  es- 
camudo. por  isso  apropriado  para  conservas» — ^. 

Eefere-se  à  sardinha. 


escanc(a)rar,  escánc(a)ras,  caranguejo 

Este  verbo  significa  «abrir  enteiramente » . 

O  DiocioNÁEio  Manual  etymologico  de  Trancisco  Adolfo 
Coelho  nada  diz  a  respeito  da  sua  orijem;  o  Novo  Diccionáeio 
dá  esta  como  incerta.  Pois  não  é  muito  difícil  acertar  com  o 
étimo;  basta  comparar  este  verbo  com  o  toscano  sgangherare, 
que  quere  dizer  «tirar  uma  porta  dos  lem£s» :  gangheri  j  cân- 
cer, «caranguejo»,  e  também  «varão  de  ferro,  grade»,  de  cujo 


1  ib. 

2  Gazeta  das  Aldeias,  de  11  de  março  de  1906. 
■    O  ECOKOMISTA,  de  28  de  abril  de  1891. 


Apostila'^  aos  Dicionários  Portugueses  403 

deminutivo  cancellus  procedeu  cancelo,  e  deste  cancela.  Can- 
cro era  português  designa  um  grarapo  de  ferro  com  que  se  prende 
a  madeira  ao  banco  do  carpinteiro,  e  neste  sentido  já  o  Voca- 
bulário POETUGUEZ  E  LATixo  de  Bluteau  traz  o  termo. 

Conforme  o  Suplemento  ao  Novo  Dicc,  chama-se  igualmente 
cancro  uma — «peça  de  ferro,  com  espigão,  ou  sem  êlle,  para 
fixar  numa  parede  ou  cantaria  qualquer  trabalho  de  carpin- 
teiro»— .  É  natural  que  o  termo  tivesse,  ou  talvez  tenha  ainda, 
o  significado  de  « gonzo » ,  como  o  italiano  gánghero.  De  cancro, 
com  a  vogal  anaptíctica  a  entre  o  c  e  r.  se  formou  cáncaro.  que 
ainda  é  hoje  a  pronunciação  vulgar  de  cancro;  e  deste  cáncaro 
se  derivou  o  verbo  escancarar,  «abrir  de  par  em  par»,  como 
em  italiano  de  gánghero.  sgangherare. 

É  sabido  que  o  nome  do  crustáceo  caranguejo  é  forma  demi- 
nutiva,  \  cranguejo  \  cangrejo,  que  é  a  castelhana  e  antiga  por- 
tuguesa, e  cujo  étimo  é  o  câncer  latino. 

De  escancrar,  forma  mais  antiga  e  curta  se  derivou  o  nome 
verbal  escancra,  como  o  povo  o  profere  em  geral,  e  com  a  vogal 
anaptíctica,  encáncara(s).  que  é  forma  considerada  culta;  mais 
deturpada  porém  que  a  popular,  visto  que,  a  ter-se  derivado  de 
escancarar,  deveria  pronunciar-se  escancara,  como  a  3.*  pessoa 
singular  do  presente  do  indicativo,  com  a  qual  coincidem  estes 
substantivos  verbais :  cf.  o  fabrico  j  fabricar  \  fábrica. 

O  étimo  de  sgangherare  foi  apresentado  por  Sofo  Bugge  na 
Komania  em  1874,  e  comparou-lhe  o  português  ãesengon- 
çaão  \  engonço  j  gonzo:  não  lhe  ocorreu  o  verbo  escancarar, 
que  provavelmente  não  conhecia,  e  que  melhor  corresponde  ao 
italiano. 

escandalizar 

Este  verbo  latinizado,  scand alizar e,  do  grego  skandalí- 
ZEIN  j  SKÁNDALON,  «embate,  pancada,  armadilha»,  foi  empre- 
gado por  Tertuliano  com  a  significação  de  «desinquietar,  sedu- 
zir». Adquiriu  acepções  várias  nas  diferentes  línguas  para  as 
quais  passou,  e  em  português  a  de  «ofender»,  que  também  tem, 


404  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


ou  teve,  era  gascão,  como  vemos  na  comédia  de  Molière,  Le  Boub- 
GEois  gentilhomme: 

—  Bous  boyez  que  chacun  mé  raille, 
Et  jé  suis  escandalisé 

Dé  boir  ès  mains  dé  la  canaille 
Cé  qui  m'est  par  bous  réfusé  *. 

Parece  porém  que  mesmo  ao  francês  literário  não  foi  estra- 
nho este  significado,  pois  o  próprio  Molière  empregou  nesse  sen- 
tido o  mesmo  verbo  em  texto  francês  puro: 

—  Votre  paresse  eníin  me  scandalise, 
Ma  muse,  obéissez-moi  —  *. 


escaparate 

Este  substantivo  nenhuma  relação  tem  com  o  verbo  escapar. 
Significa  um  « armário  pequeno » ,  o  que  nós  chamamos  mostrador, 
ou,  segundo  a  terminolojia  afrancesada  dos  caixeiros,  montra  \  fr. 
montre,  visto  que  mostrador  em  castelhano  corresponde  ao  que 
em  português  se  denomina  balcão. 

A  orijem  do  vocábulo  é  o  holandês  schaprade,  pronunciado 
çi[ápràde,  quási  sJcaprade,  com  a  vogal  intercalar  a,  e  cujo  si- 
gnificado é  «armário  de  arrecadação». 

Outros  vocábulos  holandeses  passaram  às  línguas  hispânicas; 
6  sem  citar  os  termos  de  marinha,  apontarei,  entre  outros,  ma- 
nequim I  manJcen  «homemzinho»,  (queijo)  j;rato  \  plaat(kaas), 
«queijo  chato»,  por  oposição  ao  esférico^  a  que  chamamos  queijo 
flamengo,  e  que  os  espanhóis  denominam  queso  de  bola.  Manuel 
Godinho  Cardoso  chamou-lhe  queijo  de  frarrbengos  ^. 


*    Acto  V,  Ballet  des  Nations. 

2    Kemerciment  AU  Eoi,  (Euvres,  Paris,  1760,  t.  viu,  p.  168. 
'     BlBL.  DE  CLÁSSICOS  PORTUGUBZES,  vol.  XLI,  p.  31.  (Fins  do  sé- 
culo  xvi). 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  405 


A  palavra  2)^'(iio  significa,  do  mesmo  modo  «chato»  j  pla- 
tus,  plata,  platutn  \  grego  platús,  plateía,  platú;  chato  é 
forma  mais  antiga,  da  mesma  orijem. 


escar(a)funchar 

Verbo  muito  popular,  com  a  significação  de  «esg(a)ravatar». 
Deriva-se  de  uma  forma  latina  scar(i)phunc(u)lare  ^ 


escar(a)mentar 

Este  verbo  é  antiquíssimo,  pois  já  foi  usado  pelo  trovador 
Raimbaldo  de  Vaqueiros — «Todo  'n  soy  escarmentado» — ^. 

A  forma  com  a  intercalar  é  considerada  plebeísmo.  D.  Ca- 
rolina Michaêlis  de  Vasconcelos  atribui-lhe  como  étimo  o  latim 
experimentare  ^,  que  me  parece  improvável  em  razão  da  mu- 
dança singular  de  p  em  c.  Júlio  Cornu  *  considerou  possível  ser 
escarmentar  derivado  de  escarmento  ou  escramento  ^,  e  este 
procedente  de  excrementum,  hipótese  inadmissível,  a  meu  ver, 
atenta  a  significação.  A  mim  parece-me  que  a  etimolojia  será 
ma.  verbo  latino  popular  ex-carminitare  \  carminare  \  car- 
men,  carminis,  «carda»:  cf.,  emquanto  à  significação,  escalr 
daão  em  português,  escamado,  em  castelhano. 

Outro  étimo,  que  ofereceria  iguais,  senão  maiores  probabili- 
dades, seria  Carpentes,  «profetizas,  adivinhas»,  nome  derivado 
de  carmen,  antigo  casmen,  no  sentido  especial  de  «vaticínio»; 


1    Revista  Lusitana,  iv,  p.  336. 

*  Citado  por  Milá  y  Fontanals,  De  los  Trobadores  en  Espana,  i, 
p.  1.32,  n.  11. 

3    Revista  Lusitana,  iii,  p.  154. 

*  Grundriss  der  romanischen  Philologie,  i,  p.  778. 

5    escramentado  em  Rui  de  Pina,  Crónica  de  El-rei  Dom  Afonso  v, 
cap.  cxLii. 


406  Aimstilas  aos  Dicioiíârios  Portugueses 


e  neste  caso  teríamos  de  supor  um  verbo  carmentare  freqiien- 
tativo  de  carminare,  «vaticinar»,  postulado  pelo  particípío  do 
futuro  passivo  carminabundus,  empregado  com  valor  de  adjec- 
tivo. Outro  étimo,  que  já  em  1874  foi  proposto  por  Sofo  Bugge 
na  Komania,  é  ex-carpimentum  j  ex-carpere,  por  excer- 
pere,  «apartar,  escolher  do  mal  o  menor,  aproveitar». 

Eis  aqui  uma  abonação  bastante  antiga  do  verbo  escarmen- 
tar em  castelhano:  —  «Et  otrossi  tenemos  por  bieu  que  los 
de  esta  puebla  [Espinar]  que  puedan  escarmentar  e  peindrar 
[pignorare] » — ^ 

^  ^scar(a}  pelar 

> 
Conforme   J.    Cornu   de   scalpellare,   com   a   anaptíctico. 

Todavia,  temos  carpela  do  milho,  substantivo,  que  parece  ter 

dado  orijem  a  este  verbo. 


escarçar;  esgarçar,  escarchar 

Conforme  D.  Carolina  Michaêlis  de  Vasconcelos  2,  o  primeiro 
destes  verbos,  que  parecem  formas  diferentes  de  um  só  primitivo, 
dífrivar-se-ia  de  ex-carptiare  j  carpere,  «carpir,  colher» 
(cf.  caçar  de  captiare),  étimo  só  admissível  para  um  dos  sig- 
nificados, « tirar  a  cera  das  colmeias » ;  segundo  Kõrting  3,  escar- 
char proviria  ^e  ex-quartiare,  «esquartejar».  O  mais  natural 
pois  é,  congraçando  talvez  as  duas  opiniões,  separar,  o  primeiro 
escarçar,  do  segundo,  equivalente  a  esgarçar,  e  dar  a  este,  bem 
como  a  escarchar,  o  étimo  de  Kõrting. 


1  Júlio  Puyol  y  Alonso,  Una  puebla  en  el  siglo  xiii,  in  <  Revue  Hispa- 
nique»,  vol.  xi,  p.  250.  (Era  de  1335,  i.  e.  1297). 

2  Revista  Lusitana,  iii,  143. 

3  Latbinisch-romanischbs  Wôrterbuch,   Paderborn,   1890,  n.** 
3006. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  407 


escarumba 

Esta  palavra,  que  se  emprega  como  motejo  com  referencia  a 
negros,  usou-a  Rocha  Peixoto: — «A  torpesa  genésica  de  vários 
portugueses  que  carreiam  para  o  continente,  do  Brasil  e  da 
Africa,  a  progénie  escarumba» — K 

O  artigo  em  que  tam  estranho  vocábulo  recebeu  foros  de 
literário  é  de  crítica,  violenta  mas  justíssima,  a  um  livro  pu- 
blicado em  França,  acerca  de  Portugal,  livro  em  todos  os  pontos 
de  vista  misérrimo  e  ridículo,  infelizmente  escrito  por  portu- 
gueses. 

escasso 


Como  é  sabido,  este  adjectivo  proTém  do  latim  scarsum, 
e  conseguintemente  deve  escrever-se  com  ss,  e  não  com  ç; 
cf.  avesso  |  aduersum. 

Como  substantivo  está  empregado  no  trecho  seguinte:  — 
«Ha  agora  mais  trabalho  na  ria,  porque  muitos  braços  se  em- 
pregam na  apanha  de  escassos» — ^.  Ignoro  a  significação. 


escrivão 

O  povo  costimiava  chamar,  com  bastante  graça,  escrivão  da 
pena  grande  ou  comprida  ao  varredor  das  ruas,  que  se  servia 
de  uma  vassoura  de  longuíssimo  cabo,  e  a  empregava  inclinando 
este  sobre  o  ombro. 


*  Portugália,  i,  663. 

*  Campeão  de  Aveiro,  de  8  de  setembro  de  1886. 


408  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


escusa-galés 


Espécie  de  embarcação: — «e  destes  [parós]  quatro  se  fizeram 
e  serviram  depois  de  escusa-galés»— ^ 


esganar 

Este  verbo  tem  o  significado  comum  de  «afogar  apertando 
as  goelas».  O  partieípio  esganado  significa  «sôfrego,  avarento». 

E  um  derivado  de  gana,  palavra  que  parece  não  ser  muito 
antiga  na  língua,  visto  que  Bluteau  a  não  incluiu  no  seu  Voca- 

BULAEIO. 

Diz-se  estar  esganado  com  fome,  e  nesta  locução  o  partieípio 
esganado  tem  a  mesma  significação  virtual  que  o  substantivo 
gana,  «grande  apetite,  grande  vontade». 

A  acepção  primordial  do  verbo  esganar,  «afogar»,  porém, 
não  se  compadece  com  tal  significação.  Ora,  como  é  trivial  esta 
outra  locução  popular  « sou  capaz  de  lhe  arrancar  as  ganas  do 
comer  fora»,  e  nela  inquestionavelmente  a  palavra  gana  quere 
dizer  goela;  é  desta  acepção  que  provém  o  significado  de  esganar 
«apertar  as  goelas».  Em  castelhano  desganar  significa  «tirar  a 
vontade » . 

A  palavra  gana  é  de  orijem  germânica,  muito  antiga  em 
castelhano,  onde  ainda  hoje  corresponde  a  «vontade,  desejo»,  e 
de  Castela  provavelmente  foi  trazida  a  Portugal. 

Be  esganar  se  derivou  esgana  « doença  nos  cães » .  Cf  esga- 
niçar-se,  em  castelhano  desgamtarse. 


1     Padre  Manuel  Bernárdez  «Descrição  da  cidade  de  Columbo >  [Ceilão], 

in  BXBL.  DB  CLÁSSICOS  P0RTUGUBZE5S,  VOl.  XLI,  p.  92. 


Apostilas  aos  Diciotiários  Portugueses  409 


esguiçaro,  esguizaro 

Estas  duas  fonnas  correspoudiam  antes  a  suíço.  José  Leite 
de  Vasconcelos  entende  serem  de  procedência  italiana  S  e  em 
toscano  se  diz  realmente  svizzero;  é  possível  que  nalgum  dialecto, 
sghiszero.  Os  suíços  a  si  próprios  se  chamam  Schwizer,  promm- 
ciando  quási  xevítcer. 

Suiça,  como  certo  talhe  de  barha,  é  o  adjectivo  suíça  subs- 
tantivado, com  elipse  do  substantivo  barba. 


esguicho 

—  «Bateiras  de  pesca.  Ha  três  t3pos:  o  da  bateira  de  Aveiro 
e  Ílhavo..  .  e  os  dois  typos  murtozeiros:  a  labrega  e  a  chin- 
chorra  (q.  v.)  a  que  também  chamam  esguicho.  Estas  duas 
diííerem  uma  da  outra  em  ser  a  segunda  maior  e  muito  mais 
arqueada  e  levantada  de  proa  e  ré,  approximando-se  muito  dos 
barcos  do  mar  da  Torreira»  — -. 


esmola,  esnoga 

O  étimo  de  esmola  é  sem  dúvida  o  latim  oleemos y na,  vocá- 
bulo enteiramente  grego,  eleêmosúnê,  « compaixão,  dó »  j  eleéõ, 
«ter  dó».  Os  trâmites  por  onde  passou  tam  longo  vocábulo  para 
chegar  ao  trissílabo  actual  foram:  elemosna,  ehnosna,  (almosna 
no  LivBO  DE  Alexandre:  cf.  cast.  limosna),  esmolna,  esmonla 
(cf.  moleiro  |  monleiro  {  molinarium).  Da  forma  esmolna  há 
documento  antigo,  citado  no  Suplemento  ao  Novo  Diccionábio. 


1  O  Archeologo  português,  V,  p.  3. 

2  Luís  de  Magalhães,  Os  barcos  da  ria  de  Aveiro,  in  Portugá- 
lia, II,  p.  61. 


410  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 

Transformações  análogas  sofreu  sinagoga,  para  chegar  à  forma 
medieval  esnoga,  ainda  hoje  em  dia  usada  pelos  judeus  portu- 
gueses:  sinagoga  j  esnaoga  {  esnoga. 


espada,   espadela,   espadelada,   espadilha,   espadeiro,  espadeirar; 
espádua;  espaldar;  espátula;  espatela 

Espada  é  o  latim  spatha,  em  que  o  th  foi  tratado  como  se 
fosse  t  ^  Deste  vocábulo  se  derivou  espadela,  que  além  de  desig- 
nar uma  espécie  de  remo,  a  que  os  franceses  chamam  pagaie, 
é  o  nome  de  um  instrumento  agrícola: — «A  espadela  é  uma 
espécie  de  podoa  de  madeira,  em  que  se  distingue  a  cota,  o  fio 
ou  gume  e  o  punho»  —  -. 

Espadelada  procede  de  espadelar,  e  este  de  espadela.  Espa- 
dilha, além  de  ser  o  nome  do  ás  de  espadas  em  vários  jogos 
de  cartas,  denota  uma  ferramenta  própria  de  tecelão: — «uma 
regoa  de  madeira  chamada  espadilha^ — '^.  Serve  para  formar  a 
urdidura.  Deve  de  ser  castelhanisrao  em  ambos  os  sentidos. 

Não  são  somente  estes  os  derivados  de  espada,  ou  dos  seus 
derivados;  há  muitos  mais,  que  podem  ver-se  nos  dicionários. 
Um  deles  é  esjmdeiro,  «fabricante  de  espadas». 

De  espadeiro,  pronunciado  espadeiro,  com  a  surdo  na  2.^  sí- 
laba, declaram  os  mesmos  dicionários  derivar-se  espadeirada, 
com  a  aberto  átono  da  dita  sílaba,  e  que  não  significa  o  que  a 
sua  formação  exijiria,  a  ser  verdadeira  a  derivação,  «pancada 
dada  pelo  espadeiro,  ou  com  um  espadeiro,  ou  espadeira,  ou 
num  espadeiro  ou  espadeira » .  (Cf.  cutilada,  catanada,  punha- 
lada), mas  pancada  dada  com  a  espada.  íDq  onde  veio  pois  a 
sílaba  intercalar  -eir-,  visto  não  dizermos  espadada,  e  o  a  ser 
aberto  em  espadeirar,  espadeirada,  sendo  surdo  em  espadeiro? 

O  VocABULÁEio  POBTUGUEZ  E  LATINO  de  Blutcau  resolve  esta, 


1  Ortografia  Nacional,  Lisboa,  1904,  p.  63. 

2  3     Portugália,  1,370-373. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  411 

como  tantas  outras  dúvidas.  Nele  não  está  rejistado  o  substan- 
tivo espadeirada,  mas  unicamente  esimldeiràda,  que  é  definido: 
—  «Quando  se  dá  de  prancha  com  a  espada»  — ,  Deriva-se  pois 
espaldeirar,  esjmldeirada  de  espalda,  « ombros,  costas » ;  e  espah 
ãeirada  pressupõe  um  primitivo  espaldeira,  ou  espaldeiro,  deri- 
vado, como  espaldar,  de  es^oalda,  «espádua(s)»,  e  também  en- 
costo, como  cadeira  de  espaldar,  que  vem  no  mesmo  Vocabulário. 
Pela  semelhança  de  espalda  com  espada,  suprimiu-se  depois  o  l, 
que  os  diferençava,  no  derivado  espadeirada,  conservaudo-se 
aberto  o  a,  como  teria  de  sê-lo  antes  de  l  da  mesma  sílaba,  fosse 
tónico,  ou  átono ;  cf.  falta,  faltar  com  fala,  falar. 

É  de  notar  que  espádua,  espalda  são  derivados  de  spathula, 
deminutivo  de  spatha,  e  portanto  orijináriamente  o  mesmo  vo- 
cábulo. Assim,  espádua  \  spathula,  com  perda  do  l  intervocá- 
lico  (cf.  mágoa  de  macula);  espalda  \  spaluta,  metátese  de 
spathula,  como  espaldar  de  spalutare  ^ 

O  outro  derivado  artificial  e  recentíssimo  de  spathula,  que 
já  dera  espátula,  é  espatela: — «A  espatela  é  uma  taboinha  inof- 
fensiva,  que  serve  para  abaixar  a  lingua,  afim  de  melhor  se  poder 
ver  a  garganta» — -. 

espelir 

No  Minho,  «expirar,  morrer». 

espera  (1) 

Forma  antiga  correspondente  a  esfera.  [V.  espera,  na  « Orto- 
grafia Nacional»,  do  autor]  3.  Formado  do  sphaera  latino,  lido 
spera.  Foi  também  o  nome  de  uma  peça  de  artelharia  *. 


1  Ebvista.  Lusitana,  iii,  p.  286. 

«  O  Dia,  de  2  de  julho  de  1904. 

3  Lisboa,  1904,  p.  63-Cõ. 

*■  ih. 


412  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


espera  (2),  esperista 

Substantivo  rizotónico  do  verbo  esperar.  Tem  vários  significa- 
dos, e  entre  eles,  é  o  nome  de  uma  peça  do  tear,  espera  da  roda 
do  órgão  do  pano  ^. 

—  «Todas  as  vezes  que  entre  nós  se  caça  á  espera  e  esta  é 
sempre  feita  a  uma  determinada  espécie,  o  primeiro  cuidado  do 
caçador,  para  ser  bem  succédido,  é  impedir  por  todos  os  meios 
possiveis  que  seja  notada  a  sua  presença. . .  nesse  caso  o  espe- 
rista, nome  dado  ao  caçador  de  espera,  construe. . .  barracas 
de  ramos,  em  que  se  embusca»  —  ^. 

O  vocábulo  espera  foi  também  usado  antigamente  no  sentido 
de  «lugar  onde  se  espera»,  «prazo  dado»,  «sítio  ajustado  para 
encontro » . 

Nesta  acepção  foi  imposto  a  um  cabo  na  Terra  Nova,  por 
ocasião  da  viajem  de  Corte  Keal,  Cabo  da  Espera,  denominação 
que  os  ingleses  converteram  em  Cape  Spear,  «cabo  da  lança». 
Cumpre  advertir  que  o  vocábulo  inglês  spear,  actualmente  pro- 
nunciado spíar,  era  há  três  séculos  ainda  pronunciado  spéar. 
Outras  denominações  dadas  pelos  portugueses  a  acidentes  de 
terreno  naquelas  parajens  foram  igualmente  alteradas,  para  que 
formassem  sentido  em  inglês,  tais  como  Cape  Race,  por  Cabo 
Raso,  Ferryland  por  Farelhão,  etc.  ^. 

esperto,  espertar,  espertador 

O  adjectivo  esperto,  que  tem  muitas  acepções,  mais  ou  menos 
relacionadas  com  o  seu  étimo  latino  expertum,  particípio  pas- 


*     Portugália,  I,  p.  374. 

2  José  Pinho,  Ethnographia  Amarantina,  A  Caça,  in  Portugá- 
lia, II,  p.  95. 

3  V.  H.  P.  Biggar,  The  voyagbs  of  the  Cabotp  and  of  thb 
Corte  Eeals  to  North  America  and  Grbbnland,  1497-1503,  in  «Ke- 
vue  Hispanique»,  x,  p.  587,  notas. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  413 

sado  passivo  de  expergere,  «acordar»,  ou  com  o  verbo  espe7-- 
tar,  teve  um  significado  muito  especial,  que  vemos  apontado  no 
seguinte  trecho:  —  «Em  me  dando  autorisação  para  lhes  applicar 
uns  tratos  espertos,  eu  os  farei  falar» — ^ 

Espertador  é  o  nome  que  antes  se  dava,  e  o  povo  ainda  dá, 
ao  que  os  cultos  chamam  despertador  «relojo  com  carrilhão 
para  acordar  as  pessoas  a  horas  certas».  —  «Um  relojio  de  horas, 
com  seu  espertador» — -.  * 

espevitar,  espevitado 

Espevitar  uma  vela  ou  torcida  é  « cortar-lhe  o  murrão » . 
E  como  a  luz  depois  dessa  operação  fica  mais  viva,  dizemos  que 
uma  pessoa  é  esp,evitada  quando  é  esperta  em  demasia,  e  língua 
espevitada  é  «língua  desembaraçada».  Esta  última  expressão 
não  é  moderna,  pois  a  vemos  em  texto  do  xvii  século: — «Kes- 
pondeu  com  grande  esperteza  e  língua  muito  espevitada» — ^. 


espiar,  espear 

Como  o  verbo  se  conjuga  nas  formas  rizotónicas  com  i,  e 
não  ei,  não  há  remédio  senão  escrevê-lo  sempre  com  i.  Todavia, 
vê-se  que  houve  confusão  com  os  verbos  em  -iar,  como  aconte- 
ceu com  criar  \  creare  (q.  v.). 

Deu-se  portanto  confusão  entre  estes  dois  verbos,  de  tam 
diferente  significação,  pois  o  primeiro,  de  orijem  germânica, 
quere  dizer  «vijiar»,  e  o  segundo,  conforme  D.  Carolina  Michaê- 


1  António  de  Campos,  O  Marquez  de  Pombal. 

2  António  Francisco  Cardim,  Batalhas  da  Companhia  de  Jesus, 
Lisboa,  1894,  p.  80. 

'    António  Francisco  Cardim,  Batalhas  da  Companhia  de  Jesus, 
Lisboa,  1894,  p.  24. 


414  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 

lis  de  Vasconcelos,  derivado  do  latim  ex-panare  \  paniim  ^ 
designa — «acabar  de  fiar  a  estriga  que  cinjia  a  roca» — ,  se- 
gundo a  definição  do  Novo  Diccionábio. 

O  latim  panus,  queria  dizer — «a  canela  de  fiado,  ou  armeo 
de  lã  preparada  para  se  fiar» — ^.  De  ex-panare  proviria  espêar 
e  depois  espear,  que  deveria  conjugar-se  espeta,  e  não,  espia. 
Todavia,  espiar,  neste  sentido,  poderia  também  ser  espigar: 
cf.  liar  \  li  gare. 

espiga,  espigo,  espigão,  espigueiro 

O  primeiro  destes  vocábulos  designa  a  parte  terminal  da 
haste  de  certas  gramíneas  em  que  se  conteem  os  grãos,  as  se- 
mentes; as  do  milho  chamam-se  propriamente  maçarocas,  termo 
que  também  se  aplica  ao  linho  que  está  enrolado  na  roca.  O  ter- 
ceiro vocábulo,  forma  aumentativa,  quere  dizer  uma  ponta  agu- 
çada que  se  crava  em  qualquer  parte  para  segurar  a  peça  a  que 
pertence.  Neste  sentido  vemos  a  forma  espigo,  não  rejistada  nos 
dicionários,  empregada  no  trecho  seguinte: — «no  centro  da  [mó] 
inferior  ha  um  espigo  de  ferro  onde  entra  a  segurelha  [q.  v.J  de 
madeira » — . 

E  provável  que  espigo  não  seja  propriamente  a  forma  mas- 
culina, correspondente  à  femenina  espiga,  formação  aliás  muito 
usual  (cf.  cesto  e  cesta),  mas  sim,  o  latim  spiculum,  deminu- 
tivo  de  spicum,  j  spica,  que  designava  em  latim  o  ferrão  de 
alguns  insectos,  do  lacrau,  etc.  As  formas  intermediárias  foram 
spigulum,  espigoo:  cf.  hágo(o),  de  baculum. 

De  espiga  se  derivaram  vários  vocábulos,  tais  como  espi- 
gueiro, nome  que  também  se  dá  no  norte  ao  canastro  (q.  v.)  ou 
caniço,  mormente  se  é  feito  de  pedra  e  cal  e  não  de  verga  ou 
canas. 


*    Eevista  Lusitana,  iii,  p.  158. 

'    J.  António  Eamalho,  Magnum  lbxioon  Latinum  et  Lusitanum, 
Lisboa,  1819. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  415 


espilrar,  espirrar 

A  primeira  destas  formas  é  popular,  e  mais  conforme  com  a 
etimolojia,  que  é  uma  forma  latina  expirulare  por  expilu- 
lare  \  pilula  (cf.  pirola,  que  tem  a  mesma  orijem).  A  forma 
imediatamente  anterior  a  espih-ar  é  espirlar  (cf.  melro  \  meru- 
lum,  e  hilro  \  hirlo,  que  é  também  {  pilulum).  Espirrar  ^yo- 
vém  de  assimilação  do  l  ao  r  seguinte. 

espinho,  espinha 

Espinho  é  o  latim  spinum  (forma  de  transição  espio):  espi- 
nha o  plural  spina,  tomado  como  singular  femenino,  que  tem 
duas  acepções  principais:  o  «arcabouço  ósseo  dos  peixes»,  «bor- 
bulha». Xo  norte,  para  particularisar  este  sentido,  diz-se  espi- 
nha brava: — «Xasceu-lhe  uma  espinha  brava  no  hombro  di- 
reito » — ' . 

espojar,  espojo,  espojinho 

A  pronúncia  popular  é  espQjár,  com  o  fechado  átono,  que  se 
converte  em  aberto,  quando  é  tónico:  espojo,  espoja,  etc.  Oscar 
Nobiling  2  dá  como  étimo  a  este  vocábulo,  que  significa  «rebo- 
lar-se  no  pó,  como  faz  o  jumento»,  e  daí,  « arrasta r-se  pelo  chão», 
spodiare  j  exspodiare  i  spodium,  na  significação  de  «cinza». 
Espojinho,  que  poderia  ser  um  deminuitivo  de  espojo,  significa 
«remoinho  de  vento  que  levanta  pó»: — «Faltava,  porém,  uma 
prova  mais  convincente  de  que  o  pó  elevado  no  valle  do  Orinoco 
pelos  espojinhos  (como  aqui  chamamos  no  Alemtejo  aos  remoinhos 
ou  pequenos  cyclones  que  aspiram  o  pó)» — ^. 


'     Ricardo  Jorje,  A  pkstb  buboxica  no  Porto,  p.  4. 

-    Boletim  da  Sociedade  de  Geographia  de  Lisboa,  Série  21. 

3    O  Século,  de  10  de  março  de  1902. 


416  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


espreitar 

Este  verbo,  usado  em  português  somente,  que  eu  saiba,  de- 
riva-o  D.  Carolina  Michaélis  de  Vasconcelos  de  explic'tare 
por  explicitare:  Confronte-se  empreita,  «tecido  de  palma»,  de 
implícita,  por  implicita,  que  confirma  a  etimolojia;  cf.  ainda 
estreito  !  strictum  ^ 


espremedicinbo 

Este  singular  deminutivo,  de  espremediço  j  espremido  j  es- 
2)remer,  aplica-se  a  um  animal  mais  pequeno  e  enfezado  que 
outros  da  sua  espécie,  em  meio  dos  quais  vive. 


esquartej ar,  esqu artej  ado uro 

Este  verbo  quer  dizer  partir  em  quatro  quartos,  «fazer  em 
postas».  Singularmente  o  emprega  António  Francisco  Cardim, 
num  sentido  que  é  um  contra-senso,  e  é  natural  que  lhe  não 
ocorresse  a  orijem  da  palavra: — «ficou  o  império  esquartejado 
em  três  partes»  — -, 

O  substantivo  esquartejadouro,  feito  à  semelhança  do  équar- 
rissage  francês,  é  recente,  mas  perfeitamente  admissível: 

— « O  sr.  Martinho  Guimarães,  vereador  da  fazenda  munici- 
pal, propoz  aos  coUegas  que  o  transporte  para  os  esquartejadou- 
ros,  dos  animaes  que  morram  na  via  publica,  seja  feito  em  car- 
roças da  camará,  que  não  tenham  outra  applicação> — ^. 

O  termo  era  já  oficial,  visto  constar  do  Decreto  de  7  de  fe- 


1    Eevista  Lusitana,  iii,  p.  146. 

*    Batalhas  da  Companhia  db  Jesus,  Lisboa,  1894,  p.  217. 

3    O  Economista,  de  24  de  março  de  1893. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  417 


vereiro  de   1887.  Ainda  bem  que  o  estrambótico  équarrissage 
morreu  à  nascença! 


esquilo,  esquio 

O  nome  deste  formoso  animal,  que  suponho  não  existe 
actualmente  no  nosso  país,  deve  ter  a  mesma  orijem  que  o  fran- 
cês écwreuil,  isto  é,  em  latim  scuirulus,  scuirolus,  derivado 
de  sciúrus,  que  era  o  seu  nome  latino  do  grego  skíouros;  de 
outro  modo  seria  extraordinário  que  o  sei-  latino  produzisse  es- 
qui-. A  forma  é  em  todo  o  caso  singular,  convindo  advertir  que 
Gil  Vicente  escreveu  esquio,  e  não,  esquilo: 

Este  não  é  furão, 

Nem  gineta,  nem  esquio, 

É  um  bichinho  vadio  i. 

Em  castelhano  chama-se-lhe  arãiTla,  mas  também  se  disse 
esquilo,  que  pelo  l  é  mais  espanhol,  que  português. 


esquina,  esquineta 

Como  nome  de  jogo,  não  colijido  nos  dicionários,  é  o  francês 
lansquenet  \  alemão  lands-Jcnecht,  «soldado  de  milícias,  e  nome 
de  jôgo>.  V.  Júlio  Moreira,  in  Kevista  Lusitaiita,  iv,  páj.  267, 
onde  vem  a  abonação  de  Camilo  Castelo  Branco:  — «Arrauchava 
com  vadios  nas  noitadas  das  tavernas  onde  se  jogava  a  esquineta 
6  monte » — .  Parece  a  J.  Moreira  ter  havido  a  mui  provável  in- 
fluencia da  palavra  esquina. 


1    Auto  das  Fadas. 

27 


418  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


esquinante,  esquinote 

— « para  apertar  o  fundo  das  vasilhas  ou  desengrossa-las 
empregam  [os  oleiros]  um  pau  aguçado,  o  esquinote  (Baião)  ou 
esqumante  (Villa  Secca)»  —  ^ 


essa,  eça 

Júlio  Cornu,  nos  «Elementos  de  Eilolojia  Kománica»  -,  e  não 
sei  se  já  antes  dele  D.  Carolina  Michaelis  de  Vasconcelos,  in- 
dicou a  etimolojia  deste  vocábulo,  modernamente  escrito  eça,  isto 
é,  errado,  como  tantos  outros.  Deriva-se  êle  do  latim  ersa,  fe- 
menino  do  particípio  passivo  *  ersum,  de  erige re,  e  significa 
portanto  «erguida».  Com  efeito,  são  numerosos  os  vocábulos  em 
que  a  rs  latino  corresponde  ss  em  português;  tais  são  travessa, 
pessoa,  2)êssego  (também  erradamente  escrito  pecego),  do  latim 
transuersa,  persona,  (malum)  persicum,  etc. 

Fernám  Méndez  Pinto  ^  escreveu  aquela  palavra  com  ee, 
eessa^^^éssa: — «hum  cadafalso.  . .  e  no  meio  delle  húa  tribuna 
de  doze  degraos  com  híia  eessa  quasi  ao  nosso  modo, . . .  >  — . 
A  razão  desta  escrita  está  em  que  era  necessário  diferençar  o 
vocábulo  do  femenino  do  pronome  esse,  essa,  que  no  seu  tempo, 
como  ainda  hoje  no  norte  do  reino,  era  pronunciado  essa,  S3m  a 
metafonia  do  ê  em  è,  que  se  manifestou  ao  depois  no  sul,  e  no 
centro,  de  onde  era  natural  Pinto. 

O  apelido  Eça,  porém,  tem  de  certo  outra  orijem,  e  na  Pe- 
regrinação [cap.  cem]  encontra-se  escrito  com  ç,  diferençado 


1  Eocha  Peixoto,  Sobrevivência  da  primitiva  roda  db  oleiro 
EM  Portugal,  íh  Portugália,  ii,  p.  76. 

2  Grundriss  der  komanischen  Philologie,  1,  p.  702. 

3  Perbgrixação,  Lisboa,  1830,  cap.  glxvii. 


Aposlilas  aos  I>icionários  Portugueses  419 


portanto  dajuele  outro  vocábulo.  Com  ç  o  escreveram  igualmente 
João  de  IJarros  e  Diogo  do  Couto,  nas  Décadas  da  Asta  ^ 


estandal 

—  Nunca  tantos  estandaes 
Ardero'  ante  o  seu  altar. 

Estes  versos  fazem  parte  de  uma  poesia  do  «Cancioneiro  da 
Yaticana»  (a  807),  transcrita  por  Sousa  Viterbo  no  seu  artigo 

As   CANDEIAS    NA    INDUSTRIA    E  NAS  TEADIÇÕES  POPULARES  POR- 

TUGUEZAS  -.  Parece  designar  um  «renque  de  velas  acesas». 


estanheira 

—  «Nas  guirlandas  e  estanheiras  lá  se  vêem  os  serviços  de 
cobre,  arame,  estanho,  ferro  e  barro» — ^.  E  um  cabide  para 
louça,  o  que  em  Espanha  se  chama  espetera,  em  Trás-os-Mon- 
tes  espeteira  *. 

estarira 

É  um  termo  de  jíria,  que  significa  «prisão,  calabouço». 
Xo  calo,  ou  dialecto  dos  ciganos  de  Espanha,  estarão  quere 
dizer  «preso»,  estaribel,  «prisão». 


1  Já  publicado  este  artigo  na  <  Revista  Lusitana»,  vii,  1900-1901,  donde 
é  extraído  com  leves  alterações.  F.  Méndez  Pinto  nasceu  em  Montemor-o- Velho, 
e  faleceu  em  Almada. 

*  tn  Portugália,  I,  p.  368. 

*  José  da  Silva  Picão,  Ethnographia  do  Alto  Alemtejo,  i«  Por- 
tugália, I,  p.  538. 

^    Suplemento  ao  Novo  Diccionário. 


420  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


estatelado 

A  este  particípio  adjectivado  de  um  verbo  estatelar-se  dá  o 
Novo  DiccioNÁRio  orijem  incerta.  Com  pouca  probabilidade  o 
explica  D.  Carolina  Michaélis  de  Vasconcelos  pela  forma  popular 
de  estátua,  estatuía,  de  sorte  que  estatelado  estaria  por  esta- 
tulado.  Seria  no  entanto  singular  que  um  verbo,  cuja  significa- 
ção é  «ficar  estendido»,  fosse  tirado  de  um  nome  que  quere 
dizer  «figura  erecta,  erguida,  em  pé»  ^  Mesmo  para  o  povo, 
que  alterou  estátua  em  estatuía,  esta  última  forma  designa  sem- 
pre «figura  de  pessoa,  em  pé»  e  não,  «estendida  no  chão». 
A  etimolojia,  pois,  está  muito  lonje  de  ser  evidente. 


estatuário,  estatutário 


Nenhum  destes  adjectivos  é  português,  como  derivado  de 
estatuto.  O  primeiro,  a  que  infelizmente  deu  cabida  o  Novo  Dic- 
cioNÁRio  no  Suplemento,  vê-se  bem  ser  um  disparate,  não  sei 
por  quem  inventado,  pois  estatuário  deriva-se  de  estátua,  e  não 
de  estatuto;  o  segundo  é  cópia  do  fi-ancês  statutaire. 

Se  se  quere  à  viva  força  fabricar  um  adjectivo  correlato  a 
estatuto,  deve  ele  ser  estatuto  }  statutus,-a,-um,  latino,  ou 
estatucional:  cf.  constitucional:  \  constituição:  constitutus. 

Passa-se  perfeitamente,  porém,  sem  tal  adjectivo,  porque  não 
é  de  rigor  esta  fabricação  de  adjectivos,  que  caracteriza  moder- 
namente o  estilo  artificial  e  aspérrimo  de  certos  escritores,  moda 
que  deu  orijem  ao  célebre  adjectivo  mundial,  e  ainda  ao  mais 
célebre  estadoal! 


1    Revista  Lusitana,  iii,  p.  158. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  421 


esteira,  esteiralho 

O  étimo  mais  evidente  é  o  latim  storea;  mas  não  se  explica 
por  êle  o  e  da  palavra  portuguesa,  a  não  ser  que  se  suponha,  o 
que  é  violento,  uma  orijem  imediata  de  um  castelhano  estuera; 
cf.  frente  \  f mente  j  frontem  (?). 

J.  Leite  Vasconcelos  supõe  stataria,  por  haplolojia  staria  ^ 
com  certa  probabilidade,  pois  se  justificaria  o  estera  castelhano, 
igualmente. 

O  derivado  esteiralho  vem  assim  descrito  nas  Notas  ethno- 

GEAPHICAS     DO     CONCELHO     DA     FlGUEIRA     -'.— « EsteiralhoS 

Apparelhos  empregados  para  a  pesca  da  tainha  e  outros  peixes 
saltadores;  consistem  n'uma  porção  de  esteiras  de  bunho,  liga- 
das umas  ás  outras» — .  O  termo  não  está  colijido  nos  dicioná- 
rios. 

estepe 

Esta  palavra  é  russa  e  entrou  em  moda,  para  designar  uma 
extensíssima  planície  naquele  país.  Não  era  necessária,  mas  não 
é  muito  inconveniente.  É  claro  que  a  foram  buscar  ao  francês 
steppe  os  escritores  portugueses  que  a  empregaram,  com  excep- 
ção de  um  único  ^,  que  sabe  perfeitamente  russo  e  a  acomodou 
a  português  com  a  forma  estepa,  como  em  castelhano  ela  foi 
alterada.  Cumpre,  porém  advertir  que  a  palavra  russa  é  stepj, 
pronunciada  quási  stiépi,  que  é  femenina  e  tem  um  único  p, 
e  não  os  dois  com  que  os  franceses  a  enfeitaram,  sem  motivo 
nenhum.  Assim  teremos  de  dizer  em  português  ou  a  estepe,  ou  a 
estepa,  se  se  prefere:  pela  minha  parte,  agrada-me  mais  a  estepe; 
de  modo  nenhum  o  esteppe,  que  é  um  barbarismo. 


•     Revista  Lusitana,  iii,  p.  266,  nota. 

2  mPortugalia,i,  p.  382. 

3  Zófimo  Consiglieri  Pedroso. 


422  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


estiar 
Em  Bragança  estiar  o  gado  é  «pô-lo  à  sombra». 

estojeiro,  estojeira 

E  um  neolojismo  muito  bem  feito,  para  significar  o  fabricante 
ou  a  fabricante  de  estojos :  — « quando  falta  ti-abalho  para  as 
ajuntadeiras,  estas  vão  auxiliar  as  yravateiras,  luveiras,  e  esto- 
jeiras>  —  ^ 

estou-fraca 

—  «A  Pintada,  Oallinha  da  índia,  Gallinha  da  Guiné, 
Oallinha  da  Numida  [aliás  Numídia],  Estou  fraca  ou  Me- 
leagris,  é  uma  curiosa  ave  originária  da  África,  pertencente  à 
família  dos  gallináceos» — -. 

O  nome  provém-lhe  de  um  grito  particular,  que  é  a  voz  dela. 

Estranjeirismos 

Em  1902  publicou,  pela  Livraria  editora  Tavares  Cardoso 
&  Irmão,  Cândido  de  Figueiredo  um  livro  intitulado  Os  Estkan- 

GEIBISMOS. 

Esses  estranjeirismos  são  certos  vocábulos  e  locuções  em  vá- 
rias línguas,  entre  elas  a  latina,  que  a  meúdo  se  intercalam  em 
texto  português,  elucidados  com  explicações  que  aclaram  o  sen- 
tido deles. 

Não  é  desses  estranjeirismos  que  aqui  vou  dar  exemplos, 


*     Asilo-Oficina  de  Santo  António,  in  O  Século,  de  24  de  julho  de  1900. 
2    Gazeta  das  Aldeias,  de  18  de  março  de  1900. 


Apostilas  aos  Dicio7iános  Portugueses  423 

colhidos  em  leitura  de  periódicos  principalmente;  é  dos  que  são 
censuráveis  por  inúteis,  e  que,  principalmente  de  locução,  fervi- 
lham na  escrita  hodierna,  em  razão  das  traduções  feitas  à  pressa 
por  pessoas  inábeis,  que  tendo  pouca  leitura  portuguesa,  e  igno- 
rando a  índole  da  língua  pátria  e  o  tesouro  da  sua  linguajem, 
mesmo  da  trivial  de  que  se  serve  o  povo,  utilizam  a  torto  e  a 
direito  expressões  estranhas,  sem  sombras  de  propriedade  ou  ne- 
cessidade. 

Quando  tais  estranjeirismos  eram  de  vocábulos,  José  Inácio 
Roquete  assinalava-os  por  uma  mãozinha  no  seu  Diccionakio  S 
sentenciando-os  com  um  comentário,  mais  ou  menos  severo,  con- 
soante o  seu  emprego  menos  ou  mais  justificado. 

Principiarei  pela  palavra  estranjeiro. 

Entrou  já,  até  na  linguajem  oficial,  a  locução  elíptica  ir  ao 
estranjeiro,  mandar  vir  do  estranjeiro,  etc.  E  um  galicismo, 
pois  estranjeiro,  como  substantivo,  sem  mais  epíteto,  quere  dizer 
<o  indivíduo  estranjeiro,  que  pertence  a  outra  nacionalidade  >. 
Em  português  dizia-se  ir  fora  (do  reino),  mandar  vir  de  fora, 
e  pode,  com  maior  clareza  e  menos  vernaculidade  dizer-se:  ir  a 
terras  estranjeiras,  mandar  vir  de  imis(es)  estranjeÍ7'o(s),  etc. 

Apontarei  mais  alguns  estranjeirismos,  corrijindo-os. 

1. —  Vinho  de  Bucellas,  é  tudo  que  ha  de  melhor — ^. 

Este  galicismo  foi,  creio,  introduzido  pelo  gracioso  comedió- 
grafo  Grervásio  Lobato,  que  por  outra  parte  era  bem  português  e 
vernáculo  nas  suas  engraçadas  peças  de  teatro.  A  correcção  é  — 
quanto  pode  ser  bom. 

—  Cuja  ascendência  era  tudo  o  que  ha  de  mais  humilde  e 
ignorado  —  ^.  Correcção: 

— cuja  ascendência  era,  quanto  possível,  humilde  e  igno- 
rada — . 

2.  —  Com  uma  pneumonia  tem  guardado  o  leito  a  Snr* 


1 


3 


Paris,  1848. 

O  Século,  de  14  de  setembro  de  1902. 

ih.,  de  16  de  novembro  de  1902. 


42 1  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 

D.  Marianna  ãa  Conceição  Duarte — ^  Uepreeude-se  que  arre- 
cadou, ou  mandou  arrecadar  o  leito  a  tal  senhora,  e  que  passou 
a  dormir  em  cama-de-chão;  ou  então,  que  fez  um  solene  dispa- 
rate, mandando  guardar  a  cama,  quando  mais  precisava  dela. 
E  um  galicismo,  a  todos  os  aspectos  ridículo,  pois  nem  leito  é  em 
francês  lit,  mas  heis  de  lit,  quando  é  de  madeira,  nem  em  tal 
sentido  se  diz  em  português  guardar:  o  que  se  diz  é  ficou  de  cama. 

3. — já  abandonou  o  leito  — ,  quere  dizer  em  português,  «já 
se  não  serve  dele*.  A  correcção  é:já  se  levanta. 

4. — A  falta  de  ioda  e  qualquer  informação  não  permitte 
ajuntar  credito — ^,  Crédito  não  se  ajunta,  o  que  se  ajunta  é 
dinheiro,  quando  êle  sobeja,  o  que  para  quási  todas  as  pessoas  é 
cousa  rara.  Correcção:  não  permite  dar  credito.  Traduziu-se  mal 
o  francês  ajouter  foi. 

5.  —  engajadas...  as  forças  ^:  é  o  francês  engagées;  em 
português  diz-se  empenhadas,  travadas. 

Vou  em  seguimento  apontar  uns  poucos  de  anglicismos,  co- 
lhidos na  mesma  folha  periódica,  o  ano  passado,  a  denunciarem 
tradução  de  inglês. 

6. — os  mais  sanguíneos  russophilos: — em  inglês  singuine, 
que  quere  dizer  « esperançados » . 

7.  —  .4  França  e  a  Inglaterra  tinham  arranjado  —  {inglês 
arranged),  isto  é,  combinado. 

8.  —  O  orgulho  japoriez  constitue  um  phenomeno  tão  intenso 
n'aquelle  povo,  que  deixa  de  ser  apenas  objecto  d'uma  observa- 
ção— .  Há  aqui  um  anglicismo  de  sintasse,  que  torna  absoluta- 
mente inintelijível  o  conceito. 

9.  —  e  sobre  elles  [os  factos  consumados]  negoceiem  com  o 
Japão,  ignorando  as  pretensões  da  Rússia  (inglês  ignoringj: 
quere  dizer  «pondo  de  parte,  desatendendo».  Em  português 
ignorar  significa  «desconhecer,  não  saber». 


1  ib.  de  29  de  outubro  de  1902. 

2  O  Dia,  de  25  de  junho  de  1904. 

3  Diário  de  Noticias,  de  27  de  agosto  de  1904. 


Apostilas  nos  Dicionários  Portugueses  425 


estregar,  esfregar 

O  Xôvo  DicciONÁRio  dá,  como  inserção  própria  dele,  o 
verbo  estregar,  com  a  significação  de  —  «transferir  para  um  pa- 
pel, tábua,  etc,  com  uma  boneca  embebida  em  pó  de  carvão,  (um 
desenho  picado)  >  — . 

Como  étimo  oferece-nos  em  dúvida  exteryar,  do  latim  ter- 
gum;  o  extergar,  porém  não  figura  nem  no  dicionário,  nem  no 
Suplemento. 

A  edição  dos  Lusíadas  da  «Bibliotheca  Portugueza»,  numa 
nota  à  estanca  39  do  vi  Canto  do  poema,  diz-nos  o  seguinte: 
—  «Esfregando,  1.*  e  2.*  ed.  Mas  he  visivelmente  erro  de 
impressão,  porque  em  nenhum  author  clássico,  nem  no  mesmo 
Camões  [como  se  êle  não  fora  o  primeiro  clássico],  fora  deste 
logar,  se  encontra  similhante  verbo:  e  quando  o  poeta  o  trouxesse 
do  latim  extergere,  ou  do  castelhano  estergar,  por  isso  mesmo 
que  o  introduzia  de  novo,  escreveria  estergar  e  não  estregar,  a 
fim  de  ser  entendido.  Emendamos  por  tanto  esfregando,  como  se 
lê  na  ed.  de  F.  de  Sousa» — . 

Sempre  foram  muito  divertidos  estes  comentadores,  que  re- 
solvem as  dúvidas  que  teem  poy  meio  de  raciocínios  seus,  e 
emendam  os  textos  por  conta  do  autor,  com  a  mais  suprema 
sem-cerimónia. 

Na  escrupulosa  edição  de  F.  Adolfo  Coelho  '  a  referida  es- 
tanca veio  impressa  do  seguinte  modo: 

—  Vencidos  vera  do  sono  e  mal  despertos, 

Bocijando  a  miúdo,  se  encostai^ão 

Pellas  antenas,  todos  mal  cubertos 

Contra  os  agudos  ares  que  assopravão ; 

Os  olhos  contra  seu  querer  abertos, 

Mas  esfregando  [estregando],  os  membros  estirarão : 

Remédio  contra  o  sono  buscar  querem. 

Historias  contão,  casos  mil  referem. 


Do  Diário  de  Noticias,  1880,  distribuição  gratuita. 


426  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


Teve  o  douto  professor  o  cuidado  de  pôr  ambos  os  vocábulos, 
mas  infelizmente  deu  a  preferencia  a  es^fregar,  què  deveria  estar 
entre  o  parêntese,  e  estregar,  fora  dele. 

Quem  escreveu  a  nota  que  citei,  e  cuja  autoria  não  sei  a 
quem  pertence  de  direito,  ou  de  torto,  enganou-se  no  seu  cas- 
telhano, pois  estregar,  e  não,  ef^tergar,  é  que  se  diz  e  se  escreve 
nesta  língua,  e  é  um  freqúentativo  ou  de  extergare  \  exter- 
gere,  «apagar,  desvanecer»,  ou  de  exterere,  «roçar»,  isto  é, 
exiericare,  mais  provável jaente  do  primeiro,  não  obstante 
várias  opiniões  em  contrário  '.  Quanto  à  metátese  do  r  de  -ter-, 
é  tam  frequente,  que  não  vale  a  pena  justificá-la:  cf.  'prejuízo 
e  i^erjuizo,  apretar,  castelhano,  e  apertar,  português. 

^E  quem  disse  ao  anotador  que  o  vocábulo  seria  ueolojismo, 
se  todos  os  dias  termos  vulgares  passam  a  literários? 

O  português  esfregar  representa  o  latim  ex-fricare,  na 
Beira-Baixa  roçar.  P]iii  castelhano  existe  jregar,  mas  não,  es- 
fregar. 

estreloiço 

Em  S.  Miguel  dos  Açores  significa — «rumor  repentino  e 
forte»  — '^. 

estromento 

E  a  forma  antiga  de  instrumento,  « documento  >. 
É  já  da  baixa  latinidade,  strumentum  ^. 


1     V.  Korting,  Lateinisch-romanischbs  Wòrterbuch,  1891,  n.*>^ 
2948,  3031  e  7818. 

s    O  Século,  de  5  de  julho  de  1901. 

3      JaHRBSBERICHT  ÚBER  DIB  FORTSCHRITTB  DER  ROMANISCHBN  PhI- 

LOLOGiE,  VI,  I,  p.  119;  Eiii  de  Pina,  Crónica  db  El-Rbi  Dom  Afonso  v, 
cap.  III. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  427 


esturião,  esturjão 

—  «Mandaram  hontem  um  magnifico  esturjão,  ou  esturião, 
mais  vulgarmente  conhecido  por  sôlho-rei» — -^ 


etário 

Extravagante  adjectivo:  —  «Xã^  ha  edades  poupadas;  as  victi- 
mas  vêem  de  todas  as  classes  etárias,  desde  os  2  annos  até 
aos  80»  —  -.  ri  Onde  iria  o  autor  buscá-lo? 


euplócomo,  euplócamo 

O  Novo  DiccioNÁEio  incluiu  a  primeira  destas  formas,  defi- 
nindo-a: — «que  tem  cabêllo  fino  e  encaracolado» — .  No  Suple- 
mento emendou  eiiplócoyiw  em  euplócamo,  que  fora  a  forma  por 
mim  empregada  no  capítulo  Linguas  e  Raças  que  escrevi  para 
os  Elementos  de  Geogeaphia  Gteral,  de  M.  Ferreira  Deus- 
dado  ^,  seguindo  a  classificação  de  Frederico  Miiller  *,  que  adop- 
tara esta  expressão.  O  epíteto  é  homérico  euplókamos,  «com 
bonitos  caracóis  (de  cabelo)». 


e(u)scaldunac,  escalduno,  escaldune 

A  primeira  destas  formas  vem  no  Nôvo  Diccionário  com  o 
u  na  primeira  sílaba,  que  alguns  dialectos  vasconços  rejeitam: 


»  o  Século,  de  20  de  maio  de  1900. 

*  Ricardo  Jorje,  A  peste  buboxica  no  Porto,  1900,  p.  55. 
3  Lisboa,  1891,  p.  214. 

*  Grundriss  der  Sprachwissbnschaft,  I,  1.*  parte. 


42S  Apostilas  aos  Dicionários  Portugnenes 


significa,  não,  como  diz  o  mesmo  dicionário,  «vasconço»,  porque 
este  adjectivo  se  não  aplica  às  pessoas,  mas  à  língua  ou  ao  que 
com  ela  se  relaciona,  como  literatura,  etc,  era  castelhano  vas- 
cuence;  mas  sim  « vascongado»,  aplicável  às  pessoas,  lugares, 
províncias,  etc,  como  o  vascongado  castelhano.  Os  vascougados 
chamam-se  a  si  próprios  efujscaldúnac,  no  singular  e(u)scalduná, 
como  sujeito  determinado  de  verbo  intransitivo,  e(u)scaldunác, 
como  sujeito  de  verbo  transitivo.  Ora  sendo  á,  ác,  'ac  o  artigo 
definido,  suprimido  este,  fica  a  forma  e(u)scaldun  plural  euscal- 
dunes,  que  são  as  usuais  castelhanas,  mais  espanholadas  euseal- 
duno,  euscaldunos.  Devemos,  pois,  dizer  em  português  escalduno, 
ou  escaldune,  ou  escaldum,  plural  escalduns- :  parece-me  prefe- 
rível a  primeira  das  três.  A  língua,  o  vasconço,  chamam-lhe  eus- 
cara,  e  os  nossos  antigos  escritores  denorainavam-na  hiscainho, 
e  aos  vascongados  hiscainhos,  transferindo  o  nome  de  um  dia- 
lecto e  o  de  uma  província  a  todo  o  domínio  da  EiLscalerria, 
ou  terra  dos  vascongados,  as  Vascongadas,  como  dizem  os  espa- 
nhóis. Os  franceses  chamara-lhes  respectivamente  les  Basques, 
le  hasque,  le  Pays  basque. 

A  etimolojia  do  substantivo  euscara  está  por  averiguar,  e 
Van  Eys  *  tem  razão  em  repelir  a  que  foi  proposta  a  medo  por 
Guilherme  de  Humboldt  ^,  no  seu  notabilíssirao  escrito  intitulado 
«Investigações  acerca  dos  habitantes  primitivos  das  Espanhas>, 
isto  é,  que  provenha  de  um  verbo  eusl,  com  a  significação  de 
«ladrar»,  e  por  extensão  «falar»,  pois  não  é  natural  que  qual- 
quer povo  designasse  a  sua  fala  própria  com  semelhante  nome. 
As  línguas  estranjeiras,  isto  é,  à  castelhana  e  à  francesa,  cora  as 
quais  estão  em  contacto,  chamam  os  euscaldunos  erdera,  que 
conforme  Humboldt,  significa,  «(a  língua)  da  terra»,  por  oposi- 
ção à  própria,  a  euscara  ou  vasconça. 


1    W.  J.  van  Eys,  Dictioiínaire  basque-prançais,  Paris,  1873. 
*     Wilhelm  von  Humboldt,  Prúpung  der  Untbrsuchungbn  úber 
DIB  Urbewohner  Sfaxibns,  1821. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  429 


extinguidor  (extintor) 

E  um  neolojismo,  que  poderia  ser  substítuido  por  extintor: 
—  «No  domingo  ás  3  horas  da  tarde  realisa-se  no  Terreiro  do 
Paço  a  experiência  dos  extinguidores  Leixis  [sic,  aliás,  Lewis] 
do  sr.  Corloden  Koman»  — '. 


facha 


—  «Apenas  subsistiram  [os  braadõcs],  a':ravés  de  todo  o 
progresso  industrial...  as  lumieiras  de  colmo  que  de  noite 
guiam  nos  caminhos  e  logares  escuros  e  aitida  as  fachas  com 
que,  para  certa  pesca,  se  desvairam  os  cardumes  (Cavado,  Tâ- 
mega, etc.)>  —  -. 

Facha,  femeniio  interessante  de  facho,  que  quási  não  é 
usado  pelo  povo,  equivale  aqui  ao  que  também  se  chama  can- 
deio, masculino  de  candeia  \  latim  candeia,  «vela». 

A  palavra  facha  procede  do  latim  falc(u)la,  e  o  cl  latino 
produziu  eh  português,  como  se  fosse  inicial  (cf.  chave  {  cla- 
uem),  por  estar  amparado  pelo  l  (cf.  abelha  \  apic(u)la). 
Cumpre  diferençar  na  escrita,  como  no  norte  diferençam  na 
pronúncia,  esta  palavra,  do  vocábulo  faxa,  «cinta»,  de  faseia: 
cf.  feixe  \  fascem. 

fachis 

É  muito  conhecido  este  termo  em  Macau,  pois  designa  as 
duas  varetas  com  que  os  chineses  comem,  e  que  lhes  servem  de 
garfo.  É  palavra  chinesa  de  Cantão,  fa-chi,  que  passou  ao  japo- 


*    O  Economista,  de  26  de  outubro  de  1886. 

2    Kocha  Peixoto,  Illuminação  popular,  in  Portugália,  ii,  p.  38 


430  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


nês,  em  que  se  profere  fàxL  Os  portugueses  costumam  usar  o 
vocábulo  no  plural,  como  é  naturalíssimo,  visto  nunca  se  empre- 
gar uma  só  dessas  varetas.  Fernám  Méndez  Pinto  charaa-lhe 
pauzinhos: — -«Em  suas  cortesias  são  [os  chins]  homens  de  muito 
primor:  no  modo  de  vestir,  assi  homens  como  mulheres,  muyto 
honestos,  e  muy  bem  tratados,  per  que  geralmente  se  fazem 
muytas  sedas  no  reyno;  a  terra  é  muyto  fértil  e  muy  abundosa 
de  mantimentos,  fruytas,  agoas,  muyto  singulares  jardins  muyto 
frescos,  toda  maneira  de  montaria  e  caça:  não  põem  mão  no 
comer,  mas  todos  geralmente,  pequenos  e  grandes,  [comem]  com 
dous  pauzinhos  por  limpeza»  —  *. 

Os  malaios  denominam  o  dito  talher  TiKap  (pron,  quási  chi- 
cap)  ^. 

Farei  aqui  uma  observação  a  uma  nota.  que,  com  o  número  (^), 
vem  na  memória  de  que  extratei  o  passo  de  Fernám  Meudéz 
Pinto,  constante  da  carta,  que  é  nela  o  documento  L. 

O  texto,  que  fielmente  transcrevo,  como  lá  está,  reza  assim: 
—  «Tem  mais  elRey  oyto  fidalgos  de  seu  conselho  muyto  letra- 
dos e  de  grandes  prudencias,  com  os  quaêes  [sic]  despacha  todos 
os  negócios  do  Reino,  também  estes  nunqua  saê  fora  da  terceyra 
cerca  por  nhúm  caso  ate  a  morte,  a  estes  chamão  vlãos  [?]  (•^)» — . 

A  nota  (^)  diz: — «Na  traducção  hespauhola  publicada  em  1555 
vem  escripto  Ulao:  «tendo  [?]  en  esta  reputaciõ  le  manda  11a- 
mar  de  qualquiera  prouincia  de  su  reyno  en  que  este  y  le  mete 
en  el  cargo  de  Ulao».  Deve  ler -se  vlao,  porque  nesse  tempo 
se  escrevia  v  por  u  e  u  por  v»  — . 

Informação  errada:  o  que  se  escrevia  era  V  inicial  por  u  e  v, 
e  u  medial  por  v  e  u.  A  emenda,  portanto,  é  temerária.  Ulao 
ou  Ulau  deve  ser  a  forma  certa,  mesmo  porque  vi  seria  grupo  de 
letras  impossível  em  chim. 


1  Cristóvão  Aires,  Fernão  Mendes  Pinto,  Lisboa,  1904,  p.  118. 

2  Mélanges  Charles  de  Harlez,  Leida,  1896,  p.  193. 


Apostila-'^  nos  Dicionários  Portuguesea  431 


fada,  fado,  fadar,  fadário,  fadista 

Fado  é  o  latim  fatura,  «destiuo,  siiia>;/aíZa,  o  plural  deste, 
fafa.  No  seutido  de  sortes  ventureiras,  «para  saber  a  sina»,  foi 
empregado  por  Gil  Vicente  no  Auto  das  Fadas,  isto  é,  «auto 
das  sortes : » — 

—  <  Dae  ora  prazer 
A  quem  vos  bem  quer, 
E  dae  boas  fadas 
Nas  encruzilhadas  >  — . 

Sina  (q.  v.)  é  também  o  latim  signa,  plural  de  signum, 
que  os  espanhóis  dizem  sino. 

De  fado,  no  sentido  de  «sina»,  se  deriva  fadar,  fadário. 
Fado  tomou  um  seutido  fatalista  para  denotar  o  «destino  incon- 
trastável,  o  mau  fado,  desculpa  muito  cómoda,  invocada  pelo 
povo,  para  disfarçar  a  pusilanimidade  em  resistir  às  tentações  de 
não  cumprir  o  dever,  nem  respeitar  o  àecoTo:  foi  fado,  foi  sina!». 

Fado  designa  no  sul  a  «profissão  de  prostituta»,  e  fadista, 
«o  rufião»,  ou  aquele  que  frequenta  assiduamente  os  prostíbulos 
ordinários  e  passa  a  vida  com  meretrizes.  E  erro  pronunciar-se 
fadista,  com  o  a  aberto,  visto  que  ninguém  pronuncia  fadário, 
nem  fadar.  Sinónimos  de  fadista  são  faiante  e  faia,  vocábulos 
de  dificultosa  identificação. 

fagueiro:  v.  afagar 

Este  adjectivo  significa  hoje  «agradável,  brando,  carinhoso», 
mas  antigamente  queria  dizer,  como  o  castelhano  halagãeno, 
«enganador,  traiçoeiro » : 

—  «  Este  é  falso  e  fagueiro, 

Sorrateiro, 

Quando  virdes  este  cão 

Levae  sempre  um  pao  na  mão  >  —  * 


1    Gil  Vicente,  Auto  das  fadas. 


432  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


farança 

Este  termo,  do  francês  falence  [  ital.  faenza,  é  muito  usado 
hoje,  para  designar  uma  casta  de  louça,  não  transparente,  mas 
vidrada,  e  pintada  muitas  vezes,  a  que  dantes  se  chamava  «louça 
de  pó  de  pedra»,  a  qual  se  diferençava  da  «louça  do  reino»,  em 
ser  muito  mais  fina  a  pasta:  —  «Existem  aqui  [Coimbra]  duas 
espécies  de  foiauça:  A  chamada  impropriamente  de  Vandelli 
(professor  da  Universidade,  que,  quando  muito,  aperfeiçoou  o 
fabrico  desta  louça),  e  a  chamada  ratinha»  —  ^ 

Num  anúncio  publicado  no  jornal  O  Século,  de  16  de 
março  deste  ano,  lê-se  o  seguinte:  —  «A  louça  é  toda  em  pó  de 
pedra»  — ,  A  parte  a  extravagância,  hoje  ridiculamente  arreme- 
dada do  francês,  de  empregar  a  preposição  em  para  designar  a 
matéria  de  que  uma  cousa  é  feita  (e  não  em  que  o  é),  temos  aqui 
um  exemplo,  colhido  em  flagrante,  da  denominação  portuguesa 
l^ó  de  pedra,  correspondente  2i  faiança,  por  oposição  a  i^ovcelana, 
€  a  louça  do  reino,  bastante  antiga,  mas  não  mencionada  no 
Léssico  de  André  Nernnich  ^. 

Quanto  a  louça  em  pó,  na  linguajem  de  toda  a  gente  que 
fala  português,  quere  dizer  «louça  desfeita,  mais  meúda  que  se 
fora  em  cacos » ;  pelo  que  não  admira  que  o  anunciante  a  desse, 
como  dizia,  quási  de  graça. 


faina 


Em  castelhano  diz-se  fáena,  e  é  termo  de  bordo,  que  se  gene- 
ralizou para  significar   «trabalho,  azáfama»,  o  francês  hesogne, 
«o  que  cada  um  tem  a  seu  cargo  fazer».  A  palavra  é  catalã, 
Jahena  \  latim  facienda,  plural  de  faciendum,  particípio  do 


1  O  Século,  do  17  de  maio  de  1900. 

2  Waarenlexikon  IN  zwoLP  Sprachbn,  Hamburgo,  17!)7. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  433 

futuro  passivo  de  facere,  que  deu  em  português  fazenda,  em 
castelhano  antigo  fazienda,  moderno  hacienda. 

Em  catalão  n(n)  resulta  de  nd  latino,  ou  românico:  cf.  anar, 
português  andar. 

Outra  forma  catalã  do  mesmo  vocábulo  é  feyna,  na  qual  ahe 
se  condensou  em  ditongo,  com  deslocação  do  acento  tónico,  como 
se  observa  no  vocábulo  castelhano  e  no  português. 

falacha 

A  verdadeira  definição  deste  vocábulo  contém-se  no  seguinte 
passo: — «Kezende,  28.  Escrevem  de  S.  Cypriano,  deste  conce- 
lho. ..  em  quanto  que  os  mais  pacatos  se  entreteem  a  comer 
falachas  (bolos  de  farinha  de  castanha  pilada)»  — '.  Em  geral 
omite-se  nas  definições  o  epíteto  pilada. 

A  orijem  deste  termo  já  foi  dada  na  Ke vista  Lusitaxa  2, 
foliascula,  ou  foliacea,  mas  não  me  parece  bem  segura:  òPor 
que  razão  de  li  não  resultou  Jh?  Cf.  filho  {  filium,  filho  [  fol- 
liola.  E,  (icomo  é  que  -cea  deu  -cha  no  segundo  étimo?. 


falar,  parolar,  parola 

Este  verbo,  como  o  castelhano  hablar,  antigo  fahlar,  procede 
do  latim  fabular e,  que,  com  paraholare,  substituiu  na  de- 
cadência os  verbos  loqui  e  fari,  com  o  último  dos  quais  à  pri- 
meira vista  se  poderia  supor  que  o  falar  teria  relação.  Para 
convencimento  do  contrário  basta  considerar  que/«ri  é  o  infinito, 
a  que  corresponde  a  primeira  pessoa  do  presente  do  indicativo 
fateor,  «confesso»,  de  que  procedeu  confiteor,   «confesso -me >. 

Dos  dois  SQxhos  fabular e  e  parabolare  provieram  os  que 


1  O  Economista,  de  31  de  janeiro  de  1891. 

2  vol.  IV,  p.  267. 
ã8 


434  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 

nas  línguas  românicas,  com  excepção  do  romeno,  correspoudem 
ao  loqiii  latino:  fabulare  já  vimos  que  produziu /«òZar  e  falar; 
parabolare  deu  o  catalão  parlar,  o  francês  parler;  em  italiano 
existem  ambos,  com  as  formas  patiai^e  e  favellare. 

Destes  verbos  se  derivaram,  respectivamente,  a  fala,  el  hahla, 
la  parla,  la  favella;  mas  em  francês,  para  se  designar  a  fala, 
emprega-se  parole  }  parábola,  que  deu  ao  português  primeiro 
paravoa,  e  depois  palavra,  ao  castelhano  palabra,  e  ao  italiano 
parola.  Deste,  ou  adites  do  francês  paroler,  veio  o  português  pa- 
rolar, cujo  substantivo  verbal  é  parola  (q.  v.). 

Fala  se  denominava  dantes,  e  ainda  não  está  obsoleto,  o  que 
os  franceses  chamam  tirade,  que,  por  galicismo  inútil,  há  pouco 
tempo  é  empregado  por  escritores  que  só  lêem  francês,  (e  sabe 
Deus  como  o  sabem),  para  designar  um  «longo  discurso»,  quer 
na  tribuna,  quer  principalmente  no  teatro.  Eia  sistema  antigo, 
da  escola  chamada  romântica,  introduzir  o  artifício  dessas  grandes 
falas,  em  todos  os  principais  papéis  de  qualquer  comédia,  suplí- 
cio dos  actores,  e  também  dos  espectadores:  — « A  própria  Medéa 
quer  dizer  là,  fala  de  trágico  desespero» — ^ 

Do  verbo  falar  se  deriva  um  dos  raros  particípios  activos 
portugueses  que  ainda  se  empregam  como  tais;  assim,  temente  a 
Deus,  voz  clamante  -  por  exemplo.  Diz-se  que  uma  pessoa  é 
bem  falante,  quando  tem  verbosidade,  facilidade  em  se  exprimir. 

Em  castelhano,  ao  contrário,  diz-se  bien  hablaão,  empregan- 
do-se  o  particípio  passivo  com  valor  de  activo,  sintasse  também 
muito  portuguesa,  como  vemos  em  esquecido,  «aquele  que  es- 
quece», j^ressenti  do,  «aquele  que  pressente»,  etc. 

Outro  particípio  activo  é  tente  j  tenentem:  —  «e  no  mesmo 
terço  assistia  por  logo  tente  Álvaro  Pirez  de  Távora» — ^.  Hoje 
diz-se  lugar-tenente. 


1  António  de  Campos,  O  Marquez  de  Pombal,  in  «O  Século»,  de  14 
de  março  de  1899. 

2  Gil  Vicente,  Auto  da  história  de  Deus. 

3  Jerónimo  de  Mendoça,  Jornada  de  Africa,  1.  1.°,  cap.  v. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  435 


falquejar,  falquear 

O  DiccioNABio  Contemporâneo  define  este  verbo  da  seguinte 
forma: — «o  mesmo  que  falquear» — ;  e  em  falquear  diz: — «des- 
bastar (a  madeira)  com  machado,  enxó»  — .  Todavia,  isto  parece 
não  ser  rigorosamente  certo,  visto  que  José  da  Silva  Picão,  no 
seu  estudo  Ethnographia  do  Alto  Alemtejo,  estabelece  dis- 
tinção, que  a  definição  não  faz: — «se  trabalham  em  pé  [os  car- 
pinteiros], vemol-os  com  o  machado,  vibrando  golpes  certeiros  na 
madeira.  .  .  desbastando  assim  de  falqioejo,  para  depois  aperfei- 
çoarem á  encho» — '. 

falua 

O  nome  desta  embarcação,  muito  usada  no  Tejo,  parece  ser 
o  mesmo  que  faluca  embarcação  das  costas  da  Berbéria,  o  árabe 
FeLUK;  neste  caso,  porém,  falua  pressupõe  outra  forma,  fcluq, 
com  a  terminação  de  unidade  reLUQE.  No  dialecto  berberesco 
o  Q  mal  se  ouve,  correspondendo  em  valor  à  consoante  inicial 
das  palavras  começadas  por  vogal  em  alemão,  e  por  isso  foi 
eliminado. 

família 

Dá-se  no  distrito  de  Leiria  este  nome  à  « totalidade  da  gente 
que  está  numa  propriedade  a  trabalhar»,  ainda  que  as  mais  das 
vezes  nenhum  parentesco  tenha  com  os  donos  da  casa  *. 

familiar,  familial 

Dantes,  todos  os  autores  se  contentavam  com  a  primeira 
destas  formas,  a  única  verdadeira,  do  latim  familiare  í  fami- 


*     m  Portugália,  I,  p.  544. 

2     Informação  do  snr.  Acácio  de  Paiva,  dali  natural. 


436  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


lia.  Modernamente,  os  franceses,  que  já  tnhara  familíer,  da 
mesma  orijem,  porque  este  adjectivo  adquiriu  a  acepção  de 
«trivial»,  e  também  a  de  «confiado,  que  não  usa  deferência  ou 
cortesia»,  inventaram  outro  adjectivo  incorrectíssimo  familial, 
impossível  em  latim,  visto  haver  já  l  no  vocábulo  radical  (cf.  re- 
gulare  |  regula,  com  morale  j  mores),  e  deram-lhe  o  sen- 
tido de  «relativo  à  família».  Como  era  uma  incorrecção,  um 
barbarismo,  foi  logo  sofregamente  adoptado  em  português,  por 
cópia:  —  «Pondo  em  presença  vasos  de  egual  ondulação  linear 
e  ornamentação  com  o  mesmo  ar  familial» — ^  Deveria  ter-se 
dito  familiar,  ou,  de  família,  porque  não  é  força  que  para 
cada  substantivo  haja  um  adjectivo  correspondente,  como  é  uso 
moderníssimo  e  desnaturai. 

Com  maior  correcção  vemos  familiar  empregado  no  seguinte 
trecho  no  mesmo  sentido:  —  «Como  se  vê  claramente,  não  saio 
da  corrente  geral  das  ideas  dos  publicistas  sobre  a  sociedade 
familiar» — -.  A  relação  expressa  é  a  mesma. 

Se  extratarmos  dos  dois  trechos  aduzidos  os  adjectivos  for- 
mados com  o  suficso  -ar,  ou  -ai,  veremos  a  constância  da  regra, 
que  é:  o  suticso  lejítimo  é  -ai;  o  l  muda-se  em  r,  se  o  vocábulo 
radical  contém  l:  igual,  geral;  linear,  e  portanto  familiar. 


fanadouro,  fanadoiro 

—  «E  por  fim  o  fanadoiro  é  a  espátula  grosseira  com  que 
[os  oleiros]  alisam  as  superfícies  ou  gravam  os  ornamentos» — ^. 


1    Eocha  Peixoto,  As  olarias  do  Prado,  in  Portugália,  i,  p.  202. 

'  Projecto  de  lei  sobre  o  Divórcio,  apresentado  ás  Cortes  em  18  de 
março  de  1898,  pelo  deputado  Duarte  Sampaio  e  Melo. 

3  Eocha  Peixoto,  Sobrevivência  da  primitiva  roda  de  oleiro 
EM  Portugal,  í»  Portugália,  ii,  p,  76. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  437 


fanão 


Esta  palavra,  muito  frequente  nos  nossos  escritores  do  xvi 
e  XVII  séculos  que  se  referiram  à  índia,  é,  conforme  o  Glossá- 
rio de  Yule  &  Burnell  ^  de  origem  indiana,  malabar  e  tamul 
panam  }  sánscrito  paxá,  « moeda »^  mas  primeiro,  «bolo  no  jogo, 
parada »  2.  Os  portugueses  receberam  o  termo  dos  árabes  e  mou- 
ros que  faziam  comércio  nos  mares  da  índia.  Era  de  ouro,  mas 
ao  depois  cunharam-no  também  de  ouro  com  muita  liga,  e  mesmo 
de  prata.  Possuo  uma  destas  moedas  de  ouro  baixo;  é  circular  e 
tem  o  diâmetro  de  um  real  de  cobre  da  nossa  moeda  actual. 
Nos  princípios  do  século  passado  o  seu  valor  era  deminuto,  pois 
equivalia  a  dois  dinheiros  ingleses,  isto  é,  40  réis: — «Quatro  mil 
fanoens  de  renda  cada  anno,  que  valem  na  nossa  moeda  400  cru- 
zados»— 3. 

faqui;  faquir 

São  dois  vocábulos  diferentes,  e  com  diversíssimas  significa- 
ções: faqui,  em  árabe  FaQiE,  de  raQE,  «saber  teolójico»,  si- 
gnifica «jurisconsulto»;  faquir,  em  árabe  FaQiB,  de  FaQas, 
«pobreza»,  que  quere  dizer  «frade  mendicante». 


farinhar;  farinheiro;  farinheira 

Em  Aveiro  este  verbo  aplica-se  aos  tabuleiros  das  marinhas, 
quando  neles  o  sal  começa  a  alvejar. 


1  A  Glossary  of  Anglo-Indian  words  and  phrasbs,  Londres, 
1886. 

2  Monnier  Williams,  A   Sanskrit-English  Dictionary,  Ocsónia, 
1872. 

3  Lucena,  Vida  do  Padre  Francisco  Xavier,  92,  col.  i. 


438  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 

A  acepção  de  farinheiro  é  diferente :  — « Villa  Nova  de 
Fozcôa,  1.  O  estado  geral  das  vinhas  é  regular.  O  que  tem 
apparecido  por  aqui  é  a  moléstia  a  que  dão  o  nome  de  fari- 
nheiro^— ^. 

Qualquer  destes  vocábulos  deriva  de  farinha,  e  indica  as- 
pecto parecido  com  o  dela. 

Farinheira  designa  ura  chouriço  feito  com  gordura  de  porco 
e  farinha  ou  meolo  de  pão. 

faro,  farum,  fera,  farão,  faronejar 

Duas  orijens  se  atribuem  ao  primeiro  destes  vocábulos:  a  pri- 
meira, proposta  por  Júlio  Cornu  -,  é  dissimilação  de  frairo,  subs- 
tantivo verbal  de  frairar  {  fragrare,  farar,  com  perda  do  i; 
cf.  rosto  \  rostrum.  Com  relação  a  esse  i  procedente  de  g,  cf. 
enieiro  \  intégrum,  cheirar  \  flagrar e  \  fragrare. 

A  segunda  é  apresentada  por  D.  Carolina  Michaélis  de  Vas- 
concelos, com  muito  enjenho,  mas  pouca  probabilidade;  faro, 
«farol»,  j  grego  p'áros  3. 

Com  respeito  a  farum,  o  Novo  Diccionáeio  deriva-o  de 
faro;  se  considerarmos  porém  que  bodum  procede  de  bode,  e 
designa  o  repugnante  cheiro  deste  animal,  frescum  o  « cheiro  da 
carne  fresca»,  é  aceitável  o  atribuirmos  a  farum,  «cheiro  a 
fera»,  a  derivação  deste  último  substantivo,  que  a  mesma  in- 
signe romancista  lhe  atribui  *. 

O  e  átono  de  ferum  passou  a  a  surdo  por  influencia  do  r: 
cf.  amaricano  por  americano,  a  terminação  -ária,  por  -eria, 
de  cutelaria,  cast.  cuchillería,  para  moderno,  a  par  do  pêra, 
antigo,  o  qual  subsiste  no  falar  desafectado.    O  r  em  grande 


*    O  Economista,  de  4  de  agosto  de  1894. 

»    Gruxdriss  der  romanisohen  Philologib,  Estrasburgo,  1888,  i, 
p.  772. 

3  Eevista  Lusitana,  iii,  p.  160. 

4  ih.  p.  159. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  439 


número  de  línguas  exerce  infliiéucia  na  vogal  que  o  precede,  e 
entre  elas  a  exerceu  ein  latim,  por  exemplo;  cf.  corpus,  cor- 
poris  '. 

No  Suplemento  ao  Novo  Diccionário  vemos  farum,  como 
sendo  aplicado  no  Minho  ao  «cheiro  do  mosto >.  Nesta  acepção 
se  fundou  provavelmente  Cândido  de  Figueiredo  para  o  derivar 
de  faro. 

Dq  faro  formou-se  um  aumentativo, /arao,  cujo  iem-à  f ar om, 
ou  faron,  deu  orijem  ao  verbo  faronejar,  o  qual  ficou  em  re- 
lação a  esse  aumentativo,  como  farejar  para  faro. 


fatão 


Em  Viana-do-Castelo  ouvi  dar  este  nome  a  uma  ameixa 
grande,  sobre  o  comprido. 

fateixa 

Conforme  o  Diccioxaeio  Contempoeaneo,  esta  palavra  signi- 
fica:—  «ferro  como  a  ancora,  mas  mais  pequeno,  com  três  ou 
quatro  unhas  para  fundear  barcos  menores.  //  Gancho  de  can- 
dieiro.  //  Utensílio  de  ferro  em  forma  de  ancora  em  que  se  de- 
penduram carnes  para  estarem  expostas  ao  ar.  //  F.  ar.  Kkattéf 
[aliás,  khattéf]  >  — .  Bluteau,  que  escreve  fatexa,  dá  somente  os 
dois  primeiros  significados.  Em  qualquer  acepção  vê-se  porém 
que  é  um  objecto  com  ganchos  ou  unhas  para  aferrar,  segurar: 
—  <  e  doze  arpeos  de  abalroar  com  suas  fateixas  talingadas  em 
cadeias  de  ferro» — ^. 

O  étimo  apontado  no  Contemporâneo,  e  que  o  Novo  Diccio- 


»     Veja-se  Padre  Rousselot,  Les  articulations  IRLA^^>AISES,  Paris, 
1899,  p.  13. 

»    Pemám  Méndez  Pinto,  Peregrinação,  cap.  Lviii. 


440  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


NÁEio  escreve  catefe,  é  o  que  foi  defendido  por  Doz}^  ^  isto  é^ 
transcrevendo  as  letras  árabes  por  ele  apresentadas,  naÍAF.  De- 
pois de  nos  explicar  ser  regular  a  representação  do  som  da  7.* 
letra  do  alfabeto  arábico  por  /  nas  línguas  peninsulares,  termina 
dizendo:  —  «celui  [le  changement]  du  /  en  x  ne  Test  pas,  maia 
il  faut  appliquer  ce  que  j'ai  dit  dans  rintrodfuction],  à  savoir^ 
que  la  dernière  consonne,  qu'on  entendait  mal,  est  souvent  chan- 
gée  arbitrairement » — . 

Declaro  que  me  não  dou  por  convencido:  compreendo  perfei- 
tamente a  troca  entre  t,  l,  r,  n,  consoantes  homorgáuicas;  não 
aceito,  à  sombra  da  regra  geral  que  formulou  o  abalisado  ara- 
bista holandês,  que  um  /  fosse  tam  mal  ouvido,  que  se  represen- 
tasse por  X,  a  não  ser  que  desse  estranho  fenómeno  se  apresen- 
tem muitos  mais  exemplos. 

João  de  Sousa  ^  não  traz  o  vocábulo;  Eguílaz  y  Yanguas 
sujere  FaíAXE,  que  diz  significar  crucibulum  ^  isto  é,  «cadi- 
nho». Se  tal  palavra  existe  em  árabe,  não  sei;  nos  dicionários 
que  pude  consultar  não  a  encontro;  mas  ainda  quando  exista, 
a  significação  de  modo  nenhum  convém.  Outro  tanto  direi  de 
paíaixE,  a  que  no  Vocabulário  árabe-francês  de  Belot  se  dá  como 
correspondente  o  francês  fusée,  e  que  pela  sua  estrutura  mais  se 
compadeceria  com  a  palavra  portuguesa. 

Deduz-se  de  tudo  isto  que  as  palavras  árabes  que  fonolójica- 
mente  poderiam  produzir  a  portuguesa  fateixa,  ou  fatexa,  são 
inaceitáveis  em  razão  dos  seus  significados;  e  que  a  única,  apre- 
sentada por  Dozy,  e  cuja  significação  se  acomoda  às  do  vocábulo 
português,  tem  de  ser  rejeitada  por  causa  da  sua  incompatibili- 
dade fonética.  O  /  só  pode  provir  das  letras  6.*,  1^,  20.*,  ou  26.% 
o  X  somente  da  13.*,  e  não  há  vocábulo  arábico  que,  com  signi- 
ficação apropriada,  satisfaça  a  tais  condições. 


1  Glgssaire  des  mots  espagnols  et  portugais  derives  db 
l'Arabb,  Leida,  1869. 

2  Vestígios  da  língoa  arábica  em  Portugal,. 

3  Glosario  de  las  palabras  espanolas  de  origbn  oriental. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  441 


Sobre  o  significado  do  vocábulo  arábico  raxaiXR  escreve-me 
o  snr.  David  López  que  Dozy,  no  seu  Suplemento  aos  dicionários 
árabes  dá  a  seguinte  definição:  —  «sac  de  papier  dans  lequel 
on  raet  de  la  poudre  et  qu'ou  attache  à  un  roseau;  mis  en 
contact  avec  le  feu,  il  vole  dans  Tair  comme  des  serpents  ar- 
dents» — *.  É  pois  «foguete». 

fato,  fateiro 

Esta  palavra  é  germânica,  conforme  Frederico  Diez  -:  alto 
alemão  antigo  fazza,  a  que  nos  outros  dialectos  germânicos  cor- 
respondem formas  com  t  em  vez  da  dúplice  z  (^tç)  do  alto 
alemão.  Parece  que  nesses  dialectos  significa  «roupa  de  vestir». 

Na  realidade,  o  vocábulo  fato  aplica-se  em  português  a  ves- 
tidos, com  excepção  dos  que  se  chamam  roupa  branca.  Antes, 
porém,  teve  significados  muito  diversos,  e  no  de  «rebanho  de 
cabras»  coincide  ainda  com  o  castelhano  liato,  anteriormente 
fato. 

Nos  seguintes  trechos,  todos  extraídos  das  Batalhas  da 
Companhia  de  Jesus,  do  Padre  António  Francisco  Cardim, 
pode  ver-se  a  evolução  do  significado:  —  «puseram  o  íato  na  rua 
para  o  confiscar»  — ,  isto  é,  «mobília  e  todo  o  trem  de  casa»  ^. 

—  «fazendo  muitas  vexações  nos  christãos,  para  delles  ti- 
rarem fato  e  dinheiro» — ,  isto  é,  «fazenda»  *. 

— «registam  [revistam]  as  pessoas  e  o  fato» — ^. 

Em  uma  acepção  particularíssima  é  empregado  este  vocábulo 
pelo  Padre  Graspar  Afonso,  na  sua  castiça  e  interessante  «  Rela- 
ção da  viajem  e  sucesso  da  nau  Sam  Francisco»:  —  «candeia  e 


»    supplément  aux  dictiosnaires  árabes,  tl,  239  •». 
»    Etymologisches  Wõrteubuch  der  romanischen  Sprachen, 
Bonn,  1870,  u,  suh  v.  hato. 
3    Lisboa,  1894,  p.  104. 

*  ih.,  ih. 

*  i6.,  p.  281. 


442  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


fogo  se  dá  em  cada  fato,  como  elles  chamam  ás  casas  em  que 
moram  os  Senhores  [na  Ilha  Espanhola  ou  Haiti]» — *. 

Fateira,  adjectivo,  vem  no  Suplemento  ao  Novo  Diccioná- 
Eio,  como  termo  transmontano,  por  exemplo  em  arca  fateira, 
«arca  para  arrecadar  a  roupa».  V.  roupa. 

faxa,  faxina,  feixe,  feixota 

Este  vocábulo  representa  o  latim  faseia,  «atado»,  e  por- 
tanto deve  escrever-se  com  x,  e  não,  eh.  E  natural  que  o  seu 
étimo  imediato  seja  facsia.  com  metátese  de  se,  em  es,  como 
feixe  }  facsis  por  f aseis:  cf.  pexe,  peixe  \  pies  em  por  pis- 
cem.  Faxina  (e  não,  fachina)  é  um  derivado,  provavelmente  de 
orijem  italiana,  onde  fascÍ7ia,  designa  «braçado  de  lenha». 

Acerca  de  faxina,  como  unidade  de  lenha,  equivalente  a 
60  K.  em  achas,  veja-se  o  Suplememento  ao  Novo  Diccioiíáeio, 
onde  se  encontrarão  outras  acepções  do  vocábulo. 

Faxa,  com  o  significado  àe  feixe  é  transmontano:  —  «A  outra 
mala  tinha-a  em  casa  no  meio  de  uma  faxa  de  palha» — ^. 

Outro  termo  da  mesma  orijem,  fascis,  é  feixota: — «O  la- 
drilhado ou  calçado  do  pizo  conserva-se  meio  occulto  pelas  fronças 
e  gravetos  do  piorno  que  em  f  eixo  tas,  se  applica  [sie]  a  com- 
bustivel  na  lareira» — •\  Não  prima  por  correcção  gramatical  o 
exemplo,  mas  não  tenho  outro  para  o  substituir.  V.  facha. 

febra;  fêvera 

F.  Adolfo  Coelho  denominou  em  português  foemas  divekjen- 
TES  as  diferentes  evoluções  que  uma  forma  primordial  adquire, 


1  in  BiBL.  DE  Clássicos  portuguezes,  vol.  xlv,  p.  46. 

2  ViLLA-REALENSB,  in  *  O  Economista»,  de  24  de  fevereiro  de  1889. 

3  J.  da  Silva  Picão,  Ethjíographia  do  Alto  Alemtejo,  in  Portu- 
gália, I,  p.  541. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  443 

produzindo  vocábulos  diversos,  como  por  exemplo  régua  e  regra, 
ambos  procedentes  do  latim  regula,  sem  adjunção  de  outro 
elemento  de  derivação,  preficso,  inficso  ou  suticso,  e  só  pela  acção 
de  leis  fonéticas  distintas,  exercidas  em  períodos  diversos  da  evo- 
lução de  uma  língua.  A  este  fenómeno  dão  os  franceses  o  nome 
de  douhlets,  e  os  alemães  o  de  scheideformen.  A  denominação 
hoje  mais  adoptada  é  a  de  alótropos,  que  quere  dizer,  como  é 
sabido,  «vários,  mudáveis»,  e,  neste  sentido  particular,  «que 
tomam  direcções  diversas». 

Assim  como  de  um  só  vocábulo  provém  mais  de  iim,  por 
efeito  de  leis  fonéticas  diferentes,  que  nele  operaram;  do  mesmo 
modo,  de  duas  ou  mais  dições  distintas  pode  resultar  um  vocá- 
bulo só,  em  que  se  compendiem,  se  reúnam  os  significados  de 
todas,  porque  a  operação  de  leis  fonéticas  as  reduziu  a  um  único 
produto,  identidade  consequente  de  forma  em  uma  dada  língua, 
ou  em  mais,  comparadas  entre  si.  Vou  referir-me  aqui  somente 
à  primeira  destas  hipóteseS;  exemplificando-a  com  o  português. 
A  palavra  f.ar  compreende  os  significados  das  duas  latinas  fidare 
e  filare,  e  a  homonímia  é  devida,  não  a  processo  psicolójico,  a 
evolução  de  significado,  mas  à  operação  de  uma  lei  fonética, 
fisiolójica  portanto,  a  bem  dizer  mecânica,  a  queda  normal  de  d, 
ou  de  l  na  posição  fraca,  isto  é,  entre  vogais,  em  português,  o 
que  é  uma  das  características  que  o  diferença,  com  relação  ao 
latim  e  a  outros  idiomas  deste  derivados.  Outros  exemplos  do 
efeito  dessas  leis  fonéticas  são:  se,  correspondendo  ao  latim  si  e 
s%]  prego  de  plico  e  praedico;  e  não  já  em  vocábulos  distintos, 
mas  em  formas  diversas  do  mesmo  vocábulo,  só  de  solum  e 
solam,  amava  de  amabam  e  amabat,  etc. 

Alguns  desses  ho)nónimos  diferença-os  a  ortografia  usual, 
com  melhores  ou  piores  fundamentos,  como  vale  e  valle,  pena  e 
penna,  retrato  e  retracto,  cear  e  ciar,  soar  e  suar,  piis  e  puz; 
outros  não  os  diferença,  devendo  fazê-lo,  como  concertar,  conecso 
com  certo,  e  concertar,  «compor»  (melhor  consertar,  de  con- 
sertus,  particípio  pretérito  passivo  de  conserere);  outros,  con- 
quanto homónimos  na  língua  literária,  não  o  são  em  alguns  dia- 
lectos, como  lenho  e  lanho,  facha  e  taxa,  nós  e  noz,  passo  e 


444  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


paço,  osso  e  ouço,  cozer  de  *  cocere  por  coqiiere,  e  coser  de 
cons(u)ere,  e  a  ortografia  usual  avisadamente  os  conserva  dis- 
tintos. 

Nenhuma  língua  europeia  mais  do  que  a  francesa  falada 
apresenta  desses  homónimos;  bastará  citar  as  formas  sã  (escrita 
sans,  sawj,  sent,  cent),  e  sê  (sam,  saint,  sein,  seing,  ceint, 
cifiq):  dez  vocábulos  reduzidos  a  dois. 

É  no  sentido  de  conservar  distintas  pela  escrita  formas  uni- 
ficadas pela  pronúncia,  que  se  diz  serem  as  ortografias  etimoló- 
jicas  essencialmente  conservadoras  das  línguas  literárias;  e  é 
facto  que,  pelo  menos  nas  pessoas  que  possuem  conhecimentos 
literários,  essas  ortografias  exercem  certa  influência  impeditiva 
de  alterações  extremas  nos  vocábulos. 

Quando  esse  critério  desaparece,  ou  quando  uma  língua  teve 
larga  cultura  literária  antes  que  êle  se  manifestasse,  o  império 
das  leis  fonéticas  determina  empobrecimento  no  vocabulário,  pela 
produção  de  muitos  homónimos,  e  alterações  fundamentais  na 
gramática  pela  confusão  de  formas  anteriormente  diversas,  de- 
rivadas de  um  mesmo  radical.  No  primeiro  caso  temos  homoní- 
mia no  lécsico,  no  segundo  homonímia  na  morfolojia  da  língua, 
e  esta  última  tende  a  imprimir-lhe  carácter  diferente. 

Dá-se  a  estes  fenómenos  de  unificação  o  nome  de  homeó- 
TEOPOS,  POEMAS  coNVEEjENTES,  chamaudo  assim  àquelas  que 
resultam  de  duas  ou  mais  orijinárias.  Vê-se  que  este  processo  é 
o  contrário  do  que  primeiro  indiquei — o  de  formas  diverjen- 
TES  ou  ALÓTROPOS,  O  qual  é  um  meio  eficaz  de  uma  língua  se 
enriquecer,  ao  passo  que  o  outro  determina  a  sua  depauperação, 
como  disse. 

Do  mesmo  modo  que  dois  ou  mais  vocábulos  ou  formas 
distintas  podem,  como  vimos,  pela  operação  de  leis  fonéticas, 
adquirir  jia  passajem  de  uma  a  outra  língua,  ou  dentro  da 
mesma  língua,  uma  forma  única,  na  qual  se  resumam  os  signi- 
ficados de  todos  eles;  assim  também  de  dois  ou  mais  vocábulos, 
procedentes  de  línguas  diversas,  pode  resultar  um  que  compreenda 
as  significações  daqueles  de  que  provém,  figurando  falsamente 
essa  operação  fonética  como  um  produto  puramente  psicolójico, 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  445 


a  evolução  do  sígiiiticado  primitivo  de  um  deles,  o  que  se  chama 
« deseuvolvimeuto  de  sigo iíi cação»,  acepções  diveusas  de  um 

vocábulo,   ou   SEMEIOLOJIA,   SEMÂNTICA. 

Nestas  circunstâncias  creio  eu  que  está  o  que  acima  citei: 
fôvera,  fevra.  ou  febra,  ao  qual  atribuo  étimos  distintos,  con- 
forme os  seus  dois  principais  signiíicados. 

Bluteau  dá-lhe  a  seguinte  série  de  signiíicações: — «feveba, 
Fèvera  ou  Fe  vara,  ou  (como  dizem  os  Cultos)  Fibra.  As  feveras 
são  como  huns  fios  de  carne  que  se  achão  nas  extremidades  do 
fígado,  dos  bofes,  etc.  Fibra,  ce,  Fem.  Cie. 

Feveras  do  açafrão. . .  de  algumas  raizes  que  tem  fibras  diz 
Plinio .  .  . 

Homem  de  fevera:  Vid.  Alentado.  Valente. 

Fevera,  ou  carne  de  fevera,  he  carne  sem  osso  nem  gordura. 
Pulpa,  (B,  Fem.  Fers» — . 

A  falta  de  melhor,  poderia  talvez,  com  grande  violência,  dedu- 
zir-se  do  primeiro  o  último  destes  significados,  supondo-o  uma 
ampliação  particular  de  sentido,  como  o  são  os  intermédios.  xVssim 
teem  feito,  que  eu  saiba,  todos  os  etimólogos  que  deste  vocábulo 
se  ocuparam. 

F.  Ad.  Coelho,  no  seu  Diccionario  Manual  Etymologioo 
DA  língua  poetugueza,  diz  o  seguinte: 

—  «Febra,  febra;  a  parte  musculosa  dos  vertebrados  comes- 
tiveis.  V.  Fibra.  Nome  de  diversos  filamentos  vegetaes.  Filamento 
têxtil.  Nervo,  força,  valor.  (Lat.  fibra)»  — . 

O  DicciONAEio  Contemporâneo  da  língua  portugueza 
que  dá,  além  de  fibra,  três  formas,  fevera,  fevra,  febra,  referidas 
a  esta  última  as  outras  duas,  atribui  também  a  todas  a  etimo- 
lojia  latina  fibra. 

A  última  significação  de  Bluteau  é  aí  dada  como  2.*,  e  por 
F.  Ad.  Coelho  como  1.*.  Diez  [Etym.  Wõrterbuch  der  roma- 
NiscHEN  Sprachen]  não  traz  este  último  significado,  e  dá  como 
étimo  de /eò?'a  igualmente  o  latim  fibra.  Kôrting  [Lateinisch- 
BOMANiscHEs  WõRTERBUCH,  n.°  3221],  faz  O  mesmo,  e  é  prová- 
vel que  a  ambos  passasse  despercebida  a  definição  especial  que 
Bluteau  dá  como  última. 


446  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 

João  de  Sousa  omite  o  vocábulo  febra  nos  Vestígios  da 
LiXGOA  ARÁBICA  EM  PoBTUGAL,  e  é  portauto  de  presumir  que 
também  lhe  atribuísse  orijem  latina. 

Outro  tanto  podemos  dizer  de  Dozy  e  Engelmann  [Glossaire 

DES    MOTS  ESPAGNOLS  ET  PORTUGAIS  DERIVES  DE  l'ArABe],   COU- 

quanto  o  primeiro  destes  orientalistas  fizesse  em  outra  obra  ^ 
menção  do  vocábulo  arábico  de  que  me  vou  ocupar;  vê-se  porém 
que  o  não  considerou  representado  na  Península  Hispânica. 

Eguílaz  y  Yanguas  também  o  não  menciona  no  seu  Glosario 
Etimológico  de  palabras  esp anglas.  .  .  de  origen  oriental, 
e  é  mesmo  de  supor  que  o  arabista  espanhol  desconheça  o  sigai- 
ficado  especial  do  vocábulo  em  português,  língua  que,  com  as 
mais  da  Península,  foi  incluída  no  Glossário. 

O  latim  fibra,  pois,  tem  sido  para  todos  os  etimólogos  a 
orijem  do  português  febra,  em  todas  as  suas  acepções.  A  conclu- 
são seria  talvez  lejítima,  apesar  de  o  6  medial  latino  permanecer, 
em  vez  de  se  mudar  em  v.  como  devera  acontecer,  visto  o  vocá- 
bulo ser  popular:  seria  lejítima,  repito,  até  facto  positivo  que  a 
invalidasse;  agora,  porém,  creio  poder  demonstrar  que  já  o  não  é. 

Convenci-me  disto  ao  ler,  com  toda  a  atenção  que  merece, 
um  excelente  trabalho  apresentado  por  Hermano  Almqvist  ao 
Congresso  dos  Orientalistas,  celebrado  em  Estocolmo  e  Cristiánia 
no  anno  de  1889.  Esse  trabalho  foi  publicado  no  i  fascículo  dos 
do  referido  Congresso,  que  contém  a  Secção  Semítica:  intitula-se 
«Kleine  Beitrâge  zur  Lexikographie  des  Yulgãrarabischen  »,  «Pe- 
quenos subsídios  para  a  lecsicografia  do  árabe  vulgar»,  título  em 
demasia  modesto,  se  o  compararmos  à  grande  valia  desse  estudo 
escrupulosíssimo  e  minucioso,  resultado  de  observações  directas 
do  seu  autor,  feitas  durante  uma  residência  de  trinta  meses  na 
Síria,  Ejipto,  Núbia  e  Sudão,  como  no-lo  diz  em  um  breve  pre- 
fácio. 

A  páj.  371  e  372  do  fascículo  mencionado,  no  qual  a  dita 
memória  ocupa  de  páj.  260  a  469,  vêem  dois  artigos,  subordinados 


1     Citada  por  Almqvist  na  memória  a  que  vou  já  referir-me. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  447 


à  epígrafe  Speisen.  «Comidas»,  e  intitulados  'eras  habra  e  Jiabra 
mamdãda,  denominações  vulgares  de  guisados  ali  usuais.  Em 
ambos  o  vocábulo  habra  é  definido  como  significando  « carne  sem 
osso  nem  gordura »  —  « das  fett-  und  knochenfreie  Fleisch . ,  . 
Viande  sans  os.  .  .    Viande  sans  graisse »  — . 

Cherbonneau,  no  seu  Dicionário  arábico-francês  [Paris,  1876] 
diz  a  páj.  1302:  —  «hehar,  chair.  Pulpe  des  fruits» — ,  e  deriva  o 
vocábulo  do  verbo  hahar.  «amputer»,  acrescentando  outro  verbo 
derivado,  ahabar — «être  bien  en  chair» — .  Concluo  que  êle  atri- 
bui aos  caracteres  arábicos  do  substantivo  indicado,  e  de  que  não 
dá  os  pontos  vogais,  a  pronúncia  hebar,  porque  no  seu  Dicionário 
francês-arábico  encontro: — «Pulpe,  s.  f.  des  fruits» — ,  depois  o 
vocábulo  indicado,  expresso  em  caracteres  arábicos,  também  sem 
vogais,  e  a  sua  transcrição  era  letra  itálica,  hebar. 

Em  um  lécsico  hebraico-inglês  vejo  hãbar,  dado  como  vocá- 
bulo arábico,  com  a  significação  de — «that  which  cuts» — o  que 
corta — . 

Vê-se  pois  que  é  este  um  termo  de  carniçaria,  e  deles  ocor- 
re m-me  de  orijem  arábica  evidente  os  seguintes,  em  português: 
acém,  açougue,  alcatra,  magarefe,  rês,  fora  outros  mais. 

A  definição  pois  do  vocábulo  habar,  hebar,  habra,  hebra  *, 
conforme  as  pronunciações,  dada  pelo  sr.  Almqvist  concorda  em 
absoluto  com  a  aduzida  por  Bluteau,  e  tal  significação  continua 
a  ser,  pelo  menos  no  sul  do  rei:io  e  em  parte  do  domínio  trans- 
montano, senão  em  todo,  usualíssima,  com  a  pronunciação  mais 
comum  febra,  como  a  traz  o  Dic.  de  F.  Ad.  Coelho  já  citado. 

O  autor  da  Memória,  alegando  autoridades,  apresenta-nos 
também  a  forma  'habra,  isto  é,  com  ^  em  vez  de  í  (fi)  inicial, 
o  que  em  nada  influi  na  nossa  inquirição.  Com  efeito,  quer  a 
palavra  comece  por  uma,  quer  por  outra  destas  consoantes,  o 
facto  é  que,  nos  vocábulos  que  do  árabe  passaram  ao  português 


1     Sobre  e,  correspondendo  na  Península  Hispânica  ao  FaTHaB  (a. . .  e) 
seguido  ou  não  de   I,  veja-se  Dozy  et  Engelmann,  Glgssaire  des  mots 

ESPAGNOLS   ET   PORTUGAIS   DÉKIVÉ3   DE   L'ArABB,   p.    2(3   6   27. 


44S  Aj}ostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


por  mera  audição,  o  /  é  o  representante  de  qualquer  desses  sons 
(e  também  do  ^,  ou  ;  castelhano  actual =?/),  se  o  vocábulo  foi 
introduzido  no  tempo  do  domínio  ou  permanência  de  mouros  na 
Península;  sendo  esta  uma  das  características  de  que  qualquer 
palavra  árabe  pertence  a  essa  primeira  importação,  tanto  em  Por- 
tugal, como  em  Espanha,  onde  em  castelhano  esse  /  e  o  prove- 
niente do  /  árabe  seguiram  ao  depois  o  f  latino  inicial  na  permu- 
tação para  h,  ainda  pronunciado  na  Andaluzia  e  na  Estremadura 
Espanhola,  mas  nulo  hoje  no  castelhano  do  resto  da  Espanha. 

Digo  ser  essa  uma  das  características  dos  vocábulos  arábicos 
pertencentes  ao  fundo  das  línguas  românicas  da  Península,  a  que 
chamarei  de  primeira  formação,  popular  ou  espontânea.  Há  de 
haver  outras  características  fonéticas,  mas  aqui  não  procurarei 
determiná-las,  conquanto  me  pareça  ser  este  o  trabalho  geral 
que  há  a  fazer  com  relação  a  vocábulos  hispânicos  de  tal  pro- 
veniência, os  quais  podem  dividir-se  em  três  períodos: 

l.''  Popular.  Abranje  os  que  o  povo,  desde  o  viii  até  o 
XIV  século,  aprendeu  de  os  ouvir  à  numerosa  população  moura 
que  habitava  na  Península:  esses  constituem  parte  essencial  do 
vocabulário  peninsular:  tais  são  quási  todos  os  que  começam  por 
ai  ou  a,  representativos  do  artigo  arábico,  os  nomes  de  terras 
e  outros  próprios. 

2°  Literário.  Compreende  as  palavras  que  os  nossos  escrito- 
res e  os  espanhóis,  que  sabiam  melhor  ou  pior  o  árabe,  introdu- 
ziram nas  línguas  hispânicas,  empregando  transcrição  consciente, 
ou  das  suas  letras,  ou  dos  vocábulos,  conforme  os  ouviam  pro- 
ferir; tais  são  xarife,  turjimão,  etc.  ^ 

3.°  Estranjeiro.  O  árabe  é  totalmente  ignorado,  e  os  vocá- 
bulos entram  por  vias  indirectas,  com  as  transcrições  estranjei- 
ras,  já  caprichosas,  já  científicas,  das  línguas  donde  são  recebidos 
imediatamente.  Nesta  última  categoria  estão  incluídos  vocábulos 
como  sofá,  almeia,  forma  absurda,  tirada  do  mau  francês  ahnée, 
etc. 

Voltando  ao  nosso  tema,  devo  ainda  dizer  que  a  palavra 
febra,  com  o  significado  que  tem  o  árabe  hebra,  hahra,  ou 
habar,  só  existe  em  português,  sendo  alheia  aos  outros  idiomas  ro- 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  449 


mánicos.  O  castelhano  hebra,  antigo  febra,  somente  compreende 
as  três  primeiras  acepções  dadas  por  Bluteau,  as  quais  todas 
procedem  do  latim  fibra;  assim  diz-se,  por  exemplo,  tabaco  en 
hebra,  « tabaco  em  fio » ;  e  deste  vocábulo  se  deriva  o  verbo 
enhebrar,  com  a  significação  de  «enfiar». 

Direi  mais  que  parece  ter-se  dado  confusão  entre  os  dois  vo- 
cábulos-/i^rera,  de  fibra  e  febra  de  habra  ou  hebra  arábico; 
homonímia  que  é  naturalmente  moderna,  e  poderia  evitar-se, 
reservando-se  essa  última  forma  unicamente  para  o  último  si- 
gnificado, que  coincide  com  o  do  vocábulo  arábico,  morfolójica 
e  ideolójicamente,  tanto  mais  que  febra  é  no  sul  a  pronunciação 
corrente,  conquanto  aí  se  diference  perfeitamente  e  com  toda  a 
regularidade  ò  de  v. 

Assim,  parece-me  que  nos  nossos  dicionários  há  a  fazer  as 
seguintes  correcções: 

febra  (V.  fèvera):  carne  limpa  de  osso  e  gordura,  para 
alimento  [árabe  habra  ou  hebra,  ainda  hoje  de  uso  jeral  nos 
países  de  língua  arábica,  e  que  deve  ter  passado  a  português  nos 
tempos  da  dominação  maometana,  como  o  indica  a  mudança  de 
h  para  f  (Cf.  refém  \  B,aEN=raíen,  com  h  sonoro)]. 

fèvera  (ou  febra,  com  o  qual  se  confundiu,  e  de  que  deve 
diferençar-se) :  nome  de  diversos  filamentos  vejetais;  filamento 
têxtil,  etc.  Cf.  o  castelhano  antigo  febra,  moderno  hebra,  « fio  > . 
Do  latim  fibra,  por  mudança  de  í  em  é  (cf.  cedo  {  cito), 
de  6  em  v.  (Cf.  livro  \  librum),  e  intercalação  de  e  átono 
desunindo  as  duas  consoantes  consecutivas  (cf.  fevereiro  \  fe- 
bruarium)  ^ 

Este  vocábulo  sujere  ainda  outra  acepção  à.^  fèvera  \  fibra, 
que  se  deduz  do  prolóquio  lá  vem  o  fevereiro  com  as  suas  fê- 
veras  todas,  no  qual  fêveras  equivale  a  «friajem»,  e  é  palavra 
inventada,  com  influência  necessária  de  fevereiro. 


1    Este  artigo  foi  já  publicado  na  Ebvista  Lusitana,  de  onde  o  ex- 
traio, com  pequenas  alterações  na  redacção. 
29 


450  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


fecho,  fechar 

Fecho  é  o  latim  2)estulum  por  pessuluin,  com  mudança 
da  inicial  p  em/,  bastante  rara;  a  de  stl,  pesflum,  em  eh,  é 
perfeitamente  normal  [cf.  macho  \  masc(u)lum].  Esta  etimo- 
lojia,  apresentada  não  me  recorda  por  quem  primeiro,  está  admi- 
tida, e  para  confirmação  dela  basta  citar  o  galego  pechar,  cor- 
respondente ao  português  fechar,  e  o  castelhano  pestillo,  « fecha 
de  correr»,  que  é  o  latim  pestillum,  outra  forma  deminutiva, 
paralela  ao  pessulum  citado. 

Cf.  ainda  fescoço  =  pescoço,  e  v.  data. 


feijão 

Este  vocábulo  português  representa  o  latim  phaseólum,  com 
mudança  de  suficso,  isto  é,  -on  por  -ol:  cf.  espanón  e  es- 
pafiol. 

De  um  artigo,  publicado  em  tempo  no  jornal  de  Lisboa  O  Ke- 
PORTEK  *,  extrato  para  aqui  a  copiosa  nomenclatura  portuguesa 
deste  legume,  abreviando  as  definições: 

Feijão  branco:  ou  é  de  veia,  ou  sem  veia  no  casulo. 
O  feijão  de  veia  é  só  bom  para  saco  (para  secar);  o  feijão  para 
comer  em  verde  não  tem  veia.  Há  também /eyão  de  vara,  que 
é  o  que  se  enrosca  pela  rodeiga,  e  o  feijão  capão,  que  é  o  que 
fica  rasteiro;  também  se  lhe  chama  carrapato,  por  ficar  assim 
pequena  a  planta. 

No  feijão  branco  há  também  um  que  é  muito  graúdo,  cha- 
mado calço  de  panela,  pois  cada  feijão  entende-se  que  pode 
calçar  uma  panela,  que  é  sempre  de  ferro,  e  tem  três  pés;  a  de 
barro  e  sem  pés  chama-se  chaspa  (q.  v.). 


1     17  de  junho  de  1897. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  451 

Feijão  preto  diz-se  que  é  assim  por  qualidade,  outros  dizem 
que  é  degenerado. 

O  feijão  chícharo  ou  fradinho  tem  este  nome  provavelmente 
por  ser  pequeno,  e  por  ser  muito  usado  nos  conventos  para  o 
caldo  da  portaria. 

O  feijão  de  vajem  branca  é  branco  emquanto  tenro,  e  o 
feijão  arroz  chama-se  assim  por  ser  muito  meúdo. 

O  feijão-de-sete-semanas  é  o  mais  temporão  porque  dá  fruto 
cinco,  semanas.  É  amarelo. 

E  dos  primeiros  a  semear-se  na  primavera,  porque  se  o  tempo 
lhe  corre  bem,  perto  do  Sam  João  está  carregado  de  vajens.  Não 
é  palhento  como  o  das  outras  castas. 

Há  mais  as  seguintes  castas:  feijão  rajado,  feijão-de-bico- 
-de-sacho,  feijão  eoimbrês,  feijão  vianês. 

Às  diferentes  qualidades  de  feijão  chamam  em  Trás-os-Mon- 
tes  gradara: — 'Boa  horta!  Muita  soma  de  feijão  para  verde, 
muita  hortaliça,  e  inda  por  cima  muita  gradara  / » — . 


feira,  feirar,  feirão,  feirante 

O  substantivo  feirão  não  figura  nos  dicionários,  mas  sim 
feirante,  que  é  o  mais  usado  no  sul,  e  designa  «a  pessoa  que 
tem  barraca  ou  quitanda  em  feira».  Na  Gazeta  das  Aldeias, 
publicação  mensal  do  Porto,  e  que  é  um  belo  repositório  de 
termos  vernáculos,  vemos  empregado  o  dito  substantivo  no  trecho 
seguinte: — <Não  seria  conveniente  levar  lá  [à  feira  de  abelhas 
que  se  realiza  em  Sobrado,  próssimo  de  Valongo  nos  dias  24  e  25 
de  julho]  colmeias  móveis,  pois  os  feirões  que  concorrem  ao 
mercado,  o  que  buscam  é  mel  e  cera?»  — . 

Vê-se  por  este  passo  que  feirão  é  quem  concorre  à  feira 
«para  comprar»,  entanto  que,  no  sul,  feirante  é,  como  disse, 
aquele  que  ali  se  estabelece  «para  vender». 

O  verbo  feirar  está  abonado  com  o  seguinte  trecho  do  Alfa- 
JEME  DE  Santaeém,  dc  Almeida  Garrett: 


452  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


—  «Feirac,  feirae,  meus  nobres  senhores: 
São  lindas  armas 

Feiremos  cl'amores, 
Que  mais  lindos  são » —  * . 


feitiço 

Em  primeiro  lugar  cumpre  advertir  que  esta  palavra  foi,  em 
português,  adjectivo,  quer  provenha  de  facticium  j  factum  \  fa- 
cere,  «fazer»,  quer  de  ficticium  }  fictum  j  fingere:  —  «os 
bonzos  não  ousaram  a  se  determinar  no  que  entre  si  trazião  fulmi- 
nado, que  era,  segundo  depois  soubemos,  ordenarem  hum  arruído 
feitiço  [finjido],  em  que  matassem  o  padre  e  a  nós  todos  com 
elle»— 2. 

Feitiço,  como  substantivo,  tem  três  significações: 
A  primeira  é  «bruxaria»:  —  «com  receio  de  que  lhe  fizesse 
feitiço» — ^]  e  em  texto  mais  antigo: 

—  «Se  vossa  alteza  quiser 

Ver  os  feitiços  que  eu  faço  »  — *. 

A  segunda  significação  é  «objecto  com  que  se  faz  a  bruxa- 
ria»: —  «A  lagartixa  que  certo  feiticeiro  poz  na  couceira  da  porta 
de  hum  lavrador,  a  qual  em  todo  o  tempo,  que  ali  esteve,  nem  a 
molher,  nem  animal  algum  de  casa  poria,  era  feitiço» — ^ 

A  terceira  é  muito  especial :  —  «O  feitiço  é  o  armazém  onde 
se  fazem  os  pagamentos  aos  indigenas  [no  Zaire].  É  uma  espécie 


1  Acto  II. 

2  Femám  Méndez  Pinto,  Peregrinação,  cap.  ccxi. 
8  Azevedo  Coutinho,  Campanha  do  Barué  bm  1902. 
■*  Gil  Vicente,  Auto  das  fadas. 

6  Bluteau,  Vocabulário  portugubz  b  latino. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  453 


de  taberna,  com  um  pequeno  balcão  junto  da  porta  e  toda  a  ca- 
pacidade interior  tomada  por  fazendas»  —  K 

Como  ídolo,  sentido  era  que  se  diz,  mas  se  não  prova,  ter 
sido  derivado  de  português  o  termo  francês  fetiche,  não  há  abo- 
nação  verdadeiramente  vernácula;  em  tal  acepção  o  termo  usado 
em  português  é  manipanso.  Neste  pressuposto,  parece-me  erro 
denominar  feiticismo  o  período  de  concepções  relijiosas  a  que  os 
franceses  chamam  fétichisme. 

De  feitiço  procede  feiticeiro,  feitiçaria,  enfeitiçar,  etc. 

Sobre  o  vocábulo  feitiço  é  digno  de  leitura  o  que  P.  A.  de 
Azevedo  escreveu  com  o  título  de  Superstições  portuguesas 
NO  SÉCULO  XV,  servindo  de  aclaração  a  vários  documentos  que 
publicou  -;  veja-se  também  Bluteau  (Vocabulário,  loc.  cit.). 


feitor 

Sentido  particular,  isto  é,  o  de  « fabricante »  adquiriu  este 
vocábulo  no  norte  do  reino: — «Para  a  obra  de  encommenda  es- 
colhe feitores — ,  porque  os  ha  especialistas » ^ — ^.  É  um  bom 
termo  para  expressar  o  que  os  romanos  denominavam  faber, 
« artífice » . 

felipina,  filipina 

Designa  este  termo  uma  mistura  de  água,  aguardente  branca 
e  açúcar.  A  orijem  deste  nome  já  de  relance  foi  indicada  no 
Suplemento  ao  Novo  Diccionário,  e  é  a  seguinte: 

No  largo  do  Pelourinho,  aí  pelo  primeiro  até  segundo  quar- 
tel do  século  passado,  existiu  uma  aguardentaria  pertencente  a 


^    Kelatório  do  juiz  Francisco  António  Pinto,  in  O  Economista,  de  19 
de  março  de  1885. 

2  in  Ebvista  Lusitana,  iv,  p.  197  e  198. 

3  Rocha  Peixoto,  As  olarias  do  Prado,  in  Portugália,  i,  p.  267. 


454  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


Marcos  Felipe,  que  também  tinha  por  sua  conta  o  botequim  da 
Praça  do  Comércio,  que  ao  depois  passou  para  as  mãos  do  Mar- 
tinho, que  lhe  transmitiu  o  nome,  bem  como  ao  do  largo  de 
Camões;  também  se  lhe  chamou  o  botequim  da  neve.  Parece  ter 
sido  o  Felipe  quem  deu  nome  à  felipina,  a  que  se  refere  Garrett 
no  prefácio  à  Lyrica  de  João  Mínimo: — «com  o  charuto  na 
bôcca  e  o  ponche  ou  a  philippina  na  mão»  — . 

Segundo  se  declara  em  nota,  foi  isto  escrito  em  1825,  época 
em  que  estaria  em  voga  o  tal  botequim. 

fenasco 

Na  Índia  portuguesa  fenasco  é  o  nome  que  se  dá  à  uraca, 
ou  aguardente,  em  concani  feni,  nos  caracteres  devanágricos 
transliterados  p'e]sri, 

fendi,  eféndi(m) 

Esta  palavra  é  uma  forma  abreviada,  talvez  berberisca,  do 
vocábulo  turco  efóndi,  que  é  o  tratamento  usual  que  empregam 
os  turcos,  como  termo  de  cortesia,  equivalendo  a  «senhor».  Foi 
usado  por  João  Carvalho  Mascarenhas,  na  «Memorável  relação 
da  perda  da  nao  Conceição»: — «Fendi,  eu  é  verdade  que  também 
sou  dos  que  queriam  fugir» — ^ 

A  acentuação,  que  no  texto  não  está  marcada,  é  na  penúl- 
tima sílaba. 

É  preferível  dizer  eféndi.  Com  o  suíicso  -m,  eféndim  equi- 
vale a  «meu  senhor». 

feno,  feneiro 

Em  castelhano  existe  um  vocábulo  que  nomeia  o  local  onde 
se  arrecada  o  feno,  heno,  isto  é,  henil.  Em  português  chama- 


1      in  BlBL.  DE  CLÁSSICOS  PORTUGUKZES,  Vol.  XLVII,  p.  109. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  455 


-se-lhe  geralmente  palheiro,  o  qual  propriamente  devera  designar 
aquele  em  que  se  armazena  a  palha,  mas  que  além  disso  tem 
outros  significados,  como  por  exemplo  nos  dois  excertos  seguin- 
tes:—  «Os  pescadores  da  costa  de  Lavos  habitam  em  casas  de 
madeira,  chamadas  palheiros  ^;  —  «Pelos  meados  d'este  século 
Espinho  era  uma  agglomeração  de  palheiros»-. —  «Foi  sendo 
moda  entre  as  familias  ricas  da  Terra  da  Feira,  irem  para  alli 
tomar  banhos  e  muitas  d'ellas  alli  construiram  palheiros  próprios. 
Ao  principio  era  moda  serem  feitos  de  tábuas,  depois  alguns  os 
construiram  de  pedra  e  cal,  mas  térreos» — ^. 

Na  excelente  publicação  semanal  Gtazeta  das  Aldeias  *, 
num  artigo  assinado  por  M.  Rodríguez  de  Morais,  lê-se  este 
trecho:  — « arrecadando-as  [as  plantas]  em  abrigos,  feneiros  ou 
palheiros  apropriados  onde  se  conservam  os  fenos»  — .  E,  sem 
dúvida,  um  neolojismo,  visto  que  nenhum  dicionário  mencionou 
tal  vocábulo ;  merece  todavia  ser  aceito,  porque  supre  uma  falta, 
e  está  formado  em  perfeita  analojia  com  as  palavras  palheiro, 
espigueiro,  etc. 

Ficaremos  assim  com  duas  designações  diferentes,  enteira- 
mente  intelijíveis ;  palheiro,  «armazém  para  a  palha», /é'?^e^Vo, 
«armazém  para  o  feno»,  do  mesmo  modo  que  em  castelhano  se 
distingue  pajar  de  henil. 


fero 


No  Minho  tem  o  sentido  de  «robusto,  válido». —  «Teve  de 
ir  a  Vianna,  onde  o  deram  por  fero» — ^. 


1  Portugália,  i,  p.  383. 

*  ib.,  p.  85. 

3  Pinho  Leal,  Portugal  antigo  e  moderno,  iii,  p.  63. 

*  de  23  de  maio  de  1905. 

5  Alberto  Pimentel,  A  princeza  de  BorvÃO. 


456  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


ferrar,  ferrão,  ferreta 

Ferreta  é  o  nome  que  se  dá  no  Minho  ao  bico  de  metal  do 
fuso,  do  peão,  etc:  —  «O  fuso...  o  terço  restante,  chamado 
ferreta,  é  de  metal» — ^ 

Denomina-se  ferrão,  em  geral,  a  choupa  ou  ponta  de  ferro 
dos  paus  ferrados,  e  por  analojia  o  aguilhão  dos  insectos,  se  é 
que,  neste  último  sentido,  a  analojia  não  foi  estabelecida  pelo 
verbo /errar,  que  no  norte  significa  «picar,  tnorder». 


ferrejo,  forrejo,  ferrejial,  ferrajial 

Ferrejo  ou  forrejo,  no  Kiba-Tejo,  é  « milho  em  verde,  não 
sachado»;  e  no  Algarve  parece  ter  o  mesmo  significado: — «Os 
ferrejos  estão  excelentes» — ^. 

— « As  terras  que  cercam  o  « monte »  chama-se-lhes  ferra- 
giaes» — 3. 

ferroba 

Esta  forma,  por  alfarroha,  que  é  a  usual,  não  vem  nos  di- 
cionários. Encontrei-a  na  «Relação  do  naufrájio  da  nau  Santo 
Alberto»,  de  João  Baptista  Lavanha: — «arvoredo  com  fruta  mui 
amargosa  da  feição  de  ferrobas» — *. 

É  o  mesmo  vocábulo,  isto  é  o  árabe  AL-naRUB  ^,  mas  sem  o 


1  Portugália,  i,  p.  371. 

2  O  Economista,  de  17  de  maio  de  1883. 

3  J.  da  Silva  Picão,  Ethnogra.phia  do  Alto  Albmtejo,  tn  Portu- 
gália, 1,  p.  274. 

■*      in  BlBL.  DB  CLÁSSICOS  PORTUGUBZES,  VOl.  XLIV,  p.  52. 

5    João  de  Sousa,  Vestígios  da  lingoa  arábica  em  Portugal, 
Lisboa,  1830. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  457 


artigo  AL,  e  com  enfraquecimento  do  a  pretónico  em  e:  cf.  rezão, 
forma  popular  em  vez  de  razão. 

Outra  palavra  arábica,  que  esporadicamente  aparece  sem  o 
artigo  AL,  que  em  geral  a  acompanha,  é  comonia,  por  alcomo- 
nia,  na  «Memorável  relação  da  perda  na  nao  Conceição»,  de 
João  Carvalho  Mascarenhas  (1627)  ^ 


fescoço 

No  Alentejo  diz-se  fescoço  por  pescoço.  É  uma  mudança  dia- 
lectal idêntica  àquela  que  de  pestulum  produziu /ec^o  (q.  v.) 
na  língua  comum.  V.  pescoço. 


fiambre 

Este  vocábulo  é  castelhano,  e  não  português  [v.  deslumbrar]. 

O  que  é  português  é  a  sua  especialização,  ao  aplicar-se  ao 
presunto.  A  forma  portuguesa  era  friame,  derivada,  como  a  cas- 
telhana, àe  frigidamen.  frigidaminis  -. 


fidalgo,  fidalga,  fidalguinho 

Como  é  há  muito  tempo  sabido,  fidalgo  é  uma  polissíntese 
de  filho-de-algo,  cujo  significado  próprio  se  perdeu,  a  ponto  de 
se  dizer  fidalga  e  fidalguinho,  em  fez  de  filha-d-algo,  filhinho- 
-d-algo. 

Fidalguinho  dos  jardins  ^  é  o  nome  que  dão  no  norte  à 


1  Tol.  xLvn,  p.  44,  da  Bibl.  de  clássicos  portuguezes. 

2  D.  Carolina  Michaêlis  de  Vasconcelos,  in  Kevista  Lusitana,  iii, 
p.  166. 

3  D.  Carolina  Michaêlis  de  Vasconcelos,  in  Eevista  Lusitana,  m, 
p.  170. 


458  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


flor  que  também  se  chama  lóio  (q.  v.),  o  hleuet,  ou  hluet,  fran- 
cês, uma  das  raras  flores,  verdadeiramente  azuis,  côr  muito  rara 
no  reino  vejetal. 

Numa  acepção  muito  especial  é  este  deminutivo  empregado, 
como  vemos  do  trecho  seguinte: — «Estes  macacos  são  oriundos 
da  America  do  Sul  e  conhecidos  no  Brazil  por  macaco  yrego  ou 
mico  chorão.  Entre  nós,  sem  que  saibamos  porquê,  tem  o  nome 
vulgar  de  Fiãalguinlio » —  ^ 

Dissera  antes,  ser  o  dito  quadrúmano  do  género  Cebus 
(C.  fatuelus).  O  Novo  Diccionáeio  já  rejistou  esta  denomi- 
nação como  sendo  de  Lisboa,  não  porém  com  tamanha  individua- 
ção, e  sem  a  abonar,  conquanto  a  marque  como  inédita. 


figle 

E  o  nome  de  um  instrumento  de  vento,  feito  de  metal.  O  étimo 
é^o  francês  ophicléide,  artificialmente  formado  de  dois  vocábulos 
gregos,  óp'is  «serpente»,  kleís,  kleidós  « chave >.  Pela  forma- 
ção parece  que  o  nome  caberia  melhor  ao  chamado  serpentão. 

A  forma  mais  antiga,  e  menos  corruta,  que  apareceu  em  escrito 
português,  foi  provavelmente  fígUd,  transcrita  de  um  cartaz  ou 
programa  de  1847,  por  João  de  Freitas  Branco,  em  uma  das 
eruditas  e  substanciosas  notícias  teatrais  que  em  tempos  publi- 
cava no  jornal  A  Vanguarda: — « Executar-se-hão  umas  varia- 
ções de  Eiglid  (figle,  dizemos  nós)» — ^. 


figo,  figueira 

A  nomenclatura  desta  apreciadíssima  fruta,  da  qual  direi  que 
nada  gosto,  é  principalmente  algarvia,  pois  é  nesse  extremo  sul 


O  Século,  de  5  de  novembro  de  1905. 
11  de  dezembro  de  1899. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugiiesen  459 


do  reino  que  a  sua  cultura  e  o  preparo  do  fruto  seco  mais  pre- 
dominam. É  extensíssima,  copiosíssima,  a  enumeração  das  suas 
diferentes  qualidades,  e  não  é  aqui  o  lugar  para  procurar  exau- 
ri-la. Citarei  apenas  alguns  epítetos,  ou  menos  conhecidos,  ou 
imperfeitamente  deíinidos:  —  «em  ablativo  de  viagem,  o  melhor 
figo,  o  mais  acreditado  é  o  de  « comadre » ;  vem  depois  o  « mer- 
cador», o  mais  reles  é  o  marchante» — ^. 

Figo  de  recheio:  contendo  amêndoa  e  canela  -. 

O  Xôvo  DicciONÁEio,  no  Suplemento,  inscreveu  figueira 
com  uma  acepção  inédita,  como  própria  de  Lamego — «espécie 
de  verrugas  nas  bestas»  — .  Na  Gazeta  das  Aldeias  lemos, 
como  expedida  dos  Akcos-de-Val-de-Vez,  a  seguinte  pregunta, 
com  a  solução  dada  pelo  veterinário  Paula  Nogueira:  —  «Tenho 
um  cavallo  de  dez  a  doze  annos  com  figueiras,  que  se  vão  esten- 
dendo desde  a  ponta  da  cauda,  pela  parte  de  baixo,  até  ao  ânus, 
chegando  a  tê-las  já  na  entrada  do  intestino.  Haverá  remédio 
pára  curar  ou  ao  menos  attenuar  este  mal?  —  Resposta — Pela 
situação  das  lesões  julgo  que  as  figueiras  são  tumores  melânicos 
[«denegridos»],  frequentes  nos  cavallos  de  côr  clara  ou  russa 
[sicj.  Esses  tumores,  característicos  da  doença  chamada  mela- 
nose,  são  de  natureza  maligna.  De  pouco  serve  extirpá-los,  por- 
que se  reproduzem. . . »  — ^. 

Advertirei  aqui  ser  errónea  a  escrita  russo,  em  vez  de  ruço 
(q.  V.),  castelhano  rucio,  adjectivo  que  designa  côr,  e  nada  tem 
que  ver  com  o  nome  étnico  russo,  afim  de  Rússia,  em  castelhano 
ruso,  Rusia,  em  russo  ross,  Rossía. 

filho,  filha,  filhastro,  filhastrar 

A  palavra  filho  ou  filha  adquire  valor  muito  especial  em 
várias  acepções,  acompanhada  ou  não  de  epítetos.  Assim  vemos 


*    O  Economista,  de  5  de  novembro  de  1885. 

«    ih. 

3    1905,  p.  249. 


4G0  Apostilas  nos  Dicionários  Portugueses 


que  filho-do-olmo  em  certa  aldeia  significa  «enjeitado: — «De 
quem  é  filho  este  rapaz? — E  filho  do  olmo. — O  pae  das  crean- 
ças  sem  pae  é  aquela  árvore  enorme,  que  ali  vês,  é  o  olmo. 
Quando  a  vergonha  ou  a  miséria  pode  mais  que  o  amor  mater- 
nal, as  creanças  são  depositadas  n'aquellas  pedras  que  circum- 
dam  o  olmo,  e  lá  choramingam  até  que  passe  o  primeiro  lavra- 
dor, que  as  agasalhe  em  casa  e  as  endireite  na  vida»  —  ^ 

—  «The  fatherless  are  the  care  of  Ooã» — -: — Deus  é  o 
pai  dos  órfãos — ,  pater  orphanorum  [Salmo  xlvii,  v.  5]. 

Filho  da  casa,  designa  o  indivíduo  estranho,  nela  criado,  às 
vezes  nascido: — «via-se  que  ambas  [as  reclusas  do  Aljube,  em 
Lisboa]  se  achavam  satisfeitas  com  a  reclusão . . .  radiantes  por 
serem  filhas  da  casa» — ^. 

Em  jíria  filhos  do  mosqueiro  são  uma  especialidade  entre 
os  larápios:  —  «Filhos  do  mosqueiro  são  pois  os  gatunos  que 
se  introduzem  no  interior  das  casas,  a  occultas  dos  seus  loca- 
tários » —  *. 

No  Novo  DicciONÁRio  (Suplemento)  vemos  o  verbo  filhas- 
trar,  como  transmontano,  com  o  significado,  a  meu  ver  duvidoso, 
« compreender » ;  a  não  ser  que  se  ampliasse  arbitrariamente  o 
verbo  filhar,  «colher». 

Na  mesma  verba  relaciona-se,  em  dúvida,  este  verbo  com  a 
palavra  castelhana  hijastro,  que  quere  dizer  «enteado».  Não  vejo 
a  mínima  relação  de  significado  entre  os  dois  vocábulos;  existe 
relação,  mas  é  formal.  Hijastro,  dantes  fijastro,  é  o  latim  fi- 
liastrum,  citado  por  Isidoro  Hispalense,  derivado  de  filium, 
cora  um  suficso  que  se  tornou  pejorativo.  Sobre  tal  suficso  diz-nos 
Miguel  Bréal:  —  «O  lugar  de  orijem  está  no  grego,  em  que  havia 
verbos  em  -azõ,  sem  significação  depreciativa.  .  .   deles  se  de- 


1    António  Chaves,  in  O  Albergue  das  creanças  abandonadas, 
número  único,  junho  de  1903. 

*  Bulwer  Lytton,  Zanoni,  cap.  último. 
•'     O  Século,  de  28  de  abril  de  1902. 

*  O  Século,  de  3  de  junho  de  1902. 


Apostilas  aos  IHcionários  Portugueses  461 


rivavam  substantivos  era  -astêe,  como  ergastêr,  «trabalhador». 
Entre  tais  substantivos  alguns  bá  que  parecem  conter  noção 
depreciativa:  patrastêk,  «o  que  faz  de  pai»,  mètkásteira,  «a 
que  faz  de  mãe»,  elaiastêr,  «a  [árvore]  que  faz  de  oliveira,  o 
zambujeiro».  Aos  romanos  agradaram  palavras  destas.  Em  geral, 
podemos  notar,  o  que  é  malévolo  passa  facilmente  de  um  a  outro 
povo.  A  língua  latina,  portanto,  possuiu  as  palavras  patraster, 
filiaster»  — '. 


filho 


Como  étimo  para  este  vocábulo,  que,  como  se  sabe  designa 
um  bolo  de  farinha  de  trigo  e  ovo,  frito  em  azeite  e  polvilhado 
depois  com  açúcar,  propus  o  latim  folUóla  -,  com  assimilação 
do  o  à  palatal  Ih,  isto  é,  a  sua  mudança  em  i  átono.  D.  Carolina 
Michaélis  de  Vasconcelos  propõe  foliólum  ^,  Baist  foJiola. 
O  que  me  parece  demonstrado  é  que  filho,  com  o  aberto  e  o 
género  femeniuo,  bá  de  provir  de  um  vocábulo  latino  com  a  ter- 
minação -ola,  quer  femenino,  quer  plural  neutro. 

Ora  essa  forma  hipotética  tanto  pode  ser  folUola  plural  de 
folliolum,  deminutivo  de  follis,  «fole»,  como  foliola  j  fo- 
lium,  «folha».  * 

fim 

Este  vocábulo  é  hoje,  na  língua  literária,  e  mesmo  na  comum 
da  conversação,  masculino,  como  o  era  em  latim.  Todavia,  pro- 
vincialmente,  mantém  ainda  nalguns  pontos  o  antigo  género  fe- 
menino que  tinha. 


1     EssAi  DE5  Sémantiquej,  Paris,  1899,  p.  46  e  47 
»    Revista  Lusitana,  i,  p.  211. 
3    ih.  m,  p.  133. 


462  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


Aqui  seguem  dois  exemplos,  um  antigo,  literário,  e  o  outro 
moderno,  popular: 

—  «Se  os  jóvenes  amores 

Os  mais  tem  fins  desastradas  >  —  *. 

—  «E  a  fim  do  mundo!  Deus  nos  acuda!»  —  -.   [Freguesia 
de  Pedroso,  concelho  de  Vila-Nova-de-Graia]. 


fios 


Este  vocábulo,  no  plural,  designa  «pano  de  linho  usado,  des- 
fiado», e  em  muitos  dicionários  falta  esta  acepção:  é  o  que  os 
franceses  chamam  charpie. 

Outra  acepção  especial  de  fios  vê-se  no  trecho  seguinte,  e 
também  não  consta  dos  dicionários:  —  «^Fios — Embora  verda- 
deiros laços,  diíferençam-se,  dos  por  este  nome  conhecidos,  em 
serem  feitos  de  um  só  fio  de  arame  amarello,  destemperado,  e 
presos,  cada  um  de  per  si,  a  uma  vara  de  urze,  chamada  j9é, 
alguns  centímetros  cravada  no  chão» — ^. 

Servem  de  armadilha,  para  apanhar  pássaros. 

firmai 

Era  uma  jóia,  feita  de  metal  precioso,  ouro  ou  prata,  e  ador- 
nada com  gemas,  a  qual  servia  para  prender  os  vestidos: 

—  «Um  firmai  dua  senhora 

Cum  rubi 

Pêra  o  colo  de  marfi»  — *. 


*    Gil  Vicente,  O  velho  da  orta. 

2  O  Dia,  de  24  de  maio  de  1902. 

3  José  Pinho,  Ethnographia  Amarantina,  A  Caça,  in  Portugá- 
lia, II,  p.  92. 

<    Gil  Vicente,  O  velho  da  orta. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  463 


firmão:  v.  formão 


fita;  fito,  de  fito 

Esta  palavra  dizem  corresponder  ao  latim  iiitta,  com  mu- 
dança de  V  em  /,  esporádica  em  começo  de  palavra,  isto  é,  na 
posição  forte;  e  como  em  toscano  é  vetta,  com  e  fechado,  o  que 
prova  ser  breve  o  /  da  forma  latina,  o  étimo  apontado  é  bastante 
suspeito,  apesar  da  coincidência  do  significado,  pois  o  i  breve 
latino  dá  e  em  português. 

Fitas  de  madeira,  ou  de  garpiiíteieo  são  as  «tiras»  que 
a  plaina  separa  da  tábua,  e  a  que  também  se  chama  aparas,  com 
menos  propriedade,  pois  estas  podem  ser  tiradas  a  enxó  ou  outra 
ferramenta. 

Vocábulo  com  a  mesma  pronúncia  e  escrita,  mas  de  orijem 
diversa,  é  fita,  no  sentido  de  «firme»,  como  em  pedra  fita,  termo 
de  arqueolojia  pre-histórica,  que  se  aplica  a  qualquer  pedra  arti- 
ficialmente erguida,  por  oposição  a  pedra  halouçante,  « a  que  está 
em  equilíbrio  instável». 

O  termo  é  tirado  da  nomenclatura  vernácula,  do  onomástico 
local,  por  exemplo,  onde  encontramos  Pêra  Fita,  «pedra  ficsa» 
(cf.  Pêro,  a  par  de  Pedro).  Este  adjectivo  fito,  fita  é  o  latim 
fictum,  fictam,  particípio  passado  passivo,  concorrente  com 
fixum,  fixam,  do  verbo  figere. 

A  locução  adverbial  de  fito,  ainda  é  usual  em  Trás-os-Montes, 
com  a  significação  de  « posto  a  topo » :  — « duas  grandes  pedras 
postas  de  pino,  ou  de  fito» — ■•. 


1     Manoel  Ferreira  Deusdado,  O  recolhimento  da  Mófreita,  in 
«Eevista  de  educação  e  ensino»,  1891. 


464  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


flaino 


Andar  a  flaino  corresponde  ao  francês  flãner,  e  esta  locu- 
ção está  abonada  em  um  soneto  atribuído  a  Bocaje: 

—  <  Quando  hás  de  consentir,  cruel  fortuna, 
Ao  magro,  de  olho  azul,  de  côr  morena, 

O  bera  de  andar  a  flaino  e  de  ir  á  tuna?>  —  i. 

É  suspeita  a  atribuição:  este  terceto  é  apenas  a  repetição, 
nem  mesmo  a  paráfrase,  do  começo  de  outro  soneto  bocajiano: 

—  «Magro,  de  olhos  azuis,  carão  moreno, 
Bem  servido  de  pés,  meão  na  altura  >  — . 

flanco 

Este  vocábulo,  de  que  hoje  se  está  por  galicismo  abusando, 
apenas  é  português  como  termo  de  táctica  militar.  Em  todos 
os  outros  sentidos  cumpre,  conforme  as  circunstâncias,  empregar 
lado,  ladeira,  encosta,  costado,  ilharga,  ilhal,  etc. 

flauta 

A  forma  portuguesa  é  frauta: 

—  «E  não  de  agreste  avena  ou  frauta  ruda» — '. 

À  forma  flauta  atribui  P,  Marchot,  como  étimo  flau- 
tara j  /«  ut  la  ^. 


1  O  Economista,  de  28  de  julho  de  1882. 

2  Lusíadas,  i,  5. 

3  JaHRBSBERICHT  ÚBER  DIB  FORT8CHRITTB  DBR  ROMANISCHEN  PhI- 
LOLOGIE,  6,  I,  p.  289. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  465 


florada 

O  Novo  DiccioNAEio  define  esta  palavra  como  sendo  o  nome 
de  um  —  «doce  de  flores  de  laranjeira»  — .  Deve  ter  muito  pou- 
co que  comer. 

No  convento  de  Santa  Anna,  de  Leiria,  dá-se  este  nome  a 
ura  doce  de  ovos  que  tem  a  forma  de  flores.  E  portanto  esta 
que  lhe  deu  o  nome,  e  não  a  substância  de  que  o  doce  é  feito. 


florosa 

Na  Madeira  (Ribeira  Brava)  é  a  mesma  ave  que  em  outros 
pontos  da  ilha  se  denomina  papo-roixo  * 


fó 


É  uma  interjeição  que  expressa  repugnância,  muito  usual  na 
ilha  da  Madeira,  e  à  qual  no  continente  corresponde  phuh,  com 
j)  aspirado. 

foca 

No  Minho,  principalmente  na  marjem  portuguesa  do  rio, 
significa  «buraco». 

focar 

Teio  verbo!  E  neolojismo,  e  quere  dizer  «pôr  em  foco>. 
— «Pede-lhe  um  instante  de  paragem,  para  o  focar» — *. 


1    Ernesto  Schinitz,  Die  Vôgel  Madeiras,  1899. 
«    O  Século,  de  29  de  março  de  1901. 
30 


4t)G  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


foicinha,  foicinho,  foicinlião 

Estão  já  colijidos  em  dicionários  modernos  os  dois  primeiros 
derivados  de  foice,  ou  fouce  j  fale  em,  mas  não  o  está  fouci- 
nlião,  que  é  o  nome  de  uma  fouce  equivalente  à  gadunha,  e 
com  a  qual  se  ceifa  a  palha:  —  «Corta  a  palha  o  foicinhão»  —  *. 

fole-das-migas 

Em  jíria  de  malandrins  significa  «a  barriga».  A  razão  da 
locução  é  muito  evidente,  para  que  precise  de  ser  explicada. 

folgazão,  folgazões 

Hoje  em  dia  toma-se  na  acepção  de  «divertido,  indivíduo 
que  folga,  divertindo-se».  Antigamente,  porém,  o  sentido  era 
«mandrião,  desocupado»,  exactamente  o  do  francês  fainéant, 
com  fundamento  na  significação  própria  do  verbo  folgar,  « não 
trabalhar»:  —  «dahi  a  três  dias  alguns  homens  folgazões,  que 
são  os  que  ordinariamente  davam  no  mar  todo  o  bom  conse- 
lho» — '^. 

Ainda  hoje  o  correspondente  castelhano  holgamn,  liolgaza- 
nes  quere  dizer — «persona  vagabunda  y  ociosa,  que  no  quiere 
trabajar»  — ,  como  define  o  Dicionário  da  Academia  Espanhola, 
sendo  pois  o  que  hoje  chamamos  vadio. 

folha,  folhedo 

A  palavra  folha  escrevo-a  com  circunflecso  para  a  diferen- 
çar de  folha=^fólha,  do  verbo  folhar,  como  ãesfolha= desfolha, 


1  O  Economista,  de  15  de  outubro  de  1887. 

2  BlBL.  DE  CLÁSSICOS  P0UTUGUEZE8,  Vol.  VII,  p.  69. 


Aposfilãfi  aoH  Dicionários  Portuguese.i  467 


de  desfolhar,  verbo  postulado  pelo  particípio  passivo  substanti- 
vado folhado,  por  exemplo  em  pastéis  de  folhado. 

>íão  está  colijido  nos  dicionários  o  colectivo  folhedo,  exem- 
plificado no  trecho  seguinte: — «Dizimam-nas  [às  moscas]. . .  com 
o  auxilio  do  folhedo»  —  ^ 


fontela 

—  «Em  Sanhoane,  Fontes,  Medrões,  etc,  (Santa  Marta  de 
Penaguião),  para  se  alcançarem  os  mesmos  resultados  [a  vedação 
das  vasilhas  de  barro]  cora  a  loiça  negra  de  Visalhães,  « para  lhe 
tapar  as  fonfellas»,  introduzem-se  as  vasilhas  no  forno  do  pão, 
deixando-as  aquecer  até  ao  rubro;  tiradas  para  fora  verte-se  imme- 
diataraente  em  cada  uma  farello  e  agua,  mechendo  rápido» — -. 


foral,  furai 

Na  ilha  de  S.  Miguel  (Açores)  dá-se  este  nome  a  uma  rua 
estreita  ^.  ,íMas  é  Joral,  ou  furai? 


forçura;  fressura 

Estranho  nome,  que  se  dava  hs  frisas,  na  antiga  nomencla- 
tura do  teatro.  —  «1.**  andar  das  for  curas,  preço  2000,  2.*^  an- 
dar, camarotes,  2400» — *. 


1  José  da  Silva  Picão,  Ethnographia  do  Alto  Alemtejo,  in  Por- 
tugália, I,  p.  539. 

2  Rocha  Peixoto,  Sobrevivexcia  da  primitiva  roda  de  oleiro 
EM  Portugal,  in  Portugália,  ii,  p.  7G. 

3  O  Século,  de  5  de  julho  de  1901. 

^     Alvará  de  17  de  julho  de  1771,  in  OollecçãO  de  legislação  por- 
TUGUEZA,  17G3-1774,  Lisboa,  1829,  p.  547. 


468  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


Forçura  é  a  pronúncia  popular  áejreasura  j  frixura  \  fri- 
xum  por  frictum  \  frigere,  «frijir>:  cf.  o  castelhano  asa- 
dura  !  asar,  « assar  >  ^ 


foreiro 

Este  substantivo  significa  « que  paga  foro » ;  mas  no  trecho 
seguinte  aplica-se  àquele  que  de  direito  o  recebe,  não  sei  porém 
se  com  propriedade: — «Kestello,  o  nobre,  o  rico  foreiro» — -. 
Temos  aqui  um  caso  como  o  de  caseiro.  (V.  no  vocábulo  casa}. 

forjoco,  furjoco 

—  «do  lado  do  norte  uns  buracos  ou  «forjocos»,  por  baixo 
de  enormes  fragas» — ^. 

Como  ignoro  a  orijem  da  palavra,  hesito  na  escrita.  Se  é  um 
aumentativo  de  furja,  por  alfurja  [  árabe  fuege,  «fenda»,  é 
claro  que  se  deve  escrever  com  u,  o  que,  em  todo  o  caso,  seria 
mais  seguro.  Note-se  que  alfurja  é  vocábulo  diferente  de  aljorge, 
que  em  árabe  se  diz  al-tiukg  *. 

forma,  forma 

O  primeiro  destes  vocábulos  é  o  mais  moderno,  copiado  do 
dicionário  latino,  proferido  com  o  aberto,  como  costumamos  pro- 
nunciar o  o  ao  lermos  latim  ao  nosso  modo;  corresponde-lhe  em 
castelhano  o  vocábulo  forma  de  orijem  também  artificial.  O  se- 


1  S.  Bugge,  m  Komania,  IV. 

2  O  Século,  de  30  de  maio  de  1900. 

5  Albino  dos  Santos  Pereira  Lopo,  Bragança  b  Bbmqubrença,  in 
«Boletim  da  Sociedade  de  Geographia  de  Lisboa>,  Série  17.*,  1898-99,  p.  168. 

*  Y  representa  a  7.*  letra  do  alfabeto  arábico,  equivalente  ao  /  caste- 
lhano actaal. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  4tí9 

guudo,  forma,  é  de  orijem  popular,  evolutiva,  com  o  fechado, 
como  era  de  esperar,  atendendo-se  a  que  é  longo  no  latim  forma, 
e  fechado  se  conserva  no  italiano  forma,  em  muitas  das  acepções 
que  correspondem  aos  dois  vocábulos  portugueses.  O  segundo  era 
em  castelhano  forma,  que  ao  depois  se  alterou  em  horma,  dife- 
rençando-se  hoje /orm«,  «forma»  de  horma,  «forma». 

No  Novo  Dtccioxákio  (Suplemento)  menciona-se  a  locução 
— « forma  torta,  de  mau  caracter,  ruim » — .  Não  é  exacta :  a  lo- 
cução é  de  forma  torta,  e  explica-se  perfeitamente.  Os  çapatei- 
ros,  para  o  calçado,  usam  de  um  molde  com  a  configuração  de 
pé,  a  que  se  chama  forma,  e  não,  forma.  Há  uns  sessenta 
anos,  as  formas  para  os  dois  pés  eram  iguais,  como  ainda  o  são 
nos  çapatos  de  ourelo,  ou  de  trança,  nas  chinelas  mouriscas,  nos 
çapafos  chamados  de  mouro,  emfim,  em  todo  o  calçado  barato, 
de  fancaria. 

Quando  se  começaram  a  usar  as  formas  desiguais,  as  pessoas 
habituadas  aos  çapatos  parelhos,  com  menor  inclinação  para 
dentro,  e  que  podiam,  indiferentemente  calçar-se  num  ou  no 
outro  pé,  consideravam-nos  mais  incómodos  (e  parece-me  que  ti- 
nham razão,  e  digo  isto  por  experiência,  pois  em  criança  calcei 
muitos  çapatos  de  forma  direita):  daqui  proveio  o  dizer-se  que 
«uma  pessoa  é  forma  torta»,  convém  saber:  «custa  a  ajeitar-se  à 
nossa  vontade,  não  nos  entendemos  com  ela,  ora  está  do  direito, 
ora  do  avesso». 

Em  S.  Miguel  dos  Açores  a  palavra  forma  aplica-se  ao  « bo- 
tão de  calça»  K 

Forma  perdida: — «assaz  rudimentares  eram  os  moldes  para 
taes  reproducções  [de  braceletes  de  ouro  pre-romanos,  na  Penín- 
sula Hispânica],  formas  que  eram  perdidas  em  seguida  á  fundição 
da  peça,  á  maneira  do  systema  ainda  actualmente  usado,  assim 
chamado:  de  forma  perdida »  — 2. 


1     O  Século,  de  5  de  julho  de  1901. 

»     Eicardo  Severo,  Os  braceletess  d 'ouro  de  Arnozblla,  m  Por- 
tugália, II,  p.  65. 


470  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 

E  esta  uma  acepção  do  vocábulo  forma  (e  não,  forma)  acom- 
panhado de  epíteto,  que  julgo  não  estar  rejistada  nos  dicionários, 
6  me  parece  locução  técnica. 

formálio 

—  «o  formálio  é  uma  placa  com  pinhas  de  prata,  que  se  põe 
no  peito  do  celebrante» — ^ 

formão,  firmão 

Estas  duas  formas,  com  preferencia  manifesta  dada  à  pri- 
meira, designa,  nos  autores  portugueses  que  escreveram  na  língua 
de  Portugal,  o  que  os  autores  portugueses  que  modernamente 
escrevem  numa  linguajem  crioula,  misto  de  muitos  idiomas,  e 
ortografias  exóticas,  querem  que  se  chame  ^irman: — «dizem  que 
tinha  formão  do  Gram  Turco  para  poder  ir  por  terra  para  o 
reino » —  '^. 

O  vocábulo  é  persiano,  fíkman,  «ordem»,  e  os  portugueses 
adoptaram-no  por  intermédio  do  árabe,  no  sentido  especial  de 
«carta  de  recomendação»,  ou  «salvo-conduto>,  concedido  por 
autoridades  soberanas  mouriscas. 


forno,  furna 

No  Gerez  tem  este  vocábulo,  do  latim  furnum,  acepção  es- 
pecial, como  vemos  do  seguinte  passo:  —  «Os  «fornos»  do  Gerez, 
abrigos  de  pastores  onde  só  muito  baixado  se  penetra» — ^. 


*     O  Dia,  de  2.1  de  março  de  1902. 

5     Diogo  do  Couto,  Década  8.*,  cap.  xv. 

3  Herinenejildo  Capelo  e  Leonardo  Torres,  Viagens  á  serra  do 
Gerez  b  suas  caldas  em  setembro  de  1882,  in  «Boletim  da  Sociedade 
de  Geographia»,  4.*  série,  p.  533. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  471 

Furna  é  com  todas  as  probabilidades  derivado  português  de 
forno,  com  mudança  da  vogal  õ  em  u,  bastante  singular,  atenta 
à  terminação  a  da  palavra.  O  que  é  notável  também  é  a  rela- 
ção estabelecida  entre /orno  e  furna,  «concavidade,  algar»,  e 
que  vemos  repetida,  por  mera  coincidência,  em  uma  língua  da 
nossa  tam  remota,  como  é  o  búlgaro  moderno,  idioma  esclavó- 
nico  no  qual  do  mesmo  radical  se  derivaram  jjé'.x#,  «forno»,  e 
pexterá,  « furna » :  —  «A  mammôa  pode  ser  precedida  de  um 
corredor  ou  galeria  que  tem  o  nome  vulgar  de  furna,  nome 
que  também  se  applica  ás  grutas» — ^ 

forquilha 

— «O  mal  da  forquilha  ou  peeira  é  uma  furunculose  do 
espaço  interdigitado,  isto  é,  um  furúnculo  entre  as  unhas  do 
l)oi»  —  -. 

O  termo  peeira  vem  já  rejistado  nos  dicionários  neste  sentido, 
€  representa  um  \?X\m.  pedaria  j  pes,  pedis. 

frade,  fraire,  freire,  frei,  freira,  freirinha 

Esta  palavra,  do  latim  fratrem,  «irmão»,  adquiriu,  além  do 
seu  sentido  especial  e  hoje  o  próprio  de  «relijioso,  pertencente 
a  uma  ordem  relijiosa»,  outros  muitos,  quási  todos  depreciativos. 
Deste  modo,  frade  era  o  nome  que,  em  Lisboa  pelo  menos,  se 
dava,  até  data  muito  recente,  a  uns  colunelos  de  pedra,  ligados, 
ou  não,  entre  si  por  cadeias  ou  varões  de  ferro,  e  que  encerra- 
vam praças,  ou  edifícios,  impedindo  a  passajem  a  veículos  ou 
cavalgaduras:  vinham  a  ser  uma  vedação,  mais  barata  e  cómoda 
que  os  gradeamentos.  Quem  procurar,  ainda  os  encontrará  por 


»    J.  Leite  de  Vasconcelos,  Portugal  pre-historico,  p.  48. 
*    Gazeta  das  Aldeias,  de  15  de  abril  de  1906. 


472  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


aí,  em  qualquer  adro  de  igreja,  ou  algures.  O  nome  foi-lhes  dada 
indubitavelmente  em  razão  do  remate,  que  se  parecia  muito  com 
uma  cabeça  tonsurada. 

Peões  lhes  chamavam  no  Porto,  e  não  sei  se  ainda  cha- 
mam. 

Frade,  na  jíria  dos  ladrões,  no  Porto,  quere  dizer  « indivíduo 
da  polícia»  *,  talvez  em  atenção  ao  capote  que  usam,  comprido, 
a  tocar  no  chão,  como  o  hábito  do  frade,  ou  porque  está  parado, 
imóvel,  como  o  ijeão,  ou  « frade  de  pedra » . 

É  conhecida  a  denominação  que  se  aplica  a  uma  casta  de 
feijão,  isto  é,  feijão  frade,  ou  fradinho. 

Não  ó  porém  somente  ao  feijão  que  se  dá  semelhante  alcu- 
nha; é  também  ao  milho,  em  certas  circunstâncias,  como  vamos 
ver. 

Frade  (Leiria)  é  o  grão  de  milho  que,  quando  se  deita  no 
braseiro,  para  se  comer  assado,  não  estoura. 

Freira,  ow.  freirinha :  chama-se-lhe  assim  quando  elle  estou- 
ra, tomando  forma  que  lembra  uma  ílôr  miúda  e  branca  ^. 

É  evidente  a  razão  destes  epítetos:  o  de  freira  é  devido  a 
semelhança  que  se  supôs  haver  com  a  cabeça  toucada  de  uma 
freira ;  a  de  frade  está  em  oposição  a  esta. 

Conclui-se  que  tais  denominações  são  antigas,  pois  há  setenta 
anos  que  não  há  frades. 

A  par  de  frade  j  fratrem,  temos  fraire,  comparável  ao 
fraile  castelhano,  com  vocalização  do  t  latino  em  r,  mas  sem  a 
dissimilação  do  r  da  2.*  sílaba  para  l,  e  freire,  com  a  forma 
proclítica  abreviada  frei,  castelhana  fray,  e  o  femenino  freira, 
que,  parece,  não  foi  nunca  usado  em  Espanha. 

Freira  na  Ilha  da  Madeira  é  o  nome  de  uma  ave,  Ostrelata 
mollis,  Gould  -^ 


1  O  Economista,  de  28  de  fevereiro  de  1885. 

2  Informação  dos  snrs.  Acácio  de  Paiva  e  V.  Abreu. 
5    Ernesto  Schmitz,  DiE  Võgel  Madbira'8. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  AIS 


fragária 

Em  Coimbra  é  o  nome  do  morango  bravo,  muito  ácido,  a 
fresa  espanhola,  pois  ao  morango  chamam  fresón. 

Hugo  Schuchardt  dá-nos  como  termo  português /resa  ^  Nas 
Canárias,  ao  contrário,  usou-se  morángana,  ou  moriángana  -, 
sem  dúvida  uma  forma  derivada  da  que  em  português  deu  mo- 
rango, isto  é,  moranicum  {  mora,  «amora». 

Temos  de  explicar  necessariamente  por  influencia  portuguesa 
tanto  este  vocábulo,  como  coruja  3,  ali  usado,  e  que  em  caste- 
lhano se  diz  lechuza. 

fragulho 

Termo  açoriano:  é  o  nome  que  dão  nas  ilhas  dos  Açores  às 
couves. 

fralda,  falda,  fraldiqueira,  fraldiqueiro,  faltriqueira 

Bluteau  no  seu  Vocabulário  diz-nos  que  a  segunda  destas 
formas  é  —  «mais  épica» — ,  a  outra  mais  usada.  Na  linguajem 
actual  distingue-se  em  geral  falda  de  monte  =^  aba,  vertente  de 
monte,  de  fralda  de  vestido,  de  camisa,  etc. 

Tenho  dúvida  sobre  se  são  duas  formas  do  mesmo  vocábulo 
orijinário.  Os  etimolojistas  dizem-nos  que  falda,  palavra  que  se 
encontra  em  várias  línguas  românicas,  é  voz  germânica,  falda, 
« dobra,  prega »  '*,  e  a  ela  subordinam  tanto  falda,  como  fralda, 


*  Kreolische  Studiejn,  IX,  p.  143. 

'    João  Marquess  of  Bute,  On  the  ancient  languagb  op  Tenerife, 
Londres,  1891,  p.  28. 
3    ib.  p.  22. 

*  V.  Kurting,  Lateinisch-romanischbs  Wõrterbuch,  Paderborn, 
1891,  n.**  3114,  e  Kluge,  Etymologisches  Wõrterbuch  der  dbutschbn 
Sprachb,  Estrasburgo,  1889,  sub  voe.  fait  e  falten. 


474  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 

sem  nos  explicarem  como  se  introduziu  aquele  r,  que  se  repete 
ainda  que  em  outra  situação,  no  castelhano  faltriquera,  forma 
adjectiva  de  ura  deminutivo  faltrica,  ou  falãrica  j  falara, 
fralda.  Faltriquera  em  castelhano  quere  dizer  « aljibeira  que  se 
traz  na  saia,  ou  aba  do  vestido»,  e  este  mesmo  sentido  tinha  o 
português  fraldiqueira,  como  vemos,  por  exemplo,  no  Clérigo 
DA  Beira,  de  Gil  Vicente: 

—  «Duarte,  tendes  vós  hi 
Dinheiro  na  fraldiqueira  ?>  — . 

Não  há  portanto  motivo  para  a  interpretação  «hábito,  talar >, 
proposta  em  dúvida  para  este  vocábulo  no  Novo  Diccioná- 
Eio,  ao  aboná-lo  com  este  passo  de  Francisco  Manoel  do  Nas- 
cimento:—  «contas  na  mão,  punhal  na  fraldiqueira,  falando 
em  Deus» — . 

Fraldiqueira,  como  adjectivo,  que  no  femenino  se  substan- 
tivou naquele  sentido  especial,  quere  dizer  «o  que  pertence  à 
fraldica,  à  fralda,  e  assim  cão  fraldiqueira-»,  é  o  «totó  pe- 
queno, que  está  sempre  no  regaço,  ou  agarrado  às  saias » . 

Martinho  Brederode,  na  colecção  de  formosas  poesias  intitu- 
lada Sul  *,  usou  a  formdi  faltriqueira : 


—  <  Cartas  d'amor  na  faltriqueira  suja, 
Ramos  de  flores  nas  suadas  mãos  >  — 


frango 

Esta  palavra,  que  designa  um  «galo  novo»,  considera-a  D.  Ca- 
rolina Michaélis  de  Vasconcelos  como  derivada  de  franco,  « fran- 
cês» ,  e  compara  esta  formação  à  de  galo,  que  também  quere  di- 


Lisboa,  1905,  p.  37. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  475 


zer  «da  Gália,  ou  França».  Com  respeito  à  mudança  de  c  em  g, 
confi'onte-se,  como  diz,  manga  j  man(i)ca  *. 

O  simples  confronto  mostra  que  é  improvável  o  étimo  pro- 
posto: visto  que  o  c  estava  precedido  de  vogal  em  manica.  é  na- 
tural que  o  abrandamento  do  c  em  ^  precedesse  a  queda  do  i; 
além  disso,  francum  não  explicaria /rán^rão. 


fraseai 

—  <í  Fraseai  é  naquella  província  [Alentejo]  uma  meda  de 
lenha  ou  tojo,  em  geral  quadrangular» — 2. 


freguês,  freguesia  (frègiiês,  frègiiesia) 

Duas  etimolojias  tem  sido  propostas  para  este  vocábulo, 
filius  ecclesiae,  e  filius  gregis,  «filho  da  igreja»,  e  «filho 
da  grei». 

A  primeira  parece  que  deve  ser  rejeitada,  em  razão  do  cor- 
respondente castelhano  feligrés,  visto  como  nesta  língua  os  gru- 
pos de  consoante  l  não  mudam  este  em  r,  como  sucede  em  por- 
tuguês (cf.  clavo  e  cravo),  e  portanto  o  r  de  feligrés  deve  provir 
de  r  latino. 

Temos  pois  que  filius  gregis  é  o  étimo  que  devemos  ter 
como  provável,  admitindo  que  houve  em  português  metátese  do  r 
para  a  primeira  sílaba,  freguês  por  fegrês.  Não  direi  que  tudo 
esteja  bem  explicado,  pois  o  não  fica  o  i  de  fili-,  mudado  para  e 
era  castelhano,  e  para  è  em  português,  com  supressão  do  l  me- 
dial.—  «Os   presbyteros   que   os   dirigem   espiritualmente,   cha- 


1    Revista  Lusitana,  iii,  p.  168. 

'    Diário  de  Noticias,  de  21  de  julho  de  1904. 


47G  A2)ostilas  aos  Dicionários  Portugueses 

mar-lhes-hão  seus  filhos,  filies  ecclesie,  filigreses,  fregueses,  re- 
cente denominação  religiosa — popular»  —  *. 

Fora  da  relijião  cristã  foi  o  termo  freguês  usado  por  An- 
tónio Francisco  Cardim,  com  referencia  aos  sectários  do  budismo: 
—  «Tornou  outra  vez,  acompanhado  de  outro  bonzo  e  de  alguns 
seus  discípulos  e  fregueses»  —  ^.  • 

O  termo  freguês  tem  um  sinónimo,  paroquiano,  como  fre- 
guesia o  tem  em  paróquia,  ou,  não  sei  por  quê,  parrôquia,  de 
pároco,  ou  x^àrroco.  O  que  é  estranho  é  que,  emquanto  em  por- 
tuguês o  termo  paroquiano  se  não  aplica  jamais  ao  indivíduo 
que  compra  por  hábito  na  mesma  loja  de  venda,  mas  sim  freguês, 
acontece  em  Espanha  exactamente  o  contrário,  pois  lá  o  freguês 
da  loja  denomina-se  parroquiano,  mas  o  freguês,  o  paroquiano 
da  mesma  igreja  diz-se  feligrés. 

frol,  frolido 

Na  Kevista  Lusitana  ^  dá-se  como  metátese  a  forma  frolido, 
por  florido,  num  texto  anterior  ao  século  xv.  Não  há  metátese, 
visto,  que  frolido  é  simplesmente  o  parti cípio  passivo  de  um 
verbo  froUr,  derivado  de  frol,  que  era  a  forma  contemporânea, 
e  ainda  posterior,  do  vocábulo  que  actualmente  se  diz  fior. 

frouxel     ' 

Bluteau,  no  Vocabulário  portuguez  e  latino  define  deste 
modo  a  palavra: — «Â  penna  das  aves,  mais  pequena,  e  mais 
molle » —  .0  Dicionário  francês  de  Emílio  Littré  dá-nos  de  édre- 
don  a  definição  seguinte:  — « 1.°  Petites  plumes  à  tige  grele,  à 
barbules  longues  et  fines,  appelées  aussi  duvet  [penujem],  fournies 


*    Alberto  Sampaio,  As  «Villa8>  do  Norte  db  Portugal,  in  Por- 
tugália, I,  p.  583. 

2    Batalhas  da  Companhia  db  Jesus,  Lisboa,  1894,  p.  226. 
8    vol.  VIII,  p.  242,  A  Visão  de  Tundalo. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  Ali 


par  des  oiseaux  palmipèdes  et  siirtout  par  Peider,  anãs  moUis- 
sima,  qui  vit  principalement  en  Islande  //.  2°  Un  édredon,  em 
couvre-pieds  fait  d'édredon.  . .  Étym.  du  suédois  eider,  espèce 
d'oie  du  Nord,  et  dun,  petite  plume,  diivet*  — . 

Cotejadas  as  duas  definições  entre  si  e  com  a  tradução  latina 
que  da  palavra  portuguesa  faz  Bluteau,  mollior  auium  pluma, 
parece  que  com  frouxel  nos  poderíamos  contentar,  ou  com  pe7it(/- 
jem,  prescindindo  do  francês  édredon,  que  para  França  é  ao 
menos  afrancesado,  e  para  cá  nem  aportuguesado  foi. 

fumeiro 

Como  se  sabe,  designa  fumeiro  a  carne  de  porco  ensacada, 
de  enchido,  e  depois  fumada. 

Eis  aqui  uma  transcrição  que  deixa  claríssimo  o  significado: 
—  «Dispensa.  Vasto  compartimento  abarrotado  de  comestíveis. 
Ali  se  armazena  o  fumeiro  dos  suínos,  isto  é  o  producto  da  ma- 
tança de  doze  a  vinte  cabeças  graúdas,  as  melhores  que  sahiram 
do  montado.  . .  O  fumeiro  comprebende:  grossas  mantas  de  tou- 
cinho empilhado  em  salmouras  próprias,  ou  em  potes  de  barro  e 
caixotes;  as  varas  de  enchido,  como  paios,  chouriças,  linguiças, 
morcellas,  cacholeiras  e  farinheiras,  cada  qual  em  separado,  e 
todas  suspensas  por  cordas  presas  ao  tecto,  formando  por  este 
modo  a  parreira  ou  latada  de  carne  cheia,  previamente  defumada 
nos  vãos  da  chaminé . . .  Em  vasilhas  observa-se  egualmente  a 
manteiga  e  os  pésunhos  e  lacões» — ^ 

fumo    fumo 

Esta  palavra  abona-se  com  a  «Kelação  do  naufrájio  da  nau 
Sam  Tiago»,  de  Manuel  Godinho  Cardoso: — «Após  estes  negros 


1    J.  da  Silva  Picão,  Ethnographia  do  Alto  Albmtbjo,  í»  Po rtu- 
galia,  I,  p.  537. 


478  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


acudiram  outros  com  um  Furaó  seu,  que  assim  chamam  [os  ca- 
fres] aos  [sicj  que  os  governa»  —  K 

Conquanto  mais  adeante  a  palavra  se  repita,  hesito  em  con- 
siderar certa  a  acentuação  marcada,  pois  a  edição  é  de  pouca  ou 
nenhuma  fé,  não  só  porque  os  erros  tipográficos  pululam  nela, 
mas  principalmente  em  razão  de  a  ortografia  adoptada  ser, 
quanto  pode,  arbitrária  e  incongruente. 


funaragio 

Assim  nos  apresenta  o  Novo  Diccionákio  este  vocábulo, 
com  a  nota  de  compilado  pela  primeira  vez,  e  uma  abonação  de 
Latino  Coelho— «o  lenho  de  um  funaragio»  — .  No  Suplemento 
ao  mesmo  dicionário  declara-se  que,  por  informação  obtida,  o 
vocábulo  novo  é  apenas  um  erro  de  caixa  por  naufrágio,  mas 
que  Latino  o  deixou  passar,  autenticando-o  portanto.  É  pois  o 
que  os  franceses  denominam  coquille  lexiologique,  « gralha  lecsi- 
cográfica»,  que  já  figurou  duas  vezes,  e  será  bom  não  figurar 
terceira. 

No  Suplemento  chama-se-lhe — «suppôsto  disparate» — :  ^Pois 
ainda  resta  dúvida?  O  facto  de  Latino  Coelho  o  haver  deixado 
passar  também  não  está  provado,  visto  que  as  quatro  primeiras 
letras  de  naufrágio  trocadas  em  funa-ragio  o  podiam  ter  sido 
depois  de  feita  por  êle  a  revisão. 


funé 


Esta  palavra  é  japonesa  e  quere  dizer  «embarcação» :  —  «uma 
ponte  feita  de  barcos  que  [os  japões]  chamam  funés» — 2. 


*      in  BlBL.  DE  CLÁSSICOS  PORTUGUBZBS,  VOl.  XLIII,  p.  04. 

2    António  Francisco  Cardim,  Batalhas  da  Companhia  de  Jesus, 
I,  p.  54. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  479 


fimgueiro,  fangíieiro,  fragúeiro 

O  Novo  DiccioNÁHio  escreve  a  segunda  destas  formas  fan- 
gueiro,  isto  é,  com  o  u  milo  para  a  pronúncia;  na  terceira 
marca  as  ciraalhas  no  il,  o  que  equivale  a  indicar  que  se  pronun- 
cia fragu-eiro,  soando  esse  u.  Eu,  em  conformidade  com  o  que 
expus  na  Ortografia  Nacional  ^  substituo  pelo  acento  grave  as 
cimalhas,  com  o  fim  de  denotar  que  o  u  entre  ^  e  e  ou  i  se 
profere. 

O  mesmo  Dicionário  remete  de  fangueiro  (aliás  fangueiro) 
para  jragueiro,  entendendo-se  pois  que  são  a  mesma  palavra 
com  duas  formas;  e  da  iiltima  diz,  como  termo  da  Beira,  o  se- 
guinte:—  «pau  tosco  e  comprido;  estadulho;  pau  em  que  encaba 
o  vassoiro  com  que  se  varrem  as  cinzas  e  brasas  do  forno,  para 
neste  se  deitar  o  pão  que  se  vae  cozer;  adj.  ardente. . .  (De  frá- 
gua)»—. 

E  possível,  e  mesmo  provável  que  de  frágua  provenha  o 
adjectivo  fragàeiro,  ali  abonado  com  Francisco  Manuel  do  Nas- 
cimento, o  que  nos  leva  a  crer  que  é  neolojismo  deste  escritor, 
que  tantos  inventou,  com  maior  ou  menor  felicidade. 

Como  substantivo,  o  étimo  é  suspeito,  porque  frágua  é  uma 
«foija»,  e  não  um  «forno»;  e  por  outra  parte  não  pode  haver 
étimo  comum  a  fragíieiro  e  fangueiro,  sendo  certo  que  o  último 
procede  de  funicularium  }  funis,  «corda»  {]  funguairo  \  fun- 
gàeiro  \  fangueiro  -. 


funil,  funilaria 

A  palavra  funil,  muito  usada  na  Estremadura,  e  menos  no 
norte  onde  lhe  substituem  embuãe,  castelhano  embudo,  é  o  latim 


1  Lisboa,  1894,  p.  90  e  200. 

2  Kbvista  Lusitana,  ii,  p.  .34. 


480  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


infiindile  ^  por  infundibiilum.  De  funil  se  derivam /ww^- 
leiro  e  funilaria,  que  quere  dizer  não  só  «loja  de  funileiro» 
mas  também  «obra  de  fimileiro»,  como  se  vê  do  trecho  seguinte: 
—  «a  concorrência  de  outras  loiças,  porventura  a  obra  de  funila- 
ria em  minima  parte» — ^. 

Funilaria  designa  também  a  «colecção  enteira  de  condeco- 
rações com  que  um  indivíduo  se  adorna»,  correspondendo  neste 
caso  ao  que  em  francês,  também  em  tom  de  mofa,  se  chama 
ferhlanterie. 

Funileiro,  não  é  unicamente  o  «fabricante  de  funis»,  mas 
em  geral  o  que  tecnicamente  se  denomina  latoeiro  de  folha 
branca,  por  oposição  ao  latoeiro,  sem  mais  nada,  que  trabalha 
em  latão,  e  não  em  fôlha-de-Flandres,  como  o  funileiro,  que 
o  povo  mudou  em  fulineiro,  por  influência  de  falha. 


Furada 

Este  nome  de  várias  terras  costuma  escrever-se  às  vezes,  se 
não  muito  freqíientemente,  Afurada,  o  que  é  um  erro,  visto  que 
o  «  é  o  artigo,  erro  semelhante  ao  que  os  franceses  e  ingleses 
cometem  quando  escrevem  Oporto,  por  o  Porto.  É  regra  conhe- 
cida que,  quando  um  nome  comum  passa  a  especializar-se  como 
nome  de  terra,  costuma  acompanhar-se  do  artigo,  se  por  outro 
modo  não  está  particularizado.  Assim,  temos  a  Abrigada,  a 
Granja,  o  Tramagal,  o  Oinjal;  mas  Pena-fíel,  ou  moderna- 
mente Penafiel,  Paço-d' Arcos,  Porto-de-Mós,  etc. 

Quando  o  nome  comum  deixou  de  estar  presente  à  memória 
do  povo,  por  se  haver  tornado  obsoleto,  o  artigo  muitas  vezes 
elimina-se:  assim,  temos  Cascais,  e  não  os  Cascais,  Azoia,  em 
vez  de  a  Azoia  (árabe  AL-zauiÍE,  «a  ermida»),  Valadares,  etc. 


*  Júlio  Cornu,  Grundriss  der  romanischen  Philologie,  Bonn, 
1888, 1,  p.  770. 

*  Portugália,  I,  p.  266. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  481 


Ora  furada  é  um  nome  comum,  o  qual  significa  uma  « ca- 
verna artificial»,  como  há,  por  exemplo,  na  Galiza  a  chamada 
Furada  dos  Ca(n)s,  citada  por  Vilamil  y  Castro,  como  sendo 
uma  importante  gruta  pre-histórica. 


fura-mar 

Aos  sete  vocábulos  derivados  do  verbo  furar,  no  imperativo, 
como  substantivos,  colijidos  no  Novo  Diccioííáeio  e  seu  Suple- 
mento, tenho  a  acrescentar  os  seguintes  nomes  de  aves: 

fura-bardo:  Madeira,  «gavião». 

ykra-mrtr;  Madeira,  «boeiro»  *. 


fuselo 

E  um  deminutivo  de  fuso.  Eis  aqui  uma  definição  minuciosa: 
—  <duas  chapas  de  madeira. . .  presas  uma  á  outra  por  sete  ou 
oito  pausinhos  redondos  de  um  palmo  de  comprido.  . .  são  os 
fusellos^  —  -. 

fuseola,  fuseolo 

Este  neolojismo  é  feito  à  imitação  do  francês  fusaiole,  termo 
de  arqueolojia  pre-histórica,  derivado  do  italiano  fusaiòlo,  « gas- 
tão  do  fuso»,  isto  é,  o  pedaço  de  chumbo  ou  outra  substância 
pesada  que  mantém  verticalmente  o  fio  e  o  ajuda  a  torcer,  posto 
na  ponta,  ou  ferreta  do  fuso: — «As  fuseolas  que  aparecem  em 
grande  abundância  nas  ruinas  das  citanias,  idênticas  ás  usadas 
domesticamente  na  actualidade » —  ^.  Ora,  como  ninguém  dá  seme- 


^     Ernesto  Schmitz,  DiB  VõGel  Madeiua's. 
2     Portugália,  i,  p.  68(3. 
'    Portugália,  i,  p.  317. 
31 


482  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


Ihante  nome  às  usadas  na  actualidade,  melhor  fora  dar-lhes 
o  que  teem  em  português. 
V.  gastão. 

fúti 

No  Kelatório  da  Campanha  do  Baeué  em  1902  S  de 
João  de  Azevedo  Coutinho,  encoutra-se  a  seguinte  expressão, 
usada  na  Africa  Oriental  Portuguesa:  —  «na  esperança  de  tocar 
futi  (fazer  fogo) » — .  Em  nota  acrescenta-se :  — « Futi,  espin- 
garda » — . 


gadanha,  gadanho,  gadanhar,  agadanhar,  engadanhar, 
esgadanhar,  agatanhar,  esgatanhar 

Dois  étimos  tem  sido  propostos  para  a  palavra  gadanha, 
forma  hoje  mais  usual,  ou  guadanha,  a  que  Bluteau  deu  a  pre- 
ferencia, e  que  é  a  castelhana;  e  digo  dois,  ambos  germânicos, 
porque  o  arábico,  pelo  Dicionário  da  Academia  Espanhola  pro- 
posto, não  merece  confiança,  pois  nem  Dozy  nem  Eguílaz  &  Yan- 
guas  o  admitiram,  visto  que  ambos  omitem  o  vocábulo  guadana 
entre  os  muitos  de  orijem  arábica  a  que  os  seus  glossários  deram 
cabimento. 

Ambos  os  ditos  étimos  germânicos  se  podem  ver  em  Kõrting  2. 
O  primeiro  deles,  que  F.  Adolfo  Coelho  parece  preferir  ^,  rela- 
ciona gadanha  com  o  verbo  ganhar,  e  é  aquele  que  a  este  verbo 
deu  orijem  nas  línguas  românicas,  com  excepção  do  romeno,  em 
que  o  elemento  germânico  é,  a  bem  dizer,  nulo:  *  waidanyan, 
«pascer,  pastorear»,  que  subsiste  no  alto  alemão  moderno  weideyu 


1     in  «Gazeta  das  Colónias >,  de  15  de  maio  de  1905. 

*    Lateinisch-romanisches  Wõrtbrbuch,  4062  e  8845. 

'     i?i  Portugália,  p,  636  e  nota. 


A2>ostilas  aos  Dicionários  Portugueses  433 

O  outro  é  uma  base  verbal,  hwat.  «afiar»,  o  alto  alemão  mo- 
deruo  wetzen.  Houve  também  quem  propusesse  Guadix,  nome 
próprio  de  cidade  ua  província  de  Granada,  mas  ninguém  lho 
aceitou. 

Declaro  terminantemente  que  nenhum  destes  étimos  oferece 
a  mínima  probabilidade  de  ser  o  verdadeiro;  e  mesmo  o  que  pa- 
rece ter  recebido  maior  anuência,  e  relaciona  este  nome  de 
alfaia  agrícola  com  o  verbo  ganhar,  apresenta  tantas  dificulda- 
des fonéticas  e  ideolójicas,  que  nos  vemos  ua  necessidade  impe- 
riosa de  rejeitá-lo.  Com  efeito,  ^como  é  que  a  única  língua  ro- 
mânica que  conservou  o  d,  o  italiano  guadagnat-e,  «ganhar»,  é 
justamente  aquela  para  a  qual  o  vocábulo  é  estranho?  E  por 
outra  parte,  (ise  o  dito  verbo  tanto  no  português  ganhar,  como 
no  castelhano  ganar,  perdeu  esse  d,  porque  razão  o  conservaria 
num  derivado? 

Pelo  que  respeita  à  parte  ideolójica,  ri  qual  relação  se  há  de 
estabelecer  necessária  entre  um  verbo,  cujo  significado  é  «pas- 
torear», e  um  substantivo  designando  uma  alfaia  agrícola  apli- 
cada à  ceifa  de  herva,  ou  de  mato?  gPois  a  vida  de  pastor  não  é 
a  antítese  da  do  lavrador? 

Vê-se  portanto  que  é  este  um  dos  numerosos  vocábulos  de 
uso  cotidiano,  cuja  orijem  é  desconhecida. 

De  gadanha  procede  gadanhar,  «ceifar  herva»,  o  francês 
faucher  \  faux,  «fouce  de  cabo>. 

A  par  de  gadanha,  « fouce  roçadoura » ,  temos  um  masculino 
gadanho,  que  quere  dizer  «dedo  enclavinhado»,  como  «para^a- 
far,  arrebatar»;  e  com  gadanho  temos  uma  série  de  verbos 
dele  derivados:  engadanharem-se  os  dedos  com  frio:  agadanhar, 
« estender  os  gadanhos  para  arrebatar » ;  esgadanhar,  « arranhar 
com  os  gadanhos^,  que  por  influência  da  palavra  gato,  criatura 
a  quem  é  muito  aplicável  o  verbo,  se  converteu  em  esgatanhar, 
como  agadanhar,  em  agatanhar. 

Com  mudança  do  d  em  r,  rara  mas  efectiva  (cf.  mentira, 
por  mentida,  e  o  castelhano  parihuela  com  o  português  ^«íZtoía, 
q.  V.),  tem  os  falares  transmontanos  os  particípios  engaranhados, 
e  engaranhidos,  que  pressupõem  os  verbos  engaranhar  e  enga- 


484  Apostilas  ao'i  Dicionários  Portugueses 

ranhir,  e  querem  dizer  « entorpecidos,  tolhidos  os  dedos  com  o 
frio»;  e  o  étimo  imediato  deles  é  com  certeza  gadanho  '. 


gade,  gadé 

O  Novo  DiccioNÁEio  rejista  a  segunda  destas  formas  como 
termo  de  jíria,  com  a  signiíicação  de  «dinheiro». 

A  abonação  de  que  tenho  nota  é  da  primeira,  na  mesma 
acepção;  é  possível,  porém,  que  haja  nela  erro  tipográfico,  o 
que  não  posso  decidir  porque  nunca  ouvi  nem  uma  nem  a  outra: 
—  «Quando  não  havia  gade  para  vinho,  meu  pae  batia-lhe> — ^. 


gadelha,  guedelha 

O  DiccioNAEio  Contemporâneo  rejista  somente  a  segunda 
destas  formas,  o  Novo  Diccionáeio  ambas,  dando,  como  Blu- 
teau,  a  preferência  à  primeira,  que  é  a  mais  usual  no  povo,  e 
também  a  galega.  O  que  nenhum  dos  dois  faz  é  consignar  a  sig- 
nificação de  «madeixa  de  fios»,  a  que  Bluteau  se  referira  na 
inscrição  gadelhas  de  lã,  e  Koquete  ^  traduzira  para  francês  do 
modo  seguinte: — «flocon  de  laine.  Guedelhas  de  seda,  étoífe  de 
soie  peluchée» — .  Esta  última  locução  foi  empregada  pelo  cro- 
nista Rui  de  Pina  na  Ceóniga  de  El-eei  Dom  Afonso  v,  des- 
crevendo as  festas  celebradas  por  ocasião  do  casamento  da  irmã 
de  El-rei  com  o  Imperador  Frederico  em  fins  do  ano  de  1449: 
—  «El-rei...  desafiou  os  cavaleiros  para  as  justas  reaes,  que 
manteve  na  rua  Nova  com  condições  mui  excelentes  e  de  grande 
gentileza,  e  assi  [foram]  propostos  grados  e  empresas  mui  ricas 


1  Na  Revista  Lusitana,  i,  p.  212  tratei  deste  vocábulo,  bem  como 
áe  padiola,  parihuela,  p.  215. 

2  O  Dia,  de  25  de  setembro  do  1902. 

3  DiCTIONNAIRB  PORTUGAI8-FRANÇAIS,  Paris,  1855. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  485 


para  quem  mais  galante  viesse  á  tea,  e  assi  melhor  justasse. 
A  que  o  infante  Dom  Fernando  veio  com  seus  ventureiros  vesti- 
dos de  guedelhas  de  seda  fina  como  salvages,  em  cima  de 
bons  cavalos  envestidos  e  cubertos  de  figuras  e  cores  de  alimá- 
rias conhecidas,  e  outros  diformes» — K 

Vê-se  que  foi  o  que  hoje  se  chamaria  mascarada.  Meio  sé- 
culo antes  houvera  outra  em  França,  também  por  ocasião  de  um 
casamento  entre  pessoas  da  corte  de  Carlos  vi,  na  qual  este  rei 
e  mais  cinco  senhores  se  vestiram  de  selvajens,  cobertos  de  gue- 
delha de  linho,  à  feição  de  pêlo,  e  assim  apareceram  na  sala  do 
baile,  onde  por  ordem  do  rei  se  apagaram  os  brandões,  com 
receio  de  algum  desastre.  O  caso  porém  foi  desastroso,  e  a  pla- 
neada comédia  converteu-se  em  pavorosa  trajédia,  breve,  mas 
eloquentemente  descrita  pelo  cronista  Froissart.  Apesar  da  re- 
comendação do  rei,  o  duque  de  Orleãs  entrou  na  sala  acompa- 
nhado de  seis  homens  com  brandões;  tirou  um  das  mãos  de  um 
deles  par  ver  se  conhecia  os  mascarados,  que  vinham  presos  uns 
aos  outros,  com  excepção  do  rei,  que,  sendo  o  primeiro  da  fileira, 
se  soltara  para  falar  à  duquesa  de  Berri.  A  luz  da  tocha  pegou 
fogo  na  guedelha  de  linho  de  um  desses  mascarados,  guedelha 
que  estava  colada  com  pez  a  uma  túnica,  e  assim  pereceram  dois 
logo  ali,  outros  dois  ao  cabo  de  dois  dias,  no  maior  tormento, 
escapando  o  quinto,  porque  se  lembrou  de  lançar  sobre  si  a  água 
que  estava  em  uma  dorna,  para  nela  se  lavarem  copos. 

O  que  é  mais  horroroso  neste  triste  caso  é  que  Froissart  dá 
a  entender  que  não  foi  só  leviandade,  mas  acaso  malvadez  da 
parte  do  duque,  o  que  o  levou  a  chegar  a  tocha  a  um  dos  mas- 
carados, quando  nos  diz,  que  o  duque  foi  o  culpado,  posto  que  a 
pouca  idade  e  talvez  a  ignorância  o  levassem  a  semelhante  acto 
de  loucura  *. 

Vê-se  pois  que  a  palavra  guedelha  ou  gadelha,  não  significa 
unicamente  «cabelo»,  mas  também  toda  a  imitação  de  cabelo  ou 


1    cap.  cxxxi. 

*    Chroniqubs  db  Froissart,  livro,  iv,  cap.  7.°,  Paris,  1881. 


486  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


pêlo,  feita  com  qualquer  substância  filamentosa,  lã,  linho,   ou 
seda,  por  exemplo. 

gadi  (gaddy) 

Na  interessante  monografia  escrita  por  F.  X.  Ernesto  Fernán- 
dez,  intitulada  O  eegimen  do  sal,  abkaey  e  alfandegas  na 
Índia  Portugueza,  define-se  assim  este  termo :  —  <  Gaddy  era 
um  estabelecimento  em  que  se  arrecadava  [sic]  direitos  sobre  o 
sal  que  d'uma  província  fosse  exportado  para  outra.  Era  situada 
na  passagem  dos  rios» — ^ 

Todavia,  o  termo  tem  outra  acepção,  e  significa  o  próprio  im- 
posto, no  passo  seguinte :  — « Em  antiquíssimas  pautas  aduanei- 
ras, conhecidas  sob  a  denominação  de  Canusapato,  ou  tabeliã 
de  direitos  do  tempo  do  dominante  mouro,  que  vigorou  nas  alfan- 
degas de  Salcete  e  Bardez  até  o  anno  de  1811,  apparece  um 
imposto  que  incide  sobre  o  sal  sob  o  nome  de  Gaddy» — -. 

O  vocábulo  está  escrito  à  maneira  tradicional  da  índia  Por- 
tuguesa, usada  na  transcrição  das  palavras  indíjenas,  isto  é,  y 
para  i  acentuado,  e  dd,  para  o  d  cacuminal,  convém  saber,  pro- 
ferido no  ponto  em  que  proferimos  o  r  de  cara.  O  y  indicava  o 
i  acentuado,  equivalendo  a  dois  ii,  como  o  a,  e,  o,  accentuados 
se  escreviam  aa,  ee,  oo. 

gado  criado 

Eis  a  definição  autorizada  desta  expressão: —  «quando  é  certo 
que  na  linguagem  agrícola  gado  criado  quer  dizer  que  é  da  la- 
voura de  seu  dono  e  não  comprado  pára  simples  negócio  de  mar- 
chante ou  contratador» — ^. 


1  in  < Boletim  da  Sociedade  de  Geographia  de  Lisboa»,  23.*  série, 
p.  223,  nota. 

2  ih.  p.  223,  texto. 

5    Gazeta  d\s  Aldeias,  de  27  de  agosto  de  1903. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  487 


gafa,  gafar,  gafo,  gafeira,  gafem,  gafaria,  gafejar; 

gafanho  (r*),  gafanhoto,  gafanhão;  Gafanha,  Gafanhoeira, 

Gafes,  Gafete,  Gafarim 

O  sentido  comum  a  todos  estes  vocábulos  parece  ser  o  de 
«gancho,  ganchoso,  enganchar»,  cousa  que  já  advertira  Bluteau 
a  respeito  dos  primeiros  seis,  por  estas  palavras:  —  «Gafa  e  Ga- 
far. Segundo  a  etymologia  dos  que  derivam  Gafa  do  hebraico 
Cafaf,  que  significa  encurvar,  entortar,  arquear,  he  fácil  de  en- 
tender 03  diíTerentes  sentidos  em  que  se  tomam  estas  palavras, 
porque  Gafa,  instrumento  com  que  se  curva  a  besta,  faz  um 
eífeito  semelhante  à  Gafa,  ou  lepra,  doença  que  encolhe  os  ner- 
vos das  mãos  e  pés.  Gafar  é  arrebatar  com  as  unhas,  e  gafar-se 
de  piolhos,  he  encher-se  dos  ditos  insectos,  que  aflferrão  na 
«arne,  e  com  picadas  molestão» — '.  Isto  nos  diz  no  Suplemento, 
e  no  corpo  do  Vocabulário  dissera :  — «  Gafa.  He  o  instrumento 
€om  que  se  curva  a  verga  da  besta,  até  eucaxala  na  noz — . 
Gafak,  arrebatar  com  as  unhas  ou  com  instrumento  a  modo  de 
gafa. — Gafo.  Leproso  ou  Enfermo  de  certo  género  de  lepra,  que 
não  só  corroe  as  carnes,  mas  deixa  os  dedos  das  mãos  revoltos, 
como  os  das  aves  de  rapina. — Gafeis  a  sarna  do  cão. — He  mal 
que  dá  nas  cabras,  pella-as  e  as  mata» — . 

Santa  Rosa  de  Viterbo  documenta  o  nome  gafo,  não  só  como 
significando  «leproso»,  mas  também  «leprosório,  lazareto,  hospi- 
tal onde  os  leprosos  se  abrigam,  e  são  tratados »  *. 

A.  A.  Cortesão  ^  cita  como  orijem  do  vocábulo  gafo  portu- 
guês o  castelhano  gafo  [^e  porque  não  o  contrário?],  e  a  este 
dá  como  étimo,  mas  em  dúvida,  um  árabe  acfao. 

Em  árabe  existe  na  realidade  o  adjectivo  AQFao,  «encarqui- 


*  Vocabulário  portuguez  e  latino,  vol.  iv,  e  Suplemento,  i. 

*  Elucidário,  Lisboa,  1793. 

8    Subsídios  para  um  diccionário  completo,  Coimbra,  1900. 


488  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


Ihado,  contorcido»,  do  radical  QEFaoa,  «encolher,  encarquilhar»  % 
correspondente  ao  hebraico  citado,  Kapap  (kafaf)  «vergar,  do- 
brar» ^,  e  é  possível  que  do  árabe  proviesse  o  vocábulo.  Gafar 
em  galego  significa  «arrepanhar,  esgadanhar,  como  fazem  os 
gatos » . 

F.  Adolfo  Coelho  ^  relaciona  gafo  e  um  copioso  material  de 
derivados  com  gafa,  « garra » :  o  nome  seria  aos  leprosos  aplica- 
do, em  razão  do  fenómeno  característico  de  tam  horrorosa  doença, 
a  mão  recurva,  revolta,  adunca,  como  garra  de  ave  de  rapina. 

Atribui  Kõrting  *  orijem  germânica,  e  não  arábica,  ao  vocá- 
bulo gafa,  tanto  castelhano,  «garra,  gancho»,  como  português 
nas  suas  várias  acepções,  e  diz  que  procede  do  baixo-alemão  gaf- 
fel,  correspondente  ao  alto-alemão  ^gaôeZ,  «garfo».  Efectivamente, 
o  baixo  alemão  possui  a  palavra  gaffel,  que,  conforme  João  Car- 
los Dãhnert  ^,  quere  dizer:  —  «espécie  de  gancho  ou  croque  para 
içar  e  arrear  cousas  que  estão  pendentes  de  uma  vara» — .  Com 
estes  vocábulos  pareceria  relacionar-se  não  só  o  garfo  português 
e  o  garfio  castelhano,  «ancinho»,  mas  também  o  castelhano  ^a?*- 
fear,  «agarrar  com  ancinho »,  ^ar/ina;  «garra»  q  garfiriar,  «rou- 
bar», e  talvez  o  português  engalfinhar-se,  galfarro,  etc,  con- 
quanto a  introdução  de  r  e  l  antes  do  /  seja  difícil  de  explicar 
nestas  últimas  formas,  tanto  portuguesas  como  castelhanas.  Gafa, 
como  adjectivo,  aplica-se  a  uma  doença  da  azeitona,  que  Bluteau 
descreve  assim :  — « Azeitona  gafa.  He  a  que  com  as  névoas 
se  engela  na  Oliveira,  e  apodrecendo  nella,  cahe  sem  ser  vare- 
jada»— . 

Os  vocábulos  gafa,  gafar,  gafento,  gafado,  etc.  aplicam-se 
a  outras  moléstias,  além  da  lepra  do  homem,  da  sarna  do  cão  ou 
da  cabra,  e  do  peco  das  azeitonas,  como  se  vê  do  trecho  seguin- 


1  Belot,  VocABULAiRE  ARABE-FRANÇAis,  Beirutc,  1893,  p.  606,  col.  II. 

2  Hbbrew-Engush  Lexicon,  Londres,  p.  128,  col.  i. 

3  DiCCIONARlO    MANUAL    ETYMOLOGICO   DA   LÍNGUA  PORTUGUEZA. 

^  Latenisch-romanischks  Wõrterbuch,  1896,  n."®  3546,  3559. 

5  Platt-Deutsches  Wõrter-Buch,  Stralsund,  1781. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  489 

te  :  —  « Aparecem  qiiasi  todos  [os  gafanhotos]  gafados  (destruídos 
ou  affectados  de  qualquer  doença) » — . 

A  propósito  do  nome  gafanhoto,  dado  ao  saltão,  direi  que 
me  parece  ainda  um  ramo  da  mesma  estirpe,  e  que  lhe  foi  dado 
em  razão  da  forma  ganchosa  das  patas  deanteiras.  Ora,  gafanhoto 
é  um  deminutivo  {oí.  perdigoto  do  radical  à.Q  perdiz,  perdic-), 
e  tanto,  que  há  um  aumentativo  gafanhão,  que  quere  dizer  ga- 
fanhoto grande.  Um  e  o  outro  pressupõem  um  primitivo  gafa- 
nho  ou  gafanha,  que  não  está  colijido,  nem  posso  ahonar,  mas 
que  naturalmente  existe,  visto  que  o  vemos,  no  onomástico  local, 
em  Oafanha,  aldeia  do  Douro,  com  derivados,  como  Gafanhão, 
na  Beira- Alta,  e  Gafanhoeira,  no  Alentejo;  e  João  Maria  Bap- 
tista rejista  mais  Gafanhoto  e  Gafanhotos  '.  Pinho  LeaL  ^ 
conta-nos  umas  histórias  a  respeito  de  Gafanha,  das  quais  a 
mais  verosímil  é  que  antes  houvesse  ali  uma  gafaria.  Assim 
será.  A,  A.  Cortesão  aduz  mais  o  substantivo  gafem,  «lepra», 
abonando-o:  —  «Que  o  faças  seer  saaom  áe  gafeem  ^.  Gafejar, 
na  Madeira  e  na  Estremadura  significa,  «fervilhar,  pulular». 
Cf.  Bluteau,  supra.  Tudo  isto  parece  provir  áe  gafa,  «garra». 

E  de  notar  que  saltão  se  diz  em  castelhano  langosta,  pala- 
vra que  também  denomina  a  lagosta,  \  locusta.  A  semelhança 
de  forma,  especialmente  com  referencia  às  patas  e  às  turqueses, 
determinou  a  identidade  do  nome. 

A  este  respeito  me  ocorre  a  notícia  dada  por  um  periódico, 
de  uma  chuva  de  lagostas  que  era  Espanha  tinha  devastado  um 
campo.  Eram  gafanhotos.  Parecida  com  esta  bernardice  publicou 
outro  jornal  uma  tradução  de  um  conto  castelhano,  e  o  tradutor 
dava-nos  esta  novidade  estranha:  o  diabo  é  surdo  porque  tinha 
entalado  a  mão  direita!  O  castelhano  dizia  zurdo,  «canhoto», 
porque  surdo  se  diz  lá  sordo.  Outro  ainda  participava  aos  seus 


1  Chorographia  moderna  do  reino  de  Portugal,  vi,  Lisboa, 
1878. 

'  Portugal  antigo  e  moderno,  Lisboa,  vol.  iii,  1874. 

*  Subsídios  para  um  diccionário  completo,  Coimbra,  1900. 


490  Apostilas  nos  Dicio)iários  Portugueses 


leitores  que  certas  tropas  estavam  acampadas  nas  orelhas  do 
Danúbio!  O  texto  espanhol  dizia  orillas,  «marjens»,  vocábub 
que  morfolójicamente  corresponde  ao  português  ourela  porque 
orelha  \  auric(u)la  é  em  castelhano  oreja.  São  frequentíssi- 
mos estes  primores  de  tradução! 

Em  castelhano  gafa  teve  maior  desenvolvimento  no  seu  sen- 
tido natural  de  «gancho»,  que  o  correspondente  português:  gafas 
quere  lá  dizer  não  só  as  hastes  dos  óculos  ficsos,  que  os  segu- 
ram nas  orelhas,  mas,  como  termo  faceto,  os  próprios  óculos; 
como  nós  lhe  chamamos,  também  por  graça,  cangalhas,  aludindo 
à  armação  geminada  de  ferro  ou  madeira  que  se  coloca  sobre  o 
lombo  das  azêmolas,  para  se  lhe  meter  carga.  O  deminutivo  ga- 
fete  quere  em  castelhano  dizer  «colchete»,  que  também  se  diz 
corchete. 

O  verbo  gafar,  «agarrar»,  é  pouco  usado  actualmente  em 
português,  e  creio  obsoleta  a  acepção  em  que  se  emprega  em  ga- 
lego de  agadanhar,  esgadanhar,  vulgarmente  esgatanhar,  como 
disse,  por  influência  da  palavra  gato,  que  é  o  animal  mais  useiro 
e  vezeiro  em  alimpar  e  afiar  as  unhas,  seja  em  que  fôr,  mesmo 
na  nossa  pele. 

Podemos  estabelecer  o  desenvolvimento  do  sentido  da  pala- 
vra gafa  em  português  do  modo  seguinte: 

Gafa,  « garra » :  gafar,  (gafanho),  gafanhão,  gafanhoto,  ga- 
fejar 
« lepra » :   gafo,  gafado,  gafem,  gafeiro,  gafeirento, 

gafeiroso,  gafaria,  engafecido 
« sarna » :  gafento 

« doenças  nas  oliveiras » :  gafo,  gafar,  gafado 
Duvidosos:  galfarro,  engalfinhar 
:  garfo,  e  seus  derivados. 

Outros  nomes  próprios  de  povoações,  derivados  de  gafo  são 
Oafes,  no  concelho  de  Cabeceiras  de  Basto,  Oafarim,  no  de 
Ponte  de  Lima,  Oafete,  no  do  Crato. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  491 


gaio 

Vareta  de  pau  muito  ílecsível,  terminada  na  sua  parte  su- 
perior por  umas  laçadas,  feitas  com  a  própria  vareta  vergada  ^. 


gaio;  gaiosa 

Na  Madeira  é  o  nome  da  gaivota,  durante  o  primeiro  ano  de 
nascida,  conforme  a  copiosa  e  interessante  monografia  de  Ernesto 
Schmitz,  intitulada  Die  Võgel  Madeikas  [As  aves  da  ilha  da 
Madeira],  publicada  no  Anuário  de  Ornitolojia,  vol.  x,  1899,  que 
muitas  vezes  tenho  citado,  para  reunir  aqui  a  riquíssima  nomen- 
clatura vulgar,  com  tamanha  dilijéncia  colhida  pelo  douto  natu- 
ralista no  seu  valioso  estudo. 

No  continente  o  nome  gaio  é  aplicado  a  outra  ave  muito  di- 
ferente, da  família  dos  corvos,  garrulus  glandarius.  É  sabido 
que  o  vocábulo  gaio,  como  adjectivo,  significa  «alegre»,  e  dessa 
significação  provém  a  locução  adjectiva  verde-gaio,  «verde  claro 
e  vivo». 

Derivado  de  gaio,  «alegre»  parece  ser  o  nome  de  certo  tri- 
buto :  — « Não  menos  elucidativa  é  a  gagosa  ou  gayosa.  foro  que 
se  pagava  pelo  casamento  dos  filhos» — 2. 


gaiolo,  garimpa 

São  sinónimos  estes  dois  vocábulos,  sendo  o  primeiro  o  mas- 
culino de  gaiola,  e  portanto  pronunciado  gaiõlo  (cf.  ôvo,  òva, 
porto,  porta):  designa  qualquer  deles  uma  armadilha  para  caçar 


1  J.  da  Mota  Prego,  Jornal  do  Commercio,  de  11  de  agosto  de  1905. 

2  Alberto  Sampaio,  As  «  Villas»  do  norte  de  Portugal,  in  Por- 
tugália, I,  p.  575. 


492  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


pássaros:^ — </■  Nassa,  gaiolo  ou  garimpa  —  Tem  a  forma  de  uma 
pyramide  regular  de  base  quadrada  e  é  feita  de  varas  encruzadas 
umas  sobre  as  outras,  seguras  por  meio  de  quatro  vergas  a  um 
caixilho,  também  de  varas,  atadas  ou  pregadas  nas  extremida- 
des» —  ^ 

Oarimim  é  talvez  grimpa,  com  a  vogal  a,  anaptíctica  ou  in- 
tercalar. 

gaita(s),  gaitada,  gaiteiro 

Em  Sam  Miguel  dos  Açores  gaitada  quere  dizer  « garga- 
lhada», naturalmente  pelo  estridor  que  faz. 

Em  Lisboa  significa  «repreensão  acerba». 

E  um  derivado  de  gaita,  « instrumento  de  vento »  de  timbre 
muito  agudo,  e  é  esta  circunstância  o  fundamento  dos  dois  sen- 
tidos figurados  acima  referidos. 

Gaitas  se  chamam  os  orifícios  que  as  lampreias  teem  por 
baixo  da  boca.  A  suposta  explicação  de  Bluteau,  a  que  aludiu 
José  Maria  Adrião,  Te  adições  populares  colhidas  no  conce- 
lho DO  Cadaval  2,  com  relação  ao  dito  sabe  que  nem  gaitas, 
é  fantasiosa: — ^porque  as  lampreias  são  excellentes,  e  como 
teem  uns  braços  assemelhando  as  gaitas,  d'ahi  o  ditado* — . 
E  natural  que  em  razão  daqueles  orifícios  às  lampreias  se  cha- 
masse gaitas,  concorrendo  para  a  aplicação  do  nome  a  forma  ro- 
liça do  afamado  peixe.  Sabe  que  nem  gaitas  quererá  pois  dizer: 
«sabe  que  nem  lampreias»,  «tem  muito  bom  sabor»,  para  quem 
o  tiver,  que  pela  minha  parte  dispenso  o  petisco. 

Para  crédito  de  Bluteau,  a  citação  está  errada  toda;  o  que  o 
doutíssimo  frade  escreveu  e  vem  no  seu  Vocabulário  é  o  seguinte: 
— « Gaitas  se  chamam  uns  buracos  a  modo  de  Fagote,  que  a 
Lampreia  tem  pelo  pescoço,  e  por  serem  aquellas  partes  saboro- 


1  José  de  Pinho,  Ethnographia  Amarantina,  A  Caça,  in  Portu- 
gália, II,  p.  88. 

2  in  < Revista  Lusitana  >,  vi,  p.  129. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  493 


sas,  derão  occasifio  ao  adagio,  Sabe  como  gaitas »  —  Até  os  bura- 
cos foram  transformados  em  braços,  atribuindo-se  falsamente  ao 
nosso  melhor  lecsicógrafo  a  rara  invenção  de  peixes  com  braços 
e  braços  com  buracos!  Muita  razão  tinha  Augusto  Schleicher 
em  recomendar  que  jamais  se  fizesse  uma  citação  sem  se  ter  o 
cuidado  de  escrupulosamente  a  conferir. 

Erre  cada  um  à  vontade  por  sua  conta,  mas  não  atribua  a 
outrem  os  disparates  que  lhe  vêem  à  cabeça. 

Gaiteiro  é  o  músico  que  toca  principalmente  a  gaita  de  foles. 
Como  adjectivo  quere  dizer  «alegre»,  «garrido»,  como  quando 
dizemos  de  um  velho,  ou  de  uma  velha,  que  são  gaiteiros.  Com 
efeito,  tanto  a  gaita  ordinária,  como  a  de  foles,  são  instrumentos 
alegres,  e  gratos  ao  ouvido,  se  nos  campos  soam;  nas  cidades, 
são  mais  um  guincho  e  um  ronco  importunos,  ajuntar  aos  muitos 
rumores  e  sussurros  que  nos  ensurdecem  e  desafinam  os  nervos. 


gajo,  gaja;  gaje 

São  termos  de  calão  conhecidos,  derivados  do  calo,  ou  dia- 
lecto cigano  de  Espanha,  gachó,  gaclié,  pi.  gachés.  Se  aceitar- 
mos, porém,  como  completamente  averiguado  que  o  eh  ali  tem  o 
mesmo  valor  que  nos  dialectos  castelhanos,  nomeadamente  o  an- 
daluz, visto  que  é  da  Andaluzia  que  para  Portugal  vêem  em  ge- 
ral os  ciganos,  temos  de  admitir  que  a  forma  passou  ao  portu- 
guês por  intermédio  de  ciganos  orientais,  pois  é  aí  que  nós  a 
encontramos,  por  exemplo  no  dialecto  dos  da  Moldo- Valáquia, 
com  uma  consoante  medial  análoga  à  portuguesa  de  gajo  (pron. 
gadjó)  «labrego».  E  provável,  porém,  que  a  ortografia  castelha- 
na, adoptada  para  a  escrita  do  calo,  haja  confundido,  no  mesmo 
símbolo  eh,  a  forte  tch  (eh  beirão  ou  castelhano)  e  a  branda 
correspondente  clj.  É  sabido  que  na  transcrição,  mesmo  metódica 
e  científica  moderna,  os  arabistas  espanhóis  transliteram  por  eh 
a  5.*  letra  do  alfabeto  arábico,  que  se  profere  dj  na  Ásia  e  j 
vulgarmente  nos  países  barbarescos.  Deste  modo,  a  forma  portu- 
guesa diferençar-se-ia  apenas  na  mudança  do  acento  para  ai.* 


494:  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


sílaba,  o  que  se  observa  em  outros  vocábulos  da  mesma  orijem 
(v.  parne). 

Quanto  ao  substantivo  abstracto  gajé,  de  calão  igualmente, 
poderia  êle  representar  um  singular  deduzido  do  plural  calo  ga- 
chés,  de  gaché,  forma  de  singular  que  alterna  com  gachón,  no 
andaluz  aciganado,  como  se  vê,  por  exemplo,  na  cantiga  da  Con- 
trabandista da  Feria  de  Mairena: 

— ^  <  Si  el  resguardo  le  prendiera 

á  tiros  le  resgatara, 

que  los  ojos  e  mi  cara 

son  los  ojos  e  mi  gaché  >  — . 

E  mais  natural,  porém,  que  a  palavra  gajé  seja  simplesmente 
deturpação  do  francês  ãégagé,  « desempenado,  airoso;  donaire, 
desembaraço » . 

O  significado  próprio  de  gachó,  femenino  gachi,  em  calo  é 
« rapaz,  rapariga,  adultos,  não  ciganos » ;  e  em  português  a  de 
ga,jo  é  « qualquer  sujeito  a  quem  o  fadista  se  refere  com  male- 
voléncia»: — áVês  aquelle  gajo?  K 


galão 

O  DiccioNARio  Contemporâneo  dá  como  quarta  acepção 
deste  vocábulo — «gole,  cada  um  dos  saltos  que  dá  o  líquido  ao 
sair  de  um  gargalo  ou  bocca  de  vasilha » — ;  e  como  quinta  acep- 
ção—  «corcovo,  salto  que  o  cavallo  dá  erguendo  as  mãos  e  en- 
novelando-se » — .  Esta  última  definição  vem  por  outras  palavras 
no  Vocabulário  de  Bluteau,  e  é  com  este  significado  que  se 
relaciona  o  modo  adverbial,  usado  em  Sam  Miguel  dos  Açores, 
de  galão,  « de  salto,  de  chofre  > . 


O  Século,  de  10  de  setembro  de  1900. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  495 


galego 

Este  adjectivo  é  muito  usado  em  português  para  diferençar 
castas,  raças  ou  espécies,  sem  que  por  isso  se  queira  dizer  sem- 
pre que  proviessem  da  Galiza. 

Assim  dizemos  couve  galega:  ginja  galega,  por  oposição  a 
ginja  garrafal  (q.  v.)  que  é  a  mais  grada  e  de  melhor  sabor, 
menos  azeda,  etc. 

Com  alguns  nomes,  porém  designa  de  certo  orijem,  como 
acontece,  por  exemplo,  com  hoi  galego,  por  oposição  ao  barrosão: 
—  «Faz  lembrar  o  Taurus  hrachyceros,  ou  hos  longifrons,  co- 
nliecido  e  domesticado  desde  o  neolithico ...  e  approxima-se 
muito  do  nosso  typo  actual  do  hoi  galego » —  ^ 

Como  substantivo,  galego  designa  não  só  o  natural  da  Galiza, 
principalmente  de  condição  humilde,  mas  também  o  português 
do  norte,  que  exerce  os  mesteres  que  dantes  eram  a  bem  dizer 
privativos  dos  galegos  verdadeiros,  e  entre  esses  o  de  aguadeiro, 
mais  especializado  com  um  epíteto  galego  de  barril,  que  A.  de 
Campos  empregou  no  romance  o  Maequês  de  Pombal  neste 
sentido. 

De  Galiza  derivou-se,  além  de  galegos,  (latim  galaecos), 
outro  adjectivo  galiziano,  (q.  v.)  em  gereziano. 


galela,  galelo 

O  Novo  DicciONÁKio  dá  o  termo  galelo  como  transmontano, 
com  a  significação  de  «gomo  da  laranja».  Leite  de  Vasconcelos  * 
diz-nos  significar  «escádea,  bagos  de  uva»,  e  que  a  forma  feme- 
nina  gdlela  quere  dizer  «rabisco»,  e  por  isso  se  diz  ir  à  galela. 


1  Portugália,  i,  p.  327. 

2  Respigos  camonianos,  p.  45,  nota. 


496  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


galheta 

O  Novo  DiocioNÁEio  traz  duas  inscrições  desta  forma: 
1.*^  certas  garrafinhas  como  as  usadas  na  mesa  para  azeite  e 
vinagre,  e  no  serviço  da  missa,  para  vinho  e  água — ,  e  a  esta 
subordina  o  termo  de  jíria,  com  a  significação  de  «bofetada». 

A  2.^  forma  diz-nos  ser  o  nome  de  uma — «trombeta  de 
guerra,  entre  os  pretos  de  Lourenço  Marques,  feita  de  chifre  de 
cabrito.  (De  galho)»  — . 

Que  o  vocábulo  não  é  indíjena  vê-se  pelo  Ih. 

Ora  o  termo  de  jíria  acima  apontado  não  pode  subordinar-se 
a  galheta,  « garrafa » ;  é  preciso  abrir  para  ele  terceira  inscrição, 
pois  é  simplesmente  o  castelhano  galleta  (pr.  galheta),  «bola- 
cha», derivado  do  francês  galette,  com  a  mesma  significação,  e 
que  se  diz  provir  de  galet,  « seixo  grosso  e  chato,  boleado  pelas 
águas»,  que  seria  palavra  bretã,  mas  parece  deminutivo  de  gal, 
que  no  francês  antigo  significava  «calhau»  ^ 

Confronte-se  biscouto  (q.  v.).  Assim,  como  bolacha  significa 
também,  como  termo  de  jíria,  «bofetada»,  do  mesmo  modo  se 
empregou  a  palavra  espanhola,  neste  sentido  figurado. 

galhipo 

—  «O  isqueiro  ter-se-hia  vulgarisado  principalmente  com  os 
progressos  do  uso  do  tabaco;  e  não  obstante  as  actuaes  disposi- 
ções prohibitivas,  ainda  a  sua  utilização  subsiste  occultamente :  o 
cornipo  no  planalto  barrosão  e  no  Soajo  (galhipo  em  Lindoso)  é 
um  toro  de  chifre  de  bode,  vedado  com  discos  de  cortiça  e  in- 
cluindo farrapos  de  linho  chamuscado  ou  medulla  de  sabugo; 
com  um  fragmento  de  quartzo  leitoso  regional  obteem  a  faísca  e 
logo  o  fogo  necessário  para  o  fumo» — *. 


1  E.   Littré,    DlCTIONXAIRE   DB  LA  LANGUE  FRAXÇAISK,  Paris,  1881. 

2  Eocha  Peixoto,  Illuminação  popular,  in  Portugália,  ii,  p.  37. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  497 

E  longa  a  transcrição;  contém  ela,  porém,  tam  perfeita  des- 
crição do  objecto  designado  com  o  nome  de  cornipo  ou  galhipo, 
que  entendi  não  dever  suprimir-lhe  nem  uma  palavra,  e  com 
tanto  maior  razão,  quanto  é  certo  ser  omisso  nos  dicionários  o 
termo  galhipo. 

galinha;  galinheiro;  eugalinhar 

Galinha  era  unidade  monetária  de  Ajuda  que  valia  33,3  réis 
portugueses  do  continente,  isto  é,  duzentos  búzios  (q.  v.)  *. 

Apontarei  aqui  os  nomes  de  algumas  castas  de  galinhas, 
transcrevendo-os  do  jornal  O  Século,  de  23  de  fevereiro  de  1902: 

brigadora 

de  asa  de  pato 

de  peito  negro 

paduana  ou  polaca 

pedrês 

de  poupa. 

O  derivado  galinheiro  significa  «a  capoeira  das  galinhas  e 
do  galo>,  e  o  «indivíduo  que  vende  galinhas». 

No  Alentejo  o  termo  galinheiro  tem  significação  menos  res- 
trita, como  vemos  do  trecho  seguinte: — Uma  casa  qualquer  em 
que  pernoitam  e  põem  as  aves  domesticas  do  monte  [casal],  com 
excepção  dos  pavões  e  patos  reaes  (gansos),  que  dormem  e  nidi- 
ficam  fora  ou  ao  ar  livre  e  á  solta» — 2. 

J.  J.  Núnez  3  cita  a  forma  galhinha,  que  diz  arcaica  e  que 
se  explica  por  assimilação  do  l  à  palatal  nh  da  sílaba  seguinte. 

Modernamente  introduziu-se  o  castelhanismo  galinheiro  (ga- 
lUnero),  para  denotar  nos  teatros  o  que  antigamente  era  denomi- 


1  Carlos  Eujénio  Correia  da  Silva,  Úma  viagem  ao  bstabbleci- 
MEXTO  PORTUGUEZ  DE  S.  JoÃO  BAPTISTA  DE  AjUDÁ  EM  1865,  Lisboa,  1866. 

2  J.  da  Silva  Picão,  Ethnogkaphia  do  Alto  Alemtejo,  m  Portu- 
gália, I,  p.  545. 

3  Revista  Lusitana,  iii,  p.  302. 

32 


498  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


nado  varandas,  isto  é,  «bancos  corridos  na  última  ordem»,  con- 
vém saber,  ao  pé  do  teto,  lugares  mais  baratos  que  nenhum. 

O  verbo  engalinhar  é  faceto  e  quere  dizer  «tomar  enguiço, 
agastar-se». 

ganadeiro;  ganância;  ganhar,  ganhão,  ganharia,  ganhança 

Ganaãeiro  é  castelhanismo  muito  usado,  como  outros,  no 
Alentejo,  e  tem  a  significação  de  guardador  de  gado,  em  cas- 
telhano ganadero,  de  ganado,  que  é  o  mesmo  vocábulo  que  o 
gado  português,  conecso  com  ganar,  ganhar;  conquanto  não  se 
explique  facilmente  a  eliminação  do  nh  deste  último  verbo,  a  não 
ser  porque  proviesse  directamente,  em  tempos  antigos,  do  verbo 
castelhano,  de  que  o  substantivo  ganado  é  apenas  o  particípio 
passivo,  substantivado  como  tantos  outros: — «um  terrível  lobo, 
que  ha  annos  trazia  inquietos  os  lavradores  e  ganadeiros»  —  ^. 

Importação  directa  de  castelhano  é  ganância,  que  o  povo 
rústico  em  Portugal  diz,  com  maior  vernaculidade,  ganhança. 

Ganhão  é  o  trabalhador  adventício  a  jornal: — «Casinha  dos 
GANHÕES . .  .  dormitório  e  casa  de  descanço  dos  « ganhões  ou 
moços  de  lavoira,  que  constituem  a  ganharia»  —  -. 

Aqui,  ganhão  tem  sentido  especial,  como  se  vê  da  definição 
claríssima.  Antes,  J.  da  Silva  Picão  abona  o  termo  ganharia 
aqui  empregado:  — «A  cosinha,  em  certas  partes,  também  serve 
de  refeitório  da  ganharia  e  restante  pessoal,  como  carpinteiro, 
ferrador,  etc. »  — . 

gandula,  gandum 

O  Novo  DiooiONÁEio,  no  Suplemento,  incluiu  ambos  estes 
vocábulos,  o  primeiro  como  de  uso  actual  em  Gaia,  na  acepção 


1  O  Século,  de  6  dezembro  de  1900:  correspondência  de  Avis. 

2  Ethnographia  do  Alto  Alemtbjo,  in  « Portugália  >,  i,  p.  541 
e538. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  499 


de  «garoto,  vadio»,  o  segundo  como  antigo,  sem  definição,  mas 
abonado  com  o  trecho  seguinte:  —  «quando  eu  era  choramigas 
da  ausência,  era  papa  arroz  da  mágoa;  agora  sou  gandum  da 
preguiça.  .  .  AnatfómicoJ  Jocoso,  i,  p.  195.  (Por  gantum,  gaur- 
dério)  ? »  — . 

Em  castelhano  temos  gandul,  que  o  Dicionário  da  Academia 
Espanhola  define  deste  modo: — «Gandul,  la.  (Del  ár.  YaNDUE, 
majo,  valentón)  adj.  fam.  Tunante,  vagabundo,  holgazán.  //  In- 
dividuo de  cierta  milicia  antigua  de  los  moros  de  Granada  y 
África»  — ^ 

A  etimolojia  foi  dada  por  Dozy  ^,.  e  é  natural  que  o  termo 

viesse  de  Espanha  para  cá. 

O  moderno  gandul  e  o  antigo  gandum  devem  de  ser  o  mesmo 
vocábulo,  e  o  significado  primitivo  é  com  certeza  o  segundo  apre- 
sentado no  Dic.  da  Academia  Espanhola.  As  consoantes  finais 
dos  vocábulos  arábicos  eram,  como  adverte  Dozy,  mal  ouvidas  e 
sofreram  substituições,  de  outro  modo  inexplicáveis. 

Por  longuíssimo  não  traduzo  para  aqui  o  interessantíssimo 
artigo  por  Dozy  consagrado  ao  gandul  andaluz  e  ao  gandur 
mouro,  com  os  seus  correspondentes  fe meninos  gandulera  e  gan- 
dura.  Pela  descrição  dos  gandures  e  ganduras  vê-se  que  são 
uma  espécie  de  fadistas  de  lá,  emquanto  novos  e  novas,  peralvi- 
lhos a  seu  modo,  chibantes  e  amigos  de  se  divertirem,  mas  de 
costumes  corrompidos ;  depois  de  velhos  e  velhas  fazem-se  rufiães 
e  alcoviteiras. 

garrafa,  garrafal 

A  palavra  garrafa  é  também  castelhana;  mas  é  sabido  que 
nesta  língua,  como  em  francês  carafe,  só  se  aplica  às  de  vidro 
ou  cristal,  com  rolha  de  igual  substância,  que  se  põem  na  mesa 


1  Madrid,  1899. 

2  Glossairb   des  mots  bspagnols  et  portugais  derives  de 
l'arabe,  Leida,  1869. 


500  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


com  água  ou  com  vinho,  porque  a  garrafa  de  engarrafar  vi- 
nhos  e  licores  se  denomina  respectivamente  botella,  houteille. 

Dozy  1  diz-nos  ser  vocábulo  de  orijem  arábica,  YaÊAFE, 
forma  que,  segundo  afirma,  não  vem  nos  dicionários  com  tal  si- 
gnificado, mas  com  o  de  um  enjenho  para  tirar  água  de  poços. 
O  radical  é  Ya^ara,  «tirar  água»,  de  que  provêem  os  substan- 
tivos YURUF,  «copo»,  e  YURP,  «púcaro». 

De  garrafa  se  deriva  o  adjectivo  garrafal,  que  quére  dizer 
«avultado,  grande»,  tanto  aplicado  à  letra,  letra  garrafal, 
como  à  ginja,  ginja  garrafal.  Este  último  epíteto,  também  usado 
em  castelhano,  guinda  garrafal,  é  muito  antigo,  pois  Bluteau 
faz  dele  menção,  descrevendo  esta  deliciosa  fruta  do  modo  se- 
guinte:—  «He  maior  que  as  outras  [ginjas],  e  mais  doce,  tem  o 
pé  curto,  e  a  cor  tira  a  negro.  Bahuino,  na  Historia  universal 
das  plantas,  part.  i,  p.  220  e  221,  he  de  parecer  que  he  a  que 
Plinio  chama  Cerasus  [  c  e  r  â  s  u  s  ]  Maeedonica  » — . 

O  epíteto  castelhano  (guinda  garrafal)  encontra-se  já  men- 
cionado por  Navagiero  (xvi  século),  que  na  Descrição  de  Gra- 
nada, ou  como  os  nossos  escritores  antigos  lhe  chamaram  Grada, 
diz  ser  excelente  a  casta  denominada  guindas  garrafales  ^. 

A  ginja  mais  meúda  e  acre  designa-se  vulgarmente  com  o 
nome  de  ginja  galega.  (V.  galego). 

Garrett 

O  apelido  inglês  do  maior  poeta  nacional  depois  de  Luís  de 
Camões,  João  Baptista  de  Almeida  Garrett,  está  recentemente  a 


1  GlOSSAIRB    DE3    M0T8    E8PAGN0L8    ET    P0RTUGAI8    DÉRIVÉ8    DE 

l'arabe,  Leida,  1869.  Eepresento  por  y  a  19.*  letra  do  alfabeto  arábico,  a 
qual  é  uma  fricativa  sonora,  correspondente  à  surda,  jota  castelhano  actual. 

2  Escrita  em  italiano :  apud  Francisco  Xavier  Simonet,  Descripción 
DBL  REINO  DE  Granada,  Granada,  1872,  p.  245,  (Apêndice  vi).  O  título  da 
obra  de  Navagiero  é,  conforme  R.  Foulché-Delbosc,  (Bibliographie  dbs 
VOYAGES  EN  EsPAGNE  ET  EN  PoKTUGAL,  in  « Revuc  Hispanique»,  III, 
p.  22,  1896) :  II  viaggio  fatto  in  Spagna  et  in  Frangia  dal  magni- 
fico M.  Andrea  Navagiero,  Vinegia,  1563. 


Ajostilas  aos  Dicionãríois  Portugueses  501 

ser  pronunciado  de  um  modo  pretencioso  e  que  nenhum  funda- 
mento racional  pode  abonar.  Diz-se  para  aí  entre  gente  que  pre- 
sume de  instruída,  e  muitas  vezes  o  é  na  realidade,  gàrré.  O  que 
lhes  seria  difícil  fora  dizerem  em  que  se  estribam  e  com  que  se 
escudam  para  tam  anómala  pronunciarão.  O  apelido  é  inglês,  e 
se  à  risca  se  quisesse  proferi-lo  como  nesta  língua,  haveria  de  pro- 
nunciar-se  gáret,  com  o  acento  na  1.*  sílaba,  e  um  t  proferido 
na  segunda. 

Se  o  nome  fosse  francês,  que  não  é,  nenhum  francês,  ao  vê-lo 
escrito  com  dois  tt  íinais,  deixaria  de  pronunciá-lo  gàréte.  A  ex- 
travagante pronunciação  gàrré  é  que  não  pertence  a  língua  ne- 
nhuma conhecida,  e  só  prima  pelo  ridícula  que  é. 

O  facto,  porém,  é  que  o  próprio  poeta  sempre  pronunciou  o 
seu  apelido  como  se  em  português  se  escrevesse  garréte,  com  a 
surdo  na  primeira  sílaba,  o  acento  tónico  na  2.*,  e  o  í  perfeita- 
mente proferido.  Assim  lho  ouvi  eu  várias  vezes,  assim  o  pronun- 
ciavam todos  os  seus  contemporâneos,  e  entre  eles  o  seu  fidelís- 
simo amigo,  discípulo,  e  poeta  notável  da  escola  romântica  Fran- 
cisco Gomes  de  Amorim,  em  casa  de  quem  tive  a  glória  de  en- 
contrar a  Garrett,  sendo  eu  uma  criança  de  treze  anos. 

Não  é  de  admirar  este  aportuguesamento  de  nomes  estra- 
nhos: também,  por  exemplo,  Stockler,  Mayer  e  Van  Zeller,  se 
aportuguesaram  na  pronúncia  em  estoclér,  mater  e  vanzelér; 
também  nunca  ninguém  pronunciou  cá  o  nome  do  conhecido  es- 
pingardeiro francês  Imherton  de  outro  modo  que  não  fosse  im- 
hèrtom:  e  assim  tantos  outros.  E  hoje  em  dia  que  há  a  preocupa- 
ção de  se  arremedarem  as  pronúncias  estranj eiras  dos  nomes,  e 
às  vezes  com  tanto  acerto,  como  o  do  glorioso  poeta,  tam  esque- 
cido já,  que  até  lhe  mascaram  o  nome,  que  era  bem  dele,  e  como 
ele  o  pronunciava  e  queria  que  lho  pronunciassem,  bem  à  portu- 
guesa, e  não  com  disfarces  que  o  transtornam  e  afeiam. 

garroteia,  jarreteira 

A  ordem  militar  a  que  hoje  chamamos  à  francesa  da  Jarre- 
teira, foi  denominada  Garroteia  um  século  depois  da  sua  insti- 


502  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 

tuição  em  Inglaterra,  em  1341.  É  imitação  provável  do  uome  in- 
glês Garter,  que  W.  Skeat  *  deriva  do  galês  gar,  «pernil»,  «canela 
da  perna»,  étimo  céltico  da  palavra  hispânica,  de  significado  um 
tanto  diferente,  garra,  de  que  provém  garrote.  A  palavra  garter, 
como  a  francesa  jarreiíère  \  jarret,  «curva  da  perna»,  quere 
dizer  o  que  actualmente  chamamos  liga,  «a  fita  com  que  se  se- 
guram as  meias»,  e  que  por  aquele  tempo  as  prendia  às  calças, 
ou  calções  que  vinham  da  cintura  até  o  joelho.  A  forma  francesa 
antiga,  jartier,  está  para  a  inglesa  garter,  como  jarãin  para 
garden,  e  é  sabido  que  em  francês  o  g  orijinário  antes  de  a  dá 
ja,  como  o  c  na  mesma  situação,  chá.  (V.  jardim).  A  palavra 
gar,  mais  ou  menos  modificada,  em  todas  as  línguas  célticas 
modernas  conserva  significação  análoga,  em  bretão  garr,  em  erse 
cas,  «perna»,  etc. 

Eis  aqui  a  abonação  do  vocábulo  garroteia  em  português:  — 
«em  França  por  sua  ardideza  e  bondades  foi  [Álvaro  Vaz  de 
Almada]  feito  conde  de  Abranxes,  e  em  Inglaterra  por  sua  va- 
lentia foi  recebido  por  companheiro  da  ordem  da  Garrotea,  de 
que  príncipes  cristãos  e  pessoas  de  grande  merecimento  são  con- 
frades»—  -. 

garula 

O  Novo  DiccioNÁRio  dá  este  vocábulo  como  termo  de  jíria, 
com  a  significação  de  —  «perua» — .  Creio  ser  gralha  lecsicográ- 
fica,  devida  a  erro  de  apontamento,  em  que  se  leu  u  por  n,  pois 
a  este  vocábulo  sempre  ouvi  dar  o  significado  de  «perna». 

garvaia 
Vestimenta  rica.  V.  Eevista  Lusitana  iii,  p.  142. 


1      A   CONCISB   KTYMOLOGICAL   DiCTIONAUY   DF   THE   EnGLISH    LAN- 

GUAGB,  Ocsónia,  1887. 

*    Eui  de  Pina,  Crónica  db  El,-rei  Dom  Afonso  v,  cap.  xxxi. 


Apostilas  aos  Dicionários  Porttigneses  503 


gas 

O  Novo  DiccioNÁRio  emenda  no  Suplemento  gaz  para  gás, 
e  parece-me  que  tem  razão;  no  que  a  não  tem  é  em  atribuir  a 
invenção  portuguesa  a  forma  gas;,  com  2;  é  simplesmente  cópia 
da  escrita  francesa.  E  incerta  a  orijem  do  vocábulo,  que  é  arti- 
ficial: a  mais  provável  é  haver  sido  fabricado  por  Van  Helmont, 
físico  flamengo  do  xvii  século  (1578-1644),  tomando  por  base 
a  palavra  grega  k'áos,  «massa  informe».  A  razão  da  inicial  g 
é  a  seguinte:  os  holandeses  e  flamengos  proferem  o  g  inicial 
como  o  actual  j  castelhano,  e  ao  lerem  grego  dão  este  valor  ao 
k'i  ou  antepenúltima  letra  do  alfabeto  helénico,  que  os  romanos 
transliteraram  por  eh;  aquele  valor  tem  ela  no  romaico,  ou  grego 
moderno,  já  o  tinha  no  grego  bisantino,  e  provavelmente  desde 
o  II  ou  III  século  da  era  cristã,  como  pretende  Frederico  Miiller  ^ 


gaspilJiar 

Não  pense  o  leitor  que  este  verbo  seja  uma  variante  de  ^«5- 
pear  (botas);  não  é. 

Num  jornal  diário,  em  que  se  dá  notícia  do  falecimento  do 
eminente  publicista  Emídio  Navarro,  fazendo-se  enteira  justiça  à 
vernaculidade  da  linguajem  portuguesa,  que  sempre  e  em  toda  a 
ocasião  êle  usou,  uma  coluna  antes,  lemos  com  assombro  o  se- 
guinte período:  —  <Pede  [o  povo  de  Portugal]  que  [os  governos] 
arrecadem  e  administrem  honradamente  os  dinheiros  públicos; 
que  os  não  gaspilhem  em  despezas  inúteis  e  voluptuarias» — . 

Eu  não  sei  quem  foi  o  articulista  que  escreveu  este  descon- 
chavo,  onde  pretendeu  dar  a  entender  que  sabe  (?)  francês,  con- 
seguindo apenas  mostrar  que  não  sabe  português,  pois  verbos 


*    Grundriss  der  Sprachwissenschaft,  vol.  III,  t.  II,  Viena,  1887, 
p.  423. 


504:  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


desta  língua,  com  o  significado  que  tem  gaspiller  em  francês, 
não  faltam,  e  já  aqui,  sem  reflectir  um  segundo,  me  saltam  dos 
bicos  da  pena  três:  ãe.tperãiçar^  extravaganciar  e  esbanjar. 
(íQue  há  de  o  povo  entender  por  aquele  gaspilhar,  que  não  usa, 
nem  encontra  em  dicionário  algum  português?  ^E  essoutro  es- 
trambótico-adjectivo  voluptuarias?  Alguém  mais  curioso,  que  o 
busque  nos  vocabulários,  capacitar-se  há  sinceramente  de  que  o 
ominoso  governo  vai  com  os  dinheiros  públicos  estabelecer  lupa- 
nares para  recreio  e  deleite  dos  ministros. 


gastão 

Ninguém  poderá  saber  a  razão  por  que  esta  palavra  tam  por- 
tuguesa foi  eliminada  em  dois  dicionários  modernos  bastante  co- 
piosos, o  CONTEMPOKANEO,   6  O  NÔVO. 

As  definições  dadas  por  Bluteau  são  como  se  segue:  —  «GAS- 
TAM de  Bastão,  ou  Bordão.  O  remate  redondo  de  Latão,  Prata 
ou  pao,  em  que  descança  a  mão  de  quem  o  traz». 

Gastão  do  fuso.  O  bocadinho  de  chumbo,  ou  latão,  que  cobre 
a  pontinha  do  fuso,  e  ajuda  a  torcer  o  fio. . .  Na  sua  prosódia 
declarando  a  significação  de  Verticillum  diz  Bento  Pereira  Mauça 
ou  Mainça  do  fuso,  em  algumas  partes  do  Keino  se  chamará 
assim  o  ditto  gastão»  — .  Isto  está  parafraseado:  o  que  Bento 
Pereira  diz  é  o  seguinte: — «Verticillum. . .  a  mauça  ou  mainça 
do  fuso » — . 

J.  Inácio  fíoquete,  no  Dictionnaire  poetugais-feançais 
inscreveu: — «Gastão,  s.  m.  pomme  d'une  canne,  —  do  fuso >. 
V.  Maunça.  —  «Maunça,  s.  f.  poignée;  botte  d'aulx  secs, — do 
fuso,  rainure  en  spirale  pratiquée  au  bout  le  plus  mince  d'un 
fuseau  à  filer»  — . 

Vê-se  de  tudo  isto  que  mainça  ou  mauça  (q.  v.)  e  gastão  do 
fuso  são  duas  cousas  distintas.  Os  dois  dicionários  citados,  se  não 
trazem  gastão,  incluíram  ambos  castão,  forma  que,  pelo  menos 
com  relação  à  bengala,  é  a  mais  usual  hoje  em  dia;  mas  a  res- 
peito de  castão  do  fuso,  deixaram-no  ficar  no  tinteiro,  e  o  Novo 


Apostilasí-  aos  Dicionários  Portugueses  505 


DiccioNÁBio  em  mainça  declara-uos  que  é — «remate  do  fuso» — 
sem  nos  dizer  de  que  lado  fica  o  tal  remate,  pois  na  bengala, 
por  exemplo,  o  remate  de  cima  é  o  castão,  e  o  de  baixo  a  pon- 
teira. 

Em  italiano  há  dois  vocábulos  muito  parecidos:  um  é  fu- 
saiòla  ou  fusaròla,  o  qual  significa  « pedaço  de  madeira,  ou  de 
pano,  com  um  buraco  a  meio,  onde  as  fiandeiras  segurara  os  fu- 
sos»; o  outro  fusaiòlo  o\\  fusaròlo — «rosca  pesada  que  se  enfia 
na  ponta  ou  ferreta  [se  é  de  ferro]  do  fuso,  para  que  gire  com 
maior  regularidade» — .  Qualquer  dos  dois  vocábulos  deriva-se 
de  fuso,  pronunciado  fuço,  e  não  fuzo,  pois  fuso,  com  esta  pro- 
núncia é  particípio  passivo  do  verbo  fóndere  « derreter »  ^  O  cas- 
tão ou  gastão  do  fuso  será  então  o  fusaiòlo,  de  que  os  franceses 
fizeram  o  seu  fusaiole,  que  já  passou  artificialmente  a  português 
com  a  forma  errónea  fuseola  (q.  v.). 


gata,  gateira 

Não  é  a  fêmea  do  gato  que  vou  mencionar  aqui:  é  o  termo 
de  Sam  Miguel  dos  Açores  gata,  que  corresponde  ao  gateira  de 
Lisboa,  isto  é,  « bebedeira »  *.  É  extraordinária  a  quantidade  de  pa- 
lavras que  existem  em  português  para  designar,  mais  ou  menos, 
graciosamente,  este  vício,  e  a  manifestação  dele:  formariam  só 
por  si  um  curioso  glossário,  se  se  pudessem  analisar  todos  por 
forma,  que  ficasse  patente  a  orijem  de  cada  um.  Tesouro  de 
tantos  nomes  pertence  com  certeza  a  terra  de  muitos  bêbados. 


geio,  geada:  v.  geo 


1    P.  Petròcchi,  Novo  Dizionàrio  Univbrsalb  dblla  língua  ita- 
liana, Milão,  1887-1892. 

»    O  Século,  de  5  de  julho  de  1901. 


506  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


geira 

Esta  palavra,  já  definida  nos  dicionários  portugueses,  é,  como 
se  sabe,  o  latim  diária,  «que  se  vence  num  dia».  Kejistarei 
apenas  aqui  a  locução,  transmontana  ir  á  geira  ^  «ir  para  o 
trabalho  diário » ,  a  qual  confirma  o  étimo. 

gemónias 

O  Novo  DiccioNÁEio  acentuou  gemónias,  e  corrijiu  no  Suple- 
mento para  gemónias,  mas  com  certa  hesitação.  Não  há  motivo 
para  hesitar:  gemónias  acentuou  J.  Inácio  Roquete  ^,  Francisco 
Adolfo  Coelho  ^,  etc,  e  admira  que  o  Diccionario  Contempo- 
râneo, o  qual  passou  pelas  mãos  de  um  perito  latinista.  Santos 
Valente,  deixasse  passar  o  erro  crasso  gemoyiías,  devido  unica- 
mente a  qualquer  escrevedor  ignorante,  que  não  sabendo  nem  ao 
menos  ler  latim,  remedou  em  português  o  francês  gémonies,  cujo 
acento  tónico  está  no  i,  o  que  é  de  regra  nesta  língua.  Como  era 
desacerto  divulgou-se,  segundo  o  costume. 

Em  Roma  chamavam-se  Gemoniae  scalae,  ou  simplesmente 
Gremoníae,  umas  escadarias  pelas  quais  eram  com  um  gancho 
arrastados  os  supliciados,  para  serem  arrojados  ao  Tibre.  Figura- 
damente, usa-se  esta  expressão  para  indicar  «extremo  desacato, 
vitupério,  castigo,  justo  ou  injusto»,  inflijido  a  qualquer,  principal- 
mente em  oposição  a  triunfo,  ovação  que  antes  se  lhe  tivesse 
feito,  ou  se  lhe  houvesse  de  fazer. 

generear 

E  verbo  que  não  vem  apontado  em  nenhum  dicionário,  e  cuja 
significação,  como  se  depreende  do  seguinte  trecho,  é  « gerar » : 


1  Ebvista  Lusitana,  iv,  268. 

2  DiCTIONNAIRE  P0RTUGAIS-PRANÇAI8,  Paris,  1885. 

3  Diccionario  manual  btymologico  da  língua  portugubza. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  507 

—  «choravam  os  Padres  por  deixarem  os  christàos  filhos  seus, 
que  tinham  genereado  em  Christo,  e  tiraram  do  poder  do  demó- 
nio»— '. 

Parece  ser  neolojismo,  adrede  fabricado  para  evitar  o  em- 
prego duvidoso  de  gerar. 

genesi,  genesim,  Génesis,  génese 
Gil  Vicente  usa  o  vocábulo  genesi,  agudo,  no  verso  seguinte: 

—  «  . . .  outro  sacriflcio  figuram  em  si, 
Que  matar  bezerros,  nem  aves  ali : 
Outra  mais  alta  oferta  soletra 
E  outro  genesi  > — *. 

Deve  ser  uma  hebraização  rabínica  do  grego  génesis.  A  outra 
forma  genesim  é  já  portuguesa:  nasalizou-se  o  i  final,  como  ou- 
tros muitos  de  substantivos,  tais  como  marfim,  rubim,  antiga- 
mente marfi,  rubi,  e  até  de  partículas,  como  sim,  assim,  por 
si,  assi. 

Génesis  em  grego  e  latim  é  palavra  femenina,  mas  costuma 
dizer-se  o  Génesis,  como  se  diz  o  Apocalipse,  também  femenino, 
com  elipse  do  substantivo  masculino  liwo  da,  em  referência  ao 
primeiro  do  Velho  Testamento,  e  ao  último  do  Novo. 

A  palavra  génese,  «geração»,  que  tomámos  imediatamente 
do  francês  génese,  deve  ser .  proíerida  com  o  acento  na  primeira 
sílaba,  atenta  a  sua  orijem  grega,  com  e  breve  na  penúltima 
sílaba:  deste  modo  fica  sendo  um  aportuguesamento  do  vocábulo 
grego  génesis,  como  análise  o  é  de  análusis. 

gens:  v.  jens 


*    P.  António  Francisco  Cardim,  Batalhas  da  Companhia  de  Jesus 
NA  província  do  Japão,  Lisboa,  1894,  p.  77. 
'    Auto  da  história  de  deus. 


508  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


geo,  geio,  geoso,  gear,  geada,  gelo 

Do  latim  gelu  proveio  por  evolução  portuguesa  geo,  geio, 
postulado  pelo  verbo  gear,  substantivo  participial  geada,  e  adjec- 
tivo geoso,  abonado  no  trecho  seguinte:  —  «Dizem  de  Portalegre 
que  continua  rasoavel  o  aspecto  geral  do  campo.  Durante  o  mez 
de  fevereiro  correu  o  tempo  extremamente  frio  e  geoso»  — '. 
O  substantivo  gelo  e  os  seus  afins  e  derivados  devem  ter  orijem 
literária,  atenta  a  permanência  do  l  latino  intervocálico. 

Há  outro  vocábulo  geio,  «socalco»,  o  qual  nenhuma  relação 
parece  ter  com  o  da  minha  hipótese. 


geolho 

Não  é  arcaísmo  em  todo  o  reino  esta  forma,  que  em  quási 
toda  a  parte  foi  substituída  ^ox  joelho.  Em  Caminha,  por  exemplo, 
é  a  forma  usual  e  corresponde  ao  castelhano  hinojo,  italiano  gi- 
nócchio,  francês  genou,  do  latim  genuc(u)lum.  A  forma  mo- 
derna joelho  ou  provém  de  outro  derainutivo  de  genu,  geni- 
c(u)lum,  como  cuido,  ou  foi  refeita  pela  metátese  de  ajoelhar 
por  ageolhar  \  geolho,  como  é  o  parecer  de  quási  todos  os  etimo- 
lojístas. 

Gerez,  gerezíano 

Do  nome  próprio  Gerez  formou  Alberto  Sampaio  o  adjectivo 
gereziano  .•  ^  —  « como  hoje  no  macísso  gerezíano »  — .  Melhor 
fora,  a  meu  ver  gerezino,  ou  gerezano,  ou  gerezão,  não  obstante 
o  adjectivo  galiziano  \  Galiza,  que  também  empregou:  —  «O  ca- 


*     O  Economista,  de  26  de  março  de  1883. 

2    As  <ViLLAS»  DO  Norte  de  Portugal,  íw  Portugália,  i,p.  116. 


Apostilas  aos  DicionâHos  Portugueses  509 


vallo  gabado  por  Plinio...  pelo  trote  d'andadura,  pertence  ao 
typo  galliziano » —  ^ 

Este  último  termo  está  já  consagrado  em  publicação  oficial 
vernácula  e  de  bastante  autoridade  -. 

Disse  que  preferiria  outra  forma  de  derivação  à  que  o  douto 
escritor  empregou,  gereziano;  é  possível,  porém,  que  a  nossa 
nomenclatura  convencional  geolójica,  em  que  infelizmente  a  ver- 
naculidade  da  língua  tem  sido  tam  pouco  respeitada,  o  obrigasse 
àquela  terminação  com  sabor  tam  afrancesado,  como  o  do  subs- 
tantivo macisso,  francês  massif. 

ginete;  gineto,  gineta 

Conforme  Bluteau  ^,  a  acepção  primordial  do  primeiro  destes 
vocábulos  é — <cavallo  de  casta  íina>  — ,  sendo  secundárias  as 
de — « cavalleiro,  com  lança  e  adarga,  e  estribos  curtos — ,  homem 
a  c  avalio  >  — . 

Seguem  este  parecer  o  Diccioxaeio  Contemporâneo,  o  Ma- 
nual ETYMOLOGico,  O  Nôvo  DiccioNÁBio,  como  já  tinha  feito 
entre  outros  o  Poetuguês-francês  de  Koquete.  Todavia,  o  pró- 
prio Bluteau,  no  Suplemento,  referindo-se  a  Capitão  de  gine- 
tes, define  esta  locução  com  as  seguintes  palavras:  —  «responde 
este  oíficio  a  Greneral  de  CavaUaria  do  Reyno » — .  Vê-se  pois 
que  a  acepção,  que  deu  como  secundária  de  « cavaleiro  armado  > 
é  a  primária,  sendo  a  de  < cavalo»  deduzida  desta;  e  com  efeito 
assim  é  em  castelhano :  —  «A  esta  necesidad  obedeció  que  los 
musulmanos  tomaran  á  sueldo  caballeros  cristianos  y  que  los  cris- 
tianos  hicieran  lo  mismo  con  ginetes  moros;  estos  últimos  al- 
canzaron  gran  celebridad  en  la  península,  tanto  en  Granada, 
donde  los  zenetes  constituyeron  uno  de  los  partidos  mas  fuer- 
tes,  como  en  los  reinos  cristianos,  entre  los  cuales  la  palabra 


1    ih.  p.  117. 

*    Recexseambxto  geral  dos  gados  do  continente  do  reino 
DE  Portugal,  Lisboa,  1870,  p.  30,  61,  (52,  72,  103,  110,  e  pas»itn. 
3    Vocabulário  portuguez  b  latino. 


510  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


zenete,  nombre  de  su  tribu  ligeramente  modificado  ha  quedado 
como  apelativo  de  hombre  á  caballo,  ginete,  y  se  llamaban 
ginetes  en  la  edad  media  los  caballos  de  paseo  y  carrera, — 
en  Castilla  la  palabra  zenete  ha  pasado  á  su  lengua  con  ligera 
modificación  ortográfica  para  designar  un  hombre  á  caballo;  su 
modo  de  cabalgar,  á  la  jineta,  ha  quedado  como  escuela  ó  espé- 
cie de  equitación;  ginetes  se  llamaban  en  la  edad  media  los 
caballos  de  carrera  y  paseo  en  Cataliina;  aqui  se  usaban  tambiéa 
espuelas,  estribos  y  pitrales  ginetes  en  los  aparejos  de  caballos  y 
hasta  las  banderitas  que  coronaban  las  lanzas  por  debajo  de  los 
hierros»  —  ^ 

Exemplo  português  de  ginete  com  a  significação  de  «cava- 
leiro» é  o  seguinte:  —  «dous  mil  e  trezentos  de  cavalo,  a  fora  os 
corredores,  que  agora  chamam  ginetes» — ^. 

O  vocábulo  arábico  tem  s  como  inicial,  e  foi  mudado  na 
Península  Hispânica  em  j,  como  o  foi  semelhantemente  em  girafa, 
de  zaRAF.  E  sabido  que  o  a  (a  longo)  valia  muitas  vezes  por  e 
no  dialecto  arábico  das  Espanhas. 

O  termo  ginete  vemo-lo  modernamente  empregado  como  de- 
signação de  uma  casta  de  sela: — «e  o  ginete  ou  bastarda,  como 
denominam  as  sellas  ordinárias »  —  ^. 

A  palavra  ginete,  gineto,  gineta,  segimdo  as  localidades, 
nome  de  um  animal  carnívoro,  é  outra,  também  arábica,  aaaNaiT, 
conforme  Dozy  *. 

O  termo  ginete,  como  sinónimo  de  «cavalo  fino>,  é  hoje  de- 
susado em  português,  e  tido  por  artificioso ;  não  assim  porém  em 
castelhano,  no  seu  sentido  primordial,  de  «cavaleiro». 


*  André  Giménez  Soler,  Africanos  bx  Espana,  in  «  Kevue  Hispani- 
que»,  XII,  p.  301  e  349. 

2  Duarte  Galvão,  Crónica  de  El-rbi  Dom  Afonso  Hbnríquez, 
cap.  LU. 

3  Bosquejo  de  uma  viagem  no  interior  da  Parahyba  e  db 
Pernambuco,  m  «O  Século >,  de  8  de  junho  de  1900. 

*  Glossairb  des  mots  espagnols  et  portugais  derives  db 
l'arabe,  Leida,  1869. 


Apostilas  aos  IHciotiários  Portugueses  511 


giuja,  giujinha,  ginjeira,  ginjal;  guinda,  Guinda 

Ao  português  ginja,  de  que  se  derivou  ginjinha,  « aguardente 
em  que  se  maceraram  ginjas»,  expressão  análoga  à  laranjinha 
brasileira,  formada  de  laranja,  e  [que  também  designa  uma 
«aguardente  aromatizada  com  laranja»,  corresponde  o  castelhano 
guinda,  que  parece  ter  sido  também  português,  atento  o  nome 
Os  Guindais,  no  Porto,  designação  onomástica  que  vem  a  cor- 
responder no  sentido  a  O  Ginjal,  defronte  de  Lisboa.  Ginjal 
significa  *  sítio  plantado  de  ginjeiras»,  como  pinhal,  «terreno 
onde  há  pinheiros*,  ameixial,  «pomar  de  ameixieiras > ,  etc. 

A  orijem  presumida  destes  dois  vocábulos  é  problemática, 
pois  se  com  eles  se  relaciona  indubitavelmente  o  francês  moder- 
no guigne,  e  talvez  o  antigo  guisne,  o  romeno  visin,  o  russo 
víxnia,  todos  os  quais  teem  uma  nasal,  o  étimo  que  se  lhe  atri- 
bui, o  alto-alemão  antigo  ivthsela  ^,  não  apresenta  essa  nasal. 
Outras  formas  análogas,  com  a  nasal,  ou  sem  ela,  como  o  ita- 
liano vísciola,  existem  disseminadas  por  quási  todas  as  línguas 
europeias,  incluindo  as  esclavónicas,  o  grego  moderno,  o  albanês, 
o  húngaro,  o  turco,  e  pode  ver-se  a  maior  parte  delas  no  Diccio- 
nário  etimolójico  romeno,  de  A.  de  Cihac  2,  obra  a  todos  os  res- 
peitos monumental,  que  obteve  o  prémio  Volney,  em  1880. 


ginjibirra 

O  Novo  DicciONÁRio  dá  o  vocábulo  genjihirra,  como  de- 
signando uma  bebida  usada  entre  os  indíjenas  do  norte  do  Bra- 


1  y.  Kõrting,  Lateinisch-romanischbs  Wõrterbuch,  Paderborn, 
1S90,  n.°  8892. 

'  DiCTiONNAiRB  d'étymologie  daco-romane,  « Éléments  slaves, 
magyars,  turcs,  grecs-moderne,  et  albanais>,  Francoforte,  1879,  p.  459. 


512  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 

sil.  Há  engano  manifesto :  nem  a  palavra  tem  o  menor  vizlumbre 
de  pertencer  a  línguas  americanas,  nem  é  natural  que  designe 
qualquer  bebida  indíjena.  E  simplesmente  a  italianização,  e  por 
ela  o  aportuguesamento  do  inglês  gingerbeer,  «cerveja  de  gen- 
jibre»,  bebida  refrijerante  muito  conhecida.  Birra  em  italiano, 
como  beer  em  inglês  quere  dizer  «cerveja»,  e  nesta  língua  gin- 
ger  significa  « gengibre » . 


godo,  godo  (=góão) 

O  Novo  DiccioNÁRio  dá-nos  o  vocábulo  godo,  com  o  aberto, 
góão,  como  sinónimo  de  gogo,  «seixo  boleado  pelas  águas»,  e 
diz-nos  ser  termo  minhoto.  Em  Arcozelo,  conforme  nota  que  dali 
me  foi  remetida,  a  palavra  godos,  com  o  fechado,  aplica-se  a  uns 
rolos  de  madeira,  que  se  metem  em  canudos  de  lata  terminados 
em  borda  na  parte  superior,  para  neles  se  assentarem  móveis, 
acima  dos  quais  se  quere  assim  evitar  que  subam  os  ratos.  E  di- 
gno de  menção  o  termo. 


golilha,  goela 

O  primeiro  destes  vocábulos  é  castelhanismo,  golilla,  cuja 
forma  antiga  era  goliella,  de  gúlella,  deminutivo  de  gula;  de 
que  também  procedeu  o  português  goela,  que  lhe  corresponde 
na  forma,  não  porém  no  significado,  e  que,  como  se  vê,  se  deve 
escrever  goela  com  o,  como  antes  sempre  se  fêz,  e  não  gicela 
com  u,  como  agora  se  está  ortografando  erradamente,  e  com  o 
grave  equívoco  de  poder  ser  lida  a  primeira  sílaba  como  a  de 
guerra,  isto  é,  sem  se  proferir  o  u.  Efectivamente,  é  sabido  que 
a  u  breve  latino  corresponde,  tanto  em  castelhano  como  em 
português,  o,  conquanto  neste  se  pronuncie  há  muito  como  m, 
quando  é  átono.  No  Brasil,  porém,  couserva-se  a  distinção  en- 
tre o  Q  u  antes  da  sílaba  predominante. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  513 


golpelha,  gorpelha,  corbelha 

O  Novo  DiccioNÁEio  dá-nos  golpelha  como  alterado  de  cor- 
belha,  e  outvo  golpelha  \  uulpêciila,  «raposa»: 

<  O  lobo  mais  a  golpelha 

<  Fizeram  uma  conselha>. 

Nenhuma  dúvida  há  com  relação  a  esta  segunda  golpelha, 
como  procedente  da  forma  latina  apontada.  Examinemos  a  outra. 

Oolpelha,  gorpelha,  «alcofão»,  parece  terem-se  confundido 
com  a  outra  golpelha,  e  é  talvez  essa  a  razão  porque  o  latim 
corbicula,  deminutivo  de  corbis,  «cesto»,  que  deu  a  forma 
antiga  corhelha.  perfeitamente  regular,  produziu  o  alótropo  gor- 
pelha, com  a  singular  mudança  de  c  em  ^,  e  a  mais  singular 
ainda  de  6  em  ij;  permutação  raríssima,  que  nem  mesmo  é  com- 
parável a  sapito  {  subitum,  pois  aqui  as  duas  surdas  s  q  t 
assimilaram  ao  mesmo  género  a  sonora  h.  concorrendo  mais  para 
esta  assimilação  eufónica  o  ser  o  vocábulo  esdrúxulo,  e  o  6  per- 
tencer, como  o  í,  a  sílaba  átona. 

É  moda,  com  referencia  ao  enxoval  da  noiva,  usar-se  a  pala- 
vra francesa  corbeille;  e  quando  digo  moda  quero  dar  a  enten- 
der que  o  é  na  linguajem  avariada  dos  anúncios  de  modistas  e 
modistos,  e  na  dos  noticiaristas  que  os  arremedam,  por  galanta- 
ria, ou  por  ignorância. 

Ora,  corbeille  quere  dizer  em  geral  «açafate,  cesta  bastante 
larga  com  pé » ,  e  não  me  consta  que  as  noivas,  para  aparar  as 
prendas,  ponham  uma  cesta  à  disposição  das  pessoas  suas  co- 
nhecidas. 

Assim  parece-me  que  prendas,  ou  mimos  ou  enxoval  são 
termos  bastante  finos  para  não  causar  vergonha  usá-los;  e  se  a 
todo  o  custo  querem  falar  num  aparador  qualquer,  chamem-lhe 
açafate,  para  que  toda  a  gente  os  entenda.  E  verdade  que  o 
francês  faz  parte  do  curso  de  instrução  secundária;  mas  obriga- 
tório para  todos  por  lei  é  somente  saber  ler,  escrever  e  contar 

33 


514  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


em  português,  visto  ser  esta,  por  emquanto,  a  língua  da  nossa 
terra. 

goma 

Espécie  de  tambor  ou  batoque  [q.  v.J  na  Africa  Oriental 
Portuguesa:  —  «O  goma  e  o  cinzete  são  feitos  de  madeira,  de 
forma  cylindro-conica,  e  com  três  pés,  cobertos  só  de  um  lado 
com  pelle  de  búfalo,  veado  ou  lagarto,  e  afinados  por  meio  de 
pequenas  pelas  de  borracha,  que  se  fazem  adherir  á  pelle  onde 
sejam  precisas.  São  tocados  com  as  mãos  e  transportados  ao  pes- 
coço do  tocador»  — '. 

iEm  que  se  diferençam  então  um  do  outro? 


gondão 

Árvore  de  Timor — «O  regulo  bom...   é  como  a  árvore  de 
condão,  que  dá  sombra  e  frescura» — ^. 


gonzar 

Este  verbo,  derivado  de  gonzo,  ouvi-o  a  um  oficial  de  ourives^ 
a  quem  dei  a  consertar  o  fusilão  de  uma  cadeia  de  relójio.  Pre- 
guntando-lhe  eu  se  teria  de  ser  substituído  por  outro,  respon- 
deu-me :  « Vou  ver  se  o  posso  gonzar » .-  E  na  realidade  gonzou-o, 
isto  é,  prendeu  ou  soldou  uma  parte  do  fusilão,  junto  à  rosca,  e 
que  se  tinha  quebrado. 


1  Azevedo  Coutinho,  A  campanha  do  Barué  em  1902,  in  <  Jornal 
das  Colónias >,  de  19  de  agosto  de  1905. 

2  J.  Pereira  Jardim,  ííoTAS  bthnggraphioas  sobre  os  povos  db 
Timor,  in  «Portugália»,  i,  p.  356. 


Apostilas  nos  Dicionários  Portugueses  515 


gordo 

Para  português,  como  para  as  outras  línguas  românicas  das 
Espanhas,  este  vocábulo  é  o  latim  gurdum,  o  qual,  conforme  a 
Quintiliano  constava  [audiui],  era  palavra  hispânica. 

O  que  se  não  sabe  é  a  qual  das  várias  línguas  que  na  His- 
pânia se  falavam  ela  pertencia;  ao  vasconço  de  certo  que  não, 
pois  gordo  nesse  idioma  diz-se  guicen;  céltico  também  não  pa- 
rece o  termo  ser. 

Este  adjectivo  tem  em  português  acepção  mais  restrita  que 
em  castelhano,  onde  também  significa  «volumoso»,  como  o  in- 
glês hig,  ou  o  francês  gros:  em  português  quere  dizer  «que  tem 
gordura,  matéria  adiposa»,  e  tanto  que  diferençamos  perfeita- 
mente gordo,  em  inglês  fat,  de  grosso,  «refeito»,  em  inglês  stout. 


gorgomilos . 

Este  vocábulo  está  hoje  quási  desusado  em  estilo  sério;  to- 
davia, há  dois  ou  três  séculos  era  empregado  sem  o  menor  re- 
paro:—  «soando  pelos  gorgomilos  cortados,  cheios  de  sangue,  o 
santíssimo  nome  de  Jesus  > — ^ 


gote 

Termo  da  África  Oriental  Portuguesa:  —  <góte  (peça  de  pau 
que  serve  para  equilibrar  as  panellas  e  as  cestas)» — ^. 


^    P.  Ant.  Fr.  Cardim,  Batalhas  da  Companhia  de  Jesus,  Lisboa, 
1894,  p.  196. 

*    Jornal  das  Colónias,  de  4  de  julho  de  1903. 


516  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


gotejar 

Se  não  é  informação  errada,  por  copejar,  significa  aquele 
verbo  «lançar  o  arpéu  ao  atum». 

E  termo  algarvio,  como  quási  todos  os  referentes  àquela 
pesca. 

governado,  governista 

O  primeiro  destes  vocábulos  em  jíria  quere  dizer  « armado » : 
—  «O  Menezes,  que  não  estava  governado,  isto  é,  que  não  tra- 
zia arma  alguma  comsigo» — ^ 

O  segundo  é  usado  no  Brasil  com  a  significação  de  « partidá- 
rio do  governo»:  —  «Requerimentos  envolvendo  censuras  passa- 
vam sem  o  menor  protesto  da  parte  dos  governistas» — -. 


gozar,  gozo;  gôzo(s) 

Parece  averiguado,  que  a  palavra  gozar  castelhana  provém 
àe  gaudiare  |  gaudium,  sendo  goce,  antigo  go^e,  um  substan- 
tivo verbal  rizotónico.  O  português  gozar  é  provável  que  proceda 
de  castelhano,  visto  que  ao  au  latino  corresponde  em  português 
ou,  oi  (cf.  cousa,  coisa  j  causa),  e  o  vocábulo  nunca  assim  se 
escreveu.  O  plural  é  gozos. 

Quanto  a, gozo,  «raça  de  cães>,  o  étimo  é  goticum  (canem), 
de  que  também  se  derivaram  o  castelhano  gozque,  com  o  mesmo 
significado,  e  o  catalão  gos,  « cão  >  em  geral.  O  plural  de  gozo, 
«cão»,  é  gozos,  e  não,  gozos. 


1  O  Século,  de  10  de  setembro  de  1900. 

2  O  Economista,  de  13  de  junho  de  1883,  Correspondência  particular 
do  Eio-de-Janeiro. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  517 


gradura 

Termo  próprio  da  província  de  Trás-os-Montes,  o  qual  se 
aplica  genericamente  a  toda  a  casta  de  feijão:  —  «Boa  horta! 
Muita  goma  de  feijão  para  verde, . . .  e  inda  por  cima  muita  gra- 
dura» —  K 

gramilho,  gramilo 

Em  Caminha  é  o  «fecho  da  porta».  O  Novo  Diccionáeio 
rejista  o  vocábulo,  com  a  forma  gramilo. 

grane,  grani 

O  Novo  DiccioNÁRio  dá  os  dois  vocábulos  como  tendo  a 
mesma  significação  —  «cavallo,  égua» — ,  e  diz-nos  ser  termo  de 
jíria.  E  propriamente  calão  de  ciganos  alquiles,  e  o  primeiro 
deles  é  o  que  qiiere  dizer  «cavalo»;  o  segando  é  o  femenino, 
«égua»:  em  calo  grasté,  pi.  grastés,  fem.  grasni,  pi.  grasnías. 
E  provável  que  o  primeiro  fosse  modificado  pelo  segundo  em 
português,  e  em  calo  ou  dialecto  dos  ciganos  espanhóis  há  tam- 
bém o  femenino  de  grasté,  que  é  grastí.  O  s  mal  se  ouve,  como 
no  dialecto  andaluz  do  castelhano.  No  dialecto  dos  ciganos  ro- 
menos grasnei  quere  dizer  «poldro»,  e  -ni  é  um  suficso,  com  o 
qual  de  nomes  masculinos  se  derivam  outros  femeninos.  O  pri- 
mitivo é  gra,  que  quere  dizer  «besta». 

gravanha 

Em  Caminha  é  o  nome  que  se  dá  à  «rama  seca  dos  pinhei- 
ros >. 


1     O  Repórter,  de  17  de  junho  de  1897. 


518  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


graxa;  engraxar,  engraxado 

Em  Lisboa  significa  uma  tinta  preparada  com  que  se  dá 
lustro  ao  calçado  por  meio  de  fricção  com  escova.  No  norte  quere 
dizer  «banha».  Num  sentido  relacionado  com  este  último  vemos 
o  particípio  engraxado,  empregado  por  António  Francisco  Car- 
dim:  —  «trouxe  o  say  uns  [livros]  muito  engraxados,  parece  esti- 
veram ao  fumo» — ,  isto  é,  «denegridos,  cujos»  ^ 

grejó:  v.  grljó 

grelha,  grelheiro 

O  Novo  DiccioNÁRio  marca  a  pronúncia  grelha,  que  de 
certo  é  a  normal,  visto  aquele  e  proceder  de  i  latino,  cratí- 
cula;  assim  em  Lisboa  deveríamos  pronunciar  ^rè7/i«,  isto  é,  ,^ríí- 
Iha.  O  facto  porém  é  que  na  capital  toda  a  gente  diz  grelha,  e 
J.  I.  Roquete  assim  o  acentuou  também  -.  Deu-se  pois  a  mesma 
alteração  de  ê  em  é,  que  se  observa  era  envéja,  antes,  enveja. 

A  língua  românica  que  possui  palavra  mais  parecida  com  a 
portuguesa,  e  da  mesma  orijem,  é  a  catalã,  onde  se  diz  graeflla 
(pron.  graêlh-lha);  os  castelhanos  chamam-lhe  parrillas. 

Grelheiro  é  o  operário  que  tem  a  seu  cargo  as  grelhas: 
— « Continuam  em  greve  os  operários  grelheiros »  —  ^. 

grémio,  gremial 

A  palavra  grémio,  do  latim  gremium,  «regaço»,  não  é  já 
usada  senão  no  sentido  figurado  de  « corporação,  reunião »  e, 
como  hoje  se  diz,  clube  ou  casino.  O  derivado  gremial,  em  latim 


1  Batalhas  da  Companhia  db  Jesus,  Lisboa,  189 i,  p.  74. 

2  DiCTIONNAIRE  PORTUGAIS-FRANÇAIS,  Paris,  1855. 

i*    o  Século,  de  28  de  fevereiro  de  1905. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  519 


eclesiástico  gr  e  mi  ale,  é  o  nome  que  se  dá  a  uma  espécie  de 
avental,  que  pertence  aos  paramentos  do  sacerdote;  em  italiano 
gremhiale  < avental»,  é  o  mesmo  vocábulo.  (Cf.  lomho  era  por- 
tuguês, com  loyno  em  castelhano,  e  ao  contrário,  rumo  português, 
com  rumbo  em  castelhano,  e  também  lamber^  com  lamer): — 
« sandálias  e  luvas . . .  gremial  e  formalio ...  o  gremial  é  um 
panno  que  se  colloca  sobre  os  joelhos  do  celebrante» — ^ 

G-rijó,  grejó,  igrejó 

E  conhecida  no  onomástico  local  esta  forma,  do  latim  (ec)cle- 
siola,  e  deveria  escrever-se  Grejó.  Como  nome  comum  empre- 
gou-o  L.  Figueiredo  Guerra,  no  seu  interessante  estudo  Uma 
POVOAÇÃO  subterrânea:  —  «este  grijó  de  Ester  ainda  existia 
com  capellão  em  1548» — -. 

Tinha  o  significado  de  <? capela,  ou  ermida».  O  género  porém 
está  errado,  porque  é  femenino,  esta  grejó,  e  não,  este  grejó. 

O  Novo  DiccioNÁKio  rejista,  como  antiga,  sem  a  abonar,  a 
forma  igreja,  em  que  se  não  fizera  ainda  a  aférese  do  i  inicial, 
procedente  do  ei-  j  ec-  latino,  que  também  encontramos  nos 
Subsídios  de  A.  A.  Cortesão,  sem  citação  alguma,  como  sinó- 
nimo de  Grijó.  nome  de  povoação;  atento,  porém,  o  sistema  de 
trabalho  ali  seguido,  o  autor  que  a  cita,  é  porque  encontrou  a 
forma  em  qualquer  documento.  V.  igreja. 

grima 

Em  Trás-os-Montes  quere  dizer  «medo»: — «As  noites  são 
ás  vezes  escuras  como  a  bocca  d'um  lobo,  ouvindo-se  com  grima 
(medo)  o  piar  das  aves  agourentas» — ^. 


1     O  Dia,  de  21  de  março  de  1902. 
'    in  Portugália,  i,  p.  612. 

3    M.  Ferreira  Deusdado,  O  Eecolhimento  da  Mófreita,  in  « Ee- 
vista  de  educação  e  ensino  >,  1891. 


520  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 

A  palavra  tem  aspecto  de  germânica :  em  alemão  grimm,  sig- 
nifica «sanha,  raiva»,  em  inglês  grim,  «medonho». 
— Achilles  himself  was  not  more  grim  and  gory  —  ^ 


grou 

É  única  esta  forma  em  -ou  para  substantivos.  J.  Leite  de 
Vasconcelos  explica-a  muito  razoavelmente  como  orijinada  numa 
forma  latina  grúus,  masculino  de  grúa^  por  gru(i)s,  que  tem  a 
mesma  significação,  e  compara-lhe  dous,  dois  \  duos  ^. 


guadanha:  v.  gadanha 


gualdido,  galdido,  galder,  galdir 

Em  castelhano  existe  um  antigo  adjectivo  participial  galdudo, 
que  tem  a  mesma  significação  que  o  português  g(u)aldido,  o 
qual  deveria  ter  tido  também  a  forma  galdudo,  e  cuja  termina- 
ção, própria  dos  particípios  passivos  da  2.'"^  conjugação,  se  mu- 
dou na  língua  moderna  para  -ido,  que  pertencia  aos  da  3.*: 
cf.  tido,  dantes  teúdo,  mexido,  dantes  mexiido,  etc. 

Esta  consideração  leva-nos  a  supor  que  o  verbo  seria  galder, 
e  não  galdir,  derivado  do  vasconço  galdu,  «perdido»: — «Sar- 
dinha que  o  gato  leva,  galdida  vai  ela» — ^. 

E  possível  também  que  o  verbo  em  português  pertencesse 
sempre  à  3.*  conjugação,  e  em  castelhano  à  2.*^,  como  acontece, 
por  exemplo,  com  cair,  em  castelhano  caer. 

Duarte  Núnez  de  Leão  ^  adverte  que  é  palavra  grosseira, 


<  Lord  Byron,  DON  JuAN. 

2  Revista  Lusitana,  iii,  p.  265. 

3  Eifão. 

4  Origem  da  lingoa  portuguesa,  cap.  xviii. 


ApostUas  aos  Dicionários  Portugueses  521 


que  se  não  deve  empregar,  e  Bluteau,  citando-a,  repete  a  recomen- 
dação. 

Se  alguma  vez  foi  usado  o  verbo  em  outra  linguajem,  ignoro-o 
hoje  em  dia  o  seu  uso  está  limitado  ao  particípio. 

guardanapo 

No  uso  actual  significa  uma  «toalha  pequena,  que  se  põe  a' 
cada  comensal,  para  ele  se  limpar».  Antes,  porém,  esta  palavra 
designava  o  que  hoje  se  denomina  lenço  de  assoar,  como  se  pode 
ver  na  rubrica  da  fala  do  primeiro  frade,  no  «Auto  das  Fadas» 
(«sortes,  fados»)  de  Gil  Vicente:  — «Assoa-se  com  o  seu  guar- 
danapo»— . 

Anteriormente,  no  mesmo  auto,  na  fala  da  Feiticeira,  vemos 
o  mesmo  vocábulo,  igualmente  no  sentido  de  lenço,  ou  pano: 

Isto  é  fessura  de  sapo 

Que  está  neste  guardanapo. 

Bluteau  ^  dá  desta  palavra  a  etimolojia  mais  provável,  guarda 
e  o  francês  nappe,  que  vale  o  mesmo  que  Toalha,  porque  o  guar- 
danapo serve  de  guardar — «não  só  o  vestido  de  quem  come,  mas 
também  a  Toalha  da  mesa  em  que  se  come» — ;  e  acrescenta: 
—  «Os  Antigos,  quando  erão  convidados  a  comer  fora  de  suas 
casas,  levava  cada  hum  com  sigo  o  seu  guardanapo»  — . 

O  que  parecerá  extraordinário  é  que  este  vocábulo  só  seja 
usado  em  Portugal,  onde  nunca  à  toalha  da  mesa  se  chamou 
napo;  e  que,  pelo  contrário,  os  franceses  lhe  chamem  serviette, 
significando  nappe  na  sua  língua  essa  toalha.  A  noção,  porém, 
do  segundo  componente  está  de  todo  perdida,  visto  que,  como 
excepção  aos  substantivos  compostos  com  o  verbo  guarda,  no 
imperativo,  este  perdeu  a  acentuação  própria  no  seu  primeiro 
elemento.  (V.  guarda-peito^. 


1    Vocabulário  portugubz  e  latino. 


522  Apostilas  ao^  Dicionários  Portugiieses 


Pelas  citações  que  fiz  de  Gil  Vicente,  e  pela  definição  de 
Bluteaii,  fica  perfeitamente  claro  o  modo  de  dizer  assoe-se  a  esse 
guardanapo,  em  que  esta  palavra  tem  a  significação  de  «lenço». 

Todavia,  guardanapo  já  tinha  a  mesma  significação  especial 
que  tem  hoje,  por  meados  do  século  xvi,  visto  que  o  Padre  je- 
suíta Gaspar  Barzeu,  numa  carta  datada  de  1551,  referindo-se 
às  refeições  do  rei  da  Etiópia,  escreveu:  —  «El-rei  em  seu  comer 
não  tem  nenhú  modo  de  estado,  está  assentado  em  hú  catre  ou 
em  húa  cadeira  rasa  de  ferro  cuberta  com  hum  couro,  ou  em 
cima  de  húa  alcatifa;  não  tem  mesa  nem  copa,  só  mente  húa 
trempem  no  chão  e  em  cima  húa  gamela  de  pao  que  terá  15 
ou  20  palmos  de  roda,  e  no  meo  tem  húa  maneira  d  escudelas 
do  mesmo  pao  sem  nenhúa  toalha  nem  guardanapo.  Alimpão 
húa  mão  com  a  outra» — ^ 


guarda-peito 

E  considerável  o  número  dos  nomes  compostos  com  o  impera- 
tivo do  verbo  guardar,  guarda,  e  um  substantivo  aposto  como 
seu  complemento  objectivo.  Nos  nomes  desta  formação,  tam  fre- 
quente e  ainda  tam  vivaz  nas  línguas  românicas,  cada  um  dos 
elementos  conserva  a  sua  acentuação  própria,  estando,  porém, 
como  é  de  regra  nelas,  o  acento  predominante  na  sílaba  tónica 
do  segundo  componente.  Excepções  a  esta  regra,  raras,  como 
vimos  em  guardanapo,  explicam-se  pelo  facto  de  se  haver  per- 
dido a  noção  do  significado  do  segundo  elemento.  No  primeiro 
caso  devem  escrever-se  com  linha  divisória  a  mostrar  a  indepen- 
dência manifesta  dos  componentes;  no  segundo  cumpre  reunir  os 
dois  elementos,  sem  a  linha,  em  uma  só  palavra,  com  um  único 


1    in  Missões  dos  Jesuítas  no  Oriente,  Lisboa,  1894,  p.  106. 
Completei  as  abreviaturas,  desuni  as  palavras,  e  fiz  duas  correcções  evi- 
dentes, raza  e  meza  para  rasaemesa. 

Os  textos  transcritos  foram  visivelmente  mal  copiados. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  523 


acento,  marcado  ou  não,  conforme  os  preceitos  de  acentuação 
gráfica  seguidos  por  cada  um  ^  O  mesmo  se  deverá  fazer,  ainda 
quando  o  primeiro  elemento  seja  substantivo  e  o  segundo  adjec- 
tivo, como  era  guarda-mor,  visto  o  primeiro  componente  con- 
servar a  sua  acentuação. 

Abonarei  aqui  o  vocábulo  composto,  só  incluído  no  Xôvo 
DicciONÁEio,  e  que  serve  de  epígrafe  a  este  artigo,  guarãa- 
peito: — «A  cavallo  os  feirantes,  vindos  de  longes  terras  com  os 
primitivos  trajos  sertanejos,  isto  é,  o  chapéu  de  copa  mamillar 
de  couro,  a  vestia  ou  gibão,  guarda-peito  e  guardas  tudo  também 
exclusivamente  confeccionado  de  couro  curtido»  —  -:  fabri- 
cado seria  melhor,  visto  o  autor  ser  em  geral  vernáculo  na  sua 
linguajem. 

guarda-sol,  guarda-soleiro 

O  prin^iro  destes  vocábulos  está  rejislado  em  todos  os  dicio- 
nários e  é  usualíssimo. 

O  segundo  é  um  derivado  sui  generis:  significa  «fabricante 
de  guarda-sóis.  feito  à  imitação  de  chapeleiro,  fabricante  de 
chapéus»,  sombreireiro,  fabricante  de  sombreiros,  no  sentido 
antigo  de  « umbellas »  ou  « sombrinhas » ,  e  não  no  do  castelhano 
actual  sombrero,  cujo  significado  é  « chapéu  para  a  cabeça » : 
—  «Keuniu  a  classe  dos  operários  guarda-soleiros» — ^. 


guecho 
Em  Sam  Miguel  dos  Açores  quere  dizer  « novilho »  *. 


1     V.  Ortografia  Nacional,  do  autor,  Lisboa,  1904,  p.  213. 
■^    Fonseca,  Bosquejo  de  uma  viajem  no  interior  da  Parahyba 
B  DK  Pernambuco,  in  <0  Século >,  de  8  de  junho  de  1900. 
3     O  Século,  de  24  de  outubro  de  1902. 
*    O  Século,  de  õ  de  julho  de  1901. 


524  AjMstilas  aos  Dicionários  Portugueses 


gueiro 

«no  gueiro  (casa  onde  os  rapazes  e  assicanas  [raparigas],  se 
reúnem  para  dormir)»  K 

E  termo  da  África  Oriental  Poruguesa;  na  citação  refere-se 
a  Marromeu. 

guilhoche,  guilhote,  giiilhoché,  guilhoclii 

O  Novo  DiccioNÁBio  incluiu  o  vocábulo  francês  guilloche, 
ortografado  à  portuguesa,  e  no  Suplemento  declarou  preferível 
guilhoché.  E  esta,  na  realidade,  a  forma  usada  pelos  lavrantes  e 
ourives,  e  designa  um  desenho  formado  pelo  cruzamento  de  li- 
nhas paralelas,  com  outras  igualmente  paralelas,  espécie  de  en- 
xadrezamento:  —  «Ouro  gravado  a  guilhoché,  prata  gravada  a 
guilhoché» — -.  1? 

Este  substantivo  não  é  mais  que  o  particípio  passivo  do  verbo 
guillocher,  a  que  se  atribui  orijem  histórica,  o  nome  de  certo 
sujeito,  de  apelido  Owillot,  que  parece  ter  sido  inventado  para 
o  caso  "^ 

O  desenho  assim  formado  não  se  chama  em  francês  guilloche, 
mas  sim,  guillochis. 

guinda:  v.  ginja 

guinde 

Na  índia  Portuguesa — «bacia  de  lavar  a  cara  — ». 

O  termo,  segundo  Monsenhor  Kodolfo  Dalgado  *,  é  marata,  e 


1  Jornal  das  Colónias,  de  30  de  maio  de  1903. 

2  Programa  da  Exposição  de  ourivezaria  do  Pôrto,  in  <  Com- 
mercio  do  Porto,  de  7  de  março  de  1883. 

3  Henrique    Stappers,   Dictionnaire   synoptiqub   d'étymolog-ib 
française,  Paris,  2.*  ed.,  n.°  4938. 

*    Eevista  Lusitana,  vi,  p.  81. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  525 

também  dravídico,  canarim  ou  tulo.  Xo  Dicionário  Marata-portu- 
guês  de  Suriají  Ananda  Eau,  a  palavra  gíndI,  em  devanágrico, 
sem  transliteração,  e  que  transcrevo  para  aqui,  tem  a  seguinte 
definição,  que  pouco  se  coaduna  com  o  dito  emprego  do  vocábulo: 
—  «Vazo  da  agoa,  uzado  para  trazer  agoa  sagrada.  É  vazo  de 
barriga  grossa,  e  pescoço  e  boca  estreita  e  pequena.  2.  Assim 
se  chama  também  a  um  vazo  da  figura  de  bule»  — '.  Estranha 
definição!  Há  de  ser  caso  dificultoso  o  lavar-se  alguém  num  bule, 
ou  numa  garrafa,  aparelho  só  comparável  aos  lavatórios  usados 
nas  hospedarias  russas,  e  que  são  excelente  fábrica  de  galeirões 
na  testa,  quando  não  de  quebrar  cabeças.  Não  teem  válvula  na 
bacia,  que  está  munida  de  um  orifício,  o  qual,  posto  um  pé  em 
um  pedal,  na  base  do  lavatório,  despeja  continuamente  a  água 
que  dentro  lhe  cai  de  uma  bica,  à  altura  do  nariz  de  uma  pessoa 
que  esteja  de  pé:  Curvada  a  pessoa,  basta-lhe  levantar  a  cabeça 
para  apanhar  na  testa  um  beijo  da  bica,  que  lhe  pode  deixar 
memória  perdurável  do  esquisito  invento.  Agradável  surpresa, 
que  ali  espera  o  viandante! 


guirlanda,  grinalda 

A  forma  primitiva  deste  vocábulo  deve  ter  sido  a  primeira, 
que,  como  vamos  ver,  ainda  subsiste;  a  segunda  é  resultado  de 
duas  metáteses  acumuladas,  guir-  para  gri-,  e  -lan-  para  -nal-. 
O  vocábulo  parece  ter  vindo  para  as  outras  línguas  românicas 
da  forma  italiana  guirlanda,  de  orijem  germânica,  ainda  não 
perfeitamente  explicada. 

Tem  esta  palavra,  já  numa,  já  noutra  das  formas  apontadas, 
várias  acepções. 

Eis  aqui  uma,  que  não  está  rejistada:  —  «Nas  guirlandas 


1  Suriagy  Ananda  Rau,  DicCIOXario  maratha-portuguez,  coorde- 
nado conforme  o  Diccionario  raaratha-inglez  de  J.  I.  Molesworth,  1. 1  [e  único], 
Nova  Goa,  1879,  p.  314,  col.  iii. 


526  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


[cabides  e  estanheiras]  lá  se  vêem  [vêem]  os  serviços  de  cobre, 
arame,  estanho,  ferro  e  barro»  —  ^ 


guisa,  guisinho 

O  primeiro  destes  dois  nomes  de  aves  é  na  Madeira  (Porto 
Monis),  aplicado  ao  roquinho  (q.  v.):  o  segundo  ao  abibe,  (tringa 
uanellus,  Lin.). 

habitat 

Este  termo,  que  do  francês  adoptámos,  é  o  latim  habitat, 
3.^  pessoa  do  presente  do  indicativo  do  verbo  habitare,  e  sig- 
nifica, portanto,  «habita». 

E  usado  moderníssimamente  para  designar  a  vivenda  habi- 
tual de  uma  espécie,  vejetal  ou  animal:  —  «O  cavallo,  gabado 
por  Plinio...  pertence  ao  typo  galliziano,  cujo  habitat  com- 
prehende  todo  o  noroeste  da  peninsula  [Hispânica]» — ^. 

Com  vantajem  seria  substituído  por  vivenda  este  extrava- 
gante nome,  que  só  tem  em  português  outro  análogo;  também 
forasteiro,  deficit,  e  não  menos  arrevesado. 


hagi,  axi,  hagiaco,  ajiaco,  axiaco 

Conquanto,  sem  dúvida  nenhuma,  o  h  seja  redundante,  e  a 
segunda  escrita,  que  aqui  dou,  seja  a  única  certa,  como  mais 
adeante  indico,  trato  da  palavra  nesta  altura  das  Apostilas, 
porque  assim  a  vejo  escrita  no  texto  com  que  a  abono,  a  «Eela- 


1  José  da  Silva  Picão,  Ethnographia  do  Alto  Alemtejo,  w  Por- 
tugália, I,  p.  538. 

2  Alberto  Sampaio,  As  «  Villas>  do  Norte  de  Portugal,  in  Por- 
tugália, I,  p.  117,  n.  ^ 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  527 


ção  da  viajem  e  sucesso  da  nao  Sam  Francisco»,  do  Padre 
Gaspar  Afonso: — «com  tudo  o  comer,  cousa  geral  em  todas  as 
índias,  ha  de  vir  á  mesa  cuberto  de  hagi,  que  é  a  sua  pimenta 
vermelha,  que  lá  ha  de  muitas  castas  e  feições.  E  porque  os 
grãos,  ou  cabeças  delia,  que  vem  entre  a  carne  cozida  ou  guisa- 
da, trazem  já  quebrada  a  sua  virtude,  como  elles  [os  naturaes 
das  Antilhas]  cuidam, . .  .  mandara  pôr  outra  crua  em  pratos 
pela  mesa,  como  em  saleiros,  que  mastigara  e  comem .  . .  como 
se.  . .  tivessem  as  linguas  e  gargantas  ladrilhadas»  —  K 

O  Xôvo  DiccioNÁEio  traz  o  vocábulo  erradamente  acentuado, 
áxi,  e  o  Contemporâneo  desfigurado  enteiramente  na  pronúncia 
ácsi  (!)  que  lhe  atribui. 

Eis  o  que  a  respeito  da  forma  castelhana  moderna  aji  nos 
diz  Rodolfo  Lenz,  doutíssimo  autor  do  Diccionario  etimolójico 

DE     LAS    VOCES    CHILENAS    DERIVADAS    DE    LENGUAS    INDÍJENAS 

AMERICANAS,  cuja  publicação  ainda  infelizmente  não  está  con- 
cluída:—  «la  planta  i  el  fruto  de  la  misma  que  se  llaman  en 
Espana  »pimiento»  i  «guindilla»  [i.  e.  jinjinha,  « pimentão  »](^Ca- 
psium  annuum),  ...  La  palabra  aji,  antiguamente  axi,  viene 
de  Haiti  i  pertenece  a  la  lengua  taino  de  la  farailia  linguística 
de  los  arnak.  . .  Los  índios  peruanos  llaman  el  aji  uchu. . . ;  los, 
de  Chile  thapi» — -. 

Esta  escrita  thapi  representa  a  pronúncia  trapi,  com  um  r 
fricativo  surdo,  como  o  do  inglês  try,  ou  o  r  final  de  sílaba, 
muito  usual  no  Brasil;  a  moderna  forma  castelhana  aji  profere-se 
com  o  j  castelhano  actual,  mas  a  antiga  axi  pronunciava-se  com 
o  valor  do  x  inicial  português  de  xadrez,  por  exemplo,  e  o 
acento  tónico  foi  sempre  e  é  no  i,  e  não  no  a. 

Explica-se  que  o  Xôvo  Dicc.  errasse  na  acentuação  que  dá 
ao  vocábulo,  conquanto  pudesse  vê-lo  com  a  verdadeira  quer  no 
Dicionário  da  Academia  Espanhola  (aji),  quer  no  Vocabulário 


1  in  BlBL.  DE  CL.^VSSICOS!  PORTUGUEZBS,  vol.  XLV,  p.  89  (fioS  do  XVI 

século). 

2  Santiago  de  Chile,  1904-1905,  p.  126. 


52S  Aiiostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


de  Aníbal  Echeverría  i  Reyes,  Vocês  usadas  en  Chile  ^ ;  talvez 
porém  se  guiasse  pela  falta  da  acentuação  devida,  no  enorme  car- 
tapácio  de  Mascarenhas  Valdez  -.  O  que  não  tem  justificação 
possível  é  a  extravagante  pronúncia  do  x  como  es,  que  lhe  pres- 
creve, sem  mais  razões,  e  como  se  a  palavra  fosse  latina  ou  grega, 
o  Contemporâneo,  com  a  mesma  competência  e  autoridade  com 
que  nos  diz  que  guta-percha  (q.  v.  em  cauchu^  se  pronuncia  guta- 
perxa  ou  antes  guta-perka  (!). 

Do  vocábulo  qjí  derivaram  os  americanos  ajiaco,  que  Eche- 
verría no  mesmo  vocabulário  define  como — «guisado  popular > — . 

O  Padre  Gaspar,  na  sua  curiosíssima  «Relação»,  acima  ci- 
tada, já  dá  à  palavra,  algumas  linhas  depois,  a  forma  escrita 
hagiaco: — «antes  nas  ceas  se  carrega  tanto  mais  a  mão  em 
algumas  partes,  que  o  ordinário  guisado  que  nellas  fazem,  pelo 
muito  hagi  que  leva,  tomou  delle  o  nome,  e  se  chama  Hagiaco; 
e  então  se  deitam  a  dormir  mui  consolados  em  suas  camas,  quasi 
debaixo  da  Linha  Equinocial,  como  se  houvessem  de  dormir  áo 
sereno  debaixo  dos  Poios» — . 

hangar 

Este  vocábulo  francês,  a  ser  necessário  cá,  deve  escrever-se 
com  o  h  inicial,  eraquanto  se  conservar  esta  letra  etimolójica, 
nula  para  a  pronúncia: — «Deu  entrada  no  ministério  das  obras 
publicas  o  projecto  e  respectivo  orçamento  para  a  construcção 
de  um  angar,  para  recolher  as  machinas  e  alfaias  de  lavoura  a 
vapor» — ^.  Poderia  dizer-se  barracão,  trapiche. 

Quanto  à  acentuação  ângar,  dada  pelo  Novo  Diccionábio,  é 
errónea,  pois  os  vocábulos  franceses  teem  todos  o  acento  tónico 
sobre  a  última  sílaba  pronunciada.  A  orijem  germânica  do  vocá- 
bulo francês  ó  já  muito  desviada,  hangen,  «pender»,  em  alemão. 


1     Santiago  de  Chile,  1900. 

»    DicciONARio  ESPANOL-PORTUGUÉS,  Lísboa,  1864 

3    o  Economista,  de  10  de  fevereiro  de  1889. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  529 


'  haplolojia 

Este  termo,  artificialmente  formado  de  dois  vocábulos  gregos, 
*ÁPLos  «simples»  e  lógos  « doutrina >,  quere  dizer  « simplifica- 
ção >.  Dá-se  este  nome  ao  fenómeno  que  se  produz  nas  palavras 
que  teem  duas  sílabas  de  idêntica  estrutura,  as  quais  se  reduzem 
a  uma  só,  por  brevidade  na  elocução.  São  exemplos  deste  fenó- 
meno em  latim  nutrix  por  nutritrix,  e  em  português  idola- 
tra por  iãololatra.  bondoso  por  botidadoso,  de  bondade  mais  o 
suficso  -oso,  etc. 

harém 

Esta  palavra  é  de  orijem  imediatamente  francesa,  como  o 
prova  a  acentuação  que  lhe  damos;  se  proviesse  directamente  do 
árabe  nanaM,  seria,  f arme,  ou  farão;  ou,  se  de  introdução  secun- 
dária, (h)árem,  ou  (h)árão. 

Os  vocábulos  arábicos  existentes  em  português  foram  nele 
introduzidos  em  três  épocas  diferentes,  e  obedecem  por  isso  a 
leis  diversas  de  transcrição: 

l.**  Período,  primários:  foram  recebidos  auricularmente  e 
encorporaram-se  na  língua,  acomodando-se-lhe  na  pronúncia,  a 
qual  é  representada  como  a  das  outras  palavras  portuguesas. 
Séculos  ix-xv. 

2.°  Período,  secundários:  introduzidos  pelos  escritores,  e 
mais  ou  menos  metodicamente  transcritos,  ou  mesmo  transli- 
terados,  conforme  o  valor  das  letras  no  alfabeto  português. 
Séculos  xv-xix. 

3°  Período,  terciários:  copiados  de  transcrições  ou  trans- 
literações  estranj eiras,  sem  consciência  dos  valores  das  letras,  e 
flutuantes  na  sua  escrita.  Século  xix,  e  continua!  *. 


*     V.  do  autor:  Deux  paits  de  phonologies  historique  portu- 
GAiSB,  Lisboa,  1892,  p.  10  e  11. 

3V 


530  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


haveres  ' 

Este  infinito  substantivado  no  plural,  além  de  significar  « pos- 
ses, bens»,  tem  o  sentido  especial,  popular,  de  «tesouros  ocul- 
tos»:—  «O  povo  acreditava  que  procurávamos  haveres  escon- 
didos» —  K 

haxixe 

E  esta  a  forma  portuguesa,  ou  se  quiserem  axixe,  da  palavra 
arábica  naxix,  que  quere  dizer  uma  casta  de  cánave,  que  os  pre- 
tos da  África  Ocidental  Portuguesa  chamados  ambundos  denomi- 
nam liamba,  e  que  é  inebriante,  quando  fumada.  Os  franceses 
escrevem  hachiche,  os  ingleses  hasheesh,  e  os  alemães  haschisch. 
V.  em  harém. 

héjira 

Assim  se  deve  acentuar  esta  palavra,  que  também  se  escreve 
hégira,  e  poderia  ortografar-se  éjira;  em  árabe  é  egre,  com  fi 
sonoro  inicial,  que  aqui  transcrevo  por  e:  quere  dizer  «fuga». 
A  pronúncia  ejira,  é  francesa.  Mármol,  Rehelión  de  los  Maris- 
cos, escreveu  hixara^^=Mxara  -. 

Este  vocábulo  pertence  aos  fins  do  2."  período  a  que  me  re- 
feri em  harém. 

herdade 

Assim  é  definido  este  termo,  com  relação  ao  Alentejo; — «Os 
campos  do  Alemtejo,  aparte  os  arredores  das  povoações,  são,  na. 


1  Portugália,  i,  p.  13. 

2  Y.  Dozy  y  Engelmann,  Glossairb  db8  mots  espaGnols  et  por- 

TUGAIS  DERIVES  DE  L^ARABB,  Leida,  1869. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  531 


sua  quasi  totalidade,  divididos  em  grandes  tractos  de  terreno, 
que  se  denominam  herdades»  —  ^ 


Hereró,  herrero 

Uma  raça  indómita  da  África  Ocidental,  que  tem  dado  que 
fazer  aos  alemães,  é  denominada  dos  Hererôs,  nome  que  dão  a 
si  próprios  (Ova-hereróJ. 

Este  nome,  na  pena  dos  nossos  jornalistas,  trausformou-se  em 
herreros,  «ferreiros»  em  espanhol,  com  mais  um  r,  e  mudança 
de  acento  tónico  para  a  penúltima  sílaba.  Disfarçado  assim  o 
nome  dos  valentes  negros,  trataram  de  lho  explicar,  e  mim  jor- 
nal se  escreveu  que  provavelmente  êle  lhes  viera  de  uma  povoa- 
ção espanhola,  chamada  Herreros,  e  até  a  localizaram  na  pro- 
víncia de  Ávila. 

Escolheram  mal:  Havendo  nada  menos  de  doze  localidades 
deste  nome  entre  Ávila  e  Çamora,  povoações  e  sítios  de  várias 
categorias,  tinham  feito  melhor  se  dessem  os  tais  pretos  como 
oriundos  de  um  despovoado  denominado  Herreros,  nd^  provín- 
cia de  Segóvia,  explicando  deste  modo  o  seu  despovoamento:  os 
antigos  habitantes  expatriaram-se,  e  para  os  não  conhecerem  tin- 
jiram-se  de  preto,  e  são  esses  os  actuais  Herreros:  já  se  vê,  na 
opinião  dos  ditos  jornalistas,  que  teimam  em  assim  crismar  os 
hererós,  sem  o  consentimento  destes,  atribuindo-lhes  habilidades 
que,  apesar  de  enfarruscados  cafres,  eles  não  teem,  pois  não 
consta  que  jamais  se  singularizassem  pela  sua  perícia  no  ofício 
de  Vulcano,  como  os  ciganos  no  de  caldeireiro.  Esta  extravagante 
alcunha,  como  era  um  despropósito,  criou  fama,  e  hoje  até  em 
livros  e  relatórios  se  lê.  Ora,  bastava  cousultar-se  qualquer  mo- 
desto compêndio  de  geografia  ou  etnografia  da  África,  para  se 


1     J.  da  Silva  Picão,  Ethnographia  do  Alto  Alemtejo,  in  Portu- 
gália, I,  p.  270. 


532  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


corrigir  o  erro ;  e  se  quisessem  obra  mais  autorizada,  ao  lançarem 
uma  vista  de  olhos  para  o  Dicionário  Geográfico  de  Vivien  de 
Saint-Martin  ',  que  não  é  nenhuma  obra  rara,  desfar-se-ia  o  en- 
gano com  muita  facilidade.  Aqui  fica  emendado. 

Quem  tiver  curiosidade  de  se  informar  mais  a  preceito  da 
língua  que  falam  os  hererós,  e  que  não  é  castelhano  de  Ávila,  pode 
ver  com  muito  proveito  um  volumito  da  colecção  Hartleben  ^, 
escrito  por  A.  Seidel,  onde  encontrará  gramáticas  das  línguas 
ochihereró  e  oxindonga,  ambas  cafriais. 


hetera 

E  uso  escrever  este  vocábulo  hetaíra,  e  hetaira,  de  que  re- 
sultam as  pronúncias,  erróneas  ambas,  etáira  e  etaira. 

O  vocábulo  é  grego  'etaíra,  proferido  hetáira,  presumivel- 
mente, no  grego  antigo,  etéra,  no  moderno.  Em  latim  seria 
hetaera,  pronunciado  etéra,  se  existisse;  mas  o  que  existe  é 
um  derivado  hetaeria,  pron.  etária,  correspondente  ao  grego 
'etairía,  «confraria  relijiosa».  Ora,  assim  como  do  latim 
sphaera  j  grego  sp'aíra,  se  formou  em  português  esfera  e  em 
francês  sphère,  é  evidente  que  em  português  de  hetaera  resulta 
(h)etéra,  e  em  francês  deveria  ter  resultado  hetaire,  sem  ápices 
no  i,  ou  hetère,  e  nunca  hetaire,  que  é  um  barbarismo.  Pa- 
rece-me  loucura  rematada  imitar,  por  capricho,  o  barbarismo 
francês. 

Hetera  quere  dizer  actualmente  « cortesã,  prostituta  de  alto 
coturno»,  com  sua  corte  de  basbaques,  os  quais  lhe  rendem  culto, 
ou  lhe  pagam  o  estadão,  conforme  as  suas  posses. 


1  Dictionnairb   de   Géographie  UnivbrseIíLE,    1879-1899,  ii, 
p.  672,  col.  III. 

2  Lípsia-Viena-Pest. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  533 


homem 

No  calão  dos  ladrões  do  Porto  esta  palavra,  seguida  de  um 
epíteto,,  classifica  os  amigos  dos  haveres  do  próssimo,  pela  se- 
guinte maneira :  homem  de  cardenho,  « gatuno  de  casas » ;  homem 
de  golpe,  « gatuno  de  algibeiras » ;  homem  de  salto,  « ladrão  de 
estrada*  ^ 

homeótropo 

E  um  neolojismo,  derivado  artificial  do  grego  'omoíos,  «se- 
melhante», e  TKÓPos,  «maneira». 

Serve  o  termo  para  designar  o  que  eu  denominei  formas 
converj entes,  isto  é,  uma  só  forma  resultante,  em  virtude  de 
leis  fonéticas,  de  dois  ou  mais  étimos  diferentes,  como  pena 
dé  penna  e  poena,  latinos,  vindo,  das  formas  antigas  vtido  e 
víindo,  a  primeira  particípio  passivo,  a  segunda  gerúndio  do 
verbo  vir,  antigo  víir.  O  fenómeno  contrário  denomiua-se  aló- 
trop6s,  ou  formas  diverjentes,  quando  de  um  só  étimo  re- 
sultam vocábulos  diversos,  diferençados,  ou  não,  no  sentido,  em 
virtude  de  leis  diferentes  de  acomodação,  ou  porque  entraram 
na  língua  em  períodos  distintos;  por  exemplo,  malha,  mancha, 
mágoa,  mácula,  todos  quatro  procedentes  do  latim  macula. 

V.  a  palavra  moleiro. 


hompim 

— « Nova  Groa,  29  de  setembro  [de  1897] ...  Os  parias  ou 
honpins  [sic],  que  fazem  os  despejos  e  outros  misteres  idênticos, 
casta  completamente  separada  de  todas»  —  2. 


O  Economista,  de  28  de  fevereiro  de  1885. 
O  Século,  de  21  de  outubro  de  1897. 


034  Aposlilas  aos  Dicionários  Portugueses 


horda 

Esta  palavra  veio  para  português  do  francês,  que  a  recebeu, 
segundo  se  afirma,  do  mongol,  ou  língua  tartárica  dos  mogores. 
Marcelo  Devic  diz-nos  ser  tártara,  e  que  em  turco  é  orda,  o  que 
não  explica  por  que  razão  se  ha  de  escrever  com  h  inicial;  esse 
h  em  francês  serve  só  para  evitar  a  ligação  com  a  palavra  pre- 
cedente, pois  se  diz  la  horãe.  e  não  Vhorde. 


hortejo 

Deminutivo  de  hô7'to. —  «No  hortejo  que  cerca  a  casa  um 
terreno  diminuto» — ^ 

—  «Quando  o  hortejo  se  reduz  a  proporções  minimas,  toma 
o  nome  de  quinchoso» — -. 


hucha:  v.  ichão  e  ucha 


hóspede,  hóspeda 

Contra  a  regra  geral  dos  adjectivos  em  -e,  que  são  uni- 
formes, os  substantivos  estão  sujeitos  a  muitas  excepções;  assim 
a  palavra  hóspede  forma  o  femenino  em  -a: — «Esta  conta  era 
feita  sem  óspeda» — ^.  Os  editores  aclararam  este  passo  do  Ro- 
teiro DA  viAQEM  DE  Vasco  DA  Gama  com  a  uota  seguinte: 
— « determinar  uma  cousa  que  depende  do  consentimento  ou 
vontade  de  outrem» — . 


1  Portugália,  I,  p.  20(3:  As  olarias  do  Prado. 

2  ib.,  p.  547:  Ethnographia  do  Alto  Albmtejo. 
8     Lisboa,  1801,  p.  lUO. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  535 


Hucá 


Diz-nos  o  Novo  Diccionákio  que  houcá  é  o  nome  que  se  dá 
ao  cachimbo  usado  pelos  banianes.  Ora,  Monsenhor  Kodolfo  Dal- 
gado  ^  transcreve  uká  e  translitera  huMã,  isto  é,  hukkã,  pelo 
quê  a  ortografia  portuguesa,  se  o  nome  é  usado  por  portugueses 
na  índia,  tem  de  ser  (li)acá.  Em  qualquer  caso,  o  ditongo  ou  da 
primeira  sílaba  é  inadmissível.  O  dicionário  que  cito  na  nota  (*) 
declara  ser  vocábulo  arábico,  e  aqui  está  a  razão  do  hou-,  reme- 
dado do  francês  por  escritor  insciente,  mas  cubiçoso  de  finjir  que 
»  sabe.  Marcelo  Devic,  com  efeito,  traz  o  termo  houca,  deste  modo 
definido: — «Pipe  turque  ou  persane  peu  différente  du  narghilé 
(Littré).  De  Tarabe  houqqct,  ou  si  Ton  veut  du  persan  houqqa 
[a  pronunciação  diverje,  sendo  a  persiana  mais  parecida  com  as 
europeias],  vase,  bocal,  et  spécialement:  «the  bottle  through 
which  the  fumes  pass  when  smoking  tobacco »  (Kichardson),  le 
flacon  oii  passe  la  fumée  du  tabac  avant  d'arriver  à  la  bouche 
du  fumeur» — -. 

hulha,  hulheira,  hulheiro 

A  palavra  hulha  é  copiada  do  francês  houiUe,  de  orijem 
incerta,  como  se  pode  ver  em  Stappers  ^:  é  uma  feliz  adopção, 
pois,  conquanto  já  tivéssemos  a  locução  substantiva  caevão  de 
PEDRA,  não  poderia  esta  servir  para  expressar  acepções  especiais 
que  tem  hulha,  nem  produzir  derivados  necessários:  —  «A  hulha 
liquida  [água],  quer  provenha  dos  mares  derretidos,  quer  das 
torrentes» — *. 


•  DiCCIOXÁRiO  KOMKANÍ-PORTUGUEZ,  p.  525,  Col.  I. 

-      DlCTlOXXAIRE  ÉTYMOLOGIQUE  0ES  MOTS  d"ORIGIXE  ORIEXTALB, 

Paris,  1876. 

3    DiCTioxNAiRB    SYNOPTiQUB    b"étvmoi-ogie   fraxçaise,  Paris, 
n.°  5802. 

*  Diário  DE  Noticias,  de  6  de  outubro  de  1903. 


536  Apostilas  aos  Dicio7iãrios  Portugueses 


—  «O  fim  das  liulheiras  [minas  de  carvão  de  pedra]» — '. 

—  «Os  jazigos  hulheiros  reconhecidos  neste  país» — ^. 


]iuri(a) 

Como  já  advertiu  Dozj  ^  com  respeito  ao  castelhano,  esta 
palavra  passou  às  línguas  da  Península  Hispânica  por  intermé- 
dio do  francês  houri,  e  assim  muitos  a  escrevem  cá,  supondo 
injénuamente  ser  puríssimo  árabe.  O  facto  é  que,  em  conformi- 
dade com  o  que  nos  dizem  o  mesmo  Dozy  e  Marcelo  Devic  *,  o 
árabe  nauRA,  que  daria  em  português  haura,  ou  melhor  fourá, 
é  o  nome  que  dão  a  uma  das  mulheres  do  paraíso  de  Mafoma; 
o  plural  é  hue.  Deste  plural  fizeram  os  persas  huei,  acrescen- 
tando-lhe  o  suficso  de  unidade,  e  assim  aumentado  passou  o  vo- 
cábulo ao  turco,  regressando  ao  depois  ao  árabe,  que  lhe  ajimtou 
o  seu  suficso  próprio  de  unidade  e,  formando  hurie,  prenunciado 
huría,  que  é  já  a  forma  empregada  nas  Mil  e  uma  noutes. 
Em  português  podemos  pois  escrever  huri,  ou  huría. 


hurra 


Esta  interjeição  veio  do  francês  hourra,  para  o  português  da 
gente  fina,  porque  o  povo  a  não  conhece.  Está  muito  em  moda 
nas  saudações  e  saúdes,  em  que  é  repetida  com  uma  sensaboria 
cosmopolita,  que  produz  tédio.  Não  creio  que  jamais  venha  a 
vulgarizar-se. 

Os  franceses  dizem  que  ela  lhes  veio  da  Kússia,  não  com  o 
enjoativo  caviar,  mas  provavelmente  por  intermédio  das  tropas 


1  2    o  Economista,  de  18  de  julho  de  1885. 

3      GlOSSAIRB    DBS    M0T8    ESPAGN0L8    ET    P0RTUGAI8    DÍJRIVÉS    DE 

l'arabe,  Leida,  1869. 
•*    op.  cit. 


A2)ostilas  aos  Dicio7}ários  Portugueses  537 


moscovitas  que  com  os  aliados  entraram  em  França  e  chegaram 
até  Paris,  após  o  destronamento  de  Napoleão  i. 

Existe  de  facto  em  russo  a  inteijeição  to7'á,  a  que  se  dá  como 
orijem  a  expressão  exclamativa  u  rai,  «no  paraíso»,  étimo  im- 
provável, visto  que,  exijindo  a  preposição  u  genetivo  no  nome 
que  reje,  a  exclamação  deveria  ser  u  raia,  e  não,  u  rai,  no 
acusativo. 

Como  na  palavra  horda  (q.  v.),  não  é  fácil  de  explicar  a  ini- 
cial h,  que  os  franceses  lhe  acrescentaram  e  não  soa,  mas  que  os 
ingleses  na  realidade  proferem. 

E  claro  que  esta  interjeição  nada  tem  que  ver  com  o  subs- 
tantivo urro,  do  verbo  urrar  \  ul(u)lare  (uri are  \  urlar), 
urrar,  por  assimilação.  Do  verbo  latino  ululare  talvez  também 
proviesse,  como  forma  diverjente,  uivar,  em  castelhano  aullar; 
cf.  o  francês  hurler,  que  tem  esta  orijem. 


EMENDAS 


abismo 


Não  é  na  versão  grega  do  Velho  Testamento,  chamada  dos 
Setenta,  que  o  adjectivo  ábussos,  correspondente  a  inanis  da 
Vulgata,  está  empregado.  Nos  Setenta  o  versículo  citado  reza 
assim:  'ê  dè  gê  ên  ábratos  kai  akataskeúastos.  Encontra-se 
o  dito  vocábulo  na  versão  Judaeo-Greco-Barbara,  edição 
rara  existente  na  universidade  de  Ocsónia,  conforme  o  que  se  lê 
no  erudito  artigo  Bible,  da  Penny-Cyclop^dia. 

Citei  de  memória,  desatendendo  o  cordato  conselho  de  Au- 
gusto Schleicher,  isto  é,  o  de  se  confrontarem  sempre  as  citações 
antes  que  se  mencionem;  e  quando  reparei  no  erro  já  não  era 
tempo  de  o  remediar,  por  estar  feita  a  tirajem  da  folha.  Aqui 
fica  emendado. 

A  forma  avisso,  por  abismo,  do  latira  abyssus,  figura  num 
texto  anterior  ao' século  xv,  A  visão  de  Tundalo  '. 


acenha 

Dou  aqui  mais  uma  abonação  antiga  da  prioridade  da  forma 
acena,  em  castelhano: — «e  el  camino  adelante  fasta  naua  de 
forcados  e  dende  derecho  ai  acena  desertida» — *. 

Cumpre  advertir  que  na  época  a  que  pertence  o  trecho  subsis- 
tia ainda  a  diferença  entre  p  e  ^  em  castelhano. 


1  in  «Revista  Lusitana >,  viii,  p.  247. 

2  Júlio  Puyol  y  Alonso,  Una  puebla  en  bl  siglo  xiii,  in  «Eevue 
Hispaniquo,  xi,  p.  257. •  texto  àdk puebla,  ou  < carta  de  povoação >. 


540  A^iostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


alcançar 

Conforme  K.  Menéndez  Pidal  ^  é  a  combinação,  ou  como  lhe 
chama,  fusão  de  incalceare,  por  adcalceare,  de  que  resul- 
tou primeiro  ancalçar,  e  depois  alcançar,  em  virtude  de  raetá- 
tese  entre  o  l  e  o  n.  Br  forma  incalceare  proveio  o  substan- 
tivo rizotónico  encalço,  como  o  vemos  na  locução  portuguesa 
ir  no  encalço  de  alguém,  substantivo  que  pressupõe  a  existência 
de  ura  verbo  encalçar,  já  rejistado  por  J.  I.  Roquete  -  em  por- 
tuguês, mas  que  do  mesmo  modo  existia  em  castelhano. 

alcorão,  alminar,  almenara 

Eis  aqui  uma  abonação  bem  característica  da  palavra  alcorão 
no  sentido  de  «torre»: — «para  o  sul  da  barra  principal,  que 
chamam  do  Alcorão,  por  ra/ão  de  uma  torre  ou  pirâmide  alta 
que  parece  serve  de  divisa  para  conhecimento  da  barra» — ^. 

Os  espanhóis  chamam  alminar,  em  português  almenara,  à 
torre  da  mezquita.  V.  Ortografia  Nacional  *,  a  propósito  de 
minarete  e  almenara  (q.  v.). 

V.  também  dois  artigos  publicados  na  folha  literária  do  jor- 
nal O  Século  pelo  snr.  David  López,  e  um  por  mim,  nos  dias 
26  de  março  e  9  e  23  de  abril  deste  ano. 

João  Carvalho  de  Mascarenhas,  na  Nova  descrição  da  ci- 
dade DE  Argel  (1621),  chama-lhe  simplesmente  torre: — «Ha- 
verá dentro  nesta  cidade  mais  de  cento  e  dez  mezquitas  bem 
lavradas,  limpas,  com  suas  alarapadas  e  esteiras.  Entre  as  quaes 
ha  oito  grandes  que  tem  suas  torres  mui  altas» — . 


*  Manual    elbmental    dm    gramática    histórica    espanola, 
2.*  edição,  Madrid,  1905,  p.  123. 

2  DiCTIONNAIRE  PORTUGAIS-FRANÇAIS,  Paris,  1855. 

3  António  Francisco  Cardim,  Batalhas  da  Companhia  de  Jesus, 
Lisboa,  1894,  p.  158. 

*  Lisboa,  1904,  p.  224  e  334. 


Apostilas  aos  Dicio7)ários  Portugueses  541 


alia,  álea,  aléa 

O  Padre  Manuel  Bernárdez  na  «Descrição  da  cidade  de  Co- 
lumbo» (Ceilão)  usa  a  forma  alea: — «Em  lugar  de  azemolas  se 
servem  de  aleas.  Alea  é  todo  o  elefante  sem  dentes,  quer  seja 
macho,  quer  seja  feraea» — ^ 

Mas,  çjdeve  ler-se  álea,  ou  aléa? 

alquilar 

J.  Cornu  deriva  alquilar  de  elocare,  mediante  prolepse,  ou 
resonáncia  antecipada  do  l.  De  elocare  veio  com  certeza  alu- 
gar, com  mudança  do  e  inicial  em  a-,  e  sobre  esta  preferencia 
de  a  como  inicial  veja-se  também  do  mesmo  romanista  a  uti- 
líssima Grramática  histórica  portuguesa  (Grammatik  der  portu- 
GiESiscHEx  Sprache,  íu  « Gruudriss  der  romanischen  Philolo- 
gie>,  I,  Strasburgo,  1906,  páj.  980  e  949). 

alva 

Dá-se  este  nome  a  uma  extensão  grande  de  areal,  poeirenta, 
no  distrito  de  Leiria,  Alva  de  Pataias.  Esta  freguesia  é  notável 
pela  quantidade  enorme  de  fornos  de  cal  que  ali  trabalham  '. 

bailadeira 

Eis  aqui  uma  abonação  clássica  do  vocábulo: — «não  poucas 
bailadeiras  que  os  Pagodes  para  este  effeito  [de  solenidades  re- 
lijiosas]  sustentam» — ^. 


1      in  BlBL.  DE  CLÁSSICOS  PORTUGUEZES,  vol.  XLI,  p.  79. 

*    Informação  do  snr.  Acácio  de  Paiva,  natural  de  Leiria. 

3    Padre  Manuel  Bernárdez,  <  Descrição  da  cidade  de  Columbo  >,  in  Bibl. 

DE  CLÁSSICOS  PORTUGUEZES,  Vol.  XLI,  p.  107. 


542  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


bisalho  (hiselho) 

A  pájinas  151  apontei  o  vocábulo  hiselho,  com  a  respectiva 
abonação.  Parece-me,  porém,  que  há  erro  tipográfico,  e  que  a 
forma  verdadeira  é  bisalho,  que  Bluteau,  no  seu  Vocabulaeio, 
definiu  do  modo  seguinte: — «He  um  atado,  em  que  vem  da 
índia  partida  de  diamantes  brutos» — ■.  A  palavra  figura  em 
quási  todos  os  dicionários  portugueses,  ora  escrita  com  s,  ora 
com  ^,  e  está  autorizada  por  muitos  escritores  nossos,  entre  os 
quais  citarei  aqui  Bernardo  Gómez  de  Brito,  «Memorável  rela- 
ção da  nao  Conceição»,  passim,  e  nomeadamente  a  pájinas  39 

(VOI.  XLVII  da  BlBLIOTHEOA  DE  CLÁSSICOS  POETUGUEZEs) : — «  por- 

que  naquella  nao  vinham  infinitos  diamantes,  e  todos  muito  bons, 
e  os  mais  delles  de  roca  velha.  . .  E  por  este  respeito  de  haver 
muitos...  empregaram  os  mercadores  quanto  dinheiro  tinham 
nelles,  mandando-os  naquella  nao,  os  quaes  vinham  entregues 
aos  officiaes;  elles  os  coseram  consigo  cuidando  de  os  escapar,  e 
desta  maneira  deram  os  mouros  com  elles,  tomando  ao  piloto 
grande  quantia  de  bisalhos  mais  que  a  todos» — . 


bruxa 

Em  abono  da  hipótese  que  formulei  de  que  haja  relação  entre 
o  vocábulo  hruxa  e  o  verbo  bruxulear,  como  denominações  vul- 
gares dos  fogos  fátuos  e  do  seu  aspecto,  aduzirei  aqui  um  passo 
interessante  da  Etiópia  oriental  de  frei  João  dos  Santos: 
—  «Ao  longo  do  rio  de  Çofala  e  de  Cuama  se  criam  infinitos  bi- 
chos como  escaravelhos  pequenos,  cujo  rabo  lhe  luz  de  noite 
como  brasa  viva,  dos  quaes  também  ha  neste  reino.  p]stes,  tanto 
que  vem  a  noite,  se  levantam  em  bandos  pelos  ares,  e  são  tantos, 
que  alumiam  quasi  todo  o  ar,  e  fazem  espanto  a  quem  não  tem 
notícia  do  que  isto  é,  como  eu  sei  que  fizeram  a  certas  pessoas 
estrangeiras  nestas  terras,  uma  noite  escura  que  dormiram  ao 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  54-3 


longo  deste  rio,  as  quaes  fugiram  cora  raêdo  para  a  povoação  dos 
cafres,  cuidando  que  eram  feiticeiras»  —  *. 


bufo 


Ao  que  no  competente  lugar  ficou  dito  acerca  deste  vocábulo, 
na  acepção  de  indivíduo  da  polícia  secreta,  devo  acrescentar  que 
em  germania,  ou  jíria  castelhana,  buho  é  sinónimo  de  soplón, 
«espião,  malsim,  denunciante».  A  forma  antiga  era  hufo,  exis- 
tindo também  o  verbo  hufar,  «denunciar,  malsinar»  -. 

Parece,  portanto,  que  neste  sentido  o  vocábulo  terá  orijem 
imediata  castelhana. 

cacique 

—  «o  mundo  acaba  na  primeira  volta  do  caminho,  em  qual- 
quer aldeia  sertaneja  de  cacique  politico» — ^. 

E  esta  uma  abonaçào  do  termo  cacique,  no  seu  sentido  figu- 
rado, em  português,  e  que  nos  proveio  de  Espanha,  onde  é  fre- 
qiientes  vezes  empregado  em  tal  acepção  figurada. 


canutilho 

Sobre  este  vocábulo  escreve-me  o  Prof.  K.  Menéndez  Pidal, 
em  22  de  março  deste  ano,  o  seguinte: — «Las  palavras  canuto, 
canutUJo,  canutero,  aunque  están  referidas  en  el  Dicc.  de  la 
Academia  á  cafiuto,  etc,  son  las  formas  hoy  corrientes  }'  usadas 
por  todos,  de  modo  que  las  formas  con  n  vienen  quedando  anti- 


1  (Lisboa,  1891),  Livro  i,  cap.  xxiii.  A  1.*  edição  é  de  1609. 

*  Y.  Kafael  Salillas,  El  delixcuente  espanol.  lenguajb,  Madrid, 
1890. 

3  JoRXAL  DAS  Colónias,  de  3  de  março  de  1906. 


544  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


cuadas  en  boca  de  gente  vieja  ó  aldeana.  Yo  desde  mi  infância 
siempre  oí  como  formas  comentes  las  con  w» — . 

A  definição  dada  no  texto  cumpre  acrescentar:  <'de  ouro,  de 
prata » ;  aos  canudinhos  de  vidro  dá-se  de  preferencia  o  nome  de 
viãrilhos. 

Em  Espana  a  palavra  canutillo  abranje  todos  esses  significa- 
dos, segundo  também  me  informa  o  mesmo  douto  romanista. 


chupão' 

O  Novo  DicoiONÁEio  havia  já  rejistado  este  nome  da  cha- 
miné no  Alentejo,  como  também  próprio  de  Trás-os-Montes. 

Não  resta  a  menor  dúvida  de  que  é  igualmente  conhecido  o 
termo  com  tal  significação  no  norte  do  reino,  visto  que  essa 
acepção  serve  lá  para  metaforicamente  designar  o  ramo  do  cas- 
tanheiro que  cresce  verticalmente,  como  se  vê  do  seguinte  passo: 

—  «uma  poda  que  [aos  castanheiros]  lhes  tira  todas  as  vergôn- 
teas  nascidas  no  pé  e  ao  longo  do  tronco,  assim  como  os  ramos 
mal  situados  e  os  que  crescem  a  prumo  (chupões),  que  absor- 
vem muita  nutrição» — .  (Gazeta  das  Aldeias,  de  20  de  maio 
de  1906). 

cigano,  cigana 

As  formas  portuguesas  deste  nome  étnico  teem,  sobre  as 
demais  usadas  por  outras  nações,  mesmo  em  relação  à  sua  es- 
crita, a  vantajem  de  ser  as  latinizadas,  empregadas  por  autores 
que  escreveram  em  latim,  como  vemos  dos  trechos  seguintes: 

—  «populos  Egyptiacos  ut  vulgariter  appellantur  Ciganos  ^»: 

—  «multa  Bilia  similia  officia  et  servitutis  ministeria  obeunt  Cin- 


*  Matias  Corvino  (1476),  citado  por  P.  Hunfalvy,  na  sua  memória 
Etwas  úbbr  die  ungarischbx  zigbunbr,  in  Actes  du  huitième  congrèá 
international  des  Orientalistes  (1893),  ii  Partie,  p.  113. 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses  545 

gani  et  Cinganae» — .  O  segundo  trecho  é  extraído  da  relação 
de  um  missionário  italiano  (1679)  ^ 

A  forma  espanhola  gitano,  foi  nsada  em  um  texto  castelhano 
do  século  xvii:  —  «si  peco  Moysen  en  matar  á  un  Gritano»  —  -. 

E  evidente  que  neste  passo  gitano  quere  dizer  «ejípcio»,  e 
não,  « cigano » . 

corpo-santo 

E  interessante  esta  referencia  ao  fenómeno: — «no  meio  desta 
agonia  e  aflição  nos  apareceram  umas  candeinhas  que  todas  foram 
vistas  pelas  vergas  e  mastros,  e  bordos  da  nao;  ao  que,  segundo 
os  mareantes,  chamam  o  Corpo-Santo» — ^. 


duna 


Neste  artigo  interpretei  a  denominação  toponímica,  ordinaria- 
mente escrita  Avel-o-mar,  como  sendo  A-vê-lo-mar ,  o  que  já  fi- 
zera na  Oetogbafia  Nacional  *.  O  snr.  Alberto  da  Cunha 
Sampaio,  na  sua  erudita  monografia  As  póvoas  marítimas  do 
NOETE  DR  Portugal,  desfaz  a  minha  conjectura,  que  se  fun- 
dara naquella  escrita  usual,  declarando:  — «...  Na  ortografia 
de  «Abre-mar»  o  erudito  autor  [José  Fortes],  abandonando  a 
dos  letrados  « A-ver-o-mar » ,  ou  «Avê-lo-mar »,  preferiu  a  lição 
do  povo,  que  pronuncia  do  primeiro  modo  com  o  sentido  claro 
de  «  Abra-do~mar » ,  angra  ou  barra  »^ — '^. 

Fica  assim  feita  a  correcção,  que  não  contende  com  a  dou- 
trina do  artigo. 


1  ih.,  p.  99. 

2  Ebvista  Lusitana,  viu,  p.  204. 

3  Henrique  Díaz,  «Relação  da  viagem  e  naufrágio  da  nao  Sam  Paulo >, 

(1560),  in  BlBLIOTHECA  DE  CLÁSSICOS  PORTUGUEZES,  vol.  XLII,  p.  05. 

4  Lisboa,  1904,  p.  210. 

5  in  Portugália,  ii,  p.  214,  nota  3. 

35 


546  Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 

Além  de  medão,  pode  também  usar-se  medo  (=médo),  como 
fez  Jerónimo  de  Mendoça,  na  sua  «  Jornada  de  África » — « e  dei- 
xando mui  depressa  a  cova,  se  subiu  por  uns  medos  de  areia» — ^ 


gafo 

Um  amigo  da  Estremadura  espanhola,  província  de  Badajoz, 
diz-me  que  é  ali  vulgar  o  vocábulo  canafote,  em  vez  do  cas- 
telhano comum  langosta  ou  saliamontes,  para  designar  o  ga- 
fanhoto ou  saltão.  No  vocábulo  estremenho  deu-se  pois  ali  a 
metátese  das  consoantes  das  duas  primeiras  sílabas,  gahafote, 
por  gaf anote,  e  ao  depois  a  contaminação  da  palavra  cana, 
«cana»,  era  virtude  da  qual  o  g  inicial  passou  a  c. 

Neolojismos  individuais  são  com  certeza  gafeirar  e  gafeira- 
ção  no  trecho  seguinte: — «Pode  vaccinar  o  resto  do  rebanho, 
[de  gado  laníjero]  mas  a  vaccinação,  ou,  antes  gafeiração  tem 
quási  tanto  perigo  como  a  doença  natural  [bexigas].  Ha  todavia 
vantagem  em  gafeirar» — ^, 


gajo 

É  natural  que  a  forma  gajo  seja  derivada,  por  indução 
errada,  dess'outra  forma  gajão,  que  parece,  mas  não  é,  aumen- 
tativa, e  está  mais  próssima  de  gachón;  visto  que  no  Brasil,  con- 
forme   o    DiCCIONARIO    DE  VOCÁBULOS  BEAZILEIEOS,  do  VizCOUde 

de  Beaurepaire-Rohan,  de  onde  passou  para  o  Novo  Dicc.  a 
explicação,  ela  é — «titulo  obsequioso  de  que  usam  os  Ciganos 
para  com  pessoas  extranhas  á  sua  raça.  Meu  gajão  equivale  a 
meu  senhor,  ou  cousa  semelhante»  — . 


1      in  BlBL.  DB  CLÁSSICOS  PORTUGUEZBS,  VOl.  XXXIX,  p.  17. 

■^     Gazeta  das  Aldeias,  de  3  de  dezembro  de  1905. 


índice  alfabético  e  remissivo  das  furmas  e  dos  vocábulos  mencionados 
no  texto  do  1  volnme,  referidos  a  cada  epígrafe 


aa :  v.  asado 
abada :  aba 
abada:  aba 
abadejo :  bacalhau 
abunar : abano 
abandonar :  Estranjeirismos 
abeberar:  arrasto;  baforeira 
abibe :  bisbis 
abotiliado :  abozinado 
abrasoar :  blasonar 
acaecer :  caída 
acalentar:  caída 
acaudelar:  caudel 
aceite :  cabide 
acerado:  campa 
acharão :  charão 
achavascado :  charabaseo 
aço:  campa 
acordar:  decorar 
açorear:  assorear 
adaião :  daíão 
aduana:  alfândega 
afastar :  aleixar 


aíidalgado :  apaniguado 
afogador:  abafador 
afogar :  abafar 
afunilado :  abozinado 
-aga :  arriol ;  azinhaga 
agadanhar:  gadanha 
agalujém :  calambá 
agatanhar :  gadanha 
aguado :  água 
aguardente :  água 
águia :  arrelíquias 
águila:  calambá 
aguista:  água 
agumil :  alfresse 
áibeto :  agude 
aipo :  ápeto 
aito :  eito 

ajardinar :  armazém 
ajoelhar:  geolho 
ajuar:  enxoval 
álamo,  alameda:  azinhaga 
aldeagar:  aldeagante 
alcomonia:  ferroba 
alfarroba:  ferroba 
alfavaca:  cobrinha 


548 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


alforje:  forjoco 
alfurja:  forjoco 
algoz :  carrasco 
alguergue :  arnó(s) 
alguidar:  aljofaina 
alicerce:  alfeça 
alraatrixa:  alraandra 
almazém :  armazém 
almeia:  febra 
almeice:  atabefe 
almeice:  atabefe 
almotolia:  aljofaina 
alótropo :  homeótropo 
altesa:  artesa 
aluguer:  alquile 
alumiar:  deslumbrar 
alva:  camisa 
amasilho :  artesa 
amicíssimo :  docíssimo  ' 
amortiguado :  apaniguado 
ancho:  cacho 
andoenças:  endoenças 
aneiro :  cada 
anjinho :  alma-negra 
anta:  dólraem 
anuduva : adua 
apanhador:  chisca 
apara:  fita 
aparador:  aparar 
apertar:  entregar 
Apocalipse:  genesi 
apoquentar:  bobo 
apupo:  cuquiada 
aquecer:  caída 
áquila:  calambá 
aqíiista:  aguísta 


-ária:  faro 
areado:  assorear 
areia:  areísco 
arenito :  areisco 
argola:  armazém 
arma:  armazém 
armazenar:  armazém 
arquinha:  arcainha 
arraia:  achada;  arrió(s) 
arraial,  arraialeiro :  arrió(s) 
arranjar:  enjenãrar 
Arriaga:  arrió(s) 
asa-de-môsca :  cágado 
aspar:  cabide 
assentodor:  arrasto 
assuada:  consoada 
assueto :  arrenega 
astro,  astroso :  desastrado 
atacador :  arrasto 
atambor:  bétele 
atar:  ápeto 
atenazar:  atazanar 
áugua: êaugar 
auto :  eito 
avalanche:  alude 
averiguar:  apaniguado 
avesso :  envés 
avisso:  abismo  [Eiíiendas] 
avistar:  entrevista 
avito:  ancestral 
avó,  avô :  arrió(s) 
axi,  axiaco :  haji 
axorca:  atabefe 
axuar:  enxoval 
azarcão :  atabefe 
azeirado :  campa 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


549 


azevo,  Azevedo :  azevinho 
azinho :  azinhaga 
azougar:  avelar 
azougue : açougue 
Azoia:  Furada 


bacalaiba:  bacalhau 

bacharel :  bacalhau 

baço :  bubela 

báculo :  bago 

Badajoz,  Bodalhouce :  aragoês 

badejo :  bacalhau 

bogo :  desastrado ;  espiga 

bajular:  baboujar 

balde  (de) :  baldo 

bangue:  chambo 

baobab:  embondeiro 

barata:  carocha 

barba(s) :  bigode ;  canicinho 

baroque:  barroco 

barraca:  espera 

barranco :  barroco 

barreirento:  bombo 

barril:  caneco 

bastarda :  ginete 

bastos:  saco 

batata:  semilha 

batota :  bilhafre 

bebedouro :  arrasta 

Belcouce :  alcouce 

beliche:  câmara 

bem-aventurança :  êaugar 

berjaçote :  cotio 


berrão :  bilhafre 

besco :  bescate 

bêvebra :  baforeira 

bibelot:  brinco 

Bié :  baruísta 

bilro :  espirro 

biombo :  bonzo,  cágado,  dáiraio 

biscainho :  euscaldunac 

bisco :  biscato 

biscouto :  galheta 

bispo:  bubela 

bobèche:  aparadeira 

boccarra:  cangarra 

bodega :  adega 

bodum:  faro 

bogalho :  bogacho 

boémio:  cigano 

bofetada :  galheta 

botanga :  chila 

bolacha:  galheta 

bolota:  bejoga 

bondoso :  haplolojía 

bonzo:  dáimio 

bordão :  burro 

borracha:  cauchu,  cerne 

bote:  batel 

botequim:  adega 

bovina:  chacina 

braga:  calceta,  canicinho 

bucal:  buço 

buena:  arrenega 

buhonero :  fofarinheiro 

bujio :  burro 

bule:  chá 

bus:  chus 

buz :  bruços 


550 


Apostilas  ao<  Dicionários  Portugueses 


cabaça:  afogar 

cabana:  cova 

cabano:  cova 

cabeludo:  deúdo 

cábillau:  bacalhau 

cabo:  caudel 

cachimbo :  cachimba 

cacho : cauchu 

cachorro :  burro,  cacho 

caco:  cacho 

caçoula:  caço 

cadaneiro :  aneiro,  cada 

cadeia:  calceta 

caiota:  chila 

caipora:  bruxa 

caixote :  assobio 

çalamaleque :  çambuço 

calambuco:  calambá 

calão :  baste 

calças:  bragas 

calo:  calão 

cambas:  cantadoura 

camvê:  azeite 

canastro :  espiga,  espigueiro 

cancela:  escancarar 

cancro:  escancarar 

candeia :  facho 

candeeiro:  castiçal 

canela :  bacia ;  cadelo ;  escancarar 

cangalhas:  gafo 

cangosta:  congosta 

Cango-Ximá :  bonzo 

canhamaço:  belhó 

cânhamo :  cánave 


caniço:  canastro,  espiga 

canivete :  crabelina 

canoa:  banheiro 

cantaria:  areísca 

cão:  burro 

caoutchouc:  cauchu 

capa:  coroca-,  dáimio 

çapata :  braga 

capitel:  apanha;  caudel 

cara:  carranca 

caramol:  clamor 

carapinteiro :  algaravia,  carabelina 

carcaça:  canastro 

caranguejo:  escancarar 

carapau:  cherelo 

carcunda:  calombo 

carda:  aselajem 

cardeal:  bacalhau 

cárdeo :  avergoar,  encardir 

cardir:  encardir 

cargo:  charola 

caridoso :  bondoso 

carimbo :  calombo 

carmear:  carrapiço 

carpela :  escar(a)pelar 

carrejar :  acarrejar 

Cascais :  Furada 

cassungo :  almandrilha 

castanha:  azinhaga 

castanhola:  batata 

castão :  gastão 

castelhano:  aragoês 

casti(e)llo:  caudel 

castro :  citánia 

catana  :"cágado 

cátaro :  abafador 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


551 


cavalo :  burro 
ca  vide:  cabide 
cacear:  ciciar 
cedo :  fèvera 
cega-rega:  chucharrão: 
cemitério :  arrenega 
cenário :  decorar 
casta,  cesto:  bacio,  espiga 
cevo :  cibo 
chabancas:  ciciar 
chada:  achada 
chafurdo :  carniceiro 
chalacear:  caço 
chaleira:  bui 
chama :  achar,  borabaça 
chaminé:  bombaça 
chançarel :  bacalhau 
chão: chana;  diabo 
chapeleiro :  guarda-sol 
chapéu :  chara vasco 
chato :  escaparate 
chavascal:  charabasco 
chave: facha 

chavelho :  apanha,  cabeça 
chávena:  chá 
cheda:  cantadoura 
chefe :  cacique 
cheio:  deslumbrar 
cheirar:  cheiro,  faro 
cheiros:  segurelha 
chicango :  ensaca 
chícara:  chá 
chicharrón :  chucharrão 
chiqueiro :  curral 
chisseiro :  chicua 
chituredo :  chicua 


chola:  cacho 
chor:  diabo 
chuchar:  chacina 
,     cidiídão :  aldeão 
cidade:  citánia 
cinzete :  goma 
cipai :  ensaca 
cirieiro:  candeia 
cisco:  chisca 
cividade:  citánia 
chamante :  falar 
claustro :  crasto 
coador:  arrasta 
coalhada:  asada 
coba:  chicua 
côcedra:  colchão 
coco:  carranca 
co.elho :  colheira,  diabo 
cofre:  cova 
cognome :  alcunha 
coireletro:  cada 
coisa:  aquela 
colgar:  colcha 
comaca:  cornaca 
comonia:  ferroba 
compostouras :  apanha 
conca: cunca 

concertar:  consertar,  févera 
conde:  condessa 
confetti:  confeito 
confesso,  confissão :  discrição 
considerar:  bondoso 
consolamento :  abafador 
constitucional :  estatutário 
copejar :  gotejar 
copo:  câmara,  cocho 


552 


Apostilas  aos  jpicionários  Portugueses 


cor :  decorar 

corbelha :  golpelha 

cordão :  carreirão 

cordeira :  carapaça 

cordoeiro :  bacalhau 

comicho:  cabaça 

cornipo :  galhipo 

coroca:  bedem 

coser:  besouro,  cozinha 

cotovelo :  côvado 

cotovia:  corja 

condel :  caudal 

cova:  covo,  doninha 

còvodo:  côvado 

cozedra:  colchão 

cozer:  besouro,  cozinha 

cramação :  clamor 

cramol:  clamor 

cravina :  carabeUna 

crisada :  cuquiada 

cristão :  abafador 

crível:  novel 

cuberto :  cubrir 

cucuiada:  cuquiada 

cuidoso :  bondoso 

curadillo :  avergoar,  bacalhau 


dádiva:  data 
debruçar-se :  bruços 
declareza:  comparança 
decoro:  decorar 
dedal:  besouro,  bondoso 
defesa:  charabasco 


deitar  alonje :  aleixar 
deixar:  desdeixado 
dente,  dentista :  absentista 
derviche:  daroês 
desabar:  aba 
desaguar:  êaugar 
descaída:  caída 
descarregar:  carregar 
descrição:  discrição 
desenganado:  desconfiado 
desengonçar :  escancarar 
desesperado :  desconfiado 
desesperançado :  desconfiado 
desinfeliz:  desastrado 
desinquieto :  desastrado 
desmazelado :  desastrado 
despojar :  desbulhar 
desvanecido :  desmaio 
deteúdo:  deúdo 
diálogo :  data 
diária:  geira 
discordar:  decorar 
dívida:  data 
divido :  daúdo 
doçaria:  confeito 
doce:  colchão 
dois :  grou 
donzela:  doninha 
dose :  data 
dugá:  avergoar 


êader :  êaugar 
eagle-wood :  calambá 


Aj)Ostllas  aos  Didonários  Patiugneses 


553 


Eça:  essa 

eguariça:  asneira 

eiró(s) :  arrió(s) 

eixo :  apanha 

ejípcio:  cigano 

ejitanato :  cigano 

em :  faiança 

em-ader :  êaugar 

em-asprar :  êaugar 

emborcar :  borco 

embuçar:  buço 

empipa:  embondeiro 

empreita:  espreitar 

encabeçadas:  desmochar 

encarriçado :  carriço 

encher:  achar;  cacho 

encinzeirado :  acinzeirado 

encrave :  enclave 

engadanhar:  gadanha 

engalfinhar:  gafa 

engalinhar:  galinha 

engaranhado,  engaranhido :  gadanha 

engelhar :  avelar 

engonço :  escancarar 

engraxar:  graxa 

ensogadura:  cabeça 

enteiro:  faro 

entrevado:  arredar 

enveja :  bojo ;  grelha 

enxó:  enxoval 

enxame :  enxoval 

enxofre:  enxoval 

enxoval :  golpelha 

esbulhar:  desbulhar 

escarnecer:  caço 

escangalhar:  canga 


escano :  escamei 
escoitar:  ascoitar 
escumalha:  chucharrão 
esfera :  hetera 
esfregar:  estregar 
esgadanhar:  gadanha 
esguiçar:  escarçar 
esgatanhar:  gadanha 
esgraminhar :  ancinho 
esnoga:  esmola 
espádua:  espada 
espalda:  espada 
espatela :  espada 
espear :  espar 
espelho:  desastrado 
espera :  apanha,  arrasta 
espeteira:  estanheira 
espigueiro:  canastro,  feno 
esquecido :  falar 
esquerdo :  arrió(s) 
estadoal:  estatutário 
estanheira :  casa 
estantígua:  bruxa 
estatura:  estatelado 
estrela:  desastrado 
estro:  desastrado 
exame:  enxoval 
exército :  enxoval 


fábrica:  cantiga 
fabrico :  escancarar 
facada:  cuquiada 
facho :  facha 


554 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


fada:  cabaça,  fado 

fagueiro :  afagar,  escada 

faia :  fado 

faiante :  fado 

falaises:  arribas 

falda:  espada;  fralda 

falante :  falar 

faltriqueira :  fralda 

fangiíeiro :  fungueiro 

farinha:  cabeça 

favaca:  alfavaca 

faxa :  facha 

fecha,  fecho:  data 

feérico :  ancestral 

íeijão :  frade 

feixe :  faxa 

felpudo:  deúdo 

fêmea:  deslumbrar 

fera:  faro 

ferreiro :  hereró 

ferro :  campa 

févera :  febra 

fevereiro :  febra 

fiar:  febra 

fibra :  febra 

fidalgo :  apaniguado ;  bondoso 

filhó(s) :  belhó(s) 

fístico :  alfôstigo 

fiúza:  desconfiado 

flamengo :  escaparate 

fogo-fátuo :  bruxa 

foguear:  chupão 

fól(e)go:  carregar 

folgar:  carregar 

for:  decorar 

frade :  desastrado 


fragvieiro :  fangueiro 
framengo :  escaparate 
franganote :  assobio 
frecheiro:  brejo 
freixeal :  azinhaga 
frente :  esteira 
fresa :  fragária 
fressura :  forçura 
fome :  dáimio 
funil :  candeia 
furna:  forno 
fuseola:  gastão 
fuso :  gastão 


G 


gaboná:  bacalhau 

gado :  ganadeiro 

gafanhoto :  gafa 

gafas:  gafa 

gafeira:  gafa 

galdido:  gualdido 

galfurro :  gafa 

galinha:  estou-fraca 

galiziano :  galego,  gereziano 

galo :  frango 

gana:  esganar 

ganhar:  gadanha,  ganadeiro 

garfo :  gafa 

garimpa:  gaiolo 

garra:  garroteia 

garrote:  garroteia 

gastar:  cibo 

gato;  burro;  carapuça;  gadanha 

gatum:  car.vpuça 


Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


555 


geada :  ge(i)o 
genro :  enjendrar 
geoso :  ge(i)o 
geral :  familial 
gerar:  enjendrar 
ginja:  garrafa 
goela:  golilha 
gogo :  enjogar,  godo 
goivo :  enxoval 
gom :  bacia 
goma-guta:  cauchu 
gomil:  bacia 
goraz:  cibo 
grado:  copo 
gradura:  feijão 
gralho :  desastrado 
gravateira :  estojeira 
grei :  clan  ,freguês 
grés :  areísca 
greve :  arrenega 
Grijó :  Grejó 
grilheta :  braga,  calceta 
grimpa:  gaiolo 


grinalda :  guirlanda 
grosso :  gordo 
grude :  desastrado 
guadanha:  gadanha 
Guadiana:  aragoês 
gualdir :  arrió(s) 
guarda-roupa :  cubrir 
guardar :  Estranjeirismos 
guedelha:  gadelha 
guilherme:  alberto 
guinda,  Guindais:  garrafa,  ginja 
guta-percha :  cauchu :  haji 


H 

hereo :  adua 
herrero :  hereró 
hervar:  arovar 
hipoteca  adega 
homem :  deslumbrar 
(h)uivar:  caluete 
Jiule:  cauchu. 


ERRATAS   ESSENCIAIS 


Pájina 

Linha 

Erro 

Correcção 

16 

12 

vocábulo 

vocábulo 

24 

19 

notabílissima 

notabilíssima 

30 

4 

existência 

existência 

> 

11 

incluiu 

incluiu 

> 

13 

daquella 

daquela 

65 

16 

fron 

from 

81 

24 

trompeta 

trombeta 

87 

11 

vintém 

vintém 

88 

23 

longe 

lonje 

91 

22 

arrenegada, 

arrenegada 

101 

18     , 

e  passim,      torquês 

turquês 

110 

19 

fruto  e 

fruto,  e 

138 

2 

vemos 

vemos 

143 

16 

trouxemo-la 

troussemo-la 

145 

21 

peor 

pior 

160 

11 

esse 

esse 

170 

última 

DiCTIONAIBE 

DiCTIONJÍAIEE 

171 

7 

quais 

quais 

173 

25 

coxa 

coixa 

184 

18 

arábica 

arábica 

185 

31 

Tangere 

Tánjere 

558 


AiJostilas  aos  Dicionários  Porturjueses 


Pájina 

Linha 

Erro 

Correcção 

201 

31 

ABABE 

ÁRABE 

202 

13 

alqáhira 

alqafiira 

206 

16 

esse 

esse 

213 

21 

salgueiro)  >  — . 

salgueiro)». 

232 

30 

qni 

que 

233 

6 

cetim 

cetim 

237 

4 

iuglezes 

ingleses 

238 

2 

separadas 

separados 

246 

26 

u 

ou 

255 

23 

com  0 

como 

262 

3 

palavra 

palabra 

275 

18 

Coiri 

Cosi 

282 

19 

cappela 

cappella 

299 

22 

quer 

quere 

319 

9 

verga 

verga 

331 

5 

E  termo 

É  termo 

336 

2 

galináceos 

galináceos 

» 

32 

cotovêloa 

cotovelo, 

» 

33 

de  um, 

de  uma 

363 

8 

uimen  para 

a  uimen  por 

368 

26 

artificial 

artificial 

378 

16 

contraido 

contraído 

382 

16 

Hastemann 

Hartmann 

» 

penúltima 

DiCTIONAIRE 

DiCTIONNAIEE 

407 

17 

Ignoro 

Ignoro 

411 

2 

espaldeiràda 

espaldeiràda 

415 

12 

particularisar 

particularizar 

416 

12 

quer 

quere 

417 

7 

latino 

latino. 

437 

4 

tamul 

tamil 

Apostilas  aos  Dicionários  Portugueses 


559 


Pájina 

Linha 

Erro 

Correcção 

445 

3 

SEMÂNTICA 

SEMÂNTICA 

4ÕÕ 

3 

dois 

três 

465 

5 

Anna 

Ana 

470 

9 

desima 

designam 

471 

15 

dicionários 

dicionários 

472 

25 

t  latino  em  r 

t  latino  em  i 

476 

1 

filies 

filios 

477 

2 

era 

im 

483 

14 

porque 

por  que 

505 

20 

menos, 

menos 

Õ21 

3 

ignoro-o 

iguoro-o ; 

524 

4 

Poruguesa; 

Portuguesa; 

\v 


PC  Gonçalves  Vianna,  Aniceto 

5329  dos  Reis 

G6  Apostilas  aos 

t.l  dicionários  portugueses 


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