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Full text of "A rua escura: tradição portuense"

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Por~\- ÇQ71.-2 35 



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NA TTPOGRÀPHIÀ DA REVISTA, 
Raa da* Horta* *.• 71. 



4 RUA ESCURA. 



tumçIo ntnm 



FOR 



cJlaiftiotu/o K^oeX&o ádoíxòcvÒcu. 



SI m tcrdad & bom, yo ao o hc hy de ter,' 
Pêro non lo qaiero en ofrido pooer. 

(I. L. Segura de Astorgà). 



».• BDiçIO. 



PORTO i 

EM CASA DE CRUZ COUTINHO - EDITOR, 

raa doe Caldeireiro* d.** 14, 16. 

1887. 



7VCT <*7/.3.3J 



. -3C0LUGEUBHARY 
CCU.NT OF SANTA EULAliÀ 
COLLECTION 
6IFT OF * 
iOHN & STETWH, ir. 

AUb 14 1924 



ARDA ESCURA. 



flUMÇft NMIHSI 



IM8-I6M. 



I. 



Tntto é glola p*r qnetta rontrada. 
(Carrkr). 



N, 



Iunca a cidade do Porto accordou tam rui- 
dosa de alegria como na manha do dia 6 de Janeiro 
de 1628. 

A camará tinha dias antes lançado bando por 
todos os arredores, annunciando as festas nunca vis- 
tas com que n v esse anno devia celebrar a adoração 
dos Magos, e pode-se dizer que ninguém dormira na 
noite, que precedeu a esse famoso dia, com o sen- 
tido nos momos, missa pontifical e fogo de artifi- 
cio, com que o senado portucalense mimoseava os 
seus amados burguezes. 



• * 



6 A RUA ESCURA. 

O senado tinha as suas razões para assim obrar. 
Lido na historia antiga, sabia que o povo romano 
se governava com panem et circenses. 

D. João de Valladares, approveitara também a 
occasi&o para chrysmar as suas ovelhas, exercício 
em que, pelo menos, gastou os três quartos da 
sua vida episcopal; pois que, se os seus panegy- 
ristas, que lhe chamam o Moysés portuense, faliam 
verdade, deu este sacramento a duzentas mil pes- 
soas. 

Os sinos da velha cathedral, baloiçados pelos 
esforços de todos os garotos do bairro, dos quaes 
os mais atrevidos se viam encarrapitados nas porcas 
surgir e desapparecer pela ogiva da torre, eram ca- 
pazes de despertar ató os sete dormentes com o sus- 
surro, que dos enredados becos e ruas se erguia, 
formavam um concerto confuso que levava as suas 
notas até muito ao de lá do rio. 

Dois homens montados em bem arreiados gi- 
netes, e seguidos por utna pequena comitita des- 
ciam pela estrada real, magnifica azinhaga, |>ara o 
bairro de Villanova, prestando attento ouvido a essa 
rumor, e com os olhos fitos na margem fronteira. 

O Porto parecia uma cidade de fadas, aio 
pela belleza interna, que a não tinha, mas pelo 
aspecto qufe apresentava aos caminhantes, Dir-so-ia 
suspenso sobre nuvens, e prompto a desapparecer no 
ar. O Douro desdobrava do seu leito um vóo opaco 
de névoa que lhe occultava toda a base, a cinta de 
muralhas com que um sacerdote guerreiro a re- 



\ 



TRADIÇÃO PORTUKNSI, 7 

catara, deixando vêr apenas os cabeços das ooRinas. 
Eram ilhas aéreas. A maior, coberta de edifícios es- 
guios e negros, mostrara, dominando-a, as duas 
torres da cathedrai com as snas ameias e o seu 
flor&o, que parecia o olho d'aquelle cyclope de 
granito. Junto, sobre um edificio também negro, 
e de que apenas se via a parte superior, pendia 
orna bandeira vermelha, que o peio dos seus bor» 
dados mal deixava ondear. Era o estandarte da 
cidade arvorado em nm mastro assente no eirado 
dos paços municipaes, de cuja varanda desceram 
e tinham de descer sobre a cabeça das turbas ia* 
quietas dos bons portuenses muito discurso ordeiro, 
pezado e massudo, .e muita proclamação revolucio- 
naria. Uma linha de dentes de granito destacava 
no fundo, e vinha descendo por uma encosta de 
rocha, morrer naquelle mar aéreo. Era parte dos 
muros da velha cidade dos normandos, do burgo 
do bispo. Mais além, no ultimo plano, com a base 
perdida n'uma tinta atui vaporosa, em que se 
mergulhavam os tectos das habitações, os cimos 
tocados pelas quentes tintas do sol nascente, viam* 
se as torres de Cima de VUla è porta do 8ol. Como 
escolhos, aUeavam~se sobre a névoa, na frente, as 
torres pesadas dos Agostinhos descalços, a crus 
floreada do mosteiro de S. Domingos, e nm ou outro 
telhado ou soteia mais elevados. 

A .oeste via-se outft ilha, sobre a qual as- 
sentava envolto ainda em andaimes e guindaste o 
mosteiro de & Bento. As hortas e quintas que se 



8 A RUA ESCURA. 

estendiam desde a Porta de Carros até á pequena pi- 
nha de casas que circu nadava a collegiada de Cedo- 
feita, como o rebanho á volta do pastor, mostrava co- 
se também envolvidas em um sendal mais ténue, 
como o complemento d'aquella phantasmagoria. 

Para nos servirmos de uma figura quasi bur- 
lesca, que nos despertou na mente um panorama 
egual, o Porto accordando, assomava a cabeça fora 
do lençol, e .mostrava a sua. fronte gigantesca, es- 
preguiçando*se aos primeiros raios do sol. 

Meia hora depois a cortina vaporosa estava 
inteiramente corrida, e os nossos eavalleiros, se 
em vez de terem baixado para o bairro de Villanova, 
fossem pedir hospedagem aos cónegos "regulares de 
S.'° Agostinho, das janellas do seu convento da Serra 
veriam um como exercito de pontos semoventes, 
que se estendia desde todas as portas da cidade e 
se perdia nos casaes vizinhos, destacando clara- 
mente no chio despido de verdura, a que a bon- 
dade d'.esse inverno dera uma côr esbranquiçada. 
Similhava perfeitamente a um rancho de formigas, 
sahindo do celleito, e espalhando-se pelo campo á 
pista dó provisões. Uma única differença havia, e 
era, que o movimento era o inverso. Todos esses 
vultos se dirigiam de diversos pontos, a perder-se 
debaixo dos muros da velha cidade. 

Quando desciam o despenhadeiro, que hoje se 
chama rua Direita, por a^elle espirito contradicto- 
rio de todos os edis, ou senadores municipaes, que 
ateimam em assim chamar a todas as ruas tortas, o 



mm 



TRAMÇÃO PORTUENSE. 9 

mais velho dos caminhantes começou a sentir-se 
ferido na sua vaidade. 

0* caso n&o era para menos. Nem a sua wa- 
lona de quatro batarias de folhos, um pouco amar- 
rotados péla jornada, verdade é, nem a sua pêra 
ponteaguda e grisalha, nem o seu bigode, que, ape- 
zar de haver oito dias n&o ter visto os costumados 
papilhotes, conservava as guias encaracoladas, nem 
o collar de oiro, que o seu longo manto de jornada 
deixava transparecer, nem o seu arde importância, 
nem o caracolar do seu cavallo, a que retinha a ré- 
dea e dava de espora, nem a sua comitiva conse- 
guiam um olhar dos bons burgueses : fechando as 
portas de suas casas davam-the costas, e tomavam 
a dianteira em direcçSa ao rio. 

A' cada cidadão que passava, o nosso homem 
sentia mais viva a sua ferida. resentimento, ao 
decimo-quinto tornou-seeorcholera. Árremeçou so- 
bre elle o ginete, com risco de o esmagw, gri- 
tando ao mesmo tempo com toda a amabilidade : 

— Arreda, vilàol 

O pedestre desviou-se, fitando-o com ar de 
espanto, e a mão foi-lhe descançar insensivelmente 
sobre o cabo do punhal, arma que, prohibida em 
quasi todos os pontos do reino, era consentida aos 
bons homens da leal cidade do Porto ; os olhos, po- 
rém, encontraram coisa que os seduziu — o collar de 
oiro — e, como maquinalmente também, tirou o cha- 
péu. Nào poderei dizer com toda a certeza se esta 
barretada foi feita ao collar, se ao cavalleiro. O 



10 A RUA SSCURA. 

certo é, que tirou o chapéu, e oio reagiu contra 
o mimoso epitheto com que o tinham baptisado. 

Àquella barcetada salvou talvex o Porto *de um 
cataeiysmo tremendo. As iras do fidalgo desceram 
o sufficiente para se dignar dirigir a palavra á 
primeira mulher que encontrou com a cabeça Cora 
da porta examinando os astros. 

— Qual é a melhor poisada da villa ? 

— Deus o guarde — redarguiu a interrogada, 
puxando as pontas pendentes de uma touca de panno 
de linho, e com um ar de quem dava n'aquelle cum- 
primento uma lição de civilidade ao interrogados— 
É a do meu compadre Zé-Testa, a estalagem da 
Senhora da Asninha. Lá é a gente tractada como 
em casa de cónego: aqui Ho é um regalo... é a me* 
lhor da terra. Fica lá em baixo ao fim da rua; Olhe, 
*~ accrescentou — não tem que se enganar, é a 
única da villa. 

Aqui não havia que replicar. A velha tinha 
carradas de razão: devia forçosamente de ser a 
melhor, visto não haver outra. cavalleiro picou 
o cavallo e toda 'a comitiva fez o mesmo, saudados 
pelo «Deu& os guarde» com que a comadre áot se* 
nhor Zé-Testa lhes deu a segunda lição de polidez, e 
acompanhados de uma imprecação expressiva, mas 
em voz baixa. 

— Olha os estafermos 1 ~ resmungou, ella — ♦ 
parece que tratem el-rei na barriga I Nem sequer 
um louvado seja nosso Senhor Jesus Christo dizem 
á gente I 



TRADIÇÃO P0HTUE3SE. 11 

Ainda qne tivesse dito em voz alta estas pala- 
vras» nio seria ouvida pelo cavalleiro nem por nin- 
guém da soa comitiva : quando acabou já soffrea- 
vam as suas cavalgaduras diante da porta da in- 
culcada estalagem. 

Era esta um barracão» encostado a uma casa 
de um andar. Sobre a porta cocheira baloiçava» 
pendente de uma haste de ferro» uma pintura a ver- 
melho, azul, amarello e branco» que tinha preteri- 
ções a representar a fuga para o Egypto. Por baixo 
lia-se» com a orthographia que ainda é própria dos 
estabelecimentos públicos» o nome da locanda. 

senhor Zé~Test* era» dé Villanova, a única 
pessoa talvez» que não tinha a cabeça cheia dos 
momos e glorias que o dia promettia, e baixou, a 
receber os seus hospedes com todo o agrado ; isto 
é» com um sorriso parvo que o costume lhe tinha 
impresso na physionomia. 

O homem da cadeia de oiro resmungou algu- 
mas palavras em castelhano aos da comitiva» que 
se apeiaram, indo um tomar-lhe o estribo» e gritou 
para o hospedeiro : 

— Quero por algumas horas os teus melhores 
quartos. 

O estalajadeiro parecia educado no Oriente: 
era extremamente parco* de palavras e pródigo de 
cumbaias e sorrisos. Sem lhe responder sim ou n&o» 
foi recuando adiante do velho viajante e do seu 
companheiro até esbarrar com a porta da casa con- 
tigua ao barracão, para onde tinham entrado os ho* 



12 A RUA ESCURA. 

mens da comitiva, e depois de outra quantidade 
de mesuras, cora que parecia querer fazer o com* 
passo e a segunda aos sinos da Sé, cujos sons o 
norte levava aos seus ouvidos, foi subindo uma es- 
cada, que parecia feita para quebrar a cabeça por 
ella abaixo, até a uma sala, designada como o 
melhor aposento da casa, e que comtudo, a mo- 
déstia lhe fazia afiirmar ser bem mesquinho para 
sua senhoria. 

velho fez uma careta de descontentamento, 
mas sem dizer nada sentou-se, tirou da algibeira 
uma enorme carteira de coiro, sacou d'esta al- 
guns papeis, e começou a revêl-os com toda a atten- 
çào. 

mais moço, que até all^ guardara silencio... 
queremos dizer, nào fallára, pois que nào tinha 
deixado de cantarolar por entre-dentes como um 
dileíanite de hoje em dia, pôz termo ao balancear 
do hospedeiro, gritando-lhe : 

— Vamos, patrão I quero almoçar! ouviu.^.. 
do melhor. 

E continuou por entre-dentes : 

— Por Dios I não sei que precisão havia de 
sahir dos Carvalhos tam cedo para vir para aqui, 
e sem comer I... 

Depois começou a passear de um lado para 
outro, olhando pela janefla para todas as adufas e 
sacadas da visinhança, a vêr se dava pasto aos 
olhos, emquanto não satisfazia as exigências do estô- 
mago, e cantarolando com uma pronuncia, que mos* 



■vm 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 13 

trava não pertencer á najão em cuja língua fora 
escripta, a seguinte copla : 

Niiía, ai a Ia buerta vas 
Coge las flores mas bellas ; 
Aunque se tu estas entre ellas 
A li mesma escogeras. 

Quasi ao mesmo tempo que entoava as ultimas 
notas, grilava o mais velho pelos creados, e a cada 
um que apparecia entregava diversos bilhetes, que 
do próprio punho escrevera. Eram d i Aferentes reci- 
pcs, cujo resultado devia de ser uma sangria* no bom 
povo portuense. 



II. 



AS SENHORAS COMADRES. 



E a coitada que chegava, 
A folia começava 
De cantar. 



E o noivo noço lao polido, 
Nao tirava ot olho* d'ella 
£ ella d'elle. 



(Ga Viqlute — o Velho da Uorta), 



o; 



f ra esta I as doas já são dadas, e nem folia 
nem meia folia. 

— Já na egreja foi o mesmo com a missa can- 
tada : o senhor bispo vestiu-se, deu o chrysnia a 
um bom par de christãos, mandou fazer o peditório 
para os pobres... bem baja elle, o saneio homem i 
sentou-se» e ainda agora lá estaria» se não viesse o 
deão coebichar-lhe ao ouvido não sei quê. . 

— É que, dizem, estão ahi uns figurões, as- 
sim coisa de governo, por quem se espera. 

— Assim ouvi dizer ha pouco. .. que tinham 



16 A RUA ESCURA. 

chegado uns figurões á casa do Patim,, e que o se- 
nhor conde de Miranda para lá tinha ido. 

— Ec talvez por elles que se está á espera. 
Para boa coisa não virão elles; que a governança de 
Madrid ou a de Lisboa, que é tam boa como ella, 
o que faz é esfolar o pobre povo. 

Este diálogo era alternado ao -pé do chafariz 
da Sé, entre duas matronas, que, havia seguramente 
duas horas, davam tanto á lingua, dissertando sobre 
os successos do dia, e fazendo a chronica mais ou 
menos escandalosa dos presentes e ausentes, como 
com os cotovellos, para defenderem o throno em 
que se achavam, contra os ataques dos garotos e 
mais curiosos, apinhados desde o largo do Souto até 
aos paços municipaes. Este throno, tam invejado 
n essa occasião, era um monte de pedregulho, resto 
de um pedaço dos muros primitivos da cidade* 
que n'esse sitio os visinhos se tinham encarregado de 
demolir pouco a pouco, para se aproveitarem da can- 
taria. As cabeças das duas interlocutoras, assim em- 
poleiradas, sobrepujavam o resto da multidão ; es- 
lendiam-se, incHnavam-se, meneavam-se em todas 
as direcções, como um bugalho sobre um repucho, 
para não deixarem escapar a bagatella mais some- 
nos, que cortasse aquelle mar humano sem os seus 
commentos. fogo da maledicência era sustentado 
por algumas outras filhas de Eva, que as rodea- 
vam, e pareciam outros tantos almanaks vivos dos 
quinze, ou dezesseis mil habitantes que tinha en- 
tão a cidade da Virgem, iTaquella occasião, quasi 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 17 

todos reconcetitrados no coração do povoado. Esta 
multidão-aguardava a passagem da folia que havia 
de sahir do Souto e de lá dirigir -se pela Sé, dan- 
çando e tocando, até ao largo dos paços do conce- 
lho, para ahi sobre um tablado, executar uma pan- 
tomima e uma espécie de auto dos Reis perante as 
authoridades e mais summidades da terra. Às nos- 
sas respeitáveis matronas tinham já tentado pene- 
trar no pequeno largo onde estava o palanque, hoje 
um logar que talvez não conheçam dois terços dos 
nossos leitores, o largo do Açougue- velho; tinham 
já tentado penetrar no largo para ahi gozarem do 
melhor da festa; mas não lhes fora possível mais do 
que vêr de longe os pannos de arraz que pendiam 
dos. balcões da camará, o que tinha dado occasião 
de exercitar a profunda erudição da Senhora Anna 
Gertrudes, a primeira das interlocutoras, erudição 
cifrada nos factos da Biblia, por mercê do seu con- 
fessor e visitador assiduo, e no Palmeirim e Im- 
perador Glarimundo, como boje a de muita preten- 
ciosa se reduz a um curso completo do Eugénio Sue 
e Alexandre Dumas. A senhora Anna Gertrudes, sol- 
teirona de quarenta Janeiros, para o seu tempo e 
na sua classe, era um prodígio, pois sabia lêr quasi 
correntemente ; e ainda hoje seria, se vivesse, ape- 
zar da sua prenda não estar de todo esquecida en- 
tre as suas e nossas patrícias, a língua mais afiada 
dos três bairros. Não estava calada nem a dormir, 
e algumas vezes, por descuido, no furor da sua 

verbosidade, dizia bem dos seus similhantes. 
2 



18 A RUA ESCURA. 

O ter assistido com as suas comadres á parte 
religiosa da festa fazia-lhe perder á profana, e re- 
pellida pouco a pouco pela multidão, tinha com as 
suas acotytas vindo dar fundo no logar que occu- 
pava, logar que estava resolvida a defender até á 
ultima gota de suor — e já não era pouco o que lhe 
banhava as faces. 

— - Oh comadre I — tornou a segunda das inter- 
locutoras, a senhora Brazia dos Anjos, lançando para 
traz o seu manléo e dando um cotovellâo para a 
direita — n&o viu na ogreja ai li o pastelleiro d em 
frente ? 

— O senhor Bartholómeu ? vi : o homem anda 
doudo I Ora uma creatura d'aquella idade, porque 
elle é rapaz do nveu tempo, não se lhe mettéu na 
cabeça namorar a filha do Roque, que morreu em 
Flandres t 

— Quem é a filha do Roque ? — perguntou 
uma das acolytas. 

— Á delambida d*alli d'ao-pé da escada, a 
sobrinha da Perpetua. 

— Ahl já sei: 

— - A tola — tornou a senhora Anna Gertru- 
des, fazendo um gesto de desdém — não faz casa 
d'elle : pois olhe que lhe n&o ia mal : apezar de 
já entradete, é bem apessoado e homem de cabedal. 

— Ora I que quer, comadre ! estas delambidas 
d 'agora o que querem sào bonecos ! 

— O santeiro da esquina, o fiho do Tbomaz, 
que Deus haja, também por lá anda arrastando 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 19 

a aza ; mas a rapariga faz-se de manto de seda. 

— Ora muito me conta, senhora Anniohas — 
exclamou uma das mulheres ; — por isso na egreja 
o senhor Bartholomeu não despregava os olhos da 
capella de Nossa Senhora, 

— Olhe que não erá pela imagem —redarguiu a 
interpellada; — éque lá estava a rapariga com a tia. 

— E toda enfeitada que ella ia— acudiu ou- 
tra das comadres — com o cabello em anneis, como 
andam as filhas do ehanceller. 

— Se a tia faz-lhe todas as vontades I AquiUo 
é mesmo um Santo Antoninho onde te porei. 

— Ha-de-lhe dar bom pago I — exclamou a 
solteirona, bak>içando~se no seu throno. — Anda-lhe 
a fortuna pela porta e não faz caso d'ella : a final 
ha-de vir a dar n'uma perdida. O senhor BerttuH 
lomeu não é mau sugeito... e caritativo até alli. 
Hoje na egreja, quando o sacristão veio fazer o 
peditório para os pobres, como agora é sempre de 
costume, desde que cá está o snr. D. João de Vai- 
ladares, o homem deitou na bacia um tostão de 
prata... e aquillo sem pestanejar, como se fosse 
um quarto de preto. 

A senhora Anna Gertrudes n'este ponto en~ 
ganava-se redondamente. A acção do senhor Bar- 
tholomeu tinha sido filha da abstracção em que se 
achava, contemplando a sobrinha da senhora Per- 
petua. A comadre ignorava este causal ; mas, que 
a soubesse, decerto se comprazeria em occultal-a 
para poder assim dar a sua tesourada na innocente 



20 A RUA ESCURA. 

creatura a que efla chamava delambida, certa de 
que nunca lhe faltaria occasião de dizer mal do 
paslelleiro. 

O acto de generosidade que este practicou, 
contado pela senhora Anna e ouvido com admira- 
ção pelas suas acolytas, antes de meia hora per- 
correra para a direita e para a esquerda toda aquella 
multidão, e á noite o senhor Bartbolomeu tinha a 
opinião d'um Santo Estevão, ou philantropo, como 
nós hoje lhe chamaríamos, nós os homens dos 
bailes para as victimas politicas e impoliticas, mais 
fortes nos hellenismos, superficialmente, que os 
nossos avós do século xvi. 

— Alli vai a tia Josefa do moinho I — gritou 
a senhora Brazia. — Oh I tia Josefa I os moiros 
não vêem ? 

— Deixe-a lá que não dá resposta — - acudia 
a outra. — Anda toda ancha por que os fradinhos 
deS. Francisco lhe tomaram conta do filho... para 
leigo... ou cosinheiro. Diz elle, que ainda ha-de 
ser bispo. Ora vejam ? I 

— Presumpções* presumpções I — murmurou 
a senhora Anna, com uma intonação nasal. — Pre- 
sumpção e agua-benta cada qual toma a que quer. 

— É como diz a senhora Anna. 

— A respeito de vaidade e presumpções, nin- 
guém como a Beatrisita alli do Arco. Aquillo até 
é peccado. Anda penteada como as fidalgas, e não 
sei como não tem tido os seus dares e tomares com 
o meirinho da cadeia... ou os aguazis. A desaver- 



TBAD1ÇÃ0 PORTUENSE. 21 

gonhada não trazia domingo passado uma fita dè 
seda-catasol a adornar o corpete e a fraldilha ? 

— E dizem que queima o cabello com cal para 
o fazer touro I 

— E põe arrebique. 

— Eu não quero ser má língua, senão havia 
de contar coisas que ouvi... 

— À gente não deve dizer mal do seu simi- 
lhante. 

— Assim é — tornou a que não queria ser 
má língua — e por isso é que não quero fallar de 
certas historias que se rosnam a respeito d'ella e 
do fidalgo da rua Chã. 

— Então que contam? 

— Nada... cousas que todos podem adivinhar. 
Eu não gosto de pôr a bôcca em ninguém ; mas 
até dizem que tem contractos com feiticeiras. 

— Sume-te I 

— É verdade — continuou a que não queria 
ser má língua : — rosna-se também em que o se- 
nhor conde... 

— quê ? — perguntaram ao mesmo tempo 
com certo metal de voz, que se assemelhava muito 
ao dos apartes do theatro, que são segredos que 
todos devem ouvir, três ou quatro d'aquellas santas 
creaturas. 

— Nada ! 

— Como nada ? 

— Ora eu não gosto de fallar mal do pró- 
ximo. . . e demais que negócios poderia ter o se- 



22 A RUA ESCLRA. 

nhor eondc de Miranda com unia rapariga... d'a- 
quellas... bonita... 

— Bonita I — murmurou a senhora Anna Ger- 
trudes. — Assim... assim, muito arrebique ! 

E a estimável matrona prepara va-se para in- 
cètar uns apontamentos byographicos sobre uma 
pessoa que ella descubrira da sua ataláya, tirando, 
para chamar a attenção, pelo manto de uma das 
suas companheiras, quando foi derribada do seu. 
pináculo por uma forte vaga d'aquelle pélago. A 
senhora Anna não se desconcertou, e tractou logo 
de, com ajuda de pés e mãos, reconquistar a sua 
posição. Já estava acostumada áquetlas ondulações 
da multidão que, avançando quasi toda do lado 
de baixo, vinha engrossando, oscilando, compri- 
mindo-se de encontro ás immetisas voltas que fa- 
ziam e ainda fazem aquellas ruas da velha cidade, 
até que de vez em quando uma onda tnaior a 
tmpellia de uma maneira extraordinária, oecasio- 
nando apertões e trilhadellas de ver as estreitas. 

Do lado do Souto ouvia-se agora um vozear 
confuso, que ia crescendo na proporção d'aquelle 
marulho de cabeças humanas, ao passo que alguns 
soldados, dos poucos do terço da guarnição, come- 
çavam a distribuir coronhadas d'arma, para metter 
o povo em alas, o que era quasi impossível, attento 
o acanhado das ruas. Esta amabilidade dos solda- 
dos d'el-rei, que tanto custou a cahir em desuso, 
foi traduzida mentalmente pela multidão, que nes- 
tas occasiões nem tem tempo para se irritar, peio 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 23 

annuncio da marcha dos foliões. De todos os lados 
e em Iodas as escalas, o que dava um concerto 
admirável, Dão se ouviam senão estas vozes : 

— Áhi vem ! ahi vera I 

À senhora Anna Gertrudes, agarra n d o-se ás 
costas de uma das comadres, alongou o pescoço 
piscando os olhos, para reconcentrar os raios vi- 
suaes no ponto onde o reboliço era maior, e quasi 
ao -mesmo tempo soltou dos lábios esta exclama- 
ção : 

— A feiticeira I 

Aquella palavra teve um effeito magico. Toda 
a multidão tentou correr para baixo ; os soldados 
mesmo abandonaram a sua tarefa, e milhares de 
apupos se elevaram até aos céos. 

Do lado do Souto começou pouco depois a 
apparecer um claro no meio do povo, claro que 
vinha, avançando pouco a pouco, rodando a turba 
em volta. No meio, como uma palha lançada n'umr 
redemoinho de agua, estorcia-se uma creatura, in- 
volta em um manto de lã preta, de um typo es-> 
tranho. Um enxame de rapazes a empuxava de um 
para outro lado, e lhe atirava ao rosto cem lama, 
acompanhado tudo com gritos e assobios. Era uma 
algazarra infernal. 

— Oh bruxa, quando faltaste com o tinhoso? 
— gritava um, puxando-lhe pelo mantéo. 

— Has-de mostrar-me a vassoura em que ca- 
valgas, e os teus novellos de barbas de bodo I — 
grunhia outro, dando-lhe um encontrão. 



24 A SUA ESCURA. 

— Ui I má peste a mate ! — esganiçava-se ama 
regaleira com os punhos levantadas, e querendo 
romper o circulo em que estava mettida. — Á creao- 
ça da Zefa do moinho morreu myrrada, e a causa 
não havia de ser senão este demónio I 

— Os aguazis que a prendam, para a man- 
darem para a santa inquisição I * 

— Sunie-te, canhoto 1... não me deites mau 
olhado ! 

E entre estes e outros ditos a pobre da crea- % 
tura, impellida e repellida como uma péla por 
aquella multidão, veio chegando até ao-pó das es- 
cadas de S.Sebastião. Alli o povo, como achou 
um espaço mais amplo para as suas barbaridades, 
quiz, já que o espectáculo promettido tardava tanto, 
arranjar um outro que o desenfastiasse. O vocá- 
bulo das injurias foi exgotado pelas mulheres ; to- 
das as judearias postas em practica pelos rapazes. 
Os que não faziam mal á pobre mulher, riam a 
rebentar as ilhargas. À senhora Ânna Gertrudes 
não desetou da sua dignidade para ajuntar a sua 
voz de cana-rachada áquelle concerto de impro- 
périos; mas á sucapa açulava os garotos, e escan- 
carava a bôcca com uma satisfação indefinível. 

O divertimento do povo não durou muito. 

Dos primeiros degraus das escadas, um man- 
cebo, que até ahi tinha estado com a cabeça pen- 
dida sobre o peito, despertou ao arruido do cres- 
cendo da algazarra; desceu, e, rompendo por entre 
a multidão, veio pôr-se diante da feiticeira, quan- 



**• 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 25 

do esta, impellida pela populaça, ia esbarrar de 
encontro á cantaria onde se achavam empoleiradas 
as senhoras comadres. Um impulso de generosi- 
dade o levava a proteger a desgraçada.' 

— Oh I o santeiro I — exclamou a senhora 
Gertrudes, ao passo que o mancçbo, que ella desi- 
gnava por este nome, voltando-se para a multi- 
dão, gritava com um aspecto ameaçador: 

— Que mal lhes íaz esta mulher?... deixem- 
n'a... 

— Ui ! — atalhou do lado uma velha — o 
rapazelho tem pacto com a bruxa. 

— Deixem a mulher! — tornou elle com so- 
berania. 

A multidão recuou um bocado e permaneceu 
silenciosa movida pelo timbre d'aquella voz im- 
perativa ; depois, este raciocínio quasi que correu 
por todas aquellas cabeças : elle tem razão; mas 
nós, se desistimos do nosso intento por seu man- 
dado, damos parte de fracos. E os apupos con- 
tinuaram. 

— Obedeçam alli ao apageador das feiticeiras ! 
— gritou uma voz d'entre a multidão ; e ao mes* 
mo tempo um chuveiro de pedras e lama voou 
sobre o esculptor e. a mulher do mantéo. 

A senhora Gertrudes foi contemplada nesta des- 
carga com uma pedra, que lhe cortou a meio um 
commento, que fazia á senhora Brazia sobre o que 
ella chamava loucura do esculptor. Os beiços ap- 
pareceram, de amarellos que eram, de um ver- 



r 



26 A RUA ESCURA. 

melho magnifico; oscilou sobre a base, e foi ro- 
lar sobro a sua companheira. 

O mancebo, com a cabeça ensanguentada, cru- 
zou os braços, e voltou-se para a turba, como para 
lhe exprobrar aquelle acto de covardia. 

PTeste momento um tropear de cavallos fez 
convergir a attenção^de todos para outro lado, e 
no meio do silencio, que a curiosidade produzira, 
de novo destacou uma voz arrogante. Era a do 
homem encontrado no capitulo antecedente a descer 
pela estrada de Villanova, que cavalgava a par 
do conde de Miranda, seguido pelo seu compa- 
nheiro de jornada ; era a de Francisco de Lucena, 
secretario do conselho de S. H. Filippe IV de Castelia. 

— Arreda, arredai — gritou elle, ao mesmo 
tempo que o conde de Miranda, chamando pelos 
soldados, que mettidos entre a multidão se tinham 
contentado em ser inermes e mudos espectadores 
da seena que descrevemos, lhes dava ordem de 
desviar o povo. 

Este abriu immediatamente caminho, e os dois 
cavalheiros seguiram a passo e conversando pela 
rua da Senhora do Ferro. O terceiro, o mais moço, 
Filippe de Lucena, levava os olhos pregados nas 
varandas cobertas de mulheres, e fazia caracolar o 
seu cavailo com uma destreza admirável. O tempo 
decorrido desde a sua chegada até então levára-o 
a enfeitar-se ; e guapo como ninguém ia elle, M- 
zando com a direita o annellado bigode, em quanto 
com a esquerda sopeava o seu cavailo. 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 27 

Ao chegar á casa que estava junto da escada, 
do lado de cima, Filippe parou repentinamente, 
fitando uma moça, que assomava a cabeça por en- 
tre uma adufa. Essa moça tinha pouco antes se- 
guido com um ar de interesse as acções do escul- 
ptor, e machinalmente fitara um dos interruptores. O 
olhar do mancebo devia ser bem expressivo, que 
ella baixou os olhos, fazendo-se vermelha como 
uma flor de romanzeira ; mas, como levada por 
um impulso irresistível, tornou a olhal-o, e acom- 
panhou -o com a vista, logo que elle, chamado 
pelos seus companheiros, os seguiu. 

Quasi no fim d' essa tão curta rua, Filippe de 
Lucena tornou a olhar para a rectaguarda, e ainda 
os seus olhos encontraram os da gentil donzella da 
adufa. 

Ao mesmo tempo uma voz gritava : 

— Ahi vem a foMa. 

Com effeito, do lado do Souto via-se surgir 
a vanguarda dos foliões, composta de um bando 
de homens e mulheres, vestidos uns de moiros, 
outros de índios, e que, por causa do acanhado 
da rua, vinham a um de fundo, tregeitando e sal- 
tando ao som de uma banda de musica, que hoje 
passaria por detestável. 



111. 



■ABIi AUNAR. 



Non polesl este fuemina per fede 
pukhra nisi sit et pudica. 

(Plotmo.) 



D, 



'kiiemos a cavalgada, os foliões e os espe- 
ctadores seguirem — aquelles pela rua acima; {Tes- 
tes uns subirem aos trambulhões as escadas ; ou- 
tros correrem pela estreita rua que Aca ao-pé do 
chafariz; oittros ainda pela Bainharia e SanfAnna — 
levados pelo desejo de penetrarem no recinto, ondo 
se eleva o tablado, anciosos por verem a dança 
e o auto dos Reis. À dança n&o vale a pena do 
ser vista, nem o auto admirado. Uma era um tre- 
geitar descompassado ao som de uma banda de 
musica, onde os instrumentos de cobre e os tam- 
bores predominavam, como n'uma opera de Yordi ; 



30 A EUA ESCURA. 

tudo acompanhado de esgares e ademanes, que fa- 
ziam parecer estreitas as enormes bragas e cor- 
peles dos bons burguezes, e relezar o justilho das 
suas amáveis consortes; o outro era um descon- 
chavo métrico de um auctor, que não pôde con- 
seguir fazer chegar o seu nome até nós, todo re- 
cheado de palavras e scenas, que hoje, bem como / 
os esgares da dança, passariam por indecentes. 

E uma verdade incontestável a do mestre Spi- 
nosa, quando diz, por estas ou por outras pala- 
vras : «que a corrupção e o luxo tornaram mal 
soantes expressões que não offendiam os mais cas- 
tos ouvidos em melhores tempos» ; pois os burgue- 
zes riam a bom rir, os que, entrincheirados nos 
portaes, debruçados nas janellas e sacadas, podiam 
contemplar este mimo do senado ; que os outros 
esbravejavam, estendiam a cabeça e suavam, fa- 
zendo coro nas grandes gargalhadas, cujo motivo 
perguntavam aos seus companheiros de infortúnio, 
e alguns, mais positivistas, em geral os de extra- 
muros, tratavam de romper para fÓra da praça, o 
que não deixava de augmentar a confusão, para 
irem nas próximas tavernas confortar o estômago 
e alegrar a cabeça. 

Sè quizessemos fazer uma segunda á senhora 
Anna Gertrudes, que não desooroçoada db primeira 
tentativa, apezar do amarrotado dos queixos, para 
lá se foi dirigindo com as suas dignas companhei- 
ras, e que por um acaso pôde arranjar uma posição 
soffrivel, mesmo ao-pé do palapque, descreveríamos 



TRADIÇÃO PORTUENSE. % 31 

o que ella nahrava pela sexta ou sétima vez: os 
assumptos dos pannos d'arraz, 4«e 6e baloiçavam, 
como já dissemos, estendidos das janellás do sena- 
do, e sobre o tbeatro provisório. Era urp gosto vél-a 
explicar como o sancto rei David se tiâha enamo- 
rado de uma dama do paço, cujo marido mandara 
matar, e outros factos do imperador Salomão e da 
rainha Esther, embasbacando sempre que chegava 
a um Acteon surprebendendo Dianna. Tinha sido 
um desacerto do armador aquella pintura paga, mes- 
mo entre a passa gpm dos meninos de Babylonia, o 
a morte do monstro > de Rhodes* passagem cònhe*- 
eida da Senhora An na Gertrudes. A erudição des- 
criptiva da donzella achava uma lacuna, que a fazia 
desesperar. Que era o diabo tentando uma sancta, 
nio punha ella duvida; agora a qual, á que não po- 
dia dizer, afiançando sempre ás suas cotnpanheiras 
ter o nome debaixo dá língua. 

Deixemos porém a festa, o auto e as explica- 
ções dá palradora comadre, e vamos fazer nina vi- 
sita á liúda moça, que tanfo attrahiu a Attençào de 
Filippe de Lucena. 

A noite tiuha cahido. Em um dos quartos da 
casa que existia então, formando esquina para a 
rua, hoje dtí Ferro, è para o largo de S. Sebastião 
estava a sobrinha da senhora Perpetua Freire. O 
quarto, ou, para melhor dizermos a sala era vasta 
e o soalho estava limpo, que, expressão da boa velha, 
se podia comer toelle. As paredes eram forradas de 
castanho, com apainelados cm que o lustre da arte 



32 



A RUA ESCURA. 



Unha sido substituído pelo que lhe dera a mao do 
tempo. Do lado do largo havia uma pequena varanda 
do pau, coberta de grades verdes, de cima abaixo» 
e com uns postigos de alçapão, que a esta hora 
estavam fechados. De verão, aqueílas grades, ador- 
nadas com as folhas d* uma parreira, que até lá se 
erguia, apresentavam um aspecto extremamente pi- 
ctoresco, enlaçando-se os braços da vide com as flo- 
res da madressilva, disposta em um pequeno caixão 
posto a ura lado da varanda, e deixando transpa- 
recer no seu xadrez uma moita de flores.de goivos. 
Do lado opposto via-se uma commoda. Era um tras- 
te respeitável pelo seu material e trabalho. Feita de 
madeira do Brazil, ainda então pouco empregada, 
mostrava por toda a parte os seus marchetados de 
latão e marfim, devidos, na apparencia, a um artista 
de gosto. Este traste era, com alguns outros, o 
testemunho de passadas grandezas. Cobrindo a com- 
moda, desdobrava-se um pedaço de damasco verde 
franjado, e sobre este sobresahiam alguns objectos 
curiosos. No centro, debaixo de uma redoma de 
vidro, via-se uma estatuasinha da Virgem, em mar- 
fim, trabalho da índia, dourados os cabellos e os 
arabescos do manto; aos lados, poisavam um cocar 
de pennas de aves d' America, despojo de algum ca- 
cique, dois ídolos chinezes de massa d'arroz, uma 
pequena caixa de charão, duas jarras da índia e 
dois castiçaes de latão, que não se envergonha- 
riam de figurar a par das mais bellas obras de 
bronze da actual industria parisiense. Todos estes 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 33 

trastes eram uma espécie de historia de família. So- 
bre aquelle pedaço de damasco, entre as jarras e 
eastiçaes, repousava, representado por aquelles obje- 
ctos, o livro da vida da senhora Perpetua Freire. E 
o caso é que a velha não os podia vér sem que seu 
rosto tomasse uma expressão de melancólica sauda- 
de. Eram presentes de Roque Aldoar, seu irmão, 
e de Pantaleão Homem Freire, seu marido, que ti- 
nha peregrinado pela índia e pelo Novo Mundo. 

Roque Aldoar morreu em Flandres, deixando 
a fortuna de um soldado. . . a caza que herdara de 
seus pais; o esposo da senhora Perpetua morreu na 
terra natal, deixando os bens, que pôde deixar um 
homem que vai para o México escrever aphorismo$ f 
e um nome, que lhe sobreviveu alguns annos. 

No fundo da sala via-se uma porta larga, co- 

« 

berta por uma cbrtina de tela branca que nem os 
píncaros do Marão, quando no inverno o sol refle- 
cte no seu sudário de neve. À cortina estava apa- 
nhada, e deixava vêr um leito torneado, que occu- 
pava toda a alcova, sobre cujo fundo de madeira 
escura destacava um pequeno crucifixo de metal 
prateado, uma concha soberba a servir de reser- 
vatório de agua-benta e uma palma já murcha. So- 
bre a cama estava sentada Maria Aldoar. 

Ao reflexo da luz, que ardia sobre um velador, 
envolta em um longo .penteador branco, tão longo, 
que não lhe deixava ver os pequenos pés, a don- 
aella . parecera a estátua de um anjo talhada em 

jaspe ou mármore branco, se não fora o ondear 
3 



34 A RUA ESCURA. 

tfo peito e aquellas madeixas IÃO negras, tio sen- 
cas, que com uma das mãos tentava ageitar, segu- 
rando-as na parte posterior da cabeça. Os cabellos 
ainda estavam de um lado em pinhas de cachos, 
longos, ondulantes, segundo uma moda, que ainda 
era o espanto das comadres do bairro, quando já 
passava por velha na corte e por muito vista entre 
a limitada aristocracia da terra. Parecera um anjo 
de alabastro, se não foram os seus olhos castanhos, 
que a sombra de longas pestanas tornava pretos in- 
teiramente ; húmidos como os de uma creança; coca 
uma expressão tal, que a tornava radiante de for-» 
toosura, e lhe dava uma meiguice que prendia o 
coração de quem a via. 

Ha certas mulheres que são bellas, formosas, 
de uma carnação e forma acabadas, e que comtudo 
não despertam em nós sensação alguma. Diante dei- 
las o homem pára como diante de uma estátua de 
Vénus: admira -lhes a forma, e sente que Deus as 
não animasse. Outras ha em que o perfil 6 correcto; 
a tez mimosa, como as folhas das rozas de*todo-anno f 
os olhos de fogo; porém esse fogo» que nos fez *o- 
hir o sangue á cabeça, doudejar, não aquece, nem 
de leve sequer, a alma. A estas mulheres falta essa 
expressão que Maria Aldoar tinha nos olhos e em 
todo o rosto era subido grau — • um mixto de' seve- 
ridade, meiguice e pudicícia, à pudicícia é 4 ahna 
do verdadeiro amor — a pudicícia, não o arrebique 
que lhe toma o nome. — Maria tinha os olhos tão 
meigos, tão scismadores que aUrahiam, capturavam» 



L 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 3$ 

e ao mesmo tempo essa severidade casta que impõe 
receio e adoração. 

Se o leitor, ou leitora já viu em algum qna-> 
dro da eschola gothiea o rosto de uma Virgem ou 
de anjo» pôde conceber uma ideia da donzella que 
nos esforçamos por desenhar. A pintura, ao sahir 
das faixas, teve mais alma, mais pensamento que 
no seu apogeu. Ás virgens de Raphael são bellas 
e perfeitas; mas toem mais de mãe, que de vir- 
gem: podiam muito bem ser divindades do paga- 
nismo, ou qualquer outra cousa. São o retracto da 
Fornarina, da amante voluptuosa do pintor. 

iquelle rosto levemente pallido, áquelles olhos 
orieataes, abertos em forma de amêndoa, aô oval um 
pouco cheio do rosto, que ajudava a dar-lhe um 
ar infantil, á fronte espaçosa, não excessivamente, 
polida, branca ajuntae uma bAcca, que as inve- 
josas da visinhança chamavam grande; mas que 
era de um eórte, de um desenho encantador. Da*- 
vft~lhe um ar entre o risonho e o pensativo, que 
prendia. 

á bôcca e os olhos passam por ser a expressão 
da alma, o espelho do coração : em Maria Aldoar, 
não mentiam elles; e raras vexes ou nenhumas 
mentem. 

Era de estatura mediana, mais alta que baixa, 
e as mãos extremamente delicadas; pequeninos os 
dedos, estreitos e perfeitamente torneados. Hoje, 
no meio de uma sala, notar-se~ihe-ia um grande 
defeito. Hão sabemos se o era. andar não tinha 



36 A RUA ESCURA. 

essa ondulação requebrada, que assemelha as ra- 
parigas a bailadeiras. Porém não tirem d'aqui por 
conclusão os leitores que a nossa heroína poisava 
mal, que se enganam. Andava um pouco direita; 
mas se era defeito, ficava-lhe bem. Assentava-lhe 
o «incessu patwit dea» de Virgílio. 

Maria Aldoar parecia absorvida extremamente, 
mais do que na sua tarefa, em outra qualquer da 
imaginação, pois que os dedos ficavatn-lhe amiúdo 
parados entre as madeixas de cabellos, ou sobre o 
regaço. De vez em quando, a cabeça pendia-lhe, 
e, se tornava a si d'aquella abstracção, um ligeiro 
suspiro lhe fazia altear o seio, e etitre-abrir os 
lábios. A continuação d'este estado despertou a 
attenção de um ente, que estava assentado aos pés 
da cama e meio-occulto pelo cortinado. Com a pou- 
ca claridade que havia na sala, quasi se não co- 
nheceria a sua existência alli a não ser o brilho 
de dois olhos, que destacavam por debaixo d'um 
enorme lenço vermelho, amarrado em forma de 
turbante. Estes olhos eram de uma velha escrava, 
presente que em melhores tentpos o marido da 
senhora Perpetua fizera á filha do seu cunhado. A 
negra levantou a cabeça, cessou de resmungar jw- 
dre-nossos, e com expressão de carinho perguntou 
á linda moça: 
• — A menina tem alguma' coisa? * 

Maria estremeceu sobre a cama, e depois, com 
um sorriso, redarguiu: 

~ Nada, nada, Thereza. Porque pergudtas isso? 



'I L -■ ^ ^ ■^^■^■Ti^BI 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 37 

« 

— A menina está ahi ha tanto tempo, e parece 
que lhe dóe alguma coisa... suspira I 

— Eu I — disse com uma expressão de espanto, 
Maria Aldoar — eu não tenho nada. . . ou não sei 
o que tenho. Parece que ha aqui falta de ar, The- 
reza? 

— Falta de ar, menina ! — exclamou a negra. 
— Louvado seja Deus ! ha ar até de mais : eu tenho 
frio... É que tem alguma coisa. 

— Não tenho nada... nada, Thereza. 

E, despertada pela conversa da velha escrava, 
levantava a fronte, sorrindo» e entrançava com ve- 
locidade os cabellos para se lhe não embaraçarem a 
dormir. 

Pobre innocente ! No peito existia-lhe, havia 
tempos, uma coisa que ella não podia compre- 
header. Sentia uma molleza, uma preguiça, como 
ella dizia, extraordinária; e por vezes o sangue fer- 
via-lhe nas veias, e afluindo ao coração, parecia 
su Bocal' -a. Estas sensações eram-lhe agradáveis e 
desagradáveis ao mesmo tempo. Ás vezes, pela ma- 
nhã, quando se punha a olhar da pequena varanda 
o tecto azul do ceu, os corutos de algumas arvores 
corpulentas dos quintaes das azenhas do rio-da- 
Villa, vinha -lhe uma alegria tão suave, tanto I... 
e sorria para o ether azulado em que parecia des- 
cobrir bellezas nunca sonhadas; encanta vam-na as 
avesinhas que esvoaçavam; encontrava harmonias 
nos sussurros vagos da natureza, no ciciar da vi- 
ração: outras, á noite, ao filar a lua, ou Vésper, 



38 A RUA ESCURA. 

essa estrella a qual todos nos seus primeiros annos 
têem votado affeição, vinham-lhe as lagrimas aos 
olhos, e chorava — ura choro tão agradável — E no 
fim ficava espantada, e dizia comsigo : Estou doida I 

— Talvez o sol lhe fizesse mal esta tarde; es- 
tava muito calor... para inverno... 

— Eu não tenho nada, boa Thereza; quantas 
vezes t'o hei-de repetir? — replicou a filha do 
senhor Roque. — Olha I não tenho nada. 

E sorria, mostrando os dentes brancos como 
jaspe e fitando a velha escrava. 

— Nunca vi tanta gente! — continuou esta. — E 
os foliões iam engraçados I A senhora tinha-me dado 
licença de ir ver o palanque, e aquillo lá era um 
louvar a Deus... como formigas. Levei encontrões 
e trilhadellas bravas, de ver as estrelks, e quando 
chegaram lá uns figurões estive para ficar debaiio 
de Um cavallo. 

— Coitada! — murmurou Maria Aidoar. 

-*• O cavalheiro era um rapaz tão bonito, que 
podia fazer de S. Jorge na procissão de Corpus — 
disse, continuando a sua narração a escrava ; — 
olhos castanhos, eabellos negros... um mocetão I 
E proseguiu mudando de expressão de voz : 
—Já viu umas bragas como as que eito levava, 
estreitas, com uma fila de botões brancos e aquelle 
folho liso, direito» com uma espiguilha doutada na 
ponta? A capa era tão bordada, que se não sabia 
se era roxo o fundo, se de oiro, e tão curtinha! 
E o gibão tão largo, todo desapertado em baixo, 



•■^"^■^^^^^^^■■■■■^■■^■•■S^^HM™"™™^ 



TRAWÇÃO PORTUENSE. 39 

e a deixar ver uns molhos de renda e fitas 1... Que 
moda tão exquisital... Pois se não fosse ello, como 
ia dizeado, puchar pela rédea ao cavallo a ponto 
de o sustentar em pé... pobre dá velha Tberezal 
E elle depois ria-se... ria -se... 

A negra estacou; fitou de novo a sua amazinba, 
e viu que um ligeiro rubor lhe coloria as Caces. 

— A menina tem alguma coisa, e nfio o quer 
dizer para não dar cuidado. 

— Não tenho nada. Tens hoje exquisitices, 
Thereza. Ha um bom pedaço que estás a teimar 
que estou mal, e não sinto coisa alguma. Vai-te 
deitar, vai, The reza. Está frio, dizes tu... 

— Ainda a menina se não deitou : pôde preci- 
sar de alguma coisa... e ainda hei-de accender a 
lamparina. 

— Pois accende, acoeade, que lenho muito 
somno, e dei ta- te. Sim?! 

Era uma .mentira innoeente a que pronunciara 
Maria. O somno não é que a fazia mandar retirar a 
velha escrava com quem tanto conversava á noite, 
depois de concluída a sua tarefa e rezado o terço 
no quarto da sua tia, única coisa de que a senhora 
Perpetua a não dispensaria, sen&o em grave risco de 
vida; aão era o somno: era o desejo de ficar só, para 
rir, ou chorar, para poder desabafar do peito um 
peso que a opprimia. 

A escrava, depois de algumas palavras mais, 

sahiu, deixando a lamparina acceza sobre a com* 
moda, diante da Virgem, e levando o castiçal. Maria 



40 A RUA ESCURA. 

ficou só. A cabeça pendeu-lhe dfc novo sobre o peito, 
e assim permaneceu por muito tempo suspirando 
de leve. Estava quasi a acreditar, que a velha es- 
crava tinha razão, que estava doente. Quiz rezar, 
como costumava; porém as orações eram cortadas 
e interrompidas a cada passo por uma distracção 
estranha. Parejceu-lhe que a luz lhe feria os othos, 
e que a solidão não era tão completa como o can- 
çasso do seu espirito exigia : levantou-se e foi apa- 
gar a lamparina. 

D'ahi a um bocado, assentada na cama, via 
passar adiante dos olhos, em um rodopio vertigi- 
noso, milhares de pessoas a correr, a correr, e um 
cavalheiro sempre o mesmo, que a fitava de um 
modo que lhe fazia arder as fontes ; e de tempos 
a tempos o rosto pallido do esculptor, que a con- 
templava, e que, mal ella o olhava, deitava as vistas 
ao chão. 

Porque lhe appareciam essas figuras? De um 
era ella amiga : sympathisava com o esculptor, de 
quem não ouvia dizer senão bem, e não sabia por- 
que o pobre rapaz fugia d'ella; o outro, vira-o 
essa tarde, tão guapo, tão guapo I 

Mas que lhe importava o nobre senhor, que 
devia de ser bem rico, bem nobre! pensou ella, 
e nestas reflexões desatou a chorar. 

que tinha não o sabia bem a filha do se- 
nhor Roque Aldoar, que entrava nos dezeseis annos 
ou dezesete (aqui não estamos certo); mas não ha-de 
ser difllcil de acertar ás nossas leitoras. 



L. 



IV. 



AMOR E DZSEJO. 



El amor y el apetito, 
Lisis^tan distantes soa 
Que ai uno culpan por vicio, 
Al otro adoran por Dios. 

(CORDE DK ReBOLULDO.) 

IIuem da rua Chi «seguir para baixo, para o 
largo de S. Sebastião, notará na roa do Ferro uma 
pequena capella de que ainda ha pouco se conta- 
vam historias fabulosas de apparições, de ruídos no- 
cturnos e tirlintar de cadêas, com grave prejuízo 
dos donos dos edifícios contíguos, que nem de gra- 
ça achavam locatários. Ao-pé desta capella existem 
as ruínas de uma propriedade, ruínas que se vêem 
através de uma porta aberta no muro levantado no 
alinhamento da ma. que os leitores podem acre- 
ditar é que nem sempre assim existiu em ruínas. 
Na épocha em que se passa a veridica historia, de 



42 A RUA ESCURA. 

que apenas somos humilde narrador, alojava-se 
alli uma das pessoas mais notáveis do bairro e 
até, se quizerem, da cidade. 

A importância d' es ta pessoa tinha muitas cau- 
saes. Os vizinhos conheciam-na por um homem 
honrado, temente a Deus e de uma ro tu nd idade 
sufficiente para servir de passaporte ordeiro; por 
um homem de poucas palavras, porém severas, re- 
gradas e de cujo comportamento ninguém tinha a 
boquejar. A nobreza da terra, que não era muita, 
e os estouvados, que também eram poucos, co- 
nheciam-na pela habilidade com que preparava pas- 
teis, tortas e outros guisados, que embrulhava em 
canella, cravo, assucar, mel e mil outras especia- 
rias indicas, como bom filho que era de um paiz, 
que tinha mandado tantos ao Oriente. Era mau 
gosto da épocha o de tanta especiaria ; porém não 
havia ninguém então que nâo gabasse um cosinhado 
de carneiro em que entrava uma amostra de todos 
os excitantes, que tinham pejado as nius dá índia» 
e cuja receita desappareoeu completamente, quem 
sabe se com grande prejuízo da gastronomia. se- 
nhor Bartholomeu de Basto, appellido que tomo» 
da sua terra natal, terra que mais génios tem dado 
á culinária e pastelaria portuense, ainda era respei- 
tado por uma certa roda, a das comadres do bairrft 
classe de gente em que deu o ultimo golpe o jor- 
nalismo, tirando-lhe o privilegio exclusivo desorpr 
mentar os nadas diários, apresentar a lista dos óbi- 
tos, nascimentos, uwrcrobios e casamentos, que, w- 



TRADIÇÃO POUTLENSE. 43 

lha a verdade, na bòcòa d'aquellas gazetas semo- 
venteá eram apresentados com mais sal e com uma 
prolixidade de notas espantosa. Pela bôcca pequena 
sabia-se entre esta classe, a cuja frente se achava 
a nossa conhecida a senhora Anna Gertrudes, al- 
guns factos miúdos da vida de rapaz do respeitável 
burguez, que não o deshonravam na opinião des- 
tas solteironas. O senhor Bartholomeu ainda era 
considerado entre o beaterio espantoso da terra 
como amigo particular de Frei João de Sancta Úr- 
sula, do convento dos franciscanos, de Frei Luiz 
do Livramento, dos dominicos, como irmão ter- 
ceiro, e por ter na sacada da sua vivenda, um nicho 
em que se venerava a Virgem do Amparo, á qual 
acoendia todas as noites uma lâmpada, e fazia uma 
festa vistosa no dia das Sete-Senhoras. Como ho- 
mem publico era o chefe da respeitável corporação 
dos estalajadeiros e taberneiros, qne o tinham eleito, 
quosi por unanimidade, bem que verdadeiramente 
não pertencesse a nenhuma destas classes, parti- 
cipando de ambas. Da bôcca de uma das comadres 
já ouvimos que era homem de eabedaes, o que 
faria que ainda hoje fosse respeitado, admirado e 
louvado, e na sua volta de alguma digressão os 
jornaes dissessem : «Hoje chegou (de tal parte) o 
nosso especial amigo, o illrn. sr. fulano. Foi es- 
perado por alguns cavalheiros dos mais distinctos* 
entre os quaes tínhamos o gosto de nos encontrar. 
O senhor Bartholomeu tinha tido uma prova 
da sua importância na festa dos Reis, e ria volta 



44 A RUA ESCURA. 

para casa não cessara de elogiar a affabil idade do 
senhor chanceller e as maneiras do illustre perso- 
nagem com quem pela primeira vez se tinha encon- 
trado face a face. D. Francisco de Lucena mostrou- 
se tão polido para com os mestres das corporações 
da cidade, que as ideias do honrado pasteleiro 
mais se firmaram na disposição ordeira em que 
tinha sido acalentado pelo tinir das dobras, cahindo 
na burra férrea do seu quarto. Embora mestre Duar- 
te Mondim, o latoeiro, lhe pregasse aos ouvidos 
as suas reflexões sobre a veracidade de certas pro- 
phecias que davam a restauração do reino próxi- 
ma ; embora mestre Pedro Braço-forte, o espadeiro 
do Olival, expendesse as suas patrióticas convicções; 
embora o doutor Fernando de Andrade lhe tivesse 
segredado uma embrulhada de cousas, que lhe pro- 
gnosticavam uma mudança de governo, o senhor 
BarthokM&eu achava que o que estava, estava bem, 
posto que fosse castelhano, e diria que á provín- 
cia e em especial ao i*orto, nenhuns reis tinham 
dado tantas provas de affecto como os Filippes. En- 
trou, pois, em casa com um ar grave, como o não 
tinha na procissão de Corpus, caminhando á testa 
da sua corporação, como o não tinha mesmo o chan- 
celler nos dias solemnes da audiência. A barriga 
dilatava-se nas amplas bragas de panno inglez e no 
corpete de uma espécie de barregana preta, e a ca- 
beça tomara uma posição de altivez que demons- 
trava á légua- que estava contente de si. O moço ficou 
pasmado por o não ouvir ralhar á entrada; o rapaz 



TRADIÇÃO ?ORTUKNS&. 45 

aprendiz por não sofíer uma tensão de orelhas, ama- 
bilidade oodq que era gratificado diariamente por 
coisas que o bom amo sempre sabia esquadrinhar, 
e a respeitabilissima senhora Roza, que lhe cuidava 
da casa, pelo vêr passear na sala de um lado para 
o outro com o seu chapéu pyraraidal, adornado 
com fita larga escoceza de lã, na cabeça, caso estu- 
pendo nos annaes domésticos. 

— Que terá o senhor Bartholomeu? — pergun- 
tou ella ás enormes contas, maiores que as de um 
cambolojo de derviz, que ao collo lhe pendiam. E 
com as mãos debaixo do avental parou á entrada 
da sala, sem se atrever nem mesmo a dar a sua 
saudação usual: Bemdicto e louvado seja nosso 
Senhor Jesus-Christo. 

Tudo neste mundo tem fim, e a estupefacção 
da boa mulher hão podia ser eterna. 

Creou animo, saudou o amo, e, como a estu- 
pefacção degenerara em curiosidade, e esta não 
achara meios de desafogar, meia-rabujenta come- 
çou a pôr a meza para a ceia, lançando de tem- 
pos a tempos os olhos sobre o senhor Bartholo- 
meu, que não se cançava das suas evoluções lentas 
e pausadas. 

O tinir dos garfos, dos pratos e o cheiro appe- 
titoso d'um prato de cabrito cosido, que a senhora 
Roza poisara na meza, chamaram-no á realidade : 
tirou o chapéu, sentou-^se e' principiou a comer. 

— Roza — disse elle depois de ter dado cabo 
de uma boa porção do guizado ; — viste a festa f 



46 A ftUÀ ESCURA. 

— Sim, senhor, da varanda; pois apezar da 
tor licença para sahir, houve tania fregnezia hoje 
na sala de baixo, que andei a ajudar o rapaz. A 
caixa do dinheiro está em cima da arca, e boje 
veio recheada a mais não ser. Dei a ceia ao Do- 
mingos mais cedo, que o bom do homem tinha 
precisão de se deitar e descançar : suou pelos qua- 
tro costados. 

— Hum I , — resmungou o amo — Quem estava 
pela visinhança? 

— Quem havia-de estar ? A gente era tanta I 
e, como disse, á janella não estive senão um credo, 
que logar para mais, Deus o dera... 

— Alli, em casa da visinha Perpetua, esteve 
alguém ? 

— Que eu visse, não : nem mesmo a rapariga 
que lá está ás vezes com a sobrinha. Mas porque 
perguntava isso? 

A senhora Roza já tinha, h via tempos, avan- 
çado esta pergunta, curiosa por saber o que se 
podia importar seu amo com as visitas da velha 
Perpetua, pois não dava credito a certos ditos que 
ouvira na missa do dia.- A resposta que recebeu 
foi a mesma do costume : 

— Era por perguntar. 

A ceia tinha sido um ponto de transição de 
um pensamento para outro — da vaidade para um 
sentimento, uma paixão muito diversa. A posta de 
cabrito cortara o fio das reflexões pertenciosas do 
burguez, e apoderara-se-lho da mente um pensa* 



TRADIÇÃO PORTUENSE, tf 

«lento que lhe fazia faiscar os olhos, pequenos e 
esverdeados, incendiar as faces e latejar as artérias 
frontaes com uma vehemencia incrível. Os lábios 
finos, sumidos, tomavam uma forma triangular 
mais pronunciada que de costume, e os dedos ás 
vezes tremiam-lhe a ponto de a boa da Creada 
se assustar. 

O senhor Bartholoraeu deu um suspiro, que 
mais parecia um arranco, e esfregou e sacudiu a 
cabeça, como para baralhar as ideias, deitando ao 
mesmo tempo a mão a um cangrrão de vinho de 
que bebeu um bom trago. Mas nem a sacudidela 
de cabeça, nem o summo da parra mudaram o curso 
das suas ideias, ou, melhor, das suas sensações. 
Ergueu-se, e emquanto a creada levantava a meza 
foi direito a uma enorme arca de carvalho e to- 
mou uma espécie de mealheiro~monstro que sobre 
ella estava. Tirou do bolso uma chave, abriu-o, 
e começou a contar lentamente as moedas de 
cobre e prata que o pejavam. Esta operação era 
tanto mais lenta que, profundamente distrahido, 
recontava os montículos de dinheiro já verificados, 
e foi preeiso um bom espaço de tempo para que 
podesse atinar com a somma total. À creada re~ 
li rara -se, arramada a louça, dando as boas noites, 
e o nosso homem permanecia diante da meza com 
as mãos apoiadas na borda e os olhos fixos na 
parede. A expressão do rosto era variável. Ora a 
fronte se lhe enrugava, e um veu de sombras como 
que Ibe descia pelo rosto; ora se irradiava de gozo 



48 A RUA ESCURA. 

e as ventas dilatavam-se, os olhos chammejayam, 
como se nessa parede houvesse um ser, ou uma 
coisa que provocasse essas alternativas- Umas ve- 
zes parecia o ciúme premeditando um crime; n ou- 
tras poderia ser tomado como modelo pelo pintor, 
que quizesse debuxar na tela um fauno descobrin- 
do uma nympha no banho, ou algum dos velhos da 
casta Suzana. No fim de algum tempo os olhos 
pouco a pouco foram baixando até de novo darem 
no dinheiro, e o pasteleiro foi abrir a arca sem 
vigiar se alguém espreitava, coisa que lhe acon- 
tecia só havia semanas. Aberta a arca, foi preciso 
abrir um novo caixote de ferro que existia dentro. 
O idolo estava alli ; mas esse idolo já não tinha o 
culto de outras eras. 

Quantas e quantas vezes alli tinha permane- 
cido horas e horas, prostrado de joelhos, mudando 
os olhos dos castellos de prata, para os castellos 
de oiro, afagando-os, contando-os, limpando-os, 
fazendo-os tinir e até beijando-os. Tanta adoração 
já não existia, mas Plutus era ainda reverenciado. 

Do lado da rua ouvia-se um soar de instru- 
mentos e canto. O bom povo portuense tinha-se 
divertido tanto de dia, que aquelle descante era 
talvez o único com que agora festejava a comme- 
m o ração da visita dos Magos ao Redemptor dos 
homens. O senhor Bartholomeu não despertou 
áquella toada conhecida e festival. Permaneceu 
algum tempo fitando as moedas de oiro, e depois 
de um curto intervallo deu uma pancada na testa. 



TRADIÇÃO PORTURNSE. 49 

Arcbioiedes não fez de certo um gesto mais 
expressivo ao gritar — eureka ! 

pasteleiro não fallava grego, nenl mesmo 
disse em portuguez «achei f» Murmurou um nome, 
atirou com a colheita do dia para dentro da arca, 
e fechou-a. 

O oiro tinha-lhc communicado um pensamento 
que achava luminoso, e que por um acaso ainda 
lhe não tinha rastejado pela mente. 

D'ahi a pouco revolvia-se no leito, victima de 
uma insomnia. 

Ao tempo que isto se passava, no principio 
da rua da Bainharia, quasi á esquina do Souto, 
no primeiro andar, occupado por uma sala espa- 
çosa e nua, veiava o mancebo que vimos proteger 
a mulher que o povo apupara, a bruxa. Pallido, 
de olhos castanhos, pelas dobras de um lenço 
manchado de sangue, mostrava algumas madeixas 
de cabello louro, de reflexos cinzentos, como o 
bigode que lhe cobria os lábios, fino, lustroso, a 
primeira penugem da adolescência. Tinha uma 
physionomia singular, intelligente e melaucholica 
ao mesmo tempo. Com a cabeça apoiada nas mãos, 
sentado em um tamborete, olhava para uma estátua 
de madeira que assentava sobre um outro banco ' 
a um lado da sala. 

Essa estátua era a da Esporança. Capricho de 
esculptor, tinha azas e parecia querer soltar o 
vôo, sobraçando a ancora symbolica, e apontando 
com a direita para o céo. O rosto ainda não es- 



50 A RUA ESCURA. 

tava encarnado, mas polido com capricho, e a côr 
da madeira não deixava de lhe dar um todo sin- 
guiar. As feições que o artista tirara do lenho 
eram um typo de candura e severidade ao mesmo 
tempo ; e poderiam ter notado as pessoas que 
viam as obras do moço esculptor, que, havia tem- 
po, todos os seus rostos de mulher seguiam a 
mesma forma. Na parede, a carvão e a lápis, es- 
tavam desenhados perfis idênticos. 

O mancebo fitava a sua obra e exprimia no 
semblante uma alegria e mágoa difficil de expli- 
car. Se se visse a um espelho poderia approveiíar 
aquella expressão para uma estátua da Saudade; 
roas não era saudade o que sentia. Nos olhos 
tinha o quer que fosse de luminoso e radiante 
de alegria ; no apertado da bôcca, no resto do 
semblante uns longes de tristeza e dôr. Os martyres 
do christianismo, vendo diante de si os aprestes 
dos tormentos, deviam de fitar assim a abobada 
azulada, onde em breve iam ser acolhidos pelos 
coros dos anjos. O que soffria era um mar ty rio 
e um prazer. 

De tempos' a tempos suspirava; mas os seus 
suspiros, não eram como os do senhor Bartholo- 
meu, violentos, cavernosos. 

Do sentimento do filho do senhor Thomaz 
Lever ao do velho Bartholomeu de Basto ia uma 
distancia incommensuravel, apezar de ambos terem 
sido impressionados pelo mesmo objecto. Este ti- 
nha-se curvado ante os altares do, filho de Vénus; 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 51 

sagrara a Cupido — o desejo; aquelle a uma divin- 
dade mais pura, mais sublime, que lambem era o 
amor, amor, porém, que podia ser representado por 
essa estátua que tinha diante dos olhos, se em vez 
de soçobrar o sy na bolo da esperança, espargisse 
flores no seu trilho. sentimento que dominava 
o mancebo elevava-o da terra, fazia-o scismar 
nessa abobada para onde a estátua parecia apon- 
tar; impressionando-lhe fortemente a alma, absor- 
via esta as faculdades da matéria ; anniquilava-a 
a ponto de, nos momentos em que a lembrança 
fazia pairar diante de seus olhos o ente que ama- 
va, o fazer cahir em um extasis, como o que en- 
tão sentia. O que o impressionara tinha sido pri- 
meiro o anão sei que», ainda não definido, isso 
a que chamam sympathia ; tinha sido depois um 
olhar meigo e brando, onde se via retratada a bon- 
dade, e que lhe fazia imaginar a alma mais pura 
da terra. que ferira a imaginação do pasteleiro 
fora um collo branco, asselinado, uma morbidez 
de formas, um peito alto, voluptuoso no arfar ; 
foram os sonhos de delicias possíveis, que lhe es- 
caldavam o sangue. Um desejava a flor pelo co- 
lorido, outro pelo perfume. 

O que ambos sentiam era o amor? 

Pelo menos ambos o acreditavam, ambos o 
diziam para si baixinho : um porque julgava que 
a sua idade, a sua posição no mundo tornavam 
ridículo similhante sentimento ; porque se enver- 
gonhava do que sentia : o outro, porque desejava 



.52 A RUA ESCLBA. 

que ninguém soubesse cTesse segredo da sua alma; 
que ninguém profanasse com um dito essa paixão 
pelo ente que julgava o mais perfeito da terra; 
porque a adoração o retinha atemorisado como 
ao neophito ante os umbraes do templo Isis, como 
o pagão ante a bôcca da caverna de Dellos ; por- 
que se julgava humilde para poder patentear uma 
tal ambição. 

Oh I direis vós, leitor — um amava como 
toda a gente; o outro... 

Ura amava, respondo-vos, outro desejava. Em 
ambos a paixão era de egual força, de egual vehe- 
mencia; mas as sensações d' uma sào bem mais 
agradáveis, bem mais longas e mais puras que 
as da outra. 

O filho de Thomaz Lever, Phebo, nome, mais 
que no presente, então vulgar, por longo tempo 
permaneceu na contemplação em que o encon- 
tramos. As reflexões que aquelle divagar lhe sus- 
citava, traduz iam -se-lhe na expressão do rosto de 
tal forma, que, sem errar, aqui as poderíamos 
appresentar, seguindo todas as suas phases de 
angustia, de alegria, de duvida e de esperança. 
As horas passavam imperceptíveis para elle; eram 
minutos ou menos ainda; a ferida aberta na cabeça 
nem a sentia. A luz de um enorme candieiro de 
latão bruxuleava no ultimo arranco, fazendo dan- 
çar na parede a sombra das estátuas acabadas ou 
imperfeitas, que sobre bancos se viam na sala. A 
0Jão da Esperança, na sombra, de vez em quando 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 53 

parecia erguer-se, levantar-se mais. Os últimos 
ecchos da musica dos Reis tinham expirado de ha 
muito e apenas o sussurro do rio, na levada das 
azenhas, soava monótono, testemunhando a vida 
da natureza. 

Phebo levantou -se e atravessou a sala pausa- 
damente. Um rugir de tela se sentiu de uma das 
alcovas, e uma voz de mulher se fez ouvir, fraca 
• carinhosa : 

— Filho, não te deitas? Basta de scismar : 
matas-te com as tuas obras... e olha que, bem 
acabadas ou mal acabadas, não te darão mais nem 
um real. 

— Sim, senhora mãe, já vou — redarguiu 
Phebo — é que... 

— É que 6 muito tarde — atalhou a voz; — 
parece-me que já ouvi cantar o gallo. 

— Ainda não, minha mãe. 

— Vamos, deita-te. 

O esculptor tornou para defronte da estátua 
e curvou-se ante ella, como se já fora benzida. 
Como Pygmaleão adorava também a sua obra, mas 
pelas recordações que lhe ligava. Depois pegou em 
um pedaço de giz, que tinha em cima da meza, e 
traçou no painel de uma das portas um M e um A, 
enlaçados como no symbolico brazão da Virgem- 
mãe as iniciaes da saudação angélica. 

A luz deu o ultimo arranco, e a sombra da 
estátua, que fitava, pareceu que, liberada nas azas, 
" voava para os céos. 



V. 



O ESGOTE DO POVO 



Com gesto grave e honesto veio 

Por contentar ao rei no officio novo 
A despir e roubar o pobre povo, 
(Cam8u, c. 7 est. 85.) 



m 



— Malditos sejam ! 

— É um desaforo ! 

— Uma pouca vergonha I 

— Bem espesinbada anda a gente; faltava 
mais esta agora. Levaram-nos a melhoria da carne, 
agora querem levar-nos o resto e o osso. 

— Sempre é governo de estrangeiro I 

— É como coisa de padrasto, que nunca trata 
bem os filhos alheios. 

Estas e outras exclamações eram soltadas por 
um grupo de pessoas, que se formara na praça 



56 A RUA ESCURA. 

da Ribeira, quinze dias depois da grande festa 
dada pelo senado portucalense aos seus honrados 
burguezes. 

— Mas quem te disse similhante coisa? — 
interrogou um homem de edade, dirigindo-se á 
mulher que fazia de soprano neste grande con- 
certo de pragas e lamentações. 

— Quem m'o disse ? Vi com estes olhos, que 
a terra ha-de comer; ouvi-o eu. Tinha ido ao 
moinho da tia Zefa levar a fornada e estávamos 
conversando, quando ouvi... ra-tam, tam-tam. 
Sahi a ver o que era. O som vinha do lado de 
cima, de S. Domingos. Dei uma volta a correr e 
zas... chego á praça. Estava lá alguma gente ainda; 
mas os do bando já tinham enfiado pela rua das 
Flores, para irem pregar os papeis na Porta de 
Carros e na de Santo Eloy. Perguntei então a mes- 
tre Simão Barradas, o barbeiro d'ao-pé do con- 
vento, e elle me rezou tim-tim por tim-tim a 
ordenação do senhor rei... 

— Rei I rei I rei de Hispanha, que não nosso I 
— resmungou, atalhando, um barqueiro, que arre- 
gaçava as mangas da camiza com uraVar decidido. 

— Caluda, homem — exclamou o velho a 
meia-voz — pela bôcca morre o peixe. 

— Quanto por maçaroca ? — perguntou uma 
fructeira á narradora. 

— 31eio real de cobre I... Um real — redar- 
guiram ao mesmo tempo duas vozes femininas. 

— Então faliam vocês, ou fallo eu I — gritou 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 3/ 

cheia do importância a narradora I — Fui eu, ou 
quem foi que ouviu o bando ? 

— Então sempre ouviu o bando, senhora 
Crispina ? 

— Senão eu, mestre Barradas; o olhe que ó 
homem que retém quanto ouve ou lé. Sabe de 
cór muita trova e^motete, c faz as contas ao ten- 
deiro da esquina... não é lá quem quer ! E bom 
mesinheiro é elle como o physico mais pintado ! 

— E quem lhe diz o contrario? — tornou o 
velho. 

— Mas então quanto é ? — tornou a inter- 
romper uma outra mulher. 

— E um real; mas diz-se — tornou ella, fal- 
tando com voz surda, como se tratara do um grave 
mysterio — que é um pretexto para confiscar tudo, 
até a camiza do corpo. Mestre Simão ouviu isto ao 
doutor Fernando de Andrade, que é seu freguez, e 
que já estava no segredo do negocio ha dias. 

— A ultima camiza? — murmurou uma velha 
esfarrapada — credo ! 

E persignou-se. 

— E tal ô qual, como lhe digo — querem dar 
cabo do povo, da arraia; que lá com os bogalhudos 
andam feitos os do governo : comem a meias. E 
senão é ver como os vereadores e o juiz do povo 
lhe approvaram logo o peditório. 

— Tem razão : querem dar cabo do povinho I 

— Eu cá não pago, — gritou uma regateira 
meneando a roca no ar — quebro-a na cabeça do 



58 A RUA ESCURA. 

aguazil que pelos direitos vier...e que me lancem 
mão dos trapos I 

— Que remédio tem a gente senão pagar ! 

— Não já eu — tornou a outra, pondo as mãos 
na cinta, e começando a cantarolar com um gesto 
de desdém, depois de ter tornado a enfiar a roca 
no atilho da enorme algibeira que lhe pendia ao 
lado, com um ar como de quem embainha a espada 
depois de uma façanha. 

— Um real por maçaroca, senhora Crispina ? 
— acudiu outra — é para dar com o fiado em dro- 
ga ; é tirar o pão da bôcca á gente I Isso não pôde 
ser. 

— Nào pôde ser, santinha? Eu nâo sei mesmo 
se são dous ou três I — redarguiu a interpellada 
agastada pela duvida da mulher, e mesmo prevçndo 
que o augmento do tributo contribuiria para a sua 
maior importância. 

As attenções de que era alvo havia um quarto 
de hora, em que todos lhe dirigiam a palavra ; o 
terem n'ella os olhos fitos, como se fora quem 
tivesse causado tal calamidade, ou lhe podesse dar 
remédio, tinha enxertado uma pouca de vaidade 
no coração da conhecida do barbeiro d'ao-pé de 
S. Domingos. Demais a senhora Crispina tinha a 
bossa de noyelleira politica, mal desinvolvida pelo 
atrazo dos tempos; mas se viesse ao mundo neste 
século de gaz, e trajasse calças, havia de ser um 
dos mais admiráveis e escutados espalhadores des- 
sas bombas de espuma, chamadas «boatos» que ao 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 59 

rebentarem no meio de uma' multidão fazem ás 
vezes mais efleito que as de ferro. Á senhora 
Crispina, pois, deslumbrada pela sua posição, con- 
tinuou, voltando-se para os seus espectadores e 
perguntando cora um modo de quem consulta os 
seus fieis vassallos : 

— Então que havemos de fazer ? 

— A coisa é fácil — disse um galeote agitando» 
um remo. 

— Leva-os a breca, se vêem ler o seu aranzel 
cá para a baixa. 

— Vão ao rio — pipitou uma peixeira. 

— Ao rio, ao rio I — vozeou a turba que 
attrahira a narração da senhora Crispina, quasi 
tudo mulheres. 

— Oh I o pregoeiro leva-se alli para a forca... 
para os Guindaes, e havemos de ver o effeito que 
faz esperneando com um nó de corda no pescoço. 

— Não querem linha, dê-se-lhe corda I — 
disse outra ; e um chuveiro de risadas e a pp la usos 
abafou um outro dicto da senhora Crispina. 

— Que venham, que venham 1 — gritaram 
muitas, dirigindo-se para a eroboccadura da rua 
dos Mercadores — que venham, que esganamos 
aguazis, pregoeiros... e vereadores até I 

— Não, não I tudo á agua I 

— Á agua; e como está frio não se constipam. 

— Vamos á camará ! 

— Sim, á camará, e enforcamos o pregoeira. 

— E os vereadores nas suas garnachas negras 1 



00 A RUA ESCURA. 

— Em pala mos òs quadrilheiros nas grandes 
aiabardas que trazem. 

— Enterramos os corregedores, que já andam 
amortalhados em vida como os farricocos. 

— E os juizes I 

— E o chanceller ! 

— E o juiz do povo... bom juiz, que nos 
Deixa esfollar sem tugir nem mugir I 

— E o tal figurão de Castella ou de má morte! 

— Sim, sim, esse sobre todos; morra o cas- 
telhano ! 

— Eis-ahi o senhor Bartholomeu I — grilou 
um calafate, apontando para o lado da Ribeira — 
elle ha-de saber isso melhor. 

E a multidão começou a apinhar-se era volta 
do pasteleiro, que, vjndo do lado da porta da 
Lingueta, se dirigia para o seu bairro, e afroixára 
o passo ao ver que aquella chusma cortava a 
entrada da rua que demandava. Á primeira pessoa 
com quem deu de cara foi um taberneiro, que, como 
conhecido do mestre da corporação, tinha sido en- 
carregado pela mais gente da indagação do facto, 
que já devia passar por mais que certo, não só 
porque a senhora Crispina, a Choca, o dissera, mas 
porque tinha sido já relatado por mais algumas 
pessoas recém- chegadas do outro extremo da ci- 
dade, onde se lançava o bando. O taberneiro tortu- 
rava ainda nas mãos as grandes abas do seu enorme 
chapéu, quando foi interrogado pelo mesmo a quem 
se dirigia em nome das honradas peixeiras, fru- 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 61 

cteiras, galeotes, barqueiros, e calafates da muito 
nobre cidade do Porto. 

— Que é isto aqui ? 

— Que ha-de ser ? — responderam seis ou 
sete vozes a um tempo — querem-nos chupar o 
sangue com tributos. 

— Falle cada um por sua vez I falle um só 
— disse o pasteleiro com ar de soberania — Que 
tributos ou historias são essas ? 

chefe da corporação dos taberneiros fazia -se 
de novas. Para eile já estava claro o motivo do 
alvoroço do povo; comtudo julgou prudente fingir* 
se ignorante n'esse ponto, e mal avisado não an- 
dava á vista da gente, que tinha pela frente, e do 
rio, que corria na recta guarda. 

— Lançaram-nos um tributo de dous reaos 
sobre cada maçaroca que fiarmos '-— grasnou uma 
regateira. 

— Levam-nos dez reis pelo fiado — esganiçou- 
se outra ao mesmo tempo. 

— É um real — gritou a Choca, fazendo com 
as suas collegas um unisonò perfeito. 

— Então ! — exclamou o pasteleiro ! 
E a mesma algazarra proseguiu. 

Se não estivesse inteirado do tributo, nada 
comprehenderia; mas a interpellação, já o dissemos, 
tinha sido uma formalidade. 

— E agora que querem fazer? — perguntou 
; elle na primeira pausa que encontrou naquella 

torrente verbosa. 



62 A RUA ESCURA. 

— Enforcar os quadrilheiros e o pregoeiro, e 
não deixar lançar similhante bando — redarguia 
o galeote de remo, o mais decidido da turba. 

— Altentar conlra a justiça ! — exclamou o 
senhor Bartholomeu — estão doidos I 

— Qual doidos, nem meio doidos I 

— Sim — tornou o burguez — vocês que não 
téem que perder, nem leira nem beira, fazem os 
motins e assuadas, e a gente que o pague depois. 

— Não temos que perder? — replicou a Choca 
— então não perdemos o suor do rosto... não nos 
levam o que ganhamos em dízimos, em portagens... 
mais para aqui, mais para alli ! E agora até o triste 
fiado ha-de dar para elles comerem I 

— As necessidades do estado... a guerra... 

— Qual guerra nem meia guerra 1 Guerra e 
por quem ? — que temos nós outros com as coisas 
de Flandres, ou lá d'esses paizes de hereges onde 
nos matam a gente? De lá vem especiarias.e rique- 
zas como das índias — murmurou um velho ma- 
rinheiro, mesmo da rectaguarda do pacificador. — 
Que temos nós com Castella e as coisas dos cas- 
telhanos ? 

-*- Sim, sim ; que temos com a guerra dos 
castelhanos ? — berraram em coro todas aquellas 
laringes possantes. 

O povo não admittia a grande necessidade 
que Francisco de Lucena exposera aos vereadores 
e mestres de corporações da cidade : a palavra 
que entre os honrados e barrigudos burguezes 



tradição' portuense. (53 

fizera tamanho effeito tinha gorado completamente 
entre a gente da Ribeira. O grito de «morra Cas- 
tella» surgiu então d' entre a multidão. O orador 
viu compromettida a sua dignidade politica e a 
sua pelle ao mesmo tempo, e indeciso se devia 
de reprimir aquelle grilo sedicioso, que bôcca rays- 
teriosa já não era a primeira vez que soltava na- 
quelle dia, ou escape r-se, annullando a sua im- 
portância, murmurou entre-dentes : 

— Perros raalhadiços I 

— Perros malhadiços ! — grunhiu uma velha 
que lhe estava por detraz — Credo ! olhem como 
nos trata I Aposto que é fidalgo, o castelhano ! Fora ! 

— Fora I fora ! — uivou toda a turba. 

Um cento de punhos femininos, mas muscu- 
losos se levantaram. O taberneiro aparou no ar 
uma pancada, que era dirigida ao mestre da sua 
corporação, gritando ao mesmo tempo para acalmar 
aquella agitação: 

— Ácastelhanado o senhor Bartholomeu? Ora 
esta ! estão doidos : é portuguez e portuguez de 
mão cheia. 

— Que diz, homem I — titubiou encolhendo-se 
o gordo ordeiro — Eu portuguez ? 

— Então que é? 

— Ai I é verdade — tornou inteiramente per- 
turbado — é que... 

— Vejam, vejam — exclamou o galeote — 
Comece por aqui o exemplo. Os que nos trahem 
e roubam mais são os de casa. 



64 A IU'À ESCURA. 

A praça estiva já cheia de gente, quasi toda 
pertencente á classe pobre. As mulheres corriam 
de ura lado para o outro, formando grupos que 
logo se desfaziam para engrossarem outros mais 
além. Nos gestos de todos pintava-se uma exaltação, 
que denotava que os diques da prudência, ou 
melhor paciência, estavam a rebentar. O respirar 
açudado d'aquella gente dava á atmosphera esse 
ar de revolta, que, quando engrossado, destróe 
thronos cimentados pelos séculos, costuiues inve- 
terados, bebidos com o leite desde gerações ini- 
memoráveis. Os burguezes que deitavam) a cabeça 
pelos postigos das adufas, recolhiam -nas como um 
caracol que sentisse picadas as a n termas por crian- 
ça travessa; os que tinham as portas abertas come- 
çavam a arredar o museu de amostras, para esta- 
rem promptos ao primeiro signal. Um grupo de 
garotos, previdentes como sempre, patinhavam pela 
lama que alcatifava a praça, procurando pedras e 
cacos, de que faziam provisões nos peitos das ca- 
mizas, e soltavam de vez em quando guinchos, 
sibilos e risadas desconcertadas. Cincoenta braços 
se tinham estendido para empolgar o indeciso pas- 
teleiro, que pãllido, boqui-aberta, agarrado ao ta- 
berneiro perdera o uso da lingua, coroo perdera 
a cabeça. Movimento de instincto, agarrou, com- 
tudo, com uma das mãos a bolsa de coiro, pen- 
dente da esquerda, e que se mostrava gorda a 
ponto de faze* crescer agua na bòcca — expressão 
de um picheleiro, que lhe lançava uns olhos como 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 65 

a moça appelecida; agarro u-a, e apertou-a de en- 
contro ao peito com a força com que o náufrago, 
vindo á flor d'agua, agarra um cabo de salvação. 
Em temporal desfeito estava elle. Mais um minuto 
e seria talvez feito em pedaços para contentar as 
diversas vontades dos que pretendiam leval-o para 
o pelourinho, para a forca e para o rio. 

O que salvou o senhor Bartholomeu podia 
passar por um milagre, e comtudo foi a coisa 
mais natural do mundo. Do lado de cima ouviu- 
se soar um tambor, e os primeiros olhos que se 
dirigiram pela augusta rua dos Mercadores, viram 
descer pausadamente o bando da camará. À mul- 
tidão, que voltara as cos Lis para a cidade, girou 
sobre os calcanhares e parou indecisa. Meio quarto 
de hora antes, quando ainda não tinha tornado a 
sua fúria contra a ordeira creatura do senhor Bar- 
tholomeu, o bando não chegaria a meio da rua ; 
agora olhava estupidamente para elle, e a vista de 
seis ou sete alabardas fazia subir pelo thermome- 
tro do medo, a espinha dorsal, um frio desagra- 
dável. A. multidão ladeou pouco a pouco, e dis- 
persou lentamente ao chegar um homem, que as- 
sentou no meio da praça um enorme banco de 
carvalho, de cima do qual se devia lançar o pre- 
gão. A primeira syllaba do edicto municipal eccoou 
já em bem poucos ouvidos mais que os Ao senhor 
Bartholomeu, que como uma estátua tinha ficado 
no logar em que os braços musculosos da chusma 

da Ribeira o deixaram. 
5 



66 A RUA ESCURA. 

O pregão, lançando um tributo sobre as ma- 
çarocas, era o resultado dos bilhetes que D. Fran- 
cisco de Lucena escrevera, na manhã do dia 6 logo 
á sua chegada. secretario do real conselho, por- 
tuguez de nascença, escurecera esta nódoa aos olhos 
do duque de Olivares, rei em nome de Filippe IV, 
e propuzera-se a fazer como Cezar : chegar , ver 
e, em vez de vencer, arranjar dinheiro. Isto porém 
era mais difficil que debellar os gaulezes, podem 
acreditar os pios leitores. Á grande sanguesuga, 
chamada corte tinha debilitado muito esse grande 
corpo chamado Hispanha, e muito mais Portugal. 
Os cofres havia tempos que abrigavam aranhas 
como caranguejos, e a festa da camará, posta de 
prazer lançada ao povo inquieto pelo tacto politico 
dos edis portucalenses, mais tinha sido feita á custa 
destes, que dos redditos públicos. As corporações 
chamadas para carregarem com a responsabilidade 
de uma nova derrama, tinham lançado de hombro 
em hombro o fardo da contribuição até recahir em 
um género que affectava a classe mais pobre da 
sociedade. Sobre este tributo, que devia ser come- 
çado a receber passados tempos, levantou o secre- 
tario uma somma considerável, abonada — com que 
vontade podem fazer ideia— pelas irmandades epelo 
commercio, somma que devia juntar aos donativos 
dos notáveis da terra e da nobreza de Entre-Douro 
e Minho. 

— Viva o grande rei, S. M. Filippe III de Por- 
tugal I — gritou finda a leitura o pasteleiro, sahin- 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 67 

do do seu turpor e como para se desforrar da 
coacção em que tinha sido posto pelas corpulentas 
nayades do Douro, como havia pouco chamara 
um poeta ás regateiras o peixeiras da Ribeira. 

— Viva 1 — gritaram alguns garotos, susten- 
tando ainda as arregaçadas de pedras cora uma 
das mãos, era quanto com a outra lançavam os 
barretes ao ar — Viva Filippe III ! 

As iras populares ficavam adiadas. 



VI. 



OS ESTOUVADOS. 



Clerig — Casa mata ei porfiar, 
Como dice el refran viejo. 

Moço — Quando ella bem tos quiíer 
Que me pinguem na barriga. 

(Gn. Víckmtw.. 0$ Fysicos.) 



A 



lo som do sino corrido das freiras de Santa 
Clara, que um sudoeste frigidissimo tornava bem 
d i st i acto, casavam-se as risadas estrepitosas, de 
meia dúzia de mancebos assentados á volta d'uma 
meza, na sala principal da casa do senhor Bartho- 
lomeu de Basto. Á noite cahira invernosa, e quan- 
do se calavam os galhofeiros hospedes percebia-se 
o chapejar da chuva nas lages e charcos da rua 
e o bater das gelozias, contrastando com o tinir 
dos copos e com as trovas e motetes dos mais ele- 



70 A RUA ESCURA. 

gantcs fidalgos do Porto, reunidos n'uma ceia de 
rapazes. 

PCuma das cabeceiras estava Filippe de Lucena, 
o heroe da noite, como o era em tudo desde a 
sua chegada ; ao fundo da sala, encostado a uma 
secretária, baloiçava -se sobre uma perna com um 
gesto de alegria, já refeito do susto que tivera dois 
dias antes, o pasteleiro, que com um olhar expres- 
sivo guiava o creado do serviço, para que elle não 
faltasse com a minima coisa aos seus excellentes 
hospedes. Todos, desde o morgado de Ferreira até 
ao pequeno Cernache, contemplavam com admira- 
ção a Filippe, archi-typo, para elles, de elegância, 
de bom gosto ; uma superioridade, em fim, no seu 
género. 

A ceia começara ao cahir da noite, e os con- 
vivas tinham feito honra aos guizados do pasteleiro 
com um appetite homérico. Agora apenas o summo 
da parra e a cidra tinham extracção e, por com- 
plemento, algumas mãos-cheias de figos-passos, 
amêndoas, confeitos e mais doçaria. 

Lucena tinha maravilhado os moços fidalgos 
do Porto com as suas boas fortunas, com a chro- 
nica escandalosa da corte, e acabava de alludir de 
umç maneira irreverente a um facto que bastante 
dinheiro custou a Hispanha e deu a Roma. Os 
estouvados do Porto estavam muito áquem do so- 
brinho do secretario do conselho real de Castella 
em matéria de preconceitos. Apenas Cernache sol- 
tou uma gargalhada; os outros ficaram sizudos, 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 71 

deixando* pela primeira vez de applaudir os ditos 
hyperbolicos do moço Filippe, apezar de não serem 
das mais beatas creaturas da terra. 

— Oh ! ohl isso é demais... uma irreverên- 
cia — murmurou o morgado de Ferreira depois de 
um pequeno silencio. 

— Irreverência 1 Estás para clérigo ? — tornou 
Filippe, olhando maliciosamente para todos. 

— São hispanholadas ! — gritou o pequeno 
Cernache, com a bôcca cheia — Filippe, por ter 
estado na corte, quer-nos fazer passar o sino gran- 
de da Sé pélas guélas, como se fôramos escudeiros 
do Minho I Náo cabe I 

Os dous morgados fizeram uma careta, de fe- 
ridos que estavam na sua prosápia. 

— Não : é perguntar por isso a quem quizeres, 
meu pollo. Tão pouco barulho fez I Era na Encar- 
nação Benita, ao-pé mesmo da casa do protonotario, 
D. Jeronymo de Villanueva. Este foi quem arranjou 
tudo. El-rei foi por uma cova dar á carvoeira do 
convento. A parvoinha tinha dado parte á abba- 
dessa, e a velhota fêl-a deitar n'um esquife, com 
luzes acezas e uma devota imagem á cabeceira... 

— E El-rei assim mesmo atreveu-se? — in- 
terrompeu um dos outros. 

— Quem deu com este arranjo, foi o proto- 
notario, que fora adiante, e nessa noite dissuadiu 
Sua Magestade. Pero^ cruzados hacen cruzados y 
escudos pintan escudos. A abbadessa consentiu e 
ajudou á festa. Como não havia no convento galas 



72 A RLA ESCURA. 

á mao, vestiram á lindo freira o vestido tf o manto 
da Virgem da Conceição, e estava guapa como pin- 
tada. D. Jeronymo e o duque de Olivares foram 
buscar á sacristia dous thuribulos, e incensaram-na 
por un rato, retirando-se a esperar o rei, que... 
sahiu pela manhã. 

— Muito nos contas, Filippe ! — tornou Luiz 
Cernache. — Á sauete da linda freira da Encarnação 
— • ajuntou despejando um copo de vinho. — Os 
diabos me levem se eu tagibem não passava por 
uma carvoeira para ir ver minha prima Luiza, á 
Madre-de-Deus... 

— OU I andas apaixonado por uma prima ? 
Bem se vê que deixaste a casca ha pouco. O ca- 
pellão ainda te devia acompanhar — atalhou Pedro 
Cerveira, retorcendo o bigode e soltando uma ri- 
zada. — O vinho sempre tem o privilegio de obri- 
gar a fazer confissões bem singulares 1 

— Em Madrid e Valhadolid devem de haver 
boas raparigas, não, Filippe ? — perguntou o quarto 
dos convivas, o morgado de Mesquita. 

—Morenasl morenasl— cantarolou o estouvado 
Filippe, que, assim como os galliceparlas de agora 
entremeiam de francez e retalhos de operas italianas 
a conversa, a enchia elle, á moda do seu tempo, 
de hispanhol e com quantas coplas se cantavam 
desde a Navarra á Gálliza. — São deliciosas e com 
um salero, um donaire como por cá não ha. Co- 
nheci uma loira... fios -d'oiro se podiam dizer os 
cabellos ; a bôcca um cravo ; as faces onde as 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 73 

rozas faziam guerra aos jasmins; os olhos dous 
céos, como nunca Quevedo, Garcez, Montai vo ou 
qualquer outro poeta descreveram, que teve a ha- 
bilidade de me prender... por um mez... 

— Sem fructo — atalhou Cerveira. 

Filippe de Lucena sorriu-se, e encheu um copo. 
Este sorriso foi perfeitamente avaliado pelos con- 
vivas, e o mais joven, o que mais estouvado se 
pertendia mostrar neste ajuntamento de estouvados, 
exclamou : 

— Mestre Barlholomeu, mais vinho e do me- 
lhor I Queremos fazer uma saúde á Philis do nosso 
amigo. Vamos, Filippe : como se chamava a pérola 
das Hispanhas? 

— Que importa o nome ? 

— Oh ! oh ! — replicou Cernache — era alguma 
filha de fanqueiro ou cousa que o valha? 

Lucena começou a cantarolar por entre-deutes, 
esta canção, como resposta á exigência do joven 
fidalgo : 

Que senora se te tapa? 
Que bidalga se te vá ? 
Que mora no se te dá? 
Que judia se te escapa ? 
Que pobre... 

— Basta I basta I — exclamou o estouvado, ata- 
lhando-o.— Sabemos isso. Vá, cavalheiros, á saúde 
da fanqueira do nosso amigo. Eu cá bebo á saúde 
de todas as mulheres, de todas as nossas amantes, 
passadas, presentes e futuras. 



74 A RUA ESCURA. 

— Á saúde de D. Isabel de Rojas I — disse 
Lucena, levantando o copo — Áhi vai o nome da 
fanqueira; mas fanqueira de bem boa linhagem 
— continuou elle. —Já que bebes á saúde de to- 
das, vamos fazendo a innumeraç&o, que te quero 
ver juiz de S. Martinho. 

— Fica debaixo da meza I — exclamou Henri- 
que de Mesquita. 

— Para isso não é preciso muito — ajuntou 
Cerveira. 

— Veremos ! — gritou o moço estouvado levan- 
tando-se. — Á saúde de D. Isabel de Rojas 1 

E todos, levantando-se, esgotaram os copos, 
em quanto que o pasteleiro gritava ao criado que 
fosse á adega buscar mais vinho, ao ver exhaustas 
as garrafas que depositara na meza. 

— Agora a tua vez, Cernache. Á saúde da pri- 
minha I 

— Já lá vai . 

— É o mesmo : bebe. 

— Eu não arreio. 

— Á saúde da prima de Luiz Cernache 1^ — 
gritaram todos, virando de novo os copos. 

— Em seguida — tornou Lucena — uma con- 
fissão geral. 

— Nada, Filippe — redarguiu um dos convi- 
vas — primeiro a tua, depois nós faremos as nossas. 

— Sim, sim — gritaram os outros. 

— Fuego de Dios I que é para ficar aqui até 
á resurreição — exclamou Filippe. 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 75 

— Bravo ! bravo!. 

— Pois sim — titubiou Luiz Cem ache, menean- 
do-se na cadeira com os olhos já turvos — eu be- 
berei até lá : começa. 

E com a mão tremula despejou da caneca de 
cidra uma boa porção de liquido na meza e outra 
no copo.* 

— Vita sine vino... mors est — continuou elle, 
piscando os olhos — assim diz o capellão de meu 
pai... e o tonsurado tem razão. 

— teu mestre Luiz — exclamou o morgado 
de Mesquita — ensinou-te excellentes aphorismos; 
mas não me pareces tão practico como elle. 

— Começa, Filippe*, ou D. Filippe — insistiu o 
joven Cernache — Vá á primeira. Como se chamava? 

— Não me lembra. 

— Como não te lembra ? . 

— Por Dios, que não. 

— Era casada ou solteira ? 

— Se era da corte — atalhou Henrique de Mes- 
quita, — escusas de fazer essa pergunta; que lá 
tem-se por cousa de noviço os amores com don- 
zellas. 

— Bonita moda — gritou o estouvado. — Vá, 
Filippe: era da corte? 

— Não me lembro; não as tomei a rol... 

— E o mesmo : á saúde da primeira I 

— Bebe á saúde das cinco primeiras, que me 
parece será mais exacto. 

— O nome da ultima também te não recorda ? 



7G A RUA ESCURA. 

— O da ultima não o sei. 

— Como? 

— Talvez aqui o mestre o saiba — redarguiu 
Filippc de Lucena, voltando-se para o senhor Bar- 
tholomcu de Basto, que lhe ficava por detraz. 

— Eu ? meu fidalgo I 

— E que duvida? 

— O fidalgo quer rir ? 

— Não, por los santos I é uma visinha sua. 

— Visinha ? — murmurou o pasteleiro, fazen- 
do-se tão pallido como o nfto estivera nas mãos 
das rega leiras. 

— Ou visinhas. 

— Se o fidalgo me disser onde moram, pôde 
ser — tornou o senhor Bartholomeu um pouco 
refeito da com moça o que sentira. 

Sem saber pelo que, por um presentimento, 
lembrou-se logo da sobrinha da senhora Perpetua, 
e, como vulgarmente se diz, o coração cahira-lhe 
aos pés. Voltado da primeira impressão, na per- 
gunta que dirigira ao sobrinho de Francisco de 
Lucena notàva-se uma tal anciedade, que o moço 
fidalgo fitou-o meio-espantado. As libações, porém, 
que fizera, não o deixavam avaliar bem as muta- 
ções de colorido que soffria o rosto do honrado 
burguez. Filippe redarguiu com o estouvamento de 
um rapaz que queria mostrar aos seus amigos que 
tudo lhe era indifferente, como um rapaz gasto : 

— Uma pequena que mora na rua de S. Sebas- 
tião. . . a segunda casa da esquerda depois do arco. 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 77 

— Àh I — exclamou o pasteleiro, como se lhe 
tirassem um enorme pezo de sobre o peito — a 
pequena Beatriz do Arco ! 

— Á saúde da tal Beatriz do Arco! — balbuciou 
Luiz de Cernache, bebendo alguns golles, e encos- 
tando a cabeça á meza resmungou : 

— Vá... Filippe...ou... ou... tra! Tens aman- 
tes co... co... mo o diabo... 

— Apage 1 — ajuntou o morgado de Ferreira 

— que nos não deixas uma rapariga... até as do 
povo te fazem conta... 

— A la fé — redarguiu Filippe estirando-se na 
cadeira, e começando a sacudir a renda de walona 

— que a outra vale bem a mais pintada das vossas 
fidalgas e quantas tenho visto. 

— Mesmo a tua Belisa?— interrompeu sorrin- 
do o morgado de Ferreira. 

— Mesmo essa. O louro ha muito que é género 
em que a gente se não pôde fiar : na corte tudo o 
louro... á (orça de enxofre e polvilho d'ouro; tudo 
é arrebique. Estou farto de confeitos ; gosto mais 
de gaspacho. Esta minha burgueza vale por todas. 

— Menos por minha prima Luiza — tartamu- 
deou o pequeno Cernache, piscando os olhos para 
a luz. — Taberneiro do inferno I as tuas luzes pa- 
recem fogareos ; fazem-me mal á vista, e preciso 
d'ella para estudar. Meu pae quer fazer-mo bispo. 

— Venha o nome da tal phenix ! — gritaram 
os outros sem fazer caso da vergontea de uma das 
roais antigas casas <ib Porto. 



78 A RUA ESCURA. 

— Já disse que ainda o não sei também. 

— Onde mora ? 

— Alli na esquina, ao descer das escadas da 
Só. 

O pasteleiro deu um passo para a frente e 
levou a mão á cabeça ; depois ficou immovel, como 
estúpido. Um dos mancebos continuou : 

— Oh I já sei ! a pequena das escadas da Sé» 
a que o Montenegro tanto forcejou por conquistar 
sem proveito. Nada feito, meu amigo : por destro 
que sejas, não enfias essa argola tão facilmente. 

— Veremos. 

— Estava capaz de apostar, — proseguiu o 
moço fidalgo — em como não fazes nada ! 

— Aposta. 

— A uma ceia ! — gritou um. 

— Cincoenta cruzados — disse outro. 

— Por la corte celestial I — exclamou Filippe 

— que sois os paladinos de mais boa fé que tenho 
encontrado. 

— Eu aposto... porque, se o Montenegro a não 
conquistou, menos Filippe. 

— Eu por apostar — gritou o da ceia — que 
uma ceia nunca se perde, mesmo quando se não 
ganha. 

— Não tenho feito todas as diligencias, mas 
dentro em quinze dias hei-de estar senhor da praça 

— replicou Filippe retorcendo o bigode. 

— Dou-tc um mez. 

Bartholomeu de Basto esqueceu o seu natural 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 79 

servilismo. Approximou-se de Lucena e batendo- 
lhe no hombro, disse com uma voz surda e trémula: 

— Eu dou a ceia de graça, senhor cavalheiro, 
quando ganhar a aposta. 

Filippe voltou o rosto e encolheu os hombros 
com um ar de desdém. Depois, soltando uma gar- 
galhada, exclamou: 

— Seja ; acceito o repto de todos I até o seu, 
mestre : pago a ceia pelo dobro, se perder. O 
vosso Montenegro é um parvo 1 

— Eu cá — resmungou Cernache — digo que 
Filippe vence. 

— Veremos ! 

— D'aqui a quinze dias. 

— A um mez ; nós somos generosos. Cuidavas 
que vinhas de Madrid fazer essa descoberta? É 
malta batida: bons lebreos lhe têem andado na 
pista ha seis mezes ; mas a pequena nem sequer 
os olhos lhes deita; e bem sabes que com quem 
nem ao menos mostra desprezo, nada feito. 

Pedro Cerveira defendia por um capricho a 
virtude de Maria Áldoar. Não só tinha, ha tempos, 
6Ído um dos per tendentes desapontados de que a 
sobrinha da senhora Perpetua nem sequer dera fé; 
mas o vinho irritara-lhe o orgulho pátrio, e estava 
resolvido a fazer face ás bravatas de Filippe de 
Lucena. 

A assemblea calou-se por largo tempo. Á irri- 
tação produzida pelo vinho seguia-se a prostração 
e o cançasso. . 



80 A RUA ESCURA. 

— D'aqui a um mez hei-de-vos dar provas — 
disse Filippe, rompendo este silencio. E continuou, 
voltando-se para o senhor Bartholomeu: —Fazei 
accender a minha lanterna, que as ruas estão es- 
curas como prego. 

O pasteleiro nem se meneou. Sentado n f um 
escabello, no fundo da sala, estava como petrificado. 

— Upa ! Cernache — gritou um dos convivas, 
batendo nos hombros do joven fidalgo, que tinha 
adormecido encostado á meza. 

— Que é lá ? — balbuciou este. 
-A pé! 

— Mais outra saude ? 
«— Vamo-nos. 

— Hein ? Quem me de... ra ser freira da Con- 
ceição... ou Encarnação; não... quem me dera ser 
rei de Hispa... pa... nha e minha... pri... prima a 
tal freira... que pelas barbas de meu tio cónego... 
ha... via de lhe dar um beijo I — resmungou o 
estouvado, sahindo, cambaleando pelo braço de 
dous dos convivas, que se achavam em pouco me- 
lhor estado. 

Quando as dez horas cahiram, na sala não 
restava mais que o pasteleiro. A chuva tinha ces- 
sado, e ao sibilar do vento pelas frestas das portas 
e janellas, juntava-se uma voz longínqua e trémula 
a' que outras faziam coro, entoando estas coplas: 

Passe a media noche el mar 
Y arda en amorosa llama 
Leaudro por ver su dama, 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 81 

Que yo mas quiero pasar 
De Yepes à Madrigal 
La regalada comente : 

Y ria-se la gente! 

Pue» amor es lan cruel 
Que de Piramo y su amada 
Uaee tálamo una espada 
Do se juntem elta y el, 
Sea mi Tisbe un pastel 
Y la espada sea mi diente. 

Y ria-se la gente ! 

Eram os estouvados fidalgos que se dirigiam 
a acompanhar o moço Filippe á casa do Patim, 
onde se achava hospedado. Quando a ultima nota 
chegou aos ouvidos do senhor Bartholomcu, le- 
vantou- se elle do seu lethargo, e exclamou, esten- 
dendo o braço na direcção d'onde lhe vinham 
aquellaè vozes : 

~ Tragado sejas tu por Belzebu th, coruja de 
mau agouro ! 



6 



VI. 



OS 6EUFALTES. 



Ide~lhe, rogo-vol-o, falljir 
E fazei cpm que me ijueir». 
(Ga Vickhtb. O Velho da Horta.) 



A 



praga do senhor Bartholomeu não impeeeu 
ao moço fidalgo, que dormiu a somao solto nessa 
noite, como dorme um mancebo aos vinte e cinco 
annos, por grandes qne sejam os seus cuidados; 
e os d'elle, cifrados todos em conquistas e galan- 
teios, eram de bem leve pezo. Eram quasi horas 
de jantar, pois que o sol começava a penetrar no 
dédalo das ruas do coração da cidade, o que não 
faz senão ao meio -dia, quando se sentiu despertar 
e viu diante de si um dos seus companheiros d* 
véspera, o estouvado Luiz Cernaehe. Filippe rezou 



84 À RUA ESCURA. 

uma longa ladainha de pragas, na língua. d'el!as 
mais fértil, a castelhana, e, esfregando os olh^os, 
inquiriu a causa da extemporânea visita de Luiz. 

— Achas cedo? — redarguiu este, atirando 
com o seu chapéu para cima de uma cadeira, e 
perfilando-se diante de um espelho de Veneza que 
adornava o quarto do seu companheiro, e é por 
isso que rezas matinas com esse desembaraço? 
Pois fora quasi melhor esperar mais um bocado, 
e guardar essa devota ladainha para o meio-dia, 
que está a cahir. A dormir nào se caçam lebres. 

— Nào percebo. 

— A tua aposta de hontem á noite... 

— Ah ! — bocejou Filippe — tenho tempo de 
sobejo piara essas lebres. 

— Terás tempo e geito; mas falta-te o essen- 
cial. 

— que ? 

— Um galgo, ou melhor um gerifalte ; que 
é uma pomba e não lebre o que tens de sacrificar 
no altar de Vénus — replicou o pequeno Cernache, 
piscando os olhos maliciosamente. 

— E és tu que te offereces ? — exclamou Lu- 
cena — tu, pardal desasado !... 

— Alfo ! meu cavalheiro — tornou Luiz, vol- 
tando-se, e pondo-se n'uma posição, que desejaria 
fazer passar por sisuda e imponente, mas que era 
soberbamente cómica — nao tenho a condescendên- 
cia de querer ser o teu Sozias para com essa Alcme- 
na : sou teu amigo, o por isso queria-te indicar um 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 85 

gerifalte roxaz do meu conhecimento, que te trará 
a preza á mão n'um abrir e fechar (folhos. Mo 
cuides que estás em terra de serenatas e descantes, 
onde se possa caçar ao reclamo : apenas uma ou 
duas das nossas damas coraprehenderão um bocado 
de Quevedo, e se levarão por frases delicadas e 
conceituosas. Tenho d'isso experiência — aceres- 
centou com um ar de mysterio. — Demais, não é 
em tapada de nobre que caças, mas em maninho, 
e a caça que em taes sítios abunda é arisca. 

E Luiz Cernache deixou -se cabir, acabado o 
seu sermão, sobre uma enorme poltrona forrada 
de damasco vermelho, onde ficou perfeitamente 
enterrado. 

O que os dous mancebos continuaram a dizer 
nâo o escreveremos nós aqui, que não queremos 
relatar senão- o inteiramente necessário para o des- 
involvimento desta verídica historia. Tão pouco 
descreveremos o levantar de Filippe, e a longa 
operação de toucador a que se submettia um pe- 
ralvilho de então: a mais presumida das damas 
de hoje não soffreria, nem que cuidara em hu- 
milhar uma rival, as torturas que naquellas epochas 
supportava um francelho, quando descia ao terreiro 
a fazer caracolar o seu cavallo em exposição ás 
bellas, ou ia a algum sarau. Deixemos tudo isso. 
O que podemos asseverar é que o gerifalte de Luiz 
Cernache foi acceite,. e poucos dias depois baixava 
sobre a casa da senhora Perpetua Freire, ao mesmo 
tempo que outro do mestre pasteleiro. 



86 A RUA ESCURA. 

O de Filippe de Lucena era uma crealurá que, 
á nio ser o traje, difficil fora dizer o sexo a que 
pertencia. Em um rosto de pergaminho amarello 
abriam-se dous olhos de peixe, redondos, mortos, 
espelhos oxydadós onde nada se reflectia, e uma boca, 
que similhava um gilvaz transversal, feito para dei- 
xar gozar a perspectiva de umas ameias derrocadas 
e amarellas, a que alguém chamaria dentes, adorna- 
da nos cantos com um pello emraaranhado, a hera 
que attestava a antiguidade daqnelle edifício ósseo. 
O outro er£ uma bojuda creatura, espécie de man- 
darim chinez pelo cahido das carnes, rapada a ca- 
beça na ordem inversa e desaffrontados os lábios 
e queixos. Um chamava-se Briolanja, ou antes a 
tia Briolanja: o outro frei João de Santa Úrsula, 
nome que já ficou archivado ahi por algures neste 
romance. 

A presença do frade franciscano era o resul- 
tado da intercessão de dous pensamentos na cabeça 
do senhor Bartholomeu -o do oiro e o da paixão 
que sentia por Maria Aldoar, e que, ao encontra* 
rem-se, lhe fizeram irradiar o rosto de alegria. 
Frei Joào tinha*se abaixado a fazer de Mercúrio 
áquelle Júpiter culinário por amizade e mesmo, 
digamol-o em abono da verdade, porque na sua 
consciência julgava fazer uma boa obra, pondo de- 
baixo da protecção do seu velho amigo a sobrinha 
da senhora Perpetua, menina de quem apreciava, 
apezar do acanhado da sua intelligencia, as boas 
qualidades. A tia Briolanja entrava em todas as casas 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 87 

da burgaezia graúda e miúda debaixo do 9alvo- 
conducto de uns longos escapulários, um oordão 
franciscano» uma mantilha de uma severidade de 
pregas espantosa, uma saia de baeta preta, uma 
touca, que não deixava ver as poucas repas que 
lhe restavam, umas contas enormes, que quasi ar-* 
rastavam pelo chão uma enormíssima cruz, uma 
falia como o miar de um gato, quando fareja ace- 
pipe de gosto, e uma erudição pasmosa em orações, 
ladainhas, magnificas, responsos e outras miude- 
zas, taboleta de ganhar o céo com que ganhava a 
Tida. 

Maria Aldoar estava na sala em que pela pri- 
meira vez a vimos, costurando, sentada n'uma 
esteira da índia cheia de arabescos ; a senhora 
Perpetua, n'uma cadeira de braços, com as mãos 
cruzadas debaixo de um escapulário monástico e 
ciciando padre-nossos; Thereza, a escrava, fiando a 
um canto, e as duas visitas sentadas ao-pó de uma 
mezinha torneada, sobre a qual luzia uma garrafa 
de vinho e uns quartos de toucinho do céo, manjar 
que iam saboreando as duas bemaventuradas crea- 
turas com todo o fervor digno do nome com que 
era baptisado. 

— Tem uma linda sobrinha, benza a Deus, 
senhora Perpetua — disse frei João para dar uma 
entrada á sua commissào : está uma moçoila, e 
ha-de-lhe dar cuidados, que tem um rostinho 
capaz de tentar um santo. — E bebeu um golle 
para afinar a musa. 



88 A RUA ESCURA. . 

— Amen ~ respondeu por costume a sua cora- 
raensal.— Tem um rostinho de saata capaz de fazer 
inveja ás mais pintadas. 

— Boa fortuna lhe deparou Deus na formosura, 
que nella leva um bom dote — continuou o frade, 
vendo que a senhora Perpetua nada respondia, e 
apanhando com dous dedos mais uma talhada de 
toucinho do céo. — É digna de encontrar um ma- 
rido que a estime. 

— Pois não ha-de encontrar ?1 — atalhou a tia 
Briolanja. — Merecedora é ella de tudo : até d'um 

rei. 

— Já não estamos no tempo em que os reis 
requestavam pastoras por esse mundo de Christo, 
que, se estivéramos, nenhum milagre era esse : 
formosura tem ella bastante para pleitear com a% 
que a tem. 

— Nero tão longe vae isso, senhor frei João 
— redarguiu Briolanja — que a minha mãe ouvi 
fallar, porque a conheceu como as palmas das mãos, 
pois era rapariga do seu tempo, de uma tal Maria 
ahi dos Pela mes, que foi rainha de Maldiva, que 
dizem, é um bom reino lá pelas índias. 

— Também ouvi fallar nella muitas vezes — 
disse a senhora Perpetua, que acabara a oração 
que de costume á tarde rezava — era sobrinha de 
um cónego evangelista ; mas pobre, coitadinha, a 
mais não ser... 

— nome de Maria traz felicidade — atalhou 
frei João com a bôcca cheia — e a nossa Mariqui- 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 89 

nhãs tombem ha-de achar uma boa fortuna. Para 
esses reinos de gentios não a queremos nós; mas, 
sem ser rei nem fidalgo, boas fortunas pôde alcan- 
çar. Os fidalgos querem fidalguia* 

— Alguém conheço eu, fidalgo como o senhor 
duque de Bragança, ouvi dizer em casa do senhor 
chanceller, onde me dá de jantar ás sextas-feiras 
a senhora D. Antónia, que morre por uma certa 
menina; e não se lhe daria de a levar á egreja. 

Os olhos embaciados da beata brilharam leve- 
mente ao encontrar os de Maria Aldoar, que por 
acaso levantara a cabeça, e olhara para ella. A ve- 
lha fez um gesto malicioso, como de quem dizia : 
A moça querida sois vós ; e Maria corou extrema- 
mente; baixou de repente a cabeça sobre a coslura 
e continuou o seu lavor com uma pressa inusitada. 
A linda menina cuidava reprimir com o seu aíTan 
o pensamento que a beata lhe despertara. 

— Um homem maduro temente a Deus e de 
cabedal é que convinha para a nossa menina, e 
não algum desbarbado, que lhe dê depois má 
vida. D'esses fidalguinhos, que apregoam nobreza, 
roas que nunca viram os cunhos ao dinheiro, escu- 
deiros» que apenas possuem uma guitarra para os 
seus descantes, e um faim, que por enferrujado, já 
não sahe da bainha, e que andam atraz de moças 
que lhes dêem fortuna, d'esses libera nós, Domine. 

— Âmen — grunhiu a senhora Briolanja — mas 
ninguém ha-de dizer que o sobrinho do secretario 
do conselho real de Castella, o senhor T). Filippe 



90 A RUA ESC UB A. 

de Lucena, esse moço tão guapo, que chegou no 
dia de Reis, é um d' esses. 

Maria corou, e. de repente se tornou pallida 
como cera. Sentira uma forte commoção, e, levan- 
tando os olhos, fttou-os nos da beata, para ver se 
lia nelles a verdade do que avançara. 

Desde o dia em que pela primeira vez vira o 
moço fidalgo, desde essa noite em que a deixamos 
em lucta com os seus pensamentos, a paixão inde- 
finida que no peito lhe existia, começara a tomar 
vulto e com elle um norte. Levada pelo brilho, 
pela louça nia de Filippe de Lucena, acreditava que 
fora elle que no peito lhe ateara aquelle fogo, e a 
imagem de Phebo, com a qual por tempos a do 
fidalgo tinha luctado, fôra-se-lhe pouco e poaco 
desvanecendo n'alma. 

A tia Briolanja viu naquelle rubor uma victo- 
ria, e sonhou a desejada juncção a um meio S. Vi~ 
cente, que n'um pé de meia cozera no enxergão, 
de uma egual quantia, promessa de Filippe de Lu- 
cena, se ella lhe trouxesse, cortados os voos, a 
pomba sobre que a soltara. No fervor da sua ale* 
gria, em acção de graças, começou uma salve- 
rainha com toda a afinação de que era capaz uma 
voz de canna- rachada. 

Á senhora Perpetua e frei João de Santa Úrsula 
tomaram aquella oração como graças dadas pela 
refeição que acabava de ter, o que muito descon- 
certou o bom do franciscano, que tencionava dar 
cabo de mais uma talhada de toucinho do céo e 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 91 

beber mais um golle, mas que á vista da pareimo- 
nia da soa companheira não queria ser taxado de, 
guloso. 

— Não é servido de mais, senhor frei Joào? — 
disse a senhora Perpetua, vendo que o frade se. 
erguia — É de boa vontade que offereço, e descul- 
pará, se nâo é como merece, mas... 

' — Excellente, éxcellentel — redarguiu o amigo 
do senhor Bartholomeu, sentando-se e correndo 
com os olhos do prato para a garrafa, e desta para 
a venerável senhora Perpetua com um modo que 
causaria dó á idosa senhora, se a sua vista lhe 
deixasse perceber a expressão cómica que na do 
frade se notava. Frei João perderia a causa do 
seu amigo, ainda que não estivesse, como estava, 
de antemão decidida no peito da linda moça, nas 
delicias daquella mesinha torneada, que para elle 
era uma verdadeira Ca pua. A escrava, porém, arra- 
mava os restos da merenda por ordem de sua ama, 
e a recordação dos pasteis e da marmelada de ar- 
robe do seu amigo vieram lembrar-lhe a missão de 
que se encarregara. À ideia que lh'a suscitara ser- 
via mesmo para atar o discurso. 

— Como este toucinho nunca eu saboreei — 
disse elle approtimando a cadeira da da senhora 
Perpetua — nem mesmo era casa do senhor Bar-* 
tholomeu, meu penitente, que é quem -mais mestre 
se mostra nestas guloseimas. A propósito, senhora 
Perpetua : ahi está o senhor Bartholomeu, que pa- 
rece mesmo ao pintar para a nossa Mariquinhas; 



92 A RUA ESCURA. 

— O senhor Bartholomeu ? — interrogou ad- 
mirada a viuva do senhor Pantaleão Freire. 

— Eile mesmo ; é um bom arranjo. Á senhora 
Perpetua ainda está vividoira, graças a nossa Se- 
nhora e ao nosso padre S. Francisco ; mas na vida 
nno devemos cuidar senão na morte, que não nas- 
cemos senão para morrer, e não approveitamos 
senão o bem que no mundo fazemos e as boas 
disposições que deixamos. É tempo de cuidar na 
sorte da filha de seu irmão — Deus lhe tenha a 
alma na sua presença I — e estou certo de que o 
senhor Bartholomeu não se deita fora do arranjo. 

— Mas, senhor frei João, a minha Maricas ainda 
está muito moça, e... 

— Moça I . . . moça I Está na edade de tomar 
estado — atalhou o franciscano, fallando mais bai- 
xinho — e o nosso visinho, sei-o com certeza, tem 
bem os seus dez mil cruzados. 

Aqui mentia o senhor frei João de Santa Úr- 
sula; ínaS um augmenlo no capital do senhor Bar- 
tholomeu, que para aquelles tempos, possuindo me- 
nos alguma cousa, possuía uma fortuna, na opinião 
do bom frade não deitaria o negpcio a perder. 

— Era boa fortuna para a minha sobrinha I — 
exclamou a senhora Perpetua, que no amor que 
consagrava á filha de Roque Aldoar, sorria- inte- 
riormente á ideia do franciscano — mas... ainda 
está muito moça, e... a seu tempo falia remos. 

Frei João deu expansão a todo o ar que tinha 
nos pulmões. Âquellc «a seu tempo faltaremos* 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 93 

lisongeava sobremaneira a sua vaidade diplomática, 
e pensou com o seu cordão que podia hombrear 
cora o padre Leonardo do Collegio, tido e havido 
pela mais esperta creatura da cidade. Julgou pois 
nao dever insistir mais na conversa por aquelle 
dia, e começou a fallar nas esmolas que tinha 
recebido a ordem, legados, doença do prior « 
outras miudezas taes com que costumava entreter 
a boa da velha. Durante este colloquio a tia Brio- 
lanja levantara-se, e fora para junto da sobrinha 
da senhora Perpetua. 

Maria Âldoar continuava a costurar, sem dar 
attenção á beata, que tossia, assoava-se, procurava 
em fim uma palavra com que podesse encetar con- 
versa. Maria estava tão preoccupada, que por bom 
tempo a deixou a resolver na mente o seu plano 
de ataque. 

À beata decidiu-se. 

— Que lindo bordado a menina está aqui a 
fazerl — disse ella em voz alta,, tomando uma toalha 
que a pioça bordava, encommenda para uma ca- 
pei la particular. — Abençoadas as mãos que tal fa- 
zem I Mereciam ser encastoadas em ouro. 

Maria olhou para a beata, sorriu-se ; e para 
mudar de conversa, pois que a embaraçavam os 
elogios da velha, disse sem ligar importância al- 
guma ás suas palavras : 

— Dizem que a festa de S. Vicente ha-de ser 
muito bonita este a imo. 

— E verdade. A menina vai lá ? 



d\ A HUA ESCUnA. 

— Não sei : como fiea perto, e minha lia tem 
devoção com o santo, talvez* 

-*• Pois — replicou a velha baixinho ao ouvi- 
do da moça, e fingindo que examinava o bordado 
para encobrir este movimento — ha-de lá encon- 
trar alguém que muito lhe quer. 

Maria affastou o corpo para traz, mas não tanto 
a tempo que a beata lhe não repetisse o nome de 
Filippe. Levantou-se, sem responder a Briolanja, 
e foi para a commoda, onde, para dissimular a sua 
turbação e mesmo a indignação, que o procedi- 
mento da beata lhe causara, começou a mexer nas 
gavetas, como quem procurava alguma coisa. A 
beata continuou a examinar o bordado, fazendo- 
lhe mil elogios, dobrando-o a final, e pondo-o na 
custa, que ficara no chão. 

— Senhora Perpetua — disse ella, vollando-s* 
para a tia de Maria — vou rezar as minhas devo- 
ções á Sé, que são horas. Não tarda a anoitecer... 
tf então. .. desculpe q incommodo. 

— Recommende-me ao Senhor, santinha — re- 
plicou a senhora Perpetua. 

Frei João depois de alguns cumprimentos 
também sahiu. 

Ambos os gerifaltes julgavam ter empolgado 
a pomba. Um estava convencido de que a victoria 
era sua, pois ganhara o animo da velha senhora; 
o outro que vencera, pois vira no rubor de Maria 
Aldoar o clarão de um fogo, que julgava ter ateado. 

Maria, quando à noitinha foi guardar o seu 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 95 

* 

lavor, em que desde a sahida da beata não tor- 
nara a pegar, encontrou uma carta nas dobras da 
toalha. A lucta que se travou no seu coração não 
a imaginareis vós, leitoras, talvez. À linda moça 
amava; mas ainda era muito cândida; respeitava 
sua tia e todos os conselhos recebidos; respeitava 
o que chamareis preconceitos. Mirou a missiva de 
um lado e do outro ; vinte vezes a esteve para 
entregar á que lhe servia de mãe, vinlç para a 
queimar. Uma força irresistível a fez levar a mão 
á obreia que a fechava : abriu-a, e deixou-a cahir, 
estremecendo. A voz da sereia devia porém fazcr-se 
' ouvir. Pediu mentalmente perdão á Virgem da acção 
que ia commetter, como se fora um grande peccado, 
e leu-a. A linguagem de que o moço usava não a 
comprehendeu ella bem; mas nessa noite também 
quasi não dormiu, e suspirou... suspirou até horas 
mortas. 

O gerifalte voraz tinha arrancado uma penna 
dos voos da cândida pomba. Mais algumas, e ella 
não poderia fugir ao caçador. 



VIII. 



PHEBOLEVER. 



Qui itaque amare te negvs, siquidem, testes sunt 
Ia te veri pallor ac lachryraarum effusio ? 

(Bordah, trad, G. J.), 



E 



Phebo ? 

I)eixamol-o na contemplação da sua obra, em- 
bebido nos seus sonhos de amor, sonhos agridoces, 
que um poeta poderia fingir os pais da saudade, 
essa divindade portugueza que esparge na sua sen- 
da mãos-cheias de rozas e de espinhos, cingida a 
fronte de violetas, olhares pensativos, melancholi- 
cos e profundos; d'esses olhares que, quando por 
noite serena se fixam nos astros, parecem penetrar 
no seio d'esses mundos luminosos. Quando se tri- 
lha a alcatifa que deixou a saudade após do si, 



98 A RUA ESCURA. 

sente-se uma leve dor ; mas o seu perfume ador- 
menta-a, e quanto mais longe elle vai, mais suave 
e grato se mostra. 

esculptor, primeiro que ninguém, primeiro 
mesmo que Âldoar, tomara por amor o enleio em 
que a trazia o moço fidalgo. Vira cruzar um d'esses 
olhares em que julgou ia a alma, notara o sorriso 
da vaidade debuxado no rosto de Filippe, e o co- 
ração apertar-se-lhe ; porém o amor mais vivo se 
lhe tornou no peito, e junto com elle sentia uma 
espécie de compaixão pela linda moça. Ao coração 
magoavam os zelos nascidos das apparencias ; a 
compaixão trazia o instincto. Este não o enganava, 
como o enganavam os olhos : o que Lucena sen- 
tia não era amor: era um capricho de mancebo 
da moda que desejava contar o numero das suas 
conquistas pelos dias do anno. Vira a sobrinha da 
senhora Perpetua Freire e dissera comsigo : — É a 
moça mais linda da terra; quero possuil-a; — como 
desejaria a outra que fora mais nobre; a uma que 
se dissesse a mais inconstante, ou a mais prendada. 
O seu tyrocinio nesta arte de enganar tão mestre 
o tornara, que a paixão parecia aos olhos inex- 
perientes fallar nas suas falias, transluzir nos seus 
olhares e acções. 

Phebo desde que notam esses olhares, mais 
melancholico se tornara. A velha mãe do esculptor 
começava a magoar-se pelo desleixo de seu filho. 
A officina, ou estudo do artista estava numa com- 
pleta desordem, e, se uma vez por outra tomava o 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 99 

scopro, a palheta ou o formão para desbastar um 
tronco ou aperfeiçoar uma estátua já começada, 
logo a deixava para se entregar aos seus pensa- 
mentos. * 

— Phebo, que tens? o que assim te traz pe- 
zaroso ? — perguntava a viuva de Thomaz Lever. 

— Nada , minha mãe — respondia sempre o 
mancebo, 

£ a excellente velha começava a acreditar que 
seu filho andava doente, e a amimal-o com todos 
os pequenos nadas domésticos, tão agradáveis, de 
que uma boa mãe só é capaz, trazendo-o nas pai* 
mas das mãos. Só de vez em quando o repre- 
hendia brandamente» É quo Phcbo sabia quasi 
todas as tardes, e voltava depois de noite fechada, 
e ás vezes bem tarde. 

— O frio da tarde faz-te mal, filho : isto não 
tem geito I Adoentado como andas devias de te 
recolher cedo. 

— Não estou doente, minha mãe ; isso são 

çcismas suas. 

— Não; eu não vejo? Não comes quasi nada, 
p andas sempre cabisbaixo. Dóe-te a cabeça ? 

— Não me dóe nada. A mãe é muito boa 
para comigo : o querer-me tanto é que lhe faz 
ver essas cousas. 

— E porque te não hei-de eu querer, se sem- 
pre foste bom filho, temente a Deus e obediente 
a lua mãe. 

— Ora I — redarguia Phebo, sorrindo — sou 



100 A RUA ESCURA. 

como os outros; não se amofine com as minhas 
doenças que nada são ; isto depressa se irá. 

E proseguia nos seus passeios, nas suas ab- 
sorpções como até ahi. 

É n'um (Testes passeios que o vamos de novo 
encontrar. 

O paço episcopal agora existente é obra do 
século passado. À residência dos bispos então era 
mais acanhada e mesquinha. O palácio — dêmos-lhe 
este nome — era um mixto de construcções de diffe- 
rentes épochas, onde a architectura gothica se ca- 
sava a umas pequenas amostras e remendos do 
renascimento e d'esse estylo pezado, monástico, a 
que chamaram jesuítico. As fortificações que o 
cingiam, que por vezes os fieis súbditos da mitra 
tinham vindo sitiar, e que de tantos séculos que 
estiveram de pé, não hayia passado um anno sem, 
pelo menos, ouvirem as pragas dos honrados bur- 
guezes, tinham desabado parte pelo aríete popular, 
parte pela bem mais possante mão do tempo, dei- 
xando devoluto em frente um terreiro escabroso, 
d'onde se gozava um soberbo panorama. Apenas 
do lado do sudoeste existia um pequeno torreão, 
fendido de cima a baixo, desmantelado completa- 
mente, sem portas já, e pendentes os varões de 
ferro das ogivas que davam para o lado do paço. 
Este torreão tinha sido pelos bispos cedido como 
propriedade a uma nuvem de corujas, morcegos 
e outras variedades da espécie, cessão feita talvez 
para se equipararem ao arcebispo de Lisboa, que 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 101 

conservava em santa memoria um bello cazal de 
corvos. O Porto levava as lampas á capital na 
quantidade e na qualidade, que as aves de cá eram 
mais crescidas e agoureiras. D. João de Yalladares, 
que era um santo varão, preferia aquella «visinhança 
e gostava mais dos cantos soturnos que d'alli sa- 
hiam, que se fossem os balidos de algumas boas 
ovelhas, como João Alvo, Mendo Guilherme, Affon- 
so das Eiras, João Vaivai, Fernando Hunio, João 
Surdo, Miguel Meigeija, Pedro Feio, e outros, cujos 
nomes lera com respeito em uma sentença dada 
pelos legados do papa Innocencio III. D. João tinha 
razão. Era preferível o canto de mil mochos e co- 
rujas a estar cinco mezes nas mãos daquelles ju- 
deus, como um seu antecessor, D. Martinho Rodri- 
gues. 

A visinhança deste torreão para o lado da 
encosta estava quasi sempre erma. O povo acredi- 
tava, o que não fazia muita honra aos bispos, que 
a alma de algum delles andava alli pairando, ou, 
segundo uma versão de alguns padres ladinos e 
dos recebedores da Casa da Colher, as almas dos 
revoltosos, que em tempos a tinham incendiado. 
Fosse como fosse, ao cahir da tarde ninguém se 
approiimava da torre, e os mais destemidos, que 
ás Ave-Marias d'alli se tinham approximado, con- 
tavam com os cabellos estacados e o rosto como 
cera, que de dentro se ouviam vozes lastimosas, 
rastejar de passos, ais e outras muitas coisas que 
iam augmentando de bôcca em bôcca. 



102 A RUA ESCURA. 

Phcbo sahira de casa á tardinha, e, debru- 
çado no paredão da Sé que olha para o norte, es- 
tivera por largo tempo contemplando a varanda 
de rótulos, onde ás vezes assomava um rosto que 
sempre trazia gravado na imaginação, o de Maria 
Aldoar. A moça, porém, havia dias que alli não 
apparecia, e o rosto do mancebo a cada minuta 
que passava mais se annuviava, e escurecia como 
o céo que dominava aquella paisagem. Cheio de 
tristeza deixou aquelle logar, e dirigiu-se para 
ao-pé do palácio do bispo. As mãos mettidas no 
cinto de anta que lhe apertava o gibão, começou 
a passear d'um para outro lado, parando ás vezes 
para fitar ora as embarcações no rio ancoradas, 
ora os montes d' além. Os lábios moviam-$e-lhe, 
como se fallasse a sós comsigo, e de tempos a tem- 
pos um suspiro lhe fazia sublevar o peito. Quando 
um raio do sol moribundo veio incendiar o florão 
colorido da cathedral e as vidraças do paço, sentado 
n'uma pedra, com as mãos apertadas nos joelhos 
fitava o oocidente. Aquella luz que se apagava, 
aquelles rumores que morriam lá em baixo na ci- 
dade, como se a vida faltasse com a luz ao gigante 
de pedra, mais lhe apertaram o coração. Abaixou 
a cabeça, e algumas lagrimas lhe cahiram nas 
mãos. 

O esculptor na sua meditação assentara-se.ém 
um sitio, que, apezar de não ser elle dos mais cren- 
deiros da terra, não fôrã procurar com consciên- 
cia. O cahir da noite ahi o veto encontrar. 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 103 

Se alguém podesse ter bem fundados terrores, 
seria o filho de Thomaz Lever nessa occasião. Na 
torre, pouco depois do pôr do sol, um bando d'aves 
agoureiras esvoaçara ; sentira-se um rumor estra- 
nho, que fora crescendo gradualmente ; depois 
ouviram-se pios tristíssimos e lamentos, como de 
creança que chorasse. 

Quando a nossa imaginação está absorvida por 
um pensamento qualquer, não tomamos conheci- 
mento dos sons que nos ferem os ouvidos senão 
muitos segundos e ás vezes minutos depois. Foi 
o que succedeu a Phebo. 

Quando ia a voltar a cabeça para ver qual 
a causa d'aquelles lamentos sentiu uma mão que 
brandamente lhe poisava nas costas. Voltou-se 
completamente, e um calafrio lhe correu pelos 
membros. 

Em pé, diante delle estava um vulto negro. 
O rosto parecia o de uma múmia. 

— Para que esse choro ? — foram as palavras 
que soltou o vulto sem tirar as mãos das costas 
do mancebo. 

Este ergueu-se de um salto, e recuou sem 
responder. A lingua estava-lhe collada ao paladar. 

— Nada temas I Não me conheces ? — tornou 
o vulto negro, fazendo por dar á voz uma inflexão 
carinhosa — Esquecido I 

— Eu?... — murmurou a custo o esculptor, 
mal tornado a si daquella desagradável surpreza. 

— Esqueceste o bem que fizeste, mancebo, 



104 A RUA ESCURA. 

mas não eu que o recebi... eu por lodos escorra- 
çada como um leproso ou damnado. Metlo-te medo, 
Phebo? 

— A mim !... — tornou o moço ainda emba- 
raçado. 

— Recordas-te da festa dos Reis ? 

— Da festa dos Reis? 

— Sim, da bruxa — e o vulto estendeu as 
syllabas destas palavras com intenção. 

— Ah ! sim — tornou Phebo Lever, mais des- 
assombrado. 

— Bom ; mas porque choras, Phebo? Eu sei 
o teu nome, como o de toda a gente ! 

— Eu não choro — redarguiu o mancebo, le- 
vantando a cabeça. 

— Para que negar? Espera: vou eu dizer-te 
porque choras. É porque viste uns olhos cruza- 
rem com outros em que puzeste a tua vida ; é 
porque acreditas que alguém, que mora ahi perto, 
já te não ama. 

O esculptor não respondeu. Abaixou de novo 
a cabeça, e deixou cahir os braços. 

— Adivinhei, Phebo ; eu adivinho sempre — 
accrescentou com um sorriso imperceptível. — Pois 
bem — proseguiu — quero pagar-te serviço com 
serviço : hei-de fazer com que esses olhos fujam 
para os teus; hei-de levar-te a fallar com ella. 
Acceitas ? 

— Os teus feitiços, os teus esconjuros?! nunca 
— exclamou Phebo. Não adivinhaste, feiticeira I 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 105 

E voltou as costas para se ir embora. 

— Espera — tornou a bruxa, pondo-Ihe de 
novo as mãos nos hombros. — Adivinhei as tuas 
vistas; as tuas lagrimas trahiram-te. Mas para ti v 
que não te importaste se eu era uma feiticeira, 

quando me viste perseguida, não quero ser fei- 

» 

ticeira ; para ti chamar-me-hei Beatriz. Foi um 
dos meus nomes... — murmurou soltando um sus* 
piro. 

O mancebo tornou a filal-a desde os pés até 
á cabeça. Às palavras da bruxa, o seu modo cari- 
nhoso tinham-lhe feito impressão. O rosto daquella 
mulher não se lhe figurou tão repellente, o olhar 
tão sinistro como até ahi. Pelo contrario parecia- 
lhe que era muito mais moça do que representava, 
apezar dos cabellos estarem côr de linho, os olhos 
circulados de azul, as faces cavadas. Se reparasse 
mais, veria que havia de ter sido uma linda mu- 
lher. 

Na fronte da feiticeira havia também agora 
uma nuvem de tristeza. 

— Então, acceitas ? — insistiu ella, com modo 
cada vez mais carinhoso. 

— Não... isso- não... ias fazer-lhe mal. 

— A elle ? 

— Nem a elle, nem a... 

■ 

— Nem a ella — atalhou a bruxa — Não lhes 
farei mal nenhum, já t'o disse. 

— Não, nãol — replicou o esculptor, arredando- 
se; pois que, apezar de tudo, desejava não estar 



106 A RUA ESCURA. 

em contacto com aquella mulher. Naquelles tem- 
pos não haveria muitos que fizessem o contrario. 
Não — repetiu; e affastou-se lentamente para o 
lado de cima. 

A feiticeira nào tentou segural-o. 

— Meu Deus, meu Deus I — murmurou bai- 
xinho. — Todos me repellem. Foste bem cruel 
para comigo, Senhor ! 

A noite era completa, havia boa meia hora, e 
as passadas de um ou outro mesteiral, que mais 
tarde a casa se recolhia, eccoavam pelas ruas cir- 
cumvisinhas como em cryta mortuária. Então o 
cahir da noite era hora de recolher geral, e as 
ruas da cidade não davam gosto a prolongar muito 
os passeios fora de horas, pelas trevas que as tor- 
navam um procipicio, os archeiros do município, 
encarregados de manterem o soe ego, que a cada 
passo promoviam uma desordem, e os poucos es- 
touvados da terra, que de vez em quando faziam 
das suas. Uma hora depois de anoitecer só os 
amadores de Baccho, de Vénus, ou do senhor seu 
filho, é que vagueavam pelas ruas da muito nobre 
cidade, e o toque de recolher, ou cobre fogo era 
uma mera formalidade, pois que uns por elle não 
esperavam, os outros delle nenhum caso faziam. 
Quando Phebo ia a chegar ao-pó da cathedral 
cruzou -se por diante d'elle um homem embuçado 
n'uma longa capa, um chapéu desabado sobre os 
olhos, e tão distraindo, que não fez caso do seu 
encontro. Itf cantarolando esta trova : 



TRADIÇÃO fOBTUKNSK. 107 

Siempre alcama lo que quiere 
Cod damas cl atrevido* 
T el que do es entremetido 
De necio y cobarde muere. 

— Phebo — exclamou a bruxa, que seguira o 
esculptor — escuta I 

— Deixa-me !... 
A voz seguia : 

Se honestidad ea lai damas 
Es un velo que las fueria, 
Cuando amor tiene mas fuerza 
A no descubrir sus lbamas... 

— Escuta-mc, Phebo — insistiu a feiticeira 
— nada receies ! 

O moço nada respondeu. Parara junto, da 
porta lateral da Sé. O vulto que ia adiante, mu- 
dara de repente de trova, e ao chegar alli começara 
uma outra, de que o leitor se recordará, com 
um tom mais sentimental e affectado, descendo a 
escada devagar, e arrastando a espada pelos de- 
graus : 

Nina, si a la huerta Tas, 
Coge las flores mas bellas; 
Aunque se tu estás entre ellas 
A ti mesma escogeras. 

Era Filippe de Lucena. D'ahi a um instante 
uma luz assomara á janella. Phebo fechou os 
olhos. A feiticeira fitava-o com ar de compaixão. 



108 A RUA ESCURA. 

— Meu Deus I — murmurou elle, encostando a 
cabeça ás lages do templo. 

Âo mesmo tempo a luz desappareceu, e com 
ella o pezo do coração de Phebo. 

Em baixo Filippe resmungava, torcendo o bi- 
gode e com riso de escarneo : 

— Abur, nina ; nos veremos l trinta dias tem 
o mez, e cá virás ás mãos, por S. Filippe. Depois, 
dando costas, soprou aos dedos, fêl-os estalar, e 
exclamou, rindo : Não se matam dous coelhos de 
uma cacheirada ! 

— Hei-de-te pagar a minha divida, Phebo I — 
exclamou a bruxa, seguindo para as escadas. 

E o esculptor murmurava, estendendo os bra- 
ços para a janella, que de novo ficara em trevas. 

— Oh Maria, Marial 



IX. 



UI JOBJAL DA OPPOSIÇÃO 01 1628. 



Ofihio —Tribuno, hai pronti i tuoi colleghi? 
Dauso — Tutti. 

De te pendiamo. 
Opdixo — Riposar possuo. 

Sulla lor fede ? 
Dauso — Ella t' é sacra. 

(Vicekuo Mouti, Cajo Gracco.) 



O 



leitor ha-de estar lembrado da maneira 
como no pronunciamento da Ribeira a senhora 
Crispina appellara, a fim de dar valor e credito 
ás suas palavras, para a authoridade de mestre 
Barradas, o barbeiro d'ao-pé de S. Domingos. O 
illustre rapador, no artigo novidades, era citado 
seguramente por três quartos da população da ci- 
dade, com direito ou sem elle, e tinha um audi- 
tório pasmoso. Em novidades politicas, sobretudo, 
era um oráculo. Quando se espalhava a nova de 
um desastre em Flandres, de um ataque na Bahia, 



110 A RUA ESCURA. 

de um distúrbio qualquer no reino, cujo valor era 
sempre eiaggerado, todos diziam, se a noticia sof- 
fria alguma duvida : — É verdade I contou-me 
mestre Barradas, ou cicrano a ouviu da própria 
bôcca de mestre Barradas. Era a verdadeira gazeta 
da terra, e gazeta da opposição. Como quasi todas 
as pregoeiras de cem bôccas de Gutlemberg, o 
honrado rapador mentia ás vezes sem dó nem 
consciência; mas sempre para interesse do partido 
de que era órgão. Se os navios das Províncias- 
Unidas metliam a pique alguma náu da índia, ou 
aprisionavam um comboy, o senhor Barradas, com 
um gesto de lamuria em que não seria fácil des- 
cortinar o fingimento, pois que todos os males eram 
bem vindos, comtanto que servissem de armas con- 
tra Castclla, narrava o horrível desastre, pintando-o 
com vivíssimas cores, centuplicando o valor da 
carga, triplicando o numero dos mortos, e ajuntan- 
do que uma náu de Castclla, que navegava de con- 
serva, abandonara expressamente o navio ou com- 
boy. Se o mar arrojava á praia um affogado, era 
uma victima dos governadores em nome de Filippe 
III; e ató as chuvas e as más colheitas recahiam 
na responsabilidade do monarcha, que, desleixado, 
não fazia nem bem, nem muito mal, e do duque 
de Olivares e seus acolytos, que faziam, verdade 
seja, ás vezes, cousas muito peiores. Eram estes 
os artigos de fundo do género «irritantes». Na 
classe dos «excitantes animadores» narrava elle aos 
mais entendidos certas historias da corte de França , 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 1J1 

de armadas promettidas no ca90 de revolta, e exag- 
gerava, como um verdadeiro castelhano, o numero 
dos mortos nas guerras dos Paizes-Baixos, dando 
por perdidas quantas batalhas se tinham pelejado» 
como sem forças e desorganisados os exércitos de 
Filippe, o que, se não era verdade, era um pro- 
gnostico, * que devia começar-se a realisar nesse 
mesmo anno. 

Não acreditem, porém, que tudo isso fosse 
parto da estupenda cabeça de mestre Barradas; 
não, senhores. O escanhoador das respeitáveis bar- 
bas portuenses era experto, e tinha um tino politico 
que, por estes felizes tempos nossos, o teria feito 
subir de cabo de policia a regedor, a administra- 
dor do concelho, e quem sabe se morreria barão 
ou visconde com varias cruzes ganhas á custado 
suor do seu rosto nas lides eleitoraes. Mas, como 
se disse, nem tudo era da sua lavra. Tinha dous 
redactores principaes, o que ás vezes embaralhava 
o seu curso de politica a mais não ser, por estarem 
elles concordes em parte e não no todo. O padre 
Leonardo das Aldas, ou, melhor, do JCollegio aca- 
riciava mais a burguezia» taxava os Braganças de 
pouco enérgicos, e mesmo covardes, e cada derrota 
nos mares das índias era um argumento para pro- 
var que o sjstema republicano das Províncias- 
Unidas era o melhor, o mais enérgico e ulil para 
uma nação, que, dizia elle, devia ser de commer- 
ciantes; o doutor Fernando de Andrade era todo 
da nobreza descontente, e nppresentava a casa de 



112 A III* A ESCURA. 

Bragança como a que mais direitos tinha ao throno, 
tratando de adiar a explosão da mina, que seu 
companheiro queria apressar. O barbeiro nào dis- 
solvia bem na torrente da sua verbosidade estas 
opiniões divergentes, nem era possível; que bem 
diz o rifão : Somente a um senhor se serve bem. 
Ao governo de Gastei la era que elle prestava me- 
lhores serviços, como os partidos de que era ór- 
gão. Os influentes das duas opposições e ainda 
outros dissidentes, discutindo as formas de gover- 
no, e sempre luctando entre si, não tractavam de 
guiar a campo o povo, — a ralé lhes chamavam 
elles — os únicos homens que estavam promptos 
e decididos patrioticamente a esmagar o poder de 
Castella. Salve-se, porém, a honra patriótica de 
mestre Barradas : com consciência não concorria 
elle para estas delongas. Tinha nascido anti-iberico 
decidido. Demais, tendo em pequeno servido a D. 
Luiz da Silva, recordava-se desagrada velmente de 
uns pontapés diários com que o bom do fidalgo 
lhe quebrava o jejum, e acompanhava todos os 
recados e ordens. Mestre Barradas começara por 
odiar o governador das justiças tem nome de Fi- 
lippe II, e acabara por odiar todos os Filippes por 
causa do governador das justiças. Os pontapés 
affiguravam-se-lhe o resultado da tyrannia de Cas- 
tella, e se nessas eras já se tivessem popularisado 
as victimas politicas, o escanhoador apregoar-se-ia 
como a primeira d'entre as primeiras. 

A casa do barbeiro era um brinco, como di- 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 113 

tiara os freguezes das ruas dos Mercadores, Bai- 
nharia o outras, assignantes das noticias do org&o 
da opposição, no Porto, no anno do Senhor de 1628. 

Á porta pendia o clássico elmo de Mambrino, 
pintado de vermelho, oscilando em ar de pêndulo, 
em quanto um rato dava movimento de rotação a 
uma gaiola, fazendo tregeitar dous pequenos mane- 
quins. Dentro completavam o muzeu zoológico um 
«anario, um periquito, um gato e um cio, animaes 
iodos de grandes habilidades. A um canto descan- 
sava uma guitarra ; sobre uma meza a Ckronica do 
imperador Clarimwndo e alguns outros folhetos, 
que ainda hoje matam as horas de ócio a muitos 
Barradas da épocha desde Riba-d'Ancora a Santo* 
Antonio-d'El-Rei. 

Se o leitor pôde fazer um pequeno juizo da 
casa, talvez não desgoste de ver o inquilino. Bar- 
radas, quanto ao physico, nada tinha de notável se- 
nio o nariz. Se n&o fosse possivel distinguir-se por 
outra cousa, o barbeiro distinguir-se- ia por ahi. 
Era uma verdadeira proeminência, uma saliência 
rubra, globulosa na extremidade, um promontório 
que lhe assombrava o rosto, o ponteiro mal affei- 
çoado de um relógio de sol. Os olhos do mestre, 
que eram regulares, de um verde deslavado, nunca 
viam objecto algum que nio fosse acompanhado 
de nariz, o que o fazia tomar em aversão aquella 
parte do seu rosto, debique dos garotos. Os gaiatos 
de entio tinham já descoberto a arma que os jor- 
nalistas deste século manejam com tanta valentia, 
8 



114 A RUA ESCURA. 

e. cahida ella nas mãos dos seus adversários po- 
líticos, servia ás mil maravilhas em casos intrinca* 
dos. nariz do barbeiro era como o calcanhar 
de Àchiiles para os seus contrários, e elle mos- 
trava bem que se doía, quando nelle lhe tocavam 
e provara a mais de um garoto que não era bom 

de assoar. 

Mestre Barradas, dias depois da scena descripta 
no capitulo antecedente, um sabbado á tarde, occu- 
pava-se em alindar as faces de um rotundo nego- 
ciante de pannos, em quanto o seu aprendiz malu- 
cava uma escada e largas thesouradas na cabeça 
de um lavrador de Rio-Tinto. A navalha do mestre 
trabalhava com velocidade, porém a lingua exce- 

dia-a. 

— Tal e qual, como lhe conto, senhor Thomé; 
vai-se fazer uma nova leva pelas terras do partido 
do Porto ; levam a gente todad a lavoira para esses 
matadouros de Flandres, e os campos ficario ao 
Deus dará. 

Mestre Barradas, dizendo isto ao freguez que 
tinha entre-m&os, fitava á socapa os olhos no la- 
vrador a quem o aprendiz torturava. 

— Que me diz — exclamou o camponez muito 
espantado, e libertando a cabeça das mios do seu 
algoz; — vão recrutar a gente para a levar lá para 
essas terras ? 

— Nem mais nem menos. 

— Mas já o anno passado fizeram uma leva I 
— disse o mercador. 



* 

TltAlHÇÃO PORTUENSE. 115 

— E este anno fardo duas, ou Ires, ou... sabe 
Deus quantas. 

— Mas a gente nâo pôde com tanto I — mur- 
murou o rústico, pondo-se a pé. 

Mestre Barradas dobrou a raôxa. 

— E diz-se também pela bôcca pequena que 
o governador vai lançar mais nâo sei que finta. 

— Mas isso é esfollar o povo ! — atalhou o 
lavrador com uma cara de metler dó. 

— Sua magestade manda ; — tornou o barbeiro 
accentuando expressamente as palavras, como se 
professasse uma grande veneração ás ordens da 
magestade. 

O rústico nâo replicou. Atirando uma moeda 
de cobro para cima de uma meza, resmungou : — 
Deus fique na sua guarda — é com o sobrecenho 
carregado, enterrando com um murro o chapéu na 
cabeça, partiu fatiando entrementes. 

Mestre Barradas sorriu-se com ar de vaidade. 

— E verdade — tornou dirigindo-se ao seu 
paciente : — nao sabe, senhor Thoraó, ahi mesmo 
ao-pé da Figueira metteram os excommungados 
hereges dos flamengos, ou hollandezes, uma náu 
de especiarias a pique. 

— Ha poucos dias ? — interrogou o rotundo 
freguez. 

— Ha poucos; e dizem que nella vinha gran- 
des valores para... para... nem me lembra agora 
o nome... um fulano de Lisboa, que, ouvi dizer, 
fica pobre como Job. * 



116 A RUA ESCURA. 

— D' antes não acontecia isto, — redarguiu o 
negociante: — não é do meu tempo... mas... 

— Mas — atalhou o barbeiro — isso era quan- 
do tínhamos rei portuguez, que mandava as naus 
do estado comboiar os navios do commercio. E, 
dizendo isto, abaixava a voz. 

— Oh I — exclamou o senhor Thoiné, do mes- 
mo modo, e abanando com a cabeça em risco de 
soffrer um gilvaz na queixada — isso era tempo I 

— Que pôde voltar. 

— Ai, estamos muito espesinhados I 

— E mais ficaremos. Ouvi dizer ao senhor 
intendente da alfandega que se ia prohibir no 
Porto a entrada e sahida da maior parte das fa- 
zendas vindas dessas terras de Christo, para aug- 
mentar o commercio de Cadiz. 

No lábio inferior do senhor Thomé appareceu 
brilhando pelo. vivo escarlate do seu sangue a prova 
da impressão da môxa que o barbeiro lhe appli- 
cara com aquella novidade, que pertencia ao género 
dos boatos irritantes. Levantando de repente a ca- 
beça levara um bom golpe. 

— Isto é de fazer perder a paciência I — ex- 
clamou elle fora de si... 

—Não tem duvida: — replicou mestre Barradas, 
fazendo-se de novas, e alludindo ao golpe — uma 
pouca de farinha .de trigo, que lhe vou buscar, 
cura isso num ai. 

E o rapador, que também tinha fama de perito 
na sciencia dos Hyppocrates e Zacutos, desappareceu 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 117 

pela porta do fundo. Apenas clle tinha voltado costas, 
assomou á porta o senhor Bartholomeu de Basto. 

A fronte do pasteleiro estava sombria, carre- 
gada, e desde que o appresentamos ao leitor ti- 
nham-lhe as carnes diminuído sensivelmemte. En- 
trou abstracto' e se atou -se, sem dar bons dias» 
num escabello, deixando os braços pendentes, 
como desacoroçoado. O senhor Thomé ficou admi- 
rado da descortezia do recem-chegado, que era 
seu conhecido, e com razão, pois não tinha obri- 
gação de saber que elle via passar todos os dias 
Filippe de Lucena pela sua porta, e, se lh'o disses- 
sem, assentaria que isso não era motivo sufficiente 
para negar um «louvado seja Deus» a um seu 
amigo, e carregar tanto o sobrecenho. Resolveu-se 
comtudo a cumprir da sua parte com as regras da 
civilidade, e narrar-lhe a estupenda noticia que 
mestre Barradas acabava de lhe contar. O seu es- 
panto porém redobrou. O senhor Bartholomeu, o 
acastelhanado, como já se rosnava pelo bairro, 
recebeu a noticia com uma praga, que serviu de 
intróito a uma catilinaria tremenda contra o go- 
verno estabelecido. 

Mestre Barradas, que voltava com uma caixi- 
nha de farinha, a agua de Lavande, ou Coald-Cream 
que o illustre rapador applicava á ardência de 
pelle e cortaduras, que algum descuido lhe fazia 
abrir na cara dos freguezes, ficou como D. Bartholo; 
de bôcca aberta, em uma perfeita posição acade- 
mico-burlesca de espanto profundo. 



118 A RUA ESCURA. 

— . Cães que nos esfollam e ainda por cima 
se riem do pobre povo I que elles querem ó 
o nosso ultimo real e, como os perros infiéis, as 
nossas filhas e mulheres 1 E havemos de lhes aturar 
tudo isto I —-Paciência, paciência I chegará a hora — 
dizem todos; mas quando ella chegar já não nos 
restará mais que pelle e ossos, e nem um ceitil 
para pólvora. Eu andava com os olhos fechados; 
mas abri-os. São uns cães, repito, uns ladrões, 
uns excommungados ! 

O senhor Thomé fechou as mãos na cabeça, 
murmurando assustado : 

— Senhor Bartholomeu alguém nos pôde escu- 
tar; e pelos tempos que vão... 

— Que me podem fazer ? Lançar-me ao Douro 
dentro de um sacco, como têem feito a todos os 
leaes portuguezes : mais vale isso ; nem assim 
deixarei de gritar — guerra aos castelhanos I 

O senhor Thomé não esperou pelo medica- 
mento da mestre Barradas. Deitou a correr, como 
se visse já a mão mysteriosa de algum quadri- 
lheiro que tentasse enfiar-lhe pela cabeça o fatal 
sacco, parodia turca de Filippe I, que tinha cahido 
em desuso. 

— Mais baixo, senhor Bartholomeu — lhe disse 
o barbeiro, com um ar de satisfação e importância, 
e fazendo um signal ao aprendiz para que se fosse 
pôr da parte de fora ; — podem ouvir-nos. Bem 
▼os dizia eu — continuou, preparando uma toalha 
e mais aprestes de barbear — que havíeis, como 



TRADIÇÃO PORTUENSE. . 119 

homem de tino que sois, de chegar-vos ao rego. 
Quereis fazer a barba ? 

— Não, mestre. 

— O senhor doutor muitas vezes me tinha 
dito : Admiro como o senhor Bartholomeu, que é 
homem honrado, e de grande tino, é pelos caste- 
telhanos, inda mesmo contra os seus interesses. 
Ainda hontem me disse elle que se fosseis dos 
nossos, podíeis fazer grande serviço a Portugal. 

— Que serviço ? — interpellou o senhor Bar- 
tholomeu ainda nôo inteiramente desarmado da 
sua cholera — Esperam por nâo sei o que... 

— Espera-se — atalhou o órgão da opposiç&o 
— que as cousas estejam maduras... 

— E não o estão ellas?! O que eu vejo por ahi 
é deitar agua na fervura ao povo : boa occasi&o 
havia agora pela cobrança dos novos tributos ; mas 
não querem. Havia de jurar que andam conloiados. 

— Pois jurava falso, senhor Bartholomeu ! O 
senhor parece-me que decididamente é dos nossos. 

O pasteleiro olhou para mestre Barradas com 
uma expressão tal, que lhe tirou toda a duvida. 

— Ha grandes cousas I — tornou o barbeiro 
muito baixo. 

— Então? — ia a interrogar o senhor Bartho- 
lomeu. 

— Calluda— » disse o barbeiro do mesmo modo, 
pondo o indice sobre os lábios ; — são cousas de 
grande importância. 

— Mas... 



120 / A RUA ESCURA. 

— Decididamente sois dos nossos ? 

— Mestre — exclamou o Vatel portuense coro 
dignidade— já me perguntou isso uma outra vez. 

— E está prompto a fazer todos os sacrifícios? 
Neste meio tempo ouviu-se uma voz de dentro 

que dizia : 

— Mestre, está aqui um freguèz. 

Um freguez que entrava pelo lado dos moinhos, 
que ficavam no sitio aonde hoje está a rua de S. 
João, devia ser forçosamente conhecido do mestre, 
pois que o logar não era de muito transito. Com 
effeito, mestre Barradas adivinhou quem fosse, e 
resmungou por entre-dentes : 

— Veio mesmo ao nó. 

— Então ? — tornou a interrogar impaciente o 
pasteleiro da rua Escura. 

— Um momento, que já volto — foi a repliea 
do barbeiro. 

— Está pois decidido a tudo — voltou este 
a perguntar tornando a entrar na saleta da rua, 
fitando attentamente os olhos do interrogado. 

— Mestre I — exclamou meio-cholerico o se- 
nhor Bartholomeu. 

— Pense no que diz; porque depois... 
Pela espinha do senhor Bartholomeu deslizou- 

se esse frio que denota irresolução, e o sangue 
girou-lhe por um bocado mais lentamente nas 
veias. O honrado burguez bem sabia no que se 
ia metter. Para elle, se lhe dissessem que ás vezes 
na sala do lado das azenhas se reuniam á noitinha 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 121 

certos figurões, que lá ficavam até tarde, nâo era 
grande novidade, e aquellas palavras fazia m-lhe o 
effeito que a um merceeiro acanhado dos nossos 
dias fazem as perguntas mysteriosas dos continua- 
dores da confraria do Templo. Depressa, porém, o 
fogo lhe brilhou de novo nos olhos, e a mão foi 
parar sobre o cabo do seu punhal, raeio-occulto 
nas pregas das enormes bragas. 

— Estou por tudo. 

— Então, entre, que alguém lhe explicará me- 
lhor do que eu, o que ha de novo. 

E mestre Barradas conduzindo o pasteleiro 
adiante de si, suraiu-se por uma das duas portas 
do fundo, coberta por duas cortinas, ou melhor, 
reposteiros de panno listrado de branco e verme- 
lho, que pela apparencia mostravam que tinham já 
conhecido melhores tempos. 

O barbeiro voltou para a loja esfregando as 
mãos com um ar de contentamento indizível, e 
murmurando : 

— Bom, bom... se as cousas em Évora não 
desandarem, mestre Barradas, o filho de meu pae... 
ainda ha-de vir a ser... a ser... 

E ruminando a sua posição futura, começou 
a fazer girar numa dobadoura, o couro de amolar 
as navalhas, as bacias de cobre, as toalhas, as ca- 
deiras e tudo quanto via diante de si. 

— Syndico dos officios... hum I hum I — con- 
tinuou resmungando — recebedor da portagem?... 
isso é que me quadrava. 



123 A RUA ESCURA. 

Alguns freguezcs vieram tirar desta preoccu- 
pação a mestre Barradas, que já começava a in- 
direi tar o pescoço e as pontas da sua walona Hza, 
transportado nas azas da imaginação e do desejo 
a uma brilhante posição social. 

Os freguezes que entraram eram nada menos 
que mestre Duarte Mondim, o latoeiro, e Pedro 
Braço-Forte; duas entidades muito conhecidas da 
casa, e que eram tractadas com toda a familiari- 
dade. 

Mestre Pedro, não fazia a barba; vinha ás no- 
vidades e era quanto o seu companheiro era esca- 
nhoado, a conversa versou sobre a grande conquista 
feita pela habilidade do mestre Barradas, que tinha 
esgotado todos os recursos da dialéctica para atrahir 
á boa causa o respeitável chefe da corporação dos 
taberneiros e estalajadeiros, personagem que podia 
dispor de grandes recursos e influência. 

Mestre Pedro estava de bôcca aberta e olhava 
para o barbeiro com admiração e respeito. Notava- 
lhe até uns longes de distincção, e havia de jurar 
que se parecia na testa com o doutor Andrade, ho- 
mem que tinha por um sábio como Salomão, sem 
fazer offensa ao padre Leonardo, ao defuncto padre 
Christovão de Gouvâa, ou a Duarte Dias. 

A conversa foi longa, porém não menos o foi 
a do mestre Bartholomeu com o mysterioso freguez 
da sala do lado das azenhas. Quando sahiu era 
noite cerrada. 

Do que se passou nessa conferencia apenas 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 123 

podemos rolatar as ultimas palavras, que se ouviram 
por detraz da cortina listrada da porta por onde 
mestre Bartbolomeu entrou. 

— Dizei isto a todos. Na corporação podeis 
fazer -nos grandes serviços, arranja ndo-nos gente 
decidida e de acção, 

— Já vos fallei, reverendo — dizia o senhor 
Bartholomeu — no meu compadre Manuel e em 
Braz Leituga, que tem uma estalagem fora da Porta 
de Carros ; é homem seguro e todo meu... 

— Não queremos traidores; lerabrai-vos do 
que vos disse. — Nem tudo o que leva o rio é 
justiça de El-rei. 

— Fico por toda a minha corporação. 

E podia ficar : era uma das mais revolucio- 
narias e patrióticas da terra. 

— Posso ir descançado? 

— Podeis, reverendo. 

A cortina levantou-se. Á luz de um candil que 
o barbeiro accendôra na sala via-se destacar no 
escuro do corredor uma figura óssea, angulosa, de 
beiços sumidos, cujo traje era a roupeta da com- 
panhia de Jesus. senhor Bartholomeu fez uma 
profunda genuflexão ao despedir-se, e o padre 
levantou a mão como para abençoal-o. 

— Vá, meu filho — disse elle — e trabalhe, 
que para Deus trabalha. 

A cortina tornou a cahir. 
jesuita achava um homem e um homem 
de acção para os seus planos, e dava mentalmente 



124 A RUA ESCURA. 

graças a Deus por se achar doente havia dias o 
doutor Fernando de Andrade. 

O reverendo, como já demos a entender, tinha 
os seus motivos. 

Mestre Bartholomeu, .que se lançara de cabeça 
baixa e olhos fechados na conspiração, pelo ódio 
violento que creara ao governo de Castélla, achava 
também o seu homem. 

D ahi a pouco entraram para dentro mais al- 
guns embuçados, e a porta da loja fechou-se. 



X. 



AS DOAS ATOAS. 



Desengano, quero vos quer 
Esse não vos pôde achar, 
E quem vos nao ha mister 
Buscae-lo para o matar. 

(Fa am cisco de Moraes, 
Desculpa de uns amores.) 



E, 



lm quanto de olhos fechados o honrado pas- 
teleiro da rua Escura saltava das fileiras da ordem 
para a opposição, e se mettia a conspirar, levado 
pelo ódio que ao governa existente votava na pes- 
soa do sobrinho do conselheiro, um outro rival 
se approximava d'aquella que o induzira, inno- 
centemente, a um tal passo. Este rival era Phebo. 
O que o pobre mancebo fazia era menos que 
nada, e, na apparencia, no coração da linda moça 
não conquistara nem a minima porção de amor. 
Acanhado, tinha sido impellido a travar relações 
com Maria Aldoar, sem ter dado um único passo 



126 A RUA ESCURA. 

para o que elle julgava ser o cúmulo da felici- 
dade, de que não se atrevia a gozar. Mal imagi- 
nava elle que andara alli o dedo da bruxa. Fora 
um dia encarregado de dar um desenho para uma 
toalha de egreja, que bordava a filha do senhor 
Roque, por intervenção de Beatriz, a quem linha 
feito eguaes serviços, e desde então, como não 
quizesse receber paga, travara-se entre os dous 
uma lucta de pequenos obséquios, de presentes, 
de agradecimentos e escusas, que outro teria muito 
bem approveitado. 

O esculptor fazia mil projectos, mil castellos 
no ar, quando a sós em casa; porém, se encontrava 
de frente a linda moça, titubiava, esquecia-Hie o 
seu plano de batalha, e, se não fosse a mudança 
que no rosto se lhe notava, dir-se-ia que Maria 
Aldoar era para elle a mais indifferente das crea- 
turas. 

Maria, da sua parte não suspeitava que lhe 
tivesse sequer uma sombra de aíTecto. Se alguém 
com um pouco de estudo do amor ou experiência, 
que mais vale, os visse approximar um do outro, 
conheceria que á forte lavareda que se ateava no 
peito do moço artista, correspondia uma luz vaga 
no peito da donzella. Não ousava encontrar com os 
delle os seus olhos pensadores e meigos; corava, 
se o acaso a fazia encarar com Phebo, e diziam 
tanta banalidade um ao outro, que era impossível 
que não quizessem ambos occultar alguma cousa. 

Podera-me acreditar (é com as senhoras que 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 127 

fallo): desconfiem do bom quilate do amor que á 
queima-roupa lhes fôr pintado com uma torrente 
de palavras, cada qual a mais expressiva. A crea- 
iura que junto da pessoa amada tem vagar para 
fazer flores de estylo e requintes de trocadilho 
não tem a imaginação bastante preza. O amor sub- 
juga a imaginação, fazendo-a girar somente em 
torno do objecto amado ; tem falias ás vezes gran- 
diosas e infloradas, mas de um grandioso. extrava- 
gante ; na generalidade é quasi mudo. Nas grandes 
paixões, só a intimidade traz essa interminável en- 
fiada de nadas com que gastam o tempo duas crea- 
turas que se querem; mas, ainda assim, não ha ahi 
o que se chama jogo de espirito : nem um nem 
outro têem muito que dizer. Faliam para não estar 
c ali a dos. A volúpia, que sentem n'alma, lhes prende 
a imaginação, para a deixar depois mais arrebatada, 
quando a sós com as suas recordações. 

Deixemos, porém, a physiologia do amor. 

O que Maria sentia, ou, melhor, julgava sen- 
tir, depois que a imagem, o nome e a voz de Phebo 
mais se lhe appresentavam aos olhos e ouvidos, 
era um maior affecto por Filippe. Não havia tarde 
em que o não fosse ver passar, e, se á noite o cantar 
do estouvado mancebo chegava até ella, a janella 
do seu quarto via-se illuminada, e um vulto se de- 
bruçava, que por vezes alli ficava até alta noite. 
Não obstante nunca se atrevera a foliar com o 
joven fidalgo, e todas as insinuações da tia Brio- 
lanja tinham sido mal acolhidas. 



128 A RUA ESCURA. 

Este affecto de Maria Aldoar por Filippe, cres- 
cendo na proporção das relações que com Phebo 
ligava, é um desses mysterios de coração, que se 
dão, e custam a explicar. Não o tentamos pois. O 
que neste instante queremos, é fazer saltar o leitor 
até aos meados de fevereiro desse mesmo anno de 
1628. 

Era por um tempo soberbo. céo estava sere- 
no, sem nuvens e com esse azul limpido, que só em 
algum formoso dia de inverno appresenta. Os raios 
do sol dardejando sobre os campos enchiam tudo 
de luz e de alegria. Umas arvores elevavam aos 
ares os seus braços nus, como a implorar o seu 
adorno de frueto e de flores, outras ostentavam a 
sua folhagem verde-negra e luzidia; leiras de uma 
côr alvacenta e outras, a que a enxada dera uma 
tinta quasi negra, formavam um xadrez irregular, 
espécie de tapete que se desdobrava sobre a cam- 
pina, com os seus florões verdes desenhados a ca- 
pricho aqui e alli, tornando pela irregularidade 
mais agradável o' panorama. 

Desde a Torre da Marca e Cedofeita até ás 
portas das Virtudes e Olival ; desde a de Carros e 
Santo Eloy até aonde hoje fica. o campo de Santo 
Ovidio ; desde Cima-de-Villa até ao Padrão, não 
havia horta deserta, casa que não enviassç uma 
columna de fumo branco direita a perder-se no azul 
do firmamento ; ftão havia moita de que não sa- 
hisse um chilrear, não de pardaes, que por um 
lado e outro andavam espavoridos, mas de bons 



TRADIÇÃO PORTUENSE. & 129 

Vi 

burgueses e mesteiraes da cidade dá-Virgem, que 
tinham ido fazer as suas merendas a extra-muros. 

O Porto foi sempre essencialmente gastrono- 
mo. Apezar do revolto que andavam os espíritos, 
não tinham seus filhos deitado perder uma occa- 
siao como a que se lhes appresentava para algumas' 
horas de folga ao corpo e trabalho ao estômago, 
sendo o dia ura domingo, e com sol que faria 
inveja a outros mezes de dras gtptigs acanhados 
que os de fevereiro. 

Todo o espaço de terreno que vai das Virtu- 
des á Torre da Marca ; todo o declive da Arrábida, 
que abre uma espécie de bahia, em forma de ferro 
de engommar, para dar abrigo ao pequeno bairro 
Arménio, era então um maninho coberto de pi- 
nheiros, castanheiros e carvalhos, que tinha por 
atalaias, distante, no alto, uma antiga torre feudal, 
com um dos pannos da muralha caiado a branco, 
para servir de baliza aos navios que demandassem 
a barra, e na baixa o convento de Monchique, com 
as suas ameias de tijollo, setteiras em forma de 
eruz, troneiras rasgadas e outros adornos, que da- 
vam a entender que as esposas do Senhor tinham 
lido ení tempos as suas veleidades guerreiras. Es- 
palhadas aqui e alli, como cabrinhas brancas que 
pastassem o lichen dos rochedos ou a herva da 
encosta, viam-se algumas pequenas casas com os 
seus cercados de silvas ou pedra solta, ramadas e 
pomar; o embryào de. um bairro futuro. A mais 

bonita destas casinhas ficava no extremo da sinuo- 
9 



130 A RUA ESCURA. 

sidade, no alto da encosta ao-pé de uma corrente 
de agua que de um pântano superior se escoava 
para ir espadanando, aos corcovos, de rochedo em 
rochedo, como uma serpe de prata, até se perder 
no fundo, em Miragaya. Ficava abrigada entre co- 
lumnas de pinheiros e carvalhos corpulentos, como 
para se recatar a todas as vistas. A horta tinha 
uma ramada despida de parras, moitas de alecrim 
vulgar, hortaliça e algumas rozeiras, que, por assim 
dizer, serviam de enfeite aos supportes de um es* 
tendal, pois a vivenda era de uma lavadeira. 

Encostados a um mirante natural, feito de al- 
guns monolithes, vamos nós pelas 4 horas da tarde 
encontrar duas lindas meninas; uma que o leitor 
já conhece, outra, de que ouviu fallar, e cujo 
retrato tentaremos fazer. 

Era da mesma edade que Maria Aldoar, a sua 
companheira, e da mesma altura. No perfil havia 
uma reminiscência do typo judaico e do mouro. 
O nariz ligeiramente arcado; o queixo impercepti-» 
velmente retrahido; os olhos um pouco descabi- 
dos para o lachrimal, rasgados e castanhos. As so- 
brancelhas e pestanas eram negras ; o cabello d'um 
louro ardente, avermelhado. Conbecia-se á pri- 
meira vista ser aquella côr contrafeita. Com estas 
feições era bella, mas de uma belleza extranha. 

— Olha, alli estão violetas, mana — disse uma 
das donzellas, apontando para um pequeno socalco 
inferior. — Vamos faaer ura ramo? 

— Vamos ! vamos I Eu gosto tanto de viole- 



TRADIÇÃO PORTUINSE. 131 

ièsl — exclamou a outra, batendo as mãos de con- 
lenta» 

— Verás oomo eu sei arranjar um ramo, Ma- 
ricas, verás I 

— Tens muito geito para essas cousas, Beatriz. 

— Como tu para os fazer do hollanda fina e 
outras telas. 

— Mana, ahi estás com os teus elogios, que 
não mereço. Os teus ramos são mais bonitos e 
naturaes. Não te quero fallar nas tuas flores de 
pennas... tenho-tc inveja! — exclamou Maria, ba- 
tendo com as pontas dos dedos nas faces rozadas 
da sua companheira. 

— Lisongeira ! 

— É que fazes, na verdade, Gores tão lindas 
eomo as que Deus creou... 

— Vais-me fazer rir. 

— Não; são verdadeiramente lindas... e de 
nova invenção. 

— Oh I quanto a isso, são debuxos de Pbebo 
— redarguiu Beatriz. 

— De Phebo .. 

— Ah 1 é verdade : elle ficou de vir ter co- 
viigo, e ainda não veio. 

Maria ergueu-se, como para respirar, e fitando 
os olhos no horisonte, assim permaneceu por muito 
tempo. Inteiramente embebida nas suas cogitações, 
em quanto sua amiga continuava a apanhar vio- 
letas, apertava cila as colhidas n'uma das mãos, e 
machinalmente as desfolhava. 



132 A RUA ESCURA. 

— Olha ! vês... tão bonito! — gritou Beatriz 
mostrando o seu ramo, arranjado artisticamente 
com verbena e outras florinhas que encontrara. 

— Está bonito ! 

— Olha! 

— Já vi. 

— Não viste nada. Jesus I tu estás a estragar 
as tuas violetas I Que te faz distrahir assim ? I 

— Nada... O céo está tão lindo... 

— E tu fazias das tuas violetas malmequeres. 

— Eu! 

— Não ; eu, que as desfolhei todas, repetindo 
baixinho comigo: bem-me-quer, mal-me-quer, para 
nellas procurar a sina de certos amores ! 

— Não importa que me queiram bem ou mal. 

— Ora vejam, como a mana falia ! Pois a mim 
parece-me que a minha Maricas tem o quer que é 
que a faz responder torto, quando se lhe pergunta 
alguma cousa. Anda distrahida, a olhar para os 
ares, a soltar suspirinhos como as pastoras dos 
versos, e a desfolhar violetas de que até aqui 
gostava tanto. 

— E ainda gosto. 

— Não fuja, não fuja ao que se lhe diz ; a 
minha namorada quer fugir!? 

— Eu namorada, Beatriz? 

— Sou eu. 

— Tens lembranças ! 

— O que me admira é que nós, que nos 
amamos como irmãs, tenhamos segredos uma para 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 133 

a outra — continuou Beatriz, passando o braço pela 
eintura da filha do senhor Roque, e obrigando-a 
a assentar sobre os rochedos, onde as fomos en- 
contrar debruçadas. 

— Se tens segredos para mim, não os tenho 
eu para ti, Beatriz ; — redarguiu Maria, corando. 

— Tu coras, Maricas ; não falias verdade I 

— Eu ? n&o. 

— Àhi estás tu atrapalhada para me negares 
o que eu sei. 

— Tu sabes? — exclamou a inexperta moça, 
estremecendo. 

— Oh se sei... que lhe disseste que appare- 
cesse por aquit 

— Sabes muito I — murmurou a sobrinha da 
senhora Perpetua — até o que nâo existe. 

— Se lh'o não disseste, vem elle de seu voto 
próprio. Mas aposto que a minha amiguinha n&o 
deita a fugir ; que ha-de gostar de o ver I 

Maria Aldoar corou de novo, e depois, sor- 
rindo, deu um abraço em Beatriz. 

— Então, n&o o dizia eu ? — exclamou esta. 

— Nào sabes nada, minha louquinha. 

— Ainda negas ? 

— Se queres, confessarei o que for de teu 
gosto, mana. 

— Ora vamos, confessa. 

— Olha que lindo que está o rio... 

— Deixa o rio. Nâo é assim que me foge a 
esquiva. 



134 A RUA ESCURA. 

— Beatriz I . . . 

— Enfadas-te ? 

,— E se me enfadasse... 

— Mais razão tinha eu que lhe conto tudo, 
como se deve fazer entre amigas. Tu és caiada... 
não confias em mim. 

— Nem tudo me contas. 

— Pois bem : confesso, que te tenho eecul- 
tado alguma cousa... e dir-t'o-hei, se me contares 
os teus amores... que eu já sei; mas quero uma 
confissão da minha reservada. 

— Se sabes, para que precisas que t'o diga ? 

— Não dizes? 

— Faze primeiro a tua confissão. 

— Pois sim. 

Beatriz tomou uma das mãos de Maria, e cra- 
vando os seus olhos nos delia com um ar malieioso, 
disse com uma intonação affectada : 

— Quero muito a Phebo... 

— Tu? — murmurou Maria, com ar de i ndif fe- 
re nça. 

Depois passou a mão pela testa, e começou a 
amarrotar o resto das violetas que ainda conser- 
vava na mão. 

Beatriz também permaneceu calada por um 
pouco, fitando a sua amiga. 

A moça havia dias que suspeitava de Maria 
Aldoar, porém como por um presentimento; pois 
que nada sabia quanto aos amores da filha do 
senhor Roque, senão que Phebo, o esculptor, lhe 



•_ 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 135 

queria como um louco, e que sua amiga tinha 
uma paixão. Se o que corria sobre a sua indiffe- 
rença para com o moço esculptor era verdade, 
alguém devia ser o preferido. Se a voz publica 
era mentira, ou quem era esse alguém, é que ella 
desejava e receava saber. Quanto á primeira parte, 
já a desconfiada moça conhecera, servindo-se de 
um extratagema vulgar, dizendo que amava Phebo, 
a ver se excitava um desabafo ciumento de Aldoar, 
que não era o filho do senhor Thomaz Lever que 
fazia scismar a linda moça. 

Irresoluta, não sabia se devia ou nào conti- 
nuar a sua indagação. 

Nem mais uma palavra tinham ainda trocado 
entre si, quando do lado superior começou dis- 
tinctamente a ouvir-se rumor de passos e mesmo 
o galopar de um cavallo; este ruído, porém, nào 
chegou aos ouvidos das duas moças, tal era o seu 
intertenimento. Ambas se tinham posto a pé. Maria 
olhava machinalmente para uma moita de arbustos 
do caminho que dava para a pequena vivenda em 
que estava* Beatriz, tendo poisado as mãos nos 
hombros da sua amiga, voltava o rosto para o lado 
da casa, á porta da qual se encontrava assentada 
a senhora Perpetua, a lavadeira e outra visinha. 

— • Vamos, Maricas, já fiz a minha confissão; 
agora a tua — murmurou Beatriz, interrompendo 
aquelle silencio. 

Os ramos da moita mexeram -se, e ouviu-se 
distinctamente este canto : 



$ 



J 



136 A RUA ESCURA. 

« 

Ni6a, ti a la boerta vas, 
Coge las florei mas bellas... 

Beatriz voltou-se vivamente para aquclle lado. 
O rosto de Filippe de Lucena assomava por cima 
dos arbustos. 

— teu é aquelie — tornou baixinho, sorrin- 
do, a costureira, lançando os olhos a furto sobre 
Filippe de Lucena. 

Maria Aldoar corou ; apertou- a nos braços e 
disse também baixo : 

-É. 

Beatriz buscou os olhos de Filippe. 

mancebo filava a sobrinha da senhora Per- 
petua. 

A costureira repelliu a sua amiga dos braços 
de uma maneira brusca ; fez -se lívida e corada, 
quasi de repente, c exclamou, depois de soltar um 
grito selvagem ; 

— Filippe 1 

Admirada, procurou Maria tômar-lhe uma das 
mèos, sem saber que dizer nem a que a Uri buir 
aquella perturbação, e murmurou : 

— Filippe, sim... por que?... 

— Oh !... — exclamou Beatriz, repellindo-a, e 
mordendo os beiços — nada 1 nada !... 

— Que tem a menina ? — perguntaram á uma 
a lavadeira e a senhora Perpetua, que, attrahidas 
pelo grito de Beatriz, correram para junto das duas 
amigas. 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 137 

— Nada — disse a moça fitando as duas mu- 
lheres, com um olhar vago, um olhar como de 
louca — nada... 

Filippe vira esta scena, reconhecera Beatriz, e 
affastara-se da moita. D'ahi a momentos ouviam-se 
de novo soar as ferraduras de um-cavallo pelo 
terreno escabroso da montanha. 

— Vamos embora, minha tia — balbuciou Ma- 
ria Àldoar— • A senhora Beatriz não está boa, nem 
eu. Dóe-me a cabeça... 

— Eu bem lhes disse que não andassem ao 
sol como umas doidinhas. O sol de inverno faz 
muito mal. Raparigas!... não fazem caso do que 
lhes diz a gente de edade — resmungou a senhora 
Perpetua, com o tom meio sério, meio carinhoso 
com que as avós ralham aos netos — depois tudo 
é queixar-se I 



XI. 



AS 1PPABEICIAS EKAIA1. 



Bagatelas leves como o ar, parecem 
ao ciumento provas tao fortes, como 
as tiradas da Escriptura Santa. 

(Otdello, acto Z.*) 







passeio da senhora Perpetua não fora sa- 
bido Uio somente pelo moço esculptor e pelo ex- 
travagante sobrinho de Francisco de Lucena. O pas- 
teleiro da rua Escura n&o perdia de vista um passo, 
nm gesto de Maria Aldoar, para a deixar urna tarde 
inteira, ficando elle entregue ao tormento, que aviva 
no coração do ciumento desprezado a ausência, a 
incerteza das acções da mulher amada. 

Era um inferno a vida do senhor Barlholomeu 
depois da chegada de Fitippe. A Phebo nunca con- 
tara por causa alguma, com o desdém de um ho- 
mem a quem davam importância pelo dinhoiro, e 



140 A RUA ESCURA. 

que, portanto, julga nada os que não poderam ar- 
redondar uma<4al ou qual som ma. Era-lhe a vida 
um inferno, que o perpassar do moço Filippe não 
lhe deixava adormecer o ciúme; de noite lh'o re- 
cordavam as suas canções hispanholas ; de dia, a 
todos os momentos, o caracolar de um cavallo na 
rua, o tinir de esporas ou de espada pelo lagedo. 
O corte de uma capa parecido com o de alguma 
de Filippe lhe trazia á memoria a sua infelicidade; 
os companheiros do moço fidalgo lhe recordavam 
a aposta fatal da ceia a que fizemos assistir o leitor; 
certas cores produziam nelle o effeito de uma re- 
mo ra. Odiava a nobreza da terra, porque Filippe 
era nobre; não podia ouvir uma cantiga hispanhola, 
cousa vulgar então, sem soltar uma praga, o que o 
fizera muito popular entre os mesteiraes e querido 
dos patriotas da burguezia, que o tinham em conta 
de homem mui sisudo para attribuirem a causa 
ao deus vendado. 

Se encostado á sua porta, em casa, o tinham 
em sobresalto e desespero todos estes nadas, longe 
da sombria rua que habitava, ou longo delia a filha 
de Roque Aldoar, o ciúme lhe pintava a donzella 
sempre a sós com Filippe. Através do espaço jul- 
gava sentir o rumorejar de meigas confidencias, o 
ciciar de um beijo, quando a imaginação lhe não 
debuxava -d'essas scenas que gostava de descrever 
Parny. O ciúme do desejo é por isto mais terrível 
que o do amor ; pois este raríssimas vezes chega a 
pensar do objecto amado cousas que o rebaixariam, 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 141 

tornando-o indigno de culto» de uma verdadeira 
paixão. 

Através das adufas da sua vivenda vira sahir 
a senhora Perpetua e sua sobrinha, e a toda a pres- 
sa tratara de se ataviar para lhe seguir os passos. 
Como a alma-do-mesire acompanha no alto mar 
um navio, esvoaçando, de um lado para o outro, 
traçando circulos, affastando-se por vezes, porém 
sem perder de vista a vela na esteira da qual prevê 
que encontrará o cibo, seguia o pasteleiro a Maria 
Aldoar. 

Esta imagem é exacta até certo ponto; em 
outro não. voar d'essas avesinhas, os seus giros, 
são rasgados, elegantes, e a marcha' do senhor Bar- 
tholomeu tinha pouco de uma e outra cousa. Dese- 
joso de alcançar um gesto de agrado, temia um 
de desdém ; morto por poder gozar da companhia 
da linda moça, receava encontrar o seu rival e ver 
trocar entre os dous um cTesses sorrisos que tanto 
dizem e fazem sentir. Caminhava, pois, ora lenta, 
ora apressadamente, parando de tempos a tempos, 
indeciso, receioso, luctando-lhe no peito os fogos 
do desejo com os desalentos do ciúme. 

O ciúme é o mais das vezes consciencioso e 
franco para com quem no peito o alenta, e lison- 
geiro para com o ente que o fez nascer. Appre- 
sentando-se espelho fiel dos defeitos physicos da 
sua victima, exalta a minima graça ou perfeição do 
rival, annullando todos os recursos de que se po- 
deria lançar mão para o expellir. 



142 A RUA ESCURA. 

O senhor Bartholomeu, seguindo o caminho 
que levava a donzella, fitando-a, pensava em Fi— 
lippe de Lucena, e inter iormentò mordia-se de rai- 
va. As reflexões que lhe assaltaram a mente, desde 
que sahira de casa até á Poria do Olival, foram 
cada qual mais desagradável, e, se naquella occa~ 
sião uma dessas fadas bemfazejas dos contos da 
lareira exigisse delle o maior sacrifício para o tor- 
nar tão guapo e moço como Filippe, o illustre 
mestre da corporação dós tendeiros, taberneiros e 
estalajadeiros daria.... um terço da sua fortuna, 
somma que, podem acreditar, não dera para sal- 
var a vida. Àquella lueta desalentou-o, e, lançando-o 
em um pasmo estúpido, o tornou immovel por' bas- 
tante tempo. Insensivelmente sentou-se n'um tronco 
oahido, cravando os olhos no chão, e com a ponta 
do seu punhal começou a espicaçar a madeira» Foi 
nesta posição que alguns conhecidos seus o foram 
encontrar. A todos respondeu de um modo abstra- 
cto. Nem Duarte Mondim, nem pessoa alguma pôde 
obter delle mais que alguns monosyllabos tão dis- 
paratados, que não poucos duvidaram se sim ou 
não o homem estaria no gozo da sua intelligencia. 

Estes monosyllabos e exclamações soltas contra 
Castella, fizeram acreditar a alguém que a pátria 
dava muito cuidado ao senhor Bartholomeu, cousa 
que alguns conhecidos não podiam conceber pelo 
rápido da conversão. Mestre Mondim, também res- 
mungava aos que tal lhe diziam que conhecia o 
visinho como as palmas das suas mãos, e que âlli 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 143 

naquella mudança andavam outros negócios. Que 
negócios fossem, é que elle nâo sabia, por não 
ter grandes falias com a senhora Gertrudes, nem 
com a senhora Brazia, ou alguma outra das coma- 
dres da respeitável donzellona. 

Os que duvidavam do bom estado da cabeça 
do pasteleiro, não erravam muito, que a vontade 
e o pensamento lhe andavam alienados pelo ciúme, 
e tanto, que desejando seguir a sobrinha da se- 
nhora Perpetua, a deixara perder de vista ; gastara 
mais de duas horas em tergiversações, baralhando 
as ideias, que na cabeça se lhe cruzavam rápidas 
coroo a luz do relâmpago, e, como ella, deixando-o 
depois em maiores trevas, em maior confusão, 
n'um verdadeiro pezadello de que já tarde despertou. 

A ausência de Maria Aldoar fez-lhe de novo 
crear animo. Mal por ella deu, ergueu-se e pôz-so 
a caminho apressadamente. Desejoso de a encontrar,, 
e revolvendo na mente as suas ideias de ciúme, 
correu pelos campos irreflectidamente, ainda nesta 
operação desperdiçando uma boa hora. Quando se 
recordou da casa da lavadeira, onde vira já ou- 
tras vezes a filha do senhor Roque Aldoar, e para 
lá se dirigiu, era quasi no fim da tarde.. 

O senhor Bartholoroeu, para atalhar caminho, 
seguia por uns campos, do lado da Torre da Marca, 
onde fòta parar, quando, e já bem perto da vivenda 
onde o leitor viu as duas amigas no antecedente 
capitulo, chegou aos seus ouvidos a canção favorita 
do sobrinho de D. Francisco de Lucena, que lhe 



144 A RUA ESCURA. 

soou como pregão de justiça aos ouvidos de um 
criminoso. A pp ressoa o passo, e o acaso o veio 
trazer ao sitio onde Filippe deixara o cavallo atado* 
Algumas arvores occultavam o moço estouvado. 

pasteleiro parou irresoluto. Passara-lhe pela 
cabeça como uma nuvem que lhe offuscara a luz 
do entendimento. O grilo de Beatriz lhe fez porém 
voltar o rosto e dar mais alguns passos, e a vista 
se lhe prendeu em um ponto. Filippe saltava abaixo 
dos penedos, onde ha pouco o vimos, e, sorrindo 
maliciosamente da falsa posição em que deixara as 
duas donzellas, se dirigia para o sitio onde atara 
o seu cavallo. De um salto, machinalmente, mes- 
tre Barth.olomeu eslava também no caminho. Os 
olhos faiscavam-lhe como lume; a mao apertava 
convulsivamente o cabo do seu punhal. chefe 
da corporação dos tendeiros perdera, como vulgar- 
mente se diz, a cabeça, e lai vez não commeltesse 
uma acção das mais innocentes, se uma outra pes- 
soa não se lhe appresenlasse ante os olhos. Esta 
pessoa era Phebo, que immovel no meio da estra- 
da, do lado contrario ao que seguia Filippe, simi- 
lhava uma estátua. pasteleiro como que gelou 
com aquella apparição. A resolução que se lhe 
apossara da mente varreu -se tão rápida como viera; 
os braços penderam-lhe; os olhos crava ram-se na 
terra ; a fronte anuveou-se-lhe, passando do gesto 
de raiva, para o de desalento, e permaneceu im- 
movel, como se quizesse fazer a segunda ao seu 
visinho. 



\ 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 145 

Uma ideia sinistra, conclusão por ello tirada 
4o apparecimento de Filippe, saltando do lado da 
quintal onde se achava a filha do senhor Roque, 
delle se apoderara. O ciúme naquelle facto dera- 
lhe as provas de Uma cousa com que nem se quer 
tinha sonhado a linda moça; e procurando fugir 
daquelle pensamento, mais elle se avultava, con- 
fundindo-lhe a memoria a ponto de lhe trazer re- 
cordações vagas de pequenos incidentes, que não 
eram mais do que creaçoes da mente allucinada. 

Também a Phebo surprehendera, pelo impre- 
visto, o salto de Lucena ; magoara-se em extremo, | 
recordando o seu amor mallogrado; trazendo-lhe a 
ideia de que um rival feliz cada vez mais ganhava 
a affeição de Maria, affastando-o a elle; porém não 
manchou no pensamento o idolo do seu culto. 

O amor temia pelo coração, pela alma; o de- 
sejo temera pelo corpo. 

A immobilidade dos dous rivaes não durou 
muito. Ambos, como para disfarçar, continuaram 
ousadamente o caminho até á porta da lavadeira 
da senhora Perpetua Freire. Ao encontrarem-se am- 
bos soltaram um «guarde-o Deus, visinho» tão su- 
mido, que mal se ouviu. O senhor Bartholomeu 
seguiu o caminho para o lado da Torre da Marca ; 
Phebo lançou mão da tranqueta da porta da pe- 
quena vivenda; porém, antes de a abrir, conservou- 
se alguns minutos com a fronte encostada á padiei- 
ra, como se no frio da pedra quizesse mitigar o 

seu grande calor. Por fim resolveu-se e entrou. 
10 



146 A RUA ESCURA. 

Phebo tinha sido convidado por Beatriz para 
a reconduzir a casa. Se até ahi o embaraçava a 
presença de Maria, nesse dia mais. Até voltarem 
para casa, durante todo o caminho não trocaram 
entre si palavra alguma. Beatriz também não abria 
os lábios. Não parecia que vinham de um passeio, 
de uma merenda no campo, mas de um enterro. 
A senhora Perpetua ia também pezarosa, attribuin- 
do á doença a causa daquella mudez. 

A boa velha esquecêra-se inteiramente de cer- 
tas mágoas dos seus verdes annos e da principal 
das causas, e revolvia na mente uma ceremonia 
burlesca com uns vasos d'agua, remédio efficaz, 
segundo ella, para tirar o sol da cabeça. 



XII. 



A BXTOLTA. 



........ Contava offese, 

Libidioí, rapioe, ed ogtii lutto 
DeLle vedove caze : era nel folgo 
Meslissimo silenzio: or gli succede 

li n' ira 

(Nicolini, Giovanni da Procida.) 







dia seguinte nasceu anuveado e sombrio. 
Apezar d'isto, ainda mal a luz penetrava nas es- 
treitas mas do coração da cidade, já o nosso pas- 
teleiro, que passara a noite em claro, vagava de 
um lado para o outro, por bêccos e ruas, dando 
encontrões, de absorto que ia, nos lavradores que 
accorriám a trazer provisões, ou nos mesteiraes que 
de casa sahiam para as suas offlcinas ou obras. Pela 
volta dás onze horas, cançado já e um pouco tor- 
nado a si, o setihor Bartholomeu atravessava, re- 
gressando para casa, o terreiro de S. Domingos. 



- i 



148 A RUA ESCURA. 

Junto aos arcos, um ajuntamento de povo lhe cha- 
mou a a t tença o, impedindo-lhe a passagem. D'a- 
quelle grupo não sabia nem sequer um psiu, pa- 
recendo todos reter o alento, como para se não 
distrahirem. Era certo, pelo menos parecia, que 
aguardavam algum successo extraordinário. 

senhor Bartholomeu esforçava-se por abrir 
caminho, quando no povo se fez um movimento 
rápido, e algumas exclamações cortaram o silencio 
que reinava. 

— Coitada I coitada I - A pobresinha não tem 
para pão, quanto mais para dar a el-rei. 

— É uma pena ! — ouvia-se do outro lado. 
Estes e outros ditos se referiam a uma pobre 

mulher, que acabava de apparecer á porta de uma 
casa, segurando-a por um braço um quadrilheiro, 
e seguida por alguns alabardeiros, que começaram 
lentamente a atravessar o grupo de povo. Pouco a 
pouco se dispersou este pelo terreiro, fallando em 
voz baixa, porém visivelmente descoroçoado. 

senhor Bartholomeu seguia também para 
casa, quando uma mão pezada lhe bateu no hombro. 

— Bons dias, senhor Bartholomeu. Então que 
lhe parece ? 

— Bons dias — redarguiu o pasteleiro» voltan- 
do-se espantado para um hércules meio-tisnado» 
que fora quem lhe dirigira aquella amável saudação 
com acompanhamento de murro. E ia cabisbaixo a 
seguir o seu caminho, sem se dignar responder á 
pergunta que lhe tinha sido feita. Mestre Pedro, a 



.J 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 149 

pessoa que o saudara, não era creatura que des- 
coroçoasse á primeira; deitou-lhe uma mão ao bra- 
ço, e proseguiu : 

— São uns covardes I assim deixam prender a 
pobre Rita Viuva, a fructeira, que deixa agora ao 
Deus dará uma carrada de filhos. 

— Mas que fez ella, mestre Pedro T — interro- 
gou friamente o pasteleiro. 

— Que fez? Com a breca! Não fez nada. Não 
tinha com que pagar esse tributo novo, e julgo 
que arranhou o quadrilheiro. Por isso a levam 
para a cadeia; e sabe Christo o que lá lhe farão. 

O senhor Bartholomeu durante esta curta ex- 
plicação encrespara o sobrolho e franzira a testa. 
O homem pensara um momento, e julgou ser che- 
gada a sua hora. 

— É possível, mestre Pedro — exclamou elle 
em voz alta, visivelmente para chamar a attenção 
de todos — é possível ? E essa gente não tem bra- 
ços, não tem uma corda para esganar esses ladrões. 
Deixam esmagar os pobres, dizendo para com os 
seus botões que em quanto o pau vai e vem folgam 
as costas, e não se recordam de que lhes ha-de 
chegar a vez da tosquia. 

A vontade do senhor Bartholomeu era feita* 
À gente que se achava no terreiro, durante esta 
peroração o foi rodeando boqui-aberta. Uns admi- 
ravam a temeridade do orador; outros, os que o 
conheciam do motim da Ribeira, a differença que 
fizera o pasteleiro çm pouco mais de um mez. 



150 A RUA ESCURA. 

Mestre Pedro, era um destes homens decidi- 
dos, que se inflammam com a menor faúla, que 
se commovem á menor palavra. À ira patriótica 
de convenção do senhor Bartholomeu para elle foi 
contagiosa, mudando-se em real. Fechou os punhos 
e replicou, batendo uma forte pancada na pessoa 
mais próxima, no calor da gesticulação : 

— Com a fortuna, tem muita razão, e o meu 
regalo... 

— O que falta é gente d'alma, que, se a hou- 
vesse — tornou o pasteleiro — em um abrir e fechar 
d'olhos ia tudo pelos ares. Não ha gente de cora- 
gem 1 Preferem morrer á miséria a levar uma ar- 
ranhadella... Pois terão o que desejam... oh se 
terão I Esfollam-nos para nos venderem a peile, 
quando não sirvamos para mais nada. 

A reunião ia crescendo progressivamente com 
a exaltação do pasteleiro da rua Escura. Entre os 
mesteiraes e homens de officio, que, por ser se- 
gunda- feira, vadiavam, não havia já poucos ora- 
dores, que seguindo o exemplo do senhor Bartho- 
lomeu lhe tirassem gloria e ouvintes, encarregan- 
do-se também da prédica patriótica. Verdade é que 
nenhum lhe levava a palma ; não por florearem 
menos no discurso, terem menor fôlego, ou serem 
dotados de timbre menos persuasor. O senhor 
Bartholomeu era n'isto bem apoucado. motivo 
do valor das suas palavras vinha da reputação de 
sisudo em que era tido e mesmo da fama de or- 
deiro; pelo menos isto fazia impressão no povo: 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 151 

um taberneiro, que perorava no meio de um grupo 
de mesteiraes, seus freguezes, appresentava-lhes 
como razão convincente da desgraça do paiz e do 
direito e dever de insurreição a conversão mila- 
grosa e a fúria do mestre da sua corporação. 

_ Bem se recordam — dizia elle, que ainda 
ha pouco nos pregou que nos deixássemos estar 
em nossas casas; que nèo tugíssemos, nem mugis* 
semos; que a gente devia obediência ao rei, que 
era ungido, e também agora berra contra a gover- 
nança. É porque a carga é grande; porque o senhor 
Bartholomeu sempre foi homem sisudo e amigo de 
levar as cousas pela ordem. 

Os nossos oradores inter tinham -se em dar li- 
vre carreira á sua verbosidade, e multiplicando*se 
de tal sorte que pelo terreiro já ia uma algazarra 
tremenda, quando succedeu apparecerem uns seis 
soldados que se dirigiam para o forte da Porta No- 
bre, vindos do lado das Virtudes. Algumas mulheres, 
que desse lado se encontravam também em discus- 
são, julgaram-se cortadas, e correram para o lado 
do terreiro gritando .com ioda a força dos seus 
pulmões : — Os soldados I Ahi vem o regedor com 
o terço ! Fujam, fujam I — e outras taes exclama- 
ções capazes de lançar o terror em gente menos 
aguerrida do que a inflammada pelo senhor Bar- 
tholoíneu de Basto. 

espadeiro do Olival, rompendo por entre a 
multidão para o sitio que as mulheres abandona- 
vam, e manejando um grande cacete, que arran- 



o 



152 A RUA ESCURA. 

cara das mãos de um lavrador, não deixou calar 
o terror no coração da turba. 

— Rapazes ! a elles, e viva Portugal! — excla- 
mou com um gesto que invejaria qualquer cabo de 
exercito. 

E os mais decididos, armados uns com vara- 
paus, outros com os seus punhaes e facas, se lan- 
çaram sobre os soldados, que surprehendidos, igno- 
rando até a causa de tanta faria, largaram os maus 
terçados com que vinham armados, e começaram 
N tambem a gritar, ou por medo, ou por convicção, 
cora todas as suas forças.: 

— Viva Portugal 1 

Este pertendido desbarate da tropa de el-rei, 
deu um tal calor ao alvoroto, que os mais timora- 
tos tractaram de procurar um arremedo .de arma 
offensiva, e em menos de alguns minutos o ter- 
reiro de S. Domingos estava coberto de homens, 
rapazes e até mulheres, meneando paus, forcados, 
alabardas ferrugentas, espadas, velhos montantes, 
mangoaes, pancas, e alguns, raros, arcabuzes, for- 
mando um exercito temeroso... de ouvir, pela voze- 
ria que levantava. 

A revolta estava organisada, em campo; só Cal- 
tava o grito. Quem o soltou foi o senhor Bartho- 
lomeu. homem tinha o seu tino revolucionário, e 
sabia como se leva agua ao moinho. 

-* Viva Portugal, e fora com os novos tribu- 
tos I — gritou elle com voz de stentor. 

~ Viva I Viva ! Fora com os tributos todos t 



TRAOIQÃO PORTUENSE. 153 

— vozeou a multidão furiosa, ampliando a ideia. 

— Não queremos nem tributos nem portagens I 

— grasnou o virago que já vimos figurar na Ribei- 
ra, quando se lançou o pregão, ameaçando com a 
roca> como se fora a espada dé Roldão. — Se que- 
rem comer, que trabalhem; que o bocado que engu- 
limos com o nosso suor é amassado ! 

m 

— Psiu I Viva Portugal — tornou o senhor Bar- 
tholomeu — e morram os castelhanos, que vieram 
para nos roubar ! Morram os Lucenas ! 

— Morram I morram ! — gritou a multidão I — 
morram todos os castelhanos I 

E todas as pancas, foeiros, alabardas e man- 
goaes se elevaram aos ares, cruzando-se, batendo 
umas nas outras, como se todos quizossem prestar 
juramento de fazer vingar o programma que mes* 
tt*e Bartholomeu appresentava naquelles vivas e 
morras. 

— Ao Patim I — gritou um catraieiro a quem 
o senhor Bartholomeu, segredara algumas palavras 

— ao Patim I 

— Ao Patim ! — exclamou a turba ; e a onda 
popular foi rolando entre uivos, assobios, gritos e 
rizadas para a casa onde poisava Francisco de Lu- 
cena, edifício gothico-tfloreado, que ficava á esquin a 
da Ferraria-de-Baixo, e que ainda pouco ha desappa- 
receu completamente, para dar logar a um prédio 
branco, com o qual a arte nada teve que fazer. 

assalto da casa não custou vidas nem san- 
gue. A porta em menos de três minutos cedeu ás 



154 A RUA BSCURA. 

pancas e machados, que os braços musculosos dos 
portucalenses meneavam com toda a fúria. Tão de- 
pressa os machados abriram logar por onde cou- 
besse um homem, como as janellas se abriram, e 
os revoltosos appareceram triumphantes nas varan- 
das, agitando nos ares as armas que o acaso Lhes 
deparara. 

— Os castelhanos que lá estão dentro i os que 
vieram para nos roubar 1 — gritaram desentoada— 
mente os que tinham ficado de fora. 

— Os coelhos mudaram de Lura I — exclamou 
um garoto da varanda. —-Cá não estão. — E dizendo 
isto, cumprimentava com um chapéu todo agaloado 
coberto de plumas, contraste do seu gibão esfarra- 
pado, b povo portuense, como se fora um orador 
de grande popularidade. chapéu era visivelmente 
o único prisioneiro que tinha conseguido fazer na*» 
quelle assalto. 

— Procurem os bixos ! — grilou um outro 
garoto, trepando, pelas grades de ferro que guarne- 
ciam as janellas do andar térreo, segurando-se nos 
arabescos e molduras do edifício. — Eu serei o 
furão. 

— Assim, rapaz! Deus te abençoe ! —resmun- 
gou uma peixeira. — Cuidam que é só esfollar o 
povinho ? I 

— Rapazes ! ha-de haver sede 1 Quem quizer 
beber, é chegar-se; temos cá vinho a rodo. 

Estas palavras, que por entre as grades d'uma 
janolla do andar térreo soltou um mesteiral, fizeram 



TBAD1ÇÃ0 PORTUENSE. 155 

com que os ferros desapparecessem, em alguns cre- 
dos» despedaçados, arrancados, tornando-se aquella 
abertura um verdadeiro sorvedouro de homens e 
mulheres, que se empuxavam uns aos outros entre 
os gritos de dôr dos esmagados contra a parede, 
lacerados nos restos da grade, e as gargalhadas 
dos que conseguiam penetrar a salvo pela janella. 
A porta estava entulhada também de concorrentes. 
O movimento que a multidão fizera, comprimindo-: 
se toda. contra o edifício, não tardou a serenar, 
retrogradando uma grande porção de gente repe Ili- 
da pelos que dentro da casa, ou nas escadas, que 
davam serventia exteriormente, e junto das paredes 
se viam esmagados. A algazarra era immensa. 

No meio do descoroçoamento dos que não ti- 
nham podido saborear os vinhos do hospedeiro dos 
Lgcenas, de novo assomou á janella o garoto do 
chapéu emplumado. Arrastava, ajudado pelo com- 
panheiro, que vimos trepar pelas grades, um barril 
de vinho que collocou sobre a varanda. 

— Para que ninguém fique descontente — - ex- 
clamou elte, fazendo as suas reverencias ao publico 
— aqui trago este pipo de vinho. Parece que não 
é do peior. Quem apara? 

— Ui I credo ! estás doudo 1 — gritaram mais 
de vinte vozes, percorrendo a escala desde o baixo 
profundo ao soprano agudo; e outras tantas cabe- 
ças, as dos infelizes que estavam no páteo, por 
baixo da varanda, se encolheram, receando ver a 
granada liquida estourar-lhes em cima. 



156 A RUA ESCURA. 

— Por S. Pa n ta leão, que é meu padrinho — 
tornou o garoto — sem uma pinga não hei-de deixar 
a honrada gente que estou vendo. 

E, palavras n&o eram ditas, arrancava com os 
dentes o batoque do tampo do pipo, e despejava 
o vinho sobre a cabeça dos mesteiraes e regateiras 
a que estava imminente. 

— Aparem no chapéu ! — gritou o outro dando 
uma gargalhada.— Vinho como este nem os cónegos, 
nem os frades da Serra o têem I 

conselho do garoto não foi desperdiçado: 
mais de um chapéu se ergueu, procurando o dono 
apanhar na copa voltada o liquido precioso, e a 
confusão e as gargalhadas redobraram entre os sub- 
levados. 

Ao passo que por um lado o vinho chovia so- 
bre o respeitável publico, do outro cabiam trastes, 
roupas, colchões, que mulheres e homens iam ar- 
rastando para o terreiro no meio de um vozear 
confuso em que sobresahiam vivas e morras. O se* 
nhor Bartholomeu de Basto imprimia com gestos e 
palavras uma velocidade incrível, uma verdadeira 
fúria ao motim. 

— Os Lucenas ! os Lucenas I — murmurava 
eito ; — não os deixem escapar t 

E andava e desandava por entre a multidão, 
como o génio daquelle desbarato. 

Em um destes seus giros deu de cara com 
o doutor Fernando de Andrade. 

— Oh I senhor Bartholomeu ! que imprudência I 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 157 

Às cousas ainda não estavam maduras, e isto leva 
mau caminho I — lhe segredou o doutor ao ouvido. 

— Deixe-me I deixe-me, que ha-de ir avante, 
ainda... ainda que eu tivesse de gastar dous mil 
cruzados I 

pasteleiro estava evidentemente muito fora 
do estado normal para o pensamento de uma tal 
despeza lhe adejar pela cabeça. 

— Visto as cousas estarem neste estado — tor- 
nou o doutor — n&o será mau soltar o grilo... o 
nosso grito. 

— Sim... sim — resmungou o pasteleiro. 

— Sabe qual ó ? 

— Sim — redarguiu o senhor Bartholomeu, 
girando sempre á volta, olhando para todos os 
lados, como quem procurava descubrir alguém en- 
tre a turba. 

~ Então, m&os á obra. 

E o doutor, como bom chefe de partido, es- 
capou-se por entre a multidão, a pôr a salvo em 
alguma trapeira cabeça tão preciosa como a sua, no 
que não fazia mais que segundar o seu companhei- 
ro, o reverendo padre Leonardo. 

— Que me importa a mim o duque. . . esse ra- 
pazelho — disse por entre-dentes o pasteleiro. — 
Os Luoeaas... os Luoenas 1 — ajuntou em voz alta. 

Ao grito do senhor Bartholomeu, respondeu 
outro : 

— • Aos fortes, amigos I aos fortes I Estamos a 
perder tempo. Á Porta-Nova ! 



r 



158 Á RUA ESCURA. 

Quem soltava este grilo era um mancebo de 
cabellos louros, era o nosso conhecido Phebo. 
A multidão - repetiu : 

— Á Porta-Nova I 

— Viva Portugal e morra Castella ! — vozeou 
uma parte da multidão correndo, com o moço es- 
culptor á frente, pela Ferraria abaixo. 

Os assaltantes da casa do Patim tinham termi- 
nado a sua tarefa de extermínio. Uma grande fo- 
gueira devorava as roupas e moveis, que d'alli ti- 
nham sido acarretadas para o terreiro. 

— Ninguém ? ninguém lá dentro ? — perguntou 
o pasteleiro ao garoto emplumado, que ainda se con- 
servava assentado na grade da janella, dirigindo 
chufas a conhecidos e não conhecidos que avistava 
do alto do seu observatório. 

— Ninguém, mestre — redarguiu elle.— Está o 
poleiro vazio. 

— Aonde os encontrarei — murmurou com os 
seus botões o senhor Bartholomeu — aonde ? 

— Á camará I — gritou uma voz d'entre a 
chusma. 

— Nâo ! não, a Ciraa-de-Villa ! Á guarda ! — 
gritou outra. 

Os revoltosos já não careciam da direcção do 
ciumento burguez, pelo que se via; pois que entre 
si tomavam as suas deliberações. 

— Á camará I — vozeou uma parte do povo. 

— Á guarda de Cima-de-Villal— exclamou ou- 
tra. 



1 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 159 

E v dentro de alguns segundos, na praça não 
restava mais gente do que algumas mulheres, entre 
ellas, a nossa conhecida, a senhora Crispina, que 
perorava com uma verbosidade espantosa, e o pas- 
teleiro, indeciso, encostado ao angulo do mosteiro, 
fitando a casa do Patim. 

Por alguns instantes assim permaneceu este 
ultimo; depois começou a andar apressadamente, 
tomando a direcção da Bainharia, caminho que le- 
vara o povo. 

— Oh I que me não hão- de escapar ! — mur- 
murou, fechando os punhos convulsivamente. 



XIII 



OSEIVAES. 



A ira de um mancebo é como a 
lavareda que se ateou em palba; a do 
velho c como o ferro candente* 

(SuAK&PKARf.) 



A 



meio da rua da Bainharia ia a multidão, 
quando de uma casa de modesta apparencia sahiu 
um homem de edade já madura, esbaforido, que 
de braços abertos, como quem pertende espantar 
um rebanho que se t resma Ih a, gritava : 

— Filhos I filhos I parai I parai I 

— juiz do povo ! — exclamaram os que for- 
mavam a vanguarda deste exercito popular. 

— Juiz do inferno — grasnou uma rega te ira — 
não já do povo. Olha o bom juiz que nos deixa 
esfoilar ! 

— Então ! então ! — balbuciou atrapalhado o 

homem. 

II 



162 A RUA ESCURA. 

— Não nos queria deixar fiar — prosegniu a 
regateira — hei-de fiar-lhe as barbas I Olé ! e que 
venha pelo tributo da maçaroca I 

— Fora ! fora ! — uivou a turba. 

O juiz fez uma evolução de frente á recta- 
guarda, e enfiou-se em casa» procurando nella um 
abrigo e melhor púlpito para o sermão com que 
pertendia amainar as iras populares. 

Uma salva de assobios acolheu a decisão do 
atrapalhado tribuno da plebe, e da mesma maneira 
foi recebido ao assomar a cabeça pela janella da 
sua habitação. 

— Bons homens, cidadãos, o vosso juiz — 
começou elle, olhando desconfiado para um lado 
e outro — o vosso juiz... 

— Fora 1 fora ! — gritou de novo em coro o 
povo da rua. 

— Meus amigos — tornou o juiz já muito ama- 
rello — ouvi-me... 

— Vá : que falle ! — atalhou um velho d'entre 
os revoltosos. 

— Sim, que falle — disseram alguns dos amo* 
tinados. 

O pobre juiz do povo ereou animo, procurou 
ajustar melhor a sua walona, e encetou de (novo o 
arauzel. 

— Sua magestade el-rei Filippe... 

E não pôde continuar, que um grilheta» infer*» 
nal se elevou aos eáòs. 

— Fora ! fora ! 



TBA01ÇÀO PORTUENSE. 163 

— Nada de rei ! qual rei T 

— Morra t morra I 

— Fora o castelhano I 

— Não reconhecemos Filtppo como nosso rei I 

■ 

— Rei que não deixa fiar a gente — gritava a 
regateira — que o leve o tinhoso. 

E o concerto de epythetos, commentos e ex- 
clamações durou por espaço de alguns segundos. 

O juiz do povo tinha uma tenacidade digna 
de melhor sorte : bem que no rosto a côr lhe des- 
botasse de novo, conservou-se no seu posto, com 
a bôcca aberta, de espantado que estava da rebeldia 
dos seus concidadãos. 

— Filhos — tornou elle, mal serenou aquella 
tempestade de berros — filhos ! 

— Fora I fora I . . Falle 1 deixem fallar — se ou- 
viu dentre o povo. — Veremos o que nos tem a 
dizer da parte do tal rei de Gastella. 

— Filhos — insistiu, mas com voz trémula o 
teimoso homem — a obediência ao rei é recommen- 
dada até por Deus, e vós... 

Uma pedrada cortou o melhor do discurso or- 
deiro do juiz do povo da nobre e leal cidade do 
Porto, Na força da dôr, que lhe fora a pedra di- 
reita á testa, o respeitável cidadão, ao recolher a 
cabeça, como um caracol, para dentro da sua casa, 
esbarrou com ella na gelosia, que a meio estava 
levantada, e desprendendo-lhe o supporte, a pezada 
grade entalou-lhe o pescoço d 9 enconlro ao apoio 4a 
janella, ohrigando-o a fazer uma careta aos seus 



164 A RUA ESCURA. 

concidadãos. povo achou mais engraçada e do 
seu paladar a visagem que o discurso, e applaudiu-a 
estrepitosamente, deixando retirar-se em paz, a cu- 
rar a ferida da cabeça, attestado da perrice ordeira, 
ao tribuno da plebe. 

Ao começar este episodio da revolta, chamado 
das maçarocas, foi que o senhor Bartholomeu de 
Basto, que seguira para este lado, chegou a encon- 
trar-se com a cauda da serpente popular que occu- 
pava toda a rua da Bainharia. pasteleiro dese- 
java descobrir alguém entre a chusma, e por isso 
incessantemente estendia o pescoço, punha-se em 
bicos de pés, fitando todas as cabeças que maru- 
lhavam naquelle pélago humano. Não foi sem custo 
que descortinou no meio de tanta gente o seu alvo 
o ciumento apaixonado da sobrinha da senhora 
Perpetua Freire. Aos encontrões se dirigiu direito 
a elle, não se importando nem com o cabeçalho 
do desastrado e interrompido discurso do juiz do 
povo, nem com os coTnmentos, exclamações e apar- 
tes do respeitável publico, tanto mais respeitável 
nessa occasião que se arvorara em soberano. Era 
a um homem meão de altura, mas entroncado, ro- 
busto, com pulso de feno e pescoço de touro que 
elle procurava. A largura do peito era espantosa, a 
catadura fera, sinistra, pelo esverdenhado e sumido 
dos olhos e carregado das sobrancelhas, que no ás- 
pero pareciam formadas de cerdas. O membrudo 
cidadão olhava com um ar de escarneo para o 
semblante demudado do juiz, tendo ao h ombro um 



Í«MÍf 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 165 

machado de carniceiro, manchado de sangue, como 
a camiza, e uma espécie de calção largo, única 
roupa que o vestia. Quando o senhor Bartholomeu 
lhe deu ao de leve uma pancada no bombro para 
lhe chamar a attençào, soltou o homem da garganta 
um som parecido com o rosnar de um cão yadio 

4 

que sente approximar-se algum companheiro, quan- 
do mais occupado se acha a esburgar um osso. 

— Russo ! — disse baixo o pasteleiro. 

— Hum I — uivou o carniceiro — que temos ? 

— Em quanto essa gente ahi está embasbaca- 
da, queres beber um bom trago ? 

— Apezar de ter bebido que farte — tornou 
o Russo ; — uma pinga não é cousa que se en- 
geite. Vamos lá : aonde é isso ? 

— Aqui mesmo — respondeu o pasteleiro ; e 
abrindo caminho para uma tasca, que tinha serven- 
tia para a Bainharia e Ponte -Nova, nella entrou 
com o seu pouco sympathico companheiro. 

— Meia canada aqui para um bom portuguez I 
— gritou o chefe da corporação dos taberneiros 
entrando na tasca. 

— Pois não, patrão — redarguiu açudado, de 
tanta que era a freguezia, o dono da casa. 

E uma meia canada foi servida no mais la- 
vado cangirão de barro, que havia na pouco limpa 
taberna. O carniceiro tomou-o de cima do mostra- 
dor e appresentou-o ao pasteleiro, que bebeu um 
golle, se tão só não o chegou aos lábios, e o tor- 
nou a passar para as mãos do carniceiro. 



]66 A RUA ESCURA. 

— Á sua saúde, mestre — disse o Russo — e 
ó a virar. 

Nos olhos do companheiro do senhor Bartho- 
lomeu, passados minutos, notava-se o effeilo do 
summo do racimo: as sobrancelhas mais se lhe 
carregaram, e o gesto mais carrancudo se tornou. 
Um apologo árabe reza que Noé ao plantar a vi- 
nha a regara com sangue de três animaes : o porco, 
o cordeiro e o leão. À vide que produzira o vinho 
emborcado no estômago do carniceiro era das re- 
gadas com o sangue de leão, ou para mais chã, 
mais claramente fallar, o senhor Manuel, por alcu- 
nha o Russo, tinha o vinho bulhento, desordeiro 
em demazia. 

pasteleiro conhecia o homem como as palmas 
das suas mãos. Quando notou que a irascibilidade 
tinha subido ão mais alto grau, tomou-o pelo braço 
e dirigiu-se para o repartimento interior, espécie 
de sala de comer reservada, que tinha para a Ponte 
Nova. O que lhe contou a principio o respeitável 
pasteleiro não o poderemos referir nem textual- 
mente, nem mesmo por alto, que em voz baixa 
foi dito; mas as ultimas palavras, essas, ahi as 
transcrevemos : 

— É como digo ; se se não dá cabo delles, 
estamos perdidos ; e ainda que não succedesse tudo 
o que narrei, metade bastava para nos arruinar : 
na camará ouvi o que te contei ha dous dias sobre 
os novos tributos... e fica sabendo que o mais novo 
é o peior. 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 167 

— É ; — resmungou o carniceiro — pois que 
venha para oi, se é capaz, o franganito. 

— Não é tanto como te parece, Russo; é do- 
tado, apezar daquelle corpinho, de bom pulso — 
replicou astuciosamente o pasteleiro. 

— Com o demónio I que não ha-de ser ho- 
mem de se medir comigo — tornou o carniceiro ; 
opm mesmo que tivesse mais força do que um 
touro bravo. 

— Talvez se o vires puxar do faim, homem, 
aio falles tio alto? 

— Pela hóstia, mestre, que nem um terço in- 
teiro depois de eu tentar uma cousa, é capaz de 
me fazer quebrar a vontade ; e esse rapaaete ha- 
de havel-as duras comigo, assim o apanhe hoje 
no reboliço. 

— Teremos I 

— - Nào ha que ver, mestre; é mandar.-lhe di- 
zer uma missa por alma ! 

— Conhecel-o ? 

— Não. 

— Pois não me percas a pista : anda ao-pé 
de mim, que t'o mostrarei. Já te disse, homem : 
o mais novo é mais atrevido. 

— Que fosse o diabo ! — replicou o carnicei- 
ro, batendo com o olho do machado no chão. 

A rizada estrondosa, que o povo soltara ao ca- 
hir a gelosia, despertara a curiosidade do mestre 
Bartholomeu, que acabava de escorvar a arma de 
que lançara mio no seu ódio contra Filippe. 



168 A RUA RSCURA. 

O povo, que acabara com o impedimento rho- 
torico, que no caminho lhe oppozera o seu juiz, 
de novo começou a deliberar para onde devia se- 
guir, como se já não trouxesse destino fixo. Este 
extraordinário consummo de palavras nada mais 
denotava senão que a falta de sérios obstáculos 
e resistência ás suas primeiras iras, lhe iam do- 
mando os ânimos. Á primeira ideia, a do ataque 
dos postos das portas de Cima-de-Villa e Sol estava 
para ser tentada, começando já a tomar essa direc- 
ção a testa da columna popular, quando um novo 
incidente interrompeu a marcha e de nova exaltou 
os ânimos. O travesso rapaz que no assalto da casa 
do Patim tomara a janella para seu recreio e ba- 
ptisara com vinho as cabeças revoltosas, tinha gosto 
pelas eminências. Quando o juiz assomou a orar 
ao respeitável publico, trepou elle para cima de um 
oratório, que ficava encravado no angulo de uma 
casa fronteira á taberna onde mestre Bartholomeu 
de Basto entrara com o carniceiro, divertindo-se 
e divertindo os que o viam com uma parodia trua- 
nesca nos ademanes e visagens do tribuno do povo, 
nessa occasião tão pouco popular. Assim que per- 
deu de vista o seu original, o garoto nem por isso 
abandonou logo o seu poleiro ; abraçado no ferro 
da lâmpada que mão piedosa alli pozera á imagem 
venerada, balançava-se, cantarolando um din-din, 
pretenciosa imitação de um sino em repique festi- 
val. Não tinha tido ainda tempo de se cançar neste 
exercício gymnastico, quando deu um grito e um 



TRADIÇÃO PORTUENSE.» 169 

salto, vindo-se abraçar na queda a uma velha cor* 
pulenta, que soltou uuT outro grito, suffocada pela 
força com que o rapaz lhe apertara o pescoço, der- 
reando-a um pouco. Ainda a mulher mal livre 
daquella desagradável pressão nâo tinha pronun- 
ciado a ultima syllaba da praga : Más terçãs íe co- 
lham com que se desforrara, já o travesso rapaz 
atravessa a Ponte-Nova, grilando : 

— Os fidalgos que estão no Patim I Os fidal- 
gos ! 

Com effeiio, D. Francisco de Lucena, Filippe 
e vários cavalheiros mais acabavam de atravessar 
pela boeca da rua da Ponte-Nova, seguindo a das 
Flores. 

Mal estas palavras soaram aos ouvidos do se- 
nhor Bartholomeu, os olhos chammejaram-lhe de 
alegria, a alegria que traz a vingança quando a 
esperança lhe sorri, e seguiu a direcção que levara 
o garoto, gritando também : 

— A elles, a esses perros que nos queriam 
roubar I 

Correu a chusma em pezo a estas vozes em 
um desconcertado tropel. 

Uns seguiram os passos do pasteleiro; outros, 
impedindo o acanhado da rua grande concurrencia, 
retrocederam para o terreiro de S. Domingos. 

Quando o ciumento caudilho chegou á das 
Flores, onde nem uma porta se via aberta, jd os 
Lucenas e a gente da sua comitiva tinham baixado 
para S. Domingos, a trote rasgado, alropellando 



170 A RUA ESCURA. 

uma mulher que levada para um canto por alguns 
homens, dava com os seus gritos de dôr maior 
exaltação ao povo. 

pasteleiro seguiu-lhes a pista. Na sua car- 
roira, açudado» voltava de vez em quando a cabeça 
a ver se o carniceiro, o seu lictor, o seguia, e com 
voz cançada não cessava de gritar : 

— Morram os castelhanos I morram 1 

D. Francisco de Lucena avisado do motim 
que ia entre o povo, quando a passeio em com- 
panhia de seu sobrinho e outros fidalgos, regres- 
sara á cidade, ou porque julgasse o motim de 
pouca importância ou porque ahi, se elle fosse vio- 
lento contasse com melhor guarida, e desassom- 
brado andara até a tropel lar a pobre mulher de 
que falíamos, tendo os revoltosos seguido, uns para 
o lado do rio, achando-se os outros entretidos pelo 
juiz do povo. AHi, porém, começou a desandar-lhe 
a boa fortuna. Os gritos da mulher tinham dado 
rebate aos revoltosos e não revoltosos dispersos por 
aquelles logares; demais já sabemos como o senhor 
Bartholomeu foi avisado da sua apparição. Quando 
o secretario do real conselho chegou ao terreiro 
já ia pallido. Cercado por alguns mesteiraes que 
lhe lançaram mão das rédeas e pretendiam suster 
o cavallo, mal atinava com o que mais lhe convi- 
nha : se metter a mão á espada, se tractal-os affa- 
velmente. 

Os mesteiraes berravam-lhe aos ouvidos : 

— Abaixo os novos tributos I 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 171' 

Eram dos melhores de contentar. 

Do lado da rua de S. Crispim, e da Ferraria 
começavam a assomar outros grupos. Á frente de 
um caminhava entre vivas Phebo Lever. Filippe, 
que tomara a galope a direcção da casa do Patim, 
soffreou o cavallo e voltou para junto da portaria 
do convento dos dominicanos. Deu um salto, apeou- 
se, e lançando mão da corda da sineta, que baloi- 
çava junto da porta, fechada desde o tumulto dessa 
manhã, a puxou com toda a força gritando ao mes- 
mo tempo para seu tio : 

— A pé^ senhor! a pé ou estamos perdidos ; 

— e na mão brilhou-lhe a espada, comprida e del- 
gada, uma espécie de estoque. 

D. Francisco de Lucena conseguiu encostar o 
cavallo á porta do convento, em quanto os da sua 
comitiva fugiam a todo o galope sem que ninguém 
se lembrasse de lhes tolher o passo, e Filippe, fa- 
zendo um redemoinho com a espada, fazia recuar 
os mais atrevidos ou raivosos dos mesteiraes. O 
secretario do real conselho pôde apeiar-se. Procu- 
rou porém debalde a sua espada. Na confusão, 
quando ainda a cavallo, um dos amotinados lh'a 
tinha arrebatado. Filippe cobrindo-o com o corpo, 
a espada em punho, continha em respeito, tomados 
do assombro que incute a coragem, os populares 
que se apinhavam em volta delle e de séu tio. 

— A elles I a elles 1 — gritou o senhor Bartho- 
lomen rompendo com o seu lictor por entre o povo; 

— matai esses desalmados 1 



172 A BUA ESCURA. 

Uma nuvem de pedras voou pelos ares, moles- 
tando amigos e inimigos. 

Antes, porém, que tempo elle tivesse de se ap- 
proximar dos Lucenas, já a espada de Phebo se 
cruzava com a de Filippe. O moço artista não 
tinha a destreza do joven fidalgo; mas os seus olhos 
despediam raios. No peito do esculptor também se 
abrigava o ciúme, que a exaltação daquelle dia fa- 
zia nesse momento irrumper, rebentar com explo- 
são. Dos lábios, comtudo, não lhe sahira uma pa- 
lavra. A lucta ia ser fatal para Phebo, quando a um 
gesto do pasteleiro, o machado do seu satellite se 
ergueu, luziu no ar e abaixou rapidamente sobre 
a cabeça de Filippe de Lucena. O alarido, os gri- 
tos do povo erguiam-se até ás nuvens, ruidosos e 
tremendos como o fragor do mar em tempestade 
desabrida. A espada de Filippe voou em pedaços, 
mas de um salto se esquivara elle ao golpe brutal 
do Russo, e se lançara de encontro á porta. 

O esculptor, ao reparar que a espada quebrara 
ao seu antagonista, suspendeu uma estocada e vol- 
tou-se para a rectaguarda, como enfadado que per- 
turbassem aquella lucta, que tomara como um 
duello. 

— Manuel I Manuel I — gritou o pasteleiro, co- 
mo para incutir animo ao carniceiro. E em segui- 
da proseguiu, dirigindo-se a Phebo — Arredar I 
arredar I 

O Russo resmungou uma praga e levantou de 
novo o machado. Phebo, por um nobre instincto 



i- - » «s - 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 173 

vendo indefeso o seu rival, esse mesmo com quem 
acabava de luctar, lançou-se entre a arma homi- 
cida e o moço fidalgo. 

Um milhão de raios I — resmungou Filippe, 
empuxando a poria — Estes frades são surdos I 

Ao mesmo tempo uma cabeça assomava a uma 
das janellas do convento e tornava a desapparecer. 

— Para um lado, olé ! — tornou a resmungar 
o carniceiro, dando um encontrão no filho de Tho- 
mazLever; e ergueu de novo o machado sobre a 
cabeça de Filippe. 

esculptor ainda pertendeu suster-lhe o pos- 
sante braço; porém foi em vão. À porta do convento 
abriu-se neste meio- tempo de repente, e os dous 
fidalgos que a ella estavam encostados, penetraram 
ou melhor cahiram na portaria, fechando-se esta 
instantaneamente de novo. O carniceiro abriu na 
porta um profundo lanho, ao mesmo tempo que 
yma bala de arcabuz, batendo- na padieira e re- 
cocheteando, o veio estender morto. 

Maldito I — exclamou desesperado o pasteleiro, 
em quanto o povo exaltado gritava com todas as 
forças dos pulmões : 

— Os fidalgos ! os castelhanos I queremos os 
fidalgos 1 



XIV. 



ITSTQUOS DO CORAÇÃO. 



Debo de amar, pnea quiero acr amada. 
(Lora a* Vboa k 

El perro dol hortelano.) 



k 



revolta dos portuenses contra a ordem 
nio teve mais sérios resultados que os distúrbios 
a que fizemos assistir os leitores. Precipitada pela 
impaciência do pasteleiro, enfraquecida pela falta 
de alimento, a resistência, morreu. O senhor Bar- 
tholomeu, mal soube que os Lucenas, escapando- 
se péla cerca do convento, tinham ido procurar 
refugio no convento doe Cruzios, e que d'ahi ten- 
cionavara partir para a corte, julgou-se desemba- 
raçado de um rivaU e vindo-lhe á lembrança a arca 
de castanho onde linha também uma parte da alma, 
foi abrigar-se nos seus lares, não pouco receioso 



176 A RUA ESCURA. 

de uma devassa/ Fernando de Andrade nunca jul- 
gara o estado de cousas sufíí cientemente maduro 
para uma revolução verdadeira, pela desavença en- 
tre os chefes de Évora, Lisboa e mais terras do 
reino, e achara prudente ir fazer o mesmo que seu 
collega, o reverendo padre Leonardo. Este, sur- 
prezo pela explosão que, apezar de muito apressado, 
só julgava teria logar d'ahi a mais alguns dias, co- 
mo matreiro se conservara alheio a ella, deixando- 
se ficar no convento a aguardar, se apparecesse 
occasião de lhe dar o norte que desejava, norte 
que o pasteleiro, apezar de meio-iniciado no se- 
gredo do reverendo, lhe não tinha dado. O ciúme 
trouxera tão preoccupada a cabeça ao chefe da cor- 
poração dos estalajadeiros e vendeiros, que das 
suas promessas e juras, feitas em casa de mestre 
Simão Barradas, nem uma lhe tinha passado pela 
mente no curto espaço de tempo que mediara entre 
a sua entrada no grémio dos patriotas e a revolta. 
Sem mais preliminares tinha o bom do burguez 
agarrado a occasião pelos cabellos, não se impor- 
tando com os resultados. Quanto a D. Diogo Lopes 
de Sousa, conde de Miranda, sua senhoria era bas- 
tante portuguez para se oppôr aos que gritavam 
contra o governo de Castella, bastante castelhano 
para se pôr de mal com o governo de Madrid e 
perder a pingue regedoria das justiças e Relação 
do Porto, e bastante ladino para se haver em casos 
complicados. 1). Diogo sabia do animo em que esta- 
vam as povoações, e presentindo que a cobrança 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 177 

do novo tributo podia chegar o lume á mina de 
ha tanto preparada, foi, a titulo de animar a 
fidalguia d'Entre-Douro e Minho a abrir a bolsa 
para o donativo, ainda bem minguado, dar um 
passeio pelas terras da sua jurisdição, levando com- 
sigo uma parte das authoridades. Se a revolução 
estalasse e tomasse vulto, o conde de Miranda sa- 
beria ser um segundo Fábio, e com negaças e 
passeios aguardar que o fiel da balança pendesse 
para um lado; se se tornasse um simples motim, 
elle lhe daria o colorido que mais conviesse. Quan- 
do lhe chegou aos ouvidos o resultado que sabe- 
mos das iras dos portuenses, o nobre conde mos- 
trou -se agastado, tractou de montar a cavallo, fa- 
zendo- se seguir por um pequeno troço de ca valia - 
ria, e veio sobre a cidade com uma catadura capaz 
de intimidar os mais animosos. Aquella cólera não 
devia porém passar de prospecto, por calculo já e 
graças á brandura de génio do bispo D. João, que 
fez a sua obrigação de pae do povo. No relatório 
enviado a Madrid foram empregadas as tintas mais 
suaves, e o apparato de devassa e prizão de uns 
dous pobres mesteiraes apenas serviu para conter 
escondidos nas próprias habitações os que mais 
salientes se tinham tornado na revolta. 

Em quanto estes successos entretinham a ima- 
ginação, e alimentavam a conversação de três quar- 
tas partes de bons burguezes do Porto, uma mu- 
dança se operava lentamente nas ideias, no coração 

de um dos personagens deste romance — em Maria 
12 



178 A RUA ESCURA. 

Aldoar. Desde aquelle passeio com Beatriz e sua 
tia á horta da lavadeira datava ella. Phebo, já o 
dissemos, na volta para casa, acompanhando Beatriz, 
tão enleiado veio nos seus tristes pensamentos, tão 
magoado no coração e receioso pelo seu amor, que 
o seu acanhamento mais vivo se mostrou. Maria 
Aldoar ao passar em revista os successos desse dia 
ficou surpreza da placidez em que se lhe conservara 
o coração, vindo no conhecimento, pois não esca- 
para essa descoberta á linda moça, de que sua 
amiga nutria no peito uma paixão pelo sobrinho 
de D. Francisco de Lucena. que roais a ferira 
fora o extremo acanhamento de Phebo, que não 
como tal, porém como frieza e desdém a innocente 
traduzira. Na indagação do sentido d' um tal enygma 
consumiu não pequena parte da noite. Recordan- 
do-se do moço fidalgo, surpreza encontrara placidez 
onde suppunha zelos, e chegou a accusar o seu co- 
ração de frio. Cortado este pensamento pela lem- 
brança de Phebo, mortificava-a a supposição de 
que podia alimentar vaidade no peito, a vaidade que 
ferira o desdém do moço artista. A manhã da re- 
volução passou-a ella angustiada, em orações, in- 
quietando-se não pouco pela sorte de Phebo, que 
lhe disseram fora visto armado entre os grupos 
populares, ao passo que nem de leve se recordou 
do sobrinho do secretario do real conselho. .Quando 
á tarde Thereza, a Velha escrava, narrou as galhar- 
dias do mancebo na tomada do forte da Porta-Nova, 
unicd ponto onde houve alguma, resistência, sentiu 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 179 

em si ama grande commoção, um como contenta- 
mento cTaltna, admirando-se ainda mais uma vez 
da pouca sensação que em si produziu o risco em 
que Filippe se tinha encontrado. 

Na tarde do dia seguinte, muito antes do cahir 
das Ave-Marias, a sobrinha da senhora Perpetua 
embrulhou a sua costura, em que bem pouco cui- 
dado pozera nesse dia, e foi encostar-se á janella 
que dava para as escadas da Sé. Com os olhos 
fitos no sitio em que costumava apparecer Phebo 
se demorou até brilharem as estrellas, sogmentan- 
do-se-lhe no rosto as sombras de tristura á pro- 
porção que no seu véu as da noite envolviam as 
ruas da cidade. Phebo nâo appareceu. Quando no 
sino da cathedral soou o toque- de recolher, a pri- 
meira vibração produziu em Maria uma dolorosa 
sensação. Indireitoa a cabeça, que constantemente 
conservara apoiada em uma das mãos, e soltou um 
suspiro. 

— Que mal lhe faria eu ? — murmurou com 
inflexão magoada ; e recolheu-se tristemente ao seu 
quarto não sem de novo voltar a cabeça, e affirmar- 
se a ver se descortinava entre as trevas o vulto 
do esculptor. 

— Thereza, sabes-rae dizer se o senhor Phebo 
ficou ferido no motim de hontem? — perguntou 
ella A escrava, quando, depois de cumpridas, as 
devoções diárias em que caprichava sua tia, foi 
pari o seu quarto. 

— Não, menina; tal não ouvi dizer a ninguém. 



180 A RIA ESCURA. 

Sangue não correu, graças ao Divino, que o de um 
homem, morto de um tiro no terreiro, ahi para 
a rua das Flores, o de uma mulhersinha que foi 
esmagada por um cavallo, e o de uns dous solda- 
dos do terço, que me disseram tinham sido feridos 
no forte da Porta-Nova. resto foram ninharias, 
arranhaduras de alfinete, louvado seja o Senhor ! 
Maria, que procurava uma desculpa para a 
ausência de Phebo, mais se contristou, começando 
de novo a pensar qual o motivo daquella inusitada 
ausência e ainda mais da mágoa que ella lhe cau- 
sava. JPhebo, desde que o conhecia, era constante 
nos seus passeios ; porém nunca Maria Áldoar so- 
nhara que a falta de um dia, verdade ó que aggra- 
vada pela frieza, que na volta do passeio no escul- 
ptor se lhe afíigurava ver, em tanta anciedade a 
deixaria. A filha do senhor Roque Aldoar scismou, 
e scismou muitíssimo : a final tirou por conclusão, 
não sem espanto, que a af feição que votava a Phebo 
era mais alguma cousa que amizade, e a palavra 
amor se lhe formulou no pensamento. Evocando 
vagamente a imagem de Filippe em quem primeiro, 
illudida, o tinha personificado, conheceu pelo rá- 
pido da desapparição que não se tinha ella bem 
comprehendido. A cabeça enganara-se com as pul- 
sações do coração, fascinada pela louçania de Fi- 
lippe, e rasgava agora o seu véu de illusões a 
mágoa da ausência de Phebo e a recordação da bon- 
dade da alma do mancebo, trazida pela saudade 
suscitada. Em contacto diário, tendo-se Maria affeito 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 181 

á sua presença, votando-lhe amizade, quando no 
peito ainda lhe não cabia amor, a ligação de affe- 
ctos que entre ambos existia, formada gradualmente 
para a sobrinha da senhora Perpetua, não se lhe 
tornara sensível, e só a violência do corte lh'a fez 
avaliar. Até alli, como dissemos, julgava em Fi- 
lippe a causa do pulsar mais agitado do coração, 
do seu enleio, dos devaneios, das suas aspirações 
por uma felicidade mal definida, porém tanto mais 
intensa para a imaginação, "quanto mais vaga se 
af figura. 

Talvez a alguma das minhas amáveis leitoras 
pareça extranha esta mudança; porém, que o fosse, 
quantas cousas ha extranhas no coração? Ha nelle 
tantos mysterios I 



XV. 



FI1IPPE I BEATRB. 



E doca ne fui ti, chio bod compresi 
Cb'egU fingeta molto, a amava poço, 
(ÀRiorro, Orh Fur* c. 5." 



I 



— I enho chorado muito, Filippe ; tenho der- 
ramado rios de lagrimas. Sempre por mau fado tive 
estes amores, em que por ti me perdi; e então... 

— Pensaste que não voltava. Tens pensamen- 
tos! % 

— Não gosto de assim te ouvir fallar. D'antes 
nio eras assim. Encontro agora um não sei que 
nas íaas palavras que me faz mal. 

— Scismas tuas. Penso que nunca de outro 
modo te fallei... 

— N&o I não és o mesmo. Ha tanta distancia 



184 A RUA ESCURA. 

entre as tuas falias de hoje e as dos primeiros dias 
em que te vi I São tão frias... 

— Frias, sol de mis ojos, quando todo eu sou 
uma lavareda, um incêndio I 

— Ai, Filippe, que mudança 1 Não ha fingi- 
mentos que valham. amor não está nas palavras: 
está na maneira de as dizer. Ou mui outro te tor- 
naste, ou eu abri os olhos. 

— Â la fél que ha-de ser isso. Bem sabes 
que o amor é vendado, e não vê. Perdeste o amor, 
meu espelho, minha Vénus I 

— Zombas, Filippe I 

— Ahi temos a dona caprichosa, que, se lhe 
não dizem requebros, se agasta e amofina, se lh'os 
dizem, clama que zombam delia I Es de vidro, pe- 
quena; mal sei como comtigo me hei-de haver, ar- 
minho que tu és, toda delicadezas... S. Cupido me 
valha, que muito custas a levar, Beatriz 1 

— Enfado-te t Filippe ; enfado-te; bem o sei 1 
Bem o dizia eu que má sorte teriam estes amores 
em que me metti I coração sempre m'o disse 1 
Louca que sou I Alegrei-me, quando te tornei a 
ver, porque te amo muito, muito, Filippe ; mas a 
desconfiança também a trago # ha muito. 

— Porque és urna louca. Nunca me passou 
pela ideia, nem se quer lançar um olhar reque- 
brado á... á... como lhe chamas tu?... á tal de 
quem falias... Maria, disseste. Deixa -te d'isso, que- 
rida : tractemos do nosso amor ; porque eu tam- 
bém te quero. 



A.h, 



TBAD1ÇÃ0 PORTUENSE. 185 

— Não ! não ! não te acredito, D. Filippe. Mal 
avisada andei em te dar ouvidos, mal avisada pelo 
meu amor : no teu não creio. 

— É porque não lens fé no poder d 1 esses teus 
olhos, dos almenares que me allumiam nas tormen- 
tas dos teus zelos, e que têem feito com que o 
meu amor não tenha feito agua. 

— Ah I Filippe I 

— É porque não tens fé nesses teus lábios, 
que, Virgem-Santa I são dous arcoí de coral, rou- 
bados a Cupido, para despedir, em vez de farpões 
agudos, beijos mais doces que o mel... e a am- 
brósia dos deuses; é porque não tens fé no arrebol, 
que nos lyrios das faces tingem os raios de teus 
olhos, como o sol por alvorada formosa... 

O mancebo que o leitor conheceu já por D. 
Filippe de Lucena, suspendeu de repente os seus 
frios requebros, furtos ou reminiscências d'idyllios, 
sonetos e comedias, que lera e ouvira, e encolheu 
os hombros com um gesto de enfado. A mulher a 
quem elle dirigia aquellas phrases, e que tinha no 
curto espaço de alguns minutos debuxado no rosto 
os signaes dos mais contrários affectos; que se rira; 
que o abraçara carinhosa ; que se enfadara; que se 
entristecera, para de novo mandar aos olhos o bri- 
lho da alegria, rompera em um choro sufocado, 
como se desabafara a custo de um pezo de ha muito 
reprezado. 

Beatriz até ahi nunca notara a affectação nos 
requebros do moço fidalgo; nunca descobrira esses 



186 A RUA ESCURA. 

laivos de ironia, que no semblante se divisavam ao 
expressar os termos da mais requintada paixão : 
julgara sempre o amor de Filippe de bom quilate, 
porque cega pelo seu amor, tinha no mancebo a 
maior fé. O espinho do ciúme cravado por Maria 
Aldoar no seu peito, rasgara de leve o véu de 
illusão. Pedindo ao moço fidalgo explicações sobre 
os amores por elle travados com a sobrinha da 
senhora Perpetua, já todas as juras não bastavam 
para inteiramente a socegar, antes mais desconfiava 
de Filippe. Verdade é que o sobrinho do secretario 
do real conselho se enfadara com aquella séena 
de zelos. Para elle, que tinha tido uma leve incli- 
nação, um capricho, não um affecto violento» to- 
das aquellas lagrimas pareciam affectadas, estuda- 
das, pois, frio do coração, não acreditava na pu- 
reza das chammas do da pobre moça. Tendo com- 
mettido uma infâmia, rebaixara a sua victtma ao 
nivel da sua façanha. Melhor para Beatriz tivera 
sido que do convento dos Cruzios, onde se refu- 
giara, elle acompanhasse seu tio para a corte. A 
sua má sorte não o quiz porém, e depois de uma 
temporada de demora na companhia dos gordos 
padres, o mancebo, que tinha de ir visitar uns 
parentes a Braga, voltava para nem ao menos lhe 
deixar envolto no véu de uma paixão ardente um 
desvio irremediável. 

Por longo espaço soluçou a moça, escondendo 
nas mãos o rosto ; por longo espaço o mancebo 
cantarolou entre -dentes, passeando de um para o 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 187 

outro lado do pequeno aposento em que os fomos 
encontrar. 

— Ai, Filippe, que aleivoso foste! 

— Que carpideira, nombre de Diosl Vais fazer 
um diluvio, pequena, com esses teus choros. E por 
que? Porque se te metteram na cabeça não sei 
que zelos... 

— Zelos I zelos já os não tenho ; não é por 
elles que me lastimo, sim pelo engano em que me 
trouxeste. Cega que fui I 

Filippe de Lucena parou fitando a costureira 
com ar de espanto. 

«— Engano ? — repetiu elle como admirado. 
Onde o engano? 

— Ainda o perguntas?... Ai! sim, tem razão, 
senhor ; eu não devia dar credito aos meus dese- 
jos I Mas tão fácil se nos affigura uma cousa, quan- 
do o coração por ella bate com força, que não ha 
forças humanas que o despersuadam. Sim, senhor; 
devia conhecer, que eu, pobre mulher, não era 
fidalga, nem rica, nem formosa bastante... 

— És formosa, não te afflijas — interrompeu 
Filippe, com o modo de quem accommoda uma 
creança queixosa. 

Beatriz proseguiu : 

— Que não eta formosa bastante para fazer 
esquecer a D. Filippe de Lucena do seu sangue e 
do seu ouro; não estava talhada para um dia o 
poder chamar meu senhor e marido. 

Filippe de Lucena soltou um meio-sorriso ao 



188 A RUA ESCURA. 

ouvir as ultimas palavras da desconsolada moça. 

— Pois seriamente?!— exclamou. Depois ajun- 
tou com ar de enfado : — Basta, Beatriz ; deixa- te 
de loucuras. 

— Escarneça, senhor, escarneça, que bem o te- 
nho merecido. Sou louca, bem o sei I Como vão 
mudados os tempos 1 Quando me requestava, eram 
outras as falias, outros os modos 1 Pobres mulhe- 
res 1 Somos tão fáceis de enganar 1 Então eram 
tudo juras, tudo carinhos, tudo promessas, tudo 
facilidades! Quantos exemplos me não apresentou 
de uniões como a que sonhava!... Agora, tudo é 
zombaria... Estou louca?! 

Filippe, em quanto a moça de novo dava curso 
ás suas lagrimas, pegou numa cadeira, e collocan- 
do-a defronte da linda moça sentou -se, fitando-a, 
como quem duvidava da sinceridade d'aquelle 
pranto. 

— Nào sei para que é tanta lagrima, Beatriz. 
Não acredito na sinceridade delias, por muito farto 
de as ver era olhos de mulher. As lagrimas vem aos 
olhos das filhas de Eva a capricho. Dizes que foste 
uma louca em acreditar n'uma promessa que te fiz, 
e louco seria eu se me persuadisse de que lhe ti- 
nhas dado valor. Se nella insisti, foi porque sei 
que todas gostam de uma desculpa... mas — ata- 
lhou, erguendo-se — nào séi para que venho a ter- 
reiro com novas sediças. Acabemos cora isto. Que 
queres ? 

Beatriz não respondeu á interpellação do so- 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 189 

brinho de D. Francisco de Lucena ; não porque o 
pranto a abafasse, que já não chorava. Tinha-se 
erguido pallida, titubiante : os olhares vagavam-lhe 
pelo aposento. 

— Vamos, pequena, que queres? — insistiu 
Filippe — Um vestido? um dixe qualquer?... Pede o 
que desejares. Já não sou novato ; sei a que vêem 
todas essas lagrimas; mas quero provar-te que ain- 
da te tenho bastante affeição para me submetter 
aos teus caprichos. Dize que alinde é esse que tanto 
desejas ? 

A moça permaneceu do mesmo modo, de pé, 
sacudindo de vez em quando a cabeça e passando 
a mão pelos olhos, como se tentasse aflastar ura 
objecto invisível que lhe offuscasse a vista. A mí- 
sera não podia crer no que ouvia; não julgava tão 
perdida, tão morta a eâgerança do seu coração. 
Pensou quasi que todos os dissabores dessa noite 
tinham sido effeitos de um pezadello, de que for- 
cejava por se libertar. O que se passava ora sem 
nome; porém nenhum outro remédio mais existia 
do que acreditar na realidade. Al li não se dava 
impossível algum ; era uma cousa vulgar, indiffe- 
rente. Um mancebo, um fidalgo abusava da fc, tão 
fácil no amor, de uma pobre rapariga, que abrira 
com um passo inconsiderado toda uma vida cTamar- 
guras, em quanto elle ganhava mais renome, mais 
gloria, pois que só a mal lhe levariam se tentasse 
salvar a victima do seu passatempo. 

— Então, minha dona caprichosa ? — interro- 



190 A RUA BSCUBA. 

gou de novo Filippe de Lucena, annelando o bigode. 

— Beatriz apertou convulsamente o coração, e 
exclamou : 

— Sahi, sahi, senhor ! Sou uma mulher perdi- 
da, sou; mas não tão baixo descida que queira 
ser sua amazia, que me venda ! — E mudando de 
gesto accrescentou : — Ah, Filippe, respeita a mãe 
de teu filho I 

Filippe de Lucena soltou uma estrondosa gar- 
galhada, e exclamou: —Nova comedia I Viva Dios, 
que sois mais fértil em rodeios e enredos que Guii- 
len, Tarraga, Aguillar ou Lope. O peior é qvre não 
tomo as tuas invenções como realidades. Adeus, 
Beatriz, até quando estiveres mais cordata. 

A costureira sentiu o moço fidalgo sahir sem 
mover um musculo da face ; ouviu depois os sons 
distantes de uma canção hispanhola sem que os 
olhos' se despregassem do sitio em que os Unha 
fixos. Depois, quando de todo a voz se perdeu no 
espaço, pouco a pouco respirou mais fortemente, e 
rodeou lentamente coro a vista o aposento em que 
estava, até deparar com a porta que o moço fidalgo 
deixava aberta. 

— Perdida (...perdida I — murmurou ella como 
pensando. Em seguida ajuntou com uma expressão * 
que parecia que lhe laceravam o coração : — Oh 
não me mata tanto a tninha sorte, que m'a dizia 
o coração, como ode peza pelo amor perdido, por 
conhecer que nunca me quiz t E eu... eu... amei-o 
tanto I 



TRADIÇÃO. PORTUENSE. 191 

E torcendo as mãos, exclamou com voz ainda 
mais angustiada: 

— E ainda lhe quero muito I... muito I 
O sino da camará dava o signal de recolher, 
o toque de cobre -fogo, e, fora a vibração das suas 
badaladas, nenhum outro rumor se ouvia na mo- 
rada da costureira. A luz que ardia em um pezado 
candieiro de cobre alumiava frouxamente, dando 
um aspecto triste áquelle recinto. 

Que scena tão differente das que ahi se tinham 
passado, quando a moça, fascinada por Filippe de 
Lucena, se embriagava com promessas fabulosas de 
felicidades, em sonhos de amor. 

E apenas algumas semanas eram passadas desde 
o ultimo sonho dourado, desde a véspera do passeio 
aos campos da Torre da Marca. 

Quando soou a ultima badalada do sino muni- 
cipal, cahiu de joelhos a pobre moça, occultando 
nas mãos o rosto. Parecia . que o braço do destino 
a forçava a curvar-se diante do erro commetlido, 
agora em* toda a sua nudez. 



iMfMtaa 



XVI. 



IÃEE FILHA. 



Pues si me haveis negado 
Vostra demência, mi becbos 
De muger desesperada 
Darão asombros ai cielo. 

(Caldeiok, Dev. de la cruz.) 



I, 



— 1 ilha... Beatriz — murmurou, passados alguns 
minutos uma voz carinhosa cujo som vinha do lado 
de fora do pequeno aposento. 

A costureira ergueu a cabeça, como se des- 
pertasse de um sonho, e cravou os olhos n'uma 
mulher idosa que no limiar da porta quedara. 

Era a bruxa. Nào trazia o traje com que até 
aqui a vimos, e que ajudava, pelo lúgubre, a tor- 
nar mais crédulo o povo de que se occupava no 
mister cabalístico que se lhe suppunha. Vestia como 
nessa épocha era uso entre as mulheres do povo 
de alguma idade, o que lhe dava um aspecto mais 

sympathico. Já quando levamos o leitor ao seu 
13 



194 A RUA ESCURA. 

encontro, aonde Phebo carpia o seu mallogrado 
amor, fizemos notar que no rosto se lhe divisavam 
uns longes de belleza. E com effeito no seu tempo 
formosa tinha sido. Os mancebos de Lisboa, d f onde 
era natural, vinte annos havia, charaavam-na a 
«roza de Santa Clara» porque para esses sítios mo- 
rava. O seu nome era Dina ; porém usava em pu- 
blico do de Beatriz Balaguer: pois que, conservando 
seus pães o culto de Moysés, da conversão imposta 
á sua raça nâo tinham guardado mais do que as 
exterioridades. Um desses mancebos, nobre e rico, 
ftiptivou-lhe a affeição, e por espaço de um anno 
viveu ella feliz. Passado esse tempo, a fortuna vol- 
tou a sua caprichosa roda. O pae do mancebo sa- 
bendo destes amores, que impeciam cálculos seus 
de um ambicioso casamento, e tendo esgotado to- 
dos os meios para o trazer ao seu parecer, lançou 
mio de um meio vulgar ainda então. Sabendo que 
a moça era eh ris tá nova, fêl-a aceusar de judaísmo 
e de sortilégio, de ter empregado philtros para 
captivar seu filho. 

Dina espiou o crime de seu amor e as má- 
goas que a seus pães causara preza no Santo Officio. 
Quando sahiu, mortos de dôr já seu pae e mãe, 
foi mandada sahir para Moncorvo. Ahi residiu mui* 
to tempo debaixo da vigilância dos delegados do 
tremendo tribunal. Quando delle sahira, tinhanwlhe 
murchado as rozas, da primavera, não pelos annos, 
mas pelas angustias. O povo rude, sabendo que 
era judia, pouco e pouco lhe foi attribuindo o 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 195 

mister de feiticeira, supposição que com as rugas 
que a mão do tempo ua face lhe cavava, tomava 
maior vulto. Dos seus amores tinha tido dous filhos: 
um menino, nascido ainda nos tempos de gozo, 
de felicidade, fora dado a crear por seu amante, 
e nunca mais delle soubera no exilio ; o outro era 
Beatriz. Reduzida á miséria, rebaixada até á escoria 
da sociedade aos olhos de todos, para sustentar sua 
filha, com graves riscos acceitou o emprego que 
lhe attribuiam, e começou a compor alguns ingre- 
dientes innocentes que entre as suas companheiras 
da desgraça aprendera. Logo que Beatriz chegou 
á idade da razão, Dina com ella fugiu do seu exi- 
lio, e, chegada ao Porto, tratou de se separar delia 
para que não pagasse culpas que não tinha, indo 
viver para um sitio isolado perto da velha torre dos 
bispos. 

O conde de Miranda fora encarregado uma vez 
por uma pessoa poderosa da corte indagar da sorte 
da infeliz e de sua filha, e bastante tempo lhe levou 
a descobrir na bruxa a pessoa que lhe indicavam. 
Quando deu parte do seu achado, não recebeu res- 
posta alguma. O individuo que se recordava da- 
quelles seres tinha baixado á sepultura. Das in- 
dagações do illustre regedor das justiças resultaram 
oomtudo duas cousas : uma pouca de má língua nas 
comadres do bairro a respeito de Beatriz, por uma 
vez ter sido chamada a casa de sua senhoria, e o 
gozar Dina no seu mister de uma verdadeira paz 
em proporção da que tinham as suas companheiras 



196 A RUA ESCUHA. 

de desgraça. À justiça não lhe fazia mal; mas tam- 
bém não se importava com que lh'o fizessem. EsU 
tolerância não dava pouco que fallar nas raras occa- 
siões em que Dina apparecia. Não por este motivo, 
que lhe não podia lembrar, quando tinha a recear 
peior recepção do que a maledicência, mas para 
não envolver w sua desgraça o ente a que mais 
queria, só de longe em longe e de noite é que 
ella costumava visitar sua filha. 

Desta vez não recebera o acolhimento costu- 
mado. Dina ficou surpreza vendo que a moça cos- 
tureira não se movia da extranha posição em que 
a fora encontrar ; correu para ella apressadamente, 
e tomando-lhe entre as mãos a cabeça, interrogou 
com voz demudada: 

— Filha, filhai que tens? 

Beatriz não soltou uma palavra. Desprendendo 
a cabeça, arrastou-se sobre os joelhos, e, occultan- 
do o rosto nas pregas da saia de sua mãe, desatou 
a soluçar violentamente. O rosto da velha tomou 
uma bem pronunciada expressão de angustia, ao 
ver este movimento, e recuou alguns passos, tor- 
nando a exclamar: 

— Filha, filha ! que te afflige ? 

pranto que inundava o rosto de Beatriz não 
o podia ella reprezar, de violento que era, para 
poder redarguir á pergunta que lhe dirigira, ainda 
mesmo que o pejo lhe não tolhesse a voz. Por bem 
tempo ambas permaneceram na mesma posição, 
não interrompendo o silencio da noite nada mais 



— - -_-».■. 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 197 

quo o pranto da pobre moça. O espanto que da 
velha se apoderara, os receios que a assaltavam a 
tinham também immudecido. 

— Filha — insistiu a bruxa, quando mais se- 
renava o pranto de Beatriz — filha, por Deus, falia; 
dize o que motiva essas lagrimas, que me pozeste 
o coração tão negro como a noite. Confia-me as 
tuas mágoas, que de uma filha a melhor amiga é 
sua mãe. Nào tenho d'isso dado tantas provas? 
Não renunciei a tua companhia, Beatriz, para que 
não soffresses os insultos que sobre a tua cabeça 
acarretaria a vida, que a desgraça me obrigou a 
abraçar?... para ter-te como uma priíiceza, filha do 
meu coração? Ninguém, ninguém sabe que és mi- 
nha filha. E quantas lagrimas, quantas amofinações 
me não tem isso custado. Por te querer muito me 
privo por mais tempo que posso de tudo que no 
mundo me resta... 

— Ai I — eiclamou Beatriz soluçando — antes 
nunca me tivesse deixado, minha mãe; nunca eu 
tivesse vindo ao mundo I 

A bruxa deu alguns passos á recta guarda, e 
em seguida correu de novo para junto da costu- 
reira, e levantando-lhe a cabeça, cravando nos 
olhos magoados da moça os seus, perguntou em 
voz baixa, como se tivesse receio de que a ou- 
vissem : 

— Por que, meu Deus, por que dizes isso ? 
Beatriz de novo escondeu o rosto entre as pre- 
gas da saia de sua mãe. 



198 A RUA ESCURA. 

— Impossível 1 impossível f — murmurou esto 
passado momento. — Filha, filha, tira-me desta du- 
vida... Vieram-me aos ouvidos ha dias umas falias 
de que tinhas amores com esse moço fidalgo que 
quizeram matar no motim... mas é impossível ; sei 
que elle pertenci e... 

— Oh minha mãe, minha mãe ! 

— Dize, dize que não... 

— Meu Deus I — murmurou Beatriz. 

— Dize que não ; que se alguma cousa tiveste 
com esse moço, que não conheço bem, mas de 
quem ouvi contar cousas... 

— Ai, minha mãe I se tal dissesse, cu mentia! 
— exclamou Beatriz, erguendo as mãos, como para 
implorar' perdão. 

— Mas não lhe deste entrada aqui, estou certa. 
Tu sempre foste boa rapariga. 

Beatriz não respondeu. Abaixou a cabeça, e 
occultou de novo o rosto nas mãos. 

— Falia, falia — tornou a bruxa em voz baixa, 
apressada, e passando a mão pela fronte. 

— Estou perdida I —murmurou Beatriz, en- 
trecortando as palavras com soluços. 

— Tu? — exclamou Dina, pondo-lbe a mão na 
bocca, como para lhe impedir que redarguisse affir- 
mativamente á sua pergunta. 

— Sim, sim— murmurou a moça — enganada 
vilmente. Eu amava-o; acreditei-o. . . elle tinha-me 
bem pouca affeição, agora o conheço... Perdida I 

— Oh ! — exclamou a bruxa passado um mo- 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 199 

mento — Estás vingada, minha mãe I já sei o que 
soffresle ! 

E ambas ainda permaneceram silenciosas por 
alguns instantes. A dôr que se apoderara de Dina 
não era menos intensa que o pejo e mágoa de 
Beatriz. Havia nestas pausas o quer que era de 
solemne. As duas mulheres, face a face, se nào 
descerravam os lábios, nem por isso deixavam de 
expressar nos gestos, no olhar os pensamentos que 
as assaltavam. A pobre mãe parecia com os olhos 
querer ler nos de Beatriz se naquella desgraça ainda 
a poderia abraçar, chamar sua filha; saber em fim, 
se a moça tinha sido victima do amor e de uma 
seducção, se levada pela leviandade. Culpada ella 
própria nos seus verdes annos, tinha podido ava- 
liar as lagrimas, os sobresaltos, as penas que a uma 
mulher custa por toda a vida um erro, como aquelle 
em que Beatriz cahira; sentia ainda o rubor que por 
tanto tempo lhe escaldara as faces, e no seu cora- 
ção, assim como para si não tinha encontrado uma 
desculpa ao seu erro se nãò na boa fé do seu amor, 
também agora a pertendia para o ente que mais 
jfrezava, para sua filha. Beatriz comprehendeu bem 
aquella pergunta tacita, porém a mágoa e o pejo 
lhe tolhiam a falia. Foi a custo e depois de bas- 
tante tempo que murmurou : 

— Fui enganada, minha mãe; fiei-me nas suas 
palavras. .. Eu não o devia acreditar... mas... tanto 
me jurou que cedo me tomaria publicamente por 
sua mulher... 



200 A RUA ESCURA. 

— Elle, um nobre?! —objectou Dina, trans- 
tornando-se pouco a pouco a desesperação violenta, 
que tinha no rosto debuxada, em compaixão. 

— Ai, minha mãe, se o ouvisse então fallar 
acreditaria nelle, como em Deus, e... eu... tinha- 
lhe amor! 

Dina era mulher e era mae. Foi no seio que 
acolheu as lagrimas que de novo rebentaram dos 
olhos da moça costureira. 

— Sim, sim — exclamou ella — bem sabia eu, 
bem, quç m'o dizia o coração, que não tinhas 
peccado, senão porque uma ruim serpente te ten- 
tara; mas esse homem... tu o amas, disseste... e 
elle talvez não te enganasse, talvez cumpra a soa 
promessa. Eu quero-o ver; hei-de fallar-lhe...Mas 
nao. Louca que sou ! elle mais depressa te deixa- 
ria... Eu,., sou a bruxa ! 

E, pronunciando estas ultimas palavras, Dina 
levou as mãos aos cabellos, arrepellando-os vio- 
lentamente. 

— Falla-lhe. . . ou para que será preciso fallar- 
lhe : tu és formosa, e boa... e quem se nao ha-de 
captivar de ti I... * 

A recordação do amor que em tempo inspi- 
rara a um mancebo da nobreza de Lisboa, que por 
ella tinha feito todos os sacrifícios, vinha -lhe á 
mente nesse instante como um lenitivo aos peza- 
res que a dominavam. E a pobre mãe revolveu 
no pensamento todos os casos, poucos eram, de 
fidalgos e escudeiros que tinham com um caza- 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 201 

mento desproporcionado lançado uma nódoa no 
seu livro de costados. 

— Sim, sim — murmurou ella em seguida; e, 
allumiado o seu coração por um ténue clarão da 
esperança, ajuntou com expressão de admoestação 
carinhosa — Fizeste mal, (ilha; fizeste mal em me 
não teres confiado logo a principio os teus amores, 
que eu te serviria de guia. Eu fui já moça como 
tu... tenho experiência das cousas do mundo... E 
acerescentou suspirando : 

— Vamos : animo ! 

— Oh, minha mãe ! — exclamou Beatriz com 
toz amargurada — mas elle não me quer... 

— Não te quer ? 

— Não : eu o sei. 

— Impossível I 

— Também assim o acreditei ; mas ainda ha 
pouco zombou da minha mágoa... tra(ou-me como 
a uma... 

— A ti, filha ? 

Beatriz não redarguiu : limpou as lagrimas que 
lhe inundavam os olhos, já de chorar vermelhos, 
e cravou a vista na de sua mãe. Conhecera pelo 
estremecimento que percorrera o corpo de Dina que 
a impressão que eila soffrera fora grande, e o re- 
ceio de novas desgraças angustiara-lhe o peito. 

— Deus I Deus I — murmurou esta. 

E apertando com toda a violência,* com phre- 
nesi contra o seio a cabeça da moça costureira 
exclamou, erguendo para o céo o braço : 



202 A RUA ESCURA. 

— Não bastou, Senhor, o que soffri I Foi pou- 
co ?! A maldição de Caia parece que me persegue. 
Não ha para mim socego nem aqui.... nem lá.... 

Beatriz agora é que se esforçava por domar a 
afflicção de sua mãe. De pé, tomava-lhe as mãos 
entre as suas e tentava todos os meios de acalmar 
a mágoa e desespero daquella alma meridional. 

Dina pouco a pouco compoz um gesto em que 
pretendia mostrar-se socegada; porém a exaspera- 
ção a não deixava mentir. Só a atribulada Beatriz 
é que se podia enganar. 

— Vamos, filha — murmurou a bruxa, quando 
julgou ter um ar sereno — conta-me como tudo 
se passou. 

A amante de Filippe de Lucena narrou então 
circumstanciadamente a historia dos seus amores : 
como tinha visto o moço fidalgo; as suas primei- 
ras falias ; quaes as promessas que este lbe fez; os 
seus projectos mentidos e a final a scena que no 
anterior capitulo descrevemos. Quando terminou, 
no semblante da bruxa notava-se uma mudança 
espantosa. Já nelie se não pintava a mágoa ou o 
desespero fogoso. A não ser o brilho dos olhos 
dir-se-ia que lhe serenara a tempestade do peito. 

— Adeus — murmurou, erguendo-se — não 
peço justiça, nem a Deus, que me desamparou, 
nem aos homens, que me repellem; mas a bruxa... 
a feiticeira... ha-de ser feiticeira alguma vez. 



XVII. 



OS EIOBCBIOS. 



Ni ce moine revcur, ni ce vicux charlatão 
N'ont diviné pourqiioi Maríette et motirante : 

Elle el frappé au caor.... ,... 

Voilà son mal, — elle aime. 

(A. db Musset, Octave.) 



D 



'eixkmos Beatriz a braços com os tormentos 
do seu ludibriado amor, ' Dina resolvendo na mente 
a vingança de uma affronta, e vamos de novo 
visitar a sobrinha da senhora Berpetua, á sua ha- 
bitação na rua Escura. 

A sala em que vimos logo no principio desta 
nossa historia a linda moça estava ainda no mes* 
mo estado : limpa, aceada ; a Yirgem de marfim 
ainda poisava debaixo da sua redoma de vidro ; 
os ídolos, o cocar, tudo estava em cima da meza : 
somente agora nas jarras definhavam algumas das 
flores que traz o mez de abril, e nos castiçaes ar* 



204 A RUA ESCURA. 

diam duas velas, apezar das gelozias abertas dei- 
xarem a luz do sol inundar tudo, e mostrarem o 
tecto do céo, ridente, formoso, um céo da Penín- 
sula. Âquelle augmento de luz nâo trazia mais 
claridade nem mais alegria. Nada mais triste que 
a lucta desegual da chamma de uma alam pada, de 
uma vela com os raios do sol; a chamma parece 
que tem o quer que seja de lúgubre, de funéreo, 
que esmorece, gela o sangue, em vez de o aque- 
cer. É talvez o coração do homem que se con- 
frange ao contemplar um simulacro da vida huma- 
na, que se consome quasi ignorada á face da vida 
da natureza, grandiosa, eterna. Era um perfeito 
contraste com o rumorejar do povoado, com os 
gritos, com os pregões, com o sol, com o verde 
das arvores, que se enfloravam, o silencio, a tris- 
teza que reinava no quarto, aquellas flores desbo- 
tadas, murchas, aquellas luzes em lucta impotente 
com a claridade do sol. 

Maria Aldoar estava sentada em uma poltrona 
almofadada e coberta de pregaria de latão, tendo 
encostada a cabeça a uma das mãos. Nâo parecia 
a mesma. O rosto definhara -lhe ; tingia-lhe a cor 
das violetas um circulo em volta daquelles olhos 
onde a meiguice se cazava com a tristeza. Ás faces 
Yinha ás vezes o carmin das rezas; porém não 
como de costume, desmerecendo pouco a pouco no 
branco-ôpala da tez : agora era destacada, desegual. 
A velha Thereza, a negra, estava acocorada a seus 
pés; junto, assentada em uma cadeira, a senhora 



TRADIÇÃO PORTUENSE. . 205 

Perpetua ciciava algumas orações, fazendo girar as 
coutas de um rozario ; em pé, atraz da linda moça, 
via-se frei João de Santa Úrsula em companhia de 
um outro frade dominico. Toda aquella gente tinha 
os olhos cravados em Maria Âldoar. A moça havia 
tempos que havia começado a definhar gradual- 
mente, e bem receia vam pela sua vida todos os 
conhecidos da casa. Toda a sciencia dos physicos 
chamados para a curar, todas as mesinhas ca- 
zeiras tinham sido esgotadas em vão. A boa da 
senhora Perpetua, que a principio tomara em pouca 
conta o mal de sua formosa sobrinha, não se pou- 
para a nenhum sacrifício e» coitada, eram poucas 
as horas do dia para rezar a quantos santos tinha 
o kalendario, intercedendo por ella. Quando os co- 
zimentos e as sangrias mais tinham arruinado a 
saúde de Maria Aldoar, recorreu a viuva do senhor 
Pantaleão aos amuletos, e os santos lenhos, breves 
da marca, agnus dei e cruzes de Jerusalém chuve- 
ram-lhe em casa; a final chamou a um famigerado 
exorcista desse tempo, o companheiro de frei João 
de Santa Úrsula. 

Era o frade dominico um homem já de avan- 
çada idade, velho, magro a ponto de poder servir 
para estudo de osteologia. O nariz adunco, os bei- 
ços sumidos, os olhos arredondados dar-lbe-iam a 
physionomia da águia, se a largura dos maxilares 
o não fizesse mais assimilhar a uma coruja. Quan- 
do caminhava, quando gesticulava, em todos os 
movimentos havia uma rudeza tal, um todo tão 



206 A RUA ESCURA. 

hirto, que em nave de egreja por horas mortas» 
em campo santo ou encrusilhada ninguém o vira 
sem acreditar achar-se na presença da alma que 
em pena se revestira do myrrado cadáver, tal qual 
o deixara na hora extrema. A falia era uma espécie 
de regougar fúnebre que parecia lhe não era for- 
mulada na garganta. O dominicano tinha mais todos 
de possesso de espirito ruim ou d'alma penada que 
nenhum dos pobres nervosos e paralyticos que 
tinha encharcado de agua-benta. 

Em voz baixa começara elle a sua conferencia 
com o franciscano, e gradualmente foi subindo na 
escala, até se ouvir o mais distinctamente que lho 
permittia o seu diapason fúnebre: 

— Então, irmão, — ha quanto tempo tem a 
paciente este mal? 

— Ha pouóo mais de mez — redarguiu o ro- 
tundo franciscano. —Não é isto, senhora Perpetua? 

— accrescentou com voz meliflua, voltando-se para 
a velha senhora. 

— Em dous mezes vae — replicou esta — e 
Deus queira que se atine com o remédio; pois 
bastante tem soffrido a coitada. 

— Eu I — exclamou Maria, esforçando-se por 
mostrar á senhora Perpetua um sorriso nos lábios 

— mais tem padecido a minha boa tia por minha 
causa : não ha-de ser nada. Quando tiver mais for- 
ças para dar alguns passeios... 

A moça interrompeu as suas falias e soltou 
um profundo suspiro. Recordara-se do ultimo pas- 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 207 

seio que dera e de quem nesse dia vira pela ul- 
tima vez. 

— Ha dous mezes — resmungou o exorcista, 
frei Jaime. 

— Sim, senhor — tornou a senhora Perpetua, 
interrompendo de novo as suas orações. 

— E não dá ella — disse frei Jaime, dirigindo- 
se ao seu companheiro — certos signaes evidentes, 
taes como não poder estar na egreja...? 

— Á egreja ha tempos que não vai por falta 
de forças; mas não repelle as imagens. O que tem, 
já vos disse, é certos esquecimentos e fraqueza; 
gosta de estar só... sempre triste... 

— São casos de probabilidade, nada mais... 
Quando prmter consuetudinem amat obscura loca, 
et societatem aborret — resmungou o exorcista, 
como quem recordava um preceito de sciencia, ci- 
tando as próprias palavras do mestre casuista. — 
Talvez seja outro o seu mal ; e não seria mau 
consultar... 

— Que é que não tenho feito ? — atalhou a 
senhora Perpetua — que medico tenho deixado de 
consultar ? I Cada vez vae a peior. Âquillo foi ma- 
lefício que lhe fizeram, reverendo ; não pôde deixar 
de ser. Entrou-me aqui em casa com pés de lã 
uma certa rapariga... o senhor frei João havia de 
conhecer... uma tal Beatriz, que parecia uma boa 
ereatara, e nós todos, a minha Maricas mais que 
ninguém, lhe queríamos : era como da casa. Ha 
dias, porém, soube delia cousas espantosas. A ra- 



1 « 



208 A RUA ESCURA. 

pariga era uma perdida, e filha de quem, reveren- 
do, de quem? De uma bruxa que por abi anda 
em quanto uma boa fogueira a não abraza. E tal 
a mãe, tal a filha ha-de ser. De um passeio na 
companhia da tal rapariga data esse mal que a de- 
vora. 

— Minha tia, — redarguiu Maria Aldoar — eu 
nada tenho, nada ; não estou doente. 

— Não está doente I Não a ouvem, — excla- 
mou a senhora Perpetua — é olhar-lhè para aquelle 
rostinho tão outro do que foi ; é ver aquella fra- 
queza, aquella febre... 

— Scismas suas, minha boa tia ; eu estou boa. 

— Hum, hum — resmungou frei Jaime — ella 
diz que está boa, quando se não pôde ter de pé. 
Talvez com effeito alguma cousa haja, meu irmão, 
— ajuntou voltando-se para o seu bojudo collega. 

— Não sei lambem —redarguiu este — se tanto 
mal lhe não virá das mesinhas que tem tomado. 

O franciscano atinava. O mal da filha do se- 
nhor Roque Aldoar, mal de coração, tinha-lhe, 
crescendo rapidamente, alterado a saúde. O amor 
naquella alma toda privilegiada, mal se definira, 
lançara profundas raizes, tanto mais fortes que a 
ausência do ente a quem ella queria ajudava, dei- 
xando-lhe a phantasia livre para ideiar todas as 
perfeições a capricho, o seu desenvolvimento. O 
mal porém não fora a principio tamanho como 
nas mãos dos cirurgiões e curandeiros se tornou. 
Maria tendo-se a principio negado a uma confissão 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 209 

das suas mágoas, mesmo porque para ella bem 
aclarada nào estava a causa, pejara-se sempre de- 
pois de a fazer, e deixara-se ir a capricho de to- 
dos, levada pelo desalento do coração a ter von- 
tade de que o seu mal a levasse. 

— Pôde ser, reverendo, pôde ser — redarguiu 
a frei João o exorcista ; mas, como a senhora diz 
que a filha de uma bruxa... 

— Oh não 1 não ! não lancem as culpas a nin- 
guém I — exclamou Maria ; — do mal que soffro 
ninguém é a causa. 

— Tens bom coração, Maricas ; mas não te 
posso ouvir defender aquella perdida. Foi ella; 
não podia ser mais ninguém. 

— Não, minha tia, não foi. 

E Maria Aldoar a quem nesse momento faziam 
recordar a causa das suas mágoas, murmurava 
como para si: 

— É outra... não tem cura... mataram-no de 
certo. 

£ fitou, soltando um suspiro, as escadas da Sé. 

— Lá está ella com uma das suas scismas. 
Por mais que me digam, foi cousa ruim que nella 
se metteu — disse a senhora Perpetua dirigindo-se 
ao exorcista. Aqui ha uns tempos é tudo fallar só, 
em cousas que não toem pés nem cabeça, em au- 
sentes e presentes... e sobretudo com a scisma de 
que um nosso visinbo morreu. 

— Pelo que me parece, reverendo, — disse 

frei João fallando com o dominico — a sua pre- 
14 



210 A RUA ESCURA. 

tença e o seu saber não serão aqui inaleis ; e 
louvado Deus, orações nunca molestaram ninguém; 
antes aproveitam em todos os casos. 

— Sim, — resmungou frei Jaime, porém... 

— Louvado seja nosso Senhor Jesus-Christo, 
dá licença ? — disse uma voz de fora da poria do 
quarto, e ao mesmo tempo a ella assomou a cabeça 
antipathica da tia Briolanja, cabeça magnifica para 
emparelhar com a do exorcista. 

Maria Aldoar, que desde que recebera a caria 
de Filippe, apezar de então a illudir o seu mal 
definido amor, creára á beata repugnância, fez um 
gesto de enfado ao ouvir-lhe a phrase de intro- 
ducção costumada : — Louvado seja nosso Senhor 
Jesus-Christo. 

— Esta coincidência foi notada por frei João, 
que delia deu parte ao seu companheiro. 

— Falle-me para ahi ! — exclamou este ; — é 
um dos signaes mais evidentes. 

E frei Jaime começou, depois de enfiada uma 
sobrepeliz e posta uma estolla roxa a engorolar as 
orações que ao exorcista eram prescriptas para an- 
tes do preceito probativo. 

Mal terminada a invocação ao archaiyo S. Mi- 
guel, approximou-se de Maria Aldoar, fazendo signal 
ao seu collega, que numa das mios segurava uma 
pequena caldeira de agua-benta e. um hyssope, 
trastes que pertenciam á senhora Perpetua Freire. 
A moça ao ouvir as ultimas palavras do frade, não 
sabendo o que aa tinha motivado, e alterada pelos 



tradição portuense! 211 

preparativos daquella ceremonia, começou a tremer. 
Pela imaginação passou-lhe a ideia de que muito 
bem podia ser que algum mau espirito delia se 
tivesse apoderado. Naquelles tempos ainda havia 
muita íé nestas e outras cousas similhantes. Maria 
Aldoar já por vezes, desde que sua tia lhe foliava 
em chamar um exorcista, tinha chegado a ponto 
de duvidar da causa do mal que a afQigia, porém 
nio tanto como nessa occasiâo em que o vulto 
cadavérico de frei Jaime e os aprestes da ceremo- 
nia a tinham perturbado. Aquelle temor ainda mais 
confirmou na sua ideia o velho frade, que come- 
çou a repetir maohinalmente, de affeito que estava 
íquella formalidade, não porque se tornassem ne- 
cessárias, uma enfiada de perguntas taes como ~— 
se sentia dores extranhas pelo corpo; se as cousas 
e pessoas se affiguravam outras, mudadas; se ouvia 
fallar quando estava só, tendo a certeza de que 
ninguém estava tio perto, que lhe podesse ouvir a 
voz. 

A sobrinha da senhora Perpetua a nada res- 
pondeu. Ò terror cada vez mais a enleiava, e o 
enleio mais confirmava na sua supposição os reve- 
rendos. A velha Thereza, aterrada também, mur- 
murando orações e retirando-se pouco a pouco, se 
ausentou da sala, em quanto a senhora Perpetua 
e a beata, uma em voz baixa e fervorosamente, 
a outra alto e com ademanes affectados, repetiam 
algumas orações. O suor inundava o rosto de Maria 
Aldoar, tal era a afílicção que a opprimia. Frei 



212 * A RUA ESCURA. 

Jaime em vão, durante a explicação do credo e 
uma práctica exhortativa, lhe dirigiu a palavra, que 
não descerrou os lábios a pobre moça. Quando o 
frade delia se approximou, a fim de lhe passar uma 
ponta da estola pelo pescoço, Maria fez um esforço 
violento para se levantar, exelamando ao mesmo 
tempo: 

— Não I não ! digam que eu não tenho nada. 

— Oh I oh 1 — murmurou o exorcista, inter- 
rompendo a sua práctica — este é teimoso : talvez 
seja precisa a formula mais forte. 

E voltando-se para as duas mulheres lhes or- 
denou que dissessem a ladainha dos Santos, ao 
passo que frei João espargia agua-benta por toda 
a casa. 

— In nomine Jesu Christi ego Jacobus — res- 
mungou frei Jaime começando o preceito probativo. 

A oração do reverendo e a ladainha das mu- 
lheres não fazia tanto ruido que na sala não se 
ouvissem distinctamente estas palavras, trocadas em 
alta voz, entre duas pessoas, uma que parecia estar 
na rua, outra a alguma janella de casa próxima : 

— Ditosos olhos que o vêem I Ha tanto tempo 
que por aqui n&o apparece, quando d'antes era 
eerto. Por morto ou embarcado para longe o tinha. 

— De me embarcar faço tenção — replicou a 
outra voz — que mal me vai aqui com a vida. 
Tenho estado fora. 

No rosto de Maria Aldoar debuxou-se, em vez 
de terror, uma viva anciedade ao ouvir estas pa- 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 213 

lavras a que não deitou attenção nenhuma das 
outras pessoas que a cercavam, e de novo fez um 
esforço para se erguer. Frei João attribuiu aquelle 
movimento ao estrebuxar do espirito maligno, que 
da linda moça se apoderara, e, poisando no chão 
a caldeira e o hyssope, a forçou a sentar-se, con- 
tinuando o seu companheiro a oração. 

— Deu o signal ! deu o signal ! — exclamou 
frei Jaime, alludindo ao brusco movimento da 
donzella. 

— Ganhaes hoje, reverendo, uma victoria so- 
bre o mau inimigo. 

— Não porque o mereça — redarguiu o domi- 
nico, cruzando as mãos no peito em ar de humil- 
dade. E tornando a indireitar-se, disse em voz 
alta, voltando-se para Maria Aldoar: 

— Ego Jacobus, ut minisíer Christi e Ecclesice, 
impero vobis, dwmones maledicti, ut statim cessei 
omnis vexatio e omnis afflictio ã vobis causata. 

A moça, forçada a estar quieta por frei João 
de Santa Úrsula, pouca attenção deitou á ordem 
transmittida a Satanaz, ainda impressionada por 
aquella voz que ouvira. 

— Faz de amuado ! — exclamou frei João ; — 
mas não lhe ha-de valer o fingimento ; pois não, 
frei Jaime? 

— poder de Deus é grande I — redarguiu 
o dominicano — e começou de novo o preceito 
lenitivo : 

— Nada ainda ! — murmurou frei João, vendo 



214 A RUA ESCURA. 

que Satanaz não se dispunha a fazer uma irrupção 
apparente, saltando na forma de um immundo ani- 
mal, ou estourando em ar de morteiro. 
Frei Jaime recomeçou a sua oração : 

— Ego Jacobus, minister Christi et E ceies i&, 
impero vobis, dmmones maledicti, ul siatim cesse t... 

Maria Aldoar fez de novo um esforço para se 
erguer, e exclamou cheia de alegria: 

— Oh sim, sim, não me enganava. 

Quasi ao mesmo tempo a porta abria-se, e 
Phebo Lever entrava na sala. 

— Então — gritou o franciscano, benzendo-se 

— este não era visível I 

— Nem todos o são — replicou o exorcista 

— roas já se vâ na alegria do rosto que o inimigo 
a deixou. Está outra. 

Era verdade. No rosto da sobrinha da senhora 
Perpetua Freire notava-se uma mudança espantosa: 
naquelles olhos formosos tinha-se accendido de 
novo mais radiante a luz da vida, e o sorriso que 
lhe pairava nos lábios era natural, não do que 
por vezes affectava para mais não magoar sua que- 
rida tia. 

, À pobre da senhora lançara-se-lhe ao pescoço 
toda contente, sem reparar no moço esculptor, que, 
admirado daquella scena, permanecia á entrada da 
porta. Ninguém delle fazia caso; ninguém, a não. 
ser Maria, por elle tinha dado. Com o sorriso da 
linda moça estava porém elle pago de quantas faltas 
de attenção todos os outros podessem ter. 



xvm. 



DIA CEI1 IÃO SE PEBDL 



Cat. — Vamos, 

T ai fia gomarás ia dama. 
D. Juak. — Ha-de ser burla de fama. 
(Toso de Mouna, El burl. de Sevil.) 



T 



Ão rápidos tinham sido os estragos da paixão 
em Maria Aldoar, como foi prompto o restabeleci* 
mento. A apparição do moço esculptor foi para 
ella e para o dominico uma providencia. A fama 
da victoria deste ultimo sobre o espirito das trevas 
percorreu toda a cidade, crescendo de bocca em 
bocca um ponto, de sorte que, contada pela se- 
nhora Gertrudes, que tinha dedo para enfeitar uma 
narração, era um conto phantastico de fazer arri- 
piar os cabellos. espirito maligno tinha, ao sahir 
do corpo da linda moça, onde a inveja de Beatriz 



216 A RUA ESCURA. 

o encadernara, entre cabriolas dito e feito cousas 
tremendas, e dos seus ouvintes havia quem jurasse 
que o cheiro do enxofre se sentira nesse dia, pela 
volta das onze horas, por toda a cidade. 

Maria Âldoar bem depressa esqueceu aquella 
scena, de que a principio se ria, quando nella lhe 
faltavam, negando que tivesse servido de habitação 
a espirito sobrenatural algum. Segundo frei Jaime, 
era isto mesmo uma prova evidente do facto que 
ella negava; pois que, desfeito o quebranto, se 
esquecia o possesso de todas as suas acções e ditos 
passados, ditos e acções de que não era respon- 
sável, sendo obra do nefando espirito. De quem 
ella se lembrava era do moço esculptor. A victoria 
que este ganhara na sua ausência tornara-o quasi 
louco de alegria, e o fizera mudar de tenção. Os 
louros dos seus feitos de armas no dia da revolta 
das maçarocas, tornando-o bastante saliente, o ti- 
nham obrigado a ausentar-se da cidade, procurando 
abrigo na companhia de uns parentes da Maya, e 
o amor maternal da viuva do senhor Thomaz Lever, 
receiando pela sorte do seu único filho, tinha feito 
prolongar este desterro, que martyrisava o pobre 
moço. 

 sós com as suas saudades, no campo, olhara 
para o fundo da sua paiiáo, e, crendo-a desespe- 
rada, tomara um desesperado partido. Para não pre- 
senciar os amores daquella em que tinha posto a 
felicidade da sua vida, resolvera abandonar a terra 
da pátria, e, mal chegado á companhia de sua mãe, 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 217 

apresentara esta ideia, pretextando-a com o receio 
de perseguições attrahidas pelo seu procedimento 
durante o passado motim. No coração da excel- 
lente velba debateu-se por algumas horas a pena 
de se ver separada de seu filho com o receio de 
o perder; mas a final cedeu ás exigências de Phebo, 
e resolveu -se o embarque para Lisboa, e de lá para 
a índia. O moço, com tudo, não pôde resistir ao 
desejo de ainda uma ultima vez ver, e dizer um 
sentido adeus ao idolo do seu coração, e dirigiu-se 
a casa da senhora Perpetua Freire. 

Tinham sido delle as falias que no meio dos 
exorcismos sobresaltararo a apaixonada moça. 

Subiu pela escada, que achou desembaraçada, 
e bateu receioso á porta. As suas palmadas foram 
em vão. 

A escrava, amedrontada, tinha-se ido esconder, 
rezando todas as orações que sabia, nas aguas- 
furtadas, e os restantes moradores da casa estavam 
summamente entretidos para lhe prestar a t tenção. 

No fim de alguns momentos, depois de chamar 
inutilmente, resolveu-se a entrar para uma sala 
que precedia o quarto da linda moça. Era exacta- 
mente no momento em que frei Jaime pela terceira 
vez recitava a seu esconjuro. O coração apertou-se- 
Ihe. Aquelle latim, o rezar fervoroso das mulheres 
trouxeram-lhe uma ideia terrível. Phebo já sabia* 
que Maria Aldoar estava doente, e naquelle instante 
julgou-a, senão morta, á beira da sepultura. Sem 
a mais nada attender, com o rosto demudado, deu 



218 A RUA ESCURA. 

um encontrão á porta, e penetrou no quarto da so- 
brinha da senhora Perpetua. A sua mágoa tornou- 
se em alegria ao ver o modo como foi recebido pela 
linda moça, e no coração lhe renasceu a esperança, 
mudando-lhe o intento. 

Deixemos porém o mancebo e Maria Aldoar. 
Não lhes estorvemos as primeiras confidencias timo- 
ratas de amor e vamos ver antigos conhecidos que 
de ha muito o leitor não viu, os nossos estouva- 
dos da ceia. 

Reunidos em casa do joven Cerveira, mataram 
as horas em relações de írioleiras, proezas e con- 
quistas, não das que se levam a ferro e fogo, mas 
com palavras estudadas e requebros. Se Pedro Cer- 
veira fazia as honras da casa, Luiz Cernache fazia 
as despezas da conversa. 

Passeava de um para o outro lado, não se 
esquecendo de deitar as vistas, ao perpassar, a um 
magnifico espelho de Veneza, que adornava a sala 
onde estavam reunidos. O seu traje era idêntico 
no corte ao que trouxera FiHppe no dia de Reis. 

— Guapo, guapo I — exclamou Henrique de 
Mesquita, percebendo um destes olhares. 

— Achas ? — interrogou o moço fidalgo toman- 
do uma posição affectada, e sorrindo. 

— Acho que copiaste D.Filippe completamente: 
faltam-te os bigodes. - 

— É verdade — exclamou Filippe de Lucena 
com um ar de desdém — copiou a roupa que dei- 
xei, que já não uso, a roupa á franceza. 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 2J9 

E o mancebo lovantou-se da cadeira em que 
se achava para fazer notar o seu fato. Trajava elle 
então um corpete de veludo preto com mangas de 
sètim, todo abotoado com coralinas; uma walona 
bordada a prata; umas bragas, de veludo prelo 
com botões eguaes aos do corpete; uma curtíssima 
capa de côr e tela idênticas, com um ténue capuz 
bordado a aljôfar, prezo por fitas de setim, e, cal- 
çava longas botas de cordovão. Se este traje não 
era tão flamante como o de Cernache, mais lhe fazia 
sobresahir a galhardia das formas. 

Os mancebos admiraram-no. 

— Isso é velho — disse Luiz Cernache, batendo 
no hombro do mancebo. — Meu avô já assim tra- 
java. 

— Espero — redarguiu Filippe — que ainda m'o 
peças, para mandares ao teu alfaiate ' fazer um por 
elle. 

— Não te hei-de incommõdar. 

— Cernache, depois que se apanhou todo co- 
berto de rendas, como o menino Jesus das freiras 
de Santa Clara, não cabe dentro de si — disse sor- 
rindo o morgado de Ferreira. 

— Já te foste mostrar a Monchique ? — inter- 
rogou Pedro Cerveira com um sorriso malicioso. 

— Á prima — ajuntou o sobrinho de D. Fran- 
cisco de Lucena. 

— Nem tenho que lá ir fazer — redarguiz Luiz. 

— Oh ! — exclamou maliciosamente Filippe — 
fazes de discreto, como convém a um bom na mo- 



220 A RUA ESCURA. 

rado I Anda : conta-nos as tuas boas fortunas. Já te 
bordou um cabeção? É esse que trazes? 

— Não faço de discreto ; porém não sou como 
tu, meu raatamouros, que tudo conquistas... com à 
língua. Se algumas das caçadas por ti emprehen- 
didas eu as tentasse, por Christo, que me sahiria 
melhor do que tu. 

— Viva Dios 1 — exclamou Filippe — que estás 
hoje cheio de modéstia. 

— Falias muito, e obras pouco. 

— Tu o dizes? 

— E os factos o provam. 

— Não sei em que: 

— Vejamos — disse Luiz Cernache collocando- 
se em frente de D. Filippe, postas as mãos nas ilhar- 
gas. — Que é feito da lua conquista d'ao-pé do arco 
de S. Sebastião ? 

— Meu caro — exclamou Lucena com uma se* 
riedade fingida — não me falles n'isso : estou para 
me casar. 

E em seguida soltou uma estrondosa garga- 
lhada. 

— Como ? — interrogou o morgado de Ferreira. 

— Á tola — redarguiu Filippe — não se lhe 
metteu na cabeça que devia casar com ella, porqae 
lhe dei, valha a verdade, honras de mãe I Fez uma 
lamuria, que parecia ao natural : houve um diluvio 
de lagrimas, uma tempestade de suspiros, uma 
trovoada completa ; porém eu respondi-lhe com o 
estribilho de certa cantiga : Morenita, no seas boba. 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 221 

— Havia de ser divertido. 

— Muito feio não foi — redarguiu Filippe de 
Lucena — parecia a sério, e não estudado o recado. 
A rapariga não é qualquer dama de gangarilla, 
Á divina Francisca Battazara nunca em Buen Retiro 
vi eu desempenhar melhor o seu papel. Pela Virgen 
da Novena, que é hoje a padroeira dos comedian- 
tes, que a rapariga fazia fortuna pelo mester. 

E o moço fidalgo ria a bom rir sem remorsos 
nenhuns da sua má acção. Para elle, para a socie- 
dade em que convivia não passava o que fizera de 
uma façanha honrosa. 

— Já fizeste de novo as pazes ? — interrogou 
o morgado de Ferreira. 

— Nem vontade I — exclamou Filippe — Nem 
mais delia procurei noticias. Começava a enfada r- 
me. Amor vencido, amor perdido... 

— Bom, bom — atalhou o pequeno Cernache; 
-—porém aquelVoutra, a da aposta. 

— Ah I a pequena da rua Escura ? 

— Essa mesma. 
"■• uSsa ... 

— Nada feito I — exclamou Luiz Cernache — 
nada feito I Está a aposta vencida, cavalheiros ! 
Filippe paga-nos uma ceia. 

— Alto I — redarguiu o sobrinho de D. Fran- 
cisco de Lucena. Peço novo prazo. 

— Nada, nada I — exclamou Pedro Cerveira. 

— A ceia, a ceia I — gritaram os outros man- 
cebos em coro. — Está perdida a aposta. 



222 A BUA ESCURA. 

— Não está tal. Se não fossem esses malditos 
cães que me ladraram ás pernas, estará hoje a 
pomba empolgada... 

— É verdade» Filippe , lembras-te d'aquelle 
rapaz louro que me disseste quiz ter a honra de 
cruzar o seu faim com o teu?... 

— Sei — exclamou Filippe. — Alli está mn 
vilão, que nasceu com brios. O tolo podia -me 
matar quando um maldito me quebrou a espada ; 
porém não senhores : tomou o caso como se ti- 
vesse talhado o sol. Estive capaz de lhe estender 
a mão quando o tornei a ver. 

— Pois o nosso homem — tornou o estouva- 
do — vai agora a casa da pequena da aposta. 

— E que tem isso ? 

— Nada, a não ser que a tenha já na rede. 

— Que tenha ou não, nada faz ao caso. Dêem* 
me novo prazo — insistiu Filippe. 

— Quantos dias ? — interrogou Pedro Cerveira. 

— Dias? 

— Pois, querias mezes ? 

— Semanas. 

— Nada, nada — gritou um dos fidalgos. — 
Damos-te oito dias. 

— É pouco. 

— Vamos, Filippe — exclamou o pequeno Cer- 
nache — apezar de tanto me fazer que percas 
como que venças, interesso-me por ti. 

E, vollando-se para os outros mancebos, ajun- 
tou : 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 223 

— Oito dias sem importar o modo como a 
caçada é feita : se ao reclamo, se á rede. Filippe 
a ceei ta. 

Luiz Cernache, dizendo isto, segredou algumas 
palavras aos ouvidos de Filippe. 

— Oh! «ti perro — exclamou este. 

— Um perro? que?... — interrogou o estou- 
vado. 

— Vn perro, sim; um engano... uma peça, 
como quizeres que diga. 

— Tal e qual. 

— Entio ella vai só? — perguntou Filippe em 
voz baixa. 

— Todos os dias ou quasi todos... de manhã 
cedo... a passeio. 

— Só? 

— Não ; acompanhada por uma negra ; e já 
uma vez também a vi com o rapaz do motim. 

— Bom. 

— Ha-de dar bradol — - disse Cernache, piscan- 
do os olhos. 

— Está dito, cavalheiros ; acceito os oito dias 

— disse Filippe em voz alta, dirigindo-se aos fidal- 
gos seus companheiros. 

— Que dia é hoje ? — interrogou um delles. 
' — Sabbado. 

— Bom : domingo á noite teremos a ceia. 

— Fica em palavras tudo, meus amigos, verão ! 

— exclamou Pedro Cerveira. 

— Não fica : tu has-de ser uma das testimu~ 
nhas. 



224 A RUA ESC UB A. 

— Bom, bom — gritou Luiz Cernache; — vamos 
encommendar a ceia, e veremos quem paga. Nào é 
assim, Filippe. A ceia não se ha-de perder. Quer- 
se uma ceia explendida. 

— Aonde ha-de ser. 

— Em casa do pasteleiro : a Yicloria ha-de 
ser celebrada debaixo dos muros da praça rendida. 

— Para casa do pasteleiro I — gritou Cernache. 

— Está dicto I — clamaram todos os estouva- 
dos, pondo-se a pé e seguindo a Filippe, que can- 
tarolando desceu as escadas, encaminhando-se to- 
dos para casa do senhor Bartholomeu de Basto. 

O pasteleiro, como Phebo, estivera algum 
tempo escondido depois da revolta, e como elle 
nào se tinha esquecido de Maria Aldoar. Dando 
pouca importância, ao reapparecer, ás assiduida- 
des do santeiro ao-pé da linda moça, tendo que 
era rival pouco temível para dar zelos, como já dis- 
semos, por menos favorecido da fortuna, e desas- 
sombrado de Filippe, tinha por algum tempo dado 
largas aos seus sonhos de gozo. A volta do moço 
fidalgo, porém, de novo lhe fez pôr em sobre- 
saltos o .coração, apezar do pouco uso que este 
dava á rua Escura. 

Quando o rancho dos estouvados lhe entrou 
pela porta dentro, um presentimento fez parar ao 
ciumento burguez o sangue no coração. Filippe, 
que ignorava a parte que elle tomara no motim 
do terreiro, bateu-lhe com a palma da mão no 
hombro, gritando : 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 225 

— Mestre, domingo ao cahir da noite quero 
uma ceia, a melhor que for possível arranjar, para 
estes dez cavalheiros. Cousa de primor; não se olha 
a dinheiro. 

— Nem tem que reparar — ajuntou Cernache 
rindo — a ceia ó de graça, 

— De graça 1 como ? . 

— De graça. Nâo te recordas de que o mestre 
disse que, se ganhasses a aposta, não levaria por 
etta nada? 

E o moço fidalgo, dizendo isto, ria-se, fitando 
o senhor Bartholomeu de Basto, que a estas pala- 
vras perdeu a côr do rosto, tornando repentina- 
mente a voltar mais a f fogueada. 

— Ganhou a aposta, cavalheiro ? — interrogou 
elle com voz trémula. 

Filippe olhou para o pasteleiro meio-espan- 
tado. 

— E que vos importa ? — replicou. 

— Que lhe importa ? — exclamou Cernache. — 
O mestre esmoreceu com a ideia de ter de nos dar 
uma ceia e não ver real. — E voltando-se para o 
pasteleiro, ajuntou soltando uma gargalhada : 

— Se não se ganhou, está em vésperas. O pás- 
saro está na mã&. É s6 depennal-o. Lá se vos 
vai a alma na ceia I 

Bartholomeu de Basto mordeu os lábios raiyoso. 

— Oh que careta não faz o pobre diabo I — 
murmurou Luiz ao ouvido de Filippe. 

— É ter paciência, mestre — disse o sobrinho 

15 



226 A RUA ISCUBA. 

de D. Francisco de La cena, julgando toda aqaella 
mudança que se pintava no rosto do pasteleiro re- 
ceio de que elles lhe tivessem tomado a serio a 
palavra, e o forçassem a dar a ceia.- — A bella — 
continuou — escreveu- me um bilhetinho em que 
me convida para ir ter a primeira vez que sabir 
a passeio, só com a escrava, de manhan, a certo 
sitio... 

pasteleiro, ao ouvir esta mentira de Filippe, 
perdendo de novo a côr, cambaleou , e teve de lan- 
çar a mão á parede para não cahir. 

— A ceia paga-se-lhe — exclamou o morgado 
de Ferreira, compadecido do senhor Bartholomen. 
— Não se esqueça, mestre, do melhor. 

E ás gargalhadas os moços fidalgos sahiram 
da morada do pasteleiro, em quanto este se deixava 
cahir na cadeira que mais perto encontrara, tomado 
pela dôr violenta da ferida que no coração lhe 
abriam de novo. 



XIX. 



TRÊS GOTAS DE SAI6DE 00 CORAÇÃO 



Bemsa — Alors que me veui tu ? 
D* Pais — A' t'on raison de croire a la verlu 
Des fillre*? — Dis-moi vrai, 
(A. de Mussbt, D. Paex) 



P, 



ela bòcca da senhora Perpetua sabe o leitor 
que entre os bons eh r islã os do Porto tinha cessado 
de ser um segredo a filiação de Beatriz, a costu- 
reira d'ao-pé do arco de S. Sebastião. Estimada esta 
até ahi por todas as famílias que a sua casa a cha- 
mavam, attentas as suas prendas, cheio o coração 
de esperanças, julgando- se amada, n'um abrir e 
fechar d'olhos saltou a pés juntos a barreira que 
separa na vida a senda de rozas da de espinhos. 
Temendo que ella não resistisse ás mágoas que 
a assaltaram, Dina não desamparara a filha do seu 



228 A RUA ESCURA. 

coração, e levada pelo carinho materno esqueceu 
o odioso do seu mister e o perigo em que punha 
Beatriz. Já as suas escusas visitas tinham feito mur- 
murar algumas comadres; porém somente pela sup- 
posição de que a costureira recorria á bruxa para 
alguma consulta em negocio de amores. A moça era 
linda, prendada e bemquista, e a inveja não perdia 
a occasião de lhe cravar bem fundo o seu alfinete. 
A residência da velha Dina por dous dias em casa 
de Beatriz fez naturalmente scisroar as menos cu- 
riosas visinhas, e pôr numa roda viva as que a 
moça despeitava ou excedia. Tanto andaram e des- 
andaram que vieram no conhecimento da verdade 
e nessa occasião a fama duplicou as suas bôccas, 
e voou mais rápida que de costume. Quando a filha 
de Dina Belaguer sahiu á rua pela primeira vez de- 
pois das scenas que descrevemos, foi apupada e 
apontada ao dedo pela gente miúda, e, se a malo- 
grada paixão e o desprezo de Filippe lhe magoa- 
ram o peito e o coração, os insultos enfraquece- 
ram-lhe a mente. 

A pobre ficou quasi idiota. 

Quem a encontrasse pai lida, desgrenhada, sen- 
tada no chão, apertando entre os braços os joelhos, 
á porta da vivenda da bruxa, ao-pé da torre quei- 
mada, não reconheceria a formosa rapariga de dias 
antes, que tanto caprichava nos seus enfeites; no 
seu trajar. Era somente no perfil que dava signaes 
do que tinha sido. No semblante da bruxa também 
se notava alteração : era nos olhos onde se ateara 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 229 

um fogo sinistro, que só de momentos a momen- 
tos dava logar á compaixão, quando se cravavam 
no pallido rosto de Beatriz. 

Era no dia seguinte ao da reunião dos moços 
estouvados em casa de Pedro Cerveira. A tarde 
findara, e os montes de Gaja tinham pouco a pouco 
perdido o seu colorido em tintas negras, desta- 
cando primeiro em um fundo côr de laranja, de- 
pois gradualmente em uma infinidade de cores, 
até parar no azul cinzento da noite. O sol, que 
no meio do seu curso vira assentar-se Beatriz á 
porta do cazebre, ao apagar-se no Oceano ainda 
ahi a deixou. A bruxa também toda a tarde se 
conservara a o -pé, com os olhos cravados na filha, 
bebendo por elles, seja licita a expressão, todo o 
fel que é possível caber no peito de uma mulher; 
soffrendo o maior martyrio com que pôde um co- 
ração de mãe. Quando um homem veio quebrar 
aquelle encanto cruel, tinha trasbordado a taça : 
a blasphemia sahira-lhe dos lábios. Este homem 
era nada menos que o pasteleiro da rua Escura, o 
senhor Bartholomeu de Basto. O pasteleiro não po- 
derá dormir a noite antecedente. As palavras de 
Filippe de Lucena eccoavam-lhe aos ouvidos. Du- 
rante a insomnia tinha passado em revista os re- 
médios possíveis para o mal que soffria, e só en- 
contrara dons. Por um vinha elle nesse momento. 

A resolução que o trazia não era comtudo fir- 
me. Antes de se approximar por mais de uma vez 
parou receiosò. 



230 A RUA ESCURA. 

— Mulher, mulher — disse bruscamente, appro- 
ximando-se quasi de um salto da bruxa — quízera 
fallar-te a sós. 

— À mim ? — perguntou ella, sem reparar 
quem era a pessoa que tinha na sua presença. 

— A ti. 

Dina ergueu-se e approximou-se do senhor 
Bartholomeu, que por um movimento involuntá- 
rio deu alguns passos á rectaguarda. Ao reconfae- 
eel-o, soltou do peito uma exclamação, e passou 
a mão pela fronte, pintando-se-lhe no semblante 
uma alegria sinistra. 

— Eu sei o que o traz, mestre — disse ella em 
seguida, dando ás palavras uma intonação exquisita. 

— Sabe I — exclamou com um gesto entre o 
espanto e o receio o senhor Bartholomeu. 

— Sei — tornou a bruxa — eu leio a vontade 
no rosto de todos. Para mim não ha segredos. 

— Oh I dize-me então se é possível alcançar 
es meus intentos? 

— É -~ replicou a feitioeira. 

— E que tenho para isso a fazer ? Falle que... 
eu tenho dinheiro... bem o sabe. 

— O seu dinheiro não me importa. . 

— Não — exclamou o pasteleiro — então que 
d preciso? 

— Pouco. 

— Pouco ? 

— Sim, pouco, mestre. Aqui- podem surpre- 
hender-nos. 



TRÀDIQÃO PORTUINSE . 231 

£ dizendo estas palavras, Dina apontou para 
a porta da sua habitação. 

Como dissemos, ficava ella perto da torre quei- 
mada, no declive do monte da Sé, para o lado do 
rio. A apparencia exterior era pouco agradável, o 
logar remoto e de má fama, e pelo corpo do se- 
nhor Bartholomeu percorreu um frio desanimador. 
Grande porém era o motivo que alli o levava, a 
elle tão crendeiro, que depois de alguma hesitação 
se resolveu a transpor os* umbraes da mysteriosa 
easa. O aposento em que penetrou estava perfeita- 
mente ás escuras. Se o terror tinha sido grande 
em quanto esteve nas trevas, maior se tornou quan- 
do á pallida luz de um candieiro, acezo pela bruxa, 
pôde contemplar o sitio em que se encontrava. Era 
uma sala térrea, húmida e negra. A um lado estava 
um enorme lar, onde se viam dous grandes vasos 
de barro de uma forma desusada. Nas paredes, 
cravados pelas azas, notava-se três morcegos, con- 
servados por meio de alguma preparação; sobre 
uma papeleira carunchosa descançavam um craneo, 
a ossada de um braço e mão perfeitamente solda- 
dos pelas junturas, alguns fraseos, uma redoma de 
vidro e uma espécie de baralho de cartas, em que as 
figuras convencionaes do jogo eram substituídas por 
outras mysteriosas ; do tecto pendiam vários molhos 
de h ervas, algumas tranças de cabello, e sobre uma 
cadeira poisava um in-folio respeitável. Á luz tré- 
mula que espargia o candieiro dava uma certa ani- 
mação áquelles extranhos adornos, que pareciam 



232 A RUA ESCURA. 

mover-se, tornando em tal sitio a estada pouco 
desejada. 

Aquelle apparato era o ganha-pão de^Dina, 
eram os utensílios do mister que lhe tinham for- 
çado a tomar; mister que por vezes era rendoso, 
não de rara freguezia, mas arriscado. Gomo ella 
tinha passado até alli no povoado, assim incólume, 
apezar de ser no Porto, longe do braço do tribunal 
da Fé, já o explicamos. 

Ào senhor Barlholomeu aquelles adornos tra- 
varam-lhe a língua por alguns segundos, em quan- 
to Dina, abria o livro sobre o bofe te, e espalhava 
as cartas, empregando em tudo um ceremonial mis- 
terioso. 

— que o traz — disse a bruxa fitando o pas- 
teleiro a ver se lhe podia ler no rosto a força da 
resolução — ó o amor. 

— É — replicou o senhor Bartholomeu. 

— E o amor desprezado — ajuntou Dina. 

— Sim, sim — confirmou o pasteleiro. — Que- 
ria uma das suas bebidas — accrescentou com voz 
sumida — a ver se. . . 

— É difficil, muito difficil — atalhou Dina. 

— Já lhe disse que não poupo dinheiro. 

— Não basta dinheiro. 

— Então que mais se faz preciso? 

. — Tem animo ? — interrogou Dina, sem res- 
ponder á pergunta do senhor Bartholomeu de Basto. 

— Tenho — redarguiu este, fazendo um es- 
forço violento. 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 233 

— Repare no que diz. 

— Tenho I tenho animo para tudo. 

— Para tudo? 

— Sim... sim I 

— E se for necessário ter de se travar com um 
homem... 

— Dous que fossem . 

— Se fosse preciso correr sangue ? 

— Sangue?! 

— Recua I 

— Não, não ; tudo farei. 

A feiticeira adiantou-se, pôz-lhe uma mão so- 
bre o hombro, e murmurou, fitando-o a t tenta mente: 

— Para compor o philtro que deseja são pre- 
cisas três gotas de sangue do coração de um ho- 
mem. 

— Três gotas de sangue ! — exclamou o pas- 
teleiro, empalidecendo. 

— Sim; três gotas de sangue do coração do 
ente que ellá ama. 

— E ella depois. . . 

— E Maria depois — proseguiu Dina, accen- 
tuando astuciosamente as palavras — lhe votará 
mais amor que a elle... a Filippe. 

No rosto da bruxa, ao dizer estas palavras har 
via um que de sinistro, que fortemente impressio- 
nou o pasteleiro, e lhe fez gelar o sangue nas veias. 
Por bom espaço de tempo ficou elle irresoluto, re- 
trata ndo-se-lhe na cara a lucta que na alma se 
travara. Na da bruxa a cada gesto delle corres- 



234 A RUA ESCURA. 

pondia ura outro : ao terror o desalento ; á reso- 
lução a alegria feroz, que pôde ter o tigre, vendo 
approximar descuidado o tímido antílope. O paste- 
leiro viera alli como trazido pela mio do demónio 
da vingança, que dominava o coração ardente da 
mãe de Beatriz, d'essa mulher em cujas veias gi- 
rava o sangue peninsular, em cuja vontade havia 
a tenacidade dos hebreus, em cujo peito morava 
o desespero da sobreposse da desgraça. Perder o 
instrumento que nas mãos se lhe viera metter era 
o seu temor ;' a ideia da realisaçào do seu pensa- 
mento a alegria. 

O pasteleiro, que já attentara contra a vida 
de Filippe de Lucena, para elle ainda o amante 
preferido da filha de Roque Aldoar, servindo-se do 
carniceiro morto no motim, recuava agora ante a 
insinuação da bruxa, ou porque não tivesse animo 
para o fazer de per si, não achando facilidade de 
haver á mão um instrumento tão dócil como o 
Russo, e uma occasião como a que tivera então, 
ou porque o logar e aquella conta mysteriosa de 
três gotas de sangue o impressionassem forteme- 
mehte, receiaado pela alma. Dina tremia pela vin- 
gança que via a ponto de se lhe escapar, tal era a 
irresolução do pasteleiro. Esta porém terminou re- 
pentinamente. 

Beatriz que se conservara assentada á porta, 
repassava á luz meia-apagada da indiligencia as 
scenas da sua passada felicidade. A lembrança de 
Filippe, que por aquellas horas lhe costumava 






TRADIÇÃO PORTUENSE. 235 

apparecer, pôz na bôcca da infeliz a canção favorita 
do estouvado moço. 



Nina. si à la huerta vas 
Coge las flores mas bellas ; 
AiiDque se tu estas entre dias 
▲ ti mesma escogerai. 

Este canto foi incetado lentamente ; não com 
a intonação galante que lhe dava o sobrinho de 
D. Francisco de Lucena, mas com uma toada mo- 
nótona, magoada. A impressão que fez em Dina 
foi quasi egual á que produziu no pasteleiro da rua 
Escura. Recordando Filippe, a uma fez augmentar 
o desejo de vingança, ao outro procurar no ciúme 
a coragem, pôr termo á sua irresolução. 

— Se não tem animo para matar um rival — 
exclamou a bruxa — deixe -o gozar de Maria... o que 
não tardará. 

Mestre Bartholomeu avivara a recordação da 
visita da véspera; recordou que Filippe lhe dissera 
que breve a moça appetecida havia de ser sua. 

— Tudo, tudo farei 1 — exclamou — mas que 
ella me queira I... 

Dina exultou. 

— Olhe — disse ella, chegando-se ao-pó do 
ciumento burguez — preciso do sangue dentro de 
três dias... antes do quarto minguante... e não me 
engane — que seja o sangue de Filippe. Espere — 
accrescentou — quero ver esse homem quando 



236 A RUA ESCUBA. x 

morto. Feito ao-pé do cadáver terá o meu philtro 
mais força» não falhará. 

— Sim, sim — redarguiu o pasteleiro — eu 
também tenho pressa. Que essa tua beberragem, 
esse esconjuro não leve muito tempo a fazer. 

— Nenhum. 

— Três gotas de sangue — murmurou o pas- 
teleiro, atirando com uma moeda de prata sobre 
o livro aberto, o Talmud, que o desconhecido das 
letras tornava formidável a todos os visitantes de 
Dina. 

— Sim — exclamou a bruxa — três gotas do 
sangue do coração. 



XX. 



COITEASTEt 



El mayor monslruo los zelos 

Son siempre. 

(Calhirow.) 

Curc. — Qoe s ; gnal é este que, 

ao conhecel-o, se me perturbou 

a almal... 

Ai! filho! 

(Comedia antiga,) 



N 



Ião esqueceu Filippe a extravagante aposta 
em que com os fidalgos se empenhara. Desde então 
foi de Maria Aldoar uma espia constante, a sombra 
do seu corpo. Quatro dias, porém, eram passados 
sem resultado algum que lisongeasse a vaidade do 
estouvado mancebo. Despeitado, pelo contrario, sen- 
tia que a moça requestada, longe de como outr'ora 
corresponder ao seu cortejo, lhe mostrava a mais 
completa indifferença. Em Filippe, nesse curto es- 
paço de tempo, a difficuldade, a resistência, o des- 
dém fizeram crescer violento o desejo. 

No moço fidalgo, desde a primeira visita, cau- 



238 A RUA ESCURA. 

sara á filha de Roque Aldoar não pequena impres- 
são ; mas, corrompido o coração na vida desvairada 
da corte do conde-duque, gastos os sentimentos nos 
galanteios vaidosos das damas da alta nobreza da- 
quella quadra, na Península tão beata na forma, 
como immoral no fundo, a asphyxiara elle em pen- 
samentos impuros. A inconstância, sua divisa, a 
novos galanteios o levara depois do motim popular, 
e em prazeres ephemeros por mais de uma vez em- 
briagou os sentidos, dando as fezes a tragar ás vi- 
climas dos seus passatempos. Não eram únicas as 
palavras de Beatriz a pezar na balança das suas 
culpas, posto que ainda assim bastantes não fossem 
para dar alento aos remorsos. seu novo projecto 
suscitado pelo mais estouvado dos seus companhei- 
ros no Porto, projecto cujo pensamento era uma 
violência infame, era d'isto a prova. Para Maria 
Aldoar, felizmente, a Providencia a resguardou, 
trazendo embaraços aos seus passeios matutinos, 
exercício que, para inteiramente a restabelecer, lhe 
fora aconselhado, e toda a boa vontade de Filippe 
foi baldada. De que serviu foi de augmentar no 
peito do ciumento pasteleiro o ódio violento, os 
fogos do ciúme. 

Já viram que effeito produziram em mestre 
Bartholomeu de Basto os inconsiderados gracejos de 
Luiz Cernache e Filippe de Lucena, que o levaram 
ao extremo de, julgando poucos os meios huma- 
nos, recorrer aos sobrenaturaes, sujeitando-se á 
vontade vingativa de Dina, a feiticeira. Se a ten- 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 839 

çao por vezes fraqueara, trazendo-lhe na insomnia 
por horas mortas as larvas do remorso, o temor 
de penas, que sua crença dizia certas apoz o crime, 
e que a intervenção da bruxa avantajava na sua 
imaginação, o perpassar de Filippe, trazendo ideias 
que lhe faziam ferver o sangue, apagava toda aquella 
phantasmagoria para deixar mais violento o rancor. 
Quatro dias faltavam para terminar o prazo 
concedido a Filippe de Lucena. 

Era uma quarta-feira, nos princípios de maio. 
Yiera uma manhan chuvosa tolher o passeio da 
sobrinha da senhora Perpetua, raiando depois o sol 
a desenhar no céo com as nuvens esparças phan- 
tasias brilhantes. A' proporção que o tempo decor- 
ria redobrava Lucena de esforços ; que na aposta 
empenhara a honra, a fama conquistada entre os 
estouvados companheiros. Nesse dia, até sol posto, 
por vezes tinha percorrido a rua, esperando fazer- 
se notar da linda moça, ainda meio-crente na sua 
vaidade de que só a falta de attenção lhe podia 
ter acarretado desdéns, e preferindo, não por con- 
sciência, mas por ser de maior gloria para elle, a 
seducção á violência, se acaso podesse aquella dar 
fructo em tão limitado prazo; 

Por ura acaso Maria Aldoar, sem pôr em Fi- 
lippe grande reparo, viera de tarde trabalhar para 
a varanda, do lado da rua Escura. A mestre Bar- 
tholomeu não deixara o ciúme ver a nenhuma im- 
portância que ás assiduidades de Lucena dava a 
innocente causa da sua paixão violenta. A pertur- 



240 A RUA ESCURA. 

bação morava-Lhe na alma ; a imaginação exaltada 
dava valor a movimentos casuaes e insignificantes, 
pintando -lhos como filhos da reserva guardada em 
vésperas de uma acção culpável. 

Tal é a cegueira dos zelos; assim da imagina- 
ção nascem os tormentos em mal pagos amores. 

pasteleiro passara o dia, espiando os me- 
nores gestos, de Filippe até sol-posto. 

Os visinhos tinham entranhado o ar do nosso 
homem, os seus movimentos phreneticos, o modo 
mysterioso ou secco das respostas quando lhe per- 
guntavam curiosos : 

— Mestre Bartholomeu tem alguma cousa? 

A criada explicava aquelles movimentos por 
dôr de cholica, e uma comadre visinha por male- 
fício do espirito do mal, que se apoderara do bom 
do homem. Na verdade o espirito do mal revoava 
no pensamento do senhor Bartholomeu de Basto. 

O mez de maio é inconstante. A um céo se- 
reno succede-se um diluvio d'agua, e tão depressa 
esta alaga a terra, como as nuvens de novo se dis- 
persam, e surge a bonança. A noite, como a manhã, 
veio chuvosa. O sul, soprando violento, acastellou 
ao morrer da tarde umas sobre outras montanhas 
de nuvens negras, que os últimos raios. do sol em 
pontos distantes, rompendo aqui e alli, tingiam com 
laivos rubros. Ao cobril-os a noite com as suas tin- 
tas uniformes, tornou a desabar a chuva. Filippe 
de Lucena, que voltava do lado da rua Chã, foi apa- 
nhado pelo diluvio pouco distante da porta de mes- 



i 



TRADIgÃO PORTUENSE. 241 

Ire Bartholomeu, e recordando-se da perturbação do 
ciumento, quando lhe deu aviso, para aprestar a 
ceia, julgou que podia passar alegre as horas que 
o mau tempo o forçasse a abrigar-se. Entrando-lhe 
pela porta dentro, cantarolando, as suas primeiras 
palavras foram recordar a ceia. 

O pasteleiro fitou Filippe de Lucena, e per- 
guntou balbuciando : 

— fidalgo venceu já a sua aposta ? 

— Esta noite mesmo será vencida — redarguiu 
Filippe— e eu não sou do parecer do meu amigo 
o morgado de Ferreira : se eu perdesse, mestre, 
pagava a ceia pelo dobro ; ganhando, quero-a se- 
gundo as condições, de graça. 

E Filippe, sustendo a custo o riso, fitava á su- 
capa o pasteleiro, para se comprazer no embaraço, 
no desespero que elle attribuia á avareza. 

Mestre Bartholomeu não era franco, e se tal 
aposta tivesse feito, com os estouvados, gente ca- 
paz de bom grado, mau grado o fazer cumprir a 
palavra dada, de certo não ficaria pouco desespe- 
rado; mas nem a perda de toda a sua fortuna lhe 
podia trazer ao rosto um gesto, como o que mos- 
trou ao ouvir as palavras de Filippe. 

Da ira, porém, pouco a pouco com a reflexão 
veio á duvida. 

— O fidalgo está a gracejar — redarguiu titu- 
biando, e ao mesmo tempo cravando nos olhos de 
Filippe os seus, a ver se não desmentiam a res- 
posta que ia receber. 

16 



242 A RUA ESCURA. 

— Gracejar I — disse o mancebo, tomando uat 
ar serio — não sei porque. Prepare a ceia, que bom 
apetite não ha-de faltar... aos outros, que a mim 
melhor bocado me espera... 

— Não, não pôde ser 1 — exclamou o paste- 
leiro, perdida a cabeça com a ideia da próxima ▼»- 
ctoria do moço fidalgo. 

— Não pôde ser 6 que? A ceia? 

— Não, não; essa rapariga nada lhe prometteo! 

Pilippe com um gesto de espanto por mo- 
mentos ficou a encarar a Bartholomeu de Basto. 
A expressão da physionomia podia-se traduzir por 
estas palavras : «Que importará aquella linda pe- 
quena a este bojudo velho?» 

— Era curioso — ajuntou por entre-dentes — 
e proseguiu depois em voz alta, retomando a se- 
riedade com que desapontava o pasteleiro: 

— Pois é como lhe conto, mestre : tanto que 
por conta já recebi... um beijo. 

Bartholomeu tornou-se livido como um finado, 
e caminhou direito para o moço fidalgo com passos 
lentos e deseguaes. Parecia que no craneo lhe ti- 
nham dado uma pancada de atordoar. 

— Mentis I mentis I — gritou elle depois de um 
esforço violento. 

Filippe fez -se corado como os botões do seu 
corpete; os olhos chammejaram-lhe, e levantando 
o punho cerrado, exclamou : 

— Cão, vilão I homem nenhum de bom sangue 
me disse essa palavra, sem que lhe fizesse calara 



TRADIÇÃO PORTUENSE. ' 243 

bócca para sempre. Era ti não me abaixo a sujar 
a espada; basta marcar-te a cara. 

E dizendo, no rosto do senhor Bariholomeu 
imprimiu em vermelho o signal de sua mão. 

O pasteleiro segurou-lhe o braço, deu-lhe um 
empuxão violento ao corpo, e, fazendo-o perder o 
equilíbrio, o lançou por terra, abafando-lhe a voz 
com uma das mãos. Prostrado o moço, collocan- 
do-lhe um joelho em cima do peito, tirou do 
cinto o punhal. 

— Maldito I foi o demónio que te guiou aqui! 
— murmurou intercortando as palavras. 

moço fidalgo forcejava por desprender-se 
das mãos do seu rival, e dar vozes de alarme ; mas 
em vão. O punhal de mestre Bartholomeu abria 
larga passagem ao seu alento, e a voz morreu-lhe 
na garganta. pasteleiro ergueu o ferro ainda 
mais de vinte vezes e outras tantas o cravou em 
FUippe de Lucena. Farto, saciado, ergueu-se de- 
pois, fitando o cadáver do mancebo, e permaneceu 
alguns instantes de braços cruzados. 

— Oh I a bruxa I — - murmurou elle. E, dando 
volta á chave da porta do aposento por onde en- 
trara o moço Filippe para mais não transpor, sahiu 
precipitadamente. 

D'ahi a momentos a chave rodou de novo na 
fechadura, e o pasteleiro assomou á porta da sala 
fatal. 

— Entrae, entrae — disse elle a um vulto que 
o seguia. Ninguém por fortuna está em casa, e 



244 A RUA ESCURA. 

agora a porta está fechada. A minha tarefa está 
feita; agora a vossa. 

O vulto entrou. Era Dina Belaguer. O sem- 
blante da judia exprimia uma satisfação sinistra. 
Sem redarguir a mestre Bartholomeu, ajoelhou so- 
pé do cadáver de Filippe, e estendeu a mão ao 
punhal que no chão ficara. 

— Três gotas de sangue — murmurou — Ires 
gotas de sangue pedi a esse louco, e todo o que 
vejo derramado não me fartará t 

— A tua promessa, mulher — disse ao ouvido 
de Dina o pasteleiro — senão queres acompanhar 
ao inferno a alma d'esse rapaz. 

— Sim, sim — redarguiu alto a judia. E ajun- 
tou como fa liando para si ; — Louco ! louco ! que 
me vingaste com o teu ciúme I Deixa-me 'saciar 
neste sangue, e depois que importa ! Estou vin- 
gada I 

E desabotoando o corpete do mancebo, lh f o 
despiu a meio, deixando nu o peito ensanguentado. 

A mãe de Beatriz, deu de repente um grito, 
'esfregou os olhos e arrancou violentamente do pes- 
coço do mancebo um objecto que (razia pendente, 
levando-o para junto da luz. Era uma medalha, 
um como pequeno relógio, feito de ouro, tendo de 
um lado um brazão gravado, do outro um vidro, 
agora quebrado, que resguardava dous anneis de 
cabello, um louro, outro preto. A medalha fora par- 
tida pela violência de uma punhalada, e estava co- 
berta de sangue. Ao voltal-a a mãe de Beatriz, 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 245 

do meio cahiu um papel escripto, il legível quasi 
a letra. A custo se conhecia uma data e um nome. 
A data era a do nascimento de Filippe de Lucena, 
o nome o de Beatriz Belaguer. 

— Impossível I não 1 não I — murmurou Dina. 
E de novo, ajoelhando ao-pó do cadáver de 

Filippe, abriu-lhe a camiza. . 

No peito do cadáver, do lado direito havia 
uma mancha vermelha, dessas a que chamam de 
fígado, tendo a configuração de uma folha de trevo. 

Dina ergueu-se, e recuou até á porta lenta- 
mente, com os olhos espantados, como se para ella 
caminhasse invisível phantasma. 

— Filho ! filho ! — bradou depois de um longo 
espaço, com voz tão desesperada, como se lhe ras- 

- gassem as entranhas. 

O pasteleiro tomado pelo inesperado do sue- 
cesso fitava aterrado esta scena. 

— Meu filha l meu filho ! mataram meu filho ! 
— tornou Dina, fora de si. 

O pungente desesperado destas ultimas pala* 
vras da velha judia, não tirou o pasteleiro do es- 
panto, se não para lhe trazer o terror do crime, 
e, mais pallid<^ainda que até ahi, com a vista per- 
correu num instante todo o aposento. 

— Mulher do inferno, cala ou mato-tel Trouxe- 
te aqui o demónio para me perder ! 

E lançando-se sobre a infeliz mãe, tentou im- 
pedir-lhe os gritos. Ao sentir no rosto a humidade 
do sangue que manchava as mãos do pasteleiro, 



846 A RUA ESCURA. 

Dina, fez um esforço sobrenatural e libertou-se dos 
seus braços; deu alguns passos ainda, e cabiu janto 
do cadáver d'esse que ella chamava seu filho. 

Filippe era com ef feito o fructo dos amores 
de Beatriz Belaguer, da judia Dina e de um irmão 
de D. Francisco de Lucena. amante da Roxa de 
Santa Clara usava do appellido de sua mãe, que 
lhe fora imposto para não morrer na única des- 
cendente de uma raça illustre. Por elle fora co- 
nhecido de Dina, que nunca lhe soube outro. Fi- 
lippe, creado depois da morte de seu pae cm com- 
panhia de um tio, adoptou o appellido geral da 
familia, e não passou á bruxa nunca pela ideia, 
nas poucas vezes que viu perpassar, ou o nomea- 
ram, que fosse elle o filho que deixara, ao incetar 
a senda de espinhos, sorrindo adormecido no berço. 
A medalha que Filippe trazia ao peito, e que nunca 
abandonara por um d'esses caprichos, por um sen- 
timento que desmentia o seu caracter estouvado, 
e aquelle signal do . peito não a poderam deixar 
duvidosa de que Deus acabava de lhe despedir 
mais um golpe terrível, castigo da duvida que da 
sua justiça mostrara. 

O sangue de Filippe manchandb-lhe a fronte, 
foi talvez o baptismo de redempção dessa mulher, 
que n um desvio abrira caminho a crimes sem 
nome, porém que soffrera no mundo quanto se 
pôde soffrer. 

O pasteleiro, vendo no chão a feiticeira, per- 
didos os sentidos, quiz fugir, porém pareceu-lhe 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 247 

que os pés se recusavam a caminhar. A vista pro- 
curava como por uma força superior a victima 
dos seus zelos e da vingativa judia. Os joelhos 
tremiam-lhe, e um suor frio lhe inundava o rosto. 

Que contraste a esta scena não ia longe da- 
quelle sitio, em casa da viuva de Pantaleão Freire I 

Na sala principal do edifício duas mulheres de 
avançada idade recofrdavam mutuamente os tem- 
pos da sua flor e, transportadas nas azas da ima- 
ginação, remoçavam quasi naquelle intertenimento. 

Estas duas melheres eram a senhora Perpetua 
e a mãe do esculptor Phebo. 

Ào-pé da varanda, aberta, deixando ver a lua 
reflectir a sua luz nos telhados, nas torres, nas 
soteas, com tanta mais força que a chuva passada 
as tinha húmidas ainda, envolvido tudo na cor 
azul do seu véo mysterioso, conversavam outras 
duas creaturas bem deslembradas do que as rodea- 
va. A conversa não era das mais seguidas ; bem 
pelo contrario, interrompia-se a cada momento, fi- 
cando os dous, Maria e o filho do senhor Thomaz 
Lever, com os olhos fitos no chão, ou cravados no 
céo, como se tivessem esgotado todos os seus re- 
cursos de dialéctica, expresso tudo que podesse 
haver que dizer entre os dous. E não tinham ex- 
pressado nem sequer a ideia mais fixa que havia 
muito os dominava. A cada palavra indifferente, a 
cada dito insignificante torturava Phebo as abas do 
seu chapéo de feltro, e a cor do carmim vinha ás 
faces da sua interlocutora. 



248 A RUA ESCURA. 

— Teria saudades minhas, se me embarcasse, 
como foi meu desejo? — interrogou o moço depois 
de um longo intervallo de silencio, era que a furto 
tinham estado a olhar um para o outro. 

A pergunta vinha destacada, sem ligação ás 
phrases antecedentes, como é de costume quando 
se quer sustentar uma conversa de sobreposse, e se 
anda á caça de um pensamento qualquer, ou quan- 
do, tendo -se ideia fixa que se receia exprimir, um 
momento de resolução a traz repentina, sem nexo 
com passadas falias. 

— Muitas, muitas I senhor Phebo, — exclamou 
Maria, corando logo em seguida com pejo do seu 
arrebatamento. 

— Não creio — redarguiu Phebo, não creio; — 
esquecia-me logo... em três dias de ausência. 

— Esquecel-o — balbuciou Maria Aldoar ; — 
bem sabe que era impossível I 

O esculptor, animado com as palavras de 
Maria, ousou tomar-lhe uma das màos, e, fixos os 
seus nos olhos meigos da moça, interrogou : 

— Impossível ! por que? 

— Porque — respondeu com voz trémula, as 
faces em fogo, os olhos cravados no chão, a sobri- 
nha da senhora Perpetua — porque não poderia vi- 
ver... bem sabe porque. Quero-lhe muito. — E le- 
vantando os olhos, com elles tacitamente pareceu 
interrogar Phebo. 

— Eu ! muito, muito — disse o mancebo aper- 
tando-lhe a mão de encontro ao coração. 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 249 

Os dous acabavam de dizer com tanto custo 
o que já de ha muito sabiam, o que mutuamente 
tinham lido nos olhares, nos gestos, adivinhado 
nas meias palavras um do outro. 

Mas sabe a leitora o valor daquellas palavras, 
a emoção que trazem? 

— Muito I muito I — repetiram ambos d'ahi a 
um instante, erguidos e fitando o céo como se 
quizessem tomar a Deus por testemunha da sua 
palavra. 

Eram tão felizes naquelle momento I 



EPILOGO. 



AO SOilHHRO. 



4. 



lo anno de 1629, pelos meados de fevereiro, 
transportamos os leitores para os fazer assistir a 
uma conversa das respeitáveis gazetilheiras da ci- 
dade, as senhoras Anna Gertrudes, Brazia dos An- 
jos e outras, reunidas em cortes de soalheiro á 
porta da egreja da Só. Suppresso podia ser este 
salto, se quizessemos dar-nos ao trabalho de em 
resumo narrar o que succedeu a todas as persona- 
gens desta historia ; porém, como o nosso Plauto, 
queremos que 

Vejais... 

Que coutas pastaram. ., 

E os mesmos da historia pelo natural. 

E quanto aliaram, nem menos nem mais. 

Poupa-nos este meio, além d' isso, reflexões 



252 A RUA ESCURA. 

moraes, que o leitor a bel-prazer fará, se qaizer, 
e explicações fastidiosas. Talvez haja mesmo quem 
tenha saudades da senhora Gertrudes. 

A donzella não tinha perdido nada da formo- 
sura minguadissima qúe Deus lhe concedera, nem 
da robustez que na boa vida grangeara. 

A missa do dia, que era ura domingo pela 
volta das dez e um quarto, tinha concluído e a 
tafularia da terra desfilava com o seu apparato de 
pagens e criados, formando pequenas fileiras de 
dez e doze creaturas quasi sempre a um de fundo, 
marchando com toda a gravidade. "Por alli seguia 
uma dona respeitável, entalado o pescoço em um 
enorme cabeção levantado, espécie de leque que 
lhe tirava o sol das costas e cabeça, moda que 
no tempo de Filippe I bastante voga teve; era pre- 
cedida por dous lindos meninos, e seguida por três 
creadas, um pagem com um banquinho de ajoelhar 
e outro com o livro de orações: além desfilava 
um cortejo de mulheres, da burguezia, envoltas nas 
suas mantilhas, caminhando a passos lentos, so- 
lemnes, com ares de penitentes em procissão da 
semana santa; mais para outro lado uma turma 
de negociantes conversando nas suas transacções; 
por acolá, duas ou três damas, a quem seguiam 
outros tantos cavalheiros dizendo requebros e fine- 
zas, caminhando sobre as pontas dos pés, e tregei- 
tando; em fim o Porto mostrava os representantes 
de todas as classes dos seus moradores á luz do 
sol. As nossas comadres, como os tafues da épocha 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 253 

não se esqueciam nunca de, terminando a missa, 
virem desabafar e tirar a lume todas as reflexões 
que na egreja entre paters e aves vagar tinham de 
fazer, se é que já lá mesmo não tinham podido 
deixar de desabafar. 

— Ora Deus a fade bem — dizia uma das aco- 
Jytas da senhora Gertrudes — Deus a fade bem. 

— De boa escapou I — accrescentou o presi- 
dente do conciliábulo, a respeitável donzella. — E 
eu que tinha para mim que melhor lhe teria sido 
attender ao outro. Olhe o que seria feito da po- 
bresinha t 

— É verdade ! À gente engana-se. Neste mun- 
do não se pôde dizer, isto será assim. A gente vê 
caras e não corações. 

— Ainda no dia de Reis, do anno passado, não 
se lembra ? lhe disse eu — proseguiu a senhora 
Gertrudes — que não sabia como ella desprezava 
aquelle partido. 

— É verdade I E também quem havia de con- 
tar que um homem tão temente a Deus, ao que 
parecia, sizudo, esmoler, sahisse tão ruim. 

— Deus sempre faz as cousas pelo melhor — 
exclamou a senhora Brazia — Sempre ouvi dizer 
que o cazamento e a mortalha no céo se talha. 

— E quem sabe se ainda irá desta vez. 

— Pois porque não ha-de ir? Bem ouviu apre- 
goar os banhos. 

— O rapaz é o santeiro. 

— E Deus os abençoe, como disse ; mas lá 






254 

grande fortun 
tem o que as 
uma delambid 
A senboi 
perdida a mé 
tractava de ge 
matéria de au 
solteirona o * 

— Quem 
fallar— o rap 
Unte, e peior 

— Nem e 
pre que se ti 
pasteleiro. Cr 
a gente para 

— Como 
tos, crealura 

— Pois n 
les banhos na 

— Ottvi. 

— PoÍS £ 

de um pastel 
sim bem se ( 
em baixo, na 
cbristào; vai 
ao bater á pc 
chamar gente 
rombou-se a 
e que haviam 
Ver? 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 255 

— O que? — perguntou a mulher com os olhos 
muito arregalados. 

— que?. disse a senhora Gertrudes — 

interrompendo-se logo para se pôr a abanar a cabeça 
a fim de fazer augmentar a curiosidade da sua co- 
nhecida. 

— Ent&o? — exclamou esta, vendo que não 
terminavam os gestos da solteirona. 

— Jesus I até se me arripiam os cabellos! 

— Pois que foi ? * 

— Que foi ? Acharam dentro um rapaz, um 
guapo moço, aquelle fidalgote, senhora Brazia, que 
no dia de Reis chegou com aqueloutro da go- 
vernança de Madrid... 

— Mas que mais — interrogou a senhora Brites. 

— Que mais ? É que o tal fidalgote estava 
morto, cortado em pedaços... 

— Dizem — atalhou a senhora Brazia — que 
até já estava salgado. O maldito matava os hos- 
pedes para delles fazer guizados, como se um chris- 
tâo fosse um porco. 

— Credo 1 — exclamou a senhora Brites, le- 
vantando as mios abertas á altura da cabeça, e per- 
signando-se depois. 

— DisseramHQoe — ajuntou uma das acolytas — 
que também lá estava a feiticeira d'ao-pé da Sé. 

— Andavam feitos ? — perguntou a senhora 
Brites. 

— Nfro se sabe ; mas parece que nfto : a mu- 
lher estava morta. Talvez elle também a affogasse. 



256 A RUA BSCUBA. 

— Parece que sim — disse uma outra — a 
quem a viu, ouvi dizer que tinha uma nódoa no 
pescoço. D'essa nfio se perde nada. Acharam-lhe 
ainda nas mãos uma coisa de bruxedo : uma coisa 
assim a modo de medalha... com cabellos e letras. 

— E que fizeram a esse homem? 

— Foi a enforcar... na forca da cidade, e de- 
pois arrazada a casa... 

A conversa foi interrompida aqui por uma voz 
plangente que cantava uma canção monótona. 

Às matronas voltaram-se para o lado d'onde 
vinha aquelle som. 

Uma mulher, moça ainda, trajando roupas mo- 
destas e limpas, atravessava o páteo da Sé. No rosto 
havia uns longes de belleza a patentearem-se por 
entre o véu com que a loucura a envolvera, mas 
de todo não apagara. 

Era ella a que cantava. 

. — A doida, que o santeiro agazalhou em casa 
— exclamou a senhora Brazia. 

— Foi uma obra de caridade — ajuntou outra 
das mulheres. 

— Caridade... caridade! — resmungou a senhora 
Anna. Quem sabe? talvez divida. Quem sabe o que 
vai ? Não foi ella tão feia que... Mas eu não quero 
ser má lingua. A noiva que com elle se avenha, se 
alguma cousa tiver a deslindar. Em fim sempre é 
caridade: apezar de que — insistiu aquella lingua 
mordaz — eu não tinha de portas a dentro, em mi- 
nha casa, a filha de uma bruxa. 



TRADIÇÃO PORTUENSE. 257 

O leitor já adivinhou quega seria a pobre mu- 
lher ? 

Era Beatriz. 

A reunião do soalheiro continuou a commentar 
com todos os vagares a vida dos noivos, de Phebo 
e Maria Aldoar, baralhando verdade seja, augmen- 
tando e desformando os factos, que até aqui ti- 
nham feito. As comadres não eram mulheres que 
não sabendo um ponto o passassem por alto. Com- 
punham, redigiam á sua vontade. caso é que a 
versão até nós mais seguida e popular do successo 
que narramos, tem sido a que sahiu da lingua de 
prata da senhora Anna Gertrudes. Para apurar a 
verdade desta nossa historia não pouca paciência 
foi precisa. 



FIM. 



Vi 



THE BORROWER WILL BE CHARGED 
THE COST OF OVERDUE NOTIFICATTON 
IF THIS BOOK IS NOT RETURNED TO 
THE LIBRARY ON OR BEFORE THE LAST 
DATffin&XAMRED..BELOW. \ 




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