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Full text of "As aventuras do Sr. Pickwick, romance"

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Ltçboà  ^ 


As  Aventuras 


Sr.  P 


DO 


ICKWICK 


ROMANCE 

DE 


Charles  Dickens 


VF.RSAO  PORTUGUEZA     - 


Henrique  Lopes  de  Mendonça 


"V^olvirne    I 


LISBOA 

"ti..         — 
TypoGRAPHiA^-' Rua  da  Barroca,  n."  73,  2.°  andar 

"       1897    .^ 


DEC  2  o  1967 


^i^í-Ti'  Cf  ^^'':.^ 


•«5i  J 


As  Aventuras  do  Sr.  Piclíwíck ' 


CAPITULO  I 
Os    píckwickanos 


O  primeiro  raio  de  luz  que  illumina  as  trevas,  e  converte 
em  deslumbrante  esplendor  aquella  obscuridade  em  que  pa- 
receria envolver-se  a  primitiva  historia  da  carreira  publica  do 
immortal  Pickwick,  provém  da  leitura  do  seguinte  aponta- 
mento contido  nas  Actas  do  Club  Pickmck,  o  qual  o  editor 
doestes  papeis  tem  o  extremo  prazer  de  expor  aos  olhos  dos 
leitores,  como  prova  da  cuidadosa  attençao,  de  infatigável  as- 
siduidade e  de  excellente  discernimento,  com  que  foram  con- 
duzidas as  suas  investigações  por  entre  os  múltiplos  doeu 
mentos  a  elle  confiados, 

<'i2  de  maio  de  1827.  Presidente:  Joseph  Simggers,  Esq., 
V.  P.  P.  S.  C.  P.  ~  Tomadas  por  unanimidade  as  seguintes 
decisões  : 

<-Que  esta  x^ssociação  ouviu  ler,  com  sentimentos  da  mais 
pura  satisfação  e  de  incondicional  applauso,  a  nota  communi- 
cada  por  Samuel  Pickwick,  Esq.,  P.  G.  S.  C.  P.,  ^  intitulada: 
Considerações  sobre  a  origem  das  lagoas  de  Hampstead^  com 


'  E'  a  seguinte  a  traducção  completa  do  primitivo  titulo  com  que  foi  pu- 
blicado o  presente  romance: 

«Os  papeis  posthumos  do  Club  Pickwick,  contendo  um  registo  fiel  das 
passeiatas,  perigos,  viagens,  aventuras,  e  diversões  dos  membros  correspon- 
dentes.» 

-  Vice-presidente  perpetuo— sócio  do  Club  Pickwick. 

'  Presidente  geral— sócio  do  Club  Pickwick. 


AS   AVENTURAS 


algumas  observações  sobre  a  theoria  dos  gyrinos;  e  que  esta 
Associação  dirige  por  este  motivo  os  mais  calorosos  agrade- 
cimentos ao  dito  Samuel  Pickwick,  Esq.,  P.  G.  S.  C.  P. 

«Que,  estando  os  membros  d'esta  Associação  profunda- 
mente convictos  das  vantagens  que  devem  resultar  para  a 
causa  da  sçiencia,  assim  da  producção  á  qual  acabam  de  allu- 
dir,  como  das  incansáveis  pesquizas  de  Samuel  Pickwick, 
Esq.,  P.  G.  S.  C.  P.,  em  Hornsey,  Highgate,  Brixton  e  Cam- 
berwell,  não  podem  deixar  de  alimentar  a  profunda  convicção 
dos  inestimáveis  benefícios  que  inevitavelmente  se  seguiriam, 
caso  se  levassem  a  mais  vasto  campo  as  explorações  d'aquelle 
homem  de  sçiencia,  estendendo  as  suas  viagens*  e  por  conse- 
guinte alargando  a  sua  esphera  de  observação,  para  o  pro- 
gresso do  saber  humano,  e  para  o  desenvolvimento  da  ins- 
trucção. 

"Que  no  propósito  acabado  de  mencionar,  esta  Associa- 
ção tomou  na  mais  seria  consideração  a  proposta,  provinda 
do  sobredito  Samuel  Pickwick,  Esq.,  P.  G.  S.  C.  P.,  e  de  três 
outros  sócios  abaixo  designados,  afim  de  formar  um  novo 
ramo  da  União  Pickwickana,  sob  o  titulo  de  «Sociedade  Cor- 
respondente do  Club  Pickwick.» 

"Que  a  dita  proposta  recebeu  a  sancção  e  os  applausos 
doesta  Associação. 

"Que  a  Sociedade  Correspondente  do  Club  Pickwick  fica, 
portanto,  por  esta  forma  constituída;  e  que  Samuel  Pickwick, 
Esq.,  P.  G.  S.  C.  P.,  Tracy  Tupman,  Esq.,  S.  C.  P.,  Augustus 
Snodgrass,  Esq,  S.  C.  P.,  e  Nathaniel  Winkle,  Esq.,  S.  C.  P., 
são  por  este  modo  nomeados  e  eleitos  membros  da  dita  Socie  • 
dade  :  e  que  são  solicitados  para  remetterem,  de  tempos  a  tem- 
pos, relatórios  authenticos  das  suas  jornadas  e  investigações; 
das  suas  observações  sobre  o  caracter  e  os  costumes ;  e  do 
conjuncto  das  suas  aventuras,  assim  como  todas  as  narrativas 
e  documentos,  a  que  possam  dar  origem  a  paizagem  ou  asso- 
ciedades  locaes,  ao  Club  Pickwick  com  sede  em  Londres. 

"Que  esta  Associação  assente  cordealmente  ao  principio 
de  cada  um  dos  membros  da  Sociedade  correspondente  pro- 
ver ás  suas  próprias  despezas  de  viagem,  e  que  não  vê  objec- 
ção de  espécie  alguma  em  que  os  membros  da  alludida  so- 
ciedade prosigam  as  suas  pesquizas,  sob  as  mesmas  condições, 
durante  o  praso  que  lhes  aprouver. 


DO  SR.   PICKWICK 


«Que  os  membros  da  sobredita  Sociedade  Correspondente 
sejam,  e  são  d'esta  arte  informados,  que  a  sua  proposta  para 
pagar  a  franquia  das  suas  cartas  e  o  transporte  das  suas  ba- 
gagens, foi  submettida  á  deliberação  d'este  Club.  Que  esta  Asso- 
ciação considera  uma  tal  proposta  digna  dos  grandes  espiriíos 
dos  quaes  emana;  e  que  por  esta  forma  lhe  manifesta  a  sua 
cabal  acquiescencia.i) 

Um  observador  casual,  accrescenta  o  secretario  a  quem 
devemos  os  apontamentos  para  o  relatório  que  segue  —  um 
observador  casual  não  poderia  porventura  notar  cousa  algu- 
ma de  extraordinário  na  cabeça  calva  e  nos  óculos  circula- 
res, que  estavam  attentamente  voltados  para  o  rosto  d'elle 
secretario,  durante  a  leitura  das  resoluções  acima  exaradas. 
Para  aquelles  que  soubessem  que  o  cérebro  gigantesco  de 
Pickwick  estava  em  elaboração  por  detraz  d'aquella  fronte, 
e  que  os  olhos  radiantes  de  Pickwick  pestanejavam  por  de- 
traz d'aquellas  lentes,  o  espectáculo  era  deveras  interessante. 
Ali  se  sentava  o  homem  que  traçara  até  ás  origens  as  pode- 
rosas lagoas  de  Hampstead,  e  que  agitara  o  mundo  scienti- 
fico  com  a  sua  theoria  dos  gyrinos ;  ali  estava  elle  tão  se- 
reno e  impassivel  como  as  profundas  aguas  de  uns  n'um  dia 
de  gelo,  ou  como  um  espécimen  isolado  dos  outros,  nos  Ín- 
timos recessos  de  uma  bilha  de  bano. 

E  quanto  mais  interessante  se  tornou  esse  espectáculo, 
quando,  immergindo  na  vida  plena,  na  occasião  em  que  dos 
lábios  dos  seus  consócios  rebentou  uma  invocação  simultâ- 
nea a  «Pickwick»,  esse  illustre  sábio  subiu  vagarosamente  á 
cadeira  da  presidência,  onde  estivera  a  começo  sentado,  e 
dirigiu  a  palavra  ao  club  que  elle  próprio  fundara !  Que 
estudo  proporcionaria  a  um  artista  essa  importaute  scena  ! 
O  eloquente  Pickwick,  com  uma  das  mãos  graciosamente 
dissimulada  por  dentro  das  abas  da  casaca,  e  a  outra  on- 
dulando nos  ares  para  lhe  auxiliar  a  scintillante  declama- 
ção ;  a  sua  posição  elevada  revelando  os  laços  do  sapato 
e  as  polainas,  objectos  que,  caso  revestissem  qualquer  ho- 
mem vulgar,  poderiam  ter  passado  sem  observação,  mas 
que,  quando  Pickwik  os  revestia — se  nos  é  licita  a  expres- 
são—  inspiravam  um  terror  e  um  respeito  involuntários; 
cercado  pelos  homens  que  espontaneamente  se  offereciam 
a  partilhar  os  perigos  das  suas  viagens,  e  que  se  destinavam 


AS   AVENTURAS 


a  participar  das  glorias  das  suas  descobertas.  A'  sua  mão 
direita,  sentava  se  o  sr.  Tracv  Tupman ;  esse  Tupman  em 
extremo  susceptível,  que  á  prudência  e  á  experiência  dos  an- 
nos  varonis  acrescentava  o  enthusiasmo  e  o  ardor  da  moci- 
dade, na  mais  interessante  e  perdoável  das  humanas  fraque- 
zas —  o  amor.  O  tempo  e  a  coraesaina  haviam  alargado  aquella 
outr'ora  romanesca  figura;  o  collete  de  seda  preta  havia-se 
desenvolvido  cada  vez  mais;  pollegada  a  pollegada,  a  áurea 
cadeia  de  relógio,  que  o  ornava,  desapparecera  do  campo 
visual  de  Tupman  ;  e  o  espaçoso  mento  havia^se  gradualmente 
extravasado  dos  bordos  da  gravata  branca;  porém  a  alma 
de  Tupman  não  conhecera  mudança  —  a  sua  paixão  domina- 
dora continuava  a  ser  a  admiração  pelo  bello  sexo.  A'  es- 
querda do  seu  grande  chefe  estava  sentado  o  poético  Snod- 
grass,  e  ao  pé  d'elle  o  fragueiro  Winkle,  amador  do  spo7't,  o 
primeiro  poeticamente  envolto  n'uma  mysteriosa  casaca  azul 
com  gola  de  pelle  de  cão,  e  o  ultimo  communicando  um  bri- 
lho addicional  a  uma  grande  casaca  de  caça,  e  lenço  escocez 
ao  pescoço. 

O  discurso  do  sr.  Pickwick  por  esta  occasião,  assim  como  o 
debate  a  que  deu  logar,  encontra-se  nas  Actas  do  Club.  Tanto 
um  como  outro  assemelham-se  de  perto  ás  discussões  de  ou- 
tras corporações  celebres  ;  e,  como  quer  que  seja  sempre  in- 
teressante o  determinar  as  analogias  entre  o  proceder  dos 
grandes  homens  ;  para  estas  paginas  trasladamos  a  respectiva 
nota: 

"O  sr.  Pickwick  observou  (diz  o  secretario)  que  a  fama 
seduzia  o  coração  de  todos  os  homens.  A  fama  poética  sedu- 
ziu o  coração  do  seu  amigo  Snodgrass ;  a  fama  de  conquista- 
dor seduziu  egualmente  o  coração  do  seu  amjigo  Tupman; 
e  o  desejo  de  alcançar  fama,  nos  vários  sports  do  campo,  do 
ar  e  da  agua,  era  extremo  no  peito  do  seu  amigo  Winkle. 
Elle,  orador,  não  negaria  que  era  influenciado  por  paixões 
humanas  e  por  sentimentos  humanos,  (Applausos)  —  porven- 
tura por  fraquezas  humanas  —  (Gritos:  «Não!»J;  affirmaria 
porém,  que,  se  alguma  vez  o  fogo  da  vaidade  lhe  rebentou 
no  seio,  o  desejo  de  beneficiar  a  raça  humana  o  extinguia 
efficazmicnte.  O  louvor  de  humanidade  é  que  lhe  dava  o  im- 
pulso ;  a  philantropia  era  o  seu  seguro  contra  incêndio.  (Ve- 
hementes  applausos).  Sentira  um  certo  orgulho  —  espontânea- 


DO   SR.   PICKWICK 


mente  o  reconhecia ;  e  que  os  seus  inimigos  se  avantajassem 
da  confissão  — sentira  um  certo  orgulho  ao  apresentar  a  sua 
theoria  dos  gyrinos  ao  mundo ;  possível  é  que  ella  fosse  celebre 
ou  não. fUm  grito  de  «E',  é\»  e  gi-andes  applausos).  Admittiria  a 
asserção  do  digno  pickwickano  cuja  voz  acabava  de  ouvir  — 
a  theoria  seria  celebre;  mas  se  a  fama  d'aquelle  tractado  de- 
vesse estender-se  até  aos  mais  remotos  confins  do  mundo 
conhecido,  o  orgulho  com  que  elle  havia  de  confessar-se  au- 
ctor  d'essa  producção,  nada  seria  comparado  com  o  orgulho 
com  que  elle  olhava  em  torno  de  si  n'esse  momento,  o  mais 
soberbo  de  sua  existência.  (Applausos).  Elle  não  passava  de 
uma  personalidade  humilde.  (Não,  não  í)  Entretanto  não  po- 
dia deixar  de  comprehender  que  o  haviam  escolhido  para  um 
serviço  de  grande  honra  e  de  algum  risco.  As  jornadas  atra- 
vessavam um  periodo  inquietador,  e  as  cabeças  dos  cochei- 
ros andavam  transtornadas.  Que  olhassem  todos  pelo  mundo 
fora,  e  contemplassem  as  scenas  que  se  estavam  represen- 
tando em  volta  de  si.  Por  todos  os  lados  se  viravam  diligen- 
cias, os  cavallos  tomavam  o  freio  nos  dentes,  voltavam-se  os 
barcos,  e  arrebentavam  caldeiras.  [Applausos — uma  vo^: 
«/55o  não!).  Não!  (Applausos).  Que  esse  digno  pickwickano 
que  gritara  alto  «Não!«  se  adiantasse  e  o  desmentisse,  se  era 
capaz  d'isso.  (Applausos).  Quem  fora  que  gritara  «Não  ^» 
(Applausos  enthusiasticos).  Porventura  algum  homem  pre- 
sumpçoso  e  despeitado  —  não  lhe  chamaria  um  reles  capel- 
lista — que,  cioso  dos  louvores  que  haviam  sido  —  talvez  im- 
merecidamente  —  concedidos  ás  investigações  d'eile  orador, 
e  dorido  pelas  censuras  que  se  tinham  accumulado  sobre  as 
suas  débeis  tentativas  de  rivalidade,  lançava  agora  mão  d'esse 
vil  e  calumnioso  systema  de. .  . 

«O  sr.  Blotton  (de  Aldgatei  toma  a  palavra  sobre  a  or- 
dem.) Acaso  o  digno  pickwickano  alludia  a  elle?  (Gritos  de 
('Ordem»,  ((A' ordem  t»  «Sim!»  «Não  l»  «Continue»,  « Silencio! 
etc). 

«O  sr.  Pickwick  não  toleraria  que  lhe  quizessem  tapar  a 
bocca  com  berros.  Elle  tinha  de  feito  alludido  ao  digno  ca- 
valheiro. (Grande  excitação). 

«O  sr.  Blotton  apenas  diria,  pois,  que  elle  repellia  a  falsa 
e  grosseira  accusação  do  digno  orador,  com  o  mais  profundo 
despreso.  (Grande  algazarra.)  O  digno  cavalheiro  o  que  era. 


8  AS  AVENTURAS 


era  um  pantomimeiro.  (Immensa  confusão,  e  gritos  clamoro- 
sos de  «A'  ordem  '.») 

«O  sr.  Snodgrass  toma  a  palavra  sobre  a  ordem.  Appella 
para  a  presidência.  (Ouçam  l)  Desejava  saber  se  sepermit- 
tiria  a  continuação  d'esta  lamentável  contenda  entre  dois 
membros  d'este  club.  (Ouçam,  ouçam  !J 

«O  presidente  estava  ceriissimo  que  o  digno  pickwickano 
retiraria  a  expressão  de  que  acabara  de  servir-se. 

«O  sr.  Blotton,  com  todo  o  respeito  possivel  pelo  presi- 
dente, estava  certíssimo  que  não. 

"O  presidente  sentia  que  era  seu  dever  restricto  o  pergun- 
tar ao  digno  cavalheiro  se  acaso  elle  se  servira  da  expressão 
que  acabava  de  lhe  escapar  dos  lábios,  na  sua  accepção 
commum. 

«O  sr.  Blotton  não  hesitava  em  declarar  que  não  —  que 
elle  usara  d'aquelle  termo  na  sua  accepção  pickwickana. 
(Ouçam,  ouçam  '.)  Via-se  forçado  a  reconhecer  que,  pessoal- 
mente, elle  'mantinha  pelo  digno  cavalheiro  a  mais  alta  estima 
e  consideração;  considerara-o  apenas  pantomimeiro  sob  o 
ponto  de  vista  essencialmente  pickwickano.  (Ouçam,  ou- 
çam !J 

«O  sr.  Pickwick  sentia-se  extremamente  satisfeito  pela 
bella,  cândida  e  plena  explicação  do  seu  digno  amigo.  Ro- 
gava a  todos  que  comprehendessem,  de  uma  vez  para  sem- 
pre, .que  as  suas  próprias  observações  haviam  tido  também 
uma  intenção  meramente  pickwickana.  (Applausos).» 

Aqui  terminam  os  apontamentos,  como  não  duvidamos 
que  o  mesmo  houvesse  também  acontecido  ao  debate,  depois 
de  ter  chegado  a  um  ponto  por  tal  forma  satisfactorio  e  in- 
telligivel.  Não  possuímos  relatório  official  dos  factos  que  o 
leitor  achará  rememorados  no  capitulo  seguinte;  esses  factos, 
porém,  foram  cuidadosamente  colligidos  de  cartas  e  outros 
documentos  manuscriptos,  tão  inquestionavelmente  authen- 
*«cos,  que  justificam  a  sua  narrativa  sob  uma  forma  coorde- 
naud. 


DO  SR.  PICKWICK 


CAPÍTULO  II 

Jornada  do  primeiro  dia,  e  aventuras  da  primeira 
tarde,  com  as  suas  consequências 


Acabava  de  se  erguer  o  sol,  esse  pontual  servidor  de  to- 
dos os  trabalhos,  e  começara  a  illuminar  a  manha  de  1 3  de 
maio  de  1827,  quando  o  sr.  Samuel  Pickwick,  qual  outro  sol, 
emergia  do  seu  torpor;  escancarou  a  janella  do  seu  quarto,  e 
olhou  para  fora  sobre  o  mundo  que  elle  dominava. 

Aos  seus  pés  estava  Goswell-street,  á  sua  mão  direita  es- 
tava Goswell-street  —  tanto  quanto  a  vista  podia  alcançar, 
Goswell-street  estendia-se  á  sua  esquerda ;  e  na  sua  frente 
estava  o  lado  opposto  de  Goswell-street.  «Taes  são,  pensou 
o  sr.  Pickwick,  as  vistas  acanhadas  d'aquelles  philosophos 
que,  satisfeitos  com  o  exame  das  coisas  que  jazem  defronte 
eVelles,  não  reparam  nas  verdades  que  além  d'ellas  se  occul- 
tam.  Da  mesma  forma  poderia  eu  satisfazer-me  em  ficar  toda 
a  minha  vida  embasbacado  para  Goswell-street,  sem  um 
único  esforço  para  penetrar  n'essas  regiões  occultas  que  por 
todos  os  lados  cercam  esta  rua.»  E  tendo  soltado  esta  miri- 
fica  reflexão,  o  sr.  Pickwick  tratou  de  enfiar  o  corpo  nas  suas 
roupagens,  e  de  metter  as  roupagens  na  mala.  E'  raro  que  os 
grandes  homens  sejam  sobremaneira  escrupulosos  nos  ata- 
vios da  toilette ;  n'um  instante  se  concluiu  a  operação  de  bar- 
bear-se,  vestir-se  e  engulir  o  café ;  e,  passada  mais  uma  hora, 
o  sr.  Pickwick,  com  a  mala  na  mão,  o  seu  óculo  na  algibeira 
do  sobretudo,  e  o  livrinho  de  lembranças  no  coUete,  prestes 
a  receber  quaesquer  descobertas  dignas  de  menção,  tinha 
chegado  á  estação  de  carruagens  em  Saint-Martin-le-Grand. 

—  Um  cab  \  exclamou  o  sr.  Pickwick. 

—  Prompto,  patrão,  bradou  um  estranho  espécimen  da 
raça  humana,  envolto  n'um  casaco  de  serapilheira  e  avental 
da  mesma,  que,  com  uma  chapa  de  cobre  numerada,  pendente 
do  pescoço,  parecia  catalogado  em  alguma  coUecção  de  rari- 
dades. Era  o  chefe  da  praça.  «Prompto,  patrão.  Gira  lá,  pri- 


IO  AS   AVENTURAS 


meiro  cocheiro  !•>  E  logo  que  o  primeiro  cocheiro  foi  pescado 
na  taberna,  onde  estava  a  fumar  a  primeira  cachimbada,  o  sr. 
Pickwick  mais  a  sua  mala  foram  atirados  para  dentro  do  ve- 
hiculo. 

—  Golden  Cross,  disse  o  sr.  Pickwick. 

—  Isto  não  passa  de  um  ganchinho,  Tommy,  gritou  o  co- 
cheiro com  mau  modo,  para  conhecimento  do  chefe  da  praça, 
quando  o  cab  i.e  poz  em  marcha. 

—  Que  edade  tem  esse  cavallo,  meu  amigo  ?  interrogou  o 
sr.  Pickwick,  esfregando  o  nariz  com  o  shilling  que  elle  re-' 
servára  para  pagar  a  corrida. 

—  Quarenta  e  dois  annos,  replicou  o  cocheiro,  olhando-o 
de  revez. 

—  Como !  exclamou  o  sr.  Pickwick,  pondo  a  mão  no  li- 
vrinho de  lembranças. 

O  cocheiro  repetiu  a  sua  primeira  declaração.  O  sr. 
Pickwick  encarou  fixamente  o  homem,  mas,  como  as  feições 
d'este  ficassem  impassíveis,  tomou  immediatamente  nota  do 
facto. 

—  E  quanto  tempo  se  demora  você  com  elle  cá  por  fora  ? 
perguntou  o  sr.  Pickwick,  em  cata  de  novas  informações. 

—  Duas  ou  três  semanas,  redarguiu  o  homem. 

—  Semanas  !  disse  o  sr.  Pickwick  pasmado  —  e  novamente 
sacou  da  carteira. 

—  E'  que  elle  mora  em  Pentonwill,  é  lá  a  casa  d'elle,  ob- 
servou o  cocheiro  friamente ;  mas  a  gente  quasi  nunca  o  leva 
para  casa,  por  andar  muito  fraquinho. 

—  Muito  fraquinho,  repetiu  attonito  o  sr.  Pickwick. 

—  Elle  ferra  comsigo  no  chão,  apenas  a  gente  o  tira  do 
cab,  continuou  o  cocheiro,  mas  quando  elle  está  aos  varaes, 
então  uma  pessoa  põe-o  ali  teso  e  direito  que  é  um  gosto,  de 
forma  que  elle  não  pode  estender-se,  e  tem  a  gente  aqui  um 
par  de  rodas  grandes  que  é  mesmo  uma  delicia ;  e  então,  em 
elle  se  mexendo,  ellas  desatam  a  correr  atraz  d'elle,  e  elle 
então  não  tem  remédio  senão  andar. 

O  sr.  Pickwick  assentou  todos  os  termos  d'esta  declara- 
ção no  seu  livrinho,  com  o  propósito  de  a  communicar  ao 
club,  como  um  exemplo  singular  da  tenacidade  da  vida  nos 
ca\'allos,  em  circumstancias  penosas.  Mal  tinha  completado 
a  sua  nota,  chegavam  a  Golden  Cross.  O  cocheiro  saltou  da 


DO  SR.   PICKWICK 


almofada,  e  o  sr.  Pickwick  apeiou-se.  Os  srs,  Tupman,  Snod- 
i^rass  e  Winkle,  que  estavam  anciosos  á  espera  do  seu  illusire 
chefe,  acorreram  a  cumprimental-o. 

—  \qu[  tem  pela  corrida,  disse  o  sr.  Pickwick  estendendo 
o  shilling  ao  cocheiro. 

Qual  foi  o  espanto  do  erudito  cavalheiro,  quando  aquelle 
extraordinário  sujeito  arrojou  o  dinheiro  para  cima  da  cal- 
çada, e  soUcitou  por  mimica  que  lhe  fosse  concedido  o  pra- 
zer de  jogar  á  pancada  com  elle  Pickwick,  para  paga  do  seu 
serviço ! 

—  Você  está  doido,  disse  o  sr.  Snodgrass. 

—  Ou  bêbado,  disse  o  sr.  Winkle. 

—  Ou  ambas  as  cousas,  disse  o  sr.  Tupman. 

—  Venha  para  cá,  disse  o  cocheiro,  socando  no  ar  com 
movimentos  de  relojoaria.  Venham  para  cá  —  todos  qua- 
tro. 

—  Temos  pandega !  berraram  meia  dúzia  de  cocheiros  de 
praça.  Atira-te  a  elles,  Sam. 

È  agglomeraram-se  com  grande  jubilo  em  volta  do  grupo. 

—  Que  bulha  é  essa,  Sam  ?  perguntou  um  sujeito  de  man- 
gas de  chita  preta. 

—  Que  bulha  é  !  replicou  o  homem  do  cab,  para  que  diabo 
queria  elle  saber  o  meu  numero  .'' 

—  Eu  quiz  lá  saber  o  seu  numero !  disse  com  espanto  o 
sr.  Pickwick. 

—  Então  para  que  é  que  você  m'o  tomou  ?  perguntou  o 
cocheiro. 

—  Não  tomei  tal,  disse  o  sr.  Pickwick  indignado. 

—  Quem  é  que  podia  passar-lhe  pela  ideia,  continuou  o 
cocheiro,  appellando  para  a  multidão,  que  um  espia  havia 
de  andar  no  cab  de  uma  pessoa,  não  só  para  lhe  assentar  o 
numero,  mas  tudo  o  que  a  gente  diz  em  modo  de  conversa? 

Relampejou  uma  luz  no  cérebro  do  sr.  Pickwick  :  era  o  li- 
vrinho de  lembranças. 

—  Elle  fez  isso  deveras  ?  perguntou  outro  cocheiro. 

—  Está  claro  que  sim,  replicou  o  primeiro,  e  ainda  em 
cima,  depois  de  me  provocar  a  ferrar-lhe  uma  sova,  arranja 
trcs  testemunhas  para  o  defenderem.  Mas  deixa  estar  que 
m'as  pagas,  ainda  que  isso  me  custe  seis  mezes  de  cadêa.  Ve- 
nha para  cá  1 


12  AS  AVENTUIL\S 


E  O  cocheiro  ferrou  com  o  chapéo  no  chão,  sem  a  menor 
consideração  pelos  seus  haveres,  e  atirou  pelos  ares  os  ócu- 
los do  sr.  Pickwick,  e  proseguiu  o  ataque  com  um  murro  no 
nariz  do  sr.  Pickwick,  e  outro  no  peito  do  sr.  Pickwick,  e 
terceiro  no  olho  do  sr.  Snoagrass,  e  quarto,  para  variar,  no 
colleie  do  sr.  Tupman,  e  depois  saltou  em  passo  de  dança 
para  o  meio  da  rua,  e  em  seguida  voltou  de  novo  para  o  pas- 
seio, e  finalmente  despejou  do  corpo  do  sr.  Winkle  toda  a 
sua  provisão  temporária  de  fôlego ;  e  tudo  isto  em  meia  dúzia 
de  segundos. 

—  Onde  está  um  policia?  disse  o  sr.  Snodgrass. 

—  Mettam-os  debaixo  da  bomba,  suggeriu  um  vendedor 
de  pasteis  quentes. 

—  Ha  de  custar-lhe  caro,  arquejou  o  sr.  Pickwick. 

—  Espiões!  berrou  a  multidão. 

—  Venham  cá,  andem !  gritava  o  cocheiro,  que  não  ces- 
sara entretanto  de  esgrimir. 

A  turba  de  circumstantes  fora  até  então  espectadora  pas- 
siva da  scena,  mas  como  se  espalhara  entre  elles  a  convicção 
de  que  os  pickwickanos  eram  espias,  começavam  a  discutir 
com  considerável  vivacidade  a  conveniência  de  dar  execução 
á  proposta  do  fogoso  vendedor  de  pasteis  :  e  não  se  pôde 
suppôr  a  que  extremos  de  aggressão  pessoal  elles  haveriam 
chegado,  se  a  desordem  não  tivesse  sido  inesperadamente  ter- 
minada pela  intervenção  de  um  novo  personagem. 

—  Que  pagode  é  este?  disse  um  mancebo  alto  e  delgado, 
de  casaca  verde,  emergindo  repentinamente  da  cocheira. 

—  Espipes  !  berrou  de  novo  a  multidão. 

—  Não  somos  tal,  rugiu  o  sr.  Pickwick,  n'um  tom  que  le- 
vava a  convicção  a  qualquer  desapaixonado  ouvinte. 

—  Não  são,  deveras  —  não  são  ?  disse  o  mancebo,  diri- 
gindo-se  ao  sr.  Pickwick,  e  abrindo  caminho  atra  vez  da  turba 
pelo  infallivel  processo  de  acotovellar  as  caras  dos  seus  mem- 
bros componentes. 

Aquelle  homem  de  sciencia  explicou  em  poucas  e  pre- 
cipitadas palavras  a  verdadeira  situação. 

—  Venham  cá,  então,  disse  o  da  casaca  verde,  arrastando 
apoz  si  o  sr.  Pickwick  á  força,  e  fallando  durante  todo  o  ca- 
minho. Anda  cá,  n."  924,  toma  lá  o  teu  dinheiro,  e  safa-te  — 
um  cavalheiro  respeitável  —  meu  conhecido  —  não  é  lá  os 


JDÒ  áR.  PICKWICK  l3 


disparates  que  dizem — por  aqui,  senhor,  —  onde  param  os 
seus  amigos  ?  —  foi  tudo  engano,  já  vejo  —  não  se  afflija  — 
sempre  succedem  casos  —  as  familias  mais  pacatas  —  vá  lá  a 
gente  livrar  se  —  de  graças  a  Deus  —  o  que  elles  precisa- 
vam ...  —  sucia  de  malandros. 

E  com  uma  extensa  enfiada  de  phrases  análogas  cortadas, 
expressas  com  singular  volubilidade,  o  desconhecido  foi  se- 
guindo até  á  sala  de  espera  dos  viajantes,  levando  na  sua  piu- 
gada  o  sr.  Pickwick  e  os  seus  discípulos. 

—  Eh  !  rapaz  !  gritou  o  desconhecido,  tocando  a  campai- 
nha com  tremenda  violência,  copos  para  todos  —  brandy  e 
agua,  quente,  e  forte,  e  doce,  e  abundante  —  tem  o  olho  pi- 
sado, o  senhor  ?  Rapaz,  uma  costelleta  crua  para  o  olho  d'este 
cavalheiro  —  nada  como  costelleta  crua  para  uma  contusão; 
um  poste  frio  de  candeeiro  é  muito  bom,  mas  o  poste  é  pou- 
co commodo  —  é  uma  dos  diabos  estar  a  gente  no  meio  da 
rua,  meia  hora,  com  o  olho  pespegado  de  encontro  a  um 
poste  —  hein  !  —  bello  —  ah  !  ah  ! 

E  o  desconhecido,  sem  parar  para  tomar  a  respiração, 
enguliu  de  uma  golada  meio  quartilho  de  brandy  e  agua  a 
fumegar,  e  atirou-se  para  uma  cadeira  com  tanta  naturalidade 
como  se  nada  de  estranho  houvesse  occorrido. 

Emquanio  os  seus  três  companheiros  se  empenhavam 
com  todo  o  zelo  a  expressar  as  suas  graças  ao  seu  novo  co- 
nhecimento, o  sr.  Pickwick  teve  ensejo  de  lhe  examinar  o 
traje  e  o  aspecto. 

Era  pouco  mais  ou  menos  de  mediana  estatura,  mas  a 
magreza  do  corpo  e  o  comprimento  das  pernas  davam-lhe  a 
apparencia  de  ser  muito  mais  alto.  A  casaca  verde  tinha  sido 
um  traje  de  gala  nos  tempos  das  abas  em  rabo  de  andorinha, 
mas  n'esses  tempos  servira  evidentemente  de  atavio  a  um 
homem  muito  mais  pequeno  do  que  o  desconhecido,  porque 
as  mangas  cheias  de  nódoas  e  desbotadas,  mal  lhe  chegavam 
aos  pulsos.  Estava  hermeticamente  abotoada  até  ao  queixo, 
com  perigo  imminente  de  se  rasgar  nas  costas;  e  ornava-lhe 
o  pescoço  uma  gravatinha  velha,  sem  vestígio  de  collarinho. 
As  calças  pretas,  muito  justas,  ostentavam  por  vários  sitios 
aquelles  brilhantes  remendos,  que  são  a  prova  de  um  prolon- 
gado serviço,  e  estavam  fortemente  apertadas  por  cima  de 
uns  sapatos  cheios  de  tombas,  como  para  occultar  as  meias 


14  AS   AVENTURAS 


brancas    e  sujas  que,  no   emtanto,  se  distinguiam  a  primor. 

O  cabello  negro  e  comprido  escapava-se  em  ondas  negli- 
gentes por  baixo  de  cada  lado  do  velho  chapéo  amolgado  ;  e 
poderiam  observar-se  uns  vislumbres  do  pulso  nu,  entre  os 
extremos  das  luvas  e  os  canhões  da  casaca.  A  cara  era  ma- 
grizella  e  pallida;  mas  um  ar  indiscriptivel  de  galante  arro- 
gância e  de  perfeita  independência  espalhava-se  por  toda  a 
sua  pessoa. 

Tal  era  o  individuo,  que  o  sr.  Pickwick  contemplava  atra- 
vez  dos  seus  óculos  (que  por  fortuna  recuperara),  e  a  quem 
elle  tratou,  apenas  os  seus  amigos  acabaram  de  desfazer-se 
em  graças,  de  transmittir,  em  termos  escolhidos,  o  seu  calo- 
roso reconhecimento  pelo  seu  recente  auxilio. 

—  Deixe-se  d'isso,  disse  o  rapaz,  atalhando  logo  o  dis- 
curso, basta  de  conversa  —  acabou-se  ;  levado  da  breca  o  co- 
cheiro—  mão  leve;  mas  se  eu  cá  fosse  o  seu  amigo  da  fa- 
tiota verde  —  diabos  me  levem  —  amachucava -lhe  a  tola  — 
—  tão  certo  !  —  a  rosnar  —  ao  dos  pasteis  também  —  graça 
pesada. 

Esta  coberente  falia  foi  interrompida  pela  entrada  do  co- 
cheiro de  Rochester,  para  annunciar  que  o  Commodoro  es- 
tava a  largar. 

—  Commodoro  l  disse  o  desconhecido,  levantando-se  n'um 
pulo,  a  minha  diligencia  —  logar  tomado  —  fora  —  vou  pagar 
a  despeza  —  preciso  troco  de  cinco  shillings  —  má  moeda  — 
muitas  falsas  —  não  importa  —  não  vêem  —  hein  ? 

E  abanou  a  cabeça  com  a  maior  convicção. 

Ora  succedia  que  o  sr.  Pickwick  e  os  seus  três  compa- 
nheiros haviam  resolvido  fazer  também  em  Rochester  a  sua 
primeira  estação  ;  e  havendo  communicado  ao  seu  novo  co- 
nhecimento que  elles  iam  jornadeiar  para  a  mesma  cidade, 
combinaram  occupar  o  banco  posterior  da  diligencia,  onde 
se  podiam  sentar  todos  juntos. 

—  Arriba!  disse  o  desconhecido,  ajudando  o  sr.  Pickwick 
a  subir  para  o  tejadilho  com  tanta  precipitação  que  prejudi- 
cou muito  materialmente  a  gravidade  da  altitude  d'aquelle 
cavalheiro. 

—  Tem  bagagem,  o  senhor  ?  interrogou  o  cocheiro. 

—  Quem,  eu  ?  —  Este  embrulho  de  papel  pardo,  mais 
nada,  o  resto  da  bagagem  embarcada  —  caixotes,  pregados  — 


DO  SR.   PICKWICK  15 


tamanho  de  casas  —  pesados,  pesados,  pesados  como  a  breca, 
replicou  o  desconhecido,  encafuando  á  força  na  algibeira  o 
que  poude  do  embrulho  pardo,  que  apresentava  indicações 
bem  suspeitas  de  conter  uma  camisa  e  um  lenço  de  assoar. 

—  Cabeças,  cabeças,  cautela  com  as  cabeças,  gritou  o  lo- 
quaz sujeito,  ab  passarem  á  sahida  sob  a  baixa  arcada,  qiae 
n'esse  tempo  formava  a  entrada  da  cocheira.  Passagem  terrí- 
vel—  obra  perigosa  —  outro  dia  —  cinco   creanças  —  a  mãe 

—  senhora  alta,  a  comer  sandwiches  —  esqueceu  se  do  arco 

—  Zás  1  —  uma  pancada  —  creanças  olham  para  todos  os  la- 
dos —  a  cabeça  da  mãe  fora  —  sandwiche  na  mão  —  sem  bocca 
para  o  metter  —  cabeça  da  familia  foi-se  —  medonho,  medo- 
nho.—  A  olhar  para  Whitehall,  o  senhor  —  lindo  sitio  —  ja- 
nella  pequena  —  a  cabeça  de  outra  pessoa  também  fora, 
n'esse  sitio,  hein  ?  —  não  era  lá  muito  previsto  também  — 
enganaram-se  ambos  —  hein  ^  que  diz  ?  hein  ?  ^ 

—  Estava  eu  ruminando,  observou  o  sr.  Pickwick,  sobre  as 
extraordinárias  alternativas  das  cousas  humanas. 

—  Ah!  percebo  —  n'um  dia  dentro  do  palácio,  no  dia  se- 
guinte pela  janella  fora.  Philosopho,  o  senhor  ? 

—  Observador  da  natureza  humana,  disse  o  sr.  Pickwick. 

—  Ah!  também  eu.  A  mór  parte  da  gente  assim  é  em 
tendo  pouco  que  fazer  e  menos  que  ganhar.  Poeta,  o  se- 
nhor .'* 

—  O  meu  amigo,  o  sr.  Snodgrass  tem  uma  copiosa  veia 
poética,  respondeu  o  sr.  Pickwick. 

—  E'  como  eu,  redarguiu  o  desconhecido.  Um  poema 
épico  —  dez  mil  versos  —  a  revolução  de  julho  —  composto 
no  próprio  local  —  Marte  de  dia,  Apollo  de  noite  —  disparar 
canhão,  dedilhar  na  lyra.  ~ 

—  Esteve  presente  a  essa  gloriosa  acção  ?  perguntou  o  sr. 
Snodgrass. 

—  Presente!  claro  que  sim;  tiro  de  arcabuz  —  lampejo 
de  ideias  —  corria  á  taverna  —  escrevia  —  voltava  outra  vez 


'  Allusão  a  Carlos  I,  decapitado  no   cadafalso   armado    )unto    de   uma 
das  janellas  do  palácio,  pela  qual  sahiu. 

-  Anachronismo  propositado  ou  casual  do  autor. 


AS  AVENTURAS 


—  zás !  pum  —  outra  ideia  —  taverna  te  valha  —  penna  e  tinta 

—  gyra  para  o  campo  —  cutilada  de  tremer  —  rico  tempo  esse. 
E'  sportsman,  o  senhor?  concluiu  elle  virando-se  abrupta- 
mente para  o  sr,  Winkle. 

—  Um  poucochinho,  replicou  este  cavalheiro. 

—  Linda  occupação  —  linda  occupação.  Cães? 

—  Não,  agora  não  tenho,  disse  o  sr.  Winkle. 

—  Ah  !  devia  ter  cães  —  bellos  animaes  —  muito  intelli- 
gentes  —  um  cão  tive  eu  —  cão  de  mostra  —  instincto  sur- 
prehendente  —  fui  á  caça  um  dia  —  salto  um  vallado  —  asso- 
bio—  cão  parado  —  torno  a  assobiar  —  Ponto  —  qual  vae  ! 
quieto  como  um  cepo  —  chamo-o  —  Ponto,  Ponto  —  não  se 
mexia  —  cão  extático  —  pasmado  para  uma  táboa  —  olho 
para  cima,  vejo  letreiro  —  «O  couteiro  tem  ordem  de  atirar 
a  todos  os  cães  encontrados  n'este  recinto^.-  —  não  passava, 
nem  por  mais  uma  —  um  cão  admirável  —  precioso  cão  — 
preciosíssimo. 

—  Singular,  esse  caso!  disse  o  sr.  Pickwick.  Permitte-me 
que  tome  nota  .'' 

—  Com  todo  o  gosto  —  centenas  de  anecdotas  do  mesmo 
animal  —  Linda  pequena,  hein?  continuou  elle  dirigindo-se 
ao  sr.  Tracy  Tupman,  que  estivera  a  atirar  varias  olhadellas 
anti-pickwickanas  para  uma  menina  que  ia  pelo  passeio. 

—  Uma  belleza,  disse  o  sr.  Tupman. 

—  Inglezas  menos  bonitas  que  hespanholas  —  soberbas 
creaturas  —  cabellos  de  azeviche  —  olhos  pretos  —  formas 
adoráveis  —  encantadoras  —  formosíssimas. 

—  O  senhor  já  esteve  em  Hespanha  ?  perguntou  o  sr. 
Tracy  Tupman. 

—  Vivi  lá  —  séculos. 

—  Muitas  conquistas,  hein  ?  continuou  o  sr.  Tupman. 

—  Conquistas  ?  Aos  milheiros.  Don  Bolero  Fizzgig  — 
grande  fidalgo  —  única  filha  —  Dona  Christina  —  esplendida 

—  doida  por  mim  —  pae  con*'  ciúmes  —  filha  orgulhosa  —  in- 
glez  bonito  —  Dona  Christina  desesperada  —  acido  prussico 

—  uma  bomba  do  estômago  na  minha  mala  —  operação  con- 
cluída—  o  velho  Bolero  em  extasi  —  consente  no  casamento 

—  mãos  unidas  e  torrentes  de  lagrimas  —  historia  romanesca 

—  mesmo  muito. 

—  Essa  senhora  está  agora  em  Inglaterra  ?  interrogou  o 


DO  SR.  PICKWICK 


Í7 


sr.  Tupman,  em  quem  a  descripção  dos  seus  encantos  pro- 
duzira uma  fortíssima  impressão. 

—  Morta,  meu  caro  senhor,  morta,  disse  o  sujeito,  appli- 
cando  sobre  o  olho  direito  os  exiguos  restos  de  um  velhís- 
simo lenço  de  cambraia.  Nunca  se  restabeleceu  da  bomba  - 
minou-lhe  o  organismo  —  succumbiu. 

—  E  o  pae  .''  perguntou  o  poético  Snodgrass. 

—  Remorso  e  desgraça,  replicou  o  sujeito.  Desapparição 
súbita  —  excitação  na  cidade  —  pesquizas  por  toda  a  parte'  — 
sem  resultado  —  chafariz  da  pi-aça  grande  cessando  de  re- 
pente de  jorrar  —  passam-se  semanas  —  outra  paragem  — 
operários  a  limpal-o  —  despeja-se  —  descobre-se  sogro  com 
a  cabeça  entalada  no  cano  principal,  com  uma  confissão 
plena  na  bota  direita  —  tira-se  para  fora  e  a  agua  desata  a 
repuxar  como  até  ali. 

—  Dá-me  licença  que  eu  tome  nota  d'esse  pequeno  ro- 
mance í  disse  o  sr.  Snodgrass,  profundamente  impressio- 
nado. 

—  Pois  não!  com  todo  o  gosto  —  mais  cincoenta  como 
este,  é  só  pedir  por  bocca  —  estranha  vida  a  minha  —  histo- 
ria interessante  a  valer  —  não  extraordinária,  mas  singu- 
lar. 

N'esta  torrente,  com  um  copo  de  cerveja  de  quando  em 
quando,  em  guisa-  de  parenthesis,  por  occasião  das  mudas, 
proseguiu  o  desconhecido,  até  chegarem  á  ponte  de  Roches- 
ter ;  durante  esse  praso  os  livros  de  lembranças,  tanto  do  sr. 
Pickwick  como  do  sr.  Snodgrass,  estavam  completamente  re- 
pletos de  trechos  escolhidos  das  suas  aventuras. 

—  Magnifica  ruina !  disse  o  sr.  Augusto  Snodgrass,  com 
todo  o  fervor  poético  que  o  distinguia,  quando  se  lhes  de- 
parou o  bello  e  antigo  castello. 

—  Que  estudo  este  para  um  antiquário,  foram  as  palavras 
forraaes  que  cahiram  da  bocca  do  sr.  Pickwick,  apenas  appli- 
cou  o  óculo  ao  olho  direito. 

—  Ah  !  lindo  sitio,  disse  o  sujeito,  glorioso  edificio  —  pa- 
redes carrancudas  —  arcos  a  desabar  —  recantos  escuros  — 
escadarias  despedaçadas  —  a  antiga  cathedral  também  — 
cheiro  a  terra  —  pés  dos  peregrinos  gastaram  degraus  —  por- 
tinhas saxonias  —  confessionários  parecidos  com  as  cafuas  dos 
camaroteiros— uns  patuscos  originaes  aquelles  frades.  —  Pa- 


iS  AS   AVENTURAS 


pas  e  thesoureiros,  e  toda  a  casta  de  velhotes,  com  caras 
muito  grandes  e  muito  encarnadas,  e  narizes  quebrados, 
desenterrados  todos  os  dias  —  gibões  amarellos  —  chaves  de 
mosquetes  —  S:ircophagos  —  lindo  sitio  —  velhas  lendas  tam- 
bém —  contos  extraordinários  :  —  Soberbo  ! 

E  o  sujeito  proseguiu  a  monologar  até  chegarem  á  Esta- 
lagem do  Touro,  na  rua  direita,  onde  a  diligencia  parou. 
^  —  O  senhor  fica  aqui  ?  perguntou  o  sr.  Nathaniel  Winkle. 

—  Aqui  —  eu  não  —  mas  fiquem  os  senhores  —  é  melhor 
—  boa  casa  —  hellas  camas — a  casa  pegada,  cara  —  caríssi- 
ma—  meia  coroa  na  conta,  em  olhando  para  o  criado  —  car- 
regam mais  quando  se  janta  em  casa  de  um  amigo  do  que 
em  a  gente  jantando  á  mesa  do  café  —  uns  pândegos  —  muito 
pândegos. 

O  sr.  Winkle  virou-se  para  o  sr.  Pickwick,  e  murmurou 
algumas  palavras;  o  segredo  passou  do  sr.  Pickwick  para  o 
sr.  Snodgrass,  do  sr.  Snodgrass  para  o  sr.  Tupman,  e  troca- 
ram-se  gestos  de  assentimento.  O  sr.  Pickwick  dirigiu-se  ao 
desconhecido. 

—  O  senhor  prestou-nos  um  serviço  importantíssimo  esta 
manhã;  permitte-nos  que  lhe  demos  uma  insignificante  prova 
de  gratidão,  rogando-lhe  o  favor  da  sua  companhia  ao  jan- 
tar. 

—  Com  o  maior  prazer  —  não  ouso  dar  conselhos,  mas 
uma  ave  assada  e  cogumellos  —  soberba  cousa !  A  que  ho- 


ras 


—  Deixe  ver,  replicou  o  sr.  Pickwick,  recorrendo  ao  reló- 
gio, são  qunsi  três.  Se  fosse  ás  cinco  .'' 

—  Está-me  mesmo  a  calhar,  disse  o  sujeito,  cinco  em 
ponto  —  até  então  —  tomem  cautela  comsigo. 

E  erguendo  o  chapéo  amolgado  a  algumas  pollegadas  da 
cabeça  e  tornando  a  pôl-o  negligentemente  muito  á  banda,  o 
desconhecido,  com  metade  do  embrulho  pardo  a  surdir-lhe 
da  algibeira,  atravessou  bruscamente  o  pateo  e  virou  para  a 
rua  direita. 

—  E'  evidentemente  um  sujeito  que  tem  viajado  por  mui- 
tos paizes,  e  um  observador  meticuloso  dos  homens  e  das 
coisas,  disse  o  sr.  Pickwick. 

—  Gostava  de  vêr  o  poema  d'elle,  disse  o  sr.  Snodgrass. 

—  Eu  gostava  de  vêr  o  tal  cão,  disse  o  sr.  Winkle. 


DO  SR.  PICKWICK  19 


O  sr.  Tupman  não  disse  cousa  alguma ;  mas  pensou  em 
Dona  Christina,  na  bomba  do  estômago,  e  no  chafariz;  e  os 
olhos  arrazaram-s-e-lhe  de  lagrimas. 

Tendo-se  tomado  um  gabinete  particular,  inspeccionado 
os  quartos  de  cama  e  encommendado  o  jantar,  os  amigos  sa- 
hiram  a  visitar  a  cidade  e  os  arredores. 

Não  nos  pareceu,  pelo  exame  attento  das  notas  do  sr. 
Piclnvick  sobre  as  quatro  povoações,  Stroud,  Rochester, 
(^hatham  e  Brompton,  que  as  suas  impressões  isnmediatas 
diííiram  em  ponto  algum  material  das  de  outros  viajantes 
que  teem  percorrido  a  mesma  região.  A  sua  descripção  geral 
resume-se  facilmente. 

«Os  principaes  productos  d'estas  povoações,  diz  o  sr. 
Pickwick,  parece  serem  soldados,  marinheiros,  judeus,  greda, 
camarões  e  empregados  do  arsenal.  Os  artigos  principalmente 
expostos  para  a  venda  pelas  ruas  são  provisões  de  marinha, 
bolacha  de  embarque,  maças,  peixe  espalmado,  e  ostras.  As 
ruas  apresentam  um  aspecto  vivo  e  animado,  sobretudo  re- 
sultante do  convivio  dos  militares.  E'  deveras  delicioso  para 
um  espirito  philantropico  o  ver  esses  valentes  cambaleando 
por  ali  fora,  sob  a  influencia  de  um  excesso  de  espiritos,  tanto 
animaes  como  ardentes  •,  muito  especialmente  ao  lembrarmo- 
nos  que  o  andar  atraz  d'elles  e  troçal-os  constitue  uma  di- 
versão barata  e  innocente  para  a  população  infantil.  Nada 
(acrescenta  o  sr.  Pickwick)  pôde  exceder  o  seu  bom  humor. 
Mesmo  no  dia  anterior  á  nossa  chegada,  um  d'elles  fora  gros- 
seirissimamente  insultado  n'uma  taverna.  A  criada  do  esta- 
belecimento recQsára-se  positivamente  a  servir-lhe  mais  be- 
bidas; e  em  troco  elle  tinha  (simplesmente  por  brincadei- 
ra) puxado  da  baioneta  e  ferido  a  rapariga  no  hombro. 
E  comtudo  esse  excellente  rapaz  foi  o  primeiro  a  voltar  á 
taverna  na  manhã  seguinte  e  expressar  a  sua  promptidão 
a  não  dar  importância  ao  caso  e  a  esquecer  o  que  succe- 
dera. 

«O  consumo  de  tabaco  n'estas  povoações  (prosegue  o  sr. 
Pickwick)  deve  ser  enorme  :  e  o  aroma  que  enche  as  ruas 
deve  ser  em  extremo  delicioso  para  aquelles  que  gostam 
muito  de  fumar.  Um  viajante  superficial  faria  porventura  ob- 
jecções á  porcaria  que  constitue  o  seu  principal  caracteris- 
tico ;  para  aquelles,  porém,  que  a  consideram  uma  indicação 


20  AS   AVENTURAS 


de  trafico  e  de  prosperidade  mercantil,  ella  é  deveras  agra- 
dável.» 

A's  cinco  horas  em  ponto  chegou  o  desconhecido,  e 
pci:co  depois  o  jantar.  Elle  tinha-se  desembaraçado  do  em- 
brulho de  papei  pardo,  mas  não  fizera  alteração  no  vestuá- 
rio; e  estava,  se  possivel  era,  mais  fallador  do  que  nunca. 

—  O  que  é  isto?  perguntou  elle,  quando  o  criado  desta- 
pou um  dos  pratos  cobertos. 

—  São  linguados,  senhor. 

—  Linguados  —  ah! — magnifico  peixe  —  vêem  todos  de 
Londres  —  donos  das  diligencias  arranjam  banquetes  políti- 
cos—  carradas  de  linguados  —  dúzias  de  cestos — esperta- 
lhões. —  Um  copo  de  vinho,  quer  beber  comigo  r 

—  Com  muito  gosto,  disse  o  sr.  Pickwick  — e  o  sujeito 
bebeu  vinho,  brindando  primeiro  a  elle,  depois  ao  sr.  Snod- 
grass,  depois  ao  sr.  Tupman,  e  depois  ao  sr.  Winkle,  e  em 
Sv::guida  a  toda  a  sociedade,  quasi  com  tanta  rapidez  como  a 
faílar. 

—  Demónio  de  azp.fama  na  escada,  ó  rapaz,  disse  o  des- 
conhecido. Bancos  a  subir  —  carpinteiros  a  descer  —  can- 
deeiros, espelhos,  harpas.  Que  quer  dizer  isto  í 

—  E'  um  baile,  senhor,  disse  o  criado. 

—  Club  —  hein  ? 

—  Não,  senhor,  não  é  club.  E'  um  baile  de  caridade. 

—  Ha  muitas  mulheres  bonitas  aqui  na  terra,  sabe,  meu 
caro  senhor  ?  perguntou  o  sr.  Tupman  com  grande  interesse. 

—  Esplendidas  —  de  primeira  ordem.  —  Kent,  meu  caro. 
—  Não  ha  ninguém  que  não  conheça  Kent  —  maçãs,  ginjas, 
lúpulo  e  mulheres.  Um  copo  de  vinho,  quer  ? 

—  Pois  não  1  replicou  o  sr.  Tupman. 
O  desconhecido  encheu  e  despejou. 

—  Gostava  immenso  de  lá  ir,  disse  o  sr.  Tupman,  vol- 
tando ao  assumpto  do  baile,  gostava  immenso. 

—  Ka  bilhetes  no  botequim,  interveiu  o  criado,  meio  gui- 
neo  cada  um. 

O  sr.  Tupman  tornou  a  expressar  um  ardente  desejo  de 
comparecer  na  festa:  mas  não  se  lhe  deparando  resposta 
nem  nos  olhos  assombreados  do  sr.  Snodgrass,  nem  no  olhar 
abstracto  do  sr.  Pickwick,  applicou-se  com  grande  interesse 
ao  vinho  do  Porto  e  á  sobremeza  que  acabava  de  se  servir. 


DO  SR.   PICKWICK  2  1 


O  criado  rctirou-se,  c  os  amigos  ficaram  a  gozar  as  duas  ho- 
ras que  se  seguiam  ao  jantar. 

—  Peço  perdão,  meu  caro  senhor,  disse  o  desconhecido. 
A  garrafa  fica  —  passem-na  cm  roda  —  nada  de  safanões. 

E  despejou  o  copo,  que  tinha  enchido  havia  dois  minu- 
tos;  e  encheu  outro  com  ar  de  um  sujeito  que  estava  costu- 
mado áquella  manobra. 

O  vinho  andou  em  roda,  e  mandou-se  vir  nova  provisão. 
O  visitante  fallou  pelos  cotovellos,  os  pickwickanos  escuta- 
ram. O  sr.  Tupman  de  momento  para  momento  se  sentia 
mais  disposto  para  o  baile.  O  semblante  do  sr.  Pickwick  il- 
!uminava-se  de  uma  expressão  de  philantropia  universal ;  c 
o  sr.  Winklc,  mais  o  sr.  Snodgrass,  adormeceram  d'ali  a 
pouco. 

—  Estão  a  começar  lá  em  cima,  disse  o  desconhecido, 
—  ouça  o  que  lá  vae  —  rebecas  a  afinar  —  agora  a  harpa  — 
ahi  vão  elles. 

Os  vários  sons,  que  abriam  caminho  pela  escada  abaixo, 
annunciavam  o  começo  da  primeira  quadrilha. 

—  Quem  me  dera  lá  ir!  repetiu  "o  sr.  Tupman. 

—  Também  eu,  disse  o  outro  —  maldita  bagagem  —  nada 
que  vestir  —  espantoso,  não  é  ? 

Ora,  a  benevolência  geral  era  uma  das  feições  predomi- 
nantes da  theoria  pickwickana,  e  ninguém  mais  notável  pela 
maneira  zelosa  porque  observava  tão  nobre  principio  do  que 
o  sr.  Tracy  Tupman.  O  numero  de  occasiões  recordadas 
nas  Actas  da  Sociedade,  em  que  aquelle  excellente  homem 
mandava  para  casa  dos  outros  membros  pedidos  de  cari- 
dade, taes  como:  fato  usado  ou  soccorro  pecuniário,  é  quasi 
incrível. 

—  Eu  estimaria  muito  emprestar-lhe  um  feito  meu  para  lá 
ir,  disse  o  sr.  Tracy  Tupman,  mas  o  senhor  é  um  tanto  del- 
gadito,  e  eu . . . 

—  Um  tanto  gorducho  —  um  Baccho  já  crescido  —  largou 
a  hera  e  os  pâmpanos  —  desmontou  do  tonel  e  vestiu-se  de 
lã,  hein  ?  —  ah  1  ah  !  —  passe  para  cá  o  vinho. 

Se  acaso  o  sr.  Tupman  ficou  um  pouco  indignado  com  o 
tom  peremptório  com  que  era  expresso  o  desejo  de  passar  o 
vinho  que  o  desconhecido  consumia  n'um  instante;  ou  se  se 
sentiu  justamente  escandalisado  ao  ver  um  membro  influente 


AS  AVENTURiVS 


do  club  PiclvMick  comparado  a  um  Baccho  desmontado,  fa- 
ctos são  esses  ainda  não  cabalmente  verificados.  O  que  é 
certo  é  que  passou  o  vinho,  tossiu  duas  vezes,  e  olhou  du- 
rante alguns  segundos  para  o  desconhecido  com  fixidez  se- 
vera; ao  passo  que  o  sujeito,  no  entretanto,  parecia  perfeita- 
mente tranquilio  e  sereno  sob  aquelle  olhar  investigador, 
elle  voltava  gradualmente  ao  estado  normal  e  á  ideia  do 
baile. 

—  Estava  agora  mesm.o  a  observar,  disse  elle,  que  se  o 
meu  fato  lhe  ficaria  muito  largo,  o  fato  do  meu  amigo  Win- 
kle  talvez  que  lhe  servisse  m^elhor. 

O  desconhecido  tomou  com  os  olhos  a  medida  ao  sr. 
Winkle ;  e  esses  órgãos  brilharam  de  satisfação  ao  passo  que 
elle  dizia  —  Exacto!  é  o  que  convinha! 

O  sr,  Tupman  olhou  em  torno  de  si.  O  vinho,  que  exer- 
cera a  sua  influencia  soporifera  sobre  os  srs.  Snodgrass  e 
Winkle,  insinuára-se  nos  sentidos  do  sr.  PickAvick.  Este  ca- 
valheiro havia  gradualmente  passado  pelas  varias  phases  que 
precedem  a  lethargia  produzida  pelo  jantar  e  pelas  suas  con- 
sequências. Tinha  softrido  as  transições  ordinárias  desde  o 
ápice  da  jovialidade  até  ás  profundezas  da  melancolia,  e  desde 
as  profundezas  da  melancolia  até  ao  cumulo  da  jovialidade. 
Como  um  bico  de  gaz  na  rua,  quando  tem  ar  no  cano,  elle 
exhibira  por  um  momento  um  brilhantismo  fora  do  com- 
mum :  depois  abaixou  a  ponto  de  mal  se  distinguir :  a  breve 
trecho  lampejara  de  novo  para  illuminar  um  momento,  em 
seguida  bruxuleara  com  luz  incerta  e  tremula,  e  por  fim  ex- 
tinguira-se  de  todo.  Tinha  a  cabeça  pendida  sobre  o  peito ; 
e  um  ronco  perpetuo,  como  uma  suffocação  parcial  e  inter- 
mittente,  eram  as  únicas  indicações  audíveis  da  presença  do 
grande  homem. 

A  tentação  de  assistir  ao  baile  e  de  formar  as  suas  pri- 
meiras impressões  sobre  a  belleza  das  damas  de  Kent  era 
dominante  no  sr.  Tupman.  Grande  egualmente  era  a  tenta- 
ção de  levar  comsigo  o  desconhecido.  Elle  era  completa- 
mente alheio  ao  sitio  e  aos  seus  habitantes ;  e  o  desconhe- 
cido parecia  possuir  tantas  idéas  de  tudo  isso,  como  se  ali 
houvesse  vivido  desde  a  infância.  O  sr.  Winkle  estava  a  dor- 
mir, e  o  sr.  Tupman  tivera  sufficiente  experiência  de  casos 
similhantes  para  saber  que  no  momento  em  que  elle  desper- 


DO  SR.   PICKWICK  'lò 


tasse,  rolaria  pesadamente  até  á  cama,  segundo  o  curso  ordi- 
nário e  natural  das  cousas.  Eslava  perplexo. 

—  Encha  o  seu  copo,  e  passe-me  o  vinho,  disse  o  infati- 
gável visitante. 

O  sr.  Tupman  executou  o  que  lhe  pediam ;  e  o  estimulo 
addiccional  do  ultimo  copo  fixou-lhe  a  decisão. 

—  O  quarto  de  Winkle  fica  para  dentro  do  meu,  disse  o 
sr.  Tupman ;  não  haveria  meio  de  lhe  fazer  perceber  o  que 
eu  desejava,  se  eu  o  acordasse  agora,  mas  sei  que  elle  tem 
um  fato  completo,  n'um  sacco  de  tapete ;  e  suppondo  que  o 
senhor  o  vestisse  para  ir  ao  baile  e  o  despisse  em  voltando, 
eu  poderia  tornar  a  pôl-o  no  seu  logar  sem  dar  a  elle  incom- 
modo  de  espécie  alguma. 

—  Excellente,  disse  o  sujeito,  famoso  plano  —  diabo  de 
situação  exquisita  —  quarorze  casacas  nos  bahus,  e  obrigado 
a  vestir  as  dos  outros  — magnifica  ideia  essa  —  magnifica. 

■::—  Temos  de  comprar  os  bilhetes,  disse  o  sr.  Tupman. 

—  Não  vale  a  pena  partir  um  guinéo  ao  meio,  disse  o  des 
conhecido,   joguemos   quem   ha   de  pagar  por  ambos  —  eu 
digo  ;  o  senhor  cale-se  —  um  —  mulher  —  feiticeira  mulher. 

E  o  soberano  cahiu  na  mesa,  com  o  dragão  (chamado 
mulher  por  cortezia)  virado  para  cima. 

O  sr.  Tupman  tocou  a  campainha,  comprou  os  bilhetes,  e 
pediu  castiçaes.  D'ali  a  um  quarto  de  hora,  o  sujeito  estava 
totalmente  'revestido  de  um  fato  completo  do  sr.  Nathaniel 
Winkle. 

—  E'  uma  casaca  nova,  disse  o  sr.  Tupman,  emquanto 
o  desconhecido  se  revia  com  grande  complacência  n'um  es- 
pelho. A  primeira  que  se  fez  com  o  botão  do  nosso  club. 

E  chamou  a  attenção  do  companheiro  para  o  enorme  bo- 
tão dourado,  onde  se  ostentava  um  busto  do  sr.  Pickwick  no 
centro,  com  as  letras  C.  P.  de  cada  lado. 

—  G.  P.,  disse  o  sujeito.  —  Exquisito  enfeite  — a  facha  do 
velhote  e  G.  P.  —  Que  quer  dizer  G.  P.  —  Gasaca  pandega, 
não  é  ? 

O  sr.  Tupman,  com  crescente  indignação  e  grande  im- 
portância, expHcou  a  mystica  divisa. 

—  Um  pouco  curta  de  cintura,  não  está?  disse  o  desco- 
nhecido, estorcendo-se  todo,  para  dar  no  espelho  uma  vista 
de  olhos  aos  botões  da  cintura  que  lhe  ficavam  a  meio  das 


24  AS   AVENTURAS 


costas.  Parece  uma  casaca  de  carteiro  —  patuscas  essas  ca- 
sacas —  feitas  por  arrematação  —  sem  medidas  —  mysterio- 
sas  distribuições  da  Providencia  —  todos  os  homens  baixos 
apanham  casacas  compridas  —  todos  os  homens  altos  ficam 
com  as  curtas. 

Discreteando  por  esta  forma,  o  novo  companheiro  do  sr. 
Tupman  compoz  o  seu  fato  ou  antes  o  fato  do  sr.  Winkle ; 
e,  acompanhado  pelo  sr.  Tupman,  subiu  a  escada  que  condu- 
zia á  saía  de  baile. 

—  Os  seus  nomes,  meus  senhores?  disse  o  porteiro. 

O  sr.  Tupman  ia  adiantar-se  para  annunciar  os  seus  títu- 
los, quando  o  desconhecido  se  lhe  antecipou. 

—  Não  ha  nomes  nenhuns;  e  em  seguida  segredou  para  o 
sr.  Tupman.  Os  nomes  não  servem  de  nada  —  desconheci- 
dos —  bellos  nomes  no  seu  meio,  mas  sem  grandeza  —  nomes 
excellentes  para  um  salsifré  particular,  mas  que  não  fazem 
impressão  em  assembléas  publicas  —  incógnitos,  é  o  que  nos 
serve.  —  Cavalheiros  de  Londres  —  forasteiros  distinctos  — 
qualquer  coisa. 

Abriu-se  a  porta ;  e  o  sr.  Tracy  Tupman,  mais  o  seu  com- 
panheiro entraram  na  sala  de  baiíe. 

Era  uma  sala  comprida,  com  bancos  forrados  de  carme- 
zim,  e  velas  de  cera  em  lustres  de  vidro.  Os  músicos  esta- 
vam seguramente  encerrados  n'uma  jaula  elevada  e  dois  ou 
três  grupos  de  dançadores  esbrugavam  systematicamente 
quadrilhas.  Duas  mezas  de  jogo  estavam  armadas  n'uma  sa- 
leta contigua,  e  dois  pares  de  damas  idosas  e  um  numero 
correspondente  de  corpulentos  cavalheiros  estavam  lá  a  des- 
fiar o  whist. 

Concluída  a  quadrilha,  os  pares  passearam  pela  sala,  e  o 
sr.  Tupman  e  o  seu  companheiro  metíeram-se  a  um  canto 
para  examinar  a  sociedade. 

—  Lindas  mulheres !  disse  o  sr.  Tupman. 

—  Espere  um  instante,  disse  o  desconhecido,  isto  vae  ser 
umarisota — um  sitio  patusco  —  gente  mais  elevada  do  Arsenal 
não  conhece  a  gente  mais  baixa  do  Arsenal  —  a  gente  m^ais 
baixa  do  Arsenal  não  conhece  a  classe  média  —  a  classe  mé- 
dia não  conhece  a  gente  de  negocio  —  o  Commissario  não 
conhece  ninguém. 

—  Quem  é  aquelle  rapazito  de  cabello  claro  e  de  olhos 


DO  SR.  PICKWICK  25 


piscos,  com  fato  de  phantasia  ?    perguntou  o  sr.  Tupman. 

—  Caluda  !  —  olhos  piscos  —  fato  de  phantasia  —  rapazito 

—  disparates  —  alferes  do  19  —  Honourable  Wilmot-Snipe  — 
familia  illustre  —  os  Snipes  —muito  illustres.  ^ 

—  Sir  Thomas  Clubber,  Lady  Clubber,  e  as  Miss  Glubbe'-s, 
gritou  o  porteiro  com  voz  de  Stentor. 

Espalhou-se  pela  sala  uma  grande  sensação,  á  entrada  de 
um   cavalheiro  alto,  de  casaca  azul  e  botões  luzentes,  uma 
dama  gorda  vestida  de  setim  azul,  e  duas  meninas  muito  pa 
recidas,  com  vestidos  á  moda  da  mesma  côr. 

—  Gommissario  —  director  do  Arsenal — grande  homem 

—  notavelmente  grande,  segredou  o  sujeito  ao  ouvido  do  sr. 
Tupman,  emquanto  a  commissão  de  caridade  acompanhava 
Sir  Thomas  Clubber  e  sua  familia  ao  extremo  da  sala. 

O  honourable  Wilmot  Snipe,  e  outros  illustres  cavalheiros 
agglomeraram-se  para  apresentar  as  suas  homenagens  ás 
Miss  Clubbers :  e  Sir  Thomas  Clubber  ficou  direito  como 
um  fuso,  olhando  magestosamente  para  a  sociedade  por  cima 
da  gravata  preta. 

—  O  sr.  Smithie,  Mrs.  Smithie  e  as  Misses  Smithie,  foi  o 
annuncio  seguinte. 

—  Quem  vem  a  ser  este  sr.  Smithie  ?  perguntou  o  sr.  Tracy 
Tupman. 

—  Qualquer  cousa  no  Arsenal,  respondeu  o  desconhecido. 
O   sr.   Smithie  curvou-se  com   deferência  diante    de  Sir 

Thomas  Clubber;  e  Sir  Thomas  Clubber  correspondeu  ao 
cumprimento  com  uma  condescendência  cônscia  de  si.  Lady 
Clubber  concedeu  uma  olhadella  a  Mrs.  Smithie  e  sua  familia 
atravez  da  sua  luneta,  e  Mrs.  Smithie  encarou  por  seu  turno 
Mrs.  Sicrana,  cujo  mando  não  pertencia  ao  Arsenal. 

—  O  coronel  Bulder,  xMrs.  Bulder  e  Miss  Bulder,  foram 
estes  os  que  chegaram  em  seguida. 

—  Commanda  a  guarnição,  disse  o  desconhecido,  em  res- 
posta ao  olhar  interrogativo  do  sr.  Tupman. 

Miss  Bulder  foi  acolhida  com  fervor  pelas  Misses  Club- 
bers ;  os  cumprimentos  entre  Mrs.  Bulder  e  Lady  Clubber 


Snipe  significa  pateta. 


26  AS  avenYuras 


foram  da  máxima  cordialidade  ;  o  coronel  Bulder  e  Sir  Tho- 
mas  Clubber  offereceram  pitadas  um  ao  outro,  e  assimilha- 
vam-se  a  um  par  de  Alexandres  Selkirks  :  «Monarchas  de 
quanto  viam». 

Ao  passo  que  a  aristocracia  do  sitio  —  os  Bulders  e 
Clubbers  e  Snipes  —  assim  estavam  guardando  a  sua  digni- 
dade no  extremo  superior  da  sala,  as  outras  classes  da  socie- 
dade tratavam  de  lhes  seguir  o  exemplo  n'outras  partes  d'ella. 
Os  officiaes  menos  aristocráticos  do  97  dedicavam-se  ás  fa- 
mílias dos  funccionarios  m.enos  importantes  do  Arsenal.  As 
mulheres  de  solicitadores,  mais  a  mulher  do  negociante  de 
vinhos,  assumiam  a  direcção  de  outro  circulo  (a  mulher  do 
cervejeiro,  essa  era  visita  dos  Bulders)  ;  e  Mrs.  Tomlison,  a 
directora  do  correio,  parecia  por  consenso  mutuo  haver  sido 
escolhida  como  chefe  do  grupo  mercantil.  • 

Um  dos  personagens  mais  populares  no  seu  circulo,  o 
qual  estava  presente,  era  um  homem  baixo  e  gordo,  com  uma 
grinalda  de  cabellos  pretos  espetados  á  roda  da  cabeça  e  uma 
extensa  planície  escalvada  no  cimo  d'ella. 

Era  o  dr.  Slammer,  cirurgião  do  97. 

O  doutor  pitadeava-se  com  toda  a  gente,  cavaqueava  com 
toda  a  gente,  ria,  dançava,  dizia  facécias,  jogava  o  whist,  fa- 
zia tudo  e  estava  em  toda  a  parte, 

A  esias  occupaçóes,  múltiplas,  como  eram,  o  doutor  ajun- 
tava outra  mais  importante  amda  —  era  infatigável  em  fazer 
a  mais  perseverante  corte  a  uma  viuva  baixa  e  idosa,  cujo 
rico  vestuário  e  profusão  de  adornos  a  recommendavam  como 
um  bem  appetecivel  accrescimo  a  um  parco  rendimento. 

Sobre  o  doutor  e  a  viuva  haviam-se  fixado  por  alguns 
momentos  os  olhos  do  sr.  Tupman  e  do  seu  companheiro, 
quando  este  rompeu  o  silencio. 

—  Milho  em  barda  —  solteirona  —  doutor  pomposo  —  não 
é  má  ideia  —  bella  partida  ;  foram  estas  as  phrases  intelligi- 
veis  que  surdiram  dos  seus  lábios. 

O  sr.  Tupman  encarou-o  interrogativamente. 

—  Vou  dançar  com  a  viuva,  disse  o  sujeito. 

—  Quem  é  élla  ?  perguntou  o  sr.  Tupman. 

—  Sei  lá — nunca  a  vi  mais  gorda  —  tramar  o  doutor  — 
lá  vae. 

E  o  desconhecido  atravessou  immediatamente  a  sala;  e. 


DO   SR.   PICKWICK 


encostando-se  a  iim  fogão,  começou  a  embevecer-se  com 
uns  ares  de  admiração  respeitosa  e  melancólica  no  semblante 
nédio  da  pequena  viuva. 

O  sr.  Tupman  olhava  para  elle,  com  surpreza  muda, 

O  sujeito  progredia  a  olhos  vistos  ;  o  doutor  dançava  com 
outra  dama  —  a  viuva  deixou  cahir  o  leque;  o  desconhecido 
apanhou-o  e  apresentou-lh'o  —  um  sorriso  —  uma  reverencia 
—  uma  cortezia  —  dois  dedos  de  dialogo.  O  desconhecido 
afastou-se  audazmente  e  voltou  com  o  mestre  de  ceremo- 
nias ;  uma  breve  pantomima  de  apresentação ;  e  o  desconhe- 
cido com  Mrs.  Budger  tomaram  logar  na  quadrilha. 

O  espanto  do  sr.  Tupman  a  este  procedimento  summa- 
rio,  embora  grande,  foi  colossalmente  excedido  pelo  assom- 
bro do  doutor. 

O  desconhecido  era  um  rapaz  novo,  e  a  viuva  estava  li- 
songeada. 

A  corte  do  doutor  era  desdenhada  pela  viuva;  e  a  indi- 
gnação do  doutor  era  completamente  perdida  sobre  o  seu 
imperturbável  rival.  O  dr.  Slammer  estava  paralysado.  Elle, 
o  dr.  Slammer,  do  97,  ser  annullado  n'um  momento,  por  um 
homem  que  ninguém  tinha  visto  até  ali  e  a  quem  ninguém 
mesmo  conhecia  então ! 

O  dr.  Slammer  —  o  dr.  Slammer,  do  97,  despresado !  Im- 
possível!  Não  podia  ser!  Pois  era  assim  mesmo;  lá  estavam 
elles.  O  que  !  Então  agora  apresentava  o  seu  amigo  !  Daria 
credito  aos  seus  olhos !  Observou  de  novo,  e  viu-se  na  dura 
contingência  de  admittir  a  pureza  da  sua  visão ;  Mrs.  Budger 
estava  a  dançar  com  o  sr.  Tupman,  não  havia  engano  pos- 
sível. Lá  estava  a  viuva  deante  d'elle,  pulando  a  valer,  de 
quando  em  quando,  com  vigor  desacostumado ;  e  o  sr. 
Tracy  Tupman  aos  saltos  á  roda  d'ella,  com  uma  cara  ex- 
pressiva da  mais  intensa  solemnidade,  dançando  (á  laia  de 
muita  gente)  como  se  a  quadrilha  não  fosse  cousa  de  brin- 
cadeira, mas  uma  árdua  prova  de  sentimentos  que  exige  uma 
decisão  inflexível  para  a  supportar. 

Em  silencio  e  com  paciência  soffreu  tudo  isto  o  doutor, 
e  mais  todos  os  ofFerecimentos  de  refrescos,  e  o  esperar  pe- 
los copos  servidos,  e  o  ataque  dos  bolos,  e  o  coquetear,  que 
se  seguiram ;  mas,  poucos  segundos  depois  de  ter  desappa- 
recído  o  seu  rival  para  acompanhar  Mrs.  Budger  até  á  car- 


28  AS   AVENTURAS 


ruagem,  elle  precipitou-se  surrateiramento  para  fora  da  sala 
com  todas  as  partículas  da  sua  até  então  engarrafada  indi- 
gestão, eífervescendo  de  todas  as  partes  do  seu  rosto,  n'uma 
apaixonada  transpiração. 

O  desconhecido  voltava,  e  o  sr.  Tupman  vinha  á  ilharga 
delle.  fallava  baixo,  e  ria-se. 

O  doutor  sentiu  sede  d'aquella  vida,  Elle  exultava.  Elle 
havia  triumphado. 

—  Senhor,  disse  o  doutor  com  voz  terrível,  apresentando 
o  seu  bilhete  de  visita  e  afastando-se  para  um  recanto  do 
corredor,  o  meu  nome  é  Slammer,  o  dr.  Slammer,  senhor  — 
regimento  97  —  Chatham  Barracks — o  meu  bilhete,  senhor, 
aqui  tem  o  meu  bilhete. 

Tinha  vontade  de  acrescentar  mais,  mas  a  indignação 
sufifocava-o. 

—  Ah !  replicou  o  desconhecido  friamente,  Slammer  — 
obrigadissimo  —  uma  attenção  delicada  —  por  agora  estou 
de  saúde,  Slammer  —  mas  quando  adoecer  —  lá  lhe  bato  á 
porta. 

—  O  senhor,  o  senhor  é  um  intrujão,  arquejou  o  doutor 
furioso,  um  poltrão — um  cobarde  —  um  mentiroso  —  um  — 
um  —  nada  o  pôde  resolver  a  dar-me  o  seu  bilhete  ^ 

—  Oh:  já  percebo,  disse  o  sujeito,  meio  aparte,  bebidas 
fortes  demais  aqui  —  hospedeiro  generoso  —  grande  asneira 

—  grande  —  limonada  muito  preferível  —  muito  calor  nas  sa- 
las—  já  entrado  em  annos  —  amanhã  lhe  sentirá  os  eíFeitos 

—  triste  —  triste. 

E  afastou  se  um  ou  dois  passos. 

—  O  senhor  está  hospedado  n'esta  casa,  disse  o  homem- 
sinho  fulo,  agora  está  embriagado ;  amanhã  de  manhã  terá 
noticias  minhas.  Eu  darei  comsigo. 

—  Dê,  quando  quizer,  meu  caro  senhor,  replicou  o  impas- 
sível desconhecido. 

O  sr.  Slammer  manifestou  uma  inexprimível  ferocidade, 
ao  firmar  o  chapéo  na  cabeça  com  uma  pancada  furiosa  :  e 
o  sr.  Tupman  e  o  seu  companheiro  subiram  para  o  quarto 
do  primeiro,  afim  de  restituir  a  emprestada  plumagem  ao  in- 
consciente Wínkle. 

Este  cavalheiro  dormia  a  somno  solto ;  n'um  instante  se 
concluiu  a  restituição. 


DO  SR.  PICKWICK  ICf 


O  desconhecido  estava  em  extremo  jocoso ;  e  o  sr.  Tracy 
Tupman,  como  se  achava  de  todo  desorientado  á  força  de 
vinho  e  de  bebidas,  de  luzes  e  de  damas,  julgou  que  tudo 
aquillo  não  passava  de  uma  brincadeira  original.  O  seu  novo 
amigo  despediu-se;  e,  depois  de  experimentar  uma  ligeira 
difficuldade  em  acertar  com  o  orifício  do  barrete  de  dormir, 
originalmente  destinado  á  recepção  da  sua  cabeça,  e  de  ter 
afinal  deitado  ao  chão  o  castiçal  nos  seus  esforços  para  o 
pousar  na  mesa,  o  sr.  Tracy  Tupman  conseguiu  metter-se 
na  cama,  por  uma  serie  de  evoluções  comphcadas,  e  a  breve 
trecho  mergulhava  n'um  doce  torpor. 

Acabavam  apenas  de  soar  sete  horas,  na  manhã  seguinte, 
quando  o  vivo  espirito  do  sr.  Pick\vick  foi  despertado  de  um 
estado  de  inconsciência,  em  que  o  somno  o  havia  immer- 
gido,  por  umas  violentas  pancadas  á  porta  do  seu  quarto. 

—  Quem  está  ahi  ?  perguntou  o  sr.  Pickwick,  dando  um 
pulo  na  cama. 

—  E'  o  criado. 

—  Que  quer? 

—  O  senhor  faz  obsequio  de  me  dizer  qual  dos  senhores 
é  que  usa  uma  casaca  azul  clara,  com  botões  dourados  e  as 
letras  G.  P.  .^ 

—  Deram-lh'a  para  escovar,  pensou  o  sr.  Pickwick,  e  o 
homem  já  não  se  lembra  a  quem  pertence.  —  E'  o  sr.  Winkle, 
bradou  elle,  o  segundo  quarto  á  direita,  depois  d'este. 

—  Muito  obrigado,  disse  o  criado  e  foi-se  embora. 

—  O  que  é  isto  ?  gritou  o  sr.  Tupman,  apenas  umas  pan- 
cadas violentas  na  sua  porta  o  arrancaram  ao  seu  ineífavel 
repouso. 

—  Posso  fallar  ao  sr.  Winkle  ?  replicou  o  criado,  do  ex- 
terior. 

—  Winkle  —  Winkle,  bradou  o  sr.  Tupman,  chamando 
para  a  alcova  interior. 

—  O  que  é  ?  redarguiu  uma  débil  voz  vinda  debaixo  dos 
lençoes. 

—  Andam  á  sua  procura  —  alguém  que  está  á  porta. 

E  tendo  feito  um  grande  esforço  para  articular  tanto  como 
isto,  o  sr.  Tupman  virou-se  para  o  outro  lado  e  tornou  a 
adormecer. 

-—  A'  minha  procura !   disse  o  sr.  Winkle,  saltando  preci- 


ÔO  AS   AVENTURAS 


pitadamente  para  fóra  da  cama,  e  procedendo  a  um  vestuá- 
rio summario,  á  minha  procura !  a  esta  distancia  da  cidade 
—  quem  diabo  é  que  pôde  querer  alguma  cousa  de  mim  ? 

—  Um  sujeito  que  está  no  café,  replicou  o  criado,  quando 
o  sr.  Winkle  abriu  a  porta  e  o  defrontou;  o  sujeito  diz  que 
não  o  demora  um  minuto,  mas  que  não  pôde  aceitar  uma 
recusa. 

—  E'  extraordinário !  disse  o  sr.  Winkle ;  bem !  desço, 
não  tarda  nada. 

Enrolou-se  á  pressa  n'uma  manta  de  viagem  e  n'um  robe- 
de-chambre,  e  correu  escada  abaixo.  Uma  velha  e  dois  cria- 
dos estavam  a  limpar  a  sala  do  café,  e  um  official  á  paisana 
estava  á  janella.  Voltou-se,  mal  entrou  o  sr.  Winkle,  e  teve 
uma  rigida  inclinação  de  cabeça.  Tendo  ordenado  aos  cria- 
dos que  se  retirassem  e  fechado  cuidadosamente  a  porta,  ex- 
clamou : 

—  O  sr.  Winkle,  creio  eu  ? 

—  E'  esse  o  meu  nome. 

—  Não  deve  licar  surprehendido,  quando  eu  o  informar 
que  venho  agora  procural-o  em  nome  do  meu  amigo,  o  dr. 
Slammer,  do  regimento  97. 

—  O  dr.  Slammer  1  disse  o  sr.  Winkle. 

—  O  dr.  Slamm.er.  Pediu-me  elle  que  expressasse  a  sua 
opinião  sobre  o  comportamento  do  sr.  W^inkle  na  noite  pas- 
sada. E'  elle  de  um  caracter  que  nenhum  gentleman  poderia 
tolerar.  E,  acrescentou  elle,  que  nem  um  único  gentleman 
teria  usado  para  com  outro. 

O  espanto  do  sr.  Winkle  era  em  demasia  real  e  evidente 
para  escapar  á  observação  do  amigo  do  dr.  Slammer :  por 
isso  proseguiu  : 

—  O  meu  amigo  dr.  Slammer  pediu-me  para  acrescentar 
a  sua  firme  persuasão  de  que  o  sr.  Winkle  esteve  embriagado 
durante  parte  da  noite,  e  provavelmente,  inconsciente  da 
gravidade  do  insulto  de  que  se  tornou  culpado.  Deu-me  com- 
missão  para  dizer  que,  caso  isto  seja  allegado  como  desculpa 
para  o  seu  comportamento,  elle  consente  em  aceitar  uma 
satisfação  escripta  por  mão  do  sr.  Winkle  e  ditada  por 
mim. 

—  Uma  satisfação  1  repetiu  o  sr.  Winkle,  no  tom  mais  em- 
phatico  de  assombro  que  é  possível  dar-se. 


DO   SR.   PICKWICK 


—  E'  escusado  enunciar  a  alternativa,  replicou  friamente 
o  visitante. 

—  Foi  a  mim  mesmo,  ao  meu  nome,  que  lhe  confiai-am 
essa  mensagem  r  perguntou  o  sr.  Winkle,  cujo  intellecto  es- 
tava desesperadamente  confundido  com  esta  extraordinária 
conversação. 

—  Eu  não  estava  presente  á  questão,  redarguiu  o  official, 
e  cm  consequência  da  teimosa  recusa  do  sr.  Winkle  quando 
o  doutor  lhe  pediu  o  seu  bilhete,  o  meu  amigo  rogou-me  que 
descobrisse  o  cavalheiro  que  usa  uma  casaca  pouco  commum 
—  azul  clara,  com  botões  dourados,  tendo  n'estes  um  busto 
e  as  letras  C.  P. 

O  sr.  Winkle  ia  desmaiando  de  pasmo,  ao  ouvir  o  seu 
fato  tão  minuciosamente  descripto.  O  amigo  do  dr.  SIammer 
continuou  : 

—  Das  investigações  que  fiz  agora  mesmo  ao  balcão,  con- 
clui que  o  dono  da  casaca  em  questão  chegara  hontem  aqui, 
com  mais  três  cavalheiros.  Mandei  immediatamente  consul- 
tar o  cavalheiro  que  parecia  ser  o  director  do  grupo,  e  elle 
indicou-me  logo  o  sr.  Winkle. 

Se  a  torre  principal  do  castello  de  Rochester  houvesse 
subitamente  desamparado  os  seus  alicerces  e  caminhado  até 
defronte  das  salas  do  café,  insignificante  teria  sido  a  sua  sur- 
preza  comparada  ao  profundo  pasmo  com  que  elle  ouvira  as 
palavras  do  seu  interlocutor.  A  sua  primeira  impressão  foi 
que  lhe  tinham  roubado  a  casaca. 

—  Permitte-me  que  o  deixe  por  um  momento?  disse  elle. 

—  Pois  não  I  replicou  o  importuno  visitante. 

O  sr.  Winkle  desatou  a  correr  pela  escada  acima,  e  abriu 
a  mala  com  mão  tremula.  Lá  estava  a  casaca  no  seu  logar 
habitual,  mas  exhibindo,  a  uma  rápida  inspecção,  evidentes 
signaes  de  ter  sido  vestida  na  noite  anterior. 

—  Deve  ser  isto,  disse  o  sr.  Winkle,  deixando  cahir  a  ca- 
saca das  mãos.  Bebi  vinho  de  mais  depois  de  jantar,  e  tenho 
uma  recordação  muito  vaga  de  ter  passeiado  pelas  ruas  e  fu- 
mado depois'  um  charuto.  O  que  é  facto  é  que  eu  estava 
muito  bêbado  ;  —  provavelmente  mudei  de  casaca  —  fui  a 
qualquer  parte  —  e  insultei  qualquer  pessoa  —  não  ha  du- 
vida ;  e  esta  mensagem  é  a  terrivel  consequência. 

Dizendo  isto,  o  sr.  Winkle  retrocedeu  em  direcção  á  sala 


32  AS  AVENTURAS 


do  café,  com  a  sinistra  e  tremenda  resolução  de  aceitar  o 
desalio  do  bellicoso  dr.  Slammer,  e  de  se  resignar  ás  peio- 
res  consequências  que  d'ahi  podessem  provir. 

O  sr.  Winkle  era  levado  a  esta  determinação  por  uma  se- 
rie de  considerações;  a  primeira  das  quaes  eVa  a  sua  reputa- 
ção perante  o  ciub. 

Elle  sempre  fora  olhado  como  auctoridade  eminente  em 
todas  as  questões  de  recreio  e  de  dextreza,  quer  offensivas, 
defensivas  ou  inoíTensivas ;  e  se  acaso  logo  na  primeira  occa- 
sião  em  que  era  posto  a  prova,  elle  succumbisse  sob  os  olhos 
do  seu  chefe,  o  seu  nome  e  a  sua  posição  ficavam  perdidos 
para  sempre. 

Além  d'isso,  elle  recordava-se  de  ter  ouvido  segredar  fre- 
quentemente aos  profanos  na  matéria,  que  por  uma  combi- 
nação implicita  entre  os  padrinhos,  as  pistolas  raras  vezes  eram 
carregadas  com  bala ;  e  também  reflectiu  que,  dirigindo- 
se  ao  sr,  Snodgrass  para  lhe  servir  de  padrinho  e  pintando- 
Ihe  o  perigo  em  termos  tenebrosos,  este  seu  amigo  commu- 
nicaria  provavelmente  a  noticia  ao  sr.  Pickwick,  o  qual  de- 
certo não  perderia  tempo  em  transmittil-a  ás  auctoridades 
locaes,  e  a  evitar  assim  a  morte  ou  a  mutilação  do  seu  se- 
quaz. 

Taes  eram  os  seus  pensamentos  ao  voltar  para  o  café, 
e  ao  expressar  a  sua  intenção  de  aceitar  o  desafio  do  dou- 
tor. 

—  Deseja  indicar-me  um  amigo,  com  quem  combine  a 
hora  e  o  local  do  encontro  ?  perguntou  o  official 

—  E'  escusado,  replicou  o  sr.  Winkle  ;  designe-os  o  se- 
nhor, e  eu  depois  tratarei  de  arranjar  um  amigo  que  me 
acompanhe. 

—  Convem-lhe  hoje  ao  sol  posto  ?  interrogou  negligente- 
mente o  othcial. 

—  Muito  bem,  redarguiu  o  sr.  Winkle,  pensando  de  si 
para  si  que  era  muito  mau. 

—  Conhece  o  forte  Pitt  ? 

—  Conheço ;  vi-o  hontem. 

—  Se  quizer  dar-se  ao  incommodo  de  voltar  para  o  campo 
que  confina  com  a  trincheira,  de  tomar  o  atalho  á  esquerda, 
logo  que  chegue  a  um  angulo  da  fortificação,  e  de  seguir  em 
frente  até  que  me  veja,  eu  o  guiarei  a  um  sitio  isolado,  onde  se 


DO  SR.  pickwick:  33 


pôde  levar  a  cabo  este  negocio  sem  receio  de  interrupção, 

—  Receio  de  interrupção  I  pensou  o  sr.  Winkle. 

—  Não  ha  nada  mais  a  tratar,  cuido  eu,  disse  o  official. 

—  Não  me  lembra  mais  nada,  replicou  o  sr.  Winkle. 

—  Muito  bons  dias. 

—  Muito  bons  dias. 

E  o  official  afastou  se  a  passo  militar,  assobiando  uma 
canção  alegre. 

N'aquelía  manhã  correu  soturno  o  almoço.  O  sr.  Tupman 
não  estava  erfi  disposições  de  se  excitar  depois  das  desacos- 
tumadas extravagâncias  da  noite  precedente  ;  o  sr.  Snodgrass 
parecia  oppresso  sob  uma  depressão  poética  de  espirito;  e 
até  o  sr.  Pickwick  manifestava  uma  desusada  tendência  para 
o  silencio  e  para  a  soda-water.  O  sr.  Winkle  espreitava  com 
avidez  o  ensejo  de  fallar.  Não  tardou  muito.  O  sr.  Snodgrass 
propoz  uma  visita  ao  castello,  e  como  o  sr.  Winkle  era  o 
único  companheiro  disposto  a  passeiar,  sahiram  os  dois  jun- 
tos. 

—  Snodgrass,  disse  o  sr.  Winkle,  apenas  se  acharam  na 
rua,  Snodgrass,  meu  caro  amigo,  posso  confiar  na  sua  discri- 
ção ? 

Dizendo  isto,  elle  tinha  a  mais  devotada  e  sofFrega  espe- 
rança de  não  confiar. 

—  Pode,  replicou  o  sr.  Snodgrass.  Se  quer  que  eu  jure.  . . 

—  Não,  não,  interrompeu  Winkle  atterrado  com  a  ideia 
de  que  o  seu  companheiro  se  compromettesse  inconsciente- 
mente a  não  divulgar  o  segredo;  escusa  de  jurar,  é  perfeita- 
mente inútil. 

O  sr,  Snodgrass  deixou  cahir  a  mão  que,  segundo  a  forma 
poética^  elle  elevara  para  as  nuvens,  quando  fizera  a  ^ua  in- 
vocação, e  assumiu  uma  attitude  attenta. 

—  Preciso  do  seu  concurso,  meu  caro,  para  uma  pendên- 
cia de  honra,  disse  o  sr.  Winkle. 

—  Estou  ás  suas  ordens,  replicou  o  sr.  Snodgrass,  agar- 
rando na  mão  do  amigo. 

—  Com- um  doutor  —  um  tal  doutor  Slammer,  do  97,  disse 
o  sr.  Winkle,  desejando  dar  ao  assumpto  as  mais  solemnes 
apparencias  possivel,  uma  pendência  com  um  official,  sendo 
testemunha  outro  official,  n'um  campo  isolado  para  lá  do 
forte  Pitt. 

D 


34  AS    AVENTURAS 


—  Serei  a  sua  testemunha,  disse  o  sr.  Snodgrass. 
Estava  pasmado,  mas  por  fórma  alguma  desanimado. 

E'  extraordinária  a  frieza  que  n'estes  casos  mostram  to- 
das as  partes,  a  não  ser  a  principal  interessada.  O  sr.  Winkle 
tinha-se  esquecido  d'isto.  Regular  á  pelos  seus  os  sentimentos 
do  amigo. 

—  As  consequências  podem  ser  terríveis,  disse  elle. 

—  Espero  que  não,  disse  o  sr.  Snodgrass. 

—  O  doutor  supponho  que  é  hom  atirador. 

—  Como  a  maior  parte  dos  militares,  observou  o  sr. 
Snodgrass  serenamente,  mas  você  também  é,  não  é  ver- 
dade ? 

O  sr.  Winkle  respondeu  affirmativamente ;  e  percebendo 
que  não  tinha  assustado  bastante  o  amigo,  mudou  de  tá- 
ctica. 

—  Snodgrass,  disse  elle  em  voz  tremula  de  emoção,  se  eu 
succumbir,  achará  n'um  embrulho  que  lhe  deporei  nas  mãos 
um  bilhete  para  meu.  .  .  para  meu  pae. 

Este  ataque  falhou  também. 

O  sr.  Snodgrass  ficou  impressionado,  mas  encarregou-se 
da  entrega  do  bilhete  com  tanta  promptidão,  como  se  fosse 
um  simples  carteiro. 

—  Se  eu  succumbir,  disse  o  sr.  Winkle,  ou  se  o  doutor 
succumbir,  você,  meu  caro  amigo,  será  julgado  nos  tribu- 
naes  como  testemunha.  Deverei  eu  sujeitar  um  amigo  meu  a 
deportação  —  talvez  por  toda  a  vida  ? 

O  sr.  Snodgrass  sobresaliou-se  um  pouco,  mas  o  seu  he- 
roísmo foi  invencível. 

—  Pela  causa  da  amisade,  exclamou  elle  com  fervor,  af- 
frontarei  todos  os  perigos. 

Ccmo  o  sr.  Winkle  amaldiçoou  intimamente  a  dedicada 
amisade  do  companheiro,  em  quanto  iam  caminhando  silen- 
ciosamente, ao  lado  um  do  outro,  durante  alguns  minutos, 
cada  um  d'elles  mergulhado  nas  suas  próprias  meditações  I 
A  manhã  ia  passando;  elle  chegou  ao  cumulo  do  deses- 
pero. 

—  Snodgrass,  disse  elle,  parando  de  repente,  veja  lá,  não 
me  ponha  estorvos  —  não  faça  denuncia  ás  auctoridades  locaes 
—  não  reclame  a  assistência  da  policia,  para  obter  a  minha 
detenção  ou  a  do  dr.  Slammer,  do  regimento  97,  actualmente 


DO   SR.  PICKWICK 


35 


aquartellado    em    Chatham    Barracks,    e    evitar    assim   este 
duello  ;  —  veja  lá,  não  faça  nada  d'isto. 

O  sr.  Snodgrass  agarrou  com  calor  a  mão  do  amigo,  e  re- 
plicou com  enihusiasmo  : 

—  Descance,  por  cousa  alguma  d'este  mundo  o  farei ! 
Pelo  corpo  do    sr.  Winkle  passou   um  calafrio,  quando 

o  empolgou  a  convicção  de  que  nada  tinha  a  esperar  dos  te 
mores  do  seu  amigo  e  de  que  estava  destinado  a  transfor- 
mar-se  n'um  alvo  animado. 

Explicado  minuciosamente  o  caso  ao  sr.  Snodgrass,  alu- 
gada a  um  fabricante  de  Rochester  uma  caixa  de  pistolas  de 
dois  canos,  com  os  devidos  petrechos,  pólvora,  balas,  etc, 
os  dois  amigos  voltaram  á  estalagem:  o  sr.  Winkle  para  ru- 
minar sobre  o  combate  imminente ;  e  o  sr.  Snodgrass  para 
preparar  as  armas  de  guerra  e  pôl-as  em  estado  de  uso  im- 
mediato. 

Estava  uma  tarde  sombria  e  pesada,  quando  elles  torna- 
ram a  sahir  para  o  seu  desagradável  intento. 

O  sr.  Winkle  ia  embrulhado  n'uma  enorme  capa  para  se 
subtrahir  á  observação ;  e  o  sr.  Snodgrass  levava  debaixo  da 
sua  os  instrumentos  de  destruição. 

—  Traz  tudo?  disse  o  sr.  Winkle,  com  voz  agitada. 

—  Tudo,  respondeu  Snodgrass;  petrechos  á  farta,  caso 
os  tiros  não  surtam  eífeito.  Vem  na  caixa  uma  quarta  de 
pólvora,  e  trago  dois  jornaes  na  algibeira  para  buxas. 

Eram  provas  de  amisade,  pelas  quaes  qualquer  homem 
deveria  com  razão  sentir-se  gratissimo.  E'  presumivel  que  a 
gratidão  do  sr.  Wmkle  era  demasiado  intensa  para  achar  ex- 
pressões condignas,  visto  que  se  calou  e  continuou  a  andar 
—  com  pouca  pressa. 

—  Temos  tempo,  disse  o  sr.  Snodgrass,  quando  os  dois 
trepavam  a  primeira  trincheira ;  o  sol  está  agora  mesmo  a  ir 
para  baixo. 

O  sr.  Winkle  olhou  para  cima,  para  o  globo  que  decli- 
nava, e  pensou  lamentosamente  na  possibilidade  de  elle  tam- 
bém «ir  para  baixo»  dentro  em  pouco. 

—  Lá  está  o  official,  exclamou  o  sr.  Winkle,  depois  dq 
andar  alguns  minutos. 

—  Onde  ?  perguntou  o  sr.  Snodgrass. 

—  Além;  —  aquelle  sujeito  de  capote  azul. 


OO  AS   AVENTURAS 


O  sr.  Snodgrass  olhou  na  direcção  apontada  pelo  index 
do  amigo,  e  observou  uma  figura  embrulhada,  conforme  a 
descripção. 

O  oííicial  patenteou  o  ter  dado  pela  presença  d'elles  por 
um  leve  aceno  de  mão ;  e  os  dois  amigos  seguiram,  a  curta 
distancia,  o  caminho  que  elle  tomou. 

A  tarde  escurecia  cada  vez  mais,  e  um  vento  melancólico 
resoava  pelos  campos  desertos,  como  um  gigante  longinquo 
a  assobiar  ao  seu  cão.  A  tristeza  da  scena  espargia  uma  tinta 
sombria  sobre  os  sen:imentos  do  sr.  Winkle.  Estremeceu  ao 
passar  o  angulo  da  trincheira  —  assimilhava-se  a  um  tumulo 
collossal. 

O  official  sahiu  de  repente  do  atalho ;  e  depois  de  trepar 
uma  estacada  e  de  escalar  uma  sebe,  entrou  n'um  campo 
apartado.  Ali  estavam  á  espera  dois  individuos  :  um  d'elles 
era  um  homemsinho  gordo,  de  cabellos  pretos;  o  outro  — 
um  sujeito  de  aspecto  imponente  e  de  casaca  d'alamares 
—  estava  sentado  com  a  mais  completa  serenidade  n'um  ban- 
quinho de  campanha. 

—  O  seu  adversário  mais  um  cirurgião,  supponho  eu 
disse  osr.  Snodgrass;  tome  lá  uma  pinga  de  aguardente. 

O  sr.  Winkle  agarrou-se  á  garrafa  envolta  em  vime,  que 
o  amigo  lhe  estendia,  e  tomou  um  prolongado  gole.  do  liquido 
exhilariante. 

—  O  meu  amigo  sr.  Snodgrass,  disse  o  sr.  Winkle,  quando 
o  official  se  aproximou. 

O  amigo  do  dr.  Slammer  inclinou-se  e  ostentou  uma  caixa 
idêntica  á  trazida  pelo  sr.  Snodgrass. 

—  Nada  mais  temos  a  dizer,  supponho  eu,  notou  elle  fria- 
mejite,  abrindo  a  caixa  ;  recusou-se  terminantemente  uma 
justificação. 

—  Nada  mais,  disse  o  sr.  Snodgrass,  que  começava  tam- 
bém a  sentir  se  desagradavelmente  impressionado. 

—  Quer  dar-se  ao  incommodo  de  avançar?  perguntou  ao 
official. 

—  Pois  não,  replicou  Snodgrass. 

Mediu-se  o  terreno,  e  combinaram-se  os  preliminares. 

—  Ha  de  achar  estas  melhor  do  que  as  suas,  disse  a  teste- 
munha da  parte  opposta,  apresentando  as  suas  pistolas.  Viu- 
me  carregal-as.  Tem  duvida  em  servir-se  d'ellas  ? 


no   SR.   PICKWICK  J7 


—  Por  forma  alguma,  repricou  o  sr.  Snodgrass. 

Esta  otTerta  alliviou-o  de  um  embaraço  enorme ;  porque 
as  suas  noções  anteriores  sobre  o  carregar  de  uma  pistola 
eram  um  tanto  vagas  e  indefinidas. 

—  N'esse  caso,  parece-me  que  podemos  collocar  os  nos- 
sos homens,  observou  o  oíficial,  com  tanta  indifferença  como 
se  os  duellistas  fossem  trebelhos  de  xadrez  e  os  padrinhos 
jogadores. 

—  Julgo  que  podemos,  redarguiu  o  sr.  Snodgrass,  o  qual 
teria  concordado  com  qualquer  proposta,  por  não  saber  nada 
do  assumpto. 

O  official  atravessou  em  direcção  do  dr.  Slammer,  e  o  sr. 
Snodgrass  approximou~se  do  sr.  Winkle. 

—  Prompto,  disse  elle,  otTerecendo  a  pistola.  Dè  ca  a  sua 
carga. 

— ^Você  tem  o  embrulho  em  seu  poder,  meu  caro  amigo, 
disse  o  pobre  Winkle. 

—  Tudo  em  ordem,  disse  o  sr.  Snodgrass.  Tenha  firmeza 
e  trate  de  o  desazar. 

Occorreu  ao  sr.  Winkle  que  esta  advertência  era  muito 
parecida  com  a  que  os  circumstantes  dão  invariavelmente  ao 
garoto  mais  petiz  nas  desavenças  da  rua  :  «Anda,  a  elle, 
meite  o  debaixo  de  ti!»  —  Um  conselho  admirável,  o  caso  é 
saber  pòl  o  em  pratica!  Comtudo,- despiu  a  capa  em  silen- 
cio—  levava  sempre  muito  tempo  a  desabotoar  essa  capa  — 
e  recebeu  a  pistola. 

Ospadrinhosafastaram-se, osuj«ito  que  estava  no  banqui- 
nho fez  o  mesmo,  e  os  belligerantes  adiantaram-se  um  para 
o  outro. 

O  sr.  Winkle  sempre  fora  notável  pela  sua  extrema  hu- 
manidade. E'  de  suppòr  que  a  sua  repugnância  em  damnifi- 
car  intencionalmente  o  próximo  foi  a  causa  que  o  obrigou  a 
fechar  os  olhos,  ao  chegar  ao  sitio  fatal,  e  que  a  circumstan- 
cia  de  ter  os  olhos  fechados  é  que  obstou  a  que  observasse 
os  extraordinários  e  inexplicáveis  movimentos  do  dr.  Slam- 
mer. 

Este  cavavalheiro  estremeceu,  abriu  muito  os  olhos,  re- 
cuou, esfregou  as  pálpebras,  tornou  a  abrir  os  olhos ;  e  afinal 
desatou  a  berrar  :  «Parem  !  Parem  \» 

—  Que  quer  dizer  isto?  perguntou   elle,   quando  o  seu 


38  AS  AVENTURAS 


amigo  e  o  sr.  Snodgrass  se  aproximaram  a  correr.  Não  é 
este  o  homem  ! 

—  Não  c  o  homem!  disse  a  testemunha  do  dr,  Slam- 
mer. 

—  Não  é  o  homem  !  disse  o  sr.  Snodgrass. 

—  Não  é  o  homem  !  disse  o  sujeito  com  o  banquinho  na 
mão. 

—  Está  claro  que  não,  repHcou  o  doutorsinho.  Não  é  este 
o  individuo  que  me  insuhou  a  noite  passada. 

—  E'  extraordinário!  exclamou  o  official. 

—  Muito  extraordinário,  disse  o  sujeito  do  banquinho.  A 
questão  única  é  se  este  cavalheiro,  visto  achar-se  no  campo, 
não  deve  ser  considerado,  em  matéria  de  forma,  como  o  in- 
dividuo que  insultou  o  nosso  amigo  dr.  Slammer,  hontem  á 
noite,  quer  elle  seja  realmente  esse  individuo,  quer  não. 

E  tendo  suggerido  esta  ideia,  com  um  aspecto  mysterioso 
e  sapientissimo,  o  homem  do  banquinho  tomou  .uma  grande 
pitada  de  rapé,  e  olhou  profundamente  em  volta  de  si,  com 
ares  de  auctoridade  em  taes  matérias. 

Ora  o  sr.  Winkle  abriu  os  olhos,  e  também  os  ouvidos, 
ao  ouvir  o  seu  adversário  reclamar  uma  suspensão  de  hos- 
tilidades ;  e  percebendo  pelo  que  elle  dissera  em  seguida 
que,  sem  a  menor  duvida,  havia  algum  equivoco,  elle  previu 
n'um  abrir  e  fechar  d'olhos,  o  accrescimo  de  reputação  que 
inevitavelmente  adquiriria,  reservando  o  motivo  real  da  sua 
vinda  ali :  por  isso  avançou  audaciosamente  e  disse  : 

—  Não  sou  eu  o  individuo.  Já  o  sabia. 

—  N'esse  caso,  disse  o  homem  do  banquinho,  é  isso  uma 
affronta  para  o  dr.  Slammer  e  uma  razão  sufficiente  para 
proceder  sem  delongas. 

—  Faça  favor  de  estar  calado,  Pavne,  disse  o  padrinho  do 
doutor.  Porque  é  que  o  senhor  não  me  communicou  esta  ma- 
nhã esse  facto  ? 

—  Diz  muito  bem,  diz  muito  bem,  acudiu  o  homem  do 
banquinho  com  indignação. 

—  Rogo-lhe  que  se  cale,  Payne,  disse  o  outro.  E'  preciso 
que  eu  repita  a  pergunta,  senhor?  <, 

—  A  razão  é  esta,  replicou  o  sr.  Winkle,  que  tivera  tempo 
de  dehberar  sobre  a  resposta ;  o  senhor  descreveu  uma  pes- 
soa embriagada  e  mal  educada  que  vestia  a  casaca  que  eu 


no  SR.   IMCKWICK  .-»() 


lenho  a  honra  não  só  de  usar,  mas  lambem  de  haver  inven- 
tado —  o  uniforme  proposto  do  Club  Pickwick  de  Londres. 
Ora  eu  julgo-me  obritíado  a  manter  a  honra  d'esse  uniforme, 
e  por  isso,"  sem  mais  investigações,  aceitei  o  repto  que  o  se- 
nhor me  lançou. 

- — Meu  caro  senhor,  disse  o  jovial  doutor,  adiantando-se 
com  a  mão  estendida,  presto  homenagem  ao  seu  cavalhei- 
rismo. Permitta-me  que  lhe  diga,  senhor,  que  admiro  alta- 
mente o  seu  procedimento,  e  sinto  deveras  o  ter  causado 
este  inconveniente  encontro  sem  resultado. 

—  Não  falle  mais  em  tal,  disse  Winkle. 

—  Terei  um  grande  orgulho  em  o  conhecer,  disse  o  dou- 
torsinho. 

—  Dar-me-ha  o  máximo  prazer  o  conhecel-o,  replicou  o 
sr.  Winkle. 

Ditas  estas  palavras,  o  doutor  e  o  sr.  Winkle  apertaram-se 
as  mãos,  e  depois  o  sr.  Winkle,  mais  o  tenente  Tappleton, 
testemunha  do  doutor,  e  depois  o  sr.  Winkle  mais  o  homem 
do  banquinho,  e  finalmente  o  sr.  Winkle  mais  o  sr.  Snod- 
grass,  o  qual  estava  possuído  de  uma  excessiva  admiração 
pelo  galhardo  proceder  do  seu  heróico  amigo. 

—  Julgo  que  devemos  dar  por  findo  o  encontro,  disse  o 
tenente  Tappleton. 

—  Certamente,  ajuntou  o  doutor. 

—  A  não  ser,  atalhou  o  homem  do  banquinho,  que  o  sr. 
Winkle  se  sinta  oflendido  pelo  desafio  :  n'esse  caso,  concordo 
que  tem  direito  a  uma  satisfação. 

O  sr.  Winkle,  com  a  máxima  abnegação,  manifestou- se 
plenamente  satisfeito. 

—  Ou  talvez,  disse  o  homem  do  banquinho,  que  a  teste- 
munha d'este  cavalheiro  se  sinta  escandalisada  com  alguma 
observação  que  me  escapasse  no  começo  do  encontro  :  sendo 
assim,  eu  terei  muito  gosto  em  lhe  dar  satisfação  immediata. 

O  sr,  Snodgrass  declarou  se  promptamente  agradecidís- 
simo á  delicada  oíTerta  do  sujeito  que  acabara  de  fallar,  of- 
ferta  que  elle  julgava  do  seu  dever  declinar,  pela  cabal  adhe- 
são  a  tudo  o  que  se  passara. 

Os  dois  padrinhos  arrumaram  as  caixas,  e  o  grupo  sahiu 
do  campo  por  forma  mais  jovial  do  que  aquella  com  que  lá 
entrara. 


40  AS   AVENTURAS 


—  Demora-se  aqui  muito  tempo?  perguntou  o  dr.  Slam- 
mer  ao  sr.  Winkle,  quando  clles  iam  andando  muito  amiga- 
velmente. 

—  Cuido  que  devemos  partir  depois  de  amanhã,  foi  a  res- 
posta. 

—  Espero  que  terei  o  prazer  de  o  ver,  e  mais  o  seu  amigo, 
nos  meus  aposentos,  e  de  passar  uma  noite  agradável  com- 
sigo,  depois  d'este  importuno  equivoco,  disse  o  doutorsinho. 
Não  está  compromettido  esta  noite? 

—  Estamos  aqui  com  outros  amigos,  replicou  o  sr.  Win- 
kle, e  eu  não  gostaria  de  os  deixar  esta  noite.  Talvez  que  o 
doutor  e  os  seus  amigos  não  tenham  duvida  em  ir  ter  com- 
nosco  á  hospedaria  do  Touro. 

—  Com  o  maior  prazer,  disse  o  doutor.  Não  será  tarde 
ás  dez  horas,  para  lhes  fazermos  uma  visita  de  meia  hora  ? 

—  De  modo  algum,  disse  o  sr.  Winkle.  Estimarei  im- 
menso  apresental-o  aos  meus  amigos,  os  srs.  Pickwick  e  Tu- 
pman. 

—  Terei  n'isso  o  maior  gosto,  com  certeza,  replicou  o 
dr,  Slammer,  mal  suspeitando  quem  fosse  o  sr.  Tupman. 

—  Podemos  contar  comsigo  ?  perguntou  o  sr.  Snodgrass. 

—  Oh  !  decerto  I 

Entrementes  tinham  chegado  ú  estrada. 

Trocaram-se  cordiaes  despedidas,  e  o  grupo  separou-se. 

O  dr.  Slammer  e  os  seus  amigos  dirigiram-se  para  o  quar- 
tel, e  o  sr.  Winkle  acompanhado  pelo  seu  amigo  sr.  Snod- 
grass, voltou  p^ra  a  hospedaria. 


CAPITULO  III 

Um  novo  conhecimento.  —  A  historia  do  actor 
ambulante — Uma  interrupção  desagradável,  e 
um  encontro  importuno. 

O  sr.  Pickwick  sentia  algumas  apprehensões  em  conse- 
quência da  desacostumada  ausência  dos  seus  dois  amigos, 
apprehensões  que  o  seu  mysterioso  comportamento  durante 
a  manhã  inteira  não  tendera  nada  a  diminuir. 


DO  SR.  PICKWICK  41 


Foi  pois  com  prazer,  mais  do  que  usual,  que  elle  os  sau- 
dou á  entrada  ;  e  com  interesse  tora  do  vulgar  que  elle  inqui- 
riu qjnes  as  occorrencias  que  os  haviam  apartado  da  sua 
companhia. 

Em  resposta  ás  suas  perguntas  a  tal  respeito,  o  sr.  Snod- 
grass  ia  abrir  a  bocca  para  apresentar  uma  narrativa  histó- 
rica das  circumstancias  que  acabamos  de  pormenorisar, 
quando  subitamente  se  conteve,  por  ver  que  estavam  presen- 
tes, não  só  o  sr.  Tupman  e  o  seu  companheiro  de  diligencia 
da  véspera,  mas  cutro  desconhecido  de  apparencia  egual- 
mente  singular. 

Era  um  homem  de  aspecto  abatido,  cujo  rosto  descorado 
e  olhos  profundamente  cavados  ainda  se  tornaram  mais  fri- 
santes  do  que  a  natureza  os  fizera,  pelos  cabellos  pretos  e  li- 
sos que  lhe  cabiam  em  desalinho  até  meio  da  cara. 

Tinha  os  olhos  extraordinariamente  brilhantes  e  perspi- 
cazes;  os  ossos  das  faces  altos  e  proeminentes;  e  os  queixos 
tão  compridos  e  descarnados  que  pareceria  a  um  observador 
o  estar  elle  a  repuxar  para  dentro  a  carne  das  faces,  por  uma 
contracção  momentânea  dos  músculos,  se  acaso  a  bocca 
semi-aberta  e  a  expressão  impassível  não  annunciasse  que 
era  este  o  seu  aspecto  habitual. 

Tinha  um  chalé  verde  á  roda  do  pescoço,  com  as  grandes 
pontas  cabidas  sobre  o  peito  e  apparecendo  de  quando  em 
quando  por  baixo  dcs  casas  gastas  do  velho  coUete. 

Trazia  por  cima  um  comprido  sobretudo  preto;  e  abaixo 
d'elle  umas  calças  largas  de  lã  ordinária  e  grandes  botas  a 
pique  de  se  desfazerem. 

Foi  n'este  estranho  personagem  que  se  cravou  o  olhar  do 
sr.  Winkle,  e  para  elle  é  que  o  sr.  Pickwick  estendeu  a  mão, 
dizendo : 

—  Um  amigo  d'este  nosso  amigo  aqui.  Descobrimos  esta 
manhã  que  o  nosso  amigo  tem  ligações  com  o  theatro  da 
terra,  comquanto  elle  não  deseje  que  isso  conste,  e  este  ca- 
valheiro é  membro  da  mesma  profissão.  Ia  agora  mesmo  mi- 
mosear-nos  com  uma  anecdotasita  a  propósito,  quando  os 
amigos  entraram. 

—  Sucia  de  anecdotas,  disse  o  desconhecido  da  casaca 
verde,  adiantando-se  para  o  sr.  Winkle  e  fallando  em  voz 
tniixa    e    confidencial.    Patusco    original  —  encarrega  se    das 


4-  AS   AVENTliP.A_s 


massadas  —  não  é  actor  —  homem  extraordinário  —  toda  a 
espécie  de  misérias.  Lá  na  companhia  pozemos-lhe  a  alcunha 
de  Jemmy  o  Fúnebre. 

Os  t,r>.  Winkle  e  Snodgrass  cumprimentaram  com  toda 
a  delicadeza  o  cavallreiro  que  respondia  a  tão  elegante  alcu- 
nha;  e  pedindo  aguardente  e  agua,  á  similhança  dos  outros 
circumstantes,  sentaram-se  á  mesa. 

—  Agora,  senhor,  disse  o  sr.  Pickwick,  quer  ter  a  bondade 
de  começar  o  que  ia  contar-nos  ? 

O  individuo  fúnebre  sacou  da  algibeira  um  rolo  de  papel 
enxovalhado,  e  virando-se  para  o  sr.  Snodgrass,  que  acabava 
de  tomar  o  seu  livro  de  notas,  disse  em  voz  cava,  perfeita- 
mente adequada  ao  seu  exterior. 

—  O  senhor  é  poeta  ? 

—  Eu. . .  eu  trabalho  um  pouco  no  género,  explicou  o  sr. 
Snodgrass,  um  tanto  perturbado  peio  brusco  da  interpella- 
ção. 

—  Ah  !  a  poesia  faz  da  vida  o  mesmo  que  as  luzes  e  a  mu- 
sica fazem  do  palco.  Eliminem  este  dos  falsos  adornos  e 
aquelle  das  illusóes,  e  o  que  ha  de  real  em  qualquer  das  duas 
coisas,  que  valha  o  nosso  interesse  ? 

—  Tem  muita  razão,  redarguiu  o  sr.  Snodgrass. 

—  Estar  diante  da  ribalta,  continuou  o  homem  fúnebre, 
é  como  estar  sentado  n'uma  reunião  da  corte,  a  admirar  os 
vestidos  de  seda  da  multidão  faustosa  — estar  por  detraz 
d'ella  o  mesmo  é  que  ser  a  gente  que  fabrica  essas  pompas, 
turba  desconhecida  e  despresada  e  que  se  deixa  afundar  ou 
nadar  á  superfície,  morrer  de  fome  ou  viver,  conforme  os 
vaiveus  da  fortuna. 

—  Certamente,  disse  o  sr.  Snodgrass,  porque  os  olhos  en- 
covados do  homem  fúnebre  estavam  cravados  n'elle  e  lhe 
impunham  a  necessidade  de  dizer  qualquer  coisa. 

—  Ande  lá,  Jemmy,  disse  o  viajante  das  Hespanhas,  ani- 
me-se  —  deixe-se  de  coaxar  —  falle  para  ahi  —  seja  amá- 
vel. 

—  Quer  preparar  outro  copo  antes  de  começar  ?  pergun- 
tou o  sr.  Pickwick. 

O  homem  fúnebre  accedeu  ao  convite.  Arranjou  um  copo 
de  aguardente  e  agua,  enguliu  vagarosamente  metade  do  con- 
teúdo, abriu  o  rolo  de  papel,  e  principiou,  ora  a  ler,  ora  a 


DO  SR.  PICKWICK  43 


relatar  o  caso  seguinte,  que  encontramos  registado  nas  actas 
do  Club,  sob  o  titulo :  A  Historia  do  actor  ambulante. 

—  Nada  ha  de  maravilhoso  no  que  passo  a  relaiar-lhes : 
nada  ha  mesmo  de  raro.  A  miséria  e  a  doença  são  demasiado 
vulgares  em  muitas  situações  da  vida,  para  merecerem  uma 
menção  maior  do  que  a  que  se  concede  de  ordinário  ás  mais 
banaes  vicissitudes  da  vida.  Golligi  estes  apontamentos,  por- 
que durante  muitos  annos  tive  relações  intimas  com  o  proto- 
gonista.  Tracei  passo  a  passo  a  sua  queda,  até  ter  afinal  at- 
tingido  aquelle  excesso  de  ignominia  do  qual  nunca  mais  se 
ergueu. 

<<0  homem  de  quem  fallo  era  um  Ínfimo  actor  de  panto- 
mimas; e  como  um  grande  numero  de  individuos  da  sua 
classe,  era  bêbado  por  habito.  - 

«Nos  seus  melhores  tempos,  antes  de  se  ter  enfraquecido 
na  crápula  e  de  ter  emmagrecido  peia  doença,  ganhava  elle 
um  bom  salário,  que,  se  elle  fosse  cuidadoso  e  prudente,  po- 
deria ter  continuado  a  receber  durante  alguns  annos  —  não 
muitos  :  porque  homens  d'estes  ou  morrem  cedo,  ou  perdem 
prematuramente  pelo  abuso  as  forças  physicas  que  lhes  po- 
dem sõ  proporcionar  os  meios  de  subsistência. 

((O  vicio  habitual  apoderou-se  d'elle  tão  rapidamente,  que 
se  tornou  impossivel  empregai-o  nos  papeis  em  que  elle  era 
realmente  útil  ao  iheatro.  À  taverna  exercia  sobre  elle  uma 
fascinação  a  que  não  podia  resistir.  A  moléstia  desamparada 
e  a  pobreza  sem  esperança  eram  para  elle  um  quinhão  tão 
seguro  como  a  própria  morte,  se  acaso  perseverasse  no  mes- 
mo modo  de  vida;  e  no  emtanto  perseverou,  e  póde-se  con- 
jecturar o  resultado.  Não  pôde  conseguir  uma  escriptura,  e 
faltou-lhe  o  pão. 

«Sabem  todos  os  que  conhecem  um  pouco  o  meio  thea- 
tral  o  exercito  de  miseráveis  pobretões  que  andam  depen- 
dentes de  um  estabelecimento  d'este  género — actores  sem 
escriptura  regular,  que  não  passam  de  bailarinos,  comparsas, 
figurantes,  etc,  os  quaes  são  contractados  para  a  exploração 
de  uma  pantomima  ou  de  uma  magica,  e  são  em  seguida  des- 
pedidos, ate  que  a  representação  de  outra  peça  de  espectá- 
culo torne  de  novo  necessários  os  seus  serviços. 

«Foi  a  este  modo  de  vida  que  o  homem  se  viu  forçado  a 
'^'  :   er ;  e  representando  todas  as  noites  em  qualquer  sala 


44  AS   AVENTURAS 


ordinária  de  espectáculo,  conseguiu  arranjar  logo  alguns 
shillings  por  semana,  que  o  habilitaram  a  satisfazer  a  antiga 
propensão. 

«Mesmo  este  recurso  a  breve  trecho  lhe  falhou  ;  as  suas 
extravagâncias  nem  lhe  permittiram  que  continuasse  a  mere- 
cer a  magra  pitança  que  elle  assim  poderia  ganhar. 

'<Ficou  por  fim  reduzido  a  um  estado  próximo  da  fome 
absoluta,  arranjando  apenas  de  quando  em  quando  umas 
mealhas  emprestadas  por  algum  velho  collega,  ou  conseguindo 
empregar-se  uma  ou  outra  noite  n'algum  dos  mais  Ínfimos 
theatros.  E  o  pouco  que  assim  ganhava,  ia  gastal-o  no  vicio 
costumado. 

«Por  este  tempo,  e  quando  havia  mais  de  um  anno  cjue 
elle  assmi  vivia  sem  ninguém  saber  como,  fui  eu  contractado 
por  pouco  tempo  para  um  dos  theatros  da  margem  sul  do 
Tamisa. 

«Ahi  tornei  a  encontrar  esse  homem,  a  quem  perdera  de 
vista  havia  tempos,  porque  eu  tinha  andado  a  viajar  pela  pro- 
víncia, emquanto  elle  andava  a  vadiar  pelos  beccos  e  viel- 
las  de  Londres. 

«Acabava  eu  de  me  vestir  e  de  atravessar  o  palco  para 
sahir,  quando  elle  me  bateu  no  hombro. 

«Nunca  me  esquecerei  da  figura  repulsiva  que  se  me  apre- 
sentou aos  olhos  quando  me  voltei.  Elle  ^stava  vestido  para 
a  pantomima  com  o  traje  grotesco  de  palhaço. 

«Os  personagens  espectraes  da  dança  macabra,  as  figuras 
mais  horrorosas  que  o  mais  hábil  dos  pintores  houvesse 
creado,  nem  de  longe  apresentariam  um  aspecto  mais  sepul- 
chral. 

«O  corpo  opado  e  as  pernas  esqueléticas  —  cuja  deformi- 
dade era  centuplicada  pelo  phantastico  do  vestuário  —  os 
olhos  envidraçados,  contrastando  medonhamente  com  a  es 
pessa  camada  branca  que  lhe  cobria  o  rosto ;  a  cabeça  gro- 
tescamente enfeitada,  tremula  de  paralysia,  e  as  mãos  com- 
pridas e  ossudas  esfregadas  com  alvaiade  —  tudo  lhe  impri- 
mia um  aspecto  hediondo  e  fora  do  natural,  de  que  nenhuma 
descripção  pôde  dar  ideia  e  de  que  a  simples  lembrança  ainda 
me  produz  calafrios. 

«A  voz  d'elle  era  cava  e  tremula,  quando  me  chamou  de 
parte  e  me  desfiou  em  palavras  entrecortadas  um  longo  ca- 


no   SR.   PICKWICK  43 


lalogo  de  doenças  e  privações,  terminando,  conforme  o  cos- 
tume, por  sLipplicantes  instancias  para  que  lhe  emprestasse 
uma  quantia  insignificante. 

"Depuz-llie  nas  mãos  uns  shillings,  e,  quando  eu  sahia, 
ainda  ouvi  o  trovão  de  gargalhadas  que  acolheu  a, sua  pri- 
meira cambalhota  no  palco. 

«Algumas  noites  mais  tarde,  um  rapazito  veiu  entregar-me 
um  pedaço  de  papel  sujo,  em  que  estavam  garatujadas  umas 
palavras  a  lápis,  pariicipando-me  que  o  homem  estava  peri- 
gosamente doente,  e  pedindo-me  que  depois  do  espectáculo 
o  fosse  ver  a  casa  d'elie,  em  qualquer  rua,  cujo  nome  me  es- 
quece agora,  mas  que  não  ficava  longe  do  theatro. 

«Pix)metti  lá  ir,  apenas  sahisse ;  e  logo  que  o  panno  cahiu 
tratei  de  executar  a  triste  promessa. 

«Era  tarde,  porque  eu  tinha  entradona  ultima  peça;  e, 
como  era  recita  de  beneficio,  tinha  durado  mais  do  que  o 
costume. 

«Estava  uma  noite  fria  e  escura,  com  uma  ventania  gelada 
e  húmida,  que  atirava  com  a  chuva  de  encontro  ás  janellas  e 
ás  frontarias. 

«Tinham-se  formado  largas  poças  de  agua  nas  ruas  es- 
treitas c  poíuco  frequentadas  ;  e  como  um  grande  numero  dos 
raros  candieiros  haviam  sido  derribados  pela  violência  do 
vento,  o  meu  caminho  era,  sobre  pouco  agradável,  muito  in- 
certo. Por  fortuna,  não  me  tinha  porém  enganado,  e  depois  de 
alguma  difficuldade  consegui  dar  com  a  casa  que  me  tinham 
indicado  —  um  deposito  de  carvão,  com  um  andar  por  cima, 
nas  trazeiras  do  qual  residia  o  desgraçado. 

«Uma  mulher  de  aspecto  miserável,  mulher  d'elle,  veiu  ter 
comigo  á  escada,  e,  dizendo-me  que  elle  acabava  de  cahir 
n'uma  espécie  de  torp©r,  guiou-me  para  dentro  de  casa  e  of- 
fereceu-me  uma  cadeira  junto  do  leito. 

«O  doente  estava  deitado  com  a  cara  voltada  para  a  pa- 
rede ;  como  não  desse  pela  minha  presença,  tive  ensejo  de 
analysar  o  aposento  em  que  me  achava. 

«A  cama  era  de  levante  e  velhíssima.  Em  volta  da  cabe- 
ceira estavam  pendurados  uns  farrapos  de  uma  cortina  de 
riscado,  para  abrigar  do  vento  que,  apesar  d'isso,  se  escoava 
para  o  mesquinho  quarto  pelas  numerosas  frinchas  da  porta, 
e  agitava  a  cada  instante  o  improvisado  abrigo. 


40  AS   AVENTURAS 


«N'uma  grelha  ferrugenta  e  escangalhada  ardia  um  débil 
fogo  de  pó  de  carvão.  Diante  d'elle,  em  cima  de  uma  mesa 
triangular,  velha  e  sórdida,  estavam  uns  poucos  de  frascos 
com  remédios,  um  espelho  quebrado  e  alguns  outros  obje- 
ctos de  uso  domestico. 

"Uma  creancinha  estava  a  dormir  n'um.a  cama  que  se  im- 
provisara no  chão,  e  a  mulher  sentava-se  ao  lado  d'elle. 

«Havia  umas  duas  prateleiras,  com  um  pequeno  numero 
de  pratos,  de  chicaras  e  de  pires;  e  por  baixo  estavam  pen- 
durados uns  dois  floretes  e  um  par  de  sapatos  de  iheatro.  A' 
excepção  de  algumas  pilhas  de  trapos  atirados  negligente- 
mente para  os  cantos,  nada  mais  havia  no  aposento. 

"Eu  tinha  tido  tempo  para  observar  estes  pormenores  e 
para  notar  a  respiração  oppressa  e  os  sobresaltos  febris  do 
doente,  antes  que  elle  desse  pela  minha  presença 

"Nas  tentativas  constantes  que  fazia  para  encontrar  uma 
posição  de  repouso  para  a  cabeça,  a  mão  d'elle,  descahindo 
para  fora  da  cama,  encontrou  a  minha.  Teve  um  sobresalto 
e  olhou-m.e  com  ar  espantado. 

« —  E'  o  sr.  Hutlev,  John,  disse  a  mulher.  O  sr.  Hutley,  que 
tu  mandaste  chamar  esta  noite,  lembras-te  ? 

« —  Ah !  disse  o  invalido  passando  a  mão  pela  testa,  Hu- 
tley—  Hutley  —  deixa  cá  ver. 

«Durante' alguns  segundos  pareceu  tratar  de  colligir  as 
suas  recordações;  em  seguida,  agarrando-me  o  pulso  com 
força,  exclamou  : 

" — Não  me  desampares  —  não  me  desampares  —  meu  ve- 
lho. Ella  quer  matar-me.  Bem  sei  que  ella  quer. 

" —  Ha  muito  tempo  que  elle  está  assim  ?  perguntei  eu  á 
mulher,  lavada  em  lagrimas. 

« — Desde  hontem  á  noite,  respondeu  ella.  John,  John,  não 
me  conheces .'' 

« — Não  a  deixes  aproximar,  disse  o  homem  n'um^arrepio 
de  pavor,  quando  ella  se  curvava  para  elle.  Leva-a  d'aqui  para 
fora;  não  posso  supportal-a  ao  pé  de  mim. 

"Encarou-a  torvamente,  com  um  olhar  cheio  de  terror 
mortal,  e  depois  disse-me  em  segredo  : 

" — Eu  bati-lhe,  Jem  ;  bati-lhe  hontem,  e  muita  vez  antes 
d'isso.  Tenho-a  matado  á  fome,  e.  ao  pequeno  também  ;  e 
agora  ar.^  eu  estou  fraco  e  desamparado,  Jem   ella  quer  dar 


DO  SR.   PICKWíCK  47 


cabo  de  mim  para  se  vingar;  estou  certo  d'isso.  Se  a  tivesses 
ouvido  gritar,  como  eu,  também  te  convencerias.  Tira-m'a 
da  vista. 

"Largou-me  a  mão,  e  cahiu  exhausto  sobre  o  travesseiro. 

«Eu  estava  farto  de  saber  o  que  signilicava  tudo  isto.  Se 
me  íbsse  possivel  conservar  alguma  duvida,  por  um  momen- 
to, um  relancear  de  olhos  para  o  semblante  pallido  e  para  o 
corpo  franzino  da  mulher  ter-me-hiá  bastado  para  explicar  a 
verdadeira  situação. 

<< — E'  melhor  que  se  afaste,  disse  eu  á  pobre  creatura.  A 
sua  presença  não  lhe  pode  fazer  bem.  Talvez  que  elle  soce- 
gue  em  a  não  vendo. 

•'Ella  atastou-se  para  fora  da  nossa  vista.  Elle  abriu  os 
olhos,  passados  instantes,  e  olhou  sotfregamen-te  em  volta 
de  si. 

« — Ella  foi-se  embora?  perguntou  elle  com  anciedade. 

« — Foi,  foi,  disse  eu,  descança,  que  não  te  faz  mal. 

« —  Eu  te  explico,  Jem,  disse  o  desditoso  em  voz  baixa, 
ella  faz-me  muito  mal.  Ha  nos  seus  olhos  o  quer  que  é  que 
me  traz  ao  coração  um  pavor  enorme  que  me  endoidece.  A 
noite  passada  esteve  ella  sempre  com  os  olhos  pasmados  e  o 
rosto  pallido  ao  pé  de  mim  :  para  onde  quer  que  eu  voltava 
os  olhos,  voltava  ella  os  seus  :  e  em  eu  acordando  em  sobre- 
salto,  via-a  sempre  á  cabeceira  a  olhar  para  mim. 

"Puxou  por  mim  para  me  aproximar  mais  e  disse-me  n'um 
cicio  profundo  e  apavorado  : 

« — Jem,  ella  não  é  senão  um  espirito  mau  —  um  demó- 
nio !  Caluda!  E'  o  que  ella  é.  Se  ella  fosse  mulher  ha  muito 
que  tinha  morrido.  Não  ha  mulher  que  supportasse  o  que 
ella  tem  supportado. 

«Tive  calafrios  ao  pensar  na  longa  serie  de  crueldades  e 
de  desprezos  que  deveriam  ter  produzido  um  impressão  tal 
em  tal  homem. 

«Nada  me  occorreu  replicar :  pois  quem  poderia  dar  es- 
peranças -ou  confortos  ao  ente  abjecto  que  estava  diante  de 
mim  ? 

«Ali  estive  sentado  mais  de  duas  horas,  durante  as  quaes 
elle  não  socegou  um  instante,  murmurando  exclamações  de 
dor  ou  de  impaciência,  bracejando  para  um  e  para  outro  lado, 
voltando-se  constantemente  de  uma  banda  para  a  outra. 


4^  AS  AVENTURAS 


«A  final  cahiu  n'aqueUe  estado  de  inconsciência  parcial, 
em  que  o  espirito  vagueia  inq^uieto  de  scena  para  scena, 
de  logar  para  logar,  fora  do  domínio  da  razão,  mas  sem 
comtudo  se  poder  desprender  da  presente  sensação  de  sof- 
frimento  indefinido. 

"Gomo  julgasse  pelos  desvarios  incoherentes  que  a  febre 
não  se  aggravaria  immediatamente,  deixei-o,  promettendo  á 
desventurada  mulher  que  repetiria  a  minha  visita  na  noite  se- 
guinte, e  que,  se  fosse  preciso,  velaria  o  doente  durante  a 
noite.  Cumpri  a  promessa. 

"Nas  •  ultimas  vinte  e  quatro  h^ras  tinha-se  pronunciado 
uma  alteração  medonha. 

"Os  olhos,  apesar  de  profundamente  encovados,  tinham 
um  brilho  -que  causava  pavor.  Os  lábios  estavam  queimados 
e  gretados  em  muitos  pontos  ;  a  carne  secca  e  áspera  parece 
que  ardia ;  e  espalhava-se  pelo  rosto  do  doente  uma  expres- 
são de  anciedade  feroz,  quasi  sobrenatural,  accusando  ainda 
com  mais  intensidade  os  estragos  da  moléstia.  A  febre  eslava 
no  cumulo. 

"Sentei-me  na  mesma  cadeira  da  véspera,  e  ali  estive  ho- 
ras e  horas,  á  escuta  dos  sons  que  profundamente  devem  im- 
pressionar o  menos  piedoso  dos  entes  humanos  —  os  desvarios 
tremendos  de  um  moribundo. 

"Pelo  que  eu  ouvira  ao  medico,  nenhuma  esperança  res- 
tava já:   era  junto  ao  seu  leito  de  morte  que  eu  me  achava. 

"Vi  os  membros  macilentos  que,  poucas  horas  havia,  se 
tinham  deslocado  para  divertir  um  publico  tumultuoso,  a  es- 
torcerem-se  nas  torturas  de  uma  febre  ardente. 

"Ouvi  o  gargalhar  estridulo  do  palhaço  de  mistura  com 
os  débeis  murmúrios  do  agonisante. 

"E'  commovedor  o  ouvir  o  espirito  a  voltar-se  para  as 
occupaçóes  ordinárias,  para  os  actos  do  homem  válido, 
quando  o  corpo  jaz  diante  de  nós  sem  força  e  sem  energia. 
Mas  muito  mais  poderosa  é  essa  impressão,  quando  essas 
occupaçóes  teem  um  caracter  absolutamente  contradictorio 
de  quaesquer  ideias  sepulchraes  ou  solemnes. 

"Os  principaes  themas  dos  desvarios  do  desventurado 
eram  o  theatro  e  a  taberna. 

«Imaginava  que.  ia  representar  um  papel  n'aquella  noite ; 
era  já  tarde  e  tinha  de  sahir  de  casa  sem  demora. 


1)0  SR.  1>ICKWICK  49 


«Para  que  c  que  o  agarravam?  para  que  o  impediam  de 
ir?  Queriam  obrigal-o  a  perder  dinheiro?  Tinha  que  ir  por 
força.  Não  !  não  queriam  deixai  o. 

«Escondia  o  rosto  nas  mãos  ardentes,  e  lamentava-se  de- 
bilmente  da  fraqueza  própria  e  da  crueldade  com  que  o  per- 
seguiam. Depois  de  uma  curta  pausa  desatava  a  declamar 
uns  péssimos  versos  —  os  últimos  que  elle  havia  aprendido. 

"Levantou-se  na  cama,  estendeu  os  membros  descarnados 
c  revolveu  se  em  posições  extravagantes;  suppunha  estar  no 
theatro  a  representar. 

«Passado  um  minuto  de  silencio,  murmurou  o  estribilho 
de  uma  canção  burlesca.  Tinha  a  hnal  chegado  á  sua  velha 
casa;  que  quentinho  que  estava  lá  dentro!  Estivera  doente, 
muito  doente,  mas  agora  estava  são  e  feliz.  Que  lhe  enches- 
sem o  copo  1  Quem  é  que  lh'o  despedaçava  de  encontro  aos 
lábios  ?  Era  o  mesmo  perseguidor  que  o  apoquentara  já. 

«Deixou  se  cahir  sobre  o  travesseiro  e  gemeu  em  voz  alta. 
Apoz  um  breve  iniervallo  de  esquecimento,  viu-se  a  vaguear 
n'um  atiiictivo  labyriniho  de  aposentos,  com  tectos  de  abo- 
bada muito  baixos  —  tão  baixos,  ás  vezes,  que  elle  tinha  de 
andar  de  gatas ;  tudo  tenebroso  e  suffocante,  e  a  cada  volta 
que  dava,  encontrava  um  obstáculo  que  lhe  tolhia  o  cami- 
nho. 

«Havia  por  ali  também  insectos,  bichos  hediondos  que  se 
rojavam  com  os  olhos  abertos  para  elle,  a  encherem  de  hor- 
riveis  scentelhas  as  trevas  densas. 

«A's  paredes  e  ao  tecto  pareciam  dar  vida  os  reptis  —  as 
abobadas  alargaram  se  medonhameHte  —  figuras  horriveis  es- 
voaçavam por  todos  os  lados  —  e  por  entre  ellas  surgiam 
physionomias  conhecidas,  deformadas  por  contorsóes  e  esga- 
res. 

«Via-os  a  cauterisal-o  com  ferros  em  braza,  a  apertarem- 
Ihe  a  cabeça  com  cordas  até  lhe  rebentar  o  sangue  ;  e  estre- 
buxava  como  um  doido  para  defender  a  vida. 

"Ao  terminar  um  d'estes  paroxismos,  conseguira  eu  com 
grande  difficuldade  segural-o  na  cama,  quando  elle  recahiu 
n'uma  espécie  de  torpor. 

«Vencido  pela  fadiga  e  pelo  somno,  eu  cerrara  por  ins- 
tantes os  olhos,  quando  senti  no  hombro  um  violento  empu- 
xão. 


DO  AS   AVENTURAS 


"Acordei  de  repente. 

<'0  infeliz  erguera-se  ate  se  sentar  na  cama.  Operára-se- 
Ihe  no  rosto  uma  m.edonha  transformação,  mas  voltára-lhe  a 
consciência,  pois  que   mostrava  claramente  reconhecer-me. 

<'A  creança  que  durante  tanto  tempo  tinha  sido  incommo- 
dada  com  o  delirio  d'elle,  levantou-se  da  camiia,  e  correu 
para  o  pae  a  gritar  de  pavor. 

<'A  mãe  pegou  lhe  precipitadamedte  ao  collo,  não  lhe  fi- 
zesse elle  mal  nos  transes  violentos  da  loucura  ;  mas  atter- 
rada  com  a  alteração  das  suas  feições,  ficou  immovel  junto 
do  leito. 

«Elle  apertou  me  convulsivamente  o  hombro,  e,  batendo 
no  peito  com  a  outra  mão,  fez  esforços  desesperados  para 
articular. 

'-Debalde  ! 

"Estendeu  o  braço  para  os  dois  e  fez  outro  violento  es- 
forço. Seguiu-se  um  rumor  estertoroso  —  um  rebrilhar  de 
olhos  —  um  gemido  curto  e  suffocado  —  e  o  desgraçado  ca- 
hiu  para  traz  —  morto  \» 

Dar-nos-hia  o  maior  prazer  o  podermos  formular  a  opi- 
nião do  sr.  Pickwick  acerca  da  anecdota  que  acabamos  de 
transcrever.  Não  duvidamos  que  nos  seria  possivel  apresen- 
tal-a  aos  leitores,  se  não  fosse  uma  occorrencia  bem  desagra^- 
davel. 

Acabava  o  sr.  Pickwick  de  repor  sobre  a  mesa  o  copo 
que,  durante  as  ultimas  phrases  da  narrativa,  elle  conser- 
vara na  mão,  e  dispunha-se  a  fallar  —  valemo-nos  da  aucto- 
ridade  do  sr.  Snodgrass,  cujas  notas  affirmam  que  elle  che- 
gara a  abrir  a  bocca  —  quandr  o  criado  entrou  no  aposento 
e  disse  : 

—  Estão  ahi  uns  sujeitos  qi;.;  procuram  o  senhor. 

Conjecturou-se  que  o  sr.  Picivwick  estava  a  ponto  de  ex- 
pressar algumas  considerações  que  teriam  illuminado  o  mun- 
do, ou  pelo  menos  a  Inglaterra,  quando  assim  foi  interrom- 
pido :  porque  encarou  com  severidade  o  criado,  e  em  seguida 
relanceou  a  vista  pelos  seus  companheiros,  como  se  preten- 
desse informar-se  sobre  os  indivíduos  que  o  procuravam. 

—  Ah  !  disse  o  sr.  Winkie  levantando-se,  são  uns  amigos 
meus  — mande-os  entrar.  Gen  muito  agradável,  acrescen- 
tou elle  depoií  de  sahir  o  criaao,  officiaes  do  regimento  97, 


DO   SR.   PICKWICK  Dl 


com  quem  hoje  de  manhã  travei  conhecimento  de  uma  ma- 
neira um  pouco  exquisita.  Hão  de  gostar  muito  d'elles. 

O  sr.  Pickwick  recobrou  a  serenidade  habitual.  O  criado 
voltou  e  introduziu  três  cavalheiros  na  sala. 

—  O  tenente  Tappleton,  disse  o  sr.  Winklc,  o  tenente 
Tappleton,  o  sr.  Pickwick  —  o  dr.  Payne,  o  sr.  Pickwick  — o 
sr.  Snodgrass  que  já  conhecem  :  o  meu  amigo  o  sr.  Tupman, 
o  dr.  Payne  —  o  dr.  Slammer,  o  sr,  Pickwick  —  u  sr.  Tupman, 
o  dr.  Slam ... 

N'este  ponto,  o  sr.  Winkle  deteve-se  de  súbito,  ao  perce- 
ber a  violenta  commoção  manifestada  nas  physionomias  do 
sr.  Tupman  e  do  doutor. 

—  Eu  já  encontrei  este  cavalheiro,  exclamou  o  doutor 
com  grande  energia. 

—  Deveras  ?  disse  o  sr.  Winkle. 

—  E  —  e  aquelle  sujeito  também,  se  não  mo  engano,  pro- 
seguiu  o  doutor,  fitando  com  attençao  o  desconhecido  da 
casaca  verde.  Quer-me  parecer  que  fiz  a  noite  passada  a  este 
sujeito  um  convite  instante,  que  elie  julgou  conveniente  de- 
clinar. 

Dizendo  isto,  o  doutor  deitou  sobre  o  desconhecido  um 
olhar  cheio  de  solemne  rigor,  e  segredou  ao  seu  amigo  o  te- 
nente Tappleton. 

—  Isso  pode  lá  ser !  disse  este  ultimo,  depois  de  ouvir  a 
confidencia. 

—  Pois  é  como  lhe  digo,  replicou  o  dr.  Slammer. 

—  Então  e  dar-lhe  aqui  mesmo  uma  sova,  e  isso  já,  já, 
murmurou  o  dono  do  banquinho,  com  grande  importância. 

—  Gale  a  bocca,  Payne,  atalhou  o  tenente.  Permitte-me 
que  lhe  dirija  uma  pergunta  ?  continuou  elle,  dirigindo-se  ao 
sr.  Pickwick,  que  estava  extraordinariamente  intrigado  com 
a  grosseria  dos  segredos.  Permitte-me  que  lhe  pergunte  se 
este  sujeito  pertence  ao  seu  ,grupo  'í 

—  Nada,  não,  senhor,  replicou  o  sr.  Pickwick.  E'  simples- 
mente nossa  visita. 

—  E'  sócio  do  seu  club,  se  não  me  engano  ? 

—  Não  é,  com  certeza. 

—  E  nunca  usa  dos  botões  do  club  .'* 

—  Não  —  nunca!  lespondeu  o  sr.  l^ickwick  nuulo  pas- 
mado. 


52  AS  AVENTURAS- 


O  tenente  Tappleton  virou-se  para  o  seu  amigo  dr.  Slam- 
mer,  encolhendo  levemente  os  hombros,  como  indicando  al- 
guma duvida  sobre  a  nitidez  das  suas  reminiscências. 

O  doutorsinho  pareceu  irritado,  mas  confundido  ;  e  o  sr. 
Payne  cravou  o  olhar  feroz  na  physionomia  illuminada  do 
inriocente  Pick\viclv. 

—  Senhor,  disse  o  doutor,  dirigindo-se  de  repente  ao  sr. 
Tupman,  n'um  tom  que  produziu  um  estremeção  a  este  ca- 
valheiro, como  se  lhe  houvessem  surrateiramente  enterrado 
um  alfinete  na  barriga  da  perna,  não  esteve  hontem  á  noite 
no  baile  que  houve  aqui  ? 

O  sr.  Tupman  suspirou  uma  affirmativa  débil,  encarando 
fixamente  o  sr.  PickAvick. 

—  Este  sujeito  ia  na  sua  companhia,  acrescentou  o  doutor 
apontando  para  o  desconhecido,  sempre  impassível. 

O  sr.  Tupman  assentiu. 

—  Em  vista  d'isso,  proseguiu  o  doutor  para  o  desconhe- 
cido, mais  uma  vez  lhe  pergunto,  em  presença  d'estes  senho- 
res, se  prefere  dar-me  o  seu  bilhete  e  ser  tratado  como  um 
gentleman,  ou  se  me  colloca  na  alternativa  de  lhe  dar  aqui 
mesmo  uma  correcção  severa. 

—  Espere,  senhor,  atalhou  o  sr.  Pickwick.  Realmente,  não 
posso  consentir  que  este  negocio  tenha  andamento  sem  al- 
guma explicação.  Tupman,  conte  o  caso  por  meudos. 

O  sr.  Tupman,  assim  solemnemente  invocado,  narrou 
o  facto  em  poucas  palavras :  referiu-se  apenas  de  relance 
ao  empréstimo  da  casaca  ;  insistiu  largamente  na  circum- 
stancia  de  se  ter  isso  passado  «depois  de  jantar^)  ;  con- 
cluiu por  exprimir  ao  de  leve  o  seu  arrependimento ;  e 
deixou  o  desconhecido  desembaraçar-se  da  meada  conforme 
podesse. 

Este  dispunha-se  naturalmente  a  isso,  quando  o  tenente 
Tappleton,  que  o  estivera  observando  com  grande  curiosida- 
de, disse  com  um  grande  desdém  : 

—  Creio  que  já  o  vi  no  theatro. 

—  De  certo  que  sim,  respondeu  o  desconhecido  com  a 
maior  desfaçatez. 

—  E'  um  cómico  ambulante,  disse  o  tenente  desdenhosa- 
mente, voltando-se  para  o  dr.  Slammer.  Representa  n'uma 
peça  que  os  officiaes  do  52  levam  amanhã  no  theatro  de  Ro- 


DO   SR.   PICKWICK  d3 


chester.  O  negocio  não  pôde  ter  andamento,  Siammer,  é  im- 
possível. 

—  Impossível  de  todo!  disse  o  pomposo  Payne. 

—  Sinto  muito  havel-o  collocado  n'esta  desagradável  si- 
tuação, disse  o  tenente  Tappleton  ao  sr.  Pickwick.  Permitta- 
me  Vecordar-lhe  que  a  melhor  maneira  de  evitar  para  o  fu- 
turo a  repetição  de  scenas  como  esta,  é  ser  mais  escrupuloso 
na  escolha  dos  seus  companheiros.  Muito  boa  noite. 

E  o  tenente  precipitou-se  para  tora  da  sala. 

—  E  permitta-me  que  lhe  dií^a,  meu  caro  senhor,  disse  o 
irascivel  dr.  Payne,  que  se  eu  estivesse  no  caso  de  Tappleton 
ou  no  de  Siammer,  ter-lhe-hia  ido  ás  ventas,  meu  caro  se- 
nhor, e  ás  ventas  de  todos  os  presentes.  E'  como  lhe  digo  — 
a  todos  os  presentes.  O  meu  nome  é  Payne,  lique  sabendo  — 
dr.  Payne,  do  43.  Muito  boas  noites. 

Tendo  concluído  este  discurso  e  pronunciado  as  três  ul- 
timas palavras  em  voz  mais  alta,  marchou  magestosamente 
na  piugada  do  amigo,  seguido  logo  pelo  dr.  Siammer,  que  não 
abriu  bico,  mas  que  se  contentou  em  fulminar  os  assistentes 
com  um  olhar  de  cólera. 

Durante  as  provocações  acima  expressas,  uma  raiva  cres- 
cente e  um  espanto  extremo  haviam  entumecido  o  nobre  seio 
do  sr.  Pickwick  até  quasi  ao  ponto  de  lhe  estalar  o  collete. 

Ficou  petrificado  e  immovel  com  um  vago  olhar  de  pasmo. 
O  fechar  da  porta  fel-o  voltar  a  si.  Arrojou-se  para  a  frente, 
com  o  rosto  acceso  em  ira  e  o  olhar  Hammejante.  A  sua  mão 
já  estava  na  aldraba  da  porta;  mais  um  momento,  e  estaria 
nas  guelas  do  dr.  Payne,  do  43,  se  o  sr.  Snodgrass  não  ti- 
vesse agarrado  o  seu  venerando  chefe  pelas  abas  da  casaca  e 
não  o  tivesse  puxado  para  traz. 

—  Aguentem-no,  bradou  o  sr.  Snodgrass,  —  Winkle,  Tup- 
man  —  elle  não  deve  arriscar  por  uma  causa  tão  insignificante 
a  sua  preciosa  vida. 

—  Deixem-me,  clamava  o  sr.  Pickwick. 

—  Segurem-no  bem,  berrou  o  sr.  Snodgrass. 

E  pelos  esforços  unidos  de  todos,  o  sr.  Pickwick  foi  sen- 
tado á  força  n'uma  cadeira  de  braços. 

—  Deix'em-no  sósinho,  disse  o*  homem  da  casaca  verde, 

—  aguardente  com  agua  —  velhote  valente  —  levado  da  breca 

—  engula  isso  —  assim  !  —  rica  mistela,  hein  ! 


AS  AVENTURAS 


Tendo  previamente  provado  as  virtudes  de  um  copasio, 
preparado  pelo  homem  fúnebre,  o  desconhecido  appHcou  o 
copo  á  bocca  do  sr.  Pickwick ;  e  n'um  instante  desappareceu 
o  resto  do  conteúdo. 

—  Houve  uma  curta  pausa ;  o  grog  produzira  o  seu  eífei- 
to ;  a  physionomia  amável  do  sr.  Pickwick  ia  recuperando 
depressa  a  sua  expressão  habitual. 

—  Eiles  não  merecem  a  sua  attenção,  disse  o  homem  fú- 
nebre 

—  Tem  rasão,  replicou  o  sr.  Pickwick,  não  merecem,  não: 
até  tenho  vergonha  por  me  ter  deixado  arrastar  pelo  ardor 
dos  meus  sentimentos.  Chegue  a  sua  cadeira  para  a  mesa,  se- 
nhor. 

O  homem  fúnebre  obedeceu  sem  demora  :  formou-se  novo 
circulo  em  volta  da  mesa,  e  a  harmonia  restabeleceu-se. 

Uns  restos  de  irritação  concentrada  pareciam  achar  ainda 
abrigo  no  peito  do  sr.  Winkle,  provavelmente  occasionados 
pela  subtracção  temporária  da  sua  casaca  —  com  quanto  mal 
consinta  a  razão  o  suppòr-se  que  tão  ligeira  circumstancia 
possa  haver  excitado  rhesmo  um  passageiro  sentimento  de 
rancor  n'um  animo  pickwickano. 

Salvo  esta  excepção,  o  bom  humor  tinha-lhes  voltado  de 
todo :  e  a  noite  terminou  com  a  mesma  jovialidade  com  que 
começara. 

CAPITULO  n^ 

Um  dia  n'um  acampamento  — Mais  amigos  novos; 
e  um  convite  para  o  campo 

Ma  muiios  auctores  que  se  deixam  possuir  por  uma  relu- 
ctancia,  sobre  insensata,  até  deshonesta,  em  declarar  as  fon- 
tes das  quaes  beberam  valiosas  informações.  Nós  não  parti 
Ihamos  de  tal  sentimento.  Estamos  simplesmente  tentando 
desempenhar-nos  por  maneira  digna  das  responsabilidades 
que  nos  impõem  as  nossas  funcções  de  editor;  e  por  maior 
que  seja  a  nossa  smbição  de,  n'outras  circumstancias,  recla- 
marmos a  paternidadi  d 'estas  aventuras,  o  respeito  da  ver- 
dade prohibe  nos  que  reivindiquemos  mais  do  que  a  gloria 


hO  SR.   PICKWICK  55 


de  uma  compilação  judiciosa  e  de  uma  narrativa  impar- 
cial. 

Os  documentos  do  Club  Pickwick  são  a  fonte  preciosa  de 
que  nos  valemos.  Os  trabalhos  alheios  constituem  para  nós 
o  repositório  inmienso  de  factos  importantes.  Nós  limitamo- 
nos  a  dar-lhes  forma,  e  a  communical-os  com  a  máxima  cla- 
reza e  limpidez  ao  mundo  sedento  pela  sciencia  Pickwickana. 

Procedendo  por  esta  norma  e  determinados  sempre  a  con- 
fessar o  nosso  reconhecimento  ás  auctoridades  que  consul- 
tamos, declaramos  francamente  que  á  carteira  de  notas  do 
sr.  Snodgrass  é  que  devemos  os  pormenores  referidos  n'este 
e  no  seguinte  capitulo  —  pormenores  que,  depois  de  assim 
havermos  descarregado  a  consciência,  passaremos  a  relatar 
sem  mais  commentario. 

Toda  a  população  de  Rochester  e  dos  logares  circumvisi- 
nhos  se  ergueu  no  dia  seguinte  muito  cedo  n'um  estado  de 
indiscriptivel  alvoroço  e  excitação. 

Devia  effectuar-sê  uma  grandiosa  revista  nas  linhas  de  de- 
feza. 

As  manobras  de  meia  dúzia  de  regimentos  deviam  ser  in- 
speccionadas pelo  olhar  d'aguia  do  commandante  era  chefe ; 
haviam-se  levantado  fortificações  temporárias,  a  cidadella  ti- 
nha de  ser  atacada  e  tomada,  e  devia  rebentar  uma  mina. 

Como  os  nossos  leitores  deverão  ter  concluído  do  ligeiro 
extracto  que  demos  da  descripção  de  Chatham,  feita  pelo  sr. 
Pickwick,  era  este  um  admirador  enthusiastico  do  exer- 
cito. 

Nada  poderia  ser  mais  deleitoso  para  elle  —  nada  poderia 
estar  em  tão  completa  harmonia  com  o  sentir  particular  de 
cada  um  dos  seus  companheiros  —  como  aquelle  espectáculo. 
Por  isso  estavam  a  pé  de  manhã  cedinho,  a  caminhar  em  di- 
recção das  fortificações,  para  onde  jorravam  de  todos  os  la- 
dos mangas  enormes  de  povo. 

Tudo  ali  denotava  que  a  ceremonia  próxima  devia  ter  a 
maior  importância  e  magnificência. 

Estavam  postadas  sentinellas  a  guardar  o  terreno  para  as 
evoluções  da  tropa,  e  criados  nas  baterias  a  guardar  os  loga- 
res para  as  senhoras. 

Corriam  de  um  lado  para  o  outro  sargento?,  com  livros 
encadernados  em  pergaminh.)  debaixo  dos  braços.  Lá  andava 


56  AS   AVENTURAS 


O  coronel  Bulder,  de  grande  uniforme,  a  cavallo,  a  galopar 
ora  para  uma  banda  ora  para  outra,  fazendo  recuar  o  cavallo 
por  entre  o  povo,  curveteando,  cabriolando,  berrando  por 
uma  forma  assustadora,  a  ponto  de  enrouquecer  e  de  ficar 
esfogueteado,  sem  ninguém  perceber  para  quê. 

Andavam  officiaes  a  correr  para  a  frente  e  para  a  recta- 
guarda,  primeiro  conferenciando  com  o  coronel  Bulder,  dando 
em  seguida  ordens  aos  sargentos  e  sumindo-se  a  final  de 
todo  :  e  até  os  soldados  razos  olhavam  por  cima  das  golas 
lustrosas  com  um  ar  de  solemnidade  mysteriosa  que  assaz 
indicava  a  natureza  especial  da  conjunctura. 

O  sr.  Pickwick  e  os  seus  três  companheiros  collocaram-se 
na  primeira  fila  dos  espectadores,  e  aguardaram  com  toda  a 
paciência  o  começo  das  manobras. 

A  multidão  crescia  de  momento  para  momento;  e  os  es- 
forços que  elles  eram  obrigados  a  sustentar  para  se  aguen- 
tarem na  posição  que  tinham  conquistado  bastaram  para 
lhes  occupar  aattenção  durante  as  duas  horas  que  se  segui- 
ram. 

De  uma  vez,  houve  detraz  um  impulso  repentino;  e  o 
sr.  Pickwick  foi  arrojado  algumas  jardas  para  a  frente,  com 
uma  rapidez  e  uma  elasticidade  em  extremo  incompatíveis 
com  a  gravidade  habitual  do  seu  porte. 

N'outra  occasião,  ouviu-se  na  frente  a  voz  de  «para  a  re- 
ctaguarda!»  e  logo  a  coronha  de  uma  espingarda  cahiu  n'um 
pé  do  sr.  Pickwick,  afim  de  lhe  fazer  perceber  a  ordem,  ou 
lhe  amachucou  o  peito  para  lhe  impor  obediência. 

De  outra  vez,  algum  sujeito  dado  a  facécias,  á  esquerda, 
depois  de  apertar  para  o  lado  com  toda  a  força,  a  ponto  de 
espremer  o  sr.  Snodgrass  até  ás  extremidades  da  tortura  hu- 
mana, perguntou  com  todo  o  descaro  «p^ra  que  estava  elle 
a  fazer  azeite  ?■> 

E  quando  o  sr.  Winkle  dava  largas  á  sua  excessiva  indi- 
gnação por  aquelle  ataque  gratuito,  houve  alguém  por  de- 
traz que  lhe  enfiou  o  chapéo  até  aos  olhos,  rogando-lhe  o 
obsequio  de  metter  a  cabeça  na  algibeira. 

Estas  e  outras  graças,  juntas  á  inexplicável  ausência  do 
sr.  Tupman  (que  desapparecera  de  repente,  sem  haver  meio 
de  lhe  pôr  a  vista  em  cima),  tornaram  a  situação  dos  três 
mais  incommoda,  em  summa,  do  que  agradável  ou  appetecivel. 


DO   SR.   PICKWICK  D 7 


A  final,  correu  pela  turba  aquelle  susurro  de  muitas  vo- 
zes que  annuncia  em  geral  a  chegada  de  qualquçir  coisa  de 
que  se  está  á  espera. 

Voltaram-se  todos  os  olhos  para  os  lados  da  poterna. 

Passados  uns  momentos  de  ávida  anciedade,  viram-se 
bandeiras  a  liuctuar  alegremente  nos  ares,  armas  a  relampe- 
jar ao  sol :  uns  após  outros,  os  batalhões  jorraram  para  o 
campo.  As  tropas  hzeram  alto  e  formaram.  As  vozes  de  com- 
mando  retiniram  pela  linha  i"óra,  ouviu-se  o  choque  unisono 
das  armas  apresentadas,  e  o  commandante  em  chefe,  acom- 
panhado pelo  coronel  Bulder  e  por  numerosos  oífici.aes,  di- 
rigiu-se  a  meio  galope  para  a  frente  das  tropas.  As  bandas 
militares  romperam  simultaneamente ;  os  cavallos  empina- 
ram-se,  recuaram,  e  sacudiram  as  caudas  em  todas  as  direc- 
ções; os  cães  desataram  a  ladrar,  a  turba  a  gritar;  as  tropas 
ficaram  firmes;  e  nada  mais  se  pôde  ver,  para  um  e  outro 
lado,  até  onde  a  vista  alcançasse,  senão  uma  longa  perspe- 
ctiva de  casacas  encarnadas  e  de  calças  brancas,  im mo- 
veis.   ..> 

O  sr.  Pickwick  estivera  tão  absorto  nas  suas  diligencias 
para  se  pôr  a  seguro  e  se  desenvencilhar  por  milagre  d'entre 
as  patas  dos  cavallos,  que  nem  tinha  logrado  ensejo  de  ob- 
servar o  espectáculo,  até  que  elle  assumiu  a  apparencia  que 
acabamos  de  descrever. 

Quando  por  fim  lhe  foi  dado  firmar-se  nas  pernas,  o  seu 
regosijo  e  a  sua  satisfação  não  tiveram,  limites. 

—  Ha  lá  nada  mais  bello,  nem  mais  deslumbrante  ?  excla- 
mou elle  para  o  sr.  Winkle. 

—  Nada,  replicou  este  cavalheiro,  que  tinha  durante  um 
quarto  dehora  aguentado  um  homemsinho  em  cima  década 
um  dos  pés,  alternadamente. 

—  E'  um  espectáculo  deveras  nobre  e  brilhante,  disse  o 
sr.  Snodgrass  em  cujo  seio  rebentava  rapidamente  uma  cham- 
ma  poética,  o  ver  os  galhardos  defensores  da  pátria,  forma- 
dos em  phalanges  soberbas  diante  dos  seus  pacificos  compa- 
triotas e  tendo  a  radiar-lhes  no  semblante  não  a  ferocidade 
bellica,  porém  a  doçura  da  civilisação ;  a  lampejar-lhes  nos 
olhos  não  a  labareda  destruidora  da  rapina  e  da  vingança, 
mas  a  luz  suave  da  humanidade  e  da  intelligencia. 

O  sr.  Pickwick  deixava-se  penetrar  pelo  espirito  d'esta 


58  AS   AVENTURAS 


apologia,  mas  não  podia  reeditar-lhe  exactamente  os  termos, 
visto  como  a  luz  suave  da  intelligencia  ardia  um  pouco  de- 
bilmente  nos  olhos  dos  guerreiros,  no  instante  em  que  se 
deu  a  voz  «olhar  frente!»  O  que  cada  espectador  viu  diante 
de  si  foi  uns  poucos  de  milhares  de  pupillas,  olhando  fixa- 
mente para  defronte,  absolutamente  destituídas  de  uma  ex- 
pressão qualquer. 

—  Agora  é  que  nós  apanhámos  uma  posição  magnifica, 
disse  o  sr.  Pickwick  olhando  em  deredor. 

A  multidão  tinha  gradualmente  dispersado  das  proximi- 
dades, e  elles  estavam  quasi  completamente  sós. 

—  Magnifica  !  echoaram  os  srs.  Snodgrass  e  Winkle. 

—  O  que  estão  elles  agora  a  fazer  r  interrogou  o  sr.  Pick- 
wick ajustando  os  óculos. 

—  Eu.  .  eu. .  .  quer-me  parecer,  disse  o  sr.  Winkle  mu- 
dando de  côr,  quer  me  parecer  que  vão  fazer  fogo. 

—  Que  disparate  !  disse  apressadamente  o  sr.  Pickwick. 

—  A  mim .  .  .  também  me  parece .  . .  que  é  verdade,  obser- 
vou o  sr.  Snodgrass,  um  pouco  assustado. 

—  Isso  é  lá  possivel !   disse  o  sr.  Pickwick. 

Mal  tinha  acabado  de  soltar  esta  phrase,  quando  a  meia 
dúzia  de  regimentos  levantou  n'um  movimento  uniforme  as 
armas,  como  se  tivessem  apenas  um  alvo  commum,  e  esse 
alvo  fosse  os  pickwickanos,  e  disparou  a  mais  horripilante  e 
tremenda  descarga  que  tenha  jamais  abalado  a  terra  até  ao 
seu  centro  ou  feito  perder  o  centro  de  gravidade  a  um  gen- 
tleman  já  entrado  em  annos. 

Foi  n"esta  situação  critica,  exposto  a  um  fogo  imperti- 
nente de  cartuchos  desembalados,  e  atrapalhado  pelas  evo- 
luções da  tropa,  accrescida  por  um  corpo  fresco  que  tinha 
chegado  do  lado  opposto,  que  o  sr.  Pickwick  desenvolveu 
aquella  perfeita  serenidade,  aquelle  notável  sangue-frio,  que 
são  attributos  indispensáveis  de  um  espirito  superior.  Agar- 
rou no  sr.  Winkle  pelo  braço,  e  collocando-se  entre  esse  ca- 
valheiro e  o  sr.  Snodgrass,  encommendou-lhes  com  instancia 
o  lembrarem-se  que,  a  não  ser  o  risco  de  ensurdecerem  com 
a  bulha,  não  havia  a  temer  um  perigo  immediato  d'este  tiro- 
teio. 

—  Mas  —  mas  supponha  que  algum  soldado  tenha  cartu- 
chos embalados,  por  engano,  observou  o  sr.  Winkle,  pallido 


DO   SR.   PICKWICK  5() 


com  a  hypothese  que  elle  próprio  suggeriu.  Eu  cá  ouvi  ha 
um  instante  o  quer  que  era  assobiar  pelos  ares  —  um  assobio 
muito  agudo,  mesmo  nos  meus  ouvidos. 

—  Não  seria  melhor  deitarmo-nos  de  barriga  para  baixo  ? 
lembrou  o  sr.  Snodgrass. 

—  Não,  não  —  já  se  acabou  tudo,  disse  o  sr.  Pickwick. 

Possivel  é  que  os  lábios  lhe  tremessem,  que  as  faces  per- 
dessem a  côr,  mas  nem  uma  expressão  de  susto  ou  de  in- 
quietação se  escapou  dos  lábios  d'esse  homem  immortal. 

O  sr.  Pickwick  tinha  razão;  o  fogo  cessara;  mas  ainda 
mal  tivera  tempo  de  se  felicitar  pela  justeza  da  sua  previsão, 
quando  se  observou  por  toda  a  linha  um  movimento  rápido. 
As  vozes  rouquenhas  de  commando  correram  por  toda  ella, 
e  antes  que  qualquer  dos  do  grupo  podesse  formular  uma  hy- 
pothese sobre  a  significação  d'esta  nova  manobra,  os  seis  re- 
gimentos avançaram  á  bayoneta  calada,  a  passo  de  carga 
mesmo  para  o  sitio  onde  se  achavam  o  sr.  Pickwick  e  os 
seus  amigos. 

O  homem  não  passa  de  um  débil  mortal ;  e  um  ponto 
existe  além  do  qual  não  é  dado  á  coragem  humana  o  alon- 
gar-se. 

O  sr.  Pickwick,  por  um  instante,  attentou  atravez  dos  ócu- 
los n'aquella  massa  que  avançava ;  e  então  voltou-lhe  reso- 
lutamente as  costas  e.  . .  não  diremos  que  fugiu:  em  pri- 
meiro logar,  porque  o  termo  é  ignóbil,  e  em  segundo  logar, 
porque  a  figura  do  sr.  Pickwick  não  era  de  forma  alguma 
compativel  com  esse  modo  de  retirada. 

Desatou  a  corricar  tão  depressa  quanto  lh'o  f)ermittiam 
as  pernas ;  e  tão  depressa  em  verdade,  que  só  muito  tarde  é 
que  elle  percebeu  o  desastroso  da  sua  situação. 

As  tropas  do  lado  opposto,  cuja  apparição  tinha  embara- 
do  momentos  antes  o  sr.  Pickwick,  tinham-se  desenvolvido 
em  linha  para  repellir  o  ataque  simulado  dos  fingidos  sitian- 
tes da  cidadella  ;  e  a  consequência  foi  que  o  sr.  Pickwick, 
mais  os  seus  dois  companheiros  viram-se  de  repente  embru- 
lhados entre  duas  linhas  de  grande  extensão  :  uma  avançando 
a  passo  de  carga,  outra  aguardando  com  firmeza  o  tremendo 
choque. 

—  Eh !  lá !  gritaram  os  officiaes  da  columna  que  avan- 
çou. 


(3o  AS  AVENTURAS 


— ^Safa  d'ahi  para  fora!  bradavam  os  officiaes  da  força 
estacionaria. 

—  Para  onde  nos  havemos  de  safar  ?  gemiam  os  pickwi- 
ckanos  atrapalhadissimos. 

—  Eh  lá  !  Eh  lá  !  Eh  lá  !  era  a  resposta  unica. 

Houve  um  momento  de  confusão  geral,  um  rumor  de 
passos  pesados,  um  choque  violento,  uma  gargalhada  abafa- 
da :  os  seis' regimentos  já  estavam  a  quinhentas  jardas  de 
distancia ;  e  as  solas  das  botas  do  sr.  Pickwick  estavam  le- 
vantadas para  o  ar. 

Os  srs.  Snodgrass  e  Winkle  haviam  executado  com  agili- 
dade notável  uma  cambalhota  forçada,  quando  o  primeiro 
objecto  que  se  deparou  aos  olhos'  d'este  ultimo,  apenas  se 
sentou  no  chão  a  estancar  com  um  lenço  de  seda  amarella  a 
torrente  de  vida  que  lhe  jorrava  do  nariz,  foi  o  seu  vene- 
rando chefe,  a  alguma  distancia,  correndo  atraz  do  seu  cha- 
péo,  o  qual  ia  a  pular  muito  contente  pelo  campo  fora. 

Poucos  momentos  ha  na  existência  do  homem,  em  que. 
elle  experimente  uma  afflicção  mais  ridícula  ou  desperte  uma 
commiseração  tão  pouco  caridosa,  como  quando  vae  em  per- 
seguição do  próprio  chapéo. 

Exigem  se  para  agarrar  um  chapéo  uma  somma  impor- 
tante de  sangue-frio  e  um  grau  especial  de  discernimento. 

Não  se  deve  ser  precipitado,  aliás  passa-se  a  correr  por 
cima  do  chapéo :  também  não  se  deve  cahir  no  extremo  op- 
posto,  aliás  corre-se  o  risco  de  o  perder  de  todo. 

O  melhor  expediente  é  ir-se  cozendo  cuidadosamente 
com  o  objecto  da  caça,  ser  circumspecto  e  cautelloso,  estar 
á  espreita  do  ensejo  propicio,  ganhar-lhe  pouco  a  pouco  a 
dianteira,  e  então  dar  um  como  mergulho  rápido,  agarral-o 
pela  copa,  e  enfial-o  com  firmeza  na  cabeça,  sorrindo  du- 
rante estas  evoluções  com  o  máximo  bom  humor,  como  se 
se  partilhasse  dos  sentimentos  de  alacridade  que  o  caso  ex- 
cita em  toda  a  gente. 

Corria  um  ventinho  fresco,  e  o  chapéo  do  sr.  Pickwick 
rebolava  diante  d'elle,  em  ar  de  quem  se  diverte. 

O  vento  soprava  e  o  sr.  Pickwick  também,  e  o  chapéo 
continuava  a  rebolar,  a  rebolar,  tão  satisfeito  como  uma  toni- 
nha cheia  de  vida  no  meio  das  ondas  serenas ;  e  assim  rebo- 
laria eternamente  para  fora  do  alcance  do  sr.  Pickwick,  se 


DO  SR.  PICKWICK  <)l 


um  obstáculo  providencial  o  não  detivesse,  exactamente 
quando  este  cavalheiro  estava  a  ponto  de  o  abandonar  ao 
seu  destino.  « 

O  sr.  Pickwick  estava  pois  completamente  exhausto  e  em 
termos  de  pôr  termo  á  caça,  quando  o  chapéo  foi  impellido 
com  certa  violência  de  encontro  ás  rodas  de  uma  carruagem, 
a  qual  estava  formada  em  linha  com  meia  dúzia  de  outros 
vehiculos,  no  sitio  para  o  qual  elle  havia  dirigido  os  pas- 
sos. 

O  sr.  Pickwick,  percebendo  a  vantagem  que  lhe  propor- 
cionava o  acaso,  prcipitou-se  bruscamente,  deitou  a  mão  á 
sua  propriedade,  enterrou-a  na  cabeça,  e  estacou  para  tomar 
alento. 

Mas  não  estivera  um  minuto  parado,  quando  ouviu  o  seu 
nome  anciosamente  pronunciado  por  uma  voz,  que  elle  logo 
reconhecera  ser  a  do  sr.  Tupman,  e  como  erguesse  a  vista, 
deparou-se-lhe  um  espectáculo  que  o  encheu  de  surpresa  e 
de  alegria. 

N'um  caleche  descoberto,  ao  qual  haviam  tirado  os  ca- 
vallos,  para  o  accommodar  melhor  no  meio  da  turba-multa, 
viam-se  de  pé  um  sujeito  velho  e  encorpado,  de  casaca  azul 
com  botões  luzidios,  calções  de  veludilho  e  botas  de  canhão, 
duas  meninas  com  fitas  e  pennas,  uma  senhora  de  idade  in- 
certa, provavelmente  tia  das  supra-mencionadas,  e  o  sr.  Tup- 
man, tão  sereno  e  desceremonioso  como  se  pertencesse  á 
familia  desde  os  primeiros  tempos  da  infância. 

Amarrada  atraz  do  caleche  estava  uma  canastra  de  di- 
mensões collossaes  —  uma  d'aquellas  canastras  que  desper- 
tam sempre  n'um  espirito  contemplativo  ideias  associadas 
com  aves  frias,  lingua  fumada  e  garrafas  de  vinho  —  e  na  al- 
mofada sentava-se  n\im  estado  de  somnolencia  um  rapaz 
gordo  e  rubicundo,  ao  qual  nenhum  observador  especulativo 
teria  contemplado  um  instante  sem  o  reputar  o  dispensa- 
dor official  do  conteúdo  da  canastra,  quando  chegasse  o  mo- 
mento adequado  para  a  sua  consumpção. 

O  sr.  Pickwick  mal  tinha  lançado  um  rápido  olhar  sobre 
estes  interessantes  objectos,  quando  foi  novamente  saudado 
pelo  seu  fiel  discipulo. 

—  Pickwick!  Pickwick,  exclamou  o  sr.  Tupman,  suba  cá 
para  cima  !  Ande  !  avie-se  I 


62  AS   AVENTURAS 


—  Venha  cá,  senhor,  venha  cá,  disse  o  sujeito  corpulento. 
Joe  !  —  Diabos  levem  o  rapaz  !  está  outra  vez  a  dormir  !  Joe  ! 
deita  abaiy)  os  degraus  ! 

O  rapaz  gordo  rebolou  vagarosamente  para  baixo  da  al- 
mofada, abaixou  os  degraus,  e  abriu  amavelmente  a  porti- 
nhola. O  sr.  Snodgrass  e  o  sr.  Winkle  chegavam  n'aquelle 
instante. 

—  Ha  logar  para  todos  os  cavalheiros,  disse  o  velho.  Dois 
dentro,  e  um  na  almofada.  Joe,  dá  logar  a  um  d'estes  senho- 
res na  almofada.  Ande,  suba. 

E  o  sujeito  estendeu  o  braço,  e  puxou  para  dentro  do 
trem  á  viva  força  primeiro  o  sr.  Pickwick,  depois  o  sr.  Snod- 
grass. 

O  sr.  Winkle  trepou  para  a  almofada ;  o  rapazote  gordu- 
cho encarrapitou-se  no  mesmo  poleiro  e  pegou  immediata- 
mente  no  somno. 

—  Pois  é  verdade,  meus  senhores,  disse  o  velhote,  estimo 
immenso  vêl-os.  Conheço-os  perfeitamente  a  todos,  com- 
quanto  os  senhores  rão  se  lembrem  de  mim.  Passei  algumas 
noites  no  seu  club,  o  inverno  passado.  Esta  manhã  agarrei 
aqui  o  meu  amigo  sr.  Tupman,  e  fiquei  contentíssimo  por  o 
ver.  Então  como  vae  isso,  meu  caro  senhor  ?  Tem  um  aspe- 
cto magnifico,  lá  isso  tem. 

O  sr.  Pickwick  correspondeu  ao  cumprimento,  e  deu 
um  cordial  aperto  de  mãos  ao  cavalheiro  das  botas  de  ca- 
nhão. 

—  Então,  como  vae  isso,  meu  caro  senhor?  disse  este  di- 
rigindo-se  ao  sr.  Snodgrass  com  anciedade  p>aternal.  Sober- 
bo, hein  ?  Bello,  isso  é  que  se  quer !  E  o  amigo,  como  vae  ? 
proseguiu  elle  para  o  sr.  Winkle.  De  saúde,  estimo  ouvir-lhe 
dizer  que  vae  de  saúde,  estimo  deveras.  As  minhas  filhas, 
meus  senhores — -aqui  estão  as  minhas  pequenas;  e  esta  c 
minha  irmã,  Miss  Rachel  Wardle.  E'  ainda  solteira  —  menina, 
sem  ser  menina.  Hein  ?  que  diz  o  senhor  a  isto  ? 

E  o  velhote  inseriu  jovialmente  o  cotovello  entre  as  cos- 
tellas  do  sr.  sr.  Pickwicíc,  e  desatou  a  rir  com  gosto. 

—  Então,  mano !  disse  Miss  Wardle,  com  um  sorriso  de 
supplica. 

—  E  isto  que  eu  digo,  continuou  o  velhote,  negue-o  al- 
guém, se  é  capaz.   Meus  senhores,  peço  licença  para  lhes 


DO  SR.  PICKWICK  63 


apresentar  o  meu  amigo  o  sr.  Trundle.  E  agora  que  se  co- 
nhecem todos,  ponhamo-nos  á  vontade,  alegremente,  e  va- 
mos a  ver  o  que  se  passa.  E'  este  o  meu  parecer. 

E  o  sujeito  poz  os  óculos,  e  o  sr.  Pickwick  sacou  do  seu 
óculo,  e  pozeram-se  todos  em  pé  na  carruagem,  a  observar 
as  evoluções  militares  por  cima  dos  hombros  dos  circum- 
stantes. 

Pasmosas  eram  essas  evoluções.  Uma  fila  fazia  fo^o  por 
cima  das  cabeças  da  outra  fila,  e  depois  batia  em  retirada; 
e  depois  outra  fila  fazia  fogo  por  cima  das  cabeças  de  outra 
fila  e  retirava  por  seu  turno.  Em  seguida  formavam  quadra- 
dos, com  os  officiaes  no  centro ;  e  depois  escalavam  a  trin- 
cheira por  um  lado  e  desciam  pelo  outro  com  as  mesmas  es- 
cadas;  e  derribavam  barricadas  de  cestos  e  tudo  isto  com  a 
maior  coragem  possível. 

Depois  attestavam-se  as  peças  enormes  da  bateria  por 
meio  de  instrumentos  parecidos  com  esfregões  colossaes,  e 
taes  preparativos  havia  antes  de  as  disparar  e  tão  medonho 
estampido  quando  faziam  fogo,  que  os  ares  resoavam  com  os 
gritos  de  terror  das  damas. 

As  juvenis  Miss  Wardles  estavam  tão  assustadas,  que  o 
sr.  Trundle  se  viu  obrigado  a  sustentar  uma  d'ellas  em  pé  na 
carruagem,  emquanto  o  sr.  Snodgrass  aguentava  a  outra ;  e 
a  irmã  do  sr.  W^rdle  sentia-se  n'um  tão  horrivel  estado  de 
pavor  nervoso,  que  o  sr.  Tupman  julgou  indispensável  pas- 
sar-lhe  o  braço  á  roda  da  cintura  para  a  suster  em  pé. 

'1  "oda  a  gente  estava  excitada,  a  não  ser  o  rapaz  gorducho 
que  dormia  tão  descançado  como  se  o  rugir  do  canhão  fosse 
a  cantiga  com  que  costumassem  embalal-o. 

—  .loe  !  Joe  !  disse  o  velhote,  apenas  se  tomou  a  cidadella 
e  sitiantes  e  sitiados  se  sentaram  a  jantar.  Ora  o  excommun- 
gado  1  não  está  outra  vez  a  dormir  ?  O'  senhor,  faz-me  obse- 
quio, dá-lhe  um  beliscão  na  perna  —  tenha  paciência;  não 
ha  outra  forma  de  o  acordar  —  muito  obrigado.  Joe  abre  a 
canastra. 

O  gorducho,  que  fora  eífectivamente  despertado  pela 
compressão  de  um  pedaço  da  sua  perna,  entre  o  pollegar  e 
Índex  do  sr.  Winkle,  rebolou  outra  vez  da  almofada  abaixo, 
e  tratou  de  desatar  a  canastra,  com  mais  desembaraço  do 
do  que  seria  de  esperar  da  sua  anterior  inactividade. 


AS  AVENTURAS 


—  Ora  agora  temos  de  nos  apertar  um  pouco  para  nos 
sentarmos,  disse  o  velhote. 

Depois  de  um  grande  numero  de  facécias  por  se  amarro- 
tarem as  mangas  das  damas  e  de  muita  somma  de  rubor  cau- 
sado por  varias  propostas  jocosas,  para  que  as  damas  ficas- 
sem ao  collo  dos  cavalheiros,  todos  se  accommodaram  no 
caleche ;  e  o  velhote  foi  recebendo  as  coisas  que  o  gorducho 
lhe  estendia  deiraz  da  carruagem,  para  onde  trepou. 

—  Agora,  Joe,  as  facas  e  os  garfos. 

Recebidos  os  garfos  e  as  facas,  as  damas  e  cavalheiros 
dentro  da  carruagem  e  o  sr.  Winkle  na  almofada  foram  res- 
pectivamente providos  d'esses  utensihos  indispensáveis. 

—  Pratos,  Joe,  dá  cá  os  pratos. 

Da  mesma  forma  se  procedeu  na  distribuição  da  louça. 

—  Ora  agora,  Joe,  as  aves.  O  raio  do  rapaz  I  lá  adormeceu 
elle  outra  vez.  Joe  !  Joe  I 

Vários  carolos  administrados  com  uma  bengala  arranca- 
ram com  certa  difficuldade  o  gorducho  da  sua  lethargia. 

—  Anda,  passa  para  cá  os  comestíveis. 

Alguma  coisa  havia  no  som  da  ultima  palavra  que  des- 
pertou de  todo  o  dorminhoco.  Deu  um  pulo;  e  os  olhos  de 
chumbo,  que  piscavam  por  detraz  de  umas  faces  montanho- 
sas, cravaram-se  avidamente  na  comida  que  elle  ia  descarre- 
gando do  cesto. 

—  Anda,  avia-te,  disse  o  sr.  Winkle,  vendo  o  gorducho 
amorosamente  agarrado  a  um  capão  que  elle  parecia  incapaz 
de  largar. 

O  rapaz  suspirou  profundamente,  e,  lançando  um  olhar 
de  cobiça  sobre  o  nédio  capão,  entregou-o  de  má  vontade  ao 
amo. 

—  Assim  mesmo  I  Ve  se  espertas,  homem  !  Passa  agora 
para  cá  a  lingua  —  e  agora  o  pastellão  de  pombo.  Toma  cau- 
tella  com  a  Vitella  e  com  o  presunto  —  repara  nas  lagostas 
—  tira  a  salada  do  guardanapo  —  dá  cá  os  temperos. 

Taes  eram  as  ordens  precipitadas  que  sabiam  da  bocca 
do  sr.  Wardle,"  ao  passo  que  tomava  conta  dos  ditferentes 
objectos  mencionados,  e  collocava  pratos  nas  mãos  e  nos 
joelhos  de  todos,  em  numero  interminável. 

—  Então,  não  está  magnifico?  inquiriu  este  jovial  perso- 
nagem, quando  começou  a  obra  de  destruição. 


DO   SR.   PICKWICK  65 


—  Magnifico!  respondeu  o  sr.  Winkle  que  estava  n  trin- 
char uma  ave  na  almofada. 

—  Um  copo  de  vinho  ? 

—  Com  o  maior  prazer. 

—  Kra  melhor  ficar  lá  cm  cima  com  uma  garrafa  para  o 
nhor,  pois  nfio  era  ? 

—  Que  bondade  a  sua  ! 

—  Joe  ! 

—  Prompto,  senhor ! 

D'esta  vez  nao  eslava  a  dorinir,  porque  acabara  de  con- 
.L^uir  a  posse  de  uma  empada  de  vitella. 

—  Uma  garrafa  de  vinho  para  esse  senhor  que  está  na  al- 
mofada. Estimei  immenso  vêl-o. 

—  Muito  agradecido,  disse  o  sr.  Winkle  despejando  o 
jpo  e  collocando  a  garrafa  ao  seu  lado. 

—  Dá-me  licença  que  o  cumprimente  ?  disse  o  sr.  Trun- 
dle  ao  sr.  Winkle. 

—  Com  muito  gosto,  replicou  este  ultimo ;  e  os  dois  be- 
beram vinho  juntos,  e  em  seguida  todos,  inclusive  as  damas, 
os  imitaram. 

—  A  nossa  querida  Emily,  como  namora  aquelle  sujeito  I 
segredou  a  tia  solteirona  ao  irmão,  com  toda  a  inveja  insepa- 
rável de  uma  tia  solteirona. 

—  Ah!  sim!  pôde  ser,  disse  o  jovial  velhote,  é  naturalis- 
simo,  parece-me  —  não  tem  nada  de  extraordinário.  Sr.  Pick- 
wick,  uma  gota  de  vinho  .'' 

O  sr.  Pickwick,  que  estivera  a  explorar  com  o  máximo 
disvelo  o  interior  do  pastelão,  aceitou  promptamente. 

—  Emily,  minha  querida,  disse  a  tia  velha,  com  um  ar 
maternal,  lião  estejas  a  fallar  tão  alto,  meu  amor. 

—  Ora,  tia  1 

—  A  tia  e  aquelle  sujeito  velho,  baixinho,  parece  me  que 
querem  tudo  para  si  e  nada  para  os  outros,  segredou  Miss 
Isabella  Wardle  a  sua  irmã  Emily. 

As  duas  meninas  desataram  ás  gargalhadas,  e  a  velhota 
procurou  fazer-se  amável,  sem  o  conseguir. 

—  As  raparigas  são  tão  alegres !  disse  Miss  Wardle  ao  sr. 
lupman,  com  um  ar  de  meiga  commiseração,  como  se  a  ale- 
gria fosse  contrabando,  e  a  sua  posse,  sem  licença  prévia, 
uma  nefanda  malfeitoria. 


hh  AS   AVENTURAS 


—  Lá  isso  são,  replicou  o  sr.  Tupman,  sem  dar  a  res- 
posta exacta  que  d'elle  esperavam.  E'  de  encantar  a  gente  1 

—  Hum!  murmurou  Miss  Wardle  com  certa  duvida. 

—  Dá-me  licença;'  disse  o  sr.  Tupman,  com  a  sua  voz 
mais  agradável,  tocando  com  uma  mão  no  pulso  da  encanta- 
dora Rachel  e  elevando  delicadamente  a  garrafa  na  outra. 
Dá-me  licença  ? 

—  Pois  não  I 

O  sr.  Tupman  assumiu  o  seu  ar  mais  insinuante  ;  e  Ra- 
chel expressou  o  receio  de  que  houvesse  mais  tiros  de  arti- 
Iheria,  porque  então  teria  decerto  que  pedir  outra  vez  am- 
paro. 

—  Acha  bonitas  as  minhas  queridas  sobrinhas  ?  segredou 
a  terna  tia  ao  sr.  Tupman. 

—  Achava,  se  não  estivesse  presente  a  tia,  replicou  viva- 
mente o  pickwickano  com  um  olhar  apaixonado. 

—  Oh!  mausão  !  Mas  realmente,  se  ellas  tivessem  a  tez 
um  pouco  melhor,  não  lhe  parece  que  não  seriam  de  todo 
feias. .  .  á  luz  de  um  candieiro  ? 

—  Sim,  parece-me,  disse  o  sr.  Tupman,  com  ar  indiffe- 
rente. 

—  Ah  !  está  a  mangar  !  eu  bem  sei  o  que  o  senhor  ia  dizer. 

—  O  que  era  .-  perguntou  o  sr.  Tupman,  que  não  linha 
uma  intenção  precisa  de  dizer  fosse  o  que  fosse. 

—  Ia  a  dizer  que  Isabella  é  corcovada —  ora  se  ia  !  Os  ho- 
mens são  tão  observadores  I  Pois  é  verdade,  é  ;  não  se  pôde 
negar;  e  o  certo  é  que,  se  alguma  coisa  faz  parecer  feia  uma 
rapariga,  é  o  ser  corcovada.  Eu  não  me  canso  de  lhe  repe- 
tir:  em  ella  sendo  um  pouco  mais  velha,  fica  de  metter  me- 
do. O  senhor  sempre  se  sahiu  um  trocista  ! 

O  sr.  Tupman  não  sentiu  inconveniente  em  ganhar  a  re- 
putação por  tão  pouco  preço  :  por  isso  assumiu  um  ar  de  fi- 
nura e  sorriu  mysteriosamente. 

—  Que  sorriso  sarcástico  I  disse  a  admirativa  Rachel.  De- 
claro que  estou  com.immenso  medo  do  senhor. 

—  Com  medo  de  mim  ? 

—  Ora  !  o  senhor  pôde  lá  disfarçar  os  seus  pensamentos  ! 
Estou  farto  de  saber  o  que  significa  esse  sorriso. 

—  Então  o  que  é  ?  perguntou  o  sr.  Tupman,  sem  que  lhe 
passasse  coisa  nenhuma  pela  ideia. 


DO  SR.   PICKWICK  67 


—  O  que  o  senhor  quer  dizer,  disse  a  amável  tia  baixando 
ainda  mais  a  voz,  é  que  a  corcova  de  Isabella  não  lhe  faz  tão 
mau  etleito  como  as  audácias  de  Eniily.  Pois  é  verdade,  ella 
é  muilo  atrevida  I  Não  imagina  o  desgosto  que  isso  me  faz 
ás  vezes.  Creia  que  por  causa  d'isso  tenho  choradg  horas  e 
horas  a  tio.  O  mano  é  tão  boa  pessoa,  tem  tão  boa  fé,  que 
não  dá  por  cousa  alguma.  Se  elle  percebesse,  estou  certa  que 
teria  um  desgoste-  medonho.  Ao  menos,  o  que  eu  queria 
era  persuadir-me  que  não  passava  de  apparencia  —  isso  c 
que  eu  desejava  immenso  ! 

A  afíectuosa  parente  soltou  um  profundo  suspiro,  e  sacu- 
diu a  cabeça  com  desespero. 

—  Estou  certa  que  a  tia  está  a  fallar  de  nós,  murmurou 
iMiss  Emily  ao  ouvido  da  irmã  —  ora  !  com  certeza  !  está  com 
um  ar  tão  maldoso. 

—  Ah  !  sim  ?  replicou  Isabella.  O'  tia  !  querida  tia  ! 

—  O  que  é,  meu  querido  amor? 

—  Tenho  tanto  receio  que  se  constipei  Ponha  um  lenço 
de  seda  na  sua  velha  e  amada  cabeça !  E'  preciso  tomar  cui- 
dado comsigo  —  na  sua  idade  I 

Por  merecida  que  fosse  a  desforra,  não  era  fácil  encon- 
tral-a  mais  pungente. 

Não  se  pôde  prever  sob  que  fói  ma  de  resposta  teria  des- 
iihafado  a  indignação  da  tia,  se  o  sr.  Wardle  não  tivesse  in- 
conscientemente mudado  de  assumpto,  chamando  por  Joc 
em  altos  brados. 

—  Diabos  levem  o  moço  !  disse  o  velhote,  lá  está  elle  outra 
vez  a  dormir. 

—  E'  um  rapaz  extraordinarissimo,  disse  o  sr.  Pickwick. 
Então  elle  está  sempre  assim  a  dormir  ? 

—  Ora  essa !  replicou  o  sr.  Wardle,  não  faz  senão  dor- 
mir. Vae  fazer  recados  a  cahir  com  somno,  e  resona  quando 
serve  á  mesa. 

—  E'  realmente  exquisito !  disse  o  sr.  Pickwick. 

—  Ora,  se  é  !  retorquiu  o  velhote  ;  eu  tenho  orgulho  n'este 
rapaz  —  não  me  separava  .d'elle  por  cousa  nenhuma  d'este 
mundo  —  é  um  phenomeuo  raro  !  Ouve,  Joe  !  —  Joe  I  —  tira 
d'aqui  estas  cousas,  e  abre  outra  garrafa.  Ouviste  ? 

O  gorducho  levantou-se,  abriu  os  olhos,  enguliu  o  pedaço 
enorme  de  pastel  que  estava  a  mastigar  quando  pegou  no 


68  AS   AVENTURAS 


somno,  e  obedeceu  lentamente  ás  ordens  do  patrão  —  devo- 
rando com  olhos  languidos  os  restos  do  festim,  ao  tirar  os 
pratos  e  ao  deposital-os  na  canastra. 

N'um  instante  se  abriu  e  se  despejou  a  nova  garraf\i; 
amarroi*-se  a  canastra  no  seu  antigo  pouso ;  o  gorducho  tor- 
nou a  trepar  para  a  almofada;  assestaram-se  de  novo  ócu- 
los de  todas  as  espécies ;  e  as  evoluções  militares  recomeça- 
ram. 

Repetiram-se  os  trovões  da  artilheria  e  os  estremeções  das 
damas ;  depois  rebentou  uma  mina,  com  satisfação  geral ;  e 
em  seguida,  tropas  e  espectadores  foram-se  embora. 

—  Então  não  se  esqueçam,  disse  o  sr.  Wardle,  apertando 
a  mão  do  sr.  PickAvick  ao  findar  uma  conversação  que  se 
desenrolara  por  intermittencias  com  o  findar  das  evoluções, 
amanhã  havemos  de  os  ver  a  todos. 

—  Está  dito,  replicou  o  sr.  Pickwick. 

—  Tem  o  endereço. 

—  Manor  Farm,  Dingley  Dell,  disse  o  sr.  Pickwick,  con- 
sultando a  carteira. 

—  Exacto,  disse  o  velhote.  Lembrem-se  que  os  não  largo 
antes  de  uma  semana,  pelo  menos.  Empenho-me  em  que  ve- 
jam tudo  digno  de  se  ver.  Se  vieram  na  ideia  de  expernnen- 
tar  a  vida  do  campo,  venham  ter  comigo,  q':e  hei  de  dar-lh'a 
á  farta.  Joe  —  diabos  levem  o  moço  I  lá  está  elle  outra  vez  a 
dormir  —  Joe,  ajuda  Tom  a  atrelar  os  cavallos. 

Atrelaram-se  os  cavallos;  o  cocheiro  subiu  para  a  almo- 
fada ;  o  gorducho  trepou  para  o  lado  d'elle.  Trocaram  se  as 
despedidas,  e  a  carruagem  rodou.  Quando  os  pickwickanos  se 
voltaram  para  a  verem  pela  ultima  vez,  o  sol  poente  derra- 
mava um  rico  esplendor  sobre  os  rostos  dos  seus  amphy- 
triÕes  e  realçava  no  vulto  do  gorducho.  E!ste  tinha  a  cabeça 
descabida  sobre  o  peito,  e  estava  outra  vez  a  dormitar. 


hO  SR.   PICKWICK  69 


CAPITULO  V 

Que  é  curto  — mostrando  entre  outras  cousas,  co- 
mo o  sr.  PIckwick  se  metteu  a  guiar  um  trem 
e  o  sr.  Winkle  a  andar  a  cavallo;  e  como  ambos 
se  sahiram  da  empresa. 


lo,  c  admirável  a  apparencia  de  todos  os  objectos  quando  o 
sr.  Pickwick  se  encostou  á  balaustrada  da  ponte  de  Roches- 
ter,  contemplando  a  natureza  e  esperando  pelo  almoço. 

A  scena  era  deveras  própria  para  seduzir  um  espirito 
muito  menos  reHexivo  ainda,  do  que  aquelle  a  quem  se  pro- 
porcionava então. 

A'  esquerda  do  espectador  estendia-se  a  muralha  em  rui- 
nas,  desmoronada  em  muitos  sitios,  e  dominando  n'outros  a 
estreita  praia  com  a  sua  massa  tosca  e  pesada. 

Ramos  de  algas  estavam  agarrados  ás  rochas  dentadas  e 
ponteagudas,  estremecendo  á  menor  aragem  ;  e  a  hera  ver- 
dejante abraçava  melancolicamente  as  negras  e  arruinadas 
ameias.  Por  detraz  erguia-se  o  velho  castello,  com  as  torres 
destelhadas,  e  com  as  paredes  macissas  a  derrocarem-se,  mas 
fallando-nos  orgulhosamente  do  seu  antigo  poderio,  como 
quando,  ha  setecentos  annos,  elle  retumbava  com  o  estrépito 
das  armas  ou  com  o  estrondear  dos  festins  e  das  orgias. 

De  ambos  os  lados,  estendiam-se  a  perder  de  vista  as 
margens  do  Medway,  cobertas  de  searas  e  de  pastagem,  se- 
meadas aqui  e  além  de  moinhos  de  vento,  ostentando  uma 
paisagem  opulenta  e  variada,  ainda  mais  embellesada  pelas 
sombras  cambiantes  que  a  atravessavam  docemente,  á  pro- 
porção que  as  nuvens  ténues  e  informes  fluctuavam  na  luz 
do  sol  matinal. 

O  rio,  reflectindo  o  azul  brilhante  do  céo,  scintillava  e 
lampejava  n'uma  corrente  silenciosa;  e  os  remos  dos  pesca- 
dores mergulhavam  na  agua  com  um  som  claro  e  liquido, 
quando  os  seus  botes  pesados,  mas  pittorescos,  resvalavam 
pelo  rio  abaixo. 

O  sr.  Pickwick  foi  despertado  do  agradável  enlevo,  a  que 


70  AS   AVENTURAS 


O  tinha  transportado  o  bello  espectáculo,  por  um  profundo 
suspiro  e  por  uma  percussão  no  hombro.  Voltou-se,  e  viu  ao 
seu  lado  o  homem  fúnebre. 

—  Estava  a  contemplar  a  scena  ?  perguntou  elle. 

—  Estava,  respondeu  o  sr.  PickAvick 

—  E  a  felicitar-se  por  estar  a  pé  tão  cedo  ? 

O  sr.  Pickwick  fez  um  gesto  de  assentimento. 

—  Ah !  toda  a  gente  se  deve  levantar  cedo  para  ver  o  sol 
em  lodo  o  seu  esplendor,  porque  o  seu  brilho  é  raro  durar 
todo  o  dia.  A  manhã  do  dia  e  a  manhã  da  vida  são  parecidas 
a  mais  não  poder  ser. 

—  Diz  o  senhor  muito  bem. 

—  Quantas  vezes  se  diz,  proseguiu  o  homem  fúnebre;  «-a 
manhã  está  linda,  isto  não  pôde  durar.»  Como  isto  se  ap- 
plica  bem  á  nossa  existência  I  O'  meu  Deus  !  quanto  daria 
eu  para  voltar  aos  dias  da  infância,  ou  para  poder  esque- 
cel-os  para  sempre ! 

—  O  senhor  teve  muitos  desgostos?  perguntou  compas- 
sivamente o  sr.  Pickwick. 

—  Se  tive  !  acudiu  vivamente  o  hom.em  fúnebre,  se  tive  I 
Mais  do  que  pôde  suppôr  quem  hoje  me  vê. 

Calou-se  um  instante,  e  depois  disse  abruptamente  : 

—  Nunca  reflectiu,  n'uma  manhã  como  a  de  hoje,  como 
seria  delicioso  e  encantador  afogar-se  a  gente  ? 

—  Nunca,  Deus  me  acuda!  replicou  o  sr.  Pickwick,  afas- 
tando-se  um  pouco  da  balaustrada,  por  lhe  ter  occorrido  de 
repente  a  possibilidade  de  que  o  homem  fúnebre  o  atirasse 
d'ali  abaixo  para  fazer  a  experiência. 

—  Pois  eu  tenho  pensado  n'isso  centos  de  vezes,  disse  o 
outro,  sem  dar  pelo  movimento.  A  lympha  serena  e  gélida 
parece  murmurar-me  um  convite  para  o  repouso  e  para  o 
■olvido.  Um  salto,  um  espadanar  de  agua,  uma  luta  de  mo- 
mentos;  um  redemoinho  instantâneo  que  se  vae  alterando 
até  uma  leve  etfervescencia ;  as  aguas  cerraram-se  sobre  a 
cabeça  do  mesquinho  e  o. mundo  cerrou-se-lhe  para  sempre 
sobre  as  misérias  e  os  infortúnios. 

O  olhar  cavo  do  homem  fúnebre  teve  um  lampejo  vivido 
ao  pronunciar  estas  palavras,  mas  rápido  se  extinguiu  essa 
excitação  momentânea,  e  elle  voltou-se  para  o  lado  e  prose- 
guiu com  serenidade  : 


DO    SK.    IMCKWICK 


—  Bem  —  não  liillemos  mais  n'isso  !  Eu  desejava  fallar-lhe 
n'outro  assumpto.  O  senhor  ante-hontem  convidou- me  para 
ler  aquelle  papel,  e  escutou-me  com  grande  atienção. 

—  Por  certo,  replicou  o  sr.  Pickwick,  e  pensava  eu.  .  . 

—  Não  lhe  pergunto  a  sua  opinião,  interrompeu  o  homem 
funehre,  nem  preciso  d'ella  para  nada.  O  senhor  anda  em 
viagem  de  recreio  e  de  instrucção.  Ora  supponha  que  eu  lhe 
proporciono  um  manuscripto  curioso — note  bem,  curioso 
não  lá  por  ser  disparatado  ou  inverosimil,  mas  curioso  como 
uma  pagina  romântica  de  vida  real.  Communical-a-hia  ao 
club  de  que  o  senhor  falia  tantas  vezes? 

—  Com  certeza,  retorquiu  o  sr.  Pickwick,  se  assim  o  de- 
sejar; e  licaria  inserto  nas  actas. 

—  Pois  eu  lh'o  farei  chegar  ás  mãos,  replicou  o  homem. 
( )  seu  endereço  ? 

O  homem  fúnebre  tomou  nota  das  informações  d. idas  pelo 
sr.  Pickwick  sobre  o  seu  itinerário  provável,  e,  resistindo  ao 
convite  instante  para  almoçar  que  lhe  dirigia  este  cavalheiro, 
deixou-o  na  hospedaria,  e  afastou-se  lentamente. 

O  sr.  Pickwick  encontrou  já  a  pé  os  seus  três  companhei- 
ros, á  espera  da  sua  chegada  para  começarem  o  almoço,  que 
estava  já  na  mesa  a  tental-os. 

Sentaram-se  para  essa  refeição  ;  e  o  presunto  grelhado, 
os  ovos,  o  chá,  o  café  e  outros  manjares,  começaram  a  des- 
apparecer  com  uma  rapidez  que  bem  claro  testemunhava 
tanto  das  excellencias  da  comida,  como  do  appetite  dos  hos- 
pedes. 

—  Ora  agora,  a  propósito  de  Manor-Farm,  disse  o  sr. 
Pickwikck.  Como  havemos  de  ir  para  lá  ? 

—  O  melhor  é  talvez  consultar  o  criado,  disse  o  sr.  Tup- 
man. 

Assim  se  fez. 

—  Dingley  Dell,  meus  senhores  —  são  quinze  milhas  — 
por  atalhos  -^  Quer  uma  sege  de  posta  ^ 

—  Uma  sege  de  posta  não  leva  mais  de  duas  pessoas,  disse 
o  sr.  Pickwick. 

—  Tem  o  senhor  rasão,  desculpe.  Temos  uma  rica  sege 
de  quatro  rodas  —  dois  logares  no  assento  de  traz  —  um  na 
frente  para  quem  guiar. .  .  Ah  !  peço  perdão,  senhor;  não  ha 
logar  senão  para  três. 


AS   AVENTURAS 


—  Então  como  ha  de  ser  ?  interrogou  o  sr.  Snodgrass. 

—  Talvez  que  um  dos  senhores  goste  de  andar  a  cavallo, 
suggeriu  o  criado  olhando  para  o  sr.  Winkle  ;  ha  hellos  ca- 
vaílos  de  sella  —  qualquer  dos  criados  do  sr.  Wardle,  em 
vindo  a  Rochester,  pôde  trazei- os. 

—  Isso  mesmo  é  que  é,  disse  o  sr.  Pick^vick.  Winkle,  vocc 
quer  ir  a  cavallo? 

Ora  o  sr.  Winkle  alimentava  nos  recessos  mais  Íntimos 
do  seu  coração  terriveis  apprehensões  com  respeito  á  sua 
sciencia  de  equitação ;  todavia,  não  querendo  nem  por  som- 
bras que  d'ellas  suspeitassem,  respondeu  de  prompto  com  o 
maior  arrojo : 

—  Está  claro  que  sim,'  não  ha  nada  que  me  dè  mais  pra- 
zer. 

O  sr.  \N'inkIe  precipitc'ra-se  no  seu  destino  ;  não  havia  re- 
médio. 

—  Então,  em  sendo  onze  horas,  esteja  tudo  á  porta,  disse 
o  sr.  Pickwick. 

—  Está  dito,  senhor,  replicou  o  criado,  sahindo  em  se- 
guida. 

Acabado  o  almoço,  subiram  os  viajantes  aos  quartos  res- 
pectivos, para  apromptarem  a  roupa  que  deviam  levar  na 
próxima  expedição. 

O  sr.  Pickwick  terminou  os  seus  arranjos  preliminares,  e 
estava  á  janella  do  café  observando  os  transeuntes,  quando 
o  criado  veiu  annunciar  que  a  sege  estava  prompta  —  annun- 
cio  confirmado  logo  pela  apparição  do  dito  vehiculo  em  frente 
das  mencionadas  janellas. 

Era  uma  curiosa  caixinha  verde,  com  quatro  rodas,  com 
um  assento  baixo  e  estreito  para  duas  pessoas,  além  de  um 
poleiro  elevado  na  frente  para  outras,  tudo  puxado*por  um 
enorme  cavallo  castanho,  patenteando  a  symetria  do  systema 
ósseo. 

Ao  lado  estava  um  moço  de  estrebaria  segurando  pelas 
rédeas  outro  cavallão  enorme  —  provavelmente  parente  pró- 
ximo do  cavallo  da  sege  —  convenientemente  sellado  para  o 
o  sr.  Winkle. 

— Valha-me  Deus  I  exclamou  o  sr.  Pickwick,  emquanto 
estavam  mettendo  a  bagagem  dentro  da  sege.  Valha-me 
Deus!  quem  ha  de  guiar?  D'essa^não  me  lembrei  eu. 


DO   SR.   PICKWICK 


—  Ora  essa !   Vocc,  está  bom  de  vèr,  disse  o  sr.  Tupman. 

—  Kstá  bem  de  ver,  repetiu  o  sr.  Snodgrass. 

—  Eu  !  exclamou  o  sr.  Pickwick. 

—  Não  ha  que  ter  medo,  senhor,  atalhou  o  moço.  E' 
mansíssimo,  afianço ;  uma  creança  de  collo  era  capaz  de  o 
f;uiar. 

—  Nunca  se  espanta,  não?  perguntou  o  sr.  Pickwick. 

—  Qual  espanta  !  Nem  que  encontrasse  uma  carregação 
Je  macacos,  com  os  rabos  a  arder. 

A  ultima  recommendação  era  indiscutivel. 

Os  srs.  Tupman  e  Snodgrass  encafudram-se  na  caixa;  o  sr. 
rickwick  trepou  para  o  poleiro  e  pousou  os  pés  n'uma  táboa 
-.oberta  de  oleado,  ali  disposta  para  esse  fim. 

—  Anda,  William  luzidio,  disse  o  moço  da  estrebaria  ao 
seu  adjuncto,  entrega  as  rédeas  a  esse  senhor. 

William  luzidio  —  assim  chamado  provavelmente  por  causa 
da  cabelleira  muito  lisa  e  de  aspecto  oleoso  —  depoz  as  ré- 
deas na  mão  esquerda  do  sr.  Pickwick,  e  o  outro  metteu-lhe 
na  mão  direita  o  cabo  de  um  chicote. 

—  Eh  ! .  . .  gritou  o  sr.  Pickwick,  ao  ver  que  o  agigantado 
quadrúpede  manifestava  uma  decidida  propensão  para  entrar 
ás  recuas  pela  janella  do  caíé  dentro. 

—  Eh  1 .  . .  eh  ! .  .  echoaram  os  srs.  Tupman  e  Snodgrass, 
do  interior  do  caixote. 

—  E'  só  por  brincadeira,  patrões,  disse  o  primeiro  moço 
da  estrebaria,  em  tom  de  animação.  Segura  lá,  William.  .  . 

O  outro  aguentou  a  impetuosidade  do  animal,  e  o  estri- 
beiro  em  chefe  correu  a  ajudar  o  sr.  Winkle  a  montar. 

—  E'  pelo  outro  lado,  patrão,  com  perdão  do  senhor. 

—  Raios  me  partam,  se  o  sujeito  não  ia  montar  ás  aves- 
-is  !  resmungou  um  postilhão  trocista  para  o  criado  que  es- 
lava a  olhar  muito  contente. 

Assim  instruído,  o  sr.  Winkle  trepou  para  cima  da  sella, 
quasí  com  tamanha  difticuldade  como  teria  a  marinhar  pelo 
costado  de  uma  nau  de  três  pontes. 

—  Vae  tudo  bem  ?  perguntou  o  sr.  Pickwick,  com  um 
presentimento  intimo  de  que  tudo  ia  mal. 

—  Tudo  vae  bem,  replicou  debílmente  o  sr.  Winkle. 

—  Roda  !  gritou  o  meço  de  estrebaria.  Segure-o  bem,  pa- 
trão ! 


AS    AVh.MUKAS 


E  "lá  foi  rodando  a  sege  e  trotando  o  cavallo  de  sella.  com 
o  sr.  Pickwick  na  almofada  da  primeira,  e  o  sr.  Winkle  es- 
carranchado no  segundo,  com  grande  gáudio  e  satisfação  de 
toda  a  criadagem. 

—  Porque  é  que  elle  vae  a  andar  para  o  lado  ?  disse  o  sr. 
Snodgrass  de  dentro  da  sege  para  o  sr.  Winkle  em  cima  da 
sella. 

—  Eu  percebo  lá  1  replicou  o  sr.  Winkle. 

O  cavallo  ia  com  efleito  pela  rua  fora  de  uma  maneira  de- 
veras estravagante. 

Ia  de  lado,  com  a  cabeça  para  uma  das  margens  da  rua, 
e  a  cauda  para  outra. 

O  sr.  Pickwick  não  teve  ensejo  de  observar  este  ou  qual- 
quer outro  pormenor;  visto  que  o  conjuncto  das  suas  facul- 
dades estava  concentrado  na  direcção  do  animal  atrelado  á 
sege,  o  qual  ia  patenteando  varias  singularidades,  altamente 
interessantes  para  quem  o  visse  de  tora,  mas  por  forma  al- 
gumíi  divertidas  para  quem  fosse  sentado  atraz  d'elle. 

Além  de  estar  constantemente  a  sacudir  a  cabeça  por 
uma  maneira  muito  desagradável  e  incommoda,  e  a  puxar 
pelas  rédeas  por  forma  que  tornava  extremamente  difficil  ao 
sr.  Pickwick  o  aguental-as,  tinha  uma  propensão  singular  de 
se  atirar  de  quando  em  quando  subitamente  para  um  dos  la- 
dos da  estrada. 

Então  estacava,  e  depois  desatava  a  trotar  durante  alguns 
minutos,  com  uma  velocidade  que  era  de  todo  impossível 
reprimir, 

—  Que  diabo  quer  o  cavallo  ?  disse  o  sr.  Snodgrass,  á  vi- 
gésima vez  que  o  cavallo  executou  esta  manobra. 

—  Sei  lá  I  replicou  o  sr.  Tupman.  Parece  que  está  espan 
lado,  pois  não  parece  ? 

Estava  o  sr.  Snodgrass  a  ponto  de  replicar,  quando  foi 
interrompido  por  um  grito  do  sr.  Pickwick. 

—  Eh  1  dizia  elle,  lá  me  cahiu  o  chicote. 

—  Winkle,  gritou  o  sr.  Snodgrass  ao  cavalheiro,  que  vi- 
nha a  trotar  no  enorme  cavallo,  com  o  chapéo  enterrado  até 
ás  orelhas,  e  sacudido  com  tanta  força  que  ameaçava  despe- 
daçai-©. Apanhe  o  chicote,  seja  boa  pessoa. 

O  sr.  Winkle  puxou  pela  arreata  do  cavallão,  até  ficar 
preto  com  o  esforço ;  e  tendo  a  final  conseguido  fazel-o  pa- 


DO   SR.   PICKWICK  73 

rar,  desmontou,  estendeu  o  chicote  ao  sr.  Pickwick,  e,  agar- 
rando nas  rédeas,  aprestou  se  para  montar  de  novo. 

Não  nos  é  fácil  concluir  definida  e  nitidamente  se  o  ca- 
vallo,  brincalhão  como  era  por  natureza,  desejou  divertir-se 
innocentemente  com  o  sr.  Winkle,  ou  se  acaso  lhe  occorreu 
a  ideia  de  que  lhe  seria  mais  agradável  proseguir  a  jornada 
sem  cavalleiro.  Fossem  quaes  fossem  os  motivos  que  o  ins- 
piravam, o  que  é  certo  c  que,  mal  o  sr.  Winkle  tocara  nas 
rédeas,  o  animal  deixou-as  escorregar  pela  cabeça  abaixo  e 
recuou  até  as  estender  de  todo. 

—  Coitado!  disse  o  sr.  Winkle  em  tom  adulador.  Coita- 
do !  Meu  bom  cavallinho  ! 

O  <-bom  cavallinho»  estava  á  prova  da  lisonja.  Quanto 
mais  o  sr.  Winkle  tentava  aproximar-se  d'elle,  mais  elle  se 
afastava  ;  e,  apesar  de  toda  a  espécie  de  caricias  e  de  persua- 
sões, o  sr.  W^inkle  e  o  cavallo  andaram  á  roda  um  do  outro 
durante  dez  minutos ;  e  findo  esse  tempo  estavam  tão  longe 
um  do  outro  como  a  principio. 

Isto  era  realmente  desagradável  em  qualquer  circumstan- 
cia  mas  sobretudo  n'uma  estrada  solitária,  onde  não  era  pos- 
sível encontrar  auxilio. 

—  O  que  hei  de  eu  fazer  í'  bradou  o  sr.  Winkle,  depois  de 
ter  passado  que  tempos  n'esta  dança.  O  que  hei  de  eu  fazer? 
Como  é  que  hei  de  montar? 

—  O  melhor  é  ir  puxando  por  elle  até  chegarmos  a  uma 
barreira,  replicou  da  sege  o  sr.  Pickwick. 

—  Mas  se  elle  não  quer  andar,  rugiu  o  sr.  Winkle.  Faça 
favor,  venha  cá  segural-o. 

O  sr.  Pick\vick  era  a  verdadeira  personificação  da  affabi- 
lidade  e  da  humanidade  :  atirou  com  as  rédeas  para  o  dorso 
do  cavallo,  e  tendo  descido  da  almofada,  conduziu  com  todo 
o  cuidado  a  sege  para  o  lado  da  estrada  para  a  não  obstruir, 
e  veiu  soccorrer  o  seu  angustiado  companheiro,  deixando  os 
srs.  Tupman  e  Snodgrass  no  vehiculo. 

Apenas  o  cavallo  viu  o  sr.  Pickwick  a  avançar  para  elle, 
de  chicote  na  mão,  trocou  o  movimento  rotatório  em  que 
até  então  se  tinha  comprazido  por  um  movimento  retrogrado 
de  caracter  tão  decisivo,  que  arrastou  logo  o  sr.  Winkle, 
ainda  a  segurar  a  rédea,  em  passo  de  marche-marche  na  di- 
recção d'onde  haviam  partido. 


76  AS   AVENTURAS 


O  sr.  Pickwick  correu  em  seu  auxilio ;  mas  quanto  mais 
depressa  elle  corria  para  diante,  mais  depressa  o  cavallo  cor- 
ria para  traz. 

As  patas  batiam  no  chão,  levantando  uma  poeirada  densa. 
Por  fim,  o  sr.  Winkle,  já  com  os  braços  quasi  deslocados  da 
clavicula,  largou  as  rédeas. 

O  cavallo  estacou,  encarou-o  com  fixidez,  sacudiu  a  ca- 
beça, rodou  para  a  rectaguarda,  e  desatou  a  trotar  socegada- 
mente  a  caminho  da  casa  em  Rochester,  deixando  o  sr.  Win- 
kle e  o  sr.  Pickwick  attonitos  a  olhar  um  para  o  outro  com 
ar  de  pasmo. 

Um  rumor  surdo  a  pouca  distancia  attrahiu-lhes  a  atten- 
►  ção.  Olharam  na  direcção  d'elle. 

—  Valha-me  Deus !  exclamou  o  sr.  Pickwick  muito  aftli- 
cto ;  lá  se  safa  agora  o  outro  cavallo  I 

Não  havia  nada  mais  certo. 

O  animal  assustára-se  com  o  barulho  ;  como  tinha  as  ré- 
deas soltas,  pode  conjecturar-se  o  resultado.  Desatou  a  cor- 
rer com  a  sege  atraz  de  si,  e  os  srs.  Tupman  e  Snodgrass 
dentro  da  sege.  Mas  a  carreira  foi  curta. 

O  sr.  Tupman  atirou  se  para  a  sebe  que  orlava  o  cami- 
nho, o  sr.  Snodgrass  seguiu-lhe  o  exemplo,  o  cavallo  arre- 
messou a  sege  de  encontro  a  uma  ponte  de  pau,  separou  as 
rodas  da  caixa,  e  a  ciiixa  da  almofada,  e  finalmente  estacou 
para  contemplar  os  destroços  que  havia  feito. 

O  primeiro  cuidado  dos  dois  amigos  immunes  foi  desen- 
vencilhar os  seus  desgraçados  companheiros  do  seu  leito  de 
silvas;  processo  que  lhes  deu  a  ineffavel  satisfação  de  desco- 
brir que  elles  não  tinham  soffrido  damno,  a  não  ser  uns  ras- 
gões no  fato  e  varias  arranhaduras  dos  espinhos. 

O  que  havia  a  fazer  era  desatrelar  o  cavallo.  Finda  esta 
complicada  operação,  o  grupo  foi  seguindo  adiante,  de  va- 
gar, levando  o  cavallo  no  meio  d'elles,  e  abandonando  a  sege 
ao  seu  destino. 

Uma  hora  de  caminho  conduziu  os  viajantes  a  uma  ta- 
bernoria  á  beira  da  estrada,  tendo  na  frente  dois  olmeiros, 
uma  grande  pia  e  uma  taboleta,  na  parte  posterior  uma  ou 
duas  pilhas  de  feno  deformadas,  ao  lado  uma  horta,  e  á  roda, 
dispostos  em  extrema  confusão,  alpendres  a  cahir  de  podres 
e  telheiros  meio  arruinados. 


DO  SR.   PICKWICK 


Estava  a  trabalhar  na  horta  um  homem  de  cabellos  rui- 
vos; e  o  sr.  Pickwick  bradou-lhe  com  vehemencia  : 

—  Eh  !  lá  !  homem  ! 

O  homem  ruivo  levantou  o  corpo,  abrigou  os  olhos  com 
.1   mão,  e  examinou  detida  e  friamente  o  sr.  Pickwick,  mais 


os  seus  companheiros.  • 

—  Eh!  lá!  homem!  repetiu  o  sr.  Pickwick. 

—  Eh  !  lá  !  foi  a  resposta  do  homem  ruivo. 

—  A  que  distancia  tica  Dingley-Dell  r 

—  Umas  boas  sete  milhas. 

—  E  o  caminho  é  bom  ? 

—  Não  presta. 

Tendo  soltado  esta  lacónica  resposta,  e  ficando  apparen- 
temente  satisfeito  com  um  novo  exame,  o  ruivo  tornou  ao 
seu  trabalho. 

—  Precisamos  recolher  aqui  este  cavallo,  disse  o  sr.  Piei:  ■ 
Avick.  Podemos  fazel-o,  hein  ? 

—  Ah  1  precisam  recolher  aqui  esse  cavallo,  não  é  isso  ? 
repetiu  o  homem  ruivo  apoiando-se  na  enxada. 

—  Exacto  !  replicou  o  sr.  Pickwick  que  entrementes  se 
adiantara,  com  o  cavallo  á  mão,  até  á  cancella  da  horta. 

—  Patroa !  rugiu  o  homem  da  cabeça  ruiva,  sahindo  da 
horta  e  olhando  fixamente  para  o  cavallo.  Patroa  ! 

Uma  mulher  alta  e  ossuda,  muito  empertigada,  com  uma 
saia  grossa  azul  e  a  cintura  uma  ou  duas  pollegadas  abaixo 
dos  sovacos,  respondeu  á  chamada. 

—  Podemos  recolher  aqui  este  cavallo,  boa  mulher?  disse 
o  sr.  Tupman  adiantando-se  e  fallando  com  a  sua  maneira 
mais  insinuante., 

A  mulher  olhou  com  muita  fixidez  para  todo  o  grupo  ;  e 
o  homem  ruivo  segrcdou-lhe  qualquer  coisa  aos  ouvidos, 

—  Nada!  replicou  a  mulher  apoz  um  momento  de  refle- 
xão. Tenho  medo. 

—  Medo  !  ora  essa !  exclamou  o  sr.  Pickwick,  de  que  é 
que  a  mulhersinha  tem  medo  ? 

—  Uma  cousa  assim  metteu-nos  em  trabalhos  da  outra 
vez,  disse  a  mulher  voltando  para  dentro  de  casa,  não  me 
quero  metter  n'outra. 

—  E'  o  caso  mais  extraordinário  que  eu  tenho  visto  em 
minha"  vida,  disse  o  sr'.  Pickwick  attoniio. 


78 


AS  AVENTURAS 


—  Ku  Cíi...  eu  cá...  o  que  supponho,  segredou  o  sr. 
Winkle  aos  amigos  agrupados  em  torno  d'elle,  é  que  esta 
gente  julga  que  nós  apanhamos  o  cavallo  de  alguma  maneira 

pouco  limpa. 

—  Como.-'  exclamou  o  sr  Pickwick  n'uma  explosão  de 
cólera. 

O  sr.  Winkle  repetiu  modestamente  a  suà  opinião. 

—  Olé,  amigo!  disse  o  sr.  Pickwick  irritadíssimo,  você 
julga  que  nós  roubámos  este  cavallo? 

—  Tenho  a  certeza,  replicou  o  homem  ruivo,  com  uma 
casquinada  que  lhe  agitou  a  cara  toda  de  uma  orelha  á  ou- 
tra. 

E  dito  isto,  metteu-se  em  casa,  cerrando  a  porta  com  es- 
trondo. 

—  Parece  um  sonho  1  exclamou  o  sr.  Pickwick,  um  pesa- 
delo horrível !  Que  perspectiva  esta  !  Andar  um  homem  um 
dia  inteiro  agarrado  a  um  cavallo  medonho,  sem  se  poder 
vèr  livre  d'elle  ! 

Os  pickwíckanos  abatidos  proseguiram  tristemente  o  seu 
caminho,  com  o  colossal  quadrúpede,  pelo  qual  elles  toJos 
sentiam  o  mais  invencível  asco,  a  seguir-lhes  lentamente  a 
piugada. 

A  tarde  declinava,  quando  os  quatro  amigos,  mais  o  pa- 
chvderme  seu  companheiro,  chegaram  ao  atalho  que  condu- 
zia a  Manor  Farm  :  e  mesmo  tão  próximos  do  seu  destino,  o 
prazer  que  elles  n'outras  circumstancias  teriam  experimen- 
tado, era  deveras  annuviado  quando  reliectíam  na  singulari- 
dade do  seu  aspecío  e  no  absurdo  da  sua  situação. 

Fatos  rasgados,  caras  arranhadas,  sapatos  empoeirados, 
olhares  amortecidos,  e,  por  cima  de  tudo,  o  cavallo.  Oh  I 
como  o  sr.  Pickwick  amaldiçoava  aquelle  cavallo  !  De  mo- 
mento a  momento  lançava  sobre  o  nobre  animal  olhares  pre- 
nhes de  ódio  e  de  vingança  ;  mais  de  uma  vez  calculara 
quanto  lhe  poderia  custar  o  degolal-o ;  e  n'esse  instante  oc- 
correu-lhe  decuplicada  ao  espirito  a  tentação  de  dar  cabo 
d'elle  ou  desamparai  o  por  esse  mundo. 

Despertou  de  sua  tremenda  meditação  ao  ver  subitamente 
duas  figuras  na  volta  do  atalho. 

Eram  o  sr.  Wardle  e  o  seu  fiel  servo,  o  rapaz  gordu- 
cho. 


DO   SR.   PICKWICK  79 


—  Ora  esta  I  Então  por  onde  andaram  ?  disse  o  hospita- 
leiro velhote.  Estive  todo  o  dia  á  sua  espera.  K'  boa!  pare- 
cem estafados.  O  que  é  isso  ?  arranhaduras  !  Não  é  coisa  de 
cuidado,  espero  —  hein  ?  Estimo  saber  isso  —  estimo  im- 
inenso.  Então  voltou-se-lhes  a  carruagem,  hein  r  Não  quer 
dizer  nada.  E'  um  accidente  vulgar  aqui  nos  sitios.  .loe  — 
diabo  do  moço  I  está  outra  vez  a  dormir  —  Joe,  agarra  no 
^avalio  e  leva-o  para  a  cavallariça. 

O  rapaz  gorducho  foi-se  arrastando  atraz  d'elles  com  o 
animal  ;  o  velho  ia  lamentando  singelamente  os  hospedes  so- 
bre a  parte  das  suas  aventuras  do  dia  que  elles  julgaram  con- 
veniente communicar-lhes  ;  e  assim  os  foi  conduzindo  até  á 
cosinha. 

—  Vamos  tratar  de  os  pôr  em  ordem,  disse  elle,  e  depois 
eu  os  apresentarei  á  gente  que  esiá  na  sala.  Emma,  traze  a 
aguardente  de  ginjas ;  tu,  Jane,  vae  buscar  agulha  e  linha ; 
toalhas  e  agua,  Mary.  Andem,  raparigas,  aviem -se. 

Três  ou  quatro  criadas  rechonchudas  dispersaram  apres- 
sadamente em  cata  dos  ditlerentes  objectos  requisitados,  ao 
passo  que  dois  machacazes  de  cabeças  grandes  e  caras  re- 
dondas se  levantaram  dos  bancos  postados  ao  pé  da  lareira. 
i/*orque,  apesar  de  ser  uma  noite  de  maio,  a  sua  ternura  pelo 
lume  não  parecia  menos  ardente  do  que  se  estivessem  no 
Natal. 

Sumiram-se  por  cantos  obscuros,  d'onde  em  bre\e  emer- 
giram, trazendo  um  frasco  de  graxa  e  coisa  de  meia  dúzia  de 
escovas. 

—  Mecham-sel   repetiu  o  velhote. 

Mas  a  advertência  era  de  todo  inútil,  porque  uma  das  ra- 
parigas foi  distribuindo  a  ginjinha,  outra  trouxe  as  toalhas,  c 
um  dos  machacazes  agarrou-se  á  perna  do  sr.  Pickwick,  com 
risco  imminente  de  lhe  fazer  perder  o  equilíbrio  e  escovou 
lhe  as  botas  até  lhe  pôr  os  callos  em  braza. 

Entretanto,  outro  criado  ia  esfregando  o  sr.  Winkle  com 
uma  pesada  escova  de  fato,  deleitando-se  durante  a  operação 
a  produzir  a  espécie  de  assobio  habitual  aos  moços  de  estre- 
baria quando  limpam  os  cavallos. 

O  sr.  Snodgrass,  tendo  concluido  as  suas  abluções,  voltou 
as  costas  para  o  fogão,  e  saboreando  com  grande  prazer  a 
aguardente  de  ginjas,  entreteve-se  a  examinar  o  aposento. 


8o  AS   AVENTURAS 


Segundo  o  que  elle  descreve,  era  uma  vasta  casa,  com  o 
chão  de  tijolo  e  uma  enorme  chaminé ;  o  teclo  estava  guar- 
necido de  presuntos,  mantas  de  toucinho  e  resteas  de  cebo- 
las. 

As  paredes  estavam  decoradas  com  vários  chicotes,  dois 
ou  três  freios,  uma  sella,  e  um  velho  bacamarte  enferrujado 
com  um  lettreiro  por  baixo  que  o  accusava  de  «CarregadO') 
—  e  ha  meio  século  pelo  menos  que,  a  dar  credito  ao  nosso 
informador,  assim  devia  estar. 

Um  velho  relógio  com  oito  dias  de  corda,  de  um  aspecto 
sereno  e  solemne,  traquinava  compassadamente  a  um  canto  ; 
e  um  relógio  de  algibeira,  de  prata,  de  egual  antiguidade, 
pendia  de  uma  das  innumeras  escapulas  que  ornavam  o  apa- 
rador. 

—  Estão  promptos?  perguntou  o  velhote,  quando  viu  os 
hospedes  lavados,  cozidos,  escovados  e  quentes  por  den- 
tro. 

—  Promptos  !  respondeu  o  sr.  Pickwick. 

—  Então,  venham  comigo. 

Atravessaram  alguns  corredores  ás  escuras.  Mas  o  sr.  Tup- 
man  íicou  atraz  para  dar  um  beijo  a  Emma  que  o  recompen- 
sou devidamente  com  vários  safanões  e  arranhaduras.  Por 
fim  chegaram  todos  juntos  á  porta  da  sala. 

—  Bemvindos  sejam  I  disse  o  hospitaleiro  velhote,  abrin- 
do-a  de  par  em  par  e  precedendo- os  para  os  annunciar.  Bem- 
vindos sejam,  a  Manor  Farm  ! 


CAPITULO   VI 

Uma  partida  n'outros  tempos.  — Os  versos  do  clé- 
rigo.—Urra  historia:  a  volta  do  degredado. 

As  visitas,  que  estavam  reunidas  na  velha  sala,  ergueram- 
se  para  cumprimentar  o  sr.  Pickwick  e  os  seus  amigos ;  e 
durante  a  ceremonia  de  apresentação,  realisada  com  todas 
as  formalidades,  teve  o  sr.  Pickwick  tempo  para  examinar  o 
aspecto  e  fazer  conjecturas  sobre  os  caracteres  e  as  occupa- 
ções  das  pessoas  que  o  cercavam  —  divertimento  a  que  se 


DO  SR.  IMCKWICK 


cinreL;a\a  habitualmente,  á  siniilhança  de  muitos  outros 
grandes  homens. 

A'  direita  do  fogão,  occupava  o  posto  de  honra  uma  se- 
nhora muito  velha,  com  uma  touca  monumental  e  um  \  estido 
de  seda  desbotada  :  era  nada  mais  nada  menos  do  que  a  mãe 
do  sr.  Wardle. 

Varias  certidões  de  que  em  moça  fora  educada  no  devido 
rumo  e  de  que  depois  de  velha  se  não  afastara  d'elle,  orna- 
mentavam as  paredes,  sob  a  forma  de  modelos  de  collegio 
de  velha  data,  paisagens  bordadas  a  lá  de  egual  antiguidade, 
e  coberturas  para  asas  de  bule,  de  seda  carmezim,  de  um 
periodo  mais  recente. 

Agrupavam-se  em  volta  da  sua  poltrona,  competindo  em 
aitençóes  incessantes  e  desveladas  á  veneranda  dama,  a  tia, 
as  duas  meninas  e  o  sr.  Wardle  ;  uma  segurava-lhe  a  corneta 
acústica,  outra  uma  laranja,  a  terceira  um  frasco  de  perfu- 
mes, ao  passo  que  o  ultimo  se  entregava  zelosamente  á  faina 
de  afofar  as  almofadas  a  que  ella  se  encostava. 

Do  lado  opposto,  sentava  se  um  sujeito  de  idade,  calvo, 
com  uma  cara  de  bom  hum.or  e  de  aíTabilidade  :  era  o  vigá- 
rio de  Dingley-Dell. 

Ao  pé  d'este  sentava-se  sua  mulher,  uma  senhora  idosa  e 
robusta,  que  tinha  a  apparencii  de  ser  habilidosa,  não  só  na 
mysteriosa  arte  de  manufacturar  excellentes  bebidas  casei- 
ras para  satisfação  alheia,  mas  de  as  provar  quando  se  offe- 
recia  a  occasião,  para  satisfação  própria. 

Um  homem  baixinho,  de  cabeça  ossuda  e  cara  de  maçã 
remeta,  estava  a  um  canto  a  conversar  com  um  sujeito  gordo 
e  idoso. 

Mais  dois  ou  três  velhotes,  e  mais  duas  ou  três  velhotas, 
estavam  rígidos  e  immoveis  nas  suas  cadeiras,  pasmados  para 
o  sr.  Pickwick  e  para  os  seus  companheiros  de  viagem. 

—  E'  o  sr.  Pickwick,  minha  mãe,  disse  o  sr.  Wardle,  com 
toda  a  força  dos  seus  pulmões. 

—  Ah  !  disse  a  velha,  sacudindo  a  cabeça,  não  ouço  nada. 

—  O  sr.  Pickwick,  chiaram  ambas  as  meninas  em  uni- 
sono. 

—  Ah!  exclamou  a  velha  dama.  Bem  I  isso  não  faz  nada 
ao  caso.  Elle  importa-se  lá  com  uma  velha  como  eu  I 

—  Asseguro-lhe,   minha    senhora,   exclamou   o   sr,   Pick- 

ó 


82  AS   AVENTURAS 


wick  agarrando  na  mão  da  velha  e  fallando  tão  alto  que  che- 
gou a  ter  a  benévola  physionomia  esfogueteada  com  o  es- 
forço, asseguro  lhe,  minha  senhora,  que  nada  me  encanta 
mais  do  que  uma  dama  da  sua  idade  á  testa  de  uma  fami- 
lia  tão  digna,  e  com  essa  bella  apparencia  de  saúde  e  de  vi- 
gor. 

— 'Ah  !  disse  a  velha  depois  de  uma  curta  pausa,  isso  tudo 
é  muito  bonito,  creio  ;  mas  eu  é  que  não  ouço  patavina. 

—  A  avósinha  está  agora  um  tanto  indisposta,  disse  Miss 
Isabella  Wardle  em  voz  baixa ;  d'aqui  a  pouco  lhe  falia. 

O  sr.  Pickwick  manifestou  por  um  gesto  que  se  prompti- 
ficava  a  sujeitar-se  ás  enfermidades  da  velhice,  e  entrou  na 
conversação  geral. 

—  Lindissimo  sitio  este!  disse  o  sr.  Pickwick. 

—  Lindissimo  !  echoaram  os  três  companheiros. 

—  Pois  é,  lá  isso  creio,  disse  o  sr.  Wardle. 

—  Não  ha  melhor  pedaço  de  terra  em  todo  o  condado  de 
Kent,  meu  caro  senhor,  acudiu  o  homem  da  cara  de  maçã 
reineta.  Isso  é  que  não  ha  —  tenho  a  certeza  que  não  ha. 

E  o  homemsinho  olhou  em  roda  de  si,  com  ar  de  trium- 
pho,  como  se  houvesse  sido  muito  contradictado  por  alguém, 
mas  tivesse  afinal  levado  a  melhor. 

—  Não  ha  melhor  pedaço  de  terra  em  todo  o  condado, 
repetiu  elle  passado  um  instante  de  silencio. 

—  A  não  ser  os  prados  de  Mulhns,  observou  com  solem- 
nidade  o  homem  gordo. 

—  Os  prados  de  MuUins  I  exclamou  o  outro  com  profundo 
desdém. 

—  Ah!  os  prados  de  Mullins !  repetiu  o  homem  gjrdo. 

—  São  bem  boa  terra,  são,  atalhou  outro  homem  gordo. 

—  Pois  são,  com  certeza,  disse  um  terceiro  gordo. 

—  Isso  toda  a  gente  sabe,  disse  o  corpulento  dono  da 
casa. 

O  homem  da  cara  de  maçã  reineta  olhou  com  hesitação 
em  torno  de  si,  mas,  vendo-se  em  minoria,  assumiu  um  ar  de 
compaixão,  e  não  disse  mais  palavra. 

—  De  que  é  que  elles  estão  a  fallar  .''  perguntou  a  velhi- 
nha a  uma  das  netas  em  voz  muito  audível ;  porque,  como  a 
maior  parte  dos  surdos,  nunca  parecia  calcular  a  possibili- 
dade de  os  outros  ouvirem  o  que  ella  dizia. 


DO  SR.  PICKWICK  83 


—  Kstão  a  fallar  a  respeito  das  terras,  avósinhii. 

—  O  que  é  que  ha  a  respeito  das  terras?  Ha  cdguma  no- 
vidade ^ 

—  Não,  não.  Era  o  sr.  Miller  que  estava  dizendo  que  as 
nossas  terras  são  melhores  do  que  os  prados  de  Mullins. 

—  Elle  sabe  lá  nada  d'isso !  exclamou  com  indignação  a 
velha.  Miller  é  um  pateta,  um  presumido,  e  podes  repetir-lhe 
o  que  eu  digo. 

Dizendo  isto,  a  velha  senhora,  inconsciente  de  que  fallára 
em  alta  voz,  endireitou-se  e  cravou  olhares  cortantes  como 
facas  sobre  o  delinquente  da  cara  de  maçã  reineta. 

—  E'  verdade !  disse  o  irrequieto  sr.  Wardie,  com  a  an- 
ciedade  natural  de  mudar  de  conversação.  Que  diz  a  uma 
partida  de  whist,  sr.  Pickwick  ? 

—  Pélo-me  por  isso,  replicou  este  cavalheiro,  mas  rogo- 
Ihe  que  a  não  organise  por  minha  causa. 

—  Oral  certifico-lhe  que  minha  mãe  gosta  immenso  do 
\vhist,  disse  o  sr.  Wardie ;  não  é  assim,  minha  mãe  ? 

A  velha,  que  era  muito  menos  surda  n'este  assumpto  do 
que  n'outro  qualquer,  respondeu  affirmativamente. 

—  Joe,  Joe  !  bradou  o  dono  da  casa  ;  Joe  I  —  Diabos  le- 
vem. . .  Ah !  cá  está  elle ;  arranja  as  mesas  de  j®go. 

O  lethargico  rapazote  decidiu-se  sem  mais  excitantes  a 
arranjar  duas  mesas  de  jogo  ;  uma  para  jogar  a  papisa  Joan- 
na  ^ ;  outra  para  o  whist. 

Os  parceiros  do  whist  eram  o  sr.  Pickwick  com  a  velhi 
nha,  o  sr.  Miller  com  o  sujeito  gordo.  O  outro  jogo  compre- 
hendia  o  resto  da  sociedade. 

O  whist  foi  conduzido  com  toda  a  gravidade  e  circum- 
specção  que  exige  a  occupação  assini  denominada,  acto  so- 
lemne  ao  qual  nos  parece  se  dá  por  irreverência  e  ignominia 
o  titulo  de  jogo. 

Pelo  contrario,  na  outra  mesa  reinava  uma  alegria  tão 
ruidosa,  que  prejudicava  gravemente  as  lucubracões  do  sr. 
Miller. 

Este,  não  estando  tão  absorto  como  lhe  cumpria,  perpe- 


'  Jogo  de  cartas  usado  em  Inglaterra.  Calculo  que  ^ja  uma  espécie  de 
nosso  diabrete. 


84  AS   AVENTURAS 


irava  a  cada  passo  medonhos  crimes  e  tremendos  delictos, 
que  excitavam  até  ao  ápice  as  iras  do  sujeito  gordo  e  des- 
pertavam na  mesma  proporção  o  bom  humor  da  velha 
dama. 

—  Aqui  está !  disse  triumphantemente  o  sr.  Miller,  ao 
apanhar  a  uhima  vasa  no  fim  de  uma  mão,  não  havia  meio 
de  jogar  melhor,  gabo-me  d'essa.  Era  impossivel  fazer  mais 
uma  vasa. 

—  Miller  devia  ter  cortado  os  oiros,  pois  não  devia  r  per- 
guntou a  velha. 

O  sr.  Pickwick  fez  um  gesto  afifirmativo. 

—  Acha  que  devia  cortar?  disse  o  desditoso,  com  um 
appello  hesitante  ao  seu  parceiro. 

—  Está  claro  que  devia,  respondeu  o  sujeito  gordo  com 
voz  tremebunda. 

—  Então  desculpe,  disse  o  sr.  Miller  de  crista  cabida. 

—  A  boas  horas!  resmungou  o  sujeito  gordo. 

—  Dois  de  figuras  —  marcamos  oito,  disse  o  sr.  Pickwick. 
Passou-se  a  outra  mão. 

—  Pôde  marcar  um?  perguntou  a  velha. 

—  Posso,  respondeu  o  sr.  Pickwick.  Duplo,  singelo,  e  o 
resto. 

—  Nunca  vi  sorte  assim,  disse  o  sr.  Miller. 

—  Nunca  vi  cartas  d'estas,  disse  ò  sujeito  gordo. 

Fez-se  um  silencio  solemne.  O  sr.  Pickwick  estava  jo- 
vial, a  velha  séria,  o  sujeito  gordo  mal  humorado,  e  o  sr. 
Miller  timido. 

—  Outro  duplo,  disse  a.  velha,  marcando  triumphalmente 
o  facto  peia  collocação  de  uma  moeda  de  seis  pence  e  outra 
amolgada  de  meio  penny  debaixo  do  castiçal. 

—  Outro  duplo,  vê?  disse  o  sr.  Pickwick. 

—  Já  tinha  percebido,  replicou  acerbamente  o  sujeito 
gordo. 

Outro  jogo  se  seguiu  com  o  mesmo  resultado.  E  como  o 
desventurado  Miller  tivesse  commettido  uma  renuncia,  o  su- 
jeito gordo  rompeu  n'um  excesso  de  irritação  que  lhe  durou 
até  ao  fim  do  jogo,  retirando-se  então  para  um  canto  e  fi- 
cando perfeitamente  mudo  durante  uma  hora  e  vinte  e  sete 
minutos. 

Findo  este  tempo,  emergiu  do  seu  canto  e  otíereceu  uma 


DO   SR.   PICKVVICK  S3 


pitada  de  rapé  ao  sr.  Pickwick,  com  a  atliludc  de  um  homem 
que  se  tinha  resolvido  a  perdoar  christãmente  as  injurias  sof- 
íridas. 

O  ouvido  da  velha  melhorava  decididamente,  c  o  desdi- 
toso Miller  sentia-se  tão  tora  do  seu  elemento  como  um  gol- 
phinho  encafuado  n'uma  guarita. 

Entretanto,  o  outro  jogo  ia  proseguindo  no  meio  da  maior 
alegria. 

Isabella  Wardle  e  o  sr.  Trundle  tinham  feito  uma  vaqui- 
nha, assim  como  Emily  Wardle,  mais  o  sr.  Snodgrass ;  e  até 
o  sr.  Tupman  e  a  tia  solteirona  haviam  formado  uma  socie- 
dade de  tentos  e  de  galanteios. 

O  velho  sr.  Wardle  estava  no  cumulo  da  jovialidade.  Era 
tão  divertido  a  dirigir  o  jogo,  e  as  senhoras  idosas  eram  tão 
softVegas  do  que  ganhavam,  que  em  volta  da  mesa  havia  um 
temporal  constante  de  gargalhadas. 

Havia  uma  dama  velha  que  tinha  sempre  uma  meia  dúzia 
de  cartas  a  pagar,  o  que  fazia  rir  immenso  a  cada  turno  do 
jogo;  e  quando  a  dita  senhora  se  mostrava  2angada  por  ter 
de  pagar,  riam  todos  ainda  mais :  então  o  rosto  d'ella  ia-se 
gradualmente  desannuveando,  até  que  a  final  desatava  a  rir 
mais  do  que  os  outros. 

Depois,  em  a  tia  solteirona  fazendo  algum  casamento,  lá 
rompiam  as  meninas  outra  vez  ás  risadas,  e  a  lia  parecia  vae 
não  vae  prestes  a  desconfiar;  até  que,  sentindo  o  sr.  Tup- 
man a  apertar-lhe  a  mão  por  baixo  da  mesa,  elia  ficava  ra- 
diante, como  se  quizesse  mostrar  que  o  casamento  não  era 
uma  coisa  tão  fora  de  villa  e  termo  como  algumas  pessoas 
suppunham  :  e  então  todos  tornavam  a  rir,  e  especialmente 
o  velho  sr.  Wardle  que  dava  tanto  apreço  a  uma  brincadeira 
como  os  mais  novos. 

Quanto  ao  sr.  Snodgrass,  esse  não  fazia  outra  coisa  senão 
segredar  sentimentalidades  poéticas  ao  ouvido  da  sua  par- 
ceira, o  que  occasionava  as  piadas  maliciosas  de  um  sujei' o 
idoso  a  propósito  das  parcerias  ao  jogo  e  das  parcerias  na 
vida. 

Sobre  este  thema  bordava  o  tal  sujeito  varias  considera- 
ções, acompanhadas  de  olhadellas  e  sorrisos  malignos,  que 
divertiam  muitíssimo  a  sociedade,  especialmente  a  esposa  do 
sobredito  sujeito. 


«S6  AS  AVENTURAS 


K  o  sr.  Winkle  sahia-se  com  pilhérias  muito  conhecidas 
na  cidade,  mas  absolutamente  desconhecidas  na  província  ; 
e  quando  todos  riam  a  bom  rir,  achando-as  excellentes,  o  sr. 
Winide  ficava  impando  de  honra  e  de  orgulho. 

E  o  benévolo  ecclesiastico  olhava  para  tudo  isto  com 
complacência ;  porque  se  sentia  feliz  em  ver  todos  felizes  em 
volta  de  si ;  e  apesar  de  a  alegria  ser  um  tanto  estrondosa, 
era  do  coração  que  provinha  e  não  dos  lábios ;  e  é  essa  a 
verdadeira  e  genuina  alegria,  a  final  de  contas. 

Decorreu  com  rapidez  a  noite,  no  meio  d'estas  jubilosas 
distracções ;  e  depois  que  se  deu  conta  da  ceia  substancial, 
embora  comezinha,  a  sociedade  formou  em  circulo  em  torno 
do  lumre. 

O  sr.  Pickwick  julgou  então  que  nunca  se  sentira  tão  fe- 
liz na  sua  vida,  e  nunca  tão  disposto  a  gosar,  tanto  quanto 
podesse,  dos  momentos  transitórios. 

—  Ora,  é  d'isto  mesmo,  disse  o  hospitaleiro  amphytrião, 
ceremoniosamente  sentado  junto  á  cadeira  de  braços  occu- 
pada  por  sua  velha  mãe,  e  com  a  mão  d'ella  apertada  entre 
as  suas,  é  d'isto  exactamente  que  eu  gosto.  Os  momentos 
mais  ditosos  da.  minha  vida,  tenho-os  passado  ao  pé  d'esta 
velha  lareira  :  e  tanto  amor  lhe  tenho  que  todas  as  noites 
accendo  um  lume  chammejante  até  chegar  a  ser  tão  intenso 
que  não  se  possa  supportar.  Que  querem?  já  a  minha  pobre 
e  velha  mãe  costumava  sentar-se  diante  d'esta  lareira,  n'a- 
quelle  banquinho,  era  ella  ainda  bem  nova  —  não  é  verdade, 
minha  mãe  ; 

Pelas  faces  da  velha,  que  acenou  com  a  cabeça  sorrindo 
melancolicamente,  escorregou  aquella  lagrima  que  se  des- 
prende voluntariamente  dos  olhos  ao  recordar  os  velhos  tem- 
pos e  a  ventura  de  um  passado  longinquo. 

—  Desculpe-me  fallar-lhe  d'este  velho  local,  sr.  Pickwick, 
proseguiu  o  sr.  Wardle,  depois  de  um  breve  silencio ;  é  que 
lhe  tenho  um  grande  amor,  e  nenhum  outro  conheço.  As  ca- 
sas antigas  e  os  campos  velhos  parecem-me  amigos  com  vi- 
da. Tal  me  parece  a  nossa  velha  egreja  coberta  de  hera.  E  a 
propósito,  aqui  está  o  nosso  excellente  amigo  que  a  esse  res- 
peito compoz  uma  canção  quando  aqui  chegou.  Sr.  Snod- 
grass,  tem  o  copo  vasio  ? 

—  Ainda  não,  obrigado,  replicou  este  cavalheiro,  cuja  cu- 


DO  SR.   PICKWICK  87 


riosidade  poeiica  tora  vivamente  excitada  pelas  ultimas  ob- 
servações do  dono  da  casa.  Peço  perdão,  mas  estava  fallando 
de  uma  canção  sobre  a  hera. 

—  Pergunte  novas  d'ella  a  este  nosso  amigo,  disse  com 
malicia  o  sr.  Wardle,  indicando  o  ecclesiastico  com  um  aceno 
de  cabeça. 

—  Permitte-me  que  lhe  manifeste  o  meu  desejo  de  a  ou- 
vir ?  perguntou  o  sr.  Snodgrass. 

—  Ora  essa !  replicou  o  ecclesiastico,  realmente  é  uma 
coisa  tão  insignificante !  A  minha  única  desculpa  por  ter 
perpetrado  similhante  crime  é  que  ainda  era  rapaz  n'esse 
tempo.  Em  todo  o  caso,  se  assim  o  deseja,  vae  ouvil-a. 

A  resposta  foi,  está  claro,  um  sussurro  de  curiosidade ;  e 
o  velho  começou  a  recitar,  servindo  lhe  a  esposa  uma  que 
outra  vez  de  ponto,  os  versos  em  questão. 

—  Chamam-se  elles,  disse  o  vigário, 


A    MEKvV 


Ah  !  como  ás  ruinas  trepa 
Esta  planta  singular ! 
Na  poeira  e  na  carepa 
O  alimento  vae  buscar ! 
Com  mais  anciã  se  apodera 
Do  que  mais  vetusto  está  : 
Com  que  vigor  cresce  a  hera 
Aonde  vida  não  ha  ! 


Sobe,  sobe,  sem  ter  azas, 
Ergue-se  altiva  ao  cariz, 
No  cimo  das  velhas  casas 
E  dos  troncos  senhoris. 
Busca  nas  campas,  qual  fera, 
O  manjar  que  a  morte  dá ; 
Com  que  vigor  cresce  a  hera 
Aonde  vida  não  ha  ! 


88  AS   AVENTURAS 


Séculos  fogem,  deixando 
Os  escombros  das  nações  ; 
•Mas  sobre  elles  vão  lavrando 
Os  viridentes  Horões. 
Do  pretérito,  severa. 
Sempre  se  alimentará  : 
(]om  que  vigor  cresce  a  hera 
Aonde  vida  não  ha  I 


Emquanto  o  velho  recitava  estes  versos  pela  segunda 
vez  para  que  o  sr.  Snodgrass  podesse  tomar  nota  d'elles,  o 
sr.  Pickwick  examinava-lhe  com  grande  interesse  as  fei- 
ções. 

Concluida  que  foi  a  recitação  e  guardada  a  carteira  no 
bolso  do  sr.  Snodgrass,  o  sr.  Pickwick  disse  ao  vigário  : 

—  Ha  de  perdoar-me,  se  logo  á  primeira  vez  que  o  co- 
nheço lhe  dirijo  esta  pergunta  :  mas  um  cavalheiro  nas  suas 
circumstancias  e  na  sua  situação  de  ministro  do  Evangelho, 
é  impossivel  que  não  tenha  assistido  a  muitas  scenas  e  inci- 
dentes dignos  de  relatar-se. 

—  Decerto  que  alguns  tenho  presenciado,  respondeu  o 
velho,  mas  os  incidentes  e  os  caracteres  teem  sido  de  um  gé- 
nero bem  comesinho  e  vulgar,  por  ser  muito  limitada  a  mi- 
nha csphera  de  acção. 

—  Parece-me  que  o  meu  amigo  tomou  alguns  apontamen- 
tos acerca  de  John  Edmunds,  não  é  assim  ?  interrogou  o  sr, 
Wardle.  que  parecia  muito  desejoso  de  evidenciar  o  amigo, 
para  edificação  das  suas  novas  visitas. 

O  velho  acenou  ligeiramente  com  a  cabeça  em  signal  de 
assentimento,  e  dispunha-se  a  mudar  de  assumpto,  quando  o 
»r.  Pickwick  lhe  disse  : 

—  Perdão,  senhor;  mas  permitte-me  que  lhe  pergunte 
quem  vinha  a  ser  esse  John  Edmunds  ? 

—  Era  justamente  o  que  eu  ia  perguntar,  acrescentou  o 
sr.  Snodgrass  com  vivacidade. 

—  Não  podem  bater  a  melhor  porta,  disse  o  jovial  dono 
da  casa.  O  meu  amigo  tem  que  satisfazer,  mais  cedo  ou  mais 
tarde,  a  curiosidade  doestes  senhores:  e  então  o  melhore 
aproveitar  o  ensejo,  e  fazei- o  desde  já. 


DO   SR.   PICKWICK  80 


O  velho  sorriu  com  bonhomia,  puxando  para  diante  a 
^ua  cadeira. 

Os  outros  aperlaram-se  mais,  sobretudo  o  sr.  Tupman  e 
a  lia  solteirona,  que  talvez  tivessem  o  ouvido  um  pouco 
duro. 

Dispoz-se  com  todo  o  cuidado  a  corneta  acústica  da  ve- 
Ihita.  K  o  sr.  Miller,  que  adormecera  durante  a  recitação,  foi 
despertado  por  um  beliscão  admonitório,  ministrado  por 
baixo  da  mesa  pelo  seu  ex-parceiro,  o  gordo  solemne. 

Então  o  vigário,  sem  mais  prefacio,  encetou  a  seguinte  nar- 
rativa, á  qual  tomámos  a  liberdade  de  antepor  o  titulo  de 


j\.  voL^^^r.^  i>o  r>i^::<^Rii:r>Ai>o 

"Quando  eu  me  estabeleci  aqui  na  terra,  faz  agora  justa- 
mente vinte  e  cinco  annos,  a  pessoa  mais  digna  de  nota  en- 
tre os  meus  parochianos  era  um  tal  Edmunds,  que  era  ren- 
deiro de  uma  pequena  herdade  por  estes  contornos. 

"Era  um  homem  de  maus  instinctos,  intratável  e  feroz 
por  temperamento,  preguiçoso  e  dissoluto  por  habito.  A  não 
ser  uns  vadios  ralaços  com  quem  elle  vagueava  por  esses 
campos  ou  se  embriagava  na  taverna,  não  tinha  um  único 
amigo  ou  conhecido ;  ninguém  se  sentia  disposto  a  fallar 
com  um  homem  a  quem  muitos  temiam  e  iodos  receiavam. 
Por  isso  toda  a  gente  fugia  d'elle. 

"Tinha  este  homem  mulher  e  um  filho,  o  qual  teria  uns 
doze  annos  quando  eu  aqui  cheguei.  Nirtguem  pôde  formar 
uma  ideia  apropriada  dos  softrimentos  d'essa  pobre  mulher, 
da  sua  resignação  a  supportal-os,  e  da  angustiosa  solicitude 
com  que  ia  educando  o  pequeno. 

"Deus  me  perdoe  a  suspeita,  se  é  pouco  caridosa  ;  mas 
creio,  em  consciência,  que  o  homem  procurou  systematica- 
mente,  durante  muitos  annos,  despedaçar-lhe  o  coração. 

"Ella  tudo  soífreu  por  amor  do  filho,  e,  por  estranho  que 
isto  pareça  a  muita  gente,  também  por  amor  do  pae. 

"Embora  bruto  e  cruel  para  ella,  a  pobre  mulher  tinha-o 
amado  ouir'ora;  e  a  recordação  do  que  elle  fora  para  ella 
despertava-Jhe  no  peito  sentimentos  de  indulgência  e  de  ter_ 


QO  AS   AVENTURAS 


nura,  aos  quaes  são  alheias  todas  as  creaturas  de  Deus,  ex- 
cepto as  mulheres. 

«Er?m  pobres  —  nem  outra  coisa  era  possivel  dado  o  pro- 
cedimento do  marido ;  mas  o  trabalho  incessante  e  infatigá- 
vel da  mulher,  a  toda  a  hora  do  dia  e  da  noite,  punha  os  ao 
abrigo  da  miséria. 

"Esse  trabalho  era  porém  mal  recompensado. 

"A  gente  que  passava  de  noite  pela  casa  d'elles  —  ás  ve- 
zes alta  noite  —  contava  que  ouvia  soluços  e  gemidos  da  in- 
feliz e  o  ruido  das  pancadas  que  ella  recebia. 

<<E  mais  de  uma  vez,  depois  da  meia  noite,  o  pequeno  vi- 
nha bater  de  vagar  á  porta  de  algum  vià-inho  para  fugir  á  em- 
briaguez furiosa  do  malvado  pae. 

'-Durante  este  tempo  todo,  e  quando  a  pobre  creatura  ti- 
nha no  corpo  vestigios  de  maus  tratamentos  e  violências  que 
não  podia  occultar  completamente,  frequentava  ainda  assim 
a  nossa  pequena  egreja  com  assiduidade. 

"Todos  os  domingos  regularmente,  de  manha  e  á  tarde, 
ella  occupava  o  mesmo  banco  com  o  pequeno  ao  seu  lado ; 
e  apesar  de  estarem  ambos  pobremente  vestidos  —  muito 
mais  do  que  um  grande  numero  de  visinhcs  que  estavam  em 
peiores  circumstancias  —  andavam  sempre  aceiados  e  decen- 
tes. Toda  a  gente  tinha  um  gesto  amigável  e  uma  palavra 
benévola  para  «a  pobre  Mistress  Edmunds»  ;  e  algumas  vezes, 
quando  ella  parava  a  trocar  meia  dúzia  de  palavras  com  al- 
gum visinho,  ao  concluirem  os  ofíicios  divinos,  na  pequena 
alameda  de  olmeiros  que  leva  ao  portal  da  egreja,  ou  demo- 
rava o  passo  para,  contemplar  com  orgulho  e  amor  de  mãe 
para  o  pequeno  cheio  de  saúde,  que  brincava  diante  d'ella 
com  alguns  companheiros,  illuminava-se-lhe  o  rosto  consu- 
mido com  uma  expressão  de  gratidão  cordial ;  e  parecia  nes- 
ses momentos,  senão  alegre  e  feliz,  pelo  menos  tranquilla  e 
satisfeita.  Decorreram  cinco  ou  seis  annos.  A  creança  tor- 
nára-se  um  rapagão  robusto  e  bem  constituído. 

"O  tempo,  que  lhe  fortalecera  o  corpo  delicado  e  lhe  re- 
vigorara os  membros  débeis  até  lhe  dar  força  viril,  tinha  cur- 
vado a  estatura  da  mãe  e  tinha-lhe  enfraquecido  os  passos; 
mas  o  braço  que  deveria  tel-a  amparado  já  não  apertava  o 
seu,  nem  o  rosto  que  devia  tel-a  rejubilado  já  se  ficiava  no 
d'eíla. 


DO  SR.  PICKWICK 


"Ella  continuava  a  occupar  o  seu  antigo  pouso  na  egreja, 
mas  havia  ao  pé  d'ella  um  logar  vasio. 

«A  Biblia  era  guardada  com  tanto  desvelo  como  d'antes, 
•stavam  marcadas  com  o  antigo  cuidado  as  passagens  para 
.1  leitura;  mas  não  havia  quem  a  lesse  com  ella,  e  as  lagri- 
mas cabiam  frequentes  e  cerradas  sobre  as  paginas  e  ennu- 
blavam-lhe  as  palavras. 

"Os  visinhos  eram  tão  aíTaveis  como  outr'ora ;  ella  porém 
evitava  as  suas  saudações  e  desviava  a  cabeça. 

«Já  não  se  demorava  debaixo  dos  velhos  olmeiros,  e  ti- 
nha se-lhe  esgotado  o  thesouro  de  esperanças  fagueiras.  A 
mesquinha  tapava  os  olhos  com  o  chapéo,  e  afastava-se  pre- 
cipitadamente. 

"Escusado  é  explicar-lhes  o  succedido.  Esse  rapaz  que, 
desde  os  primeiros  tempos  da  sua  infância,  não  deveria  ter 
senão  a  recordação  de  uma  longa  serie  de  privações  volun- 
tárias soffridas  pela  mãe  por  amor  d'elle,  acompanhadas  de 
maus  tratos,  insultos  e  violências  ;  esse  rapaz,  não  se  im- 
portando com  despedaçar-lhe  cruelmente  o  coração,  e  es- 
quecendo voluntariamente  tudo  quanto  lhe  devia ;  havia  se 
ligado  a  homens  depravados  e  malditos  e  mettera-se  n'uma 
carreira  temerária  que  devia  ter  no  cabo  a  morte  para  elle, 
;i  vergonha  para  ella. 

"Ah  !  pobre  natureza  humana  !  Ha  muito  que  o  tinham 
adivinhado  por  certo. 

"A  medida  dos  infortúnios  da  mísera  estava  a  ponto  de  se 
colmar. 

"Haviam-se  commettido  numerosos  delictos  n'estas  cer- 
canias; os  malfeitores  não  se  tinham  descoberto,  e  por  isso 
crescia  a  sua  audácia. 

«Um  roubo  mais  atrevido  e  cheio  de  circumstancias  ag- 
gravantes  motivou  uma  vigilância  e  uma  segurança  de  pes- 
quisas, com  que  elles  não  tinham  contado. 

«Suspeitou-se  do  joven  Edmunds  e  de  mais  três  compa- 
nheiros. Foi  preso,  encarcerado,  julgado  e  condemnado  —  á 
morte. 

«Ainda  agora  me  retine  nos  ouvidos  o  grito  penetrante  e 
medonho  de  uma  voz  feminina,  que  resoou  no  tribunal  ao 
pronunciar-se  a  sentença  solemne. 

«Esse  grito  encheu  de  terror  o  coração  do  criminoso,  ao 


()2  AS   AVENTURAS 


qual  o  julgamento,  a  condemnação,  mesmo  a  approximação 
da  morte  não  tinham  conseguido  despertar. 

«Os  lábios,  até  então  comprimidos  por  uma  pertinácia  fe- 
roz, tremeram  e  apartaram-se  involuntariamente ;  o  rosto 
tornou-se-lhe  livido  e  cobriu-se  de  suores  frios ;  houve  um 
tremor  n'aquelles  membros  vigorosos,  e  o  scelerado  camba- 
leou. 

«Nos  primeiros  transportes  de  angustia,  a  desgraçada  mãe 
ajoelhou-se-me  aos  pés,  e  orou  com  fervor  ao  Omnipotente 
que  até  então  a  amparara  em  todos  os  transes,  para  que  a 
libertasse  de  um  mundo  de  miséria  e  poupasse  a  vida  do  seu 
único  filho. 

«Seguiu-se  um  accesso  de  pranto  e  uma  lucta  violenta, 
como  eu  espero  em  Deus  nunca  mais  presenciar, 

«Eu  bem  sabia  que  d'aquella  hora  em  diante  o  coração 
d'ella  se  fazia  em  pedaços ;  mas  nem  uma  vez  ouvi  sahir  d'a- 
quelles  lábios  uma  lastima  ou  um  murmúrio. 

«Dilacerante  espectáculo  era  ver  aquella  mulher  no  pateo 
da  prisão,  todos  os  dias,  tentando  com  anciã  e  fervor,  com 
carinhos  e  supplicas,  amollecer  o  duro  coração  do  filho.  Tu- 
do debalde.  EUe  permanecia  enraivecido,  obstinado  e  impas- 
sivel. 

«Nem  mesmo  a  inesperada  commutação  da  sentença  em 
quatorze  annos  de  degredo  abrandou  por  instantes  a  sua 
sombria  pertinácia. 

«Mas  o  espirito  de  resignação,  que  durante  tanto  tempo  a 
amparara,  não  podia  resistir  á  fraqueza  e  á  enfermidade  phy- 
sica.  Cahiu  doente.  Ainda  se  arrastou  a  cambalear  para  fora 
da  cama  a  fim  de  o  ver  mais  uma  vez,  mas  as  forças  trahi- 
ram-na,  e  a  misera  deu  comsigo  em  terra. 

«Então  é  que  se  poz  deveras  á  prova  a  frieza  e  a  indiffe- 
rença  do  criminoso ;  e  a  punição  que  o  fulminou  quasi  que 
deu  com  elle  em  doido. 

«Passou  um  dia  sem  que  a  mãe  viesse  visi'al-o;  outro  de- 
correu, e  a  mesma  ausência ;  chegou  a  terceira  noite,  sem 
que  elle  ainda  a  visse ;  e  d'ali  a  vinte  e  quatro  horas  devia 
separar  se  d'el'a  —  talvez  para  sempre  !  Oh  I  como  lhe  acu- 
diam á  mente  as  recordações  ha  muito  apagadas  da  sua  in- 
fância, emquanto  elle  percorria  irrequieto  o  estreito  pateo, 
como  se  a  fúria  do  passeio  lhe  trouxesse  mais  depressa  no- 


no  SR.   PICKWICK 


ticias.  (^om  que  amarj^ura  sentiu  de  subiío  o  seu  desamparo  e 
a  sua  miséria,  quando  lhe  contaram  a  verdade  ! 

"Sua  mãe,  a  única  creatura  que  lhe  tivera  amor,  jazia  en- 
lerma  —  talvez  moribunda,  a  meia  milha  de  distancia;  se  elle 
estivesse   livre,  em   poucos   minutos   estaria   ao   lado  d'ella. 

<'Precipitou-se  para  a  grade,  e  sacudiu  os  varões  de  ferro 
com  a  energia  do  desespero ;  depois  atirou-se  contra  a  es- 
pessa muralha,  como  se  pretendesse  abrir  passagem  atravez 
da  pedra. 

'Mas  o  solido  edifício  zombou  dos  seus  débeis  esforços, 
e  elle  enclavinhou  as  mãos  e  desatou  a  chorar  como  uma 
creança. 

"Levei  ao  cárcere  o  perdão  e  a  benção  da  mãe  para  o  li- 
Iho ;  e  trouxe  comigo  ao  leito  da  doente  a  solemne  promessa 
de  arrependimento  e  uma  fervorosa  supplica  de  perdão. 

«Ouvi,  cheio  de  piedade,  o  criminoso  contricto  formular 
mil  projectos  para  dar  á  mãe  consolo  e  amparo,  quando  vol- 
tasse ;  mas  eu  bem  sabia  que,  muitos  mezes  antes  de  elle  che- 
gar ao  seu  destino,  a  mãe  deixaria  de  existir. 

«Foi  de  noite  que  o  levaram  Poucas  semanas  depois  a 
pobre  mulher  deu  a  alma  a  Deus ;  creio  firmemente  que  lhe 
foi  reservada  a  bemaventurança  eterna. 

«Fui  eu  que  desempenhei  os  officios  fúnebres  sobre  os 
seus  restos  mortaes.  Jaz  no  nosso  pequeno  cemitério.  Nem 
uma  lousa  existe  sobre  a  sua  sepultura.  Os  seus  desgostos 
eram  conhecidos  dos  homens  ;  as  suas  virtudes  de  Deus. 

"Combinára-se  antes  da  partida  do  degredado  que  elle 
escrevesse  á  mãe  apenas  obtivesse  licença,  e  que  dirigisse  a 
carta  para  mim. 

«O  pae  tinha-se  formalmente  recusado  a  ver  o  filho  desde 
o  momento  da  prisão  d'este ;  e  pouco  se  lhe  dava  que  elle 
fosse  vivo  ou  morto. 

"Muitos  annos  passaram  sem  noticias  d'elle ;  e  quando 
decorreu  mais  de  metade  do  praso  do  degredo  sem  que  eu 
recebesse  carta,  conclui  que  elle  morrera,  e,  verdade,  ver- 
dade, quasi  estimei  que  assim  succedesse. 

"Entretanto,  Edmunds  fora  mandado  para  uma  distancia 
considerável,  pela  terrçi  dentro,  logo  que  chegara  á  colónia 
penitenciaria;  e  a  esta  circumstancia  se  deve  porventura  at- 
tribuir  o  facto  de  não  me  chegar  á  mão  caria  alguma  das 


94  AS   AVENTURAS 


que  me  fossem  remettidas.  Elle  permaneceu  no  mesmo  sitio 
durante  todos  os  quatorze  annos. 

"Ao  expirar  o  praso,  firme  sempre  na  sua  antiga  intenção 
c  no  cumprimento  da  promessa  feita  a  sua  mãe,  voltou  a  In- 
glaterra no  meio  das  maiores  difficuMades,  e  encaminhou-se 
a  pé  para  a  sua  terra  natal. 

<'P'oi  n'uma  bella  tarde  de  um  domingo  de  agosto  que 
John  Edmunds  chegou  á  aldeia  que  elle  com  opprobrio  dei- 
xara dezesete  annos  antes. 

"O  caminho  mais  próximo  passava  pelo  cemitério.  Ao 
transpor  a  velha  cancella,  sentiu  o  coração  entumecido.  Os 
velhos  e  colossaes  olmeiros,  atravez  de  cuja  folhagem  o  sol 
a  declinar  lançava  n'um  e  n'outro  ponto  os  brilhantes  raios 
sobre  a  sombria  alameda,  evocaram-lhe  recordações  da  in- 
fância. 

«Via-se  como  era  então,  agarrado  á  mão  materna,  e  diri- 
gindo-se  serenamente  á  egreja.  Lembrava-se  como  costumava 
fitar  o  pallido  rosto  d'ella,  e  como  os  olhos  da  mãe  ficavam 
ás  vezes  rasos  de  lagrimas  ao  fital-o  —  lagrimas  que  lhe  quei- 
mavam a  fronte  quando  ella  se  inclinava  para  o  beijar,  e  o 
faziam  chorar  também  sem  mesmo  perceber  a  amargura  que 
se  continha  n'aquellas  lagrimas. 

"Pensava  quantas  vezes  elle  correra  alegremente  por 
aquella  alameda  fora  com  algum  infantil  companheiro  de 
brinquedos,  olhando  de  quando  em  quando  para  traz,  afim 
de  surprehender  o  sorriso  da  mãe  ou  escutar-lhe  a  meiga 
voz. 

"E  então  rasgava-se-lhe  o  véo  da  memoria :  palavras  de 
amor  mal  compensado,  conselhos  despresados,  promessas, 
quebradas,  tudo  lhe  acudia  de  repente  ao  espirito,  até  que 
se  sentia  desfallecer  de  insupportavel  dôr. 

"Entrou  na  egreja. 

"Haviam  terminado  os  officios  da  tarde  e  os  assistentes 
tinham  dispersado,  mas  a  porta  ainda  estava  aberta. 

"Os  passos  d'elle  echoavam  surdamente  pela  abobada 
baixa,  e  a  quietação  e  o  silencio  quasi  lhe  davam  pavor  de 
estar  só. 

«Não  havia  mudança  alguma. 

«A  egreja  parecia-lhe  mais  pequena  do  que  d'antes ;  mas 
lá  estavam  os  antigos  monumentos  que  elle  mil  vezes  havia 


DO  SR.  picKwicK  gS 


contemplado  com  pavor  infantil;  o  pequeno  púlpito  com  a 
sua  almofada  desbotada;  a  mesa  de  communháo  ante  a  qual 
elle  tanta  vez  repetira  os  mandamentos  que  em  creança  ve- 
nerara, que  esquecera  depois  de  homem. 

«Aproximou-se  do  antigo  banco;  pareceu-lhe  frio  e  deso- 
lado. 

«■Haviam-lhe  tirado  a  almofada,  e  a  Biblia  não  estava  lá. 
Talvez  que  a  mãe  agora  occupasse  uma  bancada  mais  hu- 
milde, ou  que  houvesse  enfermado  a  ponto  de  não  poder 
chegar  por  seu  pé  até  á  egreja. 

«Não  se  atrevia  a  formular  o  pensamento  do  que  receiava. 
Apossou-se  d'elle  uma  sensação  de  gélido  terror,  e  tremeu 
violentamente  ao  afastar-se. 

"Quando  chegava  ao  portal,  ia  entrando  um  velho. 

"Edmunds  teve  um  sobresalto  e  recuou,  porque  bem  o  ti- 
nha reconhecido ;  quantas  vezes  o  vira  a  abrir  covas  no  ce- 
mitério ! 

«Que  iria  elle  dizer  ao  ex-degredado  ? 

<'0  velho  ergueu  os  olhos  para  aquelle  rosto  estranho, 
deu  as  boas  noites,  e  seguiu  vagarosamente.  Esquecera-se 
d'elle. 

"Edmunds  desceu  pela  collina  abaixo  e  atravessou  a  al- 
deia. O  tempo  estava  quente;  toda  a  população  estava  ás 
portas  ou  a  passear  pelos  exiguos  jardins  gosando  a  sereni- 
dade da  tarde  e  as  tréguas  do  trabalho  diurno. 

«Muitos  olhares  se  voltaram  para  elle,  e  muitas  vezes  elle 
olhava  para  um  e  outro  lado  afim  de  ver  se  alguém  o  reco- 
nhecia e  o  evitava. 

«Em  quasi  todas  as  casas  viu  caras  novas;  em  algumas 
d'ollas  reconheceu  as  feições  de  um  antigo  condiscipulo,  que 
elle  deixara  rapazote  e  que  via  agora  rodeado  por  uma  turba 
alegre  de  creanças ;  á  porta  de  outras  choupanas  viu  elle, 
sentado  n'uma  poltrona,  um  velho  fraco  e  enfermiço,  que  se 
lembrava  haver  deixado  robusto  e  vigoroso. 

«Todos,  porém,  se  tinham  esquecido  d'elle;  nem  um  o  re- 
conheceu ao  passar. 

"Os  derradeiros  e  suaves  raios  do  sol  haviam  lançado  um 
vivo  esplendor  ás  messes  douradas  do  trigo  e  alongado  as 
sombras  das  arvores  do  pomar,  quando  elle  se  deteve  de- 
fronte da  sua  velha  casa  —  o  seu  lar  infantil,  pelo  qual  tão 


Qb  AS   AVENTURAS 


intensas  e  indiscripliveis  saudades  curtira  durante  aquelles 
longos  annos  de  laborioso  e  triste  captiveiro. 

"A  pallissada  era  baixa,  com  quanto  elle  bem  se  recor- 
dasse do  tempo  em  que  ella  se  lhe  affigurava  um  muro  al- 
tissimo;  e  por  cima  d'ella  lançou  os  olhos  para  o  jardim. 
Havia  lá  mais  hervas  e  iiòres  mais  vistosas  do  que  outr'ora, 
mas  lá  estavam  ainda  as  antigas  arvores, 

"Lá  estava  a  mesma  arvore,  sob  a  qual  se  linha  deitado 
mil  vezes,  cansado  de  brincar  ao  sol,  e  se  sentira  docemente 
envolvido  pelo  somno  feliz  da  infância. 

"No  interior  da  casa  ouviram-se  vozes.  Edmunds  escu- 
tou-as,  sem  as  conhecer.  Eram  cheias  de  alegria,  essas  vo- 
zes;  e  elle  bem  sabia  que  sua  velha  e  desditosa  mãe  não  po- 
deria estar  alegre,  estando  elle  ausente. 

"Abriu-se  a  porta,  e  irrompeu  para  fora  um  bando  de 
creanças,  gritando  e  pulando. 

"O  pae  assomou  á  porta  com  um  pequenito  nos  braços,  e 
todos  se  agruparam  em  torno  d'elle,  dando  palmas  e  puxan- 
do-© para  fora,  para  vir  brincar  com  elles. 

"O  degredado  lembrou-se  de  que  vezes  sem  conto  elle  se 
sumira  das  vistas  da  pae,  n'aquelle  mesmo  sitio.  Recordou-se 
dos  centos  de  occasiões  em  que  escondera  debaixo  dos  len- 
çoes  a  cabecita  tremula,  ouvindo  as  injurias  e  as  violências 
do  pae  e  os  prantos  lamentosos  da  mãe. 

"Afastou-se  d'ali  a  soluçar,  mas  com  o  punho  convulsi- 
vamente fechado  e  os  dentes  cerrados,  n'um  accesso  de  raiva 
mortal. 

"E  tal  era  o  regresso  porque  anciára  durante  o  penar  de 
tantos  annos  e  pelo  qual  supportára  tantos  soffrimentos  ! 
Nem  uma  physionomia  amigável,  nem  um  olhar  de  perdão, 
nem  uma  casa  que  o  acolhesse,  nem  uma  só  mão  que  o  am- 
parasse!  e  tudo  isto  na  sua  aldeia  natal !  Comparado  a  este 
desamparo,  quão  pouco  era  o  que  soffrera  por  essas  flores- 
tas densas  -e  bravias,  onde  nem  um  ente  humano  surgia 
nunca ! 

"Percebeu  então  que  na  longínqua  região  do  captivciro  e 
da  infâmia,  elle  imaginara  a  terra  natal  como  quando  a  tinha 
deixado,  e  não  como  a  encontraria  á  volta.  A  fria  realidade 
pungiu-lhe  acerbamente  o  coração  e  tirou-lhe  o  animo.  Fal- 
lou-lhe  a  coragem  de  fazer  pesquizas  ou  de  se  apresentar  á 


DO  SR.   PICKWICK  97 

única  pessoa  que  poderia  naturalmente  recehel-o  com  aíTa- 
bilidade  e  compaixão. 

"Afastou-se  de  vagar;  fugindo  da  estrada  como  um  cri- 
minoso, penetrou  n'um  prado  de  que  se  lembrava  ainda;  e 
cobrindo  o  rosto  com  as  mãos,  atirou-se  para  cima  da 
relva. 

«Não  tinha  dado  por  um  homem  que  estava  sentado  no 
chão  ao  lado  d'elle,  e  que  se  voltou  para  elle  apenas  o  sen- 
tiu. 

«O  roçar  do  lato  fez  com  que  Edmunds  levantasse  a  ca- 
beça. 

«O  corpo  d'esse  homem  estava  curvado,  e  o  rosto  enru- 
gado e  amarello.  O  vestuário  assignalava-o  como  o  de  um 
internado  na  workhouse  '.  Parecia  velhíssimo,  mas  mais  pelo 
etfeito  da  devassidão  ou  da  doença,  do  que  pelo  peso  dos 
annos. 

"Fitou  no  recemvindo  um  olhar  pesado  e  baço,  mas  a 
breve  irecho  os  olhos  foram  adquirindo  um  brilho  anormal 
e  uma  expressão  de  terror,  até  parecerem  sahir  lhe  das  orbi 
tas.  Edmunds  ergueu-se  pouco  a  pouco  sobre  os  joelhos  e  fi- 
tou cada  vez  mais  anciosamente  o  rosto  do  velho.  Ambos 
se  encararam  persistentemente  em  silencio. 

«O  velho  estava  livido  como  um  cadáver.  Ergueu-se  a 
cambalear. 

«Edmunds  ergueu-se  também  e  adiantou-se,  ao  passo  que 
o  velho  recuava  um  ou  dois  passos. 

« — Deixe-me  ouvir-lhe  a  voz!  disse  o  degredado  em  voz 
entrecortada. 

« — Afasta-te !  bradou  o  velho  com  uma  praga  terrí- 
vel. 

«O  degredado  aproximou-se  mais. 

« — Afasta-te!  rugiu  o  velho. 

"Ergueu  o  cajado  e,  na  fúria  do  pavor,  bateu  violenta- 
mente no  rosto  de  Edmunds. 

" — Meu  pae  ! .  .  Demónio!  murmurou  o  degredado,  por 
entre  os  dentes  cerrados. 


'  Albergue. 


()8  AS   AVENTURAS 


"Arrojou-se  ferozmente  para  o  velho  e  apertou-lhe  com 
raiva  as  guelas;  mas  recordou-se  que  era  seu  pae,  e  o  braço 
pendeu-lhe  inerte. 

«O  velho  sohou  um  urro  medonho  que  echoou  pelos  cam- 
pos solitários  como  o  bramir  de  um  espirito  damninho. 

«Ennegreceu-se-lhe  o  rosto  :  da  bocca  e  do  nariz  jorrou- 
Ihe  o  sangue  que  tingiu  a  relva  de  rubro  escuro. 

«Vaciilou  e  cahiu. 

«Tinha-se-lhe  rompido  um  vaso  sanguíneo;  e  antes  que  o 
filho  o  levantasse  d'aquella  poça  lúgubre,  estava  morto. 


"N'um  recanto  do  cemitério,  concluiu  o  ecclesiastico  apoz 
um  silencio  de  momentos,  está  sepultado  um  homem  que 
esteve  a  meu  serviço  durante  os  três  annos  seguidos  ao  caso 
que  acabo  de  relatar. 

"Se  ha  homem  deveras  arrependido,  contricto  e  humi- 
lhado, era  esse. 

"Ninguém,  a  não  ser  eu,  soube  jamais  durante  a  vida 
d'elie  quem  era  e  d'onde  vinha  :  era  Edmunds,  o  ex-degre- 
dado. 


CAPITULO  VII 

De  como  o  sr.  Winkle,  em  vez  de  atirar  ao  pombo 
e  matar  a  gralha,  atirou  á  gralha  e  acertou  no 
pombo.  -  De  como  o  club  de  cricket  de  Dmgley 
Dell  jogou  contra  o  de  IWuggIeton  e  de  como 
Muggieton  jantou  á  custa  de  Dingiey  Dell. — 
Com  outr«as  matérias  interessantes  e  ínstru- 
ctivas. 


As  fatigantes  aventuras  d\iquelle  dia,  ou  a 'influencia  so- 
porifera  da  historia  do  vigário,  tão  poderosamente  operaram 
sobre  as  propensões  somnolentas  do  sr.  Pickwick,  que  me- 
nos de  cinco  minutos  depois  de  o  introduzirem  no  seu  con- 
fortável quarto,  cahiu  n'um  somno  tranquillo  e  sem  sonhos. 


DO  SR.  PICKWICK  00 


Só  o  despertou   o  sol  matutino,  invadindo  o  aposento  com 
os  seus  brilhantes  raios,  que  pareciam  censurar-lhe  a  pre- 

Ora  o  sr.  Pickwick  não  era  preguiçoso ;  á  similhança  de 
um  valoroso  guerreiro,  saltou  para  fora  da  tenda,  que  era  a 
armação  do  leito. 

—  Que  lindos,  que  lindos  sitiosi  suspirou  elle  enthusias- 
mado,  ao  abrir  as  persianas.  Quem  é  que  pôde  viver  a  olhar 
constantemente  para  telhas  e  ardósias,  depois  de  ter  expe- 
rimentado uma  vez  a  inlíuencia  de  um  panorama  d'estes  ^ 
Quem  pôde  teimar  em  existir  n'um  sitio  onde  não  ha  vac- 
cas,  senão  mortas  nos  talhos,  nem  plantas  a  não  ser  o  arroz 
dos  telhados,  nem  cousa  que  lembre  Pan  a  não  ser  as  panei- 
las  ?  ^  Quem  é  que  pôde  arrastar  a  vida  n'um  sitio  assim? 
Sempre  queria  que  me  dissessem,  quem  pôde  aturar  simi- 
Ihante  massada  ? 

E  tendo  prolixamente  interpellado  a  solidão,  á  imitação 
de  gloriosos  precedentes,  o  sr.  Pickwick  deitou  a  cabeça  fora 
da  janella  e  olhou  em  volta  de  si. 

Entrava-lhe  pelo  quarto  dentro  o  aroma  suave  e  pene- 
trante do  feno.  Os  mil  perfumes  do  jardim  embalsamavam  o 
ambiente. 

Os  prados  verde-escuros  brilhavam  com  o  orvalho  da  ma- 
nhã, o  qual  scintillava  em  cada  folhinha  agitada  pela  ara- 
gem ;  e  os  pássaros  cantavam  como  se  cada  uma  das  gotas 
tremeluzentes  fosse  para  elles  uma  fonte  de  inspiração. 

O  sr.  Pickwick  abstrahiu-se  n'um  enleio  suave  e  deli- 
cioso. 

—  Eh  I  lá  !  taes  foram  os  sons  que  o  despertaram  da  abs- 
tracção. 

Olhou  para  a  direita,  e  não  viu  ninguém  ;  lançou  a  vista 
para  a  esquerda,  interrogando  o  espaço  ;  fitou  os  olhos  no 
céo,  mas  ninguém  o  chamava  de  lá  ;  e  finalmente  fez  aquillo 
que  um  espirito  vulgar  teria  feito  logo  de  começo  — olhou 
para  o  jardim,  e  descobriu  lá  o  sr.  Wardle. 

—  Então  como  vae  isso  ?  interrogou  o  jovial  velhote,  ante- 


ímitação  libérrima  do  texto,  cheio  de  trocadilhos  intraduziveis, 


lOO  AS  AVENTURAS 


cipadamenie  alvoraçado  com  os  prazeres  que  o  esperavam. 
Que  bella  manhã,  hein  ?  Estimo  vel-o  a  pé  tão  cedo.  Avie- 
se,  desça  cá  abaixo,  para  sahir.  Eu  aqui  o  espero. 

Não  foi  preciso  segundo  convite.  Dez  minutos  bastaram 
para  que  o  sr.  PickAvick  completasse  a  sua  toilette,  e  ao  ex- 
pirar este  praso  estava  elle  ao  lado  do  dono  da  casa. 

—  Olé !  disse  o  sr.  Pickwirk  vendo  o  companheiro  ar- 
mado de  uma  espingarda  e  outra  prestes  em  cima  da  relva. 
Que  novidade  é  esta? 

—  Ora  essa  1  é  o  seu  amigo  e  mais  eu  que  vamos  á  caça 
das  gralhas  antes  do  almoço.  Elle  é  um  bello  atirador, 
não  é  ? 

—  Eu  cá  tenho-lhe  ouvido  dizer  que  é  de  primeira  ordem, 
replicou  o  sr.  Pickwick,  mas  eu  ainda  não  o  vi  apontar  fosse 
para  o  que  fosse. 

—  Bem  !  disse  o  sr.  Wardle,  o  que  eu  queria  era  que  elle 
não  se  demorasse.  Joe  —  Joe  ! 

O  rapazote  gordo  emergiu  da  casa.  Sob  a  influencia  exci- 
tante da  manhã,  pouco  mais  estaria  adormecido  do  que  três 
quartos  e  t.^^nto. 

—  Sobe  lá  acima,  e  chama  esse  senhor,  e  dize-lhe  que  nos 
venha  encontrar  a  nós  dois  no  bosque.  Ensina-lhe  o  caminho 
até  lá,  ouviste  ? 

O  rapazote  foi  cumprir  a  ordem;  e  o  sr.  Wardle,  carre- 
gado com  as  duas  espingardas  como  um  Robinson  Crusoe, 
guiou  o  sr.  Pickwick  na  sabida  do  jardim. 

—  E'  este  o  sitio,  disse  o  velhote  parando  depois  de  al- 
guns minutos  de  caminho,  n'uma  avenida  de  arvores. 

Era  escusado  o  aviso;  porque  o  grasnido  continuo  das 
innocentes  gralhas  lhes  indicava  de  sobra  o  paradeiro. 

O  sr.  Wardle  pousou  no  chão  uma  das  espingardas  e  car- 
regou a  outra. 

—  Ahi  vêem  eiles  !  disse  o  sr.  Pickwick,  apenas  surgiram 
a  distancia  os  vultos  dos  srs.  Tupman,  Snodgrass  e  Winkle, 
visto  que  o  gordo  Joe,  não  sabendo  ao  certo  qual  dos  cava- 
lheiros deveria  chamar,  tinha-se  valido  da  sua  sagacidade 
habitual  e,  para  evitar  enganos,  tinha-os  chamado  a  todos 
três. 

—  Venha  depressa!  bradou  o  velhote,  dirigindo-se  ao  sr. 
Winkle ;  um  atirador  de  mão  cheia  como  o  meu  amigo  ha 


DO  SR.  PICKWICK  lOI 


muito  que  deveria  estar  a  postos,  mesmo  para  um  exercício 
insignificante  como  este. 

O  sr.  Winkle  respondeu  por  um  sorriso  forçado  e  levan- 
tou a  espingarda  que  lhe  fora  destinada,  com  a  expressão 
physionomica  que,  por  hypothese,  assumiria  uma  gralha  me- 
taphysica,  presentindo  a  imminencia  de  morte  violenta. 

l^ode  ser  que  isto  fosse  alvoroço,  mas  parecia-se  prodigio- 
samente com  angustia. 

O  velhote  fez"um  signal ;  e  dois  garotos  esfarrapados,  que 
estavam  ali  postados  sob  a  direcção  de  um  outro  pequeno, 
começaram  logo  a  trepar  a  duas  das  arvores. 

—  Para  que  são  precisos  os  garotos  ^  perguntou  o  sr.  Pick- 
wick. 

Estava  um  pouco  assustado;  porque  lhe  occorreu,  em 
vista  da  muito  fallada  miséria  agricola,  que  os  pequenos  se 
vissem  obrigados  a  ganhar  uma  subsistência  arriscada  e  pre- 
cária, oíferencendo-se  para  alvos  dos  caçadores  inexperien- 
tes. 

—  E'  só  para  espantar  a  caça,  replicou  rindo  o  sr.  War- 
dle. 

—  Para  quê  ?  perguntou  rindo  o  sr.  Pickwick. 

—  Para  sacudir  d'ali  as  gralhas. 

—  Ah  !  isso  sim  ! 

—  Está  descançado  ? 

—  Completamente. 

—  Bello  !  Posso  começar  ? 

—  Faz  favor,  disse  o  sr.  Winkle,  alluviado  com  a  demora. 

—  Então  afaste-se  para  o  lado.  Agora,  vamos  a  isto ! 

O  garoto  gritou,  sacudindo  um  ramo  onde  havia  um  ni- 
nho. 

Meia  dúzia  de  gralhitas,  empenhadas  em  acceso  dialogo, 
soltaram  o  vòo  para  saber  de  que  se  tratava. 

O  velhote  fez  fogo,  em  guisa  de  replica.  Cahiu  uma  das 
aves,  e  as  outras  safaram-se. 

—  Vae  apanhal-a,  Joe,  disse  o  sr.  Wardle. 

O  rapazote  gordo  adiantou-se,  com  um  sorriso  a  illumi- 
nar-lhe  o  rosto. 

Pela  sua  imaginação  fluctuavam  indistinctas  visões  de 
pastelões  de  gralhas.  Desatou  a  rir  quando  apanhou  a  ave, 
porque  a  achou  nédia  a  valer. 


102  AS   AVENTURAS 


—  Agora  é  o  amigo  Winkle,  disse  o  dono  da  casa,  tor- 
nando a  carregar  a  sua  arma.  Vá  !  fogo  ! 

O  sr.  Winkle  adianiou-se,  e  assestou  a  espingarda.  O  sr, 
Plckwick  e  os  seus  amigos  recuaram  instinctivamente,  a  fim 
de  evitar  o  damno  causado  pela  chuva  cerrada  de  gralhas 
que  elles  estavam  certos  devia  occasionar  o  chumbo  devas- 
tador do  amigo. 

Houve  uma  pausa  solemne  —  um  grito  —  um  bater  de  azas 
—  um  débil  tinido. 

—  Que  é  isso  ^  disse  o  velhote. 

—  Não  quer  fazer  fogo  ?  perguntou  o  sr.  Pickwick. 

—  Falhou,  disse  o  sr.  Winkle,  que  estava  muito  pallido, 
provavelmente  de  desapontamento. 

—  E'  exquisito,  disse  o  velho  agarrando  na  arma.  Nunca 
tal  succedeu  a  nenhuma  d'ellas.  Espere,  eu  não  vejo  os  res- 
tos da  capsula. 

—  Oi;a,  valha-me  Deus !  disse  o  sr.  Winkle,  confesso  que 
me  esqueci  da  capsula. 

Remediou-se  a  le^^e  omissão.  O  sr.  Pickwick  agachou-se 
outra  vez.  O  sr.  Winkle  deu  uns  passos  em  frente  com  ar  de- 
terminado e  resoluto ;  e  o  sr.  Tupman  ficou  a  espreitar  por 
traz  de  uma  arvore. 

O  garoto  deu  um  grito;  —  desprenderam  o  voo  quatro 
aves.  o  sr.  W^inkle  disparou. 

Õuviu-se  um  berro  de  angustia  soltado  por  um  ente  vivo, 
que  não  era  uma  gralha. 

O  sr.  Tupman  salvara  as  vidas  de  innumeras  aves  inoífen- 
sivas,  recebendo  no  braço  esquerdo  uma  parte  da  carga. 

Impossível  fora  descrever  a  confusão  que  se  seguiu.  Di- 
zer como  o  sr.  Pickwick  nos  primeiros  arrancos  da  sua  com- 
moção  chamou  «Miserável!»  ao  sr.  Winkle ;  como  o  sr.  Tup- 
man jazia  prostrado  na  terra;  e  como  o  sr.  Winkle  ajoelhou 
ao  lado  d'elle,  horrorisado ;  como  o  sr.  Tupman,  tresvariado, 
pronunciou  vários  nomes  femininos,  e  em  seguida  abriu  pri- 
meiro um  dos  olhos,  e  depois  o  outro,  e  depois  cahiu  para 
traz  e  fechou  ambos ;  tudo  isto  seria  tão  difficil  de  descrever 
por  miúdos,  como  o  seria  pintar  o  restabelecimento  gradual 
do  infeliz,  o  ligar  do  braço  com  lenços,  o  transportal-o  para 
casa,  muito  de  vagar,  pelo  braço  dos  seus  anciosos  amigos. 

Quando  se  aproximaram  de  casa,  estavam  as  senhoras  á 


DO  SR.   PICKWICK  I03 


porta  do  jardim,  á. espera  da  chegada  d'elles  e  do  almoço,  A 
tia  solteirona  lá  estava,  a  sorrir  e  a  recommendar-lhes  que 
viessem  mais  depressa. 

Era  evidente  que  nada  sabia  do  desastre. 

Coitada  I  Occasióes  ha  em  que  a  ignorância  é  deveras  a 
beatitude ! 

Cada  vez  estavam  mais  próximos. 

—  Ora  esta!  o  que  é  que  aconteceu  ao  sujeito  idoso  I 
disse  Isabella  Wardle. 

A  tia  solteirona  não  deu  attenção  ao  reparo;  suppôl-o 
applicado  ao  sr.  Pickwick. 

Aos  olhos  d'ella,  Tracy  Tupman  era  um  rapaz  :  obser- 
vava-lhe  os  annos  atravez  de  um  óculo  de  diminuir. 

—  Não  se  assustem,  bradou  o  dono  da  casa  ás  filhas. 

O  pequeno  grupo  havia- se  agglomerado  de  tal  maneira  em 
volta  do  sr.  Tupman,  que  ellas  não  podiam  ainda  perceber 
claramente  a  natureza  do  successo. 

—  Não  se  assustem,  repetiu  o  sr.  Wardle. 

—  Mas  o  que  foi?  gritaram  as  senhoras. 

—  Foi  um  accidente  insignificante  que  succedeu  ao  sr. 
Tupman ;  mais  nada. 

A  tia  solteirona  soltou  um  grito  estridente,  desatou  ás  ri- 
sadas hystericas,  e  cahiu  para  traz  nos  braços  das  sobri- 
nhas. 

—  Deitem-lhe  agua  fria  para  cima,  disse  o  sr.  Wardle. 

—  Não,  não!  murmurou  a  tia,  já  estou  melhor.  Bella, 
Emily  —  um  medico  !  Elle  está  ferido  ?  —  Está  morto  ?  — 
Está  —  ah  !  ah  !  ah  ! 

E  a  solteirona  recahiu  no  ataque  numero  dois,  de  riso 
hysterico  entrecortado  com  guinchos. 

—  Socegue,  disse  o  sr.  Tupman,  commovido  quasi  até  ás 
lagrimas  por  esta  expressão  de  svmpathia  pplos  seus  soffri- 
mentos.  Minha  querida  senhora,  tranquillise-se. 

—  E'  a  voz  d'elle !  exclamou  a  solteirona,  com  manifesta- 
ções symptomaticas  do  ataque  numero  três. 

—  Não  se  afflija,  supplico-lhe,  minha  presada  senhora, 
disse  meigamente  o  sr.  Tupman,  A  ferida  é  insignificante, 
certifico-lhe  eu. 

—  Então  não  está  morto  ?  ejaculou  a  hvsterica  dnma.  Oh  ! 
diga-me  que  não  está  morto  ! 


04  AS  AVENTURAS 


—  Não  estejas  com  maluquices,  Rachel!  atalhou  o  sr. 
Wardle,  um  pouco  mais  asperamente  do  que  parecia  ade- 
quado ao  caracter  poético  da  scena.  Que  diabo  de  precisão 
tem  elle  de  dizer  que  não  está  morto  ! 

—  Não  estou,  não!  disse  o  sr.  Tupman.  Não  requisito  ou- 
tros soccorros,  a  não  serem  os  seus,  minha  senhora.  Per- 
mitia-me  que  me  apoie  no  seu  braço. 

E  acrescentou  em  voz  ciciante  : 

—  Oh  !  miss  Rachel ! 

A  sensivel  dama  adiantou-se  e  offereceu-lhe  o  braço. 
Entraram  na  sala.  O  sr.  Tracy  Tupman  comprimiu  doce- 
mente a  mão  d'ella  de  encontro  aos  lábios,  e  deixou-se  cahir 
no  sophá. 

—  Sente -se  mal  ?  perguntou  a  anciosa  Rachel. 

—  Não  I  Isto  não  vaie  de  nada.  D'aqui  a  pouco  estarei 
Aielhor,  disse  o  sr.  Tupman  fechando  os  olhos. 

—  Está  a  dormir,  murmurou  a  solteirona,  passados  uns 
vinte  segundos  depois  que  elle  cerrara  os  órgãos  da  visão. 
Querido  —  querido  sr.  Tupman. 

O  sr.  Tupman  poz-se  em  pé  n'um  pulo. 

—  Ah !  Repita  essas  palavras  !  exclamou  elle. 
A  dama  teve  um  sobresalto. 

—  Com  certeza  que  as  não  ouviu,  disse  ella  pudicamente. 

—  Oh  I  se  ouvi !  replicou  o  sr.  Tupman.  Repita.  Se  me 
quer  vèr  bom  de  todo,  repita. 

—  Silencio  I  disse  ella.  Olhe  o  meu  irmão  I 

O  sr.  Tracy  Tupman  voltou  á  posição  primitiva ;  e  o  sr. 
Wardle  entrou   no  aposenio,  ^companhado  por  um  cirur- 

Examinou-se  o  braço,  pensou-se  a  íerida,  declarou-se  a 
insignificância  d'ella ;  e,  satisfeitos  por  esta  forma  os  espíri- 
tos dos  assistentes,  estes  trataram  de  satisfazer  também  os 
appetites,  com  semblantes  que  reassumiam  a  expressão  de 
contentamento. 

Só  o  sr.  Pickwick  permanecia  silencioso  e  reservado.  Ne 
seu  rosto  manifestavam-se  a  duvida  e  a  suspeita.  A  sua  con- 
fiança no  sr.  Winkle  fora  abalada  —  consideravelmente  aba- 
lada—  pelos  successos  d'aquella  manhã. 

—  O  amigo  é  jogador  de  cricket  ?  perguntou  o  sr.  Wardle 
ao  atirador. 


DO  SR.   PICKWICK  lOD 


Em  qualquer  outra  conjunctura,  o  sr.  Winkle  teria  res- 
pondido affirmativamente.  Mas  sentiu  a  delicadeza  da  sua 
posição,  e  respondeu  com  modéstia  que  não. 

—  E  o  senhor?  perguntou  o  sr.  Snodgrnss. 

—  Eu  já  fui  jogador,  replicou  o  dono  da  casa,  mas  agora 
deixei-me  d'isso.  Sou  sócio  do  club,  mas  não  jogo. 

—  Hoje  é  que  se  joga  a  grande  partida,  supponho  eu, 
disse  o  sr.  Pickwick. 

—  E'  hoje,  retorquiu  o  sr.  Wardle.  Os  amigos  com  cer- 
teza hão  de  gostar  de  assistir  a  ella. 

—  Pela  minha  parte,  respondeu  o  sr.  Pickwick,  encanta- 
me  o  presencear  exercícios  que  se  podem  emprehender  com 
segurança  e  nos  quaes  a  intervenção  dos  desastrados  não 
ponha  em  risco  a  vida  humana. 

O  sr.  Pickwick  calou -se,  e  olhou  fixamente  para  o  sr. 
Winkle,  o  qual  se  sentiu  abatido  sob  o  olhar  penetrante  do 
seu  chefe. 

O  grande  homem  desviou  a  vista  depois  de  alguns  mi- 
nutos, e  acrescentou  : 

—  Não  faremos  bem  se  deixarmos  o  nosso  amigo  ferido 
ao  cuidado  das  senhoras  í 

—  Não  podem  deixar-me  em  melhores  mãos,  disse  o  sr. 
Tupman. 

—  Seria  impossivel,  acrescentou  o  sr.  Snodgrass. 
Combinou-se  portanto  que  o  sr.  Tupman  ficasse  em  casa 

entregue  ás  senhoras ;  e  que  os  restantes  hospedes,  sob  a  di- 
recção do  sr.  Wardle,  se  encaminhassem  para  o  sitio  onde 
se  devia  realisar  aquelle  certamen  de  destreza,  que  arrancara 
Muggleton  inteiro  do  seu  torpor  e  inoculara  em  Dingley  Dell 
uma  febre  de  enthusiasmo. 

A  distancia  não  era  superior  a  duas  milhas,  por  azinhagas 
cheias  de  sombra  e  atalhos  apartados. 

E  como  a  conversação  girava  sobre  o  delicioso  panorama 
que  os  cercava  por  todos  os  lados,  o  sr.  Pickwick  quasi  que 
estava  já  com  pena  de  que  fosse  aquelle  o  seu  destino,  quando 
se  achou  na  rua  principal  de  Muggleton. 

Toda  a  gente,  cujo  engenho  possue  uma  propensão  para 
a  topographia,  sabe  muitissimo  bem  que  Muggleton  é  mu 


00  AS  AVENTURAS 


município  *,  com  um  ?}iaire  -^  burguezes  e  eleitores  3 ;  e 
quem  quer  que  haja  consultado  as  mensagens  do  maire  aos 
eleitores  ou  dos  eleitores  ao  maire,  ou  de  uns  e  outros  á  mu- 
nicipalidade, ou  das  três  entidades  ao  Parlamento,  n'ellas 
aprenderá  o  que  devera  já  saber,  isto  é,  que  Muggleton  é  um 
antigo  e  leal  burgo,  combinando  a  zelosa  defeza  dos  princí- 
pios christcãos  com  uma  firme  dedicação  aos  direitos  do  com- 
mercio. 

E  para  prova,  o  maire,  a  municipalidade  e  outros  habi- 
tantes teem  por  vezes  apresentado  não  menos  de  mil  e  qua- 
trocentas e  vinte  petições,  contra  a  continuação  da  escrava- 
tura Jiegra  lá  fora,  e  outras  tantas  contra  qualquer  interferên- 
cia no  systema  mercantil  dentro  do  paiz  ;  sessenta  e  oito  para 
que  se  permitia  a  venda  de  benefícios  ecclesiasticos,  e  oitenta 
e  seis  para  abolir  o  trafico  nas  ruas  ao  domingo. 

O  sr.  Pickwick,  quando  se  viu  na  rua  principal  d'este  il- 
lustre  burgo,  examinou  todos  os  objectos  em  volta  de  si,  com 
uma  curiosidade  não  isenta  de  interesse. 

A  praça  do  mercado  era  quadrangular  e  aberta ;  no  cen- 
tro d'ella,  uma  grande  estalagem  com  uma  taboleta  na  fron- 
laria,  ostentando  um  objecto  muito  commum  na  arte,  mas 
raras  vezes  encontrado  na  natureza,  isto  é,  um  leão  azul  com 
três  pernas  tortas  no  ar,  balouçando-se  sobre  a  ponta  da 
garra  central  da  quarta  pata. 

Ao  alcance  da  vista  percebiam  se  uma  agencia  de  leilões 
e  de  seguros  contra  incêndio,  um  celleiro,  um  mercador,  um 
albardeiro,  um  distillador,  um  confeiteiro  e  um  sapateiro, 
sendo  esta  ultima  loja  também  apropriada  para  a  diífusao  de 
chapéus,  bonnets,  fatos,  guard^-chuvas  de  algodão  e  conhe- 
cimentos úteis. 

Havia  uma  casa  de  tijolo  vermelho,  com  um  pequeno  pa- 
teo  empedrado  na  frente,  a  qual  toda  a  gente  perceberia  per- 
tencer ao  delegado  régio  ''' ;  e  havia  além  d'isso  uma  outra 
casa  de  tijolo  vermelho,  com  taboinhas  á  veneziana,  e  uma 


Corporaíe  towii. 
Mayor. 
Freemen. 
Atíoniey. 


no  SR.  picKWicK  107 


enorme  chapa  de  cobre  na  porta,  annunciando  de  forma  bem 
legível  que  a  casa  pertencia  ao  cirurgião. 

Encaminhavam-se  alguns  rapazes  para  o  campo  do  cri- 
cket;  e  dois  ou  três  legistas,  de  pé  ás  respectivas  portas,  es- 
tavam com  cara  de  quem  desejaria  tomar  o  mesmo  caminho, 
o  que,  segundo  todas  as  apparencias,  poderiam  fazer  sem  per- 
derem por  isso  uma  grande  freguezia. 

O  sr.  Pickwick  parara  para  fazer  estas  observações,  afim 
de  tomar  nota  d'ellas  quando  conviesse;  apressou-se  a  reu- 
nir-se  aos  seus  amigos,  os  quaes  tinham  sahido  da  rua  prin- 
cipal, e  já  estavam  á  vista  do  campo  de  batalha. 

Estavam  collocadas  nos  seus  logares  as  estacadas  parao  jogo 
assim  como  umas  duas  barracas  para  descanço  e  refresco  dos 
partidos  contendores. 

Ainda  não  começara  o  jogo. 

Dois  ou  três  jogadores  de  Dingley-Dell  e  de  Muggleton 
divertiam-se  com  ar  magestoso  a  atirar  negligentemente  a 
bola  de  mão  a  mão ;  e  vários  outros  cavalheiros  vestidos  co- 
mo elles,  de  chapéos  de  palha,  jaquetas  de  íianella  e  calças 
brancas  —  o  que  lhes  dava  uma  certa  apparencia  de  pedrei- 
ros amadores  —  estavam  disseminados  á  roda  das  tendas,  para 
uma  das  quaes  o  sr.  Wardle  conduziu  o  seu  grupo. 

Algumas  dúzias  de  «Como  passou  ?«  acolheram  a  chegada 
do  velhote ;  e  um  levantar  geral  dos  chapéos  de  palha  e  uma 
inclinação  uniforme  das  jaquetas  de  tlanella  seguiu  a  apre- 
sentação dos  seus  hospedes,  como  cavalheiros  londrinos,  ex- 
tremamente cubiçosos  de  presenciar  as  diversões  do  dia,  que 
sem  duvida  alguma  lhes  dariam  extraordinário  prazer. 

—  E'  melhor  vir  para  dentro  da  barraca,  disse  um  sujeito 
muito  corpulento,  cujos  corpo  e  pernas  se  assimilhavam  a 
metade  de  uma  peça  gigantesca  de  flanella, 'pousada  em  cima 
de  um  par  de  travesseiros  inchados. 

—  Fica  lá  muito  melhor,  acudiu  outro  sujeito  corpulento, 
que  parecia  mesmo  a  outra  metade  da  peça  de  flanella  su- 
pracitada. 

—  Que  bondade  a  sua !  disse  o  sr.  Pickwick. 

—  Por  aqui,  disse  o  primeiro  sujeito,  aqui  é  que  se  faz 
marcação,  é  o  melhor  sitio  de  todo  o  campo. 

E  o  jogador  de  cricket  guiou-os  para  a  tenda,  esfogueteadó 
e  ottegante. 


I08  AS   AVENTURAS 


— Soberbo  jogo  —  vivificante  diversão  —  bello  exercício 
—  bellissimo! 

Taes  foram  as  palavras  que  cahiram  nos  ouvidos  do  sr. 
Pickwick  apenas  elle  penetrou  na  tenda;  e  o  primeiro  obje- 
cto que  se  deparou  a  seus  olhos  foi  o  seu  amigo  da  casaca 
verde,  da  diligencia  de  Rochester,  arengando  para  deleite  e 
edificação  de  um  circulo  selecto  de  jogadoies  eleitos  de  Mug- 
gleton/ 

O  seu  vestuário  estava  ligeiramente  melhorado.  Tinha  bo- 
tas novas,  mas  não  havia  meio  de  o  não  reconhecer  desde 

O  sujeito  reconheceu  immediatamente  os  seus  amigos;  e, 
atirando-se  para  a  frente  e  agarrando  a  mão  do  sr.  Pickwick, 
ferrou  com  elle  em  cima  de  um  banco,  com  a  sua  impetuo- 
sidade habitual,  fallando  sempre  pelos  cotovellos,  como  se 
todos  os  arranjos  estivessem  sob  o  seu  patrocinio  e  a  sua  di- 
recção especial. 

—  Por  aqui  —  por  aqui  —  bello  pagode  —  uma  data  de 
cerveja  —  barris  á  ufa  ;  carne  de  vacca  a  rodo  ;  mostarda  — 
carregações  d'ella;  dia  magnifico  —  sente-se  —  faça  de  conta 
que  está  na  sua  casa  —  estimo  vêl-o  —  estimo  immenso. 

O  sr.  Pickwick  sentou-se  conforme  lhe  ordenavam,  e  os 
srs.  Winkle  e  Snodgrass  accederam  também  ás  indicações  do 
seu  mysterioso  amigo.  O  sr.  Wardle  examinava-o  com  silen- 
cioso espanto. 

—  O  sr.  Wardle  —  um  amigo  meu,  disse  o  sr.  Pickwick. 

—  Seu  amigo !  —  Meu  caro  senhor,  como  vae  isso  .''  — 
Amigo  do  meu  amigo. . .  — Dê  cá  a  sua  mão. 

E  o  sujeito  agarrou  na  mão  do  sr.  Wardle  com  todo  o 
fervor  de  uma  intimidade  de  muitos  annos  ;  depois  recuou  um 
ou  dois  passos  co'mo  para  lhe  exammar  bem  a  cara  e  a  figura, 
e  depois  apertou-lhe  outra  vez  a  mão  com  mais  fervor,  se  é 
possivcl,  do  que  da  primeira  vez. 

—  Então,  como  veiu  aqui  parar?  disse  o  sr.  Pickwick 
com  um  sorriso  em  que  a  benevolência  lutou  com  a  sur- 
preza. 

—  Parar?  replicou  o  sujeito,  —  alojado  na  Coroa  —  esta- 
lagem em  Muggleton  —  Encontro  um  rancho  —  jaquetas  de 
flanella  —  calças  brancas  —  sandwiches  de  enxovas  —  rins 
grelhados  —  uns  patuscos  de  mão  çhçia  —  magnifico, 


DO  SR.  prcKWiciv  109 


o  sr.  Pick\vick  estava  suíTicientemente  versado  no  systema 
stenographico  do  sujeito  para  inferir  d'esta  rápida  e  descon- 
nexa  communicação  que,  fosse  como  fosse,  elle  conirahira 
relações  com  a  gente  de  Muggleton,  as  quaes  elle  transfor- 
mará, por  um  processo  que  lhe  era  peculiar,  numa  estreita 
camaradagem  que  facilmente  explica  um  convite  geral. 

Satisfeita  assim  a  sua  curiosidade,  o  sr.  Pickwick  poz  os 
óculos  e  aprestou-se  para  observar  o  espectáculo  que  estava 
a  começar. 

O  primeiro  lanço  pertencia  aos  de  Muggleton ;  e  o  inte- 
resse recresceu  quando  os  srs.  Dumkins  e  Podder,  dois  dos 
mais  conspicuos  membros  d'aquelle  distinctissimo  club,  se 
dirigiram,  com  as  maças  na  mão,  para  as  suas  respectivas  es- 
tacas. 

O  sr.  Luffey,  o  mais  alto  ornamento  de  Dingley-Dell,  era 
o  indicado  para  atirar  a  bola  contra  o  temível  Dumkins,  e  o 
sr.  Struggles  era  o  eleito  para  desempenhar  o  mesmo  affa- 
vel  serviço  contra  o  até  então  invicto  Podder. 

Vários  jogadores  estavam  postados  como  olheiros  em  dif- 
ferentes  partes  do  campo,  e  cada  um  d'elles  estava  firme  na 
attitude  conveniente,  com  uma  mão  sobre  cada  um  dos  joe- 
lhos, e  todo  curvado  para  a  frente,  como  se  estivesse  oftere 
cendo  o  dorso  a  algum  saltador  do  eixo  principiante.  Todos 
os  jogadores  clássicos  assim  fazem ;  é  que  se  suppóe  geral- 
mente que  é  de  todo  impossível  vigiar  as  bolas  em  qualquer 
outra  posição. 

Os  árbitros  estavam  collocados  atraz  das  estacadas ;  os 
marcadores  prepararam-se  para  contar  os  pontos ;  fez-se  um 
silencio  profundíssimo. 

O  sr.  Luffey  retirou-se  alguns  passos  para  traz  da  estacada 
do  impassível  Podder,  e  durante  alguns  segundos  applicou  a 
bola  ao  olho  direito.  Dumkins  aguardava  confiadamente  a 
bola,  com  os  olhos  fixos  nos  movmientos  de  Luffey. 

—  Attenção,  bradou  de  repente  o  jogador. 

E  a  bola  escapou-se-lhe  da  mão,  rápida  e  certeira  para  o 
poste  central  da  estacada. 

O  circumspecto  Dumkins  estava  alerta ;  recebeu  a  bola 
na  ponta  da  sua  vara  e  atirou  com  ella  para  longe  por  cima 
das  cabeças  dos  olheiros,  que  estavam  bastante  curvados  para 
a  deixar  passar. 


AS  AVENTURAS 


—  Corram  1  corram  !  —  outra.  —  Agora,  vá,  atire-a  —  força 
com  ella  —  tope  ahi — outra  —  não  —  sim  —  não  —  atire-a, 
atire-a. 

Taes  eram  os  clamores  que  seguiram  o  lanço ;  e,  findo 
este,  Muggletton  tinha  ganho  dois  pontos.  Mas  Podder  não 
se  atrasava  em  ganhar  lauréis  para  se  enfeitar  a  si  e  a  Mug- 
gleton. 

Sustinha  as  bolas  duvidosas,  deixava  passar  as  más,  apa- 
nhava as  boas  e  fazia-as  voar  para  todos  os  lados  do  campo. 
Os  olheiros  estavam  afogueados  e  fatigadíssimos ;  os  jogado- 
res foram  rendidos  e  atiraram  bolas  até  os  braços  lhes  doe- 
rem";  mas  Dumkins  e  Podder  permaneceram  inveuciveis.  Se 
por  acaso  um  cavalheiro  idoso  procurava  deter  a  bola  na  sua 
carreira,  ella  rebolava-lhe  por  entre  os  pés  ou  escorregava- 
Ihe  entre  os  dedos. 

Se  um  cavalheiro  magrizella  tentava  apanhal-a,  ella  batia- 
Ihe  nas  ventas  e  ia  por  ali  fora  a  saltar  alegremente  com  dupli- 
cada violência,  em  quanto  os  olhos  do  cavalheiro  magrizella 
se  arrasavam  de  agua  e  o  corpo  se  lhe  estorcia  com  dores. 
Quando  a  bola  ia  direita  á  estacada,  Dumkins  já  tinha  lá  che- 
gado antes  d'ella. 

Em  summa,  feitas  as  contas,  Muggleton  marcara  uns  cin- 
coenta  e  quatro  pontos,  ao  passo  que  o  registo  dos  de  Din- 
gley  Dell  estava  tão  branco  como  as  caras  d'elles.  A  vanta- 
gem era  grande  de  mais  para  ser  compensada. 

Debalde  o  impetuoso  Lutfey,  mais  o  enthusiastico  Strug- 
gles,  pozeram  em  pratica  todos  os  recursos  da  destreza  e  da 
experiência,  para  reconquistar  o  terreno  que  Dingley  Dell 
perdera  no  certamen ;  foi  tudo  inútil;  e  Dingley  Dell  viu-se 
obrigado  a  cedt^r  e  a  confessar  a  superioridade  de  Muggle- 
ton. 

Entrementes,  o  homem  da  casaca  verde  entretivera-se  a 
comer,  a  beber  e  a  tagarellar,  sem  descanço. 

A  cada  lanço  bem  jogado,  elle  exprimia  a  sua  satisfação 
e  applauso  de  uma  forma  condescendente  e  protectora,  que 
não  podia  deixar  de  ser  altamente  grata  ao  jogador  interes- 
sado. 

Mas  também,  de  cada  vez  que  falhava  uma  bola,  elle 
explodia  o  seu  descontentamento  pessoal  contra  o  desastra- 
do, em  exclamações  como  estas  :  —  « Ah  !   ah  !   estúpido  !  •>  — ^^ 


DO  SR.   PICKWICK  1  I  I 


«Safa!    dedos  de   manteiga!» — «Ceboloriol»  —  «-Peixote!» 
e  assim  por  diante. 

Estas  exclamações  pareciam  eleval-o  aos  olhos  dos  cir- 
cumstantes,  como  um  juiz  excellente  e  infallivel  em  todos  os 
artifícios  e  mysterios  do  nobre  jogo  do  cricket. 

—  Magnifica  partida-  bem  jogada  —  alguns  lanços  admi- 
ráveis, disse  elle  no  fim  do  jogo,  quando  os  dois  partidos  se 
agglomeravam  na  barraca. 

—  Tem  jogado  muito,  o  senhor?  perguntou  o  sr.  War- 
dle,  que  se  tinha  divertido  muito  com  a  sua  loquacidade. 

—  Jogado  !  se  tenho  —  milhares  de  vezes  —  não  aqui  — 
nas  índias  Occidentaes  —  jogo  excitante  —  quente  —  quente 
deveras. 

—  Sim  !  deve  ser  um  bocadinho  quente  n'um  clima  d'es- 
ses,  observou  o  sr.  Pickwick. 

—  Quente?  —  de  escaldar  —  de  tisnar  —  de  queimar.  Jo- 
guei uma  vez  uma  partida  —  uma  estacada  só  —  meu  amigo  o 
coronel  —  Sir  Thomas  Blazo  —  quem  faria  mais  pontos. — 
Tirou  se  á  sorte  quem  abriria  o  jogo  —  ganhei  eu  — sete  ho- 
ras da  manhã  — seis  indígenas  para  apanhar  as  bolas  —  co- 
meço—  calor  de  rachar — todos  os  indígenas  desmaiados  — 
levam-os  —  vem  outra  meia  dúzia  —  desmaiam  também  — 
Blazo  a  joga»*,  aguentado  por  dois  indígenas  —  não  tirava 
partido  comigo  —  desmaia  também  — levam  o  em  braços — • 
eu  continuo  —  Um  servo  fiel  —  Quanko-Samba  —  único  que 
ficou  —  Um  sol  de  tremer,  a  vara  encheu-se  de  bolhas,  a  bola 
escaldava  —  quinhentos  e  setenta  pomos  —  um  tudo  nada  fa- 
tigado—  Quanko  invoca  os  últimos  restos  de  força  —  apa- 
nha-me  a  estacada  em  cheio  —  eu  fui  tomar  banho,  e  depois 
jantar. 

—  E  o  que  foi  feito  d'esse  senhor  não  sei  quê?  perguntou 
um  velhote. 

—  Blazo  ? 

—  Nada  —  o  outro  cavalheiro  ? 

—  Quanko  Samba  ? 

—  Exacto  ! 

—  Pobre  Quanko!  —  nunca  se  restabeleceu  —  perdeu  o 
jogo,  por  minha  culpa  —  perdeu  a  vida  por  culpa  d'elle  —  es- 
ticou, meu  caro  senhor. 

Aqui  o  sujeito  emergiu  a  cara  n'uma  caneca  de  cerveja, 


112  AS  AVENTURAS 


não  se  sabe  bem  se  para  occuhar  a  commoção,  se  para  lhe 
engulir  o  conteúdo. 

Apenas  nos  consta  que  elle  se  deteve  de  súbito,  soltou  um 
suspiro  prolongado  o  profundo,  e  fitou  um  olhar  curioso  so- 
bre dois  dos  principaes  membros  do  club  de  Dingley  Dell, 
que  se  aproximavam  do  sr.  Pickwick,  dizendo-lhe : 

—  Vamos  todos  agora  jantar  modestamente  ao  Leão  A^ul. 
Espero  que  o  senhor  mais  os  seus  amigos  nos  farão  com- 
panhia. 

—  E'  claro,  disse  o  sr.  Wardle,  que  entre  os  nossos  ami- 
gos nós  incluímos  o  senhor.  .  . 

E  virou-se  para  o  desconhecido. 

—  Jingle,  disse  o  versátil  sujeito,  pegando  na  deixa  sem 
demora,  Jingle  —  Alfred  Jingle,  Esq.,  do  Castello  de  Vento, 
em  Nenhures. 

—  Aceito  com  o  maior  prazer,  disse  o  sr.  Pickwick. 

—  Também  eu,  disse  o  sr.  Alfred  Jingle,  enfiando  um  braço 
no  do  sr.  Pickwick  e  outro  no  do  sr.  Wardle,  e  segredando 
confidencialmente  ao  ouvido  do  primeiro  d'estes  cavalhei- 
ros : 

—  Um  jantar  de  estalo  —  frio,  mas  soberbo  —  espreitei 
estd  manhã  para  dentro  da  sala  —  aves,  e  pasteis,  e  o  mais 
quese  segue —grandes  patuscos, estes  —  e  muito  bem  educa- 
dos—  mesmo  muito. 

Como  não  houvesse  mais  preliminares  a  arranjar,  a  socie- 
dade atravessou  a  povoação  em  pequenos  grupos  de  dois  e 
de  três ;  e  dentro  de  um  quarto  de  hora  estavam  todas  aban- 
cados na  grande  sala  da  estalagem  do  Leão  A^ul,  em  Mug- 
gleton,  desempenhando  o  sr.  Dumkins  as  funcções  de  presi- 
dente e  officiando  o  sr.  Lufifey  como  vice-presidente. 

Grande  rumor  de  conversações,  tinir  de  facas  e  garfos  e 
pratos  :  grandes  corridas  de  três  criados  de  cabeças  enormes, 
e  rápida  desapparição  das  victualhas  substanciaes  que  esta- 
vamna  mesa  ;  e  a  cadauma  d'estas  causas  de  confusão  acres- 
centava o  faceto  sr.  Jingle  a  contribuição  proporcional  a  meia 
dúzia  de  homens  ordinários,  pelo  menos. 

Quando  todos  comeram  quanto  poderam,  tirou-se  a  toa- 
lha, c  collocaram-se  na  mesa  garrafas,  copos  e  a  sobremesa ; 
e  os  criados  retiraram  para  limpar  tudo,  ou  por  outras  pala- 
vras, para  se  appropriarem,  como  de  emolumentos  próprios, 


1)0  SR.  PlCKWíCK  *         1  l3 


de  loJo  o  remanescente  de  comesiiveis  e  bebíveis  de  que  po- 
diam lançar  mão. 

Entre  o  sussurro  geral  de  conversação  alegre  que  se  se- 
guiu, conservava-se  muito  socegado  um  homemsinho  com 
cara  de  poucos  amigos,  o  qual  de  quando  em  quando  olhava 
em  roda  apenas  a  conversação  afrouxava,  como  se  tencio- 
nasse dizer  alguma  cousa  bem  grave,  e  uma  vez  por  outra 
irrompia  numa  tossesinha  de  inexprimível  dignidade.  Afinal, 
durante  um  momento  de  silencio  relativo,  o  homemsi- 
nho bradou  em  voz  alta  e  solemne  : 

—  Sr.  Lufiey ! 

Todos  se  calaram  e  o  individuo  interpellado  replicou: 

—  Senhor  ? 

—  Desejo  dirigir-lhe  algumas  palavras,  se  tiver  a  bondade 
de  convidar  estes  cavalheiros  a  encher  os  copos. 

O  sr.  Jingle  exclamou  em  tom  protector:  «Ouçam!  ou- 
çam \»  palavras  que  foram  repetidas  pelo  resto  dos  assisten- 
tes :  e,  tendo-se  enchido  os  copos,  o  vice-presidente  assumiu 
um  ar  de  profunda  e  sabia  attenção,  e  disse  : 

—  Sr.  Staple. 

—  Senhor,  disse  o  homemsinho,  erguendo  se,  eu  desejo  di- 
rigir o  que  tenho  a  dizer  ao  sr.  Luffey  e  não  ao  nosso  digno 
presidente,  porque  o  nosso  digno  presidente  é  até  certo  ponto 
—  posso  dizer  em  grande  parte  —  o  assumpto  do  que  tenho 
a  dizer,  ou  antes  dizer  a. . .  a. . . 

—  A  asseverar,  suggeriu  o  sr.  Jingle. 

—  Exacto,  a  asseverar,  disse  o  homemsinho.  Agradeço  ao 
meu  illustre  amigo,  se  é  que  elle  me  permitte  dar-lhe  este 
nome  —  (quatro  «Ouçam!»  um  dos  quaes  por  certo  do  sr. 
Jingle)  —  a  sua  suggestao.  Senhor,  eu  cá  sou  de  Dell  —  sou, 
de  Dingley  Dell.  (Applausos)  Não  me  é  dado  reclamar  a  honra 
de  constituir  uma  unidade  na  população  deMuggleton;  nem 
com  franqueza  o  confesso,  ambiciono  tal  honra.  E  dir-Ihe- 
hei  porque.  (Ouçam!)  Concedo  sem  hesitação  a  Muggleton 
todas  aquellas  honras  e  distmcçóes,  as  quaes  tem  jus  de  re- 
clamar—  bem  numerosas  são  eilas  e  bem  conhecidas  para 
necessitarem  recapitulação  minha.  Mas,  senhor,  ao  passo  que 
eu  relembro  ter  Muggleton  dado  nascimento  a  um  Dumkins 
e  um  Podder,  não  olvidemos  também  que  Dingley  Dell  pôde 
orgulhar-se  de  um  Luffev  e  de  um  Struggies.  (Applausos  rui- 

8 


14  AS   AVENTURAS 


dosos)  Que  ningueni  me  attribua  desejos  de  detrahir  os  mé- 
ritos d'aquelles  primeiros  cavalheiros.  Eu,sr.  vice-presidente, 
invejo  a  exhuberancia  dos  seus  sentimentos  na  presente  con- 
junctura.  (Applausos)  Todos  os  cavalheiros  que  me  escutam, 
conhecem  provavelmentea  replica  feita  por  um  individuo  que 
—  para  me  servir  de  uma  expressão  vulgar  —  se  anichava 
n'um  tonel,  ao  imperador  Alexandre  :  -  «Se  eu  não  fora  Dió- 
genes», disse  elle,  «quizera  ser  Alexandre»».  E'-me  licito  pre- 
sumir que  esses  cavalheiros  dirão:  "Se  eu  não  fora  Dum- 
kins,  eu  quizera  ser  Luffey ;  se  eu  não  fora  Podder,  eu  qui- 
zera  ser  Struggles.»  (Enthusiasmo)  Porém,  cavalheiros  de 
Muggleton,  porventura  é  apenas  no  cricket  que  se  revela  a 
supremacia  dos  vossos  compatricios  .''  Pois  nunca  ouvistes 
fallar  de  Dumkins  e  da  sua  perseverança?  Nunca  vos  ensina- 
ram a  associar  Podder  com  a  propriedade  ?  (Grandes  applau- 
sos) Ao  lutardes  pelos  vossos  direitos,  pelas  vossas  liberda- 
des, pelos  vosses  privilégios,  nunca  vos  vistes  reduzidos,  um 
instante  ao  menos,  á  desconfiança  e  ao  desespero?  E  n'esses 
momentos  de  desanimo,  o  nome  de  Dumkins  não  vos  reac- 
cendeu  no  seio  o  lume  que  se  apagara?  Uma  palavra  só 
d'esse  homem  não  lhe  deu  luz  ainda  mais  intensa,  do  que  se 
elle  nunca  se  houvera  extinguido  ?  (Grandes  acdamações) 
Meus  senhores,  rogo-vos  que  cerqueis  de  uma  aureola  de  en- 
thusiasticos  applausos  os  nomes  unidos  de  Dumkins  e  de 
Podder  ! 

Calou-se  o  homemsinho,  e  logo  a  sociedade  começou 
n'um  tumultuar  de  vozes  e  ás  pancadas  na  mesa,  que  dura- 
ram com  poucas  intermiitencias  até  ao  fim  da  tarde. 

Ergueram-se  outros  brindes.  O  sr.  Luffey  mais  o  sr.  Strug- 
gles,  o  sr.  Pickwick  mais  o  sr.  Jingle,  foram,  cada  um  por  sua 
vez,  objecto  de  elogios  sem  reserva;  e  cada  um  d'elles  a  seu 
turno  se  desfez  em  agradecimentos  por  essa  honra. 

Enthusiasticos  como  somos  pela  nobre  causa  a  que  nos 
havemos  dedicado,  teriamos  experimentado  uma  sensação  de 
ineffavel  orgulho  e  a  convicção  de  que  algo  havíamos  feito 
para  merecer  a  immortalidade  de  que  hoje  somos  privados, 
se  acaso  tivéssemos  conseguido  expor  aos  nossos  ardentes 
leitores  o  mais  singelo  bosquejo  d'esses  discursos. 

O  sr.  Snodgrass  tomou,  conforme  o  seu  costume,  uma 
grande  quantidade  de  notas,  as  quaes  sem  duvida  teriam  pro- 


1)0  SR.   PICKWICK  I  IO 


porcionando  importantes  informações,  se  a  impetuosa  elo- 
quência das  phrases  ou  a  influencia  febril  do  vinho  não  hou- 
vesse produzido  tamanho  tremor  na  mão  d'esse  cavalheiro 
que  lhe  tornou  quasi  inintelligivcl  a  letra  e  de  todo  inintelli- 
givel  o  estylo. 

A'  força  de  paciente  investigação,  lográmos  decifrar  alguns 
caracteres,  tendo  uma  vaga  similhança  com  os  nomes  dos 
oradores. 

E  podemos  também  distinguir  o  esboço  de  uma  canção 
que  se  suppõe  ter  sido  cantada  pelo  sr.  Jingle,  na  qual  se 
repetem  a  curtos  intervallos  as  palavras  taças,  scintillantey 
rubi,  brilhante  e  vinho. 

Ainda  imaginamos  poder  lobrigar,  mesmo  no  fim  das  no- 
tas, uma  indistincta  referencia  a  ossos  queimados,  e  em  se- 
guida apparecem  as  palavras /no, /dn7. 

Mas,  como  qualquer  hypothese  que  houvéssemos  de  for- 
mular a  tal  respeito  se  fundariam  em  simples  conjecturas, 
não  estamos  dispostos  a  deixarmo-nos  levar  por  qualquer  das 
supposições  suggeridas. 

Voltaremos  por  isso  ao  sr.  Tupman,  acrescentando  ape- 
nas que  poucos  minutos  antes  da  meia  noite  se  ouviram  os 
dignitários  reunidos  de  Dingley  Dell  e  de  Muggleton  entoar 
com  grande  sentimento  e  emphase  o  bello  e  pathetico  canto 
nacional : 

Nenhum  de  nós  vae  p'r'a  cama, 
Nenhum  de  nós  vae  pVa  cama, 
Nenhum  de  nós  vae  pVa  cama. 
Antes  que  rompa  a  manhã. 


CAPITULO  VIII 

No  qual  se  prova  que  o  verdadeiro  amor 
nem  sempre  anda  sobre  carris 

A  tranquilla  solidão  de  Dingley  Dell,  a  presença  de  tantas 
representantes  do  bello  sexo,  c  a  solicitude  e  a  anciedade 
que  ellas  evidenciavam  pelo  sr.  Tupman^  tudo  favorecia  a 


1  lO  AS  AVENTURAS 


producção  e  o  desenvolvimento  dos  ternos  sentimentos  que 
a  natureza  implantf^ra  profundamente  no  seio  d'este  cava- 
lheiro, e  que  pareciam  agora  destinados  a  concentrar  se  n'um 
amável  objecto. 

As  meninas  eram  gentis,  insinuantes  nos  modos,  incom 
paráveis  de  caracter ;  mas  impossível  lhes  era  ter  pretenções 
á  dignidade  de  porte,  á  nobreza  do  andar,  á  magestade  do 
olhar,  que  distinguiam  a  tia  solteirona  de  todas  as  mulheres 
observadas  até  então  pelo  sr.  Tupman. 

Havia  um  certo  parentesco  nos  seus  caracteres,  algo  de 
congénito  nas  suas  almas,  de  mysteriosa  sympaihia  nos  seus 
sentimentos,  isso  era  evidente. 

O  nome  d'ella  íoi  o  prinieiro  que  subiu  aos  lábios  do  sr. 
Tupman,  quando  elle  jazia  ferido  em  cima  da  relva  ;  foi  o 
hysterico  riso  d'ella  o  primeiro  som  que  lhe  impressionou  os 
ouvidos,  quando  o  trouxeram  em  braços  para  casa. 

Mas  uma  tal  agitação  tivera  acaso  origem  n'uma  sensuali- 
dade delicada  e  feminina  que  em  qualquer  outro  caso  se  ex- 
pandiria ':  ou  fora  o  resultado  de  um  sentimento  mais  ardente 
e  apaixonado  que  só  elle,  entre  todos  os  viventes,  poderá  ha- 
ver despertado  r 

Taes  eram  as  duvidas  que  lhe  torturavam  o  cérebro,  em- 
quanto  elle  jazia  estendido  no  sophá  :  taes  as  duvidas  que 
élle  estava  decidido  a  resolver  desde  logo  e  uma  vez  por  to- 
das. 

Era  de  tarde. 

Isabella  e  Emily  andavam  a  passear  com  o  sr.  Trundie ; 
a  velha  surda  adormecera  na  sua  poltrona;  o  resonar  do  ra- 
paz gorducho  chegava  n'uni  som  grave  e  monótono  da  cosi- 
nha  distante :  as  rechonchudas  criadas  recreavam-se  á  porta 
gosando  as  doçuras  do  anoitecer  e  as  delicias  de  um  derriço, 
á  maneira  primitiva,  com  certos  brutamontes  em  serviço  na 
herdade ;  e  na  sala  estava  sentado  o  interessante  par,  deslei- 
xado por  todos,  não  se  importando  com  pessoa  alguma,  ab- 
sortos os  dois  em  sonhos  de  si  próprios  :  estavam  ambos  sen 
tados,  como  um  par  de  luvas  de  camurça  cuidadosamente 
dobradas  —  mettidas  uma  na  outra 

—  Esqueci-me  das  minhas  flores,  disse  a  solteirona. 

—  Vá  regal-as  agora,  disse  o  sr.  Tupman  com  maneiras 
.  persuasivas. 


DO  SR.   PICKWICK  I  17 


—  Pôde  constipar-se  com  o  ar  da  noite,  acudiu  a  dama 
com  ternura. 

—  Não,  não,  disse  o  sr.  Tupman  erguendo-se ;  ha  de  fa 
zer-me  bem.  Permitta-me  que  a  acompanhe. 

Miss  Rachel  deteve-se  a  arranjar  a  ligadura  do  braço  es- 
querdo do  mancebo,  e,  tomando  lhe  o  braço  direito,  côndu- 
ziu-o  ao  jardim. 

Havia  no  extremo  um  caramanchão  com  madresilvas,  jas- 
mins e  trepadeiras  —  um  d'esses  doces  retiros  que  os  homens 
caridosos  arranjam  para  accommodar  as  aranhas. 

A  tia  solteirona  pegou  n'um  grande  regador  que  estava  a 
um  canto,  e  dispoz-se  a  sahir  do  caramanchão.  O  sr.  Tup- 
man deteve-a,  e  fel-a  assentar  a  seu  lado. 

—  Miss  Wardle  !  disse  elle. 

A  dama  poz-se  a  tremer  com  tanta  força,  que  alguns  ca- 
lhaus, casualmente  cabidos  dentro  do  regador,  começaram  a 
cascalhar,  com  um  ruido  similhante  ao  de  uma  cega-rega. 

—  Miss  Wardle,  disse  o  sr.  Tupman,  é  um  anjo. 

—  Sr.  Tupman!  exclamou  Rachel,  corando  até  ficar  da 
côr  do  regador. 

—  E',  é,  affirmou  o  eloquente  pickwickano,  demais  o  sei. 

—  Todas  as  mulheres  são  anjos,  ao  que  dizem,  murmurou 
a  dama  em  tom  jocoso. 

—  Então  o  que  pôde  ser  Miss  Rachel  ?  ou  a  que  posso  eu 
comparal-a  sem  exagero  ■  replicou  o  sr.  Tupman.  Onde  se 
viu  nunca  uma  mulher  que  se  parecesse  com  Miss  Rachel  ? 
Em  que  outro  logar  poderia  deparar-se-me  uma  tão  rara 
combinação  da  bondade  e  da  belleza?  Onde  poderia  eu  pro- 
curar..    'Ohl 

Aqui  o  sr.  Tupman  calou-se,  e  apertou  a  mão  que  segu- 
rava a  aza  do  feliz  regador. 

A  dama  voltou  a  cabeça  para  o  lado. 

—  São  tão  enganadores  os  homens  !  segredou-lhe  ella  sua- 
vemente. 

—  Pois  são,  são,  exclamou  o  sr.  Tupman,  mas  nem  todos. 
Um  ente  vive  pelo  menos  que  nunca  hade  mudar  —  um  ente 
que  ficaria  radiante  se  podesse  devotar  toda  a  existência  á 
sua  felici4ade  —  que  vive  apenas  nos  seus  olhos  —  que  só 
respira  nos  seus  sorrisos  —  que  supporta  apenas  por  sua  causa 
o  fardo  pesado  da  existência  ! 


I  l8  AS   AVIÍNTURAS 


—  Poderia  encontrar-se  um  individuo  assim?  disse  ella. 

—  Pôde,  pôde,  atalhou  o  ardente  Tupman.  Encontrou-se. 
Aqui  o  tem,  Miss  Wardle  I 

E  antes  que  a  dama  lhe  percebesse  a  intenção,  o  sr.  Tup- 
man cahira-lhe  de  joelhos  aos  pés. 

—  Levante-se,  sr.  Tupman  1  exclamou  Rachel. 

—  Isso  nunca  I  foi  a  corajosa  replica.  Oh  !  f^achel  1 
Agarrou-lhe  na  mão  passiva,  e  o  regador  cahiu  ao  chão 

quando  elle  a  apertou  de  encontro  aos  lábios. 

—  Oh  I    Rachel  I    diga  que  me  ama  ! 

—  Sr.  Tupman,  disse  a  donzellona,  virando  pudicamente 
a  cabeça,  custa-me  deveras  a  pronunciar  estas  palavras ;  mas 
—  mas  —  confesso  que  não  me  é  de  todo  indifferente. 

Mal  que  o  sr.  Tupman  ouviu  esta  confissão,  tratou  de  le- 
var a  eífeito  o  que  lhe  inspiravam  as  suas  enthusiasticas  emo- 
ções, e  o  que,  segundo  nos  consta  (porque  estamos  pouco  ao 
facto  d'esses  assumptos)  toda  a  gente  costuma  fazer  em  idên- 
ticas circumstancias. 

Levantou-se  de  repente,  e  lançando  o  braço  em  volda  do 
pescoço  da  donzellona,  imprimiu-lhe  nos  lábios  beijos  sem 
conto,  os  quaes,  apôs  uma  exhibição  conveniente  de  resistên- 
cia, ella  recebeu  tão  passivamente  que  não  se  pôde  calcular 
quantos  mais  lhe  teria  dado  o  sr.  Tupman,  se  ella  não  hou- 
vesse tido  um  sobresalio  a  valer  e  não  tivesse  exclamado  em 
tom  de  susto, 

—  Sr.  Tupman!  estão-nos  a  ver  I  estamos  descobertos! 

O  sr.  Tupman  olhou  em  volta  de  si.  Deu  com  o  rapaz 
gorducho  perfeitamente  immovel,  com  os  grandes  olhos  re- 
dondos pasmados  para  o  caramanchão,  mas  sem  a  minima 
expressão  no  rosto  que  o  mais  hábil  physionomista  podesse 
haver  attribuido  ao  espanto,  á  curiosidade,  ou  a  qualquer  ou- 
tra das  conhecidas  paixões,  que  agitam  o  coração  humano.  O 
sr.  Tupman  fitou  o  rapazote,  e  o  rapazote  fiiou-o  a  elle ;  e 
quanto  mais  o  sr.  Tupman  observava  a  absoluta  serenidade 
d'aquella  physionomia,  mais  convencido  ficava  que  o  rapaz 
ou  não  sabia,  ou  não  percebia,  cousa  alguma  do  que  se  pas- 
sara. 

Foi  sob  esta  impressão  que  elle  disse  com  grande  fir- 
meza : 

—  Que  vem  você  cá  fazer  ? 


DO  SU.  PlCKWiCK  1  1 Q 


—  Está  prompla  a  ceia,  replicou  Joe  promptamente. 

—  Você  chegou  agora  mesmo?  perguntou  o  sr.  Tupman 
com  um  olhar  penetrante. 

—  Agora  mesmo,  respondeu  o  outro. 

O  sr.  Tupman  tornou  a  encarai  o  fixamente ;  mas  não  lhe 
viu  nem  um  só  estremeção  nos  olhos,  nem  mesmo  uma  ruga 
no  rosto. 

O  sr.  Tupman  deu  o  braço  a  donzellona,  e  dirigiu-se  para 
casa,  seguido  pelo  rapaz  gorducho. 

—  Elle  não  sabe  nada  do  que  succedeu,  murmurou  elle. 

—  Nada,  disse  ella.  . 

Ouviu  se  detraz  d'elles  um  ruido,  similhante  ao  de  uma 
casquinada  reprimida. 

O  sr.  Tupman  voltou-se  vivamente. 

Não  ;  não  poderia  ter  sido  o  rapazoie  ;  não  se  via  um  raio 
de  alegria,  apenas  a  gordura  se  divisava  n'aquelle  rosto. 

—  Provavelmente  estava  a  dormir,  segredou  o  sr.  Tup- 
man. 

—  Não  pôde  haver  a  menor  duvida,  replicou  a  dama. 
E  ambos  desataram  a  rir  cordealmente. 

O  sr,  Tupman  enganára-se..  Cesta  vez  o  rapazote  não  dor- 
mira. Estava  acordado  —  e  bem  acordado  —  e  não  lhe  tinha 
escapado  nada. 

Passou- se  a  ceia  sem  tentativas  de  conversação  geral.  A 
avó  velha  tora  deitar-se  ;  Isabella  Wardle  dedicava-se  exclu- 
sivamente ao  sr.  Trundle;  as  attenções  da  tia  solteirona  es- 
tavam reservadas  para  o  sr.  Tupman;  e  os  pensamentos  de 
Emily  pareciam  concentrar-se  n'algum  objecto  distante  — 
porventura  no  ausente  Snodgrass. 

Deram  onze  —  meia  noite  —  uma  hora  —  e  os  homens  sem 
chegarem. 

Em  todos  os  rostos  se  pintava  a  anciedade. 

Teriam  sido  assaltados  e  roubados?  Seria  conveniente 
mandar  gente  com  lanternas  em  todas  as  direcções  que  se 
suppozesse  elles  terem  tomado  para  recolher?  ou  seria  me- 
lhor. .  .  Escutem  !  ahi  vêem  elles !  O  que  é  que  os  demora- 
raria  até  tão  tarde  ?  Ouvia-se  uma  voz  estranha,  também  !  A 
quem  pertenceria  ella  ?  Precipitaram-se  para  a  cosinha  onde 
aquelles  vadios  haviam  entrado,  e  n'um  relance  tiveram  pleno 
conhecimento  da  verdadeira  situação. 


20  AS   AVENTURAS 


O  sr.  Pickwick,  com  as  mãos  nas  algibeiras  e  o  chapéo 
todo  descabido  para  cima  do  olho  esquerdo,  estava  encostado 
ao  aparador,  abanando  a  cabeça  de  um  para  outro  lado,  e 
prod':zindo  uma  successão  constante  dos  mais  ternos  e  bene- 
volentes sorrisos,  sem  qualquer  causa  ou  motivo  apparente. 

O  velho  Wardle,  com  a  physionomia  esbrazeada,  estava 
a  apertar  a  mão  de  um  cavalheiro  desconhecido,  resmoneando 
protestos  de  eterna  amisade. 

O  sr.  Winkle,  apoiado  ao  alto  relógio,  invocava  debil- 
mente  todas  as  pragas  sobre  a  cabeça  de  qualquer  membro 
da  familia  que  suggerisse  a  conveniência  de  elle  se  metter  na 
cama. 

E  o  sr.  Snodgrass  deixára-se  cahir  n'uma  cadeira,  com  a 
expressão  da  mais  abjecta  e  desesperada  miséria  que  o  espi- 
rito humano  pôde  imaginar,  desenhada  em  cada  uma  das  suas 
expressivas  feições. 

—  Succedeu  alguma  cousa?  perguntaram  as  três  senho- 
ras. 

—  Qual  succedeu,  nem  meio  succedeu!  respondeu  o  sr. 
Pickwick.  Nós  cá  —  nós  estamos  —  magnificos.  —  Não  é  ver- 
dade, Wardle,  que  nós  estamos  magnificos  ?  Hein  ? 

—  Eu  creio  que  sim,  replicou  o  faceto  dono  da  casa. — 
Minhas  queridas  —  aqui  teem  o  meu  amigo  o  sr.  Jingle  — 
amigo  do  sr.  Pickwick,  Jingle  —  veiu  —  fazer  uma  visiti- 
nha. 

—  Sucedeu  alguma  cousa  ao  sr.  Snodgrass  ?  perguntou 
Emily  com  grande  alvoroço. 

-^  Não  succedeu  nada.  minha  senhora,  redarguiu  o  desco- 
nhecido. Jantar  depois  do  jogo  —  gente  de  uma  cana  —  can- 
ções lindissimas  —  Porto  velhp  —  clarete  —  bom  —  muito 
bom  —  vinho,  minha  senhora  —  vinho. 

—  Não  foi  o  vinho,  murmurou  o  sr.  Snodgrass  em  voz 
quebrada.  Foi  o  salmão.  (Em  casos  d'estes,  não  é  nunca  o 
vinho). 

— ^Não  era  melhor  elles  irem  para  a  cama^,  minha  senho- 
ra? perguntou  Emma  Dois  dos  criados  podem  levar  os  se- 
nhores lá  para  cima. 

—  Eu  cá  não  quero  ir  para  a  cama,  disse  com  firmeza  o 
sr.  Winkle. 

—  Não  ha  ente  vivo  que  seja  capaz  de  me  levar,  disse  in- 


DO  SR.  PICKWICK 


trepidamente  o  sr.  Pickwick,  continuando  a  sorrir  como  até 
então. 

—  Hurrah  !  balbuciou  debilmente  o  sr.  Winkle  ! 

—  Hurrah !  repetiu  o  sr.  Pickwick,  tirando  o  chapéo  ç  ar- 
remessando ao  chão,  e  atirando  á  doida  com  os  óculos  para 
o  meio  da  cosinha. 

E  em  seguida  sl  esta  facécia,  desatou  a  rir  ás  bandeiras 
despregadas. 

—  Tragam  cá  —  outra  —  garrafa,  gritou  o  sr.  Winkle,  co- 
meçando em  voz  de  Stentor  e  acabando  em  débeis  murmú- 
rios. 

Descahiu-lhe  a  cabeça  sobre  o  peito ;  e,  resmungando  a 
a  sua  invencível  resolução  de  não  se  metter  na  cama,  e  um 
sanguinário  pesar  por  não  ter  aquella  manhã  dado  cabo  do 
velho  Tupman,  adormeceu  profundamente. 

N'esta  condição  foi  transportado  para  o  seu  quarto  por 
dois  jovens  gigantes,  sob  a  superintendência  pessoal  do  gor- 
ducho Joe,  a  cujos  desvelos  pouco  depois  o  sr.  Snodgrass 
confiou  a  sua  pessoa. 

O  sr.  Pickwick  acceitou  o  braço  que  lhe  offereceu  o  sr. 
Tupman  e  desappareceu  tranquillamente,  sorrindo  mais  de 
que  nunca. 

E  o  sr.  Wardle.  depois  de  se  despedir  da  familia  com  tanta 
ternura,  como  se  fosse  d'alli  para  o  cadafalso,  concedeu  ao 
sr.  Trundle  a  honra  de  o  levar  pela  escada  acima,  com  bal- 
dados esforços  para  se  mostrar  digno  e  solemne. 

—  Que  repugnante  scena  I  disse  a  tia  solteirona. 

—  Nojenta!  exclamaram  as  duas  meninas. 

—  Medonha!  —  medonha!  disse  Jingle  com  modos  muito 
graves.  (Elle  levava  garrafa  e  meia  de  vantagem  a  qualquer 
dos  companheiros).  Horrível  espectáculo!  — horrível  deve- 
ras ! 

—  Que  sujeito  tão  amável !  segredou  a  donzellona  ao  sr. 
Tupman. 

—  E  muito  bem  parecido  !   segredou  Emily  Wardle. 

—  Se  é  !  observou  a  tia. 

O  sr.  Tupman  lembrou-se  da  viuva  de  Rochester ;  e  o  seu 
espirito  ficou  perturbado. 

A  meia  hora  de  dialogo  que  se  seguiu  não  foi  azada  para 
o  tranquillísar. 


122  AS   AVENTURAS 


O  novo  visitante  era  muito  fallador,  e  o  numero  das  suas 
anecdotas  era  apenas  excedido  pela  extensão  da  sua  polidez. 

O  sr.  Tupman,  á  proporção  que  crescia  a  popularidade 
de  Jingle,  sentia  a  sua  mergulhar  na  sombra. 

O  seu  riso  era  forçado  —  a  sua  alegria  ficticia ;  e  quando 
afinal  repousou  no  travesseiro  a  fronte  dorida,  pensou  com 
delicias  horríveis  na  satisfação  que  lhe  daria  o  ter  n'aque.lle 
momento  a  cabeça  de  Jingle  entre  o  colchão  de  pennas  e  o 
enxergão. 

O  infatigável  Jingle  levantou-se  cedo  na  manhã  seguinte, 
e,  emquanto  os  companheiros  ficavam  na  cama  subjugados 
pelas  extravagâncias  da  noite  precedente,  empregou  proficuos 
esforços  em  promover  a  hilaridade  á  mesa  do  almoço.  Até  a 
velha  surda  insistiu  em  que  lhe  contassem  pela  corneta  acús- 
tica uma  ou  duas  das  suas  melhores  facécias ;  e  até  levou  a 
sua  condescendência  ao  ponto  de  observar  á  tia  solteirona 
que  «elle  (Jingle)  era  um  estróina  com  graça»  —  opinião  ab- 
solutamente perfilhada  por  todos  os  membros  presentes  da 
familia. 

A  velha  tinha  por  costume,  nas  bonitas  manhãs  de  verão, 
ir  até  ao  caramanchão  em  que  o  sr.  Tupman  já  se  tinha  no- 
tabilisado. 

Passava-se  assim  o  caso  :  o  rapaz  gorducho  despendurava 
de  um  cabide,  situado  atraz  da  porta  do  quarto  d'aquella 
dama,  um  chapéo  de  setim  preto,  um  chalé  grosso  de  algo- 
dão e  uma  bengala  grossa  com  um  enorme  castão;  a  velha 
senhora  punha  com  todo  o  descanço  o  chapéo  e  o  chalé,  en- 
costava uma  das  mãos  á  bengala  e  outra  ao  hombro  do  gor- 
ducho, e  dirigia- se  compassadamente  para  o  caramanchão, 
onde  o  rapazote  a  deixava  gosar  do  ar  fresco  durante  meia 
hora;  expirado  este  praso  elle  voltava  e  tornava  aconduzil-a 
até  casa. 

A  velha  dama  era  muito  regular  e  muito  pontual ;  e  como 
havia  três  verões  successivos  que  se  observava  esta  mesma 
ceremonia  sem  o  minimo  desvio  das  formas  habituaes,  não 
ficou  pouco  espantada  n'essa  manhã,  por  ver  o  rapaz  gordu- 
cho, em  vez  de  sahir  do  caramanchão,  dar  alguns  pa^sos 
para  fora  d'elle,  olhar  cuidadosamente  em  volta  de  si  em  to- 
das as  direcções,  e  voltar  para  o  pé  d'ella  surrateiramente  e 
com  ar  do  mais  profundo  mysterio. 


no   SR.   PICKWICK  12.^ 


A  velha  senhora  era  timida  —  como  ahás  são  a  maioria 
das  velhas — e  a  sua  primeira  impressão  foi  que  o  rechon- 
chudo garoto  estava  vae  não  vae  para  lhe  produzir  qualquer 
grave  damno  physico  com  o  intento  de  deitar  as  unhas  aos 
trocos  miúdos  que  ella  ali  tivesse. 

Não  lhe  faltou  vontade  de  gritar  por  soccorro,  m.as  a  idade 
e  a  doença  ha  muito  que  a  tinham  privado  do  poder  de  se 
exprimir  aos  berros;  portanto,  foi  vigiando  os  movimentos 
d'elle  com  intenso  pavor,  que  nem  por  sombras  se  aitenuou 
quando  elle  se  chegou  mesmo  junto  d'ella,  e  lhe  gritou  aos 
ouvidos  n'uma  voz  agitada  e  que  a  ella  se  affigurou  ameaça- 
dora : 

—  Patroa  ! 

Ora  aconteceu  que  o  sr.  Jingle  andava  a  passear  n"aquelle 
momento  pelo  jardim,  mesmo  junto  do  caramanchão.  Ouviu 
também  gritar:   «Patroa  I')  e  parou  para  cftivir  o  resto. 

Três  razões  havia  para  que  assim  procedesse. 

Em  primeiro  logar,  não  tinha  que  fazer  e  era  curioso ;  em 
segundo  logar,  não  era  nada  escrupuloso ;  finalmente,  estava 
escondido  por  uns  arbustos  íiorescentes.  Portanto  deixou-se 
ali  ficar  á  escruta. 

—  Patroa  !  gritou  o  rapaz  gorducho. 

—  Então,  Joe  !  disse  a  tremer  a  velha,  estou  certa  que  te- 
nho sido  para  vossê  uma  boa  ama,  Joe.  Tem  sido  mvariavel- 
mente  tratado  com  affecto.  Nunca  teve  muito  que  fazer;  e 
sempre  tem  tido  bastante  que  comer. 

As  ultimas  palavras  eram  um  appello  aos  sentimentos 
mais  ternos  do  gorducho.  Pareceu  commovido  ao  replicar 
com  expansão  : 

—  Isso  sei  eu. 

—  Então  o  que  é  que  vossc  quer  fuzer  agora  ?  disse  a  ve- 
lha cobrando  animo. 

—  O  que  eu  quero  é  fazer-lhe  arripiar  as  carnes,  replicou 
o  rapazote. 

Pareceu  sanguinária  a  valer  esta  forma  de  provar  a  grati- 
dão ;  e  como  a  velha  não  percebeu  nitidamente  o  processo 
pelo  qual  se  deveria  obter  aquelle  resultado,  voltaram-lhe  to- 
dos os  primeiros  pavores. 

—  O  que  é  que  a  senhora  imagina  que  eu  vi  a  noite  pas- 
sada, aqui  mesmo  n'este  caramanchão  ?  perguntou  Joe. 


124  -^S   AVENTURAS 


—  Valha-nos  Deus!  O  que  foi  ?  exclamou  a  velha,  assus- 
tadíssima pela  attitude  solemne  do  corpulento  rapaz. 

—  Aqueile  sujeito  —  aquelle  do  braço  doente  —  aos  abra- 
ços e  aos  beijos.  . . 

—  A  quem,  Joe,  a  quem  ?  A  nenhuma  das  criadas,  es- 
pero ? 

—  Peior  do  que  isso,  rugiu  o  gorducho,  ao  ouvido  da  ve- 
lha. 

—  Não  era  nenhuma  das  minhas  netas  ^ 

—  Peior  ainda. 

—  Peior  ainda,  Joe  I  disse  a  velha,  que  tinha  supposto  este 
o  extremo  limite  da  atrocidade  humana.  Então  quem  era, 
Joe?  Quero  saber  por  força. 

O  gorducho  olhou  cautelosamente  em  volta  de  si,  e  tendo 
concluído  a  sua  in^oecçáo,  berrou  ao  ouvido  da  velha  dama  : 

—  Míss  Rachel. 

—  Como !  disse  a  velha  em  voz  sibilante.  Falle  mais  alto. 

—  Míss  Rachel  1  rugiu  o  rapaz. 

—  Minha  filha ! 

A  serie  de  gestos  affirmativos  de  Joe  communicou-lhe  ás 
faces  rechonchudas  um  movimento  similhante  ao  do  manjar 
branco. 

—  E  ella  tolerou-o  !  exclamou  a  velha. 

Um  sorriso  sarcástico  arreganhou  as  feições  de  Joe,  que 
respondeu : 

—  Se  eu  também  a  vi  a  ella  ás  beijocas  a  elle  I 

Se  o  sr.  Jingle,  do  seu  esconderijo,  podesse  ter  visto  a  ex- 
pressão que  esta  noticia  trouxe  ao  rosto  da  velha,  é  provável 
que  uma  gargalhada  repentina  tivesse  trahido  a  sua  visi- 
nhança. 

Elle  escutava  com  attenção,  e  chegavam-lhe  aos  ouvidos 
farrapos  de  phrases  de  cólera  taes  como  : 

—  Sem  minha  licença  !  —  N'aquella  idade  !  Que  infeliz  ve- 
lha que  eu  sou.  —  Era  melhor  esperar  até  a  minha  morte ! 

Depois  ouviu  o  cascalho  a  estalar  sob  os  tacões  do  gor- 
ducho, e  percebeu  que  a  velha  ficava  sósinha. 

Era  talvez  uma  coincidência  notável,  mas  era  facto,  que 
o  sr.  Jingle,  logo  cinco  minutos  depois  de  chegar  a  Manor 
Farm,  na  noite  precedente,  deliberara  no  seu  intimo  pór 
cerco,  sem  demora,  ao  coração  da  solteirona. 


DO  SR.  PICKWICK 


125 


Não  lhe  faltava  observação  para  perceber  que  as  suas  ma- 
neiras desabusadas  não  eram  nada  desagradáveis  ao  lindo 
objecto  dos  seus  ataques;  e  elle  tinha  mais  do  que  uma  íbrie 
suspeita  de  ella  possuir  o  mais  desejável  de  todos  os  requisi- 
tos, uma  fortunasinha  independente. 

A  necessidade  imperativa  de  deitar  á  margem  o  seu  rival, 
por  qualquer  maneira  que  fosse,  relampejou-lhe  de  súbito 
no  cérebro,  e  elle  resolveu  immediatamente  adoptar  certas 
medidas  tendentes  a  esse  fim. 

Diz-nos  Fielding  que  o  homem  é  fogo,  a  mulher  estopa, 
e  que  o  príncipe  das  trevas  gosta  de  assoprar  o  lume. 

O  sr.  Jingle  sabia  que  os  mancebos  são  para  as  tias  sol- 
teironas como  o  gaz  iníiammado  para  a  pólvora,  e  decidiu- 
se  a  experimentar  sem  perda  de  tempo  os  eíTeitos  de  uma 
explosão. 

Cheio  de  reflexões  sobre  esta  importante  decisão,  sahiu 
surrateiramenie  do  esconderijo,  e,  ao  abrigo  dos  arbustos  já 
mencionados,  aproximou-se  da  casa. 

A  fortuna  parecia  determinada  a  favorecer-lhe  os  desí- 
gnios. 

O  sr.  Tupman  e  os  outros  cavalheiros  sabiam  do  jardim 
pelo  portão  lateral,  exactamente  quando  elle  chegava  á  vista 
d'este ;  e  as  meninas  sabia  elle  que  tinham  ido  passear  sósí- 
nhas  logo  depois  do  almoço.  O  caminho  estave,  pois,  desem- 
pachado. 

A  sala  de  jantar  estava  entreaberta.  Elle  espreitou  para 
dentro.  A  solteirona  estava  a  fazer  meia.  Elle  tossiu ;  ella 
ergueu  os  olhos  e  sorriu-se.  A  hesitação  não  fazia  parte  do 
caracter  do  sr.  Alfredo  Jungle.  Poz  mysteriosamente  o  dedo 
sobre  os  lábios,  entrou,  e  fechou  a  porta. 

—  Miss  Wardle,  disse  o  sr.  Jungle  com  calor  affectado, 
perdòe-me  a  ousadia — conhecimento  recente — não  ha  tempo 
para  ceremonias  —  tudo  descoberto. 

—  Senhor !  disse  a  solteirona,  um  pouco  surpreza  pela 
inesperada  apparição  e  um  tanto  suspeitosa  de  que  o  sr. 
Jungle  não  estivesse  no  seu  juizo. 

—  Schiu  !  disse  este,  n'um  cochichar  de  theatro,  rapaz 
gordo  —  cara  de  lua  cheia  —  olhos  redondos  —  patife! 

Aqui  sacudiu  a  cabeça  expressivamente,  e  a  solteirona  co- 
meçou a  tremer  com  susto. 


2b  AS   A^'ENTURAS 


—  Supponho  que  se  refere  a  Joe?  disse  ella,  esforçando-se 
por  parecer  serena. 

—  Sim,  minha  senhora  —  raios  partam  o  tal  Joe! — perro 
traidor,  o  tal  Joe  —  disse  á  senhora  velha  — a  senhora  velha 
furiosa  —  damnada  —  fula  —  caramanchão  —  Tupman  —  abra- 
ços e  beijos — tDda  essa  historia  —  percebe,  minha  senhora  ? 
hein  ? 

—  Sr.  Jingle,  disse  Misse  Rachel,  se  o  senhor  vem  aqui 
para  me  insultar.  .  . 

—  Quall  -  Deixe-se  d'isso :  replicou  o  imperturbável  Jin- 
gle. Ouvi  toda  a  historia  — vim  prevenil-a  do  perigo  em  que 
está  —  otierecer  os  meus  serviços  —  evitar  o  escândalo.  Não 
importa  —  pensa  que  é  insulto  —  ponho-me  ao  fresco. 

E  voltou-se  como  para  pôr  a  ameaça  em  execução. 

—  Que  hei  de  eu  fazer  ?  disse  a  pobre  solteirona,  desatando 
a  chorar.  O  mano  vae  ficar  furioso  I 

—  Está  claro  que  vae,  acudiu  o  sr.  Jingle  reflectindo,  ficar 
como  uma  bicha. 

—  Oh  1  sr.  Jingle!  que  hei  de  dizer  .^  exclamou. ella  com 
outra  inundação  de  desespero. 

—  Diga  que  foi  sonho,  replicou  friamente  o  sr.  Jingle. 
Um  raio  de  conforto  vislumbrou  no  espirito  da  solteirona 

a  esta  suggesião.  O  sr.  Jingle  percebeu  isso  e  aproveitou-se 
da  vantagem. 

—  Ora!  ora,  adeus!  — nada  mais  fácil  —  garoto  patife  — 
dama  amável  —  uns  açoutes  no  rapaz  gordo  —  Miss  Rachel 
acreditada  —  ponto  na  historia  —  tudo  arranjado. 

Não  sabemos  se  as  probabilidades  de  evitar  as  consequên- 
cias da  nialavinda  delação  foi  deliciosa  para  os  sentimentos 
da  donzellona,  ou  se  o  ouvir-se  descripta  com.o  "dama  amá- 
vel" abrandou  a  aspereza  do  seu  pezar.  O  que  é  certo  é  que 
ella  corou  levemente  e  lançou  um  olhar  de  reconhecimento 
ao  sr.  Jingle.  Este  insinuante  cavalheiro  suspirou  profunda- 
mente, fixou  os  olhos  durante  uns  dois  minutos  no  semblante 
da  solteirona,  teve  um  sobresalto  melodramático,  e  desviou 
subitamsnte  o  olhar. 

—  Parece  desgostoso,  sr.  Jingle,  disse  a  dama  com  voz  la- 
mentosa. Permitte-me  que  lhe  prove  a  minha  gratidão  pela 
sua  amável  interferência,  perguntando-lhe  pela  causa  dos  seus 
desgostos,  no  intento  de  lhes  dar  allivio,  sendo  possível  ? 


DO  SR.   PICKWICK  127 


—  Ah!  exclamou  o  sr.  Jingle  com  outro  sobresalto  —  al- 
livio  —  alliviar  a  minha  desventura,  e  o  seu  amor  concedido 
a  um  homem  que  é  insensivel  a  tamanha  bemaventurança  — 
que  n'este  mesmo  instante  mantém  pretensões  ao  affecto  da 
sobrinha  da  creatura  que...  Mas  não!  elle  é  meu  amigo; 
não  denunciarei  os  seus  vicios.  Miss  Wardie  —  adeus  ! 

Ao  concluir  esta  tirada,  a  mais  consequente  de  quantas 
constara  ter  elle  pronunciado,  o  sr.  jfngle  applicou  aos  olhos 
os  restos  do  lenço  que  já  mencionamos,  e  dirigiu-se  para  a 
porta. 

—  Fique,  sr.  Jingle!  disse  energicamente  a  solteirona.  O 
senhor  acaba  de  fazer  uma  allusao  ao  sr.  Tupman — expli- 
que-se. 

—  Nunca!  exclamou  Jingle,  com  ar  profissional  (isto  é, 
theatral).  Nunca ! 

E  com  o  fim  de  mostrar  que  não  tinha  o  minimo  desejo 
de  continuar  a  ser  interrogado,  aproximou  uma  cadeira  da  de 
Miss  Rachel,  e  sentou-se. 

—  Sr.  Jingle,  disse  ella,  rogo-lhe,  supplico-lhe,  se  algum 
terrível  mysterio  existe  com  respeito  ao  sr.  Tupman,  reve- 
le-o. 

—  Eu  posso  lá,  disse  o  sr.  Jingle  fitando  os  olhos  no  rosto 
da  donzellona,  eu  posso  lá  ver  —  encantadora  creatura  —  sa- 
crificada no  altar — ^  descaroavel  avareza! 

Pareceu  durante  alguns  segundos  lutar  contra  variadas  e 
contradictorias  commoções,  e  em  seguida  disse  em  voz  baixa 
e  profunda  : 

—  Tupman  o  que  quer,  é  só  o  seu  dinheiro. 

—  Miserável !  exclamou  Rachel,  com  indignação  vehe- 
mente. 

As  duvidas  do  sr.  Jingle  estavam  resolvidas;  ella  tinha  di- 
nheiro. 

—  Ainda  mais!  proseguiu  Jingle  —  elle  ama  outra. 

—  Outra  !  ejaculou  a  solteirona.  Quem  é  ! 

—  Menina  baixinha  —  olhos  pretos  —  sobrinha  Emily. 
Houve  uma  pausa. 

Ora  se  uma  creatura  havia  no  mundo  inteiro  por  quem  a 
tia  donzellona  alimentasse  mortaes  e  arreigados  ciúmes,  era 
essa  exactamente  por  aquella  sobrinha.  Subiu-lhe  a  côr  ao 
rosto  e  ao  collo,  e  elle  sacudiu   silenciosamente   a  cabeça 


28  AS   AVENTURAS 


com  ar  de  ineffavel  desdém.  Por  fim,    mordendo  os  lábios 
delgados  e  levantando  a  cabeça,  disse  : 

—  Isso  não  pôde  ser.  Não  quero  crer  tal, 

—  Pois  observe  os,  disse  Jin^le. 

—  E'  o  que  hei  de  fazer,  disse  a  solteirona. 

—  Observe  os  seus  olhares. 

—  Pois  sim. 

—  Os  segredinhos. 

—  Pois  sim. 

—  Elle  ha  de  sentar-se  á  mesa  ao  lado  d'ella. 

—  Deixal-o ! 

—  Ha  de  enchel-a  de  altençóes. 

—  Deixal-o. 

—  E  ha  de  tramal-a  á  senhora. 

—  Tramar-me  !  vociferou  a  donzellona,  a  tremer  de  raiva 
e  de  desespero.  Tramar-me  a  mim  !  — elle  ! 

—  Quer  convencer-se  ?  disse  Jingle. 

—  Quero. 

—  Terá  coragem  ? 

—  Tenho. 

—  Nunca  mais  lhe  dá  trela? 

—  Nunca  mais. 

—  E  dá  cavaco  a  qualquer  outro  ? 

—  Dou. 

—  Então  faça  isso. 

O  sr.  jingle  cahiu  de  joelhos,  e  assim  permaneceu  durante 
cinco  minutos. 

Quando  se  ergueu,  era  o  namorado  aceito  da  tia  solteirona 
—  sob  a  condição  de  que  o  perjúrio  de  Tupman  se  fizesse 
claro  e  manifesto. 

As  provas  estavam  a  cargo  do  sr.  Alfred  Jingle ;  e  elle 
fel  as  patentes  n"aquelle  mesmo  dia  ao  jantar. 

Miss  Rachel  a  custo  acreditava  no  que  os  seus  olhos  viam. 

O  sr.  Tracv  Tupman  estava  amezendado  á  beira  de  Emi- 
ly,  catrapiscando,  cochichando  e  sorrindo,  mesmo  em  frente 
do  sr.  Snodgrass. 

Nem  uma  palavra,  nem  um  olhar,  nem  um  relance,  elle 
concedia  á  que  na  véspera  fora  a  escolhida  do  seu  coração. 

—  Diabos  levem  o  garoto  I  pensou  o  velho  sr.  Wardle  com 
os  seus  botões,  referindo-se  á  historia  que  a  mãe  lhe  tinha 


no   SR.   PICKWICK  120 


contado.  Diabos  o  levem  ! 
tudo  imaginação. 

—  Pérfido!  pensava  a  tia  solteirona.  Aquella  jóia  do  sr. 
Jingle  nõo  me  enganava.  Oh !  como  eu  odeio  o  miserá- 
vel. 

A  conversação  seguinte  pôde  servir  aos  nossos  leitores  de 
explicação  para  a  apparentemente  inexplicável  mudança  de 
procedimento  da  parte  do  sr.  Tracy  Tupman. 

Foi  n'aquella  tarde,  e  a  scena  passou-se  no  jardim.  Anda- 
vam dois  vultos  a  passeiar  n'um  atalho  afastado ;  um  d'el- 
les  um  pouco  baixo  e  corpulento,  o  outro  um  pouco  alto  e 
delgado. 

Eram  o  sr.  Tupman  e  o  sr.  Jingle.  O  vulto  corpulento  co- 
meçou o  dialogo. 

—  Que  tal  andei  eu  ?  perguntou  elle. 

—  Admirável  —  soberbo  —  eu  não  podia  representar  me- 
lhor—  deve  repetir  o  seu  papel  amanhã  —  todas  as  tardes 
até  nova  ordem. 

—  Rachel  ainda  deseja  isso  ? 

—  Está  claro  —  gostar  não  gosta  —  mas  tem  de  se  fazer 
—  evitar  suspeitas  —  medo  do  mano  —  diz  que  não  ha  remé- 
dio —  mais  uns  diasinhos  só  —  os  velhotes  engazupados  — 
coroar  a  sua  ventura. 

—  Não  tem  mais  nenhum  recado  r 

—  Amor  —  amor  apaixonado  —  muita  ternura  —  aíFecto 
inalterável.  Quer  que  lhe  diga  alguma  cousa  da  sua  parte  ? 

—  Meu  caro  amigo,  respondeu  o  innocente  Tupman,  aper- 
tando calorosamente  a  mão  do  amigo  —  leve-lhe  muitas  e 
ternas  saudades  —  diga-lhe  quanto  me  custa  o  dissimular  — 
diga-lhe  qualquer  cousa  de  amável  :  mas  acrescente  como  eu 
estou  convencido  da  necessidade  do  fingimento  que  ella  esta 
manhã  me  suggeriu,  por  intermédio  do  meu  amigo.  Diga  que 
eu  applaudo  a  sua  prudência  e  que  lhe  admiro  a  discri- 
ção. 

—  Dil-o-hei.  Quer  mais  alguma  cousa? 

—  Nada  mais;  acrescente  apenas  que  eu  fico  a  suspirar 
pelo  momento  em  que  lhe  possa  chamar  minha,  e  em  que  se 
torne  desnecessária  toda  a  dissimulação. 

—  Por  certo,  por  certo.  Mais  alguma  cousa? 

—  Oh !    meu  amigo  !    disse   o  pobre  Tupman,  apertando 

O 


i:>0  AS  AVENTURAS 


outra  vez  a  mão  do  companheiro,  receba  os  meus  fervorosos 
agradecimentos  pela  sua  desinteressada  amabilidade ;  e  per- 
dòe-me  se  eu  alguma  vez,  mesmo  por  pensamentos,  lhe  fiz  a 
injustiça  de  suppôr  que  me  servia  de  obstáculo.  Meu  querido 
amigo.poderei  alguma  vez  pagar-lhe  o  obsequio? 

—  Não  falle  n'isso,  replicou  o  sr.  Jingle. 

Calou-se  de  súbito,  como  se  lhe  occorresse  alguma  ideia, 
e  proseguiu : 

—  A  propósito,  o  amigo  poderia  dispor  de  dez  libras, 
poder — Caso  urgente  —  pago  d'aqui  a  três  dias. 

—  Creio  que  posso,  replicou  o  sr.  Tupman  com  a  maior 
effusão.  Três  dias,  diz  o  amigo  ? 

—  Três  dias  só  —  tudo  fica  arranjado  —  acabam  as  diffi- 
culdades. 

O  sr.  Tupman  contou  o  dinheiro  nas  mãos  do  sr.  Jingle, 
o  qual  o  deixou  cahir,  moeda  por  moeda,  dentro  da  algibeira, 
emquanto  os  dois  se  encaminhavam  para  casa. 

—  Tome  cautela,  disse  o  sr.  Jingle  —  nem  um  olhar. 

—  Nem  um  gesto,  acudiu  o  sr.  Tupman. 

—  Nem  uma  syllaba. 

—  Nem  um  murmúrio. 

—  Todas  as  suas  attençÕes  para  a  sobrinha  —  antes  áspero 
do  que  outra  cousa  para' a  tia  —  único  meio  de  intrujar  os 
velhotes. 

—  Terei  cautela,  disse  o  sr.  Tupman  alto. 

—  E  eu  também,  disse  com  os  seus  botões  o  sr.  Jingle. 
E  entrararii  na  casa. 

A  scena  da  tarde  repetiu-se  de  noite,  e  nas  três  tardes  e 
noites  que  se  seguiram.  No  quarto  dia,  o  dono  da  casa  estava 
contentíssimo,  por  se  ter  persuadido  de  que  não  havia  fun- 
damento para  as  accusações  contra  o  sr.  Tupman. 

Na  mesma  estava  o  sr.  Tupman,  porque  o  &r.  Jingle  lhe 
dissera  que  o  seu  negocio  não  tardaria  a  entrar  em  crise.  Na 
mesma  o  sr.  PickAvick,  porque  era  raro  estar  de  differente 
humor.  Na  mesma  não  estava  o  sr.  Snodgrass,  porque  andava 
com  ciúmes  do  sr.  Tupman.  Mas  na  mesma  estava  a  velha 
dama,  porque  tinha  ganho  ao  whist.  E  na  mesma  estavam  o 
sr.  Jingle  mais  Miss  Wardle,  por  motivos  de  sufficiente  im- 
portância n'esta  aventurosa  historia  para  merecerem  ser  nar- 
rados n'outro  capitulo. 


130  SR.   PICKWICK 


l3l 


CAPITULO   IX 

Urra  descoberta  e  uma  perseguição 

Estava  a  ceia  na  mesa,  as  cadeiras  dispostas  em  volta 
d  ella,  garrafas,  canecas  e  copos  em  cima  do  aparador,  e  tudo 
revelava  a  approximação  do  momento  mais  sociável  das  vinte 
e  quatro  horas. 

—  Onde  está  Rachel  ?  perguntou  o  sr.  Wardle. 

—  E'  verdade,  e  Jingle  ?  acrescentou  o  sr.  Pickwick. 

—  Ora  esta  !  disse  o  dono  da  casa,  estranho  não  termos 
dado  ha  mais  tempo  pela  falta  d'elle.  E'  boa  !  parece-me  que 
ha  duas  horas,  pelo  menos,  que  não  lhe  ouço  a  voz.  Emily, 
minha  querida,  toca  a  campainha. 

Tocou-se  a  campainha,  e  appareceu  o  rapaz  gorducho. 

—  Onde  está  Miss  Rachel  ? 
O  rapazote  não  sabia. 

• —  Onde  está  então  o  sr,  Jingle  ? 

Resposta  idêntica.  Toda  a  gente  pareceu  surprehendida. 
Era  tarde  — « mais  de  onze  horas.  O  sr.  Tupman  ria  á  sucapá. 
Estavam  mettidos  para  qualquer  canto,  a  fallar  d'elle.  Boa 
partida  —  tinha  graça  ás  pilhas  ! 

—  Não  quer  dizer  nada,  disse  Wardle  depois  de  uma  curta 
pausa.  Não  tardam  ahi.  Eu  á  ceia  nunca  espero  por  nin- 
guém. 

—  Excellente  regra  essa,  disse  o  sr.  Pickwick,  admirável ! 

—  Façam  favor  de  se  sentar,  exclamou  o  dono  da  casa. 

—  Diz  muito  bem,  disse  o  sr.  Pickwick. 
E  sentaram-se. 

Na  mesa  levantava-se  uma  peça  colossal  de  vacca  fria,  da 
qual  o  sr.  Pickwick  foi  provido*  com  um  copioso  quinhão. 
Acabava  elle  de  erguer  o  garfo  para  a  bocca  e  estava  mesmo 
a  abril  a  para  a  recepção  de  um  bocado  de  carne,  quando  se 
ergueu  de  súbito  na  cozinha  o  sussurro  de  muitas  vozes.  De- 
teve-se  e  pousou  em  baixo  o  garfo  Outro  tanto  fez  o  sr. 
Wardle,  largando  insensivelmente  da  mão  ©  trinchante  que 
ficou  enterrado  na  carne.  Olhou  para  o  sr.  Pickwick.  O  sr. 
Pickwick  olhou  para  elle. 

Ouviram-se  passos  pesados  no  corredor.  A  porta  da  casa 


i:>l  AS  AVENTURAS 


de  jantar  escancarou-se  de  repente ;  e  o  homem  que  engra- 
xara as  botas  do  sr,  Pickwick  á  chegada  d'este,  precipiíou-se 
pelo  aposento,  seguido  pelo  rapaz  gorducho  e  por  toda  a  cria- 
dagem. 

—  Que  diabo  quer  dizer  isto?  exclamou  o  dono  da  casa. 

—  Pegou  fogo  á  chaminé,  querem  ver,  Emily  ?  perguntou 
a  avó. 

—  Qual,  avósinha  I  Não  é  isso  !  guincharam  ambas  as  me- 
ninas. 

—  Que  novidade  é  esta?  rugiu  o  sr.  Wardle. 

O  homem,  esbaforido,  pronunciou  com  voz  débil: 

—  Pozeram-se  a  andar,  patrão!  —  deram  ás  de  Villa  Dio- 
go, senhor! 

N'este  momento,  viu-se  o  sr.  Tupman  largar  o  garfo  e  a 
faca  e  tornar-se  muito  pallido. 

—  Quem  é  que  se  poz  a  andar?  disse  ferozmente  o  sr. 
Wardle. 

—  O  sr.  Jingle  mais  Miss  Rachel,  n'uma  sege  de  posta,  do 
Leão  Ajid  de  Muggleton.  Eu  estava  lá  ;  mas  não  pude  pôr- 
Ihes  estorvo;  por  isso  corri  para  o  avisar. 

—  Eu  é  que  lhe  paguei  a  despeza  !  clamou  o  Sr.  Tupman, 
dando  um  pulo  de  fúria.  Apanhou-me  dez  libras  !  —  agar- 
rem-no ! — F'errou-me  calote! — Esta  é  que  eu  não  tole- 
ro 1  —  Quero  que  façam  justiça,  Pickwick !  —  Ha  de  pagar- 
m'as. 

E  com  varias  exclamações  incoherentes  d'este  jaez,  o  mí- 
sero gentleman  andava  ás  voltas  pelo  aposento,  n'um  trans- 
porte de  furor. 

—  Nosso  Senhor  nos  defenda!  exclamou  o  sr.  Pickwick, 
observando  a  extraordinária  gesticulação  do  amigo  com  sur- 
presa apavorada.  Elle   endoideceu  !   Que  havemos  de  fazer  ? 

—  Que  havemos  de  fazer?  disse  o  vigoroso  amphytrião, 
que  anenas  attentou  nas  ultimas  palavras.  Ponham  o  cavallo 
ao  cabriolet !  Vou  arranjar  uma  sege  ao  Leão,  e  perseguil-os 
sem  demora.  Aonde,  bradou  elle  apenas  o  criado  sahiu  para 
executar  a  ordem,  aonde  pára  esse  maroto  de  Joe  ? 

—  Aqui  estou  ;  mas  não  sou  maroto,  replicou  a  voz  do 
gorducho. 

—  Deixe-me  deitar-lhe  as  unhas,  Pickwick  !  gritou  Wardle, 
precipitando-se  para  o  malfadado  garoto.  Foi  subornado  por 


J 


no  SR.  PJCKWICK  i.-io 


aquelle  malandro  de  Jingle  para  me  metter  n'uma  pista  er- 
rada, mettendo-me  na  cabeça  patranhas  a  respeito  de  minha 
irmã  e  do  seu  amigo  Tupman.  (N'isto  o  sr.  Tupman  deixou- 
sc  cahir  n'uma  cadeira).  Deixe-me  agarral-o  ! 

—  Não  deixe!  chiavam  as  mulheres  todas,  por  cima  de 
cujas  exclamações  se  ouvia  distinctamente  a  choradeira  do 
gorducho. 

—  Não  me  agarrem  !  gritava  o  velho.  Sr.  Winkle,  tire 
d'aqui  as  mãos!   Sr.  Pickwick,  largue-me,  ande  ! 

N'este  momento  de  barafunda  e  de  confusão,  era  um  bello 
espectáculo  ver  a  expressão  plácida  e  philosophica  das  feições 
do  sr.  Pickwick,  embora  um  pouco  intlammadas  pelo  esforço 
que  olle  fazia  para  abrandar  a  íuria  impetuosa  de  Wardle, 
estreitando  vigorosamente  com  ambos  os  braços  a  enorme 
cmtura  d'este.  Eentretanto  o  rapazote  era  arranhado  impel- 
lido,  puxado  para  fora  da  sala  por  todo  o  mulherio  ali  reunido. 

Mal  o  sr.  Pickwick  largara  a  presa,  entrou  o  criado  para 
annunciar  que  o  cabriolet  estava  prompto. 

—  Não  o  deixem  só!  guincharam  as  mulheres,  é  capaz  de 
matar  alguém ! 

—  Eu  vou  com  elle,  disse  o  sr.  Pickwick. 

—  Vossê  é  um  amigo,  Pickwick,  disse  o  dono  da  casa, 
apertando-lhe  a  mão.  Emma,  de  uma  manta  ao  sr.  Pickwick 
para  enrolar  á  roda  do  pescoço  —  avie-se.  Tomem  conta  na 
avó,  pequenas;  ella  está  desmaiada.  Vamos,  está  prompto  ? 

Envoltas  rapidamente  n'uma  grande  manta  a  bocca  e  o 
queixo  do  sr.  Pickwick,  mettido  o  chapéo  na  cabeça  do  grande 
homem,  e  lançado  no  braço  d'elle  o  seu  enorme  sobretudo, 
elle  respondeu   affirmativamente.  Saltaram  para  o  cabriolet. 

—  Larga-lhe  a  rédea,  Tom,  bradou  o  sr.  Wardle. 

E  lá  foram  rodando  pelas  viellas  fora,  aos  solavancos  pelos 
carreiros,  aos  encontrões  ás  sebes  de  uma  e  de  outra  banda, 
como  se  a  cada  momento  ameaçassem  escavacar-se. 

—  Que  dianteira  nos  levam  elles  ?  gritou  Wardle,  ao  che- 
garem á  porta  do  Leão  A^iil,  em  volta  da  qual,  comquanto 
fosse  já  tarde,  se  agglomerava  um  pequeno  grupo. 

—  Três  quartos  de  hora  quando  muito,  foi  a  resposta  de 
todos. 

—  Uma  sege  e  quatro  cavallos,  depressa  !  Rápido  !  Depois 
recolherão  o  cabriolet  I 


:>4  AS   AVENTURAS 


—  Andem,  rapazes  !  gritou  o  estalajadeiro  —  sege  e  quatro 
cavallos  na  rua  —  aviem  se  —  espertem  ! 

Súmiram-se  a  correr  criados  e  moços  de  cavallariça.  Scin- 
tillaram  lanternas,  emquanto  os  homens  corriam  de  um  para 
outro  lado  ;  as  ferraduras  dos  cavallos  retiniram  no  pavimento 
irregular  do  pateo ;  trovejou  a  sege,  puxada  para  fora  da  co- 
cheira;  e  tudo  era  barulho  e  alvoroto. 

—  Então  ?  essa  sege  vem  ou  não  .vem  esta  noite  ?  gritou 
Wardle. 

—  Vem  agora  mesmo  pelo  pateo  abaixo,  replicou  o  moço 
da  cavallariça. 

Sahiu  a  sege  —  atrelaram-se  os  cavallos  —  saltaram  para 
cima  os  postilhões  —  e  para  dentro  os  viajantes. 

—  Tome  sentido,  gritou  Wardle,  as  sete  milhas  até  á  muda 
em  menos  de  meia  hora. 

—  Roda!  ^  .  . 

Os  postilhões  applicaram  o  chicote  e  a  espora,  os  criados 
gritaram,  os  moços  berraram,  e  lá  se  foram  os  viajantes  por 
ares  e  ventos. 

—  Linda  situação  !  pensou  o  sr.  Pickwick,  quando  teve  um 
momento  para  reflectir.  Linda  situação  para  o  Presidente  Ge- 
ral do  Club  Pickwick.  Sege  encharcada  —  cavallos  levados  da 
breca  —  quinze  milhas  por  hora  —  e  isto  á  meia  noite  1 

Durante  as  primeiras  três  ou  quatro  milhas,  nem  uma  pa- 
lavra foi  proferida  por  qualquer  dos  dois,  tão  immersos  am- 
bos estavam  nas  suas  reflexões. 

Mas  vencida  essa  distancia  e  animados  os  cavallos  aponto 
de  se  desempenharem  a  valer  do  seu  mister,  o  sr.  Pickwick 
sentiu-se  tão  excitado  pela  rapidez  da  corrida  que  não  lhe 
soffreu  o  animo  continuar  na  mesma,  mudez. 

—  Com  certeza  que  os  apanhamos,  parece-me,  disse  elle. 

—  Assim  espero,  replicou  o  companheiro. 

—  Que  bella  noite !  disse  o  sr.  Pickwick  levantando  os 
olhos  para  a  lua  que  brilhava  esplendidamente. 

—  Tanto  peior,  retorquiu  Wardle;  porque  elles  tiveram  a 
vantagem  do  luar  para  nos  tomarem  a  dianteira,  e  nós  vamos 
perdel-o.  D'aqui  a  uma  hora  vae-se  a  lua  embora. 

—  Não  ha  de  ser  lá  muito  agradável  ir  n'esta  carreira  ás 
escuras,  não  acha  ?  interrogou  o  sr.  Pickwick. 

—  Também  me  parece,  respondeu  friamente  o  amigo. 


DO   SK.    IMCKVVICK  l35 


A  excitação  temporária  do  sr.  Pickwick  começou  a  esmo- 
recer um  pouco,  quando  èlle  reflectiu  nos  perigos  e  nas  in- 
conveniências da  expedição  em  que  tão  levianamente  se  met- 
tera. 

Despertou-o  o  alarido  do  postilhão  que  ia  adiante. 

—  lò  —  iô  —  iô— iô  —  iô...  ô!  gritou  o  primeiro  posti- 
lhão. 

—  Iô  —  iô  —  iô  —  iô . . .  ô  !   bradou  o  segundo  postilhão. 

—  Iô  —  iô  —  iô — ÍÔ...Ô!  echoou  em  voz  de  Stentor  o 
próprio  Wardle,  deitando  a  cabeça  e  metade  do  corpo  para 
tora  da  portinhola. 

—  Iô  —  iô  —  iô  —  iô . . .  ô  !  clamou  o  sr.  Pickwick,  pegando 
no  estribilho  do  grito,  apesar  de  não  ter  a  mais  leve  noção 
do  seu  significado  ou  do  seu  intento. 

E  no  meio  da  gritaria  dos  quatro,  a  sege  parou. 

—  Que  ha  de  novo  ?  perguntou  o  sr.  Pickwick. 

—  Aqui  ha  uma  barreira,  respondeu  o  velho  Wardle,  pôde 
ser  que  nos  dê  alguma  noticia  dos  fugitivos. 

Depois  de  um  lapso  de  cinco  minutos,  consumidos  a  ba- 
ter á  porta  e  a  gritar  sem  intervallo,  emergiu  de  casa  do  turn- 
pike,  um  homem  em  mangas  de  camisa,  que  abriu  a  bar- 
reira *, 

—  Ha  quanto  tempo  passou  por  aqui  uma  sege  de  posta? 
perguntou  o  sr.  Wardle. 

—  Ha  quanto  tempo  ? 

—  Sim,  homem  ! 

—  A  fallar  a  verdade,  não  sei  bem.  Ha  muito  não  foi,  mas 
também  não  foi  ha  pouco.  Ahi  talvez  entre  estas  duas  cou- 
sas. 

—  Mas  passou  uma  sege,  com  certeza? 

—  Ah  !  lá  isso  passou,  passou  uma  sege. 

—  Ha  quanto  tempo,  meu  amigo  ?  interveiu  o  sr.  Pick- 
wick, ha  uma  hora  ? 

—  Sim,  ha  de  andar  por  isso,  respondeu  o  homem. 

—  Ou  ha  duas  horas  ?  perguntou  o  primeiro  postilhão. 


'  Nas  estradas  de  Inglaterra  existem  barreiras,  onde  se  paga  a  porta- 
gem. O  tiirnpike  é  o  molinete  que  pá  passagem  aos  viajantes,  um  a  um. 


JÚ  AS   AVENTURAS 


—  Sim,  não  me  espantava  que  fosse  ha  duas  horas,  retor- 
quiu o  velho  com  ar  de  duvida. 

—  Roda,  rapazes  I  gritou  o  irascivel  Wardle,  não  percam 
mais  tempo  com  esse  velho  idiota. 

—  Idiota!  exclamou  o  velho  com  um  risinho  sarcástico, 
parado  no  meio  da  estrada,  com  a  barreira  entreaberta,  ob- 
servando a  sege  que  diminuía  rapidamente  com  a  distancia. 
Não  tanto  como  tu  julgas;  perdeste  aqui  dez  minutos,  e  a  fi- 
nal ficaste  sabendo  tanto  como  antes.  Se  todos  os  guarda- 
barreiras  ganharem  o  seu  guinéo  com  metade  da  consciência 
com  que  eu  ganhei  o  meu,  não  apanhas  tu  a  outra  sege  antes 
do  S.  Miguel,  meu  velho  barrigudo. 

E  com  outra  casquinada  prolongada,  o  velho  fechou  a 
barreira,  entrou  em  casa  e  aferrolhou  a  porta. 

Entrementes  a  sege  ia  seguindo,  sem  diminuir  a  andadura, 
em  direcção  à  muda. 

A  lua,  como  Wardle  predissera,  declinava  rapidamente ; 
grandes  enfiadas  de  nuvens  pesadas  e  escuras,  que  durante 
algum  tempo  se  tinham  gradualmente  espalhado  pelo  céo, 
formavam  agora  uma  massa  negra  e  densa ;  e  grossos  pingos 
de  chuva,  batendo  de  vez  em  quando  nas  vidraças  da  sege, 
pareciam  avisar  os  viajantes  da  rápida  aproximação  de  uma 
noite  tempestuosa. 

O  vento  também,  soprando-lhes  mesmo  de  rosto,  enfur- 
nava-se  em  rajadas  furiosas  pela  estrada  estreita,  e  uivava  lu- 
gubremente na  ramaria  das  arvores  que  a  orlavam. 

O  sr.  Pickwick  conchegou  mais  o  sobretudo,  encolheu-se 
mais  commodamente  no  canto  da  sege,  e  cahiu  n'um  somno 
profundo,  do  qual  apenas  acordou  á  paragem  do  vehiculo, 
ao  som  da  sineta  da  estalagem,  e  ao  grito  de  : 

—  Cavallos,  já,  já  I 

Mas  outra  demora  houve  aqui. 

Os  moços  estavam  a  dormir  com  um  somno  tão  mysterio- 
samente  pesado,  que  cada  um  d'elles  levou  cinco  minutos  a 
acordar. 

O  encarregado  da  cavallariça  desencaminhára-se-lhe  a 
chave,  e,  encontrada  ella,  dois  ajudantes  estremunhados  tro- 
caram os  apparelhos  dos  cavallos,  e  tiveram  de  voltar  ao 
principio  do  trabalho. 

Se  o  sr.  Pickwick  estivesse  só,  estas  multíplices  contrarie- 


l»0   SK.    PICKW  ICK  1^7 


dades  leriam  logo  posto  lim  a  perseguição,  mas  o  velho  War- 
dle  não  era  homem  que  se  atrapalhasse  por  tão  pouco ;  me- 
xia-se  com  tão  boa  vontade,  aos  empurrões  a  um,  aos  safa- 
nões a  outro,  apertando  aqui  uma  hvela,  prendendo  além 
uma  corrente,  que  a  sege  estava  prestes  em  muito  menos 
tempo  do  que  se  poderia  rasoavelmente  esperar,  no  meio  de 
tantas  difficuldades. 

Continuaram  a  jornada;  e  com  certeza  que  não  era  nada 
animadora  a  perspectiva  que  tinham  diante  de  si. 

O  percurso  até  á  próxima  muda  era  de  quinze  milhas,  o 
vento  era  violento,  e  a  chuva  cahia  ás  bátegas. 

Era  impossível  andar  muito  contra  tantos  obstáculos  re- 
unidos :  passava  já  da  uma  hora,  e  eram  precisas  cerca  de 
duas  para  chegar  á  muda. 

Comtudo,  aqui  deparou-se-lhes  um  objecto  que  lhes  alen- 
tou as  esperanças  e  lhes  reanimou  o  espirito  abatido. 

—  Quando  e  que  chegou  esta  sege  ?  gritou  o  velho  War- 
dle,  saltando  para  fora  do  seu  vehiculo,  e  apontando  para 
uma  sege  coberta  de  lama  encharcada,  que  estava  no  pateo. 

—  Ainda  não  ha  um  quarto  de  hora,  senhor,  replicou  o 
homem  da  cavallariça,  a  quem  era  dirigida  a  pergunta. 

—  Uma  senhora  com  um  sujeito  .''  perguntou  Wardle,  quasi 
otfegante  de  impaciência. 

—  Sim,  senhor. 

—  Um  sujeito  alto  —  de  casaca  —  pernas  compridas  — 
corpo  esguio  ? 

—  Sim,  senhor. 

—  Uma  senhora  já  de  idade  —  cara  chupada  —  magrizeila 
—  hein  ? 

—  Sim,  senhor. 

—  Por  Deus  !  são  elles,  Pickwicic  I   exclamou  o  velho. 

—  Podiam  ter  chegado  aqui  mais  cedo,  continuou  o  ho- 
mem, se  não  fosse  ter-se-lhes  partido  um  dos  tirantes. 

—  São  elles,  disse  Wardle.  São  elles,  co'a  breca  1  Sege  e 
quatro  cavallos,  sem  demora.  Ainda  podemos  apanhal-os, 
antes  de  chegarem  á  outra  muda.  Um  guinéo  a  cada  um  de 
vossês,  rapazes  —  vivo,  vivo  —  despachem-se  —  sejam  boas 
pessoas. 

E  com  exhortações  d'este  jaez,  o  velho  gentleman  corria 
de  um  lado  para  o  outro,  e  atarefava-se  n'um  estado  de  ex- 


l38  AS   AVENTURAS 


citação  que  se  communicou  também  ao  sr.  Pickwick,  o  qual, 
sob  esta  influencia,  se  emmaranhou  nos  tirantes,  embaraçou- 
se  no  meio  dos  cavallos  e  das  rodas  de  uma  maneira  espan- 
tosa, acreditando  íirmemente  que  estava  assim  adiantando  os 
preparativos  materiaes  para  a  continuação  da  jornada. 

—  Salte  para  dentro  —  salte,  homem  !  gritou  o  velho  War- 
dle  trepando  para  a  sege,  levantando  os  degraus,  e  batendo 
violentamente  com  a  portinhola.  Venha  d"ahi  I  avie-se  ! 

E  antes  que  o  sr.  Pickwick  percebesse  nitidamente  o  que 
ia  fazer,  sentiu-se  mettido  pela  outra  portinhola,  com  um  em- 
purrão do  velho  e  um  empurrão  do  moço  da  cavallariça.  E 
lá  seguiram  o  seu  caminho. 

—  Ah  I  isto  agora  é  que  é  andar !  disse  Wardle  exultante. 
E  com  effeito  iam  andando  nas  horas  de  estalar,  como  o 

attestavam  sufficientemente  ao  sr.  Pickwick  as  pancadas  con- 
stantes que  elle  dava  de  encontro  ao  duro  taboado  do  carro 
ou  ao  corpo  do  companheiro. 

—  Aguente-se!  disse  o  corpulento  velho,  sentindo  o  sr. 
Pickwick  dar  uma  valente  cabeçada  no  seu  immenso  collete, 

—  Nimca  na  minha  vida  senti  solavancos  assim,  disse  o 
sr.  Pickwick 

—  Não  quer  dizer  nada,  replicou  o  companheiro.  Não  tarda 
que  acabe.  Segure-se,  segure-se. 

O  sr.  Pickwick  encafuou-se  para  o  seu  cantinho,  o  mais 
seguro  que  pôde  :  e  a  sege  foi  rodando  mais  depressa  do  que 
nunca. 

Tinham  d'esta  maneira  percorrido  umas  três  milhas, 
quando  o  sr.  Wardle,  que  ha  dois  ou  três  minutos  estava 
olhando  para  fora  da  portinhola,  recolheu  de  repente  a  ca- 
beça, coberta  de  lama,  e  exclamou  offegante  de  alvoroço : 

' —  Ahi  estão  elles  I 

O  sr.  Pickwick  deitou  a  cabeça  fora  da  portinhola.  Exacto  : 
lá  se  divisava  uma  sege  e  quatro  cavallos,  a  pequena  distancia 
adiante  d'elles,  voando  a  todo  o  galope. 

—  Segue  !  segue  !  vociferou  o  velho.  Dois  guinéos  a  cada 
um,  rapazes  —  não  os  deixem  ganhar  terreno  —  apanhem-os 
—  apanhem-os  I 

Os  cavallos  da  primeira  sege  largaram  por  ali  fora  a  toda 
a  força;  e  os  do  sr.  Wardle  galopavam  furiosamente  atraz 
d'elles. 


no  SR.  piCKwiCK  i39 


—  F^stou-lhe  a  vêr  a  cabeça,  exclamou  o  colérico  velho. 
Com  mil  raios !  estou-lhe  a  vêr  a  cabeça  ! 

—  Também  eu,  disse  o  sr.  Pickwick.  E'  elle. 

O  sr.  Pickwick  não  se  enganava.  A  physionomia  do  sr. 
Jingle,  completamente  coberta  pela  lama  atirada  pelas  rodas, 
percebia-se  distinctamente  á  portinhola;  e  o  movimento  do 
braço,  que  elle  accionava  violentamente  para  os  postilhões, 
denotava  que  elle  os  estava  animando  a  augmeniarem  de  ve- 
locidade. 

Intenso  era  o  interesse. 

Campos,  arvores  e  sebes  pareciam  fugir  d'elles  com  a  ve- 
locidade do  furacão,  tão  rápida  era  a  andadura  dos  seus  ca- 
vallos. 

Estavam  mesmo  ao  lado  da  primeira  sege. 

Podia-se  ouvir  claramente  a  voz  de  Jingle,  mesmo  acima 
do  barulho  das  rodas,  a  dar  pressa  á  sua  gente.. 

Wardle  espumava  de  raiva  e  de  excitação. 

Rogava  pragas  e  vomitava  injurias  ás  dúzias,  mostrava  o 
punho  cerrado  ao  objecto  da  sua  indignação;  mas  o  sr.  Jin- 
gle apenas  respondia  com  um  sorriso  desdenhoso,  e  respon- 
dia ás  ameaças  com  um  grito  de  triumpho,  quando  os  seus 
cavallos,  obedecendo  ás  crescentes  applicações  de  chicote  e 
de  espora,  galoparam  com  mais  rapidez,  deixando  atraz  os 
perseguidores. 

Acabava  o  sr.  Pickwick  de  metter  a  cabeça  para  dentro, 
e  o  mesmo  fizera  o  sr.  Wardle,  cançado  de  berrar,  quando 
um  tremendo  solavanco  atirou  com  elles  de  encontro  á  frente 
do  carro. 

Ouviu-se  um  estrondo  súbito  —  um  estalo  violento  —  des- 
pegou-se  uma  roda,  e  a  sege  virou-se. 

Passados  uns  poucos  de  segundos  de  espanto  e  de  confu- 
são, durante  os  quaes  não  se  pôde  perceber  senão  o  escou- 
cear dos  cavallos  e  o  partir  dos  vidros,  o  sr.  Pickwick  sentiu- 
se  violentamente  puxado  para  fora  dos  escombros  da  sege, 
e  apenas  se  poz  em  pé  e  desembaraçou  a  cabeça  das  abas  do 
seu  immenso  sobretudo  que  lhe  impediu  de  todo  o  servir-se 
dos  óculos,  o  desastre  appareceu-lhe  em  toda  a  sua  plenitude. 

O  velho  Wardle  estava  ao  lado  d'elle,  sem  chapéo,  com  o 
fato  rasgado  em  muitos  sitios,  e  aos  pés  de  ambos  estavam 
dispersos  os  cavacos  da  sege. 


140  .;S  AVENTURAS 


Os  postilhões  que  haviam  conseguido  cortar  os  tirantes, 
estavam  junto  ás  cabeças  dos  cavallos,  desfigurados  com  a 
lama  e  esbaforidos  com  a  rapidez  da  carreira. 

A  cerca  de  cem  jardas  adiante,  via-se  a  outra  sege,  que 
estacara  ao  ouvir  o  estrondo. 

Os  postilhões,  com  a  cara  torcida  por  um  riso  escarninho, 
observavam  de  cima  das  sellas  o  grupo  adverso,  e  o  sr.  Jingle 
estava  á  portinhola,  a  contemplar  os  estragos  com  evidente 
satisfação. 

Rompia  a  manhã,  cajá  luz  acinzentada  tornava  a  scena 
perfeitamente  visivel. 

—  Eh  lá  !  gritou  o  descarado  Jingle.  Ficou  alguém  ferido  ? 

—  Cavalheiros    de    idade  madura  —  pesaditos  —  perigoso  — 
muito  perigoso. 

—  Vossê  é  um  desavergonhado  1  rugiu  Wardle. 

—  Ah !  ah !  replicou  Jingle ;  e  em  seguida  acrescentou 
pestanejando  maliciosamente  e  apontando  com  o  poUegar 
para  o  interior  da  sege  —  Olhe  lá  !  —  ella  vae  bem  —  manda- 
Ihe  muitos  cumprimentos  —  pede-lhe  que  não  se  incommode 

—  saudades  a  Tuppy —  Quer  subir  para  a  trazeira  ■  —  Roda, 
rapazes  I 

Os  postilhões  retomaram  a  sua  attitude  profissional,  e  a 
sege  rodou,  emquanto  o  sr.  Jingle  acenava  zombeteiramente 
da  portinhola  com  um  lenço  branco. 

Nada,  n'esta  aventura,  nem  mesmo  o  trambulhao,  pertur- 
bara a  serenidade  habitual  do  sr.  Pickwick.  Mas  o  que  elle 
não  pôde  levar  á  paciência  foi  aquella  patifaria  de  apanhar 
dinheiro  ao  seu  fiel  sequaz  e  depois  abreviar-lhe  o  nome 
para  o  de  Tuppy. 

Ofiegou  fortemente,  fez-se  vermelho  até  aos  aros  dos  ócu- 
los, e  disse  com  íentidáo  e  energia  : 

—  Se  eu  torno  a  encontrar  aquelle  homem,  hei  de.  .  . 

—  Sim,  sim,  interrompeu  Wardle,  tudo  isso  é  muito  bom, 
mas  emquanto  nós  ficamos  aqui  a  dar  á  língua,  elles  obtém  a 
licença,  e  casam  em  Londres. 

O  sr.  Pickwick  calou  se  e  reservou  no  seu  intimo  os  pro- 
jectos de  vindicta. 

—  Que  distancia  ha  d'aqui  á  primeira  muda  ?  perguntou  o 
sr.  Wardle  a  um  dos  moços. 

—  Seis  milhas,  não  é  isso.  Tom  ? 


1)Ô  SR.  PICKWI»  m 


—  Passa  de  seis. 

—  Passa  de  seis  milhas,  senhor. 

—  Não  ha  remédio,  disse  Wardle,  temos  de  ir  até  lá  a  pé, 
Pickwick. 

—  Não  ha  remédio^  repetiu  esse  homem  deveras  illus- 
tre. 

Mandaram  adiante  um  dos  moços  a  cavallo  para  arranjar 
outra  sege  e  cavallos,  e  deixaram  atraz  o  outro  para  tomar 
conta  da  sege  despedaçada. 

Os  srs.  Pickwick  e  Wardle  metterara-se  resolutamente  a 
caminho,  tendo  primeiro  o  cuidado  de  enrolar  as  mantas  á 
roda  do  pescoço  e  de  enterrar  os  chapéos  pela  cabeça  abaixo 
para  evitar  quanto  possivel  a  chuva  que,  depois  de  uma  curta 
aberta,  recomeçava  a  cahir  a  cântaros. 


CAPITULO  X 

Que  dissipa  todas  as  duvidas  (se  algumas  existis- 
sem ainda)  com  respeito  ao  desinteresse  do  sr. 
Jíugle. 

Ha  em  Londres  diversas  estalagens  velhas,  que  eram  d'an- 
tes  quartéis  generaes  de  diligencias  celebres  no  tempo  em  que 
as  diligencias  faziam  as  suas  jornadas  de  um  modo  mais  grave 
e  solemne  do  que  hoje  em  dia,  mas  que  degeneraram  agora 
em  pouco  mais  do  que  em  logares  de  abrigo  e  guarda  para 
carroças  de  tora  da  terra. 

Debalde  o  leitor  proc-Liraria  qualquer  d'essas  antigas  hos- 
pedarias, entre  as  Cruzes  de  ouro,  os  Touros  de  ouro,  e  as 
Boccas  de  ouro,  que  alçam  as  pomposas  frontarias  nas  ruas 
melhoradas  da  metrópole. 

Se  elle  quizer  9peiar-se  n'uma  d'essas  velhas  pousadas, 
terá  de  encaminhar  os  passos  aos  bairros  mais  obscuros  da 
cidade ;  ahi,  n'algum  recesso  afastado,  é  que  encontrará  al- 
gumas d'ellas,  ainda,  erectas,  com  uma  espécie  de  teimosia 
melancólica,  entre  as  modernas  innovaçÕes  que  as  cercam. 


14^  AS  AVENTURAS 


Especialmente  no  Boroiigh  ',  ainda  resta  uma  meia  dúzia 
de  estalagens  velhas,  que  teem  conservado  inalteráveis  os  ca- 
racteres externos,  e  que  teem  escapado  tanto  á  fúria  de  me- 
lhoramentos públicos,  como  á  avidez  da  exploração  particu- 
lar. 

São  edifícios  cheios  de  galerias,  corredores  e  escadas,  bas- 
tante vastos,  estranhos  e  antiquados  para  fornecer  subsídios 
a  cem  historias  de  almas  do  outro  mundo,  caso  alguma  vez 
nos  víssemos  reduzidos  á  lamentável  necessidade  de  inventar 
algumas,  e  o  mundo  durasse  tanto,  que  esgotasse  as  innume- 
raveis  e  verídicas  lendas  relacionadas  com  a  velha  ponte  de 
Londres  e  as  suas  circumvisinhanças  da  margem  esquerda  do 
rio. 

No  pateo  de  uma  d'essas  estalagens  —  nada  menos  do  que 
o  celebre  Veado  branco  —  estava  um  homem  occupado  a  lim- 
par de  lama  um  par  de  botas,  na  manhãsinha  que  succedeu 
aos  acontecimentos  narrados  no  capitulo  antecedente. 

Trajava  um  collete  de  panno  ordinário,  ás  riscas,  com 
mangas  de  panninho  preto  e  botões  de  vidro  azul,  calções  de 
lá  e  polainas. 

A'  roda  do  pescoço  tinha  enrolado  negligentemente  um 
lenço  de  um  vermelho  assanhado,  e  um  velho  chapéo  branco 
desmazeladamente  posto  a  uma  banda  na  cabeça. 

Diante  d'elle  estavam  duas  fileiras  de  botas,  umas  já  lim- 
pas, e  outras  sujas,  e  a  cada  addicção  que  elle  fazia  á  fileira 
das  limpas,  o  homem  repousava  do  trabalho,  e  contemplava 
o  resultado  com  satisfação  evidente. 

O  pateo  não  offerecia  nada  d'aquelle  reboliço  e  d'aquella 
acti^údade  que  de  ordinário  caracterisam  uma  pousada  onde 
param  as  diligencias. 

Estavam  arrumadas  para  ali  três  ou  quatro  carroças,  car- 
regadas com  um  montão  de  mercadorias  que  attingiam  pro- 
ximamente a  altura  de  um  segundo  andar  ordinário,  por  baixo 
de  um  elevado  telheiro  que  se  estendia  a  um  dos  lados  do 
pateo;  e  outra  carroça,  que  ia  provavelmente  encetar  a  jor- 
nada n'aquella  manhã,  estava  cá  fora  a  céo  descoberto. 

Guarneciam  os  dois  lados  do  quadrilátero  uma  renque  du- 


Bairro  suburbano  de  Londres,  ao  sul  do  Tamisa. 


DO   SR.   HCKWICK  1^3 


pia  de  galerias,  com  velhas  balaustradas  rústicas,  sobre  as 
quaes  se  abriam  quartos  de  cama,  e  sobre  a  porta  que  dava 
para  a  casa  de  venda  e  o  café  pendia  uma  dupla  tila  de  cam- 
painhas, abrigadas  do  tempo  por  um  pequeno  alpendre  incli- 
nado. 

Dois  ou  três  cabriolets  e  seges  estavam  guardadas  sob  di- 
versos telheiros ;  e  de  quando  em  quando  o  escarvar  das  pa- 
ias de  um  cavallo  ou  o  retinir  de  uma  corrente  de  ferro  no 
extremo  do  pateo  annunciavam  a  quem  n'isso  tinha  interesse 
que  para  aquelles  lados  ficava  a  cavallariça. 

Se  acrescentarmos  que  uns  poucos  de  rapazes  de  blusa 
estavam  a  dormir  em  cmia  de  trouxas,  fardos  de  lã  e  outras 
mercadorias  espalhadas  sobre  molhos  de  palha,  teremos  des- 
cripto  quanto  basta  a  apparencia  geral  da  estalagem  do 
Veado  branco,  na  rua  principal  do  Borough,  na  manhã  de 
que  se  trata. 

Ao  tinir  de  uma  das  campainhas,  seguiu-se  aappariçãode 
uma  criadinha  franzina  na  galeria  superior,  a  qual,  depois  de 
bater  a  uma  das  portas  e  de  receber  de  dentro  um  recado, 
chamou  de  cima  da  varanda  : 

—  Sam  ! 

—  Prompto  !  replicou  o  homem  do  chapéo  branco. 

—  O  numero  vinte  e  dois  precisa  das  botas. 

—  Pergunte  ao  numero  vinte  e  dois  se  as  quer  agora  ou 
quer  esperar  que  elias  lá  vão  ter. 

—  Adeus,  não  diga  tolices,  Sam,  disse  a  rapariga  com  voz 
adocicada;  o  sujeito  quer  as  bolas  immediatamente. 

—  Você  o  que  tem,  é -graça  a  valer,  disse  o  engraxador. 
Ora  veja-me  lá  estas  botas  —  onze  pares  de  botas,  e  mais  um 
sapato  que  pertence  ao  numero  seis,  que  tem  uma  perna  de 
pau.  As  botas  teem  de  estar  promptas  ás  oito  e  meia,  e  o  sa- 
pato ás  nove.  Quem  vem  a  ser  o  numero  vinte  e  dois  para 
passar  adiante  de  lodos  os  outros  ?  Nada,  nada,  cada  um  por 
sua  vez,  como  dizia  John  Ketch  quando  estava  a  enforcar  uns 
sujeitos.  Tenho  muita  pena  que  espere,  patrão,  mas  d  aqui  a 
pouco  o  sirvo. 

Dizendo  isto,  o  homem  do  chapéo  branco  poz-se  a  traba- 
lhar n'uma  bota  de  canhão  com  assiduidade  crescente. 

Ouviu-se  outra  campainhada;  e  appareceu  na  galeria  fron- 
teira a  activa  e  velha  estalajadeira  do  Veado  braiico. 


144  -'^5  AVENTURAS 


—  Sam,  gritou  ella,  onde  está  esse  madraço,  esse  man- 
drião—  Ah!  lá  estás,  Sam;  porque  é  que  não  respondes? 

—  Não  me  parecia  muito  bonito  responder  antes  da  se- 
nhora acabar  de  fallar,  replicou  Sam  com  aspereza. 

—  Olha,  limpa  já  estes  sapatos  para  o  numero  dezesete  e 
leva-os  ao  gabinete  reservado,  numero  cinco,  primeiro  an- 
dar. 

A  estalajadeira  atirou  com  uns  sapatos  de  senhora  para  o 
pateo  e  desappareceu  de  corrida. 

—  Numero  5,  disse  Sam,  apanhando  os  sapatos;  e  tirando 
da  algibeira  um  pedaço  de  giz,  poz-Ihes  nas  solas  a  marca  do 
seu  destino.  Sapatos  de  senhora  e  gabinete  reservado  I  Com 
certeza  que  esta  não  veiu  de  carroça. 

—  Chegou  esta  manhã  cedo,  bradou  a  rapariga,  que  estava 
ainda  debruçada  no  parapeito  da  galeria,  mais  um  sujeito, 
n'uma  carruagem,  e  elle  é  que  precisa  das  botas,  e  melhor 
fora  que  vossê  lh'as  aviasse  :  ora  aqui  tem  a  historia  timtim 
por  timtim. 

—  Porque  é  que  vosse  não  disse  isso  ha  mais  tempo  ?  excla- 
mou Sam  com  grande  indignação,  escolhendo  as  botas  em 
questão  d'entre  as  que  tinha  em  frente.  Eu  cá  imaginava  que 
era  para  um  dos  freguezes  de  três  pence.  Gabinete  particular! 
e  dama,  demais  a  mais !  Se  é  cavalheiro  que  se  preze,  vale 
ahi  um  shilling  por  dia,  afora  os  recados. 

Estimulado  por  esta  alentadora  reflexão,  o  sr.  Samuel  foi 
escovando  com  tanta  dihgencia,  que  dentro  de  poucos  mo- 
mentos haviam  chegado  á  porta  do  numero  5  as  botas  e  os 
sapatos,  com  um  polimento  capaz  de  fazer  rebentar  de  inveja 
a  alma  do  amável  sr.  Warren,  por  isso  que  no  Veado  branco 
usava-se  de  graxa  de  Dav  e  Martin. 

—  Entre,  disse  uma  voz  viril,  respondendo  ao  bater  de 
Sam. 

Sam  fez  o  seu  cumprimento  mais  respeitoso,  e  appareceu 
diante  de  uma  senhora  e  de  um  sujeito  que  estavam  a  almo- 
çar. Tendo  officiosamente  collocado  as  botas  direita  e  es- 
querda junto  dos  respectivos  pés,  e  tendo  feito  o  mesmo  aos 
sapatos  da  dama,  recuou  para  a  porta. 

—  Moço  I 

—  Senhor,  disse  Sam,  fechando  a  porta  e  deixando  ficar  a 
mão  no  botão  da  fechadura. 


no  SR.  pickwicic  143 

—  Vossé  conhece  —  que  nome  é  ?  —  Doctors'  Commons. 

—  Sim,  senhor. 

—  Onde  íica  isso  ? 

—  PauVs  chwch-yardy  senhor ;  arcada  baixa,  um  livreiro 
de  um  lado,  uma  hospedaria  do  ourro,  e  dois  porteiros  no 
meio  para  arranjarem  as  Hcenças  de  casamento. 

—  Licenças  de  casamento  !  repetiu  o  sujeito. 

—  Licenças  de  casamento  !  trephcou  Sam.  Dois  patuscos 
de  avental  branco  —  levam  a  mão  aos  chapéos  quando  al- 
guém passa — "Licença,  senhor,  precisa  uma  licença?»  Uns 
pândegos  de  estalo,  elles  mais  os  patrões  d'elles  —  são  os  pro- 
e-uradores  —  não  ha  que  errar. 

—  Que  fazem  elles?  perguntou  o  sujeito. 

—  O  que  fazem  ?  E'  boa  !  Mettem  na  cabeça  dos  velhos 
caram.inholas  com  que  elles  nunca  sonharam.  O' meu  pae,  se- 
nhor, era  cocheiro.-  Era  viuvo,  e  gordo  que  não  se  podia  me- 
xer—  era  gordissimo,  lá  iso  era.  Morre-lhe  a  patroa  e  deixa- 
Ihe  quatrocentas  libras.  Vae  elle,  vae  aos  Commons,  ter  com 
o  homem  da  lei  para  embolsar  a  chelpa  —  ia  todo  janota  — 
botas  de  canhão  —  raminho  ao  peito  —  quico  de  abas  largas 
—  manta  verde  —  mesmo  um  fidalgo.  Vae  pela  arcada  fora,  a 
pensar  como  havia  de  empregar  a  maquia  —  eis  senão  quando 
apparece  o  porteiro,  de  mão  no  chapéo  : 

—  «Licença,  senhor,  deseja  uma  licença  ?« 

—  "Que  vem  a  ser  isso  ?»  diz  o  meu  velho. 

—  "Licença,  senhor»,  diz  elle. 

—  "Qual  licença  ?»  diz  o  velhote. 

—  "Licença  p'ra  casar»,  diz  o  porteiro. 

—  «Oh!  c'os  diabos!»  diz  o  meu  pae,  «essa  nunca  me 
passou  pela  cabeça.» 

—  «Eu  cá  parece-me  que  o  senhor  deseja  uma  licença,» 
diz  o  porteiro. 

«Meu  pae  pára,  e  pensa  um  bocadinho. 

—  «Nada,  diz  elle,  c'os  demónios !  já  estou  velho,  e  além 
d'isso  sou  gordo  de  mais-),  diz  elle. 

—  «Qual  1  deixe-se  d'isso  !»  diz  o  porteiro. 

—  "Não  lhe  parece  ?»  diz  o  meu  pae. 

—  «Nem  por  sombras^-,  diz  elle,  «ainda  na  segunda  feira 
passada  a  gente  casou  um  sujeito  que  tmha  duas  vezes  o  seu 
volume». 

10 


I4<)  AS   AVENTURAS 


—  "Serio?"  diz  o  meu  pae. 

—  "Palavra,  que  sim  l»  diz  o  porteiro,  "O  senhor  é  um  in- 
dez  ao  pé  d'elle  —  por  aqui,  senhor  —  venha  por  aqui !» 

"E  lá  se  põe  o  meu  velho  a  andar  atraz  d'elle,  nem  que 
fosse  um  macaco  domesticado  atraz  de  um  realejo,  para  um 
escriptoriosinho  lá  ao  fundo,  onde  estava  um  ratão  sentado 
no  meio  de  papelada  suja  e  de  caixas  de  folha,  a  fingir  que 
tinha  muito  que  fazer. 

—  "Faz  obsequio  de  se  sentar,  emquanto  eu  escrevo  a  de- 
claração», diz  o  homem  da  lei. 

—  "Muito  agradecido,  senhor,»  diz  o  meu  pae,  e  vae  sen- 
tou-se,  com  a  bocca  aberta,  pasmado  para  os  nomes  que  es- 
tavam nas  caixas. 

—  "O  seu  nome  r»  diz  o  homem  da  lei. 

—  "Tonv  Weller»,  diz  o  meu  pae. 

—  «Freguezia  ?»  diz  o  homem. 

—  "A  Linda  Selvagem,»  diz  o  meu  pae. 

«Era  a  estalagem  onde  elle  costumava  apeiar-se  quando 
estava  no  ofificio,  e  a  respeito  de  freguezias  não  sabia  pata- 
vina. 

—  "E  como  é  o  nome  da  senhora  ?*>  diz  o  homemsi- 
nho. 

"O  meu  pae  ficou  embatucado. 

—  "Diabos  me  levem  se  eu  sei ! «  diz  elle. 

—  "Não  sabe  I«  diz  o  outro. 

—  "Sei  tanto  como  o  senhor,»  diz  o  velho,  «isso  não  se 
pode  pôr  depois  ?-. 

—  "Impossivel  I»  diz  o  homem. 

—  "Então  bem  I»  diz  o  meu  pae,  depois  de  parafusar  um 
bocado,  " ponha  lá  Mistress  Clarke.» 

—  «Clarke,  que?»  diz  o  homemsinho,  mettendo  a  penna 
no  tinteiro. 

—  "Suzanna  Clarke,  na  estalagem  áo  Marque:^  de  Granby, 
em  Dorkin»,  diz  o  meu  pae  ;  estou  em  crer  que  me  aceita, 
se  eu  cá  a  pedir  —  eu  cá  nunca  lhe  disse  uma  palavra ;  m.as 
estou  certo  que  me  aceita. 

«Assim  se  passou  a  licença,  e  o  caso  é  que  ella  aceitou-o, 
e  o  que  é  peior  é  que  ainda  hoje  o  tem  fisgado,  e  eu  cá  nunca  vi 
nem  a  côr  das  quatrocentas  libras,  vejam  que  enguiço  o  meu! 
Com  perdão  do  senhor,  concluiu  Sam,  mas  em  eu  começando 


no  SR.  picKwicK  14- 


a  badalar  n"csie  meu  desgosto,  corro  que  nem  um  carrinho 
novo  com  a  roda  encebada. 

Dito  isto,  e  tendo  esperado  um  instante  para  verse  preci- 
savam mais  alguma  cousa  d'elle,  Sam  sahiu  do  quarto. 

—  Nove  e  meia  —  hora  própria  —  vou  já  la!  disse  o  su- 
jeito, que  escusamos  de  apresentar  como  o  sr.  Jingle. 

—  Hora  própria,  para  que  ?  disse  a  solteirona  com  gar- 
ridice. 

—  A  licença,  ó  meu  anjo  adorado — ^  aviar  na  egreja  — 
chamal-a  minha,  amanha  —  disse  o  sr.  Jingle  espremendo  a 
mão  da  donzellona. 

—  A  licença  I  disse  Rachel  corando. 

—  A  licença,  repetiu  o  sr.  Jingle. 

A  correr  vou,  á  cata  da  licença, 

A  correr,  tum  !  tum  !  tum  !  não  tardo  nada  ' 

—  Como  o  senhor  anda  depressa!  disse  Rachel. 

—  Depressa!  — isto  não  é  nada  ao  pé  das  horas,  dias,  se- 
manas, mezes,  annos,  quando  nós  estivermos  unidos  —  de- 
pressa—  a  voar  —  nem  um  raio  —  um  corisco  —  o  vapor  — 
força  de  mil  cavallos  —  nem  isso  me  ganha  ! 

—  Não  poderiamos  —  não  poderiamos  casar  antes  de  ama- 
nha de  manhã?  perguntou  Rachel. 

—  Impossivel  —  pode  lá  ser! — aviso  na  egreja  —  deixar 
lá  hoje  a  licença  —  a  ceremonia  amanhã. 

—  Tenho  tanto  medo  que  o  mano  dê  comnosco !  disse 
Rachel. 

—  Isso  sim  !  disparate  —  atrapalhado  com  o  trambulhão  — 
depois  —  por  cautela  —  largou  a  sege  —  veiu  a  pé  —  alugou 
carruagem  —  chegou  ao  Borough  —  o  único  sitio  do  mundo 
cm  que  ellc  nos  procura.  —  Ah  I  ah  I  —  boa  partida  —  hein  ? 

—  Não  se  demore,  disse  ternamente  a  solteirona,  ao  vero 
sr.  Jingle  enterrar  o  chapéo  amolgado  pela  cabeça  abaixo. 

—  Longe  de  si  ?  —  meu  cruel  feitiço  ^ 

E  o  sr.  Jingle  foi  a  pular  alegremente  para  Rachel,  impri- 
miu-lhe  nos  lábios  um  casto  beijo,  e  sahiu  do  gabinete  a 
dançar. 

—  Querido  I  disse  a  solteirona,  quando  a  porta  se  fechou 
sobre  elle. 


148 


AS   AVENTURAS 


—  Pespego  da  veiha  I  disse  o  sr.  Jingle  indo  pele  corredor 
fora. 

E'  penoso  reflectir  na  perfldia  da  nossa  espécie ;  e  por 
isso  não  seguiremos  o  flo  das  meditações  do  sr.  Jingle  durante 
o  seu  caminho  para  os  Doctors  Commons. 

Bastará  ao  nosso  intento  relatar  que,  fugindo  ás  armadi- 
lhas dos  dragões  de  avental  branco  que  guardam  aquella  en- 
cantada região,  chegou  são  e  salvo  ao  escriptorio  do  vigário 
geral;  e  que,  havendo  arranjado  uma  lisonjeira  epistola  do 
arcebispo  de  Canterbury  aos  seus  «deães  e  bem-amados  Al- 
fredo Jingle  e  Rachel  Wardle,  salve»,  elle  metteu  cuidadosa- 
mente na  algibeira  o  mystico  documento,  e  voltou  trium- 
phante  ao  Borough. 

Ainda  elle  ia  a  caminho  do  Veado  branco,  quando  dois 
sujeitos  roliços  e  um  magrizella  entraram  no  pateo,  e  olha- 
ram em  volta,  á  procura  de  pessoa  auctorisada  a  quem  po- 
dessem  dirigir  certas  perguntas. 

Aconteceu  que  o  sr.  Sam  Weller  estava  n'essa  occasiao 
occupado  a  brunir  um  par  de  botas  de  canhão,  pertencentes 
a  um  lavrador  que  restaurava,  com  um  ligeiro  lanche  de  dois 
ou  três  arráteis  de  carne  e  uma  caneca  ou  duas  de  cerveja,  as 
forças  gastas  no  mercado  do  Borough. 

Ao  engraxador  se  dirigiu  immediatamente  o  sujeito  ma- 
gro:  ^  "^ 

--Meu  amigo  I   disse  elle. 

—  E"s  dos  taes  que  querem  informações  de  borla,  pensou 
comsigo  Sam,  senão  não  me  tratavas  logo  com  essa  ternura. 

Mas  só  disse  em  voz  alta  : 

—  Que  deseja  o  senhor  t 

—  Meu  amigo,  disse  o  sujeito  magro  com  uma  interjei- 
ção conciliadora.  Tem  por  cá  muitos  hospedes  agora  ?  Muito 
que  fazer,  hein  ? 

Sam  olhou  de  revez  para  o  interrogador. 

Era  um  homem  baixinho  e  secco,  de  cara  comprida  e  tri- 
gueira, e  olhos  pequenos  e  irrequietos,  sempre  a  piscar  e  a 
luzir  de  cada  lado  de  um  nariz  delgado  e  inquisitivo,  como 
se  estivessem  constantemente  a  jogar  a  cabra  cega  com  este 
órgão.  Estava  todo  vestido  de  preto,  com  botas  tão  reluzentes 
como  os  olhos,  uma  manta  de  pescoço  estreita  e  branca,  e 
uma  camisa  muito  aceiada  com  bofes. 


1)0  SR.   I4CKVV1CK  I  49 


Pendia-lhe  do  bolso  do  collete  uma  corrente  de  ouro  com 
berloques. 

Trazia  umas  luvas  de  camurça  pretas  mettidas  nas  mãos 
e  não  as  mãos  mettidas  n'ellas ;  e  ao  fallar,  atirava 
os  pulsos  para  debaixo  das  abas  da  casaca,  com  o  ar  de  um 
homem  que  estava  no  habito  de  fazer  interrogatórios. 

—  Muito  que  fazer,  hein  ?  repetiu  elle. 

—  Vamos  andando,  replicou  Sam.  Se  não  fazemos  fortuna, 
também  não  quebramos.  Vamos  tasquinhando  o  nosso  car- 
neiro cozido  com  alcaparras,  e  mandamos  á  tabúa  os  rábanos 
em  podendo  apanhar  carne  de  vacca. 

—  Ah!  disse  o  homemsinho,  vossc  a  modo  que  é  tro- 
cista, hein ': 

—  O  meu  irmão  mais  velho  padecia  d'essa  moléstia,  re- 
torquiu Sam;  coroo  eu  dormia  com  elle,  pode  ser  que  se  pe- 
gasse. 

—  Esta  sua  velha  casa  é  curiosa,  disse  o  homemsinho,  re- 
lanceando a  vista  em  torno  de  si. 

—  Se  o  senhor  mandasse  prevenir  que  vinha,  deixe  estar 
que  a  mandávamos  concertar,  disse  o  imperturbável  Sam. 

O  homemsinho  pareceu  ficar  um  pouco  atrapalhado  com 
o  pouco  amigável  acolhimento. 

Houve  uma  rápida  consulta  entre  elle  e  os  dois  sujeitos 
gordos.  E  finda  ella,  o  sujeito  magro  tomou  uma  pitada  n'uma 
caixa  oblonga  de  prata,  e  parecia  disposto  a  reatar  a  conver- 
sação, quando  interveiu  um  dos  sujeitos  gordos,  que  á  bonho 
mia  do  rosto  juntava  uns  óculos  e  umas  polainas  pretas. 

—  E'  preciso  que  saiba,  disse  elle,  apontando  para  o  ou 
tro  sujeito  gordo,  que  aqui  este  meu  amigo  dá-lhe  meio  gui- 
néo,  se  vosse  quizer  responder  a  uma  ou  duas. .  . 

—  Espere,  meu  caro  senhor,  espere  !  atalhou  o  homemsi- 
nho, com  sua  licença  —  meu  caro  senhor,  o  primeiro  princi- 
pio a  observar  em  casos  como  este  é  o  seguinte  :  se  confia  o 
negocio  nas  mãos  de  um  profissional,  não  tem  que  intervir 
no  andamento  d'elle ;  tem  que  depositar  n'esse  homem  im- 
plicita  confiança.  Realmente,  senhor...  proseguiu  elle  vol- 
tando-se  para  o  outro  sujeito  —  esqueci-me  do  nome  do  seu 
amigo. 

—  Pickwick,  disse  o  sr.  Wardle,  porque  não  era  outro  se- 
não este  jovial  personagem. 


\DO  AS   AVENTURAS 


—  Ah  I  Pickwick  !  —  Realmente,  sr.  Pickwick,  meu  caro  se- 
nhor, desculpe  dizer-lhe  —  estimarei  immenso  receber  quaes- 
quer  conselhos  seus,  como  particular,  como  amiciis  ciiricp, 
mas  deve  perceber  a  inconveniência  de  intervir  no  meu  pro- 
cedimento n'um  caso  como  este,  e  com  um  argumento  ad 
Ciiptaudum,  tal  como  a  offerta  de  meio  guinéo.  Realmente, 
meu  caro  senhor,  realmente .  .  . 

E  o  homemsmho  tomou  um  ar  solemne  e  uma  pitada  de 
rapé  argumentativa. 

—  O  meu  único  desejo,  senhor,  disse  o  sr.  Pickwick,  era 
levar  a  cabo,  tão  depressa  quanto  fosse  possivel,  este  des- 
agradabilissimo  negocio. 

—  Tem  rasão  —  tem  rasão,  disse  o  homemsinho. 

—  Foi  n'essa  intenção,  proseguiu  o  sr.  Pickwick,  que  eu 
Hz  uso  do  argumento  que  a  minha  experiência  dos  homens 
me  tem  ensinado  como  o  de  êxito  mais  provável,  qualquer  que 
seja  o  caso. 

—  Sim,  sim,  disse  o  homemsinho,  diz  muito  bem,  é  ver- 
dade ;  mas  a  mim  é  que'  o  senhor  devia  ter  lembrado  isso. 
Meu  caro  senhor,  estou  certissimo  que  não  pode  ignorar  a 
extensão  da  confiança  que  se  deve  depositar  n'um  homem 
proiissional.  Se  fosse  necessário  uma  auctoridade  n"este  pon- 
to, permitta,  meu  caro  senhor,  que  lhe  repita  o  bem  conhe- 
cido caso  de  Barnwell  e. . . 

—  Ora  cale -se  com  George  Barnwell  1  interrompeu  Sam, 
que  assistia  muito  pasmado  a  este  curto  colloquio,  não  ha 
ninguém  que  não  saiba  como  foi  essa  historia,  e  cá  a  minha 
opinião  foi  sempre,  veja  lá,  que  a  rapariga  merecia  mais  a 
forca  do  que  elle.  Mas  isto  não  vem  para  o  caso.  O  senhor  o 
que  quer  é  que  eu  aceite  meio  guinéo.  Pois  vá  lá  isso  !  eu  cá 
estou  de  accôrdo :  mais  claro  do  que  isto  não  sei  fallar, 
não  acha  o  senhor?  (O  sr.  Pickwick  sorriu;.  Ora  agora  o  que 
é  preciso  saber  é  o  que  os  senhores  me  querem,  como  dis- 
se o  outro  quando  lhe  appareceu  a  alma  do  outro  mundo ': 

—  Nós  queremos  saber. . .  disse  o  sr.  Wardle. 

—  Então,  meu  caro  senhor,  então  !  interrompeu  o  homem- 
sinho azafamado. 

O  sr.  Wardle  encolheu  os  hombros  e  calou-se. 

—  Nós  queremos  saber,  disse  o  homemsinho  solemne- 
mente,  e  a  vossemecê  é  que  fazemos  esta  pergunta  para  não 


DO  SR.   PICKWICK 


despertar  suspeitas  lá  dentro  —  queremos  saber  quem  é  que 
teem  agora  na  hospedaria, 

—  Quem  temos  !  disse  Sam,  em  cujo  espirito  os  hospedes 
eram  sempre  representados  pelos  objectos  de  uso  que  cabiam 
sob  a  sua  immediata  superintendência.  Uma  perna  de  pau  no 
numero  seis,  um  par  de  botas  altas  no  numero  treze,  dois  pa- 
res de  botins  na  secção  dos  negociantes,  estas  duas  de  canhão 
por  detraz  da  loja,  e  outras  cinco  no  cate, 

—  E  mais  nada  ?  perguntou  o  homemsinho. 

—  Espere  lá  !  replicou  Sam,  recordando-se  de  súbito.  Ha, 
sim  :  ha  um  par  de  botas  á  Wellington,  já  usaditas,  e  uns  sa- 
patos de  senhora,  no  numero  cinco. 

—  Que  espécie  de  sapatos?  interrogou  com  alvoroço 
Wardle,  o  qual,  assim  como  o  sr,  l^ickwick,  ficara  assara- 
pantado  com  este  singular  catalogo  dos  hospedes, 

—  Feitos  na  provincia,  respondeu  Sam. 

—  Tem  o  nome  do  sapateiro  ^ 

—  Brown. 

—  D'onde  ? 

—  De  Muggleton, 

—  São  eiies,  exclamou  Wardle.  Eouvado  seja  Deus  !  de- 
mos com  elles, 

—  Schiu  !  disse  Sam,  As  botas  á  Wellington  foram  aos 
Doctor's  Commons. 

—  Não  foram,  disse  o  homemsinho, 

—  Foram,  buscar  uma  licença. 

—  Chegámos  a  tempo,  exclamou  Wardle,  Leve-nos  ao 
quarto;  não  se  pode  perder  um  momento. 

—  Por  favor,  meu  caro  senhor,  peço-lhe,  disse  o  homem- 
sinho ;  cautela,  muita  cautela. 

'l'irou  da  algibeira  uma  bolsa  de  seda  encarnada,  e  olhou 
muito  fito  para  Sam,  emquanto  sacava  um  soberano, 
Sam  sorriu  com  muita  expressão, 

—  Leve-nos  ao  quarto,  já,  sem  nos  annunciar,  disse  o  ho- 
memsinho, e  o  soberano  é  seu, 

Sam  atirou  com  as  botas  de  canhão  para  um  canto,  e 
guiou-os  por  um  corredor  escuro  e  uma  escada  espaçosa, 
Deteve-se  ao  fundo  de  um  segundo  corredor,  e  estendeu  a  mão, 

—  Aqui  tem,  segredou  o  procurador,  mettendo  o  dinheiro 
na  mão  do  guia. 


1^2  AS   AVENTURAS 


Sam  deu  mais  alguns  passos,  seguido  pelos  tres,  e  parou 
a  uma  porta. 

—  E'  aqui  o  quarto  ?  murmurou  o  homemsinho. 
Sam  ítz  um  gesto  de  assentimento. 

O  velho  Wardle  abriu  a  porta  ;  e  os  tres  entraram  pelo 
quarto,  exactamente  na  occasião  em  que  o  sr.  Jingle,  já  de 
volta,  apresentava  a  licença  á  tia  solteirona. 

Esta  soltou  um  grito  penetrante,  e,  atirando-se  para  cima 
de  uma  cadeira,  cobriu  o  rosto  com  as  mãos. 

O  sr.  Jingle  amarrotou  a  licença  e  metieu-a  precipitada- 
mente na  algibeira  da  casaca. 

Os  importunos  visitantes  avançaram  até  meio  do  apo- 
sento. 

—  Vossè  —  vossc  é  um  patife  de  marca,  não  acha?  excla- 
mou Wardle,  a  quem  a  cólera  tirava  a  respiração. 

—  Meu  caro  senhor,  meu  caro  senhor,  acudiu  o  homem- 
sinho, pondo  o  chapéo  em  cima  da  mesa.  Faça  obsequio  de 
reflectir  —  veja  lá.  Scandalum  magnatum,  diffamação  de  ca- 
racter, acção  de  perdas  e  damnos.  Tranquillise-se,  meu  caro 
senhor,  por  obsequio. .  . 

—  Pois  atreve-se  a  roubar  minha  irmã  de  minha  casa  ? 
disse  o  velho. 

—  Isso  —  isso  —  muito  bem,  disse  o  homemsinho,  isso 
pode  o  senhor  perguntar.  Pois  atreve-se  —  hein,  senhor? 

—  Quem  demónio  é  o  senhor  ?  perguntou  o  sr.  Jingle,  com 
expressão  tão  feroz,  que  o  sujeitinho  recuou  involuntaria- 
mente um  ou  dois  passos. 

—  Quem  é  elle  ?  Descarado  I  interrompeu  Wardle.  E'  o 
meu  procurador,  o  sr.  Perker,  de  Gray's  Inn.  Perker,  eu  o  que 
quero  é  que  me  persigam  este  tvpo  —  que  o  mettam  em  pro- 
cesso. —  O  que  eu  quero ...  o  que  eu  quero  é . .  .  diabos  me 
levem,  pól-o  á  dependura.  E  a  senhora,  continuou  Wardle, 
virando-se  bruscamente  para  a  irmã,  a  senhora,  n'uma  idade 
em  que  devia  ter  juizo,  que  doidice  foi  essa  de  se  safar  com 
um  vagabundo,  deshonrando  a  sua  família,  infelicitando- se  a 
si  própria  ?  Ponha  o  chapéo,  e  venha  comigo.  Chame  cá  uma 
carruagem,  depressa,  e  traga  a  conta  d'esta  senhora,  ouviu  — 
ouviu  ? 

—  Prompto,  senhor,  replicou  Sam,  que  respondera  á  vio- 
lenta campainhada  de  Wardle  com  uma  presteza  que  parece- 


1)0  SR.   PICKWICK 


ria  admirável  a  quem  não  soubesse  que  elle  tivera  durante 
toda  a  entrevista  um  dos  olhos  applicado  ao  buraco  da  fe- 
chadura. 

—  Ponha  o  chapéo,  ande,  repetiu  Wardle. 

—  Isso  é  que  não  !  disse  Jingle.  Saia  o  senhor  d'este  quarto 
—  não  tem  aqui  que  cheirar  —  senhora  com  liberdade  de  fa- 
zer o  que  quizer  —  passa  dos  vinte  e  um  annos. 

—  Passa  dos  vinte  e  um  1  exclamou  desdenhosamente 
Wardle.   Passa  até  dos  quarenta  e  um  I 

—  Não  passo  tal,  disse  a  donzellona,  cuja  indignação  le- 
vou de  vencida  a  resolução  de  desmaiar. 

—  Passa  tal,  replicou  Wardle.  Tem  cincoenta  e  um  bem 
puxados. 

N'isto  a  solteirona  deu  um  grande  grito  e  cahiu  sem  sen- 
tidos. 

—  Um  copo  de  agua,  gritou  o  caritativo  Pickwick,  cha- 
mando a  estalajadeira. 

—  Um  copo  de  a^^ua !  disse  Wardle  cheio  de  cólera. 
Traga,  mas  é  um  balde  para  lhe  despejar  na  cabeça ;  ha  de 
fazer-lhe  bem,  e  é  o  que  ella  merece  a  valer. 

—  Safa!  que  bruto!  exclamou  a  compassiva  estalajadeira. 
Coitadinha!  —  então,  minha  rica  senhora  —  vamos  —  beba 
uma  pinguinha  —  ha  de  fazer-lhe  bem  —  não  esmoreça  — 
pobre  senhora ! 

E  com  estas  e  outras  exclamações  do  mesmo  jaez,  a  es- 
talajadeira, ajudada  por  uma  criada,  tratou  de  humedecer 
com  vinagre  a  testa,  de  dar  palmadas  nas  mãos,  de  fazer  có- 
cegas no  nariz  e  de  desapertar  o  corpete  da  solteirona,  e  de 
lhe  administrar  outros  que  taes  restaurativos  usualmente  ap 
plicados  pelas  mulheres  sensíveis  ás  damas  que  se  empenham 
em  arranjar  um  ataque  de  nervos. 

—  A  carruagem  está  prompta,  senhor,  disse  Sam  appare- 
cendo  á  porta. 

—  Venham  d'ahi,  gritou  Wardle.  Eu  carrego  com  ella  pela 
escada  abaixo. 

A  esta  proposta,  começou  outro  ataque  de  nervos  com 
duplicada  violência.  A  estalajadeira  dispunha-se  a  formular 
um  enérgico  protesto  contra  tal  procedimento,  e  já  desaba- 
fara perguntando  irritado  se  o  sr.  Wardle  se  suppunha  o  rei 
da  creação,  quando  sr.  Jingle  interveiu, 


1^4  ^^S   AVENTURAS 


—  Rapaz,  disse  elle,  vá-me  chamar  um  policia. 

—  Esperei  espere!  disse  o  sr.  Perker.  Pense  bem,  senhor, 
pense  bem. 

—  Não  tenho  que  pensar,  repHcou  Jingle,  eila  é  senhora 
das  suas  acções  —  ver  quem  é  que  se  atreve  a  leval-a  —  sem 
ella  querer.  ' 

—  Não  quero  que  me  levem,  murmurou  a  solteirona,  não 
consinto 

Os  nervos  tiveram  uma  recahida  medonha. 

—  Meu  caro  senhor,  disse  o  homemsinho  em  voz  baixa, 
tomando  de  parte  os  srs.  Wardle  e  Pickwick.  Nós  estamos 
n'uma  situação  muito  embaraçosa,  muito.  E'  um  caso  afflicti- 
vo;  mais  afflictivo  do  que  isto  nunca  vi;  mas,  realmente,  meu 
caro  senhor,  realmente  nós  não  temos  voz  activa  sobre  os 
actos  d'esta  senhora.  Eu  preveni  o  antes  de  virmos,  meu  caro 
senhor,  que  nãx>  ha  nada  a  fazer  senão  uma  composição. 

Houve  um  curto  silencio. 

—  Que  espécie  de  composição  recommendaria  o  senhor? 
interrogou  o  sr.  Pickwick^ 

—  Eu  lhe  digo,  meu  caro  senhor,  aqui  o  nosso  amigo  está 
n'uma  posição  desagradável  — muitíssimo  desagradável.  Te- 
mos de  nos  resignar  a  alguma  perda  pecuniária. 

—  Antes  isso,  do  que  sujeitar-me  a  uma  deshonra  e  dei- 
xal-a  a  ella  fazer-se  infeliz  por  toda  a  vida,  disse  Wardle. 

—  Quer-me  p-arecer  que  tudo  se  ha  de  arranjar,  disse  o 
activo  homemsinho.  Sr.  Jingle,  quer  dar-se  ao  incommodb  de 
vir  comnosco  um  momento  aqui  ao  quarto  contíguo  ? 

O  sr.  Jingle  accedeu,  e  o  quartetto  entrou  n'um  aposento 
vasio. 

—  Ora,  agora,  diga-me  o  senhor,  disse  o  homemsinho,  de- 
pois de  fechar  cuidadosamente  a  porta,  não  haverá  meio  de 
compor  este  negocio  —  venha  para  aqui,  senhor,  venha  um 
instante  para  o  vão  d'esta  janella,  onde  podemos  estar  sós  — 
exacto,  aqui  mesmo,  tenha  a  bondade  de  se  sentar.  Agora, 
meu  caro  senhor,  aqui  para  nós,  estamos  fartos  de  saber  que 
o  meu  caro  amigo  se  safou  com  aquella  senhora  por  amor  do 
dinheiro  d'ella.  Não  franza  a  testa,  homem  de  Deus;  isto  fica 
aqui  entre  nós.  Ambos  nós  somos  homens  de  boa  sociedade, 
e  sabemos  perfeitamente  que  aqui  os  nossos  amigos  não  são. . . 
hein  ? 


DO  SR.  PICKWICK  l55 


A  physionomia  do  sr.  Jingle  foi-se  illuminando  pouco  a 
pouco;  e  o  olho  esquerdo  tremeu  por  um  instante  com  o 
quer  que  era  muito  parecido  com  uma  piscadella. 

—  Muito  bem,  muito  bem,  disse  o  homemsinho  percebendo 
a  impressão  que  fizera.  Ora  o  que  c  facto  é  que  a  dama  nada 
ou  pouco  mais  tem  de  um  punhado  de  libras  até  á  morte  da 
mãe,  uma  senhora  robusta,  meu  caro  senhor. 

—  Velha,  disse  o  sr.  Jingle,  com  laconismo,  mas  com  ener- 

—  Lá  isso  é,  disse  o  procurador  tossindo  ligeiramente.  O 
senhor  tem  rasão,  ella  já  está  velhita.  Mas  olhe  que  vem  de 
uma  velha  familia,  meu  caro  senhor;  velha  em  toda  a  acce- 
pção  da  palavra.  O  fundador  d'essa  familia  veiu  para  o  con- 
dado de  Kent,  quando  Júlio  Gesar  invadiu  a  Grã-Bretanha  — 
e  desde  então,  apenas  um  membro  d'ella  é  que  não  viveu  até 
aos  oitenta  e  cinco  annos,  e  é  porque  esse  foi  decapitado  por 
um  dos  Henriques.  A  velha  dama  ainda  não  tem  setenta  e 
três,  meu  caro  senhor. 

O  homemsinho  calou-se,  e  tomou  uma  pitada. 

—  E  então  .''  exclamou  o  sr.  Jingle. 

—  Então,  meu  carç  senhor  —  não  toma  rapé  .'*  —  ah  !  tanto 
melhor  —  é  um  vicio  dispendioso.  Então,  meu  caro  senhor,  o 
senhor  é  um  bonito  moço,  muito  bem  educado  —  muito  ca- 
paz de  arranjar  fortuna,  se  tivesse  capital,  hein  ! 

— E  então  ?  repetiu  o  sr.  Jingle. 

—  Não  me  comprehende  ? 

—  Nem  por  isso. 

—  Não  lhe  parece  —  isto,  meu  caro  senhor,  é  lembrança 
minha,  não  lhe  parece  —  que  cincoenta  libras  e  mais  a  li- 
berdade seriam  preferiveis  a  Miss  Wardle  com  a  especta- 
tiva  ?. .  . 

—  Deixe-se  d'isso  !  —  nem  o  dobro  !  disse  o  sr.  Jingle  er- 
guendo-se. 

—  Qual  1  meu  caro  senhor,  teimou  o  procurador  agarran- 
do-o  por  um  botão.  Olhe  que  é  uma  linda  quantia  —  um  ho- 
mem como  o  senhor  é  capaz  de  a  triplicar  emquanto  o  demo 
esfrega  o  olho  —  com  cincoenta  libras  faz-se  muita  cousa, 
meu  caro  senhor. 

—  Ainda  mais  se  faz  com  cento  e  cincoenta,  replicou  o  sr. 
Jingle. 


IDb  AS  AVENTURAS 


—  Bem,  meu  caro  senhor,  não  percamos  tempo  por  dá  cá 
aquella  palha.  Vá  lá  —  vá  lá  —  setenta. 

—  Deixe-se  d'isso ! 

—  Não  se  vá  embora,  meu  caro  senhor  —  não  esteja  com 
pressa,  disse  o  homemsinho.  Oitenta ;  venha  cá ;  vou-lhe  já 
passar  o  cheque. 

—  Deixe  se  d'isso  I 

—  Bem,  meu  caro  senhor,  bem,  disse  o  procurador  sem  o 
largar.  Diga  então  quanto  quer. 

—  Negocio  dispendioso,  disse  o  sr.  Jingle.  Muita  maquia 
para  tora  da  algibeira  —  nove  libras  de  posta;  três  de  licença 
—  doze  —  cem  de  indemnisação  —  faz  cento  e  doze.  —  Que- 
bra de  honra  —  e  perda  de  dama. . . 

—  Sim,  meu  caro  senhor,  interrompeu  o  procurador  com 
ar  malicioso.  Escusamos  de  fallar  nos  dois  últimos  artigos. 
São  cento  e  doze  —  ponhamos  cem  —  vá  lá  I 

—  Cento  e  vinte,  disse  o  sr.  Jingle. 

—  Vá  lá  I  vou-lhe  passar  o  cheque,  disse  o  homemsinho, 
sentando-se  á  mesa  para  esse  fim,  e  continuando  com  um 
olhar  de  intelligencia  para  o  sr.  Wardle.  Pagável  depois  de 
amanhã ;  e  entretanto  nós  levamos  a  senhora.     ' 

—  O  sr.  Wardle  fez  com  mau  humor  um  signal  de  assen- 
timento. 

—  Cem,  disse  o  homemsinho. 

—  E  mais  vinte,  disse  o  sr.  Jingle. 

—  Meu  caro  senhor,  objectou  o  sr.  Perker, 

—  Dê-lh'as,  interveiu  o  sr.  Wardle,  e  que  se  ponha  a  andar. 
O   procurador  passou   o   cheque    e   o   sr.    Jingle   embol- 

sou-o. 

—  Agora,  saia  immediatamente  d'esta  casa ;  disse  Wardle 
pondo-se  em  pé. 

—  Meu  caro  senhor,  acudiu  o  homemsinho. 

—  E  lembre-se,  disse  o  sr.  Wardle,  que  nada  me  teria  in- 
duzido a  fazer  esta  conciliação  —  nem  mesmo  a  considera- 
ção pela  minha  familia  —  se  eu  não  estivesse  certo  que,  com 
esse  dinheiro  na  algibeira,  vossê  vae  para  o  diabo  mais  de- 
pressa, do  que  se  o  não  tivesse. . . 

—  Meu  caro  senhor,  acudiu  de  novo  o  procurador. 

—  Cale  a  bocca,  Perker,  continuou  Wardle.  E  o  senhor 
ponha-se  no  andar  da  rua  I 


DO   SR.   PICKWICK  1^7 


—  N'um  rufo,  disse  Jingle,  com  imperturbável  descara- 
mento. E  adeusinho,  Pickwick. 

Se  qualquer  espectador  desinteressado  podesse  ter  con- 
templado o  semblante  do  homem  illustre,  cujo  nome  realça 
no  titulo  do  presente  livro,  ficaria  quasi  espantado  por  o  fogo 
de  cólera  que  lhe  lampejava  nos  olhos  não  lhe  ter  derretido 
os  vidros  dos  óculos. 

Dilataram-se-lhe  as  ventas,  cerraram-se-lhe  involuntaria- 
mente os  punhos,  ao  ouvir  que  o  miserável  lhe  dirigia  a  pa- 
lavra. Mas  conteve-se  mais  uma  vez  —  não  o  reduziu  a  pó. 

—  Aqui  tem !  continuou  o  contumaz  velhaco,  atirando 
com  a  licença  aos  pés  do  sr.  Pickwick.  E'  só  mudar  o  nome 
—  levar  para  casa  a  donzella  —  ainda  serve  para  Tuppy. 

O  sr.  Pickwick  era  philosopho,  mas  os  philosophos  não 
passam  afinal  de  contas  de  homens  cobertos  de  uma  arma- 
dura. 

Aquella  setta  alcançou-o,  penetrou  atravez  do  seu  arnez 
philosophico,  até  chegar-lhe  ao  coração. 

No  cumulo  do  furor,  atirou  á  doida  com  o  tinteiro  para 
diante  de  si,  e  seguiu-o  na  mesma  direcção. 

Mas  o  sr.  Jingle  sumira-se,  e  elle  achou-se  preso  entre  os 
braços  de  Sam. 

—  Que  é  lá  isso!  bradou  este  excêntrico  servo,  lá  na  sua 
terra  a  mobilia  é  muito  barata.  A  modo  que  esta  tinta  escreve 
por  si.  Deixou-lhe  a  firma  ali  na  parede,  meu  velho.  Deixe-se 
estar,  senhor :  para  que  diacho  serve  correr  atraz  de  um  su- 
jeito que  vae  contente  como  um  rato,  e  que  a  estas  horas  já 
está  lá  no  fim  do  Borough  ? 

O  espirito  do  sr.  Pickwick,  como.  o  de  todos  os  homens 
verdadeiramente  grandes,  era  accessivel  á  persuasão.  Elle  era 
um  argumentador  rápido  e  poderoso ;  e  um  momento  de  re- 
flexão lhe  bastou  para  perceber  a  impotência  do  seu  furor. 
Por  isso  abrandou  tão  depressa  como  se  exaltara.  Arquejou, 
e  lançou  um  olhar  benévolo  aos  seus  amigos  que  o  cerca- 
vam. 

Será  necessário  contar  os  lamentos  de  Miss  Wardle, 
quando  se  viu  desamparada  pelo  pérfido  Jingle  ?  summariar 
a  primorosa  descripção,  feita  pelo  sr.  Pickwick,  d'esta  scena 
dilacerante  í 

Temos  aberto  diante  de  nós  o  seu  livro  de  notas,  man- 


AS   AVENTURAS 


chado  com  as  lagrimas  da  mais  humana  commiseração.  Uma 
palavra  só,  e  essas  notas  irão  para  as  mãos  do  impressor  I 
Mas  não  I  teremos  força  de  vontade  !  Não  torturemos  o  cora- 
ção do  publico  com  a  pintura  de  tamanho  sofFrimento ! 

Devagar  e  tristemente  voltaram  no  dia  seguinte  os  dois 
amigos  e  a  desamparada  dama  na  pesada  diligencia  de  Mug- 
gleton. 

Negras  e  melancólicas  cahiam  sobre  a  natureza  as  som- 
bras de  uma  noite  estival,  quando  elles  chegaram  finalmente 
a  Dingley  Dell,  e  se  apeiaram  á  entrada  de  Manor  Farm.  ^ 


CAPITULO   XI 

Contendo  uma  outra  jornada,  e  uma  descoberta 
archeologíca;  exarando  a  resolução  do  sr.  Píck- 
^^ick  de  assistir  a  uma  eleição;  e  inserindo  um 
manuscripto  do  velho  vigário. 

Uma  noite  de  repouso  no  profundo  silencio  de  Dingley 
Deil  e  o  respirar  durante  uma  hora  da  manha  seguinte  aquelle 
ar  fresco  e  perfumado,  restauraram  completamente  o  sr.  Pick- 
Avick  dos  eífeitos  da  fadiga  corporal  e  da  anciedade  espiri- 
tual. 

Dois  dias  inteiros  tinha  aquelle  homem  eminente  estado 
separado  dos  seus  amigos  e  discípulos ;  e  foi  com  um  rego- 
sijo,  que  a  imaginação  humana  mal  pode  devidamente  con- 
ceber, que  elle  correu  a  saudar  os  srs.  Winkle  e  Snodgrass, 
ao  encontrai- os  na  volta  do  seu  passeio  matutino. 

Esse  regosijo  era  mutuo;  pois  quem  poderia  sequer  fitar 
a  radiante  physionomia  do  sr.  Pickwick  sem  experimentar 
um  tal  sentimento  .^ 

Uma  nuvem,  porém,  parecia  ainda  empanar  o  rosto  dos 
seus  companheiros,  a  qual  não  podia  passar  desapercebida  ao 
grande  homem,  embora  se  perdessem  em  conjecturas  para 
lhe  adivinhar  o  motivo. 

Ambos  elles  tinham  um  aspecto  mysterioso,  tão  extraor- 
dinário como  assustador. 

—  E  então,  disse  o  sr.  Pickwick,  depois  de  apertar  as  mãos 


no  SR.  pi(:kwi(:k  idq 


dos  discípulos,  e  trocado  eííusivas  saudações,  como  vae  Tup- 
man  ? 

O  sr.  Winkle,  a  quem  mais  particularmente  se  diriííia  a 
pergunta,  não  deu  resposta.  Voltou  a  cabeça  para  o  lado,  e 
pareceu  embebido  em  retiexóes  melancólicas. 

—  Snodgrass,  disse  o  sr.  Pickwick  anciosamtinte,  como 
está  o  nosso  amigo.  Dar-se-ha  o  caso  que  esteja  doente  ? 

—  Não,  replicou  o  sr.  Snodgrass ;  e  uma  lagrima  lhe  tre- 
meluzia  na  pálpebra  sentimental,  como  uma  gotta  de  chuva 
no  caixilho  de  uma  janella.  Não;  não  está  doente. 

O  sr.  Pickwick  estacou,  olhando  alternadamente  para  cada 
um  dos  amigos. 

—  Winkle  —  Snodgrass,  disse  o  sr.  Pickwick,  que  signi- 
fica isto  ?  Onde  está  o  nosso  amigo  ?  Que  succedeu  r  Falle  — 
rogo-lhes,  imploro-lhes  —  por  outra,  ordeno-lhes  que  fallem. 

Havia  uma  tal  magestade  nos  modos  do  sr.  Pickwick,  que 
não  se  lhe  podia  resistir. 

—  Foi-se  embora,  disse  o  sr.  Snodgrass. 

—  Foi-se  I  exclamou  o  sr.  Pickwick,  foi-se  ! 

—  Foi-se,  repetiu  o  sr.  Snodgrass. 

—  Para  onde  ?  exclamou  o  sr.  Pickwick. 

—  Apenas  o  podemos  conjecturar,  por  esta  communica- 
ção,  replicou  o  sr.  Snodgrass  tirando  uma  carta  da  algibeira 
e  passando- a  ás  mãos  do  amigo.  Hontem  de  manhã, quando 
se  recebeu  uma  carta  do  sr.  Wardle,  participando  que  á  noite 
estariam  de  regresso  com  a  irmã  d'elle,  reparámos  que  a  me- 
lancolia que  pairara  sobre  o  nosso  amigo  durante  todo  o  dia 
precedente  parecia  crescer  ainda.  Pouco  depois  elle  desappa- 
receu  ;  durante  o  dia  inteiro  ninguém  lhe  poz  a  vista  em  cima, 
e  á  noitinha  chegou  esta  carta  trazida  pelo  moço  da  Coroa, 
de  Muggleton.  Tinham-lh'a  deixado  nas  mãos,  pela  manhã, 
com  ordem  terminante  de  não  ser  entregue  antes  da  noite. 

O  sr.  Pickwick  abriu  a  epistola.  Era  da  letra  do  seu  amigo, 
e  era  o  seguinte  o  conteúdo  : 

«Meu  caro  Pickwick. 

<'0  meu  bom  amigo  está  collocado  muito  acima  do  al- 
cance de  muitas  fragilidades  e  fraquezas  humanas  que  aos 
entes  vulgares  não  é  dado  vencer. 

"Não  sabe  que  profundo  golpe  é  o  ser  abandonado   por 


lOO  AS  AVENTURAS 


uma  creatura  seductora  e  adorável,  e  ao  mesmo  tempo  ser 
victima  de  um  miserável  que  occultava  as  suas  artimanhas 
velhacas  sob  a  mascara  da  amisade.  Que  o  não  saiba  nunca, 
é  o  que  eu  lhe  desejo. 

"(2hegar-me-ha  ás  mãos  qualquer  carta  endereçada  á  Bo- 
tija de  couro,  em  Cobham,  Kent  —  caso  eu  ainda  exijta. 

«Afasto-me  de  uma  parte  do  mundo  que  se  me  tornou 
odiosa. 

«Se  de  todo  o  abandonar,  lastime-me  —  perdôe-me.  A 
vida,  meu  caro  Pickwick,  tornou-se-me  insupportavel.  O  es- 
pirito que  dentro  em  nós  fiammeja  é  como  as  cordas  de  um 
carregador,  nas  quaes  descançamos  o  peso  enorme  dos  cui- 
dados e  dos  desgostos  d'este  mundo;  quando  esse  espirito 
nos  falta,  o  fardo  é  em  demasia  pesado.  Succumbimos  de- 
baixo d'elle.  Pôde  dizer  a  Rachel...  Ah!  este  nome!  este 
nome ! 

«Tract/  Tupman.» 

—  Temos  de  partir  immediatamente,  disse  o  sr.  Pickwick 
dobrando  a  carta.  Não  seria  decente  ficarmos  aqui,  em  caso 
algum,  depois  do  que  aconteceu ;  e  agora  temos  obrigação 
de  ir  em  cata  do  nosso  amigo. 

E  dizendo  isto,  tomou  o  caminho  da  casa. 

As  suas  intenções  foram  depressa  communicadas.  Vehe- 
mentes  foram  as  instancias  para  que  ficassem,  mas  o  sr.  Pick- 
wick foi  inflexível.  Os  negócios,  disse  elle,  exigiam  a  sua  pre- 
sença immediata.  O  velho  vigário  estava  presente. 

~  Deveras,  vae-se  embora  ?  disse  elle,  tomando  de  parte 
o  sr.  Pickwick,  o  qual  reiterou  a  sua  resolução. 

—  Então,  disse  o  velho,  aqui  tem  um  pequeno  manuscri- 
pto,  que  eu  esperava  ter  o  prazer  de  lhe  ler  eu  próprio. 
Achei-o  por  morte  de  um  amigo  meu  —  medico  no  hospital 
dos  doidos  aqui  do  condado  —  entre  um  grande  numero  de 
papeis,  que  eu  tinha  a  faculdade  de  destruir  ou  de  guardar, 
conforme  entendesse.  Custa-me  a  crer  que  elle  seja  authen- 
tico,  comquanto  a  letra  não  seja  com  certeza  do  meu  amigo. 
Gomtudo,  quer  seja  realmente  obra  de  um  maniaco,  quer 
seja  fundado  sobre  os  desvarios  de  qualquer  desgraçado,  o 
que  me  parece  mais  provável,  leia- o  sempre  e  ajuíze  por  si 
próprio. 


J 


IK)    -^R.    PICKWICK  l6l 


O  sr.  Pickwick  recebeu  o  manuscripto,  e  apartou-se  do 
bondoso  ancião  com  muitas  expressões  de  estima  e  de  afFe- 
cto. 

Mais  dirticil  tarefa  foi  o  despedir-se  da  gente  de  Manor 
Farm,  de  quem  elles  haviam  recebido  uma  tão  franca  e  amá- 
vel hospitalidade. 

O  sr.  Pickwick  beijou  as  meninas  —  iamos  dizer,  como  se 
fossem  suas  próprias  filhas,  somente  não  seria  de  todo  apro- 
priada a  comparação,  visto  que  as  eftlisões  talvez  tivessem 
sido  um  pouco  mais  calorosas  do  que  seriam  n'aquelle  caso. 

Abraçou  a  velha  dama  com  cordialidade  filial,  acariciou 
as  bochechas  róseas  das  criadas  de  uma  maneira  bem  pa- 
triarchal,  dei.\ando-lhes  nas  mãos  algumas  provas  substan- 
ciaes  do  seu  reconhecimento. 

Mais  cordial  ainda  e  mais  prolongada  foi  a  troca  de  pro- 
testos com  o  velho  e  excellente  hospedeiro  e  com  o  sr,  Trun- 
dle ;  chamou-se  repetidas  vezes  pelo  sr.  Snodgrass,  o  qual 
surgiu  afinal  de  um  corredor  escuro,  seguido  logo  por  Emilv 
(cujos  olhos  haviam  perdido  o  brilho  habitual),  e  só  depois 
d'isso  é  que  os  três  amigos  conseguiram  arrancar-se  d"entre 
os  braços  que  tão  amavelmente  os  haviam  acolhido. 

Ao  afastarem-se  lentamente,  não  faltaram  olhares  saudo- 
sos lançados  sobre  Manor  Farm  ;  nem  beijos  atirados  ao  ar- 
pelo  sr.  Snodgrass,  correspondendo  a  qualquer  cousa  muito 
parecida  com  um  lenço  de  senhora,  que  íiuctuava  em  uma 
das  janellas  de  cima,  até  que  a  velha  casa  se  perdeu  de  vista, 
a  uma  volta  da  estrada. 

Em  Muggleton  arranjaram  transporte  para  Rochester.  Ao 
chegarem  a  esta  povoação,  abrandára-lhes  o  desgosto  ao 
ponto  de  não  lhes  tirar  o  appetite  para  um  excellente  jan- 
tar. E,  informados  convenientemente  sobre  o  caminho,  os  três 
amigos  seguiram  á  tarde,  a  pé,  até  Cobham. 

Foi  um  lindo  passeio  :  porque  estava  uma  tarde  magnifica 
de  junho,  e  a  estrada  cortava  atravez  de  um  bosque  cerrado 
e  sombrio,  refrescado  pela  aragem  que  rumorejava  na  copada 
folhagem,  e  animado  pelo  gorgear  dos  pássaros  pousados  nos 
ramos. 

A  hera  e  o  musgo  trepavam  em  massas  densas  pelas  ve  • 
lhas  arvores,  e  a  relva  macia  alastrava-se  pelo  chão  como  um 
tapete  de  seda  verde. 

I  I 


02  AS   AVENTURAS 


D'ahi  sahiram  para  um  parque  aberto,  com  um  solar  an- 
tigo, ostentando  a  architectura  orÍL;inal  e  pittoresca  do  tempo 
de  Izabel. 

Desenrolavam-se  para  todos  os  lados  longas  perspectivas 
de  magníficos  carvalhos  e  olmeiros :  grandes  rebanhos  de 
gamos  anda\am  a  pastar  a  herva  fresca;  e  uma  vez  por  ou 
tra  uma  lebre  assustada  abalava  pelo  campo  com  a  veloci- 
dade das  sombras  projectadas  pelas  nuvens  ligeiras  que  se 
escoam  atravez  de  uma  paisagem  cheia  de  sol,  como  um  há- 
lito passageiro  do  verão. 

—  Se  fosse  este,  disse  o  sr.  Pickwick  olhando  em  redor, 
se  fosse  este  o  sitio  para  onde  se  retirassem  todos  os  que  pa- 
decem da  moléstia  do  nosso  commum  amigo,  affigura-se-me 
que  lhes  havia  de  voltar  bem  depressa  o  seu  antigo  apego  ao 
mundo. 

—  Também  me  parece,  disse  o  sr.  Winkle. 

—  E  realmente,  ajuntou  o  sr.  Pickwick,  ao  chegar  á  al- 
deia, depois  de  meia  hora  de  passeio,  realmente,  para  um  mi- 
santhropo,  é  este  um  dos  sitios  mais  lindos  e  mais  appeteci- 
veis  para  habitar  que  tenho  visto  na  minha  vida. 

Os  srs.  Winkle  e  Snodgrass  concordaram  com  esta  opi- 
nião ;  guiados  que  foram  para  a  Botija  de  couro,  estalagem 
de  aldeia  commoda  e  limpa,  os  três  viajantes  entraram  e  per- 
guntaram logo  por  um  sujeito  de  nome  Tupman. 

—  Tom,  leve  estes  senhores  á  sala,  disse  a  estalajadeira. 
Um  robusto  camponez  abriu  uma  porta  no  extremo  do 

corredor,  e  os  três  amigos  entraram  n'um  aposento  sobre  o 
comprido,  de  tectos  baixos,  mobilado  com  um  grande  numero 
de  cadeiras  de  couro,  de  costas  altas,  de  formas  phantasticas, 
e  ornamentado  com  uma  extrema  variedade  de  retratos  ve- 
lhos e  de  estampas  grosseiramente  coloridas  de  tempos  idos. 

No  extremo  da  sala  estava  uma  meza  posta,  com  uma  toa- 
lha branca,  e  sobre  ella  uma  ave  assada,  presunto,  cerveja, 
etc,  etc.  •,  e  á  mesa  estava  sentado  o  sr.  Tupman,  parecendo 
o  menos  possivei  um  homem  que  se  tinha  despedido  d'este 
mundo. 

A'  entrada  dos  amigos,  pousou  o  garfo  e  a  faca,  e  foi  ao 
seu  encontro  com  aspecto  tristonho. 

—  Não  esperava  vêl-os  aqui,  disse  elle,  apertando  a  mão 
do  sr.  Picl-wick.  Que  bondade  a  sua  I 


DO  SR.   PICKVVICK  l63 


—  Ah  !  disse  o  sr.  Pickwick  sentando-se,  e  enxugando  a 
transpiração  que  o  passeio  lhe  trouxera  á  testa.  Acabe  de 
jantar,  e  venha  dar  um  passeio  comigo  Desejo  fallar-lhe  a 
sós. 

O  sr.  Tupman  assim  fez ;  e  o  sr.  Pickwick,  tendo-se  re- 
frescado com  uma  copiosa  golada  de  cerveja,  esperou  pelo 
amigo.  O  jantar  concluiu-se  n'um  prompto,  e  elles  sahiram 
juntos. 

Durante  meia  hora  se  poderiam  ter  divisado  os  seus  vul- 
tos, medindo  a  passos  lentos  o  cemitério,  emquanto  o  sr. 
Pickwick  se  empenhava  em  combater  a  resolução  do  amigo. 
Seria  inútil  qualquer  repetição  dos  seus  argumentos  ;  pois  em 
que  linguagem  se  poderiam  transplantar  a  energia  e  a  força 
communicada  pelos  eminentes  lábios  que  as  pronunciavam  1 
Pouco  importa  saber  se  o  sr.  Tupman  já  estava  aborrecido 
da  solidão,  ou  se  foi  de  todo  incapaz  de  resistir  ao  eloquente 
appello  que  lhe  era  feito  :   o  que  é  facto  é  que  não  resistiu. 

Pouco  lhe  miportava,  dizia  elle,  onde  havia  de  arrastar  os 
míseros  restos  dos  seus  dias  :  e  desde  que  o  seu  amigo  tanto 
interesse  mostrava  pela  sua  humilde  companhia,  de  boa  von- 
tade tomaria  parte  nas  suas  aventuras. 

O  sr.  Pickwick  sorriu,  apertaram-se  as  mãos,  e  ambos  vol- 
taram para  junto  dos  companheiros. 

Foi  n'essa  occasião  que  o  sr.  Pickwick  fez  aquella  desco- 
berta immortal,  que  constituiu  o  orgulho  e  a  gloria  dos  seus 
amigos,  e  a  inveja  de  todos  os  archeologos  do  paiz  e  do  es- 
trangeiro. 

Tinham  passado  além  da  porta  da  estalagem  e  já  não  se 
recordavam  bem  onde  ella  ficava,  perdidos  nas  ruas  da  al- 
deia.* 

Ao  voltarem  para  traz,  o  olhar  do  sr.  Pickwick  cahiu  so- 
bre uma  pequena  pedra  partida,  meio  enterrada,  defronte  de 
uma  choupana. 

Parou. 

—  E'  extraordinário!  exclamou  elle. 

—  Extraordinário,  o  que  ?  perguntou  o  sr.  Tupman,  de 
olhos  abertos  para  todos  os  objectos  pioximos,  excepto  para 
aquelle  a  que  se  alludia.  Ora  essa!  o  que  vem  a  ser  isso? 

Esta  ultima  exclamação  de  irresistível  surpreza  foi  produ- 
zida pelo  facto  de  ver  o  sr.  Pickwick,  no  seu  enthusiasmo 


164  AS  AVENTURAS 


por  descobertas,  cahir  de  joelhos  diante  da  pedra,  e  come- 
çar a  sacudir-lhe  o  pó  com  o  seu  lenço. 

—  Aqui  ha  uma  inscripçáo,  disse  elle. 

—  E'  possivel  ? 

—  Posso  distinguir,  continuou  o  sr.  Pickwick  esfregando 
com  toda  a  força  e  esgazeando  a  vista  atravez  dos  óculos, 
posso  distinguir  uma  cruz,  e  um  B,  e  um  T.  Isto  é  muito  im- 
portante, proseguiu  elle  erguendo-se.  E'  alguma  inscripção 
antiquissima,  que  existia  porventura  muito  antes  dos  anti- 
gos albergues  ^  aqui  do  sitio.  Não  se  pode  perder. 

Bateu  á  porta  da  choupana.  Abriu-lh'a  um  trabalhador. 

—  Sabe  £omo  veiu  aqui  parar  esta  pedra,  meu  amigo  ? 
perguntou  o  sr.  Pickwick  com  affabilidade. 

—  Eu  sei  lá,  senhor!  replicou  delicadamente  o  homem. 
Ella  já  estava  aqui  antes  de  eu  ser  nascido  ou  qualquer  ou- 
tro aqui  da  aldeia. 

O  sr.  Pickwick  relanceou  um  olhar  triumphante  para  o 
companheiro. 

—  Vossemecê  —  vossemecê  —  não  lhe  tem  grande  apego, 
supponho,  eu,  disse  o  sr.  Pickwick,  tremulo  de  anciedade. 
Não  se  lhe  dava  vender  isto,  hein  .'' 

—  Ora!  quem  é  que  a  quer  comprar?  perguntou  o  ho- 
mem com  uma  expressão  que  elle  provavelmente  tinha  na 
ideia  fazer  muito  sagaz. 

—  Eu  dou-lhe  já  dez  shillings  por  ella,  disse  o  sr.  Pick- 
wick, se  vossemecê  a  quizer  desenterrar  para  mim. 

Arrancada  a  pedra  com  umaenxadada,  facilmente  se  pôde 
imaginar  o  espanto  de  toda  a  aldeia,  ao  verem  o  sr.  Pick- 
wick, á  custa  de  um  grande  esforço,  leval-a  por  suas  próprias 
mãos  para  a  estalagem  e  collocal-a  sobre  a  mesa,  depois  de 
a  ter  lavado  cuidadosamente. 

O  jubilo  dos  pickwickanos  não  teve  limites,  quando  a  sua 
paciência  e  a  sua  assiduidade,  as  suas  lavagens  e  as  suas  ras- 
pagens  foram  coroadas  de  êxito. 

A  pedra  era  áspera  e  quebrada,  e  os  caracteres  desalinha- 


'  Altns-hoiises,  albergues  para   velhos  pobres   em   muitas  povoações  da 
Inglaterra. 


DO  SR.  PICKWICK  l65 


dos  e  irregulares,  mas  decifrava  se  claramente  o  seguinte 
fragmento  de  uma  inscripção: 


T 

B  I  L  S  T 

U  M 

P  S  S  U 

A  F 
IRMA 

Os  olhos  do  sr.  Pickwick  lampejavam  de  alegria,  quando 
se  sentou  a  rever-se  no  thesouro  que  descobrira. 

Tinha  conseguido  um  dos  máximos  objectos  da  sua  am- 
bição. 

*N'uma  provincia  conhecida  por  abundar  em  restos  de 
tempos  primitivos,  numa  aldeia  onde  existiam  ainda  algu- 
mas memorias  das  épocas  passadas,  elle  —  elle,  o  presidente 
do  Club  Pickwick — -descobrira  uma  inscripção  estranha  e 
curiosa,  de  incontestável  antiguidade,  a  qual  escapara  com- 
pletamente á  observação  dos  muitos  sábios  que  o  haviam 
precedido.  Custava-lhê  a  crer  no  testemunho  dos  seus  pró- 
prios sentidos. 

—  Isto,  disse  elle,  resolve-me.  A'manhã  voltamos  para  a 
cidade. 

—  A'manhã!  exclamaram  os  seus  discipulos  e  admirado- 
res. 

—  A'manhã,  disse  o  sr.  Pickwick.  Este  thesouro  tem  de 
ser  immediatamente  depositado  em  sitio  onde  o  examinem 
detidamente  e  o  interpretem  como  convém.  Tenho  ainda  ou- 
tro motivo  para  dar  este  passo.  D'aqui  a  poucos  dias,  reali- 
sam-se  as  eleições  pelo  burgo  de  Eatanswill,  onde  o  sr.  Per- 
ker,  um  sujeito  com  quem  ultimamente  me  relacionei,  é  agen- 
te de  um  dos  candidatos.  Iremos  observar  e  examinar  por 
meudos  uma  scena  tão  interessante  para  todo  o  inglez. 

—  Iremos,  foi  o  grito  enthusiasta  de  três  vozes. 
O  sr.  Pickwick  olhou  em  volta  de  si. 

A  dedicação  e  o  fervor  dos  seus  apaniguados  accendeu 


[ÒO  AS   AVENTURAS 


dentro  d'elle  uma  chamma  de  enthusiasmo.  Por  seu  chefe  o 
tinham  ;  bem  o  sentia  elle. 

—  Celebremos  este  alegre  encontro  com  uma  libação  cheia 
de  affecto,  disse  elle. 

Como  a  primeira  proposta,  foi  esta  acolhida  com  applau- 
sos  unanimes. 

E  tendo  em  pessoa  depositado  a  importante  pedra  n'um 
pequeno  caixote  de  pinho,  propositadamente  comprado  á  es- 
talajadeira, sentou-se  á  cabeceira  da  meza  n'uma  cadeira  de 
braços ;  e  consagrou-se  a  noite  á  alegria  e  á  conversa- 
ção.* 

Eram  mais  de  onze  horas,  alta  noite  na  pequena  aldeia  de 
Cobham,  quando  o  sr.  Pickwick  se  recolheu  ao  quarto  que 
fora  preparado  para  a  sua  recepção. 

Escancarou  as  gelosias,  e  pondo  a  luz  em  cima  da  meza, 
cahiu  em  fundas  cogitações  sobre  os  acontecimentos  que  se 
haviam  precipitado  durante  os  dois  dias  precedentes 

Tanto  a  hora  como  o  logar  eram  favoráveis  á  medita 
cão ;  o  sr.  Pickwick  foi  arrancado  a  ella  pelo  relógio  da  egre- 
ja  que  dava  meia  noite. 

A  primeira  badalada  resoou-lhe  solemnemente  nos  ouvi 
dos,  mas  quando  o  sino  se  calou,  pareceu-lhe  insupportavel 
o  silencio ;  —  apertou  se-lhe  o   coração,   como   se  houvesse 
perdido  um  companheiro. 

Estava  nervoso  e  excitado ;  e  despindo-se  á  pressa,  e  col- 
locando  a  luz  no  fogão,  metteu-se  na  cama. 

Não  ha  ninguém  que  não  tenha  experimentado  o  es- 
tado desagradável  de  espirito,  em  que  uma  sensação  de  can- 
saço corporal  luta  debalde  contra  a  insomnia. 

Tal  era  n'esse  momento  a  situação  do  sr.  Pickwick:  vi- 
rou-se  primeiro  para  um  lado,  depois  para  outro;  e  teimou 
em  fechar  os  olhos  como  para  chamar  o  somno. 

Debalde. 

Quer  fosse  o  exercicio  desacostumado  a  que  se  entregara, 
quer  o  calor,  ou  o  grog,  ou  o  estranhar  a  cama  —  fosse  o  que 
fosse,  voltavam-lhe  desagradavelmente  os  pensamentos  para 
as  pinturas  tristonhas  que  vira  no  pavimento  térreo,  e  para 
as  velhas  his'orias  a  que  ellas  haviam  dado  origem  na  con- 
versação da  noite. 

Depois  de  se  revolver  meia  hora  na  cama,  chegou  á  pouco 


no  SR.  piCKWiCK  1G7 


satisfactoria  conclusão  de  que  era  escusado  tentar  adorme- 
cer; portanto  levantou-se  e  vestiu-se  á  ligeira. 

Tudo  era  preferível,  pensava  elle,  a  estar  ali  deitado  a 
imaginar  toda  a  espécie  de  horrores. 

Olhou  para  fora  —  estava  escuríssimo.  Passeou  pelo  quarto 
—  tudo  silencio  e  isolamento. 

Dera  alguns  passeios  da  janella  para  a  porta,  e  da  porta 
para  a  janella,  quando  lhe  occorreu  pela  primeira  vez  o  ma- 
nuscripto  do  vigário. 

Relia  ideia  !  Se  não  conseguisse  interessal-o,  pode  ser  que 
o  adormecesse, 

Tirou-o  da  algibeira,  e  puxando  uma  mezita  para  junto 
da  cama,  espevitou  a  luz,  poz  os  óculos,  e  dispoz-se  para  a 
leitura. 

A  letra  era  singular,  e  o  papel  muito  enxovalhado  e  man- 
chado. 

O  titulo  também  lhe  produziu  um  sobresalto  de  arrípio ; 
e  não  pôde  eximir-se  a  lançar  um  olhar  inquieto  pelo  quarto. 
Comtudo,  reflectindo  no  disparate  de  ceder  a  táes  sentimen- 
tos, tornou  a  espevitar  a  luz,  e  leu  o  seguinte  : 


"Sim,  de  um  doido  1  • 

"Como  esta  palavra  me  teria  dado  terríveis  rebates  no  co- 
ração, aqui  ha  muitos  annos  ! 

"Como  teria  excitado  o  pavor  que  ás  vezes  costum.ava  as- 
saltar-me  fazendo-me  latejar  e  silvar  o  sangue  pelas  veias  fora 
até  que  o  orvalho  gelado  do  medo  me  cobrisse  a  pelle  em 
grossas  gotas  e  os  meus  joelhos  batessem  um  no  outro  de 
terror  1 

"E  agora  apraz-me  essa  palavra!  E'um  bellonome  !  Mos- 
trem-me  lá  um  mon?rcha,  cujo  sobrecenho  de  cólera  seja  te- 
mido como  o  lampejar  dos  olhos  de  um  doido ;  cuja  forca  e 
cujo  machado  tenham  metade  da  certeza  que  possuem  as 
garras  de  um  doido  !  Oh  !  oh !  grande  cousa  é  ser  doido  !  ser 
espreitado  á  laia  de  leão  feroz  atravez  de  umas  grades  de 
ferro  —  ranger  os  dentes  e  ulular  durante  a  noite  silenciosa  e 


id8  as  aventuras 


longa,  ao  retinido  alegre  de  uma  pesada  cadeia  —  rolar-se  e 
enroscar-se  por  entre  a  palha,  nos  transportes  causados  por 
essa  estrepitosa  musica  !  Viva  o  hospital  dos  doidos  !  Oh  ! 
que  deliciosa  mansão  que  elle  é  I 

"Recordo-me  do  tempo  em  que  eu  tinha  receio  de  endoi- 
decer; quando  eu  acordava  em  sobresalto,  e  cahia  de  joe- 
lhos, e  rezava  para  ser  poupado  ao  flagello  da  minha  raça; 
quando  eu  me  arrancava  do  espectáculo  da  alegria  ou  da  fe- 
licidade, para  me  occultar  n'algum  sitio  isolado,  e  gastar  as 
horas  de  tédio  a  espreitar  os  progressos  da  febre  que  me  de- 
via consumir  o  cérebro. 

«Eu  bem  sabia  que  a  loucura  me  estava  misturada  no  san- 
gue, e  na  medulla  dos  ossos ;  que  passara  uma  geração  isenta 
da  medonha  praga,  e  que  eu  era  o  primeiro  em  quem  ella 
devia  reviver. 

«Eu  bem  sabia  que  tal  devia  succeder  :  que  sempre  assim 
fora,  e  que  assim  devia  continuar  para  sempre;  e  quando  eu 
me  agachava  n'algum  canto  obscuro  de  uma  casa  cheia  de 
gente,  e  via  as  pessoas  a  segredarem,  e  a  apontarem,  e  a  vol- 
tarem os  olhos  para  mim,  eu  sabia  que  ellas  estavam  a  fallar 
umas  ás  outras  do  doido  predestinado;  e  de  novo  me  sumia 
para  o  isolamento,  a  parafusar  tristemente. 

«Assim  fiz  durante  annos  seguidos,  longos,  longos  annos. 
As  noites  aqui  são  ás  vezes  longas  -  -  longas  em  extremo  ;  mas 
nada  são  comparadas  com  as  noites  de  desassocego  e  de  pe- 
sadelos terríveis  que  eu  tj^iha  então. 

«Gela-me  todo  o  lembrar-me  d'ellas. 

«Pelos  cantos  do  quarto  rojavam-se  uns  vultos  enormes  e 
torvos,  que  vinham  curvar-se  de  novo  sobre  o  meu  leito,  a 
tentarem  me  para  a  loucura. 

«Diziam-me  baixinho,  muito  baixinho,  que  o  chão  da  ve- 
lha casa,  em  que  morrera  o  pae  de  meu  pae,  estava  manchado 
com  o  sangue  d'elle,  derramado  pelas  próprias  mãos  n'um 
accesso  furioso  de  loucura. 

"Eu  mettia  os  dedos  pelos  ouvidos,  mas  os  seus  gritos  en- 
travam-me  na  cabeça,  até  que  o  quarto  tremia  á  força  d'elles, 
dizendo- me  que  a  loucura  estivera  incubada  na  geração  ante- 
rior á  de  meu  avô,  mas  que  o  avô  d'elle  vivera  annos  e  annos 
com  as  mãos  agrilhoadas  ao  chão,  para  evitar  que  se  dilace- 
rasse. 


DO  SR.  PICKWICK  lb() 


«Hu  sabia  que  aquellas  vozes  fallavam  verdade  —  demais 
o  sabia. 

«Annos  antes  o  descobrira,  embora  procurassem  todos  oc- 
cultar-m'o. 

«Ah  !  ah !  eu  tinha  astúcia  de  sobejo  para  elles,  apesar  de 
me  julgarem  doido. 

"Ahnal  desabou  sobre  mim  o  tlagello,  e  eu  pasmei  dos 
meus  passados  terrores. 

«Agora  já  podia  andar  por  toda  a  parte,  e  rir  e  berrar 
com  os  melhores  d"entre  elles. 

«Que  estava  doido  sabia  eu,  mas  elles  é  que  nem  sequer 
o  suspeitavam. 

"Com  que  delicias  eu  Iblgava  de  pensar  na  bella  peça  que 
eu  lhes  estava  pregando,  depois  de  elles  andarem  que  tempos 
a  apontar-me  e  a  olhar- me  de  esguelha,  quando  eu  não  es- 
tava doido,  mas  apenas  com  medo  de  endoidecer  um  dia  ! 

"E  como  eu  ria  de  contentamento,  quando  estava  sósi- 
nho,  ao  pensar  que  guardava  tão  bem  o  meu  segredo  e  na 
rapidez  com  que  os  meus  bons  amigos  deitariam  a  fugir  de 
mim,  caso  soubessem  a  verdade  ! 

«Quando  eu  jantava  a  sós  com  algum  bom  patusco  amigo 
da  frescata,  sentia-me  capaz  de  uivar  de  jubilo,  ao  pensar 
como  elle  ficaria  pallido  e  com  que  promptidão  se  safaria,  sa 
soubesse  que  o  caro  amigo,  sentado  ao  pé  d'elle,  a  afiar  ume 
faca  reluzente,  era  um  doido  com  todo  o  poder  e  com  von- 
tade vae  não  vae  de  lh'a  cravar  no  coração.  Oh !  que  alegre 
era  aquella  vida ! 

"Enriqueci,  jorrou  sobre  mim  a  opulência,  e  eu  entreguei- 
me  a  prazeres  mil  vezes  accrescidos  pela  convicção  de  que 
guardava  bem  o  meu  segredo. 

"Herdei  uma  propriedade. 

«A  lei,  de  olhos  de  águia,  a  própria  lei  fora  illudida,  arre- 
messando uma  enorme  fortuna  contestada  para  as  mãos  de 
um  doido. 

«Onde  estava  pois  o  juizo  dos  homens  de  entendimento 
são  e  perspicaz  ? 

«Onde  estava  a  habilidade  dos  legislas,  ávidos  de  desco- 
brir uma  incorrecção  ? 

«A  astúcia  de' um  louco  levara  de  vencida  a  todos  el- 
les. 


170  AS  AVENTURAS 


«'Tinha  dinheiro.  Como  eu  era  adulado !  Dispendi-o  ás 
mãos  hirgas.  Como  eu  era  elogiado  !  Como  aquelles  tres  ir- 
mãos orgulhosos  e  aucioritarios  se  humilharam  perante  mim  I 

«Até  o  velho  pae  encanecido  —  que  deferência! — que 
respeito  !  —  que  delicada  amizade  !  —  era  uma  verdadeira  ido- 
latria I 

"O  velho  tinha  uma  filha,  e  os  rapazes  uma  irmã ;  e  todos 
os  cinco  eram  pobres. 

'■Eu  era  rico;  e  quando  eu  casei  com  a  rapariga,  vi  um 
sorriso  de  triumpho  a  brincar  nos  rostos  dos  mais  necessita- 
dos parentes,  ao  pensarem  no  seu  bem  succedido  plano,  e  na 
bella  preza  que  haviam  colhido. 

«Eu  é  que  devia  sorrir.  Sorrir !  Rir  a  bandeiras  desprega- 
das, e  ariancar  os  cabellos,  e  rebolar  pelo  chão  com  uivos  de 
alegria. 

«Mal  pensavam  elles  que  a  tinham  casado  com  um  doido. 

«Esperem. 

«Se  o  tives5em  sabido,  acaso  a  teriam  salvado?  A  felici- 
dade de  uma  irmã  pelo  oiro  do  marido.  A  mais  leve  penna 
que  eu  assopro  para  o  ar  pela  deslumbrante  cadeia  que  me 
adorna  o  corpo!  N'uma  cousa  fui  eu  illudido,  apesar  de  toda 
a  minha  astúcia. 

«Se  eu  não  estivesse  doido  —  porque  nós  os  doidos,  com- 
quanto  perspicazes,  ficamos  às  vezes  logrados  —  eu  teria 
percebido  que  a  rapariga  preferiria  ter  sido  collocada,  rigida 
e  fria,  dentro  de  um  lúgubre  caixão  de  chumbo,  a  entrar  como 
noiva  invejada  na  minha  rica  e  pomposa  mansão.  Teria  per- 
cebido que  o  coração  d'ella  pertencia  ao  mancebo  de  olhos 
negros,  cujo  nome  eu  lhe  ouvira  uma  vez  ciciar  no  seu  somno 
inquieto  ;  e  que  ella  me  fora  sacrificada,  para  alliviar  a  po- 
breza do  pae  encanecido  e  dos  altivos  irmãos. 

«Eu  agora  não  me  recordo  de  figuras  nem  de  semblantes, 
mas  o  que  sei  é  que  ella  era  linda. 

"Sei  que  o  era;  porque  nas  noites  de  luar  claro,  quando 
eu  desperto  em  sobresaho,  e  tudo  é  silencio  em  torno  de 
mim,  eu  vejo,  erecto  e  impassível  a  um  canto  d'esta  cellula, 
um  vulto  delicado  e  macilento  de  longos  cabellos  negros,  os 
quaes,  espadanando-lhe  pelas  costas  abaixo,  nem  são  agita- 
dos por  um  vento  da  terra,  e  de  olhos  que,  fitos  em  mim, 
nem  pestanejam  nem  se  fecham  nunca. 


DO  SR.   PICKWICK  17 


«Schiu!  gela-se-me  o  sangue  no  coração  ao  escrever  isto 
—  aqtielle  vulto  é  o  d'e]la  ;  o  rosto  é  muito  pallido,  e  os  olhos 
estão  envidraçados  ;  mas  eu  bem  os  conheço. 

"Aquella  Hgura  nunca  se  move  ;  não  franze  os  sobrolhos, 
nem  abre  a  bocca,  como  outras  que  ás  vezes  se  agglomeram 
n'este  aposento  ;  mas  parece-me  muito  mais  medonha,  mesmo 
do  que  os  espiritos  que  ha  muitos  annos  me  tentavam  —  é 
recem-vinda  do  tumulo  e  por  isso  é  tão  similhante  á  morte. 

«Durante  quasi  um  anno  vi  eu  aquelle  rosto  empallidecer 
cada  vez  mais;  durante  quasi  um  anno,  vi  as  lagrimas  desli- 
sarem  por  aquellas  faces  tristonhas,  e  nunca  soube  o  mo- 
tivo, 

«Até  que  afinal  o  descobri.  Não  poderam  occultar-m'o 
muito  tempo. 

«Ella  nunca  me  tivera  amor;  eu  nunca  cuidara  que  eUa 
m'o  tivesse  :  ella  desprezava  a  minha  riqueza,  e  detestava  o 
esplendor  em  que  vivia;  —  isso  é  que  eu  não  tinha  espe- 
rado. 

"Ella  amava  outro.  Isso  é  que  nunca  me  havia  occorrido. 

«Acudiram-me  ao  espirito  sentimentos  estranhos  ;  e  pen- 
samentos incutidos  por  algum  poder  secreto  me  redemoi- 
nharam no  cérebro. 

«Eu  não  a  odiava,  embora  odiasse  o  homem  por  quem  ella 
chorava  ainda. 

«Eu  tinha  dó  —  sim,  tinha  deveras  dó  —  da  miseranda  vida 
a  que  a  linha  condemnado  a  sua  egoista  e  descaroavel  famí- 
lia. 

«Eu  sabia  que  ella  não  podia  viver  muito  tempo,  mas  o 
que  me  determinou  foi  o  pensar  que  antes  de  morrer  ella 
podia  dar  á  luz  algum  malfadado  ente,  destinado  a  transmit- 
tir  a  loucura  á  sua  descendência. 

«Resolvi  matal-a. 

"Semanas  e  semanas  andei  a  pensar,  primeiro  em  veneno, 
depois  em  afogal-a,  por  fim  no  fogo. 

«Que  soberbo  espectáculo,  a  sumptuosa  casa  em  labare- 
das, e  a  mulher  do  doido  reduzida  a  cinzas  ! 

«Que  bella  peça,  prometter  uma  grande  recompensa,  e 
ver  um  homem  de  juizo  a  bambalear  ao  vento  por  um  crima 
que  não  commettera,  e  tudo  isto  pela  astúcia  de  um  doido! 
Quantas  vezes  tal  pensei !  Mas  afinal  renunciei  á  ideia. 


AS  AVENTURAS 


"Oh !  que  prazer  o  de  amolar  dia  a  dia  a  navalha,  de  lhe 
experimentar  o  gume  cortante,  e  de  pensar  no  golpe  aberto 
por  essa  lamina  afiada  e  brilhante ! 

"Afinal,  os  espirites,  que  tantas  vezes  tinham  estado  já 
comigo,  segredaram-me  aos  ouvidos  que  chegara  a  occasião 
própria  e  metteram-me  na  mão  a  navalha  aberta. 

«Empunhei-a  com  firmeza,  ergui-me  devagarinho  da  cama, 
e  debrucei-me  sobre  a  minha  mulher  adormecida. 

«Tinha  o  rosto  escondido  nas  mãos. 

«Afastei-as  de  vagar,  e  ellas  recahiram-lhe  negligentemente 
sobre  o  seio. 

«Ella  tinha  estado  a  chorar;  porque  os  vestígios  das  la- 
grimas ainda  se  lhe  viam  húmidos  nas  faces. 

«Tinha  o  rosto  sereno  e  plácido;  e  até,  quando  olhei  para 
ella,  um  sorriso  tranquillo  illuminou-lhe  as  pallidas  feições. 

«Puz-lhe  muito  ao  de  leve  a  mão  no  hombro.  Ella  sobre- 
saltou-se  —  foi  apenas  um  sonho  passageiro.  Inclinei-me  de 
novo  sobre  ella.  Acordou  com  um  grito. 

«Um  movimento  da  minha  mão,  e  ella  nunca  mais  teria 
soltado  um  grito,  um  som  apenas.  Mas  eu  assustei-me  e  re- 
cuei. 

"Ella  tinha  os  olhos  fitos  nos  meus. 

«Não  sei  como  isto  era,  mas  é  certo  que  elles  me  apavo- 
ravam:  sentia-me  subjugado  por  elles. 

«Ella  ergueu-se  da  cama,  continuando  a  encarar-me  com 
fixidez  e  energia. 

«Eu  tremia,  com  a  navalha  na  mão,  mas  sem  me  poder 
mover. 

"Ella  dirigiu-se  para  a  porta. 

"Ao  aproximar-se  da  sabida,  voltou-se  e  retirou  os  olhos 
do  meu  rosto. 

"Quebrára-se  o  encanto. 

«Dei  um  pulo,  e  agarrei-lhe  o  braço.  Ella  cahiu  no  chão, 
soltando  clamores  agudos. 

«Eu  poderia  tel-a  assassinado  então  sem  luta;  mas  a  casa 
estava  em  alvoroço.  Ouvi  o  ruido  de  passos  na  escada.  Tor- 
nei a  metter  a  navalha  na  gaveta,  abri  a  porta  e  chamei  por 
soccorro  em  altas  vezes. 

«Acudiu  gente,  levaram-n'a  e  deitaram-n'a  na  cama.  Es- 
teve horas  sem  sentidos ;  e  quando  lhe  voltou  a  vida,  o  olhar 


DO  SR.  PICKWICK  17:» 


e  a  falia,  tinha-lhe  fugido  a  rasão,  e  ella  desvairava  em  trans- 
portes de  fúria. 

"Chamaram-se  médicos  —  homens  eminentes  que  rola- 
vam até  á  minha  porta  em  bellas  equipagens,  com  soberbas 
parelhas  e  criados  de  librés  vistosas. 

"Durante  semanas  estiveram  á  cabeceira  d'ella.  Tiveram 
uma  grande  conferencia,  com  falias  solemnes,  no  quarto  con- 
tíguo. 

"Um  d'elles,  o  mais  hábil  e  celebre  de  todos,  chamou-me 
de  parte,  aconselhou-me  que  me  preparasse  para  a  peior  das 
noticias,  e  participou-me  —  a  mim,  o  doido! — que  minha 
mulher  estava  doida. 

«Estava  em  pé,  mesmo  chegado  a  mim,  junto  de  uma  ja- 
nella  aberta,  com  os  olhos  sobre  o  meu  rosto  e  a  mão  no 
meu  braço. 

«Com  leve  esforço  poderia  tel-o  precipitado  á  rua. 

«Seria  uma  partida  de  primeira  ordem;  mas  o  meu  se- 
gredo estava  em  risco,  e  eu  deixei- o  ir. 

.«Poucos  dias  depois,  disseram-me  que  devia  submettel-a 
a  vigilância  activa  :  devia-lhe  arranjar  um  enfermeiro.  Eu  ! 
eu  !  Sahi  para  o  meio  do  campo,  onde  ninguém  podesse  ou- 
vir-me,  e  ri  perdidamente  até  cansar  os  echos  com  as  minhas 
gargalhadas  1 

«Ella  morreu  no  dia  seguinte. 

«O  velho  encanecido  acompanhou  o  féretro,  e  os  orgu- 
lhosos irmãos  derramaram  uma  lagrima  sobre  o  cadáver  d'a- 
quella,  cujos  soffrimentos  elles  tinham  contemplado  em  vida 
com  músculos  de  ferro. 

«Tudo  isto  foi  alimento  para  os  meus  júbilos  secretos,  e 
eu  farlei-me  de  rir  por  detraz  do  lenço  branco  com  que  co- 
bria o  rosto,  ao  voltarmos  para  casa,  até  que  as  lagrimas  me 
chegaram  aos  olhos,  á  força  de  rir. 

«Mas  comquanto  eu  ti^ve^e  alcançado  o  meu  fim  e  a  ti- 
vesse matado,  fiquei  inquieto  e  agitado,  e  percebi  que  dentro 
em  pouco  o  meu  segredo  seria  descoberto. 

«Não  conseguia  occultar  a  alegria  feroz  que  fervia  dentro 
em  mim  e  me  fazia,  quando  estava  sósinho  em  casa,  dar  pu- 
los e  palmadas,  e  dansar  vertiginosamente,  e  rugir  estrondo- 
samente. 

«Quando  eu  sabia  e  via  a  turba  activa  a  acotovelar-se  pe- 


174  -"^S   AVENTURAS 


las  ruas,  ou  á  porta  dos  theatros,  e  ouvia  o  som  da  musica, 
e  observava  gente  a  dansar,  tamanho  jubilo  sentia,  que  tinha 
ganas  de  me  precipitar  no  meio  d"elles,  e  de  os  lacerar  mem- 
bro a  membro,  e  de  ulular  de  extasi. 

«Mas  rangia  os  dentes,  batia  com  os  pés  no  chão,  e  cra- 
vava nas  mãos  as  unhas  atiladas. 

«Dominava-me,  e  ninguém  sabia  ainda  que  eu  estava 
doido. 

<'Lembro-me  —  apesar  de  ser  uma  das  ultimas  cousas  de 
que  posso  lembrar  me  ;  porque  eu  agora  misturo  as  reali- 
dades com  os  meus  sonhos,  e  tenho  tanto  que  fazer,  e  estou 
sempre  aqui  tão  occupado,  que  não  tenho  tempo  de  separar 
as  duas  cousas,  na  estranha  confusão  em  que  andam  envol- 
tas —  lembro-me  como  afinal  eu  deixei  á  solta  a  minha  lou- 
cura. 

'f  Ah  I  ah  1  Parece-me  ainda  ver  os  olhos  espavoridos 
d'aquella  gente,  e  sentir  a  facilidade  com  que  os  afugentei,  e 
lhes  arrojei  o  punho  cerrado  contra  os  rostos  pallidos,  e  como 
em  seguida  desatei  a  correr  como  o  vento,  e  os  deixei  atraz 
de  mim  a  clamar,  a  gritar. 

«Ao  lembrar-me  d'isto,  sinto  em  mim  a  força  de  um  gi- 
gante. 

«Olhem  —  vejam  lá  como  este  varão  de  ferro  se  curva 
sob  um  furioso  arranco  meu. 

"Era  capaz  de  o  despedaçar  como  a  um  vime,  se  não  hou- 
vesse aqui  compridas  galerias  com  muitas  portas  —  não  creio 
que  podesse  dar  com  o  caminho  por  meio  d'ellas :  e  mesmo 
quando  o  conseguisse,  sei  que  ha  lá  em  baixo  portões  de  ferro 
que  elles  teem  aferrolhados  e  trancados. 

«Sabem  de  sobra  que  doido  astuto  eu  tenho  sido,  e  sen- 
tem-se  vaidosos  por  me  ter  aqui  em  exposição. 

«Deixem- me  ver  ;  —  sim,  é  isto,  eu  tinha  sabido.  Era  noite 
velha  quando  eu  voltei  para  casa,  e  encontrei  o  mais  orgu- 
lhoso dos  três  orgulhosos  irmãos  a  minha  espera — negocio 
urgente,  disse  elle  :  récordo-me  perfeitamente. 

«Eu  odiava  aqueile  homem  com  todo  o  ódio  de  um 
doido. 

«Quantas  e  quanias  vezes  os  m.eus  dedos  tinham  anciado 
por  o  fazer  em  pedaços  1 

"Disseram-me  que  elle  me  esperava. 


no  SR.  IMCKWICK  1-5 


«Galguei  a  escada  n'um  instante.  Elle  tinha  uma  palavra  a 
dizer-me. 

«Mandei  embora  os  criados. 

«P>a  tarde,  e  nós  estávamos  os  dois  juntos — pela  pri- 
meira vez. 

"Ao  principio  desviei  d'elle  os  olhos  cautelosamente,  por- 
que eu  sabia  o  que  elle  mal  sonhava  —  e  vangloriava-me  por 
o  saber  —  que  a  loucura  irradiava  d'elles  como  uma  laba- 
reda. 

«Sentámo-nos  em  silencio  durante  alguns  minutos.  Elle 
fallou  por  fim. 

"As  mmhas  dissipações  recentes  e  umas  observações  es- 
tranhas, feitas  logo  em  seguida  á  morte  da  irmã,  eram  um 
insulto  á  memoria  d'ella. 

«Reunindo  muitas  circumstancias  que  de  começo  nao  ha- 
via notado,  elle  pensava  que  eu  não  a  tratara  bem. 

"Desejava  saber  se  elle  tinha  razão  em  inferir  que  eu  ti- 
nha na  mente  lançar  um  labéo  sobre  a  sua  memoria  e  des- 
considerar-lhe  a  familia.  Devia  ao  uniforme  que  usava  o  pe- 
dir-me  esta  explicação. 

«Este  homem  tinha  um  emprego  no  exercito  —  emprego 
comprado  com  o  meu  dinheiro  e  com  a  desgraça  da  irmã. 
Era  este  o  homem  que  maior  parte  tomara  no  conluio  para 
me  illaquearem  e  lançarem  a  mão  á  minha  fortuna. 

"Kra  este  o  homem  que  fora  o  principal  instrumento  para 
obrigar  sua  irmã  a  desposar-me;  sabendo  de  sobra  que  o  co- 
ração d'ella  estava  dado  áquelle  rapazote  enfermiço. 

«Devia!  devia  ao  seu  uniforme!  A  libré  da  sua  degrada- 
ção ! 

«Voltei  os  olhos  para  elle  —não  pude  resistir  —  mas  não 
dei  palavra. 

«Vi  a  súbita  alteração  que  elle  experimentou  sob  o  meu 
olhar. 

«Era  um  homem  arrojado,  mas  a  cor  fugiu-lhe  das  fa- 
ces. 

«Recuou  a  cadeira,  eu  arrastei  a  minha  para  junto  d'elle  ; 
e  como  eu  estava  a  rir  —  muito  alegre  estava  eu  n'esse  nio- 
mento  !  —  vi-o  estremecer  todo. 

«Senti  a  loucura  a  erguer-se  dentro  em  mim.  Metti-lhe 
medo  a  elle. 


176  AS   AVENTURAS 


« — O  senhor  era  muito  amigo  de  sua  irmã  emquanto  foi 
viva,  disse  eu.  Muito  amigo. 

«Elle  olhou  com  inquietação  em  roda  de  si,  e  eu  vi-lhe  a 
mão  a  apertar  as  costas  da  cadeira ;  mas  não  disse  nada. 

"  —  Miserável !  exclamei  eu,  adivinhei-te  ;  descobri  os  teus 
conluios  diabólicos  contra  mim  ;  sei  que  o  coração  d'ella  era 
de  outro,  já  antes  de  a  teres  obrigado  a  casar  comigo.  Sei 
tudo,  tudo  I 

"Elle  ergueu-se  de  chofre,  agarrou  na  cadeira,  brandiu-a 
no  ar,  e  ordenou-me  que  recuasse  —  porque  eu  tivera  o  cui- 
dado de  me  aproximar  d'elle,  emquanto  fallava. 

«Rugi  em  vez  de  fallar,  porque  sentia  a  referverem  nas 
veias  paixões  tumultuosas,  e  o  antigo  segredar  dos  espiritos 
a  incitarem-me  que  lhe  arrancasse  o  coração. 

" —  Com  mil  raios  !  bradei  eu  precipitando-me  sobre  elle  ; 
matei-a  eu.  Estou  doido  !  Morre  !  Sangue,  sangue,  quero  o 
teu  sangue  I 

«Desviei  violentamente  a  cadeira  que  elle  me  arrojava  no 
seu  terror,  agarrei-me  a  elle,  e,  com  um  estrondo  medonho, 
rolámos  ambos  pelo  chão. 

"Soberba  luta  foi  essa,  pois  que  elle  era  alto  e  robusto,  e 
defendia  a  própria  vida ;  e  eu,  um  doido  valente,  sedento  por 
dar  cabo  d'elle. 

«Eu  tinha  a  convicção  de  que  não  havia  força  que  á  mi- 
nha podesse  igualar-se,  e  tinha  rasão. 

«Mais  uma  vez  tinha  rasão,  apesar  de  doido  ! 

«A  sua  resistência  enfraqueceu  gradualmente.  Ajoelhei  em 
cima  do  seu  peito,  e  apertei-lhe  vigorosamente  o  pescoço 
musculoso  com  ambas  as  mãos. 

"Arroxeou-se-lhe  o  rosto,  os  olhos  quasi  lhe  saltaram  das 
orbitas,  e  com  a  lingua  de  fora  parecia  escarnecer-me.  Eu 
apertei  mais  ainda  o  torniquete. 

«Abriu-se  de  súbito  a  porta  ruidosamente,  e  precipitou-se 
no  aposento  uma  mó  de  gente,  com  grande  alarido  para  se- 
gurarem o  doido.  Descobrira-se  o  meu  segredo ;  e  agora,  só 
tinha  que  lutar  pela  liberdade. 

«Puz-me  em  pé  antes  que  me  lançassem  a  mão,  atirei-me 
para  o  meio  dos  assaltantes,  e  abri  caminho  com  o  meu  braço 
valente  como  se  estivesse  armado  de  um  machado,  e  fui-os 
derrubando  adiante  de  mim. 


1)0  SR.   HCKWICK  177 


"Cheguei  á  porta,  saltei  por  cima  da  rampa,  e  n'um  mo- 
mento achei-me  na  rua. 

«Fui  correndo  velozmente,  sempre  a  direito,  e  ninguém 
se  atrevia  a  agarrar- me. 

«Ouvia  atraz  de  mim  o  ruido  dos  passos,  e  redobrava  de 
velocidade. 

«Enfraqueceu  pouco  a  pouco  esse  ruido,  á  medida  que  eu 
me  afastava,  até  que  afinal  se  extinguiu  de  todo. 

«Mas  eu  continuei  a  saltar  regatos  e  paues,  muros  e  val- 
lados,  com  gritos  selvagens  que  eram  acompanhados  por  en- 
tes estranhos  que  em  volta  de  mim  se  agglomeravam  e  avolu- 
mados até  ao  ponto  de  rasgarem  os  ares. 

«Eu  era  levado  nos  braços  de  demónios  que  voavam  nas 
azas  do  vento,  e  derribavam  diante  de  si  collinas  e  sebes,  e 
me  arrebatavam  n'um  turbilhão  estrepitoso  e  rápido  que  me 
atordoava,  até  que  afinal  me  atiraram  para  longe  de  si  com 
um  choque  violento,  e  eu  cahi  pesadamente  no  chão. 

«Quando  voltei  a  mim  achei-me  aqui  —  aqui  n'esta  ale- 
gre cellula  onde  raro  entra  a  luz  do  sol,  e  os  raios  da  lua  ape- 
nas se  escoam  para  mostrar  as  sombras  negras  que  me  ro- 
deiam, e  aquella  figura  silenciosa,  sempre  ali  no  seu  canto. 

«Quando  estou  desperto,  chego  ás  vezes  a  ouvir  guinchos 
e  gritos,  vindos  dos  recessos  distantes  d'este  enorme  edifí- 
cio. 

«O  que  sejam  elles,  i'gnoro ;  mas  nem  elles  provêem 
d'aquelle  vulto  livido,  nem  teem  relação  com  elle. 

"Porque  desde  as  primeiras  sombras  do  entardecer  até  aos 
clarões  da  aurora,  esse  vulto  permanece  immovel  no  mesmo 
logar,  de  ouvido  á  escuta  para  a  musica  dos  meus  grilhões  e 
de  olhos  fitos  nos  saltos  que  eu  dou  na  minha  cama  de  pa- 
lha.» 

No  fim  do  manuscripto,  estava  escripta  n'outra  letra  a 
nota  seguinte : 

"O  desventurado,  cujos  desvarios  estão  acima  consigna- 
dos, foi  um  triste  exemplo  do  funesto  resultado  de  energias 
mal  dirigidas  desde  a  infância  e  de  excessos  prolongados  até 
não  se  poder  dar  remédio  ás  consequências. 

«A  dissipação,  as  orgias,  o  deboche  da  sua  mocidade  pro- 
duziram febre  e  delirio. 

«O  primeiro  eífeito  d'este  ultimo  foi  a  estranha  illusão, 

12 


AS  AVENTURAS 


baseada  n'uma  bem  conhecida  theoria  medica,  fortemente 
defendida  e  com  egual  força  contestada,  de  que  na  familia 
d'elle  existia  uma  loucura  hereditária. 

«Isto  produziu  n'elle  uma  melancolia  de  humor,  que  dege- 
nerou em  insanidade  mórbida  e  terminou  emfim  em  loucura 
furiosa. 

«Ha  todas  as  rasÕes  para  crer  que  os  successos  por  elle 
narrados,  embora  desfigurados  pela  sua  imaginação  doentia, 
se  deram  realmente. 

«Aquelles  que  tiveram  conhecimento  dos  vicios  da  sua 
juventude  só  teem  que  admirar  se  por  as  suas  paixões,  quando 
já  tora  do  dominio  da  rasão,  não  o  terem  impellido  a  perpe- 
trar crimes  mais  medonhos  ainda.» 

Estava  mesmo  a  ponto  de  se  acabar  no  castiçal  a  vela  do 
sr.  Pickwick,  quando  elle  concluiu  a  leitura  do  manuscripto 
do  velho  ecclesiastico ;  e  quando  a  luz  se  apagou  de  súbito, 
sem  um  lampejo  prévio  de  prevenção,  impressionou  forte- 
mente os  seus  nervos  excitados. 

Atirando  ao  chão  as  peças  de  vestuário  que  elle  pozera 
para  se  levantar,  enfiou-se  apressadamente  entre  os  lençoes, 
e  n'um  momento  adormeceu  profundamente. 

Radiava  o  sol  pelo  quarto  dentro  quando  elle  acordou.  Ia 
já  alta  a  manha. 

A  tristeza  que  o  opprimira  na  noite  anterior  tinha  desap- 
parecido  com  as  sombras  negras  que  anuviavam  a  paisagem, 
c  as  suas  ideias  e  os  seus  sentimentos  tão  leves  e  alegres 
eram  como  a  própria  manhã. 

Depois  de  um  almoço  substancial,  os  quatro  amigos  fo- 
ram de  passeio  até  Gravesend,  seguidos  por  um  homem  que 
levava  a  pedra  no  seu  caixote  de  pinho. 

Chegaram  áquella  povoação  pela  uma  hora,  tendo  expe- 
dido de  Rochester  a  sua  bagagem  para  a  cidade. 

Tiveram  a  fortuna  de  encontrar  logares  na  imperial  da 
diligencia,  e  a  Londres  chegaram  bons  de  saúde  e  de  espi- 
rito, n'aquella  mesma  tarde. 

Os  três  ou  quatro  dias  que  se  seguiram  foram  emprega- 
dos nos  preparativos  necessários  para  a  sua  jornada  a  Eatans- 
will. 

Gomo  esse  importante  emprehendimento  exige  um  capi- 
tulo separado,  consagraremos  as  poucas  linhas  que  d'este  nos 


no  SR.   PICKWICK 


79 


restam  á  narração,  summaria  quanto  possível,  da  historia  da 
descoberta  archeolos;ica. 

Das  actas  do  Club  se  deduz  pois  que  o  sr.  Pickwick  fez 
uma  conferencia  sobre  a  sua  descoberta  n'uma  sessão  geral 
do  Club,  convocada  para  o  noite  seguinte  ao  seu  regresso,  e 
se  comprazeu  n'uma  variedade  de  especulações  engenhosas 
e  eruditas  sobre  a  sua  interpretação  epigraphica. 

Parece  também  que  um  hábil  artista  executou  um  dese- 
nho fiel,  que  foi  lithographado  e  apresentado  á  Real  Socie- 
dade dos  Antiquários  e  a  outras  corporações  scientificas  ;  que 
das  controvérsias  a  que  o  assumpto  deu  origem  brotaram 
ódios  e  ciúmes  innumeraveis ;  e  que  o  próprio  sr.  Pickwick 
escreveu  um  paamphleto,  contendo  noventa  e  seis  paginas 
em  typo  miudissimo,  e  vinte  e  sete  versões  differentes  da  in- 
scripção ;  que  três  sujeitos  de  idade  privaram  os  seus  primo- 
génitos de  um  shilling  por  cabeça  por  se  atreveram  a  duvidar 
de  tal  monumento ;  e  que  um  individuo  enthusiasta  se  privou 
a  si  próprio  prematuramente  da  vida,  desesperado  por  não  po- 
der profundar-lhe  a  significação;  que  o  sr.  Pickwick  foi  eleito 
membro  honorário  de  dezesete  sociedades  scientificas  do 
paiz  e  do  estrangeiro  por  causa  da  sua  descoberta ;  que  ne- 
nhuma d'essas  dezesete  entendeu  patavina  d'ella,  mas  que 
todas  as  dezesete  concordaram  que  era  deveras  extraordiná- 
ria. 

E'  certo  que  o  sr.  Blotton  —  cujo  nome  será  votado  ao 
desprezo  eterno  d'aquelles  que  cultivam  o  mysterioso  e  o 
sublime  —  é  certp  que  o  sr.  Blotton,  com  a  duvida  cavillosa, 
peculiar  aos  espíritos  vulgares,  pretendeu  considerar  o  caso 
sob  um  ponto  de  vista,  tão  degradante  como  ridículo. 

Com  o  baixo  desejo  de  empanar  o  lustre  do  nome  immor- 
tal  de  Pickwick,  o  sr.  Blotton  intentou  logo  uma  viagem  a 
Cobham,  e  á  sua  volta,  communicou  sarcasticamente  ao  Club 
que  elle  fallára  com  o  homem  a  quem  a  pedra  fora  com- 
prada;  que  esse  homem  suppunha  que  ella  era  antiga,  mas 
negava  solemnemente  a  antiguidade  da  inscripção,  visto  como 
declarava  tel-a  elle  próprio  gravado  grosseiramente,  por  des- 
fastio, e  que  as  letras  não  tinham  mais  nem  menos  do  que  a 
significação  de:  Bill  Stumps,  sua  firma;  e  que  o  sr.  Stumps, 
pouco  habituado  a  compor  palavras,  e  mais  costumado  a 
guiar-se  pelo  som  d'ellas  do  que  pelas  regras  estrictas  da  or- 


l80  AS   AVENTURAS 


thographia,  tinha  omittido  o   L  final   do  seu  nome  de  ba- 
ptismo. 

O  Club  Pickwick,  como  era  de  esperar  de  tão  illustrada 
instituição,  recebeu  esta  communicação  com  o  desprezo  que 
merecia,  expulsou  da  sociedade  o  presumpçoso  e  mal  inten 
cionado  Blotton,  o  votou  ao  sr.  Pickwick  uns  óculos  de  ouro, 
como  prova  de  confiança  e  de  applauso ;  e  em  reconheci- 
mento d'isto,  o  sr.  Pickwick  mandou  pintar  o  seu  retrato  e 
pendural-o  na  parede  da  sala  das  sessões. 

E  já  agora  diremos  que  elle  não  permittiu  a  destruição 
d'esse  retraio,  quando  mais  tarde  envelheceu. 

O  sr.  Blotton  íoi  expulso,  mas  não  vencido.  Escreveu  tam- 
bém um  pamphleio  dirigido  ás  dezeseie  sociedades  sabias, 
repetindo  a  historia  que  já  contara,  c  dando  a  eníender  com 
mais  que  sufficiente  nitidez  que  elle  linha  os  membros  das 
taes  dezesete  sociedades  na  conta  de  tanços. 

Tendo  isto  excitado  a  indignação  das  dezesete  socieda- 
des, vários  outros  opúsculos  sahiram  á  luz;  as  sociedades  do 
estrangeiro  corresponderam-se  com  as  do  paiz,  e  estas  tra- 
duziram os  pamphletos  das  sociedades  estrangeiras  em  in- 
glez,  ao  passo  que  as  sociedades  estrangeiras  traduziram  em 
todas  as  linguas  possíveis  os  pamphletos  das  sociedades  do 
paiz :  e  assim  t-^ve  origem  aquella  celebre  discussão  scienti- 
fica,  conhecida  no  mundo  mteiro  sob  o  titulo  de  Questão 
Pickwick. 

Mas  esta  vil  tentativa  para  prejudicar  o  sr.  Pickwick  veiu 
a  cahir  na  cabeça  do  próprio  auctor  da  calumnia. 

As  dezesete  sociedades  scieniificas  votaram  por  unanimi- 
dade que  o  presumpçoso  Blotton  não  passava  de  um  bisbi- 
Ihoteiro  ignorante;  e  deitaram-se  mais  do  que  nunca  á  pro- 
ducção  de  obras  de  sciencia. 

É  até  hoje  a  pedra  conserva-se  um  monumento  illegivel 
da  grandeza  do  sr.  Pickwick  e  um  perdurável  trophéo  da  pe- 
quenez dos  seus  inimigos. 


DO  SR.   PICKWICK  l8l 


CAPITULO  XII 

Em  que  se  descreve  um  passo  importante  dado 
pelo  sr.  Pickwick,  marcando  época  tanto  na  sua 
vida  como  n'esta  historia. 


Os  aposentos  do  sr.  Pickwick  em  Goswell-street,  embora 
pouco  espaçosos,  não  só  eram  limpos  e  confortáveis,  mas 
especialmente  adaptados  para  a  residência  de  um  homem  do 
seu  génio  e  do  seu  talento  observador. 

O  seu  gabinete  ficava  no  primeiro  andar,  e  o  quarto  de 
cama  no  segundo,  ambos  deitando  para  a  rua;  e  assim,  quer 
elle  estivesse  sentado  á  secretaria,  quer  em  pé  defronte  do 
espelho  de  vestir,  tinha  sempre  ensejo  de  contemplar  a  na- 
tureza humana  em  todas  as  numerosas  phases  por  ella  exhi- 
bidas,  n'aquella  rua  tão  populosa  como  popular. 

A  sua  hospedeira,  Mistress  Bardell  —  viuva  e  única  her- 
deira de  um  guarda  da  alfandega  —  era  uma  mulher  desen- 
xovalhada,  de  aspecto  agradável  e  modos  activos,  dotada  de 
ingenitas  aptidões  culinárias,  as  quaes,  á  força  de  estudo  e 
de  longa  pratica,  haviam  attingido  um  desenvolvimento  de- 
veras notável. 

Não  havia  na  casa  nem  creanças  de  collo,  nem  criados, 
nem  aves  domesticas. 

Os  únicos  restantes  moradores  eram  um  homem  taludo  e 
um  rapaz  pequeno;  o  primeiro  era  um  hospede,  o  segundo 
era  producto  de  Mrs.  Bardell. 

O  homem  taludo  estava  sempre  em  casa  ás  dez  horas  da 
noite  em  ponto,  hora  a  que  se  encafuava  regularmente  den- 
tro dos  limites  de  um  leito  francez  de  marca  pequena,  collo- 
cado  n'um  gabinete  das  trazeiras  do  edifício;  e  os  brinque- 
dos infantis  e  os  exercícios  gymnasticos  do  pequeno  Bar- 
dell estavam  exclusivamente  restrictos  aos  passeios  e  ás  va- 
letas das  ruas  visinhas. 

Em  toda  a  casa  reinavam  o  asseio  e  a  tranquilUdade ;  e  a 
vontade  do  sr.  Pickwick  era  acatada  como  lei. 


l82  AS  AVENTURAS 


A  quem  quer  que  estivesse  a  par  d'estes  pormenoros  da 
economia  domestica  do  estabelecimento  e  da  admirável  re- 
gularidade do  espirito  do  sr.  Pickwick,  pareceriam  em  ex- 
tremo mysteriosos  e  inexplicáveis  a  apparencia  e  proceder 
d'este  cavalheiro  na  véspera  do  dia  prefixado  para  a  partida 
para  Eatanswill. 

Media  o  quarto  a  passos  rápidos,  estendia  a  cabeça  pela 
janella  fora  de  três  em  três  minutos,  consultava  constante- 
mente o  relógio,  e  patenteava  muitos  outros  indicios  de  im- 
paciência, muito  pouco  habituaes  n'elle. 

Era  evidente  que  estava  a  parafusar  n'algum  caso  de  grande 
importância,  mas  o  que  fosse  esse  caso  é  que  nem  mesmo 
Mrs.  Bardell  estivera  habilitada  para  descobrir. 

—  Mrs.  Bardell,  disse  afinal  o  sr.  Pickwick,  quando  a  amá- 
vel creatura  estava  quasi  a  terminar  a  prolongada  limpeza  do 
aposento. 

—  Senhor,  disse  Mrs.  Bardell. 

—  O  seu  pequeno  ha  que  tempos  que  anda  por  fora, 

—  Então  !  d'aqui  ao  Borough  olhe  que  é  uma  boa  estafa, 
objectou  Mrs.  Bardell. 

—  Ah !  disse  o  sr.  Pickwick,  lá  isso  é  verdade,  é. 

E  calou-se  de  novo,  emquanto  Mrs.  Bardell  continuava  a 
sacudir  o  pó. 

—  Mrs.  Bardell,  tornou  o  sr.  Pickwick,  passados  alguns 
minutos. 

—  Senhor  - 

—  Parece-lhe  que  será  muito  maior  a  despeza  para  duas 
pessoas  do  que  para  uma  ? 

—  Ora  essa,  sr.  Pickwick  I  disse  Mrs.  Bardell,  corando  até 
á  orla  da  sua  touca,  por  imaginar  que  lobrigava  uma  espécie 
de  piscadella  matrimonial,  ora  essa,  sr.  Pickwick  I  sempre 
tem  cada  pergunta! 

—  Pois  sim,  mas  dig-a  lá  sempre. 

—  Isso  é  conforme  !  disse  Mrs.  Bardell,  chegando  com  o 
espanador  quasi  ao  cotovello  do  sr.  Pickwick,  que  estava  en- 
costado á  meza.  Depende  muito  da  pessoa,  percebe  o  sr. 
Pickwick?  se  fôr  pessoa  arranjada  e  cuidadosa.  .  . 

—  Isso  é  verdade,  mas  a  pessoa  que  eu  tenho  em  vista, 
proseguiu  elle  olhando  muito  fito  para  Mrs.  Bardell,  cuido 
que  possua  essas  qualidades,  e  além  d'isso  tem  uma  grande 


DO  SR.  PICKWICK  l83 


experiência  do  mundo  e  uma  grande  somma  de  perspicácia, 
Mrs.  Bardell ;  o  que  me  pôde  ser  de  uma  grandíssima  utili- 
dade. 

—  Ora,  sr.  Pickwick  !  disse  Mrs.  Bardell,  corando  outra 
vez. 

—  Estou  convencido  do  que  lhe  digo,  affirmou  o  sr.  Pick- 
wick  com  energia  crescente,  como  costumava  ao  fallar  de 
assumptos  que  tinha  a  peito,  estou;  e  se  quer  que  lhe  diga  a 
verdade,  Mrs.  Bardell,  estou  resolvido  de  vez. 

—  Pelo  amor  de  Deus,  senhor !  exclamou  Mrs.  Bardell. 

—  Talvez  lhe  pareça  agora  extraordinário,  disse  o  amável 
sr.  Pickwick,  com  um  benévolo  relancear  de  olhos  para  a  sua 
interlocutora,  que  eu  nunca  a  tivesse  consultado  sobre  este 
assumpto,  e  nem  mesmo  alludisse  nunca  a  elle,  até  mandar 
o  seu  pequeno  lá  tora  esta  manhã,  hein  ? 

Mrs.  Bardell  só  pôde  responder  por  um  olhar. 

Ha  muito  que  ella  adorava  de  longe  o  sr.  Pickwick,  e 
agora  via-se  de  repente  erguida  a  um  pináculo  ao  qual  nunca 
haviam  ousado  aspirar  as  suas  mais  extraordinárias  e  ambi 
ciosas  esperanças. 

O  sr.  Pickwick  ia  fazer-lhe  a  sua  proposta  —  era  um  plano 
deliberado  —  mandara  o  pequeno  ao  Borough,  afim  de  o 
afastar  —  que  premeditação  !  —  que  finura  ! 

—  Bem,  disse  o  sr.  Pickwick,  que  diz  a  isto  ? 

—  Oh  !  sr.  Pickwick  !  disse  Mrs.  Bardell,  tremula  de  alvo- 
roço, que  bondade  a  sua! 

—  Ha  de  poupar  lhe  muito  trabalho,  não  é  verdade  ?  disse 
o  sr.  Pickwick. 

—  Ora  !  eu  pensei  lá  nunca  no  trabalho,  senhor !  replicou 
Mrs.  Bardell,  e  está  claro  que  menos  pensarei  no  trabalho 
para  lhe  ser  agradável,  n'esse  caso.  Mas  que  bondade  a  sua, 
sr.  Pickwick,  em  ter  em  tanta  attenção  o  meu  isolamento. 

—  Ah  !  sim  !  é  verdade  !  N'isso  nunca  eu  tinha  pensado. 
Quando  eu  estiver  fora  de  casa,  sempre  terá  alguém  para  lhe 
fazer  companhia.  Com  certeza. 

—  Com  certeza  que  vou  ser  felicissima,  disse  Mrs.  Bar- 
dell. 

—  E  o  seu  pequenote.  . .  disse  o  sr.  Pickwick. 

—  Deus  o  abençoe,  coitadinho  !  atalhou  Mrs.  Bardell,  com 
um  suspiro  maternal. 


■  84 


AS  AVENTURAS 


—  Também  elle  ha  de  ter  um  companheiro,  continuou  o 
sr.  Pickwick,  sorrindo  serenamente,  um  companheiro  alegre 
que,  tenho  a  certeza,  lhe  ha  de  ensinar  mais  brincadeiras 
n'uma  semana,  do  que  elle  poderia  aprender  n'um  anno. 

—  Oh  !  meu  querido.  .  .  disse  Mrs.  Bardell. 
O  sr.  Pickwick  teve  um  sobresalto. 

—  Oh!  meu  bom,  meu  querido,  meu  terno  amigo!  disse 
Mrs.  Bardell,  e  sem  mais  tir'te  nem  guar'te,  ievantou-se  da 
cadeira,  e  deitou  os  braços  á  roda  do  pescoço  do  sr.  Pick- 
Avick,  com  uma  cataracta  de  lagrimas  e  um  temporal  de  so- 
luços. 

—  Valha-me  Deus  I  bradou  o  sr.  Pickwick  attonito  ;  Mrs. 
Bardell,  minha  boa  senhora  —  ora  esta  !  que  situação  !  —  re- 
pare bem,  Mrs.  Bardell  —  deixe-me  —  se  alguém  viesse  ahi . . . 

—  Pois  que  venham  !  exclamou  Mrs.  Bardei  em  delirio, 
eu  nunca  o  largarei  — querido,  minha  boa  alminha  ! 

E  com  estas  palavras,  cada  vez  o  apertava  mais. 

—  Nossa  senhora  me  acuda,  disse  o  sr.  Pickwick  deba- 
tendo-se  com  violência ;  ouço  alguém  a  subir  a  escada.  Dei- 
xe-me, senhora,  pelo  amor  de  Deus,  deixe-me. 

Mas  supplicas  e  argumentos,  tudo  era  baldado ;  porque 
Mrs.  Bardell  desfallecera  nos  braços  do  sr.  Pickwick ;  e  antes 
que  tivesse  tempo  de  se  sentar  n'uma  cadeira,  o  pequeno 
Bardell  entrou  no  aposento,  introduzindo  os  srs.  Tupman, 
Winkle  e  Snodgrass. 

O  sr.  Pickwick  ficou  immovel  e  mudo. 

Estava  em  pé,  com  o  seu  fardo  encantador  nos  braços, 
olhando  com  ar  apalermado  para  as  physionomias  dos  ami- 
gos, sem  a  mais  ligeira  tentativa  de  os  receber  ou  de  lhes  dar 
uma  explicação. 

Elles,  por  seu  turno,  estavam  pasmados  para  elle;  e  o  pe- 
queno, por  seu  turno,  estava  pasmado  para  todos. 

Tão  absorvente  era  o  espanto  dos  pickwickanos  e  tama- 
nha a  perplexidade  do  sr.  Pickwick,  que  todos  poderiam  ter 
ficado  exactamente  na  mesma  situação  relativa  até  que  a  mu- 
Ihersinha  houvesse  voltado  a  si,  se  não  fosse  um  accesso 
bello  e  tocante  de  amor  filial  que  acommetteu  o  pequeno 
Bardell. 

Vestido  com  um  traje  justo  de  belbutina,  decorado  de 
enormes  botões  de  cobre,  elle  a  começo  ficou  extático  e  as- 


DO  SR.   PICKWICK  l85 


saralhopado  á  porta,  mas  pouco  a  pouco  o  seu  espirito  in- 
completamente desenvolvido  foi-se  convencendo  de  que  a 
mãe  deveria  ter  soflVido  algum  damno  pessoal. 

Considerando  o  sr.  Pickwick  como  o  aggressor,  elle  sol- 
tou uma  espécie  de  uivo  pavoroso  e  selvático,  e,  ás  marra- 
das, começou  a  accommetter  aquelle  homem  immortal  pelas 
costas  e  pelas  pernas,  com  murros  e  beliscões  tamanhos 
quanto  lh'os  permittia  a  sua  força  e  a  violência  da  sua  fúria. 

—  Tirem  d'aqui  este  demonico,  bradou  o  sr.  Pickwick  af- 
flictissimo  ;  está  maluco  ! 

—  Que  foi  isto  ?  perguntaram  os  três  pickwickanos  estu- 
pefactos. 

—  Sei  lá  o  que  foi !  replicou  o  sr.  Pickwick  muito  zan- 
gado.   I  irem-me  d'aqui  o  petiz.  .  . 

N'is:o,  o  sr.  Winkle  levou  para  o  extremo  do  aposento  o 
interessante  rapazinho,  que  foi  a  gritar  e  a  debater-se. 

—  Ora  agora  ajudem-me  a  levar  esta  mulher  lá  para 
baixo. 

—  Ah  !  agora  estou  melhorsinha !  disse  Mrs.  Bardell  em 
voz  débil. 

—  Permitta-me  que  a  acompanhe  lá  abaixo,  disse  o  sr. 
Tupman,  sempre  cavalheiresco. 

—  Muito  obrigada,  senhor  —  muito  obrigada,  exclamou 
Mrs.  Bardell  nervosamente. 

E  lá  foi  conduzida  para  o  rez-do-chão,  acompanhada  pelo 
seu  aíTectuoso  filho. 

—  Não  posso  perceber,  disse  o  sr.  Pickwick  quando  o 
amigo  voltou  para  cima.  —  Não  posso  perceber  o  que  foi  que 
aconteceu  a  esta  creatura.  Tinha -lhe  annunciado  simples- 
mente a  minha  intenção  de  tomar  um  criado,  quando  ella 
desatou  n'aquelle  disparatado  ataque  de  nervos  que  viram. 
E'  extraordinário  ! 

—  Muito,  disseram  os  três  amigos. 

—  Poz-me  n'uma  situação  deveras  embaraçosa,  continuou 
o  sr.  Pickwick. 

—  Muito,  repetiram  os  seus  discípulos,  tossindo  ligeira- 
mente e  olhando  com  ar  de  duvida  uns  para  os  outros. 

Este  facto  não  passou  despercebido  ao  sr.  Pickwick. 
Notou  a  incredulidade  dos  amigos.  Evidentemente  suspeita- 
vam d'elle. 


S6  AS   AVENTURAS 


—  Está  ahi  um  homem  no  corredor,  disse  o  sr.  Tup- 
man. 

—  E'  o  homem  de  quem  eu  lhes  estava  fallando,  disse  o 
sr.  Pickwick.  Mandei-o  esta  manhã  buscar  ao  Borough.  Tem 
a  bondade  de  o  chamar  para  aqui,  Snodgrass  ? 

O  sr.  Snodgrass  assim  íez^  e  logo  se  apresentou  o  sr.  Sa- 
muel Weller. 

—  Oh !  vossê  lembra-se  de  mim,  supponho  eu  f  disse  o  sr. 
Pickwick. 

—  Quero  crer  que  sim,  replicou  Sam,  com  gesto  prote- 
ctor. Um  gajo  de  força,  aquelle ;  ia-lhes  pondo  o  sal  na  mo- 
leira, hein  ? 

—  Deixem,o-nos  d'isso  agora,  atalhou  vivamente  o  sr.  Pick- 
Avick.  E'  n'outro  assumpto  que  lhe  quero  fallar.  Sente-se. 

—  Muito  obrigado,  senhor,  disse  Sam,  sentando-se  sem 
mais  ceremonias,  e  tendo  previamente  depositado  o  velho 
chapéo  branco  no  patamar  fora  da  porta.  Não  se  pôde  dizer 
que  seja  lá  muito  bonito,  continuou  elle  referindo-se  ao  cha- 
péo, e  sorrindo  prasenteiramente  aos  pickwickanos  reunidos, 
mas  é  muitissimo  commodo.  E  antes  de  perder  as  abas,  era 
um  chapéo  catita  a  valer.  Em  todo  o  caso,  ficou  agora  mais 
leve  sem  ellas,  que  é  uma  vantagem  ;  e  depois  entra-lhe  o  ar 
por  todos  os  buracos,  outra  vantagem.  Penante  ventilador  lhe 
chamo  eu. 

—  Ora  agora  tratemos  do  assumpto  para  que  eu  o  man- 
dei chamar,  de  accordo  com  estes  senhores,  disse  o  sr.  Pick- 
wick. 

—  Jsso  é  que  é,  atalhou  Sam ;  fora  com  elle,  como  dizia  o 
pae  ao  petiz  que  tinha  engulido  um  farthing  ^ 

—  Em  primeiro  logar,  disse  o  sr.  Pickwick,  desejamos  sa 
ber  se  vossê  tem  algum  motivo  de  estar  pouco  satisfeito  com 
a  sua  presente  situação. 

—  Antes  de  eu  dar  uma  resposta  a  essa  pergunta,  replicou 
o  sr.  Weller,  não  desgostava  de  saber  se  os  senhores  estão 
dispostos  a  darem-me  outra  melhor. 


'    Fartlihig,   a   quarta   parte    de   um   peniiy.   Anda  por  5  réis  da  nossa 
moeda,  ao  cambio  normal   . .  de  outras  eras. 


DO   SR.    HICKWiCK  187 

Nas  feições  do  sr.  Pickwick  pairou  um  clarão  de  serena 
benevolência. 

—  Estou  meio  resolvido,  disse  elle,  a  tomal-o  a  vosse  ao 
meu  serviço. 

—  Deveras?  perguntou  Sam. 

O  sr.  Pickwick  ajeitou  a  cabeça  affirmativamente. 

—  E  ordenado?  perguntou  Sam. 

—  Doze  libras  por  anno. 

—  Farpela  ^ 

—  Duas  andainas. 

—  Trabalho  ? 

—  Servir-me,  e  viajar  comigo  e  com  estes  senhores. 

—  Pôde  tirar-me  os  escriptos,  disse  Sam  com  energia.  Fico 
alugado  a  um  cavalheiro  só,  e  está  feito  o  ajuste. 

—  Aceita  a  proposta  ?  perguntou  o  sr.  Pickwick. 

—  Está  claro  que  sim.  A  farpella  escusa  de  me  servir  tão 
bem  como  o  logar,  para  estar  na  conta. 

—  Ha  quem  dê  informações  a  seu  respeito,  está  claro  ? 

—  Pergunte  o  senhor  á  estalajadeira  do  Veado  branco. 

—  Pôde  vir  hoje  à  tarde  ? 

—  Até  podia  enfiar  agora  mesmo  a  farpela,  se  ella  aqui 
estivesse,  exclamou  Sam  com  grande  vivacidade. 

—  Venha  esta  tarde,  em  sendo  oito  horas,  disse  o  sr.  Pick- 
wick, e  se  as  informações  forem  satisfactorias,  o  fato  de- 
pressa se  aprompta. 

Salvo  a  única  excepção  de  uma  indiscrição  amável,  de 
que  fora  também  cúmplice  uma  das  criadas  da  hospedaria, 
o  comportamento  do  sr.  Weller  era  tão  intemerato,  que  o  sr. 
Pickwick  decidiu  concluir  o  ajuste  n'aquella  mesma  tarde. 

Com  a  promptidão  e  energia  que  caracterisava  não  sô  os 
actos  públicos,  mas  os  particulares  d'este  homem  extraordi- 
nário, elle  levou  immediatamente  o  seu  novo  criado  a  um 
d'aquelles  commodos  armazéns  onde  se  fornecem  fatos  novos 
e  em  segunda  mão,  e  se  dispensa  a  massadora  e  inconve- 
niente formalidade  de  tomar  medida. 

■  E  antes  de  cerrar  a  noite,  já  o  sr.  Weller  estava  provido 
de  uma  casaca  parda  com  os  botões  de  P.  C,  um  chapéo 
preto  com  cocarde,  um  collete  vermelho  de  riscas,  calções 
claros  e  polainas,  e  outros  muitos  artigos  de  vestuário,  que 
é  escusado  recapitular. 


88  AS   AVENTURAS 


—  Sim,  senhor!  dizia  na  manhã  seguinte  o  sujeito  tão  ra- 
pidamente transformado  ao  tomar  assento  no  exterior  da  di- 
ligencia de  Eatanswill.  Não  percebo  lá  muito  bem  se  me  des- 
tinava a  lacaio,  ou  a  groom,  ou  a  couteiro,  ou  a  criado  de 
lavoura.  Pareço  assim  uma  espécie  de  mistiforio  d'estas  coi- 
sas todas.  Deixal-o  !  vou  mudar  de  ares,  ver  terras,  e  traba- 
lhar pouco.  E  tudo  isto  é  que  está  a  calhar  pVa  minha  doen- 
ça ;  por  isso  viva  o  Pickwick,  é  o  que  eu  digo  ! 


CAPITULO  XIII 

Algumas  notícias  sobre  Eatanswill,  sobre  a  situa- 
ção dos  partidos  n'essa  terra,  e  sobre  a  eleição 
de  um  membro  para  representar  no  parlamento 
esse  antigo,  leal  e  patriótico  burgo. 

Confessaremos  com  franqueza  que  até  ao  periodo  em  que 
immergimos  nos  volumosos  papeis  do  Club  Pickwick,  nunca 
ouvíramos  fallar  de  Eatanswill. 

Com  igual  candura  admittiremos  que  debalde  procurámos 
até  hoje  provas  da  existência  actual  d'esse  sitio. 

Cônscios  da  profunda  confiança  que  se  devia  depositar 
em  todas  os  notas  e  informações  do  sr.  Pickwick,  e  não  tendo 
a  pretensão  de  oppòr  as  nossas  recordações  ás  declarações 
expressas  do  grande  homem,  consultamos  todas  as  auctori- 
dades  a  que  sobre  o  assumpto  podemos  recorrer. 

Vimos  todos  os  nomes  de  terras  contidas  nas  tabeliãs  da 
lei  eleitoral,  sem  encontrar  o  de  Eatanswill ;  examinamos  mi- 
nuciosamente todos  os  cantos  e  recantos  dos  mappas  portá- 
teis dos  condados  publicados  para  beneficio  da  sociedade 
pelos  nossos  illustres  editores,  e  o  mesmo  resu  tado  se  seguiu 
ás  nossas  investigações.  1 

Estamos  por  isso  inclinados  a  suppôr  que  o  sr.  Pickwick, 
com  a  sua  bem  conhecida  ambição  de  evitar  a  minima  of- 
fensa  pessoal  e  os  sentimentos  de  delicadeza  que  sempre  o 
distinguiram  notavelmente,  substituiu  de  propósito  por  uma 
designação  fictícia  o  nome  real  do  sitio  onde  foram  feitas  as 
suas  observações. 


DO  SR.   HCKWICK  i8q 


Esta  presumpção  nossa  é  corroborada  por  uma  circum- 
stancia,  á  primeira  vista  ligeira  e  frivola  em  si,  mas  digna  de 
mençiio,  quando  considerada  sob  este  aspecto  especial. 

No  livro  de  notas  do  sr.  Pickwick,  podemos  perceber  o 
facto  de  que  os  logares  d'elle  e  dos  seus  discipulos  foram  to- 
mados na  diligencia  de  Norwick ;  mas  este  apontamento  foi 
mais  tarde  riscado,  como  no  propósito  de  occultar  a  direc- 
ção em  que  era  situado  o  logar  do  seu  destino.  E'  por  isso 
que  não  nos  abalançaremos  a  qualquer  hypothese  a  tal  res- 
peito, mas  proseguiremos  desde  já  a  nossa  historia,  conten- 
tando-nos  com  os  subsidios  que  nos  forneceram  os  seus  per- 
sonagens. 

Parece  pois  que  a  população  de  Eatanswill.  como  a  de 
muitas  outras  terras  pequenas,  se  considerava  da  mais  subida 
e  mais  colossal  importância,  e  que  não  havia  um  só  homem 
em  Eatanswill,  convicto  do  Aalor  do  próprio  exemplo,  que 
não  se  julgasse  obrigado  a  ligar-se  de  corpo  e  alma  a  um  dos 
dois  grandes  partidos  que  dividiam  a  população  :  os  Azues  e 
os  Amarellos. 

Ora  os  Azues  não  perdiam  ensejo  de  contrariar  os  Ama- 
rellos, nem  os  Amarellos  de  contrariar  os  Azues ;  d'onde  re- 
sultava que,  sempre  que  os  Azues  e  os  Amarellos  se  encontra- 
vam em  qualquer  reunião  publica,  quer  fosse  na  casa  da  ca- 
mará, ou  na  feira,  ou  no  mercado,  levantavam-se  logo  entre 
elles  discussões  e  injurias. 

N'esies  termos,  é  quasi  supérfluo  acrescentar  que  não  ha- 
via coisa  alguma  em  Eatanswill  que  não  desse  em  questão 
de  partido. 

Se  os  Amarellos  propunham  que  se  alpendrasse  de  novo 
a  praça  do  mercado,  os  Azues  convocavam  comícios  e  ata- 
cavam' esta  medida ;  se  os  Azues  propunham  a  erecção  de 
uma  bomba  addiccional  na  rua  direita,  erguiam-se  os  Ama- 
rellos como  um  só  homem  a  protestarem  cheios  de  horror 
contra  tamanho  escândalo. 

Havia  lojas  azues  e  lojas  amarellas,  hospedarias  azues  e 
hospedarias  amarellas  :  até  na  egreja  havia  a  nave  azul  e  a 
nave  amarella. 

Está  bem  de  ver  que  -era  essencial  e  indispensável  a  cada 
um  d'estes  partidos  o  ter  o  seu  órgão  especial :  havia  por- 
tanto na  terra  dois  jornaes  —  a  Gazeia  de  Eatanswill  e  o  In- 


IQO  AS   AVENTURAS 


dependente  de  Eãtanswill :  o  primeiro  advogando  os  princi- 
pies azues  e  o  segando  gerido  n'uma  direcção  resolutamente 
amarella. 

Eram  jornaes  magnificos. 

Cada  artigo  de  fundo  I  cada  artigo  de  espirituosa  pole- 
mica !  —  "O  nosso  abjecto  collega  da  Gaveta.  .  . »  —  -Essa  fo- 
lha cobarde  e  ignóbil,  o  Independente. ..  >>  —  "Esse  jornal 
mentiroso  e  nojento,  o  Independente .  . .»  —  «O  vil  e  escanda- 
loso calumniador  da  Gaveta...» — Estas  e  outras  que  taes 
excitantes  recriminações  juncavam  á  farta  as  columnas  de 
cada  um  dos  jornaes,  em  todos  os  números,  e  suscitavam  no 
espirito  dos  habitantes  da  terra  os  mais  fervorosos  sentimen- 
tos de  regosijo  ou  de  indignação. 

O  sr.  Pickwick,  com  a  sua  previdência  e  sagacidade  habi- 
tuaes,  escolhera  uma  conjunctura  especialmente  favorável 
para  a  sua  visita  a  este  burgo. 

Nunca  se  vira  uma  lucta  como  esta. 

O  Honourable  Samuel  Slumkey,  do  solar  de  Slumkey,  era 
o  candidato  azul  ;  e  Horatio  Fizkm,  Esquire,  do  casal  de  Fiz- 
kin,  perto  de  Eatanswill,  cedera  aos  rogos  dos  seus  amigos 
para  sustentar  os  interesses  amarellos. 

A  Gar^eta  prevenia  os  eleitores  de  Eatanswill  que  os  olhos 
não  só  da  Inglaterra,  como  todo  o  mundo  civilisado,  estavam 
em  cima  d'elles  ;  e  o  Independente  exigia  imperativamente  lhe 
dissessem  se  os  constitumtes  de  Eatanswill  eram  ainda  esses 
eminentes  cidadãos  que  haviam  merecido  fama  universal,  ou 
abjectos  e  servis  instrumentos,  indignos  do  nome  de  inglezes 
e  dos  benefícios  da  liberdade. 

Nunca  tamanha  commoção  agitara  a  cidade. 

Já  era  noite  fechada  quando  o  sr.  Pickwick  e  os  seus  com- 
panheiros, acompanhados  por  Sam,  se  apelaram  do  tejadilho 
da  diligencia.  "* 

Na  janella  da  hospedaria  das  Afmas  da  Cidade  fluctua- 
vam  enormes  bandeiras  de  seda  azul,  e  em  cada  vidraça  es- 
tava um  cartaz,  annunciando  em  caracteres  gigantescos  que 
a  commissão  eleitoral  do  Honourabel  Samuel  Slumkey  ali  ti- 
nha sessões  quotidianas. 

Uma  turba  de  ociosos  agrupava-se  na  rua,  de  bocca  aberta 
para  um  homem  rouco  que  estava  na  varanda,  o  qual  pare- 
cia esfoguetear-se  todo  em  defeza  do  sr.  Slumkey ;  mas  a  força 


DO  SR.   PICKWICK  IQI 


e  a  subtileza  dos  seus  argumentos  eram  um  tanto  ou  quanto 
prejudicadas  pelo  rutar  perpetuo  de  quatro  immensos  tambo- 
res que  a  commissão  collocára  na  esquma  próxima.  Em  todo 
o  caso  havia  ao  pé  d'elle  um  homemsinho  muito  atrapalha- 
do, que  tirava  de  quando  em  quando  o  chapéo  e  fazia  um 
signa!  á  turba  pnra  applaudir;  o  que  a  turba  fazia  regular- 
mente, com  o  máximo  enthusiasmo ;  e  como  o  homem  esfo- 
gueteado  continuava  a  orar  até  ficar  mais  esfogueteado  do 
que  nunca,  parece  que  attingia  o  seu  fim  com  tanta  efficacia 
como  se  alguém  o  ouvisse. 

Mal  os  pickwickanos  se  apelaram,  foram  logo  cercados 
por  uma  mó  parcial  dos  honestos  e  independentes  que  os 
atordoaram  com  três  estrondosos  vivas,  correspondidos  pela 
multidão  toda  (porque  não  ha  necessidade  nenhuma  que  a 
multidão  saiba  a  que  é  que  se  dão  vivas)  e  entumecidos  até 
chegarem  a  um  rugido  tremendo  de  triumpho,  que  até  tapou 
a  bocca  ao  homem  esfogueteado  da  varanda. 

—  Hurrah  !  gritou  a  turba  em  conclusão. 

—  Mais  uma  vez!  guinchou  o  homemsinho  fura-vidas  da 
varanda. 

E  a  turba  tornou  a  berrar,  como  se  os  pulmões  fossem  de 
ferro  fundido,  com  articulações  de  aço. 

—  Viva  Slumkey  !   rugiram  os  honestos  e  independentes. 

—  Viva  Slumkey!  echoou  o  sr.  Pickwick,  tirando  o  cha- 
péo. 

—  Abaixo  Fizkin  !  urrou  a  turba. 

—  Abaixo  está  bem  de  ver !  gritou  o  sr.  Pickwick. 

—  Hurrah ! 

E  seguiu  se  outro  rugido,  como  o  de  uma  méyiagerie, 
quando  o  elephante  toca  a  sineta  para  a  comida. 

—  Quem  é  este  Slmukey?  segredou  o  sr.  Tupman. 

—  Eu  sei  lá !  replicou  o  sr.  Pickwick  no  mesmo  tom. 
Gale  a  bocca.  Não  faça  perguntas.  O  melhor  n'estas  occasiões 
é  fazer  o  mesmo  que  faz  a  turba. 

—  Mas  supponha  que  ha  duas  turbas  ?  suggeriu  o  sr.  Snod- 
grass. 

—  Grita  a  gente  com  a  maior,  replicou  o  sr.  Pickwick. 
Mais  do  que  isto  nem  volumes  o  poderiam  dizer. 
Entraram  na  hospedaria,  entre  alas  de  populaça  que  ber 

rava  descompassadamente. 


liyl  AS   AVENTTT}?AS 


O  primeiro  objecto  a  considerar  era  tomar  aposentos  para 
a  noiíe. 

—  Tem  camas  ?  perguntou  o  sr.  Pickwick  ao  criado. 

—  Não  sei  dizer-lhe,  respondeu  o  homem,  desconlio  que 
está  tudo  tomado.  Eu  vou  perguntar. 

Sahiu  e  voltou  logo,  a  perguntar  aos  cavalheiros  se  acaso 
eram  «Azues" 

Como  nem  o  sr.  Pickwick  nem  os  seus  companheiros  ti- 
nham um  interesse  vital  na  causa  de  qualquer  dos  candida- 
tos, a  resposta  tinha  dente  de  coelho.  N'este  dilemma,  o  sr. 
Pickwick  lembrou-se  do  seu  amigo  o  sr.  Perker. 

—  Vossê  conhece  um  sujeito  chamado  Perker?  perguntou 
elle. 

—  Não  havia  de  conhecL-r 
Samuel  Slumkey. 

—  E'  azul,  creio  eu  ? 

—  Está  claro  que  sim. 

—  bntão  somos  nós  azues,  disse  o  sr.  Pickwick. 

Mas  observando  que  o  homem  recebia  com  ar  de  duvida 
esta  declaração  accommodaticia,  deu-lhe  o  seu  bilhete  de  vi- 
sita dizendo-lhe  que  o  entregasse  ao  sr.  Perker  caso  clle  es- 
tivesse na  hospedaria.  O  criado  sahiu;  e  reapparecendo  quasi 
a  seguir,  trou.xe  recado  para  que  o  sr.  Pickwick  fosse  com 
elle,  e  conduziu-o  a  um  grande  aposento,  onde  estava  o  sr. 
Perker,  sentado  a  uma  mesa  comprida,  carregada  de  livros  e 
de  papeis. 

—  Ah  !  ah  1  meu  caro  senhor  !  disse  o  homemsinho  indo 
ao  seu  encontro ;  tenho  muito  gosto  em  o  ver,  meu  caro  se- 
nhor, creia.  Faça  obsequio  de  se  sentar.  Com  que  então,  sem- 
pre realisou  o  seu  projecto  ?  Veiu  cá  para  ver  uma  eleição  — 
hein? 

O  sr.  Pickwick  respondeu  afirmativamente. 

—  Uma  luta  renhida,  meu  caro  senhor. 

—  Ainda  bem  !  disse  o  sr.  Pickwick  esíregando  as  mãos. 
Gosto  de  ver  o  patriotismo  exaltado,  seja  de  que  lado  tor  ;  — 
com  que  então  temos  luta  renhida  ? 

—  Ora,  se  temos!  renhida  a  valer.  Abrimos  todas  as  ta- 
bernas do  s'itio,  e  não  deixamos  ao  adversário  senão  as  cer- 
vejarias. E'  um  golpe  de  mestre,  meu  caro  senhor,  que  lhe 
parece  ? 


1>0   SR.   PICKWICK  H).*» 


E  o  sr.  Perker  sorriu  com  complacência,  sorvendo  uma 
grossa  pitada. 

—  E  qual  é  o  resultado  provável  da  luta  ? 

—  Isso  agora  é  duvidoso,  meu  caro  senhor,  por  emquanio 
é  duvidoso.  A  gente  de  Fizkin  encatuou  trinta  e  três  eleitores 
na  cocheira  do  Veado  branco. 

—  Na  cocheira  !  disse  o  sr.  Pickwick  muito  espantado  com 
este  novo  golpe  politico. 

—  Teem-nos  lá  fechados  até  precisarem  d'e]les,  prose- 
guiu  o  homemsinho.  O  hm  d'elles,  percebe  o  senhor?  é  evi- 
tarem que  n(')S  lh'os  apanhemos,  e  mesmo  que  nós  podesse- 
mos,  não  servia  de  nada,  porque  os  conservam  de  propósito 
bêbados.  E'  um  espertalhão  o  agente  de  Fizkin  —  fino  como 
o  coral. 

O  sr.  Pickwick  estava  pasmado,  mas  não  abria  bico. 

—  Em  todo  o  caso,  disse  o  sr,  Perker,  baixando  a  voz, 
temos  muita  esperança.  Na  noite  passada  demos  chá  aqui  na 
hospedaria  —  quarenta  e  cinco  mulheres,  meu  caro  senhor  — 
e  á  sabida,  demos  a  cada  uma  d'ellas  uma  sombrinha  verde. 

—  Uma  sombrinha  !  exclamou  o  sr.  Pickwick. 

—  Exacto,  meu  caro  senhor,  exacto.  Quarenta  e  cinco 
sombrinhas  verdes,  a  seis  shillings  e  seis  pence  cada  uma. 
Todas  as  mulheres  gostam  do  luxo  —  extraordinário  o  effeito 
d'aquellas  sombrinhas.  Agarrados  os  maridos  todos  e  metade 
dos  irmãos  —  ficaram  por  baixo  as  meias,  mais  a  fianella,  e 
outras  cousas  que  taes.  Ideia  minha,  meu  caro  senhor,  tudo 
ideia  minha.  Haja  graniso,  ou  chuva,  ou  sol,  o  senhor  não 
pode  andar  doze  Jardas  pela  rua  acima,  sem  encontrar  meia 
dúzia  de  sombrinhas  verdes. 

N'isto,  o  agente  desatou  ás  gargalhadas,  interrompidas  s() 
pela  chegada  de  um  terceiro  personagem. 

Era  um  homem  alto  e  magro,  de  cabeça  ruiva  em  come- 
ços de  calvicie,  e  uma  cara  em  que  á  importância  solemnc 
se  ajuntava  um  olhar  de  insondável  profundidade. 

Trajava  um  comprido  sobretudo  escuro,  com  um  collete 
preto  e  calças  de  panno. 

Sobre  d  collete  balouçava  uma  luneta,  e  na  cabeça  tinha 
um  chapéo  de  copa  muito  baixa  e  de  abas  largas. 

O  recemvindo  foi  apresentado  ao  sr.  Pickwick  como  sendo 
o  sr.  Pott,  editor  da  Gaveta  de  Eatansyvill. 

i3 


194  AS   AVENTURAS 

Depcw  de  varias  observações  preliminares,  o  sr.  Pott  vol- 
tOLi-se  para  o  sr.  Pickwick  e  disse  com  solemnidade : 

—  Esta  luta  eleitoral  excita  um  grande  interesse  na  me- 
trópole, sr.  Pickwick  ? 

—  Penso  que  sim,  respondeu  este. 

—  Para  o  qual,  disse  Pott  olhando  para  o  sr.  Perker,  afim 
de  que  este  o  apoiasse,  para  o  qual  tenho  razões  para  saber 
que  bastante  contribuiu  o  meu  artigo  de  sabbado. 

—  Não  ha  a  menor  duvida,  disse  o  homemsinho. 

—  A  imprensa  é  uma  machina  poderosa,  senhor,  disse 
Pou. 

o  sr.  Pickwick  acquiesceu  cordealmente  á  proposição. 

—  Mas  gabo  me,  disse  Pott,  de  que  nunca  abusei  do 
enorme  poder  que  manejo.  Gabo-me,  senhor,  de  nunca  ha- 
ver apontado  o  nobre  instrumento  que  tenho  nas  mãos,  con- 
tra o  santuário  da  vida  privada,  ou  contra  a  fragilidade  me- 
lindrosa da  reputação  individual;  —  gabo-me,  senhor,  de  ter 
devotado  toda  a  minha  energia  a  tentativas  —  humildes  pôde 
ser,  humildes  sei  que  são  —  para  inocular  aquelles  princípios 
de. . .  que. . .  são. . . 

N'isto,  como  o  editor  da  Gaveta  parecesse  atrapalhar-se, 
o  sr.  Pickwick  veiu  em  seu  auxilio,  dizendo : 

—  Decerto,  decerto. 

—  E,  permitta-me  que  lhe  pergunte  como  um  homem  i;:?v 
parcial,  qual  é  o  estado  do  espirito  publico  em  Londres,  com 
relação  á  minha  polemica  com  o  Independente? 

O  sr.  Perker  inierveiu  com  um  olhar  malicioso  que  pro- 
vavelmente era  accidentai. 

—  iMuitissimo  excitado,  sem  duvida,  disse  elle. 

—  Esta  contenda,  disse  Pott,  ha  de  prolongar-se  emquanto 
cu  tiver  saúde  e  forças,  e  o  pequeno  quinhão  de  talento  de 
que  sou  dotado.  Embora  esta  polemica  venha  a  transtornar 
o  espirito  dos  homens  e  a  excitar-lhes  os  sentimentos,  e  a  tor- 
nal-os  incapazes  para  o  desempenho  das  suas  obrigações  quo-' 
tidianas.  nunca  recuarei  n'ella  até  que  tenha  assentado  o 
tacão  em  cima  do  Independente  de  Eatanswill.  Desejo  que  o 
povo  de  Londres  e  que  o  povo  d'esta  terra  fiquem  sabendo, 
senhor,  que  podem  contar  comigo; — que  nunca  os  abando- 
narei, que  estou  resolvido  a  manter-me  ao  lado  d'elles,  se- 
nhor, até  ao  ultimo  extremo. 


DO   SR.   PICKWICK  IC)5 


—  Esse  procedimento  é  nobilíssimo,  disse  o  sr.  Pickwick, 
apertando  a  mão  do  magnânimo  Pott. 

—  Percebo,  disse  este  todo  oflegante  com  a  vehemencia 
dos  seus  protestos  patrióticos,  que  o  senhor  é  homem  de 
senso  e  de  talento.  Estimo  immenso  travar  conhecimento 
com  um  homem  assim. 

—  E  eu,  disse  o  sr.  Pickwick,  sinto-me  extremamente  hon- 
rado com  essa  expressão  da  sua  opinião.  Permitta-me  que  o 
apresente  aos  meus  companheiros  de  viagem,  os  outros  mem- 
bros correspondentes  do  club  que  me  orgulho  de  haver  fun- 
dado. 

—  Com  o  maior  prazer,  disse  o  sr.  Pott. 

O  sr.  Pickwick  foi  buscar  os  três  amigos  e  apresentou-os 
com  as  devidas  formaHdades  ao  editor  da  Gazeia  de  Eatans- 
mll.  • 

—  Agora,  meu  caro  Pott,  disse  o  sr.  Perker,  a  questão  é 
saber  o  que  havemos  nós  de  fazer  d'estes  nossos  amigos. 

—  Podemos  aqui  ficar  na  hospedaria,  creio  eu,  disse  o  sr. 
Pickwick. 

—  Nem  uma  mofina  cama  ha  aqui  na  casa,  meu  caro  se- 
nhor, nem  uma  só. 

—  Isso  é  que  é  uma  da  breca,  exckimou  o  sr.  Pickwick. 

—  Pois  é!  exclamaram  os  companheiros  de  viagem. 

—  A  esse  respeito  tenho  uma  ideia,  disse  o  sr.  Pott,  que 
me  parece  se  pode  adoptar  com  bom  resultado.  Lá  no  Pavão 
ha  duas  camas,  e  eu  afouto-me  a  dizer,  da  parte  de  Mrs.  Pott, 
que  ella  ficará  encantada  em  dar  pousada  ao  sr.  Pickwick  e 
qualquer  dos  seus  amigos,  se  os  outros  dois  cavalheiros  não 
teem  duvida  em  se  accommodarem,  o  melhor  que  possam, 
no  Pavão. 

Depois  de  repetidas  instancias  do  sr.  Pott,  e  repetidos 
protestos  do  sr.  Pickwick  de  que  se  não  podia  resolver  a  dar 
incommodo  á  amável  esposa  do  editor,  decidiu-se  que  era 
esse  o  único  expediente  de  que  podiam  lançar  mão.  Assim 
pois,  foi  posto  em  pratica;  e  depois  de  jantarem  juntos  nas 
Armas  da  Cidade,  os  amigos  separaram-se,  indo  ossrs.  Tup- 
man  e  Snodgrass  para  o  Pavão,  e  dirigindo-se  os  srs.  Pick- 
wick e  Winkle  para  a  residência  do  sr.  Pott. 

Combinára-se  previamente  que  se  reuniriam  todos  na  ma- 
nhã seguinte  nas  Anjías  da  Cidade,  para  acompanhcir  o  prés- 


iq6  AS   AVENTURAS 


tito  do  Honourable  Samuel  Slumkey  ao  logar  da  eleição. 

O  circulo  domestico  do  sr.  Pott  limitava-se  a  elle  e  a  sua 
mulher. 

Todos  aquelles  homens,  a  quem  um  poderoso  génio  tem 
erguido  ás  altivas  summidades  do  mundo,  teem  de  ordinário 
alguma  pequena  fraqueza  que  mais  notável  se  torna  pelo  con- 
traste que  apresenta  com  o  seu  caracter  geral. 

Se  o  sr.  Pott  tinha  uma  fraqueza,  era  ella  porventura  o 
ser  demasiado  submisso  ao  dominio  um  tanto  desdenhoso  de 
sua  esposa. 

Não  nos  julgamos  auctorisados  a  dar  a  este  facto  um  va- 
lor especial,  por  isso  que  na  presente  conjunctura,  todas  as 
maneiras  mais  insinuantes  de  Mrs.  Pott  se  pozeram  em  jogí> 
para  acolher  os  seus  dois  hospedes. 

—  Minha  querida,  disse  o  sr.  Pott,  o  sr.  Pickwick  —  o  sr. 
Pickwick,  de  Londres. 

Mrs.  Pott  recebeu  com  encantadora  doçura  o  paternal 
aperto  de  mão  do  sr.  Pickwick ;  e  o  sr.  Winkle,  que  não  fora 
annunciado  por  forma  alguma,  inclinou-se  e  escoou-se  á  sur- 
relfa  para  um  canto  obscuro. 

—  Pott,  meu  querido. . .  disse  Mrs.  Pott. 

—  Meu  anjo  ?  perguntou  o  sr.  Pott. 

—  Tenha  a  bondade  de  apresentar  o  outro  cavalheiro. 

—  Peço  mil  perdoes,  disse  o  sr.  Pott.  Dê  me  licença  — 
Mrs.  Pott,  o  senhor.  .  . 

—  Winkle,  disse  o  sr.  Pickwick. 

—  Winkle,  echoou  o  sr.  Pott,  completando  a  ceremonia 
da  apresentação. 

—  Temos' a  pedir  lhe  milhões  de  desculpas,  minha  se- 
nhora, disse  o  sr.  Pickwick,  por  virmos  sem  mais  nem  menos 
transtornar  os  seus  arranjos  domésticos. 

—  Peço-lhe  que  não  falle  em  tal,  replicou  com  vivacidade 
a  metade  feminina  do  casal.  E'  um  regabofe  para  mim,  creia, 
o  ver  caras  novas ;  vivendo  como  eu  vivo,  dias  e  dias,  sema- 
nas e  semanas,  n'este  aborrecido  sitio,  sem  ver  ninguém. 

—  Ninguém,  minha  querida!  exclamou  o  sr.  Pott  com  ar 
espirituoso. 

—  Ninguém  a  não  ser  o  senhor  I  replicou  asperamente 
Mrs.  Pott. 

—  O  sr.  Pickwick  bem  vê,  disse  o  dono  da  casa  para  ex- 


DO  SR.  PICKWICK  197 


plicar  as  lamentações  da  esposa,  que  nós  estamos  até  certo 
ponto  privados  dos  gozos  e  prazeres  que  n'ouiras  condições 
parlilhariamos.  A  minha  posição  como  editor  da  Gajeta  de 
Eatanswill,  o  logar  que  esta  folha  occupa  aqui  n'esta  região, 
a  minha  immersão  constante  no  vórtice  da  poHtica. . . 

—  Pott,  meu  querido.  . .  atalhou  Mrs.  Pott. 

—  Meu  anjo,  disse  o  editor. 

—  Desejo,  meu  querido,  que  procure  qualquer  assumpto 
de  conversação  em  que  estes  senhores  possam  tomar  algum 
interesse. 

—  Mas,  meu  amor,  disse  Pott  com  grande  humildade,  o 
sr.  Pickwick  interessa-se  muito  por  este. 

—  Tanto  melhor  para  elle !  disse  com  energia  Mrs.  Pott. 
£u  é  que  estou  maçada  a  mais  não  poder  com  a  sua  poli- 
tica, mais  as  questões  com  o  Independente,  e  outros  que  taes 
disparates.  Admira-me  deveras,  Pott,  que  o  senhor  faça  as- 
sim gala  da  sua  tolice. 

—  Mas,  minha  querida.  .  . 

—  Sucia  de  disparates !  não  me  falle  n'isso !  O  senhor 
joga  o  écarté? 

—  Terei  o  maior  gosto  em  o  aprender  nas  suas  lições,  re- 
plicou o  sr.  Winkle. 

—  Bem  !  então  puxe  essa  mezinha  para  ao  pé  da  janella, 
e  deixe-nos  em  paz  com  a  sua  prosaica  politica. 

—  Jane,  disse  o  sr.  Pott  á  criada  que  trazia  luz,  vá  lá 
abaixo  ao  escriptorio,  e  traga  me  a  collecção  das  Gavetas  do 
anno  de  1828.  Vou  ler- lhe,  acrescentou  o  editor,  virando-se 
para  o  sr.  Pickwick,  vou  lêr-lhe  uns  poucos  de  artigos  de 
fundo  que  eu  escrevi  n'essa  época,  sobre  a  intrigalhada  dos 
Azues  para  nomearem  um  novo  guarda  para  a  barreira  aqui 
do  sitio ;  estou  em  crer  que  o  hão  de  divertir. 

—  Gostaria  immenso  de  os  ouvir,  por  certo,  disse  o  sr. 
Pickwick. 

Veiu  a  collecção,  e  o  editor  sentou-se,  com  o  sr  Pickwick 
ao  lado. 

Debalde  investigamos  as  folhas  do  livro  de  notas  do  sr. 
Pickwick,  na  esperança  de  encontrarmos  um  summario  geral 
d'aquellas  magnificas  composições. 

Temos  rasão  para  crer  que  elle  ficou  perfeitamente  arre- 
batado com  o  vigor  e  expontaneidade  do  estylo ;  com  effeito 


iq8  as  aventuras 


o  sr.  WinJde  assignala  o  facto  de  lhe  ter  visto  os  olhos  fecha- 
dos, como  no  excesso  do  arroubamento,  durante  todo  o 
tempo  que  durou  a  leitura. 

O  annuncio  da  ceia  póz  ponto  tanto  ao  jogo  do  ecarte, 
como  á  lecapitulação  das  bellezas  da  Gaveta  de  Eatanswill. 

Mrs.  Pott  estava  de  um  humor  adorável. 

O  sr.  Winkle  já  fizera  progressos  consideráveis  na  sua  boa 
opinião,  e  ella  não  hesitara  em  informal-o  confidencialmente 
que  o  sr.  Pickwick  era  um  velhote  muitíssimo  agradável. 

Estes  termos  envolvem  uma  familiaridade  de  expressão, 
á  qual  se  abalançariam  poucos  d'aquelles  que  mais  intima- 
mente conheciam  aquelle  colossal  espirito. 

Conservámol-os  comtudo,  por  fornecerem  uma  prova  to- 
cante e  convincente  da  estima  em  que  elle  era  tido  em  todas 
as  classes  sociaes,  e  da  facilidade  com  que  conquistava  todos 
os  corações.  Era  já  noite  alta  —  ha  muito  que  os  srs.  Tup- 
man  e  Snodgrass  dormiam  nos  Íntimos  recessos  do  Pavão 
—  quando  os  dois  amigos  se  recolheram  aos  seus  quartos. 

O  somno  dentro  em  pouco  se  apossou  dos  sentidos  do 
sr.  Winkle,  mas  os  seus  sentimentos  estavam  excitados  e  a 
sua  admiração  despertada  ;  e  muitas  horas  depois  de  o  somno 
o  haver  tornado  insensível  aos  objectos  terrenos,  ainda  o 
rosto  e  o  vulto  da  amável  Mrs.  Pott  se  apresentavam  repeti- 
das vezes  á  sua  imaginação  vagabunda. 

O  reboliço  e  o  movimento  que  annunciaram  a  manhã 
eram  sufficientes  para  expulsar  do  espirito  mais  romanesco 
quaesquer  ideias  que  não  fossem  immediatamente  relacio- 
nadas com  a  eleição  próxima. 

O  rufar  de  tambores,  o  clangor  das  cornetas  e  das  trom- 
betas, a  gritaria  da  gente,  o  escarvar  dos  cavallos,  echoavam 
pelas  ruas  fora  desde  os  primeiros  alvores  da  madrugada;  e 
uma  que  outra  escaramuça  incidental  entre  os  exploradores 
dos  dois  partidos  dava  animação  aos  preparativos  e  varie- 
dade ao  caracter  do  dia. 

—  Então,  Sam  !  disse  o  sr.  Pickwick,  quando  o  criado  ap- 
pareceu  á  porta  do  quarto,  exactamente  no  momento  em  que 
elle  acaba  de  vesiir-se,  tudo  anda  em  alvoroço,  creio  eu? 

—  Isto  vae  menos  mal,  senhor,  replicou  o  sr.  Weller.  A 
nossa  gente  lá  está  a  reunir-se  nas  Atnnas  da  Cidade,  e  já 
andam  roucos  de  tanta  berrata. 


DO  SR.  PICKWICK  199 


—  Ah!  e  que  tal?  parecem  dedicados  ao  seu  partido, 
Sam! 

—  Ora!  <íu  cá  nunca  na  minha  vida  vi  dedicação  assim. 

—  Enérgica,  hein? 

—  Sé  é!  Eu  cá  nunca  vi  gente  que  comesse  e  bebesse 
tanto.  Parece  incrivel  que  não  tenham  medo  dê  rebentar. 

—  Isso  vém  da  mal  entendida  generosidade  dos  magnates 
cá  da  terra. 

—  Deve  ser  isso,  replicou  laconicamente  Sam. 

—  Parece  boa  gente,  robustos,  frescos,  disse  o  sr.  Pick- 
wick,  olhando  para  a  rua. 

—  Lá  frescos  estão  elles,  replicou  Sam.  Eu  cá  mais  os 
dois  criados  do  Pavão  fomos  para  a  bomba  esguichar  para 
cima  dos  eleitores  independentes  que  lá  ceiavam  hontem  á 
noite. 

—  A  esguichar  os  eleitores  independentes  ! 

—  Sim,  senhor !  cada  um  ficou  a  dormir  no  sitio  onde 
cahiu ;  nós,  esta  manhã,  acarretamos  com  elles  cá  para  fora, 
pespegamos  com  elles  debaixo  da  bomba,  e  elles  lá  ficaram 
asseiados  que  foi  um  gosto.  A  commissão  pagou  nos  esta  fai- 
na a  shilling  por  cabeça. 

—  Pois  isso  é  possível !  exclamou  o  sr.  Pickwick  atto- 
nito. 

—  Então  que  tem  isso,  senhor  ?  E'  um  baptismosinho,  não 
vale  de  nada. 

—  Não  vale  de  nada. 

—  Claro  que  não,  senhor.  Na  véspera  do  ultimo  dia  da 
ultima  eleição  aqui,  o  outo  partido  pagou  á  criada  do  balcão 
das  Armas  da  Cidade  para  ella  fazer  um  arranjmho  á  aguar- 
dente e  agua  que  se  serviu  a  quatorze  eleitores  que  lá  esta- 
vam alojados. 

—  Que  arranjinho  era  esse  ? 

—  Deitar  lhe  laudano  para  dentro.  Não  lhe  digo  nada! 
ferrou  com  elles  a  dormir  a  somno  solto  até  doze  horas  de- 
pois da  eleição.  Ainda  acarretaram  com  um  n'uma  padiola, 
meio  a  dormir,  assim  á  laia  de  experimentação,  mas  qual ! 
—  não  quizeram  aceitar-lhe  o  voto ;  e  vae  trouxeram-no  e 
metteram-no  outra  vez  na  cama. 

—  Que  extraordinários  expedientes  !  disse  o  sr.  Pickwick, 
meio  a  fallar  comsigo,  meio  a  dirigir- se  a  Sam. 


200  AS   AVENTURAS 


—  Ora !  isso  ainda  não  é  nada,  ao  pé  de  um  caso  mila- 
groso que  aconteceu  ao  meu  pae,  por  occasião  de  uma  elei- 
ção, aqui  mesmo  n'este  sitio. 

—  Então  o  que  foi  ? 

—  Eu  lhe  digo.  Uma  vez,  andava  elle  a  guiar  uma  carriola 
para  aqui.  Chega  o  tempo  das  eleições,  e  vae  um  dos  parti- 
dos toma-o  por  conta  para  trazer  'eleitores  de  Londres.  Na 
véspera  do  dia  em  que  elle  ia  para  lá,  a  commissão  do  outro 
partido  manda-o  chamar  com  todo  o  socego.  E  elle  lá  vae 
com  o  individuo  que  lhe  trouxe  o  recado,  e  vae  manda-o  en- 
trar para  uma  casa  muito  grande  —  uma  data  de  sujeitos  — 
montes  de  papel,  pennas  e  tinta  e  o  mais  que  sp  segue  : 

—  «Olá,  sr.  Weller !  diz  o  sujeito  que  estava  a  presidir, 
estimo  vGl-o  por  aqui ;  então  como  vae  isso  ?« 

—  «Bem,  muito  obrigado  !  diz  o  meu  velho,  o  senhor  pa- 
cere  que  não  está  mais  magro. :»j 

—  «Vae-se  andando,  obrigado!  diz  o  sujeito,  sente-se,  sr. 
Weller;  faça  favor  de  se  sentar.» 

«Vae  o  meu  pae  sentou- se,  e  elle  mais  o  tal  sujeito  co- 
meçam a  olhar  muito  íitos  um  para  o  outro. 

—  «Vossê  não  se  lembra  de  mim  :»  diz  o  sujeito. 

—  "A  fallar  a  verdade,  não  senhor,»  diz  o  rneu  velho. 

—  "Pois  eu  conheço-o»,  diz  o  sujeito.  «Conheci-o  era  vosse 
uma  creança ! » 

—  «Pois  olhe!  eu  cá  não  me  lembro,»  diz  o  meu  pae. 

—  «E'  exquisito,»  diz  o  sujeito. 

—  'Pois  é,  é,»  diz  o  meu  pae. 

—  «A  modo  que  vossê  não  tem  boa  memoria,  sr.  Weller,» 
diz  o  sujeito. 

—  «Não  é  lá  muito  boa,  não ! »  diz  o  meu  velho. 

—  «Lá  me  parecia  !»  diz  o  sujeito. 

«E  vae  bota-lhe  um  copo  de  vinho,  e  desata  a  elogial-o 
por  guiar  bem,  e  põe-o  macio  que  nem  um  velludo,  e  por 
fim  mette-lhe  á  cara  uma  nota  de  vinte  libras. 

—  «E'  muito  mau  o  caminho  d'aqui  até  Londres,»  diz  o 
sujeito. 

—  «Tem  pedaços  levados  do  diabo,  lá  isso  tem,»  diz  o 
meu  pae. 

—  «Principalmente  ao  pé  do  canal,  parece-me  a  mim,  diz 
o  sujeito. 


no  SK.  pickwick:  201 


—  «Ah !  esse  pedaço  é  de  respeito,  diz  o  meu  velho. 

—  «Pois  olhe,  sr.  Weller  I  diz  o  sujeito,  vossê  é  uma  mão 
de  rédea  de  primeira  ordem  ;  nós  bem  sabemos  que  vosse  faz 
o  que  quer  com  os  cavallos  Todos  nós  gostamos  muito  do 
sr.  Weller.  Por  isso,  se  por  acaso  lhe  succedesse  um  accidente 
quando  trouxesse  para  cá  aquelles  eleitores,  e  que  vossê  fer- 
rasse com  elles  no  canal  sem  lhes  fazer  mal  nenhum,  isto  é 
para  vossê,  diz  o  sujeito. 

—  «O  senhor  é  muito  boa  pessoa,»  diz  o  meu  pae,  «e  eu 
quero  beber  um  copo  á  sua  saúde.» 

«E  assim  fez,  e  guardou  a  maquia,  e  fez  um  cumprimento 
e  foi-se. 

«Talvez  o  senhor  não  acredite,  continuou  Sam  olhando 
para  o  amo  com  uma  inexprimiveí  impudência,  que  exacta- 
mente no  dia  em  que  elle  veiu  para  cá  com  os  taes  eleitores, 
virou-se-lhe  a  carriola  mesmo  n'aquelle  sitio,  e  todos  os  pas- 
sageiros foram  parar  ao  canal. 

—  E  tiraram-os  de  lá  ?  perguntou  o  sr.  Pickwick  com  vi- 
vacidade. 

—  Eu  lhe  digo,  replicou  Sam  lentamente,  quer-me  pare- 
cer que  faltou  um  sujeito  idoso ;  lá  o  chapéo  sei  eu  que  lhe 
acharam,  mas  não  estou  bem  certo  se  trazia  dentro  a  cabeça* 
ou  não.  Mas  ao  que  eu  faço  reparo  é  na  extraordinária,  na 
espantosa  coincidência,  virar-se  a  carriola  de  meu  pae,  de- 
pois da  conversa  com  o  tal  sujeito,  n'aquelle  mesmíssimo  si- 
tio e  n'aquelle  mesmíssimo  dia. 

—  E'  realmente  um  caso  muito  extraordinário,  sem  duvida ! 
disse  o  sr.  Pickwick.  Mas  escove-me  o  chapéo,  Sam,  porque 
estou  a  ouvir  o  sr.  Winkle  a  chamar-me  para  o  almoço. 

E  o  sr.  Pickwick  desceu  para  a  casa  de  jantar,  onde  achou 
o  almoço  na  mesa  e  a  familia  já  reunida. 

A  refeição  correu  rápida;  cada  um  dos  chapéos  dos  ca- 
valheiros estava  decorado  com  um  enorme  laço  azul,  feito 
pelas  lindas  mãos  da  própria  Mrs.  Pott ;  e  como  o  sr.  Winkle 
se  offerecera  para  acompanhar  esta  dama  ao  telhado  de  uma 
casa  mesmo  pegada  com  o  tablado  onde  se  realisavam  as 
eleições,  o  sr.  Pickwick,  mais  o  sr.  Pott  dirigiram -se  ás  Ar- 
mas da  Cidade. 

Um  dos  membros  da  commissão  do  sr.  Slumkey  estava 
na  janella  das  trazeiras  a  perorar  a  seis  garotos  e  a  uma  pe- 


202  AS   AVENTURAS 


quena,  aos  quaes  a  cada  instante  condecorava  com  o  titulo 
de  "homens  de  Eatanswill",  ao  passo  que  os  sobreditos  garo- 
tetes  applaudiam  prodigiosamente. 

O  pateo  da  cavallariça  otferecia  symptomas  inequivocos 
da  gloria  e  da  força  dos  Azues  de  Eatanswill. 

Lá  estava  um  exercito  regular  de  bandeiras  azues,  umas 
de  uma  haste,  outras  de  duas,  exhibindo  divisas  apropriadas, 
em  caracteres  de  oiro  de  quatro  pés  de  altura  e  de  largura 
em  proporção. 

Lá  estava  uma  grande  banda  de  trombetas,  fagotes  e  tam- 
bores, formados  a  quatro  e  quatro,  e  ganhando  com  a  má- 
xima consciência  o  seu  dinheiro,  sobretudo  os  tambores,  que 
eram  musculosos  a  valer. 

Viam-se  legiões  de  esbirros  com  varas  azues,  vinte  mem- 
bros da  commissão  com  faxas  azues,  e  uma  turbamulta  de 
eleitores  com  laços  azues  nos  chapéos. 

Havia  eleitores  a  cavallo  e  eleitores  a  pé.  Havia  uma  car- 
ruagem descoberta,  tireda  a  quatro  para  b  Honourable  Sa- 
muel Slumkey ;  e  quatro  carruagens  a  uma  parelha,  para  os 
seus  amigos  e  apaniguados. 

E  as  bandeiras  fluctuavam,  e  a  banda  tocava,  e  os  esbir- 
ros praguejavam  e  os  vinte  da  commissão  altercavam,  e  a 
turbamulta  berrava,  e  os  cavallos  recuavam,  e  os  postilhões 
fartavam-se  de  suar. 

E  todos,  e  tudo  que  ali  então  se  reunia,  era  exclusiva- 
mente para  uso,  proveito,  honra  e  renome  do  Honourable  Sa- 
muel Slumkey,  do  solar  de  Slumkey,  um  dos  candidatos  á 
representação  do  burgo  de  Eatanswill,  na  camará  dos  Com- 
muns  do  Parlamento  do  Reino  Unido. 

Clamorosos  e  prolongados  foram  os  applausos,  e  ruidoso 
o  pannejar  de  uma  das  bandeiras  com  a  inscripção:  «Liber- 
dade de  imprensa,»  quando  a  turba  distinguiu  n'uma  das  janel- 
las  a  cabeça  ruiva  do  sr.  Pott ;  e  foi  tremendo  o  enthusiasmo 
quando  o  Honourable  Samuel  Slumkey  em  pessoa,  com  bo- 
tas de  canhão  e  gravata  azul,  se  adiantou  e  apertou  a  mão 
do  dito  Pott,  e  testemunhou  á  multidão,  com  gestos  melo- 
dramáticos, o  seu  inextinguível  reconhecimento  á  Gaveta  de 
Eatanswill. 

— Está  tudo  prompto ''  disse  o  Honourable  Slumkey  ao 
sr.  Perker. 


DO   SR.   PICKWIGK  2o3 


—  Tudo,  meu  caro  senhor,  respondeu  o  homemsinho. 

—  Espero  que  não  se  esquecessem  de  cousa  alguma. 

—  Tudo  se  tez,  meu  caro  senhor  —  tudo  absolutamente. 
A'  porta  da  rua  estão  vinte  homens  bem  lavados  para  lhe 
apertarem  a  mão ;  e  seis  nenés  de  collo  para  lhes  atiagar  a 
cabeça  e  perguntar  que  idade  teem.  Muita  attençáo  com  as 
creanças,  meu  caro  senhor  —  cousas  d'estas  fazem  sempre 
um  efteito  de  arromba. 

—  Deixe  estar,  disse  o  Honourable  Samuel  Slumkey. 

—  E  talvez,  meu  caro  senhor,  disse  o  previdente  homem- 
sinho, talvez  que  se  podesse — não  digo  que  seja  uma  cousa 
indispensável  —  mas  se  podesse  conduzir  as  cousas  de  forma 
a  beijar  um  d'elles,  isso  era  de  um  effeitarrão  para  a  turba. 

—  O  effeito  não  seria  o  mesmo  se  o  meu  apresentante  o 
fizesse  ? 

—  Nada,  receio  que  não.  Sendo  feito  pela  sua  pessoa,  meu 
caro  senhor,  é  caso  para  lhe  dar  grande  popularidade. 

—  Pois  vá  lá  !  disse  o  Honourable  Samuel  Slumkey  com 
ar  resignado.  Faça-se  isso.  Assim  seja. 

—  Formem  o  préstito !  gritaram  os  vinte  membros  da 
commissão. 

No  meio  das  acclamações  da  turba,  tomaram  os  seus  Io  ' 
gares  a  banda,  mais  os  esbirros,  mais  os  membros  da  com- 
missão, mais  os  eleitores,  mais  os  cavalheiros,  mais  as  car- 
ruagens. 

Cada  uma  das  carruagens  de  uma  só  parelha  levava  em- 
pilhados tantos  sujeitos  em  pé  quantos  lá  cabiam;  e  a  desti- 
nada ao  sr.  Perker  continha  os  srs.  Pickwick,  Tupmann, 
Snodgrass  e  além  d'isso  cerca  de  meia  dúzia  dos  da  commis- 
são. 

Houve  um  momento  de  suspensão  tremenda  quando  o 
préstito  aguardou  que  o  Honourable  Samuel  Slumkey  se  met- 
tesse  na  sua  carruagem. 

De  repente  a  multidão  rompeu  n'uma  acclamação  estron- 
dosa. 

—  Lá  sahiu  elle,  disse  o  pequeno  sr.  Perker,  cheio  de  al- 
voroço, tanto  mais  quanto  a  sua  posição  não  lhe  permittia 
ver  o  que  ia  succedendo. 

Outra  acclamação,  ainda  mais  estrondosa. 

—  Apertou  as  mãos  aos  homens,  bradou  o  agente. 


;04  AS  AVENTURAS 


Outra  acclamação,  mais  vehemente  ainda. 

—  Acariciou  a  cabeça  aos  nenés  I  disse  o  sr.  Perker,  tre- 
mulo de  anciedade. 

Uma  trovoada  de  applausos  que  rasgou  os  ares. 

—  Lá  beijou  um  d'elles!  disse  o  homemsinho,  cheio  de 
gáudio. 

Segunda  trovoada. 

—  Lá  beijou  outro !  balbuciou  o  agente  excitado. 
Terceira  trovoada. 

—  Beijou  os  a  todos!  guinchou  o  homemsinho  enthusias- 
mado ! 

E  o  préstito  poz-se  a  caminho,  saudado  pela  berraria  en- 
surdecedora da  multidão. 

Como  e  por  que  meios  elle  veiu  a  misturar-se  com  o  ou- 
tro préstito  e  porque  forma  se  desenvencilhou  da  confusão 
que  se  seguiu,  é  isso  o  que  nem  tentaremos  descrever ;  tanto 
mais  que  logo  no  começo  da  desordem  o  chapéo  do  sr.  Pick- 
Avick  foi-lhe  enterrado  para  cima  dos  olhos,  do  nariz  e  da 
bocca,  por  impulso  de  uma  haste  de  bandeira  amarella. 

Conta  elle  como.  no  momento  em  que  lhe  foi  possivel 
dar  um  relance  de  olhos  pela  scena,  se  viu  cercado  por  todos 
os  lados  por  semblantes  carrancudos  e  ferozes,  por  uma  nu- 
vem colossal  de  poeira,  e  por  uma  turba  densa  de  comba- 
tentes ;  como  se  viu  arrebatado  de  dentro  da  carruagem  por 
qualquer  potencia  invisível,  e  pessoalmente  empenhado  em 
exercícios  de  pugilato,  mas  o  com  quem,  ou  o  como,  ou  o 
porque,  é  o  que  lhe  é  completamente  impossível  determi- 
nar. 

Depois  sentiu  se  empurrado  para  cima  de  uns  degraus  de 
madeira  por  gente  que  estava  atraz  d'elle ;  e  ao  tirar  o  cha- 
péo, achou-se  rodeado  pelos  seus  amigos,  mesmo  na  primeira 
fila  do  lado  esquerdo  do  estrado. 

A  direita  era  reservaoa  ao  partido  amarello,  e  o  centro 
para  o  inaire  e  os  seus  funccionarios ;  um  dos  quaes  —  o 
gordo  pregoeiro  de  Eatanswill  —  estava  a  tocar  uma  enorme 
sineta,  no  intento  de  reclamar  silencio. 

Entretanto,  o  sr.  Horatio  Fizkin,  e  o  Honourable  Samuel 
Slumkey,  com  a  mão  sobre  o  coração,  estavam  a  cumpri- 
mentar com  grande  affabilidade  o  borrascsoo  mar  de  cabe- 
ças que  inundava  a  praça  e  do  qual  se  levantava  uma  tem- 


no  SR.  PICKWICK  20^ 


pestade  de  gemidos,  de  applausos,  de  uivos,  de  vaias,  capazes 
de  fazer  honra  a  um  terremoto. 

—  Lá  está  Winkle,  disse  o  sr.  Tupman,  puxando  pela 
manga  do  amigo. 

—  Onde?  perguntou  o  sr.  Pickwick,  pondo  os  óculos  que 
até  então,  por  fortuna,  guardara  na  algibeira. 

—  Além,  disse  o  sr.  Tupman,  no  telhado  d'aquella  casa. 
E  com  eíTeto,  na  goteira  de  chumbo  de  um  telhado,  lá 

estavam  o  sr.  Winkle  e  Mrs.  Pott,  commodamente  sentados 
em  duas  cadeiras,  acenando  com  os  lenços  em  signal  de  re- 
conhecimento —  saudação  a  que  o  sr.  Pickwick  correspon- 
deu, mandando  um  beijo  á  illustre  dama.  A.inda  não  haviam 
começado  os  trabalhos  eleitoraes ;  e  como  uma  turba  ociosa 
é  geralmente  propensa  á  troça,  bastou  esta  innocentissima 
acção  para  lhe  despertar  as  facécias. 

' —  Ora  o  maganão  do  velho  !  gritou  uma  voz.  Então  vossG 
vae-se  atirando  ás  pequenas,  hein  ? 

—  Olha  o  venerável  peccador,  bradou  outro. 

—  A  pôr  os  óculos  para  namoriscar  uma  mulher  casada, 
clamou  um  terceiro. 

—  Lá  está  elle  a  catrapiscal-a,  com  o  olhar  abrejeirado, 
raio  do  velho  !  berrou  um  quarto. 

—  Toma  conta  na  tua  mulher,  Pott !  vociferou  um  quinto. 

E  n'isto  rebentou  um  coro  estrondoso  de  gargalhadas. 

Como  estas  chufas  fossem  acompanhadas  por  compara- 
ções revoltantes  entre  o  sr.  Pickwick  e  um  bode  velho,  e  va- 
rias facécias  do  mesmo  jaez,  e  como  além  d'isso  tendessem 
a  formar  juizos  temerários  sobre  a  honra  de  uma  damainno- 
cente,  era  excessiva  a  indignação  do  sr.  Pickwick. 

Mas  como  n'esse  momento  se  impunha  silencio,  elle  con- 
tentou-se  em  fulminar  a  populaça  com  um  olhar*  de  com- 
miseração  por  aquelles  espiritos  transviados,  o  que  augmen- 
tou  mais  do  que  nunca  a  hilaridade. 

—  Silencio!  rugiram  os  sequazes  do  maire. 

—  Whiffin,  reclame  silencio  1  disse  o  maire  com  o  ar  ma- 
gestoso  adequado  á  sua  posição  eminente. 

Obedecendo  a  esta  ordem,  o  pregoeiro  executou  outro 
concerto  de  sineta,  o  que  fez  com  que  um  sujeito  da  turba 
soltasse  o  grito  de  «Farelorio  I»  que  foi  coberto  de  novas 
gargalhadas. 


2o6  AS   AVENTURAS 


—  Meus  senhores,  disse  o  maire  no  tom  mais  elevado  a 
que  lhe  foi  possível  erguer  a  voz,  meus  senhores,  coeleitores 
do  burgo  de  Katanswill,  aqui  nos  reunimos  hoje  afim  de  ele- 
ger um  representante  para  o  logar  vago  que  era  do  nosso  fal- 
lecido. . . 

N'isto,  o  maire  foi  interrompido  por  uma  voz  d'entre  a 
turba. 

—  Muita  fortuna  ao  maire':  e  que  elle  nunca  largue  o  ne- 
gocio dos  pregos  e  das  caçarolas  que  lhe  deu  a  maquia  I 

Esta  allusão  ás  occupaçóes  profissionaes  do  orador  foi 
acolhida  com  um  vendaval  de  jubilo,  o  qual,  junto  ao  acom- 
panhamento da  sineta,  tornou  inaudível  o  resto  do  discurso, 
á  excepção  da  ultima  phrase,  na  qual  elle  agradeceu  á  assem- 
bléa  a  paciente  attenção  que  lhe  havia  prestado  —  expres- 
são de  reconhecimento  que  produziu  uma  nova  explosão  de 
alegria,  que  durou  cerca  de  um  quarto  de  hora. 

Em  seguida,  um  sujeito  alto  e  magro,  com  uma  gravata 
branca  muito  rigida,  depois  de  repetidas  intimações  da  turba 
para  «que  mandasse  um  moço  a  casa  a  saber  se  elle  teria 
deixado  a  voz  debaixo  do  travesseiro»,  pediu  que  nomeassem 
uma  pessoa  apropriada  e  conveniente  pc.ra  os  representar  no 
Parlamento. 

E  quando  elle  declarou  que  essa  pessoa  era  Horatio  Fiz- 
kin,  Esquire,  do.  Casal  de  Fizkin,  perto  de  Eatanswill,  os  Fiz- 
kinistas  applaudiram,  e  os  Slumkeystas  rosnaram  tanto  e  tão 
de  rijo,  que  tanto  elle  como  o  apresentante  poderia  ter  cantado 
canções  cómicas  em  logar  de  orar,  sem  ninguém  dar  por 
isso* 

Tendo  os  amigos  de  Horatio  Fizkin,  Esquire,  gozado  das 
suas  primícias,  adiantou-se  um  homem  de  cara  de  poucos 
amigos  e  bochechas  côr  de  tijolo,  para  propor  outra  pessoa 
apropriada  e  conveniente  para  representar  no  Parlamento  os 
eleitores  de  Eatans\vill ;  e  sem  tropeço  faria  o  seu  discurso, 
se  não  fosse  o  seu  temperamento  em  demasia  colérico,  que 
o  impedia  de  ter  uma  percepção  bastante  niiida  da  troça  do 
povoléo. 

Mas  depois  de  meia  dúzia  de  phrases  de  eloquência  figu- 
rativa, o  homem  das  bochechas  encarnadas  desatou  a  accu- 
sar  os  que  o  interrompiam  e  a  desafiar  os  cavalheiros  que 
estavam  no  tablado. 


DO   SR.   PICKWICK  207 


Isto  excitou  uma  algazarra  tamanha,  que  elle  viu-se  obri- 
gado a  exprimir  os  seus  sentimentos  por  mimica,  finda  a  qual 
cedeu  o  logar  ao  defensor  da  sua  proposta. 

Este  pronunciou  um  discurso  escripto  de  meia  hora,  e 
ninguém  foi  capaz  de  o  fazer  parar ;  por  isso  que  o  tinha 
mandado  para  a  Gaveta  de  Eatansnnll,  a  qual  o  imprimira, 
palavra  por  palavra. 

Foi  então  que  se  apresentou  Horatio  Fizkin,  Esquire,  do 
Casal  de  Fizkin,  perto  de  Eatanswill,  afim  de  fallar  aos  elei- 
tores. 

Mas  apenas  tal  fez,  a  banda  que  estava  por  conta  do  Ho- 
nourable  Samuel  Slumkey,  começou  a  tocar  com  um  vigor, 
ao  pé  do  qual  era  bagatella  o  que  ella  mostrara  de  ma- 
nhã. 

Para  corresponder,  a  multidão  amarella  desatou  á  panca- 
daria nas  cabeças  e  nos  hombros  da  multidão  azul ;  esta  pro- 
curou desenvencilhar-se  da  incommoda  visinhança  da  mul- 
tidão amarella  ;  e  o  resultado  foi  uma  scena  de  luctas,  de  em- 
purrões, de  combates,  á  qual  nos  é  tão  difficil  acudir  com  a 
descripção  como  o  maire  com  a  justiça. 

Este*  debalde  deu  ordens  imperativas  a  doze  esbirros  para 
prender  os  cabeças  de  motim,  que  poderiam  ascender  ao 
numero  de  duzentos  e  cincoenta,  ou  coisa  parecida. 

Durante  a  desordem,  Horatio  Fizkin,  Esquire,  do  Casal  de 
Fizkin,  mais  os  seus  amigos,  estavam  cada  vez  mais  furiosos 
e  ferozes,  até  que  por  fim  Horatio  Fizkin  perguntou  ao  seu 
adversário,  o  Honourable  Samuel  Slumkey,  do  solar  de  Slum- 
key, se  aquella  banda  tocava  por  ordem  sua. 

Como  o  Honourable  Samuel  Slumkey  se  recusasse  a  res- 
ponder, Horatio  Fizkin,  Esquire,  ameaçou  com  o  punho  fe- 
chado o  Honourable  Samuel  Slumkey;  ao  que  este,  sentindo 
o  sangue  subir-lhe  ás  orelhas,  desafiou  Horatio  Fizkin,  Es- 
quire, para  um  combate  mortal. 

A  esta  violação  de  todas  as  regras  e  de  todos  os  prece- 
dentes conhecidos,  o  maire  deu  ordem  para  outra  phantasia 
de  sineta :  e  declarou  que  elle  mandaria  chamar  á  sua  pre- 
sença tanto  Horatio  Fizkin,  Esquire,  do  Casal  de  Fizkin,  co- 
mo o  Honourable  Samuel  Slumke>',  do  solar  de  Slumkey, 
afim  de  os  obrigar  a  metterem-se  nas  encolhas. 

A  esta  terrivel  ameaça,  os  amigos  dos  dois  candidatos  in- 


208  AS   AVENTURAS 


tervieram,  e  depois  de  terem  questionado,  dois  a  dois,  du- 
rante três  quartos  de  hora,  Horatio  Fizkin,  Esquire,  levou  a 
mão  ao  chapéo  diante  do  Honourable  Samuel  Slumkey,  o 
qual  fez  o  mesmo  diante  de  Horatio  Fizkin.  A  banda  calou- 
se,  a  multidão  aquietou-se  em  parte,  e  Horatio  Fizkin,  Es- 
quire, conseguiu  proseguir  no  seu  discurso. 

Os  discursos  dos  dois  candidatos,  embora  diversos  a  to- 
dos os  outros  respeitos,  prestavam  uma  brilhante  homena- 
gem aos  méritos  e  ás  altas  virtudes  dos  eleitores  de  Eatans- 

AVill. 

Cada  um  d'elles  exprimiu  a  opinião  de  que  nunca  existira  no 
mundo  uma  reunião  de  homens  mais  independentes,  mais  il- 
lustrados.  mais  patrióticos,  mais  magnânimos,  do  que  aquel- 
les  que  lhe  haviam  promettido  os  seus  votos;  cada  um  d'el- 
les  insinuou  escusamente  a  suspeita  de  que  os  eleitores  da 
parte  adversa  tinham  certos  achaques  de  intelligencia  e  de 
costumes  immundos,  que  os  inhabilitavam  para  o  exercício 
dos  importantes  deveres  que  eram  chamados  a  desempe- 
nhar. 

Fizkin  exprimiu  a  sua  promptidão  em  satisfazer  qualquer 
pedido  que  lhe  fosse  feito  :  Slumkey,  a  sua  resolução  de  nada 
fazer  do  que  lhe  pedissem. 

Ambos  elles  disseram  que  o  trafico,  a  industria,  o  com- 
mercio,  a  prosperidade  de  Éatanswill  seriam  de  todos  os  ob- 
jectos terrenos  os  mais  caros  aos  seus  corações ;  e  cada  um 
d"elles  se  julgava  auctorisado  a  acreditar  confiadamente  que 
elle  seria  o  eleito. 

Levantaram-se  as  mãos  para  votar. 

O  maire  decidiu  em  favor  do  Honourable  Samuel  Slum- 
key, do  solar  de  Slumkey. 

Horatio  Fizkin,  Esquire,  do  Casal  de  Fizkin,  requereu  um 
escrutínio,  e  portanto  ordenou  se  o  escrutínio. 

Em  seguida,  votou-se  um  agradecimento  ao  maire  pela 
maneira  hábil  porque  occupára  a  cadeira  da  presidência ;  e 
o  mait-e  agradeceu  cordialmente,  fazendo  votos  por  que  ti- 
vesse havido  uma  cadeira  a  valer  para  elle  expandir  melhor 
a  sua  habilidade,  por  isso  que  estivera  em  pé  durante  todos 
os  trabalhos. 

Tornaram  a  formar-sc  os  préstitos,  as  carruagens  rodaram 
vagarosamente  por  meio  da  multidão,  e  d'esta  sahiram  accla- 


DO  SR.  PICKWICK  '20g 


mações  ou  apupos,  conforme  a  maneira  de  sentir  ou  o  ca- 
pricho de  cada  um. 

Durante  os  trabalhos  eleitoraes,  a  cidade  estivera  n'uma 
tebre  perpetua  de  excitação. 

Tudo  foi  conduzido  pela  forma  mais  liberal  e  mais  apra- 
zivel. 

Os  géneros  alimentícios  eram  notavelmente  baratos  em 
todas  as  tabernas. 

Pelas  ruas  andavam  padiolas  para  transporte  dos  votan- 
tes atacados  de  vertigens  temporárias  —  epidemia  que  se 
desenvolveu  assustadoramente  pelos  eleitores  durante  a  con- 
tenda, e  sob  cuja  influencia  não  era  raro  ver  alguns  d'elles 
estendidos  pelas  ruas,  n'um  estado  de  insensibilidade  abso- 
luta. 

Mesmo  no  ultimo  dia,  houve  um  pequeno  numero  d'elles 
que  ainda  não  tinham  votado. 

Eram  pessoas  reflectidas  e  calculistas,  que  ainda  não  ti- 
nham sido  convencidas  pelos  argumentos  de  nenhum  dos  par- 
tidos, apesar  de  terem  tido  frequentes  conferencias  com  cada 
um  d'elles. 

Uma  hora  antes  do  fim  do  escrutínio,  o  sr.  Perker  solici- 
tou a  honra  de  uma  entrevista  particular  com  esses  intelli- 
gentes,  esses  nobres,  esses  patrióticos  cidadãos. 

Foi-lhe  concedida  essa  honra. 

Os  argumentos  foram  breves,  mas  satisfatórios. 

Os  retardatários  foram  em  magote  ao  escrutínio  ;  e  quando 
sahiram  de  lá,  também  sahira  deputado  o  Honourable  Samuel 
Slumkey,  do  solar  de  Slumkey. 


CAPITULO  XIV 

Contendo  uma  rápida  dcscrípção  da  sociedade  ^^- 
unída  no  (cPavâO'>,  e  uma  historia  contada  per 
um  bufarinheiro. 

Agradável  é  desviar  os  olhos  dos  motins  e  das  barafundas 
da  vida  politica  para  a  pacifica  tranquillidade  da  existência 
privada. 

H 


210  AS   AVENTURAS 


Embora  não  fosse  na  realidade  um  ferrenho  partidário  de 
qualquer  das  facções,  o  sr.  Pickwick  estava  sufficientemente 
inflammado  com  o  enthusiasmo  do  sr.  Pott  para  applicar 
todo  o  seu  tempo  e  toda  a  sua  attençáo  ás  operações  das 
quaes  extraliimos  das  suas  notas  a  descripção  que  faz  o  obje- 
cto do  capitulo  anterior. 

Emquanto  elle  estava  assim  occupado,  também  o  sr.-Win- 
kle  não  estava  ocioso,  visto  que  dedicava  completamente  o 
seu  tempo  a  passeios  aprazíveis  e  curtas  excursões  pelo  campo 
com  Mrs.  Pott,  que  nunca  perdia  o  ensejo  que  se  lhe  depa- 
rava para  procurar  algum  allivio  á  fastidiosa  monotonia  de 
que  se  queixava  a  cada  instante. 

Assim  de  todo  fnmiliarisados  os  dois  cavalheiros  em  casa 
do  editor,  os  srs.  Tupman  e  Snodgrass  acharam-se  em  grande 
parte  reduzidos  aos  seus  próprios  recursos. 

Interessando-se  pouco  pelos  negócios  públicos,  iam  gas- 
tando o  tempo  sobretudo  com  os  divertimentos  que  lhes 
proporcionava  o  Pavão,  e  os  quaes  se  limitavam  a  um  jogo 
de  bagatelia  no  primeiro  andar  e  um  chinquilho  apartado  no 
quintal  das  trazeiras. 

Na  sciencia  e  na  belleza  de  taes  recreios,  muito  mais  com- 
plicados do  que  suppõe  o  vulgo,  foram,  elles  gradualmente 
iniciados  pelo  sr.  Weller,  que  possuía  conhecimentos  per- 
feitos d'esses  passatempos. 

Assim,  não  obstante  verem-se  em  grande  parte  privados 
da  vantajosa  companhia  do  sr.  Pickwick,  lá  iam  preenchendo 
o  seu  tempo,  sem  maior  aborrecimento. 

Eta  á  noite,  comtudo,  que  o  Pavão  offerecia  aos  dois  ami- 
gos attractivos  que  os  levavam  a  resistir  até  aos  convites  do 
talentoso,  se  bem  que  um  pouco  massador  do  sr.  Pott. 

A'  noite  é  que  o  botequim  se  enchia  de  uma  sociedade, 
cujos  caracteres  e  maneiras  forneciam  um  pasto  delicioso  ás 
observações  do  sr.  Tupman,  e  cujas  falias  e  actos  o  sr.  Snod- 
grass  se  pozera  no  habito  de  notar. 

A  maioria  da  gente  sabe  que  espécie  de  estabelecimentos 
são  em  gera!  os  botequins  onde  se  reúnem  os  commercian- 
tes. 

O  do  Pavão  não  sahia  da  regra  geral ;  quer  dizer,  era  um 
vasto  aposento  muito  simples,  cuja  mobilia  fora  indubitavel- 
mente melhor  quando  mais  nova,  com  uma  espaçosa  meza 


hO   SK.   PICKWICK  2  l  I 


no  centro,  e  varias  outras  pequenas  pelos  cantos ;  um  larj^o 
sortimento  de  cadeiras  de  variados  feitios,  e  um  velho  tapete 
turco,  tendo  pouco  mais  ou  menos  em  relação  ao  tamanho 
do  aposento  as  mesmas  proporções  que  um  lencinho  de  se- 
nhora tem  para  o  chão  de  uma  guarita. 

As  paredes  estavam  decoradas  comum  ou  dois  grandes 
mappas;  c  a  um  canto,  pendiam  de  uma  extensa  fila  de  ca- 
bides diversos  casacões  grossos  e  coçados. 

A  chaminé  estava  ornamentada  com  um  tinteiro  de  ma- 
deira, contendo  um  coto  de  caneta  e  meio  pau  de  lacre,  uma 
historia  do  condado,  já  sem  a  encadernação  e  os  restos  mor- 
taes  de  uma  truta  n"um  esquite  de  vidro. 

A  aihmosphera  estava  saturada  de  fumo  de  tabaco,  o  qual 
havia  communicado  um  tom  escuro  a  todo  o  aposento,  e  mais 
especialmente  ás  cortinas  vermelhas  e  empoeiradas  que  de- 
coravam as  janellas. 

No  aparador,  agglomerava-se  uma  variedade  de  objectos 
heterogéneos,  os  mais  conspícuos  dos  quaes  eram  um  galhe- 
teiro  de  vidros  nebulosos,  dois  ou  três  chicotes,  outras  tantas 
mantas  de  viagem,  um  taboleiro  com  garfos  e  facas,  e  a  mos- 
tarda. 

Era  aqui  que  estavam  sentados  os  srs.  Tupman  e  Snod- 
grass,  na  noite  seguinte  á  eleição,  com  vários  outros  hospe- 
des da  casa,  a  fumarem  e  a  beberem 

—  Vamos  lá,  meus  senhores,  disse  um  personagem  cor- 
pulento e  alentado,  de  uns  quarenta  annos  e  com  um  olho  só 
—  um  olho  preto  muito  brilhante,  que  pestanejava  com  uma 
expressão  de  troça  magana  e  de  bom  humor.  A'  nossa  rica 
saúde !  Eu  cá  levanto  sempre  uni  brinde  á  sociedade,  mas  cá 
de  mim  para  mim  bebo  á  saúde  de  Mar\ .  ()ue  dizes  a  isto, 
Marv  > 

—  Ora  deixe-me  com  essas,  pedaço  de  brejeiro,  disse  a  ra- 
pariga, que  em  lodo  o  caso  não  se  mostrava  muito  descon- 
tente com  o  cumprimente. 

—  Não  te  ponhas  na  pireza,  Mary,  disse  o  homem  do  olho 
pre'o. 

—  Não  me  masse.  carraça. 

-  Não  te  rales,  disse  o  zarolho,  gritando  para  a  rapariga 
que  ia  a  sahir  da  sala.  Eu  já  me  vou  embora,  cachopa.  Ale- 
gra essa  alminha,  meu  anjo. 


212  AS   AVENTURAS 


E  n'isto  piscou  com  toda  a  facilidade  o  olho  solitário  a 
toda  a  geme,  com  enthusiasrico  prazer  de  um  personagem 
idoso  de  cara  suja  e  de  cachimbo  de  barro. 

—  As  mulheres  são  umas  creaturas  muito  esquisitas,  disse 
este  ultimo  depois  de  um  silencio. 

—  Ah  !  lá  isso  é  que  é  verdade  !  disse  um  homem  de  rosto 
muito  vermelho,  por  detraz  de  um  charuto. 

Depois  d'este  pedacito  de  philosophia,  houve  outra  pausa. 

—  Em  todo  o  caso,  acreditem  que  ha  no  mundo  cousas 
ainda  mais  exquisitas  do  que  as  mulheres,  disse  o  homem  do 
olho  preto,  enchendo  lentamente  um  cachimbo  hollandez  de 
colossaes  dimensões. 

—  O  senhor  é  casado?  perguntou  o  homem  de  cara  suja. 

—  Que  eu  saiba,  não. 

—  Lá  me  parecia. 

E  o  homem  da  carn  suja  desatou  a  rir  convulsivamente 
com  a  sua  piada,  acompanhado  no  riso  por  um  homem  de 
falias  mansas  e  semblante  sereno,  que  tinha  por  systema  es- 
tar sempre  de  accordo  com  toda  a  gente. 

—  As  mulheres,  afinal  de  contas,  disse  o  enthusiastico  sr. 
Snodgrass,  Scão  os  grandes  arrimos  e  confortos  da  nossa  exis- 
tência. 

—  Lá  isso  são,  disse  o  sujeito  sereno. 

—  Quando  estão  de  bom  humor,  acudiu  o  da  cara  suja. 

—  Isso  é  que  é  verdade,  disse  o  das  falas  mansas. 

—  Por  mim  repillo  a  restricção,  exclamou  o  sr.  Snodgrass, 
cujos  pensamentos  revertiam  rapidamente  para  Emily  War- 
dle.  Repillo-a  com  desprezo  —  com  indignação.  Mostrem-me 
o  homem  que  diga  seja  o  que  fôr  contra  as  mulheres,  e  eu 
declaro  lhe  na  cara  que  não  é  um  homem. 

E  o  sr.  Snodgrass  tirou  o  charuto  da  bocca,  e  bateu  vio- 
lentamente na  mesa  com  o  punho  fechado. 

—  Esse  argumento  é  de  força,  disse  o  homem  sereno. 

—  Contendo  uma  affirmação  que  eu  nego,  interrompeu  o 
da  cara  suja. 

—  E  com  certeza  que  ha  muita  verdade  também  n'isso 
que  o  senhor  observa,  disse  o  das  falias  mansas. 

—  Lá  vae  á  sua  !  disse  o  bufarinheiro  zarolho  com  um 
aceno  approvador  para  o  sr.  Snodgrass,  o  qual  agradeceu  o 
cumprimento. 


DO   SR.   PICKWÍCK  2l3 


—  Eu  cá  gosto  sempre  de  ouvir  um  bom  argumento,  con- 
tinuou o  bufarinheiro,  um  argumento  de  força  como  esse 
seu.  E'  uma  coisa  que  instrue  muito.  Mas  esse  argumentosi- 
nho  a  respeito  das  mulheres  trouxe  me  á  lembrança  uma  his- 
toria que  eu  ouvi  contar  a  um  velho  tio  meu  ;  e  foi  por  me 
lembrar  d'isso  que  eu  disse  ha  bocadinho  que  se  encontra- 
vam ás  vezes  coisas  mais  exquisitas  do  que  as  mulheres. 

—  Não  desgostava  de  ouvir  essa  historia,  disse  o  homem 
da  cara  vermelha  e  do  charuto. 

—  Deveras?  foi  a  única  replica  do  bufarinheiro,  que  con- 
tinuou a  fumar  com  grande  vehemencia. 

—  E  eu  também,  disse  o  sr.  Tupman,  que  fallava  pela  pri- 
meira vez,  e  que  tinha  sempre  uma  grande  anciã  de  acres- 
centar a  sua  provisão  de  experiência. 

—  Deveras?  Pois  então  vou  contal-a.  E  d'ahi  é  melhor 
não  contar.  Eu  sei  que  os  senhores  não  acreditam,  disse  o 
homem  do  olho  trocista,  dando-lhe  uma  expressão  mais  tro- 
cista do  que  nunca. 

—  Se  o  senhor  diz  que  é  verdade,  eu  acredito,  disse  o  sr. 
Tupman. 

—  Bem  !  Em  vista  disso,  vou  contar  a  historia  I  replicou 
o  viajante.  Os  senhores  já  ouviram  alguma  vez  fallar  na 
grande  casa  commercial  Bilson  e  Slum  ?  Isso  também  pouco 
faz  ao  caso,  quer  ouvissem  quer  não,  porque  elles  ha  que 
lempos  que  largaram  os  negócios.  Foi  ha  oitenta  annos  que 
este  caso  aconteceu  a  um  caixeiro  viajante  d'essa  casa :  era 
elle  amigo  intimo  de  meu  tio,  que  foi  quem  me  contou  a 
historia  a  mim.  Contava- a  elle  pouco  mais  ou  menos  como 
eu  a  vou  contar,  e  dava-lhe  um  nome  patusco :  costumava 
elle  chamar-lhe 


A.  HISTORIA   r>0  RTTjPAKTIXHEIRO 

"N'uma  tarde  de  inverno,  ahi  pelas  cinco  horas,  ao  lusque- 
fusque,  podia  vêr-se  um  homem  n'uma  caleça,  a  apertar  com 
o  cavai  lo  fatigado,  pela  estrada  fora  que  atravessa  a  baixa  de 
Malborough  em  direcção  a  Bristol.  Eu  digo  que  podia  vcr-se, 
e  sem  duvida  o  teria  visto  quem  passasse  por  aquelle  cami- 
nho, a  não  ser  que  fosse  cego ;  mas  o  tempo  estava  tão  mau. 


2  14  AS   AVENTURAS 


e  a  noite  tão  fria  e  chuvosa,  que  não  se  via  cá  por  fóra  senão 
agua  que  Deus  a  dava,  e  por  isso  o  viajante  lá  ia  aos  sola- 
vancos pela  estrada  adiante,  que  estava  solitária  e  medonha 
a  valer. 

"Se  algum  bufarinheiro  d'esses  tempos  podesse  ter  um  vis- 
lumbre d^aqueiia  caranguejola  de  caixa  còr  de  greda  e  de  ro- 
das vermelhas,  e  d"aquella  mula  baia,  manhosa  c  andadeira, 
que  parecia  cruzada  de  um  cavallo  de  magarefe  e  de  uma 
poldra  de  posta  rural,  teria  percebido  immediatamente  que 
esse  viajante  não  podia  ser  senão  Tom  Smart,  da  grande  casa 
de  Bilson  c  Slum,  Cateaton-street,  na  City  '.  Mas  como  não 
havia  bufarinheiro  que  o  visse,  ninguém  sábia  nada  do  caso ; 
e  Tom  Smart  lá  ia  andando  com  o  seu  segredo  muito  bem 
guardado,  mais  a  sua  caleça  còr  de  greda  e  a  sua  mula  ma- 
nhosa e  andadeira. 

«Mesmo  n'este  valle  de  lagrimas,  ha  sitios  á  farta  muito 
mais  bonitos  do  que  a  baixa  de  Marlborough  quando  o  vento 
é  rijo;  ora  agora,  se  lhe  juntarem  uma  noite  de  inverno,  uma 
estrada  lamacenta,  e  umas  valentes  bátegas  de  agua,  e  se  fize- 
rem a  experiência  nas  suas  pessoas,  então  é  que  hão  de  per- 
ceber bem  a  força  da  minha  observação. 

"O  vento  soprava,  não  pela  estrada  acima,  nem  pela  es- 
trada abaixo,  o  que  já  não  c  nada  mau.  mas  mesmo  pelo  tra- 
vez,  atirando  a  chuva  de  esguelha,  á  laia  d'aquellas  linhas 
que  se  costumavam  traçar  nos  cadernos  de  escola,  para  ha- 
bituarem os  rapazes  a  inclinar  a  letra. 

í<Uma  vez  por  outra  estiava,  e  o  viajante  começava  a  ter 
esperança  de  que  o  temporal,  cansado  já  de  tanta  furia,  se 
tinha  afinal  deitado  a  dormir. 

«Isso  sim  I  Zt !  começava  outra  vez  a  ouvil-o  a  roncar  e 
a  assobiar  ao  longe,  e  lá  vinha  elle  a  galgar  as  collinas,  e  a 
varrer  a  pianicie.  crescendo  de  som  e  de  força  á  proporção 
que  se  aproximava,  até  que  se  arrojava  n'uma  rajada  violenta 
de  encontro  ao  homem  e  ao  cavallo,  açoutando-lhe  os  ouvi- 
dos com  as  bátegas  cortantes,  e  infiuindo-lhe  o  sopro  húmido 
e  frio  até  á  medulla  dos  ossos;  e  depois  de  passar  por  el- 
les,  ia  abalando  para  longe,  para  muito  longe,  com  urros  de 


'     CJly.  a  cidiíde  por  o\ce]!e!icia.  é  o  bairro  commcrcial  de  Londre: 


i 


hO   SR.    IMCKWICK  2  l5 


ensurdecer,  como  se  estivesse  a  troçar  da  sua  fraqueza  e  a 
triumphar  pela  consciência  do  seu  poder. 

<<A  mula  baia  ia  a  chafurdar  por  ali  fora,  por  cima  do  la- 
maçal, de  orelhas  cahidas,  sacudindo  de  vez  em  quando  a  ca- 
beça como  a  expressar  o  seu  descontentamento  por  este  pro- 
ceder muito  pouco  delicado  dos  elementos. 

«PLntretanto,  seguia  a  passo  regular,  até  que  uma  rabanada 
de  vento,  mais  furiosa  do  que  todas  as  que  lhes  tinham  ca- 
bido em  cima,  a  íez  parar  de  repente,  e  firmar  as  patas  com 
força  no  chão  para  não  se  ir  abaixo. 

"Foi  por  Deus  que  assim  fez,  porque,  se  tivesse  cabido,  era 
tão  leve  a  mula,  tão  leve  a  caleça,  e  Tom  Smart  para  mais 
ajuda  tão  leve  também,  que  elles  infallivelmente  teriam  ido 
todos  a  rebolar  por  ali  fora  até  aos  confins  da  terra  ou  até  o 
vento  abrandar. 

«Em  qualquer  dos  casos,  o  mais  provável  é  que  nem  a 
mula  manhosa,  nem  a  caleça  còr  de  greda,  nem  Tom  Smart, 
ficassem  outra  vez  em  estado  de  servirem. 

« —  Pelas  minhas  presilhas  e  pelas  minhas  suissas  !  excla- 
mou Tom  Smart  que  linha  ás  vezes  a  manha  ruim  de  pra- 
guejar. Assoprado  seja  eu  se  isto  não  é  divertido. 

«Talvez  que  os  senhores  me  perguntem  porque  é  que 
Tom  Smart,  depois  de  já  ter  sido  tão  assoprado,  ainda  fi- 
cava com  desejo  de  ser  submettido  ao  mesmo  processo.  Isso 
é  que  eu  não  sei  dizer  —  o  que  sei  é  que  Tom  Smart  disse 
isto  —  ou  pelo  menos  contou  a  meu  tio  que  o  tinha  dito,  o 
que  vem  a  dar  na  mesma. 

.  « — Assoprado  seja  eu  I   disse  Tom  Smart:  e  a  mula  rin- 
chou como  se  fosse  precisamente  da  mesma  opinião, 

«  —  Cobra  animo,  velhota  !  proseguiu  Tom  Smart,  acari- 
ciando o  pescoço  da  mula  baia  com  o  extremo  do  chicote. 
Não  ha  meio  de  romper  avante,  com  uma  noite  d'estas.  Na 
primeira  casa  que  encontrarmos,  faremos  alto;  por  isso, 
quanto  mais  depressa  andares,  mais  depressa  descanças.  Eh! 
velhota!  meche-te  I  mecbe-te  ! 

«Lá  se  a  mula  manhosa  estava  tão  habituada  á  voz  do 
dono  que  percebia  o  que  elle  queria  dizer,  ou  se  achou  que 
sentia  mais  frio  parada  do  que  a  andar,  isso  lá  é  que  eu  não 
posso  dizer. 

«O  que  é  fora  de  duvida  é  que  apenas  Tom  se  calou,  ella 


2l6  AS   AVENTURAS 


espivitou  as  orelhas  e  seguiu  avante  n'um  passo  tal  que  a  ca- 
leça  cór  de  greda  chocalhava  toda,  a  ponto  de  parecer  que 
os'  raios  vermelhos  das  rodas  estavam  a  pique  de  ir  a  voar 
pela  planicie  fora. 

«O  próprio  Tom,  apesar  de  ter  boa  mão  de  rédea,  não  foi 
capaz  de  lhe  minguar  a  andadura,  até  que  a  mula  parou,  de 
seu  motu  próprio,  defronte  de  uma  estalagem  á  direita  da 
estrada,  a  cerca  de  meio  quarto  de  milha  do  extremo  da 
baixa. 

«Tom  relanceou  um  olhar  rápido  á  parte  superior  do  edi- 
fício, entregando  as  rédeas  ao  moço  e  espetando  o  chicote 
na  caleça. 

«Era  um  casarão  velho  e  extraordinário,  construído  com 
uma  espécie  de  embreixado  embutido  entre  ripas  cruzadas, 
com  janellas  que  se  debréçavam  todas  sobre  a  estrada,  e  uma 
porta  baixa  com  um  alpendre  escuro  e  uns  dois  degraus  Ín- 
gremes por  onde  se  descia  para  dentro  da  casa,  em  vez  da 
nova  moda  de  meia  dúzia  de  degraus  baixos  por  onde  se  sobe 
para  ella. 

«Tinha  em  todo  o  caso  um  ar  confortável,  por  isso  que 
pela  janella  da  sala  da  venda  sabia  uma  luz  forte  e  alegre  que 
se  espalhava  pela  estrada  e  chegava  até  a  illuminer  a  sebe 
fronteira ;  e  na  janella  opposta  havia  uma  luz  vermelha  e  tre- 
mula, ora  tão  fraca  que  mal  se  via,  ora  muito  forte,  a  bri- 
lhar atravez  das  cortinas  cerradas,  o  que  indicava  que  lá  den- 
tro ardia  um  fogo  valente. 

«Notando  estes  pormenores  com  o  olhar  de  um  viajante 
pratico.  Tom  apeiou-se  com  a  agilidade  que  lhe  pormittiam 
os  membros  meio  enregelados,  e  entrou  na  estalagem. 

'Em  menos  de  cinco  minutos,  estava  Tom  Smart  agaza- 
Ihado  na  sala  fronteira  ao  balcão  —  exactamente  onde  elle 
calculara  que  havia  lume  —  diante  de  um  fogo  a  valer,  sub- 
stancial e  roncador,  composto  de  guasi  uma  ranga  de  carvão 
e  lenha  bastante  para  formar  meia  dúzia  de  montes  decen- 
tes, tudo  empilhado  até  meia  altura  do  fogão,  e  roncando  e 
estalando  com  uma  bulha  capaz  de  aquecer,  só  por  si,  o  co- 
ração de  qualquer  homem  razoável. 

«Já  isto  era  confortável,  mas  ainda  não  era  tuao  ;  porque 
uma  moçoila  muito  asseiada,  de  olhos  brilhantes  e  modos 
desembaraçados,  estava  a  estender  uma  toalha  muito  branqui- 


DO  SR.   PICKWICK  217 


nha  em  cima  da  meza ;  e  Tom  que  estava  sentado  com  os 
pés  no  guarda-fogo  e  com  as  costas  para  a  porta  aberta,  via 
no  espelho  do  fogão  o  reflexo  encantador  da  casa  de  venda, 
com  as  suas  appetilosas  fileiras  de  garrafas  verdes  e  rótulos 
dourados,  junto  com  os  frascos  de  escabeches  e  de  conser 
vas,  e  queijos,  e  presuntos  cozidos,  e  lombos  de  vacca,  tudo 
formado  em  prateleiras  pela  maneira  mais  tentadora  e  delei- 
tosa. 

«Isto,  sim  !  isto  era  confortável  deveras ;  mas  ainda  aqui 
não  ficava  —  porque  na  casa  de  venda,  a  tomar  chá  n'uma 
mezinha  que  era  de  appetite,  diante  de  um  lumesinho  que 
era  um  primor,  sentava-se  uma  viuva  rechonchuda  dos  seus 
quarenta  e  oito  annos  ou  cousa  assim,  com  uma  cara  tão  con- 
fortável como  a  casa,  a  qual  era  evidentemente  a  estalaja- 
deira e  a  dominadora  suprema  d'estas  agradáveis  posses- 
sões. 

«Havia  apenas  uma  sombra  na  belleza  de  todo  o  quadro: 
era  um  homem  alto,  mesmo  muito  alto,  de  casaco  côr  de 
castanha  e  botões  de  latão,  suissas  pretas  e  cabello  ondeado, 
que  estava  sentado  a  tomar  chá  com  a  viuva,  e  que  sem 
grande  esperteza  se  adivinhava  estar  a  bom  caminho  de  a 
persuadir  a  não  continuar  na  viuvez  e  a  conceder-lhe  o  pri- 
vilegio de  ficar  ali  sentado  ao  balcão  durante  o  resto  da 
vida. 

«fTom  Smart  não  tinha  por  forma  alguma  um  caracter  ir- 
ritável ou  invejoso,  mas,  seja  como  fôr,  o  caso  é  que  o  ho- 
mem do  casaco  acastanhado  excitou-lhe  a  pequena  dose  de 
bilis  que  entrava  na  sua  constituição  e  revoltou-o  a  valer, 
sobretudo  por  observar  de  quando  em  quando  certas  peque- 
nas familiaridades  aftectuosas  entre  o  tal  homem  e  a  viuva, 
sufficientes  para  indicar  que  o  homem  era  tão  alto  no  corpo 
como  nas  boas  graças  d'ella. 

«Tom  gostava  de  ponche  quente  —  abalanço-me  até  a  di- 
zer que  morria  pelo  ponche  quente  —  e  depois  de  ter  visto 
a  mula  manhosa  de  barriga  cheia  e  com  boa  cama  e  de  ter 
saboreado  todos  os  bons  bocados  do  jantarzinho  quente  que 
a  viuva  lhe  preparara  com  as  suas  próprias  mãos,  pediu  um 
copo  d'elle,  só  para  provar. 

«Ora  se  havia  cousa  em  todas  as  especialidades  culinárias 
eip   Gue  a  viuva  fosse  primorosa,  era  exactamente  o  ponche. 


•2  1c:>  AS   AVENTURAS 


"O  primeiro  copo  tão  bellamente  se  adaptou  ao  paladar 
de  Tom  Smart,  que  elle  pediu  immediatemenie  segando. 

"O  ponche  quente  e  uma  bebida  aj^radavel,  meus  senho- 
res —  uma  bebida  extremamente  agradável  em  todas  as  cir- 
cumstancias  —  mas  n'aquella  sala  agasalhada,  diante  do  fogo 
a  roncar,  com  o  vento  a  rugir  lá  por  fora  a  ponto  de  fazer 
ranger  todo  o  vigamenlo  do  velho  casarão,  Tom  Smart 
achou  o  positivamente  uma  delicia. 

"Mandou  vir  outro  copo,  e  em  seguida  outro  —  não  es- 
tou bem  certo  se  ainda  depois  doeste  mandou  vir  mais  algum 
—  mas  quanto  mais  ponche  quente  bebia,  mais  pensava  no 
homem  alto. 

«  —  Raios  partam  o  desavergonhado  I  disse  Tom  Smart 
com  os  seus  botões,  que  diabo  tem  elle  que  cheirar  aqui 
n'esta  casa  tão  agasalhada  :  Um  maroto  feio  como  um  bode  I 
Se  a  viuva  tivesse  um  pedacito  de  bom  gosto,  semp/e  podia 
pescar  um  sujeito  mais  geitoso  ! 

«N'isto,  os  olhes  de  Tom  vaguearam  do  espelho  do  fogão 
para  o  copo  que  tinha  diante  de  si,  e,  seniindo-se  cada  vez 
mais  sentimental,  despejou-o  de  um  trago,  e  mandou-o  sub- 
stituir por  outro  cheio. 

«Tom  Smart,  meus  senhores,  tinha  tido  sempre  a  tineta 
de  servir  o  publico. 

«■Durante  muito  tempo  ambicionara  estar  ao  balcão,  em 
casa  sua  própria,  de  casaco  verde,  calções  de  veludo  e  botas 
de  canhão. 

«Parecia-lhe  cousa  de  maior  o  presidir  a  um  banquete,  e 
imaginava  que  n'essa  posição  faria  uma  bella  figura,  n'unia 
casa  sua,  dando  o  tom  á  conversação,  e  que  daria  um  magni- 
fico exemplo  aos  freguezes  no  que  tocava  á  bebida. 

«Tudo  isro  passava  rapidamente  pelo  espirito  de  Tom 
Smart  emquanto  ia  beberricando  o  seu  ponche  e  sentia  os 
estalidos  do  lumaréo ;  sentia-se  justamente  indignado  contra 
o  homem  alto,  ao  vêl-o  a  bom  caminho  de  governar  uma 
casa  excellente  como  aquella,  ao  passo  que  elle  Tom  Smart, 
estava  mais  longe  d'isso  do  que  nunca, 

«Por  isso,  depois  de  ter  deliberado  sobre  os  dois  últimos 
copos  se  acaso  lhe  cabia  pleno  direito  de  armar  desordem 
com  o  homem  alto  por  ter  conseguido  cahir  nas  boas  graças 
da  rechonchuda  viuva,  Tom  Sma^t  chegou  por  fim  á  satiefa- 


DO    SR.    PU.KWICK  IK) 


toria  conclusão  tle  que  elle  era  um  pobre  diabo  mal  apreciado 
e  perseguido,  e  que  o  melhor  era  meiter-se  na  cama. 

«Pela  escada  acima,  escada  espaçosa  c  antiga,  a  lesta  mo- 
çoila foi  precedendo  Tom,  abrigando  a  palmatória  com  a 
mão,  atim  de  a  defender  das  correntes  de  ar  que  n'um  casa- 
rão irregular  como  aquelle  encontrariam  campo  á  farta  para 
se  expandirem  sem  apagar  a  vela. 

"Mas  apagaram-na,  apesar  d'isso,  dando  assim  aos  inimi- 
gos de  Tom  o  ensejo  de  affiançar  que  fora  elle,  e  não  o  vento, 
quem  apagara  a  vela,  e  que  emquanto  elle  pretendia  asso- 
pral-a  para  a  accender  outra  vez,  o  que  elle  estava  era  a  dar 
beijos  á  rapariga. 

«Fosse  como  fosse,  veiu  outra  luz,  e  Tom  foi  conduzido 
por  uma  enfiada  de  casas  e  um  labyrintho  de  corredores  ao 
quarto  que  lhe  estava  preparado,  onde  a  cachopa  lhe  deu  as 
boas  noites  e  o  deixou  sósinho. 

«Estava  n'um  bello  e  espaçoso  quarto,  com  grandes  alco- 
vas, e  um  leito  que  poderia  servir  para  um  collegio  inteiro, 
para  não  fallar  dos  dois  armários  de  carvalho,  capazes  de 
guardar  as  bagagens  de  um  pequeno  exercito. 

«Mas  o  que  impressionou  sobretudo  a  imaginação  de  Tom 
foi  uma  poltrona  extraordinária,  ue  costas  altas,  de  ar  carran- 
cudo, com  entalhes  sobremaneira  phantasticos,  com  uma  al- 
mofada de  damasco  de  ramagens,  e  com  os  pés  arredonda- 
dos cuidadosamente  envoltos  em  panninho  vermelho,  como 
se  padecessem  de  gota. 

•<De  qualquer  outra  poltrona  exquisita.  Tom  pensaria  ape- 
nas que  era  uma  cadeira  exquisita,  e  mais  nada;  mas  havia 
o  quer  que  fosse  n'aquella  tal  poltrona,  não  poderia  dizer  o 
que,  tão  estranho  e  tão  dissimilhante  de  todos  os  moveis  que 
tinha  visto  até  então,  que  o  demónio  da  poltrona  parecia  fas- 
cinai o. 

«Sentou  se  diante  do  fogão  c  ficou  meia  hora  pasmado 
para  ella. 

"Raio  da  poltrona  1  era  uma  velharia  tão  exquisita  que  não 
podia  tirar  os  olhos  d'ella. 

« — E'  boa!  disse  Tom  despindo-se  vagarosamente,  sem 
largar  nunca  os  olhos  da  poltrona  que  estava  com  um  ar 
mysterioso  ao  pé  da  cama.  Nunca  na  minha  vida  vi  cousa 
tão  pjndega  !   K'  exquisito,  proscguiu  Tom,  que  tinha  ficado 


220  AS   AVENTURAS 


um   pouco   pensador  com   o  ponche,   é  exquisiio  a  valer  ! 

"Tom  sacudiu  a  cabeç.i  com  um  ar  de  profunda  sabedo- 
ria e  tornou  a  olhar  para  a  cadeira. 

«Mas,  como  isso  não  lhe  servia  de  nada,  metteu-se  na  ca- 
ma, conchegou  a  roupa  e  ado'-meceu. 

«D'ahi  a  cousa  de  meia  hora.  Tom  acordou  sobresaltado 
de  um  pesadelo  confuso  de  homens  altos  e  copos  de  ponche ; 
e  o  primeiro  objecto  que  se  deparou  á  sua  imaginação  extre- 
munhada  foi  a  extraordinária  poltrona.  v 

« — Não  quero  olhar  mais  para  ella,  disse  comsigo  Tom, 
cerrando  com  força  as  pálpebras,  e  tentando  persuadir-se  que 
ia  tornar  a  dormir. 

"Mas  qual  historia  I  não  lhe  dançavam  diante  dos  olhos 
senão  poltronas  exquisitas,  atirando  os  pés  para  o  ar,  pu- 
lando umas  por  cima  das  outras  e  fazendo  toda  a  espécie  de 
peloticas. 

« —  Tanto  me  faz  ver  uma  poltrona  verdadeira,  como  duas 
ou  três  dúzias  d"ellas  fingidas,  disse  Tom,  deitando  a  cabeça 
fora  da  roupa. 

«Là  estava  ella,  perfeitamente  discernivel  á  claridade  do 
fogão,  sempre  com  o  mesmo  aspecto  provocante. 

"Tom  olhou  fito  para  a  poltrona;  e  de  repente  viu  ope- 
rar-se  n'ella  uma  transformação  prodigiosa. 

"Os  entalhes  das  costas  assumiram  gradualmente  as  fei- 
ções e  a  expressão  de  uma  cara,  velha  e  encarquilhada;  a  al- 
mofada de  damasco  tornou-se  n'um  c^llete  antigo  e  flam- 
mante ;  os  pés  transformaram-se  em  pés  de  gente,  calçados 
de  chinelas  vermelhas;  e  a  poltrona  toda  tomou  o  aspecto  de 
um  velho  muito  feio,  do  século  passado,  com  as  mãos  na 
cintura. 

"Tom  sentou-se  na  cama  e  esfregou  os  olhos  para  desfa- 
zer a  illusão. 

"Isso  sim  I 

"A  poltrona  era  deveras  um  velho  feio;  e  o  peior  é  que 
estava  a  piscar  o  olho  a  Tom  Smart. 

«Tom.  era  naturalmente  um  patusco  destemido  e  valente, 
e  para  mais  ajuda  tinha  no  bucho  cinco  copos  de  ponche 
quente. 

«Por  isso,  apesar  de  se  assustar  um  pouco  a  começo,  foi- 
Ihe  chegando  a  mostarda  ao  nariz  quando  viu  o  velho  a  pis- 


DO  SR.  PICKWICK  22 


car-lhe  o  olho  c  a  olhal-o  de  rcvez  com  aquclle  ar  inso- 
lente. 

«Atinai  perdeu  a  paciência ;  e  como  a  cara  encarquilhada 
continuava  cada  vez  mais  depressa  na  mesma  piscadella,  Tom 
disse  em  tom  de  zanga : 

'■ — Que  diabo  está  vossê  a  fazer- me  caretas  ? 

« — Porque  tenho  muito  gosto  n'isso,  Tom  Smart,  disse  a 
poltrona,  ou  o  velho,  como  os  senhores  queiram. 

«Mas  parou  com  o  piscar  de  olhos,  quando  Tom  fallou, 
e  começou  a  arreganhar  a  dentuça  como  um  macaco  de- 
crépito.' 

« —  Gomo  c  que  vossê  sabe  o  meu  nome,  sua  cara  velha 
de  quebra-nozes  ?  perguntou  Tom  Smart  um  pouco  atrapa- 
lhado, apesar  do  seu  desejo  de  não  perder  as  estribeiras. 

« — Então,  Tom  !  isso  não  são  maneiras  de  fallar  a  bom 
mogno  massiço.  Co'a  breca !  com  tão  pouco  respeito  nem  a 
casquinha  se  trata ! 

«Quando  o  velho  disse  isto,  teve  uma  expressão  tão  feroz 
que  Tom  começou  a  sentir  se  aterrado. 

« — Eu  cá  não  tinha  na  ideia  faltar-lhe  ao  respeito,  se- 
nhor, disse  elle  n'um  tom  muito  mais  humilde. 

« —  Bem,  bem.  Quero  crer  que  não  —  quero  crer  que  não. 
Tom. . . 

« —  Senhor. . . 

" — Sei  a  tua  historia  toda,  Tom;  de  fio  a  pavio.  Tu  és 
muito  pobre.  Tom. 

«—Está  bem  de  ver  que  sou.  Mas  como  é  que  o  senhor 
veiu  a  saber  isso  ? 

« —  Que  te  importa  ?  Tu  morres  por  ponche.  Tom. 

«Tom  Smart  esteve  vae  não  vae  para  protestar  que  desde 
o  dia  dos  seus  annos  que  não  bebera  pinga  de  ponche ;  mas 
quando  o  seu  olhar  encontrou  o  do  velho,  este  tinha  um  ar 
tão  espertalhão  que  Tom  corou  e  embatucou. 

« — Tom,  disse  o  velho,  a  viuva  é  uma  boa  mulher  —  uma 
mulher  de  estalo  — hein.  Tom  ? 

«N'isto  o  velho  envesgou  os  olhos,  levantou  uma  das  per- 
ninhas magrizelas,  e  tomou  um  ar  tão  maganamente  amo- 
roso, que  Tom  teve  nojo  d'aquelle  proceder  abrejeirado ;  de- 
mais a  mais,  n'aquella  idade  1 

« —  Eu  sou  tutor  d'ella,  Tom. 


2*2  AS    iWENTURAS 


((  —  Ah  !  sim  ?  perguntou  Tom  Smart. 

"—Conheci  a  mãe  d'ella,  Tom,  e  mais  a  avó.  Era  doida 
por  mim  —  por  signal  que  me  fez  este  coileie,  Tom. 

" —  Deveras  ? 

•' —  E  mais  estes  sapatos,  disse  o  velho  levantando  para  o 
ar  uma  das  palhetas  vermelhas,  mas  não  digas  nada.  Tom. 
Eu  não  gostava  que  se  soubesse  conio  ella  morria  por  mim. 
Podia  causar  algum  desgosto  na  familia. 

"Quando  o  ladrão  disse  isto,  linha  um  ar  tão  impertinen- 
te, que  Tom,  conforme  depois  declarou,  teve  ganas  de  se  as- 
sentar em  cima  d'elle. 

« — Eu  cá,  no  meu  tempo,  fui  o  menino  bonito  das  mu- 
lheres, Tom,  disse  o  velho  devasso.  Foram  aos  centos  as  lin- 
das mulheres  que  se  me  sentaram  no  regaço,  horas  a  fio.  Que 
dizes  tu  a  isto,  maganão,  hein  ? 

«O  velho  ia  continuar  a  contar  algumas  outras  proezas 
dos  seus  tempos  de  rapaz,  quando  o  atacou  tamanho  accesso 
de  tosse  que  se  viu  obrigado  a  calar. 

"—Muito  bem  feito,  meu  ginja,  pensou  de  si  para  com- 
sigo  Tom  Smart ;  mas  não  disse  palavra. 

«—Ah!  proseguiu  o  \elho,  isto  agora  é  que  me  apo- 
quenta muito.  Vou-me  fazendo  velho,  Tom,  estou  qiiasi  a  ca- 
hir  da  tripeça.  Demais  a  mais.  fizeram-me  uma  operação. 
Tom,  metteram-me  não  sei  o  quê  pelas  costas  dentro  —isso 
é  que  foi  levado  do  diabo.  Tom. 

« —  Devia  ser,  devia. 

«' — Mas  não  se  trata  disso,  Tom.  eu  quero  que  tu  cases 
com  a  viuva. 

« —  Eu,  senhor? 

" — Tu,  sim. 

'< — Bemdiías  sejam  as  .Nuas  veneráveis  guedelhas  I  disse 
Tom,  porque  a  poltrona  ainda  tinha  umas  poucas  de  crinas 
aqui  e  ali.  Ella  quer  lá  nada  comigo  I 

"E  Tom  suspirou  involuntariamente,  ao  pensar  na  venda. 

" —  Qual  não  quer  r  disse  o  velho  com  segurança. 

" —  N<ão  quer,  não !  D'oLJra  banda  é  que  sopra  o  vento.  Um 
malandrão  alto  —  alto  como  uma  torre  —  de  suissas  pretas. 

«  —  Tom  com  esse  não  casará  nunca  a  viuva  I 

"—Deveras?  Oral  se  o  senhor  estivesse  lá  na  venda,  já  o 
senhor  não  fallava  assim. 


DO   ^R.   PICKWICK  223 


"—Ora,  adeus!   estou  farto  de  saber  essa  historia  toda. 

« —  Qual  historia  ? 

' —  As  beijocas  atraz  da  porta,  e  todas  as  cousas  do  mesmo 
jaez,  Tom,  disse  o  velho,  com  outro  olhar  abrejeirado  que 
fez  ferver  o  sangue  de  Tom  ;  porque,  como  os  senhores  sabem 
todos,  isto  de  oiívir  um  velho,  que  devia  ter  juizo,  a  fallar  de 
cousas  assim,  não  ha  cousa  mais  desagradável. 

« —  Essa  historia  toda  sei  eu.  Tom.  Fartei-m**  de  ver  cou- 
sas d'essas  no  meu  tempo,  Tom,  e  entre  que  gente !  ora ! 
mais  do  que  eu  gostaria  de  mencionar!  mas  afinal  tudo  isso 
deu  em  nada. 

«  -  O  senhor  havia  de  ter  visto  muita  cousa  patusca,  disse 
Tom  com  um  olhar  inierrogador. 

« — Ora,  se  vi.  Tom  I  replicou  o  velho  com  uma  careta 
muito  complicada.  Sou  o  ultimo  da  minha  familia,  Tom, 
acrescentou  elle  com  um  suspiro  melancólico. 

« —  Era  grande  a  sua  familia  ? 

« —  Éramos  doze ;  uns  rapagões  direitos  como  um  fuso, 
guapos  que  era  um  gosto  ver-nos.  Não  era  lá  nenhum  d'esses 
taes  abortos  modernos!  e  então  com  um  polimento  —  sei 
que  não  me  cabia  a  mim  dizel-o  —  com  um  polimento,  que 
era  mesmo  de  consolar  a  alma. 

« —  E  o  que  foi  feito  dos  outros? 

«O  velho  levou  o  cotovello  ao  olho  e  respondeu  : 

« —  Foram-se,  Tom,  foram-se  todos.  Tivemos  um  serviço 
duro.  Tom,  e  nem  todos  elles  tinham  a  mmha  constituição. 
Apanharam  rheumatico  nas  pernas  e  nos  braços,  e  foram  pa- 
rar ás  cosinhas  e  a  outros  hospitaes ;  e  um  d'elles  carregado 
de  serviços  e  de  maus  tratos,  esse  íicou  tão  desengonçado  e 
ião  decrépito  que  se  viram  obrigados  a  atirar  com  elle  ao 
iume.  Triste  cousa.  Tom  ! 

« —  De  arripiar  !   disse  Tom  Smart, 

"O  velho  calou-se  durante  poucos  minutos,  lutando  appa- 
rentemente  contra  a  própria  commoção,  e  depois  continuou  : 

•'  Mas  Tornando  á  vacca  fria,  Tom.  Esse  homem  alto  é 
um  patife  d"um  aventureiro.  Apenas  casasse  com  a  viuva, 
vendia  logo  a  mobília,  e  punha-se  a  andar.  As  consequências 
quaes  seriam  ?  Ella  ficava  desamparada  e  arruinada,  e  eu  ia 
apanhar  uma  constipeira  mortal  e  esticar  para  a  loja  de  qual 
quer  ferro  ^■elho. 


124  AS   AVENTtJPAS 


«' —  Sim,  mas. . 

" — Não  me  interrompas,  homem.  De  ti.  Tom,  tenho  eu 
uma  opinião  bem  differenie ;  sei  perfeitamente  que  se  tu  uma 
vez  te  estabelecesses  n'uma  venda,  nunca  a  largarias,  em 
quanto  houvesse  lá  dentro  uma  pinga  para  beber. 

« — Muito  obrigado  pela  sua  boa  opinião,  senhor. 

« —  Por  isso,  concluiu  o  velho,  n*um  tom  dictatorial,  tu  é 
que  has  de  casar  com  ella,  e  elle  não. 

« — Que  empecilho  se  lhe  ha  de  pôr?  perguntou  Tom 
Smart  anciosamente, 

« — Este  apenas  :  elle  é  já  casado. 

'< —  Como  hei  de  eu  provar  isso  ?  exclamou  Tom  com  um 
pulo  que  o  deitou  a  meio  fora  da  cama. 

«O  velho  soltou  o  braço  da  cintura,  e,  tendo  apontado 
para  um  dos  armários  de  carvalho,  tornou  immediatamente 
a  pôl-o  no  mesmo  sitio. 

« — Mal  imagina  elle  que  na  algibeira  direita  de  umas  cal- 
ças que  estão  ali  n'aquelle  armário,  elle  deixou  uma  carta, 
s'upplicando-lhe  que  voltasse  para  junto  da  desventurada  mu- 
lher, com  seis  —  note  bem.  Tom  I  — seis  filhos,  e  todos  elles 
pequerruchos. 

«Ao  pronunciar  solemnemente  estas  palavras,  as  feições 
do  velho  foram-se  cada  vez  tornando  menos  distinctas,  e  a 
sua  figura  mais  nebulosa. 

«Cahiu  um  veu  sobre  os  olhos  de  Tom  Smart. 

«O  velho  foi-se  gradualmente  confundindo  com  a  poltrona, 
o  coliete  de  damasco  a  resolver-se  n'uma  almofada,  as  chi- 
nellas  vermelhas  a  encolherem-se  até  ficarem  saquinhos  de 
panninho. 

«A  luz  apagou-se  pouco  a  pouco,  e  Tom  Smart  cahiu 
para  cima  do  travesseiro,  e  ferrou  logo  no  somno. 

"A  manhã  despertou  Tom  do  torpor  lethargico  em  que 
cahira  depois  de  desapparecer  o  velho. 

"Sentou-se  na  cama,  e  durante  alguns  minutos  tentou  de- 
balde recordar-se  dos  successos  da  noite  precedente. 

<'De  súbito  occorreram-lhe  ao  espirito. 

«Olhou  para  a  poltrona;  era  com  efíeito  um  movei  phan- 
tastico  e  severo,  mas  só  uma  imaginação  extraordinariamente 
esquentada  e  engenhosa  poderia  ter  descoberto  qualquer  si- 
milhanca  entre  elle  e  um  velho. 


DO  SR.   PICKWICK  2  2D 


« — Como  vae  isso,  meu  velhote?  disse  Tom. 

"Era  mais  destemido  com  a  luz  do  dia  —  quasi  todos  os 
homens  assim  são. 

"A  poltrona  hcou-se  immovel,  e  não  abriu  bico. 

"—Está  uma  manhã  feiissima !  disse  Tom. 

«Moita.  A  poltrona  não  estava  para  conversas. 

<< —  Para  qual  dos  armários  apontou  vossê  ^  Diga  lá  I  disse 
Tom. 

«Na  mesma.  A  cadeira  não  tugiu  nem  mugiu. 

« — Já  agora  não  é  cousa  que  me  custe  muito,  ir  abril-o  ! 
disse  Tom,  saltando  resolutamente  para  fora  de  cama. 

«Dirigiu-se  para  um  dos  armários. 

"A  chave  estava  na  fechadura;  deu  volta  a  ella  e  abriu  a 
porta. 

"Lá  estava  um  par  de  calças. 

«Metteu  a  mão  na  algibeira  e  tirou  uma  carta,  tal  e  qual 
como  o  velho  a  descrevera. 

" —  E'  boa,  esta  !  disse  Tom  Smart  olhando  primeiro  para 
a  poltrona  e  em  seguida  para  o  armário,  e  depois  para  a  car- 
ta, e  afinal  outra  vez  para  a  poltrona.  E'  mesmo  muito  ex- 
traordinário ! 

«Mas  como  em  nenhum  dos  objectos  para  que  elle  olhava 
havia  nada  que  lhe  explicasse  o  extraordinário  do  caso,  Tom 
pensou  que  o  melhor  que  tinha  a  fazer  era  vestir-se,  e  acabar 
de  vez  com  o  homem  alto  —  mesmo  para  se  livrar  d"aquelle 
pezadelo. 

«Tom  foi  examinando  as  casas  por  onde  ia  passando,  ao 
encaminhar-se  para  baixo,  com  o  olhar  investigador  do  dono; 
pensando  que  não  era  impossivel  que  dentro  em  pouco  todas 
ellas,  com  o  seu  recheio,  fossem  d"elle. 

«O  homem  alto  lá  estava  em  pé  na  casa  de  venda,  de 
mãos  atraz  das  costas,  como  se  já  fosse  de  casa.  Sorriu-se 
distrahidamente  para  Tom. 

«Quem  por  acaso  o  visse  era  capaz  de  suppôr  que  isto 
era  só  para  mostrar  a  dentuça  branca;  mas  Tom  pensou  que 
estava  passando  uma  ideia  de  triumpho  pelo  sitio  onde  de- 
viam ficar  os  miolos  do  homem  alto,  se  é  que  elle  os  ti- 
nha. 

"Tom  deu-lhe  uma  gargalhada  na  cara,  e  chamou  a  esta- 
lajadeira. 

i5 


226  AS  AVENTURAS 


" —  Bons  dias,  patroa,  disse  Tom  Smart,  fechando  a  porta 
da  saleta  logo  que  a  viuva  entrou. 

«  —  Muito  bons  dias,  disse  esta.  Que  quer  o  senhor  para  o 
almoço  ? 

"Tom  estava  a  pensar  como  havia  de  entrar  em  maté- 
ria, por  isso  não  deu  resposta. 

« — Tenho  ahi  um  presunto  magnifico,  continuou  a  viuva, 
e  uma  ave  lardeada,  fria,  que  é  uma  delicia.  Quer  que  lhe 
mande  buscar  tudo  isso  ? 

"Estas  palavras  arrancaram  Tom  ás  suas  cogitações.  A 
sua  admiração  pela  viuva  crescia  á  proporção  que  ella  fal- 
lava.  Que  creatura  tão  previdente!  tão  cuidadosa!  tão  amiga 
do  conforto  ! 

« —  Quem  é  aquelle  sujeito  que  está  na  casa  da  venda? 

« —  Chama-se  Jinkins,  disse  elle  corando  ao  de  leve. 

« — E'  muitc  alto. 

« — iMuito  boa  pessoa,  e  muito  bem  educado. 

" — Ah  !  sim  ? 

« — O  senhor  precisa  de  mais  alguma  cousa?  perguntou  a 
viuva,  um  pouco  embaraçada  com  os  modos  de  Tom. 

" —  Preciso,  preciso,  exclamou  Tom.  Minha  querida  senho- 
ra, quer  ter  a  bondade  de  se  sentar  um  instantinho? 

«A  viuva  pareceu  ficar  muito  espantada,  mas  sentou-se,  e 
Tom  também,  mesmo  ao  pé  d'ella. 

«Não  sei  como  aquillo  foi,  meus  senhores  —  até  o  meu  tio 
contava  que  nem  o  próprio  Tom  dera  por  isso  —  mas  o  caso 
c  que  a  palma  da  mão  de  Tom  cahiu  nas  costas  da  mão  da 
viuva,  e  lá  ficou  emquanto  elle  deu  o  seu  recado. 

«  —  Minha  querida  senhora,  disse  Tom  Smart  —  elle  sem- 
pre tinha  tido  a  tineta  de  se  fazer  amável  —  minha  querida 
senhora,  a  senhora  merece  um  marido  excellente,  merece, 
por  certo. 

« — Ora  essa,  senhor!  exclamou  a  viuva,  como  era  natu- 
ra! ;  visto  que  o  modo  de  Tom  encetar  a  conversação  era  um 
tanto  ou  quanto  extraordinário,  para  não  dizer  espantoso, 
lo  ,0  que  se  tome  em  attenção  o  facto  de  elle  nunca  ter  le- 
vantado na  véspera  os  olhos  para  ella.  Ora  essa! 

" — Eu  cá  não  sou  homem  de  lisonjas,  minha  querida  se- 
nhora, disse  Tom  Smart.  A  senhora  merece  um  marido  de 
primeira  ordem,  e  seja  quem  fôr,  feliz  homem  ! 


no  SR.   PICKWICK 


«E  os  olhos  de  Tom  involuntariamente  relancearam  da 
cara  da  viuva  para  o  conforto  que  o  cercava. 

"A  viuva  estava  mais  atrapalhada  do  que  nunca.  Fez  um 
movimento  para  se  levantar.  Tom  apertou-lhe  brandamente  a 
mão,  como  para  a  deter,  e  ella  deixou-se  ficar  sentada. 

«As  viuvas,  meus  senhores,  em  geral  não  são  muito  timi- 
das,  costumava  dizer  o  meu  tio. 

«— Estou-lhe  deveras  agradecidíssima  pela  boa  opinião 
em  que  me  tem,  disse  ella,  meio  a  rir;  e  se  eu  tornar  alguma 
vez  a  casar. . . 

« —  Se  ?  disse  Tom  Smart  olhando  com  muita  malícia  com 
o  canto  direito  do  olho  esquerdo.  Se  ?.  . . 

" — Bem  !  disse  a  viuva,  rindo  d'esta  feita  a  valer.  Quando 
cu  casar,  espero  ler  um  marido  tão  bom  como  o  senhor  me 
deseja. 

«  —  .linkins,  já  se  vê. 

« —  Ora  essa,  senhor  1 

<< —  Escusa  de  dizer  nada  !  Eu  bem  o  conheço. 

« — Estou  certa  que  ninguém  que  o  conheça  sabe  nada 
mau  a  seu  respeito,  disse  a  viuva  repontando  com  os  ares 
mysteriosos  de  Tom. 

tt — Hum  !  fez  Tom  Smart. 

<<  A  viuva  principiou  a  crer  que  era  a  occasião  própria  para 
desatar  a  chorar. 

"Tirou  pois  o  lenço  da  algibeira,  e  perguntou  a  Tom  se 
desejava  insultal-a,  s-^  julgava  próprio  de  um  cavalheiro  o 
dizer  mal  de  outro  cavalheiro,  nas  costas  d'este ;  porque 
rasão,  se  alguma  cousa  tinha  a  dizer,  não  o  dizia  antes  ao 
homem,  como  um  homem,  em  logar  de  vir  d'esta  maneira 
pregar  sustos  a  uma  pobre  mulher  fraca  ;  e  assim  por  diante. 

"—  Não  tarda  que  eu  lh'o  diga  a  elle,  replicou  Tom,  mas 
desejo  primeiro  que  a  senhora  ouça. 

« — O  que?  perguntou  a  viuva,  encarando  curiosamente 
Tom 

« — Vae  ficar  espantada,  disse  Tom,  metíendo  a  mão  na 
algibeira. 

« — Se  é  lá  o  elle  precisar  de  dinheiro,  isso  já  eu  sei,  es- 
cusa de  se  dar  a  esse  incommodo. 

" —  Ora,  adeus  !  que  disparate  !  isso  não  vale  de  nada  ! 
Dinheiro  também  eu  preciso.  Não  é  nada  d'isso. 


228  AS   AVENTURAS 


« — Valha-me  Deus!  então  o  que  é?  exclamou  a  pobre 
viuva. 

„ —  >i5o  se  assuste,  disse  Tom  Smart,  sacando  lentamente 
a  carta  e  desdobrando  a.  Veja  lá,  promette  não  chiar? 

« — Não  chio,  não,  deixe  cá  ver. 

u —  Nem  faniquitos,  nem  faz  outras  tolices  que  taes  ? 

« — Não,  não,  retorquiu  ella  vivamente. 

« — E  não  desata  a  correr  por  ahi  fora  para  lhe  saltar  em 
cima  ?  Para  isso  cá  estou  eu  ;  não  precisa  a  senhora  incom- 
modar-se. 

« — Bem,  bem!  dt-ixe  cá  ver. 

„ — Ahi  tem  !  replicou  Tom  Smart,  collocando  a  carta  nas 
mãos  da  viuva. 

"Ouvi  contar  a  meu  tio  que  Tom  Smart  contava  que  as 
lastimas  da  viuva,  ao  ter  conhecimento  d^aquella  revelação, 
eram  capazes  de  traspassar  um  coração  de  pedra.  Ora  o  co- 
ração de  Tom  era  terno  a  valer;  não  admira  que  ficasse  trás 
passado  até  ao  intimo. 

«A  viuva  agitava-se  de  um  lado  para  o  outro,  torcendo  as 
mãos. 

„ —  Oh  !  que  traição  I  que  infâmia  de  homem  !  bradava 
ella. 

<( —  E'  de  tremer,  minha  querida  senhora ;  mas  soce- 
gue ! 

„ — Eu  posso  lá  socegar!  guinchou  a  viuva.  Nunca  encon- 
trarei homem  por  quem  eu  tenha  tanta  estima  como  por 
elle! 

u —  Ora  !  se  encontra  !  encontra  com  certeza,  minha  jóia  ! 
disse  Tom  Smart,  deixando  cahir  um  chuveiro  das  mais  u;ros- 
sas  lagrimas  sobre  as  desgraças  da  viuva. 

«Tom  Smart,  na  energia  da  sua  compaixão,  tinha  pas- 
sado o  braço  á  roda  da  cinta  da  viuva;  e  a  viuva  na  força  do 
desgosto,  tinha  agarrado  com  anciã  a  mão  de  Tom. 

"Ella  levantou  os  olhos  para  a  cara  d'elle,  e  sorriu  atra- 
vez  das  lagrimas;  elle  baixou  os  olhos  para  a  cara  d'ella,  e 
sorriu  da  mesma  forma. 

"Nunca  pude  descobrir,  meus  senhores,  se  Tom  n'aquelle 
momento  ferrou  ou  não  ferrou  uma  beijoca  na  viuva, 

"Elle  costumava  dizer  ao  meu  lio  que  não,  mas  eu  cá  te- 
nho as  minhas  duvidas  a  esse  respeito. 


DO  SR.   PICKWICK  229 

"Aqui  para  nós,  que  ninguém  nos  ouve,  tenho  suspeitas 
que  sim. 

"O  que  é  certo  é  que  uma  hora  depois  Tom  deitou  o  ho- 
mem alto  aos  pontapés  pela  porta  fora,  e  passado  um  mez 
casava  com  a  viuva. 

"E  costumava  andar  por  aquelies  contornos  na  cale  ca 
còr  de  greda  com  rodas  vermelhas,  guiando  a  mula  manhosa 
*í  andadeira.  Ate  que  muitos  annos  depois,  largou  o  negocio 
e  foi  para  França  e  mais  a  mulher.  E  então  deitaram  abai.^:o 
o  velho  casarão.') 


—  Dá-me  licença  que  lhe  faça  uma  pergunta?  disse  o  ve- 
lho curioso,  que  foi  feito  da  poltrona  ? 

-—  Ora  !  replicou  o  bufarinheiro  zarolho  ;  sentiram-na  aos 
estalidos  no  dia  das  bodas  ;  mas  Tom  Smart  não  podia  afian- 
çar se  era  de  regosijo  se  de  doença.  Pareceu-lhe  mais  que 
fosse  d'este  ultimo  motivo,  porque  ella  nunca  mais  fallou. 

—  Toda  a  gente  acreditou  na  historia,  hein  ?  perguntou  o 
homem  da  cara  suja,  tornando  a  encher  o  cachimbo. 

—  Excepto  os  inimigos  de  Tom.  Uns  disseram  que  era 
patranha  inventada  toda  por  elle ;  e  outros  que  elle  estava 
torto,  e  que  sonhou  tudo  aquillo,  e  que  por  engano  agarrara 
nas  calças  que  não  eram  d'elle  antes  de  se  metter  na  cama. 
Mas  nunca  ninguém  fez  caso  do  que  elles  diziam. 

—  Tom  Smart  affirmava  que  era  tudo  verdade  ? 

—  Palavra  por  palavra. 

—  E  o  seu  tio  ? 

—  Letra  por  letra. 

—  Haviam  de  ser  uns  pândegos,  tanto  um  como  o  outro, 
disse  o  homem  da  cara  suja. 

—  Pois  eram  !  redarguiu  o  bufarinheiro  ;  dois  pândegos  de 
estalo ! 


23o  AS   AVENTURAS 


CAPITULO  XV 

No  qual  se  dá  um  retrato  fiel  de  duas  pessoas  il- 
lustres;  e  uma  descrlpção  exacta  de  um  grande 
almoço  na  casa  e  nas  terras  d^ellas;  o  qual  al- 
moço leva  ao  encontro  de  um  velho  conheci- 
mento, e  ao  começo  de  novo  capitulo. 

A  consciência  do  sr.  Pickwick  remordia-o  um  pouco  pelo 
recente  abandono  em  que  tivera  os  seus  amigos  do  Pavão; 
e  na  terceira  manha  depois  da  eleição  ia  elle  justamente  sa- 
hir  para  os  ir  ver,  quando  o  seu  fiel  servo  lhe  depôz  na  mão 
um  bilhete  de  visita,  no  qual  estava  gravada  a  seguinte  in- 
scripçáo  '  : 


O  Antro.  Ea/ausjpill. 


—  A  pessoa  está  á  espera,  disse  Sam  com  modo  epigram- 
matico. 

—  Por  mim  e  que  ella  perguntou,  Sam?  interrogou  o  sr. 
Pickwick. 

—  Foi  pelo  sr.  Pickwick  mesmo  que  elle  perguntou,  e  por 
mais  ninguém,  como  dizia  o  secretario  particular  do  diabo 
quando  veiu  buscar  o  dr.  Fausto. 

—  Elle  ?  Então  é  um  sujeito  ? 

—  Se  não  é,  imita  perfeitamente. 


'  Ha  aqui  um  trocadilho  intraduzivel.  Huuter  signitíca  cavador,  Leo  é 
a  forma  latina  de  leáo.  Caçador  de  Leões  ou  Leão  Caçador  é  o  nome  do 
marido,  adoptado  pela  mulher  segundo  o  uso  inglez  e  francez.  Não  admira 
pois  que  dêem  a  sua  residência  o  titulo  emphatico  de  antro. 


DO   SR.    PICKWICK  20  1 


—  Mas  este  bilhete  é  de  uma  senhora  ? 

—  E  quem  m'o  deu  foi  um  sujeito,  ora  ahi  está !  e  lá  ficou 
á  espera  na  sala  —  e  diz  que  antes  quer  esperar  todo  o  dia 
do  que  deixar  de  o  ver. 

O  sr.  Pickwick,  ao  ouvir  tal  determinação,  desceu  á  sala. 
Kstava  lá  sentado  um  homem  grave,  que  se  levantou  apenas 
o  viu  entrar,  com  ar  de  profundo  respeito. 

—  O  sr.  Pickwick,  creio  eu  ? 

—  Em  pessoa. 

—  Conceda-me  a  honra  de  lhe  apertar  a  mão.  Permitta- 
me  que  lh'a  aperte  cordialmente. 

—  Pois  não  í 

O  desconhecido  apertou  a  mão  que  lhe  estendiam  e  em 
seguida  proseguiu : 

—  A  sua  fama  é-nos  conhecida,  senhor.  Os  echos  da  sua 
discussão  archeologica  chegaram  aos  ouvidos  de  Mrs.  Leo 
Hunter  —  miríVia  mulher,  sr.  Pickwick  ;  eu  sou  o  sr.  Leo  Hun- 
ter. 

O  desconhecido  calou-se,  como  se  estivesse  a  espera  que 
o  sr.  Pickwick  ficasse  succumbido  com  tal  revelação ;  mas 
vendo  que  elle  permanecia  perfeitamente  sereno,  conti- 
nuou : 

—  Minha  mulher  — Mrs.  Leo  Hunter  —  tem  orgulho  em 
contar  entre  os  seus  conhecimentos  todas  as  pessoas  que  se 
teem  tornado  celebres  pelas  suas  obras  e  pelos  seus  talentos. 
Permitta-me  que  colloque  n'um  logar  conspícuo  d'essa  lista 
o  nome  do  sr.  Pickwick  e  dos  seus  consócios  no  club  que 
d'elle  deriva  o  seu  nome. 

—  Terei  o  máximo  prazer  em  travar  conhecimento  com 
uma  senhora  tão  distincta. 

—  Ha  de  travar.  A'manhã  de  manha  damos  nós  um  gran- 
de almoço,  um  festim  campestre  a  um  numero  c'onsideravel 
d'aquelles  que  se  teem  tornado  celebres  pelas  suas  obras  e 
pelos  seus  talentos.  Digne-se  o  sr.  Pickwick  conceder  a  Mrs. 
Leo  Hunter  a  satisfação  de  o  ver  no  Antro, 

—  Com  todo  o  gosto. 

—  Mrs.  Leo  Hunter  dá  muitos  almoços  d'estes.  "Banque- 
tes da  razão  e  da  alma  effluvios,»  como  observou  com  senti- 
mento e  originalidade  alguém  que  escreveu  um  soneto  a  Mrs. 
Leo  Hunter  a  propósito  dos  seus  almoços. 


232  AS   AVENTURAS 


—  Kra  pessoa  celebre  pelas  suas  obras  e  pelos  seus  talen- 
tos ? 

—  K'  claro  que  era  ;  todos  os  conhecimentos  de  Mrs.  Leo 
Hunter  o  são;  a  ambição  de  minha  esposa  é  não  ter  conhe- 
cimentos de  outra  espécie. 

—  Nobilissima  ambição  essa! 

—  Quando  eu  informar  Mrs.  Leo  Hunter  que  cahiu  dos 
seus  lábios  simiihante  observação,  bem  orgulhosa  ficará  por 
certo.  Ouvi  dizer  que  entre  os  senhores  havia  um  cavalheiro 
que  tem  produzido  poesias  lindíssimas  .'' 

—  O  meu  amigo,  o  sr.  Snodgrass,  tem  muito  gosto  para  a 
poesia, 

—  E'  como  Mrs.  Leo  Hunter.  Morre  pela  poesia;  posso 
dizer  que  tem  a  alma  e  o  espirito  enlaçados,  entretecidos 
com  a  poesia.  Tem  produzido  até  alguns  trechos  deliciosos. 
Ao  sr.  Pickv/ick  já  se  deve  ter  deparado  a  sua  Ode  a  uma  rã 
moribunda. 

—  Não  tenho  ideia. 

—  Pois  olhe  que  isso  espanta-me.  Essa  ode  fez  uma  sensa- 
ção extraordinária.  Era  assignada  com  um  L  e  oito  estrellas, 
é  appareceu  originalmente  n'um  semanário  de  senhoras.  Co- 
meçava assim  : 


"Quanto  me  custa  o  vêr-te,  assim  cabida 
De  ventre  para  baixo,  succumbida, 
Arquejante,  a  perder  a  força  e  a  vida, 

Sobre  uma  táboa  chã, 

O'  moribunda  rã  ! » 


—  Magnifico  I  disse  o  sr.  Pickwick. 

—  Bello,  disse  o  sr.  Leo  Hunter,  tão  simples  I 

—  Muito  I 

—  A  estrophe  seguinte  ainda  é  mais  commovente.  Quer 
que  lh'a  recite  ? 

—  Tem  a  bondade  I 

—  E'  assim,  continuou  o  homem  grave,  com  mais  gravidade 
ainda : 


DO   SF.   PICKWICK  233 


Demónios,  em  rapazes  disfarçados, 
(]om  bulicio  e  com  gritos  desalmados. 
Atiraram-le  um  cao  aos  descampados 

Da  lagoa  louçã, 

O'  moribunda  rã  l» 


—  Que  belleza  de  expressão!  disse  o  sr.  Pickwick. 

—  Se  é  !  mas  o  que  queria  era  que  o  senhor  ouvisse  Mrs. 
Leo  Hunter  a  recital-a.  Só  ella  é  que  lhe  pôde  dar  todo  o  va- 
lor. Ha  de  recital-a  a  caracter,  amanhã  de  manhã. 

—  A  caracter  ? 

—  Vestida  de  Minerva.  Já  me  esquecia  de  lhe  dizer  —  o 
nosso  almoço  é  costume. 

—  Valha-me  Deus  !  disse  o  sr.  Pickwick,  com  um  relance 
de  olhos  para  a  sua  própria  figura  —  eu  posso  lá. . . 

—  Qual  não  pode  I  exclamou  o  sr.  Leo  Hunter.  Salomon 
Lucas,  o  judeu  da  rua  direita,  tem  fatos  de  mascaras  aos  mi- 
lheiros. Ora  repare  o  sr.  Pickwick  na  quantidade  de  vestuá- 
rios convenientes  entre  os  quaes  pode  escolher.  Platão,  Ze- 
non,  Epicuro,  Pythagoras  —  todos  elles  são  fundadores  de 
clubs. 

—  Isso  sei  eu,  mas  como  eu  não  posso  pór-me  em  parallelo 
com  esses  grandes  homens,  não  quero  ter  o  arrojo  de  me 
vestir  como  elles. 

O  homem  grave  reflectiu  alguns  minutos  profundamente, 
e  disse  logo  : 

—  Pensand©  rr.elhor,  sr.  Pickwick,  não  sei  se  Mrs.  Leo 
FKinter  ficará  mais  contente,  se  os  seus  convivas  virem  um 
homem  da  sua  reputação  com  o  seu  fato  próprio,  em  logar 
de  um  disfarce  de  convenção.  Abalanço-me  a  tomar  sobre 
mim  a  responsabilidade  d'esta  excepção  —  sim,  estou  certis- 
simo  que  a  posso  tomar  da  parte  de  Mrs.  Leo  Hunter. 

—  N'esse  caso,  terei  um  grande  prazer  em  acceitar  o  seu 
convite. 

—  Mas  estou-lhe  a  fazer  perder  tempo,  disse  o  homem 
grave,  como  se  de  repente  lhe  occorresse  aquella  ideia.  Sei 
quanto  elle  lhe  é  precioso.  Não  quero  demoral-o.  Posso  en- 
tão dizer  a  Mrs.  Leo  Hunter  que  pôde  esperal-o  confiada- 
mente, assim  como  aos  seus  illustres  amigos  ?  Adeus,  sr.  Pick- 


•34  AS    AVENTURAS 


wick,  orgulho-me  por  ter  contemplado  um  personagem  tão 
eminente.  Não  se  incommode ;  não  se  mexa ;  não  falle. 

E  sem  dar  tempo  ao  sr.  Hick\vick  de  lhe  offerecer  uma 
observação  ou  uma  escusa,  o  sr.  Leo  Hunter  sahiu  a  passos 
graves  e  compassados.  O  sr.  Pickwick  pegou  no  chapéo  e 
dirigiu-se  para  o  Pavão;  mas  o  sr.  Winkle  já  lá  tinha  levado 
antes  d"elle  noticias  do  baile  costume. 

—  Mrs.  Pott  vae  lá,  foram  as  primeiras  palavras  com  que 
elle  saudou  o  seu  chefe. 

—  Ah  I  vae  .''  disse  o  sr.  Pickwick. 

—  Vae  vestida  de  Apollo,  replicou  o  sr.  Winkle.  Pott  só 
faz  objecções  á  túnica. 

—  É  tem  razão.  Tem  carradas  de  razão,  disse  o  sr.  Pick- 
wick  com  energia. 

—  Sim  ;  por  isso  ella  leva  um  vestido  de  setim  branco  com 
lantejoulas  de  oiro. 

—  Não  ha  de  ser  muito  fácil  perceber  de  que  ella  vae  ves- 
tida ;  não  acham  r  perguntou  o  sr.  Snodgrass. 

—  Ora  adeus!  se  se  percebe!  replicou  o  sr.  Winkle  com 
indignação.  Então  não  lhe  vêem  a  lyra? 

—  E'  verdade :  esquecia  me  d'isso,  disse  o  sr.  Snodgrass. 

—  Eu  cá  vou  de  bandido,  accudiu  o  sr.  Tupman. 

—  De  que  ?  disse  o  sr.  Pickwick  com  um  sobresalto. 

—  De  bandido,  repetiu  o  sr.  Tupman  com  voz  melliflua. 

—  Não  tenciona  decerto,  disse  o  sr.  Pickwick  encarando 
o  amigo  com  severidade  solemne,  não  tenciona  decerto,  sr. 
Tupman,  vestir-se  com  uma  jaqueta  de  veludo  verde,  com 
dois  dedos  de  abas  ? 

—  E'  essa  a  minha  intenção,  sr.  Pickwick,  replicou  calo- 
rosamente o  sr.  Tupman.  Que  tem  a  dizer  .'' 

—  Tenho  a  dizer,  exclamou  o  sr.  Pickwick  muito  excitado, 
que  o  senhor  já  está  velho  demais  para  isso ! 

—  Velho  demais  !  bradou  o  sr.  Tupman. 

—  E  se  ainda  precisa  d'outro  motivo,  porque  é  muito  gordo. 

—  Senhor,  disse  o  sr.  Tupman  com  a  cara  purpúrea,  isso 
é  um  insulto. 

—  Senhor,  redarguiu  o  sr.  Pickwick  no  mesmo  tom,  nem 
metade  é  do  insulto  que  seria  para  mim,  se  o  senhor  appare- 
cesse  diante  da  minha  vista  com  uma  jaqueta  de  veludo  verde 
e  dois  dedos  de  abas. 


DO   SR.    PICKWICK  235 


—  O  senhor  é  um  safardana  ! 

—  E  o  senhor  outro  ! 

O  sr.  Tupman  avançou  um  ou  dois  passos,  e  olhou  em 
cheio  para  o  sr.  Pickwick.  Kste  deitou-lhe  um  olhar  idêntico, 
concentrado  n'um  foco  por  meio  dos  óculos,  e  articulou  um 
desafio  audaz.  Os  srs.  Snodgrass  e  Winkle  olhavam  para  tudo 
isto,  petrificados  por  presenciarem  uma  scena  tal  entre  ho- 
mens taes. 

—  Senhor,  disse  o  sr.  Tupman,  depois  de  um  curto  silen- 
cio, fallando  em  voz  cava,  o  senhor  chamou-me  velho ! 

—  Chamei, 

—  E  gordo. 

—  Repito. 

—  E  safardana. 

—  Assim  é. 

Houve  uma  pausa  aterradora. 

—  A  minha  dedicação  á  sua  pessoa,  disse  o  sr.  Tupman 
em  voz  tremula  de  commoção,  arregaçando  os  punhos  da 
camisa,  é  grande  —  é  enorme  —  mas  d'essa  pessoa  tenho  eu 
que  tirar  vingança  summaria. 

—  Venha  d'ahi !  replicou  o  sr.  Pickwick. 

Estimulado  pela  natureza  excitante  d'este  dialogo,  o  he- 
róico personagem  assumiu  uma  attitude  de  paralytico,  que  os 
dois  espectadores  d'esta  scena  suppozeram  ser  intencionada 
por  posição  de  defeza. 

—  Que  é  isto  ?  exclamou  o  sr.  Snodgrass,  recuperando  de 
súbito  o  uso  da  falia  que  lhe- tirara  a  intensidade  do  seu 
pasmo,  e  precipitando-se  entre  os  dois,  com  risco  imminente 
de  apanhar  um  soco  em  cada  uma  das  fontes.  Que  é  isto  !  O 
sr.  Pickwick,  em  quem  se  fixam  os  olhos  do  mundo  inteiro! 
O  sr.  Tupman  que  comnosco  partilha  os  resplendores  jorra- 
dos do  seu  nome  immortal !  Que  vergonha,  senhores,  que 
vergonha ! 

As  rugas  deshabituaes  que  uma  cólera  momentânea  ca- 
vara no  semblante  límpido  e  aberto  do  sr.  Pickwick  foram-se 
desvanecendo  pouco  a  pouco  á  proporção  que  fallava  o  seu 
ioven  amigo,  como  os  traços  da  plombagina  sob  a  suavisante 
impressão  da  borracha. 

Antes  de  elle  acabar  já  o  rosto  do  sábio  readquirira  a  sua 
usual  expressão  de  benignidade. 


2?6  AS    AVENTURAS 


—  Fui  precipitado,  disse  o  sr.  Pickwick,  fui  muito  preci- 
pitado, Tupman,  de  cá  a  sua  mão. 

A  sombra  negra  dissipou-se  no  rosto  do  sr.  Tupman,  que 
apertou  calorosamente  a  mão  do  amigo. 

—  Também  eu  fui  precipitado,  disse  elle. 

—  Não,  não,  interrompeu  o  sr.  Pickwick.  A  culpa  foi  mi- 
nha. Vossè  serr^pre  veste  a  jaqueta  de  veludo  verde  í 

—  Não.  não,  respondeu  o  sr.  Tupman. 

—  Ha-de  vestil-a,  para  me  obsequiar. 

—  Bem  !  bem  !  então  visto. 

Combinou-se  pois  que  os  srs.  Tupman,  Winkle  e  Snod- 
grass  fossem  todos  com  fatos  de  phantasia. 

Assim  foi  o  sr.  Pickwick  induzido  pelo  fervor  dos  seus 
bons  sentimentos  h  consentir  n'um  projecto  de  que  o  des- 
viaria o  seu  excellente  juizo  —  difficilmenie  se  conceberia 
mais  frisante  demonstração  do  seu  caracter  bondoso,  mesmo 
que  fossem  completamente  imaginários  os  successos  narra 
dos  nas  presenres  paginas. 

O  sr.  Leo  Hunter  não  tinha  e.vagerado  os  recursos  de  Sa- 
lomon  Lucas.  O  seu  guarda-roupa  era  copioso  —  extrema- 
mente copioso  —  talvez  que  não  esirictamente  clássico,  nem 
novo  em  folha,  nem  contendo  nenhum  traje  feito  rigorosa- 
mente segundo  a  moda  de  qualquer  época  ou  paiz,  mas  tudo 
era  mais  ou  menos  enfeitado  de  lantejoulas,  e  que  cousi 
pôde  haver  mais  lindo  que  as  lantejoulas? 

Póde-se  objectar  que  ellas  não  são  adaptadas  á  luz  do 
dia,  mas  toda  a  gente  sabe  que  ellas  lampejariam  se  a  luz 
fosse  artificial  ;  e  se  os  bailes  costumes  se  dão  de  dia  e  os  tra- 
jes não  brilham  tanto  como  brilhariam  de  noite,  é  claro  que 
a  culpa  é  so  de  quem  dá  esses  bailes,  e  por  forma  nenhuma 
se  deve  attribuir  ás  lantejoulas. 

Tal  era  a  convincente  argumentação  do  sr.  Salomon  Lu- 
cas;  e  sob  a  sua  influencia  é  que  os  srs.  Tupman,  Winkle  e 
Snodgrass  se  decidiram  a  trajar  os  fatos  que  o  seu  gosto  e 
a  sua  experiência  lhes  aconselhavam  como  admiravelmente 
apropriados  ao  caso. 

Alugou -se  um  caleche  nas  Armjs  da  Cidade  para  accom- 
modar  os  pickwickanos,  e  da  mesma  cocheira  sahiu  um  coupé 
destinado  ao  transporte  do  sr.  Poit  e  de  sua  esposa  aos  do- 
minios  de  Mrs.  Leo  Hunter. 


DO  SR.   PICKWICK  2.->7 

Como  delicado  reconhecimento  pelo  convite,  já  o  sr.  Pott 
predissera  confiadamente  na  Gaveta  de  Eatanswill  que  esses 
domínios  «apresentariam  um  espectáculo  de  maravilhas  va- 
rias e  deliciosas  —  uma  scintillação  deslumbrante  de  belleza 
c  de  talento  —  uma  profusa  expansão  de  S'íntimentos  hospi- 
taleiros—  por  cima  de  tudo,  um  grau  de  esplendor,  instigado 
pelo  gosto  mais  refinado ;  e  decoraç()es  arranjadas  com  per- 
feita harmonia  e  a  mais  aristocrática  sobriedade  —  compa- 
rada com  as  quaes  a  fabulosa  sumptuosidade  das  Mil  e  uma 
noites  pareceria  revestida  de  tão  sombrias  e  tenebrosas  cores, 
como  deveria  ser  o  espirito  do  misanthropo  atrabiliário  que 
se  atrevesse  a  macular  com  a  peçonha  da  sua  inveja  os  pre- 
parativos feitos  pela  eminente  e  virtuosa  dama,  a  cujas  aras 
era  otfertado  este  humilde  tributo  de  admiração. 

Esta  ultima  phrase  era  um  mordente  sarcasmo  contra  o 
Independente,  que  em  consequência  de  não  ter  sido  convida- 
do, tinha  afl;ectado  nos  últimos  quatro  números  metter  a  festa 
a  ridículo,  no  seu  typo  mais  avantajado,  com  todos  os  adje- 
ctivos em  maiúsculas. 

Chegou  a  manhã.  Agradável  espectáculo  proporcionava  o 
sr.  Tupman  em  traje  completo  de  bandoleiro,  com  uma  ja- 
queta muito  apertada,  assentando  como  uma  almofada  de 
alfinetes  nas  costas  e  nos  hombros  ;  a  parte  superior  das  per- 
nas estava  comprimida  n'uns  calções  de  veludo,  e  a  parte  in- 
ferior envolta  nas  complicadas  faxas  pelas  quaes  os  bandolei- 
ros teem  um  gosto  particular. 

Divertido  era  ver-lhe  a  physionomía  aberta  e  ingénua, 
adornada  de  uma  grande  bigodeira  e  com  traços  ferozes  de 
cortiça  queimada,  sahindo  de  um  collarínho  aberto ;  contem- 
plar o  chapéo  afunilado,  decorado  de  fitas  de  todas  as  cores, 
que  elle  era  obrigado  a  trazer  sobre  o  joelho,  visto  que  nin- 
guém conseguiria  encaixal-o  entre  a  cabeça  e  o  tecto  do  ca- 
leche. 

Egualmente  divertido  e  agradável  era  o  aspecto  do  sr. 
Snodgrass,  de  calções  e  capa  de  seiim  azul,  com  sapato  e 
meia  de  seda,  e  capacete  grego,  que  era,  como  toda  a  gen'e 
sabe  (pelo  menos,  sabia-o  o  sr.  Salomon  Lucas),  o  vestuário 
regular,  authentico,  quotidiano,  de  um  trovador,  desde  os 
tempos  primitivos  até  á  época  do  seu  desapparecimento  final 
da  superfície  da  terra.  * 


238  AS   AVENTURAS 


Tudo  isto  era  encantador,  mas  nada  chegava  ás  acclama- 
çôes  da  jlopulaça*  quando  o  caleche  parou  á  porta  do  sr.  Poit, 
atraz  do  coupé  d'este  ultimo,  e  quando  a  porta  se  abriu,  os- 
tentando o  grande  Pott  enfardalhado  de  official  de  justiça 
russo,  com  um  tremendo  knout  na  mão  —  symbolo  delicado 
do  terrivcl  poder  da  Gazeia  de  EatansM'ilL  e  das  medonhas 
azorragadas  que  elle  iníligia  aos  réos  de  publicas  affron- 
las. 

—  Bravo  I  gritaram  os  srs.  Tupman  e  Snodgrass  apenas 
viram  a  allegoria  ambulante. 

—  Bravo  :  ouviu-se  o  sr.  Pickwick  repetir  no  corredor. 
— -Lh.I  Pott  I  uh  I  Pott  I  bradou  a  populaça. 

\o  meio  d'estas  saudações,  o  sr.  Pott  entrou  para  o  cou- 
pé. sorrindo  com  aquella  espécie  de  benévola  dignidade  que 
assaz  testemunhava  a  consciência  do  próprio  poder. 

Então  surgiu  da  casa  Mrs.  Pott,  que  se  pareceria  muito 
com  Apollo  se  não  fosse  o  vestido  :  conduzida  pelo  sr.  Win- 
kle,  o  qual,  com  a  sua  casaca  vermelha,  logo  seria  tomado 
pqr  um  sporiman,  se  não  se  assimilhasse  também  a  um  cor- 
reio. 

No  fim  de  todos,  appareceu  o  sr.  Pickwick,  a  quem  os  ga- 
rotos applaudiram  com  egual  barulho,  provavelmente  sob  a 
impressão  de  que  os  seus  calções  e  as  suas  polainas  eram  al- 
guns restos  dos  tempos  obscuros.  Depois,  os  dois  vehiculos 
pozeramse  a  caminho  da  mansão  de  Mrs.  Leo  Hunter,  indo 
na  almofada  do  caleche  o  sr.  Weller,  que  devia  ajudar  o  ser- 
viço. 

Todos  os  homens,  mulheres,  garotos,  raparigas  e  nenés 
que  estavam  agglomerados  para  vêr  os  visitantes  nos  seus 
trajes  de  phantasia,  desataram  a  berrar  com  enthusiasmo  ex- 
tático, quando  o  sr.  Pickwick,  dando  um  dos  braços  ao  ban- 
dido e  o  outro  ao  trovador,  entrou  solemnemente  no  jar- 
dim. Mas  nunca  se  ouviram  gritos  como  os  que  acolheram  os 
esforços  do  sr.  Tupman  para  fixar  na  cabeça  o  chapéo  em 
pão  de  assucar,  afim  de  fazer  devidamente  a  sua  eotrada. 

Os  preparativos  eram  magnificos. 

Justificavam  de  sobra  as  previsões  de  Pott  sobre  a  sum- 
ptuosvdade  das  Mil  e  uma  noites  e  davam  ao  mesmo  tempo 
um  desmentido  efficaz  ás  malignas  considerações  do  peço- 
nhento Independente. 


t)Ô  SR.  PICKWICK  239 


O  fccinto,  com  mais  de  geira  e  quarto  de  extensão,  estava 
^  ompletamente  cheio  de  gente  ! 

Nunca  se  vira  um  esplendor  assim  de  belleza,  de  luxo  e 
de  litteratura. 

Ali  se  achava  a  jovefi  dama  que  tinha  a  seu  cargo  a  poe- 
sia na  Gaveta  dú  Ê^uitanswill^  vestindo  de  sultana,  apoiada  ao 
bra«ço  do  juvenil  cavalheiro  encarregado  da  parte  critica,  o 
qual  trajava  com  toda  a  propriedade  um  uniforme  de  mare- 
chal de  campo,  menos  as  botas. 

Havia  legiões  de  génios  de  egual  jaez  e  toda  a  gente  de 
juizo  se  julgaria  bastante  honrado  em  se  encontrar  com  el- 
íes. 

Mas,  melhor  ainda,  havia  uma  meia  dúzia  de  leões  de 
Londres  —  auctores,  auctores  a  valer,  que  tinhafti  escripto  li- 
vros inteiros  e  que  os  tinham  feito  imprimir —  e  aqui  se  po- 
deriam ver,  a  passear  como  homens  vulgares,  a  sorrir,  e  a 
conversar  —  sim,  senhor!  a  conversar  com  as  suas  asneiras 
ú  mistura,  sem  duvida  com  o  benigno  intento  de  se  tornarem 
intelligiveis  para  o  vulgo  que  os  cercava. 

Além  d'isso,  lá  estava  unia  banda  de  musica  com  barreti- 
nas de  papelão;  quatro  cantores  de  algures  nos  seus  trajes 
nacionaes,  e  uma  dúzia  de  criados  alugados  em  trajes  também 
nacionaes  —  por  signal  que  muito  sujos. 

E  acima  de  tudo,  pairava  Mrs.  Leo  Hunter,  vestida  de  Mi- 
nerva, recebendo  os  convivas,  e  exuberante  de  orgulho  e  de 
satisfação  por  ter  ali  reunido  tão  distinctas  personalidades. 

—  Ò  sr.  Pickwick,  minha  senhora,  disse  um  criado,  qug^fido 
este  cavalheiro  se  aproximou  da  deusa  suprema,  de  chapéo 
na  mão,  e  o  bandido  e  o  trovador  por  cada  um  dos  bra- 
ços. 

—  Como  !  onde  ?  exclamou  Mrs.  Leo  Hunter  estremecendo 
n'um  affectado  arroubamento  de  surpreza. 

—  Aqui,  disse  o  sr.  Pickwick. 

—  E'  possivel  que  eu  tenha  realmente  a  satisfação  de  con- 
templar o  sr.  Pickwick  ? 

—  Em  carne  e  osso,  minha  senhora,  replicou  o  sr.  Pick- 
wick, inclinando-se  muito.  Permitta-me  que  apresente  os 
meus  amigos  —  o  sr.  Tupman  —  o  sr.  Winkle  —  o  sr.  Snod- 
grass  —  á  auctora  da  Rã  moribunda. 

Quasi  que  ?ó  quem  j:i  o  tenha  experimentado  conhece  as 


240  AS   AVENTURAS 


diíTiculdades  de  uma  pessoa  se  curvar  com  calções  justos  de 
veludo  verde,  e  uma  jaqueta  apertada,  e  um  chiapéo  de  copa 
alta  ;  ou  entcão  com  um  justilho  de  setim  azul  e  meias  de  seda  ; 
ou  ainda  com  ligas  e  botas  altas  de  canhão,  cousas  que  não 
tbram  feitas  para  quem  as  usa  e  foram  dispostaá  n'aquelle 
corpo  sem  a  mais  remota  attenção  ás  dimensões  comparati- 
vas entre  o  vestuário  e  a  pessoa  vestida. 

Nunca  se  viram  coniorsões  como  as  que  soffreu  o  corpo 
do  sr,  Tupman  nos  seus  esforços  para  apparentar  de  elegante 
e  de  á  vontade  —  nunca  se  \iram  posições  tão  engenhosas 
como  as  exhibidas  pelos  seus  disfarçados  amigos. 

—  Sr.  Pickwick,  disse  Mrs.  Leo  Hunter,  tem  que  me  pro- 
metter  que  não  se  afasia  da  minha  ilharga  durante  o  dia  in- 
teiro. Ha  aqui  centenas  de  pessoas,  que  eu  preciso  forçosa- 
mente apresentar-lhe. 

—  Que  bondade  a  sua,  minha  senhora ! 

—  Em  primeiro  logar,  aqui  tem  as  minhas  pequenitas; 
quasi  que  me  tinha  esquecido  d'ellas,  disse  Minerva,  apon- 
tando negligentemente  para  duas  meninas  já  crescidotas,  uma 
das  quaes  devia  andar  pelos  vinte,  e  outra  teria  mais  um  ou 
dois  annos,  mas  que  estavam  ambas  com  trajes  extremamente 
juvenis  —  se  era  para  ellas  parecerem  novas,  ou  para  a  mamã 
parecer  mais  nova,  eis  o  que  o  sr.  Pickwick  não  nos  soube 
dizer  ao  certo. 

—  São  muito  lindas,  disse  elle,  quando  as  meninas  se  afas- 
taram depois  da  apresentação. 

—  Parecem-se  immenso  com  a  mamã,  disse  magestosa- 
men%e  o  sr.  Pott. 

—  Ah  !  mausão  I  exclamou  Mrs.  Leo  Hunter,  batendo  jo- 
cosamente com  o  leque  no  braço  do  editor.  (Minerva  de  le- 
que!; 

—  Ora  essa,  minha  querida  Mrs.  Hunter!  replicou  o  sr. 
Pott  que  era  o  trombeta  em  exercício  no  Antro.  Bem  sabe 
que  no  anno  passado,  quando  esteve  o  seu  retrato  na  Expo- 
sição da  Real  Academia,  não  havia  ninguém  que  não  pergun- 
tasse se  elle  era  seu,  se  era  de  sua  filha  mais  nova;  porque 
as  duas  eram  tão  parecidas  que  não  podia  perceber-se  a  dif- 
ferença. 

— ^"Pois  sim  !  mesmo  quando  assim  fosse,  que  precisão  tem 
o  senhor  de  o  repetir  diante  de  pessoas  estranhas  ?  disse  Mrs. 


DO  SR.  HICKWÍCK  241 

Leo  Hunter,  lisonjeeando  com  outra  pancada  de  leque  o  leão 
entorpecido  da  Gaveta  de  Eatansnnll.  Conde,  conde,  gritou 
ella  para  um  sujeito  de  bellas  suissas,  com  untorme  estran- 
i;eiro,  que  ia  passando. 

—  Ah !  chamou-me  ?  disse  o  conde,  voltando  atraz. 

—  Quero  apresentar  dois  homens  de  espirito  um  ao  ou- 
tro. Sr.  Pickwick,  tenho  grande  prazer  em  o  apresentar  ao 
conde  Smorltork. 

E  acrescentou  segredando  precipitadamente  para  o  sr. 
Pickwick : 

—  O  famoso  estrangeiro  —  anda  a  colher  subsídios  para 
a  sua  grande  obra  sobre  a  Inglaterra,  hein  ?  ..  — O  conde 
Smorltork,  sr.  Pickwick. 

O  sr.  Pickwick  saudou  o  conde  com  toda  a  reverencia 
devida  a  tão  grande  homem,  e  o  conde  sacou  logo  do  seu  li- 
vro de  lembranças. 

—  Que  diz,  Mrs.  Hunt  ?  perguntou  elle,  sorrindo  graciosa- 
mente para  a  dama.  Pig  Vig  ou  Big  Vig — como  é  isso  ^  — 
jurisconsulto,  não  é  ?  —  percebo  —  cá  está  —  Big  Vig  ^ 

E  o  conde  ia  tomar  nota  do  sr.  Pickwick  como  um  ma- 
gistrado, que  derivava  o  nome  da  profissão,  quando  Mrs.  Leo 
Hunter  atalhou : 

—  Não  é  isso,  conde.  Pick — wick. 

—  Ah  !  sim  !  já  percebo  !  replicou  o  conde.  Peek  —  nome 
de  baptismo;  Weeks  —  appellido ;  bem,  muito  bem.  Peek 
Weeks.  Como  vae  isso,  Weeks  ^ 

—  Bem,  muito  obrigado,  respondeu  o  sr.  Pickwick  com 
toda  a  sua  atfabilidade  usual.  Ha  muito  que  está  em  Ingla- 
terra ? 

—  Muito  —  muito  tempo  —  quinze  dias  —  mais. 

—  Ainda  se  demora  muito. 

—  Uma  semana. 

—  Ha  de  trabalhar  deveras,  disse  o  sr.  Piei- wick  sorrindo, 


'  São  intraduzíveis  estas  jocosidades.  O  conde,  como  estrangeiro,-  in;TÍ 
percebe  e  pronuncia  rnal  o  ingiez.  Wig,  que  elle  diz  vig,  sieninca  cabci- 
leira;  pis  wig,  cabelleira  de  porco;  btg  wig,  cabelleira 'grande.  Como  us 
magistrados  usam  de  cabelleira  em  Inglaterra,  explica-se  o  equivoco  du 
conde,  suppondo  o  nome  Big  Wig  alcunha  dada  a  um  jurisconsulto. 

16 


242  AS   AVENTURAS 


para  colher  todos  os  subsídios  de  que  carece  em  tão  pouco 
tempo. 

—  Ora  !  colhidos  já  elles  estão  I 

—  Deveras ! 

—  Estão  aqui,  njuntou  o  conde  batendo  na  testa  com  ar 
significativo.  Grande  livro  minha  terra  —  cheio  de  notas  — 
musica,  pintura,  sciencia,  poesia,  politica,  tudo. 

—  A  palavra  politica  comprehende  em  si  um  estudo  diffi- 
cil  e  de  uma  considerável  extensão. 

—  Ah !  disse  o  conde,  sacando  outra  vez  o  livro  de  notas, 
muito  bem  —  bellas  palavras  para  encetar  capitulo.  Capitulo 
quarenta  e  sete.  Politica.  A  palavra  politica  surprehende 
em  si. . . 

E  lá  ficou  marcada  a  observação  do  sr.  Pickwick  no  livro 
de  notas  do  conde  Smorltork,  com  as  variações  e  as  addic- 
çóes  suggeridas  pela  exhuberante  phantasia  d'este,  ou  occa- 
sionadas  pelo  seu  imperfeito  conhecimento  da  lingua  '. 

—  Conde,  disse  Mrs.  Leo  Hunter. 

—  Mrs.  Hunt,  replicou  o  conde. 

—  Este  é  o  sr.  Snodgrass,  amigo  do  sr.  Pickwick  e  poeta. 

—  Espere!  exclamou  o  conde,  sacando  mais  uma  vez  o 
seu  livro.  Titulo,  poesia  —  capitulo,  amigos  litterarios  —  nome 
Snowgrass  ;  muito  bem.  Apresentado  a  Snowgrass  —  grande 
poeta,  amigo  de  Peek  Weeks  —  por  Mrs.  Hunt,  que  escreveu 
outra  Imda  poesia  —  como  se  chama  '■:  —  Rã —  Rã  furibunda 
• — muito  bem  —  bellissimo. 

E  o  conde  guardou  as  suas  notas,  e  afastou-se  com  muitas 
reverencias  e  agradecimentos,  completamente  convencido  de 
que  fizera  as  mais  importantes  e  valiosas  addicções  á  sua 
provisão  de  conhecimentos  sobre  a  Inglaterra. 

—  E'  um  homem  admirável,  o  conde  Smorltork !  excla- 
mou Mrs.  Leo  Hunter. 

—  Um  philosopho  profundo!  acrescentou  Pott. 

—  Uma  cabeça  desempoeirada  e  um  espirito  forte,  conti- 
nuou o  sr.  Snodgrass. 


'  As  plirases  do  conde  Smorltork  teem  no  original  uma  feição  extre- 
mamente cómica,  pelos  atropellos  que  softre  na  sua  bocca  a  lingiia  e  pelos 
equivocos  intraduzíveis  a  que  isso  dá  logar. 


DO  SR.  PICKWICK  243 


Um  coro  de  convivas  associou-se  aos  applausos  do  conde 
Smorltork,  sacudindo  gravemente  as  cabeças  e  clamando  una- 
nimemente : 

—  Muitissimo ! 

Como  o  enthusiasmo  pelo  conde  Smorltork  ia  chegando 
ao  seu  auge,  pôde  ser  que  até  ao  fim  da  festa  se  cantassem  os 
seus  louvores,  se  não  fosse  os  quatro  cantores  de  algures 
irem  formar-se  defronte  de  uma  pequena  macieira,  com  a 
mira  no  pittoresco,  e  começarem  a  entoar  os  seus  cantos 
nacionaes,  que  não  pareciam  mesmo  nada  difficeis  de  execu- 
tar, visto  que  o  grande  segredo  parecia  consistir  em  três  d'el- 
les  grunhirem,  ao  passo  que  o  quarto  uivava. 

Tendo  concluido  este  interessante  numero  do  programma 
entre  os  ruidosos  applausos  de  toda  a  sociedade,  começou 
um  rapazote  e  ennovelar-se  pelas  travessas  de  uma  cadeira,  e 
a  pular  para  cima  d'ella,  e  a  andar  de  rastos  por  baixo,  e  a 
dar  trambulhões  com  ella,  e  a  fazer  com  ella  tudo,  menos 
sentar-se-lhe  em  cima. 

E  depois  fez  uma  gravata  com  os  pés  da  cadeira,  e  atou-a 
á  roda  do  pescoço,  e  em  seguida  mostrou  a  facilidade  com 
que  um  ser  humano  pôde  tomar  a  apparencia  de  um  sapo  em 
ponto  grande. 

E  todas  estas  façanhas  proporcionaram  grandes  delicias  e 
júbilos  aos  espectadores. 

Depois,  ouviu-se  chilrear  debilmente  a  voz  de  Mrs.  Pott, 
uma  cousa  que  a  cortezia  interpretou  por  canção,  a  qual  era 
toda  ella  muito  clássica  e  perfeitamente  a  caracter,  visto  que 
Apollo  era  compositor,  e  são  raros  os  compositores  que  po- 
dem cantar  a  sua  própria  musica  ou  mesmo  as  dos  outros. 

Seguiu-se  a  isto  a  recitação  feita  por  Mrs.  Hunter  da  sua 
afamada  ode  A  uma  rã  moribunda,  que  foi  bisada,  e  que  ou- 
tra vez  seria  repetida,  se  a  maioria  dos  convidados,  pensando 
que  era  tempo  de  comer  alguma  cousa,  não  tivesse  dito  que 
era  uma  verdadeira  vergonha  abusar  da  benevolência  de  Mrs. 
Hunter. 

Por  isso,  comquanto  Mrs.  Leo  Hunter  manifestasse  a  sua 
boa  vontade  para  tornar  a  recitar  a  ode,  os  seus  amáveis  e  il- 
lustres  amigos  não  quizeram  por  caso  algum  ouvil  a ;  e  sendo 
aberto  o  bufete,  toda  a  gente  que  já  tinha  estado  n'aquella 
casa  precipitou-se  para  ali  com  grande  alvoroço. 


244  ^^   AVENTURAS 


Sabiam  que  o  costume  de  Mrs.  Leo  Hunter  era  expedir 
convites  a  cem  pessoas,  e  ter  almoço  para  cincoenta,  ou  por 
outras  palavras,  dar  apenas  alimento  em  especial  aos  leões, 
e  deixar  os  animaes  mais  pequenos  arranjarem-se  como  po- 
dessem. 

—  Onde  está  o  sr.  Pott  ?  perguntou  Mrs.  Leo  Hunter,  ao 
collocar  em  volta  de  si  os  supracitados  leões. 

—  Cá  estou  I  respondeu  o  editor  do  extremo  do  aposento, 
muito  fora  de  qualquer  esperança  de  alimento,  a  não  ser  que 
a  dona  da  casa  fizesse  alguma  cousa  èm  seu  favor. 

—  Não  quer  vir  para  aqui? 

—  Ora !  não  se  incommode  por  causa  d'elle,  disse  Mrs. 
Pott  com  a  sua  voz  mais  affectuosa.  Está  realmente  a  ter  um 
incommodo  inútil,  Mrs.  Hunter.  Não  é  verdade,  meu  querido, 
que  está  ahi  muito  bem.  ? 

—  Certamente,  meu  amor,  replicou  o  infeliz  Pott,  com  um 
sorriso  amarello. 

Coitado  do  knout  1  O  braço  nervoso,  que  o  brandia  com 
tão  gigantesca  força  sobre  os  homens  públicos,  estava  para- 
Ivsado  sob  um  olhar  da  imperiosa  Mrs.  Pott. 

Mrs.  Leo  Hunter  olhou  em  volta  de  si  com  ar  de  trium- 
pho. 

O  conde  Smorltork  estava  activamente  occupado  em  to- 
mar nota  das  iguarias ;  o  sr.  Tupman  estava  fazendo  as  hon- 
ras da  salada  de  lagosta  a  vários  leões  com  uma  graça  nunca 
exhibida  anteriormente  por  nenhum  bandido ;  o  sr.  Snod- 
grass,  tendo  posto  á  raza  o  mancebo  que  arrazava  os  livros 
na  Ga:^etã  de  Eatanswilly  estava  embrenhado  n'um  discussão 
apaixonada  com  a  juvenil  dama  encarregada  da  poesia ;  e  o 
sr.  Pickwick  estava-se  fazendo  universalmente  agradável. 

Nada  podia  faltar  para  complemento  d'aquelle  circulo  se- 
lecto, quando  o  sr.  Leo  Hunter  —  cujo  encargo,  n'estas  occa- 
sióes,  era  andar  pelas  portas,  a  conversar  com  as  pessoas  de 
somenos  importância  —  bradou  de  repente  : 

—  Minha  querida,  aqui  vem  o  sr.  Charles  Fitz-Marshall. 

—  Ora  esta  !  exclamou  Mrs.  Leo  Hunter,  com  que  ancie- 
dade  eu  tenho  estado  á  espera  d'élle.  Peço  lhes  que  abram 
caminho  ao  sr.  Fitz  Marshall.  Meu  amigo,  diga  ao  sr.  Fitz- 
Marshall  que  venha  já,  já,  aqui,  para  eu  ralhar  com  elle  por 
ter  vindo  tão  tarde. 


DO  SR.   PICKWICK  245 


—  Ahi  vou,  minha  querida  senhora,  gritou  uma  voz,  o 
mais  depressa  que  pqssa  —  gente  basta  —  casa  a  deitar  por 
íbra  —  difficil  —  muito  difficil. 

O  garfo  e  a  faca  do  sr.  Pickwick  cahiram-lhe  da  mão. 

Olhou  atravez  da  mesa  para  o  sr.  Tupman,  que  tinha  tam- 
bém deixado  cahir  garfo  e  faca,  e  que  parecia  vae  não  vae  a 
s  imir-se  pelo  chão  abaixo. 

—  Ah  !  bradou  a  voz,  emquanto  o  seu  possuidor  ia  abrindo 
caminho  atravez  dos  últimos  vinte  e  cinco  turcos,  officiaes, 
cavalleiros  e  Carlos  Segundos,  que  ainda  restavam  entre  elle 
e  a  meza.  Menos  má,  esta  prensa  —  privilegiado  —  nem  uma 
prega  na  minha  casaca,  depois  d'esta  calandragem  —  já  ago- 
ra, podia  ter  engommado  a  roupa  —  ah  !  ah  !  bella  ideia  esta  ! 
—  patusco,  isto  de  engommar  a  roupa  em  cima  do  corpo  — 
mas  moe  —  moe  deveras. 

Com  estas  phrases  cortadas,  um  mancebo  vestido  de  offi- 
cial  de  marinha  abriu  caminho  até  á  meza,  e  apresentou  aos 
pickwickanos  attonitos  a  figura  e  as  feições  idênticas  do  sr. 
Alfred  Jingle. 

Mal  tinha  tido  tempo  de  tocar  na  mão  que  lhe  estendia 
Mrs.  Leo  Hunter,  quando  os  seus  olhos  encontraram  as  orbi- 
tas indignadas  do  sr.  Pickwick. 

—  Co'a  breca!  disse  Jingle.  Esqueceu-me  de  todo  —  não 
dei  ordens  ao  cocheiro  —  vou  dal-as  agora  —  não  tenho  um 
momento. 

—  O  criado,  ou  o  sr.  Hunter  se  encarregam  d'isso,  sr.  Fitz- 
Marshall,  disse  Mrs.  Leo  Hunter. 

—  Nada,  nada  —  vou  eu  mesmo  —  não  me  demoro  —  volto 
n'um  abrir  e  fechar  d'olhos,  replicou  Jingle. 

E  com  estas  palavras,  desappareceu  entre  a  turba. 

—  Permitte-me  que  lhe  pergunte,  minha  senhora,  disse  o 
sr.  Pickwick  erguendo-se  com  alvoroço,  quem  é  este  sujeito 
e  onde  é  que  mora  ? 

—  E'  um  cavalheiro  de  grande  fortuna,  sr.  Pickwick,  disse 
Mrs.  Leo  Hunter,  a  quem  eu  desejo  immenso  apresental-o.  O 
conde  hade  ficar  encantado  com  elle. 

—  Sim,  sim,  disse  o  sr.  Pickwick  com  precipitação.  E 
mora? 

—  Agora  está  no  hotel  do  Anjo,  em  Bury. 

—  Em  Bury? 


246  AS   AVENTURAS 


—  Em  Bury  St.  Edmunds,  a  poucas  milhas  d'aqui.  Mas, 
valha-me  Deus,  sr.  Pickwick !  não  vae  decerto  deixar-nos : 
com  certeza  não  pensa  em  se  ir  embora  tão  cedo. 

Mas  muito  antes  que  Mrs.  Leo  Hunter  tivesse  acabado  de 
lallar,  já  o  sr.  Pick^vick  tinha  immergido  na  multidão  e  che- 
gado ao  jardim  onde  fora  logo  ter  com  elle  o  sr.  Tupman, 
que  lhe  seguira  na  piugada. 

—  E'  escusado,  disse  o  sr.  Tupman,  o  homem  esguei- 
rou-se. 

—  Isso  sei  eu,  mas  quero  seguil  o. 
' —  Seguil-o  !  Para  onde  ? 

—  Para  o  hotel  do  Anjo,  em  Bury,  replicou  o  sr.  Pickwick 
fallando  muito  depressa.  Nós  sabemos  lá  quem  é  que  elle  está 
a  intrujar  aqui !  Já  uma  vez  enganou  um  homem  honrado,  e 
por  nossa  involuntária  culpa.  Não  torno  a  fazer  outra,  se  eu 
poder  evitar.  Hei  de  desmascarai  o.  Sam  !  Onde  está  o  meu 
•riado  ? 

—  Aqui  está  o  meu  patrão,  disse  o  sr.  Weller,  sahindo  de 
um  recanto,  onde  estivera  occupado  no  exame  de  uma  gar- 
rafa da  Madeira,  por  elle  furtada  da  meza,  uma  ou  duas  ho- 
ras antes.  Aqui  tem  o  seu  criado,  senhor.  E  gabo-me  do  ti- 
tulo, como  dizia  o  Esqueleto  Vivo,  quando  o  pozeram  em  ex- 
posição. 

—  Siga-me  immediatamente,  disse  o  sr.  Pickwick.  Tup 
man,  se  eu  me  demorar  em  Bury,  podem  lá  ir  ter  comigo,  em 
eu  escrevendo.  Até  então,  adeus. 

Foram  inúteis  as  observações. 

O  sr.  Pickwick  estava  excitado,  e  a  sua  tenção  estava  for- 
mada. 

O  sr.  Tupman  voltou  para  junto  dos  companheiros;  e 
d'ahi  a  uma  hora  tinha  afogado  todas  as  recordações  do  sr. 
Alfred  Jingle  ou  do  sr.  Charles  Fitz-Marshall,  n'uma  animada 
quadrilha  e  n'uma  garrafa  de  Champagne. 

Entrementes,  o  sr.  Pickwick  e  Sam  Weller,  encarrapita- 
dos na  imperial  de  uma  diligencia,  iam  de  minuto  em  minuto 
diminuindo  a  distancia  que  os  separava  da  boa  e  velha  po- 
voação de  Burv  Saint  Edmunds. 


DO   SR.   PICKVVICK  247 


CAPITULO  XVI 

Tâo  cheio  de  aventuras  que  se  náo  pôde  descrever 
summariamente 

Não  ha  mez  no  anno  em  que  a  natureza  assuma  um  as- 
pecto mais  bello  do  que  no  mez  de  agosto. 

A  primavera  tem  encantos  de  sobra,  e  maio  é  um  mez 
fresco  e  florescente,  mas  as  suas  bellezas  são  realçadas  pelo 
contraste  com  a  estação  de  inverno. 

Agosto  não  tem  esta  vantagem. 

Chega  quando  só  nos  lembramos  de  céos  puros,  de  cam- 
pos verdes,  e  de  liores  perfumadas  —  quando  a  recordação 
da  neve,  e  do  gelo,  e  das  ventanias  ríspidas,  se  desvaneceu  do 
nosso  espirito  tão  completamente  como  desappareceram 
da  terra  —  e  no  entanto  que  aprazivel  quadra  é  essa  1 

Pomares  e  searas  resõam  com  o  borborinho  do  labor  ;  as 
arvores,  carregadas  de  fructos  opulentos,  curvam  para  o  chão 
os  seus  ramos;  e  o  trigo  empilhado  em  graciosas  medas,  ou 
ondulando  a  cada  ligeira  brisa,  como  a  desafiar  a  fouce,  tinge 
a  paisagem  de  cores  douradas. 

Sobre  a  terra  inteira  parece  que  paira  uma  doce  langui- 
dez;  a  influencia  da  estação  até  parece  estender-se  aos  pró- 
prios carros,  cuja  andadura  lenta  atravez  dos  campos  ceifa- 
dos é  apenas  perceptível  aos  olhos,  sem  ferir  os  ouvidos  com 
sons  estridentes. 

A'  proporção  que  a  diligencia  roda  rapidamente  atravez 
dos  campos  ê  dos  pomares  que  orlam  a  estrada,  grupos  de 
mulheres  e  creanças,  empilhando  a  fructa  em  cestos,  ou  co- 
lhendo as  espigas  dispersas,  suspendem  um  instante  o  seu 
trabalho,  e,  abrigando  o  rosto  queimado  do  sol  com  a  mão 
ainda  mais  tisnada,  olham  curiosamente  para  os  passageiros, 
ao  passo  que  algum  fedelho  robusto,  pequeno  demais  para 
trabalhar,  mas  tão  travesso  que  não  se  pôde  deixar  em  casa, 
trepa  para  a  borda  do  cesto  em  que  o  aprisionaram  por  se- 
gurança, e  esperneia  e  berra  com  delicia. 

O  ceifeiro  pára  na  sua  tarefa,  e  cruza  os  braços,  a  olhar 
para  o  vehiculo  que  passa  como  um  turbilhão  ;   e  os  pesados 


248  AS   AVENTURAS 


cavallos  dos  carros  relanceam  um  olhar  estremunhado  para 
a  parelha  esperta  da  diligencia,  o  qual  diz  tão  claro  quanto 
podem  lallar  os  olhos  de  um  cavallo  : 

"Tudo  isso  é  muito  bonito  para  se  ver,  mas  andar  de  va- 
gar pelas  terras  duras  é  melhor  do  que  uma  galopada  d'essas 
pela  estrada  poeirenta,  afinal  de  contas  !« 

E  se  n'uma  volta  da  estrada  o  viajante  olhar  para  traz,  vê 
as  mulheres  e  as  creanças  a  continuar  no  seu  trabalho,  o  cei- 
feiro outra  vez  curvado  na  sua  tarefa,  os  cavallos  dos  carros 
a  proseguir  no  seu  caminho,  e  tudo  outra  vez  em  movi- 
mento. 

A  inlluencia  de  uma  scena  como  esta  não  deixou  de  se 
sentir  sobre  o  ponderado  espirito  do  sr.  Pickwick.  Preoccu- 
pado  com  a  resolução  que  formara,  de  desmascarar  o  verda- 
deiro cara:ter  do  nefando  Jingle,  onde  quer  que  elle  estivesse 
a  realisar  os  seus  fraudulentos  desígnios,  o  sr.  Pickwick  sen- 
tava-se  a  começo  taciturno  e  contemplativo,  a  reflectir  nos 
meios  que  devia  empregar  para  melhor  conseguir  os  seus  fins. 

Pouco  a  pouco  a  sua  attenção  foi  sendo  attrahida  pelos 
objectos  que  o  cercavam  ;  e  afinal  sentia  tanto  prazer  na  via- 
gem, como  se  a  houvesse  emprehendido  pelas  mais  agradá- 
veis razões  d'este  mundo. 

—  Lindíssima  vista,  Sam  I  disse  elle. 

—  Mette  n'um  chinello  as  chaminés  da  cidade  !  replicou  o 
sr.  Weller,  levando  a  mão  ao  chapéo. 

—  Creio  que  vossê,  em  toda  a  sua  vida,  quasi  que  não  tem 
visto  senão  chaminés,  e  tijolos,  e  argamassa,  disse  o  sr.  Pick- 
wick sorrindo. 

—  Eu  cá  nem  sempre  fui  criado  engraxador,  disse  o  sr. 
Weller  sacudindo  a  cabeça.  Já  fui  também  moço  de  carro- 
ceiro. 

—  Quando  foi  isso  ? 

—  Foi  logo  que  me  atiraram  de  focinho  para  o  mundo, 
para  eu  jogar  o  eixo  com  os  trabalhos  d'este  valle  de  lagri- 
mas. Para  estreia  fui  moço  de  arrieiro,  depois  moço  de  car- 
roceiro, depois  moço  de  recados,  e  por  fim  criado  de  estala- 
gem. Agora  sou  criado  de  um  cavalheiro.  D'aqui  a  dias  tal- 
vez que  eu  venha  a  ser  também  um  cavalheiro,  de  cachimbo  na 
bocca  e  com  um  caramanchão  no  jardim.  Quem  sabe  lá  ?  Eu 
cá  não  ficava  espantado,  se  assim  fosse. 


DO   SR.  ͻICKWICK  249 


—  Vossè  é  um  philosopho  completo,  Sam. 

—  Isto  é  de  família,  creio  eu.  O  meu  velho  também  segue 
agora  esse  caminho.  Em  a  minha  madrasta  o  atazanando, 
póe-se  a  assobiar.  EUa  leva  se  dos  diabos,  e  zás !  quebra-lhe 
o  cachimbo :  vae  elle,  sahe  por  ali  tora,  e  vae  buscar  outro. 
Então  ella  desata  a  berrar  como  uma  damnada,  e  cahe  com 
um  faniquito;  e  elle  vae  fumando  com  toda  a  pachorra 
até  ella  voltar  a  si.  Isto  é  que  é  philosophia,  senhor;  é  ou 
não  é? 

—  Pelo  menos,  substitue  bem.,  replicou  o  sr.  Pickwick 
rindo.  Deve  ter-lhe  feito  excellente  serviço  no  decurso  da 
sua  vida  errante,  San:). 

—  Ora  se  fez!  tenho  a  certeza  que  sim.  Depois  de  me  ler 
raspado  do  arrieiro  e  antes  de  me  ter  mettido  com  o  carro- 
ceiro, tive  quinze  dias  um  quarto  desmobilado. 

—  Um  quarto  desmobilado  ? 

—  Sim  —  as  arcadas  enxutas  da  ponte  de  Waterloo.  Bello 
sitio  para  pernoitar  —  a  dez  minutos  de  distancia  de  todas  as 
repartições  publicas  —  se  ha  qualquer  objecção  a  fazer-lhe,  é 
só  ser  um  pouco  arejado  demais.  Olhe  que  presenciei  ali  cou- 
sas muito  extraordinárias! 

—  Ah !  isso  creio  eu  !  disse  o  sr.  Pickwick,  com  ar  cheio 
de  interesse. 

—  Cousas,  senhor,  capazes  de  lhe  traspassar  o  coração 
compassivo  e  sahirem  pelo  outro  lado.  Ali  não  se  encontram 
vadios  de  profissão ;  isso  sim !  esses  teem  lume  no  olho  ! 
Quem  se  aloja  ali  uma  vez  por  outra,  são  os  mendigos  novos, 
machos  e  fêmeas,  que  ainda  são  peixotes  no  officio ;  mas  em 
geral  quem  se  vê  por  lá  são  as  creaturas  sem  casa,  magrizel- 
las,  esfomeadas,  que  andam  aos  baldões  pelos  recantos  escu- 
sos d'aquelles  sitios  isolados ;  pobres  creaturas  que  nem  ao 
menos  chegam  á  corda  de  dois  pence. 

—  Diga-me  lá,  Sam,  que  é  isso  de  corda  de  dois  pence? 

—  A  corda  de  dois  pence,  senhor,  é  como  quem  diz  uma 
hospedaria  barata,  onde  as  camas  custam  dois  pence  por 
noite. 

—  Mas  porque  é  que  chamam  corda  á  cama  ? 

—  Abençoada  innocencia  a  sua,  senhor !  Eu  lhe  digo. 
Quando  a  patroa  e  o  patrão  da  hospedaria  começaram  com 
aquelle  modo  de  vida,  costumavam  fazer  as  camas  no  chão; 


2 DO  AS   AVENTURAS 


mas  aquillo  não  lhes  fazia  conta  nenhuma,  porque  os  hospedes, 
em  vez  de  se  contentarem  com  dois  pence  de  soneca,  ficavam 
ah  estatelados  metade  do  dia.  Vae  agora,  arranjaram  duas  cor- 
das, apartadas  uns  seis  pés  uma  da  outra,  e  a  três  pés  de  altura 
do  chão,  que  se  estendem  pela  casa  fora;  e  as  camas  são  fei- 
tas de  tiras  de  serapilheira,  estendidas  ao  travez  das  cor- 
das. 

—  E  então  ? 

—  E  então,  a  vantagem  do  plano  é  clara  como  agua.  To- 
das as  manhãs,  em  sendo  seis  horas,  soltam  as  cordas  de  um 
dos  lados,  e  zás!  os  hospeaes  ferram  com  os  costados  no 
chão.  O  resultado  é  elles  despertarem  n'um  prompto,  levan- 
tarem-se  muito  socegados,  e  girarem  logo  para  o  olho  da 
rua...  Com  perdão  do  senhor,  acrescentou  Sam,  cortando 
de  súbito  o  seu  loquaz  discurso.  Não  é  aqui  Bury  Saint 
Edmunds  ? 

—  E',  respondeu  o  sr.  Pickwick. 

A  diligencia  rodou  pelas  ruas  bem  calçadas  de  uma  linda 
terriola,  de  aspecto  asseiado  e  prospero,  e  parou  defronte 
de  uma  grande  estalagem  situada  n'uma  rua  larga  e  desafo- 
gada, quasi  em  frente  da  velha  abbadia. 

—  E'  aqui,  disse  o  sr.  Pickwick  olhando  para  a  taboleta, 
é  a  hospedaria  do  Anjo.  Aqui  é  que  nos  apeiamos,  Sam.  Mas 
é  necessário  uma  certa  cautela.  Mande  arranjar  um  gabinete 
particular  e  não  mencione  o  meu  nome.  Percebe  ? 

—  Como  um  alho,  replicou  o  sr.  Welier,  com  um  piscar 
de  olhos  sagaz. 

E,  lendo  tirado  a  mala  do  sr.  Pickwick  das  trazeiras  da 
diligencia,  para  onde  fora  atirada  á  pressa  ao  sahirem  de 
Eatanswill,  o  sr.  Welier  foi  desempenhar-se  do  encargo. 

Promptamente  se  tomou  um  gabinete  particular  e  n'e]le 
se  metteu  sem  demora  o  sr.  Pickwick. 

—  Agora,  Sam,  a  primeira  cousa  a  fazer  é.  . . 

—  Mandar  arranjar  o  jantar,  atalhou  Sam.  E'  tarde  como 
a  breca,  senhor. 

—  Isso  é,  disse  o  sr.  Pickwick  consultando  o  seu  relógio. 
Tem  razão,  Sam. 

—  E  se  o  senhor  me  dá  licença  que  lhe  de  um  conselho, 
o  melhor  é  dormir  uma  noite  descançadinho  e  só  de  manha 
começar  a  tirar  informações  do  tal  intrujão.  Não  ha  nada  que 


DO  SR.   PICKWICK  25  I 


refresque  a  gente  como  uma  boa  soneca,  como  dizia  a  criada 
antes  de  engulir  o  seu  copito  de  laudano. 

—  Parece-me  que  vossê  tem  razão,  Sam.  Mas  primeiro  te- 
nho que  certificar-me  se  elle  está  aqui  na  hospedaria  e  se 
não  é  provável  que  se  safe. 

—  Deixe  isso  por  minha  conta,  senhor.  Eu  cá  vou  dar  or- 
dem para  um  jantarinho  de  chupeta,  e  emquanto  elle  se 
aprompta,  vou  fazendo  as  minhas  investigações.  Em  cinco 
minutos  sou  capaz  de  pescar  todos  os  segredos  ao  criado  que 
engraxa  as  botas. 

—  Trate  d'isso,  disse  o  sr.  Pickwick ;  e  Sam  retirou-se. 
D'ahi  a  meia  hora,  estava  o  sr.  Pickwick  abancado  diante 

de  um  jantar  muito  razoável ;  e  dentro  de  três  quartos  de 
hora  voltava  o  sr.  Weller  com  a  noticia  de  que  o  sr.  Charles 
Pitz-Marshall  tomara  um  quarto,  até  nova  ordem. 

Fora  passar  a  noite  a  uma  casa  particular  das  visinhan- 
ças,  dera  ordem  ao  moço  da  hospedaria  que  ficasse  de  vela 
á  espera  d'elle,  e  levara  comsigo  o  seu  criado. 

—  E  agora,  senhor,  discorreu  Sam,  depois  de  concluir  o 
seu  relatório,  se  eu  poder  ter  de  manhã  uma  palestrasita  com 
o  tal  criado,  elle  põe-me  em  dia  com  todos  os  negócios  do 
patrão. 

—  Como  é  que  vossê  sabe  isso  ? 

—  Ora  valha-o  Deus,  senhor!  é  o  que  fazem  todos  os 
criados. 

—  Oh  !  oh  !  tinha-me  passado  isso  de  idéa.  Bem,  bem. 

—  Depois  veremos  o  que  ha  de  melhor  a  fazer. 

Como  esta  combinação  parecia  ser  a  preferível,  n'ella  se 
ficou. 

O  sr.  Weller,  com  licença  do  patrão,  foi  passar  a  noite 
conforme  lhe  pareceu.  E  não  tardou  a  ser  eleito  por  unani- 
midade presidente  da  sociedade  reunida  no  botequim,  e  d'esse 
honroso  cargo  se  desempenhou  tanto  a  contento  dos  frequen- 
tadores, que  as  suas  gargalhadas  e  os  seus  ruidosos  applau- 
sos  chegaram  até  ao  quarto  do  sr.  Pickwick,  e  encurtaram 
pelo  menos  três  horas  o  prazo  natural  do  seu  somno. 

Logo  pela  manhã  cedo,  Sam  traiou  de  dissipar  uns  restos 
de  febre  que  lhe  haviam  ficado  do  pagode  da  véspera,  por 
meio  de  um  duche  que  lhe  custou  meio  penny. 

Isto  é,  persuadiu  um  joven  cavalheiro  da  repartição  das 


252  AS  AVENTURAS 


cavallariças,  mediante  a  ofterta  d'aquella  moeda,  a  esguichar- 
Ihe  á  bomba  a  cabeça  e  a  cara,  até  ficar  perfeitamente  senhor 
de  si. 

N'essa  occasião,  foi  attrahido,  pela  apparição  de  um  rapa- 
zote  de  libré  côr  de  amora,  que  estava  sentado  n'um  banco 
do  paieo,  lendo  com  ar  de  profunda  absorpção  um  livro  que 
parecia  de  hymnos,  mas  deitando  de  quando  em  quando  um 
olhar  de  revez  para  o  sujeito  que  estava  debaixo  da  bomba, 
como  se  apesar  de  tudo  tomasse  grande  interesse  na  opera- 
ção a  que  elle  se  sujeitava. 

—  Que  grande  ratão  !  pensou  o  sr.  Weller  a  primeira  vez 
que  os  seus  olhos  encontraram  os  do  sujeito  de  fato  côr  de 
amora,  o  qual  tinha  uma  cara  larga,  pallida  e  feia,  olhos 
muito  encovados  e  uma  cabeça  colossal  de  onde  pendiam 
uns  cabellos  lisos  e  pretos.  Que  grande  ratão  !  pensou  o  sr. 
Weller ;  e  em  seguida  continuou  a  lavar-se  sem  pensar  mais 
n'isso. 

O  homem  continuava  a  olhar  ora  para  o  livro  ora  para  Sam, 
como  se  desejasse  travar  conversação.  Até  que  afinal,  Sam, 
para  lhe  dar  pé  de  conversa,  disse  com  um  gesto  familiar : 

—  Como  vae  isso,  ó  amigo  ? 

—  Estimo  dizer  que  vae  bem,  disse  o  homem  fallando 
com  grande  ponderação  e  fechando  o  livro.  Desejo  que  outro 
tanto  lhe  succeda. 

—  Eu  lhe  digo  :  eu  cá  estava  mais  firme  nas  pernas,  se  me 
sentisse  menos  parecido  com  uma  garrafa  de  aguardente  am- 
bulante. Então  vossê  está  cá  na  casa,  ó  amigo  ?_ 

O  homem  côr  de  amora  respondeu  affirmativamente. 

—  Porque  diabo  é  que  vossê  não  foi  dos  nossos  hontem  á 
noite  ?  perguntou  Sam  esfregando  a  cara  com  a  toalha.  Vossê 
tem  ar  de  pandego  —  esperto  como  uma  truta  viva  n'um  cesto 
de  cal,  accrescentou  o  sr.  Weller  em  tom  mais  baixo. 

—  Sahi  a  noite  passada,  mais  o  meu  patrão. 

—  Como  se  chama  elle  .'*  perguntou  Sam,  corando  intensa- 
mente pelo  effeito  combinado  do  alvoroço  e  da  fricção  da 
toalha. 

—  Fitz-Marshall. 

—  Dê  cá  a  mão,  disse  o  sr.  Weller  adiantando-se.  Tenho 
o  maior  prazer  em  o  conhecer.  Sympathiso  com  a  sua  cara, 
%eu  patusco. 


DO  SR.  PICKWICK  253 


—  Ora  !  vejam  lá  que  cousa  exquisita !  disse  o  homem  côr 
de  amora,  com  grande  simplicidade  de  maneiras.  Eu  cá  tam- 
bém sympathiso  tanto  com  a  sua,  que  fiquei  com  ganas  de 
fallar  com  vossê,  apenas  o  vi  debaixo  da  bomba. 

—  Deveras  ? 

—  Palavrinha  !  Não  é  curioso  isto,  hein  ? 

—  E'  muito  curioso,  disse  Sam,  congratulando-se  no  seu 
intimo  com  a  aíTabilidade  do  sujeito.  Como  se  chama,  meu 
patriarcha  ? 

—  Job. 

—  E  é  um  bello  nome,  isso  é;  é  o  único  que  eu  saiba, 
que  não  tem  abreviatura.  E  o  appellido  ? 

—  Trotter.  E  o  seu  ? 

Sam  lembrou-se  da  prevenção  do  amo,  e  disse : 

—  Eu  cá  chamo-me  Walkêr ;  e  o  meu  patrão  chama-se 
Wilkins.  Vossê  quer  tomar  esta  manhã  uma  pinga  de  qual- 
quer cousa,  sr.  Trotter  ? 

O  sr.  Trotter  acquiesceu  a  tão  agradável  proposta  :  e  tendo 
depositado  o  seu  livro  na  algibeira  do  casaco,  acompanhou  o 
sr.  Weller  ao  botequim,  onde  d'ali  a  nada  estavam  a  discutir 
uma  vivificante  composição,  formada  misturando  n'uma  ti- 
gella  de  estanho  uma  certa  quantidade  de  genebra  e  a  fra- 
grante essência  do  cravo. 

—  E  que  tal  se  dá  vóssê  com  o  seu  logar  de  criado  .''  per- 
guntou Sam,  enchendo  pela  segunda  vez  o  copo  do  compa- 
nheiro. 

—  Mal,  disse  Job  lambendo  os  beiços,  muito  mal. 

—  Serio  ? 

—  Deveras.  E  o  peior  é  que  o  meu  patrão  vae  casar. 

—  Ora  essa! 

—  Vae  ;  e  o  peior  ainda  é  que  elle  vae  fugir  com  uma  her- 
deira muitissimo  rica,  que  está  n'um  coUegio. 

—  Que  maganão !  disse  Sam,  tornando  a  encher  o  copo 
do  companheiro.  E'  algum  collegio  aqui  da  terra,  não  é  as- 
sim ? 

Ora,  comquanto  esta  pergunta  fosse  feita  com  o  ar  mais 
negligente  que  imaginar  se  pode,  o  sr.  Job  Trotter  manifes- 
tou claramente  por  gestos  que  percebia  a  anciedade  com  que 
o  seu  novo  amigo  lhe  queria  sacar  a  resposta. 

Despejou  o  copo,  olhou  mysteriosamente  para  o  compa- 


2^4  AS   AVENTUPA.S 


nheiro,  piscou  ambos  os  pequeninos  olhos,  um  depois  do  ou- 
tro, e  finalmente  fez  um  movimento  com  o  braço,  como  se 
estivesse  a  dar  a  uma  bomba  imaginaria  :  dando  a  entender 
que  o  companheiro  dava  á  bomba  para  lhe  esvasiar  es  se- 
gredos. 

—  Nada,  nada,  disse  o  sr.  Trotter  para  concluir.  Isto  não 
é  cousa  que  se  diga  a  toda  a  gente.  E'  segredo  —  um  grande 
segredo,  sr.  Walker. 

Ao  dizer  isto,  o  homem  còr  de  amora  virou  o  copo  com 
o  fundo  para  cima,  afim  de  recordar  ao  companheiro  que  não 
lhe  tinha  ficado  nada  com  que  matasse  a  sede.  Sam  percebeu 
a  intenção ;  e  apreciando  a  delicada  forma  por  que  ella  se 
revelara,  mandou  encher  de  novo  a  tigela  de  estanho,  o  que 
fez  scintillar  os  olhos  do  homem  côr  de  amora. 

—  Com  que  então  é  segredo  ?  disse  Sam. 

—  Assim  me  quer  parecer,  disse  o  sr.  Trotter,  saboreando 
o  licor  com  muito  agrado. 

—  Creio  que  o  seu  patrão  é  muito  rico  ?  perguntou  Sam. 

O  sr.  Trotter  sorriu,  e  pegando  no  copo  com  a  mão  es- 
querda, bateu  quatro  vezes  com  a  mão  direita  na  algibeira 
dos  calções  côr  de  amora,  como  para  dar  a  entender  que  o 
seu  patrão  poderia  ter  feito  o  mesmo  sem  assustar  ninguém 
com  o  tinir  do  dinheiro. 

—  Ah  1   disse  Sam,  então  elle  é  isso  ? 

O  homem  côr  de  amora  acenou  significativamente. 

—  E  então,  não  lhe  parece,  meu  velho,  observou  o  sr. 
Weller,  que  se  vossê  deixar  o  seu  patrão  roubar  a  tal  pe- 
quena, fica  vossê  sendo  um  patife  de  marca? 

—  Isso  sei  eu,  disse  Job  Trotter,  virando  para  o  compa- 
nheiro uma  cara  de  profunda  contricção  e  suspirando  baixi- 
nho, isso  sei  eu,  e  isso  é  que  anda  cá  a  fazer-me  macaqui- 
nhos. Mas  Que  lhe  hei  de  eu  fazer  ? 

—  Que  ha  de  fazer  ?  E'  denunciar  tudo  á  mestra,  e  man- 
dar o  seu  patrão  á  tabúa. 

—  Quem  é  que  me  havia  de  acreditar?  A  pequena,  todos 
a  teem  por  um  exemplar  de  innocencia  e  de  juizo.  Havia  de 
negar,  ella  e  mais  o  patrão.  Quem  é  que  se  fiava  em  mim  ? 
Perdia  o  meu  logar,  e  ainda  em  cima  ficava  com  um  processo 
ás  costas,  por  calumniador  ou  cousa  parecida.  Era  o  que  eu 
tinha  a  ganhar  se  assim  fizesse. 


DO  SR.  PICKWICK  255 


—  Isso  em  parte  é  verdade,  disse  Sam  ruminando,  vossc 
tem  alguma  razão. 

—  Se  eu  conhecesse  algum  sujeito  respeitável  que  tratasse 
d'este  negocio,  pôde  ser  que  tivesse  alguma  esperança  de 
evitar  o  rapto;  mas  ahi  temos  nós  a  mesma  difficuldade,  sr. 
Walker,  exactamente  a  mesma.  Não  conheço  nenhum  sujeito 
serio  aqui  na  terra ;  e  mesmo  que  conhecesse,  aposto  dez 
contra  um  que  não  acreditava  a  historia. 

—  Venha  cá !  disse  Sam,  saltando  de  repente  e  agarrando 
o  outro  pelo  braço.  O  meu  patrão  é  que  é  o  homem  de  que 
vossé  precisa. 

K  depois  de  ligeira  resistência  da  parte  de  Job  Trotter, 
Sam  guiou  o  seu  novo  amigo  ao  quarto  do  sr.  Pickwick,  a 
quem  o  apresentou,  com  um  breve  summario  do  dialogo  que 
acabamos  de  referir. 

—  Tenho  muita  pena  de  atraiçoar  o  meu  patrão,  senhor, 
disse  Job  Trotter,  esfregando  os  olhos  com  um  lenço  encar- 
nado de  umas  três  polegadas  quadradas. 

—  Esses  sentimentos  fazem-lhe  muita  honra,  replicou  o 
sr.  Pickwick,  mas  no  entanto  é  esse  o  seu  dever. 

—  Eu  bem  sei  que  é  o  meu  dever,  redarguiu  Job  muito 
commovido.  Toda  a  gente  deve  tratar  de  desempenhar  os 
seus  deveres,  e  eu  cá  faço  humildes  esforços  para  me  desem- 
penhar dos  meus ;  mas  custa  deveras  a  atraiçoar  um  patrão, 
senhor,  que  nos  dá  fato  para  vestir  e  pão  para  comer,  mesmo 
que  seja  um  desavergonhado,  senhor. 

—  Vossc  c  boa  pessoa,  disse  o  sr.  Pickwick,  muito  pun- 
gido, é  um  homem  honrado. 

—  Adeus  !  adeus  !  atalhou  Sam,  que  presenciara  com  muita 
impaciência  a  chorata  do  sr.  Trotter.  Veja  lá  se  fecha  o 
regador.  Isso  não  serve  de  nada. 

—  Sam,  disse  o  sr.  Pickwick  reprehensivamente,  peza-me 
de  ver  que  vossc  tem  tão  pouco  respeito  pelos  sentimentos 
d'este  bom  rapaz. 

—  Lá  sentimentos  bonitos  tem  elle,  replicou  Sam;  e  tão 
lindos  que  era  mesmo  uma  pena  perdel-os,  e  por  isso  acho 
melhor  guardal-os  muito  bem  guardadinhos  nas  entranhas, 
em  vez  de  os  deixar  evaporar  em  agua  normal,  especialmente 
quando  isso  não  serve  de  nada.  Os  choros  nunca  serviram 
para  dar  corda  a  um  relógio,  nem  para  fazerem  andar  uma 


256  AS  AVENTURAS 


machina  a  vapor.  A  primeira  vez  que  vossê  for  a  alguma  re- 
união onde  se  fume,  homemsinho,  encha  o  cachimbo  com 
esta  reflexão;  e  por  agora  metta-me  esse  pedaço  de  guingão 
encarnado  no  bolso.  Não  é  tão  lindo  que  vossê  precise  de 
andar  a  acenar  com  elle,  como  se  fosse  um  dançador  de 
corda. 

—  O  meu  criado  tem  razão,  disse  o  sr.  Pickwick  aproxi- 
mando-se  de  Job,  comquanto  o  seu  modo  de  se  expressar 
seja  um  tanto  ou  quanto  vulgar,  e  uma  que  outra  vez  incom- 
prehensivel. 

—  Elle  tem  toda  a  razão,  disse  o  sr.  Trotter,  e  eu  não 
torno  a  cahir  mais  n'essa. 

—  Muito  bem,  disse  o  sr.  Pickwick.  E  agora  diga-me  lá  : 
onde  fica  o  tal  collegio  ? 

—  E'  uma  casa  grande,  antiga,  de  tijolo  vermelho,  mesmo 
fora  da  povoação. 

—  E  quando  se  deve  pôr  em  execução  esse  infame  plano? 
quando  se  deve  realisar  o  rapto  ? 

—  Esta  noite,  senhor. 

—  Esta  noite ! 

—  Esta  noite  mesmo,  senhor.  E'  isso  que  me  assusta 
tanto. 

—  Devem-se  tomar  medidas  urgentes.  Quero  fallar  com  a 
directora  do  estabelecimento,  immediatamente. 

—  Com  perdão  do  senhor,  mas  isso  não  serve  de  nada. 

—  Porque  ? 

—  O  meu  patrão  é  muito  ladino. 

—  I$so  sei  eu. 

—  E  por  tal  forma  se  enredou  no  coração  da  velha,  que 
ella  não  era  capaz  de  acreditar  fosse  o  que  fosse  em  pre- 
juízo d'elle,  mesmo  que  o  senhor  lá  chegasse  de  joelhos  a  fa- 
zer juramentos.  Sobretudo  o  senhor  não  tem  outra  prova  a 
não  ser  a  palavra  de  um  criado;  e  esse,  o  meu  patrão  ha  de 
metter-lhe  na  cabeça  que  foi  posto  na  rua  por  qualquer  falta 
e  que  diz  isso  para  se  vingar. 

—  Então  o  que  havemos  nós  de  fazer? 

—  A  velha  só  se  convence,  se  elle  fôr  apanhado  com  a 
bocca  na  botija. 

—  As  velhas  são  teimosas  como  mulas  de  physico,  obser- 
vou o  sr.  Weller  entre  parenthesis. 


DO  SR.  PICKWICK  2D7 


—  Mas  isso  de  o  apanhar  com  a  bocca  no  botija  receio 
que  seja  difficillimo,  disse  o  sr.  Pickwick. 

—  Isso  é  que  eu  não  sei,  disse  Job  depois  de  um  momento 
de  reflexão;  palpita-me  que  se  pôde  fazer  com  facilidade. 

—  Gomo  ? 

—  Eu  lhe  digo  ao  senhor :  o  meu  patrão  e  mais  eu  esta- 
mos combinados  com  as  duas  criadas,  e  ellas  em  sendo  dez 
horas  encafuam-nos  na  cozinha.  Quando  a  familia  estiver  re- 
colhida, nós  sahimos  da  cosinha  e  a  menina  sabe  do  quarto. 
Temos  já  uma  seje  de  posta  á  espera,  e  ala  que  se  faz 
tarde ! 

—  Bem  !  e  depois  ? 

—  E  depois,  tenho  estado  a  pensar  que  se  o  senhor  esti- 
vesse de  atalaya  no  jardim,  sósinho. . . 

—  Sósinho,  para  que  ? 

—  Pareceu-me  que  a  velha  não  havia  de  gostar  que  uma 
cousa  d'estas  se  descobrisse  diante  de  muita  gente.  E  a  pe- 
quena também  — veja  lá  como  ella  ha  de  ficar! 

—  Tem  vosse  muita  razão.  Essa  reflexão  demonstra  grande 
delicadeza  de  sentimentos.  Continue ;  tem  razão  ás  carra- 
das. 

—  Dizia  eu  então  que  se  o  senhor  ficasse  á  espera  no  jar- 
dim das  trazeiras,  sósinho,  eu  cá  podia  mettel-o  em  casa  pela 
porta  que  fica  no  extremo  do  corredor,  em  sendo  onze  e  meia 
em  ponto.  E  assim  estaria  o  senhor  lá  mesmo  a  tempo  para 
me  ajudar  a  desmanchar  os  planos  d'esse  maroto  que  por 
desgraça  me  enleiou  nas  suas  redes. 

E  o  sr.  Trotter  suspirou  profundamente. 

—  Não  se  apoquente  por  causa  d'isso,  disse  o  sr.  Pickwick. 
Se  elle  tivesse  uma  partícula  da  delicadeza  de  sentimentos 
que  o  distinguem  a  vossê,  humilde  como  é,  não  perderia  eu 
as  esperanças  com  elle. 

Job  Trotter  inclinou-se  com  muita  reverencia ;  e  apesar 
das  observações  anteriores  do  sr.  Weller,  chegaram-lhe  ou- 
tra vez  as  lagrimas  aos  olhos. 

—  Nunca  vi  um  chorão  d'este  calibre!  disse  Sam.  Demó- 
nios me  levem  se  elle  não  tem  na  cabeça  uma  torneira  sem- 
pre aberta. 

—  Sam,  disse  o  sr.  Pickwick  com  grande  severidade,  cale 
a  bocca. 

17 


258  AS   AVENTURAS 


—  Não  me  agrada  esse  plano,  continuou  o  sr.  Pickwick, 
depois  de  profunda  meditação.  Porque  é  que  eu  não  posso 
communicar  com  os  amigos  d'essa  menina  ? 

—  Porque  elles  moram  a  cem  milhas  d'aqui,  senhor. 

—  E'  tirar  d'ahi  o  sentido,  disse  Sam  aparte. 

—  Então  esse  jardim,  nroseguiu  o  sr.  Pickwick,  como  hei 
de  eu  lá  entrar  ? 

—  O  muro  é  muito  baixo,  e  o  seu  criado  pôde  ajudal-o  a 
trepar. 

—  O  meu  criado  pôde  ajudar-me  a  trepar,  repetiu  o  sr. 
Pickwick  mechanicamente.  E  vossê  está  com  certeza  ao  pé 
da  porta  de  que  me  fallou  ? 

—  Não  ha  que  errar ;  é  a  única  que  dá  para  o  jardim. 
Bata  a  ella,  logo  que  ouvir  o  relógio  dar  horas,  e  eu  abro-lh'a 
n'um  prompto. 

—  Não  me  agrada  o  plano,  mas  como  não  vejo  outro  e 
como  se  trata  da  felicidade  d'essa  menina,  adopto-o.  Lá  es- 
tarei com  certeza. 

Assim,  pela  segunda  vez,  a  innata  bondade  do  sr.  Pick- 
wick ia  envolvel-o  n'uma  empreza,  á  qual  da  melhor  vontade 
se  eximiria. 

—  Que  nome  tem  a  casa?  perguntou  elle. 

—  Westgate-House,  senhor.  Quando  chegar  ao  fim  da 
villa,  vire  um  pouco  para  a  direita  :  ve-a  logo  isolada,  a  pe- 
quena distancia  da  estrada  real.  com  o  nome  n'uma  chapa  de 
cobre,  no  portão. 

—  Já  a  conheço:  já  a  notei  da  outra  vez  que  estive  aqui 
na  terra.  Pôde  contar  comigo. 

O  sr.  Trotter  fez  outra  reverencia,  e  voltou-se  para  sahir. 
O  sr.  Pickwick  metteu-lhe  um  guinéo  na  mão. 

—  Vossê  é  bom  rapaz,  disse  elle,  e  cu  admiro  a  bondade 
da  sua  alma.  Nada  de  agradecimentos.  Lembre-se  bem  —  ás 
onze  horas.  ' 

—  Não  ha  receio  que  eu  me  esqueça. 

E  dizendo  estas  palavras,  Job  Trotter  sahiu,  seguido  por 
Sam. 

—  Olhe  lá,  disse  este  ultimo,  não  é  má  ideia  essa  de  fazer 
choradeira.  Por  esse  preço,  chorava  eu  mais  que  uma  bi- 
queira quando  chove  a  cântaros.  Como  é  que  vossê  arranja  isso  ? 


DO  SR.   PICKWICK  ,  2  DO 


—  Vem  do  coração,  sr.  Walker,  replicou  Job  com  solem- 
nidade.  Passe  muiio  bem. 

—  Sahiu-se-me  piegas,  o  patusco!  pensou  Sam  quando 
Job  se  afastou.  Deixal-o  !  o  que  é  certo  é  que  lhe  apanhámos 
o  recheio  todo  ! 

Não  nos  é  possivel  determinar  a  natureza  dos  sentimen- 
tos que  passavam  pela  mente  do  sr.  Trotter,  visto  que  igno- 
ramos quaes  elles  fossem. 

Decorreu  o  dia,  chegou  a  noite,  e  pouco  antes  das  dez  ho- 
ras Sam  Weller  participou  que  o  sr.  Jingle  e  Job  tinham  sa- 
hido  juntos,  que  tinham  a  bagagem  arrumada,  e  que  tinham 
alugado  uma  sege. 

Evidentemente  o  conluio  estava  em  via  de  execução,  con- 
forme previra  o  sr.  Trotter. 

Chegaram  as  dez  e  meia  :  era  a  occasião  de  o  sr.  Pickwick 
partir  pa^a  a  sua  delicada  empreza. 

Recusando  levar  sobretudo,  afim  de  não  ter  estorvos  para 
escalar  o  muro,  sahiu  seguido  pelo  criado. 

A  lua  estava  enublada. 

Estava  uma  bella  noite,  secca  mas  extraordinariamente  es- 
cura. 

Caminhos,  sebes,  campos,  casas,  tudo  estava  envolto  em 
sombras  densas. 

A  atmosphera  estava  quente  e  suffocante  ;  na  orla  do  ho- 
risonte  lampejavam  a  espaço  os  relâmpagos  estivaes,  propor- 
cionando a  única  luz  que  rasgava  a  escuridão  lobrega  da 
noite. 

Sons  não  se  ouviam,  a  não  serem  os  latidos  longinquos 
de  algum  cão  inquieto. 

Deram  com  a  casa,  leram  a  chapa  de  cobre,  contornaram 
o  muro,  e  pararam  no  ponto  em  que  este  os  dividia  do  ex- 
tremo do  jardim. 

—  Vossê  volte  para  a  estalagem,  Sam,  logo  depois  de  me 
ajudar,  disse  o  sr.  Plck^vick. 

—  Sim,  senhor. 

—  E  fique  alerta  até  eu  voltar. 

—  Está  claro,  senhor. 

—  Segure-me  na  perna,  e  quando  eu  disser:  Arriba!  le- 
vante-me  com  cautela. 

—  Fique  descançado,  senhor 


200  AS  AVENTURAS 


Estabelecidos  estes  preliminares,  o  sr.  Pickwick  deitou  as 
mãos  ao  cimo  do  muro,  e  soltou  a  ordem  de  «Arriba  !«  a  qual 
foi  mui  litteralmente  obedecida. 

Ou  porque  o  seu  corpo  partilhasse  até  certo  ponto  da 
elasticidade  do  seu  espirito,  ou  porque  Sam  tivesse  acerca 
dos  empurrões  cautelosos  uma  ideia  mais  exaggerada  do  que 
a  do  amo,  o  effeito  immediato  do  seu  auxilio  foi  ferrar  com  o 
homem  immortal  para  o  outro  lado  do  muro. 

Ahi,  depois  de  amachucar  três  groselheiras  e  uma  roseira, 
o  sr.  Pickwick  estatelou-se  ao  comprido. 

—  Não  se  magoou,  senhor?  disse  Sam,  ciciando  alto,  logo 
que  se  restabeleceu  da  surpreza  causada  pela  súbita  desap- 
parição  do  amo. 

—  Com  certeza  que  não  me  magoei  a  mim,  replicou  o  sr. 
Pickwick  do  outro  lado  do  muro,  mas  vossê  é  que  me  está 
a  parecer  que  me  magoou. 

—  Espero  que  não,  senhor. 

—  Não  quer  dizer  nada !  disse  o  sr.  Pickwick  levantando- 
se,  umas  arranhadurasilas.  Vá-se  embora,  quando  não  ou- 
vem-nos. 

—  Adeus, senhor. 

—  Adeus. 

Sam  Weller  partiu  a  passos  furtivos,  deixando  o  sr.  Pick- 
wick sósinho  no  jardim. 

Por  vezes  appareceram  luzes  nas  diíferentes  janellas,  ou 
lampejaram  nas  escadas,  como  se  as  pessoas  de  casa  se  esti- 
vessem a  recolher. 

Tendo  cautela  de  não  se  aproximar  demasiadamente  da 
porta  antes  da  hora  marcada,  o  sr.  Pickwick  agachou-se  n'um 
recanto  do  muro,  á  espera  que  ella  chegasse. 

Situação  era  esta  capaz  de  abater  o  espirito  de  muita 
gente. 

E  comtudo  o  sr.  Pickwick  nem  sentia  abatimento  nem  te- 
mor. 

Sabia  que  o  seu  propósito  era  no  fundo  meritório,  e  de- 
positava implícita  confiança  no  magnânimo  Job. 

Era  uma  situação  triste  por  certo,  para  não  dizer  medo- 
nha ;  mas  um  espirito  contemplativo  pôde  sempre  gastar  o 
tempo  na  meditação. 

O  sr.  Pickwick  tinha  meditado  tanto,  que  acabara  por  dor- 


DO  SR.  PICKWICK  261 


mitar,  quando  foi  despertado  pelo  sino  da  egreja  próxima 
que  dava  a  hora  marcada  —  onze  e  meia. 

—  E'  a  hora,  pensou  o  sr.  Pickwick,  pondo-se  cautelosa- 
mente em  pé. 

Ergueu  os  olhos  para  a  casa. 

As  luzes  haviam  desapparecido,  e  as  janellas  estavam  fe- 
chadas—  tudo  na  cama,  sem  duvida. 

Dirigiu-se  no  bico  dos  pés  para  a  porta,  e  bateu  de  man- 
sinho. 

Passados  dois  ou  três  minutos  sem  resposta,  bateu  outra 
vez  com  mais  força,  e  depois  terceira  vez  com  mais  força 
ainda. 

Afinal  ouviu-se  na  escada  um  rumor  de  passos,  e  logo  a 
luz  de  uma  vela  se  coou  pelo  buraco  da  fechadura. 

Corridos  os  ferrolhos,  destrancada  a  porta,  esta  abriu-se 
lentamente. 

Ora  a  porta  abria-se  para  fora :  e  á  proporção  que  ella  se 
escancarava,  o  sr.  Pickwick  ia-se  sumindo  cada  vez  mais  por 
detraz  d'ella. 

Qual  foi  o  seu  espanto  quando,  ao  espreitar  por  cautela, 
viu  que  a  pessoa  que  abrira  era  —  não  Job  Trotter,  mas  uma 
criada  com  um  castiçal  na  mão  ! 

O  sr.  Pickwick  escondeu  novamente  a  cabeça,  com  a  ra- 
pidez desenvolvida  por  esse  admirável  actor  de  melodrama, 
Punch,  quando  está  deitado  á  espreita  do  homem  da  cabeça 
achatada  e  da  caixa  de  musica. 

—  Havia  de  ser  o  gato,  Sarah,  disse  a  criada  fallando  a 
alguém  para  dentro.  Bich,  bich,  bich  —  bichano,  bichano  ! 

Mas  como  nenhum  animal  fosse  attrahido  por  estas  cari- 
nhosas invocações,  a  rapariga  fechou  lentamente  a  porta,  e 
tornou  a  aferrolhal-a ;  deixando  o  sr.  Pickwick  estirado  de 
encontro  á  parede. 

—  Esta  é  muito  curiosa,  pensou  o  sr.  Pickwick.  Estão 
ainda  a  pé,  pelo  que  vejo,  além  da  sua  hora  habitual.  E'  in- 
felicidade minha,  o  terem  ellas  logo  escolhido  esta  noite  para 
estarem  de  vela  —  é  uma  dos  diabos  ! 

E  com  estes  pensamentos,  o  sr.  Pickwick  alapardou-se 
cautelosamente  no  recanto  do  muro  onde  já  estivera  occulto, 
esperando  cjue  chegasse  occasião  em  que  lhe  parecesse  pru- 
dente repetir  o  signal. 


2b2  AS    AVENTURAS 


Ainda  não  tinham  passado  cinco  minutos,  quando  um  re- 
lâmpago vivissimo  foi  seguido  por  um  violento  trovão  que 
rugiu  ao  longe  tremendamente  —  seguiu-se  outro  relâmpago, 
mais  oífuscante  do  que  o  outro,  e  um  segundo  trovão  mais 
forte  do  que  o  primeiro  e  depois  uma  carga  de  agua  furiosa, 
varrendo  tudo  adiante  de  si. 

O  sr.  Pickwick  estava  farto  de  saber  que  uma  arvore  é 
um  visinho  perigosissimo  durante  uma  trovoada. 

Ora  elle  tinha  uma  arvore  á  direita,  outra  á  esquerda,  uma 
terceira  na  frente,  e  uma  quarta  atraz  de  si. 

Se  elle  se  deixasse  ficar  ali,  corria  o  perigo  de  ser  fulmi- 
nado ;  se  elle  se  mostrasse  no  meio  do  jardim,  arriscava-se  a 
cahir  nas  unhas  da  policia. 

Por  uma  ou  duas  vezes  elle  tentou  escalar  o  muro,  mas 
não  tendo  quem  o  ajudasse,  a  única  consequência  dos  seus 
esforços  foi  esfolar  os  joelhos  e  as  canellas  e  suar  copiosa- 
mente. 

—  Que  terrivel  situação !  disse  o  sr.  Pickwick,  parando 
para  enxugar  a  testa  depois  d'este  exercício. 

Ergueu  os  olhos  para  a  casa  —  tudo  ás  escuras.  Deviam 
estar  'mettidas  na  cama  afinal.  Convinha  experimentar  de 
novo  o  signal. 

Foi  pizando  com  os  bicos  dos  pés  o  cascalho  húmido,  e 
bateu  á  porta. 

Suspendeu  o  fôlego,  e  escutou  pelo  buraco  da  fechadura. 
Nem  sombra  de  resposta.  Que  estranheza  !  Outra  argolada. 
Tornou  a  escutar.  Ouviu-se  dentro  um  ciciar  de  manso,  e 
uma  voz  bradou  : 

—  Quem  está  ahi  ? 

—  Não  é  Job,  pensou  o  sr.  Pickwick  cozendo- se  precipi- 
tadamente com  a  parede.  E'  uma  mulher. 

Mal  tivera  tempo  para  formular  esta  conclusão,  quando 
se  abriu  por  cima  d'elle  uma  janella,  e  três  ou  quatro  vozes 
femininas  repetiram  a  pergunta  : 

—  Quem  está  ahi? 

O  sr.  Pickwick  não  ousava  tugir  nem  mugir.  Era  claro 
que  o  collegio  estava  todo  em  alvoroço.  Resolveu  deixar-se 
ficar  onde  estava  emquanto  o  susto  não  passasse;  e  depois 
fazer  um  esforço  sobrenatural  e  saltar  por  cima  do  muro,  ou 
então  perecer  n'essa  tentativa. 


DO  SR.   PICKWICK 


263 


Como  todas  as  determinações  do  sr.  Pickwick,  era  esta 
a  melhor  que  poderia  tomar-se  em  taes  circumstancias;  mas 
por  desgraça  fundava-se  na  presumpção  de  que  não  se  atre- 
veriam a  abrir  a  porta  outra  vez. 

Qual  foi  o  seu  desapontamento,  quando  ouviu  correr  fer- 
rolhos e  tranquetas,  e  viu  a  porta  a  abrir-se,  a  abrir-se  lenta- 
mente ! 

Recolheu-se  passo  a  passo  para  o  seu  recanto ;  mas  fizesse 
o  que  fizesse,  a  interposição  do  seu  corpo  impedia  que  ella 
se  escancarasse  de  todo. 

—  Quem  está  ahi  ?  guinchou  da  escada  um  coro  de  vozes 
de  tiple,  consistindo  na  solteirona,  que  era  directora  do  col- 
legio,  três  professoras,  cinco  criadas  e  trinta  pensionistas,  to- 
das em  trajes  menores,  e  todas  com  a  cabeça  ornamentada 
com  uma  floresta  de  papelotes. 

Está  bem  de  ver  que  o  sr.  Pickwick  não  disse  quem  es- 
tava ali ;  e  o  estribilho  do  coro  mudou  então  para : 

—  Valha-me  Deus  !  que  susto  !  que  medo  ! 

—  Cosinheira,  disse  a  directora  que  tLvera  o  cuidado  de 
ficar  no  cimo  da  escada,  na  cauda  do  grupo.  Cosinheira,  por- 
que não  dá  vossê  uma  volta  pelo  jardim  ? 

—  Perdão,  minha  senhora,  n'essa  não  caio  eu. 

—  Oh  !  senhores  !  que  estúpida  que  é  esta  cosinheira  !  ex- 
clamaram as  trinta  pensionistas. 

—  Cosinheira,  disse  a  directora  com  grande  dignidade,  faça 
favor  de  não  me  responder.  Dou-lhe  ordem  positiva  para  dar 
uma  vista  de  olhos  pelo  jardim,  immediatamente. 

N'isto  a  cosinheira  desatou  a  chorar,  e  a  criada  de  fora 
disse  que  aquillo  era  «uma  vergonha!»  :  e  por  tomar  o  par- 
tido da  cosinheira,  foi  logo  despedida,  sem  mais  nem  menos. 

—  Vossê  ouve,  cosinheira  ?  disse  a  directora,  batendo  o 
pé  com  impaciência. 

—  Vosse  não  ouve  a  senhora,  cosinheira?  bradaram  as 
três  professoras. 

—  Que  insolente  que  é  esta  cosinheira !  bradaram  as  trinta 
pensionistas. 

A  desventurada  cosinheira,  instada  por  tal  forma,  deu  dois 
ou  três  passos,  segurando  o  castiçal  de  modo  que  não  podia 
ver  bóia,  e  declarou  que  não  estava  lá  cousa  nenhuma,  e  que 
havia  de  ser  o  vento. 


2(34  AS   AVENTURAS 


Ia  por  conseguinte  fechar-se  a  porta,  quando  uma  pensio- 
nista curiosa,  que  estivera  a  espreitar  por  entre  os  gonzos, 
soltou  um  guincho  medonho,  que  fez  voltar  para  traz,  n'um 
abrir  e  fechar  d'olhos,  a  cosinheira  e  a  criada  de  fora  e  as 
mais  destemidas. 

—  Que  foi  que  aconteceu  a  Miss  Smithers  ?  perguntou  a 
directora,  ao  ver  a  alludida  Miss  Smither  cahir  com  um  che- 
lique  da  força  de  quatro  meninas. 

—  Valha -me  Deus  !  Miss  Smithers  !  minha  querida  !  bra- 
daram as  outras  vinte  e  nove  pensionistas. 

—  Oh  !  o  homem  !  o  homem !  atraz  da  porta  !  guinchou 
Miss  Smithers. 

Apenas  a  directora  escutou  este  grito  aterrador,  desatou 
a  fugir  para  o  seu  quarto,  deu  duas  voltas  á  chave,  e  cahiu 
em  delíquio  com  toda  a  commodidade. 

As  pensionistas,  mais  as  professoras,  mais  as  criadas,  pre- 
cipitaram-se  pela  escada  acima,  umas  por  cima  das  outras ; 
e  nunca  se  viram  guinchos,  nem  desmaios,  nem  empurrões 
como  então. 

Em  pleno  tumulto,  o  sr.  Pickwick  surdiu  do  seu  esconde- 
rijo, e  apresentou-se  no  meio  d'ellas. 

—  Senhoras,  minhas  queridas  senhoras !  bradava  elle. 
—-Oh!   e  elle  chama-nos  queridas!   gritou  a  mais  velha  e 

a  mais  feia  das  professoras.  Que  miserável ! 

—  Minhas  senhoras,  rugiu  o  sr.  Pickwick,  no  auge  do  des- 
espero pelo  perigo  da  situação.  Ouçam-me.  Não  sou  ladrão. 
O  que  eu  quero  aqui  é  a  sr."  directora. 

—  Oh !  que  monstro  feroz !  berrou  outra  professora.  O 
que  elle  quer  é  Miss  Tomkins. 

Houve  outra  guinchadeira  geral. 

—  Toquem  a  sineta  de  alarme !  alguém  que  toque !  bra- 
daram uma  dúzia  de  vozes. 

—  Não  toquem  !  não  toquem  !  gritou  o  sr.  Pickwick.  Olhem 
para  mim.  Pareço  acaso  um  ladrão  ?  Minhas  queridas  senho- 
ras —  podem  atar-me  de  pés  e  mãos,  podem  encerrar-me 
n'uma  alcova,  se  quizerem.  O  que  eu  desejo  só  é  que  ouçam 
o  que  eu  tenho  a  dizer  —  ouçam-me,  pelo  amor  de  Deus!* 

—  Como  é  que  entro\i  no  nosso  jardim  .'*  balbuciou  a  criada 
de  fora. 

—  Chamem  a  dona  da  casa,  e  eu  lhe  conto  tudo,  tudo  1 


DO  SR.   PICKWICK  2ÒD 


continuou  o  sr.  Pickwick,  dando  a  máxima  força  aos  pulmões. 
Chamem-na  —  vejam  se  socegam,  e  chamem-na,  e  já  ficam 
sabendo  tudo. 

Quer  fosse  pelo  aspecto  do  sr.  Pickwick,  quer  pelas  suas 
maneiras,  quer  fosse  pela  tentação,  tão  irresistível  para  os  es- 
piritos  femininos,  de  saber  alguma  cousa  até  então  envolta 
em  mysterio,  o  caso  é  que  a  parte  mais  razoável  do  pessoal 
do  collegio  (umas  quatro  talvez)  reduziu-se  a  um  estado  de 
quietação  relativa. 

Por  ellas  foi  proposto,  afim  de  experimentar  a  sinceridade 
do  sr.  Pickwick,  que  elle  se  submettesse  immediatamente  ao 
encarceramento. 

E,  tendo  este  cavalheiro  consentido  em  ter  uma  confe- 
rencia com  Miss  Tomkins,  do  interior  de  uma  alcova  onde 
as  alumnas  externas  guardavam  os  chapéos  e  os  saccos  do 
lanche,  elle  para  lá  se  metteu  espontaneamente  e  foi  encer- 
rado com  segurança. 

Isto  deu  animo* ás  outras;  e  tendo  Miss  Tomkins  voltado 
a  si  e  voltado  para  baixo,  a  conferencia  começou. 

—  Que  fazia  vossemecê  no  meu  jardim,  homemsinho  ? 
perguntou  ella  com  voz  débil. 

—  Vinha  prevenil  a  que  uma  das  suas  educandas  tencio- 
nava fugir  esta  noite,  respondeu  o  sr.  Pickwick  de  dentro  da 
alcova. 

—  Fugir!  exclamaram  Miss  Tomkins,  as  três  professoras, 
as  trinta  pensionistas  e  as  cinco  criadas.  Com  quem  .'' 

—  Com  o  seu  amigo,  o  sr.  Charles  Fitz  Marshall. 

—  Meu  amigo!  Eu  conheço  lá  similhante  sujeito  I 

—  Bem!  então,  com  o  sr.  Jingle. 

—  Nunca  na  minha  vida  ouvi  esse  nome. 

—  Então  fui  eu  illudido,  e  burlado.  Fui  victima  de  um  con- 
luio—  de  um  infame  e  abjecto  conluio.  Mande  perguntará 
hospedaria  do  Anjo,  se  acaso  me  não  acredita,  minha  que- 
rida senhora.  Mande  ao  Anjo,  chamar  o  criado  do  sr.  Pick- 
wick, supplico-lhe,  minha  senhora. 

—  Deve  ser  pessoa  séria  —  tem  um  criado  !  disse  Miss 
Tomkins  á  mestra  de  escripta  e  de  contas. 

—  A  minha  opinião,  Miss  Tomkins,  disse  a  mestra  de  es- 
cripta e  de  contas,  é  que  o  criado  d'elle  é,  mas  é  enfermeiro. 
O  que  elle  me  parece  é  doido,  Miss  Tomkins. 


200  AS   AVENTURAS 


—  Creio  que  tem  razão,  Miss  Gvvynn,  replicou  a  directora, 
Mandem  duas  das  criadas  ao  Anjo,  e  fiquem  as  outras  para 
nos  proteger. 

Expediram-se  pois  duas  criadas  para  o  Anjo,  em  cata  do 
sr.  Samuel  Weller :  e  as  três  restantes  ficaram  a  proteger 
Miss  Tomkins,  e  as  três  mestras,  mais  as  trinta  educandas,  E 
o  sr.  Pickwick  sentou-se  na  alcova  sob  uma  enfiada  de  sacos, 
aguardando  o  regresso  das  mensageiras  com  toda  a  philo- 
sophia  e  fortaleza  de  animo  que  lhe  foi  possível  invocar. 

Hora  e  meia  passou  antes  que  ellas  voltassem. 

Quando  voltaram,  o  sr.  Pickwick  reconheceu,  além  da 
Yoz  do  sr.  Samuel  Weller,  duas  outras  vozes,  cujos  timbres 
lhe  feriram  familiarmente  os  ouvidos  ;  mas  não  pôde  por  caso 
algum  recordar-se  a  quem  pertenciam. 

Seguiu-se  um  breve  colloquio. 

Desaferrolhou-se  a  porta. 

O  sr.  Pickwick  surdiu  do  seu  escaninho,  e  achou-se  em 
presença  do  collegio  inteiro,  de  Samuel  Weller  e  —  do  velho 
Wardle,  mais  do  seu  futuro  genro,  o  sr.  Trundle  ! 

—  Meu  caro  amigo,  disse  o  sr.  Pickwick  precipitando-se 
para  o  sr.  Wardle  e  agarrando-lhe  na  mão,  pelo  amor  de 
Deus,  veja  se  explica  a  esta  senhora,  a  desgraçada  e  ter- 
rível situação  em  que  estou  mettido.  O  meu  criado  deve  ter- 
Ihe  contado  já  :  diga  em  todo  o  caso,  meu  bom  amigo,  que 
eu  não  sou  ladrão  nem  doido. 

—  Isso  disse  eu,  meu  caro  amigo,  isso  disse  eu  já,  repli- 
cou o  sr.  Wardle,  sacudindo  a  mão  direita  do  sr.  Pickwick, 
ao  passo  que  o  sr.  Trundle  lhe  sacudia  a  esquerda. 

—  E  seja  lá  quem  fôr  que  diga  ou  tiver  já  dito  que  elle  é, 
interpoz  o  sr.  Weller  dando  uns  passos  em  frente,  diz  o  que 
não  é  verdade,  antes  pelo  contrario,  porque  é  tal  qual  o  con- 
trario. E  se  ha  por  ahi  homens,  sejam  lá  quantos  forem,  que 
digam  isso,  eu  cá  terei  muito  prazer  em  lhes  dar  uma  prova 
convincente  de  que  se  enganaram,  aqui  mesmo  n'esta  casa, 
se  estas  muito  respeitáveis  damas  quizerem  ter  a  bondade  de 
se  retirar,  ou  de  os  mandar  cá  para  cima,  a  um  e  um. 

Tendo  pronunciado  este  desafio  com  grande  volubilidade, 
o  sr.  Weller  bateu  energicamente  com  o  punho  cerrado  na 
palma  da  mão  aberta,  e  piscou  jocosamente  o  olho  para  Miss 
Tomkins. 


DO  SR.  PICKWICK  267 


Mas  não  é  fácil  descrever  a  intensidade  do  horror  que  ac- 
commetteu  a  veneranda  directora,  ao  ver  que  elle  suppunha 
dentro  dos  limites  do  possivel  o  existirem  alguns  homens  no 
recinto  do  Collegio  de  Meninas,  de  Westgate  House. 

A  justificação  do  sr.  Pickwick  depressa  concluiu.  Mas  nem 
no  decurso  do  seu  regresso  na  companhia  dos  amigos,  nem 
depois  quando  abancu  defronte  de  um  lume  confortável  e 
de  uma  ceia  reconfortante,  foi  possivel  arrancar-lhe  uma  pa- 
lavra. 

Parecia  atordoado,  assombrado. 

Só  uma  vez,  voltando-se  para  o  sr.  Wardle,  disse-lhe : 

—  Como  é  que  veiu  aqui  parar  ? 

—  Trundle  e  eu  viemos  aqíii  para  darmos  uns  tiros  no 
primeiro  dia  de  caça,  replicou  Wardle.  Chegámos  esta  noite, 
e  ficámos  pasmados  quando  o  seu  criado  nos  disse  que  o 
amigo  também  estava  por  cá.  Ainda  bem  !  disse  o  prasenteiro 
velhote  batendo-lhe  nas  costas,  ainda  bem  !  Havemos  de  ar- 
ranjar uma  caçada  soberba  para  o  dia  da  abertura,  e  damos 
a  Winkle  occasião  para  se  desforrar  —  hein  !  que  diz  a  isto, 
meu  velhote  ? 

O  sr.  Pickwick  não  abriu  bico ;  nem  mesmo  perguntou 
pelos  seus  amigos  de  Dingley  Dell,  e  pouco  depois  recolheu 

f>ara  o  seu  quarto,  dando  ordem  a  Sam  para  vir  buscar-lhe  a 
uz  quando  elle  tocasse  a  campainha. 

A  campainha  tocou  com  eífeito  no  momento  conveniente, 
e  Sam  apresentou-se. 

—  Sam,  disse  o  sr.  Pickwick  espreitando  por  cima  dos 
lençoes. 

—  Senhor,  disse  Sam. 

O  sr.  Pickwick  fez  uma  pausa,  e  Sam  espevitou  a  vela. 

—  Sam,  tornou  a  dizer  o  sr.  Pickwick,  parece  que  n'um 
esforço  desesperado. 

—  Senhor,  repetiu  o  sr.  Weller. 

—  Onde  está  esse  Trotter  ? 

—  Quem  ?  Job  ? 

—  Sim. 

—  Tingou-se,  senhor. 

—  Mais  o  patrão,  está  bem  de  ver  ? 

—  Amigo  ou  patrão,  ou  seja  lá  o  que  fôr,  tingou-se  com 
elle.  Olhe  que  aquillo  é  uma  rica  parelha. 


208  AS  AVENTURAS 


—  Jingle  suspeitou  da  minha  intenção,  e  mandou-lhe  a 
vossê  aquelle  intrujão  com  a  tal  historia,  não  lhe  parece  ? 
disse  o  sr.  Pickwick  meio  engasgado. 

—  Foi  isso  mesmo,  senhor. 

—  E'  claro  que  tudo  aquillo  era  peta  ? 

—  Nem  mais  nem  menos.  Foi  uma  partida  de  estalo. 

—  O  ladrão  é  matreiro  deveras,  sim,  senhor. 

—  Para  a  outra  vez,  parece-me  que  elle  não  nos  ha  de  es- 
capar com  tanta  facilidade,  hein,  Sam  ? 

—  Assim  me  parece,  senhor. 

—  Onde  quer  que  eu  encontre  aquelle  Jingle,  seja  em  que 
occasião  fôr,  exclamou  o  sr.  Pickwick  sentando-se  na  cama, 
e  amachucando  o  travesseiro  com  um  murro  tremendo,  hei 
de  infligir-lhe  uma  punição  severa,  isto  além  de  o  desmasca- 
rar, como  elle  tão  ricamente  merece.  Olé  se  o  faço  !  tão  certo 
como  eu  chamar-me  Pickwick. 

—  E  onde  quer  que  eu  deite  a  unha  ao  tal  choramigas  da 
trunfa  negra,  se  eu  não  lhe  puxo  agua  a  valer  até  ás  vigias, 
então  não  me  chame  eu  Weller.  Muito  boa  noite,  senhor. 


CAPITULO  XVII 

Mo&trando  como  um  ataque  de  rheumatíco  pôde 
em  certos  casos  actuar  como  estimulante  do 
génio  inventivo. 

A  constituição  do  sr.  Pickwick,  embora  capaz  de  aguentar 
uma  somma  considerável  de  trabalhos  e  de  fadi^^as,  não  re- 
sistiu a  uma  combinação  de  assaltos,  tal  como  sofFrera  na  me- 
morável noite,  de  que' trata  o  anterior  capitulo. 

Este  systema  de  apanhar  um  banho  ao  ar  livre  da  noite 
e  depois  enxugar-se  n'um  cacifo  todo  fechado,  é  tão  perigoso 
como  original. 

O  sr.  Pickwick  foi  acommettido  de  um  ataque  de  rheu- 
matico. 

Mas  ao  passo  que  assim  eram  deterioradas  as  forças  phy- 
sicas  do  grande  homem,  a  sua  energia  intellectual  mantinha 


DO  SR.  nCKWICK  269 


o  vigor  antigo,  o  seu  espirito  e  innata  elasticidade,  o  seu 
temperamento  e  bom  humor  habitual. 

Mesmo  o  vexame  que  lhe  causara  a  sua  recente  aventura 
ia-selhe  apagando  da  mente;  e  elle  fazia  coro,  sem  cólera 
nem  turbação,  com  o  riso  cordeal  que  qualquer  allusão  a  ella 
excitava  no  sr.  Wardle. 

Ainda  mais. 

Durante  os  dois  dias  que  o  sr.  Pickwick  ficou  de  cama, 
foi  Sam  quem  o  tratou  com  toda  a  constância. 

No  primeiro,  tentou  elle  distrahir  o  amo  com  anecdotas 
e  conversação ;  no  segundo,  o  sr.  Pickwick  pediu  a  bua  es- 
crevaninha,  penna  e  tinta,  e  esteve  muito  atarefado  durante 
o  dia  inteiro. 

No  terceiro,  como  já  podesse  ficar  sentado  no  quarto, 
mandou  Sam  com  um  recado  aos  srs.  Wardle  e  Trundle,  pe- 
dindo-lhes  que  lhe  dessem  o  gosto  de  vir  aquella  noite  beber 
uma  gota  de  vinho  em  sua  companhia. 

O  convite  foi  aceite  da  melhor  vontade ;  e  quando  elles 
estavam  sentados,  de  copos  na  frente,  o  sr.  Pickwick,  corando 
por  vezes,  leu-lhes  o  seguinte  conto,  por  elle  redigido,  du- 
rante a  sua  enfermidade,  sobre  as  notas  arrancadas  á  narra- 
tiva genuina  e  authentica  de  Sam  Weller. 


O     SACRISTÃO 

HISTORIA    DE    UM    AMOR    VERDADEIRO 

«N'uma  pequena  terriola  de  província,  a  grande  distancia 
de  Londres,  vivia  em  tempos  um  homemsinho  chamado  Na- 
thaniel  Pipkin,  que  era  sacristão  da  parochia. 

«Morava  n'uma  pequena  casa,  situada  na  pequena  rua  di- 
reita, a  dez  minutos  de  caminho  da  pequena  egreja,  e  todos 
os  dias,  entre  as  nove  da  manhã  e  as  quatro  da  tarde,  podia 
encontrar-se  a  ensinar  uma  pequena  sciencia  a  rapazes  pe- 
quenos. 

"Nathaniel  Pipkin  era  um  ente  inoffensivo,  bondoso,  ami- 
gável, com  um  nariz  torcido  para  cima  e  umas  pernas  um 
pouco  torcidas  para  dentro,  com  um  geito  nos  olhos  e  andar 
manquejante. 


270  AS   AVENTURAS 


"Dividia  o  seu  tempo  entre  a  egreja  e  a  escola,  crendo 
piamente  que  não  existia  na  superhcie  da  terra  homem  tão 
intelligente  como  o  cura,  uma  sala  tão  imponente  como  a  sa- 
cristia e  uma  escola  tão  bem  dirigida  como  a  sua. 

«Uma  vez,  uma  única  vez  na  sua  vida,  tinha  Nathaniel 
Pipkin  visto  um  bispo  —um  bispo  a  valer,  com  os  braços 
mettidos  em  mangas  de  cambraia  e  a  cabeça  coberta  com 
uma  cabeileira. 

«Tinha-o  visto  a  andar,  ouvira-o  fallar  n'uma  confirma- 
ção;  e  n'e$sa  conjuntura  Nathaniel  Pipkin  de  tal  modo  ficara 
varado  de  reverencia  e  de  terror,  quando  o  sobredito  bispo 
lhe  pozera  a  mão  na  cabeça,  que  perdera  completamente  os 
sentidos  e  fora  levado  para  fora  da  egreja  nos  braços  do  be- 
del. 

«Foi  esse  um  grande  acontecimento,  uma  data  tremenda, 
na  vida  de  Nathaniel  Pipkin,  e  fora  esse  o  único  que  lograra 
encrespar  a  lisa  corrente  da  sua  plácida  existência,  quando 
uma  bella  tarde,  estando  elle  a  lucubrar  n'um  terrivel  pro- 
blema de  addicção  composta  que  devia  ser  resolvido  por  um 
brejeirote  travesso,  succedeu  erguer  subitamente  os  olhos  da 
ardósia  para  a  florescente  physionomia  de  Maria  Lobbs,  a 
única  filha  do  velho  Lobbs,  o  selleiro  defronte. 

«Ora  os  olhos  do  sr.  Pipkin,  tinham-se  já  fitado  vezes  sem 
conto  no  lindo  semblante  de  Maria  Lobbs,  quer  na  egreja, 
quer  n'outros  sitios. 

«Mas  os  olhos  de  Maria  Lobbs  nunca  haviam  tido  tanto 
brilho,  nem  as  faces  de  Maria  Lobbs  tão  bonita  côr,  como 
n'aquella  occasião. 

«Não  admira  pois  que  Nathaniel  Pipkin  não  fosse  capaz 
de  tirar  os  olhos  da  physionomia  de  Miss  Lobbs  ;  não  admira 
que  Miss  Lobbs,  vendo-se  assim  contemplada  por  um  rapaz, 
se  retirasse  da  janella,  a  fechasse  e  baixasse  a  cortina;  não 
admira  que  Nathaniel  Pipkin,  logo  em  seguida  cahisse  em 
cima  do  brejeirote  que  fizera  a  travessura,  e  lhe  ferrasse  uma 
tareia  para  desafogar. 

«Tudo  isto  era  muito  natural,  e  não  ha  nada  aqui  digno 
de  pasmo. 

"Mas  o  que  é  digno  de  pasmo,  é  que  um  homem  de  cara- 
cter concentrado,  de  temperamento  nervoso,  e  de  rendimento 
excessivamente  exiguo,  como  Nathaniel  Pipkin,  se  abalan- 


no   SR.   PICKWICK  271 


casse  d'ali  por  diante  a  aspirar  á  mão  e  ao  coração  da  única 
íilha  do  indomável  Lobbs  —  do  velho  Lobbs,  o  grande  sellei- 
ro,  que  podia  comprar  a  aldeia  em  peso  só  com  um  traço  de 
penna,  sem  lhe  fazer  differença  nenhuma  —  o  velho  Lobbs, 
que  toda  a  gente  sabia  possuir  montões  de  libras,  deposita- 
das no  banco  da  cidade  próxima  —  que  constava  ter  thesou- 
ros  innumeraveis  c  inexauriveis,  accumulados  no  pequeno  co- 
fre de  ferro  com  uma  enorme  fechadura,  collocado  por  cima 
da  chaminé  da  sala  trazeira  —  e  o  qual,  era  sabido,  costumava 
em  dias  de  festa  guarnecer  a  meza  com  um  bule,  uma  leiteira 
e  um  assucareiro  de  verdadeira  prata,  cousas  que  elle  se  ga- 
bava orgulhosamente,  faziam  parte  do  dote  da  filha,  em  ella 
topando  noivo  que  lhe  agradasse. 

«Repito,  era  caso  para  profundo  pasmo  e  grande  maravi- 
lha que  Nathaniel  Pipkin  tivesse  a  temeridade  de  levantar  os 
olhos  n'aquelle  sentido. 

«Mas  o  amor  é  cego,  e  Nathaniel  tinha  um  geiío  na  vista  : 
e  talvez  que  estas  duas  circumstancias  reunidas  evitassem  que 
elle  visse  as  cousas  á  luz  conveniente. 

«Ora,  se  o  velho  Lobb^  tivesse  tido  a  mais  remota  sus- 
peita do  que  se  passava  no  coração  de  Nathaniel  Pipkin,  ar- 
razaria  logo  a  escola,  ou  exterminaria  o  mestre  da  superfície 
da  terra,  ou  perpetraria  qualquer  outra  atrociíiade  da  mesma 
laia;  porque  era  um  velho  terrivel,  o  tal  Lobbs,  em  sendo  fe 
rido  no  seu  orgulho,  ou  em  lhe  chegando  a  most  rda  ao  na- 
riz. 

<^Isso  é  que  era  praguejar  ! 

«Ribombava  cada  praga  atravez  da  rua,  quando  elle  estava 
a  accusar  a  madracice  do  aprendiz  de  pernas  finas,  que  os 
pés  de  Nathaniel  Pipkin  tremiam  de  horror  dentro  dos  sapa- 
tos, e  os  cabellos  dos  discipulos  punham-se  em  pé  com  pavor. 

«Pois  bem  !  todos  os  dias,  em  acabando  a  escola  e  em 
sahindo  os  discipulos,  sentava-se  Nathaniel  Pipkin  á  janella, 
fingindo  que  lia  n'um  livro,  e  deitava  catrapiscadellas  de  es- 
guelha em  cata  dos  olhos  brilhantes  de  Maria  Lobbs. 

«E  poucos  dias  eram  passados,  quando  os  olhos  brilhan- 
tes appareceram  na  janella  do  andar  de  cima,  apparentemente 
absorvidos  também  na  leitura. 

«Que  delicia,  que  contentamento,  para  o  coração  de  Na- 
thaniel Pipkin ! 


272  AS  AVENTUR.\S 


«Já  não  era  nada  mau  estar  ali  sentado  horas  e  horas,  a 
olhar  para  aquelle  lindo  rosto  quando  os  olhos  d'ella  estavam 
voltados  para  baixo. 

«Mas  quando  Maria  Lobbs  começou  a  erguer  os  olhos  de 
cima  do  livro,  e  a  dardejar  os  seus  raios  na  direcção  de  Na- 
thaniel  Pipkin,  a  delicia  e  a  admiração  d'este  não  tiveram  li- 
mites. 

«Afinal,  um  dia  em  que  elle  sabia  que  Lobbs  andava  por 
fora,  Nathaniel  Pipkin  levou  a  audácia  a  ponto  de  atirar  um 
beijo  a  Maria  Lobbs ;  e  esta,  em  vez  de  lhe  fechar  a  janella 
na  cara  e  de  baixar  a  cortina,  reenviou-lhe  o  beijo  e  sor- 
riu. 

«Depois  d'isto,  Nathaniel  Pipkin  resolveu,  succedèsse  o 
que  succedèsse,  desabafar  sem  mais  demora  o  estado  dos  seus 
sentimentos. 

«Nunca  sobre  a  terra  passaram  pés  mais  lindos,  semblante 
mais  risonho,  figura  mais  esbelta,  do  que  os  de  Maria  Lobbs, 
a  filha  do  velho  selleiro.  _     _     . 

«Havia  uma  chispa  de  gaiatice  nos  seus  olhos  scintillan- 
tes,  capaz  de  abrir  caminho  para  .corações  muito  menos  sus- 
ceptiveis  do  que  o  de  Nathaniel  Pipkin ;  e  tanta  alegria  havia 
nas  suas  gargalhadas,  que  o  mais  carrancudo  dos  misantro- 
pos teria  sorrido  ao  ouvil-as. 

«Até  o  próprio  Lobbs,  mesmo  no  ápice  da  ferocidade,  não 
podia  resistir  aos  gatimanhos  da  encantadora  filha ;  e  quando 
esta,  mais  a  sua  prima  Kate  —  uma  creaturinha  maliciosa, 
descaradota,  fascinante,  assaltavam  juntas  o  velhote,  como, 
a  dizer  a  verdade,  faziam  vezes  sem  conto,  elle  não  era  capaz 
de  lhes  recusar  cousa  alguma,  mesmo  que  ellas  lhe  pedissem 
uma  porção  dos  innumeraveis  e  inexauriveis  thesouros,  es- 
condidos no  cofresito  de  ferro. 

«O  coração  de  Nathaniel  pulsou  com  força,  quando,  n'uma 
noite  de  verão,  elle  viu  esse  par  feiticeiro  umas  cem  jardas 
adiante  d'elle,  mesmo  no  campo  onde  elle  tanta  vez  andara 
a  passeiar  até  se  cerrar  a  noite,  scismando  na  belleza  de  Ma- 
ria Lóbbs. 

^<Mas  comquanto  muitas  vezes  pensasse  com  que  desem- 
baraço elle  correria  para  Maria  Lobbs  a  declarar-lhe  a  sua 
paixão,  caso  podesse  sequer  ao  menos  encontral-a,  elle  sen- 
tia, agora  que  ella  inesperadamente  se  achava  diante  d'elle, 


DO  SR.  PICKWÍCK  273 


todo  o  sangue  do  corpo  subir-lhe  á  cabeça,  com  grande  pre- 
juízo das  pernas,  as  quaes,  privadas  do  seu  quinhão  habitual, 
tremiam  sob  elle. 

«Quando  ellas  paravam  a  apanhar  uma  flor  na  sebe  ou  a 
ouvir  um  pássaro,  Naihaniel  Pipkin  parava  também,  e  hngia- 
se  absorto  em  meditação. 

"E  estava-o  mesmo  realmente,  porque  pensava  no  que 
havia  de  fazer,  quando  ellas  voltassem  para  traz,  como  in- 
evitavelmente fariam  mais  tarde  ou  mais  cedo,  e  o  encon- 
trassem cara  a  cara. 

«Mas  apesar  de  ter  medo  de  as  defrontar,  não  podia  per- 
del-as  de  vista ;  por  isso,  quando  ellas  andavam  mais  depres- 
sa, andava  elle  mais  depressa ;  quando  ellas  diminuiam  o  passo 
abrandava  elle  o  seu;  quando  ellas  paravam,  parava  elle  ;  e  as- 
sim teriam  continuado  por  ali  fora,  até  que  anoitcesse,  se 
Kate  não  tivesse  olhado  surrateiramente  para  traz  e  feito  a 
Nathaniel  um  aceno  de  animação  para  ir  ter  com  ellas. 

«Havia  o  quer  que  era  de  irresistível  nos  modos  de  Kate, 
e  por  isso  Nathaniel  accedeu  ao  convite ;  e  depois  de  muito 
corar  por  parte  d'elle  e  de  gargalhadas  descompassadas  da 
maliciosa  priminha,  Nathaniel  Pipkin  cahiu  de  joelhos  em  cima 
da  relva  húmida,  e  declarou  a  resolução  em  que  estava  de 
ali  ficar  para  todo  o  sempre,  se  Maria  Lobbs  não  lhe  permit- 
tisse  erguer-se  como  seu  namorado  aceito. 

«A  estas  palavras,  o  riso  alegre  de  Maria  Lobbs  retiniu 
pelo  ar  sereno  da  noite —  sem  o  turvar  comtudo,  tão  melo- 
dioso era  —  e  a  maliciosa  priminha  r^iu  mais  descompassada- 
mente do  que  antes,  e  Nathaniel  Pipkin  corou  mais  do  que 
nunca. 

«Afinal,  como  Maria  Lobbs  fosse  vehementemente  instada 
pelo  apaixonado  homemsinho,  desviou  a  cabeça,  e  segredou 
á  prima  que  dissesse,  ou  disse-o  a  prima  por  conta  própria, 
que  se  sentia  muito  honrada  com  a  declaração  do  sr.  Pipkin, 
que  a  sua  mão  e  o  seu  coração  estavam  á  mercê  da  vontade 
paterna,  mas  que  ninguém  podia  ser  insensível  aos  mereci- 
mentos do  sr.  Pipkin. 

«Como  tudo  isto  foi  dito  com  muita  gravidade,  e  como 
Nathaniel  Pipkin  acompanhou  a  casa  Maria  Lobbs,  e  fez  es- 
forços para  lhe  roubar  um  beijo  á  despedida,  metteu-se  na 
cama  felicíssimo,  e  sonhou  a  noite  inteira  em  abrandar  o  ve- 

18 


74  AS   AVENTURAS 


lho   Lobbs,  em   lhe   abrir  a   cofre,  e  em  casar  com  Maria. 

"No  dia  seguinte,  Naihaniel  Pipkin  viu  o  velho  Lobbs  sa- 
hir  na  sua  velha  égua  parda,  e  depois  de  um  grande  numero 
de  acenos  feitos  á  janella  pela  priminha  travessa,  acenos  cuja 
significação  não  foi  capaz  de  decifrar,  o  aprendiz  magrizella 
das  pernas  finas  atravessou  a  rua  para  lhe  dizer  que  o  patrão 
não  ficava  aquella  noite  em  casa,  e  que  as  senhoras  espera- 
vam o  sr.  Pipkin  para  o  chá  ás  seis  em  ponto. 

"Como  as  lições  se  deram  pelo  dia  adiante,  nem  Naiha- 
niel Pipkin,  nem  os  seus  discípulos,  o  sabem  melhor  do  que 
os  leitores;  mas  ellas  lá  se  foram  esbrugando  conforme  foi 
possivel,  e,  depois  de  sahir  a  rapaziada,  Nathaniel  Pipkin  le- 
vou até  ás  seis  horas  a  vestir  se  a  seu  gosto ;  não  que  lhe  le- 
vasse muito  tempo  a  escolha  do  fato  que  devia  vestir,  visto 
que  não  tinha  por  onde  escolher,  mas  a  tarefa  difficil  era  pre- 
paral-o  e  dispôl-o  da  forma  mais  vantajosa. 

"Em  casa  do  selleiro  estava  um  ranchino  delicioso,  for- 
mado por  Maria  Lobbs,  sua  prima  Kate,  e  mais  três  ou  qua- 
tro cachopas  bnncalhonas.  folgazãs  e  rosadas. 

"Nathaniel  Pipkin  teve  demonstração  ocular  de  que  não 
eram  exagerados  os  boatos  referentes  aos  thesouros  do  velho 
Lobbs. 

«Lá  estavam  em  cima  da  meza  o  bule,  a  leiteira  e  o  assu- 
careiro  de  prata  macissa,  e  colheres  de  prata  verdadeira  para 
mexer  o  chá,  e  chávenas  de  verdadeira  porcelana  para  o  be- 
ber, e  pratos  da  mesma  para  os  bolos  e  para  as  torradas. 

«O  único  desmancha-prazeres  era  um  primo  de  Maria 
Lobbs,  irmão  de  Kate,  a  quem  Maria  Lobbs  chamava  Henry, 
e  que  parecia  guardar  Maria  Lobbs  só  para  si,  n'um  dos  ex- 
tremos da  meza. 

"E'  muito  aprazivel  ver  affeição  nas  familias,  mas  essa  af- 
feição  pôde  ir  demasiado  longe,  e  Nathaniel  Pipkin  não  po- 
dia* eximir-se  a  pensar  que  Maria  Lobbs  devia  fser  muito 
amiga  dos  parentes,  se  é  que  os  tratava  a  todos  com  as  mes- 
mas attençóes  que  dedicava  áquelle  primo. 

"Também  depois  do  chá,  quando  a  priminha  travessa 
propôz  que  jogassem  a  cabra  cega,  succedia,  fosse  como  fos- 
se, que  Nathaniel  Pipkin  estava  quasi  sempre  de  olhos  tapa- 
dos, e  todas  as  vezes  que  punha  as  mãos  no  primo,  era  certo 
encontrar  perto  a  linda  Maria  Lobbs. 


DO  SR.   PICKWICK  275 


«E  por  mais  que  a  priminha  das  travessuras  e  as  outras 
cachopas  o  beliscassem,  e  lhe  puxassem  os  cabellos,  e  o  fi- 
zessem tropeçar  em  cadeiras,  e  executassem  outras  que  taes 
judiarias,  Maria  Lobbs  é  que  nunca  parecia  aproximar- se 
d'elle. 

"Uma  vez  até,  Nathaniel  Pipkin  ia  Jurar  que  ouvira  o  ci- 
ciciar  de  um  beijo,  seguido  por  uns  débeis  ralhos  de  Maria 
Lobbs  e  pelo  riso  meio  abafado  das  amigas 

«Tudo  isto  era  exquisito — mesmo  muito  exquisito  —  e 
ninguém  pôde  saber  o  que  Nathaniel  teria  feito  ou  teria  dei- 
xado de  fazer  em  consequência,  se  os  seus  pensamentos  não 
tivessem  de  súbito  sido  desviados  n'outra  direcção. 

«A  circumstancia  que  produziu  este  eífeito  foi  uma  serie 
de  pancadas  violentas  á  porta  da  rua,  e  a  pessoa  que  assim 
balia  tão  de  rijo  não  era  outra  senão  o  próprio  Lobbs,  que 
voltara  inesperadamente,  e  que  estava  ali  a  martelar,  a  mar- 
telar, que  nem  um  carpinteiro  de  caixões;  porque  queria 
ceiar. 

«Apenas  a  terrivel  noticia  foi  communicada  pelo  apren- 
diz magrizella  das  pernas  finas,  logo  as  raparigas  galgaram 
pela  escada  acima  p)ara  o  quarto  de  Maria  Lobbs,  e  o  primo 
mais  Nathaniel  Pipkin  foram  encafuados  em  duas  alcovas  da 
sala,  á  falta  de  melhor  esconderijo ;  e  quando  Maria  Lobbs  e 
a  maliciosa  priminha  os  fecharam  muito  bem  fechados  e  po- 
zeram  a  sala  em  ordem,  foram  abrir  a  porta  ao  velho  Lobbs, 
que  não  tinha  cessado  de  martellar  nem  um  instante. 

«Ora,  por  maior  desgraça,  acontecia  que  o  velho  Lobbs, 
em  tendo  muita  fome,  era  levado  de  mil  demónios. 

«Nathaniel  Pipkin  podia  ouvil-o  a  rosnar  como  um  cão  de 
fila  velho  e  rouco ;  e  sempre  que  o  desventurado  aprendiz 
das  pernas  finas  entrava  na  sala,  era  certo  o  velho  Lobbs 
desatar  a  praguejar  para  elle  como  um  sarraceno  ferocíssimo, 
ainda  que  apparenteniente  sem  outro  fim  ou  objectivo  que 
não  fosse  desafogar  o  interior  de  algumas  pragas  a  mais. 

«Emfim,  pôz-se  na  meza  a  ceia  que  estivera  a  aquecer,  e 
o  velho  Lobbs  cahiu-lhe  em  cima  como  qualquer  simples 
mortal ;  e  tendo  linppado  tudo  n'um  abrir  e  fechar  d'olhos, 
beijou  a  filha,  e  pediu  o  seu  cachimbo. 

"A  natureza  coUocára  os  joelhos  de  Nathaniel  Pipkin 
muito  chegados  um   ao  outro ;  mas  quando  ouviu  o  velho 


27O  AS   AVENTURAS 


Lobbs  pedir  o  cachimbo,  elles  chocaram-se  com  tanta  força 
como  se  fossem  reduzir-se  a  pó. 

"Porque,  pendente  de  duas  escapulas,  mesmo  na  alcova 
onde  o  tinham  fechado,  estava  um  cachimbo  de  haste  escura 
e  fornilho  de  prata,  o  qual  elle  ha  cinco  annos  estava  farto 
de  ver  todas  as  tardes  e  todas  as  noites,  regularmente,  na 
bocca  do  velho  Lobbs. 

"As  duas  raparigas  subiram  ao  andar  de  cima  em  cata  do 
cachimbo,  e  procuraram  por  todos  os  cantos,  menos  no  sitio 
onde  sabiam  que  elle  estava,  e  o  velho  Lobbs  bramava  entre- 
mentes por  forma  tremebunda. 

"Afinal  lembrou-se  da  alcova,  e  dirigiu-se  para  ella. 

«De  nada  serviu  que  um  fracalhão  como  Nathaniel  Pip- 
kin  puxasse  a  porta  para  dentro,  quando  um  homemzarrão 
como  o  velho  Lobbs  a  puxava  para  fora. 

«Bastou  um  puxão  d'este  para  ella  se  escancarar,  paten- 
teando Nathaniel  Pipkin  lá  dentro,  direito  como  um  fuso  e 
tremendo  de  medo  da  cabeça  aos  pés. 

«Jesus  !  que  apavorante  olhar  lhe  deitou  o  velho  Lobbs, 
ao  agarral-o  pela  gola  e  ao  segural-o  com  o  braço  esten- 
dido! 

—  Então  que  diabo  quer  você  aqui?  perguntou  elle  com 
voz  tremula. 

"Nathaniel  Pipkin  não  pôde  dar  resposta ;  por  isso  o  ve- 
lho Lobbs  sacudiu-o  de  traz  para  diante  durante  dois  ou  três 
minutos,  assim  como  quem  queria  arrumar-Ihe  as  ideias. 

« —  Que  vem  vossê  cheirar  aqui  .'*  rugiu  Lobbs.  Pelo  que 
vejo,  vossê  veiu  por  causa  da  minha  filha. 

«O  velho  Lobbs  disse  isto  apenas  por  ironia;  porque  elle 
não  podia  crer  que  a  vaidade  humana  a  taes  extremos  hou- 
vesse levado  Nathaniel  Pipkin. 

«Qual  foi  a  sua  indignação,  quando  o  pobre  diabo  repli- 
cou: 

«—  E'  verdade,  sr.  Lobbs  —  venho  cá  por  causa  de  sua  fi- 
lha. Tenho-lhe  muito  amor,  sr.  Lobbs. 

« — Que  é  isso,  desavergonhado,  cara  de  saguim,  ranhoso  ? 
resfolegou  o  velho  Lobbs,  paralysado  pela  atroz  confissão. 
Que  diabo  queres  tu  dizer  com  isso  ?  Uma  cousa  d'estas  na 
minha  cara !  Espera  ahi !  Raios  me  partam,  se  não  te  vou  es- 
ganar! 


DO  SR.  HCKWICK  277 


«Não  é  nada  improvável  que  o  velho  Lobbs,  no  excesso 
da  raiva,  pozesse  em  obra  a  ameaça,  se  não  lhe  immobilisasse 
o  braço  uma  apparição  deveras  inesperada :  foi  o  primo  que, 
sahindo  do  seu  esconderijo  e  aproximando-se  do  velho 
Lobbs,  exclamou  : 

« — Não  posso  permittir  que  esta  innocente  creatura,  que 
foi  convidada  a  vir  aqui,  por  uma  brincadeira  de  raparigas, 
assuma  tão  nobremente  a  responsabilidade  da  culpa  (se  culpa 
ha)  de  que  eu  me  accuso  sem  hesitar.  Amo  sua  filha,  sr. 
Lobbs  :  e  vim  aqui  no  propósito  de  me  encontrar  com  ella. 

«O  velho  Lobbs  abriu  muito  os  olhos,  mas  não  mais  do 
que  Nathaniel  Pipkin,  e  disse  por  fim,  quando  achou  alento 
bastante  para  fallar: 

« —  Ah  !  veiu  ? 

« — Vim. 

« —  E  eu  ha  que  tempos  lhe  prohibi  que  pozesse  os  pés 
n'esta  casa. 

« —  E'  verdade  que  prohibiu  :  se  não  fosse  isso,  escusava 
eu  de  vir  cá  esta  noite  ás  escondidas. 

«Peza-me  ter  de  contar  isto  do  velho  Lobbs,  mas  parece- 
me  que  elle  teria  desatado  á  pancadaria  ao  tal  primo,  se  a 
sua  linda  filha,  com  os  olhos  brilhantes  lavados  em  lagrimas, 
não  se  lhe  tivesse  agarrado  ao  braço. 

« — Não  o  agarres,  Maria  !  disse  o  rapaz.  Se  elle  tem  von- 
tade de  me  bater,  que  o  faça  embora.  Eu  cá  é  que  nem  por 
todas  as  riquezas  do  mundo  era  capaz  de  levantar  a  mão  para 
um  d'esses  cabellos  brancos. 

«Os  olhos  do  velho  baixaram  a  esta  censura,  e  encontra- 
ram os  da  filha. 

«Já  por  duas  ou  três  vezes  eu  tenho  dado  a  entender  que 
estes  eram  muito  brilhantes,  e,  apesar  de  estarem  razos  de 
lagrimas,  nem  por  isso  diminuirá  nada  a  sua  influencia. 

«O  velho  Lobbs  desviou  a  cabeça,  como  para  evitar  que 
elles  o  persuadissem  ;  mas  n'esse  momento  quiz  a  fortuna 
que  elle  olhasse  para  a  cara  da  priminha  travessa,  a  qual,  por 
um  lado  assustada  por  causa  do  irmão,  e  por  outro  trocista 
por  causa  de  Nathaniel  Pipkin,  apresentou  uma  expressão  por 
tal  forma  feiticeira,  com  uns  longes  de  malicia,  que  nem  ve- 
lhos nem  moços  seriam  capazes  de  lhe  resistir. 

«Ella  metteu  carinhosamente  o  braço  pelo  braço  do  ve- 


278  AS   AVENTURAS 


lho,  e  disse-lhe  um  segredinho ;  e  por  mais  que  fizesse,  o  ve- 
lho Lobbs  não  pôde  esquivar-se  a  sorrir,  ao  passo  que  uma 
lagrima  lhe  escorria  pela  cara  abaixo. 

«Cinco  minutos  depois,  as  raparigas  foram  tiradas  do 
quarto  de  Maria,  todas  ellas  vergonhas  e  risadinhas ;  e  em- 
quanto  os  novos  estavam  tratando  de  se  fazer  felizes,  o  velho 
Lobbs  tratava  de  encher  o  cachimbo  e  de  o  fumar :  e  é  digna 
de  reparo  a  circumstancia  de  elle  nunca  ter  sentido  tanto 
prazer  e  tanto  consolo  em  fumar  no  seu  cachimbo,  como 
d'aquella  vez. 

«Nathaniel  Pipkin  pensou  que  era  melhor  fechar-se  em 
copas,  e  por  isso  foi  gradualmente  conquistando  as  boas  gra- 
ças do  velho  Lobbs,  que  o  ensinou  a  fumar  a  compasso. 

"Durante  muitos  annos,  costumaram-se  elles  a  sentar-se  no 
jardim,  em  sendo  noites  bonitas,  fumando  e  bebendo  á  ufa. 

«A  paixão  de  Nathaniel  depressa  se  curou,  porque  acha- 
mos o  nome  d'elle  nos  registos  da  parochia,  como  testemu- 
nha do  casamento  de  Maria  Lobbs  com  o  primo ;  e  pela  con- 
sulta de  outros  documentos,  parece  também  que  na  noite  das 
bodas  elle  foi  parar  á  cadeia  da  villa,  por  ter  apanhado  uma 
tremenda  bebedeira  e  commettido  vários  excessos  nas  ruas, 
em  todos  os  quaes  teve  como  ajudante  e  cúmplice  o  apren- 
diz magrizella  das  pernas  finas.» 


CAPITULO   XVIII 

Que  serve  para  demonstrar  resumidamente  dois 
pontos  : —primeiro,  o  poder  dos  faniquitos;  se- 
gundo, a  força  das  circumstancias. 

Durante  os  dois  dias  seguidos  ao  almoço  de  Mrs.  Hunter, 
permaneceram  os  pickwickanos  em  Eatanswill,  esperando 
anciosamente  a  chegada  de  alguma  noticia  do  seu  venerando 
mestre. 

Os  srs.  Tupman  e  Snodgrass  estavam  outra  vez  á  mercê 
dos  seus  próprios  recursos  para  se  distrahirem ;  porquê  o  sr. 
Winkle,  obedecendo  a  amáveis  instancias,  continuava  a  ser 


DO  SR.  PICKWICK  279 


hospede  do  sr.  Pott  e  a  dedicar  o  seu  tempo  á  companhia  de 
sua  amável  esposa. 

Nem  faltava  uma  vez  por  outra  a  presença  do  mesmo  sr. 
Pott  para  complemento  do  seu  bem  estar.  Profundamente 
absorvido  nas  suas  profundas  lucubrações  em  favor  do  inte- 
resse publico. e  contra  a  existência  do  Independente,  não  ti- 
nha esse  grande  homem  por  costume  baixar  do  acume  do 
seu  génio  até  ao  nivel  humilde  das  intelligencias  vulgares. 

N'esta  occasião,  porém,  como  em  homenagem  propositada 
a  um  discipulo  do  sr.  Pickwick,  elle  inclinou-se,  cedeu,  des- 
ceu do  seu  pedestal,  e  andou  pelo  chão,  adaptando  benigna- 
mente as  suas  observações  ao  entendimento  do  vulgo,  e  dei- 
xando que,  senão  em  espirito,  pelo  menos  nas  exterioridades, 
o  misturassem  com  a  turba  ignara. 

Tendo  sido  tal  o  proceder  de  tão  celebre  publicista  para 
com  o  sr.  Winkle,  facilmente  se  pôde  calcular  a  enormidade 
da  surpreza  pintada  nas  feições  d'este  ultimo,  quando  uma 
vez,  estando  sósinho  sentado  na  casa  de  jantar,  viu  escanca- 
rar-se  vivamente  a  porta  e  cerrar-se  com  egual  vivacidade, 
dando  entrada  ao  sr.  Pott,  o  qual,  avançando  para  elle  ma- 
gestosamente  e  repellindo  a  mão  que  elle  lhe  estendia,  ran- 
geu os  dentes,  como  para  tornar  mais  cortantes  as  phrases 
que  ia  pronunciar,  e  exclamou  com  uma  voz  parecida  com  o 
roçar  de  uma  serra  : 
' —  Serpente ! 

—  Senhor  !  exclamou  o  sr.  Winkle  levantando- se  de  cho- 
fre. 

—  Serpente,  senhor  !   repetiu  o  sr.  Pott  levantando  a  voz. 
E  acrescentou  logo,  baixando-a  de  repente : 

—  Serpente  foi  o  que  eu  disse,  senhor.  Entenda  isto  como 
quizer. 

Ora  quando  uma  pessoa  se  apartou  de  outro  homem  ás 
duas  horas  da  manhã,  nos  mais  amigáveis  termos,  e  ás  nove 
e  meia  elle  vem  ter  com  essa  pessoa  a  tratal-a  de  serpente, 
não  é  desarrazoado  concluir  que  alguma  cousa  desagradável 
succedeu  entrementes. 

Foi  isso  o  que  pensou  o  sr.  Winkle. 

Retribuiu  o  olhar  duro  do  sr.  Pott,  e  conformando-se  ao 
desejo  d'este,  tratou  de  ver  se  entendia  que  demónio  vinha 
ali  fazer  a  «serpente». 


f8o  AS   AVENTURAS 


Mas  o  certo  é  que  na  mesma  ficou ;  por  isso,  depois  de 
alguns  minutos  de  silencio,  exclamou  : 

—  Serpente,  senhor  ?  Serpente,  sr.  Pott  ?  Que  quer  o  se- 
nhor dizer  com  isso  ?  Por  força  que  está  a  brincar. 

—  A  brincar!  bradou  Pott  com  um  gesto  da  mão,  indi- 
cando fortíssimas  ganas  de  atirar  com  o  bule  de  metal  inglez 
á  cabeça  do  hospede.  A  brincar,  senhor!...  Nada,  nada, 
quero  andar  com  serenidade,  ouviu,  senhor? 

E  como  prova  de  serenidade,  o  sr.  Pott  atirou  comsigo 
para  cima  de  uma  cadeira,  com  a  bocca  espumante. 

—  Meu  caro  senhor !  acudiu  o  sr.  Winkle. 

—  Caro  senhor !  Pois  ainda  se  atreve  a  chamar-me  seu 
caro  senhor,  senhor  ?  Ainda  se  atreve  a  olhar  me  cara  a  cara, 
chamando-me  caro  ? 

—  Pois  então,  se  vamos  a  isso,  o  senhor  atreve-se  a  olhar- 
me  cara  a  cara,  chamando-me  serpente? 

—  Porque  o  senhor  e  serpente. 

—  Prove  isso,  senhor,  disse  o  sr.  Winkle  calorosamente, 
prove-o  lá. 

Uma  nuvem  minaz  passou  pelo  rosto  profundo  do  edi- 
tor. 

Tirou  da  algibeira  o  Independente  d'aquelle  dia,  e  pondo 
o  dedo  n'um  paragrapho,  estendeu  o  jornal  por  cima  da  mesa 
para  o  sr.  Winkle. 

Este  agarrou-o,  e  leu  o  que  segue  : 

«O  nosso  obscuro  e  abjecto  competidor,  em  algumas  as- 
querosas observações  sobre  a  ultima  eleição  por  este  burgo, 
atreveu-se  a  violar  o  santuário  venerando  da  vida  privada, 
referindo-se,  por  forma  que  não  soífre  equivocos,  aos  negó- 
cios pessoaes  do  nosso  ex-candidato  —  sim,  acrescentaremos 
mesmo,  não  obstante  a  sua  iniqua  derrota,  do  nosso  futuro 
deputado  o  sr.  Fizkin.  Aonde  quer  chegar  o  nosso  cobarde 
competidor  ?  Que  diria  o  rufião,  se  porventura,  nós,  não  tendo 
em  nenhuma  conta,  como  elle,  as  conveniências  sociaes,  er- 
guêssemos o  véo  que  felizmente  dissimula  a  sua  vida  intima 
ao  ridiculo  geral,  para  não  dizer  á  execração  publica  ?  Que 
diria,  se  nós  nos  resolvêssemos  a  apontar  e  a  commentar  fa 
ctos  e  circumstancias  pubHcas  e  notórias,  observadas  por  to- 
dos, menos  pelo  nosso  cego  competidor?  Se  nós  imprimís- 
semos o  seguinte  desabafo,  que  recebemos,  emquanto  escre- 


DO  SR.   PICKWICK  281 


viamos  o  começo  do  presente  artigo,  de  um  nosso  talentoso 
patrício  e  correspondente : 


Versos    a  um   !Pote   cie    col>re 

Oh !  Pott !  se  soubesses 

Que  ella  era  das  refeces, 
Quando  ouviste  na  boda  os  sinos  tinkle,  tinkle ; 

Farias  com  certeza 

O  que  hoje  bem  te  peza 
De  não  poder  fazer :  dal-a  em  presente  a  W***** 

—  Que  me  diz  ?  clamou  o  sr.  Pott  com  solemnidade.  Mi- 
serável !  O  que  é  que  rima  com  tinkle  ? 

—  O  que  rima  com  tinkle?  disse  Mrs.  Pott,  cuja  entrada 
n'aquelle  momento  antecipou  a  resposta.  O  que  rima  com 
tinkle?  Ora  essa!  Winkle,  supponho  eu. 

E  dizendo  isto,  Mrs.  Pott  sorriu  docemente  para  o  atra- 
palhado pick-Avickano,  e  estendeu-lhe  a  mão.  Na  sua  confu- 
são, o  mancebo  ia  aceital-a,  se  Pott  não  se  interpozesse,  cheio 
de  indignação. 

—  Para  traz,  minha  senhora!  para  traz!  disse  o  editor. 
Apertar-lhe  a  mão  mesmo  na  minha  cara ! 

—  Sr.  Pott !  disse  a  dama  attonita. 

—  Miserável  mulher,  veja  isto  !  Veja  isto,  minha  senhora  ! 
Versos  a  iwi  Pote  de  cobre,  minha  senhora.  Pote  de  cobre, 
sou  eu,  minha  senhora.  Qiie  ella  era  das  refeces...  isto  é 
comsigo,  minha  senhora  —  comsigo  ! 

Com  esta  ebullição  de  raiva,  acompanhada  por  uma  es- 
pécie de  tremor,  causado  pela  expressão  do  rosto  de  sua  es- 
posa, o  sr.  Pott  arremessou  aos  pés  d'ella  o  numero  do  Inde- 
pendente. 

—  Essa  agora,  senhor,  exclamou  Mrs.  Pott  espantadíssi- 
ma, curvando-se  para  apanhar  o  jornal.  Essa  agora,  senhor  ! 

O  sr.  Pott  quiz  reagir  sob  o  olhar  desdenhoso  de  sua  es- 
posa. 

Fez  um  esforço  desesperado  para  puxar  acima  toda  a  sua 
coragem,  mas  ella  tornou  a  descahir  n'um  momento. 


282  AS   AVENTURAS 


A'  simples  leitura,  nada  existe  muito  terrível  n'esta  pe- 
quena phrase  :  «Essa  agora,  senhor !» ;  mas  o  tom  de  voz  em 
que  ella  foi  pronunciada,  e  o  olhar  que  a  acompanhou,  pare- 
cendo um  e  outro  presagiar  alguma  vingança  imminente  so- 
bre a  cabeça  de  Pott,  produziram  sobre  elle  um  effeito  deci- 
sivo. 

O  menos  perspicaz  dos  observadores  poderia  ter  lobri- 
gado no  seu  ar  inquieto  um  desejo  vehemente  de  arranjar  de 
prompto  um  substituto  para  se  metter  dentro  do  seu  fato. 

Mrs.  Pott  leu  o  artigo,  soltou  um  grito  dilacerante,  e  es- 
tiraçou-se  ao  comprido  em  cima  do  tapete  do  fogão,  guin- 
chando e  esperneando  por  forma  que  não  deixava  duvidas 
sobre  a  adaptação  dos  seus  sentimentos  ás  circumstancias 
decorrentes. 

—  Minha  querida,  bradou  Pott  aterrado  —  eu  cá  não  disse 
que  acreditava  n'isso  —  eu. .  . 

Mas  a  voz  do  desventurado  afogava  se  nos  guinchos  da 
cara  metade. 

—  Mrs.  Pott,  disse  o  sr.  Winkle,  dê-me  licença  que  lhe 
supplique,  socegue,  minha  querida  senhora. 

Mas  o  alarido  e  o  bater  de  pés  eram  mais  rijos  e  mais  fre- 
quentes do  que  nunca. 

—  Minha  querida,  disse  o  sr.  Pott,  crê  que  estou  afflicto. 
Se  não  queres  ter  em  conta  a  tua  saúde,  ao  menos  por  atten- 
çáo  a  mim. . .  Olha  que  vae  juntar-se  gente  na  rua. 

Mas  quanto  mais  fortes  eram  as  instancias  do  sr.  Pott, 
mais  vehemente  era  o  jorrar  dos  guinchos. 

Por  felicidade,  comtudo,  Mrs.  Pott  tinha  uma  espécie  de 
guarda  de  corpo,  uma  menina  cujo  emprego  ostensivo  era 
presidir  á  toilette  da  ama,  mas  que  se  tornava  útil  por  diffe- 
rentissimas  formas,  a  mais  importante  das  quaes  era  ajudar 
e  animar  a  ama  em  todos  os  desejos  e  inclinações  oppostos 
ás  inclinações  e  aos  desejos  do  mesquinho  Pott. 

Os  guinchos  chegaram  a  ponto  aos  ouvidos  d'esta  menina, 
e  attrahiram-na  á  casa  de  jantar  com  uma  rapidez  que  amea- 
çava transtornar  o  requintado  arranjo  da  sua  touca  e  dos  seus 
caracoes. 

—  Oh!  minha  senhora!  minha  querida  ama!  exclamou 
elia  ajoelhando  desvairada  ao  lado  de  Mrs.  Pott.  Oh !  minha 
querida  senhora  !  que  succedeu  ? 


DO  SR.  PICWIKCK  283 


—  E'  o  teu  amo  —  o  teu  brutal  amo,  murmurou  a  en- 
ferma. 

Poit  fraquejava  evidentemente. 

—  Que  vergonha !  disse  a  aia  com  ar  de  censura.  Estou 
certa  que  elle  ha  de  causar-lhe  a  morte,  minha  senhora.  Coi- 
tadinha ! 

Pott  cada  vez  perdia  mais  terreno.  O  partido  adverso  pro- 
seguiu  no  ataque. 

—  Oh!  não  me  abandones  —  não  me  abandones,  Good- 
M'in,  murmurou  Mrs  Pott,  aferrando-se  aos  pulsos  d'esta  com 
Ímpeto  hysterico.  Tu  é  que  és  a  única  pessoa  que  me  tens 
atfeição,  Godwin. 

A  este  terno  appello,  Goodwin  montou  logo  por  sua  conta 
uma  tragediasinha  domestica,  e  desatou  a  chorar  como  uma 
perdida. 

—  Nunca,  minha  senhora  —  isso  nunca  !  soluçou  ella.  Oh ! 
o  senhor  devia  ter  mais  cuidado  —  devia  com  certeza ;  não 
calcula  o  mal  que  pôde  fazer  á  senhora ;  ainda  um  dia  se  ha 
de  arrepender,  digo-lh'o  eu  —  estou  farta  de  o  dizer. 

O  desgraçado  Pott  olhou  timidamente,  mas  não  disse  pa- 
lavra. 

—  Goodwin,  murmurou  brandamente  Mrs.  Pott. 

—  Minha  senhora  ? 

—  Se  soubesses  o  amor  que  eu  tive  a  este  homem. .  . 

—  Não  se  afflija  com  essas  recordações,  minha  senhora. 
Pott  parecia  assustadíssimo.  Era  occasião  de  dar  um  golpe 

decisivo. 

—  E  agora,  soluçou  Mrs.  Pott,  agora  no  fim  de  tudo,  ser 
tratada  por  esta  forma ;  ser  reprehendida  e  insultada  na  pre- 
sença de  um  terceiro,  demais  a  mais  quasi  um  estranho.  Mas 
a  isto  é  que  eu  não  quero  sujeitar-me,  Goodwin,  continuou 
Mrs.  Pott,  levantando-se  nos  braços  da  aia.  O  mano  tenente 
ha  de  intervir.  Quero  desquitar-me,  Godwin. 

—  Era  o  que  clle  merecia,  com  certeza,  minha  senhora. 
Fossem  quaes  fossem  as  ideias  que  a  ameaça  do  desquite 

houvesse  despertado  no  animo  do  sr.  Pott,  elle  eximiu-se  a 
expressal-as,  e  contentou-se  com  dizer  muito  humildemente  : 

—  Minha  querida,  queres  ouvir-me  t 

A  única  resposta  foi  uma  nova  descarga  de  soluços,  em- 
quanto  Mrs.  Pott,  cada  vez  mais  nervosa,  pediu  que  lhe  ex- 


284  AS   AVENTURAS 


plicassem  porque  motivo  tinha  ella  nascido,  e  requisitou  ou- 
tras varias  informações  do  mesmo  jaez. 

—  Minha  querida,  objectou  o  sr.  Pott,  não  te  deixes  le- 
var por  esses  sentimentos  exahados.  Eu  nunca  acreditei  que 
o  artigo  tivesse  o  minimo  fundamento,  minha  querida  —  isso 
era  impossivel  I  O  que  eu  estava  era  zangado  —  direi  mesmo 
furioso  —  com  o  maldito  Independente^  por  se  atreverem  a 
inseril-o ;  mais  nada. 

E  o  sr.  Pott  deitou  um  olhar  supplicante  para  a  innocente 
causa  d'esta  semsaboria,  como  para  lhe  rogar  que  não  abrisse 
bico  a  respeito  da  serpente. 

—  E  que  passos  tenciona  o  senhor  dar  para  obter  repara- 
ção ?  interrogou  o  sr.  Winkle,  ganhando  coragem  á  propor- 
ção que  via  Pott  perder  a  sua. 

—  Oh  !  Goodwin,  observou  Mrs.  Pott ;  dar-se-ha  caso  que 
elle  tencione  chicotear  o  editor  do  Independente?  é  isso,  God- 
Avin  ? 

—  Schiu !  minha  senhora,  socegue,  replicou  a  rapariga. 
Estou  certa  que  ha  de  chicoteal-o,  o  caso  é  a  senhora  que- 
rer. 

—  Certamente,  disse  Pott,  vendo  a  esposa  manifestar  sym- 
ptomas  evidentes  de  novo  faniquito.  Está  claro  que  sim. 

—  Quando,  Goodwin?  quando  ?  perguntou  Mrs. Pott,  ainda 
hesitante  sobre  as  vantagens  do  faniquito. 

—  Immediatamente,  está  claro,  disse  o  sr.  Pott,  antes  do 
fim  do  dia. 

—  Oh!  Goodwin,  proseguiu  Mrs.  Pott,  é  esse  . o  único 
meio  de  ir  ao  encontro  do  escândalo,  e  de  me  congraçar  com 
a  sociedade. 

—  Decerto,  minha  senhora,  replicou  Goodwin.  Não  é  ho- 
mem o  homem  que  se  recusar  a  isso,  minha  senhora. 

Como  visse  ainda  os  faniquitos  imminentes,  o  sr.  Pott 
prometteu  outra  vez  que  o  faria ;  mas  Mrs.  Pott  tão  oppressa 
estava  com  a  simples  ideia  de  ter  sido  suspeitada,  que  esteve 
meia  dúzia  de  vezes  a  pique  de  recahir,  e  tal  succederia  sem 
duTJda,  se  não  fossem  os  infatigáveis  e  assiduos  esforços  de 
Goodwin,  e  as  repetidas  supplicas  de  perdão,  feitas  pelo  ven- 
cido Pott;  e  finalmente,  quando  este  infeliz  foi  increpado  e 
domado  convenientemente,  Mrs.  Pott  restabeleceu-se,  e  fo- 


ram todos  almoçar. 


DO  SR.  PICKWICK  28: 


—  O  sr.  Winkle  não  permittirá  que  as  calumnias  desse 
abjecto  jornal  encurtem  a  sua  estada  aqui  ?  disse  Mrs.  Potl, 
sorrindo  atravez  dos  vestígios  das  lagrimas. 

—  Espero  que  não,  disse  o  sr.  Poa,  intimamente  desejoso 
de  que  o  seu  hospede  se  engasgasse  com  o  pedaço  de  tor- 
rada que  n'esse  momento  aproximava  dos  lábios,  e  que  por 
tal  forma  acabasse  de  vez  com  a  sua  visita.  Espero  que 
não. 

—  Que  bondade  a  sua  I  disse  o  sr.  Winkle,  mas  recebeu-se 
uma  carta  do  sr.  Pickwick  —  tive  essa  noticia  por  um  bilhete 
do  sr.  Tupman,  que  esta  manhã  me  levaram  ao  quarto.  — 
Pede-nos  que  vamos  hoje  ter  com  elle  a  Bury ;  e  devemos 
partir  no  carro  do  meio  dia. 

—  Mas  volta?  disse  Mrs.  Pott. 

—  Oh  !  com  certeza  ! 

—  Está  bem  certo  d'isso  ?  disse  Mrs.  Pott,  relanceando  um 
olhar  terno  para  o  hospede. 

—  Gertissimo,  respondeu  o  sr.  Winkle. 

O  almoço  decorreu  em  silencio,  porque  cada  um  dos  as- 
sistentes estava  a  parafusar  sobre  os  seus  desgostos  pes- 
soaes. 

Mrs.  Pott  sentia-se  angustiada  pela  perda  do  seu  sigisbéo  ; 
o  sr.  Pott  pelo  seu  imprudente  protesto  de  chicotear  o  Inde- 
pendente; e  o  sr.  Wmkle  por  se  ter  collocado  n'uma  situação 
tão  melindrosa. 

Era  quasi  meio  dia,  e  depois  de  muitos  adeuses  e  promes- 
sas de  voltar,  o  sr.  Winkle  partiu  por  fim. 

—  Se  elle  voltar  alguma  vez,  enveneno-o !  pensou  o  sr. 
Pott,  ao  voltar  para  o  pequeno  escriptorio  onde  preparava 
os  seus  fulminantes  coriscos. 

—  Se  eu  cá  voltar  a  metter-me  outra  vez  de  gorra  com 
esta  gente,  pensou  o  sr.  Winkle  a  caminho  do  Pavão,  sou  eu 
que  mereço  chicote ;  essa  é  que  é  a  cousa. 

Os  amigos  já  estavam  prompios,  a  diligencia  quasi,  e  den- 
tro de  meia  hora  iam  elles  a  jornadear  pela  estrada  que  o  sr. 
Pickwick  e  Sam  haviam  recentemente  percorrido,  e  da  qual, 
em  vista  do  que  já  dissemos,  julgamos  desnecessário  extra- 
ciar  a  formosa  e  poética  descripção  do  sr.  Snodgrass. 

O  sr.  Weller  estava  á  espera  d'elles  á  porta  do  Anjo,  e 
por  elle  foram  levados  ao  quarto  do  sr.  Pickwick,  onde,  com 


286  AS  AVENTURAS 


grande  surpreza  dos  srs.  Winkle  e  Snodgrass  e  não  menor 
embaraço  do  sr.  Tupman,  elles  deram  de  cara  com  o  velho 
Wardie,  mais  o  sr.  Trundle.  • 

—  Gomo  vae  isso  ?  disse  o  velho  apertando  a  mão  de 
Tupman.  Não  se  atrapalhe,  nem  se  faça  sentimental ;  o  que 
não  tem  remédio  remediado  está,  meu  velho.  Por  amor  d'ella, 
bem  desejava  eu  dar-lh'a  por  esposa;  por  interesse  seu, folgo 
muito  que  assim  não  fosse.  Um  rapagão  como  vossê  ha  de 
ser  mais  feliz  para  outra  vez,  mais  dia  menos  dia  —  hein  ? 

Com  esta  consolação,  o  velho  VVardle  batia  nas  costas  do 
sr.  Tupman  e  ria  cordialmente. 

—  E  aqui  estes  amigos,  estes  excellentes  rapazes,  como 
vão  ?  perguntou  o  velho,  dando  shake-hands  ao  mesmo  tempo 
aos  srs.  Winkle  e  Snodgrass.  Estava  agora  mesmo  a  dizer  a 
Pickwick  que  os  queremos  lá  todos  para  o  Natal.  Vamos  ter 
por  lá  umas  bodas  —  bodas  a  valer,  d'esta  feita. 

—  Umas  bodas !  exclamou  o  sr.  Snodgrass  empallide- 
cendo. 

—  Sim,  umas  bodas.  Mas  não  se  assuste,  disse  o  galho- 
feiro velho ;  é  só  aqui  Trundle,  e  mais  Bella. 

—  Ah  !  é  só  isso  ?  disse  o  sr.  Snodgrass,  alliviado  de  uma 
penosa  duvida  que  lhe  cahiu  pesadamente  no  peito.  Muitos 
parabéns,  sr.  Wardie.  Como  está  Joe  ? 

—  Ah !  esse,  vae  bem.  Dorminhoco  como  sempre. 

—  E  sua  mãe  ?  e  o  vigário  ?  e  toda  essa  gente  .'* 

—  Tudo  ás  mil  maravilhas. 

—  Onde,  perguntou  o  sr.  Tupman  com  esforço,  onde  está 
ella  ? 

E  voltava  a  cabeça  para  o  lado,  cobrindo  os  olhos  com  a 
mão. 

—  Ella!  disse  o  velho  com  um  aceno  sagaz  de  cabeça. 
Quer  fallar  da  minha  irmã,  hein  ? 

O  sr.  Tupman  indicou  por  acenos  que  a  sua  pergunta  se 
referia  á  mofina  Rachel. 

—  Oh  !  foi-se  embora  ;  está  em  casa  de  uma  parente  nossa, 
lá  muito  longe.  Custava-lhe  immenso  o  ver  as  minhas  peque- 
nas, por  isso  deixei-a  ir.  Mas  venham  cá,  ahi  temos  o  jantar. 
Devem  estar  com  fome  depois  d'esta  jornada.  Eu  cá,  mesmo 
sem  jornada,  tenho  bastante.  Portanto  vamos  cahir  lhe  em 
cima ! 


DO    SR.   PICKWICK  287 


Fez-se  ampla  justiça  á  refeição.  Acabada  ella  e  ainda 
abancados  os  amigos,  o  sr.  Pickwick,  no  meio  do  intenso  hor- 
ror e  indignação,  contou  a  aventura  em  que  fora  victima  e  o 
êxito  que  coroara  as  artimanhas  vis  do  diabólico  Jingle. 

—  E  o  ataque  de  rheumatismo  que  eu  apanhei  n'aquelle 
jardim,  disse  em  conclusão  o  sr.  Pickwick,  ainda  agora  mesmo 
me  faz  coxear. 

—  Também  eu,  disse  o  sr.  Winkle  sorrindo,  tive  ufis  fumos 
de  aventura. 

E  a  pedido  do  sr.  Pickwick,  elle  contou  por  miúdos  o  li- 
bello  maldoso  do  Independente  de  Eatanswill,  e  a  irritação 
por  elle  produzida  no  animo  do  seu  amigo,  o  editor  da  Ga- 

fC/c7. 

Annuviou-se  durante  a  narrativa  a  fronte  do  sr,  Pickwick. 

Deram  por  isso  os  amigos,  e,  quando  o  sr.  Winkle  con- 
cluiu, permaneceram  em  profundo  silencio. 

O  sr.  Pickwick  bateu  energicamente  na  meza  com  o  pu- 
nho fechado,  e  fez  a  seguinte  falia : 

—  Não  é  porventura  caso  de  assombro  que  nós  pareça- 
mos fadados  para  não  entrar  em  casa  alguma,  sem  envolver 
o  dono  d'ella  em  alguma  complicação?  Pergunto  lhes :  não 
denunciará  este  facto  a  indiscrição,  ou,  peior  ainda,  a  per- 
versão—  custa  me  a  dizel-o  —  dos  meus  discipulos,  que  os 
induz,  sob  qualquer  tecto  que  os  abrigue,  a  perturbar  a  paz 
de  espirito  e  a  felicidade  de  alguma  mulher  ingénua  .''  Não 
será,  digo  eu. . . 

O  sr.  Picl-Avick  teria,  segundo  todas  as  probabilidades, 
continuado  assim  por  algum  tempo,  se  não  fora  a  entrada  de 
Sam,  com  uma  carta,  que  o  obrigou  a  interromper  o  seu  elo- 
quente discurso. 

Passou  o  lenço  pela  testa,  tirou  os  óculos,  enxugou-os,  e 
tornou  a  pôl-os  ;  e  a  sua  voz  recobrou  a  habitual  brandura  de 
tom,  quando  disse  : 

—  Que  traz  vossc,  Sam  ^ 

—  Fui  agora  mesmo  ao  correio,  e  achei  lá  esta  carta  que 
estava  lá  ha  dois  dias.  Está  sellada  com  obreia,  e  tem  o  en- 
dereço em  letra  redonda. 

—  Não  conheço  esta  letra,  disse  o  sr.  Pickwick  abrindo 
a  carta.  Valha-m  Deus!  que  quer  dizer  isto  ?  Deve  ser  gra- 
cejo ;  não  —  não  pode  ser  verdade. 


l88  AS   AVENTURAS 


—  O  que  é  ?  perguntaram  todos. 

—  No  morreu  ninguém,  decerto  ?  disse  Wardle,  assustado 
com  o  horror  que  se  divisava  no  rosto  do  sr.  Pickwick. 

O  sr.  Pickwick  não  deu  resposta,  mas,  passando  a  carta 
por  cima  da  meza  e  pedindo  ao  sr.  Tupman  que  a  lesse  em 
voz  alta,  deixou-se  cahir  na  cadeira  com  um  olhar  de  vago 
espanto  que  fazia  arripios. 

O  sr.  Tupman,  com  voz  tremula,  leu  a  carta  cuja  copia 
transcrevemos  fielmente : 

c.Freeman's  Court,  Cornhill,  28  de  agosto  de  1827. 
«Bardell  contra  Pickwick. 
«Senhor. 

«Tendo  recebido  de  Mrs.  Martha  Bardell  o  encargo  de 
intentar  uma  acção  contra  o  sr.  Pickwick,  por  quebra 
de  promessa  de  casamento,  pela  qual  a  queixosa  fixa 
os  seus  damnos  na  importância  de  mil  e  quinhentas  libras, 
tomamos  a  liberdade  de  o  informar  que  foi  citado  perante  o 
tribunal  de  Common  pleas ;  e  rogamos-lhe  nos  faça  saber,  na 
volta  do  correio,  o  nome  do  seu  advogado  em  Londres,  en- 
carregado dos  seus  interesses. 
«Somos,  senhor, 

«Seus  obedientes  servos, 
«Dodson  e  Fogg. 
«Ao  sr.  Samuel  Pickwick." 

Algo  de  tão  solemne  havia  no  mudo  espanto  com  que 
cada  um  olhava  para  o  visinho  e  todos  para  o  sr.  Pickwick, 
que  pareciam  ter  medo  de  fallar. 

O  silencio  foi  por  fim  quebrado  pelo  sr.  Tupman. 

—  Dodson  e  Fogg,  repetiu  elle  machinalmente. 

—  Bardell  e  Pickwick,  disse  o  sr.  Snodgrass  scismando, 

—  Paz  de  espirito  e  felicidade  de  mulheres  ingénuas,  mur- 
murou o  sr.  Winkle  com  ar  abstracto. 

—  E'  uma  conspiração !  exclamou  o  Sr.  Pickwick,  recu- 
perando afinal  a  faculdade  de  fallar ;  uma  vil  conspiração 
tramada  por  esses  dois  soíTregos  procuradores,  Dodson  e  Fogg. 
Mrs.  Bardell  não  era  capaz  de  tal;  —  não  tem  coração  para 
isto  ;  —  nem  tem  motivo  para  o  fazer  Ridículo  !  ridiculo  ! 

—  Do  coração  d'ella,  disse  Wardie,  sorrindo,  deveria  de- 


DO  SR.   PICKWICK  28q 


certo  ser  o  amigo  o  melhor  juiz.  Não  desejo  dominal-o,  mas 
quanto  aos  seus  motivos,  quer-me  parecer  que  Dodson  e  Pogg 
são  muito  melhores  juizes  do  que  qualquer  de  nós. 

—  FJ  uma  infame  tentativa  para  me  extorquirem  di- 
nheiro. 

—  Assim  seja,  redarguiu  Wardle,  com  uma  tosse  secca  e 
curta. 

—  Quem  é  que  me  ouviu  alguma  vez  dirigir-me  a  ella, 
por  tbrma  diversa  da  que  tem  um  hospede  dirigindo-se  á 
dona  da  casa  ?  continuou  o  sr.  Pickwick  com  grande  vehe- 
mencia.  Quem  me  viu  nunca  junto  d'ella  ?  Nem  mesmo  os 
meus  amigos  aqui  presentes. .  . 

—  A  não  ser  uma  occasião,  atalhou  o  sr.  Tupman. 
O  sr.  Pickwick  mudou  de  côr. 

—  Ah!  disse  Wardle.  Isso  agora  tem  importância.  D'essa 
vez  nada  havia  de  suspeito,  creio  eu  ? 

O  sr.  Tupman  relanceou  um  olhar  tímido  para  o  seu  mes- 
tre. 

—  Eu  lhe  digo,  disse  elle.  De  suspeito  nada  havia :  mas  — 
não  sei  como  isso  foi,  repare  bem  —  o  caso  é  que  ella  estava 
reclinada  nos  braços  d'elle. 

—  Nosso  Senhor  me  acuda  !  exclamou  o  sr.  Pickwick,  ao 
occorrer-lhe  vivamente  a  recordação  da  scena  alludida.  Que 
medonho  exemplo  do  poder  das  circumstàncias  !  E'  exacto 
—  é  exacto! 

—  E  o  nosso  amigo  estava  a  alliviar-lhe  as  mágoas,  disse 
o  sr.  Winkle  com  uns  longes  de  malícia. 

—  E  estava,  não  o  nego.  Estava  por  certo. 

—  Olá  !  disse  Wardle,  para  um  caso  em  que  não  ha  nada 
de  suspeito,  isso  está-me  a  parecer  exquisito  —  hein,  Pick- 
wick —  hein  ?  Ah  !  brejeirote  —  brejeirote  ! 

E  desatou  a  rir  com  tanta  força  que  os  copos  no  apara- 
dor começaram  a  tinir. 

—  Que  terrivel  concorrência  de  indícios!  exclamou  o  sr. 
Pickwick  descançando  o  queixo  nas  mãos.  Winkle  —  Tup- 
man —  peço-lhes  perdão  pelas  observações  que  fiz  ha  pouco. 
Todos  nós  somos  victimas  das  circumstàncias,  e  eu  mais  do 
que  todos. 

Com  esta  justificação,  escondeu  o  sr.  Pickwick  a  cabeça 
entre  as  mãos  e  íicou  a  scismar,  emquanto  o  sr.  Wardle  de- 

19 


:00  AS   AVENTURAS 


senhavci  um   circulo  de  acenos  e  de  caretas,   dirigidas  aos 
outros  membros  da  companhia. 

—  Seja  como  fôr,  quero  que  isto  se  explique,  disse  o  sr. 
IMckwick,  erguendo  a  cabeça  e  martellando  na  meza.  Vou 
ler  com  esses  taes  Dodson  eFogg.  Parto  amanhã  para  Lon- 
dres. 

—  A'manhã,  não!  disse  Wardle,  vossc  ainda  está  muito 
coxo. 

—  Pois  então,  depois  de  amanhã. 

—  Depois  de  amanhã  é  o  primeiro  de  setembro,  e  está 
compromettido  a  acompanhar-nos  ás  terras  de  Sir  Geofifrey 
Manning,  e  a  lanchar  comnosco,  a  não  ser  que  queira  tam- 
isem caçar. 

—  Pois  então  no  dia  seguinte,  disse  o  sr.  Pickwick.  Quinta 
feira  —  Sam  ! 

—  Prompto,  senhor! 

—  Tome  dois  logares  de  imperial  para  Londres,  pura 
<;iíinta-feira  de  manhã,  para  vossê  e  para  mim. 

—  Sim,  senhor, 

()  sr.  Weller  sahiu  vagarosamente  para  se  desempenhar 
do  seu  encargo,  de  mãos  nas  algibeiras  e  olhos  no  chão,  e  ia 
Id liando  comsigo  pela  rua  fora. 

—  Que  raio  de  homem,  este  meu  patrão!  Andar  a  arras- 
tar a  aza  á  tal  Mrs.  Bardell  —  demais  a  mais  com  o  contra- 
f>e7o  do  petiz  !  Cahem  sempre  n'estas  araras  o  diabo  dos 
velhotes,  com  todas  as  suas  apparencias  de  juizo.  Pois  eu, 
apesar  de  tudo,  nunca  pensaria  que  elle  fizesse  uma  d'estas 
—  nunca  pensaria  que  elle  fizesse  uma  d'estas. 

K  moraHsando  por  este  theor,  Samuel  Weller  dirigiu  os 
passos  para  o  escriptono  das  diligencias. 


CAPITULO  XIX 

U«:i  dia  agradável,  com  um  fim  desagradável 

O:   pássaros  que,  felizo-enie  para  a  sua  paz  de  espirito  e 

cnr.Ux  o  pessoal,  estavam  em  abençoada  ignorância  dos  pre- 

••■     s  que  se  haviam   feito  para   os  encher  de  espanto. 


no  SR.  PICKWICK  2QI 


saiKlaram  a  manhã  do  primeiro  de  setembro  como  uma  das 
mais  apriiziveis  que  n'aquella  estação  tinham  visto. 

Muito  e  muito  nerdi.uoio  que  se  pavoneiava  complacente- 
mente pelo  restolno  com  toda  a  lépida  fatuidade  da  juven- 
tude, e  muito  perdigão  velho  que  contemplava  esta  desen- 
voltura com  os  olhos  redondos,  desdenhoso  como  uni  pas 
saro  sizudo  e  experiente,  todos  egualmentJ  inconscios  da 
sentença  imminente,  aspiravam  o  ar  fresco  da  manhã  com 
contentamento  e  beaiitude. 

K  poucas  horas  depois  deviam  hcar  estendidos  por  terra. 

Mas  bastai  vamo-nos  tornando  sentimentaes :  prosiga- 
mos. 

Em  linguagem  chã  e  positiva,  estava  pois  uma  bella  ma- 
nhã —  tão  bella  que  custaria  a  acreditar  terem-se  \á  escoado 
os  poucos  mezes  do  estio  inglez. 

Sebes,  campos  e  arvoredos,  collinas  e  brejos,  tudo  apre- 
sentava aos  olhos  as  sombras  e  cambiantes  de  um  verde 
rico. 

Uma  que  outra  folha  cabida,  uns  leves  raios  de  amarello 
sobre  as  cores  vivas  do  verão,  apenas  denunciavam  que  co- 
meçara o  outono. 

b  eco  estava  desanuviado;  o  sol  jorrava  brilho  e  calor: 
o  chilrear  dos  pássaros  e  o  zumbido  de  myriades  de  insectos 
estivaes  enchiam  o  ar ;  e  os  jardins,  repletos  de  flores  varie- 
gadas, scintillavam  com  o  orvalho,  como  estojos  de  jóias 
deslumbrantes. 

Tudo  tinha  o  cunho  do  verão,  e  nenhuma  das  suas  bri- 
lhantes cores  havia  desbotado. 

Tal  era  a  manhã,  quando  uma  carruagem  aberta,  com  trcs 
dos  pickwickanos  (visto  que  o  sr.  Snodgrass  preferira  licar 
em  casa)  os  srs.  Wardle  e  Trundle,  com  Sam  Weller  na  al- 
mofada ao  lado  do  cocheiro,  parou  a  um  portão  á  beira  da 
estrada,  defronte  do  qual  estavam  um  couteiro  alto  e  os- 
sudo e  um  rapaz  de  botins  e  polainas  de  couro:  cada  um 
d'elles  com  uma  enorme  rede  de  caça  e  acompanhado  por 
uma  enorme  parelha  de  perdigueiros. 

—  Olhe  lá  I  segredou  o  sr.  Winkle  para  Wardle,  emquanto 
o  homem  abaixava  os  degraus  da  carruagem,  elles  estarão 
persuadidos  que  nós  vamos  matar  tanta  caça  que  encha 
aquellas  redes  ? 


2C)2  AS   AVENTURAS 


—  Que  as  encha!  exclamou  o  velho  Wardie.  Se  Deus  qui- 
zer !  Vossê  enche  uma,  e  eu  outra;  e  quando  estiverem  a 
abarrotar,  podemos  ainda  metter  outra  tanta  nos  bolsos  das 
nossas  vestias. 

O  sr.  Winkle  apeiou-se  sem  dar  resposta;  mas  pensou  de 
si  para  comsigo  que,  se  elles  tencionavam  ficar  ao  ar  livre 
até  que  elle  enchesse  uma  das  redes,  cornam  sérios  riscos  de 
apanhar  tremendas  constipações. 

—  Hi,  Juno  —  hi,  velhote  !  Abaixo,  Daph,  abaixo  !  disse 
Wardle  acariciando  os  cães.  Sir  Geoffrey  está  ainda  na  Es- 
cócia, não  é  assim,  Martin  ? 

O  couteiro  alto  respondeu  affirmativamente,  e  relanceou 
os  olhos,  surprehendidos  do  sr.  Winkle,  que  pegava  na  espin- 
garda como  se  desejasse  que  o  bolso  da  vestia  lhe  tirasse  o  tra- 
balho de  dar  ao  gatilho,  para  o  sr.  Tupman,  que  segurava 
a  sua  como  se  tivesse  medo  d'ella  —  e  não  ha  razão  para  du- 
vidar que  assim  fosse  na  realidade. 

—  Os  meus  amigos  airkda  não  estão  muito  habituados  a 
estas  cousas,  Martin,  disse  Wardle,  notando  o  reparo  do 
couteiro.  Até  morrer  aprender,  como  diz  lá  o  outro.  Qual- 
quer dia  estão  ahi  uns  atiradores  de  mão  cheia.  Em  todo  o 
caso,  peço  perdão  ao  amigo  Winkle  ;  esse  já  tem  tido  alguma 
pratica. 

O  sr.  Winkle  correspondeu  ao  cumprimento  com  um  sor- 
riso amarello  por  cima  da  gravata  azul,  e  tão  mysteriosa- 
mente  se  atrapalhou,  modesto  e  confuso,  com  a  sua  espin- 
garda, que,  se  ella  estivesse  carregada,  era  caso  para  ir  para 
o  outro  mundo  n'um  prompto. 

—  O  senhor  não  deve  agarrar  na  arma  d'esse  feitio,  em 
ella  estando  carregada,  disse  com  aspereza  o  couteiro,  quando 
não,  diabos  me   levem   se  não  atira  com  algum  de  nós  de 


pernas  para  o  ar  ! 

Assim  admoestado,  o  sr.  Winkle  mudou  bruscamente  de 
posição,  e  n'esta  manobra  ferrou  o  cano  em  intimo  conta- 
cto com  a  cabeça  de  Sam. 

—  Eh  lá!  bradou  este  apanhando  o  chapéo  e  esfregando 
as  fontes.  Eh  lá,  senhor !  se  vae  por  esse  andar,  só  com  um 
tiro  é  capaz  de  encher  uma  das  redes,  e  ainda  lhe  fica  de  so- 
brecelente. 

N'isto,  o  rapaz  das  polainas  de  couro  desatou  ás  gargalha 


DO   SR.   PICKWICK  2()3 


das ;  mas  tratou  logo  de  disfarçar,  pois  que  o  sr.  VVinklc  fran- 
zira majestosamente  o  sobr'olho. 

—  Onde  é  que  vosse  mandou  o  rapaz  ficar  á  nossa  espera 
com  o  farnel,  Martin  ?  perguntou  Wardle. 

—  No  mouchão  da  Arvore,  ao  meio  dia. 

—  Isso  já  não  lic;i  nas  terras  de  Sir  GeofíVey,  pois  fica  ? 

—  Não,  senhor ;  mas  fica  mesmo  pegado.  E'  nas  terras  do 
capitão  B©ld\vig ;  mas  não  ha  lá  ninguém  que  nos  incom- 
n">ode,  e  é  um  pouso  excellente,  com  bella  relva. 

—  Muito  hem,  disse  o  velho  Wardle.  Quanto  mais  de- 
pressa partirmos,  melhor.  Então  o  amigo  Pickwick  vae  ter 
comnosco  em  sendo  meio  dia  ? 

O  sr.  Pickwick  tinha  grande  desejo  de  assistir  á  caçada, 
tanto  mais  que  tinha  umas  leves  apprehensões  com  respeito 
á  vida  e  aos  membros  do  sr.  Winkle. 

Demais,  n'uma  manhã  convidativa  como  aquella,  era  de- 
veras tantalisante  o  voltar  para  traz  e  deixar  os  amigos  a  di- 
vertirem-se.  Foi  poi?  com  ar  tristonho  que  elle  respondeu  : 

—  Sim,  creio  que  lá  irei  ter. 

—  Este  senhor  não  é  caçador?  perguntou  o  couteiro. 

—  Não,  respondeu  Wardle;  e  além  d'isso  está  coxo. 

—  Gostava  immenso  de  ir  também,  disse  o  sr.  Pickwick, 
immenso. 

Houve  um  curto  silencio  de  commiseração. 

—  Ha  um  carrinho  de  mão  do  outro  lado  da  sebe,  excla- 
mou o  garoto.  Se  o  criado  d'este  senhor  quizer  rodar  com 
elle  por  esses  atalhos,  podia  vir  comnosco,  e  nós  poderíamos 
levantal-o  para  passar  por  cima  dos  cercados,  e  outras  que 
taes  historias. 

—  Isso  mesmo!  disse  Sam  que  era  interessado  no  assum- 
pto, pelo  desejo  ardente  que  linha  de  assistir  á  caçada.  Isso 
mesmo  I  Diz  muito  bem  o  fedelho.  Vou  buscai- a,  emquanto 
o  diabo  esfrega  um  olho. 

Mas  n'isto  levantou-se  uma  difficuldade. 

O  couteiro  alto  protestou  contra  a  introducção  de  um  su- 
jeito em  carrinho  de  mão  no  meio  de  um  grupo  de  caçado- 
res, como  uma  tremenda  violação  de  todas  as  regras  estabe- 
lecidas e  de  todos  os  precedentes. 

A  objecção  era  forte,  mas  não  invencivel.  Tratou- se  de 
acarinhar  e  de  untar  as  unhas  ao  couteiro,  o  qual  além  d'isso 


94  AS   AVENTURAS 


alliviou  o  animo  com  uns  sopapos  na  cabeça  inventiva,  que 
suggerira  o  uso  da  machina. 

Pozeram-se  finalmente  a  caminho,  Wardie  e  o  couteiro 
na  frente,  como  guias,  e  na  rectaguarda  osr.  Pickwick  no  car- 
rinho, impellido  por  Sam. 

—  Pare  ahi,  Sam  I  disse  o  sr.  Pick^vick  quando  elles  iam 
a  meio  do  primeiro  campo. 

—  Que  é  isso  agora  ?  perguntou  Wardie. 

—  Eu  não  consinto  que  o  carrinho  dê  mais  um  passo, 
disse  resolutamente  o  sr.  Pickwick,  se  Winkle  não  levar 
aquella  espingarda  de  outro  feitio. 

—  Como  ^  que  eu  hei  de  leval-a  ?  disse  o  misero  Win- 
kle. 

—  Com  a  bocca  virada  para  baixo. 

—  Isso  é  contra  todas  as  regras  do  sport,  objectou  Win- 
kle. 

—  Quero  lá  saber  se  é  contra  as  regras  do  sport,  ou  não 
é  !  Eu  o  que  não  quero  é  que  me  fuzilem  n'um  carro  de  mão, 
por  amor  das  apparencias  e  para  agradar  aos  outros. 

—  E'  certo  que  este  senhor  ferra  com  a  carga  pelo  corpo 
de  alguém  dentro,  antes  de  querer  disparar,  rosnou  o  cou- 
teiro alto. 

—  Bem,  bem  —  não  faço  questão  d'isso,  disse  o  pobre 
Winkle,  virando  a  coronha  para  cima.  Aqui  está. 

—  Tudo  pela  paz,  disse  Sam. 
E  continuou  a  andar. 

—  Esperem  !  disse  o  sr.  Pickwick,  depois  de  terem  avan- 
çado umas  poucas  de  jardas. 

—  Que  ha  novo?  perguntou  Wardie. 

—  Aquella  espingarda  de  Tupman  está  perigosa  ;  está  com 
certeza. 

—  O  que  ?  o  que  ?  está  perigosa  !  disse  o  sr.  Tupman  com 
grande  susto. 

—  Está,  se  vossê  lhe  segura  d'essa  forma.  Sinto  muito  fa- 
zer mais  objecções,  mas  o  que  eu  não  posso  é  consentir  em 
ir  avante,  se  vossê  não  fizer  como  íez  Winkle. 

—  Quer-me  parecer  que  é  melhor,  disse  o  couteiro,  quando 
não  arrisca-se  a  alojar  a  carga  ou  na  sua  vestia  ou  então  na 
dos  outros. 

O  sr.  Tupman,  com  a  mais  obsequiosa  prompiidão,  collo- 


no  SR.   HICKWICK  2cp 


cou  a  sua  arma  na  posição  requerida,  e  o  rancho  pòz-se  de 
novo  a  caminho. 

Os  dois  amadores  iam  com  as  espingardas  para  baixo,  co- 
mo uma  patrulha  em  funeral. 

Os  cães  estacaram  de  repente,  e  o  rancho  deu  um  passi- 
nho furtivo  e  estacou  também. 

—  Que  diabo  teem  os  cães  nas  pernas  ?  segredou  o  sr. 
Winkle.  Estão  assim  com  um  ai  estrambótico  ! 

—  (]ale-se,  homem,  por  favor!  repHcou  Wardle  devaga- 
rinho. Vossè  não  vê  que  elles  estão  a  repontar ! 

—  A  repontar  I  disse  o  sr.  Winkle  olhando  para  todos  os 
lados,  como  se  esperasse  descobrir  alguma  belleza  erpecial 
de  paizagem,  para  a  qual  os  intelligentes  animaes  estivessem 
chamando  a  attenção.  A  repontar!  A  repontar  com  que? 

—  Abra  bem  esses  olhos !  disse  Wardle  que  não  ouvira  a 
pergunta  na  excitação  do  momento.  Agora,  agora ! 

Sentiu-se  um  esvoaçar  ruidoso,  que  fez  recuar  brusca- 
mente o  sr.  Winkle  como  se  tivesse  apanhado,  elle  próprio 
imi  tiro. 

Pan  !  pan  !  resoaram  dois  tiros ;  —  o  fumo  rolou  pelo 
campo  fora,  ennovelando-se  nos  ares. 

—  Onde  estão  ellas  ^  disse  o  sr.  Winkle  no  cumulo  do  en- 
thusiasmo,  virando-se  em  todas  as  direcções.  Onde  estão  el- 
las? Diga-me  quando  hei  de  fazer  fogo.  Onde  estão  ellas? 
onde  estão  ellas  ^ 

—  Onde  estão  ellas!  disse  Wardle  apanhando  duas  per- 
dizes que  os  cães  lhe  tinham  deposto  aos  pés.  Onde  estão  el- 
las !  E'  boa  !  estão  aqui ! 

—  Não  são  essas !  estou  fallando  das  outras  !  disse  Win- 
kle muito  assarapantado. 

—  Onde  irão  ellas  a  estas  horas  !  replicou  Wardle,  carre- 
gando friamente  a  espingarda. 

—  E'  provável  que  d'aqui  a  cinco  minutos  a  gente  esteja 
a  contas  com  outra  ninhada,  disse  o  couteiro.  Se  este  senhor 
começar  agora  a  disparar,  pôde  ser  que  o  chumbo  esteja  a 
sahir  do  cano  quando  ellas  se  levantarem. 

—  Ah  !  ah  !  ah  !  rugiu  Sam  Weller. 

—  Sam  !  disse  o  sr.  Pickwick,  compadecido  da  confusão 
e  do  embaraço  do  seu  discipulo. 

—  Senhor ! 


20t)  AS  AVENTURAS 


—  Não  se  esteja  a  rir. 

—  Não,  senhor. 

Mas,  para  se  inJemnisar,  Sam  poz-se  a  contorcer  as  fei- 
ções, por  detraz  do  carro,  para  exclusivo  divertimento  do 
garoto  das  polainas. 

Este  desatou  ás  gargalhadas  ruidosas  e  foi  summaria- 
mente  tosado  pelo  couteiro,  que  precisava  de  um  pretexto 
para  se  voltar  e  disfarçar  as  suas  ganas  de  riso. 

—  Bravo,  meu  velho  I  exclamou  Wardle  para  o  sr.  Tup- 
man.  Vossê  ao  menos  d'esia  vez  fez  fogo. 

—  E'  verdade  que  sim!  replicou  o  sr.  Tupman  com  or- 
gulho. Disparei  o  meu  tiro. 

—  Isso  é  que  se  quer.  Para  a  outra  vez  acertará  em  alguma 
cousa,  se  tiver  olho  vivo.  E'  facilUmo,  não  é  ? 

—  E',  é  muito  fácil.  O  diabo  é  que  faz  doer  o  hombro. 
la-me  atirando  de  pernas  para  o  ar.  Nunca  imaginei  que  es- 
tas armas,  pequenas  como  são,  dessem  couces  tão  valen- 
tes. 

—  Ahl  disse  o  velho  a  sorrir.  VossG  se  costumará,  é  ques- 
tão de  tempo.  E  então  agora  —  agora  a  postos  —  lá  o  carri- 
nho está  em  ordem  ? 

— -Prompto,  senhor,  redarguiu  Sam. 

—  Então,  ala  I 

—  Aguente-se  bem,  senhor,  disse  Sam  levantando  o  carro. 

—  Sim,  sim,  replicou  o  sr.  Pickwick. 

E  o  rancho  seguiu  o  mais  depressa  que  pôde. 

—  Ora  agora,  deixem  ficar  o  carrinho  ahi  atraz,  gritou  o 
sr.  Wardle,  depois  de  se  ter  passado  o  carro  por  cima  do 
cercado  para  outro  campo,  e  de  se  ter  de  novo  mettido  n'elle 
o  sr.  Pickwick. 

—  Está  bem,  senhor,  disse  Sam  parando. 

—  Agora,  Winkle,  siga-me  devagarinho,  e  veja  se  d'esta 
vez  anda  mais  vivo. 

—  Não  tenha  medo,  disse  o  sr.  Winkle.  Os  cães  estão  a 
repontar  ? 

—  Não,  por  ora  não  estão.  Silencio,  agora,  silencio  1 

E  iam  andando  muito  subtilmente,  senão  quando  o  sr. 
Winkle,  ao  executar  com  a  espingarda  varias  evoluções  muito 
intrincadas,  disparou  accidentalmente,  mesmo  no  momento 
critico,  passando  a  carga   por  cima  da  cabeça  do  garoto,  no 


DO   SR.   PICKWICK  20' 


itio  exacto  onde  estariam  os  miolos  do  couieiro  alto,  se  elle 
estivesse  no  logar  do  rapaz. 

—  Esta  só  pela  breca!  pVa  que  diabo  disparou  vossc  ." 
perguntou  o  velho  Wardle,  emquanto  as  perdizes  voavam  in- 
cólumes para  longe. 

—  Nunca  na  minha  vida  vi  uma  espingarda  assim,  repli- 
cou o  pobre  Winkle,  olhando  para  o  gatilho,  como  se  isso 
remediasse  alguma  cousa.  Dispara  por  si,  o  diacho  I  Ella  c 
que  tem  vontade  de  disparar. 

—  Ah  !  tem  vontade  !  disse  Wardle,  um  pouco  irritado, 
i^ois  era  bem  bom  que  ella  tivesse  vontade  de  matar  alguma 
cousa ! 

—  Isso  não  tarda,  senhor!  observou  o  homem  alto,  com 
voz  cava  e  prophetica. 

—  Que  quer  vossè  dizer  com  essa  observação  ?  interrogou 
com  aspereza  o  sr.  Winkle. 

—  Não  se  rale,  não  se  rale.  Eu  cá  por  mim  não  tenho  fa- 
mília; e  quanto  aqui  a  este  petiz,  a  mãe  sempre  ha  de  apa- 
nhar alguma  cousa  a  Sir  Geoffrey,  se  o  matarem  nas  suas 
terras.  Torne  a  carregar,  senhor  —  torne  a  carregar. 

—  Tirem-lhe  a  espingarda,  bradou  do  carrinho  o  sr.  Pick- 
wick,  horrorisado  com  as  negras  insinuações  do  couteiro. 
Tirem-lhe  a  espingarda  I  Ouviram  ?  Alguém  ! 

Ninguém  comtudo  se  resolveu  a  obedecer  a  esta  ordem  : 
e  o  sr.  Winkle,  depois  de  dardejar  um  olhar  rebelde  sobre  o 
sr.  Pickwick,  carregou  outra  vez  a  espingarda  e  seguiu  para 
a  frente  com  os  outros. 

Somos  forçados  a  asseverar,  fiados  na  auctoridade  do  sr. 
l"*ick\vick,  que  o  procedimento  do  sr.  Tupman  demonstrou 
muito  maior  prudência  e  deliberação  do  que  o  adoptado  pelo 
sr.  Winkle. 

Em  todo  o  caso,  isto  por  modo  algum  deprime  a  grande 
auctoridade  d'este  ultimo  em  assumptos  de  sport:  visto  que, 
como  bellamente  observou  o  sr.  Pickwick,  tem  succedido 
desde  tempos  immemoriaes  que  muitos  dos  melhores  e  mais 
hábeis  philosophos,  perfeitos  luminares  da  sciencia  em  ma- 
téria theorica,  teem  sido  absolutamente  destituídos  de  habi- 
lidade precisa  para  a  reduzir  á  pratica. 

O  processo  do  sr.  Tupman,  como  muitas  das  nossas  mais 
sublimes  descobertas,  era  extremamente  simples. 


2()^  AS  AVFNTURAS 


Com  a  rápida  perspicácia  de  um  homem  de  génio,  elle 
percebeu  logo  á  primeira  que  os  dois  grandes  fins  a  attingir 
eram  —  primeiro,  disparar  a  espingarda  sem  tazer  damno  a 
si  próprio,  e  segundo,  fazei  o  sem  perigo  para  os  assistentes ; 
—  por  conseguinte,  a  melhor  cousa  a  fazer,  vencida  a  diffi- 
culdade  de  fazer  fogo,  era  fechar  os  olhos  com  iirmeza  e  ati- 
rar para  o"  ar. 

De  uma  vez,  depois  de  ter  executado  esta  façanha,  o  sr. 
Tupman,  ao  abrir  os  olhos,  viu  uma  nédia  perdiz  mesmo  no 
acto  de  se  despenhar  ferida. 

Dispunha  se  mesmo  a  ir  congratular  Wardle  pelo  seu 
êxito  invariável,  quando  este  se  adiantou  para  elle  e  disse, 
apertando-lhe  calorosamente  a  mcãc-  : 

—  Tupman,  vossê  ídvejou  especialmente  esta  perdiz  ? 

—  Não  I  não  ! 

—  Alvejou  tal,  que  eu  bem  vi  —  observei-o  a  extremal-a 
com  a  vista  —  reparei  como  vossê  levantava  a  espingarda 
para  fazer  pontaria:  e  sempre  direi  que  nem  o  melhor  atira- 
dor d'este  mundo  poderia  dar  um  tiro  mais  bonito.  Vossê  é 
menos  peixote  do  que  eu  pensava,  Tupman;  —  vossG  já  está 
farto  de  caçadas. 

Debalde  o  sr.  Tupman  protestou,  com  um  sorriso  modes- 
to, que  nunca  tinha  caçado. 

Até  o  sorriso  se  lhe  tomou  como  prova  do  contrario;  e 
d'ahi  por  diante  ficou  estabelecida  a  sua  reputação. 

Não  é  esta  a  única  reputação  que  tão  facilmente  se  tem 
adquirido,  nem  tão  felizes  circumstancias  se  limitam  á  caça 
das  perdizes. 

Entrementes,  o  sr.  Winkle  fartava-se  de  produzir  estam- 
pidos, e  relâmpagos,  e  fumos,  sem  produzir  resultados  mate- 
riaes  dignos  de  nota  ;  umas  vezes  perdendo  a  carga  pelos 
ares,  outras  fazendo-a  resvalar  réz-véz  com  a  terra  e  pondo 
em  situação  bastante  incerta  e  precária  as  vidas  dos  dois 
cães. 

Como  ostentação  de  phantasia,  era  isto  em  extremo  va- 
riado e  curioso  ;  como  tiro  a  alvo  definido  era  porventura, 
em  summa,  um  fiasco. 

Ha  um  axioma,  geralmente  aceite,  que  «não  ha  balas  sem 
iobrescripto." 

Applicada  ctita  regra  aos  tiros  do  sr.  Winkle,  [)odiam  elles 


no  SR.  PiCKWicK  H)q 


considerar  se  míseros  ens^eitados,  privadf)S  de  direitos  natu- 
raes,  abandonados  aos  vaevens  do  mundo,  e  sem  destino  de- 
terminado. 

—  Kntão  que  n-ie  diz?  exclamou  VVardle,  aproximando-se 
do  carrinho,  e  enxugando  do  rosto  vermelho  e  galhofeiro  as 
torrentes  de  suor.  Um  diasinho  de  fazer  fumo,  não  acha  ? 

—  Se  é  !   replicou  o  sr.  Pickwick.  O  sol  está  de  queimar, 
até  para  mim.  Nem  calculo  como  os  senhores  o  hão  de  sen 
tir. 

—  Kstá  quentinho,  lá  isso  está.  E  já  passa  do  meio  dia. 
\'c  além  aquelle  mouchão  verde  ? 

—  l^erfeitamenie. 

—  Ali  é  que  nós  havemos  de  lanchar;  e  olhe!  lá  está  o 
rapaz  com  o  cesto,  pontual  como  um  relógio. 

—  K'  verdade  que  sim!  exclamou  o  sr.  Pickwick,  aclaran- 
do-se-lhe  a  physionomia.  Excellente  rapaz!  Hei  de  dar-lhe 
um  shilling.  Ande  lá,  Sam,  rode  lá  com  isso  ! 

—  Segure-se  bem,  senhor!  disse  Sam,  reanimado  com  a 
perspectiva  da  comezaina.  Safii  do  caminho,  petiz  das  polai- 
nas  !  Se  tem  apreço  pela  minha  preciosa  vida,  veja  lá  não 
ferre  comigo  no  chão,  como  dizia  o  tal  cavalheiro  quando  o 
levavam  para  a  forca. 

K  estugando  o  passo  até  ao  galope,  Sam  acarretou  n'um 
prompto  o  amo  até  ao  mouchão  verde,  descarregou-o  com 
dextreza  mesmo  ao  lado  do  cesto,  e  começou  a  desenfardar 
este  n'um  abrir  e  fechar  de  olhos. 

—  Pastelão  de  vitella,  monologou  elle,  dispondo  os  co- 
mestíveis sobre  a  relva.  E'  de  chupeta  o  pastelão  de  vitella, 
o  caso  é  a  gente  conhecer  a  patroa  que  o  amanhou  e  ter  a 
certeza  que  o  recheio  não  é  de  gatos.  Que  afinal  de  coiltas, 
que  mal  ha  n'isso,  se  elles  se  parecem  tanto  com  a  vitella 
que  até  mesmo  os  pasteleiros  não  são  capazes  de  dar  pela 
ditferença. 

—  VÔsse  falia  serio,  Sam  ?  perguntou  o  sr.  Pickwick^ 

—  Não  dão,  não  senhor,  redarguiu  Sam  levando  a  mão  ao 
chapéo.  Eu  cá  já  morei  na  mesma  casa  com  um  pasteleiro,  e 
por  signal  que  era  um  bello  homem  —  e  não  tinha  nada  de 
tolo.  F^azia  pastelões  e  empadões  com  tudo  que  lhe  cahia  nas 
unhas.  E  vae  eu  uma  vez,  quando  me  relacionei  mais  com 
elle,  perguntei- lhe  : 


Soo  AS   AVENTURAS 


« — Que  data  de  gatos  que  vossc  tem,  sr.  Brook  !" 

'■ —  Ah  I  sim  I   disse  ellc,  tenho,  tenho  muitos.» 

'. —  Vossè  deve  ser  muito  amigo  de  gatos, <>  disse-lhe  eu. 

« — Ha  outra  gente  que  gosta  d'elles,»  respondeu  elle,  pis- 
cando-me  o  olho.  «Mas  antes  do  inverno  não  estão  de  sa- 
zão.» 

« — Não  estão  de  sazão!»  disse  eu. 

« — Não  estão  I»  disse  elle,  «em  começando  os  fructos 
acabam  os  gatos.» 

«' —  Que  diabo  está  vossc  p'r'ahi  a  alanzoar  ?»  pergun- 
tei eu. 

« — í'A  aianzoar.^»  disse  elle.  «E'  que  eu  cá  não  entro  na 
combinação  dos  cortadores  para  augmentar  o  preço  da  car- 
ne. Olhe,  sr.  VVeller»,  disse  elle  ao  depois,  apertando-me  a 
mão  com  muita  gana  e  segredando-me  ao  ouvido,  «não  diga 
nada  a  ninguém,  mas  o  tempero  é  que  é  tudo.  Todos  elles 
são  feitos  com  esses  nobres  animaes,»  disse  elle  apontando 
para  um  lindo  bichano  malhado.  «E  eu  cá  arranjo-os  para 
bife  de  vacca,  para  vitella  ou  para  rim,  conforme  os  pedidos. 
E  ainda  mais !  posso  fazer  da  vitella  vacca,  ou  da  vacca  rim, 
ou  de  qualquer  d'ellas  carneiro,  n'um  abrir  e  fechar  de  olhos, 
conforme  o  preço  do  mercado  ou  as  mudanças  de  appe- 
lite!» 

—  Devia  ser  um  rapaz  muito  engenhoso,  Sam  I  disse  o 
sr.  Pickwick  com  um  ligeiro  arripio. 

—  Se  era  I  replicou  Sam,  continuando  a  despejar  o  cesto, 
e  os  pastelões  eram  umabellezal  Lingua  ;  sim,  senhor,  cousa 
rica,  quando  não  é  de  mulher.  Pão  —  presunto,  tem  boa  cara 
—  carne  fria  em  fatias,  gosto.  Que  é  que  está  dentro  d'aquel- 
les  cangirões,  minha  ceresma  ? 

—  Cerveja  n'este,  replicou  o  rapaz  tirando  dos  hombros 
duas  enormes  botijas  de  grés,  atadas  uma  á  outra  por  uma 
correia,  e  ponche  frio  no  outro. 

—  E  c  que  é  um  lanche  de  estalo,  disse  Sam,  vigiando 
com  grande  satisfação  os  preparativos  do  repasto.  Agora, 
meus  senhores,  avancem  I  como  disseram  os  inglezes  aos 
francezes  armando  baionetas. 

Não  foi  necessário  segundo  convite  para  induzir  o  rancho 
a  fazer  plena  justiça  ás  victualhas;  nem  de  maiores  instan- 
cias  precisavam  Sam,  o  couteiro  e  os  dois  garotos,  para  se 


DO  SR.   PICKWICK  .^Ol 


assenlareni   na  relva,  a  pouca  distancia,  e  para  darem  cabo 
de  uma  proporção  decente  de  viandas. 

Um  velho  carvalho  fornecia  aprazível  sombra  ao  gropo,  e 
abaixo  d'elles  estendia-se  um  bello  panorama  de  prados  e 
terras  de  semeadura,  cortado  por  sebes  luxuriantes  e  rica- 
mente decorado  de  arvoredos. 

—  Isto  é  delicioso  —  delicioso  a  valer !  exclamou  o  sm\ 
Pickwick,  a  cujo  rosto  expressivo  cahia  rapidamente  a  pelle 
pela  exposição  aos  ardores  do  sol. 

—  Pois  é,  é,  meu  velho  !  replicou  Wardle.  Tome  lá  um 
copo  de  ponche. 

—  Com  o  maior  prazer,  disse  o  sr.  Pickwick ;  e  a  satisfa- 
ção que  se  lhe  pintou  no  semblante  depois  de  ter  bebido  tes- 
temunhava a  sinceridade  da  replica. 

—  Bem  bom,  continuou  elle  dando  um  estalo  com  os  bei- 
ços. Bem  bom.  Dê  cá  outro.  Frio,  muito  frio.  Meus  senhores, 
proseguiu  ainda,  sem  largar  a  botija,  um  brinde.  Aos  nossos 
amigos  de  Dingley-Dell. 

Fez-se  honra  ao  brinde  entre  ruidosas  acclamaçÕes. 

—  Eu  lhes  digo  o  que  vou  fazer  para  arranjar  outra  vez 
boa  pontaria,  disse  o  sr  Winkle,  que  estava  a  comer  pão  e 
presunto  com  uma  navalha.  Ponho  uma  perdiz  empalhada  na 
ponta  de  um  poste,  e  vou-me  exercitando  a  atirar-lhe,  come- 
çando de  perto  e  augmentando  gradualmente  a  distancia.  E' 
um  exercício  de  primeira  ordem. 

—  Conheço  um  sujeito  que  fez  isso,  acudiu  Sam.  Come- 
çou á  distancia  de  duas  jardas,  mas  não  tornou  a  atirar.  Eogo 
ao  primeiro  tiro  escangalhou  o  pássaro  de  modo  que  nin- 
guém mais  lhe  poz  a  vista  em  cima  de  uma  penna. 

—  Sam,  disse  o  sr.  Pickwick. 

—  Senhor  ? 

—  Tenha  a  bondade  de  guardar  as  suas  anecdotas  para 
quando  lh'as  pedirem. 

—  Sim,  senhor. 

E  Sam  piscou  o  olho  que  não  estava  occulto  com  a  ca- 
neca de  cerveja  que  elle  erguia  aos  lábios,  com  tão  requin- 
tada facécia,  que  os  dois  garotos  desataram  em  convulsões 
espontâneas,  e  até  o  homem  alto  deu  um  ar  da  sua  graça. 

—  Sim,  senhor  !  isto  é  que  é  um  ponche  de  estalo  !  disse 
o  sr.  Pickwick,  olhando  com  ternura  para  a  botija.  E  o  dia 


.-^02  •  AS   AVENTURA*^ 


eslá  quente  como  o  demónio,  e.  .  .  Tupoian,  meu  caro  ami- 
^o,  dá-me  um  copo  de  ponche? 

—  l^ois  não  I  replicou  o  sr,  Tupman. 

E  depois  de  beber  este  copo  o  sr.  I^ickwick  tomou  outro, 
so  para  ver  se  elle  tinha  dentro  alguma  casca  de  laranja,  por 
isso  que  embirrava  muito  com  as  cascas  de  laranja. 

E  como  não  as  achasse  no  ponche,  o  sr.  Pickwick  bebeu 
outro-  copo  á  saúde  do  amigo  ausente,  e  em  seguida  sentiu- 
se  fortemente  impulsionado  a  propor  outro  brinde  em  honra 
do  incógnito  fabricante  de  ponche. 

A  successão  constante  de  copos  produziu  um  etíeito  con- 
siderável no  sr.  Pickwick  ;  a  sua  physionomia  illuminou-se 
dos  mais  caloros-s  sorrisos,  nos  lábios  d'elle  pairavam  gar- 
galhadas, e  nos  seus  olhos  faiscava  uma  alegria  benévola. 
Cedendo  gradualmente  á  intkiencia  do  excitante  liquido,  mais 
excitante  ainda  em  virtude  do  calor,  o  sr.  Pickwick  expressou 
o  desejo  vehemente  de  se  recordar  de  uma  canção  que  ou- 
vira na  infância,  e,  como  a  tentativa  se  mallograssc,  procu- 
rou estimular  a  memoria  com  mais  copos  de  ponche,  os  quaes 
pareceram  exercer  o  etfeito  absolutamente  opposto  ;  porque, 
tendo  se  primeiro  esquecido  das  palavras  da  canção,  come- 
çou a  esquecer- se  da  forma  de  articular  fosse  que  palavra 
fosse;  e  depois  de  se  por  em  pé  para  dirigir  á  sociedade  um 
eloquente  discurso,  acabou  por  cahir  dentro  do  carrinho  e 
[legar  no  somno  sem  solução  de  continuidade. 

Arrumado  novamente  o  cesto  e  reconhecida  a  completa 
impossibilidade  de  acordar  o  sr.  PickM'icl<,  levantou- se  al- 
guma discussão  sobre  se  seria  preferível  Sam  acarretar  out.''a 
ve/,  o  amo  na  direcção  do  ponto  de  partida,  ou  deixal-o  ficar 
onde  estava  até  todos  se  aprestarem  para  o  regresso. 

Optou  se  por  esta  ultima  ideia  ;  e  como  a  sua  expedição 
não  poderia  durar  ainda  mais  de  uma  hora,  e  como  Sam  ins- 
tava muito  para  os  acompanhar,  decidiu-se  deixarem  o  sr. 
Pickwick  a  dormir  no  carrinho  e  virem  buscal-o  quando  re- 
tirassem. 

Afastaram-se  pois,  deixando  o  sr.  Pickwirk  a  resonar  pa- 
cificamente á  sombra. 

Não  ha  motivo  para  duvidyr  que  o  sr.  Pickwick  teria  con- 
tinuado a  resonar  á  sombra  até  que  os  amigos  voltassem,  ou, 
á  falta  d'elles,  até  que  as  sombras  da  noite  obscurecessem  ^ 


DO  SR.   l'l<:KWir.K  ^  .-^o. 


paisdj^em,  se  acuso  o  dtixasscnj  t:m'pa/.  Mas  nã^o  deixaram, 
e.eis  o  que  a  isso  deu  causai.     •  •     ' 

Ucapitão  Boldwig  era-  vim  flom*em  baixo,  de  ar  Ipro,  gra- 
vata preta  muito  rigida  e  sobretudo  azul. 

(guando  se  dignava  passeiar  pelas  suas  propriedades,  fa- 
/ia-o  em  companhia  de  uma  grossa  bengala  de  cana  da  índia 
cf)m  castão  de  cobre,  e  de  um  jardineiro  e  de  um  moco  do 
jardineiro,  ambos  de  caras  risonhas,  aos  quaes  o  capitão  Bald- 
wig  dava  ordens  com  a  devida  pompa  e  ferocidade  :  porque 
i  irmã  da  mulher  do  capitão  Boldwig  era  casada  com  um 
marquez,  e  a  casa  do  capitão  era  uma  villj,  c  a  sua  proprie- 
dade era  apanágio,  e  tudo  isso  era  muito  alto,  e  muito  pode- 
roso, e  muito  nobre. 

Ainda  não  haxia  meia  hora  que  o  sr,  Pickwiclv  estava  a 
dormir,  quando  o  capitão  Boldwig,  seguido  pelos  dois  jardi- 
neiros, chegou  com  tamanhas  passadas  quanto  lhe  permittia 
a  estatura  pequena  e  a  importância  grande. 

Ao  aproximar-se  do  carvalho,  o  capitão  Boldwig  parou, 
tomou  o  fôlego,  olhou  para  a  paisagem,  como  se  imaginasse 
que  a  paisagem  lhe  ficaria  muito  agradecida  por  elle  se  ter 
dignado  fazer  n'ella  reparo.  Depois  bateu  energicamente  com 
a  bengala  no  chão  e  chamou  o  mestre  jardineiro. 

—  Hunt  I  disse  o  capitão  Boldwig. 

—  Senhor  c  disse  o  jardineiro. 

—  Veja  se  me  cylindra  amanhã  de  manhã  este  sitio  ~  ou- 
viu, Hunt  r 

—  Sim,  senhor. 

~  E  tome  cuidado,  veja  se  me  conserva  isto  limpo  c  ar- 
ranjado—  ouviu,  Hunt? 

—  Sim,  senhor. 

—  E  lembre  me  para  pôr  uma  taboleta  por  causa  dos  in- 
vasores da  propriedade  alheia,  e  dos  caçadores,  e  o  mais  que 
se  segue,  para  não  deixar  entrar  aqui  gente  somenos.  Ou\  lu, 
Ihmt,  ouviu  í 

—  Não  me  hei  de  esquecer,  senhor. 

—  Dá  me  licença,  senhor?  disse  o  outro  homem  adian- 
lando-se  com  a  mão  no  chapéo. 

Que  quer  vossè,  Wilkins  ? 

—  (^om  sua  licença,  qucr-me  parecer  que  entrou  hoje 
aqui  alguém. 


lo4      •   •       .        Aa  ;a<^entwras 


■^^     •  •  .  ;  . 

—  Como»^  dijse  d  ca|>itS£),  circumviígando,  o  olhar  mi- 
naz. .  *•»•',., 

— 'S>fn,  senhor;  estiveram  a*qi^i  a  jantar,  creio  eu. 

—  Ora  esta  !  que  pouca  vergonha  !  é  verdade,  é,  disse  o 
capitão  ao  reparar  nos  pedaços  de  pão  e  fragmentos  de  co- 
mida que  juncavam  a  relva.  Estiveram  effectivamente  a  de- 
vorar aqui  o  seu  repasto.  Sucia  de  vagabundos  !  se  eu  os  apa- 
nhasse aqui  á  mão  !  disse  o  capitão  agarrando  com  força  a 
bengala,  furioso. 

—  Com  sua  licença  !  disse  Wilkins,  mas. . . 

—  Mas  o  que  ?  Hein  ?  rugiu  o  capitão  ;  e  seguindo  o  li- 
mido  olhar  de  Wilkins,  os  seus  olhos  deram  no  carrinho  de 
mão,  com  o  sr.  Pickwick  dentro. 

—  Quem  é  vossê,  seu  patife  .''  exclamou  o  capitão,  admi- 
nistrando varias  bengaladas  no  corpo  do  sr.  Pickwick.  Como 
se  chama  vossê  .'' 

—  Ponche  frio.  murmurou  o  sr.  f^ickwick  pegando  outra 
vez  no  somno. 

— Como? 

Nada  de  resposta. 

—  Que  nome  é  que  elle  disse  ?  perguntou  o  tapitao. 

—  Ponche,  parece-me  a  mim,  respondeu  Wilkins  '. 

—  Isto  é  que  é  insolência,  isto  é  que  é  patifaria.  O  que  elle 
está  é  a  fingir  que  dorme,  disse  o  capitão  no  auge  da  cólera. 
Está  bêbado ;  é  um  plebeu  bêbado.  Rode  com  elle  d'aqui, 
Wilkins,  rode  com  elle,  e  quanto  antes. 

—  Para  onde  quer  o  senhor  que  eu  rode  com  elle  '^  per- 
guntou Wilkins  com  grande  timidez. 

—  Para  o  diabo  que  ò  carregue. 

—  Sim,  senhor. 

—  Espera ! 
Wilkins  parou  logo. 

—  Roda  com  elle  para  o  curral  publico  - ;  e  vamos  a  vcr 
se,  elle  ainda  dá  pelo  nome  dé  Ponche,  quando  voltar  a  si. 
(Comigo  não  brinca  elle,  comigo  não  brinca.  Roda  com  "*lle. 


Punch  é  o  nome  do  popular  polichinelo  inglez. 

FounJ,  c^pecie  de,  parque  commum  onde  se  mettcm  os  animaes  vadios 


no  SR.  piCKWiCK  3o5 


Km  obediência  a  esta  imperiosa  ordem,  foi  pois  o  sr.  Pick- 
wick  acarretado,  e  o  grande  capitão  Boldwig,  túmido  de  in- 
ilignação,  proseguiu  no  seu  giro. 

Inèxprimivel  foi  o  espanto  do  pequeno  grupo  quando,  ao 
voltar,  deram  por  fiilta  do  sr.  Pickwick  e  mais  do  seu  vehi- 
culo. 

Era  o  caso  mais  mysterioso  e  inaudito  que  possivel 
era. 

Um  homem  coxo  pôr-se  sem  mais  nem  mais  em  pé  e  sa- 
far-se,  já  era  um  caso  extraordinarissimo ;  mas  lá  carregar 
com  um  carrinho  pesado,  só  por  divertimento,  isso  é  que 
chegava  a  ser  positivamente  milagroso. 

Procuraram  por  todos  os  cantos  e  recantos  da  visinhança, 
juntos  e  separados;  gritaram,  assobiaram,  riram,  chamaram 
—  tudo  com  o  mesmo  resultado. 

Não  houve  maneira  de  pôr  a  vista  em  cima  do  sr.  Pick- 
wick ;  e  depois  de  algumas  horas  de  buscas  infructuosas,  che- 
garam á  desagradável  conclusão  de  que  elle  devia  ter  voltado 
para  casa  sósinho. 

Entrementes,  o  sr.  Pickwick  fora  acarretado  para  o  curral, 
e  ahi  depositado  com  toda  a  segurança,  a  dormir  a  somno 
solto  no  carrinho,  o  que  causara  um  incommensuravel  rego- 
sijò  não  só  a  todos  os  garotos  da  terra,  mas  a  três  quartas 
partes  da  população,  apinhados  em  volta  do  curral  á  espera 
que  elle  acordasse. 

Se  o  jubilo  geral  se  excitara  por  o  verem  a  rodar  no  car- 
rinho de  mão,  centuplicou  quando,  depois  de  alguns  gritos 
indistinctos  de  «Sam!»,  elle  se  sentou  no  carrinho  e  fitou 
pasmado  e  attonito  as  caras  que  o  cercavam. 

E'  claro  que  o  seu  despertar  foi  assignalado  por  uma  as- 
suada  geral;  e  outra  mais  rija  ainda,  se  possivel  é,  acolheu  a 
sua  pergunta  : 

—  Que  é  isto  ? 

—  Que  grande  pagode  !  rugiu  a  populaça. 

—  Onde  estou  eu  ?  exclamou  o  sr.  Pickwick. 

—  No  curral,  replicou  a  turba. 

—  Como  é  que  eu  vim  aqui  parar .''  Que  estava  eu  a  fazer  ? 
D'onde  é  que  me  trouxeram  ? 

—  Boldwig  !  o  capitão  Boldwig  !  foi  a  única  resposta, 

20 


3o6  AS   AVENTURAS 


—  Tirem-me  d'aqui  1  Onde  pára  o  meu  criado  ."  Onde  se 
metteram  os  meus  amigos  '■: 

—  Vossê  tem  lá  amigos  I  Hurrah  ! 

E  em  cima  do  sr.  Pickwick  cahiu  um  nabo,  em  seguida 
uma  batata,  depois  um  ovo,  e  emtim  varias  outras  manifesta- 
ções da  propensão  galhofeira  da  turba. 

Ninguém  pode  dizer  quanto  tempo  duraria  esta  scena,  ou 
quanto  teria  sotirido  o  sr.  Pickwick,  se  não  fosse  a  chegada 
súbita  de  uma  carruagem,  d'onde  se  apeiaram  o  velho  War- 
dle  e  Sam  Weller,  o  primeiro  dos  quaes,  em  muito  menos 
tempo  do  que  levamos  a  escrever  estas  linhas,  abriu  caminho 
para  o  lado  do  sr.  Pickwick  e  pregou  com  elle  dentro  do  ve- 
hiculo,  no  momento  preciso  em  que  o  segundo  concluia  o 
terceiro  e  ultimo  assalto,  no  combate  singular  que  sustentara 
contra  o  bedel  da  terra. 

—  Corram  a  casa  do  juiz,  gritaram  uma  dúzia  de  vozes. 

—  Pois  simi  corram  lá!  disse  Sam,  saltando  para  a  almo- 
fada. E  façam  lhe  os  meus  cumprimentos  —  cumprimentos 
do  sr.  Weiler.  E  digam-lhe  que  eu  lhe  escangalhei  o  bedel, 
e  se  elle  arranjar  outro  novo,  que  eu  cá  volto  amanha  a  es- 
cangalhal-o.  Rode  lá,  velhote  I 

—  Apenas  chegue  a  Londres,  hei  de  dar  instrucções  ao 
advogado  para  intentar  uma  acção  contra  o  capitão  Boldwig, 
por  prisão  illegal,  dr,se  o  sr.  Pickwick  apenas  a  carruagem 
sahiu  do  povoado. 

—  Parece  que  nós  lhe  tínhamos  invadido  a  propriedade, 
disse  Wardle. 

—  Não  quero  saber  d'isso  !  Hei  de  mover  lhe  um  processo. 

—  Isso  é  que  vossè  não  move  tal. 

—  Ora  se  movo!  tão  certo.    . 

Mas  ao  ver  uma  expressão  de  troça  na  cara  de  Wardle,  o 
sr.  Pickwick  interrompeu-se  e  disse  : 

—  Porque  não  ? 

—  Ora  porque!  respondeu  o  velho  Wardle  quasi  a  reben- 
tar com  riso,  porque  pôde  virar-se  o  feitiço  contra  o  feiti- 
ceiro, se  elles  disserem  que  nós  tínhamos  no  bucho  ponche 
de  mais. 

Por  mais  que  fizesse,  o  sr.  Pickwick  não  pôde  suster  um 
sorriso  que  lhe  aclarou  a  phvsionomia  :  o  sorriso  converteu-. 


no  SR.  i'iCK\víCK  3o7 


se  em  gargalhada,  e  gargalhadas  foram  ellas  que  se  comnui- 
nicaram  a  todos. 

No  intento  de  manter  este  bom  humor,  pararam  na  pri- 
meira taverna  que  se  lhes  deparou  á  beira  da  estrada,  e  rega- 
laram-se  com  uma  roda  de  aguardente  e  agua,  contemplando 
Sam  Weller  coni  um  copazio  de  força  máxima. 


FIM    DO    1."   VOI  UME 


índice 


Pag. 

Capullo   I  —  Os  pickwickaiios 3 

Capitulo  11  —  Jornad»  do  primeiro  dia,  c  aventuras  da  primeira  tarde, 

com  as  suas  consequências (j 

Capitulo  111  — Um  novo  conhecimento. —A  historia  do  actor  ambu- 
lante.—Uma  interrupção  desagradável,  e  um  encontro  impor- 
tuno . .   4" 

Capitulo  IV  — Um  dia  n'um  acampamento.  -  Mais  amigos  novos;  e 

um  convite  para  o  campo ?  l 

Capitulo  V  —  Que  é  curto  —  mostrando  entre  outras  cousas,  como  o 
sr.  Pickwick  se  metteu  a  guiar  um  trem  e  o  sr.  Winkle  a  andar 
a  cavalio;  e  como  ambos  se  sahiram  da  empresa 6g 

Capitulo  VI  —Uma  partida  n'outros  tempos.  —Os  versos  do  clérigo. 

—  Uma  historia  :  a  volta  do  degredado 8o 

CAPrruLO  VII  —  De  como  o  sr.  Winkle,  em  vez  de  atirar  ao  pombo 
c  matar  a  gralha,  atirou  á  gralha  e  acertou  no  pombo.  —  De  como 
o  club  de  cricket  de  Dingley  Dell  jogou  contra  o  de  Muggieton 
c  de  como  Muggieton  jantou  a  custa  de  Dingley  Dell.  — Com 
outras  matérias  interessantes  e  instructivas 98 

Capitulo  VIII  —  No  qual  se  prova  que  o  verdadeiro  amor  nem  tsem- 

pre  anda  .sobre  carris 1 1 5 

Capitulo  IX  —  Uma  descoberta  e  uma  perseguição i.w 

Capitulo   X  —  Que   dissipa   todas  as  duvidas  (se  algumas  existissem 

ainda)  com  respeito  ao  desinteresse  do  sr.  Jingle Hi 


índice 


Pag. 

<^*i'irLLO  XI  — Comendo  uma  outra  jornada,  c  uma  descoberta  ar- 
clieologica:  exarando  a  resolução  do  sr.  Pickwick  de  assistir  a 
uma  eleição;  e  inserindo  um  manuscripto  do  velho  vigário i5s 

(Capitulo  XIÍ  — Km  que  se  descreve  um  passo  importante  dado  pelo 
sr.  Pickwick.  marcando  época  lanto  na  sua  vida  como  nesta  his- 
toria          iKi 

Capitulo  XIII  — Algumas  noticias  sobre  Eatanswill,  sobre  a  situação 
dos  partidos  n'essa  terra,  e  sobre  a  eleição  de  um  membro  para 
representar  no  parlamento  esse  antigo,  leal  e  patriótico  bur^ío. . .         iS8 

Capitllo  XIV— Contendo  uma  rápida  descripçao  da  sociedade  re- 
unida  no  'Pavão*,  e  uma  historia  contada  por  um  bufarinheiro.        2o<j 

Capitulo  XV  —  No  qual  se  dá  um  retrato  fiel  de  duas  pessoas  illus- 
tres;  e  uma  descripçao  exacta  de  um  grande  almoço  na  casa  e 
nas  terras  d'ellas ;  o  qual  almoço  leva  ao  encontro  de  um  velho 
conhecimento,   e  ao  começo  de  novo  capitulo 23o 

Capitulo  XVI  —  Tão  cheio  de  aventuras  que  se  não  pôde  descrever 

siimmariamente 2.\~ 

Capitulo  XVII  —  Mostrando  como  um  ataque   de   rheumatico  pode 

em  certos  casos  actuar  como  estimulante  de  génio  inventivo....        2(>.S 

Capitulo  XVIII  —  Que  serve  para  demonstrar  resumidamente  dois 
pontos: —primeiro,  o  poder  dos  faniquitos;  segundo,  a  força  das 
circumstancias 2/X 

Capitilo  XIX  — Um  dia  agradável,  com  um  íim  desaeradavcl 290 


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