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Full text of "As communidades de Goa : historia das instituições antigas"

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I 



Paiz, raças e historia 



Na índia designam-se pelo nome de Goa todas 
as terras do domínio portuguez contíguas á velha 
cidade conquistada em 1510 por AfFonso d' Al- 
buquerque. Essas terras occupam uma área de 
3:368,5 kílometros quadrados, e têm uma popula- 
ção superior a 420:775 habitantes (i). Paiz cor- 
tado de numerosos rips e correntes navegáveis, 
muito húmido desde que se define a monção de 
sudoeste, de Junho a Outubro (2), e sêcco durante 
o resto do anno; fértil nos valles e bacias, árido 
nos outeiros, que lhe empolam a superfície, todo 



(i) Recenseamento de 17 de Fevereiro de 1881, ultimo 
publicado. 

(2) A monção principia em Abril, mas as chuvas ordina- 
riamente não chegam senão em Junho. 



AS COMMUNIDADES DE GOA 



elle é dominado pela cordilheira dos Ghates, ao 
longo dos quaes se estende contra o mar. 

Segundo a data da sua acquisição dividem-se 
as terras de Goa em Velhas e Novas Conquistas. 
Narra o Tombo Geral, feito por Francisco Paes 
em 1595, que tomada pela segunda vez a cidade 
em 25 de Novembro de 15 10, ficaram também se- 
gunda vez sob o dominio de Portugal, Salsete, 
Bardez, Pondá, e outras tanadarias sujeitas á ci- 
dade e Ilha de Goa, e AíFonso d' Albuquerque «as 
arrendou por 52:000 pardaus, dinheiro de ouro, 
forros para a Fazenda d'El-Rei Nosso Senhor a 
um gentio por nome Mel-Rau que as defendia 
com guarnição de 5:000 homens de terra; e sendo 
AíFonso d'Albuquerque em Malacca, o Sabaim 
Dalcão (Ismail Kan) mandou sobre as ditas terras 
e tanadarias a um capitão que pelejando com a 
dita gente que as guardava, e havendo d'elles vi- 
ctoria se apossou das ditas terras e se poz sobre 
a Ilha de Goa para entrar, e vindo o Sabaim com 
todo o seu poder para o dito efFeito entrou na 
Ilha e se apossou d'ella, mas a cidade se lhe de- 
fendeu valorosamente pelos portuguezes que a 
guardavam, e estando o dito Sabaim de posse 
da Ilha de Goa e das ditas terras e tanadarias 
(que aliás duas vezes foram ganhadas pelos por- 
tuguezes) e tendo feito no passo de Benastarim 
um inexpugnável Forte com a força do qual sus- 
tentava a posse da Ilha e mais terras, veiu o dito 



VELHAS CONQUISTAS 



Afifonso d'AIbuquerque de Malacca succorrer a 
cidade de Goa e chegando a ella lançou os Mou- 
ros da Ilha, e se apossou d'ella, e pondo cerco 
ao dito Forte o tomou e acabou de lançar de 
toda a Ilha de Goa os Mouros, ficando de posse 
d'ella sem contradicção alguma até o presente; mas 
o Sabaim Dalcao ficou com as terras e tanadarias 
da terra firme, por então não haver poder para 
lh'as defenderem e as possuiu até o anno de 
1520». N'esse anno, continua o mesmo tombo, o 
Rei Narsinga (de Vijayanagar) veiu com o seu 
poder contra Sabaim Dalcão, desbaratou-o e fez 
doação d'aquellas terras (Salsete e Bardez^ a El- 
Rei de Portugal e as entregou a Ruy de Mello, 
capitão da cidade, que logo tomou posse d'ellas. 
Mas depressa tornaram a ficar sujeitas aos rajás 
de Bijapur até 1543, em que Ibramo Kan (Ibra- 
him I) entregou ao Governador, Martim Affonso 
de Sousa, Salsete e Bardez, para que os portu- 
guezes não favorecessem Abdullá, pretendente ao 
reino, e recolhido áquelle tempo em Goa. Cinco 
annos mais tarde, ainda em vida de Ibrahim, os 
mahometanos entraram novamente em Salsete, 
mas foram repellidos e derrotados em Cuncolim 
por D. João de Castro, e foi do mesmo modo pu- 
nida, e terminou também pela sua derrota, uma 
outra tentativa que fizeram no tempp de Fran- 
cisco Barreto. Por isso no contracto de pazes, 
feito com o Idalxá (Ali I) em lõyi, se principiava 



AS COMMUNIDADliS DE GOA 



por dizer «que as terras de Salsete e Bardez, que 
são d'El-Rei Nosso Senhor, e estam em nosso 
poder, estariam assim como estam». . .(i) 

São estas as Velhas Conquistas. Não podia 
deixar de ser difficil mantel-as emquanto as 
terras, que as cercavam para áquem dos Gha- 
tes, estivessem em poder de estranhos. O cerco 
de Goa em 1571 pelos exércitos alliados de 
Bijapur e Ahmadnagar, as repetidas invasões 
marathas e as inquietações dos Bhonslós, des- 
sais de Savant-vadi, bem depressa o demonstra- 
ram. 

Quando o Marquez de Louriçal chegou pela 
segunda vez á índia achou Pondá e Sanguem 
occupadas pelos Marathas. Pondá fica defronte 
da Ilha de Goa, apenas separada por um estreito 
canal, e Sanguem está sobre o Rio de Rachol e 
é um ponto onde convergem importantes estradas 
que descem dos passos do Balaghate. Aquelles 
perigosos visinhos foram por isso expulsos, arra- 



( i; Bosquejo Histórico das Communidades, parte 2.^, pag. 2. 

— Gaífetteer of the Bombay Presidency, vol. 23 (Bijapur), 
pag. 4i5. — Oriente Conquistado, conq. i.", divisão i.% § 37. 

— Archivo Port. Oriental, fase. 5.^, parte i.», doe. 188, e 
parte 2.*, doe. 742 — Áeêrea do pretendente ao reino de 
Bijapur que determinou a entrega de Salsete e Bardez, é dif- 
ferente a versão de Diogo do Couto. — Dee. v, Liv. ix, Cap. 
VIU, IX, X e xi; Liv. x, Cap. i, 11, vi, e xi. Dee. vii, Liv. i. 
Cap. x e xi; Liv. ir, Cap. 11, vii, viii, ix e x; Liv. iv, Cap. ix. 



NOVAS CONQUISTAS 



sada a fortaleza de Sanguem e restituídas as ter- 
ras ao rei de Sunda. 

«Por este beneficio e ser preciso ao bem.com- 
mum», diz o art. 4.° do Tratado de 24 de Julho 
de 1742, «será obrigado o Rey de Sunda a ceder 
ao Estado o outeiro de Chandernata com três 
aldeias contiguas a elle, para poder metter o rio 
e fortificar a provincia de Salsete» (i). Procedi- 
mento errado, pensava o Marquez de Alorna a 
respeito d'aquelle beneficio, porque a Fortaleza 
de Sanguem era importantíssima á nossa defesa, 
e «porque se a precisão nos obriga, por conta da 
visinhança, a defendêl-a (Pondá) á nossa custa 
de qualquer invasão, muito mais útil era possuil-a 
como própria e accrescentar as suas rendas ao 
nosso dominio que largál-a a c^uem necessita de 
nós para a conservar e defender (2)». Não tardou 
muito que Pondá cahisse novamente em poder 
dos Marathas e as terras de leste e sul apenas 
continuaram sob o frágil dominio de Sunda até 
1763. N'esse anno Haidar Ali invadiu aquelle pe- 
queno Estado e só a Fortaleza de Ancolá lhe 
resistiu alguns dias, defendida por um portuguez 



(i) Publicado pelo Cons. Rivara no Boletim Official n.® 38 
de 1874, P3g- 197- Sigo a data do texto das condições, mas 
em outros lugares se diz que o tratado é de Junho. 

(2) Instrucção do £'.r.°"> Vice Rei Marqueíjf de Alorna ao 
seu successor, parte i.», pag. 56. 



8 AS COMMUNIDADES DE GOA 

guida, por ordem da Corte, entregou-lh'as de 
todo (i). 

A posse d'aquellas provindas, de que depen- 
• dia a segurança de Goa, só pode considerar-se 
definitiva desde o Tratado de 29 de Janeiro de 
1788 em que o Bhonsló cedeu a Portugal as pro- 
vincias e praças de Alorna, Bicholim, Sanquelim, 
a parte da provincia de Pernem «que lhe foram 
conquistadas com as armas de Sua Magestade Fi- 
delissima» e o resto da mesma provincia que ain- 
da possuia (2). 

As novas acquisições determinadas por conti- 
nuas hostilidades e imperiosas necessidades de 
defeza, e todas obtidas pelas armas e reconheci- 
das em tratados (3), cingem as Velhas Conquis- 
tas, e dão ao dominio portuguez, pelo lado dos 
Ghates, um limite quasi tão bem definido como 
tem pelo lado da costa. Muito mais vastas por- 
que a sua área é de 2:656,5 kilometros quadra- 
dros, emquanto as Velhas Conquistas têm apenas 
712 kilometros quadrados, a sua população é to- 
davia muito menos densa; calculava-se em 170:125 
habitantes, dos quaes 139:653 não christãos, no 



(1) Trarado de 24 dé Dezembro de 176 1 no Boletim Offi- 
ciai n.o 82 de 1874, pag. 424. 

(2) Boletim n.o i3 de 1875, p3^. 73, 

(3) Publicados pelo Conselheiro Rivara com outros docu- 
mentos que lhes dizem respeito nos Boletins de 1873 a 1876. 



NOVAS CONQUISTAS 



Recenseamento de 1881, e nas Velhas Conquis- 
tas só a população christã se calculava em 209:174 
habitantes, e os não christãos em 41:478 habitan- 
tes. A natureza do solo, alli mais árido e monta- 
nhoso, e do clima que a proximidade dos Ghates 
torna muito mais húmido e muito menos sadio, e 
também a dififerença de regimen politico, até á 
conquista portugueza, explicam os factos que aca- 
bo de notar. 

Para o nosso fim esta distincção de religiões» 
moderna, como se sabe, é secundaria. O que pre- 
cisamos verificar é a origem da população de Goa, 
os elementos hindus de que ella se compõe. Em 
uns estudos acerca da propriedade no Minho, de 
que apenas tenho podido ler alguns excerptos, o 
sr. Alberto Sampaio mostra, por uma serie de 
valiosas observações, como no caracter physico e 
moral do minhoto se distingue ainda actualmente 
a proveniência dos antigos e variados colonisado- 
res d'aquella parte do paiz. Mas na gente de Por- 
tugal ha um grande numero de caracteres geraes, 
lima homogeneidade, a que andam subordinadas 
todas aquellas distincções. A população de Goa 
apresenta, pelo contrario, uma stratificação per- 
feitamente definida nas suas linhas principaes. 

Principiemos pela província de Salsete. Seguin- 
do o rio Zuari, desde Vaddêm até Guirdolim, as 
communidades ou aldeias ribeirinhas são forma- 
das quasi exclusivamente de bralimanes, e o mes- 



IO AS COMMUNIDADES DE GOA 

mo se vê nas aldeias de Nagoá, Vernã, Margão e 
Benaulim. Dicarpale é exclusivamente de curum- 
bins e Telaulim, Dramapur e Sirlim compõem-se 
exclusivamente de sudras. As outras communida- 
des são constituídas por famílias de charadas e têm 
uma grande preponderância numérica sobre as 
mais (i). Á beira mar ha duas classes importantes 
— pescadores e bhandarís^ e em todas as comniu- 
nidades, dependentes d'ellas, ha famílias de artífi- 
ces e servidores classificados como sudras e mhars. 
Comparemos agora com Salsete as outras pro- 
víncias de Goa. Ao norte, nas Ilhas e Bardez, as 
communidades são constituídas também, na sua 
maioria, por famílias de charadóSy mas em Divar e 
Chorão prevalecem os brahmanes e em Bardez são 
em grande numero. Junto a cada communídade ha 
egualmente famílias de artífices sudras e de mhars 
e na costa pescadores e bhandarís. Nas Ilhas, Bar- 
dez e Pernem parece que se extinguiram os curum- 
binSy mas encontram-se duas classes importantes, 
marnotos e balaghatetros, com o titulo de gau- 
Jés. Nas outras províncias as gancarias são em re- 
gra compostas de marathas que se denominam 
umas vezes dessais e outras gancares. São raras 
nas Novas Conquistas as aldeias formadas exclu- 
sivamente de brahmanes; elles em regra entram na 



Pode vèr-se a Narração histórica de Goa, por YiWi^^pQ 
XâTier. no Gabinete Litterario das Fontainhas. 



RAÇAS I I 

composição das communidades como culcornins^ 
ou occupam-se do serviço dos pagodes. A exce- 
pção de Pernem, a base da população agrícola 
das Novas Conquistas é formada de curumbins e 
ainda quando têm perdido os seus direitos como 
membros da communidade, são sempre conheci- 
dos por gaudés ou gavcares^ nomes que trazem 
comsigo a idéa de habitante e chefe de uma al- 
deia (i). Outra classe agrícola das Novas Con- 
quistas, gancares de algumas aldeias e a que cha- 
mam siidrasy pode talvez encorporar-se nos bhan- 
daríSy embora estes nas Velhas Conquistas se de- 
diquem exclusivamente á extracção da sura. 

Finalmente em Satary creou-se uma raça — os 
sataiycaresy que se têm espalhado pelas provincias 
visinhas e até pelo Canará (2), e que supponho 
ser o producto do cruzamento de curumbiyts com 
marathas ou talvez comrajputs que tivessem acom- 
panhado a familia dos Ranes, quando ha alguns 
séculos vieram estabelecer-se em Sanquelim. Es- 
tes satarfcares e os marathas de Pernem são os 
melhores soldados que hoje se recrutam dentro 
do paiz. 

Determinados d'este modo os principaes ele- 



(i) A Dictionary Marathi and English by Molesworth, 
verb. car^ e gaudá. 

(2) Ga^etteer ofthe Bombay Presidency, vol. i5, Canará, 
parte i.«, pag. 240. 



12 AS COMMUNIDADES DE GOA 

mentos da população de Goa, vejamos se é pos- 
sível formar d'elles grupos ainda mais largos. 

Convém primeiro recordar que os povos da ín- 
dia costumam geralmente dividir-se em aryanos 
e não aryanos (i). Os aryanos são um ramo d*essa 
raça que colonisou a Europa e que lá, como aqui, 
estabeleceu línguas, desenvolveu instituições e fun- 
dou uma civílísação, cuja origem é commum. Con- 
sideram-se não aryanas todas as outras raças, 
base da população hindu, que em migrações an- 
teriores se tinham alastrado pelo paíz. Não me 
occupo da população mahometana porque o seu 
dominio poucos vestígios deixou em Goa e actual- 
mente não tem importância. 

Dos elementos que descrevi são os brahmanes 
os únicos representantes, relativamente puros, da 
raça aryana. Constituem uma minoria influente 
pula sua intelligencía, mas que pouco a pouco 
vae perdendo a preponderância que n'outro tem- 
po exerceu, e ainda hoje conserva nas Novas Con- 
4UÍHta». Ahi são clles a única classe lettrada, nas 
Vvlhaa (Conquistas outros se têm levantado, mais 
nvuiieroHOs, com mais vigor, e que devem á chris- 
Uani^açRo a posição importante que actualmente 
^^Çvupam na sociedade de Goa. 

U víàtabelecimcnto dos brahmanes n'este paíz é 
poí4i(^rior ao de qualquer das outras raças de que 

[\) ^v \V. Uvu^t^r, The Indian Empire, pag. 5i. 



RAÇAS l3 

fallei. SuppÕe-se que a sua vinda teve lugar no 
I ou no II século da nossa era (i) e não teria 
nenhum motivo para duvidar d'este calculo se elle 
se referisse aos Chit-pavans^ Karadés, Podhyés e ou- 
tras tribus que especialmente se dedicam ao ser- 
viço dos deuses. Emquanto aos Shenvis, é ainda 
tão viva a memoria dos seus primitivos estabele- 
cimentos em Cortalim, Quelossim, Loutolim, e 
outras aldeias, que parece devia ser mais moderna 
a sua migração. 

Já escripta esta parte do meu trabalho vi que o 
Doutor Bhau Daji, de Pernem, que illustrou com 
o seu grande nome não só a classe Smart a que 
pertencia, mas o paiz onde nasceu, datava de ha 
seis ou sete séculos o estabelecimento dos Shenvis 
em terras de Goa (2). 

Estam divididos em duas seitas, Vaishnavas 
MadhvachariaSy e Smarts. Estes últimos provêm 
todos de duas colónias — Cortalim, e Quelossim, 
em Salsete, e ou porque foram chamados para 
esse fim, ou porque eram os mais hábeis, d'alli 
sahiram os culcornins não só para quasi todas as 
communidades de Goa, mas também para os dis- 
trictos britannicos que nos rodeiam. Entre as duas 
seitas houve em tempo grandes contendas e em 



(i) Mountstuart Elphinstone, lhe History of India^ pag. 
239. 

(2) John Wilson — /wíiijn Caste, vol. 2.0, pag. 28. 



14 AS COMMUNIDADES DE GOA 

Goa deram brado no principio do século pas- 
sado (i), mas hoje cruzam-se e fraternisam. 

Na sua maioria descendem da tribu dos Shenvis 
os brahmanes christãos, e se a falta de mulheres 
da mesma raça os obrigou no principio da con- 
versão a cruzamentos, attestados pela tradição e 
pela cor, o facto não podia deixar de concorrer 
para lhes dar a energia, em que elles sobrepujam 
os seus irmãos hindus. 

Os Chit-pavans tèm os olhos claros e as feições 
e a cor levam-me a presumir que a sua origem é 
mais puramente aryana do que a dos outros brah- 
manes de Goa. 

Por todas as provincias das Novas Conquistas, 
onde estive, encontrei a tradição de que os mara- 
thas, dessais ou gancares das communidades, e 
todos pertencentes á classe agrícola, tinham vindo 
de fora. Em alguns casos sabe-se ainda o lugar 
d'onde emigraram. O seu estabelecimento no paiz 
não é pois tão remoto que se obliterasse a me- 
moria d'estes factos, mas foi de certo anterior ao 
dos brahmanes^ que na maior parte das communi- 
dades marathas apenas poderam entrar na quali- 
dade de culcornins, limitados os seus direitos á 
voton fixada em remuneração d'aquelles serviços. 

Entre esses mesmos marathas ha ainda grandes 

( I ) Q/^rchivo Port. Oriental, supplemento 2.° ao fase. 6.°, 
doe. io8 e 142. 



RAÇAS I 5 

diíferenças, que indicam, de accôrdo com a tradi- 
ção, migrações distinctas e tribus muito diversas. 
Podemos porém comprehendel-os, sem inconve- 
niente, n'esta denominação geral. De sangue scytha 
misturado com sangue primitivo da índia (i) per- 
tencem a essa nação levantada por Sivagi, um 
heroe que dá ares do nosso Affonso Henriques 
no retrato do sr. Oliveira Martins, e em cujas 
qualidades e defeitos se podem estudar em relevo 
as faculdades latentes d'esta raça. «São homens 
pequenos e vigorosos, bem feitos, ainda que sem 
elegância, sempre activos, laboriosos, atrevidos e 
perseverantes. Se não têm nada do orgulho e di- 
gnidade dos Rajputs, também não têm nada da 
sua indolência, ou da sua falta de sabedoria mun- 
dana. Um guerreiro Rajput, emquanto não des- 
honra a sua raça, parece quasi indififerente ao re- 
sultado de qualquer lucta em que esteja empe- 
nhado. Um Maratha não pensa em outra cousa 
senão no resultado, e importa-se pouco com os 
meios, se pode conseguir o fim. Para isso puxará 
pela cabeça, renunciará aos seus prazeres, e ar- 
riscará a sua pessoa; mas não tem a concepção 
do sacrifício da sua vida, ou mesmo do seu inte- 
resse, por um ponto de honra. Esta differença de 



(i) Le Docteur Gust. Le Bon, Les Civilisations de Vinde, 
pag. 220 — Wilson no Diccionario de Molesworth, pag. xii, 
e — W. Hunter, Ths Indian Empire, pag. 174. 



l6 AS COMMUNIDADES DE GOA 

sentimentos affecta a apparencia exterior das duas 
nações» (i). 

E' a esta raça, a mais numerosa de Goa, que 
pertencem os charadós das Velhas Conquistas. 
Mas a religião e as leis portuguezas (2) puzeram- 
nos n'um pé de egualdade com os brahmanes de 
que elles têm sabido aproveitar-se. Já muito de- 
sembaraçados dos preconceitos de casta, dedi- 
cam-se a quasi todas as profissões, emigram, en- 
riquecem, e têm subido a uma posição que está 
muito longe do lugar subalterno que occupam 
nas Novas Conquistas os dessais e gancares ma- 
rathas. Além d'isso a classe está aberta á riqueza 
e aos merecimentos de qualquer proveniência. 

A origem rajput que os charadós algumas ve- 
zes se attribuem é uma tradição que se, encontra 
egualmente entre marathas e que vejo explicada 
pelo facto de ter havido cruzamentos entre os an- 
tigos dominantes d'aquella raça com a gente do 
paiz (3). 



(1) Elphinstone, The History o f Índia, pag. 61 5. 

(2) Nas aldeias de charadós em Salsete parefe que nunca 
houve culcornins, o que poderia indicar uma independência 
anterior ao regimen portuguez, mas a introducção dos 
Smarts na maior parte das aldeias das Novas Conquistas é 
moderna, conta-se por algumas gerações. 

(3) lhe Indian Antiquary, vol. III, pag. 1 10. Pode vêr-se 
também o Promptuario das dijinições indicas^ e a Noção ori- 
ginaria da índia. 



"^ •m 



RAÇAS 1 7 

Os gaudés das Ilhas e Bardez, os artífices e pes- 
cadores, podem reunir-se n'um único grupo como 
siidras ou dravidianos. Todos têm o mesmo typo. 
Supponho que são egualmente dravidianos os 
mhars e que algumas famílias menos escuras pro- 
vêm de outcasts e talvez do cruzamento de mulhe- 
res brahmanes com homens de classe inferior. 
São estes os que têm o ultimo lugar na jerar- 
chia das classes de Goa, mas nem os mhars nem 
qualquer outra classe, se pode considerar physica 
ou moralmente deprimida. A miséria dos pariahs, 
tão notável no Sul da índia (i), não se vê n'aquel- 
las terras. 

Entre os gaudés distingui já duas raças, os sa- 
leiros, que considero siidras, e os balaghateiros^ 
que pertencem a uma raça inteiramente diíFerente. 
O seu numero é muito limitado e em Salsete en- 
traram por cruzamentos na classe dos charadas. 
Occupavam-se no commercio do Balaghate, que é 
o paiz acima dos Ghates, e parece provável que 
sejam vanis {vaisjas) e tenham algum sangue 
aryano. 

Percorrendo a estatística da população dos dis- 
trictos britannicos que nos rodeiam, é em Ratna- 
giri, paiz maratha, que se encontram em maior 



( I ) n^escription of the character, manners, and customs of 
the people of índia, by the Abbé J. A. Dubois, pag. 488 e se- 
guintes. 

AS COMMUNIDADES DE GOA 2 



l8 AS COMMUNIDADES DE GOA 

numero os bhandarís, constituindo também lá uma 
classe importante (i). Nos de Goa apparece ás ve- 
zes uma feição característica da raça maratha e 
que provavelmente lhe vém do sangue tártaro ou 
scytha — o nariz largo na base. Mas nem elles se 
consideram marathas nem estes os admittem no 
seu grémio. Por outro lado o costume de não 
queimarem mas enterrarem os cadáveres, geral- 
mente sentados, na posição em que os enterram 
os lingayeteSy seita do Sul da índia, leva-me a 
mettêl-os na classe sudra. 

No Regimento dado pelo Conde de Linhares, em 
1630, ao Chanceller do Estado e mais Desembar- 
gadores, encarregados de executar a Provisão para 
os infiéis sahirem da Cidade de Goa e terras ad- 
jacentes, determinava-se peremptoriamente: «Os 
chorumbins, que se quizerem fazer marinheiros, 
poderão ficar, e todos os mais se deitem fora por- 
que para lavrar os oiteiros bastam os chorumbins 
christãos (2).» 

Como se vê, não parece que merecesse grande 
sympathia ao governo da época esta gente traba- 
lhadora, pacifica, e verdadeira na sua simplicidade 
como nenhuma outra em terras de Goa. Povo nó- 
mada de pastores (a palavra vém do canarim 

(1) Gãfetieer of the ^ombqy Presidency, vols. relativos ao 
Kanará, Dharwar, Belgaum, e Ratnagiri. 

(2) Archivo Port, Oriental, fascículo 5.°, parte 3.% pag. 
r. 397, nota. 



RAÇAS 19 

Kuri, carneiro) pertencem a uma das grandes ra- 
ças que habitaram o Sul da índia, antes dos tem- 
pos históricos, e se organisaram em communida- 
des, chamadas hadis, no Maissur(i), chegando a 
attingir um grau importante de civilisação. Pa- 
rece que formaram um reino poderoso, Kuram- 
ba-Bhúmi(2), que são da sua raça as dynastias dos 
Kadambas, e que lhes pertencem esses rudes tú- 
mulos de pedra, que no Sul da índia, assim como 
na Europa, excitam a curiosidade dos sábios (3). 

Em Salsete não podem confundir-se com quaes- 
quer outros estes homens vigorosos, escuros, 
sem cabellos no corpo e sem barba; têm a cora- 
gem rara no paiz de dizer a verdade em quaes- 
quer circumstancias ; as mulheres trabalham nos 
campos, cingem os pannos de uma maneira dif- 
ferente de todas as outras raças e trazem os bra- 
ços cobertos de manilhas e o peito de contas. 
São os mais fortes, e ao mesmo tempo os mais 
dóceis manducares — uns colonos, cuja situação 
dista pouco da dos servos da gleba. 

Foram provavelmente os curumbins que corta- 
ram com instrumentos de ferro os troncos de ar- 
vore, cobertos de stratos de trappite e laterite na 

(i) The Imperial Gajetteer of índia, vol. 10, pag. 98. 

(2) Ibid. vol. 8, pag. SyS. 

(3) Gajetteer of the Bombay Presidency, vol. i5 (Kanará), 
parte i.* pag. 298 nota, e parte 2." pag. 82 — Dr. Fergusson 
Qittde Stone Monuments in ali Countries. 



20 AS COMMUNIDADES DE GOA 



floresta petrificada de Cotandem, aldeia de Sa- 
tary. N^esse tempo os servos de hoje eram já 
um poifo civilisadoy como lhe chama o Dr. Marche- 
setti (i). 

Goa prende com o paiz dos marathas unica- 
mente pelo lado do norte; para além dos Ghates 
e pelo sul prevalece a lingua canarina, e é aos po- 
vos do Canará que estam ethnicamente ligadas as 
raças mais antigas — os curumbins e os sudras. 
Devia por isso ser dravidiana a base da lingua 
vernácula, e as palavras d'essa proveniência são 
com efíeito em grande copia, mas os marathas e 
brahmanes que se estabeleceram depois transfor- 
maram-na e, lingua independente ou dialecto ma- 
ratha, todos os competentes a classificam entre 
as línguas aryanas. A palavra deus, em concani 
dcu^ sete, nove, em concani sate^ nave, hoje, em 
concani a:{a, não, em concani ;/a, dente, alli danta^ 
c outras, entendem-se e têm a mesma significação 
cm Portugal e em Goa. 

Kntre os importantíssimos trabalhos do Conse- 
lheiro Uivara n'aquelle paiz, um dos primeiros e 
que bastaria para lhe merecer a gratidão e res- 
peito de todos os que estudam foi o Ensaio His- 
tórico da lingua concani (2). Além de outros factos 

( 1 ) The Journal of the Bombay ^ranch of the Royal Asia- 
tic Socieiy, vol. xii (1876), pag. 2i5. 

(2) Publicado cm Nova Goa, separado da Grammaticct, em 
i858. 



língua 2 1 



de grande valor, então pela primeira vez publicados, 
ficou-se sabendo depois d'esse livro a cultura que 
tinha tido a lingua vernácula, a sua historia nos 
tempos modernos e a esphera da sua litteratura 
christã. A acção do tempo e o fanatismo que ca- 
racterisou durante uma longa época o dominio 
portuguez, não permittiram que chegassem até 
nós documentos anteriores, mas o paiz foi sem- 
pre estéril de poetas (i), e o desenvolvimento de 
todas as linguas vernáculas da índia é tão mo- 
derno (2), que mal pode comprehender-se que 
d'esta se perdessem documentos cuja importância 
não fosse meramente linguistica. 

A proveniência tão differente das duas raças — 
marathas e brahmanes, que imprimiram caracter 
ao paiz, e o facto de se não misturarem, como 
aconteceu com as raças da Europa, são causas 
que deviam concorrer para que o processo da 
formação da lingua fosse vagaroso, mas ha ainda 
outra circumstancia, depois da dynastia dos Ka- 
dambas, que muito boas auctoridades suppôem 
de origem curumbim (kurubar) como já se viu, e 



(i) Wilson, no Dicciotiario de Molesworth, pag. xxix, 
nota. 

(2) Sir W. Hunter, The Indian Empire, pag. 342. — Segundo 
Sir Monier Williams (Hinduism, pag. 14) ainda hoje a litte- 
ratura dos dialectos vernáculos (excepto, talvez, a Tamil) dif- 
ficilmente merece aquelle nome. 



22 AS COMMUNIDADES DE GOA 

que durou até meado do século xiii (i), todas as 
outras raças históricas que dominaram em Goa 
(2) foram estranhas ao paiz e ás raças actuaes. 

Os Chalukias, de Kalian, foram rajputs (3); os 
Yadavas, de Devgiri, parece que foram também 
rajputs da tribu Yadu (4); seguiu-se-lhes o pri- 
meiro dominio mahometano desde o fim do século 
xiii ao XIV ; os rajás de Vijayanagar eram rajputs 
ou curumbins (5), e depois d'elles entra-se defi- 
nitivamente no ultimo periodo mahometano. São 
marathas os dessais de Savant-vadi, mas o seu 
dominio foi parcial e muito transitório, e. os ra- 
jás de Sunda pertencem á familia de Vijayana- 
gar (6). 

Estes factos não podiam deixar de ter alguma 
importância, e encontram-se vestigios do regimen 
mahometano e de Sunda na administração econó- 
mica das communidades. Como na actualidade 
as cousas se passam de um modo inteiramente 
diverso convém ter em vista que os* governos, que 



(i) An Historical and Archacological Sketch of the City 
of Goa, pag 122. 

(2) Ibidem, pag. 119 e seguintes. 

(3) Mountstuart Elphinstone, The History of índia, pag. 
233 e 241. — Bombay Ga^etteer, vol. 21 (Belgaum), pag. 353, 
nota 2." 

(4) Bombay Gajetteer, vol. citado, pag. 359, '^ota 2.^ 

(5) Ibid., pag. 362. 

(6) Ibid., vol. i5 (Kanará, parte 2.») pag 120. 



HISTORIA 23 



acabo de mencionar, eram organismos simples, 
com uma única funccao claramente definida — a de 
sugar as rendas dos povos que dominavam (i) e 
que eram obrigados a resignar-se com uma ca- 
lamidade que não estava na sua mão evitar. É 
provável que a extincção do budhismo e jainismo 
e a introducção do hinduismo e brahmanes fosse 
devida aos dominantes. 

Supponho que a sua influencia se não estende- 
ria muito mais longe, porque as communidades 
governavam-se a si próprias e tinham elementos 
de vida que resistiram até agora á acção destrui- 
dora das vicissitudes politicas. Foi com esses ele- 
mentos que se formou a lingua vernácula. 

A stratificação dos povos de Goa funda-se, como 
já vimos, na raça curumbim, a mais antiga e de for- 
mação mais simples. Encontra-se depois um ex- 
tenso conglomerado sudra. Sobre estas, em época 
muito posterior, assentaram as duas raças domi- 
nantes — marathas e brahmanes. 

Seria impossível a classificação que fiz sem eli- 
minar muitas differenciações, então secundarias, 
mas importantíssimas sob o ponto de vista social. 

Os factos actuaes, as relações que se observam, 
circumscrevem-se por círculos muito mais estrei- 
tos. O primeiro e o mais importante é o da famí- 
lia. Á intensidade das ligações de sangue corres- 



(i) Asiaiic Studies, pag. 71 e i52. 




10, mais ou menos 
s outras relações, 
comprehendidos 
&ada em regra pela 
intranham sotida- 
t ultimo circulo e' 
ia. Pode conside- 
i rivalidade entre 
a reciproca entre 



II 



Cultos primitivos e superstições 



•mmmma 



A composição da sociedade de Goa, a diversi- 
dade de elementos de que ella se compõe, é um 
facto de primeira ordem e que deve ter-se em 
vista sempre. Os povos mais antigos — curum- 
bins e sudras, estavam organisados em commu- 
nidades muito antes dos marathas e brahmanes 
se estabelecerem no paiz ; algumas d'essas com- 
munidades chegaram até nós, como se vê em 
Dicarpale, Telaulim, Dramapur e Sirlim de Sal- 
sete, e restam-nos monumentos vivos da antiga 
homogeneidade de muitas outras, que são os 
gancares curumbins e bhandarís, hoje depostos 
geralmente nas aldeias das Novas Conquistas. 

Ora estas camadas sociaes não se cruzam e 
acham-se tão separadas umas das outras como a 
agua se separa do azeite, o que todavia não obsta 



26 AS COMMUNIDADES DE GOA 

a que tenham exercido umas sobre outras notá- 
vel influencia. 

Nas crenças actuaes do paiz encontram-se fun- 
didos ou sobrepostos elementos que provêm 
d*essas differentes origens; tratarei apenas dos 
mais simples, d'aquelles em que se funda a cons- 
tituição mental do povo. 

Todas as aldeias têm o seu deus próprio e 
exclusivo (gram-deu) ; compete-lhe vigiar pela 
segurança dos seus jurisdiccionados, protegêl-os 
dos espíritos ruins, accudir-lhes em occasiões de 
crise e interpor a sua auctoridade em todos os 
negócios que lhe são submettidos. A esphera da 
sua acção é amplíssima e, embora não seja abso- 
luta, pode todavia dizer-se que em regra é o 
deus da aldeia quem por omissão ou commissão 
tem maior responsabilidade nos acontecimentos 
ordinários e extraordinários da vida. 

Ha um grande numero de doenças produzidas 
por espíritos maus e entram n'esta cathegoria 
todas aquellas de que é mais difficil explicar as 
causas, ou que suscitam maior horror. A inter- 
venção do deus da aldeia é sempre conveniente, 
mas n'aquellc» casos torna-se indispensável, e 
comquanto hc procure muitas vezes o auxilio de 
um charlatão, ou de um medico, não é raro 
encontrar ainda quem se entregue somente á pro- 
tecção divina, 

A qM^íMuo é que os deuses nem sempre têm 



GPAM-DEU 27 



vontade de sahir da sua natural quietação, e nem 
sempre os move o aroma das flores e dos ali- 
mentos que lhes oíFerecem; têm outros negócios, 
preoccupam-se de amores, ou dormem, que é o 
bem supremo. 

Acontece também declinarem a sua competên- 
cia e não tomarem conhecimento de certas ma- 
térias, por deferência para com outros deuses, 
ou por falta de jurisdicção. Sabe-se, por exem- 
plo, que as bexigas dependem da deusa Shitalá, 
e nem outros deuses, nem a vaccina, desacom- 
panhada das supplicas e ofFerecimentos necessá- 
rios, valem contra ella. Em Goa, Shitalá, é sim- 
plesmente designada pelo nome de Saibina, 
(senhora), e os sacrifícios e petições fazem-se 
deante de uma bilha de agua; em Bengala a 
deusa, vestida de vermelho, é figurada sobre um 
burro, ou sentada na flor de lótus, com uma bi- 
lha no braço esquerdo e na mão direita um feixe 
de pennas de pavão (i); a bilha de Goa refere-se 
provavelmente a um dos attributos de Shitalá (2). 

Mesmo fora d'estes casos, não se duvida da 
auctoridade de outros deuses e é prudente assis- 
tir ás festas do costume e ter attenções para com 

(í) Wilkins, Hindu Myihology, pag. 394. 

(2) Em Dharwar Dayamava é a deusa das bexigas, é ella 
que as causa. O seu culto ligado ao de Durgava, deusa do 
cólera, não é conhecido em Goa — Ga^etteer of the Bombay 
Presidency, vol. xxii (Dharwar), pag. ^07. 



28 AS COMMUNIDADES DE GOA 

todos; a differença está apenas em que o gram- 
deu é o que mais de perto se occupa dos negó- 
cios da aldeia. 

Depois de nove noites de festas em sua honra, 
no Dossoró^ decimo dia da primeira quinzena do 
mez Ashvin (Setembro a Outubro), assim como 
Ram marchou contra Ravana, também o gram- 
deu marcha contra mharús e bhutSy e é levado em 
procissão até um limite da aldeia; é preciso que 
veja com os próprios olhos, solemnemente, as 
terras da communidade entregue á sua vigilância 
e que aíBrme a sua jurisdicção ; chama-se a esta 
cerimonia shimd-iillanghdna (i). 

A jurisdicção do gram-deu não é porém mera- 
mente territorial; determina-se em razão das pes- 
soas e acompanha-as e protege-as fora da aldeia, 
de sorte que se arriscaria muito quem sahisse 
sem pedir licença e sem fazer os sacrifícios. 

Semear e colher são actos especialmente con- 
sagrados, e qualquer emprehendimento ou diffi- 
culdade depende em grande parte do gram-deu ; 
elle insinua-se no espirito dos magistrados e ha 
importantes razões para crer que estes são ape- 
nas instrumentos divinos ; por menos conhe- 
cem-se casos do gram-deu se não conformar 
com o procedimento seguido em negócios publi- 

(i) Shimá — limite e Ullanghána — o acto de atravessar, 
apud Molesworth. 



BHUTS E MHARÚS 29 



C0S5 e intervir directamente ou para castigar os 
seus delegados, ou para alterar o que se fez con- 
tra sua vontade. 

As relações civis dos membros da communidade 
dão de certo muito que fazer a Deus, mas não ha 
comparação entre esse trabalho e o que lhe cau- 
sam os espiritos ruins. Estes interferem constan- 
temente com as pessoas e o mais nobre officio 
do gram-deu é perseguil-os e livrar d'elles os seus 
jurisdiccionados. 

Em Goa o espirito alevantado de uma mulher 
morta chama-se bhut e o de um homem mharú. 
EUes abanam e fazem mover 'as arvores, quando 
não ha vento; frequentam as encruzilhadas, dan- 
çam nas ruinas e nos ermos, e logo que podem 
entram nas povoações para atravessar negócios 
e metter-se no corpo de alguém. Por isso durante 
o silencio da noite se ouvem na rua os passos ca- 
denciados do gram-deu que faz a policia. 

Mas os espiritos são legiões e a vigilância divina 
não se estende a toda a parte, nem suppre os cui- 
dados que a experiência ensina. De noite, ainda 
que se ouça uma voz conhecida, chamando, é pre- 
ciso ter cautella e não abrir logo a porta; a voz 
podia ser imitada por um espirito, e se elle apa- 
nha a porta aberta, entra facilmente pela bôcca 
de quem lhe responde e toma-lhe posse do corpo. 
Não têm conta as tropelias dos bhuts e mhariis 
quando se passa pelos lugares que elles frequen- 



3o AS COMMUNIDADES DE GOA 



tam, e a sua ousadia chega a ponto de se levan- 
tarem contra o próprio gram-deu. 

Vetai é o gram-deu de muitas aldeias e um dos 
mais populares e honrados. 

Na coUecção de Pitranas publicada pelos Je- 
suitas no século xvii, e que o Conselheiro Rivara 
denomina da Bibliotheca por lhe não conhecer o 
auctor, um livro inteiro (i) é dedicado á refutação 
de Vetai e dos Bhiits. 

Representam-no em figura de homem «de dis- 
forme e grandissima estatura», com um ferro na 
mão direita e calcando aos pés um monstro. 

Ha algumas variantes porque a identidade existe 
unicamente no nome e o Vetai de uma aldeia não 
é o mesmo de qualquer outra. Tem havido entre 
elles grandes luctas e rivalidades. Ainda agora se 
pode ver como o de Sanvordém cortou o nariz 
ao de Cacorá e como este lhe decepou um dos 
membros mais conspícuos, que ficou servindo de 
linga (2), enterrado no chão. 

Do Vetai, gram-deu de Cacorá, conta-se que 
era muitas vezes provocado por um mharií, que 
ia lá dentro ao pagode esbofeteal-o; outro Vetai 
da mesma aldeia ensinou-lhe um estratagema para 
fazer com que o mharií escorregasse, e só assim 



(i) Ensaio histórico da lingua concani, pag. 148. 
(2) Phallus, emblema do principio activo da creação. E 
representado geralmente por uma pedra cylindrica. 



BHUTS E MHARÚS 3I 



é qué o gram-deu poude agarrál-o e calcál-o aos 
pés, como agora o tem. 

Já se disse que é este um dos deuses mais po- 
pulares e os seus pagodes são constantemente 
frequentados por mhars hindus e christãos, e ou- 
tras classes inferiores que têm queixas a fazer, ou 
negócios pendentes, e sobretudo pelos que andam 
possessos. Estes são levados pela família aos pés 
de Vetai, e se o espirito resiste aos exorcismos 
do estylo, o guroii^ que é o sacerdote, recorre á 
vara de deus — um junco dobrado e cingido por 
anneis de prata. Em regra, depois de algumas va- 
radas, o espirito pede perdão e resolve-se a sahir. 

Para estas classes a distincçao de bons e maus 
espiritos não parece claramente definida; o mais 
prudente é não depender de nenhum, nem ter 
nada com elles. 

Entre os brahmanes a crença está egualmente 
arreigada, mas os espiritos, que depois da morte 
se separam dos cadáveres, não são todos maléfi- 
cos; os bhuts e mhariis provêm dos que não rece- 
beram os sacrificios, dos que se suicidaram, ou 
foram victimas de desastres, e sobretudo de mu- 
lheres que morreram gravidas, paridas, ou impu- 
ras; os últimos são os peores de todos os bhuts 
(alevantinas). 

Tenho conhecimento de um facto authentico 
acontecido com brahmanes honestos e que pode 
servir de illustração. Vivem na mesma casa algu- 



32 AS COMMUNIDADES DE GOA 

mas famílias, descendentes de um tronco com- 
mum, mas separadas na economia domestica. Ha 
pouco tempo a mulher de um dos chefes de famí- 
lia teve umas vertigens e desmaios, e deu outros 
signaes certos de que se achava possessa. Verifi- 
cado este ponto, um dos homens, o mais deste- 
mido, agarrou-a pelos cabellos e esconjurando o 
espírito perguntou-lhe: «quem és tu?» ate' elle 
confessar que era a primeira mulher de um dos 
outros chefes de família, fallecida ha muitos an- 
nos, durante a gravidez. «Sae» mandou-lhe o que 
agarrava a possessa, mas a alevantína não sahia. 
«O que queres? Responde!» «Quero uma das fi- 
lhas de Vishnu» . . . «Nem os excrementos d'ellas» 
replicou este e bradaram todos, energicamente, 
em coro. 

N'este caso nenhum dos brahmanes duvidou da 
sinceridade da possessa; o viuvo é que descon- 
fiou da alevantína, e com efleito verificou-se dean- 
te de Damodhar, gram-deu de Margão, que ella 
era a mulher gravida de um vísinho vani, de quem 
se suspeitara e que a outra continuava a estar 
em Zambaulím presa pelo gram-deu. 

Os processos para a investigação d'estas ma- 
térias são diflferentes; nos pagodes em que os gu- 
rous, ministros de castas inferiores, se têm man- 
tido contra os brahmanes, e pertencem-lhes todos 
os de Vetai, depois de invocações solemnes, deus 
entra-lhes no corpo, que se contorce em movi- 



■ 



BHUTS E MHARÚS 33 



mentos epilépticos, ao som de uma musica infer- 
nal e falia pela bôcca d'elles; nos outros pagodes 
a resposta de deus é usualmente interpretada por 
meio de flores, que lhe são ofiferecidas e pegadas 
com agua, em linhas verticaes e parallelas, so- 
bre uma columna, ou lamina polida. 

No caso de que fallei, exposta a questão, o 
bhoto molhou as flores, coUocou-as em linhas, e 
revelou que se cahisse primeiro a segunda flor 
da terceira columna, a alevantina era a mulher de 
Vishnu, mas se cahisse antes a quarta da primei- 
ra columna, então era a mulher do vani. O facto 
de cahirem outras flores não tem importância, 
só valem as nomeadas. 

Mas nem todos os negócios são tão simples 
que se prestem á interpretação das flores, e em 
casos mais graves e complicados, os bhotos per- 
mittem que se recorra ao avassar, ou sopro divi- 
no, vulgarmente bhar; servem de meio outros brah- 
manes, a quem palavras mysteriosas, mantras^ 
fazem cahir em convulsões; e então apregoam a 
resposta de deus. 

O culto dos antepassados, em Goa, é essencial- 
mente brahmanico. 

O filho mais velho introduz na bôcca do mori- 
bundo um pouco de ouro, agua lustral, ç uma fo- 
lha de tulossi e quando, depois, os outros filhos e 
parentes conduzem o cadáver, sobre bambus, aos 
hombros, para o lugar da incineração, elle é o 

AS COMMUNIDADES DE GOA 3 



34 AS C0MMUN1DADE3 DE GOA 

portador do fogo do lar domestico, e assistido 
por um ministro, purôliito, faz as cerimonias de 
mantragfii ou consagração e communica-o á pyra. 
Juntamente com o cadáver são queimados dez 
bolos de arroz e dez pedacinhos de ouro. 

O nojo dura dez dias e desde que se verifica a 
morte até que voltem da incineração e se purifi- 
quem com abluçÕes, o jejum é rigoroso e abso- 
luto. 

No quinto dia de lucto, ou mais geralmente no 
nono dia, o representante do fallecido vae com 
o purôhito recolher as cinzas e, repetidos os of- 
ferecimentos e cerimonias, espalha-as na agua do 
rio ou do mar. 

No duodécimo dia as cerimonias são ainda 
mais solemnes. Parte-se ao meio, em cima de 
uma folha, uma porção de arroz cosido. Uma das 
metades divide-se ainda em duas partes; de uma 
fazem-se três montinhos de arroz, que se offere- 
cem ao pae, avô e bisavô do fallecido, da outra 
fazem-se três bolos que se oíferecem aos mesmos 
ascendentes. 

Da metade do primeiro monte, que ficou por 
dividir, faz-se um rolo, ofFerece-se ao morto, e 
divide-se em três partes. Com cada uma d'ellas 
mistura-se um dos três bolos já ofFerecidos aos 
ascendentes, faz-se um novo bolo e ofFerece-se- 
Ihes novamente. 

Quando o fallecido tem pae vivo, faz-se o mes- 



CULTO DOS ANTEPASSADOS 36 

mo, mas o bolo que se devia ofiferecer ao pae, 
offerece-se ao avô, que recebe em duplicado, e 
quando o avô está vivo também, o bisavô recebe 
em triplicado. 

Dedicam-lhes ainda outros alimentos, roupas e 
muitas esmolas; os bhotos que recebem tudo isto, 
são os intermediários entre vivos e mortos, e no 
jantar com que terminam os officios, três d'elles 
occupam os lugares do pae, avô e bisavô. 

Estes sacrifícios repetem-se no primeiro anno, 
todos os mezes, e depois nos anniversarios da 
morte. 

Segundo a theoria brahmanica é por este meio 
efficaz que os vivos auxiliam os mortos no ca- 
minho do céo, mas por debaixo de theoria os fa- 
ctos denunciam uma origem menos sympathica. 

A sede, a fome, a dôr, têm entre os povos pri- 
mitivos estreitas relações com o espirito dos mor- 
tos, e se a agua mata. a sede é porque tem poder 
sobre esses espiritos. Por isso se lhe lançam as 
cinzfis dos mortos; elles não podem passar a agua; 
e por isso as abluçÕes são um dos actos mais im- 
portantes dos ritos funerários e da expiação dos 
peccados. 

A gravidade dos peccados resulta de se ficar 
exposto aos atíiques dos espiritos; Ram pelo fa- 
cto de matar Ravan, um brahmane, commetteu o 
maior de todos os peccados, e ainda hoje se cha- 
ma ^am-itrth a agua capaz de lavar os maiores 



36 AS COMMUNIDADES DE GOA 

crimes (i); em Goa a tirtha (2) de Naroá, tinha 
uma grande celebridade, e era concorrida por 
mais de 20:000 pessoas no dia do nascimento de 
Krishna, oitavo da lua minguante de Shravan 
(Julho a Agosto) (3). 

Já notei que nas classes inferiores a distincção 
entre bons e maus espíritos não está claramente 
definida; é verdade que alguns homens se têm 
elevado a deuses, mas que motivos movem os pró- 
prios deuses? 

A imagem dos poderosos elles são arbitrários, 
caprichosos e interesseiros, e todavia é preciso 
acatál-os e fazêl-os propicios porque representam 
as auctoridades constituídas. 

D'ahi os sacrifícios «alimento dos deuses» por- 
que todos os espíritos têm uma natureza idêntica 
á nossa, sentem fome e sede e precisam de re- 
pouso (4). Sob a influencia brahmanica o sueco 
de somãy planta enebriante, foi substituído pelo 
mel, e a effusão de sangue tem sido proscripta 
dos pagodes, mas ainda se encontram em Goa, 
no culto de Vetai, os restos de uma barbaria antiga. 

(i) N^estes dois §§ segui o Gajetteer of the Bombay Pre- 
sidency, vol. xxi (Belgaum), pag. 598, nota. 

(2) Um lugar santo, especialmente ao longo de rios, ou 
perto de nascentes sagradas ou do mar (apud Molesworth). 

(3) Archivo Port, Oriental, fase. 6.°, supplemento 2,0, do- 
cumento 35 e 119. 

(4) Sir Monier Williams, Hinduism, pag. 39. 



CULTO DE VETAL 37 



O sacrificio tem lugar uma vez por anno. De- 
terminada a época, um homem de geração de 
bailadeiras vae na véspera, durante a noite, con- 
vocar os espiritos ao limite da aldeia, pelas ruas, 
e em volta das arvores que elles frequentam. Na 
noite seguinte reunem-se no pagode os mhars, o 
carpinteiro, ferreiro, mainato c outros artifices 
sudras; levam para dentro dois búfalos estafados 
de propósito, e três bodes; fecham depois as por- 
tas e ficam apenas doze pessoas e o chamador, 
que se senta abraçado a Vetai, de olhos venda- 
dos. A meia noite, embriagados todos, no meio 
de gritos que exprimem a alegria dos espiritos, e 
ao toque de tambores, cortam as cabeças dos bú- 
falos e bodes e deitam o sangue sobre um monte 
de arroz cosido, aos pés de Vetai. E o banquete 
dos mhariís. O chamador larga então Vetai, que 
teria cabido se o não segurassem, e que se vê e 
sente vacillar na occasião em que o mharú lhe 
sae debaixo dos pés e vae, com os outros, sen- 
tar-se ao banquete. Os mhars da aldeia levam em 
seguida os animaes para um palmar retirado e alli 
ficam e alli os comem, até de manhã, em uma 
grande orgia. 

Acima dos Ghates encontram-se sacrifícios 
idênticos no meio de populações dravidianas (i) 

(i) Bombay Ga^etteer, vol. xxii (Dharwar), pag. 807 e se- 
guintes. 



38 AS COMMUNIDADES DE GOA 

e aqui acabamos de ver que a orgia se passa en- 
tre mhars e sudras. Os curumbins não tomam 
parte n'ella, e o seu deus, o verdadeiro deus de 
Goa, é outro. 

Abundam no paiz os ninhos de formigas bran- 
cas, monticulos endurecidos de terra avermelhada, 
a que um homem pode subir sem receio de que 
desabem ou se abalem. As pyramides de que é 
formado o monticulo, têm por dentro caminhos, 
que communicam por um tunnel central e outras 
passagens com uma grande esponja de terra, 
cheia de pequenos pontos brancos. Estes pontos 
são os ovos, postos pela rainha da colónia, uma 
formiga enorme que occupa a cellula principal da 
esponja e cujas funcções consistem unicamente 
na procreação (i). 

Está alli um dos alimentos mais apreciados pela 
cobra de capello, e é dentro dos ninhos de for- 
migas brancas que se alojam quasi sempre esses 
reptis. 

A acção mysteriosa de um veneno que fulmina, 
o grande numero de victimas, a subtileza e rapi- 
dez com que ataca, deram á cobra um caracter 
sobrenatural, e os povos primitivos de Goa fize- 
ram do seu inimigo mais terrível, o seu primeiro 
deus. 

O monticulo das formigas possuído pela cobra, 

(i) Knowledge, vol. vii (i885), pag. io3. 



SANTERY 39 



OU que se suppõe habitado por ella, chama-se 
em concani roina e mais geralmente santéry^ do 
maratha satarí. 

Na relação dos pagodes derrubados em Sal- 
sete no século xvi, de 55 aldeias mencionadas, 
3o dedicavam pagodes a Santéry, emquanto Ve- 
tai tinha apenas i3 (i). Actualmente, nas Novas 
Conquistas, Santéry é o gram-deu que se encon- 
tra com mais frequência (2). 

Sobre um ninho de formigas, geralmente fora 
do povoado, eleva-se o pagode, e uma vez por 
semana curumbins, sudras e marathas, ofFerecem 
a Santéry arroz, leite e outros alimentos. No 
quinto dia da lua crescente do mez Shravana (Ju- 
lho a Agosto) é a grande festa, e todas as classes 
tomam parte n'ella; o montículo, romã, é cober- 
to de flores em grinaldas e polvilhado com sân- 
dalo ; á volta ardem, em tigellinhas de coco, as 
luzes de azeite. E as famílias vão em grupos, ho- 
mens, mulheres e creanças, todos vestidos de 
gala, prostram-se, accendem mechas perfumadas, 
queimam em conchas de metal incenso e san- 

(i) Bosquejo histórico das communidades, parte 2.», pag. 
i38. 

(2) Pôde vêr-se a Estatistica da índia Portuguesa, 
por J. St. da P^onseca Torrie, pag. 325. A Ifsta das di- 
vindades hindus, que ahi se encontra, não está exacta, mas 
serve para dar idéa da extensão do culto de Santéry e 
Vetai. 



40 AS COMMUNIDADliS DE GOA 

dalo, movem-nas ^m círculos deante de Santéry, 
e fazem-lhe os offerecimentos do costume, arroz, 
manteiga, leite, coco. 

O folk-lore do paiz é riquissimo, e desde o 
rude curumbim, até ao brahmane illustrado, todos 
se deleitam em historias de bhuts e mhariís, de 
deuses e rajás, mas os contos de nagas occupam 
talvez o lugar mais importante na imaginação do 
povo e de noite são repetidos em voz baixa, ba- 
tendo-se sempre na bôcca com a mão aberta, 
quando se profere o nome sôrôp, naga (cobra), 
e naguina (cobra fêmea). 

O culto de Santéry anda ligado com o das ar- 
vores, especialmente do pimpol (ficus religiosa) e 
vodd (ficus indica), geral nas terras de Goa ; além 
de serem a habitação de mharús, que as animam 
e lhes dão vida, a cobra encontra-se muitas vezes 
nas raizes que lhes formam peanha, á flor da 
terra. 

Está também relacionado com o culto de Ve- 
tai. .Em Cacorá, defronte do deus ingente, ha 
uma estatua de mulher; é Santéry, que os da 
aldeia dizem á bôcca pequena ser amante do seu 
gram-deu. . . 

Estes amores e o procedimento escandaloso 
dos deuses, são olhados pelos hindus com uma 
certa complacência; que andem contentes, e não 
voltem contra nós as suas cóleras ... no mais, a 
moralidade dos deuses não tem nada que ver 



SANTÉRY 41 



com a moralidade dos homens (i). Cada classe 
com os seus costumes. 

Dubois, que escreveu com grande conheci- 
mento da vida intima dos povos do sul, deixou 
notada a importância do culto da cobra, superior 
ao de qualquer outro animal, e observou que os 
hindus procuravam os buracos d'ellas nos mon- 
ticulos de terra levantados pela formiga branca e 
iam lá de tempos a tempos ofFerecer-lhes ali- 
mentos. Observou também que muitos não as 
expulsavam de casa e preferiam fazer-lhes sacri- 
fícios e dar-lhes de comer todos os dias, em an- 
nos seguidos (2). 

• Foi" porém Fergusson quem primeiro apresen- 
tou as provas de um culto geral da cobra e ar- 
vore, e quem ligou o facto, attestado pelos mais 
antigos monumentos da architectura indiana, aos 
povos primitivos do paiz (3). 

As conclusões do illustre escocez são inteira- 
mente confirmadas pelo que se observa ainda 
hoje nas Novas Conquistas e, aqui ao me- 



(ij Vid. um esplendido estudo sobre as relações da moral 
com a religião, nos Asiatic Studies de Sir Alfred Lyall, pag. 
54 e seguintes. 

(2) Dubdis — Description of tke character, manners, and 
customs of the People of índia. 

(3) Tree and Serpent Worship, — History of Indian and 
Eastern architecture. 



42 AS COMMUNIDADES DE GOA 

nos (i), é indubitável que o culto se funda nas 
camadas sociaes primitivas. 

A maneira como a civilisação brahmanica tem 
actuado sobre esse culto é uma questão interes- 
santissima. Nas aldeias sertanejas vemol-o na sua 
forma simples e primitiva — os sacrifícios deante 
de um montículo levantado por formigas, onde 
está, ou SC suppÕe estar a cobra. Quando nos 
approximâmos dos centros brahmanicos, Santéry 
apparece representada por uma elevação de alve- 
naria, sobre a terra, de forma oval. É assim que 
se encontra em um pequeno pagode, ao lado es- 
querdo das escadas por onde se sobe para o 
templo de Manguesh, em Pondá. AUi não ha, nem 
pôde haver cobra, e o montículo das formigas 
foi mais dissimulado do que imitado; dir-se-ia a 
transição para o lingam. 

Os brahmanes chamam-lhe de preferencia Shant 
Durgá (Durgá serena, não excitada), e confun- 
dem-na com ella. 

O culto da cobra não é pois em toda a parte 

>a degeneração de um culto espiritual das forças 

vivas da natureza, como suppoz um escriptor de 

grande talento, que as lettras acabam de perder, 



(i) A origem não aryana dos Dasyus é hoje um ponto as- 
sente. Sir W. Hunter, The Indian Empire, pag. 53. Tinha 
contestado a doutrina de Fergusson o Babu Rajendralála Mi- 
tra, Indo-Aryans. 



^s^= 



DAMODHÁR 43 



Náráyan Mandlik (i); profundamente versado na 
litteratura védica, o illustre brahmane julgou en- 
contrar lá o typo original de um culto profes- 
sado, talvez muito antes, por povos inteiramente 
independentes e de imaginação muito menos viva 
e delicada; como na Europa, entre espíritos reli- 
giosos de grande valor, também na índia é fre- 
quente, em nativos de muito saber e talento, a 
notável preoccupação de que todas as cousas se 
encontram nos livros sagrados e provêm do povo 
escolhido. . . 

O hinduísmo nãò repelle nenhuma crença, 
absorve-as e vae-as transformando lentamente, 
como vimos. a respeito de Santéry. Segundo o 
Oriente Conquistado^ repositório de muitas cou- 
sas menos prováveis, Damodhár, deus de Margão, 
era filho de um dessai da aldeia; quando voltava 
com a noiva e préstito de Quelossim foi atacado 
pela gente de um gancar de Chimbel, a quem o 
casamento despeitara ; todos foram mortos e a 
alma penada de Damodhár andava depois errante 
pela aldeia, a cavallo, exactamente como estava 
na occasião do attentado. Com o tempo promo- 
veram-no a gram-deu. Hoje, em Zambaulim, para 



(1) Ráo Sáheb Vishvanáth Naráyán Mandlik, Serpent 
Worship in Western India^ The Journal of ihe Bombay 
Branch of the R. Asiatic Soctety. vol. ix, n.® xxvi, Bombay, 
1870. 



44 AS COMMUNIDADES DE GOA 

onde se retirou desde a conversão, o antigo ca- 
valleiro é simplesmente representado por um lin- 
gam, symbolo de Shiva. 

Uma vez procurei saber de um Smart intelli- 
gente qual valia mais — Damodhár, seu actual 
gram-deuj ou Shant Durgá, gram-dêvi de Que- 
lossim, assento primitivo da familia, mas elle res- 
pondeu» com uma pergunta, segundo o costume 
do paiz, — não é Shiva marido de Shant Durgá ? 

O próprio Vetai, apesar da sua forte indivi- 
duação, vae caminhando rapidamente para a de- 
cadência e parece condemnado a identiíicar-se 
com alguma das encarnações (avatáras) de Vishnu 
ou com o lingam (i). 

Talvez não seja esta a sua primeira metamor- 
phose. Na estrada de Qeulá para Bandorá encon- 
tra-se quebrada e estendida no chão uma estatua 
de Vetai; é gigantesca, sem ser disforme, e so- 
bretudo não tem os exaggeros obscenos das que 
se vêem nos pagodes. Deante d'ella lembrei-me 
das estatuas yams e é possível que Vetai seja a 
adaptação de uma estatua jain ao culto sensual 
dravidiano. Nos seus pagodes conserva-se uma 



(i) A transformação de Vithal ou Vithobá em Krishna 
ainda não é geralmente acceite. Tenho visto confundir Vi- 
thobá e Vetai, mas este é considerado o Shiva primitivo do 
Deccan e Konkan no Ga^etteer o/ ihe Bombqy Presidençy, 
vol. XXI (Belgaum), pag. 583, nota. 



VESTÍGIOS DO JAINISMO 45 

insígnia d'aquella religião: é uma vara com um 
panno de seda enfiado em cima e terminando por 
uma mascara de metal; em Goa chama-se-lhe 
iaranguey em outros lugares y^mac/iá khamb (i); 
nos dias de festa, o gurou leva-a encostada ao 
hombro direito, na frente da procissão. 

O gurou e algumas classes, entre as- quaes so- 
bresaem os ourives (sonars), sentem contra os 
brahmanes uma aversão tão profunda, que esse 
facto tem sido considerado como um testemunho 
vivo das dissenções religiosas provocadas pela in- 
troducção dos cultos actuaes (2). 

Goa não podia deixar de ser um paiz jain ou 
budhista, antes da renascença brahmanica, e a 
tradição fundada em importantes documentos, é 
que os príncipes, que dominaram alli, introduzi- 
ram os primeiros brahmanes como apóstolos da 
religião nova. 

Estabelecida a supremacia d'ella, as transforma- 
ções passaram a fazer-se espontaneamente por 
um impulso geral e harmónico. O hinduismo é 
um systema religioso e ao mesmo tempo um sys- 
tema social, fundado na desegualdade das castas 
e dominado pelos brahmanes. Este ponto de dis- 
ciplina é superior a todos os dogmas. Curumbins 



(1) Gajetteer of the Bombay Presidency, vol. x (Ratnagi- 
ri), pag. 119. 

(2) Ibid., vol. XV (Kanara) parte !.■, pag. 259, nota. 



46 AS COMMUNIDADES DE GOA 



e sudras entram com os seus deuses para dentro 
da civilisação brahmanica desde que reconhecem 
o caracter divino da casta Icvitica. 

A influencia social determina a influencia reli- 
giosa, e os costumes, as crenças e instituições 
brahmanicas vão penetrando, embora modificadas, 
na massa do povo, insensivelmente, sem prosely- 
tismo, por imitação. 

O ptirôhtto^ no seu encargo de cura d'almas, 
não exclue nenhuma casta; abre o registo dos 
nascimentos e óbitos, intervém nos casamentos 
e funeraes, e recebe esmolas de todos, egualmen- 
te. As cerimonias não são as mesmas, mas a pre- 
sença do brahmane solemnisa o acto e imprime- 
Ihe caracter. 

Também nunca faltaram brahmanes que me- 
diante uma dotação idónea, se encarregassem das 
cerimonias do culto {puja); elles estam promptos 
para fazer as abluçÕes e sacrifícios e preparar a 
lenda de qualquer deus, segundo a licção dosPu- 
ranas; dão-lhe primeiro foros de cidade e cantam- 
Ihe depois os louvores. 

Os deuses adquirem assim um grau superior 
de civilisação, mas a sua popularidade soffre tal- 
vez com a mudança. Porque as attribuições divi- 
nas de que tenho fallado, foram circumscriptas 
sob a influencia brahmanica, e os ministros sudras 
ou marathas, giirous e ghaddySy encarregam-se 
também de negócios de outra ordem, egualmente 



FEITICEIROS 47 



importantes na estimação vulgar. Tudo depende 
dos sacrifícios... Desde que sejam condignos, 
Vetai presta-se a instrumento de vinganças e in- 
vejas; talvez elle não comprometta a sua dignidade 
intervindo directamente, como em geral se pensa; 
as terríveis imprecações do ghaddy, na occasião 
dos sacrifícios, levam antes a suppôr que deus 
faz signa! aos mharús e os incumbe do negocio. 

E certo que a par do culto divino floresce o 
culto independente de mharús e bhuts, como 
agentes maléficos. Os seus ministros, que são os 
feiticeiros, celebram sacrifícios sangrentos nos 
ermos só frequentados de espiritos, e encarregam- 
se de despachar pretenções occultas por meios 
repugnantes e muitas vezes criminosos. 

Entre os curumbins ha herbolarios de grande 
nomeada, que sabem combater o mau olhado e 
livrar de quebranto com raizes que se penduram 
ao pescoço, mettidas em capsulas, para não perder 
o cheiro e a virtude. Elles sabem muitos outros se- 
gredos, mas para ser feiticeiro é preciso ter trato 
com os espiritos, e essas relações não são privi- 
legio de nenhuma classe. 

Parece todavia que alguns mouros e oleiros oc- 
cupam, sob este ponto de vista, um lugar proe- 
minente, e que em casos graves são chamados de 
preferencia, tanto pelos hindus como pelos chris- 
tãos. 

Não é raro ver o dedo de feiticeiros em certos 



48 AS COMMUNIDADES DE GOA 



crimes, sobretudo em abortos, e ainda ha pouco, 
em Salsete, foi morta a machado uma viuva, 
porque o assassino, christão, por suggestões 
de feiticeiros, se possuiu da idéa fixa de que era 
perseguido pela victima e pelo espirito do ma- 
rido. 

Quando uma doença é rebelde e se reconhece 
que os deuses nada podem no caso, recorre-se aos 
espiritos, por intermédio dos feiticeiros. Também 
acontece muita vez continuar-se com o tratamento 
divino e, por baixo de mão, metter empenhos aos 
mharús. Accende-se uma vela a Deus e outra ao 
demónio. . . 

Devia ser difficil conciliar estas crenças com 
o fatalismo que anda misturado com ellas. Daiva^ 
o destino, é sempre uma explicação satisfatória 
das cousas que não têm remédio. E uma das at- 
tribuições mais curiosas do vigário brahmane 
(purôhitoj consiste em interpretar a sina escripta 
por Brahma na testa de cada um e promulgada 
por Saslí, deusa da concepção e dos partos, na 
sexta noite depois do nascimento. 

Ha dias propicios e aziagos, bons e maus agou- 
ros (i). E uma cousa assente que um casamento, 
uma viagem, qualquer emprehendimento, não po- 
dem principiar e celebrar-se indifferentemente 

(i) Vid. o Gabinete litterario das Fontainhas, vol. i, pag. 
172 e 196, e — Quadros históricos, caderneta 3.», pag. 52. 



SHECÚN E APSHECÚN 49 

n'este ou n'aquelle dia, e também não pode 
haver duas opiniões a respeito de certos si- 
gnaes. 

Estes factos exercem uma grande influencia e 
formam um corpo de doutrina, muito compli- 
cada e obscura; as primeiras linhas encontram- 
se em livros populares, mas só os ministros brah- 
manes, puróhitos e joshíSy lhe conhecem a pro- 
fundeza. Por isso elles adivinham e prevêm 
o futuro, reconhecendo d'este modo implicita- 
mente que ha uma ordem de cousas fixa e inal- 
terável ... 

Consideradas por este lado taes superstições 
são os primeiros signaes de confiança em leis 
permanentes e representam os primeiros passos 
da experiência humana, em conflicto com vellei- 
dades e caprichos sobrenaturaes. 

O systema tem intima ligação com o movimen- 
to e apparencia das estrellas e planetas e abrange 
na sua parte mais vulgar acontecimentos insigni- 
ficantes que entram no dualismo shecún, de bom 
agouro, e apshecún, de mau agouro por motivos 
mysteriosos. 

Na verdade não se sabe bem porque é shecún 
ouvir dois espirros seguidos, e porque um só é 
apshecún; porque entra n'esta segunda cathegoria 
uma gralha que atravessa o nosso caminho voando 
da direita para a esquerda, e porque pertence á 
primeira a que vôa da esquerda para a direita; 

AS COMMUNIDADES DE GOA 4 



5o AS COMMUNIDADES DE GOA 

porque é apshecún deparar com um gato, de ma- 
nhã, quando* a gente se levanta. . . 

Se o esfregar de um pau, observa Lyall, sem 
sacrifícios nem invocações divinas, produziu fogo, 
um resultado maravilhoso, porque é que duas 
facas atravessadas no limiar, ou um farrapo ver- 
melho pendurado na verga da porta, não haviam 
de chamar ou afugentar a doença? O raciocínio 
não põe limites a analogias d'esta ordem na ima- 
ginação do homem primitivo. 

Do mesmo modo se podia ter assentado que a 
passagem de uma gralha de um lado para outro 
é sempre um signal de desastres, ou venturas, se 
a coincidência se verificou um certo numero de 
vezes, e com effeito, são communs a todos os 
povos idênticos erros de inducção. 

A sua importância, aqui, provém da influencia 
geral que elles exercem e de constituírem um sys- 
tema, com grande apparato de números, dia- 
grammas e exegese. 

Ao dualismo sheciín e apshecún^ corresponde en- 
tre os chinezes o feng-shuiy com regras e leis a 
tal ponto reconhecidas, que os tribunaes conhe- 
cem de questões fundadas n'elle unicamente. Se a 
exposição de uma casa ou sepultura ás correntes 
do feng-shui foi perturbada por qualquer facto ou 
obra nova, pode haver fundamento legal para uma 
acção e os juizes apreciam o merecimento d'ella 
e proferem sentença. Ora segundo uma grande 



FENG-SHUI 51 



auctoridade (i) o progresso e desenvolvimento 
do feng-shui foi estimulado sob a influencia do 
budhismo, introduzido na China desde o principio 
da nossa era. Seria interessante averiguar se os 
dois systemas têm entre si alguma relação. 



(i) Dr. Ernest J. Eitel, Feng-Shui, or the rudiments of 
natural science in China, pag. 72 e 80. 



III 



A família 



Vaddil é o maioral e representante de uma fa- 
mília. A palavra deriva de vodd ou padd (ficus in- 
dica) essa arvore magestosa que se estende e pro- 
paga lançando dos ramos para o chão raizes que 
vêm a fazer-se troncos. A familia hindu agrupa-se 
á roda do chefe, e cada filho é um membro da 
grande arvore, e ao mesmo tempo um novo tron- 
co, de raizes independentes. 

As casas são geralmente habitadas por varias 
familias, algumas com economia separada, mas o 
pae e os filhos e netos, ou os irmãos e sobrinhos, 
continuam em regra a viver em sociedade e o 
culto domestico dos antepassados e de Ganesh, 
deus da prudência e sabedoria mundana, fazem- 
se quasí sempre em commum. 

E difficil a separação do lar e os que saem 
procuram estabelecer-se ao pé, em colónias. 



54 AS COMMUNIDADES DE GOA 

A família conjuncta, caracterisada pela com- 
munhão de bens sob o pátrio poder do Vaddil, 
embora restricta a uma ou duas gerações, é ainda 
a unidade da aldeia e portanto da sociedade 
hindu. 

Está escripto nos livros sagrados que um dos 
principaes deveres do brahmane é continuar a 
sua geração e pagar aos progenitores com um 
filho a divida dos sacrifícios. 

Porque a familia perpetua-se unicamente pelos 
descendentes masculinos, e as mulheres entram 
pelo facto do casamento na familia dos maridos. 
Desde então deixaram de pertencer aos parentes 
e estes, pelo seu lado, exoneraram-se do encargo 
em que estavam constituídos para com ellas. 
Não poderia haver nada mais humilhante, nem 
se encontra provavelmente em Goa uma só fa- 
milia de respeito que não tenha estabelecido as 
suas filhas. 

A desproporção numérica dos sexos e outras 
circumstancias fazem com que o casamento d'el- 
las, que tem de celebrar-se antes da puberdade, 
seja sempre um negocio grave. 

Com antecedência de três ou quatro annos, os 
pães deitam as suas vistas e pedem a data e o 
signo do nascimento do noivo que desejam; por 
sua parte mandam as notas relativas á noiva e 
as duas famílias consultam os purôhiios, que res- 
pondem como podem e ás vezes como querem. 



CASAMENTO 



55 



E assim por uma forma indirecta e característica 
das maneiras brahmanes, se pode obstar a uma 
proposta que não agrada ; os signos não combi- 
nam e o casamento não seria propicio. . . 

Mas se os horóscopos se harmonisam, a fami- 
lia da noiva faz as propostas do casamento, 
fixa-se o dote com que ella ha de entrar para o 
casal e celebram-se os desposorios. Os parentes 
do noivo vão a casa da noiva com as pessoas das 
suas relações e com o pui^òhito, adornam-na de 
flores e tomam uma pequena refeição. 

E o purôhito quem escolhe o dia propicio para 
o casamento e determina a hora em que o noivo 
e parentes hão de ir buscar a noiva, com musica 
e bailadeiras, em procissão. O próprio momento 
da solemnidade está escripto em um papel deante 
do qual os pães se curvam reverentes. 

Considerado um sacramento e por isso indis- 
solúvel entre brahmanes, o matrimonio está su- 
jeito a uma regra, que actualmente não tem exce- 
pções. Em primeiro lugar não pode celebrar-se 
entre pessoas da mesma gôtr^a (familia), e em 
segundo lugar só pode celebrar-se entre pessoas 
da mesma casta. Estas relações íigurám-se por 
dois círculos concêntricos, o da gôtra^ que exclue 
o casamento, e o da casta que o limita externa- 
mente. 

Os descendentes, por varões, de um tronco 
commum, que os brahmánes chamam mul-pui^ú- 



56 AS COMMUNIDADES DE GOA 

sha (i), e a que rendem culto, costituem a gôtra. 
Quanto ao segundo circulo importa muito obser- 
var que a palavra casta^ n'este caso, tem um sen- 
tido restricto e determina-se pela profissão, ou 
por uma certa ordem de profissões, e também 
pela seita. 

Chit-pavans e Shenvis não casam apesar de se- 
rem egualmente brahmanes, e houve tempo em 
que os Smarts e Vaishnavas de Goa também se 
não cruzavam, apesar de uns e outros pertence- 
rem á tribu dos Shenvis. 

Nas classes inferiores, mesmo entre christãos, 
os casamentos não se fazem senão entre famílias 
de profissões muito próximas. 

Por isso a população apresenta o aspecto stra- 
tificado que a distingue e caracterisa. 

As refeições communs são um acto essencial de 
todas as solemnidades hindus e estam sujeitas a 
prescripções idênticas. Um brahmane não pode 
comer senão em casa de outro ferahmane, nem 
bebe agua em que tocasse pessoa de casta infe- 
rior; mas não é tudo, porque o Chit-pavan não se 
senta a comer ao pé do Shenvi, e nos jantares 
dedicados aos mortos ou em quaesquer outros, 
os bhotos ficam ao lado, para evitar contactos 
impuros. 

(i) Mui — raiz (de uma arvore) e purúsha — homem, apud 
Molesworth. 



CASAMENTO 57 



A puberdade da noiva é celebrada com ceri- 
monias em que tomam parte as duas familias, e 
então os esposos unem-se, o casamento consu- 
ma-se, e o maioral da família do noivo, se este 
não era o próprio maioral, passa a exercer sobre 
ambos o pátrio poder. 

Esse poder era muito amplo, mas não deixava 
de ter importantes restricções. O Foral de i526 
exigia o consentimento da aldeia e de todos os 
herdeiros para se eíFectuar a venda de alguma he- 
rança. Na coUecção de iisos e costumes de 1824 (i) 
não lhe erá permittido vender, doar ou trocar os 
bens da casa, sem accôrdo «dos mais irmãos, pri- 
mos e filhos» e para as doações de terras era 
preciso o consentimento dos coherdeiros e da 
communidade. Na ultima collecçao de 1853 pro- 
hibia-se-lhe praticar, sem accôrdo das pessoas 
maiores e hábeis, quaesquer actos que podessem 
trazer graves prejuizos á familia, e n'esse numero 
se comprehendisP expressamente alienar bens de 
raiz, contrahir grandes dividas e fazer grandes doa- 
ções. 

Quando se falia do consentimento de herdeiros 
e membros da familia, subentendem-se os varões. 
A primeira coUecção citada apenas reconhece ás 
mulheres o direito de ahmentos. A segunda de- 
clarava que o marido (maioral) não carecia do 

(1) CoUecção de bandos, vol. i.°, pag. yj e seguintes. 



58 AS COMMUNIDADES DE GOA 

concurso da mulher para quaesquer actos ou con- 
tractos, ainda que versassem sobre bens de raiz, 
mas já resalvava o caso de se estipular outra 
cousa em pactos antenupciaes. 

O desenvolvimento dos usos e costumes hin- 
dus em corpo de doutrina é um dos factos mais 
notáveis da civilisaçao a que estam ligados os po- 
vos de Goa; a sciencia dos deveres (dharnia)^ como 
preparação para o estudo dos Vedas, era profes- 
sada na índia muitos séculos antes da era christhã, 
e para instrucção dos alumnos coUigiram-se insti- 
tutas, primeiro em aphorismos e sentenças, depois 
metrificadas, que eram entregues á memoria e se 
transmittiani assim de geração em geração. Per- 
tence a esta classe de institutas um livro muito 
conhecido na Europa pelo nome impróprio de 
Código de Manu, andam traduzidos muitos outros 
e sabe-se que existiram para cima de cem (i). 

Com o tempo essas obras, todas em sanscrito, 
foram adquirindo auctoridade e consideraram-nas 
de inspiração divina. Se os Vedas foram ròíos pelos 
rishis^ que nós podemos chamar com grande pro- 
priedade videnteSy as regras para os sacrifícios, os 
ritos, e systemas de deveres, que constituem os 
dhaj^ma-shastraSy passaram da memoria dos t^ishis 
para a tradição. 

Mas os dharma-shasiras indicavam apenas arti- 

(i) West and Biihler, A Digest, pag. 27. 



DHARMA-SHASTRAS Sg 



gos de doutrina, necessariamente sujeita a modi- 
ficações; interpretál-os e adequal-os ás circum- 
stancias, foi a grande obra de jurisconsultos pos- 
teriores em commentarios e tratados, egualmente 
em sanscrito, que se succederam uns aos outros 
nos centros mais importantes de cultura. Con- 
tam-se três escolas no norte e duas no sul da ín- 
dia, distinctas pelo caminho seguido, e indepen- 
dentes pelos trabalhos dos seus jurisconsultos. 
«Pode unicamente questionar-se, em minha opi- 
nião», escreve um orientalista de nome, «se não ha 
muito mais que cinco escolas de leis. Penso que 
ha e como exemplo de outro centro de jurispru- 
dência hindu, além d'aquelles cinco, posso men- 
cionar a cidade e districto de Daulatabad nos do- 
minios do Nizam» (i). 

No paiz maratha e no Canará do Norte, isto é, 
nas terras á volta de Goa, o commentario de Vi- 
jnanesvara ás Instituías de Yâjnavalkya conhecido 
pelo nome de Mitâksharâ é a maior auctoridade 
na exposição dos usos e costumes (2). Podia por 
isso naturalmente presumir-se que o mesmo livro 
teria aqui o primeiro lugar. A ignorância da lin- 
gua clássica e preoccupações religiosas concor- 
rem para que em Goa se tenha por desprêso 
entre os nativos christãos, que preponderam na 



(i) Dr. Julius Jolly, History of ihe Hindu Larv, pag. 17. 
(2) West and Biihler, A Digest, pag. 10 e seguintes. 



6o AS COMMUNIDADES DE GOA 

administração, o estudo das instituições hindus, 
e nas codificações de 1824 e de i853, umas vezes 
a influencia das leis portuguezas, e outras vezes 
costumes peculiares, prevaleceram em pontos 
importantes. Conhece-se porém de todo o con- 
texto dos artigos que para a sua elaboração, 
assim como para o Foral de i526, foram consul- 
tados shastris, brahmanes entendidos nos dharma- 
shastraSy e o addicionamento aos usos e costu- 
mes de 1824, feito pela Gamara Geral de Pondá 
em 1825, é acompanhado de uma declaração de 
que foram revistas (pelos shaslris) quatro obras, 
a primeira das quaes é a parte do Mitâksharâ 
que trata dos usos civis e criminaes (yyavaha- 
ra){i). 

As Institutas de Yâjnavalkya são idênticas ás 
de Manu, mas menos antiquadas na doutrina e 
talvez na forma actual metrificada, que se sup- 
põe não será anterior ao primeiro século da era 
christã (2). Têm cerca de mil versos, divididos 
em três capitulos, um sobre regras de conducta, 
outro sobre lei civil e criminal, e o terceiro sobre 
penitencias. 

Vijnanesvara, brahmane vaishnava, escreveu na 
segunda metade do século xi, em Kalyâna, sob a 
dynastia dos Ghalukyas, a esse tempo senhores 

( 1 ) Collecção de Bandos, vol. i .0, pag. 287. 

(2) History of the Hindu Laiv, pag. 49. 



A MULHER 6l 



de Goa. O seu commentario, lê-se no Digesto de 
West e Buhler, que vou seguindo n'este assum- 
pto, é antes um trabalho novo e original, ba- 
seado sobre o texto de Yâjnavalkya, do que 
meramqnte uma glosa, e distingue-se na vasta 
litteratura jurídica da índia por ter separado a 
propriedade da esphera religiosa, pelo valor que 
deu á consanguinidade independentemente da 
agnação e pela elevada concepção do caracter e 
capacidade da mulher. 

O isolamento natural das terras de Goa, o re- 
gimen da terra, a preponderância dos brahmanes 
Shenvis, ao que parece oriundos de Bengala, e o 
domínio mahometano, são factores de primeira 
ordem para o estudo da questão, mas é certo 
que as doutrinas do Mitâksharâ não correspon- 
dem, nem aos costumes codificados, nem aos 
factos actuaes, em pontos importantes. 

A posição da mulher na classe brahmane está 
muito distante d'aquella elevada concepção e an- 
tes reúne todas as condições que seria possível 
imaginar para deprimir uma raça physica e mo- 
ralmente. 

Os casamentos são tratados pelos parentes, 
sem intervenção dos noivos, e o mal não é tão 
grande como á primeira vista pode parecer, mas 
as uniões logo em seguida á puberdade trazem 
consequências funestas para os filhos e mães. 

Os filhos são gerados antes dos pães terem at- 



02 AS COMMUNIDADES DE GOA 

tingido O desenvolvimento próprio para a procrea- 
ção, e as mães, destituidas de instrucção e per- 
didos em poucos annos todos os encantos physi- 
cos, ficam reduzidas a uma condição miserável. 

Reclusas dentro de casa, occupadas na cosinha 
e em intrigas, e martyrisadas emquanto noras, 
vingam-se quando chegam a ser sogras. Comem 
depois dos maridos, nos pratos de folhas de que 
elles se serviram, e resignam-se ou suicidam-se, 
ao vêl-os gastar a vida e a fortuna entre baila- 
deiras. 

São estas as únicas mulheres hindus a quem en- 
sinam a ler e escrever. . . 

Mas a situação mais deplorável da brahmane é 
a viuvez. Antes do cadáver do marido ser levado 
para a incineração, a viuva tira o collar, que sym- 
bolisava a alliança conjugal, e todas as jóias, e o 
barbeiro rapa-lhe o cabello. Se é ainda impúbere, 
o lucto principia quando a união devia consumar- 
se. . . E ahi fica uma creança condemnada a pas- 
sar toda a vida entre pessoas estranhas e a ver- 
se repellida em toda a parte como cousa de mau 
agouro. 

Perto de algumas aldeias ha lugares ainda hoje 
conhecidos pelo nome de sati-málla, outeiro das 
viuvas queimadas com o cadáver dos maridos, e 
no caminho de Sanvordém para Zambaulim, nas 
proximidades de Sirvoy, um grande numero de 
estatuetas de mulheres, dispersas no campo, re- 



A MULHER 63 



corda antigas immolações; a sorte actual das viu- 
vas é apenas a alternativa da que em outro tem- 
po as esperava. 

A pratica era commum a muitos outros po- 
vos. Como podia o marido ser feliz separado 
da mulher? A união, interrompida pela mor- 
te, ia continuar desde que a viuva se atirava 
ás chammas e ambos os cadáveres se consu- 
miam. . . 

Prohibido pelas leis portuguezas, o costume 
terminou sem protestos, e foi substituido por uma 
ficção curiosa. Hoje a viuva, antes do cadáver do 
marido ser tirado de casa, colloca-lhe sobre o pei- 
to uma porção dos seus cabellos e uns pedaços 
das manilhas de vidro que usava. 

Felizmente, tudo isto se vae modificando com 
rapidez. As leis vigentes não fazem distincção en- 
tre mulheres hindus e christãs, e os exemplos e 
idéas dominantes vão penetrando n'aquella socie- 
dade e produzindo benefícios de muito mais apre- 
ço, senão egualmente importantes. 

Os vaishnavas são menos sujeitos a preconcei- 
tos do que os outros brahmanes e desde tempos 
antigos viuvas d'aquella seita costumam abrir 
pousadas e vivem assim "honestamente do seu 
trabalho e industria. O facto já não merece gran- 
des reparos. Vê-se hoje sem escândalo quasi 
todas as viuvas adiarem para depois da mocidade 
o corte dos cabellos, e as relações de sangue en- 



64 AS COMMUNIDADES DE GOA 

tre pães e filhas casadas occupam um grande lugar 
na vida intima da familia. 

E muito menos triste a situação da mulher nas 
castas inferiores. 

Nas mallogradas codificações de usos e costu- 
mes, de que tenho fallado, os brahmanes não atten- 
deram, como era natural, senão ás regras que 
prevaleciam entre elles, e só excepcionalmente 
se referiram á adopção e successão em outras 
classes. Convém todavia notar que cada casta tem 
os seus costumes. No rigor dos textos sagrados, 
o matrimonio só é reconhecido como sacramento 
indissolúvel entre aquelles que nascem segunda ve:{, 
pela iniciação em palavras sagradas dos Vedas e 
investidura no cordão que trazem a tiracolo 
desde aquella cerimonia. Ora em Goa só os 
brahmanes e qualificadamente os vanis (vaisyasj 
têm direito á iniciação e recebem a investidura. 
Todas as outras classes são excluídas dos sacri- 
ficios brahmanicos, e os seus ritos considerados 
imperfeitos, porque lhes faltam as mantras ou 
palavras sagradas que os bhotos não podem pro- 
nunciar senão deante dos iniciados. O reconhe- 
cimento publico suppre n'esse caso as cerimo- 
nias. 

Os curumbins, que constituem o stratum mais 
antigo da população do paiz, conservam, ainda 
mesmo os christãos, um costume que justificaria, 
independentemente de outras provas, o lugar em 



ADULTÉRIO 65 



que os colloquei. Nas outras classes, a noiva em 
regra, leva para o casal um dote que varia, con- 
forme a fortuna das famílias; os curumbins com- 
pram-nas; dão por ellas um preço nominal que 
entre os christãos é de três ou quatro rupias. 

Apesar d'isto e de se sujeitarem a trabalhos 
pesados, tanto as mulheres curumbins como as 
das outras classes inferiores se podem talvez con- 
siderar mais felizes do que as brahmanes; as suas 
relações com os maridos estam n'um pé de maior 
egualdade; homens e mulheres occupam-se na 
labutação dos campos, e as casas de terra e ca- 
banas apenas servem para os abrigar e aquecer 
durante as chuvas e nas noites de terral, 

A monogamia prevalece geralmente, mas qua- 
lificada pela convivência habitual com bailadeiras, 
sobretudo entre brahmanes •, para esses, e para 
os que nascem segunda ve^ pela iniciação, o matri- 
monio é um sacramento, que só o adultério da 
mulher pode dissolver. 

Supponho que não haverá paiz em que o es- 
cândalo de taes factos seja menos frequente. As 
classes baixas são pouco escrupulosas no assum- 
pto e em todas o peccado é meramente venial se 
foi praticado com homem da mesma casta ou su- 
perior; o que os dharma shastras punem com as 
mais graves penas. são as relações de mulher de 
casta superior com homem de casta inferior; a 
castidade é portanto uma questão secundaria e 

AS COMMUNIDADES DE GOA ^ 



66 AS COMMUNIDADES DE GOA 

subordinada ás leis fundamentaes da organisaçao 
hierarchica das classes (i). 

Nas Institutos de Manu, as relações com ho- 
mens de casta superior são até incitadas (2), o 
que representa de certo um estado differente d'a- 
quelle em que se acha a sociedade de Goa. 

O Código de i853 misturou com grande incon- 
gruência mouros e hindus e applicou os costumes 
dos brahmanes a todos egualmente. Na verdade, 
havia de ser difficil apurar os costumes especiaes 
de cada casta e parece que sob o ponto de vista 
do legislador e relativamente aos hindus seria mais 
conveniente o procedimento seguido; mas nem as 
conveniências publicas, nem os costumes das clas- 
ses mais numerosas permittiam que se affirrnasse 
em absoluto que as mulheres gentias não podem 
casar depois de púberes, que as viuvas, púberes 
ou impúberes, não podem contrahir segundas 
núpcias, e que os filhos nascidos d'essas uniões 
se deviam considerar illegitimos (3). 

Os tribunaes do paiz visinho, desde i856, em 
virtude de lei expressa, reconhecem entre os hin- 
dus as segundas núpcias de viuvas, os casamen- 
tos de mulheres púberes e a legitimidade dos seus 
filhos (4). 

(\) A Digest, pag. 424 e 884, nota c. 

(2) Ibid. pag. 884, nota c. 

(3) Código dos usos e costumes de i853, art. 1,76121, 

(4) Act XV of i856, citado no Digesto de West e Biihler. 



ADOPÇÃO 67 



Chamam-se mulheres de panno as que em Goa 
se casam n'estas condições, porque o presente 
de um panno pelo marido é a formalidade de que 
depende o reconhecimento publico. Fazem-se com 
frequência nas classes inferiores estes casamen- 
tos e parece que hoje se devem considerar legi- 
timos, nos termos dos artigos 2.° e 3.° do Decre- 
to de 16 de Dezembro de 1880, entre os que não 
têm o segundo nascimento da iniciação. 

Apesar d'estas diíFerenças de costumes, pode- 
mos desde já assentar mais dois factos importan- 
tes e communs a todas as castas. Em primeiro 
lugar, o casamento é regra geral para ambos os 
sexos e não se encontram no paiz brahmanes que, 
seguindo as regras sagradas da casta, passem 
pelos quatro estados do estudo, casamento, pe- 
nitencia e contemplação. Todos ficam no segun- 
do estado. Entre os próprios sacerdotes brahma- 
nes só os gurúSy ou directores espirituaes, são 
celibatários e fazem voto de castidade, dedicando- 
se a um ascetismo profissional. Em segundo lu- 
gar, todos se consideram obrigados a continuar 
a familia com um descendente varão. 

Este ultimo facto é de importância capital e 
deriva d'elle a adopção por uma serie de degraus 
que facilmente se reconhecem ainda. Na littera- 
tura védica, as deficiências naturaes encontram-se 
suppridas, ou pela nomeação de uma filha, ou 
pela intervenção dos irmãos e parentes do mari- 



68 AS COMMUNIDADES DE GOA 



do. A filha nomeada daria ao pae um descenden- 
te, que ficava pertencendo, como filho, não ao 
marido e pae, mas ao avô, e os irmãos e paren- 
tes podiam para o mesmo fim, substituir o mari- 
do no leito conjugal. 

Os dharma-shastras reconhecem já a adopção, 
mas em um lugar subalterno. As Institutas de 
Yâjnavalkya enumeram doze espécies de filhos 
capazes de succeder e são: i.° o filho do próprio 
corpo; 2.® o de uma filha nomeada; 3.® o feito 
por um parente nomeado; 4.® o que é feito por 
outra pessoa furtivamente (adulterino); 5.® o que 
nasceu de mulher solteira e é depois levado com 
ella para casa do marido; 6.° o de mulher casada 
segunda vez; 7.° o que foi dado pelo pae, pelo 
pae e n\ãe, só por esta com auctorisação do pae, 
ou na ausência e fallecimento d'elle; 8.° o com- 
prado; 9.° o orphão tomado só com o seu con- 
sentimento; 10.° o que perdeu os pães ou foi aban- 
donado e se entregou a si próprio; 11.® o que 
nasceu de mulher gravida ao tempo do casa- 
mento; e finalmente, 12.^ o que foi expulso pelos 
pães e tomado por um protector como filho. 

Estas distincçÕes apenas servem hoje para nos 
dar idéa do caminho por onde se tem andado. 
Actualmente os filhos do próprio corpo, isto é, 
os que as justas núpcias demonstram, e os adop- 
tivos, são os únicos reconhecidos em Goa e na 
índia. 



ADOPÇÃO 69 



O adoptivo não pode casar com pessoas da 
familia de nascimento até ao sétimo grau; em 
tudo o mais cessam as relações de sangue e elle 
toma o lugar de um filho nascido na familia de 
adopção. 

É possivel que a instituição estivesse pouco ge- 
neralisada ao tempo do Foral de i526, omisso a 
este respeito. Na collecção de usos e costumes de 
1824 encontram-se porém algumas regras que de- 
pois foram refundidas, com modificações, na col- 
lecção de 1853. 

Uma das modificações consiste em que na pri- 
meira collecção se faz referencia ao consentimento 
da aldeia e não pode duvidar-se de que a op- 
posição da communidade era um impedimento 
legitimo á adopção. A falta de consistência da fa- 
milia, revelada n'este e em outros casos, é um 
facto importante para aferir o valor da theoria 
que deriva d'aquella instituição a communidade (i). 
Na collecção de i853 exigia-se apenas que a adop- 
ção fosse celebrada perante a communidade, no 
livro da aldeia. 

Ambas as collecções permittiam a adopção a 
todas as classes, comtanto que não houvesse 
filhos varões, e o adoptivo fosse da mesma casta; 



(i) Conf. Sir Henry Sumner Maine — Early History 0/ 
Institutions, pag. 69 e seguintes, e Herbert Spencer — The 
Principies of Sociology, vol. i.®, pag. 718 e seguintes. 



70 AS COMMUNIDADES DE GOA 

ambas davam preferencia ao secundogenito de 
irmãos, e excluíam nova adopção emquanto vi- 
vesse o primeiro adoptivo. 

A lei vigente (Decreto de i6 de Dezembro de 
1880, art. 11) manda tirar o adoptivo d'entre os 
parentes successiveis, preferindo os secundogeni- 
tos de irmãos, ainda não investidos no cordão 
sagrado entre brahmanes. Como a successão dos 
hindus se regula pelo Código Civil, os filhos de 
filhas e de irmãs poderiam também ser adopta- 
dos. Os costumes dos brahmanes repellem po- 
rém taes adopções. 

Quasi todos os shastris e invariavelmente os 
tribunaes estrangeiros seguem a regra de que só 
pode ser adoptado por brahmanes aquelle que 
podia nascer do casamento da mãe natural com 
o pae adoptante. 

West e Biihler (i) filiam a doutrina actual na 
antiga pratica de alugar a mulher de outro para 
procurar descendência. O homem sem filhos 
podia juntar-se com uma mulher casada para o 
fim de obter um descendente e isto era auctori- 
sado por textos sagrados, quando o incesto se 
reputava já abominável. Aquellas relações não 
podiam pois effectuar-se entre pae e filha ou entre 
irmão e irmã. 

Posteriormente a adopção tomou o lugar dos 

(i) A Digest, pag. 883 nota a. 



■-.^"hfjií^- 




TESTAMENTO E SUCCESSOES 7I 

processos antigos e a imitação da natureza 
constituía um elemento essencial da ficção. 

Foi decerto uma ordem de idéas mui differente 
que determinou a lei actual. Mas a escolha é 
livre a respeito de herdeiros e os brahmanes po- 
dem do mesmo modo excluir os filhos de irmãs. 
Quanto aos kshairiasy contemplados no Decreto 
de 16 de Dezembro de 1880, é talvez conveniente 
dizer que a casta não existe em terras de Goa. 

O testamento, desconhecido na índia, teve a 
mesma origem e resultou de uma evolução idên- 
tica na sociedade romana. O seu fim era transfe- 
rir a representação da casa e se os bens se 
transmittiam egualmente era porque o governo 
da familia trazia comsigo os direitos e encargos 
da administração (i). 

Tratando de successões o Foral de 1626 distin- 
guia, como fazem os jurisconsultos hindus, entre 
heranças místicas (familia conjuncta), e divididas. 
No segundo caso se um homem morria sem des- 
cendentes, ainda que tivesse ascendentes, herdava 
o Rei. Se a herança era mistica, na falta de des- 
. cendentes herdavam os ascendentes, e na falta d'es- 
tes, os irmãos herdavam os immoveis e o Rei os 
moveis. Havendo filhos legitimos de dififerentes 



(i) Sumner Maine — Tlie Ancient Law pag. 194, — Mr^ 
Fustel de Coulanges, La Cite Antique, pag. 87,6 — Dr. Julius 
Jolly, History of the Hindu Law, pag. 98. 



72 AS COMMUNIDADES DE GOA 

mulheres os de uma recebiam tanto como os de 
outra, embora o numero fosse desegual. E em 
qualquer caso «nenhuma filha não herdará na fa- 
zenda do pae, nem da mãe», «e por fêmea ne- 
nhuma pessoa não herda, nem filha». Encontra- 
se também expressamente declarado que os filhos 
não podiam partir a herança do pae em vida d^elle, 
salvo por sua vontade. 

Que o lugar do Rei n'estas regras de succes- 
são era o do seiíhor da ten^a nos tempos anterio- 
res ao Foral confirma-se na Provisão do Gover- 
nador Martim AíFonso de Souza, de 28 de Julho 
de 1542 (i), pela qual foram excluidos os moveis 
da successão real quando houvesse filhas. 

A antiga pratica era necessariamente uma ex- 
torsão; nos dharma-shasty^as e commentarios a 
ordem das pessoas chamadas á herança compre- 
hende muitos outros parentes antes de chegar ao 
Rei; a respeito dos brahmanes entendia-se que a 
casta succedia na falta d'esses parentes (2), e é 
natural que aqui, como no Panjab com a tribu (3), 
a communidade, e não o dominante estranho, se 
devesse considerar o ultimo herdeiro. 

A sentença de 14 de Agosto de 1534, referen- 



P^ i>\kivo Port. Oriental^ fase. 5.°, parte i.% doe. n.o 76. 
' ' ' y /VA*e>7, pag. 138, nota a. 

y^) IM. pa^kj, 1 38, nota íi. -— Fora/, eap. 18 e \<^—Ususe 
<y^^iufiw\ sic t^S4» Resposta 14. 



--Vví^55t.í^-'-^' 



SUCCESSOES 73 

dada pelo Governador Nuno da Cunha (i), tinha 
já feito outra modificação no Foral ordenando 
que a partilha entre irmãos, filhos de mães diffe- 
rentes, se fizesse em quinhões eguaes a respeito 
de cada um. 

Consta do relatório terem attestado os ganca- 
res e outras pessoas perante o ouvidor «que cos- 
tume antigo era que as fazendas se repartiam por 
duas maneiras, a saber, uns repartiam como diz 
o Foral, que era um costume, e outro era que os 
filhos repartiam egualmente as fazendas, tanto um 
como outro, posto que fossem filhos de duas e 
três mulheres, que tenha uma muitos, e outra te- 
nha poucos, que ambos estes costumes se costu- 
mam, e que quando ha ahi differença doestas par- 
tilhas, que se segue a lei, que é haver tanto um 
como outro.» A lei, a que os gancares se refe- 
riam, não podia ser outra senão a dos textos sa- 
grados, provada no processo pelos depoimentos 
dos lettrados, ou shasMSy e que d'este modo ia 
prevalecendo sobre o costume do Foral. 

Mas esse costume obsoleto, e que estava em 
completa desharmonia com um systema, em que 
por fêmea nenhuma pessoa herdava, importa de 
certo a antiga existência de stirpes determina- 
das pela mãe, e não pelo pae, facto curioso e 
suggestivo, quando se vê no Malabar a polyan- 

(i) Archivo Pori. Oriental, fase. 5.o parte i." doe. n.® 72. 



74 AS COMMUNIDADES DE GOA 

dria e em toda a índia o estado legal das baila- 
deiras. 

Na collecção de usos e costumes de 1824 con- 
signa-se que os descendentes herdam aos ascen- 
dentes e estes áquelles; na sua falta os irmãos, e 
depois os mais coUateraes até á sétima geração. 
Ás mulheres apenas se reconhece o direito de ali- 
mentos e jóias, e são expressamente excluídas 
da herança não só ellas, mas também os descen- 
dentes por parte de mãe, filhas e irmãs. Esta ul- 
tima regra tinha porém uma excepção restricta 
aos filhos de filhas quando não havia agnados 
dentro de sete gerações. Só na falta de filhos de 
filhas é que era chamado á herança o Sarcar, ou 
soberano, relativamente aos bens que não eram 
do corpo da communidade. 

Na collecção de 1853 a successão deferia-se na 
ordem seguinte: i.° aos descendentes; 2.° aos as- 
cendentes; 3.° aos irmãos e seus descendentes le- 
gítimos, até á sétima geração, os mais próximos 
excluindo os immediatos, mas com direito de 
representação; 4.° aos filhos das filhas; 5.° aos 
das netas, filhas de filhos, sem direito de re- 
presentação n'estes dois casos, isto é, o filho da 
filha excluia o filho da neta; 6.° á Fazenda Pu- 
blica. 

Reconhecia ás mulheres o direito de ahmentos, 
e ás viuvas o usufructo dos bens que por falta 
de outros herdeiros pertenciam á Fazenda, e 



SUCCESSÕES 75 



quanto ás bailadeiras, uma classe que tem estado 
legal, como já notei, e ás mulheres solteiras, 
viuvas e expulsas da casta, os descendentes eram 
seus herdeiros, e ellas succediam-lhes egualnjente; 
fora d'estes casos «as fêmeas não têm direito a 
successão». 

Os filhos das irmãs e tias do defunto eram ex- 
pressamente excluidos e na concorrência de tios e 
sobrinhos agnados, estes, assim como os netos e 
bisnetos do irmão do finado preferiam aos tios 
por serem, com o defunto, descendentes do ul- 
timo tronco commum. 

Explica-se em outro artigo que nos bens com- 
muns da familia succedia a mesma familia, não 
tendo direito a elles o collateral separado, ainda 
que lôsse parente mais próximo. 

Esta é também a regra geral no paiz visinho (i), 
mas ahi, sob a influencia do Mitâksharâ, está as- 
sente nos trib,unaes que os filhos, siii heredes, po- 
dem exigir dos pães a partilha do património, 
emquanto em Goa o direito dos filhos á legitima 
só podia tornar-se effectivo depois da morte dos 
pães: É o costume de Bengala. 

A exclusão das mulheres, como herdeiras, é um 
dos sentimentos mais fortemente enraizados nos 
povos de Goa; encontra-se em todas as classes, 
desde o mhar ao brahmane, e funda-se no ins- 



(i) West and Biihler, A Digest, pa§. 68. 



76 AS COMMUNIDADES DE GOA 

tincto, commum a todas essas classes, de perpe- 
tuar a família. 

A mesma doutrina caracterisa ainda hoje as 
escolas de Bengala e Madrasta em opposição ao 
Mitâksharâ (i). 

Adeante teremos occasião de vêr que o sys- 
tema, archaico assim como a própria communi- 
dade, estava em perfeita harmonia com o regimen 
da terra, e que, apesar do Código Civil, as mu- 
lheres, hindus ou christãs, continuam a ser ex- 
cluídas da successão dos jonos e iocshimas de vangor. 

Na collecção de i853 o titulo da successão e 
partilhas principiava por accentuar que a regra 
era a successão per stirpes e que a successão per 
capita só tinha lugar entre irmãos a respeito do 
pae e nos casos expressamente especificados. E 
esta, com eíFeito, uma das feições mais notáveis 
do systema. As nações teutonicas levaram séculos 
para adoptar e encorporar nas suas leis este di- 
reito de representação que hoje nos parece tão 
simples, e que séculos antes da era christã tinha 
sido distinctamente enunciado nas Institutas sa- 
cadas da índia (2). 

l"m outro ponto importante é que também aqui 
t h^ítAiiça se considerava um con]uncx,o (iiniversitas) 



AD;>^í5f, pag 126. 

ri- Jolius Jolly, History of the Hindu Law, pag. 3 e 



ZflUA 



HERANÇA 77 



de direitos e obrigações. O pagamento das divi- 
das do pae é para o filho não só um dever, mas 
um acto de piedade, e é frequente nas classes in- 
feriores, ver os filhos, por morte dos pães, aceitar 
encargos que não eram exigiveis nos tribunaes e 
que elles cumprem religiosamente. 



IV 



Regimen da terra 



«Na índia, como na Europa, os conquistado- 
res e os conquistados, successivamente impellin- 
do e impellidos, rolaram vagas sobre vagas na 
direcção do sul, e quem examinar attentamente 
a structura e geographia d'essa parte da índia 
usualmente chamada Sul da Península pode inferir 
a priori que as terras abaixo dos Ghates, separa- 
das por uma barreira diíBcilmente penetrável do 
lado das regiões centraes, e defendidas por um 
clima abrazador sempre formidável para os nati- 
vos do Norte, haviam de ser as ultimas visitadas 
por aquelles invasores e haviam de conservar uma 
porção maior das suas instituições primitivas» (i). 

Em Goa só as antigas raças de sudras e curumbins 
se acham ethnologicamente ligadas com o paiz além 
dos Ghates. As migrações marathas, que procurei es- 

(i) Wilks, South of índia, vol. i.°, cap. v, pag. i5o. 



8o AS COMMUNIDADES DE GOA 

boçar no principio d'este livro, vieram do Norte, im- 
pellidas de longe pelas grandes correntes do Deccan. 

Não deve pois ser muito remota a época em que 
essas terras eram occupadas porcommunidadesde 
povos primitivos, como as de curumbins que ainda 
hoje se encontram em Salsete, no recesso dos ou- 
teiros de Dicarpalle e Davorlim. São talvez os monu- 
mentos mais antigos de Goa, e as raizes d'estas in- 
stituições eram tão profundas que muitas resistiram 
até agora, apesar dos golpes com que as têm mu- 
tilado successivas migrações e mudanças politicas. 

Abaladas pelos systemas fiscaes que dominaram 
nos últimos tempos anteriores á conquista portu- 
gueza, as communidades iam-se desfazendo pou- 
co a pouco; o regimen da terra era então o mes- 
mo ou análogo, e todavia hoje, emquanto nas 
Velhas Conquistas as melhores terras se conser- 
vam communs, na maior parte das aldeias das 
Novas Conquistas, ou se acham divididas ou foram 
appropriadas e oneradas pelos Dessais. 

Ao sul, nos dominios de Sunda, a renda, calcu- 
lada periodicamente, em geral de três em três an- 
nos, na razão de dois terços do producto bruto ( i ), 
era lançada sobre as communidades separadamen- 
te, ou em grupos; as aldeias de Bally constituiam 
um grupo, mahal; não havia pois intermediários 
encarregados do lançamento e cobrança por con- 

(i) The Bombay Ga^etteer, vol. xv (Kanara, iP) pag. i55. 



i^F" 



DIVISÃO DAS TERRAS 8l 

ta própria. Mas o Parpotdar, único representante 
do Estado, não queria saber senão das rendas, e 
as familias dos marathas e brahmanes estabeleci- 
das nas aldeias, foram reduzindo os antigos gan- 
cares curumbins e sudras á condição de rayots, 
sem direitos sobre a terra, e acabaram pela divi- 
dir entre si. Estas divisões continuaram sob o do- 
mínio portuguez, que nos primeiros tempos se 
limitou a substituir o Parpotdar por um Intenden- 
te, e têm-se feito até ha poucos annos (i). 

Em Pondá e nas terras conquistadas aos Bhon- 
slós, a cobrança dos impostos fazia-se por inter- 
médio dos Dessais. O systema já existia no regi- 
men de Bijapur, mas então as aldeias pagavam 
apenas um sexto do producto bruto ; foi uma época 
de prosperiedade (2). Nos tempos de anarchia e 

(i) Diz a Port. Prov. de 3i de Julho de 1848: «os podero- 
sos, aproveitando-se da occasião alteraram em seu lucro o 
systema estabelecido, d'onde veiu a ruina que hoje se sente 
da maior parte das mesmas çommunidades; porque em quasi 
todas ellas, as várzeas têm sido distribuídas pelos Dessais, 
Gancares e Escrivães entre si e muitas das mesmas estam ven- 
didas e hypothecadas por elles a seu bel prazer, contra a dis- 
posição do Bando de 6 de Maio de 18 17 e raras são as çom- 
munidades que arrematam triennalmente ou annualmente os 
seus campos.» Filippe Nery, Collecção de Bandos, 2.0 voL, 
pag. 200. Vid. também o Officio da Secretaria Geral de 18 
de Abril de 1848, no mesmo volume, pag 191, e a Portaria 
Prov. de i3 de Novembro de 1882, no Boletim do Estado da 
índia, n.o 204, de 16 de Novembro d'aquelle anno. 

(2) The Bombay Ga^etteer, vol. x (Ratnagiri) pag. 213. 

AS ÇOMMUNIDADES DE GOA 6 



/ 



82 AS COMMUNIDADES DE GOA 

desordem que se seguiram sob osmarathas eBhon- 
slós, os Dessais, meros rendeiros da contribuição 
sobre a terra, converteram-se em pequenos se- 
nhores feudaes, usurparam largos tractos de ter- 
reno, e lançaram sobre as communidades uma 
rede de impostos — haccas, formas, etc, que ainda 
hoje subsiste em grande parte. 

Qualquer que seja a origem d'esta instituição (i) 
é indubitável que os Dessais foram introduzidos 
em terras de Goa, quando as communidades es- 
tavam já completamente formadas. É possivel que 
elles datem das primeiras migrações marathas. 
Pelas aldeias das Novas Conquistas a par dos 
gancares curumbins e bhandarís entram na com- 
posição de muitas communidades familias de des- 
sais, quasi todas marathas, e supponho muito plau- 
sivel a tradição que se encontra entre os charadós 
christãos de Salsete emquanto á sua proveniên- 
cia de dessais. Não ha razão nenhuma para que 
estas aldeias tivessem uma formação differente das 
aldeias circumvisinhas das Novas Conquistas. 

Mas sobre esses dessais, se porventura se po- 
dem comparar com os actuaes, o que é duvidoso, 
passaram regimens, como foi o de Sunda, em que 
elles não tinham lugar (2), e por isso teriam ficado 

(i) History of the Mahrattas, vol. i.o, pag. 32. 

(2) Os dessais de Pondá datam do regimen de Bijapur, e 
tanto estes, como os de Polem e Loliem, eram uma excepção 
nos domínios de Sunda. 



DESSAIS 83 

nas communidades, ao lado dos gancares, só com 
differenca de nome. 

Não é d'esses que trato. Os Dessais de Satary 
consideram-se de origem rajput, e os de Pernem, 
Pondá e Bicholim, os mais importantes, são brah- 
manes e de creação relativamente moderna. 

Na Presidência de Bombaim, assim como em 
Goa, os dessais foram dispensados das suas attri- 
buições fiscaes, as únicas que exerciam com legi- 
timidade, mas n'aquella Presidência investigou-se 
a legalidade dos seus titulos, confirmaram-se.per- 
manentemente os poucos que davam direito a 
confirmação, outros apenas foram mantidos vita- 
lícia ou hereditariamente, e outros emfim foram 
declarados nullos ou extinctos. Em uma publica- 
cação official do Governo de Bombaim, que dá 
muita luz sobre esta questão, lê-se: «Os seus emo- 
lumentos (dos dessais) em terras, cereaes e di- 
nheiro, eram um grande ónus para as rendas pu- 
blicas. O serviço que se recebia d'elles, se algum 
se recebia, era por meio de propostos, ou con- 
sistiam em pequenas cobranças tão absurdamente 
desproporcionaes com as suas gigantescas mercês 
(service holdings) que outro tanto valia sustentar 
duas ordens de empregados fiscaes, a saber, aquel- 
les que eram os principaes instrumentos para esse 
fim, no tempo do Peshwá, e os nossos dispen- 
diosos daftardars, mamlatdars, deputados do colle- 
ctor, mahalkaris e subordinados. Hábeis funccio- 



84 AS COMMUNIDADES DE GOA 

narios fiscaes do governo têm repetidas vezes re- 
gistado que estes empregados districtaes heredi- 
tários, ou mahal zamindars, constituem uma cor- 
poração muito inútil e inefficaz, que nunca de boa 
vontade ajuda as operações dos empregados do 
governo, mas antes faz tudo quanto pode para 
atravessar e estragar todos os seus esforços. . . Em 
lugar de considerarem as suas mercês como re- 
muneração ou salário, consideravam-nas como 
hakas ou direitos livres de todas as condições» (i). 
Estas forças dissolventes actuaram principal- 
mente na época de anarchia que precedeu o dò- 
minio portuguez nas Novas Conquistas; aos so- 
beranos importava apenas a cobrança dos impos- 
tos, c nem teriam poder para obstar ás transforma- 
ções que se iam operando n'aquelles districtos (2). 
Ainda mais, sob a influencia de idéas jurídicas, 
que ha muito prevaleciam no Hindustão, e que 
faziam das communidades instituições archaicas 



(i) Narr ative of the Bomhay Inam Commission, pag. 39. 

(2) Consta das Capitulações de pajes com o Rei de Sunda, 
de 1714, publicadas no Boletim Official nP 8, de 1874, pag. 
46, que os Dessais de Pohdà costumavam revoltar-se por vá- 
rios pretextos e pedir a protecção dos Vice-Reis; por isso se 
estipulou no art. 8.® «que os Sar Dessais das terras de Pondá 
serão pagos das suas tenças e pertenças, conforme o que está 
assentado, pontualmente, comtanto que elles não poderão 
aveixar os vassallos das ditas terras, como o fazem continua- 
mente, passando contra elles rocôs e outras exorbitâncias.» 



EXTINCTAS COMMUNIDADES DE SATARY 85 

na própria índia (i), as terras não occupadas con- 
sideravam-se propriedade do Rei (2), e desde os 
Mogoes, a quem o Koran conferia direitos abso- 
lutos, e que na decadência eram pródigos em 
mercês, que serviam para colorir espoliações, até 
aos pequenos rajás e seus representantes, todos 
por meio de sonodos ou concessões iam cerceando 
as communidades e minando a sua existência (3). 
Foi assim que se extinguiram todas as commu- 
nidades de Satary. Hoje «os gancares vivem n'uma 
extrema penúria; e vivem assim, porque quanto 
produzem é para pagar a renda ao Estado, con- 
tribuir aos Ranes, dessais, n^rcornis, bottos, etc, 
que muitas vezes, depois da colheita das searas, 
não lhes deixam o necessário para a sua alimen- 
tação, não lhes sendo nunca possivel reservar um 
fundo suficiente, tanto para bemfeitorias, como 
para o costeamento das terras que cultivam, para 
gados e trem de serviço, necessário a uma boa 



(i) History of the Hindu Law, pag. 88. 

(2) A Digest of the Hindu Law, pag. 173 e 784 n. A pag. 
722, nota, lê -se: <tA não ser que a concessão (grant) lhe dê 
expressos poderes, o mercenário não tem direito de cercar 
terras usadas immemorialmente para pastagens pelos habi- 
tantes de uma aldeia.» Mountst. Elphinstone, — The History 
of -índia, pag. 23 e 79. 

(3) Narrative of the Bombay Inam Commission, especial- 
mente a pag. 7 6 14. — Collecção de 'Bandos j 2.0 volume, ap- 
pendice. 



86 AS COMMUNIDADES DE GOA 

cultura. Um gancar que quer trabalhar para ga- 
nhar a sua vida e alimentar seus filhos, não o pode 
fazer, porque o narcornim o chama para seu be- 
garim (cultivador) e já se vê, sem lhe pagar, por- 
que é mercê de sonodo. Um outro desgraçado 
que lançou á terra um ou dois euros de legume, 
e porque a chuva escaceou, nada produziu, ou 
produziu muito pouco, o narcornim com o sipay 
á porta, exige o tal meio curo; que ou leva á força, 
ou fica o miserável debitado, a favor do narcor- 
nim, de quantia que jamais poderá solver, attenta 
a conta de juros que o dito narcornim lhe faz, 
porque tem a mira em uma ou duas cabeças de 
gado que o gancar possue» (i). 

Foi também assim que se dividiram as terras 
de Pernem, e se extinguiram muitas communi- 
dades de Pondá. Citarei um caso. O Conde da 
Ega, em 1764, conferiu em mercê a Dadamá Botto 
Sorotrí a aldeia Querí da provincia de Pondá; 
esta mercê era restricta aos rendimentos da aldeia, 
isto é, o Conde da Ega conferiu ao mercenário 
o direito de receber os foros ou contribuições de- 
vidos ao Estado, e mais nada, porque as terras 
eram da communidade; mas o mercenário recla- 
mou allegando que o Maratha lhe tinha feito 
mercê das terras e queria ser mantido na «posse 

(i) Relatório final da commissão de demarcação de terrenos 
da provincia de Satary^ pag. 29. 



MOCASSÓS 87 



que o supplicante tinha de administrar por si, e 
também desfructar, como fazem os mercenários 
de outras quatro aldeias da dita Provincia de 
Pondá, a saber: o da aldeia Qeulá, o da aldeia 
Neramal, o da aldeia Cuncoliem e o da aldeia 
Vaddi, as quaes todas estam entregues aos seus 
mercenários». Com efleito, ouvido o Parpotcar e 
o Procurador da Coroa, a pretensão foi deferida 
em 1768 e a communidade expropriada (i). 

Estas aldeias são conhecidas pelo nome de mo- 
cassós. No regimen mussulmano e maratha a renda 
das terras era dividida em quatro partes, uma do 
Governo {chaiith) e as outras doy^g-A/Vquesepode 
considerar um feudo (2). O chauth ainda se subdi- 
vidia em quatro partes, e o Governo só vinha a rece- 
ber uma d'ellas*, as outras constituiam o mocassó^ 
que não era necessariamente hereditário e servia 
para remunerar o serviço da cobrança das rendas. 
Se em Goa houve jaghirs ou feudos militares, o 
que o jaghirdar tinha a receber era por esse titulo, 
que também se denominava moglai. O mocassó 
consistia apenas em três quartas partes do 
chauth (3). 

(i) Collecção de bandos, vol. 2.°, Appendice, pag. 5 e se- 
guintes. 

(2) O jaghir tinha por fim a sustentação de tropas, mas po- 
dia ser livremente revogado pelo soberano. West and Biihler, 

pag. 173. 

(3) Narrative 0/ the Bombay Inam Commission^ pag. 8, 






88 AS COMMUNIDADES DE GOA 

Outras aldeias se foram porém adaptando ás 
circumstancias creadas por novas migrações e do- 
mínios, e emquanto, por quasi toda a índia, a pro- 
priedade passou definitivamente da communidade 
para a familia, em Goa, conservam-se exemplares 
notabilissimos d'aquelle regimen primitivo. 

Figuremos no centro as melhores várzeas de 
arroz, ao lado o pagode ou a egreja, e á volta, dis- 
persos por entre os palmares, os bairros da aldeia. 
Os palmares entremeados de casas foram quasi 
todos divididos pelos visinhos e pagam á commu- 
nidade um pequeno foro; o fundo commum é 
constituído pelas várzeas, que se arrendam por 
licitação, entre os membros da communidade; os 
outeiros susceptíveis de cultura arrendam-se do 
mesmo modo. 

Do producto dos foros pagos á communidade e 
do producto da licitação tira-se em primeiro lugar 
o foro ha muito fixado e os impostos que se de- 
vem ao Estado; satisfazem-se outras despezas da 
aldeia, e o resto divide-se em quinhões eguaes 
pelos vangòres^ a que João de Barros chamou 
parentellas. 

nota. — Grant Duff, History ofthe ãMahrattas, vol. i.^ pag. 67. 
— The Bombay Gajetteer, vol. x (Ratnagiri) pag. 225 e seguin- 
tes. Os Khots tiveram uma origem análoga á dos Dessais, mas 
crearam mais raízes e destruíram completamente as commu- 
nidades d'aquelle districto (Ratnagiri) ; no Kanará, Dharwar e 
Belgão, também poucos vestigios se encontram d'ellas. 



ARRENDAMENTO DAS TERRAS COMMUNS 89 

Supponho que a palavra deriva de gão, aldeia, 
e gór casa, e sendo assim não só os factos, mas 
até o nome, associariam á instituição a idéa da 
gens romana e do clan celta. , 

E este o typo mais simples e o que geralmente 
se encontra nas Novas Conquistas. 

Em algumas communidades as várzeas em lugar 
de licitadas de três cm três annos, segundo o 
costume, eram divididas glebariamente pelas fami- 
lias, e foi por este processo que em outro tempo 
nas Velhas Conquistas, e ainda recentemente nas 
Novas Conquistas, se separaram muitas terras, 
tornando-se permanente a partilha. Em Margão 
e em outras aldeias ha várzeas possuidas por dif- 
ferentes proprietários em bandys, ou meios como 
se diz em Aveiro, o que me parece um indicio seguro 
d'essa divisão. Em i3 de Dezembro de 1825 in- 
formava o Tanadar-mór das ilhas de Goa: «Desde 
a primitiva e até 1735 separava-se de cada com- 
munidade uma porção de terra, que se arrema- 
tava, cujo producto chegasse ao pagamento do 
foro e mais contribuições ao dominante; e o re$to 
tinham reduzido cm tiras, a que se chama bandys, 
sendo a divisão com tanta egualdade, que não 
havia nenhuma diíferença em producção de um 
bandy a outro; estes bandys cultivavam os interes- 
sados, culacharins, gancares, qíc. segundo o 
interesse que tinham na communidade, e todos 
cultivadores formavam uma corporação, como Já 



\ 



gO AS COMMUNIDADES DE GOA 

disse, chamada bouço e este fazia todas as des- 
pezas precisas para conservação dos campos. 
Desde 1735 porém a esta parte todo o campo da 
communidade se arremata na conformidade do 
citado cap. 11 do Regimento» (i). 

A licitação é muito anterior ao Regimento de 
1735, e até ao dominio portuguez. Dispunha o 
Foral de Aífonso Mexia, no cap. xx: «Em cada 
anno se arrendarão em pregão as terras dos ar- 
rozaes a quem por ellas mais dér em cada uma 
das aldeias, segundo seu costume por bem de não 
serem próprias de cada um, como são as outras 
heranças, e porém são obrigados de as arrema- 
tarem aos moradores das aldeias, a quem por 
ellas mais dér, e se alguma das aldeias houver 
costume, e ordenança antiga de se darem pelo 
dito anno terras de arrozes de arrendamento a 
pessoas de fora das aldeias que mais por ellas de- 
rem que os outros da aldeia, cumprir-se-ha». 
Aquelle Regimento não fez portanto mais do que 
acabar com praticas abusivas que iam modificando 
o costume e leis antigas. 

O typo de communidades a que me referi é 
o que geralmente se encontra nas Novas Conquis- 
tas e ainda se reconhece na communidade de Sar- 
zorá, em Salsete; deve considerar-se o mais an- 

(i) Defensa dos direitos das gancarias, documento n<». 3? 
pag. 9. 



CUTUBANA QI 



tigo. Mas a licitação não se generalisou talvez 
senão depois das migrações marathas ^ brahma- 
nes. Emquanto a communidade foi homogénea, e 
todos trabalhavam egualmente nos campos, ornais 
simples era fazer a cultura em commum. D'este 
facto só encontrei alguns vestigios em Vaddi, al- 
deia de Pondá (i). 

Tomemos um exemplo do typo geral. A com- 
munidade de Vainguiní, na provincia de Bicholim, 
é composta de três vangòres, dois de gancares 
bhandarís, e um dos culcornins Smarts (brahma- 
nes). A receita da' communidade provém em pri- 
meiro lugar dos foros das terras divididas, yòVos 
limitados, de entubaria, É o titulo de propriedade 
individual mais frequente e de maior importância. 
No paiz visinho, em Ratnagiri, explica-se do se- 
guinte modo a sua natureza: «A palavra kutiiban 
implica em si própria uma renda fixa, não sujeita 
a fluctuação. Pelo preambulo de muitos titulos de 
kutuban pareceria que a origem d'elle é como se 
segue. O occupante hereditário de certos terrenos 
pobres teria representado aos funccionarios do 
Estado que se lh'os arrendassem por uma renda 
fixa, kutuban, os reduziria a plena cultura, e n'essa 
conformidade lhe foram concedidos por uma renda 
fixa, attendendo á despeza que havia de fazer. 



(i) Vid. no fim Excerptos do inquérito feito pelo auctor, 
na parte relativa áquella aldeia. 



92 AS COMMUNIDADES DE GOA 

Por outras palavras o occupante, pedia um esta- 
belecimento (settlement) permanente, afim de poder 
com segurança investir o seu capital na terra e 
evitar os impostos sobre os melhoramentos, e a 
sua pretensão foi deferida. Além d'isso o titulo 
declarava que as terras seriam desfructadas he- 
reditariamente de pae a filho, que não seria ne- 
cessário novo titulo, e que a imposição fixada 
comprehenderia quaesquer novas plantações de 
coqueiros ou arequeiras, ou qualquer outra cul- 
tura. No ultimo cadastro (survey) todas estas 
terras foram tornadas a medir e classificadas se- 
gundo as regras em vigor em Ratnagiri, e o 
resultado mostrou que eram possuidas por taxas 
consideravelmente abaixo do lançamento do ca- 
dastro. O governo todavia decidiu que o estabe- 
lecimento tinha sido permanente e devia fazer-se 
bom no futuro» (i). 

O mesmo se pratica geralmente em Goa, e já 
o Foral de Affonso Mexia registava: «Algumas hor- 
tas, palmares, e terras de arroz são obrigadas a 
pagar cada anno certqs taxas e posto que haja 
perdas não pagam n'ellas» e adeante: «Os chãos 
que houver no limite de cada uma aldeia perdidos 
ou desaproveitados, os gancares os poderão dar 
a quem lh'os pedir para aproveitar em hortas e 
palmares e outras bemfeitorias, com condição que 

(i) The Bombay Ga^etteer, vol. x. (Ratnagiri) pag. 261. 



CUTUBANA gS 



paguem certa renda ou foro. , . E depois que as- 
sim forem dadas as ditas hortas e chãos pelos di- 
tos gancares, não lhes podem ser tirados, porque 
lhes ficam para filhos, netos e herdeiros. . .» Ex- 
plicava egualmente o Assento da Junta de Fa- 
zenda de 27 de Outubro de 1780: «Uma das di- 
tas propriedades estava aforada, segundo o uso 
do paiz, em cotubana^ que é um foro perpetuo, 
com uma pensão certa que nunca tem altera- 
ção» (i). Mas é preciso observar que os titulos 
aqui provêm das communidades e não do Estado, 
e que os direitos de propriedade são inteiramente 
distinctos do direito de lançar e cobrar impostos. 
Ha também grandes tractos de terreno que pa- 
gam hoje foro limitado ás communidades e cujo 
titulo teve uma origem mui differente. Não eram 
«chãos perdidos ou desaproveitados» mas boas 
terras, que os gancares dividiram glebariamente e 
cuja partilha se tornou definitiva, como já disse. 
Mais tarde voltarei a esses titulos; o que agora 
desejo deixar assente é que as terras possuidas 
por cutubana, em regra, pagam á communidade 
os foros ajustados, e mais nada. 

A outra fonte de receita da communidade de 
Vainguiní provém do arrendamento triennal das 
várzeas communs, que se faz por licitação entre 
os vangôres. 



(i) Collecção de Bandos, i.o vol , pag. 274. 



94 AS COMMUNIDADES DE GOA 

Do monte commum tira-se em primeiro lugar o 
foro devido pela aldeia ao Estado. Depois é pre- 
ciso pag^r formas aos Dessais de Verem, hacca ao 
77wiho de Sanquelim, hacca ao deus da aldeia, hacca 
ao botho de Marcella, hacca ao Saniarcorm, . . E' 
disto que estam comidas as communidades das 
Novas Conquistas. Antigamente, no norte da In- 
glaterra, as povoações viam-se obrigadas a pagar 
impostos a certos homens alliados com ladrões 
para ficar protegidas da pilhagem; chamavam-se 
esses impostos black mail^ e é esse nome que o 
Coronel Etheridge dá áquellas exacções abolidas 
no paiz visinho (i). 

A origem das formas é também interessante e 
concorda com a theoria de Herbert Spencer em- 
quanto deriva o imposto de uma dadiva repetida (2). 
Nas Novas Conquistas é costume^ pela festa do 
Ganesh, levarem os arrendatários ao battcár (pro- 
prietário) um cacho de bananas, de arecas, ou 
outros fructos, conforme a producção do prédio 
arrendado. É uma condição tacita ou expressa do 
arrendamento e chama-se ^rmáí (3). 

Haccas e formas são pensões certas e invariá- 
veis que a communidade paga, mas tem ainda 

{i) A Digest of the Hindu Law, pag. 174. — Narrative of 
the Bombay Inam Commission (publicação oíficial), pag. 52. 

(2) Politicai Institutions, pag. 649 e seguintes. 

(3) Molesworth, A Dictionary Marathi and English, verb. 
formass, um presente que se oíferece a um superior. 



VANGÔRES 95 



encargos de outra natureza, em InamaSy ou ter- 
ras sem foro (i) concedidas ao deus da aldeia 
e ás servidoras do pagode (bavinas). As famiiias 
dos mainatos, barbeiros e ferreiros também têm 
ou tiveram as suas terras, com um pequeno 
foro. 

Deduzindo portanto do monte commum o foro 
do Estado, as pensões de haccas e formas, o or- 
denado do culcornim e outras despezas de menor 
importância, o saldo liquido divide-se em três par- 
tes eguaes, que se chamam tocshimas^ por cada 
um dos vangôres. 

São poucas as aldeias em que ha só um van- 
gôr, e n'essas o facto não pode attribuir-se senão 
á sua pobreza ou decadência; pelo contrario Mar- 
gão, cuja importância data de antigos tempos, 
chegou a ter 28 vangôres, todos de brahmanes; 
encontram-se também muitas aldeias, em que os 
vangôres são de castas differentes, e quando são 
da mesma casta os membros de um vangôr, em 
regra, podem casar no outro. A communidade 
funda-se portanto na terra, e os laços de sangue 
restringem-se ao vangôr. 

Dentro de cada aldeia adjudicavam-se, livres de 
foro, ás famiiias de ferreiros, mainatos, barbeiros, 



(i) Colonel Etheridge, Narrative, pag. 5, e — Assento de 
27 de outubro de 1780, na Collecção de Bandos, i.^ vol. pag. 
275. 



g6 AS COMMUNIDADES DE GOA 

e outros artífices indispensáveis (i) certas terras, 
designadas pelo nome geral de inam; nas Velhas 
Conquistas chama-se-lhes namoxins^ do mesmo 
modo que ás terras adjudicadas aos pagodes (2) ; 
e também têm inamas as familias do joshi^ o brah- 
mane que lê o calendário e declara os dias faustos 
e aziagos para lavrar, semear e colher, para casa- 
mentos e outras solemnidades. O gurou^ ghadi e 
:{olmiy que se encontram em quasi todas as aldeias, 
são outros astrólogos de casta inferior, que o 
joshi não supplantou,- chamam-se velipos em Zani- 
baulim, pertencem ás raças curumbim, maratha e 
satarycar, e formam vangôres em muitas commu- 
nidades d'aquella Provincia. Têm finalmente ina- 
mas os mhars; a sua principal attribuição era vi- 
giar a aldeia, e vivem sempre afastados, no bairro 
denominado mharoda. 

Estas inamas em algumas communidades são 
substituídas por pensões certas — votonsy heredi- 
tárias como a terra. 

Em todas as communidades os visinhos levam 
os gados para os outeiros durante as chuvas e 

(i) Colonel Etheridge, Narr ative, pag. 38, nota; — Grant 
DufF, History of the Mahrattas, vol. i.o, pag. 26, nota; — 7he 
Bombay Gajeíteer, vol. x (Ratnagiri), pag. 222, nota 2."; e — 
Foral de Affonzo Mexia, cap. xii. 

(2) Molesworth, A Marathi and English Dictionary, verb. 
namassa, a terra applicada á producção de cereaes, etc, para 
ofTerecimento ao ídolo. 



LICITAÇÕES E PRIVILÉGIOS 97 

depois das colheitas para as várzeas, mas os ou- 
teiros susceptiveis de cultura, bharoda, também se 
arrendam por licitação. A cultura de bharoda é 
um afolhamento de 3 a 6 annos ficando em segui- 
da a terra outros tantos annos de pousio. Os 
cini7ris são também licitados na communidade e 
a sua cultura consiste em derrubar e queimar a 
floresta e semear nas cinzas. Em todos os dis- 
trictos britannicos á volta de Goa a cultura de 
cumris está restringidissima e só se permitte aos 
sertanejos que ao presente não têm outros meios 
de vida. A extracção de mel e cera das flores- 
tas e a pesca nas lagoas são egualmente lici- 
tadas. 

O processo de licitação entre os membros da 
communidade, que é geral como já disse, tem 
creado um enxame de parasitas que servem de in- 
termediários entre a communidade e os rayots ou 
trabalhadores. Estes antigos gancares, ha muito 
depostos na maior parte das communidades, não 
têm direito de lançar, ou poucas vezes o exercem, 
e são obrigados a tomar as terras aos brahmanes 
e marathas, que consideram o arrendamento de 
determinados prédios como um privilegio heredi- 
tário. Os serviços de saccador, que tem a seu car- 
go a cobrança dos foros e rendas, os serviços de 
terlucas ou vigias, que d'antes pertenciam aos 
mhars, e outros, são do mesmo modo licitados e 
considerados egualmente um privilegio heredíta- 

ÂS COMMUNIDADES DE GOA 7 



98 AS COMMUNIDADES DE GOA 

rio, OU vitalicÍQ, que em regra só as malquerenças 
e vinganças perturbam. 

Temos assente os factos principaes do regimen 
da terra nas communidades mais simples de Goa, 
mas para que esses factos sejam devidamente 
comprehendidos é indispensável accrescentar que 
a terra e os direitos que recahiam sobre ella eram 
inalienáveis. E esta a chave do*Bystema. 

Dizia o Foral de i526: «Se algum gancar ou 
outra pessoa quizer vender alguma herança em 
alguma das ditas aldeias, não o poderá fazer sem 
licença de todos os gancares da tal aldeia e assim 
mesmo ninguém não poderá comprar sem a dita 
licença, e se se fizer alguma venda, ou compra 
sem haver a dita licença será em si nenhuma, e 
cada vez que os gancares quizerem será tudo des- 
feito»... E esta era a regra geral das communi- 
dades do sul da índia, com que as de Goa tinham 
estreita relação : «O consentimento dos Miras- 
dârs (gancares) . . . é necessário para a admissão 
d'um estranho a um quinhão da propriedade in- 
tegral da aldeia, ou a uma parte particular da ter- 
ra» (i). 

Este regimen, de que o nosso estava já tão dis- 
tanciado ao tempo da conquista, pareceu natu- 
ralmente intolerável aos moradores portuguezes 
de Goa, que logo se queixaram a El-Rei e lhe 

(1) West and Buhler, Digest, pag. 733, nota. 



VENDA DE HERANÇAS E CANGARIAS 99 

pediram que houvesse por bem «que se possa 
comprar a quem quer que quizer vender o seu» 
como se vê da carta de D. João III, de 26 de 
Março de i532, dirigida á cidade de Goa (i). Os 
moradores referiam-se de certo ás aldeias, porque 
nos limites de uma das primeiras cidades com- 
merciaes da índia, que acabava de estar sob o do- 
mínio mussulmano, e onde os portuguezes tinham 
creado um municipio, não teria applicação o Fo- 
ral. E que a gente da terra, ainda antes de i56i, 
ia vendendo as heranças aos moradores, consta 
da carta de D. Catharina á cidade, de 25 de Fe- 
vereiro d'aquelle anno (2) 

Por outro lado os tribunaes, nas execuções por 
dividas, applicavam as leis portuguezas e aucto- 
risavam a arrematação e venda das terras (3), o 
que em ibSg se prohibiu por motivos puramente 
fiscaes, — emquanto não fossem lançadas nos 
tombos (4). Lê-se também n'um diploma de 1596 
que a esse tempo continuavam a vender-se os 
chãos, isto é, as terras aforadas, e as gancarias, 
que eram os direitos dos gancares (5). 

(i) Archivo Portuguef Oriental , fase. i.°, i.* parte, doe. n.o 
2, pag. 14. 

(2) Ibid., doe. 3í, pag, 5i. 

(3) A exeeução em terras, por dividas, é uma noção estra- 
nha á pura lei hindu. West and Buhler, Digest, pag. 172. 

(4) Archivo Port. Oriental, fae. 5.°, parte i.», doe. 3o6,pag. 
412. 

(5) Ibid. fase. 3.©, parte 2.", doe. 234, pag. 6Sg. 



lOO AS COMMUNIDADES DE GOA 

Vendiam-se as gancarias, os Vice-Reis davam- 
nas de mercês, assim como as escrevaninhas até 
1581 (i),e o zelo da conversão tinha introduzido 
uma outra novidade — haviam-se por herança de 
fêmea (2). 

Contra isto reagiram primeiro os gancares das 
Ilhas de Goa, fundando-se no Foral, e nos seus 
usos e costumes, e obtiveram em 1604 que se 
prohibisse em absoluto a venda das gancarias (3), 
prohibição que se ampliou definitivamente ás Pro- 
vincias de Salsete e Bardez em 1628 (4). A reac- 
ção foi portanto além do costume reconhecido 
no Foral, emquanto se não permittiu a entrada 
de novos vangôres nem mesmo no caso de haver 
accôrdo dos gancares, mas as terras que estavam 
divididas, os direitos que lhes andavam annexos, 
e ainda outros que recahiam sobre as terras com- 
muns passaram insensivelmente a ser objecto de 
commercio, não ficando á communidade senão a 
sombra de um direito de opção, com que acabou 
o Decreto com força de lei de 15 de Setembro de 
1880 (art. 53). Precisamos porém tratar primeiro 
de outros typos de communidades. 

(i) Archivo PorL Oriental, fase. 5.°, parte 3.', doe. 808, 
pag. 975, e doe. 828, pag. 991. 

(2) Ibid. Informação do Desembargador Bento de Baena 
Sanehes, a pag. iSgS, nota ao doe. 1008. 

(3) Ibid. pag. 1375, nota ao ref. doe. 

(4) Ibid. pag. 1391, nota ao ref. doe. 



COMMUNIDADE DE SHELVONA lOI 

A communidade de Shelvôna,em Chandrovaddy, 
é formada de três vangôres, dois de dessais ma- 
rathas, e um de culcornins, brahmanes smarts, 
como quasi todos os culcornins. Ha três várzeas 
no gÍ7^o da arrematação^ que se arrendam de três 
em três annos; os outeiros maninhos são de lo- 
gradouro commum, e as mais terras ou são de 
cutubana, ou de foro correjite. Estas distinguem 
um segundo typo de communidades. 

Os marathas e culcornins partilharam-nas pelas 
suas familias em 36o glebas, a que deram o nome 
de ôrás (i). Ha muito entraram no commercio e 
têm-se dividido, e vendido a pessoas estranhas á 
aldeia, independentemente de licença. E por essas 
glebas que se distribue o saldo ou deficit da com- 
munidade. Com o producto dos foros de cutuba- 
na e rendas pagam-se os foros do Estado, e fazem- 
se as despezas do costume; se ha saldo ap>plica-se 
em 36o quinhões, que ainda se subdividem con- 
forme os possuidores de cada gleba; havendo de- 
ficit cobra-se na mesma proporção. 

O vangôr comp5e-se, como tenho dito, de um 
grupo de familias que são, ou se consideram des- 
cendentes de um tronco commum. O seu cresci- 
mento não podia ser egual. Uns mutiplicaram-se 



(i) Molesworth, A Marathi and English Dictionary, verb. 
òrá — uma moeda, significa também um ou mais regos do 
arado. 



102 AS COMMUNIDADKS DE GOA 

e as famílias separaram-se do lar e culto domes- 
tico, outros reduziram-se. 

Nas communidades do primeiro typo acontece 
muitas vezes pertencer uma tocshima exclusiva- 
mente a uma ou poucas familias, representantes 
do vangôr, emquanto egual tocshima é repartida 
em pequeníssimas fracções pelas numerosas famí- 
lias que constituem outro. Na aldeia de Vainguíní 
a uma das famílias de culcornins cabe a vigésima 
parte da respectiva tocshima e é a que recebe 
mais. 

Estas differenças deviam ter sido a causa prin- 
cipal da distribuição das terras de j^òro corrente 
em glebas entre as differentes famílias de que, na 
época da partilha, se compunham os vangô- 
res. 

Pertencem a este typo a maior parte das com- 
munidades actuaes de Salsete, encontra-se nas 
Ilhas, é frequente em Bardez, e refería-se a ellas 
a informação do Tanadar-mór das Ilhas de Goa 
que já tive occasião de citar. 

Vou recorrer a outros exemplos para que a ana- 
logia se torne bem clara. A communidade de Si- 
rodá tem quatro vangôres, todos de brahmanes, 
e é obrigada a pagar ao Estado 7:000 rupias de 
foro, números redondos. Ha terras de cutubana, 
outras que se arrendam por licitação de três em 
três annos e outras adjudicadas aos vangôres. Pela 
adjudicação d'estas várzeas os vangôres sujeita- 



BHBIW 



COMMUNIDADE DE SIRODÁ IO3 

ram-se a pagar o primeiro 600 rupias de foro, o 
segundo 200, o terceiro 260, e o quarto 440, som- 
mando 1:500 rupias, tudo números redondos. 
Se a receita das terras de cutubana e das que 
andam no giro da arrematação triennal não che- 
gasse para o custeamento das despezas, os van- 
gôres teriam de pagar pelo rendimento das vár- 
zeas adjudicadas na proporção d'aquelle foro. De 
facto fica-Ihes sempre um saldo importante, e os 
vangôres dividiram pelas familias os quinhões 
que lhes competiam n'esse saldo; as familias têm- 
nos vendido e hoje pertencem em grande parte a 
pessoas de fora da aldeia. Designam-se d'este 
modo: tocshima do i.® vangor correspondente ao 
foro de tantas rupias, ou tocshima do 2.° vangor 
correspondente ao foro de tantas rupias, e assim 
nos mais casos. 

As várzeas adjudicadas aos vangôres são peri- 
odicamente licitadas entre os actuaes possuidores 
das tocshimas, alguns estranhos á aldeia, como 
fica dito; o que licitou, arrenda depois aos colonos, 
e os tocshimadat^esy por occasião da sega, vão á 
eira buscar a parte, que d'ahi lhes compete. 

Supponhamos agora que estas várzeas tinham 
sido divididas glebariamente entre as familias dos 
vangôres e que a cada gleba se tinha applicado o 
foro correspondente, teríamos o systema da maior 
parte das communidades de Salsete. 

Tenho deante de mim um inventario antigo em 



I04 AS COMMUNIDADES DE GOA 

que se encontram, descriptas em face de docu- 
mentos do século passado, verbas como esta: Ma- 
rella-bandachem (situado em Betalbatim) em qua- 
tro addições, que foi de F., de foro corrente, de 
uma banda várzea da aldeia, da outra herdeiros 
de F., da outra serventia da aldeia, e da outra her- 
deiros de F.,4 tangas, i berganim e lõleaes...» 
Podem vêr-se descripções idênticas na Relação 
das faiendas confiscadas aos Jesuitas, publicada 
pelo Conselheiro Rivara nos Boletins Officiaes de 
1862 (i). 

No exemplo que citei o possuidor da gleba, 
originariamente um gancar, se houvessse deficit, 
respondia para com a communidade na propor- 
ção de 4 tangas, i berganim e 16 leaes (2), ou re- 
cebia n'aquella proporção, havendo sobras (3). 

(i) Brados a favor das communidades das aldeias do Es- 
tado da índia, pag. 91, nota. 

(2) Bosquejo Hist. das communidades, vocabulário: ntangas 
brancas, moeda imaginaria que em Salsete e Bardez tem o 
valor de meio xerafim ou i52 1/2 réis e nas Ilhas 96 réis; ci- 
las têm uso apenas na liquidação de foros, mas raras vezes, 
e se dividem em 4 berganins, e o berganim em 24 leaes.» 

(3) Segundo as antigas leis germânicas «La tompt (terrain 
oíi se trouve la demeure) est Ia mère du champ. Elle deter- 
mine la part du champ. La part du champ determine celle 
de la pâture ; celle de la pâture, celle de la forêt; la part de 
la forêt, celle des roseaux pdur couvrir le toit, et la part des 
roseax divise les eaux d^après les filets.» Mr. É. de Laveleye, 
La T^ropriété collective du sol, pag. 29. 



, — — „^ 



TOCSHIMAS 1 05 



Se das terras em cultura os gancares só tives- 
sem deixado de partilhar as que lhes parecessem 
necessárias para o pagamento das despezas, como 
informava em 1825 o Tanadar-mór das ilhas de 
Goa, não poderia explicar-se senão pela diminui- 
ção dos encargos, que as. guerras tinham aggra- 
vado, e pela elevação geral dos preços, o facto 
de haver importantes sobras em tão grande nu- 
mero de communidades das Velhas Conquistas. 
Desde então as tangas começaram a ter valor, fo- 
ram-se separando das glebas de foro corrente a 
que andavam annexas, e entraram no commercio. 
Hoje estam todas separadas e convertidas em ac- 
ções. 

As tocshimas eram pois determinadas n'este 
typo de communidades pelas tangas annexas ás 
glebas ou bandys, mas quando as partilhas reca- 
hiam sobre palmares ou arecaes, determinavam-se 
pelo numero de covas, que era o espaço necessá- 
rio para plantar uma arvore, ou pelo numero de 
palmeiras e arequeiras. E assim, se o palmar a 
dividir tinha 600 arvores, e os vangores se com- 
punham de 60 familias, com direito a partilha 
egual, cada uma ficaria com 10 palmeiras. O sys- 
tema é fundamentalmente o mesmo em todos estes 
casos, quer as tocshimas se chamem ôrás, quer se 
chamem tangas, covas, palmeiras ou arequeiras. 

O crescimento desegual dos vangores dentro da 
aldeia, e a independência adquirida pelo grupo da 



I06 AS COMMUNIDADES DE GOA 

família dentro do vangôr, foram as causas que de- 
terminaram a passagem do primeiro para o se- 
gundo typo de communidades; mas nas Ilhas e 
Bardez prevalece um terceiro typo que ha pou- 
cos annos era inteiramente desconhecido nas No- 
vas Conquistas (i). O rendimento liquido da com- 
munidade divide-se pelos varões de cada família, 
e a tocshima passa a ser jono, uma pessoa, um 
homem (2). 

No Archivo da Administração do Concelho de 
Pondá encontrei um processo interessantíssimo 
para o estudo d'esta questão. A communidade 
de Condaím era idêntica á de Sirodá; havia toc- 
shimas pelas quaes se repartiam as rendas de cer- 
tas várzeas, e tocshimas pelas quaes se dividiam 
as rendas de outras várzeas; mas depois todas as 
terras passaram a ser licitadas conjunctamente, e 
do producto separava-se em determinadas propor- 

(i) A Portaria do Governo da Provinda de 5 de Agosto 
de i865 (Boletim n.o 60), mandou que as sobras da Gamara 
Agraria de Embarbacem se distribuíssem metade pelos van- 
gôres e metade por cabeça de gancares. Os regulamentos 
posteriores ao Decreto de i5 de Setembro de 1880 têm gene- 
ralisado o systema de jonos. 

(2) Em algumas communidades das Velhas Gonquistas as 
viuvas tem jonos ou determinadas fracções deyowo.Ghamam-se 
impropriamente jonos phateusins outras pensões, a que nas 
Novas Gonquistas correspondem as haccas, formas, e votons, 
estabelecidas em favor de pessoas e de oragos. Os jonos pha- 
teusins são objecto de commercio. 



TYPOS DE COMMUNIDADES IO7 

ções O que pertencia a cada espécie de tocshimas. 
Dois gancares pretenderam mudar de systema, 
queriam que a renda se repartisse egualmente em 
jonos pelos varões, como se fazia em Bandorá. 
Diz-se no parecer do Administrador do Conce- 
lho (i) que se não provou a analogia, nem podia 
provar-se, porque em Bandorá a renda dividia-se 
primitivamente em cinco tocshimas e só em 1869 
é que por determinação do Governo da Provin- 
da se começou a seguir o systema da Gamara 
Agraria de Embarbacem. 

Vê-se do processo que a única razão dos gan- 
cares dissidentes contra o systema, postas de parte 
as suggeridas pelo interesse e amparadas pela 
ignorância, era que «uns vencem maior parte do 
que outros.» Em face das nossas leis a improce- 
dência da pretensão era portanto manifesta, e to- 
davia não foi senão por esse fundamento que em 
outra aldeias se passou para o systema de jonos, 
e que entre outros povos se fazia a repartição pe- 
riódica das terras. . . 

Todas as communidades de Goa se reduzem 
pois a três typos fundamentaes; o primeiro deri- 
va do vangôr, o segundo da familia, e o terceiro 
do jono, do homem, individualmente considerado. 

(1) A. A. Purshotoma Vença Sinay Maugecar, e Go vinda 
Duglea Camotim — R. a Gommunidade de Condaím. O pa- 
recer é de 23 de Abril de i883 e o Governo confirmou-o, de- 
cidindo contra os A A. 



Io8 AS COMMUNIDADES DE GOA 

Em algumas d'estas ultimas communidades, os 
vangôres têm-se confundido e apenas se sabe que 
existiram. Outras aldeias adoptaram um regimen 
mixto, parte da renda distribue-se por tocshimas 
e parte por jonos; foi decerto uma transacção en- 
tre os interesses creados e a egualdade primitiva, 
que já vimos em lucta na communidade de Con- 
daím. 

Esta evolução da propriedade da tribu e do 
clan para a familia e da familia para o individuo, 
é um facto geral, verificado a respeito de muitos 
outros povos; corresponde a uma das phases da 
transição a parte legitimaria da herança conser- 
vada nas nossas leis; mas o que ha de notável em 
Goa é a plasticidade de regimen, que permittiu a 
mesma evolução em algumas communidades, sem 
que o molde das instituições primitivas se tenha 
partido. 

Voltemos agora a tratar dos direitos que re- 
caem sobre as terras e rendas da communidade. 
O aforamento de chãos perdidos ou desaprovei- 
tados, as doações aos brahmanes (i), e as inamas 
ou namoxins dos servidores, são titulos reconhe- 
cidos no Foral de 1526, mas ahi se dispunha cla- 

(1) A propriedade era também inalienável dentro da fami- 
lia, mas as doações religiosas constituiam uma excepção. Es- 
sas doações eram um meio de acquisição especialmente ap- 
provado em relação aos brahmanes. West and Biihler, Digest, 
pag. 192 nota, 197 e 171 nota. 






CUNTOCARES IO9 



ramente a respeito de todas as terras, sem exce- 
pção alguma, que não poderiam ser vendidas sem 
licença dos gancares. A Provisão do Vice-Rei, 
Ayres de Saldanha de 3o de Agosto de 1604 e o 
A.lvará Régio de 24 de Março de 1628 renovaram 
a prohibição em absoluto, limitando-a porém á 
alienação de vangôres, isto é, ninguém poderia 
entrar nas communidades, nem mesmo com licen- 
ça de todos os gancares. E como era mais fácil 
esquecer a origem das tocshimas, cuja distribui- 
ção se fazia relativamente a certas glebas, ou a 
certas quantias de foro, apesar da natureza de 
todas ser precisamente a mesma, aquellas passa- 
ram a ser objecto de commercio e andam na pos- 
se de estranhos, emquanto as tocshimas de van- 
gôr e jono se conservaram, em regra, inalienáveis. 
A venda de tocshimas tornou-se pois um facto 
geral nas communidades em que a distribuição da 
renda se fazia por glebas, ou em relação a certas 
quantias de foro, e vem d'ahi uma das maiores 
perturbações que a instituição sofifreu nos últimos 
tempos. Ao lado dos gancares formou-se d'este 
modo, em grande numero de aldeias, um corpo 
de interessados, cuntocares (i), que pretendiam 

(i) De cunto que significa «renda da terra correspondente 
á que pode lavrar um arado. Significa também estaca, que se 
põe no rio, e talvez signifique a que se póe na terra para de- 
marcar os lotes correspondentes aos arados.» Cons. Rivara, 
Brados^ pag. 86 nota. 



I I o AS COMMUNIDADES DE GOA 



tomar parte nos negócios communs. Os gancares 
oppuzeram-se, em nome dos seus usos e costu- 
mes, que não admittiam estranhos. Mas os usos 
e costumes também não permittiam a venda de 
tocshimas; desde que se vendessem, os novos pos- 
suidores substituíam os antigos, e estes só podiam 
ter lugar por uma lei, como hoje diríamos, que 
alterasse a constituição da aldeia, com mais um 
vangôr ou com mais uma familia. Não foi isto que 
aconteceu. O choque das idéas modernas com as 
instituições antigas produziu uma confusão idêntica 
em outros paizes (i), e nós vemos ainda hoje em 
Goa os gancares que venderam os seus direitos, 
mettidos na gerência de negócios de que não po- 
dem tirar senão interesses illicitos (2). 

Deve notar-se desde já um facto de grande va- 
lor jurídico. Em um systema em que as alienações 
de immoveis eram tão difficeis e se generalisaram 
em data tão recente, a posse não podia ter a im- 
portância que com o tempo adquiriu no Direito 
Romano, servindo de titulo contra o dominio. E 
o que vemos com eíFeito. No cap. vii do Foral le- 
se que os gancares de uma aldeia encampada, 
podiam a todo o tempo pedil-a sujeitando-se ao 
foro por inteiro, e n'uma nota do Livro Verme- 

(i) Vid. o lugar citado, a pag. 36 dos Brados. 

(2) No Projecto do Novo Regimento das Communidades 
Agrícolas do Estado da índia, Nova Goa, 1862, foram publi- 
cadas as representações das partes sobre esta questão. 



PRESCRIPÇAO 1 1 I 



lho da Relação ao capitulo xvii reconhece-se o 
costume dos gancares ausentes tornarem a haver 
as suas heranças, sem limitação de tempo, desde 
que voltassem á aldeia. No caso de se vender al- 
guma herança sem licença dos gancares, o Foral 
dispunha summariamente cada ve\ que os gancares 
qui\eremy será tudo desfeito. Nem mesmo a pres- 
cripção de moveis era cousa definida, porque o 
cap. XXV dispunha que se alguém desse dinheiro 
de onzena, e não o pedisse nem a onzena, e pas- 
sasse tanto tempo que o ganho montasse ao pró- 
prio «posto que passe muito tempo além^ não será 
obrigado pagar o devedor ao credor mais que o 
próprio em dobro». 

Em 1824, quando pela primeira vez se codifica- 
ram os usos e costumes das Novas Conquistas, 
as Gamaras Geraes responderam sobre a matéria 
de prescripção: «n'estas circumstancias segura- 
mente nas Novas Conquistas devia haver aquella 
pratica que determinasse o tempo, que até agora 
não estava estabelecido» (i). Não estava estabe- 
lecido o tempo, nem a pratica, como vimos do 
Foral, e se podia inferir do systema e da compa- 
ração com os costumes de outros povos da índia 
em condições análogas (2). 

(i) Bandos, volume 1.°, pag. 78. 

(2) Os mirasdars (gancares) podiam redamar as suas ter- 
ras, em theoria, depois de qualquer lapso de tempo. West 
and Buhler, Digest, pag. 176. — «Em questões relativas a he- 



112 AS COMMUNIDADES DE GOA 

Ainda actualmente se observam outros factos 
que é indispensável ter presentes para formar uma 
concepção exacta da propriedade em terras de 
Goa. A fabricação de casas em terreno alheio é 
um costume geral que se encontra, sem excepção, 
em todas as aldeias. Com esse costume anda li- 
gada uma ordem muito especial de relações entre 
o proprietário (batcará) e o colono [manducar), sem 
analogia no nosso systema de direito. Os man- 
ducares aproveitam-se das ólas, e de outras folhas, 
que lhes servem de combustivel, não pagam renda, 
vigiam o palmar, e prestam serviços por um sa- 
lário em regra inferior ao do mercado. 

Em partilhas amigáveis é frequente deixar em 
commum, entre os herdeiros, uma jaqueira ou 
mangueira de mais estimação, ou adjudicál-a a um 
dos herdeiros, ficando outro com o terreno. É 
ainda mais notável, e também frequente, fazer-se 
a partilha de um palmar por arvores. Por exem- 
plo, preenche-se um quinhão com dez palmeiras que 
estam em diversos lugares do prédio, e dão-se ao 

ranças, dividas, propriedade e outras, os hindus não admit- 
tem a prescripção e a pessoa a quem compete o direito, ou 
os seus representantes, podem proceder contra a outra parte, 
ainda que a posse da propriedade em disputa lhe venha dos 
seus antepassados e seja de mais de um século. Pleitos d'esta 
natureza levantam- se frequentemente e causam a miséria de 
famílias e indivíduos.» Dubois, Description of the caracter, 
manners, and ciistoms of the people of índia, pag. 477. 



ESPÉCIES DE PROPRIEDADE Il3 

segundo quinhão as restantes palmeiras, entre- 
meadas com as outras dez, e que se reputaram 
de valor correspondente. Não se pensou na par- 
tilha do solo. 

A maior cultura de arroz faz-se com as chuvas 
da monção de sudoeste; as várzeas são semeadas 
em Maio e segadas em Setembro*, chama-se serô- 
dio. Ha outras várzeas com duas culturas, a de 
serôdio e a de vangâna, N'esta semeia-se em De- 
zembro e sega-se em Março, e carece de agua, 
ou das correntes naturaes, ou das lagoas que se 
enchem com as chuvas, trazidas em Outubro pe- 
los ventos de terra. Ora é mui frequente, sobre- 
tudo nas Novas Conquistas, pertencer a cultura 
de serôdio a um proprietário e a de vangâna a 
outro. Por um nemo ou accordão de 1 6 de Feve- 
reiro de 1809 (i), confirmado pelo Vice-Rei, acom- 
munidade de Telaulim aforou a cultura de vangâna 
de uma das suas várzeas a um proprietário que 
fez as obras necessárias para o represamento das 
aguas. A várzea continua, como até alH, no giro 

(1) Vi copia authentica d'este nemo, referida ao Memorial 
de Telaulim, fl. 109 a iii. A Circular da Secretaria Geral de 
14 de Dezembro de 1847 mandou que em lugar d'estes afora- 
mentos se fizessem arrendamentos a longo praso. A Circular 
náo se executou, ao menos nas Novas Conquistas. Repetiu-se 
posteriormente a prohibição. Vid. Collecção de Leis Peculia- 
res, part. I.*, pag. 336, e Portaria do Governo da Provincia 
de 17 de Março de 1869, art. 5.°, § 7.0 no Boletim n.o 28. 

AS COIUIUNIDADES DE GOA B 



114 ^^ COMMUNIDADES DE GOA 

da arrematação. É provável que seja esta uma 
das origens da differença de tocshimas na mes- 
ma communidade, como vimos na de Sirodá e 
acontece na de Curtorim e em outras. No pro- 
cesso de Condaím, a que em outro lugar me re- 
feri, attribue-se a desegualdade á influencia de po- 
derosos, mas também tenho ouvido explical-a 
como compensação de bemfeitorias. 

Ha outras várzeas, divididas por glebas, que cor- 
respondem a um certo numero de proprietários 
com posse alternada; supponhamos que são qua- 
tro as glebas; cada um dos quatro proprietários 
cultiva este anno uma d'ellas, para o anno a im- 
mediata, e assim por deante, até se completar a 
rotação. 

É difficil adaptar a factos d'esta ordem as leis 
portuguezas, feitas para um paiz mui diíFerente, 
mas da sua applicação resultam muitas outras 
questões e tenho de tocar em algumas. 

Tanto o governo como os tribunaes, umas ve- 
zes têm considerado immobiliarios os direitos de 
que ultimamente tratei (i), e outras vezes os têm 
considerado mobiliários. Não me parece na ver- 

(i) Todos estes interesses e todas as fontes de uma renda 
periódica (nibandha), são considerados segundo a lei hindu 
como immobiliarios. West and Buhler, Digesta pag. 1746772, 
nota d. Segundo a lei hindu e segundo a lei ingleza vigente 
as vatans podem partilhar-se na familia, mas não vender-se 
a estranhos. Ibid., pag. 178 e 745. 



DIREITOS ALIENÁVEIS 1 1 5 

dade que as haccas e formas, tributos de origem 
illicita, se possam classificar direitos inherentes á 
terra. Não conheço também factos que me deter- 
minem a pôr em outra classe as votonas estabele- 
cidas em remuneração de serviços, mas quanto 
ás tocshimas de qualquer espécie, estabelecido como 
está que representam um quinhão de renda da 
communidade, supponho que ficou egualmente 
estabelecido que constituem um direito immobi- 
liario. 

O Decreto com força de lei de i5 de Setembro 
de 1880, no art. 55, declarou inalienáveis os jonos 
pessoaes, e alienáveis todos os outros direitos, e 
o Decreto com força de lei de 1 5 de Dezembro 
do mesmo anno, revestiu da natureza de prazos 
phateusins as inamas e mocassós na posse dos 
dessais e declarou também alienáveis, partiveis e 
transmissiveis, todos os direitos dos dessais so-, 
bre as communidades. Parece-me que os decretos 
citados apenas sanccionaram, n'esta parte, o que 
já se fazia, e havia de ser mais diíBcil seguir outro 
caminho. Quanto ás communidades devemos po- 
rém ter em vista que todos aquelles direitos eram 
primitivamente inalienáveis, que esta era a base 
da instituição, e que, destruindo-a, se deu um 
grande passo para a divisão glebaria das terras. 

Na maior parte das aldeias em que as rendas 
se não dividem por vangôres e jonos, as tocshi- 
mas separadas da terra estam convertidas em 



Il6 AS COMMUNIDADES DE GOA 

acções que se transmittem por simples endosso 
e que dentro em pouco hão de ir parar ás mãos 
de um pequeno numero de capitalistas. Acabou 
pois ahi a segurança das pequenas fortunas, mas 
por outro lado a terra continua inalienável sob o 
regimen das licitações. O systema tem todos os 
inconvenientes da mão morta e nenhuma das van- 
tagens da propriedade livre. 

Tem-se discutido muito a quem pertence a pro- 
priedade das terras que as communidades pos- 
suem (i). Também os jurisconsultos da edade- 
média procuraram metter no quadro do Digesto as 
que a esse tempo ainda existiam pela Europa (2). 
E é possivel que ainda agora nos fosse preciso 
parar na questão, se o Decreto com força de lei 
de 15 de Setembro de 1880 não tivesse declarado 
a Fazenda Publica directa senhoria d'essas terras, 
e se modernas investigações scientificas nos não 
ensinassem que o direito de propriedade tem sof- 
frido muitas transformações, e que no regimen 
das communidades é dififerente do que nós enten- 
demos sob um regimen individualista. 

É de muito maior importância pratica discutir 
os limites da acção do Estado a respeito das com- 



( 1 ) Vid. Defensa dos direitos das gaucarias, pag. 68 e se- 
guintes. 

(2) De la Propriété et des ses formes primitiveSy par Mr. 

Emile de Laveleye. 



^»ÍPÍ^^""i^^^"PWSl" 



ACÇÃO DO ESTADO II7 

• 

munidades. Nove annos depois da Conquista, in- 
dependentemente de direitos de propriedade em 
que então ninguém pensava, no Regimento que 
se deu ao Tanadar de Goa (i) ordenou-se-lhe 
que percorresse a Ilha duas vezes por semana, e 
«em cada uma das ditas aldeias, que se chamam 
gãos (2) sabereis as terras que estão damnifica- 
das e maninhas, para logo as fazerdes roçar, e 
lavrar, e prantar n'ellas arvores, ou outra semen- 
te que virdes que pertencem á qualidade das ter- 
ras; e isso mesmo sabereis as terras a que é ne- 
cessário serem tapadas e valladas, para se logo 
tapar, para não entrar agua salgada n^ellas.» Es- 
tas attribuições foram novamente declaradas e 
desenvolvidas no Regimento de i623 (3). O es- 
crivão da Ilha tinha também no seu Regimento de 
1526 (4) percorrêl-a ao menos uma vez por mez 
e requerer ao Tanadar que as terras salgadas e 
damnificadas, e as hortas desaproveitadas fossem 
corrigidas e viessem em crescimento e melhoria. 
Estas disposições estavam em perfeita harmonia 

(i) Archivo Porl. Oriental, fas2. 5.^, parte 1.% doe. 19, 
pag. 35. 

(2) A comarca germânica (mark) chama-se também gô. 
Mr. Emile de-Laveleye, De la propriété et de ses formes pri- 
mitives. 

(3) Archivo Port. Oriental, fase. 5.°, parte i.a, doe. 45, 
pag. 66. 

(4) Ibid. doe. Sj (repetido sob n.^ 66) pag. 11 5. 



Il8 AS COMMUNIDADES DE GOA 

com as leis hindus, que não reconhecem o jus 
abutendi (i), mas foram cahindo em desuso, 
assim como foi tomando corpo a idéa do Estado 
se considerar senhorio directo das terras com- 
muns; contradicçao curiosa, sobretudo quando se 
presenceiam as usurpações que dia a dia vão cer- 
ceando essas terras, aos olhos de todos... O 
trabalho de annexação continua com perseve- 
rança e só poderia fazer-lhe rosto a fiscalisação 
rigorosa e independente do Estado. 

Na Carta de Tanadar e capitão da terra a João 
Machado, de 4 de Fevereiro de i5i5 (^2), El-Rei 
D. Manuel encarregou-o de cobrar os direitos, que 
era costume pagar ao senhor da terra, sem mu- 
dança alguma, e logo adeante chama tributos a 
esses direitos. Na Carta de 14 de Dezembro de 
iSig (3), explica o mesmo Rei D. Manuel que as 
terras de que fez mercê aos portuguezes casados 
de Goa, foram as confiscadas aos Mouros, e 
quanto ás outras «tel-as-hão os canarins, como 
sempre as tiveram, e se arrecadarão d'ellas nos- 
sos direitos.» Chamaram-lhes depois foros, quando 
se estabeleceu definitivamente o que as aldeias 
deviam contribuir para o Estado e é provável que 



(i) As terras devem ser tidas em condição de cultura 
pelo possuidor. West and Búhler, Digest, pag. 172, nota c. 

(2) Arch. Port. Oriental^ fase. 5.°, parte i.", doe. i. 

(3) Ibid. doe. 26, pag. 42. 



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FOROS E dízimos I I9 



O systema da cobrança tivesse determinado o no- 
me, porque em documentos d'aquelle século ve- 
mos que se aforavam alfandegas, rendas das urra- 
cas e outras contribuições, do mesmo modo que 
no Foral se aforaram aos gancares as respectivas 
aldeias (i). 

E assim como em Portugal as Ordenações re- 
conheciam várias espécies de aforamentos, tam- 
bém em Goa se encontram uns concedidos em 
vidas, outros por períodos mais ou menos lon- 
gos, e outros emfatiota para sempre (2). A co- 
brança era aforada aos gancares de três em três 
annos (3) e com o tempo veiu a ser esta a prin- 
cipal attribuição da Gamara Geral, acabando as 
renovações periódicas (4). De sorte que o Estado 
não tinha contas senão com a Gamara Geral e 
eram as communidades que cobravam as rendas 
publicas. Mas a par dos foros introduziram-se os 
dízimos, e no Goncilio Provincial de Goa de 1606, 



(i) Ar eh. Port. Oriental, fase. 5.°, parte i.% doe. 178, pag. 
3o6^; parte 3.% doe. 1007, eap. 3.°, pag. i373; fase. 3.**, parte 
1.*, doe. 123, pag. 393 e — Brados, pag. 12. 

(2) Doeumentos eitados na nota anterior e Ibid., fase. 2.^^ 
doe. 47, pag. i52; fase. 3.*^, parte 2.% pag. 5y5\ fase. 5.*^, parte 
3.a, doe. 1007, pag. 1372 e nota ao doe. 1008, pag. 1423. 

(3) Ibid. fase. 6.®, supplemento 2.°, doe. 146, pag. 392. 

(4) Os foros de Salsete, e provavelmente de Bardez, em 
1 566, eram arreeadados por um reeebedor, sem aforamento. 
Ibid fase. 5.^, parte 2.^, doe. 578, pag. 61 5. 



120 AS COMMUNIDADES DE GOA 

para destruir escrúpulos fundados no estabeleci- 
mento dos foros, decretou-se que os dízimos 
eram devidos a Deus e seus ministros (i), e vê-se 
de um documento de i562 que a Egreja estava 
então de posse de os cobrar, não só de christãos, 
como de gentios (2). Os dizimos passaram depois 
para o Estado e a cobrança era arrematada sem 
intervenção das communidades, o que foi uma 
' perturbação do systema fiscal mais adequado ás 
circumstancias do paiz. 

Deve porém ter-se em vista que sendo neces- 
sário exigir das communidades maiores contri- 
buições do que os foros estabelecidos, se tornava 
indispensável distribuir o encargo pelos prédios 
de cutubana, como se fez nas Velhas Conquistas 
e em Bicholim. Nas Novas Conquistas, aonde por 
emquanto se não estendeu a contribuição predial 
que substituiu os dizimos, ha largos tractos de 
terreno, na posse de grandes proprietários, que 
não contribuem para as despezas do Estado senão 
indirectamente, com os seus limitados foros, em- 
quanto a renda dos prédios communs está adju- 
dicada á Fazenda por largos annos, para satisfa- 
ção de foros que as communidades não podem 
solver. 

Os systemas de contribuição predial ado- 

(i) Archivo Port Oriental y fase. 4.°, pag. 252. 
(2) Ibid., fase. 5.0, parte 2. a, doe. 424, pag. 5 11. 




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122 AS COMMUNIDADES DE GOA 

quarta classe aquelles que estavam nos prédios 
havia menos de doze annos; a lei considerou-os 
meros arrendatários; mas em i885, a estes mes- 
mos foram conferidos importantes direitos, desde 
que tivessem occupado as terras durante três 
annos. Quando o proprietário lhes augmente a 
renda podem largal-as e exigir compensação ade- 
quada da perturbação e das bemfeitorias, haven- 
do-as. 

N'este systema a unidade fiscal é o zamindar, no 
de Madrasta é o rayot, ou cultivador, e denomi- 
na-se rayotwari. As terras estam divididas em 
classes conforme o imposto que se calcula e fixa 
de 3o em 3o annos. O rayot toma a área que lhe 
convém, e sobre essa área se faz todos os annos 
o lançamento. Elevou-se d*este modo o rayot á 
situação de proprietário; elle pode subarrendar, 
alienar, dividir e hypothecar — comtanto que pa- 
gue o imposto. Se tomar novas terras o imposto 
augmenta, se deixar parte, diminue em relação á 
área. 

O cadastro da índia Britannica pode conside- 
rar-se completo e é a base de todos os systemas 
fiscaes; o de Bombaim funda-se especialmente 
n'uma área de 20 acres para cima, segundo os 
districtos, que se acha fixada pelo governo como 
unidade. Chama-se-lhe campo (field) e sobre cada 
um dos campos está feito o lançamento do im- 
posto,, também aqui invariável durante trinta an- 



PROTECÇÃO DO RAYOT 123 

nos. Quem toma um campo pode alienai- o e 
hypothecál-o ; os seus direitos de propriedade 
são-lhe plenamente reconhecidos pela lei, só 
não pode dividil-o, e no fim de trinta annos 
está sujeito á revisão do lançamento. Em Ma- 
drasta a contribuição é calculada em relação 
á terra registada pelo rayot, em Bombaim 
em relação ao campo indivisivel. Em tudo o 
mais os systemas são essencialmente idênti- 
cos. 

E assim como em Bengala foi preciso proteger 
o rayot do zamindar, assim em Madrasta e Bom- 
baim se tornou necessário defendêl-o do usu- 
rário. São de 1879 e 1881 as duas notáveis leis 
em vigor no Sul da índia. Quanto ás dividas 
inferiores a 50 rupias, se os tribunaes entenderem 
que o devedor não pode pagar tudo, reduzem a 
quantia pedida, e dão-lhe quitação do resto. De- 
pende do prudente arbitrio dos juizes pôr o con- 
tracto nos termos que lhes parecerem razoáveis, 
independentemente do que está escripto, reduzir 
os juros, e fixar a somma que deve pagar-se. 
Quanto ás dividas de mais de 5o rupias, não só 
não podem penhorar-se os instrumentos de tra- 
balho, como também se não penhoram os im- 
moveis, a não ser no caso de hypotheca. E 
ainda no caso de hypotheca os tribunaes podem 
ordenar que o executado, durante um periodo 
nunca superior a 7 annos, cultive o campo por 



124 AS COMMUNIDADES DE GOA 

conta do credor, deduzido o necessário para a 
sua alimentação e da familia. No fim d'aquelle 
praso recebe quitação. O devedor pode também 
recorrer aos tribunaes para o declararem em es- 
tado de insolvência. Então os moveis, excluidos 
os instrumentos de trabalho, ficam sujeitos a 
venda. Os immoveis dividem-se em duas partes, 
uma é destinada para alimentação do insolvente 
e familia, e outra para ser administrada por 
conta dos credores. Os prédios urbanos occupa- 
dos pelos insolventes continuam na posse d'elles 
e são excluidos d^aquella divisão. A' tentativa 
de conciliação precede sempre as causas em 
juízo. 

Nas Provindas do Noroeste e Panjab o lança- 
mento faz-se sobre as communidades, onde as 
terras são possuidas em commum. N'essas aldeias 
a renda constitue um fundo, de que se tira a con- 
tribuição, e o resto divide-se pelos gancares, co- 
mo diriamos em Goa, calculando-se os seus 
quinhões por fracções da rupia ou da bigha^ uni- 
dade das medidas agricolas de extensão (i). Em 
outras aldeias as terras estam divididas, e o lan- 
çamento faz-se também separadamente, mas os 
gancares têm responsabilidade commum subsidiaria 
perante o governo ; e finalmente em outras, ha 
terras communs e divididas •, n'aquellas o lan- 

(i) Note-se a analogia com o cunio e ôrá de Goa. 



CONTRIBUIÇÃO PREDIAL NO NORTE DA ÍNDIA 125 

çamento é em globo e a responsabilidade com- 
mum, n'estas o lançamento é separado e cada 
proprietário responde apenas pelo que lhe to- 
ca (i). 



(i) The Imperial Gajetteer of índia, vol. 6.° (The IrMan 
EmpireJ, pag. 441 e seguintes, e nos outros volumes verb. Ben- 
gal, Madras, Bombay, North- Western Provinces e Punjab- 
— The Survey and Settlement Manual, compiled by order of 
the Government of Bombay. 



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V 



Regimen politico 



No limite de Curtorim, caminho da Raia, em 
Salsete, ha um tracto de terreno, ainda hoje pos- 
suido em commum, que segundo é tradição foi 
concedido pelos gancares de Curtorim aos ascen- 
dentes dos actuaes possuidores para guardarem a 
fronteira das incursões dos povos da Raia. A po- 
pulação das duas aldeias é homogénea. O facto 
caracterisa portanto de uma maneira notável as 
relações em que se achavam as communidades de 
Goa n'uma época que não pode ser muito remota. 
Cada aldeia tinha uma organisação independente 
e até um deus exclusivamente seu. O ferreiro, o 
alparqueiro, o mainato desfructavam terras, que os 
prendiam á communidade, e de pães a filhos iam 
prestando os serviços da sua profissão pelos pre- 
ços do costume; os ministros da religião e servi- 
dores do pagode enraizavam do mesmo modo. 



128 AS COMMUNIDADES DE GOA 

O Foral de Affonso Mexia, que a aldeia de 
Margão, no principio do século passado dizia ter 
sido feito inspirante Deo (i), e que é o documento 
de mais valor que possuímos para o estudo das 
communidades de Goa, suppõe que as terras se 
achavam já povoadas e aproveitadas pelos ganca- 
res ou visinhos quando «vieram senhores e sogiga- 
dores sobre elles aos quaes se obrigaram dar renda 
e foro por os deixarem em suas heranças e cos- 
tumes». 

Lê-se no Tombo Geral que Affonso d'Albuquer- 
que, em seguida á primeira conquista, arrendou por 
60:000 pardaus de ouro a cobrança dos impostos 
nas terras de Salsete, Bardez, Pondá e dependên- 
cias (2). Era o systema antigo dos dessais, meros 
arrendatários de impostos, como já vimos. Mas a 
determinação da quantia em globo, tornava as com- 
munidades solidarias e d'aqui provinha uma or- 
dem de relações, que veiu a ter muita importân- 
cia, principalmente nas Novas Conquistas. 

Se as circumstancias das aldeias se não modi- 
ficassem, e se os impostos não fossem alterados, 
a repartição uma vez feita serviria para sempre. 
Não podia ser assim. As guerras e penúria do 
Estado obrigavam a frequentes addicionaes que 
tinham de ser repartidos pelas aldeias. 

(i) Arch. T^ort. Oriental^ fase. 6.**, supplemento 2.°, doe. 97, 
pag. 278. 

(2) Bosq. Histórico das Communidades, parte 2.", pag. 2. 



ORGANISAÇAO DAS ALDEIAS I29 

O Viso Rey Vasco Fernandes César de Mene- 
zes, em um documento de 3 de Janeiro de 1717 (1), 
descrevia pela forma que se segue o estado de 
Salsete: «A comarca de Salsete se compõe de 
«sessenta e seis aldeias, umas grandes e outras 
«pequenas. . . e cada uma tem sua camará que a 
«governa, a que chamam gancaria, e seu districto 
«de terras que cultiva, e todas pagam a V. Ma- 
«gestade o foro que antigamente pagavam aos 
«Reis gentios que as possuiam quando os portu- 
«guezes as conquistaram: todas estas estamsubor- 
«dinadas a uma Gamara Geral, a qual não tem 
«bens nem terras algumas, e se compõe de vinte 
«e quatro homens gancares de doze aldeias, e cada 
«uma d'estas doze (que são as primeiras d'aquel- 
«las sessenta e seis) elege em cada anno dois dos 
«seus gancares, e fazem os vinte e quatro que 
«constituem a Gamara Geral: esta também tem 
«um escrivão e um saccador; é como procuradora 
«de todas as sessenta e seis; porém com tal juris- 
«dicção que tudo o que ella dispõe em ordem ao 
«que quer para despezas dos seus negócios ou 
«serviço do Estado, o distribue em todas as al- 
deias. . .)) 

Nas Ilhas e em Bardez era a mesma cousa e 
não podia haver systema fiscal mais simples. O 



(i) Arch. T*orL Oriental^ fase. 6.°, supp. 2.", doe. 80, pag. 
234. 

AS COMMUNIDADES DE GOA Q 



132 AS COMMUNIDADES DE GOA 

■ ■-■■-■■ ■■ ■ — — — »■ 

dencias de 23 de Dezembro de 1766 (i) são o pri- 
meiro diploma que contém disposições minuciosas 
sobre a administração de justiça. Consta d' esse 
documento que o antigo estylo do paiz consistia 
em entregar a árbitros as questões civis e crimi- 
naes; n^estas era o parpotcar, magistrado fiscal, 
quem os nomeava, nas outras competia ás partes 
a nomeação. Em ambos os casos havia recurso 
para o Rei. A Carta Regia de 16 de Janeiro de 
1774 explicava de modo um pouco difFerente os 
usos e costumes. As acções eiveis ou eram deci- 
didas pelos gancares da aldeia, ou pelas pessoas 
que tinham especial conhecimento dos factos con- 
trovertidos e em quem as partes se louvavam. As 
questões criminaes de pequena importância se- 
guiam a mesma regra e os crimes atrozes, como 
sedição, homicidio voluntário, roubo, eram julga- 
dos em junta por gancares e dessais. Fica assim 
claro o que em vista do primeiro diploma citado 
mal podia comprehender-se — a distincção entre 
questões civis e criminaes segundo os usos e cos- 
tumes. 

Deante de um crime atroz, que abalasse a cons- 
tituição social, as communidades levantavam-se e 
pelos seus órgãos — gancares e dessais, puniam 
o delinquente, «fazem executar immediatamente 
nos réos a pena ultima» são as palavras da Carta 

(1) Collecção de Bandos, \P vol., áoz. 3, pag 3, e seguintes. 



COSTUME E LEI l33 



Regia. Fora d'estes casos a distincção não exis- 
tia. 

Os crimes menos graves eram punidos com 
«penas pecuniárias», do «modo ordinário», e na 
«sobredita forma» — a das acções eiveis. 

Por emquanto não encontrámos senão indicios 
de que os gancares e dessais de uma provincia 
se reuniam em junta para fazer justiça, mas o cos- 
tume é attestado pela Gamara Geral de Pondá, 
com referencia ao tempo do Rei de Sunda, na in- 
formação de 21 de Outubro de 1778 (i); dep^e- 
sente^ isto é, na época da informação, as partes 
nomeavam louvados. 

A representação dos povos de Bicholim, con- 
tida no Bando de i5 de Setembro de 1781 (2), dá 
a entender duas jurisdicções, a dos gancares da 
communidade, julgando como árbitros as ques- 
tões da aldeia, e a da Gamara Geral julgando do 
mesmo modo as da provincia. É muito provável 
que as questões da provincia, a que os povos se 
referiam, fossem os crimes atrozes; não só os at- 
tentados, de que falia a Garta Regia de 15 de Ja- 
neiro, mas todos os que afifectavam egualmente a 
casta, religião e costumes. 

Não podia haver differenças a este respeito. A 
esphera da lei, determinada pela sancção, vae-se 

(i) Collecçâo de Bandos, vol. i.o, pag. 33 nota. 
(2) Ibid. pag. 28, supplicas i3.« e i5.* 



134 AS COMMUNIDADES DE GOA 

modificando constantemente. Por um lado novas 
condições sociaes criam relações jurídicas, que 
em outro tempo não podiam existir, e por outro 
lado um grande numero de preceitos oblitera-se, 
ou vae passando para a esphera moral e para o 
dominio da hygiene. Os costumes hindus, assim 
como os livros sagrados, abrangiam no mesmo 
systema religioso toda a conducta dos homens 
entre si e para com Deus. A separação d'essas 
relações e a concepção de lei que d'ahi resultou 
é um facto estranho áquella sociedade. 

Lê-se com effeito no art. 45 dos Usos e Costu- 
mes codificados em 1824: «Os louvados para as 
decisões judiciaes devem ser eleitos do corpo da 
Gamara. As decisões de objectos graves, ou seja 
a respeito das castas, sobre os Pagodes, sobre a 
sua Mazania, e outras matérias de maior ponde- 
ração, a Gamara Geral é que deve decidir, e a ella 
se devem commetter estas decisões». 

Este artigo não chegou a ser posto em vigor. 
A primeira parte foi sempre contestada e afinal 
tinha prevalecido que os louvados podiam ser es- 
colhidos fora do corpo da Gamara. Da sogunda 
apenas continuou a acceitar-se, como até alli, a 
competência das Gamaras Geraes para o julga- 
mento de crimes. Foi o Regimento de Justiça de 
I de Dezembro de 1866 que poz termo a esta ju- 
risdicção. 

Temos assim deante de nós um facto interes- 



CAMARÁS GERAES l35 



santíssimo. As aldeias possuiam uma organisação 
própria, que as tornava independentes em tudo o 
que dizia respeito aos seus negócios internos; 
o antagonismo, de que fallei, era um elemento 
caracteristico da separação que existia de umas 
para as outras; mas vieram c senhores e sogi- 
gadores» sobre ellas, e as aldeias unem-se e 
formam confederações para o pagamento dos 
impostos e representação, isto é, defeza com- 
mum. 

Ha muitas razões para supppr que as attribuições 
judiciaes assumidas pelas Camarás das Novas 
Conquistas não eram justificadas pelos usos e 
costumes. Os primeiros documentos dos seus fo- 
ros e isenções não faliam de tal jurisdicção e nas 
Velhas Conquistas não apparecem vestigios d'ella. 
Ainda mais : a própria confederação parece ter 
sido organisada sob a influencia brahmanica. A Ca- 
mará Geral das Ilhas era composta de dezeseis 
vogaes nomeados por oito aldeias, a dois cada 
uma. Ora d'essas oito aldeias, quatro são de brah- 
manes, a saber: Azossim, Ellá, Gancim, e Neurá o 
Grande. A Camará de Salsete era composta de 
vinte e dois vogaes egualmente nomeados por onze 
aldeias, nove das quaes de brahmanes; só Betalba- 
tim e Colvá são de charadós. Os dezoito vogaes 
da Camará de Bardez eram nomeados do mesmo 
modo por nove aldeias, sete de brahmanes, Ca- 
langute de charadós e Parra de charadós e su- 



i 



l36 AS COMMUNIDADES DE GOA 

dras (i). A maioria das aldeias não tinha represen- 
tação própria e era a minoria brahmanica que pre- 
ponderava n'aquellas corporações. Isto nas Velhas 
Conquistas, porque nas Novas, exceptuados os 
Ranes e um ou outro dessai maratha de limitada 
influencia, tudo o mais estava nas mãos dos bra- 
hmanes. 

Qualquer que fosse a época da formação das 
Gamaras, as attribuições judiciaes de que ellas 
vieram a investir-se mostram a sua tendência ; e 
como as aldeias conservavam vida própria e inde- 
pendente, aquélle centro de federação era indis- 
pensavel para que os povos de Goa, sobre a base 
das instituições primitivas, podessem formar um 
agrupamento mais largo, capaz de defender-se e 
de subsistir como nação. 

E claro que as cousas não poderiam seguir esta 
marcha, desde que o paiz estivesse sugeito a um 
domínio estranho — que se não limitasse a cobrar 
impostos e tivesse um governo seu. Mas havia lá 
dentro obstáculos de outra natureza. 

«Ecce pauper remansit fiscus noster; divis Eccle- 
sia: divitiae nòstrae ad ecclesias sunt translatae», 
dizia Ghildeberto (2). Os processos foram idên- 
ticos na índia e na Europa. As doações aos pa- 

(i) O Gabinete Litterario das Fontainhas, Divisão e des- 
cripção das comarcas, vol. 2.° e 3.° 

(2) Ed. Laboulaye — Histoire du droit de propriétéfoncière 
en Occident^ pag. 293. 



DOACÇÕES ECCLESIASTICAS \3j 

godés favorecidas e protegidas (i) como d'este 
lado as doações ecclesiasticas, foram desmem- 
brando o dominio da communidade, crearam ao 
seu lado interesses distinctos e sobrecarrega- 
ram-nas de importantes ónus. 

Lê-se no Tombo GeraK feito por Francisco 
Paes em 1595, no titulo sobre a renda dos pagodes 
da Ilha de Goa e seus termos .aOs gancares mora- 
«dores nas aldeias d'esta ilha de Goa. e seus 
«termos, quando na sua antiguidade a vieram 
«grangear e povoar, das terras que grangearam 
«separaram em cada aldeia certas terras que 
«applicaram ao serviço dos seus deuses para do 
«rendimento d'ellas se fazerem as despezas dos 
«pagodes que adoravam, e dos servidores e mi- 
«nistros d'elles, as quaes terras ficaram desmem- 
«bradas de seus patrimónios, e dedicadas ao seu 
«culto, e como consagradas ao divino ficou a 
«possessão d'ellas com os brahmanes e gurous, 
«sacerdotes e ministros dos ditos pagodes, que 
«as arrendavam de per si e arrecadavam os rendi- 
«mentos e os despendiam no serviço de sua reli- 
gião» (2). 

São os namoxins e inamas, de que fallei no ca- 
pitulo antecedente, e que se estendiam por largos 
tractos da melhor terra. 

(i) West and Búhier, pag. 171, 192 e 197. 

(2) Arch. Port. Oriental, fase. 5.<>, parte i.«, pag. 170, nota 



l38 AS COMMUNIDADES DE GOA 

As depredações dos dessais tiveram resultados 
muito mais graves. Em Satary as communidades 
extinguiram-se e em Pernem conservaram o me- 
canismo necessário para a distribuição e cobrança 
dos foros, mas deixaram de ter a administração 
das terras. Os dessais usurparam tudo e a insti- 
tuição ia assumindo o caracter feudal quando o 
dominío portuguez foi implantado nas Novas Con- 
quistas. 

A Carta Regia de 1 5 de Janeiro de 1774 diz, 
como já vimos, que os crimes atrozes eram pu- 
nidos com a pena ultima, e os menos graves com 
penas pecuniárias em acções que se não distin- 
guiam das eiveis. Estas penas pecuniárias não 
podem portanto considerar-se senão como uma 
indemnisação que o lesado exigia do réo. Fóra 
isto, lê-se também nas Instrucções de 25 de Abril 
de 1771 (i) que as viuvas deshonestas eram ven- 
didas a favor da Fazenda Real. 

Não encontro nos nossos documentos antigos 
outras informações acerca do systema penal dos 
usos e costumes. A importância da expulsão da 
casta n'aquelle systema só foi reconhecida na co- 
dificação de i853 e ahi a excommunhão maior (thiag) 
apparece limitada aos que tiverem comido cousas 
prohibidas, ou com pessoas de casta inferior, ás 
mulheres adulteras e a quem communicar com o 

\\\ Collecção de Bandos, vol. i.o, pag. 9. 



EXCOMMUNHÃO I39 



excommungado. Este, accrescenta o art. ii8 do 
Cod., é reputado por morto, não tem direito a 
nenhum succorro das pessoas da sua classe e os 
parentes tomam nojo como se houvera fallecido. 
A excommunhão menor (bahishcrita) apenas im- 
pede temporariamente de communicar com as 
pessoas da casta e de assistir aos actos religiosos. 
Nem uma, nem outra, podia ser imposta sem previa 
justificação nos tribunaes, e sem que interviesse 
a assembleia da casta (ivarga) e o prelado (suatny). 

A doutrina do Código não pode considerar-se 
mera compilação dos usos e costumes. Para dar 
efifeitos civis á excommunhão introduziu-se o jul- 
gamento perante as justiças ordinárias, e a gra- 
vidade d'esses effeitos obrigou a limitar os casos 
em que a pena podia impôr-se. 

Não me consta que houvesse nunca doutrina 
assente a este respeito. A vacca é um animal 
sagrado na religião hindu; os povos de Bicholim, 
quando encorporados no dominio portuguez, en- 
tre outras garantias politicas e religiosas, pedi- 
ram que fosse prohibido matal-as (i); tocar na 
carne de vacca, comêl-a, seria para o brahmane 
um crime mais griave do que a morte de um su- 
dra. D'este facto não deve porém concluir-se que 
tocar em qualquer alimento prohibido importe 
excommunhão maior. 



(i) Collecção de Bandos, vol. i.o, pag. 29. 






140 AS COMMUNIDADES DE GOA 

O adultério da mulher também carece de qua- 
lificação. Já vimos em outro lugar a pequena im- 
portância que se lhe dá quando é com pessoa da 
mesma casta. Na representação dos povos de Bi- 
cholim, ainda agora citada, a par da prohibição 
de matar vaccas, pedia-se que fossem perdoados 
os adultérios; «não querendo ou perdoando o ma- 
rido, concedida» respondia o Governador. 

A casta é uma esphera social e tudo o que of- 
fender a sua disciplina ou atacar os seus funda- 
mentos, pode dar motivo á excommunhão. 

Um dos traços mais delicados nas investigações 
de Sumner Maine é aquelle em que o venerando 

sábio esboça com a sua mão de mestre a mudan- 

» 

ça de natureza dos usos e costumes, na índia, ao 
contacto dos tribunaes inglezes. Estillado da tra- 
dição oral, o costume perde a maleabilidade que 
o accommodava aos diíFerentes casos nas decisões 
do conselho da aldeia, fixa-se, converte-se em 
lei (i). 

Era inevitável a transformação. Mas em Goa 
fez-se directamente e a auctoridade que a decre- 
tou podia cortar a direito porque legislava. 

O julgamento por árbitros, ou jurados, na lingua- 
gem moderna, era o estylo geral do paiz nas No- 
vas Conquistas, e nos districtos estrangeiros em 
roda de Goa ainda algumas vezes se congrega o 

(i) Village communities, pag. 71. 



A PROVA DO FERRO EM BRAZA I4I 

paiichayaty originariamente um tribunal de cinco 
gancares, quando é licito recorrer a árbitros para 
a decisão dos pleitos. Sob o domínio de Bijapur, 
nas questões de heranças de propriedade, em que 
o governo era parte, a assembleia do panchayat 
compunha-se em regra de i5 pessoas, dois terços 
mussulmanos e um terço hindu, ao que parece (i). 

O Foral de Affonso Mexia faz referencia a ou- 
tra forma importante de julgar: aSerá dado jura- 
mento ao possuidor da herança que declare por 
elle o que parecer que cumpre, e convém para a 
verdade ser sabida, e sobre tal caso e outros si- 
milhantes jurarão em um pagode que se chama 
u:[ó, » 

Ainda hoje é frequente o desafio para esta prova 
solemne, e tenho noticia de dois casos, em que 
os depoentes, ambos arguidos de furto, fugiram 
deante do ferro em braza sobre que tinham de jurar, 
no Pagode, sendo logo havidos por confessos na 
opinião dos que assistiam. 

Em Kittur, districto de Belgão, encontrou-se, 
gravada em pedra, uma inscripção curiosa. É de 
1188 ou 1189. Tinha-se levantado questão por 
causa de uma terra entre os ministros (achárya) 
de dois deuses, e as partes concordaram em sujei- 
tar-se á prova do ferro do arado, em braza {pha- 
ladip/a). Em um dia do mez Ashadh (Junho a Ju- 

(i) History of the Mahrattas, vol. i.o, pag. 67, nota. 




iram com os prin- 
sagode de Malli- 
1 pertencia ao seu 
utro, agarrando a 

que a terra per- 
' dia seguinte os 

que tinha jurado 
sm nenhum signal 
pertencia ao deus 

usos e costu- 
^ os a'iminosos de 
íem na presença 
c lavados e purga- 
6g «lunidade da aldeia 
•ratica já estabele- 

Fo vimos, que as pe- 
tança. Os gancares 
Ssem, somente ha- 
gem nas fazendas e 
•filhos e herdeiros. 
)s filhos nasci- 
t caso de excommu- 
Dsta, e não podiam 

r(2). 

^idençy, vol. sxi (Bel- 



ASSEMBLEIAS DE CANGARES 148 

Cada aldeia tinha uma organisação indepen- 
dente e em outras terras da índia chamavam-se 
bard kalúte^ ou doze quinhoeiros, as pessoas que 
hereditariamente exerciam os cargos e misteres 
da communidade. Esses quinhoeirosy de uma parte 
do rendimento commum, eram, na maioria dos ca- 
sos, o patél^ responsável pelos impostos e chefe 
de policia, o culcormim ou escrivão, o carpinteiro, 
o ferreiro, o alparqueiro, o oleiro, o barbeiro, o 
mainato, o astrólogo, o gurou^ que os christãos 
chamam feiticeiro, o ourives, que verificava a qua- 
lidade dos metacs, e o mhar ou vigia (i). 

Nas communidades mais ricas de Goa só o pes- 
soal dos pagodes comprehendia muitos outros 
servidores (2); do que não ha vestigio algum é da 
entidade patél. As assembleias dos gancares não 
tinham chefe. Reuniam-se no pagode, ou debaixo 
das arvores que o cercavam, e ahi resolviam os 
negócios públicos, tumultuariamente. 

É lenda que em Dramapur, de Salsete, as con- 
tas se faziam com seixos; tomaram por isso um 
brahmane, e succedeu-lhes o que nas Novas Con- 
quistas se tornou um facto geral. Os culcornins 
apropriavam-se dos vangores, e iam constituindo 

(i) Colonel Etheridge, Narrative, pag. 38,nota. — Gaifetteer 
oj the Bombay T^residency, vol. xxii (Dharwar), pag. 446, 
vol. X (Ratnagiri), pag. 222 e nota 2.» 

(2) Arck. T^ort. Oriental, fase. 5.°, parte 2.*;* doe. 610, pag. 
645 e doe. 747, pag. SSg. 



144 AS COMMUNIDADES DE GOA 



uma aristocracia, emquanto os antigos gancares 
passavam á condição de rayots. 

«Gancaria é o ajuntamento de todos os ganca- 
res de uma aldeia, ao menos de uma pessoa de 
cada vangôr», explicava o Oriente Conquistado (i). 
«Vangôres são as famílias vogaes, que têm voto 
na gancaria": e são tantos estes vangôres quantos 
foram antigamente os primeiros fundadores de 
cada uma das aldeias. A jurisdicção d'estas gan- 
carias é em ordem á cultura das terras, satisfação 
e segurança dos foros. E quando se ajuntam em 
camará a tratar algum negocio, se um só diz — 
7iacá — isto é, não quero, ainda que todos os mais 
sejam de contrario voto, prevalece o nacá, des- 
faz-se o congresso e nada se consegue.» 

O Padre Mestre referia-se ao que, no seu tempo, 
se praticava em Margão, sob os olhos de auctori- 
dades superiores e estranhas á aldeia, que davam 
força ao veto de qualquer gancar, na supposição 
de ser aquelle o estylo da communidade. 

O numero de vangôres que deviam intervir, a 
edade de votar e o numero de votos, são questões 
que se foram fixando com grandes deficiências na 
passagem da tradição oral dos usos e costumes 
para as compilações escriptas. 

Diz o Foral de Aífonso Mexia que para a vali- 
dade das alienações de heranças era preciso que 

(i) Vol. I.**, conquista i.% div. 2.a, § 56. 



ASSEMBLEIAS DE CANGARES 145 

interviesse não só o petidedor mas todos os herdei- 
ros, e sendo algum menor, exigia-se que assignasse 
por elle qualquer pessoa da familia. É que uma 
das bases d'esta instituição — a herança inaliená- 
vel, ia-se modificando por influencia das circum- 
stancias que introduziram o regimen do contracto 
nas relações sociaes. Mas a noção de contracto im- 
portava a intervenção de todos os interessados. 
A respeito dos menores, a ficção consignada no 
Foral suppria a sua falta. 

Pode por isto dizer-se que a intervenção dos 
menores se considerasse necessária em todos os 
contractos? Havia communidades em que os gan- 
cares votavam desde que tivessem completado 
onze annos (i), e é possivel que uma inducção 
d'aquella natureza fosse a única origem do estylo 
assim fixado nas nossas compilações. Esses esty- 
los variavam de uma aldeia para outra, eram va- 
gos, e as assembleias que os definiam nasceram 
espontaneamente da necessidade de manter a or- 
dem, julgando e resolvendo os negócios que to- 
cavam a todos; não havia diplomas que limitas- 
sem os seus poderes. 

O Foral de AfFonso Mexia enumera as aldeias 
de Tissuary pelas suas preeminências; falia de gan- 
cares mores t principaes\ e nos últimos capitulos 

(t) Bosquejo Hist. das Communidades, mappas apag. 26 e 
seguintes. 

AS COMXUKIDADES DE GOA lO 



146 AS COMMUNIDADES DE GOA 



contem disposições que merecem attenção. Nas 
festas e ajuntamentos devia ofiferecer-se areca e 
betei (pan-supdri) ao principal gancar da aldeia e 
após elle aos outros, por graus. Nos assentos, os 
nomes dos gancares eram também escriptos se- 
gundo a mesma precedência. «Os bailadores e 
bailadeiras, que vierem festejar á aldeia, irão pri- 
meiro festejar a casa do principal gancar, e quando 
forem dois juntos em uma honra, ficará em peito 
dos bailadores ir a casa de qualquer que quize- 
rem, e a estes taes gancares juntos em uma honra 
se levará o betre, ou outra honra, quando houve- 
rem de a receber, estando juntos com os braços cru- 
zados, e o direito debaixo do esquerdo por tal que o 
que tomar por mais honra o que for na mão direita, 
possa o outro gancar dizer que o presente que 
tomou da mão esquerda precedia porque ia sobre 
a direita.» Vê-se do capitulo immediato que a al- 
deia podia vender estas honras quando não exis- 
tiam já de juro e herdade. Nas Ilhas não se podia 
começar a seifa sem que segasse a aldeia de Ta- 
leigão, e dentro de cada aldeia a lavra e a seifa 
eram abertas pelo gancar-mór. Trazer tocha, an- 
dor e sombreiro, dependia de licença régia ou do 
governador, salvo egualmente o juro e herdade; 
concedia-se de duas maneiras, á custa do Estado, 
no caso de serviços relevantes, ou á custa do 
agraciado; «e também se poderá dar tocha sem 
sombreiro, e sombreiro sem tocha, e andor, e cada 



HONRAS E CERIMONIAS I47 

cousa sobre si e tudo junto em cada uma das so- 
breditas maneiras também.» Termina por estas 
palavras a parte dispositiva do Foral. Frivolida- 
des, diriamos hoje, mas frivolidades que occupa- 
vam um grande lugar na politica d'aquelles po- 
vos (i), e que por isso se consignaram alli com a 
reverencia das garantias individuaes nas consti- 
tuições modernas. 

Lê-se em outro capitulo do mesmo documento 
que não estando presente algum gancar de Neurá, 
ao escrivão da Gamara das Ilhas competia dar o 
nemoy que era a voz de assentimento com que se 
encerravam as deliberações. Nas communidades, 
por menos nas communidades das Novas Conquis- 
tas, os culcornins foram assumindo a direcção das 
assembleias, ainda agora tumultuarias e ruidosas, 
como se diz que foram sempre. Mas os culcornins são 
posteriores ás migrações brahmanes; houve tempo 
em que tudo se passava oralmente; a ascendên- 
cia de certos vangôres e famílias, indicada pelos 
privilégios do Foral e pela tradição, devia ter sido, 
então e depois, um elemento de grande pêzo na 
gerência dps negócios públicos. 

Parece que em outras communidades da índia 
a escola entrava na organisação das aldeias (i) e 



(1) Herbert Spancer, Ceremonial Institutions. 
(i) Max-Muller — índia, what can it teach us? pag. 62, 
nota. 



148 AS COMMUNIDADES DE GOA 



em Goa a instrucção elementar esteve algum 
tempo a cargo d'ellas sob o domínio portuguez. 
Nas Novas Conquistas, encontra-se um grande 
numero de aldeias oneradas com haccas ou pen- 
sões para differentes mothos^ casas religiosas sob 
a direcção dos dois prelados (suamys) de Smarts 
e Vaishnavas. N'essas casas, hoje em decadência, 
apenas se ensina a. recitar alguns textos dos Ve- 
das repetidos nas cerimonias e ritos hindus. As 
primeiras letras da lingua maratha e as noções 
de arithmetica, que constituíam quasi todo o sa- 
ber das classes hindus, têm sido até ha pouco 
tempo professadas exclusivamente por mestres 
particulares, mantidos muitas vezes como pessoas 
da familia na companhia dos discípulos. Os estu- 
dos clássicos, se alguma vez floresceram no paiz, 
cahiram em completo abandono. 



VI 



Influencia portugueza 



«Aqui jáz Diogo Rodrigues o do Forte, capitão 
d'esta Fortaleza, o qual derrubou os pagodes 
d'estas terras. Falleceu a 21 de abril de 1677 an- 
nos.» O epitaphio do velho capitão da Fortaleza 
de Rachol, em Salsete, lavrado sobre a sua sepul- 
tura na egreja do lugar, resume em poucas pala- 
vras uma parte notável da historia da conversão. 

Conta o Oriente Conquistado que Diogo Rodri- 
gues, ou Fernandes (i), desobedecido pela com- 
munidade de Loutulim, lhe mandou lançar fogo ao 
pagode em 1667; a communidade recorreu aos 
tribunaes e o capitão foi condemnado a «levantar 
um templo aos Ídolos»; reedificar o pagode des- 
truido traduzia-se d'este modo na phrase do pie- 

(i) Parte 2», Conq. i.% Div. i.', §§ 16 e 17, e — Brados a 
favor das communidades, pag. 81, nota b. 



l5o AS COMMUNIDADES DE GOA 

doso escriptor. A sentença indecente, como elle lhe 
chama, não teve porém execução. O mais prová- 
vel é que nunca tivesse sido proferida porque a 
Provisão de 29 de Agosto de 1666, notificada á 
Gamara Geral de Salsete em 14 de Janeiro de 
1567, prohibia já que se edificassem novos pago- 
des e que os antigos fossem reparados sem licen- 
ça (i). Mas deixemos-lhe concluir a historia. O 
Vice-Rei D. Antão de Noronha disse a Diogo Fer- 
nandes que tornasse para Salsete e queimasse 
quantos pagodes podesse; o mais corria por sua 
conta. 

Também veiu a correr por conta de outro 
Vice-Rei, D. António de Noronha, que em 1 1 de 
Dezembro de 1672 lhe passou carta de aforamento 
de umas várzeas confiscadas aos pagodes de Cur- 
torim — attendendo aos seus quarenta e seis an- 
nos de serviço, vinte e sete n'aquellas partes da 
índia, em pelejas e cercos, na administração da 
justiça, prisão de malfeitores e conversão dos in- 
fiéis e gentios, a quem derrubara em Salsete 3oo 
pagodes e mesquitas (2). 

Este rigoi^ de miseiHcordia tinha principiado nas 
Ilhas em 1540, segundo o Tombo Geral de Fran- 
cisco Paes. Ha com efifeito uma Provisão de 30 



(1) Archivo T^ort, Oriental, fase. 5.*^, Parte 2 «, doe. 576, 
pag. 612. 

(2) Ibid. fase. 5.°, parte i.», pag. 171, nota ao doe. yS. 



A CONVERSÃO DOS INFIÉIS l5l 

de Junho de 1541 em que o Vedor da Fazenda 
Fernão Rodrigues de Castello Branco, governando 
na ausência de D. Estevão da Gama, fazia saber 
que Nosso Senhor se quizera lembrar d*aquella 
terra e gente, de tanto tempo sujeitas ao demó- 
nio, e houvera por seu serviço que os pagodes fos- 
sem derribados e desfeitos de todo — sem ficar 
nenhum em todas ellas (i). 

O intento da conversão dos infiéis tinha sido o 
que mais obrigara El-Rei a conquistar aquellas 
partes da índia, pensava D. Sebastião (2), e Ca- 
mões cantou as memorias gloriosas dos reis que 
foram dilatando a fé, o império; em primeiro lu- 
gar a fé, depois o império. Foi esta a essência da 
civilisação representada pelo dominio portuguez. 

Cerca de 1546 (3) mandou D. João III que se 
buscassem as casas de gentios suspeitas de terem 
Ídolos, prohibiu as festas gentílicas e pregadores 
brahmanes, e ainda em seu nome, em 1557, foram 
excluídos de empregos e serviços públicos todos 
os infiéis (4). A regência de D. Catharina princi- 
piou como era de esperar. Decretou que na falta 

(i) Archivo T^ort. Oriental, fase. 5.°, parte i.«, doe. yS pag. 
161. 

(2) Ibid. fase. 3.0 parte i.*, doe. i.opag. 2; fase. 5.®, parte 
2.a, doe. 714, pag. 770; parte 3.% doe. 8o3, pag. 967 e seguin- 
tes. 

(3) Ibid., fase. 5.**, parte i.*, doe. iii, pag. 223 

(4) Ibid., doe. igS, pag. 319. 



l52 AS COMMUNIDADES DE GOA 

de filhos varões as mulheres e filhas podessem 
herdar — fazendo-se christãs, e na sua, falta o pa- 
rente mais próximo que se fizesse christão; confir- 
mou a Carta de Francisco Barreto que excluía 
os infiéis de empregos e serviços do Estado; man- 
dou entregar os orphSos de pae, mãe e outros as- 
cendentes ao CoUegio de S. Paulo da Companhia 
de Jesus para serem baptisados, creados, e dou- 
trinados pelos Padres e encaminhados por elles ; 
confirmou os gentios convertidos e que viessem 
a converter-se nos privilégios e liberdades de mo- 
radores portuguezes, como já lhes tinha sido con- 
cedido por Francisco Barreto; prohibiu que se 
emprestasse a infiéis o dinheiro de orphaos e man- 
dou que fossem queimados e desfeitos todos os 
Ídolos e pagodes que ainda restassem. Todas es- 
tas providencias, e ainda outras menos importan- 
tes, são de 1659 (i). 

O Vice-Rei D. Constantino de Bragança, que 
então governava a índia, não se contentou com 
fazer cumpril-as rigorosamente. Havia menos de 
um anno que tinha tomado posse, e logo em 
Alvará de 27 de Julho de i5bg equiparou, para o 
efifeito da successão, as filhas de gentios, que se 
fizessem christãs, aos filhos varões. É ainda mais 



(1) Archivo T^ort. Oriental, fase. 5.°, parte i.% doe. 285 
e seguintes, pag. 38 1 e seguintes; e doe. igS a pag. 819; fase. 
6.°, supplemento i.®, doe. 883 a pag. 710. 



A CONVERSÃO DOS INFIÉIS l53 

notável a Provisão de 2 de Abril de i56o que 
mandou lançar fora de Goa os brahmanes com- 
prehendidos em trinta itens declarados n'um rol 
e que não fossem naturaes de Salsete ou Bardez, 
porque só a esses permittiu que vivessem nas suas 
aldeias. Aos que tivessem bens de raiz deu o 
praso d'um mez para os venderem, os mais deviam 
ir-se embora logo que a Provisão fosse apregoada, 
sob pena de captiveiro perpetuo nas galés e perda 
de toda a fazenda. A 8 de Junho do mesmo anno 
e sob a mesma pena mandou também que os ouri- 
ves da cidade e ilha de Goa, que tinham as mulhe- 
res, filhos e fazendas «da banda d'além», as fizes- 
sem recolher no praso de dez dias. É finalmente 
de D. Constantino a célebre Provisão de 30 de 
Junho de 1560 que prohibiu o sacrificio das viu- 
vas, satiy na fogueira onde os maridos eram inci- 
nerados; «sob pena» dizia a Provisão, «de qual- 
quer pessoa que a fizer queimar ou para isso der 
conselho ou favor de qualquer maneira, ora seja pa- 
rente datai mulher ique se queima, ora não, perder 
toda a sua fazenda, ametade para quem o accusar, 
e a outra ametade para as obras da casa do Apos- 
tolo S. Thomé, e ficar captivo do dito senhor (de 
El-Rei) para todo o sempre» (i). 

Não chegaram até nós documentos authenticos 

(i) Archivo ^ort. Oriental, fase. 5.°, parte i.», doe. 804, 
pag. 410; doe. 344, pag. 451; doe. 849, pag. 454; doe, 353, pag. 
458. 



l54 AS COMMUNIDADES DE GOA 

de todas as medidas que o serviço de Deus inspi- 
rou a D. Constantino; do effeito immediato d'el- 
las pode fazer-se idéa pela Provisão de 3 de De- 
zembro de i56i. Dizia o Conde de Redondo: «ha- 
vendo eu respeito a quando aqui cheguei achar 
esta ilha de Goa, e as outras ilhas a ella an- 
nexas muito despovoadas, e as aldeias perdidas, e 
as várzeas alagadas, e o rio entupir-se, e os gen- 
tios n'ellas moradores serem ausentes, e as não 
quererem vir povoar, por suas propriedades e fa- 
zendas serem dadas a outras pessoas por vitude 
de uma provisão que passou o Viso-Rei Dom 
Constantino, per que mandou que todos os gentios 
que eram idos fora d'esta terra por causa de di- 
zerem que os faziam christãos por força e que se 
não viessem dentro em certo tempo perdessem 
suas fazendas; e por eu ver o muito prejuizo que 
se d'isso seguia ao serviço d'El-Rei meu senhor 
e ao bem d'esta terra; com parecer do Arcebispo 
e de letrados, assi juristas como theologos, com 
que o pratiquei, e por assentarem ser a lei que 
n'isto fizera o dito Dom Constantino muito rigo- 
rosa e que se não devia guardar,* hei por bem e 
mando que a todo o infiel gentio que se tornar 
lhe entreguem sua fazenda, e a tenha e possua 
como d'antes fazia, e as pessoas que a tiverem, e 
a que for dada lh*a deixarão logo livre e desem- 
bargada, e se a tiverem comprada por alguns sol- 
dos, lhe serão tornadas a seus titulos, tendo pago 



A CONVERSÃO HOS IXFIEIS I^r> 

OS septimos na chanceUariau lhe serão também tor- 
nados só pelo traslado doesta provisão, que se re- 
gistará na dita chancellaría, e isto comtanto que os 
ditos gentios se tomem dentro em seis mezes pri- 
meiros seguintes, e as pessoas que assi tiverem 
as ditas fazendas^ e a que for feita doação d^ellas 
as deixarão livremente, como dito é^ e se tiverem 
feito algumas bemfeitorias que sejam mais que as 
novidades que receberam se irão ao Ouvidor Ge- 
ral, o qual verbalmente, sabida a verdade, o deter- 
minará como lhe parecer justiça (i)». 

A matéria havia sido praticada com o Arcebispo 
e theologos que tomavam parte, cada vez maior, 
nos negócios do Estado. A jerárchia ecclesiastica, 
os conventos, os jesuitas e finalmente a inquisi- 
ção constituiam, aqui e na índia, um poder colos- 
sal que foi crescendo sobre as ruinas do império 
portuguez, até as cobrir de todo. 

As ordens da Corte não tardaram a espertar o 
zelo do Conde de Redondo, que se apressou a 
mandar sahir da Ilha de Goa no praso de um mez 
todos os brahmanes comprehendidos nos roes de 
que ficaram encarregados o Arcebispo de Goa, 
Provincial da Companhia de Jesus, Vigário Ge- 
ral de S. Domingos, e Custodio de S. Francisco. 



(i) Archivo T^ort, Oriental, fase. 5.°, parte 2.% doe. Sgi, 
pag. 488. 



l56 AS COMMUNIDADES DE GOA 

A Carta de 27 de Novembro de i663 (i), a que 
me refiro, apenas exceptuava da proscripção os 
lavradores, que lavrassem por suas mãos, médi- 
cos, carpinteiros, ferreiros, botiqueiros e rendei- 
ros fiscaes — salvo sendo prejudiciaes á christan- 
dade, porque n'esse caso podiam também ser ex- 
pulsos. Isto sob pena de confisco e galés por toda 
a vida. 

Deve notar-se que se não tratava n'estes diplomas 
de uma classe da população hindu, unicamente; 
comprehendiam-se todas; os carpinteiros e ferrei- 
ros não podiam ser brahmanes. A própria carta 
do Conde de Redondo o explica no fim mandando 
expulsar todos os gentios de qualquer qualidade 
prejudiciaes á christandade. 

Os povos de Goa vieram a ficar por este modo 
nas mãos do clero; era na verdade ao Ouvidor 
Geral que competia pela referida Carta notificar 
os proscriptos, mas não parece provável que uma 
causa, identificada com a Egreja, e favorecida 
pela Corte acima de tudo o mais, encontrasse ob- 
stáculos de nenhuma natureza na auctoridade d'a- 
quelle magistrado. 

«Hei por bem que quando vos apontar algum 
ou alguns dos ditos infiéis, provejais n'isso com 
seu parecer» escrevia-se por ordem do Cardeal 

(i) Archivo Port. Oriental^ fase. 5.o, parte 2% doe. 472, 
pag. 543. 



A CONVERSÃO DOS INFIÉIS l5j 

D.' Henrique, em nome de D. Sebastião, no Re- 
gimento de D. Antão de Noronha, de 1666. Este 
parecer era o do Arcebispo que tinha pedido a 
expulsão dos infiéis das terras de Goa, que os 
culcornins fossem compellidos a vender os offi- 
cios a christãos, e que os gancares gentios não 
podessem entrar em camará com os christãos nas 
aldeias onde houvesse mais gancares christãos 
que gentios (i). 

O Vice-Rei entregou-se logo na viagem aos je- 
suitas. Praticou os exercicios de S. Ignacio du- 
rante vinte dias e acabou por uma confissão geral 
de toda a sua vida. Os santos propósitos inspira- 
dos pela penitencia fizeram d'elle o Apostolo de 
Salsete, diz o Oriente Conquistado. Já sabemos al- 
guma cousa a esse respeito. 

Foi no tempo de D. Antão de Noronha, em 1 667, 
que se reuniu em Goa o primeiro concilio. Pre- 
sidiu o Arcebispo D. Gaspar de Leão Pereira e 
assistiram o Bispo de Cochim, administrador de 
Moçambique, Bispo de Malacca por procurador, 
os superiores e prelados das Ordens de S. Do- 
mingos, S. Francisco, Companhia de Jesus, e ou- 
tros doutores e mestres na Santa Theologia, Câ- 
nones e Leis. 

Os seus decretos, sobre a conversão dos infiéis, 

(i) Archivo Port. Oriental, Fase. 5.°, Parte 2.% doe. 575, 
pag. 612. 



l58 AS COMMUNIDADES DE GOA 

foram quasi inteiramente confirmados pela Carta 
de Lei de 4 de Dezembro de ibôj^ passada pelo 
Vice-Rei em nome de D. Sebastião. Começou 
por ordenar que fizessem relações dos gentios da 
cidade de Goa, com excepção dos arrematantes 
das rendas fiscaes e dos physicos, para irem, to- 
dos os domingos, em grupos de cincoenta, ouvir 
doutrina durante uma hora aos conventos de 
S. Paulo, 'S. Domingos e S. Francisco. Mandou ex- 
pulsar das terras de Goa todos os cabeças da re- 
ligião profana, e destruir os pagodes, as arvores 
e qualquer outro lugar em que se fizesse culto 
diabólico; prohibiu as cerimonias, festas e roma- 
rias gentílicas e até as marcas que os gentios 
usam na testa e com que se distinguem as seitas. 
Os que eram casados com mais de un)a mulher 
foram obrigados a ficar com a primeira e a largar 
as outras. Se alguma pessoa casada se conver- 
tesse, o cônjuge infiel seria posto em deposito 
«para se saber sua determinação e se o conver- 
tido poderá casar.» Aos orphãos seria dado tutor 
christão. As mulheres casadas, as primeiras, úni- 
cas reconhecidas, que se convertessem tinham 
meação no casal. No arrendamento das várzeas 
os christãos preferiam aos gentios — tanto por 
tanto. Os recebedores de aldeia (saccadores) se- 
riam christãos. Os fieis não podiam morar com 
gentios, nem ter amizade e conversação com elles, 
nem empregál-os e dar-lhes agasalho de portas a 



A CONVERSÃO DOS INFIÉIS I Sq 

dentro, nem emprestar-lhes dinheiro e fazer com 
elles contractos de companhia. Declarou-os inha- 
beis para exercer cargos públicos. Os curas e 
priores poderiam multar os christãos que não 
fossem á missa e dar palmatoadas nos pobres. «E 
assi encomendo e mando aos mordomos das con- 
frarias do Santissimo Sacramento que apartem 
com suas varas os infiéis que estiverem pelas ruas 
por onde for o Santissimo Sacramento» (i). Che- 
gou até aqui o minucioso apostolado do Vice-Rei. 
Os resultados de tudo isto vêem-se no assento 
que está no principio do Tombo das terras dos pa- 
godes de Salsete: «Lembre que se não arrendaram 
as várzeas de vanganas das aldeias contheudas 
n'este tombo d'este anno presente de 69 por res- 
peito de a terra andar toda alevantada, e os gan- 
cares fugidos, e não haver quem nas quizesse ar- 
rendar, indo lá por três vezes para isso Ambrósio 
de Sousa, thesoureiro do rendimento das fazendas 
dos pagodes commigo escrivão, onde estivemos 
até que se passou a monsão em que haviam de 
arrendar as ditas várzeas de vanganas com man- 
dar deitar pregões pelas ditas aldeias, elle mesmo 
em pessoa commigo escrivão e o lingua Francisco 
Dias as corri todas sem nunca apparecer nenhum 
gancar nem escrivão para se arrendarem, salvo a 
aldeia de Cuncolim e a aldeia de Sancoale e Mor- 

(i) Archivo Port. Oriental, fas::. 4 o, pag. 68. 



ibO AS COMMUNIDADES DE GOA 

mugão e a aldeia de Isorsy e a aldeia Quelossim, 
que estas todas se arrendaram, como se verá no 
livro de arrendamento d'este anno; e assim se 
não arrendou as. várzeas da aldeia de Cortalim de 
uma novidade nem de outra pelos respeitos acima 
e estar despovoada e cheia de agua salgada; e 
bem assim da aldeia de Caláta que também se 
não arrendou por os gancares andarem fugidos 
por dividas que devem» (i). 

Que importa? Depois de um curto intervallo 
lúcido, em que D. Luiz de Athayde salvou a ín- 
dia, decretou-se em i573, que os gancares 4de' 
Salsete não fizessem camará, nem dessem nemOy 
sem serem presentes os gancares christãos; que 
nas aldeias onde houvesse mais gancares chris- 
tãos que gentios, estes não entrassem nas ganca- 
rias, e que os seus nomes se escrevessem depois 
dos christãos. Em 1674 prohibiu-se aos pandits e 
phfsicos e em iSyô a todos os gentios andarem 
na cidade de Goa a cavallo, em andor,- ou palan- 
quim, e trazerem sombreiro de peão.N'esse mesmo 
anno os que traziam rendas de El-Rei tiveram de 
as largar por ser contra os sagrados cânones, 
contra o Concilio Provincial e lei de Sua Alteza. 
Foram confiscadas as fazendas dos que se acha- 
vam nas terras de Goa, apesar de notificados para 



(i) Archivo Porl. Oriental, fase. 5.^, parte 2.% nota ao doe. 
391, pag. 490. 



A CONVERSÃO DOS INFIÉIS l6l 

sahir, e conferiu-se jurisdicção aos mordomos das 
confrarias para julgar até á quantia de três par- 
daus, e metter no Tronco por horas, dois e três 
dias, sem appellação nem aggravo; também se 
lhes deu competência para inquirir das idolatrias 
e gentilidades defezas. Resuscitou-se assim a Pro- 
visão de 20 de Junho de 1 562, do Conde de Redon- 
do. Mas este dava-lhes jurisdicção sobre fieis e 
gentios até á quantia de três tangas, emquanto 
António Moniz Barreto a limitou aos christãos (i). 
D'ahi a poucos annos estranhava D. Filippe I 
ao Vice-Rei D. Duarte de Menezes que o Estado 
ficasse com tantas necessidades e que em i586 
elle tivesse dispendido mais de i5o:ooo cruzados 
em mercês feitas a pessoas que as convertiam em 
abusos, delicias e maus costumes. Em ibgb dizia 
Francisco Paes no Tombo Geral que as terras de 
Salsete, das melhores de todo o Concan, pela 
abundância é salubridade, d'antes muito povoa- 
das, se achavam quebradas de moradores, sem 
haver quem as grangeasse, não só por causa das 
guerras, como por não sofFrerem que lhes quei- 
massem os pagodes e «tratar-se com elles, por 
muitas vias, de se converterem á nossa santa fé 



(i) Archivo Port. Oriental, fase. 5.o, parte 2.», documento 
768, pag. 891; doe. 773, pag. 899 e doe. 781, pag. 910; doe. 
775, pag. 90 ( ; doe. 776, pag. 902 ; doe. yyj^ pag. 903, e doe. 
425, pag. 5 12. 

AS COMMUNIDAÚES DE GOA I l 



102 AS COMMUNIDADES DE GOA 

catholica.» Quasi pela mesma época também a 
cidade se queixava a El-Rei das necessidades, 
em que ficava o Estado, de gente, dinheiro, e 
das mais cousas pertencentes ao exercicio mili- 
tar. Que a impossibilidade vinha de longe pela 
desordem com que se dispendia a fazenda real 
«passando sempre a despeza pela receita» (i). 

Que importa? «Tive mui particular contenta- 
mento de me escreverdes que a christandade d'es- 
sas partes vae crescendo com tanto augmento, 
que é o que por todas as vias e com todas as 
forças se deve procurar, dispondo-se todas as 
cousas que a isto tocarem de maneira que se 
possam ter grandes esperanças de em breve tem- 
po se reduzirem muitas mais gentes ao grémio 
da Santa Madre Egreja. . . pois esta é a princi- 
pal cousa com que se deve dar principio e fim 
a todas as mais de que se não pode tratar senão 
com este primeiro fundamento d'ellas e de to- 
das» escrevia D. Filippe II ao seu Viso-Rei Ma- 
thias d'Albuquerque em 1594. E no anno seguinte 
felicitava-o por estar aquella sementeira madu- 
ra (2). 

(i) Archivo l^ort. Oriental^ fase. 3.°, parte i.*, doe. 40, pag. 
136; fase. 5.0, parte 2.", nota ao doe. Sgi, pag. 489; fase. i.% 
parte 2.% doe. 6.°, pag. 82. 

(2) Ibid., fase. 3.<*, parte i.", doe. 140, pag. 420 e doe. 175, 
pag. 522. 



A CONVERSÃO DOS INFIÉIS l63 

Á cega obstinação da Corte, sustentada pelo 
predomínio do clero — o maior poder do Estado, 
era agora favorecida pelo interesse dos converti- 
dos. A própria cidade de Goa, cujo governo mu- 
nicipal continuava a andar em casados portugue- 
\esy levada na. corrente, fazia coro contra os 
infiéis. «Ha ordinariamente n'esta cidade», a carta 
é de 1600, «perto de vinte mil gentios, morado- 
res e forasteiros, gente inútil, e inimiga de nossa 
religião, que nenhum fructo fazem na terra, se- 
não muitos damnos e desordens, commettendo 
cada hora muitas onzenas e monopólios, com 
que nos encarecem as fazendas e mantimentos •, 
e vindo da terra firme com uma touca e cabaia, 
enriquecem em poucos dias, e outros fogem com 
muito dinheiro alheio^ que trazem entre mãos \ e 
posto que haja da parte dos prelados muita vigi- 
lância, não deixam de fazer suas cerimonias de 
idolatria, com que movem a muitos christãos no- 
vamente convertidos deixarem nossa fé pela con- 
versação mistica que têm comnosco. Pedimos a 
Vossa Magestade por reverencia de Deus e bem 
commum d'este Estado e da nossa religião chris- 
tã, nos mande uma provisão para podermos sem 
appellação nem aggravo desterrar os prejudiciaes, 
para nunca tornarem n'esta Ilha, nem nas terras 
de seu contorno, com pena de perdimento da vida 
e dos bens moveis e de raiz; de outra maneira 
não haverá proceder contra elles, porque são fa- 



164 AS COMMUNIDADES DE GOA 

• 

vorecidos dos Desembargadores, qus os consen- 
tem entrar e sahir em suas casas contra forma da 
provisão de Vossa Magestade» (i). Parece que 
não é só entre os hindus que os deuses interfe- 
rem para bem e para mal conforme os pedidos. 

O favor dos Desembargadores, de que falia a 
carta, é um dos grandes signaes do tempo. A 
justiça vendia-se publicamente e em 1602 foi pre- 
ciso que El-Rei mandasse embarcar para o Reino 
quasi toda a Relação e Ministros, alguns presos 
e com a fazenda sequestrada. Mas a Cidade quei- 
xava-se ainda dos que ficaram «por nossos pec- 
cados» e pedia que lhe mandasse quanto menos 
melhor (2). 

Os jesuitas «pessoas contra aâ quaes ninguém 
pode proceder» iam moderando também o rigor 
das leis, e sem embargo dos concilios e provi- 
sões davam licença aos gentios para ir á terra fir- 
me fazer as suas cerimonias. Cada nação, que 
era talvez a seita, tirava a sua licença e a Cidade 
mostrava-se escandalisada dos jesuitas lhes terem 
concedido licença por sete annos em razão de 



(i) Archivo ^Port, Oriental, fase. i.o, parte 2.% Carta que 
a cidade de Goa escreveu a Sua Magestade em 1600, doe. 6, 
pag. 82 

(2) Ibid., fase, 1.0, parte 2.% Carta 9.% pag., iii e 8.* pag. 
93 e seguintes, e fase. 5.®, parte 3.", nota ao doe. 1:064, a 
pag. i:5o5. 



os METHODOS l65 



uns tantos mil cruzados que pagavam á maneira 
de imposto (i). 

Da desmoralisação que ia pelos conventos dão- 
nos testemunho os numerosos documentos da 
época. Ferviam rixas de uns contra outros, insu- 
bordinações, intrigas de toda a ordem. E era tal 
a escuridão e o relaxamento qiíe os Franciscanos 
tiveram idéa de exterminar a lingua vernácula — 
por uma lei. Conseguiram effectivamente que o 
Conde de Alvor publicasse o Alvará de 27 de Ju- 
nho de 1684 ^}^^ terminava por assignar aos na- 
turaes o praso de três annos para fallarem no 
idioma portuguez, e d'elle somente usariam em 
seus tratos e contractos, e de nenhum modo da 
lingua da terra, sob pena de se proceder contra 
elles com a demonstração e severidade de casti- 
go que parecesse (2). 

Nas Instrucções do Vae dos Christãos feitas pelo 
padre Alexandre Valignano, visitador da provin- 
cia dos jesuitas na índia, e datadas de 1595, le- 
se no capitulo 6.°: «Quanto ao officio do Pae dos 
Christãos consiste principalmente em três cou- 
sas, a saber, a uma do que toca ás cousas da- 
conversão, a outra do que faz para ensino dos 
cathecumenos, seu provimento e bautismo, e a 

(i) Archivo Port. Oriental, fase. i.o, parte 2.", Carta 8.a, 
pag. 97. 
(2) Vid. Ensaio Histórico da lingua Concani, do Cons. 



I Rivara. 



l66 AS COMMUNIDADES DE GOA 

outra do amparo e remédio dos novamente con- 
vertidos. Quanto ao primeiro da conversão dos 
infleis, como ella n'estas partes da índia não seja 
commumente por pregação e doutrina, mas por 
outros meios justos como é, o lhe impedirem 
suas idolatrias, e de os castigar justamente por 
ellas, e lhes negar os favores que justamente se 
lhes podem negar, e os dar aos novamente con- 
vertidos, e de honrar, ajudar, amparar a estes 
para que os outros com isto se convertam, fará 
o Pae dos Christãos muito porque nenhum meio 
doestes se lhe passe, de que se não aproveite e ajude 
para a conversão dos infiéis, e porque quasi to- 
dos estes meios estão já approvados nos Concí- 
lios Provinciaes de Goa, e nas provisões, que os 
Reis de Portugal e seus Viso-Reis da índia têm 
passado em favor da christandade, trabalhará o 
Pae dos Christãos por ser muito versado em am- 
bas estas cousas e fará muito para que todas se 
cumpram e ponham em execução, pois a expe- 
riência tem mostrado quantos com isso se con- 
vertem» (i). 

A sementeira estava madura. As aldeias e Ca- 
mará Geral de Salsete, onde se diz haver já 70:000 
christãos em 1620 (2), allegavam agora que os 

(i) Archivo Port Oriental, fase. 5.©, parte 3.", doe. 1:022, 
paf?. 1:435. 
(i) Ensaio histórico da lingua concani, doe. i.°, pag. 20o. 



t^^m 



OS METHODOS 167 



gentios eram prejudiciaes á religião catholica e 
aos convertidos pelos induzirem a largar a santa 
fé; que sustentavam muitos pagodes na outra ban- 
da com dinheiro grangeado em Salsete; que os 
expulsassem e lhes adjudicassem a elles as fazen- 
das dos que eram reveis e perseveravam nas suas 
gentilidades. Em 1633, por occasião da visita do 
Conde de Linhares áquellas terras, mil gentios 
despejaram e três mil reduziram-se e receberam 
o sagrado baptismo (i). De Bardez, em Janeiro 
d'esse anno, também tinham ido a um baptismo 
geral, no Convento de S. Francisco, mais de 700 
gentios ; e esperava-se outro, para breve, com 
ajuda do Vice-Rei (2). 

Não era necessário pregar nem doutrinar. Por 
um lado, todo o favor aos convertidos: a Carta 
de 15 de Junho de 1557, de Francisco Barreto, 
confirmada pela rainha regente D. Catharina a 
23 de Março de i559 dava-lhes, como vimos, os 
privilégios e liberdades de moradores portugue- 
zes, e D. Filippe I mandou que elles fossem ad- 
mittidos a servir os officios e cargos públicos 
que os Portuguezes serviam, tendo partes e suf- 
ficiencia (3). Ainda mais, não podiam ser presos 

( 1 ) Archivo Port. Oriental, fase. 5.*^, parte 3.*, nota ao doe. 
1:008, pag. i:399 e seguintes. 

(2) Ensaio Histórico, doe. 8, pag. 221. 

(3) Archivo Port. Oriental, fase. 5.o, parte 3.», doe. 820, 
pag. 989, earta de 23 de Fevereiro de i582 ao V. R. Dom 



l68 AS COMMUNIDADES DE GOA 

por dividas inferiores a vinte pardaus (i) e ape- 
sar dos gentios terem pago dizimos algum tem- 
po (2), as régias Provisões de 22 de Setembro de 
1670 e de 6 de Março de 1571 escusavam do 
encargo os convertidos, por espaço de i5 an- 
nos (3). 

Por outro lado, todo o rigor de misericórdia 
para os infiéis. E o clero desmoralisado levava 
para a rua as suas dissensões, o Estado cahia em 
ruinas, e os inimigos levantavam-se ao pé da por- 
ta. O perigo já não vinha só do mar. Data de 
1683 a primeira invasão maratha. 

Não podia durar sempre aquella febre. A pro- 
hibição de casamentos gentilicos em terras de 
Goa foi revogada frequentes vezes, desde 161 3, e 
pouco tempo se observou á risca (4); os Ouvi- 
dores, a quem D. Filippe II deu sobre a matéria 
a jurisdicção de que andava investido o foro ec- 
clesiastico, descuidavam-se no conhecimento das 

Francisco Mascarenhas. A egualdade politica de christâos na- 
turaes, e reinóes ou descendentes, só se tornou eíFectiva de- 
pois do Alvará de 2 de Abril de 1761 e Carta Regia de i5 de 
Janeiro de 1774, que podem lêr-se na Legislação do Ultra- 
mar» 

(i) Archivo Port. Oriental, fase. 5.°, parte 2.», doe. 416, 
pag. 5o4, Carta de Lei de 4 de Abril de i562, passada pelo 
Conde de Redondo em nome de D. Sebastião. 

(2) Ibid., doe. 424, pag. 5 10. 

(3) lidb., doe. 648, pag. 733, e doe. 718, pag. 786. 

(4) Ibid., fase 6.°, parte i.% doe. 5 11, pag. 1200. 



REACÇÃO 169 



causas de gentios amancebados, ou que tinham 
duas mulheres, e dos que iam á terra firme a ro- 
marias e commettiam onzenas (i); e apesar dos 
protestos de christãos e jesuitas os rendeiros fis- 
caes continuavam a ser gentios (2). 

Isto eram apenas intermittencias. Só no prin- 
cipio do século passado é que se descobrem sym- 
ptomas positivos de reacção. Em i de Março de 
1704 escrevia D. Pedro II ao Vice-Rei Caetano 
de Mello e Castro: «Havendo visto o que me infor- 
mastes, como se vos ordenou, sobre a expulsão 
dos gentios, que vivem nas nossas terras e pra- 
ças d'esse Estado : Me pareceu que tudo o que 
dizeis sobre esta matéria é a pura verdade, e que 
seria absolutamente destruir o Estado, se d'elle 
se expulsassem os gentios, porque seria fechar a 
porta ao commercio, pois pela sua mão se in- 
troduz tudo nas nossas praças e alfandegas; po- 
rém no que toca a permittir-se-lhe haver pagodes, 
supposto se entenda que isto seria trazer a maior 
parte d'elles para as nossas terras, comtudo me 
pareceu impraticável este arbitrio por não dar- 
mos occasião a que por este meio se fomente os 
erros d'esta cega idolatria, permittindo que entre 



(i) Archivo Port. Oriental, fase. 6.**, parte i.^, doe. 388, 
pag. 1091, e doe. 892, pag. 1096. 

(2) Ibid. supplemento 2.°, doe. 6, pag. 11, doe. 12, pag. 21 
e 23. 



lyo AS COMMUNIDADES DE GOA 

nós usem do que se lhes negou desde o principio 
que se fundou essa cidade» (i). 

Foi mal informado El-Rei quando lhe disseram 
que desde a fundação da cidade de Goa se negara 
aos hindus a pratica dos seus ritos. Extermina- 
dos os mouros, a politica adoptada para com os 
gentios foi sempre de tolerância, até ao tempo 
em que o clero, á sombra de D. João III, ganhou 
e consolidou a influencia que veiu a ter nos ne- 
gócios do Estado. 

Mas o mais notável é que o Vice-Rei tivesse 
acceitado a idéa de se permittirem pagodes em 
terras portuguezas. 

Também por esta época se limitou um dos 
maiores vexames que se fazia áquelles povos. Or- 
denara a regente D. Catharina,emnomede D. Se- 
bastião, que os filhos de gentios que ficassem sem 
pae, mãe, avô, avó e outros ascendentes, e que 
não tivessem edade de entendimento, fossem en- 
tregues aos Padres da Companhia para ser ba- 
ptisados e doutrinados. Sem embargo das pala- 
vras serem estas, a lei applicava-se a todos os 
menores de quatorze annos que ficassem sem 
pae, embora tivessem mãe e outros ascendentes. 
D. Pedro II escreveu a Caetano de Mello e Cas- 
tro para se acabar com o abuso, ao que o Viso- 

(i) Archivo T*ort, Oriental, fase. 6.°, suppl. 2.0, doe. 49, 
pag. i56, e doe. 57, pag. 184. 



REACÇÃO 1 7 I 



Rei respondeu: «Farei dar inteiro cumprimento 
ao que. V. Magestade n'este particular ordena, 
dispondo se observe sem interpretação alguma a 
lei passada em o anno de 1556 a favor dos or- 
phãos gentios, que por mui justificadas razões re- 
conheço útil se não altere» (i). 

No próprio grémio do clero appareceu por me- 
nos uma vez quem reprovasse os abusos que se 
commettiam em Goa. Parece que nunca chegara 
a executar-se a Carta de Lei de 4 de Dezembro 
de 1667 na parte em que obrigava os gentios a 
ir á doutrina; mas em 171 5 o Provincial da Com- 
panhia de Jesus, combinado com o Pae dos Chris- 
tãos, alcançou ordem do cabido para se fazerem 
os roes e dispoz que todos os gentios da cidade, 
com suas famílias, fossem assistir á pregação do 
Evangelho; os gentios emigraram em massa para 
os paizes visinhos, e de Carwar os inglezes pro- 
punham-lhes partidos. A situação era muito cri- 
tica e o Vice-Rei tomou parecer dos Conselhei- 
ros, Ministros e Theologos. Os Conselheiros vo- 
taram todos porque se suspendesse o procedi- 
mento dos padres e se desse seguro aos fugiti- 

(i) Archivo Port. Oriental^ fase. 6.°, doe. 584, pag. i265 e 
2.° supplemento, doe. 48, pag. i55. É provável que antes de 
D. Catharina, já D. João III, ou Franeiseo Barreto em seu no- 
me, tivesse ordenado a mesma cousa em i556. Conf. fase. 5.®, 
parte 2.", doe. 523 a pag. 577 e fase. 6.°, supplemento 2.°, doe. 
12, pag. 46. 



172 AS COMMUNIDADES DE GOA 

VOS ; OS Ministros também, menos dois, «que se 
achavam devedores dos mesmos gentios», e d'en- 
tre os Theologos, o jesuita Manuel de Sá, depois 
Patriarcha eleito da Ethiopia, não só condemnou 
abertamente a imprudência dos outros padres, 
mas defendeu com eloquência os meios de suavi- 
dade e brandura, como mais adequados á índole 
da Egreja. «O meio que se deve applicar é o que 
manda Christo, o que ordena a Egreja : Euntes in 
mundum unwersum praedicate Evangelium omni 
a^eaturae.n E adeante dizia: «S. Francisco Xa- 
vier converteu tantas mil almas como lemos na 
historia da sua vida, assim aqui em Goa como em 
todas as mais partes; depois d'elle converteram 
muitas os que seguiram os seus passos e o seu zelo; 
mas sempre disputando e conversando com estes 
homens, como consta das nossas historias, e não 
arrastando-os por cafres, como dizem que agora 
succedeu, para se tirar o rol dos que haviam de 
vir á Doutrina» (i). 

Ao Vice-Rei Vasco Fernandes César de Menezes 
parecia justo que El-Rei mandasse ponderar sobre 
isto. Outro Vice-Rei, João de Saldanha da Gama, 
escrevia para a Corte em 19 de Dezembro de 1729 
que a falta de commercio e ruina do Estado pro- 
vinha em primeiro lugar do horror que os nego- 

(i) Archivo Port, Oriental, fascículo 6.*^, supp. 2.°, doe. 12, 
pag. 19 e seguintes. 



REACÇÃO 173 



ciantes, todos gentios e mouros, tinham ao pro- 
cedimento do Santo Officio. Elie não sabia o Re- 
gimento da Inquisição para conhecer das culpas 
de quem nunca fora catholico e via que pelo ex- 
cessivo numero d'aquelles presos estava despo- 
voada toda a província do Norte e perdida a 
admirável fabrica de Tanná, que então se come- 
çava a estabelecer em Bombaim. Era d'ahi que os 
inglezes levavam os camelões de seda e lã, todos 
os gorgorões, lenços de seda e picotilhos, que in- 
troduziam em Lisboa. Via mais que os com- 
missarios do Santo Officio eram muitos, commu- 
mente frades, e que não procediam bem, apesar 
de alguns serem depostos por sua ordem e de ou- 
tros serem castigados pelos Inquisidores (i). 

N'este tempo já um Vice-Rei se sentia com 
força de depor commissarios do Santo Officio. 

Tinha-lhes chegado a decrepitude senil; em 
1736 os Inquisidores occupavam-se a prohibir 
solemnemente que se cantassem vovóis^ que os 
christãos usassem de gaitas nos seus casamentos, 
que dessem presentes de fulas n'essas occasiões, 
que os noivos se untassem de açafrão ou de qual- 
quer outra cousa... e foram pedir ao Conde de 
Sandomil que confirmasse o Edital e os favorecesse 
com o auxilio do seu poderoso braço, — lisonja 
que as perdas do Norte e as desfeitas de um pi- 

(i) Ensaio histórico da lingua concani, doe. 5o, pag. 346. 



ipaBBRKi 



174 AS COMMUNIDADES DE GOA 



rata haviam de converter na mais pungente iro- 
nia. Mas o Vice-Rei encontrou uma opposição tal 
do Chanceller que apenas poude concorrer com 
expressões de agrado, louvando aquelle monu- 
mento todas as vezes que havia occasiao de se fa- 
lar d'elle na sua presença (i). 

A acquisição das Novas Conquistas determinou 
finalmente uma politica de tolerância, para que o 
espirito publico se achava preparado e que era 
indicada pelas imperiosas circumst anciãs da situa- 
ção de Goa. No Edital de 5 de Junho de 1763 
garantia o Conde da Ega aos Desssais, morado- 
res e povo de Pondá e seus ditrictos, todos os 
privilégios, isenções e immunidades que lhes man- 
tinha o Rei de Sunda. A liberdade religiosa ficava 
implicitamente reconhecida, mas a Camará Geral 
de Pondá representou sobre este negocio e o 
Vice-Rei fez então publicar o Bando de 6 de 
Agosto de 1763, que depois de reiterar aquellas 
garantias termina assim «e permitto aos morado- 
res d'aquellas provincias, que possam sem impe- 
dimento algum edificar de novo e. reedificar as 
obras que cada um quizer mandar fazer de todas 
as qualidades que forem.» O Conde da Ega rece- 
ava talvez escandalisar os ouvidos ecclesiasticos 



(i) Ensaio histórico da lingua concani, doe. Sg, pag. 368 e 
seguintes. 



NOVA POLITICA Ijb 



dizendo que os hindus podiam edificar e reedifi- 
car os seus templos. 

Era o que se lhes permittia com eíFeito e na 
Provisão de 26 de Abril de 1771 declarava o Mar- 
quez de Pombal que o Bando de 6 de Agosto, de- 
pois confirmado expressamente pela Carta Regia 
de i5 de Janeiro de 1774, devia entender-se sem- 
pre em sentido útil e favorável aos gentios, para 
os não perturbarem no uso dos seus ritos, na liber- 
dade das suas pessoas e na posse dos seus 
bens (i). 

Principiara uma nova época. O poderoso mi- 
nistro de D. José chamou-lhe restauração da ín- 
dia e assim foi na verdade, não tanto pelo notá- 
vel conjuncto de medidas com que pretendeu re- 
formar todos os serviços' d'aquelle Estado, como 
pela emancipação do espirito publico, agora livre 
de uma tutela que o opprimira durante mais de 
dois séculos. 

Tem de certo um lado grandioso essa politica 
que em tão longo periodo antepoz systematica- 
mente a conversão dos infiéis e a salvação das al- 
mas á própria conservação da republica. Foi o 
reinado de Deus. Mas o patriotismo, as virtudes 
cívicas, a intelligencia ficaram subordinadas áquelle 
grande fim; a religião absorvia tudo, e os desas- 

(1) Os diplomas ultimamente citados enContram-se na Col- 
lecção de Bandos. 



176 AS COMMUNIDADliS DE GOA 

tres do Estado seriam cada vez maiores, se não 
tirasse os olhos do céo, ainda a tempo. 

Uma das grandes enfermidades que debilitavam 
a índia no tempo do Marquez de Pombal eram 
as demandas, e elle acudiu-lhe energicamente e 
com aquella confiança, que era o segredo da sua 
força. Aboliu a Relação, «congresso de moços e 
verdes bacharéis», reduziu a administração da jus- 
tiça a um Ouvidor Geral e tres Juizes de Fora, e 
deu-lhes «um methodo novo para evitar pleitos e 
para abreviar aquelles que o abuso da introduc- 
ção forense tem feito inevitáveis» (1). 

Este methodo novo vem no Alvará de i5 de Ja- 
neiro de 1774 que regulou as attribuições dos 
referidos masgistrados e da Meza do Paço, e es- 
tabeleceu a forma do proceso civil e criminal. A 
experiência demonstrou em pouco tempo que o 
methodo era insuíficiente; a Relação foi restabe- 
lecida, e as cousas voltaram á antiga. N'este ponto 
não foi possivel illuminar os povos da índia con- 
tra as trevas da igfwrancia em que os tinha precipi- 
tado a maligfiidade dos tempos. 

A enfermidade era muito mais velha do que o 
abuso da introducção foreftse. O Regimento que 
D. João III deu á Relação de Goa, quando a fundou. 



(i) Instrucções com que El- Rei *Z). José I mandou passar 
ao Estado da índia o Governador e Capitão General e o Ar- 
cebispo ^Primaf do Oriente no anno de 1774, pag. 3. 



INSTINCTO DEMANDISTA I77 

é de 3 de Abril de 1544 e logo no segundo Regi- 
mento, de 22 de Março de 1548, se determinava 
que da gente da terra se não recebesse querela 
senão perante o Ouvidor Geral, em caso de morte 
ou aleijão, juramento falso e falsidade, por ser 
El-Rei informado que elles faziam prender e que- 
relavam mui levemente, e uns gastavam suas fa- 
zendas, outros pereciam ao desamparo (i). 

Francisco Barreto, em i555, entregou ao Pae 
dos Christãos as pequenas causas, provavelmente 
por ser grande o numero d'ellas, e na Provisão 
do Conde de Redondo para os mordomos julga- 
rem christãos e gentios até á quantia de três tan- 
gas, lê-se que todos eram muito inclinados a de- 
mandas (2). 

Depois, em i58o, deu-se aos christãos da terra 
um juiz privativo, a que chamaram Conservador, 
para julgar verbalmente as suas causas. Talvez 
em respeito ao Pae dos Christãos a medida cahiu 
no esquecimento e o Conservador só veiu a ser 
nomeado em 1682 pelo Vice-Rei Francisco de 
Távora, que diz serem as causas pela maior parte 
de pouca importância «e muitas vezes movidas 
por seus ódios e paixões». Que eram quasi infini- 
tas e se acabavam muito devagar porque as faziam 

( 1 ) Archivo Port. Oriental^ fase. 5.°, parte i .", doe. 79, pag. 
177 e doe. 95, pag. 206. 

(2) Ibid. doe. i56, pag. 281 e parte 2.% doe. 425, pag. 5 12. 

AS COMMUNIDADES DE GOA 12 



178 AS COMMUNIDADES DE GOA 

voltar atraz apresentando olas de vendas, com- 
pras, e contractos, que punham ao fumo fazendo-as 
de novas velhas, consta da Provisão do Vice-Rei 
Mathias d' Albuquerque de 3 1 de Julho de lõgS. 
E D. Jeronymo de Azevedo, outro Vice-Rei, en- 
tendia que era preciso pôr limite ás demandas 
d'aquella gente, que lhe parecia «terribel» (i). 

A Relação fazia as mesmas queixas e em 1670 
suscitou a observandia da lei que limitava a quatro 
os casos de querela com prisão, porque os natu- 
raes se destruíam «com accusações e denuncias, le- 
vados dos seus ódios e malquerenças». Outro as- 
sento de 1693, para refrear o excessivo numero de 
petições, exigia que todas fossem assignadas por 
advogado da casa e estabelecia multas para os que 
requeressem a juiz incompetente ou com dolo e 
malicia (2). 

A tendência demandista vinha de muito longe, 
existe ainda hoje, e encontra-se por toda a índia. 

O instincto de luctar, que é o nervo dos parti- 
dos politicos na Europa, não podia ter n'aquelle 
paiz um derivativo mais fácil do que os tribunaes. 
A violência nem se conforma com um governo re- 
gular, nem diz com o caracter do povo de Goa. 

(i) Archivo Port. Oriental, fase. 5.°, parte 3.*, doe. 802, pag. 
966; nota ao doe. 1021, pag. 1436; doe. 997, pag. i323; nota 
ao doe. 915, pag. 11 53. 

(2) Archivo da Rei, de Goa, parte 2^, doe. 736, pag. 558 e 
doe. 858, pag. 688. 



ESTADO LEGAL DOS HINDUS I79 

Litiga-se por amor dos litígios, porque as rivali- 
dades de família, de aldeia, de casta, constituem 
muitas vezes um incentivo superior ao que nós cha- 
mámos — interesse, e também porque o regimen 
do contracto ainda não penetrou inteiramente aquella 
sociedade. É um paiz de costume. As relações 
creadas por uma promessa que foi acceite não se 
tornam effectívas n'um grande numero de casos 
senão pelo decreto que lhes interpõe a auctori- 
dade (i). 

O Vice-Rei Caetano de Mello e Castro, em uma 
carta de 1707, calculava a população de Salsete em 
3:ooo gentios e 100:000 christãos; adeBardez esta- 
ria na mesma proporção; nas aldeias de Goa eram 
raros os gentios, mas abundavam na cidade e 
parece que em toda a comarca não excediam 
12:000. Segundo este calculo a população gentílica 
andaria então reduzida a menos de 20:000 almas 
nas Velhas Conquistas (2). Qual era o seu estado 
legal? 

Tinha passado depressa a época de illustração 
e tolerância que produziu o Foral de Affonso Me- 
xia. Publicado 16 annos depois da conquista, 
quando Goa não era ainda a capital do Império 

(i) Conf. Ancient Law, chapt. ix — Village Communities, 
lect. III — Early Law and Custam, chapt. xi — Early History 
of Institutions, lect. x — ^Popular Government, essay I. 

(2) Achivo Port. Oriental, fasw. 6.0, supp. 2.0, doe. 67, pag. 
i85. 



l8o AS COMMUNIDADES DE GOA 

Portuguez no Oriente, aquelle primeiro código 

dos usos e costumes hindus representa um nota- 
bilissimo esforço e um grande passo no sentido 
da clara comprehensão de instituições, que deviam 
parecer tão estranhas, tão oppostas ás nossas. 
Nos dois longos séculos que se seguiram a popu- 
lação gentilica viveu, em regra, fora da lei, de ex- 
pedientes e subterfúgios. 

Os que nãò tinham filhos varões punham os 
seus cabedaes na terra^rme, as Novas Conquistas 
de agora, e passavam para lá em lhes doendo a ca- 
beça. Também faziam trespassações dolosas e usa- 
vam simular de convertidos para ficar na posse de 
heranças que de outro modo lhes escapariam. Isto 
consta de uma informação do Procurador da Co- 
roa e Fazenda encorporada no Alvará de 15 de 
Janeiro de 169 1, que lhes applicou as leis geraes 
do Reino em matéria de successões (i). 

Supponho que foram as leis da conversão, muito 
mais do que o allegado rigor do Foral, que os in- 
duziram a sollicitar o referido Alvará. O capitulo 
do Foral que chamava á successão a Fazenda Pu- 
blica na falta de filhos varões pode considerar-se 
restricto aos moveis, porque sendo as heranças 
misticas os bens de raiz passavam para os ascen- 
dentes e irmãos. Ora as heranças só muito exce- 



(i) Archivo Port, Oriental, fase. 6.<^, suppl. 2.0, nota ao doe. 
44, pag. i38. 



ESTADO LEGAL DOS HINDUS l8l 

pcionalmente deixariam de ser místicas. E na 
parte respectiva aos moveis já o Foral tinha soffrido 
modificações, em 1542 e 1544, a favor das filhas 
e mulheres, por se attender á situação em que fi- 
cavam, e também a que a Fazenda Publica rece- 
bia tão pouco proveito d'essas heranças que se 
El-Rei fosse informado «não o haveria por ser- 
viço de Deus, nem seu» (i). Da informação, a que 
me referi, consta que Sua Magestade não tirava 
utilidade alguma de taes successões. E se não ha- 
via proveito para a Fazenda d'El-Rei, também 
não podia haver grande prejuizo para os particu- 
lares. 

A questão era que o Alvará de 15 de Janeiro de 
1691, confirmado por D. Pedro II em 1695, a in- 
stancias dos gentios, não só revogava o costume 
antigo do Foral, mas tudo quanta antes se havia 
obset^vado, diz a Provisão Regia de 2 1 de Fevereiro 
de 1732. Livres portanto das leis da conversão 
n'esta matéria^ ser-lhes-ia mais fácil illudir as leis 
geraes, porque em regra não prestaram inventá- 
rios até ser posto em vigor o Código Civil, e po- 
diam amigavelmente fazer a partilha dos bens, ou 
continuar em sociedade (2). 



(i) Archivo Port. Oriental^ fase. 5.o, parte i', doe. yS, pag. 
171 e doe. 78, pag. 175. 

(2) Archivo ^ort. Oriental^ fase. 6.o,supp. 2.°, doe. i52, pag. 
418 e seguintes. Quanto a inventários vid. a Provisão do 



*l82 AS COMMUNIDADES DE GOA 

Veiu isto a ser causa de uma notável anomalia; 
os gentios das Novas Conquistas regulavam-se pelos 
seus usos e costumes, emquanto os das Velhas 
Conquistas se consideravam sujeitos ásleisgeraes; 
o Decreto de i6 de Dezembro de 1880 deu-lhes 
porém o mesmo estado legal, e hoje o Código 
Civil só tem para uns e outros as excepções mar- 
cadas no citado Decreto. 

Apesar do estabelecimento de egrejas e paro- 
chias desde os primeiros tempos da conquista, a 
aldeia continuou a ser a unidade administrativa 
até ás reformas liberaes. Os municípios, introdu- 
zidos pelo Marquez de Pombal emSalseteeBardez, 
levavam tempo a aclimar no meio das pequenas 
communas, que iam resistindo a tudo, e ao lado 
das Camarás Geraes, opprimidas sempre e mortas 
afinal por instituições exóticas. Um dos decretos 
de 7 de Dezembro de i836 creou em cada fregue- 
zia um juiz eleito e um juiz de paz; os Códigos 
Administrativos de 31 de Dezembro de 1836 e de 
18 de Março de 1842, foram postos em vigor na 
índia successivamente, e estas e outras leis impor- 
tavam uma organisação, em que as communidades 
não tinham lugar. 

Começaram a chamar-lhes associações agrícolas 



Cons. Ultramarino de 23 de Fevereiro de 1779 e o Aviso Ré- 
gio de 3o de Junho de 1 818, no Código dos usos e costumes, de 
Filippe Nery Xavier. 



■ 



LEIS MODERNAS l83 



simplesmente, e é assim que as define o Decreto 
de 15 de Setembro de 1880, ultimo assento da 
matéria (i). As suas attribuições ficaram reduzidas 
com efifeito á exploração agrícola da terra, por meio 
dos antigos arrendamentos, e sob a direcção de um 
mecanismo administrativo que o Estado fiscalisa e 
superintende. 

A cobrança dos foros, istç é, dos primeiros im- 
postos lançados sobre aterra, continua egualmente 
a cargo da communidade. 



(i) O Decreto de i5 de Setembro tem tido dois regulamen- 
tos. O segundo, actualmente em vigor, foi approvado pela Por- 
taria do Governo da Provincia, n.® Sgi, de 3o de Outubro de 
1886. 



EXCERPTOS 



DO 



Inquérito feito pelo auctor, em Março de 1889, relativamente 
a cada uma das commxmidades dos concelhos de Ca- 
nácona, Quepem, Sanguem, Sanquelim e Pondá, nas 
Novas Conquistas de Goa. 



COMMUNIDADE DE CÓLLA (CanÁCONA) 

Tem 9 vangôres. Os primeiros 7 estam actualmente na 
posse de uma família de brahmanes vaishnavas, oriundos de 
Garambolim das Ilhas, que se intitulam — dessais ; o 8.® per- 
tence a outra família de brahmanes, oriundos de Loutulím e 
de appellído Concares; o 9.** é dos culcorníns, brahmanes 
smarts. 

De todas as communídades de Canácona é esta a que traz 
mais várzeas no giro da arrematação. Arrendam-se triennal- 
mente. Também ha cumerís. 

As famílias dos deullis, velipos e pernis, que são pessoas 
ligadas ao culto, assim como dos mainatos, ferreiros, e barbei- 
ros, possuem namoxins, isto é, terras sem foro ; as famílias 
dos dessais recebem dois terços d'uma pensão fixa, e a dos 
culcorníns um terço da mesma pensão, a titulo de — voton. 

Pagos os foros do Estado e a voton, as sobras do rendi- 
mento liquido dívidem-se em nove partes eguaes, sete para os 
dessais, uma para os Concares, e outra para os culcorníns. 

O gram-deu é Vetai, mas os Concares só recentemente o 
adoptaram; tinham continuado no culto de Ramnath, gram-deu 



EXCERPTOS DO INQUÉRITO 187 

communidades. Os vangôres pertencem hoje a dessais e cul- 
cornins. Aquelles tinham o dessaiado da provinda e dividiram 
entre si as communidadas. Dizem-se oriundos de Naroá, em Bi- 
cholim, e lavram elles próprios a terra. 

Antes do dominio portuguez um grupo de oito aldeias, 
mahal, era responsável pelos foros devidos ao Rei de Sunda. 
O mahal era uma divisão fiscal. 

Os culcornins de Bally são todos brahmanes smarts, dp 
Cortalim ou Quelossim. 

E geral o culto do pimpol. Santéry e Malikarjuna são os 
deuses mais frequentes. 

COMMUNIDADE DE SHELVONA (qUEPEM) 

Esta communidade tem três vangôres. Dois são de dessais ; 
usam do appellido Naique, dizem-se oriundos de Salsete, e 
pertencem á casta sudra. Parecem-se com os bhandarís das 
Velhas Conquistas. Os culcornins, brahmanes smarts, consti- 
tuem o terceiro vangôr. 

Santéry é gram-devi. 

Têm voton os dessais e pagode da aldeia. 

As terras ou são de foro limitado, cutubana, ou de foro 
corrente. Também ha três várzeas no giro da arrematação, 
mas o seu rendimento é pouco importante. A principal fonte 
de receita vem dos foros limitados. 

O saldo divide-se por 36o ôrás, determinados pelos prédios 
de foro corrente, a que andam annexos. Estes prédios podem 
vender- se e dividir-se. Vendendo-se um terreno, vende-se tam- 
bém o ôrá, ou fracção, que anda annexo á gleba, mas o ôrá 
não pode vender- se separado da gleba. 

Communidade de Vaddy (Pondá) 

Tem 2 vangôres, um de gancares curumbins (gaudés) e ou- 
tro de culcornins smarts. 



l88 AS COMMUNIDADES DE GOA 

Gram-devi é Lakshitni Narana, e os bhotos são smarts. 

Os dessais de Raçaim recebem da communidade 194 rupias 
a titulo de foros de mocassó. Recebem formas os dessais de 
Pondá e a familia dos Cassumbós, antigos escrivães dos mes- 
mos dessais. Têm hacca o pagode e os gancares. 

A receita provém de bharoda e cumerís. Ha sempre deficit 
que se divide em 16 partes e meia, 8 pelos gancares (i.** van- 
gor) e 8 e meia pelos culcornins (2.0 vangor). 

Se ha sempre deficit porque não entregam os interessados 
á Gamara Agraria a communidade ? É porque os dois vangô- 
res possuem uma várzea, que se não arrenda, nem se acha 
dividida. Os culcornins dão 5o candis de bate; os gaudés dão 
40 e fazem todo o trabalho. Só os culcornins é que têm veh- 
dido as suas tocshimas. É sobre esta várzea que recae por- 
tanto o supposto dificit. As sobras dividem-se na proporção 
já indicada, 8 partes para o i.® vangor e 8 partes e meia para 
o 2.0 vangor. 

Communidade de OrgÃo (Pondá) 

Tem 4 vangôres, os três primeiros de gancares marathas, 
exemplo d'um nome: Sodú Luximon Naique. Todos usam do 
appellido Naique e não casam entre si. O 4.** vangor é de cul- 
cornins smarts. 

Ha curumbins. Exemplo d'um nome: Babú Lolló Gauró 
(gaudé). 

Shant Durgá é gram-devi. O bhoto é Ghit-pavan. Parece 
que o maior numero de bhotos, em Pondá, pertence á tribu 
dos Podhyés. Seguem -se-lhes os Ghit-pavans, Karadés, Des- 
hasts, Smarts e Vaishnavas. 

A receita da communidade provém de foros limitados (cu- 
tubana), arrematação triennal das várzeas communs e bha- 
roda. 

A despeza consiste nos foros da Fazenda; formas de qua- 
tro ramos d'uma familia dos Dessais e haccas de diíferentes 
pagodes e mhotos. 



EXCERPTOS DO INQUÉRITO 189 

Têm namoxins as famílias do ferreiro, mainato, barbeiro, 
deuli e mhar, 

O saldo dividia-se em quatro tocshimas eguaes por cada 
vangôr. Actualmente as tocshimas estam convertidas em ac- 
ções. Antes já alguns gancares tinham vendido e hypothe- 
cado as suas tocshimas, mas esses gancares ficaram sempre 
a compor a communidade, e os novos possuidores d'aquelles 
titulos só entravam na gancaria para lançar nas arrematações. 

COMMUNIDADE DE BORIM (PONDÁ) 

Tem 5 vangôres. Os três primeiros intitulam-se dessais, cha- 
mam-se Porobos e pertencem á tribu brahmane dos Podhyés. 
Não casam entre si, porque sáo provavelmente da mesma 
gôtra ; não casam nem comem com Shenvis ; casam com 
Ghit-pavans. O quarto vangôr é de culcornins smarts^ de 
Quelossim, e o quinto de culcornins Vaishnavas, de Lou- 
tolim. 

Nov Durga é gram-devi. O bhoto é podhyé. Ha também um 
servidor da pagode chamado deuari da mesma gente dos 
três primeiros vangôres. 

A população agricola compõe-se de curumbins gaudés, ex. 
d' um nome — Vitu Socró Gauró, outro — Babú Santú Naique 

A receita provém de foros limitados (massul), arrematação 
triennal de várzeas e cumerís. 

A despeza consiste nos foros do Estado; formas dos des- 
sais de Pondá e familia do Cassumbó ; pensões em dinheiro, 
com o nome de inamas, ao ferreiro e Sunctamcares (familia 
do secretario dos dessais de Pondd) e haccas do pagode, gan- 
cares, dessais e culcornins. 

Têm inamas em terras os dessais de Pondá e Cassumbó. 
Este vendeu a sua inama ficando a terra egualmente sem foro. 

Tem namoxim a familia do mainato, barbeiro, bhoto e fer- 
reiro (além da pensão). Estes namoxins pagam um pequeno 
foro. 



KSÍ 



190 AS COMMUNIDADES DE GOA 

Até ha 18 annos dividiam -se as sobras em duas tocshimas 
eguaes, uma para os dessais, e outra para os culcornins. Ha 18 
annos as duas tocshimas passaram a applicar-se uma em jonos 
pelos gancares matriculados do primeiro vangôr, desde que 
tivessem completado 16 annos de edade, e a outra tocshima 
metade para o primeiro vangôr e metade para o segundo. 

Finalmente depois que se publicou o Regulamento de 1882 
o saldo passou a dividir- se em duas partes eguaes, uma para 
jonos, e outra .em cinco tocshimas, três para os dessais (i.° 
vangôr) e duas para. os culcornins (2.° vangôr). Isto fez-se 
por despacho do governador a requerimento dos interessa- 
dos. 



OBRAS CITADAS 



Conselheiro Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara 

Archivo Portuguej Oriental, em 6 fascículos, 1 1 volumes, pu- 
blicados em Nova Goa. O primeiro teve segunda edição, 
em 1877, os outros foram publicados de 1857 a 1876; 

Ensaio Histórico da Lingua Concani, Nova Goa, i858 ; 

Brados a favor das communidades das aldeias do Estado da 
India^ Nova Goa, 1870. 

Conselheiro José Ignagio de Abranches Garcia 

Archivo da Relação de Goa, publicado em Nova Goa ; i.» 
parte, 1872; 2.* parte, 1874. 

FiLippE Nery Xavier 

Collecçâo de Bandos, Nova Goa; i.o volume, 1840, 2.<> vol. 
i85o; 3.0 vol. (Índice) i85i. 

O Gabinete Litterario das Fontainhas, Nova Goa; i .<^ vol. 
1846; 2.0 vol. 1847; 3.0 vol. 1848. 

Collecçâo das Leis Peculiares das communidades agrícolas das 
aldeias dos concelhos das Ilhas, Salsete e Bardej, Nova Goa, 
I.» parte, i852, 2.» parte, i855. 

Bosquejo Histórico das communidades das aldeias dos conse- 
lhos das Ilhas, Salsete e Barde^, Nova Goa, i852. 

Defensa dos direitos das gamarias, Nova Goa, i856. 



192 AS COMMUNIDADES DE GOA 

Instrucção do Ex.^° Vice-Rei Marque!^ de Alorna ao seu sue- 

cessor, Nova Goa, i856. 
Código dos usos e costumes das Novas Conquistas, Nova Goa, 

1861. 

Diogo do Couto 
Décadas da Ásia, 3 vols. Lisboa, 1736. 

Padre Francisco de Sousa 
Oriente Conquistado a Jesu Christo^ 2 vols. Lisboa, 17 10. 

Boletim Official do Governo Geral do Estado da índia. 

Boletim do Conselho Ultramarino, legislação antiga, 2 vols. 
Lisboa, 1867. 

Projecto do Novo Qi^gimento das Communidades Agricolas 
do Estado da India^ Nova Goa, 1862. 

Cláudio Lagrange Monteiro de Barbuda 

Instrucção com que El-^i D. José mandou passar ao Estado 
da índia o Governador e Capitão General e o Arcebispo 
^rimaj do Oriente no anno de 17 74, Nova Goa, 1841. 

Licenciado Leonardo Paes 
Promptuario das diffiniçÕes indicas^ Lisboa, 171 3. 

Marianno Montalegre 

Noção originaria da índia, i852 (impresso em Bombaim ou 
em Goa). 



OBRAS CITADAS IQS 



J. St. da Fonseca Torrie 
Estatística da índia ^Portugue^a, Nova Goa, 1879. 

^Bslatorio final da commissâo de demarcação dos terrenos da 
provinda de Satary, Nova Goa, 1869. 

JACINTHO CAETANO BARRETO MIRANDA 

Quadros históricos de Goa, Margão, caderneta i.^, i863, ca- 
derneta 2.% 1864, caderneta 3.*, i865. 

SlR W. W. HUNTER 

The Imperial Ga^etteer of índia, second edition, 14 vols., 
London, 1885-1887. O artigo índia forma o 6.° vol., The In- 
dian Empire^ 1886. 

Ga^etteer of the Bombay Presidency (under Government, 
orders), Bombay; vol. x, Ratnagiri and Savantvadi, 1880; 
vol. XV, Kanara, 2 parts, i883; vol. xxi, Belgaum, 1884; vol. 
xxií, Dharwar, 1884; vol. xxiii, Bijapur, 1884. 

CoLONEL Alfrèd Thomas Etheridgé 
Narr ative of the Bombay Inam Commission, Bombay, 1874. 

Sn< Henry Sumner Maine 

Q/íncient Law, g.^^ edition, London, i883; 

Village Commiinities in the East and West, 4.^^ edition, Lon- 
don, 1881 ; 

Lectures on the Early History of Institutions, 4.^^ edition 
London, i885; 

Dissertaiions on Early Law and Custom, London, i883 ; 

T* apular Government, 3 A edition, London, 1886. 



sa« 



194 AS COMMUNIDADES DE GOA 

SiR Alfred C. Lyall 
Asiatic Studies, 2 A edition, London, 1884. 

SiR Raymond West and Johann G. Buhler 
A Digest of the Hindu Law, Bombay, 1884. 

JULIUS JOLLY 

Outlines of an History of the Hindu Law, Galcutta, i885. 

MOUNTSTUART ElPHINSTONE 

The History of índia, Gs^ edition, London, 1874. 

James Grant Duff 
History of the Mahrattas, 4.^^ edition (2 vols.), Bombay, 1878. 

LlEUT. COLONEL MaRK WiLKS 

Histórica! Sketches of the South o f índia, London; u^^ vol., 
1810; 2.^ and. 3.^ vols. 1817. 

W. J. WilIuns 
Hindu cMythology, Galcutta, 1882. 

SiR MoNiER Williams 
Hinduism, London, i885. 

Herbert Spencer 

The Trinciples of Sociology^ 2A edition, London, 1877; 
Ceremonial Institutions, London, 1879; 
Politicai Instilutions^ London, 1882. 



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Qán Historical and Archceological SkeichoftheCiiy ofGoa, 
Bombay, 1878. 

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A Dictionary Marathi and English, Bombay, 1857. 

JOHN Wilson 
Indian Caste, 2 vols., Bombay, 1877. 

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Description of ihe character, manners, and customs 0/ the 
people of Índia, Madras, 1 879. 

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Hislory of Indian and Eastern Architecture, London, 1876. 
Rude Sione Monuments in ali Countries, London, 1872. 
Tree and serpent worship, London, 1873. 

F. MAX MÚLLER 

índia, what can it teach us? London, i883. 

ERNEST J. EITEL 

Feng-shui, Hong-kong, 1873. 
The Siirvey and Setilement Manual, Bombay, 1882 

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Knowledge, an lUustrated Magasine of science, conducted by 
Richard Proctor, London. 

RÁJENDRÁLALA MlTRA 

IndoAryans, 2 vols. Calcutta and London, 1881. 

Mr. Emile de Laveleye 

De la propriété et de ses formes primitives, 3.»"e edit., Bruxel- 

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Mr. Le Docteur Gustave Le Bon 
Les Civilisations de Vinde, Paris. 

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La Cite Antique, i2.me edit., Paris, 1888. 

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Histoire du droit de propiétéfoncière en Occident, Paris, iSSq.