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I
Paiz, raças e historia
Na índia designam-se pelo nome de Goa todas
as terras do domínio portuguez contíguas á velha
cidade conquistada em 1510 por AfFonso d' Al-
buquerque. Essas terras occupam uma área de
3:368,5 kílometros quadrados, e têm uma popula-
ção superior a 420:775 habitantes (i). Paiz cor-
tado de numerosos rips e correntes navegáveis,
muito húmido desde que se define a monção de
sudoeste, de Junho a Outubro (2), e sêcco durante
o resto do anno; fértil nos valles e bacias, árido
nos outeiros, que lhe empolam a superfície, todo
(i) Recenseamento de 17 de Fevereiro de 1881, ultimo
publicado.
(2) A monção principia em Abril, mas as chuvas ordina-
riamente não chegam senão em Junho.
AS COMMUNIDADES DE GOA
elle é dominado pela cordilheira dos Ghates, ao
longo dos quaes se estende contra o mar.
Segundo a data da sua acquisição dividem-se
as terras de Goa em Velhas e Novas Conquistas.
Narra o Tombo Geral, feito por Francisco Paes
em 1595, que tomada pela segunda vez a cidade
em 25 de Novembro de 15 10, ficaram também se-
gunda vez sob o dominio de Portugal, Salsete,
Bardez, Pondá, e outras tanadarias sujeitas á ci-
dade e Ilha de Goa, e AíFonso d' Albuquerque «as
arrendou por 52:000 pardaus, dinheiro de ouro,
forros para a Fazenda d'El-Rei Nosso Senhor a
um gentio por nome Mel-Rau que as defendia
com guarnição de 5:000 homens de terra; e sendo
AíFonso d'Albuquerque em Malacca, o Sabaim
Dalcão (Ismail Kan) mandou sobre as ditas terras
e tanadarias a um capitão que pelejando com a
dita gente que as guardava, e havendo d'elles vi-
ctoria se apossou das ditas terras e se poz sobre
a Ilha de Goa para entrar, e vindo o Sabaim com
todo o seu poder para o dito efFeito entrou na
Ilha e se apossou d'ella, mas a cidade se lhe de-
fendeu valorosamente pelos portuguezes que a
guardavam, e estando o dito Sabaim de posse
da Ilha de Goa e das ditas terras e tanadarias
(que aliás duas vezes foram ganhadas pelos por-
tuguezes) e tendo feito no passo de Benastarim
um inexpugnável Forte com a força do qual sus-
tentava a posse da Ilha e mais terras, veiu o dito
VELHAS CONQUISTAS
Afifonso d'AIbuquerque de Malacca succorrer a
cidade de Goa e chegando a ella lançou os Mou-
ros da Ilha, e se apossou d'ella, e pondo cerco
ao dito Forte o tomou e acabou de lançar de
toda a Ilha de Goa os Mouros, ficando de posse
d'ella sem contradicção alguma até o presente; mas
o Sabaim Dalcao ficou com as terras e tanadarias
da terra firme, por então não haver poder para
lh'as defenderem e as possuiu até o anno de
1520». N'esse anno, continua o mesmo tombo, o
Rei Narsinga (de Vijayanagar) veiu com o seu
poder contra Sabaim Dalcão, desbaratou-o e fez
doação d'aquellas terras (Salsete e Bardez^ a El-
Rei de Portugal e as entregou a Ruy de Mello,
capitão da cidade, que logo tomou posse d'ellas.
Mas depressa tornaram a ficar sujeitas aos rajás
de Bijapur até 1543, em que Ibramo Kan (Ibra-
him I) entregou ao Governador, Martim Affonso
de Sousa, Salsete e Bardez, para que os portu-
guezes não favorecessem Abdullá, pretendente ao
reino, e recolhido áquelle tempo em Goa. Cinco
annos mais tarde, ainda em vida de Ibrahim, os
mahometanos entraram novamente em Salsete,
mas foram repellidos e derrotados em Cuncolim
por D. João de Castro, e foi do mesmo modo pu-
nida, e terminou também pela sua derrota, uma
outra tentativa que fizeram no tempp de Fran-
cisco Barreto. Por isso no contracto de pazes,
feito com o Idalxá (Ali I) em lõyi, se principiava
AS COMMUNIDADliS DE GOA
por dizer «que as terras de Salsete e Bardez, que
são d'El-Rei Nosso Senhor, e estam em nosso
poder, estariam assim como estam». . .(i)
São estas as Velhas Conquistas. Não podia
deixar de ser difficil mantel-as emquanto as
terras, que as cercavam para áquem dos Gha-
tes, estivessem em poder de estranhos. O cerco
de Goa em 1571 pelos exércitos alliados de
Bijapur e Ahmadnagar, as repetidas invasões
marathas e as inquietações dos Bhonslós, des-
sais de Savant-vadi, bem depressa o demonstra-
ram.
Quando o Marquez de Louriçal chegou pela
segunda vez á índia achou Pondá e Sanguem
occupadas pelos Marathas. Pondá fica defronte
da Ilha de Goa, apenas separada por um estreito
canal, e Sanguem está sobre o Rio de Rachol e
é um ponto onde convergem importantes estradas
que descem dos passos do Balaghate. Aquelles
perigosos visinhos foram por isso expulsos, arra-
( i; Bosquejo Histórico das Communidades, parte 2.^, pag. 2.
— Gaífetteer of the Bombay Presidency, vol. 23 (Bijapur),
pag. 4i5. — Oriente Conquistado, conq. i.", divisão i.% § 37.
— Archivo Port. Oriental, fase. 5.^, parte i.», doe. 188, e
parte 2.*, doe. 742 — Áeêrea do pretendente ao reino de
Bijapur que determinou a entrega de Salsete e Bardez, é dif-
ferente a versão de Diogo do Couto. — Dee. v, Liv. ix, Cap.
VIU, IX, X e xi; Liv. x, Cap. i, 11, vi, e xi. Dee. vii, Liv. i.
Cap. x e xi; Liv. ir, Cap. 11, vii, viii, ix e x; Liv. iv, Cap. ix.
NOVAS CONQUISTAS
sada a fortaleza de Sanguem e restituídas as ter-
ras ao rei de Sunda.
«Por este beneficio e ser preciso ao bem.com-
mum», diz o art. 4.° do Tratado de 24 de Julho
de 1742, «será obrigado o Rey de Sunda a ceder
ao Estado o outeiro de Chandernata com três
aldeias contiguas a elle, para poder metter o rio
e fortificar a provincia de Salsete» (i). Procedi-
mento errado, pensava o Marquez de Alorna a
respeito d'aquelle beneficio, porque a Fortaleza
de Sanguem era importantíssima á nossa defesa,
e «porque se a precisão nos obriga, por conta da
visinhança, a defendêl-a (Pondá) á nossa custa
de qualquer invasão, muito mais útil era possuil-a
como própria e accrescentar as suas rendas ao
nosso dominio que largál-a a c^uem necessita de
nós para a conservar e defender (2)». Não tardou
muito que Pondá cahisse novamente em poder
dos Marathas e as terras de leste e sul apenas
continuaram sob o frágil dominio de Sunda até
1763. N'esse anno Haidar Ali invadiu aquelle pe-
queno Estado e só a Fortaleza de Ancolá lhe
resistiu alguns dias, defendida por um portuguez
(i) Publicado pelo Cons. Rivara no Boletim Official n.® 38
de 1874, P3g- 197- Sigo a data do texto das condições, mas
em outros lugares se diz que o tratado é de Junho.
(2) Instrucção do £'.r.°"> Vice Rei Marqueíjf de Alorna ao
seu successor, parte i.», pag. 56.
8 AS COMMUNIDADES DE GOA
guida, por ordem da Corte, entregou-lh'as de
todo (i).
A posse d'aquellas provindas, de que depen-
• dia a segurança de Goa, só pode considerar-se
definitiva desde o Tratado de 29 de Janeiro de
1788 em que o Bhonsló cedeu a Portugal as pro-
vincias e praças de Alorna, Bicholim, Sanquelim,
a parte da provincia de Pernem «que lhe foram
conquistadas com as armas de Sua Magestade Fi-
delissima» e o resto da mesma provincia que ain-
da possuia (2).
As novas acquisições determinadas por conti-
nuas hostilidades e imperiosas necessidades de
defeza, e todas obtidas pelas armas e reconheci-
das em tratados (3), cingem as Velhas Conquis-
tas, e dão ao dominio portuguez, pelo lado dos
Ghates, um limite quasi tão bem definido como
tem pelo lado da costa. Muito mais vastas por-
que a sua área é de 2:656,5 kilometros quadra-
dros, emquanto as Velhas Conquistas têm apenas
712 kilometros quadrados, a sua população é to-
davia muito menos densa; calculava-se em 170:125
habitantes, dos quaes 139:653 não christãos, no
(1) Trarado de 24 dé Dezembro de 176 1 no Boletim Offi-
ciai n.o 82 de 1874, pag. 424.
(2) Boletim n.o i3 de 1875, p3^. 73,
(3) Publicados pelo Conselheiro Rivara com outros docu-
mentos que lhes dizem respeito nos Boletins de 1873 a 1876.
NOVAS CONQUISTAS
Recenseamento de 1881, e nas Velhas Conquis-
tas só a população christã se calculava em 209:174
habitantes, e os não christãos em 41:478 habitan-
tes. A natureza do solo, alli mais árido e monta-
nhoso, e do clima que a proximidade dos Ghates
torna muito mais húmido e muito menos sadio, e
também a dififerença de regimen politico, até á
conquista portugueza, explicam os factos que aca-
bo de notar.
Para o nosso fim esta distincção de religiões»
moderna, como se sabe, é secundaria. O que pre-
cisamos verificar é a origem da população de Goa,
os elementos hindus de que ella se compõe. Em
uns estudos acerca da propriedade no Minho, de
que apenas tenho podido ler alguns excerptos, o
sr. Alberto Sampaio mostra, por uma serie de
valiosas observações, como no caracter physico e
moral do minhoto se distingue ainda actualmente
a proveniência dos antigos e variados colonisado-
res d'aquella parte do paiz. Mas na gente de Por-
tugal ha um grande numero de caracteres geraes,
lima homogeneidade, a que andam subordinadas
todas aquellas distincções. A população de Goa
apresenta, pelo contrario, uma stratificação per-
feitamente definida nas suas linhas principaes.
Principiemos pela província de Salsete. Seguin-
do o rio Zuari, desde Vaddêm até Guirdolim, as
communidades ou aldeias ribeirinhas são forma-
das quasi exclusivamente de bralimanes, e o mes-
IO AS COMMUNIDADES DE GOA
mo se vê nas aldeias de Nagoá, Vernã, Margão e
Benaulim. Dicarpale é exclusivamente de curum-
bins e Telaulim, Dramapur e Sirlim compõem-se
exclusivamente de sudras. As outras communida-
des são constituídas por famílias de charadas e têm
uma grande preponderância numérica sobre as
mais (i). Á beira mar ha duas classes importantes
— pescadores e bhandarís^ e em todas as comniu-
nidades, dependentes d'ellas, ha famílias de artífi-
ces e servidores classificados como sudras e mhars.
Comparemos agora com Salsete as outras pro-
víncias de Goa. Ao norte, nas Ilhas e Bardez, as
communidades são constituídas também, na sua
maioria, por famílias de charadóSy mas em Divar e
Chorão prevalecem os brahmanes e em Bardez são
em grande numero. Junto a cada communídade ha
egualmente famílias de artífices sudras e de mhars
e na costa pescadores e bhandarís. Nas Ilhas, Bar-
dez e Pernem parece que se extinguiram os curum-
binSy mas encontram-se duas classes importantes,
marnotos e balaghatetros, com o titulo de gau-
Jés. Nas outras províncias as gancarias são em re-
gra compostas de marathas que se denominam
umas vezes dessais e outras gancares. São raras
nas Novas Conquistas as aldeias formadas exclu-
sivamente de brahmanes; elles em regra entram na
Pode vèr-se a Narração histórica de Goa, por YiWi^^pQ
XâTier. no Gabinete Litterario das Fontainhas.
RAÇAS I I
composição das communidades como culcornins^
ou occupam-se do serviço dos pagodes. A exce-
pção de Pernem, a base da população agrícola
das Novas Conquistas é formada de curumbins e
ainda quando têm perdido os seus direitos como
membros da communidade, são sempre conheci-
dos por gaudés ou gavcares^ nomes que trazem
comsigo a idéa de habitante e chefe de uma al-
deia (i). Outra classe agrícola das Novas Con-
quistas, gancares de algumas aldeias e a que cha-
mam siidrasy pode talvez encorporar-se nos bhan-
daríSy embora estes nas Velhas Conquistas se de-
diquem exclusivamente á extracção da sura.
Finalmente em Satary creou-se uma raça — os
sataiycaresy que se têm espalhado pelas provincias
visinhas e até pelo Canará (2), e que supponho
ser o producto do cruzamento de curumbiyts com
marathas ou talvez comrajputs que tivessem acom-
panhado a familia dos Ranes, quando ha alguns
séculos vieram estabelecer-se em Sanquelim. Es-
tes satarfcares e os marathas de Pernem são os
melhores soldados que hoje se recrutam dentro
do paiz.
Determinados d'este modo os principaes ele-
(i) A Dictionary Marathi and English by Molesworth,
verb. car^ e gaudá.
(2) Ga^etteer ofthe Bombay Presidency, vol. i5, Canará,
parte i.«, pag. 240.
12 AS COMMUNIDADES DE GOA
mentos da população de Goa, vejamos se é pos-
sível formar d'elles grupos ainda mais largos.
Convém primeiro recordar que os povos da ín-
dia costumam geralmente dividir-se em aryanos
e não aryanos (i). Os aryanos são um ramo d*essa
raça que colonisou a Europa e que lá, como aqui,
estabeleceu línguas, desenvolveu instituições e fun-
dou uma civílísação, cuja origem é commum. Con-
sideram-se não aryanas todas as outras raças,
base da população hindu, que em migrações an-
teriores se tinham alastrado pelo paíz. Não me
occupo da população mahometana porque o seu
dominio poucos vestígios deixou em Goa e actual-
mente não tem importância.
Dos elementos que descrevi são os brahmanes
os únicos representantes, relativamente puros, da
raça aryana. Constituem uma minoria influente
pula sua intelligencía, mas que pouco a pouco
vae perdendo a preponderância que n'outro tem-
po exerceu, e ainda hoje conserva nas Novas Con-
4UÍHta». Ahi são clles a única classe lettrada, nas
Vvlhaa (Conquistas outros se têm levantado, mais
nvuiieroHOs, com mais vigor, e que devem á chris-
Uani^açRo a posição importante que actualmente
^^Çvupam na sociedade de Goa.
U víàtabelecimcnto dos brahmanes n'este paíz é
poí4i(^rior ao de qualquer das outras raças de que
[\) ^v \V. Uvu^t^r, The Indian Empire, pag. 5i.
RAÇAS l3
fallei. SuppÕe-se que a sua vinda teve lugar no
I ou no II século da nossa era (i) e não teria
nenhum motivo para duvidar d'este calculo se elle
se referisse aos Chit-pavans^ Karadés, Podhyés e ou-
tras tribus que especialmente se dedicam ao ser-
viço dos deuses. Emquanto aos Shenvis, é ainda
tão viva a memoria dos seus primitivos estabele-
cimentos em Cortalim, Quelossim, Loutolim, e
outras aldeias, que parece devia ser mais moderna
a sua migração.
Já escripta esta parte do meu trabalho vi que o
Doutor Bhau Daji, de Pernem, que illustrou com
o seu grande nome não só a classe Smart a que
pertencia, mas o paiz onde nasceu, datava de ha
seis ou sete séculos o estabelecimento dos Shenvis
em terras de Goa (2).
Estam divididos em duas seitas, Vaishnavas
MadhvachariaSy e Smarts. Estes últimos provêm
todos de duas colónias — Cortalim, e Quelossim,
em Salsete, e ou porque foram chamados para
esse fim, ou porque eram os mais hábeis, d'alli
sahiram os culcornins não só para quasi todas as
communidades de Goa, mas também para os dis-
trictos britannicos que nos rodeiam. Entre as duas
seitas houve em tempo grandes contendas e em
(i) Mountstuart Elphinstone, lhe History of India^ pag.
239.
(2) John Wilson — /wíiijn Caste, vol. 2.0, pag. 28.
14 AS COMMUNIDADES DE GOA
Goa deram brado no principio do século pas-
sado (i), mas hoje cruzam-se e fraternisam.
Na sua maioria descendem da tribu dos Shenvis
os brahmanes christãos, e se a falta de mulheres
da mesma raça os obrigou no principio da con-
versão a cruzamentos, attestados pela tradição e
pela cor, o facto não podia deixar de concorrer
para lhes dar a energia, em que elles sobrepujam
os seus irmãos hindus.
Os Chit-pavans tèm os olhos claros e as feições
e a cor levam-me a presumir que a sua origem é
mais puramente aryana do que a dos outros brah-
manes de Goa.
Por todas as provincias das Novas Conquistas,
onde estive, encontrei a tradição de que os mara-
thas, dessais ou gancares das communidades, e
todos pertencentes á classe agrícola, tinham vindo
de fora. Em alguns casos sabe-se ainda o lugar
d'onde emigraram. O seu estabelecimento no paiz
não é pois tão remoto que se obliterasse a me-
moria d'estes factos, mas foi de certo anterior ao
dos brahmanes^ que na maior parte das communi-
dades marathas apenas poderam entrar na quali-
dade de culcornins, limitados os seus direitos á
voton fixada em remuneração d'aquelles serviços.
Entre esses mesmos marathas ha ainda grandes
( I ) Q/^rchivo Port. Oriental, supplemento 2.° ao fase. 6.°,
doe. io8 e 142.
RAÇAS I 5
diíferenças, que indicam, de accôrdo com a tradi-
ção, migrações distinctas e tribus muito diversas.
Podemos porém comprehendel-os, sem inconve-
niente, n'esta denominação geral. De sangue scytha
misturado com sangue primitivo da índia (i) per-
tencem a essa nação levantada por Sivagi, um
heroe que dá ares do nosso Affonso Henriques
no retrato do sr. Oliveira Martins, e em cujas
qualidades e defeitos se podem estudar em relevo
as faculdades latentes d'esta raça. «São homens
pequenos e vigorosos, bem feitos, ainda que sem
elegância, sempre activos, laboriosos, atrevidos e
perseverantes. Se não têm nada do orgulho e di-
gnidade dos Rajputs, também não têm nada da
sua indolência, ou da sua falta de sabedoria mun-
dana. Um guerreiro Rajput, emquanto não des-
honra a sua raça, parece quasi indififerente ao re-
sultado de qualquer lucta em que esteja empe-
nhado. Um Maratha não pensa em outra cousa
senão no resultado, e importa-se pouco com os
meios, se pode conseguir o fim. Para isso puxará
pela cabeça, renunciará aos seus prazeres, e ar-
riscará a sua pessoa; mas não tem a concepção
do sacrifício da sua vida, ou mesmo do seu inte-
resse, por um ponto de honra. Esta differença de
(i) Le Docteur Gust. Le Bon, Les Civilisations de Vinde,
pag. 220 — Wilson no Diccionario de Molesworth, pag. xii,
e — W. Hunter, Ths Indian Empire, pag. 174.
l6 AS COMMUNIDADES DE GOA
sentimentos affecta a apparencia exterior das duas
nações» (i).
E' a esta raça, a mais numerosa de Goa, que
pertencem os charadós das Velhas Conquistas.
Mas a religião e as leis portuguezas (2) puzeram-
nos n'um pé de egualdade com os brahmanes de
que elles têm sabido aproveitar-se. Já muito de-
sembaraçados dos preconceitos de casta, dedi-
cam-se a quasi todas as profissões, emigram, en-
riquecem, e têm subido a uma posição que está
muito longe do lugar subalterno que occupam
nas Novas Conquistas os dessais e gancares ma-
rathas. Além d'isso a classe está aberta á riqueza
e aos merecimentos de qualquer proveniência.
A origem rajput que os charadós algumas ve-
zes se attribuem é uma tradição que se, encontra
egualmente entre marathas e que vejo explicada
pelo facto de ter havido cruzamentos entre os an-
tigos dominantes d'aquella raça com a gente do
paiz (3).
(1) Elphinstone, The History o f Índia, pag. 61 5.
(2) Nas aldeias de charadós em Salsete parefe que nunca
houve culcornins, o que poderia indicar uma independência
anterior ao regimen portuguez, mas a introducção dos
Smarts na maior parte das aldeias das Novas Conquistas é
moderna, conta-se por algumas gerações.
(3) lhe Indian Antiquary, vol. III, pag. 1 10. Pode vêr-se
também o Promptuario das dijinições indicas^ e a Noção ori-
ginaria da índia.
"^ •m
RAÇAS 1 7
Os gaudés das Ilhas e Bardez, os artífices e pes-
cadores, podem reunir-se n'um único grupo como
siidras ou dravidianos. Todos têm o mesmo typo.
Supponho que são egualmente dravidianos os
mhars e que algumas famílias menos escuras pro-
vêm de outcasts e talvez do cruzamento de mulhe-
res brahmanes com homens de classe inferior.
São estes os que têm o ultimo lugar na jerar-
chia das classes de Goa, mas nem os mhars nem
qualquer outra classe, se pode considerar physica
ou moralmente deprimida. A miséria dos pariahs,
tão notável no Sul da índia (i), não se vê n'aquel-
las terras.
Entre os gaudés distingui já duas raças, os sa-
leiros, que considero siidras, e os balaghateiros^
que pertencem a uma raça inteiramente diíFerente.
O seu numero é muito limitado e em Salsete en-
traram por cruzamentos na classe dos charadas.
Occupavam-se no commercio do Balaghate, que é
o paiz acima dos Ghates, e parece provável que
sejam vanis {vaisjas) e tenham algum sangue
aryano.
Percorrendo a estatística da população dos dis-
trictos britannicos que nos rodeiam, é em Ratna-
giri, paiz maratha, que se encontram em maior
( I ) n^escription of the character, manners, and customs of
the people of índia, by the Abbé J. A. Dubois, pag. 488 e se-
guintes.
AS COMMUNIDADES DE GOA 2
l8 AS COMMUNIDADES DE GOA
numero os bhandarís, constituindo também lá uma
classe importante (i). Nos de Goa apparece ás ve-
zes uma feição característica da raça maratha e
que provavelmente lhe vém do sangue tártaro ou
scytha — o nariz largo na base. Mas nem elles se
consideram marathas nem estes os admittem no
seu grémio. Por outro lado o costume de não
queimarem mas enterrarem os cadáveres, geral-
mente sentados, na posição em que os enterram
os lingayeteSy seita do Sul da índia, leva-me a
mettêl-os na classe sudra.
No Regimento dado pelo Conde de Linhares, em
1630, ao Chanceller do Estado e mais Desembar-
gadores, encarregados de executar a Provisão para
os infiéis sahirem da Cidade de Goa e terras ad-
jacentes, determinava-se peremptoriamente: «Os
chorumbins, que se quizerem fazer marinheiros,
poderão ficar, e todos os mais se deitem fora por-
que para lavrar os oiteiros bastam os chorumbins
christãos (2).»
Como se vê, não parece que merecesse grande
sympathia ao governo da época esta gente traba-
lhadora, pacifica, e verdadeira na sua simplicidade
como nenhuma outra em terras de Goa. Povo nó-
mada de pastores (a palavra vém do canarim
(1) Gãfetieer of the ^ombqy Presidency, vols. relativos ao
Kanará, Dharwar, Belgaum, e Ratnagiri.
(2) Archivo Port, Oriental, fascículo 5.°, parte 3.% pag.
r. 397, nota.
RAÇAS 19
Kuri, carneiro) pertencem a uma das grandes ra-
ças que habitaram o Sul da índia, antes dos tem-
pos históricos, e se organisaram em communida-
des, chamadas hadis, no Maissur(i), chegando a
attingir um grau importante de civilisação. Pa-
rece que formaram um reino poderoso, Kuram-
ba-Bhúmi(2), que são da sua raça as dynastias dos
Kadambas, e que lhes pertencem esses rudes tú-
mulos de pedra, que no Sul da índia, assim como
na Europa, excitam a curiosidade dos sábios (3).
Em Salsete não podem confundir-se com quaes-
quer outros estes homens vigorosos, escuros,
sem cabellos no corpo e sem barba; têm a cora-
gem rara no paiz de dizer a verdade em quaes-
quer circumstancias ; as mulheres trabalham nos
campos, cingem os pannos de uma maneira dif-
ferente de todas as outras raças e trazem os bra-
ços cobertos de manilhas e o peito de contas.
São os mais fortes, e ao mesmo tempo os mais
dóceis manducares — uns colonos, cuja situação
dista pouco da dos servos da gleba.
Foram provavelmente os curumbins que corta-
ram com instrumentos de ferro os troncos de ar-
vore, cobertos de stratos de trappite e laterite na
(i) The Imperial Gajetteer of índia, vol. 10, pag. 98.
(2) Ibid. vol. 8, pag. SyS.
(3) Gajetteer of the Bombay Presidency, vol. i5 (Kanará),
parte i.* pag. 298 nota, e parte 2." pag. 82 — Dr. Fergusson
Qittde Stone Monuments in ali Countries.
20 AS COMMUNIDADES DE GOA
floresta petrificada de Cotandem, aldeia de Sa-
tary. N^esse tempo os servos de hoje eram já
um poifo civilisadoy como lhe chama o Dr. Marche-
setti (i).
Goa prende com o paiz dos marathas unica-
mente pelo lado do norte; para além dos Ghates
e pelo sul prevalece a lingua canarina, e é aos po-
vos do Canará que estam ethnicamente ligadas as
raças mais antigas — os curumbins e os sudras.
Devia por isso ser dravidiana a base da lingua
vernácula, e as palavras d'essa proveniência são
com efíeito em grande copia, mas os marathas e
brahmanes que se estabeleceram depois transfor-
maram-na e, lingua independente ou dialecto ma-
ratha, todos os competentes a classificam entre
as línguas aryanas. A palavra deus, em concani
dcu^ sete, nove, em concani sate^ nave, hoje, em
concani a:{a, não, em concani ;/a, dente, alli danta^
c outras, entendem-se e têm a mesma significação
cm Portugal e em Goa.
Kntre os importantíssimos trabalhos do Conse-
lheiro Uivara n'aquelle paiz, um dos primeiros e
que bastaria para lhe merecer a gratidão e res-
peito de todos os que estudam foi o Ensaio His-
tórico da lingua concani (2). Além de outros factos
( 1 ) The Journal of the Bombay ^ranch of the Royal Asia-
tic Socieiy, vol. xii (1876), pag. 2i5.
(2) Publicado cm Nova Goa, separado da Grammaticct, em
i858.
língua 2 1
de grande valor, então pela primeira vez publicados,
ficou-se sabendo depois d'esse livro a cultura que
tinha tido a lingua vernácula, a sua historia nos
tempos modernos e a esphera da sua litteratura
christã. A acção do tempo e o fanatismo que ca-
racterisou durante uma longa época o dominio
portuguez, não permittiram que chegassem até
nós documentos anteriores, mas o paiz foi sem-
pre estéril de poetas (i), e o desenvolvimento de
todas as linguas vernáculas da índia é tão mo-
derno (2), que mal pode comprehender-se que
d'esta se perdessem documentos cuja importância
não fosse meramente linguistica.
A proveniência tão differente das duas raças —
marathas e brahmanes, que imprimiram caracter
ao paiz, e o facto de se não misturarem, como
aconteceu com as raças da Europa, são causas
que deviam concorrer para que o processo da
formação da lingua fosse vagaroso, mas ha ainda
outra circumstancia, depois da dynastia dos Ka-
dambas, que muito boas auctoridades suppôem
de origem curumbim (kurubar) como já se viu, e
(i) Wilson, no Dicciotiario de Molesworth, pag. xxix,
nota.
(2) Sir W. Hunter, The Indian Empire, pag. 342. — Segundo
Sir Monier Williams (Hinduism, pag. 14) ainda hoje a litte-
ratura dos dialectos vernáculos (excepto, talvez, a Tamil) dif-
ficilmente merece aquelle nome.
22 AS COMMUNIDADES DE GOA
que durou até meado do século xiii (i), todas as
outras raças históricas que dominaram em Goa
(2) foram estranhas ao paiz e ás raças actuaes.
Os Chalukias, de Kalian, foram rajputs (3); os
Yadavas, de Devgiri, parece que foram também
rajputs da tribu Yadu (4); seguiu-se-lhes o pri-
meiro dominio mahometano desde o fim do século
xiii ao XIV ; os rajás de Vijayanagar eram rajputs
ou curumbins (5), e depois d'elles entra-se defi-
nitivamente no ultimo periodo mahometano. São
marathas os dessais de Savant-vadi, mas o seu
dominio foi parcial e muito transitório, e. os ra-
jás de Sunda pertencem á familia de Vijayana-
gar (6).
Estes factos não podiam deixar de ter alguma
importância, e encontram-se vestigios do regimen
mahometano e de Sunda na administração econó-
mica das communidades. Como na actualidade
as cousas se passam de um modo inteiramente
diverso convém ter em vista que os* governos, que
(i) An Historical and Archacological Sketch of the City
of Goa, pag 122.
(2) Ibidem, pag. 119 e seguintes.
(3) Mountstuart Elphinstone, The History of índia, pag.
233 e 241. — Bombay Ga^etteer, vol. 21 (Belgaum), pag. 353,
nota 2."
(4) Bombay Gajetteer, vol. citado, pag. 359, '^ota 2.^
(5) Ibid., pag. 362.
(6) Ibid., vol. i5 (Kanará, parte 2.») pag 120.
HISTORIA 23
acabo de mencionar, eram organismos simples,
com uma única funccao claramente definida — a de
sugar as rendas dos povos que dominavam (i) e
que eram obrigados a resignar-se com uma ca-
lamidade que não estava na sua mão evitar. É
provável que a extincção do budhismo e jainismo
e a introducção do hinduismo e brahmanes fosse
devida aos dominantes.
Supponho que a sua influencia se não estende-
ria muito mais longe, porque as communidades
governavam-se a si próprias e tinham elementos
de vida que resistiram até agora á acção destrui-
dora das vicissitudes politicas. Foi com esses ele-
mentos que se formou a lingua vernácula.
A stratificação dos povos de Goa funda-se, como
já vimos, na raça curumbim, a mais antiga e de for-
mação mais simples. Encontra-se depois um ex-
tenso conglomerado sudra. Sobre estas, em época
muito posterior, assentaram as duas raças domi-
nantes — marathas e brahmanes.
Seria impossível a classificação que fiz sem eli-
minar muitas differenciações, então secundarias,
mas importantíssimas sob o ponto de vista social.
Os factos actuaes, as relações que se observam,
circumscrevem-se por círculos muito mais estrei-
tos. O primeiro e o mais importante é o da famí-
lia. Á intensidade das ligações de sangue corres-
(i) Asiaiic Studies, pag. 71 e i52.
10, mais ou menos
s outras relações,
comprehendidos
&ada em regra pela
intranham sotida-
t ultimo circulo e'
ia. Pode conside-
i rivalidade entre
a reciproca entre
II
Cultos primitivos e superstições
•mmmma
A composição da sociedade de Goa, a diversi-
dade de elementos de que ella se compõe, é um
facto de primeira ordem e que deve ter-se em
vista sempre. Os povos mais antigos — curum-
bins e sudras, estavam organisados em commu-
nidades muito antes dos marathas e brahmanes
se estabelecerem no paiz ; algumas d'essas com-
munidades chegaram até nós, como se vê em
Dicarpale, Telaulim, Dramapur e Sirlim de Sal-
sete, e restam-nos monumentos vivos da antiga
homogeneidade de muitas outras, que são os
gancares curumbins e bhandarís, hoje depostos
geralmente nas aldeias das Novas Conquistas.
Ora estas camadas sociaes não se cruzam e
acham-se tão separadas umas das outras como a
agua se separa do azeite, o que todavia não obsta
26 AS COMMUNIDADES DE GOA
a que tenham exercido umas sobre outras notá-
vel influencia.
Nas crenças actuaes do paiz encontram-se fun-
didos ou sobrepostos elementos que provêm
d*essas differentes origens; tratarei apenas dos
mais simples, d'aquelles em que se funda a cons-
tituição mental do povo.
Todas as aldeias têm o seu deus próprio e
exclusivo (gram-deu) ; compete-lhe vigiar pela
segurança dos seus jurisdiccionados, protegêl-os
dos espíritos ruins, accudir-lhes em occasiões de
crise e interpor a sua auctoridade em todos os
negócios que lhe são submettidos. A esphera da
sua acção é amplíssima e, embora não seja abso-
luta, pode todavia dizer-se que em regra é o
deus da aldeia quem por omissão ou commissão
tem maior responsabilidade nos acontecimentos
ordinários e extraordinários da vida.
Ha um grande numero de doenças produzidas
por espíritos maus e entram n'esta cathegoria
todas aquellas de que é mais difficil explicar as
causas, ou que suscitam maior horror. A inter-
venção do deus da aldeia é sempre conveniente,
mas n'aquellc» casos torna-se indispensável, e
comquanto hc procure muitas vezes o auxilio de
um charlatão, ou de um medico, não é raro
encontrar ainda quem se entregue somente á pro-
tecção divina,
A qM^íMuo é que os deuses nem sempre têm
GPAM-DEU 27
vontade de sahir da sua natural quietação, e nem
sempre os move o aroma das flores e dos ali-
mentos que lhes oíFerecem; têm outros negócios,
preoccupam-se de amores, ou dormem, que é o
bem supremo.
Acontece também declinarem a sua competên-
cia e não tomarem conhecimento de certas ma-
térias, por deferência para com outros deuses,
ou por falta de jurisdicção. Sabe-se, por exem-
plo, que as bexigas dependem da deusa Shitalá,
e nem outros deuses, nem a vaccina, desacom-
panhada das supplicas e ofFerecimentos necessá-
rios, valem contra ella. Em Goa, Shitalá, é sim-
plesmente designada pelo nome de Saibina,
(senhora), e os sacrifícios e petições fazem-se
deante de uma bilha de agua; em Bengala a
deusa, vestida de vermelho, é figurada sobre um
burro, ou sentada na flor de lótus, com uma bi-
lha no braço esquerdo e na mão direita um feixe
de pennas de pavão (i); a bilha de Goa refere-se
provavelmente a um dos attributos de Shitalá (2).
Mesmo fora d'estes casos, não se duvida da
auctoridade de outros deuses e é prudente assis-
tir ás festas do costume e ter attenções para com
(í) Wilkins, Hindu Myihology, pag. 394.
(2) Em Dharwar Dayamava é a deusa das bexigas, é ella
que as causa. O seu culto ligado ao de Durgava, deusa do
cólera, não é conhecido em Goa — Ga^etteer of the Bombay
Presidency, vol. xxii (Dharwar), pag. ^07.
28 AS COMMUNIDADES DE GOA
todos; a differença está apenas em que o gram-
deu é o que mais de perto se occupa dos negó-
cios da aldeia.
Depois de nove noites de festas em sua honra,
no Dossoró^ decimo dia da primeira quinzena do
mez Ashvin (Setembro a Outubro), assim como
Ram marchou contra Ravana, também o gram-
deu marcha contra mharús e bhutSy e é levado em
procissão até um limite da aldeia; é preciso que
veja com os próprios olhos, solemnemente, as
terras da communidade entregue á sua vigilância
e que aíBrme a sua jurisdicção ; chama-se a esta
cerimonia shimd-iillanghdna (i).
A jurisdicção do gram-deu não é porém mera-
mente territorial; determina-se em razão das pes-
soas e acompanha-as e protege-as fora da aldeia,
de sorte que se arriscaria muito quem sahisse
sem pedir licença e sem fazer os sacrifícios.
Semear e colher são actos especialmente con-
sagrados, e qualquer emprehendimento ou diffi-
culdade depende em grande parte do gram-deu ;
elle insinua-se no espirito dos magistrados e ha
importantes razões para crer que estes são ape-
nas instrumentos divinos ; por menos conhe-
cem-se casos do gram-deu se não conformar
com o procedimento seguido em negócios publi-
(i) Shimá — limite e Ullanghána — o acto de atravessar,
apud Molesworth.
BHUTS E MHARÚS 29
C0S5 e intervir directamente ou para castigar os
seus delegados, ou para alterar o que se fez con-
tra sua vontade.
As relações civis dos membros da communidade
dão de certo muito que fazer a Deus, mas não ha
comparação entre esse trabalho e o que lhe cau-
sam os espiritos ruins. Estes interferem constan-
temente com as pessoas e o mais nobre officio
do gram-deu é perseguil-os e livrar d'elles os seus
jurisdiccionados.
Em Goa o espirito alevantado de uma mulher
morta chama-se bhut e o de um homem mharú.
EUes abanam e fazem mover 'as arvores, quando
não ha vento; frequentam as encruzilhadas, dan-
çam nas ruinas e nos ermos, e logo que podem
entram nas povoações para atravessar negócios
e metter-se no corpo de alguém. Por isso durante
o silencio da noite se ouvem na rua os passos ca-
denciados do gram-deu que faz a policia.
Mas os espiritos são legiões e a vigilância divina
não se estende a toda a parte, nem suppre os cui-
dados que a experiência ensina. De noite, ainda
que se ouça uma voz conhecida, chamando, é pre-
ciso ter cautella e não abrir logo a porta; a voz
podia ser imitada por um espirito, e se elle apa-
nha a porta aberta, entra facilmente pela bôcca
de quem lhe responde e toma-lhe posse do corpo.
Não têm conta as tropelias dos bhuts e mhariis
quando se passa pelos lugares que elles frequen-
3o AS COMMUNIDADES DE GOA
tam, e a sua ousadia chega a ponto de se levan-
tarem contra o próprio gram-deu.
Vetai é o gram-deu de muitas aldeias e um dos
mais populares e honrados.
Na coUecção de Pitranas publicada pelos Je-
suitas no século xvii, e que o Conselheiro Rivara
denomina da Bibliotheca por lhe não conhecer o
auctor, um livro inteiro (i) é dedicado á refutação
de Vetai e dos Bhiits.
Representam-no em figura de homem «de dis-
forme e grandissima estatura», com um ferro na
mão direita e calcando aos pés um monstro.
Ha algumas variantes porque a identidade existe
unicamente no nome e o Vetai de uma aldeia não
é o mesmo de qualquer outra. Tem havido entre
elles grandes luctas e rivalidades. Ainda agora se
pode ver como o de Sanvordém cortou o nariz
ao de Cacorá e como este lhe decepou um dos
membros mais conspícuos, que ficou servindo de
linga (2), enterrado no chão.
Do Vetai, gram-deu de Cacorá, conta-se que
era muitas vezes provocado por um mharií, que
ia lá dentro ao pagode esbofeteal-o; outro Vetai
da mesma aldeia ensinou-lhe um estratagema para
fazer com que o mharií escorregasse, e só assim
(i) Ensaio histórico da lingua concani, pag. 148.
(2) Phallus, emblema do principio activo da creação. E
representado geralmente por uma pedra cylindrica.
BHUTS E MHARÚS 3I
é qué o gram-deu poude agarrál-o e calcál-o aos
pés, como agora o tem.
Já se disse que é este um dos deuses mais po-
pulares e os seus pagodes são constantemente
frequentados por mhars hindus e christãos, e ou-
tras classes inferiores que têm queixas a fazer, ou
negócios pendentes, e sobretudo pelos que andam
possessos. Estes são levados pela família aos pés
de Vetai, e se o espirito resiste aos exorcismos
do estylo, o guroii^ que é o sacerdote, recorre á
vara de deus — um junco dobrado e cingido por
anneis de prata. Em regra, depois de algumas va-
radas, o espirito pede perdão e resolve-se a sahir.
Para estas classes a distincçao de bons e maus
espiritos não parece claramente definida; o mais
prudente é não depender de nenhum, nem ter
nada com elles.
Entre os brahmanes a crença está egualmente
arreigada, mas os espiritos, que depois da morte
se separam dos cadáveres, não são todos maléfi-
cos; os bhuts e mhariis provêm dos que não rece-
beram os sacrificios, dos que se suicidaram, ou
foram victimas de desastres, e sobretudo de mu-
lheres que morreram gravidas, paridas, ou impu-
ras; os últimos são os peores de todos os bhuts
(alevantinas).
Tenho conhecimento de um facto authentico
acontecido com brahmanes honestos e que pode
servir de illustração. Vivem na mesma casa algu-
32 AS COMMUNIDADES DE GOA
mas famílias, descendentes de um tronco com-
mum, mas separadas na economia domestica. Ha
pouco tempo a mulher de um dos chefes de famí-
lia teve umas vertigens e desmaios, e deu outros
signaes certos de que se achava possessa. Verifi-
cado este ponto, um dos homens, o mais deste-
mido, agarrou-a pelos cabellos e esconjurando o
espírito perguntou-lhe: «quem és tu?» ate' elle
confessar que era a primeira mulher de um dos
outros chefes de família, fallecida ha muitos an-
nos, durante a gravidez. «Sae» mandou-lhe o que
agarrava a possessa, mas a alevantína não sahia.
«O que queres? Responde!» «Quero uma das fi-
lhas de Vishnu» . . . «Nem os excrementos d'ellas»
replicou este e bradaram todos, energicamente,
em coro.
N'este caso nenhum dos brahmanes duvidou da
sinceridade da possessa; o viuvo é que descon-
fiou da alevantína, e com efleito verificou-se dean-
te de Damodhar, gram-deu de Margão, que ella
era a mulher gravida de um vísinho vani, de quem
se suspeitara e que a outra continuava a estar
em Zambaulím presa pelo gram-deu.
Os processos para a investigação d'estas ma-
térias são diflferentes; nos pagodes em que os gu-
rous, ministros de castas inferiores, se têm man-
tido contra os brahmanes, e pertencem-lhes todos
os de Vetai, depois de invocações solemnes, deus
entra-lhes no corpo, que se contorce em movi-
■
BHUTS E MHARÚS 33
mentos epilépticos, ao som de uma musica infer-
nal e falia pela bôcca d'elles; nos outros pagodes
a resposta de deus é usualmente interpretada por
meio de flores, que lhe são ofiferecidas e pegadas
com agua, em linhas verticaes e parallelas, so-
bre uma columna, ou lamina polida.
No caso de que fallei, exposta a questão, o
bhoto molhou as flores, coUocou-as em linhas, e
revelou que se cahisse primeiro a segunda flor
da terceira columna, a alevantina era a mulher de
Vishnu, mas se cahisse antes a quarta da primei-
ra columna, então era a mulher do vani. O facto
de cahirem outras flores não tem importância,
só valem as nomeadas.
Mas nem todos os negócios são tão simples
que se prestem á interpretação das flores, e em
casos mais graves e complicados, os bhotos per-
mittem que se recorra ao avassar, ou sopro divi-
no, vulgarmente bhar; servem de meio outros brah-
manes, a quem palavras mysteriosas, mantras^
fazem cahir em convulsões; e então apregoam a
resposta de deus.
O culto dos antepassados, em Goa, é essencial-
mente brahmanico.
O filho mais velho introduz na bôcca do mori-
bundo um pouco de ouro, agua lustral, ç uma fo-
lha de tulossi e quando, depois, os outros filhos e
parentes conduzem o cadáver, sobre bambus, aos
hombros, para o lugar da incineração, elle é o
AS COMMUNIDADES DE GOA 3
34 AS C0MMUN1DADE3 DE GOA
portador do fogo do lar domestico, e assistido
por um ministro, purôliito, faz as cerimonias de
mantragfii ou consagração e communica-o á pyra.
Juntamente com o cadáver são queimados dez
bolos de arroz e dez pedacinhos de ouro.
O nojo dura dez dias e desde que se verifica a
morte até que voltem da incineração e se purifi-
quem com abluçÕes, o jejum é rigoroso e abso-
luto.
No quinto dia de lucto, ou mais geralmente no
nono dia, o representante do fallecido vae com
o purôhito recolher as cinzas e, repetidos os of-
ferecimentos e cerimonias, espalha-as na agua do
rio ou do mar.
No duodécimo dia as cerimonias são ainda
mais solemnes. Parte-se ao meio, em cima de
uma folha, uma porção de arroz cosido. Uma das
metades divide-se ainda em duas partes; de uma
fazem-se três montinhos de arroz, que se offere-
cem ao pae, avô e bisavô do fallecido, da outra
fazem-se três bolos que se oíferecem aos mesmos
ascendentes.
Da metade do primeiro monte, que ficou por
dividir, faz-se um rolo, ofFerece-se ao morto, e
divide-se em três partes. Com cada uma d'ellas
mistura-se um dos três bolos já ofFerecidos aos
ascendentes, faz-se um novo bolo e ofFerece-se-
Ihes novamente.
Quando o fallecido tem pae vivo, faz-se o mes-
CULTO DOS ANTEPASSADOS 36
mo, mas o bolo que se devia ofiferecer ao pae,
offerece-se ao avô, que recebe em duplicado, e
quando o avô está vivo também, o bisavô recebe
em triplicado.
Dedicam-lhes ainda outros alimentos, roupas e
muitas esmolas; os bhotos que recebem tudo isto,
são os intermediários entre vivos e mortos, e no
jantar com que terminam os officios, três d'elles
occupam os lugares do pae, avô e bisavô.
Estes sacrifícios repetem-se no primeiro anno,
todos os mezes, e depois nos anniversarios da
morte.
Segundo a theoria brahmanica é por este meio
efficaz que os vivos auxiliam os mortos no ca-
minho do céo, mas por debaixo de theoria os fa-
ctos denunciam uma origem menos sympathica.
A sede, a fome, a dôr, têm entre os povos pri-
mitivos estreitas relações com o espirito dos mor-
tos, e se a agua mata. a sede é porque tem poder
sobre esses espiritos. Por isso se lhe lançam as
cinzfis dos mortos; elles não podem passar a agua;
e por isso as abluçÕes são um dos actos mais im-
portantes dos ritos funerários e da expiação dos
peccados.
A gravidade dos peccados resulta de se ficar
exposto aos atíiques dos espiritos; Ram pelo fa-
cto de matar Ravan, um brahmane, commetteu o
maior de todos os peccados, e ainda hoje se cha-
ma ^am-itrth a agua capaz de lavar os maiores
36 AS COMMUNIDADES DE GOA
crimes (i); em Goa a tirtha (2) de Naroá, tinha
uma grande celebridade, e era concorrida por
mais de 20:000 pessoas no dia do nascimento de
Krishna, oitavo da lua minguante de Shravan
(Julho a Agosto) (3).
Já notei que nas classes inferiores a distincção
entre bons e maus espíritos não está claramente
definida; é verdade que alguns homens se têm
elevado a deuses, mas que motivos movem os pró-
prios deuses?
A imagem dos poderosos elles são arbitrários,
caprichosos e interesseiros, e todavia é preciso
acatál-os e fazêl-os propicios porque representam
as auctoridades constituídas.
D'ahi os sacrifícios «alimento dos deuses» por-
que todos os espíritos têm uma natureza idêntica
á nossa, sentem fome e sede e precisam de re-
pouso (4). Sob a influencia brahmanica o sueco
de somãy planta enebriante, foi substituído pelo
mel, e a effusão de sangue tem sido proscripta
dos pagodes, mas ainda se encontram em Goa,
no culto de Vetai, os restos de uma barbaria antiga.
(i) N^estes dois §§ segui o Gajetteer of the Bombay Pre-
sidency, vol. xxi (Belgaum), pag. 598, nota.
(2) Um lugar santo, especialmente ao longo de rios, ou
perto de nascentes sagradas ou do mar (apud Molesworth).
(3) Archivo Port, Oriental, fase. 6.°, supplemento 2,0, do-
cumento 35 e 119.
(4) Sir Monier Williams, Hinduism, pag. 39.
CULTO DE VETAL 37
O sacrificio tem lugar uma vez por anno. De-
terminada a época, um homem de geração de
bailadeiras vae na véspera, durante a noite, con-
vocar os espiritos ao limite da aldeia, pelas ruas,
e em volta das arvores que elles frequentam. Na
noite seguinte reunem-se no pagode os mhars, o
carpinteiro, ferreiro, mainato c outros artifices
sudras; levam para dentro dois búfalos estafados
de propósito, e três bodes; fecham depois as por-
tas e ficam apenas doze pessoas e o chamador,
que se senta abraçado a Vetai, de olhos venda-
dos. A meia noite, embriagados todos, no meio
de gritos que exprimem a alegria dos espiritos, e
ao toque de tambores, cortam as cabeças dos bú-
falos e bodes e deitam o sangue sobre um monte
de arroz cosido, aos pés de Vetai. E o banquete
dos mhariís. O chamador larga então Vetai, que
teria cabido se o não segurassem, e que se vê e
sente vacillar na occasião em que o mharú lhe
sae debaixo dos pés e vae, com os outros, sen-
tar-se ao banquete. Os mhars da aldeia levam em
seguida os animaes para um palmar retirado e alli
ficam e alli os comem, até de manhã, em uma
grande orgia.
Acima dos Ghates encontram-se sacrifícios
idênticos no meio de populações dravidianas (i)
(i) Bombay Ga^etteer, vol. xxii (Dharwar), pag. 807 e se-
guintes.
38 AS COMMUNIDADES DE GOA
e aqui acabamos de ver que a orgia se passa en-
tre mhars e sudras. Os curumbins não tomam
parte n'ella, e o seu deus, o verdadeiro deus de
Goa, é outro.
Abundam no paiz os ninhos de formigas bran-
cas, monticulos endurecidos de terra avermelhada,
a que um homem pode subir sem receio de que
desabem ou se abalem. As pyramides de que é
formado o monticulo, têm por dentro caminhos,
que communicam por um tunnel central e outras
passagens com uma grande esponja de terra,
cheia de pequenos pontos brancos. Estes pontos
são os ovos, postos pela rainha da colónia, uma
formiga enorme que occupa a cellula principal da
esponja e cujas funcções consistem unicamente
na procreação (i).
Está alli um dos alimentos mais apreciados pela
cobra de capello, e é dentro dos ninhos de for-
migas brancas que se alojam quasi sempre esses
reptis.
A acção mysteriosa de um veneno que fulmina,
o grande numero de victimas, a subtileza e rapi-
dez com que ataca, deram á cobra um caracter
sobrenatural, e os povos primitivos de Goa fize-
ram do seu inimigo mais terrível, o seu primeiro
deus.
O monticulo das formigas possuído pela cobra,
(i) Knowledge, vol. vii (i885), pag. io3.
SANTERY 39
OU que se suppõe habitado por ella, chama-se
em concani roina e mais geralmente santéry^ do
maratha satarí.
Na relação dos pagodes derrubados em Sal-
sete no século xvi, de 55 aldeias mencionadas,
3o dedicavam pagodes a Santéry, emquanto Ve-
tai tinha apenas i3 (i). Actualmente, nas Novas
Conquistas, Santéry é o gram-deu que se encon-
tra com mais frequência (2).
Sobre um ninho de formigas, geralmente fora
do povoado, eleva-se o pagode, e uma vez por
semana curumbins, sudras e marathas, ofFerecem
a Santéry arroz, leite e outros alimentos. No
quinto dia da lua crescente do mez Shravana (Ju-
lho a Agosto) é a grande festa, e todas as classes
tomam parte n'ella; o montículo, romã, é cober-
to de flores em grinaldas e polvilhado com sân-
dalo ; á volta ardem, em tigellinhas de coco, as
luzes de azeite. E as famílias vão em grupos, ho-
mens, mulheres e creanças, todos vestidos de
gala, prostram-se, accendem mechas perfumadas,
queimam em conchas de metal incenso e san-
(i) Bosquejo histórico das communidades, parte 2.», pag.
i38.
(2) Pôde vêr-se a Estatistica da índia Portuguesa,
por J. St. da P^onseca Torrie, pag. 325. A Ifsta das di-
vindades hindus, que ahi se encontra, não está exacta, mas
serve para dar idéa da extensão do culto de Santéry e
Vetai.
40 AS COMMUNIDADliS DE GOA
dalo, movem-nas ^m círculos deante de Santéry,
e fazem-lhe os offerecimentos do costume, arroz,
manteiga, leite, coco.
O folk-lore do paiz é riquissimo, e desde o
rude curumbim, até ao brahmane illustrado, todos
se deleitam em historias de bhuts e mhariís, de
deuses e rajás, mas os contos de nagas occupam
talvez o lugar mais importante na imaginação do
povo e de noite são repetidos em voz baixa, ba-
tendo-se sempre na bôcca com a mão aberta,
quando se profere o nome sôrôp, naga (cobra),
e naguina (cobra fêmea).
O culto de Santéry anda ligado com o das ar-
vores, especialmente do pimpol (ficus religiosa) e
vodd (ficus indica), geral nas terras de Goa ; além
de serem a habitação de mharús, que as animam
e lhes dão vida, a cobra encontra-se muitas vezes
nas raizes que lhes formam peanha, á flor da
terra.
Está também relacionado com o culto de Ve-
tai. .Em Cacorá, defronte do deus ingente, ha
uma estatua de mulher; é Santéry, que os da
aldeia dizem á bôcca pequena ser amante do seu
gram-deu. . .
Estes amores e o procedimento escandaloso
dos deuses, são olhados pelos hindus com uma
certa complacência; que andem contentes, e não
voltem contra nós as suas cóleras ... no mais, a
moralidade dos deuses não tem nada que ver
SANTÉRY 41
com a moralidade dos homens (i). Cada classe
com os seus costumes.
Dubois, que escreveu com grande conheci-
mento da vida intima dos povos do sul, deixou
notada a importância do culto da cobra, superior
ao de qualquer outro animal, e observou que os
hindus procuravam os buracos d'ellas nos mon-
ticulos de terra levantados pela formiga branca e
iam lá de tempos a tempos ofFerecer-lhes ali-
mentos. Observou também que muitos não as
expulsavam de casa e preferiam fazer-lhes sacri-
fícios e dar-lhes de comer todos os dias, em an-
nos seguidos (2).
• Foi" porém Fergusson quem primeiro apresen-
tou as provas de um culto geral da cobra e ar-
vore, e quem ligou o facto, attestado pelos mais
antigos monumentos da architectura indiana, aos
povos primitivos do paiz (3).
As conclusões do illustre escocez são inteira-
mente confirmadas pelo que se observa ainda
hoje nas Novas Conquistas e, aqui ao me-
(ij Vid. um esplendido estudo sobre as relações da moral
com a religião, nos Asiatic Studies de Sir Alfred Lyall, pag.
54 e seguintes.
(2) Dubdis — Description of tke character, manners, and
customs of the People of índia.
(3) Tree and Serpent Worship, — History of Indian and
Eastern architecture.
42 AS COMMUNIDADES DE GOA
nos (i), é indubitável que o culto se funda nas
camadas sociaes primitivas.
A maneira como a civilisação brahmanica tem
actuado sobre esse culto é uma questão interes-
santissima. Nas aldeias sertanejas vemol-o na sua
forma simples e primitiva — os sacrifícios deante
de um montículo levantado por formigas, onde
está, ou SC suppÕe estar a cobra. Quando nos
approximâmos dos centros brahmanicos, Santéry
apparece representada por uma elevação de alve-
naria, sobre a terra, de forma oval. É assim que
se encontra em um pequeno pagode, ao lado es-
querdo das escadas por onde se sobe para o
templo de Manguesh, em Pondá. AUi não ha, nem
pôde haver cobra, e o montículo das formigas
foi mais dissimulado do que imitado; dir-se-ia a
transição para o lingam.
Os brahmanes chamam-lhe de preferencia Shant
Durgá (Durgá serena, não excitada), e confun-
dem-na com ella.
O culto da cobra não é pois em toda a parte
>a degeneração de um culto espiritual das forças
vivas da natureza, como suppoz um escriptor de
grande talento, que as lettras acabam de perder,
(i) A origem não aryana dos Dasyus é hoje um ponto as-
sente. Sir W. Hunter, The Indian Empire, pag. 53. Tinha
contestado a doutrina de Fergusson o Babu Rajendralála Mi-
tra, Indo-Aryans.
^s^=
DAMODHÁR 43
Náráyan Mandlik (i); profundamente versado na
litteratura védica, o illustre brahmane julgou en-
contrar lá o typo original de um culto profes-
sado, talvez muito antes, por povos inteiramente
independentes e de imaginação muito menos viva
e delicada; como na Europa, entre espíritos reli-
giosos de grande valor, também na índia é fre-
quente, em nativos de muito saber e talento, a
notável preoccupação de que todas as cousas se
encontram nos livros sagrados e provêm do povo
escolhido. . .
O hinduísmo nãò repelle nenhuma crença,
absorve-as e vae-as transformando lentamente,
como vimos. a respeito de Santéry. Segundo o
Oriente Conquistado^ repositório de muitas cou-
sas menos prováveis, Damodhár, deus de Margão,
era filho de um dessai da aldeia; quando voltava
com a noiva e préstito de Quelossim foi atacado
pela gente de um gancar de Chimbel, a quem o
casamento despeitara ; todos foram mortos e a
alma penada de Damodhár andava depois errante
pela aldeia, a cavallo, exactamente como estava
na occasião do attentado. Com o tempo promo-
veram-no a gram-deu. Hoje, em Zambaulim, para
(1) Ráo Sáheb Vishvanáth Naráyán Mandlik, Serpent
Worship in Western India^ The Journal of ihe Bombay
Branch of the R. Asiatic Soctety. vol. ix, n.® xxvi, Bombay,
1870.
44 AS COMMUNIDADES DE GOA
onde se retirou desde a conversão, o antigo ca-
valleiro é simplesmente representado por um lin-
gam, symbolo de Shiva.
Uma vez procurei saber de um Smart intelli-
gente qual valia mais — Damodhár, seu actual
gram-deuj ou Shant Durgá, gram-dêvi de Que-
lossim, assento primitivo da familia, mas elle res-
pondeu» com uma pergunta, segundo o costume
do paiz, — não é Shiva marido de Shant Durgá ?
O próprio Vetai, apesar da sua forte indivi-
duação, vae caminhando rapidamente para a de-
cadência e parece condemnado a identiíicar-se
com alguma das encarnações (avatáras) de Vishnu
ou com o lingam (i).
Talvez não seja esta a sua primeira metamor-
phose. Na estrada de Qeulá para Bandorá encon-
tra-se quebrada e estendida no chão uma estatua
de Vetai; é gigantesca, sem ser disforme, e so-
bretudo não tem os exaggeros obscenos das que
se vêem nos pagodes. Deante d'ella lembrei-me
das estatuas yams e é possível que Vetai seja a
adaptação de uma estatua jain ao culto sensual
dravidiano. Nos seus pagodes conserva-se uma
(i) A transformação de Vithal ou Vithobá em Krishna
ainda não é geralmente acceite. Tenho visto confundir Vi-
thobá e Vetai, mas este é considerado o Shiva primitivo do
Deccan e Konkan no Ga^etteer o/ ihe Bombqy Presidençy,
vol. XXI (Belgaum), pag. 583, nota.
VESTÍGIOS DO JAINISMO 45
insígnia d'aquella religião: é uma vara com um
panno de seda enfiado em cima e terminando por
uma mascara de metal; em Goa chama-se-lhe
iaranguey em outros lugares y^mac/iá khamb (i);
nos dias de festa, o gurou leva-a encostada ao
hombro direito, na frente da procissão.
O gurou e algumas classes, entre as- quaes so-
bresaem os ourives (sonars), sentem contra os
brahmanes uma aversão tão profunda, que esse
facto tem sido considerado como um testemunho
vivo das dissenções religiosas provocadas pela in-
troducção dos cultos actuaes (2).
Goa não podia deixar de ser um paiz jain ou
budhista, antes da renascença brahmanica, e a
tradição fundada em importantes documentos, é
que os príncipes, que dominaram alli, introduzi-
ram os primeiros brahmanes como apóstolos da
religião nova.
Estabelecida a supremacia d'ella, as transforma-
ções passaram a fazer-se espontaneamente por
um impulso geral e harmónico. O hinduismo é
um systema religioso e ao mesmo tempo um sys-
tema social, fundado na desegualdade das castas
e dominado pelos brahmanes. Este ponto de dis-
ciplina é superior a todos os dogmas. Curumbins
(1) Gajetteer of the Bombay Presidency, vol. x (Ratnagi-
ri), pag. 119.
(2) Ibid., vol. XV (Kanara) parte !.■, pag. 259, nota.
46 AS COMMUNIDADES DE GOA
e sudras entram com os seus deuses para dentro
da civilisação brahmanica desde que reconhecem
o caracter divino da casta Icvitica.
A influencia social determina a influencia reli-
giosa, e os costumes, as crenças e instituições
brahmanicas vão penetrando, embora modificadas,
na massa do povo, insensivelmente, sem prosely-
tismo, por imitação.
O ptirôhtto^ no seu encargo de cura d'almas,
não exclue nenhuma casta; abre o registo dos
nascimentos e óbitos, intervém nos casamentos
e funeraes, e recebe esmolas de todos, egualmen-
te. As cerimonias não são as mesmas, mas a pre-
sença do brahmane solemnisa o acto e imprime-
Ihe caracter.
Também nunca faltaram brahmanes que me-
diante uma dotação idónea, se encarregassem das
cerimonias do culto {puja); elles estam promptos
para fazer as abluçÕes e sacrifícios e preparar a
lenda de qualquer deus, segundo a licção dosPu-
ranas; dão-lhe primeiro foros de cidade e cantam-
Ihe depois os louvores.
Os deuses adquirem assim um grau superior
de civilisação, mas a sua popularidade soffre tal-
vez com a mudança. Porque as attribuições divi-
nas de que tenho fallado, foram circumscriptas
sob a influencia brahmanica, e os ministros sudras
ou marathas, giirous e ghaddySy encarregam-se
também de negócios de outra ordem, egualmente
FEITICEIROS 47
importantes na estimação vulgar. Tudo depende
dos sacrifícios... Desde que sejam condignos,
Vetai presta-se a instrumento de vinganças e in-
vejas; talvez elle não comprometta a sua dignidade
intervindo directamente, como em geral se pensa;
as terríveis imprecações do ghaddy, na occasião
dos sacrifícios, levam antes a suppôr que deus
faz signa! aos mharús e os incumbe do negocio.
E certo que a par do culto divino floresce o
culto independente de mharús e bhuts, como
agentes maléficos. Os seus ministros, que são os
feiticeiros, celebram sacrifícios sangrentos nos
ermos só frequentados de espiritos, e encarregam-
se de despachar pretenções occultas por meios
repugnantes e muitas vezes criminosos.
Entre os curumbins ha herbolarios de grande
nomeada, que sabem combater o mau olhado e
livrar de quebranto com raizes que se penduram
ao pescoço, mettidas em capsulas, para não perder
o cheiro e a virtude. Elles sabem muitos outros se-
gredos, mas para ser feiticeiro é preciso ter trato
com os espiritos, e essas relações não são privi-
legio de nenhuma classe.
Parece todavia que alguns mouros e oleiros oc-
cupam, sob este ponto de vista, um lugar proe-
minente, e que em casos graves são chamados de
preferencia, tanto pelos hindus como pelos chris-
tãos.
Não é raro ver o dedo de feiticeiros em certos
48 AS COMMUNIDADES DE GOA
crimes, sobretudo em abortos, e ainda ha pouco,
em Salsete, foi morta a machado uma viuva,
porque o assassino, christão, por suggestões
de feiticeiros, se possuiu da idéa fixa de que era
perseguido pela victima e pelo espirito do ma-
rido.
Quando uma doença é rebelde e se reconhece
que os deuses nada podem no caso, recorre-se aos
espiritos, por intermédio dos feiticeiros. Também
acontece muita vez continuar-se com o tratamento
divino e, por baixo de mão, metter empenhos aos
mharús. Accende-se uma vela a Deus e outra ao
demónio. . .
Devia ser difficil conciliar estas crenças com
o fatalismo que anda misturado com ellas. Daiva^
o destino, é sempre uma explicação satisfatória
das cousas que não têm remédio. E uma das at-
tribuições mais curiosas do vigário brahmane
(purôhitoj consiste em interpretar a sina escripta
por Brahma na testa de cada um e promulgada
por Saslí, deusa da concepção e dos partos, na
sexta noite depois do nascimento.
Ha dias propicios e aziagos, bons e maus agou-
ros (i). E uma cousa assente que um casamento,
uma viagem, qualquer emprehendimento, não po-
dem principiar e celebrar-se indifferentemente
(i) Vid. o Gabinete litterario das Fontainhas, vol. i, pag.
172 e 196, e — Quadros históricos, caderneta 3.», pag. 52.
SHECÚN E APSHECÚN 49
n'este ou n'aquelle dia, e também não pode
haver duas opiniões a respeito de certos si-
gnaes.
Estes factos exercem uma grande influencia e
formam um corpo de doutrina, muito compli-
cada e obscura; as primeiras linhas encontram-
se em livros populares, mas só os ministros brah-
manes, puróhitos e joshíSy lhe conhecem a pro-
fundeza. Por isso elles adivinham e prevêm
o futuro, reconhecendo d'este modo implicita-
mente que ha uma ordem de cousas fixa e inal-
terável ...
Consideradas por este lado taes superstições
são os primeiros signaes de confiança em leis
permanentes e representam os primeiros passos
da experiência humana, em conflicto com vellei-
dades e caprichos sobrenaturaes.
O systema tem intima ligação com o movimen-
to e apparencia das estrellas e planetas e abrange
na sua parte mais vulgar acontecimentos insigni-
ficantes que entram no dualismo shecún, de bom
agouro, e apshecún, de mau agouro por motivos
mysteriosos.
Na verdade não se sabe bem porque é shecún
ouvir dois espirros seguidos, e porque um só é
apshecún; porque entra n'esta segunda cathegoria
uma gralha que atravessa o nosso caminho voando
da direita para a esquerda, e porque pertence á
primeira a que vôa da esquerda para a direita;
AS COMMUNIDADES DE GOA 4
5o AS COMMUNIDADES DE GOA
porque é apshecún deparar com um gato, de ma-
nhã, quando* a gente se levanta. . .
Se o esfregar de um pau, observa Lyall, sem
sacrifícios nem invocações divinas, produziu fogo,
um resultado maravilhoso, porque é que duas
facas atravessadas no limiar, ou um farrapo ver-
melho pendurado na verga da porta, não haviam
de chamar ou afugentar a doença? O raciocínio
não põe limites a analogias d'esta ordem na ima-
ginação do homem primitivo.
Do mesmo modo se podia ter assentado que a
passagem de uma gralha de um lado para outro
é sempre um signal de desastres, ou venturas, se
a coincidência se verificou um certo numero de
vezes, e com effeito, são communs a todos os
povos idênticos erros de inducção.
A sua importância, aqui, provém da influencia
geral que elles exercem e de constituírem um sys-
tema, com grande apparato de números, dia-
grammas e exegese.
Ao dualismo sheciín e apshecún^ corresponde en-
tre os chinezes o feng-shuiy com regras e leis a
tal ponto reconhecidas, que os tribunaes conhe-
cem de questões fundadas n'elle unicamente. Se a
exposição de uma casa ou sepultura ás correntes
do feng-shui foi perturbada por qualquer facto ou
obra nova, pode haver fundamento legal para uma
acção e os juizes apreciam o merecimento d'ella
e proferem sentença. Ora segundo uma grande
FENG-SHUI 51
auctoridade (i) o progresso e desenvolvimento
do feng-shui foi estimulado sob a influencia do
budhismo, introduzido na China desde o principio
da nossa era. Seria interessante averiguar se os
dois systemas têm entre si alguma relação.
(i) Dr. Ernest J. Eitel, Feng-Shui, or the rudiments of
natural science in China, pag. 72 e 80.
III
A família
Vaddil é o maioral e representante de uma fa-
mília. A palavra deriva de vodd ou padd (ficus in-
dica) essa arvore magestosa que se estende e pro-
paga lançando dos ramos para o chão raizes que
vêm a fazer-se troncos. A familia hindu agrupa-se
á roda do chefe, e cada filho é um membro da
grande arvore, e ao mesmo tempo um novo tron-
co, de raizes independentes.
As casas são geralmente habitadas por varias
familias, algumas com economia separada, mas o
pae e os filhos e netos, ou os irmãos e sobrinhos,
continuam em regra a viver em sociedade e o
culto domestico dos antepassados e de Ganesh,
deus da prudência e sabedoria mundana, fazem-
se quasí sempre em commum.
E difficil a separação do lar e os que saem
procuram estabelecer-se ao pé, em colónias.
54 AS COMMUNIDADES DE GOA
A família conjuncta, caracterisada pela com-
munhão de bens sob o pátrio poder do Vaddil,
embora restricta a uma ou duas gerações, é ainda
a unidade da aldeia e portanto da sociedade
hindu.
Está escripto nos livros sagrados que um dos
principaes deveres do brahmane é continuar a
sua geração e pagar aos progenitores com um
filho a divida dos sacrifícios.
Porque a familia perpetua-se unicamente pelos
descendentes masculinos, e as mulheres entram
pelo facto do casamento na familia dos maridos.
Desde então deixaram de pertencer aos parentes
e estes, pelo seu lado, exoneraram-se do encargo
em que estavam constituídos para com ellas.
Não poderia haver nada mais humilhante, nem
se encontra provavelmente em Goa uma só fa-
milia de respeito que não tenha estabelecido as
suas filhas.
A desproporção numérica dos sexos e outras
circumstancias fazem com que o casamento d'el-
las, que tem de celebrar-se antes da puberdade,
seja sempre um negocio grave.
Com antecedência de três ou quatro annos, os
pães deitam as suas vistas e pedem a data e o
signo do nascimento do noivo que desejam; por
sua parte mandam as notas relativas á noiva e
as duas famílias consultam os purôhiios, que res-
pondem como podem e ás vezes como querem.
CASAMENTO
55
E assim por uma forma indirecta e característica
das maneiras brahmanes, se pode obstar a uma
proposta que não agrada ; os signos não combi-
nam e o casamento não seria propicio. . .
Mas se os horóscopos se harmonisam, a fami-
lia da noiva faz as propostas do casamento,
fixa-se o dote com que ella ha de entrar para o
casal e celebram-se os desposorios. Os parentes
do noivo vão a casa da noiva com as pessoas das
suas relações e com o pui^òhito, adornam-na de
flores e tomam uma pequena refeição.
E o purôhito quem escolhe o dia propicio para
o casamento e determina a hora em que o noivo
e parentes hão de ir buscar a noiva, com musica
e bailadeiras, em procissão. O próprio momento
da solemnidade está escripto em um papel deante
do qual os pães se curvam reverentes.
Considerado um sacramento e por isso indis-
solúvel entre brahmanes, o matrimonio está su-
jeito a uma regra, que actualmente não tem exce-
pções. Em primeiro lugar não pode celebrar-se
entre pessoas da mesma gôtr^a (familia), e em
segundo lugar só pode celebrar-se entre pessoas
da mesma casta. Estas relações íigurám-se por
dois círculos concêntricos, o da gôtra^ que exclue
o casamento, e o da casta que o limita externa-
mente.
Os descendentes, por varões, de um tronco
commum, que os brahmánes chamam mul-pui^ú-
56 AS COMMUNIDADES DE GOA
sha (i), e a que rendem culto, costituem a gôtra.
Quanto ao segundo circulo importa muito obser-
var que a palavra casta^ n'este caso, tem um sen-
tido restricto e determina-se pela profissão, ou
por uma certa ordem de profissões, e também
pela seita.
Chit-pavans e Shenvis não casam apesar de se-
rem egualmente brahmanes, e houve tempo em
que os Smarts e Vaishnavas de Goa também se
não cruzavam, apesar de uns e outros pertence-
rem á tribu dos Shenvis.
Nas classes inferiores, mesmo entre christãos,
os casamentos não se fazem senão entre famílias
de profissões muito próximas.
Por isso a população apresenta o aspecto stra-
tificado que a distingue e caracterisa.
As refeições communs são um acto essencial de
todas as solemnidades hindus e estam sujeitas a
prescripções idênticas. Um brahmane não pode
comer senão em casa de outro ferahmane, nem
bebe agua em que tocasse pessoa de casta infe-
rior; mas não é tudo, porque o Chit-pavan não se
senta a comer ao pé do Shenvi, e nos jantares
dedicados aos mortos ou em quaesquer outros,
os bhotos ficam ao lado, para evitar contactos
impuros.
(i) Mui — raiz (de uma arvore) e purúsha — homem, apud
Molesworth.
CASAMENTO 57
A puberdade da noiva é celebrada com ceri-
monias em que tomam parte as duas familias, e
então os esposos unem-se, o casamento consu-
ma-se, e o maioral da família do noivo, se este
não era o próprio maioral, passa a exercer sobre
ambos o pátrio poder.
Esse poder era muito amplo, mas não deixava
de ter importantes restricções. O Foral de i526
exigia o consentimento da aldeia e de todos os
herdeiros para se eíFectuar a venda de alguma he-
rança. Na coUecção de iisos e costumes de 1824 (i)
não lhe erá permittido vender, doar ou trocar os
bens da casa, sem accôrdo «dos mais irmãos, pri-
mos e filhos» e para as doações de terras era
preciso o consentimento dos coherdeiros e da
communidade. Na ultima collecçao de 1853 pro-
hibia-se-lhe praticar, sem accôrdo das pessoas
maiores e hábeis, quaesquer actos que podessem
trazer graves prejuizos á familia, e n'esse numero
se comprehendisP expressamente alienar bens de
raiz, contrahir grandes dividas e fazer grandes doa-
ções.
Quando se falia do consentimento de herdeiros
e membros da familia, subentendem-se os varões.
A primeira coUecção citada apenas reconhece ás
mulheres o direito de ahmentos. A segunda de-
clarava que o marido (maioral) não carecia do
(1) CoUecção de bandos, vol. i.°, pag. yj e seguintes.
58 AS COMMUNIDADES DE GOA
concurso da mulher para quaesquer actos ou con-
tractos, ainda que versassem sobre bens de raiz,
mas já resalvava o caso de se estipular outra
cousa em pactos antenupciaes.
O desenvolvimento dos usos e costumes hin-
dus em corpo de doutrina é um dos factos mais
notáveis da civilisaçao a que estam ligados os po-
vos de Goa; a sciencia dos deveres (dharnia)^ como
preparação para o estudo dos Vedas, era profes-
sada na índia muitos séculos antes da era christhã,
e para instrucção dos alumnos coUigiram-se insti-
tutas, primeiro em aphorismos e sentenças, depois
metrificadas, que eram entregues á memoria e se
transmittiani assim de geração em geração. Per-
tence a esta classe de institutas um livro muito
conhecido na Europa pelo nome impróprio de
Código de Manu, andam traduzidos muitos outros
e sabe-se que existiram para cima de cem (i).
Com o tempo essas obras, todas em sanscrito,
foram adquirindo auctoridade e consideraram-nas
de inspiração divina. Se os Vedas foram ròíos pelos
rishis^ que nós podemos chamar com grande pro-
priedade videnteSy as regras para os sacrifícios, os
ritos, e systemas de deveres, que constituem os
dhaj^ma-shastraSy passaram da memoria dos t^ishis
para a tradição.
Mas os dharma-shasiras indicavam apenas arti-
(i) West and Biihler, A Digest, pag. 27.
DHARMA-SHASTRAS Sg
gos de doutrina, necessariamente sujeita a modi-
ficações; interpretál-os e adequal-os ás circum-
stancias, foi a grande obra de jurisconsultos pos-
teriores em commentarios e tratados, egualmente
em sanscrito, que se succederam uns aos outros
nos centros mais importantes de cultura. Con-
tam-se três escolas no norte e duas no sul da ín-
dia, distinctas pelo caminho seguido, e indepen-
dentes pelos trabalhos dos seus jurisconsultos.
«Pode unicamente questionar-se, em minha opi-
nião», escreve um orientalista de nome, «se não ha
muito mais que cinco escolas de leis. Penso que
ha e como exemplo de outro centro de jurispru-
dência hindu, além d'aquelles cinco, posso men-
cionar a cidade e districto de Daulatabad nos do-
minios do Nizam» (i).
No paiz maratha e no Canará do Norte, isto é,
nas terras á volta de Goa, o commentario de Vi-
jnanesvara ás Instituías de Yâjnavalkya conhecido
pelo nome de Mitâksharâ é a maior auctoridade
na exposição dos usos e costumes (2). Podia por
isso naturalmente presumir-se que o mesmo livro
teria aqui o primeiro lugar. A ignorância da lin-
gua clássica e preoccupações religiosas concor-
rem para que em Goa se tenha por desprêso
entre os nativos christãos, que preponderam na
(i) Dr. Julius Jolly, History of ihe Hindu Larv, pag. 17.
(2) West and Biihler, A Digest, pag. 10 e seguintes.
6o AS COMMUNIDADES DE GOA
administração, o estudo das instituições hindus,
e nas codificações de 1824 e de i853, umas vezes
a influencia das leis portuguezas, e outras vezes
costumes peculiares, prevaleceram em pontos
importantes. Conhece-se porém de todo o con-
texto dos artigos que para a sua elaboração,
assim como para o Foral de i526, foram consul-
tados shastris, brahmanes entendidos nos dharma-
shastraSy e o addicionamento aos usos e costu-
mes de 1824, feito pela Gamara Geral de Pondá
em 1825, é acompanhado de uma declaração de
que foram revistas (pelos shaslris) quatro obras,
a primeira das quaes é a parte do Mitâksharâ
que trata dos usos civis e criminaes (yyavaha-
ra){i).
As Institutas de Yâjnavalkya são idênticas ás
de Manu, mas menos antiquadas na doutrina e
talvez na forma actual metrificada, que se sup-
põe não será anterior ao primeiro século da era
christã (2). Têm cerca de mil versos, divididos
em três capitulos, um sobre regras de conducta,
outro sobre lei civil e criminal, e o terceiro sobre
penitencias.
Vijnanesvara, brahmane vaishnava, escreveu na
segunda metade do século xi, em Kalyâna, sob a
dynastia dos Ghalukyas, a esse tempo senhores
( 1 ) Collecção de Bandos, vol. i .0, pag. 287.
(2) History of the Hindu Laiv, pag. 49.
A MULHER 6l
de Goa. O seu commentario, lê-se no Digesto de
West e Buhler, que vou seguindo n'este assum-
pto, é antes um trabalho novo e original, ba-
seado sobre o texto de Yâjnavalkya, do que
meramqnte uma glosa, e distingue-se na vasta
litteratura jurídica da índia por ter separado a
propriedade da esphera religiosa, pelo valor que
deu á consanguinidade independentemente da
agnação e pela elevada concepção do caracter e
capacidade da mulher.
O isolamento natural das terras de Goa, o re-
gimen da terra, a preponderância dos brahmanes
Shenvis, ao que parece oriundos de Bengala, e o
domínio mahometano, são factores de primeira
ordem para o estudo da questão, mas é certo
que as doutrinas do Mitâksharâ não correspon-
dem, nem aos costumes codificados, nem aos
factos actuaes, em pontos importantes.
A posição da mulher na classe brahmane está
muito distante d'aquella elevada concepção e an-
tes reúne todas as condições que seria possível
imaginar para deprimir uma raça physica e mo-
ralmente.
Os casamentos são tratados pelos parentes,
sem intervenção dos noivos, e o mal não é tão
grande como á primeira vista pode parecer, mas
as uniões logo em seguida á puberdade trazem
consequências funestas para os filhos e mães.
Os filhos são gerados antes dos pães terem at-
02 AS COMMUNIDADES DE GOA
tingido O desenvolvimento próprio para a procrea-
ção, e as mães, destituidas de instrucção e per-
didos em poucos annos todos os encantos physi-
cos, ficam reduzidas a uma condição miserável.
Reclusas dentro de casa, occupadas na cosinha
e em intrigas, e martyrisadas emquanto noras,
vingam-se quando chegam a ser sogras. Comem
depois dos maridos, nos pratos de folhas de que
elles se serviram, e resignam-se ou suicidam-se,
ao vêl-os gastar a vida e a fortuna entre baila-
deiras.
São estas as únicas mulheres hindus a quem en-
sinam a ler e escrever. . .
Mas a situação mais deplorável da brahmane é
a viuvez. Antes do cadáver do marido ser levado
para a incineração, a viuva tira o collar, que sym-
bolisava a alliança conjugal, e todas as jóias, e o
barbeiro rapa-lhe o cabello. Se é ainda impúbere,
o lucto principia quando a união devia consumar-
se. . . E ahi fica uma creança condemnada a pas-
sar toda a vida entre pessoas estranhas e a ver-
se repellida em toda a parte como cousa de mau
agouro.
Perto de algumas aldeias ha lugares ainda hoje
conhecidos pelo nome de sati-málla, outeiro das
viuvas queimadas com o cadáver dos maridos, e
no caminho de Sanvordém para Zambaulim, nas
proximidades de Sirvoy, um grande numero de
estatuetas de mulheres, dispersas no campo, re-
A MULHER 63
corda antigas immolações; a sorte actual das viu-
vas é apenas a alternativa da que em outro tem-
po as esperava.
A pratica era commum a muitos outros po-
vos. Como podia o marido ser feliz separado
da mulher? A união, interrompida pela mor-
te, ia continuar desde que a viuva se atirava
ás chammas e ambos os cadáveres se consu-
miam. . .
Prohibido pelas leis portuguezas, o costume
terminou sem protestos, e foi substituido por uma
ficção curiosa. Hoje a viuva, antes do cadáver do
marido ser tirado de casa, colloca-lhe sobre o pei-
to uma porção dos seus cabellos e uns pedaços
das manilhas de vidro que usava.
Felizmente, tudo isto se vae modificando com
rapidez. As leis vigentes não fazem distincção en-
tre mulheres hindus e christãs, e os exemplos e
idéas dominantes vão penetrando n'aquella socie-
dade e produzindo benefícios de muito mais apre-
ço, senão egualmente importantes.
Os vaishnavas são menos sujeitos a preconcei-
tos do que os outros brahmanes e desde tempos
antigos viuvas d'aquella seita costumam abrir
pousadas e vivem assim "honestamente do seu
trabalho e industria. O facto já não merece gran-
des reparos. Vê-se hoje sem escândalo quasi
todas as viuvas adiarem para depois da mocidade
o corte dos cabellos, e as relações de sangue en-
64 AS COMMUNIDADES DE GOA
tre pães e filhas casadas occupam um grande lugar
na vida intima da familia.
E muito menos triste a situação da mulher nas
castas inferiores.
Nas mallogradas codificações de usos e costu-
mes, de que tenho fallado, os brahmanes não atten-
deram, como era natural, senão ás regras que
prevaleciam entre elles, e só excepcionalmente
se referiram á adopção e successão em outras
classes. Convém todavia notar que cada casta tem
os seus costumes. No rigor dos textos sagrados,
o matrimonio só é reconhecido como sacramento
indissolúvel entre aquelles que nascem segunda ve:{,
pela iniciação em palavras sagradas dos Vedas e
investidura no cordão que trazem a tiracolo
desde aquella cerimonia. Ora em Goa só os
brahmanes e qualificadamente os vanis (vaisyasj
têm direito á iniciação e recebem a investidura.
Todas as outras classes são excluídas dos sacri-
ficios brahmanicos, e os seus ritos considerados
imperfeitos, porque lhes faltam as mantras ou
palavras sagradas que os bhotos não podem pro-
nunciar senão deante dos iniciados. O reconhe-
cimento publico suppre n'esse caso as cerimo-
nias.
Os curumbins, que constituem o stratum mais
antigo da população do paiz, conservam, ainda
mesmo os christãos, um costume que justificaria,
independentemente de outras provas, o lugar em
ADULTÉRIO 65
que os colloquei. Nas outras classes, a noiva em
regra, leva para o casal um dote que varia, con-
forme a fortuna das famílias; os curumbins com-
pram-nas; dão por ellas um preço nominal que
entre os christãos é de três ou quatro rupias.
Apesar d'isto e de se sujeitarem a trabalhos
pesados, tanto as mulheres curumbins como as
das outras classes inferiores se podem talvez con-
siderar mais felizes do que as brahmanes; as suas
relações com os maridos estam n'um pé de maior
egualdade; homens e mulheres occupam-se na
labutação dos campos, e as casas de terra e ca-
banas apenas servem para os abrigar e aquecer
durante as chuvas e nas noites de terral,
A monogamia prevalece geralmente, mas qua-
lificada pela convivência habitual com bailadeiras,
sobretudo entre brahmanes •, para esses, e para
os que nascem segunda ve^ pela iniciação, o matri-
monio é um sacramento, que só o adultério da
mulher pode dissolver.
Supponho que não haverá paiz em que o es-
cândalo de taes factos seja menos frequente. As
classes baixas são pouco escrupulosas no assum-
pto e em todas o peccado é meramente venial se
foi praticado com homem da mesma casta ou su-
perior; o que os dharma shastras punem com as
mais graves penas. são as relações de mulher de
casta superior com homem de casta inferior; a
castidade é portanto uma questão secundaria e
AS COMMUNIDADES DE GOA ^
66 AS COMMUNIDADES DE GOA
subordinada ás leis fundamentaes da organisaçao
hierarchica das classes (i).
Nas Institutos de Manu, as relações com ho-
mens de casta superior são até incitadas (2), o
que representa de certo um estado differente d'a-
quelle em que se acha a sociedade de Goa.
O Código de i853 misturou com grande incon-
gruência mouros e hindus e applicou os costumes
dos brahmanes a todos egualmente. Na verdade,
havia de ser difficil apurar os costumes especiaes
de cada casta e parece que sob o ponto de vista
do legislador e relativamente aos hindus seria mais
conveniente o procedimento seguido; mas nem as
conveniências publicas, nem os costumes das clas-
ses mais numerosas permittiam que se affirrnasse
em absoluto que as mulheres gentias não podem
casar depois de púberes, que as viuvas, púberes
ou impúberes, não podem contrahir segundas
núpcias, e que os filhos nascidos d'essas uniões
se deviam considerar illegitimos (3).
Os tribunaes do paiz visinho, desde i856, em
virtude de lei expressa, reconhecem entre os hin-
dus as segundas núpcias de viuvas, os casamen-
tos de mulheres púberes e a legitimidade dos seus
filhos (4).
(\) A Digest, pag. 424 e 884, nota c.
(2) Ibid. pag. 884, nota c.
(3) Código dos usos e costumes de i853, art. 1,76121,
(4) Act XV of i856, citado no Digesto de West e Biihler.
ADOPÇÃO 67
Chamam-se mulheres de panno as que em Goa
se casam n'estas condições, porque o presente
de um panno pelo marido é a formalidade de que
depende o reconhecimento publico. Fazem-se com
frequência nas classes inferiores estes casamen-
tos e parece que hoje se devem considerar legi-
timos, nos termos dos artigos 2.° e 3.° do Decre-
to de 16 de Dezembro de 1880, entre os que não
têm o segundo nascimento da iniciação.
Apesar d'estas diíFerenças de costumes, pode-
mos desde já assentar mais dois factos importan-
tes e communs a todas as castas. Em primeiro
lugar, o casamento é regra geral para ambos os
sexos e não se encontram no paiz brahmanes que,
seguindo as regras sagradas da casta, passem
pelos quatro estados do estudo, casamento, pe-
nitencia e contemplação. Todos ficam no segun-
do estado. Entre os próprios sacerdotes brahma-
nes só os gurúSy ou directores espirituaes, são
celibatários e fazem voto de castidade, dedicando-
se a um ascetismo profissional. Em segundo lu-
gar, todos se consideram obrigados a continuar
a familia com um descendente varão.
Este ultimo facto é de importância capital e
deriva d'elle a adopção por uma serie de degraus
que facilmente se reconhecem ainda. Na littera-
tura védica, as deficiências naturaes encontram-se
suppridas, ou pela nomeação de uma filha, ou
pela intervenção dos irmãos e parentes do mari-
68 AS COMMUNIDADES DE GOA
do. A filha nomeada daria ao pae um descenden-
te, que ficava pertencendo, como filho, não ao
marido e pae, mas ao avô, e os irmãos e paren-
tes podiam para o mesmo fim, substituir o mari-
do no leito conjugal.
Os dharma-shastras reconhecem já a adopção,
mas em um lugar subalterno. As Institutas de
Yâjnavalkya enumeram doze espécies de filhos
capazes de succeder e são: i.° o filho do próprio
corpo; 2.® o de uma filha nomeada; 3.® o feito
por um parente nomeado; 4.® o que é feito por
outra pessoa furtivamente (adulterino); 5.® o que
nasceu de mulher solteira e é depois levado com
ella para casa do marido; 6.° o de mulher casada
segunda vez; 7.° o que foi dado pelo pae, pelo
pae e n\ãe, só por esta com auctorisação do pae,
ou na ausência e fallecimento d'elle; 8.° o com-
prado; 9.° o orphão tomado só com o seu con-
sentimento; 10.° o que perdeu os pães ou foi aban-
donado e se entregou a si próprio; 11.® o que
nasceu de mulher gravida ao tempo do casa-
mento; e finalmente, 12.^ o que foi expulso pelos
pães e tomado por um protector como filho.
Estas distincçÕes apenas servem hoje para nos
dar idéa do caminho por onde se tem andado.
Actualmente os filhos do próprio corpo, isto é,
os que as justas núpcias demonstram, e os adop-
tivos, são os únicos reconhecidos em Goa e na
índia.
ADOPÇÃO 69
O adoptivo não pode casar com pessoas da
familia de nascimento até ao sétimo grau; em
tudo o mais cessam as relações de sangue e elle
toma o lugar de um filho nascido na familia de
adopção.
É possivel que a instituição estivesse pouco ge-
neralisada ao tempo do Foral de i526, omisso a
este respeito. Na collecção de usos e costumes de
1824 encontram-se porém algumas regras que de-
pois foram refundidas, com modificações, na col-
lecção de 1853.
Uma das modificações consiste em que na pri-
meira collecção se faz referencia ao consentimento
da aldeia e não pode duvidar-se de que a op-
posição da communidade era um impedimento
legitimo á adopção. A falta de consistência da fa-
milia, revelada n'este e em outros casos, é um
facto importante para aferir o valor da theoria
que deriva d'aquella instituição a communidade (i).
Na collecção de i853 exigia-se apenas que a adop-
ção fosse celebrada perante a communidade, no
livro da aldeia.
Ambas as collecções permittiam a adopção a
todas as classes, comtanto que não houvesse
filhos varões, e o adoptivo fosse da mesma casta;
(i) Conf. Sir Henry Sumner Maine — Early History 0/
Institutions, pag. 69 e seguintes, e Herbert Spencer — The
Principies of Sociology, vol. i.®, pag. 718 e seguintes.
70 AS COMMUNIDADES DE GOA
ambas davam preferencia ao secundogenito de
irmãos, e excluíam nova adopção emquanto vi-
vesse o primeiro adoptivo.
A lei vigente (Decreto de i6 de Dezembro de
1880, art. 11) manda tirar o adoptivo d'entre os
parentes successiveis, preferindo os secundogeni-
tos de irmãos, ainda não investidos no cordão
sagrado entre brahmanes. Como a successão dos
hindus se regula pelo Código Civil, os filhos de
filhas e de irmãs poderiam também ser adopta-
dos. Os costumes dos brahmanes repellem po-
rém taes adopções.
Quasi todos os shastris e invariavelmente os
tribunaes estrangeiros seguem a regra de que só
pode ser adoptado por brahmanes aquelle que
podia nascer do casamento da mãe natural com
o pae adoptante.
West e Biihler (i) filiam a doutrina actual na
antiga pratica de alugar a mulher de outro para
procurar descendência. O homem sem filhos
podia juntar-se com uma mulher casada para o
fim de obter um descendente e isto era auctori-
sado por textos sagrados, quando o incesto se
reputava já abominável. Aquellas relações não
podiam pois effectuar-se entre pae e filha ou entre
irmão e irmã.
Posteriormente a adopção tomou o lugar dos
(i) A Digest, pag. 883 nota a.
■-.^"hfjií^-
TESTAMENTO E SUCCESSOES 7I
processos antigos e a imitação da natureza
constituía um elemento essencial da ficção.
Foi decerto uma ordem de idéas mui differente
que determinou a lei actual. Mas a escolha é
livre a respeito de herdeiros e os brahmanes po-
dem do mesmo modo excluir os filhos de irmãs.
Quanto aos kshairiasy contemplados no Decreto
de 16 de Dezembro de 1880, é talvez conveniente
dizer que a casta não existe em terras de Goa.
O testamento, desconhecido na índia, teve a
mesma origem e resultou de uma evolução idên-
tica na sociedade romana. O seu fim era transfe-
rir a representação da casa e se os bens se
transmittiam egualmente era porque o governo
da familia trazia comsigo os direitos e encargos
da administração (i).
Tratando de successões o Foral de 1626 distin-
guia, como fazem os jurisconsultos hindus, entre
heranças místicas (familia conjuncta), e divididas.
No segundo caso se um homem morria sem des-
cendentes, ainda que tivesse ascendentes, herdava
o Rei. Se a herança era mistica, na falta de des-
. cendentes herdavam os ascendentes, e na falta d'es-
tes, os irmãos herdavam os immoveis e o Rei os
moveis. Havendo filhos legitimos de dififerentes
(i) Sumner Maine — Tlie Ancient Law pag. 194, — Mr^
Fustel de Coulanges, La Cite Antique, pag. 87,6 — Dr. Julius
Jolly, History of the Hindu Law, pag. 98.
72 AS COMMUNIDADES DE GOA
mulheres os de uma recebiam tanto como os de
outra, embora o numero fosse desegual. E em
qualquer caso «nenhuma filha não herdará na fa-
zenda do pae, nem da mãe», «e por fêmea ne-
nhuma pessoa não herda, nem filha». Encontra-
se também expressamente declarado que os filhos
não podiam partir a herança do pae em vida d^elle,
salvo por sua vontade.
Que o lugar do Rei n'estas regras de succes-
são era o do seiíhor da ten^a nos tempos anterio-
res ao Foral confirma-se na Provisão do Gover-
nador Martim AíFonso de Souza, de 28 de Julho
de 1542 (i), pela qual foram excluidos os moveis
da successão real quando houvesse filhas.
A antiga pratica era necessariamente uma ex-
torsão; nos dharma-shasty^as e commentarios a
ordem das pessoas chamadas á herança compre-
hende muitos outros parentes antes de chegar ao
Rei; a respeito dos brahmanes entendia-se que a
casta succedia na falta d'esses parentes (2), e é
natural que aqui, como no Panjab com a tribu (3),
a communidade, e não o dominante estranho, se
devesse considerar o ultimo herdeiro.
A sentença de 14 de Agosto de 1534, referen-
P^ i>\kivo Port. Oriental^ fase. 5.°, parte i.% doe. n.o 76.
' ' ' y /VA*e>7, pag. 138, nota a.
y^) IM. pa^kj, 1 38, nota íi. -— Fora/, eap. 18 e \<^—Ususe
<y^^iufiw\ sic t^S4» Resposta 14.
--Vví^55t.í^-'-^'
SUCCESSOES 73
dada pelo Governador Nuno da Cunha (i), tinha
já feito outra modificação no Foral ordenando
que a partilha entre irmãos, filhos de mães diffe-
rentes, se fizesse em quinhões eguaes a respeito
de cada um.
Consta do relatório terem attestado os ganca-
res e outras pessoas perante o ouvidor «que cos-
tume antigo era que as fazendas se repartiam por
duas maneiras, a saber, uns repartiam como diz
o Foral, que era um costume, e outro era que os
filhos repartiam egualmente as fazendas, tanto um
como outro, posto que fossem filhos de duas e
três mulheres, que tenha uma muitos, e outra te-
nha poucos, que ambos estes costumes se costu-
mam, e que quando ha ahi differença doestas par-
tilhas, que se segue a lei, que é haver tanto um
como outro.» A lei, a que os gancares se refe-
riam, não podia ser outra senão a dos textos sa-
grados, provada no processo pelos depoimentos
dos lettrados, ou shasMSy e que d'este modo ia
prevalecendo sobre o costume do Foral.
Mas esse costume obsoleto, e que estava em
completa desharmonia com um systema, em que
por fêmea nenhuma pessoa herdava, importa de
certo a antiga existência de stirpes determina-
das pela mãe, e não pelo pae, facto curioso e
suggestivo, quando se vê no Malabar a polyan-
(i) Archivo Pori. Oriental, fase. 5.o parte i." doe. n.® 72.
74 AS COMMUNIDADES DE GOA
dria e em toda a índia o estado legal das baila-
deiras.
Na collecção de usos e costumes de 1824 con-
signa-se que os descendentes herdam aos ascen-
dentes e estes áquelles; na sua falta os irmãos, e
depois os mais coUateraes até á sétima geração.
Ás mulheres apenas se reconhece o direito de ali-
mentos e jóias, e são expressamente excluídas
da herança não só ellas, mas também os descen-
dentes por parte de mãe, filhas e irmãs. Esta ul-
tima regra tinha porém uma excepção restricta
aos filhos de filhas quando não havia agnados
dentro de sete gerações. Só na falta de filhos de
filhas é que era chamado á herança o Sarcar, ou
soberano, relativamente aos bens que não eram
do corpo da communidade.
Na collecção de 1853 a successão deferia-se na
ordem seguinte: i.° aos descendentes; 2.° aos as-
cendentes; 3.° aos irmãos e seus descendentes le-
gítimos, até á sétima geração, os mais próximos
excluindo os immediatos, mas com direito de
representação; 4.° aos filhos das filhas; 5.° aos
das netas, filhas de filhos, sem direito de re-
presentação n'estes dois casos, isto é, o filho da
filha excluia o filho da neta; 6.° á Fazenda Pu-
blica.
Reconhecia ás mulheres o direito de ahmentos,
e ás viuvas o usufructo dos bens que por falta
de outros herdeiros pertenciam á Fazenda, e
SUCCESSÕES 75
quanto ás bailadeiras, uma classe que tem estado
legal, como já notei, e ás mulheres solteiras,
viuvas e expulsas da casta, os descendentes eram
seus herdeiros, e ellas succediam-lhes egualnjente;
fora d'estes casos «as fêmeas não têm direito a
successão».
Os filhos das irmãs e tias do defunto eram ex-
pressamente excluidos e na concorrência de tios e
sobrinhos agnados, estes, assim como os netos e
bisnetos do irmão do finado preferiam aos tios
por serem, com o defunto, descendentes do ul-
timo tronco commum.
Explica-se em outro artigo que nos bens com-
muns da familia succedia a mesma familia, não
tendo direito a elles o collateral separado, ainda
que lôsse parente mais próximo.
Esta é também a regra geral no paiz visinho (i),
mas ahi, sob a influencia do Mitâksharâ, está as-
sente nos trib,unaes que os filhos, siii heredes, po-
dem exigir dos pães a partilha do património,
emquanto em Goa o direito dos filhos á legitima
só podia tornar-se effectivo depois da morte dos
pães: É o costume de Bengala.
A exclusão das mulheres, como herdeiras, é um
dos sentimentos mais fortemente enraizados nos
povos de Goa; encontra-se em todas as classes,
desde o mhar ao brahmane, e funda-se no ins-
(i) West and Biihler, A Digest, pa§. 68.
76 AS COMMUNIDADES DE GOA
tincto, commum a todas essas classes, de perpe-
tuar a família.
A mesma doutrina caracterisa ainda hoje as
escolas de Bengala e Madrasta em opposição ao
Mitâksharâ (i).
Adeante teremos occasião de vêr que o sys-
tema, archaico assim como a própria communi-
dade, estava em perfeita harmonia com o regimen
da terra, e que, apesar do Código Civil, as mu-
lheres, hindus ou christãs, continuam a ser ex-
cluídas da successão dos jonos e iocshimas de vangor.
Na collecção de i853 o titulo da successão e
partilhas principiava por accentuar que a regra
era a successão per stirpes e que a successão per
capita só tinha lugar entre irmãos a respeito do
pae e nos casos expressamente especificados. E
esta, com eíFeito, uma das feições mais notáveis
do systema. As nações teutonicas levaram séculos
para adoptar e encorporar nas suas leis este di-
reito de representação que hoje nos parece tão
simples, e que séculos antes da era christã tinha
sido distinctamente enunciado nas Institutas sa-
cadas da índia (2).
l"m outro ponto importante é que também aqui
t h^ítAiiça se considerava um con]uncx,o (iiniversitas)
AD;>^í5f, pag 126.
ri- Jolius Jolly, History of the Hindu Law, pag. 3 e
ZflUA
HERANÇA 77
de direitos e obrigações. O pagamento das divi-
das do pae é para o filho não só um dever, mas
um acto de piedade, e é frequente nas classes in-
feriores, ver os filhos, por morte dos pães, aceitar
encargos que não eram exigiveis nos tribunaes e
que elles cumprem religiosamente.
IV
Regimen da terra
«Na índia, como na Europa, os conquistado-
res e os conquistados, successivamente impellin-
do e impellidos, rolaram vagas sobre vagas na
direcção do sul, e quem examinar attentamente
a structura e geographia d'essa parte da índia
usualmente chamada Sul da Península pode inferir
a priori que as terras abaixo dos Ghates, separa-
das por uma barreira diíBcilmente penetrável do
lado das regiões centraes, e defendidas por um
clima abrazador sempre formidável para os nati-
vos do Norte, haviam de ser as ultimas visitadas
por aquelles invasores e haviam de conservar uma
porção maior das suas instituições primitivas» (i).
Em Goa só as antigas raças de sudras e curumbins
se acham ethnologicamente ligadas com o paiz além
dos Ghates. As migrações marathas, que procurei es-
(i) Wilks, South of índia, vol. i.°, cap. v, pag. i5o.
8o AS COMMUNIDADES DE GOA
boçar no principio d'este livro, vieram do Norte, im-
pellidas de longe pelas grandes correntes do Deccan.
Não deve pois ser muito remota a época em que
essas terras eram occupadas porcommunidadesde
povos primitivos, como as de curumbins que ainda
hoje se encontram em Salsete, no recesso dos ou-
teiros de Dicarpalle e Davorlim. São talvez os monu-
mentos mais antigos de Goa, e as raizes d'estas in-
stituições eram tão profundas que muitas resistiram
até agora, apesar dos golpes com que as têm mu-
tilado successivas migrações e mudanças politicas.
Abaladas pelos systemas fiscaes que dominaram
nos últimos tempos anteriores á conquista portu-
gueza, as communidades iam-se desfazendo pou-
co a pouco; o regimen da terra era então o mes-
mo ou análogo, e todavia hoje, emquanto nas
Velhas Conquistas as melhores terras se conser-
vam communs, na maior parte das aldeias das
Novas Conquistas, ou se acham divididas ou foram
appropriadas e oneradas pelos Dessais.
Ao sul, nos dominios de Sunda, a renda, calcu-
lada periodicamente, em geral de três em três an-
nos, na razão de dois terços do producto bruto ( i ),
era lançada sobre as communidades separadamen-
te, ou em grupos; as aldeias de Bally constituiam
um grupo, mahal; não havia pois intermediários
encarregados do lançamento e cobrança por con-
(i) The Bombay Ga^etteer, vol. xv (Kanara, iP) pag. i55.
i^F"
DIVISÃO DAS TERRAS 8l
ta própria. Mas o Parpotdar, único representante
do Estado, não queria saber senão das rendas, e
as familias dos marathas e brahmanes estabeleci-
das nas aldeias, foram reduzindo os antigos gan-
cares curumbins e sudras á condição de rayots,
sem direitos sobre a terra, e acabaram pela divi-
dir entre si. Estas divisões continuaram sob o do-
mínio portuguez, que nos primeiros tempos se
limitou a substituir o Parpotdar por um Intenden-
te, e têm-se feito até ha poucos annos (i).
Em Pondá e nas terras conquistadas aos Bhon-
slós, a cobrança dos impostos fazia-se por inter-
médio dos Dessais. O systema já existia no regi-
men de Bijapur, mas então as aldeias pagavam
apenas um sexto do producto bruto ; foi uma época
de prosperiedade (2). Nos tempos de anarchia e
(i) Diz a Port. Prov. de 3i de Julho de 1848: «os podero-
sos, aproveitando-se da occasião alteraram em seu lucro o
systema estabelecido, d'onde veiu a ruina que hoje se sente
da maior parte das mesmas çommunidades; porque em quasi
todas ellas, as várzeas têm sido distribuídas pelos Dessais,
Gancares e Escrivães entre si e muitas das mesmas estam ven-
didas e hypothecadas por elles a seu bel prazer, contra a dis-
posição do Bando de 6 de Maio de 18 17 e raras são as çom-
munidades que arrematam triennalmente ou annualmente os
seus campos.» Filippe Nery, Collecção de Bandos, 2.0 voL,
pag. 200. Vid. também o Officio da Secretaria Geral de 18
de Abril de 1848, no mesmo volume, pag 191, e a Portaria
Prov. de i3 de Novembro de 1882, no Boletim do Estado da
índia, n.o 204, de 16 de Novembro d'aquelle anno.
(2) The Bombay Ga^etteer, vol. x (Ratnagiri) pag. 213.
AS ÇOMMUNIDADES DE GOA 6
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82 AS COMMUNIDADES DE GOA
desordem que se seguiram sob osmarathas eBhon-
slós, os Dessais, meros rendeiros da contribuição
sobre a terra, converteram-se em pequenos se-
nhores feudaes, usurparam largos tractos de ter-
reno, e lançaram sobre as communidades uma
rede de impostos — haccas, formas, etc, que ainda
hoje subsiste em grande parte.
Qualquer que seja a origem d'esta instituição (i)
é indubitável que os Dessais foram introduzidos
em terras de Goa, quando as communidades es-
tavam já completamente formadas. É possivel que
elles datem das primeiras migrações marathas.
Pelas aldeias das Novas Conquistas a par dos
gancares curumbins e bhandarís entram na com-
posição de muitas communidades familias de des-
sais, quasi todas marathas, e supponho muito plau-
sivel a tradição que se encontra entre os charadós
christãos de Salsete emquanto á sua proveniên-
cia de dessais. Não ha razão nenhuma para que
estas aldeias tivessem uma formação differente das
aldeias circumvisinhas das Novas Conquistas.
Mas sobre esses dessais, se porventura se po-
dem comparar com os actuaes, o que é duvidoso,
passaram regimens, como foi o de Sunda, em que
elles não tinham lugar (2), e por isso teriam ficado
(i) History of the Mahrattas, vol. i.o, pag. 32.
(2) Os dessais de Pondá datam do regimen de Bijapur, e
tanto estes, como os de Polem e Loliem, eram uma excepção
nos domínios de Sunda.
DESSAIS 83
nas communidades, ao lado dos gancares, só com
differenca de nome.
Não é d'esses que trato. Os Dessais de Satary
consideram-se de origem rajput, e os de Pernem,
Pondá e Bicholim, os mais importantes, são brah-
manes e de creação relativamente moderna.
Na Presidência de Bombaim, assim como em
Goa, os dessais foram dispensados das suas attri-
buições fiscaes, as únicas que exerciam com legi-
timidade, mas n'aquella Presidência investigou-se
a legalidade dos seus titulos, confirmaram-se.per-
manentemente os poucos que davam direito a
confirmação, outros apenas foram mantidos vita-
lícia ou hereditariamente, e outros emfim foram
declarados nullos ou extinctos. Em uma publica-
cação official do Governo de Bombaim, que dá
muita luz sobre esta questão, lê-se: «Os seus emo-
lumentos (dos dessais) em terras, cereaes e di-
nheiro, eram um grande ónus para as rendas pu-
blicas. O serviço que se recebia d'elles, se algum
se recebia, era por meio de propostos, ou con-
sistiam em pequenas cobranças tão absurdamente
desproporcionaes com as suas gigantescas mercês
(service holdings) que outro tanto valia sustentar
duas ordens de empregados fiscaes, a saber, aquel-
les que eram os principaes instrumentos para esse
fim, no tempo do Peshwá, e os nossos dispen-
diosos daftardars, mamlatdars, deputados do colle-
ctor, mahalkaris e subordinados. Hábeis funccio-
84 AS COMMUNIDADES DE GOA
narios fiscaes do governo têm repetidas vezes re-
gistado que estes empregados districtaes heredi-
tários, ou mahal zamindars, constituem uma cor-
poração muito inútil e inefficaz, que nunca de boa
vontade ajuda as operações dos empregados do
governo, mas antes faz tudo quanto pode para
atravessar e estragar todos os seus esforços. . . Em
lugar de considerarem as suas mercês como re-
muneração ou salário, consideravam-nas como
hakas ou direitos livres de todas as condições» (i).
Estas forças dissolventes actuaram principal-
mente na época de anarchia que precedeu o dò-
minio portuguez nas Novas Conquistas; aos so-
beranos importava apenas a cobrança dos impos-
tos, c nem teriam poder para obstar ás transforma-
ções que se iam operando n'aquelles districtos (2).
Ainda mais, sob a influencia de idéas jurídicas,
que ha muito prevaleciam no Hindustão, e que
faziam das communidades instituições archaicas
(i) Narr ative of the Bomhay Inam Commission, pag. 39.
(2) Consta das Capitulações de pajes com o Rei de Sunda,
de 1714, publicadas no Boletim Official nP 8, de 1874, pag.
46, que os Dessais de Pohdà costumavam revoltar-se por vá-
rios pretextos e pedir a protecção dos Vice-Reis; por isso se
estipulou no art. 8.® «que os Sar Dessais das terras de Pondá
serão pagos das suas tenças e pertenças, conforme o que está
assentado, pontualmente, comtanto que elles não poderão
aveixar os vassallos das ditas terras, como o fazem continua-
mente, passando contra elles rocôs e outras exorbitâncias.»
EXTINCTAS COMMUNIDADES DE SATARY 85
na própria índia (i), as terras não occupadas con-
sideravam-se propriedade do Rei (2), e desde os
Mogoes, a quem o Koran conferia direitos abso-
lutos, e que na decadência eram pródigos em
mercês, que serviam para colorir espoliações, até
aos pequenos rajás e seus representantes, todos
por meio de sonodos ou concessões iam cerceando
as communidades e minando a sua existência (3).
Foi assim que se extinguiram todas as commu-
nidades de Satary. Hoje «os gancares vivem n'uma
extrema penúria; e vivem assim, porque quanto
produzem é para pagar a renda ao Estado, con-
tribuir aos Ranes, dessais, n^rcornis, bottos, etc,
que muitas vezes, depois da colheita das searas,
não lhes deixam o necessário para a sua alimen-
tação, não lhes sendo nunca possivel reservar um
fundo suficiente, tanto para bemfeitorias, como
para o costeamento das terras que cultivam, para
gados e trem de serviço, necessário a uma boa
(i) History of the Hindu Law, pag. 88.
(2) A Digest of the Hindu Law, pag. 173 e 784 n. A pag.
722, nota, lê -se: <tA não ser que a concessão (grant) lhe dê
expressos poderes, o mercenário não tem direito de cercar
terras usadas immemorialmente para pastagens pelos habi-
tantes de uma aldeia.» Mountst. Elphinstone, — The History
of -índia, pag. 23 e 79.
(3) Narrative of the Bombay Inam Commission, especial-
mente a pag. 7 6 14. — Collecção de 'Bandos j 2.0 volume, ap-
pendice.
86 AS COMMUNIDADES DE GOA
cultura. Um gancar que quer trabalhar para ga-
nhar a sua vida e alimentar seus filhos, não o pode
fazer, porque o narcornim o chama para seu be-
garim (cultivador) e já se vê, sem lhe pagar, por-
que é mercê de sonodo. Um outro desgraçado
que lançou á terra um ou dois euros de legume,
e porque a chuva escaceou, nada produziu, ou
produziu muito pouco, o narcornim com o sipay
á porta, exige o tal meio curo; que ou leva á força,
ou fica o miserável debitado, a favor do narcor-
nim, de quantia que jamais poderá solver, attenta
a conta de juros que o dito narcornim lhe faz,
porque tem a mira em uma ou duas cabeças de
gado que o gancar possue» (i).
Foi também assim que se dividiram as terras
de Pernem, e se extinguiram muitas communi-
dades de Pondá. Citarei um caso. O Conde da
Ega, em 1764, conferiu em mercê a Dadamá Botto
Sorotrí a aldeia Querí da provincia de Pondá;
esta mercê era restricta aos rendimentos da aldeia,
isto é, o Conde da Ega conferiu ao mercenário
o direito de receber os foros ou contribuições de-
vidos ao Estado, e mais nada, porque as terras
eram da communidade; mas o mercenário recla-
mou allegando que o Maratha lhe tinha feito
mercê das terras e queria ser mantido na «posse
(i) Relatório final da commissão de demarcação de terrenos
da provincia de Satary^ pag. 29.
MOCASSÓS 87
que o supplicante tinha de administrar por si, e
também desfructar, como fazem os mercenários
de outras quatro aldeias da dita Provincia de
Pondá, a saber: o da aldeia Qeulá, o da aldeia
Neramal, o da aldeia Cuncoliem e o da aldeia
Vaddi, as quaes todas estam entregues aos seus
mercenários». Com efleito, ouvido o Parpotcar e
o Procurador da Coroa, a pretensão foi deferida
em 1768 e a communidade expropriada (i).
Estas aldeias são conhecidas pelo nome de mo-
cassós. No regimen mussulmano e maratha a renda
das terras era dividida em quatro partes, uma do
Governo {chaiith) e as outras doy^g-A/Vquesepode
considerar um feudo (2). O chauth ainda se subdi-
vidia em quatro partes, e o Governo só vinha a rece-
ber uma d'ellas*, as outras constituiam o mocassó^
que não era necessariamente hereditário e servia
para remunerar o serviço da cobrança das rendas.
Se em Goa houve jaghirs ou feudos militares, o
que o jaghirdar tinha a receber era por esse titulo,
que também se denominava moglai. O mocassó
consistia apenas em três quartas partes do
chauth (3).
(i) Collecção de bandos, vol. 2.°, Appendice, pag. 5 e se-
guintes.
(2) O jaghir tinha por fim a sustentação de tropas, mas po-
dia ser livremente revogado pelo soberano. West and Biihler,
pag. 173.
(3) Narrative 0/ the Bombay Inam Commission^ pag. 8,
88 AS COMMUNIDADES DE GOA
Outras aldeias se foram porém adaptando ás
circumstancias creadas por novas migrações e do-
mínios, e emquanto, por quasi toda a índia, a pro-
priedade passou definitivamente da communidade
para a familia, em Goa, conservam-se exemplares
notabilissimos d'aquelle regimen primitivo.
Figuremos no centro as melhores várzeas de
arroz, ao lado o pagode ou a egreja, e á volta, dis-
persos por entre os palmares, os bairros da aldeia.
Os palmares entremeados de casas foram quasi
todos divididos pelos visinhos e pagam á commu-
nidade um pequeno foro; o fundo commum é
constituído pelas várzeas, que se arrendam por
licitação, entre os membros da communidade; os
outeiros susceptíveis de cultura arrendam-se do
mesmo modo.
Do producto dos foros pagos á communidade e
do producto da licitação tira-se em primeiro lugar
o foro ha muito fixado e os impostos que se de-
vem ao Estado; satisfazem-se outras despezas da
aldeia, e o resto divide-se em quinhões eguaes
pelos vangòres^ a que João de Barros chamou
parentellas.
nota. — Grant Duff, History ofthe ãMahrattas, vol. i.^ pag. 67.
— The Bombay Gajetteer, vol. x (Ratnagiri) pag. 225 e seguin-
tes. Os Khots tiveram uma origem análoga á dos Dessais, mas
crearam mais raízes e destruíram completamente as commu-
nidades d'aquelle districto (Ratnagiri) ; no Kanará, Dharwar e
Belgão, também poucos vestigios se encontram d'ellas.
ARRENDAMENTO DAS TERRAS COMMUNS 89
Supponho que a palavra deriva de gão, aldeia,
e gór casa, e sendo assim não só os factos, mas
até o nome, associariam á instituição a idéa da
gens romana e do clan celta. ,
E este o typo mais simples e o que geralmente
se encontra nas Novas Conquistas.
Em algumas communidades as várzeas em lugar
de licitadas de três cm três annos, segundo o
costume, eram divididas glebariamente pelas fami-
lias, e foi por este processo que em outro tempo
nas Velhas Conquistas, e ainda recentemente nas
Novas Conquistas, se separaram muitas terras,
tornando-se permanente a partilha. Em Margão
e em outras aldeias ha várzeas possuidas por dif-
ferentes proprietários em bandys, ou meios como
se diz em Aveiro, o que me parece um indicio seguro
d'essa divisão. Em i3 de Dezembro de 1825 in-
formava o Tanadar-mór das ilhas de Goa: «Desde
a primitiva e até 1735 separava-se de cada com-
munidade uma porção de terra, que se arrema-
tava, cujo producto chegasse ao pagamento do
foro e mais contribuições ao dominante; e o re$to
tinham reduzido cm tiras, a que se chama bandys,
sendo a divisão com tanta egualdade, que não
havia nenhuma diíferença em producção de um
bandy a outro; estes bandys cultivavam os interes-
sados, culacharins, gancares, qíc. segundo o
interesse que tinham na communidade, e todos
cultivadores formavam uma corporação, como Já
\
gO AS COMMUNIDADES DE GOA
disse, chamada bouço e este fazia todas as des-
pezas precisas para conservação dos campos.
Desde 1735 porém a esta parte todo o campo da
communidade se arremata na conformidade do
citado cap. 11 do Regimento» (i).
A licitação é muito anterior ao Regimento de
1735, e até ao dominio portuguez. Dispunha o
Foral de Aífonso Mexia, no cap. xx: «Em cada
anno se arrendarão em pregão as terras dos ar-
rozaes a quem por ellas mais dér em cada uma
das aldeias, segundo seu costume por bem de não
serem próprias de cada um, como são as outras
heranças, e porém são obrigados de as arrema-
tarem aos moradores das aldeias, a quem por
ellas mais dér, e se alguma das aldeias houver
costume, e ordenança antiga de se darem pelo
dito anno terras de arrozes de arrendamento a
pessoas de fora das aldeias que mais por ellas de-
rem que os outros da aldeia, cumprir-se-ha».
Aquelle Regimento não fez portanto mais do que
acabar com praticas abusivas que iam modificando
o costume e leis antigas.
O typo de communidades a que me referi é
o que geralmente se encontra nas Novas Conquis-
tas e ainda se reconhece na communidade de Sar-
zorá, em Salsete; deve considerar-se o mais an-
(i) Defensa dos direitos das gancarias, documento n<». 3?
pag. 9.
CUTUBANA QI
tigo. Mas a licitação não se generalisou talvez
senão depois das migrações marathas ^ brahma-
nes. Emquanto a communidade foi homogénea, e
todos trabalhavam egualmente nos campos, ornais
simples era fazer a cultura em commum. D'este
facto só encontrei alguns vestigios em Vaddi, al-
deia de Pondá (i).
Tomemos um exemplo do typo geral. A com-
munidade de Vainguiní, na provincia de Bicholim,
é composta de três vangòres, dois de gancares
bhandarís, e um dos culcornins Smarts (brahma-
nes). A receita da' communidade provém em pri-
meiro lugar dos foros das terras divididas, yòVos
limitados, de entubaria, É o titulo de propriedade
individual mais frequente e de maior importância.
No paiz visinho, em Ratnagiri, explica-se do se-
guinte modo a sua natureza: «A palavra kutiiban
implica em si própria uma renda fixa, não sujeita
a fluctuação. Pelo preambulo de muitos titulos de
kutuban pareceria que a origem d'elle é como se
segue. O occupante hereditário de certos terrenos
pobres teria representado aos funccionarios do
Estado que se lh'os arrendassem por uma renda
fixa, kutuban, os reduziria a plena cultura, e n'essa
conformidade lhe foram concedidos por uma renda
fixa, attendendo á despeza que havia de fazer.
(i) Vid. no fim Excerptos do inquérito feito pelo auctor,
na parte relativa áquella aldeia.
92 AS COMMUNIDADES DE GOA
Por outras palavras o occupante, pedia um esta-
belecimento (settlement) permanente, afim de poder
com segurança investir o seu capital na terra e
evitar os impostos sobre os melhoramentos, e a
sua pretensão foi deferida. Além d'isso o titulo
declarava que as terras seriam desfructadas he-
reditariamente de pae a filho, que não seria ne-
cessário novo titulo, e que a imposição fixada
comprehenderia quaesquer novas plantações de
coqueiros ou arequeiras, ou qualquer outra cul-
tura. No ultimo cadastro (survey) todas estas
terras foram tornadas a medir e classificadas se-
gundo as regras em vigor em Ratnagiri, e o
resultado mostrou que eram possuidas por taxas
consideravelmente abaixo do lançamento do ca-
dastro. O governo todavia decidiu que o estabe-
lecimento tinha sido permanente e devia fazer-se
bom no futuro» (i).
O mesmo se pratica geralmente em Goa, e já
o Foral de Affonso Mexia registava: «Algumas hor-
tas, palmares, e terras de arroz são obrigadas a
pagar cada anno certqs taxas e posto que haja
perdas não pagam n'ellas» e adeante: «Os chãos
que houver no limite de cada uma aldeia perdidos
ou desaproveitados, os gancares os poderão dar
a quem lh'os pedir para aproveitar em hortas e
palmares e outras bemfeitorias, com condição que
(i) The Bombay Ga^etteer, vol. x. (Ratnagiri) pag. 261.
CUTUBANA gS
paguem certa renda ou foro. , . E depois que as-
sim forem dadas as ditas hortas e chãos pelos di-
tos gancares, não lhes podem ser tirados, porque
lhes ficam para filhos, netos e herdeiros. . .» Ex-
plicava egualmente o Assento da Junta de Fa-
zenda de 27 de Outubro de 1780: «Uma das di-
tas propriedades estava aforada, segundo o uso
do paiz, em cotubana^ que é um foro perpetuo,
com uma pensão certa que nunca tem altera-
ção» (i). Mas é preciso observar que os titulos
aqui provêm das communidades e não do Estado,
e que os direitos de propriedade são inteiramente
distinctos do direito de lançar e cobrar impostos.
Ha também grandes tractos de terreno que pa-
gam hoje foro limitado ás communidades e cujo
titulo teve uma origem mui differente. Não eram
«chãos perdidos ou desaproveitados» mas boas
terras, que os gancares dividiram glebariamente e
cuja partilha se tornou definitiva, como já disse.
Mais tarde voltarei a esses titulos; o que agora
desejo deixar assente é que as terras possuidas
por cutubana, em regra, pagam á communidade
os foros ajustados, e mais nada.
A outra fonte de receita da communidade de
Vainguiní provém do arrendamento triennal das
várzeas communs, que se faz por licitação entre
os vangôres.
(i) Collecção de Bandos, i.o vol , pag. 274.
94 AS COMMUNIDADES DE GOA
Do monte commum tira-se em primeiro lugar o
foro devido pela aldeia ao Estado. Depois é pre-
ciso pag^r formas aos Dessais de Verem, hacca ao
77wiho de Sanquelim, hacca ao deus da aldeia, hacca
ao botho de Marcella, hacca ao Saniarcorm, . . E'
disto que estam comidas as communidades das
Novas Conquistas. Antigamente, no norte da In-
glaterra, as povoações viam-se obrigadas a pagar
impostos a certos homens alliados com ladrões
para ficar protegidas da pilhagem; chamavam-se
esses impostos black mail^ e é esse nome que o
Coronel Etheridge dá áquellas exacções abolidas
no paiz visinho (i).
A origem das formas é também interessante e
concorda com a theoria de Herbert Spencer em-
quanto deriva o imposto de uma dadiva repetida (2).
Nas Novas Conquistas é costume^ pela festa do
Ganesh, levarem os arrendatários ao battcár (pro-
prietário) um cacho de bananas, de arecas, ou
outros fructos, conforme a producção do prédio
arrendado. É uma condição tacita ou expressa do
arrendamento e chama-se ^rmáí (3).
Haccas e formas são pensões certas e invariá-
veis que a communidade paga, mas tem ainda
{i) A Digest of the Hindu Law, pag. 174. — Narrative of
the Bombay Inam Commission (publicação oíficial), pag. 52.
(2) Politicai Institutions, pag. 649 e seguintes.
(3) Molesworth, A Dictionary Marathi and English, verb.
formass, um presente que se oíferece a um superior.
VANGÔRES 95
encargos de outra natureza, em InamaSy ou ter-
ras sem foro (i) concedidas ao deus da aldeia
e ás servidoras do pagode (bavinas). As famiiias
dos mainatos, barbeiros e ferreiros também têm
ou tiveram as suas terras, com um pequeno
foro.
Deduzindo portanto do monte commum o foro
do Estado, as pensões de haccas e formas, o or-
denado do culcornim e outras despezas de menor
importância, o saldo liquido divide-se em três par-
tes eguaes, que se chamam tocshimas^ por cada
um dos vangôres.
São poucas as aldeias em que ha só um van-
gôr, e n'essas o facto não pode attribuir-se senão
á sua pobreza ou decadência; pelo contrario Mar-
gão, cuja importância data de antigos tempos,
chegou a ter 28 vangôres, todos de brahmanes;
encontram-se também muitas aldeias, em que os
vangôres são de castas differentes, e quando são
da mesma casta os membros de um vangôr, em
regra, podem casar no outro. A communidade
funda-se portanto na terra, e os laços de sangue
restringem-se ao vangôr.
Dentro de cada aldeia adjudicavam-se, livres de
foro, ás famiiias de ferreiros, mainatos, barbeiros,
(i) Colonel Etheridge, Narrative, pag. 5, e — Assento de
27 de outubro de 1780, na Collecção de Bandos, i.^ vol. pag.
275.
g6 AS COMMUNIDADES DE GOA
e outros artífices indispensáveis (i) certas terras,
designadas pelo nome geral de inam; nas Velhas
Conquistas chama-se-lhes namoxins^ do mesmo
modo que ás terras adjudicadas aos pagodes (2) ;
e também têm inamas as familias do joshi^ o brah-
mane que lê o calendário e declara os dias faustos
e aziagos para lavrar, semear e colher, para casa-
mentos e outras solemnidades. O gurou^ ghadi e
:{olmiy que se encontram em quasi todas as aldeias,
são outros astrólogos de casta inferior, que o
joshi não supplantou,- chamam-se velipos em Zani-
baulim, pertencem ás raças curumbim, maratha e
satarycar, e formam vangôres em muitas commu-
nidades d'aquella Provincia. Têm finalmente ina-
mas os mhars; a sua principal attribuição era vi-
giar a aldeia, e vivem sempre afastados, no bairro
denominado mharoda.
Estas inamas em algumas communidades são
substituídas por pensões certas — votonsy heredi-
tárias como a terra.
Em todas as communidades os visinhos levam
os gados para os outeiros durante as chuvas e
(i) Colonel Etheridge, Narr ative, pag. 38, nota; — Grant
DufF, History of the Mahrattas, vol. i.o, pag. 26, nota; — 7he
Bombay Gajeíteer, vol. x (Ratnagiri), pag. 222, nota 2."; e —
Foral de Affonzo Mexia, cap. xii.
(2) Molesworth, A Marathi and English Dictionary, verb.
namassa, a terra applicada á producção de cereaes, etc, para
ofTerecimento ao ídolo.
LICITAÇÕES E PRIVILÉGIOS 97
depois das colheitas para as várzeas, mas os ou-
teiros susceptiveis de cultura, bharoda, também se
arrendam por licitação. A cultura de bharoda é
um afolhamento de 3 a 6 annos ficando em segui-
da a terra outros tantos annos de pousio. Os
cini7ris são também licitados na communidade e
a sua cultura consiste em derrubar e queimar a
floresta e semear nas cinzas. Em todos os dis-
trictos britannicos á volta de Goa a cultura de
cumris está restringidissima e só se permitte aos
sertanejos que ao presente não têm outros meios
de vida. A extracção de mel e cera das flores-
tas e a pesca nas lagoas são egualmente lici-
tadas.
O processo de licitação entre os membros da
communidade, que é geral como já disse, tem
creado um enxame de parasitas que servem de in-
termediários entre a communidade e os rayots ou
trabalhadores. Estes antigos gancares, ha muito
depostos na maior parte das communidades, não
têm direito de lançar, ou poucas vezes o exercem,
e são obrigados a tomar as terras aos brahmanes
e marathas, que consideram o arrendamento de
determinados prédios como um privilegio heredi-
tário. Os serviços de saccador, que tem a seu car-
go a cobrança dos foros e rendas, os serviços de
terlucas ou vigias, que d'antes pertenciam aos
mhars, e outros, são do mesmo modo licitados e
considerados egualmente um privilegio heredíta-
ÂS COMMUNIDADES DE GOA 7
98 AS COMMUNIDADES DE GOA
rio, OU vitalicÍQ, que em regra só as malquerenças
e vinganças perturbam.
Temos assente os factos principaes do regimen
da terra nas communidades mais simples de Goa,
mas para que esses factos sejam devidamente
comprehendidos é indispensável accrescentar que
a terra e os direitos que recahiam sobre ella eram
inalienáveis. E esta a chave do*Bystema.
Dizia o Foral de i526: «Se algum gancar ou
outra pessoa quizer vender alguma herança em
alguma das ditas aldeias, não o poderá fazer sem
licença de todos os gancares da tal aldeia e assim
mesmo ninguém não poderá comprar sem a dita
licença, e se se fizer alguma venda, ou compra
sem haver a dita licença será em si nenhuma, e
cada vez que os gancares quizerem será tudo des-
feito»... E esta era a regra geral das communi-
dades do sul da índia, com que as de Goa tinham
estreita relação : «O consentimento dos Miras-
dârs (gancares) . . . é necessário para a admissão
d'um estranho a um quinhão da propriedade in-
tegral da aldeia, ou a uma parte particular da ter-
ra» (i).
Este regimen, de que o nosso estava já tão dis-
tanciado ao tempo da conquista, pareceu natu-
ralmente intolerável aos moradores portuguezes
de Goa, que logo se queixaram a El-Rei e lhe
(1) West and Buhler, Digest, pag. 733, nota.
VENDA DE HERANÇAS E CANGARIAS 99
pediram que houvesse por bem «que se possa
comprar a quem quer que quizer vender o seu»
como se vê da carta de D. João III, de 26 de
Março de i532, dirigida á cidade de Goa (i). Os
moradores referiam-se de certo ás aldeias, porque
nos limites de uma das primeiras cidades com-
merciaes da índia, que acabava de estar sob o do-
mínio mussulmano, e onde os portuguezes tinham
creado um municipio, não teria applicação o Fo-
ral. E que a gente da terra, ainda antes de i56i,
ia vendendo as heranças aos moradores, consta
da carta de D. Catharina á cidade, de 25 de Fe-
vereiro d'aquelle anno (2)
Por outro lado os tribunaes, nas execuções por
dividas, applicavam as leis portuguezas e aucto-
risavam a arrematação e venda das terras (3), o
que em ibSg se prohibiu por motivos puramente
fiscaes, — emquanto não fossem lançadas nos
tombos (4). Lê-se também n'um diploma de 1596
que a esse tempo continuavam a vender-se os
chãos, isto é, as terras aforadas, e as gancarias,
que eram os direitos dos gancares (5).
(i) Archivo Portuguef Oriental , fase. i.°, i.* parte, doe. n.o
2, pag. 14.
(2) Ibid., doe. 3í, pag, 5i.
(3) A exeeução em terras, por dividas, é uma noção estra-
nha á pura lei hindu. West and Buhler, Digest, pag. 172.
(4) Archivo Port. Oriental, fae. 5.°, parte i.», doe. 3o6,pag.
412.
(5) Ibid. fase. 3.©, parte 2.", doe. 234, pag. 6Sg.
lOO AS COMMUNIDADES DE GOA
Vendiam-se as gancarias, os Vice-Reis davam-
nas de mercês, assim como as escrevaninhas até
1581 (i),e o zelo da conversão tinha introduzido
uma outra novidade — haviam-se por herança de
fêmea (2).
Contra isto reagiram primeiro os gancares das
Ilhas de Goa, fundando-se no Foral, e nos seus
usos e costumes, e obtiveram em 1604 que se
prohibisse em absoluto a venda das gancarias (3),
prohibição que se ampliou definitivamente ás Pro-
vincias de Salsete e Bardez em 1628 (4). A reac-
ção foi portanto além do costume reconhecido
no Foral, emquanto se não permittiu a entrada
de novos vangôres nem mesmo no caso de haver
accôrdo dos gancares, mas as terras que estavam
divididas, os direitos que lhes andavam annexos,
e ainda outros que recahiam sobre as terras com-
muns passaram insensivelmente a ser objecto de
commercio, não ficando á communidade senão a
sombra de um direito de opção, com que acabou
o Decreto com força de lei de 15 de Setembro de
1880 (art. 53). Precisamos porém tratar primeiro
de outros typos de communidades.
(i) Archivo PorL Oriental, fase. 5.°, parte 3.', doe. 808,
pag. 975, e doe. 828, pag. 991.
(2) Ibid. Informação do Desembargador Bento de Baena
Sanehes, a pag. iSgS, nota ao doe. 1008.
(3) Ibid. pag. 1375, nota ao ref. doe.
(4) Ibid. pag. 1391, nota ao ref. doe.
COMMUNIDADE DE SHELVONA lOI
A communidade de Shelvôna,em Chandrovaddy,
é formada de três vangôres, dois de dessais ma-
rathas, e um de culcornins, brahmanes smarts,
como quasi todos os culcornins. Ha três várzeas
no gÍ7^o da arrematação^ que se arrendam de três
em três annos; os outeiros maninhos são de lo-
gradouro commum, e as mais terras ou são de
cutubana, ou de foro correjite. Estas distinguem
um segundo typo de communidades.
Os marathas e culcornins partilharam-nas pelas
suas familias em 36o glebas, a que deram o nome
de ôrás (i). Ha muito entraram no commercio e
têm-se dividido, e vendido a pessoas estranhas á
aldeia, independentemente de licença. E por essas
glebas que se distribue o saldo ou deficit da com-
munidade. Com o producto dos foros de cutuba-
na e rendas pagam-se os foros do Estado, e fazem-
se as despezas do costume; se ha saldo ap>plica-se
em 36o quinhões, que ainda se subdividem con-
forme os possuidores de cada gleba; havendo de-
ficit cobra-se na mesma proporção.
O vangôr comp5e-se, como tenho dito, de um
grupo de familias que são, ou se consideram des-
cendentes de um tronco commum. O seu cresci-
mento não podia ser egual. Uns mutiplicaram-se
(i) Molesworth, A Marathi and English Dictionary, verb.
òrá — uma moeda, significa também um ou mais regos do
arado.
102 AS COMMUNIDADKS DE GOA
e as famílias separaram-se do lar e culto domes-
tico, outros reduziram-se.
Nas communidades do primeiro typo acontece
muitas vezes pertencer uma tocshima exclusiva-
mente a uma ou poucas familias, representantes
do vangôr, emquanto egual tocshima é repartida
em pequeníssimas fracções pelas numerosas famí-
lias que constituem outro. Na aldeia de Vainguíní
a uma das famílias de culcornins cabe a vigésima
parte da respectiva tocshima e é a que recebe
mais.
Estas differenças deviam ter sido a causa prin-
cipal da distribuição das terras de j^òro corrente
em glebas entre as differentes famílias de que, na
época da partilha, se compunham os vangô-
res.
Pertencem a este typo a maior parte das com-
munidades actuaes de Salsete, encontra-se nas
Ilhas, é frequente em Bardez, e refería-se a ellas
a informação do Tanadar-mór das Ilhas de Goa
que já tive occasião de citar.
Vou recorrer a outros exemplos para que a ana-
logia se torne bem clara. A communidade de Si-
rodá tem quatro vangôres, todos de brahmanes,
e é obrigada a pagar ao Estado 7:000 rupias de
foro, números redondos. Ha terras de cutubana,
outras que se arrendam por licitação de três em
três annos e outras adjudicadas aos vangôres. Pela
adjudicação d'estas várzeas os vangôres sujeita-
BHBIW
COMMUNIDADE DE SIRODÁ IO3
ram-se a pagar o primeiro 600 rupias de foro, o
segundo 200, o terceiro 260, e o quarto 440, som-
mando 1:500 rupias, tudo números redondos.
Se a receita das terras de cutubana e das que
andam no giro da arrematação triennal não che-
gasse para o custeamento das despezas, os van-
gôres teriam de pagar pelo rendimento das vár-
zeas adjudicadas na proporção d'aquelle foro. De
facto fica-Ihes sempre um saldo importante, e os
vangôres dividiram pelas familias os quinhões
que lhes competiam n'esse saldo; as familias têm-
nos vendido e hoje pertencem em grande parte a
pessoas de fora da aldeia. Designam-se d'este
modo: tocshima do i.® vangor correspondente ao
foro de tantas rupias, ou tocshima do 2.° vangor
correspondente ao foro de tantas rupias, e assim
nos mais casos.
As várzeas adjudicadas aos vangôres são peri-
odicamente licitadas entre os actuaes possuidores
das tocshimas, alguns estranhos á aldeia, como
fica dito; o que licitou, arrenda depois aos colonos,
e os tocshimadat^esy por occasião da sega, vão á
eira buscar a parte, que d'ahi lhes compete.
Supponhamos agora que estas várzeas tinham
sido divididas glebariamente entre as familias dos
vangôres e que a cada gleba se tinha applicado o
foro correspondente, teríamos o systema da maior
parte das communidades de Salsete.
Tenho deante de mim um inventario antigo em
I04 AS COMMUNIDADES DE GOA
que se encontram, descriptas em face de docu-
mentos do século passado, verbas como esta: Ma-
rella-bandachem (situado em Betalbatim) em qua-
tro addições, que foi de F., de foro corrente, de
uma banda várzea da aldeia, da outra herdeiros
de F., da outra serventia da aldeia, e da outra her-
deiros de F.,4 tangas, i berganim e lõleaes...»
Podem vêr-se descripções idênticas na Relação
das faiendas confiscadas aos Jesuitas, publicada
pelo Conselheiro Rivara nos Boletins Officiaes de
1862 (i).
No exemplo que citei o possuidor da gleba,
originariamente um gancar, se houvessse deficit,
respondia para com a communidade na propor-
ção de 4 tangas, i berganim e 16 leaes (2), ou re-
cebia n'aquella proporção, havendo sobras (3).
(i) Brados a favor das communidades das aldeias do Es-
tado da índia, pag. 91, nota.
(2) Bosquejo Hist. das communidades, vocabulário: ntangas
brancas, moeda imaginaria que em Salsete e Bardez tem o
valor de meio xerafim ou i52 1/2 réis e nas Ilhas 96 réis; ci-
las têm uso apenas na liquidação de foros, mas raras vezes,
e se dividem em 4 berganins, e o berganim em 24 leaes.»
(3) Segundo as antigas leis germânicas «La tompt (terrain
oíi se trouve la demeure) est Ia mère du champ. Elle deter-
mine la part du champ. La part du champ determine celle
de la pâture ; celle de la pâture, celle de la forêt; la part de
la forêt, celle des roseaux pdur couvrir le toit, et la part des
roseax divise les eaux d^après les filets.» Mr. É. de Laveleye,
La T^ropriété collective du sol, pag. 29.
, — — „^
TOCSHIMAS 1 05
Se das terras em cultura os gancares só tives-
sem deixado de partilhar as que lhes parecessem
necessárias para o pagamento das despezas, como
informava em 1825 o Tanadar-mór das ilhas de
Goa, não poderia explicar-se senão pela diminui-
ção dos encargos, que as. guerras tinham aggra-
vado, e pela elevação geral dos preços, o facto
de haver importantes sobras em tão grande nu-
mero de communidades das Velhas Conquistas.
Desde então as tangas começaram a ter valor, fo-
ram-se separando das glebas de foro corrente a
que andavam annexas, e entraram no commercio.
Hoje estam todas separadas e convertidas em ac-
ções.
As tocshimas eram pois determinadas n'este
typo de communidades pelas tangas annexas ás
glebas ou bandys, mas quando as partilhas reca-
hiam sobre palmares ou arecaes, determinavam-se
pelo numero de covas, que era o espaço necessá-
rio para plantar uma arvore, ou pelo numero de
palmeiras e arequeiras. E assim, se o palmar a
dividir tinha 600 arvores, e os vangores se com-
punham de 60 familias, com direito a partilha
egual, cada uma ficaria com 10 palmeiras. O sys-
tema é fundamentalmente o mesmo em todos estes
casos, quer as tocshimas se chamem ôrás, quer se
chamem tangas, covas, palmeiras ou arequeiras.
O crescimento desegual dos vangores dentro da
aldeia, e a independência adquirida pelo grupo da
I06 AS COMMUNIDADES DE GOA
família dentro do vangôr, foram as causas que de-
terminaram a passagem do primeiro para o se-
gundo typo de communidades; mas nas Ilhas e
Bardez prevalece um terceiro typo que ha pou-
cos annos era inteiramente desconhecido nas No-
vas Conquistas (i). O rendimento liquido da com-
munidade divide-se pelos varões de cada família,
e a tocshima passa a ser jono, uma pessoa, um
homem (2).
No Archivo da Administração do Concelho de
Pondá encontrei um processo interessantíssimo
para o estudo d'esta questão. A communidade
de Condaím era idêntica á de Sirodá; havia toc-
shimas pelas quaes se repartiam as rendas de cer-
tas várzeas, e tocshimas pelas quaes se dividiam
as rendas de outras várzeas; mas depois todas as
terras passaram a ser licitadas conjunctamente, e
do producto separava-se em determinadas propor-
(i) A Portaria do Governo da Provinda de 5 de Agosto
de i865 (Boletim n.o 60), mandou que as sobras da Gamara
Agraria de Embarbacem se distribuíssem metade pelos van-
gôres e metade por cabeça de gancares. Os regulamentos
posteriores ao Decreto de i5 de Setembro de 1880 têm gene-
ralisado o systema de jonos.
(2) Em algumas communidades das Velhas Gonquistas as
viuvas tem jonos ou determinadas fracções deyowo.Ghamam-se
impropriamente jonos phateusins outras pensões, a que nas
Novas Gonquistas correspondem as haccas, formas, e votons,
estabelecidas em favor de pessoas e de oragos. Os jonos pha-
teusins são objecto de commercio.
TYPOS DE COMMUNIDADES IO7
ções O que pertencia a cada espécie de tocshimas.
Dois gancares pretenderam mudar de systema,
queriam que a renda se repartisse egualmente em
jonos pelos varões, como se fazia em Bandorá.
Diz-se no parecer do Administrador do Conce-
lho (i) que se não provou a analogia, nem podia
provar-se, porque em Bandorá a renda dividia-se
primitivamente em cinco tocshimas e só em 1869
é que por determinação do Governo da Provin-
da se começou a seguir o systema da Gamara
Agraria de Embarbacem.
Vê-se do processo que a única razão dos gan-
cares dissidentes contra o systema, postas de parte
as suggeridas pelo interesse e amparadas pela
ignorância, era que «uns vencem maior parte do
que outros.» Em face das nossas leis a improce-
dência da pretensão era portanto manifesta, e to-
davia não foi senão por esse fundamento que em
outra aldeias se passou para o systema de jonos,
e que entre outros povos se fazia a repartição pe-
riódica das terras. . .
Todas as communidades de Goa se reduzem
pois a três typos fundamentaes; o primeiro deri-
va do vangôr, o segundo da familia, e o terceiro
do jono, do homem, individualmente considerado.
(1) A. A. Purshotoma Vença Sinay Maugecar, e Go vinda
Duglea Camotim — R. a Gommunidade de Condaím. O pa-
recer é de 23 de Abril de i883 e o Governo confirmou-o, de-
cidindo contra os A A.
Io8 AS COMMUNIDADES DE GOA
Em algumas d'estas ultimas communidades, os
vangôres têm-se confundido e apenas se sabe que
existiram. Outras aldeias adoptaram um regimen
mixto, parte da renda distribue-se por tocshimas
e parte por jonos; foi decerto uma transacção en-
tre os interesses creados e a egualdade primitiva,
que já vimos em lucta na communidade de Con-
daím.
Esta evolução da propriedade da tribu e do
clan para a familia e da familia para o individuo,
é um facto geral, verificado a respeito de muitos
outros povos; corresponde a uma das phases da
transição a parte legitimaria da herança conser-
vada nas nossas leis; mas o que ha de notável em
Goa é a plasticidade de regimen, que permittiu a
mesma evolução em algumas communidades, sem
que o molde das instituições primitivas se tenha
partido.
Voltemos agora a tratar dos direitos que re-
caem sobre as terras e rendas da communidade.
O aforamento de chãos perdidos ou desaprovei-
tados, as doações aos brahmanes (i), e as inamas
ou namoxins dos servidores, são titulos reconhe-
cidos no Foral de 1526, mas ahi se dispunha cla-
(1) A propriedade era também inalienável dentro da fami-
lia, mas as doações religiosas constituiam uma excepção. Es-
sas doações eram um meio de acquisição especialmente ap-
provado em relação aos brahmanes. West and Biihler, Digest,
pag. 192 nota, 197 e 171 nota.
CUNTOCARES IO9
ramente a respeito de todas as terras, sem exce-
pção alguma, que não poderiam ser vendidas sem
licença dos gancares. A Provisão do Vice-Rei,
Ayres de Saldanha de 3o de Agosto de 1604 e o
A.lvará Régio de 24 de Março de 1628 renovaram
a prohibição em absoluto, limitando-a porém á
alienação de vangôres, isto é, ninguém poderia
entrar nas communidades, nem mesmo com licen-
ça de todos os gancares. E como era mais fácil
esquecer a origem das tocshimas, cuja distribui-
ção se fazia relativamente a certas glebas, ou a
certas quantias de foro, apesar da natureza de
todas ser precisamente a mesma, aquellas passa-
ram a ser objecto de commercio e andam na pos-
se de estranhos, emquanto as tocshimas de van-
gôr e jono se conservaram, em regra, inalienáveis.
A venda de tocshimas tornou-se pois um facto
geral nas communidades em que a distribuição da
renda se fazia por glebas, ou em relação a certas
quantias de foro, e vem d'ahi uma das maiores
perturbações que a instituição sofifreu nos últimos
tempos. Ao lado dos gancares formou-se d'este
modo, em grande numero de aldeias, um corpo
de interessados, cuntocares (i), que pretendiam
(i) De cunto que significa «renda da terra correspondente
á que pode lavrar um arado. Significa também estaca, que se
põe no rio, e talvez signifique a que se póe na terra para de-
marcar os lotes correspondentes aos arados.» Cons. Rivara,
Brados^ pag. 86 nota.
I I o AS COMMUNIDADES DE GOA
tomar parte nos negócios communs. Os gancares
oppuzeram-se, em nome dos seus usos e costu-
mes, que não admittiam estranhos. Mas os usos
e costumes também não permittiam a venda de
tocshimas; desde que se vendessem, os novos pos-
suidores substituíam os antigos, e estes só podiam
ter lugar por uma lei, como hoje diríamos, que
alterasse a constituição da aldeia, com mais um
vangôr ou com mais uma familia. Não foi isto que
aconteceu. O choque das idéas modernas com as
instituições antigas produziu uma confusão idêntica
em outros paizes (i), e nós vemos ainda hoje em
Goa os gancares que venderam os seus direitos,
mettidos na gerência de negócios de que não po-
dem tirar senão interesses illicitos (2).
Deve notar-se desde já um facto de grande va-
lor jurídico. Em um systema em que as alienações
de immoveis eram tão difficeis e se generalisaram
em data tão recente, a posse não podia ter a im-
portância que com o tempo adquiriu no Direito
Romano, servindo de titulo contra o dominio. E
o que vemos com eíFeito. No cap. vii do Foral le-
se que os gancares de uma aldeia encampada,
podiam a todo o tempo pedil-a sujeitando-se ao
foro por inteiro, e n'uma nota do Livro Verme-
(i) Vid. o lugar citado, a pag. 36 dos Brados.
(2) No Projecto do Novo Regimento das Communidades
Agrícolas do Estado da índia, Nova Goa, 1862, foram publi-
cadas as representações das partes sobre esta questão.
PRESCRIPÇAO 1 1 I
lho da Relação ao capitulo xvii reconhece-se o
costume dos gancares ausentes tornarem a haver
as suas heranças, sem limitação de tempo, desde
que voltassem á aldeia. No caso de se vender al-
guma herança sem licença dos gancares, o Foral
dispunha summariamente cada ve\ que os gancares
qui\eremy será tudo desfeito. Nem mesmo a pres-
cripção de moveis era cousa definida, porque o
cap. XXV dispunha que se alguém desse dinheiro
de onzena, e não o pedisse nem a onzena, e pas-
sasse tanto tempo que o ganho montasse ao pró-
prio «posto que passe muito tempo além^ não será
obrigado pagar o devedor ao credor mais que o
próprio em dobro».
Em 1824, quando pela primeira vez se codifica-
ram os usos e costumes das Novas Conquistas,
as Gamaras Geraes responderam sobre a matéria
de prescripção: «n'estas circumstancias segura-
mente nas Novas Conquistas devia haver aquella
pratica que determinasse o tempo, que até agora
não estava estabelecido» (i). Não estava estabe-
lecido o tempo, nem a pratica, como vimos do
Foral, e se podia inferir do systema e da compa-
ração com os costumes de outros povos da índia
em condições análogas (2).
(i) Bandos, volume 1.°, pag. 78.
(2) Os mirasdars (gancares) podiam redamar as suas ter-
ras, em theoria, depois de qualquer lapso de tempo. West
and Buhler, Digest, pag. 176. — «Em questões relativas a he-
112 AS COMMUNIDADES DE GOA
Ainda actualmente se observam outros factos
que é indispensável ter presentes para formar uma
concepção exacta da propriedade em terras de
Goa. A fabricação de casas em terreno alheio é
um costume geral que se encontra, sem excepção,
em todas as aldeias. Com esse costume anda li-
gada uma ordem muito especial de relações entre
o proprietário (batcará) e o colono [manducar), sem
analogia no nosso systema de direito. Os man-
ducares aproveitam-se das ólas, e de outras folhas,
que lhes servem de combustivel, não pagam renda,
vigiam o palmar, e prestam serviços por um sa-
lário em regra inferior ao do mercado.
Em partilhas amigáveis é frequente deixar em
commum, entre os herdeiros, uma jaqueira ou
mangueira de mais estimação, ou adjudicál-a a um
dos herdeiros, ficando outro com o terreno. É
ainda mais notável, e também frequente, fazer-se
a partilha de um palmar por arvores. Por exem-
plo, preenche-se um quinhão com dez palmeiras que
estam em diversos lugares do prédio, e dão-se ao
ranças, dividas, propriedade e outras, os hindus não admit-
tem a prescripção e a pessoa a quem compete o direito, ou
os seus representantes, podem proceder contra a outra parte,
ainda que a posse da propriedade em disputa lhe venha dos
seus antepassados e seja de mais de um século. Pleitos d'esta
natureza levantam- se frequentemente e causam a miséria de
famílias e indivíduos.» Dubois, Description of the caracter,
manners, and ciistoms of the people of índia, pag. 477.
ESPÉCIES DE PROPRIEDADE Il3
segundo quinhão as restantes palmeiras, entre-
meadas com as outras dez, e que se reputaram
de valor correspondente. Não se pensou na par-
tilha do solo.
A maior cultura de arroz faz-se com as chuvas
da monção de sudoeste; as várzeas são semeadas
em Maio e segadas em Setembro*, chama-se serô-
dio. Ha outras várzeas com duas culturas, a de
serôdio e a de vangâna, N'esta semeia-se em De-
zembro e sega-se em Março, e carece de agua,
ou das correntes naturaes, ou das lagoas que se
enchem com as chuvas, trazidas em Outubro pe-
los ventos de terra. Ora é mui frequente, sobre-
tudo nas Novas Conquistas, pertencer a cultura
de serôdio a um proprietário e a de vangâna a
outro. Por um nemo ou accordão de 1 6 de Feve-
reiro de 1809 (i), confirmado pelo Vice-Rei, acom-
munidade de Telaulim aforou a cultura de vangâna
de uma das suas várzeas a um proprietário que
fez as obras necessárias para o represamento das
aguas. A várzea continua, como até alH, no giro
(1) Vi copia authentica d'este nemo, referida ao Memorial
de Telaulim, fl. 109 a iii. A Circular da Secretaria Geral de
14 de Dezembro de 1847 mandou que em lugar d'estes afora-
mentos se fizessem arrendamentos a longo praso. A Circular
náo se executou, ao menos nas Novas Conquistas. Repetiu-se
posteriormente a prohibição. Vid. Collecção de Leis Peculia-
res, part. I.*, pag. 336, e Portaria do Governo da Provincia
de 17 de Março de 1869, art. 5.°, § 7.0 no Boletim n.o 28.
AS COIUIUNIDADES DE GOA B
114 ^^ COMMUNIDADES DE GOA
da arrematação. É provável que seja esta uma
das origens da differença de tocshimas na mes-
ma communidade, como vimos na de Sirodá e
acontece na de Curtorim e em outras. No pro-
cesso de Condaím, a que em outro lugar me re-
feri, attribue-se a desegualdade á influencia de po-
derosos, mas também tenho ouvido explical-a
como compensação de bemfeitorias.
Ha outras várzeas, divididas por glebas, que cor-
respondem a um certo numero de proprietários
com posse alternada; supponhamos que são qua-
tro as glebas; cada um dos quatro proprietários
cultiva este anno uma d'ellas, para o anno a im-
mediata, e assim por deante, até se completar a
rotação.
É difficil adaptar a factos d'esta ordem as leis
portuguezas, feitas para um paiz mui diíFerente,
mas da sua applicação resultam muitas outras
questões e tenho de tocar em algumas.
Tanto o governo como os tribunaes, umas ve-
zes têm considerado immobiliarios os direitos de
que ultimamente tratei (i), e outras vezes os têm
considerado mobiliários. Não me parece na ver-
(i) Todos estes interesses e todas as fontes de uma renda
periódica (nibandha), são considerados segundo a lei hindu
como immobiliarios. West and Buhler, Digesta pag. 1746772,
nota d. Segundo a lei hindu e segundo a lei ingleza vigente
as vatans podem partilhar-se na familia, mas não vender-se
a estranhos. Ibid., pag. 178 e 745.
DIREITOS ALIENÁVEIS 1 1 5
dade que as haccas e formas, tributos de origem
illicita, se possam classificar direitos inherentes á
terra. Não conheço também factos que me deter-
minem a pôr em outra classe as votonas estabele-
cidas em remuneração de serviços, mas quanto
ás tocshimas de qualquer espécie, estabelecido como
está que representam um quinhão de renda da
communidade, supponho que ficou egualmente
estabelecido que constituem um direito immobi-
liario.
O Decreto com força de lei de i5 de Setembro
de 1880, no art. 55, declarou inalienáveis os jonos
pessoaes, e alienáveis todos os outros direitos, e
o Decreto com força de lei de 1 5 de Dezembro
do mesmo anno, revestiu da natureza de prazos
phateusins as inamas e mocassós na posse dos
dessais e declarou também alienáveis, partiveis e
transmissiveis, todos os direitos dos dessais so-,
bre as communidades. Parece-me que os decretos
citados apenas sanccionaram, n'esta parte, o que
já se fazia, e havia de ser mais diíBcil seguir outro
caminho. Quanto ás communidades devemos po-
rém ter em vista que todos aquelles direitos eram
primitivamente inalienáveis, que esta era a base
da instituição, e que, destruindo-a, se deu um
grande passo para a divisão glebaria das terras.
Na maior parte das aldeias em que as rendas
se não dividem por vangôres e jonos, as tocshi-
mas separadas da terra estam convertidas em
Il6 AS COMMUNIDADES DE GOA
acções que se transmittem por simples endosso
e que dentro em pouco hão de ir parar ás mãos
de um pequeno numero de capitalistas. Acabou
pois ahi a segurança das pequenas fortunas, mas
por outro lado a terra continua inalienável sob o
regimen das licitações. O systema tem todos os
inconvenientes da mão morta e nenhuma das van-
tagens da propriedade livre.
Tem-se discutido muito a quem pertence a pro-
priedade das terras que as communidades pos-
suem (i). Também os jurisconsultos da edade-
média procuraram metter no quadro do Digesto as
que a esse tempo ainda existiam pela Europa (2).
E é possivel que ainda agora nos fosse preciso
parar na questão, se o Decreto com força de lei
de 15 de Setembro de 1880 não tivesse declarado
a Fazenda Publica directa senhoria d'essas terras,
e se modernas investigações scientificas nos não
ensinassem que o direito de propriedade tem sof-
frido muitas transformações, e que no regimen
das communidades é dififerente do que nós enten-
demos sob um regimen individualista.
É de muito maior importância pratica discutir
os limites da acção do Estado a respeito das com-
( 1 ) Vid. Defensa dos direitos das gaucarias, pag. 68 e se-
guintes.
(2) De la Propriété et des ses formes primitiveSy par Mr.
Emile de Laveleye.
^»ÍPÍ^^""i^^^"PWSl"
ACÇÃO DO ESTADO II7
•
munidades. Nove annos depois da Conquista, in-
dependentemente de direitos de propriedade em
que então ninguém pensava, no Regimento que
se deu ao Tanadar de Goa (i) ordenou-se-lhe
que percorresse a Ilha duas vezes por semana, e
«em cada uma das ditas aldeias, que se chamam
gãos (2) sabereis as terras que estão damnifica-
das e maninhas, para logo as fazerdes roçar, e
lavrar, e prantar n'ellas arvores, ou outra semen-
te que virdes que pertencem á qualidade das ter-
ras; e isso mesmo sabereis as terras a que é ne-
cessário serem tapadas e valladas, para se logo
tapar, para não entrar agua salgada n^ellas.» Es-
tas attribuições foram novamente declaradas e
desenvolvidas no Regimento de i623 (3). O es-
crivão da Ilha tinha também no seu Regimento de
1526 (4) percorrêl-a ao menos uma vez por mez
e requerer ao Tanadar que as terras salgadas e
damnificadas, e as hortas desaproveitadas fossem
corrigidas e viessem em crescimento e melhoria.
Estas disposições estavam em perfeita harmonia
(i) Archivo Porl. Oriental, fas2. 5.^, parte 1.% doe. 19,
pag. 35.
(2) A comarca germânica (mark) chama-se também gô.
Mr. Emile de-Laveleye, De la propriété et de ses formes pri-
mitives.
(3) Archivo Port. Oriental, fase. 5.°, parte i.a, doe. 45,
pag. 66.
(4) Ibid. doe. Sj (repetido sob n.^ 66) pag. 11 5.
Il8 AS COMMUNIDADES DE GOA
com as leis hindus, que não reconhecem o jus
abutendi (i), mas foram cahindo em desuso,
assim como foi tomando corpo a idéa do Estado
se considerar senhorio directo das terras com-
muns; contradicçao curiosa, sobretudo quando se
presenceiam as usurpações que dia a dia vão cer-
ceando essas terras, aos olhos de todos... O
trabalho de annexação continua com perseve-
rança e só poderia fazer-lhe rosto a fiscalisação
rigorosa e independente do Estado.
Na Carta de Tanadar e capitão da terra a João
Machado, de 4 de Fevereiro de i5i5 (^2), El-Rei
D. Manuel encarregou-o de cobrar os direitos, que
era costume pagar ao senhor da terra, sem mu-
dança alguma, e logo adeante chama tributos a
esses direitos. Na Carta de 14 de Dezembro de
iSig (3), explica o mesmo Rei D. Manuel que as
terras de que fez mercê aos portuguezes casados
de Goa, foram as confiscadas aos Mouros, e
quanto ás outras «tel-as-hão os canarins, como
sempre as tiveram, e se arrecadarão d'ellas nos-
sos direitos.» Chamaram-lhes depois foros, quando
se estabeleceu definitivamente o que as aldeias
deviam contribuir para o Estado e é provável que
(i) As terras devem ser tidas em condição de cultura
pelo possuidor. West and Búhler, Digest, pag. 172, nota c.
(2) Arch. Port. Oriental^ fase. 5.°, parte i.", doe. i.
(3) Ibid. doe. 26, pag. 42.
wmÊmmmmm^^m^tKmmmmmanÊIK^K^SS^m^mBSSSÊi^ÊSi^Ê^a^t
FOROS E dízimos I I9
O systema da cobrança tivesse determinado o no-
me, porque em documentos d'aquelle século ve-
mos que se aforavam alfandegas, rendas das urra-
cas e outras contribuições, do mesmo modo que
no Foral se aforaram aos gancares as respectivas
aldeias (i).
E assim como em Portugal as Ordenações re-
conheciam várias espécies de aforamentos, tam-
bém em Goa se encontram uns concedidos em
vidas, outros por períodos mais ou menos lon-
gos, e outros emfatiota para sempre (2). A co-
brança era aforada aos gancares de três em três
annos (3) e com o tempo veiu a ser esta a prin-
cipal attribuição da Gamara Geral, acabando as
renovações periódicas (4). De sorte que o Estado
não tinha contas senão com a Gamara Geral e
eram as communidades que cobravam as rendas
publicas. Mas a par dos foros introduziram-se os
dízimos, e no Goncilio Provincial de Goa de 1606,
(i) Ar eh. Port. Oriental, fase. 5.°, parte i.% doe. 178, pag.
3o6^; parte 3.% doe. 1007, eap. 3.°, pag. i373; fase. 3.**, parte
1.*, doe. 123, pag. 393 e — Brados, pag. 12.
(2) Doeumentos eitados na nota anterior e Ibid., fase. 2.^^
doe. 47, pag. i52; fase. 3.*^, parte 2.% pag. 5y5\ fase. 5.*^, parte
3.a, doe. 1007, pag. 1372 e nota ao doe. 1008, pag. 1423.
(3) Ibid. fase. 6.®, supplemento 2.°, doe. 146, pag. 392.
(4) Os foros de Salsete, e provavelmente de Bardez, em
1 566, eram arreeadados por um reeebedor, sem aforamento.
Ibid fase. 5.^, parte 2.^, doe. 578, pag. 61 5.
120 AS COMMUNIDADES DE GOA
para destruir escrúpulos fundados no estabeleci-
mento dos foros, decretou-se que os dízimos
eram devidos a Deus e seus ministros (i), e vê-se
de um documento de i562 que a Egreja estava
então de posse de os cobrar, não só de christãos,
como de gentios (2). Os dizimos passaram depois
para o Estado e a cobrança era arrematada sem
intervenção das communidades, o que foi uma
' perturbação do systema fiscal mais adequado ás
circumstancias do paiz.
Deve porém ter-se em vista que sendo neces-
sário exigir das communidades maiores contri-
buições do que os foros estabelecidos, se tornava
indispensável distribuir o encargo pelos prédios
de cutubana, como se fez nas Velhas Conquistas
e em Bicholim. Nas Novas Conquistas, aonde por
emquanto se não estendeu a contribuição predial
que substituiu os dizimos, ha largos tractos de
terreno, na posse de grandes proprietários, que
não contribuem para as despezas do Estado senão
indirectamente, com os seus limitados foros, em-
quanto a renda dos prédios communs está adju-
dicada á Fazenda por largos annos, para satisfa-
ção de foros que as communidades não podem
solver.
Os systemas de contribuição predial ado-
(i) Archivo Port Oriental y fase. 4.°, pag. 252.
(2) Ibid., fase. 5.0, parte 2. a, doe. 424, pag. 5 11.
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122 AS COMMUNIDADES DE GOA
quarta classe aquelles que estavam nos prédios
havia menos de doze annos; a lei considerou-os
meros arrendatários; mas em i885, a estes mes-
mos foram conferidos importantes direitos, desde
que tivessem occupado as terras durante três
annos. Quando o proprietário lhes augmente a
renda podem largal-as e exigir compensação ade-
quada da perturbação e das bemfeitorias, haven-
do-as.
N'este systema a unidade fiscal é o zamindar, no
de Madrasta é o rayot, ou cultivador, e denomi-
na-se rayotwari. As terras estam divididas em
classes conforme o imposto que se calcula e fixa
de 3o em 3o annos. O rayot toma a área que lhe
convém, e sobre essa área se faz todos os annos
o lançamento. Elevou-se d*este modo o rayot á
situação de proprietário; elle pode subarrendar,
alienar, dividir e hypothecar — comtanto que pa-
gue o imposto. Se tomar novas terras o imposto
augmenta, se deixar parte, diminue em relação á
área.
O cadastro da índia Britannica pode conside-
rar-se completo e é a base de todos os systemas
fiscaes; o de Bombaim funda-se especialmente
n'uma área de 20 acres para cima, segundo os
districtos, que se acha fixada pelo governo como
unidade. Chama-se-lhe campo (field) e sobre cada
um dos campos está feito o lançamento do im-
posto,, também aqui invariável durante trinta an-
PROTECÇÃO DO RAYOT 123
nos. Quem toma um campo pode alienai- o e
hypothecál-o ; os seus direitos de propriedade
são-lhe plenamente reconhecidos pela lei, só
não pode dividil-o, e no fim de trinta annos
está sujeito á revisão do lançamento. Em Ma-
drasta a contribuição é calculada em relação
á terra registada pelo rayot, em Bombaim
em relação ao campo indivisivel. Em tudo o
mais os systemas são essencialmente idênti-
cos.
E assim como em Bengala foi preciso proteger
o rayot do zamindar, assim em Madrasta e Bom-
baim se tornou necessário defendêl-o do usu-
rário. São de 1879 e 1881 as duas notáveis leis
em vigor no Sul da índia. Quanto ás dividas
inferiores a 50 rupias, se os tribunaes entenderem
que o devedor não pode pagar tudo, reduzem a
quantia pedida, e dão-lhe quitação do resto. De-
pende do prudente arbitrio dos juizes pôr o con-
tracto nos termos que lhes parecerem razoáveis,
independentemente do que está escripto, reduzir
os juros, e fixar a somma que deve pagar-se.
Quanto ás dividas de mais de 5o rupias, não só
não podem penhorar-se os instrumentos de tra-
balho, como também se não penhoram os im-
moveis, a não ser no caso de hypotheca. E
ainda no caso de hypotheca os tribunaes podem
ordenar que o executado, durante um periodo
nunca superior a 7 annos, cultive o campo por
124 AS COMMUNIDADES DE GOA
conta do credor, deduzido o necessário para a
sua alimentação e da familia. No fim d'aquelle
praso recebe quitação. O devedor pode também
recorrer aos tribunaes para o declararem em es-
tado de insolvência. Então os moveis, excluidos
os instrumentos de trabalho, ficam sujeitos a
venda. Os immoveis dividem-se em duas partes,
uma é destinada para alimentação do insolvente
e familia, e outra para ser administrada por
conta dos credores. Os prédios urbanos occupa-
dos pelos insolventes continuam na posse d'elles
e são excluidos d^aquella divisão. A' tentativa
de conciliação precede sempre as causas em
juízo.
Nas Provindas do Noroeste e Panjab o lança-
mento faz-se sobre as communidades, onde as
terras são possuidas em commum. N'essas aldeias
a renda constitue um fundo, de que se tira a con-
tribuição, e o resto divide-se pelos gancares, co-
mo diriamos em Goa, calculando-se os seus
quinhões por fracções da rupia ou da bigha^ uni-
dade das medidas agricolas de extensão (i). Em
outras aldeias as terras estam divididas, e o lan-
çamento faz-se também separadamente, mas os
gancares têm responsabilidade commum subsidiaria
perante o governo ; e finalmente em outras, ha
terras communs e divididas •, n'aquellas o lan-
(i) Note-se a analogia com o cunio e ôrá de Goa.
CONTRIBUIÇÃO PREDIAL NO NORTE DA ÍNDIA 125
çamento é em globo e a responsabilidade com-
mum, n'estas o lançamento é separado e cada
proprietário responde apenas pelo que lhe to-
ca (i).
(i) The Imperial Gajetteer of índia, vol. 6.° (The IrMan
EmpireJ, pag. 441 e seguintes, e nos outros volumes verb. Ben-
gal, Madras, Bombay, North- Western Provinces e Punjab-
— The Survey and Settlement Manual, compiled by order of
the Government of Bombay.
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V
Regimen politico
No limite de Curtorim, caminho da Raia, em
Salsete, ha um tracto de terreno, ainda hoje pos-
suido em commum, que segundo é tradição foi
concedido pelos gancares de Curtorim aos ascen-
dentes dos actuaes possuidores para guardarem a
fronteira das incursões dos povos da Raia. A po-
pulação das duas aldeias é homogénea. O facto
caracterisa portanto de uma maneira notável as
relações em que se achavam as communidades de
Goa n'uma época que não pode ser muito remota.
Cada aldeia tinha uma organisação independente
e até um deus exclusivamente seu. O ferreiro, o
alparqueiro, o mainato desfructavam terras, que os
prendiam á communidade, e de pães a filhos iam
prestando os serviços da sua profissão pelos pre-
ços do costume; os ministros da religião e servi-
dores do pagode enraizavam do mesmo modo.
128 AS COMMUNIDADES DE GOA
O Foral de Affonso Mexia, que a aldeia de
Margão, no principio do século passado dizia ter
sido feito inspirante Deo (i), e que é o documento
de mais valor que possuímos para o estudo das
communidades de Goa, suppõe que as terras se
achavam já povoadas e aproveitadas pelos ganca-
res ou visinhos quando «vieram senhores e sogiga-
dores sobre elles aos quaes se obrigaram dar renda
e foro por os deixarem em suas heranças e cos-
tumes».
Lê-se no Tombo Geral que Affonso d'Albuquer-
que, em seguida á primeira conquista, arrendou por
60:000 pardaus de ouro a cobrança dos impostos
nas terras de Salsete, Bardez, Pondá e dependên-
cias (2). Era o systema antigo dos dessais, meros
arrendatários de impostos, como já vimos. Mas a
determinação da quantia em globo, tornava as com-
munidades solidarias e d'aqui provinha uma or-
dem de relações, que veiu a ter muita importân-
cia, principalmente nas Novas Conquistas.
Se as circumstancias das aldeias se não modi-
ficassem, e se os impostos não fossem alterados,
a repartição uma vez feita serviria para sempre.
Não podia ser assim. As guerras e penúria do
Estado obrigavam a frequentes addicionaes que
tinham de ser repartidos pelas aldeias.
(i) Arch. T^ort. Oriental^ fase. 6.**, supplemento 2.°, doe. 97,
pag. 278.
(2) Bosq. Histórico das Communidades, parte 2.", pag. 2.
ORGANISAÇAO DAS ALDEIAS I29
O Viso Rey Vasco Fernandes César de Mene-
zes, em um documento de 3 de Janeiro de 1717 (1),
descrevia pela forma que se segue o estado de
Salsete: «A comarca de Salsete se compõe de
«sessenta e seis aldeias, umas grandes e outras
«pequenas. . . e cada uma tem sua camará que a
«governa, a que chamam gancaria, e seu districto
«de terras que cultiva, e todas pagam a V. Ma-
«gestade o foro que antigamente pagavam aos
«Reis gentios que as possuiam quando os portu-
«guezes as conquistaram: todas estas estamsubor-
«dinadas a uma Gamara Geral, a qual não tem
«bens nem terras algumas, e se compõe de vinte
«e quatro homens gancares de doze aldeias, e cada
«uma d'estas doze (que são as primeiras d'aquel-
«las sessenta e seis) elege em cada anno dois dos
«seus gancares, e fazem os vinte e quatro que
«constituem a Gamara Geral: esta também tem
«um escrivão e um saccador; é como procuradora
«de todas as sessenta e seis; porém com tal juris-
«dicção que tudo o que ella dispõe em ordem ao
«que quer para despezas dos seus negócios ou
«serviço do Estado, o distribue em todas as al-
deias. . .))
Nas Ilhas e em Bardez era a mesma cousa e
não podia haver systema fiscal mais simples. O
(i) Arch. T*orL Oriental^ fase. 6.°, supp. 2.", doe. 80, pag.
234.
AS COMMUNIDADES DE GOA Q
132 AS COMMUNIDADES DE GOA
■ ■-■■-■■ ■■ ■ — — — »■
dencias de 23 de Dezembro de 1766 (i) são o pri-
meiro diploma que contém disposições minuciosas
sobre a administração de justiça. Consta d' esse
documento que o antigo estylo do paiz consistia
em entregar a árbitros as questões civis e crimi-
naes; n^estas era o parpotcar, magistrado fiscal,
quem os nomeava, nas outras competia ás partes
a nomeação. Em ambos os casos havia recurso
para o Rei. A Carta Regia de 16 de Janeiro de
1774 explicava de modo um pouco difFerente os
usos e costumes. As acções eiveis ou eram deci-
didas pelos gancares da aldeia, ou pelas pessoas
que tinham especial conhecimento dos factos con-
trovertidos e em quem as partes se louvavam. As
questões criminaes de pequena importância se-
guiam a mesma regra e os crimes atrozes, como
sedição, homicidio voluntário, roubo, eram julga-
dos em junta por gancares e dessais. Fica assim
claro o que em vista do primeiro diploma citado
mal podia comprehender-se — a distincção entre
questões civis e criminaes segundo os usos e cos-
tumes.
Deante de um crime atroz, que abalasse a cons-
tituição social, as communidades levantavam-se e
pelos seus órgãos — gancares e dessais, puniam
o delinquente, «fazem executar immediatamente
nos réos a pena ultima» são as palavras da Carta
(1) Collecção de Bandos, \P vol., áoz. 3, pag 3, e seguintes.
COSTUME E LEI l33
Regia. Fora d'estes casos a distincção não exis-
tia.
Os crimes menos graves eram punidos com
«penas pecuniárias», do «modo ordinário», e na
«sobredita forma» — a das acções eiveis.
Por emquanto não encontrámos senão indicios
de que os gancares e dessais de uma provincia
se reuniam em junta para fazer justiça, mas o cos-
tume é attestado pela Gamara Geral de Pondá,
com referencia ao tempo do Rei de Sunda, na in-
formação de 21 de Outubro de 1778 (i); dep^e-
sente^ isto é, na época da informação, as partes
nomeavam louvados.
A representação dos povos de Bicholim, con-
tida no Bando de i5 de Setembro de 1781 (2), dá
a entender duas jurisdicções, a dos gancares da
communidade, julgando como árbitros as ques-
tões da aldeia, e a da Gamara Geral julgando do
mesmo modo as da provincia. É muito provável
que as questões da provincia, a que os povos se
referiam, fossem os crimes atrozes; não só os at-
tentados, de que falia a Garta Regia de 15 de Ja-
neiro, mas todos os que afifectavam egualmente a
casta, religião e costumes.
Não podia haver differenças a este respeito. A
esphera da lei, determinada pela sancção, vae-se
(i) Collecçâo de Bandos, vol. i.o, pag. 33 nota.
(2) Ibid. pag. 28, supplicas i3.« e i5.*
134 AS COMMUNIDADES DE GOA
modificando constantemente. Por um lado novas
condições sociaes criam relações jurídicas, que
em outro tempo não podiam existir, e por outro
lado um grande numero de preceitos oblitera-se,
ou vae passando para a esphera moral e para o
dominio da hygiene. Os costumes hindus, assim
como os livros sagrados, abrangiam no mesmo
systema religioso toda a conducta dos homens
entre si e para com Deus. A separação d'essas
relações e a concepção de lei que d'ahi resultou
é um facto estranho áquella sociedade.
Lê-se com effeito no art. 45 dos Usos e Costu-
mes codificados em 1824: «Os louvados para as
decisões judiciaes devem ser eleitos do corpo da
Gamara. As decisões de objectos graves, ou seja
a respeito das castas, sobre os Pagodes, sobre a
sua Mazania, e outras matérias de maior ponde-
ração, a Gamara Geral é que deve decidir, e a ella
se devem commetter estas decisões».
Este artigo não chegou a ser posto em vigor.
A primeira parte foi sempre contestada e afinal
tinha prevalecido que os louvados podiam ser es-
colhidos fora do corpo da Gamara. Da sogunda
apenas continuou a acceitar-se, como até alli, a
competência das Gamaras Geraes para o julga-
mento de crimes. Foi o Regimento de Justiça de
I de Dezembro de 1866 que poz termo a esta ju-
risdicção.
Temos assim deante de nós um facto interes-
CAMARÁS GERAES l35
santíssimo. As aldeias possuiam uma organisação
própria, que as tornava independentes em tudo o
que dizia respeito aos seus negócios internos;
o antagonismo, de que fallei, era um elemento
caracteristico da separação que existia de umas
para as outras; mas vieram c senhores e sogi-
gadores» sobre ellas, e as aldeias unem-se e
formam confederações para o pagamento dos
impostos e representação, isto é, defeza com-
mum.
Ha muitas razões para supppr que as attribuições
judiciaes assumidas pelas Camarás das Novas
Conquistas não eram justificadas pelos usos e
costumes. Os primeiros documentos dos seus fo-
ros e isenções não faliam de tal jurisdicção e nas
Velhas Conquistas não apparecem vestigios d'ella.
Ainda mais : a própria confederação parece ter
sido organisada sob a influencia brahmanica. A Ca-
mará Geral das Ilhas era composta de dezeseis
vogaes nomeados por oito aldeias, a dois cada
uma. Ora d'essas oito aldeias, quatro são de brah-
manes, a saber: Azossim, Ellá, Gancim, e Neurá o
Grande. A Camará de Salsete era composta de
vinte e dois vogaes egualmente nomeados por onze
aldeias, nove das quaes de brahmanes; só Betalba-
tim e Colvá são de charadós. Os dezoito vogaes
da Camará de Bardez eram nomeados do mesmo
modo por nove aldeias, sete de brahmanes, Ca-
langute de charadós e Parra de charadós e su-
i
l36 AS COMMUNIDADES DE GOA
dras (i). A maioria das aldeias não tinha represen-
tação própria e era a minoria brahmanica que pre-
ponderava n'aquellas corporações. Isto nas Velhas
Conquistas, porque nas Novas, exceptuados os
Ranes e um ou outro dessai maratha de limitada
influencia, tudo o mais estava nas mãos dos bra-
hmanes.
Qualquer que fosse a época da formação das
Gamaras, as attribuições judiciaes de que ellas
vieram a investir-se mostram a sua tendência ; e
como as aldeias conservavam vida própria e inde-
pendente, aquélle centro de federação era indis-
pensavel para que os povos de Goa, sobre a base
das instituições primitivas, podessem formar um
agrupamento mais largo, capaz de defender-se e
de subsistir como nação.
E claro que as cousas não poderiam seguir esta
marcha, desde que o paiz estivesse sugeito a um
domínio estranho — que se não limitasse a cobrar
impostos e tivesse um governo seu. Mas havia lá
dentro obstáculos de outra natureza.
«Ecce pauper remansit fiscus noster; divis Eccle-
sia: divitiae nòstrae ad ecclesias sunt translatae»,
dizia Ghildeberto (2). Os processos foram idên-
ticos na índia e na Europa. As doações aos pa-
(i) O Gabinete Litterario das Fontainhas, Divisão e des-
cripção das comarcas, vol. 2.° e 3.°
(2) Ed. Laboulaye — Histoire du droit de propriétéfoncière
en Occident^ pag. 293.
DOACÇÕES ECCLESIASTICAS \3j
godés favorecidas e protegidas (i) como d'este
lado as doações ecclesiasticas, foram desmem-
brando o dominio da communidade, crearam ao
seu lado interesses distinctos e sobrecarrega-
ram-nas de importantes ónus.
Lê-se no Tombo GeraK feito por Francisco
Paes em 1595, no titulo sobre a renda dos pagodes
da Ilha de Goa e seus termos .aOs gancares mora-
«dores nas aldeias d'esta ilha de Goa. e seus
«termos, quando na sua antiguidade a vieram
«grangear e povoar, das terras que grangearam
«separaram em cada aldeia certas terras que
«applicaram ao serviço dos seus deuses para do
«rendimento d'ellas se fazerem as despezas dos
«pagodes que adoravam, e dos servidores e mi-
«nistros d'elles, as quaes terras ficaram desmem-
«bradas de seus patrimónios, e dedicadas ao seu
«culto, e como consagradas ao divino ficou a
«possessão d'ellas com os brahmanes e gurous,
«sacerdotes e ministros dos ditos pagodes, que
«as arrendavam de per si e arrecadavam os rendi-
«mentos e os despendiam no serviço de sua reli-
gião» (2).
São os namoxins e inamas, de que fallei no ca-
pitulo antecedente, e que se estendiam por largos
tractos da melhor terra.
(i) West and Búhier, pag. 171, 192 e 197.
(2) Arch. Port. Oriental, fase. 5.<>, parte i.«, pag. 170, nota
l38 AS COMMUNIDADES DE GOA
As depredações dos dessais tiveram resultados
muito mais graves. Em Satary as communidades
extinguiram-se e em Pernem conservaram o me-
canismo necessário para a distribuição e cobrança
dos foros, mas deixaram de ter a administração
das terras. Os dessais usurparam tudo e a insti-
tuição ia assumindo o caracter feudal quando o
dominío portuguez foi implantado nas Novas Con-
quistas.
A Carta Regia de 1 5 de Janeiro de 1774 diz,
como já vimos, que os crimes atrozes eram pu-
nidos com a pena ultima, e os menos graves com
penas pecuniárias em acções que se não distin-
guiam das eiveis. Estas penas pecuniárias não
podem portanto considerar-se senão como uma
indemnisação que o lesado exigia do réo. Fóra
isto, lê-se também nas Instrucções de 25 de Abril
de 1771 (i) que as viuvas deshonestas eram ven-
didas a favor da Fazenda Real.
Não encontro nos nossos documentos antigos
outras informações acerca do systema penal dos
usos e costumes. A importância da expulsão da
casta n'aquelle systema só foi reconhecida na co-
dificação de i853 e ahi a excommunhão maior (thiag)
apparece limitada aos que tiverem comido cousas
prohibidas, ou com pessoas de casta inferior, ás
mulheres adulteras e a quem communicar com o
\\\ Collecção de Bandos, vol. i.o, pag. 9.
EXCOMMUNHÃO I39
excommungado. Este, accrescenta o art. ii8 do
Cod., é reputado por morto, não tem direito a
nenhum succorro das pessoas da sua classe e os
parentes tomam nojo como se houvera fallecido.
A excommunhão menor (bahishcrita) apenas im-
pede temporariamente de communicar com as
pessoas da casta e de assistir aos actos religiosos.
Nem uma, nem outra, podia ser imposta sem previa
justificação nos tribunaes, e sem que interviesse
a assembleia da casta (ivarga) e o prelado (suatny).
A doutrina do Código não pode considerar-se
mera compilação dos usos e costumes. Para dar
efifeitos civis á excommunhão introduziu-se o jul-
gamento perante as justiças ordinárias, e a gra-
vidade d'esses effeitos obrigou a limitar os casos
em que a pena podia impôr-se.
Não me consta que houvesse nunca doutrina
assente a este respeito. A vacca é um animal
sagrado na religião hindu; os povos de Bicholim,
quando encorporados no dominio portuguez, en-
tre outras garantias politicas e religiosas, pedi-
ram que fosse prohibido matal-as (i); tocar na
carne de vacca, comêl-a, seria para o brahmane
um crime mais griave do que a morte de um su-
dra. D'este facto não deve porém concluir-se que
tocar em qualquer alimento prohibido importe
excommunhão maior.
(i) Collecção de Bandos, vol. i.o, pag. 29.
140 AS COMMUNIDADES DE GOA
O adultério da mulher também carece de qua-
lificação. Já vimos em outro lugar a pequena im-
portância que se lhe dá quando é com pessoa da
mesma casta. Na representação dos povos de Bi-
cholim, ainda agora citada, a par da prohibição
de matar vaccas, pedia-se que fossem perdoados
os adultérios; «não querendo ou perdoando o ma-
rido, concedida» respondia o Governador.
A casta é uma esphera social e tudo o que of-
fender a sua disciplina ou atacar os seus funda-
mentos, pode dar motivo á excommunhão.
Um dos traços mais delicados nas investigações
de Sumner Maine é aquelle em que o venerando
sábio esboça com a sua mão de mestre a mudan-
»
ça de natureza dos usos e costumes, na índia, ao
contacto dos tribunaes inglezes. Estillado da tra-
dição oral, o costume perde a maleabilidade que
o accommodava aos diíFerentes casos nas decisões
do conselho da aldeia, fixa-se, converte-se em
lei (i).
Era inevitável a transformação. Mas em Goa
fez-se directamente e a auctoridade que a decre-
tou podia cortar a direito porque legislava.
O julgamento por árbitros, ou jurados, na lingua-
gem moderna, era o estylo geral do paiz nas No-
vas Conquistas, e nos districtos estrangeiros em
roda de Goa ainda algumas vezes se congrega o
(i) Village communities, pag. 71.
A PROVA DO FERRO EM BRAZA I4I
paiichayaty originariamente um tribunal de cinco
gancares, quando é licito recorrer a árbitros para
a decisão dos pleitos. Sob o domínio de Bijapur,
nas questões de heranças de propriedade, em que
o governo era parte, a assembleia do panchayat
compunha-se em regra de i5 pessoas, dois terços
mussulmanos e um terço hindu, ao que parece (i).
O Foral de Affonso Mexia faz referencia a ou-
tra forma importante de julgar: aSerá dado jura-
mento ao possuidor da herança que declare por
elle o que parecer que cumpre, e convém para a
verdade ser sabida, e sobre tal caso e outros si-
milhantes jurarão em um pagode que se chama
u:[ó, »
Ainda hoje é frequente o desafio para esta prova
solemne, e tenho noticia de dois casos, em que
os depoentes, ambos arguidos de furto, fugiram
deante do ferro em braza sobre que tinham de jurar,
no Pagode, sendo logo havidos por confessos na
opinião dos que assistiam.
Em Kittur, districto de Belgão, encontrou-se,
gravada em pedra, uma inscripção curiosa. É de
1188 ou 1189. Tinha-se levantado questão por
causa de uma terra entre os ministros (achárya)
de dois deuses, e as partes concordaram em sujei-
tar-se á prova do ferro do arado, em braza {pha-
ladip/a). Em um dia do mez Ashadh (Junho a Ju-
(i) History of the Mahrattas, vol. i.o, pag. 67, nota.
iram com os prin-
sagode de Malli-
1 pertencia ao seu
utro, agarrando a
que a terra per-
' dia seguinte os
que tinha jurado
sm nenhum signal
pertencia ao deus
usos e costu-
^ os a'iminosos de
íem na presença
c lavados e purga-
6g «lunidade da aldeia
•ratica já estabele-
Fo vimos, que as pe-
tança. Os gancares
Ssem, somente ha-
gem nas fazendas e
•filhos e herdeiros.
)s filhos nasci-
t caso de excommu-
Dsta, e não podiam
r(2).
^idençy, vol. sxi (Bel-
ASSEMBLEIAS DE CANGARES 148
Cada aldeia tinha uma organisação indepen-
dente e em outras terras da índia chamavam-se
bard kalúte^ ou doze quinhoeiros, as pessoas que
hereditariamente exerciam os cargos e misteres
da communidade. Esses quinhoeirosy de uma parte
do rendimento commum, eram, na maioria dos ca-
sos, o patél^ responsável pelos impostos e chefe
de policia, o culcormim ou escrivão, o carpinteiro,
o ferreiro, o alparqueiro, o oleiro, o barbeiro, o
mainato, o astrólogo, o gurou^ que os christãos
chamam feiticeiro, o ourives, que verificava a qua-
lidade dos metacs, e o mhar ou vigia (i).
Nas communidades mais ricas de Goa só o pes-
soal dos pagodes comprehendia muitos outros
servidores (2); do que não ha vestigio algum é da
entidade patél. As assembleias dos gancares não
tinham chefe. Reuniam-se no pagode, ou debaixo
das arvores que o cercavam, e ahi resolviam os
negócios públicos, tumultuariamente.
É lenda que em Dramapur, de Salsete, as con-
tas se faziam com seixos; tomaram por isso um
brahmane, e succedeu-lhes o que nas Novas Con-
quistas se tornou um facto geral. Os culcornins
apropriavam-se dos vangores, e iam constituindo
(i) Colonel Etheridge, Narrative, pag. 38,nota. — Gaifetteer
oj the Bombay T^residency, vol. xxii (Dharwar), pag. 446,
vol. X (Ratnagiri), pag. 222 e nota 2.»
(2) Arck. T^ort. Oriental, fase. 5.°, parte 2.*;* doe. 610, pag.
645 e doe. 747, pag. SSg.
144 AS COMMUNIDADES DE GOA
uma aristocracia, emquanto os antigos gancares
passavam á condição de rayots.
«Gancaria é o ajuntamento de todos os ganca-
res de uma aldeia, ao menos de uma pessoa de
cada vangôr», explicava o Oriente Conquistado (i).
«Vangôres são as famílias vogaes, que têm voto
na gancaria": e são tantos estes vangôres quantos
foram antigamente os primeiros fundadores de
cada uma das aldeias. A jurisdicção d'estas gan-
carias é em ordem á cultura das terras, satisfação
e segurança dos foros. E quando se ajuntam em
camará a tratar algum negocio, se um só diz —
7iacá — isto é, não quero, ainda que todos os mais
sejam de contrario voto, prevalece o nacá, des-
faz-se o congresso e nada se consegue.»
O Padre Mestre referia-se ao que, no seu tempo,
se praticava em Margão, sob os olhos de auctori-
dades superiores e estranhas á aldeia, que davam
força ao veto de qualquer gancar, na supposição
de ser aquelle o estylo da communidade.
O numero de vangôres que deviam intervir, a
edade de votar e o numero de votos, são questões
que se foram fixando com grandes deficiências na
passagem da tradição oral dos usos e costumes
para as compilações escriptas.
Diz o Foral de Aífonso Mexia que para a vali-
dade das alienações de heranças era preciso que
(i) Vol. I.**, conquista i.% div. 2.a, § 56.
ASSEMBLEIAS DE CANGARES 145
interviesse não só o petidedor mas todos os herdei-
ros, e sendo algum menor, exigia-se que assignasse
por elle qualquer pessoa da familia. É que uma
das bases d'esta instituição — a herança inaliená-
vel, ia-se modificando por influencia das circum-
stancias que introduziram o regimen do contracto
nas relações sociaes. Mas a noção de contracto im-
portava a intervenção de todos os interessados.
A respeito dos menores, a ficção consignada no
Foral suppria a sua falta.
Pode por isto dizer-se que a intervenção dos
menores se considerasse necessária em todos os
contractos? Havia communidades em que os gan-
cares votavam desde que tivessem completado
onze annos (i), e é possivel que uma inducção
d'aquella natureza fosse a única origem do estylo
assim fixado nas nossas compilações. Esses esty-
los variavam de uma aldeia para outra, eram va-
gos, e as assembleias que os definiam nasceram
espontaneamente da necessidade de manter a or-
dem, julgando e resolvendo os negócios que to-
cavam a todos; não havia diplomas que limitas-
sem os seus poderes.
O Foral de AfFonso Mexia enumera as aldeias
de Tissuary pelas suas preeminências; falia de gan-
cares mores t principaes\ e nos últimos capitulos
(t) Bosquejo Hist. das Communidades, mappas apag. 26 e
seguintes.
AS COMXUKIDADES DE GOA lO
146 AS COMMUNIDADES DE GOA
contem disposições que merecem attenção. Nas
festas e ajuntamentos devia ofiferecer-se areca e
betei (pan-supdri) ao principal gancar da aldeia e
após elle aos outros, por graus. Nos assentos, os
nomes dos gancares eram também escriptos se-
gundo a mesma precedência. «Os bailadores e
bailadeiras, que vierem festejar á aldeia, irão pri-
meiro festejar a casa do principal gancar, e quando
forem dois juntos em uma honra, ficará em peito
dos bailadores ir a casa de qualquer que quize-
rem, e a estes taes gancares juntos em uma honra
se levará o betre, ou outra honra, quando houve-
rem de a receber, estando juntos com os braços cru-
zados, e o direito debaixo do esquerdo por tal que o
que tomar por mais honra o que for na mão direita,
possa o outro gancar dizer que o presente que
tomou da mão esquerda precedia porque ia sobre
a direita.» Vê-se do capitulo immediato que a al-
deia podia vender estas honras quando não exis-
tiam já de juro e herdade. Nas Ilhas não se podia
começar a seifa sem que segasse a aldeia de Ta-
leigão, e dentro de cada aldeia a lavra e a seifa
eram abertas pelo gancar-mór. Trazer tocha, an-
dor e sombreiro, dependia de licença régia ou do
governador, salvo egualmente o juro e herdade;
concedia-se de duas maneiras, á custa do Estado,
no caso de serviços relevantes, ou á custa do
agraciado; «e também se poderá dar tocha sem
sombreiro, e sombreiro sem tocha, e andor, e cada
HONRAS E CERIMONIAS I47
cousa sobre si e tudo junto em cada uma das so-
breditas maneiras também.» Termina por estas
palavras a parte dispositiva do Foral. Frivolida-
des, diriamos hoje, mas frivolidades que occupa-
vam um grande lugar na politica d'aquelles po-
vos (i), e que por isso se consignaram alli com a
reverencia das garantias individuaes nas consti-
tuições modernas.
Lê-se em outro capitulo do mesmo documento
que não estando presente algum gancar de Neurá,
ao escrivão da Gamara das Ilhas competia dar o
nemoy que era a voz de assentimento com que se
encerravam as deliberações. Nas communidades,
por menos nas communidades das Novas Conquis-
tas, os culcornins foram assumindo a direcção das
assembleias, ainda agora tumultuarias e ruidosas,
como se diz que foram sempre. Mas os culcornins são
posteriores ás migrações brahmanes; houve tempo
em que tudo se passava oralmente; a ascendên-
cia de certos vangôres e famílias, indicada pelos
privilégios do Foral e pela tradição, devia ter sido,
então e depois, um elemento de grande pêzo na
gerência dps negócios públicos.
Parece que em outras communidades da índia
a escola entrava na organisação das aldeias (i) e
(1) Herbert Spancer, Ceremonial Institutions.
(i) Max-Muller — índia, what can it teach us? pag. 62,
nota.
148 AS COMMUNIDADES DE GOA
em Goa a instrucção elementar esteve algum
tempo a cargo d'ellas sob o domínio portuguez.
Nas Novas Conquistas, encontra-se um grande
numero de aldeias oneradas com haccas ou pen-
sões para differentes mothos^ casas religiosas sob
a direcção dos dois prelados (suamys) de Smarts
e Vaishnavas. N'essas casas, hoje em decadência,
apenas se ensina a. recitar alguns textos dos Ve-
das repetidos nas cerimonias e ritos hindus. As
primeiras letras da lingua maratha e as noções
de arithmetica, que constituíam quasi todo o sa-
ber das classes hindus, têm sido até ha pouco
tempo professadas exclusivamente por mestres
particulares, mantidos muitas vezes como pessoas
da familia na companhia dos discípulos. Os estu-
dos clássicos, se alguma vez floresceram no paiz,
cahiram em completo abandono.
VI
Influencia portugueza
«Aqui jáz Diogo Rodrigues o do Forte, capitão
d'esta Fortaleza, o qual derrubou os pagodes
d'estas terras. Falleceu a 21 de abril de 1677 an-
nos.» O epitaphio do velho capitão da Fortaleza
de Rachol, em Salsete, lavrado sobre a sua sepul-
tura na egreja do lugar, resume em poucas pala-
vras uma parte notável da historia da conversão.
Conta o Oriente Conquistado que Diogo Rodri-
gues, ou Fernandes (i), desobedecido pela com-
munidade de Loutulim, lhe mandou lançar fogo ao
pagode em 1667; a communidade recorreu aos
tribunaes e o capitão foi condemnado a «levantar
um templo aos Ídolos»; reedificar o pagode des-
truido traduzia-se d'este modo na phrase do pie-
(i) Parte 2», Conq. i.% Div. i.', §§ 16 e 17, e — Brados a
favor das communidades, pag. 81, nota b.
l5o AS COMMUNIDADES DE GOA
doso escriptor. A sentença indecente, como elle lhe
chama, não teve porém execução. O mais prová-
vel é que nunca tivesse sido proferida porque a
Provisão de 29 de Agosto de 1666, notificada á
Gamara Geral de Salsete em 14 de Janeiro de
1567, prohibia já que se edificassem novos pago-
des e que os antigos fossem reparados sem licen-
ça (i). Mas deixemos-lhe concluir a historia. O
Vice-Rei D. Antão de Noronha disse a Diogo Fer-
nandes que tornasse para Salsete e queimasse
quantos pagodes podesse; o mais corria por sua
conta.
Também veiu a correr por conta de outro
Vice-Rei, D. António de Noronha, que em 1 1 de
Dezembro de 1672 lhe passou carta de aforamento
de umas várzeas confiscadas aos pagodes de Cur-
torim — attendendo aos seus quarenta e seis an-
nos de serviço, vinte e sete n'aquellas partes da
índia, em pelejas e cercos, na administração da
justiça, prisão de malfeitores e conversão dos in-
fiéis e gentios, a quem derrubara em Salsete 3oo
pagodes e mesquitas (2).
Este rigoi^ de miseiHcordia tinha principiado nas
Ilhas em 1540, segundo o Tombo Geral de Fran-
cisco Paes. Ha com efifeito uma Provisão de 30
(1) Archivo T^ort, Oriental, fase. 5.*^, Parte 2 «, doe. 576,
pag. 612.
(2) Ibid. fase. 5.°, parte i.», pag. 171, nota ao doe. yS.
A CONVERSÃO DOS INFIÉIS l5l
de Junho de 1541 em que o Vedor da Fazenda
Fernão Rodrigues de Castello Branco, governando
na ausência de D. Estevão da Gama, fazia saber
que Nosso Senhor se quizera lembrar d*aquella
terra e gente, de tanto tempo sujeitas ao demó-
nio, e houvera por seu serviço que os pagodes fos-
sem derribados e desfeitos de todo — sem ficar
nenhum em todas ellas (i).
O intento da conversão dos infiéis tinha sido o
que mais obrigara El-Rei a conquistar aquellas
partes da índia, pensava D. Sebastião (2), e Ca-
mões cantou as memorias gloriosas dos reis que
foram dilatando a fé, o império; em primeiro lu-
gar a fé, depois o império. Foi esta a essência da
civilisação representada pelo dominio portuguez.
Cerca de 1546 (3) mandou D. João III que se
buscassem as casas de gentios suspeitas de terem
Ídolos, prohibiu as festas gentílicas e pregadores
brahmanes, e ainda em seu nome, em 1557, foram
excluídos de empregos e serviços públicos todos
os infiéis (4). A regência de D. Catharina princi-
piou como era de esperar. Decretou que na falta
(i) Archivo T^ort. Oriental, fase. 5.°, parte i.«, doe. yS pag.
161.
(2) Ibid. fase. 3.0 parte i.*, doe. i.opag. 2; fase. 5.®, parte
2.a, doe. 714, pag. 770; parte 3.% doe. 8o3, pag. 967 e seguin-
tes.
(3) Ibid., fase. 5.**, parte i.*, doe. iii, pag. 223
(4) Ibid., doe. igS, pag. 319.
l52 AS COMMUNIDADES DE GOA
de filhos varões as mulheres e filhas podessem
herdar — fazendo-se christãs, e na sua, falta o pa-
rente mais próximo que se fizesse christão; confir-
mou a Carta de Francisco Barreto que excluía
os infiéis de empregos e serviços do Estado; man-
dou entregar os orphSos de pae, mãe e outros as-
cendentes ao CoUegio de S. Paulo da Companhia
de Jesus para serem baptisados, creados, e dou-
trinados pelos Padres e encaminhados por elles ;
confirmou os gentios convertidos e que viessem
a converter-se nos privilégios e liberdades de mo-
radores portuguezes, como já lhes tinha sido con-
cedido por Francisco Barreto; prohibiu que se
emprestasse a infiéis o dinheiro de orphaos e man-
dou que fossem queimados e desfeitos todos os
Ídolos e pagodes que ainda restassem. Todas es-
tas providencias, e ainda outras menos importan-
tes, são de 1659 (i).
O Vice-Rei D. Constantino de Bragança, que
então governava a índia, não se contentou com
fazer cumpril-as rigorosamente. Havia menos de
um anno que tinha tomado posse, e logo em
Alvará de 27 de Julho de i5bg equiparou, para o
efifeito da successão, as filhas de gentios, que se
fizessem christãs, aos filhos varões. É ainda mais
(1) Archivo T^ort. Oriental, fase. 5.°, parte i.% doe. 285
e seguintes, pag. 38 1 e seguintes; e doe. igS a pag. 819; fase.
6.°, supplemento i.®, doe. 883 a pag. 710.
A CONVERSÃO DOS INFIÉIS l53
notável a Provisão de 2 de Abril de i56o que
mandou lançar fora de Goa os brahmanes com-
prehendidos em trinta itens declarados n'um rol
e que não fossem naturaes de Salsete ou Bardez,
porque só a esses permittiu que vivessem nas suas
aldeias. Aos que tivessem bens de raiz deu o
praso d'um mez para os venderem, os mais deviam
ir-se embora logo que a Provisão fosse apregoada,
sob pena de captiveiro perpetuo nas galés e perda
de toda a fazenda. A 8 de Junho do mesmo anno
e sob a mesma pena mandou também que os ouri-
ves da cidade e ilha de Goa, que tinham as mulhe-
res, filhos e fazendas «da banda d'além», as fizes-
sem recolher no praso de dez dias. É finalmente
de D. Constantino a célebre Provisão de 30 de
Junho de 1560 que prohibiu o sacrificio das viu-
vas, satiy na fogueira onde os maridos eram inci-
nerados; «sob pena» dizia a Provisão, «de qual-
quer pessoa que a fizer queimar ou para isso der
conselho ou favor de qualquer maneira, ora seja pa-
rente datai mulher ique se queima, ora não, perder
toda a sua fazenda, ametade para quem o accusar,
e a outra ametade para as obras da casa do Apos-
tolo S. Thomé, e ficar captivo do dito senhor (de
El-Rei) para todo o sempre» (i).
Não chegaram até nós documentos authenticos
(i) Archivo ^ort. Oriental, fase. 5.°, parte i.», doe. 804,
pag. 410; doe. 344, pag. 451; doe. 849, pag. 454; doe, 353, pag.
458.
l54 AS COMMUNIDADES DE GOA
de todas as medidas que o serviço de Deus inspi-
rou a D. Constantino; do effeito immediato d'el-
las pode fazer-se idéa pela Provisão de 3 de De-
zembro de i56i. Dizia o Conde de Redondo: «ha-
vendo eu respeito a quando aqui cheguei achar
esta ilha de Goa, e as outras ilhas a ella an-
nexas muito despovoadas, e as aldeias perdidas, e
as várzeas alagadas, e o rio entupir-se, e os gen-
tios n'ellas moradores serem ausentes, e as não
quererem vir povoar, por suas propriedades e fa-
zendas serem dadas a outras pessoas por vitude
de uma provisão que passou o Viso-Rei Dom
Constantino, per que mandou que todos os gentios
que eram idos fora d'esta terra por causa de di-
zerem que os faziam christãos por força e que se
não viessem dentro em certo tempo perdessem
suas fazendas; e por eu ver o muito prejuizo que
se d'isso seguia ao serviço d'El-Rei meu senhor
e ao bem d'esta terra; com parecer do Arcebispo
e de letrados, assi juristas como theologos, com
que o pratiquei, e por assentarem ser a lei que
n'isto fizera o dito Dom Constantino muito rigo-
rosa e que se não devia guardar,* hei por bem e
mando que a todo o infiel gentio que se tornar
lhe entreguem sua fazenda, e a tenha e possua
como d'antes fazia, e as pessoas que a tiverem, e
a que for dada lh*a deixarão logo livre e desem-
bargada, e se a tiverem comprada por alguns sol-
dos, lhe serão tornadas a seus titulos, tendo pago
A CONVERSÃO HOS IXFIEIS I^r>
OS septimos na chanceUariau lhe serão também tor-
nados só pelo traslado doesta provisão, que se re-
gistará na dita chancellaría, e isto comtanto que os
ditos gentios se tomem dentro em seis mezes pri-
meiros seguintes, e as pessoas que assi tiverem
as ditas fazendas^ e a que for feita doação d^ellas
as deixarão livremente, como dito é^ e se tiverem
feito algumas bemfeitorias que sejam mais que as
novidades que receberam se irão ao Ouvidor Ge-
ral, o qual verbalmente, sabida a verdade, o deter-
minará como lhe parecer justiça (i)».
A matéria havia sido praticada com o Arcebispo
e theologos que tomavam parte, cada vez maior,
nos negócios do Estado. A jerárchia ecclesiastica,
os conventos, os jesuitas e finalmente a inquisi-
ção constituiam, aqui e na índia, um poder colos-
sal que foi crescendo sobre as ruinas do império
portuguez, até as cobrir de todo.
As ordens da Corte não tardaram a espertar o
zelo do Conde de Redondo, que se apressou a
mandar sahir da Ilha de Goa no praso de um mez
todos os brahmanes comprehendidos nos roes de
que ficaram encarregados o Arcebispo de Goa,
Provincial da Companhia de Jesus, Vigário Ge-
ral de S. Domingos, e Custodio de S. Francisco.
(i) Archivo T^ort, Oriental, fase. 5.°, parte 2.% doe. Sgi,
pag. 488.
l56 AS COMMUNIDADES DE GOA
A Carta de 27 de Novembro de i663 (i), a que
me refiro, apenas exceptuava da proscripção os
lavradores, que lavrassem por suas mãos, médi-
cos, carpinteiros, ferreiros, botiqueiros e rendei-
ros fiscaes — salvo sendo prejudiciaes á christan-
dade, porque n'esse caso podiam também ser ex-
pulsos. Isto sob pena de confisco e galés por toda
a vida.
Deve notar-se que se não tratava n'estes diplomas
de uma classe da população hindu, unicamente;
comprehendiam-se todas; os carpinteiros e ferrei-
ros não podiam ser brahmanes. A própria carta
do Conde de Redondo o explica no fim mandando
expulsar todos os gentios de qualquer qualidade
prejudiciaes á christandade.
Os povos de Goa vieram a ficar por este modo
nas mãos do clero; era na verdade ao Ouvidor
Geral que competia pela referida Carta notificar
os proscriptos, mas não parece provável que uma
causa, identificada com a Egreja, e favorecida
pela Corte acima de tudo o mais, encontrasse ob-
stáculos de nenhuma natureza na auctoridade d'a-
quelle magistrado.
«Hei por bem que quando vos apontar algum
ou alguns dos ditos infiéis, provejais n'isso com
seu parecer» escrevia-se por ordem do Cardeal
(i) Archivo Port. Oriental^ fase. 5.o, parte 2% doe. 472,
pag. 543.
A CONVERSÃO DOS INFIÉIS l5j
D.' Henrique, em nome de D. Sebastião, no Re-
gimento de D. Antão de Noronha, de 1666. Este
parecer era o do Arcebispo que tinha pedido a
expulsão dos infiéis das terras de Goa, que os
culcornins fossem compellidos a vender os offi-
cios a christãos, e que os gancares gentios não
podessem entrar em camará com os christãos nas
aldeias onde houvesse mais gancares christãos
que gentios (i).
O Vice-Rei entregou-se logo na viagem aos je-
suitas. Praticou os exercicios de S. Ignacio du-
rante vinte dias e acabou por uma confissão geral
de toda a sua vida. Os santos propósitos inspira-
dos pela penitencia fizeram d'elle o Apostolo de
Salsete, diz o Oriente Conquistado. Já sabemos al-
guma cousa a esse respeito.
Foi no tempo de D. Antão de Noronha, em 1 667,
que se reuniu em Goa o primeiro concilio. Pre-
sidiu o Arcebispo D. Gaspar de Leão Pereira e
assistiram o Bispo de Cochim, administrador de
Moçambique, Bispo de Malacca por procurador,
os superiores e prelados das Ordens de S. Do-
mingos, S. Francisco, Companhia de Jesus, e ou-
tros doutores e mestres na Santa Theologia, Câ-
nones e Leis.
Os seus decretos, sobre a conversão dos infiéis,
(i) Archivo Port. Oriental, Fase. 5.°, Parte 2.% doe. 575,
pag. 612.
l58 AS COMMUNIDADES DE GOA
foram quasi inteiramente confirmados pela Carta
de Lei de 4 de Dezembro de ibôj^ passada pelo
Vice-Rei em nome de D. Sebastião. Começou
por ordenar que fizessem relações dos gentios da
cidade de Goa, com excepção dos arrematantes
das rendas fiscaes e dos physicos, para irem, to-
dos os domingos, em grupos de cincoenta, ouvir
doutrina durante uma hora aos conventos de
S. Paulo, 'S. Domingos e S. Francisco. Mandou ex-
pulsar das terras de Goa todos os cabeças da re-
ligião profana, e destruir os pagodes, as arvores
e qualquer outro lugar em que se fizesse culto
diabólico; prohibiu as cerimonias, festas e roma-
rias gentílicas e até as marcas que os gentios
usam na testa e com que se distinguem as seitas.
Os que eram casados com mais de un)a mulher
foram obrigados a ficar com a primeira e a largar
as outras. Se alguma pessoa casada se conver-
tesse, o cônjuge infiel seria posto em deposito
«para se saber sua determinação e se o conver-
tido poderá casar.» Aos orphãos seria dado tutor
christão. As mulheres casadas, as primeiras, úni-
cas reconhecidas, que se convertessem tinham
meação no casal. No arrendamento das várzeas
os christãos preferiam aos gentios — tanto por
tanto. Os recebedores de aldeia (saccadores) se-
riam christãos. Os fieis não podiam morar com
gentios, nem ter amizade e conversação com elles,
nem empregál-os e dar-lhes agasalho de portas a
A CONVERSÃO DOS INFIÉIS I Sq
dentro, nem emprestar-lhes dinheiro e fazer com
elles contractos de companhia. Declarou-os inha-
beis para exercer cargos públicos. Os curas e
priores poderiam multar os christãos que não
fossem á missa e dar palmatoadas nos pobres. «E
assi encomendo e mando aos mordomos das con-
frarias do Santissimo Sacramento que apartem
com suas varas os infiéis que estiverem pelas ruas
por onde for o Santissimo Sacramento» (i). Che-
gou até aqui o minucioso apostolado do Vice-Rei.
Os resultados de tudo isto vêem-se no assento
que está no principio do Tombo das terras dos pa-
godes de Salsete: «Lembre que se não arrendaram
as várzeas de vanganas das aldeias contheudas
n'este tombo d'este anno presente de 69 por res-
peito de a terra andar toda alevantada, e os gan-
cares fugidos, e não haver quem nas quizesse ar-
rendar, indo lá por três vezes para isso Ambrósio
de Sousa, thesoureiro do rendimento das fazendas
dos pagodes commigo escrivão, onde estivemos
até que se passou a monsão em que haviam de
arrendar as ditas várzeas de vanganas com man-
dar deitar pregões pelas ditas aldeias, elle mesmo
em pessoa commigo escrivão e o lingua Francisco
Dias as corri todas sem nunca apparecer nenhum
gancar nem escrivão para se arrendarem, salvo a
aldeia de Cuncolim e a aldeia de Sancoale e Mor-
(i) Archivo Port. Oriental, fas::. 4 o, pag. 68.
ibO AS COMMUNIDADES DE GOA
mugão e a aldeia de Isorsy e a aldeia Quelossim,
que estas todas se arrendaram, como se verá no
livro de arrendamento d'este anno; e assim se
não arrendou as. várzeas da aldeia de Cortalim de
uma novidade nem de outra pelos respeitos acima
e estar despovoada e cheia de agua salgada; e
bem assim da aldeia de Caláta que também se
não arrendou por os gancares andarem fugidos
por dividas que devem» (i).
Que importa? Depois de um curto intervallo
lúcido, em que D. Luiz de Athayde salvou a ín-
dia, decretou-se em i573, que os gancares 4de'
Salsete não fizessem camará, nem dessem nemOy
sem serem presentes os gancares christãos; que
nas aldeias onde houvesse mais gancares chris-
tãos que gentios, estes não entrassem nas ganca-
rias, e que os seus nomes se escrevessem depois
dos christãos. Em 1674 prohibiu-se aos pandits e
phfsicos e em iSyô a todos os gentios andarem
na cidade de Goa a cavallo, em andor,- ou palan-
quim, e trazerem sombreiro de peão.N'esse mesmo
anno os que traziam rendas de El-Rei tiveram de
as largar por ser contra os sagrados cânones,
contra o Concilio Provincial e lei de Sua Alteza.
Foram confiscadas as fazendas dos que se acha-
vam nas terras de Goa, apesar de notificados para
(i) Archivo Porl. Oriental, fase. 5.^, parte 2.% nota ao doe.
391, pag. 490.
A CONVERSÃO DOS INFIÉIS l6l
sahir, e conferiu-se jurisdicção aos mordomos das
confrarias para julgar até á quantia de três par-
daus, e metter no Tronco por horas, dois e três
dias, sem appellação nem aggravo; também se
lhes deu competência para inquirir das idolatrias
e gentilidades defezas. Resuscitou-se assim a Pro-
visão de 20 de Junho de 1 562, do Conde de Redon-
do. Mas este dava-lhes jurisdicção sobre fieis e
gentios até á quantia de três tangas, emquanto
António Moniz Barreto a limitou aos christãos (i).
D'ahi a poucos annos estranhava D. Filippe I
ao Vice-Rei D. Duarte de Menezes que o Estado
ficasse com tantas necessidades e que em i586
elle tivesse dispendido mais de i5o:ooo cruzados
em mercês feitas a pessoas que as convertiam em
abusos, delicias e maus costumes. Em ibgb dizia
Francisco Paes no Tombo Geral que as terras de
Salsete, das melhores de todo o Concan, pela
abundância é salubridade, d'antes muito povoa-
das, se achavam quebradas de moradores, sem
haver quem as grangeasse, não só por causa das
guerras, como por não sofFrerem que lhes quei-
massem os pagodes e «tratar-se com elles, por
muitas vias, de se converterem á nossa santa fé
(i) Archivo Port. Oriental, fase. 5.o, parte 2.», documento
768, pag. 891; doe. 773, pag. 899 e doe. 781, pag. 910; doe.
775, pag. 90 ( ; doe. 776, pag. 902 ; doe. yyj^ pag. 903, e doe.
425, pag. 5 12.
AS COMMUNIDAÚES DE GOA I l
102 AS COMMUNIDADES DE GOA
catholica.» Quasi pela mesma época também a
cidade se queixava a El-Rei das necessidades,
em que ficava o Estado, de gente, dinheiro, e
das mais cousas pertencentes ao exercicio mili-
tar. Que a impossibilidade vinha de longe pela
desordem com que se dispendia a fazenda real
«passando sempre a despeza pela receita» (i).
Que importa? «Tive mui particular contenta-
mento de me escreverdes que a christandade d'es-
sas partes vae crescendo com tanto augmento,
que é o que por todas as vias e com todas as
forças se deve procurar, dispondo-se todas as
cousas que a isto tocarem de maneira que se
possam ter grandes esperanças de em breve tem-
po se reduzirem muitas mais gentes ao grémio
da Santa Madre Egreja. . . pois esta é a princi-
pal cousa com que se deve dar principio e fim
a todas as mais de que se não pode tratar senão
com este primeiro fundamento d'ellas e de to-
das» escrevia D. Filippe II ao seu Viso-Rei Ma-
thias d'Albuquerque em 1594. E no anno seguinte
felicitava-o por estar aquella sementeira madu-
ra (2).
(i) Archivo l^ort. Oriental^ fase. 3.°, parte i.*, doe. 40, pag.
136; fase. 5.0, parte 2.", nota ao doe. Sgi, pag. 489; fase. i.%
parte 2.% doe. 6.°, pag. 82.
(2) Ibid., fase. 3.<*, parte i.", doe. 140, pag. 420 e doe. 175,
pag. 522.
A CONVERSÃO DOS INFIÉIS l63
Á cega obstinação da Corte, sustentada pelo
predomínio do clero — o maior poder do Estado,
era agora favorecida pelo interesse dos converti-
dos. A própria cidade de Goa, cujo governo mu-
nicipal continuava a andar em casados portugue-
\esy levada na. corrente, fazia coro contra os
infiéis. «Ha ordinariamente n'esta cidade», a carta
é de 1600, «perto de vinte mil gentios, morado-
res e forasteiros, gente inútil, e inimiga de nossa
religião, que nenhum fructo fazem na terra, se-
não muitos damnos e desordens, commettendo
cada hora muitas onzenas e monopólios, com
que nos encarecem as fazendas e mantimentos •,
e vindo da terra firme com uma touca e cabaia,
enriquecem em poucos dias, e outros fogem com
muito dinheiro alheio^ que trazem entre mãos \ e
posto que haja da parte dos prelados muita vigi-
lância, não deixam de fazer suas cerimonias de
idolatria, com que movem a muitos christãos no-
vamente convertidos deixarem nossa fé pela con-
versação mistica que têm comnosco. Pedimos a
Vossa Magestade por reverencia de Deus e bem
commum d'este Estado e da nossa religião chris-
tã, nos mande uma provisão para podermos sem
appellação nem aggravo desterrar os prejudiciaes,
para nunca tornarem n'esta Ilha, nem nas terras
de seu contorno, com pena de perdimento da vida
e dos bens moveis e de raiz; de outra maneira
não haverá proceder contra elles, porque são fa-
164 AS COMMUNIDADES DE GOA
•
vorecidos dos Desembargadores, qus os consen-
tem entrar e sahir em suas casas contra forma da
provisão de Vossa Magestade» (i). Parece que
não é só entre os hindus que os deuses interfe-
rem para bem e para mal conforme os pedidos.
O favor dos Desembargadores, de que falia a
carta, é um dos grandes signaes do tempo. A
justiça vendia-se publicamente e em 1602 foi pre-
ciso que El-Rei mandasse embarcar para o Reino
quasi toda a Relação e Ministros, alguns presos
e com a fazenda sequestrada. Mas a Cidade quei-
xava-se ainda dos que ficaram «por nossos pec-
cados» e pedia que lhe mandasse quanto menos
melhor (2).
Os jesuitas «pessoas contra aâ quaes ninguém
pode proceder» iam moderando também o rigor
das leis, e sem embargo dos concilios e provi-
sões davam licença aos gentios para ir á terra fir-
me fazer as suas cerimonias. Cada nação, que
era talvez a seita, tirava a sua licença e a Cidade
mostrava-se escandalisada dos jesuitas lhes terem
concedido licença por sete annos em razão de
(i) Archivo ^Port, Oriental, fase. i.o, parte 2.% Carta que
a cidade de Goa escreveu a Sua Magestade em 1600, doe. 6,
pag. 82
(2) Ibid., fase, 1.0, parte 2.% Carta 9.% pag., iii e 8.* pag.
93 e seguintes, e fase. 5.®, parte 3.", nota ao doe. 1:064, a
pag. i:5o5.
os METHODOS l65
uns tantos mil cruzados que pagavam á maneira
de imposto (i).
Da desmoralisação que ia pelos conventos dão-
nos testemunho os numerosos documentos da
época. Ferviam rixas de uns contra outros, insu-
bordinações, intrigas de toda a ordem. E era tal
a escuridão e o relaxamento qiíe os Franciscanos
tiveram idéa de exterminar a lingua vernácula —
por uma lei. Conseguiram effectivamente que o
Conde de Alvor publicasse o Alvará de 27 de Ju-
nho de 1684 ^}^^ terminava por assignar aos na-
turaes o praso de três annos para fallarem no
idioma portuguez, e d'elle somente usariam em
seus tratos e contractos, e de nenhum modo da
lingua da terra, sob pena de se proceder contra
elles com a demonstração e severidade de casti-
go que parecesse (2).
Nas Instrucções do Vae dos Christãos feitas pelo
padre Alexandre Valignano, visitador da provin-
cia dos jesuitas na índia, e datadas de 1595, le-
se no capitulo 6.°: «Quanto ao officio do Pae dos
Christãos consiste principalmente em três cou-
sas, a saber, a uma do que toca ás cousas da-
conversão, a outra do que faz para ensino dos
cathecumenos, seu provimento e bautismo, e a
(i) Archivo Port. Oriental, fase. i.o, parte 2.", Carta 8.a,
pag. 97.
(2) Vid. Ensaio Histórico da lingua Concani, do Cons.
I Rivara.
l66 AS COMMUNIDADES DE GOA
outra do amparo e remédio dos novamente con-
vertidos. Quanto ao primeiro da conversão dos
infleis, como ella n'estas partes da índia não seja
commumente por pregação e doutrina, mas por
outros meios justos como é, o lhe impedirem
suas idolatrias, e de os castigar justamente por
ellas, e lhes negar os favores que justamente se
lhes podem negar, e os dar aos novamente con-
vertidos, e de honrar, ajudar, amparar a estes
para que os outros com isto se convertam, fará
o Pae dos Christãos muito porque nenhum meio
doestes se lhe passe, de que se não aproveite e ajude
para a conversão dos infiéis, e porque quasi to-
dos estes meios estão já approvados nos Concí-
lios Provinciaes de Goa, e nas provisões, que os
Reis de Portugal e seus Viso-Reis da índia têm
passado em favor da christandade, trabalhará o
Pae dos Christãos por ser muito versado em am-
bas estas cousas e fará muito para que todas se
cumpram e ponham em execução, pois a expe-
riência tem mostrado quantos com isso se con-
vertem» (i).
A sementeira estava madura. As aldeias e Ca-
mará Geral de Salsete, onde se diz haver já 70:000
christãos em 1620 (2), allegavam agora que os
(i) Archivo Port Oriental, fase. 5.©, parte 3.", doe. 1:022,
paf?. 1:435.
(i) Ensaio histórico da lingua concani, doe. i.°, pag. 20o.
t^^m
OS METHODOS 167
gentios eram prejudiciaes á religião catholica e
aos convertidos pelos induzirem a largar a santa
fé; que sustentavam muitos pagodes na outra ban-
da com dinheiro grangeado em Salsete; que os
expulsassem e lhes adjudicassem a elles as fazen-
das dos que eram reveis e perseveravam nas suas
gentilidades. Em 1633, por occasião da visita do
Conde de Linhares áquellas terras, mil gentios
despejaram e três mil reduziram-se e receberam
o sagrado baptismo (i). De Bardez, em Janeiro
d'esse anno, também tinham ido a um baptismo
geral, no Convento de S. Francisco, mais de 700
gentios ; e esperava-se outro, para breve, com
ajuda do Vice-Rei (2).
Não era necessário pregar nem doutrinar. Por
um lado, todo o favor aos convertidos: a Carta
de 15 de Junho de 1557, de Francisco Barreto,
confirmada pela rainha regente D. Catharina a
23 de Março de i559 dava-lhes, como vimos, os
privilégios e liberdades de moradores portugue-
zes, e D. Filippe I mandou que elles fossem ad-
mittidos a servir os officios e cargos públicos
que os Portuguezes serviam, tendo partes e suf-
ficiencia (3). Ainda mais, não podiam ser presos
( 1 ) Archivo Port. Oriental, fase. 5.*^, parte 3.*, nota ao doe.
1:008, pag. i:399 e seguintes.
(2) Ensaio Histórico, doe. 8, pag. 221.
(3) Archivo Port. Oriental, fase. 5.o, parte 3.», doe. 820,
pag. 989, earta de 23 de Fevereiro de i582 ao V. R. Dom
l68 AS COMMUNIDADES DE GOA
por dividas inferiores a vinte pardaus (i) e ape-
sar dos gentios terem pago dizimos algum tem-
po (2), as régias Provisões de 22 de Setembro de
1670 e de 6 de Março de 1571 escusavam do
encargo os convertidos, por espaço de i5 an-
nos (3).
Por outro lado, todo o rigor de misericórdia
para os infiéis. E o clero desmoralisado levava
para a rua as suas dissensões, o Estado cahia em
ruinas, e os inimigos levantavam-se ao pé da por-
ta. O perigo já não vinha só do mar. Data de
1683 a primeira invasão maratha.
Não podia durar sempre aquella febre. A pro-
hibição de casamentos gentilicos em terras de
Goa foi revogada frequentes vezes, desde 161 3, e
pouco tempo se observou á risca (4); os Ouvi-
dores, a quem D. Filippe II deu sobre a matéria
a jurisdicção de que andava investido o foro ec-
clesiastico, descuidavam-se no conhecimento das
Francisco Mascarenhas. A egualdade politica de christâos na-
turaes, e reinóes ou descendentes, só se tornou eíFectiva de-
pois do Alvará de 2 de Abril de 1761 e Carta Regia de i5 de
Janeiro de 1774, que podem lêr-se na Legislação do Ultra-
mar»
(i) Archivo Port. Oriental, fase. 5.°, parte 2.», doe. 416,
pag. 5o4, Carta de Lei de 4 de Abril de i562, passada pelo
Conde de Redondo em nome de D. Sebastião.
(2) Ibid., doe. 424, pag. 5 10.
(3) lidb., doe. 648, pag. 733, e doe. 718, pag. 786.
(4) Ibid., fase 6.°, parte i.% doe. 5 11, pag. 1200.
REACÇÃO 169
causas de gentios amancebados, ou que tinham
duas mulheres, e dos que iam á terra firme a ro-
marias e commettiam onzenas (i); e apesar dos
protestos de christãos e jesuitas os rendeiros fis-
caes continuavam a ser gentios (2).
Isto eram apenas intermittencias. Só no prin-
cipio do século passado é que se descobrem sym-
ptomas positivos de reacção. Em i de Março de
1704 escrevia D. Pedro II ao Vice-Rei Caetano
de Mello e Castro: «Havendo visto o que me infor-
mastes, como se vos ordenou, sobre a expulsão
dos gentios, que vivem nas nossas terras e pra-
ças d'esse Estado : Me pareceu que tudo o que
dizeis sobre esta matéria é a pura verdade, e que
seria absolutamente destruir o Estado, se d'elle
se expulsassem os gentios, porque seria fechar a
porta ao commercio, pois pela sua mão se in-
troduz tudo nas nossas praças e alfandegas; po-
rém no que toca a permittir-se-lhe haver pagodes,
supposto se entenda que isto seria trazer a maior
parte d'elles para as nossas terras, comtudo me
pareceu impraticável este arbitrio por não dar-
mos occasião a que por este meio se fomente os
erros d'esta cega idolatria, permittindo que entre
(i) Archivo Port. Oriental, fase. 6.**, parte i.^, doe. 388,
pag. 1091, e doe. 892, pag. 1096.
(2) Ibid. supplemento 2.°, doe. 6, pag. 11, doe. 12, pag. 21
e 23.
lyo AS COMMUNIDADES DE GOA
nós usem do que se lhes negou desde o principio
que se fundou essa cidade» (i).
Foi mal informado El-Rei quando lhe disseram
que desde a fundação da cidade de Goa se negara
aos hindus a pratica dos seus ritos. Extermina-
dos os mouros, a politica adoptada para com os
gentios foi sempre de tolerância, até ao tempo
em que o clero, á sombra de D. João III, ganhou
e consolidou a influencia que veiu a ter nos ne-
gócios do Estado.
Mas o mais notável é que o Vice-Rei tivesse
acceitado a idéa de se permittirem pagodes em
terras portuguezas.
Também por esta época se limitou um dos
maiores vexames que se fazia áquelles povos. Or-
denara a regente D. Catharina,emnomede D. Se-
bastião, que os filhos de gentios que ficassem sem
pae, mãe, avô, avó e outros ascendentes, e que
não tivessem edade de entendimento, fossem en-
tregues aos Padres da Companhia para ser ba-
ptisados e doutrinados. Sem embargo das pala-
vras serem estas, a lei applicava-se a todos os
menores de quatorze annos que ficassem sem
pae, embora tivessem mãe e outros ascendentes.
D. Pedro II escreveu a Caetano de Mello e Cas-
tro para se acabar com o abuso, ao que o Viso-
(i) Archivo T*ort, Oriental, fase. 6.°, suppl. 2.0, doe. 49,
pag. i56, e doe. 57, pag. 184.
REACÇÃO 1 7 I
Rei respondeu: «Farei dar inteiro cumprimento
ao que. V. Magestade n'este particular ordena,
dispondo se observe sem interpretação alguma a
lei passada em o anno de 1556 a favor dos or-
phãos gentios, que por mui justificadas razões re-
conheço útil se não altere» (i).
No próprio grémio do clero appareceu por me-
nos uma vez quem reprovasse os abusos que se
commettiam em Goa. Parece que nunca chegara
a executar-se a Carta de Lei de 4 de Dezembro
de 1667 na parte em que obrigava os gentios a
ir á doutrina; mas em 171 5 o Provincial da Com-
panhia de Jesus, combinado com o Pae dos Chris-
tãos, alcançou ordem do cabido para se fazerem
os roes e dispoz que todos os gentios da cidade,
com suas famílias, fossem assistir á pregação do
Evangelho; os gentios emigraram em massa para
os paizes visinhos, e de Carwar os inglezes pro-
punham-lhes partidos. A situação era muito cri-
tica e o Vice-Rei tomou parecer dos Conselhei-
ros, Ministros e Theologos. Os Conselheiros vo-
taram todos porque se suspendesse o procedi-
mento dos padres e se desse seguro aos fugiti-
(i) Archivo Port. Oriental^ fase. 6.°, doe. 584, pag. i265 e
2.° supplemento, doe. 48, pag. i55. É provável que antes de
D. Catharina, já D. João III, ou Franeiseo Barreto em seu no-
me, tivesse ordenado a mesma cousa em i556. Conf. fase. 5.®,
parte 2.", doe. 523 a pag. 577 e fase. 6.°, supplemento 2.°, doe.
12, pag. 46.
172 AS COMMUNIDADES DE GOA
VOS ; OS Ministros também, menos dois, «que se
achavam devedores dos mesmos gentios», e d'en-
tre os Theologos, o jesuita Manuel de Sá, depois
Patriarcha eleito da Ethiopia, não só condemnou
abertamente a imprudência dos outros padres,
mas defendeu com eloquência os meios de suavi-
dade e brandura, como mais adequados á índole
da Egreja. «O meio que se deve applicar é o que
manda Christo, o que ordena a Egreja : Euntes in
mundum unwersum praedicate Evangelium omni
a^eaturae.n E adeante dizia: «S. Francisco Xa-
vier converteu tantas mil almas como lemos na
historia da sua vida, assim aqui em Goa como em
todas as mais partes; depois d'elle converteram
muitas os que seguiram os seus passos e o seu zelo;
mas sempre disputando e conversando com estes
homens, como consta das nossas historias, e não
arrastando-os por cafres, como dizem que agora
succedeu, para se tirar o rol dos que haviam de
vir á Doutrina» (i).
Ao Vice-Rei Vasco Fernandes César de Menezes
parecia justo que El-Rei mandasse ponderar sobre
isto. Outro Vice-Rei, João de Saldanha da Gama,
escrevia para a Corte em 19 de Dezembro de 1729
que a falta de commercio e ruina do Estado pro-
vinha em primeiro lugar do horror que os nego-
(i) Archivo Port, Oriental, fascículo 6.*^, supp. 2.°, doe. 12,
pag. 19 e seguintes.
REACÇÃO 173
ciantes, todos gentios e mouros, tinham ao pro-
cedimento do Santo Officio. Elie não sabia o Re-
gimento da Inquisição para conhecer das culpas
de quem nunca fora catholico e via que pelo ex-
cessivo numero d'aquelles presos estava despo-
voada toda a província do Norte e perdida a
admirável fabrica de Tanná, que então se come-
çava a estabelecer em Bombaim. Era d'ahi que os
inglezes levavam os camelões de seda e lã, todos
os gorgorões, lenços de seda e picotilhos, que in-
troduziam em Lisboa. Via mais que os com-
missarios do Santo Officio eram muitos, commu-
mente frades, e que não procediam bem, apesar
de alguns serem depostos por sua ordem e de ou-
tros serem castigados pelos Inquisidores (i).
N'este tempo já um Vice-Rei se sentia com
força de depor commissarios do Santo Officio.
Tinha-lhes chegado a decrepitude senil; em
1736 os Inquisidores occupavam-se a prohibir
solemnemente que se cantassem vovóis^ que os
christãos usassem de gaitas nos seus casamentos,
que dessem presentes de fulas n'essas occasiões,
que os noivos se untassem de açafrão ou de qual-
quer outra cousa... e foram pedir ao Conde de
Sandomil que confirmasse o Edital e os favorecesse
com o auxilio do seu poderoso braço, — lisonja
que as perdas do Norte e as desfeitas de um pi-
(i) Ensaio histórico da lingua concani, doe. 5o, pag. 346.
ipaBBRKi
174 AS COMMUNIDADES DE GOA
rata haviam de converter na mais pungente iro-
nia. Mas o Vice-Rei encontrou uma opposição tal
do Chanceller que apenas poude concorrer com
expressões de agrado, louvando aquelle monu-
mento todas as vezes que havia occasiao de se fa-
lar d'elle na sua presença (i).
A acquisição das Novas Conquistas determinou
finalmente uma politica de tolerância, para que o
espirito publico se achava preparado e que era
indicada pelas imperiosas circumst anciãs da situa-
ção de Goa. No Edital de 5 de Junho de 1763
garantia o Conde da Ega aos Desssais, morado-
res e povo de Pondá e seus ditrictos, todos os
privilégios, isenções e immunidades que lhes man-
tinha o Rei de Sunda. A liberdade religiosa ficava
implicitamente reconhecida, mas a Camará Geral
de Pondá representou sobre este negocio e o
Vice-Rei fez então publicar o Bando de 6 de
Agosto de 1763, que depois de reiterar aquellas
garantias termina assim «e permitto aos morado-
res d'aquellas provincias, que possam sem impe-
dimento algum edificar de novo e. reedificar as
obras que cada um quizer mandar fazer de todas
as qualidades que forem.» O Conde da Ega rece-
ava talvez escandalisar os ouvidos ecclesiasticos
(i) Ensaio histórico da lingua concani, doe. Sg, pag. 368 e
seguintes.
NOVA POLITICA Ijb
dizendo que os hindus podiam edificar e reedifi-
car os seus templos.
Era o que se lhes permittia com eíFeito e na
Provisão de 26 de Abril de 1771 declarava o Mar-
quez de Pombal que o Bando de 6 de Agosto, de-
pois confirmado expressamente pela Carta Regia
de i5 de Janeiro de 1774, devia entender-se sem-
pre em sentido útil e favorável aos gentios, para
os não perturbarem no uso dos seus ritos, na liber-
dade das suas pessoas e na posse dos seus
bens (i).
Principiara uma nova época. O poderoso mi-
nistro de D. José chamou-lhe restauração da ín-
dia e assim foi na verdade, não tanto pelo notá-
vel conjuncto de medidas com que pretendeu re-
formar todos os serviços' d'aquelle Estado, como
pela emancipação do espirito publico, agora livre
de uma tutela que o opprimira durante mais de
dois séculos.
Tem de certo um lado grandioso essa politica
que em tão longo periodo antepoz systematica-
mente a conversão dos infiéis e a salvação das al-
mas á própria conservação da republica. Foi o
reinado de Deus. Mas o patriotismo, as virtudes
cívicas, a intelligencia ficaram subordinadas áquelle
grande fim; a religião absorvia tudo, e os desas-
(1) Os diplomas ultimamente citados enContram-se na Col-
lecção de Bandos.
176 AS COMMUNIDADliS DE GOA
tres do Estado seriam cada vez maiores, se não
tirasse os olhos do céo, ainda a tempo.
Uma das grandes enfermidades que debilitavam
a índia no tempo do Marquez de Pombal eram
as demandas, e elle acudiu-lhe energicamente e
com aquella confiança, que era o segredo da sua
força. Aboliu a Relação, «congresso de moços e
verdes bacharéis», reduziu a administração da jus-
tiça a um Ouvidor Geral e tres Juizes de Fora, e
deu-lhes «um methodo novo para evitar pleitos e
para abreviar aquelles que o abuso da introduc-
ção forense tem feito inevitáveis» (1).
Este methodo novo vem no Alvará de i5 de Ja-
neiro de 1774 que regulou as attribuições dos
referidos masgistrados e da Meza do Paço, e es-
tabeleceu a forma do proceso civil e criminal. A
experiência demonstrou em pouco tempo que o
methodo era insuíficiente; a Relação foi restabe-
lecida, e as cousas voltaram á antiga. N'este ponto
não foi possivel illuminar os povos da índia con-
tra as trevas da igfwrancia em que os tinha precipi-
tado a maligfiidade dos tempos.
A enfermidade era muito mais velha do que o
abuso da introducção foreftse. O Regimento que
D. João III deu á Relação de Goa, quando a fundou.
(i) Instrucções com que El- Rei *Z). José I mandou passar
ao Estado da índia o Governador e Capitão General e o Ar-
cebispo ^Primaf do Oriente no anno de 1774, pag. 3.
INSTINCTO DEMANDISTA I77
é de 3 de Abril de 1544 e logo no segundo Regi-
mento, de 22 de Março de 1548, se determinava
que da gente da terra se não recebesse querela
senão perante o Ouvidor Geral, em caso de morte
ou aleijão, juramento falso e falsidade, por ser
El-Rei informado que elles faziam prender e que-
relavam mui levemente, e uns gastavam suas fa-
zendas, outros pereciam ao desamparo (i).
Francisco Barreto, em i555, entregou ao Pae
dos Christãos as pequenas causas, provavelmente
por ser grande o numero d'ellas, e na Provisão
do Conde de Redondo para os mordomos julga-
rem christãos e gentios até á quantia de três tan-
gas, lê-se que todos eram muito inclinados a de-
mandas (2).
Depois, em i58o, deu-se aos christãos da terra
um juiz privativo, a que chamaram Conservador,
para julgar verbalmente as suas causas. Talvez
em respeito ao Pae dos Christãos a medida cahiu
no esquecimento e o Conservador só veiu a ser
nomeado em 1682 pelo Vice-Rei Francisco de
Távora, que diz serem as causas pela maior parte
de pouca importância «e muitas vezes movidas
por seus ódios e paixões». Que eram quasi infini-
tas e se acabavam muito devagar porque as faziam
( 1 ) Archivo Port. Oriental^ fase. 5.°, parte i .", doe. 79, pag.
177 e doe. 95, pag. 206.
(2) Ibid. doe. i56, pag. 281 e parte 2.% doe. 425, pag. 5 12.
AS COMMUNIDADES DE GOA 12
178 AS COMMUNIDADES DE GOA
voltar atraz apresentando olas de vendas, com-
pras, e contractos, que punham ao fumo fazendo-as
de novas velhas, consta da Provisão do Vice-Rei
Mathias d' Albuquerque de 3 1 de Julho de lõgS.
E D. Jeronymo de Azevedo, outro Vice-Rei, en-
tendia que era preciso pôr limite ás demandas
d'aquella gente, que lhe parecia «terribel» (i).
A Relação fazia as mesmas queixas e em 1670
suscitou a observandia da lei que limitava a quatro
os casos de querela com prisão, porque os natu-
raes se destruíam «com accusações e denuncias, le-
vados dos seus ódios e malquerenças». Outro as-
sento de 1693, para refrear o excessivo numero de
petições, exigia que todas fossem assignadas por
advogado da casa e estabelecia multas para os que
requeressem a juiz incompetente ou com dolo e
malicia (2).
A tendência demandista vinha de muito longe,
existe ainda hoje, e encontra-se por toda a índia.
O instincto de luctar, que é o nervo dos parti-
dos politicos na Europa, não podia ter n'aquelle
paiz um derivativo mais fácil do que os tribunaes.
A violência nem se conforma com um governo re-
gular, nem diz com o caracter do povo de Goa.
(i) Archivo Port. Oriental, fase. 5.°, parte 3.*, doe. 802, pag.
966; nota ao doe. 1021, pag. 1436; doe. 997, pag. i323; nota
ao doe. 915, pag. 11 53.
(2) Archivo da Rei, de Goa, parte 2^, doe. 736, pag. 558 e
doe. 858, pag. 688.
ESTADO LEGAL DOS HINDUS I79
Litiga-se por amor dos litígios, porque as rivali-
dades de família, de aldeia, de casta, constituem
muitas vezes um incentivo superior ao que nós cha-
mámos — interesse, e também porque o regimen
do contracto ainda não penetrou inteiramente aquella
sociedade. É um paiz de costume. As relações
creadas por uma promessa que foi acceite não se
tornam effectívas n'um grande numero de casos
senão pelo decreto que lhes interpõe a auctori-
dade (i).
O Vice-Rei Caetano de Mello e Castro, em uma
carta de 1707, calculava a população de Salsete em
3:ooo gentios e 100:000 christãos; adeBardez esta-
ria na mesma proporção; nas aldeias de Goa eram
raros os gentios, mas abundavam na cidade e
parece que em toda a comarca não excediam
12:000. Segundo este calculo a população gentílica
andaria então reduzida a menos de 20:000 almas
nas Velhas Conquistas (2). Qual era o seu estado
legal?
Tinha passado depressa a época de illustração
e tolerância que produziu o Foral de Affonso Me-
xia. Publicado 16 annos depois da conquista,
quando Goa não era ainda a capital do Império
(i) Conf. Ancient Law, chapt. ix — Village Communities,
lect. III — Early Law and Custam, chapt. xi — Early History
of Institutions, lect. x — ^Popular Government, essay I.
(2) Achivo Port. Oriental, fasw. 6.0, supp. 2.0, doe. 67, pag.
i85.
l8o AS COMMUNIDADES DE GOA
Portuguez no Oriente, aquelle primeiro código
dos usos e costumes hindus representa um nota-
bilissimo esforço e um grande passo no sentido
da clara comprehensão de instituições, que deviam
parecer tão estranhas, tão oppostas ás nossas.
Nos dois longos séculos que se seguiram a popu-
lação gentilica viveu, em regra, fora da lei, de ex-
pedientes e subterfúgios.
Os que nãò tinham filhos varões punham os
seus cabedaes na terra^rme, as Novas Conquistas
de agora, e passavam para lá em lhes doendo a ca-
beça. Também faziam trespassações dolosas e usa-
vam simular de convertidos para ficar na posse de
heranças que de outro modo lhes escapariam. Isto
consta de uma informação do Procurador da Co-
roa e Fazenda encorporada no Alvará de 15 de
Janeiro de 169 1, que lhes applicou as leis geraes
do Reino em matéria de successões (i).
Supponho que foram as leis da conversão, muito
mais do que o allegado rigor do Foral, que os in-
duziram a sollicitar o referido Alvará. O capitulo
do Foral que chamava á successão a Fazenda Pu-
blica na falta de filhos varões pode considerar-se
restricto aos moveis, porque sendo as heranças
misticas os bens de raiz passavam para os ascen-
dentes e irmãos. Ora as heranças só muito exce-
(i) Archivo Port, Oriental, fase. 6.<^, suppl. 2.0, nota ao doe.
44, pag. i38.
ESTADO LEGAL DOS HINDUS l8l
pcionalmente deixariam de ser místicas. E na
parte respectiva aos moveis já o Foral tinha soffrido
modificações, em 1542 e 1544, a favor das filhas
e mulheres, por se attender á situação em que fi-
cavam, e também a que a Fazenda Publica rece-
bia tão pouco proveito d'essas heranças que se
El-Rei fosse informado «não o haveria por ser-
viço de Deus, nem seu» (i). Da informação, a que
me referi, consta que Sua Magestade não tirava
utilidade alguma de taes successões. E se não ha-
via proveito para a Fazenda d'El-Rei, também
não podia haver grande prejuizo para os particu-
lares.
A questão era que o Alvará de 15 de Janeiro de
1691, confirmado por D. Pedro II em 1695, a in-
stancias dos gentios, não só revogava o costume
antigo do Foral, mas tudo quanta antes se havia
obset^vado, diz a Provisão Regia de 2 1 de Fevereiro
de 1732. Livres portanto das leis da conversão
n'esta matéria^ ser-lhes-ia mais fácil illudir as leis
geraes, porque em regra não prestaram inventá-
rios até ser posto em vigor o Código Civil, e po-
diam amigavelmente fazer a partilha dos bens, ou
continuar em sociedade (2).
(i) Archivo Port. Oriental^ fase. 5.o, parte i', doe. yS, pag.
171 e doe. 78, pag. 175.
(2) Archivo ^ort. Oriental^ fase. 6.o,supp. 2.°, doe. i52, pag.
418 e seguintes. Quanto a inventários vid. a Provisão do
*l82 AS COMMUNIDADES DE GOA
Veiu isto a ser causa de uma notável anomalia;
os gentios das Novas Conquistas regulavam-se pelos
seus usos e costumes, emquanto os das Velhas
Conquistas se consideravam sujeitos ásleisgeraes;
o Decreto de i6 de Dezembro de 1880 deu-lhes
porém o mesmo estado legal, e hoje o Código
Civil só tem para uns e outros as excepções mar-
cadas no citado Decreto.
Apesar do estabelecimento de egrejas e paro-
chias desde os primeiros tempos da conquista, a
aldeia continuou a ser a unidade administrativa
até ás reformas liberaes. Os municípios, introdu-
zidos pelo Marquez de Pombal emSalseteeBardez,
levavam tempo a aclimar no meio das pequenas
communas, que iam resistindo a tudo, e ao lado
das Camarás Geraes, opprimidas sempre e mortas
afinal por instituições exóticas. Um dos decretos
de 7 de Dezembro de i836 creou em cada fregue-
zia um juiz eleito e um juiz de paz; os Códigos
Administrativos de 31 de Dezembro de 1836 e de
18 de Março de 1842, foram postos em vigor na
índia successivamente, e estas e outras leis impor-
tavam uma organisação, em que as communidades
não tinham lugar.
Começaram a chamar-lhes associações agrícolas
Cons. Ultramarino de 23 de Fevereiro de 1779 e o Aviso Ré-
gio de 3o de Junho de 1 818, no Código dos usos e costumes, de
Filippe Nery Xavier.
■
LEIS MODERNAS l83
simplesmente, e é assim que as define o Decreto
de 15 de Setembro de 1880, ultimo assento da
matéria (i). As suas attribuições ficaram reduzidas
com efifeito á exploração agrícola da terra, por meio
dos antigos arrendamentos, e sob a direcção de um
mecanismo administrativo que o Estado fiscalisa e
superintende.
A cobrança dos foros, istç é, dos primeiros im-
postos lançados sobre aterra, continua egualmente
a cargo da communidade.
(i) O Decreto de i5 de Setembro tem tido dois regulamen-
tos. O segundo, actualmente em vigor, foi approvado pela Por-
taria do Governo da Provincia, n.® Sgi, de 3o de Outubro de
1886.
EXCERPTOS
DO
Inquérito feito pelo auctor, em Março de 1889, relativamente
a cada uma das commxmidades dos concelhos de Ca-
nácona, Quepem, Sanguem, Sanquelim e Pondá, nas
Novas Conquistas de Goa.
COMMUNIDADE DE CÓLLA (CanÁCONA)
Tem 9 vangôres. Os primeiros 7 estam actualmente na
posse de uma família de brahmanes vaishnavas, oriundos de
Garambolim das Ilhas, que se intitulam — dessais ; o 8.® per-
tence a outra família de brahmanes, oriundos de Loutulím e
de appellído Concares; o 9.** é dos culcorníns, brahmanes
smarts.
De todas as communídades de Canácona é esta a que traz
mais várzeas no giro da arrematação. Arrendam-se triennal-
mente. Também ha cumerís.
As famílias dos deullis, velipos e pernis, que são pessoas
ligadas ao culto, assim como dos mainatos, ferreiros, e barbei-
ros, possuem namoxins, isto é, terras sem foro ; as famílias
dos dessais recebem dois terços d'uma pensão fixa, e a dos
culcorníns um terço da mesma pensão, a titulo de — voton.
Pagos os foros do Estado e a voton, as sobras do rendi-
mento liquido dívidem-se em nove partes eguaes, sete para os
dessais, uma para os Concares, e outra para os culcorníns.
O gram-deu é Vetai, mas os Concares só recentemente o
adoptaram; tinham continuado no culto de Ramnath, gram-deu
EXCERPTOS DO INQUÉRITO 187
communidades. Os vangôres pertencem hoje a dessais e cul-
cornins. Aquelles tinham o dessaiado da provinda e dividiram
entre si as communidadas. Dizem-se oriundos de Naroá, em Bi-
cholim, e lavram elles próprios a terra.
Antes do dominio portuguez um grupo de oito aldeias,
mahal, era responsável pelos foros devidos ao Rei de Sunda.
O mahal era uma divisão fiscal.
Os culcornins de Bally são todos brahmanes smarts, dp
Cortalim ou Quelossim.
E geral o culto do pimpol. Santéry e Malikarjuna são os
deuses mais frequentes.
COMMUNIDADE DE SHELVONA (qUEPEM)
Esta communidade tem três vangôres. Dois são de dessais ;
usam do appellido Naique, dizem-se oriundos de Salsete, e
pertencem á casta sudra. Parecem-se com os bhandarís das
Velhas Conquistas. Os culcornins, brahmanes smarts, consti-
tuem o terceiro vangôr.
Santéry é gram-devi.
Têm voton os dessais e pagode da aldeia.
As terras ou são de foro limitado, cutubana, ou de foro
corrente. Também ha três várzeas no giro da arrematação,
mas o seu rendimento é pouco importante. A principal fonte
de receita vem dos foros limitados.
O saldo divide-se por 36o ôrás, determinados pelos prédios
de foro corrente, a que andam annexos. Estes prédios podem
vender- se e dividir-se. Vendendo-se um terreno, vende-se tam-
bém o ôrá, ou fracção, que anda annexo á gleba, mas o ôrá
não pode vender- se separado da gleba.
Communidade de Vaddy (Pondá)
Tem 2 vangôres, um de gancares curumbins (gaudés) e ou-
tro de culcornins smarts.
l88 AS COMMUNIDADES DE GOA
Gram-devi é Lakshitni Narana, e os bhotos são smarts.
Os dessais de Raçaim recebem da communidade 194 rupias
a titulo de foros de mocassó. Recebem formas os dessais de
Pondá e a familia dos Cassumbós, antigos escrivães dos mes-
mos dessais. Têm hacca o pagode e os gancares.
A receita provém de bharoda e cumerís. Ha sempre deficit
que se divide em 16 partes e meia, 8 pelos gancares (i.** van-
gor) e 8 e meia pelos culcornins (2.0 vangor).
Se ha sempre deficit porque não entregam os interessados
á Gamara Agraria a communidade ? É porque os dois vangô-
res possuem uma várzea, que se não arrenda, nem se acha
dividida. Os culcornins dão 5o candis de bate; os gaudés dão
40 e fazem todo o trabalho. Só os culcornins é que têm veh-
dido as suas tocshimas. É sobre esta várzea que recae por-
tanto o supposto dificit. As sobras dividem-se na proporção
já indicada, 8 partes para o i.® vangor e 8 partes e meia para
o 2.0 vangor.
Communidade de OrgÃo (Pondá)
Tem 4 vangôres, os três primeiros de gancares marathas,
exemplo d'um nome: Sodú Luximon Naique. Todos usam do
appellido Naique e não casam entre si. O 4.** vangor é de cul-
cornins smarts.
Ha curumbins. Exemplo d'um nome: Babú Lolló Gauró
(gaudé).
Shant Durgá é gram-devi. O bhoto é Ghit-pavan. Parece
que o maior numero de bhotos, em Pondá, pertence á tribu
dos Podhyés. Seguem -se-lhes os Ghit-pavans, Karadés, Des-
hasts, Smarts e Vaishnavas.
A receita da communidade provém de foros limitados (cu-
tubana), arrematação triennal das várzeas communs e bha-
roda.
A despeza consiste nos foros da Fazenda; formas de qua-
tro ramos d'uma familia dos Dessais e haccas de diíferentes
pagodes e mhotos.
EXCERPTOS DO INQUÉRITO 189
Têm namoxins as famílias do ferreiro, mainato, barbeiro,
deuli e mhar,
O saldo dividia-se em quatro tocshimas eguaes por cada
vangôr. Actualmente as tocshimas estam convertidas em ac-
ções. Antes já alguns gancares tinham vendido e hypothe-
cado as suas tocshimas, mas esses gancares ficaram sempre
a compor a communidade, e os novos possuidores d'aquelles
titulos só entravam na gancaria para lançar nas arrematações.
COMMUNIDADE DE BORIM (PONDÁ)
Tem 5 vangôres. Os três primeiros intitulam-se dessais, cha-
mam-se Porobos e pertencem á tribu brahmane dos Podhyés.
Não casam entre si, porque sáo provavelmente da mesma
gôtra ; não casam nem comem com Shenvis ; casam com
Ghit-pavans. O quarto vangôr é de culcornins smarts^ de
Quelossim, e o quinto de culcornins Vaishnavas, de Lou-
tolim.
Nov Durga é gram-devi. O bhoto é podhyé. Ha também um
servidor da pagode chamado deuari da mesma gente dos
três primeiros vangôres.
A população agricola compõe-se de curumbins gaudés, ex.
d' um nome — Vitu Socró Gauró, outro — Babú Santú Naique
A receita provém de foros limitados (massul), arrematação
triennal de várzeas e cumerís.
A despeza consiste nos foros do Estado; formas dos des-
sais de Pondá e familia do Cassumbó ; pensões em dinheiro,
com o nome de inamas, ao ferreiro e Sunctamcares (familia
do secretario dos dessais de Pondd) e haccas do pagode, gan-
cares, dessais e culcornins.
Têm inamas em terras os dessais de Pondá e Cassumbó.
Este vendeu a sua inama ficando a terra egualmente sem foro.
Tem namoxim a familia do mainato, barbeiro, bhoto e fer-
reiro (além da pensão). Estes namoxins pagam um pequeno
foro.
KSÍ
190 AS COMMUNIDADES DE GOA
Até ha 18 annos dividiam -se as sobras em duas tocshimas
eguaes, uma para os dessais, e outra para os culcornins. Ha 18
annos as duas tocshimas passaram a applicar-se uma em jonos
pelos gancares matriculados do primeiro vangôr, desde que
tivessem completado 16 annos de edade, e a outra tocshima
metade para o primeiro vangôr e metade para o segundo.
Finalmente depois que se publicou o Regulamento de 1882
o saldo passou a dividir- se em duas partes eguaes, uma para
jonos, e outra .em cinco tocshimas, três para os dessais (i.°
vangôr) e duas para. os culcornins (2.° vangôr). Isto fez-se
por despacho do governador a requerimento dos interessa-
dos.
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Conselheiro Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara
Archivo Portuguej Oriental, em 6 fascículos, 1 1 volumes, pu-
blicados em Nova Goa. O primeiro teve segunda edição,
em 1877, os outros foram publicados de 1857 a 1876;
Ensaio Histórico da Lingua Concani, Nova Goa, i858 ;
Brados a favor das communidades das aldeias do Estado da
India^ Nova Goa, 1870.
Conselheiro José Ignagio de Abranches Garcia
Archivo da Relação de Goa, publicado em Nova Goa ; i.»
parte, 1872; 2.* parte, 1874.
FiLippE Nery Xavier
Collecçâo de Bandos, Nova Goa; i.o volume, 1840, 2.<> vol.
i85o; 3.0 vol. (Índice) i85i.
O Gabinete Litterario das Fontainhas, Nova Goa; i .<^ vol.
1846; 2.0 vol. 1847; 3.0 vol. 1848.
Collecçâo das Leis Peculiares das communidades agrícolas das
aldeias dos concelhos das Ilhas, Salsete e Bardej, Nova Goa,
I.» parte, i852, 2.» parte, i855.
Bosquejo Histórico das communidades das aldeias dos conse-
lhos das Ilhas, Salsete e Barde^, Nova Goa, i852.
Defensa dos direitos das gamarias, Nova Goa, i856.
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Diogo do Couto
Décadas da Ásia, 3 vols. Lisboa, 1736.
Padre Francisco de Sousa
Oriente Conquistado a Jesu Christo^ 2 vols. Lisboa, 17 10.
Boletim Official do Governo Geral do Estado da índia.
Boletim do Conselho Ultramarino, legislação antiga, 2 vols.
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Projecto do Novo Qi^gimento das Communidades Agricolas
do Estado da India^ Nova Goa, 1862.
Cláudio Lagrange Monteiro de Barbuda
Instrucção com que El-^i D. José mandou passar ao Estado
da índia o Governador e Capitão General e o Arcebispo
^rimaj do Oriente no anno de 17 74, Nova Goa, 1841.
Licenciado Leonardo Paes
Promptuario das diffiniçÕes indicas^ Lisboa, 171 3.
Marianno Montalegre
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em Goa).
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