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Full text of "Boletim de etnografia: publicação do Museu Etnologico Português"

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BOLETIM 


DE 


ETNOGRAFIA 


PGBLICAÇÃO  DO  MDSE0  ETNOLÓGICO  PORTOGDÊS 


DIBIOIDA  POR 


J,  LEITE   DE  VASCONCELLOS 


3Sr.°  1 


LISBOA 


IMPRENSA  NACIONAL  M  CM  XX 


ÇObETIiVl 


DE 


ETNOGRAFIA 


BOLETIM 


y 


DE 


ETNOGRAFIA 


PD6LIGAÇÂ0  DO  MOSED  ETNOLÓGICO  P0RT06UÊS 


DIBIGIDA  POR 


J.  LEITE   DE  VASCONCELLOS 


3sr.°  1 


LISBOA 


IMPRENSA  NACIONAL 


M  CM  XX 


ADVERTÊNCIA  PRELIMINAR 


ONSTANDO  O  Muscu  Etiiologico  do  duas  secções 
m^l  I S  principais,  Arqueologia  e  Etnografia,  e  tendo 
%.  S  1^  cie,  já  desde  1895,  como  orgâo  d'aquela  O  A?- 
cheologo  Português,  terá  agora  como  orgâo  da 
segunda  secção  o  presente  Boletim,  que  porém 
n&o  se  circunscreverá  nas  cousas  possuídas  pelo  Museu,  mas  tomarji 
mais  largo  âmbito,  como  O  Archeologo  faz. 

Os  assuntos  tratados  no  Boletim  serSo  frequentemente  análogos 
ou  iguais  aos  que  se  tratam  n-0  Archeologo,  só  com  diferença  de 
épocas,  visto  que  a  Arqueologia  ó  em  muitos  casos  Etnografia  do 
passado,  e  a  Etnografia,  no  que  toca  ao  estudo  (Ergografia,  Ergologia) 
dos  objectos  materiais  que  provôm  da  tradição,  6,  por  assim  dizer, 
Arqueologia  do  presente. 

Museu  de  Bolem,  dia  de  Ano  Bom  do  1919. 


J.  Lkite  de  Vasconcellos. 


Boletim  de  Etnografia 


Aprestos  de  costura 

A  molher  portuguesa  d'outr'ora  recatava-se  muito  mais  que  a 
moderna.  De  certo  que  amava  e  casava,  como  hoje;  mas  os  amo- 
res eram  mais  sérios,  e  o  casamento  mais  consentâneo  ao  intuito,  e 
por  isso  mais  solido.  A  sua  vida  passava-se  principalmente  em  casa, 
no  cuidado  do  arranjo  d'esta  e  da  familia. 

Do  ideal  de  uma  dona  do  sec.  xiu  diz  o  trovador  D.  Fornam 
Oarcia  Esgaravunha: 

. .  sabe  bem  fiar  e  bem  tecev, 
e  talha  mui  bem  bragas  e  camisa, 
, .  lava  bem  e  faz  boas  queijadas, 
e  sabe  bem  moer  e  amassar, 
e  sabe  muito  de  boa  leiteira, 

no  Cancioneiro  de  Colocci-Brancutl  *.  Esta  dona  moía  provavt-l- 
mente  em  um  moinho  de  mEo,  como  o  que  ainda  hoje  se  usa  pelas 
aldeias  da  Beira,  no  Algarve,  etc,  menos  complicado  que  a  atafona 
ou  zauguizarra.  A  roca  a  exalta  um  adagio :  vão  ha  casa  forte,  onde 
a  roca  não  anda^,  e  o  tear  o  ennobrece  outro:   mais  vale  ma(/ro 


1  N."  384  (=  1511).  Cfr.  também  D.  Carolina  Michaglis,  Bandglosseti .  I,  6. 

A  propósito  do  Cancioneiro  de  Colocci-Brancuti  convém  perguntar  porque 
i.  que,  estando  ele  agora  (1919)  á  venda  em  Roma,  por  ter  falecido  o  seu  último 
possuidor,  o  D."'  Ernesto  Monaci,  o  nosso  Governo  o  não  adquire  para  um 
arquivo,  biblioteca  ou  museu.  Outros  Governos,  ao  que  me  consta,  estão  dispostos 
a  licitá-lo,  se  nós  o  deixarmos  ir. 

Não  poderá  sair  dos  cofres  públicos  uma  quantia  para  a  compra  de  um 
grande  monumento  da  nossa  literatura  medieval? 

A  não  o  adquirirmos,  não  só  aquelas  nações  onde  ás  cousas  literárias  e  scien- 
tificas  se  concede  mais  importância  do  que  em  Portugal,  se  rirão  de  nós,  por  nos 
privarmos  da  posse  de  ura  inestimável  tesouro,  mas  os  nossos  próprios  vindouros 
nos  aousavão^de  lh'o  não  legarmos. 

Pôde  acaso  hoje  parecer  custoso  comprar  por  uns  tantos  milhares  de  escu- 
dos um  manuscrito ;  contudo,  d'aqui  a  séculos,  ninguém  pensará  no  valor  pecuniário 
(que,  seja  qual  for,  &  mínimo  para  um  estado),  e  só  se  dirá  com  amargura:  os 
Portugueses  do  século  xx  perderam  a  ocasião  de  praticar  um  acto  eminentemente 
patriótico  e  louvável,  qual  o  de  dotar  o  seu  património  literário  com  uma  precio- 
sidade tmica ! 

Quem  quiser  conhecer  qual  a  importância  do  códice  ou  manuscrito  de  que 
estou  falando  leia  D.  Carolina  Michaelis,  Cancioneiro  da  Ajuda,  tomo  u,  p.  i9 
e  seguintes. 

-  Bluteau,  Vocabulário,  s.  v.  «roca». 


Boletim  de  Etnografia 


rio  tear,  que  tjordo  no  monturo  *.  Que  regalo  de  vida  doméstica,  tal 
como  a  compreendiíim  os  uossos  avós  do  século  de  quinhentos,  nSo 
se  adivinha  da  leitura  dos  Contos  e  historias  de  Feruandez  Trancoso! 
No  Tableau  de  Lisbonne  en  1796  lô-se  que  é  principalmente  nas  ja- 
nelas que  as  molherps  lisboetas  aparecem,  e  poucas  na  rua  2.  Ainda 
por  1870  e  tantos  raras  vezes  se  via  no  Porto  uma  senhora  fóra  de 
casa  em  dias  de  semana. 

Agora,  nas  duas  capitais,  e  noutras  terras  importantes  que  as 
macaquoiam,  as  senhoras,  tanto  casadas,  como  solteiras,  que  nâo 
têm  obrigagOes  quotidianas  que  as  prendam,  passam  grande  tracto 
de  tempo  na  pastelaria,  na  loja  de  modas,  ou  a  mostrarem-se  nos  pas- 
seios. Os  filhinhos  ou  os  irmãozinhos  ficam  entregues  ás  amas.  Que 
importa  cuidar  da  casa?  Elas  também  possuem  direitos  que  o  femi- 
nismo lhes  outorga,  ainda  que  uma  escritora  francesa,  muito  famosa, 
do  sec.  xiv-xv,  Cristina  do  Pisan,  que  sem  razão  julgam  alguns  cam- 
peadora de  feminismo,  escreveu  ;«Femmes  ont  Tentendement,  certes, 
mais  pour  Thonnesteté  oii  elles  sont  enclines ;  ce  ne  seroit  pas  chose 
convenable  que  elles  se  alaissent  monstrer  en  jugement  aussi  baul- 
dement  que  les  hommes», — ao  que  uma  comentadora,  nossa  contem- 
porânea, acrescentou,  com  justa  firmeza  de  critério:  «Christine,  invo- 
quant  Vhonnesteté,  c'e8t-à-dire  la  convonanco,  pour  empGcher  la  fem- 
me  de  paraitre  en  public  et  la  retenir  disérètement  dans  le  cercle 
familial,  cst  bion  de  son  temps,  et  cinq  siòcles  en  retard  sur  les 
xuffragettes.  Aussi  je  ne  vois  pas,  pour  ma  part,  comment  on  pourralt 
l'enrôler  sous  la  bannière  du  féminisme  sans  outrer  on  dénaturer 
la  portée  de  ses  opinions»  *. 

As  senhoras  níio  só,  como  digo,  se  evidenciam  desarvoradameute 
|)or  toda  a  parte,  mas  andam  trajadas  de  modo  bastante  descom- 
posto: já  nfto  me  refiro  aos  arrebiques*,  usados  desde  sempre^,  e 
desde  sempre  criticados,  por  produzirem  fealdade  110  rosto,  e  fazerem 


'  Idem,  ibid.,  s.  v.  o(<;ar».  Istu  é:  mais  vale  tea  modesta,  qiio  porco  gordo- 

í  P.  78  sgs. 

5  Vid.  Le  Livre  de"   Troíi  vertiu  et  son  milieii,  por  Matliilile  Laigle,  Paris 
1912,  p.  122. 

*  Arrebique  (arrabique,  ou  rebique)  significa  propriamente  «postura  ou  côr 
artificial,  com  que  as  molheres  pintào  o  rosto»  (Diccionario  da  Academia). 

'  Ovidio,  por  exemplo,  escreveu,  entre  outras  oljras  congéneres,  uma  sobre 
cosméticos,  que  ficou  incompleta,  e  sem  titulo,  ainda  que  de  ordinário  se  llie 
chama  Medicamina  fadei .  Nos  vv.  5]-.'')2  diz  o  Poeta  á  dama  romana:  disce. .  \\ 
cândida  quo  ■poiíint  ora  nitere  modo. 


8  Boletim  uk  Etnogbab^ia 

dano  á  pele  *:  refiro-me  á  exposi{,'ao  do  peito  nu,  tão  descoberto,  que  ás 
vezes  a  vista  dos  transeuntes  penetra  mistérios  que  lhe  deviam 
ficar  inacessíveis;  refiro-me  ao  modo  como  os  braços  saem  de  entre 
rendas  e  cambraias,  despidos  por  inteiro;  refiro-me,  emfim,  à  cur- 
teza  do  vestido  e  respectivas  saias,  ostentada  com  verdadeiro  desas- 
sombro de  impudicicia.  Sâo  modas!  Parece  porém  que  devia  fazer- 
Ihes  reacção  o  bom  senso,  e  a  castidade,  que  é  a  qualidade  mais 
preçada  na  molher,  e  algo  superior  á  formosura,,  ás  prendas  manuais, 
ao  luxo,  á  riqueza . .  Pondera  o  mesmo  Ovidio,  que  ha  pouco  citei  em 
nota : 

Prima  sit  vobis  raorum  tutella,  puellat; : 
Ingeiíio  fácies  conciliante  placet*, 

«O  Q0S80  GarçEo: 

. .  Todos  sabem 
Que  o  valor  não  consiste  nos  vestidos, 
Antes  seguem  as  modas. . ' 

Nfto  haverá  pais,  irmãos,  maridos,  que  olhem  com  reflexão  para 
tanto  desregramento  que  se  desencadeia  em  volta  d'eles?  Fica-se 
apensar  como  serão  as  gerações  que  hâo-de  vir  d'e88a8  inconscientes, 
embora  risonhas,  escravas  da  tesoura  de  Paris ! 

Estou  falando  de  Etnografia,  não  devo  ir  mais  longe  em  consi- 
derações análogas,  para  não  entrar  os  umbrais  da  Ética  *.  Ainda 
assim,  bem  se  entendo  que  falo  no  geral. 

Na  cidade  podem  eacontrar-se,  e  felizmente  encontram-se  com 
frequência,  esposas,  mães  e  meninas  digníssimas,  que  condizem  de 
modo  muito  exacto  com  o  quadro  poético  em  que  Luis  de  Campos 


\  Diz  Juvenal : 

Intolerabilius  niliil  est  quara  femina  dives. 
Interea  foeda  aípectu  ridendaque  multo 
Pane  tumet  fácies  aut  pinguia  Poppaeana 
Spirat,  el  hinc  miseri  viscantur  labra  mariti : 

nas  Satirai,  vi,  460  sgs. 

Em  tempos  muito  mais  próximos  de  nós  fala  António  Gomes  d'01ÍYeyra,  Idy- 
lios  marítimos  y  rimas  variai,  Lisboa  1617,  fl.  37  sgs.,  de  uma  dama  que,  sendo 
formosa,  estragava  o  rosto  com  pinturas. 

2  Medicamina  faciei,  vv.  43-44. 

*^Obras  Poéticas,  Lisboa  1778,  p.  150. 
■    *  Não  é  por  falta  de  zumbaias  que  as  ridículas  e  incóngruas  modas  de 
que  a  cima  falo  desfiguram  a  sociedade:  dramaturgos,  caricaturistas, jornalistas, 
moralistas,  todos  de  oonsuni  lhes  põem  ferrete;  mas  em  vão! 


Boletim  de  Etnografia 


9 


as  pintou*;  é,  todavia,  na  aldeia  que  sobretudo  devemos  buscá-las.  Aí 
a  depravação  civilizada  nâo  chegou  ainda  tanto.  Ai  existe,  mais  que 
algures,  a  molher  de  bom  recado^,  que  enche  a  cama  até  o  telhado^. 
A  aldeã,  quando  a  família,  a  cozinha,  o  forno  ou  o  campo  a  nSo  cha- 
mam, ocupa-se  do  ordinário  em  trabalhos  que  se  relacionam  com 
o  vestuário,  isto  ó,  com  a  fiaçilo,  a  meia,  a  costura.  De  tudo  isso 
oferece  a  nossa  Etnografia  documentos  curiosíssimos,  já  a  folklo- 
rica,  já  a  ergografica  ou  tecnografica.  Vou  aqui  indicar  alguns  que 
se  referem  a  costura.  Todos  provêm  do  Alentejo,  e  se  guardam  no 
Museu  Etnológico,  em  Belém. 

I.  «Costura»  de  cortiça 

~  As  molheres,  quando  costuram,  tôm  as  agulhas,  linhas,  tesoura, 
dedal,  etc,  em  um  recipiente  que  recebe  na  lingoa  comum  o  nome 
de  açafate,  pronunciado  popularmente  çafate.  O  Dicctonario  da  nossa 
Academia  define  açafate:  «cestinho  tecido  de  verga,  de  três  ou  qua- 


tro dedos  de  altura,  sem  arco,  nem  asas,  o  ordinariamente  serve  para 
trjizer  a  costura,  roupa  o  cousas  semelhantes».  Pelo  que  tange  á  cos- 
tura, acrescentarei  que  o  referido  recipiente  pôde  não  só  ser  do  vôrga 
(de  vimem  na  Beira;  de  vime,  d&  frexo,  de  aaice,  dejambujo  no  Al- 
garve; etc),  mas  de  cortiça.  No  primeiro  caso  dao-lhes  vários  nomes, 
além  do  de  açafate  oa  çafate  (Sabugal,  Mondim  da  Beira):  cacifro 


*  Apud   PartMto   PortufjuKz  Moderno,   de  Tlieophilo   Braga,  Lisboa  1877, 
pp.  152-153.  A  poesia  intitula-»e  mesmo:  «Esposa,  flliia  e  loâe». 

*  Ou  de  bom  recato. 

1  Roland,  Adagiou,  1."  ed.,  p.  241.  .  , 


10  Boletim  de  Etnografia 

ou  gigo  de  costura  (Tarouca),  cesto  da  costura  ou  balaio  (Alportel*), 
cesta  da  costura  ou  de  costura  (Avis,  Loulé,  Albufeira ^j  e  simples- 
jnente  costura  (Beja,  Santiago  de  Cacem,  Mexilhoeira^).  Quando  o 
recipicnto  ó  de  cortiça,  oun  só  dar-lhe  esto  último  nome,  isto  é,  cos- 
tura (Estremoz).  Também  pôde  ter  aplicação  de  recipiente  de  costura 
uma  caixinha  de  madeira,  o  neste  caso  chama-se  caixa  de  costura 
(Setúbal,  etc).  Kecipiente  mais  apurado  (com  repartições  para  os 
objectos),  porém  não  popular,  é  o  estojo  da  costura  (Lisboa,  etc). 

Vou  aqui  falar  de  uma  costura  de  Santa  Vitoria  (Estremoz). 

É  de  cortiça,  e  como  se  patenteia  do  desenho  (fig.  1  *),  tem  forma 
cilindrica:  altura  0"',12.3;  diâmetro  0'",25.  Excepto  o  fundo,  que 
é  liso,  e  o  interior,  que  é  forrado  de  papel  pintado,  toda  a  superfície 
externa,  ou  parede,  está  coberta  de  gravuras.  O  desenho  do  bordo 
consiste  apenas  em  linhas,  que  formam  zigue-zague.  O  desenho  da 
parede,  se  planificarmos  esta,  veremos  que  consta  do  quatro  secções, 
separadas  horizontalmente  por  linhas,  e  verticalmente  por  tiras,  ou 
fitas,  formadas  da  adjunção  de  losangos,  dispostos  uns  sôbre  os  ou- 
tros, e  também  entre  linhas.  Além  d'isso  ha  duas  cercaduras  em  toda 
a  volta  da  caixa:  uma  inferior,  igual  á  do  bordo;  outra  superior, 
formada  de  triângulos. 

Uma  das  secções  temo-la  belamente  desenhada  diante  de  nós :  um 
vaso  de  flores  estilizadas,  duas  d'olas  cordiformes  (digo  que  sSo  flores, 
e  não  folhas,  por  causa  da  disposição,  e  de  se  figurarem  folhas  verda- 
deiras noutros  lugares,  providas  de  peciolos);  ao  lado  do  vaso,  tanto 
de  um  lado  como  do  outro,  o  nome  da  possuidora,  isto  é,  mari-a:  no 
campo  G,  inicial  do  sobrenome  ou  do  apelido. 

As  secções  restantes  contêm  outros  vasos  de  flores  estilizadas, 
nSo  faltando  também  flores  cordiformes.  Numa  das  secções  lê-se: 
ANACLETO  JOSÉ,  provavelmente  o  nome  do  artista;  noutro  «1888», 
data,  como  creio,  da  feitura. 

O  artista  revestiu  de  côr  vermellia,  preta  e  azul  todas  as  gra- 
vuras; em  alguns  lugares  talhou  a  cortiça,  e  do  âmago  d'esta  re- 
sultou côr  branca. 


1  Serve  também  para  ter  cousas  de  comida:  o  pào  que  vai  á  mesa,  figos  da 
merenda,  da  sobremesa  ou  de  dar  a  alguma  visita  que  chega,  etc. 

2  É  curioso  que  em  Avis  ouvi  dizer  o  cesla  da  costura  (parece  que  a  termi- 
nação de  cesto  foi  atraida  pela  de  cosiwa). 

'  Na  Mexilhoeira  a  costura  ou  é  redonda,  ou  sôbre  o  comprido;  lisa  ou  pin- 
tada. Ha  recipientes  ou  canattrinhas  semelhantes,  para  conterem  fruta  que  vai 
à  mesa. 

*  Desenho  do  Francisco  Valença. 


Boletim  de  Etnografia 


11 


2.  Fdrinag  de  dobar 

As  linhas  que  se  dobam  nestas  formas  sRo  para  fazer  cordões. 
Estão  aqui  diante  duas  formas  de  buxo,  representadas  nas  íigs.  2 
e  3',  e  ambas  provenientes  do  Ameixial  de  Estremoz  (têm  no  livro 
das  entradas  os  a."'  6058  e  6059).  Altura  0"',11. 

A  posição  é  a  da  fig.  .3  (dois  lados),  com  as  duas  pontas  vol- 
tadas para  cima,  como  já  se  disse  na  Hist.  do  Museu  Etnológico, 
p.  420-421,  onde  se  figurou  uma  de  Fronteira.  A  forma  representada 
na  fig.  2  (dois  lados)  disponho-a  invertida,  porque  o  artista  assim 
a  imaginou,  para  representar  nela,  como  se  nota  do  desenho,  um  ser 
humano  estilizado. 


fig.  2f  ao  invés  (dois  lados) 


Num  dos  lados  da  fig.  3  tomos,  segundo  parece,  um  vaso  como 
docoraçilo  principal,  rodeado  de  ornatos  tirados  do  reino  vegetal, 
ramos  o  simples  folhas,  e  outros  de  fantasia,  para  encher  espaço. 
No  lado  oposto  temos  taiubera,  como  parece,  um  vaso  (espécie  de 
cálix),  acompanhado  de  folhas,  flores  e  outros  ornatos  do  fantasia. 
Tudo  isto  é  gravado. 

A  fig-.  2  representa  no  seu  conjnnto,  como  disse,   um  ser  hu- 


«  Desenhos  de  Francisco  Valença. 


12 


Boletim  de  Etnografia 


mano:  este  é  do  sexo  feminino,  com  o  peito  de  forma  de  coração, 
cintura  delicada,  e  os  braços  arqueados  para  a  parte  superior  o  la- 
teral da  coxa.  Do  pescoço  peado  um  fio  que  segura  uma  medalha, 
também  cordiforme,  uso  muito  vulgar  nas  molheres.  A  disposição 
das  extremidades  da  fflrma  dSo  a  ilusão  de  que  a  molher  tem  as 
saias  arregaçadas  o  muito  conchegadas  ás  pernas  (como  acontece 
em  certos  trabalhos  campestres  do  Alentejo).  A  forma  está  ornamen- 
tada dos  dois  lados,  e  em  todo  o  bordo,  até  o  joelho:  gravura  feita  ao 
de  love,  estando  ao  mesmo  tempo  pintadas  as  linhas  da  gravnra  (côr 


Fig.  3  (dois  lados) 


vermelha,  azul  e  verde).  Os  ornatos  sÊlo  de  fantasia,  pela  maior  parte 
geométricos.  Num  dos  lados  representou-se  a  data  da  íeitura,  isto 
é  «1897»,  com  dois  dos  algarismos  na  parte  superior  de  uma  das 
coxas,  o  os  restantes  dois  na  outra. 


3.  Furador 


Na  fig.  4',  temos  um  furador  de  madeira  (comprimento  O", 125), 
que  se  aplica  para  fazer  ilhôs.  A  ])arte  que  serve  propriamente  para 
a  operação  é  de  secção  circular,  e  está  aguçada  no  extremo.  O  cabo 
está  esculturado  de  vários  feitios.  Este  objecto  veio  de  Fronteira. 


1  Desenlio  do  Ruy  Sedas  Pacheco,  Ex-Preparador  do  Museu  Etnológico. 


Boletim  de  Etnogkakia 


13 


Em  algumas  terras  do  Minho  usa-se  para  rasgai*  o  folhelho  do 
milho  um  instrumento  igual,  também  de  pau  e  artistico,  chamado 
«esfolhador»  (vid.  adiante,  p.  33). 


Fig.  4 

Os  três  objectos  quo  ticam  descritos  acima  devem-se  á  habilidade 
do  pastores  alentejanos.  Já  a  respeito  da  arte  pastoril  eu  disse  algumas 
palavras  n-O  Arch.  Port>,  xvil,  288,  nota,  e  xix,  300  sgs.,  e  bem 
assim  na  Ilist.  do  Mukch  Etnológico,  p.  221  sgs.  Do  uso  do  tcora- 
çlo»,  como  tema  de  arte  popular,  falei  na  mesma  revista,  xix,  399. 

J.   L;   DE  V. 


feciteiro  e  carapuças  da  /\\adeira 

OS.""^  Emanuel  Ribeiro,  hábil  Professor  da  Escola  Industrial 
de  Xabregas,  esteve  ha  tempos  na  ilha  da  Madeira,  e,  como  preza 


l-ig.  5 


muito  a  Arto  c  a  Etnografia,  tomou  lá  alguns  desenhos  e  fotografias, 
quo  me  ofereceu,  de  cousas  etnográficas. 


14 


Boletim  de  Etnografia 


Na  fig.  5  publico  a  fotografia  de  um  leiteiro,  que  leva  na  cabeça 
a  tradicional  e  caracteristica  carapuça. 


Fig.  6 


Fig.  ' 


Fig.  8 


As  figs.  6  a  8  reproduzem  três  desenhos  de  formas  da  mesma 
carapuça,  que  é  cobertura  geral  de  vilões  e  vilôas:  uma  das  formas 
usa-se  em  dias  de  festa,  as  outras  em  tempo  ordinário. 

j.  L.  DE  y. 


Isouça  do  Algarve 

Em  companhia  de  Guilherme  Gameiro,  Desenhador,  que  foi, 
do  Museu  Etnológico,  hoje  falecido,  fiz  em  1904  uma  excursão  pelo 


Fig.  9  Fig.  10 

Algarve.  Na  aldeia  do  Bensafrim  desenhou  ele  três  vasilhas  de  barro, 
que  vao  indicadas  com  os  n.'''  9,  10  e  11. 

O  n."  9  é  o  famoso  «cântaro  de  Loulé»;  o  n.°  10  uma  «infusa» 
on  «bilha»;  o  n.°  11  um  «barril». 

Acerca  da  louça  de  Loulé,  diz  o  &.""  Charles  Lepierre:  «Loulé 
é  o  centro  mais  importante  para  a  louça  comum:  existem  aí  umas 


Boletim  de  Etnourafia  15 

25  pequenas  oficinas. .  Os  telheiros  de  Loulé  são  muito  antigos,  tra- 
balhando neles  os  próprios  donos,  pais,  filhos,  etc;  o  pessoal  é  muito 
rotineiro   .  .    Ainda   assim   a  louça  de  Loulé  é  a  mais  apurada  do 


Kg.  11 

Algarve,  e,  pelas  peças  que  tenho,  posso  dizer  que  é  talvez  das 
melhores  louças  i-omuns  do  país.  As  formas  das  louças,  ainda  que 
elementares,  nio  deixam  de  ter  alguma  elegância;  podcm-se  citar 
aí  os  cântaros  muito  altos,  de  duas  asas,  de  boca  estreita,  e  esguios»*. 

J.   L.  DE  V. 


Adelino  das  Neves 

No  estudo  da  poesia  e  musica  populares  portuguesas  desempenhou 
certo  papel  Adelino  António  das  Neves  e  Mello  (Filho)-:  e  por  isso 
entendo  que  posso  falar  d'ele  no  Boletim,  e  juntamente  publicar 
o  seu  retrato.  Pois  que  no  Dicrionario  Bibliographico  de  Innocencio 
&  Aranha  nSo  se  16  a  respeito  de  Adelino  das  Neves  quasi  nada,  apesar 
de  este  haver  escrito  várias  obras,  e  pois  que  nao  me  consta  que 
haja  alguma  biografia  d'ele,  aproveito  a  ocasião  para  ampliar  o  meu 
artigo  um  pouco  além  dos  limites  que  bastariam  para  uma  notícia 
de  caracter  meramente  etnográfico-'. 


1  Cerâmica  portuguesa  moderna,  2."  cil..  Ijisboa  1012,  p.  74. 

*  Era  assim  que  ele  escrevia,  isto  é. :  Filho,  em  vez  de  Júnior. 

'  As  minhas  fontes  sâo:  as  obras  de  Adelino  (umas  que  possuo,  outras 
que  consultei  fora  da  minha  livraria) ;  informações  que  me  deu  de  viva  voz 
a  Ex."*  Viuva;  uns  apontamentos  autobiográficos  (incompletos)  de  Adelino,  que 
a  mesma  Ex."*  Viuva  me  oferoceu.  O  retrato  obtive-o  d'esta  senhora,  por  inter- 
médio do  S."  Candiílo  Auí^uBto  Nazareth,  de  Coimbra,  antes  de  c\i  a  conhecer 
pessoalmente. 


16  Boletim  de  Etnoqkafia 

O  nosso  autor  nasceu  em  6  de  Maio  de  1846  em  pleno  mar,' pelas 
alturas  dá  ilha  de  Santa  Helena,  a  bordo  d'um  navio  português 
que  da  China  trazia  para  o  reino  a  ínSe  e  o  pai.  Este  chamava-se 
Adelino  Aiitonio  das  Neves  e  Melo,  casado  com  D.  Domingas  Car- 
neiro de  Melo  (natural  de  Manilha:  Filipinas),  e  exercia  ao  tempo 
o  cargo  de  tisico-mor  em  Macau,  depois  de  o  ter  exercido  na  índia. 
Era  íilho  do  D.""^  António  José  das  Neves  e  Mello,  Lente  de  Filosofia 
na  Universidade  de  Coimbra,  e  Director  do  Museu  Botânico  '.  Além 
de  medico,  o  pai  do  nosso  biografado  gostava  de  coleccionar  cousas 
antigas  e  curiosidades.  Oficialmente,  a  pátria  de  Adelino  Júnior  esta 
ua  freguesia  do  S.  Quintino,  perto  de  Lisboa  (Sobral  de  Mout'Agraço), 
porque  nela  se  bàtizou.  Deu  motivo  a  isso  o  ter  aí  uma  quinta  seu 
tio  por  afinidade  o  D.'"'  António  Ribeiro  da  Costa  Holtreman,  que 
lhe  foi  padrinho. 

Eegressados  a  Portugal,  os  pais  de  Adelino  estabeleceram-se 
em  Coimbra,  aos  Arcos  de  S.  Bento,  onde  seus  antepassados  tinham 
vivido.  No  tempo  próprio  começaram  a  dar  ao  filho  educação  lite- 
rária. Em  1860  concluiu  Adelino  os  preparatórios  liceais,  e  entrando 
logo  para  a  Universidade,  ficou  formado  em  Direito  em  1865,  na 
idade  de  19  anos.  Em  1872  casou  em  Lisboa  com  a  Ex."'*  Senhora 
D.  Felícia  Leito  Velho,  que  aí  vivia*.  Pôde  cronologicamente  ser 
aqui  mencionado  que  Adelino  das  Neves  conviveu  com  Camilo  Cas- 
telo Branco,  quando  este  esteve  em  Coimbra,  em  1875.  As  relações 
entre  os  dois  datavam  de  época  anterior  a  1875,  mas  tornaram-se 
agora  mais  intensas,  como  o  próprio  Adelino  diz  nos  Senilià,  Pará 
1899,  p.  11,  —  obra  de  que  adiante  tornarei  a  falar — ,e  como  se  pa- 
tenteia de  cartas  que  o  grande  romancista  dirigiu  ao  seu  amigo'. 

Em  1878  foi  Adelino  das  Neves  nomeado  Comissário  da  policia 
de  Coimbra,  cargo  então  criado;  serviu  até  1879,  em  que  pediu 
a  demissão,  por  queda  do  ministério,  mas  tornou  a  exercer  as  funções 
de  1881  a  1886,  em  que  novamente  se  demitiu,  indo  viver  para  uma 
quinta  que  tinha  ao  pé  de  Coimbra.  A  tal  propósito,  diz-lhe  Camilo 
numa  carta,  de  que  se  transcreve  um  trecho  nos  apontamentos  auto- 
biográficos : 


i  Vid.  a  sua  biografia  n-A  Nação  de  23.de  Agosto  de  1870  -(artigo  de  F.  A. 
Rodrigues  de  Gusmão). 

2  Originaria  de  Trás-os-Montes,  Foi  seu  pai  o  B.«'  Bernardo  Teiseira  de 
Morais  Velho,  do  Mogadouro,  que  exerceu  a  advocacia  no  Brasil. 

.'  Algumas  d'elas  foram  publicadas  pelo  D."  J.  M.  Teixeira  de  Carvalho 
in  A  Galera,  1914,  n."  2,  e  1915,  n."  4,  e  por  Manoel  Cardoso  Marta,  Cartas  de 
( 'amillo,  Rio-ilo-.Ianeiro  &  Lislioa,  Í91f,  p.  2,  omlo  o  editor  poui-o  iliz  do  Adelino. 


Boletim  de  Etnografia  17 

«Nao  sei  se  deva  dar-lhe  os  parabéns  por  se  eximir  de  capita- 
wnear  a  policia  da  volteira  e  turbulentajCoimbra.  Acho  que  sim,  e  que' 
•  »devo  dar-lh'os  muitos  sinceros,  e  adcinja-se,  quanto  possa,  áfelici- 
ndade  quieta  o  monótona  da  família.  Abi  tom  de  portas  a  dentro 
))duas  formas  do  paraiso  que  o  ceu  dos  christaos  de  certo  lhe  nao 
idard  mais  perfeito:  esposa  e  filho.  Entre  ollos  irá  serenamente 
«caminho  da  outra  existência,  que  eu  lhe  concedo  por  hypothese; 
»se  porem  so  mettor  muito  nos  tremcdaes  da  vida  interior,  terá  muitas 
Moccasiões  de  arrependimento,  e  raras  de  satisfação».  * 

Com  o  exorcicio  da  função  de  Comissário  do  policia  se  relaciona 
um  facto  que  muito  o  honra.  Tendo-se  declarado  incêndio  na  parte 
superior  d'um  prédio  em  cujas  baixas  havia  uma  oficina  do  fogueteiro, 
Adelino  Noves,  acompanhado  do  seu  Amanuense  César  da  Rocha,  aba- 
lançou-so  a  entrar  nela,  e  removeu  de  lá,  já  em  meio  de  fumo  e  do  ar- 
dentes chispas,  um  caixote  que  continha  três  arrobas  do  pólvora — 
e  assim  evitou  uma  explosão,  do  fatais  consequências.  Por  isso  os 
dois  foram  galardoados  com  a  medalha  de  tfilautropia,  mérito  e  ge- 
nerosidade» . 

Em  1886  fez  uma  viagem  a  França  para  se  instruir,  a  qual 
viagem,  segundo  ele  diz  nos  citados  apontamentos,  influiu  bastante 
no  plano  da  sua  vida.  llesolvondo  dodicar-so  á  vida  diplomática,  por 
o  nao  atrairom  as  subtilezas  do  foro,  foi  sucessivamente  nosso  Cônsul 
em  Zanzibar  (1889),  Demerara  (Guiana  Inglesa),  Pará,  e  llio  Grande 
do  Sul.  Em  1904  voltou  de  licença  ao  reino,  para  a  quinta  de  Coim- 
bra. Por  esse  tempo  começou  a  sofrer  da  vista,  vindo  depois  a  cegar. 
Em  1906  mudou  a  residência  pai-a  Lisboa,  o  cá  faleceu,  de  repente, 
em  1912,  de  sincopo  cardíaca,  no  dia  dos  anos  da  esposa,  senhora 
dotada  do  grandes  virtudes,  ([ue  foi  sempre  sua  desveladissima  com- 
panheira em  todos  os  lances  da  vida:  em  Coimbra,  nas  viagens, 
nas  peregrinações,  e  nos  ultimes  e  amargos  dias. 

Creio  que  deixo  mencionadas  as  principais  datas  da  vida  parti- 
cular e  pública  de  Adelino  Neves.  Passarei  agora  a  tratar  das  obras 
que  publicou,  ás  quais  adicionarei  uma  noticia  de  alguns  inéditos. 

As  obras  impressas  sao  dez,  que  vou  indicar  pela  ordem  dos 
tempos :  ^ 

1.  Musicas  e  Canções  Populares,  coUigidas  da  tradição.  Lisboa 
1872;  241  i)ágina8.  Esta  obra,  a  que  servem  de  epigrafe  os  versos 
de  Tomás  liibeiro. 

Quem  quer  prazer  suave  e  amor  divino 
feche  na  mansa  aldeia  o  seu  destino, 


18  BoTETiM  DE  Etnografia 

e  que  Adelino  dedico»  a  sua  esposa,  encerra,  depois  de  breve  ^(7r<T- 
tencia,  cinco  grupos  do  cantigas:  1.°,  de  Coimbra;  2.°,  do  Minho;  3.", 
de  Trás-os-Montos ;  4.°,  dos  Açores ;  5.°,  cavtif/as  do  berço.  Muitas  das 
cantigas  vêm  acompanhadas  do  musicas.  Quando  Adelino  das  Neves 
estudava  em  Coimbra,  costumava  passar  as  ferias  (o  que  fez  até 
ao  4."  ano)  em  Penlta  Longa  (concelho  do  Marco  de  Canaveses)  com 
sou  tio  o  ])r.  Adriano  das  Noves  o  Mello,  antigo  Lento  de  Teologia 
da  Universidade,  quo  ali  era  Abade*.  Ao  contacto  com  a  gente  da 
aldeia,  'que  no  Entre-Douroe-Minho  suaviza  constantemente  o  tra- 
balho rural   com   cantorias,  e  nos  dias  do  festa  dança  e  toca,  mais 
talvez  que  nenhum  outro  povo  de  Portugal,  ganhou  Adelino  Neves 
gosto  da  musica  do  povo  o  da  literatura  oral,  e  ])ensou  em  organizar 
uma   obra   sobre   o   assunto.   Assim   apareceu   o   livro   cujo  titulo 
a  cima  copiei.  O  próprio  autor  diz  na  advertência  preliminar:  «Esto 
cancioneiro  nRo  ó  mais  do  quo  um  singelo  ramo  de  flores  silvestres 
colhidas  ao  acaso  polo  campo».  Para  o  livro  concorreram  também 
estudantes  e  amigos  do  autor:  Icvavam-lhe  cantigas  das  respectivas 
terras,   e  Adelino   escolhia  e  aproveitava  as  que  lhe  convinham. 
Devo  porém  observar  quo  cinco  anos  antes  do  aparecimento  das 
Musicas  e  Canções,  isto  ó,  em  1867,  havia  Theophilo  Braga  publicado 
o  Cancioneiro  Popular:  é  pois  natural  que  Adelino  bebesse  aqui 
a  sua  primeira  inspiração  para  o  estudo  do  Folk-Lore.  Que  Neves 
conhecia  o  mencionado  traballio  de  Theophilo  Braga,  o  confessa 
no  já  citado  opúsculo  Senilia,  p.  31,  ao  referir-so  <á  acçJlo  do  Garrett 
na  colheita  da  poesia  popular  (cf.  adiante,  §  11).  Já  nos  meus  Ensaios 
Ethnograplncos,  I,  303,  eu  disse  que  a  colecção  de  Adelino  das  Neves 
ei"a  geralmente  fiel.  Se  o  trazer  a  lume  canções  populares  nSo  cons- 
tituía novida^de,  como  acabamos  de  ver,  constituia-o  a  publicação  de 
musicas.  Nunca  ninguém  até  entSo  no  nosso  país  se  lembrara  de  atender 
a  este  ramo  da  estética  popular,  apesar  da  riqueza  d'ele;  só  muitos 
anos  depois  tornou  a  atender-se  a  isto,  e  escassamente.  Y6-se  portanto 
com  que  discernimento  Adelino  das  Neves  iniciou  a  sua  carreira  literá- 
ria. E  de  lamentar  que  nSo  persistisse  nos  estudos  folkloricos.  Espirito 
activo,  mas  pouco  desejoso  de  se  fixar  fortemente  num  ponto,  o  que 
acontece  com  freqiiencia  entre  os  Portugueses,  preferiu  divagar  por 
outros  campos,  como  adiante  veremos.  Apena^no  qne  toca  á  poesia 
popular,  pensou  Neves  em  fazer  2.*  edição  do  seu  livro,  para  o  que 
redigiu,   entre  1872  e  1889,  um  prologo,  que  existe  manuscrito, 


i  Morre*  de  repente,  em  1864,  quando  Adelino  andava  no  4.°  ano  de  Direito; 
legou  a  este  metade  dos  bens  quo  possuía. 


Eolelim  de  Etnografia— N."  1  —  1920 


ESTAMPA  I 


Adelino  das  Neves 


Boletim  de  Etnogkafia  19 

o  que  a  Ex.""*  Viuva  espontaneamente  me  ofereceu*.  No  que  toca 
a  outros  ramos  da  Etnografia,  ou  portuguesa  ou  de  fora,  espalhou 
observações  várias  por  outras  obras  que  escreveu  (vid.  adiante, 
§§  7,  8  e  9). 

2.  OrençcM  reUíjioKns  e  sociais.  Coimbra  1875  (folheto). 

3.  Extudo  sobre  o  7-e(/i)nen  penitenciário  e  a  sua  appHcnção  em 
Portuíjal.  Coimbra  1880.  Volume  do  142  páginas,  dodicjido  a  «António 
Kodriguos  Pinto».  Diz  Neves,  na  dedicatória,  que  apesar  da  repu- 
gnância que  tinlia  ao  foro,  ainda  chegou  a  achar  gosto  num  estudo 
de'direito  criminal:  c  assim  nasceu  esto  livro. 

4.  O  estudo  da  historia,  segando  os  processos  scientificos  de  Henry 
Thoinas  Backle.  Coimbra  1882. 

5.  As  formiijas.  Coimbra  1883.  Conferencia  feita  no  Instituto 
de  Coimbra.  O  folheto  6  separata  do  jornal  d'esta  associaçào. 

6.  Em  1884  realizou-se  em  Coimbra  uma  exposição  distrital, 
que  deu  motivo  a  uma  conferencia  feita  polo  D."''  Augusto  Felipe 
Simões  acerca  da  Escultura  coimbrã  do  sec.  xvi.  Como  porém 
o  conferente  so  suicidasse,  som  deixar  redigida  a  conferencia  para 
o  prelo,  Adelino  das  Neves  rocompO-la,  e  ola  foi  publicada  no  volume 
intitulado  Exposição  districtal  de  Coimbra  em  1884,  Coimbra  1884, 
pp.  117-123. 

7.  Apontamentos  para  a  historia  da  cerâmica  em  Coimbra.  Coimbra 
183G.  Este  opúsculo  nasceu  também  da  exposiçílo  de  que  falei  no 
paragrafo  anterior.  As  observações  de  Adelino  das  Neves  sao 
principalmente  de  caracter  histórico,  o  tCm  importância  não  só  com 
relação  á  cerâmica  coimbrH  do  sec.  xiii  ao  xix,  mas  é.  Etnografia 
geral  portuguesa,  pois  o  autor  menciona  muitos  nomes  de  vasilhas 
e  medidas  do  soe.  xvi. — Valia  a  pena  reproduzir  o  opúsculo,  reto- 
cando o  em  notas. 

8.  Zanzibar.  Coimbra  189G.  Livro  do  viagem,  onde  o  Autor,  no 
que  pertenço  á  Etnografia,  fala  como  se  vivo  em  Zanzibar,  o  traduz 
do  suali  um  conto  popular,  adágios,  e  em  verso  uma  poesia  e  o  co- 
meço do  um  poema.  A  pp.  139-140  alude,  do  passagem,  á  missa 
portuguesa  do  galo  (Natal). 

9.  Gnyana  Britânica:  Demarara.  Coimbra  1896.  Este  trabalho 
contém  14  capítulos ;  em  alguns  d'eles  o  Autor  pôs  observ|pões  de 
Etnografia  local  (superstições,  cantares,  trajos,  etc). 


'  D'cstc  jirologo,  em  quo  ha  uma  parte  quo  não  merece  imprimir- se,  publi- 
carei noutra  ocasião  os  extractos  que  me  parecerem  dignos  d'isso. 


20  Boletim  de  Etnografia 

10.  Senilia.  Pará  1899.  Livrinho  dé  105  páginas :  conjunto  de  re- 
cordações do  passado,  como  o  próprio  Autor  diz  no  prologo.  Consta 
de  apontamentos  biográficos  de  vários  autores,  e  do  artigos  fugitivos. 
Entre  aqueles  autores  contam-se  Camilo  (com  transcrição  de  cartas), 
Joilo  de  Deus,  Guimarães  Fonseca,  etc.  Os  outros  artigos  sSo,  por 
exemplo,  sobro  Coimbra  o  o  descobrimento  da  Madeira. 

Com  excepção  do  n."  5,  por  ser  de  historia  natural,  todos  os  res- 
tantes trabaliios  de  Adelino  das  Neves  patenteiam,  mais  ou  menos, 
inclinações  históricas  ou  etnográficas.  Os  mais  importantes  a  tal  res- 
peito são  os  que  se  intitulam  Musicas  e  Canções  (§  1)  e  Cerâmica 
em  Coimbra  (§  7).  Embora  ambos  feitas  sem  profundeza,  ninguém 
que  trato  da  nossa  literatura  sclentifica  deve  deixar  do  os  lembrar 
com  simpatia. 

Adelino  das  Neves  deixou  manuscrito  o  seguinte,  que  a  Ex."*  Viuva 
me  mostrou: 

11.  «João  de  Devs.  Inauguração  do  seu  retrato  no  Eetiro  Litte- 
rario  Portugucz  do  Kio  do  Janeiro  cm  15  de  Junho  de  1895f .  Breve 
noticia  com  transcriçilo  de  poesias  de  JoSo  de  Deus.  Este  artigo  foi 
reproduzido,  com  algumas  modificações,  nos  Senilia;  aí  diz  Neves, 
na  p.  29,  que  o  escreveu  estando  do  passagem  no  líio,  onde  assis- 
tira á  festa. — Lô-se  neste  artigo  a  respeito  de  Garrett:  «Preparava 
também  os  espirites  para  apreciar  um  género  poético  que  estava 
completamento  desprezado  entro  nós  ou  era  olhado  com  indifferença 
pelos  doutos :  refiro-me  á  poesia  popular,  que  ellc  colligio  e  recons- 
truio  nos  seus  cancioneiros,  salvando  preciosissimas  relíquias  do  pas- 
sado, que  estavam  prestes  a  porder-se  na  tradição  oral:  mais  tarde 
Theophilo  Braga  realça  o  desenvolvo  a  importância  de  semelhantes 
estudos».  Transcrevi  estas  linhas,  por  elas  se  relacionarem  com 
o  estudo  da  poesia  popular,  objecto  principal  do  presente  artigo. 

12.  Um  albura,  em  cujo  começo  se  lê:  «Adelino  das  Neves  e  Mello 
II  No  ermo  \\  poesias».  Grande  parte  do  álbum  está  porém  em  branco: 

apenas  existem  nele  dezasseis  poesias,  uma  d'ela8  datada  de  Outubro 
de  1885  (Granja),  e  outra  de  1888  (Vizela);  algumas  escritas  no 
Buçaco.  Sao  versos  sentimentais,  de  que  dou  aqui  duas  amostras 
(talvez  as  melhores): 

Nnnca  mais  Morta! 

Mal  eu  diria,  Qíic  tristeza,  meu  Deus!  quem  julgaria, 

Feliz  outr'ora,  Ao  vel-a  perpassar  alegremente. 

Que  u'uraa  hora  Que  assim  viesse  a  morte  de  repente 

Acabaria  Para  a  roubar  da  nossa  companhia! . . . 


SoLKTtM  DE  EriíOGEÁF"IA  21 

Essa  alegria,  No  pequenino  leito,  em  que  jazia. 

Essa  ventura,  ,  Parecia  dormir  serenamente; 
De  que  só  dura  Nenhum  terror  de  a  ver  a  alma  sente, 

Na  phantasia  Embora  esteja  inanimada  e  fria. 

Um  leve  esboço  E  ha  de  assim  baixar  á  sepultura. 

Desvanecido!  E  ha  de  em  pó  e  cinza  converter-se 

Hoje  não  posso  TSo  gentil  graça  e  tanta  formosura! . . . 

Tirar  calor  Mas  nem  toda  a  belleza  é  transitória, 

Das  frias  cinzas  Vive  sempre,  e  jamais  pode  esquècer-se 

Do  meu  amor.  A  belleza  do  bem — sopro  de  gloria. 

13.  Terminarei  esta  bibliografia,  dizendo  que  Adelino  das  Neves 
durante  algum  tempo  se  habituou  a  escrever  um  diário  da  sua  vida. 
Segundo  a  Ex."*  Viuva  me  informou,  começou  a  escrevo  lo  em  1889, 
na  volta  de  Zanzibar,  e  forma  volumes  que  abrangem  catorze  anos. 
Li  algumas  paginas,  onde  ha  observações  curiosas  de  acontecimentos 
e  de  pessoas. 


Do  que  fica  exposto  conclue-se  que  as  aptidões  e  os  gostos  de  Ade- 
lino das  Neves  eram  multiformes.  Cultor  da  Etnografia,  do  Direito, 
da  Poesia,  da  História  Natural,  da  História  da  Arte,  funcionário 
publico,  viajante:  que  assunto  houve  para  que  ele  nfto  olliasso?  Até 
era  coleccionador  de  moluscos  terrestres !  Diz  Teixeira  de  Carvalho : 
fDe  seu  avO,  lente  de  Botânica,  herdara  o  S."  Neves  e  Mello  a  paixão 
pelas  scioncias  naturais.  De  seu  pai,  coleccionador  apaixonado  de 
pedras,  livros  e  moveis  raros,  o  culto  da  Arte»  *.  Poderei  acrescentar 
que  á  formatura  cm  Direito  o  levou  a  coavizinliança  da  Universidade, 
e  ao  funcionalismo  esta  mesma  formatura.  Ao  gOsto  da  Etnografia 
ja  acima  mo  referi.  E  o  das  viagens  e  o  da  poesia  d'ondo  lhe  vieram? 
O  das  viagens  por  alóiu-mar  elo  próprio  declara  quo  a  ida  a  França 
muito  influiu  na  sua  vida,  —  além  da  natural  tendência  anibulativa 
ou  peregrinatoria  dos  Portugueses,  pondero  eu*.  Quanto  à  poesia, 
qual  ó  o  espirito  engenhoso  que  nflo  se  sento  poeta  em  Coimbra? 

Assim  fica  explicada  toda  a  génese  psiquica  do  nosso  autor. 

J.  L.  DE  V. 


1  In  /l  Galera,  1915,  n.»  4,  num  artigo  intitulado  «Caraillo  em  Coimbra». 

*  Dissc-me  uma  vez  num  comboio  de  Ucspanha  um  empregado  dos  caminhos 
de  ferro  hespauhoia  «que  nunca  vira  quem  viajasse  tanto  como  os  Portugueses; 
que  oi  encontrava  sempre  I».  —  A  observação  é,  porém,  já  muito  antiga. 


00 


Boletim  de  Etnografia 


Estrelas  de  figos 

A  figueir!^,  com  quanto  exista  por  toda  a  terra  de  Portugal,  nao 
cresce  em  parte  alguma  com  tanta  abundância  como  no  Algarve,  de 
que  constituo  uma  das  riquezas,  e  onde  ao  mesmo  tempo  forma  um 
dos  elementos  mais  curiosos  da  paisagem.  O  povo  canta-a  de  Norte 
a  Sul  em  variadas  canções,  como  pôde  ver-se  no  vol.  ii  da  obra 
de  A.  Tomás  Pires,  n."'  3032-3046.  Pelo  meu  lado  publico  a  seguir 
duas  que  ouvi  a  uma  molber  algarvia: 


Quem  me  dera'  ser  figueira, 
Enxertada  no  valado, 
Do  que  ser  rapaz  solteiro, 
Enipregado  num  soldado  1 


Da  figueira  nasce  o  figo, 
Do  figo  nasce  a  scicncia: 
Do  homem  nasce  a  maldade, 
Da  molher  a  paciência.* 


A  primeira  d'estas  cantigas  julgo-a  inédita;  a  segunda  ó  variante 
dos  n."'  3039-3042   de  Pires,  e  contém  nos  dois  últimos  versos 


Kig.  li 


Fig.  IS 


um  conceito  de  antinomia  entre  o  homem  e  a  mollier,  o  qual  se  ma- 
nifesta noutras  muitas  cantigas,  o  já  aparece  em  folhetos  de  «cordel» 
do  soe.  xviii  ^,  ascendendo  mesmo  aos  debates  da  literatura  medieval*. 


1  Por:  Muis  quisera.  Houve  confusão  com  ov.tros  começos  de  cantigas. 

'  O  povo  pronun('ía  2Mcie7iça  e  scíença. 

'  Por  exemplo:  liondade  das  mulheres  contra  a  malicia  dos  homens,  17. .  (está 
roto  o  exemplar  <le  que  me  sirvo) ;  Malicia  dos  homens  cuntra  a  bondade  das  mu- 
lheres, 17Õ9;  Primeira  carta  apologética  em  favor  e  defensa  das  mulheres,  1759; 
Seyunda  carta,  etc,  mesma  data. 

*  Dos  «debates»,  ou  débats  medievais,  diz  G.  Paris :  «Pusage  en  remontait 
à  1'antiquité  et  avait  sans  doute  été  perpetue  par  les^/ocuíatores»  (La  littérature 
française,  3.*  ed.,  §  110).  Se  aqui  fosse  o  lugar  próprio,  eu  poderia  juntar  outras 
uoticias  literárias  acerca  dos  debate». 


Boletim  de  Etnografia 


23 


Entro  as  diversas  formas  quo  no  Algarve  dao  aos  figos  secos, 
escolho  duas  quo  so  representam  ('/j)  nas  figs.  12  e  13  (desenhos  de 
Saavedra  Machado),  e  se  chamam  estrelas  de  figos.  A  fig.  12  ó 
uma  estrela  de  quatro  pontas  (também  as  ha  de  sois  e  mais),  feita  de 
dois  figos  grandes,  que  se  abrem,  se  retaliiam,  e  se  adaptam  entre  si, 
tendo-se-lhos  pròviamente  cortado  o  pé;  a  13  é  uma  estrela  redon- 
da, feita  de  um  só  figo  (também  com  o  pé  arrancado),  que  se  corta 
em  redor.  Uma  e  outra  estão  ornamentadas  de  amêndoas  descasca- 
das, que  de  mais  a  mais  servem  de  raios  á  2.*  estrela. 

Ao  sabor  material  dos  figos  agrega-se  assim  um  pouco  de  sabor 
espiritual,  proveniente  da  arte  com  que  os  prepararam. 

J.  L.  deV. 


Capote  8c  lenço 

Na  fig.  14  (desenho  de  Saa"vedra  Machado)  representa-so 
uma  molher  de  capote  &  lenço,  segundo  um  modelo  que  existo  no 
Museu  Municipal  de  Beja.  O  capote  &  len- 
ço  oram  outr'ora   trajo  muito  corrente, 
tanto  de  senhoras,  como  de  molheres  do 
povo,  por  todo  o  Portugal;  hoje  estio  em 
decadência,  postoquo  já  por  vezes  os  eu 
observasse  em  Lisboa.  Informam-mo  de 
que  no  Algarve  as  viuvas  trazem  a  extre- 
midade  do   lenço   (preto)   por  baixo   do 
cabeç&o,  e  que  só  as  solteiras  o  trazem 
(branco)  por  cima,   conforme  o  tipo  da 
fig.  14.  No  sec.  XIX  publicaram-se  várias 
colecções   de  estampas   que  representam 
trajes  e  tipos  populares,   das   quais  deu 
uma  útil  resenha  o  S."  H.  Ferreira  Lima 
num  opúsculo  intitulado  Costumes  portu- 
gueses, Lisboa  1917.  Nao  raro  aparecem 
ájvenda  nos  alfarrabistas  estampas  soltas; 
possuo  muitas  aí  adquiridas,  ou  oferecidas 
por  amigos,  e  entro  elas  as  seguintes:  mu- 
lher de  capote'e  lenço,  do  litografo  Mac- 
phail,  que  exercia  a  sua  profissão  por  1840 
o  tantos;  mulher  de  capote  e  lenço  em  Lisboa,  do  litografo  Falhares 
(1.»  colecção,  n."  43:  cfr.  Ferreira  Lima,  p.  25).  Ambas  as  litografias 


Fig.  U 


24 


Boletim  de  KriíOGltAfíA 


estilo  coloridas;  os  capotes,  de  cOr  escura,  são  de  cabeção  e  gola, 
e  cobrem  o  corpo  ató  os  pés,  vendo-sc  apenas  om  baixo  uma  tira  do 
vestido  azul,  num,  e  uma  levo  nesga  de  vestido  vermelho,  noutro; 
um  dos  lenços  forma  ponta  atrás,  que  fic;^  no  ar;  o  outro  lenço  vai 
cair  para  as  costas;  ambos  são  brancos,  e  atam-so  debaixo  da  barba. 

J.  L.  DE  V. 


Relógios  de  sol 

Nas  seguintes  figuras  temos  representados  em  pequeníssima  es- 
cala, relógios  de  sol,  do  pedra: 


Pig.  15 


Fig.  17 


Pig.  16 


1)  O  primeiro  (fig.  15),  encimado  pela  cabeça,  como  penso,  de  um 
«Mouro»,  existo  na  EuaVerdo,  em  S.  Gregório  (Melgaço),  perto  do 
rio  Trancoso,  e  da  i)onto  internacional,  fixo  sobre  a  parto  anterior 
de  um  caniço  ou  «ospigueiro» ; 

2)  O  segundo  (fig.  16),  com  a  forma  de  busto,  a  que  o  povo  chama 
de  facto  Jlloia-o  (como  lá  so  IG),  vô-so  na  Casa  do  Pego,  do  S."'  Ma- 
noel Gonçalves  Ferreira,  em  Eates,  pousado  sobre  uma  coluna  (no 
vértice  do  «capacete»  do  Mouro  ergue-se  uma  cruz  que  atravessa 
um  galo,  tudo  de  ferro:  catavento); 

3)  O  terceiro  (fig.  17),  om  quo  se  lê  a  data  de  «1790»,  e  a  palavra 
Castro,  quo  creio  significa  o  apelido  do  qaom  mandoa  fazer  a  obra, 
está  também  sobre  um  ospigueiro,  no  Minho,  em  local  porém  de  que 
ignoro  o  nome. 

A  fig.  15  assenta  em  um  esboço  feito  por  um  curioso;  as  figs.  16 
o  17  cm  desenhos  do  S."  A.  Cruz,  da  Póvoa  de  Varzim. 


BoLIÍTiM  ttE  ÊTÍÍOClRÁftA 


â6 


Acerca  de  relógios  de  sol,  pertencentes  ao  Museu  Etnológico, 
vid.  a  Historia  d'este,  p.  240;  e  acerca  de  relógios  de  sol  romanos 
e  gregos  vid.  De  Campolide  a  Melrose,  p.  15. 

J.  L.  DE  V. 


Carrancas  fontanárias 


Nao  só  o  uso  do  carrancas  fontanárias  ora  vulgar  na  antiguidade 
clássica,  mas  d'ole  temos  um  exemplo  entre  nós,  da  época  romana: 
vid.  Religiões  da  Lusitânia,  m,  247  (carranca  do  bronze,  achada  no 
Minho  pelo  D."'  Alves  Pereira,  e  hoje  pertencente  ao  Museu  Etnoló- 
gico). Como  muitos  outros  usos  antigos,  este  perpetuou-se  até  a  actua- 
lidade. 

Na  fig.  18  reproduz-se  o  desenho  do  uma  fonte  granítica  de  Vila 
do  Conde,  feito  pelo  S."^  A.  Cruz,  da  Póvoa  do  Varzim.  Esta  fonto 
é  do  caracter  monumental,  com 
aspecto  de  fachada  de  edifício, 
em  cuja  dianteira,  em  baixo, 
um  tanque  recebe  a  ágoa  que 
costuma  brotar  do  duas  car- 
rancas barbadas,  postas  a  par, 
mas  afastadas  uma  da  outra. 
A  fachada  está  ladeada  de  pi- 


Kij.  1»  Vlff.  18 

lastras,  em  cada  uma  das  quais  se  levanta  uma  pirâmide.  No  frontão 
pousa  um  vaso  de  pedra  (a  (juo  noutros  do  mesmo  género  corresponde 
por  vezes  uma  cruz),  o  no  tímpano  vG-se  um  navio  —  brasão  do  armas 
da  vila,  o  (|ue  indica  que  foi  a  Camará  Municipal  quem  mandou  cons- 
truir a  fonto. 

Nesta  fonte  há,  como  disse,   duas  carrancas.  Em  fontes  mais 
modestas  podo  existir  só  uma,  como,  por  exemplo,  numa  fonto  de 


26 


Boletim  de  Etxoguaku 


S.  Romilo  (Seia),  chamada  ão  Caraças  (ou  do  caraça?)',  vid.  fig.  19, 
soguiido  um  desenho  tomado  m  loco  por  um  curioso.  Nesta  caraça  ou 
carranca,  que  6  do  granito,  a  ágoa  sai  por  um  cachimbo  metálico,  posto 
despropositadamente,  pois  que  por  um  cachimbo  só  deve  sair  fumo. 

J.  L.  DE  V. 


Aldravas  de  ferro 

Nas  figs.  20  a  29  (desenhos  do  S."  Abel  Viana,  Professor 
oficial  de  Fradolos,  concelho  de  Famalicão)  temos  aldravas,  de  ferro, 


Fig.  80 


4* 
ft 

yi 

CD 
CO 

CD 

Fig.  íl 


■Cià?^ 


IDÍ 


de  bater  á  porta.  Muitas  d'olas  ostôntam  como  ornato  superior  uma 
cruz,   que  ó  originariamente  destinada,  como  penso,  a  evitar  que 


Flg.  26 


Kit'.  27 


Fig.  28 


os  espiritos  maus  outrem  em  casa  pela  entrada  natural  ou  porta.  Cruz 
análoga  se  vê  nos  espelhos  das  fechaduras,  pela  mesma  razão,  como 
já  expliquei  na  Hist.  do  Museu  Etnológico,  p.  200,  nota  G. 


J.  L.  DE  V, 


BOLKTIM   DE  EtNOGKAPU 


27 


Vasilhas  de  barro 

Nas  figs.  3(J  a  32  represontam-se  trcs  vasilhas  do  barro: 


pig.so 


rig.  31 


ng.  32 


Um  cântaro,  de  0",55  de  altura;  . 

Um  pote,  do  O™, 42  de  altura,  e  de  0",29  do  diâmetro  na  boca ; 

Uma  infusa,  do  0™,39  de  altura. 

Desenhos  de  Saavedra  Machado,  feitos  do  natural  em  Faro 

(^'e"^«)-  J.  L.  DE  V. 


Habitação 
I 


A  fig.  33  representa  uma  casa  de  Senhorim  (Nelas),  segundo  um 
desenho  de  Saavedra  Machado,  feito  por  uma  fotografia  do  Ful- 


IW))  [íCWÍl  '(wi 


rig.  M 


Flg.  SS 


gencio   Rodrigues  Pereira,   falecido   Preparador   do   Museu 
Etnológico. 


BOLETIJt  DÊ  Ê  rKOGRAí"IA 


Sob  o  aspecto  etnográfico  a  casa  só  tom  notável  a  varanda  de 
madeira:  jjara  ola  dá  um  quarto  de  dormiV,  de  quo  se  vô  um  janêlo. 
As  paredes  Scão  do  grandes  lajes  do  granito,  rocha  própria  da  região. 

'   II 

Por  todo  o  Portugal  as  casas  dos  pobres  silo  térreas.  No  Algar- 
ve, poróm,  e  no  Aleutojo,  nas  aldeias,  tanto  po- 
bres como  ricos  forram  geralmente  o  rés-do- 
ckao  de  formigão  ou  de  tijolo,  artisticamente 
disposto.  Quando  colocam  o  formigão  (ainda 
fresco),  assentam  em  cima  capachos,  e  batom- 
nos  com  malhos  de  madeira  (i"edondos),  ficando 


X 


ã 


Pig.  35 

impressas  no  chão  as  voltas  dos  capachos,  como  se  vê  na  fig.  34. 

III 

Na  fig.  35  mostra-so  a  frontaria  do  um  forno  de  Cacela  (Algarve). 
No  Sul  ó  vulgar  estarem  os  fornos  fora  da  casa,  mas  junto  ou  perto 
d'ela;  umas  vezes  a  bOca  d'estos  fica  tambóm  para  fora,  outras  para 
dentro  da  casa. 

IV 

Muitas  vezes  á  entrada  da  habitação  lia  um  recinto  descoberto, 
mas  murado,  que  como  que  faz  corpo  com  a  casa,  recinto  quo  tem 

vários  nomos  conforme  as  provín- 
cias: terreiro,  pátio,  otc.  Na 'fig.  3G 
(desenho  de  Gruilherme  Gameiro, 
feito  por  um  apontamento  de  um 
curioso)  mostra-se  um  d'estes  recin- 
tos, de  uma  casa  da  Granja  (Baião), 
certamente  do  sec.  xviii:  tom  por- 
tão largo,  com  cruz  e  pirâmides  na 
cornija,  o  parreira  na  fronte.  A  cruz 
foi  manifestamente  posta  para  afu- 
gentar da  entrada  os  maus  espíri- 
tos. Houve  aqui  o  mesmo  intuito  da 
cruz  dos  batentes  figurados  a  p.  26. 
N-0  ArcJi.  Port.,  xxii,  48,  publiquei 
um  portal  de  Montalegre  análogo  ao 
da  Granja. — As  casas  de  que  se  trata 
representam,  de  ordinário,  tal  ou  qual  nobreza  ou  limpeza. 


fig.  ss 


J.  L.  DE  V. 


Boletim  de  Etnografia 


20 


Çorcos  de  Aveiro 

Kcproduzem-se  nas  figuras  seguintes  vários  tij)os  de  barcos  usados 
na  costa  de  Aveiro; 


lig.  S? 


^^    ÁÂ 

1 

IL 

! 

w-^ 

I'IS.  38 


Fig.  37,  barco  ao  entrar  no  mar; 
Fig.  38,  barcos  na  Costa  Nova; 


30 


Boletim  de  Etnografia 


■Fig.  39,  barco  saleiro; 
Fig.  40,  bateira  para  pesca  de  sardinha  e  outro  peixe. 


Fig.  39 


Fig.  40 

Todas  as  figuras  assentam  em  fotografias  quo  um  amigo  me  ofe- 
receu. 

J.  L.  DE  V. 


Boletim  de  Etnografia 


31 


Çôlo^antropotnorílco 


O  boneco  do  pXo  doce,  representado  na  fíg.  41,  segundo  desenho 
do  S.°'  Francisco  Valença,  é  do  mesmo  tipo  dos  de  que  falei  na 
Jlist.  do  Mit.ieu,  p.  203  e  nota  (fig.  104  da 
p.  385) :  e  vid.  O  Arch.  Fort.,  xix,  395-396, 
o  a  Jíev.  Lusit.,  vi ,  240.  Paos  d'estes  vondcm-se 
vulgarmente  em  Lisboa,  nas  padarias,  etc. — 
O  costume  existo  noutros  pontos  do  Portugal. 

Tauibcm  na  Boira  comem  no  dia  do  Todos 
os  Santos  (1  do  Novembro)  uqs  pSes  estreitos 
o  compridos,  do  trigo,  chamados  santoios  (plu- 
ral Aomnituro,  ou  sanctoro,  dosanctoruiii),  — vid. 
Ensaios  EtJinof/r.,  ii,  18C — ,  que  sao,  quanto 
a  mim,  estilizarão  do  figuras  zoomorficas  ou 
auti'opomorficas,  o  representam  provavelmente 
vestígios  do  sacrificios  (aos  mortos?  pois  no 
dia  2  comemora  a  Igreja  os  fieis  defuntos:  cf. 
Rev.  Lusit.,  VI,  24G-247).  Nao  faltam  entro  nós 
curiosas  formas  de  pies,  cada  um  com  sou  nomo 
especial:  cacete,  violéte,  bolo  podre  oa  jyào podre 
(por  oposiç.lo  a  simples  h(>lo  ou  pão  de  triíjo),  semea,  triga-milha, 
bolo  de  milho,  cancra,  brendeiro  (de  merendeira),  conforme  a  espocie 
de  ceroal  ou  a  maneira  do  preparo. 

J.  L.  DE  V. 


ng.>i 


«Çonccas»  de  chaminés  do  Sul 

Quando  nas  Relifjiòes  da  Lusit.,  iii,  593  sgs.,  me  ocupei  de  al- 
guns vcstigioB  do  paganismo  existentes  entro  nós,  falei  do  costume 


Flg.  4Í  ilg-  «  Flg.  U 

de  fixar  na  parede  da  chaminé,  junto  á  lareira,  uma  figura  chamada 
hoveca  em  uns  sítios,  frade  ou  semprS^-noixa  noutros,  etc,  e  dei  de- 
senhos a  pp.  605-606  (figuras  humanas,  e  estilizaçOes).  Este  costume, 


32 


Boletim  de  Etnografia 


que  suponho  ascende  ab  paganismo,  tenho-o  observado  muitas  vezes 
no  Alentejo,  no  Algarve  o  na  Estremaditra  Transtagana;  na  Cista- 
gana  só  o  observei,  que  mo  lembre,  uma  vez  (concelho  de  Cadaval); 
nas  outras  províncias  creio  que  nunca  o  observei. 

Nas  figs.  42  a  46  reproduzem-se /rade«  de  cozinhas  de  S.  Geraldo 
(Montemór-o-Novo),  do  «monte»  da  herdade  da  Comenda  da  Igreja  (no 
mesmo  concelho),  o  do  «monte»  da  herdade  do  Berlongo  (Alcácer 
do  Sal);  uma  boneca  de  Machedo  (Évora,  1898);  uma  aempre-noiva  de 


rig.  45  PIg.  4G  Fig.  47 

Cacela  (Algarve):  tudo  feito  de  tijolo.  Na  fig.  46  reproduz-se  uma 
sempre-iioiva,  de  Cacela,  ou  de  perto,  feita  do  pedra,  a  primeira  que  vi 
d'esto  material.  A  última  tem  as  seguintes  dimensões :  O'", 64  de  altura, 
e  O"", 40  de  largura  na  base.  Por  aqui  se  avaliam  plus  minu§  as 


dimensões  das  outras. 


J.  L.  DE  V. 


«Cegonha»  de  Grândola 

Chama-so  em  algumas  partes  cegonha  a  um  engenho  de  tirar  ágoa 
de  um  poço,  engenho  e  nome  já  provindos  de  épocas  muito  remotas, 

como    mostrei  n-0 
^^  Arch.  Port.,  xxii, 

9-11.  Na  fig.  48 
reproduz-se  um  de- 
senho de  Saavc- 
dra  Machado, 
feito  por  um  apon- 
tamento do  falecido 
Guilherme  Ga- 
meiro, que  o  to- 
m»u  em  Grândola, 
Fig.  48  f  no  qual  desenho  se 

vê  um  homem  quo  tira  ágoa  d'um  poço  por  intermédio  duma  cegonha. 


Boletim  m:  Etnografia 


33 


So  »  palavra  cegoiilia,  na  forma  cicoiiiaj  asctíiide,  pelo  laouos, 
aos  secs.  vi-vii  da  ora  cristã;  se  os  líoinanos  usaram  (.sngenlios  como 
este:  o  que  tudo  consta  do  citado  artigo  à-U  Anl/eologo:  a  forma  do 
poço  existia  já  também  entre  nós  ha  opoca  romana  (O  Ardi.  1'ort., 
wiii,  130).  Forma  de  uui  jxttea.t  ou  «poço»  romano  temo-lo,  por 
oxomplo,  cm  Ricli,  DUt.  tlet  (tntttj,  s.  v.  «rjir//ilfn-tí). 

J.  L.  HE  V. 


Esfolhador 

As  liráctiMs  ([ui''  envolvom  a  espiga  da  m;içaro<-a  do  niilho  (Zea 
tin  dos  botânicos)  tf;m  vários  nomes,  cojiformo  as  terras:  carepa 
mais  interna),  canu-ia,  folhelho,  folhato,  eapHo,  etc.  A  oporaçSo  de 


Yi-A-  V' 


as  rasgar,  p;ira  extrair  a  "'Sitiga,  cliama-se,  taiubom  conforme  as  terras, 
es  folhada  {dexl'olhu(hi\,  ih-.^^ninSmda  (e-iiaininadít),  de.'«a.ica,  escapula, 


34  Boletim  dk  Etnografia 

e  constitue  por  vezes  grande  folguedo,  pois  sâo  rapazes  e  raparigas 
quem,  juntos,  a  faz.  A  alugria  <[ue  então  reina  alude,  entre  outras, 
uma  canção  quo  ouvi  no  Alto-Miiilio: 


Tornara  eu  que  viesse 
O  tempo  que  ha-de  vir: 


O  tciiq»!  dita  eê/uUi(td(.il, 
1'urn  m'«ii  luteoe^rtir ! 


Nâo  pretendo  porém  agora  descrever  uma  osfoUiada,  só  quero 
falar  do  um  instrumento  artístico  que  serve  para  rasgar  o  folhelho,  e 
que  se  mostra  do  tanianlui  naturiJ  na  figura  anoxa':  é  um  poutfiro 
de  liuxo,  torneado.  Podemos  considerá-lo  formado  de  cabo  e  puuta: 
as  saliências  do  cabo  e  a  i>arte  superior  da  ponta  estão  ornados  de 
gravuras  lineares,  quo  formam  uma  espécie  do  zigue-zagues. 

liste  instrumento  deuomiiia-se  exfolhador.  Em  vez  d'ele  sorve 
também  uiu  simples  prego,  ou  as  ]ii-óprias  uidias  de  quem  esfolha. 
O  esfolhador  traz  junto  um  cordão,  que  se  ata  numa  das  rcintrati- 
cias  do  cabo;  nele  se  enfia  o  punho,  não  só  [lara  o  instrumento  an- 
dar seguro,  mas  para  ficar  pendente,  se  a  pessoa  que  o  maneja  pre- 
cisa do  interromper  o  serviyo  quo  está  fazendo. 

O  exemplar  que  serviu  para  o  desonlio  foi  oferecido,  s(>giindo  um 
costumo  vulgar,  por  um  rapaz  á  sua  namorada.  Provém  do  Alto- 
Jtiulio  (Coura),  o  pertenço  agora  ao  Museu  l'>tiiologico. 

.T.   I..  DE  V. 


Espécimes  de  arte  popular  alentejana 


Os  objectos  representados  nas  figs.  50  e  51,  que  ficaram  de- 
masiado resumidos,  pois  o  primeiro  tem  O",  19  de  comprimento, 
e  o  segundo  0'",09,  são  de  madeira,  o  denominam-se  wvinoít  de  ffes- 
camisar  ou  desencamisar  as  maçarocas  ou  espigas  do  milho.  Usam- 
«e  no  Alentejo.  Ao  acto  de  descamisar  chama-se  descamUnda,  que 
tem  aqui  a  mesma  significação  que  noutras  regiões  enfolhàda.  Aml>os 
os  objectos  estão  artisticamente  lavrados;  o  primeiro  deixa  vor  no 
cabo  um  apêndice  de  argolas  maciças,  que  permito  ao  objecto  andar 
pendurado." — A  palavra  -ioi-ino,  ainda  não  arquivada,  que  ou  saiba, 


1  Desenho  de  Manoel  António  M a deir»,  Empregado  do  Mujeu  Etno- 
lógico. 


Boletim  de  Etnografia 


35 


em  dicionários,  tom  tamboiíi  a  forma  sevhiú,  quo  oavi  em  Poute  dn 
Sõr:  representa  o  masculino  do  xovinu,  palavra  igualmente  aí  usada 
com  a  mesma  aigniíicaçao. 

Sooiíifi  é  aportuguesamento  do  hesp.  nohina  «clavo  de  madera», 
i|uo  tem  origem  no  lat.  xupinm,  3:  vid.  Meyor-Lubke,  Et.  Wb.,  §  8462. 
Outra  significação  do  xorina,  mais  jtroxinia  da  hospauhola:  panzito 
aguçado  ({ue  serve  para  pregar  a  cortiça  (Orandola)      o,  por  oxtenfifio 


ti» 


Pi».  .V) 


^■l^  .ii 


Fia.  33 


do  aigiiilicado,  para  espicaçar  os  burros  (ibid.  I;  tem  õ  a  10  centímetros 
li^  comprimento.  V'id.  outras  acepções  nos  dicionários.  Em  Trás-os- 
Montes:  goiinlam  «dois  pregos  do  pau  (|ue  servem  jtara  segurar  os 
atafais  á  albarda»  [llfv.  í.uxit.,  v,  10(3,  artigo  de  A.  Morenoj.  Sorinha, 
j)or  causa  do  n/t,  pôde  ter  vindo  directamente  do  lat.  supina,  som 
intermédio  do  hespanhol. 

II 

<  >s  objectos  ropresontados  nas  ligs.  52  e  53  são  corrente*  ou  cndeias 
do  relógio,  de  madeira,  maciças;  terminam  em  bolotas,  ornamentação 
fro<iiiento  na  nossa  arte  popular,  jirincipalmento  na  do  Alentejo,  como 
região  abundante  de  arvores  ([ue  as  produzem.  Imitam  as  correntes 
on  cadmm  metálicas. 


Estes  quatro  objectos  foram  feitos  por  pastores. 


J.  L.  DE  V. 


36 


Boletim  de  Etnografia 


Santo  António  numa  mercearia 

Na  Beira  c  no  Norte,  (íomo  provinciíis  (nidy  a  religião  possuo 

mais  raizes  quo  nas  tio  Sul,  ('•  costume  nas  lojas  fio  venda  ter  na 

parede  fronteira  it  porta  da  rua 
um  nicho  do  madeira  com  a 
imagem  de  Santo  António,  ás 
vezes  ladeada  di;  jarrinhas  com 
íiores.  Hoje  as  crenças  vâo-se 
apagando  on  modificando,  mas 
o«te  costume  observa-se  ainda 
não  raramente.  A  ele  se  fez 
referencia  nas  1'dujiòes  da  Lu- 
dtania,  iii,  595-59(),  onde  foi 
considerado  como  vestígio  pa- 
gilo,  pois  os  negociantes  ro- 
manos veneravam  Mercúrio,  o 
Jiavia  em  Bracara  Augusta  um 
Génio  do  mercado,  conhecido 
por  uma  inscrição  gravada 
num  cipo. 

Já  se  entende  que  tanto  o 
Génio  6  Mercúrio,  como  Santo 

António,   representavam  ou  representam  papel  de  protectores  do 

comércio. 

Dá-se  na  fig.  54,  segundo   um  desenho  do  S.'""  A.  (Jruz,  da 

Póvoa  de  Varzim,  um  aspecto  de  uma  mercearia  d'aquela  vila:  lá  está 

em  cima  o  nicho  de  Santo  António. 

.1.  L.  DE  Y. 


Fig.  54 


Polvorinho  artistico 

A  caça  tem  sido  entre  nós,  desde  sempre,  e  quanto  o  podemos 
saber  por  documentos  medievais,  fonte  de  subsistência,  e  fonte  de 
divertimento.  Já  vl-0  Arch.  Port.,  xxr,  170,  juntei  algumae  notas, 
sobretudo  bibliográficas,  a  esto  respeito.  O  mais  que  eu  poderia, 
dizer  deixo-o  para  a  minha  Ktnoijrdfia.  Aqui  só  quero  notar  que 
.se  hoje  nSo  é  muito  grande  o  mimero  das  pessoas  (jue  vivem 
exclusi\  amente  da  caça,  ou  alimeiítando-so  d'ela,  ou  fazendo  d"ela 
industria,  ó  infinitoó  das  (|uc  st-  divertem  caçando.  E  como  o  homem 


Boletim  de  Etnografia 


37 


nos  seus  instrumentos  de  trabalho  gosta  de  pôr  ás  vezes  um  pouco 
lie  arte,  acontece  (pie  entre  os  próprios  caçadores  da  aldeia  existem 
aprestos  venatorios  que  se  tornam  notáveis  por  sua  beleza  estética. 

Ilis,  por  exemplo,  na  íigura  adjunta ',  um  polvorinho^u^oZcanji/ío 
alentejano,  feito  de  chifre  de  boi,  no  qual  polvorinho  dois  artistas  gra- 
varam os  mais  variados  desenhos. 

< )  polvorinho,  que  tem  de  comprimento  0'",32,  está  naturalmente 
ijividido  em  duas  zonas  por  uma  faixa  de  0"',12  de*}argura,  enfeitada 
(If  plumas  dispostas  oblíqua  e  paralelamente.  Ambas  as  zonas  con- 
tiiu  desenhos,  mas  a  de  cima  só  em  parte,  e  os  desenhos  silo  aí  me- 
I  amento  de  fantasia.  Na  zona  infe- 
rior, a  par  de  desenhos  simétricos, 
mas  de  fantasia,  isto  é,  difíceis  de 
•  li-liiiir  (■  de  precisar,  ha  outros  em 
(|ii(j  SC  descobrem  temas  muito  que- 
ridos da  arte  popul.'ir:  florões,  ani- 
mais de  diferentes  classes  (mami- 
teros,  aves,  peixes,  rtjptis),  astros, 
uma  cruz  sobro  uma  pcanha,  uma 
viola,  uma  mullu-r  com  um  ramo  na 
inao.  A  estampa  reproduz  uma  parte 
"l'ostes  desoniios:  o  «sol»,  represen- 
tado por  uma  rechonchuda  cara  cercada  de  raios  o  posta  dentro  d'um 
rírculo;  por  baixo  d'ele,  sucessivamente:  uma  data  («189..»,  que 
<levia  ser  «1892»,  como  consta  do  lado  oposto:  vid.  infra);  o  reverso 
duma  moeda  portuguesa  (acaso  uma  «pega»);  vários  desenhos  cordi- 
formes,  um  d'eIos  acompanhado  da  respectiva  «chave».  Ao  lado  do 
«sol»  vô-se  um  Sereia,  disposta  ao  invés.  Noutra  parte  do  polvo- 
rinho ha  uma  segunda  Sereia,  maior  que  a  presente,  Jia  posição  de 
quem  vai  nadando.  A  alguns  dos  referidos  tomas. — flores,  moedas, 
roraçao  &  chavo,  cruz  — ,  me  referi  noutros  lugares:  vid.  Etnof/rafa 
ArtiMira,  i,  6-10;  O  ArrJi.  Port.,  xix,  309;  De  CampolirJe  a  Mel- 
rone,  ]).  90,  nota.  Do  coração  &  chavo,  como  emblemas  populares, 
fala  também  o  D."^  Cláudio  Masto  na  Ltim,  i,  92  sgs.  e  124  sgs. 
A  Sereia  é  uma  das  poucas  entidades  da  Mitologia  popular  portu- 
guesa cujo  nome,  como  creio,  a  antiguidade  nos  legou-:  o  povo  nSo 


1  Desunho  de  S  ;i  a  v  i; .  1  r  a  M  a  i-  li  a  il  o. 

'  fif. :  Relif/iõen  da    Lusitanin,   iii,  594,  omlo  cito  um  ini|iort,!iiitc'  trabailio 
'lo  Ailolfo  ('iKilliij;  o  Ilígt.  do  Miueu  Elnoliif/ii:o,  p.  2ÍÍ.3. 


38  Boletim  dk  ETNoauAFíA 

só  a  canta  em  caiiçi^es ',  seaSo  que  a  representa  em  edifícios  e  objec- 
tos-, e  em  brinquedos''.  Para  melhor  se  compreender  como  é  que 
a  mente  popular  concebe  essa  entidade,  n^produz-se  na  fig.  55  outro 
desenho  de  Saavedra,  (jue  representa  um  assobio  de  barro  colorido, 
dos  qiie,  pelas  festas  solsticiais  de  S.  António,  S.  João  e  S.  Pedro, 
se  vendem  em  Lisboa  ao  ra|)a/Io,  na  Praça  da  Figueira:  o  fabri- 
cante do  assobio  figurou  aqui  também  uma  Sereia  (metade  mulher 
&  metade  poix(^,  que  se  mostra  em  toda  a  plenitude  das  suas 
formas.  O  assobio  pertence  ao  Museu  Etnológico:  vid.  Historia 
do  mesmo,  p.  23.'?*.  De  outros  temas  do  polvorinho  nSo  preciso  de 
falar  em  especial. 

Contigua  á  faixa  que  divide  o  polvorinho  em  zonas,  e  inferior- 
mente a  ela,  ha  os  seguintes  dizeres,  em  duas  linhas,  de  diferente 
tamanho:  juaumanokl  1892  dia9  |j  jacituakceí)  n.  As  letras  que 
dizem  «dia9«  significarão  «dias»,  estando  *9»  por  tS».  Os  nomes 
«JoJlo  Manuel»  e  «Jacinto  Arcenio  (-=  Arsénio)  Diasw''  devem  desi- 
gnar as  pessoas  que  enfeitaram  o  polvorinho  (certamente  pastores i, 
e  «1892»  a  data  da  conclus&o.  É  a  primeira  vez  que  me  ocorre  um 
trabalho  d'estes,  devido  a  dois  artistas. 

J.   L.  DE  V. 


1  Viil. :  Tmãirõe»  yvyi.  ilc  PitIiii/iiI,  §^  185  c  H56;  >■  Pires,  Panlns  popnhiret, 
t.  1  (1892),  11.  249  sgs. 

'^  Por  i'xcin|ilc):  imma  c:isa  ilo  Porto  (viil.  Tmd.  pnp.  de  1'ortugnl,  jí  cit.^ 
l  356);  em  tapetes  (cfr.  O  Ai-ch.  I'orl.,  xi,  189:  artijyo  ile  D.  .Tose  Pi-ssaolia,  com 
uma  estainjia))  em  ornatos  de  igrejas;  em  fontes. 

'  Costuma  o  povo  ter  um  papel  eom  várias  figuras,  que  se  (lol)ra  niul  tiplanientc, 
de  modo  que  com  parte  d'»mas  figuras  se  coiopleteni  outras,  sendo  rada  figura 
acompanhada  d'uma  quadra.  Possuo  alguns  dVste?  papeis  em  que  se  vê,  por 
exemplo,  uma  Sereia,  o  Sol  &  a  Lua,  (Jristo  erucifiradn,  os  martirios,  um  coração, 
uma  chavo,  uma  «agulha  de  marear»,  ura  vaso  com  um  ramo,  um  castelo, uma  viola, 
um  navio,  uma  mullicr.  Estes  papeis  chamam-se  curtas,  e  por  vezes  earttu  da 
Sereia,  e  trocam-se  afectuosamente  entre  namorados  e  pessoas  amigas.  Conheço 
o  coítunie  ]ior  todo  o  Portugal;  cie  contudo  tem  maiiifestaiiiente  origem  culta. 
As  mais  antigas  cartas  que  possuo  silo  dos  meados  ilo  sec-  xix,  mas  sei  de  uma, 
que  nâo  possuo,  a  qual  será  dos  conu^ços  d'csse  século,  seuilo  dos  fins  do  xvai. 
Ás  vezes  as  figuras  de  que  falo  estão  desenhadas  numa  carta  propriamente  dita: 
tenho  uma  carta  assim.  X  cartas  ile  araor  com  (/«líiimiii/io.",  como  coração  asse- 
teado,  coração  levado  em  unhas  de  lião,  se  refere  Jorge  Ferreira  (sec.  xvi)  na 
Eufy-osina,  III,  ii  (ed.  do  Farinha,  p.  181).  —  Acerca  do  emldema  do  Sol  Jb  da  Lua 
vid.  o  que  escrevi  n-0  Arch.  Port.,  xxii,  137-138. 

*  Cf.  também  Rev.  Lusit.,  iii,  82  sgs.  (artigo  do  D."  Ferraz  de  Macedo). 

*  Pelo  exame  da  disposição  das  palavras  no  polvorinho  é  que  digo  que  Dias 
pertence  ao  segundo  nome,  e  não,  eimio  ao  repente  ])arece.  ao  primeiro. 

4 


Boletim  de  Etnografia 


39 


Chumitiés  da  Estremadura  e  Algarve 

Por   mais   de  uma  vez  tealio  falado  de  chaminés  arlisticas  do 
Alentejo  e  Algarve:  vid.  Hist.  do  Museu  Etnoloyicu,  y.  206,  onde 


Klg.  5«  •  Pisr.  M 

faço  várias  referencias  bibliográficas;  na  mesma  obra,  pp.  385  e  387, 
|)iil)liquei  desenhos  du  algumas. 

Na  fig.  ÕT)  pul)lico  o  de  ama  do  Cadaval  (Estremadura),  feito  polo 
S".  Avelino  Pereira  em  1918;  o  nas  figs.  57  e  58  desenhos  de 
chaminés  de  Cacela  (Algarve),  feitos  por  Saavedra  Machado, 
segundo  apontamentos  de  um  curioso. 

J.  L.  DB  V. 


Costumes  e  panoramas  do  Alentejo 

As  estampas  ii  e  iJi,  que  assentam  em  fotografias  que  de  Safira 
se  dignou  enviar-me  o  Rx.""  Conde  do  mesmo  titulo,  tiradas  por 
um  amador,  representam  o  seguinte: 

Est.  II. —  Uma  monda  de  utirrfaço,  nnmíi  folha  de  montado  d' azinho: 
as  azinheiras  lá  se  erguem  na  parte  posterior  do  (juadro,  torcidas 
e  esguodelhadas.  As  raparigas  da  mqnda  chamam-se  mondadeira.'* 
(termo  também  aplicado  ás  <|ne  mondam  o  trigo):  no  seu  trajo  avulta 
o  avental,  de  que  fazem  grande  uso  neste  serviço.  A  direita  da  fila 
das  mondadeiras  vG-se  o  manageiro,  que  vinha  trazer  ás  raparigas 
ágoa  numa  bilha,  e  ficou  parado,  como  elas,  a  olhar  para  o  fotografo, 


40 


Boletim  1)k  IÍtnogkafja 


que  so  entende  estaca  adianto;  no  traja  do  managoiro  note-se  o  bar- 
rcte,  cuja  ponta  so  dobra  para  o  lado,  c  o  pelico,  (\ao  nesta  ]);irte  do 
Alentejo  se  chama  também  camarra. 

'  Est.  III.  —  Uma  campina,  estendida  adianto  dum  compacto  e  ra- 
malhudo montiido  de.  .sôhru,  e  separada  d'ele  por  um  regato,  ein  cujas 
margens  ha  choupos,  e  que  corro  num  valeziniio  ontre  estes  e  o  ujou- 
tado,  —  valezinho  próprio  p;ira  cultura  <le  milho. 

J.  ]..  ueV. 


Espécime  português  de  raça  negra 


N-O  Arclieoloijo,  i,  67,  falei  dos  MulatoH  de  Alcácer  do  Sal,  pro- 
venientes de  Africa,  nos  quais  espc^ciffquoi  os  seguintes  caracteres, 
alóm  da  côr:  cabelo  encarapinhado,  forma  platirrinica  do  nariz.  Na 

ocasifto  em  que  escrevi  o  artigo  (189;")) 
informaram -me  de  que  em  alguns  se  sentia 
•  linda  o  cheiro  especial  cliamado  catinyu. 
Ultimamente  tive  ocasião  de  ver  alguns 
exemplares  dos  mesmos  Jlulatos;  ])or  eu 
nâo  me  dedicar  espetriahnonte  á  Antropo* 
logia,  jijío  fiz  as  observaeOes  que  um  antro- 
pólogo faria,  mas  notei  em  uma  molher 
prognatismo  nun'to  manifesto.  Eles  pro- 
|ii-io8  dizem  que  sRo  utravessadirox,  isto  é, 
«mestiços»,  am  sentido  geral'.  A  côr 
\aria:  ha  individues  que  são,  por  assim 
dizer,  pálidos  ou  morenos,  e  outros  muito 
foscos,  quasi  pretos.  A  titulo  de  curio- 
sidade reproduzo  na  hg.  50  o  retrato  de  um  individuo  do  S.  llomão 
do  Sado,  pertencente  á  raça  de  (i\ie  estou  falando:  é  amulatado, 
com  as  níãos  mais  brancas  na  palma,  que  no  dorso,  cabelo  e  barba 
iim  pouco  encarapinhados,  nariz  largo.  Os  vizinhos  chamavam  d'au- 
tes  a  lista  gente  Pretos  do  Sado  ou  Pretos  de  S.  Eomâo,  porque 
havia  lá  realmente  muitos  Pretos.  «S.  Romão  era  uma  ilha  de  Pre- 
tos», ouvi  referir  a  Víirios  Mulatos;  ou:  «algum  tempo  havia  lá  muito 
> 

'  Os  antropólogos  chamam  eapecialmente  «mestiços»  aos  indivíduos  que 
resultam  do  cnizamcuto  do  índios  com  Europeus  ou  com  Pretos;  vid.  G.Friz/.i, 
Anllirnpoliigie  (coliuu-.^io  ;ilemri  ili!  Giisclicn),  ]).  ti).  Nos  Ajiiil-ii/nx  1  Jinliii/ala.  \i.  '2i, 
diz  U.  Francisco  Manoel:  «mlsliça,  fdlia  dit  llracmunou. 


Bolelim  de  Etnografia— N."  1—1920 


ESTAMPA  III 


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Boletim  de  Etoograiia— N  "  1— 'S 


ESTAMPA  IV 


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Boletim  de' Etnogkafia  41 


Preto  eneurapinliado».  Ainda  hoje  se  usa  Preto  como  alcunha  ou  ape- 
lido: Fulano  Preto,  Fulana  Jostí  Preta.  E  natural  <[ue  a  singularidade 
da  existoncia  de  pessoas  pretas  ou  mulatas  o  encarapinhadas  entre 
brancas  provocasse  lendas  como  a  da  mencionada  «ilha  de  Pretos», 
ou  cantigas  nn  gOsto  da  seguinte,  originaria,  já  se  vê,  de  brancos: 

<  •  Sailu,  ij  Sado,  Meus  olhos  nio  virão 

<•  Sado,  Sadcte',  Tanta  gente  jireta, 

cantiga  cantada  num  «baile».  Noutro  «baile»  alguém  cantou  também: 


É  o  pai  dos  Pretos 
De  toda  a  Ribeira', 


Sc  elo  é  pai  dos  Pretos, 
Tafiiheiíi  o  é  se\i. 


<  •  Senhor  dos  Mártires, 
<'á  da  Carvalheira* 

ao  que  outrem  respondeu: 

Lavrador  João, 
Ilida  aqni  s't<Hi  ou: 

Pouco  a  i>ouci>  a  raça  \ai-se  diluindo  no  grosso  da  população 

circunvizinha;  nmrecia  a  pena  estudar  ])n>fiindamentc  o  assunto,  e 

para  ele  mais  uma  vez  chamo  a  atenção  ilos  nossos  antropólogos, 

que  ai  encontrariam  elementos  para  a  soluçAo  de  vários  problemas 

(cruzamento»,  transmissão  de  caracteres,  otc);  esse  estado  devia  es- 

teuder-se  a<»  d;is  localidades  para  onde  os  Pretos  ou  ^fiilatos  do  Sado 

têm  emigrado.  P(uia  é  que  nílo  se  descobrisse  ainda  algum  documento 

que  nos  esclarecesse  acerca  da  data  em  que  na  Ribeira  do  Sado  se 

fixou    a   raça   africana    («raça   negra»),   cujos    descendentes    estilo 

diauti'  de  nós. 

.1.  L.  deV. 


Capador 

Na  lig.  60  (desenho  do  S.*"  (A.  Filipe,  Coimbra)  vé-se  um  ca^ 
pudor  que  toca  a  «flauta  de  Pau».  A  respeito  d'esta  «flavlta»  vid. 
Ilist.  lio  .Uiisen  Kfnolof/iii),  p.  244  r-  nota  (^e  lig.  10')  da  p.  409). 

'  SitdêU,  torma  i-riada  jiela  rima,  qiKs  fica,  ainda  assim,  iiniitsrfeita. 

'  Ermida  da  Carvalheira,  oikIo  está  a  imafçeiii  do  Seidior  dos  Martir<'s 
(concelho  de  Alcácer). 

'  Ribeira,  isto  é,  Riheirn  ilo  Sado:  é  o  imiiie  que  em  Alcácer  se  dá  ás  terras 
do  ícineadura  da»  duas  margens  do  Sado.  A  Ribeira  do  Sado  çonstitue  pois  uma 
divisiio  natural,  ou  região  secundaria,  da  Kstremadiira  Transt.agana.  Coligi  a 
propósito  muitas  cantigas  curiosas: 

lUhtira  (lo  Sado       \        Toda  ela  é  minha 

de  tal  a  tal  (mas  da  localid.ade).  Não  c  agora  ocasiSo  de  as  [nddicar. 


42 


Boletim  de  Etnografia 


O  capador  anuncia-se  á  entrada  das  povoaçOes  rurais  com  a  ino- 
tlulaçao  prolongada  e  repetida  da  «flauta»,  propriamente  chamada 
(jaita  de  capador,  que  ele  toca  levando-a  da  esquerda  da  bOca  para 
a  direita,  o  seguidamente  da  direita  para  a  esquerda.  Logo  que 
o  som  se  ouve,  as  melhores  acodem  pressurosas,  e  chamam-mi  paj-a 
junto  das  porcas  que  devem  ser  capadas;  ao  mesmo  tempo  véem-se 
as  crianças  (rapaziniios  e  meninas)  fugirem  ])ara  todos  os  lados, 
transidas  do  teri-or  qu(,>  o  estranho  lhes  causa,  pois  a  cada  passo 
as  mSes  as  aumaçam  com  o  capador,  como  com  o  Papão.  O  operador 


Piír.  60 

trahaliua,  isto  é,  capa  ou  castra,  pondo  o  pé  no  pescoço  da  porca, 
que  está  deitada  no  chSo,  com  as  pernas  seguras  por  outros:  (consiste 
a  operação  no  arrancamento  ou  extracção  das  i-vf/aii  (ovários),  para 
a  ])orca  poder  engordar  melhor,  impossibilitada,  como  fica,  de  criar. 

E  claro  f|ue  o  capador,  além  de  capar  ou  castrar  as  porcas,  castra 
outros  animais:  os  próprios  machos  d'elas  quando  velhos,  etc.  Os  por- 
quinlios  pcqueiuos  sSo  em  geral  capados  (pelo  menos  na  Beira)  pelos 
donos,  ou  por  curiosos,  nilo  se  tornando  pois  necessária  aqui  a  pre- 
sença da  sinistra  e  imponente  pessoa  de  que  estou  falando. 

Um  individuo  da  Beira  Baixa  inforniou-me  que  nessa  provincia, 
pelos  meados  do  sec.  xi.\,  os  capadores  eram  franceses,. e  que  li- 


Boletim  de  FjTNografia  43 

uliam  uns  uma  área  de  trabalho,  por  exemplo,  a  Beira,  outros 
outra,  por  exemplo,  a  vizinha  província  do  Alentejo.  Um  amigo 
meu  da  Beira  Alta  informou-mo  que  por  ess(.^  tempo  também  lá 
havia  um  capador  francês.  A  respeito  das  domais  províncias  flâo 
tenho  presentemente  informações. 

Na  primorosa  íigura  a  yue  (>stas  linhas  servem  de  comentário, 
o  capador,  do  jaqueta,  manta  ao  ombro,  encostado  a  um  bordSo, 
e  grande  cha))eu  na  cabeça,  o  ([ual  o  defende  do  sol  nas  ambulaçfíes, 
passa  ])elos  lábios  com  a  mfto  direita  a  «flauta»,  que  pela  sua 
forma  tanto  se  aproxima  da  «yrinx  greco-romana,  e  também  tem 
lieje  paralelos  em  vários  paises.  A  gaita  chamada  na  Extremadura 
npiid  e  hespanhoI/)í<o  (cf.  o  ditado:  em  quanto  se  capa,  nflo  se  assol)Í!i). 
denomina-a  Blnteau  no  Vomhnlario  '«capador»,  e  diz:  «instrumento 
portátil  de  vários  canos  em  diminuição,  que  se  tange  correndo  pela 
bOca,  e  se  chama  ropadnr.  jiorque  o  costumam  tanger  aqueles  que 
vem  ás  vilas  a  capar  porcos».  O  capador,  se  anda  muitas  vezes  a  pé, 
como  do  desenho  do  S.'"'  Filij)e  se  «leduz,  e  eu  assim  os  tenho  visto, 
auda  também  nfto  raro  a  cavalo. 

.1.  L.  DE  V. 


Francisco  Holland 

K  eoniiecidaujonte  Francisco  Holland  autor  de  um  livro  de 
Adayios,  impresso  a  primeira  vez  em  1780:  vid.  Innoconcio,  Dice. 
liihliog.,  s.  V.;  e  os  meus  En»<iioít  E/hnof/.,  i,  15()— 158. 

Francisco  Holland  nasceu  em  Fraiu;a,  em  Saint-Antoine  de  Val- 
louise  (Briançon),  e  ostabeleceu-se  oui  Ijisboa,  como  livreiro-editor, 
no  sec.  xviii.  Outros  livreiros  franfes(>s  teve  Vortugal  pelo  mesmo 
tempo:  Bortrand,  Boi"el,  .Alartin,  Orcei,  ainda  hoje  em  parte  repre- 
sentados [lor  sucessores.  No  navio  em  (|ue  v(mo  Holland  vinha  para 
o  reino  uma  senhora,  do  nns  lõ  anos,  chamada  afaria  Catarina  van 
Bockstail,  1'olaca  de  naçfto  (talvez  porém  de  origem  holandesa),  filha 
de  um  emigrado.  Holland,  que  em  idade  se  llie  .-nantajava  ajienas 
nnm  lustro,  conheceu-a,  e  depois  casou  com  fia,  de  <|uem  teve 
vários  filhos. 

llavondo-mo  eu,  após  a  iMildifaçfto  dos  Enuntog.  relacionado  em 
Lisboa,  por  interniódio  (bi  meu  (•iiora<lo  Mestre  e  amigo  o  8.'"'  Epi- 
phanio  Dias,  com  umas  senhoras  diíscendentes  de  Holland,  obtive 
d'ela8  notícia  das  poucas  particularidades  biográficas  que  aqui  pu- 
blico, e  autorização  para  reproduzir  na  est.  iv  um  retrato  d'este,  a 


44  Boletim  de  Etnogkafia 


oloo,  que  as  mesmas  senhoras  possuem  (fotografia  do  D."''  .Toaqiiiin 

Fontes)  o  um  autografo,  que  igualmente  Jlies  pertence,  i-  no  (|u«l 

S(í  fa/  roferoncui  ao  tomo  ii  do  Tliesouro  ãe  prhijadorcK,  do  Uispu  <lo 

Mnianiião,  J).  Prol  António  de  Pádua.  Por  descargo  do  consciência 

(li'\o  acrescentar  qutí  ao  autografo  se  segue  no  mesmo  papel  outro 

documento  lun   que  o  Procurador  (ler.-vl  da   1'rovincia  da  Arraluda 

di/.  que  i-ecebeu  a  (juantia  quf  Rollaiid  no  docnnicnte  se  olirigára 

a  ])agar  (não  ^■ale  a  pena  copiar  o  reciho). 

J.  !..  J.K  V. 

Os  pinhões  na  Etnografia 

rirelo  (|ue  é  na  Estremadura  e  ao  Sul  do  Tejo  que  a  /'/««,*  Phica 
dos  botânicos,  ou  pinlioiro  manso,  mais  abunda.  Quanto  ;i  denomi- 
nação, direi  que  ^m  algumas  localidades  (Ílhavo,  Avis,  Ponte  de  Sor) 
se  diz  pwJieira:  em  Sesimbra  esta  denominação  convém  unicamente 
ao  pinlieiro  manso  quando  ainda  j)equeno.  Pinheira,  como  substan- 
tivo, parece  ter  tido  outr'ora  extensão  maior,  pois  aparece  na  toponímia 
do  Minho,  do  Algarve,  da  Estremadura  Cistagana.  Em  casos  porém 
como  casdl  da  Pinheira,  quinta  da  Pinheira,  quo  se  lêem  em  dicio- 
nários geográficos,  nao  pôde  facilmente  decidir-se  se  Pinheira  de- 
signou originariamente  a  arvore,  ou  nao  passa  de  mero  apelido  de 
molher,  como  feminino  de  Pinheiro,  vulgar  apelido  de  homem '. 
A  semente  do  pinheiro  manso  chama-se  vulgarmente  pinhão,  (|ue 
pode  sor  durazio  (de  tegumento  ou  casca  dura),  e  molar  (de  tegu- 
mento ou  casca  branda). 

A  colheita  dos  pinliões  varia  com  as  terras,  e  com  a  importância 
dos  pinheiros,  segundo  lia  mais  ou  menos.  No  distrito  de  Leiria, 
por  exemploj  os  pinhões  constituem  apreciável  fonte  de  receita.  Vou 
indicar  os  diversos  actos  na  sua  collieita  e  preparo. 

Quando  as  pinhas  estão  criadas  ou  maduras,  derriba in-rnis  ou 
derruham-nas :  dei-ribar  ou  derrubar  as  pinhas  é  fa/.ê-las  cair  ])or 


'  Já  noutro  lugar  me  referi  a  este  costumo  ile  ilar  feminino  a  sobrenomes  e 
apelidos,  originariamente  masculinos:  vid.  O  Arch.  Port.,  xxi,  170,  uota.  omle  citei 
exemplos  do  sec.  xvi.  Nos  Livros  de  linhagens  não  faltam  testemunljos  mais  anti- 
gos (sec.  XIV  e  xiii-xiv),  como  Brava,  Coelha,  Gala,  Giroa.  Modernamente  a  cada 
passo  ouvimos:  Maria  Moirôa  (filha  de  um  Moirão),  Mariana  Pimpona  (des- 
cendente de  um  Pimpão),  e  congéneres.  O  S.°'  .T.  J.  Nunes,  na  sua  copiosa 
Gramática  Histórica,  ao  tratar  do  género  (secção  ii,  cap.  9).  n.~io  fala  d'isto.  O  cos- 
tume existe  tnmbcm-  em  galeiío:  Maria  Brava,  Isabel  Feijoa,  ete.,  .sec.  xni,  xvi 
e  xvir,  no  Bolr.t.  de  la  Academia  Gnlleija,  i,  7-,S  (artigo  di;  MurgniJi). 


Boletim  de  EtnograEa— N.»  1  — 1K0 


ESTAMPA  V 


Frajicisco  Rolland 


Amostra  do  aiitogralb: 


1. 


nvt  Jt-     U-*uJ  ■ 


.  .yfdJLCf    e^-íJ^JP  )a-  ^^  ^^^^  '^^' 


)l  iUu*tí~nj  /íTt^u  Zé^ií 


(JynJuj    (J^aZ   A^   fil^f^rcMLM  ctr<^.^M^   í«v6r>- w*^^^-^ 


A  quantia  a  qui'  aqui  se  faz  referencia  foi  paga  pelo  signatário: 
vid.  p.  44. 


Boletim  de  Etnografia  45 


intermédio  ile  uiu  gancho,  que  se  adaptou  á  extremidade  do  iiiiia 
vara.  Quem  faz  a  opcrai^fto  (o  dei-rubador  das  pinhas),  sobe  á  arvore, 
seguraiido-se  na  própria  vara,  depois  do  fixa  numa  pernada:  é  de  cima 
da  arvore  que  as  pinhas  se  derribam  ou  derrubai» .  Os  derrtibadores, 
ao  mesmo  tempo  (|ue  derrubam  as  pinhas,  derrubam  lenha  (ramagem 
dos  pinheiros)  e  estjidliaiu  as  pernadas.  Para  tudo  isto'levam  consigo 
uma  machadinha  de  mão,  à  cinta. 

Derribadas  ou  caidas  as  piulias  no  chJlo,  transportam-nas  para 
casa  em  poceiros  ou  cestos  de  vime  (poveiro  è  o  mesmo  que  no  Norte 
e  ua  Beira  chamam  resto  vindimo),  se  sao  em  pouca  quantidade,  ou 
em  carros,  se  silo  em  quantidad»^  grande'. 

Em  seguida  silo  esifiientadas  numa  fogueira,  ftíita  no  pátio  ou 
na  eira,  e  esbòchadas.  com  uma  pedra  ou  uma  marreta:  esbòchar  quer 
dizer  icxtrair  os  pinhões».  A  este  acto  chamam  desbócJia  (njlo  esbóchu, 
como  seria  mais  natural). 

Os  pinhões,  depois  de  separados  das  escíjmas,  ticam  uuui  znontào, 
o  sâo  limpos  das  impurezas  que  os  acompaniiam  (peda^"Os  de  cascas, 
etc,),  e  medidos  ao  alqueire  ou  seus  submuitiplos  [quarta  e  oitava). 

Nesta  altura  do  trabalho  os  pinhões  podem  ter  dois  destinos:  serem 
torrados  no  fi>rno,  com  a  própria  casca;  ou  s<íreui  britados. 

Quando  torrados  com  a  casca,  forma-se  neles  uma  greta,  o  ai 
si;  introduz  um  canivete,  a  fim  de  acabar  de  abrir  a  casca,'  o  se 
extrair  a  amêndoa,  {)ara  se  comer.  Pelo  Natal,  Ano-Bom  e  Reis  é  cos- 
tume as  tamilías  tô-los  em  casa  em  pratos,  para  comerem,  ou  para 
oferecerem  a  visitas:  neste  último  caso,  v;"lo-nos  descascando  e  co- 
mendo, à  medida  da  conversa.  Também  ó  costume  os  rapazes  trazO- 
lõs  nó  bolso,  donde  (js  vslo  descascando  e  comendo  pelo  dia  adiante. 
Estes  costumes  estão  tfto  generjilizados,  que,  por  ocasião  das  referi- 
das festas,  não  ha  ninguém  que  não  procure  arranjar  pinhões.  As 
familias  pobres  até  permitem  que  os  seus  filhos  (rapazi>s)  v?io  alguma» 
semanas  antes  do  Natal  ao  rabisco,  quer  dos  pinhões  que  os  derruba- 
dores  por  acaso  deixaram  de  derrubar,  quer  dos  pinlieiros  que,  por 
terem  produzido  [louco,  ou  estarem  insulados,  Uc^o  valeu  a  pena 
derrubar  em  forma. 

Passemos  agora  á  britada.  Esta  ou  é  feita  por  conta  do  dono 
dos  piídíOes,  ou,  o  que  é  mais  geral,  por  conta  do  quem  os  compra 
para  negócio. 


•  0>  i'i»rri>s  podem  ir  aiinados  ile  ííií^kkV,  ou  Je  xeAet  d(!  vime,  ou  simiile.s- 
nimitf  r.'>ii\  fmfiieiroK  (toeiíos).  Neste  último  (-aso  faze,m  nma  carroda  At' ram<.xda 
(rainageni),  iluixaiid"  no  coiitro  uma  eavidade,  onde  as  yiinlias  se  lançam. 


4G 


]?()li;tia[  de  Etnografia 


Jiuitíim-Hu  ú  iioittí,  em  sorílo,  iia  eoziítlta  ou  na  <iitiadf.fõra,  várias 
raparigas  do  campo,  cada  uma  das  quais  segura  no  regaço,  com 
a  mSío  cHquerda,  uma  pedra  arredondada  e  achatada,  e  tem  na  direita 
outra  menor:  na  primeira  pedra,  disposta  liorizontalmeate,  apoia  o^ 
piuhfios,  imi  por  um,  a  pino,  (^  com  a  outra,  que  8er\'i''  de  niurfel",. 


Fl?.  «1 


brita-os,  isto  é,  descasca-us.  A  jiedra  maior  eiiuma-sc  fíilru.  a  menor 
chama-se  britadeira.  Sao  objectos  de  caracter  prtiliistoricol 

Na  tig.  61  representa-ííe,  segundo  uma  lotogralia  tirada  pelo  meu 
antigo  aluuo  universitário  D."''  Manuel  Heleno,  uiua  britada: 
raparfgas  de  cliapoliiiho  sentadas,  e  junto  d'elas  dois  tocadores,  e 
três  namorados.  Nas  ligs.  (52  e  G3  reprosenta-se,  segundo  desenhos  do 
S."  Fraftcisco  "Valença,  um  aiko,  de  O'",  11  de  hirgura  e  O^jO? 
de  altura,  e  uma  britadeira,  de  ()"',07  de  largura,  e  0'°,04  de  altura. 

Nao  raro  na  britada  se  crantam  cantigas,  como: 


be  me  qiicr'rf  uiivir  cantar, 
Madruf^ailas  u  acrues, 
Vai  ao  lugar  dos  Bai-ruirus' 
A  britada  dos  piíiliSe?. 


Acabemos,  acabemos, 
Neiíja  de  morrer  agora! 
^'aIMos  a  britar,  pinhões 
Para  nos  innos  embora. 


'  Lugar  da  Iròguesia  de  Amor,  perto  de  Leiria,  couhecido  ao  longe  pe!» 
grande  quantidade  do  pinheiros  que  lá  ha. 


Boletim  de  Etnografia 


47 


De  ordinário  o  trabalho  termina  por  dança. 

Tudo  o  quo  afé  aqui  fica  dito  do  distrito  de  Leiria,  roloro-so 
a  Moute-Real  e  basoia-se  oiu  inlbrmaç5es  do  D."''  Manoel  Heleno,  a 
qnem  já  acima  me  referi. 

Noutras  terras,  onde  os  pinhões  nSo  tfini  tanta  importância  co- 
mercial, vogam  costumes  mais  simples.  No  Cadaval,  por  exemplo, 


■'Wl: 


mm 


I'i?.  .w 


os  liotnens  f  rapazes  sobem  aos  pinheiros,  fiiifiilinhiniilo,  o  é  com  as 
n).^os  ((uu  apanliíuu  as  pinhas  e  ns  deitam  ao  chão;  sóiuonto,  se  as  pi- 
nhas ostao  fora  do  alcance  da  tnilo,  as  batem  com  uns  paus  ([iic 
já  levam  consigo  para  isto. 

(guando  está  caido  certo  número  de  |)itihas  no  chàu,  i"orma-se  com 
elas  uma  roda,  o  deitii-se-lhes  |)or  cima  leniia  (tojo,  urzes  e  xovna), 
a  que  se  lau^a  fogo.  ('haina-se  a  isto  uma  asmida.  O  fogo  uiautem-se 
por  espaço  de  uma  hora.  Em  seguida  britam-so  as  pinhas  com  uma 
pedra  ou  com  um  martelo,  e  assim  se  extraem  os  pinh5e!<. 


Os  pinliftes,  depois  de  Ijritados,  po<lem  também  sor  torrados, 
ou  em  monte,  ou  enfiados  em  linhas  brandas  |  neste  último  caso  mais 
levemente  torrados):  levam-nos  ao  forno  em  latas,  ou  colocam-uos 
no  próprio  lar  do  forno,  após  a  cozedura  da  broa.  Os  pinhões  en- 
fiados em  linhas  chaniam-se  mesmo  enfiadas,  e  veudem-se  de  terra 
em  terra,  pelas  portas,  ou  em  arraiais  de  festas.  Nas  festas  os  ra- 
pazes fazem  momeutanoauiento  com  as  enfiad(i.<<  correntes  de  relógio, 
e  as  raparigas  colocam-uas  ao  pescoço  em  guisa  de  cordões  ou  co- 
lares :  depois  uns  e  outros  levam  estes  objectos  para  <;asa,  e  comem- 
noB,  ou  olerecem-nos  a  pessoas  amigas. — Uma  das  festas  em  que 


48 


Boletim  de  Etnografia 


mais  pinliOes  se  vendem  é  a  de  S.  Amaro,  na  freguesia  do  Soito 
(la  Parvalliosa:  o  Santo  venera-se  em  uma  capela. 

A  voada  das  ciiHadas  ostá  a  cargo  do  juolliorcs,  (|U(^  se  denominam 
pinhoeiras  (liciria).  Na  fig.  64  roprodiiz-se  uma  litografia,  n."  39  da 
colecçilo  do  Palharos  (cf.  supra,  p.  23),  e  aa  fig.  K)  a  ostaníi)a  17." 
do  lasciculu  3."  da  colecção  intitulado  Buas  de  Lisboa^,  em  ambas 
aS  quais  se  vGem  molhoi'es  que  vendera  pinhOes,  uma  até  especificada 


KiS.  fil 


Fig.  cr,, 


como  de  «Leiria».  As  estampas  datam  dos  mekdos  do  sec.  xix,  i- 
sào  coloridas,  mas,  paru  maior  facilidade  da  reprodução,  faz-se  aqui 
esta  sem  as  cores  originais.  Em  Monte  Real  são  ás  vozes  as  próprias 
pinhoeirtut  quom  dc.shorlia  em  casa  do  dono.  (guando  compram  os  pi- 
nhões, é  já  com  esta  condição.  O  don<)  aproveita  assim  os  resíduos 
(cascox  ou  pinhas)  para  quwmar. 


'  Este  lasciculu,  bom  como  alguns  outros  exemplares  de  e!>tamj)4S  etnográ- 
ficas que  possuo  do  mesmo  gcncro,  dovo-os  ao  obsequio  do  meu  umigo  o  S.*"^  An- 
tónio Victorino  Ribeiro,  a  <iiiem  por  serviços  anal'igos  já  me  reteri  noutros 
trabaliios:  De  CaiiqtoUde  a  Melro»e,  pp.  121(-122),  nota  I;  Dii  Xiiiiihmutira  fm 
'Portttyal,  p.  104,  nota  1,  e  p.  lõO,  nota  t. 


Boletim  de  Etnografia 


49 


Os  pinhões  torrados  sem  casca  ou  sem  serem  enfiados  costumam 
vender-se  já  simples,  já  de  mistura  com  passas  de  uvas,  num  caso 
ou  noutro  em  cabazinhos,  que  se  denominam  medidas  (medida  de 
pataco,  de  meio-tostao,  etc. :  outr'ora!). 


Independentemente  de  servirem  para  se  comerem,  os  pinhões 
servem  também  para  jogo  de  rapazes.  Ha  várias  espécies  de  jogos: 
ao  par  tt  niinea  (nones)  ou  par  tfr  per  não,  ao  rapa,  ao  palmo,  á  bar- 
roca, á  parede.  Na  fig.  66  reproduz-se,  também  segundo 
um  d(^senho  do  S."  Francisco  Valença,  um  í-ajsa  de 
pau  de  Museu  Etnológico:  espécie  de  piaozinho,  de 
secção  quadrada,  o  qual  tem  em  cada  face  uma  letra 
que  significa  respectivamente  K(apa),  d'onde  o  nome 
do  objecto,  T(ira),  D(eixa),  P(Oe);  joga-se,  torcendo 
entro  o  dedo  pollex  e  o  índex  ou  o  maximus  o  eixo  su- 
perior do  rapa*. 

Brinquedos  d'estes  se  encontram  noutros  paises. 
Em  França,  por  exemplo,  uma  das  espécies  do  toton 
tem  em  cada  uma  das  quatro  faces  respectivamente 
A{ccipe),  D(a),  K(íert),  T(oíiím),  e  o  nome  toton  veio-lhe  de 
T(o<«m),  como  ao  nosso  jogo  veio  de  ^.(apa).  Em  Itália 
corresponde-lhe  o  girlo  «sorte  di  dado  segnato  con  lottere  su  i  quat- 
tro  lati,  con  una  punta  o  porniuzzo  in  mezzo  per  farlo  girare» :  a  pa- 
lavra nfto  se  encontra  no  Dicionário  da  Crusca,  mas  trá-la  o  italiano- 
francêí  de  Barberi,  Paris  1884.  O  rapa.  cliama-so  em  hespanholpert- 
nola:  «el  cuerpa  de  esto  jugueto  es  á  veces  un  prisma  de  cuatro 
caras  marcadas  con  letras,  y  sirvo  entonces  para  jugar  á  interés», 
diz  o  Dicionário  de  la  leng.  caatelL,  publicado  pela  Academia.  Quanto 
á  Alemanha  devo  ao  S."  D."'  Johannes  Bolto  o  conhecimento 
de  um  livro  de  F,  M.  Bõhme,  Leipzig  1897,  intitulado  Deiitsches 
Kinderlied  und  Kindersjnel,  onde  a  p.  643,  §  554,  se  desenha  um 
brinquedo  (Kreisel)  análogo  ao  nosso  rapa;  tem  quatro  faces,  em 


Fig.  66 


'  Os  verbos  tirar  e  pôr,  que  aqui  aparecem,  usam-se  juntos,  era  várias 
frases,  por  causa  do  sentido  antitútico  que  têm :  donde  tirão  e  não  põem,  cedo 
chegão  ao  fundo  (cm  Bluteau,  Vocab.,  viii,  176),  ou,  com  íórma  moderna,  d'onde 
K  tira  e  não  te  põe,  falta  faz  (Algarve);  tem  tirar  nem  pôr,  por  «exactamente») 
o  que  no  citado  Bluteau  se  diz  eu  não  tiro  nem  ponho  («he  modo  de  falar  pro- 
verbialn,  acrescenta  ele). 


50 


Boletim  de  Etnografia 


cada  uma  das  quais  se  figura  respectivamente  uma  das  seguintes 
letras :  A=gewinnt  Alies  (ganha  tudo),  H=Halb  gewonncn  (ganhada 
só  metade),  0  =  NicJitii  (nada,  ou  zero),  S=Setzen  (isto  é,  o  que 
joga  tem  de  acrescentar  alguma  cousa,  ou2>ôr), — -e  joga-so  pelo  Natal 
a  nozes,  ou,  na  sua  falta,  a  feijões.  Vid.  um  desenho  na  fig.  67. 
O  próprio  S."  Prof.  Bolte  reproduz  na  Zs.  der  V.f.  Volkskunde,  xix, 
403,  n."  30,  uma  notícia  d'este  jogo  no  sec.  xvii  {Spielholtzlein,  com  as 
palavras  latinas  Omnia,  Nihíl,  Pone,  Trahe),  ajunta  em  nota  valiosas 
indicações  bibliográficas.  Também  na  Boémia, 


segundo  informação   do   S."  Prof.  Ziibati,  da 


Fig.  G7 


Fig.  68 


K         y~  ~\     Universidade  txeque  (ou  cheque)  de  Praga,  se 
—  usava  ainda  nos   fins   do   sec.  xix  e  começos 

do  XX  (hoje  parece  que  já  nSo)  um  brinquedo 
constante  de  uma  espécie  de  piilo  do  seis  faces, 
denominado  òamhurina,  fig.  68,  o  qual  se  jogava 
a  dinheiro  nas  festas  religiosas:  cada  face  tinha 
um  número  representado  por  pontos,  e  os  jogadores  eram  seis:  cada 
um  apostava  que,  deitando  o  pião  com  os  dedos,  ficaria  ao  de  cima 
certo  número:  se  ficava,  recebia  quintuplicado  o  preço  da  aposta 
(isto  ó,  recebia  os  cinco  valores  postos  pelos  restantes):  por  exem- 
plo, so  cada  um  dos  jogadores  havia  posto  uma  coroa,  o  que  ganhava 
recebia  cinco.  —  Já  os  Etruscos  e  os  iRomanos  tinham  dados  ou  tes- 
seras,  de  jogar,  com  números  e  letras,  os  quais  podiam  ao  mesmo 
tempo  servir  para  adivinhações  e  sortilégios:  vid.  Diet.  des  antiq. 
gr.  et  rom.,  s.  vv.  atessera»  e  «turben»  («turboi). 

J.  L.  DE  V. 


Çerços  infantis 

Usam-se  entre  nós  muitas  espécies  de  berços,  geralmente  de  pan, 
mas  ás  vezes  de  cortiça;  tambóm  pôde  servir  de  berço  uma  ca- 
nastra: vid.  alguns  desenhos  na  Rev.  Lusit.,  x,  14-16:  sâo  berços, 
pelo  menos  três,  de  gente  pobre,  e  por  isso  modestos;  só  um  é  mais 
apurado,  ila  porém  berços  muito  ricos.  Uma  cantiga  do  Natal  diz: 


Filhos  d'homem  rico 
Em  berço  doirado: 


Só  vós,  meu  Menino*, 
Em  palhas  deitado  ^ 


1  O  Menino  Jesus. 

'  Revista  de  Elhnologia,  de  Adolpho  Coelho,  p.  33. 


Boletim  de  Etnografia  -N  - 1—1920 


ESTAMPA  VI 


Um   berço  infantil 


Boletim  de  Etnografia 


51 


De  facto  está,  por  exemplo,  um  berço  com  doirados,  no  Palácio 
Nacional  de.  QuMuz,  berço  em  que  dormiram  alguns  príncipes 
portugueses:  vid.  fig.  G9  (desenho  de  Francisco  Valença). 
No  Nordiska  Museet  de  Estocolmo,  ou  «Museu  do  Norte»,  admi- 
ram-sG  também  os  de  Carlos  XII,  rei  da  Suécia,  que  nasceu  em 
1682,  e  de  Gustavo  Adolfo  IV,  que  nasceu  em  1778:  berços  doi- 
rados e  artísticos.  Do  outro  berço  principesco  com  doirados,  onde 


dormiram  todos  os  filhos  da  Bainha  Vitoria  de  Inglaterra,  berço  feito 
em  1840  para  a  que  depois  foi  Imperatriz  Frederico,  da  Alemanha, 
se  fala  na  revista  intitulada  Zur  guten  Stunde,  xiv  (1894),  p.  28-B, 
num  artigo  que  se  denomina  «Eino  fiirstlicho  Wiege».  Nio  de  berço 
doirado,  mas  de  um  rico  berço  do  pau  preto,  de  estilo  do  sec.  xviii, 
pertencente  á  familia  dos  Sepulvcdas,  do  Bragança,  da-se  uma  re- 
produção na  est.  v,  segundo  uma  fotografia. 

J.  L.  DE  V. 


52  Boletim  de  Etnografia 


OBSERVAÇÃO   FINAL- 

A  figura  emblemática  cjae  oxoma  o  frontispício  d'é8te  Boletim- 
reproduz  um  famoso  q^uadro  de  um  dos  consagrados  mestres  da  pin- 
tura portuguesa  o  S."'  José  Malhoa;  o  cabeçalho  da  «Advertência 
preliminar»  (composto  á  vista  de  coisas  tipicas  da  nossa  Etnografia) 
e  a  letra  capitular  (tipo  de  lenço  provinciano)  devem-se  à  inteli- 
gência do  S.'"'  Francisco  Valença,  Desenhador  do  Museu  Etno- 
lógico, que  para  a  soa  execução  se  inspirou  em  objectos  existentes- 
n.a  mesmo  lilusou  (1920).. 

J,.  L.   DE  V. 


índice 


Advertência  preliminar /) 

Aprestos  de  costura <> 

Leiteiro  c  carapuças  da  Madeira : 13 

Louça  do  Algarve *. 14 

Adelino  das  Neves 15 

Estrelas  de  figos , 22 

Capote  &  lenço .    .    < 23 

Relógios  de  Sol 24 

Carrancas  fontanárias 2.") 

Aldravas  de  ferro 26 

Vasilhas  de  barro 27  . 

Habitação 27 

Barcos  de  Aveiro 29 

Bolo  antropomórfico 31 

uBonecas»  de  chaminés  do  Sul 31 

«Cegonha»  de  Grândola 32 

Esfolhador 33 

Espécimes  de  arte  popular  alentejana 34, 

Santo  António  numa  mercearia      36 

Polvorinho  artístico  . 36 

Chaminés  da  Estremadura  e  Algarve 39 

Costumes  e  panorama  do  Alentejo 39 

Espécime  português  de  raça  negra 40 

Capador 41 

Francisco  Rolland 43 

Os  pinhões  na  Etnografia    .    ^ 44 

Berços  infantis 50 

Observação  final 52 


Além  do  emblema  do  frontispício,  do  ornato  do  cabeçalho,  e  da  letra  floreada 
que  inicia  o  texto,  ha  neste  1."  numero  do  Bolelim  69  figuras,  e  vi  estampas. 


i 


BOLETIM 

ETNOGRAFIA 

POBLICAÇÃO  DO  MOSEO  ETNOLÓGICO  PORTOGOÊS 

niRIGIDA  POB 

J.  LEITE   DE  VASCONCELLOS 


LISBOA  IMPRENSA  NACIONAL  M  CM  XXIII 


ÇObETI/W 


DE 


ETNOGRAFIA 


BOLETIM 


DE 


ETNOGRAFIA 


PDBLICAÇÃO  DO  MUSED  ETNOLÓGICO  PORTOGDÉS 


DIUIGIIIA  POH 


J.  LEITE    DE  VASCONCELLOS 


1>T.°  S 


LISBOA 


IMPRENSA    NACIONAL 


M  cm  XXIII 


Os  cinco  sentidos 


O  Aíiiseu  do  Miicliado  d(>  Castro,  om  Coimbra,  f^iiarda-so 
um  prato  //rande,  do  faiança,  que  vai  adianto  gravado, 
segundo  um  dosoulio  do  S."'' Álvaro  do  Lo  mos,  Pro- 
fessor da  Kscola  Normal  Primaria  (Faíiuela  cidado,  o  meu  antigo 
e  distinto  aluno  iio  Curso  do  Pibliot('cario-Ar([uivista. 

O  prato  tom  na  orla  do  anverso  uma  cercadura  provida  de  ele- 
mentos vegetais,  o  no  campo,  ao  meio,  dentro  do  uma  espécie  do 
«silva»  ou  coroa,  umas  palavras  f[uo  dizem:  o  qfuin/to  apalpar;  por 
baixo  das  ])alavras  está  um  desenho,  a  modo  de  ramo  linear,  e  fora 
da  silva  uma  data:  1707  (ou  1708). 

Em  meu  entender,  este  prato,  como  a  primcíira  vez  que  o  vi,  em 
1910,  ou  disso  a  alguém  que  me  acompanhava,  faz  parte  de  uma 
serio  reproseutativa  dos  cinco  sentidos:  o  dcíscnho  que  se  vô  sob 
as  palavras,  e  qucí  descrevi  como  parecido  com  um  ramo,  será  um 
azorrague  ou  discij)linas,  emblema  a([ui  do  sentido  do  tacto.  Outros 
pratos  deveriam  ter  respectivamente:  um  ôUio,  um  ouvido,  um  nariz, 
o  acaso  uma  lingua,      ou  emblemas  semelhantes. 

A  sorio  cerâmica  do  quo  estou  falando  é  paralela  a  uma  serio 
do  painéis,  do  caracter  popular,  como  o  jirato,  os  quais  uma  vez  vi 
na  Beira-Alta:  a  eles  me  referi  n-0  Arch.  Port.,  xxii,  1.34-1,35, 
onde  citei,  como  comparação,  cantigas  populares,  e  versos  de  Al- 
meida Garrett,^  e  para  lá  remeto  o  leitor. 


Boletim  de  Etnografia 


No  prato  de  Coimbra  as  cores  empregadas  na  pintura,  em  campo 
ou  fundo  brando,  sSo  azul  e  castanho. 

O  Director  do  Museu,  Ex.™  S."''  A.  A.  Gonçalves,  tao  compe- 
tente em  cousas  d'arte,  como  amável  para  com  os  visitantes,  —  e  á  sua 

amabilidade  devo  a  per- 
missão de  publicar  o 
prato — ,  não  deixou  de 
concordar  com  a  minha 
explicação,  quando  em 
conversa  lh'a  expus. 

Para  ilustração  do 
assunto,  juntarei  aqui 
mais  umas  notas. 

Na  exposição  de 
Arte  Ornamental  que  se 
realizou  em  Lisboa  em 
1880  figurou  «uma  col- 
cha do  linho  bordada  a 
retrós  de  cores,  com 
figuras  emblemati- 

Fig.  1  j 

cas  dos  cinco  sen- 
tidos, designadas  com  palavras  portuguesas»,  o  que  mostra  que 
fora  fabricada  cá.  Obra  do  soe.  xviu,  pertencente  em  1880  a  uma 
casa  do  Viseu  ^ 

Vê-se  que  o  tema  dos  cinco  sentidos  era  bastante  geral  na  arte, 
pois  nos  aparece  em  pintura,  em  cerâmica,  e  em  bordados. 

Pelo  que  toca  á  poesia  popular,  já  no  Arch.  Fort.,  xxi,  172, 
publiquei  esta  cantiga  de  Estremoz,  dirigida  á  figura  do  Gadanha,  que 
encima  o  tanque  do  líossio  de  S.  Brás,  naquela  A-ila: 


Quando  a  Estremoz  cheguei, 
Ao  laffo  me  fui  lavar: 


Cinco  sentidos  que  tinha 
Ao  Gadanha  os  fui  entregar, 


a  qual  cantiga  com  outras  que  juntamente  eu  ali-  publicara,  e  com 
parte  do  meu  artigo,  foi  reproduzida  no  Eco  de  Estremoz,  de  3  de 
Junho  do  1923,  sem  indicação  da  origem. 

A  cantiga  do   Gadanha  é  imitação  da  primeira  de  uma  serie 
de  outras  que,  como  disse  n-0  Arclteologo,  se  cantam,  com  o  titulo 


•  Vid.  Filippe  Simões,  A  exposição  retrospectiva  de  arte  ornamental,  Lisboa 
1882,  p.  19. 


Boletim  de  Etnografia 


de  «Os  cinco  seatidos»,  em  varias  partes  de  Portugal,  e  de  que  dou 
aqui  um  espécime,  segundo  uma  versUo  do  Loulé  (^cantigas  de  amor): 


Passei  pela  oliveira, 
Cinco  folhas  lh'acúlhi: 
Ciaco  sentidos  que  ou  tinba 
Todos  em  ti  erapregui*. 

O  primeiro  é  vêr, 

Esse  ú  o  meu  desejo : 

Olho  p'ra  ura  lado  e  pra  outro, 

Eu  por  mim  nunca  te  vejo! 

O  segundo  é  ouvir, 

Eu  por  mim  não  oiço  nada : 

Oiço  suspiros  e  ais. 

Que  se  me  parte  esta  alma! 


O  terceiro  é  cheirar 
Num  raminho  de  alecrim: 
Todas  as  paixões  se  acabam, 
Só  a  minha  não  tem  fim! 

O  quarto  é  gostar, 
Que  gosto  poderei  ter. 
Vivendo  de  ti  ausente? 
Mais  me  valia  morrer! 

O  quinto  é  apalpar. 

Só  a  ti  apalparei, 

Só  p'ra  dar-te  gosto  a  ti, 

O  minha  alma,  ó  meu  bem ! 


Vale  a  pena  observar  que  análogas  cantigas  populares  se  can- 
tam na  Galiza: 


N'an  jardín  do  teu  pais 
Cinco  rosiuas  coUín : 
Eran  03  cinco  seatidos 
Que  eu  tiíla  postos  era  ti. 

O  primeiro,  é  ver  a  prenda 
Qae  no  rauado  mais  cu  quero : 
Durmindo  estou,  c  souando, 
Soílando  estou  que  te  vejo. 

O  tegundo,  é  oir  sempre 
Vozes  do  teu  corazón : 
Eu  non  sei  de  que  maneira 
Lhe  coUín  tanta  afizón. 


O  terceiro,  é  ogustar: 
4E  que  gusto  poido  eu  ter 
Estando  ausente  de  ti 
E  non  poderte  ir  a  ver? 

O  cuarto  sentido  é  ubir 
Entre  rosas  de  um  jardín: 
Solo  lhe  pido,  rapaza. 
Que  non  te  olvides  de  min. 

O  quinto,  é  solo  tocar: 
Eu  nunca  nada  toquei; 
O  que  te  pido,  rapaza, 
É  que  me  gardes  a  lei'. 


As  tradições  galegas  andam  tao  unidas  com  as  portuguesas,  por 
causa  da  comunidade  das  origens  e  da  vizinhança  geográfica,  que 
esta  analogia  nas  cantigas  nada  tom  que  nos  surpreenda.  Surpresa 
nenhuma  ha  também  em  vermos  que,  sondo  por  intermédio  dos  sen- 
tidos que  nos  pomos  em  relação  com  o  mundo,  a  namorada  seja  para 
o  namorado  tudo  quanto  nesse  mundo  existe,  tudo  quanto  possa  ser 

objecto  de  sensibilidade. 

.T.  L.  deV. 


1  =  empreguei.  Linguagem  local. 

*  Vid.  Bolctin  de  la  R.  Aca<l.  Gallega,  n.»  64  (1912),  p.  110. 


Boletim  de  Etnografia 


Coleira  de  cão 

Foi  sempre  costumo  vulgar,  desde  a  antiguidade  até  hoje,  dar 
nomos  aos  animais  domésticos,  para  os  chamar,  e  para  eles  se  afa- 
zerem a  lidar  com  o  homem,  e  a  obedecor-lhe,  como  escravos  ao 
seu  senhor.  A  nomes  d'ostos  mo  referi  no  meu  hvro  De  Campolide 
a  Melrose,  Lisboa  1915,  pp.  48(-4:9),  nota  1.  Nomes  gregos  é  latinos 
de  cães  lôem-se  muitos  no  Dict.  des  antiq.,  de  Daremberg  &  Saglio, 

s.  V.   canis  (artigo  de  E,  Congny), 
p.  889,  col.  2,  e  em  Die  antike  Tiericelt, 
do  q.  Keller,  i  (1909),  pp.  134-135. 
Ás  vezes,  modernamente,  os  no- 
mes gravam-se  nas  coleiras  com  que 
se  prendem  os  cJles:  vid.  um  exemplo 
na  figura  junta,  copiada  de  uma  das 
estampas   que   acompanham  a  Oati^ 
canea,   poema  heroi-comico  de  JoSo 
Jorge  do  Carvalho,  edição  de  1816 
(Lisboa).  A  coleira  tem  escrito  ma- 
luco, nome  do  cSo.  Na  estampa  reprbsonta-se  um  gato  a  morder 
a  perna  traseira  direita  do  cao,  e  outro  a  morder  a  perna  dianteira 
esquerda;  mas  suprimiu-se  isso,  e  desenhou-se  por  inteiro  o  cfto'. 
Debaixo  da  estampa  lê-se  a  seguinte  sextilha: 

Por  forte  e  vencedor,  a  clara  Fama 
Me  cinge  de  carrasco  a  invicta  frente, 
E  em  ruidoza  vôz  meu  nome  acclama 
Por  ver  que  fiz  á  força  d'unlia,  e  dente 
A  sisco  reduzir,  em  brava  guerra. 
Quantos  gatos  miavão  sobe  a  terra. 

Efectivamente  adeja  no  ar  a  figura  da  Fama,  qoe  coloca  sobre 
a  cabeça  do  cflo  uma  coroa  de  carrasco  (carvalho),  e  toca  uma  trom- 
beta, segura  pela  mào  esquerda. 

Coleiras  antigas  de  cSes  com  os  nomes  d'eles  nSo  conheço  ne- 
nhuma; todavia  Otto  Keller,  oh.  cit.,  i,  129-130,  fala  de  uma  que 
tinha  junto  uma  chapa  com  uma  inscrição  respectiva  ao  dono  do 
animal,  e  a  quem  achasse  este,  se  se  perdesse. 

J.  L.  DE  V. 


'  Dosenlio  de  Francisco  Valença,  Desenhador  do  Museu  Etnológico. 


Boletim  de  Etnografia 


Apontamentos  para  a  etnografia  madeirense 
'   Habitação  troglodítica 

Percorrendo  quási  toda  a  ilha  da  Madeira,  em  sucessivas  ex- 
cursões, observámos  que  o  Madeirense  ainda  hoje  tom,  por  vezes, 
habitação  troglodítica. 

Não  nos  devemos  espantar  cóm  esta  verdade,  porque  ela  não 
revela  uma  característica  de  selvagem,  como  é  opinião  de  alguns 
autores.  Nem  sempre  o  trogloditismo  é  cunho  de  povos  no  limiar 


Habita^io  troglodítica;  oonstmçSo  de  1922  — Sitio  da  Ponte  Vermelha 
Concelho  da  Ribeira  Brava  — Madeira 

da  civilização:  é  muitas  vezes  o  resultado  das  condiçOos  do  ambiente 
fisico  que  obriga  o  homem  a  construir  na  rocha  a  sua  habitação. 
N.lo  ó  o  desconhecimento  do  progresso,  mas  sim  a  falta  do  espaço 
o  do  segurança  que  leva,  algumas  vozes,  o  Madeirense  a  viver 
om  meio  duma  encosta  numa  furna,  vendo  cair  por  dianto  as  que- 
bradas que  vêm  do  cima  sem  danificarem  a  sua  liabitaç^o.  E  ^  ulgar 
saber-se  que  uma  destas  derrocadas  soterrou  uma  casa  e  matou 
tantas  pessoas,  principalmente  no  tempo  do  inverno;  é  precisamente 
por  isso  que  o  iiabitante  da  Madeira,  lutando  com  falta  do  espaço 
o  segurança,  resolve  fazer  a  sua  Iialiitação  cavada  na  rocha,  ora 
basalto  do  cõr  escura,  qu(í  alterna  variadamente  com  diferentes 
conglomerados,  ora  tufo,  ora  conglomerados  unicamente. 


10 


Boletim  de  Etnografia 


E  tudo  isto  porque  a  ilha  da  Madeira  é  extremamente  aciden- 
tada, de  montanhas  o  picos  emmaranhados,  donde  a  multiplicidade 
e  diversidade  do  vertentes,  apresentando  nos  seus  828  quilómetros 
quadrados  de  superfície  vinte  e  três  picos  cuja  altitude  máxima 
varia  entre  975  a  1:950  metros;  no  sentido  do  seu  comprimento 
estende-se  uma  elevação  geral  donde  partem  serranias  irregulares 
e  sinuosas,  cortadas  por  sulcos  profundos,  que  vêm  mergulhar-se 
abruptamente  no  mar  ou  que  ficam  suspensas  à  beira  do  Oceano, 
em  posição  majestosa,  dando-nos  abismos   que  como  o   «Redondo 


Habitação  meio  trogloditica 


dos  Ingleses»,  ou  «Eira  do  Facho»,  se  olha  a  589  metros  de  alti- 
tude. Diremos  de  passagem  que,  em  virtude  destes  factos,  a  Madeira 
nao  tem  praias  extensas. 

E  pelos  sulcos  das  montanhas,  pelos  vales  profundos,  que  correm 
os  ribeiros  e  as  ribeiras,  aumentando  as  suas  águas,  em  correria 
doida,  e  arrastando  tudo  no  percurso;  põem  assim  essas  correntes 
de  águas  caudalosas  em  perigo  a  habitaçflo  edificada  em  sitio  des- 
cuidado. Mas  a  acidentaçao  do  terreno  oferece-nos  aspectos  que 
nao  podem  ser  excedidos,  de  lindos  e  majestosos  que  sJo. 

A  habitação  trogloditica  é,  ora  permanente,  ora  temporária, 
e  estão  neste  último  caso  as  fumas  onde  dormem  os  lavradores 
na  época  da  colheita  dos  cereais  e  alguns  pastores. 


Boletim  de  Etnografia 


11 


A  furna  ó  uma  cavidade  feita  na  rocha  com  auxílio  de  picareta 
e  por  vezes  do  brocas,  ou  explosões  de  pólvora  ou  dinamite,  com 
umas  aberturas  regulares,  alargando  interiormente  e  tendo  geome- 
tricamente forma  rectangular.  Sao  bastante  regulares,  por  conse- 
quência, as  suas  paredes.  Umas  vezes  tom  uma  ou  duas  aberturas, 
às  quais  se  aplicam  portas  vulgares,  quási  sempre  de  madeira  de 
castanheiro,  que  giram  sobre  si  mesmas,  e  que  têm  superiormente 
duas  aberturas  circulares  ou  quadradas,  vedadas  por  uma  rede  metá- 
lica, para  ventilação;  ora  dá-nos  a  improssiío  duma  casa  térrea  vul- 


Rainas  dama  oaaa  de  habitação  de  colmo,  meio  metida  na  rocha. 
Sitio  do  Lugar  — Vila  da  Ribeira  Brava  — Madeira 

gar,  que  fosso  encaixada  na  rocha,  porque  apresenta  a  fachada  toda 
caiada  de  branco,  onde  so  vêem  as  portas  e  janelas  com  persianas, 
com  o  beiral  de  tellia  de  Marselha,  tendo  os  compartimentos  estu- 
cados e  assoalhados.  Sao  habitações  de  um  só  pavimento  e  que  cons- 
tam geralmente  do  três  compartimentos,  dois  cora  portas  exteriores 
o  um  com  janela,  o  que  comunicam  interiormente  por  duas  portas 
onde  se  empregam  as  ferragens  das  modernas  construções.  Estas 
últimas  características  pertencem  às  furnas  do  segundo  tipo,  porque 
as  do  primeiro  quási  nunca  têm  divisões,  e  quando  as  têm  sào  esteiras 
de  cana  de  roca  pregadas  ao  alto  em  paus  que  se  encaixam  nas  pa- 
redes. 


12  Boletim  de  Etnoghafia 

O  conforto  destas  habitações  (2  tipos)  é  muito  pouco,  porém 
oferecem  por  vezes  um  bem-estar  que  as  habitações,  mais  vulgares 
ali,  feitas  de  pedra  solta,  cobertas  de  colmo,  e  quási  sempre  calçadas 
ou  de  terra  batida,  nos  podem  dar ;  contudo  as  fumas  sã,©  anti-hi- 
giénicas  o  desconfortáveis,  comparadas  com  as  casas  dos  remediados 
das  vilas  e  dos  próprios  campos. 

Nas  vivendas  do  primeiro  tipo  a  mobília  compõe-se,  geralmente, 
dum  catre  e  duma  caixa  ou  arca  de  qualquer  madeira  indígena,  um 
alguidar  de  barro  vidrado,  uma  gamela  de  til,  um  banco  ou  cadeiras 
toscas,  por  vezes  também  uma  mesa  tosca,  e  pouco  mais;  a  caixa 
ou  arca  quási  sempre  serve  de  mesa. 

Nas  do  segundo  tipo  encontramos  o  mobiliário  mais  apurado,  se 
bem  que  nEo  vai  muito  além  do  já  exposto.  Estas  têm,  geralmente, 
como  disse,  três  compartimentos:  um  é  destinado  ao  casal,  outro 
aos  filhos,  e  o  terceiro  é  sala  de  visitas  e  de  jantar  e  onde  as  mu- 
lheres se  entregam  ao  bordado  durante  a  estação  do  inverno,  porque 
quando  o  tempo  é  bom,  tomam  as  refeições  e  bordam  ao  ar  livre, 
cantando  desde  o  pôr  do  sol  até  á  noite  como  os  bandos  do  passa- 
rinhos que  perto  as  desafiam.  A  cozinha  fica  quási  sempre  ao  lado 
numa  gruta  ou  abrigo,  ou,  quando  ó  possível,  num  telheiro  duma 
só  água,  ou  palheiro;  por  vezes  é  na  cozinha  que  se  come. 

As  fumas  s^o  habitadas  por  alguns  lavradores  e  pescadores; 
encontram-se  estas  vivendas  em  toda  a  ilha,  quer  no  litoral  quer 
no  interior.  Citaremos,  ao  acaso,  duas  habitações  do  segundo  tipo 
no  sítio  da  Ponte  Vermelha,  ao  lado  direito  de  quem  segue  da  Ri- 
beira Brava  para  a  Serra  de  Agua:  estas  construções  são  relativa- 
mente modernas,  pois  foram  edificadas  há  uns  oito  anos. 

O  número  de  liabitações  deste  tipo  é  menor  do  que  o  do  primeiro. 
Deste  encontraremos,  por  exemplo,  as  furnas  do  sítio  do  Ilhéu, 
no  concelho  de  Câmara  do  Lobos,  e  muitas  moradas  nos  concelhos 
da  Ribeira  Brava  e  do  S.  Vicente,  etc. 

Há  também  habitações  meio  encaixadas  na  rocha:  delas  temos 
um  exemplo  frisante  no  sitio  da  Tintagaia,  no  concelho  da  Ribeira 
Brava.  Sa,o  om  muito  menor  número  que  as  descritas  anteriormente ; 
apresentam  a  mesma  divisJlo  interna  e  têm,  por  vezes,  lojas  e  primeiro 
andar.  A  parte  que  sobressai  é  coberta  com  telha,  zinco  ou  colmo, 
havendo  para  isso  um  travejamento  parcial  de  madeira  de  castanho. 

Muitas  vezes  a  furna  deixa  de  ser  habitação,  e  passa  a  ter  outras 
aplicações.  Em  alguns  sítios  dJlo-lho  a  designação  de  Japas. 

Como  habitação  temporária  devemos  mencionar  as  muitas  furnas, 
hoje  desprezadas,  que  os  trabalhadores  fizeram  quando  construíam 


Boletim  de  Etnografia  13 


as  levadas  da  Eiboira  do  Inferno,  do  ]\Ionto  Medonho  o  do  Eabaçal; 
aí  guardavam  os  explosivos  o  as  ferramentas  do  sou  ofício,  o  ai 
dormiam  muitas  vezes,  pela  grande  distância  a  que  estavam  dos 
casais  mais  próximos  da  Serra. 

Ao  lado  destas  /itni«jí-habitações  há  também  aquelas  onde  criam 
gados  e  arrecadam  os  produtos  das  fazendas  e  aparelhos  do  pesca, 
havendo  algumas  k  beira  das  estradas  transformadas  em  pequenas 
mercearias,  tabernas,  armazéns,  etc. 

Ainda  modernamente  se  fazem  estas  construções  com  todos  os 
intuitos  indicados,  apesar  de,  com  o  ouro  que  a  colónia  madeirense 
traz  do  Brasil  o  América  do  Norto,  se  terem  edificado  dispendiosas 
vivendas  onde  existo  mais  elegância,  iiigieno  o  conforto,  mas  indubi- 
tavelmente mais  perigo. 

Quantas  e  quantas  vezos,  ao  passarmos  por  certas  casas  à  beira 
de  abismos  ou  com  verdadeiras  muralhas  a  suster  alguma  derrocada, 
nos  tememos  de  ali  vi\er! 

João  Estêvão  Pinto 

(Aluno  díi  Faculdade  do  Letras  do  Lisboa) 


Vida  portuguesa  antiga 
segundo  documentos  iconográficos 

«Vultiiiiiu.s  Uh  ollios  [i;ii';i  os  monumentos 
ir;iqm:llas  i^ras  antigas  em  que  ellas  fiidinente 
se  reíleclem». 

IIeuculano,  OpvaculoUjW  (3.°  ed.j,  101. 

As  artes  [ilasticas,  se  podem  constituir  por  si  mesmas  elementos 
de  Etnografia,  tornam-so  também  para  o  etnografo  muitas  vezes 
fontes  de  informação,  pon[U('  o  artista  possiie  o  dom  de  reproduzir 
na  pintura,  na  gravura,  na  escultura,  e  na  ar([uitectura,  isto  é,  no 
desenho,  as  impressfie»  que  recebe  na  contemplação  do  que  o  rodeia. 
Tais  fontes  sao  sobretudo  preciosas  para  o  indagador  das  cousas 
do  passado,  na  impossibilidade  em  ([ue  elo  se  encontra  de  as  examinar 
directamente. 

Ora  certos  livros  antigos  contêm  vinhetas,  tarjas,  letras  capitu- 
lares, o  outras  gravuras,  que  representam  scenas  venatorias,  [)iscato- 
rias,  campestres,  domésticas,  e  bem  assim  industrias,  edificios,  trajos, 
veículos,  armas,  instrumentos  nmsicos,  concepções  míticas  e  reli- 
giosas, aspectos  de  batalhas,  tipos  sociais,  numa  palavra,  tudo  quanto 
forma  assunto  etnográfico.  Em  caso  análogo  estão  alguns  manus- 


14 


Boletim  de  Etnogeafia 


critos,  no  que  toca  a  ornatos  que  os  embelezam.  Por  outro  lado  ha 
esculturas,  do  pedra,  do  madeira,  de  barro,  que  representam  pessoas, 
lendas,  quadros  do  género;  ha  azulejos,  loiças,  vidros,  telas,  retá- 
bulos com  pinturas  de  variados  actos  da  vida  humana.  Percorrendo 
as  demais  artes,  a  da  medalha,  a  toreutica,  a  tapeçaria,  etc,  nâo 
escassearão  materiais  etnográficos  da  mesma  natureza. 

Creio  que  com  arquivar  reproduções  de  desenhos  como  os  que 
ficam  mencionados  se  prestará  serviço  á  sciencia.  A  isso  se  destina 
pois  a  secção  que 
ora  se  inaugura  no 
Boletim.     A    ten- 
tativa oferece  po- 
rém ás  vezes  difi- 
culdades,   nao    só 
°^^   quanto  á  denomi- 
nação   exacta    de 
objectos  que  dife- 
'O    ^x>  I     \[p    pgjjj    (jog    actuais, 

^'s-^  para   a    qual   nos  ^'«"^ 

faltam  seguros  pontos  de  apoio,  mas  quanto  ao  julgamento  do  ca- 
racter nacional  de  alguns  desenhos,  por  exemplo,  dos  de  livros 
impressos  por  indivíduos  de  nacionalidade  não  portuguesa.  As  gra- 
vuras que  exornam  esses  livros  sao  originais,  ou  vieram  de  fora? 
Nem  sempre  se  saberá  responder.  Vid.  o  que  a  este  respeito  dis- 
seram: Ribeiro  dos  Santos,  «Origem  da  Tipografia  em  Portugal» 

in  Memor.  de  Lit.  da  Acad.  das  8c., 
t.  VIII,  2."  ed.,  pp.  72  o  136;  Sousa 
Viterbo,  A  gravura  em  Portugal,  p,  4; 
e  D.  Carolina  Michaêlis,  Autos  portug. 
de  OU  Vicente,  Madrid  1922,  pp.  60-69. 
Em  todo  o  caso^  quando  as  gravuras, 
ainda  as  que  porventura  não  tenham 
origem  nacional,  concordarem  com  cos- 
tumes e  ideias  nacionais,  não  hesitarei 
em  as  reproduzir.  Por  causa  das  duas 
dificuldades  que  apontei,  sobretudo  da  primeira,  não  se  admirem 
os  leitores  se  no  que  vão  ler  se  lhes  depararem  por  vezes  erros, 
omissões,  e  dúvidas. 

Embora  o  Boletim  se  destine  primeiramente  á  Etnografia  mo- 
derna, as  cousas  que  o  constituem  estão  ás  vezes  tâo.  unidas  ás  que 
constituem  a  Etnografia  antiga,  que  mais  vale  estudar  tudo  junto, 


Kg.  3 


Boletim  dje  Etnogeafia 


15 


do  que  em  separado.  Não  seguirei  nenhuma  ordem  cronológica  ou 
especifica.  O  meu  estudo  uSo  passa  de  mera  colecção  de  achegas 
avulsas,  destinadas  a  obra  maior. 

1.  Scena  de  caça,  do  sec.  xvi.  Gravura  tirada  do  frontispício 
do  t.  II  das  Ordenações  manuelinas,  do  1514  (exemplar  da  Biblio- 
teca Nacional)*. — Um  individuo  com  um  pau  na  mão  esquerda  cami- 
nha em  terreno  hervoso  e  pedregoso,  e  açula  com  a  direita  dois  cães 

contra  duas  lebres  e  um 

coelho,    que    fogem    a 

bom  fugir  adiante  d'ele, 

por  um  bosque.  O  ca- 
çador  tem    na   cabeça 

chapéu  de  grande /raZ- 

f/a*,    veste  pelote^,    e 

calça  çapatos. — Vemos 

aqui    um    exemplo    de 
i"ig.  5  caça  primitiva,  em  que 

o  caçador  leva  por  única  arma  um  pau,  sistema  ainda  hoje,  em 
certos  casos;  corrente  entre  nós. 

2.  Scena  de  pesca,  do  sec.  xvi.  Gravura  que  tem  a  mesma 
procedência  que  a  anterior.  Um  individuo,  sentado  numa  escarpa  á 
beira-mar,  pesca  á  linha,  descansadamente:  tem  como  o  caçador, 
chapéu  e  pelote. 

3.  Scena  agraria,  do  sec.  xvi:  gravura  que  tem  a  mesma 
procedência  das  anteriores.  Um  individuo,  de  pelote  e  gorra,  com 
uma  enxada  nas  mios,  está  cavando  a  terra  com  grande  atenção. 


Fig.6 


'  As  Ordenações,  por  causa  das  estampas  que  as  adornam,  são  bastante 
curiosas,  quanto  ao  assunto  de  que  me  estou  ocupando.  Vid.  uma  descrição  d'elas 
no  t.  XVII  do  Dice.  Bibliográfico  de  Innocencio  &  Aranha,  p.  121  sgs.,  onde  se 
reproduzem  as  estampas.  Estas  correspondem  aos  assuntos  tratados  nos  diferen- 
te» livros  das  Ordenações. 

'  Para  sabornioi  os  nomes  de  alguns  trajos  antigos,  podemos  ás  vezes  recorrer 
aos  dicionários  latino-portugueses,  quando  esses  trajos  se  pareçam  com  os  roma- 
nos. Jerónimo  Cardoso  (sec.  xvi)  no  seu  iJiclionarium  traduz  o  latino  galerus  por 
«chapéu  de  pouca  fralda^',  isto  é,  de  «pouca  aba».  Por  isso  empreguei  no  texto 
fralda.  —  Por  «chapéu»,  também  outr'ora  se  dizia  sombreiro,  por  exemplo,  G.  F. 
Trancoso,  do  mesmo  século,  Contos,  ed.  de  1G24,  fl.  76;  mas  esta  palavra  tinha 
a  par  a  significação  de  «guarda-sol»,  pois  Cardoso  traduz  com  ela  o  latim  um- 
bella.  Hoje  sombreiro  conserva  ainda  as  duas  significações,  conforme  as  terrai. 

*  J.  Cardoso  traduz  o  latim  túnica  por  «pelote»,  e  túnica  manicata  por  «pe- 
lote com  mangas».  Também  Trancoso  fala  de  pelote  de  mangas  e  fralda:  Contos, 
fl.  12. — O  trajo  que  usa  o  nosso  caçador  parece-se  com  a  túnica  manicata. 


16 


Boletim  de  Etnografia 


Fig.  7 


Kig.  8 


Porto   d'clo  jaz  um   cestinho   arredondado,   do  duas  asas,   com  a 
merenda. 

4.  Scena  agraria  do  sec.  xvi:  gravura  procedente  das  Orde- 
nações, como  as  três  anteriores.  Um  individuo  lavra  pacificamente 

a  terra:  com  a  mão  esquerda  pega  na 
rabiça  de  um  arado,  que  levam  dois  bois, 
de  cujos  corpos  só  porém  se  vêem  os 
quartos  trazeiros;  com  a  direita  segura 
uma  aguilbada,  provida  de  pàzinha  ou 
arrelhada,  na  extremidade  inferior*.  O  la- 
vrador, de  pelote,  tem  na  cabeça  um 
chapelinho  do  pouca  aba,  mas  alta,  como 
os  das  Varinas,  á  maneira  de  barrete  do- 
brado para  cima;  nos  pés  calça  çapatos 
iguais  aos  do  caçador  e  cavador,  de  que  já  falei;  nas  pernas  veste 
meias- calças  ou  polainas^. — ^ Acerca  das  formas  do  arado  português 
e  nomenclatura  das  suas  peças,  vid.  Adolfo  Coelho  in  Portugália, 
I,  407  sgs. 

5.  Três   prisioneiros   descobertos  e  carregados  de  ferros, 
e  de  mãos  postas  pedem  misericórdia  (ao  rei):  gravura  extraída 

das  Ordenações  de  1514 
(ultimo  tomo).  Os  prisio- 
neiros estão  de  joelhos  so- 
bre um  estrado.  A  figura 
da  esquerda  representa  um 
homem,  de  barbas  flutuan- 
tes; a  do  meio  representa 
ç^  provavelmente  uma  mu- 
lher, como  se  vê  do  cabelo ; 
a  da  direita,  que  tem  des- 
coberta uma  perna,  repre- 


Fig.  4 

sentará  tambom  um  homem.   O  vestuário  da  figura  do  meio  tem 
mangas,  de  larga  abertura  dianteira.  Os  ferros  ou»cadeias  prendem 


1  O  termo  arrelhada  vem  em  Bento  Pereira,  Thesouro,  que  o  define :  «instru- 
mento (lo  alimpar  o  arado»,  e  liie  dá  ruUa  como  equivalente  latino.  A  í-ulla,  ou 
rallum,  ora  de  facto  uma  espécie  de  pá  que  se  adaptava  ao  topo  inferior  da  agui- 
Ihada. 

2  Cardoso,  num  raro  livrinho  que  possuo,  intitulado  Diclionarium,  e  que  deve 
sor  o  frugiferum  (no  meu  exemplar  falta  o  rosto),  põe  a  p.  28,  entre  o  vestuário 
das  pernas,  as  meas-calças,  ao  lado  das  ciroulas,  calções,  piugas,  borzeguim,  ete.; 
e  traduz  essa  expressão  por  tibialia. 


Boletim  de  Etnografia 


os  pescoços  de  todos  os  três  prisioneiros,  c  alem  d'isso  os  dois 
punhos  do  primeiro,  e  uma  perníi  do  cada  um,  ligando-se  por  íim 
entre  si  num  dos  ângulos  do  estrado,  onde  os  segura  uma  íeciíadura 
quadrada. 

6.  Pessoa  algemada  e  levada  de  rastos  por  um  cavalo, 
que  vai  montado  por  um  cavaleii'0  que  empunha  na  dextra  um  chi- 
cote. Gravura  extraída  do  Fios  Sanc- 
torum,  ed.  de  ir)l,3,  fl.  122  v  (exemplar 
da  Biblioteca  Nacional) '.  O  castigo 
ou  suplicio  de  atar  á  cauda  de  um 
cavalo  uma  pessoa  condenada  á  morte, 
já  aplicada  na  antiguidade^,  ainda  se 
aplicou  em  Lisboa  em  1728'''.  Numa 

U*i  Wjâ^^^^ttJI      sentença    impressa,    que  possuo,   <ie 
__^^it^s^^^S-r^^     183<J,  manda-se  igualmente  que  certos 
*'*■"  reiís,  condenados  á  morte,  sejam  «ar 

rastados  desde  a  cadôa  até  o  lugar  do  postibulo» :  devo  entender-se 
arrastados  por  cavalos.  Também  igual  pena  figura  no  romanceiro 
popular:  quando  o  marido  de  D.  Ana  ou  D.  Infanta  vem  de  longe, 
nílo  conhecido  por  ela,  o  lho  pede  o  corpo, 
a  esposa  responde-lhe  ofendida: 


iig.  U 


Cavaleiro  que  tal  diz 
Devia  ãer  amarrado 


A  volta  do  iiiou  jardim. 
Ao  rabo  do  meu  cavalo  *. 


Os  romances   populares  conservam  notícia 
do  muitos  costumes  do  passado. 

7.  Gaiteiro,  vestido  analogamente  ao 
lavrador  do  §  4:  gravura  extraída  da  Rvla- 
(jam  dos  arredoreu  de  Lixhoa,  1625  (^exemplar  da  Biblioteca  Nacio- 


Fig.  10 


nal, 


vermelho' 


Bocçào  de   reservados).   No  meu  livro  l)c   Campolide 


1  O  Fios  Sanctorum  não  ó  original  portiiguíis.  Ele  iiroprin  si;  dá  ivinio  ti'adu- 
yão  (la  Y'stoiea  Lombarda,  isto  i',  da  llinloria  Lombardica,  ou  LeijCndii  aarca,  de 
Jaeobo  de  Voragine  (»ec.  xm).  Algumas  das  f,'iavuras  do  tios  Saiiclonim  aparo- 
cein  noutras  oliras,  por  exemplo,  na  Co[iila(;aiii  da  reijra.  .  do  Padre.  .  Sam  Fran- 
cisco, Lisboa  1530  («per  Hermã  tJalliarti!»!,  qu(;  vem  descrita  no  tíatalogo  10.° 
da  Livraria  de  .losé  dos  Santos,  Lislioa  l'Jll,  p.  49  sgs. 

*  Vid,  Du  Hoys,  Hist.  da  droit  criminei  des  peiípUs  anciens,  Paris  1815, 
p.  432. 

'  Pinho  Leal,  Portug.  aiit.  e  mod.,  iv,  3H1. 

♦  Vid.  o  men  lioinanceiro  PorUujaez,  Lisboa  18W,  p.  41. 


18 


Boletim  dí:  EtsíujiiauA 


a  Melrose,  Lisboa  1915,  pp.  83  (-85),  nota,  juntei  algumas  notí- 
cias acOrca  da  liistoria  da  gaita  do  Iblo.  Esto  instrumento  musico 
foi  muito  querido  outr'ora  entre  nós,  e  ainda  o  é  em  algumas  rc- 
giftos:  a  arte  o  a  poesia  apodoraram-se  d'ele,  o  iiflo  faltam  nem 
obras  que  se  lhe  refiram,  nem  gravuras  ou  esculturas  que  o  exaltem. — 
Ha  uma  figura  igual  numa  obra  hcspanhola,  impressa  em  Lisboa 

ácm  1589,  em  casa  de 
B.  Rodrigucz,  com  o 
titulo  dtí  El  i^astor  de 
P/l  ilida  (exemplar  da 
Biblioteca  Nacional, 
soc(;iio  de  reservados, 
porém   a   primeira  fi- 


Hg.  15 


ijura,  o  não  esta,  ape- 
sar de  mais  antiga,  porque  a  vara  da  gaita  está  aqui 
iig- 12  incompleta.  Uma  mesma  gravura  serviu  para  as  duas 

obras,  como  não  raro  acontece. 

8.  Pregador  que  prega  num  púlpito  modesto,  séculos  xv-xvi. 
Do  Fios  Sanctoruvi  (já  citado),  fl.  199. 

9.  Ex-votos  do  sec.  xv-xvi,  levados  a  S.  Antão.  Do  Fios 
Sanctorum  (já  citado),  fl.  2G.  Os  ox-votos,  pendurados  de  uma  vara 
horizontal,  consistem  em  duas  pernas,  uma  mão  e  dois  corações.  Já 

me  referi  a  esta  gravura  na  Ifist.  do  Museu 
Etnológico,  pp.  28-29.  Acerca  do  ex-votos 
antigos  (sec.  xiv),  vid.  O  Arc/t.  Port.,  xxii, 
142. 

10.  Temos  aqui  a  figura  de  um  berço 
com  uma  criança  (sec.  xv-xvi):  a  um  lado 
um  bispo,  sentado  numa  cadeira,  de  mitra 
e  báculo,  abençoa  a  criança;  do  outro  a  mãe, 
de  lenço  na  cabeça  e  mãos  postas,  reza  com 
^'k-'*  devoção;  na  parede  abre-sc  um  postigo  de 

rotula  (postigo  de  arco  de  volta  redonda,  com  uma  divisão  horizon- 
tal ao  meio).  Poderá  entender- se  quo  a  criança  está  doente;  a  cabeça 
envolta  num  lenço,  sobrcssao  d'entre  a  roupa  do  berço,  e  pousa  numa 
almofada.  Gravura  extraída  do  Fios  Sanctorum  (já  citado):  vid.  fl.  27, 
159,  165.  A  forma  do  berço  é  mais  uma  para  juntar  ás  que  publiquei 
na  Revista  Lusitana,  x,  14—16. 

11.  Concepção  antiga  do  Diabo:  de  unhas  nos  pós,  e  ga- 
lhos na  cabeça,  como  um  bode.  Do  Fios  Sanctorum  (já  citado),  fl.  41. 


lioj.ETlM    DE    ETKOGHAflA 


19 


t'<l 


A  figuríi  tom  um  letreiro,  numa  titã,  quo.diz  «Siitan».  O  focinho 
parece-so  com  o  do  luu  orango-tango ;  o  apêndice  que  sobressae 
abaixo  do  gallio  direito  deve  ser  uma  oreliia  disforme. 

12.  Grrelha  antiga:  do  Fios  tíanctoriun  (já  citado),  ti.  121. 
Igual  ás  de  hoje. 

13.  Personagem  que  traljaliia -soJire  um  cepo  com  formão  e 
maço.  O  trajo  ó  análogo  a  outros  do  que  já  falei:  chaptui  de  aba 

curta,  pelote,  capa-     r^ 

tos.  Do  Fios  iSajic- 

tortim    (já    citado), 

fls.  176  V  o  L%  f. 

14.  Uui    bispo, 

do  mitra  na  cabeça,  rig.  n 

báculo   na   mão   direita,   o  um  livro  na  mão   es- 

,v.^-r..-f-  »Mj-,.>->,i    qi'iíi"da,  está  sentado  numa  cadeira.  Na  parede 

^''■'^t~*V'  "Vl^f^ai;  (lu   coiiipartimento   abre-sc  uma  janela  rectau- 

FiK.  i«  giiim-  Je  rotula  (cf.  supra,  fig.  10).  — Do  Flo.^ 

Sanctorum  (já  citado),  fl.  41. 

15.  Personagem  em  cabelo,  de  pelote  (sem  mangas)  e  ca  pa- 
tos segura  com  as  mãos  uma  tenaz.  Do  Fios  tíanctoruin  (já  citado), 
H.  105. 

10.  C'oncej)eão  antiga  da  Iforte:  um  escpielcto,  de  pé,  em 
chão  remexid(j  (de  cemitério),  sobraça  á  es(piorda  um  caixão,  e  en- 
costa-so  com  a  mão  direita  a 
uma  pá.  Do  Fiou  Sanrtorum  fjá 
citado),  fl.  l<j(3.  lOntende-se  que 
a  pá  é  para  tirar  a  terra  da 
sepultura,  o  o  caixão  para  con- 
ter o  cadáver   de  cada  homem. 

17.  Leito  do  sec.  Xii.  Do 
Comentário  d(j  Apocalipse  de 
Lorvão  (na  Torre  do  Tombo)'. 
Leito  do  certo  luxo,  com  co- 
lunas o  rendilhado  d(^  madeira 
(espécie  do  balaustrada). 

18.  Naus  o  barcos  do  sec.  xv-xvi.  Das  Ordenações  manueli- 
nas (já  citadas),  frontispício  do  t.  iii.  As  naus  tôm  porém  já  para 
o  tempo  caracter  um  tanto  arcaico  c  estereotipado. 

J.  L.  Di:  V. 


Fig.  18 


*  Acerca  iTcstc  Cuinoiítario,  cl".  O  Arch.  l'orl.,  xxiii,  238. 


20 


Boletim  de  Etnografia 


Teares 

Tecer  era  antigamente  uma  das  ocupações  mais  vulgares  e  cons- 
tantes da  mulher  portuguesa.  Quasi  não  havia  casa  que  nSo  possuísse 

um  tear.  Cf.  Boletim 
de  Etnografia,  n."  1, 
p.  6,  e  O  Arch.  Port., 
V,  199. 

Na  impossibili- 
dade de,  por  falta  de 
tempo,  especificar 
aqui,  com  os  seus 
nomes,  todas  as  pe- 
ças que  constituem 
os  teares,  segundo  as 
províncias,  vou  po- 
rém publicar  três  es- 
pécimes d'essa  curio- 
sa e  útil  máquina. 
1.  Temos  na  fig.l 
uma  fotografia  de  um 
quadro  exposto  pelo 
S.'"'  Alberto  Sousa, 
ha  anos,  no  Museu 
do  Carmo  (fotografia 
tirada  pelo  S."  A.  F. 
Settas,  da  Imprensa 
fík.  1  Nacional). 

2.  Na  fig.  2  um  desenho  do  mesmo  ilustro  artista  Alberto  .Sousa, 
extraído  do  um  seu  álbum.  O  tear  desenhado  pertence  a  Nisa. 

3.  Na  fig.  3  uma  fotografia  de  um  modelo  de  tear  (de  dimensão 
pequena)  existente  na  secção  etnográfica  do  Museu  Etnológico,  e 
provindo  do  Jllnlio. 

Ultimamente  ])ublicou  o  D."''  Laranjo  Coelho,  na  lierhta  Luni- 
tana,  xxii,  uma  gravura  de  um  tear  como  ilustração  de  um  impor- 
tante artigo  que  aí  inseriu  respectivo  á  industria  dos  cardadores  de 
Castelo  de  Vide.  A  gravura  está  acompanhada  de  nomenclatura 
da  peça.  Esta  nomenclatura  suprirá  por  agora  a  falta  que  acima 
notei  no  meu  artigo,  e  para  ela  remeto  o  leitor. 


Boletim  de  Etnografia 


21 


R  V).-,^V. 


Boletim  de  Etxogeafia 


«Espelhos»  de  portas 

Chama-se  esppJho  de  porta  ou  de  fechadura  uma  chapa  de  ferro 
quo  so  prpga  na  porta  exterior  de  uma  casa,  no  lado  oposto  ao  da 


.í^  W  ^; 


Kig.  3 


Flg.  1 


Fi?.2 


Kig.  4 


fechadura,  chapa  em  que  ha  uma  a1)ertura  para  entrar  a  chave. 
Um  espelho  d'estes  podo  ser  muito  singelo,  com  fóriua  puramente 
geométrica,  por  exemplo,  de  losango,  ou  recortado,  to- 
mando então  várias  formas  artisticas. 

Já  no  Boletim  n."  1,  p.  20,  se  publicou  um  de  uma 
casa  de  Estremoz;  aqui  se  publicam  outros,  existentes 
no  Museu  Etnológico:  figs.  1  a  õ*. 

Excepto  o  tipo  da  fig.  5,  todos  os  outros  são  vulgares, 
ainda  que  o  tipo  da  fig.  2  (';  mais  com])licado  do  que 
de  costume.  O  tipo  da  fig.  5  forma  verdadeiramente  uma 
cruz,  quo  na  sua  parte  superior  faz  lembrar  a  da  Or- 
d(mi  de  Avis.  Como  noutros  lugares  tenho  dito,  a  cruz  que  se  vê 
em  alguus  d'estes  tipos  destina  se  na  origem  a  afugentar  os  espirites 
maus,  isto  é,  na  crença  popular,  o  Diabo.  Cfr.  Ilisf.  do  Museu  Etno- 
lógico, p.  20G,  nota  6. 

J.  L.   DE  V. 


1-i?. ; 


'  Desenhos  Jo  S.°'  Saavoílra   Atachaflo,  antifro  Desenliatlor  do  Museu. 


Boi.KTIM    DE    EtXOGRAFIA 


23 


Pescador  da  Figueira  da  Foz 

A  fig.  1  roprcseata  um  pescador  da  Figueira  da  Foz,  no  mo- 
mento de  concertar  uma  rede  de  pesca:  tipo  de  lobo  do  mar,  mãos 
calosas,  cara  de  grossas  feições,  enrugada,  o  coberta  de  barba,  bar- 
rete na  cabeça,  com  a  ponta 
terminada  om  borla,  o  caida 
para  trás.  Tem  nas  milos  uma 
agulha  de  rede,  de  madeira'. 

O  barrete,  de  extremidade 
cónica,  tal  como  o  vemos  na 
cabeça  do  pescador,  usa  se 
mais  ou  menos  por  todo  o  Por- 
tugal; na  Beira  Alta  charaain- 
-llie  carapuça,  palavra  cor- 
respondente? a  caperiiza,  em 
iiespanhol,  onde  se  aplica  a  um 
ol)jecto  da  mesma  iurina.  An- 
tigamente também  as  Saloias 
usavam  carapuça,  como  ainda 
agora  as  Viloas  da  Madeira 
(cf.  Boletim,  n."  1,  p.  14)*. 
A  palavra  barrete  relaciona-se 
com     fxirrete    em     licspanliol,  fir.  i 

harette   ou    barrette   em    francês,   hurretta  em   italiano:    tudo   vindo 
do  lat.  l)irrus  ou  l)irrum,  manto  de  capuz. 


'  A  {gravura  a-;si'iila  numa  f(ito(,'rafia  ilo  S."'  Pereira  Afuiiteiro,  que 
mi-  r.)i  iifiTciiila  jiftlo  D."'  (íorrcíia  Monteiro,  Assistente  ila  Kacnlilade  ilo 
Letras  ili  Universiilade  de  Coimbra. 

.  2  ( >  trajo  ila.5  Saloia  eonlieiíemo-lo  ])or  várias  estampas  dos  fins  do  séc.  xviii  e 
eome<;os  ilo  xix,  pnhlieailas  em  1'aseienlos  (Cfr.  Ferreira  Lima,  Coslumes  yorluyue- 
«e<i,  liisboa  11M7).  Informam-me  <iiie  á  porta  de  eertas  igrejas  do  território  saloio, 
•por  ftxemplo  S.  João  das  Lampas,  ha  umas  mesas  de  pedra,  chamadas  «das  ea- 
r.ipMeas'.,  ond<!  a-.  Saloias  ponham  as  earapuças,  ao  entrarem  para  a  missa.  Uma 
eantiga  p:>piilar,  ou  popularizaila,  diz: 

Sou  Saloia,  traí;o  Uotas,  S  Tamhem  Um  a  carapuça 

Tambtím  tra^^o  o  meu  minteu,  3  A  ((uein  me  tira  o  «diapeu. 

<iue  ouvi   uns  Saloios,  e  ile  ípu'  .V. 'l'li.  Pires  dá  uma  variante  nos  seus  Cantos 
yi')/i.  jiortui/.,  t.  IV,  p.  4.5ít. 


24  Boletim  de  Etnografia 

Os  Sardos  usam  ura  barreto  que  lembra  o  nosso,  como  observei 
em  Roma;  chama-se  berrita  em  logudorês*.  Num  folheto  italiano  que 
tenho  presente,  impresso  em  Florença  em  1921,  figura-se  igualmente 
um  individuo  de  barrete  como  os  que  cá  se  usam. 

Todos  estes  barretes  se  assemelham  ao  que  os  Gregos  chama- 
vam ttí/.o;  (^  os  Romanos  pi/eun  ou  pileui»,  também  usado  por  outros 
povos.    A    palavra  pileits   confundem-na   os    autores 
latinos  ás  vozes  com  ape.r,  gaíerns,  e  tutubtu.  O  pilus 
ou   o  -íJiOi;  era  usado  por  gente  modesta:  pastores, 
caçadores,  artífices,  trabalhadores  rurais,  mendigos, 
J'^    marinheiros ;  e  também  ás  vezes  por  mulheres.  Caía 
*       para  diante,  ou  para  trás,  como  o  nosso  barrete.  Do 
"n^  assunto  tratou  o  S.*""  Pierre  Paris  num  artigo  do  Dict. 

(leu  fintiqnit.  de  Daremberg  &  Saglio*.  Veja-se  na  fig.  2',  de  tamanho 
natural,  nm  bronzezinho  romano  do  Museu  Etnológico,  provindo  do 
Algarve:  cabeça  feminina,  de  pilus,  cuja  ponta  pende  para  diante. 
Em  latim  toma-se  pãeus  ou  pileum  por  simbolo  da  liberdade, 
por(|ue,  ao  passo  que  os  homens  livres  podiam  trazer  coberta  a 
cabeça,  os  escravos  nSo,  e  só  punham  o  barrete  quando  recebiam 
a  alforria,  d'onde  a  expressão:  serros  ad  pileum  vocare''.  No  citado 
Dict.  des  antiquités,  s.  v.  «Libertas»,  num  artigo  do  S."  A.  Blan- 
chet,  reproduz-se  uma  moeda  de  ouro  do  imperador  Cómodo,  em 
que  se  representa  a  deusa  Liberdade  com  o  pileus  na  mão,  análogo 
ao  nosso  barreto.  A  moeda  faz  também  referencia  o  S.*""  Paris. 
Costuma  chamar-so  barrete  friç/io  a  esse  simbolo  da  liberdade:  de 
facto,  em  latim   ha  phripjium  (scil.  pileum)  no  sentido  de  barrete 

frigio'''. 

J.  L.  PE  V. 


Gestos  artísticos 
I 

Tendo  visitado  ha  anos  em  Viana  do  Castelo  o  museu  cerâmico 
do  S."'"  D."''  Luis  de  Oliveira,  chamou  a  minha  atençRo,  entre  outras 
peças  d'ossa  colecção  rica  e  notável,  uma  saboneteira  de  faiança,  em 


'  Cf.  Max  L.  AVagncr,  Das  lUndliche  Leben  Sardiníenx,  p.  140. 

2  s.  V.  pileux,  pileum. 

3  Desenho  de   Francisco  Valença,   Desenhador  do  Musen  Etnológico. 
'^  Cf.  Forcellini,  Lex.  tot.  latinit.,  s.  v.  njiileum». 

^'  Em  Ocorges,  Lat.-deiitsches  Hdw.,  s.  v.  «Phryges». 


Boletim  de  Etnografia 


25 


cuja  tampa  se  figurara  uma  rapariga  nua,  com  a  mfto  esquerda  pou- 
sada na  coxa,  a  cabeça  encostada  á  dextra,  e  o  respectivo  cotovelo  fixo 
no  joelho :  gesto  de  meditação. 

A  saboneteira,  segundo  o 
S."  D.»'  Oliveira,  é  do  sec.  xvii, 
e  foi  fabricada  em  Lisboa. 

Na  fig.  1  reproduzo  uma 
fotografia  que  ele  me  enviou 
em  1919.  Certamente  está  já 
incluida  no  livro  que  depois 
deu  a  lume  sObre  a  exposição 
de  faianças  que  se  realizou  em 
191.')  em  Viana.  Nao  posso 
agora  verificar:  em  todo  o 
caso,  escrevo  a  presente  noti- 
cia para  poder  dar  aos  leitores 
do  Boletim  amostra  do  um 
curioso  gesto  que  pertence 
á  classe  dos  que  publiquei  na 
minha  Etnografia  Artistica,  fase. 
vol.  u  da  Alina  Xova. 

II 


FiK.  1 


m,   Lisboa   1917,   soparat.a  do 


No  Institato  de  Medicina  Legal  do  Porto  ha  algumas  amostras 
de  tatuagem  encontradas  om  cadáveres,  o  conservadas  na  ])ro|iria 
pele  que  se  separou  d'este8,  entre  elas 
a  que  se  representa  na  fig.  2,  segundo 
uma  fotografia  que  me  enviou  o 
D."  Pedro  Victorino.  Temos  aí  o  amu- 
leto emblemático  da  fé,  esperança, 
e  caridade  (cruz,  ancora,  e  coração) ', 
sob  o  qual,  entre  dois  ramos  ou  silvas, 
se  vêem  duas  m^os,  com  parte  dos 
respectivos  punhos,  aportadas  uma 
na  outra,  isto  t'",  o  gesto  de  aperto 
de  mfio.  Em  linguagem  familiar  diz-so 
dar  uma  mãozada  por  «dar  ou  aper- 
tar a  mâo». 

Aperta-se  a  milo: 

1)  como   cumprimento   de   saudação,   e   também   de  (lesp<Mliaa 


Kl(f.  2 

também  de 


da 


'  Cf.  De  Campoliãf  a  Melroxe,  pp.  92,  9.3  (o  nota  1). 


26  Boletim  de  Etnogkafia 

2)  em  siaal  de  agradecimento  por  um  beneficio  recebido; 

3)  para  felicitar  alguém,  ou  dar-lbe  pêsames; 

4)  para  confirmação  do  palavra  dada,  ou  acordo; 

5)  como  simbolo  juridico:  casamento,  etc. 

6)  de  modo  geral,  como  sinal  de  amizade. 

Ao  gesto  de  dar  a  mão  se  refere  um  pouco  Diogo  de  Paiva 
de  Andrada,  Casamento  perfeyto,  ed.  de  1726  (o  A.  é  do  sec.  xvii), 
p.  65.  Do  mesmo  gesto  nos  antigos  se  ocupa  Sittl,  Dte  Gebãrden  der 
Oriechen  und  líúmer,  Leipzig  1890,  p.  28,  etc.  Acerca  dos  Germa- 
nos Grimm,  vid.  Deutsche  Rechtsalterthumer,  cap.  iv,  Symbole,  li, 
§  1.  A  propósito  do  rito  da  mão  velada  ou  coberta,  estudado  num 
artigo  de  11.  Bachtold,  em  alemflo,  nas  Archives  suisses  des  trad, 
pop.,  vol.  XX,  cita  ele,  a  p.  11,  esta  frase  de  Du  Méril:  «cn  accordant 
une  main  ouvorto,  on  la  donnait  réallement  et  irrévocableinont». 

Duas  mãos  apertadas  uma  na  outra,  como  na  tatuagem  aqui 
desenhada,  aparecem  ás  vezes  como  emblema  de  sociedades  comer- 
ciais. 

J.  L.  DE  V. 


Tipos  e  cousas  do  Alentejo 
I 

Ao  primoroso  lajjís  do  S.'"'  Alberto  Sousa  se  devem  os  se- 
guintes desenhos  de  pessoas  e  cousas  que  ele  observou  numa  feira 
de  Castro  Verde,  desenhos  que  me  permitiu  extrair  de  ura  dos  seus 
álbuns  para  aqui : 

1.  Aldeão,  de  suiças,  cabelo  desalinhado  que  cai  na  nuca,  e  chapéu 
de  pano,  de  largas  abas,  na  cabeça  (fig.  1).  O  pobre  homem  está 
meditabundo.  Ao  chapéu  aqui  desenhado  j)ode  aplicar-se  esta  cantiga 
alentejana,  tão  rica  de  conceito,  como  característica  da  provinda  em 
que  se  canta: 

Alentejo  não  tem  sombra  8  Assenta-te  aqui,  menina. 

Senão  a  que  vem  Jo  eeu  :  \  Debaixo  do  meu  ehapeii. 

2.  Quatro  aldeãs:  uma  d'elas  (fig.  2)  com  lenço  na  cabeça,  atado 
no  alto  d'esta;  outra  (fig.  ,3)  de  chapéu,  e  também  com  lenço  na 
cabeça,  atado  sob  o  queixo,  e  a  ponta  caida  para  as  costas;  duas 
(figs.  4  e  5)  igualmente  de  chapéu  e  lenço,  mas  este  atado  em  ambas 


Boletim  de  Etnografia  27 

de  outra  maneira.  Entre  nós  é  frequente  as  mulheres  da  aldeia  an- 
darem de  chapéu,  ainda  que  nlo  em  toda  a  parte.  Em  algumas  re- 
giões da  Estremadura,  da  Beira  e  Entre-Douro-e-Minho  o  chapéu 
ó  de  forma  muito  especial. 

Também  o  chapéu  das  Alentejanas,  considerado  em  geral,  nSo 
deixa  de  sor  lembrado  em  cantigas;  por  exemplo,  nesta  dos  Cantos 
pop.  port.,  de  A.  Th.  Pires,  ii,  n."  4523: 

—  Ó  minha  pombinha  branra,       i       — Tenho-a  na  minlia  gavota, 
Qne  ú  da  fita  do  chapéu?  §       <>  meu  soraphirn  do  pou. 

Nas  figs.  3  e  4  vôom-so  cm  verdade  fitas  largas  nos  chapéus, 
cada  uma  com  seu  laço. 

3.  Formas  do  vasillias  do  barro:  respectivamente,  pa/ie/a  (fig.  0), 
infiimiiha  (jng.  7),  quartas  (figs.  8  e  9),  tigela  (fig.  10). 

E  enorme  não  só  a  quantidade  do  formas  de  vasilliame  que  ha 
cntn»  nós,  mas  a  nomenclatura;  e  esta  varia  do  n^giSo  para  região. 
Assina  em  Tolosa,  conc(dlio  de  Nisa,  a  par  do  quarta  dizem  infusa 
ou  cantarinha ;  noutras  partes  hlllia;  no  Algarve  ouvi  chamar  quarta 
a  uma  vasillia  de  forma  de  ânfora  romana,  isto  ó,  do  duas  asas. 
Ahím  das  significações  que  os  dicionários  dilo  a  quaHa,  como  vasilha, 
e  como  medida  do  coroais  e  legumes,  tem  na  Heira-Baixa  a  de  me- 
dida do  vinho  (20  (|uartilhos). 

II 

O  mesmo  ilustre  artista,  a  quem  a  Etnografia  portuguesa  devo 
tantos  serviços,  divulgada  como  está  i>or  ele  em  inúmeros  desenhos 
e  aguarelas  de  alto  valor,  consentiu  quo  do  sou  alhum  se  copiasse 
mais  o  seguinte: 

Fig.  11  do  uma  casa  de  Estremoz:  suj)onho  ser  postigo  d(> 
porta,  análogo  ao  (jue  se  publicou  a  pag.  184  do  vol.  xxi  do  Arcli. 
Port.,  fig.  10-í/.  Do  ferro,  um  o  outro. 

Fig.  12  —  esjipl/io  de  |>orta,  com  st^u  apêndice  artístico,  um  o  outro 
de  ftjrro.  O  expellio  ostá  encimado  do  uma  coroa  rt,'al ;  o  a|)endic(í 
é  cruciforme.  Do  uma  casa  de  EstrcMnoz.  Parece  obra  do  sec.  xvm. 
Cf.  l{ol>'tÍH),  n."  1,  i>.  20. 

Fig.  13  —  batente  do  porta,  do  forro:  cão  d(*  «rabo  alçado».  Sendo 
o  cão  um  animal  que  guarda  a  casa  e  a  porta,  ó  muito  natural 
O  escolliorera-no  como  ornato  de  um  batente;  mas  tenho  visto  ba- 


28  Boletim  de  Etnografia 

tentes  que  representam  outros  animais:  lagarto,  etc.  Num  artigo 
do  D."'  Teixeira  de  Carvalho,  publicado  n-A  Pátria  de  22-VI-1920, 
fala  cio  também  de  um  uhatente  de  j^orta,  do  quinta»,  que  represen- 
tava «um  animal  de  forro,  de  dentes  á  mostra,  lingua  de  fora,  cauda 
encaracolada,  produto  ingénuo  de  industria  popular,  batente  que  ele 
possuía  em  sua  casa,  om  Coimbra,  onde  uma  vez  m'o  mostrou.  Pode 
ver-se  um  espécime  d'estos  batentes  no  Museu  Etnoloííi<"o  de  Belém, 
exemplar  vindo  do  Braga.  Hojo,  os  batentes  zoomoi-ficos  estão  subs- 
tituídos por  outras  formas  {mão,  porque  é  com  a  mao  que  se  bato 
á  porta,  etc),  e  já  nfio  se  usam;  os  que  conheço,  datam  do  sec.  xviii 
ou  de  séculos  anteriores.  O  seu  protótipo  está  na  época  romana, 
como  consta  de  um  de  bronze,  achado  em  Coruche,  e  agora  guar- 
dado igualmente  no  Museu  Etnológico:  representa  um  gamo. 

J.   L.  DE  V. 


Adelino  das  Neves 


artigo 


Este  artigo  tem  por  fim  ampliar  a  notícia  biográfica  publicada 
no  Boletim,  n."  1,  pp.  15-21. 

1.  Outros  trabalhos  do  Adelino  das  Neves,  de  que  tive  conheci- 
mento por  comumeaçao  da  Ex.'""  Viuva: 

«)  Historia  de  Portugal,  manuscrita  (principiada  a  passar  a  limpo, 
como  consta  de  uma  nota  a  lápis,  em  1  de  Abril  de  1892).  Começa 
por  um  prologo  onde  diz  (pie  condena  a  divisão  da  historia  om  rei- 
nados, e  propõe  dividi-la  cm  épocas,  indicadas  por  acontecimentos 
importantes : 

1.*  época  (autonomia  nacional),  de  1112  a  1383,  precedida  de 
uma  breve  introdução  acerca  de  diversos  actos  ocorridos  anterior-' 
mente  na  Península  Ibérica; 

2."  época  (conquistas  e  descobrimentos),  do  1383  a  1536; 

3."  época  (decadência),  de  1536,  data  do  estabelecimonto  da  In- 
quisição, a  1640; 

4.*  época  (restauração),  do  1640  a  1820; 

5."  época  (liberdade),  de  1820  á  actualidade. 

Com  3  apêndices:  cronologia  dos  reis;  geologia  do  continente; 
Portugal  extra-continental ;  dinastias  nacionais. 

Forma  um  volume  in-folio  de  379  páginas  (contando  o  índice), 
escrito  polo  A.  com  boa  letra.  Tem  uma  dedicatória  a  Adolfo  Lou- 


Bolelim  de  EtaograSa— N.»  2— 19S3 


ESTAMPA  I 


Fig.  1 


KiB.  2 


Hl 

hl 


V 


^^4 


Fig.  4 


Fig.  5 


Boletim  ds  Etnografia— N.°  2—1923 


ESTAMtA  n 


Fig.  G 


Fie  ■ 


Tig.S 


Flg.  13 


Fip.  II) 


Fig.  11 


Boletim  de  Etnouhafia  20 


reiro,  em  duas  follias  soltas:  uma  cum  o  nomu  (feste,  outra  com 
uma  espécie  de  carta. 

Nao  mo  foi  possível  ler  a  obra,  do  modo  quo  pudesse  aqui  talar 
d'ela  pormenorizadamente;  apenas  a  percorri,  e  vi  ([ue  contém  no- 
ticias valiosas,  e  está  geralmente  documentada  com  monção  de  obras 
impressas. 

Mereceria  a  pena  que  alguém  competente  a  lesse,  a  analisasse, 
e  a  julgasse. 

b)  Dois  artigos  mss.,  pequenos,  intitulados,  respectivamente: 
O  Brasil  e  as  viissões  no  século  XVI;  Socialismo. 

c)  Tradução  versificada  d' O  Estudante  de  Salamanca,  por  D.  José 
de  Espronceda.  Manuscrita. 

d)  Folhetins  em  jornais:  «A  cama»,  no  Tribuno  Popular,  do 
22  de  Abril  de  1871  (Coimbra):  «A  cozinha»,  ibidem,  do  29  de  Abril 
de  1871;  «A  nova  primavera»,  traduçilo  de  lleine,  na  Correspon- 
dência de  Coimbra,  de  15,  18  e  22  de  Julho  de  1876 ;«  O  testamento 
do  Olivette»,  tradução  do  Catulle  Mendes,  no  Tribuno,  já  citado. 

e)  Apreciação  literária  dos  Estudos  sobre  ahjuns  portos  comerciais, 
do  A.  Ferreira  Loureiro,  publicada  num  número  do  Conimbricense 
do  1888. 

2.  Das  Musicas  e  canções  Tez-se  uma  tiragem  em  papel  comum, 
o  outra  (do  pou(-os  exemplares)  em  papel  melhor.  l'ossuo  um  exem- 
plar do  cada  nm  dos  papeis.  O  exemplar  de  papel  melhor,  oforeceu- 
-m'©  afectuosamente  o  D."''  A.  Cvmbron  Borges  de  Sousa.  Tem  uma 
dedicatória  autografa  do  autor  feita  a  um  seu  amigo. 

3.  Quando  a  mesma  oijra  se  publicou  (1872),  alguns  jornais  de 
Coimbra,  Porto  o  Lisboa,  por  exemplo,  o  Conimbricense,  o  Primeiro 
de  Janeiro  o  o  Diário  de  Xoticias.  deram  notícias  d'ela,  as  (piais 
83,0  concordes  em  louvar  a  novidade  da  empresa.  Taml)eiii  Adelino 
das  Neves  recebeu  cartas  de  vários  escritores,  (|ue  o  elogiam  pela 
publicação,  por  exemplo:  de  D.  Maria  Amália  Vaz  do  Carvalho, 
de  Innocencio  Francisco  da  Silva,  de  A.  A.  Teixeira  de  Vasconcellos 
(possuo  os  originais,  por  dádiva  da  Ex."''''  Viuva).  Visto  que  estão 
firmadas  por  nomes  de  pessoas  muito  coniiecidas  na  nossa  litera- 
tura, o  já  falecidas,  copio-as  a(|ui  por  ordem  das  datas: 

Primeira  carta 

Kedaç.^0  do  Jornal  da  Xoite  — 11.  da  Paz,  7. — Lisboa,  18  de  Fe- 
vereiro de  1873.  —  Ex."'"  S."'' — liocebi  o  seu  livro  o  a  carta  mui 
atenciosa  que  o  acompanhava.  Por  ambos  lhe  fico  em  grande  obri- 
gação. 


;{0  Boi-ETIM    UK    EtNOUKAFIA 

O  livro  voiu  preencher  uma  lacuna  o  tenho -o  na  conta  de  serviço 
nacional.  Foi  pona  que  nas  musicas  nilo  venha  escripta  para  piano 
a  mao  esquerda,  dar-lhe-hia  maior  voga. 

Os  estrangeiros  andara  serapro  a  perguntar  pelos  nossos  cantares 
nacionaes,  agora  já  so  lhes  pôde  responder  com  o  seu  curiozissinio 
livro.  Eu  que  rae  criei  na  aldeia  e  vivi  n'ella  os  primeiros  22  anos 
da  mocidade,  sinto  prazer  intenso  em  ler  aquelas  cantigas,  algumas 
das  quais  tfío  minhas  conhecidas  sao.  Keceba  com  os  meus  agradeci- 
mentos o  testemunho  da  consideração  e  estima  com  que  sou 

Do  V.  Ex."  att."  v.**"'  e  obrig.'''' — ^1.  A.  Teixeira  de  Vascoiicellon. 

Segunda  carta 

Lisboa,  Kua  de  S.  Filipe  Nory,  26.  —  Fevereiro  25,  de  1873. — 
Ex."'"  Snr.  —  Tenho  á  vista  a  sua  obsequiosa  carta  de  10  do  c/ mez, 
e  o  formoso  volume  das  Municas  e  canções  jw/ndares,  que  com  ella 
me  enviou.  Uma  e  outro  llio  agradeço  cordialissimamente,  desejando 
que  o  acolliimento  e  aplauso  do  publico  lhe  sejam  compensação 
condigna  das  fadigas  o  despezas,  que  decerto  empregou  no  desem- 
penho desta  árdua  tarefa.  Quanto  a  mim  devo  V.  Ex."  lisongiár-se 
do  haver  prestado  ás  letras  pátrias  um  atendível  serviço  nesta  pu- 
blicação de  nova  espécie  entre  nós,  o  que  muito  abona  o  seu  judi- 
cioso discernimento,  não  menos  que  o  seu  amor  ás  cousas  da  terra 
que  nos  viu  nascer. 

Kcscrvo  para  depois  da  leitura  mais  pausada  e  reflexiva  que 
a  obra  merece  comunicar  a  V.  Ex."  as  observações  inherentos  ao 
assumpto,  (pie  por  ventura  me  ocorrerem.  -  Sou  com  afectuosa 
consideração,  Certo  V.'''"'  o  Obvl.^^"- -Innoceacio  Francisco  da  Silva. 

Terceira  carta 

Ex."'"  Snr.  Agradeço  com  profundo  reconhecimento  a  carta  de- 
licada e  o  valioso  brinde  que  V.  Ex."''  teve  a  bondade  de  enviar-me. 

Criada  na  aldeia  desde  a  infância,  teem-mo  embalado  aquelas 
agrestes  cantigas  os  sonhos  c  as  alegrias  da  mocidade,  6  por  isso 
que  ellas  se  ligam  aos  meus  olhos  a  muitas  recordações  queridas 
o  immortaes;  o  ([ue  duplica  o  valor  da  colleção  que  V.  Ex."  juntou 
com  tão  inteligente  o  fino  gosto. 

E  muito  para  imitar-se  o  exemplo  que  V.  Ex.'"*  acaba  de  dár, 
e  tanto  mais  que  todos  os  paizes  se  orgulham  justamente  das  suas 
poéticas  tradições  populares,  e  que  só  nós  as  votamos  a  bárbaro 
desprezo,  sem  nos  lembrarmos  se(iuer  que  o  povo  6  o  maior  de 
todos  os  poetas,  porque  bobo  as  suas  inspirações  na  natureza,  fonte 


Boj-KTiu  DE  Etnografia  .31 


nuiis  haurivel  o  sempre  limpida,  quo  os  falsos  sistemas  e  as  falsas 
escolas  não  logram  turvar. 

Creia  V.  Ex.''  que  conservarei  agradabilissiiua  recordação  da  sua 
primorosa  delicadeza,  e  que  me  assiguo  com  distiata  consideração 

DoV.  Ex.^  Veneradora  e  reconiiecida. — Pinteus,  26  do  Março 
de  1873.^ — Maria  Amália  Vaz  de  Carvalho. 

4.  Os  AjKmtamentos  jjara  a  historia  de  cerâmica  vílo  ter  2."  edi- 
ção em  1024,  na  importante  livraria  d'esta  cidade,  «Portugália»,  que 
fará  reproduzir  no  princípio  do  livro  a  biografia  que  escrevi  de 
Adelino  das  Neves. 

5.  ILavendo-so  dito  no  Boletim,  p.  21,  com  palavras  do  l).*"^  Tei- 
xeira de  Carvalho  aí  transcritas,  que  o  pai  do  Adelino  das  Neves 
era  coleccionador  do  livros,  vem  a  propósito  lembrar  quo  na  Biblio- 
(jrajia  das  bibliofjrajias  portuguesas,  de  Albino  Anselmo,  p.  33,  se 
cita  o  Catalogo  da  sua  livraria,  como  impresso  em  Lisboa  cm  1881; 
volume  de  lõG  páginas  in-H." 

J.  L.   DE  V. 


Etnografia  do  jornalismo 


O  Jornalismo  começou  entre  nós  no  século  xvii.  Já  em  Ilela<;òes 
manuscritas  do  Sovorim  de  Faria  (lGlO-1641)  se  lhe  pôde  descobrir 
o  protóti[>o';  todavia,  como  isso  ticou  inédito,  temos  de  buscar  os  co- 
meços da  nossa  imprensa  periódica  na  Jieta<jão  do  1025-1627,  e  mais 
particularmente  na  Gazeta  do  1641'. 

D'ent?lo  ató  hoje,  com  maior  ou  menor  desenvolvimento,  e  subor- 
dinados a  vários  [>rincipios,  nunca  deixou  de  haver  jornais  em  Por- 
tugal: e  tao  intenso  ó  o  gosto  (|ue  d'eles  existe,  ((ue  até  em  vilorias 
de  somenos  categoria  acontece  encontrar  a  gente  um  jornaleco,  ás 
vezes  mal  impresso,  em  mau  papel,  cheio  d<>  impropérios  contra 
esto  o  contra  aquele,  — mas  como  laiupiílo  social! 


'  Vid.  o  (jiie  (íSCTCvi  MO  flolethii  da  2.*  classe  da  Academia  das  SciCiicias 
de  Lisboa,  t.  viii,  pp.  238-210. 

*  Vid.  .\lfredo  da  Cunha,  O  Diário  de  Noticias  (sua  fundação,  etc),  Lisboa 
1914,  pp.  253  u  281. 


^2  Boletim  de  Etnografia 

E  serão  os  jornais  sempre,  ainda  os  que  se  publicam  nas  cidades, 
verdadeiros  lampiões  sociais,  de  boa  luz?  Quemquer  responderá 
nogativamente.  Nao  é  a  imprensa  tão  amiúde  responsável  do  des- 
norteamento de  pessoas  e  classes  que  mal  sabem  ler,  mas  que  se 
deleitam  ouvindo  gabar  deletérias  doutrinas?  Ainda  que  cabe  a  livros, 
ao  teatro,  e  ao  cinematógrafo  a  mesma  responsabilidade,  os  jornais 
insinuam-se  dia  a  dia,  pela  sua  leveza  literária,  em  todas  as  mentes, 
e  pela  facilidade  da  compra,  em  todas  as  mios.  Nâo  se  produzem 
tantos  crimes  por  imitação  dos  que  eles  periódica  e  enfaticamente, 
o  em  páginas  salientes,  se  comprazem  de  relatar,  pormenorizando 
diálogos,  e  juntando  gravuras  de  locais  de  delitos,  e  retratos  de 
criminosos?  Nao  deponde  de  louvaminhas  de  jornais  a  má  direcção 
que  muitos  espirites  tomam  na  carreira  literária  ou  na  carreira 
politica,  imaginando  que  os  elogios  que  lhes  fazem  os  compadres 
ou  os  parceiros  são  os  que  ha-de  fazer-lhes  a  posteridade?  Se,  em 
vez  de  louvaminhas  inconscientes  ou  levianas,  se  exercesse  critica 
sábia  o  sã,  os  resultados  variariam!  E  que  direi  de  certos  anúncios? 
Custa  a  admitir  que  em-  terra  civilizada  se  disfarce  tão  pouco  o  im- 
pudor,  a  trôco  do  uns  niiseros  centavos,  o  outr'ora  a  troco  de 
dez  reis!  Sem  duvida  que  a  missão  da  impivnsa  periódica  é  muito 
elevada:  e  muitos  jornalistas  ha,  ou  têm  havido,  que  a  compreendem 
perfeitamente;  mas  eles  formam  acaso  a  minoria. 

Vieram  estas  comcsinhas  considerações  a  propósito  de  eu  querer 
dizer,  como  vou  de  facto  dizer,  que  do  jornalismo,  considerado  em 
geral,  pertence  também  algo  á  Etnografia.  Já  não  falo  de  titules 
do  caracter  regional,  v.  g.:  O  Trasmontano,  O  Mirandez,  O  Minho, 
O  Beirão,  A  Beira-Baixa,  A  Bairrada,  Terra  Estremenha,  Jornal 
Saloio,  O  Ribatejano,  O  Azeitonense,  AUo-AlemteJo,  O  Alemtejo,  O  Al- 
garvio, Eco  do  Algarve,  Diário  da  Madeira,  Correio  dos  Açores,  nem 
de  emblemas  que  acompanham  ou  justificam  títulos,  por  exemplo, 
uma  Jiga.  num  raro  jornal  de  1826,  chamado  assim  mesmo,  isto 
é,  A  Figa,  o  um  pastor  serrano  num  jornal  de  Seia,  A  Serra:  falo 
de  circunstancias  exteriores,  como  locais  de  venda  acomodados  a  isso, 
com  mais  ou  menos  caracter,  e  de  rapazinhos  que  apregoam  jornais 
pelas  ruas. 

Especializarei  os  vendedores.  Alguns  artistas  têm  já  aproveitado 
para  tema  de  suas  composições  o  tipo  do  garoto  doa  jornais,  por 
exemplo,  Bordalo  Pinheiro,  em  jornais  de  caricaturas;  c  até  se 
agregou  um  á  estátua  levantada  ao  jornalista  Eduardo  Coelho  na 
alameda  do  S.  Pedro  de  Alcântara,  em  Lisboa.  Desejando  eu  que 
na  Etnografia  Portugiieísa,  que  estou  preparando,  figurasse  também 


Boletim  dé  Etnografia 


33 


um  rapaz  dos  jornais,  tomoi  a  liberdade  de  pedir  á  ilustre  artista 

a  Ex.""*  Senhora  D.  Alico  Rey  Colaço  tivesse  a  bondado  do 

m'o  desenhar,  e  ela  correspondeu  ao  pedido  com  a  perícia  e  graça 

quo   os    leitores    admiram  no  desenho  junto:   aí   se  vê  um   rapaz 

de  barroto  na  cabeça  com  a  ponta  ao  vento,  em  mangas  do  camisa, 

calças  curtas,  o  descalço,  o  qual  rapaz 

transporta  pendente  do  ombro  esquerdo, 

e  apoiada  pelo  braço  o  mão  do  mesmo 

lado,    a  mala,   e   na  dextra  um  jornal 

avulso,  cujo  nome  vai  declamando,  um 

pouco  inclinado  para  diante.  Mala  ó  o 

nomo  quo  os  rapazes  dão  á  sacola  aberta 

em  quo  levam  os  jornais,  feita  de  pano, 

de  sarapilheira,  ou  do  oleado. 

No  momento  em  que  á  porta  da 
redacção  ou  tipografia  de  jornais  im- 
portantes elos  sao  distribuídos  aos  ra- 
pazes quo  hao-do  vendê-los,  ó  curioso 
vor  com  qno  fúria  estos  os  agarram, 
o  com  gritos  partem  para  todos  os  la- 
dos: como  se  um  molho  do  foguetes  se 
inflamasse  do  repente  o  dispersasse  no  ch<1o,  sem  poder  ninguém 
apagá-los!  Outra  particularidade  digna  do  nota:  quando  vários  ven- 
dedores estilo  por  acaso  juntos  em  conversa  amiga,  e  vem  alguém 
p.ira  comprar  um  jornal,  a  familiaridade  desapareceu  logo,  o  cada 
um,  o  qual  mais  lesto,  procura  paS8ar-lh'o.  Primeiro  eu,  depois  ta! 

A  par  com  rapazes  ha  também  adultos  qno  exercem  a  mesma 
profissão,  embora  aqueles  sejam  mais  tipicos.  Jfulheres  ó  que  nimca 
observei  quo  apregoassem  jornais  pelas  ruas;  vendem-nos,  sim, 
ás  vozes,  mas  sentadas  o  quietas  em  sítios  certos,  o  geralmente 
caladas. 

Por  ocasiílo  das  festas  do  ano  novo  e  páscoa  costumam,  monos 
poróm  hoje  do  que  outr'ora,  os  entregadores  do  jornais  doixar  nas 
casas  dos  fregueses  papeis  com  versos  aí  impressos,  em  que  dUo  as 
boa»  feKtaa,  o  pedem  uma  gratificação  pelo  trabalho  que  exercem 
quotidiamente.  Como  a  civilização  moderna  tendo,  ou  nos  parece 
isso,  para  prosificar  muitas  cousas  da  vida  social  o  doméstica,  tor- 
nando-as  mecânicas,  o  por  isso  mais  práticas  o  mais  simples,  os 
vendedores  ou  entregadores  de  jornais  vao  substituindo  os  versos 
por  insipidos  bilhetes  de  visita.  Estes  costumes  silo  comuns  aos  car- 
teiros.— Para  que  n^o  se  percam,  reproduzo  aqui  dois  dos  papeis 


34 


Boletim  de  EiNotiHAiaA 


poéticos  a  quo  aludi,  os  quais  mo  ofereceu  em  Braí,'a  um  amigo: 
num  d'eles  fala  um  entregador  de  jornais,  no  outro  um  carteiro. 
Conservo  a  ortoírrafia. 


.1 
A  DAR-vos  as  boas  festas, 
Hojo  aqui  vcTibo,  seiílior, 
Cumprir  um  dovcr  sagradu, 
Devor  d'um  entregador. 

Prestai,  prestai  atteu(,'ão 
Au  que  é  promto  cm  vos  servir, 
E  com  muita  anciedade 
Um  favor  vos  vem  pedir.  .  . 

A  consoaia  de  vós 
Eu  espero  receber, 
Para  cm  noite  do  Natal 
Mais  d'um  brinde  vos  faí4e,r. 

Ao  entregador  ã' Atalaia 
Dai  uiis  cobrinho»,  senlior, 
Qu'clle  por  vós  rogará 
Ao  Divino  Rkdemi-tou. 


B 

i)  .Moraes,  tão  diligente 
No  serviço  do  Correio, 
Ousa  dar  as  boas  festas 
A  seus  A(nos  sem  receio. 

Espera  se  lhe  perdoe 
O  seu  grande  atrevimento; 
Lhe  despaclicm  —  Como  pede  — 
O  seguinte  ReqVimento: 

lllustriasimos  senhores, 
Diz  o  pobre  c  bom  Moraes, 
Que,  falto  de  cabedaes, 
Do  estro  não  sente  os  ardores. 
Anda  frio,  sem  calores, 
Todos  bem  sabem  porquê .... 
—  Pede  pois,  que  se  lhe  dê 
Por  um  pouco  attenção, 
Que  lhe  deis  algum  tostão: 
E  Receberá  Mercê. 


Do  jornal  {Atalaia}  a  que  na  primeira  composição  se  alude, 
apareceu  a  lume  o  tomo  i  em  Braga  cm  18õ4;  o  carteiro  Moraes 
que  fala  na  segunda  composição  exerceu  na  mesma  cidade  o  seu 
oficio  por  1860. -Os  requerimentos  feitos  a  alguma  autoridade  aca- 
bavam d'antes  com  as  seguintes  iaiciais  «E.  R.  M.»  (=  espero  re- 
ceber mercê;  mas  cm  geral  iatcrpretava-sc  «E.»,  como  a  conjunção 
e,  o  assim  so  lia),  c  que  o  despacho  favorável  se  resumia  por  vezes 
em  «como  podo». 

Com  esta  explicação  se  cnteaderflo  melhor  os  versos  do  carteiro 
(ela  não  será  necessária  para  muitos  leitores  modernos,  mas  sê-lo  ha 
para  leitores  futuros).  j_  j^_  pg  y_ 


Canho  santo 

A  agua  que  se  colhe  para  bebida,  ou  com  que  se  lava  ou  banha 
o  corpo,  ou  algumas  do  suas  partes,  por  ocasifío  da  festa  de  S.  João 
Baptista,  tem  muitas  virtudes,  no  conceito  do  vulgo:  cf.  Ad.  Coelho, 
Revista  de  Etnolofjia,  pp.  7G-77,  o  as  minhas  Trdd.  pop.  de  Por- 
tugal, §§  163  e  165. 


BoLKTlM    UE   EjíSOGUAFIA 


35 


Na  Figueira  da  Foz  toma-so  então  u  òaiiJto  santo,  do  (|ue  a  gra- 
vura adjunta  dá  um  exemplo'.  Proi)riamciito  silo  trcs  banhos:  uni,  to- 


mado de  tarde,  cm  23  de  Junlio;  outro,  tomado  á  mcia-noite  de  -.'j 
para  24;  outro,  ua  maniiil  de  24. 

J.  L.  I>K  \'. 


Cozinha  alentejana 

Temos  na  página  seguinte,  um  lindo  dfseidio  ((uc  representa 
um  canto  de  uma  cozinha  alentejana  do  gente  [lohre.  Foi  ieito  pela 
Ex.""'  Senliora  I).  Fausta  Sá,  jovem  o  esperançosa  artista,  cpie 
com  esta  produeílo  se  apresenta  pela  primeira  vez  em  público. 

A  cozinha  no  Alentejo  (rotiro-me  ao  eoncellio  do  Avis,  ao  ipial 
pertence  a  cozinha  desenhada)  raramente  se  chama  assim,  mas  cttsa 
de  fora,  porque  é  o  primeiro  compartimento  que  se  patenteia  a  (piem 
entra  na  casa:  a  porta  da  rua  dá  logo  [lara  eia.  A  coziniia,  além 
do  desempenliar  a  primacial  função  ([ue  o  seu  nome  indica,  serve 
de  refeitório.  Os  camponios  comem  em  mesinhas  baixas,  como  a  que 
so  publica  adiante,  p.  52,  fig.  2. 


'  Fotugrafla  An  S.»'  1'eroira   Moutoircí,  da  Kigifira,  qiio  aiiiavolíiieiite 
ra'a  ofereceu. 


36 


Boletim  de  Etnogeaiía 


Ao  lado  esquerdo  está  o  jjial  (poial)  dos  cântaros,  de  alvenaria, 
e  caiado ;  vêem-se  aí  pousadas  duas  quartas  *.  Uma  rapariga  da 
casa  ou  cachopa,  do  casaco  (blusa  de  riscado),  saia  e  avental,  lenço 


na  cabeça,  hotòes  («brincos»)  nas  orellias-,  e  calcada  de  tairocos  ou 
taiiuincos  (de  sola  do  pau),  propara-se  para  deitar  agua  do  uma  das 
quartas  num  copo  de  vidro,  grosseiro  o  de  asa.  Sob  o  poial  ha  um 


'  AcDrca  ila  quarta  vid.  supra,  p.  27,  figs.  8  o  9. 

-  Quando  os   briíios   são   arcados,  chamam-se  ar<jolas.  E   só  quaudo  são 
pequenos  que  se  clianiani  botões. 


Boletim  de  Etnografia 


vao  om  quo  so  guarda  loiça  de  forjo  (isto  6,  do  ir  ao  lume:  panelas 
e  tigelas),  e  alguidares.  Na  parede  está  pendurada  uma  copeira  de 
pau,  descanso  do  copo  de  beber.  Ainda  que  o  j)oial  dos  caniaros 
tem  em  cima  geralmente  quartas  c  não  caniaros,  o  nome  indica 
quo  ele  na  origem  se  destinou  a  estes.  O  mesmo  acontece  com 
a  paílavra  cantareira,  quo  em  algumas  cozinhas  alentejanas  fica  so- 
branceira ao  poial,  o  significa  «prateleira»,  e  com  a  equivalente  pala- 
\Ta  estanheira,  destinada  primitivamente  a  pratos  do  estanho,  e  agora 
a  quaisquer  pratos. 

Já  noutros  lugares  eu  disse  que  as  casas  dos  Alentejanos  são 
em  regra  muito  asseadas  e  arranjadas.  Cf.  O  ArcJi.  Porf.,  xxi,  IGO. 


J.  L.  DE  Y. 


Nicho  de  uma  casa 


Por  devoção  religiosa  era  costumo  d'antes  colocar  na  parte  ex- 
terna de  algumas  casas,  para  o  lado  da  rua,  niclios  com  santos  dentro. 
Tais  nichos  muitas  vozes  orara  alumiados  por  um  candeeiro,  pen- 
dente de  um  suspensório  de  ferro,  candeeiro 
que  om  aldeias  sertanejas,  ou  burgos  esque- 
cidos, constituia  não  raro  a  única  iluminação  -^^-^y^ 
da  respectiva  rua.  í^l 

Na  figura  junta,  feita  por  uma  aguarela 
de  Saavedra  Machado,  temos  um  nicho 
d'estes,  quo  se  vO  em  Estremoz,  fronteiro  ao 
Hotel  Comercial.  Niciío  e  sus])ensorio  são 
aqui  mais  ou  menos  artísticos. 


Outr'ora,  o  em  grande  ])arto  ainda  hoje, 
a  casa  de  haliitação  era,  p(do  que  toca  ao  so- 
brenatural, isto  (';,  á  superstição  o  á  crença,  verdadeiro  baluarte 
contra  o  influxo  de  entidades  mágicas,  e  verdadeiro  santuário  em 
comunicação  com  o  Ceu,  i)ara  oração  e  acção  de  graças. 

Logo  sobre  o  portão  do  pátio  unia  cruzlentre  pirâmides',  e  na 
porta  de  entrada  da  casa  um  <>spelho  de  fecliadura  e  uma  aldrava 


«  Vid.  TMelim,  n."  1,  p.  28. 


38  Boletim  de  Etnografia 


crucilbrmes*;  pregada  na  porta,  por  dentro  ou  por  fora,  uma  fer- 
radura esquerda  de  inula^,  ou  pintado  um  sino-saimao^ ;  na  tran- 
queira ou  no  telhado  uma  pedra-raia  (on  pedra  de  raio)  contra  raios 
o  coriscos*.  Na  parede  interior  de  uma  sala,  outra  ferradura,  reves- 
tida de  estofo,  como  que  oculta  a  olhares  estranhos  e  curiosos^;  por 
todos  os  lados,  já  também  em  salas,  já  em  quartos  de  dormir,  esta- 
tuetas de  santos,  molduras  com  ima^^ens,  crucifixos;  á  cabeceira  da 
cama,  ou  perto  d'esta,  uma  pia  d'agua  benta  do  loiça,  geralmente 
artistica,  um  agnus-Dei  contra  trovões,  um  rosário,  bentinhos.  E  cos- 
tume trazer  da  procissão  dos  Kamos,  e  ter  em  qualquer  sitio  da 
casa,  suspensas  do  tecto,  ou  nos  frisos,  pernadas  de  alecrim  e  de 
louro,  que  foram  benzidas  pelo  padre,  e  livram  igualmente  de  tro- 
voadas. Do  mesmo  modo  se  guardam  assim,  ou  em  gavetas,  ale- 
crim e  marcela,  colhidos  em  dia  de  S.  JoHo,  antes  do  sol-uado:  o  ale- 
crim é  contra  bruxedos,  e  a  macela,  tomada  ( m  chá,  tem  virtudes 
estomacais  (Arganil).  De  certo  que  a  marcela  ou  macela  ó,  por  si 
mesma,  estimulante  do  estômago,  e  tónica,  mas,  quando  apanhada 
d'a([uela  maneira,  as  suas  propriedades  terapêuticas  aumentam,  se- 
guniio  o  povo.  Ao  que  fica  dito  agreguemos  amuletos  vários,  livros 
religiosos;  campainhas  <jue  so  tocam  quando  troveja;  e  já  nílo  falo 
de  bençrios",  nem  fpor  s<!utido  muito  profano)  do  um  gato  preto  que 
é  l)om  ter  em  casa,  realmente,  ou  imitado  de  i>ano,  com  olhos  de  botões 
de  madrei)(>rola':  a  significação  do  gato  do  pano  está  obliterada,  mas 
;i  do  gato  verdadeiro,  não,  e  aqui  mesmo  na  capital  vigora  grandemente. 
l)iz(!m  alguns  que  quem  tem  um  gato  preto  em  casa,  tem  sempre  di- 
idieiro:  foi  talvez  por  isso  que  em  tempo  houve  em  Lisboa  uma  loja 
de  louça  artistica,  chamada  do  fíato  Preto.  Também  tenho  ouvido 
(|iie  quando  uma  doença  está  para  cair  numa  casa,  cai  no  gato  preto, 
(í  não  na  g;'nte.  Vaw  Arganil  generalizam  este  papel  expiatório  do  gato 
a  todos  os  animais  da  casa.  D'entre  os  animais  domésticos  ha-os  que 
são  ])articuhirment('   benéficos,  como   o  boi,   cujo  bafo  (^  sagrado*. 


1  Yi.l.  riul-tlm,  11."  1,  1».  20. 

2  Cf.  O  Ardi.  1'ijrt.,  xxin,  241. 

1  Via.  O  Arch.  1'orl.,  xxiir,  241. 

"i  Pur  exisiiiiilo,  110  Cailaval. 

■'  'l'('iilio  olisiírvailo  istii  cm  IjÍsUo.i. 

•i  Vi.l.  Cnlleri;ãn  de  lienrnox  (•crlesiaxticax,  nova  ed.,  Li-lma  láfjS,  ]>]).  25-28 
(lii^iirãos  (lii  rasa  e  do  leito). 

'  Viil.  I!ir.  Lnailntni,  x,  74,  nota  5. 

"  Viil.  Trail.  piiji.  ih-  l'itrtiii/íil.  ]>.  177. 


Boletim  de  Etnografia  39 

As  andorinliils,  quo  fazem  ninho  nos  beirais  do  telhado,  dão  igual- 
mente protecção:  c  ninguém  por  isso  as  mata.  Espécie  do  totemes! 

Vô-se  como  a  casa  está  protegida  sobrenaturalmente.  A  lúesnlaL 
classe  pertencerão  as  bonecas,  sempre-noimis,  frades  das  co/.inJias 
meridionais,  conforme  o  quo  escrevi  nas  Religiõefi  da  lAtsitanla,  iii, 
597;  e  pertencem  os  nichos  do  tipo  aqui  figurado.  Paralelos  aos 
nichos  são  painéis  de  azulejo,  com  imagens,  que  fazem  parte  do 
revestimento  exterior  das  parcd(>s.  E  devem  alem  do  quo  fica  dito 
mencionar-se  oratórios  no  interior  da  casa,  e  capelas  junto  d'esta, 
ou  internas,  nas  quais  se  diz  missa  semanalmente,  ou  em  c»>rtas 
circunstancias. 

É  provável  que  na-  origem  fosse  protecção  supersticiosa  da  casa 
uma  pomba  de  barro  que  costuma  enfeitar  os  ângulos  dos  telliados, 
por  exemplo,  na  Estremadura  Cistagana  e  nos  Açores;  mas  d'isso 
nio  posso  aqui  tratar. 

No  forno,  tfio  relacionado  roín  a  casa,  grava-se  com  earactt;r 
apotropaico  um  sino-saimao  o  uma  cruz:  cf.  Arclt.,  xxiii,  238. 

Se  nao  enumerei  todas  os  casos  respectivos  á  ])rotecçno  sobrena- 
tural da  habitaçílo,  mencionei  contudo  factos  suficientes  ao  etnólogo 
para  estabalecer  longa  serie  de  elos  no  encadeamento  liistorieo  da 
superstição,  e  ao  moralista  ou  ao  estadista  para  \(>r  quanto  tem 
ainda  quo  fazer  ])ara  libertar  do  jieias  o  (íspirito  di>  pessoas  (pie 
mais  crêem  na  eficácia  de  um  amuleto  contra  trovoadas,  do  ([ue  na 
de  um  solido  pára-raios. 

.1.  L.  DK  V. 


I 


Objectos  etnográficos  do  Alto  Alentejo 

Numa  excursilo  que  em  1920-1921  fiz  nos  arredores  de  Tolosa 
do  Al<Mitejn  ()l)tive  para  o  ^[useu  Etnológico  os  seguintes  objectos 
etnográficos,  com  o  concurso  de  meu  Primo  o  D.'"'  A  ntónio  Maria 
de  Gouvêa  Biscava  Horta,  objectos  deseidiados  por  Fran- 
cisco Valença,  Desenhador  ilo  Museu  Etnológico. 

(i)  De  cortiça:  dois  recipientes  de  forma  de  cái/itilo.  e  assim 
chamados,  os  (juais  servem  para  neles  se  ter  pimentão  em  pó,  desti- 
nado á  comida:  um  d'eles  do  0"',15.'i  de  comprimento,  \ ai -desenhado 
na  fig.  1  (parte  superiori  (*  na  fig.  2  (perfil,  de  tamanho  nienor). 
Um  coc/io  para  beber  agua,  provido  de  cabo  (todo  o  objecto  tem  de 


40  Boletim  ue  Etnografia 

comprimento  O"', 230).  Outro  cocho,  ospocie  de  prato,  que  sorve  para 
nele  se  comer  (tem  de  diâmetro  O"', 232;  ha  outros  maiores). 
Figs.  3  e  4; 

h)  Corna,  com  fundo  e  tampa  do  cortiça,  de  0'",085  de  altura 
máxima  (6,  pois,  menor  que  as  usuais);  tem  na  superfície  exterior 
a  data  de  «1919»,  e  as  iniciais  A  F,  que  significam  A(ntonio)  F(elicio). 

Fig-  5. 

c)  Cabaço,  ou  recipiente  feito  do  bojo  superior  d'uraa  cabaça, 
com  fundo  do  cortiça  (na  parto  mais  estreita)  e  tampa  da  mesma 
substancia,  —  o  qual  tem  várias  serventias:  para  conter  sal;  para 
fazer  as  vezes  de  corna  (vílo  aí,  por  exemplo,  azeitonas  para  se  co- 
merem no  campo);  para  se  guardarem  sementes;  o  pescador  leva 
nele  minliocas  com  que  pesca;  altura  0"',114.  Fig.  6. 

rf)  Outro  cabaço,  feito  d'uma  cabaça  a  que  se  cortou  parte  do 
bojo  inferior;  serve  de  vasillia  para  tirar  o  vinho  da  pipa,  e  também 
de  funil.  Comprimento  0'",195.  Fig.  7. 

e)  Tabuleta  de  madeira,  de  O"',  122  de  largura,  para  desmamar 
os  bozerrinhos,  segurando-lh'a  no  septo  do  nariz.  Fig.  8. 

/)  Duas  chares  de  madeira  para  fixarem  as  extremidades  do 
colar  das  cabras,  feito  do  coiro.  Comprimento  de  cada  um:  0"',93. 
Figs.  9  e  10. 

g)  Aguilhao  de  pedra  de  um  rodízio  de  moinho;  antigo,  achado 
no  campo  (Tolosa):  cf.  Historia  do  Museu  Etnolofjico,  p.  226.  Com- 
primento: O^OSõ.  Fig.  11. 

h)  Candeia  do  lata,  de  gancho,  o  com  os  espeliios  de  forma  de 
coração,  voltado  com  a  ponta  para  cima.  Altura:  0"',173.  Fig.  12. 

Todos  estos  objectos,  excepto  o  último,  tem  caracter  de  indústria 
primitiva,  embora  o  objecto  e)  fosse  certamente  importado.  A  can- 
deia, pelo  seu  ornato,  pertence  á  serio  artistica  a  que  se  fez  refe- 
rencia nO  Arch.  Port.,  xix,  399. 

J.  L.  DE  V. 


Trajos  alentejanos 

O  S."  Alberto  Sousa,  a  quem  já  neste  número  do  Boletim 
me  tenho  referido,  fez  o  obsequio  de  permitir  que  aqui  fossem  repro- 
duzidos de  um  dos  seus  álbuns  os  seguintes  desenhos  de  trajos  que 
ele  observou  numa  feira  de  Nisa: 

1.  Mulher  de  chaile  pela  cabeça,  e  nesta,  sobre  o  chaile,  chapéu 
desabado,  como  o  dos  homens,  senão  realmente  um  chapéu  de  ho- 


Boletim  dí  Elnogiaiia— N.«  2—1923 


ESTAMPA  m 


Hi.  2 


Flg.  3 


Fig.  1 


Fig.  4 


Flg.  6 


Fig.  5 


Boletim  de  Etnografia— N."  2—1923 


ESTAMPA  IV 


l'ÍK.  11 


Fig.  10 


lia :     y  /  '  I 


$> 


FiR. 12 


Flg.  íl 


Fig.  8 


Boletim  de  Etnografia 


41 


mem.  Leva  por  acaso  um  embrulho  debaixo  do  braço  direito,  e  na 
mão  respectiva  uma  vasilha.  Fig.  1. 

2.  Penteado.  O  modo  de  compOr  o  cabelo  varia  constantemente, 
tanto  em  homens  como  em  mulheres:  e  sempre 
assim  foi,  desde  a  antiguidade. 

No  cabelo  das  duas  raparigas  aqui  desenha- 
das figs.  2  o  3  temos  um  modelo  de  penteado 
de  martelo,  ou  do  põpo.  Por  jiôpo  entenda-se 
poupo,  masculino  de  poupa,  outro  nomo  (Val- 
paços) do  rolo  que  as  mulheres  fazem  no  toutiço 
(occiput).  Pois  que  a  ave  chamada  poupa, 
Upvpa  epoj)8,  LiNN.,  tem  o  alto  da  cabeça 
adornado  de  um  conjunto  de  penas,  o  ])ovo 
comparou  com  ele  o  rOlo  do  cabelo  da  mu- 
lher, e  aplicou-lhe  o  nome  da  ave.  Em  Guima- 
rães dizem,  no  mesmo  sentido, /)Mr/<o  (com  cJi) 
ou  toco;  em  Avia,  trõço;  em  Lisboa,  monvte; 
em  líio  Maior,  carrapito;  e  algures,  carrapi- 
cho, palavra  que  só  difere  d'aquela  no  sufixo. 

Vom  a  pôlo  dizer  que  na  Memoria  histórica  de  Nisa,  do  D."'  Motta 
e  Moura,  parte  ii,  Lisboa  1877,  ])p.  110-113,  se  d.lo  algumas  notícias 
de  vários  trajos  de  Nisa. 


Fi».  1 


Flg.  •  o  3 


3.  Homem  de  caUfies.  Os  calçfies  foram  outr'ora  multo  usados 
entre  nós,  sobretudo  nos  secs.  xvii  e  xviii,  moda  comum  a  outros 
paises.  A  Eevolução  Francesa  acabou  com  os  calçOes  (cidotte,  culot- 


42. 


Boletim  de  Etnoghafia 


pig.  1 


tes),  substituindo-os  por  calças,  e  por  isso  os  revolucionários  foram 
chamados  pela  aristocracia  savs-culottes  (no  singular  aans-culotte). 
A  substituição  fez-se  também  cá,  mas  ainda 
modernamente  se  encontra  em  varias  locali- 
dades, não  só  tradição  pouco  antiga  do  uso 
de  calção,  senão  ainda  o  próprio  uso  d'ele8. 
Dos  meus  apontamentos  etnográficos  ex- 
traio as  seguintes  notícias : 

—  No  concelho  de  Miranda  do  Douro  os 
calções  são  ainda  trajo  corrente  (calçou,  cal- 
eones). 

—  Em  1892  vios  pelas  ruas  da  Guarda 
em  homens  da  raia. 

— Em  Monsanto,  concelho  da  Idanha,  ainda 
um  ou  outro  velho  os  usa,  como  lá  observei 
em  191G. 

—  No  concelho  de  Castelo-Branco  os  cal- 
ções íbram  por  fim  só  usados  no  campo  por. 
porqueiros  e  ganadciros  (era  desprezo  nflo  os 
usarem);  mas  em  1916  havia  ainda  na  própria 

cidade  dois  homens  não  pastores  que  andavam  com  eles. 

—  Em  Malpica  (concelho  de  Castelo-Branco),  cujos  habitantes  se 
chamam  Malpiquêros,  os  calções  têm  ainda  alguma  voga.  Eu  mesmo 
vi  na  cidade  em  1910  um  Jilalpiquêro  assim  vestido. 

—  Ha  anos  conheci  em  Castelo  do  Vide  um  homem  que  usava  ás 
ve/es  calções,  e  que  até  os  vestiu  uma  vez  de  propósito  para  eu  ver. 

Por  1890  existia  no  Sousel  um  individuo,  por  alcunha  o  Carujo 
(isto  é,  o  relho  Carujo,  como  no  Alentejo  costuma  dizer-se),  que  os 
usava. 

—  Em  18G3  esta  peça  de  vestuário  era  ainda  comum  em  Manteigas, 
como  se  diz  no  Almanach  de  Lembranças  dVsse  ano,  p.  8G. 

—  Em  pequeno  conheci  um  bento,  de  cujo  vestuário  os  calções 
faziam  parte:  vid.  Trad.  pop.  de  Portugal,  p.  308. 

—  Disseram-me  em  1921  (|U0  eram  ainda  usados  em  Alegrete. 
Um  velho  de  80  anos  contou-me  em  Monchique  em  1917  que 

no  seu  tempo  conhecera  ainda  os  calçOcis  do  alçapão. 

informaram-me  no  Alto-Minho  que  os  calções  eram  lá  trajo 
usado  n(j  começo  do  sec.  XIX. 

Vov  187(5  liavia  na  Taipa,  concelho  do  Aveiro,  um  velho  que  os 
usava;  em  1898  faleceu  em  Re(|ueiio,  do  mesmo  concelho,  um  in-. 
(lividuo  de  85  anos,  que  ainda  vestiu  calções  depois  de  homem  feito. 


Boletim  de  Etnografia  43 

No  tempo  dos  calçõas  coucorriam  com  eles  polainas  do  liorel,  com 
carreira  de  botOes  o  pala.  Muitas  pessoas  traziam  meias  por  baixo 
das  polaiaas,  outras  nao  traziam  nada.  Como  tradição  dos  calções 
costumam  os  camponeses  velhos,  no  referido  conccliio  de  Aveiro, 
arregaçar  as  calças  e  pôr  polainas.  Esta  tradição  apoia-se  em  utili- 
dade prática,  pois  quando  roçam  mato  não  tôm  do  estragar  calças. 

—  Aos  calções  dos  Campinos  me  refiro  adiante,  pp.  49-50. 

— Outra  tradição  dos  calções,  mas  literária,  a  encontramos  em 
cantigas  e  parlengas  populares,  onde  essa  palavra  se  emprega,  por 
eafemismo.  Basta  dar  aqui  dois  exemplos  de  cantigas: 


Fui  á  figueira  ar>s  figos, 
Ataquei-me  de  limões: 
Veio  o  dono  dos  marmelos, 
Agarrou-me  Jios  calções. 

Os  olhos  requerem  olhos, 
E  os  corações  corações : 
Os  folhos  da  sua  eiiúgoa' 
Requerem  os  meus  calções 


Vfi-se  que  os  costumes  nunca  morrem  de  repente,  mas  a  i)oueo 
e  pouco. 

Deixo  de  falar  do  uso  dos  calções  no  Entrudo,  nas  crianças,  e:u 
certos  actos  cerimoniosos  (a  Academia  de  Sciencias  de  Lisboa,  \wv 
«íxemplo,  permite  pelos  estatutos  aos  sens  sócios  usarem-nos),  e  ainda 
ha  ponco  tempo  na  corte. 

No  deseulio  do  S."'  Alberto  Sousa  (fig.  4)  está  represi'nta<lo,  como 
ele  me  informou,  um  indi\iduo  de  Maipique:  calções  o  polainas  do 
botões  amarelos  e  pala,  colete  assertoado,  jaqueta  (!  oliapeu  d(!  ab.", 
larga.  Tudo  de  saragoça.  Debaixo  do  braço  csijucrdo  \ai  um  pano 
dobrado  e  um  guarda-sol,  de  que  só  se  vê  a  mão  ou  cabo.  —  Como 
no  concelho  de  (^astslo  Branco  lia  Malpi((ue  e  X[ali)ica,  não  sei  se 
o  individuo  é  realmente  d"a(piela  terra,  se  hou\e  confusão  do  nome 
d'oIa  com  o  da  si'gunda,  por(|ue  é  de  ^lalpica  que  conheço  calções, 
segundo  disse  acima.  .Semlo  exacta  ;i  priíneir.a  suposição,  ficariaiiios 
sabendo  de  mais  um  local  na  geogr.atia  dos  calções. 

.1.  E.  i>K  V. 


I 


'  Por  ani'ii/ua. 


44 


Boletim  pe  Etnografia 


Etnografia  cstrcmenha 

1.  Fiandeira  Mtndrica  (de  Minde). 

Mulher  de  meia  idade,  que  traja  vestido  inteiro,  do  riscado,  com 
vivos  da  mesma  fazenda  ao  nivol  dos  seios,  avental  de  barra,  e  lenço 
na  cabeça,  atado  na  nuca.  Está  fiando  grande  roçada  de  linho  com 
toda  a  satisfação  o  delicadeza,  em  moio  de  um  mato;  o  fuso  gira-lhe 
entre  o  dedo  polegar  e  o  indicador  da  mao  direita,  e  nele  se  vai  for- 
mando a  maçaroca.   Fig.  1. 


Flg.  1 


Flg.  2 


2.  Um  Mindrico. 

Mostra-so  na  fig.  2  um  pedaço  da  serra  de  Minde,  ermo  e  es- 
calvado, onde  se  vO  de  pé  um  habitante  da  região,  calçado  de 
sapatos,  á  moda  do  Sul,  e  com  barrete  na  cabeça;  traz  além  d'Í8so 
cíHía  ou  faixa,  o  está  em  mangas  de  camisa,  com  a  jaqueta  dobrada 
uo  antebraço  esquerdo.  No  restante  vestuário  nSo  há  nada  que 
especificar. 

3.  Panorama  cartaxeiro. 

Tomos  na  fig.  3  um  trecho  de  panorama  cartaxeiro,  isto  é,  dos 
arredores  do  Cartaxo:  á  direita  do  observador  um  casal,  com  porta 
do  postigo,  para  o  qual  casal  se  dirige  um  carreiro  ou  atalho  que 


Boletim  de  Etnografia 


45 


parto  da  estrada,  ondo  estão  paradas  duas  senhoras;  á  esquerda, 
iim  moinho  de  vento,  de  velas  desmanteladas.  De  cada  lado  do  car- 


reiro  sobressai  um  valado,  com  jiif^eiras,  planta  muito  meridional, 
entre  nós. 

4.  Moinho  de  vento. 

Na  fig.  4  patenteia- se;  mais  amplamente,  o  mesmo  ou  outro 


Klg.  4 


moinho  do  vento  da  figura  anterior,  com  seus  postigos  rectangu- 
lares, que  dão  luz  pura  o  interior. 


•16 


Boletim  de  Etnogratia 


5.    Capela. 

A  capelinha  n^prospntada  na  fig.  õ,   ])ertencnnte   ao  lugar  da 


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Fig.  5 

é  igual  ao  que  se  encontra  em  algumas 
casas  antigas  da  Estremadura  eis-  o 
transtagana,  como  tenho  visto,  por 
exemplo,  nos  concelhos  do  Cadaval, 
Leiria,  e  Alcácer. 

6.    Um  festeiro. 

Ordinariamente,  quando  se  quer  la- 
zer uma  festa  religiosa,  de  certa  pompa, 
e  com  caracter  geral,  nomeia-se  uma 
comissão  que  se  encarrega  de,  por  pedi- 
tórios, leilões,  etc,  alcançar  dinheiro 
jiara  acudir  ás  despesas.  Os  membros 
da  comissão  chamam-se  mordomos  e 
mordomas,  por  exemplo,  nos  distritos 
de  Viseu  e  Portalegre,  e  festeiros  e  fes- 
teiras, por  exemplo,  na  Estremadura. 
Em  algumas  terras  estremenhas  é 
costume,  alguns  domingos  antes  da  festa,  ir  a  comissão  pelas 
povoações  próximas  angariar  donativos  e  esmolas,  acompanhada 
do  uma  filarmónica,  que  desperta  as  gentes,  e  provoca  generosidades-. 


Boletim  ue  Etnoukafj.' 


4T 


A  tig.  G  cxpõc-nos  um  dos  /'tísífíVo*-,  iísto  é,  o  juiz,  da  lostíi  da 
Senhora  da  Graça  dos  Boj^alhos,  concolho  de  Alcam^na:  estií  em 
cabelo,  de  saiças,  veste  opa,  e  segura  com  a  mão  esquerda  a  ban- 
deira da  .Senhora,  que  ele  dá  a  beijar  pelas  casas. — Ao  lado  vô-se 
um  rapazito,  de  barrete  caído  para  o  lado  direito,  om  mangas  de 
camisa,  com  uma  vara  horizontalmente  na  mn,o,  e  a  olhar  para 
o  festeiro.  —  Algumas  carvalliiças  completam  o  quadro. 

Nao  ha  festa  som  sermão';  ao  lindar  o  sermão,  o  pregador  cos- 
tuma ler  do  púlpito  um  rol  com  os  nomes  dos  festeiros  que  hão-de 
promover  a  festa  do  ano  seguinte.  Depois  os  festeiros  antigos  vão 


Kig.  ' 

cora  musica  entregar  as  bandeiras  ao  principal,  ou  juiz,  dos  f(>steiros 
recentemente  nomeados. 

7.  Levantar  de  redes. 

Vô-se  na  fig.  7  um  grupo  de  pescadores  no  momento  de  levan- 
tarem as  redes  do  sável  no  local  em  í|ue  a  vala  de  Santo  António 
(Ribatejo)  entrega  as  suas  aguas  ao  Tejo. 


*  Ou  sermôii!  Assim  ouvi  nina  vez  om  Mciiclim  a  um  pailio  cla3^ifif■al•  pur 
sátira,  o  talvez  por  clespeito,  um  liaco  .sermão  que  outro  prígara.  A  palavra 
é-me  também  conhecida  lie  outras  terras.  E  atr  iVr/.  o  povo  ás  vezes  «oh!  rpie 
icrmôa!»,  pouco  mais  ou  menos  no  sentido  de  «uli !  que  sermão'.»,  para  indicar 
longa   rcpriínenda   ou   ralho.  Tamliern    tcnh)  ouvido   (di.strito   de  Coimbra)   na 


48 


Boletim  de  Etnografia 


8.  Pescador  da  Nazaré. 

Traja  Musa  de  flanela  de  la  (por  dentro  camisa)  e  calças  da  mesma 
fazenda.  Tem  barrete  na  cabeça  caído  para  a  direita,  e  cinta  de  la 

na  cintura.  Fig.  8. 

No  verão,  quando  anda  no  mar,  usa 
ceroulas  brancas. 

9.  Barcos  do  Tejo. 
Fig.  9:  barco  que  conduz  pessoas 
do  Campo  nas  inundações  do  Tejo.  Cha- 
mam-se  Campo  os  terrenos  marginais 
do  rio,  destinados  a  pastagem,  semea- 
dura, e  vinha:  propriamente,  só  até 
onde  chegam  as  inundações  (terrenos 
de  aluvião).  O  Campo  toma  diferentes 
apelidos:  Campo  da  Golegã  (direita  do 
Tejo),  de  Almeirim  (esquerda),  de  Al- 
piarça (esquerda),  de  Vila  tranca  (di- 
reita), da  Alhandra  (direita),  de  Valada 
(freguesia  do  Cartaxo:  direita  do  Tejo). 
Esto  último  Campo  figura  já  num  do- 
cumento do  sec.  XV  (vid.  Gama  Barros, 
Tlist.  da  Administração,  iv,  64):  Campo 
de  Valada.  Também  tenho  ouvido  Valada  do  Ribatejo,  para  a  dis- 
tinguir do  outras  Valadas. 

Campinos  sao  os  guardas  das  propriedades  do  Campo,  e  de  gado 


Fig.  8 


mesma  aeepção  seraiiiôa  c  seramonete  (por  *sermonele),  com  suarabacti  de  o. 
Frases:  «hoje  temos  sermão!»,  «hoje  teraos  seraínonele!»  Para  se  arredondar 
o  completar  a  frase:  «hoje  temos  sermão  c  missa  cantada!»  Como  d'entre  as 
ideias  que  dominam  a  vida  do  nosso  povo  a  religião  ó  uma,  a  par,  por  exemplo, 
com  o  campo,  o  mar,  e  outr'ora  a  realeza,  acontece  que  ela  se  reflecte  a  cada  passo 
na  linguagem  em  frases  estereotipadas,  como  esta,  em  metáforas,  etc. :  está  a  dar 
a  alma  ao  Criador,  diz-se  de  uma  cousa  que  está  a  acabar;  este  ano  temos  a  páscoa 
ao  domingo  como  o  ano  passado,  isto  c,  acontece  o  que  d'antes  acontecia;  fiat 
lux!  quando  se  acende  uraa  luz;  estar  sempre  com  o  credo  na  boca,  isto  é,  em 
aflição  ou  temor  de  perigo;  pobreza  franciscana,  por  muita  pobreza  (ás  vezes  em 
sentido  irónico);  a  ordem  c  rica  e  os  frades  são  poucos,  por  abundância  de  meios 
de  vida,  que  podem  ou  lião-de  gastar-se  á  vontade;  trabalhar  para  o  bispo,  isto 
c,  de  graça,  ou  (jratis  pro  Deo;  ao  fundo  todos  os  santos  ajudam.  Tenho  a  pro- 
pósito d'isto  muitos  apontamentos  que  não  posso  aqui  publicar,  por  vir  fora  de 
propósito. 


Boletim  de  Etnoghafia 


49 


grosso  (bovideo  o  equidoo),  sobretudo  do  gado  bovideo  bravo.  Caractc- 
rizavam-se  polo  seu  cavalo  competontemento  aparelhado ',  e  pelo  tra- 


FiB-  •■» 


Kig.  U) 


'  O  aparclhu  consta  <lc  :  albarda  i'om  cncliiiiiciito  <Io  (lallia  cciitcia,  |por  cirna 
lima  |iele  de  carneiro  ou  ilo  cabra,  ainda  com  as  unlia»;  estribos  ile  jiau  com 
forraf^em  do  ferro.  No  aparelho  vai  á  frente  uma  manta  de  côr  (mmila  raiana; 
mania  da  Goleijã),  e  atrás  o  alforge. 


50 


Boi-EiiM  DE  Etnografia 


jo:  barrete  vcrdo,  de  cercadura  ou  carapinha  encarnada;  colete  en- 
carnado, atacado  na  frente  e  nas  costas  ;JaZeca,  ordinariamente  rnuHo 
curta,  o  trazida  com  freqiiencia  a  tiracolo,  o  nela,  como  ornato,  muitos 
botões  de  madrepérola;  calção  escuro  com  fivela  do  prata  a  baixo 
do  joelho;  meia  branca  o  bordada;  sapatos  do  salto  de  prateleira, 
esporas  de  fivela;  no  inverno  casaco  de  oleado.  Na  mão,  pampilho, 
quando  guardadoi"es  de  bois  bravos.  Hoje  quasi  só  aparecem  assim 
em  touradas  e  solenidades.  Nas  horas  vagas  em  que  estão  guardando 
o  gado,  ocupam- se  muito  a  fazer  não  só  fjalrkhos  (alcofas  pequenas. 


f  ig.  u 

de  junco  ou  de  junca,  para  transporto  de  peixe  miúdo  que  cies  pró- 
prios })escam,  ou  que  compram),  cacliimbos  de  i)au  o  coliiéres  de  chifre, 
mas  trabalho  próprio  de  mulheres :  renda,  meia,  croché, —  quasi  como 
Hercules,  quando  vestido  de  trajos  femininos,  fiava  ao  pé  de  Omphale, 
para  se  lhe  tornar  querido!  No  Museu  do  llafael  Bordalo  Pinheiro,  or- 
ganizado com  tanto  gosto  \mí\o  S.'"'  Cruz  Magalhães,  está  exposta  uma 
agua-forto  em  que  o  grande  Artista  desenhou  um  Campino  no  acto 
de  fazer  meia;  no  mesmo  ^luseu  me  mostrou  a  S."  U.  Julieta  Ferrão, 
afilhada  e  inteligente  colaboradora  do  S."'  IMagalliàes,  outro  desenho 
de  Bordalo  Pinheiro,  de  igual  assunto,  trayado  a  lápis  num  álbum. 

10.  Pastagens. 

Na  fig.  10  panorama  cartaxeiro,  composto  do  oliveiras  e  pinheiros. 
Ao  lado  das  arvores  pasta  gado  bovino  e  caprino. 


BOLKTIM    UE    EtNOííUAFIA 


51 


Na  tíj^.  11  um  pedaço  do  Ribatejo,  junto  da  vala  de  Sant'AiKi, 
onde  está  em  descanso  uma  manada  de  touros.  Perto  lia  poços 
de  sígua.  Esta  vala,  na  linha  do  iígua,  vem  dos  lados  do  liio  ^laior 
ao  Tejo:  acaba  na  Azambuja,  no  sitio  das  Obras  Novas.  Diz-se 
quo  d'antes  era  navegável  ató  S.  João  da  Ribeira  (Rio  Maior):  hoje 
só  ó  navegável  de  Sant'Ana  para  a  Azambuja. 

As  onze  fotografias  em  (juo  assentam  as  gravuras  que  acom- 
panham este  artigo  foram  tiradas  pela  Ex.'"''  Senhora  D.  Berta 
Mayor  do  Oliveira  Machado,  do  Cartaxo,  que  amavelmente 
m'as  ofereceu. 

J.  L.  UE  V. 


/yiobilia  popular  alentejana 

As  figuras  quo  acompanham  este  artigo  assentam  em  fotografias 
amavelmente  tiradas  em  Gúfoto  (Alto-Alentejoj  pelo  S."'  António 
do  Gouvêa. 


Pig.  : 


Na  fig.  1  temos  um  raílcirão,  tambt^m  chamado  <a<lelr((  do  encõMo. 
de  madeira.  Correspondo  ao  que  noutras  localidades  chamam  hancão 
(Beira). 


52 


Boletim  ue  Etnoguafia 


Na  fig.  2  vc-so  uma  mesa  de  comer,  o  bancos  cm  que  se  sentam 
quando  comem.  E  notável  que,  passando  os  Alentejanos  por  gente 


Fig.  -i 


encorpada,  aqui  se  sirvam  de  mobilia  tao  deuiluuta.  Esta  provavel- 
mente ó  assim,  para  se  poupar  espa<;o  nas  casas. 

J.  L.  de  V. 


Etnografia  vária 

1.  De  um  bilhete  postal  do  Plioto-editor  M.  C.  (Lisboa  1911), 
extr<'iio,  com  a  devida  vonia,  a  lig.  1,  onde  se  vê  um  rapaz  do  Unhais 
da  Serra  (concelho  da  Covilhã)  no  momento  em  que  regressa  do 
mato,  carregado  com  um  feixe  de  lenha.  Está  de  barrete  na  cabeça, 
aqui  chamado  gamujo  •,  em  mangas  de  camisa  e  jaqueta  caída  do 
ombro  esquerdo,  calças  dobradas  em  baixo,  e  descalço. 

2.  Nas  figs.  2,  3  o  4,  temos  respectivamente  vasilhame  de  Nisa 
(empedrado),  Pampilhosa  do  Botão,  o  Vila  lleal  de  Tras-os-Montes ; 
na  tig.  5,  nui  coração  de  filigrana  do  ouro,  feito  em  S.  Cosmo  do 
Gondomar,  o  usado  por  mulheres,  suspenso  de  um  cordão  que 
trazem  ao  pescoço. 


1  Palavra  que  creio  deriva  de  i/ôrro  :  *  ijorriíi;o>  *  ijuerrU';o>  (jarrui;o. 


Boletim  de  Etnografia— N.°  S— 1923 


ESTAMPA  V 


KiK.  1 


Flg.  2 


Fig.  3 


Flg.  1 


Boletim  de  Etnografia 


53 


Os  desenhos  em  quo  assentam  as  gravuras  dovo-os  á  amizade 
do  S.°'  Emanuel  llibeiro,  distinto  Aríjuitocto,  o  Professor  da 
Escola  Industrial  de  Xabregas. 

Ao  coração  na  arte  e  poesia  populares  me  referi  em  O  ArcJt. 
Port.,  XIX,  398,  e  no  meu  livro  De  Campolide  a  Melrose,  p.  93, 
nota.  Cf.  também  Luís  Chaves,  O  amor  português,  Lisboa  1922, 
pp.  35-39. 

J.  L.  DE  Y. 


Çatcntcs  de  porta  zoomórficos 

Nas  figs.  1  o  2'  publicam-se  dois  batentes  de  porta,  do  tipo  igual 
ao  da  fig.  13,  est.  II  (vid.  supra,  p.  27),  e  também  de  ferro:  ambos 


FlK.  1 


FiK.8 


representam  mais  ou  menos  fantasticamente,  animais  :  um  parece  que 
um  lagarto,  mas  com  a  cauda  enrolada  para  cima;  outro  um  cJlo,  com 
a  cauda  om  posição  semelhante.  Estes  dois  batentes  podem  ver-se 
no  Museu  de  Machado  de  Castro,  em  Coimbra:  o  rótulo  que  os  acom- 
panha diz  que  foram  aí  depositados  por  Teixeira  de  Carvaliio. 


'  Ao  meu  amigo  S."'  Álvaro  il<!  Lemos,  distinto  Professor  da  Espola 
Normal  Primaria  <l'aquela  cidade,  di;vo  os  desctilios  que  serviram  para  as  pra- 
vuras,  e  que  ele  fez  com  toda  a  exactidSo. 


54 


Boletim  pe  Etnoorafia 


Nem  (los  batentes  aqui  publicados,  nem  ãu  que  tem  o  n."  13,  est.  II 
(\).  27),  teaho  as  medidas;  eles  porém  liSo-de  ter  de  comprimento 
entre  1  e  2  decimetros. 

J.  L.  deV. 


Caleira  da  Afurada 


O  desenho  que  acompanha  este  artigo,  e  que  devo  á  amizade  do 
distinto  i)intor  o  H.'"  Joaíiiiini  Victor! no  Ribeiro,  representa- 
-nos  uma  òiiteira  da  Afurada.  A  Afurada  fica  no  conceliio  do  Gaia, 
fronteira  a  Lordclo  do  Ouro,  c  o  barco  destina-se  a  pesca  em  geral, 
e  principalmente  á  do  vtexoalJ/o  (que  serve  para  adubo  dos  campos). 

No  barco  estilo  dois  barqueiros,  de  carapuça  e  camisola:  as  per- 
nas não  se  vêem  por  inteiro,  contudo  eles  costumam  andar  de  calças 


,-*.vi     V. 


curtas,  e  descalços.  Cada  um  empunha  seu  remo.  lia  remos  que 
frahalliam  em  Ibrcpiillias  de  ferro.  Os  que  se  figuram  no  desenho 
têm  na  parti^  inferior  e  mais  larga  um  buraco  onde  encaixa  um  eixo 
d(í  madeira,  que  está  fixo  na  borda  do  barco.  Ao  conjunto  do  eixo 
e  r(>spectivo  remo  chania-se  tolete*. 

J.  L.  deV. 


'  Cf.  Victoiino  domes  da  Costa,  Guia  ãe  inslrncção  jirofissional ih  marinheiro, 
Lisboa,  Impr<Misa  Nai'iiiiial,  18'.t8. — A  iialavia  tolde  vein  ilo  fr.  ío/cí  Ole  origem 
gerinaiiiea,  isto  r,  cseaiulinavica ;  et.  ileyer  Lílbkf,  R.  E.  TI'.,  n.°  S710). 


Boij:tim  de  Et.voghafia 


55 


Azulejos  etnográficos 

Os  azulejos,  sobretudo  os  dos  séculos  xvii  e  xviii,  s?lo  boa  fonte 
para  o  estudo  da  Etno<i;rafia,  pois  frcfiuontemento  se  roprosontam 
neles  scenas  da  vida  quotodiaaa,  pescarias,  ca(,'adas,  bau(|uett's, 
joí^os  o  também  actos  da  vida  jurídica  e  religiosa,  e,  por  outro  lado, 
trajos,  móveis,  jardins.  Qu''ni  pudesse  publicar  todos  os  azulejos 
de  carácter  etnográfico,  fazer  deles  um  corpit,^,  com  comentário  e 
comparações,  que  linda  obra  levaria  a  cabo! 

No  que  vou  dizer  procuro  unicamente  reunir,  a  este  respeito, 
apontamentos  avulsos. 


Rede  de  pesca 

Na  fig.  1  reproduz-se'  uma  das  scenas  dos  azubjos  que  en- 
feitam o  jHirque  do  Santa  Cruz  de  Coimbra,  os  (|uais,  segundo  uma 
data  que  neles  se  lê, 
reproduzida  de  outra 
antiga,  foram  fabrica- 
dos em  1749.  A  scona 
h   muito   simples :    uma  . 

praia  cora  arbustos,  que  _^À^J 
em  frente  «o  reflectem 
na  água,  o  nesta  uma 
rede,  (piiota,  do  tipo 
chamado  r?rco,  com  dois 
peixes  que  tentam  esca- 
j)ar-so,  fazendo  sair  fora 
a  metade  anterior  do 
corpo. 

Para  melbor  eluci- 
daçilo  do  leitor,  af[ui  se  transcrevi'  o  (juo  da  palavra  ri^n-M  diz 
Ba!da([uc  da  Silva,  1'jsfiirlo  (ictiuti  dn-i  pesca.')  em  Porfiii/td.  Lisboa 
19Õ8,  pág.  490: 

1)  «Rode  ([ue  se  emprtíga  nas  arinaçOes  de  atuni". 


=  -y^^ 


fig- 1 


*  Segiimlo  um  (Icseiilii)  ilii  Sr.  Álvaro  li  p  I^  e  mo  s  ,  Professor  da  Escola 
Normal  Friínúria  de  Cuimbra. 


56 


Boletim  de  Etnografia 


2)  «Nome  gonórico  de  todas  as  rodes  que  circundam  ou  cercam 
um  determinado  espaço  das  águas,  uâo  permitindo  a  íuga  do  peixe. 
Antigamente,  para  encaminhar  os  peixes  para  as  armações  de  pesca, 
usavam-so  os  cercos  de  con-er». 

Quanto  aos  peixes  pintados  no  azulejo  de  Coimbra,  creio  que 
nJlo  se  pode  dizer  se  sa,o  realmente  atuns,  se  peixes  indeterminados. 


II 
Caça  e  pesca  ao  candeio 

Em  azulejos  do  mosteiro  de  S.  Vicente  de  Fora,  que  datam  do 
sec.  XVIII,  represontam-se  algumas  scenas  que  correspondem  a  tra- 
dições nacionais,  a  par  de  outras  que  tõm  origem  estrangeira. 

A  primeira  classe  poderá  pertencer  a  caça  ao  candeio,  quo  se 
reproduz  na  lig.  2  (desenho  de  Francisco  Valença),  e  se  vô  em 


Fig.  2 

azulejos  da  escada  que  conduz  ao  actual  Liceu  de  Gil  Vicente.  Ainda 
hoje,  por  exemplo,  na  região  de  Vila  Franca  de  Xira  se  caçam  ao 
candeio  as  seguintes  aves:  calhandras,  cochichos,  labercas  (lavercas). 
Em  Avis  e  outras  terras  caçam-so  ao  candeio  coelhos  e  lebres. 
O  candeio  ó  um  recipiente  de  aramo,  aberto  no  alto,  e  de  uns  3  a  4 
decimetros  de  altura,  com  dois  arames  em  cima,  que  se  prendem  ao 
pescoço  do  caçador,  o  uma  haste  de  madeira,  com  forcado,  que  se 


Boletim  de  Etnogkafia  57 

prendo  á  cintura.  Dentro  do  candeio  vai  cortiça  acesa,  com  chama, 
que  encandeia  ou  deslumbra  os  animais  que  se  desejam  caçar,  e  an- 
dam a  pastar  de  noito. 

A  caça  ao  candeio  se  referem  as  Ordenações  Manuelinas,  citadas 
por  Moraes,  o  qual  produz  também  um  trecho  da  Kova  Floresta 
do  Bernardos,  ondo  este  diz  que  a  filosofia  do  tempo  deslumbra 
«e  pesca  os  que  vivem  cegos  nas  trevas  da  ignorância».  O  candeio 
servia,  de  facto,  igualmente  para  pescar:  cf.  Constâncio,  Xoro  Dic- 
cionario:  tcandeo  ou  candeio,  facho  que  se  accende  de  noite  para 
pescar,  caçar  perdizes,  ele».  As  formas  do  instrumento  ('  que  va- 
riavam. 

J.  L.  deV. 


Vários  tipos  de  jugos  c  cangas  de  bois 

I 

Creio  que  fui  eu  quem  principalmente  chamou  a  atonçílo  dos 
etnografos  para  os  jugos  e  cangas  artisticas  dos  bois  portugueses: 
primeiro,  em  1879,  nnma  nota  do  Boletim  do  Cancioneiro  Portu- 
guês, n."  5,  p.  18;  depois,  em  1881,  num  opúsculo  especial,  intitu- 
lado Estudo  Ethnographico  (com  estampas)'.  Sem  ter  j)odido  voltar 
ao  assunto,  reservo-me  para  tornar  a  tratar  d'ele  com  algum  desen- 
voh^imento  na  Etnofjraiia  Portuguesa,  que  estou  organizando.  Ei*tro- 
tanto  aqui  publico  mais  alguns  jugos  o  cangas,  como  preparaçilo  para 
osse  tral)alho: 

Fig.  lijugo  muito  ornamentado  (Porto),  segundo  uma  fotografia 
que  devo  ao  meu  amigo  D."  Carlos  do  Vasconcelos.  xVo  centro 
vô-se  o  sino-saimao;  cf.  o  meu  livro  Signum  Salomonis,  ])p.  95  e  122. 

Fig.  2:  jugo  de  Ponte  de  Lima,  do  tipo  do  jugo  roprosontado 
na  figura  antecedente.  Segundo  uma  fotografia. 

Fig.  3:  canga  do  Azoeira,  concelho  de  Mafra:  com  um  sino- 
saimSo  em  duas  partes. 


1  Acôrca  do  jugo  na  Ilcspanha  conlieço  dois  importantes  estudos  do 
Aranzadi:  FA  yugo  vcwo-uztarrin,  San  Sel)astian  1905;  o  umas  páijinas  na 
Etnografia  (obra  ilo  mosmo  autor  puMioada  cio  colaboraçTio  com  Iloyos  Sainz), 
1917,  pp.  39-.55.- — -Tendo  eu  estado  em  Astorga  o.  Lião  do  Ilespai.Iia  orri  1922, 
vi  que  os  bois  puxam  aí  os  carros  junf^idos  \)ot  jugos  (yiujos)  que  pousara  om 
molhelhas  (mollidas). 


58  Boletim  df,  Etnografia 

Fig.  4:  canga  de  Bucelas;  está  ornada  com  figuras  do  sino- 
sahiião  dobrado:  cf.  o  meu  citado  livro,  pp.  111  o  119. 

Fig.  .'):  jiiffo  do  Lisl)oa;  tem  também  repetida  a  figura  do  s!no- 
saimão  dobrado. 

Fig.  G:  carifja  da  Barrosiuha  (Alcácer  do  Sal);  tem  um  mono- 
grama duas  vezes,  que  significa  J(oaquim)  A{ntune8)  R{eis)  P{ires). 
dono  antigo  da  casa  a  que  ])ertenceu  o  jugo. 

Fig.  7:  canga  do  Montemor-o-Velbo,  com  uma  figura  que  o  povo 
chama  simplesmente  sino-saimão,  mas  que  é  o  dobrado:  «para  não 
■  vir  mal  aos  bois». 

Fig.  8:  cangalho  de  QuiMuz,  que  serve  para  nm  só  boi:  desenho 
de  Francisco  Valença  (1922). 

No  Porto  fazem  diferença  entro  canga  e  jugo,  conforme  o  que 
escrevi  no  Estudo  Ethnographico.  Noutras  terras,  umas  vezes  dizem 
canga,  outva,s  jugo,  sem  diferença  essencial  nos  objectos.  Em  Cami- 
nha ouvi  chamar  cangão  h  canga,  e  canga  ao  jugo  alto  de  «varan- 
das» (cfr.  figs.  1  e  2).  Quer  os  jugos,  quer  as  cangas,  ou  cangões. 
de  que  aqui  falo,  assentam  imediatamente  no  pescoço  dos  bois,  sem 
intermédio  do  molhelha,  qne  porém  so  usa  em  muitas  terras.  Vid.  nas 
figs.  9  a  11,  extraídas  de  bilhetes  postais,  a  maneira  como  os  bois 
andam  jungidos  nos  arredores  do  Porto,  onde  eles  silo  de  ordinário 
guiados  por  crianças  do  um  ou  do  outro  sexo. 

Como  comparação  publico  a  seguir  cinco  jugos  da  Galiza  (xugos), 

figs.   12   a   16:  a  fig.   12  assenta  em  um  desenho  que  me  enviou 

o   meu    amigo   D.   Federico  Macinoira  y  Pardo,    etnografo 

galego  bem  conhecido;  as  ([uatro  restantes  assentam  em  desenhos 

de  Saavedra   Machado,  feitos   por  esboços   que  eu  próprio  lá 

tomei'. 

* 

Qu:;;-.(lo  num  povo  observamos  factos  ou  objectos  etnográficos 
iguais  ou  semelhantes  aos  de  outro  povo,  nem  sempre  a  semelhança 
ou  a  igualdade  resultam  dií  relações  genéticas  ou  liistoricas;  elas 
ás  vozes  são  apenas  fortuitas,  devidas  a  coincidência  nas  circuns- 
tancias geradoras:  diz-se  então  quo  ha  convergência. 


*  Em  1887  fez  uma  referencia  aos  jugos  o  cangas  o  S.»'  Joaquim  de  Vas- 
eoncellos  no  ii."  xxviii  do  uma  serio  de  artigos  sobre  «Industrias  portuguesas», 
publicada  no  Comercio  do  Porto  (vid.  11  de  Setembro  do  1887^,  o  em  191C 
publicou  o  S."'  E.  Frankowski  em  I^isboa  um  follicto,  que  me  enviou,  com  o  titulo 
de  «As  cangas  e  jugos  portugueses»  (separata  da  Trrra  Portuguesa),  onde 
naturalmente,  após  tantos  ajios,  vai  mais  ab'-m  do  que  eu  tora  em  1881. 


ê 

líOLETIM    DE    ExNOnRAFIA  59 


Atentando  no  paralelismo  quo  existo  entro  os  objectos  escandi- 
navicos,  do  Upland  (Suécia),  representados,  segundo  fotografias,  nas 
figs.  17  a  24,  e  os  jugos  o  cangas  do  Baixo-Minho  (figs.  1  e  2)  o  Beira 
Ocidental  (vid.  o  meu  citado  opúsculo),  seriamos  levados  no  primeiro 
momento  a  considerar  esse  paralelismo  como  mera  convergência; 
talvez  baja  porém  aí  mais  alguma  cousa  do  que  convergência. 

Os  objectos  oscandinavicos  sSo  de  madeira,  como  os  jugos  e  can- 
gas: só  diferem  no  emprego,  visto  que,  embora  destinados  a  faze- 
rem ffarte  de  arreios  de  animais  do  tracção,  servem  (ou  serviam, 
pois  já  nSo  se  usam)  para  o  dorso  do  cavalos  e  nao  para  o  pescoço 
de  bois.  Sao  uma  espécie  de  cangalhos  a  que  se  prendiam  os  varais 
de  uma  carroça,  quando  tinha  d(í  ser  puxada  por  um  só  animal. 

Vi  muitos  d'estes  objectos  uo  «Museu  do  Norte»  (Xordiska 
}fu8eet)  de  Estocolmo,  em  1921,  o  de  lá  sâo  as  fotografias  que  aqui 
publico,  as  quais  me  foram  amavelmente  oferecidas  pelo  ilustre 
etnografo  sueco  D."''  Nils  Litberg,  Conservador  d'aquole  Museu. 
As  semelhanças  dos  cangalhos  de  Estocolmo  (ou  hoir-.mddleit,  como 
se  lhes  chama  no  Guide  to  t/ie  col/ections  of  thf  Northern  Museiim 
Stoehholm,  de  S.  Ambrosoli,  1012,  p.  30),  sobretudo  dos  quo  t3m 
neste  artigo  os  n."*  17  a  21,  com  os  jugos  minhotos,  é  palpitante: 
até  em  alguns  se  esculpiram  estrelas  de  sois  raios,  como  no  Minho; 
os  vasados  do  corpo  superior  dos  cangalhos  n."  17  a  19  lembrara 
também  os  dos  jugos. 

Em  museus  de  Ifelsingfors  (Finlândia)  o  do  Egor  (Txeco-Slo- 
vaquia)  vi  objectos  semelhantes.  De  objectos  da  Finlândia  nos 
dá  muitos  desenhos  a  notável  obra  do  Sirelius,  intitulada  Suomen 
kansanomaistn  kuHuuria  («Civilização  do  povo  tinico»),  tomo  i, 
pp.  401-4<I4. 

Da  fig.  25,  tirada  de  uma  fotografia  de  um  quadro  do  mencionado 
Museu  do  Estocolmo,  que  me  foi  enviado  pelo  S."''  D."''  N.  Áberg, 
Professor  da  Universidade  de  Upsala,  vê-se  tambom  como  é  que  se 
usavam  os  how-sacldle-i. 

Em  Lisboa  os  varais  das  carroças  puxadas  por  muares  ligam-so 
aos  manf/oteg  do  arreio  quo  vai  sobre  o  dorso  do  animal :  e  ha  alem 
d'isso  tirantes  ilo  coiro,  do  borracha,  do  corda  ou  de  forro  ('corron- 
les)  que  pr<;nileni  a  carroça  á  colheira  ou  roalJieira  onciuimaoada 
do  pescoço,  para  o  animal  poder  puxar.  A  palavra  colheira  velo-nos 
dl'  Hespanha  (collera),  com  outras  palavras  conexas:  ravalhariqa  (quo 
usamos  a  par  do  tuvalnrira),  o  raralheiro  (forma  paralela  a  ctirídciro). 
A  parto  do  arníio  escandinavico  (fig.  2;})  correspondente  á  colheira 
portuguesa  ó  ])oróm  do  madeira,  oonio  o  bowxuddle. 


60  Boletim  de  Etnografia 

Aventei  acima  quo  a  semelhança  que  existe  dos  jugos  e  cangas 
(lo  Baixo  Minho,  e  Beira  Ocidental,  com  os  escandinavicos  nHo  seria ' 
simples  fenómeno  de  convergência.  Efectivamente,  nos  séculos  ix  a  xi, 
estiveram  naquelas  regiões  povos  da  Escandinávia,  otc,  isto  ó,  pira- 
tas normandos,  ou  como  eles  a  si  próprios  so  chamavam,  Wikinrjer^. 
Ora,  supondo  ou  que  talvez  niío  fosse  absurdo  atribuir  á  arte  dos 
Wikinger  essa  curiosa  ornamentação  dos  how-saddlea,  consultei  um 
bom  conhecedor  do  assunto,  o  S."''  D.""'  N.  Âberg,  a  quem  já  acima 
me  referi,  e  ôle  me  disso:  «L'origine  de  rornemontation  des  bow- 
-saddles  est  une  question  tròs  dlficile  i\  résoudre.  La  plupart  des 
saddlos  appartient  au  17-18  siòcles;  mais  c'est  bien  súr  qu'ils 
signifient  un  développement  qui  remonte  au  moyen  fige  (etc.)». 
Com  esta  remota  data  concorda  o  que  so  lê  no  citado  Guide, 
p.  29.  «A  coUection  of  carved  and  painted  harness  saddles:  among 
tliese  is  tho  oldest  . .  from  1638.  It  is  decoratod  witli  the  ornements 
cliaracteristic  of  the  East  of  Upland,  which  has  manj'  anciont  features. 
As  is  woU  known,  Upland  has  a  groat  numbor  of  runic  stones, 
wiiich  ai-e  boautifully  adorned.  It  seoms  as  if  in  somo  parts  of  tho 
province  the  traditional  decoration,  wliich  is  now  nearly  1000 
years  old,  has  not  yet  been  given  up». 

Poderemos  assim  talvez  admitir  (jue  a  ornamentação  dos  arreios 
dos  cavalos  dos  Normandos  ouWiivinger  passou  para  os  jugos  e  can- 
gas medievais  dos  bois  do  Baixo  Minho  e  Beira,  aí  conservada  até 
hoje. 

J.  L.  DE  V. 


OBSERVAÇÃO   FiNAL 

A  figura  emblemática  que  embeleza  o  frontispício  d'este  número 
do  Boletim  foi  feita  pelo  insj)irado  artista  S."''  Saavedra  Machado, 
antigo  Desenhador  do  Museu  lítnológico. 


1  Viil.  o  mpu  opiisoulo  Orirjrm  do  povo  porlugwx,  Lisboa  1923,  pp.  5-6. 


Boletim  de  Etnografia  —  N."  2  — 19S3 


ESTAMPA  VI 


t 


Fifr.  1  —  Jugo  do  Porto 


Fig.  2  — Jugo  de  Ponte  de  Lima 


Fír.  3  — Canga  da  Azoeira 


Fig.  4  — Canga  de  Bucelas 


Boletim  de  Etnografia  — N.°  2  —  1923 


ESTAMPA  VII 


c^izrS 


Fig.  5  — Jugo  de  Lisboa 


Fig.  e  —  Canga  da  Barrosinha 


Fiií.  7  — Canga  de  Montemor -o -Velho 


Fig.  8  — Cangalho  de  Queluz 


Fig.  9  — Arredores  do  Porto 


Eoletim  de  Emograíia  — N.»  2  —  1923 


ESTAMPA  VIII 


Fig.  10  — Arredores  do  Porto 


Klf.  n  —  Arredores  do  Porto 


Kit'.  12— .Xugo.  galego 


lifc'.  13-    .Xugo.  galego 


Boletim  de  Eliiogiafia  — H.»  2  —  1923 


ESTAMPA  IX 


Fig.  14  — .Xugro>  galego 


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Fip.  15— .Xugo-  galego  (de  Santiago) 


KiK.  n;  -  .Xago-   galego  (de   Santiago) 


Fig.  17  — Cangalho  esoandlnavioo 


Bolitim  de  Etnografia  — N."  2  —  1923 


ESTAMPA  X 


Fig.  18  — Cangalho  escandinavico 


Fík.  r.i  — Cangalho  esoandinavico 


Fig.  ao  — Cangalho  escandinavico 


Boletim  de  EmogiaEa— H.°  2  —  1923 


ESTAMPA  XI 


Fií?.  21  —Cangalho  escandinavico 


Fig.  i'2  —  Cang-alho  escandinavico 


Fijf.  2^  —  Cangalho  escandinavico 


Boletim  de  Etnografia  — N,°  2  — 1923 


ESTAMPA  XII 


Ki_'.  24  — Cangalho  esoandinavioo 


Fit'.2'i  — Cavalo  aparelhado  (Escandinávia) 
(Do  iiiii  quadro  do  Mtiseil  do  Xorte) 


ÍNDICE 


Oâ  cinco  sentidos 5 

Coleira  de  cão 8 

Apontamentos  para  a  etnografia  inadciroiisc  —  Habitação  troglodítica    .    .  O 

Vida  portuguesa  antiga,  segundo  documentos  iconográficos 13 

Teares 20 

«Espolhos«  de  portas 22 

Pescador  da  Figueira  da  Foz 23 

Gostos  artísticos 24 

Tipos  e  cousas  do  Alentejo '^f'> 

Adelino  das  Neves  (2.°  artigo) 28 

Etnografia  do  jornalismo 31 

Uanho  santo 34 

Cozinha  alentejana      35 

Niclio  do  uma  casa 37 

Objectos  etnográficos  do  Alto  Alentejo 3'J 

Trajos  alentejanos 40 

Etnografia  estremenha 44 

Mobília  popular  alentejana 51 

Etnografia  vária 52 

iiatentcs  de  porta  zoomórficos 53 

Bateira  da  Afurada 54 

Azulejos  etnográficos: 

1)  RCdo  de  pesca 55 

2)  Caça  e  pesca  ao  candeio. 56 

Vários  tipos  de  jugos  e  cangas  de  bois 57 

Observação  final CO 


BOLETIM 


DE 


ETNOGRAFIA 


PUBLICAÇÃO  DO  MDSEU  ETNOLÓGICO  FORTDGDÊS 


DIRIGIDA   POR 


J.  LEITE   DE  VASCONCELLOS 


2sr.°  3 


LISBOA 


IMPRENSA  NACIONAL 


IN  CM  XXIV 


ÇObETI/W 


DE 


ETNOGRAFIA 


BOLETIM 


DE 


ETNOGRAFIA 


pdblicâção  do  mosed  etnológico  português 


DIRIGIDA   POR 


J.  LEITE    DE  VASCONCELLOS 


isr.°  3 


LISBOA 


IMPRENSA   NACIONAL 


M  CM  XXIV 


Vida  portuguesa  antiga 
segundo  documentos  icono|graficos 


10.— o  "Livro  das  fortalezas  do  reino» 
como  fonte  de  Etnografia 

ÍÁcro  das  fortalezas  do  reino  íeito  á  pena  por 
Duarte  d'Armas  no  reinado  de  D.  Manuel  I 
(149Õ-1521),  e  ainda  existente  na  Torre  do 
Tombo,  SC  é  precioso  pelo  seu  assunto  princi- 
pal (do- 
se u  li  o  s 
e  plantas 
de  fortalezas  fronteiriças), 
ó-o  igualmente  pelo  ([ue 
toca  á  Etnograíia.  Duarte 
tinha  gosto  artistico,  e  era 
grande  observador:  por 
isso,  ao  desenhar  as  forta- 
lezas, vistas  de  ordinário 
com  a  bandeira  real  arvo- 
rada nas  torres,  agrega  aos 
desenhos,  como  decoração, 
panoramas  variados  (^arvo- 
redo, rios,  ])ato8  a  nadarem),  c  i)riiicipalmentc,  para  o  meu  caso, 
esbo(;os  etnográficos,  relati\os  á  vida  religiosa,  vida  politica,  (?  vida 
quotidiana.  Antes,  poróni,   ile  especificar  um  pouco  estes  esbo^-os. 


i-ig.  1 


Boletim  de  Etnogeafia 


desejo  chamar  a  atenção  do  leitor  para  uma  circunstancia  que  creio 
nâo  foi  ainda  notada. 

No  decorrer  dos  desenhos  deparam-se-nos  com  muita  freqiiencia 

í 


Fig.  2 

duas  figuras  sempre  juntas:  um  cavaleiro,  de  lança  ao  ombro,  ou  na 
mão,  e  um  peão,  muito  lesto,  também  de  lança,  e  ao  mesmo  tempo 

de  espada  curta  á  cinta,  fig.  1, 
o  qual  vai  ora  na  frente  (e  quasi 
sempre),  ora  atrás.  Primeiro  as 
duas  figuras  aparecem  só  de  meio 
corpo,  modestamente  (fls.  24); 
depois  por  inteiro,  e  ás  vezes 
estacadas  diante  das  fortalezas 
a  contemplar  as  altas  muralhas; 

Fig.  3 


Fig.  4 

A  fls.  48  o  cavaleiro  fala  com  o  poSo,  e  este  como  que  está  res- 
pondendo; a  fls.  65 
passam  a  ponte  do 
Côa,  no  Sabugal,  e  o 
peão  pára  voltando- 
se  para  o  cavaleiro, 
fig-  s  fig-  2 ;  a  fls.  115  atra- 

vessam o  rio  Minho  sentados  num  barco,  um  á  proa  e  o  outro  á  popa, 
tig.  3;  uma  vez,  fls.  61,  na  subida  de  um  monto  vêem-se  os  dois  em 


Boletim  de  Etnografia 


baixo,  o  em  seguida  surgem  mais  acima,  numa  volta  da  ladeira;  no 
desenho  de  fls.  105  o  cavaleiro  apeou-so,  o  o  peão  leva  o  cavalo 


Fig.  6  Fig.  7 

adiante  á  rédea  para  lhe  dar  do  beber  num  poço  que  se  vê  á  direita, 
cÔrca  do  caminho:  isto  permite  observar  melhor  a  sela  d'onde  pendem 


Fig.  8  Fig.  9 

estribos  largos,  de  que  contudo  só  naturalmente  se  vê  um  (o  da  di- 
reita), fig.  4. 

Quem  sao  estas  figuras?  No  meu  entender,  e  isso  parece-me  evi- 
dente, sao  o  próprio  Duarte  d'Armas  montado  num  cavalo,  e  um 


Fig.  10  Fig.  II 

moço  a  pé.  As  lanças  nfto  representam  aqui  insígnias  do  milícia, 
servem  de  armas  de  defesa,  pois  também  a  tis.  52  se  vê  um  moleiro 
de  capucha,  o  (jual,  acoinpaniiando  dois  muares  carregados  do  sacos 
de  farinha,  um  d'eles  (o  do  trás)  até  com  chocalho,  a  leva  ao  ombro 
esquerdo,  segura  pela  mão  do  mesmo  lado  (na  m^o  direita  tem  uma 


8 


Boletim  de  Etnogeai'ia 


espécie  de  arrocho  ou  vara  para  tocar  os  animais),  fig.  5.  Julgo 
bastante  curioso  o  ter-nos  deixado  aqui  Duarte  d'Arma8,  embora  não 
propriamente  o   seu  retrato,  ao  menos  um  esboço  da  sua  figura, 

e  ter-nos  dado 
uma  idea  de 
como,  para  de- 
senhar as  for- 
talezas, jorna- 
deava  de  umas 
para  outras,  a 
cavalo,  e  acom- 
panhado de  um 
moço,  e  ipso 
facto  de  como 

ambos  trajavam:  ele  de  gorro,  a  modo  de  turbante,  e  tabardo  de 
capuz,  o  moço  de  gorro  simples  e  pelote,  e  ambos  armados  como 
já  vimos. 

Passemos  agora  á  Etnografia. 

Na  vida  material  ora  vemos,  além  do  que  já  indiquei,  um 
pescador  com  o  seu  moço,  que  leva  a  cana  de  pescar  e  um  cabaz 


Fig.  12 


para  o  peixe  (8),  fig.  6,  ora  azenhas  ou  moinhos  (1,  4,  65,  95).  fig.  7, 
uma  fonte  coberta  (Ouguela,  3U),  fig.  8,  um  tanque  (83),  fig.  9,  uma 


Boletim  de  Etnografia 


scena  de  mulheres  que  tiram  água  de  um  poço  (Sul?)  e  a  transportam 
em  bilhas  á  cabeça,  íig.  10;  a  fls.  30  uma  mulher  não  só  leva  uma 
bilha  á  cabeça,  mas  na 
mão  direita  uma  cesta, 
fig.  11,  aqui  mostra-se- 
nos  um  estaleiro  (115), 
fig.  12,  ali  navios  á  vela 
ou  ancorados,  barcas 
com  os  respectivos  re- 
madores. O  que  respeita 
a  vestuário,  já  o  ilustro 
artista    Alberto    Sousa 


aproveitou  na  sua  obra  o  Trajo  em  Por- 
tugal o  que  havia  importante.  Duarte 
d'Armas  repre- 
senta sempre  as 
povoações  que 
pertenciam  ás 
*■'«•  1^  fortalezas.  Em- 

bora as  casas  estejam  estilizadas,  observa- 
mos vários  tipos:  de  andar  baixo,  do  andar 
alto  (i)or  exemplo,  16, 19,  20,  29),  com  ou  sem 
chaminé  (a  chaminé  porém  é  rara:  por  exem- 
plo, 3õ,  66),  e  no  Norte  casas  cobertas  de  colmo,  fig.  13.  Quasi  sempre 
as  telhas,  tanto  de  casas  como  de  igrejas,  silo  quadradas;  mas  ás 


vezes  ha  telhas  compridas,  curvas,  por  exemplo,  a  fis.  59;  ha  telhas 
quadradas  a  par  de  telliados  do  colmo,  Hs.  59  (Peua  Garcia)  e  fis.  1 


10 


Boletim  de  Etnografia 


(Penas  Koyas).  Não  faltam  casas  de  alpendre,  nem  também  hortas 
e  pomares  perto  das  povoações. 

Na  vida  religiosa  tomos  no  Livro  das  f(y>'talezas  muitos  ti- 
pos de  igrejas  e  capelas,  por  exemplo,  fls.  56,  a  igreja  de  Segura, 


(innnAAAnM 


Fig.  18 


Fig.  19 


com  torre  encostada  á  parede  direita,  e  alpendre  ou  galilé  á  entrada, 
o  na  torre  uma  ave  como  catavento,  fig.  14;  varias  formas  de  cru- 
zeiros, por  exemplo,  fls.  50  (Montalvão),  entro  dois  renques  de  varas, 
fig.  15.  A  fls.  65  vê-se  junto  do  Sabugal  uma  cruz  pousada  num 
montão  de  pedras  (calvário),  e  adianto  d'ela  uma  mesa,  que  parece 
de  pedra,  com  dois  bustos  em  cima,  fig.  16;  o  autor  chama  altar 

á  mesa,  e  diz:  «nes- 
te altar  estâm  dous 
santinhos  velhos  de 
paao».  Todavia  o 
que  ele  tomou  por 
santinhos  são  ex- 
votos  de  madeii'a, 
que  ainda  hoje  em 
^'8- 2"  Santo  Amaro  do 

Cortelho,  precisamente  no  concelho  do  Sabugal,  é  uso  pôr  no  adro 
da  capela  do  santo.  Conheço  o  mesmo  uso  na  Beira  Alta:  entro 
Tarouca  e  Lamego  havia  por  1870  (ao  presente  não  sei  se  ainda 
lá  está)  um  cruzeiro  de  pedra  em  cujo  pedestal  e  em  cujos  braços 
se  acumulavam  braços  e  peruas  de  pau,  ali  levados  como  promessas, 
e  já  carcomidos  da  chuva  o  do  sol.  No  Museu  Etnológico,  secção 
de  Etnografia,  pode  o  leitor  ver  objectos  semelhantes  a  estes  que 
adquiri  no  concelho  de  Sátão  em  1896.  As  idoas  religiosas  persistem 
muito  tempo,  e  por  isso  não  admira  que  esta  prática  do  sec.  xv-xvi 
so  conservasse  até  agora. 

No  que  toca  á  vida  politica  dá-nos  Duarte  d'Armas  muitas 
informações,  como  já  sabemos,  a  respeito  do  fortalezas  e  da  ban- 


Boij;tim  de  Etnografia 


11 


V\g.  31 


doira  e  armas  nacionais;  contudo,  como  ele  era  muito  observador, 
e  amigo  de  assinalar  aquilo  que  julgava  característico  das 
localidades,  desenha  a  cada  passo  forcas  em  várias  posições, 
e  picotas  de  vários  e  artísticos  feitios,  como  consta  de  íls.  14,  31, 
92,  95,  97  (forcas),  figs.  17  a  21.  e  55 
(picota),  fig.  22,  e  das  figuras  que  de 
outras  folhas  extraiu  o  D."''  Manuel  He- 
leno para  a  monografia  que,  com  o  titulo 
de  «Antiguidades  de  Monte-Real»,  deu 
a  lume  no  volume  xxv  do  Archeologo 
Português   (d'onde   fez  ediçiío  aparte). 

Lô-se  por  vezes  em  antigos  documentos  uma  frase  que  sintetiza 
o  rigorismo  da  justiça  medieval:  tronco, picota,  e  forca.  Os  desenhos 
de  Duarte  d'Armas  tornam  bem  expressivos,  pelo  menos,  os  dois 
últimos  termos  da  fra- 
se. Desenhos  de  pri- 
sões, suponho  que  os 
não  fez,  ou  nJlo  os  pôs 
claros. 

Eis  ai,  expresso  de 
modo  sucinto,  o  que 
mais  adequado  me  pa- 
receu para  servir  num 
estudo  etnográfico;  o 
tudo  isso  conto  apro- 
veitar na  minha  obra  de  Etnografia  Portuguesa,  em  que  ha  muito 
tempo  trabalho. 

P.S.  —  Os  desenhos  que  se  publicam  a([ui  foram  extraídos  do 
itvro  pelo  S."  Francisco  Valeu(;a,  desenhador  do  Museu  Etno- 
lógico. 

Lisboa,  Setembro  de  1925. 

J.  L.  dkV. 


Fig.  : 


Çonccd  de  chdtnlné 

Por  várias  vezes,  em  escritos  meus,  me  tenho  referido  á  boneca 
que  costuma  fixar-se  á  parede  da  coziuha:  vid.,  por  exemplo,  //ís- 
toria  do  Museu,  p.  209,  e  nota,  e  Boletim,  n."  2,  pp.  31-32.  VMg 
costume,  que  primeiramente  só  obsei'vei  no  Alentejo  e  Algarve, 
observei-o  depois  taml)em  ua  Estremadura,  isto  é,  nos  conceliios 
do  Cadaval  o  do  Porto  de  Mós. 


12 


Boletim  de  Etnogkafia 


Na  figura  junta  reproduz-se  uma  boneca  de  tijolo  de  uma  cozi- 
nha do  Peral.  A  dona  da  casa  informou-me  que  os  pedreiros  que 

a  haviam  construído  eram  de  longo, 
e  também  me  disse  que  não  sabia  que 
tivesse  nome  especial. 

Será  conveniente  arquivar  maior 
número  de  exemplos  de  bonecas  na 
Estremadura,  para  ver  se  se  pôde 
averiguar  so  o  costume  é  aqui  antigo 
ou  nâo. 

Se  bem  me  lembro,  encontrei  ou- 
tra boneca  ha  anos  numa  cozinha  da 
Vermelha,  do  referido  concelho  do  Ca- 
daval, a  que  o  Peral  igualmente  per- 
tence. 

Ueixa-se  á  boa  vontade  do  leitor 
o  imaginar  que  a  parte  inferior  da  bo- 
neca, sobre  a  qual  pousa  o  losango,  é  formada,  nâo  de  um  só  tejolo, 
como  ao  i-epente  parece  do  esboço,  mas  de  vários;  o  todo  apresen- 
ta-se  uniformente  caiado, — e  é  por  isso  que  de  facto  ha  a  ilusão 
de  ali  estar  um  tejolo  único. 

J.   L.  DK  V. 


Chaminé  cxtremcnha 


A  cliamiiió  que  se  representa  na  figura  junta,  existente  numa  casa 
da  Estremadura  Cistagana,  é  feita  de  tijolo,  e  caiada.  O  fumo  sai 

pelas  aberturas  angulares 
que  se  vêem  em  cima. 

Esta  chaminé  está  muito 
longe  de  se  parecer  com 
outras  chaminés  artísticas 
quo  se  admiram  nas  pro- 
víncias meridionais,  o  até 
na  própria  Estremadura: 
vid.  Boletim,  n."  2,  p.  39.  Onde  o  gOsto  artistlco  mais  predomina 
a  esto  respeito  croio  sor  no  Sul.  Cf.  também  o  que  escrevi  na  Alma 
Xoca,  n."  3,  do  15-IV-1926,  p.  10  (artigo  quo  saiu  mutilado). 


J.  L.  DK  V. 


Boletim  de  Etnoghafia 


13 


Azulejos  etnográficos 
111 

Cães  com  coleiras 

Os  dois  desenhos  figs.  1  e  2  foram  extraídos  do  azulejos  do 
parque  de  Sauta  Cruz  de  Coimbra  (1749),  ao  qual  já  me  referi  no 
Boletim  n."  2,  p.  55.  Foi  tam- 


bém o  S."'  Álvaro  do  Le- 
mos, de  quem  aí  falo,  que 
teve  a  bondade  de  os  extrair 
a  meu  pedido. 

Eepresentam  cães,  de  co- 
leira e  guiso.  Acerca  das 
coleiras  vid.  o  mesmo  número 
do  Boletim,  p.  8.  Quanto  ao 
guiso,  esfera  metálica,  ôca  o 
fendida,  que  tem  dentro  uma 
bolinha  cujo  movimento  a  faz 
soar,  relaciona-se  com  os  cho- 
calhos dos  solipedes  e  do  gado, 
cuja  historia  pôde  entre  nós 
soguir-se  já  desde  a  opoca  lu- 
sitana, como  consta  de  exem- 


)'ig.  1 


piares  existentes  no  Museu  Etnológico  Português  (armários  15,  19, 


l-ip.  2 


40,  etc,  do  salão  chamado  «de  Estacio  da  Veiga»).  No  meu  enten- 
der, guiso  o  chocalho  dostinavam-so  na  origem  a  expulsar  os  ospi- 


14 


Boletim  de  Etnografia 


ritos  maus  que  pudessem  perseguir  os  animais:  cf.  O  Ar  eh.  Fort., 
XXII,  332(-333),  nota.  Acerca  do  papel  profilático  de  tais  objectos 
vid.  Dict.  des  antiq.,  s.  v.  amuletum,  p.  258  (artigo  de  Ch.  Morei) 
o  s.  V.  «tintinabulum»,  p.  341  sgs.  (artigo  de  Espórandien). 

IV 

Um  veado 

Nos  azulejos  artísticos  figuram-se  a  cada  passo  scenas  de  caça: 
o  voado  o  o  gamo  eram  animais  de  que  as  nossas  matas  outr'ora 


'^-mr  A  w ' 


abundavam,  e  por  isso  muitas  vezes  aparecem  em  scenas  de  caça. 
O  veado  que  vai  representado  na  fig.  3  pertence  á  mesma  serie  de 
desenhos  de  que  se  falou  no  capitulo  iii. 

J.  L.  DE  V. 


Recipientes  de  couro  para  vinho 

Sendo  Portugal  terra  vinhateira,  não  admira  que  haja  mil  ma- 
neiras de  envasilhar  e  transportar  o  vinho.  Nas  figs.  1  e  2  temos,  por 
exemplo,  respectivamente,  uma  borracha  e  um  gato,  de  couro,  des- 
tinados a  serem  transportados  ao  ombro  de  \ãajantes,  caçadores,  etc. 

Estas  duas  vasilhas  ou  sacas  pertencem  ao  Museu  Etnológico, 
para  o  qual  foram  adquiridas  pelo  ex- Preparador  Chaves  Lopes. 
Os  desenhos  f6-los  do  natural  F.  Valença,  Desenhador  do  mesmo 
Museu. 


Boletim  be  Etnografia 


15 


A  propósito  de  gato,  nome  dado  àquele  recipiente  por  causa,  da 
perfunctorla  semelhança  que  ele  apresenta  com  um  gato,  quando  en- 
roscado no  chão  ou  numa  cama,  lembrarei  que  ha  muitos  outros 
utensílios  cujos  nomes  provêm  metaforicamente  dos  de  animais,  e  ató 
em  particular  do  de  ga- 
to; porém  nSo  posso 
aqui  tratar  agora  do 
assunto. 

A  nossa  palavra  bor- 
racha corresponde  á  pa- 
lavra hespanhola  que 
tem  a  mesma  forma,  á 
francesa  bourrache,  que 
vem  d'esta,  e  á  italiana 
borraccia.  Como  sinoni- 
mo de  «borracha», tam- 
bém em  português  ha  Fig.  i  Fig.  3 
bota  (cf.  botija,  fv.  bouteille,  etc.j,  palavra  comum  ao  galego  e  ao  hes- 
panhol.  Ouvi  algures  uns  versos  hespanhois,  que  dizem:  Esta  nocije 
es  noche  buena,  |{  alza  la  bota,  morena,  ||  que  mo  quiero  embebedar 
(por  emborrachar). 

J.  L.  DK  V. 


t 


Esmolas  religiosas 

As  imunidades,  ou  confrarias  destinadas  a  sufrágios  e  a  obras 
piedosas,  são  em  parto  sustentadas  por  esmolas.  Para  as  receb(>r 


Fig.  1  Fiit.  L' 

existem  ás  vezes  nas  sacristias  das  igrejas  caixas  próprias,  de  pau, 
chamadas  caixas  das  esmolas. 


16 


Boletim  de  Etnogkafia 


Na  fig.  1  (desenho  do  S.'"'  Francisco  Valença,  feito  de  um 
apontamento  de  um  curioso)  ropresenta-se  uma  de  uma  igreja  alen- 
tejana, de  O", 20  de  comprimento,  com  uma  fenda  para  se  deitar 
o  dinheiro;  na  parte  anterior  do  encosto  está  a  imagem  de  Santo 
António,  na  sua  posição  hierática:  Menino- Jesus  apoiado  na  mão 
e  braço  esquerdo,  e  cruz  na  niRo  direita. 

A  mesma  igreja  pertence  uma  caixa  de  lata  em  que  á  hora  da 
missa  se  pedem  esmolas  aos  fieis,  as  quais  ali  se  recolliem,  —  caixa 
de  O™,  10  de  largura,  e  representada  na  fig.  2. 

Na  parte  anterior  do  encOsto  vemos  duas  almas  a  arder  no  Pur- 
gatório. A  razão  do  tema  está  em  se  destinarem  as  esmolas  princi- 
palmente a  sufrágios. 

.T.  L.  DE  V. 


Depois  dd  tndtânçd  do  porco 


Rico  como  um  porco  ó  expressão  vulgar,  deduzida  da  variedade 
de  aplicações  que  tem  a  carne  d'esse  pobre  animal,  cuja  morte,  tao 
barbara,  constituo  motivo  para  grande  festa  de  familia. 

Uma  das  espécies  culinárias  preparadas   com  carne  de  porco 
é  o  chouriço.  Em  Moncorvo  talham  a  carne  em  um  prato  de  ma- 
deira que  tem  a  forma  indicada 
na  figura  junta,  segundo  o  exem- 
plar do  Museu  Etnológico  (de- 
senho de  F.  Valença).  O  prato 
consta  de  uma  espécie  de  taça 
onde  ao  centro  se  levanta  intei- 
riço com  ela  um  cepo  de  forma 
de  tronco  de  cone,  que  tem  a  base 
para  cima:  ó  na  base  do  cepo  (juo  propriamente  se  miga  a  carne, 
a  qual  cai  migada  o  ensanguentada  na  taça. 
Diâmetro  da  taça:  0,282. 
A  operação  chama-so:  migar  a  carne. 

A  palavra  migar  deriva  do  latim  mica,  que  significa  «migalha», 
e  aplica-se  também  ao  acto  de  esboroar  pão  sobre  uma  tijela  ou 
prato  de  caldo,  e  no  vSul  ao  de  segar  couves  para  a  panela.  Se  as 
couves  se  dilaceram  com  a  mão,  diz-se  aterçoar  (as  couves),  palavra 
derivada  de  torção:  *atorçoar  (com  dissimilação  vocálica),  por  isso 
(jue  as  couves  se  torcem  ao  serem  rasgadas. 

J.  L.  DE  V. 


Boletim  de  Etnografia 


Fonte  de  uma  sacristia 


A  fonte  que  vai  desenliada  na  figura  junta  (ístá  na  sacristia  da 
igreja  deTolosa  (Alto  Alentejo):  compOe-se  essencialmente  de  reser- 
vatório, bica,  e  tanque.  Por  causa  da  carantonlui,  cuja  l)ôca  serve 


do  bica,  pertence  ao  tipo  já  estudado  neste  Boletim,  n."  2,  ]).  25. 
A  agua  que  alimenta  a  fonte  não  é  nativa,  mas  trazida  de  fira  para 
o  reservatório. 

Visto  ter  a  carantoniia  ou  carranca  em  sua  ori^-em  significação 
mítica,  ó  curioso  que  apareça  num  templo;  em  todo  o  caso  vemo-la 
aqui  suplantada  pela  cruzl 

O  desenho  que  serviu  para  a  gravura  executou-o  o  S."'  F.  Va- 
lença por  um  esboço  devido  a  um  curioso. 

.T.  ]..  Di:  V. 


18 


Boletim  de  Etnografia 


«Copeiro»  alentejano 

A  casa  popular  do  Alentejo  prima  por  boa  ordem  e  asseio. 
D'essas  duas  qualidades  depende,  por  exemplo,  o  copeiro  que  se 
representa  na  figura  junta  (desenho  de  F,  Valença). 


Consisto  numa  espécie  de  varandinlia  quadrangular,  segura  por 
duas  tábuas:  uma  vertical,  pregada  por  duas  partes  na  parede, 
e  outra  inclinada,  que  sustenta  por  baixo  a  varanda  propriamente 
dita.  —  Cf.  Historia  do  Museu  Etnológico,  p.  207. 

O  exemplar  que  serviu  para  o  desenho  2)ortence  àquele  Museu, 
e  adquirl-o  no  Alandroal. 

J.  L.  DE  V. 


Boletim  de  Etnografia 


19 


Esmolas  para  S.  Isazaro 

Do  antigo  Hospital  do  S.  Lazaro,  do  Lisboa,  costumava  ir  (['an- 
tes, polas  casas  dos  liahitantes,  um  (miprogado  coliiOr  esmolas  para 


SLAZARO 
Acl>«C!ado  de  LepraMorffeiae 
^    MaldeTelle 


Ad-d,   Udo  Q  mal    dg    Pelln 

FiR.  1 

esso  ostabelecimento  de  beneficência 
pública.  Quando  lh'a  davam,  entre- 
gava como  lembrança  dois  papelinhos 
em  que  se  representavam  respectiva- 
mente a  imagem  do  Santo,  colorida 
ou  não,  e  uma  cruz  vermelha  posta 
num  pedestal. 

As  vezes  o  empregado,  ao  chegar 
a  uma  casa,  estava  já  tilo  certo  da 
caridade  dos  moradores,  por  os  co- 
nhecer, que  apresentava  logo  á  pessoa 
que  abria  a  porta  os  papelinhos,  para 
ela  os  levar  para  dentro,  e  trazer 
depois  a  esmola. 

O  empregado  vestia  do  modo  comum,  sem  trajo  que  o  assinalasse. 

Nas  figs.  1  e  2  reproduzem-se  dois  papelinhos  que  rei)rosenlam 


Kig. 


20 


Boletim  de  Etnografia 


a  imagem  de  S.  Lazaro,  e  na  fig.  3  um  que  representa  a  cruz  e  uma 
logenda  com  o  ano  era  parte  em  branco. 

Os  tros  papolinlioã  existem  no  Museu  Etnológico  por  oferta  (]'uma 
Senhora  que  mo  informou  de  que  se  lembra  de  qu(!  as  esmolas  se 
pediam  n'aqaelas  condições,  ainda  por  1860  o  tantos. 

.l.L.  deV. 


Velador  c  candeia 

Os  veladores  em  que  so  penduram  as  candeias  chamam-se  em 
algumas  terras  mancebos.  Na  figura  junta  re]tresenta-se  um,  de  ma- 
deira, que  consta  d'uma  parto  fixa  e  d'outra  movei,  com  incisões,  em 
uma  das  quais  se  pendura  uma  candeia,  ])or  um  gancho  de  forro. 


A  candeia  é  de  lata,  com  dois  espelhos,  d'um  dos  quais  pende  o  espe- 
vitador.  O  recipiente  está  tapado  com  tampa,  também  de  lata. 

De  candeias  já  se  falou  no  Boletim,  n."  2,  fig.  12. 

O  desenho  em  que  assenta  a  gravura  foi  feito  por  F.  Valença, 
Desenliador  do  Museu  Etnológico. 

.T.  L.  Di:  V. 


Boletim  de  Etnografia  21 


Para  a  venda  do  peixe 

Os  veudedoros  ambuliintes  do  poixe  aiumeiam  este,  umas  vezos 
com  pregões,  outras  com  uma  corneta. 

Xa  figura  junta  ropresonta-se  uma  corneta  de  lata  do  Museu 
Etnológico  Português,  de  forma  cónica,  e  asa,  a  cpial  corneta  ó  usada 


pelos  peixeiros  e  peixeiras  no  coucellio  de  Melga(,»o,  quando  vão  i)elas 
terras  vendendo  poixe. 

A  exactidão  do  desenho  de  F.  ^'alonça,  Desenhador  do  Museu, 
dispensa  maior  descri(;ão.  Basta  acrescentar  cpio  o  instrumento  tem 
do  comprimento  0"',44. 

.).  L.  DK  V. 


/Vledição  poética  do  vinho 

Na  tiragem  do  vinlio  do  tonel  para  o  canco,  após  a  venda  ao  ne- 
gociante, ocuiiam-se  geralmente  três  liomons:  o  medidor  (em  regra 
o  dono  da  adega  ou  pessoa  de  sua  confiança);  o  (juo  transporta  o  viniio 
I>ara  o  casco;  o  carreiro,  (|ue  está  dií  pé  no  carro  em  que  ha-de  ir 
o  casco.  Quem  transporta  o  viniio  para  o  casco  ó  um  companiieiro  do 
carreiro,  excepto  se  há  só  um  carreiro,  o  (|ue  raras  vezes  acontece, 
sendo  ontilo  preciso  um  moro.  O  carreiro  rocobe  uns  tantos  litros  do 
vinho  para  beber  pelo  caminho:  metade  á  custa  do  vendedor,  e  a  outra 
á  do  comprador;  como  outr'ora,  antes  de  so  usarem  os  litros,  se 
usavam  canadas,  chama-se  ainda  iioje  a  este  acto  dar  as  canadas. 
Se  em  negociíjs  de  vinho,  ele  nilo  liavia  de  correr  a  jorros! — Tudo  o 
que  digo  refere-se  ao  Cadaval,  o  que  não  significa  (|ue  seja  só  de  lá. 

O  viniio  está  correndo  do  tonel  [)ara  uma  cclJia  i\\w  se  colocou 
sob  a  torneira.  Então  o  medidor  \ai  enchendo  o  almude,  mergu- 
Ihando-o  na  ceiiia,  o  despejando-o  em  seguida  num  caneco  que  o  moço 
entrega  ao  carreiro,  para  este,  por  seu  turno,  o  despejar  no  casco. 
Obsorve-se  (pie  a  pala\Ta  almude  tom  duas  significações:  «medida» 
(20  litros,  isto  é,  um  dui)lo  dt-caiitro,  ou,  como  abreviadamente 
dizem:  um  duplo),  e  ^  vasilha»  (feita  de  lata).  O  caneco  é  de  madeira, 
e  por  natureza  ó  m!iior  que  o  almude. 


22  Boletim  dk  Etnografia 

A  proporção  que  o  segundo  carreiro  ou  o  moço  transporta  cada 
caneco  para  o  casco,  enumera  os  almudes,  junta  uma  rima  ao  número, 
e  repete  este  no  fim  d'ela:  o  ([ue  tudo  executa  cantando.  A  rima  ouvi 
chamar  remate  ou  arremate.  Os  remates  são  bastante  curiosos,  e  aqui 
vou  dar  alguns  exemplos  que  colhi  no  Peral. 

Pois  que  ha  poucos  cascos  que  levem  quarenta  duplos,  as  rimas 
chegam  só  ató  esse  número,  quando  chegam. 

1.  O  jirimeiro  é  Deus.  —  Em  regra  dizem  só  isto;  mas  também 

ouvi:  Deus  é  o  primeiro.  ||  E  bom  ter  muito  dinheiro. — 
Muita  gente,  quando  começa  um  trabalho,  sobretudo  no 
Norte  e  na  Beira,  benzc-se  e  reza.  Assim  uma  mulher, 
quando  começa  a  fazer  meia;  os  trabalhadores  rurais  até 
ás  vezes  se  benzem  maquinalmente  com  o  chapéu  ua  ca- 
beça. Conheço  a  este  propósito  uma  cantiga  popular  mi-  ^ 
nhota  que  começa: 

/ 

Em  nome  de  Ueus,  amén, 
Padre,  Filho  e  Espirito  Santo ! 

e  se  cauta  no  princípio  de  um  desajio  poético.  A  gente  do 
Sul  não  é  hoje  tâo  religiosa  como  a  do  resto  de  Portugal; 
mas  a  rima  de  que  estou  falando  representa  tradição 
antiga. 

2.  Um  e  ui/i  são  dois.  \\  Quem  tem  vacas  espera  bois.  ||  Olha  os 

dois! — Variante  do  remate:  Quem  padece  são  os  bois. 

3.  Dois  e  um  são  três.  \\  Inda  cá  volto  outra  vez.  ||  Olha  que  são 

os  três!  —  Variante  do  remate:  Estes  vieram  da  feira  das 
Mercês  (com  referencia  aos  bois). 

4.  Dois  e  dois  são  quatro.  \\  Dela  carne  tem  o  pato.  \\  Olha  que 

são  quatro! — Variante  do  remate:  Belo  arroz  é  o  do  pato. 
b.   Três  e  dois  são  cinco.  j|  Bebo  J)ranco  (se.  «vinho»),  quando 

não  ha  tinto.  ||  Olha  que  são  cinco! — A^ariantes  do  remate: 

a)  E  melhor  a  (jalinha  que  o  pinto;  b)  Falo  verdade,  não 

minto. 
tí.   Três  e  três  são  seis.  \\  Depois  do  Natal  vem  os  lieis.  ||  Olha 

que  são  seisl 
7     Quatro  e  trcs  são  sete.  \\  Quem  não  pôde  7ião  promete.  ||  Ollia 

que  são  sete! 
8.  Quatro  e  quatro  são  oito.  ||  Xão  ha  bolo  como  o  biscoito.  || 

Olha  que  são  oito! 


BoLKTiM  DE  Etnografia  23 

U.  Quatro  e  cinco  são  nove.  jj  Ei-se  (ou  canta)  o  rico,  e  chora 
o  pobre.  ||  Olha  que  são  nove.' 

10.  Cinco  e  cinco  são  dez.  \\  Descansam  as  mãos  c  trahalliam  os 

pés.  II  Olha  que  são  dez! — Variante  do  reiíuite:  Xão  ha 
homem  como  Moisés. 

11.  CÍ71C0  e  seis  são  onze.  ||  É  melhor  a  prata  que  o  bronze.  \\  Olha 

que  são  onze! — Variantes  do  remate:  «)  Toca  o  sino  que 
é  de  bronze;  b)  I  oa  o  papel  e  tine  o  bronze,  por  alusão  ao 
dinlieiro  que  é  em  notas  o  em  metal. 

llí.  Seis  e  seis  são  doze.  ou  Duas  vezes  seis  são  doze.  ||  Toca  o  sino 
(ou  os  sinos)  que  é  (ou  são)  de  bi-onze  (cf.  n."  11).  ||  Olha 
que  são  doze! 

í'ò.  tíete  e  seis  são  treze.  í|  E  meia  pipa.  —  A  pipa  corresponde 
ali  a  2b  almudes.  Por  ser  metade  da  conta,  não  se  diz  muitas 
vezes  remate;  entende-se  que  o  número  íica  assim  bem 
expresso.  Outras  vezes  dizem  realmente  remate,  porém 
nao  tenho  nenhum  exemplo. 

14.  Sete  e  sete  são  catorze.  ||  Bota  o  pobre  (se.  «a  esmola»)  jjara 

o  alfõrf/e.  ||  Olh>i  que  são  catorze!  —  Variante  liipérmetra 
do  remate :  Sete  para  trcís  e  sete  para  diante,  á  moda  de 
alforge. 

15.  Oito  e  sete  são  quinze.  \\  O  dano  da  adcqa  6  que  tem  o  timbre 

(o  que,  creio,  quero  dizer  generosidade  do  dar  vinho).- ^ 
Olha  que  são  quinze! 

Ití.  Oito  e  oito  são  dezasseis.  ||  Sou  o  Jilho  da  Maria  dos  lieis.  \\ 
Olha  que  suo  dezasseis! 

17.  Oito  e  nove  são  dezassete.  \\  Quem  quiser  palha  que  a  acar- 
rete, li  Olha  que  são  dezassete! — Parece  que  palha  estará 
aqui  ironicamente  por  «comida».  Cf.  uma  cantiga  popu- 
lar, em  que  se  fala  de  serralha,  e  termina  assim: 

Que  ó  o  sustento  dos  homens 
Nos  anos  do  pouca  palha. . . 

a  qual  ouvi  algures.  Também  num. yo^o  ou  dança  de  roda 
se  cauta: 

O  ladrão  do  meio  |    JjA  \irá  o  ano 

Está  preso  a  uma  estaca:       Da  palha  l)arata!.  . . 

versos  quo  conliego  do  várias  terras,  e  do  próprio  Peral. 
Dizer  que  o  homem  come  [)aliia  ó  chamá-lo  burro.  Tão 
freqiioute  ó  assimilar  por  graça  o  homem  ao  burro,  que 


24  Boletim  de  Etnografia  '' 

na  Boira  Alta,  quando  um  sujeito  passa  por  outro  c  nSo 
o  saiida,  este  comenta:  «Nem  sequer  me  disse:  ó  burro, 
tu  queres  agua?»  Na  mesma  provinda,  por  ocasião  de  so 
dar  de  comer  a  muitos  convivas,  por  exemplo,  jornaleiros, 
músicos  (numa  festa),  diz  o  patrão  ao  criado:  o  melhor 
é  dar  a  cada  burro  sua  faixa  (entendc-se  de  palha),  isto 
é,  sua  ração. 

18.  Nove  e  nove  são  dezoito.  Não  ouvi  remate  especial;  creio 

que  so  repete  o  do  n."  8. 

19.  Dez  e  nove  são  dezanove.  ||  Quem  jjadece  é  o  pobre.  ||  Olha 

que  são  dezanove. — Em  vez  d'este  remate,  também  se  re- 
pete o  do  n."  9. 

20.  Dez  e  dez  são  vinte.  ||  Boa  carne  é  a  do  pinto.  ||  Olha  que  são 

vinte! — Cf.  a  variante  1."  do  n."  5. 

21.  Dez  e  onze  são  rinte  e  um.  ||  Não  ha  carne  conto  a  do  pirum.  \\ 

Olha  que  são  vinte  e  um! 

22.  Onze  e  onze  são  vinte  e  dois.  ||  Anda  o  carro  adiante  dos 

bois.  II  Olha  que  são  vinte  e  dois! — Variante  do  remate: 
O  vinho  melhor  vem  depois. 

23  a  29.  Repeteiu-se  as  rimas  dos  números  das  respectivas  uni- 
dades. Ao  n."  25  ouvi  porém  aplicar  esta  rima:  Não  ha 
vinho  como  o  tinto,  a  qual  certamente  se  emprega  também 
com  o  n."  5. 

30.  Quinze  e  quinze  são  trinta.  \\  Não  ha  vinho  como  o  de  quinta.  \\ 
Olha  que  são  trinta! 

De  31  a  40  ropetem-so  as  unidades  nas  rimas,  como  já  a  respeito 
d'alguns  números  vimos  acima. 

A  repetição  dos  números,  alto,  faz  que  eles  se  fixem  melhor  na 
memoria,  para  nâo  haver  engano  na  contagem.  As  rimas  devem  ter 
a  mesma  razão,  ainda  que  o  nosso  povo  gosta  sempre  de  pôr  um 
pouco  de  poesia  no  que  diz,  como  com  freqiiencia  gosta  também 
do  pôr  um  pouco  de  sátira.  Alem  d'isso  o  canto  ajuda  o  trabalho. 
Umas  vezes  as  rimas,  que  ficam  transcritas,  são  despidas  de  graça, 
destinando-se  simplesmente  a  produzir  efeito  acústico;  outras  vezes 
dá-se-lhes  forma  de  provérbio,  ou  até  rei)roduzem  expressões  pro- 
verbiais, como  na  segunda  frase  do  n."  22.  Em  muitas  alude-se 
a  dinheiro,  a  comida  e  a  bebida,  ideas  que  estão  sempre  presentes 
ao  espirito  do  povo.  Não  faltam  igualmente  alusões  á  religião, 
e  á  vida  do  campo,  ideas  (jue  do  mesmo  modo  lhe  são  muito  fa- 
miliares. 


Boletim  de  Etxogkafia 


25 


Kit'.  1 


As  rimas,  ou  se  iuveutauí  ua  ocasião,  mais  ou  monos  vivazes, 
segundo  a  capacidade  ou  veia  d'aquelc  que  as  emprega,  ou  trans- 
mitem-se  tradicionalmente,  dentro  d'uma  mosma  povoação  ou  região, 
o  até  em  parte  correspondem  ás  que  se  usam  no  jogo  do  eixo,  oiido 
se  diz,  por  exemplo:  (/uatro,  belo  arroz  faz  o  pato;  seis,  ^[aria  dos 

Reis;  oito,  biscoito;  nove,  r/uem  jiadece  é  o 
pobre,  ou  dà  dez  reis  ao  pobre,  que  a  minha 
algibeira  não  tem  cobre;  onze,  os  sinos  de 
Mafra  são  de  bronze;  doze,  reval  doze,  dez 
e  quatro  são  quatorze.  Cf.  na  oração  do 
Anjo  Custodio:  diz-me  as  duas.  líesposta: 
I  as  duas  são  as  tábuas  de  Moisés.  Diz-ine 
as  três.  Resposta:  as  três  são  as  três  pes- 
soas da  Trindade.  Etc.  Vid.  Rev.  Lusit., 
I,  246  (F.  A.  Coelho).  Os  rapazes,  tautu 
em  Portugal,  como  lá  fora,  usam  igual- 
mente uma  numeração  rítmica  especial: 
vid.  os  meus  Ensaios  etlinograpldcos,  iv, 
190,  e  193-196. 

Quando,  ao  tirar-se  o  vinho  da  cclha, 
ola  começa  a  esvaziar-se,  deixando  de  conter  j;í  bastante  para  o  al- 
mude  aí  se  mergulhar,  tira-so 


aquele  com  uma  vasilha  cha- 
mada no  Peral  indiferentemente 
Canavarro  (e  canabarro)  ou  c/ii- 
farro.  No  conceliio  de  Óbidos 
ouvi-Ihe  somente  chamar  do  se- 
gundo modo.  Xo  Museu  Etno- 
lógico ha  dois  exemplares,  um 
diferente  do  outro,  os  ((uais 
obtive  no  concelho  de  Óbidos, 
('  vão  representados  respecti- 
vamente nas  figuras  1  e  2  (de- 
senhos do  F.  Valença). 

a)  Chifarro  n."  1.-  Tem 
forma  de  tronco  de  cone,  com  a  base  para  cima:  é  feito  de  aduelas 
de  madeira  cingidas  de  arcos  de  ferro,  exactaaionte  cumo  os  Ijarris, 
cascos,  o  outras  vasilhas  de  adega.  Uma  das  aduelas  prohjnga-se 
para  cima  e  serve  de  cabo.  Dimeiísòes:  diâmetro  da  boca  O'", 217; 
altura  fy",196. 

b)  Ciiifarro  n."  2.  —  Tem  iorma  semi-ciliudrica:  é  feito  do  foUia 


26  IJOI-ETIM    DK    EtNOGKAFIA 


(lata),  o  apresenta  uma  asa  na  ponta  convexa.  Dimensões:  largura 
(na  secção  vertical)  0"',186,  altura  0"',147. 

A  propósito  da  palavra  Canavarro  lembrarei  que  em  Tras-os- 
Montes  se  entoam  nas  malhas  do  centeio  uns  versos  em  que  ela  entra: 

Naquela  ribeira. . . 
Anda  lá  um  peixinho  vivo, 
Anda  lá  um  peixinho  bravo .  . . 
Vamo-lo  comer  cozido ... 
Vamo-lo  comer  assado. . . 
Cum  canabarro  de  bom  vinho  tinto . . . 
Cum  canabarro  de  bom  vinho  claro . .  . 

vid.  Anuário  das  tradiçõeit  populares,  Porto  1882,  p.  22; 

Talvez  alguns  leitores  achem  curiosidade  em  saber  que  o  casco, 
de  qne  acima  falei,  é  uma  vasilha  de  forma  de  pipa,  e  que  leva  de  30 
a  40  duplos.  Pipa,  na  regiilo  de  que  estou  falando,  e  noutras  do  Sul, 
não  é  vasilha,  é  medida  de  25  almudes.  Abaixo  do  casco  está  a  car- 
tola, vasilha  da  mesma  forma  do  casco,  porém  mais  curta,  e  que  leva 
de  25  (ou  menos)  a  30  almudes;  abaixo  da  cartola  está  o  barril,  que 
leva  até  15  duplos;  abaixo  do  barril  está  ainda  o  tinôco,  barril  pe- 
queno, que  leva  até  3  almudes.  O  casco  taiubem  pôde  ter  menos 
de  30  duplos,  ir  só  até  15;  com  menos  de  15  duplos,  já  se  chama 
barril,  que  tem  a  mesma  forma  do  casco,  diferindo  apenas  no  tama- 
nho. Cartola,  por  quavtola,  (juere  dizer  "4  de  tonel,  porque,  no  antigo 
sistema  de  medidas,  o  tonel  levava  duas  pipas,  o  a  pipa  duas  carto- 
las. Tinoco,  palavra  que  deriva  de  tina,  com  o  sufixo  -õco  (deminutivo 
um  tanto  depreciativo),  vai  caindo  em  desuso,  posto  que  eu  a  ouvisse 
no  Peral  a  várias  pessoas ;  em  vez  d'ela  diz-se  habitualmente  barril 
pequeno,  barrilinho.  Pôde  chamar-se  também  barrilinho  a  um  barril 
que  leve  até  uns  dez  litros.  As  palavras  pipo,  inpote  o  caneco,  em 
pleno  uso  no  Centro  e  no  Norte  do  Portugal,  desconheço-as  no 
povo  da  Extremadura,  polo  menos  no  Cadaval  e  noutras  terras. 

O  vinho  não  é  levado  directamente  no  almude  para  o  casco, 

porque  emquanto  o  moço  transporta  o  caneco  e  canta,  o  medidor 

enche  outro  almude,  e  assim  poupa  tempo,  que  tão  necessário  é  a 

quem  trabalha. 

* 

Nos  costumes  que  tenho  mencionado,  o  vinho  do  que  se  fala  é  o 
de  pasto.  Eelativameuto  á  tiragem  do  vinho  generoso,  ou  vinho  tra- 
tado, eutoam-se  as  mesmas  rimas.  ,   ,         ,, 


Boletim  de  Etnografia 


27 


Trajo  de  mulher 


O  desenho  reproduzido  na  figura  junta  deve-se  a  A 1  b  or  t  o  Sousa, 
quo  já  por  outras  vezes  tem  honrado  as  páginas  do  Boletim:  vemos 
aí  uma  camponesa,  de  lenço  na  cabeça,  atado  sob  o  ([ueixo,  e  chailo 
pelas  costas.  A  mulher,  isto  é,  a  tia  Kita  Gre-  ^ 

gória,  que  o  artista  encontrou  em  Gouveia  al^  ^x 

em  1916,  tem  as  mflos  pousadas  uma  na  ou- 
tra, e  está  voltada  para  a  direita,  na  grave 
postura  de  quem  conhece,  embora  não  saiba 
definir,  que  alguma  cousa  extraordinária  se 
passa  junto  d'ela,  pois  Alberto  Sousa,  com 
uns  traços  de  lápis,  ia  entregá-la  á  imorta- 
lidade. 

.1.  L.  i)i:  V. 


Encosto  de  panelas 

Por  quasi  todo  o  Portugal  se  seguram 
com  uma  simples  pedra  (quando  muito,  com 
um  seixo  rolado)  as  vasilhas  que  ao  lume 
se  colocam  no  lar,  e  nao  têm  em  si  mesmas 
apoio  suficiente. 

Pois  o  Alentejano  até  nisto  mostra  gosto 
de  asseio!  Em  vez  de  se  servir  de  pedras, 
encosta  as  panelas  on  a  um  valro  de  barro, 
ornamentado  de  linhas  curvas  enlaçadas  entre  í^ 
si,  — para  melhor  vista — ,ou  a  um  tr-te  panela,  de  ferro.  Nas  figs.  1 
o  2  (desenhos  de  F.  Valença)  mostram-se  espécimes  d"estas  duas 
classes  de  objectos:  um  de  O'", 085  de  comprimento,  o  outro  de  U"',14 
de  largura. 

Pelo  que  toca  ás  palavras: 

Calço  não  passa  do  um  nome  verbal,  tirado  de  calrar,  do  latim 
calcoare,  e  ouvi-o  no  distrito  de  Évora,  aplicado  ao  objecto  repre- 
sentado na  fig.  1,  sendo  todavia  muito  comum  por  todo  o  Portugal, 
até  referido  a  qnahiuer  encosto  de  pedra. 

Tè-te  panela  manifostii  certa  graça  do  formação:  propriamente 
«tè-te,  panela!»  (sustenta-te!),  com  personificação  imaginosa  da  va- 
silha, e  o  verbo  no  imperativo.  Na  linguagem  ordinária  também  dize- 


28 


Boletim  de  Etnoguafia 


mos  «tem-te,  nâo  caias!».  O  tè-te panela  ouvi-o  na  vila  de  Avis,  onde 
ó  eorreute.  Comparável  a  tè-te  panela  ó  Caiagua  (=  cai,  agua!), 
nomo  de  uma  povoação  próxima  de  Cascais  (hoje  chamada  S.  Pedro 
do  Estoril),  onde  passa  agua  que  cai  no  mar;  cf.  igualmente  tátácégo 
(=  cata,  cego!),  bufagato  (=  buía,  gato!),  nome  de  um  objecto  de 


Fig.  1  Fig.  2 

brinquedo  infantil,  Cantagalo,  alcunha  (=  canta,  galo!).  Em  todos 
estes  compostos  o  segundo  elemento  é  um  vocativo. 

Em  vez  das  mencionadas  palavras  ouvi  dizer  a  pessoas  do  Er- 
vedal  do  Alentejo,  e  do  Moura:  arrimador;  no  Ervedal  ou\-i  a  par 
iirnimador,  com  u,  por  etimologia  popular  ou  por  influencia  do  m. 

J.  L.  DE  V. 


/Vlaquíd 

Mai[nia  é  uma  «medida  do  grfios  c  lariuiias»,  o  também  «a  porção 
(jue  os  moleiros  tirão   da  farinha,  o  os  lagareiros,  do  azeite  que 

fazem  para  outrem»  (Moraes).  D'ai 
vem  maqtdar,  não  só  em  sentido 
próprio,  mas  em  sentido  translato, 
«roubar  parte  de  . . .». 

O  moleiro  figura  na  tradição 
pojjular  com  pouca  simpatia,  por 
se  pagar  por  suas  mãos;  sem  em- 
bargo, ao  mester  do  que  so  ocupa 
anda  anexa  muita  poesia,  o  muita 
cousa  de  grande  valor  etnográfico. 
Cf.:  Trud.  poj).  de  Portugal.  %  343, 
c,  o  llidoria  do  Museu  Etnológico, 
p.  2:i6.  Só  o  moinho,  de  agua  o 
do  vento,  l)astava  para  escrever  longo  artigo!  Tantas  são  as  peças 
do  que  consta  e  os  nomes  respectivos. 


Boletim  de  Etxoghafia 


29 


A  figura  junta  (desenho  de  F.  Yalonça)  mostra-nos  uma  antiga 
medida  de  ferro,  de  O'", 275  de  comprimento  total,  a  qual  servia  aos 
moleiros  para  tirarem  a  maquia.  Obtivo-a  no  Poral  (Cadaval),  c  j)er- 
tence  ao  Museu  Etnológico. 

.T.  L.  Di:  Y. 


Fontes 


As  fontes,  além  de  formarem  um  dos  mais  l)clos  ornatos  da  Na- 
tureza, quer  quando  artisticamente  construídas,  ([uor  ainda  quando 
simples  borbotões  surgontes  á  superfície  do  solo,  dão  a  cada  instiinte 


aos  etnografos  ensejo  para  fazerem  observações  ou  escreverem  no- 
ticias. 

Na  figura  junta  reproduz-se  um  bilhetc-postal  que  representa 
a  Fonte  da  Várzea,  na  Figu(nra  da  Foz;  foi-me  enviado  d'esta  cidade 
em  3  de  Setembro  do  1923  polo  D."''  ^lanuel  Heleno.  LTm  grupo 
de  raparigas  volta  da  fonte  com  vasilhas  á  cabeça,  clioias  de  agua; 
a  fonte  avulta  no  fundo  de  um  monte;  o  pouco  antes  de  chegar 
a  ela,  á  direita  de  quem  a  olha,  vC-se  um  banco  de  pedra,  feito  de 
três  peças:  assento  e  dois /)é«.  Raparigas  sfto  na  verdade  quem  mais 
frequenta  as  fontes;  e  desde  o  sec.  xvi  os  nossos  poetas  as  cantam 
com  agrado.  Também  elas  aparecem  nniitissinias  vozes  em  cantigas. 


30 


Boletim  de  Etnografia 


Nas  Tradições  j^op.  de  Portugal  falei  de  superstições  ímitologia 
e  religião)  relacionadas  com  as  fontes:  §§  160-168;  e  no  Arch.  Port., 
11,  248-251,  publiquei  duas  inscrições  latinas  que  se  lêem  em  fontes. 

Ultimamente  um  amigo  enviou-me  uns  apontamentos  em  que 
mo  diz  que  á  saida  da  povoação  do  Tojal,  cOrca  de  7  quilómetros 
do  Loures,  na  Extremadura,  ha  um  chafariz  em  que  esculpiram  um 
quadro  representativo  do  Purgatório,  o  qual  quadro  tem  na  parto 
superior  um  letreiro  latino  que  se  reduz  facilmente  a  estes  dois 
versos : 

Venditiir,  haud  (jratis  tibi  nostra  exponitur  unda. 
Solve  preces,  tantum  venditur  hoc  pretio, 

isto  é,  a  um  distico,  que  significa  á  letra:  «a  nossa  agua  não  to 
t')  apresentada  gratuitamente,  vende-so.  Eeza;  só  por  tal  preço  se 
vende».  Entende-se  que  quem  fala  sSo  as  almas  do  Purgatório,  aqui 
quasi  tidas  por  divindades  tutelares  da  fonte. 

Por  baixo  estão  pois  estas  letras:  /^(adre)  A''(os8o)  ^(ve)  -¥(aria), 
com  que  se  recorre  á  caridade  dos  viandantes. 

.1.  L.  DE  V. 


Coleiras  de  cão 

M 

As  coleiras  de  cão  (cf.  Boletim,  n."  2,  p.  8)  têm  várias  formas, 
segundo  o  seu  emprego.  Por  exemplo,  as  dos  cSes  de  guardar  gado 
que  pasta  em  locais  onde  pôde  ser  atacado  por  lobos,  sao  de  forro 


c  estão  revestidas  de  puas,  como  se  vô  na  figura  junta  (desenho  de 
F.  Valença,  tomado  do  natural).  O  original  guarda-so  no  Museu 
Etnológico,  o  ol)tive-o  em  Vila  Viçosa. 

J.  L.  DE  V. 


Boletim  de  Etnografia 


31 


Gato  preto 

Aludiu-so  no  Boletim,  w."  2,  p.  38,  ii  iim  gato  do  pano  proto, 
com  ollios  do  botões  do  madroperola,  qiio  costuma  ostar  pendurado 
nas  salas,  no  Sul  do  Portugal,  como  enfeite;  e  já  se  havia  dito  na 
Rev.  Lusit.,  X,  74,  nota  7,  quo  este  enfeito  devia  ter  origem  na  su- 
perstição que  atribuo  aos  gatos  pretos  significação  magica,  segundo 


a  qual,  os  males  que  deviam  ir  para  as  pessoas  vão  para  os  gatos 
de  tal  côr. 

Agora  publica-se  na  figura  junta  (desenho  de  F.  Valença)  um 
espécime  do  gato  de  pano  preto,  existente  no  Jluseu ;  o  gato  tem  ao 
pescoço  uma  fita  verde  e  encarnada. 

J.  L.  dkV. 


Foice  de  mão 

A  foice  de  mão  ilo  que  so  vô  um  dosenlio  ua  figura  junta,  de- 
vido ao  S."'  F.  Valença,  que  so  regulou  por  apontamentos  do  um 
curioso,  consta  de  duas  partes:  foliia  (do  aço)  e  ca])o  (do  buxo). 


^^^urt 


No  cabo  mandara  o  dono  gravar  um  sinsolimao  (sino-saimão),  «que 
livra  de  cousas  ruins»:  cf.  O  Anh.  l'ort.,  xxrii,  239-240.  A  foice 
quo  serviu  para  o  desenlio  tem  do  comprimento  0"',38. 

J.  L.  DE  V. 


32 


Boletim  de  Etnografia 


Gaiolas  para  grilos 

Dos  brinquedos  infantis  há  uns  que  são  inocentes,  por  exemplo, 
o  paj)agaio,  certos  jogos,  rouxinóis  (apitos  de  barro),  etc.,  c  outros 
que  poderemos  chamar  malfazejos,  pois  se  destinam  a  cansar  dano 
aos  pobres  animais:  estão  em  tal  caso  as  (gaiolas  do  grilos. 

1.  As  crianças  em  S.  Tiago  de  Cacem,  quando  caçam  um  d'estes 
insectos,  oncerram-no  numa  gaiola  feita,  de  uma  haste  de  cana  em 
que   se  retalhou  uma  das  extremidades:   aí  se  colocou  uma  rrdha 


de  cortiça,  e  o  grilo  fica  metido  no  espaço  que  medeia  entre  ela 
o  um  nó  da  cana.  A  gaiola  dispõe-se  com  a  cortiça  para  baixo, 
e  pendura-se,  como  se  vê  da  fig.  1.  Comprimento  do  objecto:  0"',282. 

2.  Na  fig.  2  representa-se  também  uma  gaiola  de  grilos,  usada 
em  Miranda  do  Corvo:  é  porém  de  barro  e  tem  o  nome  especial 
de  grileiro.  O  grilo  introduz-se  por  um  orifício  que  fica  nas  costas 
da  parte  aqui  visivel.  Comprimento  do  objecto:  O™, 15. 

Os  desenhos  que  serviram  para  as  gravuras  fê-los  o  S."'"  F.Va- 
lença, de  exemplares  existentes  no  Museu  Etnológico. 

Acerca  de  outras  gaiolas  de  grilos  em  Portugal  vid.  um  artigo 
do  S."'  Luís  Chaves  na  Atlântida,  vol.  viii  (1918),  p.  696. 

J.  L.  DE  V. 


Boletim  de  Etnogeafia 


33 


CdSdS  dd  Praia  da  Vieira 

Em  corta  extensão  da  zona  marítima  da  Beira  Ocidental  e  Exti'e- 
madura  usa-se  nas  praias  um  curioso  sistema  de  casas,  construídas 
de  madeira  (paredes  e  sobrado),  e  suspensos  em  esteios  da  mesma 
substancia,  enterrados  na  areia.  A  tais  casas  chamam  na  Extrema- 
dura  barracas,  e  na  Beira  palheiros.  Conheço-as  de  visii  na  Praia 
da  Vieira  (Leiria),  na  Costa  Nova  (Aveiro),  e  na  Costa  de  Lavos 
(Figueira);  e  sei  que  existem  também  em  Palheiros  de  Mira,  como 


vie.  1 


o  nome  o  indica.  É  natural  quo  o  mesmo  sistema  existisse,  ou  exista, 
ainda  noutras  praias.  Em  Buarcos,  por  exemplo,  ha  um  sítio  cha- 
mado Palheiros,  onde  eles  hoje  nao  se  observam,  mas  onde  se  vê  que 
08  houve.  Temos  pois  uma  linha  destas  construções  em  bastante  ex- 
tensão de  costa. 

Creio  que  (juem  primeiro  falou  do  casas  assim  construídas  foi 
Carlos  Ribeiro,  no  Relatório  do  Congresso  de  Bruxelas,  p.  84. 
Tendo  eu  estado  ha  muitos  anos  na  Cova  de  Lavos,  refori-me  aos 
palheiros  de  lá  na  Rev.  Lusitana,  iii,  227:  cf.  Hist.  do  Museu  Etnoló- 
gico, p.  57.  Depois  do  mim  trataram  do  assunto,  com  outro  desen- 
volvimento, o  hoje  falecido  Rocha  Peixoto  na  Portugália,  i,  02-96,  e 
Correia  Monteiro  na  citada  Rev.  Lusit.,  xix,  142-156.  Vid.  também 

3 


34 


Boletim  de  Etnografia 


E.  Frankowski,  Ilórreos  y  -palafito»  de  la  PenlnHula  Ibérica,  Madrid 
1918,  pp.  C6-G9.  Se  mais  alguém  tornou  a  tratar,  nSo  o  posso  dizer 
ao  corto. 

Aqui  reproduzo  uns  apontamentos  que,  em  Outubro  de  1923, 
tomei  na  Praia  da  Vieira,  aonde  fui  em  companliia  do  D.'"'  Manuel 
Heleno,  Conservador  do  Museu  Etnológico.  Devo  notar  que  ha  Praia 
da  Vieira  e  Vieira,  povoações  que  distam  pouco  uma  da  outra,  o  ficam 
separadas  pelo  pinhal  de  Leiria,  ou  Pinhal  Jieal.  Yieira  é  terra  indus- 
trial de  alguma  importância  (fábrica  de  limas  e  do  vidros);  a  Praia 


é  habitada  sobretudo  por  pescadores,  a  que  no  verão  se  agrega  certo 
número  de  doentes  que  ali  acodem  do  muitas  localidades  para  to- 
marem banhos.  Perto  da  praia  entroga-se  ao  mar,  variando  por  vezes 
de  desembocadura,  o  rio  Lis,  que  vem  da  serra  de  Porto  de  Mós, 
passa  em  Leiria,  e  foi  cantado  no  sec.  xvii  por  F.  Rodrigues  Lobo, 
Obras,  ed.  de  1723,  p.  164,  e  em  muitos  outros  lugares: 

Formoso  rio  Lis,  que  entre  arvoredos 
Ides  detendo  as  agoas  vagarosas . . . 

Aludindo  á  foz  do  Lis,  publica-se  em  Vieira  quinzenalmente,  com 
o  mesmo  título,  um  jornal  «defensor  dos  interesses  regionais». 

Quando  visitei  a  Praia  da  Vieira,  encontrei-me  com  vários  pes- 
cadores que  estavam  sentados  ou  deitados  na  areia,  à  beira-mar, 


Boletim  de  Etnografia 


35 


uns  conversando  e  fumando,  outros  fcizendo  redes  com  agulhas 
de  pau.  Convidei  dois  d 'eles  a  acompauharem-me  a  ver  as  barj-acas. 
As  tábuas  que  formam  as  paredes  acham-se  dispostas  quasi  sempre 
verticalmente;  só  raro  se  vêem  tábuas  atravessadas.  Exceptuando  o 
lar  o  a  cliaminé,  que  são  de  tijolo  e  cal,  e  o  telhado,  que  é  de  tellia, 
tudo  o  mais  ó  construído  de  madeira  de  pinho,  levada  do  adjacente 
Pinhal  Real,  ou,  como  também  diz  o  povo.  Pinhal  do  rei.  Nenhuma 
pedra  entra  na  construção.  Quando  as  barracas  ficam  altas,  sobe-se 
para  elas  por  escadaria  externa,  já  se  entende,  igualmente  de  madeira. 


Flir.  3 

Na  frente,  do  lado  do  Oceano,  correm  extensas  varandas,  com  portas 
que  dão  para  dentro:  d'ali,  nos  meses  calmosos,  se  apanha  o  fresco, 
e  no  inverno  o  sol  para  remédio  do  desconforto  que  reina  em  toda 
a  habitação,  onde  nada  reveste  a  madeira  das  paredes  dos  quartos, 
o  ondo  os  leitos  são  feitos  de  tábuas  postas  sobro  bancos.  O  gado 
acomoda-se  cm  lojas  formadas  no  rés-do-chão. 

O  uso  do  bai-racas  vai  em  decadência;  nilo  só  muitas  quasi  jazem 
no  solo  desmanteladas  o  destelhadas,  senão  que  não  raro  os  esteios 
d'outras  se  escondem  era  meio  da  areia  que  o  vento  impele  para  lá 
som  cessar.  Pessoas  abonadas,  ou  mais  desejosas  de  bem-estar,  subs- 
tituem-nas  a  pouco  e  pouco  por  casas  propriamente  ditas,  com  pa- 
rede de  tijolos  o  de  sorraipos. 


b 


36 


Boletim  de  Etnografia 


Apesar  do  que  fica  dito,  aiada  ali  abundam  barracas  junto  do 
mar.   A  parte  oposta   da  povoação   é   que  é  coustituida  mais  por 


Fig.4 


^i^M^^Ê^^Ê^ 


■  Pig.  5 


casas.  Os  pescadores  tanto  habitam  casas,  como  barracas;  preferem 
porém  uaturalmeute  aquelas,  deixando  estas  para  uso  dos  banhistas, 


Boletim  de  Etnogbafia 


37 


pelo  qne,  fora  da  época  dos  banhos,  isto  é,  na  mór  parte  do  ano, 
elas  ficam  deshabitadas. 

Vem  a  propósito  mencionar  um  curioso  costume.  Os  banhistas 
mais  pobres  e  que  levam  consigo  poucos  aprestos  caseiros,  utilizam 
como  candeia  certas  conchas  que  encontram  na  praia:  para  isso 
furam-nas  no  extremo  mais  estreito,  se  já  não  se  acham  furadas, 
metem  no  orifício  uma  torcida,  e  deitam  azeite  na  concavidade.  É  um 
dos  muitos  modos  de  iluminação  de  caracter  primitivo:  cf.  História 
do  Museu,  p.  211.  Parecidas  com  tais  candeias  são  as  que  se  usam 


Fig.  6 

de  barro  nos  lagares  de  azeite  do  Sul  do  Tejo,  e  muitas  antigas, 
mas  da  época  portuguesa,  que  se  guardam  no  Museu  Etnológico, 
aparecidas  na  Extremadnra  e  noutras  províncias:  consistem  em  um 
recipiente  concavo,  que  num  dos  bordos  se  adelgaça,  formando  um 
bico,  para  a  torcida.  Já  as  mortas  civilizações  do  Oriente  nos  legaram 
lucernas  assim  fabricadas. 

Temos  de  certo  nas  candeias  da  Vieira  um  fenómeno  de  etnografia 
que  costuma  chamar-se  convergência,  por  oposição  a  supervivencia. 
Fenómenos  do  supervivencia  sHo  aqueles  qne  datam  do  passado,  des- 
toando da  civilização  actual.  Fenómenos  de  convergência  são  aqueles 
que,  embora  semelhantes  a  fenómenos  antigos,  não  os  continuaram 
historicamente,  mas  se  produziram  de  modo  espontâneo  por  um  con- 
junto de  circunstancias  análogas  ás  que  geraram  os  primeiros. 


38 


Boletim  de  Etnografia 


Voltemos  á  Praia.  Notou-se  acima  quo  o  rio  Lis  muda  por  vezos 
de  desembocadura  oa  foz,  por  causa  de  assoreamentos.  Uma  das 
vozes  arrastou  consigo  muitas  barracas;  e  os  pescadores  improvisa- 
ram a  propósito  a  seguinte  canção: 


Vamos  todos  atalhar 
Esta  desgraça  tamanha: 


O  rio  leva  as  barracau, 
Ficam  fiteios  para  leniial 


a  qual  ouvi  da  boca  do  um  d'eIos.  Nau  ó  grande  obra  de  arte,  mas, 


Fig.  7 

alóm  do  documentar  as  palavras  barraca  e  esteios  ou  steios  (por  aqui 
pronuncia-se  est-  inicial  como  st-,  por  isso  steios),  mostra  que  á  ins- 
piração poética  do  povo  raras  cousas  escapam,  quer  no  campo  social, 
quer  no  da  Natureza. 

# 

Para  a  ilustração  d'osto  artigo  juutam-se  as  seguintes  gravuras: 
ligs.  1  a  6:  aspectos  do  mai-,  de  barcos  de  pesca  e  de  algumas  bar- 
racas, segundo  fotografia  que  me  enviou  o  D."'' Vorgílio  Guerra 
Pedrosa,  natural  da  freguesia  de  Vieira,  c  Professor  de  um  dos 
liceus  de  Lisboa;  fig.  7:  desenho  de  uma  candeia  de  concha,  feito 
por  F.  Valença. 

J.  L.   DE  V. 


Alminhas  do  ^inho 


Quem  viaja,  sobretudo  pelas  províncias  do  Norte  o  Centro,  en- 
contra a  cada  passo  á  beira  dos  caminhos  nichos  om  quo  se  pinta 
o  Purgatório,  e  quo  se  destinam  a  provocar  orações  dos  viandantes 
a  favor  das  alviinhas  ali  figuradas.  Umas  vozes  os  nichos  são  mais 
ou  menos  artísticos,  com  sua  porta  de  vidro  o  lampeão,  outros  muito 
singelos. 


Boletim  de  Etnografia 


39 


Na  gravura  junta  representa-se  um  quo  está  ao  lado  da  estrada 
quo  couduz  do  Peso  á  vila  de  Melgaço:  a  gravura  assenta  num 


desenho  do  distinto  artista,  o  S.'"'  Frederico  Ayres,  que  a  meu 
pedido  o  fez. 

Acerca  das  alminhax  (>m  geral,  vid.  Ilint.  do  Mn.seu  Etnológico, 
p.  60,  onde  SC  reproduz  um  trecho  de  um  romance  do  Camilo,  ilus- 
trativo do  assunto. 

Nas  alininha.s  costuma  iiaver  uma  espécie  do  mealheiro,  ou  uma 
caixa,  para  os  fieis  lançarem  esmolas. 

J.  L.  dkV. 


/Vlodos  de  acender  o  lume 

O  conhecimento  do  lume  viria  ao  gonoro  humano  pelo  raio,  o  pela 
chama  resultante  do  atrito  de  arvores  com  arvores  numa  tioresta, 
como  se  lê  om  Lucrécio  (1),  ou  pelos  vulcões  e  fogo  natural  do  interior 
da  terra.  Segundo  o  mesmo  i)00ta,  o  sol,  com  o  seu  calor,  ensina-lo- 
hia  a  cozinhar  os  alimentos  (2).  Tilo  útil  invenção  foi  pelos  (íregos 
atribuída  a  Prometeu  Pírforo  {Uv^yj^o;)  (ò);  outros  povos  criaram  a 
esto  respeito  muitas  lendas  (4). 

Conquanto  o  uso  do  lume  date  de  remotissinias  eras,  já  segu- 
ramente do  periodo  prehistorico  que  os  arqueólogos  chamam  che- 


40  Boletim  de  Etnografia  *• 

lense  (5),  qne  é,  em  data,  o  segundo  na  sucessão  da  vida  social,  parece 
que  ele  nSo  se  generalizou  logo  por  toda  a  terra;  pelo  menos,  como 
diz  um  autor  nosso,  do  sec.  xvm:  «os  habitantes  das  ilhas  Marianas, 
descobertas  em  1521,  nao  tinham  alguma  ideia  do  fogo.  A  primeira 
vez  que  o  virão,  entenderão  que  era  hum  animal,  que  se  nutria 
de  madeira:  os  que  se  chegavao  perto,  queimando-se,  atemorizavâo 
os  outros,  e  só  olhavSo  de  longe,  dizendo  que  eles  tinhâo  sido  mor- 
didos de  hum  bicho  terrível,  cuja  respiração  só  era  perigosa»  (6), 
Para  a  imaginação  dos  Gregos  e  Romanos  o  lume  era  também  um 
animal  vivo.  Nao  por  concepção  propriamente  mitica,  mas  por  efeito 
de  metáfora,  dizemos  no  falar  corrente  que,  quando  se  ateia  fogo 
numa  cousa,  a  labareda  a  lambe.  O  citado  autor  português  prossegue 
afirmando  que  ainda  no  tempo,  em  que  escrevia,  vários  povos  das 
Filipinas,  Canárias,  America  e  Africa  se  nao  serviam  de  lume  (7). 
Hoje,  porém,  nao  se  sabe  de  tribu,  por  infima  que  seja,  que  nao 
possua  uso  de  lume  (8),  e  do  modo  como  os  povos  selvagens,  por 
exemplo,  o  acendem  inferiremos  como  o  acendiam  os  povos  pri- 
mitivos. 

Os  principais  modos  elementares  de  acender  lume  sao:  fricção 
ou  atrito  de  dois  paus  entre  si;  e  percussão  de  duas  pedras  ou  de 
duas  pirites  uma  com  a  outra,  ou  de  uma  pedra  com  uma  pirite. 
No  rodar  dos  tempos  a  pirite  foi  substituída  por  um  pedaço  de  ferro 
(por  exemplo,  um  prego)  ou  de  aço  (fusil).  A  faisca  produzida  por 
aqueles  dois  modos  recebe-se  numa  isca  que  se  acende  ou  se  inflama. 
Também  se  produz  lume,  mas  menos  usadamente,  com  espelhos 
ustorios,  vidros  bi-convexos,  e  compressão  de  ar  (9).  Como  o  que 
estou  escrevendo  é  mera  introdução  ao  que  tenho  de  dizer  de  cos- 
tumes portugueses,  nao  preciso  de  descer  a  minudencias,  qne  o  leitor 
encontra  nas  obras  indicadas  nas  notas. 

Tanto  os  Gregos  como  os  Romanos  se  serviram  de  percussão 
e  íricçao  para  produzirem  lume,  do  que  tratou  com  ampla  informa- 
ção de  textos  helénicos  e  latinos  o  D."  Planck  na  sua  dissertação, 
que  já  citei,  Die  Feuerzeuge  der  Griechen  und  Rõmer,  Estugarda 
1884  (10).  A  nós  importam-nos  sobretudo  os  métodos  dos  Romanos, 
dos  quais  também  tratou  eruditamente  A.  Jacob  no  Dict.  des  antíq. 
de  Daremberg  &  Saglio,  s.  v.  «igniaria».  Os  Romanos  chamavam 
igniarium  (e  ignitabulum)  ao  conjunto  dos  instrumentos  ou  utensílios 
com  que  acendiam  lume  (alemão  Feuerzeuge):  os  habitantes  da  ci- 
dade empregavam  de  preferencia  o  método  da  percussão,  os  pastores 
ejos  exploratoi-es  do  exército  o  da  fricção.  Nas  povoaçOes  contudo 
fazia-se  pouco  uso  de  qualquer  dos  dois  métodos,  porque  geralmente 


Boletim  de  Etnografia  41 


tinha-se  lume  aceso  em  casa  (11),  e  quem  incidentemente  o  não  tinha 
recorria  a  um  vizinho:  é  bem  conhecida  nas  nossas  aulas  de  latim 
a  fábula    fedriana  em  que  se  diz: 

Aesopus  domino  solus  cum  esset  familia, 
Parare  caenam  iussus  est  matnrius. 
Ignem  ergo  quaerens,  aliquot  lustravit  domus, 
Tandemque  invenit  ubi  lucernam  accenderet: 

em  m,  19  (12). 

Dar  lume  aos  que  o  pediam  era  um  dever  moral  e  religioso  nos 
povos  antigos,  e  ficava  amaldiçoado  quem  o  recusasse  (13"). 

O  uso  de  ferir  lume,  percutindo  com  um  pedaço  de  ferro,  ou  aço, 
uma  pedra,  manteve-se  universalmente  até  tempos  modernos,  om 
que  novos  métodos  se  descobriram  e  propagaram,  e  o  substituiram 
em  grande  parte  do  globo.  Todavia  a  Igreja,  que  conserva  muitos 
hábitos  antigos,  manda  fazer  lume  novo  em  sábado  de  aleluia,  com 
fusD,  pederneira  e  isca,  e  benzô-lo  com  três  orações  (14).  O  hime 
vovó  é  tradição  paga,  pois  os  Eomanos,  como  o  lume,  nilo  só  o  do 
lar  domestico,  senão  também  o  do  templo  de  Yesta,  onde  sempre 
ardia,  se  tornava  corrupto  ao  contacto  do  ar  o  das  cousas,  rono- 
vavam-no  ou  substituiam-no  no  começo  de  cada  ano  (1  de  ]\rarço)  (15). 

Ocupar-me-hei  agora  dos  costumes  portugueses. 


(1)  De  natura  rerum,  v,  1091-1101,  ed.  de  Monro,  Cambridge 
1886,  t.  I,  pp.  238-239;  vid.  notas  no  t.  ii,  i)p.  336-337.  O  leitor 
português  tem  a  tradução  de  Mendonça  Falcão,  Os  seis  livros  de  Lu- 
crécio, Coimbra  1890,  p.  207. 

(2)  V,  1102-1104. 

(3)  M.  Planck,  Die  Feuerzeuf/e  der  Griech.  und  Rõmer,  Estugarda 
1884  (Programa  do  Gimnasio),  pp.  5-6.  Acerca  de  Prometeu  vid.  tam- 
bém Dict.  des  antiq.  gr.  et  rom.,  s.  v.  «igniaria». 

(4)  A.  Heilborn,  Allgemeine  Vôlkerkunde  (Aus  Natur  u.  Geistes- 
wolt),  I,  8  sgs. 

(5)  Obermaier,  El  hombre  fosil,  2.»  ed.,  IMadrid  1925,  p.  106; 
e  cf.  Forrer,  Reallexikon,  p.  222. 

(6)  D."  José  António  de  Sá,  Compendio  de  observações,  Lisboa 
1783,  p.  29.  O  mesmo  diz  Letournoau,  La  Sociologie,  3.*  ed.,  p.  56t). 

(7)  Ibidem.  Cf.  também  Letournoau,  loco  citato. 

(8)  Deniker,  Les  race-i  et  les  peuples  de  la  terre,  Paris  1900, 
p.  178. 


42 


Boletim  de  Etnogkaiia 


(9)  Vid.  sobro  o  assunto:  Deniker,  Les  races  et  les  ])euple8,  já 
cit.,  p.  178  sgs. ;  e  Heilborn,  Allgemeine  Võlkerk.,  já  cit.,  p.  14  sgs.: 
obra  em  que  ha  gravuras  que  ajudam  o  entendimento  do  texto. 
Cf.  também  Dottin,  Anciena  peuples  de  VEurope,  p.  27. 

(10)  A  obra  consta  do  introdução  o  quatro  capitules.  A.  Jacob 
no  lugar  do  Dict.  des  antiq.,  que  cito  adianto,  faz-lhe  uma  observa- 
ção a  p.  372,  nota  11. 

(11)  Planck,  ob.  cit.,  pp.  38-39. 

(12)  Ed.  do  Epiphanio  Dias,  Lisboa  1883,  p.  62. 

(13)  Planek,  ob.  cit.,  pp.  29-34. 

(14)  D.'"'  António  do  Vasconcollos,  Litunjia  romana,  ii  (1902), 
pp.  465-467. 

(15)  1'lauck,  ob.  cit.,  pp.  38-39,  o  nota  1  da  p.  40. 
(Conliiviía). 

J.  L.  i>E  V. 


Uma  rua  de  Gáícte 


No  Alentejo  ó  muito  frequente  a  cozinha  ser  no  compartimento 
da  entrada  das  casas,  a  um  canto:  por  isso  as  altas  chaminés  de 
quo  as  cozinhas  são  providas  avultam  para  o  lado  da  rua,  o  dao- 


llios  aspocto  imponente,  como  consta  da  gravura  junta  (feita  do  uma 
fotografia)  (juc  representa  por  1905  a  Eua  da  Carreira,  em  Gáfoto, 

concelho  de  Nisa. 

J.  L.  deV. 


Boletim  de  Etnografia 


43 


/WLodos  de  avivar  o  lume 

II;i  muitas  maneiras  de  fazer  avivar  o  lume  que  se  acendeu 
numa  cozinha,  num  fogareiro,  etc.  A  maneira  mais  natural  ó  soprar, 
mas  podem  também  empregar- 
so  instrumentos  para  isso:  um 
fole,  um  tubo  de  madeira,  ou 
do  ferro  (por  exemplo,  um  pe- 


Qi- 


Fig.  1 


tiJUi  ujLLUuiiiK^s  '^'"«■"'^  ''^  cano   de  espingarda,  cumo 

jL, ■■     — !'■    tenho  visto  no  Alentejo);  e  principiíl- 

mente  ahanadoreti,  também  chamados 


alxinoH  o  abduicos.  Na  //w- 

toria  do  Aluseu  Etnológico 

jiludiu-so,  a  p.  209,  aos  aba- 

nadores  ((uo  a(iui  existem. 

Nas  Hgs.  1,  2  o  3  rcpro- 

dnzem-so  três,  respectivamente  de  S.  (íião,  de  Seziml)ra  e  de  Vila 

Real  do  Tras-os-Montos :  o  primeiro,  feito  de  vergas;  os  dois  últimos, 


44 


Boletim  de  Etnografia 


de  penas,  fixas  entre  ripas  de  madeira:  todos  eles  com  cabos,  igual- 
mente de  madeira. 

No  mesmo  Museu  existem  também  três  tubos  de  madeira,  de  asso- 
prar ao  lume,  um  com  a  nota  de  que  se  chama  assoprador  (Vilar 
Seco  de  Tras-os-Montes),  dois  de  alandro  ou  heloendro  com  a  nota 

(»)---rr„.i"oi 1 w^ i,i,ti„.„. t:^i,iiiini„^J-"(v 

Flg.  4 
Fig.  5 


t^'^3k.miM.'M^."!'Si!::s:p^:ys^'^'''^^^^--*^' 


^rg7:g.Tg3r?Tare:at 


p:;ts..^m.^ 


Flg.  6 

de  que  se  chamam  canudos  (Alandroal).  Nas  figs.  4,  5  e  6  repre- 
sentam-se  todos  três.  O  ultimo  foi  feito  por  um  camponês  de  Vilar 
Seco  (Vimioso,  na  terra  de  Miranda),  e  tem  uma  inscrição  distribuida 
pelas  quatro  faces  do  instrumento,  a  qual  se  transcreve  integralmente 
na  fig.  7 :  J(esus)  M(aria)  J(osé).  Saúde  i  paz  i  graça  devina  Deu» 

fomofo  s ao di€  A  pêil  à  \  ^m 

i  (á^  ¥  Pi©  S(?R)[bi0TrPaíir  Ifà 

AOT©  nÂ@tanTA[ni(5soDSw; 

Flg.  7 

nus  a  dê.  V(iva  o?)  R(e)h(erend)o  (na  região  confunde-se  h  com  v) 

Senhor  Padre  António  Cantinho  (por  Quintino) 30  d(e)  Maio 

d(e)  1898 (Ha  umas  letras  que  não  posso  explicar). 

Vem  a  propósito  lembrar  atjui  uma  superstição.  Diz-se  no  Alto 
Alentejo  que  quom  sopra  bem  ao  lume  mostra  que  tem  boa  madri- 
nha, e  que,  pelo  contrário,  quem  apaga  uma  hiz  com  dificuldade 
tem  madrinha  má. 

Os  desenhos  que  serviram  para  as  gravuras  cxecutou-os  F. 
Valença,  Desenhador  do  Museu  Etnológico. 

J.  L.  DE  V. 


Boletim  de  Etnografia— N."  3—1924 


ESTAMPA  I 


Flg.  2 


Boletim  de  Etnogeafia 


45 


Tipos  de  /yiontalegre 

Devo  a  um  amigo  a  fotografia  que  serviu  para  se  fazer  a  adjunta 
gravura,  o  que  representa  vários  tipos  de  Montalegre  (Barroso): 
homens  de  jaqueta  ao  ombro  encostados  a  varapaus,  e  de  chapéu 


do  pano;  outros  em  mangas  de  camisa,  e  com  carapuça  (barrete); 
uma  mulher,  de  capucha,  sentada  na  escaleira  de  uma  casa,  etc. 
Quanto  á  capucha,  cf.  O  Arch.  Fort.,  xxii,  27  e  50. 

J.  L.  DE  V. 


Pertenças  de  uma  quinta  do  /Vlinho 

Nos  meus  Opúsculos,  u,  268-209,  insiro  um  breve  vocabulário 
de  Esposende,  onde  aparecem  vários  termos  respectivos  a  algumas 
dependências  da  casa  rústica  do  iCnho.  Nao  podendo  ali  acompanhá- 
los  de  gravuras,  publico  estas  agora  como  ilustração  d'eles,  e  junto 
mais  umas  noticias. 

As  figs.  1  e  2  mostram-nos,  da  esquerda  (do  observador)  para 
a  direita: 

1.  Um  espigueiro,  coberto  de  telha.  O  espigueiro  ou  canastro, 
também  chamado  caniço  (segundo  as  localidades),  ó  muito  conhecido, 


46 


Boletim  de  Etnografia 


e  tom  sido  várias  vezes  descrito,  o  publicado,  pelo  que  me  dispenso 
de  falar  d'ele  agora  mais  de  espaço; 

2.  Uma  casota  de  madeira  para  o  cílo,  como  guarda  vigilante 
da  eira  e  suas  dependências; 

3.  Um  varandão,  e  respectivo  cohêHo,  de  madeira:  no  varandão, 
ou  compartimento  superior,  guardam-se  e  secam-se  as  espigas  de 
milho;  o  coberto  abre-se  para  a  eira,  e  tem  adiante  uma  porta  larga, 
ou  empanada,  que  se  move  horizontalmente; 

4.  Uma  eÍ7-a; 

o.  Um  coberto  dos  carros,  ou  alpendre,  onde,  como  o  nome  o  diz, 
RO  guardam  os  carros  de  bois,  e  outras  alfaias  agrari.as. 


Fitr.  3 

Ao  pé  da  eira  fórma-se  a  meda,  pirâmide  de  palha  de  milho, 
d'onde  esta  se  vai  tirando  pelo  ano  adiante  para  o  gado.  Podo  ter 
3  metros  do  altura,  o  1"',5  a  2  metros  de  diâmetro.  Fórma-se  acumu- 
lando as  canas  ou  palha  de  milho  em  volta  de  uma  coluna  do  pau, 
a  que  so  encostam  angularmente  três  varas  seguras  por  um  arame. 
A  uma  meda  de  palha  triga  ou  centeia,  formada  do  modo  semelliante, 
mas  de  maior  base,  chama-se  barreia.  Quer  a  bai-rela,  quer  a  meda, 
tom  um  remate  foito  da  mesma  palha,  chamado  corucho. 

A  fig.  3  mostra-nos  uma  casa  de  caseiro,  ensombrada  por  grande 
ramada  ou  latada,  suspensa  em  esteios  de  pedra,  de  que  se  avista 
um,  e  junto  da  casa  uma  cortêlha.  Esta  palavra  tem  aqui  a  signifi- 
cação que  noutras  partos,  por  exemplo,  na  Beira-Alta,  tem  cortêlho; 
em  Esposende  cortêlho  é  um  campo  pequeno  de  cultura. 


Boletim  de  Etnografia 


Tudo  aquilo  de  que  tenho  falado  pertence  á  quinta  da  Seara,  na 
freguesia  da  Palmeira  de  Faro,  concelho  de  Esposende,  onde  de  mais 
a  mais  ha  um  belo  edifício  para  liabitaçjio,  com  escadaria  exterior, 
o  varanda  soalheira. 

As  gravuras  assentam  em  fotografias  que  me  foram  enviadas 
pelo  meu  amigo  D.'"'  Artur  de  Barros  Lima,  jiresentomonte 
dono  da  quinta. 

J.  L.  DE  V. 


Pontão  de  segurar  a  tampa  das  caixas 
ou  arcas 

Quando  se  abre  uma  arca  (ou  um  baú),  o  se  deseja  ter  algum 
tempo  aberta,  para  tirar  qual([uer  cousa  quo  lá  esteja  guardada,  ou 
guardar  outra,  segura-se  a  tampa  com  uma  haste  de  pau,  ou  des- 


canso,  quo  em  algumas  terras  é  artisticamente  lavrada  em  part(>  da 
extensão. 

Veja-so  na  figura  junta  um  objecto  <rostos,  do  Alcoutim,  chamado 
ponttlo  (desenho  de  F.  Valença).  As  extremidades  estão  excavadas, 
para  que  a  haste  possa  fixar-se  numa  das  bordas  da  arca  ou  do  baú, 
o  noutra  da  respectiva  tampa.  Comprimento  do  pontuo:  0"',íi2. 

J.  L.  PE  V. 


índice 


Vida  portuguesa  antiga  suguiido  docuraontos  iconograíioos 5 

Boneca  de  chaminé 11 

Chaminé  extremenha 12 

Azulejos  etnográficos 13 

Recipientes  de  couro  para  vinho  .        14 

Esmolas  religiosas 15 

Depois  da  matança  do  poico 16 

Fonte  de  uma  sacristia 17 

«Copeiro»  alentejano 18 

Esmolas  para  S.  Lazaro 19 

Velador  de  candeia 2(' 

Para  a  venda  do  peixe 21 

Medição  poética  do  vinho 21 

Trajo  de  mulher 27 

Encosto  de  panelas 27 

Maquia 28 

Fontes 29 

Coleiras  de  cão 30 

Gato  preto 31 

Foice  de  mão 31 

(laiolas  para  grilos 32 

Casas  da  praia  da  Vieira 33 

Alminhas  do  Minho 38 

Modos  de  acender  o  lume 39 

Uma  rua  de  Gáfote 42 

Modos  de  avivar  o  lume -13 

Tipos  de  Montalegre lõ 

Pertenças  de  uma  quinta  do  Minho 45 

Pontão  de  segurar  as  tampas  das  caixas  ou  arcas 47 


EBte  número  do  Boletim  contiin  71  gravura-  c  1  (.'stani))a. 


r 


Li/ 


BOLETIM 


DE 


ETNOGRAFIA 


PDBLICáÇÃO  DO  MDSEO  ETNOLÓGICO  PORTOGDÊS 


DIRIGIDA  POR 


J.  LEITE   DE  VASCONCELLOS 


IT.°   4 


LISBOA 


IMPRENSA   NACIONAL  M  CM  XXIX 


ÇOIsETI/W 


DE 


ETNOGRAFIA 


BOLETIM 


DE 


ETNOGRAFIA 


PDBLICAÇÃO  DO  MUSEU  ETNOLÓGICO  PORTDGUÊS 


DIRIGIDA    IMJR 


J.  LEITE    DE  VASCONCELLOS 


isr.°  4 


LISBOA  IMPRENSA   NACIONAL  IH  CM  XXIX 


A  Antropologia  portuguesa 
como  fonte  de  investigação  etnográfica  * 


ICSTUDO   SCIKNTIKICO   DA   AxTUOPOLOGI A   COmeÇOU, 

om  Portugal,  em  1857.  ou  mais  exactamente  em 
18G5:  o  quem  quiser  fazer  com  método  a  sua  his- 
toria ha-de,  primeiro  do  o  apreciar  no  conjunto, 
isto  é,  na  cronologia  e  no  desenvolvimento  in- 
terno, considerar  em  separado  os  três  centros 
sociais  cm  que  o  mesmo,  ou  sucessiva  ou  paralelamente,  tem  tido 
aceitação:  Lisboa,  Coimbra,  Porto. 

Antes  de  1857  apenas  se  nos  depararão  cousas  como  as  seguin- 
tes: obsorvaçOes  avulsas,  o  em  regra  subjectivas,  de  módicos,  coro- 
grafos,  historiadores,  viajantes,  etc,  a  respeito  de  caracteres  físicos, 
iisiologicos  (temperamento,  coniploissao),  patológicos  e  psíquicos, — 
do  que,  no  decurso  da.  presente  obra,  o  leitor  obterá  amostras; 
artigos  de  vulgarização,  sem  importância,  por  exemplo,  no  Pano- 
rama, 1842,  «Anthropologia»,  de  Ribeiro  de  Sá,  pp.  320  e  362; 


'  Ksto  artigo,  redigido  em  1928,  faz  parto  da  Etnografia  Por- 
tugwna,  ([ue  o  autor  está  escrevendo:  Introdução,  cap.  iii. 

Abreviaturas  a(|ui  empregadas:  AP  {=  ArcJ/eoloqo  Porturjnês); 
IIL  {==  Ri-vUta  Lu.ntana)\  II UC  (=  Revlxta  da  Universidade  de 
Coimbra);  TSPAE  (=  Trabalhos  da  Sociedade  Portuguesa  de  An- 
tropologia e  Etnologia). 


Boletim  de  Etnografia 


incompletas  definições  lexicais,  por  exemplo,  no  Diceionario  de  A. 
M.  do  Couto,  de  igual  ano,  o  qual  autor,  ainda  assim,  foi  talvez 
o  primeiro  que  incluiu  num  dicionário  português  a  palavra  Antropo- 
logia em  sentido  «humano»  (a  j)rincípio  tomava-se  só  em  sentido 
teológico). 

Ajuntam-se  nas  linhas  subsequentes  alguns  apontamentos  de 
historia  e  literatura  antropológicas,  que  sirvam  de  orientação  ao 
etnografo. 

a)  Lisboa: 

Em  1857  (Decreto  de  8  de  Agosto)  fundou-se  na  capital  a  Comis- 
são dos  trabalhos  geológicos,  de  que  era  chefe  Carlos  Ribeiro,  e  a 
que  pertenciam  ao  mesmo  tempo  o  D."  Pereira  da  Costa,  e  Nery 
Delgado.  A  ola  se  devem  não  só  trabalhos  o  publicações  de  Geo- 
logia, senão  também  do  Arqueologia  e  Antropologia  pre-historicas : 
cf.  Religiões  da  Lusitânia,  i,  6-9.  Entre  as  publicações  de  Antropo- 
logia pre-historica  conta-se  a  de  Pereira  da  Costa,  Da  existência  do 
homem  em  épocas  remotas  no  valle  do  Tejo,  1."  (e  único)  opúsculo: 
«Noticia  sobre  os  esqueletos  humanos  descobertos  no  Cabeço  d 'Ar- 
ruda». Temos  nela,  quanto  sei,  o  mais  antigo  escrito  de  Antropologia 
publicado  em  Portugal. 

Logo  passados  dois  anos  trouxe  a  lume  Nery  Delgado  as  Grutas 
da  Cesareda,  onde  também  se  fala  de  Antropologia,  e  em  virtude 
de  grandes  e  fecundos  esforços  de  Carlos  Ribeiro,  realizou-se  em 
Lisboa,  em  1880,  um  Congresso  de  Antropologia  e  Arqueologia 
pre-historicas,  que  impulsionou  de  novo  os  estudos  antropológicos: 
Gruta  da  Furninha,  de  Nery  Delgado  (no  Compte-rendu  do  Con- 
gresso); primícias  de  Paula  e  Oliveira  (1880-1881),  pouco  depois, 
e  tão  cedo,  arrebatado  á  Sciencia  (vid.  a  lista  dos  sens  trabalhos 
na  RL,  i,  386-388).  É  igualmente  de  1880  a  Craneometria  de  E. 
Burnay;  de  1881  a  Anthropologia  de  Oliveira  Martins;  de  1885 
o  1."  volume  das  Comunicaijões  da  Comissão  Geológica,  onde  ha 
várias  dissertações  paleoetnologicas ;  de  1886  o  livro  de  Cartailhac, 
Les  ages  préhistoriques,  enriquecido  com  um  estudo  antropológico 
feito  por  De  Quatrefages.  Para  o  Congresso  havia  sido  preparado 
na  Comissão  Geológica  o  Museu  de  Antropologia,  que  ainda  existo, 
e  que,  ao  lado  de  crânios  e  outros  restos  humanos,  guarda  copioso 
espolio  arqueológico.  Decerto  nâo  foi  a  fundação  d'este  Museu  a 
menor  vantagem  que  resultou  da  ideia  de  se  celebrar  em  Lisboa 
o  Congresso,  posto  que  cronologicamente  o  precedesse! 

O  que  até  aqui  se  mencionou,  concerne  á  Antropologia  pre- 
historica,  e  a  método  antropológico,  generalizações,  e  generalidades. 


Boletim  de  Etnografia 


As  primeiras  investigações  de  Antropologia  propriamente  portu- 
guesa partiram  do  D."  Ferraz  do  Macedo,  quo  em  1882,  sem  dúvida 
instigado  ainda  pelo  brilhantismo  do  Congresso  de  Antropologia  o 
Arqueologia  pre-liistoricas,  reunido  em  Portugal  dois  anos  antes, 
pediu  autorização  á  Camará  de  Lisboa  para  medir  certo  número 
de  crânios  pertencentes  aos  Cemitérios  oriental  e  ocidental:  vid.  o  que 


D.  "  Francisco  António  Pereira  da  Costa 

Uculogo  O  Anlropolugo  (f  ISK'.l)' 

escreveu  nos  Vários  ensina  mentos,  Lisboa  1882,  pp.  25-36,349-393. 
O  resultado  das  medições  aciía-se  consignado  nas  «Taboas  antropo- 
metricas»,  manuscritas,  que,  por  falecimento  do  autor  (1907),  ficaram 
pertencendo  á  Faculdade  do  Sciencias  do  Lisboa;  das  mesmas  ofe- 
recOra  elo  um  extracto  a  Estado  da  Veiga,  quo  o  inseriu  em  1887 
nas  Antiguidades  monument.,  ii,  492-493.  Acerca  da  vida  o  trabalhos 


'  Na  gravura  roproduz-se  uma  fotogravura  existente  no  Museu 


Etnológico  Português. 


8 


Boletim  de  Etnogeafia 


literários  de  Ferraz  vid.:  Portugália,  ii,  481  (F.  Cardoso);  AP,  xiii, 
186;  O  anthropologista  Ferraz  de  Macedo,  por  Costa  Ferreira,  Lisboa 
1908;  TSPAE,  iv,  85  (Bethencourt  Ferreira).  Cf.  também  Revi>sta 


D."'  Francisco  Ferraz  de  Macedo 

Médico  e  Antropólogo  (t  1907) 

de  Se.  nat.  e  soe,  ii,  185-189.  Ferraz  dedicou-se  com  particular 
afinco  á  Antropologia  criminal.  Tanto  em  trabalhos  que  publicou 
sobre  esse  assunto,  por  exemplo,  Crime  et  criminei  (1892),  Bosquejos 
de  Anthropologia  Criminal  (1900),  Os  criminosos  «evadidos  do  Li- 


*  Gravura  extraída  do  opúsculo  de  Costa  Ferreira,  intitulado 
O  Anthropologista  í.  de  Macedo  (vid.  supra). 


Boletim  de  Etnogeama 


9 


moeiro  em  1847»  (1901),  como  noutros,  por  exemplo,  Luzitanos  e 
romanos  em  Villa  Franca  de  Xira  (1893),  dá-nos  sempre  algo  do 
Antropologia  nacional,  —  ainda  que  o  que  no  último  trabalho  se  IC 
de  Lusitanos  deverá  pôr-se  de  reserva.  A  secção  antropológica  do 
Museu  Zoológico  e  Antropológico  de  Lisboa,  ou  Museu  de  Bocage, 
pertencente  á  Faculdade  de  .^ciências,  onde  ha  centenares  de  crânios 
portugueses,  identificados,  foi  organizada  por  ele. 

Costa  Ferreira,  amigo  íntimo   de  Ferraz   de  Macedo,   a  quem 
aijelidava  de  «mestro)  íopusc.  cit.,  p.  lõj,  diz  dVle  que  com  justiça  se 


Arruda  Furtado 

Aiilr..p.ilog.i  u   Klnograf.i    (f  IN-7)' 


lhe  chamará  «o  patriarcha  da  Anthropologia  portuguoza)i  [ibid.,  p.  .'5), 
no  que  o  acompauiia  Bethencourt  l"^erreira  (in  TSPAE,  iv,  84-85). 
Acrescenta  Costa  Ferreira  que  foi  nas  observações  e  medidas  feitas 
por  Ferraz  de  ^[acodo  que,  tanto  Álvaro  da  Silva  Basto,  ('omo  ele 
próprio,  se  basearam  para  escreverem  as  memorias  que  respectiva- 
mente escreveram  sobre  o  Índice  cefálico  e  a  capacidade  craniana 
dos  Portugueses.  Como  discípulos  do  Ferraz,  ou  auxiliados  scientifi- 
camentc  por  ele,  se  declaram  do  nn^smo  modo  Sant'Ana  ]\[arques, 
e  Gonçalves  J^opes. 


'  Na  gravura  reproduz-se  um  retrato  (luo  o  I)."''  Carlos  Arruda 
Furtado,  tilho  do  Antropólogo,  emprestou  ao  autor  da  presente  obra. 


10  Boletim  de  Etnogeafia 


lletomando  a  ordem  cronológica  que  iamos  seguindo,  e  que  foi 
necessário  interromper,  encontramos  agora  outro  antropólogo,  que, 
como  Ferraz,  trabalhou  sozinho:  Arruda  Furtado,  o  qual  em  1884 
publicou  em  Ponta  Delgada  Materiaes  para  o  entudo  anthropologico 
dos  povos  açorianos  («Observações  sobre  o  povo  michaelense»),  se- 
guidos, em  188G,  de  Notas  psychol.  e  ethnol.  sobre  o  povo  português. 
Cf.  RL,  I,  386,  onde  porém  a  data  do  óbito  de  Arruda  saiu  errada: 
«1877»,  em  vez  de  «1887».  Nos  Materiaes,  além  da  parte  antropo- 
lógica, anunciada  no  titulo,  ha  uma  parte  etnográfica. 

Em  1893  fundou-se  o  Museu  Etnológico  Português.  Uma  das 
secções  d'elo  destina-se  á  Antropologia,  secção  que,  todavia,  por 
muitos  motivos,  nao  adquiriu  o  desenvolvimento  das  restantes.  Vid. 
lEst.  do  Museu,  pp.  259-2C0  e  430-431,  e  cf.  supra,  pp.  000  o  000. 
Aos  crânios  antigos  do  Museu  Etnológico  se  refere  Sant'Ana  Mar- 
ques numa  obra  que  adiante  se  cita  (Distribuição  do  indice  cepha- 
lico,  eic). 

lia  pouco  SC  aludiu  a  Costa  Ferreira.  Este  antropólogo  principiou 
a  escrever  de  Antropologia  portuguesa  em  1898,  em  Coimbra,  cuja 
Universidade  então  frequentava,  e  onde  estudou  Antropologia  com 
o  Prof.  Bernardino  Machado,  que  o  iniciou  na  mesma  sciencia.  Por  tal 
motivo  o  nome  do  Costa  Ferreira  poderia  exclusivamente  ser  posto 
na  secção  b,  respectiva  a  Coimbra ;  contudo  incluí-o  do  preferencia 
nesta  secção  a,  porque  o  nosso  antropólogo,  exceptuando  breves 
estadas  em  Paris,  fixou-so  em  Lisboa  em  1907,  e  aqui  exerceu  os 
cargos  de  Assistento-voluntario  de  Anatomia  (1917),  de  Naturalista 
do  Museu  de  Bocage  e  2."  Assistente-efectivo  de  Anatomia  (1919), 
o  de  Professor-livre  de  Anatomia  Antropológica  (1921).  Da  sua  bio- 
grafia e  escritos,  e  do  que  mais  importante  se  publicou  a  respeito 
d'ole  depois  da  morte,  ocorrida  em  1922,  tratou  o  D."  Victor  Fontes 
no  Arquivo  de  Anatomia  e  Antropologia,  viu,  563-595,  e  reporta-se 
a  outros  artigos  do  mesmo  assunto  (do  D.*""  II.  de  Vilhena,  etc). 
Especificarei  alguns  dos  trabalhos  de  Costa  Ferreira:  Négroídes  pré- 
historiques  en  Portugal  (1907),  Crânes  préhistoriques  du  type  négroide 
(1908),  Contribuição  antropológica  para  o  estudo  de  alguns  cemitérios 
antigos  de  Portugal  (1913),  Sur  quelques  crânes  de  VAlemtejo  et  de 
V Algarve  (1909),  Mésaticéphales  du  Siid  de  Portugal  (1910),  Crânios 
portugueses  (3  opúsculos:  1898-1899),  La  capacite  du  crâne  et  la 
composition  ethnique  probable  du  jjeuple  portugais  (1903),  La  capa- 
cite du  crâne  et  la  profession  cliez  les  Portugais  (1903),  La  capacite 
crânienne  chez  les  crimineis  portugais  (1905),  O  povo  português  sob 
o  ponto  de  vista  antropológico  (1909). 


Boletim  de  Etnografia 


11 


Os  outros  dois  discípulos,  ou  amigos,  de  Ferraz  de  Macedo, 
do  que  supra  se  indicaram  os  nomes,  isto  é,  SanfAna  Marques, 
e  Gonçalves  Lopes  (hoje  falecido),  publicaram,  o  primeiro:  Estudo 
de  Anthropometria  portuguesa  (1898),  Distribuição  do  Índice  cepJia- 


D.  "  António  Aurélio  da  Costa  Ferreira 
M'jiiico  o  Antropólogo  (t  1922)' 

lico  em  Portuijdl  (lOOíl);  o  segundo:  Os  Beirões,  «cstuilo  antropoló- 
gico» (líHX)). 

Um  dos  priuiordiais  actos,  c  mais  notáveis,  do  Governo  da  Re- 
publica Portuguesa  consistiu  na  relbrma  da  instruirão  pública,  decre- 
tada eiu  19  de  Abril  de  1911,  do  ([ue  resultou  criar-se,  melhor 
devia  cu  dizer,  restaurar-se,  a  primitiva  rniversidado  de  Lisboa. 


'  Gravura  reproduzida  (com  a  devida  vénia)  do  Arquivo  de  Ana- 
tomia e  Antropologia  do  Prof.  II.  Vilhena,  vol.  viri  (cf.  supra). 


12  Boletim  de  Etnogeafia 

Falo  em  restaurar-se,  porque  já  aqui  havia  sido  fundado  em  1290, 
por  D.  Denis,  como  é  sabido,  um  Estudo  Geral,  ou  Universidade, 
quo  depois  passou  para  Coimbra,  restituindo-se  em  1308  á  capital, 
onde  funcionou  passante  do  dois  séculos,  isto  é,  no  período  mais 
estrondoso  da  nossa  historia,  o  só  voltando  definitivamente  para  as 
margens  do  Mondego  em  1537.  Com  a  aludida  reforma  da  instrução 
ficaram  pois  coexistindo,  nSo  rivais,  mas  amigas  uma  da  outra,  duas 
Universidades:  a  de  Coimbra,  herdeira  da  antiga  olisiponense;  e  a 
moderna  de  Lisboa.  A  par  criou  o  citado  Decreto  terceira,  no  Porto. 

Em  12  de  Maio  de  1911  novo  Decreto  organizou  as  Faculdades 
de  Sciencias,  e  nSo  esqueceu  os  estudos  antropológicos,  pois  deu 
uma  cadeira  de  Antro])ologia  ás  Faculdades  de  Sciencias  de  Lisboa 
e  Porto;  em  Coimbra  já  havia  uma,  como  logo  se  verá.  Devendo 
apenas  ocupar-me  agora  de  Lisboa,  direi  que  a  recente  cadeira 
a  regeu  de  princípio  o  Prof.  Baltasar  Osório,  a  ([uem,  depois  que 
falecera,  sucedeu  o  Prof.  Artur  Ricardo  Jorge.  De  1926  a  1928  foi 
regida  pelo  primeiro  Assistente,  D."  Frade  Viegas  da  Costa,  que 
a  rege  ainda. 

Em  1912  saiu  á  luz,  como  órgão  do  Instituto  de  Anatomia  de 
Lisboa  (Faculdade  de  Medicina),  o  vol.  i  do  já  citado  Arquivo  de  Ana- 
tomia ('.  Antropolofjia,  dirigido  pelo  Prof.  H.  do  Vilhena.  Neste  Arquivo 
têm  aparecido,  de  Antropologia,  ou  de  assuntos  relacionados  com 
esta  sciencia,  além  do  trabalhos  do  Director,  outros  de  Costa  Ferreira, 
Mondes  Corrêa,  Joaquim  Fontes,  etc.  A  data  em  que  escrevo  (fins 
de  1928),  estão  publicados  onze  volumes,  sendo  o  xi  de  1927. 

Ao  mesmo  temi)o  que  o  Decreto  de  1911  atendeu  aos  estudos 
antropológicos,  atendeu  aos  etnológicos,  estabelecendo  nas  Faculda- 
des de  Letras  das  três  Universidades  cadeiras  de  Etnologia.  Os  res- 
pectivos professores  tratam  naturalmente  algumas  matérias  antro- 
pológicas. 

b)  Coihiíka: 

O  ensino  oficial  da  Antropologia  começou  em  Coimbra  em  1885, 
em  que  uma  Carta  de  Lei  criou  na  Faculdade  de  Filosofia  da  Uni- 
versidade uma  cadeira  de  Antropologia,  Paleontologia  humana  e  Ar. 
queologia  prehistorica,  em  substituição  da  de  Agricultura,  que  lá 
existia.  O  respectivo  projecto  de  Lei  deve-se  aos  D."  Bernardino 
Machado,  e  Corrêa  Barata.  Estava  então  ainda  muito  viva  na  mente 
dos  nossos  homens  de  letras  e  do  sciencia  a  lembrança  do  Congresso 
de  Lisboa,  de  1880,  e  continuava  pois  a  produzir  frutos. 

A  cadeira  inaugurou-se  no  ano  lectivo  de  1885-1886,  sendo  o 
D.'"'  li.  Teixeira  Bastos  quem  primeiro  a  regeu,  como  Professor 


Boletim  de  Etnografia 


13 


substituto.  Seguiu-se-lhe  como  Professor  proprietário  o  U.'"'  Ber- 
nardino Machado,  e  a  este  o  actual  Professor  catedrático  D."''  Eu- 
sébio Tamagnini.  A  cadeira,  como  vimos  acima,  p.  12,  ficou  posta 
paralelamente  ás  de  Lisboa  e  Porto,  criadas  pela  reforma  de  1911. 
Da  actividade  dos  alunos,  na  primeira  fase  da  cadeira,  isto  é, 
e  sob  o  incitamento  do  D."''  Bernardino  Machado,  dá 


r 


D."  Bernardino  Machado 

Primeiro  Professor  proprietário  da  primeira  cadeira  de  Antropologia 

que  houve  em  Portugal,  e  qne  a  ele  principalmente  se  deve. 

Foi  também  o  D.*"  Bernardino  Machado  quem, 

por  Decreto  de  23  de  Dezembro  de  1893,  criou  o  .Mnseu  Etnológico  Português' 


conta  um  volumo  do  320  páginas,  de  dissertações,  intitulado  Aula 
de  Anthropolor/ia,  vol.  I  (o  único),  Coimbra  1904.  Abrange  disser- 
tações que  vao  do  188")  a  1904.  De  al^çumas,  ou  do  todas,  se  fizeram 
edições  separadas.  Foi  pena  quo  nilo  se  publicassem  outras  disser- 


•  (Com  o  titulo  de  «Etnográfico»).  A  gravura  reproduz  um  re- 
trato (|ue  o  S."''  D."''  Bernardino  Machado  ofereceu  ao  autor  da  pre- 
sente obra  em   1^0."),  pouco  tempo  de[iois  da  eriaçilo  do  Muscni. 


14  Boletim  de  Etnografia 


tacões.  Naquele  volume  se  inclue  o  trabalho  de  Silva  Basto  a  que 
acima,  p.  9,  se  aludiu,  acerca  dos  Índices  cefálicos,  e  também  o  de 
Costa  Ferreira  sobre  crânios  portugueses,  pois  como  se  disse  supra, 
secção  a,  Costa  Ferreira  começou  em  Coimbra  os  seus  estudos  antro- 
pológicos. 

Em  1898  fundou-se  na  mesma  cidade  uma  Sociedade  de  An- 
thropologia,  já  planeada  em  1896,  em  sessão  do  Instituto  de 
Coimbra,  presidida  também  pelo  D,"  Bernardino  Machado:  vid.  os 
Estatutos,  Coimbra  1899,  p.  3,  nota.  Esta  Sociedade  ainda  dura, 
mas  com  pouca  vida,  como  me  informou  um  dos  seus  mais  Uustres 
membros. 

A  cadeira  de  Antropologia  está  anexo  um  Museu,  um  Labora- 
tório, e  um  Instituto  do  Antropologia.  Aquele  começou  a  organi- 
zar-se  em  1890:  vid.  O  Im^tituto  (revista),  xli,  44.  Consta  do  crânios, 
e  esqueletos,  e  também  de  artefactos  de  várias  proveniências  (etno- 
grafia colonial,  etc).  Antes  de  1890  já  havia  alguns  objectos  refe- 
rentes a  Antropologia  e  sciencias  correlativas,  mas  estavam  distri- 
buídos por  várias  salas:  ibidem. 

No  ano  lectivo  de  1908-1909  abriu-se  na  Faculdade  de  Sciencias 
um  curso  de  Antropometria,  de  que  se  publicou  o  programa  naEUC, 
I,  203.  Nao  se  mencionou  o  nome  do  Professor. 

Sendo  dificU  relatar  aqui  quanto  de  Antropologia  se  tem  feito 
ou  publicado  em  Coimbra  sob  a  égide  da  veneranda  e  vetusta  Uni- 
versidade, remete-se  o  leitor  para  a  Revista  que  a  mesma  publica, 
e  ha  pouco  citada,  onde  tem  aparecido  uns  tantos  artigos  sobre  o 
assunto:  por  exemplo,  vol.  ii  (Ribeiro  Gomes),  iii  (Barros  e  Cunha), 
IV  (Tamagninl),  v  (Tamagnini  &  Vieira  de  Campos),  ix  (Costa  Fer- 
reira), X  (A.  Themido).  Também  no  Instituto  (revista),  da  Sociedade 
de  igual  nome,  ha  vários  trabalhos,  do  vol.  XLiv  (1897)  em  diante, 
de  AA.  já  mencionados  nesta  resenha  da  literatura  antropológica 
portuguesa,  e  de  outros. 

Como  sucessora  da  Aula  de  Antropologia  (trabalhos  dos  alunos), 
de  que  antes  se  falou,  encetou  ultimamente  o  Instituto  de  Antro- 
pologia a  publicação  de  uma  serie  de  Contribuições  para  o  estudo 
da  Antropologia  portuguesa,  que  até  1926,  data  do  último  fascículo 
publicado,  constava  de:  vol.  i,  fases.  1  e  2,  vol.  ii,  fases.  1  a  4: 
separatas  da  Rev.  da  Universidade.  Segundo  indicações  que  recebi 
do  Instituto,  este  tem  para  saírem  do  prelo,  ou  em  preparação, 
vários  trabalhos  dos  D."''  Tamagnini,  Barros  e  Cunha,  e  A.  Themido. 
Alem  d'isso,  o  mesmo  Instituto  conserva  ainda  inéditos  muitos  outros 
(sobre  Índices  cefálicos,  pigmentações,  etc). 


Boletim  de  Etnografia 


15 


Vid.  também:  de  A.  A.  Themido:  Sobre  um  iiuadro  j^adrão  para 
a  diagnose  sexual  nos  humeros  portugueses,  1925;  Le  trou  marginal 
ou  perforation  osseuse  sus-épitrochléenne,  1926;  de  Barros  e  Cunha: 
Sur  leg  différences  sexuelles  dans  les  indic.  céphal.  horizontal,  vertic. 


Fonseca  Cardoso 

Oficiiil  do  Exercito  e  Antropólogo  (t  1'.I12)* 

et  vertico-transvers.,  1927 ;  Observações  sobre  a  população  do  Algarve 
oriental,  1927 ;  Quelques  nouvelles  obxervations  sur  les  crimes  préhist. 
de  Cascaes,  1928. 

c)  Porto: 

Por  1887  organizaram  no  Porto  vários  moços,  entusiastas  da 
Sciencia,  uma  Sociedade  intitulada  «Carlos  Ribeiro»,  que  tinha  como 
um  dos  seus  alvos  o  estudo  da  Antropologia.  Vid. :  Rev.  de  Sc.  nat. 
e  soe,  I,  199  (R.  Peixoto),  e  AP,  xviii,  203  (J.  Fortes).  U'entre 
os  aludidos  moços  apreciavam  dois  particularmente  a  Antropologia: 
Ricardo  Severo,  e  Fonseca  Cardoso.  A  mesma  Sociedade  começou 


'  Gravura  extraída  do  AP,  xviii.  201  (cf.  adiante). 


16  Boletim  de  Etnografia 


a  publicar  em  1889-1890,  como  órgão  pi'oprio,  a  Revista  agora  ci- 
tada, de  que  sairam  a  público  cinco  volumes;  o  último  data  de  1898. 
Nela  porém  a  Antropologia  portuguesa  teve  quasi  nenhum  cabimento; 
só  outras  sciencias,  como  a  Etnologia,  estão  aí  um  tanto  represen- 
tadas. A  Sociedade  veio  depois  a  extinguir-se. 

Para  seguidamente  acharmos  melhor  representada  no  Porto  a 
Antropologia,  devemos  consultar  a  Portugália  («Materiaes  para  o 
estudo  do  povo  portuguez»),  que  principiou  a  ver  a  luz  nessa  cidade 
em  1888-1889,  e  durou  até  1908:  dois  volumes.  Fora  seu  fundador 
e  director  Ricardo  Severo,  que  associou  a  si  Rocha  Peixoto  (redac- 
tor-chefe),  e  Fonseca  Cardoso  (secretário  da  redacção).  Apareceram 
na  Portugália,  além  de  artigos  menores  (i,  338,  598),  os  seguintes 
trabalhos  antropológicos:  «O  Minhoto  d'Entre  Cávado  e  Ancora», 
«Castro  Laboreiro»,  «O  Poveiro»,  por  Fonseca  Cardoso;  e  «O  os- 
suario  da  freguesia  de  Ferreiro»,  pelo  mesmo,  de  colaboração  com 
Ricardo  Severo. — Em  1908  dou  a  lume  Fonseca  Cardoso  um  cons- 
pecto de  «Antropologia  portuguesa»  nas  Anotas  sobre  Portugal,  i, 
58-72:  como  penso,  o  seu  último  trabalho  antropológico.  Fonseca 
Cardoso  faleceu  em  Timor  em  1912.  Vid.  a  biografia,  com  o  retrato, 
no  AP,  XVIII,  201-205  (J.  Fortes). 

Com  haver  cessado  de  publicar-se  a  Portugália,  não  acabou 
de  todo  na  cidade  o  gosto  da  Antropologia,  antes  em  breve  se 
reacendeu. 

Acima  se  disse  que  no  Porto  estabelecera  o  Governo  em  1911 
uma  Universidade,  que  foi  constituída  em  parte  com  escolas  que  ali 
pre-existiam.  A  ela  se  agregaram  depois  outros  estudos.  Da  nova 
Universidade  ficou  sendo  elemento  integrante,  como  em  Lisboa  e 
Coimbra,  uma  Faculdade  de  Sciencias,  com  uma  cadeira  de  Antro- 
pologia, para  a  qual  se  decretou  no  mesmo  ano  a  fundação  de  um 
Museu,  que  porém  só  começou  a  organizar-se  em  1913,  e  consta  de 
três  secções:  Antropologia,  Arqueologia  e  Etnografia.  Como  comple- 
mento d'estes  estudos  criou  o  Governo  em  1923  um  especial  Insti- 
tuto de  investigação  scientifica  de  Antropologia.  Também  na  referida 
Faculdade  ha  um  Laboratório  antropológico. 

Escolhido  para  reger  a  cadeira  de  Antropologia  o  D.'"'  A.  A. 
Mondes  Corrêa,  que  tinha  para  isso  preparação  médica,  inaugurou 
o  seu  ensino  logo  em  1911,  como  Assistente,  passando  a  Professor 
proprietário  em  1921.  Foi  também  ele  o  nomeado  para  organizar  e 
dirigir  o  Museu  e  o  Instituto,  ilãos  á  obra,  —  ou  ás  obras!  e  ei-lo, 
desde  1912,  data  do  seu  primeiro  trabalho  (índice  cephalico  dos  cri- 
minosos) até  o  presente,  a  publicar  trabalhos  após  traballios  sôbre 


Boletim  de  Etnografia  17 

Antropologia  geral,  Antropologia  nacional,  Antropologia  criminal, 
a  Antropologia  nas  suas  relações  com  a  Arte,  etc.  Como  mais  im- 
portantes para  o  nosso  intuito,  particularizarei  os  seguintes: 

—  Antropologia,  Porto  1915,  por  ser  um  resumo  das  lições  pro- 
fessadas pelo  A.  na  sua  cadeira,  ainda  como  Assistente,  e  porque 
a  generalidades  (conceito  da  Antropologia,  etc),  indicações  do  mé- 
todo antropológico,  origem  do  homem,  classificação  das  raças  hu- 
manas, e  outros  assuntos,  agregou  um  capitulo  consagrado  á  Antro- 
pologia portuguesa; 

—  Os  povos  primitivou  da  Luiitania,  Porto  1924,  por  conter  um 
resumo  do  que  o  A.  publicara  ató  então  a  respeito  de  Portugal, 
e  porque  na  obra  se  expõem  muitos  factos  e  ideias  que  ele  ainda 
nao  havia  exposto  antes.  Veja-se  principalmente  o  cap.  viii  («Raizes 
profundas»),  o  o  cap.  vii,  em  que  se  faz  um  ensaio  retrospectivo, 
e  se  esboça  a  antropologia  física  do  Português  actual. 

Posteriormente  aos  Povos  primitivos  trouxe  a  público  Mendes 
Corrêa :  Essai  sur  V Ethnologie  j)ré-romaine  du  Portugal,  1925  (se- 
parata da  Rev.  d' Anthropologie) ;  O  problema  eugcnico  em  Portugal, 
1828  (separata  do  Congresso  Nacional  de  Medicina,  Porto). 

Não  se  tem  circunscrito  a  actividade  do  nosso  autor  em  ensinar 
ou  escrever.  A  sua  iniciativa  se  deve  a  fundação  de  uma  agremiação 
scientifica  (1919),  com  sódo  no  Porto,  e  denominada  «Sociedade 
Portuguesa  do  Antropologia  e  Etnologia»,  com  estatutos  aprovados 
em  1918,  a  qual  publica  uma  revista,  Trabalhos  da  tíoc.  Portug. 
de  Antropologia  e  Etnologia,  até  agora  (1928)  três  volumes,  estando 
o  4."  em  começo.  Contém,  por  exemplo,  artigos  de  Mendes  Corrêa, 
Alfredo  Ataíde  (Assistente  de  Antropologia),  Santos  Júnior,  o  uma 
secção  bibliográfica  destinada  a  informar  o  leitor  dos  progressos 
da  Antropologia  portuguesa  e  geral.  Ao  mesmo  tempo  que  Mendes 
Corrêa  ensina,  e  escreve,  — e  subentende-se  que,  para  escrever 
e  ensinar,  precisa  de  colhôr  materiais  para  o  Museu,  e  dar-se  a 
trabalhos  do  laboratório  — ,  instiga  os  alunos  a  produzirem  disser- 
tações baseadas  em  investigação  original,  algumas  depois  entre- 
gues ao  prelo :  vid.  o  mencionado  Santos  Júnior,  in  TSPAE,  vol.  ii 
(«Estudo  antropológico  e  etnográfico  da  população  de  S.  Pedro  do 
Mogadouro»,  de  que  se  fez  edição  separada.  Porto  1924),  o  A.  Me- 
dina na  liev.  dos  estudos  da  Univ.  do  Porto,  vol.  i  («Crânios  portu- 
gueses: relações  cranio-faciais»).  Já  em  1922  se  apresentaram  ao 
Congresso  luso-hespanhol  as  conclusões  de  vinte  trabalhos  originais 
de  alunos  do  curso  de  Antropologia  da  Universidade  do  Porto, 
como  consta  do  Curso  de  Antropologia  da   Universidade  do  Porto, 


18  Boletim  de  ETNOGB.tFiA 

do  nosso  autor,  Porto  1922.  Vid.  também  o  mesmo  in  TSPAE, 
III,  18-42. 

Outro  Instituto  scientifico  portuense,  que  contribuo  para  os  es- 
tudos antropológicos  (e  etnográficos)  é  o  de  Anatomia,  da  Facul- 
dade de  Medicina,  dirigido  pelo  Prof.  J.  A.  Pires  de  Lima,  que 
no  abrilhantamonto  d'ele,  isto  é,  no  enriquecimento  do  respectivo 
Museu,  e  no  estímulo,  instrução,  e  exemplo  dados  aos  alunos  tem 
posto  sempre  o  maior  empenho. 

A  súmula  geral  dos  trabalhos  de  investigação  anatómica  exe- 
cutados desde  1911,  em  que  eles  começaram  mais  activamente,  até 
1925,  data  das  festas  do  1.°  centenário  da  mesma  Faculdade, 
consta  do  opúsculo  publicado  por  ocasião  d'essas  festas  com  o  titulo 
de  O  Instituto  de.  Anatomia:  vid.,  no  que  toca  á  Antropologia  e 
Etnografia,  o  cap.  i,  pp.  13-20  (Alfredo  Ataíde,  Costa  Santos, 
E.  Valença,  J.  A.  Pires  de  Lima,  etc). 

De  1925  em  diante,  novos  trabalhos  sairam  do  Instituto  de  Ana- 
tomia, por  exemplo:  de  Constâncio  Mascarenhas  (Assistente),  Le 
ptérion  chez  les  Portugais;  de  Hernâni  Monteiro  &  Amândio  Tava- 
res, Sur  l'occipitalÍ8ation  de  1'atlas  chez  les  Portugais;  de  Luís  de 
Pina,  Le  muscle  présternal  chez  les  Portugais. 

Em  teses  ou  dissertações  apresentadas  á  Faculdade  de  Medicina, 
por  Costa  Santos,  O  angulo  facial  dos  crânios  portugueses  (1924), 
E.Valença,  A  fronte  nos  Portugueses  (1925),  A.  J.  da  Cunha,  Cam- 
ptometria  nos  crânios  portugueses  (1926),  os  autores  manifestam-se 
reconhecidos  ao  auxílio  que  receberam  dos  dois  Institutos.  Outro 
trabalho  apresentado  á  Faculdade  de  Medicina  do  Porto  é  o  de 
D.  Adélia  Seirós  da  Cunha,  intitulado  Grupos  hemáticos  nos  Portu- 
gueses, Porto  1926,  cujo  valor  é  enaltecido  pelo  D."''  Santos  Júnior 
in  TSPAE,  IV,  110-112. 

Com  o  titulo  de  Pe  vista  de  Antropologia  criminal  iniciou-se  em 
1902  uma  publicação  do  antigo  Posto  antropometrico  portuense; 
porém  teve  vida  efémera.  Este  Posto  chama-se  hoje  EepartiçSo  de 
Antropologia  criminal,  e  está  a  cargo  do  já  várias  vezes  mencionado 
D."'  J.  A.  Pii'es  de  Lima,  Professor  da  Faculdade  de  Medicina. 


Do  que  fica  dito  infore-se  que  na  historia  da  Antropologia  na- 
cional se  distinguem  três  fases:  1)  de  1857(-1865)  a  1880,  ou  dos 
primórdios;  2)  de  1880  a  1911,  como  consequência  da  ideia  que 
motivara  a  celebração  do  Congresso  de  Lisboa,  e  da  própria  realiza- 


Boletim  de  Etnografia  19 


çSlo  d'este;  3)  do  1911  para  cá,  ou  fase  moderna,  resultante  da 
reforma  da  instrução  pública.  Alguém  desejaria  acaso  levar  a  2.^ 
fase  apenas  até  1885,  ano  em  que  se  instituiu  em  Coimbra  o  ensino 
oficial  da  Antropologia,  e  fazer  começar  a  3."  nesse  ano.  Os  espe- 
cialistas que  julguem*. 

Nâo  obstante  faltar  fazer  ainda  muitas  investigações  parciais, 
em  todo  o  sentido,  e  resolver  difíceis  problemas  impendentes,  al- 
guma cousa  importante,  como  fica  dito,  se  tem  cá  feito,  —  e  o  etno- 
grafo  colhe  desde  já  na  literatura  antropológica  portuguesa  elemen- 
tos que  o  esclarecem  a  certos  respeitos,  e  subsídios  indispensáveis: 
por  exemplo,  no  que  toca  á  nossa  génese,  aos  nossos  caracteres 
somáticos  e  fisiológicos,  e  ás  subdivisões  do  povo. 

.1.  L.  i)K  V. 


Objectos  feitos  de  cabdço  e  cabdçd 

Nos  usos  populares  encontramos  a  cada  passo  objectos  do  ca- 
racter primitivo,  de  cujo  estudo  podemos  ás  vezes  concluir  quais 
seriam  muitos  que  devia  haver  em  tempos  pre-historicos,  mas  de  que 
nos  faltam  amostras  directas.  Nas  figuras  seguintes  ropresentam-se 
objectos  actuais  d'csso  caracter: 

Fig.  1  —  Funil  feito  do  uma  cabaça,  para  passar  vinho  do  uma 
vasilha  grande  para  uma  pequena  (Tolosa).  Comp.  O"', 21.  N."  do 
entrada  6:616,  do  catálogo  406. 

Fig.  2  —  Recipiente  feito  d'outra  cabaça,  para  ter  os  fósforos  em 
casa  («cabaço  dos  lumes», — ou  cabaça?  Baixo-Douro).  O  suspen- 
sório da  parte  superior  é  a  própria  haste  da  cabaça.  Alt.  U"',2G7. 
N."  de  entrada  2:519,  do  catálogo  1:918. 

Fig.  3  —  Recipiente  feito  de  cabaço,  para  ter  garfos,  geralmente 
garfos  do  ferro  (Baiáo).  Chama-se  «cabaço  ou  colomlro  dos  garfos». 
Comp.  0'",39.  N."  de  entrada  5:435  bis,  do  catálogo  1:899. 

Fig.  4  —  Ca^Hiço  de  tirar  agua,  do  cabo  muito  comprido,  fixo 
no  cabaço  por  uma  travessa  interior  (Caldas  da  Rainha).  Cf.  Ilis- 


•  O  meu  amigo  e  colega  D.""'  A.  A.  Mendes  CorrGa,  que  fez  o 
favor  de  ler  todo  este  artigo,  assim  que  o  escrevi,  disse-mc  concordar 
plenamente  com  a  divisão  tripartita. 


20 


Boletim  de  Etnografia 


to)'ia  do  Museu  Etnológico,  p.  228.  Comp.  do  cabo  1"',84,  do  cabaço 
0'",54.  N."  do  catálogo  420. 

Fig.  5 — Botelho  ou  recipiente  para  pimenta  em  pó,  com  tampa 
de  cortiça  (Medelim).  Alt.  0"',13.  N."  do  catálogo  1:925. 

Fig.  G — Cabaço  para  azeitonas.  Tem  como   ornamentação  no 


Fig.  1 


fie.  2 


Fig.  3 


bojo  o  escudo  das  quinas,  encimado  de  uma  coroa,  que  se  entende 
ser  coroa  real.  Tampas  de  cortiça,  uma  na  parte  superior,  maior, 
outra  na  inferior,  menor,  —  aquela  com  um  preguinho  de  ferro  que 

serve  de  puxador.  Pro- 
priamente feito  de  meia 
cabaça.  Alt.  0'°,112. 
N."  do  catálogo  1:928. 
Fig.  7  — Cabaça 
ordinária  para  vinho 
(Baixo-Douro).  Tem 
no  bojo  inferior  uma 
marca  (dois  triângulos 
ligados  pelo  vértice). 
No  colo  da  cabaça  ha 
um  cordão  para  ela  poder  andar  suspensa.  Alt.  0™,145.  N."  de  entrada 
5:518,  do  catálogo,  1:906. 

Fig.  8  —  Outra  cabaça  com  rÔlha  de  cortiça.  Está  achatada  arti- 
ficialmente, o  que  se  efectuou  durante  o  crescimento,  pondo-a  entre 
talas  (Castelo  Novo).  Alt.  0'",182.  N.»  do  catálogo  1:919. 

Fig.  9 —  Cabaço  para  sal.  O  fundo  é  formado  por  uma  roda 
de  cortiça.  A  abertura  superior  tem  uma  tampa  ou  rolha  da  mesma 


Fig    4 


Boletim  de  Etnogkafia 


21 


substancia.  No  bojo  vê-se  um  pcntalfa  ou  signo-saimão,  oncimado 
de  um  ponto;  este  sinal  mágico  tem  por  fim  evitar  quo  alguém  faça 


Flg.  5 


Fig.  C 


raaleíicio  no  «il.  Cf.  O  Arch.  Fort.,  xxiir,  240.  Alt.  0"',10.  N."  do 
catálosro  1:92G. 


Todos  os  objectos  que  ficam  descritos  e  dcsenliados  pertencem 
ao  Museu  Etnológico  Português.  O  catálogo  do  quo  se  fala  é  o  do 
mesmo  Museu. 

J.  L.  deV. 


Etnografia  colonial 


Quando  eu  regi,  na  Faculdade  do  Letras  da  Universidade  de  Lis- 
boa, a  cadeira  de  Arqueologia,  costumava  ás  ve/.es,  para  explicar 
objectos  pro-liistoricos  ou  proto-historicos,  mostrar  objectos  similares 
usados  por  selvagens,  ou  reproduções:  método  etnográfico.  Adiante 
se  publicam  algumas  d'estas,  segundo  fotografias  que  me  comunicou 
o  S."  Pereira,  de  Paderne  (Melgaço),  e  informações  que  me  dou 
o  S."  D.°^  Artur  de  Barros  Lima.  Nem  todas  as  reprodu- 
ções que  obtive  se  destinavam  ao  intuito  indicado,  mas  creio  não 
ser  inútil  agregá-las  ás  restantes. 

A.  —  Africa  Ocidental 

1.  Preto  de  Angola  (Benguelaj,  de  turbante,  o  (pie  representa  in- 
fluencia maometana. 

2.  Caçador  Quissama  (Angola)  que  tem  na  mao  direita  uma  aza- 
gaia, provida  inferiormente  de  penacho,  que  serve  para  ajudar  o  mo- 


Fig. 


Fig.  2 


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Fig.  4 


Fig.  5 


Boletim  de  Exnoghafia 


23 


vimento  de  arremesso.  À  cinta  tem  uma  bolsa  ornamentada,  na 
posição  em  que  anda  a  cartucheira  dos  nossos  soldados. 

3.  Preto  montado  em  boi-cavalo,  em  viagem  pelo  interior  de  An- 
gola. Assim  se  viaja  vulgarmente.  O  cavaleiro  leva  na  cabeça  um 
barrete,  tomado  dos  costumes  maometanos. 

4.  Rapariga  solteira,  de  Novo-Redondo  (Angola) :  tem  colares  de 


Fig.  3 

conchas  ao  pescoço.  Toucado:  cabelo  enrolado  a  modo  do  dois  chi- 
fres, e  tornado  consistente  com  auxilio  do  pomadas  o  oloo. 

5.  Rapariga  solteira  do  Angola:  tem  também  colares  de  conchas 
ao  pescoço,  e  no  braço  um  bracelete  do  arame.  Toucado:  cabelo 
calamistrado,  e  consi-ítente  também  com  óleo  e  pomadas. 

6.  Mulher  casada,  do  Ilumbe  (Angola).  Usa  coifa,  vel  símile,  que 
lembra  um  enfeite  egípcio. 

7.  Preta  do  Hnmbe  (Angola).  Tem  na  cabeça  um  enfeite  que 
lembra  asas  de  borboleta;  talvez  enfeite  de  festa. 

8.  Mulher  de  Llbolo  (Angola),  com  (jiiito  de  azeite.  O  quito  é  feito 
pelos  pretos.  A  mulher  usa  xorcas  na  parte  inferior  das  pernas. 

9.  Preta  do  litoral  de  Angola,  no  acto  de  dar  de  mamar  a  uma 
criança.  Esta  costuma-a  trazer  ás  costas,  mas  aqui  tem-na  por  diante, 
para  comodidade  da  amamentação.  Pois  que  a  mama  é  grande  e  com- 
prida, permite  que  a  criança  mamo  do  lado. 


Fig  C 


FifC.  7 


Boletim  de  Etnografia 


25 


Fig. 10 


Fig. 11 


26 


Boletim  de  Etnografia 


Fig.  1» 

10.  Família  de  pretos  do  Benguela.  Cinco  das  jiessoas  que  estilo 
do  pé,  o  uma  das  crianças  sentadas,  têm  á  caljoça  estoiras  o  sa(!OS  de 
manufactura  indígena. 

11.  Familía  do  Zaire  (Angolaj,  junto  de  uma  palhota.  Na  extre- 
midade da  esquerda  do  observador  está  um  manipanso  com  relicá- 
rio (?)  ao  peito.  Pelo  chão  vê-se  loiça  indígena  e  europeia. 


Flg.13 


Boletim  de  Etnografia 


27 


12.  Pescador  da  ilha  de  Loanda  (Angola),  que  trabalha  em  rede 
numa  palhota  de  canas  forrada  do  barro  e  lodo  (como  nos  tempos 


calcoliticos).  Na  costa  oriental  chamam-se  tais  habitações  palhotas 
maticadas;  são  sempre  assim,  [)or  conforto,  do  Zanzibar  para  cima. 

15.  —  Africa  Oriental 

13.  Preto  do  Inhambane  (lIo(,-arabique),  com  cabelo  rapado  atrás, 
o  poupa  adiante.  A  oporaçilo  de  rapar  faz-se  com  nm  vidro.  Cf.  o  meu 
livro  A  barba  em  PortiKjal,  Lisboa  1925,  pp.  21-22. 

14.  Preto  de  Téte  (Zambezia  Alta,  Moçambique),  com  penteado 
resultante  do  rapagem  feita  com  vidro  (rapagem  parcial).  O  preto 
está  sentado  numa  cadeira,  vendo-se  as  bordas  das  costas  d'ela  atrás 
dos  braços  do  preto. 


Fíg-.  13 


Fig.  16 


Fig.  15 


Fig.  U 


Boletim  de  Etnografia 


29 


Flg.  17 


15.  Muloquo  de  Quelimane  (Zambozia,  Moçambique).  Leva  no 
ombro  direito,  amparada  pelas  duas  milos,  uma  bilha  calreal,  isto  ó, 
feita  pelos  pretos,  do  barro  vermelho. 

16.  Caçador  de  elefantes  (Zambezia,  província  do  Moçambique); 
talvez  cipai. 

17.  Palhota  situada  na  margem  direita  do  Chue  (Manica,  pro- 
víncia de  Moçambique). 

18.  Povoação  indigena  da  Zambezia  Baixa. — Vid.  p.  20. 

19.  ilalheres  que  pilam  arroz  com  pilões  (Zambezia,  Moçambi- 
que). Emquanto  elas  trabalham,  os  homens  costumam  descansar, 
quando  nSo  vlo  servir,  ou  não  andam  na  guerra.  Por  detrás  v6-se 
uma  palhota  entre  coqueiros.  E  curioso  observar  que,  como  são  ár- 
vores altas,  dois  d'elos  têm  degraus  entalhados  para  se  subir  a  apa- 
nhar o  coco  (tipo  de  escada  primitiva,  semelhante  ás  que  usam  no 
iaterior  do  Alentejo,  as  quais  porém  não  são  taliiadas  na  própria 
árvore,  mas  num  pau  que  se  lhe  encosta). — Vid.  p.  20. 

20.  Grupo  de  indígenas  das  margens  do  Chue  (Moçambique). 
No  chão  vêem-se  cestos  do  fibra  vegetal  com  raiz  do  mandioca,  ali- 
mento predilecto  dos  pretos.  O  mnleque,  ([ue  está  do  pé,  conduz  ás 
costas  uma  cangarra,  espécie  de  gaiola  i)ara  levar  galinhas,  feita 
de  vôrga;  tem  a  cabeça  rapada  com  poupa  na  frente  (á  plerrot), 
e  vai  quasi  todo  envolvido  num  pano,  á  moda  arábica,  em  vez  de 
levar  tanga  (capelana).  Todas  as  mulheres  têm  xorcas  ao  pescoço, 


30 


Boletim  de  Etnografia 


Kig.  20 


6  nas  pernas  ou  nos  braços.  O  preto  que 
está  sentado  á  direita  do  observador  mostra, 
atravessado  sobre  os  joelhos,  um  cachimbo. 


II 


Objecto  de  madeira 

usado  pelos  Macondes, 

que  habitam  o  Norte  (Nyassa), 

na  província  de  Moçambique 

Representa  uma  cabeça  humana,  pescoço 
e  tronco,  sem  braços.  Adaptou-se-lhe  na 
parte  inferior  uma  capsula  de  bala  de  espin- 
garda, em  que  anda  pólvora,  ou  tabaco  para 
se  mascar.  A  figura  tem  na  cabeça  um  chape- 
linho do  feitio  de  tronco  de  cone,  e  ao  pescoço 
um  fio  vegetal,  para  suspensão,  o  qual  se 
prolonga  muito  pelo  boneco  a  baixo.  O  mais 
curioso  d'este  é  o  prognatismo  da  face,  muito 
bem  especificado,  e  a  tatuagem  de  que  a  ador- 
naram, formada  de  linhas  rectas,  dispostas  de 
diversos  modos. 


Boletim  de  Etnografia 


31 


Este  objecto,  pertencente  hoje  ao  Museu  Etnológico,  foi-me  ofe- 
recido pelo  meu  amigo  o  S.°'  Fernando  Canedo,  Capitão  de  In- 
fantaria, que  o  trouxe  de  Africa. 

Vid.  a  fig.  21:  um  torço  do  tamanho  natural  (desenho  do 
F.  Valença). 

J.  L.  DE  V. 


Etnografia  do  Cadaval 


Quem  diz  Cadaval,  diz  Estremadura  Cistagana.  Nada  ha  ali 
que  nJlo  se  encontre,  mais  ou  menos,  noutros  concelhos  da  provín- 
cia:  por  isso,  com  o  titulo  do  presente  artigo  quero  apenas  significar 
que  as  cousas,  cuja  notícia  constituo  este,  foram  observadas  no  Ca- 
daval, propriamente  no  Peral,  lugar  pertencente  ao  mesmo  conceliio. 

1.   Cabana  ou  acabana  (fig.  1): 

Arma-se  no  campo,  ao  pó  de  uma  eira,  de  um  meloal,  etc,  para 
o  respectivo  guarda  dormir,  e  também  para  aí  se  guardarem  petre- 
chos agrários.  O  povo  pro- 
nuncia acabana;  «durmo  na 
acabana,  vem    da    acabana». 

Temos  primeiramente 
dois  esteios  ou  espeques  encru- 
zados á  frente,  e  presos  um 
ao  outro  com  um  atilho, 
vimes,  por  exemplo;  do  ponto 
de  cruzamento  parte  para  trás 
uma  trave  ou  trisia  (isto  é, 
trísia  de  cima),  que,  ou  ])Ousa 
obliquamente  no  chilo  (o  mais 
usual),  ou  noutro  cruzamento  "^ 

de  esteios  paralelos  aos  primeiros.  As  paredes  da  cabana  silo 
formadas  por  três  ou  mais  varas,  dispostas  paralelamente  á  trave, 
chamadas  trisias  dos  lados,  e  atadas  do  mesmo  modo;  a  elas  se 
encostam  giestas,  fetos,  caniços,  ou  palha  de  milho,  colocandose 
por  fora  outra  ordem  de  trísias  que  apertam  este  chumaço  contra 
as  primeiras,  e  o  mantêm  na  devida  posição.  As  varas  sao  de  pinho, 
salgueira,  etc.  Nao  entra  aciui  prego  algum,  o  que  dá  á  construção 
aspecto  muito  i)rimitivo. 


32 


Boletim  de  Etnogeafia 


Quando  acontece  existir  perto  da  eira  uma  árvore,  a  cabana  en- 
costa-se  a  ela  posteriormente,  quer  haja  dois  pares  de  espeques,  quer 
só  um. 

2.  Duas  casas  de  habitação,  contíguas  (fig.  2): 
A  da  esquerda  do  observador  tem  varanda  de  parapeito  e  es- 
cada dupla,  uma  de  cada  lado,  e  dirigidas  ambas  para  a  rua  pública. 


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Fig.  2 


Este  tipo  encontra-so  frequentes  vezes  noutras  terras.  A  casa  do 
Peral,  de  que  se  está  falando,  apresenta  chaminé  alta,  de  base 
redonda. 

A  casa  da  direita  tem  também  varanda,  mas  com  escada  unila- 
teral, mais  baixa  que  a  de  cima.  A  chaminé  piramidal,  de  base  qua- 
drangular.—Ao  lado  da  escada  fica  a  pocilga,  encostada  á  parede, 
onde  está  o  porco,  de  dia  e  de  noite:  é  um  telheiro,  de  pequeno  ta- 
manho, com  vedação,  porém,  até  meia  altura,  formada  de  tábuas 
.  paralelas  entre  si,  um  pouco  afastadas  umas  das  outras. 

Ambas  as  casas  sEo  caiadas,  como  ó  usual  nas  povoações  do 
Sul  de  Portugal. 

Por  estes  sitios  a  varanda  não  é  corrida,  nem  de  balaustres  de 
madeira,  como  no  Norte  e  no  Centro  (Beira):  compõe-se  apenas 
de  um  patim  com  guardas  ou  encosto  de  alvenaria  ou  com  grades 
de  ferro.  Corresponde  ao  que  noutras  localidades  se  chama  balcão, 
peitoril,  etc.  Aqui  chama-se  peitoril  a  uma  tábua  assente  na  parte 
superior  da  cantaria  da  janela,  e  onde  se  encosta  o  peito  de  quem 
aí  está  ao  pé. 


Boletim  de  Etnogeafia 


33 


3.   Casa  baixa  (fig.  3): 

Uma  das  entradas  tem  um  postigo  na  porta;  outra  entrada  tom 
meia-porta,  que  fica  adiante  da  porta  verdadeira.  Ao  lado  da  primeira 


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Fig.  3 


fica  o  poial,  espécie  do  bancada  una,  onde  as  pessoas  se  sentam  para 
tomar  o  fresco  ou  descansar,  e  onde  também  podem  pousar-se  trausito- 


Vig.  i 


riamente  objectos  ([uú  se  levam  na  mão  (uma  cesta,  etc).  O  poial  apre- 
senta uma  interrupção,  para  dar  passagem  para  outra  entrada.  — Creio 
que  no  prédio  habitam  dois  moradores. 


4.   Telhado  de  pombinha: 

O  telhado  que  se  desenhou  na  fig.  4  tem  no  alto,  como  adorno 
ama  pombinha  feita  de  argamassa  (cal  o  areia). 

3 


34 


Boletim  de  Etnogeafia 


No  Mês  de  sonho,  Junho  de  1926,  p.  40,  me  referi  a  este  adorno 
das  casas,  que  observei  nos  Açores,  e  também  tenho  observado  noutros 
locais  da  Estremadura.  Nos  Açores  o  havia  já  observado  o  D. ""^  Leite 
de  Ataíde,  como  digo  ibidem. 

5.  Arribaria: 

A  arribaria  é  um  telheiro  ou  «coberto»  extenso,  construido  numa 
das  extremidades  de  um  pátio:  serve  para  logradoiro  da  casa,  e  para 
aí  arrumar  alfaias  agrarias  ou  outros  objectos  relacionados  com  ávida 
do  campo.  Geralmente  ficam  próximos  da  arribana  o  forno,  a  adega. 


Fig.  5 


o  celeiro,  um  pocilga  (vid.  §  2),  capoeiras  e  currais. — Debaixo  da 
arribana^  representada  na  fig.  õ,  e  pertencente  a  meu  primo  e  afilhado 
António  Leite  Pereira  de  Melo,  estudante  de  Medicina,  e 
natural  do  Peral,  vê-se  um  carro  de  bois,  um  balseiro,  uma  escada 
encostada  a  este,  e  um  bwro  de  serrador.  Fura  da  arribana,  por 
uma  das  suas  aberturas  laterais,  divisa-se  parte  de  um  quintal  em  que 
ha  um  poço  com  seu  cambão  ou  engenho  de  tirar  agua.  De  engenhos 
análogos  se  fala  em  De  terra  em  terra,  i,  75. 

Tellieiro  é  um  espaço  pequeno  e  quadrangular,  coberto  de  telhas, 
em  regra  fechado  só  por  um  lado  e  aberto  pelos  três  restantes,  es- 
tando o  telhado  encostado  a  uma  parede  da  casa,  e  suspenso  pelo 
outro  em  espeques.  O  telheiro,  que  em  algumas  terras  se  chama  co- 
berto e  coberto,  serve  para  resguardar  da  chuva,  por  exemplo,  um 
poço,  um  lavadeiro,  um  forno,  etc.  Na  Beira  e  no  Minho  pôde  abri- 
gar também  um  cruzeiro. 


Boletim  de  Etnografia 


35 


6.  Adega  e  lagar  (fig.  6): 

Na  Estremadura  a  adega  costuma  ter  uma  porta  muito  alta  e 
larga  para  facilmente  passarem   os   toneis  que  para  lá  se  levam 


Fig.  6 

quando  vazios,  e  lá  se  enchem  de  vinho,  e  guardam.  Tem  ao  mesmo 
tempo  frestas  largas  para  se  arejar  o  ambiente,  mas  baixas,  ainda 
que  feitas  de  modo  que  os  ratonoiros  nao  possam  caber  por  elas. 
Quando  o  lagar  se  construiu  na  adega,  o  que  é  o  caso  mais 
frequente,  esta  tem  uma  janela  na  direcção  d'aquele,  a  qual  janela 
serve  para  por  aí  se  descarregarem  as  uvas  que  vao  no  carro  para 
o  lagar.  Na  parte  inferior  da  janela,  por  fora,  ha  uma  pedra  saliente 
da  parede,  onde  o  lagareiro  que  descar- 
rega as  uvas  põe  um  pé,  ficando  o  outro 
pousado  no  carro.  Lagareiros  se  chamam 
todos  os  homens  que  trabalham  no  fa- 
brico do  vinho. 


7.  Cesto  de  madeira  (fig.  7): 

O  cesto  que  se  representa  na  figura, 
feito  de  aduelas,  que  costumam  ser  de 
castanho,  pinho,  carvalho,  ou  outra  ma-  ^'^' ' 

deira,  semelhantes  ás  das  tinas,  celhas,  etc,  tem  forma  de  tronco 
de  cone  invertido;  as  aduelas  estão  fixas  entre  si  com  arcos  de 
ferro,  e  estes  ligados  nas  suas  duas  extremidades  por  pregos  do 
mesmo  metal,  que  se  chamam  rebites  ou  cravos.  No  arco  superior 
cravam-se,  em  posição  oposta  uma  á  outra,  duas  asas  também 
de  ferro.  O  fundo  do  cesto  ó  formado  por  uma  ou  mais  tábuas. 


36 


Boletim  de  Etnogeafia 


Altura  do  cesto:  0'",29;  diâmetro 
da  boca:  O™, 36;  do  fundo: 
0™,27. 

O  cesto  serve  para  nele  se 
acarretarem  as  uvas  da  vinha 
para  a  tina  (§  5),  que,  na  oca- 
sião em  que  se  realiza  a  vindima, 
está  num  carro  ao  pé. 

8.   Carro  de  bois: 
A   fig.    8   mostra    um   carro 
empinado,   e  visto  pela  parte 
inferior. 

Para  se  poder  compreender 
a  estrutura  do  carro,  é  neces- 
sário ter  presentes  outros 
desenhos  de  pormenores,  os 
quais  me  faltam  agora.  Em  os  obtendo,  farei  novo  artigo  no  Boletim- 
Kefiro-me  ao  caiTO  do  Cadaval,  pois  d'outras  localidades  tenho 
muitos  apontamentos. 

9.  Canga  de  bois  (fig.  9) : 

1  —  tamoeiro,  correia  de  couro ; 

2 — cangalhas,  de  madeira; 

3 — piarça  (piaça),  de  couro; 

4 — brocha,  correia  de  couro; 

5 — sobre-brócha  ou  ganga,  de  couro; 
Cf.  Boletim,  n.»  2,  pp.  57-58. 

A  expressão  vulgar  trazer  alguém  á  brocha,  por  trazê-lo  sub- 
misso, é  tirada  da  nomenclatura  da  canga,  pois  a  brocha  passa  por 


Fig.  8 


ir      Y  J  •  i 


Fig.  a 


Boletim  de  Etnografia 


37 


baixo  do  pescoço  do  boi,  e  não  o  deixa  escapar-se.  Também  se  diz: 
andar  á  brocha,  por  «andar  forçado». 

10.  Padiola  (fig.  10) : 

Utensilio   do  madeira,   constante   de   um  rectângulo  encurvado 
(com  a  curva  para  cima),  os  lados  maiores  do  qual  se  prolongam  um 


Fiff.  10 


pouco,  para  diante  o  para  trás,  e  servem  para  so  pegar  no  utensílio. 
Estes  prolongamentos  chamam-Bo  porém  pernas.  A  padiola  utiliza- 
-80  para  transporto  de  pedra,  estrume,  torra,  otc,  a  curta  distancia. 


Figs.  :i,  12  c  13 


38  Boletim  de  Etnografia  ' 

11.  Enxada  e  sacho: 

Uma  enxada  consta  das  seguintes  partes: 

1 — cabo,  de  pau  (carvalho,  salgueiro,  freixo,  oliveira,  urmo 
etc); 

2 — olho,  abertura  onde  se  introduz  o  cabo; 

3 — garganta,  a  parte  que  liga  o  olho  á  pá; 

4 — pá,  espalmada,  que  serve  para  rasgar  a  terra; 


Flg.  14 

5 — pescaz,  cunha  exterior,  que  faz  firmar  a  extremidade  do 
cabo  no  olho; 

6 — cunha  propriamente  dita,  ou  interior,  que  se  introduz 
no  próprio  cabo,  comprimindo-o  contra  as  paredes  in- 
ternas do  olho. 
A  pá  recebe  vários  nomes,  conforme  o  seu  tipo : 

fagueira,  as  de  ponta  de  faca; 

de  meia-lua; 

■rasa,  chamada  também  sacheira,  por   servir  para  sachar. 
Vid.,  respectivamente,  figs.  11,  12,  e  13. 

Um  sacho,  fig.  14,  é  menor  que  a  enxada  vulgar,  com  uma  pá 
pequena,  oposta  á  verdadeira.  Emprega-se  para  sachar  hortas,  dis- 
por flores,  etc. 

* 

Todos  os  desenhos  que  serviram  para  as  gravuras  que  orna- 
mentam este  artigo  foram  executados  pelo  S."  JoSo  Herculano 
Pereira,  natural  do  Peral,  antigo  aluno  da  Escola  Industrial  de 
Kodrigues  Sampaio,  e  apreciado  jornalista,  a  quem  mais  uma  vez  os 
agradeço. 

J.  L.  DE  V. 


Boletim  de  Etnografia 


39 


/Viouros  c  Judeus  na  arte  portuguesa 
I 

Mouros 

Tomo  aqui  Mouro  nu  acepção  usual,  pois  esta  palavra  entre  nós 
tanto  significa  Mouro  propriamente  dito,  como  Árabe. 

Antes  de  1490,  data  da  provisão  manuelina  que  os  expulsou  do 
nosso  solo,  a  qual  atingiu  também  os  Judeus,  creio  serem  muito  raras 


N' 


l'ig.  1 


om  Portugal  representações  artísticas  do  ^louros.  Todavia  já  no  meu 
livro  A  harbii  em  Porttif/aJ.  Lisboa  1925,  p.  63,  falei  de  um  capitel 
de  Amorim,  do  se<-.  xii,  hoje  no  Museu  do  Porto,  no  qual  se  repre- 
senta um  guerreiro  cristílo  que  ostenta  com  a  mão  esquerda  uma 
cabeça  de  Mouro  decepada  por  ele:  vid.  a  fig.  61  a  p.  04  da  mesma 
obra.  Aqui  reproduzo  agora  em  ponto  um  pouco  maior  a  mesma  fi- 
gura, mercê  de  um  desenho  que  me  ofereceu  o  meu  amigo  o  S."''  Ema- 
nuel Kibeiro,  distinto  Professor  de  Desenho  de  uma  Escola  Indus- 
trial d'aquela  cidade.  Vid.  tig.  1. 


40 


Boletim  de  Etnografia 


No  brasão  de  Évora,  em  que  se  memora  o  conhecido  feito  his- 
tórico de  Giraldo  Sem-pavor,  aparece  o  herói  também  como  mata- 
Mouros,  visto  que  lhes  conquistou  a  cidade.  O  brasão  apresenta  várias 
formas  ao  longo  dos  séculos:  vid.  Gabriel  Pereira,  Estudos  Eborenses, 
n."  10,  onde  trata  minuciosamente  do  assunto,  citando  a  Crónica  dos 


Fig.  2 

Godos,  como  fonte  histórica  mais  antiga  do  feito,  o  outras  obras  de 
séculos  posteriores,  alusivas  ao  próprio  brasão. 

D'este  existem  hoje  vários  exemplares,  de  pedra:  um,  que  está 
no  claustro  da  Sé  eborense;  outro,  que  está  no  subterrâneo  de  uma 
casa  da  Eua  do  Eaimundo,  n."  4;  outro,  que  esteve  em  tempo  na 
frontaria  da  antiga  casa  da  camará,  e  hoje  se  guarda  no  Museu  de 
Cenáculo:  vid  G.  IVreira,  oh.  cit.,  p.  8,  ondo  se  atribuo  ao  primeiro 
como  data  o  sec.  xiii,  ao  segundo  o  xiv,  e  ao  terceiro  proximamente 
os  principies  do  xvi. 

No  brasSo  da  Sé  está  Giraldo  a  cavalo,  vendo-se  no  campo  do 
escudo,  superiormente,  uma  cabeça  de  Mouro,  e  outra  de  Moura. 
Vid.  fig.  2,  extraída,  com  a  devida  vénia,  da  Democracia  do  Svl, 
de  1  de  Janeiro  de  1925,  segundo  um  cliché  do  S."  Inácio  Caldeira. 

No  do  Museu  de  Cenáculo  as  duas  cabeças  sSo  imberbes,  «nSo 
se  conhece  bom  a  masculina  e  a  feminina» :  G.  Pereira,  p.  12. 


Boletim  de  Etnogeafia 


41 


Do  brasão  da  Kua  do  Eaimundo  mandou  o  mesmo  erudito  inves- 
tigador, com  louvável  [jatriotismo,  tirar  nm  molde  de  gesso,  depois 
de  haver  limpo  a  pedra  da  grossa  camada  de  cal  que  a  cobria.  Esto 
molde  guarda-se  hoje  no  Museu  de  Cenáculo,  e  aqui  o  reproduzo 
na  tig.  3,  segundo  um  desenho  do  S.*"'  Mário  dos  Vultos,  que 
o  S."'  Tenente  Pombinho  Júnior  teve  a  bondade  de  me  obter. 
Eis  a  descrição  dada  por  G.  Pereira,  p.  10:  «os  emblemas,  como 
no  escudo  da  Sé,  estão  num  todo  ogival;  o  cavalleiro  armado 
de  espada  erguida,  galopa  á  esquerda. 
A  esculptura  é  grosseira,  ingénua,  mas 
minuciosa.  A  cabeça  da  Moura  á  esquer- 
da, a  do  Mouro  á  direita;  . .  inferior- 
mente, sob  o  cavallo,  outras  duas  cabeças 
mouriscas.  O  escudo  do  cavalleiro  mos- 
tra cinco  objectos  tao  rudemente  feitos, 
que  não  se  percebo  o  que  representam». 
A  data  que,  como  vimos,  G.  Pereira  lho 
atribue,  o  sec.  xiv,  «bem  antes  do  fin- 
dar», doduziu-a  elo  da  forma  do  escudo 
real  que  se  colocou  acima  do  cavaleiro. 

A  Jlnstrarão  Alentejana ^  n."  1,  Maio 
de  1925,  publicou  também  uma  forma  do 
brasão  eborense,  «segundo  o  Litro  de 
nobreza  e  re/pio  de  Porttir/al,  de  Brás 
Pereira  Brandão,  158.3» :  Giraldo  a 
cavalo,  a  mao  direita  erguida,  com 
a  qual  devia  empunhar  uma  espada, 
o  a  es([uerda  no  acto  de  agarrar  pelos 
cabelos  uma  figura  de  Mouro.  O  cavaloií-o  tom  na  cabeça  um 
turbante.  Reprodu/.-se  aqui,  com  a  devida  vénia,  na  fig.  3. 

Depois  do  capitel  de  Amorim,  as  mais  antigas  representações 
que  possuimos  do  Mouros  síío,  que  eu  saiba,  as  três  de  Évora,  pro- 
venientes ainda,  pelo  menos  as  duas  primeiras,  do  periodo  em  que 
eles  cá  estavam,  ou  como  dominadores,  ou  como  Mouros  forros, 
ou  como  escravos,  ou  como  Jíouriscos^  isto  é,  convertidos  ao  Cris- 
tianismo. O  brasão  do  Livro  de  nobreza  6  j;í  bastante  tardio. 

Outros  espécimes  de  representações  de  Aloures,  igualmente  tar- 
dias, os  devemos  á  heráldica.  A  Armaria,  códice  do  sec.  xviii, 
existente  na  nossa  Biblioteca  Nacional,  simboliza  o  brasEo  dos  Bo- 
letos, fls.  118,  num  busto  do  Mouro,  imberlx",  em  posição  de  lançar 
uma  pedra  com  a  mão  direita  (vid.  fig.  -t);  e  a  fls.  240,  simboliza-se 


Fiff.  3 


42 


Boletim  de  Etnografia 


o  brasão  do  Belchior  Vioira,  de  Ternate  (índia),  noutro  Mouro,  de 
cara  barbada  c  bigodada.  Em  ambos  os  casos  estão  de  turbante 
(vid.  fig.  5).  Cópias  ieitas  pelo  S.'"'  F.  Valença,  Desenhador  do 
Museu  Etnológico.  Acerca  d'estes  brasões  vid.  também :  Villasboas, 
Nobiliarehia  Portuguesa,  Lisboa  1676,  pp.  24õ  o  340;  e  Braamcamp 
Freire,  Armaria  Portuguesa,  pp.  83  e  505.  O  Mouro  do  brasão  dos 
Botetos  diz  porém  Villasboas  que  tem  barba  longa,  ao  passo  que 
no  códice  da  Biblioteca  Nacional,  como  vimos,  não  tem  nenhuma. — 
Incidentemente  notarei  ([uo  Boteto  é  apelido  vindo  do  fora;  conheci 
na  Catalunha  um  escritor,  hoje  falecido,  do  nome  Botet. 

Se  nos  dois  ou  três  primeiros  brasões  de  Évora  os  artistas  tive- 
ram em  mente  os  inimigos  de  ao  pé  da  porta,  habitadores  do  próprio 

solo  nacional:  nos  dois  últimos  os 
Mouros  eram  já  de  fora,  por  isso 
que,  depois  de  os  escorraçarmos 
do  Continente,  continuámos  a  per- 
segui-los na 
Africa  e  em  re- 
giões orientais. 
Figuras  de 
Mouros  não  an- 

tigas    as    acha- 

^^«■^  remos    porven- 

tura em  azulejos  e  gravuras  ou  esculturas  alusivas  a  outras  lendas 
pátrias,  como  as  de  que  falei  no  Boletim  da  2."  Classe  da  Aca- 
demia das  Sciencias,  viu,  248-250.  Aí  mencionei  um  painel  da 
igreja  da  Senhora  dos  Mártires  de  Castro  Marim,  datado  de  1572, 
realmente  com  um  Mouro.  Cf.  também  a  minha  obra  De  terra  em 
terra,  u,  10-11. 

A  parte  o  que  acontece  nestas  lendas,  a  imaginação  popular  im- 
pressionou-se  sobretudo  com  os  Mouros  do  Continente.  Para  o  povo, 
tudo  aquilo  que  cheira  a  antigo  ou  parece  extraordinário  data  do 
tempo  dos  Mouros,  isto  é,  do  tempo  em  que  dominaram  o  território 
que  hoje  é  nosso.  Encontra  por  acaso  um  trabalhador,  ao  cavar 
um  campo,  uma  cabeça  de  pedra,  resto  de  escultura  romana  ou  pre- 
-romana,  é  uma  cabeça  de  Mouro:  tenho  ouvido  isto  muitas  vezes. 
Quando  descobri  em  Baião  o  curiosissimo  baixo-relêvo  lusitano-ro- 
mano  que  publiquei  nas  Religiões,  iii,  483,  fui  guiado  por  me  haver 
dito  um  aldeão  que  possuia  á  entrada  de  um  curral  uma  pedra  em 
que  se  via  um  Mouro  e  uma  Moura.  Certos  ornatos  esculturais  da 
frontaria  da  igreja  românica  de  Paderne  são  nialguinhas  dos  Mouros. 


Boletim  be  Etnografia 


43 


As  modestas  estatuetas  pertonceates  a  relógios  do  sol,  publicadas 
neste  Boletim,  n."  1,  p.  24,  já  sabemos  que  o  povo  da  localidade 
as  considerava  retratos  do  Mouros,  o  que  no  pedestal  de  uma  d'elas 
até  se  gravara  uma  palavra  designativa  d'isso. 

J.  L.  deV. 


Desmantela 


O  «mandar  da  manta» 


Ciiama-se  manta  ao  conjunto  de  quatro  cavadores  que  cavam 
ou  desmantelam  em  fila  um  terreno  para  certas  culturas  que  exigem 
cava  funda,  por  exemplo,  vinha.  Perto  da  manta,  no  sentido  em  que 


Flg.  1 


esta  caminha,  vai  o  eslonador  cortando  á  enxada,  a  tona  da  terra, 
na  profundidade  de  um  golpe,  para  enterrar  as  ervas  e  vários 
detritos  superficiais:  assim  se  prepara  e  delimita  o  chão  que  a  manta 
tem  do  cavar. 

Um  dos  quatro  cavadores  da  manta  (fig.  1),  o  da  direita  ou  o  da 
esquerda,  conforme  a  direcção  do  trabalho,  regula  este,  e  dâo-lhe  por 
isso  o  nome  de  mandador:  emquanto  todos  estão  ainda  com  as  en- 
xadas no  ar,  diz  ora  a  meia  voz,  ora  alto,  ora  ás  vezes  até  cantando, 
umas  palavras  (o  mandar  da  manta),  ([uo  servem  para  indicar  a  su- 
cessão o  espécie  dos  golpes  uo  banco,  ou  porção  do  terreno  mais 


44 


Boletim  de  Etnogeafia 


ou  menos  rectangular,  que  os  quatro  cavadores  abrangem  sem  se 
deslocarem.  Estas  palavras  têm  ritmo  algo  gracioso,  o  que  anima 
o  trabalho,  como  as  que  no  presente  Boletim,  n."  3,  pp.  21  sgs., 
se  publicaram  a  respeito  do  tirar  do  vinho. 

Podem  trabalhar  muitas  mantas  ao  mesmo  tempo,  mas  a  certa 
distancia  umas  das  outras,  por  causa  do  trabalho  que  os  estonadores 
do  antemão  executam. 

Quando,  por  exemplo,  para  semear  batatas,  a  desmantela  se  faz 
a  pouca  profundidade,  muito  embora  com  as  regras  que  ficam  es- 
pecificadas, recebe  o  nome  do  mantinha,  continuando  cada  grupo 
de  quatro  trabalhadores  a  denominar-so  manta  como  acima.  Temos 
pois  manta,  grupo  de  trabalhadores,  e  ao  mesmo  tempo  designação 
de  acç3.o,  e  mantinha,  apenas  designação  de  acção:  cavar  á  manta, 
cavar  á  mantinha;  manta,  falando  dos  homens,  nSo  porém  mantinha, 
neste  sentido. 

Eis  agora  as  palavras  do  mandador,  ou  «mandar  da  manta». 
Representemos  o  banco  pelo  seguinte  esquema: 


b 
a 


três  tiras,  sendo  A  e  B  iguais  e  quasi  iguais  e  C  maior. 

1.'  versão 

a)  Começo:  quando  os  trabalhadores  estão  para /errar  no  chão 
a  primeira  vez  as  enxadas,  diz  o  mandador: 

Vamos  com  Deus, 

E  cada  um  conto  co'os  seus!' 

Anda,  rapaz, 

Outra*  no  fundo,  e  uma  para  trás! 


*  Querem  dizer:  com  as  suas  forças;  seus  ò  provocado  por  Deuf. 
Isto  é:  C0771  o  que  é  seu,  quanto  á  força  física. 
^  Scilicet:  cavadela. 


Boletim  de  Etnografia  45 


b)  No  meio  do  banco: 


Alto,  e  dobra 

Que  é  terra  nova*. 

Uma  para  o  fundo  o  duas  para  trá 

Cada  qual  como  do  que  traz*. 

Variante: 
Cada  qual  come  do  seu  cabaz. 


c)  No  ultimo  golpe  do  banco: 

Venha,  o  risco  ^, 
Que  é  um  corisco». 


Outra  como  esta, 
E  lava-lhe  a  testa  ^. 


2.'  versão 


a)  Volta  e  vira'' 

Stá  o  dono  á  mira! 


b)  Dobra  o  passo,  e  venha  o  meio', 
Borrachinho*  do  seio'! 


Torna  as  mJos  a  apertar. 
Que  é  para  afundar. 

c)  Venha  a  risca. 
Fura,  fadista! 


*  Isto  é,  outra  parcela  do  terra  que  nâo  cortar. 

*  Porque  andam  a  seco,  o  necessitam  pois  do  trazer  de  casa 
a  comida. 

^  O  risco  marca  a  largura  do  banco. 

*  Para  rimar,  o  também  para  imitar  a  força  do  corisco. 
^  Isto  é,  lava  o  deixa  lisa  a  rampa  do  banco. 

*  Voltar  e  virar  a  terra. 

'  Venha  o  meio  do  banco. 

**•  Nao  explicaram  bem.  Será  «bebedinho  de  dentro:  do  moio 
dos  quatro,  que  está  entre  os  outros  dois».  Ouvi  esta  expressão  várias 
vezes. 


46  Boletim  de  Etnografia 


Torna  a  fundar 
Que  é  para  lavar  *. 

Abica^ 

Que  até  a  pele  da  barriga  estica. 

3.*  versão 

a)  Venha  gente 

Sardinha  assada,  café  quente! 

b)  Corta  ao  meio, 
Borrachinho  do  soio^! 

c)  Vamos  á  risca, 
Que  ò  fadista! 

Torna  a  puxar  para  trás 
Puxa  e  manda  rapaz! 

Agora,  carrega  e  manda, 
Maltês  da  Alhandra! 


4."  versão 

a)  Venha! 

Dá-le  do  cabaço 
Ferra  abaxo! 

Dobra  o  passo 
Venha  o  pedaço. 


h)  Corte  que  é  moio. 

c)  Altas  engaleadas 

Na  marca''  bem  mandadas 
risca. 


'  Limpar. 

2  Para  aprumar  mais  o  golpe. 
^  Ouvi  a  vários.  Inexplicado. 
*  Marca,  isto  é,  «risca». 


Boletim  de  Etnografia  47 


Expressões  que  ouvi  avulsas 

Venha  geute! 

Sardinha  assada,  café  quente! 

Mete  p'ra  frente! 

Abaxo!  que  é  o  vinho  do  Cartaxo! 

A  risca,  1|  que  é  fadista! 

Vamos  a  puxar,  que  c  galinlia 
temos  que  a  gramar! 

Puxa  e  vira,  bogalhão', 
Paxá  a  leiva,  deixa  o  torrão! 

Puxa,  camarada, 
Senfio  nao  ganhas  nada! 

Mete  e  puxa, 

Senão  nao  ganhamos  para  a  l)uclu'i. 

E  tornemos  a  puxar 

Que  é  para  outro  banco  irmos  cavar. 

Puxa,  por  rente, 

O  fraco  ajuda  o  valente. 

Para  a  frente, 
Brinca  a  gente! 

Carrega  abaxo, 

Como  a  manta  do  Cartaxo. 


Posto  que  os  trabalhadores  andem  a  seco,  isto  é,  comam  á  sua 
custa,  e  nao  á  do  dono  da  fazenda,  este  dá-llies  agua-pé  para  bebe- 
rem durante  o  trabalho.  Bebem  geralmente  por  um  copo  de  corno 
(fig.  2)  ou  direito,  ou  encurvado,  como  o  que  se  representa  na  fig.  3 
(comp.:  0,105:  diâmetros  na  boca:  0,068  x  0,0.37;  fundo  ó  quasi 


Bogalhão  de  terra. 


48 


Boletim  de  Etnografia 


sempre  de  cortiça).  Ha-os  de  outros  tamanhos.  O  copo,  por  causa 
da  sua  solidez,  pois  tem  de  andar  de  mão  em  mão,  quando  cheio, 
e  ás  vezes  quando  vazio,  de  envolta  com  talheres,  pâo,  etc,  em 

cestos,  emprega-se  não  só  neste  tra- 
balho, mas  em  todos  os  rurais,  e  até 


Fig.3 


Fig.2 


serve  para  estar  na  adega,  ao  pó  do  tonel,  onde  os  visitantes 
bebem  de  quando  em  quando, — costume  muito  corrente  nestas  terras 
do  vinho. 


Maltês  é  o  trabalhador  que  vem  de  fora  da  terra,  ou  que,  habi- 
tando aqui,  vive  sozinho,  sondo  ele  próprio  quem  trata  da  sua  casa 
o  comida.  Quando  vêm  muitos  de  fora  dormem  todos  numa  mesma 
casa  que  se  chama  quartel^.  Cada  um  faz  então  a  sua  comida,  mas 
ás  vezes  alguns  rounem-se  em  sociedade,  para  a  fazerem  em  comum. 

Malta  é  o  conjunto  de  trabalhadores  rurais,  sejam  malteses  ou 
nâo.  Por  extensão  de  sentido  chama-se  malta  a  um  adjunto  do  quais- 
quer pessoas,  e  sobretudo  chama  uma  mai  assim  aos  filhos  quando 
são  muitos:  «a  minha  malta». 


'  Em  Lisboa:  casa  de  malta,  mas  com  maior  aplicação. 


Boletim  de  Etnogeafia 


49 


Tudo  o  que  fica  dito  refere-se  ao  Peral,  concelho  do  Cadaval. 
Quanto  a  considerações  gerais,  reporto-me  ao  que  fica  dito  no  Bole- 
tim, ibidem.  As  figs.  1  e  2  assentam  em  fotografias  de  meu  primo 
e  afilhado  António  Leite  Pereira  de  Melo. 

J.  L.  deV. 


tonio  Gomes  da  freç/.'  do  Sal- 
vador   de   Padreiro,   He   Em 
algum   dia   o  perder   o   Snr. 
que  lho  achar,  terá  a 
honra  de  lho  In- 
tregar,  que  Elle 
o  seu  tra  va- 
lho lhe 
ha  de 
pagar 


«Ex-libris»  manuscrito 

Dos  130  ex-Uhris  manuscritos  de  caracter  popular,  que  consti- 
tuem o  opúsculo  que  em  1918  publiquei'  sobre  esta  matéria  etno- 
gráfica, aí  tratada  pela  primeira  vez       ^^jg  i^i^,.^,  ^^  ^^  ^^^^^  ^„. 
entre  nós,  no  conjunto,  e  com  algum 
desenvolvimento,  nenhum  tem  carac- 
ter artístico:  o  seu  caracter  é  apenas 
literário,  e  frequentemente  poético. 

Ha  tempos,  já  depois  de  publicado 
o  opúsculo,  obtive  porém  um  ex-libris, 
onde  ha  um  pouco  de  arte:  vid.  a  fi- 
gura adjunta.  Consta  de  uma  parte, 
toda  literária,  que  aqui  se  reproduz 
tipograficamente,  e  de  um  coração  es- 
tilizado, que  encerra  a  assinatura  do 
dono  do  livro,  e  a  data  em  que  aí  foi 
posta  (esta  parto  artística  vai  reprodu- 
zida em  tamanho  natural,  por  zinco- 
grafia).  O  livro  intitula-se:  Tratado 
ceremonial  pelo  P.°  Manoel  Corrêa, 
Coimbra  1733. 

O  coração  é  tema  tão  corrente  na 
nossa  arte  popular,  que  não  admira 
que  pudesse  servir  para  compor  um 
ex-libris.  Acerca  dVste  tema  vid.:  De 
terra  em  terra,  u  (1927),  142-144.  No  Alentejo  ató  tenho  encontrado, 
em  habitações  de  gente  camponesa,  tampas  de  cortiça  cordiformes, 
postas  em  vasilhas  destinadas  a  agua  ou  a  outros  líquidos ! 

J.  L.  DE  V. 


1  Separata  da  Revista  Lusitana,  vol.  xxi. 


50  Boletim  de  Etnogeaeia 


Amuleto  de  coral 

O  coral  pôde  usar-se  como  amuleto,  ou  informemente  (ramo,  ou 
pedaço),  ou  sob  forma  de  conta,  ou  de  figa.  Em  vez  de  coral  pro- 
priamente dito  emprega-se  ás  A-ozes  também  uma  substancia  vermelha 
que  o  imita:  cf.  o  meu  livro  A  figa,  Porto  1925,  p.  100.  O  modo 
mais  vulgar  de  o  usar  é  sob  forma  de  conta,  ou  para  melhor  dizer, 
de  colar  de  contas. 

O  povo  entende  que  o  coral  anuncia  melancolia  ou  prazer  na 
pessoa  que  o  traz,  conformo  está  baço  ou  límpido:  vid.  as  minhas 
Trad.  pop.  de  Portugal,  §  259.  Por  outro  lado  pensa,  como  ouvi 
contar  em  Vila  do  Conde,  que  vale  o  mesmo  que  o  azeviche,  contra 
Bruxas  e  mau  olhado,  e  que  uma  conta,  sob  a  influencia  d'este,  estala 
como  a  de  azeviche.  Analogamente  cuida  que  um  colar  de  contas, 
tiradas  de  um  mesmo  polipeiro,  e  posto  no  pescoço,  «tira  a  icterí- 
cia» :  superstição  de  que  colhi  notícia  algures. 

1.   usos  PORTUGUESES  DO  CORAL,  AKTIGOS: 

No  Museu  do  Bispo  (Coimbra)  ha  uma  figura  da  Virgem  que 
amamenta  o  Menino  Jesus,  e  tem  ao  pescoço  um  raminho  de  coral. 
O  S."  António  Gonçalves,  Director  do  Museu,  atribue-a  ao  sec.  xiv. 

No  mesmo  Museu  guarda-se  igualmente  um  ramo  de  coral,  com 
ornamentação,  e  tem  em  cima  um  relicário  com  o  santo  lenho. 
Dizem-no  também  do  sec.  xiv  (dádiva  de  Santa  Isabel  ao  mos- 
teiro de  Santa  Clara),  mas  o  brasão  das  armas  reais,  que  nele  se 
vê,  mais  parece  do  século  seguinte. 

São  estes  os  apontamentos  mais  antigos  que  possuo  do  uso  su- 
persticioso do  coral  entre  nós. 

Num  Ululo  de  1510,  das  cousas  de  prata  da  ermida  de  Nossa 
Senhora  da  Troya  (defronte  de  Setúbal)  no  sec.  xvi,  conta-se  «huu 
corall  encastoado  ê  prata»:  vid.  P.  de  Azevedo  in  O  Arch.  Port., 
III,  262. 

Uns  versos  A' O  Lyma,  de  Diogo  Bernardes,  sejam  d'esto  ou 
não,  dizem: 

. .  .  hum  crespo  galho 
de  vermelho  coral, 

isto  ó,  um  ramo:  vid.  p.  63  da  ed.  de  1820  (a  1."  é  de  1596). 


Boletim  de  Etnografia  51 


Fr.  Manuel  de  Azevedo  (sec.  xvii),  na  Correçam  de  abusos, 
t.  II,  1705,  pp.  88-89,  preconiza  o  coral  contra  o  quebranto,  para 
o  que  se  apoia  na  opinião  de  vários  AA.  antigos,  Galeno,  Avi- 
ceno,  etc. 

Também  em  Bluteau,  Vocabulário,  t.  i,  1712,  p.  542,  so  16: 
«dizem  que  (o  coral)  trazido  por  homem  he  mais  vermelho,  do  qoe 
trazido  por  fêmea,  e  accrescontao  que  muda  de  côr 
quando  a  pessoa  que  o  traz  adoece,  significando  com 
a  sua  pallidoz  a  enfermidade», —  com  o  que  um  pouco 
se  conforma  a  tradiçUo  actual. 

Outros  antigos  médicos  portugueses,  além  de 
Fr.  Manuel  de  Azevedo,  já  citado,  conheceram  ou 
inculcaram  as  virtudes  do  coral.  Fonseca  Henriques, 
Medicina  Lusitana,  Amsterdão  1731,  diz  que  esto 
livra  de  quebranto  a  quem  o  traz  no  braço  o  no  pes- 
coço, e  que  os  pós,  tomando-os  os  meninos  antes  de 
outra  cousa,  quando  nascem,  os  preservam  de  gota 
coral  (analogia  do  nome!),  pp.  163  o  259,  baseando-se 
em  parto  em  autores  estrangeiros  antigos.  l$ernardo 
Pereira,  Anacephaleosis,  Coimbra  1734,  em  apoio  da  «propriedade 
do  coral»,  transcreve  de  Jlardobeo  Gallo:  «umbras  Daemoniacas 
Thesalaqno  monstra  repelli»  (vid.  p.  214). 

í.  A  SUPERSTIÇÃO  LÁ  FORA: 

Cf.  Religiões,  i,  88,  onde  menciono  um  trabalho  de  Simpson, 
que  a  propósito  de  qualidades  magicas  atribuidas  na  Escócia  ao  coral 
cita  Discorides  e  Plinio.  A  superstição  na  Ilespanha  no  sec.  xvii 
alude  o  Tesoro  de  Covarrubias,  o  no  xviii  o  Diccionario  de  autoridades: 
vid.  Osma,  Azabaches  compostelanos,  Madrid  1916,  p.  25,  e  nota  1. 
No  seu  traballio  sobre  The  evil  et/e,  p.  368,  fala  Ellworthy  de  amu- 
letos antigos  do  coral  que  protegiam  as  crianças,  e  hoje  se  encastoam 
em  prata;  e  cf.  a  nota  598.  Ser-me-hia  fácil  juntar  aqui  outras  re- 
ferências ao  corai  em  obras,  que  possuo,  em  fraiicOs,  alemão,  etc, 
sObre  Etnografia;  mas  que  valeria  isso  em  comparação  com  o  que 
brevemente,  de  certo,  aparecerá  no  Ilandwòrterbuch  d  es  deutschen 
Aberglaubens,  que  se  está  publicando  em  Berlim?  De  mais  a  mais  o 
S."  .John  Palingren,  Docente  da  Universidade  de  Upsala,  escre- 
veu-me  em  1922,  pedindo-me  informações  portuguesas  acerca  do 
coral  para  unia  obra  cm  que  ao  tempo  estava  trabalhando:  aí  virá 
também  muita  cousa  fnao  sei  se  a  obra  já  apareceu  a  lume). 


52  Boletim  de  Etnogeafia 


Na  figura  adjunta  reproduz-se  de  tamanho  natural  um  amuleto 
feito  de  um  pedaço  de  coral,  encastoado  em  prata,  e  provida  de  duas 
argolas,  uma  fixa,  outra  movei,  para  andar  pendurado.  Faz  parte 
da  colecção  que  organizei  no  Museu  Etnológico,  e  obtive-o  no  con- 
celho dos  Arcos  em  1928. 

3.  APÊNDICE: 

Não  só  coleccionei  no  Museu  Etnológico  Português  grande  número 
de  amuletos  nacionais  (cfr.  a  História  do  mesmo,  pp.  233-235), 
senEo  que  possuo,  eu  próprio,  nas  minhas  pastas  etnográficas  apon- 
tamentos descritivos,  literários,  e  comparativos  concernentes  aos 
seguintes  (pelo  menos): 

AGNUS-DEi;  ALHO  (cabeça,  dente);  ambae;  amêndoa;  amuletos 
CONSIDERADOS  EM  GEEAL  OU  NO  CONJUNTO  (arreliqucs  ou  arrelicas, 
diches,  cambolhada) ;  ancoka  ;  anel  ;  andiais  vários  ;  argola  (argo- 
linha) metálica;  armação  de  carneiro  (vid.  corno);  arrelicas, 
ABRELiQUES,  CAMBOLHADA  (vid.  supra);  ARRUDA  (ramo);  azeviche; 
AZOUGUE  (vid.  mercúrio);  batata;  bentinhos;  bicha  (vid.  vibo- 
ra);  bicho  (das  sezões,  dos  dentes,  etc);  boi  (corno  de);  bolota; 

BOLSINHAS  várias;  «BREVE»;  BREVE-DA-MARCA ;  BRIZIO  ;  CABEÇA  (vid. 

alho,  saudador,  vibora);  cabra  (corno  de);  caidjolhada  (vid.  arreli- 
ques) ;  campainha,  chocalhinho  ;  canudo  com  azougue  ;  carneiro 
(armação  de,  corno  de);  carocha  (corno  de);  caroço  (de  tâmara, 
etc);  castanha;  casulo;  cebola;  chave;  chavelho  (vid.  corno); 
chibo  (corno  de);  chocalho  (vid.  campainha);  cobra  d'água  (pedra 
de) ;  conchas  ;  contas  de  várias  substancias  ;  coração  (de  vidro, 
de  latão,  etc);  coral;  corda  de  enforcado;  cordão  umbilical; 
cores;  cornacha;  cornacho;  cornêcho;  cornicha;  cornicho  de 
carneiro  branco;  cornipo;  corno  de  veado,  carneiro,  etc.  (vid. 
chavelho);  correia;  cruz;  cravo  (metálico);  crescente  lunar  (vid. 

lua);  DENTE  DE  ALHO;  DENTES  DE  VÁRIOS  ANIMAIS  (lobo,  etC.");  ESCA- 
PULÁRIO; «ESCRITO»;  espelho;  estanca-sangue  (pedra); ferradura; 

FERRO  ;  figa  ;  FITA  ;  FÓRMULAS  MAGICAS  E  RELIGIOSAS  ;  GALO  (osporâo 

de);  garrafa;  grão-besta  (unha  da);  hexalfa  (vid.  moeda  e  sino- 
saimão);  hipocampo;  javali  (dentes  soltos,  ou  dispostos  semi-lnnar- 
mente) ;  lacre  ;  lagartixa  ;  leituaeio  ;  letras  de  virtude  ;  lua 


Boletim  de  Etnografia  53 

(meia-lua);  mÀo  (de  toupeira);  mascote;  medalhas  (veneras,  veróni- 
cas); medida;  meia  lua  (vid.  lua);  mercdrio;  metais  vaeios;  moe- 
das COM  orifício  (vintém  de  Santo  António,  etc);  moeda  com 
hI':xalfa;  nó;  nómina;  noz  de  três  esquinas;  orações;  osso; 
ouriço  (queixo  de);  palavras  de  virtude;  pedras  várias  (de  ara, 
de  raio,  etc);  pentalfa  (vid.  sino-saimao) ;  ponta  (vid.  corno); 

«PORTE-BOXIIEUE»;    PREGO    METAUCO ;    QUKIXO    DE    OURIÇO    (já    S.    V. 

ouriço);  rabada  (vid.  vassoura);  rabo  dk  jíoi;  ramos  (raminhos) 
DE  vegetais;  rosário;  sal;  santos  (imagens  de);  sapo  espetado 
NUM  PAU  (no  campo);  sapo  (pedra  de);  saquinho  (lat.  saccuhis); 
sator-arepo  (medalha  com  esta  fórmula);  saudador  (cabeços  de), 

isto    É,    CAliEÇA    DE    CRISTO   TRAZIDA   POR    SAUDADOR;    SINO-SAIMAO ; 

talisman  ;  TERRA  DE  SEPULTURA ;  TESOURA ;  TOUPEIRA  (mão  dej ; 
TREVO  DE  QiTATRo  FOLHAS;  UNHAS  (de  varios  animais);  vassoura 
OU  babada;  VEADO  (corno  de);  vegetais  vários;  venera  (medalha 
religiosa);  verónica  (medalhinha);  vestks  sacerdotais  (fragmen- 
tos); vinoK  V  (cabeça  de). 

A  respeito  de  Sator-arepo,  do  sino-saimão,  c  da  figa  dei  já  a 
lume  um  folheto  e  dois  livrlnhos  especiais,  em  1918  e  1925.  A  respeito 
da  meia-lua  estou  preparando,  como  alguns  amigos  sabem,  trabalho 
análogo,  que  entregarei  ao  prelo  assim  que  possa.  O  estudo  geral  dos 
amuletos,  bem  como  o  estudo  parcial  dos  (|ue  nSo  estiverem  ainda 
estudados  por  mim,  conto  fazê-los  na  Etnofjmfia  Portuguena,  res- 
pectivamente no  livro  iii,  pt.  iii  (vida  psíquica),  o  no  volume  consa- 
grado ás  Superstições. 

J.  L.  ukV. 


Estampas  etnográficas 

A  grande  quantidade  de  materiais  que  tenho  colhido  em  todos 
os  campos  dos  meus  estudos  obi-iga-me  não  raro  a  usar  de  muita 
concisio,  quando  tenho  de  escrever  a  respeito  d'eles,  e  me  falta 
tempo  para  desenvolvimentos.  Isso  acontece  agora  com  os  que  cons- 
tituem o  assunto  do  presente  artigo,  c  ha-de  continuar  a  acontecer 
em  números  subsequentes  do  Boletim,  e  porventura  noutros  traba- 
lhos qae  publicar.  Vale  mais  porém  ser  conciso,  do  que  deixar  os 
materiais  era  es(jueciniento. 


54 


Boletim  de  Etnografia 


Fig.  1 


Fig.  IO 


Fig.  2 


Fig.  1 


-4 


Fig.  a 


Fig.  G 


FIff.  5 


Fig.  8 


Fig.  ;j 


Boletim  de  Etnografia  55 


As  figuras  que  so  vêem  nas  estampas  juntas  representam  os 
seguintes  objectos  pertencentes  ao  Museu  Etnológico,  de  Belém, 
para  onde  os  adquiri : 

1  —  Barrete  açorico,  espécime  de  trabalho  feminino:  barrete 
de  algodão,  de  cOres  várias,  muito  em  uso  no  Arquipélago,  na  gente 
do  povo,  geralmente  em  rapazes.  Fig.  1. 

2—  Modelo  de  aneiíilio  ou  engaço  barrosão;  consta  de  três 
partes : 

1,  cabo; 

2,  travesseiro,  por  ser  posto  de  través   (transvcrsarius), 

relativamente  ao  cabo,  e  nRo  porque  os  que  assim  o  de- 
nominaram pensassem  no  «travesseiro  da  cama»,  embora 
esta  palavra  tivesse  a  mesma  origem ; 

3,  aentes,  inseridos  no  travesseiro.  —  Fig.  2. 

3 — Banco  de  cozinha,  feito  de  um  tronco  de  arvore,  inteiriço. 
Comprimento:  O"" ,91.  De  caracter  muito  tosco  e  primitivo.  Fig.  3. 
Em  aso  no  Sul,  onde  se  ciiama  cavalo  (Alentejo  Central)  e  burro 
(Alentejo  Baixo,  e  Alcácer  do  Sal).  A  forma  do  objecto  lembra  a 
posiçfto  de  nm  homem  estendido  no  chão,  sobre  as  pernas  e  os  bra- 
ço», de  abdómen  para  o  ar.  Várias  vezes,  quando  ou  era  moço,  vi 
na  Beira  Alta,  como  parte  de  espectáculo  dado  nas  ruas  por  come- 
diantes, um  homem  assim  deitado,  com  uma  grande  pedra  (granito) 
sobre  o  peito  o  abdómen,  na  qual  outro  batia  com  um  malho.  A  po- 
bre vítima  chegava  a  deitar  sangue  pela  bôca,  e  nâo  raro  tinha  de 
intervir  a  autoridade  local  para  proibir  a  scena. 

4  —  Pingadeira  de  barro,  para  onde  escorre  o  jnnfjue  da  carne  do 
porco,  ao  lume.  Comprimento:  0"',286.  Fig.  4.  Obtive-a  no  Alentejo. 

õ  —  Esfolhador  tie  madeira,  que  serve  para  rasgar  o  folbelfio  das 
espigas  do  milho,  quando  so  vâo  malhar.  Fig.  5.  Foi-me  oferecido 
pelo  Rev.''"  Silva  Maia,  Abade  de  Canidelo  (Vila  do  Conde). 

G — Garrafa  do  barro  vidrado  de  amarelo,  feita  numa 
fábrica  de  Vil  a -Viçosa.  Altura:  0'",34;  n."  de  entrada:  1:815.  Fig.  0. 
Obtive-a  numa  casa  particular  do  Alentejo. 

7  —  Bicado,  vasilha  de  barro  vidrado.  Altura:  (r,116.  Leva  moio 
litro,  e  usa-se  nas  tabernas.  Fig.  7.  Obtive-o  também  no  Alentejo. 


5G 


Boletim  de  Etnografia 


Fig.  12 


Fig.  12-A 


Fig.  13 


Boletim  de  Etnogeafia  57 

8  —  Outro  esfolhador,  como  o  do  n.°  5,  mas  de  osso.  Usado  em 
Baião  (S.  Tomé  de  Covelas)  para  esfoJhar  o  milho.  Comprimento : 
O"', 147.  O  objecto  aqui  representado  tem  uma  concavidade  na  parte 
oposta  á  ponta,  e  nela  se  encaixa  uma  espécie  de  cunha  de  madeira, 
também  aqui  figurada.  Fig.  8.  No  catalogo  etnográfico  do  Museu 
tem  o  n."  311. 

9 — Cabrita  de  madeira,  usada  em  Baião.  Serve  para  andar 
pendurada  á  cinta,  e  o  trabalhador  trazer  nela  a  foice;  a  lamina 
d'esta  segura-so  no  encaixe,  ficando  o  cabo  a  geito  do  se  lhe  poder 
pegar  com  facilidade.  Altura  do  objecto :  0'",079.  Fig.  9. 

Tem  no  catalogo  etnográfico  do  Museu  o  n."  300. 

Cf.  Ilist.  do  Museu  Etnológico,  p.  405,  fig.  155. 

Comparável  a  este  objecto,  é  o  que  se  representa  na  fig.  10, 
usado  no  Alentejo,  o  aí  chamado  borsal;  para  machado,  E  de  cortiça, 
e  tom  de  cada  lado  da  estrela  central  uma  letra  que  representa  uma 
inicial  de  nome,  ou  do  artista,  ou  da  pessoa  a  quem  ele  destinou  a  sua 
obra.  Comprimento:  0™,15.  N."  de  catalogação:  80. 

10 — Modelo  de  canga  açorica:  apõo-se  aos  bois  quando  puxam 
o  trilho,  instrumento  da  debulha  dos  cereais  na  eira.  Ilha  Terceira 
ou  de  Jesus  Cristo.  Fig.  11. 

11  — Modelo  de  canga  de  bois,  dos  Arcos  de  Valdevez,  visto  por 
dois  lados.  Figs.  12  o  12-A.  O  que  aí  tomos  mais  notável  é  a  ropro- 
sentação  dupla  do  sino-saimão,  símbolo  magico  muito  querido  do 
nosso  povo,  como  consta  do  meu  livro  intitulado  Signum  Salomonis, 
Lisboa  1918  (separata  d- O  Arch.  Port.,  vol.  xxiii). 

12 — Garfeira  alentejana.  O  Alentejo,  quanto  ao  caracter  dos 
objectos  caseiros  de  que  faz  uso,  toca  os  extremos:  ora  estos  sao 
toscos,  simples,  como  o  banco  que  se  representou  na  fig.  3,  o  como 
muitos  outros,  de  cortiça,  cabaça,  etc,  que  neste  Boletim  temos 
visto;  ora  podem  chamar-se  belos  produtos  de  arte  popular,  como 
o  que  se  representa  na  fig.  13:  espécie  de  descanso,  do  madeira, 
suspenso  da  parede  da  cozinha,  e  em  que  se  penduram  os  garfos 
do  ferro:  chama-se  garfeira,  e  tem  de  comprimento  0"',38.  O  uso 
do  objecto  vai  em  decadência,  porque  a  civilização  faz  que  os 
garfos  de  ferro  singelos,  como  os  de  que  se  aqui  fala,  estejam 
sendo  substituídos  por  outros  mais  apurados. 

J.  L.  DE  V. 

5 


58  Boletim  de  Etnografia 


OBSERVAÇÃO    FINAL 

A  figura  emblemática  do  frontispício,  bem  como  todos  os  outros 
desenhos  que  serviram  de  base  ás  gravuras  cuja  procedência  não 
se  declara  nos  respectivos  artigos,  e  que  são  a  maior  parte,  devem- 
se  a   Francisco  Valença,   Desenhador  do  Museu  Etnológico. 


índice 


A  Antropolofria  portuguesa  como  fonto  de  invostig:ação  etnofírifica   ...  5 

Objectos  feitos  de  cabaço  e  cabaça 19 

Etnografia  colonial: 

I.— A)  África  Ocidental 21 

B)  África  Oriental 27 

II.  —  Objecto  do  madeira  usado  pelos  Macoiides,  que  habitam  o  Norte 

(Nyassa),  na  província  do  Moçambique 30 

Etnografia  do  Cadaval 31 

Mouros  e  Judeus  na  arte  portuguesa:  I. — Mouros 39 

Desmantela 43 

«Ex-libris»  manuscrito 49 

Amuleto  de  coral 50 

Estampas  etnográficas 53 

Observação  final 58 


BOLETIM 


DE 


ETNOGRAFIA 


RUBLICAÇAO 

DO 

MUSEU  ETNOLÓGICO  DO  D.""  LEITE  DE  VASCONCELIOS 


LISBOA  IMPRENSA   NACIONAL  M  CM  XXXVII 


ÇObETI/W 


DE 


ETNOGRAFIA 


BOLETIM 


DE 


ETNOGRAFIA 


RU  BL.I CAÇÃO 


DO 


MUSEU  ETNOLÓGICO  DO  D."''  LEITE  DE  VASCONCELLOS 


I3iR.ic3-ir> A.    FOR  —  J.    Ij-    de  "V- 


3Sr.°  5 


LISBOA  IMPRENSA   NACIONAL  M  CM  XXXVIi 


Fontes  de  investigação  etnográfica' 


1.  Generalidades 


Iara  so  escrever  um  tratado  de  Etnografia  portuguesa  im- 
porta, primeiro  que  tudo,  submeter  à  observação  directa  o 
imediata  a  terra,  o  o  povo  (isto  é,  o  conjunto  dos  Portugue- 
ses, o  nao  só  o  vulgo,  embora  o  vulgo  constitua  o  principal  objecto 
da  Etnografia);  depois  as  cousas  e  actos  do  mesmo;  investigar  tudo 
aquilo  em  que  se  exterioriza  tipicamente  o  seu  modo  de  pensar,  sen- 
tir e  querer;  e  ao  mesmo  tempo  fazer  farta  colheita  na  messe  da  tra- 
dição oral. 

Se  o  tratado  abranger,  como  no  nosso  caso,  já  o  presente,  já  o 
passado,  tem  também  do  se  consultar  a  literatura  antiga,  e  documen- 
tos e  monumentos  arqueológicos  ou  arqueologico-artisticos. 

Como  porém,  de  um  lado,  possuímos  obras  importantes,  no  que 
toca  ás  scioncias  auxiliares  da  ICtnografia,  e  já  ha  séculos  se  coligem 
entre  nós  tradições  populares  (nâo  se  alcunhará  de  pobre  a  nossa 
literatura  folkioristica),  e  se  publicam  a  cada  passo  descrições,  de- 
senhos, fotografias  de  objectos,  de  tipos  populares,  do  monumentos^ 
ou  estes  se  reproduzem  plasticamente;  e  do  outro  existem  museus 
de  Etnografia,  Arqueologia,  etc,  o  de  vez  em  quando  se  organizam 


'  Este  artigo  ó  extraído  da  Etnografia  Portuguesa  (jue  o  autor 
d'ele  está  compondo  para  o  prelo. 


Boletim  de  Etnogeafia 


exposições  industriais,  artisticas,  agrarias,  ondo  algo  aparece  que 
convom  ao  otnografo:  está  claro  que  ele  nao  deve  deixar  de  beber 
em  tais  foates. 

Rigorosamente  falando,  quasi  nâo  ha  manifestação  colectiva,  obra 
sciontifica,  literária  ou  artística,  produto  algum,  omfim,  da  vida,  psi- 
cologia, e  civilização  do  um  povo,  que  directa  ou  indirectamente, 
e  mais  ou  menos,  nâo  apresente  ao  estudioso  da  Etnografia  uma 
faceta  digna  de  contemplação.  Muitas  vezes  acontece  que  uma  cousa 
ou  um  fenómeno  etnográfico  so  transforma  por  seu  turno  em  fonte 
do  Etnografia  relativamente  a  outras  cousas  ou  fenómenos.  Um  tu- 
mulo medieval,  que  ó  em  certo  sentido  objecto  etnográfico,  pôde, 
quando  nele  se  representa  esculturalmente  uma  scena  venatoria, 
contribuir  para  o  estudo  da  caça:  cf.  De  terra  em  terra,  ii,  1G2-163. 
Uma  feira,  que  é  fenómeno  economico-social,  mas  que  ostenta,  pela 
qualidade  e  disposiçílo  das  suas  partes  componentes,  o  por  outras 
razões,  grande  cunho  etnográfico,  está  no  mesmo  caso  que  uma  ex- 
posição como  as  de  que  acima  se  falou:  cf.  o  que  de  uma  feira  de 
Vila  do  Conde  se  diz  na  citada  obra,  i,  37-38,  o  o  que  de  uma 
de  Évora  se  diz  nos  EE,  iv,  315  sgs.  De  uma  feira  de  Vila  Real 
de  Trás-os-Montes,  chamada  dos  piicarinhos,  fala  o  D."'  Cláudio 
Basto  na  Lusa,  iv,  118-121.  Espécies  de  museus  de  Etnografia  são 
cortas  ruas  de  vilas  e  cidades:  a  respeito  de  uma  do  Chaves  assim, 
vid.  também  De  terra  em  terra,  i,  67-70. 

Na  impossibilidade  de  atender  aqui  a  tao  extensa  matéria  (muita 
cousa  se  enumerará  no  decurso  da  presente  obra),  e  restringindo-se 
apenas  a  certos  pontos  essenciais,  considerará  o  autor  as  seguintes 
espécies  de  fontes:  observação  directa  da  terra  e  do  povo,  e  do 
viver  d'este;  museus  e  exposições;  fontes  escritas  (literatura  geral, 
o  literatura  especial  ou  etnográfica  propriamente  dita). 

Com  a  literatura  desejaria  cie  emparelhar,  se  isso  se  lhe  tornasse 
fácil,  menção  de  obras  de  arte,  pois  raro  será  o  artista,  antigo  ou 
moderno,  que  nilo  dirigisse  ou  não  dirija,  ao  menos  por  incidente, 
uma  faisca  do  seu  talento  a  um  tema  etnográfico:  a  uma  torre  len- 
dária, a  uma  igreja  cercada  da  devoção  popular,  a  um  mercado, 
a  uma  cerimonia  tradicional,  a  uma  lavoura,  a  um  recinto  de  uma 
aldeia,  a  uma  oficina  rústica.  Só  pelo  que  toca  a  azulejos  dos  sé- 
culos XVII  e  XVIII,  que  manancial  de  informações  acerca  dos  nossos 
avós!  Já  do  azulejo  que  tem  data,  já  do  azulejo  em  geral,  diz  um 
grande  conhecedor  da  nossa  industria  artística,  o  S."''  Joaquim  de 
Vasconcellos,  na  liev.  da  Soe.  de  Instmção  do  Porto,  iii,  187-188: 
«..o  azulejo  datado  é   ..  uma  preciosidade,  mormente  quando  os 


Boletim  de  Etnografia 


assumptos  que  ello  representca  se  relacionam  com  a  vida  nacional, 
com  os  factos  da  historia,  com  as  tradições  e  lendas  religiosas,  com 
os  usos  o  costumes  do  nosso  povo,  porque  lia  de  tudo.  Geralmente 
suppõe-so  que  o  azulejo  serviu  apenas  para  illustrar  a  paixão  de 
Christo,  a  vida  da  Virgem,  o  martyrologio  dos  santos.  O  valor  da 
obra  seria,  nestes  casos,  secundário,  porque  não  é  dilicil  provar  que 
esses  assumptos  representam  muitas  vezes  copias  mais  ou  menos 
disfarçadas  de  gravuras  allomas  e  flamengas  do  século  xvi  a  xviii  . . 
As  scenas  da  vida  profana,  as  grandes  caçadas,  as  touradas,  as 
merendas  ao  ar  livre,  os  encontros  galantes,  as  batalhas  de  terra 
e  mar,  a  vida  dos  oíKcios :  tudo  forneceu  elementos  ao  artista 
peninsular».  Podem  ainda  especificar-sc:  jogos,  pescarias,  actos  da 
vida  jurídica,  e  por  outro  lado,  trajos,  móveis,  jardins,  ediflcios'. 
O  mesmo  se  dirá  na,o  só  do  vinhetas,  iluminuras,  desenhos  vários  que 
oxornam  antigos  livros  e  pergaminhos^,  scnSo  também  das  produ- 
ções dos  barristas:  imagens  o  «bonecos»  de  Estremoz^,  o  de  outras 
procedências*;  o  presépio,  «poético  grupo  do  barro  da  Natividade, 
o  alpendre  tosco  forrado  de  palha,  o  Menino  Deus  sorrindo  no  feno 
da  mangedoira,  o  as  figuras  clássicas  dos  pastores  e  das  alimárias 
compassivas»^.  A  propósito  d'isto  escreveu  já  o  S.'"'  Joaquim  do 
Vasconcellos  em  1883:  «Em  Portugal  foram  celebres  os  presépios 
de  figuras  de  barro.  Cada  convento  de  freiras  tiniia  o  seu;  era 
assunto  indispensável  para  as  senhoras  devotas.  Hoje  ó  raro  en- 
contrar algumas  poucas  figuras  dispersas,  —  o  essas  mutiladas,  geral- 
mente. As  mesmas  mHos  babeis  do  operário  popular,  que  fazem  hoje 
as  figuriniias  do  costumes,  executaram  as  dos  presépios,  ingénuas 
na  sua  expressílo,  mas  mal  modeladas,  em  geral»". 

Artistas  propriamente  ditos  tomos  tido  em  Portugal  —  sensíveis 
impressionistas —  que  mais  particularmonto  ató  se  inspiraram  na 


*  Cf.  Boletim  de  Etnof/rajia,  n."  2,  pp.  55-07;  n.°  3,  pp.  13-14. 

*  Cf.:  Aiiai.i  dai  Bibliotecas  e  Arquivos,  i,  270  (artigo  de  Júlio 
Dantas);  ii,  284  (artigo  de  Aquilino  Ribeiro);  Boletim  de  Ktnocjrajia, 
n.'  2,  p.  13,  n."  3,  p.  5;  Anais,  \k  cit.,  i,  182  (artigo  de  Júlio  Dantas). 

3  Vid.,  adiante,  Literatura  especial  (Ergografia). 

*  Nas  feiras  vendem-se  com  froqiiencia  figurinhas  do  barro, 
fabricadas  em  vários  locais.  No  ^luscu  Etnológico  lia  muitas.  Vid.  o 
que  d'esta8  figurinhas  se  diz  adianto,  secçlo  li  (trecho  de  um  artigo 
do  S.*""  J.  de  Vasconcellos). 

^  Matos  Sequeira,  Jíelação  de  varias  casos,  Lisboa  1925,  pp.  1-2. 
"  Na  Ilev.  da  Soe.  de  InstruçOo  do  Borto,  iii,  541. 


8  Boletim  de  Etnogkafia 

Etnografia:  omitem-se,  por  brevidade,  brilhantes  nomes  que  o  leitor 
conhece  do  sobra  e  venera.  Mereceria  no  entanto  a  pena  que  um  es- 
pecialista pusesse  ombros  a  resenhar  critico-etnograficamente  os  va- 
liosos subsídios  que  para  o  conhecimento  da  vida  popular  dá  a  arte 
culta:  a  pintura,  a  escultura,  a  gravura,  a  caricatura. 

A  própria  caricatura,  sim!  Falando-se  nela,  evocar-se-ha  por 
força  a  individualidade  do  genial  e  complexo  artista  que  foi  Bordalo 
Pinheiro  (t  1905),  a  leveza  do  seu  lápiz  travesso  e  original  no  fazer 
sobressair  as  feições  cómicas  mais  definidoras  de  uma  personagem, 
e  inteiramente  adequadas  ás  circunstancias  de  certo  momento  social. 

Críticos  e  historiadores  analisem  as  aptidões  artísticas  de  Bor- 
«  dalo,  e  a  função  politica  que  desempenhou  na  nossa  sociedade; 
o  autor  somente  pretende  lembrar  que  também  nos  trabalhos  do 
fecundo  caricaturista  alguma  cousa  se  depara  ao  etnografo.  Bordalo 
criou  a  figura  do  Zé-PovinJio  (fig.  Ij',  crua  sem  dúvida,  e  pouco 
lisonjeira  para  o  vulgacho  e  para  todos;  mas  imaginou-a  com  agudo 
conhecimento  das  fraquezas  do  próximo,  e  dos  hábitos  nacionais. 
Esta  figura,  a  que  deu  varias  formas,  transportou-a  ele  amiúde  do 
papel  para  o  barro,  porque  a  par  de  caricaturista  exerceu  Bordalo 
com  esplendor  paralelo  a  arte  de  cerâmico,  igualmente  plena  de  etno- 
grafia: lavadeira  montada  em  burro,  velha  de  capote  e  lenço,  pes- 
cador, vendedor  de  peixe,  varina  dançante;  artefactos,  por  exemplo, 
canastra,  alcatruz,  rede  do  pescar.  Em  jornais  que  fundou  e  dirigiu, 
O  António  Maria  (1879),  Pontos  nos  ii  (1885),  Parodia  (1900), 
abundam  alusões  a  divertimentos  populares,  superstições,  festas, 
costumes  caseiros,  gestos,  trajos  — tudo  sempre  vivificado  por  inex- 
cedivel  chiste^. 

Passemos  a  especificar  algo  das  fontes  acima  indicadas.  A  estas 
fontes  nao  se  agregam,  como  já  se  disse,  e  pela  razão  declarada, 
as  obras  de  Arte;  mas  haverá  bastas  vezes  ensejo  de  incidentemente 
falar  d'elas  (vid.  Literatura  artistico-industrial,  e  Ergografia)  e  de  no 
corpo  da  obra  aproveitar  muitas. 


•  Figura  extraida  do  António  Maria,  de  12  de  Janeiro  de  1882: 
O  Zé- Povinho  no  momento  de  falar  satiricamente  com  um  cão.  Este 
tipo  do  Zé-Povinho  é  um  dos  mais  suaves  que  Bordalo  criou. 

2  Acerca  do  nosso  artista  vid.:  Raphael  Bordallo  Pinheiro,  i, 
<cO  caricaturista,  desenhos  escolhidos  por  Gustavo  B.  P.,  com  um 
estudo  de  M.  de  Sousa  Pinto»,  Lisboa  1915.  O  artista  JoSo  Saavedra 
Machado  começou  também  a  publicar  um  trabalho  (ainda  n.lo  ter- 
minado) acerca  do  nosso  caricaturista. 


Boletim  de  Etnografia 


Fig.  1  -  Zé  Povinho 


10  Boletim  de  Etnografia 


2.  Observação  directa  da  terra  e  do  povo, 
e  do  viver  d 'este 

O  estudo  da  superfície  da  terra  é  da  competência  especial  do 
geógrafo;  a  do  homem,  sobretudo  como  ser  físico,  é  da  competência 
especial  do  antropólogo.  O  etnografo  recebe  de  ambos,  e  bem  assim 
de  outros  especialistas,  relacionados  do  perto  ou  de  longe  com  estes, 
as  noções  que  mais  lhe  importam,  e  que  completam  as  que  por  si 
mesmo  naturalmente  colhe:  na  secção  das  fontes  literárias  se  enu- 
merarão algumas  obras  a  tal  respeito.  Só  o  trabalho  de  observação 
dos  elementos  tradicionais,  que  fazem  parto  do  viver  do  povo,  per- 
tence ao  etnografo  como  próprio  d'ele.  —  Aqui  tem-so  em  mente 
apenas  a  observação  directa  ou  imediata. 

Observar  é  sempre,  sem  dúvida,  o  melhor  método  («. .  mais  so 
aprende  observando  que  lendo  . . »,  diz  o  Peregrino  da  America,  i,  8), 
porque,  o  que  aparece  espontâneo  possuo  caracter  mais  genuino. 
Queremos  coniiecer  um  sorEo,  uma  romaria,  um  halharico,  uma 
esfolhada,  —  vamos  assistir!  Queremos  saber  como  funciona  um 
moinho,  qual  o  interior  de  uma  habitação, — entremos!  quais  as  peças 
de  um  carro  de  bois,  os  aprestos  de  um  oleiro,  o  vestuário  de  um 
serrano,  —  examinemo-los!  qual  o  perfeito  teor  de  uma  canção,  de 
uma  xácara,  das  fórmulas  de  um  jogo  infantil, — escutemos,  e  num 
caso  ou  outro  sem  que  ninguém  suspeite  que  estamos  a  escutar! 
Contudo,  nem  sempre  so  apresenta  aos  olhos  o  aos  ouvidos  do 
etnografo  o  que  ole  deseja  sabor.  Para  remediar  a  falta  utilizará 
fotografías  e  desenhos  exactos,  consultará  pessoas  fidedignas,  ou  in- 
terrogará ele  mesmo  o  povo.  No  lidar  com  o  povo,  no  perguntá-lo 
para  o  observar  etnograficamente,  use  de  muita  precaução,  pois 
de  contrário  sujeita-se  a  ser  informado  de  modo  incompleto,  ou  a  ser 
enganado. 

O  povo,  quando  fala  com  estranhos,  supõe  frequentemente  que 
o  iludem,  ou  lho  pretendem  extorquir  assuntos  que  depois  sirvam 
de  galhofa  om  jornais  ou  no  teatro.  Convém  que  o  etnografo,  que 
vai  estudar  uma  localidade  onde  o  desconhecem,  se  acompanhe 
de  pessoa  da  terra  que  o  familiarizo  com  a  gente  de  lá.  Ao  autor 
já  aconteceu  suporem  em  várias  povoações  que  ia  lançar  impostos, 
causar  malefícios,  ou  preparar  campo  para  roubos.  Cf.  De  terra 
em  terra,  i,  55.  So  o  observador  nSo  ó  novo,  empregue  um  eficaz 
argumento,  de  que  quem  escreve  isto  lança  mão  muitas  vezes:  — 
Então  uma  pessoa  da  minha  posição  o  idade,   com  estas  barbas 


Boletim  de  Etnografia  11 

brancas,  esta  cabeça  luzidia,  viaha  agora  escarnecer  de  Vosse- 
mecê? 

Uma  ocasião,  na  Estremadura  Transtagana,  ao  desejar  averi- 
guar de  uma  liorda  de  Ciganos,  quo  encontrou  num  caminho,  so 
usavam  certo  amuleto,  conseguiu  isso  mostrando-lho  um  quo  levava 
pendente  da  cadeia  do  relógio  como  enfeite:  os  Ciganos,  vendo 
o  amuleto,  ficaram  convencidos  que  as  perguntas  que  lhes  eram 
feitas  nilo  tinham  mau  intuito. 

Já  om  1882  nas  Tradições  Populares  de  Portugal,  p.  xv,  se  reco- 
mendou que  para  se  obter  de  uma  pessoa  do  povo,  principalmente 
de  uma  mulher,  uma  narrativa  completa  (oração,  perlenga,  etc.) 
ou  notícia  da  existência  de  um  costume,  de  uma  superstição,  devia 
primeiro  falar-se-lhe  de  cousas  análogas,  e  até  recitar  versos  ou  de- 
finir qualquer  particularidade.  Assim  ha  quasi  a  certeza  de  chegar 
a  resultados  positivos.  Nilo  faça  todavia  o  observador  por  outro 
lado,  em  certas  circunstancias,  ao  seu  interlocutor,  ou  interlocutora, 
perguntas  directas:  siga  linhas  travessai.  O  povo  tende  para  responder 
a  tudo  que  sim  (ob.  cit.,  ibidem).  Quo  pena  que  as  mulheres  mostrem 
tanta  relutância,  como  em  regra  mostram,  para  comunicarem  ao 
etnografo  o  pecúlio  tradicional  quo  guardam  em  si!  Desculpam  se 
amas  com  outras:  —  Fulana  ó  que  sabe,  eu  nao  sei,  ou  já  nJo  sei  nada. 
Com  as  da  cidade  então,  pOsto  que  originarias  do  campo,  ciiega  a 
perder-so  a  paciência.  Respondem  petulantes,  a  cada  passo:  —  Can- 
tigas, só  nas  aldeias! 

Naturalmente  cada  classe  constituo  a  fonte  do  observaçOos  mais 
valiosa  no  ([ue  toca  ás  respectivas  tradições.  Rapazes,  s.lo  quem 
melhor  informa  acerca  do  jogos  usados  por  elos.  Marítimos,  acerca 
da  vida  do  mar.  Raparigas,  acerca  de  canções  e  adivinhas.  Caça- 
dores, pescadores,  pastores,  lavradores,  acôrca  da  caça,  pesca,  etc. 
Artífices,  acôrca  dos  seus  mesteres.  Benzedeiras,  acerca  de  deitar 
cartas  e  de  recitar  ensalmos  e  rezas.  Mulheres  idosas,  acOrca  de 
contos  e  romances.  O  P.°  Bluteau,  ao  compor  o  sou  precioso  Voca- 
bulário, tao  rico  e  tao  atraente,  andou  pelas  «officinis  mechanicas, 
para  colher  os  termos  próprios  das  artes»,  como  declara  no  vol.  i, 
na  dedicatória  ao  Rei.  Já  Cícero  disse  que  as  muliíeres  conservam 
as  tradições  antigas,  —  pensamento  trasladado  para  a  Corte  na  aldeã: 
vid.  EE,  I,  147.  E  I).  Francisco  Manuol  alarga  idêntico  papel  ás 
velhas:  Cartas  de  guia,  p.  122.  Também  Fernão  d'01iveira  consultou 
velhas  para  esclarecer  significados  de  dicçõ(ís  desusadas:  Granunatica 
de  linguagem  portuguesa,  cap.  .3(i;  o  aí  so  lembra  igualmente  do  Cí- 
cero. Anteriormente  ainda  a  Cícero,  observou  Piatilo  no   Cràtilo, 


12 


Boletim  de  Etnografia 


pela  bOca  de  Sócrates,  ao  falar  com  Hermógenes,  que  as  velhas 
mantêm  2)ronúacia  arcaica  do  vocábulos:  Diálogos,  §  74. 

Os  romances  populares  estão  em  grande  decadência:  sao  sobre- 
tudo graves  matronas  quem  ainda  os  conserva,  e  nfto  raro  apenas 
em  fragmentos.  «Muyto  sabe  Ima  velha»,  diz  em  sentido  gorai  o 


Fig.  2— A  tiaMlqueUna 


autor  das  Ribeyras  do  Mondego,  fl.  G5.  Na  Menina  e  moça,  p.  21-22, 
é  uma  velha  quem  conta  historias.  Lê-se  no  cod.  1147,  da  Torre  do 
Tombo,  fl.  106  (informação  de  Pedro  de  Azevedo):  «quando  uirmos 
a  noiva  no  tamho  (ou  tambo:  tálamo),  então  lha  mão  beijarei,  que 
assi  dizem  na  minha  torra  as  uelhas».  Nos  Vilhalpandos,  i,  2, 
p.  175,  fala-so  de  «mezinha  de  velhas».  Referindo-se  a  indivíduos 
que  nao  têm  capacidade  genosiaca,  informa  o  D.""'  Mirandela,  Luz 
da  medicina,  p.  2G8,  que  «alguns  buscão  os  remédios  das  velhas 


Boletim  de  Etnografia  13 

e  feiticeiras».  Foi  também  na  linguagem  das  velhas  que  Curvo 
Semedo,  Polyanthes,  p.  67,  n.°  27,  colheu  certo  vocábulo  anatómico: 
«sotura  coronal,  aonde  as  velhas  chamao  moleiras,  vocábulo  ainda 
existente. 

Vem  a  propósito  notar  que  existem  mulheres  de  prodigiosa 
memoria.  O  autor,  quando  era  estudante,  copiou  da  boca  de  uma 
rapariga  minhota  tantas  canções  e  romances,  que  davam  para  um 
livro  não  pequeno:  ela  estava  num  qaintal  a  lavar  roupa  num 
tanque,  em  Guimarães,  e  ele  ao  lado  a  escrever  num  caderno. 
Não  havia  tema  que  a  moçoila  nâo  esgotasse. — Margarida  Eosa, 
venham  de  lá  cantigas  ao  lenço,  ao  anel,  á  fonte!  E  saía  uma 
torrente.  Depois  encontrou  entre  muitas  mullieres  de  sabença  aná- 
loga duas  que  merecem  especial  reparo,  porque,  sendo  ambas 
idosas,  a  possuiam  ainda  mais  vasta. 

Uma  das  referidas  mulheres,  antiga  criada  do  autor,  costumava 
a  cada  palavra  que  ouvia,  a  cada  acontecimento  que  soava,  res- 
ponder com  um  adagio.  Assim  se  explica  que  Jorge  Ferreira  intro- 
duzisse tantos  na  Eufrosina,  e  na  Olisqyo:  é  que  sabia  muitos  de  c6r! 
Além  de  adágios,  a  mulher  de  que  se  está  tratando  guardava  no 
cérebro  materiais  com  que  se  podia  formar  outro  nâo  menor  livro: 
contos,  superstições  de  toda  a  espécie,  notícia  de  costumes,  nomes 
de  animais  marinhos,  receitas  mágicas. 

A  segunda  mulher,  a  tia  Miquelina,  do  Golaos  (Melgaço),  (retrato 
na  fig.  2)  *,  era  parteira  muito  considerada,  no  concelho,  e  por  longe : 
contava  76  janeiros  quando  o  autor  a  conheceu,  e  recitou-lhe,  em 
três  conversas,  todo  o  dialogo  extenso  de  uma  comedia;  muitos 
trechos  de  uma  narrativa  da  guerra  da  Liberdade  (om  prosa);  versos 
históricos;  cantigas,  orações,  romances  ou  xácaras,  ensalmos,  pro- 
fecias do  D.  Sebastião,  pormenores  da  Revolução  de  1640.  Pessoa 
muito  agradável,  viva,  desembaraçada.  Era  vô-la,  e  ouvi-la,  de  chi- 
nelas, sem  meias,  lenço  caido  da  cabeça  em  volta  do  pescoço, 
chambre  azul,  saia  preta  mosqueada  do  verde  e  branco,  mandil,  sen- 
tada nos  degraus  da  varanda,  a  falar,  a  falar. . . 

Se  quanto  a  folklore  os  velhos  ficam  inferiores  ás  velhas,  nem 
por  isso  sao  leigos  na  matéria.  Lembremo-nos  do  ditado:  muito  sabe 
o  Diabo,  porque  é  velho;  com  frequência  os  nossos  maiores  tinham  na 


*  Este  retrato  foi  amavelmente  tirado  pelo  S.'"'  A.  V.  do  Castro 
Silva,  da  Covilhã,  a  pedido  dollev.''»  Celestino  de  Figueiredo. 
Abade  da  Sé  primacial  de  Braga.  A  ambos  dou  cordiais  agradeci- 
mentos. 


14  Boletim  de  Etnografia 

boca  a  expressão:  como  diz  o  sengo,  ainda  que  as  duas  expressões 
podem  tomar-so  em  sentido  gorai,  e  nao  só  a  respeito  dos  varões. 

E  certo  que  nas  pessoas  de  idade  a  memoria  se  enfraquece;  esta 
lei  fisiológica  tem  porém  ás  vezos  excepções,  sobretudo  quando  o 
exercício  ajuda  a  manter  aquela. 

Conheceu  o  autor  um  velho  em  Baião,  o  moleiro  Elias,  repertório 
inexaurível  de  anedotas  o  sentenças  tradicionais:  não  raras  vezes, 
para  o  ouvir,  lho  foi  bater  á  porta  do  moinho,  que  se  alcandorava 
pobremente  sobre  o  Ribeiro  Largo,  —  e  o  velho  acudia  do  pronto, 
baixinho  e  trôpego,  encostado  a  um  pau,  e  discorria  longamente 
como  um  filosofo  grego! 

Tais  memoiias  permitem  entender  melhor  o  que  Cosar,  De  Bello 
Gallico,  VI,  XIV,  informa  dos  druidas :  quo  aprendiam  de  cór  grande 
número  de  versos,  e  se  demoravam  na  aprendizagem  vinte  anos. 


Com  quanto  por  toda  a  parte  haja  homens,  mulheres  o  gente  moça 
que  o  otnografo  consulte  lucrativamente,  sabe-se,  ainda  assim,  de 
regiões  mais  férteis  de  tradições  do  que  outras,  —  isto  é,  de  feiç.lo 
mais  arcaica,  por  exemplo,  lugarejos  remotos,  solidões  do  inland 
ou  sertão,  montanhas,  costas  marítimas  pouco  frequentadas  do  ba- 
nhistas. Cfr.  EE,  II,  150  sgs.,  acerca  da  Beira,  o  De  terra  em.  terra, 
I,  3-4,  20-21,  65,  otc,  acerca  de  várias  províncias.  Nos  mesmos  EE, 
IV,  349-350,  se  referiu  o  autor  aTrás-os-Montes,  como  província  tí- 
pica a  este  respeito,  por  estar  em  contacto  com  Lião  e  Galiza,  «duas 
regiões  muito  conservadoras  de  costumes  do  passado,  armazéns  in- 
calculáveis de  riquezas  ethnographicas».  No  liv.  iv  da  presente  obra 
se  tratará  desenvolvidamente  do  assunto. 

A  fertilidade  etnográfica  a  que  se  fez  referencia  ó  contudo  rela- 
tiva. Muitos  romances  ou  xácaras,  segundo  já  se  disso,  estão  meio 
obliterados,  e  o  mesmo  acontece  ás  cantir/as  retornadas  ou  parale- 
listicas.  Cousas  que  ainda  vigoravam  na  primeira  metade  do  sec.  xix, 
desapareceram:  por  exemplo,  a  çanfona*.  A  própria  gaita  de  fole, 
tao  sentimental,  ouve-se  hoje  quasi  somente  no  Alto-Minho  e  na  raia 
transmontana,  mantida  pela  vizinhança  da  Galiza.  O  milho  miúdo 
quasi  só  se  come  nas  margens  do  Coura,  e  sob  forma  de  papas. 
Curiosos  jogos   correlacionados    com  festas  anuais,   o  outros,   su- 


*  Bordalo  Pinheiro  no  António  Afaria,  n."  5,  referindo-se  ironica- 
mente á  çanfona,  já  não  a  soube  pintar,  e  pintou  um  órgão. 


Boletim  de  Etnografia 


15 


cambem  perante  o  foot-ball.  O  actual  Bispo  de  Portalegre  pros- 
creveu a  entrada  do  boi  de  S.  Marcos  numa  das  capelas  do  Santo. 
A  macadame  atravessa  já  Barroso!  Não  vale  a  pena  acumular 
exemplos.  Urge  pois  continuar  a  colher  e  a  estudar,  com  o  maior 
afã,  o  que  nos  resta  das  tradições  e  costumes  do  passado,  porque 
a  civilização  tende  para  destruir  tudo  isso. 


3.  Vista  da  secção  etnográfica  do  Museu  Etnológico, 

de  Belém 

A  gravura  dá  um  aspecto  de  parte  da  secção  etnográfica 
do  Museu  Etnológico,  de  Belém,  ou  salão  de  Almeida  Garrett. 

Da  esquerda  para  a  direita  do  observador  encontramos  um  mo- 
delo de  espigueiro  do  Minho,  de  que  porém  só  se  divisa  metade; 


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Fig.  S— Vista  parolai  da  secfio  etnogra&oa  do  Hnsen  Etnológico,  Belém 


depois,  encostados  á  parede,  dois  armários  com  apetrechos  de  cos- 
tura, ferragens  (espelhos  do  porta,  etc),  faianças  portuguesas  do 
século  xvii-xviii;  ao  meio  do  salão,  mostradores  com  instrumentos 
músicos,  brinquedos  infantis  de  barro  e  de  lata,  vasilhame  vário 


16 


Boletim  de  Etnografia 


moderno,  uma  colecção  do  objectos  chamada  mondinenae  (veu  de 
caliz,  de  seda,  impresso  com  conclusiones  académicas,  século  xviii; 
um  foral  de  1504  — nao  de  1540,  como  por  erro  tipográfico  se  lê 
na  Historia  do  Museu,  p.  257  — ;  dobadores;  e  outras  cousas);  junto 
da  grade,  nmjugo  de  madeira,  também  do  Minho;  o  penduradas  de 
outro  lado  da  grade  colchas  coloridas  (industria  caseira  açorica: 
de  Nordeste). 

J.    L.    DE  V. 


Estampas  etnográficas 

(Coutiuuaçâo  do  Boletim,  n,**4,  p,  ^>^) 

13- — Mantilha.  Mulheres  de  Gáfete  (Crato),  trajadas  de  mantilha, 
a  caminho  da  igreja,  ou  vindas  de  lá,  em  dia  de  missa.  Fig.  4, 
que  assenta  num  desenho  tirado  de  uma  fotografia. 


Fig.  4— Mnlher  de  mantilha,  O&fete 


Boletim  de  Etnografia 


17 


14 — Procissão  em  Arcoçó,  ao  pé  de  Vidago  (Trás-os-Montes), 
no  momento  de  sair  da  igreja.  Vai  a  imagem  agigantada  de  S.  Cris- 
tóvão, do  pau,  conduzida  por  um  homem.  O  santo  leva  ao  ombro 
direito  a  imagem   do  Menino  Jesus,  muito  pequena,   amparando-a 


Kig.  5.  — ProoiasSo  em  Arcoçó 


com  a  mão  do  mesmo  lado.  —  .Tunto  do  santo  v6-so  parto  de  um 
andor.  Na  rua  algum  povo,  tendo  duas  pessoas  guarda-sóis  abertos. 
Fig.  5.  A  gravura  assenta  numa  fotografia. 

15 — Outra  procinsão,  que  desfila  ao  pé  do  uma  capela,  situada 
a  uns  3  on  4  quilómetros  do  Montalegre.  Vai  uma  mulher  a  cavalo 
numa  burrinha,  a  qual  mulher  representa  a  ^'i^goul  quando  fugia 
para  o  Egipto.  A  arreata  devia  ir  S.  Jos»'',  que  porém  nilo  figura 
na  fotografia  d'onde  se  extraiu  a  gravura.  Jluitas  mulheres  ao  pé, 
e  um  rapaz.  A  procissão  costuma  fazer-se  em  lã  de  Agosto.  Fig.  G 
(de  uma  fotografia). 

2 


18 


Boletim  de  Etnografia 


Fig.  6.— Procissão  em  Montalegre 


16 — Caldeireiro  ambulante,  fotografado  em  Folgosinho  (Serra 
da  Estrela),  na  rua,  ao  pó  da  sua  habitação,  de  que  se  vê  parte  de 
uma  parede  e  os  degraus  fundeiros  do  uma  escada  que  sobe  para  ela. 


Fig,  7.  — Caldeireiro  ambulante 


Boletim  de  Etnografia 


19 


Fig.  7,  extraída  (com  a  devida  vénia)  de  um  bilheto-postal  da  pa- 
pelaria de  Borges,  de  Coimbra. 

17 — Fuso  ou  fwddor,  do  laranjeira,  para  fazer  il/ióses  (illiós)  iios 
coletes  das  mulheres,  nos  coadores  de  leite,  em  sacos,  etc.  Alandroal. 


■====IE]tI=i=ilMD 


Fig.f*.  —  Fuso  de  fazer  ilhòses 


Este  instrumento  tem  o  nomo  de  fuso  no  campo;  olianiaso  porém 
furador  na  vila,  como  noutras  terras.  O  nome  de  ft(so  provém  da 
analogia  do  instrumento  com  o  fuso  de  fiar.  Fig.  8. 
Do  O'",  170  do  comprimento. 

O  original  guarda-se  no 
Museu  Etnológico,  para  o  ({ual 
o  obtive  em  1930,  estando  no 
Alandroal. 

18  —  Fôrcd.i  de  fazer  cor- 
dões, que  se  empregam  para 
enfiar  em  bolsas  (onde  se  mete 
fato,  se  leva  uma  merenda, 
etc): 

a)  Fig.  9  (Alandroal). 
De  O"",  195  de  comprimento. 
Objecto  feito  de  piorno. 

b)  Fig.  10  (Fronteira). 
De  O"",  145   de  comprimento. 

Ambos  estes  oijjectos  per- 
tencera ao  Museu  Etnológico, 
e  devo-os  á  amabilidade,  res- 
pectivamente, da  Ex.'"''  S."'^'' 
D.  Mariana  líosado  Belo, 
do  Alandroal,  e  do  Ex.'""  S."'  Carlos  Moreira  Pinto,  do  Fron- 
teira. O  primeiro  objecto  obtive-o  cm  1930,  o  segundo  anteriormente. 
No  Alandroal  usa-so  também  coiu  a  mesma  aplicai.-ilo  da.  forca, 
tí  igualmente  assim  chamado,  outro  instrumento  muito  mais  simples, 
feito  de  um  esgalhiuho  de  arvore. 

j.  L.  DE  y. 


Fig.  9 

F6roa  de  fazer 

cordões 


Kift.    10 

Fôroa  de  fazer  oordões 


20 


Boletim  de  Etnografia 


Um  bobo  do  século  XIV 


Repro(lnz-se  na  fig.  11  um  desonho  quo  parece  representar  um 
bobo,  e  so  extrai  da  Cluincdarin  de  D.  Afonso  IV,  Liv.  iil,  fl.  ÍJ, 
(íxistento  na  Torre  do  Tombo,  segundo  indicação  dada  por  Pedro 
de  Azevedo  no  Boletim  da  2."  Cl.  da  Acad.  das  Sc.  de  Liahoa,  vr, 
184.  O  desenho  no  porgaminlio  da  Chancelaria  mostra  ter  sido 
feito  com  a  mesma  tinta  dos  titulos  que  encabeçam  os  documentos. 
O  bobo  está  esboçado  comicamente:  descalço,  tal- 
vez do  calção  até  o  joelho,  cauda,  cabeção,  e  a  cara 
e  cabeça  protegidas  por  um  envoltório,  que  se 
prolonga  posteriormente,  adelgaçando-se  o  ar- 
queando-se  sobre  a  cabeça,  como  gorro,  a  modo 
de  ciiifre  que  sai  do  occiput:  quereria  o  desenhador 
ridiculizar  neste  último  caso  uni  capacete? 

Nao  conheço  nenhuma  representação  artística 
de  bobos  em  Portugal;  por  isso  o  desenho  desper- 
tará certa  curiosidade  no  leitor. 

O  gosto,  ou  mau-gôsto,  de  ter  bobos  e  anfíos 
em  casa  para  divertimento,  como  se  fosso  um  cSo- 
zinho  de  raça  ou  outro  animal,  passou  da  antigui- 
dade clássica  para  a  idado-média,  o  d'esta  para  tempos  posteriores,  o 
para  diferentes  partes.  De  bobos  escreveram  entre  nós,  sobretudo,  que 
me  lembre:  Júlio  Cardoso,  Os  bobos,  Lisboa  1891  (n."  192  da  «Biblio- 
theca  do  povo  o  das  escolas»);  Conde  de  Sabugosa,  no  Diário  de  No- 
ticias de  1-1-1922;  idem.  Os  bobos  da  corte,  Lisboa  1924.  Vid.  tam- 
bém: breves  noticias  em  Bluteau,  Vocabulário  de  nomes,  p.  55,  s.  v. 
Balúla,  o  Panasco;  e  a  Enciclopédia  de  Maximiano  Lemos. 

Na  literatura  portuguesa  ninguém  ha  que  nílo  lesso,  ou  ouvisse 
mencionar,  O  Bobo,  romance  de  Herculano,  publicado  a  primeira  vez 
no  Panorama  em  1843,  o  depois  em  volume  á  parto:  9.''  edição,  1919. 
Eis  aqui  porém  mais  umas  indicações  literárias,  que  julgo  menos 
sabidas.  O  Pinto  Renascido  de  Th.  Pinto  Brandão,  Lisboa  1732, 
contém  a  pp.  425-429  um  romance  com  este  assunto:  Acção  de 
graças  a  certo  Fidcãíjo,  que  l/ie '  deu  lium  vestido,  e  llie  j)edio,  que 
fzesse  hum  retrato  a  hum  mulato  chamado  Poldão,  que  he  anão 


Fii;.  11 


*  Isto  ó:  ao  autor. 


Boletim  de  Etnografia 


21 


do  Conde  da  Ribeira.  Por  sor  extenso,  não  tfiinscrovo  n;i  integra 
o  romance,  o  só  umas  estrofes  caracteristicas: 


Roldão,  salio  cá  para  fora, 
que  os  o  nada  do  meu  thoma, 
o  não  lii;  justo  em  tal  dia 
estar  debaixo  da  mesa. 

Kste  iJCijuenino  monstro, 
eu  jurara  (jue  nascera 
de  cachorro  com  bugia, 
ou  de  mono  com  cudoUa. 


Ora  sah(s  em  (|iiaiito  (ui  tiro 
os  óculos  da  algibeira; 
mas  ainda  cuiu  (juatro  ollios 
receyo  que  te  não  veja. 

Quando  corre  pela  sala, 
parece,  todo  em  cambotas, 
liuni .  . 


No  Anatómico  Jocoao  (soe.  xviii)  lê-so  tambom: 


I,  162.  E: 


..  testemuniias  que  forão: 
. .  o  anão  do  Diupie  .  . 

(bobo)  Não  destes  (|U(.'  andão  nas  sogos 
A  garupa  do  seus  amos  •  . 


Ill,  252. 

O  D."  Jordão  de  Freitas,  Director  da  Hibilioteca  da  Ajuda, 
tovo  a  bondade  do  mo  dar  cópia  da  seguinte  certidão  de  óbito 
antiga,  quo  so  refere  a  um  anão  de  luxo  do  Duiiue  do  Cadaval, 
o  qual,  porém,  poilia  não  ser  boixj  proi)rianiento  dito,  e  apenas 
sorvir  do  riso. 

«Aos  dous  dias  do  mes  de  Dezembro  de  mil  e  sotto  ceutijs  e  siii- 
coenta  faleceo  Diogo  Brunei,  solteiro,  Aiiani  do  Duque  de  Cadaval, 
morador  no  lugar  de  Pedrom.-os*;  não  recebeu  os  Sacramentos  por 
se  achar  ao  listado  da  íunocencia  havia  mais  do  dous  an."'  Hntor- 
ronso  no  Jazigo  da  Irmandad."  do  Kozario  no  Conv.'"  do  15om  .Su- 
cesso —  O  Reitor  llmriípio  Garcia  Galhardo». 

(I.iv."  t."  ilos  Oliito^  .la  l''i-..',^'iiesi:i  da  Ajinla,  fl.  '_>51  r). 

Este  anão,  como  constado  apelido,  tinha  origem  estrangeira.  O  seu 
defeito  Hsico  o  o  sou  oficio  tizer.un  i[uo  liemontasso  anos  antes  de 
morrer:  isso  signilicam  os  di/.eres  do  reitor:  «por  se  aciíar  no  es- 
tado da  iimocencia». 


*  Em  Pcdrouços  era  o  jiaeo  do  Du([ue  do  Cadaval. 


22 


BoLKTiM  DE  Etnografia 


O  Marquês  de  Castelo-Melhor  ainda  nos  fins  do  século  xix,  como 
me  informaram,  tinha  um  anão  á  porta  do  seu  palácio,  em  Lisboa,  ao 
pé  do  porteiro.  O  Conde  de  Sabugosa,  0^  bobos  da  corte,  p.  9,  falando 
do  mesmo  anEo,  diz  que  ele  «se  colocava  sobre  a  meza  de  jantar  para 
d'alli  apodar  os  convivas». 

Num  armazém  ou  loja  de  venda  da  Kua  do  Ouro  esteve  algum 
tempo,  já  ha  anos,  um  anSozinho,  fardado,  á  porta,  como  chamariz 
de  frè<;uoses:  uma  vez,  em  que  estava  um  magote  do  pessoas  diante 
d'ele,  mirando-o,  e  acaso  escarneceado-o,  vi-o  eu  chorar,  o  desgra- 
çado. Tantos  sfio  os  contrastes  neste  diablo  mundo! 

J.  L.  deV. 


Isume  e  iluminação 

(Vid.  JíoWim,  11."  3,pr.39-í2) 


Produção  de  lume 

No  Alentejo,  por  «exemplo  em  Tolosa,  os  camponios  produzem 
lume,  introduzindo  isca  em  um  canudinho  de  cana,  tapado  com  rolha 
do  cortiça:  tig.  12.  A  isca  ó  trapo  (jueimado.  Pe<i«c(i-;íe  ou  produz-se 
o  lume  batendo,  de  lado,  com  um  fusil  num  pedaço  de  cascalho 
(quartzo). 

Isqueiro  de  bogalho 

Os  bogalhos  têm  ás  vezes  umas  excrescências  tais,  que,  quando 
se  encaram   duas  que  fiquem  próximas  uma  da  outra,  o  bogalho 


Fig.  1.3 


Fip.  U 


toma  o  aspecto  de  cabeça  de  toiro,  com  galhos:  e  por  isso  se  dá 
aos  bogalhos,  no  Alentejo  Alto,  o  nome  de  toiros.  Vid.  as  figs.  13  e 
14;  na  última  ao  lado  dos  galhos  até  se  vêem  as  orelhas! 


Boletim  de  Etnografia 


23 


O  povo  faz  isqueiros  d'estes  toiros.  Aparam-se  as  excrescências 
com  uma  navalha,  e  pratica-se  na  parte  superior  uma  espécie  de 
coroa  eclesiástica,  fazendo-se  um  morrão  no  miolo  que  fica  á 
vista.  Depois,  com  o  usual  fusil  e  pederneira,  tiram-se  faiscas  junto 
do  morrão,  que  em  seguida  as  recebe:  e  assim  se  tem  lume  para 
acender  um  cigarro,  etc. 

Observei  o  costume  em  Tolosa  ha  ainda  pouco  tempo,  e  de  lá 
trouxe  para  o  Museu  Etnológico  dois  exemplares  dos  bogalhos  que 
serviram  para  os  desenhos. 

Ha  várias  espécies  de  isca,  segundo  se  dirá  noutro  lugar. 


III 
Vendedor  de  «mechas» 

Mecha,  diz  Moraes  no  seu  Diccionario,  s.  v. :  «tira  de  papel 
enxofrada :  e  assim  astillias  de  pao  enxofrado^  para  se  tomar 
o  fogo  da  isca,  e  accender 
chamma  de  candeya,  car- 
queja, ou  fogo  de  lenha,  ou 
carvão». 

As  mechas  vendiam-so 
d' antes  pelas  ruas.  A  fig.  15 
é  extraída  de  uma  colecçAo 
de  litografia  de  tipos  o  usos 
populares  intitulada  Ruas  de 
Lisboa,  n.°  3,  est.  17,  que 
possuo  na  minha  livraria. 
Cf.  Ferreira  Lima,  Costumes 
portugueses,  p.  14  (aqui  a  fi- 
gura vem  no  n.°  3).  O  meu 
exemplar  não  tem  data ;  o  d'ele 
tem  a  de  «1819«. 

Como  ilustração  do  assunto 
transcreve-se  do  Dicc.  biblio- 
graphico,  de  Inocêncio,  ix, 
267-268,  a  seguinte  noticia 
a  propósito  do  escritor  Francisco  Baptista  de  Oliveira  de  Mesquita, 
o  Mechas: 

«N.  na  província  da  Beira,  do  pães  pobres,  e  veiu  para  Lisboa 
procurar  fortuna  pelos  annos  do  1804.  O  seu  primeiro  nogocio  foi 
o  trafico  das  mechas,  de  que  hoje  poucos  leitores  do  Diccionario 


Fig.  15 


24 


Boletim  de  Etnografia 


jini 


u 


Fig.  16 


FiR.  21 


Fig.  17 


Boletim  de  Etnogpafia 


::.'o 


podom  fazor  idóa,  mas  quo  era  pouco  mais  ou  monos  comparável 
ao  quo  tem  sido  modernamente  o  dos  pJiosj/íioros.  Eilo  mosmij  se 
mandou  retratar  depois,  trazendo  ás  costas  uma  alcofa  com  as  taes 
mechas.  Como  fosse  ladino  e  muito  esperto,  conseguiu  n'aquella  os- 
])0cic  do  industria  lucros  que  em  breve  o  liahilitaram  para  estalje- 
lecer-se  com  uma  casa  do  compra  e  venda  de  livros  novos  e  usados, 
a  ([ual  tove  em  Lisboa  por  alguns  annos,  e  n"ella  gauliou  com  (jiie 
sustentar-so  o  á  sua  familia,  estendendo  e  general isando  o  seu  coui- 
mercio  até  ás  províncias  ultramarinas». 

O  citado  escritor  S."'  Ferreira  Lima,  meu  confrade  na  Academia 
das  Seiencias,  que  foi  (juem  mo  (diamou  a  aten(,'ào  jiara  este  i)asso 
do  JJiccionario  hihlidijraphico,  levou  a  sua  amal)i]idade  a  comunicar- 
-mo  mais  o  seguinte: 

«Possuo  trez  pequenos  impressos  ([ue  costumam  aparecer  colados 
no  interior  das  pastas  das  oncaderna(;ões  ile  vários  li\  ros,  como  se 
fossem  ox-libris,  o  que  são  do  teor  seguinte: 


Lisboa 
Esta  fJ/ira  fou  K-ita  Livro)  foi  i-om/)ni<l(i  em  ra- 
sa (Ic  F.  B.  O.  de  J/.  =^0  M(kJni,i^- 
na  Travessa  dos  Romn lares  A'."  N,  .1, 
junto  ao  Cães  do  Sodré;  onde  tam- 
lieiit  compra^  veiule  e  troca  Livros 
de  todas  as  qualidades;  as.iini  roniii 
famhein  vende  Indo  quanto  lie  neces- 
sário para  uso  de  hutn  Escritório  de 
Cominercio. 


Iluminação  de  caracóis 

lia  i)Ouco  tempo  (escre\o  eui  lU^ll),  [lor  ('\i'ni[il(j,  iia  p.issagcui 
de  uma  procissilo  nocturna,  fa/,iain-se  cm  Tuiosa  (Alentejo  A  lio) 
candeias  de  cascas  de  caracoles^,  providas  de  torcida  o  azeite.  Vid. 
fig.  1(3. 

Estas  candeias  ou  si-  pousavam  ás  [)ortas,  solire  uma  ('(jrtira, 
em  quo  so  faziam  cavidades  para  elas  se  meterem  e  não  cairem,  ou 


•  Assim  diz  o  po\  o. 


26 


Boletim  de  Etnografia 


se  fixavam  em  canas,  de  uns  O^jõOô  de  comprido,  rachadas  em  vários 
lugares,  segundo  a  disposição  dada  pela  fig.  17. 

Adquiri  exemplares  que  trouxe  para  o  Museu  Etnológico  e  ser- 
viram para  as  gravuras. 

V 

Para  serviço  dos  soldados 

Na  Milícia  pratica,  de  B.  Gomes  Coelho,  Lisboa  1740,  t.  i, 
p.  68:  «He  obrigação,  do  cabo  do  esquadra,  .levar  na  sua  patrona 
fuzil,  isca,  podreneira,  e  mocha  de  enxofre,  porque  a  ele  toca . .  o 
conservar  candea,  e  lume:  e  servem-lhe  estes  instrumentos  para 
acender  luz. .». 

VI 

Outros  apetrechos  de  petiscar  lume 
para  uso  dos  fumadores 

1.  Fusil,  de  aço,  moderno.  Fig.  18;  de  tamanho  natural. 

2.  Pederneira,  quandrangular,  comprada  numa  feira,  onde  é  cos- 
tume vendê-las.  Fig.  19,  de  tamanho 
natural. 

3.  hqueiro.  O  corpo  é  de  ma- 
deira, e  tapado  em  cima  com  uma 
rolha  da  mesma  substancia,  a  qual 
rolha  SC  liga  a  elo  por  uma  corren- 
tinha  metálica.  Todo  o  corpo  tem  or- 
natos angulares,  e  está  excavado 
e  atravessado  pela  isca.  Serve  a 
rolha  para  apagar  a  chama  e  deter 
o  morrão,  depois  do  aceso  o  cigarro. 
í^ig.  20,  de  tamanho  natural.  O  respectivo  objecto  veio  da  Figueira 
da  Foz  para  o  Museu  Etnológico,  onde  se  guarda  com  os  restantes. 


^/ 


3  '4 

i  % 


VII 
Comparação  de  f  usis 

A  fig.  21  mostra-nos  um  fusil  de  aço,  vindo  do  Fundão  para 
o  Museu  Etnológico. 

E-lhe  comparável,  por  causa  dos  ornatos  que  lhe  servem  de 
pega,  o  da  fig.  22,  que  representa  um  briquet  romano  do  Museu 
do  St.-Germain  (França):  vid.  Cagnat  &  Chapot,  Manuel,  p.  464. 

J.  L.  UE  V. 


Boletim  de  Etnografia  27 


Arte  Sc  Etnografia 

Três  «estudos»  de  Malhoa 


O  ilustre  artista  José  Malhoa  deu-me  a  honra  de  mo  oferecer 
um  estudo  que  tinha  feito  j)ara  o  quadro  que  se  intitula  A  caminho 
da  romaria,  o  qual  estudo,  que  representa  um  «fogueteiro»,  será 
publicado  na  Etnografia  Portuguesa;  além  d'isso  teve  a  bondade  de 
me  emprestar,  para  sairem  no  Boletim,  três  outros  estudos,  que  são: 

1.  Zé-Pereira.  Homem  que  toca  bombo.  Segue-o  o  gaiteiro, 
com  a  gaita  de  fole.  Aquele  só  deixa  ver  a  perna  esquerda,  porque 
assim  convinha  ao  quadro;  mas  a  outra  perna  está  esboçada.  Es- 
tudo pertencente  ao  quadro  anterior. — Vid.  a  fig.  23. 

2.  Promessas.  Várias  muiiíeres  fizeram  promessa  de  ir  de 
joelhos  dar  volta  a  uma  igreja:  uma  porém  ficou  tHo  abatida  e  cau- 
sada, que  foi  preciso  duas  das  companiieiras  ampararera-na.  Estudo 
feito  para  o  quadro  que  tem  o  mesmo  titulo  d'este  paragrafo. — Vid. 
a  fig.  24. 

3.  Meninos  cm  cestos.  Rua  da  aldeia  (Figueiró  dos  Vinhos), 
onde  é  costume  as  mulheres,  eiuquanto  trabalham  em  casa,  depor  os 
filhinhos  na  próxima  rua,  ao  sol,  uns  em  berços  de  madeira,  outros 
em  cestos.  Este  estudo,  que  serviu  para  o  quadro  que  se  intitula 
As8im  se  criam,  mostra  um  dos  meninos  doutro  de  um  cesto, 
e  protegido  da  violência  do  calur  jior  um  guarda-sol  aberto.  Ao  lado 
ha  esboços  parciais  que  nío  fazem  parto  do  quadro. — Vid.  a  fijr.  2ò. 

Comentário : 

Ao  §  1." — O  Zé-Pereira  figura  com  freqiioncia  nos  arraiais 
festivos  do  Norte  e  da  Beira.  Nas  festas  da  Agonia,  om  Viana  do 
Castelo,  assistiu  unia  vez  o  autor  destas  linhas  a  um  arraial  em 
que  tocaram  a  um  tempo  dezenas  de  bombos,  que  faziam  estrondo 
ensurdecedor,  verdadeiramente  selvático.  O  nosso  Artista  obser- 
varia o  costume  em  Figueiró,  terra  em  que  habitualmente  passa 
o  verJo.  K  bom  lembrar  que  Figueiró  dos  Vinhos  pertencia  outr'ora 
á  comarca  ou  província  da  Beira. 

Ao  §  2." — Promessas  religiosas  em  circunstancias  práticas  da 
vida,  executadas  de  joelhos,  fazom-se  também  muitas  nas  mencio- 
nadas regiões.  Uma  das  mais  brutais  de  que  tenlio  notícia  é  dar 
voltas  uma  pessoa  a  uma  igreja,  de  joellios,  lambendo  a  parede,  polo 
que  nao  raro  a  lingua  llie  fica  a  escorrer  sanj:ue.  —  Ha  muitas  es])o- 
cies  de  promessas,  v.  g.:  1)  actos  que  a  própria  jjessoa  executa  ou 
manda  executar  em  seu  nomo,  como  os  que  ficam  indicados,  e  bem 


28 


Boletim  de  Etnografia 


Fig.  21 


Fig. 


Boletim  de  Etnografia  29 


assim  ir  em  simples  romaria  ou  cirio,  ir  amortalliada,  ir  cm  um 
caixão,  como  morta,  ir  em  peregrinação  A  Terra  Santa  (do  que  em 
documentos  medievais  s(>  dá  por  vezes  testemunho);  2)  actos  ecle- 
siásticos realizados  a  expensas  do  quem  faz  a  promessa:  responsos, 
missas  rezadas  ou  cantadas,  sermões,  festividades,  etc;  ;3)  ofe- 
renda de  objectos  de  maior  ou  menor  valor:  simbólicos  (de  i)rata, 
(lo  cora,  etc),  velas,  coroas,  andores  para  procissões,  o  quadros 
ou  retábulos  em  que  se  relatam  ou  pintam  milagres  —  são  aos 
objectos  d'esta  última  espécie  e  os  simbólicos  que  costumam  clia- 
mar-se  ex-votoa  propriamente  ditos;  4)  oferenda  de  géneros  (milho, 
etc.)  e  animais,  para  festividades,  ou  em  benefício  de  santuários, 
a  fim  do  serem  vendidos  em  leilão  ou  de  outro  qualquer  modo; 
5)  oferenda  de  priniiclas:  cachos  de  uvas  que  se  penduram  em  an- 
dores, ramos  do  folhelho  que  se  colocam  junto  de  imagens  em  altares 
ou  também  em  andores;  (3)  oferenda  para  festas,  por  (exemplo,  dar 
o  fogo,  pagar  á  musica;  7)  oferendas  várias:  cf.  Ensaiox  Ktlniu- 
graficoí,  ii,  1G4,  70. 

Ao  §  3.°  —  Acerca  do  uso  de  canastras  que  servem  de  berço 
normal  ou  acidentalment(!,  vid.  lievifta  Lusitana,  x,  IG.  Ao  que  eu 
aí  já  disso  de  várias  terras,  acrescentarei  que  tenho  notícia  de  que 
om  muitas  outras  partes  as  mulheres,  quando  vão  traballiar  para 
o  campo  e  levam  consigo  os  tilhiulios,  (h'itam  estes  em  (piaisípier 
canastras    perto   de   si,   [)ara    dormirem   ou   repousanun,  e  elas    os 

j)odcrom  vigiar. 

* 

MalliOa  é   um   dos   nossos  pintores  que  mais  trm  tomado  por 

tema  os  usos  tradicionais.  Mal  pôde  o  etnografo  prescindir  de  [lelo 

menos   coniiecer   algumas    das    suas    inspiradas   o   adiuirascis    telas 

o  estudos. 

.1.  L.  i)K  V. 

Esmolas  para  S.  bazaro 

No  Anatómico  Jocoso,  i,  285,  falando-se  de  um  letreiro,  diz-se: 
«como  letras  de  almagre',  como  cruz  de  S.  Lazaro». 

A  cruz  de  S.  I^azaro,  de  (|ue  se  tratou  no  Holctim,  u."  ^,  pp.  Ht- 
20,  era  pois  tão  coidiecida,  que  a  côr  servia  para  S(!  estalielecer 
com  ela  uma  comi)araç.1o  trivial! 

.1.  L.  Di:  V. 

'   Isto  6,  vermelhas. 


30  Boletim  de  Et.vogeafia 


Espécimes  de  Etnografia  por  provincias 


I 

Entre-Douro-e-Minho 


1.  Sino  lie  Koitiarigaes 

Ao  referir-se  á  igreja  do  llomarigaes,  freguesia  do  concelho  de 
Paredes  de  Coura,  diz  o  P."  Narciso  A.  da  Cunha,  na  monografia 
intitulada  Paredes  de  Coura,  Porto  1909,  p.  536,  que  ela  tnâo  tem 
torro.  O  sino  pende  de  uns  paus  ou  vigas,  espetados  no  adro».  O 
desenho  que  serviu  de  base  á  Hg.  1,  traçado  a  lápiz,  do  natural, 
pelo  hábil  escultor-estatuario  o  S.""^  Júlio  Vaz  Júnior,  que  fez 
o  favor  de  m'o  oferecer,  mostra-nos  o  sino  pendente  de  uma  tra- 
vessa de  madeira,  que  se  fixa  ao  mesmo  tempo  em  paus  como  os 
de  que  fala  o  P.'  Narciso,  o  em  pernadas  grossas  de  uma  oliveira 
que  está  perto  da  igreja. 

Quando  soube  d'esta  espécie  de  campanário,  supus  que  tal 
maneira  de  colocar  o  sino  fosse  provisória,  até  haver  campanário 
verdadeiro  ou  torro;  mas  do  que  averiguei,  o  do  que  diz  o  P.*  Nar- 
ciso, vê-se  que  o  sistema  é  antigo,  embora  na  origem  certamente 
provisório,  como  muita  cousa  em  Portugal,  que  depois  se  torna  de- 
finitiva. 

-.  Musicn  popular 

a)  Castanhetas  de  madeira,  que  obtive  no  Gem,  fròguesia  de 
S.  Tomé  de  Covelas,  concelho  de  Baião  (fig.  2).  Alt.  0"',215.  Exem- 
plar pertencente  ao  Jluseu  Etnológico,  de  Belém.  Nao  é  esto  o  tipo 
mais  usual.  Cf.  outro  na  llist.  do  Museu  EtnoJog.,  p.  409,  fig.  163, 
também  do  Museu.  O  tipo  mais  usual  está  naturalmente  sem  orna- 
mentação. 

b)  Pandeiro  usado  nas  romarias  do  Minho  (fig.  3).  Alguns,  pelo 
menos,  vôm  da  Galiza,  como  este,  que  comprei  em  Braga  para  o 
Museu  Etnológico,  em  1904.  Diâmetro  0'",230.  Os  discos  metálicos 
que  rodeiam  o  aro  do  instrumento,  e  que  produzem  som  quando 
este  é  batido  e  agitado  com  as  mãos,  recebe  o  nomo  vulgar  de  soa- 
lhas. 


Boletim  de  Etnografia 


31 


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J-ig.  1— Sino  de  Romarigãea 

3.  (ôfo 

Espécie  d(!  cesto  (tig.  4),  leito  do  ri'rija  (salgueiro,  carvalho,  ttc), 
que  se  adapta  ao  focialio  dos  bois,  a  modo  de  acamo  para  estes, 
quando  andam  no  trabalho,  nilo  amarrarem  á  comida,  e  poderem 
trabalhar  á  vontade.  Kxemplar  do  ^[useu  Ktaologico'. 


*  Para  se  indicar  pequenez,  costnraa-se  dizer  no  Minho  (Barce- 
los): cabe  ih  baixo  d' um  côjb. 


32 


Boletim  de  Etnografia 


1'ig.  2.  —  Castanhetas 


Ki;;.  3. —  Pandeiro 


Kig.  l.-Còfo 


Os  desouhos  em  que  assentam  as  gravuras  dos  §§  2  o  3  dovem-se 


a  F.  Valença,  Desenliador  do  Museu  Etnológico. 


Boletim  de  Etnogeafia 


33 


II 
Trás-os-Montes 


1.  Malha  de  centeio 

A  gravura  adjunta  (fig.  5),  extraída  de  uma  fotografia,  tirada  em 
1928  6  que  me  foi  oferecida  pelo  D."  Alexandre  de  Faria,  de  Bra- 
gança, representa  uma  malha  de   centeio  nos  arredores  d'aquela 


Flg.  5.  —  Halha  de  centeio  nos  arredores  de  Braganga 

cidade:  o  sitio  fica  nas  abas  de  um  monto  denominado  o  Cabeço  do 
Mendonça.  Os  malhadores  estio  em  mangas  de  camisa  e  chapéu  de 
palha. 

O  trabaliio  do  centeio,  sobretudo  a  segada  o  a  malha,  serve  de 
tema  a  curiosas  poesias  populares,  tipicas  do  Norte  do  Trás-os- 
-Moates. 

2.  «Boclras»  do  telhado 

Rigores  do  clima  hibernal  obrigam  o  homem  a  defender  de  muitas 
maneiras  a  casa  em  que  habita,  —  precaução  que  sobretudo  é  neces- 
sária onde  eles  se  tornam  mais  sensíveis,  por  exemplo,  em  Bragança. 
Usam  aqui  o  seguinte.  Conjunto  do  telhas  postas  a  pino  o  cobertas 


34 


Boletim  de  Ei-nografia 


Fig.  G.— <Boelra8>  do  telhado 


do  argamassa.  Sobro  elas  lia  uma  sorio  de  dentes  formados  também 
de  argamassa  e  de  pedaços  de  telhas,  na  qual  assentam  duas  telhas 
inteiras.  Isto  serve  para  evitar  que  a  chuva  penetro  na  cozinha. 

Vid.  as  gravuras  adjuntas  (fig.  6),  conformemente  a  desenhos  do 
S."'  Acácio  Cruz,  Professor  do  Liceu  da  cidade  de  Bragança, 
feitos  em  1932. 


Boletim  de  Etnografia  35 


III 
Beira 

Usos  de  Vilar  Seco  (do  concelho  de  Nelas) 

Artigo  consagrado,  como  preito  de  saudosa  amizade,  á  memoria  de  Álvaro 

de  Albuquerque,  autor  das  «Matinais»  (volume  de  sentidas 

poesias:  1895),  e  falecido  em  12  de  Setembro  de  1934,  na  sua 

casa  solarenga,  existente  naquela  povoação. 

1.  Fontes  de  chafurdo,  de  mergulho,' ou  cobertas' 

a)  de  S.'°  António. 

Tanquo  de  pedra  enterrado,  e  cujas  paredes  se  prolongam  para 
cima  (fig.  7).  Agua  nascidia,  que  se  extrai  para  uso  doméstico, 
mergulhando  nela  os  cântaros.  Por  isso  é  o  menos  higiénica  possivol. 
A  pedra  inferior  da  dianteira  apresenta  um  desgaste,  devido  ao  rogar 
das  vasilhas.  Ao  lado  vO-se  um  poial  para  estas  se  pousarem.  A  volta, 
paredes  de  campos;  e  ao  longe,  oliveiras. 

Houve  certamente  ali  uma  imagem  do  santo,  hoje  desaparecida. 

b)  do  Castanhal^. 

O  tecto  era  abobadado,  e  por  isso  se  via  adiante  um  arco.  Temos 
pois  aqui  um  tipo  do  antiga  fonte  arcada:  vid.  o  que  diz  a  este  res- 
peito o  P.*  Vasco  do  Almeida  Moreira,  Cernancelhe  e  seu  alfoz, 
Porto  1929,  p.  242  (cf.  figs.  de  pp.  32  e  136),  e  as  minhas  adições, 
a  p.  VIU  do  mesmo  volume  (proemio):  povoações  com  esse  nome-*. 

Ao  lado  da  Fonte  do  Castanhal,  de  Vilar  Seco,  avulta  uma  casa 
de  varanda,  com  entrada  pelo  interior;  o  telhado  é  ilo  angulo  muito 
agudo,  talvez  imitação  do  Centro  da  Europa,  trazida  por  emigran- 
tes (tig.  8). 


'  Nenhuma  d'estas  expressões  se  usa  poróm  em  Vilar  Soco. 
O  povo  só  dil  nomes  próprios  ás  fontes  de  que  se  aqui  trata. 

'  Hoje  quasi  destruida.  Restaurada  de  memoria  no  desenho. 

2  Na  toponimia  também  ha  Fonte  Coberta,  como  vestígio  local  de 
antigas  fontes  d'esto  tipo. 


36  Boletim  de  Etkoghafia 


2.  Engenho  de  tirar  agna  nos  cauipog 

Já  neste  Boletim,  n.°  1,  pp.  32-33,  se  falou  do  um  engenho  do 
mesmo  género,  existente  em  Grândola:  ibidem,  fig.  48.  Cf.  também 
De  tem-a  em  terra,  i,  74-75,  onde  se  figurou  um  engenho  romano 
ou  tolleno,  o  so  citaram  variados  nomes  dados  aos  nossos  engenhos, 
a  que  podem  acrescentar- se  outros,  como  zabumba  (Carregal  do  Sal), 
burra  cega  (Cebolais,  concelho  do  Castelo  Branco),  aarangonha  (al- 


Fig.  7.  — Fonto  de  Santo  António,  em  Vilar  Sêoo  (vid.  p.  35) 

gures),  zangarela  (Arganil),  varola  (palavra  derivada  de  vara:  na 
Sobrena,  concelho  do  Cadaval).  Em  Vilar  Soco  dizem  cavaleiro,  que 
ó  propriamente  o  nome  da  haste  d'onde  pende  o  peso  e  o  balde. 

Vid.  fig.  9.  Ao  pé  do  engenho  está  uma  pia  rectangular  de  gra- 
nito, onde  se  deita  agua  para  se  lavar  roupa,  etc. 

E  frequente  haver  ao  lado  dos  poços  vasos  de  flores,  como  aqui. 
Pois  que  os  jardins  tomam  terreno,  que  podo  dar  lucro,  o  povo  subs- 
titue-o  muito  por  vasos  do  flores,  na  disposição  que  vimos  agora,  e  tam- 
bém pousados  ao  longo  da  parte  superior  de  paredes  que  dão  para  hor- 
tas ou  para  caminhos,  sobro  o  parapeito  do  uma  janela,  sobre  uma 
tábua  assente  em  duas  pedras  saidas  (cachorros)  de  cada  lado  d'esta, 
etc.  Os  vasos  do  quo  se  fala  estão  encostados  a  uma  grade  do  madeira. 


Boletim  de  Etnografia 


37 


Fig.  8. —Fonte  do  Castanhal,  em  Vilar  Sêoo  (p.  35) 


38 


Boletim  de  Etnografia 


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rig.  9  — Engenho  do  tirar  agua  em  Vilar  Sêoo  (vid.  p.  36) 


Fig.  10.  — Engenho  de  tirar  agua  em  Cngir,  Transilvania  (vid.  p.  44) 


Boletim  de  Etnografia 


39 


3.  Desenho  de  casas 

a)  Casa  do  varanda  (de  entrada  intorior),  o  chamlnó  do  tipo  me- 
ridional. Vôem-so  dois  postifjos  e  nvajanêlo^,  em  cima,  e  uma,  porti- 
nhola de  lagar  om  baixo.  Num  dos  janôlos  ha  uma  taboa  exterior  e 
horizontal  com  vasos  do  flores,  costume  muito  vulgar. 

Fora  ha  um  páteo,  com  porta  do  entrada  (porta  dupla),  de  grade, 
do  madeira  (fig.  11.) 

h)  Casa  de  balcão,  a  qual  dá  para  wxa.  patim,  ou  patamar,  coberto 
do  alpendre.  Balcão  chamam  por  estes  sítios  a  uma  escada  exterior, 
de  pedra,  com  degraus;  o  também  ás  vezes  a  uma  interior,  do  ma- 
deira (escalelra  ó  uma  escada  de  mao,  volante).  Ainda  que  os  degraus 
do  pedra  sejam  três  ou  dois,  recebem  o  nome  de  balcão-.  Xo  nosso 
caso  o  patim,  com  grados,  balaustrada  e  alpendre,  passa  a  denomi- 
nar-so  varanda.  Por  este  so  entra  para  a  casa.  Em  fronte  da  casa 
estende-80  um  páteo  fechado,  onde  se  vO,  á  direita,  segundo  alpendre, 
térreo,  que  serve  para  arrumação  do  objectos  agrários:  corresponde 
á  arribana  estromenha  (vid.  Boletim,  n.°  4,  p.  34).  A  esquerda  da 
casa,  no  páteo,  está  um  curral,  que  significa  «loja»  (fechada)  do  qual- 
quer animal,  boi,  burro,  porco,  etc.  (fig.  12). 

c)  Casa  alpondrada,  que  dá  para  a  raa.  Dois  alpoidres,  cada  um 
dos  quais  protege  sua  entrada,  isto  é,  portas  situadas  ao  cimo  do 
balcões,  aem  patina, — Fig.  13. 


*  O  postigo  ó  estreito;  o  j anelo  é  largo,  quási  janela  pequena, 
que  ó  o  que  quer  á\zQr  janêlo. 

*  Noutras  terras  balcão  é  o  patamar  da  escada  (Fozcoa,  Celorico 
da  Beira,  etc;  em  Trás-os-Montes:  liev.  Lusit.,  v,  29,  artigo  do  A. 
Moreno).  O  povo  canta  om  Vilar  Seco  duas  cantigas  quo  dizem  se- 
guidas, como  uma  oitava: 


Liberdade,  liberdade. 
Quem  na  tem  chama-lhc  sua: 
Eu  nao  tenho  liberdade 
Nem  do  pôr  os  pés  na  rua, 


Nem  do  pôr  os  pés  rua, 
Nem  de  chegar  ao  balcão: 
Liberdade,  liberdade. 
Amor  do  meu  coração! 


Para  as  pessoas  de  Vilar  Soco,  «cliogar  ao  balcãoti  quer  dizer 
«chegar  á  escada».  So  a  cantiga  so  cantar,  como  ó  natural,  em  po- 
voações ondo  balcão  tenha  outro  sentido,  com  ele  muda  também  o  da 
poesia.  Em  todo  o  caso  as  cantigas  s^o  muito  expressivas:  pintam 
bem  o  recato,  quasi  arábigo,  com  quo  as  mulheres,  sobretudo  gra- 
ves matronas,  d'antes  viviam.  Cf.  Boletim,  n."  1,  p.  7. 


40 


Boletim  de  Etnografia 


d)  Duas  casas  contíguas,  cada  uma  com  sua  oscada  exterior  ou 
balcão.  Em  frente  d'olas,  do  outro  lado  de  uma  quelha,  ou  rua  es- 
treita*, que  passa  junto  das  casas,  ha  uma  propriedade  (terra  de 
milho),  de  paredes  toscas,  na  qual  avulta  uma  casinhola  {palheiro), 
de  que  só  porém  se  vê  parte. — Fig.  14. 

e)  Entrada  ou  portal  de  jxitio,  olhada  de  perfil,  por  onde  entra 
o  carro  de  bois,  que  se  avista  dentro,  a  pouca  distancia.  Ao  pé,  um 


Fig.  11.  —  Casa  de  varanda  em  VUar  Seco 


porco  e  duas  galinhas.  Mais  longe,  casa  de  varanda  (de  entrada  inte- 
rior); debaixo  d'esta,  uma  dorna  a  pino. — Fig.  15. 

/)  Cozinha.  A  lareira,  quadrilateral,  posta  em  nivel  inferior  ao 
do  sobrado,  que  forma  bancada  por  dois  lados  (o  que  o  desenho  nSo 
mostra).  Ao  fundo  da  lareira,  em  frente  de  quem  se  aproxima  directa- 
mente do  lume,  avulta  a  pilheira,  onde  se  recolhe  a  cinza,  e  em  cuja 
parte  superior,  de  forma  de  mesa,  pousa  alguma  lenha  para  secar,  e 
utensilios  culinários.  Uma  mulher,  á  esquerda  do  observador,  sopra 


*  A  respeito  do  quelha  vid.  as  minhas  Memorias  de  Mondim  da 
Beira,  p.  470. 


Boletim  de  Etnografia 


41 


Tig.  12. —  Casa  de  balcão  em  Vilar  Sêoo 


Fig.  13. —  Casa  alpendrada  em  Vilar  Sèoo 


42 


Boletim  de  Etnografia 


Fig.  14.— Dnas  oasas  oontlgrnas  em  Vilar  Sêoo 


Fig.  15.  — Entrada  de  um  pátio  em  Vilar  Sêoo 


Boletim  de  Etnografia 


43 


ao  lume  com  uma  caaa  furada  *.  Adiante  da  pilheira  vê-so  o  cambeiro, 
que  é  o  cabide  das  panelas^.  Junto  da  parede,  do  lado  direito,  está 
a  cantoneira,  com  os  cântaros  da  água,  em  baixo,  e  um  armário  para 
a  loiça,  om  cima.  Sobranceira  á  pilheira  fica  a  chaminé,  do  cujo  bordo 
anterior  pendem  as  marcelas  e  chouriços  (enchido)  que  estão  em 


Flg.  IC  — Cozinha  de  nma  oaea  de  Vilar  Sèoo  (p.  40) 

fumeiro.  Ao  canto  esquerdo  da  cozinha  encontramos  a  masseira, 
espécie  do  caixa  onde  se  amassa  a  farinha  de  quo  se  fabrica  o  pilo 
(do  millio)f  e  na  parede,  superiormente  á  masseira,  duas  peneiras,  e 
á  direita  d'ela  um  banquinho  com  um  alguidar.  Finalmente,  temos 
pendurada  na  parede  da  esquerda  uma  mesa  levadiça,  muito  estreita 
quo,  quando  posta  horizontalmente  se  segura  na  parede,  num  gan- 
chinho  que  mal  se  avista. — ^Fig.  IG. 


*  Costume  usual  no  Alentejo,  onde  ás  vezes  e  para  isto  se  ser- 
vem do  um  cano  do  espingarda  velho. 

*  Noutros  pontos  da  Beira- Al  ta  (Mondim)  dizem  rjaUieiro,  por 
ser  um  pinheiro  com  esgalhas,  tíxo  no  chão;  nos  esgalhos  metem  os 
púcaros. 


44  Boletim  de  Etnografia 


1.  FogacciraH  da  procissito  da  «Senhora  do  Ó» 

A  festividade  da  Senhora  do  O,  que  está  a  cargo  de  uma  irman- 
dade da  mesma  invocação  (que  data  do  1644)^,  e  a  que  assisti  em 
18  e  19  de  Agosto  de  1934,  consta  do  compasso,  na  véspera,  geral- 
mente em  sábado,  e  da  íesia  projmamente  dita  (missa  cantada,  ser- 
mão, e  procissão).  O  compasso  6  já  do  si  uma  procissão,  que  sái  da 
igreja  matriz  e  a  ela  recolhe,  depois  do  ter  percorrido  algumas  ruas  da 
freguesia,  que  tem  a  sua  sede  no  Outeiro,  um  dos  lugares  da  mesma: 
constituem  o  compasso  os  membros  da  irmandade  (de  capa  ou  opa 
branca),  com  o  seu  reitor  ou  presidente*. 

Dá-se  o  nomo  de  fogaceiras  a  meninas  que  levam /opacas  á  ca- 
beça, isto  ó,  açafates  cheios  de  cereais  (trigo,  milho,  centeio),  pro- 
metidos á  Senhora,  e  vendidos  em  leilão  em  proveito  d'esta,  os  quais 
açafates  têm  por  cima  uma  armação  com  flores  artificiais  o  fitas  de 
várias  coros.  Vid.  uma  fogaceira  na  fig.  17. 


Os  desenhos  que  serviram  para  as  gravuras  foram  foitos  do  na- 
tural polo  S.'"'  Henrique  Loureiro,  hábil  e  culto  Professor  de  en- 
sino oficial  no  Montijo,  que  veraneava  em  Vilar  Soco  quando  eu  lá 
estivo. 

Apcudice  a  este  capitulo 

Como  ampliação  do  §  2."  reproduz-se  na  fig.  10  um  desenho  do 
S.'"'  Paul  Scortesco,  insigne  artista  rumeno,  que  em  1935  fez  uma 
exposição  de  quadros  seus  em  Lisboa,  na  Sociedade  Nacional  de  Bolas 
Artes,  ondo  mo  relacionei  com  ele.  O  desenho  representa  um  poço 
de  Cugir  (Transilvania),  a  que  está  adaptado  um  engenho  de  tirar 
água,  igual  aos  nossos.  Tendo  eu  lembrado  na  minha  obra  De  terra 
em  terra,  i,  75  (mencionada  supra  p.  36)  que  o  uso  dos  engenhos 
ou  cegonlias  se  estendia  da  Ásia,  da  Grécia,  do  Egipto,  de  Koma,  em 


'  A  designação  de  «Senhora  do  Ó»  provém  de  se  cantarem  sete 
antífonas  da  Alagnificat  que  começam  pela  interjeição  «ó»:  vid.  Blu- 
teau,  Vocah.,  s.  v.  «ó».  Os  Estatutos  da  irmandade  foram  aprovados 
por  alvará  do  governador  civil  do  Viseu  de  7  de  Agosto  do  1867, 
e  impressos  em  Coimbra  em  1891.  Tenho  presente  um  exemplar,  e 
d'ele  constam  muitos  vocábulos  locais,  por  exemplo,  co7njmsso  e  rei- 
tor, já  citados. 

*  O  cargo  ó  exercido  por  um  secular. 


Boletim  de  Etnografia 


45 


Vig.  17.  — Fogaoelra  da  Senhora  do  O  (Vilar  Seco) 


46 


Boletim  de  Etnografia 


tempos  antigos,  á  Peniasula  Ibérica,  onde  já  se  assinala  no  sec.  vii 
da  nossa  ora,  fica  assim  indicado  aqui  mais  um  paralelo  de  fora. 
O  desenho  do  S."''  Scortesco  apareceu  a  lume  primeiramente  num 
folheto  ou  prospecto  om  francês,  de  que  teve  a  bondade  de  me  ofere- 
cer um  exemplar,  o  de  lá  se  extrai  a  presente  gravura. 


IV 

Estremadura 


1.  Marcas  de  propriedade  de  objectos 

Os  vindimadores,  em  muitas  terras,  marcam  com  sinais  próprios 
as  asas  dos  cestos  com  que  vao  á  vindima.  Aqui  se  reproduzem  al- 
guns, observados  em  Alguber  (Cadaval),  numa  quinta  do  meu  amigo 
J.  M.  das  Nevos  Fogaça. 

Fig.  1." — O  sol  dentro  do  nm  halo.  Em  cima  as  iniciais  do  nome 
do  vindimador  ou  vindimadora.  Fig.  2." — Arvore  ou  ramo.  Fig.  3.* — 
Estilizaçao  humana.  Fig.  4.* — Cruciforme,  mas  que  ó  estilizaçao 
ainda  maior  que  a  anterior:  distingue-se  a  cabeça,  os  braços,  os 
seios,  o  tronco.  Fig.  b.'^ — Ou  guião,  ou  melhor:  bandeira  das  almas. 
Fig.  6.* — Outra,  como  creio,  bandeira  (na  parte  central  parece  que 
se  quis  representar  uma  capela).  —  Tudo  isto  constituo  temas  usadis- 
simos  em  cousas  de  arte  popular.  A  fig.  4.*  faz  lembrar  certos  dese- 
nhos ou  insculturas  de  arte  pre-historica  que  os  arqueólogos  que  tra- 
tam do  assunto  denominam  rupestre:  cf.  Relig.  da  Lusitânia,  i,  364, 
fig.  78.  Esta  figura  está  ali  ao  invés,  devia  ficar  da  seguinte  maneira: 


Boletim  de  Etnografia 


47 


Em  De  t.  em  terra,  ii,  38-39,  dei  notícia  de  muitas  marcas  de 
pescadores,  nilo  porém  gravadas  em  objectos  do  pesca,  e  sim  em  uma 
cómoda  ou  mesa  de  sacristia,  a  modo  do  registo.  O  nosso  povo  faz 
muito  uso  de  marcas  congéneres,  gravadas  om  foices,  em  acinchos 


Fig.  1 


(do  queijo),  em  aros  de  peneiras,  em  manguais,  para  quando  esses 
objectos  se  emprestam  nlo  se  confundirem  com  outros,  ou  para 
quando  se  perdem  se  saber  de  quem  silo,  etc.  Igualmente  marca 
animais  (gado  lanigero,  cavalar,  e  outros). 

O  uso  das  marcas  leva-mo  a  aludir  a  sinais  de  conta,  ou  assen- 
tos, abertos  com  canivete  em  instrumentos  do  uso  (cajados,  cabos 
de  sacho,  aros  do  queijo),  em  pedacitos  de  cana,  ou  do  pau  prepa- 


48 


Boletim  de  Etnogeafia 


Fig.  5 


Boletim  de  Etnografia 


49 


rados  ad  hoc.  Em  Tiuis-os-Moates  ha  para  estos  últimos  o  nome  do 
talas:  vid.  ITist.  do  Museu  Etnolog.,  pp.  235-23G;  e  cf.  o  Elucidário 
do  P/  Viterbo,  s.  v.  «talha  do  fuste».  Também  so  fazem  traços  em 
simples  papeis,  cora  lápis  ou  tinta,  o  em  paredes,  em  tampos  de  va- 
silhas, etc,  com  gis,  carvão,  sabão. 

Em  algumas  povoações  do  Sul  usa-so  verdadeira  escrita  conven- 
cional na  indicação  do  preço  do  certos  frutos,  e  em  assentos  de  di- 
vida a  merceeiros  que  nflo  sabem  escrever:  uma  cruz  significa  um 
tostão  (originaria  nos  anti- 
gos tostões  de  prata),  o 
traços  verticais,  um  vin- 
tém ou  dez  reis,  consoante 
o  tamanho,  por  exemplo: 


+ 


■  lõO  reis.  Noutro 


FiR.  « 


sistema  X  representa  20 
centavos,  O  dez  centavos, 
etc.  Curiosa  maneira  de  in- 
dicar que  uma  divida,  no 
primeiro  sistema,  está  pa- 
ga, é  envolver  a  conta  den- 
tro de  um  circuito  traçado 
com  lápis  ou  pena.  Em  pe- 
daços de  pau,  utilizados 
como  fica  dito,  em  cabos 
de  sacho,  e  em  cajados, 
iiidica-so,    por    exemplo: 

o  número  do  carradas  do  adubo  que  uma  parelha  de  muares  levou 
para  o  campo,  ou  o  número  de  goiras  que  ela  executa  lavrando; 

o  número  de  cestos  quo  um  homem  acarretou  na  vindima  para 
o  lagar,  ou  o  numero  de  tinas  do  uvas  levadas  para  lá  em  carros 
do  bois; 

o  número  de  cabanejos  que  uma  mulher  apanha  de  azeitona; 

o  número  do  dias  que  uma  mondadeira  ganha  ou  perde; 

o  número  de  cântaros  do  azeito  que  so  tiram  do  lagar; 

o  número  do  vasilhas  de  vinho  que  se  lançam  num  tonel  ou  numa 
pipa,  ou  d'aí  so  tiram; 

o  número  do  borregos  que  nascem  num  rebanho; 

o  número  de  cabeças  de  gado  quo  so  viMidem  de  um  rebanho;  etc. 

Do  tudo  isto  possuo  muitas  noticias,  e  tambom  apontamentos 
literários  o  comparativos.  No  I^iv.  III  da  Etnografia  Portuguesa  tra- 
tarei do  assunto  metodicamente,  o  com  algum  desenvolvimento. 

4 


50 


Boletim  de  Etnografia 


As  talas  trasmontanas,  os  assentadores,  etc,  fazem  lembrar  um 
registre  de  comjjtes  prehistorico  de  França,  de  osso,  que  citei  nas 
Religiões,  i,  344,  e  outros  que  Max  Verworn  desenhou  num  artigo 
publicado  em  1911  no  Correspondenz-Blatt  der  deutschen  Gesellsch. 
f.  Anthroj)olog .  etc,  n.°  7,  pp.  53-55.  Na  citada  Ilist.  do  Museu 
Etnológico,  p.  408,  n."  162,  dá-se  o  desenho  de  um  assentador  de 
Baião,  que  pôde  a  propósito  aqui  lembrar-se. — Para  o  conhecimento 
da  escrita  e  contagem  primitivas  ministra  pois  a  investigação  dos 
costumes  do  nosso  povo,  no  campo  indicado  e  por  comparação,  al- 
guns elementos  dignos  de  apreço.  Ainda  que  nem  sempre  semelhan- 
ças etnográficas  importam  necessariamente  comunidade  de  origem, 
importam  polo  menos  comunidade  do  operações  psicológicas. 

2,  Preparativos  de  casamento 

D'antes,  quando  estava  para  haver  um  casamento  nas  povoações 
rurais  do  concelho  de  Mafra,  eram  os  noivos  quem  ia  á  vila  comprar 
o  enxoval,  que  costumava  ser  conduzido  para  o  respectivo  lugar  ou 


Fig.  7.  — Preparativos  de  casamento 


povoaçílo  em  carro  do  bois  enrameado.  A  gravura  adjunta,  que 
assenta  numa  fotografia  que  mo  foi  oferecida  pelo  D."''  Carlos  Gal- 
vão, mostra  uma  scena  d'estas:  carro  de  bois,  com  enfeites;  carreiro, 


Boletim  de  Etnografia 


51 


ou  condutor  do  carro,  do  barrete  ou  carapuça  na  cabeça,  e  botas;  o 
noivo,  também  de  barrete,  e  calças  de  «boca  do  sino»,  com  joelhoiras. 
Parto  decorativa  e  casual  da  scena:  olmeiros  da  praça  de  Mafra; 
uma  casa  de  habitação;  curiosos. 


3.  Festeiros  de  «cirlos» 

Na  Rev.  Lusít.,  xxx,  5  sgs.,  começou  o  signatário  a  publicar  um 
artigo  a  respeito  de  círios  estremenhos,  desacompanhado  porém 
de  gravuras.  Kemedeio  agora  um  pouco  a  falha. 

As  figs.  8  e  9  reproduzem  fotografias  em  que  se  representam 
vários  festeiros  de  dois  cirios  da  Senhora  do  Cabo,  no  momento  de 
irem  para  o  Cabo  do  Espichel,  concelho  de  Sesimbra,  onde  ha  um 


Fig.  í 


Cirio  de  Montelavar 


santuário  em  que  a  Senhora  se  venera:  a  fig.  8  ó  de  um  cirio  de 
Montelavar,  do  1910;  a  fig.  9  é  de  um  cirio  do  .S.  Jon,o  das  Lampas, 
de  1930.  Tanto  Montelavar  como  S.  João  das  I>ampas  silo  freguesias 
do  concelho  do  Sintra.  Antigamente  iam  ao  Cabo  cirios  ue  vinte  o 


52 


Boletim  de  Etnogeafia 


Kiíc.  9.  —  Cirlo  de  S.  João  das  Lampas 

cinco  frèg/uesias.  Hoje  a  concorrência  é  menor,  pois  a  imagem  da 
Senhora  passa  ás  vezos  do  freguesia  para  freguesia,  sem  ir  de  cada 
uma  em  pompa  até  o  santuário. 

As  duas  fotografias  dovo-as  ao  obsequio  do  meu  colega  o  amigo 
D.*""  Carlos  Galvilo,  de  Mafra,  a  quem  já  me  referi. 


4.  Casas  da  Praia  de  Yieira 

Suspensas  em  estacas,  como  as  das  estaçOes  prohistoricas,  que 
se  construíam  em  lagos  (habitações  lacustres),  o  também  em  terra 
firmo  (em  italiano  terramare,  plural;  em  português  podemos  dizer 
terramaras):  umas  e  outras  com  muitos  vestígios  do  civilização  da 
idade  da  pedra  o  do  bronze. 

Paralelos  a  estos  sistemas  do  construçjio  temo-los  em  vários  po- 
vos selvagens  do  Dahoméi,  America  do  Sul,  Malásia,  etc. ;  e  já  AA. 
gregos  se  referiram  ao  mesmo  sistema. 

Por  brevidade  omito  citações,  que  tenho  feito,  ou  farei  noutros 
lugares. 

Depois  que  o  nosso  notável  geólogo,  o  ao  mesmo  tempo  um  dos 
primeiros  que  entro  nós  cultivaram  scientificamonte  o  estudo  da 
Prehistoria  nacional,  Carlos  Ribeiro,  no  Relatório  do  Congresso  de 


Boletim  de  Etnogravia 


53 


n?.  10 


FiK-  U 


54 


Boletim  de  Etnogeafia 


Fig.  12 


Bruxelas,  Lisboa  1873  (o  Congresso  foi  om  1872),  falou  de  cabanas 
portuguesas  construídas  á  beira-mar  sobre  estacaria,  alguns  dos  in- 
vestigadores da  Etnografia  portuguesa  tomaram  conta  do  caso,  o  hoje 
conliecem-se  entre  nós  muitos  exemplos  de  tais  tipos  de  construção. 
No  próprio  Boletim  de  Etnografia,  n."  3,  pp.  33-38,  se  falou  de  casas 


Boletim  de  Etnografia 


55 


Fig.  Vi 


da  Praia  do  Vieira  (Leiria),  mas  como  a  fotografia  do  que  se  fez  a 
gravura  da  fig.  2  dou  apenas  um  levo  aspecto  de  barracas,  e  como  es- 
tas vão  a  desaparecer,  o  que  já  aconteceu  totalmente  aos  palheiros 
da  Costa  Nova  (Aveiro),  nao  hesito  em  publicar  aqui  cinco  amplas 
fotografias  de  casas  d'aquela  localidade,  as  quais  fotografias  me  fo- 


56 


Boletim  de  Etnografia 


ram  enviadas  polo  meu  amigo,  e  ilustre  publicista,  João  Tomé  Fe- 
teira, de  Vieira  de  Leiria*.  Vid.  figs.  10  a  14. 


*  O  S.""'  Feteira  é,  por  exemplo,  autor  de  um  bem  arquitectado 
soneto  etnograíico,  intitulado  Numa  tourada,  que  faz  parto  das  Pri- 
meiras Rimas  (1927),  e  que  penso  reproduzir  om  ocasião  conveniente. 


Boletim  ue  Etnografia  57 


5.  Costumes  da  vindima  (Lourinhã) 


Os  cachos  que  se  cortam  das  videiras  deitam-so  om  cestos, 
e  os  cestos  despejam-se  om  tinas  ou  dornas,  que,  depois  do 
calcados  aí  os  cachos  pelos  vindimadores  com  os  pés,  são 
levados  para  o  lagar,  em  carros  de  bois.  Empregam-se  dois 
carros,  mas  só  serve  uma  junta.  Emquanto  está  um  carro 
a  encher  na  vinha,  vai-se  despojando  no  lagar  o  que  para  lá 
havia  sido  levado,  e  depois  a  junta  que  trouxe  aquele  leva 
esto  já  vazio. 

O  carreiro  marca  numa  haste  de  cana  delgada  (caniço) 
ou  de  vide,  abrindo  moças  com  um  canivete,  o  número  do 
tinas  que  vão  para  o  lagar,  ondo  depois  tornam  a  marc;ir-so 
as  que  entram  nele.  Também  ás  vozes,  em  lugar  de  utilizar 
o  carreiro  uma  haste  especial  (fig.  15:  haste  de  vide,  de  tama- 
nho natural,  com  23  golpes),  aproveita  para  isso  um  varapau 
de  trazer  na  milo,  como  arrimo,  um  angulo  do  carro,  ou  do 
escadote  que  sorvo  para  subir  a  este,  quando  so  lançam  os 
cestos  das  uvas  dentro  da  tina. 

A  marcação  das  tinas  que  entram  no  lagar  faz-so  no  tampo 
dianteiro  do  tonel  que  liá-do  por  fim  receber  o  vinho  (fig.  !(>). 

No  mesmo  tampo,  quando  o  tonol  ostá  cheio  do  vinho, 
e  d'ondo  este  se  tira,  aos  cascos,  para  venda,  marcam-so  com 
traços  de  gis  os  cascos  vendidos,  como  so  vô  na  mesma 
fig.  IG. 

Com  o  quo  fica  dito  cl",  o  quo  do  contagem  so  lõ  no  §  1 . 

II 

Terminada  a  vindima,  os  donos  da  casa  dão  a  adiafa  aos 
caseiros,  lagareiros  (os  homens  do  lagar,  isto  ó,  do  trabalho 
do  lagar  no  fabrico  do  vinho),  abegões  (os  quo  trabalham  com 
os  bois),  carroceiros  (quo,  como  os  abegõos  guiam  tamboui 
carros,  mas  puxados  por  burros  ou  mulas). 

A  adufa  consta  de  bacalhau  com  batatas,  azeitonas,  pão, 
o  vinho,  cozinhado  com  tanta  abundância,  que  chega  ainda 
para  o  dia  seguinte. 

O  preparo  das  batatas  com  o  bacalhau  ó  feito  pelos 
próprios  trabalhadores  junto  da  adega;  e  a  refeição  ó  tomada    rig.  15 


58 


Boletim  de  Etnografia 


dentro  d'esta,  estando  eles  sentados  om  bancos  que  arranjam  ad  hoc 
(tábuas  assentes  ao  acaso,  etc).  Naturalmente  reina  grande  anima- 


Fig.  16 


ção  em  todos  os  convivas,  motivada  sobretudo  pelo  espumante  licor, 
que  já  os  Gregos  adoravam  como  dom  de  um  deus. 


O  que  na  primeira  parte  d'este  artigo  se  diz  da  contagem  das 
tinas  de  uvas  obsorvei-o  eu  próprio  na  Lourinha,  em  1934,  na  quinta 
om  que  habita  o  mou  ilustre  amigo  o  D.'"  Mário  Braga,  que  com 
muita  amabilidade  me  liavia  convidado  para  ir  lá  passar  dois  dias, 
e  a  cujos  filhos  devo  a  fotografia  que  serviu  para  a  fig.  16.  A  haste 
representada  na  fig.  15  ofereceu-m'a  o  caseiro  da  quinta.  A  segunda 
parte  do  artigo  baseia-se  em  informações  que  lá  tomei. 


Boletim  de  Etnoghafia  59 

V 
Alentejo 


1.  Penedo  dos  casamentos 

Na  herdade  do  Montinho,  á  beira  da  estrada  que  conduz  á 
Aldeia  do  Mato,  concelho  de  Reguengos  de  Monsaraz,  e  perto  da 
povoação,  ha  um  monólito  de  granito,  de  pouco  mais  de  um  metro 
de  alto,  com  uma  saliência  em  cima,  que  faz  lembrar  um  chapéu. 

Rapazes  e  raparigas  solteiros  qae  por  ali  passem,  e  desejem 
saber  se  casarão  nesse  ano,  tomam  três  pedrinhas  do  chão,  sobem 
acima  de  outro  penedo  mais  baixo,  que  dista  d'aquole  cinco  ou  seis 
metros,  para  o  Sul,  voltam  as  costas  ao  primeiro  penedo,  e  aventam 
as  pedras,  seguidamente,  com  a  mão  esquerda,  para  cima  da  sa- 
liência de  que  se  falou:  se  as  três  pedras  ficam  lá,  casam  todas; 
se  não,  não. 

Outra  versão  diz  que,  se  se  deitam  abaixo  pedras  que  já  para 
o  penedo  haviam  sido  atiradas,  permanecem  os  consulentes  ainda 
solteiros  tantos  anos,  quantas  forem  as  pedras  caídas. 

Também  alguns  dizem  que  as  pedras  podem  aventar-se  de  fronte, 
o  que  indica  decadência  da  superstição. 

Temos  aqui  vários  ritos : 
— número  três; 

—  costas  voltadas; 
— mSo  esquerda; 

—  arremesso  a  distancia:  o  que  tudo  dificulta  o  acto. 

Deve  notar-se  que  no  monólito  está  gravada  uma  cruz  grossei- 
ramente. Não  deve  sor  cristianização  do  rito  pagão,  senão  mais 
fácil  teria  sido  derrubá-lo;  deve  ser  reforço  da  superstição. 

Esta  vai  entrando  em  decadência,  já  porque  nem  todas  as  pes- 
soas contam  o  facto,  tal  qual  acima  se  expôs  —  foi  preciso  ouvir 
muitas  para  apurar  o  que  se  disse —  já  porque,  segundo  outra 
versão,  basta  atirar  as  pedras  de  frente. 

Ao  penedo  dão-se  três  nomes :  jjedrejêra,  ouvido  a  um  rapazito ; 
penedro  do  sombrêro,  ouvido  a  uma  veliia;  ^;rí'mê/-o  somhrêro,  o  mais 
usual. 

Pedrejêra  está  por  apedrejêra,  acto  de  apedrejar;  cf.  brincadeira, 
de  brincar. 


GO 


Boletim  de  Etno(;kafia 


Somhrêro  nflo  mo  ó  fácil  explicá-lo,  porque  nesta  região  não  se 
usa  essa  palavra,  isto  ó,  sombreiro,  nem  no  sentido  do  «guarda-sol», 
como,  por  exemplo,  na  Beira,  nem  no  do  «chapéu»,  como  no  Minho 
(cf.  hesp.  somhrêro).  Apenas  se  usa  como  sinonimo  de  somJ/raclio, 


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Fig.  1 


espécie  do  toldo,  ou  pano,  posto  sobre  paus,  no  campo,  para  os 
trabalhadores  se  recolherem  á  pressa,  o  momentaneamente,  do  sol, 
ou  da  chuva. 

Usar-so-hia  algum  tempo  somhrêro  no  sentido  de  «chapou»,  ou 
tomar-se-hia  do  hospanhol  a  palavra,  por  zombaria?  O  mais  natural 
seria  em  verdade  denominar  metaforicamente  a  saliência  do  penedo 
pensando  em  chapou.  Tão  semelhante  é  ela  a  este,  que  eu,  no  meu 
caderno  de  apontamentos,  ao  descrever  o  penedo,  empreguei  ins- 


Boletim  de  Etnografia  61 

tintivamente,   como    comparação,   a  palavra  cJ/ajjeii,   antes   de  ter 
ouvido  o  nome  que  o  povo  emprega. 

Quanto  a  primêro,  ou  primeiro,  provirá  o  epitoto  de  estar  o  pe- 
nedo antes  do  outro  de  que  so  falou,  e  que  serve  para  se  subir 
a  ele,  ou  provirá,  como  alguém  me  explicou,  do  ser  ali  a  primeira 
paragem  dos  acompanhamentos  quando  os  cadáveres  iam  d'antes 
a  enterrar  á  igreja  de  S.  Pedro,  antiga  matriz,  que  fica  solitária 
no  monte  (rural)  de  S.  Pedro  (hoje  a  matriz  6  dentro  da  Aldeia 
do  Mato:  orago  a  Senhora  do  Rosário)? 

Quem  escreve  estas  linhas  esteve  in  loco  em  19-X-1932,  e  de  lá 
trouxe,  como  curiosidade,  uma  das  muitas  pedrinhas  que  juncavam 
o  chão  junto  do  monólito. 

Por  falta  de  tempo,  abstenho-me  de  juntar  paralelos  d'este  uso, 
que  conheço,  de  cá  e  do  fora. 

* 

A  fotografia  em  que  assenta  a  gravura  foi  tirada  pela  Ex.™*  S.'* 
D.  Maria  Inácia  Perdigão,  prendada  e  gentil  filha  do  meu 
amigo  o  S."'  Inácio  Carneiro  Perdigão,  rico  proprietário  em 
Reguengos  de  Monsaraz. 

2.  Chocalhos  e  objectos  congéneres 

Os  objectos  gravados  nas  figuras  adjimtas  são  todos  eles  de 
metal,  e  trazidos  pelo  gado  ao  pescoço: 

a)  chocalho  de  debrum,  e  badalo  de  madeira,  para  bois,  vacas, 
éguas:  alt.  0'",25*  (fig.  2); 

b)  esquila  para  cabras:  alt.  0"',075  (fig.  3); 

c)  chocalho  para  cabras:  alt.  0"',19  (fig.  4); 

d)  chocalho  para  porcos:  alt.  O'",  11  (fig.  5); 

e)  outro  chocalho  para  porcos:  alt.  O"', 105  (fig.  G); 

f)  chocalho  sem  debrum  (o  batente),  também  para  porcos:  alt. 
O^QÒlfig.  7); 

g)  cascarei,   para   fazor   parte   de   rjuiseirn   do  gado   muar:   alt. 

(r,04  (fig.  8). 

* 

As  gravuras  assentam  em  des(Mihos  feitos  no  Sibôrro,  em  1933, 
por  F.  Valença,  Desenhador  do  Museu  Ktnologico. 


*  Também  ha  chucalhos  som  dol)rum,  de  badalo  de  metal. 


62 


Boletim  de  Etnogeafia 


Fig. : 


Flg.  S 


Flg.  4 


Fig.  r, 


Fig.  6 


Fig.  7 


Fig.  8 


VI 
Algarve 


1.  Carrinha 

É  múltipla  em  Portugal  a  nomenclatura  do  instrumento  de  trans- 
porte, chamado,  de  modo  geral,  carro. 

No  Alto-Aloutejo  (Tolosa),  por  exemplo: 

—  carro,  por  excelência;  puxado  por  duas  mulas,  com  ou  sem 
toldo,  o  qual  carro  serve  para  condução  de  pessoas,  e  de 
fardos.  Corresponde  ao  que  noutros  sítios  do  Alentejo 


Boletim  de  Etnografia  63 

se  chama  vulgarmente  car7-o  alentejano,  e  que  quando 
tem  toldo  se  chama  cai-ro  de  canudo,  por  causa  do  as- 
pecto que  apresenta. 

—  carroça,    menor    que   o   antecedente,    e   com    uma   tábua 

atravessada,  quo  servo  do  assento;  é  puxado  por  um 
só  animal  (burro,  etc). 

—  carreta.  E  o  carro  de  bois. 
Todos  estes  carros  têm  duas  rodas*. 

No  Algarve  distinguem-so  os  seguintes  tipos. 

—  carro  de  carga,  de  duas  rodas,  e  de  molas  d'aço.  Eara- 

mente  sem  molas.  A  um  carro  que  não  tem  molas  d'aço 
chamam  por  graça,  tanto  no  Algarve,  como  no  Alen- 
tejo, de  molas  de  azinho.  O  carro  de  carga  é  de  duas 
espécies: 

a)  de  besta  só-,  e  por  tanto  de  varais; 
h)  de  parelha,  e  por  tanto  de  príteca  (prítica),  espécie 
de  timão  (tomilo)  ou  cabeçalho. 
O  carro  de  carga,  como  o  nome  bem  o  indica,  servo  só  para 
transporte  de  fardos;  raramente  o  utilizam  para  transporto  de  pes- 
soas. 

—  carrinho  de  Lagos.  Em  regra  tem  duas  rodas,  raras  vezos 

tem  quatro.  O  carrinho  de  Jjigos  6  como  o  carro  de 
carga,  mas  menor,  o  mais  aperfeiçoado.  De  varais, 
pois  o  puxa  um  burro  ou  um  muar  pequeno.  Servo 
apenas  para  transporto  de  pessoas. 

—  carrinha,  que  vai  ocupar-nos  um  pouco  mais:  vid.  a  fig.  1. 

Tora  duas  rodas  e  dois  assentos  laterais,  o  um  na 
dianteira  para  o  cocheiro.  Do  cortinas,  o  capota  ou 
tejadilho.  Com  ou  som  molas,  puxado  por  um  cavalo. 
O  leito  sobro  o  comprido,  e  do  uns  2  metros  X  1"',20, 
é  de  pinho;  os  limões  (vigas  longitudinais  onde  assenta 
o  madeiramento  do  carro,  o  transmitem  o  pCso  da  carga 
ao  eixo)  e  os  varais  sao  de  eucalipto;  os  raios  das 
rodas  são  do  manguo,  ou  do  azinho;  a  príteca,  de 
castanho. 

—  carreta,  ou  carro  do  bois. 


•  Carro  de  quatro  rodas,  só  o  trem;  mas  este  pertence  á  civi- 
lização geral. 

*  Besta  no  Algarve  designa  propriamente  um  equino,  um  asinino, 
um  muar. 


64 


Boletim  de  Etnogkafia 


Fig.  1  — Carrlnlia  algarvia 


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iík.  '-'  —  Vanda  de  batata  doca  cm  Lagos 


Boletim  de  Etnografia  65 


2.  Tenda  de  batata  doce 

A  batata  está  om  um  panelão  de  lata,  de  duas  asas,  e  tampa 
correspondente,  o  qual  é  levado  num  carro  de  mão,  puxado  por  um 
rapazinho,  rapariguinha,  ou  mulher,  que  volta  as  costas  para  o 
panelao,  e  segura  com  as  mios  os  varais.  O  panelao  tem  estas 
dimensões:  altura  1"',5;  diâmetro  O'", 55.  Pendente  d'elo  vEo  as 
balanças;  e  ficam  ao  pé  os  pesos. 

Vid.  a  fig.  2,  que  nos  mostra  que  quem  conduz  o  carro  é,  no 
nosso  caso,  uma  rapariguinha  descabelada.  Temos  aí  representado 
ao  mesmo  tempo  um  cabaz,  que  pendo  de  um  dos  varais.  Este  ó  de 
cana,  e  contém  bolos  (doces),  que  se  vendem  a  par  com  as  batatas. 

Um  kilo  de  batatas  custa  um  escudo;  antes  da  actual  crise 
económica  vendia-se  por  20,  30  reis.  Os  bolos  custam,  cada  um, 
10  centavos;  outr'ora  vendiam-se  a  5  reis. 

A  venda  de  batatas  doces  faz-so,  mais  ou  menos,  por  toda  a 
Boira-mar  algarvia,  mas  algures  o  panelao  não  vai  em  carro :  levam-no 
dois  rapazitos,  segurando-o  cada  um  por  sua  asa. 

3.  Chaminé 

No  vol.  III  da  Revista  Lusitana  (1893-1895),  num  artigo  reprodu- 
zido depois  na  Historia  do  Museu  Etnológico,  p.  56,  escreveu  o  autor 
d'estas  linhas  o  seguinte:  »Em  chaminés  ha  grande  variedade:  no 
Alentejo  parecem  túmulos  (por  exemplo,  om  Ponte-de-Sôr),  no  Al- 
garve semelham  elegantes  zimbórios  e  minaretes;  com  alguns  tijolos 
e  um  pouco  de  cal,  o  Algarvio  edifica  sobro  o  telhado  ás  vezes  obras 
de  arte  verdadeira».  Posteriormente  alguns  especialistas  e  curiosos 
trouxeram  a  lume  vários  desenhos  de  chaminés,  o  escreveram  a  res- 
peito das  mesmas.  O  próprio  signatário  publicou  desenhos,  por  exem- 
plo, na  mencionada  J/ist.  do  Museu,  pp.  385-387,  no  Bulet.  de  Etno- 
grafia, n."  1,  p.  39,  n.»  3,  p.  12,  e  cf.  n."  4,  p.  32;  na  Alma  Nova, 
de  Lisboa  (artigos  reproduzidos  nos  Opúsculos,  v,  491-495). 

A  fig.  3  mostra-nos  belo  exemplo  de  chaminé  algarvia,  a  qual 
existe  em  uma  casa  de  Monchique;  difere  dos  tipos  usuais. 

Muitas  casas  do  Algarve  não  têm  chaminé.  O  famo  sai  por  três 
fendas  do  telhado  formadas  pela  elevação  de  três  cobertores,  que 
recebeu  para  isso  um  pouco  mais  de  argamassa. 

Nota.-  -Em  técnica  de  Arquitectura,  cobertor  é  a  telha  (tolha 
curva)  voltada  com  a  concavidade  para  baixo;  canal  é  a  telha  vol- 
tada com  a  concavidade  para  cima. 


66 


Boletim  de  Etnogeafia 


Fi^'.  3 — Chaminé  algarvia  (em  Monchique) 


Fig.  4  —  Casa  popular  do  Algarve 


Boletim  de  Etnogeafia 


67 


4-5.  Casa  popular  e  forno 

Fig.  4:  tipo  de  casa  algarvia,  dos  arredores  de  Faro  (S.  João 
da  Venda),  —  aspecto  exterior.  A  casa  tem  de  frente  a  porta  de 
entrada,  entro  duas  janelas  baixas;  na  parede  do  lado  ;ibre-so  outra, 
de  serventia;  do  telhado  sobressai  elegante  chaminé.  Casas  de 
rés-do-chao,    com    a   porta    de   entrada   posta   entre    duas  janelas 


Fig.  S  — Fdrno  dos  arredores  de  Portimão 


baixas,  como  aqui,  sSo  frequentíssimas  por  todo  o  Sul  do  Portugal, 
e  o  sen  uso  chega  ató  os  Açores:  cf.  Mês  de  sonho,  est.  x. 

Pois  que  estamos  falando  de  casas  algarvias,  demos  na  fig.  5 
a  vista,  também  exterior,  de  um  forno  do  Monte  de  S.  Sebastiílo 
(arredores  de  Portimilo),  construído  do  per  si,  fora  de  casa,  como 
também  acontece  no  Alentejo,  ao  contrario  do  que  geralmente  se  usa 
no  Centro  (Beira)  e  no  Norte  do  Portugal. 


68 


Boletim  de  Etnografia 


6.  Cabanas  de  pescadores  de  Monte-Gordo 

Monte-Gordo  é  uma  povoação  de  218  fogos  (Censo  de  1911), 
que  fica  ao  pó  do  mar  o  tem  praia  do  banhos.  Grande  parte  dos 
habitantes  dedlcam-so  á  posca. 

Alguns  pescadores  vivem  num  areal,  afastado  da  praia,  em 
cabanas  cobertas  de  colmo.  A  um  grupo  de  cabanas  chamam  bairro. 


Flg.  6 


lia  outras  que  sSo  soltas.  Figs.  G  a  8.  Estivo  de  fugida  num  d'estes 
bairros  om  15  de  Abril  do  1933,  em  companhia  do  meu  prezado 
amigo,  o  ilustro  Engenheiro  José  do  Sousa  Nunes.  Tomei  ape- 
nas, pola  rápida  demora,  breves  notas  etnográficas. 

As  cabanas  são  do  junco,  o,  como  já  se  disso,  com  tecto  de 
colmo.  A  armação  faz-so  som  ferro:  travessas  de  canas  encruzam-se 
em  traves.  O  chão  6  de  ladrilho.  Cada  cabana  possue  dois  compar- 
timentos: um  de  entrada,  onde  estão  comestíveis  e  outros  arranjos 
domésticos,  bem  como,  a  um  canto,  a  cozinha;  e  um  compartimento 
interior,  que  serve  de  quarto  de  dormir.  Se  bem  me  lembro,  os  dois 
compartimentos  separa-os  um  tabique  onde  existem  aberturas  fe- 
chadas por  cortinas  em  vez  de  portas.  Compartimento  total  da 
cabana,  desde  a  porta  de  entrada,  que  é  de  madeira,  até  o  topo, 
uns  5  metros;  largura  3  a  5  metros.  A  cozinha  forma-a  uma  caixa  de 


Boletim  de  Etnografia 


G9 


Hg.  7 


Flg.  8 


70  Boletim  de  Etnografia 

pedra,  alvenaria  caiada,  do  paredes  muito  pequenas:  0,80x0,50; 
o  fumo  sai  pela  porta  de  entrada,  única  abertura  da  habitação. 

Para  a  chavo  da  porta  na,o  se  perder  atam-na  á  ponta  de  um 
entrançado  de  cordel,  a  que  se  prende  na  outra  ponta  um  huzio: 
a  tudo  chamam  cabo  ou  cobónJio  da  chave.  O  mesmo  se  faz  pliui 
miniLS  em  todo  o  Sul  de  Portugal.  A  este  emprego  de  uma  concha, 
matéria  prima  que  gente  marítima  tem  sempre  á  mSo,  fica  paralelo 
o  servirem-se  os  pescadores  do  Monte-Gordo  do  outras  conchas 
para  vasilhas  de  azeite. 

Em  pouco  mais  de  um  quarto  de  hora  que  estive  no  local  não 
pude  colher  número  maior  de  apontamentos;  nem  ou  aqui  publicaria 
tao  pouca  cousa,  senão  fosse  o  querer  corresponder  á  amabilidade  do 
S.""'  Engenheiro  Sousa  Nunes,  que  por  minha  causa,  mas  em 
beneficio  do  estudo  etnográfico  tirou  as  fotografias,  não  somente  das 
cabanas  senão  todas  as  outras  que  cxornam  o  §  5  deste  artigo  (Al- 
garve). 


Historia  c  Etnografia 

Por  poderem  servir  de  utilidade  a  algum  leitor,  piibli- 
cam-se  adiante  uns  extractos  do  t.  v,  inédito,  e  incompleto, 
da  Hist.  da  administr.  publica  do  D."''  Gama  Barros,  os  quais 
tomei  com  permissão  do  D.""'  Henrique  da  Fonseca  Barros, 
fillio  do  grande  historiador,  e  meu  amigo  de  há  longos  anos  *. 

Se  os  referidos  extractos  —  como  de  matéria  ainda  pouco 
estudada —  têm  principalmente  valor  histórico,  ou  historico- 
geografico,  tem-no  também  etnográfico,  segundo  o  plano 
que  adoptei  na  Etnografia  Portuguesa'^:  pelo  que  cabem 
muito  bem  no  presente  Boletim,  que  eles  sobremaneira  enri- 
quecem e  honram. 


*  Quando  tomei  estes  apontamentos,  destinava-os  a  meu  uso  par- 
ticular, para  os  aproveitar,  citando,  já  se  vê,  o  manuscrito  — como 
fiz,  por  exemplo,  na  Etnografia  Portug.,  i,  20 —  e  por  isso  não  os 
transcrevi  todos,  na  integra;  depois  foi  que  pensei  que  valia  a  pena 
trazê-los  a  lume,  assim  mesmos. 

^  Vid.  o  vol.  I,  p.  24:  divisões  tradicionais  do  território  por- 
tuguês, antigas  e  modernas.  No  nosso  caso:  divisões  antigas.  A  res- 
peito do  t.  V  de  G.  Barros^  cf.  o  que  se  diz  ibidem,  p.  119. 


Boletim  de  Etnografia 


71 


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72  BOLKTIM    DE    EtNOGEAFIA 

O  lugar  do  t.  v  donde  se  extraíram  os  trechos  tem  o  se- 
guinte cabeçalho: 

LiVEO  IV — Administração  geral^ .  Titulo  I — Organização 
administrativa;  Capitulo  i — Divisão  do  território;  Cap.  ii-- 
Agentes  da  administração:  1,  Condes;  2,  Meirinhos. 

G.  Barros  costumava  juntar  no  fim  dos  seus  volumes 
notas  extensas  ou  anotações,  como  já  Herculano  fizera.  Nos 
meus  extractos  segui  o  mesmo  método,  formando  dois  capí- 
tulos: um  com  os  extractos  do  corpo  da  obra,  o  outro  com 
os  das  notas  finais.  Por  brevidade  resumi  em  todos  eles 
várias  vezes  a  matéria,  mas  as  palavras  textuais  do  A.  colo- 
quei-as  entre  comas.  De  modo  que  não  deve  o  artigo  levar 
no  fim  assinatura. — Alguma  leve  observação  que  fiz,  ou 

acrescento,  vão  entre  colchetes. 

J.  L.  DE  V. 


Extractos  do  corpo  da  obra 

Do  cap.  I  —  Divisão  do  território: 

Eesumo : 

As  circunscrições  em  que  so  dividia  a  região  peninsular  onde 
veio  a  constituir-se  a  monarquia  portuguesa  eram  nos  séculos  x  e  xi: 

território 

terra   menos   vezes   que   território,   mas   foi   a   que   prevaleceu 
depois  do  sec.  xi. 
urhs   \ 
ou      >  muito  excepcionalmente 

civítas  ) 

comitatus  ó  raro,  posto  que  comes  seja  frequente. 

Entre  território  e  terra  nâo  se  fazia  diferença.  Um  mesmo  terri- 
tório se  chama  assim  em  uns  documentos,  e  terra  noutros,  p.  exemplo, 
Alafões  {Dipl.  et  Ch.,  do  1030  e  1083,  documentos  268  e  621,  G40.— 
Fls.  1.  Em  1059,  chamava-se  terra  Portucale  a  vasta  regiSo  onde 
existiam  as  propriedades  do  mosteiro  de  Guimarães. — Fls.  1  r,. 


*  [Como  sequencia  do  Liv.  III,  que  constítue  o  vol.  iv,  impresso, 
da  Historia  da  administração^. 


Boletim  de  Etnografia  7'ò 

Conquanto  nao  digam  respeito  propriamente  á  divisão  do  terri- 
tório, não  julgou  descabido  fazer  algumas  observações  a  respeito 
das  seguintes  palavras: 

comissorium 

mandacio.  Parece-lhe  sinonimo  de  mandamentum. 

mandamento.  «É  a  nosso  ver  terra  senhorial,  um  grupo  de  vilas, 
casais,  cujos  moradores  estão  sujeitos  a  jurisdição  do  mesmo  se- 
nhorio e  obrigados  portanto  para  com  ele  a  serviços  pessoais  ou 
outros  encargos». 

urbs,  civitas,  onde  havia  igrejas  catedrais.  Ás  vezes  urb^  no 
sentido  de  território  e  de  reino. — Fls.  6v. 

subúrbio  significação  mais  extensa  que  hoje. 

coneilium,  fls.  9. 

t  Provinda,  na  significação  de  cirtíunscripçâo  mais  vasta  do  que 
a  indicada  ordinariamente  por  território  ou  terra,  ó  termo  que  se 
vê  na  Península  ibérica  em  documentos  dos  séculos  ix,  xexi,  alguns 
dos  quais  se  referem  á  que  chamam  portugalenso». 

. .  Em  915  Ordonho  II  doa  a  villa  Corneliana,  nas  margens 
do  Lima,  e  a  igreja  de  S.  Thomó,  á  Só  do  S.  Tiago,  e  diz  ser  esta 
situada  na  província  da  Galiza  . .  «in  finibus  Amaeo»  {DC,  w."  18  — 
DC,  n."  866)  fls.  23  r. 

«Na  doação  feita  por  Ordonho  II  cm  922  ao  bispo  Gomado  o 
mosteiro  de  Crostuma,  usa-so  o  termo  tFortugale»,  ora  no  sentido 
que  parece  ser  de  território  ou  provinda,  ora  no  de  villa»  {DC, 
n.°25.  — Fls.  23-A). 

«[No  sec.  X  o]  Nos  primeiros  anos  da  ultima  década  do  soculo  xi 
o  território  Portugale  fazia  ainda  parto  da  Galliza  . .  (933,  DC, 
doe.  37,  » o  mosteiro  do  Lorvão,  in  finibus  Gal/eciae».  O  doe.  de  986 
põe  aí  o  mosteiro  de  Guimarães;  em  1092  o  de  Arouca,  doe.  152  o 
790).  Fls.  24  V. 

Provituia  portugalense  no  tempo  do  D.  Henrique,  doe.  871, 
do  1098. 

D.  Afonso  Henriques:  «principo  de  toda  provincia  portugalense, 
Diss.  c/iron.,  iii,  pt.  l.^  p.  94,  n."  273,  o  p.  108,  n.«  223,  p.  116, 
n."  355  . .  Ainda  depois  do  Aflbnso  I  dar  a  si  o  titulo  de  rei,  ha 
exemplo  do  elo  chamar  provincia  a  Portugal  {Le;/es  i,  p.  432  . .  Nos 
primeiros  anos  da  ultima  década  do  século  xi  o  território  Portugale 
fazia  ainda  parte  da  Galiza  . .  [desenvolve]».  Fls.  24;;'. 


*  [O  ultimo  período  ó  repetição  do  que  está  supra.  Como  revejo 
estas  provas  sem  ter  presente  o  original  do  A.,  deixo  estar  o  que  está]. 


74  Boletim  de  Etnografia 

território  ainda  no  século  xii  no  sentido  antigo,  mas  terra  pre- 
domina. E  cita  exemplos. — Fls.  25. 

«Aproximadamente  ató  findar  o  século  xiii  as  mais  graduadas 
circunscrições  administrativas,  judiciais  e  militares  em  que  se  dividia 
o  reino,  umas  maiores  do  que  outras,  chamavamse  terras,  e  o 
superior  governo  de  cada  uma  (ás  vezes  de  mais)  estava  a  cargo 
d'um  chefe,  tenens,  escolhido  pelo  rei  entre  a  ordem  mais  elevada 
da  nobreza,  os  ricos-homens.  As  terras  comprehendiam  um  ou 
maior  numero  de  Julgados,  e  estes  constavam  de  freguesias.  Depois 
que,  no  correr  do  século  xiv,  a  existência  dos  concelhos  foi  abrangendo 
todo  o  paiz,  sao  estas  instituições  mais  vezes  designadas  nos  actos 
ofRciais  do  que  os  julgados,  e  a  designação  fazia-se  muitas  vezes 
pelo  nome  da  villa  que  era  o  centro  do  concelho,  sem  mencionar 
esta  palavra. 

»Pelos  districtos  dos  ricos-homens  ostendiam-se  também  os  cou- 
tos e  honras  com  as  suas  imunnidades,  os  concelhos,  e  os  prestamos, 
isto  é,  como  já  definiu  Herculano  (//.  de  P.,  iii,  1858,  p.  300)  =  ca8aes, 
aldeias  ou  freguesias  cujos  rendimentos,  no  todo  ou  em  parte,  rever- 
tiam em  beneficio  de  um  ^/^'^^^('■ineiro  (prestamarius):  eram  a  retri- 
buição de  um  encargo  publico,  geralmente  militar,  mas  ás  vezes 
civil  ==. 

«Desde  o  governo  do  Aftbnso  III  encontram-se  os  meirinhos 
mores  de  várias  circunscripções;  ao  districto  da  sua  jurisdicçao  chama- 
vam meirínhado,  mas  commummonte  designavam-no  pela  natural  divi- 
são chorographica  do  paiz,  determinada  pelos  rios  ou  montanhas,  e 
á  qual,  em  parto  do  século  xiv  e  no  seguinte  se  dava  também  o 
nomo  de  comarca.  Em  1342,  á  circunscripçâo  territorial  a  que  per- 
tencia S.  Martinho  de  Mouros,  onde  um  corre^erfo?- exercia  jurisdicçao, 
ainda  chamavam  meiriíihado  ou  comarca  do  meirínhado  da  Bcyra 
(Costumes  do  S.  Martinho  do  Mouros,  nos  Ined.  de  Ilist.  Port.,  iv, 
pp.  579  e  607)»  . .  Fls.  2Õ-A  a  25-C. 

« . .  Alem  de  meirinhos  do  reino,  depois  meirinhos  da  corte,  havia 
duas  classes  de  meirinhos :  os  menores,  que  representavam  uma  insti- 
tuição antiga,  já  existente  no  principio  da  monarchia,  e  na  qual  nâo 
consta  haver-se  dado  mudança  d'atribuições;  e  os  mores  (os  de  dis- 
tricto), que  em  Portugal  só  apparecem  desde  o  reinado  d'Affonso  III, 
e  eram  os  ministros  que  os  soberanos  enviavam  em  correição  por 
determinadas  circumspcrições  com  poderes  extraordinários  para  que 
nao  se  faltasse  á  justiça,  e  cumprissem  as  leis».  Fls.  27  e  21  v. 

Extintas  as  tenencias,  as  suas  atribuições  passaram,  crê  G.  Barros, 
no  reinado  de  D.  Denis,  para  os  meirinhos  mores.  Fls.  27-C. 


Boletim  ue  Etnografia  75 

Ao  nome  de  terras  sucedeu  o  de  meirinhados :  fl.  28. 

«Para  o  fim  do  reinado  de  D.  Diniz  iia  exemplo  não  só  de  se 
usar  a  palavra  comarca,  em  sentido  de  circunscripçao  adminis- 
trativa superior  ou  julgado,  mas  também  de  se  chamar  corre- 
gedor ao  nioirinho-mor»  :  fl.  28. 

D.  Diniz  dá  licença  «a  Mom  Rodrigues  de  Vasconcellos,  meirinho- 
-mor  de  Alem  Douro,  de  fazer  uma  casa  forte  [i.  ó,  «fortificada»]  no 
couto  de  Penagati,  para  ter  abi  o  corpo  salvo  quando  Ibe  cumprisse 
e  ter  abi  a  mulber  e  os  filbos,  isto,  por  se  temer  de  alguns  que  vi- 
viam entre  Douro  e  Minho  e  Uie  mostravam  má  vontade  pelo  serviço 
que  fizera  a  elle  D.  Diniz  .  .  AUude  de  certo  h  revolta  do  herdeiro 
da  coroa  . .  ».  Fls.  28-a  e  v. 

Na  Monarch.  Lvsit.,  v,  escritura  35.*,  fls.  331  vem  o  codicillo 
do  1."  testamento  de  D.  Diniz,  1299,  o  aí  se  faz  referência  aos  con- 
celhos : 

D'antre  Tojo  o  Odiana  e  de  Moura  o  de  Serpa; 

Da  Estremadura; 

D'antre  Douro  o  Mondego,  ondo  se  refere  a  Coimbi'a; 

Da  Beira,  onde  se  refere  à  Guarda; 

D'Antre  Douro  e  Minho. 

«Omitte-so  o  Algarve,  como  nota  G.  Barros,  que  talvez  andasse 
então  aggregado  a  Entre  Tejo  e  Guadiana;  também  não  falia  do  região 
transmontana,  acaso  por  estar  unida  n'osse  tempo  ao  governo  d'Entre 
Douro  e  Minho;  o  refere  o  território.  Entro  Douro  o  Mondego,  a  que 
só  achamos  nova  referõncia  na  proposta  feita  pelas  cortes  do  Coimbra 
de  1385.  Das  villas  de  Moura  faz  o  codicillo  menção  especial,  pro- 
provávelmento  por  haverem  estado  usurpadas  pela  coroa  de  Castolla, 
que  as  restituiu  a  Portugal  em  1295  [  . .  Monarch.  Lusit.,  v,  liv.  17, 
caps.  2G,  27  e  28] «. 

«Depois  que  desde  o  princípio  do  séc.  xiv,  o  uso  da  língua  por- 
tuguesa nos  documentos  públicos,  em  substituição  do  latim,  so  tornou 
mais  geral,  a  palavra  comarca  apparece  com  diftbrentes  significações ». 
Fl.  29. 

«Chamavam  comarca  a  divisão  territorial  a  que  depois  do  séc.  xv 
foi  dada  também  a  denominação  do  província;  e  neste  sentido  já  ora 
1406  as  comarcas  existentes  eram  as  que  seguidamente  enumeramos, 
e  que  correspondiam  em  numero,  o  aproximadamente  em  nomes,  às 


'  [lísquèci-me  de  tomar  nota  das  páginas  a  que  pertenciam  estes 
dois  trechos,  que  estavam  aparte,  mas  portoncom  cronologicamente 
aqui]. 


76  Boletim  de  Etnografia 

proviacias  dos  séculos  posteriores  até  o  estabelecimento  do  regimen 
constitucional  em  1834: 

sAntre  Tejo  e  Odiana,  e  aalem  d'Odiana,  reyno  do 
«Algarve;  Estremadura,  como  parte  de  Lisboa  inclusive,  e  poUo 
))llio  do  Tejo  ataa  o  mar,  o  ataa  Coimbra  inclusivo,  como  ora  anda 
»a  correiçam,  que  traz  Martim  de  Santarém,  Corregedor  por  nós  na 
))dita  Comarca;  Beira,  como  parte  por  essa  correiçam  e  Antre  o 
»Tejo  e  o  mar  atee  o  rio  do  Doiro,  e  como  parte  com  Castella; 
íAntre  Doiro  o  Minho;  Tralos  Montes».  (Lei  de  30  do  Agosto 
da  era  1444=anno  1406,  sobre  coutos  d'homisiados,  nas  Ord.  Aff., 
V,  tit.  XL,  2  e  24).  Fls.  29  o  29  v. 

Nas  Ovd.  Aff.,  ii,  tit.  Lxxxi,  24,  no  regimento  do  arraby  mor  dos 
Judeus,  diz-se:  Viseu  para  os  da  comarca  da  Beira  d'aqueii  da 
Serra,  e  Covilhã  para  os  de  Riba  de  Coa,  pela  Serra  aalem  ataa 
contra  o  Tejo»*. 

* 

[Correição  correspondo  ás  vezos  a  comarca]: 

1391:  «Vasco  Gil,  corregedor  na  correição  da  Estremadura», 
fl.  29-A  hi8. 

1336:  «Attbnso  Annes  . .  corregedor  no  reino  do  Algarve».  Fls. 
29-B. 

1414:   «Comarca  e  correição  da  Estremadura»,  fls.  29,  n."  2. 

«  .  .  se  havia  na  comarca  (província)  mais  de  um  distrito  a  cargo 
de  corregedor,  o  que  suppomos  ter  sido  pouco  vulgar  até  o  fim  do 
sec.  XV,  davam  o  nome  de  comarca  a  qualquer  d'essas  circunscrip- 
ções».  Fl.  32. 

«Alem  da  significação  restricta  de  província,  ou  de  circunscripção 
a  cargo  do  corregedor,  tinha  também  a  palavra  comarca  um  sentido 
lato». 

Do  cap.  II  —  Agentes  da  administração: 

1.  Condes: 

«A  organização  administrativa  da  província  portugalenso  antes 
de  constituída  em  condado  sobre  si,  quasi  nos  fins  do  século  xi, 
era  do  certo  muito  semelhante,  senSo  idêntica,  á  da  Galiza,  de  que  fazia 
parte  até  então.  Na  portugalense,  ao  governo  das  circunscripçôes 


$Yb 


*  [Este  apontamento  estava  noutro  lugar,  mas  fica  melhor  aqui]. 


Boletim  de  Etnografia  77 

maiores  presidia  um  conde,  e  assim  chamavam  também  nos  outros 
distritos  de  LcSo  e  Castella  ao  magistrado  que  exercia  ii'elles  a 
auctoridade  suprema  por  delegação  do  rei,  como  já  temos  por 
vezes  allegado.  (Por  exemplo  tomo  i,  p.  108  a  118,  o  112  e  120  a 
130... 

(Também  aos  condes  se  chamava  ás  vezes  duces,  sem  que  se 
descubra  diferença,  e  remete  para  Amaral,  vii,  148-149,  notas  170, 
171). 

E  cita  vários  exemplos  do  condes  no  nosso  território:  DC,  n."  259, 
de  102Õ;  n."  384,  atribuído  aí  a  1053;  n."  42,  33  o  34. 

—  n."  420  condes  e  condessas:  —  Fls.  1 

—  Villa  de  Comité,  sec.  x  a  xi,  ris.   1-A 

—  n.»  782. 

Outros  exemplos,  e  signiticaçao  do  conde,  fís.  2-Qhis. 

Diz  que  no  governo  de  D.  Ilonriquo  aparecem  nos  documentos 
algumas  vezes  condes,  mas  como  confirmantos,  o  jamais  expressa- 
mente como  presidentes  de  districtos  administrativos.  No  governo  de 
D.  Ilonrique,  do  Minho  ao  Tojo,  foi  olo  o  único,  fls.  4,  o  cf.  fls.  6. 

2  Meirinhos: 

Maiorini  rerjiit,  maiorini  maiores.  [Difícil  a  diferença]:  fls.  1. 

«O  nome  do  terras,  dado  aos  districtos  em  que  se  dividia  o 
reino,  deixou  de  se  usar  no  governo  de  D.  Diniz,  e  julgamos  que 
nos  fins  do  século  xiii».  Fls.  2()  bis. 

A  fls.  26  cita  um  doe.  de  1283  em  que  D.  Diniz  fala  já  do  um 
seu  meirinho. 

1323:  meirinho  mor  do  entre  Douro  e  Minlio,  o  remete  para  as 
Reflexões  hint.,  do  Ribeiro,  pt.  ii,  p.  40  in  fine.  Fls.  20  v. 

1303:  Pêro  Esteves  meu  meirinho,  fls.  26  r. 

1.327:  «meirinho  mór  do  Entre  Douro  o  Minho».  Fls.  31-B. 

1331.  fAs  cortes  de  Santarém  de  1331  é  que  mostram  existirem 
já  os  corregedores  como  instituiçilo  permanente».  Fls.  31-B 

Os  cargos  de  meirinho  mór  de  comarca  representavam  primeira- 
mente uma  comissílo  extraordinária  de  serviço  público,  e  portanto 
nflo  faziam  parte  da  organizaçilo  administrativa  e  judicial  que  tinlia 
o  caracter  de  pormanonte.  Fls.  31  his. 

Cita  Amaral,  vr,  p.  1(")1. 


78  Boletim  de  Etnografia 


No  reinado  de  Afonso  IV,  1325-1357,  os  corregedores  de 
comarca,  nome  que  nos  fins  do  reinado  antecedente  se  encontra  apli- 
cado a  um  moirinho-mór,  sucederam  aos  meirinhos-mores,  . .  mas 
aqueles  encontram-se  na  organização  administrativa  e  judicial  com 
caracter  de  magistrados  de  exercício  permanente;  contudo  a  insti- 
tuição dos  meirinhos-mores  não  acabou  logo.  Em  documentos 
que  vão  até  D.  Joilo  I  aparecem  ainda,  não  poucas  vezos,  em  exer- 
cido, principalmente  no  reinado  de  D.  Fernando  os  meirinhos-mores. 
Fls.  nibisv. 

E  preciso  que  meirinho-mór  se  declare  expressamente,  porque 
só  meirinho  pode  ser  o  menor.  Ib. 

«Pelo  fim  do  reinado  do  D.  Diniz,  e  sem  a  natureza  de  cargo 
permanente,  já  há  exemplos  de  se  dar  o  nome  do  corregedor  a 
um  magistrado,  a  quem  el-rei  commette  attribuições  que  nSo  difierem 
das  que  se  incumbiam  aos  meirinhos-mores». 


II 

Extracto  das  Notas  do  fim  do  volume 

Da  «Nota  i.  Para  o  fim  do  vol.  v  que  está  para  imprimir.  Refe- 
rencia ao  Borrão,  fl.  3v. 

Territórios  e  torras. 

Em  igual  sentido,  de  que  fazem  menção  os  Port.  Mon.  Tlist., 
Diplomata  et  Chartae,  até  o  fim  do  sec.  xi.  Não  se  compreendem 
senão,  com  poucas  excepções,  as  villas  ou  legares  a  cujo  respeito 
os  documentos  declaram  expressamente  o  território  ou  terra  onde 
existiam.  Para  se  estender  a  Nota  a  todas  as  villas  e  legares  a 
que  fosse  possível  fixar  a  situaçilo,  apesar  da  obscuridade  da 
matéria,  seria  necessário  um  grosso  volume». 

E  tem  a  lápis  ao  lado:  sSao  49  territórios». 

Depois  menciona: 

Aguiar  —  ver  Aquilar. 

Alaplioen,  Alaholeines  otc. — Alafões. 

Alvarenga. — Pi'oximo  do  Paiva  (vila  de  Alvarenga,  cone.  de  Arouca). 

Anogia. 


Boletim  de  Etnografia  79 

Aquilar,  terra. — no  concelho  de  Paços  de  Ferreira.  ..  Do  antigo 

concelho  de  Aguiar  de  Sousa. 
Arauz.  —  No  concelho  da  Lousã,  Serpins.  Eio  Arouce. 
Arouca. 
Baian,  terra. 

Basto:  território,  doe.  n.°  755,  de  1091.  Fala-se  de  povoações  per- 
tencentes hoje  a  Cabeceiras  e  Celorico  de  Basto,  talvez  também 
a  Penafiel. 

Bemviver,  terra.  Igreja  de  Tuias,  no  território  de  Bemviver,  hoje 
no  cone.  de  Jlarco  de  Canavezes. 

Bracarense 

Calambrie.  Doe.  877,  de  1098:  Freg.  de  S.  Pedro  de  Castellõcs,  con- 
celho de  Macieira  de  Cambra:  villa  Castellanus. 
Castro-Portolla.  Doe.  870  de  1098.  Nao  localiza. 
Centum  Cortes.  Doe.  6G0,  de  108G.  No  curso  do  Vouga. 

ColimbriensG 

Condeixa.  Anlubria  villa,  Doe.  658,  «Anlulria  suppomos  ser  a  actual 

freguesia  de  Anohra,  conceliio  do  Condeixa  a  Nova». 
Ezebreiro.  Doe.  12,  de  897.  Noutro  doe.  Zebreiro. 

Faria,  terra. 

Ferraria. 

«Por  território  Ferraria  siguificava-so  talvez  alguma  das  re- 
giões em  que  era  maior  a  industria  do  ferro.  As  Inquisições  gerais 
do  1220  comprohendiam  a  freguesia  de  S.  Pedro  das  Ferrarias, 
terra  de  Celorico,  onde  se  pagavam  foros  ao  rei  em  objectos  de 
ferro».  Remetto  para  o  tomo  iil,  p.  69-71. 

Território  Fornos.  Doe.  438  do  10<)4 

No  concelho  de  Castelo  de  Paiva. 
Território  Gironzo. 
território  Inter  amhas  ares. 

Doe.  ;U  do  926. 
território  Karnota.  Doe.  12,  de  897. 
território  Labrense.  Doe.  281  de  10i5."». 
Lamego,  Lamecense,  liamicense. 

Doe.  484  de  1069 

Freguesia  de  Covelo  de  Paivó 


80  Boletim  de  Etnografia 

Lattite  território. 

Kemeto  para  Bracarense. 
Miranda.  Doe.  127,  de  980 

Miranda  do  Corvo 
Muro,  mons  Muro  fracto  ete.,  território.  Cimphanes,  doe.  538  de  1070. 
Montis  Maioris,  doe.  38Õ,  de  1311 
Panoias.  Doe.  764,  de  1091:  território 
Pavia:  território 
Penafidel  ou  Penafiel 
Penafidolo  de  Covas 
Pennadelo  doe.  211,  do  1009 

«Parecc-nos  quo  território  Pennadele  em  1009  se  pode  julgar 
denominação  puramente  chorographica. 

Portugalense : 

«Território  portugalense:  ató  ser  dado  ao  Condo  D.  Henrique 
tinha  a  significação  nao  só  de  p  r  o  v  i  n  c  i  a ,  que  fazia  parte  da  Galliza, 
mas  também,  n'alguns  casos,  a  de  circunscripção  adminis- 
trativa existente  nessa  provincia;  nâo  é  raro,  porém,  que  a 
distincção  seja  difiicil,  senilo  impossível,  de  attingir. 

. .  Ainda  no  meado  do  sec.  xii  aparecem  exemplos  da  mesma 
expressão  [território  portugalense]  posto  que  já  de  longa  data 
não  representasse  nenhuma  ligação  com  a  Galliza. 

. .  Não  pode  haver  duvida  em  que  já  nos  princípios  do  sec.  x 
o  território  portugalense,  que  ficava  até  uma  certa  região  ao 
Norte  do  Douro,  e  que  se  extendia  para  o  Sul  até  onde  iam 
chegando  as  conquistas  . .  mencionava-se  ordinariamente  só  por 
si,  embora  como  parte  da  Galliza;  todavia  em  1092  . .  era  ainda 
na  Gallitia  que  se  dizia  ficar  o  território  d'Arouca  (Doe.  790). 
Quanto  ao  lado  Norte  do  Douro  faltam  provas  sufficientes 
para  affirmar  ató  onde  chegava,  anteriormente  ao  governo  do 
Conde  D.  Henrique,  essa  terra  que  os  documentos  do  sec.  x  e  xi 
chamam  portugalense».  E  cita  Herculano,  Ilist.  de  Port.,  2.*  ed., 
1853,  p.  189,  onde  fala  do  districto  do  Porto  (desmembrada  d'ele 
a  Feira)  como  pertencente  ao  districto  de  Coimbra  do  cônsul  Sis- 
nando. 

«Delegada  no  Conde  pelo  sogro  a  administração  da  pro- 
vincia, o  território  d'esta  deixou  de  estar  incorporado  no  da 
Galliza,  o  servia-lhe  de  limites,  talvez  já  antes,  as  margens  do 
Minho  ató  o  Tejo  (Doe.  849  de  1097)». 


Boletim  de  Etnografia  81 

Portus  Carreiro,  Doe.  179,  de  1137,  iuxta  Sanctum  Petrum  do  Ca- 
naveses. 

Santa  Craz,  Doe.  672. 

Sancta  Maria  (Civitas),  DC.  n."  977,  discurrente  rivulo  Mediano  in 
território  Portugalense.  —  Feira. 

Pinitelo,  doe.  767.  Pindelo,  concelho  do  S.  Pedro  do  Sul. 

Sancti  Salvator.  — Cinfães  Doe.  491. 

Sause. 

Sena. 

Senabria,  doe.  n."  459.  Faria  perto  de  Gironzo. 

Seniorim. 

Timillopus  doe.  101  e  107. 

Tulensis,  doe.  778.  —  Desconhecido. 

Varganense. 

Velaria. 

Visense'. 

Da  «Nota  ii»  do  fim  do  volume: 

Foraes  dados  por  D.  Fernando  I  de  Castela  a  varias  terras  da 
província  portugalense  (S.  JoSo  da  Pesqueira,  Penella,  Paredes,  Li- 
nhares, Ansiães):  Leges,  i,  343.  —Remete  para  o  texto  ms.  fls.  13  v. 

Da  «Nota  iii:» 
«Nota  III,  Observ.  sobre  a  data  do  documentos  atribuídos  ao  sec.  ix 
e  alguns  a  respeito  dos  Diplomata  et  Chartae,  Borrão,  fi.  23». 

Da  tNota  iv:  Tenencias.yt 

Tenencias  de  terras,  desde  o  Conde  D.  Henrique,  com  designações 
de  nome  igual  ao  de  territórios  ou  terras  que  existiam  anteriormente 
ao  seu  governo.  Aguiar,  Alafões,  BaiJlo,  ete. 

Da  f  Nota  v  para  o  fim  do  tomo  v» : 
Referencias  ao  Borrflo,  fls.  29  A. 


Províncias 
Alqàrve  : 

1254:    uma   doaçSo   régia   da  Chancell.   de  D.  Af.  III,  liv.  i, 
fls.  81:  Petrtia  lohania  de  Purtello  tenens  Algarbium. 


'  [Nos  manuscritos  de  Gama  Barros  há  um  maço  que  diz:  «Villas, 
legares,  etc,  mencionados  nos  Diplomata  et  Chartae^.  Alfabetado. 
D'e8te  maço  foi  que  ele  extractou  o  que  fica  dito  das  terras]. 


82  Boletim  de  Etnografia 

1260:  doação  de  Miranda,  e  foral  de  Silves,  com  a  mesma  data: 
Affonso  Peris,  na  doação  como  teente  o  Algarue,  no  foral 
como  tenens  Algarhium.  Legea  i,  707. 

Sec.  XV :  correição  do  Algarve  e  d'Entre  Tejo  e  Guadiana. 

1482:  corregedor  do  reino  do  Algarve.  No  mesmo  ano:  Conde 
do  Faro,  adiantado  em  o  reino  do  Algarve  d'aquein  e  Entre 
Tejo  e  Guadiana. 

Cliaucelaria  de  U.  JoSo  II,  fl.  '?>Qv. 
G.  Barros,  fls.  1  e  li/. 

Antee  Doiro  e  Minho: 
1253:  o  Minio  usque  ad  Dorium  nas  Leges,  i,  192. 

«Também  na  opinião  de  Ribeiro,  Rejlex.  hiat.,  parte  2.*,  p.  4, 
lhe  chamavam  Aquém  dos  Montes.  Já  citámos  um  exemplo  da  era 
1388  (anno  1350),  alegado  por  Viterbo  no  Elucidário,  vb.  Talha, 
mas  sem  explicar  a  que  província  correspondia  esse  nome. 
Ribeiro,  que  tan)l)em  o  aponta  nas  Reflexões  históricas,  é  que  lhes 
acha  a  correspondência  referida.  [Faz  referencia  ao  Borrão, 
fls.  28-B].  D'outro  modo  se  lhe  refere  el-rei  D.  Diniz  cm  carta 
do  10  de  Janeiro  de  1323,  dirigida  a  todolos  Meyrinhos  alcaides 
comendadores  juizes  tahaliões  e  a  todolos  meus  vassalos  e  aos 
vassallos  do  Inffante  Don  Affonso  meu  filho  e  a  todalas  as  outras 
justiças  e  aportelados  e  concelhos  d'ANTKE  Doiuo  e  Mixno  também 
d'AALEM  DOS  MOXTES  como  d'aquem  (Chancellaria  de  D.  Diniz, 
liv.  III,  fls,  148  d). 

As  expressões  d'aalem  dos  montes  come  d'aaquem^,  referidas 
a  instituições  que  ficavam  entre  Douro  e  Minho,  parece-nos  que 
se  podem  interpretar  por  alto  e  baixo  Minho. 

Em  1437  passavam  a  pertencer  á  correição  d'Entre  Douro 
e  Minho  os  legares  de  Gaia  e  Villa  Nova,  que,  por  estarem 
na  margem  esquerda  do  Douro,  se  diziam  situados  na  Estrema- 
durasi.  —  Fls.  1  u  o  2. 

Corregedores  A' Entre  Douro  e  Ave. 

[Cita  Ribeiro,  Reflex.  hist.,  pt.  2.",  p.  3.  Corregedores  em 
1328,  1330,  1388,  1409,  1429:  ib.,  pp.  54-55]. 


[No  parágrafo  anterior  está  escrito  d' aquém  em  vez  de  d'aaquem]. 


Boletim  ])e  Etnoguaiia  83 

Inquirições  de  1258  aí  nessa  regifio. 

«Vè-se,  pois,  que  a  segunda  comarca  [Entro  Douro  e  Ave] 
andava  algumas  vezes  aggregada  á  de  Entre  Douro  o  Minho». 
Fls.  2-A,  e  2-A  v. 

Antre  Tejo  e  Odiaxa: 

«Alemtejo  ó  designação  do  território  já  usada  em  1271.  D.  Jofio 
d'Aboim,  mordomo  do  rei,  exercia  n'esse  auo  a  tenencia  ultka 
Tagum  (Chancell.  de  D.  Affonso  III,  liv.  i,  f1.  105,  e  liv.  iii, 
fl.  1  v)]  ainda  a  conservava  em  1273  (Foral  de  Montalegre  o  no 
dos  Moiros  forros  d'Evora  (Leges  et  Cbnsuet.);  e  em  1278  com 
o  cargo  de  mordomo  do  rei  accumulava  o  de  teexte  Alemte- 
Gio  . .  (Chancell.  de  D.  Aftbnso  III,  liv.  i,  ti.  144).  -Fls.  2  e  2v. 

«Com  o  nome  de  Riba  de  Odiaxa  existia  uma  comarca  em  25  de 
Maio  de  1490  .  .  (Chancell.  de  D.  João  II,  liv.  xiii,  ti.  53);  mas 
não  sabemos  se  existia  só  por  si,  ou  fazendo  parte  da  comarca 
de  Entre  Tejo  e  Odiana.  Neiu  antes  nem  depois  a  tornámos  a 
ver  mencionada».  —  I''ls.  2  òis. 

Beira  (Berta,  Tkaxssekuam): 

[Cita   a   miuliu   exjjlicação    de   Beira  na  Jlist.  <lo   Mii)<en    Etno- 
lógico, p.  52.  e  acrescenta  :j 

«A  lei  de  Atlbnso  III  . .  que  proibia  exportação  da  prata,  é  fa- 
vorável a  ossa  etimologia:  . .  omne?,  frontarian  berias  et  jwi-tits  tam 
per  maré  quam  per  t erram  (Leges,  i,  2.53,  n."  59)». 

iBeira,  sem  data  de  auno,  encontra-so  . .  na  doação  de  Tendaes 
por  D.  Aftbnso  III».  (Chancell.  de  D.  Aftbnso  III,  liv.  i,  foi.  17). 

«No  século  xiii  chamavam  indistintamente  Beuia,  Bkika  ou 
Traxssekka  à  região  cujo  nome  depois,  mas  só  no  século  xiv, 
ficou  sendo  de  Heika. 

«Nao  se  deve  portanto  confundir  a  província  Tkans  Serram 
com  aquella  que  se  designou  primeiro  pelo  nome  do  PANOIAS,  e 
mais  tarde  por  Tralosmoxtes,  mas  abrangendo  então  um  território 
muito  maior •. 

[Menciona  textos  em  que  se  faz  distinção  entro  Tranaserra  e 
Paiioiiias,  por  exemplo,  no  Arc/ieulogu  Furtug.,  vi,  1901,  pp.  202 
a  204]. 

Fls.  2t).  e  3. 


84  Boletim  de  Etnogeapia 

1262:  Martiaus  Egidii  tenens  de  Trasseream. 
1268:  Petrus  lohanis  tenens  terram  de  Beria. 
1270:  O  mesmo:  tenens  Transserram. 
Fls.  4. 

1265:   «bens  situados  in  Beria»;  Celorico  de  Bena,  in  loco  qui 

decitur  ]^>spedrada  in  Beiia. 
Fls.  3  A. 

o  . .  parece  nRo  ter  sido  menos  vulgar  do  que  Beira  o  termo 
Transekra  para  designar  a  tenencia  a  que  davam  ambos  esses 
nomes.  Ueika  ó  que  se  encontra  menos  vezes». 

Fls.  3  bis. 

«As  Reflex.  hist.,  2."  parte,  p.  56,  citam  (em  1363)  . .  um  corre- 
gedor Entre  Douro  e  Tejo  e  Riba  de  Côa  . . 

Nas  Orden.  Affonsinas  (v,  tit.  lxi,  2  e  24)  a  Beira,  segundo  uma 
lei  de  1406  . .  estendia-se  da  correição  de  Estremadura  entre  o  Tejo 
e  o  Mar  até  o  rio  Douro,  e  partia  com  Castella». 

1463:  comarca  de  Ruía  de  Coa  (com  um  meirinho  menor);  e 
toda  Comarca  da  Beira,  cujo  corregedor  o  investiria.  «Vo-se, 
pois,  que  não  tinha  então  Riba  de  Coa  corregedor  próprio,  o 
era  o  da  Beira  que  ahi  superintendia». 

Fls.  b  ebv. 

«  .  .  entendemos  que  se  trata  . .  da  correição  da  Beira,  e  que 
esta  se  estendia  até  as  margens  do  Coa  . . 

«Ribeiro,  Rejlex.  Hist.,  parto  2.''',  p.  4,  entende  também  que  cor- 
regedor entre  Douro  e  Tejo  corresponde  a  cornígedor  da  Beira». 

Fl.  5  A. 


Estremadura : 

«Até  o  século  xiri,  durante  quasi  todo  o  período  da  reconquista,  a 
palavra  stremadura  designava  os  territórios  onde  já  dominavam 
08  christãos,  mas  fronteiros  àquelles  que  estavam  ainda  sujeitos 
aos  musulmanos». 

Cita  um  doe.  de  960,  Dipl.  et  Chart.,  n."  81,  em  que  se  men- 
ciona: in  ipsa  stremadura. 


Boletim  de  Etnografia  85 

«O  condo  D.  Henrique  e  infanta  sua  muliíer  . .  em  1114  diziam  de  si 
quo  reinavam  em  Portugal  e  na  Estremadura,  Coimbra,  Visou, 
o  Seia».  Ler/es,  i,  359.  «Contra  a  authonticidade  (resto  foral  nuuii- 
festa-se  Ribeiro  nas  Dissert.  Chroti.  iv,  pt.  1.*,  p.  15,  e  a  favor 
Herculano,  Ilist.  de  Port.,  i,  nota  vii  no  fim  do  volume». 

Portugal  e  Estremadura:  1130,  Leges,  i,  368. 

1145:  LoiKjrovia  in  Extrematara,   Elac.  vb.  Tempreiros,  t.  ii, 

nota  de  p.  353, 
1169:  Extrematui-am  tenens:  Ehic,  s.  v.  Maiorino. 
1179:   Eluc,  s.  v.  Portatíco. 

Talvez  1211:  Orden.  Aff..  tit.  xxxi;  Leçjes,  i,  164,  n."  32. 
1235,  Mon.  Lus.,  iv,  fis.  273  í-  e  escrito  xiu  (aliás  xvii). 

«Tornadas  definitivas  até  Lisboa  as  conquistas  que  Fernando  líagiio 
levou  até  Coimbra,  converteu-se  a  denominação  Extremadura 
em  nome  próprio  de  provinda,  na  qual  se  comprehendia  também 
a  região  chamada  modernamente  Beira  Baixa,  mas  essa  região 
pertencia  á  correiçílo  da  Beira,  o  designava-se  por  Comarca  de 
Riba -Côa. 

«Ribeiro,  (Memor.  autlienticas  para  a  Ilist.  do  Real  Archivo,  p.  168, 
nota  1)  observa  que  no  tempo  do  rei  D.  Manuel  a  Beira  Baixa 
se  representava  comarca  de  Extremadura.  Importa  porém  adver- 
tir que  o  sentido  que  o  auctor  usa  aqui  da  palavra  comarca,  é 
induliitavelmeate,  a  nosso  ver,  o  de  p7-ovincia,  única  accepçao 
que  nos  parece  ella  pode  ter  n'osse  trecho.  Nas  Reflexões  Jiistó- 
ricas,  parte  2.*,  p.  3,  também  Ribeiro  diz  que  no  reinado  de 
D.  Pedro  I  a  correição  d'Eutre  Douro  o  Tejo  se  oxtendia  a 
Riba-Côa,  mas  alii  também,  p.  4,  refere  (pie  a  pruruwia  de 
Estremadura  terminava  pelo  Norte  no  Douro,  comprehendendo 
toda  a  Beira  Baixa  até  o  reinado  de  D.  Duarte,  (jue  d'ella  des- 
membrou, para  o  Minho,  Gaia  o  Villa  Nova  do  Porto.  Fez-se 
esta  alteração  por  carta  de  27  de  Novembro  de  1437,  como 
informa  o  mesmo  auctor  a  p.  116  dos  Additamentos  á  Si/nopsc 
ClirviiologiccD). 

Orden.  Affoiís.,  no  regimento  do  arraby  mor  dos  Jud<íus,  distingue: 

Antre  Doiro  e  Minho. 

Trallos  Montes. 

Comarca  da  Beira  d'aquem  da  Serra  (Viseu), 


86  Boletim  de  Etnografia 

Elba  de  Côa  pela  Serra  aallom  (Covilhã). 

Estremadura  (Santarém). 

Entre  Tojo  e  Guadiana  (Évora). 

Algarve. 

Liv.  II,  tit.  Lxxxi,  24. 

1533.  Uma  carta  rogia  de  12  do  Março:  Coimbra  o  varias  vilas 
constituíam  «uma  correição  e  ao  mesmo  tempo  provedoria 
apartada  das  da  Extremadura». 

1572.  Um  alvará  régio  diz  que  a  comarca  do  Coimbra  está  na 
comarca  da  Beira.  —  Fls.  6  a  8i;. 

Tras-OS-Montes: 

«Na  última  década  do  sec.  xi  apparece  um  documento  citando 
Panonicu,  como  território  onde  existiam  varias  propriedades  (Dipl. 
et  CJiart.,  doe.  764,  de  1091).  Sob  esse  nome  abrangia-so  um  terreno 
que  podemos  dizer  vasto,  pois  as  inquirições  gerais  de  1220  já 
registaram  n'elle  trinta  o  três  freguezias  (i,  p.  39  a  40);  mas  não  com- 
prehendia  todo  o  espaço  que  pertence  ao  actual  distrito  de  V.  Real. 

Para  designar  todos  os  mais  territórios  que  entestavam  com  o 
do  Panoias  parece  que  não  havia  então  um  nome  especial,  o  que 
também  o  não  tinha  o  território  do  moderno  distrito  de  Bragança,  que 
forma  agora  com  o  de  V.  Real  a  província  de  Tras-os-Montes.  Era 
porém  Bragança  uma  terra  já  de  certa  importância  antes  de  lhe  ser 
concedido  o  foral  de  1187  {Leges,  i,  463),  que  lhe  chama  algumas 
vezes  vllla,  mas  ainda  mais  civitate,  e  conclue  declarando  que  por  elle 
dá  o  soberano  á  cidade  de  Bragança  e  aos  seus  povoadores  inte- 
gralmente e  para  sempre  a  cidade  de  Lampazas  com  seus  termos. 
O  foral  foi  confirmado  por  D.  Aflf.  II  em  1219  (ibid.,  p.  464)  e  por 
D.  Aff.  Ill  em  1253  (N.  Malta,  i,  486,  nota»). 

1258.  Inquirições:  terra  de  Bragança,  N.  Malta,  i,  485,  §  279. 

(G.  Barros,  fls.  9- A). 
Importância  de  Bragança:  Revordanos'  de  Bragancie,  isto  é, 

talvez  dependente  de  Bragança.  Tenencia  de  Bragança  é  das 

(jue  mais  vezes  se  citam  nos  documentos. 


[Rebordãos]. 


Boletim  de  Etkografia  87 

«Quando  foi  quo  so  principiou  a  usar  d'essa  denominação  [Tras- 
-os-^Iontes],  que  comprehendia  toda  a  província  liniitropho  de  Entro 
Douro  o  Minlio,  por  lado  do  Occidente,  e  da  Beira,  pelo  Sul,  nfto  o 
sabemos.  Vemos  porem  quo  na  carta  régia  de  10  de  Janeiro  do  1335 
o  na  de  4  de  Julho  do  1340.  relativas  a  inquirições  e  confirmações 
de  jurisdicções,  já  D.  Atibnso  IV  denomina  d'Alem  dos  ^Iontks  a 
província  cujo  nome  corrente  foi  depois  Tralos  Montes:  Ribeiro, 
Mem.  (las  inquirições  e  das  conjírmaçòes  réf/ias:  does.  n.*  42,  p.  121 
das  Inq.,  e  n.°  iv  das  Conjiria.,  p.  8». 

138Õ:  cortes  de  Coimbra,  num  dos  capp.,  menciona-se  Tralos 
Montes. 

1305:   Trás  os  Montes,  carta  regia,  na  Chancell.  do  D.  João  I, 

liv.  II,  fl.  132. 
(Fls.  8i-.  a  9A  bis). 

Àquem  Douro  e  Alem  Douro: 

«Sao  expressões,  usadas  nos  documentos,  i)rincipalmonte  do 
século  XIV,  relativas  a  divisão  de  território,  e  cuja  significação 
portanto  importa  que  procuremos  definir. 

Aquém  Douro.  Em  2  de  Outubro  do  1307  (era  1345)  occupava 
o  cargo  de  meirinho-mór  d'AQUEM  Douro  Estevam  Rodriguis,  o 
d'ALE.M  Douro  Pedro  Esteveins  .  .  Nessa  data  participa-lhes  El-Rei 
D.  Diniz  que  enviava  ahi  Appariço  Goncalvis  . .  com  as  instruções 
que  havia  de  observar  contra  o  facto  de  posteriormente  ás  inquiri- 
ções realizadas  sobre  a  existência  de  logares  privilegiados  (etc,)». 
E  cita  Ribeiro,  Mem.  das  Inqiiir.,  does.  23  e  24. 

Os  julgados  onde  Appariço  Goncalvis  exerceu  o  mandato  do  Rei 
eram  na  Beira,  em  Trás  os  Montes,  e  Beria. 

De  Trás  os  Montes  restam  só  as  cartas  relativas  a  Mesão  Frio 
e  V.  Real.  E  cita  Ribeiro,  oh.  cit.,  p.  82. 

Parece  do  texto  (jue  os  julgados  eram: 

Entre  Douro  e  Minlio; — Lanhoso. 
B.  Alta,  Lamego. 
B.  Baixa,  Trancoso. 

Traz  os  Montes    -Penaguião,  V.  Real,  ^lesfío  Frio. 
Fls.  10-10  r,  e  outra  sem  numero. 

Seguom-se  duas  pastas  com  Aquém  Douro  e  Alem  Douro. 


88  Boletim  de  Etnogeafia 

Aquém  Douko: 

«Para  acrescentar  em  Beira». 
Resumirei: 

Em  tempo  de  D.  Diniz  dava-se  o  nomo  de  Aqukm  Douko  a  um 
melrínhado  que  não  sabemos  se  abrangia  toda  a  provinda  da  Beira, 
ou  só  parte  d'ela. 

Eiu  1321  compreendiam-se  nele  os  julgados  de  Lamego,  Castro 
Rey,  Pena  Juyam  (^Penajóia),  S.  Martinho  de  Mouros,  Aregos 
(concelho  cuja  cabeça  era  a  actual  freg.  de  Anreade),  e  mui/tos  ou- 
tros lugares.  Cita  Eibeiro,  Me7n.  das  inquir.,  doe.  35. 

Em  1307  era  meirinho-mór  de  Aquém  Douro  Estevam  líodri- 
guis  (Mem.  das  Inquir.,  doe.  23.°,  p.  61). 

Depois  cita  o  Eluc.  s.  v.  Algo,  1:  Castrorrej  que  foi  chamado 
Tarouca^. 

Alem  Douro: 

«Para  artigo  separado» 
Resumirei: 

1050,  Dipl.  et  Chart.,  n.°  378:  Trás  Doiro,  e  acrescenta  G.  Bar- 
ros:  «é  preciso  dizer  . .  onde  os  prédios  aí  citados  ficam  situados». 

1321.  O  julgado  de  Penella,  entre  Douro  e  Minho,  em  Ponte  de 
Lima  o  Villa  Verde  fica  neste  território  de  Alem  Douro,  Ckancell. 
de  D.  Diniz,  liv.  iii,  fl.  134. 

«Alem  Douro.  Este  nome  abrangia  a  região  d'Entre  Douro  e 

Minho,  e  aquela  que  se  designou  primeiro  por  Panoias». 

. ,        ^^  l  Entre  Douro  e  Minho 

Alem  Douro:  \  „ 

I  Panoias. 

1286:  Garcia  Rodrigues,  «meirinho-mayor  d'Alemdoyro».  G.  Pe- 
reira, Does.  de  Évora,  i,  32,  n."  22. 

1318.  «Ainda  aparece  exemplo  de  se  abrangerem  na  expressão 
Alem  Douro  as  duas  provindas  de  Entre  Douro  e  Minho,  e 
a  que  depois  se  chamou Tralos  Montes» :  ChanceU.  de  D.  Diniz, 
liv.  III,  íl.  197  V 


*  [Das  relações  entre  Castro-Rey  e  Tarouca,  e  das  ruinas  d'aquele 
perto  da  povoação  de  Dalvaros,  iala-se  no  Livro  da  fundatjào  do 
mosteiro  de  Salzedas,  de  Fr.  Baltasar  dos  Reis,  Lisboa,  Imprensa 
Nacional,   1934:  vid.   a  Introdução  que  fiz  a  esta  obra,  p.  xxiv]. 


Boletim  de  Etnografia  89 

1339.  Alem  Douro  numa  carta  regia:  Chancell.  de  I).  Aff.  IV, 
liv.  IV,  fl.  39». 

«O  termo  Alem  Douro  não  é  de  applicação  forçosamente  restrita, 
porque  o  que  é  Aquém  para  os  habitantes  do  uma  margem,  ó  Alem 
para  os  da  margem  oposta.  Compara  com  Alem-Tejo. 

«Servem  estas  considerações  para  abonar  a  possibilidade  de  que 
no  século  xii  a  expressfto  Alem  Douro  tivesse  um  sentido  opposto 
ao  que  lhe  deram  depois». 

[O  maço  é  conjunto  de  apontamentos]. 

Da  mesma  Nota  v: 

Algarve fis.  1 

Antro  Douro  e  Miuhu fls.  1  v 

Aalem  dos  Montes  =Alto  Minho.    .    .    .  fls.  1  v  o  2 

Aaquem  dos  Montes  =  Baixo  Minho    .    .  fls.  1  v  e  2 

Antre  Tejo  e  Odiana tis.  2 

Alentejo Hs.  2 

Beira,  Transerram íls.  2i; 

Riba  de  Côa fls.  5 

Estremadura íls.  6 

[Traz  os  Montes,  sem  nome] tis.  8  u 

Alem  dos  Montes tis.  9  e  9j; 

Aaquem  Douro,  aalem  Douro Hs.  10 

Em  pasta  separada,  outra  vez: 
Aquém  Douro. 
Alem  Douro. 

Num  maço  de  gen|eralidades  (divisões  do  território). 

«Circunscripções  especiais  que  nJlo  tinham  a  qualidade  de  perma- 
nentes, e  apparecom  portanto  só  durante  o  tempo  om  que  se  exercia 
a  missão  para  a  qual  se  tinham  creado.  Corregedorias  que  não 
correspondiam  a  províncias,  nem  a  correição  ordinária  de  corregedor. 

Alguns  exemplos  até  o  fim  do  sec.  xv: 

Meirinho  mór  de  Alem  Douro  em  1280  fíeflex.  Iiiat.,  2."  pt., 
p.  40,  «nota  minha». 

Meirinho  mór  antre  Douro  e  Mondego  1324.  Ih.  p.  42. 

Meirinho  mór  entre  Douro  e  Tâmega  1325  Ib.  p.  42. 

Meirinho  mór  aquém  Douro,  1282,  1284,  e  muitos  outros,  dos 
quais  o  mais  moderno  ó  de  1326,  Ib.  p.  43. 


90  Boletim  de  Etnografia 

;\[eirinho  mór  entre  Douro  e  Tejo,  1345,  1359,  13G6.  Ib.  p.  43. 
Corregedor  entre  Douro  e  Ave,  1328,  e  outros  . .  Ib.  p.  54. 
Corregedor  entre  Douro  e  Tejo,  1345,  Ib.  p.  55. 
Corregedor  entre  Douro  eTejo  o  Iliba  de  Coa,  1363,  Ih.  p.  56». 

<iUm  doe.  de  1053,  n.°  384,  Dipl.  et  Cliart.,  chama  terram  por- 
tuí/alensiu  a  um  logar  entre  Douro  e  Vouga». 

«Para  certos  oíieitos  houve  uma  divisão  especial.  Por  exemplo, 
iiouve  um  tabelUado  d'Entre  Doiro  o  Mondego.  1482.  Chancell,  de 
D.  João  II,  liv.  m,  íl.  60. 

Seguem-se  outros  maços  ou  pastas,  com  apontamentos: 

Condado.  Vários  sentidos  d'e8te  termo. 

Julgados,  villaa,  concelhos,  vmtenas,  e  freguesias :  «Chamavam 
condados  a  grandes  terras,  dadas  pelos  reis  aos  fidalgos»  (Linha- 
gens); condado  talvez  no  sentido  local,  onde  havia  caça  grossa; 
nome  de  terras. 

Vintena.  «Era  a  infima  divisão  administrativa».  Kemete  para: 
«Administração  geral:  agentes  da  administração  gorai:  vàitanariosv. 
(Da  Nota  v). 

Comarca  dos  contadores,  e  almoxarifados: 

Divisão  de  território:  almoxarifado  da  Guarda,  398;  de 
Leiria  e  Óbidos,  1473,  ete.  Para  os  efeitos  fiscais. 

Contador  da  comarca  de  Tralos  Montes  pertencialhe:  Mon- 
corvo, 1435. 

Termina  a  nota  V  e  o  volume  ou  maço  grande 
da  Historia  da  Administração  de  Gama  Barros 


/yiouros  c  Judeus  na  arte  portuguesa 


II 

Judeus 


O  que  aqui  poderia  dizer,  ainda  que  resumidamente,  da  historia 
e  vida  dos  Judeus  conto  dizê-lo  um  pouco  mais  de  espaço  no  Liv.  II 
da  Etnografia  Portuguesa,  Pt.  ii.  Cf.  já  também  o  cap.  ix  da  minha 
Antroponimia,  p]).  387-421. 


Boletim  de  Etnocírafia 


91 


Zacuto  Lusitano 


Para  contudo  iiào  Ht-ar  esto  arti^ío  sem  ii."  ii,  visto  (jue  o  n."  i 
o  consagro!  a  Mouros,  reproduzo  do  um  livro  i)ortuíruês,  Zacuto 
Lusitano,  de  Maximiano  L(ímos,  Porto  1909,  uma  gravura  com  quo 
este  distinto  iiisturiador  da  nossa  ^lodicina  o  adornou  artisticamente: 
vid.  a  fig.  adjunta.  Zacuto  Lusitano  nasceu  em  Lisboa  em  1575, 
de  pais  judeus,  e  faleceu  em  Amsterdilo  em  1G42.  Tendo  estudado 


92  Boletim  de  Etnografia 

em  Salamanca  e  Coimbra,  e  tendo-so  formado  em  Siguenza  em 
^ledieina,  notabilizou-so  nesta  scieneia,  já  como  cliaico,  já  como  autor 
de  várias  obras.  Depois  de  viver  entre  nós  por  vinte  anos,  retirou-se 
para  Holanda,  impelido  por  perseguiçáo  religiosa.  Além  do  que  o 
D.""'  M.  Lemos  escreveu  d'ele  no  mencionado  livro,  já  do  mesmo  médico 
ele  lalara  na  Ilist.  da  Medicina  em  Portugal,  ii  (1899),  30-40. 

J.  L,  DE  V. 


Expediente 


Conquanto  editado  pela  Imprensa  Nacional  de  Lisboa,  o  n."  õ 
do  presente  Boletim,  continua  a  sair  a  lume  sob  a  égide  do  Museu 
Etnológico.  Por  isso  podia  figurar  no  frontispício  o  nome  do  actual 
director  efectivo  do  Museu,  o  D."'  Manuel  Heleno;  mas  o  ilustre 
professor  e  arqueólogo  quis  declinar  de  si  aquele  direito,  transfe- 
rindo-o  inteiramente  para  mim,  como  único  responsável,  que  sou,  da 
publicação :  e  muito  lhe  agradeço  a  condescendência  que  teve  comigo, 
e  que  devo  á  sua  amizade. 

Lisboa,  Vò  de  Abril  de  1938. 

J.  L.  DE  V. 


Observação  final 

A  figura  emblemática  do  frontispício  foi  extraída  da  Ilist.  do 
Museu  Etnológico  Português.  Lisboa  1915,  p.  393,  n."  127:  brin- 
quedo infantil,  feito  de  casca  de  nóz,  e  denominado  rela  ou  arreia. 

As  gravuras  que  embelezam  o  texto  das  páginas  19  (n.°*  8,  9, 
10),  22  (n."'  13,  14),  24  (página  inteira),  2G  (n.°  19),  32  (página 
inteira),  47  (n.»  1),  48  (página  inteira),  49  (n.»  6),  57  {n."  15),  62 
(n.°*  2  a  8),  assentam  em  desenhos  executados  do  natural,  com  o 
costumado  esmero,  pelo  S.*""  Francisco  Valença,  desenhador  do 
Museu  Etnológico.  Quanto  ás  restantes  gravuras  diz-se  a  proveniên- 
cia dos  desenhos  nos  respectivos  artigos. 

J.  L.  deV. 


ÍNDICE 


Fontes  de  investigação  etnográfica 5 

Estampas  etnográfica? 16 

Um  bobo  do  século  xiv 20 

Lume  e  iluminação 22 

Arte  &  Etnografia 27 

Esmolas  para  S.  Lazaro 29 

Espécimes  de  etnografia  por  províncias  : 

I.  Entre-Douro-e-Miiilio 30 

II.  Trás-os-Montes 33 

III.  Beira 35 

IV.  Estremadura ,    .  40 

V.   Alentejo 59 

VI.  Algarve G2 

Historia  &  Etnografia 70 

Mouros  e  Judeus  na  arte  portuguesa:  11  —  Judeus 90 

Expediente 92 

Observação  final 92 


( 


índice  alfabético  do  «Boletim"  n."^  i  a  5 


abanadores,  abanos,  abanicos, 
para  avivar  o  lume:  iii,  43. 

açafate:  i,  9. 

Adelino  das  Neves  (etnografo). 
sua  biografia  e  obras:  i,  15- 
21;  II,  28. 

agua,  engenho  do  a  tirar  dos  po- 
ços, ou  cegonha:  i,  32-33;  v, 
36.  Comparação  com  um  exem- 
plo da  Transiivania. 

aguadeiras  do  sec.  xv-xvi:  m,  7. 

aguilhào  de  pedra,  do  moinho: 
II,  40. 

aldeãos  do  Alentejo:  ii,  26. 

aldravas  de  ferro,  artísticas,  de 
bater  á  porta:  i,  26. 

Alentejo,  panoramas  e  costumes: 

I,  39;   tipos    de   aldeãos:    ii, 
26-27;  objectos  etnográficos: 

II,  39;  arranjo,  asseio  na  casa: 

III,  18-27. 

alminhas  do  Minho:  iii,  38-39. 

alpendre  de  capela:  ii,  46;  alpen- 
dre do  sec.  xv-xvi:  iii,   10. 

amuletos,  lista  de  muitos  amule- 
tos portugueses:  iv,  52;  amu- 
leto de  coral:  iv,  50-53. 

ancinho  (ou   engaço   barrosão): 

IV,  55. 


animais  domésticos.  Vid.  choca- 
lhos, côfo. 

Antropologia  Portuguesa:  resumo 
da  sua  historia.  Bibliografia: 
IV,  5-19. 

antropomórficos  (bolos):  i,  31. 

arado,  sec.  xvi:  ii,  16. 

armas  do  sec.  xv-xvi,  lança  e 
espada:  iii,  6-8. 

arreios  do  sec.  xv-xvi:  iii,  7. 

arribana:  iv,  34. 

arte  e  etnografia:  ii,  13;  v,  27- 
29  (três  estudos  de  Malhoa). 

arte  popular:  i,  34-35. 

assobio  de  barro,  com  figura  de 
sereia:  i,  37. 

assoprador  de  madeira  para  avi- 
var o  lume:  m,  44. 

azenhas  do  sec.  xv-xvi:  iii,  8. 
azulejos  etnográficos :  ii,  55-57 ; 
do  parque  de  Santa  Cruz  do 
Coimbra:  iii,  13-14. 

B 

bancão  da  Beira:  ii,  51. 

banho-santo:  ii,  34. 

barcos  e  naus,  sec.  xv-xvi:  ii, 
19;  barcos  do  sec.  xv-xvi: 
III,  8-9;  barcos  do  Tejo:  ii. 


96 


Boletim  de  Etnogeafia 


48-50;  barcos  de  Aveiro:  i, 
29-30. 

barqueiro,  trajo:  ii,  54. 

barracas,  casas  do  litoral  assen- 
tes em  estacas:  iii,  33. 

barreia  (moda  de  palha  milha  ou 
centeia):  iii,  46. 

barrete,  apontamentos  históricos: 
II,  23-24;  étimo:  n,  23;  bar- 
rete açorico:  iv,  55. 

batata  doce  (venda  de):  v,  G5. 

batente  de  porta  (de  forma  de 
animal):  ii,  27-28,  53-54. 

berços  infantis :  i,  50;  berço  prin- 
cipesco: i,  51. 

bicado,  vasilha  do  barro  (Alen- 
tejo): IV,  55. 

bispo  (figura  de  um),  sec.  xvi: 
II,  19. 

boas-festas  dadas  pelos  vendedo- 
res de  jornais  e  carteiros:  ii, 
33-34. 

bobo  do  sec.  xiv,  algumas  noti- 
cias históricas:  v,  20. 

boeiras  de  telhado:  v,  33-34. 

bolo  antropomórfico:  i,  31. 

bonecas.  Vid.  chaminés. 

botelho,  recipiente  feito  de  ca- 
baça, para  conter  pimenta:  iv, 
20. 


cabaça,  objectos  feitos  de  cabaço 
ou  cabaça:  iv,  19-21;  cabaça 
para  vinho:  iv,  20;  como  uten- 
sílio: II,  40;  para  sal:  iv,  20; 
de  tirar  agua:  iv,  19;  dos  lu- 
mes ou  fósforos:  iv,  19;  para 
azeitonas:  iv,  20. 

cabana  (ou  acabana)  de  guarda 
de  campo :  iv,  31-32 ;  cabanas 


cobertas  de  colmo,  de  Monte 
Gordo:  v,  68-70. 

cabrita  (espécie  de  estojo  para 
andar  a  foice  á  cinta):  iv,  57. 

caça,  sec.  xvi:  ii,  15;  ao  can- 
deio: II,  56;  representada  em 
azulejos:  iii,  14.  E  vid.  pol- 
vorinho. 

Cadaval  (Etnografia  do):  1)  Espé- 
cimes de  cabana;  2)  Casas  de 
habitação;  3j  Telhado  de  pom- 
binha; 4)  Arribaria;  5)  Adega 
e  lagar;  6)  Cesto  de  madeira; 
7)  Canga  de  bois;  8)  Padiola; 
9)  Enxada  e  sacho:  iv,  31—38. 

cadeirão  alentejano:  ii,  51. 

cágados  (recipientes  de  cortiça): 
II,  39. 

calção  (indicações  geográficas  e 
literárias):  ii,  42. 

caldeireiro  ambulante:  v,  18. 

calvário  do  sec.  xv-xvi:  iii,  10. 

campinos  do  Ribatejo,  que  fazem 
meia,  etc:  ii,  48-50. 

campo  do  Tejo:  ii,  48. 

canabarro  (vasilha):  iii,  25-26. 

canastro.  Vid.  espigueiro. 

Cancioneiro  deColocci-Brancuti: 
proposta  para  a  sua  compra 
para  a  nossa  Biblioteca  Na- 
cional: I,  6. 

candeia  de  lata,  com  enfeites: 
II,  40. 

candeio  na  caça  e  na  pesca:  ii, 
56. 

cangalho:  ii,  58. 

cangão:  n,  58. 

cangas  e  jugos:  ii,  57-60;  de  bois : 
IV :  açoricos,  57 ;  minhotos,  57 ; 
do  Cadaval:  iv,  36-37. 

caniço.  Vid.  espigueiro. 


Boletim  de  Etnografia 


97 


canudo  de  madeira  para  acender 
o  lume:  iii,  44. 

cão,  nomes  e  coleira.  Vid.  coleira 
de  cão. 

capador:  i,  41. 

capela  de  alpendre,  do  Alcanena: 
II,  46. 

capote  &  lenço:  i,  23. 

caracóis  para  iluminação:  v,  25. 

carapuça  do  pescador:  ii,  23;  de 
saloia:  ii,  23,  nota  2;  na  Ma- 
deira: i,  14. 

carrancas  fontanárias:  i,  25. 

carrinha  do  Algarve;  v.  02-64. 

carro  de  bois  do  Cadaval:  iv, 
37. 

carteiros.  Vid.  boas-festas. 

casamento,  preparativos:  v,  50; 
penedo:  v,  59. 

casas  (do  sec.  xv-xvi):  ui,  8-10; 
assentes  em  estacas:  v,  52-56; 
de  aldeia:  v,  39-44;  batente 
de  porta:  ii,  53;  de  pombi- 
nha: vid.  barracas,  cabana. 
Cadaval,  chaminés,  cozinha 
alentejana,  espelhos  do  por- 
tas, nicho  do  uma  casa. 

castanhetas:  v,  30. 

cava  de  terreno  cultivável.  Vid. 
desmantela. 

cavador,  sec.  xvi:  ii,  15. 

cavalo  que  arrasta  um  criminoso, 
sec.  XVI :  ii,  17. 

cegonha  de  tirar  agua:  i,  32. 

chaminés  do  sul  (bonecas):  i,  31; 
V,  65;  da  Estremadura:  i,  39; 
de  boneca,  Algarve,  Alentejo 
o  Estremadura:  iii,  11-12. 

chaves  de  madeira  (como  parte 
de  colar  de  cabras):  ii,  40. 

chifarro:  iii,  25. 


chocalhos  e  objectos  congéneres : 
v,  61.  E  vid.  guises. 

cinco  sentidos,  representados  em 
faiança  no  Museu  ]\Iachado  de 
Castro,  em  Coimbra,  noutras 
obras  artísticas  o  na  poesia 
popular:  ii,  5-7. 

círios  (estremenhos)  ou  roma- 
rias: v,  51. 

coberto  (ie  arrecadar  os  carros 
de  bois,  no  Minho:  iii,  46. 

cocho  (para  beber  aguaj:  ii,  39; 
(para  se  comer):  ii,  40. 

côfo  para  o  focinho  dos  bois:  V, 
31. 

colar  de  cabras.  Vid.  chaves. 

coleira  de  cão:  ii,  8;  iii,  30. 

colmo  (casas  cobertas  de):  iii,  9. 
E  vid.  cabanas. 

colónias,  algo  de  etnografia  das 
nossas  colónias  de  Africa  Oci- 
dental e  Oriental:  iv,  21-31. 

comarca  (divisão  territorial  na 
idade-niédia):  v,  75;  comarcas 
medievais:  v,  76. 

comissorium  na  idade-média:  v, 
73. 

comitatus  na  idade-média:  v,  72. 

condes  (agentes  na  administração 
medieval):  v,  76-77. 

contagem  de  caracter  primitivo: 
v,  47  e  57. 

convergência,  em  etnografia:  ii, 
58. 

copeiro,  descanso  para  guardar 
copos:  Hl,  18. 

coração  na  arte  e  poesia  popu- 
lar: 11,  53;  coração  de  ouro, 
enfeite  corporal:  ii,  52. 

coral,  como  amuleto:  iv,  50;  na 
superstição  lá  fora:  iv,  51. 


98 


Boletim  de  Etnogeafia 


corna:  ii,  40. 

corregedor  de  comarca  na  idade- 
-média:  v,  78. 

correição  na  idade-média:  v,  76. 

correio.  Vid.  carteiros. 

correntes  de  relógio,  de  madeira, 
maciças:  i,  35. 

cortêlha:  iii,  46. 

cortiça  (objectos  feitos  de):  ii, 
40. 

corucho  das  medas:  iii,  46. 

costura  (aprestos):  i,  6-9;  «cos- 
tura» de  cortiça  alentejana: 
I,  10. 

cozinha  alentejana:  ii,  35;  (banco 
de):  IV,  55. 

criminoso  arrastado  por  um  ca- 
valo, sec.  XVI :  ii,  17. 

cruzeiros  do  sec.  xv-xvi:  iii,  10. 

r> 

desmamar  os  bezerrinlios.  Vid. 
tabuleta. 

desmanteia,  na  agricultura:  iv, 
43. 

Diabo,  sua  representação  figu- 
rada, sec.  XVI :  ii,  18. 

divisão  do  território  na  idade- 
-média:  v,  72. 

dobar  (formas  de):  i,  11. 

dona  do  sec.  xiii,  seu  ideal:  l,  6. 

Duarte  d'Armas  a  cavalo,  o  um 
moço  a  pé:  iii,  5-8. 

:e 

eira:  iii,  46. 

engaço  barrosão:  iv,  55. 

escrita  de  caracter  primitivo :  v, 

49. 
esfolhada  do  milho:  i,  ,34. 


esfolhador:  iv:  de  madeira,  55; 
de  osso,  57;  i,  33.  E  vid.  fu- 
rador, sovino. 

esmolas  religiosas:  iii,  15;  (para 
Santo  António):  iii,  19;  (para 
S.  Lazaro):  v,  29. 

espécimes  de  etnografia  por  pro- 
víncias:  v,  30. 

espelhos  do  portas:  ii,  22  e  27. 

espigueiro  de  uma  quinta  do  Mi- 
nho, o  mesmo  que  canastro  ou 
caniço:  iii,  45. 

espingarda  (cano  de)  para  avivar 
o  lume:  iii,  43. 

estaleiro,  sec.  xv-xvi:  iii,  8—9. 

estampas  etnográficas:  iv,  53; 
V,  16. 

estrelas  de  figos,  guloseima:  i, 
22-23. 

etnografia  antiga  portuguesa,  re- 
presentada em  obras  de  arte: 

II,  13;  etnografia  e  arqueolo- 
gia: I,  5. 

ocex-libris»    manuscrito:   iv,   49. 
«ex-votos»,  sec.  xv-xvi:  ii,  18; 
do  madeira:  iii,  9-10. 

F 

festeiro:  ii,  46. 

figos  secos,  guloseima:  i,  22- 
23. 

fogaceiras  de  uma  procissão :  v, 
44. 

foice  do  mao,  de  cabo  ornamen- 
tado :  III,  31 ;  que  anda  á  cinta 
numa  espécie  de  estojo:  iv, 
57. 

fole  de  avivar  o  lume:  iii,  43. 

fontes  (de  agua)  na  etnografia: 

III.  29;   fonte  de  chafurdo  e 


Boletim  de  Etnogiiafia 


99 


cobertas:  v,  3õ;  fonte  de  uma 
sacristia;  iii,  17;  fontes  de  in- 
vestigação etnográfica:  v,  5. 
Vid.  carrancas  fontanárias. 

forcas  do  sec.  xv-xvi:  iii,  9-11; 
para  fazer  cordões:  v,  19. 

formão  e  maço,  sec.  xvi:  ii,  19. 

forno  de  cozer  pio:  v,  67. 

fortalezas  fronteiriças;  iii,  õ. 

funil  de  cabiiça:  iv,  19. 

furador  para  fazer  illió.s:  i,  12; 
para  rusgar  o  folhelho  do  mi- 
lho: I,  13. 

fusis  de  petiscar  lume:  v,  26. 

fuso  ou  furador  para  fazer  ilhús : 
V,  19. 

G 

gaiolas  de  grilos:  iii,  32. 

gaita  de  foles.  Vid.  gaiteiro. 

gaiteiro,  sec.  xvii:  ii,  17. 

Gama  Barros.  Extractos  de  uma 
obra  sua:  v,  72-78. 

garfeira  alentejana:  iv,  òl. 

garrafa  de  barro  (Alentejo):  iv, 
55. 

garruço  da  Beira  Baixa:  ii,  52. 

gato  preto:  iii,  30. 

gestos  artísticos,  meditação  o 
aperto  de  mão  (indicações  li- 
terárias): H,  2-^-26. 

gorro,  sec.  xv-xvi:  iii,  8. 

grelha,  sec.  xvi:  ii,  19. 

guisos  ao  pescoço  de  animais, 
apontamentos  para  a  sua  his- 
toria. Seu  caracter  magico: 
III,  13-14.  Vid.  chocalhos. 

H 

habitação:  i,  27.  Vid.  chaminés. 


igreja,  sec.  xv-xvi:  iii,  10. 

ilhó.  Vid.  furador. 

iluminação  com  caracóis:  v,  25. 

imagens  do  santos  em  lojas  de 
venda:  i,  36. 

instrumentos  músicos,  castanhe- 
tas, pandeiro:  v,  30-31.  E  vid. 
gaiteiros. 

isqueiro  de  bogalho:  v,  22. 


jornalismo  (considerações  gerais, 
e  tigura  de  um  vendedor):  ii, 
31-33;  boas-festas  dadas  pelos 
vendedores  de  jornais,  escritas 
em  verso:  ii,  33-34. 

Judeus  na  arte  portuguesa:  v,  90. 

jugos  e  cangas  de  bois.  Compa- 
ração com  a  Galiza:  ii,  58, 
comparação  com  a  Escandiná- 
via; II,  60. 


lavrador,  sec.  xvi:  ii,  16. 

leiteiro  da  Madeira:  i,  13. 

leito,  sec.  XII :  ii,  19. 

Livro  das  fortalezas  do  reino: 
III,  5. 

lojas  de  venda,  com  imagens  de 
santos:  i,  36. 

louça  do  Algarve:  cântaro,  in- 
fusa, barril:  i,  14. 

lume.  Concepções  antigas  da  sua 
produção.  Maneiras  de  o  pro- 
duzir: III,  39-42;  costumes  em 
Portugal,  modos  de  o  avivar: 
III,  43-45;  V,  22;  petiscar 
lume:  v,  26;  lume  e  ilumina- 
ção: V,  22-26.  Vid.  tubo. 


100 


Boletim  de  Etnograeia 


m: 

maço  e  formão,  sec.  xvi:  ii,  19. 

Madeira  (arquipélago),  furnas  em 
que  se  habita:  ii,  9-13. 

malha  (em  Trás-os-Montes):  v, 
33. 

Malpique  ou  Malpica  (homem  de 
calção  de):  ii,  43. 

maltês  (na  Estremadura):  iv,  48. 

mancebo  ou  velador  de  candeias : 
III,  20. 

mandacio  na  idade-média:  v,  73. 

mandador  (em  trabalho  do  cam- 
po). Vid.  desmantela. 

mandamento  na  idade-média:  v, 
73. 

manta  (mandar  da).  Vid.  des- 
mantela. 

mantilha  usada  em  Gáfete:  v, 
16. 

maquia:  iii,  28. 

marcas  de  propriedade.  Vid.  pro- 
priedade. 

mato  (condutor  de):  ii,  52. 

mechas  (vendedor  de):  v,  23. 

meda  de  palha  de  milho :  lU,  46. 

medição  poética  do  vinho:  iii,  21. 

meirinhado:  v,  74. 

meirinho-mor:  v,  74. 

meirinhos  na  idade-média:  v,  77. 

milho.  Vid.  esfolhador,  furador, 
sovino. 

Minho,  uma  quinta  (suas  perten- 
ças): III,  45-47. 

mobilia  popular  alentejana:  ii, 
51-52. 

modas  ridículas,  inconvenientes: 

I,  8;  mulher  da  aldeia:  i,  9. 
moinho  do  sec.  xv-xvi:  iii,  8; 

moinho  de  vento  do  Cartaxo: 

II,  45.  E  vid.  aguilhão. 


moleiro  do  sec.  xv-xvi:  iii,  7; 
na  etnografia:  iii,  28.  Vid. 
maquia. 

monda,  no  Alentejo:  i,  39. 

Monte  Gordo.  Vid.  cabanas. 

mordomo  ou  festeiro:  ii,  46. 

morte  (concepção  antiga  da),  sé- 
culo XVI :  II,  19. 

Mouros  e  Judeus  na  arte  portu- 
guesa: IV,  39;  V,  90. 

mulher  do  Porto  em  1870:  i: 
mulher  moderna,  seu  desleixo, 
7;  mulher  em  Cristina  de  Pi- 
san,  7;  mulher  moderna  des- 
composta, 8 ;  palavras  de  Oví- 
dio e  Garção,  e  Juvenal,  8  e 
notas;  mulher  portuguesa  an- 
tiga, ou  dona,  seu  viver,  6-7 ; 
mulher  lisboeta  do  sec.  xviii:  i, 
7;  II,  20. 

IV 

naus  e  barcos,  sec.  xv-xvi:  ii, 
19. 

Neves  (Adelino  das).  Vid.  Adelino 
das  Neves. 

nicho  de  uma  casa:  ii,  37.  Enu- 
meração de  modos  de  defen- 
der sobrenaturalmente  a  casa, 
contra  males  supostos  ou  reais. 


padiola:  iv,  37. 

palheiros,  casas  do  litoral  assen- 
tes em  estacas:  iii,  33. 

pandeiro:  v,  30-31. 

panelas  na  lareira,  sen  encosto: 
III,  27. 

panorama  cartaxeiro,  com  com- 
ponentes etnográficos:  ii,  44- 
45  e  50. 


Boletim  de  Etnografia 


101 


peixeiro,  como  anuncia  a  venda 
do  peixe:  iii,  21. 

pelote,  sec.  xv-xvi:  iii,  8. 

penteado  de  mulher:  de  poupa, 
de  pucho,  troço,  monète,  car- 
rapito,  carrapicho:  II,  41. 

pesca,  do  sec.  xvi:  ii,  15;  ao 
candeio:  ii,  56—57;  com  ba- 
teira: II,  54;  levantamento  de 
redes:  ii,  47;  cerco:  ii,  55. 

pescador  do  sec.  xv-xvi:  iii,  8; 
pescador  da  Nazaré:  ii,  48; 
da  Figueira  da  Foz:  ii,  23. 

picotas  (ou  pelourinhos):  iii. 
11. 

pingadeira  no  Alentejo:  iv.  55. 

pinhões  na  etnografia:  i,  44;  pi- 
nheiro manso,  pinheira,  der- 
rubador  e  instrumento  de  quo 
86  usa,  poceiros,  desbocha.  Pi- 
nhões nas  festas  de  Natal,  Ano- 
Bom  e  Reis.  Rabisco.  Britada. 
Assada.  Enfiadas.  Pinhoeiras. 
Rapa. 

poço  d'onde  se  tira  agua,  do  sé- 
culo xv-xvi:  III,  9. 

polvorinho  artístico:  i,  36. 

pombinha,  enfeito  do  telhado  de 
casa:  iv,  33-34. 

pontão  de  segurar  a  tampa  das 
arcas  ou  caixas:  ui,  47. 

porco,  sua  carne  migada  num 
prato  de  pau  para  se  fazerem 
chouriços:  iii,  IG.  E  vid.  ca- 
pador. 

postigo  do  porta:  ii,  27. 

poupa  de  penteado:  ii,  41. 

prato  de  pau.  Vid.  porco. 

pretos  do  Sado:  i,  40. 

primitivo  (caracter  de  industria) : 
II,  40. 


prisioneiros  carregados  de  fer- 
ros, sec.  XVI :  ii,  16. 

procissão  em  Arcoçó:  v,  17. 

propriedade  de  objectos  (marcas): 
V,  46. 

províncias.  Vid.  espécimes  de 
etnografia;  províncias  portu- 
guesas na  idade-média.  Noti- 
cia histórica  de  cada  uma  em 
particular,  v:  Algarve,  81;  An- 
tre  Doiro  e  Minho,  82;  Antre 
Tejo  e  Odiano,  83;  Beira,  83; 
Estremadura,  84;  Trás-os- 
Montes,  86;  Aquém  Douro, 
87;  Além  Douro,  87. 

Q 

quinta  minhota,  suas  pertenças: 
iii,  45-47. 

n 

raça  negra,  representada  em  Al- 
cácer do  Sal:  i,  40. 

raça  preta,  em  Alcácer  do  Sal: 
I,  40. 

ramada  ou  latada:  iii,  46. 

recipientes  de  couro  para  vinho: 
III,  14. 

rede  de  pesca  em  azulejo:  ii, 
55-56. 

religião.  Vid.  procissão,  banho- 
-santo,  cirios,  esmolas  religio- 
sas, fogaceiras  de  uma  pro- 
cissão, nicho  de  uma  casa, 
sacristia,  Santo  António,  sino 
sem  torre. 

relógios  de  algibeira.  Vid.  cor- 
rentes; relógios  de  sol  feitos 
de  pedra:  i,  24. 

remate.  Nome  de  rima  em  certos 
ritmos:  iii,  22. 


102 


Boletim  de  Etxogeaiia 


ritmos  (em  trabalho  campestre), 

manta:  IV,  44. 
roca  (provérbio):  i,  6. 
Rolland    (Francisco),    livreiro   e 

autor  de  um  livro  de  adagio:s : 

I,  43. 
rua  de  Gáfete:  in,  42. 


sacristia,  fonte:  iii,  17. 

Santo  António  numa  mercearia: 

1,  36. 
santos,  suas  imagens  em  lojas  de 

venda:  i,  36. 
S.  Lazaro.  Esmolas  para  ele.  Vid. 

esmolas  religiosas. 
sentidos.  Vid.  cinco  sentidos. 
Sereia.  Entidade  mitica  mui  usada 

como  tema  de  arte  popular :  i, 

37-38. 
sino  sem  torre,  de  Romarigães: 

v,  30. 
sovino   de  descamisar  o  milho: 

I,  35. 
superstições.  Vid.  nicho  do  uma 

casa. 


tabardo,  sec.  xv-xvi:  iii,  8. 

tabuleta  de  madeira  para  des- 
mamar bezerros:  ii,  40. 

tear  (vários  exemplos):  ii,  20. 

telhas  de  casas,  sec.  xv-xvi : 
III,  9. 

tenaz,  sec.  xvi:  ii,  19. 

terra  (divisão  administrativa  na 
idade-média).  O  mesmo  que 
território:  v,  72. 

território  na  idade-média:  v,  74. 
E  vid.  terra.  Territórios  e  ter- 


ras na  idade-média  (lista):  v, 
78-81. 

tê-te,  panela:  iii,  27. 

tipos  de  Montalegre:  iii,  45. 

tolete  (em  barco):  ii,  54. 

trajos  do  sec.  xv-xvi:  iii,  8. 
Vid.  barrete,  capote,  cara- 
puça, pelote,  tabardo.  Trajo 
de  Minde:  ii,  44;  trajo  da 
Serra  da  Estrela:  ii,  52;  tra- 
jos alentejanos  de  mulher: 
chaile  e  chapéu,  penteado;  de 
homem:  ii,  41;  trajo  de  mu- 
lher beirã:  iii,  27. 

transporte  (instrumentos  de).Vid. 
carrinha,  carro  de  bois. 

trogloditismo  (observações):  ii, 
2-9. 

«tronco,  picota,  e  forca»:  ni,  11. 

tubo  de  ferro  para  avivar  o  lume, 
de  madeira  e  de  ferro:  iii,  43. 


varandào  (e  seu  coberto)  de  uma 
quinta  do  Minho:  iii,  46. 

vasilhame  de  Nisa  (empedrado), 
de  Pampilhosa  do  Botão  e  de 
Vila  Real  (Trás-os-Monles):  ii, 
52;  vasilhame  para  vinho:  vid. 
medição  poética  do  vinho. 

vasilhas  de  barro :  cântaro,  pote, 
infusa:  i.  27.  Vid.  louça  do 
Algarve;  vasilhas  de  barro 
alentejanas:  ii,  27. 

velador  o  candeia:  iii,  20. 

vida  antiga  portuguesa:  ii,  13; 
III,  5. 

Vieira  (de  Leiria)  e  suas  casas. 
Vid.  casas  assentes  em  estacas. 

Vilar  Seco,  vários  usos:  v,  35-46. 


Boletim  de  Etkoghafia  103 

vindima:  v,  57.  racha  (de  couro),  gato  (reci- 

vinho,  medição  poética:  ui,  21.  picnte  feito  de  couro):  iii,  14. 

Vid.  recipientes  de  couro.  Bor-  Yid.  cabaça. 


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