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Full text of "Camões e a infanta D. Maria"

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Dr.  JOSÉ  HARIA  RODRIGUES 


CAMÕES 


E   A 


INFANTA  D.  MARIA 


O  meus  altos  pensamentos. 
Quão  alto  que  vos  pusestes 
li  quúo  grande  queda  destes  I 

Camões,  Redondilhas. 


(Separata  do  Instituto) 


■►♦-4" 


PQ 

9214 

R64 

1910 

cl 

ROBARTS 

<:0LM|{1<A 

Mi'i<K.N>A    DA    l.MVERSIDADE 
1910 


Dr.  José  AIaria  RooRtGCES 


CAMÕES 


1-:  A 


INFANTA  D.  MARIA 


o  meus  altos  pcnsamemos, 
(^i\ín.  alto   que   vos  puscâtc? 


l  <l\J^\  alto   que   vos  puscâlo 


(Separata  do  Instituto) 


♦►♦-^• 


COL\llM<A 

IMPWKX^V     l»\    UNIVERSIDADE 
I9IO 


niTTíní;  fNTT^fiôs  rnrnYFAVí^í^  í^n  AÍTTOR 


I)  Fontes  dos  Lusíadas  (em  publicação  no  Instituto). 

II)  Lyrica  amorosa  de  Camões: 

1 )  .4  menina  dos  olhos  verdes  (no  prelo). 


R.  5294 


INOLVIDÁVEL   MEMORIA 


DO 


MAL-AVENTURADO  PRINCIPE  REAL 


D.  luís  philippe 


PARÍ  dWM  II   \irT()H  KIIPIlEIIKMltL  OS  SKIS  ESTIUOS  I.AJIONKANOS 


A  noite  sempiterna, 

Que  tu  táo  cedo  viste, 

Cniel,  acerba  e  triste, 
Sequer  de  tua  idade  náo  te  dera 
Que  lograras  a  fresca  primavera  ? 

Camões 

Alma  gentil. 

Cá  durará  de  ti  perpetuamente 

■  o  nome  c  a  saudade. 

Camões. 


O^MOES 


A  INFANTA  D-  MARIA 


Kntre  as  encantadoras  redondilhas  de  Camões  figuram  as 
duas  voltas  ao  mote: 

Perdigão  perdeo  a  penna", 
Não  ha  mal  que  lhe  não  venha. 

Dizem  ellas,  num  tom  de  accentuada  melancholia: 

Perdigão,  que  o  pensamento 
Subio  a  um  alto  logar, 
Perde  a  penna  do  voar, 
Ganha  a  pena  do  tormento. 
Não  tem  no  ar,  nem  no  vento, 
Asas  com  que  se  sostenha. 
Não  ha  mal  qui  lhe  não  venha  ! 

Quis  voar  a  uma  alta  torre, 

Mas  achou-se  desasado ; 

E  vendo-se  depennado. 

De  puro  penado  morre. 

Se  a  queixumes  se  soccorre, 

Lança  no  fogo  mais  lenha. 

Nno  hn  m;il  tiuc  lhe  iifio  venha  ! 

O  poDic  puuig.io  ucjKMiiiado,  que  nem  ao  menos  bc  podia 
queixar,  sem  lauçar  mais  lenha  tio  foixo,  sem  aggravar  a 
sua  situação,  era  o  próprio  Camões. 

1  R.  5a9* 


o  alto  logar  até  onde  siibio  o  seu  pensamento,  a  alta 
torre  a  que  quis  voar,  era  uma  das  mais  nobres  e  mais  sym- 
pathicas  figuras  femininas  que  teem  vivido  sob  este  bello  sol 
de  Portugal:  era  a  filha  mais  nova  del-rei  D.  Manuel,  a  in- 
fanta D.  Maria  (i). 

Como  o  genial  doido,  que  tanto  soffreu  e  tanto  fez  soíTrer 
com  os  seus  erros,  com  a  sua  md  fortuita  (2),  como  o  ge- 


(i)  È  muito  interessante  a  monographia  da  Sr."  D.  Carolina  Michaelis 
de  Vasconcellos  a  respeito  d '^4  infanta  D.  Maria  de  Portugal  (i52i- 
i^TJ)  e  as  suas  damas  (Porto,  1902). 

Delia  transcrevo  aqui  a  seguinte  passagem:  «De  sangue  real,  her- 
deira da  coroa,  se  não  morresse  um  anno  antes  da  catastrophe  de  Alca- 
cer-Quebir,  pertence  á  historia  e  teve  biographos  conscienciosos.  Em 
creança  e  na  flor  da  edade  viu  refulgir  diante  de  seus  olhos  a  coroa  de 
França ;  foi  escolhida  repetidas  vezes  para  o  throno  imperial  —  orbis 
destinata  império  — e  outras  tantas  para  o  império  de  Hespanha.  Acari- 
ciando sempre,  no  intimo  do  coração,  este  ultimo  projecto,  ficou  ainda 
assim  innupta,  uma  triste  sempre-noiva.  Este  estado  tragicomico  que  lhe 
foi  imposto,  mas  que  afinal  acceitou  com  sublime  altivez,  apparentando 
tê-lo  escolhido  livremente,  despertou  a  dolente  sympathia  dos  coevos. 
E  ainda  hoje  é  capaz  de  suscitar  a  dos  pósteros»  (pag.  4). 

(1)  Basta  citar  por  agora  os  sonetos  27  e  igS  : 

Males,  que  contra  mim  vos  conjurastes, 
Quanto  ha  de  durar  tão  duro  intento  ? 
Se  dura,  porque  dure  meu  tormento, 
Baste-vos  quanto  já  me  atormentastes. 

Mas,  se  assi  porfiais,  porque  cuidastes 
Derribar  o  meu  alto  pensamento. 
Mais  pôde  a  causa  delle,  em  que  o  sustento, 
Que  vós,  que  delia  mesma  o  ser  tomastes. 

E,  pois  vossa  tenção  com  minha  morte 
E  de  acabar  o  mal  destes  amores, 
Dai  já  fim  a  tormento  tão  comprido, 

Assi  de  ambos  contente  será  a  sorte  : 
Em  vós,  por  acabar-me,  vencedores ; 
Em  mim.  pDi-que  acabei  de  vós  vencido. 


3 


nial  doido,  ao  comparar-se  com  o  perdigão  desasado,  se  devia 
recordar,  com  amarga  saudade,  do  tempo,  não  muito  afastado, 
em  que  julgava  poder  pôr  o  pensamento  em  tão  alto  logar! 

Num  tão  alto  logar,  de  tanto  preço, 

Este  meu  pensamento  posto  vejo. 

Que  desfallece  nelle  inda  o  desejo. 

Vendo  quanto  por  mi  o  desmereço. 
Quando  esta  tal  baixeza  em  mi^conheço, 

Acho  que  cuidar  nelle  é  grão  despejo, 

E  que  morrer  por  elle  me  é  sobejo 

E  mór  bem  para  mi,  do  que  mereço. 
O  mais  que  natural  merecimento 

De  quem  me  causa  um  mal  tão  duro  e  tone, 

O  faz  que  vá  crescendo  de  hora  em  hora. 
Mas  eu  não  deixarei  meu  pensamento, 

Porque,  inda  que  este  mal  me  cause  a  morte, 

fti  bel  morir  tittta  Li  vita  lionora  (i). 

(Soneto  2S2). 


Erros  meus,  má  fortuna,  amor  ardente. 

Em  minha  perdição  se  conjuraram. 

Os  erros  e  a  fortuna  sobejaram, 

Que  para  mi  bastava  amor  somente. 
Tudo  passei. . .  Mas  tenho  tão  presente 

A  grande  dòr  das  cousas  que  passaram, 

Que  já  as  frequências  suas  me  ensinaram 

A  desejos  deixar  de  ser  contente. 
Errei  todo  o  decurso  de  meus  annos ; 

Dei  causa  a  que  a  fortuna  castigasse 

As  minhas  mal  fundadas  esperanças. 
De  amor  não  vi  senão  breves  enganos. 

Oh  !  Quem  tanto  pudesse,  que  fartasse 

Rstc  meu  duro  génio,  de  vinganças  ! 

(i)  O  desvairado  sonhador  queria  tanto  ao  seu  fensjtnenio,  que  se 
julgaria  feliz  morrendo  por  elle.  E  com  que  enlevo  não  repetiria,  a  cada 
passo,  o  bello  verso  de  Petrarca  1  Com  que  intensidade  não  sentiria  o 
conceito  nelle  expresso  !  O  cantor  de  Laura  nunca  teve,  por  certo,  quem, 
neste  ponto,  melhor  o  interpretasse. 


Como  se  desvaneceu  num  munjcuuj,  l-  íoí  substituído  pela 
iriiite  realidade,  o  doce  souho  de  que  seria  amado  pela  infanta ! 

\)os:c  sonho,  suave  e  soberano,  / 

Se  por  mais  longo  tempo  me  durara  ! 

Ah !  quem  de  sonho  tal  nunca  acordara, 

Pois  havia  de  ver  tal  desengano  ! 
Ah  !  deleitoso  bem  !  ah  !  doce  engano  ! 

Se  por  mais  largo  espaço  me  enganara  ! 

Se  então  a  vida  misera  acabara, 

De  alegria  e  prazer  morrera  ufano. 
Ditoso,  não  estando  em  mi,  pois  tive. 

Dormindo,  o  que  acordado  ter  quisera. 

Olhae  com  que  me  paga  o  meu  destino  ! 
Emíim,  fora  de  mim  ditoso  estive. 

Em  mentiras  ter  dita  razão  era, 

Pois  sempre  nas  verdades  fui  mofino. 

(Soneto  279). 

Mais  tarde,  depois  de  ter  chegado  o  cruel  desengano, 
seguido  de  tantos  trabalhos  e  de  tantos  soffVimentos,  —  mais 
tarde,  com  que  dolorosa  impressão  não  seria  relido  pelo  atri- 
bulado poeta  aquelle  audacioso  soneto  129,  escripto  num 
estado  de  verdadeira  allucinação: 

Crescei,  desejo  meu,  pois  que  a  ventura 
Já  vos  tem  nos  seus  braços  levantado; 
Que  a  bella  causa  de  que  sois  gerado 
O  mais  ditoso  fim  vos  assegura. 

Se  aspiraes  por  ousado  a  tanta  altura, 

Não  vos  espante  haver  ao  sol  chegado, 
Porque  é  de  águia  real  .vosso  cuidado. 
Que,  quanto  mais  se  so^e  (1),  mais  se  apura. 

Animo,  coração !  que  o  pensamento 
Te  pode  inda  fazer  mais  glorioso. 
Sem  que  respeite  a  teu  merecimento. 

Que  cresças  inda  mais  é  já  forçoso, 

Porque,  se  foi  ousado  o  teu  intento. 
Agora  de  atrevido  é  venturoso. 


(i)  Lição  usual :  o  soffre. 


Quantas  lagrimas  não  icrid  ^..ici^.w  u  grande  dcvancador, 
se  em  seu  espirito  houvesse  prevalecido  a  sensata  conside- 
ração, expressa  no  final  do  soneto  137! 

O  filho  de  Latona  esclarecido, 

Que,  com  sei>  raio,  alegra  a  humana  gente, 

Matar  pôde  a  Pythonica  serpente, 

Que  mortes  mil  havia  produzido. 
Ferio  com  arco  e  de  arco  foi  ferido, 

Com  ponta  aguda  de  ouro  reluzente. 

Nas  Thessalicas  praias  docemente 

Por  a  nympha  Penea  andou  perdido. 
Não  lhe  pôde  valer  contra  seu  dano 

Saber,  nem  diligencias,  nem  respeito 

De  quanto  era  celeste  e  soberano. 
Pois  se  um  deos  nunca  vio  nem  um  engano 

De  quem  era  tão  pouco  em  seu  respeito  (i). 

Eu  que  espero  de  um  ser,  que  é  mais  que  humano  f 

A  ardente  paixão  do  tresloucado  poeta  pela  formosa,  in- 
struida  e  sisuda  filha  do  Rei  venturoso  constitue,  como  a  priori 
se  pôde  presumir,  o  ponto  culminante  da  sua  atormentada 
vida. 

Dessa  paixão  derivaram  factos  que  ainda  não  foram  cabal- 
mente explicados. 

É,  além  disso,  cila  que  nos  ministra,  por  assim  dizer,  a 
chave  da  maravilhosa  obra  lyrica  de  um  dos  maiores  poetas 
de  todos  os  tempos. 

Recorrendo  ao  Parnaso  (2)  do  immortal  Camões,  verdadeiro 


(1)  Para  a  plena  comprchensão  das  referencias  mythologicas  deste 
soneto  veja-se  Ovidio,  Metamnrphosesy  1,  438-567,  que  o  poeta  tinha 
bem  presente. 

(2)  Informa  Diogo  do  Couto  :  «E  aquelle  inverno  que  (Camões)  esteve 
em  Moçambique...  foi  escrevendo  muito  em  um  livro  que  ia  fazendo, 
que  intitulava  Parnaso  de  Luij  de  CamõeSy  livro  de  muita  erudição, 
doutrina  c  philosophia,  o  qual  lhe  furtaram.  E  nunca  pude  saber  no  reino 


diário  da  sua  alma  apaixonada,  vou  procurar  fornecer  alguns 
elementos  para  o  capitulo  mais  importante  da  nossa  historia 
litteraria. 

I 

Em  Lisboa 

Chronologicamente,  a  primeira  poesia  em  que  Camões  se 
occupa  da  filha  de  D.  Manuel  é,  me  parece,  o  soneto  134. 

Apresentado  á  excelsa  e  gentil  senhora  e  por  ella  affavel- 
mente  acolhido,  o  modesto  escudeiro  ficou  deslumbrado ! 

No  dia  seguinte,  o  seu  amigo  João  Lopes  Leitão,  pagem 
da  lança  do  mallogrado  principe  herdeiro,  e  pessoa  muito 
apreciada  na  corte,  recebia  estas  confidencias: 

Senhor  João  Lopes,  o  meu  baixo  estado 
Ontem  vi  posto  em  grau  tão  excellente, 
Que,  sendo  vós  inveja  a  toda  a  gente, 
Só  por  mi  vos  quiséreis  ver  trocado. 

O  gesto  vi,  suave  e  delicado, 

Que  já  vos  fez  contente  e  descontente  (1), 
Lançar  ao  vento  a  voz  tão  docemente, 
Que  fez  o  ar  sereno  e  sossegado. 


delle,  por  muito  que  o  inquiri.  E  foi  furto  notável».  (Década  viii,  c.  28). 
Seja-me  permittido  dar  o  nome  de  Parnaso  ás  admiráveis  composições 
lyricas  que  nos  restam  do  genial  poeta  e  suppôr  que  foi  elle  próprio 
que  fez  correr  lhe  haviam  sido  furtadas.  Uma  boa  parte  delias,  com  eífeito, 
não  podiam,  sem  grave  escândalo,  ser  publicadas  durante  a  vida,  quer  da 
infanta,  quer  mesmo  do  poeta. 

Não  pretendo,  porém,  com  isto  dizer  que  possuamos  hoje  toda  a  lyra 
de  Camões.  E  a  que  nos  resta  foi  baralhada,  a  meu  ver,  intencionalmente 
e  pelo  próprio  poeta. 

(i)  O  poeta  allude,  naturalmente,  a  algum  facto  análogo  (se  não  é 
o  mesmo)  ao  que  deu  occasião  a  uns  conhecidos  versos  de  Andrade  Ca- 
minha e  á  resposta  de  Lopes  Leitão.  Diz  u  rubrica,  que  precede  esses 
versos:  «A  João  Lopes  Leitão,  estando  preso  em  sua  casa,  por  entrar 


Vi-lhe  em  pou^...^  j-a.c.w\..  Jizcr  quanto 

Ninguém  diria  em  muitas. . .  Mas  eu  chego 

A  espirar,  só  de  ouvir  a  doce  fala  ! 
Oh !  Mal  haja  a  Fortuna  e  o  Moço  cego  ! 

Elle,  que  os  corações  obriga  a  tanto ! 

Ella,  porque  os  estados  desiguala  ! 

Para  bem  se  comprehende^  a  impressão  sentida  pelo  joven 
poeta,  que  bebera 

O  veneno  amoroso  de  menino, 

(Canção  II,  V.  65) 

c  que  já  então  se  tinha  na  conta  de  galanteador  emérito,  que 
roubava  vontades  alheias  e  as  matava  com  amor,  que  não 
tinha  (i),  para  bem  se  comprehender,  digo,  a  impressão  sen- 


uma  porta  a  ver  as  damas  contra  vontade  do  porteiro».  P.  de  Andrade 
(Caminha,  Poesias,  p.  36 1  (Lisboa,  1791). 

Eis  como  termina  a  resposta  do  jovial  amigo  de  Camões : 

Estou-me  agora  doendo 
De  quem  tiver  para  si 
Que  é  melhor  andar  vendo 
Verduras,  que  estar  aqui. 

Ninguém  haja  dó  de  mi. 
Por  me  ver  nesta  prisão  ; 
Hajam  de  meu  coração. 
Que  vc  tanto  dano  em  si. 

( 1 )  1  )c  vontades  alheias,  que  eu  roubava, 

E  que  enganosamente  recolhia 

Em  meu  fingido  peito,  me  manynhu. 

O  engano  de  maneira  lhes  fingia. 

Que,  despois  que  a  meu  mando  as  subjugava. 

Com  amor  as  matava,  que  eu  não  tinli.i 

Porém  logo  o  castigo  que  convinhi 

O  vingativo  Amor  me  fez  sentir. 

(Canção  2.*). 

Nesta  canção,  cscriptu  cm  Ceuta,  o  poeta  attribuc  ao  Amor  a  culpa 


tida  pelo  jovcn,  mas  ja  afamado  poeta,  transcreverei  algumas 
passagens  de  obras  e  documentos  coevos  e  de  escriptores 
modernos,  as  quaes  constituem  o  melhor  commentario  ao 
soneto  que  fica  reproduzido,  especialmente  aos  versos  5  a  lo. 
Começarei  pela  informação  que,  em  carta  de  21  de  janeiro 
de  1537,  enviava  a  Carlos  V  o  seu  embaixador,  D.  Sancho 
de  Córdova,  que  tinha  vindo  a  Lisboa  tratar  da  entrega  da 
filha  de  D.  Manuel  a  sua  mãe,  a  rainha  D.  Leonor,  já  então 
viuva  também  de  Francisco  L   Repare-se  que  o  diplomata 


do  ousado  atrevijnento,  cujas  consequências  está  soífrcndo  : 

Se  elle  (o  Amor)  ordena 

Que  eu  pague  seu  ousado  atrevimento, 
Saibam  que  o  mesmo  Amor  que  me  condemna 
Me  fez  cair  na  culpa  e  mais  na  pena. 

Depois  compara-se  a  Tântalo,  a  Ixião,  a  Ticio  e  a  Sisypho,  que  a  my- 
ihologia  clássica  figurava  como  soffrendo,  no  Tártaro,  castigos  especiaes, 
por  determinados  crimes.  Assim,  por  exemplo,  Ixião  quis  abraçar  Juno, 
mas  encontrou-se  com  uma  nuvem.  Por  isso  diz  o  poeta: 

Despois  que  aquella,  em  quem  minha  alma  vive, 
Quis  alcançar  o  baixo  atrevimento. 
Debaixo  deste  engano  a  alcancei  : 
A  nuvem  do  çontino  pensamento 
Ma  figurou  nos  braços  e  assi  tive, 
Sonhando,  o  que  acordado  desejei. 

Ao  comparar-se  com  Ticio,  que  pretendera  forçar  Latona,  começa 

assim : 

Quando  «  vista  suave  e  inhumana 

Meu  humano  desejo,  de  atrevido, 

Commetteo,  sem  saber  o  que  fazia 

(Que  da  sua  belleza  foi  nascido 

O  cego  moço,  que  com  seta  insana 

O  peccado  vingou  desta  ousadia), 

Afora  este  penar,  que  eu  merecia, 

Me  deu  etc. 


espanhol  chega  até  a  cmpi  cgar  palavras  que  também  se  Icem 
no  soneto.  «(La  seííora  Infanta)  es  persona  de  grande  enten- 
dimiento  y  cordura,  y  mui  reposada,  y  de  poças  palabras  y 
bien  dichas  y  de  las  valerosas  personas  que  he  visto»  (i). 

Quatorze  annos  mais  tarde,  em  iSyi,  recebia  a  infanta  a 
visita  do  cardial  Alexandrino,  legado  e  sobrinho  de  Pio  V. 
Eis  como  um  dos  membros  da  comitiva  do  prelado  romano 
começa  a  narrativa  dessa  visita :  «Tendo  anoitecido,  acom- 
panhados com  vinte  tochas  adiante  fomos  ao  palácio  da  in- 
fanta D.  Maria,  irman  de  D.  João  III,  a  qual,  tendo  ficado 
orphan  em  tenra  edade,  não  quis  jamais  casar,  posto  que 
fosse  robusta,  formosa  e  procurada.  Era  alta  e  teria  de  edade 
cincoenta  annos,  posto  que  não  pareça  á  primeira  vista»  (2). 

Agora  o  testemunho  de  Jorge  Ferreira  de  Vasconcellos, 
que  teve  muitas  occasiões  de  ver  a  infanta. 

Ao  dar  pormenorizada  noticia  do  celebre  torneio,  realizado 
em  Xabregas,  no  anno  de  i552,  diz  o  escriptor  cortesão  que 
«a  infanta  D.  Maria. . .  se  mostrava  a  fermosa  Minerva,  com 
que  pôde  contender  com  divida  confiança,  assi  em  rara  gen- 
tileza e  sotil  engenho,  como  toda  outra  sobre  humana  per- 
feyção»  (3). 


[  I )  Em  Fr.  Miguel  Pacheco,  Vida  de  la  Serenisstnui  Infanta  Dona 
Maria,  hija  dei  Rey  D.  Manoel,  fl.  58  (Lisboa,  1673  1 

(2)  Viagem  do  cardeal  Alexandrino.  i5-jr,  em  A.  Herculano,  Opús- 
culos, VI,  90-<)2. 

(3)  Memorial  das  proezas  da  segunda  tavola  redonda,  2.*  edição 
(Lisboa,  i8<37),  p.  334.  A  propósito  deste  e  doutros  escriptores,  observa  a 
Sr.*  D.  Carolina  Michaelis :  "Kvidcntemente,  entre  os  eruditos  da  corte 
constava  que  a  Infanta,  bizarra,  e  na  consciência  da  dignidade  do  seu 
estado,  não  admittia  que  ao  vulgo  profano  se  fallasse  das  linhas  do  seu 
rosto  ou  da  elegância  das  suas  esplendidas  formas  esculpturaes.  Apenas 
o  velho  Resende,  ao  iributar-lhe  homenagens,;  adianiava-se  até  tocar 
em  alguns  pormenores  :  os  cabellos  ruivos,  o  andar  divino,  incessu  dea. . . 
Mas  esse. . .  fallava  latim».  {A  infanta  /).  Maria,  p.  i5). 


Vejamos  agora  o  que  se  lê  cm  duas  obras  modernas. 

O  conde  de  Villa  Franca,  que  preparava  um  estudo  acerca 
da  filha  de  D.  Manuel,  apresenta-no-la  assim  :  «Alta,  de  esplen- 
didas formas,  elegantíssima,...  alliava  á  gentileza  majestá- 
tica do  porte,  denotando  grande  energia  e  isenção  de  caracter, 
uma  formosura  suavissima,  bem  revelada  na  alvura  da  pelle, 
no  azul  celeste  dos  olhos  vividos  (i)  e  na  cor  loira  dos  ca- 
bellos  que  lhe  coroavam  de  ouro  a  espaçosa  e  ampla  fronte  (2), 
onde  o  talento  espontâneo  evidentemente  se  espandia.  Este 
talento  era  ainda  abrilhantado  por  muita  erudição,  incessante 
amor  ao  estudo  e  ininterrupto  trato,  não  já  (?)  com  os  livros 
clássicos,  senão  ainda  com  os  múltiplos  escriptos  do  tempo. 


(1)0  poeta,  que,  como  veremos,  tantas  vezes  manifesta  a  sua  admi- 
ração pelos  bellos  olhos  da  infanta,  só  num  ou  noutro  logar  allude,  mais 
ou  menos  vagamente,  á  cor  que  elles  tinham.  É  assim  que  á  menina  4os 
olhos  verdes,  de  cuja  affeição  se  queria  ver  livre,  por  causa  do  novo  e 
alto  pensamento,  que  o  fascinara,  diz  elle : 

Ouro  e  azul  é  a  melhor 

Côr,  por  que  a  gente  se  perde. 

(Redondilhas). 

Na  egloga  8.",  que  talvez  seja  de  Camões,  falla-se  expressamente, 
é  certo,  nos  olhos  a^ues  de  Galatea,  que  seria  a  infanta.  Mas  não  era  de 
estranhar  que  os  olhos  da  nympha  marítima  fossem  daquella  côr. 

(2)  Como  os  cabellos  louros  eram  mais  vulgares  que  os  olhos  azues, 
o  poeta  a  cada  passo  se  refere  á  côr  dos  cabellos  da  infanta,  pois  não 
havia  perigo  de  revelar  onde  estava  posto  o  seu  pensamento.  Um  exem- 
plo, dentre  muitos : 

São  estes,  por  ventura,  os  olhos  bellos. 

Que  têm  de  meus  sentidos  a  victoria  ? 

São  estas,  nympha,  as  tranças  dos  cabellos. 

Que  fazem  de  seu  preço  o  ouro  alheio, 

imo,  só  com  vc-lo 

(Egloga  2.",  298-302). 


I  I 


considerado,  como  se  sabe,   a  idade  de  ouro   da  littcraiura 
portuguesa»  [t ). 

Transmiitindo-nos  as  suas  impressões  a  respeito  do  retrato 
da  infanta,  existente  em  Madrid,  no  museu  do  Prado,  e  exe- 
cutado pelo  celebre  pintor  António  Moro,  escreve  a  Sr.* 
D.  Carolina  Michaelis  de  Vasconcellos:  «D.  Maria  contava 
então  trinta  annos...  Chegada  apparentemente  ao  termo 
dos  seus  desejos,. . .  ofíicialmente  desposada  ao  futuro  senhor 
do  immenso  império  hispânico  (2),  a  princesa  fulgurava  como 
nunca  dantes,  em  toda  a  plenitude  das  suas  faculdades,  em 
todo  o  esplendor  da  sua  gentileza  majestática,  acariciando  a 
fugidia  esperança  de  ver  afinal  acabadas  as  intrigas  intermi- 
náveis e  deprimentes  de  que   fora  alvo.  Ainda  assim,  An- 


(1)  1).  João  I  e  a  jlliança  inglesa,  p.  275  (Lisboa,  1884). 

(2)  Philippe  de  Espanha  foi  pretendente  á  mão  da  infanta  desde  1549 
até  i552  (Sr.*  D.  Carolina  Michaelis,  A  infanta  D.  Maria,  p.  10). 

Como  não  ficaria  o  coração  do  pobre  Endymion,  loucamente  enamo- 
rado da  Lua,  da  casta  e  formosa  Diana,  ao  ouvir  fallar  em  semelhante 
enlace  ! 

Lea-se  o  admirável  soneto  \>'- 

En  una  selva,  ai  Jkspuntar  dei  dia, 

Estaba  Endimion,  triste  y  lloroso, 

Vuelto  ai  rayo  d€#  sol,  que,  presuroso, 

Por  la  falda  de  un  monte  descendia. 
Mirando  ai  turbador  Je  su  alegria. 

Contrario  de  su  bien  y  su  reposo, 

Trás  un  suspiro  y  otro,  congojoso, 

Kazones  semejantes  le  decia  : 
Luz  clara,  para  mi  la  mas  escura, 

Que  con  ese  paseo  aprcsurado 

Mi  sol  con  tu  tcnicbla  escurcciste, 
Si  alia  puedcn  moverte,  en  esa  altura, 

Las  qucjas  do  un  pastor  enamorado, 

No  tardes  en  volver  á  dó  saliste ! 


tonio  Moro  não  pôde  varrer  completamente  as  sombras  de 
uma  dolorosa  meditação  d'aquclla  lesta  alta,  'espaçosa  e  ge- 
ralmente plácida.  E  que,  entristecida  por  repetidas  decepções, 
a  filha  de  D.  Manuel  mal  ousava  dar  credito  ás  mais  solemnes 
promessas.  Como  symbolo  de  magoas,  fora  envolvendo  o 
rosto  gracioso,  de  feições  tão  regulares  e  puras,  e  parte  do 
formoso  cabello,  castanho-claro  ou  louro-escuro,  que  o  emmol- 
dura,  num  veo  ténue  que  desce  ao  peito.  A  mão  direita, 
de  afilados  dedos  aristocráticos,  segura  uma  pérola  que  lhe 
serve  de  firmai.  Uma  lagrima  reprimida  ?  Talvez.  Todavia 
o  pintor  vio  e  reproduziu  apenas  uns  olhos  azues  muito  lim- 
pidos,  com  expressão  serena  e  franca,  suavemente  perscru- 
tadora, nos  quaes  se  reflecte  uma  intelligencia  lúcida,  altiva 
rectidão  e  principalmente  um  coração  valente.  Aos  lábios 
finos,  cerrados  por  inviolável  sigillo,  e  ao  terço  inferior  da 
cabeça  não  falta  energia...  O  trage,  cujos* tons  sombrios 
dão  realce  á  singular  alvura  das  mãos  e  do  rosto,  finamente 
modelado,  está  em  harmonia,  na  sua  singeleza  distinctissima, 
com  a  nobreza  natural  do  porte  e  com  a  melancholica  suavi- 
dade da  physiognomia»  (i). 

Relêa-se  o  soneto  i34  e,  dada  a  compleição  amorosa  do 
moço  poeta,  veja-se  como  está  bem  traduzida  a  impressão 
que  nelle  devia  ter  produzido  o  gesto  suave  e  delicado  da 
filha  do  Rei  Venturoso,  a  doce  falia  da  gentil  senhora,  que 
então  se  achava  na  plena  posse  de  todas  as  suas  graças  fe- 
mininas, aureoladas  pelo  prestigio  da  ascendência  real. 

Eu  chego 

A  espirar,  só  de  ouvir  a  doce  fala ! 

exclama  Gamões,  pondo  em  confronto  o  seu  baixo  estado 


{i)  A  infanta  D.  Maria,  p.  12-14. 


3 


com  a  amabilidade  com  que  fora  recebido  portão  elevada 
personagem  ( i ). 

E  o  predestinado  do  amor,  em  quem 

-• 
As  lagrimas  «ia  infância  já  manavam 
Com  uma  saudade  namorada, 

(Canção  1 1,  32-53} 

O  predestinado  do  amor  não  pôde  conter-se  que  não  se  queixe 
do  moço  cego  e  da  fortuna,  D'aquelle,  porque  a  doce  falia  da 
infanta  o  deixou  como  morto;  desta,  porque  lhe  não  permitte 
amar  quem  tão  profundamente  lhe  havia  abalado  o  coração. 

Oh !  Mal  haja  a  Fortuna  e  o  Moço  cego ! 
Elle,  que  os  corações  obriga  a  tanto ! 
Ellii,  porque  os  estados  desiguala  ! 

Poucos  dias  depois,  dominado  por  estas  ideas,  o  poeta  foi 
assistir  ás  solemnidades  da  semana  santa  na  igreja  do  mos- 


(i)  Mais  tarde,  muito  custava  ao  enamorado  poeta  ver  essa  amabili- 
dade dispensada  a  outros ! 

Se  a  ninguém  tratais  com  desamor, 

Antes  a  todos  tendes  afleição ; 

E  se  a  todos  mostrais  um  coração, 

Cheio  de  mansidão^ cheio  de  amor: 
Desde  hoje  me  tratai  com  desfavor, 

Mostrai-mc  um  ódio  esquivo,  uma  isenção. 

Poderei  acabar  de  crer  então 

Que  somente  a  mim  me  dais  favor. 
Que,  se  tratais  a  todos  brandamente. 

Claro  é  que  só  aquelle  é  favorecido 

A  quem  mostrais  irado  o  continente. 
Mal  poderei  eu  ser  de  vós  querido, 

Se  tendes  outro  amor  na  alma  presente, 

í  )iw    rin-ir>'*    '•    pm.    nlo    r»í'»<Ír»    <.•?•    paTtido. 

(Soneto  309). 


14 


teiro  de  Santa  Clara,  onde  tinha  a  certeza  de  ver  a  infanta  (i ). 
Com  um  simples  olhar  da  angélica  figura,  que 

Parece...  tinha  forma  humana, 
Mas  scintilava  espirites  divinos, 

(Canção  ii,  75-76) 


ficou  cego  de  todo! 


Todas  as  almas  tristes  se  mostravam 

Pela  piedade  do  Feitor  divino. 

Onde,  ante  seu  aspecto  benino, 

O  devido  tributo  lhe  pagavam. 
Meus  sentidos  então  livres  estavam 

(Que  até  hi  foi  constante  seu  destino), 

Quando  uns  olhos,  de  que  eu  não  era  dino, 

A  furto  da  razão  me  salteavam. 
A  nova  vista  me  cegou  de  todo  ! 

Nasceo  do  descostume  a  estranheza 

Da  suave  e  angélica  presença. 
Para  remediar-me  não  ha  hi  modo  ? 

Oh !  Porque  fez  a  natureza  humana 

Entre  os  nascidos  tanta  differença  ? 

(Soneto  3o3).    , 


(1)  «No  tempo  provável  dos  serões  (no  paço  real)  (i538  ou  1540  até 
i55r),  o  domicilio  (da  infanta)  era  em  Santa  Clara»  (Sr.«  D.  Carolina 
Michaelis,  A  infanta  D.  Maria,  p.  83,  nota  89).  «(A  infanta  D.  Maria)  mo- 
rou no  campo  de  Santa  Clara,  nas  casas  que  tição  junto  ao  dito  mosteiro, 
que  hoje  sam  do  Desembargador  Luis  de  Abreu  de  Freitas  e  delias  ia 
ouvir  missa  ao  tal  mosteiro,  por  um  passadiço,  do  qual  se  conservam 
ainda  hoje  na  parede  alguns  vestígios».  Padre  A.  Carvalho  da  Costa, 
Corografia  Portuguesa,  111,  365-366  (Lisboa,  1712).  «Deste  mosteiro  am- 
plíssimo, exceptuando  o  dormitório,  chamado  da  benção,  e  o  dos  corre- 
dores, duas  varandas  e  algumas  capellas,  tudo  mais,  que  em  dormitórios 
e  casas  particulares  recolhia  mais  de  seis  centas  mulheres,...  ficou  ou 
de  todo  abatido  ou  irreparavelmente  arruinado  com  o  terremoto.  O  seu 
famoso  templo,  que  era  um  monte  de  ouro  e  na  grandeza  excedia  a 
todos  os  dos  mais  mosteiros  da  corte,  ficou  totalmente  prostrado,  ex- 


Ficou  captivo,  com  a  razão  perturbada: 

O  culto  divinal  se  celebrava 

No  templo,  donde  toda  a  creatura 
Louva  o  Feitor  divino,  que  a  feitura 
Com  seu  sagrado  sangue  restaurava. 

Amor  ali,  que  o  tempo  me  aguardava 
Onde  a  vontade  tinha  mais  segura. 
Com  uma  rara  e  angélica  figura 
A  vista  da  razão  me  salteava. 

Eu,  crendo  que  o  lugar  me  defendia 
De  seu  livre  costume,  não  sabendo 
Que  nenhum  confiado  lhe  fugia, 

Deixei-me  captivar.  Mas  hoje,  vendo, 
Senhora,  que  por  vosso  me  queria. 
Do  tempo  que  fui  livre  me  arrependo. 
(Soneto  77). 

Ficou  como  o  passarinho,  morto  por  traiçoeiro  caçador: 

Está  o  lascivo  e  doce  passarinho 

Com  o  biquinho  as  pennas  ordenando, 
O  verso  sem  medida,  alegre  e  brando. 
Despedindo  no  rústico  raminho. 

O  cruel  caçador,  que  do  caminho 

Se  vem,  calado  e  manso,  desviando. 
Com  pronta  vista  a  seta  endireitando, 
Lhe  dá  no  Estygio  lago  eterno  ninho. 

Desta  arte  o  coração,  que  livre  andava. 
Posto  que  já  de  longe  destinado. 
Onde  menos  o  temia,  foi  ferido, 

l*orque  o  frecheiro  cego  me  esperava, 
Para  que  me  tomasse,  descuidado, 
Em  vossos  claros  olhos  escondido. 

(Soneto  3o). 


ccpto  a  tribuna  e  costas  da  capella  mór».  J.  B.  de  Castro,  Mappa  de  Por- 
tui^al,  III,  n*>3  (Lisboa,  1870).  Todos  os  outros  edificíos  que  ficavam  nas 
immcdiaçóes  do  convento  foram  derrubados,  excepto  d  templo  de  Sinita 
Kngracia  e  a  igreja  parochial.  (Ibid.,  p.  161). 


lO 


Havia,  é  certo,  um  obstáculo  que,  desde  logo,  se  apresen- 
taria ao  poeta  como  insuperável  —  o  abysmo  entre  a  sua  situa- 
ção e  a  da  infanta  — : 

Oh !  Porque  fez  a  natureza  humana 
Entre  os  nascidos  tanta  difterença  ! 

Mas  a  voz  da  razão  foi  supplantada  pelo  magico  fulgor 
dos  admiráveis  olhos  azues  da  filha  de  D.  Manuel : 

Tomou-me  vossa  vista  soberana 

Adonde  tinha  as  armas  mais  á  mão, 

Por  mostrar  a  quem  busca  defensão 

Contra  esses  bellos  olhos,  que  se  engana. 
Por  ficar  da  victoria  mais  ufana, 

Deixou-me  armar  primeiro  da  razão. 

Bem  salvar-me  cuidei,  mas  foi  em  vão ; 

Que  contra  o  ceo  não  vai  defensa  humana. 
Com  tudo,  se  vos  tinha  promettido 

O  vosso  alto  destino  esta  victoria, 

Ser-vos  ella  bem  pouca  está  intendido. 
Pois,  inda  que  eu  me  achasse  apercebido. 

Não  levais  de  vencer-me  grande  gloria : 

Eu  a  levo  maior  de  ser  vencido. 

(Soneto  36). 

De  que  valia  a  razão,  para  que  servia  o  jidio  sossegado, 
cm  presença  de  tanta  gentileza  ? 

Quem  pôde  livre  ser,  gentil  senhora, 

Vendo-vos  com  juizo  sossegado. 

Se  o  menino  que  de  olhos  é  privado 

Nas  meninas  dos  vossos  olhos  mora  ? 
Ali  manda,  ali  reina,  ali  namora, 

Ali  vive,  das  gentes  venerado ; 

Que  o  vivo  lume  e  o  rosto  delicado 

Imagens  são  adonde  Amor  se  adora. 
Quem  vê  que  em  branca  neve  nascem  rosas. 

Que  crespos  fios  de  ouro  vão  cercando. 

Se  por  entre  esta  luz  a  vista  passa, 


Raios  de  ouro  verá,  que  as  duvidosas 
Almas  estão  no  peito  traspassando, 
Assi  como  um  crystal  o  sol  traspassa. 
(Soneto  Go). 

O  poeta  foi  forçado  a  render-se,  perante  as  armas  com  que 
Amor  o  assaltou : 

Leda  serenidade  deleitosa, 

Que  representa  em  terra  um  paraíso ; 

Entre  rubis  e  perlas,  doce  riso ; 

Debaixo  de  ouro  e  neve,  côr  de  rosa ; 
Presença  moderada  e  graciosa. 

Onde  ensinando  estão  despejo  e  siso 

Que  se  pôde,  por  arte  e  por  aviso. 

Como  por  natureza,  ser  formosa ; 
Fala,  de  que  ou  já  vida  ou  morte  pende, 

Rara  e  suave,  —  emíim,  senhora,  vossa ; 

Repouso  na  alegria  comedido  : 
Estas  as  armas  são  com  que  me  rende 

E  me  captiva  Amor.  Mas  não  que  possa 

Despojar-me  da  gloria  de  rendido.. 

(Soneto  78). 

Mais  tarde,  voltou  Camões  a  occupar-se  da  memorável  data 
em  que  foi  apresentado  á  infanta,  accrescentando  alguns  por- 
menores interessantes.  Refiro-me  ás  três  canções  Manda-me 
Amor  que  cante. 

Reproduzirei  integralmente  uma  delias  —  a  que  reputo  a 
primeira  na  ordem  chronologica  (T). 


(1)  É  a  canção  8.*.  Na  y.*  e  na  18. •  (publicada  por  Juromenha)  já  são 
manifestos  os  indícios  de  contrariedades  : 

Manda-me  Amor  que  cante  docemente 
O  que  elle  já  em  minha  alma  tem  impresso. 
Com  prcsupposto  de  desabafar-me. 
E,  porque  com  meu  mal  seja  contente, 
Diz  que  o  ser  de  tão  lindos  olhos  preso 
—  Cantá-lo  —  bastaria  a  conteniar-me. 
2  R.  5394 


i8 


Mandíi-HK-  Amur  que  cante  u  que  .i  .unui  >l 
Caso  que  nunca  .em  verso  foi  cantado, 
Nem  dantes  entre  a  gente  acontecido. 
Assi  me  paga,  em  parte,  o  meu  cuidado, 
f^ois  que  quer  que  me  louve  e  represente 
Quão  bem  soube  no  mundo  ser  perdido. 
Sou  parte  e  não  serei  da  gente  crido ; 
Mas  é  tamanho  o  gosto  de  louvar-me 

E  de  manifestar-me 
Por  captivo  de  gesto  tão  formoso, 

Que  todo  o  impedimento 
Rompe  e  desfaz  a  gloria  do  tormento 
Peregrino,  suave  e  deleitoso. 

Que  bem  sei  que  o  que  canto 
Ha  de  achar  menos  credito  que  espanto. 

Eu  vivia  do  cego  Amor  isento, 
Porém  tão  inclinado  a  viver  preso. 
Que  me  dava  desgosto  a  liberdade. 
Um  natural  desejo  tinha  acceso 
De  algum  ditoso  e  doce  pensamento, 
Que  me  fllustrasse  a  insana  mocidade. 
Tornava  do  anno  já  a  primeira  idade ; 
A  revestida  terra  se  alegrava. 

Quando  o  Amor  me  mostrava 
De  fios  de  ouro  as  tranças,  desatadas 

Ao  doce  vento  estivo. 
Os  olhos,  rutilando  lume  vivo. 
As  rosas,  entre  a  neve  semeadas, 

O  gesto  grave  e  ledo. 
Que  juntos  movem  em  mim  desejo  e  medo. 

Um  não  ^_.  .,.^.^  iuave  respirando. 
Causava  um  desusado  e  novo  espanto, 
Que  as  cousas  insensíveis  o  sentiam. 
Porque  as  gárrulas  aves,  entretanto, 
Vozes  desordenadas  levantando, 
(>omo  eu  em  meu  desejo,  se  incendiam. 
As  fontes  crystallinas  não  corriam, 
Intlammadas  na  vista  clara  e  pura ; 


1*) 


Flore  cia  a  verdura, 
Que,  andando,  cos  ditosos  pés  tocava ; 

As  ramas  se  baixavam, 
()li  de  inveja  das  hervas  que  pisavam, 
Ou  porque  tudo  ante  elles  se  baixava. 

O  ar,  o  vento,  o  dia. 
De  espíritos  contínuos  influia. 

E  quando  vi  que  dava  intendimento 

A  cousas  fora  delle,  imaginei 

Que  milagres  faria  em  mi,  que  o  tinha. 

Vi  que  me  desatou  da  minha  lei, 

Privando-me  de  todo  sentimento 

E  em  outra  transformando  a  vida  minha. 

(^om  tamanhos  poderes  de  Amor  vinha, 

Que  o  uso  dos  sentidos  me  tirava, 

E  não  sei  como  o  dava. 
Contra  o  poder  e  ordem  da  natura. 

Ás  arvores,  aos  montes, 
A  rudeza  das  hervas  e  das  fontes. 
Que  conheceram  logo  a  vista  pura. 

Fiquei  eu  só  tornado 
Quasi  em  um  rudo  tronco,  de  ac^mirado. 

Despois  de  ter  perdido  o  sentimento, 
De  humano  um  só  desejo  me  ficava. 
Em  que  toda  a  razão  se  convertia. 
Mas  não  sei  quem  no  peito  me  aíiirmava 
Que,  por  tão  alto  e  doce  pensamento, 
Com  razão  a  razão  se  me  perdia. 
Assi  que,  quando  mais  perdida  a  via. 
Na  sua  mesma  perda  se  ganhava  : 

Em  doce  paz  estava 
i.om  seu  contrario  próprio,  em  um  sujeito. 

Oh  caso  estranho  e  novo  1 
Por  alta  c  grande  certamente  approvo 
A  causa  donde  vem  tamanho  elfcito. 

Que  faí!  num  coração 
Que  um  desejo,  sem  ser,  seja  razão. 


20 


Despois  de  entregue  já  ao  meu  desejo 
Ou  quasi  nelle  todo  convertido, 
Solitário,  silvestre  e  inhumano, 
Tão  contente  fiquei  de  ser  perdido, 
Que  me  parece  tudo  quanto  vejo 
Escusado,  senão  meu  próprio  dano. 
Bebendo  este  suave  e  doce  engano, 
A  troco  dos  sentidos  que  perdia, 

Vi  que  Amor  me  esculpia 
Dentro  na  alma  a  figura  illustre  e  bella, 

A  gravidade,  o  siso, 
A  mansidão,  a  graça,  o  doce  riso. 
E,  porque  não  cabia  dentro  nella 

De  bens  tamanhos  tanto. 
Sai  por  a  boca,  convertido  em  canto. 

Canção,  se  te  não  crerem 
Daquelle  claro  gesto  quanto  dizes. 

Por  o  que  se  lhe  esconde, 
—  Os  sentidos  humanos,  lhe  responde. 
Não  podem  dos  divinos  ser  juizes, 
»  Senão  um  pensamento. 

Que  a  falta  suppra  a  fé  do  intendimento  — . 

As  tres  canções  informam-nos  (o  que  aliás  se  confirma  com 
os  sonetos  77  e  3o3)  que  o  poeta  foi  apresentado  á  infanta 
no  começo  da  primavera : 

Tornava  do  anno  já  a  primeira  edade ; 
A  revestida  terra  se  alegrava. 

(Canção  8.»). 

Ou,  como  com  mais  precisão  se  le  na  canção  7.*: 

No  Touro  entrava  Phebo  e  Progne  vinha ; 
O  corno  de  Acheloo  Flora  entornava  (1). 


(i)  «Pela  chronologia  moderna  (fixada  no  calendário  gregoriano  de 
Ytá  de  outubro  de  i582)  Phebo,  ou  o  Sol,  entra  no  signo  taurus  entre 


E  foi  recebido  nos  jardins  ao  paiacio,  cm  que  cila  residia: 

...  O  Amor  me  mostrava 
De  fios  de  ouro  as  tranças,  desatadas 
Ao  doce  vento  estivo. 

(Canção  8.*). 

Um  não  sei  quê  suave  respirando, 
Causava  um  admirável,  novo  espanto. 
Que  as  cousas  insensíveis  o  sentiam. 
Ali,  as  gárrulas  aves,  levantando 
Vozes  não  ordinárias,  em  seu  canto. 
Como  eu  no  meu  desejo,  se  encendiam. 
As  fontes  crystallinas  não  corriam. 
De  inflammadas  na  vista  linda  e  pura ; 

Florccia  a  verdura. 
Que,  andando,  cos  divinos  pés  tocava ; 

Os  ramos  se  baixavam. 
Ou  de  inveja  das  hcrvas  que  pisavam. 
Ou  porque  tudo  ante  ella  se  baixava. 

Não  houve  cousa,  emfim. 
Que  não  pasmasse  delia,  e  eu  de  mim. 
(Canção  y.*). 

Em  que  anno  se  passou  isto?  W.  Storck,  que  pensa  se 
trata  de  D.  Catharina  de  Ataíde  e  não  distingue  entre  a 
apresentação  (soneto  184;  canções  7,  8  e  18),  e  a  estada 
na  igreja  (sonetos  77  e  3o3),  escreve:  «Sendo  certo,  caso 
o  soneto  (3o3)  interpretado  por  nós  falle  verdade,  que 
Luís  Vaz  avistou  a  bella  lisbonense,  pela  primeira  vez,  no 


:  1  de  abril.  Peta  chronologia  antiga  temos  de  menos  uns  dez  dias, 
chegando  assim  á  data  de  10  a  12  de  abril.  O  resto  das  metaphoras  con- 
iliz  perfeitamente  com  esta  estação :  a  andorinha  Prokne  volta  aos  nossos 
climas,  c  a  bcm-amada  do  Zephyro,  a  deusa  primaveral  Flora,  vira  a  sua 
cornucopia  (o  corno  de  Acheloo  ou  de  Amalthea),  espalhando  Horcs  e 
botões  de  rosas  sobre  a  terra».  Storck,  Vida  de  C»m»'T»'v  i>  1.»-  /Tr;i- 
ducçSo  da  Sr.*  D.  Carolina  Michaclis  de  Vasconcello 


22 


meio  dos  ofticios  fúnebres  da  sL-xia-ieiia  de  endoenças,  temos 
ainda  que  procurar  qual  seria  a  verdadeira  entre  as  três 
sextas-feiras  santas  do  biennio  que  decorre  de  1643  (termo 
da  sua  chegada  a  Lisboa)  ate  i545,  anno  em  que  as  más 
linguas  começaram  a  mexericar  dos  seus  amores.  Ou,  visto 
haver  camonistas  que  coliocam  a  chegada  a  Lisboa  no  anno 
de  1042  e  o  seu  desterro  da  corte  (isto  é,  de  Lisboa)  no  de 
1546,  será  bom  alargarmos  o  campo  a  explorar,  investigando 
o  periodo  de  1642  a  1546.  O  calendário  universal  de  Kessel- 
meyer  ajuda-nos  a  encontrar  de  um  modo  fácil  e  seguro  as 
datas  desejadas.  Os  cinco  dias  em  que  recahiram  as  sextas- 
feiras  de  endoenças  são:  para  o  anno  de  1642  o  dia  7  de 
abril;  e  para  os  quatro  seguintes  o  23  de  março;  o  undécimo 
e  o  terceiro  de  abril  e  o  dia  23  do  mesmo  mez.  Entre  ellcs, 
o  que  de  todo  em  todo  corresponde  melhor  ás  indicações 
metaphoricas,  que  temos  examinado,  é  o  dia  1 1  de  abril,  a 
sexta-feiva  santa  do  anno  de  i544y>  (1). 

Mas,  se  é  verdade  que  a  apresentação  no  paço  de  Santa 
Clara  precedeu,  de  alguns  dias,  as  solemnidades  da  sexta- 
feira  mór,  e  se,  por  outro  lado,  o  poeta  quis  indicar  por  uma 
forma  precisa  a  data  dessa  apresentação,  o  anno  que  melhor 
satisfaz  a  estas  condições  é  o  de  1646,  em  que  a  sexta-feira 
santa,  segundo  se  Ic  na  passagem  que  fica  transcripta,  caiu 
no  dia  23  de  abril,  quasi  duas  semanas  depois  da  entrada  do 
sol  no  signo  de  tauro. 

Prosegue  o  illustrc  professor  allemão:  «Direi,  comtudo, 
que,  pessoalmente,  não  ligo  grande  importância  á  data  exacta 
do  dcoup  de  foudve)),  A  sexta-feira  santa  pertence  á  mytho- 
logia  convencional  da  poesia  moderna,  desde  que  Petrarca 
—  a  fim  de  fazer  coincidir  poeticamente  o  principio  das  suas 
magoas  e  o  dia  da  Paixão  do  Salvador  —  remodelou  acinte- 
mente,  levado  pela  vaidade  do  seu  coração  de  artista,  as 


(i)   Vida  citada,  p.  327. 
I 


23 


datas  do  anno  de  1327,  postiilaiiuv.  ^juv.  a  sexla-feira  Ja  Pai- 
xão recahisse,  por  milagre,  na  segunda  feira  da  semana  santa ! 
isto  c,  trocando  o  dia  seis  de  abril  (em  que  de  facto  avistara 
a  madonna  Laura)  pelo  decimo  do  mesmo  mez  e  anno!». 

E  certo  que  Gamões,  ao  escrever  o  soneto  3o3,  se  lembrou 
do  soneto  3.°  de  Petrarca,  /;/  vita  di  madonna  Laura.  Tam- 
bém não  ha  duvida  que  no  soneto  77,  que  é  de  data  poste- 
rior ao  3o3,  é  manifesta  a  imitação  dos  referidos  versos  do 
poeta  italiano  (i).  Mas,  pelo  que  fica  exposto,  não  creio  que, 
por  parte  de  Camões,  se  trate  de  uma  ficção. 

Quem  apresentou  o  poeta  no  paço  de  Santa  Clara  ? 

Presumo  que  foi  o  seu  amigo  e  protector,  D.  Francisco  de 
Noronha,  mais  tarde  segundo  conde  de  Linhares. 

Além  de  não  faltarem  Noronhas  na  casa  da  infanta  (2j,  ha- 


(1^  Era  'I  giorno  ch'al  Sol  si  scoloraro 

Per  la  pietà  dei  suo  Fattore  i  rai, 
Quand'i'  fui  preso,  e  non  me  ne  guardai, 
Che  i  be'vosir'  occhi,  Donna,  mi  legaro. 

Tempo  non  mi  parea  da  far  riparo 

Contra  colpi  d'Amor :  però  n'andai 
Secur,  senza  sospetto :  onde  i  miei  guai 
Nel  comune  dolor  s'incominciaro. 

Trovommi  Amor  dei  tulto  disarmaio, 
Ed  aperta  la  via  per  gli  occhi  ai  core, 
Che  di  lagrime  son  fatti  uscio  e  varco. 

Pcrò,  ai  mio  parer,  non  gli  fu  onore 
Ferir  me  di  saetta  in  quello  stato, 
E  a  voi  armata  non  mostrar  pur  Parco. 

(2)  Fr.  M.  Pacheco,  Vida  de  la  scrcnissima  infantay  fl.  91  V.-94.  Abre 
.1  extensa  relação  do  pessoal  D.  Affonso  de  Noronha,  que  por  algum 
tempo  exerceu  o  cargo  <ie  mordomo-mór.  I^crtencia  lambem  á  casa  da 
infanta  c  era  filha  do  seu  mordomo-mór,  D.  Francisco  de  (luzman,  e  da 
sua  confidente,  D.  Joanna  de  Blasfct,  aquella  D.  Guiomar  de  Blasfé,  a 
quem  o  poeta,  a  propósito  de  ella  se  ter  queimado  com  uma  vela  no 


^4 
via  motivos  especiaes  para  o  ex-embaixador  de  D.  João  3.° 


rosto,  dirigiu  o  galante  soneto  89  e  estas  graciosas  redondilhas : 

Mote 

Amor,  que  todos  offende, 
Teve,  senhora,  por  gosto, 
Que  sentisse  o  vosso  rosto 
O  que  nas  almas  accende. 

Voltas 

Aquellc  rosto  que  traz 
O  mundo  todo  abrasado, 
Se  foi  da  flamma  tocado. 
Foi  porque  sinta  o  que  faz. 

Bem  sei  que  Amor  se  vos  rende ; 

Porém  o  seu  presupposto 

Foi  sentir  o  vosso  rosto 

O  que  nas  almas  accende.  ^ 

Quem  sabe  se  as  duas  poesias,  de  que  tanto  se  devia  desvanecer  a 

gentil  dama,  não  seriam  a  causa  de  vir  parar  ás  mãos  do  apaixonado 

poeta  o  trançado  da  infanta,  que  mereceu  este  bello  e  enthusiastico 

soneto : 

Lindo  e  subtil  trançado,  que  ficaste 

Em  penhor  do  remédio  que  mereço. 

Se  só  comtigo,  vendo-te,  endoudeço. 

Que  fora  cos  cabellos  que  apertaste  ? 
Aquellas  tranças  de  ouro,  que  ligaste, 

Que  os  raios  do  sol  têm  em  pouco  preço. 

Não  sei  se,  ou  para  engano  do  que  peço. 

Ou  para  me  matar,  os  desataste. 
Lindo  trançado,  em  minhas  mãos  te  vejo, 

E,  por  satisfação  de  minhas  dores. 

Como  quem  não  tem  outra,  hei  de  tomar-tc. 
E,  se  não  for  contente  o  meu  desejo, 

Dir-lhe-hei  que,  nesta  regra  dos  amores. 

Por  o  todo  tumhcm  se  toma  a  parte. 

fSoneto  42). 


25 


na  corte  de  PVaiiv-c  :.ci  persona  grata  da  filha  de  D.  Ma- 
nuel. 

Bastava  o  facto  de  esta  ser  a  filha  estremecida  e  única  da 
rainha  D.  Leonor.  «Náo  havia  por  certo  embaixador  português 
na  corte  de  França  que  não  se  encarregasse  de  missões  secretas 
da  filha  para  a  mãe  e  desta  para  aquella ;  todos  elles  seriam 
porisso  bem  acolhidos  e  bem  vistos  por  D.  Leonor.  Foi  o 
que  aconteceu  por  certo  com  D.  Francisco  de  Noronha  e 
também  com  o  seu  adjunto  (Francisco  de  Moraes),  que,  como 
elle  próprio  conta,  recebeu  mercês  da  rainha  christianissima. 
Nos  annos  que  durou  a  embaixada,  entre  1840  e  i543,  tra- 
tou-se  do  casamento  de  D.  Maria  com  o  duque  de  Orléans, 
plano  que  ficou  frustrado  com  a  morte  deste»  (i). 

Comprehendc-se  o  desgosto  que  depois  devia  ter  o  illustre 
fidalgo  com  o  estouvado  procedimento  do  poeta.  E  a  esse 
desgosto  allude  manifestamente  Camões  na  canção  11.*,  v. 

i8i-i83: 

A  piedade  humana  me  faltava, 
A  gente  amiga  já  contraria  via, 
No  perigo  primeiro. . .  (2). 

Isto.  porem,  não  obstou,  como  veremos,  a  que  D.  Fran- 


(i)  Sr.*  D.  Carolina  Michaelis  de  Vasconcellos,  Palmeirim  de  Ingla- 
terra na  Zeitschrift  fiir  Romanische  Philologie,  vi,  57-58.  A  illustre  es- 
criptora  proscguc  :  «Tem  assim  uma  explicação  naiuralissima  o  facto  de 
Moraes  dedicar  o  Palmeirim^  escripto  na  corte  da  rainha  D.  Leonor,  á 
filha  desta,  a  infanta  D.  Maria,  cuja  superior  illustração  c  conhecida». 

Também  não  deixa  de  ser  interessante  que  na  cgloga  2.%  escripta  no 
Ribatejo  e  um  dos  documentos  mais  importantes  para  a  historia  da  pai- 
xão de  Camões  pela  infanta,  se  alluda  ao  auctor  do  Palmeirim  e  ao  .seu 
amor  por  uma  dama  da  corte  de  França.  O  namorado  Gallo  Cv.  496  e 
scgg.),  com  clfcito,  não  c  senão  Francisco  de  Moraes. 

(2)  Este  perigo  foi  o  desterro,  primcir'»  — '••  ^  i^* 
paru  Ceuta,  por  causa  da  infanta 


2b 


cisco  de  Noronha  continuasse  a  ser  o  desvelado  amigo  e  pro- 
tector do  grande  génio,  que,  em  uma  hora  amarga,  compen- 
diou assim  a  sua  atribulada  existência : 

Que  segredo  tão  árduo  e  líío  prolundo  I 
Nascer  para  viver  e  para  a  vida, 
Faltar-me  quanto  o  mundo  tem  para  ella  ! 

E  não  poder  perdê-la, 
Estando  tantas  vezes  já  perdida  1 

(Canção  u,  187-191). 

Em  algumas  das»  poesias  que  já  foram  citadas  (soneto  3o3, 
canções  2,  7,  8  e  18),  assevera  o  poeta  que,  ao  apaixonar-se 
pela  infanta,  conservava  ainda  livre  o  seu  coração.  Na  egloga 
2/  insiste  neste  ponto  (v.  438-461): 

Lembra-me,  amigo  Agrário,  que  o  sentido 

Tão  fora  de  amor  tinha,  que  me  ria 

De  quem  por  elle  via  andar  perdido. 
De  varias  cores  sempre  me  vestia ; 

De  boninas  a  fronte  coroava ; 

Nenhum  pastor,  cantando,  me  vencia. 
A  barba  então  nas  faces  me  apontava. 

Na  luta,  na  carreira,  em  qualquer  manha, 

Sempre  a  palma,  entre  todos,  alcançava. 
Da  minha  idade  tenra,  em  tudo  estranha, 

Vendo,  como  acontece,  affeiçoadas 

Muitas  nymphas  do  rio  e  da  montanha, 
Com  palavras  mimosas  e  forjadas. 

De  solta  liberdade  e  livre  peito. 

As  trazia  contentes  e  enganadas. 
Mas,  não  querendo  Amor  que  deste  geito 

Dos  corações  andasse  triumphando. 

Em  quem  elle  criou  tão  puro  aflTeito, 
Pouco  a  pouco  me  foi  de  mi  levando, 

Dissimuladamente,  ás  mãos  de  quem 

Toda  esta  injuria  agora  está  vingando. 

Apesar  destas   repetidas  declarações,   havia  alguém   que 


então  se  julgava  com  iiircito  a  um  iogar  muito  especial  no 
coração  de  Camões. 

Kra  a  menina  dos  olhos  verdes,  .já  celebrada  em  deliciosos 
versos,  que  talvez  não  fossem  de  lodo  exiranhos  á  maneira 
como  elle  foi  recebido  no  paço  de  Santa  Ciara. 

Basta  citar  aq"'  -  ■  '   '^  ^^,^^■^^  ao  mote: 

\  crdes  são  os  campos 
Da  côr  (io  limão ; 
Assi  são  os  olhos 
Do  meu  coração. 


Campo,  que  ic  efundes  • 

Com  verdura  bella ; 

Ovelhas,  que  nella 

Vosso  pasto  tendes  :§i 

De  hervas  vos  mantendes, 

Que  traz  o  verão, 

E  eu  das  lembranças 

Do  meu  coração. 

Gados,  que  pasceis 
Com  contentamento : 
Vosso  mantimento 
Não  no  intendeis. 
Isso  que  comeis, 
Não  são  hervas,  não ; 
São  graça  dos  olhos 
Do  meu  coração. 

Pobres  olhos  verdes!  Quantas  lagrimas  não  iam  ellcs  der- 
ramar, por  causa  dos  olhos  azues  da  infanta! 


^M     itiiL;«'    iiiiic    iii<i<>>    u'ii.1    ^  <  ■<  li  Uviíiiv  .11  *    ii.i    i^iUii 

niões.  A  !.•  parle  intítula-sc  A  menina  dos  olhos  verdes. 


28 


Com  que  surpresa  c  com  que  amargura  não  leria  a  enamo- 
rada menina  estes  motes  e  as  respectivas  voltas: 

Vós,  senhora,  tudo  tendes. 

Senão  que  tendes  os  olhos  verdes ; 

Sois  formosa  e  tudo  tendes, 
Senão  que  tendes  os  olhos  verdes. 

Veja-se  como  o  poeta  ia  mettendo  ferroadas: 

Dotou  em  vós  natureza 
O  summo  da  perfeição ; 
Que,  o  que  em  vós  é  senão, 
É  em  outras  gentileza. 
O  verde  não  se  despreza, 
Que,  agora  que  vós  os  tendes. 
São  bellos  os  olhos  verdes. 

Ouro  e  azul  é  a  melhor 

Gôr  (i),  por  que  a  gente  se  perde. 

Mas  a  graça  desse  verde 

Tira  a  graçWa  toda  a  côr. 

Fica  agora  sendo  a  flor 

A  côr,  que  nos  olhos  tendes, 

Porque  são  vossos  e  verdes. 

Tudo  tendes  singular. 

Com  que  os  corações  rendeis. 

Senão  que,  rindo,  fazeis 

Covinhas  para  enterrar 

E  para  resuscitar. 

Tem  força  a  graça  que  tendes, 

Senão  que  tendes  os  olhos  verdes. 

Tudo,  senhora,  alcançais, 

Quanto  o  ser  formosa  alcança ; 

Senão  que  dais  esperança 

Cos  olhos  com  que  matais. 

Se  acaso  os  alevantais, 

É  para  as  almas  renderdes. . . 

Senão  que  tendes  os  olhos  verdes. 


(i)  Allusão,  como  já  liça  dicto,  aos  olhos  azues  e  aos  cabellos  louros 
da  infanta, 


Ninguém  vos  pôde  tirar 
Serdes  tão  bem  assombrada  ; 
Mas  heis-me  de  perdoar, 
Que  os  olhos  não  valem  nadn 
Fostes  mal  aconselhada 
Em  querer  que  fossem  verdes. 
Trabalhai  de  os  esconderdes. 

E  assim  por  deante,  num  misto  de  depreciação,  de  /ingido 
elogio  e  de  troça,  que  tão  profundamente  deviam  magoar 
quem  tinha  inspirado  tão  lindos  versos  e  tanto  se  desvane- 
ceria da  cor  dos  seus  olhos. 

E  com  que  arte  consummada  não  reproduz  o  grande  poeta 
os  queixumes  e  protestos  da  desolada  menina !  Vejam-se,  por 
exemplo,  estas  redondilhas,  tão  sentidas,  de  uma  tão  encanta- 
dora ingenuidade: 

Mote  (alheio) 

De  pequena  tomei  amor, 
Porque  o  não  entendi. 
Agora  que  o  conheci, 
Mat;i-me  com  desfavor. 

Voltas 

Vi-o  moço  e  pequenino, 
E  a  mesma  idade  ensina 
Que  se  incline  uma  menina 
Ás  amostras  de  um  menino. 

Ouvi-lhe  chamar  Amor ; 
Pelo  nome  me  venci. 
Nunca  tal  engano  vi, 
Nem  tamanho  desamor. 

Cresccu-me,  de  dia  em  dia. 
Com  a  idade  a  afTcição, 
Porque  amor  de  criação 
Na  alma  e  na  vida  se  cria. 


3o 

Criou-se  em  mim  este  amor, 
E  senhorcou-se  de  mi. 
Agora  que  o  conheci, 
Mata-m(?  com  desfavor. 


As  flores  me  torna  abrolhos, 
A  morte  me  determina, 
Quem  eu  trouxe,  de  menina. 
Nas  meninas  dos  meus  olhos. 


Desta  magoa  e  desta  dor 
Tenho  sabido  que,  emfim, 
Por  amor  me  perco  a  mim, 
Por  quem  de  mi  perde  amor. 


Parece  ser  caso  estranho 
O  que  Amor  em  mi  ordena. 
Que,  em  idade  tão  pequena. 
Haja  tormento  tamanho  ! 

Sejam  milagres  de  Amor. . . 
Hei-os  de  soffrer  assi. 
Até  que  haja  dó  de  mi 
Quem  entender  esta  dor. 

Mas  o  poeta  não  se  limitou  a  depreciar,  a  metter  a  ridi- 
culo,  aquillo  que  até  então  o  tinha  encantado  na  menina  dos 
olhos  verdes. 

Desvairado  com  os  novos  amores,  que  suppunha  ou  espe- 
rava ver  correspondidos,  querendo  a  todo  o  custo  libertar-se 
da  importuna  affeição  de  quem,  de  menina,  o  tra:{ia  nas  me- 
ninas dos  seus  olhos,  esqueceu-se  de  que  tinha  obrigação  de 
ser  correcto  e,  num  tablado,  expôs  á  irrisão  e  á  maledicência 
aquella  que  tanto  lhe  queria  e  que  talvez  não  tivesse  quem 
a  desaggravasse. 

Lea-se  esta  estranha  passagem  do  prologo  da  comedia 
El  Rei  Seleuco,  em  que  o  próprio  Camões,  autor  da  peça, 
fazia  o  papel  do  repvesentador:  a  Mordomo.  Parece-me,  se- 
nhor, que  entra  a  primeira  figura.  Moço,  mette-te  aqui  por 


baixo  desta  mesa,  e  ouçamos  ^.,.^  .apresentador. . .  Martim. 
Senhor,  elle  parece  que  aprende  a  cirurgião.  Ambrósio.  Mais 
parece  o  ourinol  capado,  que  anda  de  amores  com  a  menina 
dos  olhos  verdes». 

Ficou  assim  o  allucina^i..  y^>^K.x  ^icsembaraçado  desta  peia, 
para  mais  á  vontade  pòv  o  desejo  onde  não  devia  (i). 

Quando  elle,  porém,  diga-se  de  passagem,  se  viu  forçado 
a  penitenciar-se 

Do  error  cm  que  caiu  o  pensamento, 
(Soneto  94) 

quando  já  se  lastimava  da  queda  que  tinham  dado  os  seus 
altos  pensamentos  (2),  procurou  rehaver  a  atVeiçáo  da  menina 
dos  olhos  verdes  (3)  e  para  isso  empregou  todos  os  esforços. 
Foram,  porém,  baldados  (4). 


( 1 )  Estas  são  verdadeiras  penitencias 

De  quem  põe  o  desejo  onde  não  deve, 
De  quem  engana  alheias  innocencias. 

(Egloga  2.»,  V.  357-355). 

O  meus  altos  pensamentos, 
Quão  altos  que  vos  pusestes 
F  .111^*.  grande  queda  destes! 

(Redondilhas,  Juromenha) 

(3)  É  claro  que  o  poeta  agora  já  não  alludia  á  cór  dos  olhos,  para 
não  suscitar  dolorosas  recordações. 

(4)  Veja  principalmente  a  egloga  3  •,  cscripta  depois  de  o  poeta  ler 
voltado  de  Ceuta,  sob  promessa  de  não  pensar  mais  na  infanta.  São 
dessa  egloga  os  seguintes  versos : 

Almeno 

Sc  más  tenções  puseram  nódoa  feia 
Em  nosso  firme  amor,  de  inveja  pura, 
Porque  pagarei  eu  a  culpa  alheia  i 


32 


Só  na  occasião  do  embarque  para  a  Índia  é  que  ella  se 
congraçou  com  quem  tão  profundamente  a  tinha  magoado, 
com  quem  havia  dado  motivo  a  que  pusessem  nódoa  feia 
em  uma  pura  affeição,  em  um  amor  honesto. 

Mas  voltemos  ao  novo  e  alio  pensamento  do  poeta  e  veja- 
mos as  principaes  phases  por  que  elle  foi  passando,  até  a 
ida  para  o  exilio. 

Começando  pela  celebre  canção  ii  (i),  ahi  se  encontram 


Belisa 

. . .  Teu  sobejo  e  livre  atrevimento 
E  teu  pouco  segredo,  descuidando, 
Foi  causa  deste  longo  apartamento. 

Um  só  segredo  meu  te  manifesto  : 

Que  te  quis  muito,  emquanto  Deus  queria, 

Mas  de  pura  affeição,  de  amor  honesto. 
E,  pois  de  teus  descuidos  e  ousadia 
•     Nasceu  tão  dura  e  áspera  mudança, 

Folgo  que  muitas  vezes  to  dizia. 
Fica-te  embora  e  perde  a  confiança 

De  ver-me  nunca  mais,  como  já  viste  : 

Que  assi  se  desengana  uma  esperança. 

(i)  Eis  como  a  ella  se  refere  W.  Storck :  «Naquella  incomparável 
canção...,  que  a  edição  de  Hamburgo  chama,  com  toda  a  razão,  um 
gemido  da  Jiature^a  que  retumbará  no  mundo,  emquanto  nelle  houver 
quem  f alie  ou  entenda  a  lingua  portuguesa,  temos  fragmentos  de  uma 
autobiographia  do  poeta,  esboçada  a  largos  traços...  Compenetrado  e 
enlevado  perante  o  majestoso  conjuncto  das  ideias,  o  fulgor  da  lingua- 
gem máscula  e  vigorosa,  a  riqueza  da  phraseologia,  o  cunho  original 
das  figuras,  a  ardência  dos  sentimentos;  abalado  pelo  peso  esmagador 
da  angustia  que  palpita  naquellas  linhas,  pela  violência  das  saudades  e 
profundo  amor  pátrio  que  ellas  exhalam,  pela  successão  dos  golpes 
dilacerantes  alli  enumerados,  ferindo  sem  piedade  o  desterrado,  penso 
que  aquella  canção,  rainha  entre  todas  as  canções  de  todos  os  poetas 


33 


sobre  o  assumpto  importantes  indicações,  que  é  pena  não 
obedecerem  á  ordem  chronologica. 

Eis  como  o  poeta,  nessa  canção  (v.  8i-i5i),  falia  do  seu 
amor  por  aquella  que 

Parece. . .  que  tinha  forma  humana, 
Mas  scintillava  espíritos  divinos  : 


f^i     Que  género  tão  novo  de  tormento 

Teve  Amor,  sem  que  fosse,  não  somente 
Provado  em  mi,  mas  todo  executado  ? 
—  Implacáveis  dure^as^  que  ao  fervente 

85     Desejo,  que  dá  força  ao  pensamento. 
Tinham  de  seu  propósito  abalado 
E  corrido  de  ver-se  e  injuriado : 
Aqui  sombras  phaniasticas,  trazidas 
De  algumas  temerárias  esperanças  : 

90  As  bemaventuranças, 

Também  nellas  pintadas  e  fingidas.  — 
Mas  a  dor  do  desprego  recebido, 
Que  todo  o  phantapar  desatinava, 
Estes  enganos  punha  em  desconcerto. 

95     Aqui.  o  adivinhar  e  o  ter  por  certo 
Que  era  verdade  quanto  adivinhava ; 
E  logo  o  desdijcr-me,  de  corrido ; 
Dar  ás  cousas  que  via  outro  sentido ; 
E  para  tudo,  emfim,  buscar  razões. 

100    Mas  eram  muitas  mais  as  semrazões  ! 


anteriores  e  posteriores  a  c. amues,  ou  seus  coevos,  deve  pertencer  á 
idade  viril  do  homem,  retemperado  pelos  trabalhos  do  espirito,  pelas 
magoas  do  coração  e  pelas  experiências  crudelissimas,  mas  ainda  desdi- 
toso por  culpa  própria  e  descarinho  alheio».  Vida  de  Camões^  pag.  149 
c  i5o.  E  por  estes  motivos  que  o  illustre  professor  allemão  suppõe  a 
c  inçâo  II  cscripta  durante  o  pcriodo  indio  (i354),  abandonando  assim 
a  opinião,  que  anteriormente  linha  seguido,  de  que  «o  sublime  poema 
datava  dos  annos  posteriores  ao  regresso  da  índia». 

Opportunamentc  direi  o  que  penso,  quer  sobre  a  data  da  composição, 
quer  snl.ti.  ..  iiu.Ilii-.n. ;  1  A.-   .I-mmis  logares  obscuros  desta  canção. 

R.  5aíH 


Não  sei  como  sabia  estar  roubando 
Cos  raios  as  entranhas,  que  fugiam 
Para  ella  por  os  olhos,  subtilmente. 
Pouco  a  pouco  invisiveis  me  saíam, 

io5     Bem  como  do  veu  húmido  exhalando 
Está  o  subtil  humor  o  sol  ardente. 
O  gesto  puro,  emíim,  e  transparente, 
Para  quem  fica  baixo  e  sem  valia 
Este  nome  de  bello  e  de  formoso, 

I  IO  O  doce  e  piedoso 

Mover  d'olhos,  que  as  almas  suspendia, 
Foram  as  hervas  magicas,  que  o  ceo 
Me  fez  beber,  as  quaes,  por  longos  annos. 
Noutro  ser  me  tiveram  transformado, 

ii5     E  tão  contente  de  me  ver  trocado, 

Que  as  magoas  enganava  cos  enganos, 
E  diante  dos  olhos  punha  o  veo. 
Que  me  encubrisse  o  mal  que  assi  cresceo. 
Como  quem  com  aftigos  se  criava 

120     Daquella  para  quem  crescendo  estava. 

Pois  quem  pôde  pintar  a  vida  ausente, 
Com  um  descontentar-me  quanto  via, 
E  aquelle  estar  tão  longe  donde  estava, 
O  fallar  sem  saber  o  que  dizia, 

125     Andar  sem  ver  por  onde,  e  juntamente 
Suspirar,  sem  saber  que  suspirava  ? 
Pois  quando  aquelle  mal  me  atormentava 
E  aquella  dôr,  que  das  Tartareas  aguas 
Saio  ao  mundo,  e  mais  que  todas  doe, 

i3o  Que  tantas  vezes  soe 

Duras  iras  tornar  as  (i)  brandas  magoas  ? 
Agora,  CO  furor  da  magoa  irado, 
Querer  e  não  querer  deixar  de  amar, 
E  mudar  noutra  parte,  por  vingança. 


(i)  Substituo  por  as  a  lição  usual  <?/;/. 


35 


i35    O  desejo  privado  de  esperança, 

Que  tão  mal  se  podia  já  mudar  ?  ^ 

Agora  a  saudade  do  passado, 
Tormento  puro,  doce  e  magoado, 
Que  converter  fazia  estes  furores 

140    Em  magoadas  lagrimas  de  amores? 

« 

Que  desculpas,  comigo  só,  buscava 

Quando  o  suave  amor  me  não  soffria 

Culpa  na  cousa  amada,  e  ino  amada  ! 

Kram  emlim  remédios  que  fingia 
145     O  medo  do  tormento,  que  ensinava 

A  vida  a  susientar-se,  de  enganada. 

Nisto  uma  parte  delia  foi  passada, 

Na  qual,  se  tive  algum  contentamento. 

Breve,  imperfeito,  tímido,  indecente. 
i5o  Não  foi  senão  semente 

De  um  comprido,  amaríssimo  tormento. 

Reproduzirei  agora,  tentando  approximar-me  da  ordem 
chronologica,  algumas  das  muitas  poesias  lyricas  de  Ca- 
mões (1),  que  servem,  por  assim  dizer,  ou  de  commentario, 
ou  de  complemento,  a  esta  passagem  da  canção  11. 

Kmbora  o  poeta,  em  composições  posteriores,  faça  datar 
a  sua  paixão  pela  infanta,  quer  do  dia  em  que  lhe  foi  apre- 
sentado (canções  Manda-me  Amor  que  cante)^  quer  da  occa- 
sião  em  que  a  viu  na  igreja  (soneto  77),  o  que  è  certo  c  que 
o  soneto  i34  não  é  tão  explicito  a  este  respeito.  O  que  nellc 
e  no  3o3  se  accentúa  c  a  diíTerença  de  estados,  que  então 
apparccia  ao  poeta  como  um  obstáculo  muito  ditTicil  de  ven- 
cer, se  não  me.smo  msupcravcl,  para  o  seu  novo  pensamento. 

Basta  reler  os  versos  com  que  elle  termina  os  dous  so- 
netos, especialmente  o  segundo: 

Para  remcdiar-me  não  ha  hi  modo  ? 
Oh !  Porque  íqz  a  natureza  humana 
Entre  es  nascidos  tanta  diíTerença  ? 


(1)  Na  eiÍ!  vlc  Camões,  procuro 

destrinçar  c  ^  iiia. 


3ò 


Houve,  portanto,  um  período  de  hesitações,  em  que  o 
poeta,  armando-se  da  ra-^ão  (i),  chegou,  num  momento  de 
lucidez,  a  formular  esta  pergunta: 

Eu  que  espero  de  um  ser,  que  é  mais  que  humano  ? 

(Soneto  iSy). 

Mas  era  tão  difficil  arrancar-lhe  da  alma  a  esperança  de 
que  podia  vir  a  ser  amado  pela  nobre  e  formosa  senhora, 
que  tão  profundamente  o  havia  impressionado!  Ouçamo-lo: 

Mote 

Se  espero,  sei  que  me  engano ; 
Mas  não  sei  desesperar. 

Glosa 

O  meu  pensamento  altivo 
Me  tem  posto  em  tal  extremo, 
Que,  quando  esperando  vivo, 
O  bem  esperado  temo, 
Muito  mais  que  o  mal  esquivo ; 

Que,  para  crescer  meu  dano 
No  gosto  da  confiança. 
Ordena  o  Amor  tyranno 
Que,  na  mais  firme  esperança, 
Se  espero,  sei  que  me  engano. 

Deste  novo  sentimento 
Chega  a  tanto  a  nova  dor. 
Que  se  enlea  o  pensamento  ! 
Ver  que,  no  mór  bem  de  amor, 
Se  descobre  o  mór  tormento  ! 


(i)  Relêa-se  o  soneto  36,  já  anteriormente  transcripto. 


3? 

Folgara  de  me  engiinar, 
Mas  não  é  cousa  possível, 
Pois,  para  sempre  penar, 
Sei  que  espero  o  impossível. 
Mas  não  sei  desesperar! 

Foi  também  neste  estado  de  espirito  que  o  poeta  escreveu, 
alem  d'outros,  o  soneto  9: 

Tanto  de  meu  estado  me  acho  incerto. 

Que,  em  vivo  ardor,  tremendo  estou  de  trio ; 

Sem  causa,  juntamente  choro  e  rio; 

O  mundo  todo  abarco  e  nada  aperto. 
É  tudo  quanto  sinto  um  desconcerto ; 

Da  alma  um  fogo  me  sai,  da  vista  um  rio ; 

Agora  espero,  agora  desconfio, 

Agora  desvario,  agora  acerto. 
Estando  em  terra,  chego  ao  ceo  voando ; 

Numa  hora  acho  mil  annos,  e  é  de  gcito 

Que,  em  mil  annos,  não  possa  achar  uma  hora. 
Se  me  pergunta  alguém  porque  assi  ando, 

Respondo  que  não  sei :  porém  suspeito 

Que  só  porque  vos  vi,  minha  senhora. 

Nesta  phase  o  poeta  quasi  ^juc  se  contenta  ^v»  v.wííi   n^i    a 
formosa  infanta: 

Quando  da  bella  vista  e  doce  riso 

Tomando  estão  meus  olhos  mantimento. 

Tão  enlevado  sinto  o  pensamento. 

Que  me  faz  ver  na  terra  o  paraíso. 
Tanto  do  bem  humano  estou  diviso. 

Que  qualquer  outro  bem  julgo  por  vento. 

Assi  que,  em  termo  tal,  segundo  sento. 

Pouco  vem  a  fazer  quem  perde  o  siso. 
Em  louvar-vos,  senhora,  não  me  fundo. 

Porque,  quem  vossas  graças  claro  sente, 

Sentirá  que  não  pode  conhecê-las ; 
Pois  de  tanta  cstranhe/a  sois  ao  mundo. 

Que  não  é  de  estranhar,  dama  excellente. 

Que  quem  vos  fez,  fizesse  ceo  e  cstrelias. 

(Soneto  17). 


38 


Mas  este  estado  de  alma  tendia  necessariamente  a  modi- 
ficír-se : 

De  amores  de  uma  Ínclita  donzella 

Ferido  o  mesmo  deus  de  Amor  se  viu 
E  preso  emfim,  por  mais  que  resistiu ; 
Que  a  tudo  vence  e  rende  a  força  delia. 

Jamais  o  mundo  viu  dama  tão  bella  1 
Com  ella  a  natureza  repartiu 
A  graça,  com  que  ao  mesmo  Amor  feriu, 
Laços,  com  quem  não  vale  força  ou  cautclla. 

Oh  rara  e  nunca  vista  formosura. 
Formosura  bastante  a  subjugar 
O  mesmo  deus  de  Amor,  tão  soberano  ! 

Olhai  se  poderá  de  um  fraco  humano 
A  força,  a  força  tal  muito  durar. 
Quando  a  força  de  Amor  tão  pouco  dura ! 

(Soneto  3o8). 

Lá    dizem    também    as    redondilhas    á   tenção    de    Mira- 
guarda  (i): 

Ver  e  mais  guardar 
De  ver  outro  dia, 
Quem  o  acabaria  ? 

Voltas 


Dama,  quem  a  vê 
Impossível  é 
Que  guardar-se  possa. 
Se  faz  tanta  mossa 
Vcr-vos  um  só  dia, 
Quem  se  guardaria  ? 


(i)  Allusão  a  uma  passagem  do  Palmeirwi  de  Inglaterra,  que  a  in- 
fanta muito  bem  conhecia.  No  capitulo  53  diz-se  que  á  entrada  do  cas- 
tello  da  formosa  Miraguarda  estava  um  escudo  de  mármore  e  nclle  em 
campo  uma  imagem  de  mulher,  que  tinha  no  regaço  umas  leltras  brancas, 
que  diziam  :  Miraguarda,  nome  que  parecia  querer  significar  que  a  senhora 
do  castello  era  muito  pêra  ver  e  muito  tnais  pêra  se  guardarem  delia. 


39 

Melhor  «J. 
Neste  aventurar, 
Ver  e  não  guardar. 
Que  guardar  de  {i)  ver. 
Ver  e  defender 
Muito  bom  seria ; 
Mas  quem  poderia  ? 

E  por  isso  qiic  o  i/t>.sv/V)  prcvnloceu  sobre  a  rj-ífn, 


No  meu  pcuu  u  meu  desejo 
Da  razão  se  fez  tyranno ; 
Vejo  nelle  certo  dano, 
Incerto  remédio  vejo. 

Voltas 

Para  de  todo  defender-mc, 
Este  mal  por  passar  tinha : 
Ir  eu  contra  a  razão  minha, 
Que  morre  por  defender-me. 

Da  parte  de  meu  desejo 
Me  passo,  para  meu  dano. 
Vejo  que  nisto  me  engano, 
Mas  nenhum  remédio  vejo. 

O  poeta  reconhecia  a  inutilidade  da  sua  audácia: 

Senhora,  quem  a  tanto 

Que  consente  cm  servir  voi.i,a  lembrança, 
Sabendo  que  a  tem  sem  esperança. 
Não  pouco  é  que  por  isso  se  lhe  deve. 

Mais  cala  esta  minha  alma  do  que  escreve, 
Sem  esperar  que  seu  mal  fuça  mudança, 
Não  querendo  outra  bemaventurança 
Maior.  ■  •  amor  com  que  vos  serve. 


( I )  IJção  usual :  e. 


40 


Que  esperar  grandes  casos  da  ventura 

E  offender  vosso  merecimento  ; 

Com  esse  pagareis  meu  tormento. 
Tenho  por  impossivel  sua  cura, 

E  inda  ficará  meu  pensamento 

Devendo  sempre  a  vossa  formosura. 

(Soneto  304)  (i). 

Estava,  porisso,  firmemente  resolvido  a  esconder  lá  bem  no 
intimo  o  segredo  do  seu  coração : 

Mote  (alheio) 

De  dentro  tengo  mi  mal, 
Que  de  fuera  no  hay  senal. 

Volta 

Mi  Jiueva  y  dulce  querella 

Es  invisible  á  la  gente. 

El  alma  sola  la  siente. 

Que  el  cuerpo  no  es  dino  delia. 

Como  la  viva  centella 

Se  encobre  en  el  pedernal. 

De  dentro  tengo  mi  mal. 

Mote  (alheio) 

A  dôr  que  a  minha  alma  sente. 
Não  na  sabe  toda  a  gente. 

Voltas 

Que  estranho  caso  de  amor ! 
Que  desejado  tormento ! 
Que  venho  a  ser  avarento 
Das  dores  de  minha  dôr ! 
Por  me  não  tratar  peor. 
Se  se  sabe,  ou  se  se  sente. 
Não  na  digo  a  toda  a  gente. 


(1)0  texto  deste  soneto  está  bastante  alterado.  Reproduzo  as  cor- 
recções propostas  por  W.  Storck  para  algumas  passagens. 


41 

Minha  dòr  e  causa  delia 

De  ninguém  ouso  fiar, 

Que  seria  aventurar 

A  perder-me  ou  a  perdê-la. 

E  pois  só  com  padecê-la 

A  minha  alma  está  contente, 

Não  quero  que  a  saiba  a  gente. 

Ande  no  peito  escondida, 
Dentro  na  alma  sepultada ; 
De  mi  só  seja  chorada, 
De  ninguém  seja  sentida. 
Ou  me  mate,  ou  me  dê  vida. 
Ou  viva  triste  ou  contente, 
Não  na  saiba  toda  a  gente. 

Mote  (alheia) 

Para  que  me  dan  tormento, 
Aprovcchando  tan  poço  ? 
Perdido,  mas  no  tan  loco. 
Que  descubra  lo  que  siento. 

Voltas 

Tiempo  perdido  es  aquel 
Que  se  passa  en  darme  afan ; 
Pues,  cuanto  más  me  lo  dan. 
Tanto  menos  siento  dél. 

Que  descubra  lo  que  siento  ? 
No  lo  haré,  que  no  es  tan  poço ; 
Que  no  puede  ser  tan  loco, 
Quien  tione  tal  pcnsamiento. 

Scpan  que  me  manda  Amor 
Que  de  tan  dulce  querella 
A  nadie  dé  parte  delia, 
Porque  la  sienta  mayor. 

Ks  tan  dulce  mi  tormento, 
Que  aun  se  me  antoja  poço ; 
Y,  si  es  mucho,  quedo  loco 
De  gusto  de  lo  que  siento 


42 


Datam,  a  meu  ver,  deste  idyllio  /';/  pavtibits,  alem  d^outras, 
as  seguintes  poesias: 

Ku  cantarei  de  Amor  tão  docemente, 

Por  uns  termos  em  si  tão  concertados, 

Que  dous  n\\\  accidentes  namorados 

Faça  sentir  ao  peito  que  o  não  sente. 
Farei  que  Amor  a  todos  avivente, 

Pintando  mil  segredos  delicados. 

Brandas  iras,  suspiros  magoados. 

Temerosa  ousadia  e  vida  ausente. 
Também,  senhora,  do  despe/'o  honesto 

De  vossa  vista  branda  e  rigorosa 

Cpntentar-me-hei  dizendo  a  menor  parte. 
Porém,  para  cantar  de  vosso  gesto 

A  composição  alta  e  milagrosa, 

Aqui  falta  saber,  ingenho  e  arte. 

(Soneto  2)  (i). 

Transforma-se  o  amador  na  cousa  amada. 

Por  virtude  do  muito  imaginar ; 

Não  tenho  logo  mais  que  desejar. 

Pois  em  mim  tenho  a  parte  desejada. 
Se  nella  está  minha  alma  transformada. 

Que  mais  deseja  o  corpo  de  alcançar  ? 

Em  si  somente  pode  descansar. 

Pois  com  elle  tal  alma  está  liada. 
Mas  esta  linda  e  pura  semidea, 

Que,  como  o  accidente  em  seu  sujeito, 

Assi  CO  a  alma  minha  se  conforma. 
Está  no  pensamento  como  idea, 

E  o  vivo  e  puro  amor  de  que  sou  feito, 

Como  a  matéria  simples,  busca  a  forma. 

(Soneto  10). 


(i)  No  verso  4  accrescentei  o  pronome  o.  No  verso  8  creio  que  o 
poeta  escreveu,  não  pena,  mas  vida.  Cf.  a  canção  11,  verso  121,  e  o  so- 
neto i5i,  que  se  segue  ao  immediato  a  este.  No  verso  9  leio  despejo  e 
não  desprego.  Cf.  o  soneto  78,  já  transcripto. 


43 


Julga- me  a  gente  ioda  por  perdido, 

Vendo-me,  tão  entregue  a  meu  cuidado, 
Andar  sempre  dos  homens  apartado, 
E  de  humanos  commercios  esquecido. 

Mas  eu,  que  lenho  o  mundo  conhecido, 
E  quasi  que  sobre  elle  ando  dobrado, 
Tenho  por  baixo,  rústico  e  enganado, 
Quem  não  é  com  meu  mal  engrandecido. 

Vn  revolvendo  a  terra,  o  mar  e  o  vento. 
Honras  busque  e  riquezas  a  outra  gente, 
Vencendo  ferro,  fogo,  frio  e  calma ; 

Que  eu,  por  amor,  somente  me  contento 
De  trazer  esculpido  eternamente 
Vosso  formoso  gesto  dentro  da  alma. 

(Soneto  i3i). 

Criou  a  natureza  damas  be41as. 

Que  foram  de  altos  plectros  celebradas ; 
Delias  tomou  as  partes  mais  prezadas 
E  a  vós,  senhora,  fez  do  melhor  delias. 

Elias,  diante  de  vós,  são  as  estrellas. 

Que  ficam  com  vos  ver  logo  eclipsadas ; 
Mas  se  ellas  têm  por  sol  essas  rosadas 
Luzes  de  sol  maior,  felices  delias ! 

Em  perfeição,  em  graça  e  gentileza. 

Por  um  modo  entre  humanos  peregrino, 
A  todo  o  bello  excede  essa  belleza. 

Oh  !  Quem  tivera  partes  de  divino, 
Para  vos  merecer !  Mas  se  pureza 
De  amor  vai  ante  vós,  de-vós  sou  dino. 

(Soneto  i53). 
Mote 

Tal  esioi,  despues  que  os  vi, 
Que  de  mi  propio  cuidado 
Estoi  tan  enaiporado. 
Como  Narciso  de  si. 


+4 


Voltas 


Una  sola  deferência 

Hallo  neste  amor  altivo  : 

Que  el  murio  de  su  presencia  (i), 

Mas  yo  con  la  vuestra  vivo. 

En  el  punto  que  yo  os  vi, 
Se  realço  mi  cuidado, 
De  modo  que  enamorado. 
Por  vos,  me  quede  de  mi. 

Nacieron  de  un  amor  dos, 
Cupido  fue  el  tercero, 
Que  haze  que  bien  me  quiero, 
Solo  porque  os  quiero  a  vos. 

Los  estr^mos  que  en  vos  vi 
Me  han  traído  a  tal  estado, 
Que  me  veo  enamorado 
De  amor  de  vos  y  de  mi. 

Mas  esta  situação  não  podia  prolongar-se  por  muito  tempo. 
O  poeta,  enamorado  como  estava,  começou  a  impacientar-sc, 
porque  a  infanta  o  não  percebia: 

Mote  (alheio) 

Se  a  alma  ver-se  não  pode 
Onde  pensamentos  ferem. 
Que  farei  para  me  crerem  ? 


(i)  No  texto  corrente  lê-se : 

Que  el  murio  con  preferencia. 

Mas  não  sei  bem  o  que  isto  significa.  O  que  presumo  é  que  o  poeta 
quis  alludir  ao  ter  Narciso  morrido  de  paixão  por  si  mesmo,  contem- 
plando a  sua  própria  imagem  na  agua  de  unia  fonte. 


4--^ 


Voltas 

Se  na  alma  uma  só  fenda 

Faz  na  vida  mil  sinais, 

Tanto  se  descobre  mais, 

Quanto  é  mais  escondida. 

Se  esta  dôr  tão  conhecida 

Me  não  vêem,  porque  não  querem, 

Que  farei  para  me  crerem  ? 

Se  se  pudesse  bem  ver 
Quanto  calo  e  quanto  sento, 
Depois  de  tanto  tormento 
Cuidaria  alegre  ser. 
Mas,  se  não  me  querem  crêr 
Olhos,  que  tão  mal  me  ferem. 
Que  farei  para  me  crerem  ? 


É  claro  que  o  poeta  não  se  atreveria  a  fazer  directamente 
uma  declaração  de  amor  á  infanta.  Era  um  passo  por  demais 
arriscado,  apesar  da  disposição  de  espirito  em  que  elle  se 
encontrava  e  que  tão  bem  descripta  se  acha  na  canção  1 1  : 

Aqui  o  adivinhar  e  o  ter  por  certo 
Que  era  verdade  quanto  adivinhava ; 


Dar  ás  cousas  que  via  outro  sentido. 


Mas  ha,  entre  as  poesias  de  Camões,  algumas  que  pode- 
riam muito  bem  ter  sido  escriptas  para  serem  recitadas  na 
presença  da  illustre  senhora  e  em  que  não  seria  difficil  desco- 
brir uma  intenção  reservada. 

Lêam-se,  por  exemplo,  estas  redondilhas: 

Cantiga  alheia 

Pastora  da  serra, 
Da  serra  da  Kstrella, 
Perco-mc  por  ella ! 


k 


40 


Voltas 

Nos  seus  olhos  bellos 
Tanto  Amor  se  atreve, 
Que  abrasa  entre  a  neve 
Quantos  ousam  vG-los. 
Não  solta  os  cabellos 
Aurora  mais  bella. 
Perco  me  por  ella  1 

Não  teve  esta  serra, 
No  meio  da  altura, 
Mais  que  a  formosura, 
Que  nella  se  encerra. 
Bem  ceo  fica  a  terra, 
Que  tem  tal  estrella. 
Perco-me  por  ella  ! 

Sendo  entre  pastores 
Causa  de  mil  males, 
Não  se  ouvem  nos  vales 
Senão  seus  louvores. 
Eu  só,  por  amores. 
Não  sei  fallar  nella  : 
Sei  morrer  por  ella ! 

De  alguns  que,  sentindo 
Seu  mal  vão  mostrando. 
Se  ri,  não  cuidando 
Que  inda  paga,  rindo. 
Eu,  triste,  encobrindo 
Só  meus  males  delia, 
Perco-me  por  ella  ! 

Se  flores  deseja 
Por  ventura,  bellas. 
Das  que  colhe  —  delias 
Mil  morrem  de  inveja. 
Não  ha  quem  não  veja 
Todo  o  melhor  nella. 
Perco-me  por  ella ! 


47 


be  na  agua  corrente 
Seus  olhos  inclina, 
Faz  a  luz  divina 
Parar  a  corrente. 
Tal  se  vê,  que  sente 
Por  ver-se  a  agua  nella. 
Perco-me  por  ella ! 

Note-se  também  como  elle  insinua  que,  para  o  amor,  não 
ha  dillerenças  sociaes,  por  maiores  que  pareçam  : 

Mote 

Descalça  vai  pela  neve  : 
Assi  faz  quem  Amor  serve. 

Voltas 

Os  privilégios  que  os  reis 
Não  podem  dar,  pôde  Amor, 
Que  faz  qualquer  amador 
Livre  das  humanas  leis. 
Mortes  e  guerras  cruéis, 
Ferro,  frio,  fogo  e  neve, 
Tudo  soflVe  quem  o  serve. 

Moça  formosa  despreza 
Todo  o  frio  e  toda  a  dôr. 
Olhai  quanto  pode  Amor, 
Mais  que  a  própria  nalui  c/a  1 
Medo  nem  delicadeza 
Lhe  impede  que  passe  a  ncsc. 
Assi  faz  quem  Amor  serve. 

Por  mais  trabalhos  que  leve, 
A  tudo  se  ofrVeceria. 
Passa  pela  neve  fria, 
Mais  alva  que  a  própria  neve ; 
Com  todo  frio  se  atreve. 
Vede  cm  que  fogo  ferve 
O  triste  que  Amor  serve  I 

K  lambem  este  o  thema  do  Auto  de  Filodemo,  que  o  poeta 

naturalmente  leu  on  tencionava  ler  no  paço  de  Santa  Clarií. 

Eis  como  principia  o  argumento:  «Um  fidalgo  português, 


48 


que  acaso  andava  nos  reinos  de  Dinamarca,  como,  por  largos 
amores  e  maiores  serviços,  tivesse  alcançado  o  amor  de  uma 
filha  de  el-rei,  foi-lhe  necessário  fugir  com  ella  em  uma  galé, 
porquanto  havia  dias  que  a  tinha  prenhe.  E  de  feito,  sendo 
chegados  á  costa  de  Espanha,  onde  elle  era  senhor  de  grande 
património,  armou-se-lhe  grande  tormenta,  que,  sem  nenhum 
remédio,  dando  a  galé  á  costa,  se  perderam  todos  miseravel- 
mente, senão  a  princeza,  que  em  uma  tábua  foi  á  praia :  a 
qual,  como  chegasse  o  tempo  de  seu  parto,  junto  de  uma 
fonte  pariu  duas  creanças,  macho  e  fêmea;  e  não  tardou 
muito  que  um  bom  pastor  castelhano,  que  naquellas  partes 
morava,  ouvindo  os  tenros  gritos  dos  meninos,  lhe  acudiu, 
a  tempo  que  a  mãe  já  tinha  expirado.  Crescidas,  em  fim,  as 
creanças  debaixo  da  humanidade  e  criação  daquelle  pastor, 
o  macho  que  Filodemo  se  chamou,  á  vontade  de  quem  os 
baptizara,  levado  da  natural  inclinação,  deixando  o  campo, 
se  foi  para  a  cidade,  aonde,  por  musico  e  discreto,  valeu 
muito  em  casa  de  D.  Lusidardo,  irmão  de  seu  pae,  a  quem 
muitos  annos  serviu,  sem  saber  o  parentesco  que  entre  ambos 
havia.  E,  como  de  seu  pai  não  tivesse  herdado  nada  mais  que 
os  altos  espíritos,  namorou-se  de  Dionysa,  filha  de  seu  senhor 
e  tio,  que,  incitada  ao  que  por  suas  obras  e  boas  partes  me- 
recia, ou  porque  ellas  nada  engeitam,  lhe  não  queria  mal». 

Vejamos  agora  o  que,  no  acto  I,  diz  Filodemo,  apaixonado 
por  Dionysa,  a  filha  de  seu  amo : 

SCENA  I 

FlI  ODEMO,   SÓ. 

Triste  do  que  vive  amando, 
Sem  ter  outro  mantimento 
Que  estar  só  phantasiando  1 
Só  ua  cousa  me  desculpa 
Deste  cuidado  que  sigo  : 
Ser  de  tamanho  perigo, 
Que  cuido  que  a  mesma  culpa 
Me  fica  sendo  castigo. 


49 

Ora  bem,  minha  ousadia, 
Sem  asas,  pouco  segura  ; 
Quem  vos  deu  tanta  valia, 
Que  subais  a  phantasia 
Onde  não  sobe  a  ventura  ? 
Por  ventura  eu  não  nasci 
No  mato,  sem  mais  valer, 
Que  o  gado  ao  pasto  trazer  ? 
Pois  donde  me  veio  a  mi 
Saber-me  tão  bem  perder  ? 
Eu,  nascido  entre  pastores. 
Fui  trazido  dos  curraes 
E  dentre  meus  naturaes 
Para  casa  dos  senhores. 
Donde  vim  a  valer  mais. 
E  agora  logo  tão  cedo 
Quis  mostrar  a  condição 
De  rústico  e  de  villão ! 
Dando-me  ventura  o  dedo. 
Lhe  quero  tomar  a  mão  ! . . . 
Mas  oh !  que  isto  não  é  assi. 
Nem  são  villãos  meus  cuidados. 
Como  eu  delles  intendi ; 
Mas  antes,  de  sublimados. 
Os  não  posso  crer  de  mi. 
Porque,  como  hei  eu  de  crer 
Que  me  faça  minha  estrella 
Tão  alta  pena  soffrer, 
Que  somente  pola  ter 
Mereço  a  gloria  delia  í 

SCENA  II 

FiLODEMO,   SÓ. 

Ah  1  senhora,  que  podeis 
Ser  remédio  do  que  peno ! 
Quão  mal  ora  cuidareis 
Que  viveis  e  que  cabeis 
Num  coração  tão  pequeno! 


R  i»9* 


Se  vos  fosse  apresentado 
Este  tormento  em  que  vivo, 
Creríeis  que  foi  ousado 
Este  vosso  —  de  criado  — 
Tornar-se  vosso  captivo  ? 

SGENA  IV  ^ 

FiLODEMo,  cantando. 

Adó  sube  el  pensamiento, 

Seria  una  gloria  imensa, 

Si  allá  fuese  quien  lo  piensa. 

Falia. 

Qual  espirito  divino 

Me  fará  a  mi  sabedor 

Deste  meu  mal :  —  se  é  amor, 

Se,  por  dita,  desatino  ? 

Se  é  amor,  diga-me  qual 

Pôde  ser  seu  fundamento, 

Ou  qual  é  seu  natural, 

Ou  porque  empregou  tão  mal 

Um  tão  alto  pensamento  ? 

Se  é  doudice,  como,  em  tudo, 

A  vida  me  abrasa  e  queima  ? 

Ou  quem  viu  num  peito  rudo 

Desatino  tão  sisudo, 

Que  toma  tão  doce  teima  ? 

Ah  1  senhora  Dionysa, 

Onde  a  natureza  humana 

Se  mostrou  tão  soberana  ! 

O  que  vós  valeis  me  avisa, 

Mas  o  que  eu  peno,  me  engana ! 

Lêa-se  também  no  acto  II,  scena  2.%  o  dialogo  entre  Filo- 
demo  e  Duriano. 

«FiLODEMO...  Jc\  vos  dei  conta  da  pouca  que  tenho  com 
toda  a  outra  cousa  que  não  é  servir  a  senhora  Dionysa^  e 


M 


posto  que  a  desigualdade  dos  estados  o  não  consinta,  eu 
não  pretendo  delia  mais  que  o  não  pretender  delia  nada, 
porque  o  que  lhe  quero,  comsigo  mesmo  se  paga;  que  este 
meu  amor  é  como  a  ave  phenix,  que  de  si  só  nasce,  e  não 
de  outro  nenhum  interesse. 

DuRiANo.  Bem  praticado  está  isso,  mas  dias  ha  que  eu  não 
creio  em  sonhos. 

FiLODEMO.  Porque  ? 

DuRiANO.  Eu  vo-lo  direi :  porque  todos  vós  outros,  os  que 
amais  pela  passiva,  dizeis  que  o  ama<ior,  fino  como  o  melão, 
não  ha  de  querer  mais  de  sua  dama  que  amá-la;  e  virá  logo 
o  vosso  Petrarca  e  o  vosso  Pieiro  Bembo,  atoado  a  trezentos 
Platões,  mais  çafado  que  as  luvas  de  um  pagem  de  arte, 
mostrando  razões  verisimeis  e  apparentes,  para  não  querer- 
des mais  de  vossa  dama  que  vê-la,  e,  ao  mais,  até  fallar  com 
ella.  Pois  inda  achareis  outros  esquadrinhadores  de  amor 
mais  especulativos,  que  defenderão  a  justa,  por  não  empre- 
nhar o  desejo;  e  eu  (faço-vos  voto  solemne),  se  a  qualquer 
destes  lhe  entregassem  sua  dama,  tosada  e  apparelhada  entre 
dous  pratos,  eu  fico  que  não  ficasse  pedra  sobre  pedra.  E  eu 
já  de  mi  vos  sei  confessar  que  os  meus  amores  hão  de  ser 
pela  activa,  e  que  ella  ha  de  ser- a  paciente  e  eu  agente, 
porque  esta  é  a  verdade.  iSlas  comtudo  vá  vossa  mercê  co  a 
historia  por  deante. 

FiLODEMO.  Vou,  porque  vos  confesso  que  neste  caso  ha 
muita  duvida  entre  os  doctores.  Assi  que,  vos  conto  que, 
estando  esta  noite  com  a  viola  na  mão,  bem  trinta  ou  qua- 
renta legoas  pelo  sertão  dentro  de  um  pensamento,  senão 
quando  me  tomou  á  traição  Solina;  e,  cnuc  muitas  palavras 
que  tivemos,  me  descobriu  que  a  senhora  Dionysa  se  levan- 
tara da  cama  por  me  ouvir  e  que  estivera  pela  grela  da  porta 
espreitando  quasi  hora  e  meia. 

DuRiANO.  Cobras  c  tostões,  sinal  de  terra.   1*  >is  ainda  vos 

não  fazia  tanto  avante. 

* 


52 


FiLODEMO.  Finalmente,  veio-me  a  descobrir  que  me  não 
queria  mal,  que  foi  para  mi  o  maior  bem  do  mundo. .  . 

DuRiANO. . .  Boas  esperanças  ao  leme,  que  eu  vos  faço  bom 
que,  ás  duas  enxadadas,  acheis  agoa». 

Camões  estava  chegado  â  phase  da  audácia. 

Eis  como  eile  agora  raciocina : 

Nunca  em  amor  danou  o  atrevimento; 

Favorece  a  fortuna  a  ousadia, 

Porque  sempre  a  encolhida  covardia 

De  pedra  serve  ao  livre  pensamento. 
Quem  se  eleva  ao  sublime  firmamento, 

A  estrella  nelle  encontra,  que  lhe  é  guia ; 

Que  o  bem  que  encerra  em  si  a  phantasia. 

São  umas  illusÕes  que  leva  o  vento. 
Abrir-se  devem  passos  á  ventura ; 

Sem  si  próprio  ninguém  será  ditoso ; 

Os  princípios  somente  a  sorte  os  move. 
•     Atrever-se  é  valor  e  não  loucura. 

Perderá,  por  covarde,  o  venturoso 

Que  VOS  vê,  se  os  temores  não  remove. 

(Soneto  i32 

Mote  (alheio) 

Tudo  pôde  uma  affeição. 

Glosa 

Tem  tal  jurdição  Amor, 
Na  alma  donde  se  aposenta 
E  de  que  se  faz  senhor. 
Que  a  liberta  e  isenta 
De  todo  humano  temor. 

E  com  mui  justa  razão, 
Como  senhor  soberano. 
Que  amor  não  consente  dano. 
E  pois  me  soífre  tenção, 
Gritarei  por  desengano  : 
Tudo  pôde  uma  afieição  ! 


53 


Resolvido  o  enamorado  poeta  a  fazer-se  intender  da  in- 
fanta, não  tardaria  muito,  podemos  siippô-lo,  que  esta  lhe 
não  percebesse  os  intuitos. 

E  sem  querer  dizer  que  o  meio  empregado  por  Camões 
fosse  uma  declaração  escripta,  o  que  é  certo  é  que  mais  de 
uma  das  suas  poesias  se  pôde  considerar  como  para  isso 
destinada.  Lêam-se,  por  exemplo,  estas  oitavas  (epistola  iv): 


Senhora,  se  encobrir  por  aigunui  arte 
Pudera  esta  occasião  de  meu  tormento, 
Não  crêas  que  chegara  a  declarar-te 
Este  meu  perigoso  pensamento. 
Mas,  por  mais  que  te  offenda,  não  sou  parte 
No  crime  de  tamanho  atrevimento. 
Elle  é  de  Amor,  e  delle  fui  forçado 
A  que  te  declarasse  o  meu  cuidado. 

II 

Se  merece  castigo  a  confiança 
Com  que  descubro  agora  o  que  padeço, 
Aqui  prompto  me  tens :  toma  a  vingança. 
Que,  por  tão  grave  culpa,  te  mereço. 
Bem  me  podes  negar  toda  esperança. 
Mas  eu  não  desistir  deste  começo. 
Porque  tempo  c  fortuna  não  são  parte 
Para  deixar  uma  hora  só  de  amar-te. 

!?! 

Ju  que  \w.   iv,  oo  ii.x.1..,  w.iio.^  u,vuiiv..iiam, 
Descansem  neste  bem  com  alegria, 
Pois  já,  com  ver  os  teus,  tanto  ganharam, 
Quanto,  estando  sem  vc-Ios,  se  perdia. 
Que  gloría  querem  mnis,  se  a  ver  chegaram 
Aquclla  pura  luz,  que  vence  o  dia  ? 
Qual  mór  bcrà  ha  no  mundo  que  querer-te, 
Sc  não  ha  mais  que  ver,  despois  de  ver-te  ? 


54 


IV 


Minhas  dores  mortaes,  bella  senhora, 
Tiraram  a  virtude  ao  soffrimento, 
E,  fazendo-se  mais  em  qualquer  hora, 
Levando  vão  trás  ti  meu  pensamento. 
Porém  soberbos  vejo  desde  agora. 
Por  a  causa  gentil  de  seu  tormento, 
Minha  alma,  meu  desejo,  meu  sentido. 
Porque  á  tua  belleza  se  hão  rendido. 


V 


A  par  de  tua  rara  formosura 

Se  desconhece  o  mór  merecimento ; 

A  tua  claridade  torna  escura 

Do  sol  a  clara  luz  em  um  momento. 

Se  Zeuxis,  ao  formar  bella  figura, 

A  vista  em  ti  pudera  pôr  aitento. 

Mais  alto  original  houvera  achado. 

Para  admirar  o  mundo  co  traslado. 


VI 


Aquelles  que  escreveram  mil  louvores 
De  formosura,  graça  e  gentileza. 
Todos  foram,  senhora,  uns  borradores 
•De  tua  perfeitissima  beHeza, 
Agora  se  vê  claro  cm  teus  primores 
Que  em  ti  se  esmerou  mais  a  natureza, 
E  que  eram  os  seus  cantos  prophecias 
Do  que  havias  de  ser  em  nossos  dias. 

VII 

Vê,  pois,  se  vinha  a  ser  culpável  falta 
Em  mi  o  não  render-te  amante  a  vida, 
E  se  deixar  de  amar  gloria  tão  alta 
Era  digno  da  pena  mais  crescida. 


53 


Emfim,  eu  te  amarei,  que  Amor  me  exalta 
Co  castigo  de  culpa  assi  atrevida. 
E,  quando  delia  caia,  maior  j^loria 
Terá  o  Tejo,  que  o  Pó,  com  sua  historia. 

As  vezes,  Camões  pede  á  infanta  corresponda  ao  seu  amor 
lembrando-lhe  até  a  brevidade  da  vida : 

Formosos  olhos,  que  cuidado  dais 

A  mesma  luz  do  sol,  mais  clara     pura 
Que  sua  esclarecida  formosura. 
Com  tanta  gloria  vossa,  atrás  deixais : 

Se,  por  serdes  tão  bellos,  desprezais 
A  fineza  de  amor  que  vos  procura, 
Pois  tanto  vedes,  vede  que  não  dura 
O  vosso  resplandor,  quanto  cuidais. 

Colhei,  colhei,  do  tempo  fugitivo 
E  de  vossa  belleza  o  doce  fruto, 
Que  em  vão  fora  de  tempo  é  desejado. 

E  a  mi,  que  por  vós  morro  e  por  vós  vivo, 
Fazei  pagar  a  Amor  o  seu  tributo. 
Contente  de  por  vós  lho  haver  pagado. 

(Soneto  269). 

Outras  vezes  linfiitase  a  confessar  lhe  que  a  ama: 

A/o/e  (alheio) 

Vos  tencis  mi  corazon. 

Glosa 

Mi  corazon  me  han  robado 
Y  Amor,  vícndo  mis  enojos. 
Me  dijo :  Fuctc  llcvado 
Por  los  mas  hcrmosos  ojos 
Que,  desque  vivo,  he  mirado. 


56 

Gracias  sobrenaturales 
Te  lo  tienen  en  prision. 
Y,  si  Amor  tiene  razon, 
Senora,  por  las  senales, 
Vos  teneis  mi  corazon. 

Até  que,  emfim,  o  arrojado  poeta,  sempre  disposto  a 

Dar  ás  cousas  que  via  outro  sentido, 

suppôs  que  a  infanta  correspondia  ao  seu  amor. 

Foi  assim  que  elle  interpretou  as  lagrimas  que  em  uma 
occasião  lhe  viu  deslisar  pelas  lindas  faces: 

Amor,  que  o  gesto  humano  na  alma  escreve, 

Vivas  faíscas  me  mostrou  um  dia, 

Donde  um  puro  crystal  se  derretia 

Por  entre  vivas  rosas  e  alva  neve.  > 

A  vista,  que  em  si  mesma  não  se  atreve. 

Por  se  certificar  do  que  ali  via, 

Foi  convertida  em  fonte,  que  fazia 

A  dor  ao  soffrimento  doce  e  leve. 
Jura  Amor  que  brandura  de  vontade 

Causa  o  primeiro  effeito.  O  pensamento 

Endoidece,  se  cuida  que  é  verdade. 
Olhai  como  Amor  gera,  em  um  momento. 

De  lagrimas  de  honesta  piedade 

Lagrimas  de  immortal  contentamento. 

(Soneto  8). 

Foi  também  essa  a  impressão  que  lhe  deixou  o  aspecto  da 
formosa  senhora,  em  uma  noite  de  luar: 

Diana  prateada,  esclarecida 

Com  a  luz  que  do  claro  Phebo  ardente. 

Por  ser  de  natureza  transparente. 

Em  si,  como  em  espelho,  reluzia. 
Cem  mil  milhões  de  graças  lhe  (?)  influia. 

Quando  me  appareceo  o  excellente 

Raio  de  vosso  aspecto,  differente 

Em  graça  e  amor  do  que  soía. 


Eu,  vendo- me  tão  cheio  de  favores, 

E  tão  propinquo  a  ser  de  todo  vosso, 
Louvei  a  hora  clara  e  a  noite  escura, 

Pois  nella  destes  cor  a  meus  amores ; 
Donde  collijo  claro  que  não  posso 
De  dia  para  vós  já  ter  ventura  (i). 

(Soneto  280). 


(i)  Loucamente  apaixonado  pela  infanta,  comprehende-se  com  que 
calor,  com  que  enthusiasmo,  Camões  recitaria,  na  presença  delia,  algu- 
mas das  suas  poesias,  sobretudo  as  que  envolviam  segunda  intenção. 
Era  natural  que  uma  ou  outra  vez  fizesse  commover  até  ás  lagriíjias  a 
intelligente  e  amável  senhora,  ou  a  levasse  a  manifestar-lhe  directamente 
quanto  o  apreciava.  Natural  era  também  que  elle,  na  disposição  de  espi- 
rito em  que  se  achava,  desse  ás  cousas  que  via  outro  sentido. 

Eis  mais  uma  dessas  poesias,  escriptas  com  segundo  intuito : 

Aloie 

Irme  quiero,  madre, 
A  aquella  galera, 
Con  el  marinero 
A  ser  marinera. 

Voltas 

Madre,  si  me  fuere. 
Do  quiera  que  vó. 
No  lo  quiero  yo. 
Que  el  Amor  lo  quiere. 

Aquel  nino  ficro 
Hacc  que  me  mueva, 
Por  un  marinero, 
A  ser  marinera. 

El  que  todo  puede, 
Madre,  no  podrá, 
Pues  el  alma  vá, 
Que  cl  cucrpo  se  quede. 


58 
Veja-se   como  o  illudido  poeta   manifestava  agora  o  seu 


Con  el  por  que  muero 
Voy,  porque  no  muera ; 
Que,  si  es  marinero, 
Seré  marinera. 

Es  tirana  ley 
Del  nino  sefíor 
Que,  por  un  amor. 
Se  deseche  un  rey. 

Pues  desta  manera 
Quiero  irme,  quiero, 
Por  un  marinero 
A  ser  marinera. 

Decid,  ondas,  cuando 
Vistes  vos  doncella, 
Siendo  tierna  y  bella, 
Andar  navegando  ? 

Mas  qué  no  se  espera 
Daquel  nino  íiero  ? 
Vea  yo  quien  quiero, 
Sea  marinera  ! 

A  joven  destas  redondilhas  abandonava  a  mãe,  para  se  aventurar 
por  amor,  a  uma  vida  cheia  de  riscos ;  a  bella  infanta  tinha  visto  fugir- 
Ihe  a  occasião  de  ir  pára  junto  da  mãe  querida  e  ahi  casar  com  o  her- 
deiro do  throno  de  França.  E  não  muito  antes  (i^^S)  tinha  morrido  o 
que  estivera  para  ser  o  seu  segundo  noivo  francês,  o  duque  de  Orléans. 

Emquanto  á  intenção  reservada  do  poeta,  basta  ler  o  que  Duriano 
diz  acerca  de  Filodeino,  no  acto  v,  scena  iv,  do  respectivo  auto  : 
«Esse  galante,  em  satisfação  de  muitas  mercês  que  elrei  de  Dinamarca 
lhe  fizera,  metteu-sede  amores  com  uma  sua  filha,  a  mais  moça;  c 
como  era  bom  justador,  manso,  discreto,  galante,  partes  que  a  qualquer 
mulher  abalam,  desejou  ella  de  ver  geração  delle.  Senão  quando,  livre- 
nos  Deus  1  se  lhe  começou  de  encurtar  o  vestido ;  e,  porque  estes  sirgos 
não  se  desistem  em  nove  dias,  senão  em  nove  meses,  foi-lhe  a  elle  en- 
tão necessário  acolher-se  com  ella...  Acolheu-se  em  uma  galé;  e  vede 
la  princeza  em  uma  galera  nueva,  con  el  marinero  á  ser  marinera». 


59 


enthusiasmo,   por  julgar  bem   buccedido   o  atrevimento  de 
pensar  na  infanta: 

Onde  mereci  eu  tal  pensamento, 

Nunca  de  ser  humano  merecido  ? 

Onde  mereci  eu  ficar  vencido 

De  quem  tanto  me  honrou  co  vencimento? 
Em  gloria  se  converte  o  meu  tormento, 

Quando  vendo-me  estou  tão  bem  perdido, 

Pois  não  foi  tanto  mal  ser  atrevido. 

Como  foi  gloria  o  mesmo  atrevimento. 
Vivo,  senhora,  só  de  contemplar-vos ; 

E,  pois  esta  alma  tenho  tão  rendida, 

Em  lagrimas  desfeito  acabarei. 
Porque  não  me  farão  deixar  de  amar-vos 

Receios  de  perder  por  vós  a  vida, 

Que  por  vós  vezes  mil  a  perderei. 

(Soneto  202). 

Eis  O  que  então  affirmava  do  amor,  quem  depois  tanto 
delle  se  havia  de  queixar: 

Quem  diz  que  Amor  é  falso  ou  enganoso. 

Ligeiro,  ingrato,  vão,  desconhecido, 

Sem  falta  lhe  terá  bem  merecido 

Que  \hç  seja  cruel  ou  rigoroso. 
Amor  é  brando,  é  doce  e  é  piedoso. 

Quem  o  contrario  diz,  não  seja  crido ; 

Seja  por  cego  e  apaixonado  tido 

E  aos  homens  e  inda  aos  deoses  odioso. 
Se  males  faz  Amor,  em  mi  se  vêm ; 

Fm  mi  mostrando  todo  o  seu  rigor, 

\  >  mundo  quis  mostrar  quanto  podia. 
Ma.s  todas  suas  iras  são  de  Amor ; 

Todos  estes  seus  males  sSo  um  bem, 

Que  eu  por  todo  outro  bem  nlío  trocaria. 

(Soneto  2o5). 

O  equivoco  em  que  estava  o  poeta  augmcntou-lhe,  por 


6o 


certo,  o  arrojo,  e  a  infanta  comprehendeu  emfim  do  que  se 
tratava. 

Adoptando  então  uma  norma  de  proceder,  que  estava  em 
perfeita  harmonia  com  o  que  sabemos  do  seu  caracter,  a 
sisuda  filha  do  Rei  Venturoso  deu  claramente  a  intender  ao 
audacioso  poeta  que  lhe  não  acceitava  a  corte. 

Ouçamos  o  interessado,  dando-nos  conta  da  nova  phase 
cm  que  entravam  os  seus  amores  : 

Mote 

Olhos,  não  vos  mereci 
Que  tenhais  tal  condição: 
Tão  liberais  para  o  chão, 
Tão  irosos  para  mi  1 

Volta 

Baixos  e  honestos  andais, 
Por  vos  negardes  a  quem 
Não  quer  mais  que  aquelle  bem, 
Que  vós  no  chão  espalhais  ? 

Se  pouco  vos  mereci. 
Não  me  estimeis  mais  que  o  chão, 
A  quem  vós  o  galardão 
'         Dais,  e  mo  negais  a  mi. 

Agora  já  o  poeta  se  não  queixa  do  olhar  indiferente  da 
infanta,  como  tanta  vezes  o  havia  feito: 

Mote 

Ojos,  herido  me  hábeis ; 
Acabad  ya  de  matarme  ! 
Mas,  muerto,  volved  á  mirarme, 
Porque  me  resusciteis. 


Volias 

Pues  me  distes  tal  herida, 
Con  gana  de  darme  muerte, 
El  morir  me  es  dulce  suerte, 
Pues  con  morir  me  dais  vida. 

Ojos,  qué  os  deteneis  ? 
Acabad  ya  de  matarme ! 
Mas,  muerio,  volved  á  mirarme, 
Porque  me  resusciteis, 

La  Uaga  cierto  ya  es  mia, 
Aun  que,  ojos,  vós  no  querrais. 
*    Mas,  si  la  muerte  me  dais, 
El  morir  me  es  alegrin. 

Y  assi  digo  que  acabeis, 
O  ojos,  ya  de  matarme. 
Mas,  muerto,  volved  á  mirarme, 
Porque  me  resusciteis. 

(Redondilhas). 

Nunca  manhã  suave. 
Estendendo  seus  raios  por  o  mundo, 

Despois  de  noite  grave, 
Tempestuosa,  negra,  em  mar  profundo, 
Alegrou  tanto  nau,  que  já  no  fundo 

Se  vio,  em  mares  grossos. 
Como  a  luz  clara  a  mi  dos  olhos  vossos. 

Aquella  formosura, 
Que  só  no  virar  delles  resplandece, 

E  com  que  a  sombra  escura 
Clara  se  faz  e  o  campo  reverdece. 
Quando  o  meu  pensamento  se  entristece, 

EUa  e  sua  viveza 
Me  desfazem  a  nuvem  da  tristeza. 


02 


O  meu  peito,  onde  estais, 
É  para  tanto  bem  pequeno  vaso. 

Quando  acaso  virais 
Os  olhos,  que  de  mi  tião/a^em  caso. 
Todo,  gentil  senhora,  então  me  abraso, 

Na  luz  que  me  consume, 
Bem  como  a  borboleta  faz  no  lume. 

Se  mil  almas  tivera. 
Que  a  tão  formosos  olhos  entregara. 

Todas  quantas  pudera, 
Por  as  pestanas  delles  pendurara ; 
E,  enlevadas  na  vista  pura  e  clara, 

Postoque  disso  indinas, 
Se  andaram  sempre  vendo  nas  meninas. 

E  vós,  que  descuidada 
Agora  vivereis  de  taes  querellas, 

De  almas  minhas  cercada. 
Não  pudésseis  tirar  os  olhos  delias, 
Não  pôde  ser  que,  vendo  a  vossa  entre  ellas, 

A  dor,  que  lhe  mostrassem 
Tantas,  uma  só  alma  não  abrandassem. 

Mas,  pois  o  peito  ardente 
Uma  só  pôde  ter,  formosa  dama. 

Basta  que  esta  somente, 
Gomo  se  fossem  mil  e  mil,  vos  ama. 
Para  que  a  dor  da  sua  nrdente  flamma 

Gomvosco  tanto  possa. 
Que  não  queirais  ver  cinza  uma  alma  vossa. 

(Ode  5^). 

Formosos  olhos,  que,  na  idade  nossa. 
Mostrais  do  ceo  certíssimos  sinais, 
Se  quereis  conhecer  quanto  possais, 
Olhai-me  a  mim,  que  sou  feitura  vossa. 

Vereis  que  do  viver  me  desapossa 

Aquelle  riso  com  que  a  vida  dais ; 
Vereis  como  de  x\mor  não  quero  mais. 
Por  mais  que  o  tempo  corra,  o  dano  possa. 


63 


E  se  ver-vos  nesta  alma  emfim  quiserdes, 

Como  em  um  claro  espelho,  alli  vereis 

Também  a  vossa,  angélica  e  serena. 
Mas  eu  cuido  que,  só  por  me  não  verdes, 

Ver-vos  em  mim,  senhora,  não  quereis. 

Tanto  posto  levais  de  minha  pena ! 

(Soneto  38). 

O  que  agora  o  tortura,  mas  ao  mesmo  tempo  lhe  dá  vida, 
é  o  áspero  desprego  com  que  a  infanta  olha  para  elle,  se  por 
acerto  o  pé,  é  a  crueza  com  que  por  ella  é  tratado: 

Vossos  olhos,  senhora,  que  competem 

Com  o  sol  em  belleza  e  claridade. 

Enchem  os  meus  de  tal  suavidade. 

Que  em  lagrimas,  de  vê-los,  se  derretem. 
Meus  sentidos,  prostrados,  se  submettem 

Assi,  cegos,  a  tanta  majestade 

E  da  triste  prisão  da  escuridade. 

Cheios  de  medo,  por  tugir,  remettem. 
Porém,  se  então  me  vedes,  por  acerto. 

Esse  áspero  desprezo,  com  que  olhais. 

Me  torna  a  animar  a  alma  enfraquecida. 
Oh  gentil  cura !  Oh  estranho  desconcerto  1 

Que  dareis  c'um  favor  que  vós  não  dais, 

Quando  com  um  desprezo  me  dais  vida  ? 

•  (Soneto  65). 

Esses  cabellos  louros  e  escolhidos. 

Que  o  ser  ao  áureo  sol  estão  tirando. 

Esse  ar  immenso,  adonde  naufragando 

Estão  continuamente  os  meus  sentidos ; 
Esses  furtados  olhos,  tão  fingidos, 

Que  minha  vida  e  morte  estão  causando, 

Essa  divina  gra*j'a,  que,  em  fallando. 

Finge  os  meus  pensamentos  nSo  ser  cridos ; 
Esse  compasso  certo,  essa  medida, 

Que  faz  dobrar  no  corpo  a  gentileza ; 

A  divindade  em  terra,  tSo  subida : 
Mostrem  já  piedade  c  não  crueza, 

Que  são  laços  que  Amor  tece  na  vida, 

.^«•otlf»  í-ni  n-íi  «.íítTriíHí-iitri.  ,.n-»  vrts  durcza. 

(Soneto  104). 


^4 


Ás  vezes,  a  infanta,  suppondo  que  o  poeta  já  teria  desistido 
da  sua  louca  preienção,  e  não  querendo,  por  certo,  que  se  re- 
parasse na  maneira  como  o  tratava,  olhava-o  com  pista  mais 
suave.  Era  o  bastante  para  elle  ficar  doido  de  contente! 

Se,  algum'hora,  essa  vista  mais  suave 

Acaso  a  mi  volveis,  em  um  momento 

Me  sinto  com  um  tal  contentamento, 

Que  não  temo  que  dano  algum  me  aggrave. 
Mas  quando,  com  desdém  esquivo  e  grave, 

O  bello  rosto  me  mostrais  isento, 

Uma  dor  provo  tal,  um  tal  tormento. 

Que  muito  vem  a  ser  que  não  me  acabe. 
Assi  está  minha  vida  ou  minha  morte 

No  volver  desses  olhos,  pois  podeis 

Dar  c'uma  volta  delles  morte  ou  vida. 
Ditoso  eu,  se  o  ceu  quer,  ou  minha  sorte. 

Que  ou  vida,  para  dar-vo-la,  me  deis, 

Ou  morte,  para  haver  morte  querida  1 

(Soneto  i5G). 

Por  fim  a  situação  tornou-se  irreductivel: 

Em  não  ver-me  ella  só  sempre  está  firme, 
Mas  eu  firme  estarei  no  que  emprendi ! 


exclama  o  resoluto  poeta/ 


Tudo. . .  faz  mudança,- 
Quanto  o  claro  sol  vê,  quanto  allumia ; 

Não  se  acha  segurança 
Em  tudo  quanto  alegra  o  bello  dia ; 
Mudam-se  as  condições,  muda-se  a  idade, 
A  bonança,  os  estados  e  a  vontade. 

Somente  a  minha  imiga 
A  dura  condição  nunca  mudou, 

Para  que  o  mundo  diga 
Que  nella  lei  tão  certa  se  quebrou. 
Em  não  ver-me  ella  só  sempre  está  firme, 
Ou  por  fugir  de  Amor,  ou  por  fugir-me. 


65 


Mas  já  soffrivel  fora 
Que  em  matar-me  ella  só  mostre  firmeza, 

Se  não  achara  agora 
Também  em  mi  mudada  a  natureza, 
Pois  sempre  o  coração  tenho  turbado, 
Sempre  de  escuras  nuvens  rodeado. 

Sempre  exprimento  os  frios 
Que  em  contino  receio  Amor  me  manda ; 

Sempre  os  dous  caudais  rios. 
Que  em  meus  olhos  abrio  quem  nos  seus  anda, 
Correm,  sem  chegar  nunca  o  verão  brando. 
Que  tamanha  aspereza  vá  mudando. 

O  sol  sereno  e  puro, 
Que  no  formoso  rosto  resplandece, 

Envolto  em  manto  escuro 
Do  triste  esquecimento,  não  parece. 
Deixando  em  triste  noite  a  triste  vida. 
Que  nunca  de  luz  nova  é  soccorrida. 

Porém  seja  o  que  for : 
Mude-se  por  meu  dano  a  natureza ; 

Perca  a  inconstância  Amor^ 
A  fortuna  inconstante  ache  firmeza ; 
Tudo  mudável  seja  contra  mi : 
Mas  eu  firme  estarei  no  que  emprendi ! 

(Ode  12). 

A  infanta  resolveu  então  fazer  saber  ao  tresloucado  man- 
cebo que  não  queria  tornar  mais  a  vê-lo  (i). 


(i)  É  natural  que  desta  delicada  missão  fosse  encarregado  D.  Fran- 
cisco de  Noronha.  Camões,  como  se  infere  do  soneto  68,  ter-Ihe-ia  res- 
pondido que  cumpriria  as  ordens  da  infanta  e  que  se  limitaria  a  vê-la,  a 
contemplá-la  dentro  da  sua  alma.  Como  o  apaixonado  poeta,  se  fallava 
com  sinccridnde,  se  achava  illudído  !    I£  como   não  devia  ficar  desgOS- 


66 
Eis  como  elle  encara  a  sua  nova  situação: 

Dai-me  uma  lei,  senhora,  de  querer-vos, 

Porque  a  guarde,  sob  pena  de  enojar-vos; 
Pois  a  fé  que  me  obriga  a  tanto  amar-vos 
Fará  que  fique  em  lei  de  obedecer-vos. 

Tudo  me  defendei,  senão  só  ver-vos 

E  dentro  na  minha  alma  contemplar-vos, 
Que,  se  assi  não  chegar  a  contentar-vos. 
Ao  menos  nunca  chegue  a  aborrecer-vos. 

E  se  essa  condição,  cruel  e  esquiva, 

Que  me  deis  lei  de  vida  não  consente, 
Dai-ma,  senhora,  já,  seja  de  morte. 

Se  nem  essa  me  dais,  é  bem  que  viva. 
Sem  saber  como  vivo,  tristemente ; 
Mas  contente  estarei  com  minha  sorte. 

(Soneto  68). 

Senhora  minha,  se,  de  pura  inveja, 
Amor  me  tolhe  a  vista  delicada, 
A  côr,  de  rosa  e  neve  semeada, 
E  dos  olhos  a  luz,  que  o  sol  deseja, 

Não  me  pôde  tolher  que  vos  não  veja 

Nesta  alma,  que  ôlle  mesmo  vos  tem  dada, 
Onde  vos  terei  sempre  debuxada. 
Por  mais  cruel  imigo  que  me  seja. 


toso,  se  não  irritado,  o  illustre  fidalgo,  com  o  proce4imento  do  seu 
protegido  !  É  este  mesmo  que  o  declara  : 

A  piedade  humana  me  faltava, 
A  gente  amiga  já  contraria  via. 
No  perigo  primeiro. 

(Canção  ii,  181-1 83). 


è7 


Nella  vos  vejo,  e  vejo  que  não  nace 
Em  bello  e  fresco  prado  deleitoso 
Senão  flor  que  dá  cheiro  a  toda  a  serra  (i). 

Os  lidos  tendes  numa  e  noutra  face ; 

Ditoso  quem  vos  vir,  mas  mais  ditoso 
Quem  os  tiver,  se  ha  tanto  bem  na  terra. 

(Soneto  3o3). 

Mas  era  muito  pouco  ver,  contemplar,  a  bem-amada  só 
com  os  olhos  da  alma.  Quem  tão  apaixonado  estava,  não 
podia  limitar-se  a  isso.  Era-lhe  melhor  a  morte. 

Mote 

Vida  da  minha  alma, 
Não  vos  posso  ver ! 
Isto  não  é  vida 
Para  se  sofTrer  1 

Voltas 

Quando  vos  eu  via, 
—  Esse  bem  lograva  — , 
A  vida  estimava. 
Pois  então  vivia. 
Porque  vos  servia. 
Só  para  vos  ver. 
Já  que  vos  não  vejo. 
Para  que  é  viver  ? 

Vivo  sem  razSo, 
Porque  em  minha  dor 
Não  a  pôs  Amor, 
Que  inimigos  são. 


(i)  Parcce-mc  que  sotiiv.u  .iiiti.ic-no  o  tc»i..  u^>i<.  verso.  Seja-ine 
permittido  propor  esta  correcção : 

Iguai  flor,  que  dê  cheiro  a  toda  a  serra. 


68 

Mui  grande  traição 
Me  obriga  a  fazer  : 
Que  viva,  senhora, 
Sem  vos  poder  ver ! 

Não  me  atrevo  já, 
Minha  tão  querida, 
A  chamar-vos  vida. 
Porque  a  tenho  má. 
Ninguém  cuidará 
Que  isto  pôde  ser  : 
Sendo-me  vós  vida, 
Não  poder  viver ! 

Mote 

Da  alma  e  de  quanto  tiver 
Quero  que  me  despojeis, 
Com  tanto  que  me  deixeis 
Os  olhos,  para  vos  ver. 

Volta 

Cousa  este  corpo  não  tem, 
Que  já  não  tenhais  rendida. 
Despois  de  tirar-lhe  a  vida, 
Tirai-lhe  a  morte  também. 

Se  mais  tenho  que  perder. 
Mais  quero  que  me  leveis, 
Com  tanto  que  me  deixeis 
Os  olhos,  para  vos  ver. 

Mote 

Que  veré  que  me  contente  ? 

Glosa 

Desque  una  vez  yo  mire, 
Senora,  vuestra  beldad, 
Jamas  por  mi  voluntad 
Los  ojos  de  vos  quite. 


69 

Pues  sin  vos  placer  no  siente 
Mi  vida,  ni  lo  desea, 
Si  no  quereis  que  yo  os  vea, 
Que  veré  que  me  contente  ? 


E  não  se  tratava,  de  mais  a  mais,  de  uma  ordem  injusta, 
de  uma  imposição  tyrannica  ? 

De  uma  fonte  se  sabia, 
Da  qual  certo  se  provava 
Que  quem  sobre  ella  jurava, 
Se  falsidade  dizia, 
Dos  olhos  logo  cegava. 

Vós,  que  minha  liberdade, 
Senhora,  tyrannizais, 
Injustamente  mandais. 
Quando  vos  fallo  verdade. 
Que  vos  não  possa  ver  mais  I 

(Carta  a  uma  damal. 

Não  é,  pois,  de  admirar  que  o  poeta,  apesar  do  que  se 
tinha  passado,  procurasse  tornar  a  ver  a  infanta: 

Mote 
Vida  da  minha  alma. 

Volta 

Deus  tormentos  vejo. 
Grandes  por  extremo : 
Se  vos  vejo,  temo, 
E  se  não,  desejo. 

Quando  me  despejo 
E  venho  a  escolher, 
Temendo  o  desejo, 
Desejo  temer. 


70 


Foi,  porisso,  necessário  avisá-lo  novamente,  dando-lhe  um 
formal  desengano,  expondo-lhe  os  perigos  que  a  sua  teimosa 
leviandade  lhe  poderia  acarretar  e  fazendo-lhè  sentir  o  pro- 
fundo desgosto  da  infanta.  Elle,  porém,  a  nada  se  movia. 

Se  com  desprezos,  nympha,  te  parece 
Que  podes  desviar  do  seu  cuidado 
Um  coração  constante,  que  se  ofFrece 
A  ter  por  gloria  o  ser  atormentado  : 

Deixa  a  tua  porfia  e  reconhece 

Que  mal  sabes  de  amor  desenganado. 

Pois  não  sentes  nem  ves  que  em  teu  mal  cresce, 

Crescendo  em  mi,  de  ti  mais  desamado. 

O  esquivo  desamor,  com  que  me  tratas. 
Converte  em  piedade,  se  não  queres 
Que  cresça  o  meu  querer  e  o  teu  desgosto. 

Vencer-me  com  cruezas  nunca  esperes : 
Bem  me  podes  matar  e  bem  me  matas. 
Mas  sempre  ha  de  viver  meu  presupposto ! 

(Soneto  124). 

Se  tanta  pena  tenho  merecida. 

Em  pago  de  soffrer  tantas  durezas, 

Provai,  senhora,  em  mi  vossas  cruezas. 

Que  aqui  tendes  uma  alma  oíFerecida. 
Nella  experimentai,  se  sois  servida, 

Desprezos,  desfavores  e  asperezas, 

Que  mores  soíTrimentos  e  firmezas 

Sustentarei  na  guerra  desta  vida. 
Mas  contra  vossos  olhos  quaes  serão  ? 

É  preciso  que  tudo  se  lhes  renda ; 

Mas  porei  por  escudo  o  coração. 
Porque,  em  tão  dura  e  áspera  contenda, 

É  bem  que,  pois  não  acho  defensão, 

Com  metter-me  nas  lanças  me  defenda. 

(Soneto  33). 

Uma  vez  ou  outra,  a  desesperança  apoderava-se  do  animo 
do  renitente  poeta: 


71 


Apollo  e  as  nove  musas,  descantando, 

Com  a  dourada  lyra  me  influíam 

Na  suave  harmonia  que  faziam. 

Quando  tomei  a  penna,  começando : 
Ditoso  seja  o  dia  e  hora,  quando 

Tão  delicíftlos  olhos  me  feriam ; 

Ditosos  os  sentidos,  que  sentiam 

Estar-se  cm  seu  desejo  traspassando. 
Assi  cantava,  quando  Amor  virou 

A  roda  á  esperança,  que  corria 

Tão  ligeira,  que  quasi  era  invisibil. 
Gonverteu-se-me  em  noite  o  claro  dia, 

E,  se  alguma  esperança  me  ficou, 

Será  de  maior  mal,  se  for  possibil. 

(Soneto  5i). 

Mas  é  bem  certo  que  não  ha  peor  cego  do  que  quem  não 

quer  ver: 

Bem  sei.  Amor,  que  é  certo  o  que  receio, 

Mas  tu,  porque  com  isso  mais  te  apuras. 

De  manhoso  mo  negas  e  mo  juras 

Nesse  teu  arco  de  ouro,  e  eu  te  creio. 
A  mão  tenho  mettida  no  meu  seio, 

E  não  vejo  os  meus  danos  ás  escuras ; 

Porém  porfias  tanto  e  me  asseguras, 

Que  me  digo  que  minto  e  que  me  enleio. 
Nem  somente  consinto  neste  engano, 

Mas  inda  to  agradeço,  e  a  mi  me  nego 

Tudo  o  que  vejo  e  sinto  de  meu  dano. 
Oh  poderoso  mal,  a  que  me  entrego ! 

Que,  no  meio  do  justo  desengano. 

Me  possa  inda  cegar  um  moço  cego ! 

(Soneto  79). 

E,  cego  pelo  moço  cego,  praticava  desatinos,  de  que  depois 
pedia  perdão,  mas  que,  por  certo,  não  tardariam  a  compro- 
meiter  a  infanta,  se  não  se  lhes  pusesse  cobro. 


72 


Senhora  já  desta  alma,  perdoai 

De  um  vencido  de  Amor  os  desatinos, 

E  sejam  vossos  olhos  tão  beninos 

Com  este  puro  amor,  que  da  alma  sai. 
A  minha  pura  fé  somente  olhai, 

E  vede  meus  extremos,  se  são  íinos, 

E,  se  de  alguma  pena  forem  dinos. 

Em  mim,  senhora  minha,  vos  vingai. 
Não  seja  a  dor  que  abrasa  o  triste  peito 

Causa  por  onde  pene  o  coração. 

Que  tanto  em  firme  amor  vos  é  sujeito. 
Guardai-vos  do  que  alguns,  dama,  dirão  : 

Que,  sendo  raro  em  tudo  vosso  objeito. 

Possa  morar  em  vós  ingratidão. 

(Soneto  278). 

Vinham  então  as  promessas  de  que  ninguém  o  veria  ver  a 
infanta ; 

Mote* 

Pois  dano  me  faz  olhar-vos. 
Não  quero,  por  não  perder-vos. 
Que  ninguém  me  veja  ver-vos. 

Voltas 

De  ver-vos  a  não  vos  ver, 
Ha  dous  extremos  mortais. 
E  são  elles  em  si  tais. 
Que  um  por  um  me  faz  morrer. 
Mas  antes  quero  escolher 
Que  possa  viver  sem  ver-vos, 
Minha  alma,  por  não  perder-vos. 

Deste  tamanho  perigo 
Que  remédio  posso  ter, 
Se  vivo  só  com  vos  ver, 
Se  vos  não  vejo,  perigo  ? 
Mas  quero  acabar  comigo 
Que  ninguém  me  veja  ver-vos, 
Senhora,  por  não  perder-vos. 


Vinham  então  as  apaixonadas  supplicas  para  que  a  infanta 
se  não  esquecesse  do  seu  iriste  coração,  para  que  lhe  pou- 
passe a  vida : 

Mote 

Pois  é  mais  vosso  que  meu, 
Senhora,  meu  coração, 
Eu  vosso  captivo  são, 
Meus  olhos,  lembre-vos  eu. 


Volta 


Lembre-vos  minha  tristeza, 
Que  jamais  nunca  me  deixa ; 
Lembre-vos  com  quanta  queixa 
Se  queixa  minha  firmeza. 

Lembre-vos  que  não  é  meu 
Este  triste  coração ; 
E  pois  ha  tanta  razão. 
Meus  olhos,  lembre-vos  eu. 

Mote 

Senhora,  pois  minha  vida 
Tendes  em  vosso  poder. 
Por  serdes  delia  servida, 
Não  queirais  que  destruída 
Possa  ser. 

Volta 

Isto,  nSo  por  me  pesar 
De  morrer,  se  vós  quiserdes ; 
Que  melhor  me  é  acabar 
Mil  vezes,  que  supportar 
Os  males  que  me  fizerdes : 


74 

Mas  só  por  serdes  servida 
De  mi,  emquanto  viver, 
—  Vos  peço  que  minha  vida 
Não  queirais  que  destruida 
Possa  ser. 

Mas,  se  a  infanta  se  conservava  inexoravelmente  surda  ás 
supplicas  do  enamorado  poeta,  este  é  que  também  se  declarou 
firmemente  resolvido  antes  a  tudo  softVer,  do  que  a  deixar 
de  vê-la  e  amá-la : 

Quando  se  vir  com  agua  o  fogo  arder, 

Juntar-se  ao  claro  dia  a  noite  escura, 

E  a  terra  coliocada  lá  na  altura, 

Em  que  se  vêem  os  ceos,  prevalecer ; 
Quando  Amor  á  razão  obedecer, 

E  em  todos  for  igual  uma  ventura : 

Deixarei  eu  de  ver  tal  formosura 

E  de  a  amar  deixarei,  depois  de  a  ver. 
Porém,  não  sendo  vista  esta  mudança 

No  mundo,  porque,  emíim,  não  pode  ver-se, 

Ninguém  mudar-me  queira  de  querer-vos. 
Que  basta  estar  em  vós  minha  esperança 

E  o  ganhar-se  a  minha  alma  ou  o  perder-se. 

Para  dos  olhos  meus  nunca  perder-vos. 

(Soneto  145). 

Se  pena,  por  amar-vos,  se  merece. 

Quem  delia  estará  livre  ?  quem  isento  ? 
E  que  alma,  que  razão,  que  intendimento. 
No  instante  em  que  vos  vê,  não  obedece  ? 

Qual  mór  gloria  na  vida  já  se  oífrece, 

Que  a  de  occupar-se  em  vós  o  pensamento  ? 

Não  só  todo  rigor,  todo  tormento. 

Com  ver-vos,  não  magoa,  mas  se  esquece, 

Porém,  se  heis  de  matar  a  quem,  amando, 
Ser  vosso  de  amor  tanto  só  pretende,  • 
O  mundo  matareis,  que  é  todo  vosso. 


Em  mi  podeis,  senhora,  ir  começando, 

Pois  bem  claro  se  mostra  e  bem  se  intende 
Amar-vos  quanto  devo  e  quanto  posso. 

(Soneto  82). 

Ameaçado  com  o  exilio,  Camões  respondia  altivamente: 

Nem  o  tremendo  estrépito  da  guerra, 

Com  armas,  com  incêndios  espantosos, 

Que  despacham  pelouros  perigosos, 

Bastantes  a  abalar  uma  alta  serra. 
Podem  pôr  medo  a  quem  nenhum  encerra, 

Despois  que  viu  os  olhos  tão  formosos. 

Por  quem  o  horror,  nos  casos  pavorosos, 

De  mi  todo  se  aparta  e  se  desterra. 
A  vida  posso  ao  fogo  e  ferro  dar 

E  perdê-la  em  qualquer  duro  perigo 

E  nelle,  como  phenix,  renovar. 
Não  pôde  mal  haver  para  comigo. 

De  que  eu  já  me  não  possa  bem  livrar,    . 

Senão  do  que  me  ordena  Amor  imigo. 

(Soneto  210). 

Não  havia  remédio.  O  poeta  recebeu  ordem  de  sair  de 
Lisboa  para  o  Ribatejo  e  para  aí  se  encaminhou,  levando  na 
alma  a  sua  bem-amada,  a  sua  alma,  ou  antes  indo  sem  a 
alma,  que  ficava  em  poder  daquella: 

Mote  [aiiicwj 

Sem  vós  e  com  meu  cuidado : 
Olhai  com  quem  c  sem  quem  ! 

(iloSJ 

Vendo  Amor  que,  com  vos  ver, 
Mais  levemente  soflria 
Os  males  que  me  fazia, 
N5o  me  pôde  isto  soflfrer. 


7<J 


Gonjurou-se  com  meu  fado, 
Um  novo,  mal  me  ordenou  : 
Ambos  me  levam  forçado 
Não  sei  onde,  poisque  vou 
Sem  vós  e  com  meu  cuidado. 

Não  sei  qual  é  mais  estranho, 
Destes  dous  males  que  sigo : 
Se  não  vos  ver,  se  comigo 
Levar  imigo  tamanho. 

O  que  fica  e  o  que  vem, 
Um  me  mata,  outro  desejo. 
Com  tal  mal  e  sem  tal  bem. 
Em  tais  extremos  me  vejo. 
Olhai  com  quem  e  sem  quem ! 

Outra  glosa  ao  mesmo  mote 

Amor,  cuja  providencia, 
Foi  sempre  que  não  errasse. 
Porque  na  alma  vos  levasse. 
Respeitando  o  mal  da  ausência. 
Quis  que  em  vós  me  transformasse. 

E  vendo-me  ir  maltratado, 
Eu  e  meu  cuidado,  sós. 
Proveu  nisso,  de  attentado. 
Por  não  me  ausentar  de  vós. 
Sem  vós  e  com  meu  cuidado. 

Mas  esta  alma,  que  eu  trazia. 
Porque  vós  nella  morais, 
Deixa-me  cego  e  sem  guia. 
Que  ha  por  melhor  companhia. 
Ficar  onde  vós  ficais. 

Assi  me  vou  de  meu  bem. 
Onde  quer  a  forte  estrella, 
Sem  alma,  que  em  si  vos  tem, 
Co  mal  de  viver  sem  ella : 
Olhai  com  quem  e  sem  quem ! 


77 


Mote 

Ferro,  fogo,  frio  e  calma, 
Todo  o  mundo  acabarão : 
Mas  nunca  vos  tirarão, 
Alma  minha,  da  minha  alma  ! 

Volta 

Não  vos  guardei,  quando  vinha, 
Em  torre,  força  (i)  ou  engenho. 
Que  mais  guardada  vos  tenho 
Em  vós,  que  sois  alma  minha. 

Alli  nem  frio  nem  calma 
Não  podem  ter  jurdição ; 
Na  vida  sim,  porém  não 
Em  vós,  que  tenho  por  alma. 

Quando  foi  o  poeta  forçado  a  sair  de  Lisboa  ? 
A  respeito  da  estação  do  anno,  não  pôde  haver  duvida 
foi  na  primavera. 

Mote  (alheio) 

Campos  benvaventurados, 
Tomai-vos  agora  tristes. 
Que  os  dias  em  que  me  vistes, 
Alegres,  já  são  passados. 

Glosa 

Campos  cheios  de  prazer, 
Vós  que  estais  reverdecendo. 
Já  me  alegrei  com  vos  ver ; 
Agora  venho  a  temer 
Que  entristeçais  em  me  vendo. 


(i)  Deverá  ler-sc /^r<iffl  J' 


78 

E  pois  a  vi^ta  alegrais 
Dos  olhos  desesperados, 
Não  quero  que  me  vejais, 
Para  que  sempre  sejais 
Campos  bemaventurados. 

Porém,  se  por  accidente 
Vos  pesar  de  meu  tormento. 
Sabereis  que  Amor  consente 
Que  tudo  me  descontente, 
Senão  descontentamento. 

Porisso  vós,  arvoredos, 
Que  já  nos  meus  olhos  vistes 
Mais  alegria,  que  medos. 
Se  mos  quereis  fazer  ledos, 
Tornai-vos  agora  tristes. 

Já  me  vistes  ledo  ser, 
Mas  despois  que  o  falso  Amor 
Tão  triste'  me  fez  viver, 
Ledos  folgo  de  vos  ver. 
Porque  me  dobreis  a  dor. 

E  se  este  gosto  sobejo 
De  minha  dor  me  sentistes. 
Julgai  quanto  mais  desejo 
As  horas  que  vos  não  vejo, 
Que  os  dias  em  que  me  vistes. 

O  tempo,  que  é  desigual. 
De  seccos,  verdes  vos  tem. 
Porque  em  vosso  natural 
Se  muda  o  mal  para  o  bem. 
Mas  o  meu  para  mór  mal. 

Se  perguntais,  verdes  prados. 
Pelos  tempos  differentes. 
Que  de  Amor  me  foram  dados. 
Tristes,  aqui  são  presentes. 
Alegres,  já  são  passados. 

(Redondilhas). 


79 


Alegres  campos,  verdes  arvoredos, 

Claras  e  frescas  aguas  de  crystal. 

Que  em  vós  os  debuxais  ao  natural, 

Discorrendo  da  altura  dos  rochedos ; 
Silvestres  montes,  ásperos  penedos, 

Compostos  de  concerto  desigual : 

Sabei  que,  sem  licença  de  meu  mal, 

Já  não  podei»  fazer  meus  olhos  ledos. 
E  pois  já  me  não  vedes  como  vistes. 

Não  me  alegrem  verduras  deleitosas, 

Nem  aguas  que  correndo  alegres  vem. 
Semearei  em  vós  lembranças  tristes, 

Regar-vos-ei  com  lagrimas  saudosas, 

E  nascerão  saudades  de  meu  bem. 

(Soneto  40). 

Em  que  anno,  porém,  se  passaria  isto?  Temos,  me  pa- 
rece, uma  indicação  valiosa  nas  seguintes  redondilhas: 

Mote 

De  atormentado  e  perdido, 
Já  vos  não  peço  senão 
Que  tenhais  no  coração 
O  que  tendes  no  vestido. 

•      Volta 

Se  de  dó  vestida  andais 
Por  quem  já  vida  não  tem, 
Porque  não  o  haveis  de  quem 
Vós  tantas  vezes  matais  ? 

Que  brado,  sem  ser  ouvido, 
E  nunca  vejo  senSo 
Cruezas  no  coraçfio, 
E  grande  dó  no  vestido. 

Aiormentado  e  perdido,  isto  é,  vendo  já  deante  de  st  o 
exilio,  o  poeta  pede  á  infanta  que  tenha  por  elle  o  dó  que 
traz  no  vestido. 


8o 


Ora  pouco  depois  do  começo  da  primavera  de  1647  ^o^^ou 
a  filha  de  D.  Manuel  luto  rigoroso  pelo  padrasto,  Francisco  I, 
fallecido  em  3i  de  março  desse  anno. 

Se  é  fundada  a  conjectura  que  acima  apresentei  acerca  do 
anno  em  que  o  poeta  começou  di  pòr  o  pensamento  na  infanta 
(1546),  teria  assim  durado  uns  doze  meses  o  periodo  que  aca- 
bamos de  percorrer. 

E  devo  accrescentar  que,  se  o  minimo  não  pôde  deixar  de 
ser  um  anno,  —  de  primavera  a  primavera  — ,  também  difficil- 
mente  a  pretenção  do  poeta  se  poderia  ter  prolongado  por 
mais  tempo,  sem  ser  necessário  pôr-lhe  cobro. 

Antes  de  acompanharmos  Camões  no  seu  amargurado 
exilio,  cumpre  fazer  referencia  a  alguns  factos  anteriores, 
de  que  elle  nos  dá  noticia. 

Seja  o  primeiro  uma  ausência  da  formosa  infanta,  que 
motivou,  entre  outras  poesias,  estes  três  sonetos,  tão  bellos, 
tão  repassados  de  amorosa  saudade: 

Ondados  fios  de  ouro  reluzente, 

Que  agora  da  mão  bella  recolhidos, 
Agora  sobre  as  rosas  esparzidos, 
Fazeis  que  sua  graça  se  accrescente : 

Olhos,  que  vos  moveis  tão  docemente, 
Em  mil  divinos  raios  incendidos : 
Se  de  oá  me  levais  a  alma  e  os  sentidos, 
Que  fora,  se  eu  de  vós  não  fora  ausente  ? 

Honesto  riso,  que  entre  a  mór  fineza 
De  perlas  e  corais  nasce  e  apparece. 
Oh!  quem  seus  doces  ecos  já  lhe  ouvisse ! 

Se,  imaginando  só  tanta  belleza  (i). 

De  si,  com  nova  gloria,  a  alma  se  esquece, 
Que  será  quando  a  vir  ?  Ah  quem  a  visse  1 

(Soneto  84). 


(1)  Brantôme,  que  era  intendido  no  assumpto,  dá-nos  também  teste- 
munho da  formosura  da  infanta,  em  uma  pagina  das  Dames  galantes, 
que  vale  a  pena  transcrever  na  integra.  Paliando  de  senhoras  que  não 


Do  estan  lo^  claros  ojos,  que,  colgada, 
Mi  alma  trás  de  si  Uevar  solian  ? 
Do  estan  las  dos  mexillas,  que  vencian 
La  rosa,  quando  está  mas  colorada  ? 


quiseram  casar,  diz  o  celebre  cortesão  e  aventureiro  francês :  «Jay  veu 
rinfante  de  Portugal,  filie  de  la  feu  reyne  -/^^leonor,  en  mesme  resolu- 
tion ;  et  est  morte  filie  et  vierge  en  Taage  de  soixante  ans  ou  plus.  Ce 
n'est  pas  faute  de  grandeur,  car  eirestoit  grande  en  tout ;  ny  par  faute 
de  biens,  car  elle  en  avoit  force,  et  mesme  en  France,  ou  M.  le  general 
Gourgues  a  bien  fait  ses  affaires ;  ny  pour  faute  de  dons  de  naturc,  car 
je  Tay  veue  à  Lysbonne,  en  Taage  de  quarante-cinq  ans,  une  tres-belle 
et  agreable  filie,  de  bonne  grace  et  belle  aparance,  douce,  agreable,  et 
qui  meritoit  bien  un  mary  pareil  à  elle  en  tout,  courtoise,  et  mesmes  à 
nous  autres  François.  Je  le  peux  dire  pour  avoir  eu  cest  honneur  d'avoir 
parle  à  elle  souvant  et  privement.  Feu  M.  le  grand  prieur  de  Lorraine, 
lorsqu'il  mena  ses  galleres  du  Levant  en  Ponant  pour  aller  en  Escosse, 
du  temps  du  petit  roy  François,  passant  et  sejournant  à  Lysbonne  quel- 
ques  jours,  la  visita  et  veid  tous  les  jours.  Elle  le  receut  fort  courtoise- 
ment  et  se  pleust  fort  en  sa  compaignie,  et  lui  fit  tout  plein  de  beaux 
presens.  Entre  autres,  luy  bailia  une  chaisne  pour  pendre  sa  croix,  toute 
de  diamans  et  rubisj  et  perles  grosses,  proprement  et  richement  elabou- 
rée ;  et  pouvoit  bien  valloir  de  quatre  à  cixiq  milKescus,  et  luy  faisoit 
trois  tours.  Je  croy  qu'elle  pouvoit  bien  valloir  cela,  car  il  Tengageoil 
tousjours  pour  trois  milPescus,  ainsi  qu'il  fit  une  fois  à  Londres,  lorsque 
nous  tournions  d'Escosse ;  mais  aussitost  estant  en  France  il  Tenvoya 
desengager,  car  il  Taymoit  pour  Tamour  de  la  dame  de  laquelle  il  estoit 
encaprissé  et  fort  pris.  Et  croy  qu*elle  ne  Taymoit  point  moins,  et  que 
voluntiers  elPeust  rompu  son  neud  virginal  pour  luy ;  cela  s'apelle  par 
mariage,  car  c'estoit  une  tres-sage  et  veriueuse  princesse.  Et  si  diray 
bien  plus,  que,  sans  les  premiers  troubles  qui  commençarent  en  FrancC) 
ou  messieurs  ses  freres  Tattiroient,  et  Ty  tcnoieni,  il  voulut  luy-mesmes 
retourner  ses  galleres  et  reprendre  mesme  routtc,  et  revoir  ceste  prin- 
cesse et  lui  parler  de  nopces ;  et  croy  qu'íl  n'y  fust  point  este  escon- 
duict,  car  il  estoit  d'aussi  bonne  maison  qu*elle,  et  extraict  de  grands 
roys  comm'elle,  et  surtout  Tun  des  beaux,  des  agreables,  des  honnestes 
et  des  meilleurs  prínces  de  la  chresticnté.  Messieurs  ses  freres,  principaU 
cment  les  deux  aisnez,  car  ilz  cstoicnt  les  oracles  de  tous  et  conduísoient 
6  R.  3394 


8-2 


Do  está  la  roxa  boca,  y  adornada 

Con  dientes,  que  de  nieve  parecian  ? 
Los  cabellos,  que  el  oro  escurecian, 
Do  estan,  y  aquella  mano  delicada  ? 

O  toda  linda!  Do  estarás  agora, 

Que  no  te  puedo  ver,  y  el  gran  deseo 
De  verte  me  da  muerte  cada  hora ! 


la  barque,  je  vis  un  jour  qu'il  leur  en  parloit,  leur  racontant  de  son 
voyage  et  les  plaisirs  qu'il  avoit  receuz  là,  et  les  faveurs :  ilz  vouloient 
fort  qu'il  reffist  encor  le  voyage  et  y  retournast  encor ;  et  luy  conseil- 
loient  de  donner  là,  car  le  pape  en  eust  aussitost  donné  la  dispense  de 
la  croix ;  et,  sans  ces  mauditz  troubles,  il  y  alloit  et  en  fust  sorty  (à  mon 
advis),  à  son  honneur  et  contentement.  Ladite  princesse  Taymoit  fort, 
et  m'en  parla  en  três  boné  part,  et  le  regreta  fort,  m'interrogeant  de  sa 
mort,  et  comme  esprise,  ainsi  qu'il  est  aisé,  en  telles  choses,  à  un  homme 
un  peu  clairvoyant  le  cognoistre»  (Edição  de  E.  Flammarion,  Paris,  p. 
435-436).  O  grão-prior  de  Lorena  era  Francisco  de  Guise,  professo  na 
ordem  de  Malta  e  irmão  do  celebre  segundo  duque  de  Guise  e  do  car- 
dial  de  Lorena.  O  petit  roy  François  é  Francisco  2.°,  que  subiu  ao  throno 
em  julho  de  i559  e  falleceu  em  dezembro  de  i56o.  Brantôme,  que  não  se 
enganou  muito  a  respeito  da  idade  que  tinha  a  infanta,  esteve  em  Lisboa 
de  1564  para  i565.  Apesar  cje  já  não  ser  viva  a  rainha  D.  Leonor,  compre- 
hende-se  o  interesse  com  que  a  enteada  de  Francisco  i.°  ouviria  o  cele- 
bre fidalgo  francês.  Creado  na  corte  de  Margarida  de  Valois,  filho,  neto, 
sobrinho  e  irmão  de  empregados  superiores  da  casa  real,  gentil-homem 
da  camará  de  Carlos  g."*,  ninguém  melhor  do  que  elle  podia  informar  a 
infanta  a  respeito  de  pessoas  que  tanto  interesse  lhe  deviam  despertar. 
Pois  se  elle  até  sabia  que  a  rainha  D.  Leonor,  «estant  deshabillée,  pa- 
roissoit  du  corps  une  geante,  tant  elle  Tavoit  long  et  grand ;  mais,  tirant 
en  bas,  elle  paroissoit  une  naine,  tant  elle  avoit  les  cuisses  et  jambas 
courtes  avec  le  reste» !  {Dames  galantes,  ediç.  cit.,  pag.  166).  E  quem 
lhe  havia  dito  isto  tinha  sido  madame  de  Fontaine-Chalandray,  dite  la 
belle  Torcy,  aquella  que,  em  solteira,  tão  ardente  paixão  havia  inspirado 
a  Francisco  de  Moraes  e  que  Camões  trata  de  formosa  e  falsifica  nym- 
pha  (Egloga  2.»,  v.  495  e  segg.).  Direi  ainda  que  Brantôme  recebeu  de 
D.  Sebastião  o  habito  de  Christo.  E  talvez  a  filha  da  rainha  D.  Leonor 
não  fosse  estranha  á  concessão  desta  mercê. 


83 


Mas  no  mirais  mi  grande  devaneo  ? 

Que  tenga  yo  en  mi  alma  a  mi  senora 
E  diga :  Donde  estás,  que  no  te  veo ! 

(Soneto  328)  (1). 

De  cá,  donde  somente  o  imaginar-vos 

A  rigorosa  ausência  me  consente, 

Sobre  as  asas  do  Amor,  ousadamente, 

O  mal  soffrido  esprito  vai  buscar-vos; 
E,  se  não  receara  de  abrasar-vos 

Nas  chammas,  que  por  vossa  causa  sente, 

Lá  ficara  comvosco,  e,  vós  presente, 

Aprendera  de  vós  a  contentar  vos. 
Mas,  pois  que  estar  ausente  lhe  é  forçado. 

Por  senhora,  de  cá,  vos  reconhece. 

Aos  pés  de  imagens  vossas  inclinado. 
E  pois  vedes  a  fé  que  vos  otfrece, 

Ponde  os  olhos,  de  lá,  no  seu  cuidado, 

E  dar-lhe-eis  inda  mais  do  que  merece. 

(Soneto  116). 

Como  tardava  para  o  enamorado  poeta  o  dia  em  que  po- 
desse  tornar  a  ver  a  sua  saudade! 

Mote 

Saudade  minha. 
Quando  vos  veria  ? 

Voltas 

Este  tempo  vão, 
Esta  vida  escassa, 
Para  todos  passa, 
Só  para  niim  não. 


( I )  Reproduzo  o  soneto  como  elle  se  lê  no  Cancioneiro  de  L.  Franco 
Corrêa  (H.  114  v.),  mudando  apenas  está  em  estan  no  v.  8.  A  transcripçfio 
de  Juromenha  contém  algumas  inexatidões. 


Os  dias  se  vão, 
Sem  ver  este  dia, 
Quando  vos  veria. 

Vede  esta  mudança    • 
Se  está  bem  perdida  (i): 
Em  tão  curta  vida, 
Tão  longa  esperança ! 
Se  este  bem  se  alcança, 
Tudo  soffreria, 
Quando  vos  veria. 

Saudosa  dor, 
Eu  bem  vos  intendo ; 
Mas  não  me  defendo, 
Porque  offendo  Amor. 
Se  fosseis  maior. 
Em  maior  valia 
Vos  estimaria. 

Minha  saudade. 
Caro  penhor  meu, 
A  quem  direu  eu 
Tamanha  verdade  ? 
Na  minha  vontade, 
De  noite  e  de  dia. 
Sempre  vos  teria. 

Estaria  a  infanta  fora  de  Lisboa,  durante  alguma  tempo- 
rada, no  periodo  que  decorre  da  primavera  de  1646  até  á 
de  i547? 

Pela  chronica  de  Francisco  de  Andrade  sabemos  que  a 
corte    se    achava   em   Almeirim    no   começo   de   junho   de 


(i)  Que  quer  isto  dizer?  Teria  o  poeta  escripto : 

Vede  esta  ordenança 
Se  está  bem  urdida  ? 


85 


1646  (i).  E  do  Corpo  diplomático  portugue^y  tomo  vi,  se 
deduz  que  residiu  todo  o  anno  nesta  villa  ou  em  Santarém. 
É,  portanto,  natural  que  a  infanta  também  para  alli  fosse 
passar,  pelo  menos,  a  estação  calmosa. 

E  não  seria  esta  a  primeira  vez  que  ella,  depois  de  ter 
casa  á  parte,  acompanhasse  o  irmão  e  a  tia  para  fora  de 
Lisboa.  Em  setembro  de  iS^B,  por  exemplo,  encontravam-se 
todos  em  Cintra  (2). 

Em  principio  de  fevereiro  de  1647,  é  certo,  assistiu  a  in- 
fanta em  Almeirim  ao  faustuoso  casamento  de  D.  João  de 
Lencastre,  primeiro  duque  de  Aveiro,  com  D.  Juliana  de 
Lara,  irmã  do  quarto  marquês  de  Villa-Real,  D.  Miguel  de 
Meneses  (3). 

Não  me  parece,  porém,  que  fosse  esta  a  ausência  que 
motivou  as  poesias  de  Camões. 

Creio,  em  primeiro  logar,  que  ella  não  foi  longa.  Demais, 
nessa  occasião  já  os  amores  de  Camões  deviam  ter  saído 
da  phase  idyllica,  em  que  as  referidas  poesias  foram  escri- 
ptas.  Accresce  ainda  que  tafvez  o  poeta  se  achasse  também 
presente  ao  acto.  A  noiva,  com  effeito,  pertencia,  muito  de 
perto,  á  familia  do  seu  amigo  e  protector,  D.  Francisco  de 
Noronha  (4),  e  era  natural  que  o  pequeno  D.  António  fosse 
também  a  Almeirim,  acompanhado  do  seu  preceptor.  Era 
uma  festa  de  familia,  transformada  em  festa  da  corte  (5),  e 


(1)  Crónica  de  D.  João  III,  4."  parte,  cap.  11.  Refere  o  chronista  a 
cerimonia  com  que  D.  João  III  recebeu  o  collar  do  Tosão  d'ourOf  que 
Carlos  V  lhe  enviou  por  um  rei  d'armas. 

(2)  Crónica  cilada,  3.'  parte,  cap,  95. 

(3)  Sousa,  Historia  genealógica,  xi,  p.  5o  e  segg.  Provas,  vi,  p.  45-67. 

(4)  Foi  até  clle  que  assignou,  em  nome  e  com  procuração  da  noiva^ 
a  escriptura  do  casamento,  feita  em  Almeirim  cm  1  de  fevereiro  de  1547. 
Encontra-se  esta  escriptura  impressa  nas  Provas  da  Historia  genealó- 
gica da  Casa  real,  vi,  p.  45  e  segg. 

(5)  Vid.  Historia  genealógica,  xi,  p.  5o  e  segg. 


86 


D.  Francisco  de  Noronha  quereria,  por  certo,  que  o  seu 
primogénito  a  ella  assistisse.  E  comprehende-se  bem  que  o 
poeta  procuraria  remover  quaesquer  obstáculos,. se  os  hou- 
vesse, para  ir  com  o  seu  discípulo  e  olhar  por  elle  (i). 

Supponho,  por  isso,  que  as  poesias  a  que  acabo  de  me  referir 
foram  escriptas  durante  a  estação  calmosa  do  anno  de  1546. 

Outro  grupo  de  poesias,  anteriores  ao  exilio,  é  o  que  foi 
motivado  por  uma  doença  da  infanta. 

Mote 

Deu,  senhora,  por  sentença 
Amor  que  fosseis  doente. 
Para  fazerdes  á  gente 
Doce  e  formosa  a  doença. 

Voltas 

Não  sabendo  Amor  curar, 
Foi  a  doença  fazer, 
F^ormosa  para  se  ver. 
Doce  para  se  passar. 

Então,  vendo  a  differença 
Que  ha  de  vós  a  toda  a  gente, 
Mandou  que  fosseis  doente. 
Para  gloria  da  doença. 

E  digo-vos  de  verdade 
Que  a  saúde  anda  invejosa, 
Por  ver  estar  tão  formosa 
Em  vós  essa  infermidade. 

Não  façais  logo  detença. 
Senhora,  em  estar  doente. 
Porque  adoecerá  a  gente 
Com  desejos  da  doença. 


(i)  Sobre  a  affluencia  de  gente  ao  casamento,  veja-se  a  curiosa  carta 
do  cónego  Brás  Luis  da  Mota  {Provas  da  Historia  genealógica,  vi,  p.  64). 


8? 

Que  eu,  por  ter,  formosa  dama, 
A  doença  que  em  vós  vejo, 
Vos  confesso  que  desejo 
De  cair  comvosco  em  cama. 

Se  consentis  que  me  vença 
Deste  (i)  mal,  não  houve  gente 
Da  saúde  tão  contente, 
Como  eu  serei  da  doença. 

Mote 

Da  doença  em  que  ora  ardeis 

Eu  fora  vossa  mezinha. 

Só  com  vós  serdes  a  minha. 

Voltas 

É  muito  para  notar 
Cura  tão  bem  acertada, 
Que  podereis  ser  curada 
Somente  com  me  curar. 
Se  quereis,  dama,  trocar. 
Ambos  temos  a  mezinha. 
Eu  a  vossa,  e  vós  a  minha. 

Olhai  que  não  quer  Amor, 
Porque  fiquemos  iguais, 
Pois  meu  ardor  não  curais. 
Que  se  cure  vosso  ardor. 
Eu  cá  sinto  vossa  dor ; 
E  se  vós  sentis  a  minha. 
Daí  e  tomai  a  mezinha. 

Mote 

Com  razão  queixar-me  posso. 
De  vós,  que  mal  vos  queixais ; 
Pois,  senhora,  vos  sangrais, 
Que  seja  num  corpo  vosso  (2). 


(1)  N80  deverá  ler- se  este  ou  essef 

(a)  E  não  na  minha  alma,  que  lú  tendes. 


88 


Voltas 

Eu,  para  levar  a  palma, 
Com  que  ser  vosso  mereça, 
Quero  que  o  corpo  padeça 
Por  vós,  que  delle  sois  alma. 

Vós  do  corpo  vos  queixais  ; 
Eu  queixar-me  de  vós  posso, 
Porque,  tendo  um  corpo  vosso. 
Na  minha  alma  vos  sangrais. 

E  sem  fazer  differença 
No  que  de  mi  possuís. 
Pelo  pouco  que  sentis. 
Dais  á  minha  alma  doença. 

Porque  dous  aventurais  í 
Oh  não  seja  o  dano  nosso  I 
Sangre-se  este  corpo  vosso  (i), 
Porque,  minha  alma,  vivais. 

E  inda,  se  attenderdes  bem. 
Seguis  medicina  errada, 
Porque,  para  ser  sangrada, 
Uma  alma  sangue  não  tem. 

E  pois  em  mi  sarar  posso 
Males,  que  á  minha  alma  dais. 
Se  inda  outra  vez  vos  sangrais, 
Seja  neste  corpo  vosso  (2). 


Tudo  me  leva  a  crer  que  a  doença  a  que  se  refere  aqui  o 
poeta  é  a  mesma  de  que  falia  Fr.  Miguel  Pacheco,  na  se- 
guinte passagem :  «Enfermo  vna  vez  de  tercianas,  con  alguna 
malignidad  ;  hallauanse  los  médicos  con  cuidado;  mas  nuestra 


(i)  O  sentido  mostra  que  deve  ler-se,  aqui,  corpo  nosso,  e  no  verso 
anterior,  dano  vosso.  Cf.  a  primeira  volta  :  quero  que  o  meu  corpo,  etc. 
(2)  Aliás  corpo  nosso. 


8o 


Princesa,  haziendo  menos  caso  de  los  socorros  de  Hypocrates 
y  Galeno,  acudio  a  buscarlos  en  la  Reyna  dei  Cielo.  Ordeno 
a  su  confessor  fuesse  a  pedirlo  a  la  milagrosa  imagen  de  la 
Luz,  que  se  venera  en  templo  que  dista  poço  de  Lisboa,...  y 
celebrada  en  su  iglesia  la  missa,  se  traxesse  vna  cantarilla  de 
agua,  de  vna  admirable  fuente  que  corre  debaxo  de  su  altar. . . 
Beuio  esta  Princesa  (la  salud),  porque,  en  el  mismo  punto 
que  tomo  el  agua,  se  despidio  la  calentura  y  cesso  la  enfer- 
midad»  (i). 

Em  que  phase  se  achavam  os  amores  do  poeta,  quando 
escreveu  os  versos  que  ficam  transcriptos? 

O  tom  geral  que  nelles  domina,  ao  mesmo  tempo  que  in- 
dica não  ser  considerada  grave  a  doença  da  infanta,  mostra 
também  que,  para  á  ardente  paixão  do  poeta,  já  ia  tardando 
o  remédio: 

Olhai  que  não  quer  Amor, 
Porque  fiquemos  iguais, 
Pois  meu  ardor  não  curais, 
Que  se  c^re  vosso  ardor. 

Camões  achava-se,  me  parece,  na  phase  em  que  tanto  o 
incommodava  a  indiíTerença  da  infanta.  Já  havia  chegado  ou 


(i)  Vida  de  la  sereníssima  infanta  Do  fia  Maria,  ú.  107  v.-!o8).  Não 
encontro  referencia  a  qualquer  outra  doença  da  infanta,  além  destas 
terçãs  e  da  calentura  lenta,  de  que  morreu  (Ibid.,  fl.  12Ó  v.).  Diz  Fr.  M. 
Pacheco  que  a  infanta,  para  que  as  miraculosas  aguas  da  Luz  podessem 
aproveitar  a  todos,  «compro  vnas  casas  immcdiatas  a  aquel  Santuário 
y  ordeno  se  diessen  de  valde  a  los  que  quiziesen  hazer  nouenas»,  ctc. 
(R.  108).  Foi  talvez  esta  uma  das  razões  por  que  a  fílha  de  D.  Manuel, 
posteriormente,  mandou  construir  e  escolheu  para  seu  jazigo  a  sum- 
ptuosa capella-mòr  da  Senhora  da  Luz,  que  fica  no  próprio  local  onde 
estava  o  antigo  templo.  E  lá  corre  ainda  agua  de  que  a  infanta  bebeu 
para  se  curar  das  terçãs.  « 


QO 


estava  próxima  a  occasião  de  perguntar  a  si  próprio: 

Se  esta  dor  tão  conhecida 

Me  não  vêem,  porque  não  querem, 

Que  farei  para  me  crerem  ? 

Confirmam  esta  conjectura  as  redondilhas  seguintes 

Olhai  que  dura  sentença 
Foi  Amor  dar  contra  mi : 
Que,  porque  em  vós  me  perdi, 
Em  vós  me  busque  a  doença ! 

Claro  está 
Que  em  vós  só  me  achará ; 
Que  em  mi,  se  me  vem  buscar, 
Não  poderá  mais  achar 
Que  a  forma  do  que  foi  (i)  já. 

Que,  se  em  vós  Amor  se  pôs. 
Senhora,  é  forçado  assi. 
Que  o  mal,  que  me  busca  a  mi, 
Que  vos  faça  mal  a  vós. 

Sem  mentir, 
Amor  me  quis  destruir 
Por  modo  nunca  cuidado  ; 
Pois  ha  de  ser  já  forçado 
Pesar-vos  (2)  de  vos  servir. 

Mais  sois  tão  desconhecida, 
E  são  meus  males  de  sorte. 
Que  vos  ameaça  a  morte, 
Porque  me  negais  a  vida. 

Se  por  boa 
Tal  justiça  se  pregoa. 
Quando  desta  sorte  for. 
Havei  vós  perdão  de  Amor, 
Que  a  parte  já  vos  perdoa. 


(i)  Não  será  preferível  ler  fui? 

(a)  Talvez  lhe,  referindo-se  a  Amor. 


Mas  o  que  mais  temo,  emfim, 
É  que,  nesta  differença, 
Que  se  não  torne  a  doença, 
Se  me  não  tornais  a  miro. 

De  verdade, 
Que  já  vossa  humanidade 
De  que  se  queixe  não  tem, 
Pois  para  as  almas  também 
Fez  Amor  infermidade. 

Para  festejar  o  restabelecimento  da  saúde  da  infanta,  es- 
creveu Camões  a  bella  canção  19,  que  o  visconde  de  Juro- 
menha  publicou  pela  primeira  vez: 

Porque  a  vossa  belleza  a  si  se  vença, 

Tais  extremos  mostrastes, 

Que  mais  bella  ficastes 
Co  passado  rigor  desta  doença. 
Assim,  depois,  a  descorada  rosa. 
Se  reverdece,  fica  mais  formosa;  • 

Assim,  depois  do  inverno  e  seus  rigores, 
Se  mostra  a  primavera  com  mais  flores; 
Assim,  depois  que  eclipse  o  sol  padece, 
Com  mais  formosos  raios  resplandece. 

Já  de  vossa  saúde  o  sol  se  alegra ; 

E,  se  negro  vestia, 

Se  veste  de  alegria, 
E  se  mostra  mais  clara,  a  noute  negra. 
Os  campos  secos  florcceis,  senhora, 
Sem  flores  já  enferma  a  sua  Flora  (i). 
Também  os  elementos  se  alegraram, 
Que  o  vosso  mal  sentiram  c  choraram. 
Alegre  canta  o  pássaro  mais  rudo ; 
Tudo  te  alegra,  ou  vós  alegrais  tudo. 


(1)  Este  verso  foi  manifestamente  alterado.  Proponho  se  lêa: 
Com  flores  já  se  enfeita  a  deusa  Flora. 


92 


Alegrais  terra  e  ceo  co  as  luzes  bellas 

Desses  olhos  formosos, 

Que  são  tão  milagrosos, 
Que  dão  flores  á  terra,  ao  ceo  estrellas. 
Ao  Tejo,  que  ainda  tem  maior  ventura, 
Dais  o  retrato  dessa  formosura  (i). 
Que  é  de  riquezas  bem  maior  thesouro, 
Que  o  levar  as  areias  do  fino  ouro. 
Pois  tudo  enriqueceis,  senhora,  vemos 
Que  sois  mais  rica  e  tendes  mais  extremos. 

Festeja  o  mesmo  Amor  vossa  ventura 
E  a  saúde,  de  soberba  nella  (2), 
Se  mostra  já  mais  bella 

E  se  enriquece  em  vossa  formosura. 


(i)  O  paço  de  S.  Clara  ficava  sobranceiro  ao  Tejo  e  é  natural  que  o 
terreno  annexo,  ajardinado  ou  coberto  de  arvores,  descesse  até  á  mar- 
gem do  rio. 

Foi  taTvez  junto  desta  que  o  poeta  viu  a  infanta,  quando  a  foi  feli- 
citar pelo  seu  restabelecimento. 

(2)  Verso  evidentemente  errado.  W.  Storck  propõe  esta  correcção : 

E  a  saúde  nella. 

É  claro  que  não  satisfaz.  Lembro-me  de  qualquer  destas,  embora 
também  oífereçam  difficuldades : 

Vénus,  soberba  e  bella, 
ou 

Vénus,  por  causa  delia. 

Cf.  o  soneto  120,  que  também  se  refere  á  infanta: 

Tornai  essa  brancura  á  alva  assucena 
E  essa  purpúrea  côr  ás  puras  rosas ; 
Tornai  ao  sol  as  chammas  luminosas 
Dessa  vista,  que  a  roubos  vos  condena ; 

Tornai  á  suavíssima  sirena 

Dessa  voz  as  cadencias  deleitosas ; 
Tornai  a  graça  ás  Graças,  que  queixosas 
Estão  de  a  ter,  por  vós,  menos  serena ; 


93 


As  Graças,  coroadas  de  mil  flores, 

Vos  coroam  por  Deusa  dos  Amores 

E  vos  dão  o  que  o  vosso  abril  lhes  (i)  dera. 

Que  também  sois  das  Graças  Primavera. 

Já  que  alegrais  a  tudo  com  saúde, 

Tudo  se  alegre  e  ella  não  se  mude. 

Como  se  vê,  nesta  canção  o  poeta  não  allude  ao  seu  amor 
pela  filha  de  D.  Manuel.  É  que  naturalmente  foi  escripta, 
para  ser  lida  ou  ouvida  pela  illustre  senhora. 

Com  o  restabelecimento  da  saúde  da  infanta  relaciona 
também  W.  Storck  o  passeio  no  Tejo  (2),  que  teria  dado 
origem  ao  soneto  3og  da  edição  de  Juromeínha. 


Tomai  á  bella  Vénus  a  belleza ; 

A  Minerva  o  saber,  o  engenho  e  a  arte, 

E  a  pureza  á  castissima  Diana  :  ^ 

Despojai-vos  de  toda  essa  grandeza 

De  does  —  e  ficareis  em  toda  a  parte 

Comvosco  só,  que  é  só  ser  inhumana. 

A  propósito  dos  versos  5-6  citarei  estas  palavras  de  J.  de  Barros : 
«E  tanto  fruito  tem  Vossa  Alteza  colhido  das  letras,  que  achando  nellas 
quam  espiritual  cousa  he  a  musica,  &  quanto  levanta  os  corações  para 
o  Ceo,  nella  se  exercita»).  Panegírico,  á  mui  alta  e  esclarecida  Princesa 
infanta  D.  Maria,  cm  Severim  de  Faria,  Noticias  de  Portugal,  ediç.  de 
i655,  p.  329-330. 

(1)  W.  Storck  rejeita,  a  meu  ver,  com  razão  a  emenda  vos,  proposta 
para  este  logar.  Diz  o  poeta  que,  se  a  Primavera  coroa  as  Graças  de 
flores,  o  mesmo  lhes  havia  feito  a  infanta,  que  por  isso  se  pôde  tam- 
bém chamar  a  Primavera  das  Graças.  O  vosso  abril  lhes  dera  é  o  mesmo 
que  :  vós,  em  abril  lhes  déreis.  A  referencia  ao  (passado)  abril  e  os  cam- 
pos secos  da  canção  confirmam,  parcce-me,  a  conjectura  de  que  a  in- 
fanta estaria  doente  nos  fins  do  verão  ou  no  outomno  de  1546,  depois 
de  ter  voltado  para  Lisboa. 

(2)  Luís'  de  Camobns  Sãmmtliche  Gedichte,  iv,  p.  377-378.  O  illustre 
camonista  suppÒe  que  o  passeio  se  realizasse  numa  tarde  de  primavera. 
Mas  a  doença  da  infanta,  a  que  se  refere  o  poeta,  deve  ter  sido  anterior 


94 

Eis  como  elle  se  lê  na  fonte  donde  este  indefesso  camo- 
nista  o  extraiu  (i): 

Em  híi  batel  q  com  doce  meneio  (2) 

o  aurífero  Tejo  deuidia, 

vi  belas  damas,  ou  melhor  diria, 

belas  estrelas,  e  hu  sol  no  meio. 
As  delicadas  filhas  de  Nereo 

c5  mil  coisas  (3)  de  doce  armonia 

ião  amarrado  Í4)  a  bela  companhia 

(q  se  eu  não  erro),  por  honrralas  (5)  veio. 
O  fermosas  Nereidas,  q  cantando 

lograis  aquela  vista  tão  serena  (6) 

q  a  vida  em  tantos  males  quer  trazerme  (7) : 
Dizeilhe  q  olhe  q  se  vai  passando 

o  curto  tempo ;  e  a  tão  longa  pena 

o  esprito  (8)  he  prõpto,  a  carne  enferma  (9). 

Anteriores  também  ao  exílio,  mas  já  do  tempo  em  que  a 


á  primavera  de  1 647,  se  são  fundadas  as  conjecturas  chronologicas  que 
já  apresentei. 

(i)  Cumpre-me  dizer  que  o  visconde  de  Juromenha,  se,  por  um  lado 
procurou  corrigir  o  soneto,  por  outro  lhe  introduziu  novos  erros. 

(2)  Não  deverá  ler-se  :  que,  doce  em  seu  meneio? 

(3)  Juromenha  emenda  para  vo^es.  Mas  talvez  no  original  se  lesse 
cantos. 

(4)  Creio  que  será  alegrando. 

(5)  Juromenha:  honrála.  Proponho  honrá-lo,  referindo-se  ao  sol  do 
verso  4. 

(6)  Juromenha :  visão  serena,  o  que  torna  o  verso  errado. 

(7)  Dr.  Th.  Braga  e  com  elle  Storck :  tra^er-m'a. 

(8)  Juromenha :  o  tempo,  ficando  o  verso  estropiado.  Storck  tinha 
apresentado  a  conjectura:  o  espirito  está.  No  v.  1 1  talvez.:  e  que. 

(9)  Cancioneiro  de  L.  Franco  Corrêa   (Manuscripto  da  Bibliotheca 
Nacional). 


95 


infanta,   ao  ver  o  poeta,  punha  os  olhos  no  chão  (i),  são, 
creio  eu,  estas  redondilhas : 

A  unias  suspeitas : 

Suspeitas,  que  me  quereis  ? 
Que  eu  vos  quero  dar  logar 
Que,  de  certas,  me  mateis, 
Se  a  causa  de  que  nasceis  (2) 
Vós  quisésseis  confessar  (3). 

Que  de  não  lhe  achar  desculpa  (4) 
A  grande  magua  passada 
Me  tem  a  alma  tão  cansada, 
Que,  se  me  confessa  a  culpa, 
Te-la-ei  por  desculpada. 

Ora  vede  que  perigos 
Tem  cercado  o  coração, 
Que,  no  meio  da  oppressão, 
A  seus  próprios  inimigos  (5) 
Vai  pedir  a  defensão  ! 


(i)  Olhos,  não  vos  mereci 

Que  tenhais  tal  condição : 
Tão  liberais  para  o  chão, 
Tão  irosos  para  mi  1 

(2)  Aquella  que  vos  dá  origem,  a  infaata. 

(3)  Estou  convencido  que  deve  ler-se :  Vos  quisesse  confessar.  Isto  é, 
quisesse  declarar  que  sois  verdadeiras,  certas,  A  2.*  quintilha  fícaria  in- 
comprehensivel,  se  na  primeira  se  nSo  fallasse  na  infanta. 

(4)  Cf.  cançSo  11,  141-143: 

Que  desculpas  comigo  só  buscava, 
Quando  o  suave  Amor  me  não  sofTria 
Culpa  na  cousa  amada,  e  tão  amada  I 

(5;  A  iniimt.i.  quc  o  atormenta  c  de  quem  cllc  quer  obter  a  certeza 
de  que  são  fund.ivlu^  a>  su.ts  m.i  ;  cii.ts,  )  .tru  ficar  muis  iranquillo. 


9<> 

Que,  suspeitas,  eu  bem  sei, 
Como  se  claro  vos  visse, 
Que  é  certo  o  que  já  cuidei. 
Que  nunca  mal  suspeitei. 
Que  certo  me  não  saísse. 

Mas  queria  esta  certeza 
Daquella  que  me  atormenta. 
Porque,  em  tamanha  estreiteza. 
Ver  que  disso  se  contenta  (i) 
É  descanso  da  tristeza. 

Porque,  se  esta  só  verdade 
Me  confessa,  limpa  e  nua 
De  cautela  e  falsidade, 
Não  pode  a  minha  vontade 
Desconforme  ser  da  sua. 

Por  segredo  namorado 
É  certo  estar  conhecido 
Que  o  mal  de  ser  engeitado 
Mais  atormenta,  sabido. 
Mil  vezes,  que  suspeitado. 

Mas  eu  só,  cm  quem  se  ordena 
Novo  modo  de  querella, 
De  medo  da  dor  pequena 
Venho  a  achar  na  maior  pena 
Refrigério  para  ella  (2). 


(i)  Ver  que  é  vontade  da  infanta  dar  origem  a  suspeitas,  que  são 
certas,  isto  é,  saber  que  ella  ama  realmente  outrem. 
(2)  O  poeta, 

salteado 

Das  lembranças  de  temer 
Ser  por  outrem  desamado, 

como  diz  na  caria  a  imia  dama,  v.  193-195,  deseja  antes  um  desengano 


97 

Já  nas  iras  me  inflammei, 

Nas  vinganças,  nos  furores, 

Que  já,  doudo,  imaginei ; 

E  já,  mais  doudo,  jurei 

De  arrancar  da  alma  os  amores. 

Já  determinei  mudar-me 
Para  outra  parte,  com  ira. 
Despois  vim  a  concertar-me 
Que  era  bom  certificar-me 
No  que  mostrava  a  mentira  (i). 

Mas,  despois  já  de  cansadas 
As  fúrias  do  imaginar. 
Vinha  emfim  a  rebentar 
Em  lagrimas  magoadas 
E  bem  para  magoar. 


embora  este  seja  mais  doloroso  do  que  as  suspeitas.  É  porque 

Estas  suspeitas  tão  frias. 
Com  que  o  pensamento  sonha. 
São  assi  como  as  harpias. 
Que  as  mais  doces  iguarias 
Vão  converter  em  peçonha. 

(Carta  cit.,  196-290). 

(1)  Assentei  em  ter  como  certo  o  amor  da  infanta,  sabendo  muito 
bem  que  ella  me  não  ama.  Cf  o  soneto  79,  já  anteriormente  transcripio: 

Bem  sei,  Amor,  que  é  certo  o  que  receio. 


Porém  porfias  tanto  c  me  assei;urn  , 
Que  me  digo  que  minto. . 
Nem  somente  consinto  ncsic  engano, 
Mas  inda  to  agradeço,  c  a  mi  me  nego 
Tudo  o  que  vejo  e  sinto  de  meu  dano. 


98         ■ 

E,  deixando-se  vencer 
Os  meus  fingidos  enganos 
De  tão  claros  desenganos  (i), 
Não  posso  menos  fazer 
Que  cont^ntar-me  cos  danos, 

E  pedir  que  me  tirassem 
Este  mal  de  suspeitar, 
Que  me  veio  atormentar, 
Inda  que  me  confessassem 
Quanto  me  pôde  matar. 

Olhai  bem  se  me  trazeis. 
Senhora,  posto  no'  fim. 
Pois,  neste  estado  a  que  vim, 
Para  que  vós  confesseis, 
Se  dão  os  tratos  a  mim. 

Mas,  para  que  tudo  possa 
Amor,  que  tudo  encaminha, 
Tal  justiça  lhe  convinha. 
Porque  da  culpa,  que  é  vossa. 
Venha  a  ser  a  morte  minha. 

Justiça  tão  mal  olhada, 
Olhai  com  que  cor  se  doura. 
Que  quero  (2),  ao  fim  da  jornada. 
Que  vós  sejais  confessada. 
Para  que  eu  seja  o  que  moura ! 

Pois  confessai-vos  já  agora, 
Inda  que  tenho  temor 
Que,  nem  nesta  ultima  hora. 
Me  ha  de  perdoar  Amor 
Vossos  peccados,  senhora. 


(i)  Bem  me  queria  enganar  a  mim  mesmo;  mas  os  enganos  que  eu 
finjo,  têm  de  ceder  perante  desenganos  tão  claros.  Assim,  não  ha  remé- 
dio senão  soífrer  e  pedir  que  me  confessem  a  verdade,  embora  esta  me 
possa  causar  a  morte. 

(2)  Parece-me  que  deve  ler-sc  :  quer. 


99 

E  assi  vou  desesperado, 
Porque  estes  são  os  costumes 
Do  amor,  que.é  mal  empregado; 
Do  qual  vou  já  condemnado 
Ao  inferno  dos  ciúmes. 

Se  o  tresloucado  poeta,  quando  se  achava  ainda  na  phase ' 
idyllica,  não  podia  soífrer  que  a  infanta  a  ninguém  tratasse 
com  desamor,  antes  a  todos  tivesse  affèição  e  mostrasse  um 
coroação  cheio  de  mansidão,  cheio  de  amor,  e  pedia  á  formosa 
e  amável  senhora  que,  para  o  distinguir  dos  outros,  o  tratasse 
com  desfavor  e  lhe  mostrasse  um  ódio  esquivo  (i),  que  impres- 
são lhe  não  devia  causar  a  mesma  norma  de  proceder,  agora 
que  elle  era  realmente  tratado  pela  forma  como,  por  des- 
peito, havia  sollicitado  (2)  ? 

Daqui  a  suspeitar  o  poeta 

Ser  por  outrem  desamado, 

daqui  a  suppôr  que  o  desagrado  que  a  infanta  lhe  mostrava 
tinha  por  motivo  a  preferencia  dada  a  outrem,  —  muito  pouco 
ia  (3).  Não  era  preciso  para  isso  possuir  uma  imaginação 
tão  ardente  como  a  de  Camões. 


(1)  Soneto  3o9,  já  reproduzido. 

(2)  Em  versos,  é  claro,  que  não  eram  destinados  a  ser  lidos  pela  in- 
fanta, mas  que  traduziam  fielmente  o  pensar  intimo  do  poeta. 

(3)  Sobre  a  lenda  que  fez  de  Jorge  da  Silva,  terceiro  filho  do  quarto 
regedor  das  justiças,  João  da  Silva,  um  apaixonado  adorador  da  infanta, 
por  causa  da  qual  teria  estado  preso  no  Limoeiro,  veja-se  o  que  diz  a 
Sr.»  D.  Carolina  Michaclis  {A  Infanta  D.  Maria,  p.  69  e  segg.).  «Quanto 
á  nossa  Infanta  (observa  também  a  illustrc  escriptora),  é  natural  que 
nova,  bella,  cheia  de  espirito  e  amável,  exercesse  também  certa  seducção 
mundana  sobre  os  moços-fidalgos  da  corte.  Um  sorriso  benévolo,  um 
lampejo  de  luz  nos  olhos  geralmente  serenos,  uma  sunve  commoçno  na 
voz  bem  timbrada,  ao  pronunciar  palavras  de  agradecimento,  seriam  de 


100 

II 

No  Ribatejo 

Ao  ver-se  obrigado  a  sair  de  Lisboa,  Camões  nota,  não 
sem  estranheza,  que  o  duro  desfavor,  que  o  condena  a  apar- 
tar-se  da  sua  tão  querida,  lhe  tem  os  sentidos  por  tal  forma 
embotados,  que  a  dor  da  ausência  é  mais  pequena  do  que 
devia  ser.  Vai,  porém,  reagir:  essa  dor  ha  de  soífrê-la  bem 
intensamente.  Como  é  possível,  com  efíeito,  que  o  não  faça 
morrer  o  ter  de  afastar-se  d'aquillo  que  mais  quer?  Mas,  ainda 
mais  do  que  a  morte,  lhe  custaria  não  lhe  ser  bem  doloroso 
o  inevitável  apartamento. 

Quando  vejo  que  meu  destino  ordena 

Que,  por  me  exprimentar,  de  vós  me  aparte, 
Deixando  de  meu  bem  tão  grande  parte, 
Que  a  mesma  culpa  fica  grave  pena  (i), 


longe  em  longe  a  recompensa  de  acções  nobres.. .  ou  de  versos  subli- 
mes, escriptos  em  sua  honra. . .  Galanteios  exagerados  não  podiam,  po- 
rém, ser  do  seu  agrado.  Uma  grande  reserva,  seu  justo  orgulho  de  filha 
e  irmã  de  reis  protegiam-a,  como  couraça  impenetrável,  contra  a  paixão 
dos  outros  e  os  impulsos  do  próprio  coração»  (Ibid.,  p.  yS).  Confirma 
estas  palavras  tudo  o  que  se  passou  com  Camões, 
(i)  Presumo  que  o  poeta  escreveu  : 

Deixando  de  meu  ser  tão  grande  parte. 
Que  á  culpa  não  fica  grave  pena. 

Emquanto  ao  sentido  do  primeiro  verso,  veja-se,  por  exemplo,  a  can- 
ção II,  V.  ioi-io3,  e  a  2.'  glosa  ao  mote  Sem  vós  e  com  meu  cuidado. 
E  se  o  poeta  leva  comsigo  apenas  uma  pequena  parte  do  seu  ser,  a  pena 
do  desterro,  imposta  á  sua  culpa,  não  fica  sendo  grave  pena,  pois  a  ella 
escapa  a  grande  parte  que  fica.  Não  quer,  porém,  isto  dizer  que  não  seja 
b^m  grande  a  dor  da  parte  que  se  ausenta. 


lOl 


o  duro  desfavor  que  me  condena. 

Quando  por  a  memoria  se  reparte  (i), 

Endurece  os  sentidos  de  tal  arte, 

Que  a  dor  da  ausência  fica  mais  pequena. 
Mas  como  pode  ser  que  na  mudança 

Daquillo  que  mais  quero,  este  tão  fora 

De  me  não  apartar  também  da  vida  ? 
Eu  refrearei  tão  áspera  esquivança, 

Porque  mais  sentirei  partir,  senhora, 

Sem  sentir  muito  a  pena  da  partida. 

(Soneto  55). 

Ainda  outro  soneto,  cscripto  também  pelo  apaixonado  poeta 
na  occasião  da  ida  para  o  exilio  (2): 

Se  alguma  hora  em  vós  a  piedade 

De  tão  longo  tormento  se  sentira, 

Não  consentira  Amor  que  me  partira 

De  vossos  olhos,  minha  Saudade ! 
Aparto-me  de  vós,  mas  a  vontade, 

Que  na  alma  pelo  natural  vos  tira, 

Me  faz  crer  que  esta  ausência  que  é  mentira ; 

Mas  inda  mal,  porém,  porque  é  verdade. 


(1)  Quando  se  me  apodera  de  todas  as  potencias  da  alma.  Está  a 
parte  pelo  todo. 

(2)  Reproduzo  este  soneto  tal  como  se  encontra  no  Cancioneiro  de 
Luís  Franco  Corrêa,  íl.  129,  v.,  mudando  apenas,  no  penúltimo  verso, 
achara  em  achará,  e  modificando,  em  porte,  a  orthographia.  Na  1.'  edi- 
ção das  Rythmas  (i5o5)  encontram-se  algumas  variantes  dignas  de  nota : 
verso  5.%  Apartei-me ;  v.  7,  esta  ausência  é  de  mentira  ;s.  12,  i?  assi  darei 
vida;  V.  14,  sepultado  no.  Em  Faria  e  Sousa  as  variantes  são  ainda  mais 
numerosas.  Verso  1  .• :  Se  somente  hora  alguma  em  vós  piedade,  V.  3  : 
Amor  soffrera  mal  que  eu. ..  V.  5  :  Apartei-me.  V.  6  :  Que  por  o  natural 
na  alma ...  V.  7 :  esta  ausência  é  de  mentira.  V.  8 :  Porém  venho  a  pro- 
var que  é  de  verdade.  V.  12:  Desta  arte  darei  vida.  V.  14;  Sepultado 
no.  Faria  c  Sousa  remodelou  o  soneto  ou  reproduziu  variantes  que  já 
encontrou  ? 


102 


Ir-me-ei,  senhora,  e  neste  apartamento 

Tomarão  tristes  lagrimas  vingança 

Nos  olhos  de  quem  fostes  mantimento. 
Assim  darei  a  vida  (i)  a  meu  tormento, 

Que  emfim  cá  me  achará  minha  lembrança 

Já  sepultado  em  vosso  esquecimento. 

O  estado  d'alma  do  poeta,  durante  os  primeiros  tempos 
do  cxilio,  acha-se  reproduzido  na  egloga  2.*. 

Saudades  da  infanta,  queixumes  contra  a  crueza  que  ella 
havia  mostrado,  desesperança,  triste?a,  profundo  abati- 
mento, mas,  ao  mesmo  tempo,  o  propósito  de  não  deixar, 
por  cousa  nenhuma,  o  seu  cuidado  tão  ditoso  —  eis  os  tópicos 
do  bcllo  poemeto  (2). 

Figurando-se  á  beira  do  Tejo,  num  valle  triste,  em  noite 
escura,  Camões  (Almeno)  lastima  assim  a  sua  sorte: 

Corre,  suave  e  brando. 
Com  tuas  claras  aguas. 
Saídas  de  meus  olhos,  doce  Tejo, 
Fé  de  meus  males  dando, 
Para  que  minhas  maguas 


( 1 )  Darei  a  vida,  isto  é,  entregarei,  sacrificarei  a  vida,  ou  darei  vida, 
farei  viver?  No  primeiro  caso  occorre  ler  acharão  (v,  i3)  e  Sepultada  no 
(v.  14). 

(2)  Baseado  nos  versos  7-10: 

No  derr^adeiro  fio 
O  tinha  a  esperança. 
Que  com  doces  enganos 
Lhe  sustentara  a  vida  tantos  annos, 

observa  P'aria  e  Sousa :  «Escribió  el  Poeta  esta  Egloga  en  mayor  edad; 
ni  pudo  ser  menos,  porque  ella  no  es  de  quilates  bailados  en  verdores». 
{Rimas  varias  de  Lui^  de  Camões,  iv,  2.*  parte,  202).  Qualquer,  porém, 
que  seja  a  explicação  que  deva  dar-se  ao  tantos  annos,  não  pôde  haver 
duvida  que  a  egloga  foi  escripta  no  Ribatejo,  quando  o  poeta  foi  obri- 
gado a  sair  de  Lisboa  para  alli,  por  causa  da  infanta. 


o3 


Sejam  castigo  igual  de  meu  desejo, 

Que  pois  em  mim  não  vejo 

Remédio  nem  o  espero, 

E  a  morte  se  despreza 
De  me  matar,  deixando-me  á  crueza 
Daquella  por  quem  meu  tormento  quero. 

E  insistindo  na  idéa  expressa  nestas  ultimas  palavras,  diz 
pouco  depois: 

Não  cesse  meu  tormento 
De  fazer  seu  officio. 
Pois  aqui  tem  uma  alma  ao  jugo  atada ; 
Nem  falte  o  soffrimcnto, 
Porque  parece  vicio 
Para  tão  doce  mal  faltar-me  nada. 

Não  pódc,  porem,  deixar  de  extranhar  que  a  sua  bcm- 
amada  procedesse  com  tanta  crueza: 

Oh  nympha  delicada, 

Honra  da  natureza ! 

Como  pôde  isto  ser. 
Que  de  tão  peregrino  parecer 
Pudesse  proceder  tanta  crueza  ? 

Como  é  que  de  uma  causa  dwinal  pôde  provir  um  effèito 

contrario?  Como  se  explica  tanta  pena,  motivada  por  tal 

causa  ? 

Nio  vem  de  nenhum  geito 
De  causa  divinal  contrario  effeito. 
Pois  como  pena  tanta 
É  contra  a  causa  delia  í 

Ha  aqui  alguma  cousa  que  se  não  pódc  explicar  pelas  leis 
da  natureza: 

Fora  do  natural  é  minha  tristeza. 


104 


Não  é,  porém,  só  nisto  que  com  a  infanta  são  contrariadas 
essas  leis: 

Mas  a  mi  que  me  espanta  ? 

Não  basta,  ó  nympha  bella, 
Que  podes  perverter  a  natureza  (i)  ? 

Não  é  a  gentileza 

De  teu  gesto  celeste 

Fora  do  natural  ? 
Não  pôde  a  natureza  fazer  tal. 
Tu  mesma,  ó  bella  nympha,  te  fizeste. 

Mas,  por  mais  que  o  poeta  busque  desculpas,  pois  que  o 
suape  Amor  lhe  não  soífre 

Culpa  na  cousa  aniada  e  tão  amada, 
(Canção  ii) 

surge  no  seu  espirito  a  inevitável  pergunta: 

Porém,  porque  tomaste 
Tão  dura  condição,  se  te  fizeste  ? 


(i)  Vid.,  por  exemplo,  as  três  canções  Manda-me  Amor  que  cante. 
Referindo-se  ao  deslumbramento  que  lhe  causou  a  apparição  da  infanta, 
quando  lhe  foi  apresentado,  diz  o  poeta  na  terceira  das  referidas  canções  : 

Os  passarinhos,  com  a  luz  presente 
Pasmados,  uns  aos  outros  se  diziam  : 
—  Que  luz  é  esta  ?  que  nova  claridade  ? 
As  fontes,  inflammadas  de  beldade, 
Detinham  a  sua  agua,  doce  e  pura. 

Florecia  a  verdura 
Que,  andando,  cos  divinos  pés  pisava. 

Todo  o  ramo  abaixar-se 
Senti  no  bosque,  e  mais  verde  tornar-se. 


Amansavam-se  os  ventos 
Ao  som  dos  suaves  seus  accentos. 


inr 


E  o  magoado  poeta  prosegue : 

Por  ti  o  alegr«  prado 

Me  é  penoso  e  duro ; 
Abrolhos  me  parecem  suas  flores. 

Por  ti  do  manso  gado, 

Como  de  mi,  não  curo, 
Por  não  fazer  offensa  a  teus  amores. 

Os  jogos  dos  pastores, 

As  lutas  entre  a  rama, 

Nada  me  faz  contente ; 
E  sou  já  do  que  fui  tão  diíferente, 
Que,  quando  por  meu  nome  alguém  me  chama. 

Pasmo,  porque  conheço 
Que  inda  comigo  próprio  me  pareço. 

Ainda  se  ao  menos  a  sua  tão  querida  lhe  ouvisse  os  quei- 
.\umes ! 

Se  aí  no  mundo  houvesse 

Ouvires-me  algum'hora, 
Assentados  na  praia  deste  rio, 

E  d'arie  te  dissesse 

O  mal  que  passo  agora. 
Que  pudesse  mover-te  o  peito  frio  . . . 

Porém  o  pobre  poeta  reconhece  logo  que  c  impossível  a 
realização  deste  desejo,  que  não  passa  d'um  desvario: 

Oh  quanto  desvario, 
Que  estou  imaginando ! 

Mas  se  não  ha  outro  remédio  para  o  seu  tormento,  senão 
entreter  assim  a  phantasia. . . 

Já  agora  meu  tormento 
Não  pôde  pedir  mais  ao  pensamento 
Que  ettc  phantaziar,  donde,  pcniindo, 

A  vida  me  rescrvii 
Querer  mais  de  meu  mal  :»cra  soberba. 


ob 


Entretanto  vinha  rompendo  o  dia  e  o  triste  Almeno,  vendo 
apparecer  Agrário,  outro  pastor,  resolve  pôr  termos  aos  seus 
queixumes : 

Calar-me-ei  somente, 
Que  o  meu  mal  nem  ouvir  se  me  consente ! 

Como  O  monologo  em  que  Agrário  vinha  entretido  se  foi 
prolongando,  o  enamorado  Almeno  voltou  ao  seu  devaneio, 
que  agora  reveste  a  forma  d'uma  hallucinaçao: 

Oh  doce  pensamento  !  oh  doce  gloriai* 
São  estes  por  ventura  os  olhos  bellos, 
Que  têm  de  meus  sentidos  a  victoria  ? 

São  estas,  nympha,  as  tranças  dos  cabellos. 
Que  fazem  de  seu  preço  o  ouro  alheio, 
Como  a  mi  de  mi  mesmo,  só  com  vê-los  ? 

É  esta  a  alva  coluna,  o  lindo  esteio, 

Sustentador  das  obras  mais  que  humanas. 
Que  eu  nestes  braços  tenho  e  não  o  creio  ? 

Mas  a  visão  da  bem-amada  desappareceu  num  momento: 

Ah  falso  pensamento,  que  me  enganas  ! 
Fazes-me  pôr  a  boca  onde  não  devo, 
Com  palavras  de  doudo,  ou  quasi  insanas ! 

Como  a  alçar-te  tão  alto  assi  me  atrevo  ? 
Tais  asas  dou-t'as  eu,  ou  tu  mas  dás  ? 
Levas-me  tu  a  mi,  ou  eu  te  levo  ? 

Não  poderei  eu  ir  onde  tu  vás  ? 

Porém,  pois  ir  não  posso  onde  tu  fores. 
Quando  fores,  não  tornes  onde  estás. 

Entretanto  Agrário,  que  tem  ouvido  os  desatinos  do  pobre 
Almeno,  vai-se  approximando  e  fazendo,  ao  mesmo  tempo, 
varias  considerações  a  propósito  do  triste  siiccesso  de  amores 
que  a  este  aconteceu.  Trava-se  por  fim  o  dialogo. 


I07 


Agrário 

Quero  fallar  com  este,  que  enredado 

Nesta  cegueira  está,  sem  nenhum  tento. 
Acorda  já,  pastor  desacordado. 

Almeno 

Oh  I  porque  me  tiraste  um  pensamento,* 
Que  agora  estava  aos  olhos  debuxando. 
De  quem  aos  meus  foi  doce  mantimento  ? 

Agrário 

Nesta  imaginação  estás  gastando 

O  tempo  e  a  vida,  Almeno  ?  Perda  grande ! 
Não  ves  quão  mal  os  dias  vás  passando  ? 

Almeno 

Formosos  olhos,  ande  a  gente  e  ande. 

Que  nunca  vos  ireis  desta  alma  minha. 

Por  mais  que  o  tempo  corra,  a  morte  o  mande. 

Agrário 

Quem  poderá  cuidar  que  tão  asinha 

Se  perca  o  curso  assi  do  siso  humano. 
Que  corre  por  direita  e  justa  linha  ? 

Que  sejas  tão  perdido  por  teu  dano, 
Almeno  meu,  não  é  por  certo  aviso ; 
É  só  doudice  grande,  grande  engano. 

Almeno 

Ó  Agrário  meu,  que,  vendo  o  doce  riso 
E*o  rosto  tão  formoso,  como  esquivo, 
p  menos  que  perdi  foi  todo  o  siso ! 

A  sombra  deste  umbroso  e  verde  louro 

Passo  a  vida,  ora  em  lagrimas  cansadas, 
Ora  em  louvores  dos  cabellos  d'ouro. 


io8 

Se  perguntares  porque  são  choradas, 

Ou  porque  tanta  pena  me  consume, 

Revolvendo  memorias  magoadas  : 
Desque  perdi  da  vida  o  claro  lume, 

E  perdi  a  esperança  e  causa  delia. 

Não  choro  por  razão,  mas  por  costume. 

E  Almeno  conta  como  ínvia  livre  e  bem  isento,  rindo-se 
das  paixões  que  inspirava,  até  que  por  fim  o  Amor  o  castigou  : 

Pouco  a  pouco  me  foi  de  mi  levando, 
Dissimuladamente,  ás  mãos  de  quem 
Toda  esta  injuria  agora  está  vingando. 

Agrário,  considerando  o  lastimoso  estado  em  que  se  en- 
contra Almeno,  procura  induzi-lo  a  que  ponha  iwi  freio  a 
mai tão  forte: 

Vejo-te  estar  gastando  em  viva  fragoa 

E  juntamente  em  lagrimas,  vencendo 

A  grã  Sicilia  em  fogo,  o  Nilo  em  agua. 
Vejo  que  as  tuas  cabras,  não  querendo 

Gostar  as  verdes  hervas,  se  emagrecem, 

As  tetas  aos  cabritos  encolhendo. 
Os  campos,  que  co  tempo  reverdecem, 

Os  olhos  alegrando  descontentes. 

Em  te  vendo,  parece  se  entristecem. 
De  todos  teus  amigos  e  parentes. 

Que  lá  da  serra  vêm  por  consolar-te. 

Sentindo  na  alma  a  pena  que  tu  sentes, 
Se  querem  de  teus  males  apartar-te. 

Deixando  a  choça  e  gado,  vás  fugindo, 

Gomo  cervo  ferido,  a  outra  parte. 
Não  vês  que  Amor,  as  vidas  consumindo, 

Vive  só  de  vontades  enlevadas 

No  falso  parecer  d'um  gesto  lindo  ? 
Nem  as  hervas  das  aguas  desejadas 

Se  fartam,  nem  de  flores  as  abelhas, 

Nem  este  Amor  de  lagrimas  cansadas. 


109 

Quantas  vezes,  perdido  entre  as  ovelhas, 

Chorou  Phebo  de  Daphne  as  esquivanças, 
Regando  as  flores  brancas  e  vermelhas  ? 

Quantas  vezes  as  ásperas  mudanças 

O  namorado  Gallo  (i)  tem  chorado, 

De  quem  o  tinha  envolto  em  esperanças  ? 

Ora  SC  tu  ves  claro,  amigo  Almeno, 

Que  de  Amor  os  desastres  são  de  sorte, 
Que,  para  matar,  basta  o  mais  pequeno. 

Porque  não  pões  um  freio  a  mal  tão  forte,. 
Que  em  estado  te  põe  que,  sendo  vivo, 
Já  não  se  intende  em  ti  vida  nem  morte  ? 

A  tudo  isto,  porém,  responde 

Almeno : 

Agrário,  se  do  gesto  fugitivo, 

Por  caso  de  fortuna  desastrado, 
Algum'hora  deixar  de  ser  captivo, 

Ou  sendo  para  as  Ursas  degradado, 
Adonde  Boreas  tem  o  oceano 
Cos  frios  hyperboreos  congelado ; 

Ou  donde  o  filho  de  Climene  insano. 

Mudando  a  côr  das  gentes  totalmente. 
As  terras  apartou  do  trato  humano; 

Ou  se  já,  por  qualquer  outro  accidente, 
Deixar  este  cuidado  tão  ditoso. 
Por  quem  sou  de  ser  triste  tão  contente : 

Este  rio,  que  passa  deleitoso, 

Tomando  para  trás,  irá  negando 
A  natureza  o  curso  pressuroso ; 


( I )  Francisco  de  Moraes,  o  auctor  do  notável  romance  de  cavallaria, 
Palmeirim  de  Inglaterra,  que  o  immortal  Cervantes  tanto  apreciava. 
Veja-se  no  fim  do  tom.  3.*  das  Obras  de  Francisco  de  Moraes  (Lisboa, 
i852)  a  Desculpa  de  uns  amores  que  tinha  em  Paris  com  uma  dama  fran- 
cesa da  rainha  dona  Leonor^  por  nome  Torsi,  sendo  portuguej,  pela  quai 
fe\  a  historia  das  damas  francesas  no  seu  Palmeirim. 


I  10 


As  cabras  por  o  mar  irão  buscando 

Seu  pasto,  e  andar-se-ão  por  a  espessura 
Das  hervas  os  delphins  apascentando. 

Ora  se  tu  ves  na  alma  quão  segura 

Deste  amor  tenho  a  fé,  para  que  insistes 
Nesse  conselho  e  pratica  tão  dura  ? 

Se  de  tua  porfia  não  desistes. 

Vai  repastar  teu  gado  a  outra  parte, 
Que  é  dura  a  companhia  para  os  tristes. 

Uma  só  cousa  quero  encomendar-te. 

Para  repouso  algum  de  meu  engano. 
Antes  que  o  tempo  emfim  de  mi  te  aparte  : 

Que  se  esta  fera,  que  anda  em  traje  humano, 
Por  a  montanha  vires  ir  vagando, 
De  meu  despojo  rica  e  de  meu  dano. 

Com  os  vivos  espritos  inflammando 

O  ar,  o  monte  e  a  serra,  que  comsigo 
Continuamente  leva  namorando. 

Se  queres  contentar-me  como  amigo. 
Passando  lhe  dirás :  Gentil  pastora. 
Não  ha  no  mundo  vicio  sem  castigo. 

Tornada  em  puro  mármore  não  fora 
A  fera  Anaxarete,  se  amoroso 
Mostrara  o  rosto  angélico  algum'hora  (i). 

Foi  bem  justo  o  castigo  rigoroso, 

Porém  quem  te  ama,  nympha,  não  queria 
Nódoa  tão  feia  em  gesto  tão  formoso. 

E  Agrário,  despedindo-se,  promette  cumprir  os  desejos  do 
seu  apaixonado  amigo: 

Tudo  farei,  Almeno,  e  mais  faria. 


Por  algum  dia  ver-te  descansado, 
Se  se  acabam  trabalhos  algum  dia. 


(i)  Anaxarete  (no  texto  de  Camões,  Anaxarete),  de  ascendência  real, 
desprezou  o  amor  do  modesto  Iphis.  Este  suicidou-se  por  tal  motivo, 
mas  ella  foi  transformada  em  estatua  de  pedra.  Ovidio,  Metamorphoses, 
liv.  14,  versos  698-760. 


Como  se  vê,  se  o  poeta,  por  um  lado,  manifesta  bem  cla- 
ramente o  firme  propósito  de  nunca  esquecer  a  infanta,  por 
outro  lado  revela  também  um  profundo  desanimo.  Nas  horas 
de  reflexão  surgiam  as  desoladoras  perguntas :  Porque  ponho 
a  boca  onde  não  devo?  Como  me  atrevo  a  alçar  tão  alto  o 
pensamento?  E  a  par  destas  interrogações,  vinha  tambcm  a 
lembrança  de  que  estava  desperdiçando  inutilmente  o  tempo 
L'  a  vida: 

Nesta  imaginação  estás  gastando 

O  tempo  e  vida,  Almeno  ?  Perda  grande ! 
Não  vês  quão  mal  os  dias  vás  passando  (i)? 

Neste  estado  de  espirito  escreveu  também  o  poeta  o  se- 
guinte soneto,  extraído  por  Juromenha  do  Cancioneiro  de 
Franco  Corrêa  (fl.  iScj): 

Quando  descansareis,  olhos  cansados, 

Pois  já  não  vedes  quem  vos  dava  vida, 

Ou  quando  vereis  fim  e  despedida 

A  tantas  desventuras  e  cuidados  ? 
Ou  quando  quererão  meus  duros  fados 

Erguer  minha  esperança  tão  caída,. 

Ou  quando,  se  de  todo  é  já  perdida, 

Alcançar  poderei  meus  bens  passados  ? 
Bem  sei  que  hei  de  morrer  nesta  saudade, 

Em  que  meu  esperar  é  todo  vento, 

Pois  nada  espero  ao  que  desejo. 
E,  pois  tão  clara  vejo  esta  verdade, 

Bem  pôde  vir  a  mim  todo  o  tormento, 

Que  não  me  ha  de  espnnt.ir.  nok  <cm'->rc  o  vejo. 


(i)  Escreve  W.  Storck  ( Vida  dç  Camões.  -^  "í- -^^    Podemos  presumir 
que  agora  o  Camões  veio  a  conhecer 

come  sa  di  sale 
lo  pane  ailrui,  c  com'ò  duro  callc 
lo  scendcrc  e  iJ  salir  per  Tahrui  scale ! 

(Dante,  Paradiso,  xvu,  58-6o). 


12 


E  cada  vez  mais  desanimado,  cada  vez  mais  ancioso  por 
ver  terminar  o  seu  exilio,  escreveu  Camões  a  bella  Elegia 
do  desterro,  que,  segundo  W.  Storck,  «excede  tudo  quanto 
até  então  poetara,  tanto  pela  pureza  de  suas  linhas  constru- 
ctivas  e  unidade  de  concepção,  como  pelo  vigor  das  ideas  e 
formosura  da  expressão  pathetica»: 

O  sulmonense  Ovidio,  desterrado 

Na  aspereza  do  Ponto,  imaginando 

Ver-se  de  seus  penates  apartado, 
Sua  cara  mulher  desamparando. 

Seus  doces  filhos,  seu  contentamento, 

De  sua  pátria  os  olhos  apartando, 
Não  podendo  encobrir  o  sentimento, 

Aos  montes  já,  já  aos  rios  se  queixava 

De  seu  escuro  e  triste  nascimento. 
O  curso  das  estrellas  contemplava 

E  aquella  ordem  com  que  discorria 

O  ceo,  e  o  ar,  e  a  terra  adonde  estava. 
Os  peixes  por  o  mar  nadando  via, 

As  feras  por  o  monte  procedendo, 

Gomo  o  seu  natural  lhes  permittia. 
De  suas  fontes  via  estar  nascendo 

Os  saudosos  rios  de  crystal, 

A  sua  natureza  obedecendo. 
Assi  só,  de  seu  próprio  natural 

Apartado,  se  via  em  terra  estranha, 

A  cuja  triste  dor  não  acha  igual. 
Só  sua  doce  musa  o  acompanha 

Nos  soidosos  versos  que  escrevia 

E  nos  lamentos  com  que  o  campo  banha. 
Dest'arte  me  figura  a  phantasia 

A  vida  com  que  morro,  desterrado 

Do  bem  que  em  outro  tempo  possuia. 
Aqui  contemplo  o  gosto  já  passado, 

Que  nunca  passará  por  a  memoria 

De  quem, o  trás  na  mente  debuxado. 
Aqui  vejo  caduca  e  débil  gloria 

Desenganar  meu  erro  co  a  mudança 

Que  faz  a  frágil  vida  transitória. 


I  !.-> 


Aqui  me  representa  esta  lembrança 

Quão  pouca  culpa  tenho  e  me  entristece 
Ver  sem  razão  a  pena  que  me  alcança. 

Que  a  pena  que  com  causa  se  padece 
A  causa  tira  o  sentimento  delia ; 
Mas  muito  doe  a  que  se  não  merece. 

Quando  a  roxa  manhã,  dourada  e  bella, 
Abre  as  portas  ao  sol  e  cái  o  orvalho, 
E  torna  a  seus  queixumes  Philomela, 

Este  cuidado,  que  co  sono  atalho, 

Em  sonhos  me  parece,  que  o  que  a  gente 
Por  seu  descanso  tem,  me  dá  trabalho. 

E  despois  de  acordado  cegamente 

(Ou,  por  melhor  dizer,  desacordado. 
Que  pouco  acordo  logra  um  descontente), 

D'aqui  me  vou  com  passo  carregado 

A  uçi  outeiro  erguido,  e  ali  me  assento. 
Soltando  toda  a  rédea  a  meu  cuidado. 

Despois  de  farto  já  de  meu  tormento. 
Estendo  estes  meus  olhos  saudosos 
A  parte  donde  tinha  o  pensamento. 

Não  vejo  senão  montes  pedregosos 

E  sem  graça  e  sem  flor  os  campos  vejo. 
Que  já  floridos  vira  e  graciosos. 

Vejo  o  puro,  suave  e  rico  Tejo 

Com  as  concavas  barcas,  que  nadando 
Vão  pondo  em  doce  eff'eito  o  seu  desejo. 

Umas  com  brando  vento  navegando. 

Outras  com  leves  remos  brandamente 
As  crystallinas  aguas  apartando. 

D'ali  falo  com  a  agua  que  não  sente, 
Com  cujo  sentimento  esta  alma  sái 
Em  lagrimas  desfeita  claramente. 

O  fugitivas  ondas,  esperai, 

Que  pois  me  não  levais  em  companhia, 
Ao  menos  estas  lagrimas  levai. 

Até  que  venha  aqucllc  alegre  dia, 

Que  cu  vá  onde  vós  ides,  livre  e  ledo. 
Mas  tanto  tempo  quem  o  passaria  ? 


K    3>SW 


^  1 14 

Não  pôde  tanto  bem  chegar  tão  cedo, 

Porque  primeiro  a  vida  acabará, 

Que  se  acabe  tão  áspero  degredo. 
Mas  esta  triste  morte  que  virá, 

Se  em  tão  contrario  estado  me  acabasse, 

Esta  alma  assi  impaciente  adonde  irá  ? 
Que,  se  ás  portas  tartaricas  chegasse, 

Temo  que  tanto  mal  por  a  memoria 

Nem  ao  passar  do  Lethe  lhe  passasse. 
Que  se  a  Tântalo  e  Ticio  for  notória 

A  pena  com  que  vai  e  que  a  atormenta, 

A  pena  que  lá  têm,  terão  por  gloria. 
Essa  imaginação,  emíim,  me  aumenta' 

Mil  maguas  no  sentido,  porque  a  vida 

De  imaginações  tristes  se  contenta. 
Que  pois  de  todo  vive  consumida. 

Porque  o  mal  que  possue  se  resuma, 

Imagina  na  gloria  possuída. 
Até  que  a  noite  eterna  me  consuma, 

Ou  veja  aquelle  dia  desejado. 

Em  que  a  fortuna  faça  o  que  costuma. 
Se  nella  ha  hi  mudar-se  um  triste  estado. 

Vê-se  que  o  poeta,  nesta  elegia,  só  muito  vagamente  se 
refere  aos  seus  amores,  que,  além  disso,  considera  ou  quer 
que  sejam  considerados  como  cousa  já  passada  (i).  O  que 
elle  procura  tornar  bem  patente  é  a  desproporção  entre  a 
sua  culpa  —  pequena  ou  nenhuma  —  e  a  dura  pena  que  está 
sofírendo.  O  que  o  preoccupa  é  o  ardente  desejo  de  voltar 
para  Lisboa,  é  o  receio  de  que  venha  a  morte,  antes  de  chegar 
esse  alegre  dia. 


(1)  É  o  gosto f  que,  embora  nunca  haja  de  lhe  sair  da  memoria,  o 
poeta  considera  como  Já  passado.  É  o  erro,  de  que  está  desenganado. 
É  a  gloria,  possuída,  isto  é,  que  já  possuiu.  É  a  parte  onde  tinha  o  pen- 
samento. É  talvez  o  bem  que  em  outro  tempo  possuía,  se  com  isto  não 
quer  alludir,  por  exemplo,  á  perda  do  logar  que  desempenhava  em  casa 
de  D.  Francisco  de  Noronha. 


ll!5 


Documentando  o  seu  pedido  com  esta  elegia,  é  natural 
que  pessoas  amigas  do  desolado  poeta  intercedessem  por 
elle  e  lhe  obtivessem  a  necessária  auctorizaçao  para  poder 
voltar  para  a  capital. 

Pelo  seu  caracter  e  ainda  por  circumstancias  especiaes  a 
que  em  breve  me  hei  de  referir,  a  grave,  intelligente  e  bon- 
dosa infanta  seria  a  primeira  a  desejar  que  terminasse  quanto 
antes,  e  sem  deixar  vestigios,  um  incidente  em  que  ella, 
embora  involuntariamente,  se  achava  envolvida. 

Quanto  tempo  se  demorou  o  poeta  no  Ribatejo? 

Vimos  que  o  exilio  começou  na  primavera.  Ora  a  egloga  2.* 
reporta-nos  ao  fim  desta  estação  ou  ao  começo  do  estio. 
Repare-se,  com  effeito,  nestas  passagens: 

A  noite  escura  dava 

Repouso  aos  cansados 
Animais,  esquecidos  da  verdura  ; 

O  valle  triste  estava 

Cuns  ramos  carregados, 
Qu'inda  a  noite  faziam  mais  escura ; 

Oífrecia  a  espessura 

Um  temeroso  espanto. 

As  roucas  rãs  soavam 
Num  charco  d'agua  negra,  e  ajudavam 
Do  pássaro  nocturno  o  triste  canto. 


Ao  sonoroso  pranto, 
Que  as  aguas  enfreava, 
Responde  o  valle  umbroso. 


Lêa-se  também  esta  deliciosa  descripção  da  madrugada 

Formosa  manhã,  clara  e  deleitosa, 
Que,  como  fresca  rosa  na  verdura, 
Te  mostras  bella  e  pura,  marchetando 
As  nymphas  (i),  espalhando  teus  cabellos 


(i)  NSo  teria  o  poeta  escripto  :  ceu  e  terra  f 


1 1< 


Nos  verdes  montes  bellos :  tu  só  fazes, 
Quando  a  sombra  desfazes,  triste  e  escura, 
Formosa  a  espessura  e  a  clara  fonte, 
Formoso  o  alto  monte  e  o  rochedo. 
Formoso  o  arvoredo  e  deleitoso, 
E  emfim  tudo  formoso  co  teu  rosto, 
D'ouro  e  rosas  composto  e  claridade. 
Trazes  a  saudade  ao  pensamento. 
Mostrando,  em  um  momento,  o  roxo  dia, 
Com  a  doce  harmonia  nos  cantares 
Dos  pássaros  a  pares,  que,  voando, 
Seu  pasto  andam  buscando,  nos  raminhos, 
Para  os  amados  ninhos,  que  manteem. 
Oh  grande  e  summo  bem  da  natureza ! 
Estranha  subtileza  de  pintora, 
Que  matiza  em  uma  hora  de  mil  cores 
O  ceu,  a  terra,  as  flores,  monte  e  prado  1 

E  a  elegia  do  desterro  deve  ter  sido  escripta  no  fim  do 
verão  ou  no  outomno  (i): 

Daqui  me  vou,  com  passo  carregado, 

A  um  outeiro  erguido  e  alli  me  assento. 
Soltando  toda  a  rédea  a  meu  cuidado. 

Despois  de  farto  já  de  meu  tormento, 
Estendo  estes  meus  olhos  saudosos 
Á  parte  donde  tinha  o  pensamento. 

Não  vejo  senão  montes  pedregosos, 

E  sem  graça  e  sem  flor  os  campos  vejo, 
Que  já  floridos  vira  e  graciosos. 

Finalmente,  se  é  de  Camões  o  soneto  publicado  por  Juro- 
menha,  sob  o  numero  333  (2),  o  exilio  ainda  durava  nos  fins 


(i)  Segundo  W.  Storck,  o  poeta  mandou  esta  elegia  para  Lisboa 
apenas  chegou  ao  desterro  ( Vida  de  Camões,  p.  396). 

(2)  «Este  soneto  vem  em  um  manuscripto  com  este  titulo :  Soneto 
de  Lui:(  de  Camões  a  hum  velho  /aliando  com  o  Tejo.  Noutro  manu- 
scripto mais  moderno  em  nome  de  Francisco  Rodrigues  Lobo,  em  outro 


1 1 


do  outomno  ou  princípios  do  inverno; 

Fermoso  Tejo  meu,  quam  differente 
Te  vejo  e  vi,  me  vês  agora  e  viste  I 
Turvo  te  vejo  a  ti,  tu  a  mim  triste ; 
Claro  te  vi  eu  já,  tu  a  mim  contente. 

A  ti  foi-te  trocando  a  grossa  enchente, 
A  quem  teu  largo  campo  não  resiste; 
A  mim  trocou-me  a  vista,  em  que  consiste 
Meu  (i)  viver  contente  ou  descontente. 

Já  que  somos  no  mal  participantes. 

Sejamo-lo  no  bem.  Ah  quem  me  dera 
Que  fossemos  em  tudo  semelhantes ! 

Lá  virá  então  a  fresca  primavera ; 

Tu  tornarás  a  ser  quem  eras  d'antes, 
Eu  não  sei  se  serei  quem  d'antes  era ! 


em  nome  de  um  Henrique  Nunes,  de  Santarém,  e  no  ultimo,  em  nome 
de  Estevão  Rodrigues,  porém  não  vem  nas  poesias  deste  auctor,  que 
imprimiu...  Lourenço  Caminha».  Juromenha,  Obras  de  Luij  de  Camões^ 
II,  496.  Na  hypothese  de  ser  de  Camões  este  soneto,  Juromenha  rela- 
ciona-o  com  o  195,  e  diz  que  provavelmente  foram  ambos  esci^iptos  niT 
mesma  occasião.  Estou,  porém,  convencido  de  que  o  segundo  soneto  é 
de  data  muito  posterior.  A  meu  ver,  foi  motivado  pelas  intempéries  do 
estio  de  iSjo.  (O  poeta,  como  Gil  Vicente,  chama  verão  á  primavera^* 
no  V.  5.**,  se  é  que  não  escreveu  inverno). 

Correm  turbas  as  aguas  deste  rio. 

Que  as  rápidas  enchentes  enturbaram ; 

Os  florecidos  campos  se  secaram ; 

Intratável  se  fez  o  valle  e  frio. 
Passou,  como  o  verão,  o  ardente  estio ; 

Umas  cousas  por  outras  se  trocaram ... 

(i)  Decerto  O  meu  viver,  ctc. 


ii8 

III 

Em  Ceuta 

Procurando  explicar  a  ida  de  Camões  para  Ceuta,  escreve 
W.  Storck:  «Todos  os  esforços  próprios  ou  alheios  para 
abreviar  a  pena  (do  desterro  no  Ribatejo)  foram  baldados, 
caso  alguém  os  fizesse.  E  apertado  pelas  necessidades  mate- 
riaes  da  vida,  o  poeta  recorreu  a  um  expediente,  que  ante- 
riormente sempre  tinha  rejeitado  como  contrario  ás  suas 
inclinações :  resolveu  servir  o  deus  Marte,  já  que  a  capri- 
chosa e  cega  Fortuna  não  o  favorecera,  emquanto  fora  pres- 
tando homenagem  ao  Amor  e  ás  Musas.  Havia  muito  que 
era  costume  em  Portugal  commutar  a  criminosos  as  pena- 
lidades (não  somente  o  exilio,  e  o  degredo  para  o  Brasil, 
mas  até  a  pena  capital)  em  serviços  militares,  pagáveis  no 
mar  ou  nas  colónias.  Porque  havia  de  negar-se  a  Camões 
uma  concessão  semelhante  ?  Podemos  calcular  que  dirigiu  a 
D.  João  III  um  requerimento,  supplicando-lhe  decretasse 
serviço  militar  na  Africa  setentrional  ou,  por  outra,  a  trans- 
ferencia do  desterro  para  Ceuta.  Aquellas  partes  da  Africa 
davam  então  sérios  cuidados  ao  governo  português:  as  for- 
talezas careciam  de  gente...  Por  isso  pedidos  daquella  ordem 
eram  bem  aceites.  O  pleito  de  Camões  se  recommendava  a 
favorável  decisão.  Mas  que  triste  pleito !  O  cavalleiro-fidalgo, 
o  poeta  predilecto  da  corte,  transformado  em  soldado  raso ! 
Comtudo,  não  havia  que  escolher.  A  decisão  régia  não  tardou 
muito.  O  favor  foi  outorgado.  Luiz  de  Camões  obteve  licença 
para  se  alistar  por  dous  annos  na  guarnição  de  Ceuta»  (i). 


(i)   Vida  de  Camões ,  p.  397.  Em  nota  observa  o  illustre  camonista: 
«O  facto  de  Camões  ter  estado  em  Ceuta,  e  não  em  outra  qualquer 


»9 


O  que,  porém,  julgo  fora  de  duvida  é  que  o  poeta,  depois 
de  ter  voltado  para  Lisboa,  com  o  propósito,  mais  ou  menos 
firme,  de  não  pensar  mais  na  infanta,  viu  reaccender-se  a 
paixão  que  por  ella  sentira  (i),  sendo  este  o  motivo  por  que 
foi  degradado  para  Ceuta. 

Comecemos  pela  carta,  toda  cheia  de  meias  palavras,  toda 
cautelosa,  que  elie  da  cidade  africana  enviou  a  um  amigo, 
talvez  João  Lopes  Leitão. 

Depois  de  lhe  recommendar  que  a  não  mostre  a  ninguém 
ou,  pelo  menos,  que  supprima  o  nome  do  signatário,  Camões 


fortaleza  portuguesa,  resulta  evidentemente  da  Elegia  I  nde  Ceita  a  um 
amigo*  (versos  22-57).  —  E  a  outra  circumstancia,  de  ter  estado  ahi 
como  que  «exilado»,  está  documentada  pelas  oitavas  primeiras  (epis- 
tola !.•).  No  verso  196  (aliás  180),  declara-se  «em  terra  alheia  degra- 
dadon.  Sobre  o  tempo  de  serviço  (dous  annos),  a  que  eram  adstrictos 
os  soldados  portugueses  nos  Algarves  d'além,  veja-se»  etc. 

(i)  Presumo  hoje  que  foram  escriptas  por  esta  occasião  algumas 
poesias  que  já  transcrevi  como  immediatamente  anteriores  ao  exilio  no 
Ribatejo.  Tal  é  o  soneto  145,  em  que  o  poeta  declara  terminantemente  : 

Quando  Amor  á  razão  obedecer, 


Deixarei  eu  de  ver  tal  formosura 

E  de  a  amar  deixarei,  depois  de  a  ver. 

Ninguém  mudar-me  queira  de  querer-vos. 

Tal  é  também  o  soneto  210,  em  que  o  poeta  affirma  nada  recear 

Nem  o  tremendo  estrépito  da  guerra, 

(]om  armas,  com  incêndios  espantosos, 

Podem  por  nicuo  a  quem  nenliuni  encerra, 
Despois  que  viu  os  olhos  tão  formosos, 
Por  quem  o  horror,  nos  casos  pavorosos, 
De  mi  todo  se  aparta  e  s«  desterra. 


20 


prosegue  citando  estes  versos  de  Garcilasso  de  la  Vega,  tão 
acconnmodados  ao  estado  da  sua  attribulada  alma: 

«La  mar  en  médio  y  tierras,  he  dejado 
Á  cuanto  bien,  cuitado,  yo  tenia. 
Cuan  vano  imaginar,  cuan  claro  engano 
Es  darme  yo  á  entender  que,  con  partirme. 
De  mi  se  ha  de  partir  un  mal  tamafío !» 

E  como  elle,  apesar  de  reconhecer  que  «a  tristeza  no 
coração  é  como  a  traça  no  panno»,  só  triste  quer  e  pôde 
viver ! 

E  por  tão  triste  me  tenho. 
Que,  se  sentisse  alegria. 
De  triste  não  viveria. 
Porque  a  tal  sorte  vim. 
Que  não  vejo  bem  algum 

Em  quanto  vejo. 
Que  não  nasceu  para  mim. 
E  por  não  sentir  nenhum, 

Nenhum  desejo. 

E  O  pobre  poeta,  «porque  cousas  impossiveis,  é  melhor 
esquecê-las  que  desejá-las»,  continua: 

Só,  tristeza,  vos  queria. 
Pois  minha  ventura  quer 

Que  só  a  (i)  ella 
Conheça  por  alegria ; 
E  que,  se  outra  quiser, 

Morra  por  ella. 

Vem  depois  uma  volta  ao  mote 

Perdigão  perdeu  a  penna, 

Não  ha  mal  que  lhe  não  venha. 


(i)  Supponho  que  o  a  não  estará  aqui  demais. 


12 


diíferente  da  que  já  fica  transcripta  no  começo  deste  trabalho: 

Em  um  mal  outro  começa, 
Que  nunca  vem  só  nenhum  ; 
E  o  triste,  que  tem  um, 
A  soífrer  outro  se  offreça, 
E,  só  pelo  ter,  conheça 
Que  basta  um  só  que  tenha, 
Para  que  outro  lhe  venha. 

E  inútil  aconselhá-lo  a  que  mude  do  seu  propósito,  embora 
seja  certo  que  não  ha  magua  como  a  do  vê-lo-ás  e  não  o  pa- 
parás. «Que  graça  será  esperardes  de  mim  propósitos  em 
cousa  que  os  não  tem  para  comigo?  Pois  ainda  que  queira, 
não  posso  o  que  quero;  que  um  sentido  remontado,  de  não 
pôr  pé  em  ramo  verde,  tudo  lhe  succede  assi.  E  cada  um 
acode  ao  que  mais  lhe  doe;  é  mais  eu,  que  o  que  mais  me 
entristece  é  ter  contentamento,  pois  fujo  delle,  que  n\inha 
alma  o  aborrece,  porque  lhe  lembra  que  é  virtude  viver  sem 
elle.  Que  já  sabeis  que  magua  é:  vê-lo-ás  e  não  o  paparás». 

Numa  das  mais  curiosas  passagens  da  carta,  o  poeta,  se 
não  me  engano,  insinua  terem-lhe  offerecido  dinheiro,  para 
não  importunar  outra  vez  a  infanta  com  os  seus  galanteios. 

Eis  o  que  elle  diz:  «Quero-vos  dar  conta  de  um  soneto 
sem  pernas,  que  se  fez  a  um  certo  recontro  que  se  teve  com 
este  destruidor  de  bons  propósitos  (i),  e  não  se  acabou, 
porque  se  teve  por  mal  empregada  a  obra;  cujo  teor  é  o 
seguinte : 

Forçou-me  Amor  um  dia  que  jogasse ; 
Deu  as  cartas  e  az  d'ouros  levantou, 
E,  sem  respeitar  mão,  logo  triumphou. 
Cuidando  que  o  metal  que  me  enganada. 


(i)  Para  W.  Storck  é  o  Amor  (tom.  i.%  pag.  400).  A  meu  v8r,  é  do 
próprio  poeta  que  se  trata.  Foi  elle  que  destruiu  os  bons  propósitos, 
com  que  tinha  voltado  do  Ribatejo.  E  foi  por  isso  que  houve  o  recontro 
com  alguém,  que  lhe  fallou  em  nome  da  infanta. 


122 


DizendO)  pois  triumphou,  que  triumphasse 
A  uma  sota  d'ouros,  que  jogou. 
Eu  então,  por  burlar  quem  me  burlou, 
Três  paus  joguei  e  disse  que  ganhasse». 

Julgando  que  o  poeta  se  deixaria  enganar  pelo  dinheiro, 
o  Amor,  contra  as  regras  do  jogo,  puxou  pela  sota  de  ouros, 
que  era  trumpho.  Vendo-se  ludibriado,  o  poeta  jogou  o  três 
de  paus  (três  paus,  symbolo  da  forca)  e  disse  ao  parceiro 
que  ganhasse.  Isto  é:  Camões  não  acceitou  a  proposta  que 
lhe  foi  feita  e  preferiu  arriscar-se  a  tudo,  inclusivamente  a 
perder  a  vida. 

Como  lhe  appeteceu  então  cavar  na  fidalguia  dos  ante- 
passados da  infanta!  «Principes  de  condição,  diz  elle,  logo 
em  seguida  ao  soneto  sem  pernas,  principes  de  condição, 
ainda  que  o  sejam  de  sangue,  são  mais  enfadonhos  que  a 
pobreza.  Fazem,  com  sua  fidalguia,  com  que  lhe  cavemos 
fidalguias  de  seus  avós,  onde  não  ha  trigo  tão  joeirado,  que 
não  tenha  alguma  hervilhaca». 

Nas  primeiras  poesias  escriptas  em  Ceuta,  o  poeta  quei- 
xa-se  mais  abertamente  da  infanta,  do  duro  peito,  cruel  e 
empedernido,  que  ergueu  a  mão  para  o  matar. 

Comecemos  pela  ode  3.*,  verdadeiro  protesto  contra  a 
implacável  dureza  havida  com  elle  (i). 

Se  de  meu  pensamento  (2) 
Tanta  razão  tivera  de  alegrar-me, 

Quanto  de  meu  tormento 

A  tenho  de  queixar-me, 
Puderas,  triste  lyra,  consolar-me. 


(i)  As  ultimas  estrophes  desta  ode  mostram  que  ella  foi  escripta  á 
beira-mar.  Pelo  conteúdo  conclue-se  que  o  foi  em  Ceuta. 
(2)  Isto  é :  d'aquillo,  ou  antes,  d'aquella,  em  que  penso. 


123 

E  minha  voz  cansada, 
Que  em  outro  tempo  foi  alegre  e  pura, 

Não  fora  assi  tomada, 

Com  tanta  desventura, 
Tão  rouca,  tão  pesada,  nem  tão  dura. 

A  ser  como  soía. 
Pudera  levantar  vossos  louvores ; 

Vós,  minha  Hierarchia, 

Ouvíreis  meus  amores. 
Que  exemplo  são  ao  mundo  já  de  dores  (i). 

Alegres  meus  cuidados, 
Contentes  dias,  horas  e  momentos, 

Oh  quanto  bem  lembrados 

Sois  de  meus  pensamentos. 
Reinando  agora  em  mi  duros  tormentos ! 

Ai  gostos  fugitivos  1 
Ai  gloria  já  acabada  e  consumida  ! 

Ai,  males  tão  esquivos, 

Qual  me  deixais  a  vida  1 
Quão  cheia  de  pesar !  quão  destruída  1 


(i)  Supponho  que  esta  estrophe  se  deve  ler: 

A  ser  como  soía. 
Pudera  levantar  altos  louvores ; 

Vós,  divina  Hierarchia, 
Ouvíreis  meus  amores,  etc.  • 

Isto  é  :  se  a  voz  do  poeta  fosse  o  que  dantes  era,  poderia,  cantando 
os  seus  amores,  elevar-se  até  os  coros  celestes,  formados  pelos  anjos, 
archanjos,  etc. 

Variações  de  Faria  e  Sousa,  a  propósito  da  minha  Hierarchia :  «Qual 
Hierarquia  será  esta?  Para  estas  Hicrarchias  de  Poetas  quisiera  yo  los 
Comentadores.  Pêro  dexado  esto,  porque  cada  uno  estomuda  como 
Dios  le  ayuda,  digo  que  por  este  no  fácil  termino  de  entender  (mas 
galantíssimo),  llama  el  Poeta  Serafín  a  su  sefiora».  p  que  o  irritado 
poeta  chamava  então  a  su  sefiora  dizem-no-lo  as  cstrophes  i3.*  c  i4.» 
desta  mesma  ode.  Para  W.  Storck  trata-se  das  damas  do  paço  (Luís'  dk 
Camoens  Siimmtliche  Gedichte,  iii,  338). 


Mas  como  não  é  morta 
Já  esta  vida  ?  Como  tanto  dura  ? 

Como  não  abre  a  porta 

A  tanta  desventura, 
Que  em  vão  com  seu  poder  o  tempo  cura ! 

Mas,  para  padecê-la. 
Se  esforça  o  meu  sujeito  e  convalece ; 

Que,  só  para  dizê-la, 

A  força  me  fallece 
E  de  todo  me  cansa  e  me  enfraquece. 

Oh  bem  afortunado, 
Tu,  que  alcançaste  com  lyra  toante, 

Orphêo,  ser  escutado 

Do  fero  Rhadamante, 
E  cos  teus  olhos  ver  a  doce  amante ! 

As  infernais  figuras 
Moveste  com  teu  canto,  docemente ; 

As  três  fúrias  escuras. 

Implacáveis  á  gente, 
Applacadas  se  viram  de  repente. 

Ficou  como  pasmado 
Todo  o  Estygio  reino  co  teu  canto, 

E,  quasi  descansado 

De  seu  eterno  pranto, 
Cessou  de  alçar  Sisypho  o  grave  canto  (i). 

A  ordem  se  mudava 
Das  penas,  que  regendo  está  Plutão ; 

Em  descanso  se  achava 

A  roda  de  Ixião, 
E  em  gloria  quantas  penas  alli  são. 

De  todo  já  admirada 
A  rainha  infernal,  e  commovida. 

Te  deu  a  desejada 

Esposa,  que  perdida 
De  -tantos  dias  já  tivera  a  vida. 


(i)  A  pesada  pedra.  Cf  canteiro,  cantaria. 


I2S 

Pois  minha  desventura 
Gomo  já  não  abranda  uma  alma  humana, 

Que  é  contra  mi  mais  dura, 

E  inda  mais  deshumana. 
Que  o  furor  de  Callirrhoe  profana  (i)  ? 

Oh  crua,  esquiva  e  fera. 
Duro  peito,  cruel  e  empedernido. 

De  alguma  tigre  fera. 

Lá  na  Hyrcania  nascido. 
Ou  d'entre  as  duras  rochas  produzido  I 

Mas  que  digo,  coitado  ! 
E  de  quem  fio  em  vão  minhas  querellas  f 

Só  vós,  ó  do  salgado. 

Húmido  reino  bellas 
E  claras  nymphas,  condoei-vos  delias. 

E,  de  ouro  guarnecidas, 
Vossas  louras  cabeças  levantando, 

Sobre  as  ondas  erguidas 

As  tranças  gotejando. 
Saindo  todas,  vinde  a  ver  qual  ando. 


(i)  Commentando  este  logar,  observa  W.  Storck :  «Se  é  Callirrhoe 
que  deve  ler-se,  falhou  aqui  a  extraordinária  memoria  do  poeta.  Não 
é  possivel  saber-se  —  e  também  Faria  e  Sousa  declara  ignorá-lo— -a  que 
propósito  se  faz  aqui  menção  de  Callirrhoe»...  (Luís'  de  Camoens  Sàmmtli' 
che  Gedichtej  iii,  339).  Mas  a  Callirrhoe,  a  que  se  refere  o  poeta,  não  é, 
como  suppõe  o  illustre  camonista  allemão,  aquella  de  que  se  occupa  Oví- 
dio nas  MetamorphoseSy  ix,  4i3  e  segg.;  é  outra,  de  que  falia  Pausanias  na 
Graeciae  descriptio,  liv.  7.»,  cap.  21.  Esta  desprezou  o  amor  de  Córeso, 
sacerdote  de  Baccho,  na  cidade  da  Calydonia,  cujos  habitantes  foram 
por  isso,  punidos  por  aquella  divindade.  D'aí  o  epitheto  profana.  Eis 
como  começa  a  narrativa  do  escriptor  grego :  «Amabat  (Coresus)  Cal- 
lirrhoen  virginem  et  quanto  erat  Coresi  amor  vehcmentíor,  tanto  erac 
puellac  animus  ab  cjus  cupiJitate  alienior».  (Edição  de  Leipzig,  1696 
p.  573).  Ainda  desta  vez  não  foi  o  poeta  quem  se  enganou. 


26 


Saí  em  companhia 
E,  cantando  e  colhendo  as  lindas  flores, 

Vereis  minha  agonia, 

Ouvireis  meus  amores  "* 

E  sentireis  meus  prantos,  meus  clamores. 

Vereis  o  mais  perdido 
E  mais  infeliz  corpo,  que  é  gerado. 

Que  está  já  convertido 

Em  choro,  e,  neste  estado, 
Somente  vive  nelle  o  seu  cuidado. 

Na  ode  i.*  (i)  ainda  o  poeta  se  queixa  da  infanta,  mas  já 
reapparece  a  sua  paixão  por  ella.  Novo  Endymion,  dirige-se 
á  Lua  (Delia,  Diana,  Lucina),  que  em  seguida  identifica  com 
a  sua  bem-amada. 

Detém  um  pouco,  musa,  o  largo  pranto. 

Que  Amor  te  abre  no  peito, 
E,  vestida  de  rico  e  ledo  manto. 

Demos  honra  e  respeito 

Áquella  cujo  objeito  (2) 

Todo  o  mundo  allumia, 
Trocando  a  noite  escura  em  claro  dia. 

Ó  Delia,  que,  apesar  da  névoa  grossa, 

Cos  teus  raios  de  prata 
A  noite  escura  fazes  que  não  possa 

Encontrar  (3)  o  que  trata, 

E  o  que  na  alma  retrata, 

Amor  por  teu  divino 
Raio,  por  que  endoudeço  e  desatino  : 


(i)  W.  Storck  (iii,  33o-333)  transcreve  a  ode  de  Bernardo  Tasso, 
aqui  imitada  por  Camões. 

(2)  Não  deverá  ler-se  aspeito?  Cf.,  na  estrophe  seguinte,  trata  e 
retrata. 

(3)  Apesar  da  névoa  grossa  (allusão  á  maneira  como  o  poeta  havia 
sido  tratado  pela  infanta),  apesar  da  névoa  grossa,  os  teus  raios  de  prata 
fazem  que  não  seja  escura  a  noite  para  aquelle  que  te  ama. 


i7 


Tu,  que  de  formosíssimas  estrellas 

Coroas  e  rodeias 
Tua  cândida  fronte  e  faces  bellas, 

E  os  campos  formoseias 

Co'as  rosas  que  semeias, 

Co'as  boninas  que  gera 
O  teu  celeste  humor  na  primavera : 

Para  ti  guarda  o  sitio  fresco  d'Ilio 

Suas  sombras  formosas ; 
Para  ti  o  Erymantho,  Olympo  e  Pilio  (i) 

As  mais  purpúreas  rosas; 

E  as  drogas  mais  cheirosas 

Desse  nosso  oriente 
Guarda  a  Felice  Arábia,  mais  contente. 

De  qual  panthera  ou  tigre  ou  leopardo 

As  ásperas  entranhas 
Não  temeram  teu  fero  e  agudo  dardo. 

Quando  por  as  montanhas 

Ligeira  atravessavas, 
Tão  formosa  que  Amor  de  amor  matavas  ? 

Pois,  Delia,  do  teu  ceu  vendo  estás  quantos 

Furtos  de  puridades, 
Suspiros,  maguas,  ais,  musicas,  prantos. 

As  conformes  vontades, 

Umas  por  saudades, 

Outras  por  crus  indicios. 
Fazem  das  próprias  vidas  sacrifícios  (2) : 


(i)  Cf.  W.  Storck,  tom.  i»,  pag.  335. 

(2)  O  texto  desta  estrophe  deve  ter  soffrido  alteração.  Permilta-se-me 
propor  que  se  lêa : 

Pois,  Delia,  do  teu  ceo  vendo  estás  tantos 

Furtos  de  puridades. 
Suspiros,  maguas,  ais,  lap^rimasy  prantos, 

E  as  amantes  vontades. 

Que,  umas  por  saudades, 

Outras,  por  crus  indicios, 
Fazem  das  próprias  vidas  sacrifícios : 

Amantes  À  uma  variante  da  edição  de  1  SgS. 


128 

Já  veio  Endymião  por  estes  montes, 

O  ceu,  suspenso,  olhando, 
E  teu  nome,  cos  olhos  feitos  fontes, 

Em  vão  sempre  chamando, 

Pedindo  suspirando  (i) 

Mercês  á  tua  beldade. 
Sem  que  ache  em  ti  um'hora  piedade. 

Por  ti  feito  pastor  de  branco  gado. 

Nas  selvas  solitárias 
Só  de  seu  pensamento  acompanhado, 

Conversa  as  alimárias, 

De  todo  o  amor  contrarias, 

Mas  não  como  a  ti  duras. 
Onde  lamenta  e  chora  desventuras. 

Das  castas  virgens  sempre  os  altos  gritos. 

Clara  Lucina,  ouviste, 
Renovando-lhe  as  forças  e  os  espritos ; 

Mas  os  d'aquelle  triste 

Já  nunca  consentiste 

Ouvi-los  um  momento, 
Para  ser  menos  grave  o  seu  tormento. 

Não  fujas,  não,  de  mi !  Ah  não  te  escondas 

D'um  tão  fiel  amante  ! 
Olha  como  suspiram  estas  ondas 

E  como  o  velho  Atlante  (2) 

O  seu  collo  arrogante 

Move  piedosamente, 
Ouvindo  a  minha  voz,  fraca  e  doente. 

Triste  de  mi!  Que  alcanço  por  queixar- me, 

Pois  minhas  queixas  digo 
A  quem  já  ergueu  a  mão  para  matar-me, 

Como  a  cruel  imigo  ? 

Mas  eu  meu  fado  sigo. 

Que  a  isto  me  destina, 
E  que  isto  só  pretende  e  só  me  ensina. 


(1)  A  suspirar,  com  suspiros. 

(2)  O  monte  Atlas.  Prova  de  que  a  ode  foi  escripta  em  Ceuta. 


Oh  quanto  ha  já  que  o  ceu  me  desengana  ! 

Mas  eu  sempre  porfio 
Cada  vez  mais  na  minha  teima  insana  ! 

Tendo  livre  alvedrio, 

Não  fujo  o  desvario, 

Porque  este,  em  que  me  vejo, 
Engana  co'a  esperança  o  meu  desejo. 

Oh  quanto  melhor  fora  que  dormissem 

Um  somno  perennal 
Estes  meus  olhos  tristes,  e  não  vissem 

A  causa  de  seu  mal 

Fugir  a  um  tempo  tal. 

Mais  que  dantes  (i)  proterva, 
Mais  cruel  que  ursa,  mais  fugaz  que  cerva ! 

Ai  de  mi,  que  me  abraso  em  fogo  vivo. 

Com  mil  mortes  ao  lado, 
E  quando  morro  mais,  então  mais  vivo ! 

Porque  tem  ordenado 

Meu  infelice  fado 

Que,  quando  me  convida 
A  morte,  para  a  morte  tenha  vida  ? 

Secreta  noite  amiga,  a  que  obedeço, 

Estas  rosas,  porquanto 
Meus  queixumes  me  ouviste,  te  oftereço, 

E  este  fresco  amaranto, 

Húmido  já  do  pranto 

E  lagrimas  da  esposa 
Do  cioso  Titão,  branca  e  formosa. 

Contemporâneo  das  duas  tão  bellas,  tão  sentidas  odes, 
talvez  escripto  entre  uma  e  outra,  é  também  o  soneto  74; 

Aquella  fera  humana,  que  enriquece 
A  sua  presunçosa  tyrannia 
Destas  minhas  entranhas,  onde  cria 
Amor  um  mal,  que  falta  quando  crece  (2), 


(1)  Aqui,  SC  não  me  engano,  escreveu  o  poeta  o  nome  de  um  animal, 
tigre,  por  exemplo. 

(2)  Não  teria  o  poeta  escripto :  que  dUi  a  dia  crece  f 

9  -  R.  5»94 


'-0 

Se  nellii  o  ceu  mostrou,  como  parece. 

Quanto  mostrar  ao  mundo  pretendia, 

Porque  de  minha  vida  se  injuria  ? 

Porque  de  minha  morte  se  ennobrece  ? 
Ora,  emfim,  sublimai  vossa  victoria, 

Senhora,  com  vencer-me  e  captivar-me. 

Fazei  delia  no  mundo  larga  historia ; 
Pois,  por  mais  que  vos  veja  atormentar-me, 

Já  me  fico  logrando  desta  gloria 

De  ver  que  tendes  tanta  de  matar-me. 

Como  se  vê  pelas  tres  poesias  que  acabo  de  transcrever, 
Camões  attribue  o  seu  desterro  para  Ceuta  á  interferência 
directa  da  infanta  (i).  Foi  ella  que,  inda  mais  deshumana 
que  Callirrhoe,  ergueu  a  mão  para  o  matar ;  é  ella  a  fera 
humana  que  se  injuria  da  sua  attribidada  vida  e  se  ennobrece 
com  a  sua  morte. 


(i)  Costuma  dizer-se  que  o  exilio  do  poeta,  pelo  menos  o  exilio  para 
o  Ribatejo,  foi  obra  pessoal  de  D.  Joãjo  III  e  da  rainha  D.  Gatharina. 
E,  entre  outras  razões,  adduz-se  o  Auto  d'el-rei  Seleuco,  pois  não  só  o 
entrecho  da  peça  lhes  não  podia  ser  agradável,  por  avivar  o  que  se  pas- 
sara com  o  ultimo  casamento  de  D.  Manuel,  mas  ainda  no  argumento, 
propositadamente  disparatado,  se  falia  na  Catharina  Real,  que  havia  de 
entrar  em  scena  com  uns  poucos  de  parvos  numa  joeira  e  os  havia  de 
semear  pela  casa,  de  que  nasceria  muito  mantimento  ao  riso.  Quer-me 
parecer  que  o  poeta,  effectivamente,  quis  ser  desagradável  ao  rei  e  á 
rainha,  com  o  intuito  de  lisongear  a  infanta.  Toda  a  gente  sabia,  com 
eífeito,  as  razões  de  queixa  que  ella  já  então  tinha  do  meio-irmão  e  da 
tia  e  cunhada.  Mas  se  el-rei  (que,  diga-se  de  passagem,  no  anno  de  1546, 
em  que  o  auto  foi  escripto  e  representado,  residiu  fora  de  Lisboa, 
como  já  fica  dito)  teve  conhecimento  do  caso,  é  provável  que  se 
não  incommodasse  muito,  se  estava  informado  das  loucas  preten- 
ções  do  poeta.  É  até  natural  que  gostasse  houvesse  um  leviano  que 
compromettesse  a  infanta.  D.  João  III  por  cousa  nenhuma  queria  desem- 
bolsar as  400:000  dobras  d'ouro  a  que  ella  se  julgava  com  direito,  em 
virtude  do  contracto  matrimonial  celebrado  entre  D.  Manuel  e  a  ex-noiva 
de  seu  filho  e  successor. 


■i 


Qual  o  motivo  da  enérgica,  da  inexorável  altitude,  assu- 
mida pela  infanta,  quando  viu  que  o  renitente  poeta,  depois 
de  ter  voltado  do  Ribatejo,  continuava  a  mostrar-se  apaixo- 
nado por  ella  ? 

A  meu  ver,  o  motivo,  —  pelo  menos  o  principal,  se  houve 
mais  d'um — ,  foi  o  seguinte:  a  illustre  senhora,  que  tinha 
então  em  perspectiva  o  casamento  com  o  herdeiro  da  coroa 
de  Espanha,  viuvo  desde  ib^b  (i),  sabia  muito  bem  que  o 
seu  régio  e  tortuoso  meio-irmão,  para  lhe  crear  obstáculos, 
era  muito  capaz  de  fazer  correr  que  ella  dava  ouvidos  a  um 
doidivanas  d'um  poeta  (2). 


(i)  «Depois  de  todos  estes  negócios  (projectos  de  casamento  da 
infanta  com  o  Delphim,  filho  de  Francisco  I,  e  com  o  archiduque  Ma- 
ximiliano,  herdeiro  do  throno  imperial)  serem  tractados  pelo  modo  que 
dixe,  veo  a  morrer  no  anno  de  i545  ha  princesa  donna  Maria,  filha  dei 
Rei  dom  Joam  terceiro,  que  era  casada  com  dom  Phelippe  Príncipe  de 
Castella,  filho  herdeiro  do  Emperador  D.  Carlos,  depois  da  morte  da 
qual,  elle  e  ha  Rainha  donna  Leanor  trataram  de  casar  (a  infanta  D.  Ma- 
ria) com  este  Príncipe  dom  Phelippe».  Damião  de  Góes,  Chronica  do  feli- 
císsimo rei  dom  Emanuel  (era  assim  que  escreviam  esta  palavra  Erasmo 
[Opera  omnia,  ed.  de  lyoS-^),  t.  vi,  p.  10,  t.  vii,  p.  7,  t.  vni,  p.  2]  e  outros 
grandes  latinistas  do  renascimento),  4."  parte,  cep.  68  (Líshòa,  i566). 
«Muerta  esta  Princesa  (D.  Maria),  se  trato  luego  de  buscar  otra  muger  ai 
Príncipe  Don  Felipe. . .  De  espacio  iba  mirando  Carlos  Quinto,  a  quien 
tocaua  este  cuidado,  la  mayor  conueniencía  en  este  segundo  casamiento  de 
su  híjo;  y  assi  perseuerò  viudo  algunos"  anos,  tiempo  em  que  siempre  el 
César  se  inclínaua  a  q  casasse  con  la  Infanta  Maria,  porque,  fuera  de  ser 
el  mejor  acierto,  con  la  execucion  satisfacía  a  su  hermana  Leonor,  que, 
viuda  ya  dei  Rey  Francisco  de  Francia,  auía  passado  a  Flandes,  y  instaua 
por  el  efecto,  por  ver  a  su  hija  acomodada  de  estado ;  y  como  el  nego- 
cio se'  auia  platicado  entre  los  dos,  apretauase  por  parte  de  la  Reina 
sobre  èl  ai  Rey  Don  Juan,  para  que  prcuíniesse  Ia  entrega  dei  dote  que 
tocaua  a  su  hija».  Fr.  M.  Pacheco,  Vida,  ctc,  fl.  3g. 

(2)  Contínua  o  consciencioso  bígrapho  da  infanta :  «Aflígian  ai  Rey 
estas  diligencias,  que  nada  deseaua  menos  que  dcxar  salír  esta  Princesa 
de  Portugal,  así  por  escusarsc  de  pagar  tan  grande  suma,  como  por  el 


Se  nas  odes  3.*  e  i.-'  e  no  soneto  74  se  acha  reproduzido 
o  estado  de  espirito  do  poeta  ao  começar  o  novo  exilio  (pri- 
meiramente irritação  contra  o  peito  duro,  cruel  e  empeder- 
nido da  infanta;  em  seguida,  reviviscencia  da  paixão  amorosa, 
porfia  na  teima  insana)^  a  elegia  2.^  revela-nos  a  phase  inter- 
média e  a  epistola  i.*  patentea-nos  a  ultima.  Vejamos. 

Na  elegia  2.*,  dirigida,  segundo  creio,  a  D.  Francisco  de 
Noronha,  o  poeta  reconhece  que  nada  o  defende  das  lem- 
branças amorosas  e  declara  escrever  o  seu  derradeiro  canto. 
Se  o  exilio  não  termina,  venha  a  morte. 

Aquella  que,  d'amor  descomedido  (i), 
Por  o  formoso  moço  se  perdeu, 
Que  só  por  si  d'amores  foi  perdido, 

Despois  que  a  deusa  em  pedra  a  converteu, 
De  seu  humano  gesto  verdadeiro 
A  ultima  voz  só  lhe  concedeu. 

Assi  meu  mal  do  próprio  ser  primeiro 
Outra  cousa  nenhuma  me  consente, 
Que  este  canto,  que  escrevo  derradeiro. 

E  se  uma  pouca  vida,  estando  ausente. 

Me  deixa  Amor,  é  porque  o  pensamento 
Sinta  a  perda  do  bem  de  estar  presente. 

Senhor,  se  vos  espanta  o  sofifrimento. 

Que  tenho  em  tanto  mal,  para  escrevê-lo 
Furto  este  breve  espaço  a  meu  tormento. 


poço  afecto  q  algunos  dezian  que  siempre  tuuo  a  esta  media  hermana : 
mas  hallandose  apretado  destos  Principes,  y  de  otras  personas  dei  Reino, 
que  le  hablauan  en  lo  mismo  en  fauor  de  la  senora  Infanta,  trato  de 
buscar  ocultamente  médios  de  estoruarlo».  E  o  ardil  a  que  nesta  occa- 
sião  recorreu  o  dissimulado  monarca,  — cujo  jogo,  aliás,  sobre  o  assumpto 
passou,  em  breve,  a  ser  bem  conhecido  por  todos  os  interessados — , 
consta  da  curiosa  carta  que  elle  enviou,  em  27  de  junho  de  i55o,  a  Lou- 
renço Pires  de  Távora,  seu  embaixador  junto  de  Carlos  V,  carta  que 
Fr.  M.  Pacheco  transcreve  e  commenta  devidamente  (fl.  40-42). 

(i)  A  nympha  Echo,  que  debalde  se  apaixonou  por  Narciso.  Juno 
Unha  a  condemnado  a  repetir  somente  os  últimos  sons  que  ouvisse. 


i33 


Porque,  quem  tem  poder  para  soffrê-Io, 
Sem  se  acabar  a  vida  co  cuidado, 
Também  terá  poder  para  dizc-lo. 

Nem  eu  escrevo  um  mal,  já  acostumado, 
Mas  na  alma  minha,  triste  e  saudosa, 
A  saudade  escreve  e  eu  traslado. 

Ando  gastando  a  vida  trabalhosa 
E  esparzindo  a  continua  soidade. 
Ao  longo  d'uma  praia  soidosa. 

Vejo  do  mar  a  instabilidade. 

Como  com  seu  ruído  impetuoso 
Retumba  na  maior  concavidade. 

De  furibundas  ondas  poderoso. 

Na  terra,  a  seu  pesar,  está  tomando 
Lugar,  em  que  se  estenda  cavernoso. 

Ella,  como  mais  fraca,  lhe  e^tá  dando 
As  concavas  entranhas,  onde  esteja 
Sempre  com  som  profundo  suspirando. 

A  todas  estas  cousas  tenho  inveja 

Tamanha,  que  não  sei  determinar-me, 
Por  mais  determinado  que  me  veja. 

Se  quero  em  tanto  mal  desesperar-me. 
Não  posso,  porque  Amor  e  saudade 
Nem  licença  me  dão  para  matar-me. 

As  vezes,  cuido  em  mi  se  a  novidade 

E  estranheza  das  cousas,  co  a  mudança. 
Poderiam  mudar  uma  vontade. 

E  com  isto  figuro  na  lembrança 

A  nova  terra,  o  novo  trato  humano, 

A  estrangeira  progénie,  a  estranha  usança. 

Subo-me  ao  monte  que  Hercules  Thcb;mo 
Do  altissimo  Calpe  dividiu. 
Dando  caminho  ao  Mar  Mediterrano; 

D'alli  estou  tenteando  adonde  viu 

O  pomar  das  Hespérides,  matando 
A  serpe  que  a  seu  passo  resistiu. 

Estou-me  em  outra  parte  figurando 
O  poderoso  Anteu,  que  derribado 
Mais  força  se  lhe  vinha  accresccntando ; 


1^4 


Porém,  do  Hercúleo  braço  subjugado, 
No  ar  deixando  a  vida,  não  podendo 
Dos  soccorros  da  mãe  ser  ajudado. 

Mas  nem  com  isto,  emfim,  que  estou  dizendo, 
Nem  com  as  armas  ião  continuadas, 
De  amorosas  lembranças  me  defendo. 

Todas  as  cousas  vejo  demudadas. 

Porque  o  tempo  ligeiro  não  consente 
Que  estejam  de  firmeza  acompanhadas. 

Vi  já  que  a  primavera,  de  contente, 
Em  variadas  cores  revestia 
O  monte,  o  campo,  o  valle,  alegremente. 

Vi  já  das  altas  aves  a  harmonia. 

Que  até  duros  penedos  convidava 
A  algum  suave  modo  de  alegria. 

Vi  já  que  tudo  emfim  me  contentava  (i) 
E  que,  de  muito  cheio  de  firmeza. 
Um  mal  por  mil  prazeres  não  trocava. 

Tal  me  tem  a  mudança  e  estranheza. 

Que,  se  vou  por  os  prados,  a  verdura 
Parece  que  se  secca  de  tristeza. 

Mas  isto  é  já  costume  da  ventura, 

Porque  aos  olhos  que  vivem  descontentes. 
Descontente  o  prazer  se  lhes  figura. 

Oh  graves  e  insoíFriveis  accidentes 

Da  Fortuna  e  d'Amor !  Que  penitencia 
Tão  grave  dais  aos  peitos  innocentes  1 

Não  basta  examinar-me  a  paciência 
Com  temores  e  falsas  esperanças. 
Sem  que  também  me  tente  o  mal  de  ausência  ? 

Trazeis  um  brando  espirito  em  mudanças. 
Para  que  nunca  possa  ser  mudado 
De  lagrimas,  suspiros  e  lembranças. 

E,  se  estiver  ao  mal  acostumado, 

Também  no  mal  não  consentis  firmeza, 
Para  que  nunca  viva  descansado. 


(i)  Isto  é:  me  procurava  contentar. 


35 


Já  quieto  me  achava  co  a  tristeza  (i) 

E  alli  não  me  faltava  um  brando  engano, 
Que  tirasse  desejos  da  iVaqucza  (2). 

Mas,  vendo-me  enganado  estar  ufano, 
Deu  á  roda  a  Fortuna,  e  deu  comigo 
Onde  de  novo  choro  o  novo  dano. 

Já  deve  de  bastar  o  que  aqui  digo, 

Para  dar  a  intender  o  mais  que  calo 
A  quem  já  viu  tão  aspjro  perigo. 

E,  se  nos  brandos  peitos  faz  abalo 
Um  peito  magoado  e  descontente, 
Que  obriga  a  quem  o  ouve  a  consolá-lo, 

Não  quero  mais  senão  que  largamente, 
Senhor,  me  mandeis  novas  dessa  terra. 
Que  alguma  delias  me  fará  contente. 

Porque,  se  o  duro  fado  me  desterra 

Tanto  tempo  do  bem,  que  o  fraco  esprito 
Desampare  a  prisão,  onde  se  encerra, 

Ao  som  das  negras  aguas  do  Cocito, 
Ao  pé  dos  carregados  ar>'oredos. 
Cantarei  o  que  na  alma  tenho  escripto. 

E  por  entre  estes  (3)  hórridos  penedos, 
A  quem  negou  Natura  o  claro  dia. 
Entre  tormentos  ásperos  e  medos. 

Com  a  tremula  voz,  cansada  e  fria, 
Celebrarei  o  gesto  claro  e  puro. 
Que  nunca  perderei  da  phantasia. 

O  musico  da  Thracia,  já  seguro 

De  perder  sua  Eurydice,  tangendo 
Me  ajudará,  ferindo  o  ar  escuro. 

As  namoradas  sombras,  revolvendo 
Memorias  do  passado,  me  ouvirão, 
E  com  seu  choro  o  rio  irá  crescendo. 


(1)  Creio  que  o  poeta  allude  ao  seu  estado  de  espirito,  ao  voltar  do 
Ribatejo.  Estava  resignado  a  não  pensar  mais  na  infanta,  mas  achou-se 
illudido. 

(2)  Que  lhe  tirasse  desejos  de  fraquejar,  de  abandonar  o  propósito 
em  que  estava. 

(3)  Talvez:  esses. 


36 


Em  Salmoneu  as  penas  faltarão, 

E  das  filhas  de  Bello  juntamente 

De  lagrimas  os  vasos  se  encherão. 
Que,  se  amor  não  se  perde  em  vida  ausente, 

Menos  se  perderá  por  morte  escura. 

Porque,  emfim,  a  alma  vive  eternamente, 
E  amor  é  eífeito  da  alma,  e  sempre  dura. 

Percorramos  agora  a  epistola  i.*,  a  que  alguns  dão  o  nome 
de  Oitavas  sobre  o  desconcerto  do  rjiiindo  (i). 

Apresentando-sc  como   victima   da  Fortuna  (2),   o  poeta 


(i)  «Outro  producto  (do  periodo  africano),  de  peso,  e  bem  valioso, 
são  as  Oitavas  sobre  o  desconcerto  do  mundo,  que  julgo  escriptas  quasi 
no  fim  do  exilio ...  A  austera  poesia  foi  enviada,  segundo  a  tradição,  ao 
joven  discípulo  de  Camões  (D.  António  de  Noronha).  Houve  tempo  em 
que  duvidei  da  veracidade  desta  noticia,  mas  hoje  dou-a  por  certa.» 
(W.  Storck,  Vida  de  Camões,  p.  406).  Creio  que  o  destinatário  da  epis- 
tola foi  o  pae  de  D.  António  de  Noronha.  O  ex-discipulo  do  poeta  era 
ainda  muito  novo  (nascera  em  i536),  para  receber  deste  confidencias 
intimas  e  para  lhe  prestar  os  serviços  de  que  precisava.  Além  disso,  a 
elevação  da  epistola  e  até  a  sua  estructura  grammatical  não  eram  para 
creanças. 

O  nome  dado  ás  «magnificas  estancias,  sem  igual  na  lyrica  portu- 
guesa, a  não  ser  que  nas  próprias  obras  de  Camões  encontrem  parallelos» 
(W.  Storck,  p.  408),  provém  da  i."  oitava : 

Quem  pôde  ser  no  mundo  tão  quieto, 
Ou  quem  terá  tão  livre  o  pensamento. 
Quem  tão  exprimentado,  ou  tão  discreto. 
Tão  fora,  emfim,  de  humano  entendimento, 
Que,  ou  com  publico  eífeito,  ou  com  secreto, 
Lhe  não  revolva  e  espante  o  sentimento, 
Deixando-lhe  o  juizo  quasi  incerto, 
Ver  e  notar  do  mundo  o  desconcerto  ? 

(2)  Fortuna,  emfim,  co  Amor  se  conjurou 

Contra  mi,  porque  mais  me  magoasse ; 
Amor  a  um  vão  desejo  me  obrigou. 
Só  para  que  a  Fortuna  mo  negasse. 

(Est.  29.*). 


3/ 


começa  por  formular  o  grave  problema  que  suggere  a  obser- 
vação quotidiana:  Se  existe  uma  Providencia,  como  é  que 
ha  maus  que  prosperam  e  bons  que  são  infelizes?  Como  é 
que  a  Fortuna  pôde  favorecer  os  primeiros  e  tornar  a  vida 
amargurada  aos  segundos  ? 

Quem  ha  que  veja  aquelle  que  vivia 
De  latrocinios,  mortes  e  adultérios, 
Que  ao  juízo  das  gentes  merecia 
Perpetua  pena,  immensos  vitupérios. 
Se  a  Fortuna  em  contrario  o  leva  e  guia. 
Mostrando  emfim  que  tudo  são  mysterios, 
Em  alteza  de  estados  triumphante, 
Que,  por  livre  que  seja,  não  se  espante  ? 

(Est.  2.'). 

Quem  ha  que  veja  aquelle  que  tão  clara 
Teve  a  vida,  que  em  tudo  por  perfeito 
O  próprio  Momo  ás  gentes  o  julgara, 
Inda  quando  lhe  visse  aberto  o  peito. 
Se  a  má  Fortuna,  ao  bom  somente  avara, 
O  reprime  e  lhe  nega  seu  direito, 
Que  lhe  não  fique  o  peito  congelado. 
Por  mais  e  mais  que  seja  exprimentado  ? 

(Est.  3.«). 

Houve  um  philosopho  grego  que  procurou  resolver  a  ques- 
tão, admittindo  a  existência  de  dous  deuses,  mas  esta  solução 
não  se  conforma  nem  com  os  princípios  racionais,  nem  com 
a  doutrina  christã. 

Demócrito  dos  deuses  proferia 

Que  eram  só  dous :  a  Pena  c  o  Benefício. 

Segredo  algum  será  da  phantasia. 

De  que  eu  achar  não  posso  claro  indicio ; 

Que,  se  ambos  vem  por  não  cuidada  via 

A  quem  os  não  merece,  é  grande  vicio 

Em  deuses  sem-justiça  (i)  c  sem-ríi/fio. 

Mas  Deoiocríto  o  disse  e  Paulo  não. 


(i)  É  provável  que  o  poeta  escreveste  :  injustiça. 


i38 


Pôde  dizer-se  que  este  desconcerto  da  Fortuna  não  data 
d'agora,  antes  é  tão  antigo  como  o  mundo.  Mas  isto  não 
resolve,  antes  aggrava  o  problema. 

Dir-me-eis  que,  se  este  estranho  desconcerto 
Novamente  no  mundo  se  mostrasse, 
Que,  por  livre  que  fosse  e  mui  experto, 
Não  era  de  espantar,  se  me  espantasse ; 
Mas  que,  se  já  de  Sócrates  foi  certo 
Que  nenhum  grande  caso  lhe  mudasse 
O  vulto,  ou  de  prudente  ou  de  constante, 
Exemplo  tome  delle  e  não  me  espante. 

(Est.  5.-). 

Parece  a  razão  boa;  mas  eu  digo 

Deste  uso  da  Fortuna  tão  damnado 

Que,  quanto  é  mais  usado  e  mais  antigo, 

Tanto  é  mais  estranhado  e  blasphemado. 

Porque,  se  o  Geu,  das  gentes  tão  amigo,  ' 

Não  dá  á  Fortuna  tempo  limitado, 

Não  é  para  causar  mui  grande  espanto. 

Que  mal,  tão  mal  olhado,  dure  tanto  ? 

(Est.  6.«). 

Mas,  como  se  não  bastasse  o  ser  a  Fortuna  uma  entidade 
tão  caprichosa,  não  ha  quem  delia  não  espere  alguma  cousa! 
A  ambição,  o  pretender  do  mundo  fama  e  friiito,  faz  com 
que  ninguém  lhe  escape,  nem  mesmo  quem  professa  des- 
prezá-la ! 

Outro  espanto  maior  aqui  me  enleia. 
Que,  corri  quanto  Fortuna  tão  profana 
Com  estes  desconcertos  senhoreia, 
A  nenhuma  pessoa  desengana. 
Não  ha  ninguém  que  assente  nem  que  creia 
Este  discurso  vão  da  vida  humana, 
Por  mais  que  philosophe,  nem  que  entenda, 
Que  algum  pouco  do  mundo  não  pretenda. 

(Est.  7.«). 


i39 

Diógenes  pisava  de  Platão 
Com  seus  sórdidos  pés  o  rico  estrado, 
Mostrando  outra  mais  alta  presumpçao 
Em  desprezar  o  fausto  tão  prezado. 

—  Diógenes,  não  vês  que  extremos  são, 
Esses  que  segues,  de  mais  alto  estado? 
Pois,  se  de  desprezar  te  prezas  muito. 

Já  pretendes  do  mundo  fama  e  fruito  — . 

(Est.  8.*). 

Em  seguida  o  poeta,  passando  por  alto  várias  categorias 
de  ambiciosos,  interpcila  directamente  César  e  Platão,  e  per- 
gunta-lhes  de  que  lhes  valeram  os  trabalhos  em  que  quise- 
ram envolver-se.  O  primeiro  morreu  ás  mãos  dos  seus;  o 
segundo  não  conseguiu  eximir-se  aos  erros  da  gentilidade. 

Mas  pergunto  ora  a  César  esforçado,. 
Ora  a  Platão  divino,  que  me  diga. 
Este  das  muitas  terras  em  que  andou, 
Aquelle  de  vencê-las,  que  alcançou  ? 

(Est.  II.-). 

N  César  dirá  ;  Sou  digno  de  memoria ; 

Vencendo  povos  vários  e  esforçados, 
Fui  monarca  do  mundo,  e  larga  historia 
Ficará  de  meus  feitos  sublimados. 

—  É  verdade;  mas  esse  mando  e  gloria 
Lograste-o  muito  tempo  ?  Os  conjurados 
Bruto  e  Cassio  dirão  que,  se  venceste 
Emfim,  emfim  ás  mãos  dos  teus  morreste. 

(Est.    12.'). 

Dirá  Platão :  Por  ver  o  Etna  e  o  Nilo, 
Fui  a  Sicilia,  Egypto  e  outras  partes, 
Só  por  ver  e  escrever  em  alto  estylo 
Da  natural  sciencia  e  muitas  artes. 

—  O  tempo  é  breve  e  queres  consumi-lo, 
Platão,  todo  em  trabalhos  ?  E  repartes 
Tão  mal  de  teu  estudo  as  breves  horas. 

Que  emfím  do  falso  Phebo  (i)  o  filho  adoras? 

(Est.  r>M 


i)  Proponho  a  correcção  Chrono  (Saturno),  pui  de  Jupiicr  (Zeus). 


40 


E  afinal  de  que  vale  a  ambição?  Para  que  servem  os  tra- 
balhos a  que  ella  obriga  ?  Porque  é  que  o  homem  se  ha  de 
submetter  aos  revezes  da  fortuna  ?  Lá  vem  a  morte,  que  tudo 
inutiliza.  A  alma  terá  mais  em  que  occupar-se  e  o  corpo 
já  nada  sente. 

Por  (i)  quanto,  dês  que  vive  já  apartada 
A  alma  desta  prisão  terrestre  e  escura, 
Está  em  tamanhas  cousas  occupada, 
Que  da  fama  que  fica  nada  cura, 
E  o  corpo  terreno  sente  nada  (2). 
O  Cynico  dirá  se  por  ventura 
No  campo,  onde  lançado  morto  estava, 
De  si  os  cães  ou  as  aves  enxotava  (3). 

(Est.   I4.a). 

Mas  se  a  Fortuna,  que  é  cega,  sobre  todos  procura  exercer 
o  seu  império,  como  poderemos  escapar-lhe  ? 

Para  os  que  têm  baixa  a  phantasia,  ha  só  um  meio :  é  nunca 
se  metterem  em  grandes  cousas. 

Quem  tão  baixa  tivesse  a  phantasia. 
Que  nunca  em  mores  cousas  a  mettesse. 
Que  em  só  levar  seu  gado  á  fonte  fria, 
E  mungir-lhe  do  leite  que  bebesse, 
Quão  bem-aventurado  que  seria  ! 
Que,  por  mais  que  a  Fortuna  revolvesse. 
Nunca  em  si  sentiria  maior  pena. 
Que  pesar-lhe  de  a  vida  ser  pequena. 

-     (Est.  i5.-). 


(i)  Lição  corrente:  Pois  quanto. 

(2)  Parece-me  que  deve  lêr-se  assim  e  não :  E  se  o  corpo  terreno 
sinta  nada. 

(3)  Nos  versos  7  e  8,  o  imperfeito  pelo  futuro.  Trata-se  de  uma  das 
muitas  anedotas  attribuidas  a  Diógenes, 


Veria  erguer  do  sol  a  roxa  face, 
Veria  correr  sempre  a  clara  fonte, 
Sem  imaginar  a  agua  donde  nace, 
Nem  quem  a  luz  occulta  no  horizonte ; 
Tangendo  a  frauta  donde  o  gado  pace, 
Conheceria  as  hervas  do  alto  monte ; 
Em  Deus  creria,  simples  e  quieto, 
Sem  mais  especular  algum  secreto. 

(Est.  i6.'). 

Os  outros,  os  que  não  tem  baixa  a  pharitasia,  só  podem 
evitar  os  golpes  da  Fortuna,  achando-se  num  estado  simi- 
Ihante  ao  de  Trasiláo. 

De  um  certo  Trasiláo  se  lê  e  escreve. 
Entre  as  cousas  da  velha  antiguidade. 
Que  perdido  grão  tempo  o  siso  teve, 
Por  causa  d'uma  grave  infermidade. 
E,  emquanto  de  si  fora  doudo  esteve. 
Tinha  por  teima  e  cria  por  verdade 
Que  eram  suas,  das  naus  que  navegavam. 
Quantas  no  porto  Pireu  ancoravam. 

(Est.  17.'). 

Por  um  senhor  mui  grande  se  teria. 
Além  da  vida  alegre  que  passava, 
Pois  nas  que  se  perdiam  não  perdia, 
E  das  que  vinham  salvas  se  alegrava. 
Não  tardou  muito  tempo  quando  um  dia 
Um  Grito,  seu  irmão,  que  ausente  estava, 
A  terra  chega,  c,  vendo  o  irmão  perdido. 
Do  fraternal  amor  íoi  commovido. 

(Est.  i8.«). 

Aos  médicos  o  entrega  e  com  aviso 
O  faz  estar  (1)  á  cura  refusada. 
Triste !  que,  por  tomar-lhe  o  antigo  siso, 
Lhe  tira  a  doce  vida  descansada. 


( I )  Escreveria  o  poeta :  entrar  f 


14^ 

As  hervas  Apollineas  de  improviso 
O  tornam  á  saúde  já  passada. 
Sisudo,  Trasiláo  ao  caro  irmão 
Agradece  a  vontade,  a  obra  não. 

(Est.  i9.«). 

Porque,  despois  de  ver-se  no  perigo 
Do  trabalho  a  que  o  siso  o  obrigava, 
E  despois  de  não  ver  o  estado  antigo. 
Que  a  louca  presumpção  lhe  apresentava, 
—  Oh  inimigo  irmão,  com  côr  de  amigo. 
Para  que  me  tiraste  (suspirava) 
Da  mais  quieta  vida  e  livre  em  tudo. 
Que  nunca  pôde  ter  nenhum  sisudo  ? 

(Est.   20."). 

Por  qual  senhor  algum  eu  me  trocara, 
Ou  por  qual  algum  rei  de  mais  grandeza  ? 
Que  me  dava  que  o  mundo  se  acabara. 
Ou  que  a  ordem  mudasse  a  natureza  ? 
Agora  me  é  penosa  a  vida  cara ; 
Sei  que  cousa  é  trabalho  e  que  é  tristeza. 
Torna-me  a  meu  estado,  que  eu  te  aviso 
Que  na  doudice  só  consiste  o  siso. — 

(Est.    21.'»). 

E  o  poeta  prosegue : 

Vedes  aqui,  senhor,  bem  claramente 
Como  a  Fortuna  em  todos  tem  poder. 
Senão  só  no  que  menos  sabe  e  sente, 
Em  quem  nenhum  desejo  pôde  haver. 
Este  se  pôde  rir  da  cega  gente ; 
Neste  não  pôde  nada  acontecer; 
Nem  estará  suspenso  da  balança 
Do  temor  mau,  da  pérfida  esperança. 

(Est.    22."). 

Vamos  agora  entrar  na  parte  capital  da  epistola.  Qual  dos 
dous  meios  de  escapar  aos  golpes  da  Fortuna  prefere  o  poeta  ? 
Dadas  certas  condições,  não  pediria 

Do  insano  Trasiláo  o  doudo  estado. 


>l3 


E  essas  condições  sáo  as  seguintes :  Ver  terminado  o  exilio ; 
viver  modestamente,  entregue  ás  musas;  cultivar  a  amizade 
da  pessoa  a  quem  a  epistola  é  endereçada;  deliciar-se  com  as 
obras  de  determinados  poetas  e,  finalmente,  se  não  principal- 
mente, ter  ao  pé  de  si  a  menina  dos  olhos  perdes. 

Mas  (i),  se  o  sereno  ceu  me  concedera 
Qualquer  quieto,  humilde  e  doce  estado, 
Onde  com  minhas  musas  só  vivera. 
Sem  ver-me  em  terra  alhea  degradado; 
E  alli  outrem  ninguém  me  conhecera. 
Nem  eu  conhecera  outrem  mais  honrado, 
Senão  a  vós,  também  como  eu  contente, 
Que  bem  sei  que  o  serieis  facilmente ; 

(Est.  a3.«). 

E  ao  longo  duma  clara  e  pura  fonte  (2), 
Que,  em  borbulhas  nascendo,  convidasse 
Ao  doce  passarinho,  que  nos  conte 
Quem  da  cara  consorte  o  apartasse, 
Despois,  cobrindo  a  neve  o  verde  monte, 
Ao  gasalhado  o  frio  nos  levasse  (3), 
Avivando  o  juizo  ao  doce  estudo. 
Mais  certo  manjar  da  alma  emfim  que  tudo, 

(Est.  24,'). 

Cantára-nos  aquellc,  que  tão  claro 
O  fez  o  fogo  da  arvore  Phebêa  (4), 
A  qual  elle  em  estylo  grande  e  raro 
Louvando,  o  crystallino  Sorga  enfrêa  ; 


(1)  As  cinco  estancias  que  se  seguem  [iS  a  27)  lormam  gramma- 
ticalmente  um  único  periodo.  O  Mas  de  23,  i,  liga-se  directamente  com 
o  Não  pedira  de  '^7,  5,  interpondo-se  várias  orações  condicionaes,  em- 
bora só  esteja  expresso  um  se.  Assim :  23,  3,  E  se  alli;  2^  t^  E  se  ao 
longo;  26,  i,  E  se  comnosco;  27,  1,  /T  se  emguanto. 

(2)  Este  verso  liga-se  grammaticalmente  com  25,  i,  5,  7. 

(3)  Anacolutho :  No  gasalhado  onde  o  frio,  etc. 

(4)  Petrarca,  o  cantor  de  Laura.  O  louro  era  a  arvore  consagrada  « 
Phebo  (Apollo). 


«44 

Tangera-nos  na  frauta  Sanazaro, 
Ora  nos  montes,  ora  por  a  arêa ; 
Passara,  celebrando  o  Tejo  ufano, 
O  doce  e  brando  Lasso  castelhano ; 

(Est.  25.«). 

E  comnosco  também  se  achara  aquella. 
Cuja  lembrança  e  cujo  claro  gesto 
Na  alma  somente  vejo,  porque  nella 
Está  em  essência  puro  e  manifesto, 
Por  alta  influição  de  minha  estrella, 
Mitigando  o  rigor  do  peito  honesto  (i), 
Entretecendo  rosas  nos  cabellos. 
De  que  tomasse  a  luz  o  sol  em  vê-los ; 

(Est.  26.'»). 

E,  emquanto  por  verão  flores  colhesse. 
Ou  por  inverno,  ao  fogo  accommodado, 
O  que  de  mi  sentira  nos  dissesse, 
De  puro  amor  o  peito  salteado, 
—  Não  pedira  eu  então  que  Amor  me  desse 
Do  insano  Trasiláo  o  doudo  estado, 
Mas  que  alli  me  dobrasse  o  intendimento. 
Por  ter  de  tanto  bem  conhecimento. 

(Est.  27.»). 

Esboçado,  porém,  este  programma,  o  poeta  pergunta 

Mas  por  onde  me  leva  a  phantasia  ? 
Porque  imagino  em  bem-aventuranças, 
Se  tão  longe  a  Fortuna  me  desvia. 
Que  inda  me  não  consente  as  esperanças  ? 
Se  um  novo  pensamento  Amor  me  cria. 
Onde  o  lugar,  o  tempo,  as  esquivanças, 
Do  bem  me  fazem  tão  desamparado, 
Que  não  pôde  ser  mais  que  imaginado  ? 

(Est.  28.»). 


(1)  Gamões  allude  á  justa  indignação  da  menina  dos  olhos  verdes. 


H' 


E  Camões,  depois  de  se  queixar  da  Fortuna  e  do  Amor, 
que  contra  elle  se  conjuraram,  conclue  por  esta  forma: 

O  tempo  a  tal  estado  me  chegou 

E  nelle  quis  que  a  vida  se  acabasse, 

Se  ha  em  mim  acabar-se,  o  que  não  creio, 

Que  até  da  muita  vida  me  receio. 

(Est.  29.»). 

Foram  também  escriptas  nesta  phase  as  seguintes  redon- 
dilhas,  tão  repassadas  de  resignada  melancolia: 

Mote 

Esperanças  mal  tomadas, 

Agora  vos  deixarei. 

Tão  mal  como  vos  tomei. 

Voltas 

Fostes  tomadas  em  vão 
De  mim,  sem  (i)  fundamento; 
E  vós  éreis  todas  de  vento 
E  eu  delle  vivia  então. 
Se  vos  tomei  sem  raizão. 
Com  ella  vos  deixarei. 
Tão  mal  como  vos  tomei. 

Assim  vos  queria  ter, 
Sem  razão  e  mal  tomadas. 
Sabendo,  quando  deixadas. 
Quanto  havieis  de  doer. 
Mas  nem  isto  pôde  ser, 
Que  por  meu  mal  vos  tomei, 
E  por  vós  me  deixarei  (2). 


(i)  Talvez :  e  sem  e  no  v.  seguinte  :  Vós  éreis,  ou  todas  vento, 
(2)  Escreveria  o  poeta  :  Por  elle  vos  deixarei? 

10  K.  5»94 


■46 

Quereis  que  faça  mudança  ? 
De  vós  outro  bem  não  entendo. 
Isto  só  (i)  se  ganha  em  vos  vendo, 
Isto  só  de  vós  se  alcança. 
Mas  esta  vã  esperança, 
Senhora,  se  eu  a  tomei 
Por  vós,  como  a  deixarei  ? 

Mote 

O  meus  altos  pensamentos, 
Quão  altos  que  vos  pusestes 
E  quão  grande  queda  destes  1 

Voltas 

Gomo  de  mim  vos  não  vinha 
Serdes  firmes  num  estado 
(Pois  o  viver  enganado 
Era  o  maior  bem  que  tinha), 
Gastello  d'esta  alma  minha, 
Quão  alto  que  vos  pusestes 
E  quão  grande  queda  destes ! 

Sabia  que  éreis  de  vento. 
Gomo  quem  vos  viu  fazer ; 
Inda  assim  vos  queria  ter. 
Gomo  éreis  sem  fundamento. 
Quem  vos  desfez  num  momento  ? 
Ai !  Quão  alto  vos  pusestes 
E  quão  grande  queda  destes  I 

Quantas  lagrimas,  porém,  não  derramou  o  enamorado 
poeta,  antes  de  chegar  a  este  estado  de  espirito!  Quantas 
vezes  sè  não  lembrou  de  morrer,  emquanto  não  arrancou 
do  coração  o  seu  alio  pensamefito ! 


(i)  O  só  está  demais.  Ou  deverá  ler-se  :  só  ganho? 


M7 


Lêam>se,  entre  outras,  as  poesias  que  se  seguem. 

Já  a  roxa  Manhã  (i)  clara 
As  portas  do  oriente  vinha  abríndo, 

Dos  montes  descobrindo 
A  negra  escuridão,  da  luz  avara. 

O  Sol,  que  nunca  pára, 
Da  sua  alegre  vista  saudoso, 

Trás  ella  pressuroso, 
Nos  cavallos  cansados  do  trabalho. 
Que  respiram  nas  hervas  fresco  orvalho, 
Se  estende  claro,  alegre  e  luminoso. 

Os  pássaros,  voando. 
De  raminho  em  raminho  vão  saltando, 
E  com  suave  e  doce  melodia 
O  claro  dia  estão  manifestando. 

A  Manhã  bella,  amena. 
Seu  rosto  descobrindo,  a  espessura 

^Se  cobre  de  verdura. 
Clara,  suave,  angélica,  serena. 

Oh  deleitosa  pena ! 
Oh  effeito  de  amor,  alto  e  potente ! 

Pois  permiite  e  consente 
Que,  ou  onde  quer  que  eu  ande  ou  donde  esteja, 
O  seraphico  gesto  sempre  veja. 
Por  quem  de  viver  triste*  sou  contente. 

Mas  tu,  Aurora  pura. 
De  tanto  bem  dá  graças  á  ventura. 
Pois  as  foi  pôr  em  ti  tão  excellentes, 
Que  representas  tanta  formosura. 

A  luz,  suave  e  leda, 
A  meus  olhos  me  mostra  por  quem  mouro, 

Com  os  cabellos  de  ouro. 
Que  nenhum  ouro  iguala,  se  os  remeda. 


(t)  O  poeta  como  que  personifica  a  manhã  (aurora)  e  o  sol  e  vê 
naquella  a  representação  da  bem-amada,  que  lhe  apparece  á  hon  da 
morte. 


,48 


Esta  a  luz  é  que  arreda 
A  negra  escuridão  do  seniimento  t 

Ao  doce  pensamento. 
Os  orvalhos  das  flores  delicadas 
São,  nos  meus  olhos,  lagrimas  cansadas, 
Que  eu  choro  co  prazer  de  meu  tormento. 

Os  pássaros  que  cantam, 
Meus  espíritos  são,  que  a  voz  levantam, 
Manifestando  o  gesto  peregrino 
Com  tão  divino  som,  que  o  mundo  espantam. , 

Assi  como  acontece 
A  quem  a  cara  vida  está  perdendo 

Que,  emquanto  vai  morrendo, 
Alguma  visão  santa  lhe  apparece  : 

A  mim,  em  quem  fallece 
A  vida,  que  sois  vós,  minha  Senhora, 

A  esta  alma,  que  em  vós  mora, 
Emquanto  da  prisão  se  está  apartando, 
Vos  estais  justamente  apresentando 
Em  forma  de  formosa  e  roxa  Aurora. 

Oh  ditosa  partida ! 
Oh  gloria  soberana,  alta  e  subida, 
Se  ma  (i)  não  impedir  o  meu  desejo ! 
Porque  o  que  vejo,  emíim  me  torna  a  vida. 

Porém  a  natureza, 
Que  nesta  pura  vista  se  (2)  mantinha. 

Me  falta  tão  asinha, 
Como  o  Sol  sahe  sobre  ã  (i)  redondeza. 

Se  houverdes  que  é  fraqueza 
Morrer  em  tão  penoso  e  triste  estado. 

Amor  será  culpado 
Ou  vós,  onde  elle  vive  tão  isento. 
Que  causastes  tão  largo  apartamento. 
Porque  perdesse  a  vida  co  cuidado. 


(i)  Correcção  proposta  por  W.  Storck,  Sam.  Gedichíe,  iv,  321-2. 
(2)  Talvez:  me;  faltou  (v.  3.«);  saiu  (v.  4."). 


'49 

Que,  se  viver  não  posso, 
Homem  formado  só  de  carne  e  osso, 
Esta  vida  que  perco,  Amor  ma  deu. 
Que  não  sou  meu :  se  morro,  o  damno  é  vosso. 
Canção  de  cysne,  feita  em  hora  extrema  (i), 

Na  dura  pedra  fria 
Da  (2)  memoria  te  deixo,  em  companhia 
Do  letreiro  da  minha  sepultura. 
Que  a  sombra  escura  já  me  impede  o  dia- 

(Canção  3.'). 

Se,  para  desopprimir  o  seu  triste  coração,  o  poeta  subia 
ás  vezes 

...  ao  monte  que  Hercules  Thebano 
Do  altissimo  Calpe  dividiu, 

quantas  vezes  não  procuraria  sitios   recônditos,   para   aí  se 
desfazer  em  lagrimas  ardentes! 


(1)  Mais  tarde,  escrevia  o  poeta  : 

O  cysne,  quando  sente  ser  chegada 
A  hora  que  pÕe  termo  á  sua  vida, 
Harmonia  maior,  com  voz  sentida. 
Levanta  por  a  praia  inhabitada. 

Deseja  lograr  vida  prolongada 

E  delia  está  chorando  a  despedida. 
Com  grande  saudade  da  partida. 
Celebra  o  triste  fim  da  sua  jornada. 

Assi,  Senhora  minha,  quando  eu  via 

O  triste  fim  que  davam  meus  amores. 
Estando  posto  já  no  extremo  fio. 

Com  mais  suave  accento  de  harmonia 
Descantei,j)or  os  vossos  desfavores, 
La  vuestra  falsa  fé  y  el  amor  mio. 

(Soneto  43). 
(a)  Parece-me  que  deve  ler-se  de. 


IDO 

Onde  acharei  lugar  tão  apartado 

E  tão  isento  em  tudo  da  ventura, 
Que,  não  digo  eu  de  humana  criatura. 
Mas  nem  de  feras  seja  frequentado  ? 

Algum  bosque  medonho  e  carregado 
Ou  selva  solitária,  triste  e  escura, 
Sem  fonte  clara  ou  plácida  verdura, 
Emfim,  lugar  conforme  a  meu  cuidado  ? 

Porque  alli,  nas  entranhas  dos  penedos. 
Em  vida  morto,  sepultado  em  vida. 
Me  queixe  copiosa  e  livremente  ? 

Que,  pois  a  minha  pena  é  sem  medida, 
Alli  não  serei  triste  em  dias  ledos 
E  dias  tristes  me  farão  contente. 

(Soneto  181). 

E,  depois  dessas  crises  de  lagrimas,  escrevia  o  poeta 

Pois  meus  olhos  não  cansam  de  chorar 
Tristezas,  não  cansadas  de  cansar-me, 
Pois  não  se  abranda  o  fogo,  em  que  abrasar-me 
Pôde  quem  eu  jamais  pude  abrandar : 

Não  canse  o  cego  Amor  de  me  guiar 
Onde  nunca  de  lá  possa  tornar-me, 
Nem  deixe  o  níundo  todo  de  escutar-me, 
Emquanto  a  fraca  voz  me  não  deixar. 

E  se  em  montes,  se  em  prados,  e  se  em  vales 
Piedade  mora  alguma,  algum  amor 
Em  feras,  plantas,  aves,  pedras,  aguas. 

Ouçam  a  longa  historia  de  meus  males 
E  curem  sua  dôr  com  minha  dôr ; 
Que  grandes  maguas  podem  curar  maguas. 

(Soneto  67). 

De  vós  me  parto,  ó  vida,  e  em  tal  mudança 
Sinto  vivo  da  morte  o  sentimento. 
Não  sei  para  que  é  ter  contentamento. 
Se  mais  ha  de  perder  quem  mais  alcança. 

Mas  dou-vos  esta  firme  segurança : 

Que,  posto  que  me  mate  o  meu  tormento, 
Por  as  aguas  do  eterno  esquecimento 
Segura  passará  minha  lembrança. 


IDÍ 


Antes  sem  vós  meus  olhos  se  entristeçam, 

Que  com  cousa  outra  alguma  se  contentem ; 
Antes  os  esqueçais,  que  vos  esqueçam. 

Antes  nesta  lembrança  se  atormentem, 
Que  com  esquecimento  desmereçam 
A  gloria  que  em  soffrer  tal  pena  sentem. 

(Soneto  22). 

Suspiros  intiammados,  que  cantais 
A  tristeza  com  que  vivi  tão  ledo, 
Eu  morro  e  não  vos  levo,  porque  hei  medo 
Que  ao  passar  do  Letheio  vos  percais. 

Escriptos  para  sempre  já  ficais. 

Onde  vos  mostrarão  todos  co  dedo, 
Como  exemplo  de  males ;  e  eu  concedo 
Que  para  aviso  de  outros  estejais. 

Em  quem,  pois,  virdes  largas  esperanças 
De  Amor  e  da  Fortuna  (cujos  danos 
Alguns  terão  por  bem-aventuranças), 

Dizei-lhe  que  os  servistes  muitos  annos, 
E  que  em  Fortuna  tudo  são  mudanças, 
E  que  em  Amor  não  ha  senão  enganos. 

(Soneto  73). 

Como  não  era  de  appeiecer  a  morte,  para  quem  tanto 
soílria,  para  quem  não  via  outra  maneira  de  sair  do  abysmo 
infernal  do  seu  tormento  ( i ) ! 


(1)  Queixando-se  do  Amor,  diz  o  poeta : 

. . .  Por  usar  de  suas  isenções. 
Buscou  fingidas  causas  de  matar-me ; 

Que,  para  derribar-me 
A  este  abysmo  infernal  do  roeu  tormento. 
Nunca  soberbo  foi  meu  pensamento. 
Nem  pretendeu  mais  alto  Icvantar-sc 
D'aquillo  que  ellc  quis ;  e  se  cllc  ordena 
Que  eu  pague  seu  ousado  atrevimento,  etc. 

(Canção  2.*). 


l52 


Posto  me  tem  Fortuna  em  tal  estado, 
E  tanto  a  seus  pés  me  tem  rendido  1 
Não  tenho  que  perder,  já  de  perdido. 
Nem  tenho  que  mudar,  já  de  mudado ! 

Todo  bem  para  mi  é  acabado ; 

D'aqui  dou  o  viver  já  por  vivido ; 
Que  aonde  o  mal  é  tão  conhecido, 
Também  o  viver  mais  será  'scusado. 

Se  me  basta  querer,  a  morte  quero. 

Que  bem  outra  esperança  não  convém, 
E  curarei  um  mal  com  outro  mal. 

E,  pois  do  bem  tão  pouco  bem  espero, 
Já  que  o  mal  este  só  remédio  tem, 
Não  me  culpem  em  quVer  remédio  tal. 

(Soneto  284). 

Mas  a  morte,  a  não  ser  por  um  acto  condemnavel,  nem 
sempre  está  ás  nossas  ordens.  Que  fazer  então?  Desistir  do 
alio  pensamento,  ou  continuar  a  soífrer  por  causa  delle? 

Vejamos  a  luta  que  se  travou  na  alma  do  amargurado 
poeta. 

Já  é  tempo,  já,  que  minha  confiança 
Se  desça  de  uma  falsa  opinião ; 
Mas  Amor  não  se  rege  por  razão. 
Não  posso  perder,  logo,  a  esperança ; 
A  vida  si,  que  uma  áspera  mudança 
Não  deixa  viver  tanto  um  coração, 
E  eu  só  na  morte  tenho  a  salvação. 
Si ;  mas  quem  a  deseja  não  a  alcança. 
Forçado  é  logo  que  eu  espere  e  viva. 

Ah  dura  lei  do  Amor,  que  não  consente 
Quietação  numa  alma,  que  é  captiva ! 
Se  hei  de  viver  emfim  forçadamente, 
Para  que  quero  a  gloria  fugitiva 
De  uma  esperança  vã  que  me  atormente  ? 

(Soneto  49). 

Esta  canção,  escripta  em  Ceuta,  fecha  assim : 

Canção,  não  mais ;  que  já  não  sei  que  diga. 
Mas,  porque  a  dor  me  seja  menos  forte. 
Diga  o  pregão  a  causa  desta  morte. 


i53 


Mas  eram  tão  profundas  as  raizes  que  essa  esperança  vã 

tinha  lançado  no  pobre  coração  do  poeta!  Não  era  melhor 

softrer  ? 

Quando  a  suprema  dor  muito  me  aperta, 

Se  digo  que  desejo  esquecimento, 

L  força  que  se  faz  ao  pensamento, 

De  que  a  vontade  livre  desconcerta. 

Assi  de  erro  tão  grave  me  desperta 
A  luz  do  bem  regido  intendimento, 
Que  mostra  ser  engano  ou  fingimento 
Dizer  que  em  tal  descanso  mais  se  acerta. 

Porque  essa  própria  imagem,  que  na  mente 
Me  representa  o  bem  de  que  careço, 
Faz- mo  d*um  certo  modo  ser  presente. 

Ditosa  é  logo  a  pena  que  padeço. 

Pois  que  da  causa  delia  em  mi  se  sente 
Um  bem  que,  inda  sem  ver-vos,  reconheço. 

(Soneto  146). 

Lembranças  saudosas,  se  cuidais 

De  me  acabar  a  vida  neste  estado. 
Não  vivo  com  meu  mal  tão  enganado, 
Que  não  espere  delle  muito  mais. 

De  longo  tempo  já  me  costumais 

A  viver  de  algum  bem  desesperado ; 
Já  tenho  co  a  Fortuna  concertado 
De  soíTrer  os  tormentos  que  me  dais. 

Atada  ao  remo  tenho  a  paciência. 

Para  quantos  desgostos  der  a  vida. 
Cuide  quanto  quiser  o  pensamento; 

Que,  pois  não  posso  ter  mais  resistência 
Para  tão  dura  queda,  de  subida, 
Aparar-lhe-ei  debaixo  o  soffrimento. 

(Soneto  52). 

Por  fim,  não  houve  remédio  senão  ceder.  A  Razão  ficou 
victoriosa  do  Amor  (i). 


^ 


\ 


( I )  Não  quer  isto  dizer  que  o  poeta  nunca  mais  tomasse  a  pensar 
na  infanta.  Desistiu  de  vez,  é  verdade,  da  sua  louca  pretençSo,  mas  a 
magem  querida,  como  veremos,  permaneceu-lhe  na  alma  até  á  morte. 


i54 


Quanta  incerta  esperança,  quanto  engano  ! 
Quanto  viver  de  falsos  pensamentos ! 
Pois  todos  vão  fazer  seus  fundamentos 
Só  no  mesmo  em  que  está  seu  próprio  dano. 

Na  incerta  vida  estribam  de  um  humano ; 
Dão  credito  a  palavras,  que  são  ventos, 
Choram  despois  as  horas  e  os  momentos. 
Que  riram  com  mais  gosto  em  todo  o  anno. 

Não  haja  em  apparencias  confianças ; 

Entendei  que  o  viver  é  de  emprestado ; 
Que  o  de  que  vive  o  mundo  são  mudanças. 

Mudai,  pois,  o  sentido  e  o  cuidado, 

Somente  amando  aquellas  esperanças 
Que  duram  para  sempre  com  o  amado. 

(Soneto  232). 

Sempre  a  Razão  vencida  foi  de  Amor ; 

Mas,  porque  assi  o  pedia  o  coração  (i), 

Quis  Amor  ser  vencido  da  Razão. 

Ora  que  caso  pôde  haver  maior  ? 
Novo  modo  de  morte  e  nova  dor ! 

Estranheza  de  grande  admiração  ! 

Pois  emfim  seu  vigor  perde  a  affeição, 

Porque  não  perca  a  pena  seu  vigor. 
Fraqueza,  nunca  a  houve  no  querer. 

Mas  antes  muito  mais  se  esforça  assim 

Um  contrario  com  outro,  por  vencer. 
Mas  a  Razão,  que  a  luta  vence  em  fim, 

Não  creio  que  é  Razão,  mas  deve  ser 

Inclinação,  que  eu  tenho  contra  mim. 

(Soneto  149). 

E  O  poeta,  forçado  a  renunciar  aos  seus  altos  pensamentos, 
começou  a  lembrar-se  outra  vez  da  menina  dos  olhos  verdes. 


(i)  Foi  o  coração  que  pediu  ao  Amor  se  deixasse  vencer  da  Razão. 
Isto  é :  foi  por  amor  á  infanta  que  o  poeta  deixou  de  a  amar. 


ly 


daquella  cujo  claro  gesto  ma  impresso  tia  sua  alma: 

(Se)  comnosco  também  se  achara  aquella 
Cuja  lembrança  e  cujo  claro  gesto 
Na  alma  somente  vejo,  porque  nella 
Está  em  essência  puro  e  manifesto. . . 

(Epistola  1.%  XXVI,  1-4). 

Com  que  saudades  se  não  recordaria  elle  agora  dos  des- 
preoccupados  tempos  em  que  namorava  a  gentil  menina! 
Como  lhe  não  acudiriam  á  memoria  aquelles  deliciosos  versos 
com  que,  fingindo  uma  paixão  que  não  tinha,  procurava  capti- 
var  um  coração  só  apparentemente  esquivo! 

Mote 

Menina  formosa  e  crua. 

Bem  sei  eu 
Quem  deixara  de  ser  seu. 
Se  vós  quiséreis  ser  sua. 

■Voltas 


Nos  olhos  e  na  feição 
Vos  vi,  quando  vos  olhava, 
Tanta  graça,  que  vos  dava 
De  graça  este  coração. 

Não  no  quisestes,  de  crua. 

Por  ser  meu . . . 
Se  outrem  vos  dera  o  seu. 
Pode  ser  fôreis  mais  sua. 


Mote  (alheio) 

Menina  dos  olhos  verdes, 
Porque  me  não  vedes  ? 


iDb 


Vo.Vjs 

Elles  verdes  são, 
E  têm  por  usança, 
Na  côr,  esperança, 
E  nas  obras  não. 
Vossa  condição 
Não  é  de  olhos  verdes, 
Porque  me  não  vedes. 

Verdes  não  o  são, 
No  que  alcanço  delles  : 
Verdes  são  aquelles, 
Que  esperanças  dão. 
Se  na  condição 
•    Está  serem  verdes, 
Porque  me  não  vedes  ? 

Para  a  solução  da  mais  dolorosa  crise  que  o  poeta  atravessou 
na  sua  tão  atormentada  vida,  muito  devem  ter  contribuído, 
creio  eu,  as  noticias  que  os  seus  amigos  não  deixariam  de 
lhe  mandar  para  Ceuta  (i),  relativas  ao  próximo  casamento 
da  infanta  com  o  herdeiro  do  throno  de  Espanha.  Essa  crise, 
com  eífeito,  coincide  precisamente  com  um  dos  períodos  em 
que  Carlos  V  e  a  rainha  D.  Leonor  mais  empenhados  anda- 
ram em  que  ella  casasse. 

Foi  talvez  ao  receber  de  Lisboa  alguma  carta  mais  cir- 


(i)  Habituado  a  receber  noticias  que  lhe  não  agradavam,  o  poeta 
escrevia  de  Ceuta : 

Não  quero  mais  senão  que  largamente, 
Senhor,  me  mandeis  novas  dessa  terra. 
Que  alguma  delias  me  fará  contente. 

(Elegia  2.*). 


.57 


cumstanciada  e  mais  precisa  sobre  o  assumpto,  que  o  poeta 
escreveu  com  lagrimas  de  sangue  este  admirável  soneto: 

O  dia  em  que  eu  naci  moura  e  pereça ; 

Não  o  queira  jamais  o  tempo  dar ; 

Não  torne  mais  ao  mundo  e,  se  tornar, 

Eclipse  nesse  passo  o  sol  padeça. 
A  luz  lhe  falte,  o  ceu  se  lhe  escureça; 

Mostre  o  mundo  sinais  de  se  acabar; 

Naçam-lhe  monstros,  sangue  chova  o  ar; 

A  mãe  ao  próprio  filho  não  conheça. 
As  pessoas,  pasmadas  de  ignorantes. 

As  lagrimas  no  rostro,  a  cor  perdida, 

Cuidem  que  o  mundo  já  se  destruiu. 
Oh  gente  temerosa,  não  te  espantes. 

Que  este  dia  deitou  ao  mundo  a  vida 

Mais  desventurada  que  se  viu  (i). 


íi)  Cancioneiro  de  L.  Franco  Correia  (fl.  i32).  Juromenha  reproduz 
o  soneto  sob  o  n."  339,  alterando  e  estropiando  sem  motivo  o  i.**  verso 
e  o  5.**,  e  corrigindo  assim  o  ultimo,  sem  qualquer  indicação  de  que  ha 
aqui  uma  emenda  : 

Mais  desgraçada  que  jamais  se  viu. 

Direi  de  passagem  que  no  mesmo  Cancioneiro  se  encontra  mais  de 
um  soneto  escripto  em  Ceuta.  O  estado  do  texto,  porém,  deixa  bastante 
a  desejar,  como  a  desejar  deixam  também  as  reproducções  que  delle 
se  tem  feito  e  de  que  tenho  conhecimento.  Cf.  a  fl.  139  o  soneto  que 
começa  : 

Lembranças  tristes,  pêra  que  gastais  tempo 
Em  cansar  mais  um  coração  cansado  ? 
Contentai-vos  em  me  ver  em  tal  estado, 
Não  queirais  de  mim  mor  vencimento. 

Eail.  140: 

Saudades  m^atormentS  cruamente. 
Saudades  de  meu  bem  passado ; 
Mas  são  eu  a  tantos  males  condenado 
Sem  rezão  por  que  posso  ser  ausente. 


S8 


A  meu  ver,  reportam-se  também  ao  tempo  do  exilio  em 
Ceuta,  e  delle  datam,  as  celebres  redondilhas  que  começam 
Sôbolos  (i)  rios  que  vão  (2). 

Inspirando-se  no  bello  psalmo  i36  (3),  o  poeta  dá-nos  conta 
de  duas  phases  por  que  alli  passou  o  seu  espirito,  relativa- 
mente á  infanta. 


(i)  Talvez:  Sobre  los.  Cf.  Lusíadas,  vii,  4,  i  e  5,  i  :  Vede  los  alie- 
mães;  Vede  lo  duro  inglês. 

(2)  Palavras  de  W.  Storck :  «Anteriormente,  datei  esta  grandiosa 
canção,  que  é,  no  sentir  de  muitos,  a  mais  sublime  e  altisonante  de 
todas  as  poesias  lyricas  do  poeta,  dos  dias  immediatos  ao  naufrágio  nas 
costas  de  Cambodja...  Mas  agora...  vejo-me  compellido  a  impugnar 
aquelle  parecer...  Penso...  que  as  redondilhas...  surgiram  na  mente 
inspirada  do  grande  vate  durante  aquelles  quarenta  dias  em  que  vogava 
de  Gôa  para  Malacca  (abril  e  maio  de  i556j».  Vida  de  Camões,  p.  562. 
Cf.  p.  53i  :  «Só  assim  comprehenderemos  (o  illustre  camonista  refere-se 
aos  vicios  que  corroiam  os  portugueses  no  Oriente)  como  foi  que  o 
Camões  chamou  a  Gôa  Babel  da  índia ;  porque  é  que  considerava  deS' 
terro  a  sua  estada  no  Oriente ;  e  ainda  porque  é  que  um  poeta,  que  até 
então  cantara  o  seu  amor,  se  sentou  melancholicamente  sonhando  nas 
ribeiras  de  Babel  (isto  é,  nas  margens  goensesj,  entoando,  em  vez  de 
cânticos  de  Zião,  ou  canções  trovadorescas,  apenas  versos  luctuosos  de 
desolação  e  desconforto». 

(3)  Eis  como  principia  este  psalmo,  na  Vulgata ;  « Super  Jlumina 
Babylonis  illic  sedimus  et  flevimus,  cum  recordaremur  Sion».  Assim  se 
lastimam  os  judeus  captivos  nas  margens  do  Euphrates.  Lêa-se  agora  a 
primeira  quintilha  de  Camões  : 

Sôbolos  rios  que  vão 
Por  Babylonia,  me  achei. 
Onde  sentado  chorei 
As  lembranças  de  Sião 
E  quanto  nella  passei. 

Que  é,  porém,  Babylonia  ?  Que  são  os  seus  rios  ?  Que  é  Sião  ? 


u->9 


A  primeira  é  o  propósito  de  não  mais  entoar  cânticos 
d'amor,  muito  embora  nunca  haja  de  esquecer  aquella  que 
os  havia  inspirado.  Isto  é:  o  poeta  desiste  das  suas  preten- 
ções,  mas  guardará  no  coração  a  imagem  da  bem-amada. 

Como  homem  que,  por  exemplo 
Dos  transes  em  que  se  achou, 
Despois  que  a  guerra  deixou, 
Pelas  paredes  do  templo 
Suas  armas  pendurou : 


Dizem-no  estas  estancias  (2."  e  g.") : 


Alli  um  rio  corrente 
De  meus  olhos  foi  manado, 
E  tudo  bem  comparado : 
Babylonia  ao  mal  presente, 
Sião  ao  tempo  passado. 


Bem  são  rios  estas  aguas, 
Com  que  banho  este  papel ; 
Bem  parecem  ser  cruel 
Variedade  de  maguas 
E  confusão  de  Babel. 

Babylonia  é  a  amargurada  situação  do  poeta,  ao  escrever  no  exilio 
as  incomparáveis  redondilhas  (assim  lhes  chama  também  W.  Storck, 
p.  532) ;  Sião  são  as  doces  lembranças  do  tempo  passado  na  pátria. 

Alli  lembranças  contentes 
Na  alma  se  representaram, 
E  minhas  cousas  ausentes 
Se  fizeram  tão  presentes, 
Como  se  nunca  passaram. 


l()0 

Assi,  despois  que  assentei 

Que  tudo  o  tempo  gastava, 

Da  tristeza  que  tomei, 

Nos  salgueiros  pendurei 

Os  órgãos  com  que  cantava  (i). 

Aquelle  instrumento  ledo 
Deixei  da  vida  passada, 
Dizendo :  musica  amada, 
Deixo-vos  neste  arvoredo, 
A  memoria  consagrada. 

Frauta  minha,  que,  tangendo, 
Os  montes  fazíeis  vir 
Para  onde  estáveis,  correndo, 
E  as  aguas,  que  iam  descendo, 
Tornavam  logo  a  subir, 

Jamais  vos  não  ouvirão 

Os  tigres,  que  se  amansavam, 

E  as  ovelhas,  que  pastavam. 

Das  hervas  se  fartarão, 

Que,  por  vos  ouvir,  deixavam. 

Já  não  fareis  docemente 
Em  rosas  tornar  abrolhos 
Na  ribeira  florecente. 
Nem  poreis  freio  á  corrente, 
E  mais  se  for  dos  meus  olhos. 

Não  movereis  á  espessura. 
Nem  podereis  já  trazer 
Atrás  vós  a  fonte  pura. 
Pois  não  pudestes  mover 
Desconcertos  da  ventura. 


(i)  Cf.  psalmo  cii.,  v.  2 :  «/«  salicibus  in  médio  eius  suspendimus  or- 
gana  nostra».  Sobre  a  significação  da  palavra  organa  lê-se  em  Rich : 
«Par  extension,  ce  nom  est  donné  surtout  aux  instruments  de  musique,.., 
et,  parmi  eux,  plus  particulièrement  à  celui  dont  vient  notre  orgue». 
Dictionnaire  des  antiquités  romaines  et  grecques,  v.  Organum  (Paris, 

.873). 


ibi 

Ficareis  offerecida 
A  Fama,  que  sempre  vela, 
Frauta,  de  mi  tão  querida, 
Porque,  mudando-se  a  vida 
Se  mudam  os  gostos  delia. 


Mas  —  deixar  nesta  espessura 
O  canto  da  mocidade  — 
Não  cuide  a  gente  futura 
Que  será  obra  da  idade 
O  que  é  força  da  ventura. 

Que  idade,  tempo  e  espanto 
De  ver  quão  ligeiro  passe, 
Nunca  em  mi  poderão  tanto 
Que,  posto  que  deixo  o  canto, 
A  causa  delle  deixasse. 

Mas  em  tristezas  e  nojos, 
Em  gosto  e  contentamento. 
Por  sol,  por  neve,  por  vento, 
Tendré  presente  á  los  ojos 
Por  qitien  miiero  tan  contento  ( i ) . 

Órgãos  e  frauta  deixava, 
Despojo  meu  tão  querido. 
No  salgueiro  que  alli  estava, 
Que  para  tropheu  ficava 
De  quem  me  tinha  vencido. 


(i)  Como  fonte  destes  dous  versos  cita  W.  Storck  (5.  Gedichte, 
I,  332)  a  seguinte  passagem  de  Boscan  (soneto  i5) : 

Donde  quiera  terné  siempre  presentes 
Los  ojos  por  quien  muero  tan  contento. 
II  R.  3394 


iCm 


Porque  não  canta,  porém,  o  desolado  poeta,  ao  menos 


para  minorar  as  suas  maguas  ? 


. . .  Lembranças  da  affeição, 
Que  alli  captivo  me  tinha, 
Me  perguntaram  então  (i) 
—  Que  era  da  musica  minha, 
Que  eu  cantava  em  Sião  ? 

Que  foi  daquelle  cantar. 
Das  gentes  tão  celebrado  ? 
Porque  o  deixava  de  usar, 
Pois  sempre  ajuda  a  passar 
Qualquer  trabalho  passado  (2)  ? 


Eis  como  elle  responde: 


Eu  que  estas  cousas  senti 

Na  alma,  de  maguas  tão  cheia, 

—  Como  dirá,  respondi, 

Quem  alheio  est.í  de  si 

Doce  canto  em  terra  alheia  (3)  ? 

Como  poderá  cantar 

Quem  em  choro  banha  o  peito  ? 

Porque,  se  quem  trabalhar 

Canta  por  menos  cansar, 

Eu  só  descansos  engeito  ; 


(1)  No  psalmo  i36,  quem  pergunta  aos  judeus  captivos  porque  não 
cantam,  são  os  próprios  inimigos  que  os  levaram  para  o  exilio.  nQuia 
illic  interrogaveriint  nos,  qui  captivos  duxerunt  nos,  verba  cantionum; 
Et  qui  abduxerunt  nos :  Hymnum  cantate  nobis  de  canticis  Sion»  (v.  3). 

(2)  Não  deverá  ler-se  pesado  f 

(3)  Psalmo  i36,  v.  4 :  uQuomodo  cantabimus  canticum  Domini  in  terra 
aliena  t» 


63 


Que  não  parece  razão, 
Nem  seria  cousa  idonia, 
Por  abrandar  a  paixão 
Que  cantasse  em  Babylonia 
As  cantigas  de  Sião. 

Que,  quando  a  muita  graveza 
De  saudade  quebrante 
Esta  vital  fortaleza, 
Antes  morra  de  tristeza. 
Que,  por  abrandá-la,  cante. 

Que,  se  o  fino  pensamento 
Só  na  tristeza  consiste, 
Não  tenho  medo  ao  tormento ; 
Que  morrer  de  puro  triste 
Que  maior  contentamento  ? 

Nem  na  frauta  cantarei 
O  que  passo  e  passei  já, 
Nem  menos  o  escreverei. 
Porque  a  penna  cansará 
E  eu  não  descansarei. 

Que  se  vida  tão  pequena 
Se  accrescenta  em  terra  estranha, 
E  se  Amor  assim  o  ordena, 
Razão  é  que  canse  a  penna 
De  escrever  pena  tamanha. 

Porém  se,  para  assentar 
O  que  sente  o  coração, 
A  penna  já  me  cansar, 
Não  canse  para  voar 
A  memoria  em  Sião. 


Em  seguida,  num  bello  rapto,  exclama  o  poeta,  referindo-sc 
a  Sião,  á  terra  da  pátria,  que  no  fundo  da  sua  alma  identi- 
fica com  a  bem- amada  (i): 


(i)  Como  já  fica  dicto,  Sião,  para  o  poeta,  era  o  bem  passado 
na  pátria,  consubstanciado  no  amor  da  infanta. 

Lêa-se  também  a  estancia  4.',  cm  que  elle,  tendo-sc  imaginado  em 


164 

Terra  bem-aventurnda, 
Se,  por  algum  movimento, 
Da  alma  me  fores  tirada, 
Minha  penna  seja  dada 
A  perpetuo  esquecimento  (i) ! 

A  pena  deste  desterro, 
Que  eu  mais  desejo  esculpida 
Em  pedra  ou  em  duro  ferro, 
Essa  nunca  seja  ouvida, 
Em  castigo  de  meu  erro ! 

E  se  eu  cantar  quiser. 
Em  Babylonia  sujeito, 
Hierusalem,  sem  te  ver, 
A  voz,  quando  a  mover. 
Se  me  congele  no  peito ! 

A  minha  lingua  se  apegue 
As  fauces,  pois  te  perdi. 
Se,  emquanto  viver  assi. 
Houver  tempo  em  que  te  negue 
Ou  que  me  esqueça  de  ti  (2) ! 


sonhos  sobre  os  rios  de  Babylonia,  continua  a  lastimar-se,  depois  de 
acordado : 

Alli,  despois  de  acordado 

(Co  rosto  banhado  em  agua) 

Deste  sonho  imaginado, 

Vi  que  todo  o  bem  passado 

Não  é  gosto,  mas  é  magua. 

Apesar  disso,  como  esse  bem  lhe  custava  a  esquecer !  Como  elle, 
na  primeira  parte  das  presentes  redondilhas,  declara  que  ha  de  ter  sem- 
pre presente  aos  olhos  aquella  por  quem  morreria  contente! 

(i)  «5í  oblitus  fuero  tiii,  Jerusalém,  oblivioni  detur  dextera  mea,  diz 
o  psalmista. 

(2)  «Adhaereat  lingua  mea  faucibus  méis,  si  non  meminero  tui;  Si 
non  proposuero  Jerusalém  in  principio  laetitiae  meae  I»  (Ps.  cit.,  v.  6). 


i65 


Passemos  agora  á  segunda  parte  do  formoso  poemeto, 
na  qual  Camões  renuncia  ao  amor  profano,  para  se  elevar, 
em  mysticos  arroubos,  á  contemplação  da  belleza  eterna  (i). 

Eis  como  elle  prosegue,  depois  da  ultima  quintilha  que 
fica  transcripta: 

Mas  ó  tu,  terra  de  gloria, 
Se  eu  nunca  vi  tua  essência, 
Como  me  lembras  na  ausência  ? 
Não  me  lembras  na  memoria, 
Se  não  na  reminiscência ; 

Que  a  alma  é  tábua  rasa, 
Que,  com  a  escripta  doutrina 
Celeste,  tanto  imagina, 
Que  voa  da  própria  casa 
E  sobe  á  pátria  divina. 

Não  é  logo  a  saudade 

Das  terras  onde  nasceu 

A  carne,  mas  é  do  ceu, 

Daquella  santa  cidade. 

Donde  esta  alma  descendeu  (2). 

E  aquella  humana  figura. 
Que  cá  me  pôde  (3)  alterar. 
Não  c  quem  se  ha  de  buscar; 
É  raio  da  formosura, 
Que  só  se  deve  de  amar  (4). 


(i)  Trata-se,  por  certo,  de  um  aditamento,  escripio  quando  o  poeta 
se  resolveu  a  desistir,  sem  reservas,  dos  setis  altos  pensamentos. 

(2)  Sião,  agora,  já  não  é  a  terra  onde  o  poeta  nasceu,  já  não  é  o  bem 
passado ;  c  a  pátria  celeste,  de  que  alma,  de  lá  vinda,  conserva  reminis- 
cências. 

(3)  Leio  pôde  e  não  pôde. 

(4)  Quantas  lagrimas  não  estão  por  detrás  destes  cinco  versos  1  Que 
dolorosa  luta  não  suppõem  cUes,  travada  durante  longos  meses  no  cé- 
rebro c  no  coração  do  amargurado  poeta  !    Que  abysmo  entre  estas 


i66 

Que  os  olhos  e  a  luz  (i),  que  ateia 

O  fogo  que  cá  sujeita, 

—  Não  do  sol,  nem  da  candeia  (2) 

É  sombra  daquella  ideia, 

Que  em  Deus  está  mais  perfeita. 

E  os  (3)  que  cá  me  captivaram. 
São  poderosos  affeitos, 
Que  os  corações  têm  sujeitos. 
Sophistas,  que  me  ensinaram 
Maus  caminhos  por  direitos  ! 


redondilhas  e  as  que,  em   differentes  edições,  se  lhes  seguem   quasi 
immediatamente : 

Dama  de  estranho  primor. 

Se  vos  for 
Pesada  minha  firmeza. 
Olhai  não  me  deis  tristeza, 
Porque  a  converto  em  amor. 

Se  cuidais 
De  me  matar,  quando  usais 

De  esquivança, 
Irei  tomar  por  vingança 
Amar-vos  cada  vez  mais  ! 


E  para  não  succumbir,  o  pobre  coração  dilacerado  refugia-se  no 
amor  divino,  como  tantos  outros  o  tem  feito  em  crises  análogas.  Este 
estado  de  espirito,  porém,  dada  a  índole  do  poeta,  não  deve  ter  sido 
muito  duradoiro.  Na  epistola  1.^  já  elle  suspira  pela  menina  dos  olhos 
verdes. 

(1)  Hendiadys,  por  a  lii^  dos  olhos,  se  é  que  o  poeta  não  escreveu  : 

Que  a  liij  dos  olhos,  que  ateia. 

(2)  Não  é  uma  luz  natural ;  é  sombra  etc. 

(3)  Os  affeitos  ou  affectos  do  verso  seguinte. 


167 

Destes  o  mando  tyranno 
Me  obriga,  com  desatino, 
A  cantar  ao  som  do  dano 
Cantares  de  amor  profano, 
Por  versos  de  amor  divino. 

Mas  eu,  lustrado  co  santo 
Raio,  na  terra  da  dor. 
De  confusões  e  de  espanto. 
Como  (i)  hei  de  cantar  o  canto. 
Que  só  se  deve  ao  Senhor  ? 

Tanto  pôde  o  beneficio 
Da  graça,  que  dá  saúde, 
Que  ordena  que  a  vida  mude ; 
E  o  que  eu  tomei  por  vicio 
Me  faz  grau  para  a  virtude. 

E  faz  que  este  natural 
Amor,  que  tanto  se  preza. 
Suba  da  sombra  ao  real. 
Da  particular  belleza 
Para  a  belleza  geral. 

E  O  convertido  poeta  promette  nunca  mais  cantar  o  amor 
profano,  nem  deixar-se  dominar  por  mundanos  accidentes. 

Fique  logo  pendurada 
A  frauta  com  que  tangi, 
Ó  Hierusalem  sagrada, 
E  tome  a  lyra  dourada. 
Para  só  cantar  de  ti ; 

Não  captivo  e  ferrolhado 
Na  Babylonia  infernal  (2), 
Mas  dos  vicios  desatado 
E  cá  desta  a  ti  levado. 
Pátria  minha  natural. 


(1)  Parece-mc  que  deve  ler-se  Não. 

(2)  A  Babylonia  de  que  agora  falia  o  poeta  não  é  nem  a  terra  do 
desterro  nem  o  mai  presente :  é  o  mundo  com  as  suas  scducçõcs. 


i68 

E  se  eu  mais  der  a  cerviz 
A  mundanos  accidentes, 
Duros,  tyrannos,  urgentes, 
Risque-se  quanto  já  fiz 
Do  grão  livro  dos  viventes  ; 

E  tomando  já  na  mão 

A  lyra  santa  e  capaz 

De  outra  mais  alta  invenção, 

Calle-se  esta  confusão, 

Cante-se  a  visão  da  paz. 

Ouça-me  o  pastor  e  o  rei; 
Retumbe  este  accento  santo ; 
Mova-se  no  mundo  espanto. 
Que  do  mal  que  já  cantei 
A  palinodia  já  canto. 

A  vós  só  me  quero  ir, 
Senhor  e  grão  capitão 
Da  alta  torre  de  Sião, 
A  qual  não  posso  subir, 
Se  me  vós  não  dais  a  mão. 

E  O  poeta  insiste  em  invocar  o  auxilio  divino  contra  os 
affectos  humanos,  que  o  têm  dominado. 

E  aquelle  poder  tão  duro 
Dos  affectos  com  que  venho, 
Que  incendem  alma  e  ingenho. 
Que  já  me  entraram  o  muro 
Do  livre  arbítrio  que  tenho, 

Estes,  que  tão  furiosos 
Gritando  vem  a  escalar-me. 
Maus  espiritos  danosos, 
Que  querem  como  forçosos 
Do  alicerce  derribar-me, 

Derribai-os,  fiquem  sós. 
De  forças  fracos,  imbelles. 
Porque  não  podemos  nós 
Nem  com  elles  ir  a  vós. 
Nem  sem  vós  tirar-nos  delles. 


lóq 

Não  basta  minha  fraqueza 
Para  me  dar  defensão, 
Se  vós,  santo  capitão, 
Nesta  minha  fortaleza 
Não  puserdes  guarnição. 

E  depois  de  se  referir  aos  vicios  carnaes  e  aos  meios  de 
os  debellar,  Camões  termina,  fallando  nestes  termos  da  pá- 
tria celeste: 

Quem  do  vil  contentamento 
Cá  deste  mundo  visibil, 
Quanto  ao  homem  for  possibil, 
Passar  logo  o  intendimento 
Para  o  mundo  intelligibil, 

Alli  achará  alegria, 

Em  tudo  perfeita,  e  cheia 

De  tão  suave  harmonia, 

Que  nem  por  pouca  recreia  (i). 

Nem  por  sobeja  enfastia. 

Alli  verá  tão  profundo 
Mysterio  na  summa  Alteza, 
Que,  vencida  a  natureza. 
Os  mores  faustos  do  mundo 
Julgue  por  maior  baixeza. 

Ó  tu,  divino  aposento. 
Minha  pátria  singular. 
Se,  só  com  te  imaginar, 
Tanto  sobe  o  entendimento. 
Que  fará  se  em  ti  se  achar  ? 

Ditoso  quem  se  partir 
Para  ti,  terra  excellente, 
Tão  justo  c  tão  penitente, 
Que,  depois  de  a  ti  subir, 
L,á  descanse  eternamente ! 


( I )  Não  leria  o  poeta  escripto  esc'asseia  f 


lyo 


Como  fica  dito,  muito  deviam  ter  contribuido  para  a  solução 
da  crise,  por  que  em  Ceuta  passou  a  aitribulada  alma  do 
poeta,  as  noticias  que  de  Lisboa  não  deixariam  de  lhe  ser 
iransmittidas  a  respeito  do  projectado  casamento  da  infanta 
com  o  príncipe  herdeiro  da  coroa  de  Espanha  (i). 

Não  era,  com  effeito,  uma  rematada  loucura  da  parte  de 
Camões  continuar  a  mostrar-se  apaixonado  por  quem  não 
só  se  achava  em  tão  elevada  plana,  mas  delia  pretendia 
ainda  ascender  a  um  dos  primeiros,  se  não  ao  primeiro  throno 
do  mundo  ? 

Não  foi  o  próprio  poeta  que  no  começo  da  sua  paixão 
escreveu  estes  versos? 

Senhora,  quando  imagino 

O  divino 
Vosso  gesto,  claro  e  bello, 
De  alguma  hora  merecê-lo 
Me  conheço  por  indino ; 


( 1 )  Sobre  o  estado  em  que  se  achavam  as  negociações  para  este  enlace, 
informa-nos  a  carta,  já  anteriormente  citada,  que  D.  João  III  dirigiu  a 
Lourenço  Pires  de  Távora,  em  27  de  junho  de  i55o.  São  delia  estas 
palavras  :  «Agora  por  parte  de  la  Infanta  Dona  Maria  fue  apuntado,  con 
todas  las  buenas  palabras  que  ella  en  tal  caso  deuia  dezir,  que  tenia 
entendido  de  buena  parte  que  este  negocio  de  su  casamiento  con  el  Prín- 
cipe se  hablaua  con  buenos  términos  y  estauan  las  voluntades  de  allà 
tan  dispuestas  para  esso,  que  sabiendose  que  la  tenia  yo  de  hazerse,  se 
concluiria  de  todo  el  descanso  de  la  Infanta  mi  hermana».  Quer  dizer: 
era  tempo  e  mais  que  tempo  que  D.  João  III  interviesse  para  impedir 
el  descanso  de  la  Infanta  su  hermana.  O  dinheiro  que  elle  tinha  a  dar 
valia  muito  mais  que  a  satisfação  das  legitimas  aspirações  da  illustre 
senhora,  victima  de  odiosos  interesses  materiais,  mascarados  por  vezes 
com  o  nome  não  menos  odioso  de. . .  conveniências  politicas  ! 


171 

\ 

Que,  se  sento 
Ser  altivo  o  pensamento 

Que  me  inclina  (i), 
Vejo  que  Amor  vos  destina 
Para  mór  merecimento. 

Porque  é  vosso  lindo  aspeito 

Tão  perfeito, 
Que  na  mais  pequena  parte 
Não  pôde,  por  nenhuma  arte  (2), 
Comprender  o  humano  peito. 

Nem  me  espanta 
Porque,  se  tivestes  tanta 

Formosura, 
Vossa  suprema  ventura 
Mais  alta  vos  levanta  (3). 

E  verdade  que  então  o  poeta  proseguia,  pouco  abaixo 

E  se  cuidais,  por  ventura, 

Que  a  natura 
Contém  outro  regimento, 
Sabei  que  meu  pensamento 
Em  vosso  gesto  se  apura. 

Nem  me  engano. 
Que  mudei  o  ser  humano, 

Gomo  pude. 
Em  divino,  por  virtude 
De  gesto  tão  soberano. 

Assim  que,  feito  immortal 

De  mortal  (4), 
Outro  nome  tomarei 
De  ser  vosso,  pois  mudei 
O  costume  natural. 


(i)  Correcção  de  W.  Slorck,  cm  \c/  de  itulmou. 

(2)  Talvez :  Não  o  pôde;  por  iienhffa  arte. 

(3)  Por  certo  alevcinta  c  talvez  alto. 

(4)  No  texto :  Ou  mortal.  W.  Slorck  propÔc  Eu* 


17^ 

Também  vós, 
Pelo  bem  que  em  vós  se  pôs, 

Sereis  dina 
De  serdes  por  vós  divina, 
Mas  eu  divino  por  vós. 

Mas  as  decepções  e  os  trabalhos  por  que  tinha  passado  o 
pobre  poeta  haviam-no  sufficientemente  elucidado  a  respeito 
desta  transformação.  Agora  já  não  tinha  duvidas  acerca  da 
resposta  a  dar  á  pergunta  formulada  no  ultimo  verso  do' 
soneto  iSy: 

Eu  que  espero  de  um  ser  que  é  mais  que  humano  ? 

Que  tempo  durou  o  exilio  do  poeta  em  Ceuta?  Não  me 
parece  fácil  averiguá-lo,  sobretudo  se  for  posta  de  lado  a 
opinião  de  que  elle  foi  alli  cumprir  dous  annos  de  serviço  militar. 


De  volta  de  Ceuta 

Um  dos  artigos  fundamentais  do  programma  de  vida  nova, 
traçado  em  Ceuta  por  Camões,  era,  segundo  vimos,  a  sua 
reconciliação  com  aquella 

Cuja  lembrança  e  cujo  claro  gesto 

lhe  reappareciam  agora  na  ulcerada  alma,  como  que  a  en- 
cobrir o  incommensuravel  vácuo  que  nella  se  fizera. 

Foram,  porém,  baldados  todos  os  esforços  empregados 
por  parte  do  poeta  para  realizar  este  intento. 

Não  lhe  valeram  satisfações,  rogos  nem  queixumes,  ex- 


.73 


pressos  com  toda  a  eloquência  em  admiráveis  versos  (eglo- 
gas  3.*,  4.*  e  5.*). 

Caminha  u  uia  luJo  o  caminhante 
E,  emfim,  lhe  chega  a  noite  em  que  descansa ; 
Trabalha  na  tormenta  o  navegante, 
Traz-lhe  a  clara  manhã  feliz  bonança ; 
Recobra  o  fruto  fértil  e  abundante 
Da  terra  o  lavrador,  se  nella  cansa : 
Mas  eu  de  meu  cuidado  e  mal  tão  forte 
Tormento  espero  só,  só  crua  morte. 

De  ouvir  meu  dano,  as  rosas  matutinas 
Condoídas  se  cerram,  se  emmurchecem ; 
Com  meu  suspiro  ardente  as  cores  finas 
Perdem  o  cravo,  o  lirio,  e  não  florecem. 
Co'a  roxa  aurora  as  pallidas  boninas, 
Em  vez  de  se  alegrarem,  se  entristecem. 
Deixam  seu  canto  Progne  e  Philomena  (i), 
Que  mais  lhes  doe,  que  a  sua,  a  minha  pena. 

Responde  o  monte  concavo  a  meus  ais, 

E  tu,  como  aspid,  cerras-lhe  o  ouvido ; 

Os  indómitos,  feros  animais, 

Sem  humano  sentir,  mostram  sentido ; 

Mas  em  ti  minhas  dores  desiguais 

Nunca  movem  o  peito  endurecido. 

Por  muito  que  te  chame,  não  respondes, 

E,  quanto  mais  te  busco,  mais  te  escondes. 

Naquella  parte  donde  costumavas 
Apascentar  meus  olhos  e  teu  gado, 
Alli  donde  mil  vezes  me  mostravas 
Que  era  o  pastor  de  ti  mais  desejado. 


(i)  Escrevendo  Philomena  por  Philomela  (o  rouxinol),  o  poeta  tinha 
presentes,  além  d'outros,  estes  versos  da  cgloga  do  brando  e  doce  Garci> 
lasso  Al  visorey  de  Nápoles : 

Con  la  pesada  voz  retumba  y  suena  ^ 

la  blanda  Philomena. 


74 


Vezes  mil  te  busquei,  por  ver  se  davas 
Algum  breve  descanso  a  meu  cuidado. 
Busco-te  em  vão  no  valle,  em  vão  no  monte, 
Qual  o  ferido  cervo  busca  a  fonte. 

Este  lugar,  de  ti  desamparado. 
Em  cujas  sombras  frias  já  folgaste. 
Agora  triste,  escuro,  é  já  tornado. 
Que  todo  o  bem  comtigo  nos  levaste. 
Eras  tu  nosso  sol  mais  desejado ; 
Não  temos  luz,  despois  que  nos  deixaste. 
Torna,  meu  claro  sol,  torna  meu  bem ; 
Qual  é  o  Josué  que  te  detém  ? 

Despois  que  deste  valle  te  apartaste. 
Não  pára  já  algum  gado,  com  secura ; 
Secou-se  o  campo,  desque  lhe  negaste 
Dos  teus  formosos  olhos  a  luz  pura ; 
Secou-se  a  fonte  donde  já  te  olhaste, 
Quando  menos,  que  agora,  áspera  e  dura. 
Nega  sem  ti  a  terra,  ouvindo  gritos, 
As  cabras  pasto,  e  leite  aos  cabritos. 

Sem  ti,  doce  cruel  minha  inimiga, 
A  clara  luz  escura  me  parece; 
Este  ribeiro,  quando  a  dor  me  obriga. 
Com  meu  chorar  por  ti  contino  crece ; 
Não  ha  fera,  a  que  a  fome  não  persiga ; 
Algum  prado  sem  ti  já  não  fíorece. 
Cegos  estão  meus  olhos,  nada  vem. 
Porque  não  podem  ver  seu  claro  bem. 


Torna,  pois,  já,  pastora,  ao  nosso  prado. 
Se  restituir-lhe  queres  a  alegria ; 
Alegrarás  o  valle,  o  campo,  o  gado, 
E  aquelle  espelho  teu  da  fonte  fria. 
Torna,  torna,  meu  sol  tão  desejado ; 
Farás  a  noite  escura  claro  dia ; 
E  alegra  (i)  já  esta  vida  magoada. 
Em  que  só  tua  ausência  é  parca  irada. 


M 


(i)  Talvez  Alegra. 


Vem,  como  quando  (i)  o  raio  transparente 
Deste  nosso  horizonte,  que,  escondido. 
Deixa  um  certo  temor  á  mortal  gente, 
Causado  de  ver  o  orbe  escurecido ; 
E  quando  torna  a  vir,  claro  e  luzente, 
Alegra  o  mundo  todo  entristecido : 
Que  assi  é  para  mi  tua  luz  pura 
Claro  sol,  como  a  ausência  noite  escura. 

Mas  tu,  'squecida  já  do  bem  passado 
E  do  primeiro  amor  que  me  mostraste. 
Teu  coração  de  mi  tens  apartado, 
Não  menos  que  do  valle  te  apartaste. 
Não  te  quero  eu  a  ti  mais  que  a  meu  gado  ? 
Não  sou  eu  mesmo  aquelle  que  tu  amaste  ? 
Onde  o  meu  erro  viste  ou  desvario. 
Que  pô^íc  mcrcccr-tc  um  tal  desvio  ? 


Se  te  apartas,  por  não  ouvir  meu  rogo, 

Onde  estiveres  te  hei  de  importunar ; 

Posto  que  vás  por  agua,  ferro  ou  fogo, 

Comtigo  em  toda  a  parte  me  has  de  achar ; 

Que  o  fogo  em  que  ardo  e  a  agua  em  que  me  afogo, 

Emquanto  eu  vivo  fôr,  hão  de  durar, 

Pois  o  nó  que  me  enlaça  é  de  tal  sorte. 

Que  não  se  ha  de  soltar  em  vida  ou  morte. 

Neste  meu  coração  sempre  estarás ; 
Emquanto  a  alma  estiver  com  elle  unida. 
Também  o  meu  esprito  possuirás. 
Despois  que  a  alma  do  corpo  fôr  partida. 
Por  mais  e  mais  que  faças,  não  farás 
Que  deixe  o  amar-te  nesta  e  css'outra  vida. 
Impossivel  terá  que  eternamente 
Aiistntf  este*  de  mi,  estando  ausente  (2). 

llgloga  5.«,  est.  14-20,  22-24,  Sô-S;). 


(1)  Nio  deverá  ler-se:  assim  comof 

(3)  Apesar  de  aiuente,  eitarát  sempre  presente. 


/b 


Foi  improfícuo  o  recurso  a  pessoas  de  elevada  posição 
social,  que,  condoídas  do  pobre  sonhador,  despenhado  da 
altura  das  suas  illusões,  e  receosas,  por  certo,  de  uma  fu- 
nesta recaída,  se  prestavam  a  ouvir-lhe  os  queixumes  e  sus- 
piros magoados. 

A  quem  darei  queixumes  namorados 
Do  meu  pastor  queixoso  e  namorado  ? 
A  branda  voz,  suspiros  maguados, 
A  causa  porque  na  alma  é  maguado? 
De  quem  serão  seus  males  consolados  ? 
Quem  lhe  fará  devido  gasalhado  ? 
Só  vós,  Senhor  famoso  e  excellente. 
Especial  em  graças  entre  a  gente. 

Por  partes  mil  lançando  a  phantasia. 
Busquei  na  terra  estrella  que  guiasse 
Meu  rudo  verso,  em  cuja  companhia 
A  santa  piedade  sempre  andasse. 
Luzente  e  clara,  como  a  luz  do  dia, 
Que  o  rudo  engenho  meu  me  allumiasse ; 
E  em  vossas  perfeições,  grão  Senhor,  vejo 
Ainda  além  cumprido  o  meu  desejo. 

A  vós  se  dem  (i),  a  quem  junto  se  ha  dado 
Brandura,  mansidão,  engenho  e  arte. 
De  um  esprito  divino  acompanhado. 
Dos  sobr'humanos  um  em  toda  a  parte. 


(i)  Estas  palavras  ligam-se  com  o  começo  da  i."  estancia.  Compa- 
re-se  a  dedicatória  de  Boscan  á  duquesa  de  Soma : 

A  quien  daré  mis  amorosos  versos. 
Que  pretienden  amor  con  virtud  junto, 
Y  dessean  tambien  mostrarse  hermosos  ? 
A  ti,  Senora,  en  quien  todo  esto  cabe, 
A  ti  se  den,  porquanto  se  carecen 
Estas  cosas  que  digo  que  pretienden, 
En  ti  las  hallaron  complidamente. 

Creio  que  era  esta  a  ordem  primitiva  das  estancias :   i.",  3.",  2.»  e  4.". 


n 


Em  vós  as  graças  todas  se  hão  juntado ; 
De  vós  em  outras  partes  se  reparte. 
Sois  claro  raio,  sois  ardente  chamma, 
Gloria  e  louvor  do  tempo,  asas  da  fama. 

(Egloga  5.%  est.  i-3)  (i). 

Cantando  por  um  valle  docemente 
Desciam  dous  pastores,  quando  Phebo 
No  reino  Neptunino  se  escondia. 


(i)  Segundo  W.  Storck  (Vida  de  Camões,  p.  357-358),  esta  egloga 
foi  dirigida  ao  2.«*  conde  de  Linhares,  D.  Francisco  de  Noronha,  havendo 
no  principio  da  2.*  estancia  uma  referencia  á  condessa  D.  Violante. 
(Diga-se  de  passagem  que  neste  tempo  ainda  lhes  não  tinha  sido  dado  o 
titulo.  Só  depois  da  renuncia  do  irmão  mais  velho,  D.  Ignacio  de  Noro- 
nha, o  braguilha,  é  que  D.  João  III,  em  i556,  declarou  2."  conde  de 
Linhares  o  seu  antigo  embaixador  na  corte  de  França).  L  porém  hoje 
convicção  minha :  i.')  que  a  egloga  se  refere  a  uma  pessoa  só;  2.®)  que 
essa  pessoa  era  um  prelado.  Relêam-se  as  três  estancias  e  repare-se  nas 
qualidades  que  o  poeta  attribue  ao  senhor  famoso  e  excellente.  Sobre  o 
assumpto  já  a  sr."  D.  Carolina  Michaelis  escreveu  em  nota  a  Storck, 
Vida  de  Camões,  pag.  cit. :  «A  engenhosa  interpretação  de  Storck  será 
mais  plausível  para  os  que  lerem  a  bella  versão  germânica,  do  que  para 
os  portugueses  que  recorrem  ao  original,  porque,  emquanto  aquella  já 
vem  esclarecida,  está  este  mal  ponctuado  e  bastante  obscuro.  Os  versos 
II  e  12,  por  exemplo  («em  cuja  companhia  a  santa  piedade  sempre  an- 
dasse») e  principalmente  o  20  {*dos  sobrehumanos  um  em  toda  a  parte») 
ficam,  ainda  assim,  um  pouco  enygmaticos,  para  mim  pelo  menos»». 

Quem  seria  esse  prelado  í  Presumo  que  é  o  ditoso  Pinheiro  do  soneto 
190,  isto  é,  talvez  o  barcellense  D.  Rodrigo  Pinheiro,  que  era  bispo  de  An- 
gra desde  1548  e  esteve  á  frente  da  diocese  do  Porto  desde  i552  até  1572. 
(Sobre  a  importância  que  na  corte  possuía  este  prelado,  que  era  gover- 
nador da  casa  do  cível  na  occasião  em  que  foi  escrípta  a  egloga  5.% 
veja-se,  por  exemplo,  Barbosa  Machado,  Bibliotheca  Lusitana,  111,  652). 
Em  D.  António  Pinheiro,  bispo  de  Miranda  e  depois  de  Leiria  e  ao  tempo 
mestre  do  mallogrado  príncipe  herdeiro  D.  João,  é  escusado  pensar,  me 
parece,  pois  esse  só  foi  elevado  á  dignidade  episcopal  no  reinado  de 
D.  Sebastião,  quando  D.  Julião  d*Alva  deixou  o  bispado  de  Miranda 
em  i565.  Segundo  alguns  camonistas,  o  soneto  190  rcfere-se  a  D.  Gon- 
çalo Pinheiro,  então  bispo  de  Tanger  e  desembargador  do  paço. 
13  K.  5>94 


,78 


De  idade  cada  qual  era  mancebo, 
Mas  velho  no  cuidado,  e  descontente 
Do  que  lhe  elle  causava  parecia. 

O  que  cada  um  dizia, 
Lamentando  seu  mal,  seu  duro  fado, 

Não  sou  eu  tão  ousado. 
Que  o  pretenda  cantar  sem  vossa  ajuda ; 

Porque,  se  a  minhti  ruda 
Frauta  deste  favor  vosso  for  dina, 
Posso  escusar  a  fonte  Caballina. 

(Egloga4.%  est.  i.»)  (i). 


(i)  Esta  egloga,  segundo  creio,  é  dirigida  a  D.  Francisca  de  Aragão, 
a  tão  formosa,  como  ajuizada  dama  da  rainha  D.  Gatharina.  Delia  diz  o 
dr.  J.  Priebsch  {Poesias  inéditas  de  Caminha,  Halle,  1898,  p.  xxxv-vi) : 
«Raras  vezes  uma  dama  da  corte  portuguesa  foi  alvo  de  tantas  e  tão 
enthusiasticas  manifestações  de  admiração...  Os  poetas  mais  illustres 
do  seu  tempo  tributaram-lhe  homenagem,  cantando  o  esplendor  da  sua 
belleza  e  lamentando  a  altivez  do  seu  desdém». 

Namorador  incorrigivel,  Camões,  ao  voltar  do  Oriente,  enfileirou 
também  entre  os  apaixonados  adoradores  da  que  annos  depois  era  nora 
de  S.  Francisco  de  Borja.  Lêa-se,  por  exemplo,  o  soneto  268 : 

Este  amor  que  vos  tenho,  limpo  e  puro, 
De  pensamento  vil  nunca  tocado. 
Em  minha  tenra  idade  começado, 
Tê-lo  dentro  nesta  alma  só  procuro. 

De  haver  nelle  mudança  estou  seguro. 

Sem  temer  nenhum  caso  ou  duro  fado. 
Nem  o  supremo  bem  ou  baixo  estado, 
Nem  o  tempo  presente  nem  futuro. 

A  bonina  e  a  flor  asinha  passa ; 

Tudo  por  terra  o  inverno  e  estio  deita ; 
Só  para  meu  amor  é  sempre  maio. 

Mas  ver-vos  para  mim,  Senhora,  escassa, 
E  que  essa  ingratidão  tudo  me  enjeita, 
Traz  este  meu  amor  sempre  em  desmaio. 

Já  agora  também  o  soneto  de  despedida,  quando  a  formosa  senhora, 


17(1 


Nada  conseguiram  também  as  senhoras  que  se  prestaram 
a  ser  intermediarias,  terceiras,  no  assumpto,  e  ás  quais  o 
poeta  se  dirige  nestas  redondilhas: 


Pois  a  tantas  perdições, 
Senhoras,  quereis  dar  vida, 
Ditosa  seja  a  ferida, 
Que  tem  tais  cirurgiões. 


em  seguida  ao  seu  casamento,  acompanhou  o  marido  para  a  corte  do 
imperador  Rodolpho  II : 

Ai  imiga  cruel !  Que  apartamento 
É  este  que  fazeis  da  pátria  terra  ? 
Ai !  Quem  do  amado  ninho  vos  desterra. 
Gloria  dos  olhos,  bem  do  pensamento  ? 

Is  tentar  da  fortuna  o  movimento 

E  dos  ventos  cruéis  a  dura  guerra  ? 

Ver  brenhas  d'ondas  ?  feito  o  mar  em  serra, 

Levantado  de  um  vento  e  de  outro  vento  ? 

Mas  já  que  vos  partis,  sem  vos  partirdes, 
Parta  comvosco  o  ceu  tanta  ventura, 
Que  se  avantaje  áquella  que  esperardes. 

E  só  desta  verdade  ide  segura, 

Que  fazeis  mais  saudades  com  vos  irdes, 
Do  que  levais  desejos  por  chegardes. 

Servem  de  commentario  a  alguns  versos  deste  soneto  as  seguintes 
palavras  do  sr.  dr.  Sánchez  Moguel  {Reparaciones  históricas,  Madrid, 
1894,  p.  225) :  «En  el  ano  siguiente  (líyô)  debió  verilicarse  el  matrimo- 
nio de  D.  Juan  (de  Borja,  que  era  embaixador  de  Philippe  II  na  corte  de 
Lisboa  desde  1369,  e  tinha  enviuvado  cm  i575)  y  Dona  Francisca,  pues 
de  las  pruebas  para  el  hábito  de  Santiago  dei  hijo  mayor  de  ambos, 
Don  Francisco  de  Borja,  resulta  que  este  nació  em  1577,  según  unos 
tesiigos  en  cl  mar,  según  oiros  en  Génova  . .  Caminaban  entonces 
I).  Juan  y  Dofía  Francisca  para  Alemania,  adonde  iba  D.  Juan  deEmba- 
jador,  á  pesar  de  los  ruegos  de  Dona  Catalina  á  Felipe  II  para  que  le 
hubiessc  dado  otro  puesto,  á  causa  de  lo  mal  que  probaba  á  Dofía  Fran- 
cisca el  passajc  de  la  mar» 

A  futura  condessa  de  Ficalho,  que  ia  ser  niac  k\  .   rci 

espanhol,  ;7i7r/iVi-5e,  5em  je /'^r/ir,  sem  deixar  unid  ,,.^.m,.  v.     ^   ração 
ao  seu  desconsolado  adorador. 
* 


i8o 

Pois  ventura 
Me  subiu  a  tanta  altura, 
Que  me  sejais  valedoras, 
Ditosa  seja  a  tristura, 

Que  se  cura 
Por  vossos  rogos.  Senhoras. 

Ser  minha  pena  mortal. 
Já  que  intendeis  que  é  assi, 
Não  quero  fallar  por  mi. 
Que  por  mi  falia  meu  mal. 

Sois  formosas, 
Haveis  de  ser  piedosas. 
Por  ser  tudo  de  uma  côr ; 
Que  pois  Amor  vos  fez  rosas 

Milagrosas, 
Fazei  milagres  d'amor. 

Pedi  a  quem  vós  sabeis 
Que  saiba  de  meu  trabalho, 
Não  pelo  que  eu  nisso  valho, 
Mas  pelo  que  vós  valeis. 

Que  o  valer 
De  vosso  alto  merecer, 
Com  lh'o  pedir  de  giolhos. 
Fará  que  cm  meu  padecer 

Possa  ver 
O  poder  que  tem  seus  olhos. 

Vossa  muita  formosura 
Com  a  sua  tanto  vai. 
Que  me  rio  de  meu  mal. 
Quando  cuido  em  quem  me  cura. 

A  meus  ais 
Peço-vos  que  lhe  valhais, 
Damas,  de  Amor  tão  validas, 
Que  nunca  tal  dôr  sintais, 

Que  queirais, 
Onde  não  sejais  queridas. 


i8i 


Olvidada  e  aborrecida  por  causa  da  infanta  (i),  exposta  á 
irrisão  com  expressões  equivocas  para  a  sua  honra  delicada, 
a  menina  dos  olhos  perdes  tinha  o  coração  morto  para  o  falso 
cavalheiro  ingrato  (2),  que  ella  tanto  havia  amado.  Para 

Falsos  amores, 
Falsos,  maus,  enganadores  (3), 

bastara  uma  vez. 


(i)  Mete  (alheio) 

Olvide  y  aborreci. 
Volta 

Hase  de  entender  assi : 
Que,  desque  os  di  mi  cuidado, 
A  quantas  huve  mirado, 
Olvide  y  aborreci. 

(i)  Cantiga  velha 

Falso  cavalheiro  ingrato ! 

Enganais-me ! 
Vós  dizeis  que  eu  vos  mato, 

E  vós  matais-me  1 

Voltas 

Costumadas  artes  são, 
Para  enganar  innocencias. 
Piedosas  apparencias 
Sobre  isento  coração. 

Eu  vos  amo  e  vós,  ingrato, 

Magoais-me, 
Dizendo  que  eu  vos  mato,. 

E  vós  matais-me ! 


(3)  Cantiga  velha 

Apariaram-sc  os  meus  olhos 
Do  mi  tão  longe. . . 
Falsos  amores ! 

Falsos,  maus,  enganadores ! 


l82 


Ao  desolado  poeta  não  restava  senão  lastimar  a  sua  sorte 
e  explicar  por  outros  amores  a  invencivel  pertinácia  da  gentil 
menina. 

E  pois  fé  verdadeira,  amor  perfeito, 

Tormento  desigual  e  vida  triste, 

Junta  com  um  continuo  soffrimento 

E  um  mal,  em  que  o  mal  todo,  emfim,  consiste. 

Não  puderam  mover  teu  duro  peito 

A  mostrares  sequer  contentamento 

De  ver  o  meu  tormento, 
Antes  tudo,  soberba,  desprezaste, 

E  a  outrem  te  entregaste, 
Por  nada  me  ficar  em  que  esperasse. 

Senão  quando  acabasse 
A  vida,  a  pesar  meu,  já  tão  cumprida. 
Perca  quem  te  perdeu  também  a  vida. 

(Egloga  4.«). 

E  a  infanta?  A  infanta  continuava  a  ser  a  obsessão  con- 
stante do  poeta,  apesar  dos  esforços  que  elle  ernpregava  para 
afastar  do  seu  espirito  as  doces  lembranças  da  passada  gloria. 

Doces  lembranças  da  passada  gloria. 
Que -me  tirou  fortuna  roubadora, 
Deixai-me  descansar  em  paz  uma  hora. 
Que  comigo  ganhais  pouca  victoria. 


Voltas 

Trataram-me  com  cautella. 
Por  me  enganar  mais  asinha! 
Dei-lhe  posse  da  alma  minha, 
Foram-me  fugir  com  ella. 
Não  ha  vê-los,  nem  ha  ve-la. 

De  mi  tão  longe. .  . 

Falsos  amores ! 
Falsos,  maus,  enganadores ! 


i83 


Impressa  tenho  na  alma  larga  historia 
Deste  passado  bem,  que  nunca  fôra, 
Ou  fôra  e  não  passara ;  mas  já  agora 
Em  mi  não  pôde  haver  mais  que  a  memoria. 

Vivo  em  lembranças,  morro  de  esquecido 
De  quem  sempre  devera  ser  lembrado, 
Se  lhe  lembrara  estado  tão  contente. 

Oh  quem  tornar  pudera  a  ser  nascido ! 
Soubera-me  lograr  do  bem  passado, 
Se  conhecer  soubera  o  mal  presente  ! 

(Soneto  i8). 

Amor,  com  a  esperança  já  perdida, 
Teu  soberano  templo  visitei; 
Por  sinal  do  naufrágio  que  passei, 
Em  lugar  dos  vestidos,  pus  a  vida. 

Que  mais  queres  de  mi,  pois  destruida 
Me  tens  a  gloria  toda  que  alcancei  ? 
Não  cuides  de  render-me,  que  não  sei 
Tornar  a  entrar-me  onde  não  ha  saída. 

Vês  aqui  a  vida  e  a  alma  e  a  esperança, 
Doces  despojos  de  meu  bem  passado, 
Em  quanto  o  quis  aquella  que  eu  adoro. 

Nelles  podes  tomar  de  mi  vingança ; 
E,  se  te  queres  inda  mais  vingado, 
Contenta-te  co  as  lagrimas  que  choro. 

(Soneto  5o). 

Pensamentos,  que  agora  novamente 
Cuidados  vãos  em  mim  resuscitais, 
Dizei-me  :  E  ainda  vos  não  contentais 
De  ter,  a  quem  vos  tem,  tão  descontente  ? 

Que  phantasia  é  esta,  que  presente 

Cada  hora  ante  os  olhos  me  mostrais  ? 
Com  uns  sonhos  tão  vãos  inda  tentais 
Quem,  nem  por  sonhos,  pódc  ser  contente  ? 

Vcjo-vos,  pensamentos,  alterados 

E  não  quereis,  de  esquivos,  declarar- me 
Que  é  isto,  que  vos  traz  ião  enleados? 

Não  me  negueis,  se  andais  para  negar-me, 
Porque,  se  contra  mi  'stais  levantados, 
Eu  vos  ajudarei  mesmo  a  matar-me. 

(Soneto  93). 


i84 


Pois  se  nem  mesmo  em  versos  que  se  occupam  ex  professo 
da  menina  dos  olhos  verdes,  Camões  deixa  de  se  referir  aos 
seus  passados  amores ! 

Passado  já  algum  tempo  que  os  amores 
De  Almeno,  por  seu  mal,  eram  passados, 
Porque  nunca  Amor  cumpre  o  que  promette, 
Entre  uns  verdes  ulmeiros  apartado, 
Regando  por  o  campo  as  brancas  flores, 
Em  lagrimas  cansadas  se  derrete. 
Quando  a  linda  pastora,  que  compete 

Co  monte  em  aspereza, 

Co  prado  em  gentileza. 
Por  quem  o  pastor  triste  endoudecia, 
Por  a  praia  do  Tejo  discorria 
A  lavar  a  beatilha  e  o  trançado. 

O  sol  já  consentia 
Que  saísse  da  sombra  o  manso  gado. 

Já  acordado  daquelle  pensamento^ 
Que  tão  desacordado  sempre  o  teve  (i). 
Viu  por  acerto  o  bem  que  incerto  tinha ; 
E  porque,  donde  o  amor  a  mais  se  atreve, 
Alli  mais  enfraquece  o  entendimento, 
Não  lhe  soube  dizer  o  que  convinha. 

(Egioga  3.%  est.  1-2). 

Pois  se  até  ao  invocar  a  musa  inspiradora  para  o  poema 
épico  que  vai  emprehender,  se  presente  que  o  som  vem 
d'uma  parte,  mas  que  a  pancada  é  em  outra! 


(i)  Relêa-se  o  bellissimo  soneto  279,  já  anteriormente  transcripto  e 
que  começa : 

Doce  sonho,  suave  e  soberano. 

Se  por  mais  longo  tempo  me  durara ! 
Ah !  quem  de  sonho  tal  nunca  acordara, 
Pois  havia  de  ver  tal  desengano  ! 


i85 


Em  vós  tenho  Hclicon,  tenho  Pégaso; 
Em  vós  tenho  Calhope  e  Thalia 
E  as  outras  sete  irmãs,  co  fero  Marte. 
Em  vós  deixou  Minerva  sua  vaUa ; 
Em  vós  estão  os  sonhos  do  Parnaso ; 
Das  Pierides  em  vós  se  encerra  a  arte. 

Com  qualquer  pouca  parte, 
Senhora,  que  me  deis  de  ajuda  vossa. 

Podeis  fazer  que  eu  possa 
Escurecer  ao  sol  resplandecente ; 

Podeis  fazer  que  a  gente 
Em  mi  do  grão  poder  vosso  se  espante 
£  que  vossos  louvores  sempre  cante. 

Podeis  fazer  que  cresça  de  hora  em  hora 
O  nome  Lusitano,  e  faça  inveja 
A  Esmirna,  que  de  Homero  se  engrandece. 
Podeis  fazer  também  que  o  mundo  veja 
Soar  na  ruda  frauta  o  que  a  sonora 
Cithara  Mantuana  só  merece. 

(Egloga  4.%  est.  i."  e  2.*)  (1). 


(i)  Como  já  fica  dicto,  esta  egloga  foi  dirigida  a  D.  Francisca  de 
Aragão.  Na  egloga  5.",  escripta  na  mesma  occasião,  e  bem  assim  no 
soneto  190,  allude  também  Camões  á  projectada  epopea.  Em  Ceuta 
ainda  não  pensava  nella,  como  se  infere  da  epistola  i.%  est.  23>a5,  e  se 
vê  do  soneto  267,  manifestamente  contemporâneo  desta  epistola,  e  diri- 
gido pelo  poeta  a  um  seu  admirador,  que  também  fazia  versos : 

Se  a  fortuna  inquieta  e  mal  olhada, 

Que  a  justa  lei  do  ceu  comsigo  infama, 
A  vida  quieta,  que  ella  mais  desama, 
Mc  concedera,  honesta  e  repousada. 

Pudera  ser  que  a  Musa,  alevantada 

Com  luz  de  mais  ardente  c  viva  flamma, 
Fizera  ao  Tejo,  lá  «na  pátria  cama, 
Adormecer  ao  som  da  lyra  amada. 

Porém,  pois  o  destino  trabalhoso, 

Que  me  escurece  a  Musa  fraca  e  lassa, 
Louvor  de  tanto  preço  nSo  sustenta, 

A  vossa,  de  louvar-mc  pouco  escassa, 
Outro  sogeito  busque  valeroso, 
Tal  qual  cm  vós  ao  mundo  se  apresenta. 


86 


Forçado  a  desistir  dos  seus  altos  pensamentos,  não  tendo 
podido  conseguir  que  a  menina  dos  olhos  perdes  tornasse  a 
olhar  para  elle,  ferido  no  coração  e  no  amor  próprio,  o  poeta 
viu-se,  com  vergonha  sua,  fabula  da  gente,  começou  a  servir 
de  assumpto  á  maledicência. 

Vós,  que  escuitais  em  rimas  derramado 
Dos  suspiros  o  som,  que  me  alentava 
Na  juvenil  idade,  quando  andava 
Em  outro  em  parte  do  que  sou  mudado, 

Sabei  que  busca  só,  do  já  cantado 

No  tempo  em  que  eu  temia  ou  esperava, 
De  quem  o  mal  provou,  que  eu  tanto  amava, 
Piedade,  e  não  perdão,  o  meu  cuidado. 

Pois  vejo  que  tamanho  sentimento 
Só  me  rendeu  ser  fabula  da  gente 
(Do  que  comigo  mesmo  me  envergonho). 

Sirva  de  exemplo  claro  meu  tormento, 
Com  que  todos  conheçam  claramente 
Que  quanto  ao  mundo  apraz  é  breve  sonho. 

(Soneto  loi)  (i). 

Como  se  não  ririam  dos  desastres  amorosos  do  apaixonado 
poeta  os  seus  inimigos  litterarios,  os  que  o  apodavam  de 


(i)  É  certo  que  este  soneto  é,  por  assim  dizer,  uma  tradução  do 
i.°  soneto  de  Petrarca;  mas  não  se  segue  d'ahi  que  nelle  se  não  encon- 
trem elementos  autobiographicos  do  nosso  poeta.  Reproduzo  o  soneto 
do  poeta  italiano,  porque  é  um  elemento  de  interpretação  para  o  de 
Camões. 

Voi  ch'ascoltate  in  rime  sparse  il  suono 
Di  quei  sospiri  ond'io  nudriva  il  core 
In  sul  mio  primo  giovenile  errore, 
Quand'era  in  parte  altr'uom  da  quel  ch'i'sono ; 
Del  vario  stile  in  ch'io  piango  e  ragiono 
Fra  le  vane  speranze  e'l  van  dolore. 
Ove  sia  chi  per  prova  intenda  amore, 
Spero  trovar  pietà,  non  che  perdono. 


.87 


rústico  Magalio,  de  pomposo  Chérilo;  os  que  o  tratavam  de 
ignorante,  de  mau  poeta,  cujos  versos  não  eram  caballinos, 
antes  pareciam  de  cavallo  (i)?  Como  não  deviam  irritar  o 
brioso  e  destemido  mancebo,  que  tinha  a  consciência  do  que 
valia  como  poeta  e  que  nunca  deixou  ver  as  solas  dos  pés, 
quando  aggredia  ou  era  aggredido,  como  não  deviam  irritá-lo, 
digo,  essas  t más  línguas,  peores  tenções,  damnadas  vontades, 
nascidas  de  pura  inveja  de  verem  su  amada  yedra  de  si 
arrancada  y  en  otro  muro  asida  (2)»,  essas  «amizades  mais 
brandas  que  cera,  que  se  accendiam  em  ódios  que  disparavam 
lume  que  lhe  deitava  mais  pingos  na  fama  que  nos  couros 
de  um  leitão»?  (3). 

E  para   acabar  de  lhe  azedar  a  alma,  não  faltariam  os 


Ma  ben  veggi'or  si  come  ai  popol  tutto 
Favola  fui  gran  tempo :  onde  sovente 
Di  me  medesmo  meço  mi  vergogno  : 

E  dei  mio  vaneggiar  vergogna  è'l  frutto, 
E  '1  pentirse,  e  '1  conoscer  chiaramente 
Che  quanto  piace  ai  mondo  è  breve  sogno. 

Direi  de  passagem  que  Leopardi  explica  assim  o  pietàf  non  che  per- 
dono  do  V.  8 :  Non  solamente  perdono,  ma  anche  compassionc. 

(1)  Toco  este  assumpto  nas  Fontes  dos  Lusíadas,  pag.  237-247. 

(2)  No  ay  coraçon  que  baste, 
aunque  fuesse  de  piedra, 
viendo  mi  amada  yedra, 

de  mi  arrancada,  en  otro  muro  asida. 

(Garcilasso,  egloga  i.'). 

As  palavras  do  lyrico  castelhano  applica-as  Camões  manifestamente 
aos  que  lhe  envejavam  a  gloria  litteraria. 

(3)  (^rta  /.'  (cscripia  da  índia).  Estou  convencido  de  que  entre  as 
amisades  de  que  falia  o  poeta  se  contava  a  de  Andrade  (^iminlin.  o  mnl 
succedido  cortejador  de  D.  Francisca  de  Aragão. 


i88 


boatos  de  que  a  infanta  tinha  todo  o  empenho  em  não  pro- 
trahir  o  seu  casamento  com  o  principe  das  Astúrias. 

Foi  talvez  por  pôr  a  bocca  no  mau  successo  dos  amores 
de  Camões  com  a  infanta,  que  Gonçalo  Borges,  encarregado 
dos  arreios  do  paço,  foi  gravemente  ferido  pelo  poeta,  na 
rua  de  Santo  Antão,  em  pleno  dia,  quando  toda  a  Lisboa 
andava  na  rua  para  assistir  á  procissão  do  Corpo  de  Deus 
(i6  de  junho  de  i552)  (i). 

Como  se  sabe,  o  poeta  esteve  preso  até  7  de  março  de 
i553  e  foi  solto  por  lhe  ter  perdoado  a  parte  oftendida  e  por 
ir  servir  aquelle  anno  na  índia.  E  antes  de  findar  o  mês, 
talvez  no  dia  26,  lá  saía  elle  da  amada  terra,  em  que  lhe 
ficava  o  magoado  coração  (2). 

E  tanto  mais  magoado,  quanto  ás  saudades  da  infanta 
accresciam  também  agora  as  da  menina  dos  olhos  verdes, 
que,  sinceramente  compadecida  da  sorte  d'aquelle  a  quem 
tanto  havia  amado  e  esquecendo  profundos  aggravos,  não 
quis  faltar  ao  amargurado  poeta  com  o  seu  perdão  nem  com 
as  sinceras  lagrimas  da  despedida,  na  manhã  do  dia  de 
embarque. 

Aquella  triste  e  leda  madrugada, 

Chei?i  toda  de  mágoa  e  de  piedade, 
Emquanto  houver  no  mundo  saudade, 
Quero  que  seja  sempre  celebrada. 

Ella  só,  quando  amena  e  marchetada 
Saía,  dando  á  terra  claridade, 
Viu  apartar-se  de  uma  outra  vontade, 
Que  nunca  poderá  ver-se  apartada. 


(1)  A  narrativa  do  facto,  contida  na  carta  de  perdão,  auctoriza,  a  meu 
ver,  a  conjectura  de  que  não  foi  casual  a  intervenção  do  poeta  na  briga 
travada  entre  Gonçalo  Borges  e  os  dous  cavalleiros  mascarados.  A 
immediata  retirada  destes  faz  suppôr  que  o  poeta  tinha  contas  a  ajustar 
com  aquelle,  mas  não  queria  ser  o  provocador. 

(2)  Cf.  Lusíadas,  v,  3,  5-6. 


Ella  só  viu  as  lagrimas  em  iiO) 

Que,  de  uns  e  de  outros  olhos  derivadas, 
Juntando-se,  formaram  largo  rio. 

Ella  ouviu  as  palavras  maguadas, 

Que  poderão  tornar  o  fogo  frio 

E  dar  descanso  ás  almas  condemnadas. 

» 
(Soneto  20). 

E  já  em  pleno  mar,  é  ainda  esta  doce  imagem  que  o  poeta 
evoca,  para  arrostar  os  perigos  que  o  esperavam : 

Por  cima  destas  aguas,  forte  e  firme, 

Irei  aonde  os  fados  o  ordenaram, 

Pois  por  cima  de  quantas  derramaram 

Aquelles  claros  olhos,  pude  vir-me. 
Já  chegado  era  o  fim  de  despedir-me ; 

Já  mil  impedimentos  se  acabaram. 

Quando  rios  de  amor  se  atravessaram 

A  me  impedir  o  passo  de  partir-me. 
Passei-os  eu  com  animo  obstinado. 

Com  que  a  morte  forçada  gloriosa 

Faz  o  vencido  já  desesperado. 
Em  qual  figura  ou  gesto  desusado 

Pôde  já  fazer  medo  a  morte  irosa 

A  quem  (1)  tem  a  seus  pés,  rendido  e  atado  ? 

Mas,  como  vamos  ver,  não  era  só  na  menina  dos  olhos 
verdes  que  o  poeta  ia  pensando  durante  a  longa  e  acciden- 
tada  viagem  para  a  índia. 


No  Oriente 

Das  poesias  lyricas  escriplas  por  Camões  no  Oriente,  trcs 
sobretudo  constituem  documentos  importantes  para  a  historia 


( I )  Talvez  o  poeta  escrevesse :  A  quetit  o  tem. 


I  ( >ô 


da  sua  paixão  pela  infanta.  São  ellas,  por  ordem  chronolo- 
gica,  a  elegia  3.*  (O  poeta  Simonides  fallando),  a  canção  lo.* 
(Junto  de  um  secco,  duro,  estéril  monte)  e  a  canção  6.*  (Coín 
força  desusada). 

A  elegia  2>.^  foi  composta,  pelo  menos  em  parte,  no  fim  do 
anno  de  i553  ou  no  começo  de  i554,  para  ser  remettida  ao 
seu  destino  pelas  naus  que  iam  partir  para  o  reino  (i). 

Para  bem  se  comprehender  o  estado  de  espirito  do  poeta 
ao  escrever  esta  elegia,  cumpre  ter  presente  que,  quando  elle 
embarcou  para  a  índia,  o  casamento  da  infanta  era  cousa 
definitivamente  assente  e  não  devia  tardar  muito  a  effectuar-se. 
O  futuro  rei  de  Espanha  havia  mandado  a  Lisboa  Ruy  Gomez 
da  Silva,  que  sobre  o  assumpto  se  tinha  intendido  com 
D.  João  III  (2).  Estava  regularizada  a  questão  da  entrega  do 


(i)  A  elegia  foi  escripta  ou  pelo  menos  concluída  talvez  em  Cochim, 
depois  da  expedição  contra  o  rei  da  Pimenta.  E  possivel,  com  eífeito, 
que  o  poeta  para  alli  acompanhasse  o  vice-rei  D.  Affonso  de  Noronha, 
que  ia  dar  pressa  ás  naus  do  reino.  Estas,  no  dizer  de  Couto,  partiram 
até  i5  de  janeiro  {Década  vi,  1.  10,  cap.  18).  M.  Perestrello,  que  voltava 
na  5.  Bento,  em  que  fora  o  poeta,  diz  que  partiram  no  dia  i  de  fevereiro. 
Historia  tragico-?nariti?7ia,  t.  i,  p.  49  (Lisboa,  1904). 

(2)  O  pouco  sincero  irmão  da  infanta  ficou  preso  em  uma  armadilha 
que  elle  próprio  tinha  preparado,  por  conselho  do  activo  e  astuto  Lou- 
renço Pires  de  Távora,  embaixador  junto  de  Carlos  V.  Quando  este,  for- 
mando novos  planos  políticos,  resolveu  casar  o  príncipe  seu  filho  com 
uma  filha  do  rei  dos  romanos  e  destinou  a  infanta  D.  Maria  para  o  archi- 
duque  Fernando,  L.  de  Távora  avisou  logo  D.  João  III  do  novo  perigo 
e  aconselhou  o  alvitre  de  levar  a  infanta  a  não  desistir  do  seu  casamento 
com  o  filho  de  Carlos  V.  Era  o  meio  seguro  de  inutilizar  o  novo  projecto 
matrimonial.  A  infanta,  que  tanto  desejava  casar  com  o  sobrinho, 
accedeu  de  bom  grado  ás  indicações  que  neste  sentido  lhe  foram  dadas. 
Mallogrados,  porém,  dentro  em  pouco  os  planos  de  Carlos  V,  não  res- 
tava a  D.  João  III  senão  mostrar  rosto  alegre. ..  e  arranjar  novos  pre- 
textos para  adiar  o  enlace  da  irmã  com  o  futuro  rei  de  Espanha.  Ve- 
jam-se  as  duas  curiosas  cartas  de  L.  de  Távora,  escriptas  em  dezembro 


«9í 


dote  e  agora  o  único  pretexto  que  restava  ao  monarca  por- 
tuguês era  a  expressa  acquiescencia  do  imperador,  acquies- 
cencia  que  elle.. .  tinha  pejo  de  soUicitar,  apesar  das  instan- 
cias da  já  outras  vezes  ludibriada  senhora  (i).  Do  publico, 
porém,  não  era  conhecido  qssq  pejo,  e  quando  Camões  enviou 
para  o  reino  a  elegia  3.*,  estava  convencido  de  que  a  sua 
bem-amada  já  se  achava  em  terras  de  Castella,  casada  com 
o  principe  D.  Philippe. 

Que  restava  ao  desolado  poeta  ?  Varrer  da  memoria  o  seu 
doce  sonho,  que  já  não  servia  senão  para  o  entristecer  e 
magoar. 


de  i55o,  uma  a  D.  João  III  e  outra  á  infanta,  e  publicadas  na  Historia 
de  varões  illustres  do  appellido  Távora  de  Ruy  Lourenço  de  Távora, 
p.  78  e  segg.  (Paris,  1648)  e  na  Vida  da  Infanta  D.  Maria  de  Fr.  M.  Pa- 
checo, fl.  40  e  segg.  A  carta  dirigida  á  infanta  é  um  modelo  de  cynismo. . . 
diplomático. 

(1)  Oiçamos  o  próprio  D.  João  III  historiando  o  caso,  quando  as 
suas  conveniências  politicas  lhe  fizeram  perder  o  pejo,  embora  já 
fosse  tarde :  «Ruy  guomcz  se  despedio  de  mim  &,  depoys  de  ser  com  o 
Primcepe,  me  screueo  o  Primcepe  muitos  cõtentamentos  da  rresposta 
que  lhe  mandara  pelo  dito  Ruy  guomez,  da  qual  todauia  comuinha  auisar 
o  Emperador,  por  ele  asy  lho  iher  mãdado.  Sabemdo  a  Imfanta  minha 
Irmaã  os  termos  e  que  este  neguocio  estaua  &  como  aymda  se  auia 
desperar  por  rresposta  do  Emperador,  me  pedio  que  eu  lhe  quisese 
despachar  huQ  correo,  pelo  qual  lhe  fizesc  saber  o  comtentamento 
q  eu  tinha  de  se  este  negocio  fazer  &  dos  termos  em  q  estaua  &  do  que 
eu  nele  acerqua  de  seu  dotte  podia  fazer.  Porque  emtemdia  (|,  em  quanto 
o  Emperador  ysto  nam  tiuesse  sabido  de  mim,  nam  poderia  o  neguocio 
deixar  de  pasar  a  gramde  dilaçam ;  &  com  quanto  eu  em  toda  cousa 
deseje  sempre  dar  todo  comtentamento  posiuel  a  Imfamte  minha  Irmãa, 
nesta  em  q  me  falou  tiue  pejo  para  o  nam  fazer  como  lho  aela  parecia. 
Porque  deixar  de  o  por  em  obra  como  mo  rrequcria  nam  era  causa  de 
se  o  negocio  deixar  de  fazer  estamdo  elle  tamto  adiamte  como  estaua». 
Carta  a  António  de  Saldanha,  na  Torre  do  Tombo,  Mss.  de  S.  Vicente 
de  Fora,  t.  1.°,  fl.  233  e  segg.  A  carta  não  tem  data,  mas  foi  enviada  no 
fim  de  agosto  de  i353,  como  se  infere  de  outra  carta  a  fl.  aSi, 


I9'2 


Vejamos  como  clle  nos  revela  o  estado  da  sua  alma. 

O  poeta  Simonides,  fallando 

Co  capitão  Themistocles  um  dia, 
Em  cousas  de  sciencia  praticando, 

Um'arte  singular  lhe  promettia, 

Que  então  compunha,  com  que  lhe  ensinasse 
A  lembrar-se  de  tudo  o  que  fazia ; 

Onde  tão  subtis  regras  lhe  mostrasse, 

Que  nunca  lhe  passassem  da  memoria, 
Em  nenhum  tempo,  as  cousas  que  passasse. 

Bem  merecia,  certo,  fama  e  gloria 

Quem  dava  regra  contra  o  esquecimento 
Que  sepulta  (i)  qualquer  antiga  historia. 

Mas  o  capitão  claro,  cujo  intento 

Bem  diíferente  estava,  porque  havia 

Do  passado  as  lembranças  por  tormento, 

—  Oh  illustre  Simonides  (dizia). 

Pois  tanto  em  teu  engenho  te  confias. 
Que  mostras  á  memoria  nova  via  : 

Se  me  desses  um'arte,  que  em  meus  dias 
Me  não  lembrasse  nada  do  passado, 
Oh  quanto  melhor  obra  me  farias !  — 

Se  este  excellente  dito  ponderado 

Fosse  por  quem  se  visse  estar  ausente. 
Em  longas  esperanças  degradado  (2), 

Oh  como  bradaria  justamente  : 

—  Simonides,  inventa  novas  artes ; 

Não  midas  (3)  o  passado  co  presente !  — 

Que,  se  é  forçado  andar  por  varias  partes 
Buscando  á  vida  algum  descanso  honesto, 
Que  tu.  Fortuna  injusta,  mal  repartes, 

E  se  o  duro  trabalho,  é  manifesto 

Que,  por  grave  que  seja,  ha  de  passar-se 
Com  animoso  esprito  e  ledo  gesto : 


(i)  Nas  primeiras  edições  e  no  Cancioneiro  de  L.  Franco:  enterra 
em  si. 

(2)  Escreveria  o  poeta :  Bem  longe  de?  ,         • 

(3)  Na  I.'  edição:  meças. 


>i>' 


De  que  serve  ás  pessoas  o  lembrar-se 

Do  que  se  passou  já  (pois  tudo  passa), 
Senão  de  entrisiecer-se  e  magoar-se  ? 

Se  em  outro  corpo  umalma  se  traspassa, 
Não,  como  quis  Pythagoras,  na  morte, 
Mas,  como  quer  Amor,  na  vida  escassa ; 

E  se  este  Amor  no  mundo  está  de  sorte. 
Que  na  virtude  só  de  um  lindo  objecto 
Tem  um  corpo  sem  alma,  vivo  e  forte ; 

Onde  este  objecto  falta,  que  (i)  é  defecto 
Tamanho  para  a  vida,  que  já  nella 
Me  está  chamando  á  pena  a  dura  Alecto; 

Porque  me  não  criara  a  minha  estrella  « 

Selvático  no  mundo,  e  habitante 
Na  dura  Scyihia  e  no  mais  duro  delia? 

Ou  no  Cáucaso  horrendo,  fraco  infante, 
Criado  ao  peito  de  uma  tigre  hircana, 
Homem  fora  formado  de  diamante ; 

Porque  a  cerviz  ferina  e  inhumana 
Não  submettera  ao  jugo  e  dura  lei 
Daquelle  que  dá  vida  quando  engana. 

Ou,  em  pago  das  aguas  que  estilei. 

As  que  passei  no  mar  foram  do  Lethe, 
Para  que  me  esquecera  o  que  passei. 

Porque  o  bem  que  a  esperança  vã  promette, 
Ou  a  morte  o  estorva  ou  a  mudança. 
Que  é  mal  que  um'alma  em  lagrimas  derrete. 

Já,  Senhor,  cahirá  como  a  lembrança, 

No  mal,  do  bem  passado  é  triste  e  dura, 
Pois  nasce  aonde  morre  a  esperança. 

E  com  a  esperança  já  morta,  mas  certo  de  que  o  destina- 
tário da  elegia  avaliará  bem  quam  triste  e  dura  é  para  os 
infcli/.es   n   lembrança   do   bem  passado,  o  poeta  conta-lhe 


(i)  Parece-me  que  deve  eliminar-se  o  que  e  terminar  o  período  em 
Alecio. 

i3  .  R.  5a9» 


91 


como,  durante  a  longa  viagem,  se  viu  alanceado  de  saudades, 
que  os  perigos  tornaram  mais  vivas,  mais  pungentes. 

Soltava  Eolo  a  redea  e  liberdade 

Ao  manso  Favonio  brandamente, 

E  eu  a  tinha  já  solta  á  saudade. 
Neptuno  tinha  posto  o  seu  tridente ; 

A  proa  a  branca  escuma  dividia, 

Com  a  gente  marítima  contente. 


Eu,  trazendo  lembranças  por  antolhos, 
Trazia  os  olhos  na  agua  sossegada 
E  a  agua  sem  sossego  nos  meus  olhos. 

A  bem-aventurança  já  passada 

Diante  de  mi  tinha  tão  presente. 
Como  se  não  mudasse  o  tempo  nada. 

E  com  o  gesto  immoto  e  descontente, 
Cum  suspiro  profundo  e  mal  ouvido, 
Por  não  mostrar  meu  mal  a  toda  a  gente, 

Dizia :  Oh  claras  nymphas,  se  o  sentido 
Em  puro  amor  tivestes  e  inda  agora 
Da  memoria  o  não  tendes  esquecido. 

Se  por  ventura  fordes  algum'hora 

■  Adonde  entra  o  grão  Tejo  a  dar  tributo 
A  Tethys,  que  vós  tendes  por  senhora. 

Ou  já  por  ver  o  verde  prado  enxuto. 
Ou  já  por  colher  ouro  rutilante. 
Das  tagicas  areias  rico  fruto  : 

Nellas,  em  verso  erótico  e  elegante. 

Escrevei  c'uma  concha  o  que  em  mi  vistes ; 
Pôde  ser  que  algum  peito  se  quebrante. 

E,  contando  de  mi  memorias  tristes, 

Os  pastores  do  Tejo,  que  me  ouviam. 
Ouçam  de  vós  as  maguas  que  me  ouvistes. 

Elias,  que  já  no  gesto  me  entendiam, 

Nos  meneios  das  ondas  me  mostravam 
Que  em  quanto  lhes  pedia  consentiam. 


195 

Estas  lembranças,  que  me  acompanhavam 
Por  a  tranquillidade  da  bonança, 
Nem  na  tormenta  triste  me  deixavam, 

Porque,  chegando  ao  Cabo  da  Esperança, 
Começo  da  saudade  que  (i)  renova, 
Lembrando  a  longa  e  áspera  mudança. 


ms  a  noiíc  [Z)  com  nuvens  se  escurece  j 
Do  ar  subitamente  foge  o  dia, 
E  todo  o  largo  oceano  se  embravece. 

E  depois  de  descrever  rapidamente,  mas  em  soberbos 
versos,  a  temerosa  tempestade  que  no  Cabo  assaltou  a  nau 
S.  Bento,  prosegue  Camões : 

Amor  alli,  mostrando-se  possante 

E  que  por  algum  medo  não  fugia. 

Mas  quanto  mais  trabalho,  mais  constante. 
Vendo  a  morte  presente,  em  mi  dizia : 

Se  algum'hora,  Senhora,  vos  lembrasse. 

Nada  do  que  passei  me  lembraria  1 

E  o  poeta  commenta  assim  este  estado  de  espirito : 

Emfim,  nunca  houve  cousa  que  mudasse 
O  firme  amor  intrinseco  daquelle 
Em  quem  alguma  vez  de  siso  (3)  entrasse. 

Uma  cousa,  Senhor,  por  certa  asselle  : 

Que  nunca  amor  se  afina  nem  so  apura. 
Em  quanto  está  presente  a  causa  delle. 

Em  seguida,  o  poeta  dá  noticia  da  sua  chegada  á  índia, 
faz  um  relatório  da  primeira  expedição  militar  em  que  tomou 


(i)  Parece-mc  que  deve  ler-se  se. 

{•à)  NSo  será  :  £75  que  o  ceu  f 

(3)  Compare-sc,  por  exemplo,  a  expressão  uma  ve\  de  vinho. 


Iqí) 


parte,  declara  invejável  a  sorte  dos  lavradores  e  pastores  e 
conclue : 

Porém  seja,  Senhor,  de  qualquer  arte ; 
Pois,  postoque  a  Fortuna  possa  tanto. 
Que  tão  longe  de  todo  o  bem  me  aparte. 

Não  poderá  apartar  meu  duro  canto 

Desta  obrigação  sua,  emquanio  a  morte 
Me  não  entrega  ao  duro  Radamanto, 

Se  para  tristes  ha  tão  leda  sorte. 

Esquecer  o  passado,  desejar  que  venha  a  morte  libertá-lo 
da  sua  profunda  tristeza  —  eis  agora  o  estado  d'alnria  do 
amargurado  poeta. 

Passemos  á  canção  lo.^,  —  uma  das  mais  bellas  poesias 
lyricas  que  conheço — ,  começando  por  indicar  as  circum- 
stancias  em  que  ella  foi  escripta. 

A  23  de  setembro  de  i554  chegava  a  Goa  a  nau  .S.  Boa- 
ventura, em  que  ia  o  novo  vice-rei,  D.  Pedro  de  Mascare- 
nhas (i).  Comprchende-se  bem  o  alvoroço  com  que  o  poeta 
esperaria  novas  do  reino,  a  pressa  com  que  procuraria  encon- 
trar-se  com  os  recem-chegados  e  ler  as  cartas  que  lhe  eram 
destinadas.  E  ainda  estava  longe  de  presumir  o  interesse  que 
para  elle  tinham  algumas  dessas  novas. 

Era  uma  o  fallecimento,  em  2  de  janeiro  daquelle  anno, 
do  mallogrado  príncipe  herdeiro,  D.  João,  e  o  nascimento, 


(i)  Couto,  Década  7.',  liv.  i.°,  cap.  3.°.  Aí  se  lê  que  a  armada  partira 
de  Lisboa  por  fim  de  mi  roo,  e  que  nella  iam  dous  mil  homens  d'armas, 
em  que  entravam  mais  de  quatro  centos  moradores  da  casa  d'el-rei. 
Um  delles  era  o  amigo  e  admirador  de  Camões,  João  Lopes  Leitão,  que 
havia  sido  pagem  da  lança  do  fallecido  principe  herdeiro.  Segundo  Fi- 
gueiredo Falcão  (Livro  em  que  se  contém  toda  a  fazenda  e  real  patri- 
ynonio  dos  reinos  de  Portugal ^  índia  e  Ilhas  adjacentes^  Lisboa,  iSSg, 
p.  i65),  as  cinco  naus,  de  que  se  compunha  a  armada,  partiram  de. Lis- 
boa a  2  de  abril. 


i')7 


alguns  dias  depois,  de  D.  Sebastião,  que  ficava  sendo  a  única 
esperança  da  independência  da  pátria. 

A  impressão  que  o  poeta  sentiu  conhecemo-la  pela  egloga 
1.*.  O  seu  coração  de  patriota  sobresaltou-se  com  o  receio 
de  que  o  barhavo  cultor  viesse  arar  os  campos  da  pátria: 

E  praza  a  Deus  que  o  triste  e  duro  fado 
De  tamanhos  desastres  se  contente ; 
Que  sempre  um  grande  mal  inopinado       4 
É  mais  do  que  o  espera  a  incauta  gente : 
Que  vejo  este  carvalho  qi/e  queimado 
Tão  gravemente  foi  do  raio  ardente ; 
\  Não  seja  ora  prodigio  que  declare 

Que  o  bárbaro  cultor  meus  campos  are. 

É  verdade  que  Umbrano  responde  ao  seu  interlocutor 
Frondelio: 

Emquanto  do  seguro  azambujeiro 
Nos  pastores  de  Luso  houver  cajados, 
Com  o  valor  antiguo,  que  primeiro 
Os  fez  no  mundo  tão  assinalados, 
Não  temas  tu,  Frondelio  companheiro, 
Que  em  algum  tempo  sejam  subjugados, 
Nem  que  a  cerviz  indómita  obedeça 
A  outro  jugo  qualquer  que  se  lhe  offreça. 

E,  posto  que  a  soberba  se  levante 
De  inimigos,  a  torto  e  a  direito, 
Não  crêas  tu  que  a  força  repugnante 
Do  fero  e  nunca  já  vencido  peito. 
Que  desde  quem  possue  o  monte  Atlante 
Adondc  bebe  o  Hydaspc  tem  sujeito, 
O  possa  nunca  ser  de  força  alheia, 
Emquanto  o  sol  a  terra  c  o  ccu  rodeia. 

Frondelio,  porém,  não  se  mostra  tão  optimista  c  responde: 

Umbrano,  a  temerária  segurança, 

Oue  em  força  ou  em  razão  não  se  assegura, 

É  faUa  e  vã,  que  a  grande  confiança 

Não  é  sempre  njihlndn  iln  vcnturn. 


E,  se  altentares  bem  os  grandes  danos 
Que  se  nos  vão  mostrando  cada  dia, 
Porás  freio  também  a  esses  enganos, 
Que  te  está  figurando  a  ousadia.  t, 

E,  mais  adeante,  o  próprio  Umbrano  reproduz  assim  os 
queixumes  que  ouvia  a  uma  das  nymphas  que,  perto  dum 
tumulo,  envolviam  brandamente  em  ricos  pannos  um  novo 
infante ; 

Uma,  que  dentre  as  outras  se  apartou, 
Com  gritos  que  a  montanha  entristeceram, 
Diz  que,  despois  que  a  morte  a  flor  cortou, 
Que  as  estrellas  somente  mereceram. 
Este  penhor  carissimo  ficou 
Daquelle  a  cujo  império  obedeceram 
Douro,  Mondego,  Tejo  e  Guadiana, 
Até  o  remoto  mar  da  Taprobana. 

Diz  mais  que,  se  encontrar  este  menino 
A  noite  intempestiva,  amanhecendo, 
O  Tejo,  agora  claro  e  crystallino, 
Tornará  a  fera  Alecto  em  vulto  horrendo. 
Mas  que,  a  ser  conservado  do  destino. 
As  benignas  estrellas  promettendo 
Lhe  estão  o  largo  pasto  de  Ampelusa, 
Co  monte  que  em  mau  passo  viu  Medusa, 

E  O  triste  presentimento  do  poeta  realizou-se,  embora  cm 
condições  diíferentes  das  que  elle  receava.  Quando  desceu 
ao  tumulo  (lo  de  junho  de  i58o),  o  maior  de  todos  os  por- 
tugueses (i)  já  não  tinha  duvidas  sobre  os  tristes  destinos  da 
pátria  (2). 


(i)  Cf.  Storck,  Vidà^de  Camões,  pag.  36,  etc. 

(2)  É  bem  conhecida  a  passagem  da  carta  que  elle  escreveu  pouco 
tempo  antes  de  morrer :  «Assi  acabarei  a  vida  e  verão  todos  que  fui 
tão  afeiçoado  á  minha  pátria,  que  não  só  me  contentei  de  morrer  nella, 
mas  com  ella». 


199 


Outra  noticia,  que  profundamente  feriu  o  coração  do  poeta: 
o  seu  joven  e  querido  amigo,  D.  António  de  Noronha,  o  apai- 
xonado adorador  de  D.  Margarida  da  Silva  (i),  havia  sido 
morto  pelos  mouros,  em  uma  emboscada,  nas  immediações 
de  Ceuta,  no  dia  18  de  abril  do  anno  anterior,  isto  é,  pouco 
depois  de  o  poeta  haver  embarcado. 

Eis  alguns  dos  bellos  e  sentidos  versos  em  que  Camões 
manifestou  a  sua  dor  pelo  infausto  acontecimento: 

Frondelio 

...  O  grande  curral,  seguro  e  forte, 
Do  alto  monte  Atlas  não  ouviste 
Que  com  sanguinolenta  e  fera  morte 
Despovoado  foi  por  caso  triste  ? 
Oh  triste  caso !  oh  desastrada  sorte, 
Contra  quem  força  humana  não  resiste ! 
Que  alli  também  da  vida  foi  privado 
O  meu  Tionio,  ainda  em  flor  cortado ! 

Umbrano 

Em  lagrimas  me  banha  rosto  e  peito 
Desse  caso  terrivel  a  memoria, 
Quando  vejo  quão  sábio  e  quão  perfeito 
E  quão  merecedor  de  longa  historia 
Era  esse  teu  pastor,  que  sem  direito 
Deu  ás  parcas  a  vida  transitória. 
Mas  não  ha  hi  quem  de  herva  o  gado  farte. 
Nem  de  juvenil  sangue  o  fero  Marte. 

E  depois  de  instado  por  Umbrano,  Frondelio  repete  os 


(1)  Estes  amores,  contrariados  pela  familia  de  D.  António,  eram 
lambem  mal  correspondidos  pela  formosa  menina,  a  Silvana  da  egloga  4.*. 
O  joven  fidalgo,  ainda  parente  da  família  real,  foi  enviado  para  Ceuta, 
onde  cm  breve  encontrou  morte  gloriosa. 


20O 


brandos  versos,  que  de  véspera  cantara  a  propósito  do  caso 
desastrado  : 

Aquelle  dia  as  aguas  não  gostaram 
As  mimosas  ovelhas  e  os  cordeiros 
O  campo  encheram  de  amorosos  gritos, 
E  não  se  penduraram  dos  salgueiros 
As  cabras,  de  tristeza,  mas  negaram 
O  pasto  a  si  e  o  leite  aos  cabritos. 

Prodígios  infinitos 

Mostrava  aquelle  dia, 

Quando  a  parca  queria 
Principio  dar  ao  fero  caso  triste. 
E  tu  também,  ó  corvo,  o  descobriste, 
Quando  da  mão  direita,  em  voz  escura, 

Voando,  repetiste 
A  tyrannica  lei  da  morte  dura. 

Tionio  meu,  o  Tejo  crystallino 
E  as  arvores  que  já  desamparaste 
Choram  o  mal  de  tua  ausência  eterna. 
Não  sei  porque  tão  cedo  nos  deixaste  I 
Mas  J^i  consentimento  do  destino. 
Por  quem  o  mar  e  a  terra  se  governa. 

A  noite  sempiterna. 

Que  tu  tão  cedo  viste. 

Cruel,  acerba  e  triste, 
Se  quer  de  tua  idade  não  te  dera 
Que  lograras  a  fresca  primavera  ? 
Não  (i)  usara  comnosco  tal  crueza, 

Que  nem  nos  montes  fera 
Nem  pastor  ha  no  campo  sem  tristeza. 


(i)  Presumo  que  deve  ler  se  Porque,  pondo-se  uma  interrogação  no 
fim  do  periodo. 


201 

• 
Qual  o  mancebo  turyalo,  enredado 
Entre  o  poder  dos  Rutulos,  fartando 
As  iras  da  soberba  e  dura  guerra, 
Do  crystallino  rosto  a  cor  mudando, 
Cujo  purpúreo  sangue,  derramado 
Por  as  alvas  espaldas,  tinge  a  serra ; 
y  Que,  como  flor,  que  a  terra 

Lhe  nega  o  mantimento. 
Porque  o  tempo  avarento 
Também  o  largo  humor  lhe  tem  negado, 
O  collo  inclina  languido  e  cansado : 
Tal  te  pinto,  ó  Tionio,  dando  o  esprito 

A  quem  to  tinha  dado. 
Que  este  ú  <;(')mente  eterno  e  infinito. 

(Egloga  i.«) 

Léa-se  também  o  soneto  12,  que  o  poeta  escreveu  antes 
da  egloga  i.*: 

Em  flor  vos  arrancou,  de  então  (1)  crescida, 
Ah  senhor  Dom  António  1  a  dura  sorte. 
Donde  fazendo  andava  o  braço  forte 
A  fama  dos  antigos  esquecida. 

Uma  só  razão  tenho  conhecida, 

Com  que  tamanha  magua  se  conforte : 
Que,  se  no  mundo  havia  honrada  morte, 
Não  podieis  vós  ter  mais  larga  vida. 

Se  meus  humildes  versos  podem  tanto. 
Que  CO  desejo  meu  se  iguale  a  arte. 
Especial  matéria  me  sereis; 

E,  celebrado  em  triste  e  longo  canto  (2), 
Se  morrestes  nas  mãos  do  fero  Marte, 
Na  memoria  das  gentes  vivereis. 


(1)  i>cvcr.i  icr-sc  ao  ciiãoi 

(2)  Alludc  o  poeta  naturalmente  k  egloga  i.%  que  elle  reputava  a 
melhor  de  quantas  hnvia  feito. « Por  agora  não  mais,  senão  que  este  sonetot 
que  aqui  vai,  que  fiz  á  morte   '    '*    António  de  Noronha  {decerto^  o  so- 


202 


Houve,  porém,  uma  novidade  que  encheu  de  alvoroço  o 
coração  do  poeta,  que  o  deixou  anciogo  por  voltar  para  Lis- 
boa :  a  infanta  continuava  solteira ;  já  se  não  realizava  o  pro- 
jectado casamento  com  o  herdeiro  da  coroa  de  F^spanha, 
que,  ao  partir  da  armada  para  a  índia,  ficava  noivo  da  rainha 
Maria  de  Inglaterra  (i).  j 


neto  acitna  transcripto)^  vos  mando  em  signal  de  quanto  delia  me  pesou. 
Uma  egloga  fiz  sobre  a  mesma  matéria,  a  qual  também  trata  alguma 
cousa  da  morte  do  príncipe,  que  me  parece  melhor  que  quantas  fiz». 
{Carta  /.»).  Ha  outro  soneto,  referente  á  morte  de  D.  António  de  Noro- 
nha, que  o  poeta  escreveu  mais  tarde,  sob  a  impressão  das  noticias  que 
lhe  deram  de  quanto  essa  morte  havia  sido  lastimada  pela  inimiga  e 
excellente  Mar/ida  da  egloga  i.",  noticias  motivadas  provavelmente  pelas 
allusões  desta  egloga  á  ingratidão  da  antiga  namorada  do  gentil  mancebo. 
Nesse  soneto,  o  poeta  inveja  a  sorte  do  seu  amigo,  que,  ao  menos,  moveu 
a  piedade  um  peito  de  diamante  ou  de  serpente.  EUe,  embora  morra  mil 
vezes,  não  poderá  conseguir  tal  resultado  ! 

Alma  gentil,  que  á  firme  eternidade 
Subiste  clara  e  valerosamente, 
Cá  durará  de  ti  perpetuamente 
A  fama,  a  gloria,  o  nome  e  a  saudade. 

Não  sei  se  é  mór  espanto  em  tal  idade 
Deixar  de  teu  valor  inveja  á  gente. 
Se  um  peito  de  diamante  ou  de  serpente 
Fazeres  que  se  mova  a  piedade. 

Invejosa  da  tua  acho  mil  sortes, 

E  a  minha  mais  que  todas  invejosa. 
Pois  ao  teu  mal  o  meu  tanto  igualaste. 

Oh  ditoso  morrer !  ditosa  sorte  ! 

Pois  o  que  não  se  alcança  com  mil  mortes, 
Tu  com  uma  só  morte  o  alcançaste  ! 

(Soneto  229). 

(i)   Logo  que   teve  noticia   do  fallecimento  do   rei   de   Inglaterra, 
Eduardo  VI,  occorrido  em  6  de  julho  de  i553,  D.  João  III  apressou-se  a 


203 


É  fácil  de  imaginar  como  esta  noticia  melhoraria  a  can- 
sada vida  do  poeta,  «como  lhe  daria  espiritas  tiojH)s,  para 
vencer  a  fortuna  e  o  trabalho.  Podemos  suppôr  como  elle, 
se  lhe  fosse  possível,  desejaria  embarcar  em  alguma  das  naus 
que  d'alli  a  poucos  meses  voltariam  para  o  reino,  afim  de  po- 
der tornar  a  ver,  servir  e  querer  a  bcm-amada,  que  tão  rude 
golpe  acabava  de  soffrer. 

...  A  vida  cansada  se  melhora, 
Toma  espíritos  novos,  com  que  vença 

A  fortuna  e  trabalho. 

Só  por  tornar  a  ver-vos, 
Só  por  ir  a  servir-vos  e  querer-vos. 

(Canção  io.«). 


tratar  do  casamento  da  irmã  com  o  principe  Philippe,  não  fosse  Carlos  V 
lembrar-se  de  querer  casar  o  filho  com  a  succcssora  de  Eduardo  VI, 
tornando  assim  irrealizável  o  velho  plano  de  lhe  dar  por  marido  o  in- 
fante D.  Luís,  plano  formado  quando  ella  ainda  poucas  probabilidades 
tinha  de  subir  ao  throno  e  que  agora  tanto  sorria  ao  monarca  português. 
Mas  já  era  tarde.  Lourenço  de  Távora,  o  homem  de  confiança  de 
D.  João  III,  mandado  a  toda  a  pressa  á  corte  de  Inglaterra,  com  minu- 
ciosas instrucções,  foi  ardilosamente  detido  em  Bruxellas  por  Carlos  V, 
que,  por  fim,  lhe  fez  saber  que  a  rainha  Maria  de  Inglaterra  ia  casar  com 
seu  filho.  Agora  já  se  appcllava  p;»ra  a  deplorável  situação  em  que  ficava 
a  infanta  D.  Maria !  Agora  já  se  argumentava  com  a  nobrigaçam  em  que 
o  Emperador  e  seu  filho  estavam,  e  penhores  que  tinham  dado  para  se 
nam  poder  tratar  doutro  cazamento».  Tudo  foi  inútil.  Carlos  V  respon- 
dia que,  por  sua  parte,  a  nada  estava  obrigado,  pois  não  tinha  havido 
acceitação,  c  que  a  do  príncipe,  seu  filho,  fora  condicional,  ficara  depen- 
dente da  sua.  Veja-sc  nos  Manuscriptosde  S.  Vicente  de  Fora,  liv.  i.",fl.  233 
e  segg.  (Torre  do  Tombo),  a  carta  escripta  por  D.  João  111  a  António 
de  Saldanha  em  agosto  de  i553,  e  na  Historia  de  varões  illustres  do 
appellido  Távora,  pag.  iii  c  segg.,  a  corre  '    i^ia  entre  D.  João  III 

e  Lourenço  de  Távora.  Cf.  Visconde  de  .  i,  Quadro  etemerUar, 

XV,  54  e  segg. 


204 


Em  vez,  porem,  de  voltar  para  o  reino,  o  poeta,  obri- 
gado ao  serviço  militar,  teve  de  ir  para  o  aborrecido  e  peri- 
goso cruzeiro  do  estreito  de  Meca  (golpho  de  Aden),  na 
armada  do  commando  de  Manuel  de  A^asconcellos  (fevereiro 
de  i553). 

Eis  como  Diogo  do  Couto  dá  noticia  desse  cruzeiro:  «Par- 
tido Manuel  de  Vasconcellos  de  Goa. . .  c  em  sua  companhia 
Fernão  Farto,  que  levava  os  padres  para  irem  a  Abassia, 
foram  seguindo  sua  derrota  até  haverem  vista  da  costa  de 
Arábia,  e  Manuel  de  Vasconcellos  se  foi  lançar  com  toda  a 
sua  armada  a  Monte  de  Félix  (i),  como  levava  por  regimento, 
pêra  alli  esperar  as  nãos  que  haviam  de  vir  do  Achem  e  alli 
esteve  até  se  lhe  gastar  a  monção,  sem  lhe  vir  cahir  alguma 
nas  mãos.  E  sendo  tempo  de  se  recolher  a  invernar  em  Mas- 
cate, pêra  recolher  as  nãos  de  Ormuz,  por*  se  recearem  do 
cossario  Cafár,  se  fez  á  vela  e  foi  surgir  naquelle  porto,  onde 
desapparelhou  e  esteve  até  setembro  e  entrada  de  outubro» 
(Década  vii,  1.  i,  c.  viii). 


(i)  É  o  Ras  (cabo)  ai  Fil,  ou  Filuk,  situado  algumas  dezenas  de  mi- 
lhas (38  em  linha  recta)  para  dentro  do  cabo  de  Guardafui,  na  costa 
setentrional  da  Somália.  Eis  como  elle  vem  descripto  no  roteiro  inglês 
do  Mar  Vermelho  e  golpho  de  Aden  [The  Red  Sea  and  Gulf  of  Aden 
Pilot,  edição  de  1900) :  «Ras  Filuk,  ou  mais  propriamente  Ras-al-Fil,. .. 
o  Mons  Elephas  dos  romanos,  assim  chamado  por  causa  da  similhança 
que  tem  com  um  elephante,  é  uma  elevada  collina  de  800  pés  d'altitude 
acima  do  nivel  do  mar,  a  8  milhas  a  oeste  do  Ras  Aluía.  Tem  a  appa- 
rencia  de  uma  ilha,  quer  se  veja  de  leste,  quer  de  oeste,  pois  são  baixas 
as  terras  que  lhe  ficam  ao  pé.  Os  indigenas  chamam-lhe  geralmente  Ras 
Belmúk.  Com  tempo  claro  pôde  ser  visto  á  distancia  de  40  milhas... 
No  valle  que  fica  a  leste  ha  uma  laguna  de  agua  salgada. . .  A  oeste  do 
Ras  Filuk  ha  uma  pequena,  mas  profunda  baía,  abrigada  dos  levantes 
e  poentes,  com  um  bom  ancoradouro  de  5  braças  d'agua». 


203 


Ouçamos  agora  o  poeta  (i): 

Junto  d'um  sêcco,  duro  (2),  estéril  monte, 
Inútil  e  despido,  calvo  e  (3)  informe, 
Da  natureza  em  tudo  aborrecido. 
Onde  nem  ave  voa  ou  fera  dorme, 
5    Nem  corre  claro  rio  ou  ferve  fonte, 
Nem  verde  ramo  faz  doce  ruido. 
Cujo  nome,  do  vulgo  introduzido, 
E  Feliz  (4),  por  aniiphrasi  infelice, 
O  qual  a  natureza 

10  Situou  junto  á  parte 

Aonde  um  braço  d'alto  mar  reparte 
A  Abassia  da  Arábica  aspereza. 
Em  que  (5)  fundada  já  foi  Berenice  (6), 
Ficando  á  parte  donde 

i5     O  sol  que  nella  ferve  se  lhe  esconde; 


(i)  Reproduzo  o  texto  da  edição  de  iS52,  reservando  para  as  notas 
algumas  variantes  ou  correcções. 

(2)  Nas  primeiras  edições  \ê-se  fero  e.  Faria  e  Sousa  :  duro. 

(3)  As  primeiras  edições  omitiem  a  conjuncção. 

(4)  Primeira  edição:  Por  aniiphrasi  he/elix  infelice.  Creio  que  deve 
manter-se  esta  lição,  pronunciando  Félix  e  fazendo  seguir  estn  palavra 
da  preposição  de. 

(5)  Primeira  edição :  Onde. 

(6)  Se  a  palavra  relativa  por  que  começa  este  verso  se  refere  á  Ará- 
bia, trata-se  da  Berenice  que  ficava  na  Arábia  Pétrea,  no  extremo  norte 
do  Aelaniticus  sinus.  Neste  caso,  o  Ficando  do  verso  14  refere-se  a  Bere- 
nice tí  este  verso  e  o  seguinte  formam  como  que  um  parenthesis.  Se, 
porem,  o  antecedente  do  Em  que  é  a  parte  do  verso  10,  trata-se  de  uma 
das  três  ou  quatro  Berenices,  que  se  achavam  situadas  na  costa  afrícana 
do  Mar  Vermelho.  E  se  no  verso  i5  se  deve  ler  nelley  como  fez  o  pri- 
meiro editor  das  Rimas,  n§o  pódc  deixar  de  ser  uma  destas.  NeUe  seria 
então  o  braço  d'alto  mar  do  verso  11,  isto  é,  o  Mar  Vermelho,  a  que, 
diga-5e  de  passagem,  os  nossos  antigos  escriptores  davam  como  limites 
extremos  Suez  e  uma  linha  tirada  do  cabo  de  Guardafuí  ao  de  Fartaque. 
Vide,  por  exemplo,  D.  João  de  Castro,  Roteiro. . .  de  Goa  atee  Soe^,  p.  33. 


20b 

o  cabo  se  descobre,  com  que  a  costa  (i) 
Africana,  que  do  austro  vem  correndo, 
Limite  faz,  Arómata  chamado, 
Arómata  outro  tempo,  que  volvendo 

20    A  rocia  (2),  a  ruda  lingua  mal  composta 
Dos  próprios  outro  nome  lhe  tem  dado. 
Aqui,  no  mar  que  quer,  apressurado, 
Entrar  por  a  garganta  deste  braço  (3), 
Me  trouxe  um  tempo  e  teve  (4) 

25  Minha  fera  ventura. 

Aqui,  nesta  remota,  áspera  e  dura 
Parte  do  mundo,  quis  que  a  vida  breve 
Também  de  si  deixasse  um  breve  espaço. 
Porque  ficasse  a  vida 

3o    Por  o  mundo  em  pedaços  repartida. 

Aqui  me  achei  gastando  uns  tristes  dias, 
Tristes,  forçados,  maus  e  solitários. 
De  trabalho  (5),  de  dôr  e  de  ira  cheios. 
Não  tendo  tão  somente  por  contrários 


(1)  Na  I.*  edição  o  verso  i5  termina  erradamente  por  um  ponto 
e  o  verso  16  começa  assim :  Nelle  apparece  o  cabo  etc.  A  emenda  do 
texto  é  de  F.  e  Sousa,  que  diz  tê-la  encontrado  em  um  manuscripto. 
Talvez  o  poeta  escrevesse  Onde  ou  Em  que  apparece  etc,  referindo-se 
ao  verso  10.  Neste  caso,  o  verso  21  terminaria  por  dous  pontos  e  o  Aqui 
do  verso  22  ligar-se-ia  immediatamente  com  o  começo  da  canção. 

(2)  Variantes:  os  céus;  o  tempo. 

(3)  «A  monção  de  nordeste  (foi  durante  ella  que  alli  esteve  o  poeta) 
impelle  a  agua  para  o  golpho  de  Aden  e  deste. . .  para  o  Mar  Vermelho. 
Na  costa  setentrional  da  Somália  forma-se  uma  contra-corrente».  Bo- 
guslawski  u.  Krummel,  Handbuch  der  O^eanographie,  11,  469  (Stuttgart, 
1887). 

(4)  O  facto  de  o  poeta  fallar  no  pretérito  até  o  verso  67  mostra  que 
a  canção  foi  escripta  depois  de  terminado  o  cruzeiro.  Foi-o  provavel- 
mente em  Mascate,  onde,  como  fica  dicto,  Manuel  de  Vasconcellos  se 
recolheu  a  invernar.  Cf.  os  versos  67-69;  106  e  segg.  Faria  e  Sousa  sup- 
suppõe  que  a  canção  fosse  escripta  em  Gôa.  Para  o  dr.  Storck,  foi-o 
no  Ras-el-Fil. 

(5)  Primeiras  edições :  trabalhosos. 


•IO- 


35     A  vida  (O,  o  sol  ardente,  as  aguas  frias  (2), 
Os  ares  (3)  grossos,  férvidos  e  feios. 
Mas  os  meus  pensamentos,  que  são  meios 
Para  enganar  a  própria  )rta  tu  reza, 
Também  vi  contra  mi, 

40  Trazendo-me  á  memoria 

Alguma  já  passada  e  breve  gloria, 
Que  eu  já  no  mundo  vi,  quando  vivi, 
Por  me  dobrar  dos  males  a  aspereza. 
Por  mostrar-me  que  havia 

45    No  mundo  muitas  horas  de  alegria. 

Aqui  'stive  eu,  com  estes  oepsamentos, 
Gastando  tempo  e  vida,  os  quaes  tão  alto 
Me  subiam  nas  asas,  que  caía 
(Oh  vede  se  seria  leve  o  salto !) 
5o    De  sonhados  e  vãos  contentamentos 
Em  desesperação  de  ver  (4)  um  dia. 
O  imaginar  aqui  se  convertia 
Em  improvisos  choros  e  em  suspiros  (5), 
Que  rompiam  os  ares. 


(i)  Talvez:  o  vento,  os  levantes  que  nessa  occasião  sopravam. 

(2)  «Na  costa  setentrional  da  Somália  o  período  das  chuvas  vai  de^ 
dezembro  a  maio,  durante  a  monção  de  nordeste.  Precede-o  um  tempo 
secco  e  quente,  vem  depois  o  tempo  fresco  até  meado  de  março.  O 
tempo  secco,  de  junho  a  novembro,  corresponde  ao  periodo  da  monção 
de  sudoeste  e  é  muito  quente».  J.  Hann,  Handbuch  der  Klimaiologie, 
II,  128  (Stullgart,  1897). 

(3)  Talvez  :  mares.  Cf,  por  exemplo,  esta  passagem  dos  Commenta' 
rios  do  grande  Afonso  Dalboquerque  (parte  4.",  cap.  2.*) :  «Tomando  ali 
a  costa  na  mão  (falla-se  da  costa  onde  fica  o  monte  de  Félix),  foram 
sempre  ao  longo  delia,. . .  e  porque  as  aguas  corriam  contra  vento  e  o 
mar  era  grosso,  teve  a  nossa  armada  muito  trabalho»  etc. 

(4)  Escreveria  o  poeta  :  de  os  ver  t 

(5)  Primeira  edição:  N'hum  súbito  chorar  e  n'hffs  suspiros. 


2oJS 

55  Aqui,  a  alma  captiva, 

Chagada  toda,  estava  em  carne  viva, 
De  dores  rodeada  e  de  pesares. 
Desamparada  e  descoberta  aos  tiros 
Da  soberba  Fortuna, 

óo    Soberba,  inexorável  e  importuna  ! 

Não  tinha  parte  donde  se  deitasse. 
Nem  esperança  alguma  onde  a  cabeça 
Um  pouco  reclinasse  por  descanso  ! 
Tudo  dôr  lhe  era  e  causa  que  padeça, 

65     Mas  que  pereça  não,  porque  passasse 
O  que  quis  o  destino  nunca  manso. 
Oh  que  este  iraob  mar,  gemendo  (i),  amanso  ! 
Estes  ventos,  da  voz  .importunados  (2), 
Parece  que  se  enfrêam ; 

70  Somente  o  ceu  severo, 

As  estrellas  e  o  fado,  sempre  fero, 
Com  meu  perpétuo  dano  se  recrêam, 
Mostrando-se  potentes  e  indignados 
Contra  um  corpo  terreno, 

75     Bicho  da  terra,  vil  e  tão  pequeno  ! 

Se,  de  tantos  trabalhos,  só  tirasse 
Saber  inda,  por  certo,  que  algum'hora 
Lembrava  a  uns  claros  olhos,  que  já  vi, 
E  se  esta  triste  voz,  rompendo  fora, 

80    As  orelhas  angélicas  tocasse 
Daquella,  em  cuja  vista  já  vivi, 
A  qual,  tornando  um  pouco  sobre  si. 
Revolvendo  na  mente  pressurosa 
Os  tempos  já  passados 

85  De  meus  doces  errores. 


(i)  Primeira  edição:  gritando. 

(2)  Allusão,  segundo  creio,  ao  mar  que  banha  a  costa  de  Mascate, 
agitado,  na  occasião  em  que  o  poeta  ahi  invernava,  pelos  ponentes,  pela 
monção  de  sudoeste. 


De  meus  suaves  males  e  furores, 
Por  ella  padecidos  e  buscados, 
E,  posto  que  já  tarde  (i),  piedosa. 
Um  pouco  lhe  pesasse, 
oo     K,  lá  entre  si  (2),  por  dura  se  julgasse : 

Isto  só  que  soubesse,  me  seria 

Descanso  para  a  vida  que  me  íica  1 

Com  isto  afagaria  o  soffrímento  ! 

Ah  Senhora !  Ah  Senhora !  E  que  tão  rica  (3) 
95     Estais^  que  cá,  tão  longe  de  alegria. 

Me  sustentais  com  doce  fingimento ! 

Logo  que  vos  figura  o  pensamento  (4), 

Foge  todo  o  trabalho  e  toda  a  pena. 
Só  com  vossas  lembranças, 
100  Me  acho  seguro  e  forte 

Contra  o  rosto  feroz  da  fera  morte  ! 

E  logo  se  me  juntam  esperanças, 

Com  que,  a  fronte  tornada  mais  serena, 
Torno  os  tormentos  graves 
io5     Em  saudades  brandas  e  suaves. 

Aqui,  com  ellas,  fico  perguntando 
Aos  ventos  amorosos  (5),  que  respiram 
Da  parte  donde  estais,  por  vós.  Senhora ; 
Ás  aves,  que  d'alli  (6)  voam,  se  vos  viram, 
1 10    Que  fazieis,  que  estáveis  praticando. 

Onde,  como,  com  quem,  que  dia  e  que  hora  ? 
Alli  (7)  a  vida  cansada  se  melhora, 
Toma  espiritos  novos,  com  que  vença 
A  fortuna  e  trabalho. 


(1)  Primeira  edição:  Tornada  finda  que  tjrdc). 

(2)  Primeira  edição :  E  conisii. 

(3)  Primeira  edição:  i4/r,  Senhorj.  scMar»/.!,  ^ii<-  etc. 

(4)  Primeira  edição :  Em  vos  afigurando. 

(5)  Em  outubro  começam  a  soprar  cm  Mascate  os  noroestes,  frescor 
e  chuvosos.  Cf.  Hann,  ob.  cit.,  111,  io<). 

í^)  Talvez  :  que  d'hi. 

(7)  Não  deverá  ICt-sl-  A.^m  ' 

14  K.  5ay4 


ii5  Só  por  tornar  a  ver-vos, 

Só  por  ir  a  servir-vos  e  querer- vos. 

Diz-me  o  tempo  que  a  tudo  dará  talho; 

Mas  o  desejo  ardente,  que  detença 
Nunca  sofTreu,  sem  tento 
120    Me  abre  as  chagas  de  novo  ao  soílrimenio. 

Assi  vivo  e  se  alguém  te  perguntasse, 

Canção,  porque  não  mouro, 
Podes-lhe  responder  que  porque  mouro  (i). 

São,  creio  eu,  contemporâneas  da  canção  10/'^  as  seguintes 
redondilhas : 

Mote  (alheio) 

Trabalhos  descansariam, 
Se  para  vós  trabalhasse. 
Tempos  tristes  passariam, 
Se  algum'hora  vos  lembrasse. 

Glosa 

Nunca  o  prazer  se  conhece, 
Senão  depois  da  tormenta. 
Tampouco  o  bem  permanece. 
Que,  se  o  descanso  fiorece. 
Logo  o  trabalho  arrebenta. 
Sempre  os  bens  se  lograriam, 
Mas  os  males  tudo  atalham. 
Porém,  já  que  assi  porfiam. 
Onde  descansos  trabalham, 
Ti-abalhos  descansariam. 

Qualquer  trabalho  me  fora. 
Por  vós,  grão  contentamento  ; 
Nada  sentira.  Senhora, 
Se  vira  disto  algum'hora 
Em  vós  um  conhecimento. 


(1)  Morro  de  saudades  c  comtudo  são  ellas  que  me  dão  vida. 


2  l  I 

Por  mal  que  o  mal  me  tratasse, 
Tudo  por  bem  tomaria ; 
Posto  que  o  corpo  cansasse, 
A  alma  descansaria. 
Se  para  vós  trabalhasse. 

Quem  vossas  cruezas  já 
SoflVeu,  a  tudo  se  pôs. 
Costumado  ficará 
E  muito  melhor  será. 
Se  trabalhar  para  vós. 
Tristezas  esqueceriam. 
Posto  que  mal  me  trataram ; 
Annos  não  me  lembrariam, 
Que,  como  est'outros  passaram. 
Tempos  tristes  passariam. 

Se  fosse  galardoado 
Este  trabalho  tão  duro, 
Não  vivera  maguado. 
Mas  não  o  foi  o  passado. 
Como  o  será  o  futuro  ? 
De  cansar  não  cansaria, 
Se  quiséreis  que  cansasse ; 
Cavar  (i),  morrer,  fa-lo-ía; 
Tudo,  emfim,  esqueceria. 
Se  algum' hora  vos  lembrasse. 

Parcce-me  ter  sido  também  escripto  durante  o  cruzeiro  o 
seguinte  soneto,  conservado  no  Cancioneiro  de  Franco  Cor- 
reia (íl.  I  ib  \.): 

Ondas,  que,  por  el  mundo  caminando, 

Contino  vais  //evadas  (2)  por  el  viento, 
L/evad  embuelto  cn  vos  mi  pcnsamienio 
Do  está  la  que,  do  está,  lo  está  causando. 


(i)  iJuvido  que  o  poeta  escrevesse  aqui  esta  palavra.  Talvez  repe- 
tisse o  verbo  cansar  ou  empreiíasse  outro  de  <Í!Miifl.  ;•.  m<>  in;.lf»«.  i  rr^n^n 
penar. 

(2)  No  Cancioneiro:  IhcuaJas ;  no  verso  .^   ///cw/jJ,  no  y  ftal/iasta 

f 


Dezilde  que  os  estoi  acrecenta;ido  (i); 

Dezilde  que  de  vida  no  hai  momento ; 

Dezilde  que  no  muerc  mi  tormento ; 

Dezilde  que  no  vivo  ia  esperando. 
Dezilde  quã  perdido  me  ha//astes; 

Dezilde  quã  ganado  me  perdistes; 

Dezilde  quã  sin  vida  me  matastes. 
Dezilde  quã  //agado  me  heristes ; 

Dezilde  quã  sin  mi  que  me  dexastes ; 

Dezilde  quã  con  ella  que  me  vistes. 

Quando  Camões  voltou  a  Goa,  ancioso  por  que  findasse 
o  seu  triennio  de  serviço  militar,  para  poder  embarcar  para 
o  reino,  governava  a  Índia  Francisco  Barreto,  tio  de  D.  Fran- 
cisca d'Aragão,  a  musa  invocada  para  os  Lusíadas. 

Ou  por  indicações  que  lhe  foram  de  Lisboa  ou  mesmo 
sem  ellas,  Francisco  Barreto,  recorrendo  a  amigáveis  conse- 
lhos ou  chegando  talvez  mesmo  a  interpor  a  sua  auctori- 
dade  (2),  evitou  que  o  apaixonado  poeta  satisfizesse  o  desejo 
ardente,  que  lhe  não  soffria  detença,  de  tornar  a  ver,  servir 
e  querer  a  bem-amada  (3).  Que  vinha  elle  fazer  para  o  reino  ? 


e  no  12  Ihagado.  Notarei  ainda  pensamento  no  verso  3.°;  acrecentado 
no  4.*';  em  no  3.°;  da  no  6."  Juromenha  mudou  vais  para  vas,  no  verso  2.°; 
estoi  para  estás  no  5.";  passou  para  o  singular  os  verbos  por  que  termi- 
nam os  versos  9  a  i3;  eliminou  o  que  do  ultimo  verso  e  no  primeiro 
imprimiu  camifiando.  As  correcções  de  W.  Storck  (Sãmmtliche  Gedichte^ 
II,  433)  são  plenamente  justificadas  pelo  texto  do  Cancioneiro. 
(i)  Com  as  minhas  lagrimas. 

(2)  D'ahi  talvez  a  tradição  de  que  F.  Barreto  havia  desterrado  o  poeta 
para  a  China,  embora  fossem  outros  os  motivos  indicados. 

(3)  O  governador  da  índia  teve  occasião  de  conhecer  de  visu  a  exal- 
tação amorosa  do  poeta,  quando  em  Gôa  assistiu  á  representação  do 
Filodemo,  posto  em  scena  para  festejar  a  sua  elevação  áquelle  cargo. 
Com  que  calor,  com  que  enthusiasmo,  saído  do  fundo  do  coração,  não 
desempenharia  Camões  o  papel  do  protagonista,  apaixonado  pela  filha 
de  seu  amo  ?  Relêam-se  as  passagens  que  já  ficam  transcriptas. 


2l3 


Evidentemente  praticar  loucuras  e  compromctter  quem,  por 
todos  os  motivos,  devia  ser  respeitada  e  deixada  em  paz. 
Não  lhe  era  melhor  ir  para  as  Molucas  ou  para  outras  terras 
orientaes  angariar  alguns  meios  de  fortuna  ? 

Provido  ou  não  d'um  cargo,  contra  vontade  ou  meio  con- 
vencido, o  poeta  lá  foi  para  o  Extremo  Oriente,  não  sem  ver 
em  tudo  isto  o  dedo  da  infanta,  não  sem  lhe  attribuir  parte 
no  seu  tão  longo  e  ffiiscro  desterro. 

Ouçamo-lo: 

Com  força  desusada 

Aquenta  o  fogo  eterno  (i) 
Uma  ilha,  nas  partes  do  Oriente  (2), 

De  estranhos  habitada  (3), 
3  Aonde  o  duro  inverno 

Os  campos  reverdece  alegremente  (4). 

A  lusitana  gente 

Por  armas  sanguinosas 

Tem  delia  o  senhorio  (5). 


(i)  Escreveria  o  poeta  fogo  interno,  alludindo  ao  vulcão  de  Ternatc? 
Cf.  Lusíadas,  x,  i32  : 

Temate,  co  fervente 
Cume,  que  lança  as  flammas  ondeadas. 

(2)  Segundo  alguns,  trata-se  de  Gôa,  segundo  .outros  das  ilhas  de 
Banda ;  parecc-me,  porém,  indiscutivel  a  opinião,  já  apresentada  por 
Severim  de  FarÍ9,  de  que  o  poeta  se  refere  á  ilhn  de  Ternale,  uma  das 
Moluca'^ 

(3)  (^i.  Inu  i  ws,  L)l  í  aa.i .'. ',  ;>,  3.  «  1  wu'  ■>  ^.».>  ii.iiMi.iiiit>  das  Molucas)  con- 
fessam serem  estrangeiros  e  não  próprios  indigenas  e  naturaes  da  terra». 

(4)  Cf.  Couto,  Década  4.*,  7,  10.  aNcstas  ilhas  todas  não  ha  verSo  nem 
inverno». 

(5)  Vid.  Lusíadas,  x,  i32.  Em  Tidor  e  Tcmalc 

As  arvorcs^verás  do  cravo  ardente, 
Co  sangue  português  inda  compradas. 

Não  foi  sem  commoção  que  li  na  obra  de  GuílIciDard,  Australasia 


_  ^4_ 

10  Cercada  está  cie  um  rio 

De  maritimas  aguas  saudosas  (i). 
Das  hervas  que  aqui  nascem 
Os  gados  juntamente  e  os  olhos  pascem  (2^ 

Aqui  minha  ventura 
i5  Quis  que  uma  grande  parte 

Da  vida,  que  eu  não  tinha,  se  passasse  (3), 
Para  que  a  sepultura 
Nas  mãos  do  fero  Marte 
De  sangue  e  de  lembranças  matizasse. 
20'  Se  Amor  determinasse 

Que,  a  troco  desta  vida, 
De  mi  qualquer  memoria 
Ficasse  como  historia, 
Que  de  uns  formosos  olhos  fosse  lida, 
25  A  vida  e  a  alegria 

Por  tão  doce  memoria  trocaria  1 


(Londres,  1894),  11,  3i5,  as  seguintes  linhas:  «Em  todas  as  cidades  prin- 
cipaes  das  Molucas  vive  um  certo  numero  de  descendentes  dos  antigos 
colonos  portugueses.  São  conhecidos  pelo  nome  de  Ormig  Sirani  ou 
Nazarenos.  Faliam  malaio,  misturado  com  um  numero  considerável  de 
palavras  portuguesas,  mas,  pelo  facto  de  viverem  ha  séculos  sob  o  do- 
mínio dos  hollandêses,  abraçaram  o  protestantismo  e  desconhecem  com- 
pletamente a  sua  procedência». 

(i)  Trata-se  talvez  do  canal  que  separa  Tidor  de  Ternate  e  esta  de 
Halmahera  ou  Gilolo.  O  epitheto  saudosas  é-nos  explicado  por  estas  pala- 
vras de  Guillemard,  que  reproduzo  na  própria  lingua  original :  «As  far  as 
regards  magnificence  of  scenery,  Ternate  is  perhaps  the  finest  harbour 
in  the  Dutch  Indies,  for  it  is  formed  by  two  volcanic  islands  whose 
peaks  are  nearly  6000  feet  in  height,  and  of  wonderfully  graceful  outline». 
(Ob.  cit.,  p.  319). 

(2)  «The  vegetation  of  the  Moluccas  is  exceedingly  rich  and  varied. . . 
Palms  and  padani  are  very  abundant,  dammar  pines  grow  in  the  forests, 
while  ferns,  creepersandfloweringshrubs  in  endless  variety  clothe  the  fo- 
rest  glades  and  lhe  rocky  beaches  with  exquisite  drapery».  (Ob.  cit.,  p.  309). 

(3)  Escreveria  o  poeta  gastasse  f  Cf.  canção  10.%  versos  25-3o  e  46-47* 


•2  I? 

Mas  este  fingimento, 

Por  minha  dura  sorte, 
Com  falsas  esperanças  me  convida. 
3o  Não  cuide  o  pensamento 

Que  pôde  achar  na  (i)  morte 
O  que  não  pôde  achar  tão  longa  vida. 

Está  já  tão  perdida 

A  minha  confiança, 
35  Que,  de  desesperado 

Em  ver  meu  triste  estado. 
Também  da  morte  perco  a  esperança. 

Mas  oh  1  que  se  algum  dia 
Desesperar  pudesse,  viveria  (2). 

40  De  quanto  tenho  visto 

Já  agora  não  me  espanto, 
Que  até  desesperar  se  me  defende  (3). 

Outrem  foi  causa  disto, 

Pois  eu  nunca  fui  tanto  (4), 
43     Que  causasse  este  fogo  que  me  incende. 

Se  cuidíim  que  me  oíTende 

Temor  de  esquecimento. 

Oxalá  meu  perigo 

Me  fora  tão  amigo, 
5o    Que  algum  temor  deixara  ao  pensamento ! 

Quem  viu  tamanho  enleio, 
Que  houvesse  ahi  'sperança  sem  receio  (5; 


(i)  Talvez  a.  Não  cuide  o  pensamento  que  a  minha  morte  poderá 
conseguir  o  que  não  conseguiu  umn  inn^n  vid:i.  --*-  -.  '••  ■  -i  infnnin  se 
lembre  de  mim. 

(2)  Talvez  o  poeta  escrevesse  :  morreria.  Isto  c :  no  dia  em  que  per- 
desse de  todo  a  esperança,  morreria. 

(3)  Sob  pena  de  morrer. 

(4)  Primeira  edição :  Que  eu  nunqua  pude  Lmto. 

(5)  Não  c  para  mim  motivo  de  fllllicção  o  receio,  o  temor  de  me 
esquecer  da  infanta,  pois  esse  receio  seria  sígnal  de  que  a  esperança 

linda  não  esiaviKdc  todo  morta  em  mim.  Oxalá  que  neste  perigo  em 
que  estou  de  me  esquecer  il;i  hfin  ;itn;ul;i.  cw  \\\r\<.c  ii^ccio  ile  ;i  osiuiL*í.*fr. 


■2\h 


Quem  tem  que  perder  possa 

Só  pode  recear. 
35     Mas  triste  quem  não  pôde  já  perder ! 

Senhora,  a  culpa  é  vossa, 

Que,  para  me  matar, 
Bastara  uni'hora  só  de  vos  não  ver  (i). 

Pusestes-me  em  poder 
(>o  De  falsas  esperanças, 

E  do  que  mais  me  espanto  : 

—  Que  nunca  vali  tanto, 
Que  visse  tanto  bem  como  esquivanças  (2). 

Valia  tão  pequena 
65     Não  pôde  merecer  tão  doce  (3)  pena. 

Houve-se  Amor  comigo 

Tão  brando  ou  pouco  irado, 
Quanto  agora  em  meus  males  se  conhece. 

Que  não  ha  mór  castigo, 
70  Para  quem  tem  errado, 

Que  negar-lhe  o  castigo  que  merece. 

Da  sorte  que  acontece 

Ao  misero  doente, 

Da  cura  despedido, 
75  Que  o  medico  advertido 

Tudo  quanto  deseja  lhe  consente, 

O  Amor  me  consentia 
Esperanças,  desejos  e  ousadia  (4). 


(i)  Quanto  mais  tantos  annos  de  ausência  !  Não  é  de  admirar  que  eu 
já  receie  perder-vos. 

(2)  Primeira  edição  :  Que  viiiesse  tãbem  com  esquiiiãças.  Talvez  : 
Que  visse  maior  bem  do  que  esquivanças.  Isto  é  :  nunca  de  vós  mereci 
senão  esquivanças. 

(3)  Não  deverá  ler-se  grave?  Cf.  o  verso  84. 

(4)  Lê-se  na  i."  edição  (versos  72-78) : 

E  bem  como  acontesce 

Que,  assi  como  ao  doente. 

Da  cura  despedido, 

O  medico  sabido 
Tudo  quanto  deseja  lhe  consente, 

Assi  me  consentia 
Esperança,  desejo  &  ousadia. 


E  agora  venho  a  dar 
8o  Conta  do  bem  passado 

A  esta  triste  vida  e  longa  ausência. 
Quem  pôde  imaginai 
Que  houvesse  em  mi  i-c^cuuo, 
Digno  duma  tão  grave  penitencia  (i)? 
85  Olhai  que  é  consciência, 

Por  tão  pequeno  erro, 
Senhora,  tanta  pena! 
Não  vedes  que  é  onzena  ? 
Mas,  se  tão  longo  e  misero  desterro 
'»o  Vos  dá  contentamento, 

Nunca  me  acabe  nelle  meu  tormento. 

Rio  formoso  e  claro 
E  vós,  ó  arvoredos. 
Que  os  justos  vencedores  coroais 
(j5  E  ao  cultor  avaro, 

Continuamente  ledos. 
De  um  tronco  só  diversos  frutos  dais  (2), 
Assim  nunca  sintais 
Do  tempo  injuria  algua, 
100  Que  em  vós  achem  abrigo 

As  maguas  que  aqui  digo, 
Emquanto  der  o  sol  virtude  á  lua ; 

Porque  de  gente  em  gente 
Saibam  que  já  não  mata  vida  ausente. 
io5    Canção,  neste  desterro  viverás, 
Voz  nua  e  descoberta. 
Até  que  o  tempo  em  ecco  te  converta. 

(Canção  6.*). 


(1)  Primeira  •dição: 


Qviv    j-Uvic:    liUvi    ,-^^vado 

Que  meresça  tão  graue  penitencia  ? 

(i)  Segundo  W.  Storck,  que  suppõe  esta  canção  escripta  nas  ilhas 
de  Banda,  trata- se  das  moscadeiras.  nEstes  diversos  fructoSf  que  nascem 
de  um  tronco  só,  não  podem  ser  senão  a  flor  e  a  noz  moscada,  o  dúplice 


2l8 


No  soneto  Quando  cuido,  contemporâneo  da  canção  6.^^ 
insiste  o  poeta  no  receio  que  tem  de  se  esquecer  da  infanta  (i). 

Quando  cuido  no  tempo  que  contente 

Vi  as  pérolas,  neve,  rosa  e  ouro, 

Como  quem  vê  por  sonhos  um  thesouro. 

Parece  tudo  tenho  aqui  presente.  ' 
Mas,  tanto  que  se  passa  este  accidente, 

E  vejo  o  quão  distante  de  vós  mouro, 

Temo  quantd>imagino  por  agouro 

Porque  (2)  de  imaginar  também  me  ausente. 
Já  foram  dias  em  que  por  ventura 

Vos  vi,  Senhora,  se,  assi  dizendo,  posso  (3) 

Co  coração  seguro  estar  sem  medo. 


grão  cheiroso  da  Myrijica  aromática,  tão  bella  na  sua  ramagem  laurinea». 
( Vida  de  Camões,  p.  572).  Não  me  resta,  porém,  duvida  que  o  poeta  falia 
aqui  das  palmeiras,  que  os  justos  vencedores  coroam,  e  que  tanto  abundam 
nas  Molucas.  Os  diversos  fructos  que  provem  d'um  só  tronco  podem 
significar  os  variados  productos  de  certas  palmeiras.  [Veja-se,  por  cx., 
o  que  sobre  o  coqueiro  escreveu  o  amigo  de  Gamões  e  illustre  ho- 
mem de  sciencia,  Garcia  da  Orta,  nos  Colóquios,  t.  i,  p.  235  e  segg. 
(edição  de  Lisboa,  1891).  Eis  como  ellc  começa:  «Ruano.  Do  arvore 
dos  coquos,  chamado  assim  dos  Portuguezes,  me  dizei;  que  sempre  ouvi 
dizer  que  era  hum  arvore  que  dava  muitas  cousas  nesseçarias  á  vida 
humana.  Orta.  Dá  tantas  e  nesseçarias,  que  não  sey  arvore  que  dê  a 
sesta  parte»].  Ou  alludirá  o  poeta  ao  facto  de  terem  o  nome  de  palmei- 
ras plantas  que  dão  fructos  tão  differentes  como  o  coco,  a  tâmara,  a 
areca,  etc.  ?  A  leitura  de  Barros,  Década  3.',  5,  5,  favorece  a  primeira 
explicação. 

(1)  Este  soneto  foi  publicado  a  primeira  vez  por  Alvares  da  Gunha 
em  1668  {Terceira  parte  das  Ritnas  de.. .  Camões). 

(2)  Talvez :  De  que.  O  poeta  receia  que  o  imaginar  quão  longe  se 
acha  da  infanta,  morrendo  de  saudades,  seja  agouro  de  que  ha  de  deixar 
de  pensar  nella. 

(3)  O  verso  tem  uma  syllaba  a  mais.  Por  causa  disso  propõe  W.  Storck 
se  elimine  o  assi  (5.  Gedichte,  11, 421).  E  possível  que  o  poeta  escrevesse : 

se  isto  dizer  posso 

Co  coração  seguro,  sem  ter  medo. 


Agora,  em  tanto  mal,  não  me  assegura 
A  própria  fantasia,  e  nojo  vosso  (i). 
Eu  não  posso  entender  este  segredo ! 

Qual  a  causa  porque  o  poeta  receava  ausentar-se  de  ima- 
ginar na  infanta  ?  Seria  effectivamente  por  ver  quão  distante 
delia  morria? 

Mas  não  se  lè  na  elegia  3.": 

Uma  cousa,  Senhor,  por  certa  asselle  : 
Que  nunca  amor  se  afina,  nem  se  apura. 
Em  quanto  está  presente  a  causa  delle  ? 

Seria  porque  estava  convencido  de  que  a  infanta  não  era 
estranha  ao  seu  desterro  para  as  Molucas  e  castigava  com 
tão  gi^ave  penitencia  tão  pequeno  erro,  como  era  o  ter-Ihe 
amor  ? 

Mas  não  diz  elle  na  canção  6.* : 

...  Se  tão  longo  c  misero  desterro 

Vos  dá  contentamento, 
Nunca  me  acabe  nelle  meu  tormento  ? 

É  que  estas  causas,  quô,  por  si  sós,  lhe  não  arrancariam 


(i)  Não  deverá  eliminar-se  a  virgula  e  ler-se :  do  enojo  vosso?  Cf 
Boscan,  na  canção  Gentil  SeHora  mi.i : 

Yo  hallo  en  el  mover  de  vuestros  ojos 
un  no  sè  que,  no  sè  como  nombrallo, 

que  todos  mis  enojos 
descarga  de  mi  triste  fantesia. 

Veja-sc  também  o  soneto  68,  já  citado : 

Dai-mc  uma  lei,  Senhora,  de  querer-vos, 
Porque  a  guarde,  sob  pena  de  enojar-vos. 

Agora  a  própria  phantasia  não  assegura  o  poeta  de  que  nSo  venha  a 

aborrecer  a  infanta.  É  isso  que  cllc  leme. 


220 


do  coração  o  seu  alto  pensamento,  começaram  a  avolumar-se, 
pela  acção  do  magico  veneno,  que  uma  Civce,  de  celeste  for- 
mosura, lhe  ia  ministrando. 

E,  sentindo  os  elíeitos  desse  veneno,  Camões  assustava-se 
com  a  ideia  de  olvidar  a.  bem-amada.  Como  era  possivel 
que  se  lhe  apagasse  da  alma  aquelle  gesto  tão  soberano,  que 
lhe  havia  mudado  o  ser,  de  humano  em  divino  (i)?  Como 
era  possivel  que  abandonasse  aquelle  seu  pensamento,  pelo 
qual  teria  morrido  contente  (2)  ? 

Eu  não  posso  entender  este  segredo ! 

exclama  o  angustiado  poeta. 

Mas  o  veneno  foi  produzindo  os  seus  effeitos  e  operou  a 
receada  transformação. 

Eis  como  o  poeta  nos  apresenta  a  estranha  creatura,  que 
se  lhe  apoderou  do  coração  e  dos  sentidos,  a  ponto  de  oblite- 
rar a  imagem  da  infanta: 

Um  mover  d'olhos,  brando  e  piedoso, 

Sem  ver  de  quê  (3) ;  um  riso  brando  e  honesto, 
Quasi  forçado ;  um  doce  e  humilde  gesto, 
De  qualquer  alegria  duvidoso  ; 


(i)  Relêam-se  as  bellas  redondilhas  : 

Senhora,  quando  imagino 

O  divino 
Vosso  gesto,  claro  e  bello. . . 

(2)  Eis  como  termina  o  soneto  282,  já  anteriormente  transcripto : 

Mas  eu  não  deixarei  meu  pensamento. 

Porque,  inda  que  este  mal  me  cause  a  morte, 
Un  bel  inorir  tutta  la  vita  honora. 

(3)  Presumo  que  deve  ler-se  :  Um  não  sei  quê.  Cf.  o  soneto  i5  (Busque 

Amor) : 

. . .  Dias  ha  que  na  alma  me  tem  posto 

Um  não  sei  quê,  que  nasce  não  sei  donde. 
Veja-se  também  a  passagem  de  Boscan,  citada  na  pagina  anterior. 


Um  despejo  quieto  e  vergonhoso ; 

Um  repouso  gravíssimo  e  modesto ; 

Uma  pura  bondade,  manifesto 

Indicio  da  alma,  limpo  e  gracioso ; 
Um  encolhido  ousar,  uma  brandura; 

Um  medo  sem  ter  culpa,  um  ar  sereno ; 

Um  longo  e  obediente  sofírimento : 
—  Esta  foi  a  celeste  formosura 

Da  minha  Circe,  e  o  magico  veneno, 

Que  pôde  transformar  meu  pensamento. 

(Soneto  35). 

De  quem  se  iraia :  Naturalmente  de  alguma  estonteadora 
formosura  oriental,  que,  com  a  sua  apparente  impassibilidade, 
tão  profunda  revolução  produziu  na  alma  do  apaixonado 
adorador  da  infanta. 

Do  que  me  não  resta  duvida  é  de  que  o  poeta  trazia  com- 
sigo  a  seductora  Circe,  quando  naufragou  na  costa  da  Co- 
cliinchina,  e  ahi  a  viu  perecer  afogada,  sem  lhe  poder  valer. 

E  foi  então  que  elle,  ao  exprimir  a  sua  dor,  attingiu  o 
supremo  grau  na  poesia  lyrica. 

Comecemos  por  estas  redondilhas,  escriptas  naturalmente 
antes  do  mando  injusto,  que  o  forçou  a  embarcar  (i). 

Mote  '.?//""'"' 

Se  me  desta  terra  lor, 
Eu  vos  levarei,  amor. 


e  ainda  esta,  da  canção  Qaros y  frescos  rios: 

Tengo  en  el  alma  puesto 

su  gesto  tan  hermoso 
y  aquel  saber  estar  adonde  quiera, 

el  recoger  honesto, 

el  alegre  reposo, 
..1  .,,,  o..  <,.,..   .1..  .,,,  ...-.  q,,ç  mnncrn 

'       (')  ' 


Voltas 

Se  me  fôr  e  vos  deixar 
(Ponho  por  caso  que  possa), 
Esta  alma  minha,  que  é  vossa, 
Gomvosco  me  ha  de  ficar. 
Assi  que,  só  por  levar 
A  minha  alma,  se  me  fôr, 
Vos  levarei,  meu  amor. 

Que  mal  pódc  maltratar-me, 
Que  comvosco  seja  mal  ? 
Ou  que  bem  pôde  ser  tal. 
Que  sem  vós  possa  alegrar-me  ? 
O  mal  não  pode  enojar-me, 
O  bem  me  será  maior, 
Se  vos  levar,  meu  amor. 

Vejamos  agora  como,  alludindo  a  uma  predicção,  o  poeta 
nos  dá  noticia  das  duas  desgraças  que  lhe  aconteceram  cm 
um  só  dia  —  a  perda  dos  haveres  que  tinha  agenciado  no 
Oriente  e  com  que  contava  para  a  velhice,  e  a  morte  da  sua 
alegi^e  e  doce  companheira  : 

Cantando  estava  um  dia,  bem  seguro, 

Quando  passava  Sylvio  e  me  dizia 

(Sylvio,  pastor  antigo,  que  sabia 

Por  o  canto  das  aves  o  futuro) : 
í.iso  (i),  quando  quiser  o  fado  escuro, 

A  opprimir-te  virão  em  um  só  dia 

Dous  lobos ;  logo  a  voz  e  melodia 

Te  fugirão,  e  o  som  suave  e  puro. 
Bem  foi  assi,  porque  um  me  degolou 

Quanto  gado  vaccum  pastava  e  tinha, 

De  que  grandes  soldadas  esperava  ; 


(i)  Na  i.**  edição  lê-se  Meris,  nome  de  um  pastor  da  egloga  9.*  de 
Vergilio.  Liso  é  emenda  de  Fiaria  c  Sousa. 


2  23 

E,  por  mais  dano,  o  outro  me  matou 

A  cordeira  gentil,  que  eu  tanto  amava, 
Perpetua  saudade  da  alma  minha. 

(Soneto  172). 

E,  vagueando  pelos  logares  próximos  da  terrível  catastrophe, 
de  que  a  custo  salvara  a  vida  e  o  Canto,  em  que  celebrava 
os  feitos  dos  portugueses  (1)*,  o  poeta  exprime  a  sua  dor  pela 
morte  da  cordeira  gentil,  em  versos  de  incomparável  bellcza. 

O  ceu,  a  terra,  o  vento  sossegado. . . 

As  ondas,  que  se  estendem  por  a  área. . . 

Os  peixes,  que  no  mar  o  somno  enfreia. . . 

O  nocturno  silencio  repousado. . .  (2) 
O  pescador  Aonio,  que,  deitado 

Onde  CO  vento  a  agua  se  meneia, 

Chorando,  o  nome  amado  em  vão  nomeia, 

Que  não  pôde  ser  mais  que  nomeado  : 
Ondas,  dizia,  antes  que  Amor  me  mate, 

Tornai-me  a  minha  nympha,  que  tão  cedo 

Me  fizestes  á  morte  estar  sujeita  1 
Ninguém  responde.  O  mar  de  longe  bate. 

Move-se  brandamente  o  arvoredo. 

Leva-lhe  o  vento  a  voz,  que  ao  vento  deita. . . 

(Soneto  173). 

Ah  minha  Dynamene !  Assi  debcaste 

Quem  nunca  deixar  pôde  de  querer-te  ? 
Que  já,  nympha  gentil,  não  possa  ver-te  ! 
Que  tão  veloz  a  vida  desprezaste  ! 

Como  por  tanto  tempo  te  apartaste 

De  quem  tão  longe  andava  de  perder-te  ? 
Puderam  essas  aguas  defender-te  (3) 
Que  não  visses  quem  tanto  magoaste  ? 


(1)  Vid.  Lusíadas,  x,  128. 

(2)  Para  melhor  indicar  o  estado  de  perturbação  do  seu  espirito,  o 
poeta,  na  primeira  quadra,  deixa  as  orações  incompletas. 

(3)  Prohibir-te,  impedir-tc. 


:1.\ 


Nem  somente  fallar-te  a  dura  morte 

Me  deixou,  que,  apressada,  o  negro  manto 
Lançar  sobre  os  teus  olhos  consentiste. 

Oh  mar !  ó  ceu !  ó  minha  escura  sorte ! 
Qual  vida  perderei  que  valha  tanto, 
Se  inda  tenho  por  pouco  o  viver  triste  ? 

(Soneto  170). 

Cara  minha  inimiga,  em*  cuja  mão 

Pôs  meus  contentamentos  a  ventura, 
Faltou-te  a  ti  na  terra  a  sepultura. 
Porque  me  falte  a  mi  consolação. 

Eternamente  as  aguas  lograrão 
A  tua  peregrina  formosura, 
Mas,  emquanto  me  a  mi  a  vida  dura, 
Sempre  viva  em  minha  alma  te  acharão. 

E  se  meus  rudos  versos  podem  tanto. 

Que  possam  prometter-te  longa  historia 
D'aquelle  amor  tão  puro  e  verdadeiro, 

Celebrada  serás  sempre  em  meu  canto, 

Porque  em  quantc?  no  mundo  houver  memoria. 
Será  a  minha  escriptura  o  teu  lettreiro. 

(Soneto  23). 

E,  para  que  a  sua  promessa  se  convertesse  em  indestru- 
ctivel  realidade,  o  immortal  poeta  escreveu  estes  dous  sonetos  ; 

Quaildo  de  minhas  maguas  a  comprida 
Maginação  os  olhos  me  adormece, 
Em  sonhos  aquella  alma  me  apparece, 
Que  para  mi  foi  sonho  nesta  vida. 

Lá  numa  soidade,  onde  estendida 
A  vista  por  o  campo  desfallece. 
Corro  após  ella. . .  E  ella  então  parece 
Que  mais  de  mi  se  alonga,  compellida. 

Brado  :  Não  me  fujais,  sombra  benina  ! 

Ella  —  os  olhos  em  mi  c'um  brando  pejo. 
Como  quem  diz  que  já  não  pôde  ser  — 

Torna  a  fugir-me.  Torno  a  bradar :  Dina. . . 
E  antes  que  diga  mene,  acordo  e  vejo 
Que  nem  um  breve  engano  posso  ter ! 

(Soneto  72). 


22D 

Alma  minha  gentil,  que  te  partiste 

Tão  cedo  desta  vida,  descontente, 

Repousa  lá  no  ceu  eternamente 

E  viva  eu  cá  na  terra  sempre  triste ! 
Se  lá  no  assento  etherio,  onde  subiste. 

Memoria  d'esta  vida  se  consente. 

Não  te  esqueças  daquelle  amor  ardente, 

Que  já  nos  olhos  meus  tão  puro  viste. 
E  se  vires  que  pôde  merecer-te 

Algúa  cousa  a  dor  que  me  fícou 

Da  magua,  sem  remédio,  de  perder-te, 
Roga  a  Deus,  que  teus  annos  encurtou. 

Que  tão  cedo  de  cá  me  leve  a  ver-te, 

Quão  cedo  de  meus  olhos  te  levou. 

(Soneto  19). 

A  alma  gentil  que  a  morte  levou  dos  olhos  do  poeta,  que 
arrebatou  á  sua  vista,  é  também  o  assumpto  da  seguinte 
elegia,  que  Juromenha  publicou  pela  primeira  vez  (i): 

Quem  poderá  passar  tão  triste  vida. 

Quem  (2)  não  espera  já  contentamento. 
Senão  quando  de  todo  fôr  perdida. 

Quem  poderá  soffrer  tão  grão  tormento. 
Tão  áspero,  cruel,  tão  duro  e  forte. 
Quem,  morta  a  esperança  e  soífrimcnto  (3). 


( 1 )  «Esta  poesia,  que  encontramos  em  um  manuscripto  do  século  xvii, 
está  repassada  de  ternura  e  melancholia,  e  é  escripta  no  mesmo  cstylo 
e  até  com  expressões  do  inimitável  soneto. ..  que  começa  Alma  minha 
gentil»  (iii,  3i5).  É  escusado  observar  que  Juromenha  pensa  se  trata  de 
D.  Calharina  de  Ataíde. 

O  texto  publicado  por  Juromenha  está  alterndo  em  certos  pontos. 
Proponho,  por  isso,  algumas  correções 

(2)  Talvez  Que  e  uma  interrogação  no  íim  do  terceto  :  Quem  poderá 
passar  uma  vida  tão  triste,  ouc  só  espera  eontentaniento  quando  de 
todo  fôr  perdida  ? 

(3)  Não  me  occorrc  corrcção  que  satisfaça. 

l5  K,   ^:.i 


226 


Quem  pôde  imaginar  tão  dura  sorte, 

Que  faz  crecer  o  mal  continuamente, 
E,  por  não  dar  remédio,  não  dá  a  morte  ? 

Quem  ha,  emfim,  tão  triste  e  descontente, 
Que  sempre  ande  o  passado  imaginando, 
E  em  aborrecimento  do  presente  ? 

Se  lá  onde  tu  estás  vês  qual  ando  (i), 

Senhora,  e  o  nosso  amor  inda  lá  dura, 
Bem  creio  que  meu  mal  estás  chorando ; 

Que,  faltando-me  a  tua  formosura 
E  a  tua  alegre  e  doce  conipanhia. 
Bem  vês  qual  será  (2)  minha  desventura. 

Tudo  já  me  entristece,  a  noite  e  o  dia, 

E  o  que  mais  me  atormenta  é  a  lembrança 
Do  bem  que  noutro  tempo  possuia. 

Já  perdi  de  cobrá-lo  a  confiança, 

E  com  isto  (3)  perdi  de  ser  contente. 
Quamanho  mal  é  a  falta  de  esperança ! 

Se  lá  nessa  outra  vida  se  consente 

Sentir-se  o  mal  que  cá  se  anda  (4)  passando, 
Senhora  minha,  o  meu  não  vos  (5)  atormente, 

Porque,  segundo  me  elle  vai  tratando, 

E  (6)  o  desejo  de  ver-te  da  (7)  outra  parte 
Já  para  ti  me  vae  encaminhando. 

Perto  me  vejo  já  de  ir  a  buscar-te ; 
Entretanto  te  baste  esta  certeza. 
Porque  (8)  a  mim  só  me  basta  contemplar-te. 

Allr  se  acabará  nossa  tristeza ; 

Amor  acabará  de  atormentar-nos ; 
Não  terá  alli  lugar  sua  crueza. 

Mas  tê-lo-hemos  nós  para  alegrar-nos. 

(Elegia  27.  Juromenha,  iii,  25 1). 


(1)  Talvez:  Se  lá  onde  tu  'sías,  vês' qual  eu  ando. 

(2)  Proponho  :  qual  é  a  minha,  etc. 

(3)  Parece-me  que  deve  ser:  a  perdi. 

(4)  Naturalmente :  que  se  anda  cá. 

(5)  Decerto :  te. 

(6)  O  E  deve  estar  a  mais. 

(7)  Provavelmente :  em. 

(8)  Não  será  :  De  que  ? 


227 


Mais  tarde,  numa  hora  de  profundo  desalento  e  quando 
já  se  lhe  ia  desvanecendo  do  coração  a  imagem  daquella  que 
lhe  fora  sonlio  nesta  vida,  escrevia  o  poeta,  lembrando-se  do 
alto  logar  em  que  anteriormente  havia  posto  o  seu  pensa- 
mento : 

Em  prisões  baixas  fui  um  tempo  atado, 

Vergonhoso  castigo  de  meus  erros; 

Inda  agora  arrojando  levo  os  ferros, 

Que  a  morte,  a  meu  pesar,  tem  já  quebrado. 
Sacrifiquei  a  vida  a  meu  cuidado. 

Que  Amor  não  quer  cordeiros  nem  bezerros ; 

Vi  maguas,  vi  misérias,  vi  desterros ; 

Parece-me  que  estava  assi  ordenado. 
Contentei-me  com  pouco,  conhecendo 

Que  era  o  contentamento  vergonhoso,  ^ 

Só  por  ver  que  cousa  era  viver  ledo. 
Mas  minha  estrella,  que  eu  já  agora  entendo, 

A  morte  cega  (i)  e  o  caso  duvidoso  (2) 

Me  fizeram  de  gostos  haver  medo. 

(Soneto  5). 

Reduzido  á  pobreza  pelo  naufrágio  triste  e  miserando, 
com  o  coração  ainda  a  sangrar  pela  morte  desastrosa  da 
sua  Dynamene,  sem  o  estimulo  da  paixão  pela  infanta, 
que,  se  por  tantos  annos  lhe  havia  agitado  a  vida,  também 
lhe  tinha  dado  forças  para  arrostar  trabalhos  (3),  o  poeta, 


(i)  Que  tão  cedo  lhe  levou  dos  olhos  a  pobre  cordeira  gentil. 

(2)  O  caso  que  motivou   o  injustf^  •»•-"•/->.   de  que  se  queixa  nos 
Lusiadas. 

(3)  Lêa-se,  por  exemplo,  o  soneto  2\x^  escripto  no  Oriente : 

Quem  quiser  ver  de  amor  uma  excellencia, 
Onde  sua  fineza  mais  se  apura, 
Attente  onde  me  põe  minha  ventura, 
Porque  de  minha  íé  faça  expriencía. 


para  cumulo  de  infortúnios,  achava-se  envolvido  em  um  caso 
duvidoso,  que  tinha  de  ser  superiormente  apreciado  e  de  que 
poderia  sair  mal  ferida  a  sua  probidade  pessoal. 

Mais  uma  vez  a  amarga  experiência  lhe  fazia  ver  como  é 
verdadeiro  o  dictado 

Perdigão  perdeu  a  penna, 
Não  ha  mal  que  lhe  não  venha ! 

Que  se  passou  em  Goa  entre  Gamões  e  D.  Gonstantino 
de  Bragança,  o  vice-rei  que  havia  succedido,  em  setembro 
de  i558,  ao  governador  Francisco  Barreto? 

Vejamos  o  que  se  pôde  concluir  ou  conjecturar  do  que 
o  poeta  nos  diz. 

Ao  dirigir  ao  vice-rei  a  epistola  2.%  Gamões  encontra-se 
ainda  sob  a  alçada  do  injusto  mando,  que  nelle  havia  sido 
executado  (i). 


Onde  lembranças  mata  a  larga  ausência, 
Em  temeroso  mar,  em  guerra  dura, 
A  saudade  alli  'stá  mais  segura, 
Quando  risco  maior  corre  a  paciência. 

Mas  ponha-me  a  fortuna  e  o  duro  fado 

Em  morte  ou  nojo  ou  damno  ou  perdição, 
Ou  em  sublime  e  prospera  ventura ; 

Ponha-me  emíim  em  baixo  ou  alto  estado : 
Que  até  na  dura  morte  me  acharão 
Na  lingua  o  nome  e  na  alma  a  vista  pura. 

(i)  Este  receberá,  plácido  e  brando, 

No  seu  regaço  o  Canto,  que  molhado 

Vem  do  naufrágio  triste  e  miserando. 

Dos  procellosos  baixos  escapado. 

Dás  fomes,  dos  perigos  grandes,  quando 

Será  o  injusto  mando  executado 

Naquelle  cuja  lyra  sonorosa 

Será  mais  afamada  que  ditosa. 

{Lusíadas,  x,  128). 


229 


Apesar  disso,  não  duvida  sair  em  defesa  de  quem  tão  mal 
visto  era,  por  querer  pôr  cobro  á  desordem  temerária  do 
ndgOy  mal  acostumado  do  governo  anterior  (i). 


Como  nos  vossos  hombros  tão  constantes, 
Príncipe  illustre  e  raro,  sustenteis 
Tantos  negócios  árduos  e  importantes, 
Dignos  do  largo  império  que  regeis ; 
Como  sempre  nas  armas  rutilantes 
Vestido,  o  mar  e  a  terra  segureis' 
Do  pirata  insolente  e  do  tyrano 
Jugo  do  potentíssimo  othomano ; 


II 


E  como  com  virtude  necessária, 
Mal  intendida  do  juizo  alheio, 
A  desordem  do  vulgo  temerária 
Na  santa  paz  ponhais  o  duro  freio ; 


(i)  Diogo  do  Couto,  que  tinha  conhecimento  directo  da  administra- 
ção deste  vice-rei,  explica-nos  as  causas  por  que  elle  era  mal  visto : 
«O  que  o  fez  não  ser  do  gosto  destes  homens  e  de  outros  da  índia, 
senão  querer  que  quem  devia  que  pagasse  e  que  quem  furtava  e  matava 
que  morresse  ?  Das  quaes  cousas  achou  a  terra  de  muito  tempo  posta  em 
foro,  que  com  o  hyssopo  de  agua  benta  se  absolvia.. . .  O  donde  lhe  veyo 
o  mal  dil-o-hei :  ser  muito  registado  no  dar  e  dispender  a  fazenda  de 
S.  Alteza,  ao  menos  aos  primeiros  annos,  cousa  que  aos  homens  mal 
parecia,  pelo  foro  em  que  estavam  postos ;  a  outra  era  ser  muito  inteiro 
na  justiça  e  pouco  amigo  de  moderar  sentenças ; . . .  e  juntamente  o  que  a 
todos  custou  em  geral  para  escândalo  foi  tomar  as  drogas  para  S.  Alteza, 
fazel-as  defesas,  que  era  o  mais  certo  pão  de  que  viviam  os  homens  da 
índia  e  que  parecco  mau  tiral-o.. . .  Assim  que  de  querer  olhar  pela  fa- 
zenda e  justiça  de  S.  Alteza,  conforme  ao  que  levava  por  seu  regi- 
mento,. . .  lhe  veio  não  ser  muito  amado».  Dialogo  do  soldado  pratico 
portuguejy  pag.  53-54  (Lisboa,  1790).  Estas  palavras  do  sensato  amigo 
de  Camões  minístram-nos  um  valioso  subsi<'"^  »^  ^n  w  jnterprcT  u-Ho  Ao 
certas  passagens  da  epistola  2.*. 


23o 

Se  com  minha  escriptura,  longa  e  varia, 
Vos  occupasse  o  tempo,  —  certo  creio 
Que,  com  vagante  e  ociosa  phantasia. 
Contra  o  commum  proveito  peccaria ; 

III 

E  não  menos  seria  reputado 
Por  doce  adulador,  sagaz  e  agudo, 
Que  contra  meu  tão  baixo  e  triste  estado 
Busco  favor  em  vós,  que  podeis  tudo, 
Se,  contra  a  opinião  do  vulgo  errado. 
Vos  celebrasse  em  verso  humilde  e  rudo. 
Dirão  que  com  lisonja  ajuda  peço 
Contra  a  miséria  injusta  que  padeço. 

O  poeta  não  quer,  com  seus  versos,  distrair  a  attenção  do 
vice-rei,  preoccupado  com  tantos  negócios ;  não  quer  também 
que  o  tenham  por  um  adulador,  que  vem  pedir  a  protecção 
de  quem  lhe  pôde  valer  contida  o  seu  tão  baixo  e  triste  estado, 
de  quem  o  pôde  livrat^  da  miséria  injusta  que  padece  (i). 

Mas  nem  porisso  deixará  de  dizer  a  verdade  desinteressada- 
mente, sem  a  mira  em  qualquer  premio. 


IV 


Porém,  porque  a  verdade  pôde  tanto 
No  livre  arbitrio, 

Esta  me  obriga  a  que,  em  humilde  canto, 
Contra  a  tenção  que  a  plebe  ignara  tem. 
Vos  faça  claro  a  quem  vos  não  alcança, 
E  não  de  premio  algum  vil  esperança. 


(i)  Das  expressões  que  o  poeta  emprega  parece-me  poder-se  inferjr 
que  elle  se  achava  preso,  de  certo  por  causa  do  caso  duvidoso,  que  havia 
motivado  o  mando  injusto. 


23 


E,  entrando  no  assumpto,  o  poeta  estabelece  e  demonstra 
com  exemplos  o  principio  geral  de  que  neste  mundo, 

na  vida, 

Ninguém  alcança  a  gloria  merecida. 

Não  deve,  porisso,  estranhar-se 

O  vitupério  vil  das  rudas  gentes, 
que,  afinal, 

É  louvor  dos  reaes  e  sublimados. 

Exalta  em  seguida  o  poeta  os  antepassados  de  D.  Constan- 
tino, destacando  entre  elles  o  gi'ão  Nuno,  pae  da  pátria  sua : 


VII 


Quem  no  lume  dos  vossos  ascendentes 
Poderá  pôr  os  olhos,  que  abalados 
Lhes  não  fiquem  da  luz,  vendo  os  maiores, 
Vossos  passados,  reis  e  imperadores  ? 

VIII 

Quem  verá  aquelle  Pae  da  Pátria  sua. 

Açoute  do  soberbo  castelhano. 

Que  o  duro  jugo  só,  co*a  espada  nua, 

Removeu  do  pescoço  lusitano. 

Que  não  diga :  Ó  grão  Nuno,  a  eterna  tua 

Memoria  causará,  se  não  me  engano. 

Que  qualquer  teu  menor  (i)  tanto  se  estime, 

Que  nunca  possa  ser  senão  sublime  ? 

E,  depois  de  dizer  que  não  prosegue  nesta  matéria,  por  não 


( I )  Descendente.  Latinismo  correspondente  a  maiores,  antepassados. 


232 


possuir  engenho  adequado,  o  poeta  entra  na  especificação  e 
louvor  dos  actos  do  vice-rei. 


IX 


Mas,  pois  a  dizer  tudo  me  offereço, 
E  dias  ha  que  no  desejo  o  tenho, 
Sendo  vós  de  tão  alto  e  illustre  preço, 
A  vida  fostes  pôr  num  fraco  lenho, 
Por  largo  mar  e  undosa  tempestade. 
Só  por  servir  á  regia  majestade  (i). 


E  depois  de  tomar  a  rédea  dura 
Na  mão,  do  povo  indómito,  que  estava 
Costumado  a  larguezas  e  á  soltura 
Do  pesado  (2)  governo  que  acabava. 
Quem  não  terá  por  santa  e  justa  cura. 
Qual  do  vosso  conceito  se  esperava, 
A  tão  desenfreada  enfermidade 
Applicar-lhe  contraria  qualidade  ? 


(i)  Cf.  Couto,  Década  7.*,  6,  i,  sobre  as  circumstancias  em  que 
D.  Constantino  de  Bragança  foi  nomeado  vice-rei  da  índia. 

(2)  Como  explicar  este  epitheto,  applicado  ao  governo  que  permittia 
larguezas  e  soltura  ao  povo  indómito?  Se  o  texto  não  está  alterado, 
talvez  o  poeta  se  refira  ao  procedimento  que  com  elle  teve  Francisco 
Barreto.  Deixando  ás  soltas  o  povo  indómito,  este  governador  da  índia 
só  para  o  poeta  foi  pesado.  Seja,  porém,  esta  ou  outra  a  explicação  do 
epitheto,  o  que  é  certo  é  que  o  poeta  quis,  nesta  epistola,  ser  desagra- 
dável ao  antecessor  de  D.  Constantino  de  Bragança.  Nem  se  diga  que  o 
fazia  apenas  para  ser  lisongeiro  com  quem  podia  livrá-lo  do  seu  tão  baixo 
e  triste  estado^  da  miséria  injusta  que  padecia.  Oppõe-se  a  isto  o  caracter 
do  poeta  e  o  próprio  conteúdo  da  epistola*  Se  Camões  sáe  a  campo,  em 
defesa  do  malquisto  vice-rei,  fá-lo  em  nome  da  verdade ;  fá-lo  até  com 
risco  de  ver  malsinadas  as  suas  intenções.  Não  podia,  portanto,  deixar 
de  ser  escrupulosamente  exacto,  quer  se  referisse  ao  vice-rei,  quer  ao 
seu  antecessor. 


23: 


XI 


Não  é  muito,  Senhor,  se  o  moderado 
Governo  se  blasphema  e  se  desama, 
Porque  o  povo,  á  largueza  costumado, 

A  lei  serena  c  iusla.  dura  chama. 


Pelos  seus  feitos  bellicos  —  conquista  de  Damão  e  jornada 
contra  o  rei  de  Jafanapatão  —  (i)  tem  D.  Constantino  asse- 
gurada fama  immorredoura. 


(i)  O  vice-rei,  voltando  de  Ceilão,  depois  de  haver  subxnetiido  o  rei 
citado  no  texto,  deu  entrada  em  Goa  em  principios  de  março  de  i56i 
(Couto,  Década  7.",  9,  lo),  seis  meses  antes  de  findar  o  seu  governo. 
Foi  neste  periodo,  como  se  vê,  que  o  poeta  escreveu  a  epistola  2/.  Direi 
de  passagem  que  na  estancia  xvii  desta  epistola  se  encontram  dous  ver- 
sos, dirigidos  ao  rei  de  Jafanapatão,  que  esclarecem  um  logar  obscuro 
dos  Lusíadas. 

Lê-se  na  epistola  : 

Deste  bem  a  intender  quSo  grande  gloria 
É  de  tal  vencedor  o  ser  vencido. 

E  nos  LusiadaSy  vii,  56,  8 : 

.  será  no  mundo  ouvido 
C)  vencedor,  por  gloria  do  vencido. 

Nas  Fontes  dos  Lusíadas^  pag.  160,  nota,  suppus  que  teria  sido  emen- 
dado o  texto  deste  ultimo  verso,  mudando-se  sem  em  por.  Baseava-me 
para  isso  neste  passo  do  Trionfo  d^AmorCf  em  que  Petrarca,  rcferindo-sc 
a  César,  preso  por  Cleópatra  nos  laços  do  amor,  observa : 

Or  di  lui  si  tríonfa :  ed  è  ben  driit< 

Se  vinse  il  mondo  ed  altri  ha  vinio  lui, 
Che  dei  suo  vincilor  si  glorie  il  viito. 

(C.  I.,  V.  91^3). 


234 


XVII 


Quem  faz  obras  tão  dignas  de  memoria, 
Será  sempre  famoso  e  conhecido 
Onde  os  altos  juízos  o  estimarem, 
Que  estes  sós  têem  poder  de  fama  darem. 

Que  importa,  pois,  a  opinião  do  povo  ignaro  ? 

XVIII 

Não  vos  temais.  Senhor,  do  povo  ignaro. 
Tão  ingrato  a  quem  tanto  faz  por  elle ; 
Mas  sabei  que  é  signal  de  serdes  claro 
O  ser  agora  tão  malquisto  delle  (i). 

O  caso  presente  não  é  senão  mais  um  a  accrescentar  a 
tantos  outros,  de  que  a  historia  nos  dá  noticia.  O  poeta  cita, 
dentre  os  gregos,  Themistocles,  Cimon,  Lycurgo,  Aristides, 
Pachitas  e  Demosthenes  (2)  e  conclue: 

Pois  mil  exemplos  deixo  dos  romanos ; 
E  vós  também  sois  um  dos  lusitanos. 


(i)  Lêa-se  Couto,  Década  7.%  9,  17:  «Todo  este  inverno  (i56i)  gas- 
tou (o  viso-rei)  em  acabar  huma  náo,  que  fez  defronte  dos  seus  Paços, 
pêra  se  ir  nella  pêra  o  Reyno  por  esperar  em  setembro  por  successor ;. . . 
foi  a  causa  (esta  náo)  que  assim  nà  índia,  como  em  Portugal  lhe  remor- 
deram mais  que  todas.  E  tanto  que  lhe  contrafizeram  aquelle  romance, 
que  diz :  Mira  Nero  de  Tarpeya  a  Roma  como  se  ardia  em  Mira  Nero 
da  janella  la  nave  como  se  hapa».  O  veridico  historiador  justifica  o 
calumniado  vice-rei  e  accrescenta  que  este  veio  pobre  para  o  reino,  o  que 
não  obstou  a  que,  chegando  a  Lisboa,  fosse  «mexericado  que  levava 
grandes  riquezas  e  thesouros  e  que  roubara  a  índia». 

(2)  Observação  de  W.  Storck  {Vida  de  CatuÕes,  pag.  612,  n.  2.")  : 
«As  vinte  oitavas,  tão  viris  e  recheiadas  de  allusões  a  pessoas  e  datas  da 


2JD 


De  nada  valeu,  porém,  ao  poeta  o  fazer-se  apologista  do 
malquisto  vice-rei;  de  nada  lhe  serviu  o  ter  encarecido  as 
proezas  bellicas  do  descendente  do  gi^ão  Nuno, 

Quando  D.  Constantino  entregou  o  poder  ao  seu  successor, 
chegado  a  Goa  a  7  de  setembro  de  i56i,  Camões  continuava 
ainda  no  seu  tão  triste  e  baixo  estado,  padecia  ainda  a  misé- 
ria injusta,  a  que  não  tinha  dado  remédio  quem  tudo  podia. 

Se  não  estou  em  erro,  o  poeta  desforçou-se  nos  Lusiadas, 
talvez  na  própria  altura  em  que  então  levava  a  epopea. 
Lêam-se  as  estancias  finaes  do  canto  vii,  em  que  elle  nova- 
mente invoca  as  nymphas  do  Tejo  e  do  Mondego,  para  poder 
continuar  a  cantar  os  feitos'  dos  portugueses. 

LXXVI 


Vosso  favor  invoco,  que  navego 
Por  alto  mar,  com  vento  tão  contrario, 
Que,  se  não  me  ajudais,  hei  grande  medo 
Que  o  meu  fraco  batel  se  alague  cedo. 

LXXIX 

Olhai  que  ha  tanto  tempo  que,  cantando 
O  vosso  Tejo  e  os  vossos  lusitanos, 
A  fortuna  me  traz  peregrinando, 
Novos  trabalhos  vendo  e  novos  danos  : 
Agora  o  mar,  agora  expVimentando 
Os  perigos  mavórcios  inhumanos. 
Qual  Canace  que  á  morte  se  condena. 
Numa  mão  «-^m-ii->i-^>  :,  pcnri.l;»  e  noutr;i  n  penna. 


antiguidade  hebraica  e.grega,  provam  uma  memoria  excepcional.  O  único 
lapso  está  no  nome  Pachitas,  por  Paches  ou  Pachetes».  A  sr.'  D.  Caro- 
lina Michaclis  conjectura  que  o  poeta  cscrçvcu  realmente  Pachetes 
(Ibid,  pag.  61 3,  nota  «). 


200 


KXXX 


Agora,  com  pobreza  aborrecida, 
Por  hospícios  alheios  degradado ; 
Agora  da  esperança  já  adquirida 
De  novo  mais  que  nunca  derribado  (i) ; 
Agora  ás  costas  (2)  escapando  a  vida, 
Que  dum  fio  pendia  tão  delgado. 


LXXXI 

E  ainda,  nymphas  minhas,*  não  bastava 
Que  tamanhas  misérias  me  cercassem, 
Senão  que  aquelles  que  eu  cantando  andava 
Tal  premio  de  meus  versos  me  tornassem  : 
A  troco  dos  descansos  que  esperava. 
Das  capellas  de  louro  que  me  honrassem, 
Trabalhos  nunca  usados  me  inventaram. 
Com  que  em  tão  duro  estado  me  deitaram. 

Vede,  nymphas,  que  engenhos  de  senhores 
O  vosso  Tejo  cria  valerosos. 
Que  assi  sabem  prezar  com  taes  favores 
A  quem  os  faz  cantando  gloriosos  ! 
Que  exemplos  a  futuros  escriptores, 
Para  espertar  ingenhos  curiosos. 
Para  porem  as  cousas  em  memoria. 
Que  merecerem  ter  eterna  gloria  (3) ! 

Se  bem  interpreto  esta  passagem  da  nossa  epopea  nacinal, 


(1)  Parece-me  que  ò  poeta  allude,  embora  em  termos  vagos,  á  espe- 
rança, renascida  no  Oriente,  de  que  a  infanta  se  lembraria  delle. 

(2)  Nas  Fontes  dos  Lusíadas,  pag.  256,  nota  i,  proponho    a  lição 
a  custo. 

(3)  As  estancias  que  se  seguem  (lxxxih-lxxxvii)  foram,  segundo  creio, 
escriptas  ou  pelo  menos  retocadas  em  Lisboa. 


237 


Camões  atiribue  a  D.  Constantino  de  Bragança  o  mando 
injusto  que  contra  si  foi  executado,  ou,  pelo  menos,  o  tão 
duro  estado,  os  trabalhos  nunca  usados,  que  d'aí  lhe  pro- 
vieram. E  quem  sabe  se,  no  procedimento  do  vice-rei,  elle  não 
veria  o  efteito  de  indicações  vindas  de  mais  alto,  da  Catha- 
rina  Real,  que  havia  sido  mettida  a  ridiculo  no  prologo  do 
Auto  de  El- Rei  Seleuco,  e  que,  agora  mais  que  nunca,  se 
julgaria  constituida  na  obrigação  de  evitar  á  sobrinha  e  cu- 
nhada qualquer  motivo  de  desgosto? 

Seja  como  fôr,  o  que  me  parece  fora  de  duvida  é  que 
D.  Constantino  de  Bragança  devia  estar  bem  informado  das 
antigas  pretenções  amorosas  de  Camões  a  respeito  da  infanta 
D.  Maria.  Ora,  estando  a  findar  o  seu  governo,  era  natural 
que  clle  quisesse  deixar  ao  successor  a  solução  do  caso  duvi- 
doso do  poeta.  Evitava  assim  que  este  viesse  na  mesma  occa- 
sião  para  o  reino  e  fosse  mais  um  pretexto  de  que  os  seus 
inimigos  se  aproveitariam  para  o  mexericarem. 

Felizmente  para  o  poeta,  o  novo  vice-rei  era  o  3.°  conde 
do  Redondo,  D.  Francisco  Coutinho.  aFacil,  alegre,  bem 
assombrado,  muito  avisado  e  grande  cortesão,  (tendo)  ditos 
muito  galantes»  (i),  o  illustre  fidalgo  era  um  velho  conhecido 
e  talvez  um  amigo  do  poeta  (2)  e  sabia  a  fundo  a  historia  da 


(1)  Couto,  Década  7.%  10,  17. 

(2)  Se  o  soneto  86  (Dos  antigos  illustres)  —  em  que  se  celebram  os 
feitos  do  valente  capitão  de  Arziiia,  D.  João  Coutinho,  pac  do  vice-rei  — 
foi  escripto  antes  de  o  poeta  ir  para  o  Oriente,  podemos  conjecturar  que 
entre  este  e  o  filho  do  2.*  conde  do'  Redondo  não  havia  apenas  as  rela- 
ções banaes  da  sociedade. 

Eis  como  termina  o  referido  soneto : 

Vós,  honra  portuguesa  c  dos  Coutinhos, 
Clnrissimo  D.  João,  com  melhor  nome 
A  vós  encheis  de  gloria,  a  nós  de  exemplo. 


:38 


sua  paixão  pela  infanta.  Basta  dizer  que  era  genro  de  Fran- 
cisco de  Gusmão,  mordomo-mór  da  filha  de  D.  Manuel,  e  de 
D.  Joanna  de  Blasfé,  camareira-mòr  e  confidente  da  mesma 
senhora. 

Não  tardou  muito,  por  certo,  que  o  poeta  soubesse  quaes 
eram  a  seu  respeito  as  disposições  do  novo  vice-rei.  E  o  meio 
foi  talvez  este  mote  —  o  que  bem  condiz  com  a  conhecida 
Índole  do  successor  de  D.  Constantino  de  Bragança  —  : 

Muito  sou  meu  inimigo, 
Pois  que  não  tiro  de  mi 
Cuidados  com  que  nasci, 
Que  põem  a  vida  em  perigo. 
Oxalá  que  fora  assi  (i)  ! 

Claro  é  que  as  voltas  do  poeta  se  não  fizeram  esperar. 

Viver  eu,  sendo  mortal, 
De  cuidados  rodeado, 
Parece  meu  natural ; 
Que  a  peçonha  não  faz  mal 
A  quem  foi  nella  criado. 

Tanto  sou  meu  inimigo, 
Que,  por  não  tirar  de  mi 
Cuidados  com  que  nasci, 
,  Porei" a  vida  em  perigo. 

Oxalá  que  fora  assi  1 

Tanto  vim  a  acrescentar 
Cuidados,  que  nunca"  amansam 
Emquanto  a  vida  durar. 
Que  canso  já  de  cuidar 
Como  cuidados  não  cansam. 


(i)  Como  se  sabe,  estes  versos  encontram-se  entre  as  redondilhas 
de  Camões,  sob  a  rubrica :  Mote  que  lhe  mandou  o  Viso-Rei.  O  ultimo 
verso,  que  pelo  sentido  parece  devia  ser :  Oxalá  não  Jôra  assi,  visava 
naturalmente  a  diíficultar  as  voltas. 


Se  estes  cuidados  que  digo 
Dessem  fim  a  mi  e  a  si, 
Fariam  pazes  comigo ; 
Que,  pôr  a  vida  em  perigo, 
O  bom  (i)  fora  para  mi. 

Dentro  em  pouco  o  caso  duvidoso,  que  tanto  havia  oppri- 
mido  o  poeta,  achava-se  liquidado,  sem  desdouro  para  elle,  e 
o  vice-rei  servia-se  de  o  occupar  em  determinados  trabalhos  (2). 

Conde,  cujo  illustre  peito 
Merece  nome  de  rei, 
Do  qual  muito  certo  sei 
Que  lhe  fica  sendo  estreito 
O  cargo  de  viso-rei ; 

Servirdes-vos  de  occupar-me,  , 

Tanto  contra  meu  planeta, 
Não  foi  senão  asas  dar-me, 
Com  as  quaes  vou  a  queimar-me. 
Como  faz  a  borboleta. 


(i)  Provavelmente  :  o  bem. 

(2)  Que  trabalhos  seriam  esses  ?  Permitta-se-me  apresentar  uma  con- 
jectura. O  poeta  leu  ao  vice-rei  os  Lusíadas^  que  ainda  não  estavam 
completos,  e  expôs-lhe  o  projecto  de  nelles  incluir  a  descripção  geogra- 
phica  das  regiões  orientaes,  conquistadas  ou  visitadas  pelos  portugueses, 
e  bem  assim  a  historia  dos  feitos  por  estes  praticados  nessas  regiões. 
O  vice-rei  encarregaria  então  Camões  de  procurar  no  archivo  de  Gôa 
todos  os  elementos  de  que  precisasse  para  escrever  aquclla  parte  do 
poema. 

Fossem,  porém,  estes  ou  *,v,i.w.  ^^  i.^ihalhos  de  que  o  poeta  foi  en- 
carregado, o  que  me  parece  certo  é  que' eram  remunerados  e  que  elle 
via  assim  assegurada  a  sua  modesta  subsistência. 

Segundo  W.  Storck  (Vida  de  Camões,  pag.  621),  o  vice-rei  ntalvcz  se 
servisse  do  talento  estylistico  e  litterario  (de  Camões)  para  redigir  actas 
c  cartas  que  precisavam  de  uma  redacção  mais  esmerada  e  limada». 


E  se  eu  a  penna  tomar, 
Que  tão  mal  cortada  tenho, 
Será  para  celebrar 
Vosso  valor  singular, 
Dino  de  mais  alto  engenho. 


A  clemência  que  asserena 
Coração  tão  singular, 
Se  eu  nisso  pusesse  a  penna, 
Seria  encerrar  o  mar 
Em  cova  muito  pequena. 

Bem  basta,  Senhor,  que  agora 
Vos  sirvais  de  me  occupar, 
Que  assi  fareis  aparar 
A  penna,  com  que  algum'hora 
Vos  vereis  ao  ceu  voar. 

Assi  vos  irei  louvando. 
Vós  a  mi  do  chão  erguendo. 
Ambos  o  mundo  espantando ; 
Vós  com  a  espada  cortando, 
Eu  com  a  penna  escrevendo. 


Voltaram  então  para  o  poeta  dias  de  desafogo  e  de  ale- 
gria (i),  que  elle  tinha  visto  fugirem-lhe  havia  tantos  annos. 


(i)  Lêa-se  nas  Redondilhas  o  Convite  que  fe^  na  índia  a  certos  fidal- 
gos. É  bem  conhecida  a  engraçada  lista  áo  p anta gruelico  festim : 

Tendes  :  nemigalha  —  assada; 
Cousa  nenhuma  —  de  molho; 
E  nada  feito  em  —  empada; 
E  vento  —  de  tigelada ; 
Picar  no  dente  —  em  remolho; 

De  fumo  tendes  —  tassalhos; 
Ave  —  da  pena  que  sente 
Quem  da  fome  anda  doente  — ; 
Bocejar  —  de  vinho  e  d'alhos; 
Manjar  —  em  branco,  excellente^ 


241 


E  o  pobre  coração  adormentado,  depois  de  um  pequeno 
repouso,  tornou  a  dar  signal  de  si.  Era  do  programma  : 

No  tempo  que  de  amor  viver  soía, 

Nem  sempre  andava  ao  remo  ferrolhado ; 

Antes,  agora  livre,  agora  atado, 

Em  varias  flammas  variamente  ardia. 

Que  ardesse  num  só  fogo  não  queria 
O  ceo,  porque  tivesse  exprimentado 
Que  nem  mudar  as  causas  ao  cuidado 
Mudança  na  ventura  me  faria. 

Ey  SC  algum  pouco  tempo  andava  isento. 
Foi  como  quem  co  peso  descansou, 
Por  tornar  a  cansar  com  mais  alento. 

Louvado  seja  Amor  em  meu  tormento. 
Pois  para  passatempo  seu  tomou 
Este  meu  tão  cansado  soffrimento. 

Agora,  a  Jlamma  em  que  o  poeta  ardia,  era  a  Barbara 
escrava»  a  humilde  creatura  immortalizada  em  uns  versos,  que, 
no  género,  competem  com  o  melhor  de  que  tenho  noticia. 

Aquella  captiva, 
Que  me  tem  captivo, 
Porque  nella  vivo, 
Já  não  quer  que  viva. 

Eu  nunca  vi  rosa 
Em  suaves  molhos, 
Que,  para  meus  olhos, 
Fosse  mais  formosa. 


f.sta  c  a  caiHiNa 
Que  me  tem  captivo ; 
E  pois  nella  vivo, 
Fr!  força  que  1 1. 


(i)  Segundo  a  ingenhosn  interpretação  da  sr*  D.  Carolina  MichaVlis, 
10  K.  5ajH 


1^1 


Como  ia  longe  o  tempo  em  que  o  poeta,  escrevendo  o  so- 
neto 169,  se  declarava,  em  forma  de  duplo  acróstico,  captivo 
de  uma  mui  alta  senhora  —  da  infanta  D.  Maria! 

Fencido  está  de  amor  mexi  pensamento, 

O  mais  que  pôde  ser;  vencida  a  vida, 

Sujeita  a  vos  servir  e  nistituida, 

Offerecendo  tudo  a  vosso  intento. 

Contente  deste  bem,  louva  o  momento 

Ou  hora,  em  que  se  viu  /ao  bem  perdida, 

Mil  vezes  desejando,  assi  ferida. 

Outras  mil  renovar  seu  perdimento. 

Com  esta  pretenção  está  segura 

A  causa  que  me  guia  nesta  empresa, 

7'ão  sobrenatural,  Vzonrosa  e  alta, 

Jurando  não  querer  outra  ventura, 
Fotando  só  por  vós               ^     rara  firmeza, 

Ou  ser  no  vosso  amor  ízchado  em  falta. 

Foi  por  certo  para  se  desculpar,  não  tanto  perante  os  amigos, 
como  aos  seus  próprios  olhos,  que  o  poeta  escreveu  a  ode  10.^. 
'  Nella  adduz  o  exemplo  de  Achilles,  que 

se  viu  captivo 

Da  captiva  gentil,  que  serve  e  adora ; 

O  de  Salomão, 

Que  mais  que  todos  soube,  mais  amou ; 
O  do  grão  sábio  Aristóteles,  que  a  uma  baixa  concubina 
Aras  ergueu,  que  aos  deuses  só  devia. 


o  poeta,  no  fim  do  jantar  cuja  lisla  já  conhecemos,  brindou  á  Luisa 
Barbara,  recitando  as  endechas,  e  terminando-as  por  um  viva  /,  encorpo- 
rado  no  ultimo  verso.  (W,  Storck,  Vida  de  Camões,  pag.  G19,  nota). 


243 


Mas  que  culpa  tinha  o  poeta, 

se,  de  pequeno,  offerecido 

Foi  todo  a  seu  cuidado, 

No  berço  instituído 
A  não  poder  deixar  de  ser  ferido  ? 

Dispondo  das  boas  graças  do  vice-rei,  a  ponto  de  lhe  re- 
commendar  homens  como  Heitor  da  Silveira  e  Garcia  da 
Orta  (i),  Camões  tinha  decerto  assegurada  a  sua  vinda 
para  o  reino.  Seria  até  naturalmente  companheiro  de  viagem 
do  illustre  fidalgo,  que,  segundo  a  praxe,  lhe  faria  todas  as 
despesas.  Tudo  isto,  é  claro,  depois  da  promessa  formal  — 
que  aliás  já  não  seria  muito  custosa — ,  de  não  mais  se  lem- 
brar da  infanta  D.  Maria. 


(i)  Relativamente  a  Heitor  da  Silveira,  veja-se  nas  Redondilhas  a 
graciosa  ajuda  á  petição  de  um  subsidio,  que  aquelle  dirigiu  ao  vice-rei. 
Emquanto  a  Garcia  da  Orta,  é  sabido  que  os  celebres  Colóquios,  im- 
pressos em  Gôa  em  i5ó3,  são  precedidos  de  uma  ode  de  Camões  (a  8.") 
ao  conde  do  Redondo,  na  qual  se  exalta  o  mérito  scientifico  do  grão 
volume  do  velho  medico  e  botânico  português,  e  se  sollicita  para  elle  o 
favor  e  amparo  do  generoso  fidalgo. 

Pois  se  o  poeta,  escudado  na  protecção  do  seu  nobre  amigo,  até  se 
permittia  o  raro  prazer  de  troçar  de  um  terrível  agiota  —  o  capitão  Mi- 
guel Rodrigues  Coutinho,  o  Fios  Secos— ^  em  cujas  garras  havia  caído  ! 

Que  diabo  ha  tão  danado, 
Que  não  tema  a  cutilada 
Dos  fios  secos  da  espada 

Do  fero  Miqucl  armado  ? 


Com  razão  lhe  fugiria, 
Se,  contr'elIe  e  contra  tudo, 
^ão  tivesse  um  forte  escudo 
Só  cm  vossa  Senhor i, 

È  que  o  fero  Afiguel  era  temível,  quer  exhíbisse  uma  confissSo  de 
dívida,  quer  arrancasse  da  bem  afiada  durindana. 

# 


244 


Mas,  infelizmente,  alguns  meses  antes  de  chegar  ao  termo 
do  seu  governo,  «adoeceo  o  conde  do  Redondo  e  foi  tão 
abreviada  sua  enfermidade,  que  quasi  se  não  sentio  senão 
quando  se  disse  que  era  falecido.  O  que  causou  em  todos 
grande  espanto  e  tristeza,  porque  estava  muito  bem  quisto 
de  todos.  Faleceu  aos  19  dias  de  fevereiro  do  anno  de  i564, 
em  que  andamos,  ás  2  horas  da  tarde,  tendo  governado  a 
índia  dous  annos  e  meio»  (i). 

E  fácil  presumir  como  devia  ter  sido  dolorosa  para  o  poeta 
a  prematura  perda  do  seu  generoso  amigo. 

Privado  de  recursos  e  tão  longe  da  pátria,  sentindo  já 
naturalmente  os  primeiros  rebates  da  decadência  physica, 
apressados  por  dez  annos  de  peregrinação  por  diversas  partes 
do  Oriente,  com  que  sombrias  cores  se  não  lhe  antolharia 
por  vezes  o  futuro  ? 

Oh  1  como  se  me  alonga,  de  anno  em  anno, 

A  peregrinação  cansada  minha  ! 

Como  se  encurta  e  como  ao  íím  caminha 

Este  meu  breve  e  vão  discurso  humano  ! 
Minguando  a  idade  vai,  crescendo  o  dano. 

Perdeu-se-me  um  remédio  que  inda  tinha. 

Se  por  experiência  se  adivinha, 

Qualquer  grande  esperança  é  grande  engano. 
Corro  após  este  bem,  que  não  se  alcança ; 

No  meio  do  caminho  me  fallece. 

Mil  vezes  caio  e  perco  a  confiança. 
Quando  elle  foge,  eu  tardo,  e  na  tardança, 

Se  os  olhos  ergo,  a  ver  se  inda  apparece. 

Da  vista  se  me  perde  e  da  esperança. 

(Soneto  48). 

Tudo  leva  a  crer  que  foram  estas  as  cogitações  que  domi- 


(1)  Couto,  Década  7.%  10,  1; 


245 


naram  no  espirito  do  poeta,   desde  a  morte  do  conde  do 
Redondo  até  o  embarque  para  Moçambique  (i). 

Como  elle  lastima  o  seu  irtsie  estado  e  se  queixa  da  /òr- 
tima  injusta! 

Eu  cantei  já,  e  agora  vou  chorando 

O  tempo  que  cantei  tão  confiado. 

Parece  que  no  canto  já  passado 

Se  estavam  minhas  lagrimas  criando. 
Cantei ;  mas  se  me  alguém  pergunta :  quando  ? 

Não  sei ;  que  também  fui  nisso  enganado. 

É  tão  triste  este  meu  presente  estado, 

Que  o  passado  por  ledo  estou  julgando. 
Fizeram-me  cantar  manhosamente 

Contentamentos  não,  mas  confianças ; 

Cantava,  mas  já  era  ao  som  dos  ferros. 
De  quem  me  queixarei,  se  tudo  mente  ? 

Porém  que  culpas  ponho  ás  esperanças. 

Onde  a  fortuna  injusta  é  mais  que  os  erros  ? 

(Soneto  167). 

Por  fim,  depois  de  três  longos  annos,  Pedro  Barreto  trouxe 


(i)  nSobre  o  triennio  (de  1564-1567)  paira  um  denso  nevoeiro,  que 
não  nos  é  dado  descortinar.  Nesta  situação  devemos  presumir  que  viveu 
dos  proventos  grangeados  durante  o  reinado  do  liberal  e  benévolo  conde, 
soccorrido  de  vez  em  quando  por  amigos  sinceros  e  leaes,  como  era, 
por  exemplo,  o  velho  dr.  Garcia  tia  Orta,  e  que  utilizou  o  ócio,  cinze- 
lando os  últimos  três  ou  quatro  cantos  dos  Lusíadas j  para  cuja  confecção 
lhe  eram  indispensáveis  os  documentos  e  annuarios  do  Archivo  Nacional 
de  Goa».  (Storck,  V7c/j  de  CamõeSy  pag.  645). 

A  ode  Fora  conveniente,  conservada  no  Cancioneiro  de  L.  Franco, 
ti.  ^M,  c  publicada  por  Juromenha  como  sendo  de  Camões,  não  per- 
tence ao  poeta,  como  observa  W.  Storck  {Vida,  pag.  642).  Não  ;  ' 
portanto,  delia  inferir-se  que  o  succcssor  do  conde  do  Redondo,  D.  .\ 
ele  Noronha,  a  quem  se  suppunha  que  o  poeta  a  dirigira,  fosse  um  pro- 
tector deste.  Na  minha  opinião,  esta  ode,  cujo  texto  está  bastante  alte- 
rado, não  só  não  é  de  Camões,  mas  ate  o  tem  a  elle  por  assumpto.  Foi 
um  admirador  do  poeta  que  a  escreveu  cm  seu  louvor. 


246 


o  poeta  comsigo  para  Moçambique  (setembro  de  1567).  E,  no 
anno  de  iSóg,  alguns  amigos,  que  vinham  da  índia,  paga- 
ram-lhe  a  passagem  para  o  reino  (i). 


VI 
De  volta  do  Oriente 

A  Satiia  Clara,  em  que  vinha  o  poeta,  chegou  a  Cascaes 
cm  abril  de  iSyo,  quando  já  se  podia  considerar  cxtincta  a 
peste  grande,  que  tantas  victimas  havia  causado.  Não  houve, 
portanto,  muita  demora  na  livre  pratica  (2). 

Podemos  suppôr  que  um  dos  primeiros  cuidados  do  recém- 
chegado,  depois  do  desembarque,  seria  colher  informações 
a  respeito  da  infanta,  que  decerto  se  achava  então  fora  de 
Lisboa,  por  causa  da  peste. 

E  o  que  o  poeta  logo  soube  —  se  é  que  disso  ainda  não 
tinha  noticia  —  foi  que  a  illustre  senhora,  frustrado  o  seu 
casamento  com  o  filho  de  Carlos  V,  havia  enérgica  e  altiva- 


(i)  «Em  Moçambique  achamos  aquelle  Príncipe  dos  Poetas  do  seu 
tempo,  meu  matalote  e  amigo,  Luis  de  Camões,  tão  pobre  que  comia 
de  amigos.  E  pera  se  embarcar  pêra  o  Reyno  lhe  ajuntamos  os  amigos 
toda  a  roupa  que  houve  mister  e  não  faltou  quem  lhe  desse  de  comer». 
Couto,  Década  5.%  i,  28. 

(2)  Eis  as  palavras  de  Couto :  «Chegamos  a  Cascaes  em  abril  e  ahi 
surgimos,  por  estar  a  cidade  de  peste.  E  tinha  el  Rey  alli  regimento  que, 
chegando  as  nãos,  surgissem  fora  e  lhe  mandassem  um  criado  seu  com 
cartas  para  saber  novas  da  índia.  E. . .  me  desembarcaram  com  as  cartas 
para  ir  dar  novas  (a  el  Rey).  Em  Almeirim  o  esperei,  aonde  veio  ter, 
d'ahi  a  dous  dias. . .  E  por  os  fysicos  assentarem  estaria  a  cidade  fora 
do  mal  grande  que  teve,  mandou  el  Rey  que  entrassem  as  nãos  dentro». 
Década  8.%  i,  28.   , 


-47 


mente  rejeitado  todas  as  novas  propostas  matrimoniaes  (i), 
havia  definitivamente  morrido  para  o  mundo.  ^Dotada  de 
animo  grande  e  espirito  levantado,  de  accordo  com  a  sua 
alta  posição,  revelando  a  generosidade  própria  de  nobres 
caracteres,  perdoa  tantos  e  tão  repelidos  aggravos,  o  desva- 
necimento das  suas  mais  risonhas  esperanças.  Sem  uma 
queixa,  sem  um  reparo,  com  discreta  reserva,  põe  termo  a 
tudo.  Renuncia  a  qualquer  enlace;  resolve  ficar  solteira  e  no 
reino,  no  meio  das  suas  amigas,  dos  seus  livros  e  dos  seus 
pobres,  entregue  d  ora  avante  ás  sciencias  e  artes,  a  obras 


(i)  Quando  em  i556  e  iSSy  D.  João  III  insistia  manhosamente  com 
a  irmã  para  que  casasse,  pois  esperava  assim  evitar  que  a  rainha  D.  Leonor 
a  levasse  para  junto  de  si  (o  casamento  depois  se  desfaria),  a  illustre 
senhora  perdeu  a  paciência  e  deu  esta  altiva  resposta  ao  dissimulado  e 
importuno  irmão :  aQuando  huuo  que  tratar  negócios  que  parccian 
buenos,  anduuo  V.  A.  en  dilaciones  y  de  feria  en  feria,  sin  quererlos  con- 
cluir, y  agora  que  no  ay  ninguno,  me  sale  com  esso  ?  Pues  aunque  fuesse 
Monarca  dei  mundo,  no  lo  harè,  ni  se  ha  de  pensar  ral  cosa  de  mi». 
(Pacheco,  V.  de  Ia  Infanta f  fl  56).  E  o  embaixador  espanhol,  D.  Sancho 
de  Córdova,  que  nos  transmittiu  estas  palavras,  precede-as  dos  seguintes 
dizeres :  «El  Rey  trato  con  su  hermana  á  que  quando  ella  se  determine 
ir  con  su  madre,  que  casasse  con  el  senor  Rey  de  Romanos,  y  ella  se 
altero  tanto  de  oirío,  y  le  respondi©  de  manera,  que  le  peso  de  auerle 
hablado,  porque,  entre  las  otras  ásperas  palabras  que  le  dixo,  fueron 
estas»  (seguem-se  as  palavras  ha  pouco  transcriptas).  E  o  enviado  de 
Carlos  V,  depois  de  elogiar  a  intelligencia,  a  cordura,  a  gravidade  da 
infanta,  o  costume  que  tinha  de  fallar  pouco  e  com  muito  acerto,  pro- 
segue :  «Temense  sus  determinaciones  como  de  tal,  que  no  son  de  muger 
moça,  que  maííana  se  pueden  esperar  otras  que  las  que  oy  tiene. . .  Ella 
quedo  tan  sentida  dcl  passado  (allusão  ao  casamento  com  o  príncipe  dás 
Astúrias,  agora  já  rei  de  Espanha),  que  veo  que  aun  para  èl  no  daria 
oidos,  porque  tiene  otros  fines  muy  santos  y  honrados^  y,  sin  hazer  es- 
trcmos  en  ello,  ha  mas  de  dos  aRos  que  se  ensaya  en  un  vestido  y  reco- 
gimienio  muy  bueno,  y  mucha  oracion,  y  esto  no  como  hipócrita,  siito 
como  conuiene  n  su  edad  y  persona ;  y  tiene  el  entcndímiento  y  valor 
que  digo».  (Pacheco,  fl.  58;. 


248 


de  caridade  e  cuidados  religiosos.  Despede-se  do  mundo  e 
de  seus  enganos,  preferindo  a  placidez  da  vida  contempla- 
tiva, o  ideal  de  Rachel-Maria,  aos  cuidados  e  conflictos  da 
vida  activa  de  Lea  e  Marta»  (i). 

Eis  como  Fr.  M.  Pacheco  descreve  a  vida  quotidiana  da 
filha  de  D.  Manuel: 

tPor  las  marianas,  auiendo  cumplido  sus  particulares  de- 
uociones,  que  suelen  hazer  las  almas  timoratas  ai  leuantarse 
dei  sueno,  se  iba  a  su  capilla,  y  alli  oia  dos  y  três  missas 
con  singularissima  deuocion.  Confessauase  en  los  mas  de  los 
dias,  comulgaua  en  los  que  le  disponia  su  confessor...  Des- 
pues  de  confessar,  ò  de  comulgar  en  los  dias  permitidos,  se 
retiraua  a  oraciõ;  y  acabada  ella,  entraua  en  despacho  de 
memoriales  que  acudian  a  su  palácio,  de  huerfanas,  viudas 
y  otro  género  de  gente  necessitada...  Cumplida  esta  santa 
occupacion,  el  tiempo  que  restaua  hasta  la  hora  de  comer 
se  despendia  en  estúdios  que  guia  ai  mayor  conocimiento  de 
Dios;  y  a  sus  horas  se  ponia  à  la  mesa,  con  la  grandeza 
deuida  a  su  Real  persona,  mas  en  el  comer  cõ  la  teplança 
de  religiosa  obseruantissima...  Este  tenor  de  vida  igualaua 
a  la  Religion  mas  reformada,  viuiendo  en  el  mundo  como  se 
estuuiera  fuera  dei»  (2). 

É  obvio  que,  nestas  condições,  não  restava  ao  poeta  outro 
remédio  senão  recalcar  no  fundo  do  coração  as  perpetuas 
saudades  daquella  que,  por  tantos  annos,  fora  a  ptda  da  sua 
alma. 

Qualquer  tentativa  que  agora  fizesse  para  que  a  infanta 
se  lembrasse  delle,  não  só  seria  absolutamente  inútil,  mas  não 
deixaria  de  lhe  acarretar  graves  desgostos. 

Com  eíFeito,  o  carinhoso  interesse,  a  respeitosa  sympathia, 


(i)  Sr.*  D.  Carolina  Michaélis,  A  infanta  D.  Maria,  pag.  22-23. 
(•2)  Folhas  97  v.-r)9. 


249 


em  que  o  povo  de  Lisboa  envolvera,  desde  pequenina,  a 
orphã  do  Rei  Venturoso,  e  que  mais  de  uma  vez  o  havia 
feito  sair  para  a  rua,  afim  de  evitar  que  lh'a  levassem  para 
fora   do  reino  (i),  esse  interesse   e  sympathia,   digo,   acha- 


(i)  A  primeira  vez,  como  se  sabe,  foi  quando  a  rainha  víuvb,  D.  Leo- 
nor, se  viu  forçada  a  retirar-se  do  reino.  Contra  o  que  aliás  se  achava 
estipulado  no  contracto  matrimonial,  o  povo  não  consentiu  que  a  deso- 
lada mãe  levasse  comsigo  a  infanlinha.  «Tomada...  la  resolucion  por 
el  Rey  de  entregar  la  Infanta,  divulgòse  por  el  pueblo,  que  tuuo  tal  sen- 
timiento,  de  que  huuiesse  de  desterrar-se  dei  Reino  en  edad  tan  tierna 
una  Princesa  natural  dèl,  hija  dei  mas  querido  Uey  que  hasta  entonces 
le  auia  gouernado,  que  faltaua  poço  para  passar  a  motin.  Discurriasse 
publicamente  acerca  desto,  dizendose  por  los  corrillos  y  conuersaciones 
que  era  nouedad  jamas  vista  en  Portugal  embiar  sus  Princesas  a  Reinos 
esiranos,  entregando  la  tutoria,  que  era  propia  dcl  Rey,  ai  que  por  ven- 
tura la  pretendia,  menos  por  amor  que  por  codicia. . .  Assi  se  platicaua 
entre  mayores  y  menores,  q,  quãdo  se  sueltan  las  lenguas  populares, 
nada  dexan  por  dezir,  y  el  vulgo...  en  esta  ocasion  hablaua  tan  libre- 
mente  en  la  matéria,  que  el  Rey  le  pareciò  digna  de  grande  reparo, 
instado  tambien  de  lo  que  le  escriuiò  la  ciudad  díí  Lisboa».  (Pacheco, 
ti.  IO  V.-12).  E  a  cidade  de  Lisboa  perguntava  com  intimativa  a  el-rei ; 
«Onde  mandaes  a  nossa  infanta,  nascida  como  em  nossos  braços,  filha 
legitima  de  nosso  natural  rey,  successora  e  herdeira  em  seu  grau,  nossa 
paz  presente,  alliança  futura,  riqueza  certa?»  (Andrade,  Chronica  de 
D.  João  Illf  parte  i.",  cap.  19).  A  segunda  vez  que  o  povo  de  Lisboa 
teve  de  intervir  foi  quando  em  i557  a  rainha  D.  Leonor  —  morta  de  sau- 
dades pela  filha  querida  e  sabedora  já  de  que  mais  de  uma  vez  tinha 
dado,  na  melhor  das  intenções,  o  seu  apoio  inconsciente  a  tortuosos 
planos,  tendentes  a  prejudicá-la  —  empregou  desesperados  esforços  para 
a  levar  para  junto  de  si.  «A  sorte  da  Infanta  e  sua  bondade  impressiona- 
ram profundamente  o  povo,  cujos  clamores  a  haviam  arrancado  em 
tempo  dos  braços  de  sua  mãe.  Fazendo  seu  o  querer  do  soberano,  exacta- 
mente como  na  primeira  conjunctura,  não  quis  deixar  partir  a  que  era 
o  amparo  dos  pobres,  protectora  dos  poetas  e  dos  sábios,  e  que  havia 
partilhado  todas  as  dores  c  alegrias  da  nação  durante  3(3  annos.  Concc- 
deu-se-lhc,  porém,  licença  para  uma  entrevista  na  raia  do  reino,  mas 
só  depois  de  a  Infanta  ter  prestado  juramento  solemnc  de  voltar  em 


25o 


vam-se  no  seu  auge  e  haviam-se,  por  assim  dizer,  transfor- 
mado em  intractavel  ciúme. 

Mal  iria,  porisso,  a  quem  se  lembrasse  de  causar  o  menor 
desgosto  áquella  a  quem  o  povo  da  capital  considerara,  desde 
sempre,  a  sua  infanta,  nascida  como  cm  seus  braços,  áquella 
que  tão  generosamente  distribuía  a  sua  enorme  fortuna. 

O  caminho  que  o  poeta  tinha  a  seguir  estava,  pois,  traçado. 
Ouçamo-lo : 

Que  me  quereis,  perpetuas  saudades  ? 

Com  que  esperanças  inda  me  enganais  ? 

O  tempo  que  se  vai,  não  torna  mais, 

E  se  torna,  não  tornam  as  idades. 
Razão  é  já,  ó  annos,  que  vos  vades, 

Porque  estes  tão  ligeiros,  que  passais, 
'  Nem  todos  para  um  gosto  sois  iguaes. 

Nem  sempre  são  conformes  as  vontades  (i). 


breve  para  Lisboa  e  de  não  transigir  com  os  desejos  da  mãe.  D.  Leonor, 
anciosa  e  afflicta,  estava  em  Badajoz,  á  espera,  havia  dois  meses!  Final-^ 
mente,  em  dezembro  de  líSy,  a  Infanta  chega  com  séquito  apparatoso, 
brilhante  não,  porque  ambas  trajavam  dó  por  morte  de  D.  João  III.  Vinte 
dias  passaram  juntas...  Depois,  D.  Maria  recolheu  a  Lisboa,  fiel  á  sua  pro- 
messa, apesar  das  vivas  instancias  da  mãe,  que,  além  dos  seus  carinhos, 
lhe  ofFerecia  todas  as  riquezas  e  estados  que  possuia.  O  povo  da  capital 
recebeu-a  com  sinceras  demonstrações  de  alegria.  Gelebrou-se  mesmo 
um  solemne  Te  Deiim  laudamus,  em  acção  de  graças  pela  sua  lealdade. 
A  mãe  não  pôde  resistir  á  dor  da  partida.  Passados  dias  succumbiu  a 
uma  febre  maligna,  a  três  legoas  de  Badajoz».'  (Sr.«  D.  Carolina  de  Mi- 
chaélis,  obr.  cit.,  pag.  24). 

(i)  Manifestamente  esta  quadra  sotireu  alterações.  Proponho  a  se- 
guinte modificação,  embora  a  não  considere  inteiramente  satisfactoria : 

Razão  é  já,  esp'ranças,  que  vos  vades. 

Porque  os  bens  tão  ligeiros,  que  mostrais, 
Nem  todos  para  um  gosto  são  iguais. 
Nem  sempre  são  conformes  ás  vontades. 


2M 


Aquillo  a  que  já  quis  é  tão  mudado. 

Que  quasi  é  outra  cousa ;  porque  os  dias 

Teem  o  primeiro  gosto  já  damnado. 
Esperanças  de  novas  alegrias  ^ 

Não  mas  deixa  a  fortuna  e  o  tempo  irado, 

Que  do  contentamento  são  espias. 

(Soneto  220). 

Pensamentos,  que  agora  novamente 
Cuidados  vãos  em  mi  resuscitais, 
Dizei-me ;  E  inda  não  vos  contentais 
De  ter  a  quem  vos  tem  tão  descontente  ? 

Que  phantasia  é  esta,  que  presente 

Cada  hora  ante  os  meus  olhos  me  mostrais  ? 
Com  uns  sonhos  tão  vãos  inda  tentais 
Quem  nem  por  sonhos  pôde  ser  contente  ? 

Vejo-vos,  pensamentos,  alterados, 

E  não  quereis,  de  esquivos,  declarar-me 
Que  é  isto  que  vos  traz  tão  enleados  ? 

Não  me  negueis,  se  andais  para  negar-me ; 
Porque,  se  contra  mi  'stais  levantados, 
Eu  vos  ajudarei  mesmo  a  matar-me. 

(Soneto  93). 

Creio  que  foi  também  nesta  occasião  que  o  poeta  glosou 
o  mote  attribuido  á  infanta: 

Já  não  posso  ser  contente, 
Tenho  a  esperança  perdida ; 
Ando  perdida  entre  a  gente, 
Nem  mouro,  nem  tenho  vida  (i). 


(i)  «Sei  de  um  (cantar),  não  posterior  ao  anno  de  1549,  que  encon- 
trei consignado  em  uma  Miscellanea,  como  desabafo  mclancholico  Da 
Infanta  D.  Maria  guc  nunca  teve  dita  para  casar,  sendo  grande  senhora. 
E  diz  (segue-se  a  quadra  citada  no  texto)....  Sei  também  de  diversos 
lyricos  de  boa  veia  que  paraphrasearam  esta  copla,  juigando-se  «vencidos 
da  vida»,  em  momentos  de  tristeza.  Dois  são  magnates  coevos...  Se- 
guem poetas  de   profissão:  I.uis  de  Camões  e  seu  emulo,  o  suave 


252 


Apropriando  a  si  mesmo  a  melancólica  quadra,  diz  Camões 

Depois  que  meu  cruel  fado 
Destruiu  uma  esperança, 
Em  que  me  vi  levantado, 
No  mal  fiquei  sem  mudança 
E  do  bem  desesperado. 

O  coração,  que  isto  sente, 
A  sua  dor  não  resiste. 
Porque  vê  mui  claramente 
Que,  pois  nasci  para  triste. 
Já  não  posso  ser  contente. 

Por  isso,  contentamentos,  * 

Fugi  de  quem  vos  despreza ; 

Já  fiz  outros  fundamentos, 

Já  fiz  senhora  a  tristeza 

De  todos  meus  pensamentos.  / 

O  menos  que  lhe  entreguei 
Foi  esta  cansada  vida ! 
Cuido  que  nisto  acertei. 
Porque,  de  quanto  esperei. 
Tenho  a  esperança  perdida. 

Gostos,  de  mudanças  cheios. 
Não  me  busqueis,  não  vos  quero ; 
Tenho-vos  por  tão  alheios. 
Que,  do  bem  que  não  espero, 
Inda  me  ficam  receios. 

De  vós  desejo  esconder-me, 
E  de  mim  principalmente. 
Onde  ninguém  possa  ver-me ; 
Que,  pois  me  ganho  em  perder-me. 
Ando  perdido  entre  a  gente. 


cantor  do  Lima,  Diogo  Bernardes».  Sr.^  D.  Carolina  Michaelis,  obr.  cit., 
pag.  5y.  Reproduzo  o  texto  com  as  transposições  introduzidas  pela  illus- 
tre  escriptora,  reservando  para  outro  logar  a  discussão  da  origem  camo- 
neana  das  glosas  ao  mote  attribuido  á  infanta. 


253 

Acabar  de  me  perder 
Fora  já  muito  melhor. 
Tivera  fim  esta  dor, 
Que,  não  podendo  mór  ser, 
Cada  vez  a  sinto  mór. 

Em  tormento  tão  esquivo, 
Em  pena  tão  sem  medida, 
Que  moura  ninguém  duvida ; 
Mas  eu,  se  mouro  ou  se  vivo, 
Nem  mouro  nem  tenho  vida. 

Entretanto  cuidava  o  poeta  da  publicação  dos  Lusíadas,  o 
que,  como  era  natural,  o  levou  a  dirigir-se  a  D.  Francisca 
de  Aragão,  a  formosa  dama  que,  uns  vinte  annos  antes,  elle 
havia  invocado  como  a  musa  inspiradora  do  poema  que 
estava  preparando  (i). 

É  certo  que  este,  tanto  pelo  assumpto,  como  pela  forma 
e  proporções  que  havia  assumido,  tinha  de  ser  dedicado  a 
quem  personificava  a  pátria  —  a  el-rei  D.  Sebastião  — ;  ^nas 
aquella  cm  quem  o  poeta,  em  tempos  idos,  declarara  ter  as 
nove  musas,  aquella  em  quem  Minerva  deixara  a  sua  valia, 
não  podia  ficar  esquecida. 

D'aí  a  ode  6.*,  a  que  pertencem  estes  versos: 


Aqucllc  não  sei  que. 

Que  aspira  (2)  não  sei  como, 
Que,  invisivel  saindo,  a  vista  o  vê, 
Mas,  para  o  comprcnder,  não  lhe  acha  tomo  (3), 
E  que  toda  a  toscana  poesia, 

Que  mais  Phebo  restaura, 
Em  Beatriz  nem  Laura  nunca  via, 


(i)  Veja-se  a  passagem  da  egloga  4.*,  transcripta  a  pag.  i85. 

(2)  Provavelmente  expim,  se  cxhala. 

(3)  Cf.  Boícán,  na  canção  Yayo  vivi: 

Para  curallos  no  les  hallo  tomo. 


Em  vós  a  nossa  idade 


Senhora,  o  pode  ver, 
Se  engenho,  se  sciencia  e  habilidade, 
Iguais  á  vossa  formosura,  der, 
Qual  a  (i)  vi  no  meu  longo  apartamento  (2), 

Qual  em  ausência  (3)  a  vejo. 
Tais  asas  dá  o  desejo  ao  pensamento ! 


(i)  Talvez  o,  tanto  neste  verso,  como  no  seguinte,  referindo-se,  como 
o  o  do  2.<*  verso,  ao  não  sei  que  da  estrophe  anterior,  c  devendo  os  ver- 
sos 3  e  4  desta  estrophe  incluir-se  entre  parcnthesis. 

(2)  Allusão  á  estada  do  poeta  no  Oriente,  durante  a  qual  diz  ter  con- 
tinuado a  sentir-se  inspirado  pela  formosa  dama. 

(3)  Cf.  a  estrophe  3.» : 

Pois  vós,  ó  claro  exemplo 

De  viva  formosura, 
Que  de  tão  longe  cá  noto  e  contemplo 
Na  alma,  que  este  desejo  sobe  e  apura. . . 

Quando  o  poeta  compôs  esta  ode,  D.  Francisca  de  Aragão  estava 
ausente  de  Lisboa,  achava-se  talvez  nas  suas  propriedades  do  Algarve. 
Foi  também  por  uma  occasião  destas  que  o  importuno  e  quasi  sem- 
pre insulso  Caminha  escreveu  a  cantiga  publicada- pelo  dr.  Priebsch,  sob 
o  n.^  1 5  : 

Com  tantos  ares  em  meo, 
Com  tanta  terra  e  tanta  agoa, 
Que  grandes  males  receo. 
Pois  me  não  mata  esta  magoa  1 


Tendo  muito  que  temer, 
Já'gora  que  temerei  ? 
Que,  pois  vivo  sem  vos  ver, 
Com  que*mal  não  poderei? 

Mas,  sobre  quanto  me  veo. 
Nada  sinto  como  a  magoa 
De  ver  inda  neste  meo 
Tantos  ares,  terra  e  agoa. 


Cf.  os  n."'  222  e  223.  Poesias  iíieditas  de  P.  de  Andrade  Caminha 
(Halle,  1898),  pag.  14,  iSíj,  162.  Como  se  sabe,  a  Filis  cantada  por  Cami- 
nha é  D.  Francisca  de  Aragão. 


255 

Pois  se  o  desejo  afína 

Uma  alma  accesa  tanto, 
Que  por  vós  use  as  partes  de  divina, 
Por  vós  levantarei  não  visto  canto. 
Que  o  Beiis  me  ouça  e  o  Tibre  me  levante, 

Que  o  nosso  claro  Tejo 
Envolto  um  pouco  vejo  e  dissonante  (i). 

E  no  coração  do  poeta,  que  ainda  pulsava  com  força  (2), 
mas  se  achava  devoluto,  surgiu  um  uopo  pensamento  (3). 
Porque  é  que  elle  não  havia  de  amar  a  formosa  dama,  que, 
desde  a  época  já  afastada  da  mocidade,  lhe  dera  mais  de 
uma  prova  de  verdadeira  estima,  chegando  até  a  receber- lhe 


(i)  Destaco  dos  que  os  precedem  os  três  últimos  versos  desta  estro- 
phe.  O  poeta,  que  vai  levantar  não  visto  canto,  que  vai  publicar  os  Lu- 
síadas, recêa  que  estes  não  sejam  devidamente  apreciados  em  Portugal, 
em  vista  das  discórdias  que  ha  na  corte  e  que  preoccupam  todas  as 
attenções.  Espera,  porém,  que  na  Espanha  e  na  Itália  haverá  quem  saiba 
dar  ao  poema  o  devido  merecimento. 

(2)  ^ja-se  o  soneto  268,  transcripto  a  pag.  178,  nota. 

(3)  Que,  se  possível  fosse  que  tomasse 

O  tempo  para  trás,  como  a  memoria. 
Por  os  vestigios  da  primeira  idade, 
E  de  novo  tecendo  a  antig(ia  historia 
De  meus  doces  errores,  me  levasse 
Por  as  flores  que  vi  da  mocidade, 
E  a  lembrança  da  longa  saudade 
Então  fosse  maior  contemamento. 
Vendo  a  conversação  leda  e  suave, 

Onde  uma  e  outra  chave 
Esteve  de  meu  novo  pensamento, , . 

(Cnnçlío  !!.•). 

Direi  de  paSSagetn  ^^uc  1  iit  .u  «,,1  i.uui  uiuiu.-ni  (.m  Jffici-  n    i  ní^tyi  dvl . .  . 

cor  (soneto  00  da  a/  parte),  nas  chiavi  de',,,  dolci  pcnsier  (canção  3.* 
da  I.'  pane). 


as  confidencias  amorosas  (i)?  Náo  estava  elle  em  uma  plana 
incomparavelmente  superior  á  dos  outros  poetas  que  inutil- 
mente a  haviam  cortejado?  E  porque  é  que  o  seu  amor  havia 
de  ficar  puramente  platónico  ?  Porque  é  que  não  haviam  os 
dous  de  ligar  os  seus  destinos,  sobretudo  quando  a  velhice 
não  poderia  tardar  muito  a  dar  sinais  de  si  ? 

Ao  escrever  a  canção  i.*  já  o  poeta  está  apaixonado  pela 
formosa  e  gentil  dama,  mas  repelle  os  atrevidos  e  mos  desejos 
que  o  importunam.  Ouçamo-lo: 

Formosa  e  gentil  dama,  quando  vejo 

A  testa  d'ouro  (2)  e  neve,  o  lindo  aspeito, 

A  boca  graciosa,  o  riso  honesto, 

O  coUo  de  crystal,  o  branco  peito, 

De  meu  não  quero  mais  que  meu  desejo, 

Nem  mais  de  vós,  que  ver  tão  lindo  gesto. 

Alli  me  manifesto 
Por  vosso  a  Deus  e  ao  mundo ;  alli  me  inflammo 

Nas  lagrimas  que  choro, 

E  de  mi,  que  vos  amo. 
Em  ver  que  soube  amar-vos  me  namoro. 
E  fico  por  mi  só  perdido  de  arte, 
Que  hei  ciúmes  de  mi  por  vossa  parte. 


(i)  Veja-se  a  carta  com  que  o  poeta  acompanhou  a  glosa  ao  mote 
de  D.  Francisca  de  Aragão  —  Mas  porém  a  que  cuidados — ,  e  sobretudo 
a  egloga  4.». 

(2)  Andrade  Caminha  também  se  extasiava  perante 

. . .  aquelle  fermoso  ouro. 
Ou  solto  ou  recolhido, 
De  que  o  rayo  do  sol  fica  vencido. 

(Ode  io.«). 

Nesta  ode  {Poesias,  pag.  210-216),  o  importuno  poeta  convida  os 
bem  nascidos  espíritos  a  celebrarem 

. . .  uma  Francisca, 

Qual  nunca  o  mundo  teve. 


Se  por  ventura  vivo  descontente 
Por  fraqueza  de  esprito,  padecendo 
A  doce  pena  que  entender  não  sei, 
Fujo  de  mi  e  acolho-me  correndo 
A  vossa  vista ;  e  fico  tão  contente 
Que  zombo  dos  tormentos  que  passei. 

De  quem  me  queixarei, 
Se  vós  me  dais  a  vida  deste  geito 

Nos  males  que  padeço, 

Senão  de  meu  sugeito, 
Que  não  cabe  com  bem  de  tanto  preço  ? 
Mas  inda  isto  de  mi  cuidar  não  posso. 
De  estar  muito  soberbo  com  ser  vosso. 

Se  por  algum  acerto  amor  vos  erra 
Por  parte  do  desejo,  commeitendo 
Algum  nefando  e  torpe  desatino, 
E  se  inda  mais  que  ver,  emfim,  pretendo, 
Fraquezas  são  do  corpo,  que  é  de  terra. 
Mas  não  do  pensamento,  que  é  divino. 

Se  tão  alto  imagino, 
Que  de  vista  me  perco  ou  pecco  nisto, 

Desculpa-me  o  que  vejo. 

Porém,  como  resisto 
Contra  um  tão  atrevido  e  vão  desejo, 
Faço-me  forte  em  vossa  vista  pura, 
Armando-me  de  vossa  formosura 


É  escusado  dizer  que  £f  altiva  dama  não  acceitou  a  corte 
do  enamorado  poeta,  antes  com  ella  se  deu  por  oííendida  (i). 


(i)  Nem  outra  cousa  era  de  esperar  da  parte  de  quem  sempre  fora 
tão  protegida  e  estimada  pela  rainha  D.  Catharina,  pela  Catharina  Real, 
que  no  auto  á^Klrei  Seleuco,  como  se  annunciava  no  prologo,  havia  de 
apparccer  com  uns  poucos  de  parvos  numa  joeira  e  os  ftjvi.i  Jc  st*mc.ir 
ycla  casa,  de  que  nasceria  muito  mantimento  ao  riso. 

17  i'     -Vm 


258 

Quando,  Senhora,  quis  Amor  que  amasse 

Essa  grã  perfeição  e  gentileza, 

Logo  deu  por  sentença  que  a  crueza 

Em  vosso  peito  amor  accrescentasse  (i). 
Determinou  que  nada  me  apartasse, 

Nem  desfavor  cruel,  nem  aspereza ; 

Mas  que  em  minha  raríssima  firmeza 

Vossa  isenção  cruel  se  executasse. 
E,  pois  tendes  aqui  oflerecida 

Esta  alma  vossa  a  vosso  sacrifício, 

Acabai  de  fartar  vossa  vontade. 
Não  lhe  alargueis.  Senhora,  mais  a  vida ; 

Acabará  morrendo  em  seu  officio, 

Sua  fé  defendendo  e  lealdade. 

(Soneto  272). 

A  vida  me  aborrece,  a  morte  quero ; 

Será  eterno  o  meu  mal,  segundo  intendo. 
Pois  na  mór  esperança  desespero. 

Sem  viver  vivo,  por  morrer  vivendo  (2), 

Por  não  verdes,  Senhora,  como  eu  vejo. 
Quanto  de  mi  por  vós  me  ando  esquecendo. 

Seja-me  agradecido  este  desejo ; 

Ingrata  não  sejais  a  quem  vos  ama 
Com  puro  e  honestissimo  despejo. 

A  culpa  que  me  pondes,  ponde-a  á  fama. 
Que  pregoa  de  vós  celeste  vida. 
Que  os  corações  de  amor  divino  inflamma. 

Se  vos  offendo,  cuido  que  não  vivo  (3) ; 

Olhai  se  muito  mais  que  de  ofFender-vos  (4), 
Das  esperanças  do  viver  me  privo. 


(i)  Que  a  crueza  em  vosso  peito,  a  vossa  crueza,  augmentasse  o  meu 
amor. 

(2)  Talvez :  por  7norrer  morrendo,  isto  é,  desejando  a  morte.  Cf.  os 
versos  1  e  7. 

(3)  Que  não  continuarei  a  viver,  que  morrerei  de  desgosto. 

(4)  Verso,  por  certo,  alterado.  Talvez :  Olhai  que  muito  antes  que 
offender-vos.  Isto  é :  antes  quero  perder  as  esperanças  de  viver,  antes 
quero  morrer,  do  que  offender-vos 


2S9 


Se  vos  aggrava  quem  por  vós  padece, 

Se  vos  vem  a  offender  quem  vos  quer  tanto, 
Quem  desta  sorte  errou  não  desmerece. 

(Elegia  9."). 

Para  melhor  conseguir  os  seus  intentos,  lembrou  o  poeta 
a  D.  F'rancisca  de  Aragão  que  os  annos  iam  fugindo  e  pon- 
derou-lhe  que  era  tempo  de  gosar  a  vida. 

Se  as  penas  com  que  Amor  tão  mal  me  trata 
Permittirem  que  eu  tanto  viva  delias, 
Que  veja  escuro  o  lume  das  estrellas, 
Em  cuja  vista  o  meu  se  accendc  e  mata ; 

E  se  o  tempo,  que  tudo  desbarata, 

Secar  as  frescas  rosas,  sem  colhe-las, 
Deixando  a  linda  côr  das  tranças  bellas 
Mudada  de  ouro  fino  em  fina  prata ; 

Também,  Senhora,  então  vereis  mudado 
O  pensamento  e  a  aspereza  vossa, 
Quando  não  sirva  já  sua  mudança. 

Ver-vos-eis  suspirar  por  o  passado. 

Em  tempo  quando  executar-se  possa 
No  vosso  arrepender  minha  vingança. 

(Soneto  58). 

Se  te  fez  natureza  tão  preclara. 

Se  te  dotou  de  graça  e  perfeição, 

Com  ella  não  assanhes  a  ventura. 

Olha  que  estás  agora  em  tua  sasão ; 

Não  sejas  para  ti  mesma  avara  (i), 

Que  (2)  a  fruita  ha  de  colhcr-se,  se  é  madura. 

S«  deixares  murchar  tua  formosura. 


(i)  Talvez  :  Não  sejas  p'ra  ti  mesma  tão  avara. 

(2)  Juromenha,  que  encontrou  esta  poesia  no  Cancioneiro  de  Franco 
Corrêa  (fi.  i32  v.)  e  a  publicou  pela  primeira  vez  (11, 239),  começa  o  verso 
pelas  palavras  Vâ  que.  Nem  a  métrica  nem  o  manuscripio  auctorizam  a 
introducção  do  Vè.  No  manuscripto  o  que  c  precedido,  é  certo,  por  uns 
traços,  mas  estes,  segundo  me  parece,  nfío  representam  nenhuma  palavra. 


200 


Que  agora  mal  despendes, 

Depois,  se  te  arrependes, 
O  tempo,  como  corre  á  rédea  solta. 

Não  torna  mais  (i)  a  dar  volta, 
Nem  nosso  estado  humano  é  ião  felice, 
Que  se  renove  assim  como  a  fenice. 

(Canção  Crecendo  vai  meu  mal). 

Olhai,  Senhora,  as  horas  apressadas, 

Que  vem  cobrindo  o  ouro  dos  cabellos 
De  neve,  e  torna  (2)  as  rosas  descoradas. 

Ireis  ver  ao  crystal  os  olhos  bellos 

E  já  os  não  vereis  quais  d'antes  eram. 
Pois  quais  então  serão,  não  queirais  vê-los. 

Usai  dos  bens  que  vão  como  nasceram ; 
Olhai  que  tudo  desce  de  alto  estado. 
Que  também  os  prazeres  meus  desceram. 

Mas  não  descerá  nunca  meu  cuidado. 

(Elegia  Foi-me  alegre  o  viver). 

A  avisada  senhora  achou  sensatas  as  observações  e  conse- 
lhos do  poeta  e...  casou-se  com  o  embaixador  espanhol, 
viuvo  de  pouco  tempo  (3),  saindo  depois  com  elle  para  fora 


(i)  A  métrica  exige  se  lea :  Não  mais  torna. 

(2)  O  poeta,  supponho,  escreveu  tornam  [as  horas  apressadas).  O  de- 
sejo de  melhorar  a  métrica  faria  mais  tarde  desapparecer  o  m. 

(3)  Veja-se  a  nota  da  pag.  178.  Ao  ouvir  fallar  no  projectado  casa- 
mento, escrevia  o  poeta : 

Quem  pudera  julgar  de  vós.  Senhora, 

Que  uma  tal  fé  pudesse  assi  perder-vos  ? 
Se,  por  amar-vos,  chego  a  aborrecer-vos. 
Deixar  não  posso  o  amar-vos  algum'hora. 

Deixais  a  quem  vos  ama,  ou  vos  adora, 

Por  ver  a  quem  quiçá  não  sabe  vêr-vos  ? 
Mas  eu  sou  quem  não  soube  merecer-vos, 
E  esta  minha  ignorância  intendo  agora. 


2bi 


do  reino  (i).  Deixemos,  porém,  este  episodio  — o  ultimo  — 
da  longa  e  tão  accidentada  vida  amorosa  do  poeta,  e  volte- 
mos a  fallar  da  infanta. 

Em  1672  appareceram  os  Lusíadas.  Lê-los-ia  ella?  Tudo 
auctoriza  uma  resposta  affirmativa.  O  assumpto  do  poema 
e  sobretudo  a  fama  do  seu  altissimo  valor  litterario  fariam, 
por  certo,  desapparecer  quaesqucr  escrúpulos,  se  os  houvesse, 
por  parte  da  illustre  senhora. 

Mais.  Se  é  fundada  uma  conjectura  que  me  suggerem  os 
sonetos  260  e  285  (2),  a  filha  de  D.  Manuel  commoveu-se 
profundamente  com  a  leitura  da  nossa  epopea  nacional  e  o 
fino  lenço  em  que  ainda  se  viam  vestigios  de  uma  lagrima  foi 


Nunca  soube  intender  vossa  vontade, 

Nem  a  minha  mostrar-vos  verdadeira, 
Inda  que  clara  estava  esta  verdade. 

Esta,  emquanto  eu  viver,  vereis  inteira ; 
E,  se  em  vão  meu  querer  vos  persuade, 
Mais  vosso  não  querer  faz  que  vos  queira. 

(Soneto  io5). 

(i)  A  rainha  D.  Catharina  empenhou-se  em  conseguir  para  o  marido 
da  sua  dama  predilecta  um  logar  de  mordomo,  vago  na  corte  de  Ma- 
drid, mas  Philippe  2.*  não  desistiu  de  o  mandar  como  seu  embaixador 
para  a  corte  imperial.  A  razão  allegnda  pela  viuva  de  D.  João  3.«  era  que 
a  sua  protegida  nem  o  Tejo  podia  atravessar,  sem  sentir  grande  afflicçSo : 
atodas  las  vezes  q...  comigo  a  atrauessado  este  rio  p^ra  ir  a  outras 
partes,...  es  cosa  piadosa  lo  que  passa,  y  uá  mas  muerta  q  uiua»,  e 
porisso  pede  ao  sobrinho  que  busque  outra  pessoa  que  «pueda  c6  el 
trabajo  de  pasar  la  mar».  (Carta  de  8  de  setembro  de  iSjô  nas  Repara- 
ciones  históricas  do  sr.  dr.  Sánchez  Moguel,  pag.  242).  Mas  os  receios 
de  D.  Catharina,  de  que  o  poeta  lambem  se  fez  eco  no  soneto  178,  re- 
produzido a  pag.  179,  não  tinham  razão  de  ser.  D.  Francisca  de  Aragão 
embarcou  para  Gcnova  em  adcantado  estado  de  gravidez  c  o  mais  que 
lhe  aconteceu  parece  que  foi  dar  á  luz  durante  a  viagem  o  futuro  vice-rei 
do  Peru,  D.  Francisco  de  Borja  c  Aragão. 

(2)  Um  não  passa  de  uma  variante  do  outro. 


202 


mostrado  ao  poeta,  dando-se-lhe  a  intender  que  se  fazia  isto 
por  ordem  da  infanta,  o  que,  como  era  natural,  não  deixou 
de  suscitar  duvidas  no  seu  espirito.  Eis  os  dous  sonetos: 

Pues  siempre  sin  césar,  mis  ojos  tristes, 
En  lágrimas  tratais  la  noche,  el  dia, 
Mirad  si  es  lágrima  esta  que  os  envia 
Aquel  sol  por  quien  vos  tantas  vertistes. 

Si  vos  me  asegurais,  pues  ya  la  vistes. 
Que  és  lágrima,  será  ventura  mia ; 
Por  empleadas  bien  desde  hoy  tendria 
Las  muchas  que  por  ella  sola  distes. 

Mas  cualquier  cosa  mucho  deseada, 

Aunque  viendo  se  este,  nunca  es  creida, 

Y  menos  esta  nunca  imaginada. 
Pêro  delia  aseguro,  si  es  fingida, 

Que  basta  ser  por  lágrima  enviada. 
Para  que  seá  por  lágrima  tenida. 

Pues  lágrimas  tratais,  mis  ojos  tristes, 

Y  en  lágrimas  pasais  la  noche  y  dia, 
Mirad  si  es  llanto  este  que  os  envia 
Aquella  por  quien  vos  tantas  vertistes. 

Sentid,  mis  ojos,  bien  esta  que  vistes; 

Y  si  ella  lo  es,  oh  gran  ventura  mia ! 
Por  muy  bien  empleadas  las  habria, 
Mil  cuentos,  que  por  esta  sola  distes. 

Mas  una  cosa  mucho  deseada, 

Aunque  se  vea  cierta,  no  es  creida, 

Cuanto  mas  esta,  que  me  es  enviada. 
Pêro  digo  que,  aunque  seia  fingida. 

Que  basta  que  por  lágrima  sea  dada. 

Porque  sea  por  lágrima  tenida. 

É  natural  que  a  meticulosa  consciência  da  infanta  mais 
de  uma  vez  se  visse  sobresaltada  pela  idêa  de  que  a  sua 
defesa  contra  o  apaixonado  poeta  talvez  houvesse  ultrapas- 
sado os  justos  limites  (i).  E,  sendo   assim,   é  de  crer  que 


(i)  Podemos  presumir  que  aos  ouvidos  da  filha  de  D.  Manuel  hou- 


263 


destes  escrúpulos  tivessem  conhecimento  algumas  pessoas 
da  sua  maior  intimidade.  E  porque  é  que  uma  delias  se 
não  encarregaria,  de  motu-proprio,  de  fazer  desapparecer  o 
resentimento  que  era  de  suppôr  ainda  houvesse  no  coração 
do  poeta,  com  o  fim  de  tranquillizar  depois  a  illustre  senhora, 
que  tanto  se  preoccupava  com  a  perfeição  espiritual  da  sua 
alma?  O  assumpto,  porém,  era  extremamente  delicado  e 
difficilmente  se  pôde  conjecturar  outro  meio  de  obter,  diga- 
mos assim,  o  perdão  do  poeta,  sem  qualquer  compromisso 
para  a  infanta,  a  não  ser  o  que  fica  indicado. 

Bem  sei  que  são  muitas  supposiçÔes  juntas,  mas  não  é 
intenção  minha  attribuir-lhes  mais  valor  do  que  ellas  possam 
ter.  Pelo  menos  estão  na  mesma  plana  da  de  quem  escreveu 
ter  sido  o  soneto  260  endereçado  por  Camões  a  una  Dama, 
que  le  embio  una  lagt^ima  entre  dós  platos  (i). 

No  anno  seguinte  áquelle  em  que  D.  Francisca  de  Aragão 
se  havia  casado,  falleccu  a  infanta  D.  Maria.  «Hauiendo  esta 


vesse  chegado  o  qc ^jcixas  do  poetu,  qiu  ,  ..\primiu 

com  grande  energia. 

Triste  de  mi !  Que  alcanço  por  queixar-me, 

Pois  minhas  queixas  digo 
A  quem  já  ergueu  a  mão  para  matar-me, 

Como  a  cruel  imipo  ? 

(Ode  I.'). 

Pois  minn;i  vKsvcniura 
Como  já  não  abranda  um'alma  humana, 

Que  é  contra  mi  mais  dura, 

E  inda  mais  dcshumana, 
Que  o  furor  de  Callirrhoc  profana  ? 

(Ode  3.«). 

(1)  É  o  que  Faria  e  Sousa  diz  ter  lido  em  um  manuscripto  {Rimas y 
I,  357). 


164 


Princesa  dispuesto  en  su  vida  todo  lo  que  miraua  a  la  otra, 
poço  despues  cayo  mala  de  una  calentura  lenta  (i);  juzgaron 
los  médicos  ser  mortal;  encomendaron  a  su  confessor  el 
desengano,  03^010  como  nueba  ordinária;  no  turba,  antes 
alegra  ai  que  se  halla  por  tantos  caminos  preuenido,  como 
se  hallaua  la  Infanta. . .  Murio.  . .  en  10  de  octubre  de  1677, 
en  edad  de  56  anos,  quatro  mezes  y  dos  dias  (2)». 

Que  impressão  sentiu  o  poeta,  quando  morreu  aquella  que 
elle  tanto  amara  e  por  causa  de  quem  tantos  trabalhos  havia 
passado?  Diz-no-lo  o  soneto  277: 

Chorai,  nymphas,  os  fados  poderosos 

Daquella  soberana  formosura. 

Onde  foram  parar  ?  na  sepultura  ? 

Aquelles  reais  olhos  graciosos  ? 
Oh  bens  do  mundo,  falsos  e  enganosos ! 

Que  maguas  para  ouvir  1  Que  tal  figura 

Jaza  sem  resplandor  na  terra  dura, 

Com  tal  rosto  e  cabellos  tão  formosos ! 


(i)  No  seu  interessante  e  justiceiro  trabalho  —  As  tenças  testamen- 
tárias da  Infanta  D.  Maria — ,  em  publicação  no  Archivo  histórico  por- 
tuguês, n.**  5i  e  segg.,  conjectura  o  sr.  Gomes  de  Brito  que  talvez  se  tra- 
tasse da  tisica  pulmonar.  «Foi,  provavelmente,  aos  primeiros  rebates  do 
ultimo  período  da  doença  de  que  haveria  de  fallecer  —  a  phtisica  pulmo- 
nar (?)  —  que  a  Sereníssima  Infanta  se  dispoz  a  mandar  escrever  o  seu 
testamento,  o  qual,  datado,  assignou  de -^eu  punho».  E  em  nota: 
«(Fr.  Miguel  Pacheco),  pouco  entendido  em  medicina,  dá  como  causa 
mortis  da  Infanta  o  que  pôde  ter  sido  apenas  o  symptoma.  Entre  as 
varias  causas  morbificas,  de  que  a  febre  que  minava  e  consumia  a  doente 
podia  ser  o  consectario,  inclinamo-nos  a  presumir,  por  inducções  de  que 
neste  logar  se  tornava  prolixa  a  exposição,  que  a  indicada  no  texto  seria 
a  actuante,  sem  contestar  a  existência  de  qualquer  outra».  {Archivo 
cit.,  n."  5i  e  52,  pag.  io5). 

(2)  Fr.  M.  Pacheco,  Vida,  etc,  fl.  126  v. 


265 

Das  outras  que  será,  pois  poder  teve 

A  morte  sobre  cousa  tanto  bella, 

Que  ella  eclipsava  a  luz  do  claro  dia  ? ! 
Mas  o  mundo  não  era  digno  delia, 

Por  isso  mais  na  terra  não  esteve ; 

Ao  ceu  subiu,  que  já  se  lhe  devia. 

Deante  de  uma  sepultura  que  acabava  de  fcchar-se  e  com 
o  coração  embotado  pelo  soffrimento  e  pelos  desenganos  — 
um  dos  quais  bem  recente  — ,  Camões  evita  qualquer  allusão 
aos  seus  passados  amores  por 

. . .  aquella  soberana  formosura, 
que  agora  jazia 

. . .  sem  resplandor  na  terra  dura, 

e  curva-se,  com  respeitosa  commoção,  perante  a  memoria  da 
virtuosa  senhora,  de  que  o  mundo  não  era  digno  e  a  quem 
o  ceu  jd  se  devia. 

No  soneto  92,  escripto  posteriormente  e  em  hora  de  pro- 
fundo desalento  (i),  o  poeta,  apesar  de  só  ter  pisto  desfavor 
e  desamor,  considera  a  morte  da  infanta  como  a  maior  de 
todas  as  dores  que  havia  softVido.  Agora  já  nada  o  prende  á 
vida;  agora  já  não  receia  mal  nenhum. 

Que  poderei  do  mundo  já  querer. 

Pois  no  mesmo  (2)  em  que  pus  tamanho  amor 

Não  vi  senão  desgosto  e  desfavor 

E  morte  emíim, —  que  mais  não  pode  ser  —  ? 


(i)  Este  soneto  é\  para  mim,  um  dos  mais  bellos  entre  os  do  immor- 
tal  poeta. 

(2)  Naquillo  mesmo,  prccisanvnt^.  ni^Miilr.  V"í  >-c<»,  por  exer-"^'", 
a  seguinte  quadra  do  soneto  232  : 

Quanta  incerta  esperança,  quanto  engano ! 
Quanto  viver  de  falsos  p«  os  ! 

Pois  todos  vão  fazer  seus  ntos 

Sá  no  mesmo  em  que  'stá  seu  próprio  dano  1 


20b 

Pois  me  (i)  não  farta  a  vida  de  viver, 
Pois  já  sei  que  não  mata  grande  dor, 
Se  houver  cousa  que  magua  dê  maior, 
Eu  a  verei,  que  tudo  posso  ver ! 

A  morte,  a  meu  pesar,  me  assegurou 

De  quanto  mal  me  vinha  (2);  já  perdi 
O  que  a  perder  o  medo  (3)  me  ensinou. 

Na  vida  (4)  desamor  somente  vi. 

Na  morte  (5)  a  grande  dor  que  me  ficou. 
Parece  que  para  isto  só  nasci ! 

Quasi  três  annos  depois  da  morte  da  infanta,  fallecia  o 
genial  poeta  (10  de  junho  de  i58o). 


(i)  Parece-me  que  se  deve  ler  se:  a  minha  vida  não  se  farta  de  vi- 
ver, não  vem  a  morte  ! 

(2)  Provavelmente :  venha.  A  dôr  que  o  poeta  sofíreu  com  a  morte 
da  bem-amada  assegura-o  (torna-o  insensivel)  contra  qualquer  mal  que 
lhe  venha. 

(3)  Creio  que,  em  vez  de  o  medo,  se  deve  ler  só  ella  (a  morte). 
O  medo,  a  meu  ver,  era  uma  glosa  explicativa  do  já  perdi  o  que  só  a 
morte  (da  infanta)  me  ensinou  a  perder,  isto  é,  ]á  perdi  o  medo  a  quanto 
mal  me  pudesse  vir.  Depois  a  glosa,  como  tantas  vezes  aconteceu  nos 
manuscriptos  dos  melhores  auctores,  teria  substituído  o  texto  respectivo. 

(4)  Durante  a  vida  da  infanta. 

(5)  Da  infanta. 


ERRATAS   E  ADDITAMENTOS 


Pag.  6,  linha  7.  —  Escudeiro,  se  o  pae  ainda  era  vivo.  Para  não  entrar 
nesta  questão,  em  vez  de  modesto  escudeiro,  direi  com  W. 
Storck :  o  filho  do  pobre  cavalleiro  fidalgo  ( Vida,  etc,  p.  284). 

Pag.  10,  nota  (i).  —  No  cancioneiro  manuscripto  do  sr.  Fernandes  Tho- 
más  é  attribuido  a  Camões  o  seguinte  soneto,  que  corre  im- 
presso como  de  Soropita  (cf.  Dr.  Th.  Braga,  Antologia  portu- 
gueja,p.  21-): 

Claros  olhos  azuis,  olhos  fermosos, 

Que  o  lume  destes  meus  escurecestes, 

Olhos,  que  ao  mesmo  Amor  de  amor  vencestes, 

Cos  vivos  raios,  sempre  victoriosos ; 
Olhos  serenos,  olhos  venturosos, 

Que  ser  luz  de  tal  gesto  merecestes, 

Ditosos  em  render  quanto  rendestes. 

Em  nunca  ser  rendidos  mais  ditosos: 
Que  morra  eu  por  vos  ver  e  que  vos  traga 

Nas  meninas  dos  meus  perpetuamente, 

Cousa  é  que  justamente  Amor  ordena. 
Mas  que  de  vós  não  tenha  mais  que  a  pena, 

Com  que  Amor  tanta  fé  tão  mal  me  paga, 

Nem  o  diz  a  razão,  nem  o  consente. 

É  possível  que  o  soneto  pertença  a  Camões ;  mas,  neste  caso, 
os  versos  7  e  8  levam-me  a  conjecturar  que  a  dama  dos  olhos 
ajuis  seria  D.  Francisca  de  Aragão,  se  c  que  os  tinha  dessa  côr, 
como  SC  pôde  presumir. 


268 


Pag.  11,  nota  (2).  —  W.  Storck  duvida  que  o  soneto  i65  pertença  a  Ca- 
mões: a)  porque,  dos  três  manuscriptos  em  que  Faria  e  Sousa 
o  encontrou,  só  num  lhe  é  attribuido  (um  dos  manuscriptos  dá- 
Ihe  como  auctor  D.  Fernando  de  Acuna,  e  outro  D.  Diego  de 
Mendoza);  b)  por  causa  dos  retorcidos  concetti  que  nelle  se 
encontram  (versos  3,  5  e  9).  Liiis'  de  Camoeus  Sanwitliche  Ge- 
dichte,  II,  p.  398. 

Parece-me,  comtudo,  que  o  illustre  camonista  não  interpretou 
bem  a  primeira  quadra  do  soneto,  o  que  por  certo  contribuiu 
para  o  juizo  que  deste  ficou  formando.  Na  sua  opinião,  com 
effeito,  o  rayo  dei  sol  do  3.°  verso  é  «Selene,  a  deusa  da  lua», 
que  ao  longe  se  ia  escondendo.  Mas  o  pensamento  fundamental 
do  soneto  é  este,  segundo  creio:  «Endymião,  enamorado  da 
Lua,  ao  ver  que  o  sol  nascente  (el  rayo  dei  sol,  etc.)  lhe  per- 
turbava a  alegria,  roubando-lhe  o  brilho  da  bem-amada  (verso 
11),  pede-Ihe  se  retire  e  volte  para  onde  estava».  Pensamento 
expresso  com  inexcedivel  mimo  e  bem  apropriado  á  situação 
do  apaixonado  poeta !  E  com  esta  interpretação  o  requinte  do 
primeiro  terceto  perde,  pelo  menos  em  grande  parte,  o  que 
nelle  se  poderia  considerar  como  falto  de  bom  gosto. 

A  propósito  deste  soneto,  Storck  cita  com  razão  a  ode  i.«, 
que  fica  transcripta  a  pag.  126-129. 

Pag.  13,  nota  (i).  —  Soneto  314  (Juromenha).  No  verso  10:  que  aquelle 
é  só.  O  hiato  do  verso  8  evitar-se-ia  facilmente,  lendo :  que  so- 
mente me  dais  a  mim.  O  do  i.°  desappareceria  com  um  vós 
antes  de  tratais. 

Pag.  14,  soneto  3o3.  —  Verso  3.°:  ante  o  seu.  Verso  i3:  humana  natu- 
reza. Esta  mesma  correcção  a  pag,  16  e  35.  No  verso  3.°  tal- 
vez: tão  benino.  No  verso  6  Juromenha  mudou  em  constante 
o  contente  do  Cancioneiro  de  L.  Franco  Correia  (fl.  41),  e  no 
verso  12  imprimiu  ha  lii  modo,  errando  o  verso,  quando  no  re- 
ferido Cancioneiro  se  lê  simplesmente  ai  modo,  escripto  mani- 
festamente em  vez  de  ha  modo. 

Pag.  15,  soneto  3o.  —  Verso  1 1 :  menos  temia. 

Pag.  23,  nota  (2).  —  Baseado  em  Juromenha  (i,  84,  11,  386,  iv,  436  e  444), 
escrevi  que  D.  Guiomar  de  Blasfé  era  filha  de  D.  Francisco  de 


►69 


Gusmão.  Mas  o  que  consta  dos  genealogistas  é  que  ella  era  filha 
do  3*  conde  do  Redondo,  D.  Francisco  Coutinho,  e  neta,  por- 
tanto, do  mordomo-mór  da  infanta.  Veja- se  Ms.  n.*  38o,  H.  363» 
da  Collecçâo  pombalina  (Biblioiheca  nacional).  D.  Guiomar  de 
Blasfé  (Blaesvelt)  foi  também  dama  da  infanta,  como  duas  de 
suas  irmãs,  a  mãe  e  duas  tias  (Fr.  M.  Pacheco,  Vida  de  la 
seiiora  Infanta,  fl.  92  e  92  v.),  mas,  ou  ainda  não  tinha  nascido, 
ou  era  uma  creança,  quando  o  poeta  se  enamorou  da  hlha  de 
D.  Manuel,  pois  D.  Francisco  Coutinho  casou  com  D.  Maria  de 
Blaesvelt  por  volta  de  1542  (Sr.  Braamcamp  Freire,  Brasões  da 
sala  de  CitUra,  11,  p.  462).  Portanto,  ou  Camões  escreveu  as  duas 
poesias  depois  de  ter  voltado  do  Oriente,  ou  não  merece  con- 
fiança —  o  que  não  é  extraordinário  —  a  indicação  que  precede 
as  redondilhas.  É  muito  possivel  que  a  dama  que  se  queimou 
no  rosto  fosse  uma  das  tias  de  D.  Guiomar,  e  que  d*aqui  nas- 
cesse o  equivoco  de  quem  escreveu  a  nota,  baseado  talvez  numa 
vaga  tradição. 

Pag.  38,  soneto  3o8.  —  No  verso  8  deve  naturalmente  ler-se  vai  e  não 
vale,  como  imprimiu  Juromenha. 

Pag.  39  e  43.  —  As  redondilhas  No  meu  peito,  etc,  publicadas  por  Juro- 
menha como  inéditas,  figuram,  como  observa  W.  Storck,  entre 
as  de  Diogo  Bernardes  (Sàmmíliche  Gedichte,  i,  p.  384).  No 
mesmo  caso  estão  as  que  começam  Tal  estoi  (p.  43)  {Sàm. 
Gcd.,  I,  p.  393). 

Pag.  47,  linha  34.  —  que  a  Amor.  Talvez  o  verso  anterior  se  deva  ler: 
Vede  como  em  fogo  ferve. 

Pag.  56,  soneto  280.  —  Verso  8 :  Em  graça  e  em  etc. 

Pag.  83,  soneto  116. — Talvez  este  soneto  se  refira  a  D.  Francisco  de 
Aragão. 

Pag.  93,  linhas  10-12  e  nota  (a).  — W.  Storck  não  suppÕc,  é  claro,  que 
se  trata  da  infanta.  A  Gclibte  a  que  elle  se  refere  é  natural- 
mente ■'  ''•■"''''""«l  nnmoríuln  do  poeta. 

Pag.  94,  soneto  J09.  —  Nu  verso  3  c  fácil  de  ver  que  deve  ler^se  Nereio, 


No  verso  6  falta  provavelmente  a  palavra  leda  antes  de  armo- 
nia.  Na  nota  (8)  lea-se  v.  i3,  em  logar  de  v.  1 1. 

Pag.  m,  soneto  Quando  descansareis.  —  No  verso  lo,  Juromenha  im- 
primiu Em  qnCy  mas  no  Cancioneiro  lê-se ;  E  que.  No  verso  1 1 
proponho  a  correcção :  áquillo,  em  vez  de  ao.  No  verso  3  fjitn  á) 
e  14  (jne  não).,  Juromenha  afastou-se  do  Cancioneiro  sem  razão. 
No  verso  4  lê-se  neste  :  desaventuras,  que  o  referido  editor 
emendou  para  disventuras,  e  no  verso  12:  clara  esta  a  verdade, 
que  elle  corrigiu:  clara  vejo  esta  verdade.  W.  Storck  emenda 
assim  o  verso  3.°  e  principio  do  4.":  Ou  quando  emfim  vereis  (?) 
á  despedida  De  tantas.  No  verso  1 1  substitue  ao  que  por  mais 
do  que  {Scim.  Ged.,  11,  p.  432). 

Pag.  129,  ode  i.",  estrophe  i3,  verso  6.  —  A  leitura  da  Arcádia  de  Sanna- 
zaro  (edição  de  Scherillo,  Torino,  1888,  p.  29)  suggere-me  outra 
conjectura  para  a  correcção  deste  verso. 

Eis  o  que,  no  dialogo  entre  Montano  e  Urânio,  diz  o  pri- 
meiro : 

Phillida  mia,  piú  che  y  ligustri  bianca, 
Piú  vermiglia  che'l  prato  ad  mezzo  aprile, 

Piu  fugace  che  cerva. 

Et  ad  me  piú  proterva 
Ch'ad  Pan  non  fu  collei  ch'essendo  stanca 
Divenne  cana  tremula  et  soctile. . . 

Nos  dous  últimos  versos  designa  o  poeta  italiano  a  naiade 
Syrinx,  cuja  transformação  Ovidio  conta  nas  Meiamorphoses, 
1.  I,  V.  689  e  segg.  Ora,  substituindo  pelo  nome  próprio  a  peri- 
phrase  destes  dous  versos,  Camões  teria  escripto  : 

Mais  que  Syrinx  proterva. 

E  o  final  do  verso  seguinte : 

. . .  mais  fugaz  que  cerva, 

parece  não  deixar  duvida  de  que  o  nosso  poeta  tinha  presente 
a  passagem  citada  da  Arcádia. 


271 

Pag.  146,  linha  10.  —  No  2."  verso  do  tttoíe  talvez  deva  ler-se  Quão  alto. 

Pag.  157,  soneto  SSg.  —  Creio  que  o  poeta  no  ultimo  verso  escreveu 
desaventuraJa. 

Pag.  179,  nota,  soneto  168.  —  A  correcção  do  i."  verso,  ími^j,  por  ami^j, 
é  de  W.  Storck  {Sam.  Ged.,  11,  p.  171  e  399). 

Pag.  183  e  251.  —  Não  me  parece  fácil  precisar  em  qual  das  duas  situa- 
ções foi  escripto  o  soneto  q3. 

Pag.  208,  nota.  —  Os  ventos  que  então  sopravam  em  Mascate  vinham  do 
sudeste.  «Der  SE.  herscht,  wUhrend  in  Indien  der  SW.  Monsun 
weht,  von  Mitie  luni  bis  Ende  September.»  Hann,  Handbuch 

der  Klimatolo£[ic.  '".  n   109. 

Pag.  225,  elegia  27. — Talvcz  os  dous  primeiros  tercetos  se  possam  ler 

assim : 

Quem  poderá  passar  tão  triste  vida, 

Se  não  espera  já  contentamento. 

Senão  quando  de  todo  for  perdida  ? 
Quem  poderá  passar  tão  grão  tormento. 

Tão  áspero  e  cruel,  tão  duro  e  forte. 

Se,  morta  a  espVança,  é  tudo  soffrimento? 


índice 


Pag. 

Introducção i 

Em  Lisboa 6 

No  Ribatejo loo 

Em  Ceuta 118 

De  volta  de  Ceuta 172 

No  Oriente 189 

De  volta  do  Oriente 246 

Erratas  e  additamentos 267 


A