Dr. JOSÉ HARIA RODRIGUES
CAMÕES
E A
INFANTA D. MARIA
O meus altos pensamentos.
Quão alto que vos pusestes
li quúo grande queda destes I
Camões, Redondilhas.
(Separata do Instituto)
■►♦-4"
PQ
9214
R64
1910
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Mi'i<K.N>A DA l.MVERSIDADE
1910
Dr. José AIaria RooRtGCES
CAMÕES
1-: A
INFANTA D. MARIA
o meus altos pcnsamemos,
(^i\ín. alto que vos puscâtc?
l <l\J^\ alto que vos puscâlo
(Separata do Instituto)
♦►♦-^•
COL\llM<A
IMPWKX^V l»\ UNIVERSIDADE
I9IO
niTTíní; fNTT^fiôs rnrnYFAVí^í^ í^n AÍTTOR
I) Fontes dos Lusíadas (em publicação no Instituto).
II) Lyrica amorosa de Camões:
1 ) .4 menina dos olhos verdes (no prelo).
R. 5294
INOLVIDÁVEL MEMORIA
DO
MAL-AVENTURADO PRINCIPE REAL
D. luís philippe
PARÍ dWM II \irT()H KIIPIlEIIKMltL OS SKIS ESTIUOS I.AJIONKANOS
A noite sempiterna,
Que tu táo cedo viste,
Cniel, acerba e triste,
Sequer de tua idade náo te dera
Que lograras a fresca primavera ?
Camões
Alma gentil.
Cá durará de ti perpetuamente
■ o nome c a saudade.
Camões.
O^MOES
A INFANTA D- MARIA
Kntre as encantadoras redondilhas de Camões figuram as
duas voltas ao mote:
Perdigão perdeo a penna",
Não ha mal que lhe não venha.
Dizem ellas, num tom de accentuada melancholia:
Perdigão, que o pensamento
Subio a um alto logar,
Perde a penna do voar,
Ganha a pena do tormento.
Não tem no ar, nem no vento,
Asas com que se sostenha.
Não ha mal qui lhe não venha !
Quis voar a uma alta torre,
Mas achou-se desasado ;
E vendo-se depennado.
De puro penado morre.
Se a queixumes se soccorre,
Lança no fogo mais lenha.
Nno hn m;il tiuc lhe iifio venha !
O poDic puuig.io ucjKMiiiado, que nem ao menos bc podia
queixar, sem lauçar mais lenha tio foixo, sem aggravar a
sua situação, era o próprio Camões.
1 R. 5a9*
o alto logar até onde siibio o seu pensamento, a alta
torre a que quis voar, era uma das mais nobres e mais sym-
pathicas figuras femininas que teem vivido sob este bello sol
de Portugal: era a filha mais nova del-rei D. Manuel, a in-
fanta D. Maria (i).
Como o genial doido, que tanto soffreu e tanto fez soíTrer
com os seus erros, com a sua md fortuita (2), como o ge-
(i) È muito interessante a monographia da Sr." D. Carolina Michaelis
de Vasconcellos a respeito d '^4 infanta D. Maria de Portugal (i52i-
i^TJ) e as suas damas (Porto, 1902).
Delia transcrevo aqui a seguinte passagem: «De sangue real, her-
deira da coroa, se não morresse um anno antes da catastrophe de Alca-
cer-Quebir, pertence á historia e teve biographos conscienciosos. Em
creança e na flor da edade viu refulgir diante de seus olhos a coroa de
França ; foi escolhida repetidas vezes para o throno imperial — orbis
destinata império — e outras tantas para o império de Hespanha. Acari-
ciando sempre, no intimo do coração, este ultimo projecto, ficou ainda
assim innupta, uma triste sempre-noiva. Este estado tragicomico que lhe
foi imposto, mas que afinal acceitou com sublime altivez, apparentando
tê-lo escolhido livremente, despertou a dolente sympathia dos coevos.
E ainda hoje é capaz de suscitar a dos pósteros» (pag. 4).
(1) Basta citar por agora os sonetos 27 e igS :
Males, que contra mim vos conjurastes,
Quanto ha de durar tão duro intento ?
Se dura, porque dure meu tormento,
Baste-vos quanto já me atormentastes.
Mas, se assi porfiais, porque cuidastes
Derribar o meu alto pensamento.
Mais pôde a causa delle, em que o sustento,
Que vós, que delia mesma o ser tomastes.
E, pois vossa tenção com minha morte
E de acabar o mal destes amores,
Dai já fim a tormento tão comprido,
Assi de ambos contente será a sorte :
Em vós, por acabar-me, vencedores ;
Em mim. pDi-que acabei de vós vencido.
3
nial doido, ao comparar-se com o perdigão desasado, se devia
recordar, com amarga saudade, do tempo, não muito afastado,
em que julgava poder pôr o pensamento em tão alto logar!
Num tão alto logar, de tanto preço,
Este meu pensamento posto vejo.
Que desfallece nelle inda o desejo.
Vendo quanto por mi o desmereço.
Quando esta tal baixeza em mi^conheço,
Acho que cuidar nelle é grão despejo,
E que morrer por elle me é sobejo
E mór bem para mi, do que mereço.
O mais que natural merecimento
De quem me causa um mal tão duro e tone,
O faz que vá crescendo de hora em hora.
Mas eu não deixarei meu pensamento,
Porque, inda que este mal me cause a morte,
fti bel morir tittta Li vita lionora (i).
(Soneto 2S2).
Erros meus, má fortuna, amor ardente.
Em minha perdição se conjuraram.
Os erros e a fortuna sobejaram,
Que para mi bastava amor somente.
Tudo passei. . . Mas tenho tão presente
A grande dòr das cousas que passaram,
Que já as frequências suas me ensinaram
A desejos deixar de ser contente.
Errei todo o decurso de meus annos ;
Dei causa a que a fortuna castigasse
As minhas mal fundadas esperanças.
De amor não vi senão breves enganos.
Oh ! Quem tanto pudesse, que fartasse
Rstc meu duro génio, de vinganças !
(i) O desvairado sonhador queria tanto ao seu fensjtnenio, que se
julgaria feliz morrendo por elle. E com que enlevo não repetiria, a cada
passo, o bello verso de Petrarca 1 Com que intensidade não sentiria o
conceito nelle expresso ! O cantor de Laura nunca teve, por certo, quem,
neste ponto, melhor o interpretasse.
Como se desvaneceu num munjcuuj, l- íoí substituído pela
iriiite realidade, o doce souho de que seria amado pela infanta !
\)os:c sonho, suave e soberano, /
Se por mais longo tempo me durara !
Ah ! quem de sonho tal nunca acordara,
Pois havia de ver tal desengano !
Ah ! deleitoso bem ! ah ! doce engano !
Se por mais largo espaço me enganara !
Se então a vida misera acabara,
De alegria e prazer morrera ufano.
Ditoso, não estando em mi, pois tive.
Dormindo, o que acordado ter quisera.
Olhae com que me paga o meu destino !
Emíim, fora de mim ditoso estive.
Em mentiras ter dita razão era,
Pois sempre nas verdades fui mofino.
(Soneto 279).
Mais tarde, depois de ter chegado o cruel desengano,
seguido de tantos trabalhos e de tantos soffVimentos, — mais
tarde, com que dolorosa impressão não seria relido pelo atri-
bulado poeta aquelle audacioso soneto 129, escripto num
estado de verdadeira allucinação:
Crescei, desejo meu, pois que a ventura
Já vos tem nos seus braços levantado;
Que a bella causa de que sois gerado
O mais ditoso fim vos assegura.
Se aspiraes por ousado a tanta altura,
Não vos espante haver ao sol chegado,
Porque é de águia real .vosso cuidado.
Que, quanto mais se so^e (1), mais se apura.
Animo, coração ! que o pensamento
Te pode inda fazer mais glorioso.
Sem que respeite a teu merecimento.
Que cresças inda mais é já forçoso,
Porque, se foi ousado o teu intento.
Agora de atrevido é venturoso.
(i) Lição usual : o soffre.
Quantas lagrimas não icrid ^..ici^.w u grande dcvancador,
se em seu espirito houvesse prevalecido a sensata conside-
ração, expressa no final do soneto 137!
O filho de Latona esclarecido,
Que, com sei> raio, alegra a humana gente,
Matar pôde a Pythonica serpente,
Que mortes mil havia produzido.
Ferio com arco e de arco foi ferido,
Com ponta aguda de ouro reluzente.
Nas Thessalicas praias docemente
Por a nympha Penea andou perdido.
Não lhe pôde valer contra seu dano
Saber, nem diligencias, nem respeito
De quanto era celeste e soberano.
Pois se um deos nunca vio nem um engano
De quem era tão pouco em seu respeito (i).
Eu que espero de um ser, que é mais que humano f
A ardente paixão do tresloucado poeta pela formosa, in-
struida e sisuda filha do Rei venturoso constitue, como a priori
se pôde presumir, o ponto culminante da sua atormentada
vida.
Dessa paixão derivaram factos que ainda não foram cabal-
mente explicados.
É, além disso, cila que nos ministra, por assim dizer, a
chave da maravilhosa obra lyrica de um dos maiores poetas
de todos os tempos.
Recorrendo ao Parnaso (2) do immortal Camões, verdadeiro
(1) Para a plena comprchensão das referencias mythologicas deste
soneto veja-se Ovidio, Metamnrphosesy 1, 438-567, que o poeta tinha
bem presente.
(2) Informa Diogo do Couto : «E aquelle inverno que (Camões) esteve
em Moçambique... foi escrevendo muito em um livro que ia fazendo,
que intitulava Parnaso de Luij de CamõeSy livro de muita erudição,
doutrina c philosophia, o qual lhe furtaram. E nunca pude saber no reino
diário da sua alma apaixonada, vou procurar fornecer alguns
elementos para o capitulo mais importante da nossa historia
litteraria.
I
Em Lisboa
Chronologicamente, a primeira poesia em que Camões se
occupa da filha de D. Manuel é, me parece, o soneto 134.
Apresentado á excelsa e gentil senhora e por ella affavel-
mente acolhido, o modesto escudeiro ficou deslumbrado !
No dia seguinte, o seu amigo João Lopes Leitão, pagem
da lança do mallogrado principe herdeiro, e pessoa muito
apreciada na corte, recebia estas confidencias:
Senhor João Lopes, o meu baixo estado
Ontem vi posto em grau tão excellente,
Que, sendo vós inveja a toda a gente,
Só por mi vos quiséreis ver trocado.
O gesto vi, suave e delicado,
Que já vos fez contente e descontente (1),
Lançar ao vento a voz tão docemente,
Que fez o ar sereno e sossegado.
delle, por muito que o inquiri. E foi furto notável». (Década viii, c. 28).
Seja-me permittido dar o nome de Parnaso ás admiráveis composições
lyricas que nos restam do genial poeta e suppôr que foi elle próprio
que fez correr lhe haviam sido furtadas. Uma boa parte delias, com eífeito,
não podiam, sem grave escândalo, ser publicadas durante a vida, quer da
infanta, quer mesmo do poeta.
Não pretendo, porém, com isto dizer que possuamos hoje toda a lyra
de Camões. E a que nos resta foi baralhada, a meu ver, intencionalmente
e pelo próprio poeta.
(i) O poeta allude, naturalmente, a algum facto análogo (se não é
o mesmo) ao que deu occasião a uns conhecidos versos de Andrade Ca-
minha e á resposta de Lopes Leitão. Diz u rubrica, que precede esses
versos: «A João Lopes Leitão, estando preso em sua casa, por entrar
Vi-lhe em pou^...^ j-a.c.w\.. Jizcr quanto
Ninguém diria em muitas. . . Mas eu chego
A espirar, só de ouvir a doce fala !
Oh ! Mal haja a Fortuna e o Moço cego !
Elle, que os corações obriga a tanto !
Ella, porque os estados desiguala !
Para bem se comprehende^ a impressão sentida pelo joven
poeta, que bebera
O veneno amoroso de menino,
(Canção II, V. 65)
c que já então se tinha na conta de galanteador emérito, que
roubava vontades alheias e as matava com amor, que não
tinha (i), para bem se comprehender, digo, a impressão sen-
uma porta a ver as damas contra vontade do porteiro». P. de Andrade
(Caminha, Poesias, p. 36 1 (Lisboa, 1791).
Eis como termina a resposta do jovial amigo de Camões :
Estou-me agora doendo
De quem tiver para si
Que é melhor andar vendo
Verduras, que estar aqui.
Ninguém haja dó de mi.
Por me ver nesta prisão ;
Hajam de meu coração.
Que vc tanto dano em si.
( 1 ) 1 )c vontades alheias, que eu roubava,
E que enganosamente recolhia
Em meu fingido peito, me manynhu.
O engano de maneira lhes fingia.
Que, despois que a meu mando as subjugava.
Com amor as matava, que eu não tinli.i
Porém logo o castigo que convinhi
O vingativo Amor me fez sentir.
(Canção 2.*).
Nesta canção, cscriptu cm Ceuta, o poeta attribuc ao Amor a culpa
tida pelo jovcn, mas ja afamado poeta, transcreverei algumas
passagens de obras e documentos coevos e de escriptores
modernos, as quaes constituem o melhor commentario ao
soneto que fica reproduzido, especialmente aos versos 5 a lo.
Começarei pela informação que, em carta de 21 de janeiro
de 1537, enviava a Carlos V o seu embaixador, D. Sancho
de Córdova, que tinha vindo a Lisboa tratar da entrega da
filha de D. Manuel a sua mãe, a rainha D. Leonor, já então
viuva também de Francisco L Repare-se que o diplomata
do ousado atrevijnento, cujas consequências está soífrcndo :
Se elle (o Amor) ordena
Que eu pague seu ousado atrevimento,
Saibam que o mesmo Amor que me condemna
Me fez cair na culpa e mais na pena.
Depois compara-se a Tântalo, a Ixião, a Ticio e a Sisypho, que a my-
ihologia clássica figurava como soffrendo, no Tártaro, castigos especiaes,
por determinados crimes. Assim, por exemplo, Ixião quis abraçar Juno,
mas encontrou-se com uma nuvem. Por isso diz o poeta:
Despois que aquella, em quem minha alma vive,
Quis alcançar o baixo atrevimento.
Debaixo deste engano a alcancei :
A nuvem do çontino pensamento
Ma figurou nos braços e assi tive,
Sonhando, o que acordado desejei.
Ao comparar-se com Ticio, que pretendera forçar Latona, começa
assim :
Quando « vista suave e inhumana
Meu humano desejo, de atrevido,
Commetteo, sem saber o que fazia
(Que da sua belleza foi nascido
O cego moço, que com seta insana
O peccado vingou desta ousadia),
Afora este penar, que eu merecia,
Me deu etc.
espanhol chega até a cmpi cgar palavras que também se Icem
no soneto. «(La seííora Infanta) es persona de grande enten-
dimiento y cordura, y mui reposada, y de poças palabras y
bien dichas y de las valerosas personas que he visto» (i).
Quatorze annos mais tarde, em iSyi, recebia a infanta a
visita do cardial Alexandrino, legado e sobrinho de Pio V.
Eis como um dos membros da comitiva do prelado romano
começa a narrativa dessa visita : «Tendo anoitecido, acom-
panhados com vinte tochas adiante fomos ao palácio da in-
fanta D. Maria, irman de D. João III, a qual, tendo ficado
orphan em tenra edade, não quis jamais casar, posto que
fosse robusta, formosa e procurada. Era alta e teria de edade
cincoenta annos, posto que não pareça á primeira vista» (2).
Agora o testemunho de Jorge Ferreira de Vasconcellos,
que teve muitas occasiões de ver a infanta.
Ao dar pormenorizada noticia do celebre torneio, realizado
em Xabregas, no anno de i552, diz o escriptor cortesão que
«a infanta D. Maria. . . se mostrava a fermosa Minerva, com
que pôde contender com divida confiança, assi em rara gen-
tileza e sotil engenho, como toda outra sobre humana per-
feyção» (3).
[ I ) Em Fr. Miguel Pacheco, Vida de la Serenisstnui Infanta Dona
Maria, hija dei Rey D. Manoel, fl. 58 (Lisboa, 1673 1
(2) Viagem do cardeal Alexandrino. i5-jr, em A. Herculano, Opús-
culos, VI, 90-<)2.
(3) Memorial das proezas da segunda tavola redonda, 2.* edição
(Lisboa, i8<37), p. 334. A propósito deste e doutros escriptores, observa a
Sr.* D. Carolina Michaelis : "Kvidcntemente, entre os eruditos da corte
constava que a Infanta, bizarra, e na consciência da dignidade do seu
estado, não admittia que ao vulgo profano se fallasse das linhas do seu
rosto ou da elegância das suas esplendidas formas esculpturaes. Apenas
o velho Resende, ao iributar-lhe homenagens,; adianiava-se até tocar
em alguns pormenores : os cabellos ruivos, o andar divino, incessu dea. . .
Mas esse. . . fallava latim». {A infanta /). Maria, p. i5).
Vejamos agora o que se lê cm duas obras modernas.
O conde de Villa Franca, que preparava um estudo acerca
da filha de D. Manuel, apresenta-no-la assim : «Alta, de esplen-
didas formas, elegantíssima,... alliava á gentileza majestá-
tica do porte, denotando grande energia e isenção de caracter,
uma formosura suavissima, bem revelada na alvura da pelle,
no azul celeste dos olhos vividos (i) e na cor loira dos ca-
bellos que lhe coroavam de ouro a espaçosa e ampla fronte (2),
onde o talento espontâneo evidentemente se espandia. Este
talento era ainda abrilhantado por muita erudição, incessante
amor ao estudo e ininterrupto trato, não já (?) com os livros
clássicos, senão ainda com os múltiplos escriptos do tempo.
(1)0 poeta, que, como veremos, tantas vezes manifesta a sua admi-
ração pelos bellos olhos da infanta, só num ou noutro logar allude, mais
ou menos vagamente, á cor que elles tinham. É assim que á menina 4os
olhos verdes, de cuja affeição se queria ver livre, por causa do novo e
alto pensamento, que o fascinara, diz elle :
Ouro e azul é a melhor
Côr, por que a gente se perde.
(Redondilhas).
Na egloga 8.", que talvez seja de Camões, falla-se expressamente,
é certo, nos olhos a^ues de Galatea, que seria a infanta. Mas não era de
estranhar que os olhos da nympha marítima fossem daquella côr.
(2) Como os cabellos louros eram mais vulgares que os olhos azues,
o poeta a cada passo se refere á côr dos cabellos da infanta, pois não
havia perigo de revelar onde estava posto o seu pensamento. Um exem-
plo, dentre muitos :
São estes, por ventura, os olhos bellos.
Que têm de meus sentidos a victoria ?
São estas, nympha, as tranças dos cabellos.
Que fazem de seu preço o ouro alheio,
imo, só com vc-lo
(Egloga 2.", 298-302).
I I
considerado, como se sabe, a idade de ouro da littcraiura
portuguesa» [t ).
Transmiitindo-nos as suas impressões a respeito do retrato
da infanta, existente em Madrid, no museu do Prado, e exe-
cutado pelo celebre pintor António Moro, escreve a Sr.*
D. Carolina Michaelis de Vasconcellos: «D. Maria contava
então trinta annos... Chegada apparentemente ao termo
dos seus desejos,. . . ofíicialmente desposada ao futuro senhor
do immenso império hispânico (2), a princesa fulgurava como
nunca dantes, em toda a plenitude das suas faculdades, em
todo o esplendor da sua gentileza majestática, acariciando a
fugidia esperança de ver afinal acabadas as intrigas intermi-
náveis e deprimentes de que fora alvo. Ainda assim, An-
(1) 1). João I e a jlliança inglesa, p. 275 (Lisboa, 1884).
(2) Philippe de Espanha foi pretendente á mão da infanta desde 1549
até i552 (Sr.* D. Carolina Michaelis, A infanta D. Maria, p. 10).
Como não ficaria o coração do pobre Endymion, loucamente enamo-
rado da Lua, da casta e formosa Diana, ao ouvir fallar em semelhante
enlace !
Lea-se o admirável soneto \>'-
En una selva, ai Jkspuntar dei dia,
Estaba Endimion, triste y lloroso,
Vuelto ai rayo d€# sol, que, presuroso,
Por la falda de un monte descendia.
Mirando ai turbador Je su alegria.
Contrario de su bien y su reposo,
Trás un suspiro y otro, congojoso,
Kazones semejantes le decia :
Luz clara, para mi la mas escura,
Que con ese paseo aprcsurado
Mi sol con tu tcnicbla escurcciste,
Si alia puedcn moverte, en esa altura,
Las qucjas do un pastor enamorado,
No tardes en volver á dó saliste !
tonio Moro não pôde varrer completamente as sombras de
uma dolorosa meditação d'aquclla lesta alta, 'espaçosa e ge-
ralmente plácida. E que, entristecida por repetidas decepções,
a filha de D. Manuel mal ousava dar credito ás mais solemnes
promessas. Como symbolo de magoas, fora envolvendo o
rosto gracioso, de feições tão regulares e puras, e parte do
formoso cabello, castanho-claro ou louro-escuro, que o emmol-
dura, num veo ténue que desce ao peito. A mão direita,
de afilados dedos aristocráticos, segura uma pérola que lhe
serve de firmai. Uma lagrima reprimida ? Talvez. Todavia
o pintor vio e reproduziu apenas uns olhos azues muito lim-
pidos, com expressão serena e franca, suavemente perscru-
tadora, nos quaes se reflecte uma intelligencia lúcida, altiva
rectidão e principalmente um coração valente. Aos lábios
finos, cerrados por inviolável sigillo, e ao terço inferior da
cabeça não falta energia... O trage, cujos* tons sombrios
dão realce á singular alvura das mãos e do rosto, finamente
modelado, está em harmonia, na sua singeleza distinctissima,
com a nobreza natural do porte e com a melancholica suavi-
dade da physiognomia» (i).
Relêa-se o soneto i34 e, dada a compleição amorosa do
moço poeta, veja-se como está bem traduzida a impressão
que nelle devia ter produzido o gesto suave e delicado da
filha do Rei Venturoso, a doce falia da gentil senhora, que
então se achava na plena posse de todas as suas graças fe-
mininas, aureoladas pelo prestigio da ascendência real.
Eu chego
A espirar, só de ouvir a doce fala !
exclama Gamões, pondo em confronto o seu baixo estado
{i) A infanta D. Maria, p. 12-14.
3
com a amabilidade com que fora recebido portão elevada
personagem ( i ).
E o predestinado do amor, em quem
-•
As lagrimas «ia infância já manavam
Com uma saudade namorada,
(Canção 1 1, 32-53}
O predestinado do amor não pôde conter-se que não se queixe
do moço cego e da fortuna, D'aquelle, porque a doce falia da
infanta o deixou como morto; desta, porque lhe não permitte
amar quem tão profundamente lhe havia abalado o coração.
Oh ! Mal haja a Fortuna e o Moço cego !
Elle, que os corações obriga a tanto !
Ellii, porque os estados desiguala !
Poucos dias depois, dominado por estas ideas, o poeta foi
assistir ás solemnidades da semana santa na igreja do mos-
(i) Mais tarde, muito custava ao enamorado poeta ver essa amabili-
dade dispensada a outros !
Se a ninguém tratais com desamor,
Antes a todos tendes afleição ;
E se a todos mostrais um coração,
Cheio de mansidão^ cheio de amor:
Desde hoje me tratai com desfavor,
Mostrai-mc um ódio esquivo, uma isenção.
Poderei acabar de crer então
Que somente a mim me dais favor.
Que, se tratais a todos brandamente.
Claro é que só aquelle é favorecido
A quem mostrais irado o continente.
Mal poderei eu ser de vós querido,
Se tendes outro amor na alma presente,
í )iw rin-ir>'* '• pm. nlo r»í'»<Ír» <.•?• paTtido.
(Soneto 309).
14
teiro de Santa Clara, onde tinha a certeza de ver a infanta (i ).
Com um simples olhar da angélica figura, que
Parece... tinha forma humana,
Mas scintilava espirites divinos,
(Canção ii, 75-76)
ficou cego de todo!
Todas as almas tristes se mostravam
Pela piedade do Feitor divino.
Onde, ante seu aspecto benino,
O devido tributo lhe pagavam.
Meus sentidos então livres estavam
(Que até hi foi constante seu destino),
Quando uns olhos, de que eu não era dino,
A furto da razão me salteavam.
A nova vista me cegou de todo !
Nasceo do descostume a estranheza
Da suave e angélica presença.
Para remediar-me não ha hi modo ?
Oh ! Porque fez a natureza humana
Entre os nascidos tanta differença ?
(Soneto 3o3). ,
(1) «No tempo provável dos serões (no paço real) (i538 ou 1540 até
i55r), o domicilio (da infanta) era em Santa Clara» (Sr.« D. Carolina
Michaelis, A infanta D. Maria, p. 83, nota 89). «(A infanta D. Maria) mo-
rou no campo de Santa Clara, nas casas que tição junto ao dito mosteiro,
que hoje sam do Desembargador Luis de Abreu de Freitas e delias ia
ouvir missa ao tal mosteiro, por um passadiço, do qual se conservam
ainda hoje na parede alguns vestígios». Padre A. Carvalho da Costa,
Corografia Portuguesa, 111, 365-366 (Lisboa, 1712). «Deste mosteiro am-
plíssimo, exceptuando o dormitório, chamado da benção, e o dos corre-
dores, duas varandas e algumas capellas, tudo mais, que em dormitórios
e casas particulares recolhia mais de seis centas mulheres,... ficou ou
de todo abatido ou irreparavelmente arruinado com o terremoto. O seu
famoso templo, que era um monte de ouro e na grandeza excedia a
todos os dos mais mosteiros da corte, ficou totalmente prostrado, ex-
Ficou captivo, com a razão perturbada:
O culto divinal se celebrava
No templo, donde toda a creatura
Louva o Feitor divino, que a feitura
Com seu sagrado sangue restaurava.
Amor ali, que o tempo me aguardava
Onde a vontade tinha mais segura.
Com uma rara e angélica figura
A vista da razão me salteava.
Eu, crendo que o lugar me defendia
De seu livre costume, não sabendo
Que nenhum confiado lhe fugia,
Deixei-me captivar. Mas hoje, vendo,
Senhora, que por vosso me queria.
Do tempo que fui livre me arrependo.
(Soneto 77).
Ficou como o passarinho, morto por traiçoeiro caçador:
Está o lascivo e doce passarinho
Com o biquinho as pennas ordenando,
O verso sem medida, alegre e brando.
Despedindo no rústico raminho.
O cruel caçador, que do caminho
Se vem, calado e manso, desviando.
Com pronta vista a seta endireitando,
Lhe dá no Estygio lago eterno ninho.
Desta arte o coração, que livre andava.
Posto que já de longe destinado.
Onde menos o temia, foi ferido,
l*orque o frecheiro cego me esperava,
Para que me tomasse, descuidado,
Em vossos claros olhos escondido.
(Soneto 3o).
ccpto a tribuna e costas da capella mór». J. B. de Castro, Mappa de Por-
tui^al, III, n*>3 (Lisboa, 1870). Todos os outros edificíos que ficavam nas
immcdiaçóes do convento foram derrubados, excepto d templo de Sinita
Kngracia e a igreja parochial. (Ibid., p. 161).
lO
Havia, é certo, um obstáculo que, desde logo, se apresen-
taria ao poeta como insuperável — o abysmo entre a sua situa-
ção e a da infanta — :
Oh ! Porque fez a natureza humana
Entre os nascidos tanta difterença !
Mas a voz da razão foi supplantada pelo magico fulgor
dos admiráveis olhos azues da filha de D. Manuel :
Tomou-me vossa vista soberana
Adonde tinha as armas mais á mão,
Por mostrar a quem busca defensão
Contra esses bellos olhos, que se engana.
Por ficar da victoria mais ufana,
Deixou-me armar primeiro da razão.
Bem salvar-me cuidei, mas foi em vão ;
Que contra o ceo não vai defensa humana.
Com tudo, se vos tinha promettido
O vosso alto destino esta victoria,
Ser-vos ella bem pouca está intendido.
Pois, inda que eu me achasse apercebido.
Não levais de vencer-me grande gloria :
Eu a levo maior de ser vencido.
(Soneto 36).
De que valia a razão, para que servia o jidio sossegado,
cm presença de tanta gentileza ?
Quem pôde livre ser, gentil senhora,
Vendo-vos com juizo sossegado.
Se o menino que de olhos é privado
Nas meninas dos vossos olhos mora ?
Ali manda, ali reina, ali namora,
Ali vive, das gentes venerado ;
Que o vivo lume e o rosto delicado
Imagens são adonde Amor se adora.
Quem vê que em branca neve nascem rosas.
Que crespos fios de ouro vão cercando.
Se por entre esta luz a vista passa,
Raios de ouro verá, que as duvidosas
Almas estão no peito traspassando,
Assi como um crystal o sol traspassa.
(Soneto Go).
O poeta foi forçado a render-se, perante as armas com que
Amor o assaltou :
Leda serenidade deleitosa,
Que representa em terra um paraíso ;
Entre rubis e perlas, doce riso ;
Debaixo de ouro e neve, côr de rosa ;
Presença moderada e graciosa.
Onde ensinando estão despejo e siso
Que se pôde, por arte e por aviso.
Como por natureza, ser formosa ;
Fala, de que ou já vida ou morte pende,
Rara e suave, — emíim, senhora, vossa ;
Repouso na alegria comedido :
Estas as armas são com que me rende
E me captiva Amor. Mas não que possa
Despojar-me da gloria de rendido..
(Soneto 78).
Mais tarde, voltou Camões a occupar-se da memorável data
em que foi apresentado á infanta, accrescentando alguns por-
menores interessantes. Refiro-me ás três canções Manda-me
Amor que cante.
Reproduzirei integralmente uma delias — a que reputo a
primeira na ordem chronologica (T).
(1) É a canção 8.*. Na y.* e na 18. • (publicada por Juromenha) já são
manifestos os indícios de contrariedades :
Manda-me Amor que cante docemente
O que elle já em minha alma tem impresso.
Com prcsupposto de desabafar-me.
E, porque com meu mal seja contente,
Diz que o ser de tão lindos olhos preso
— Cantá-lo — bastaria a conteniar-me.
2 R. 5394
i8
Mandíi-HK- Amur que cante u que .i .unui >l
Caso que nunca .em verso foi cantado,
Nem dantes entre a gente acontecido.
Assi me paga, em parte, o meu cuidado,
f^ois que quer que me louve e represente
Quão bem soube no mundo ser perdido.
Sou parte e não serei da gente crido ;
Mas é tamanho o gosto de louvar-me
E de manifestar-me
Por captivo de gesto tão formoso,
Que todo o impedimento
Rompe e desfaz a gloria do tormento
Peregrino, suave e deleitoso.
Que bem sei que o que canto
Ha de achar menos credito que espanto.
Eu vivia do cego Amor isento,
Porém tão inclinado a viver preso.
Que me dava desgosto a liberdade.
Um natural desejo tinha acceso
De algum ditoso e doce pensamento,
Que me fllustrasse a insana mocidade.
Tornava do anno já a primeira idade ;
A revestida terra se alegrava.
Quando o Amor me mostrava
De fios de ouro as tranças, desatadas
Ao doce vento estivo.
Os olhos, rutilando lume vivo.
As rosas, entre a neve semeadas,
O gesto grave e ledo.
Que juntos movem em mim desejo e medo.
Um não ^_. .,.^.^ iuave respirando.
Causava um desusado e novo espanto,
Que as cousas insensíveis o sentiam.
Porque as gárrulas aves, entretanto,
Vozes desordenadas levantando,
(>omo eu em meu desejo, se incendiam.
As fontes crystallinas não corriam,
Intlammadas na vista clara e pura ;
1*)
Flore cia a verdura,
Que, andando, cos ditosos pés tocava ;
As ramas se baixavam,
()li de inveja das hervas que pisavam,
Ou porque tudo ante elles se baixava.
O ar, o vento, o dia.
De espíritos contínuos influia.
E quando vi que dava intendimento
A cousas fora delle, imaginei
Que milagres faria em mi, que o tinha.
Vi que me desatou da minha lei,
Privando-me de todo sentimento
E em outra transformando a vida minha.
(^om tamanhos poderes de Amor vinha,
Que o uso dos sentidos me tirava,
E não sei como o dava.
Contra o poder e ordem da natura.
Ás arvores, aos montes,
A rudeza das hervas e das fontes.
Que conheceram logo a vista pura.
Fiquei eu só tornado
Quasi em um rudo tronco, de ac^mirado.
Despois de ter perdido o sentimento,
De humano um só desejo me ficava.
Em que toda a razão se convertia.
Mas não sei quem no peito me aíiirmava
Que, por tão alto e doce pensamento,
Com razão a razão se me perdia.
Assi que, quando mais perdida a via.
Na sua mesma perda se ganhava :
Em doce paz estava
i.om seu contrario próprio, em um sujeito.
Oh caso estranho e novo 1
Por alta c grande certamente approvo
A causa donde vem tamanho elfcito.
Que faí! num coração
Que um desejo, sem ser, seja razão.
20
Despois de entregue já ao meu desejo
Ou quasi nelle todo convertido,
Solitário, silvestre e inhumano,
Tão contente fiquei de ser perdido,
Que me parece tudo quanto vejo
Escusado, senão meu próprio dano.
Bebendo este suave e doce engano,
A troco dos sentidos que perdia,
Vi que Amor me esculpia
Dentro na alma a figura illustre e bella,
A gravidade, o siso,
A mansidão, a graça, o doce riso.
E, porque não cabia dentro nella
De bens tamanhos tanto.
Sai por a boca, convertido em canto.
Canção, se te não crerem
Daquelle claro gesto quanto dizes.
Por o que se lhe esconde,
— Os sentidos humanos, lhe responde.
Não podem dos divinos ser juizes,
» Senão um pensamento.
Que a falta suppra a fé do intendimento — .
As tres canções informam-nos (o que aliás se confirma com
os sonetos 77 e 3o3) que o poeta foi apresentado á infanta
no começo da primavera :
Tornava do anno já a primeira edade ;
A revestida terra se alegrava.
(Canção 8.»).
Ou, como com mais precisão se le na canção 7.*:
No Touro entrava Phebo e Progne vinha ;
O corno de Acheloo Flora entornava (1).
(i) «Pela chronologia moderna (fixada no calendário gregoriano de
Ytá de outubro de i582) Phebo, ou o Sol, entra no signo taurus entre
E foi recebido nos jardins ao paiacio, cm que cila residia:
... O Amor me mostrava
De fios de ouro as tranças, desatadas
Ao doce vento estivo.
(Canção 8.*).
Um não sei quê suave respirando,
Causava um admirável, novo espanto.
Que as cousas insensíveis o sentiam.
Ali, as gárrulas aves, levantando
Vozes não ordinárias, em seu canto.
Como eu no meu desejo, se encendiam.
As fontes crystallinas não corriam.
De inflammadas na vista linda e pura ;
Florccia a verdura.
Que, andando, cos divinos pés tocava ;
Os ramos se baixavam.
Ou de inveja das hcrvas que pisavam.
Ou porque tudo ante ella se baixava.
Não houve cousa, emfim.
Que não pasmasse delia, e eu de mim.
(Canção y.*).
Em que anno se passou isto? W. Storck, que pensa se
trata de D. Catharina de Ataíde e não distingue entre a
apresentação (soneto 184; canções 7, 8 e 18), e a estada
na igreja (sonetos 77 e 3o3), escreve: «Sendo certo, caso
o soneto (3o3) interpretado por nós falle verdade, que
Luís Vaz avistou a bella lisbonense, pela primeira vez, no
: 1 de abril. Peta chronologia antiga temos de menos uns dez dias,
chegando assim á data de 10 a 12 de abril. O resto das metaphoras con-
iliz perfeitamente com esta estação : a andorinha Prokne volta aos nossos
climas, c a bcm-amada do Zephyro, a deusa primaveral Flora, vira a sua
cornucopia (o corno de Acheloo ou de Amalthea), espalhando Horcs e
botões de rosas sobre a terra». Storck, Vida de C»m»'T»'v i> 1.»- /Tr;i-
ducçSo da Sr.* D. Carolina Michaclis de Vasconcello
22
meio dos ofticios fúnebres da sL-xia-ieiia de endoenças, temos
ainda que procurar qual seria a verdadeira entre as três
sextas-feiras santas do biennio que decorre de 1643 (termo
da sua chegada a Lisboa) ate i545, anno em que as más
linguas começaram a mexericar dos seus amores. Ou, visto
haver camonistas que coliocam a chegada a Lisboa no anno
de 1042 e o seu desterro da corte (isto é, de Lisboa) no de
1546, será bom alargarmos o campo a explorar, investigando
o periodo de 1642 a 1546. O calendário universal de Kessel-
meyer ajuda-nos a encontrar de um modo fácil e seguro as
datas desejadas. Os cinco dias em que recahiram as sextas-
feiras de endoenças são: para o anno de 1642 o dia 7 de
abril; e para os quatro seguintes o 23 de março; o undécimo
e o terceiro de abril e o dia 23 do mesmo mez. Entre ellcs,
o que de todo em todo corresponde melhor ás indicações
metaphoricas, que temos examinado, é o dia 1 1 de abril, a
sexta-feiva santa do anno de i544y> (1).
Mas, se é verdade que a apresentação no paço de Santa
Clara precedeu, de alguns dias, as solemnidades da sexta-
feira mór, e se, por outro lado, o poeta quis indicar por uma
forma precisa a data dessa apresentação, o anno que melhor
satisfaz a estas condições é o de 1646, em que a sexta-feira
santa, segundo se Ic na passagem que fica transcripta, caiu
no dia 23 de abril, quasi duas semanas depois da entrada do
sol no signo de tauro.
Prosegue o illustrc professor allemão: «Direi, comtudo,
que, pessoalmente, não ligo grande importância á data exacta
do dcoup de foudve)), A sexta-feira santa pertence á mytho-
logia convencional da poesia moderna, desde que Petrarca
— a fim de fazer coincidir poeticamente o principio das suas
magoas e o dia da Paixão do Salvador — remodelou acinte-
mente, levado pela vaidade do seu coração de artista, as
(i) Vida citada, p. 327.
I
23
datas do anno de 1327, postiilaiiuv. ^juv. a sexla-feira Ja Pai-
xão recahisse, por milagre, na segunda feira da semana santa !
isto c, trocando o dia seis de abril (em que de facto avistara
a madonna Laura) pelo decimo do mesmo mez e anno!».
E certo que Gamões, ao escrever o soneto 3o3, se lembrou
do soneto 3.° de Petrarca, /;/ vita di madonna Laura. Tam-
bém não ha duvida que no soneto 77, que é de data poste-
rior ao 3o3, é manifesta a imitação dos referidos versos do
poeta italiano (i). Mas, pelo que fica exposto, não creio que,
por parte de Camões, se trate de uma ficção.
Quem apresentou o poeta no paço de Santa Clara ?
Presumo que foi o seu amigo e protector, D. Francisco de
Noronha, mais tarde segundo conde de Linhares.
Além de não faltarem Noronhas na casa da infanta (2j, ha-
(1^ Era 'I giorno ch'al Sol si scoloraro
Per la pietà dei suo Fattore i rai,
Quand'i' fui preso, e non me ne guardai,
Che i be'vosir' occhi, Donna, mi legaro.
Tempo non mi parea da far riparo
Contra colpi d'Amor : però n'andai
Secur, senza sospetto : onde i miei guai
Nel comune dolor s'incominciaro.
Trovommi Amor dei tulto disarmaio,
Ed aperta la via per gli occhi ai core,
Che di lagrime son fatti uscio e varco.
Pcrò, ai mio parer, non gli fu onore
Ferir me di saetta in quello stato,
E a voi armata non mostrar pur Parco.
(2) Fr. M. Pacheco, Vida de la scrcnissima infantay fl. 91 V.-94. Abre
.1 extensa relação do pessoal D. Affonso de Noronha, que por algum
tempo exerceu o cargo <ie mordomo-mór. I^crtencia lambem á casa da
infanta c era filha do seu mordomo-mór, D. Francisco de (luzman, e da
sua confidente, D. Joanna de Blasfct, aquella D. Guiomar de Blasfé, a
quem o poeta, a propósito de ella se ter queimado com uma vela no
^4
via motivos especiaes para o ex-embaixador de D. João 3.°
rosto, dirigiu o galante soneto 89 e estas graciosas redondilhas :
Mote
Amor, que todos offende,
Teve, senhora, por gosto,
Que sentisse o vosso rosto
O que nas almas accende.
Voltas
Aquellc rosto que traz
O mundo todo abrasado,
Se foi da flamma tocado.
Foi porque sinta o que faz.
Bem sei que Amor se vos rende ;
Porém o seu presupposto
Foi sentir o vosso rosto
O que nas almas accende. ^
Quem sabe se as duas poesias, de que tanto se devia desvanecer a
gentil dama, não seriam a causa de vir parar ás mãos do apaixonado
poeta o trançado da infanta, que mereceu este bello e enthusiastico
soneto :
Lindo e subtil trançado, que ficaste
Em penhor do remédio que mereço.
Se só comtigo, vendo-te, endoudeço.
Que fora cos cabellos que apertaste ?
Aquellas tranças de ouro, que ligaste,
Que os raios do sol têm em pouco preço.
Não sei se, ou para engano do que peço.
Ou para me matar, os desataste.
Lindo trançado, em minhas mãos te vejo,
E, por satisfação de minhas dores.
Como quem não tem outra, hei de tomar-tc.
E, se não for contente o meu desejo,
Dir-lhe-hei que, nesta regra dos amores.
Por o todo tumhcm se toma a parte.
fSoneto 42).
25
na corte de PVaiiv-c :.ci persona grata da filha de D. Ma-
nuel.
Bastava o facto de esta ser a filha estremecida e única da
rainha D. Leonor. «Náo havia por certo embaixador português
na corte de França que não se encarregasse de missões secretas
da filha para a mãe e desta para aquella ; todos elles seriam
porisso bem acolhidos e bem vistos por D. Leonor. Foi o
que aconteceu por certo com D. Francisco de Noronha e
também com o seu adjunto (Francisco de Moraes), que, como
elle próprio conta, recebeu mercês da rainha christianissima.
Nos annos que durou a embaixada, entre 1840 e i543, tra-
tou-se do casamento de D. Maria com o duque de Orléans,
plano que ficou frustrado com a morte deste» (i).
Comprehendc-se o desgosto que depois devia ter o illustre
fidalgo com o estouvado procedimento do poeta. E a esse
desgosto allude manifestamente Camões na canção 11.*, v.
i8i-i83:
A piedade humana me faltava,
A gente amiga já contraria via,
No perigo primeiro. . . (2).
Isto. porem, não obstou, como veremos, a que D. Fran-
(i) Sr.* D. Carolina Michaelis de Vasconcellos, Palmeirim de Ingla-
terra na Zeitschrift fiir Romanische Philologie, vi, 57-58. A illustre es-
criptora proscguc : «Tem assim uma explicação naiuralissima o facto de
Moraes dedicar o Palmeirim^ escripto na corte da rainha D. Leonor, á
filha desta, a infanta D. Maria, cuja superior illustração c conhecida».
Também não deixa de ser interessante que na cgloga 2.% escripta no
Ribatejo e um dos documentos mais importantes para a historia da pai-
xão de Camões pela infanta, se alluda ao auctor do Palmeirim e ao .seu
amor por uma dama da corte de França. O namorado Gallo Cv. 496 e
scgg.), com clfcito, não c senão Francisco de Moraes.
(2) Este perigo foi o desterro, primcir'» — '•• ^ i^*
paru Ceuta, por causa da infanta
2b
cisco de Noronha continuasse a ser o desvelado amigo e pro-
tector do grande génio, que, em uma hora amarga, compen-
diou assim a sua atribulada existência :
Que segredo tão árduo e líío prolundo I
Nascer para viver e para a vida,
Faltar-me quanto o mundo tem para ella !
E não poder perdê-la,
Estando tantas vezes já perdida 1
(Canção u, 187-191).
Em algumas das» poesias que já foram citadas (soneto 3o3,
canções 2, 7, 8 e 18), assevera o poeta que, ao apaixonar-se
pela infanta, conservava ainda livre o seu coração. Na egloga
2/ insiste neste ponto (v. 438-461):
Lembra-me, amigo Agrário, que o sentido
Tão fora de amor tinha, que me ria
De quem por elle via andar perdido.
De varias cores sempre me vestia ;
De boninas a fronte coroava ;
Nenhum pastor, cantando, me vencia.
A barba então nas faces me apontava.
Na luta, na carreira, em qualquer manha,
Sempre a palma, entre todos, alcançava.
Da minha idade tenra, em tudo estranha,
Vendo, como acontece, affeiçoadas
Muitas nymphas do rio e da montanha,
Com palavras mimosas e forjadas.
De solta liberdade e livre peito.
As trazia contentes e enganadas.
Mas, não querendo Amor que deste geito
Dos corações andasse triumphando.
Em quem elle criou tão puro aflTeito,
Pouco a pouco me foi de mi levando,
Dissimuladamente, ás mãos de quem
Toda esta injuria agora está vingando.
Apesar destas repetidas declarações, havia alguém que
então se julgava com iiircito a um iogar muito especial no
coração de Camões.
Kra a menina dos olhos verdes, .já celebrada em deliciosos
versos, que talvez não fossem de lodo exiranhos á maneira
como elle foi recebido no paço de Santa Ciara.
Basta citar aq"' - ■ ' '^ ^^,^^■^^ ao mote:
\ crdes são os campos
Da côr (io limão ;
Assi são os olhos
Do meu coração.
Campo, que ic efundes •
Com verdura bella ;
Ovelhas, que nella
Vosso pasto tendes :§i
De hervas vos mantendes,
Que traz o verão,
E eu das lembranças
Do meu coração.
Gados, que pasceis
Com contentamento :
Vosso mantimento
Não no intendeis.
Isso que comeis,
Não são hervas, não ;
São graça dos olhos
Do meu coração.
Pobres olhos verdes! Quantas lagrimas não iam ellcs der-
ramar, por causa dos olhos azues da infanta!
^M itiiL;«' iiiiic iii<i<>> u'ii.1 ^ < ■< li Uviíiiv .11 * ii.i i^iUii
niões. A !.• parle intítula-sc A menina dos olhos verdes.
28
Com que surpresa c com que amargura não leria a enamo-
rada menina estes motes e as respectivas voltas:
Vós, senhora, tudo tendes.
Senão que tendes os olhos verdes ;
Sois formosa e tudo tendes,
Senão que tendes os olhos verdes.
Veja-se como o poeta ia mettendo ferroadas:
Dotou em vós natureza
O summo da perfeição ;
Que, o que em vós é senão,
É em outras gentileza.
O verde não se despreza,
Que, agora que vós os tendes.
São bellos os olhos verdes.
Ouro e azul é a melhor
Gôr (i), por que a gente se perde.
Mas a graça desse verde
Tira a graçWa toda a côr.
Fica agora sendo a flor
A côr, que nos olhos tendes,
Porque são vossos e verdes.
Tudo tendes singular.
Com que os corações rendeis.
Senão que, rindo, fazeis
Covinhas para enterrar
E para resuscitar.
Tem força a graça que tendes,
Senão que tendes os olhos verdes.
Tudo, senhora, alcançais,
Quanto o ser formosa alcança ;
Senão que dais esperança
Cos olhos com que matais.
Se acaso os alevantais,
É para as almas renderdes. . .
Senão que tendes os olhos verdes.
(i) Allusão, como já liça dicto, aos olhos azues e aos cabellos louros
da infanta,
Ninguém vos pôde tirar
Serdes tão bem assombrada ;
Mas heis-me de perdoar,
Que os olhos não valem nadn
Fostes mal aconselhada
Em querer que fossem verdes.
Trabalhai de os esconderdes.
E assim por deante, num misto de depreciação, de /ingido
elogio e de troça, que tão profundamente deviam magoar
quem tinha inspirado tão lindos versos e tanto se desvane-
ceria da cor dos seus olhos.
E com que arte consummada não reproduz o grande poeta
os queixumes e protestos da desolada menina ! Vejam-se, por
exemplo, estas redondilhas, tão sentidas, de uma tão encanta-
dora ingenuidade:
Mote (alheio)
De pequena tomei amor,
Porque o não entendi.
Agora que o conheci,
Mat;i-me com desfavor.
Voltas
Vi-o moço e pequenino,
E a mesma idade ensina
Que se incline uma menina
Ás amostras de um menino.
Ouvi-lhe chamar Amor ;
Pelo nome me venci.
Nunca tal engano vi,
Nem tamanho desamor.
Cresccu-me, de dia em dia.
Com a idade a afTcição,
Porque amor de criação
Na alma e na vida se cria.
3o
Criou-se em mim este amor,
E senhorcou-se de mi.
Agora que o conheci,
Mata-m(? com desfavor.
As flores me torna abrolhos,
A morte me determina,
Quem eu trouxe, de menina.
Nas meninas dos meus olhos.
Desta magoa e desta dor
Tenho sabido que, emfim,
Por amor me perco a mim,
Por quem de mi perde amor.
Parece ser caso estranho
O que Amor em mi ordena.
Que, em idade tão pequena.
Haja tormento tamanho !
Sejam milagres de Amor. . .
Hei-os de soffrer assi.
Até que haja dó de mi
Quem entender esta dor.
Mas o poeta não se limitou a depreciar, a metter a ridi-
culo, aquillo que até então o tinha encantado na menina dos
olhos verdes.
Desvairado com os novos amores, que suppunha ou espe-
rava ver correspondidos, querendo a todo o custo libertar-se
da importuna affeição de quem, de menina, o tra:{ia nas me-
ninas dos seus olhos, esqueceu-se de que tinha obrigação de
ser correcto e, num tablado, expôs á irrisão e á maledicência
aquella que tanto lhe queria e que talvez não tivesse quem
a desaggravasse.
Lea-se esta estranha passagem do prologo da comedia
El Rei Seleuco, em que o próprio Camões, autor da peça,
fazia o papel do repvesentador: a Mordomo. Parece-me, se-
nhor, que entra a primeira figura. Moço, mette-te aqui por
baixo desta mesa, e ouçamos ^.,.^ .apresentador. . . Martim.
Senhor, elle parece que aprende a cirurgião. Ambrósio. Mais
parece o ourinol capado, que anda de amores com a menina
dos olhos verdes».
Ficou assim o allucina^i.. y^>^K.x ^icsembaraçado desta peia,
para mais á vontade pòv o desejo onde não devia (i).
Quando elle, porém, diga-se de passagem, se viu forçado
a penitenciar-se
Do error cm que caiu o pensamento,
(Soneto 94)
quando já se lastimava da queda que tinham dado os seus
altos pensamentos (2), procurou rehaver a atVeiçáo da menina
dos olhos verdes (3) e para isso empregou todos os esforços.
Foram, porém, baldados (4).
( 1 ) Estas são verdadeiras penitencias
De quem põe o desejo onde não deve,
De quem engana alheias innocencias.
(Egloga 2.», V. 357-355).
O meus altos pensamentos,
Quão altos que vos pusestes
F .111^*. grande queda destes!
(Redondilhas, Juromenha)
(3) É claro que o poeta agora já não alludia á cór dos olhos, para
não suscitar dolorosas recordações.
(4) Veja principalmente a egloga 3 •, cscripta depois de o poeta ler
voltado de Ceuta, sob promessa de não pensar mais na infanta. São
dessa egloga os seguintes versos :
Almeno
Sc más tenções puseram nódoa feia
Em nosso firme amor, de inveja pura,
Porque pagarei eu a culpa alheia i
32
Só na occasião do embarque para a Índia é que ella se
congraçou com quem tão profundamente a tinha magoado,
com quem havia dado motivo a que pusessem nódoa feia
em uma pura affeição, em um amor honesto.
Mas voltemos ao novo e alio pensamento do poeta e veja-
mos as principaes phases por que elle foi passando, até a
ida para o exilio.
Começando pela celebre canção ii (i), ahi se encontram
Belisa
. . . Teu sobejo e livre atrevimento
E teu pouco segredo, descuidando,
Foi causa deste longo apartamento.
Um só segredo meu te manifesto :
Que te quis muito, emquanto Deus queria,
Mas de pura affeição, de amor honesto.
E, pois de teus descuidos e ousadia
• Nasceu tão dura e áspera mudança,
Folgo que muitas vezes to dizia.
Fica-te embora e perde a confiança
De ver-me nunca mais, como já viste :
Que assi se desengana uma esperança.
(i) Eis como a ella se refere W. Storck : «Naquella incomparável
canção..., que a edição de Hamburgo chama, com toda a razão, um
gemido da Jiature^a que retumbará no mundo, emquanto nelle houver
quem f alie ou entenda a lingua portuguesa, temos fragmentos de uma
autobiographia do poeta, esboçada a largos traços... Compenetrado e
enlevado perante o majestoso conjuncto das ideias, o fulgor da lingua-
gem máscula e vigorosa, a riqueza da phraseologia, o cunho original
das figuras, a ardência dos sentimentos; abalado pelo peso esmagador
da angustia que palpita naquellas linhas, pela violência das saudades e
profundo amor pátrio que ellas exhalam, pela successão dos golpes
dilacerantes alli enumerados, ferindo sem piedade o desterrado, penso
que aquella canção, rainha entre todas as canções de todos os poetas
33
sobre o assumpto importantes indicações, que é pena não
obedecerem á ordem chronologica.
Eis como o poeta, nessa canção (v. 8i-i5i), falia do seu
amor por aquella que
Parece. . . que tinha forma humana,
Mas scintillava espíritos divinos :
f^i Que género tão novo de tormento
Teve Amor, sem que fosse, não somente
Provado em mi, mas todo executado ?
— Implacáveis dure^as^ que ao fervente
85 Desejo, que dá força ao pensamento.
Tinham de seu propósito abalado
E corrido de ver-se e injuriado :
Aqui sombras phaniasticas, trazidas
De algumas temerárias esperanças :
90 As bemaventuranças,
Também nellas pintadas e fingidas. —
Mas a dor do desprego recebido,
Que todo o phantapar desatinava,
Estes enganos punha em desconcerto.
95 Aqui. o adivinhar e o ter por certo
Que era verdade quanto adivinhava ;
E logo o desdijcr-me, de corrido ;
Dar ás cousas que via outro sentido ;
E para tudo, emfim, buscar razões.
100 Mas eram muitas mais as semrazões !
anteriores e posteriores a c. amues, ou seus coevos, deve pertencer á
idade viril do homem, retemperado pelos trabalhos do espirito, pelas
magoas do coração e pelas experiências crudelissimas, mas ainda desdi-
toso por culpa própria e descarinho alheio». Vida de Camões^ pag. 149
c i5o. E por estes motivos que o illustre professor allemão suppõe a
c inçâo II cscripta durante o pcriodo indio (i354), abandonando assim
a opinião, que anteriormente linha seguido, de que «o sublime poema
datava dos annos posteriores ao regresso da índia».
Opportunamentc direi o que penso, quer sobre a data da composição,
quer snl.ti. .. iiu.Ilii-.n. ; 1 A.- .I-mmis logares obscuros desta canção.
R. 5aíH
Não sei como sabia estar roubando
Cos raios as entranhas, que fugiam
Para ella por os olhos, subtilmente.
Pouco a pouco invisiveis me saíam,
io5 Bem como do veu húmido exhalando
Está o subtil humor o sol ardente.
O gesto puro, emíim, e transparente,
Para quem fica baixo e sem valia
Este nome de bello e de formoso,
I IO O doce e piedoso
Mover d'olhos, que as almas suspendia,
Foram as hervas magicas, que o ceo
Me fez beber, as quaes, por longos annos.
Noutro ser me tiveram transformado,
ii5 E tão contente de me ver trocado,
Que as magoas enganava cos enganos,
E diante dos olhos punha o veo.
Que me encubrisse o mal que assi cresceo.
Como quem com aftigos se criava
120 Daquella para quem crescendo estava.
Pois quem pôde pintar a vida ausente,
Com um descontentar-me quanto via,
E aquelle estar tão longe donde estava,
O fallar sem saber o que dizia,
125 Andar sem ver por onde, e juntamente
Suspirar, sem saber que suspirava ?
Pois quando aquelle mal me atormentava
E aquella dôr, que das Tartareas aguas
Saio ao mundo, e mais que todas doe,
i3o Que tantas vezes soe
Duras iras tornar as (i) brandas magoas ?
Agora, CO furor da magoa irado,
Querer e não querer deixar de amar,
E mudar noutra parte, por vingança.
(i) Substituo por as a lição usual <?/;/.
35
i35 O desejo privado de esperança,
Que tão mal se podia já mudar ? ^
Agora a saudade do passado,
Tormento puro, doce e magoado,
Que converter fazia estes furores
140 Em magoadas lagrimas de amores?
«
Que desculpas, comigo só, buscava
Quando o suave amor me não soffria
Culpa na cousa amada, e ino amada !
Kram emlim remédios que fingia
145 O medo do tormento, que ensinava
A vida a susientar-se, de enganada.
Nisto uma parte delia foi passada,
Na qual, se tive algum contentamento.
Breve, imperfeito, tímido, indecente.
i5o Não foi senão semente
De um comprido, amaríssimo tormento.
Reproduzirei agora, tentando approximar-me da ordem
chronologica, algumas das muitas poesias lyricas de Ca-
mões (1), que servem, por assim dizer, ou de commentario,
ou de complemento, a esta passagem da canção 11.
Kmbora o poeta, em composições posteriores, faça datar
a sua paixão pela infanta, quer do dia em que lhe foi apre-
sentado (canções Manda-me Amor que cante)^ quer da occa-
sião em que a viu na igreja (soneto 77), o que è certo c que
o soneto i34 não é tão explicito a este respeito. O que nellc
e no 3o3 se accentúa c a diíTerença de estados, que então
apparccia ao poeta como um obstáculo muito ditTicil de ven-
cer, se não me.smo msupcravcl, para o seu novo pensamento.
Basta reler os versos com que elle termina os dous so-
netos, especialmente o segundo:
Para remcdiar-me não ha hi modo ?
Oh ! Porque íqz a natureza humana
Entre es nascidos tanta diíTerença ?
(1) Na eiÍ! vlc Camões, procuro
destrinçar c ^ iiia.
3ò
Houve, portanto, um período de hesitações, em que o
poeta, armando-se da ra-^ão (i), chegou, num momento de
lucidez, a formular esta pergunta:
Eu que espero de um ser, que é mais que humano ?
(Soneto iSy).
Mas era tão difficil arrancar-lhe da alma a esperança de
que podia vir a ser amado pela nobre e formosa senhora,
que tão profundamente o havia impressionado! Ouçamo-lo:
Mote
Se espero, sei que me engano ;
Mas não sei desesperar.
Glosa
O meu pensamento altivo
Me tem posto em tal extremo,
Que, quando esperando vivo,
O bem esperado temo,
Muito mais que o mal esquivo ;
Que, para crescer meu dano
No gosto da confiança.
Ordena o Amor tyranno
Que, na mais firme esperança,
Se espero, sei que me engano.
Deste novo sentimento
Chega a tanto a nova dor.
Que se enlea o pensamento !
Ver que, no mór bem de amor,
Se descobre o mór tormento !
(i) Relêa-se o soneto 36, já anteriormente transcripto.
3?
Folgara de me engiinar,
Mas não é cousa possível,
Pois, para sempre penar,
Sei que espero o impossível.
Mas não sei desesperar!
Foi também neste estado de espirito que o poeta escreveu,
alem d'outros, o soneto 9:
Tanto de meu estado me acho incerto.
Que, em vivo ardor, tremendo estou de trio ;
Sem causa, juntamente choro e rio;
O mundo todo abarco e nada aperto.
É tudo quanto sinto um desconcerto ;
Da alma um fogo me sai, da vista um rio ;
Agora espero, agora desconfio,
Agora desvario, agora acerto.
Estando em terra, chego ao ceo voando ;
Numa hora acho mil annos, e é de gcito
Que, em mil annos, não possa achar uma hora.
Se me pergunta alguém porque assi ando,
Respondo que não sei : porém suspeito
Que só porque vos vi, minha senhora.
Nesta phase o poeta quasi ^juc se contenta ^v» v.wííi n^i a
formosa infanta:
Quando da bella vista e doce riso
Tomando estão meus olhos mantimento.
Tão enlevado sinto o pensamento.
Que me faz ver na terra o paraíso.
Tanto do bem humano estou diviso.
Que qualquer outro bem julgo por vento.
Assi que, em termo tal, segundo sento.
Pouco vem a fazer quem perde o siso.
Em louvar-vos, senhora, não me fundo.
Porque, quem vossas graças claro sente,
Sentirá que não pode conhecê-las ;
Pois de tanta cstranhe/a sois ao mundo.
Que não é de estranhar, dama excellente.
Que quem vos fez, fizesse ceo e cstrelias.
(Soneto 17).
38
Mas este estado de alma tendia necessariamente a modi-
ficír-se :
De amores de uma Ínclita donzella
Ferido o mesmo deus de Amor se viu
E preso emfim, por mais que resistiu ;
Que a tudo vence e rende a força delia.
Jamais o mundo viu dama tão bella 1
Com ella a natureza repartiu
A graça, com que ao mesmo Amor feriu,
Laços, com quem não vale força ou cautclla.
Oh rara e nunca vista formosura.
Formosura bastante a subjugar
O mesmo deus de Amor, tão soberano !
Olhai se poderá de um fraco humano
A força, a força tal muito durar.
Quando a força de Amor tão pouco dura !
(Soneto 3o8).
Lá dizem também as redondilhas á tenção de Mira-
guarda (i):
Ver e mais guardar
De ver outro dia,
Quem o acabaria ?
Voltas
Dama, quem a vê
Impossível é
Que guardar-se possa.
Se faz tanta mossa
Vcr-vos um só dia,
Quem se guardaria ?
(i) Allusão a uma passagem do Palmeirwi de Inglaterra, que a in-
fanta muito bem conhecia. No capitulo 53 diz-se que á entrada do cas-
tello da formosa Miraguarda estava um escudo de mármore e nclle em
campo uma imagem de mulher, que tinha no regaço umas leltras brancas,
que diziam : Miraguarda, nome que parecia querer significar que a senhora
do castello era muito pêra ver e muito tnais pêra se guardarem delia.
39
Melhor «J.
Neste aventurar,
Ver e não guardar.
Que guardar de {i) ver.
Ver e defender
Muito bom seria ;
Mas quem poderia ?
E por isso qiic o i/t>.sv/V) prcvnloceu sobre a rj-ífn,
No meu pcuu u meu desejo
Da razão se fez tyranno ;
Vejo nelle certo dano,
Incerto remédio vejo.
Voltas
Para de todo defender-mc,
Este mal por passar tinha :
Ir eu contra a razão minha,
Que morre por defender-me.
Da parte de meu desejo
Me passo, para meu dano.
Vejo que nisto me engano,
Mas nenhum remédio vejo.
O poeta reconhecia a inutilidade da sua audácia:
Senhora, quem a tanto
Que consente cm servir voi.i,a lembrança,
Sabendo que a tem sem esperança.
Não pouco é que por isso se lhe deve.
Mais cala esta minha alma do que escreve,
Sem esperar que seu mal fuça mudança,
Não querendo outra bemaventurança
Maior. ■ • amor com que vos serve.
( I ) IJção usual : e.
40
Que esperar grandes casos da ventura
E offender vosso merecimento ;
Com esse pagareis meu tormento.
Tenho por impossivel sua cura,
E inda ficará meu pensamento
Devendo sempre a vossa formosura.
(Soneto 304) (i).
Estava, porisso, firmemente resolvido a esconder lá bem no
intimo o segredo do seu coração :
Mote (alheio)
De dentro tengo mi mal,
Que de fuera no hay senal.
Volta
Mi Jiueva y dulce querella
Es invisible á la gente.
El alma sola la siente.
Que el cuerpo no es dino delia.
Como la viva centella
Se encobre en el pedernal.
De dentro tengo mi mal.
Mote (alheio)
A dôr que a minha alma sente.
Não na sabe toda a gente.
Voltas
Que estranho caso de amor !
Que desejado tormento !
Que venho a ser avarento
Das dores de minha dôr !
Por me não tratar peor.
Se se sabe, ou se se sente.
Não na digo a toda a gente.
(1)0 texto deste soneto está bastante alterado. Reproduzo as cor-
recções propostas por W. Storck para algumas passagens.
41
Minha dòr e causa delia
De ninguém ouso fiar,
Que seria aventurar
A perder-me ou a perdê-la.
E pois só com padecê-la
A minha alma está contente,
Não quero que a saiba a gente.
Ande no peito escondida,
Dentro na alma sepultada ;
De mi só seja chorada,
De ninguém seja sentida.
Ou me mate, ou me dê vida.
Ou viva triste ou contente,
Não na saiba toda a gente.
Mote (alheia)
Para que me dan tormento,
Aprovcchando tan poço ?
Perdido, mas no tan loco.
Que descubra lo que siento.
Voltas
Tiempo perdido es aquel
Que se passa en darme afan ;
Pues, cuanto más me lo dan.
Tanto menos siento dél.
Que descubra lo que siento ?
No lo haré, que no es tan poço ;
Que no puede ser tan loco,
Quien tione tal pcnsamiento.
Scpan que me manda Amor
Que de tan dulce querella
A nadie dé parte delia,
Porque la sienta mayor.
Ks tan dulce mi tormento,
Que aun se me antoja poço ;
Y, si es mucho, quedo loco
De gusto de lo que siento
42
Datam, a meu ver, deste idyllio /';/ pavtibits, alem d^outras,
as seguintes poesias:
Ku cantarei de Amor tão docemente,
Por uns termos em si tão concertados,
Que dous n\\\ accidentes namorados
Faça sentir ao peito que o não sente.
Farei que Amor a todos avivente,
Pintando mil segredos delicados.
Brandas iras, suspiros magoados.
Temerosa ousadia e vida ausente.
Também, senhora, do despe/'o honesto
De vossa vista branda e rigorosa
Cpntentar-me-hei dizendo a menor parte.
Porém, para cantar de vosso gesto
A composição alta e milagrosa,
Aqui falta saber, ingenho e arte.
(Soneto 2) (i).
Transforma-se o amador na cousa amada.
Por virtude do muito imaginar ;
Não tenho logo mais que desejar.
Pois em mim tenho a parte desejada.
Se nella está minha alma transformada.
Que mais deseja o corpo de alcançar ?
Em si somente pode descansar.
Pois com elle tal alma está liada.
Mas esta linda e pura semidea,
Que, como o accidente em seu sujeito,
Assi CO a alma minha se conforma.
Está no pensamento como idea,
E o vivo e puro amor de que sou feito,
Como a matéria simples, busca a forma.
(Soneto 10).
(i) No verso 4 accrescentei o pronome o. No verso 8 creio que o
poeta escreveu, não pena, mas vida. Cf. a canção 11, verso 121, e o so-
neto i5i, que se segue ao immediato a este. No verso 9 leio despejo e
não desprego. Cf. o soneto 78, já transcripto.
43
Julga- me a gente ioda por perdido,
Vendo-me, tão entregue a meu cuidado,
Andar sempre dos homens apartado,
E de humanos commercios esquecido.
Mas eu, que lenho o mundo conhecido,
E quasi que sobre elle ando dobrado,
Tenho por baixo, rústico e enganado,
Quem não é com meu mal engrandecido.
Vn revolvendo a terra, o mar e o vento.
Honras busque e riquezas a outra gente,
Vencendo ferro, fogo, frio e calma ;
Que eu, por amor, somente me contento
De trazer esculpido eternamente
Vosso formoso gesto dentro da alma.
(Soneto i3i).
Criou a natureza damas be41as.
Que foram de altos plectros celebradas ;
Delias tomou as partes mais prezadas
E a vós, senhora, fez do melhor delias.
Elias, diante de vós, são as estrellas.
Que ficam com vos ver logo eclipsadas ;
Mas se ellas têm por sol essas rosadas
Luzes de sol maior, felices delias !
Em perfeição, em graça e gentileza.
Por um modo entre humanos peregrino,
A todo o bello excede essa belleza.
Oh ! Quem tivera partes de divino,
Para vos merecer ! Mas se pureza
De amor vai ante vós, de-vós sou dino.
(Soneto i53).
Mote
Tal esioi, despues que os vi,
Que de mi propio cuidado
Estoi tan enaiporado.
Como Narciso de si.
+4
Voltas
Una sola deferência
Hallo neste amor altivo :
Que el murio de su presencia (i),
Mas yo con la vuestra vivo.
En el punto que yo os vi,
Se realço mi cuidado,
De modo que enamorado.
Por vos, me quede de mi.
Nacieron de un amor dos,
Cupido fue el tercero,
Que haze que bien me quiero,
Solo porque os quiero a vos.
Los estr^mos que en vos vi
Me han traído a tal estado,
Que me veo enamorado
De amor de vos y de mi.
Mas esta situação não podia prolongar-se por muito tempo.
O poeta, enamorado como estava, começou a impacientar-sc,
porque a infanta o não percebia:
Mote (alheio)
Se a alma ver-se não pode
Onde pensamentos ferem.
Que farei para me crerem ?
(i) No texto corrente lê-se :
Que el murio con preferencia.
Mas não sei bem o que isto significa. O que presumo é que o poeta
quis alludir ao ter Narciso morrido de paixão por si mesmo, contem-
plando a sua própria imagem na agua de unia fonte.
4--^
Voltas
Se na alma uma só fenda
Faz na vida mil sinais,
Tanto se descobre mais,
Quanto é mais escondida.
Se esta dôr tão conhecida
Me não vêem, porque não querem,
Que farei para me crerem ?
Se se pudesse bem ver
Quanto calo e quanto sento,
Depois de tanto tormento
Cuidaria alegre ser.
Mas, se não me querem crêr
Olhos, que tão mal me ferem.
Que farei para me crerem ?
É claro que o poeta não se atreveria a fazer directamente
uma declaração de amor á infanta. Era um passo por demais
arriscado, apesar da disposição de espirito em que elle se
encontrava e que tão bem descripta se acha na canção 1 1 :
Aqui o adivinhar e o ter por certo
Que era verdade quanto adivinhava ;
Dar ás cousas que via outro sentido.
Mas ha, entre as poesias de Camões, algumas que pode-
riam muito bem ter sido escriptas para serem recitadas na
presença da illustre senhora e em que não seria difficil desco-
brir uma intenção reservada.
Lêam-se, por exemplo, estas redondilhas:
Cantiga alheia
Pastora da serra,
Da serra da Kstrella,
Perco-mc por ella !
k
40
Voltas
Nos seus olhos bellos
Tanto Amor se atreve,
Que abrasa entre a neve
Quantos ousam vG-los.
Não solta os cabellos
Aurora mais bella.
Perco me por ella 1
Não teve esta serra,
No meio da altura,
Mais que a formosura,
Que nella se encerra.
Bem ceo fica a terra,
Que tem tal estrella.
Perco-me por ella !
Sendo entre pastores
Causa de mil males,
Não se ouvem nos vales
Senão seus louvores.
Eu só, por amores.
Não sei fallar nella :
Sei morrer por ella !
De alguns que, sentindo
Seu mal vão mostrando.
Se ri, não cuidando
Que inda paga, rindo.
Eu, triste, encobrindo
Só meus males delia,
Perco-me por ella !
Se flores deseja
Por ventura, bellas.
Das que colhe — delias
Mil morrem de inveja.
Não ha quem não veja
Todo o melhor nella.
Perco-me por ella !
47
be na agua corrente
Seus olhos inclina,
Faz a luz divina
Parar a corrente.
Tal se vê, que sente
Por ver-se a agua nella.
Perco-me por ella !
Note-se também como elle insinua que, para o amor, não
ha dillerenças sociaes, por maiores que pareçam :
Mote
Descalça vai pela neve :
Assi faz quem Amor serve.
Voltas
Os privilégios que os reis
Não podem dar, pôde Amor,
Que faz qualquer amador
Livre das humanas leis.
Mortes e guerras cruéis,
Ferro, frio, fogo e neve,
Tudo soflVe quem o serve.
Moça formosa despreza
Todo o frio e toda a dôr.
Olhai quanto pode Amor,
Mais que a própria nalui c/a 1
Medo nem delicadeza
Lhe impede que passe a ncsc.
Assi faz quem Amor serve.
Por mais trabalhos que leve,
A tudo se ofrVeceria.
Passa pela neve fria,
Mais alva que a própria neve ;
Com todo frio se atreve.
Vede cm que fogo ferve
O triste que Amor serve I
K lambem este o thema do Auto de Filodemo, que o poeta
naturalmente leu on tencionava ler no paço de Santa Clarií.
Eis como principia o argumento: «Um fidalgo português,
48
que acaso andava nos reinos de Dinamarca, como, por largos
amores e maiores serviços, tivesse alcançado o amor de uma
filha de el-rei, foi-lhe necessário fugir com ella em uma galé,
porquanto havia dias que a tinha prenhe. E de feito, sendo
chegados á costa de Espanha, onde elle era senhor de grande
património, armou-se-lhe grande tormenta, que, sem nenhum
remédio, dando a galé á costa, se perderam todos miseravel-
mente, senão a princeza, que em uma tábua foi á praia : a
qual, como chegasse o tempo de seu parto, junto de uma
fonte pariu duas creanças, macho e fêmea; e não tardou
muito que um bom pastor castelhano, que naquellas partes
morava, ouvindo os tenros gritos dos meninos, lhe acudiu,
a tempo que a mãe já tinha expirado. Crescidas, em fim, as
creanças debaixo da humanidade e criação daquelle pastor,
o macho que Filodemo se chamou, á vontade de quem os
baptizara, levado da natural inclinação, deixando o campo,
se foi para a cidade, aonde, por musico e discreto, valeu
muito em casa de D. Lusidardo, irmão de seu pae, a quem
muitos annos serviu, sem saber o parentesco que entre ambos
havia. E, como de seu pai não tivesse herdado nada mais que
os altos espíritos, namorou-se de Dionysa, filha de seu senhor
e tio, que, incitada ao que por suas obras e boas partes me-
recia, ou porque ellas nada engeitam, lhe não queria mal».
Vejamos agora o que, no acto I, diz Filodemo, apaixonado
por Dionysa, a filha de seu amo :
SCENA I
FlI ODEMO, SÓ.
Triste do que vive amando,
Sem ter outro mantimento
Que estar só phantasiando 1
Só ua cousa me desculpa
Deste cuidado que sigo :
Ser de tamanho perigo,
Que cuido que a mesma culpa
Me fica sendo castigo.
49
Ora bem, minha ousadia,
Sem asas, pouco segura ;
Quem vos deu tanta valia,
Que subais a phantasia
Onde não sobe a ventura ?
Por ventura eu não nasci
No mato, sem mais valer,
Que o gado ao pasto trazer ?
Pois donde me veio a mi
Saber-me tão bem perder ?
Eu, nascido entre pastores.
Fui trazido dos curraes
E dentre meus naturaes
Para casa dos senhores.
Donde vim a valer mais.
E agora logo tão cedo
Quis mostrar a condição
De rústico e de villão !
Dando-me ventura o dedo.
Lhe quero tomar a mão ! . . .
Mas oh ! que isto não é assi.
Nem são villãos meus cuidados.
Como eu delles intendi ;
Mas antes, de sublimados.
Os não posso crer de mi.
Porque, como hei eu de crer
Que me faça minha estrella
Tão alta pena soffrer,
Que somente pola ter
Mereço a gloria delia í
SCENA II
FiLODEMO, SÓ.
Ah 1 senhora, que podeis
Ser remédio do que peno !
Quão mal ora cuidareis
Que viveis e que cabeis
Num coração tão pequeno!
R i»9*
Se vos fosse apresentado
Este tormento em que vivo,
Creríeis que foi ousado
Este vosso — de criado —
Tornar-se vosso captivo ?
SGENA IV ^
FiLODEMo, cantando.
Adó sube el pensamiento,
Seria una gloria imensa,
Si allá fuese quien lo piensa.
Falia.
Qual espirito divino
Me fará a mi sabedor
Deste meu mal : — se é amor,
Se, por dita, desatino ?
Se é amor, diga-me qual
Pôde ser seu fundamento,
Ou qual é seu natural,
Ou porque empregou tão mal
Um tão alto pensamento ?
Se é doudice, como, em tudo,
A vida me abrasa e queima ?
Ou quem viu num peito rudo
Desatino tão sisudo,
Que toma tão doce teima ?
Ah 1 senhora Dionysa,
Onde a natureza humana
Se mostrou tão soberana !
O que vós valeis me avisa,
Mas o que eu peno, me engana !
Lêa-se também no acto II, scena 2.% o dialogo entre Filo-
demo e Duriano.
«FiLODEMO... Jc\ vos dei conta da pouca que tenho com
toda a outra cousa que não é servir a senhora Dionysa^ e
M
posto que a desigualdade dos estados o não consinta, eu
não pretendo delia mais que o não pretender delia nada,
porque o que lhe quero, comsigo mesmo se paga; que este
meu amor é como a ave phenix, que de si só nasce, e não
de outro nenhum interesse.
DuRiANo. Bem praticado está isso, mas dias ha que eu não
creio em sonhos.
FiLODEMO. Porque ?
DuRiANO. Eu vo-lo direi : porque todos vós outros, os que
amais pela passiva, dizeis que o ama<ior, fino como o melão,
não ha de querer mais de sua dama que amá-la; e virá logo
o vosso Petrarca e o vosso Pieiro Bembo, atoado a trezentos
Platões, mais çafado que as luvas de um pagem de arte,
mostrando razões verisimeis e apparentes, para não querer-
des mais de vossa dama que vê-la, e, ao mais, até fallar com
ella. Pois inda achareis outros esquadrinhadores de amor
mais especulativos, que defenderão a justa, por não empre-
nhar o desejo; e eu (faço-vos voto solemne), se a qualquer
destes lhe entregassem sua dama, tosada e apparelhada entre
dous pratos, eu fico que não ficasse pedra sobre pedra. E eu
já de mi vos sei confessar que os meus amores hão de ser
pela activa, e que ella ha de ser- a paciente e eu agente,
porque esta é a verdade. iSlas comtudo vá vossa mercê co a
historia por deante.
FiLODEMO. Vou, porque vos confesso que neste caso ha
muita duvida entre os doctores. Assi que, vos conto que,
estando esta noite com a viola na mão, bem trinta ou qua-
renta legoas pelo sertão dentro de um pensamento, senão
quando me tomou á traição Solina; e, cnuc muitas palavras
que tivemos, me descobriu que a senhora Dionysa se levan-
tara da cama por me ouvir e que estivera pela grela da porta
espreitando quasi hora e meia.
DuRiANO. Cobras c tostões, sinal de terra. 1* >is ainda vos
não fazia tanto avante.
*
52
FiLODEMO. Finalmente, veio-me a descobrir que me não
queria mal, que foi para mi o maior bem do mundo. . .
DuRiANO. . . Boas esperanças ao leme, que eu vos faço bom
que, ás duas enxadadas, acheis agoa».
Camões estava chegado â phase da audácia.
Eis como eile agora raciocina :
Nunca em amor danou o atrevimento;
Favorece a fortuna a ousadia,
Porque sempre a encolhida covardia
De pedra serve ao livre pensamento.
Quem se eleva ao sublime firmamento,
A estrella nelle encontra, que lhe é guia ;
Que o bem que encerra em si a phantasia.
São umas illusÕes que leva o vento.
Abrir-se devem passos á ventura ;
Sem si próprio ninguém será ditoso ;
Os princípios somente a sorte os move.
• Atrever-se é valor e não loucura.
Perderá, por covarde, o venturoso
Que VOS vê, se os temores não remove.
(Soneto i32
Mote (alheio)
Tudo pôde uma affeição.
Glosa
Tem tal jurdição Amor,
Na alma donde se aposenta
E de que se faz senhor.
Que a liberta e isenta
De todo humano temor.
E com mui justa razão,
Como senhor soberano.
Que amor não consente dano.
E pois me soífre tenção,
Gritarei por desengano :
Tudo pôde uma afieição !
53
Resolvido o enamorado poeta a fazer-se intender da in-
fanta, não tardaria muito, podemos siippô-lo, que esta lhe
não percebesse os intuitos.
E sem querer dizer que o meio empregado por Camões
fosse uma declaração escripta, o que é certo é que mais de
uma das suas poesias se pôde considerar como para isso
destinada. Lêam-se, por exemplo, estas oitavas (epistola iv):
Senhora, se encobrir por aigunui arte
Pudera esta occasião de meu tormento,
Não crêas que chegara a declarar-te
Este meu perigoso pensamento.
Mas, por mais que te offenda, não sou parte
No crime de tamanho atrevimento.
Elle é de Amor, e delle fui forçado
A que te declarasse o meu cuidado.
II
Se merece castigo a confiança
Com que descubro agora o que padeço,
Aqui prompto me tens : toma a vingança.
Que, por tão grave culpa, te mereço.
Bem me podes negar toda esperança.
Mas eu não desistir deste começo.
Porque tempo c fortuna não são parte
Para deixar uma hora só de amar-te.
!?!
Ju que \w. iv, oo ii.x.1.., w.iio.^ u,vuiiv..iiam,
Descansem neste bem com alegria,
Pois já, com ver os teus, tanto ganharam,
Quanto, estando sem vc-Ios, se perdia.
Que gloría querem mnis, se a ver chegaram
Aquclla pura luz, que vence o dia ?
Qual mór bcrà ha no mundo que querer-te,
Sc não ha mais que ver, despois de ver-te ?
54
IV
Minhas dores mortaes, bella senhora,
Tiraram a virtude ao soffrimento,
E, fazendo-se mais em qualquer hora,
Levando vão trás ti meu pensamento.
Porém soberbos vejo desde agora.
Por a causa gentil de seu tormento,
Minha alma, meu desejo, meu sentido.
Porque á tua belleza se hão rendido.
V
A par de tua rara formosura
Se desconhece o mór merecimento ;
A tua claridade torna escura
Do sol a clara luz em um momento.
Se Zeuxis, ao formar bella figura,
A vista em ti pudera pôr aitento.
Mais alto original houvera achado.
Para admirar o mundo co traslado.
VI
Aquelles que escreveram mil louvores
De formosura, graça e gentileza.
Todos foram, senhora, uns borradores
•De tua perfeitissima beHeza,
Agora se vê claro cm teus primores
Que em ti se esmerou mais a natureza,
E que eram os seus cantos prophecias
Do que havias de ser em nossos dias.
VII
Vê, pois, se vinha a ser culpável falta
Em mi o não render-te amante a vida,
E se deixar de amar gloria tão alta
Era digno da pena mais crescida.
53
Emfim, eu te amarei, que Amor me exalta
Co castigo de culpa assi atrevida.
E, quando delia caia, maior j^loria
Terá o Tejo, que o Pó, com sua historia.
As vezes, Camões pede á infanta corresponda ao seu amor
lembrando-lhe até a brevidade da vida :
Formosos olhos, que cuidado dais
A mesma luz do sol, mais clara pura
Que sua esclarecida formosura.
Com tanta gloria vossa, atrás deixais :
Se, por serdes tão bellos, desprezais
A fineza de amor que vos procura,
Pois tanto vedes, vede que não dura
O vosso resplandor, quanto cuidais.
Colhei, colhei, do tempo fugitivo
E de vossa belleza o doce fruto,
Que em vão fora de tempo é desejado.
E a mi, que por vós morro e por vós vivo,
Fazei pagar a Amor o seu tributo.
Contente de por vós lho haver pagado.
(Soneto 269).
Outras vezes linfiitase a confessar lhe que a ama:
A/o/e (alheio)
Vos tencis mi corazon.
Glosa
Mi corazon me han robado
Y Amor, vícndo mis enojos.
Me dijo : Fuctc llcvado
Por los mas hcrmosos ojos
Que, desque vivo, he mirado.
56
Gracias sobrenaturales
Te lo tienen en prision.
Y, si Amor tiene razon,
Senora, por las senales,
Vos teneis mi corazon.
Até que, emfim, o arrojado poeta, sempre disposto a
Dar ás cousas que via outro sentido,
suppôs que a infanta correspondia ao seu amor.
Foi assim que elle interpretou as lagrimas que em uma
occasião lhe viu deslisar pelas lindas faces:
Amor, que o gesto humano na alma escreve,
Vivas faíscas me mostrou um dia,
Donde um puro crystal se derretia
Por entre vivas rosas e alva neve. >
A vista, que em si mesma não se atreve.
Por se certificar do que ali via,
Foi convertida em fonte, que fazia
A dor ao soffrimento doce e leve.
Jura Amor que brandura de vontade
Causa o primeiro effeito. O pensamento
Endoidece, se cuida que é verdade.
Olhai como Amor gera, em um momento.
De lagrimas de honesta piedade
Lagrimas de immortal contentamento.
(Soneto 8).
Foi também essa a impressão que lhe deixou o aspecto da
formosa senhora, em uma noite de luar:
Diana prateada, esclarecida
Com a luz que do claro Phebo ardente.
Por ser de natureza transparente.
Em si, como em espelho, reluzia.
Cem mil milhões de graças lhe (?) influia.
Quando me appareceo o excellente
Raio de vosso aspecto, differente
Em graça e amor do que soía.
Eu, vendo- me tão cheio de favores,
E tão propinquo a ser de todo vosso,
Louvei a hora clara e a noite escura,
Pois nella destes cor a meus amores ;
Donde collijo claro que não posso
De dia para vós já ter ventura (i).
(Soneto 280).
(i) Loucamente apaixonado pela infanta, comprehende-se com que
calor, com que enthusiasmo, Camões recitaria, na presença delia, algu-
mas das suas poesias, sobretudo as que envolviam segunda intenção.
Era natural que uma ou outra vez fizesse commover até ás lagriíjias a
intelligente e amável senhora, ou a levasse a manifestar-lhe directamente
quanto o apreciava. Natural era também que elle, na disposição de espi-
rito em que se achava, desse ás cousas que via outro sentido.
Eis mais uma dessas poesias, escriptas com segundo intuito :
Aloie
Irme quiero, madre,
A aquella galera,
Con el marinero
A ser marinera.
Voltas
Madre, si me fuere.
Do quiera que vó.
No lo quiero yo.
Que el Amor lo quiere.
Aquel nino ficro
Hacc que me mueva,
Por un marinero,
A ser marinera.
El que todo puede,
Madre, no podrá,
Pues el alma vá,
Que cl cucrpo se quede.
58
Veja-se como o illudido poeta manifestava agora o seu
Con el por que muero
Voy, porque no muera ;
Que, si es marinero,
Seré marinera.
Es tirana ley
Del nino sefíor
Que, por un amor.
Se deseche un rey.
Pues desta manera
Quiero irme, quiero,
Por un marinero
A ser marinera.
Decid, ondas, cuando
Vistes vos doncella,
Siendo tierna y bella,
Andar navegando ?
Mas qué no se espera
Daquel nino íiero ?
Vea yo quien quiero,
Sea marinera !
A joven destas redondilhas abandonava a mãe, para se aventurar
por amor, a uma vida cheia de riscos ; a bella infanta tinha visto fugir-
Ihe a occasião de ir pára junto da mãe querida e ahi casar com o her-
deiro do throno de França. E não muito antes (i^^S) tinha morrido o
que estivera para ser o seu segundo noivo francês, o duque de Orléans.
Emquanto á intenção reservada do poeta, basta ler o que Duriano
diz acerca de Filodeino, no acto v, scena iv, do respectivo auto :
«Esse galante, em satisfação de muitas mercês que elrei de Dinamarca
lhe fizera, metteu-sede amores com uma sua filha, a mais moça; c
como era bom justador, manso, discreto, galante, partes que a qualquer
mulher abalam, desejou ella de ver geração delle. Senão quando, livre-
nos Deus 1 se lhe começou de encurtar o vestido ; e, porque estes sirgos
não se desistem em nove dias, senão em nove meses, foi-lhe a elle en-
tão necessário acolher-se com ella... Acolheu-se em uma galé; e vede
la princeza em uma galera nueva, con el marinero á ser marinera».
59
enthusiasmo, por julgar bem buccedido o atrevimento de
pensar na infanta:
Onde mereci eu tal pensamento,
Nunca de ser humano merecido ?
Onde mereci eu ficar vencido
De quem tanto me honrou co vencimento?
Em gloria se converte o meu tormento,
Quando vendo-me estou tão bem perdido,
Pois não foi tanto mal ser atrevido.
Como foi gloria o mesmo atrevimento.
Vivo, senhora, só de contemplar-vos ;
E, pois esta alma tenho tão rendida,
Em lagrimas desfeito acabarei.
Porque não me farão deixar de amar-vos
Receios de perder por vós a vida,
Que por vós vezes mil a perderei.
(Soneto 202).
Eis O que então affirmava do amor, quem depois tanto
delle se havia de queixar:
Quem diz que Amor é falso ou enganoso.
Ligeiro, ingrato, vão, desconhecido,
Sem falta lhe terá bem merecido
Que \hç seja cruel ou rigoroso.
Amor é brando, é doce e é piedoso.
Quem o contrario diz, não seja crido ;
Seja por cego e apaixonado tido
E aos homens e inda aos deoses odioso.
Se males faz Amor, em mi se vêm ;
Fm mi mostrando todo o seu rigor,
\ > mundo quis mostrar quanto podia.
Ma.s todas suas iras são de Amor ;
Todos estes seus males sSo um bem,
Que eu por todo outro bem nlío trocaria.
(Soneto 2o5).
O equivoco em que estava o poeta augmcntou-lhe, por
6o
certo, o arrojo, e a infanta comprehendeu emfim do que se
tratava.
Adoptando então uma norma de proceder, que estava em
perfeita harmonia com o que sabemos do seu caracter, a
sisuda filha do Rei Venturoso deu claramente a intender ao
audacioso poeta que lhe não acceitava a corte.
Ouçamos o interessado, dando-nos conta da nova phase
cm que entravam os seus amores :
Mote
Olhos, não vos mereci
Que tenhais tal condição:
Tão liberais para o chão,
Tão irosos para mi 1
Volta
Baixos e honestos andais,
Por vos negardes a quem
Não quer mais que aquelle bem,
Que vós no chão espalhais ?
Se pouco vos mereci.
Não me estimeis mais que o chão,
A quem vós o galardão
' Dais, e mo negais a mi.
Agora já o poeta se não queixa do olhar indiferente da
infanta, como tanta vezes o havia feito:
Mote
Ojos, herido me hábeis ;
Acabad ya de matarme !
Mas, muerto, volved á mirarme,
Porque me resusciteis.
Volias
Pues me distes tal herida,
Con gana de darme muerte,
El morir me es dulce suerte,
Pues con morir me dais vida.
Ojos, qué os deteneis ?
Acabad ya de matarme !
Mas, muerio, volved á mirarme,
Porque me resusciteis,
La Uaga cierto ya es mia,
Aun que, ojos, vós no querrais.
* Mas, si la muerte me dais,
El morir me es alegrin.
Y assi digo que acabeis,
O ojos, ya de matarme.
Mas, muerto, volved á mirarme,
Porque me resusciteis.
(Redondilhas).
Nunca manhã suave.
Estendendo seus raios por o mundo,
Despois de noite grave,
Tempestuosa, negra, em mar profundo,
Alegrou tanto nau, que já no fundo
Se vio, em mares grossos.
Como a luz clara a mi dos olhos vossos.
Aquella formosura,
Que só no virar delles resplandece,
E com que a sombra escura
Clara se faz e o campo reverdece.
Quando o meu pensamento se entristece,
EUa e sua viveza
Me desfazem a nuvem da tristeza.
02
O meu peito, onde estais,
É para tanto bem pequeno vaso.
Quando acaso virais
Os olhos, que de mi tião/a^em caso.
Todo, gentil senhora, então me abraso,
Na luz que me consume,
Bem como a borboleta faz no lume.
Se mil almas tivera.
Que a tão formosos olhos entregara.
Todas quantas pudera,
Por as pestanas delles pendurara ;
E, enlevadas na vista pura e clara,
Postoque disso indinas,
Se andaram sempre vendo nas meninas.
E vós, que descuidada
Agora vivereis de taes querellas,
De almas minhas cercada.
Não pudésseis tirar os olhos delias,
Não pôde ser que, vendo a vossa entre ellas,
A dor, que lhe mostrassem
Tantas, uma só alma não abrandassem.
Mas, pois o peito ardente
Uma só pôde ter, formosa dama.
Basta que esta somente,
Gomo se fossem mil e mil, vos ama.
Para que a dor da sua nrdente flamma
Gomvosco tanto possa.
Que não queirais ver cinza uma alma vossa.
(Ode 5^).
Formosos olhos, que, na idade nossa.
Mostrais do ceo certíssimos sinais,
Se quereis conhecer quanto possais,
Olhai-me a mim, que sou feitura vossa.
Vereis que do viver me desapossa
Aquelle riso com que a vida dais ;
Vereis como de x\mor não quero mais.
Por mais que o tempo corra, o dano possa.
63
E se ver-vos nesta alma emfim quiserdes,
Como em um claro espelho, alli vereis
Também a vossa, angélica e serena.
Mas eu cuido que, só por me não verdes,
Ver-vos em mim, senhora, não quereis.
Tanto posto levais de minha pena !
(Soneto 38).
O que agora o tortura, mas ao mesmo tempo lhe dá vida,
é o áspero desprego com que a infanta olha para elle, se por
acerto o pé, é a crueza com que por ella é tratado:
Vossos olhos, senhora, que competem
Com o sol em belleza e claridade.
Enchem os meus de tal suavidade.
Que em lagrimas, de vê-los, se derretem.
Meus sentidos, prostrados, se submettem
Assi, cegos, a tanta majestade
E da triste prisão da escuridade.
Cheios de medo, por tugir, remettem.
Porém, se então me vedes, por acerto.
Esse áspero desprezo, com que olhais.
Me torna a animar a alma enfraquecida.
Oh gentil cura ! Oh estranho desconcerto 1
Que dareis c'um favor que vós não dais,
Quando com um desprezo me dais vida ?
• (Soneto 65).
Esses cabellos louros e escolhidos.
Que o ser ao áureo sol estão tirando.
Esse ar immenso, adonde naufragando
Estão continuamente os meus sentidos ;
Esses furtados olhos, tão fingidos,
Que minha vida e morte estão causando,
Essa divina gra*j'a, que, em fallando.
Finge os meus pensamentos nSo ser cridos ;
Esse compasso certo, essa medida,
Que faz dobrar no corpo a gentileza ;
A divindade em terra, tSo subida :
Mostrem já piedade c não crueza,
Que são laços que Amor tece na vida,
.^«•otlf» í-ni n-íi «.íítTriíHí-iitri. ,.n-» vrts durcza.
(Soneto 104).
^4
Ás vezes, a infanta, suppondo que o poeta já teria desistido
da sua louca preienção, e não querendo, por certo, que se re-
parasse na maneira como o tratava, olhava-o com pista mais
suave. Era o bastante para elle ficar doido de contente!
Se, algum'hora, essa vista mais suave
Acaso a mi volveis, em um momento
Me sinto com um tal contentamento,
Que não temo que dano algum me aggrave.
Mas quando, com desdém esquivo e grave,
O bello rosto me mostrais isento,
Uma dor provo tal, um tal tormento.
Que muito vem a ser que não me acabe.
Assi está minha vida ou minha morte
No volver desses olhos, pois podeis
Dar c'uma volta delles morte ou vida.
Ditoso eu, se o ceu quer, ou minha sorte.
Que ou vida, para dar-vo-la, me deis,
Ou morte, para haver morte querida 1
(Soneto i5G).
Por fim a situação tornou-se irreductivel:
Em não ver-me ella só sempre está firme,
Mas eu firme estarei no que emprendi !
exclama o resoluto poeta/
Tudo. . . faz mudança,-
Quanto o claro sol vê, quanto allumia ;
Não se acha segurança
Em tudo quanto alegra o bello dia ;
Mudam-se as condições, muda-se a idade,
A bonança, os estados e a vontade.
Somente a minha imiga
A dura condição nunca mudou,
Para que o mundo diga
Que nella lei tão certa se quebrou.
Em não ver-me ella só sempre está firme,
Ou por fugir de Amor, ou por fugir-me.
65
Mas já soffrivel fora
Que em matar-me ella só mostre firmeza,
Se não achara agora
Também em mi mudada a natureza,
Pois sempre o coração tenho turbado,
Sempre de escuras nuvens rodeado.
Sempre exprimento os frios
Que em contino receio Amor me manda ;
Sempre os dous caudais rios.
Que em meus olhos abrio quem nos seus anda,
Correm, sem chegar nunca o verão brando.
Que tamanha aspereza vá mudando.
O sol sereno e puro,
Que no formoso rosto resplandece,
Envolto em manto escuro
Do triste esquecimento, não parece.
Deixando em triste noite a triste vida.
Que nunca de luz nova é soccorrida.
Porém seja o que for :
Mude-se por meu dano a natureza ;
Perca a inconstância Amor^
A fortuna inconstante ache firmeza ;
Tudo mudável seja contra mi :
Mas eu firme estarei no que emprendi !
(Ode 12).
A infanta resolveu então fazer saber ao tresloucado man-
cebo que não queria tornar mais a vê-lo (i).
(i) É natural que desta delicada missão fosse encarregado D. Fran-
cisco de Noronha. Camões, como se infere do soneto 68, ter-Ihe-ia res-
pondido que cumpriria as ordens da infanta e que se limitaria a vê-la, a
contemplá-la dentro da sua alma. Como o apaixonado poeta, se fallava
com sinccridnde, se achava illudído ! I£ como não devia ficar desgOS-
66
Eis como elle encara a sua nova situação:
Dai-me uma lei, senhora, de querer-vos,
Porque a guarde, sob pena de enojar-vos;
Pois a fé que me obriga a tanto amar-vos
Fará que fique em lei de obedecer-vos.
Tudo me defendei, senão só ver-vos
E dentro na minha alma contemplar-vos,
Que, se assi não chegar a contentar-vos.
Ao menos nunca chegue a aborrecer-vos.
E se essa condição, cruel e esquiva,
Que me deis lei de vida não consente,
Dai-ma, senhora, já, seja de morte.
Se nem essa me dais, é bem que viva.
Sem saber como vivo, tristemente ;
Mas contente estarei com minha sorte.
(Soneto 68).
Senhora minha, se, de pura inveja,
Amor me tolhe a vista delicada,
A côr, de rosa e neve semeada,
E dos olhos a luz, que o sol deseja,
Não me pôde tolher que vos não veja
Nesta alma, que ôlle mesmo vos tem dada,
Onde vos terei sempre debuxada.
Por mais cruel imigo que me seja.
toso, se não irritado, o illustre fidalgo, com o proce4imento do seu
protegido ! É este mesmo que o declara :
A piedade humana me faltava,
A gente amiga já contraria via.
No perigo primeiro.
(Canção ii, 181-1 83).
è7
Nella vos vejo, e vejo que não nace
Em bello e fresco prado deleitoso
Senão flor que dá cheiro a toda a serra (i).
Os lidos tendes numa e noutra face ;
Ditoso quem vos vir, mas mais ditoso
Quem os tiver, se ha tanto bem na terra.
(Soneto 3o3).
Mas era muito pouco ver, contemplar, a bem-amada só
com os olhos da alma. Quem tão apaixonado estava, não
podia limitar-se a isso. Era-lhe melhor a morte.
Mote
Vida da minha alma,
Não vos posso ver !
Isto não é vida
Para se sofTrer 1
Voltas
Quando vos eu via,
— Esse bem lograva — ,
A vida estimava.
Pois então vivia.
Porque vos servia.
Só para vos ver.
Já que vos não vejo.
Para que é viver ?
Vivo sem razSo,
Porque em minha dor
Não a pôs Amor,
Que inimigos são.
(i) Parcce-mc que sotiiv.u .iiiti.ic-no o tc»i.. u^>i<. verso. Seja-ine
permittido propor esta correcção :
Iguai flor, que dê cheiro a toda a serra.
68
Mui grande traição
Me obriga a fazer :
Que viva, senhora,
Sem vos poder ver !
Não me atrevo já,
Minha tão querida,
A chamar-vos vida.
Porque a tenho má.
Ninguém cuidará
Que isto pôde ser :
Sendo-me vós vida,
Não poder viver !
Mote
Da alma e de quanto tiver
Quero que me despojeis,
Com tanto que me deixeis
Os olhos, para vos ver.
Volta
Cousa este corpo não tem,
Que já não tenhais rendida.
Despois de tirar-lhe a vida,
Tirai-lhe a morte também.
Se mais tenho que perder.
Mais quero que me leveis,
Com tanto que me deixeis
Os olhos, para vos ver.
Mote
Que veré que me contente ?
Glosa
Desque una vez yo mire,
Senora, vuestra beldad,
Jamas por mi voluntad
Los ojos de vos quite.
69
Pues sin vos placer no siente
Mi vida, ni lo desea,
Si no quereis que yo os vea,
Que veré que me contente ?
E não se tratava, de mais a mais, de uma ordem injusta,
de uma imposição tyrannica ?
De uma fonte se sabia,
Da qual certo se provava
Que quem sobre ella jurava,
Se falsidade dizia,
Dos olhos logo cegava.
Vós, que minha liberdade,
Senhora, tyrannizais,
Injustamente mandais.
Quando vos fallo verdade.
Que vos não possa ver mais I
(Carta a uma damal.
Não é, pois, de admirar que o poeta, apesar do que se
tinha passado, procurasse tornar a ver a infanta:
Mote
Vida da minha alma.
Volta
Deus tormentos vejo.
Grandes por extremo :
Se vos vejo, temo,
E se não, desejo.
Quando me despejo
E venho a escolher,
Temendo o desejo,
Desejo temer.
70
Foi, porisso, necessário avisá-lo novamente, dando-lhe um
formal desengano, expondo-lhe os perigos que a sua teimosa
leviandade lhe poderia acarretar e fazendo-lhè sentir o pro-
fundo desgosto da infanta. Elle, porém, a nada se movia.
Se com desprezos, nympha, te parece
Que podes desviar do seu cuidado
Um coração constante, que se ofFrece
A ter por gloria o ser atormentado :
Deixa a tua porfia e reconhece
Que mal sabes de amor desenganado.
Pois não sentes nem ves que em teu mal cresce,
Crescendo em mi, de ti mais desamado.
O esquivo desamor, com que me tratas.
Converte em piedade, se não queres
Que cresça o meu querer e o teu desgosto.
Vencer-me com cruezas nunca esperes :
Bem me podes matar e bem me matas.
Mas sempre ha de viver meu presupposto !
(Soneto 124).
Se tanta pena tenho merecida.
Em pago de soffrer tantas durezas,
Provai, senhora, em mi vossas cruezas.
Que aqui tendes uma alma oíFerecida.
Nella experimentai, se sois servida,
Desprezos, desfavores e asperezas,
Que mores soíTrimentos e firmezas
Sustentarei na guerra desta vida.
Mas contra vossos olhos quaes serão ?
É preciso que tudo se lhes renda ;
Mas porei por escudo o coração.
Porque, em tão dura e áspera contenda,
É bem que, pois não acho defensão,
Com metter-me nas lanças me defenda.
(Soneto 33).
Uma vez ou outra, a desesperança apoderava-se do animo
do renitente poeta:
71
Apollo e as nove musas, descantando,
Com a dourada lyra me influíam
Na suave harmonia que faziam.
Quando tomei a penna, começando :
Ditoso seja o dia e hora, quando
Tão delicíftlos olhos me feriam ;
Ditosos os sentidos, que sentiam
Estar-se cm seu desejo traspassando.
Assi cantava, quando Amor virou
A roda á esperança, que corria
Tão ligeira, que quasi era invisibil.
Gonverteu-se-me em noite o claro dia,
E, se alguma esperança me ficou,
Será de maior mal, se for possibil.
(Soneto 5i).
Mas é bem certo que não ha peor cego do que quem não
quer ver:
Bem sei. Amor, que é certo o que receio,
Mas tu, porque com isso mais te apuras.
De manhoso mo negas e mo juras
Nesse teu arco de ouro, e eu te creio.
A mão tenho mettida no meu seio,
E não vejo os meus danos ás escuras ;
Porém porfias tanto e me asseguras,
Que me digo que minto e que me enleio.
Nem somente consinto neste engano,
Mas inda to agradeço, e a mi me nego
Tudo o que vejo e sinto de meu dano.
Oh poderoso mal, a que me entrego !
Que, no meio do justo desengano.
Me possa inda cegar um moço cego !
(Soneto 79).
E, cego pelo moço cego, praticava desatinos, de que depois
pedia perdão, mas que, por certo, não tardariam a compro-
meiter a infanta, se não se lhes pusesse cobro.
72
Senhora já desta alma, perdoai
De um vencido de Amor os desatinos,
E sejam vossos olhos tão beninos
Com este puro amor, que da alma sai.
A minha pura fé somente olhai,
E vede meus extremos, se são íinos,
E, se de alguma pena forem dinos.
Em mim, senhora minha, vos vingai.
Não seja a dor que abrasa o triste peito
Causa por onde pene o coração.
Que tanto em firme amor vos é sujeito.
Guardai-vos do que alguns, dama, dirão :
Que, sendo raro em tudo vosso objeito.
Possa morar em vós ingratidão.
(Soneto 278).
Vinham então as promessas de que ninguém o veria ver a
infanta ;
Mote*
Pois dano me faz olhar-vos.
Não quero, por não perder-vos.
Que ninguém me veja ver-vos.
Voltas
De ver-vos a não vos ver,
Ha dous extremos mortais.
E são elles em si tais.
Que um por um me faz morrer.
Mas antes quero escolher
Que possa viver sem ver-vos,
Minha alma, por não perder-vos.
Deste tamanho perigo
Que remédio posso ter,
Se vivo só com vos ver,
Se vos não vejo, perigo ?
Mas quero acabar comigo
Que ninguém me veja ver-vos,
Senhora, por não perder-vos.
Vinham então as apaixonadas supplicas para que a infanta
se não esquecesse do seu iriste coração, para que lhe pou-
passe a vida :
Mote
Pois é mais vosso que meu,
Senhora, meu coração,
Eu vosso captivo são,
Meus olhos, lembre-vos eu.
Volta
Lembre-vos minha tristeza,
Que jamais nunca me deixa ;
Lembre-vos com quanta queixa
Se queixa minha firmeza.
Lembre-vos que não é meu
Este triste coração ;
E pois ha tanta razão.
Meus olhos, lembre-vos eu.
Mote
Senhora, pois minha vida
Tendes em vosso poder.
Por serdes delia servida,
Não queirais que destruída
Possa ser.
Volta
Isto, nSo por me pesar
De morrer, se vós quiserdes ;
Que melhor me é acabar
Mil vezes, que supportar
Os males que me fizerdes :
74
Mas só por serdes servida
De mi, emquanto viver,
— Vos peço que minha vida
Não queirais que destruida
Possa ser.
Mas, se a infanta se conservava inexoravelmente surda ás
supplicas do enamorado poeta, este é que também se declarou
firmemente resolvido antes a tudo softVer, do que a deixar
de vê-la e amá-la :
Quando se vir com agua o fogo arder,
Juntar-se ao claro dia a noite escura,
E a terra coliocada lá na altura,
Em que se vêem os ceos, prevalecer ;
Quando Amor á razão obedecer,
E em todos for igual uma ventura :
Deixarei eu de ver tal formosura
E de a amar deixarei, depois de a ver.
Porém, não sendo vista esta mudança
No mundo, porque, emíim, não pode ver-se,
Ninguém mudar-me queira de querer-vos.
Que basta estar em vós minha esperança
E o ganhar-se a minha alma ou o perder-se.
Para dos olhos meus nunca perder-vos.
(Soneto 145).
Se pena, por amar-vos, se merece.
Quem delia estará livre ? quem isento ?
E que alma, que razão, que intendimento.
No instante em que vos vê, não obedece ?
Qual mór gloria na vida já se oífrece,
Que a de occupar-se em vós o pensamento ?
Não só todo rigor, todo tormento.
Com ver-vos, não magoa, mas se esquece,
Porém, se heis de matar a quem, amando,
Ser vosso de amor tanto só pretende, •
O mundo matareis, que é todo vosso.
Em mi podeis, senhora, ir começando,
Pois bem claro se mostra e bem se intende
Amar-vos quanto devo e quanto posso.
(Soneto 82).
Ameaçado com o exilio, Camões respondia altivamente:
Nem o tremendo estrépito da guerra,
Com armas, com incêndios espantosos,
Que despacham pelouros perigosos,
Bastantes a abalar uma alta serra.
Podem pôr medo a quem nenhum encerra,
Despois que viu os olhos tão formosos.
Por quem o horror, nos casos pavorosos,
De mi todo se aparta e se desterra.
A vida posso ao fogo e ferro dar
E perdê-la em qualquer duro perigo
E nelle, como phenix, renovar.
Não pôde mal haver para comigo.
De que eu já me não possa bem livrar, .
Senão do que me ordena Amor imigo.
(Soneto 210).
Não havia remédio. O poeta recebeu ordem de sair de
Lisboa para o Ribatejo e para aí se encaminhou, levando na
alma a sua bem-amada, a sua alma, ou antes indo sem a
alma, que ficava em poder daquella:
Mote [aiiicwj
Sem vós e com meu cuidado :
Olhai com quem c sem quem !
(iloSJ
Vendo Amor que, com vos ver,
Mais levemente soflria
Os males que me fazia,
N5o me pôde isto soflfrer.
7<J
Gonjurou-se com meu fado,
Um novo, mal me ordenou :
Ambos me levam forçado
Não sei onde, poisque vou
Sem vós e com meu cuidado.
Não sei qual é mais estranho,
Destes dous males que sigo :
Se não vos ver, se comigo
Levar imigo tamanho.
O que fica e o que vem,
Um me mata, outro desejo.
Com tal mal e sem tal bem.
Em tais extremos me vejo.
Olhai com quem e sem quem !
Outra glosa ao mesmo mote
Amor, cuja providencia,
Foi sempre que não errasse.
Porque na alma vos levasse.
Respeitando o mal da ausência.
Quis que em vós me transformasse.
E vendo-me ir maltratado,
Eu e meu cuidado, sós.
Proveu nisso, de attentado.
Por não me ausentar de vós.
Sem vós e com meu cuidado.
Mas esta alma, que eu trazia.
Porque vós nella morais,
Deixa-me cego e sem guia.
Que ha por melhor companhia.
Ficar onde vós ficais.
Assi me vou de meu bem.
Onde quer a forte estrella,
Sem alma, que em si vos tem,
Co mal de viver sem ella :
Olhai com quem e sem quem !
77
Mote
Ferro, fogo, frio e calma,
Todo o mundo acabarão :
Mas nunca vos tirarão,
Alma minha, da minha alma !
Volta
Não vos guardei, quando vinha,
Em torre, força (i) ou engenho.
Que mais guardada vos tenho
Em vós, que sois alma minha.
Alli nem frio nem calma
Não podem ter jurdição ;
Na vida sim, porém não
Em vós, que tenho por alma.
Quando foi o poeta forçado a sair de Lisboa ?
A respeito da estação do anno, não pôde haver duvida
foi na primavera.
Mote (alheio)
Campos benvaventurados,
Tomai-vos agora tristes.
Que os dias em que me vistes,
Alegres, já são passados.
Glosa
Campos cheios de prazer,
Vós que estais reverdecendo.
Já me alegrei com vos ver ;
Agora venho a temer
Que entristeçais em me vendo.
(i) Deverá ler-sc /^r<iffl J'
78
E pois a vi^ta alegrais
Dos olhos desesperados,
Não quero que me vejais,
Para que sempre sejais
Campos bemaventurados.
Porém, se por accidente
Vos pesar de meu tormento.
Sabereis que Amor consente
Que tudo me descontente,
Senão descontentamento.
Porisso vós, arvoredos,
Que já nos meus olhos vistes
Mais alegria, que medos.
Se mos quereis fazer ledos,
Tornai-vos agora tristes.
Já me vistes ledo ser,
Mas despois que o falso Amor
Tão triste' me fez viver,
Ledos folgo de vos ver.
Porque me dobreis a dor.
E se este gosto sobejo
De minha dor me sentistes.
Julgai quanto mais desejo
As horas que vos não vejo,
Que os dias em que me vistes.
O tempo, que é desigual.
De seccos, verdes vos tem.
Porque em vosso natural
Se muda o mal para o bem.
Mas o meu para mór mal.
Se perguntais, verdes prados.
Pelos tempos differentes.
Que de Amor me foram dados.
Tristes, aqui são presentes.
Alegres, já são passados.
(Redondilhas).
79
Alegres campos, verdes arvoredos,
Claras e frescas aguas de crystal.
Que em vós os debuxais ao natural,
Discorrendo da altura dos rochedos ;
Silvestres montes, ásperos penedos,
Compostos de concerto desigual :
Sabei que, sem licença de meu mal,
Já não podei» fazer meus olhos ledos.
E pois já me não vedes como vistes.
Não me alegrem verduras deleitosas,
Nem aguas que correndo alegres vem.
Semearei em vós lembranças tristes,
Regar-vos-ei com lagrimas saudosas,
E nascerão saudades de meu bem.
(Soneto 40).
Em que anno, porém, se passaria isto? Temos, me pa-
rece, uma indicação valiosa nas seguintes redondilhas:
Mote
De atormentado e perdido,
Já vos não peço senão
Que tenhais no coração
O que tendes no vestido.
• Volta
Se de dó vestida andais
Por quem já vida não tem,
Porque não o haveis de quem
Vós tantas vezes matais ?
Que brado, sem ser ouvido,
E nunca vejo senSo
Cruezas no coraçfio,
E grande dó no vestido.
Aiormentado e perdido, isto é, vendo já deante de st o
exilio, o poeta pede á infanta que tenha por elle o dó que
traz no vestido.
8o
Ora pouco depois do começo da primavera de 1647 ^o^^ou
a filha de D. Manuel luto rigoroso pelo padrasto, Francisco I,
fallecido em 3i de março desse anno.
Se é fundada a conjectura que acima apresentei acerca do
anno em que o poeta começou di pòr o pensamento na infanta
(1546), teria assim durado uns doze meses o periodo que aca-
bamos de percorrer.
E devo accrescentar que, se o minimo não pôde deixar de
ser um anno, — de primavera a primavera — , também difficil-
mente a pretenção do poeta se poderia ter prolongado por
mais tempo, sem ser necessário pôr-lhe cobro.
Antes de acompanharmos Camões no seu amargurado
exilio, cumpre fazer referencia a alguns factos anteriores,
de que elle nos dá noticia.
Seja o primeiro uma ausência da formosa infanta, que
motivou, entre outras poesias, estes três sonetos, tão bellos,
tão repassados de amorosa saudade:
Ondados fios de ouro reluzente,
Que agora da mão bella recolhidos,
Agora sobre as rosas esparzidos,
Fazeis que sua graça se accrescente :
Olhos, que vos moveis tão docemente,
Em mil divinos raios incendidos :
Se de oá me levais a alma e os sentidos,
Que fora, se eu de vós não fora ausente ?
Honesto riso, que entre a mór fineza
De perlas e corais nasce e apparece.
Oh! quem seus doces ecos já lhe ouvisse !
Se, imaginando só tanta belleza (i).
De si, com nova gloria, a alma se esquece,
Que será quando a vir ? Ah quem a visse 1
(Soneto 84).
(1) Brantôme, que era intendido no assumpto, dá-nos também teste-
munho da formosura da infanta, em uma pagina das Dames galantes,
que vale a pena transcrever na integra. Paliando de senhoras que não
Do estan lo^ claros ojos, que, colgada,
Mi alma trás de si Uevar solian ?
Do estan las dos mexillas, que vencian
La rosa, quando está mas colorada ?
quiseram casar, diz o celebre cortesão e aventureiro francês : «Jay veu
rinfante de Portugal, filie de la feu reyne -/^^leonor, en mesme resolu-
tion ; et est morte filie et vierge en Taage de soixante ans ou plus. Ce
n'est pas faute de grandeur, car eirestoit grande en tout ; ny par faute
de biens, car elle en avoit force, et mesme en France, ou M. le general
Gourgues a bien fait ses affaires ; ny pour faute de dons de naturc, car
je Tay veue à Lysbonne, en Taage de quarante-cinq ans, une tres-belle
et agreable filie, de bonne grace et belle aparance, douce, agreable, et
qui meritoit bien un mary pareil à elle en tout, courtoise, et mesmes à
nous autres François. Je le peux dire pour avoir eu cest honneur d'avoir
parle à elle souvant et privement. Feu M. le grand prieur de Lorraine,
lorsqu'il mena ses galleres du Levant en Ponant pour aller en Escosse,
du temps du petit roy François, passant et sejournant à Lysbonne quel-
ques jours, la visita et veid tous les jours. Elle le receut fort courtoise-
ment et se pleust fort en sa compaignie, et lui fit tout plein de beaux
presens. Entre autres, luy bailia une chaisne pour pendre sa croix, toute
de diamans et rubisj et perles grosses, proprement et richement elabou-
rée ; et pouvoit bien valloir de quatre à cixiq milKescus, et luy faisoit
trois tours. Je croy qu'elle pouvoit bien valloir cela, car il Tengageoil
tousjours pour trois milPescus, ainsi qu'il fit une fois à Londres, lorsque
nous tournions d'Escosse ; mais aussitost estant en France il Tenvoya
desengager, car il Taymoit pour Tamour de la dame de laquelle il estoit
encaprissé et fort pris. Et croy qu*elle ne Taymoit point moins, et que
voluntiers elPeust rompu son neud virginal pour luy ; cela s'apelle par
mariage, car c'estoit une tres-sage et veriueuse princesse. Et si diray
bien plus, que, sans les premiers troubles qui commençarent en FrancC)
ou messieurs ses freres Tattiroient, et Ty tcnoieni, il voulut luy-mesmes
retourner ses galleres et reprendre mesme routtc, et revoir ceste prin-
cesse et lui parler de nopces ; et croy qu'íl n'y fust point este escon-
duict, car il estoit d'aussi bonne maison qu*elle, et extraict de grands
roys comm'elle, et surtout Tun des beaux, des agreables, des honnestes
et des meilleurs prínces de la chresticnté. Messieurs ses freres, principaU
cment les deux aisnez, car ilz cstoicnt les oracles de tous et conduísoient
6 R. 3394
8-2
Do está la roxa boca, y adornada
Con dientes, que de nieve parecian ?
Los cabellos, que el oro escurecian,
Do estan, y aquella mano delicada ?
O toda linda! Do estarás agora,
Que no te puedo ver, y el gran deseo
De verte me da muerte cada hora !
la barque, je vis un jour qu'il leur en parloit, leur racontant de son
voyage et les plaisirs qu'il avoit receuz là, et les faveurs : ilz vouloient
fort qu'il reffist encor le voyage et y retournast encor ; et luy conseil-
loient de donner là, car le pape en eust aussitost donné la dispense de
la croix ; et, sans ces mauditz troubles, il y alloit et en fust sorty (à mon
advis), à son honneur et contentement. Ladite princesse Taymoit fort,
et m'en parla en três boné part, et le regreta fort, m'interrogeant de sa
mort, et comme esprise, ainsi qu'il est aisé, en telles choses, à un homme
un peu clairvoyant le cognoistre» (Edição de E. Flammarion, Paris, p.
435-436). O grão-prior de Lorena era Francisco de Guise, professo na
ordem de Malta e irmão do celebre segundo duque de Guise e do car-
dial de Lorena. O petit roy François é Francisco 2.°, que subiu ao throno
em julho de i559 e falleceu em dezembro de i56o. Brantôme, que não se
enganou muito a respeito da idade que tinha a infanta, esteve em Lisboa
de 1564 para i565. Apesar cje já não ser viva a rainha D. Leonor, compre-
hende-se o interesse com que a enteada de Francisco i.° ouviria o cele-
bre fidalgo francês. Creado na corte de Margarida de Valois, filho, neto,
sobrinho e irmão de empregados superiores da casa real, gentil-homem
da camará de Carlos g."*, ninguém melhor do que elle podia informar a
infanta a respeito de pessoas que tanto interesse lhe deviam despertar.
Pois se elle até sabia que a rainha D. Leonor, «estant deshabillée, pa-
roissoit du corps une geante, tant elle Tavoit long et grand ; mais, tirant
en bas, elle paroissoit une naine, tant elle avoit les cuisses et jambas
courtes avec le reste» ! {Dames galantes, ediç. cit., pag. 166). E quem
lhe havia dito isto tinha sido madame de Fontaine-Chalandray, dite la
belle Torcy, aquella que, em solteira, tão ardente paixão havia inspirado
a Francisco de Moraes e que Camões trata de formosa e falsifica nym-
pha (Egloga 2.», v. 495 e segg.). Direi ainda que Brantôme recebeu de
D. Sebastião o habito de Christo. E talvez a filha da rainha D. Leonor
não fosse estranha á concessão desta mercê.
83
Mas no mirais mi grande devaneo ?
Que tenga yo en mi alma a mi senora
E diga : Donde estás, que no te veo !
(Soneto 328) (1).
De cá, donde somente o imaginar-vos
A rigorosa ausência me consente,
Sobre as asas do Amor, ousadamente,
O mal soffrido esprito vai buscar-vos;
E, se não receara de abrasar-vos
Nas chammas, que por vossa causa sente,
Lá ficara comvosco, e, vós presente,
Aprendera de vós a contentar vos.
Mas, pois que estar ausente lhe é forçado.
Por senhora, de cá, vos reconhece.
Aos pés de imagens vossas inclinado.
E pois vedes a fé que vos otfrece,
Ponde os olhos, de lá, no seu cuidado,
E dar-lhe-eis inda mais do que merece.
(Soneto 116).
Como tardava para o enamorado poeta o dia em que po-
desse tornar a ver a sua saudade!
Mote
Saudade minha.
Quando vos veria ?
Voltas
Este tempo vão,
Esta vida escassa,
Para todos passa,
Só para niim não.
( I ) Reproduzo o soneto como elle se lê no Cancioneiro de L. Franco
Corrêa (H. 114 v.), mudando apenas está em estan no v. 8. A transcripçfio
de Juromenha contém algumas inexatidões.
Os dias se vão,
Sem ver este dia,
Quando vos veria.
Vede esta mudança •
Se está bem perdida (i):
Em tão curta vida,
Tão longa esperança !
Se este bem se alcança,
Tudo soffreria,
Quando vos veria.
Saudosa dor,
Eu bem vos intendo ;
Mas não me defendo,
Porque offendo Amor.
Se fosseis maior.
Em maior valia
Vos estimaria.
Minha saudade.
Caro penhor meu,
A quem direu eu
Tamanha verdade ?
Na minha vontade,
De noite e de dia.
Sempre vos teria.
Estaria a infanta fora de Lisboa, durante alguma tempo-
rada, no periodo que decorre da primavera de 1646 até á
de i547?
Pela chronica de Francisco de Andrade sabemos que a
corte se achava em Almeirim no começo de junho de
(i) Que quer isto dizer? Teria o poeta escripto :
Vede esta ordenança
Se está bem urdida ?
85
1646 (i). E do Corpo diplomático portugue^y tomo vi, se
deduz que residiu todo o anno nesta villa ou em Santarém.
É, portanto, natural que a infanta também para alli fosse
passar, pelo menos, a estação calmosa.
E não seria esta a primeira vez que ella, depois de ter
casa á parte, acompanhasse o irmão e a tia para fora de
Lisboa. Em setembro de iS^B, por exemplo, encontravam-se
todos em Cintra (2).
Em principio de fevereiro de 1647, é certo, assistiu a in-
fanta em Almeirim ao faustuoso casamento de D. João de
Lencastre, primeiro duque de Aveiro, com D. Juliana de
Lara, irmã do quarto marquês de Villa-Real, D. Miguel de
Meneses (3).
Não me parece, porém, que fosse esta a ausência que
motivou as poesias de Camões.
Creio, em primeiro logar, que ella não foi longa. Demais,
nessa occasião já os amores de Camões deviam ter saído
da phase idyllica, em que as referidas poesias foram escri-
ptas. Accresce ainda que tafvez o poeta se achasse também
presente ao acto. A noiva, com effeito, pertencia, muito de
perto, á familia do seu amigo e protector, D. Francisco de
Noronha (4), e era natural que o pequeno D. António fosse
também a Almeirim, acompanhado do seu preceptor. Era
uma festa de familia, transformada em festa da corte (5), e
(1) Crónica de D. João III, 4." parte, cap. 11. Refere o chronista a
cerimonia com que D. João III recebeu o collar do Tosão d'ourOf que
Carlos V lhe enviou por um rei d'armas.
(2) Crónica cilada, 3.' parte, cap, 95.
(3) Sousa, Historia genealógica, xi, p. 5o e segg. Provas, vi, p. 45-67.
(4) Foi até clle que assignou, em nome e com procuração da noiva^
a escriptura do casamento, feita em Almeirim cm 1 de fevereiro de 1547.
Encontra-se esta escriptura impressa nas Provas da Historia genealó-
gica da Casa real, vi, p. 45 e segg.
(5) Vid. Historia genealógica, xi, p. 5o e segg.
86
D. Francisco de Noronha quereria, por certo, que o seu
primogénito a ella assistisse. E comprehende-se bem que o
poeta procuraria remover quaesquer obstáculos,. se os hou-
vesse, para ir com o seu discípulo e olhar por elle (i).
Supponho, por isso, que as poesias a que acabo de me referir
foram escriptas durante a estação calmosa do anno de 1546.
Outro grupo de poesias, anteriores ao exilio, é o que foi
motivado por uma doença da infanta.
Mote
Deu, senhora, por sentença
Amor que fosseis doente.
Para fazerdes á gente
Doce e formosa a doença.
Voltas
Não sabendo Amor curar,
Foi a doença fazer,
F^ormosa para se ver.
Doce para se passar.
Então, vendo a differença
Que ha de vós a toda a gente,
Mandou que fosseis doente.
Para gloria da doença.
E digo-vos de verdade
Que a saúde anda invejosa,
Por ver estar tão formosa
Em vós essa infermidade.
Não façais logo detença.
Senhora, em estar doente.
Porque adoecerá a gente
Com desejos da doença.
(i) Sobre a affluencia de gente ao casamento, veja-se a curiosa carta
do cónego Brás Luis da Mota {Provas da Historia genealógica, vi, p. 64).
8?
Que eu, por ter, formosa dama,
A doença que em vós vejo,
Vos confesso que desejo
De cair comvosco em cama.
Se consentis que me vença
Deste (i) mal, não houve gente
Da saúde tão contente,
Como eu serei da doença.
Mote
Da doença em que ora ardeis
Eu fora vossa mezinha.
Só com vós serdes a minha.
Voltas
É muito para notar
Cura tão bem acertada,
Que podereis ser curada
Somente com me curar.
Se quereis, dama, trocar.
Ambos temos a mezinha.
Eu a vossa, e vós a minha.
Olhai que não quer Amor,
Porque fiquemos iguais,
Pois meu ardor não curais.
Que se cure vosso ardor.
Eu cá sinto vossa dor ;
E se vós sentis a minha.
Daí e tomai a mezinha.
Mote
Com razão queixar-me posso.
De vós, que mal vos queixais ;
Pois, senhora, vos sangrais,
Que seja num corpo vosso (2).
(1) N80 deverá ler- se este ou essef
(a) E não na minha alma, que lú tendes.
88
Voltas
Eu, para levar a palma,
Com que ser vosso mereça,
Quero que o corpo padeça
Por vós, que delle sois alma.
Vós do corpo vos queixais ;
Eu queixar-me de vós posso,
Porque, tendo um corpo vosso.
Na minha alma vos sangrais.
E sem fazer differença
No que de mi possuís.
Pelo pouco que sentis.
Dais á minha alma doença.
Porque dous aventurais í
Oh não seja o dano nosso I
Sangre-se este corpo vosso (i),
Porque, minha alma, vivais.
E inda, se attenderdes bem.
Seguis medicina errada,
Porque, para ser sangrada,
Uma alma sangue não tem.
E pois em mi sarar posso
Males, que á minha alma dais.
Se inda outra vez vos sangrais,
Seja neste corpo vosso (2).
Tudo me leva a crer que a doença a que se refere aqui o
poeta é a mesma de que falia Fr. Miguel Pacheco, na se-
guinte passagem : «Enfermo vna vez de tercianas, con alguna
malignidad ; hallauanse los médicos con cuidado; mas nuestra
(i) O sentido mostra que deve ler-se, aqui, corpo nosso, e no verso
anterior, dano vosso. Cf. a primeira volta : quero que o meu corpo, etc.
(2) Aliás corpo nosso.
8o
Princesa, haziendo menos caso de los socorros de Hypocrates
y Galeno, acudio a buscarlos en la Reyna dei Cielo. Ordeno
a su confessor fuesse a pedirlo a la milagrosa imagen de la
Luz, que se venera en templo que dista poço de Lisboa,... y
celebrada en su iglesia la missa, se traxesse vna cantarilla de
agua, de vna admirable fuente que corre debaxo de su altar. . .
Beuio esta Princesa (la salud), porque, en el mismo punto
que tomo el agua, se despidio la calentura y cesso la enfer-
midad» (i).
Em que phase se achavam os amores do poeta, quando
escreveu os versos que ficam transcriptos?
O tom geral que nelles domina, ao mesmo tempo que in-
dica não ser considerada grave a doença da infanta, mostra
também que, para á ardente paixão do poeta, já ia tardando
o remédio:
Olhai que não quer Amor,
Porque fiquemos iguais,
Pois meu ardor não curais,
Que se c^re vosso ardor.
Camões achava-se, me parece, na phase em que tanto o
incommodava a indiíTerença da infanta. Já havia chegado ou
(i) Vida de la sereníssima infanta Do fia Maria, ú. 107 v.-!o8). Não
encontro referencia a qualquer outra doença da infanta, além destas
terçãs e da calentura lenta, de que morreu (Ibid., fl. 12Ó v.). Diz Fr. M.
Pacheco que a infanta, para que as miraculosas aguas da Luz podessem
aproveitar a todos, «compro vnas casas immcdiatas a aquel Santuário
y ordeno se diessen de valde a los que quiziesen hazer nouenas», ctc.
(R. 108). Foi talvez esta uma das razões por que a fílha de D. Manuel,
posteriormente, mandou construir e escolheu para seu jazigo a sum-
ptuosa capella-mòr da Senhora da Luz, que fica no próprio local onde
estava o antigo templo. E lá corre ainda agua de que a infanta bebeu
para se curar das terçãs. «
QO
estava próxima a occasião de perguntar a si próprio:
Se esta dor tão conhecida
Me não vêem, porque não querem,
Que farei para me crerem ?
Confirmam esta conjectura as redondilhas seguintes
Olhai que dura sentença
Foi Amor dar contra mi :
Que, porque em vós me perdi,
Em vós me busque a doença !
Claro está
Que em vós só me achará ;
Que em mi, se me vem buscar,
Não poderá mais achar
Que a forma do que foi (i) já.
Que, se em vós Amor se pôs.
Senhora, é forçado assi.
Que o mal, que me busca a mi,
Que vos faça mal a vós.
Sem mentir,
Amor me quis destruir
Por modo nunca cuidado ;
Pois ha de ser já forçado
Pesar-vos (2) de vos servir.
Mais sois tão desconhecida,
E são meus males de sorte.
Que vos ameaça a morte,
Porque me negais a vida.
Se por boa
Tal justiça se pregoa.
Quando desta sorte for.
Havei vós perdão de Amor,
Que a parte já vos perdoa.
(i) Não será preferível ler fui?
(a) Talvez lhe, referindo-se a Amor.
Mas o que mais temo, emfim,
É que, nesta differença,
Que se não torne a doença,
Se me não tornais a miro.
De verdade,
Que já vossa humanidade
De que se queixe não tem,
Pois para as almas também
Fez Amor infermidade.
Para festejar o restabelecimento da saúde da infanta, es-
creveu Camões a bella canção 19, que o visconde de Juro-
menha publicou pela primeira vez:
Porque a vossa belleza a si se vença,
Tais extremos mostrastes,
Que mais bella ficastes
Co passado rigor desta doença.
Assim, depois, a descorada rosa.
Se reverdece, fica mais formosa; •
Assim, depois do inverno e seus rigores,
Se mostra a primavera com mais flores;
Assim, depois que eclipse o sol padece,
Com mais formosos raios resplandece.
Já de vossa saúde o sol se alegra ;
E, se negro vestia,
Se veste de alegria,
E se mostra mais clara, a noute negra.
Os campos secos florcceis, senhora,
Sem flores já enferma a sua Flora (i).
Também os elementos se alegraram,
Que o vosso mal sentiram c choraram.
Alegre canta o pássaro mais rudo ;
Tudo te alegra, ou vós alegrais tudo.
(1) Este verso foi manifestamente alterado. Proponho se lêa:
Com flores já se enfeita a deusa Flora.
92
Alegrais terra e ceo co as luzes bellas
Desses olhos formosos,
Que são tão milagrosos,
Que dão flores á terra, ao ceo estrellas.
Ao Tejo, que ainda tem maior ventura,
Dais o retrato dessa formosura (i).
Que é de riquezas bem maior thesouro,
Que o levar as areias do fino ouro.
Pois tudo enriqueceis, senhora, vemos
Que sois mais rica e tendes mais extremos.
Festeja o mesmo Amor vossa ventura
E a saúde, de soberba nella (2),
Se mostra já mais bella
E se enriquece em vossa formosura.
(i) O paço de S. Clara ficava sobranceiro ao Tejo e é natural que o
terreno annexo, ajardinado ou coberto de arvores, descesse até á mar-
gem do rio.
Foi taTvez junto desta que o poeta viu a infanta, quando a foi feli-
citar pelo seu restabelecimento.
(2) Verso evidentemente errado. W. Storck propõe esta correcção :
E a saúde nella.
É claro que não satisfaz. Lembro-me de qualquer destas, embora
também oífereçam difficuldades :
Vénus, soberba e bella,
ou
Vénus, por causa delia.
Cf. o soneto 120, que também se refere á infanta:
Tornai essa brancura á alva assucena
E essa purpúrea côr ás puras rosas ;
Tornai ao sol as chammas luminosas
Dessa vista, que a roubos vos condena ;
Tornai á suavíssima sirena
Dessa voz as cadencias deleitosas ;
Tornai a graça ás Graças, que queixosas
Estão de a ter, por vós, menos serena ;
93
As Graças, coroadas de mil flores,
Vos coroam por Deusa dos Amores
E vos dão o que o vosso abril lhes (i) dera.
Que também sois das Graças Primavera.
Já que alegrais a tudo com saúde,
Tudo se alegre e ella não se mude.
Como se vê, nesta canção o poeta não allude ao seu amor
pela filha de D. Manuel. É que naturalmente foi escripta,
para ser lida ou ouvida pela illustre senhora.
Com o restabelecimento da saúde da infanta relaciona
também W. Storck o passeio no Tejo (2), que teria dado
origem ao soneto 3og da edição de Juromeínha.
Tomai á bella Vénus a belleza ;
A Minerva o saber, o engenho e a arte,
E a pureza á castissima Diana : ^
Despojai-vos de toda essa grandeza
De does — e ficareis em toda a parte
Comvosco só, que é só ser inhumana.
A propósito dos versos 5-6 citarei estas palavras de J. de Barros :
«E tanto fruito tem Vossa Alteza colhido das letras, que achando nellas
quam espiritual cousa he a musica, & quanto levanta os corações para
o Ceo, nella se exercita»). Panegírico, á mui alta e esclarecida Princesa
infanta D. Maria, cm Severim de Faria, Noticias de Portugal, ediç. de
i655, p. 329-330.
(1) W. Storck rejeita, a meu ver, com razão a emenda vos, proposta
para este logar. Diz o poeta que, se a Primavera coroa as Graças de
flores, o mesmo lhes havia feito a infanta, que por isso se pôde tam-
bém chamar a Primavera das Graças. O vosso abril lhes dera é o mesmo
que : vós, em abril lhes déreis. A referencia ao (passado) abril e os cam-
pos secos da canção confirmam, parcce-me, a conjectura de que a in-
fanta estaria doente nos fins do verão ou no outomno de 1546, depois
de ter voltado para Lisboa.
(2) Luís' de Camobns Sãmmtliche Gedichte, iv, p. 377-378. O illustre
camonista suppÒe que o passeio se realizasse numa tarde de primavera.
Mas a doença da infanta, a que se refere o poeta, deve ter sido anterior
94
Eis como elle se lê na fonte donde este indefesso camo-
nista o extraiu (i):
Em híi batel q com doce meneio (2)
o aurífero Tejo deuidia,
vi belas damas, ou melhor diria,
belas estrelas, e hu sol no meio.
As delicadas filhas de Nereo
c5 mil coisas (3) de doce armonia
ião amarrado Í4) a bela companhia
(q se eu não erro), por honrralas (5) veio.
O fermosas Nereidas, q cantando
lograis aquela vista tão serena (6)
q a vida em tantos males quer trazerme (7) :
Dizeilhe q olhe q se vai passando
o curto tempo ; e a tão longa pena
o esprito (8) he prõpto, a carne enferma (9).
Anteriores também ao exílio, mas já do tempo em que a
á primavera de 1 647, se são fundadas as conjecturas chronologicas que
já apresentei.
(i) Cumpre-me dizer que o visconde de Juromenha, se, por um lado
procurou corrigir o soneto, por outro lhe introduziu novos erros.
(2) Não deverá ler-se : que, doce em seu meneio?
(3) Juromenha emenda para vo^es. Mas talvez no original se lesse
cantos.
(4) Creio que será alegrando.
(5) Juromenha: honrála. Proponho honrá-lo, referindo-se ao sol do
verso 4.
(6) Juromenha : visão serena, o que torna o verso errado.
(7) Dr. Th. Braga e com elle Storck : tra^er-m'a.
(8) Juromenha : o tempo, ficando o verso estropiado. Storck tinha
apresentado a conjectura: o espirito está. No v. 1 1 talvez.: e que.
(9) Cancioneiro de L. Franco Corrêa (Manuscripto da Bibliotheca
Nacional).
95
infanta, ao ver o poeta, punha os olhos no chão (i), são,
creio eu, estas redondilhas :
A unias suspeitas :
Suspeitas, que me quereis ?
Que eu vos quero dar logar
Que, de certas, me mateis,
Se a causa de que nasceis (2)
Vós quisésseis confessar (3).
Que de não lhe achar desculpa (4)
A grande magua passada
Me tem a alma tão cansada,
Que, se me confessa a culpa,
Te-la-ei por desculpada.
Ora vede que perigos
Tem cercado o coração,
Que, no meio da oppressão,
A seus próprios inimigos (5)
Vai pedir a defensão !
(i) Olhos, não vos mereci
Que tenhais tal condição :
Tão liberais para o chão,
Tão irosos para mi 1
(2) Aquella que vos dá origem, a infaata.
(3) Estou convencido que deve ler-se : Vos quisesse confessar. Isto é,
quisesse declarar que sois verdadeiras, certas, A 2.* quintilha fícaria in-
comprehensivel, se na primeira se nSo fallasse na infanta.
(4) Cf. cançSo 11, 141-143:
Que desculpas comigo só buscava,
Quando o suave Amor me não sofTria
Culpa na cousa amada, e tão amada I
(5; A iniimt.i. quc o atormenta c de quem cllc quer obter a certeza
de que são fund.ivlu^ a> su.ts m.i ; cii.ts, ) .tru ficar muis iranquillo.
9<>
Que, suspeitas, eu bem sei,
Como se claro vos visse,
Que é certo o que já cuidei.
Que nunca mal suspeitei.
Que certo me não saísse.
Mas queria esta certeza
Daquella que me atormenta.
Porque, em tamanha estreiteza.
Ver que disso se contenta (i)
É descanso da tristeza.
Porque, se esta só verdade
Me confessa, limpa e nua
De cautela e falsidade,
Não pode a minha vontade
Desconforme ser da sua.
Por segredo namorado
É certo estar conhecido
Que o mal de ser engeitado
Mais atormenta, sabido.
Mil vezes, que suspeitado.
Mas eu só, cm quem se ordena
Novo modo de querella,
De medo da dor pequena
Venho a achar na maior pena
Refrigério para ella (2).
(i) Ver que é vontade da infanta dar origem a suspeitas, que são
certas, isto é, saber que ella ama realmente outrem.
(2) O poeta,
salteado
Das lembranças de temer
Ser por outrem desamado,
como diz na caria a imia dama, v. 193-195, deseja antes um desengano
97
Já nas iras me inflammei,
Nas vinganças, nos furores,
Que já, doudo, imaginei ;
E já, mais doudo, jurei
De arrancar da alma os amores.
Já determinei mudar-me
Para outra parte, com ira.
Despois vim a concertar-me
Que era bom certificar-me
No que mostrava a mentira (i).
Mas, despois já de cansadas
As fúrias do imaginar.
Vinha emfim a rebentar
Em lagrimas magoadas
E bem para magoar.
embora este seja mais doloroso do que as suspeitas. É porque
Estas suspeitas tão frias.
Com que o pensamento sonha.
São assi como as harpias.
Que as mais doces iguarias
Vão converter em peçonha.
(Carta cit., 196-290).
(1) Assentei em ter como certo o amor da infanta, sabendo muito
bem que ella me não ama. Cf o soneto 79, já anteriormente transcripio:
Bem sei, Amor, que é certo o que receio.
Porém porfias tanto c me assei;urn ,
Que me digo que minto. .
Nem somente consinto ncsic engano,
Mas inda to agradeço, c a mi me nego
Tudo o que vejo e sinto de meu dano.
98 ■
E, deixando-se vencer
Os meus fingidos enganos
De tão claros desenganos (i),
Não posso menos fazer
Que cont^ntar-me cos danos,
E pedir que me tirassem
Este mal de suspeitar,
Que me veio atormentar,
Inda que me confessassem
Quanto me pôde matar.
Olhai bem se me trazeis.
Senhora, posto no' fim.
Pois, neste estado a que vim,
Para que vós confesseis,
Se dão os tratos a mim.
Mas, para que tudo possa
Amor, que tudo encaminha,
Tal justiça lhe convinha.
Porque da culpa, que é vossa.
Venha a ser a morte minha.
Justiça tão mal olhada,
Olhai com que cor se doura.
Que quero (2), ao fim da jornada.
Que vós sejais confessada.
Para que eu seja o que moura !
Pois confessai-vos já agora,
Inda que tenho temor
Que, nem nesta ultima hora.
Me ha de perdoar Amor
Vossos peccados, senhora.
(i) Bem me queria enganar a mim mesmo; mas os enganos que eu
finjo, têm de ceder perante desenganos tão claros. Assim, não ha remé-
dio senão soífrer e pedir que me confessem a verdade, embora esta me
possa causar a morte.
(2) Parece-me que deve ler-sc : quer.
99
E assi vou desesperado,
Porque estes são os costumes
Do amor, que.é mal empregado;
Do qual vou já condemnado
Ao inferno dos ciúmes.
Se o tresloucado poeta, quando se achava ainda na phase '
idyllica, não podia soífrer que a infanta a ninguém tratasse
com desamor, antes a todos tivesse affèição e mostrasse um
coroação cheio de mansidão, cheio de amor, e pedia á formosa
e amável senhora que, para o distinguir dos outros, o tratasse
com desfavor e lhe mostrasse um ódio esquivo (i), que impres-
são lhe não devia causar a mesma norma de proceder, agora
que elle era realmente tratado pela forma como, por des-
peito, havia sollicitado (2) ?
Daqui a suspeitar o poeta
Ser por outrem desamado,
daqui a suppôr que o desagrado que a infanta lhe mostrava
tinha por motivo a preferencia dada a outrem, — muito pouco
ia (3). Não era preciso para isso possuir uma imaginação
tão ardente como a de Camões.
(1) Soneto 3o9, já reproduzido.
(2) Em versos, é claro, que não eram destinados a ser lidos pela in-
fanta, mas que traduziam fielmente o pensar intimo do poeta.
(3) Sobre a lenda que fez de Jorge da Silva, terceiro filho do quarto
regedor das justiças, João da Silva, um apaixonado adorador da infanta,
por causa da qual teria estado preso no Limoeiro, veja-se o que diz a
Sr.» D. Carolina Michaclis {A Infanta D. Maria, p. 69 e segg.). «Quanto
á nossa Infanta (observa também a illustrc escriptora), é natural que
nova, bella, cheia de espirito e amável, exercesse também certa seducção
mundana sobre os moços-fidalgos da corte. Um sorriso benévolo, um
lampejo de luz nos olhos geralmente serenos, uma sunve commoçno na
voz bem timbrada, ao pronunciar palavras de agradecimento, seriam de
100
II
No Ribatejo
Ao ver-se obrigado a sair de Lisboa, Camões nota, não
sem estranheza, que o duro desfavor, que o condena a apar-
tar-se da sua tão querida, lhe tem os sentidos por tal forma
embotados, que a dor da ausência é mais pequena do que
devia ser. Vai, porém, reagir: essa dor ha de soífrê-la bem
intensamente. Como é possível, com efíeito, que o não faça
morrer o ter de afastar-se d'aquillo que mais quer? Mas, ainda
mais do que a morte, lhe custaria não lhe ser bem doloroso
o inevitável apartamento.
Quando vejo que meu destino ordena
Que, por me exprimentar, de vós me aparte,
Deixando de meu bem tão grande parte,
Que a mesma culpa fica grave pena (i),
longe em longe a recompensa de acções nobres.. . ou de versos subli-
mes, escriptos em sua honra. . . Galanteios exagerados não podiam, po-
rém, ser do seu agrado. Uma grande reserva, seu justo orgulho de filha
e irmã de reis protegiam-a, como couraça impenetrável, contra a paixão
dos outros e os impulsos do próprio coração» (Ibid., p. yS). Confirma
estas palavras tudo o que se passou com Camões,
(i) Presumo que o poeta escreveu :
Deixando de meu ser tão grande parte.
Que á culpa não fica grave pena.
Emquanto ao sentido do primeiro verso, veja-se, por exemplo, a can-
ção II, V. ioi-io3, e a 2.' glosa ao mote Sem vós e com meu cuidado.
E se o poeta leva comsigo apenas uma pequena parte do seu ser, a pena
do desterro, imposta á sua culpa, não fica sendo grave pena, pois a ella
escapa a grande parte que fica. Não quer, porém, isto dizer que não seja
b^m grande a dor da parte que se ausenta.
lOl
o duro desfavor que me condena.
Quando por a memoria se reparte (i),
Endurece os sentidos de tal arte,
Que a dor da ausência fica mais pequena.
Mas como pode ser que na mudança
Daquillo que mais quero, este tão fora
De me não apartar também da vida ?
Eu refrearei tão áspera esquivança,
Porque mais sentirei partir, senhora,
Sem sentir muito a pena da partida.
(Soneto 55).
Ainda outro soneto, cscripto também pelo apaixonado poeta
na occasião da ida para o exilio (2):
Se alguma hora em vós a piedade
De tão longo tormento se sentira,
Não consentira Amor que me partira
De vossos olhos, minha Saudade !
Aparto-me de vós, mas a vontade,
Que na alma pelo natural vos tira,
Me faz crer que esta ausência que é mentira ;
Mas inda mal, porém, porque é verdade.
(1) Quando se me apodera de todas as potencias da alma. Está a
parte pelo todo.
(2) Reproduzo este soneto tal como se encontra no Cancioneiro de
Luís Franco Corrêa, íl. 129, v., mudando apenas, no penúltimo verso,
achara em achará, e modificando, em porte, a orthographia. Na 1.' edi-
ção das Rythmas (i5o5) encontram-se algumas variantes dignas de nota :
verso 5.% Apartei-me ; v. 7, esta ausência é de mentira ;s. 12, i? assi darei
vida; V. 14, sepultado no. Em Faria e Sousa as variantes são ainda mais
numerosas. Verso 1 .• : Se somente hora alguma em vós piedade, V. 3 :
Amor soffrera mal que eu. .. V. 5 : Apartei-me. V. 6 : Que por o natural
na alma ... V. 7 : esta ausência é de mentira. V. 8 : Porém venho a pro-
var que é de verdade. V. 12: Desta arte darei vida. V. 14; Sepultado
no. Faria c Sousa remodelou o soneto ou reproduziu variantes que já
encontrou ?
102
Ir-me-ei, senhora, e neste apartamento
Tomarão tristes lagrimas vingança
Nos olhos de quem fostes mantimento.
Assim darei a vida (i) a meu tormento,
Que emfim cá me achará minha lembrança
Já sepultado em vosso esquecimento.
O estado d'alma do poeta, durante os primeiros tempos
do cxilio, acha-se reproduzido na egloga 2.*.
Saudades da infanta, queixumes contra a crueza que ella
havia mostrado, desesperança, triste?a, profundo abati-
mento, mas, ao mesmo tempo, o propósito de não deixar,
por cousa nenhuma, o seu cuidado tão ditoso — eis os tópicos
do bcllo poemeto (2).
Figurando-se á beira do Tejo, num valle triste, em noite
escura, Camões (Almeno) lastima assim a sua sorte:
Corre, suave e brando.
Com tuas claras aguas.
Saídas de meus olhos, doce Tejo,
Fé de meus males dando,
Para que minhas maguas
( 1 ) Darei a vida, isto é, entregarei, sacrificarei a vida, ou darei vida,
farei viver? No primeiro caso occorre ler acharão (v, i3) e Sepultada no
(v. 14).
(2) Baseado nos versos 7-10:
No derr^adeiro fio
O tinha a esperança.
Que com doces enganos
Lhe sustentara a vida tantos annos,
observa P'aria e Sousa : «Escribió el Poeta esta Egloga en mayor edad;
ni pudo ser menos, porque ella no es de quilates bailados en verdores».
{Rimas varias de Lui^ de Camões, iv, 2.* parte, 202). Qualquer, porém,
que seja a explicação que deva dar-se ao tantos annos, não pôde haver
duvida que a egloga foi escripta no Ribatejo, quando o poeta foi obri-
gado a sair de Lisboa para alli, por causa da infanta.
o3
Sejam castigo igual de meu desejo,
Que pois em mim não vejo
Remédio nem o espero,
E a morte se despreza
De me matar, deixando-me á crueza
Daquella por quem meu tormento quero.
E insistindo na idéa expressa nestas ultimas palavras, diz
pouco depois:
Não cesse meu tormento
De fazer seu officio.
Pois aqui tem uma alma ao jugo atada ;
Nem falte o soffrimcnto,
Porque parece vicio
Para tão doce mal faltar-me nada.
Não pódc, porem, deixar de extranhar que a sua bcm-
amada procedesse com tanta crueza:
Oh nympha delicada,
Honra da natureza !
Como pôde isto ser.
Que de tão peregrino parecer
Pudesse proceder tanta crueza ?
Como é que de uma causa dwinal pôde provir um effèito
contrario? Como se explica tanta pena, motivada por tal
causa ?
Nio vem de nenhum geito
De causa divinal contrario effeito.
Pois como pena tanta
É contra a causa delia í
Ha aqui alguma cousa que se não pódc explicar pelas leis
da natureza:
Fora do natural é minha tristeza.
104
Não é, porém, só nisto que com a infanta são contrariadas
essas leis:
Mas a mi que me espanta ?
Não basta, ó nympha bella,
Que podes perverter a natureza (i) ?
Não é a gentileza
De teu gesto celeste
Fora do natural ?
Não pôde a natureza fazer tal.
Tu mesma, ó bella nympha, te fizeste.
Mas, por mais que o poeta busque desculpas, pois que o
suape Amor lhe não soífre
Culpa na cousa aniada e tão amada,
(Canção ii)
surge no seu espirito a inevitável pergunta:
Porém, porque tomaste
Tão dura condição, se te fizeste ?
(i) Vid., por exemplo, as três canções Manda-me Amor que cante.
Referindo-se ao deslumbramento que lhe causou a apparição da infanta,
quando lhe foi apresentado, diz o poeta na terceira das referidas canções :
Os passarinhos, com a luz presente
Pasmados, uns aos outros se diziam :
— Que luz é esta ? que nova claridade ?
As fontes, inflammadas de beldade,
Detinham a sua agua, doce e pura.
Florecia a verdura
Que, andando, cos divinos pés pisava.
Todo o ramo abaixar-se
Senti no bosque, e mais verde tornar-se.
Amansavam-se os ventos
Ao som dos suaves seus accentos.
inr
E o magoado poeta prosegue :
Por ti o alegr« prado
Me é penoso e duro ;
Abrolhos me parecem suas flores.
Por ti do manso gado,
Como de mi, não curo,
Por não fazer offensa a teus amores.
Os jogos dos pastores,
As lutas entre a rama,
Nada me faz contente ;
E sou já do que fui tão diíferente,
Que, quando por meu nome alguém me chama.
Pasmo, porque conheço
Que inda comigo próprio me pareço.
Ainda se ao menos a sua tão querida lhe ouvisse os quei-
.\umes !
Se aí no mundo houvesse
Ouvires-me algum'hora,
Assentados na praia deste rio,
E d'arie te dissesse
O mal que passo agora.
Que pudesse mover-te o peito frio . . .
Porém o pobre poeta reconhece logo que c impossível a
realização deste desejo, que não passa d'um desvario:
Oh quanto desvario,
Que estou imaginando !
Mas se não ha outro remédio para o seu tormento, senão
entreter assim a phantasia. . .
Já agora meu tormento
Não pôde pedir mais ao pensamento
Que ettc phantaziar, donde, pcniindo,
A vida me rescrvii
Querer mais de meu mal :»cra soberba.
ob
Entretanto vinha rompendo o dia e o triste Almeno, vendo
apparecer Agrário, outro pastor, resolve pôr termos aos seus
queixumes :
Calar-me-ei somente,
Que o meu mal nem ouvir se me consente !
Como O monologo em que Agrário vinha entretido se foi
prolongando, o enamorado Almeno voltou ao seu devaneio,
que agora reveste a forma d'uma hallucinaçao:
Oh doce pensamento ! oh doce gloriai*
São estes por ventura os olhos bellos,
Que têm de meus sentidos a victoria ?
São estas, nympha, as tranças dos cabellos.
Que fazem de seu preço o ouro alheio,
Como a mi de mi mesmo, só com vê-los ?
É esta a alva coluna, o lindo esteio,
Sustentador das obras mais que humanas.
Que eu nestes braços tenho e não o creio ?
Mas a visão da bem-amada desappareceu num momento:
Ah falso pensamento, que me enganas !
Fazes-me pôr a boca onde não devo,
Com palavras de doudo, ou quasi insanas !
Como a alçar-te tão alto assi me atrevo ?
Tais asas dou-t'as eu, ou tu mas dás ?
Levas-me tu a mi, ou eu te levo ?
Não poderei eu ir onde tu vás ?
Porém, pois ir não posso onde tu fores.
Quando fores, não tornes onde estás.
Entretanto Agrário, que tem ouvido os desatinos do pobre
Almeno, vai-se approximando e fazendo, ao mesmo tempo,
varias considerações a propósito do triste siiccesso de amores
que a este aconteceu. Trava-se por fim o dialogo.
I07
Agrário
Quero fallar com este, que enredado
Nesta cegueira está, sem nenhum tento.
Acorda já, pastor desacordado.
Almeno
Oh I porque me tiraste um pensamento,*
Que agora estava aos olhos debuxando.
De quem aos meus foi doce mantimento ?
Agrário
Nesta imaginação estás gastando
O tempo e a vida, Almeno ? Perda grande !
Não ves quão mal os dias vás passando ?
Almeno
Formosos olhos, ande a gente e ande.
Que nunca vos ireis desta alma minha.
Por mais que o tempo corra, a morte o mande.
Agrário
Quem poderá cuidar que tão asinha
Se perca o curso assi do siso humano.
Que corre por direita e justa linha ?
Que sejas tão perdido por teu dano,
Almeno meu, não é por certo aviso ;
É só doudice grande, grande engano.
Almeno
Ó Agrário meu, que, vendo o doce riso
E*o rosto tão formoso, como esquivo,
p menos que perdi foi todo o siso !
A sombra deste umbroso e verde louro
Passo a vida, ora em lagrimas cansadas,
Ora em louvores dos cabellos d'ouro.
io8
Se perguntares porque são choradas,
Ou porque tanta pena me consume,
Revolvendo memorias magoadas :
Desque perdi da vida o claro lume,
E perdi a esperança e causa delia.
Não choro por razão, mas por costume.
E Almeno conta como ínvia livre e bem isento, rindo-se
das paixões que inspirava, até que por fim o Amor o castigou :
Pouco a pouco me foi de mi levando,
Dissimuladamente, ás mãos de quem
Toda esta injuria agora está vingando.
Agrário, considerando o lastimoso estado em que se en-
contra Almeno, procura induzi-lo a que ponha iwi freio a
mai tão forte:
Vejo-te estar gastando em viva fragoa
E juntamente em lagrimas, vencendo
A grã Sicilia em fogo, o Nilo em agua.
Vejo que as tuas cabras, não querendo
Gostar as verdes hervas, se emagrecem,
As tetas aos cabritos encolhendo.
Os campos, que co tempo reverdecem,
Os olhos alegrando descontentes.
Em te vendo, parece se entristecem.
De todos teus amigos e parentes.
Que lá da serra vêm por consolar-te.
Sentindo na alma a pena que tu sentes,
Se querem de teus males apartar-te.
Deixando a choça e gado, vás fugindo,
Gomo cervo ferido, a outra parte.
Não vês que Amor, as vidas consumindo,
Vive só de vontades enlevadas
No falso parecer d'um gesto lindo ?
Nem as hervas das aguas desejadas
Se fartam, nem de flores as abelhas,
Nem este Amor de lagrimas cansadas.
109
Quantas vezes, perdido entre as ovelhas,
Chorou Phebo de Daphne as esquivanças,
Regando as flores brancas e vermelhas ?
Quantas vezes as ásperas mudanças
O namorado Gallo (i) tem chorado,
De quem o tinha envolto em esperanças ?
Ora SC tu ves claro, amigo Almeno,
Que de Amor os desastres são de sorte,
Que, para matar, basta o mais pequeno.
Porque não pões um freio a mal tão forte,.
Que em estado te põe que, sendo vivo,
Já não se intende em ti vida nem morte ?
A tudo isto, porém, responde
Almeno :
Agrário, se do gesto fugitivo,
Por caso de fortuna desastrado,
Algum'hora deixar de ser captivo,
Ou sendo para as Ursas degradado,
Adonde Boreas tem o oceano
Cos frios hyperboreos congelado ;
Ou donde o filho de Climene insano.
Mudando a côr das gentes totalmente.
As terras apartou do trato humano;
Ou se já, por qualquer outro accidente,
Deixar este cuidado tão ditoso.
Por quem sou de ser triste tão contente :
Este rio, que passa deleitoso,
Tomando para trás, irá negando
A natureza o curso pressuroso ;
( I ) Francisco de Moraes, o auctor do notável romance de cavallaria,
Palmeirim de Inglaterra, que o immortal Cervantes tanto apreciava.
Veja-se no fim do tom. 3.* das Obras de Francisco de Moraes (Lisboa,
i852) a Desculpa de uns amores que tinha em Paris com uma dama fran-
cesa da rainha dona Leonor^ por nome Torsi, sendo portuguej, pela quai
fe\ a historia das damas francesas no seu Palmeirim.
I 10
As cabras por o mar irão buscando
Seu pasto, e andar-se-ão por a espessura
Das hervas os delphins apascentando.
Ora se tu ves na alma quão segura
Deste amor tenho a fé, para que insistes
Nesse conselho e pratica tão dura ?
Se de tua porfia não desistes.
Vai repastar teu gado a outra parte,
Que é dura a companhia para os tristes.
Uma só cousa quero encomendar-te.
Para repouso algum de meu engano.
Antes que o tempo emfim de mi te aparte :
Que se esta fera, que anda em traje humano,
Por a montanha vires ir vagando,
De meu despojo rica e de meu dano.
Com os vivos espritos inflammando
O ar, o monte e a serra, que comsigo
Continuamente leva namorando.
Se queres contentar-me como amigo.
Passando lhe dirás : Gentil pastora.
Não ha no mundo vicio sem castigo.
Tornada em puro mármore não fora
A fera Anaxarete, se amoroso
Mostrara o rosto angélico algum'hora (i).
Foi bem justo o castigo rigoroso,
Porém quem te ama, nympha, não queria
Nódoa tão feia em gesto tão formoso.
E Agrário, despedindo-se, promette cumprir os desejos do
seu apaixonado amigo:
Tudo farei, Almeno, e mais faria.
Por algum dia ver-te descansado,
Se se acabam trabalhos algum dia.
(i) Anaxarete (no texto de Camões, Anaxarete), de ascendência real,
desprezou o amor do modesto Iphis. Este suicidou-se por tal motivo,
mas ella foi transformada em estatua de pedra. Ovidio, Metamorphoses,
liv. 14, versos 698-760.
Como se vê, se o poeta, por um lado, manifesta bem cla-
ramente o firme propósito de nunca esquecer a infanta, por
outro lado revela também um profundo desanimo. Nas horas
de reflexão surgiam as desoladoras perguntas : Porque ponho
a boca onde não devo? Como me atrevo a alçar tão alto o
pensamento? E a par destas interrogações, vinha tambcm a
lembrança de que estava desperdiçando inutilmente o tempo
L' a vida:
Nesta imaginação estás gastando
O tempo e vida, Almeno ? Perda grande !
Não vês quão mal os dias vás passando (i)?
Neste estado de espirito escreveu também o poeta o se-
guinte soneto, extraído por Juromenha do Cancioneiro de
Franco Corrêa (fl. iScj):
Quando descansareis, olhos cansados,
Pois já não vedes quem vos dava vida,
Ou quando vereis fim e despedida
A tantas desventuras e cuidados ?
Ou quando quererão meus duros fados
Erguer minha esperança tão caída,.
Ou quando, se de todo é já perdida,
Alcançar poderei meus bens passados ?
Bem sei que hei de morrer nesta saudade,
Em que meu esperar é todo vento,
Pois nada espero ao que desejo.
E, pois tão clara vejo esta verdade,
Bem pôde vir a mim todo o tormento,
Que não me ha de espnnt.ir. nok <cm'->rc o vejo.
(i) Escreve W. Storck ( Vida dç Camões. -^ "í- -^^ Podemos presumir
que agora o Camões veio a conhecer
come sa di sale
lo pane ailrui, c com'ò duro callc
lo scendcrc e iJ salir per Tahrui scale !
(Dante, Paradiso, xvu, 58-6o).
12
E cada vez mais desanimado, cada vez mais ancioso por
ver terminar o seu exilio, escreveu Camões a bella Elegia
do desterro, que, segundo W. Storck, «excede tudo quanto
até então poetara, tanto pela pureza de suas linhas constru-
ctivas e unidade de concepção, como pelo vigor das ideas e
formosura da expressão pathetica»:
O sulmonense Ovidio, desterrado
Na aspereza do Ponto, imaginando
Ver-se de seus penates apartado,
Sua cara mulher desamparando.
Seus doces filhos, seu contentamento,
De sua pátria os olhos apartando,
Não podendo encobrir o sentimento,
Aos montes já, já aos rios se queixava
De seu escuro e triste nascimento.
O curso das estrellas contemplava
E aquella ordem com que discorria
O ceo, e o ar, e a terra adonde estava.
Os peixes por o mar nadando via,
As feras por o monte procedendo,
Gomo o seu natural lhes permittia.
De suas fontes via estar nascendo
Os saudosos rios de crystal,
A sua natureza obedecendo.
Assi só, de seu próprio natural
Apartado, se via em terra estranha,
A cuja triste dor não acha igual.
Só sua doce musa o acompanha
Nos soidosos versos que escrevia
E nos lamentos com que o campo banha.
Dest'arte me figura a phantasia
A vida com que morro, desterrado
Do bem que em outro tempo possuia.
Aqui contemplo o gosto já passado,
Que nunca passará por a memoria
De quem, o trás na mente debuxado.
Aqui vejo caduca e débil gloria
Desenganar meu erro co a mudança
Que faz a frágil vida transitória.
I !.->
Aqui me representa esta lembrança
Quão pouca culpa tenho e me entristece
Ver sem razão a pena que me alcança.
Que a pena que com causa se padece
A causa tira o sentimento delia ;
Mas muito doe a que se não merece.
Quando a roxa manhã, dourada e bella,
Abre as portas ao sol e cái o orvalho,
E torna a seus queixumes Philomela,
Este cuidado, que co sono atalho,
Em sonhos me parece, que o que a gente
Por seu descanso tem, me dá trabalho.
E despois de acordado cegamente
(Ou, por melhor dizer, desacordado.
Que pouco acordo logra um descontente),
D'aqui me vou com passo carregado
A uçi outeiro erguido, e ali me assento.
Soltando toda a rédea a meu cuidado.
Despois de farto já de meu tormento.
Estendo estes meus olhos saudosos
A parte donde tinha o pensamento.
Não vejo senão montes pedregosos
E sem graça e sem flor os campos vejo.
Que já floridos vira e graciosos.
Vejo o puro, suave e rico Tejo
Com as concavas barcas, que nadando
Vão pondo em doce eff'eito o seu desejo.
Umas com brando vento navegando.
Outras com leves remos brandamente
As crystallinas aguas apartando.
D'ali falo com a agua que não sente,
Com cujo sentimento esta alma sái
Em lagrimas desfeita claramente.
O fugitivas ondas, esperai,
Que pois me não levais em companhia,
Ao menos estas lagrimas levai.
Até que venha aqucllc alegre dia,
Que cu vá onde vós ides, livre e ledo.
Mas tanto tempo quem o passaria ?
K 3>SW
^ 1 14
Não pôde tanto bem chegar tão cedo,
Porque primeiro a vida acabará,
Que se acabe tão áspero degredo.
Mas esta triste morte que virá,
Se em tão contrario estado me acabasse,
Esta alma assi impaciente adonde irá ?
Que, se ás portas tartaricas chegasse,
Temo que tanto mal por a memoria
Nem ao passar do Lethe lhe passasse.
Que se a Tântalo e Ticio for notória
A pena com que vai e que a atormenta,
A pena que lá têm, terão por gloria.
Essa imaginação, emíim, me aumenta'
Mil maguas no sentido, porque a vida
De imaginações tristes se contenta.
Que pois de todo vive consumida.
Porque o mal que possue se resuma,
Imagina na gloria possuída.
Até que a noite eterna me consuma,
Ou veja aquelle dia desejado.
Em que a fortuna faça o que costuma.
Se nella ha hi mudar-se um triste estado.
Vê-se que o poeta, nesta elegia, só muito vagamente se
refere aos seus amores, que, além disso, considera ou quer
que sejam considerados como cousa já passada (i). O que
elle procura tornar bem patente é a desproporção entre a
sua culpa — pequena ou nenhuma — e a dura pena que está
sofírendo. O que o preoccupa é o ardente desejo de voltar
para Lisboa, é o receio de que venha a morte, antes de chegar
esse alegre dia.
(1) É o gosto f que, embora nunca haja de lhe sair da memoria, o
poeta considera como Já passado. É o erro, de que está desenganado.
É a gloria, possuída, isto é, que já possuiu. É a parte onde tinha o pen-
samento. É talvez o bem que em outro tempo possuía, se com isto não
quer alludir, por exemplo, á perda do logar que desempenhava em casa
de D. Francisco de Noronha.
ll!5
Documentando o seu pedido com esta elegia, é natural
que pessoas amigas do desolado poeta intercedessem por
elle e lhe obtivessem a necessária auctorizaçao para poder
voltar para a capital.
Pelo seu caracter e ainda por circumstancias especiaes a
que em breve me hei de referir, a grave, intelligente e bon-
dosa infanta seria a primeira a desejar que terminasse quanto
antes, e sem deixar vestigios, um incidente em que ella,
embora involuntariamente, se achava envolvida.
Quanto tempo se demorou o poeta no Ribatejo?
Vimos que o exilio começou na primavera. Ora a egloga 2.*
reporta-nos ao fim desta estação ou ao começo do estio.
Repare-se, com effeito, nestas passagens:
A noite escura dava
Repouso aos cansados
Animais, esquecidos da verdura ;
O valle triste estava
Cuns ramos carregados,
Qu'inda a noite faziam mais escura ;
Oífrecia a espessura
Um temeroso espanto.
As roucas rãs soavam
Num charco d'agua negra, e ajudavam
Do pássaro nocturno o triste canto.
Ao sonoroso pranto,
Que as aguas enfreava,
Responde o valle umbroso.
Lêa-se também esta deliciosa descripção da madrugada
Formosa manhã, clara e deleitosa,
Que, como fresca rosa na verdura,
Te mostras bella e pura, marchetando
As nymphas (i), espalhando teus cabellos
(i) NSo teria o poeta escripto : ceu e terra f
1 1<
Nos verdes montes bellos : tu só fazes,
Quando a sombra desfazes, triste e escura,
Formosa a espessura e a clara fonte,
Formoso o alto monte e o rochedo.
Formoso o arvoredo e deleitoso,
E emfim tudo formoso co teu rosto,
D'ouro e rosas composto e claridade.
Trazes a saudade ao pensamento.
Mostrando, em um momento, o roxo dia,
Com a doce harmonia nos cantares
Dos pássaros a pares, que, voando,
Seu pasto andam buscando, nos raminhos,
Para os amados ninhos, que manteem.
Oh grande e summo bem da natureza !
Estranha subtileza de pintora,
Que matiza em uma hora de mil cores
O ceu, a terra, as flores, monte e prado 1
E a elegia do desterro deve ter sido escripta no fim do
verão ou no outomno (i):
Daqui me vou, com passo carregado,
A um outeiro erguido e alli me assento.
Soltando toda a rédea a meu cuidado.
Despois de farto já de meu tormento,
Estendo estes meus olhos saudosos
Á parte donde tinha o pensamento.
Não vejo senão montes pedregosos,
E sem graça e sem flor os campos vejo,
Que já floridos vira e graciosos.
Finalmente, se é de Camões o soneto publicado por Juro-
menha, sob o numero 333 (2), o exilio ainda durava nos fins
(i) Segundo W. Storck, o poeta mandou esta elegia para Lisboa
apenas chegou ao desterro ( Vida de Camões, p. 396).
(2) «Este soneto vem em um manuscripto com este titulo : Soneto
de Lui:( de Camões a hum velho /aliando com o Tejo. Noutro manu-
scripto mais moderno em nome de Francisco Rodrigues Lobo, em outro
1 1
do outomno ou princípios do inverno;
Fermoso Tejo meu, quam differente
Te vejo e vi, me vês agora e viste I
Turvo te vejo a ti, tu a mim triste ;
Claro te vi eu já, tu a mim contente.
A ti foi-te trocando a grossa enchente,
A quem teu largo campo não resiste;
A mim trocou-me a vista, em que consiste
Meu (i) viver contente ou descontente.
Já que somos no mal participantes.
Sejamo-lo no bem. Ah quem me dera
Que fossemos em tudo semelhantes !
Lá virá então a fresca primavera ;
Tu tornarás a ser quem eras d'antes,
Eu não sei se serei quem d'antes era !
em nome de um Henrique Nunes, de Santarém, e no ultimo, em nome
de Estevão Rodrigues, porém não vem nas poesias deste auctor, que
imprimiu... Lourenço Caminha». Juromenha, Obras de Luij de Camões^
II, 496. Na hypothese de ser de Camões este soneto, Juromenha rela-
ciona-o com o 195, e diz que provavelmente foram ambos esci^iptos niT
mesma occasião. Estou, porém, convencido de que o segundo soneto é
de data muito posterior. A meu ver, foi motivado pelas intempéries do
estio de iSjo. (O poeta, como Gil Vicente, chama verão á primavera^*
no V. 5.**, se é que não escreveu inverno).
Correm turbas as aguas deste rio.
Que as rápidas enchentes enturbaram ;
Os florecidos campos se secaram ;
Intratável se fez o valle e frio.
Passou, como o verão, o ardente estio ;
Umas cousas por outras se trocaram ...
(i) Decerto O meu viver, ctc.
ii8
III
Em Ceuta
Procurando explicar a ida de Camões para Ceuta, escreve
W. Storck: «Todos os esforços próprios ou alheios para
abreviar a pena (do desterro no Ribatejo) foram baldados,
caso alguém os fizesse. E apertado pelas necessidades mate-
riaes da vida, o poeta recorreu a um expediente, que ante-
riormente sempre tinha rejeitado como contrario ás suas
inclinações : resolveu servir o deus Marte, já que a capri-
chosa e cega Fortuna não o favorecera, emquanto fora pres-
tando homenagem ao Amor e ás Musas. Havia muito que
era costume em Portugal commutar a criminosos as pena-
lidades (não somente o exilio, e o degredo para o Brasil,
mas até a pena capital) em serviços militares, pagáveis no
mar ou nas colónias. Porque havia de negar-se a Camões
uma concessão semelhante ? Podemos calcular que dirigiu a
D. João III um requerimento, supplicando-lhe decretasse
serviço militar na Africa setentrional ou, por outra, a trans-
ferencia do desterro para Ceuta. Aquellas partes da Africa
davam então sérios cuidados ao governo português: as for-
talezas careciam de gente... Por isso pedidos daquella ordem
eram bem aceites. O pleito de Camões se recommendava a
favorável decisão. Mas que triste pleito ! O cavalleiro-fidalgo,
o poeta predilecto da corte, transformado em soldado raso !
Comtudo, não havia que escolher. A decisão régia não tardou
muito. O favor foi outorgado. Luiz de Camões obteve licença
para se alistar por dous annos na guarnição de Ceuta» (i).
(i) Vida de Camões , p. 397. Em nota observa o illustre camonista:
«O facto de Camões ter estado em Ceuta, e não em outra qualquer
»9
O que, porém, julgo fora de duvida é que o poeta, depois
de ter voltado para Lisboa, com o propósito, mais ou menos
firme, de não pensar mais na infanta, viu reaccender-se a
paixão que por ella sentira (i), sendo este o motivo por que
foi degradado para Ceuta.
Comecemos pela carta, toda cheia de meias palavras, toda
cautelosa, que elie da cidade africana enviou a um amigo,
talvez João Lopes Leitão.
Depois de lhe recommendar que a não mostre a ninguém
ou, pelo menos, que supprima o nome do signatário, Camões
fortaleza portuguesa, resulta evidentemente da Elegia I nde Ceita a um
amigo* (versos 22-57). — E a outra circumstancia, de ter estado ahi
como que «exilado», está documentada pelas oitavas primeiras (epis-
tola !.•). No verso 196 (aliás 180), declara-se «em terra alheia degra-
dadon. Sobre o tempo de serviço (dous annos), a que eram adstrictos
os soldados portugueses nos Algarves d'além, veja-se» etc.
(i) Presumo hoje que foram escriptas por esta occasião algumas
poesias que já transcrevi como immediatamente anteriores ao exilio no
Ribatejo. Tal é o soneto 145, em que o poeta declara terminantemente :
Quando Amor á razão obedecer,
Deixarei eu de ver tal formosura
E de a amar deixarei, depois de a ver.
Ninguém mudar-me queira de querer-vos.
Tal é também o soneto 210, em que o poeta affirma nada recear
Nem o tremendo estrépito da guerra,
(]om armas, com incêndios espantosos,
Podem por nicuo a quem nenliuni encerra,
Despois que viu os olhos tão formosos,
Por quem o horror, nos casos pavorosos,
De mi todo se aparta e s« desterra.
20
prosegue citando estes versos de Garcilasso de la Vega, tão
acconnmodados ao estado da sua attribulada alma:
«La mar en médio y tierras, he dejado
Á cuanto bien, cuitado, yo tenia.
Cuan vano imaginar, cuan claro engano
Es darme yo á entender que, con partirme.
De mi se ha de partir un mal tamafío !»
E como elle, apesar de reconhecer que «a tristeza no
coração é como a traça no panno», só triste quer e pôde
viver !
E por tão triste me tenho.
Que, se sentisse alegria.
De triste não viveria.
Porque a tal sorte vim.
Que não vejo bem algum
Em quanto vejo.
Que não nasceu para mim.
E por não sentir nenhum,
Nenhum desejo.
E O pobre poeta, «porque cousas impossiveis, é melhor
esquecê-las que desejá-las», continua:
Só, tristeza, vos queria.
Pois minha ventura quer
Que só a (i) ella
Conheça por alegria ;
E que, se outra quiser,
Morra por ella.
Vem depois uma volta ao mote
Perdigão perdeu a penna,
Não ha mal que lhe não venha.
(i) Supponho que o a não estará aqui demais.
12
diíferente da que já fica transcripta no começo deste trabalho:
Em um mal outro começa,
Que nunca vem só nenhum ;
E o triste, que tem um,
A soífrer outro se offreça,
E, só pelo ter, conheça
Que basta um só que tenha,
Para que outro lhe venha.
E inútil aconselhá-lo a que mude do seu propósito, embora
seja certo que não ha magua como a do vê-lo-ás e não o pa-
parás. «Que graça será esperardes de mim propósitos em
cousa que os não tem para comigo? Pois ainda que queira,
não posso o que quero; que um sentido remontado, de não
pôr pé em ramo verde, tudo lhe succede assi. E cada um
acode ao que mais lhe doe; é mais eu, que o que mais me
entristece é ter contentamento, pois fujo delle, que n\inha
alma o aborrece, porque lhe lembra que é virtude viver sem
elle. Que já sabeis que magua é: vê-lo-ás e não o paparás».
Numa das mais curiosas passagens da carta, o poeta, se
não me engano, insinua terem-lhe offerecido dinheiro, para
não importunar outra vez a infanta com os seus galanteios.
Eis o que elle diz: «Quero-vos dar conta de um soneto
sem pernas, que se fez a um certo recontro que se teve com
este destruidor de bons propósitos (i), e não se acabou,
porque se teve por mal empregada a obra; cujo teor é o
seguinte :
Forçou-me Amor um dia que jogasse ;
Deu as cartas e az d'ouros levantou,
E, sem respeitar mão, logo triumphou.
Cuidando que o metal que me enganada.
(i) Para W. Storck é o Amor (tom. i.% pag. 400). A meu v8r, é do
próprio poeta que se trata. Foi elle que destruiu os bons propósitos,
com que tinha voltado do Ribatejo. E foi por isso que houve o recontro
com alguém, que lhe fallou em nome da infanta.
122
DizendO) pois triumphou, que triumphasse
A uma sota d'ouros, que jogou.
Eu então, por burlar quem me burlou,
Três paus joguei e disse que ganhasse».
Julgando que o poeta se deixaria enganar pelo dinheiro,
o Amor, contra as regras do jogo, puxou pela sota de ouros,
que era trumpho. Vendo-se ludibriado, o poeta jogou o três
de paus (três paus, symbolo da forca) e disse ao parceiro
que ganhasse. Isto é: Camões não acceitou a proposta que
lhe foi feita e preferiu arriscar-se a tudo, inclusivamente a
perder a vida.
Como lhe appeteceu então cavar na fidalguia dos ante-
passados da infanta! «Principes de condição, diz elle, logo
em seguida ao soneto sem pernas, principes de condição,
ainda que o sejam de sangue, são mais enfadonhos que a
pobreza. Fazem, com sua fidalguia, com que lhe cavemos
fidalguias de seus avós, onde não ha trigo tão joeirado, que
não tenha alguma hervilhaca».
Nas primeiras poesias escriptas em Ceuta, o poeta quei-
xa-se mais abertamente da infanta, do duro peito, cruel e
empedernido, que ergueu a mão para o matar.
Comecemos pela ode 3.*, verdadeiro protesto contra a
implacável dureza havida com elle (i).
Se de meu pensamento (2)
Tanta razão tivera de alegrar-me,
Quanto de meu tormento
A tenho de queixar-me,
Puderas, triste lyra, consolar-me.
(i) As ultimas estrophes desta ode mostram que ella foi escripta á
beira-mar. Pelo conteúdo conclue-se que o foi em Ceuta.
(2) Isto é : d'aquillo, ou antes, d'aquella, em que penso.
123
E minha voz cansada,
Que em outro tempo foi alegre e pura,
Não fora assi tomada,
Com tanta desventura,
Tão rouca, tão pesada, nem tão dura.
A ser como soía.
Pudera levantar vossos louvores ;
Vós, minha Hierarchia,
Ouvíreis meus amores.
Que exemplo são ao mundo já de dores (i).
Alegres meus cuidados,
Contentes dias, horas e momentos,
Oh quanto bem lembrados
Sois de meus pensamentos.
Reinando agora em mi duros tormentos !
Ai gostos fugitivos 1
Ai gloria já acabada e consumida !
Ai, males tão esquivos,
Qual me deixais a vida 1
Quão cheia de pesar ! quão destruída 1
(i) Supponho que esta estrophe se deve ler:
A ser como soía.
Pudera levantar altos louvores ;
Vós, divina Hierarchia,
Ouvíreis meus amores, etc. •
Isto é : se a voz do poeta fosse o que dantes era, poderia, cantando
os seus amores, elevar-se até os coros celestes, formados pelos anjos,
archanjos, etc.
Variações de Faria e Sousa, a propósito da minha Hierarchia : «Qual
Hierarquia será esta? Para estas Hicrarchias de Poetas quisiera yo los
Comentadores. Pêro dexado esto, porque cada uno estomuda como
Dios le ayuda, digo que por este no fácil termino de entender (mas
galantíssimo), llama el Poeta Serafín a su sefiora». p que o irritado
poeta chamava então a su sefiora dizem-no-lo as cstrophes i3.* c i4.»
desta mesma ode. Para W. Storck trata-se das damas do paço (Luís' dk
Camoens Siimmtliche Gedichte, iii, 338).
Mas como não é morta
Já esta vida ? Como tanto dura ?
Como não abre a porta
A tanta desventura,
Que em vão com seu poder o tempo cura !
Mas, para padecê-la.
Se esforça o meu sujeito e convalece ;
Que, só para dizê-la,
A força me fallece
E de todo me cansa e me enfraquece.
Oh bem afortunado,
Tu, que alcançaste com lyra toante,
Orphêo, ser escutado
Do fero Rhadamante,
E cos teus olhos ver a doce amante !
As infernais figuras
Moveste com teu canto, docemente ;
As três fúrias escuras.
Implacáveis á gente,
Applacadas se viram de repente.
Ficou como pasmado
Todo o Estygio reino co teu canto,
E, quasi descansado
De seu eterno pranto,
Cessou de alçar Sisypho o grave canto (i).
A ordem se mudava
Das penas, que regendo está Plutão ;
Em descanso se achava
A roda de Ixião,
E em gloria quantas penas alli são.
De todo já admirada
A rainha infernal, e commovida.
Te deu a desejada
Esposa, que perdida
De -tantos dias já tivera a vida.
(i) A pesada pedra. Cf canteiro, cantaria.
I2S
Pois minha desventura
Gomo já não abranda uma alma humana,
Que é contra mi mais dura,
E inda mais deshumana.
Que o furor de Callirrhoe profana (i) ?
Oh crua, esquiva e fera.
Duro peito, cruel e empedernido.
De alguma tigre fera.
Lá na Hyrcania nascido.
Ou d'entre as duras rochas produzido I
Mas que digo, coitado !
E de quem fio em vão minhas querellas f
Só vós, ó do salgado.
Húmido reino bellas
E claras nymphas, condoei-vos delias.
E, de ouro guarnecidas,
Vossas louras cabeças levantando,
Sobre as ondas erguidas
As tranças gotejando.
Saindo todas, vinde a ver qual ando.
(i) Commentando este logar, observa W. Storck : «Se é Callirrhoe
que deve ler-se, falhou aqui a extraordinária memoria do poeta. Não
é possivel saber-se — e também Faria e Sousa declara ignorá-lo— -a que
propósito se faz aqui menção de Callirrhoe»... (Luís' de Camoens Sàmmtli'
che Gedichtej iii, 339). Mas a Callirrhoe, a que se refere o poeta, não é,
como suppõe o illustre camonista allemão, aquella de que se occupa Oví-
dio nas MetamorphoseSy ix, 4i3 e segg.; é outra, de que falia Pausanias na
Graeciae descriptio, liv. 7.», cap. 21. Esta desprezou o amor de Córeso,
sacerdote de Baccho, na cidade da Calydonia, cujos habitantes foram
por isso, punidos por aquella divindade. D'aí o epitheto profana. Eis
como começa a narrativa do escriptor grego : «Amabat (Coresus) Cal-
lirrhoen virginem et quanto erat Coresi amor vehcmentíor, tanto erac
puellac animus ab cjus cupiJitate alienior». (Edição de Leipzig, 1696
p. 573). Ainda desta vez não foi o poeta quem se enganou.
26
Saí em companhia
E, cantando e colhendo as lindas flores,
Vereis minha agonia,
Ouvireis meus amores "*
E sentireis meus prantos, meus clamores.
Vereis o mais perdido
E mais infeliz corpo, que é gerado.
Que está já convertido
Em choro, e, neste estado,
Somente vive nelle o seu cuidado.
Na ode i.* (i) ainda o poeta se queixa da infanta, mas já
reapparece a sua paixão por ella. Novo Endymion, dirige-se
á Lua (Delia, Diana, Lucina), que em seguida identifica com
a sua bem-amada.
Detém um pouco, musa, o largo pranto.
Que Amor te abre no peito,
E, vestida de rico e ledo manto.
Demos honra e respeito
Áquella cujo objeito (2)
Todo o mundo allumia,
Trocando a noite escura em claro dia.
Ó Delia, que, apesar da névoa grossa,
Cos teus raios de prata
A noite escura fazes que não possa
Encontrar (3) o que trata,
E o que na alma retrata,
Amor por teu divino
Raio, por que endoudeço e desatino :
(i) W. Storck (iii, 33o-333) transcreve a ode de Bernardo Tasso,
aqui imitada por Camões.
(2) Não deverá ler-se aspeito? Cf., na estrophe seguinte, trata e
retrata.
(3) Apesar da névoa grossa (allusão á maneira como o poeta havia
sido tratado pela infanta), apesar da névoa grossa, os teus raios de prata
fazem que não seja escura a noite para aquelle que te ama.
i7
Tu, que de formosíssimas estrellas
Coroas e rodeias
Tua cândida fronte e faces bellas,
E os campos formoseias
Co'as rosas que semeias,
Co'as boninas que gera
O teu celeste humor na primavera :
Para ti guarda o sitio fresco d'Ilio
Suas sombras formosas ;
Para ti o Erymantho, Olympo e Pilio (i)
As mais purpúreas rosas;
E as drogas mais cheirosas
Desse nosso oriente
Guarda a Felice Arábia, mais contente.
De qual panthera ou tigre ou leopardo
As ásperas entranhas
Não temeram teu fero e agudo dardo.
Quando por as montanhas
Ligeira atravessavas,
Tão formosa que Amor de amor matavas ?
Pois, Delia, do teu ceu vendo estás quantos
Furtos de puridades,
Suspiros, maguas, ais, musicas, prantos.
As conformes vontades,
Umas por saudades,
Outras por crus indicios.
Fazem das próprias vidas sacrifícios (2) :
(i) Cf. W. Storck, tom. i», pag. 335.
(2) O texto desta estrophe deve ter soffrido alteração. Permilta-se-me
propor que se lêa :
Pois, Delia, do teu ceo vendo estás tantos
Furtos de puridades.
Suspiros, maguas, ais, lap^rimasy prantos,
E as amantes vontades.
Que, umas por saudades,
Outras, por crus indicios,
Fazem das próprias vidas sacrifícios :
Amantes À uma variante da edição de 1 SgS.
128
Já veio Endymião por estes montes,
O ceu, suspenso, olhando,
E teu nome, cos olhos feitos fontes,
Em vão sempre chamando,
Pedindo suspirando (i)
Mercês á tua beldade.
Sem que ache em ti um'hora piedade.
Por ti feito pastor de branco gado.
Nas selvas solitárias
Só de seu pensamento acompanhado,
Conversa as alimárias,
De todo o amor contrarias,
Mas não como a ti duras.
Onde lamenta e chora desventuras.
Das castas virgens sempre os altos gritos.
Clara Lucina, ouviste,
Renovando-lhe as forças e os espritos ;
Mas os d'aquelle triste
Já nunca consentiste
Ouvi-los um momento,
Para ser menos grave o seu tormento.
Não fujas, não, de mi ! Ah não te escondas
D'um tão fiel amante !
Olha como suspiram estas ondas
E como o velho Atlante (2)
O seu collo arrogante
Move piedosamente,
Ouvindo a minha voz, fraca e doente.
Triste de mi! Que alcanço por queixar- me,
Pois minhas queixas digo
A quem já ergueu a mão para matar-me,
Como a cruel imigo ?
Mas eu meu fado sigo.
Que a isto me destina,
E que isto só pretende e só me ensina.
(1) A suspirar, com suspiros.
(2) O monte Atlas. Prova de que a ode foi escripta em Ceuta.
Oh quanto ha já que o ceu me desengana !
Mas eu sempre porfio
Cada vez mais na minha teima insana !
Tendo livre alvedrio,
Não fujo o desvario,
Porque este, em que me vejo,
Engana co'a esperança o meu desejo.
Oh quanto melhor fora que dormissem
Um somno perennal
Estes meus olhos tristes, e não vissem
A causa de seu mal
Fugir a um tempo tal.
Mais que dantes (i) proterva,
Mais cruel que ursa, mais fugaz que cerva !
Ai de mi, que me abraso em fogo vivo.
Com mil mortes ao lado,
E quando morro mais, então mais vivo !
Porque tem ordenado
Meu infelice fado
Que, quando me convida
A morte, para a morte tenha vida ?
Secreta noite amiga, a que obedeço,
Estas rosas, porquanto
Meus queixumes me ouviste, te oftereço,
E este fresco amaranto,
Húmido já do pranto
E lagrimas da esposa
Do cioso Titão, branca e formosa.
Contemporâneo das duas tão bellas, tão sentidas odes,
talvez escripto entre uma e outra, é também o soneto 74;
Aquella fera humana, que enriquece
A sua presunçosa tyrannia
Destas minhas entranhas, onde cria
Amor um mal, que falta quando crece (2),
(1) Aqui, SC não me engano, escreveu o poeta o nome de um animal,
tigre, por exemplo.
(2) Não teria o poeta escripto : que dUi a dia crece f
9 - R. 5»94
'-0
Se nellii o ceu mostrou, como parece.
Quanto mostrar ao mundo pretendia,
Porque de minha vida se injuria ?
Porque de minha morte se ennobrece ?
Ora, emfim, sublimai vossa victoria,
Senhora, com vencer-me e captivar-me.
Fazei delia no mundo larga historia ;
Pois, por mais que vos veja atormentar-me,
Já me fico logrando desta gloria
De ver que tendes tanta de matar-me.
Como se vê pelas tres poesias que acabo de transcrever,
Camões attribue o seu desterro para Ceuta á interferência
directa da infanta (i). Foi ella que, inda mais deshumana
que Callirrhoe, ergueu a mão para o matar ; é ella a fera
humana que se injuria da sua attribidada vida e se ennobrece
com a sua morte.
(i) Costuma dizer-se que o exilio do poeta, pelo menos o exilio para
o Ribatejo, foi obra pessoal de D. Joãjo III e da rainha D. Gatharina.
E, entre outras razões, adduz-se o Auto d'el-rei Seleuco, pois não só o
entrecho da peça lhes não podia ser agradável, por avivar o que se pas-
sara com o ultimo casamento de D. Manuel, mas ainda no argumento,
propositadamente disparatado, se falia na Catharina Real, que havia de
entrar em scena com uns poucos de parvos numa joeira e os havia de
semear pela casa, de que nasceria muito mantimento ao riso. Quer-me
parecer que o poeta, effectivamente, quis ser desagradável ao rei e á
rainha, com o intuito de lisongear a infanta. Toda a gente sabia, com
eífeito, as razões de queixa que ella já então tinha do meio-irmão e da
tia e cunhada. Mas se el-rei (que, diga-se de passagem, no anno de 1546,
em que o auto foi escripto e representado, residiu fora de Lisboa,
como já fica dito) teve conhecimento do caso, é provável que se
não incommodasse muito, se estava informado das loucas preten-
ções do poeta. É até natural que gostasse houvesse um leviano que
compromettesse a infanta. D. João III por cousa nenhuma queria desem-
bolsar as 400:000 dobras d'ouro a que ella se julgava com direito, em
virtude do contracto matrimonial celebrado entre D. Manuel e a ex-noiva
de seu filho e successor.
■i
Qual o motivo da enérgica, da inexorável altitude, assu-
mida pela infanta, quando viu que o renitente poeta, depois
de ter voltado do Ribatejo, continuava a mostrar-se apaixo-
nado por ella ?
A meu ver, o motivo, — pelo menos o principal, se houve
mais d'um — , foi o seguinte: a illustre senhora, que tinha
então em perspectiva o casamento com o herdeiro da coroa
de Espanha, viuvo desde ib^b (i), sabia muito bem que o
seu régio e tortuoso meio-irmão, para lhe crear obstáculos,
era muito capaz de fazer correr que ella dava ouvidos a um
doidivanas d'um poeta (2).
(i) «Depois de todos estes negócios (projectos de casamento da
infanta com o Delphim, filho de Francisco I, e com o archiduque Ma-
ximiliano, herdeiro do throno imperial) serem tractados pelo modo que
dixe, veo a morrer no anno de i545 ha princesa donna Maria, filha dei
Rei dom Joam terceiro, que era casada com dom Phelippe Príncipe de
Castella, filho herdeiro do Emperador D. Carlos, depois da morte da
qual, elle e ha Rainha donna Leanor trataram de casar (a infanta D. Ma-
ria) com este Príncipe dom Phelippe». Damião de Góes, Chronica do feli-
císsimo rei dom Emanuel (era assim que escreviam esta palavra Erasmo
[Opera omnia, ed. de lyoS-^), t. vi, p. 10, t. vii, p. 7, t. vni, p. 2] e outros
grandes latinistas do renascimento), 4." parte, cep. 68 (Líshòa, i566).
«Muerta esta Princesa (D. Maria), se trato luego de buscar otra muger ai
Príncipe Don Felipe. . . De espacio iba mirando Carlos Quinto, a quien
tocaua este cuidado, la mayor conueniencía en este segundo casamiento de
su híjo; y assi perseuerò viudo algunos" anos, tiempo em que siempre el
César se inclínaua a q casasse con la Infanta Maria, porque, fuera de ser
el mejor acierto, con la execucion satisfacía a su hermana Leonor, que,
viuda ya dei Rey Francisco de Francia, auía passado a Flandes, y instaua
por el efecto, por ver a su hija acomodada de estado ; y como el nego-
cio se' auia platicado entre los dos, apretauase por parte de la Reina
sobre èl ai Rey Don Juan, para que prcuíniesse Ia entrega dei dote que
tocaua a su hija». Fr. M. Pacheco, Vida, ctc, fl. 3g.
(2) Contínua o consciencioso bígrapho da infanta : «Aflígian ai Rey
estas diligencias, que nada deseaua menos que dcxar salír esta Princesa
de Portugal, así por escusarsc de pagar tan grande suma, como por el
Se nas odes 3.* e i.-' e no soneto 74 se acha reproduzido
o estado de espirito do poeta ao começar o novo exilio (pri-
meiramente irritação contra o peito duro, cruel e empeder-
nido da infanta; em seguida, reviviscencia da paixão amorosa,
porfia na teima insana)^ a elegia 2.^ revela-nos a phase inter-
média e a epistola i.* patentea-nos a ultima. Vejamos.
Na elegia 2.*, dirigida, segundo creio, a D. Francisco de
Noronha, o poeta reconhece que nada o defende das lem-
branças amorosas e declara escrever o seu derradeiro canto.
Se o exilio não termina, venha a morte.
Aquella que, d'amor descomedido (i),
Por o formoso moço se perdeu,
Que só por si d'amores foi perdido,
Despois que a deusa em pedra a converteu,
De seu humano gesto verdadeiro
A ultima voz só lhe concedeu.
Assi meu mal do próprio ser primeiro
Outra cousa nenhuma me consente,
Que este canto, que escrevo derradeiro.
E se uma pouca vida, estando ausente.
Me deixa Amor, é porque o pensamento
Sinta a perda do bem de estar presente.
Senhor, se vos espanta o sofifrimento.
Que tenho em tanto mal, para escrevê-lo
Furto este breve espaço a meu tormento.
poço afecto q algunos dezian que siempre tuuo a esta media hermana :
mas hallandose apretado destos Principes, y de otras personas dei Reino,
que le hablauan en lo mismo en fauor de la senora Infanta, trato de
buscar ocultamente médios de estoruarlo». E o ardil a que nesta occa-
sião recorreu o dissimulado monarca, — cujo jogo, aliás, sobre o assumpto
passou, em breve, a ser bem conhecido por todos os interessados — ,
consta da curiosa carta que elle enviou, em 27 de junho de i55o, a Lou-
renço Pires de Távora, seu embaixador junto de Carlos V, carta que
Fr. M. Pacheco transcreve e commenta devidamente (fl. 40-42).
(i) A nympha Echo, que debalde se apaixonou por Narciso. Juno
Unha a condemnado a repetir somente os últimos sons que ouvisse.
i33
Porque, quem tem poder para soffrê-Io,
Sem se acabar a vida co cuidado,
Também terá poder para dizc-lo.
Nem eu escrevo um mal, já acostumado,
Mas na alma minha, triste e saudosa,
A saudade escreve e eu traslado.
Ando gastando a vida trabalhosa
E esparzindo a continua soidade.
Ao longo d'uma praia soidosa.
Vejo do mar a instabilidade.
Como com seu ruído impetuoso
Retumba na maior concavidade.
De furibundas ondas poderoso.
Na terra, a seu pesar, está tomando
Lugar, em que se estenda cavernoso.
Ella, como mais fraca, lhe e^tá dando
As concavas entranhas, onde esteja
Sempre com som profundo suspirando.
A todas estas cousas tenho inveja
Tamanha, que não sei determinar-me,
Por mais determinado que me veja.
Se quero em tanto mal desesperar-me.
Não posso, porque Amor e saudade
Nem licença me dão para matar-me.
As vezes, cuido em mi se a novidade
E estranheza das cousas, co a mudança.
Poderiam mudar uma vontade.
E com isto figuro na lembrança
A nova terra, o novo trato humano,
A estrangeira progénie, a estranha usança.
Subo-me ao monte que Hercules Thcb;mo
Do altissimo Calpe dividiu.
Dando caminho ao Mar Mediterrano;
D'alli estou tenteando adonde viu
O pomar das Hespérides, matando
A serpe que a seu passo resistiu.
Estou-me em outra parte figurando
O poderoso Anteu, que derribado
Mais força se lhe vinha accresccntando ;
1^4
Porém, do Hercúleo braço subjugado,
No ar deixando a vida, não podendo
Dos soccorros da mãe ser ajudado.
Mas nem com isto, emfim, que estou dizendo,
Nem com as armas ião continuadas,
De amorosas lembranças me defendo.
Todas as cousas vejo demudadas.
Porque o tempo ligeiro não consente
Que estejam de firmeza acompanhadas.
Vi já que a primavera, de contente,
Em variadas cores revestia
O monte, o campo, o valle, alegremente.
Vi já das altas aves a harmonia.
Que até duros penedos convidava
A algum suave modo de alegria.
Vi já que tudo emfim me contentava (i)
E que, de muito cheio de firmeza.
Um mal por mil prazeres não trocava.
Tal me tem a mudança e estranheza.
Que, se vou por os prados, a verdura
Parece que se secca de tristeza.
Mas isto é já costume da ventura,
Porque aos olhos que vivem descontentes.
Descontente o prazer se lhes figura.
Oh graves e insoíFriveis accidentes
Da Fortuna e d'Amor ! Que penitencia
Tão grave dais aos peitos innocentes 1
Não basta examinar-me a paciência
Com temores e falsas esperanças.
Sem que também me tente o mal de ausência ?
Trazeis um brando espirito em mudanças.
Para que nunca possa ser mudado
De lagrimas, suspiros e lembranças.
E, se estiver ao mal acostumado,
Também no mal não consentis firmeza,
Para que nunca viva descansado.
(i) Isto é: me procurava contentar.
35
Já quieto me achava co a tristeza (i)
E alli não me faltava um brando engano,
Que tirasse desejos da iVaqucza (2).
Mas, vendo-me enganado estar ufano,
Deu á roda a Fortuna, e deu comigo
Onde de novo choro o novo dano.
Já deve de bastar o que aqui digo,
Para dar a intender o mais que calo
A quem já viu tão aspjro perigo.
E, se nos brandos peitos faz abalo
Um peito magoado e descontente,
Que obriga a quem o ouve a consolá-lo,
Não quero mais senão que largamente,
Senhor, me mandeis novas dessa terra.
Que alguma delias me fará contente.
Porque, se o duro fado me desterra
Tanto tempo do bem, que o fraco esprito
Desampare a prisão, onde se encerra,
Ao som das negras aguas do Cocito,
Ao pé dos carregados ar>'oredos.
Cantarei o que na alma tenho escripto.
E por entre estes (3) hórridos penedos,
A quem negou Natura o claro dia.
Entre tormentos ásperos e medos.
Com a tremula voz, cansada e fria,
Celebrarei o gesto claro e puro.
Que nunca perderei da phantasia.
O musico da Thracia, já seguro
De perder sua Eurydice, tangendo
Me ajudará, ferindo o ar escuro.
As namoradas sombras, revolvendo
Memorias do passado, me ouvirão,
E com seu choro o rio irá crescendo.
(1) Creio que o poeta allude ao seu estado de espirito, ao voltar do
Ribatejo. Estava resignado a não pensar mais na infanta, mas achou-se
illudido.
(2) Que lhe tirasse desejos de fraquejar, de abandonar o propósito
em que estava.
(3) Talvez: esses.
36
Em Salmoneu as penas faltarão,
E das filhas de Bello juntamente
De lagrimas os vasos se encherão.
Que, se amor não se perde em vida ausente,
Menos se perderá por morte escura.
Porque, emfim, a alma vive eternamente,
E amor é eífeito da alma, e sempre dura.
Percorramos agora a epistola i.*, a que alguns dão o nome
de Oitavas sobre o desconcerto do rjiiindo (i).
Apresentando-sc como victima da Fortuna (2), o poeta
(i) «Outro producto (do periodo africano), de peso, e bem valioso,
são as Oitavas sobre o desconcerto do mundo, que julgo escriptas quasi
no fim do exilio ... A austera poesia foi enviada, segundo a tradição, ao
joven discípulo de Camões (D. António de Noronha). Houve tempo em
que duvidei da veracidade desta noticia, mas hoje dou-a por certa.»
(W. Storck, Vida de Camões, p. 406). Creio que o destinatário da epis-
tola foi o pae de D. António de Noronha. O ex-discipulo do poeta era
ainda muito novo (nascera em i536), para receber deste confidencias
intimas e para lhe prestar os serviços de que precisava. Além disso, a
elevação da epistola e até a sua estructura grammatical não eram para
creanças.
O nome dado ás «magnificas estancias, sem igual na lyrica portu-
guesa, a não ser que nas próprias obras de Camões encontrem parallelos»
(W. Storck, p. 408), provém da i." oitava :
Quem pôde ser no mundo tão quieto,
Ou quem terá tão livre o pensamento.
Quem tão exprimentado, ou tão discreto.
Tão fora, emfim, de humano entendimento,
Que, ou com publico eífeito, ou com secreto,
Lhe não revolva e espante o sentimento,
Deixando-lhe o juizo quasi incerto,
Ver e notar do mundo o desconcerto ?
(2) Fortuna, emfim, co Amor se conjurou
Contra mi, porque mais me magoasse ;
Amor a um vão desejo me obrigou.
Só para que a Fortuna mo negasse.
(Est. 29.*).
3/
começa por formular o grave problema que suggere a obser-
vação quotidiana: Se existe uma Providencia, como é que
ha maus que prosperam e bons que são infelizes? Como é
que a Fortuna pôde favorecer os primeiros e tornar a vida
amargurada aos segundos ?
Quem ha que veja aquelle que vivia
De latrocinios, mortes e adultérios,
Que ao juízo das gentes merecia
Perpetua pena, immensos vitupérios.
Se a Fortuna em contrario o leva e guia.
Mostrando emfim que tudo são mysterios,
Em alteza de estados triumphante,
Que, por livre que seja, não se espante ?
(Est. 2.').
Quem ha que veja aquelle que tão clara
Teve a vida, que em tudo por perfeito
O próprio Momo ás gentes o julgara,
Inda quando lhe visse aberto o peito.
Se a má Fortuna, ao bom somente avara,
O reprime e lhe nega seu direito,
Que lhe não fique o peito congelado.
Por mais e mais que seja exprimentado ?
(Est. 3.«).
Houve um philosopho grego que procurou resolver a ques-
tão, admittindo a existência de dous deuses, mas esta solução
não se conforma nem com os princípios racionais, nem com
a doutrina christã.
Demócrito dos deuses proferia
Que eram só dous : a Pena c o Benefício.
Segredo algum será da phantasia.
De que eu achar não posso claro indicio ;
Que, se ambos vem por não cuidada via
A quem os não merece, é grande vicio
Em deuses sem-justiça (i) c sem-ríi/fio.
Mas Deoiocríto o disse e Paulo não.
(i) É provável que o poeta escreveste : injustiça.
i38
Pôde dizer-se que este desconcerto da Fortuna não data
d'agora, antes é tão antigo como o mundo. Mas isto não
resolve, antes aggrava o problema.
Dir-me-eis que, se este estranho desconcerto
Novamente no mundo se mostrasse,
Que, por livre que fosse e mui experto,
Não era de espantar, se me espantasse ;
Mas que, se já de Sócrates foi certo
Que nenhum grande caso lhe mudasse
O vulto, ou de prudente ou de constante,
Exemplo tome delle e não me espante.
(Est. 5.-).
Parece a razão boa; mas eu digo
Deste uso da Fortuna tão damnado
Que, quanto é mais usado e mais antigo,
Tanto é mais estranhado e blasphemado.
Porque, se o Geu, das gentes tão amigo, '
Não dá á Fortuna tempo limitado,
Não é para causar mui grande espanto.
Que mal, tão mal olhado, dure tanto ?
(Est. 6.«).
Mas, como se não bastasse o ser a Fortuna uma entidade
tão caprichosa, não ha quem delia não espere alguma cousa!
A ambição, o pretender do mundo fama e friiito, faz com
que ninguém lhe escape, nem mesmo quem professa des-
prezá-la !
Outro espanto maior aqui me enleia.
Que, corri quanto Fortuna tão profana
Com estes desconcertos senhoreia,
A nenhuma pessoa desengana.
Não ha ninguém que assente nem que creia
Este discurso vão da vida humana,
Por mais que philosophe, nem que entenda,
Que algum pouco do mundo não pretenda.
(Est. 7.«).
i39
Diógenes pisava de Platão
Com seus sórdidos pés o rico estrado,
Mostrando outra mais alta presumpçao
Em desprezar o fausto tão prezado.
— Diógenes, não vês que extremos são,
Esses que segues, de mais alto estado?
Pois, se de desprezar te prezas muito.
Já pretendes do mundo fama e fruito — .
(Est. 8.*).
Em seguida o poeta, passando por alto várias categorias
de ambiciosos, interpcila directamente César e Platão, e per-
gunta-lhes de que lhes valeram os trabalhos em que quise-
ram envolver-se. O primeiro morreu ás mãos dos seus; o
segundo não conseguiu eximir-se aos erros da gentilidade.
Mas pergunto ora a César esforçado,.
Ora a Platão divino, que me diga.
Este das muitas terras em que andou,
Aquelle de vencê-las, que alcançou ?
(Est. II.-).
N César dirá ; Sou digno de memoria ;
Vencendo povos vários e esforçados,
Fui monarca do mundo, e larga historia
Ficará de meus feitos sublimados.
— É verdade; mas esse mando e gloria
Lograste-o muito tempo ? Os conjurados
Bruto e Cassio dirão que, se venceste
Emfim, emfim ás mãos dos teus morreste.
(Est. 12.').
Dirá Platão : Por ver o Etna e o Nilo,
Fui a Sicilia, Egypto e outras partes,
Só por ver e escrever em alto estylo
Da natural sciencia e muitas artes.
— O tempo é breve e queres consumi-lo,
Platão, todo em trabalhos ? E repartes
Tão mal de teu estudo as breves horas.
Que emfím do falso Phebo (i) o filho adoras?
(Est. r>M
i) Proponho a correcção Chrono (Saturno), pui de Jupiicr (Zeus).
40
E afinal de que vale a ambição? Para que servem os tra-
balhos a que ella obriga ? Porque é que o homem se ha de
submetter aos revezes da fortuna ? Lá vem a morte, que tudo
inutiliza. A alma terá mais em que occupar-se e o corpo
já nada sente.
Por (i) quanto, dês que vive já apartada
A alma desta prisão terrestre e escura,
Está em tamanhas cousas occupada,
Que da fama que fica nada cura,
E o corpo terreno sente nada (2).
O Cynico dirá se por ventura
No campo, onde lançado morto estava,
De si os cães ou as aves enxotava (3).
(Est. I4.a).
Mas se a Fortuna, que é cega, sobre todos procura exercer
o seu império, como poderemos escapar-lhe ?
Para os que têm baixa a phantasia, ha só um meio : é nunca
se metterem em grandes cousas.
Quem tão baixa tivesse a phantasia.
Que nunca em mores cousas a mettesse.
Que em só levar seu gado á fonte fria,
E mungir-lhe do leite que bebesse,
Quão bem-aventurado que seria !
Que, por mais que a Fortuna revolvesse.
Nunca em si sentiria maior pena.
Que pesar-lhe de a vida ser pequena.
- (Est. i5.-).
(i) Lição corrente: Pois quanto.
(2) Parece-me que deve lêr-se assim e não : E se o corpo terreno
sinta nada.
(3) Nos versos 7 e 8, o imperfeito pelo futuro. Trata-se de uma das
muitas anedotas attribuidas a Diógenes,
Veria erguer do sol a roxa face,
Veria correr sempre a clara fonte,
Sem imaginar a agua donde nace,
Nem quem a luz occulta no horizonte ;
Tangendo a frauta donde o gado pace,
Conheceria as hervas do alto monte ;
Em Deus creria, simples e quieto,
Sem mais especular algum secreto.
(Est. i6.').
Os outros, os que não tem baixa a pharitasia, só podem
evitar os golpes da Fortuna, achando-se num estado simi-
Ihante ao de Trasiláo.
De um certo Trasiláo se lê e escreve.
Entre as cousas da velha antiguidade.
Que perdido grão tempo o siso teve,
Por causa d'uma grave infermidade.
E, emquanto de si fora doudo esteve.
Tinha por teima e cria por verdade
Que eram suas, das naus que navegavam.
Quantas no porto Pireu ancoravam.
(Est. 17.').
Por um senhor mui grande se teria.
Além da vida alegre que passava,
Pois nas que se perdiam não perdia,
E das que vinham salvas se alegrava.
Não tardou muito tempo quando um dia
Um Grito, seu irmão, que ausente estava,
A terra chega, c, vendo o irmão perdido.
Do fraternal amor íoi commovido.
(Est. i8.«).
Aos médicos o entrega e com aviso
O faz estar (1) á cura refusada.
Triste ! que, por tomar-lhe o antigo siso,
Lhe tira a doce vida descansada.
( I ) Escreveria o poeta : entrar f
14^
As hervas Apollineas de improviso
O tornam á saúde já passada.
Sisudo, Trasiláo ao caro irmão
Agradece a vontade, a obra não.
(Est. i9.«).
Porque, despois de ver-se no perigo
Do trabalho a que o siso o obrigava,
E despois de não ver o estado antigo.
Que a louca presumpção lhe apresentava,
— Oh inimigo irmão, com côr de amigo.
Para que me tiraste (suspirava)
Da mais quieta vida e livre em tudo.
Que nunca pôde ter nenhum sisudo ?
(Est. 20.").
Por qual senhor algum eu me trocara,
Ou por qual algum rei de mais grandeza ?
Que me dava que o mundo se acabara.
Ou que a ordem mudasse a natureza ?
Agora me é penosa a vida cara ;
Sei que cousa é trabalho e que é tristeza.
Torna-me a meu estado, que eu te aviso
Que na doudice só consiste o siso. —
(Est. 21.'»).
E o poeta prosegue :
Vedes aqui, senhor, bem claramente
Como a Fortuna em todos tem poder.
Senão só no que menos sabe e sente,
Em quem nenhum desejo pôde haver.
Este se pôde rir da cega gente ;
Neste não pôde nada acontecer;
Nem estará suspenso da balança
Do temor mau, da pérfida esperança.
(Est. 22.").
Vamos agora entrar na parte capital da epistola. Qual dos
dous meios de escapar aos golpes da Fortuna prefere o poeta ?
Dadas certas condições, não pediria
Do insano Trasiláo o doudo estado.
>l3
E essas condições sáo as seguintes : Ver terminado o exilio ;
viver modestamente, entregue ás musas; cultivar a amizade
da pessoa a quem a epistola é endereçada; deliciar-se com as
obras de determinados poetas e, finalmente, se não principal-
mente, ter ao pé de si a menina dos olhos perdes.
Mas (i), se o sereno ceu me concedera
Qualquer quieto, humilde e doce estado,
Onde com minhas musas só vivera.
Sem ver-me em terra alhea degradado;
E alli outrem ninguém me conhecera.
Nem eu conhecera outrem mais honrado,
Senão a vós, também como eu contente,
Que bem sei que o serieis facilmente ;
(Est. a3.«).
E ao longo duma clara e pura fonte (2),
Que, em borbulhas nascendo, convidasse
Ao doce passarinho, que nos conte
Quem da cara consorte o apartasse,
Despois, cobrindo a neve o verde monte,
Ao gasalhado o frio nos levasse (3),
Avivando o juizo ao doce estudo.
Mais certo manjar da alma emfim que tudo,
(Est. 24,').
Cantára-nos aquellc, que tão claro
O fez o fogo da arvore Phebêa (4),
A qual elle em estylo grande e raro
Louvando, o crystallino Sorga enfrêa ;
(1) As cinco estancias que se seguem [iS a 27) lormam gramma-
ticalmente um único periodo. O Mas de 23, i, liga-se directamente com
o Não pedira de '^7, 5, interpondo-se várias orações condicionaes, em-
bora só esteja expresso um se. Assim : 23, 3, E se alli; 2^ t^ E se ao
longo; 26, i, E se comnosco; 27, 1, /T se emguanto.
(2) Este verso liga-se grammaticalmente com 25, i, 5, 7.
(3) Anacolutho : No gasalhado onde o frio, etc.
(4) Petrarca, o cantor de Laura. O louro era a arvore consagrada «
Phebo (Apollo).
«44
Tangera-nos na frauta Sanazaro,
Ora nos montes, ora por a arêa ;
Passara, celebrando o Tejo ufano,
O doce e brando Lasso castelhano ;
(Est. 25.«).
E comnosco também se achara aquella.
Cuja lembrança e cujo claro gesto
Na alma somente vejo, porque nella
Está em essência puro e manifesto,
Por alta influição de minha estrella,
Mitigando o rigor do peito honesto (i),
Entretecendo rosas nos cabellos.
De que tomasse a luz o sol em vê-los ;
(Est. 26.'»).
E, emquanto por verão flores colhesse.
Ou por inverno, ao fogo accommodado,
O que de mi sentira nos dissesse,
De puro amor o peito salteado,
— Não pedira eu então que Amor me desse
Do insano Trasiláo o doudo estado,
Mas que alli me dobrasse o intendimento.
Por ter de tanto bem conhecimento.
(Est. 27.»).
Esboçado, porém, este programma, o poeta pergunta
Mas por onde me leva a phantasia ?
Porque imagino em bem-aventuranças,
Se tão longe a Fortuna me desvia.
Que inda me não consente as esperanças ?
Se um novo pensamento Amor me cria.
Onde o lugar, o tempo, as esquivanças,
Do bem me fazem tão desamparado,
Que não pôde ser mais que imaginado ?
(Est. 28.»).
(1) Gamões allude á justa indignação da menina dos olhos verdes.
H'
E Camões, depois de se queixar da Fortuna e do Amor,
que contra elle se conjuraram, conclue por esta forma:
O tempo a tal estado me chegou
E nelle quis que a vida se acabasse,
Se ha em mim acabar-se, o que não creio,
Que até da muita vida me receio.
(Est. 29.»).
Foram também escriptas nesta phase as seguintes redon-
dilhas, tão repassadas de resignada melancolia:
Mote
Esperanças mal tomadas,
Agora vos deixarei.
Tão mal como vos tomei.
Voltas
Fostes tomadas em vão
De mim, sem (i) fundamento;
E vós éreis todas de vento
E eu delle vivia então.
Se vos tomei sem raizão.
Com ella vos deixarei.
Tão mal como vos tomei.
Assim vos queria ter,
Sem razão e mal tomadas.
Sabendo, quando deixadas.
Quanto havieis de doer.
Mas nem isto pôde ser,
Que por meu mal vos tomei,
E por vós me deixarei (2).
(i) Talvez : e sem e no v. seguinte : Vós éreis, ou todas vento,
(2) Escreveria o poeta : Por elle vos deixarei?
10 K. 5»94
■46
Quereis que faça mudança ?
De vós outro bem não entendo.
Isto só (i) se ganha em vos vendo,
Isto só de vós se alcança.
Mas esta vã esperança,
Senhora, se eu a tomei
Por vós, como a deixarei ?
Mote
O meus altos pensamentos,
Quão altos que vos pusestes
E quão grande queda destes 1
Voltas
Gomo de mim vos não vinha
Serdes firmes num estado
(Pois o viver enganado
Era o maior bem que tinha),
Gastello d'esta alma minha,
Quão alto que vos pusestes
E quão grande queda destes !
Sabia que éreis de vento.
Gomo quem vos viu fazer ;
Inda assim vos queria ter.
Gomo éreis sem fundamento.
Quem vos desfez num momento ?
Ai ! Quão alto vos pusestes
E quão grande queda destes I
Quantas lagrimas, porém, não derramou o enamorado
poeta, antes de chegar a este estado de espirito! Quantas
vezes sè não lembrou de morrer, emquanto não arrancou
do coração o seu alio pensamefito !
(i) O só está demais. Ou deverá ler-se : só ganho?
M7
Lêam>se, entre outras, as poesias que se seguem.
Já a roxa Manhã (i) clara
As portas do oriente vinha abríndo,
Dos montes descobrindo
A negra escuridão, da luz avara.
O Sol, que nunca pára,
Da sua alegre vista saudoso,
Trás ella pressuroso,
Nos cavallos cansados do trabalho.
Que respiram nas hervas fresco orvalho,
Se estende claro, alegre e luminoso.
Os pássaros, voando.
De raminho em raminho vão saltando,
E com suave e doce melodia
O claro dia estão manifestando.
A Manhã bella, amena.
Seu rosto descobrindo, a espessura
^Se cobre de verdura.
Clara, suave, angélica, serena.
Oh deleitosa pena !
Oh effeito de amor, alto e potente !
Pois permiite e consente
Que, ou onde quer que eu ande ou donde esteja,
O seraphico gesto sempre veja.
Por quem de viver triste* sou contente.
Mas tu, Aurora pura.
De tanto bem dá graças á ventura.
Pois as foi pôr em ti tão excellentes,
Que representas tanta formosura.
A luz, suave e leda,
A meus olhos me mostra por quem mouro,
Com os cabellos de ouro.
Que nenhum ouro iguala, se os remeda.
(t) O poeta como que personifica a manhã (aurora) e o sol e vê
naquella a representação da bem-amada, que lhe apparece á hon da
morte.
,48
Esta a luz é que arreda
A negra escuridão do seniimento t
Ao doce pensamento.
Os orvalhos das flores delicadas
São, nos meus olhos, lagrimas cansadas,
Que eu choro co prazer de meu tormento.
Os pássaros que cantam,
Meus espíritos são, que a voz levantam,
Manifestando o gesto peregrino
Com tão divino som, que o mundo espantam. ,
Assi como acontece
A quem a cara vida está perdendo
Que, emquanto vai morrendo,
Alguma visão santa lhe apparece :
A mim, em quem fallece
A vida, que sois vós, minha Senhora,
A esta alma, que em vós mora,
Emquanto da prisão se está apartando,
Vos estais justamente apresentando
Em forma de formosa e roxa Aurora.
Oh ditosa partida !
Oh gloria soberana, alta e subida,
Se ma (i) não impedir o meu desejo !
Porque o que vejo, emíim me torna a vida.
Porém a natureza,
Que nesta pura vista se (2) mantinha.
Me falta tão asinha,
Como o Sol sahe sobre ã (i) redondeza.
Se houverdes que é fraqueza
Morrer em tão penoso e triste estado.
Amor será culpado
Ou vós, onde elle vive tão isento.
Que causastes tão largo apartamento.
Porque perdesse a vida co cuidado.
(i) Correcção proposta por W. Storck, Sam. Gedichíe, iv, 321-2.
(2) Talvez: me; faltou (v. 3.«); saiu (v. 4.").
'49
Que, se viver não posso,
Homem formado só de carne e osso,
Esta vida que perco, Amor ma deu.
Que não sou meu : se morro, o damno é vosso.
Canção de cysne, feita em hora extrema (i),
Na dura pedra fria
Da (2) memoria te deixo, em companhia
Do letreiro da minha sepultura.
Que a sombra escura já me impede o dia-
(Canção 3.').
Se, para desopprimir o seu triste coração, o poeta subia
ás vezes
... ao monte que Hercules Thebano
Do altissimo Calpe dividiu,
quantas vezes não procuraria sitios recônditos, para aí se
desfazer em lagrimas ardentes!
(1) Mais tarde, escrevia o poeta :
O cysne, quando sente ser chegada
A hora que pÕe termo á sua vida,
Harmonia maior, com voz sentida.
Levanta por a praia inhabitada.
Deseja lograr vida prolongada
E delia está chorando a despedida.
Com grande saudade da partida.
Celebra o triste fim da sua jornada.
Assi, Senhora minha, quando eu via
O triste fim que davam meus amores.
Estando posto já no extremo fio.
Com mais suave accento de harmonia
Descantei,j)or os vossos desfavores,
La vuestra falsa fé y el amor mio.
(Soneto 43).
(a) Parece-me que deve ler-se de.
IDO
Onde acharei lugar tão apartado
E tão isento em tudo da ventura,
Que, não digo eu de humana criatura.
Mas nem de feras seja frequentado ?
Algum bosque medonho e carregado
Ou selva solitária, triste e escura,
Sem fonte clara ou plácida verdura,
Emfim, lugar conforme a meu cuidado ?
Porque alli, nas entranhas dos penedos.
Em vida morto, sepultado em vida.
Me queixe copiosa e livremente ?
Que, pois a minha pena é sem medida,
Alli não serei triste em dias ledos
E dias tristes me farão contente.
(Soneto 181).
E, depois dessas crises de lagrimas, escrevia o poeta
Pois meus olhos não cansam de chorar
Tristezas, não cansadas de cansar-me,
Pois não se abranda o fogo, em que abrasar-me
Pôde quem eu jamais pude abrandar :
Não canse o cego Amor de me guiar
Onde nunca de lá possa tornar-me,
Nem deixe o níundo todo de escutar-me,
Emquanto a fraca voz me não deixar.
E se em montes, se em prados, e se em vales
Piedade mora alguma, algum amor
Em feras, plantas, aves, pedras, aguas.
Ouçam a longa historia de meus males
E curem sua dôr com minha dôr ;
Que grandes maguas podem curar maguas.
(Soneto 67).
De vós me parto, ó vida, e em tal mudança
Sinto vivo da morte o sentimento.
Não sei para que é ter contentamento.
Se mais ha de perder quem mais alcança.
Mas dou-vos esta firme segurança :
Que, posto que me mate o meu tormento,
Por as aguas do eterno esquecimento
Segura passará minha lembrança.
IDÍ
Antes sem vós meus olhos se entristeçam,
Que com cousa outra alguma se contentem ;
Antes os esqueçais, que vos esqueçam.
Antes nesta lembrança se atormentem,
Que com esquecimento desmereçam
A gloria que em soffrer tal pena sentem.
(Soneto 22).
Suspiros intiammados, que cantais
A tristeza com que vivi tão ledo,
Eu morro e não vos levo, porque hei medo
Que ao passar do Letheio vos percais.
Escriptos para sempre já ficais.
Onde vos mostrarão todos co dedo,
Como exemplo de males ; e eu concedo
Que para aviso de outros estejais.
Em quem, pois, virdes largas esperanças
De Amor e da Fortuna (cujos danos
Alguns terão por bem-aventuranças),
Dizei-lhe que os servistes muitos annos,
E que em Fortuna tudo são mudanças,
E que em Amor não ha senão enganos.
(Soneto 73).
Como não era de appeiecer a morte, para quem tanto
soílria, para quem não via outra maneira de sair do abysmo
infernal do seu tormento ( i ) !
(1) Queixando-se do Amor, diz o poeta :
. . . Por usar de suas isenções.
Buscou fingidas causas de matar-me ;
Que, para derribar-me
A este abysmo infernal do roeu tormento.
Nunca soberbo foi meu pensamento.
Nem pretendeu mais alto Icvantar-sc
D'aquillo que ellc quis ; e se cllc ordena
Que eu pague seu ousado atrevimento, etc.
(Canção 2.*).
l52
Posto me tem Fortuna em tal estado,
E tanto a seus pés me tem rendido 1
Não tenho que perder, já de perdido.
Nem tenho que mudar, já de mudado !
Todo bem para mi é acabado ;
D'aqui dou o viver já por vivido ;
Que aonde o mal é tão conhecido,
Também o viver mais será 'scusado.
Se me basta querer, a morte quero.
Que bem outra esperança não convém,
E curarei um mal com outro mal.
E, pois do bem tão pouco bem espero,
Já que o mal este só remédio tem,
Não me culpem em quVer remédio tal.
(Soneto 284).
Mas a morte, a não ser por um acto condemnavel, nem
sempre está ás nossas ordens. Que fazer então? Desistir do
alio pensamento, ou continuar a soífrer por causa delle?
Vejamos a luta que se travou na alma do amargurado
poeta.
Já é tempo, já, que minha confiança
Se desça de uma falsa opinião ;
Mas Amor não se rege por razão.
Não posso perder, logo, a esperança ;
A vida si, que uma áspera mudança
Não deixa viver tanto um coração,
E eu só na morte tenho a salvação.
Si ; mas quem a deseja não a alcança.
Forçado é logo que eu espere e viva.
Ah dura lei do Amor, que não consente
Quietação numa alma, que é captiva !
Se hei de viver emfim forçadamente,
Para que quero a gloria fugitiva
De uma esperança vã que me atormente ?
(Soneto 49).
Esta canção, escripta em Ceuta, fecha assim :
Canção, não mais ; que já não sei que diga.
Mas, porque a dor me seja menos forte.
Diga o pregão a causa desta morte.
i53
Mas eram tão profundas as raizes que essa esperança vã
tinha lançado no pobre coração do poeta! Não era melhor
softrer ?
Quando a suprema dor muito me aperta,
Se digo que desejo esquecimento,
L força que se faz ao pensamento,
De que a vontade livre desconcerta.
Assi de erro tão grave me desperta
A luz do bem regido intendimento,
Que mostra ser engano ou fingimento
Dizer que em tal descanso mais se acerta.
Porque essa própria imagem, que na mente
Me representa o bem de que careço,
Faz- mo d*um certo modo ser presente.
Ditosa é logo a pena que padeço.
Pois que da causa delia em mi se sente
Um bem que, inda sem ver-vos, reconheço.
(Soneto 146).
Lembranças saudosas, se cuidais
De me acabar a vida neste estado.
Não vivo com meu mal tão enganado,
Que não espere delle muito mais.
De longo tempo já me costumais
A viver de algum bem desesperado ;
Já tenho co a Fortuna concertado
De soíTrer os tormentos que me dais.
Atada ao remo tenho a paciência.
Para quantos desgostos der a vida.
Cuide quanto quiser o pensamento;
Que, pois não posso ter mais resistência
Para tão dura queda, de subida,
Aparar-lhe-ei debaixo o soffrimento.
(Soneto 52).
Por fim, não houve remédio senão ceder. A Razão ficou
victoriosa do Amor (i).
^
\
( I ) Não quer isto dizer que o poeta nunca mais tomasse a pensar
na infanta. Desistiu de vez, é verdade, da sua louca pretençSo, mas a
magem querida, como veremos, permaneceu-lhe na alma até á morte.
i54
Quanta incerta esperança, quanto engano !
Quanto viver de falsos pensamentos !
Pois todos vão fazer seus fundamentos
Só no mesmo em que está seu próprio dano.
Na incerta vida estribam de um humano ;
Dão credito a palavras, que são ventos,
Choram despois as horas e os momentos.
Que riram com mais gosto em todo o anno.
Não haja em apparencias confianças ;
Entendei que o viver é de emprestado ;
Que o de que vive o mundo são mudanças.
Mudai, pois, o sentido e o cuidado,
Somente amando aquellas esperanças
Que duram para sempre com o amado.
(Soneto 232).
Sempre a Razão vencida foi de Amor ;
Mas, porque assi o pedia o coração (i),
Quis Amor ser vencido da Razão.
Ora que caso pôde haver maior ?
Novo modo de morte e nova dor !
Estranheza de grande admiração !
Pois emfim seu vigor perde a affeição,
Porque não perca a pena seu vigor.
Fraqueza, nunca a houve no querer.
Mas antes muito mais se esforça assim
Um contrario com outro, por vencer.
Mas a Razão, que a luta vence em fim,
Não creio que é Razão, mas deve ser
Inclinação, que eu tenho contra mim.
(Soneto 149).
E O poeta, forçado a renunciar aos seus altos pensamentos,
começou a lembrar-se outra vez da menina dos olhos verdes.
(i) Foi o coração que pediu ao Amor se deixasse vencer da Razão.
Isto é : foi por amor á infanta que o poeta deixou de a amar.
ly
daquella cujo claro gesto ma impresso tia sua alma:
(Se) comnosco também se achara aquella
Cuja lembrança e cujo claro gesto
Na alma somente vejo, porque nella
Está em essência puro e manifesto. . .
(Epistola 1.% XXVI, 1-4).
Com que saudades se não recordaria elle agora dos des-
preoccupados tempos em que namorava a gentil menina!
Como lhe não acudiriam á memoria aquelles deliciosos versos
com que, fingindo uma paixão que não tinha, procurava capti-
var um coração só apparentemente esquivo!
Mote
Menina formosa e crua.
Bem sei eu
Quem deixara de ser seu.
Se vós quiséreis ser sua.
■Voltas
Nos olhos e na feição
Vos vi, quando vos olhava,
Tanta graça, que vos dava
De graça este coração.
Não no quisestes, de crua.
Por ser meu . . .
Se outrem vos dera o seu.
Pode ser fôreis mais sua.
Mote (alheio)
Menina dos olhos verdes,
Porque me não vedes ?
iDb
Vo.Vjs
Elles verdes são,
E têm por usança,
Na côr, esperança,
E nas obras não.
Vossa condição
Não é de olhos verdes,
Porque me não vedes.
Verdes não o são,
No que alcanço delles :
Verdes são aquelles,
Que esperanças dão.
Se na condição
• Está serem verdes,
Porque me não vedes ?
Para a solução da mais dolorosa crise que o poeta atravessou
na sua tão atormentada vida, muito devem ter contribuído,
creio eu, as noticias que os seus amigos não deixariam de
lhe mandar para Ceuta (i), relativas ao próximo casamento
da infanta com o herdeiro do throno de Espanha. Essa crise,
com eífeito, coincide precisamente com um dos períodos em
que Carlos V e a rainha D. Leonor mais empenhados anda-
ram em que ella casasse.
Foi talvez ao receber de Lisboa alguma carta mais cir-
(i) Habituado a receber noticias que lhe não agradavam, o poeta
escrevia de Ceuta :
Não quero mais senão que largamente,
Senhor, me mandeis novas dessa terra.
Que alguma delias me fará contente.
(Elegia 2.*).
.57
cumstanciada e mais precisa sobre o assumpto, que o poeta
escreveu com lagrimas de sangue este admirável soneto:
O dia em que eu naci moura e pereça ;
Não o queira jamais o tempo dar ;
Não torne mais ao mundo e, se tornar,
Eclipse nesse passo o sol padeça.
A luz lhe falte, o ceu se lhe escureça;
Mostre o mundo sinais de se acabar;
Naçam-lhe monstros, sangue chova o ar;
A mãe ao próprio filho não conheça.
As pessoas, pasmadas de ignorantes.
As lagrimas no rostro, a cor perdida,
Cuidem que o mundo já se destruiu.
Oh gente temerosa, não te espantes.
Que este dia deitou ao mundo a vida
Mais desventurada que se viu (i).
íi) Cancioneiro de L. Franco Correia (fl. i32). Juromenha reproduz
o soneto sob o n." 339, alterando e estropiando sem motivo o i.** verso
e o 5.**, e corrigindo assim o ultimo, sem qualquer indicação de que ha
aqui uma emenda :
Mais desgraçada que jamais se viu.
Direi de passagem que no mesmo Cancioneiro se encontra mais de
um soneto escripto em Ceuta. O estado do texto, porém, deixa bastante
a desejar, como a desejar deixam também as reproducções que delle
se tem feito e de que tenho conhecimento. Cf. a fl. 139 o soneto que
começa :
Lembranças tristes, pêra que gastais tempo
Em cansar mais um coração cansado ?
Contentai-vos em me ver em tal estado,
Não queirais de mim mor vencimento.
Eail. 140:
Saudades m^atormentS cruamente.
Saudades de meu bem passado ;
Mas são eu a tantos males condenado
Sem rezão por que posso ser ausente.
S8
A meu ver, reportam-se também ao tempo do exilio em
Ceuta, e delle datam, as celebres redondilhas que começam
Sôbolos (i) rios que vão (2).
Inspirando-se no bello psalmo i36 (3), o poeta dá-nos conta
de duas phases por que alli passou o seu espirito, relativa-
mente á infanta.
(i) Talvez: Sobre los. Cf. Lusíadas, vii, 4, i e 5, i : Vede los alie-
mães; Vede lo duro inglês.
(2) Palavras de W. Storck : «Anteriormente, datei esta grandiosa
canção, que é, no sentir de muitos, a mais sublime e altisonante de
todas as poesias lyricas do poeta, dos dias immediatos ao naufrágio nas
costas de Cambodja... Mas agora... vejo-me compellido a impugnar
aquelle parecer... Penso... que as redondilhas... surgiram na mente
inspirada do grande vate durante aquelles quarenta dias em que vogava
de Gôa para Malacca (abril e maio de i556j». Vida de Camões, p. 562.
Cf. p. 53i : «Só assim comprehenderemos (o illustre camonista refere-se
aos vicios que corroiam os portugueses no Oriente) como foi que o
Camões chamou a Gôa Babel da índia ; porque é que considerava deS'
terro a sua estada no Oriente ; e ainda porque é que um poeta, que até
então cantara o seu amor, se sentou melancholicamente sonhando nas
ribeiras de Babel (isto é, nas margens goensesj, entoando, em vez de
cânticos de Zião, ou canções trovadorescas, apenas versos luctuosos de
desolação e desconforto».
(3) Eis como principia este psalmo, na Vulgata ; « Super Jlumina
Babylonis illic sedimus et flevimus, cum recordaremur Sion». Assim se
lastimam os judeus captivos nas margens do Euphrates. Lêa-se agora a
primeira quintilha de Camões :
Sôbolos rios que vão
Por Babylonia, me achei.
Onde sentado chorei
As lembranças de Sião
E quanto nella passei.
Que é, porém, Babylonia ? Que são os seus rios ? Que é Sião ?
u->9
A primeira é o propósito de não mais entoar cânticos
d'amor, muito embora nunca haja de esquecer aquella que
os havia inspirado. Isto é: o poeta desiste das suas preten-
ções, mas guardará no coração a imagem da bem-amada.
Como homem que, por exemplo
Dos transes em que se achou,
Despois que a guerra deixou,
Pelas paredes do templo
Suas armas pendurou :
Dizem-no estas estancias (2." e g.") :
Alli um rio corrente
De meus olhos foi manado,
E tudo bem comparado :
Babylonia ao mal presente,
Sião ao tempo passado.
Bem são rios estas aguas,
Com que banho este papel ;
Bem parecem ser cruel
Variedade de maguas
E confusão de Babel.
Babylonia é a amargurada situação do poeta, ao escrever no exilio
as incomparáveis redondilhas (assim lhes chama também W. Storck,
p. 532) ; Sião são as doces lembranças do tempo passado na pátria.
Alli lembranças contentes
Na alma se representaram,
E minhas cousas ausentes
Se fizeram tão presentes,
Como se nunca passaram.
l()0
Assi, despois que assentei
Que tudo o tempo gastava,
Da tristeza que tomei,
Nos salgueiros pendurei
Os órgãos com que cantava (i).
Aquelle instrumento ledo
Deixei da vida passada,
Dizendo : musica amada,
Deixo-vos neste arvoredo,
A memoria consagrada.
Frauta minha, que, tangendo,
Os montes fazíeis vir
Para onde estáveis, correndo,
E as aguas, que iam descendo,
Tornavam logo a subir,
Jamais vos não ouvirão
Os tigres, que se amansavam,
E as ovelhas, que pastavam.
Das hervas se fartarão,
Que, por vos ouvir, deixavam.
Já não fareis docemente
Em rosas tornar abrolhos
Na ribeira florecente.
Nem poreis freio á corrente,
E mais se for dos meus olhos.
Não movereis á espessura.
Nem podereis já trazer
Atrás vós a fonte pura.
Pois não pudestes mover
Desconcertos da ventura.
(i) Cf. psalmo cii., v. 2 : «/« salicibus in médio eius suspendimus or-
gana nostra». Sobre a significação da palavra organa lê-se em Rich :
«Par extension, ce nom est donné surtout aux instruments de musique,..,
et, parmi eux, plus particulièrement à celui dont vient notre orgue».
Dictionnaire des antiquités romaines et grecques, v. Organum (Paris,
.873).
ibi
Ficareis offerecida
A Fama, que sempre vela,
Frauta, de mi tão querida,
Porque, mudando-se a vida
Se mudam os gostos delia.
Mas — deixar nesta espessura
O canto da mocidade —
Não cuide a gente futura
Que será obra da idade
O que é força da ventura.
Que idade, tempo e espanto
De ver quão ligeiro passe,
Nunca em mi poderão tanto
Que, posto que deixo o canto,
A causa delle deixasse.
Mas em tristezas e nojos,
Em gosto e contentamento.
Por sol, por neve, por vento,
Tendré presente á los ojos
Por qitien miiero tan contento ( i ) .
Órgãos e frauta deixava,
Despojo meu tão querido.
No salgueiro que alli estava,
Que para tropheu ficava
De quem me tinha vencido.
(i) Como fonte destes dous versos cita W. Storck (5. Gedichte,
I, 332) a seguinte passagem de Boscan (soneto i5) :
Donde quiera terné siempre presentes
Los ojos por quien muero tan contento.
II R. 3394
iCm
Porque não canta, porém, o desolado poeta, ao menos
para minorar as suas maguas ?
. . . Lembranças da affeição,
Que alli captivo me tinha,
Me perguntaram então (i)
— Que era da musica minha,
Que eu cantava em Sião ?
Que foi daquelle cantar.
Das gentes tão celebrado ?
Porque o deixava de usar,
Pois sempre ajuda a passar
Qualquer trabalho passado (2) ?
Eis como elle responde:
Eu que estas cousas senti
Na alma, de maguas tão cheia,
— Como dirá, respondi,
Quem alheio est.í de si
Doce canto em terra alheia (3) ?
Como poderá cantar
Quem em choro banha o peito ?
Porque, se quem trabalhar
Canta por menos cansar,
Eu só descansos engeito ;
(1) No psalmo i36, quem pergunta aos judeus captivos porque não
cantam, são os próprios inimigos que os levaram para o exilio. nQuia
illic interrogaveriint nos, qui captivos duxerunt nos, verba cantionum;
Et qui abduxerunt nos : Hymnum cantate nobis de canticis Sion» (v. 3).
(2) Não deverá ler-se pesado f
(3) Psalmo i36, v. 4 : uQuomodo cantabimus canticum Domini in terra
aliena t»
63
Que não parece razão,
Nem seria cousa idonia,
Por abrandar a paixão
Que cantasse em Babylonia
As cantigas de Sião.
Que, quando a muita graveza
De saudade quebrante
Esta vital fortaleza,
Antes morra de tristeza.
Que, por abrandá-la, cante.
Que, se o fino pensamento
Só na tristeza consiste,
Não tenho medo ao tormento ;
Que morrer de puro triste
Que maior contentamento ?
Nem na frauta cantarei
O que passo e passei já,
Nem menos o escreverei.
Porque a penna cansará
E eu não descansarei.
Que se vida tão pequena
Se accrescenta em terra estranha,
E se Amor assim o ordena,
Razão é que canse a penna
De escrever pena tamanha.
Porém se, para assentar
O que sente o coração,
A penna já me cansar,
Não canse para voar
A memoria em Sião.
Em seguida, num bello rapto, exclama o poeta, referindo-sc
a Sião, á terra da pátria, que no fundo da sua alma identi-
fica com a bem- amada (i):
(i) Como já fica dicto, Sião, para o poeta, era o bem passado
na pátria, consubstanciado no amor da infanta.
Lêa-se também a estancia 4.', cm que elle, tendo-sc imaginado em
164
Terra bem-aventurnda,
Se, por algum movimento,
Da alma me fores tirada,
Minha penna seja dada
A perpetuo esquecimento (i) !
A pena deste desterro,
Que eu mais desejo esculpida
Em pedra ou em duro ferro,
Essa nunca seja ouvida,
Em castigo de meu erro !
E se eu cantar quiser.
Em Babylonia sujeito,
Hierusalem, sem te ver,
A voz, quando a mover.
Se me congele no peito !
A minha lingua se apegue
As fauces, pois te perdi.
Se, emquanto viver assi.
Houver tempo em que te negue
Ou que me esqueça de ti (2) !
sonhos sobre os rios de Babylonia, continua a lastimar-se, depois de
acordado :
Alli, despois de acordado
(Co rosto banhado em agua)
Deste sonho imaginado,
Vi que todo o bem passado
Não é gosto, mas é magua.
Apesar disso, como esse bem lhe custava a esquecer ! Como elle,
na primeira parte das presentes redondilhas, declara que ha de ter sem-
pre presente aos olhos aquella por quem morreria contente!
(i) «5í oblitus fuero tiii, Jerusalém, oblivioni detur dextera mea, diz
o psalmista.
(2) «Adhaereat lingua mea faucibus méis, si non meminero tui; Si
non proposuero Jerusalém in principio laetitiae meae I» (Ps. cit., v. 6).
i65
Passemos agora á segunda parte do formoso poemeto,
na qual Camões renuncia ao amor profano, para se elevar,
em mysticos arroubos, á contemplação da belleza eterna (i).
Eis como elle prosegue, depois da ultima quintilha que
fica transcripta:
Mas ó tu, terra de gloria,
Se eu nunca vi tua essência,
Como me lembras na ausência ?
Não me lembras na memoria,
Se não na reminiscência ;
Que a alma é tábua rasa,
Que, com a escripta doutrina
Celeste, tanto imagina,
Que voa da própria casa
E sobe á pátria divina.
Não é logo a saudade
Das terras onde nasceu
A carne, mas é do ceu,
Daquella santa cidade.
Donde esta alma descendeu (2).
E aquella humana figura.
Que cá me pôde (3) alterar.
Não c quem se ha de buscar;
É raio da formosura,
Que só se deve de amar (4).
(i) Trata-se, por certo, de um aditamento, escripio quando o poeta
se resolveu a desistir, sem reservas, dos setis altos pensamentos.
(2) Sião, agora, já não é a terra onde o poeta nasceu, já não é o bem
passado ; c a pátria celeste, de que alma, de lá vinda, conserva reminis-
cências.
(3) Leio pôde e não pôde.
(4) Quantas lagrimas não estão por detrás destes cinco versos 1 Que
dolorosa luta não suppõem cUes, travada durante longos meses no cé-
rebro c no coração do amargurado poeta ! Que abysmo entre estas
i66
Que os olhos e a luz (i), que ateia
O fogo que cá sujeita,
— Não do sol, nem da candeia (2)
É sombra daquella ideia,
Que em Deus está mais perfeita.
E os (3) que cá me captivaram.
São poderosos affeitos,
Que os corações têm sujeitos.
Sophistas, que me ensinaram
Maus caminhos por direitos !
redondilhas e as que, em differentes edições, se lhes seguem quasi
immediatamente :
Dama de estranho primor.
Se vos for
Pesada minha firmeza.
Olhai não me deis tristeza,
Porque a converto em amor.
Se cuidais
De me matar, quando usais
De esquivança,
Irei tomar por vingança
Amar-vos cada vez mais !
E para não succumbir, o pobre coração dilacerado refugia-se no
amor divino, como tantos outros o tem feito em crises análogas. Este
estado de espirito, porém, dada a índole do poeta, não deve ter sido
muito duradoiro. Na epistola 1.^ já elle suspira pela menina dos olhos
verdes.
(1) Hendiadys, por a lii^ dos olhos, se é que o poeta não escreveu :
Que a liij dos olhos, que ateia.
(2) Não é uma luz natural ; é sombra etc.
(3) Os affeitos ou affectos do verso seguinte.
167
Destes o mando tyranno
Me obriga, com desatino,
A cantar ao som do dano
Cantares de amor profano,
Por versos de amor divino.
Mas eu, lustrado co santo
Raio, na terra da dor.
De confusões e de espanto.
Como (i) hei de cantar o canto.
Que só se deve ao Senhor ?
Tanto pôde o beneficio
Da graça, que dá saúde,
Que ordena que a vida mude ;
E o que eu tomei por vicio
Me faz grau para a virtude.
E faz que este natural
Amor, que tanto se preza.
Suba da sombra ao real.
Da particular belleza
Para a belleza geral.
E O convertido poeta promette nunca mais cantar o amor
profano, nem deixar-se dominar por mundanos accidentes.
Fique logo pendurada
A frauta com que tangi,
Ó Hierusalem sagrada,
E tome a lyra dourada.
Para só cantar de ti ;
Não captivo e ferrolhado
Na Babylonia infernal (2),
Mas dos vicios desatado
E cá desta a ti levado.
Pátria minha natural.
(1) Parece-mc que deve ler-se Não.
(2) A Babylonia de que agora falia o poeta não é nem a terra do
desterro nem o mai presente : é o mundo com as suas scducçõcs.
i68
E se eu mais der a cerviz
A mundanos accidentes,
Duros, tyrannos, urgentes,
Risque-se quanto já fiz
Do grão livro dos viventes ;
E tomando já na mão
A lyra santa e capaz
De outra mais alta invenção,
Calle-se esta confusão,
Cante-se a visão da paz.
Ouça-me o pastor e o rei;
Retumbe este accento santo ;
Mova-se no mundo espanto.
Que do mal que já cantei
A palinodia já canto.
A vós só me quero ir,
Senhor e grão capitão
Da alta torre de Sião,
A qual não posso subir,
Se me vós não dais a mão.
E O poeta insiste em invocar o auxilio divino contra os
affectos humanos, que o têm dominado.
E aquelle poder tão duro
Dos affectos com que venho,
Que incendem alma e ingenho.
Que já me entraram o muro
Do livre arbítrio que tenho,
Estes, que tão furiosos
Gritando vem a escalar-me.
Maus espiritos danosos,
Que querem como forçosos
Do alicerce derribar-me,
Derribai-os, fiquem sós.
De forças fracos, imbelles.
Porque não podemos nós
Nem com elles ir a vós.
Nem sem vós tirar-nos delles.
lóq
Não basta minha fraqueza
Para me dar defensão,
Se vós, santo capitão,
Nesta minha fortaleza
Não puserdes guarnição.
E depois de se referir aos vicios carnaes e aos meios de
os debellar, Camões termina, fallando nestes termos da pá-
tria celeste:
Quem do vil contentamento
Cá deste mundo visibil,
Quanto ao homem for possibil,
Passar logo o intendimento
Para o mundo intelligibil,
Alli achará alegria,
Em tudo perfeita, e cheia
De tão suave harmonia,
Que nem por pouca recreia (i).
Nem por sobeja enfastia.
Alli verá tão profundo
Mysterio na summa Alteza,
Que, vencida a natureza.
Os mores faustos do mundo
Julgue por maior baixeza.
Ó tu, divino aposento.
Minha pátria singular.
Se, só com te imaginar,
Tanto sobe o entendimento.
Que fará se em ti se achar ?
Ditoso quem se partir
Para ti, terra excellente,
Tão justo c tão penitente,
Que, depois de a ti subir,
L,á descanse eternamente !
( I ) Não leria o poeta escripto esc'asseia f
lyo
Como fica dito, muito deviam ter contribuido para a solução
da crise, por que em Ceuta passou a aitribulada alma do
poeta, as noticias que de Lisboa não deixariam de lhe ser
iransmittidas a respeito do projectado casamento da infanta
com o príncipe herdeiro da coroa de Espanha (i).
Não era, com effeito, uma rematada loucura da parte de
Camões continuar a mostrar-se apaixonado por quem não
só se achava em tão elevada plana, mas delia pretendia
ainda ascender a um dos primeiros, se não ao primeiro throno
do mundo ?
Não foi o próprio poeta que no começo da sua paixão
escreveu estes versos?
Senhora, quando imagino
O divino
Vosso gesto, claro e bello,
De alguma hora merecê-lo
Me conheço por indino ;
( 1 ) Sobre o estado em que se achavam as negociações para este enlace,
informa-nos a carta, já anteriormente citada, que D. João III dirigiu a
Lourenço Pires de Távora, em 27 de junho de i55o. São delia estas
palavras : «Agora por parte de la Infanta Dona Maria fue apuntado, con
todas las buenas palabras que ella en tal caso deuia dezir, que tenia
entendido de buena parte que este negocio de su casamiento con el Prín-
cipe se hablaua con buenos términos y estauan las voluntades de allà
tan dispuestas para esso, que sabiendose que la tenia yo de hazerse, se
concluiria de todo el descanso de la Infanta mi hermana». Quer dizer:
era tempo e mais que tempo que D. João III interviesse para impedir
el descanso de la Infanta su hermana. O dinheiro que elle tinha a dar
valia muito mais que a satisfação das legitimas aspirações da illustre
senhora, victima de odiosos interesses materiais, mascarados por vezes
com o nome não menos odioso de. . . conveniências politicas !
171
\
Que, se sento
Ser altivo o pensamento
Que me inclina (i),
Vejo que Amor vos destina
Para mór merecimento.
Porque é vosso lindo aspeito
Tão perfeito,
Que na mais pequena parte
Não pôde, por nenhuma arte (2),
Comprender o humano peito.
Nem me espanta
Porque, se tivestes tanta
Formosura,
Vossa suprema ventura
Mais alta vos levanta (3).
E verdade que então o poeta proseguia, pouco abaixo
E se cuidais, por ventura,
Que a natura
Contém outro regimento,
Sabei que meu pensamento
Em vosso gesto se apura.
Nem me engano.
Que mudei o ser humano,
Gomo pude.
Em divino, por virtude
De gesto tão soberano.
Assim que, feito immortal
De mortal (4),
Outro nome tomarei
De ser vosso, pois mudei
O costume natural.
(i) Correcção de W. Slorck, cm \c/ de itulmou.
(2) Talvez : Não o pôde; por iienhffa arte.
(3) Por certo alevcinta c talvez alto.
(4) No texto : Ou mortal. W. Slorck propÔc Eu*
17^
Também vós,
Pelo bem que em vós se pôs,
Sereis dina
De serdes por vós divina,
Mas eu divino por vós.
Mas as decepções e os trabalhos por que tinha passado o
pobre poeta haviam-no sufficientemente elucidado a respeito
desta transformação. Agora já não tinha duvidas acerca da
resposta a dar á pergunta formulada no ultimo verso do'
soneto iSy:
Eu que espero de um ser que é mais que humano ?
Que tempo durou o exilio do poeta em Ceuta? Não me
parece fácil averiguá-lo, sobretudo se for posta de lado a
opinião de que elle foi alli cumprir dous annos de serviço militar.
De volta de Ceuta
Um dos artigos fundamentais do programma de vida nova,
traçado em Ceuta por Camões, era, segundo vimos, a sua
reconciliação com aquella
Cuja lembrança e cujo claro gesto
lhe reappareciam agora na ulcerada alma, como que a en-
cobrir o incommensuravel vácuo que nella se fizera.
Foram, porém, baldados todos os esforços empregados
por parte do poeta para realizar este intento.
Não lhe valeram satisfações, rogos nem queixumes, ex-
.73
pressos com toda a eloquência em admiráveis versos (eglo-
gas 3.*, 4.* e 5.*).
Caminha u uia luJo o caminhante
E, emfim, lhe chega a noite em que descansa ;
Trabalha na tormenta o navegante,
Traz-lhe a clara manhã feliz bonança ;
Recobra o fruto fértil e abundante
Da terra o lavrador, se nella cansa :
Mas eu de meu cuidado e mal tão forte
Tormento espero só, só crua morte.
De ouvir meu dano, as rosas matutinas
Condoídas se cerram, se emmurchecem ;
Com meu suspiro ardente as cores finas
Perdem o cravo, o lirio, e não florecem.
Co'a roxa aurora as pallidas boninas,
Em vez de se alegrarem, se entristecem.
Deixam seu canto Progne e Philomena (i),
Que mais lhes doe, que a sua, a minha pena.
Responde o monte concavo a meus ais,
E tu, como aspid, cerras-lhe o ouvido ;
Os indómitos, feros animais,
Sem humano sentir, mostram sentido ;
Mas em ti minhas dores desiguais
Nunca movem o peito endurecido.
Por muito que te chame, não respondes,
E, quanto mais te busco, mais te escondes.
Naquella parte donde costumavas
Apascentar meus olhos e teu gado,
Alli donde mil vezes me mostravas
Que era o pastor de ti mais desejado.
(i) Escrevendo Philomena por Philomela (o rouxinol), o poeta tinha
presentes, além d'outros, estes versos da cgloga do brando e doce Garci>
lasso Al visorey de Nápoles :
Con la pesada voz retumba y suena ^
la blanda Philomena.
74
Vezes mil te busquei, por ver se davas
Algum breve descanso a meu cuidado.
Busco-te em vão no valle, em vão no monte,
Qual o ferido cervo busca a fonte.
Este lugar, de ti desamparado.
Em cujas sombras frias já folgaste.
Agora triste, escuro, é já tornado.
Que todo o bem comtigo nos levaste.
Eras tu nosso sol mais desejado ;
Não temos luz, despois que nos deixaste.
Torna, meu claro sol, torna meu bem ;
Qual é o Josué que te detém ?
Despois que deste valle te apartaste.
Não pára já algum gado, com secura ;
Secou-se o campo, desque lhe negaste
Dos teus formosos olhos a luz pura ;
Secou-se a fonte donde já te olhaste,
Quando menos, que agora, áspera e dura.
Nega sem ti a terra, ouvindo gritos,
As cabras pasto, e leite aos cabritos.
Sem ti, doce cruel minha inimiga,
A clara luz escura me parece;
Este ribeiro, quando a dor me obriga.
Com meu chorar por ti contino crece ;
Não ha fera, a que a fome não persiga ;
Algum prado sem ti já não fíorece.
Cegos estão meus olhos, nada vem.
Porque não podem ver seu claro bem.
Torna, pois, já, pastora, ao nosso prado.
Se restituir-lhe queres a alegria ;
Alegrarás o valle, o campo, o gado,
E aquelle espelho teu da fonte fria.
Torna, torna, meu sol tão desejado ;
Farás a noite escura claro dia ;
E alegra (i) já esta vida magoada.
Em que só tua ausência é parca irada.
M
(i) Talvez Alegra.
Vem, como quando (i) o raio transparente
Deste nosso horizonte, que, escondido.
Deixa um certo temor á mortal gente,
Causado de ver o orbe escurecido ;
E quando torna a vir, claro e luzente,
Alegra o mundo todo entristecido :
Que assi é para mi tua luz pura
Claro sol, como a ausência noite escura.
Mas tu, 'squecida já do bem passado
E do primeiro amor que me mostraste.
Teu coração de mi tens apartado,
Não menos que do valle te apartaste.
Não te quero eu a ti mais que a meu gado ?
Não sou eu mesmo aquelle que tu amaste ?
Onde o meu erro viste ou desvario.
Que pô^íc mcrcccr-tc um tal desvio ?
Se te apartas, por não ouvir meu rogo,
Onde estiveres te hei de importunar ;
Posto que vás por agua, ferro ou fogo,
Comtigo em toda a parte me has de achar ;
Que o fogo em que ardo e a agua em que me afogo,
Emquanto eu vivo fôr, hão de durar,
Pois o nó que me enlaça é de tal sorte.
Que não se ha de soltar em vida ou morte.
Neste meu coração sempre estarás ;
Emquanto a alma estiver com elle unida.
Também o meu esprito possuirás.
Despois que a alma do corpo fôr partida.
Por mais e mais que faças, não farás
Que deixe o amar-te nesta e css'outra vida.
Impossivel terá que eternamente
Aiistntf este* de mi, estando ausente (2).
llgloga 5.«, est. 14-20, 22-24, Sô-S;).
(1) Nio deverá ler-se: assim comof
(3) Apesar de aiuente, eitarát sempre presente.
/b
Foi improfícuo o recurso a pessoas de elevada posição
social, que, condoídas do pobre sonhador, despenhado da
altura das suas illusões, e receosas, por certo, de uma fu-
nesta recaída, se prestavam a ouvir-lhe os queixumes e sus-
piros magoados.
A quem darei queixumes namorados
Do meu pastor queixoso e namorado ?
A branda voz, suspiros maguados,
A causa porque na alma é maguado?
De quem serão seus males consolados ?
Quem lhe fará devido gasalhado ?
Só vós, Senhor famoso e excellente.
Especial em graças entre a gente.
Por partes mil lançando a phantasia.
Busquei na terra estrella que guiasse
Meu rudo verso, em cuja companhia
A santa piedade sempre andasse.
Luzente e clara, como a luz do dia,
Que o rudo engenho meu me allumiasse ;
E em vossas perfeições, grão Senhor, vejo
Ainda além cumprido o meu desejo.
A vós se dem (i), a quem junto se ha dado
Brandura, mansidão, engenho e arte.
De um esprito divino acompanhado.
Dos sobr'humanos um em toda a parte.
(i) Estas palavras ligam-se com o começo da i." estancia. Compa-
re-se a dedicatória de Boscan á duquesa de Soma :
A quien daré mis amorosos versos.
Que pretienden amor con virtud junto,
Y dessean tambien mostrarse hermosos ?
A ti, Senora, en quien todo esto cabe,
A ti se den, porquanto se carecen
Estas cosas que digo que pretienden,
En ti las hallaron complidamente.
Creio que era esta a ordem primitiva das estancias : i.", 3.", 2.» e 4.".
n
Em vós as graças todas se hão juntado ;
De vós em outras partes se reparte.
Sois claro raio, sois ardente chamma,
Gloria e louvor do tempo, asas da fama.
(Egloga 5.% est. i-3) (i).
Cantando por um valle docemente
Desciam dous pastores, quando Phebo
No reino Neptunino se escondia.
(i) Segundo W. Storck (Vida de Camões, p. 357-358), esta egloga
foi dirigida ao 2.«* conde de Linhares, D. Francisco de Noronha, havendo
no principio da 2.* estancia uma referencia á condessa D. Violante.
(Diga-se de passagem que neste tempo ainda lhes não tinha sido dado o
titulo. Só depois da renuncia do irmão mais velho, D. Ignacio de Noro-
nha, o braguilha, é que D. João III, em i556, declarou 2." conde de
Linhares o seu antigo embaixador na corte de França). L porém hoje
convicção minha : i.') que a egloga se refere a uma pessoa só; 2.®) que
essa pessoa era um prelado. Relêam-se as três estancias e repare-se nas
qualidades que o poeta attribue ao senhor famoso e excellente. Sobre o
assumpto já a sr." D. Carolina Michaelis escreveu em nota a Storck,
Vida de Camões, pag. cit. : «A engenhosa interpretação de Storck será
mais plausível para os que lerem a bella versão germânica, do que para
os portugueses que recorrem ao original, porque, emquanto aquella já
vem esclarecida, está este mal ponctuado e bastante obscuro. Os versos
II e 12, por exemplo («em cuja companhia a santa piedade sempre an-
dasse») e principalmente o 20 {*dos sobrehumanos um em toda a parte»)
ficam, ainda assim, um pouco enygmaticos, para mim pelo menos»».
Quem seria esse prelado í Presumo que é o ditoso Pinheiro do soneto
190, isto é, talvez o barcellense D. Rodrigo Pinheiro, que era bispo de An-
gra desde 1548 e esteve á frente da diocese do Porto desde i552 até 1572.
(Sobre a importância que na corte possuía este prelado, que era gover-
nador da casa do cível na occasião em que foi escrípta a egloga 5.%
veja-se, por exemplo, Barbosa Machado, Bibliotheca Lusitana, 111, 652).
Em D. António Pinheiro, bispo de Miranda e depois de Leiria e ao tempo
mestre do mallogrado príncipe herdeiro D. João, é escusado pensar, me
parece, pois esse só foi elevado á dignidade episcopal no reinado de
D. Sebastião, quando D. Julião d*Alva deixou o bispado de Miranda
em i565. Segundo alguns camonistas, o soneto 190 rcfere-se a D. Gon-
çalo Pinheiro, então bispo de Tanger e desembargador do paço.
13 K. 5>94
,78
De idade cada qual era mancebo,
Mas velho no cuidado, e descontente
Do que lhe elle causava parecia.
O que cada um dizia,
Lamentando seu mal, seu duro fado,
Não sou eu tão ousado.
Que o pretenda cantar sem vossa ajuda ;
Porque, se a minhti ruda
Frauta deste favor vosso for dina,
Posso escusar a fonte Caballina.
(Egloga4.% est. i.») (i).
(i) Esta egloga, segundo creio, é dirigida a D. Francisca de Aragão,
a tão formosa, como ajuizada dama da rainha D. Gatharina. Delia diz o
dr. J. Priebsch {Poesias inéditas de Caminha, Halle, 1898, p. xxxv-vi) :
«Raras vezes uma dama da corte portuguesa foi alvo de tantas e tão
enthusiasticas manifestações de admiração... Os poetas mais illustres
do seu tempo tributaram-lhe homenagem, cantando o esplendor da sua
belleza e lamentando a altivez do seu desdém».
Namorador incorrigivel, Camões, ao voltar do Oriente, enfileirou
também entre os apaixonados adoradores da que annos depois era nora
de S. Francisco de Borja. Lêa-se, por exemplo, o soneto 268 :
Este amor que vos tenho, limpo e puro,
De pensamento vil nunca tocado.
Em minha tenra idade começado,
Tê-lo dentro nesta alma só procuro.
De haver nelle mudança estou seguro.
Sem temer nenhum caso ou duro fado.
Nem o supremo bem ou baixo estado,
Nem o tempo presente nem futuro.
A bonina e a flor asinha passa ;
Tudo por terra o inverno e estio deita ;
Só para meu amor é sempre maio.
Mas ver-vos para mim, Senhora, escassa,
E que essa ingratidão tudo me enjeita,
Traz este meu amor sempre em desmaio.
Já agora também o soneto de despedida, quando a formosa senhora,
17(1
Nada conseguiram também as senhoras que se prestaram
a ser intermediarias, terceiras, no assumpto, e ás quais o
poeta se dirige nestas redondilhas:
Pois a tantas perdições,
Senhoras, quereis dar vida,
Ditosa seja a ferida,
Que tem tais cirurgiões.
em seguida ao seu casamento, acompanhou o marido para a corte do
imperador Rodolpho II :
Ai imiga cruel ! Que apartamento
É este que fazeis da pátria terra ?
Ai ! Quem do amado ninho vos desterra.
Gloria dos olhos, bem do pensamento ?
Is tentar da fortuna o movimento
E dos ventos cruéis a dura guerra ?
Ver brenhas d'ondas ? feito o mar em serra,
Levantado de um vento e de outro vento ?
Mas já que vos partis, sem vos partirdes,
Parta comvosco o ceu tanta ventura,
Que se avantaje áquella que esperardes.
E só desta verdade ide segura,
Que fazeis mais saudades com vos irdes,
Do que levais desejos por chegardes.
Servem de commentario a alguns versos deste soneto as seguintes
palavras do sr. dr. Sánchez Moguel {Reparaciones históricas, Madrid,
1894, p. 225) : «En el ano siguiente (líyô) debió verilicarse el matrimo-
nio de D. Juan (de Borja, que era embaixador de Philippe II na corte de
Lisboa desde 1369, e tinha enviuvado cm i575) y Dona Francisca, pues
de las pruebas para el hábito de Santiago dei hijo mayor de ambos,
Don Francisco de Borja, resulta que este nació em 1577, según unos
tesiigos en cl mar, según oiros en Génova . . Caminaban entonces
I). Juan y Dofía Francisca para Alemania, adonde iba D. Juan deEmba-
jador, á pesar de los ruegos de Dona Catalina á Felipe II para que le
hubiessc dado otro puesto, á causa de lo mal que probaba á Dofía Fran-
cisca el passajc de la mar»
A futura condessa de Ficalho, que ia ser niac k\ . rci
espanhol, ;7i7r/iVi-5e, 5em je /'^r/ir, sem deixar unid ,,.^.m,. v. ^ ração
ao seu desconsolado adorador.
*
i8o
Pois ventura
Me subiu a tanta altura,
Que me sejais valedoras,
Ditosa seja a tristura,
Que se cura
Por vossos rogos. Senhoras.
Ser minha pena mortal.
Já que intendeis que é assi,
Não quero fallar por mi.
Que por mi falia meu mal.
Sois formosas,
Haveis de ser piedosas.
Por ser tudo de uma côr ;
Que pois Amor vos fez rosas
Milagrosas,
Fazei milagres d'amor.
Pedi a quem vós sabeis
Que saiba de meu trabalho,
Não pelo que eu nisso valho,
Mas pelo que vós valeis.
Que o valer
De vosso alto merecer,
Com lh'o pedir de giolhos.
Fará que cm meu padecer
Possa ver
O poder que tem seus olhos.
Vossa muita formosura
Com a sua tanto vai.
Que me rio de meu mal.
Quando cuido em quem me cura.
A meus ais
Peço-vos que lhe valhais,
Damas, de Amor tão validas,
Que nunca tal dôr sintais,
Que queirais,
Onde não sejais queridas.
i8i
Olvidada e aborrecida por causa da infanta (i), exposta á
irrisão com expressões equivocas para a sua honra delicada,
a menina dos olhos perdes tinha o coração morto para o falso
cavalheiro ingrato (2), que ella tanto havia amado. Para
Falsos amores,
Falsos, maus, enganadores (3),
bastara uma vez.
(i) Mete (alheio)
Olvide y aborreci.
Volta
Hase de entender assi :
Que, desque os di mi cuidado,
A quantas huve mirado,
Olvide y aborreci.
(i) Cantiga velha
Falso cavalheiro ingrato !
Enganais-me !
Vós dizeis que eu vos mato,
E vós matais-me 1
Voltas
Costumadas artes são,
Para enganar innocencias.
Piedosas apparencias
Sobre isento coração.
Eu vos amo e vós, ingrato,
Magoais-me,
Dizendo que eu vos mato,.
E vós matais-me !
(3) Cantiga velha
Apariaram-sc os meus olhos
Do mi tão longe. . .
Falsos amores !
Falsos, maus, enganadores !
l82
Ao desolado poeta não restava senão lastimar a sua sorte
e explicar por outros amores a invencivel pertinácia da gentil
menina.
E pois fé verdadeira, amor perfeito,
Tormento desigual e vida triste,
Junta com um continuo soffrimento
E um mal, em que o mal todo, emfim, consiste.
Não puderam mover teu duro peito
A mostrares sequer contentamento
De ver o meu tormento,
Antes tudo, soberba, desprezaste,
E a outrem te entregaste,
Por nada me ficar em que esperasse.
Senão quando acabasse
A vida, a pesar meu, já tão cumprida.
Perca quem te perdeu também a vida.
(Egloga 4.«).
E a infanta? A infanta continuava a ser a obsessão con-
stante do poeta, apesar dos esforços que elle ernpregava para
afastar do seu espirito as doces lembranças da passada gloria.
Doces lembranças da passada gloria.
Que -me tirou fortuna roubadora,
Deixai-me descansar em paz uma hora.
Que comigo ganhais pouca victoria.
Voltas
Trataram-me com cautella.
Por me enganar mais asinha!
Dei-lhe posse da alma minha,
Foram-me fugir com ella.
Não ha vê-los, nem ha ve-la.
De mi tão longe. . .
Falsos amores !
Falsos, maus, enganadores !
i83
Impressa tenho na alma larga historia
Deste passado bem, que nunca fôra,
Ou fôra e não passara ; mas já agora
Em mi não pôde haver mais que a memoria.
Vivo em lembranças, morro de esquecido
De quem sempre devera ser lembrado,
Se lhe lembrara estado tão contente.
Oh quem tornar pudera a ser nascido !
Soubera-me lograr do bem passado,
Se conhecer soubera o mal presente !
(Soneto i8).
Amor, com a esperança já perdida,
Teu soberano templo visitei;
Por sinal do naufrágio que passei,
Em lugar dos vestidos, pus a vida.
Que mais queres de mi, pois destruida
Me tens a gloria toda que alcancei ?
Não cuides de render-me, que não sei
Tornar a entrar-me onde não ha saída.
Vês aqui a vida e a alma e a esperança,
Doces despojos de meu bem passado,
Em quanto o quis aquella que eu adoro.
Nelles podes tomar de mi vingança ;
E, se te queres inda mais vingado,
Contenta-te co as lagrimas que choro.
(Soneto 5o).
Pensamentos, que agora novamente
Cuidados vãos em mim resuscitais,
Dizei-me : E ainda vos não contentais
De ter, a quem vos tem, tão descontente ?
Que phantasia é esta, que presente
Cada hora ante os olhos me mostrais ?
Com uns sonhos tão vãos inda tentais
Quem, nem por sonhos, pódc ser contente ?
Vcjo-vos, pensamentos, alterados
E não quereis, de esquivos, declarar- me
Que é isto, que vos traz ião enleados?
Não me negueis, se andais para negar-me,
Porque, se contra mi 'stais levantados,
Eu vos ajudarei mesmo a matar-me.
(Soneto 93).
i84
Pois se nem mesmo em versos que se occupam ex professo
da menina dos olhos verdes, Camões deixa de se referir aos
seus passados amores !
Passado já algum tempo que os amores
De Almeno, por seu mal, eram passados,
Porque nunca Amor cumpre o que promette,
Entre uns verdes ulmeiros apartado,
Regando por o campo as brancas flores,
Em lagrimas cansadas se derrete.
Quando a linda pastora, que compete
Co monte em aspereza,
Co prado em gentileza.
Por quem o pastor triste endoudecia,
Por a praia do Tejo discorria
A lavar a beatilha e o trançado.
O sol já consentia
Que saísse da sombra o manso gado.
Já acordado daquelle pensamento^
Que tão desacordado sempre o teve (i).
Viu por acerto o bem que incerto tinha ;
E porque, donde o amor a mais se atreve,
Alli mais enfraquece o entendimento,
Não lhe soube dizer o que convinha.
(Egioga 3.% est. 1-2).
Pois se até ao invocar a musa inspiradora para o poema
épico que vai emprehender, se presente que o som vem
d'uma parte, mas que a pancada é em outra!
(i) Relêa-se o bellissimo soneto 279, já anteriormente transcripto e
que começa :
Doce sonho, suave e soberano.
Se por mais longo tempo me durara !
Ah ! quem de sonho tal nunca acordara,
Pois havia de ver tal desengano !
i85
Em vós tenho Hclicon, tenho Pégaso;
Em vós tenho Calhope e Thalia
E as outras sete irmãs, co fero Marte.
Em vós deixou Minerva sua vaUa ;
Em vós estão os sonhos do Parnaso ;
Das Pierides em vós se encerra a arte.
Com qualquer pouca parte,
Senhora, que me deis de ajuda vossa.
Podeis fazer que eu possa
Escurecer ao sol resplandecente ;
Podeis fazer que a gente
Em mi do grão poder vosso se espante
£ que vossos louvores sempre cante.
Podeis fazer que cresça de hora em hora
O nome Lusitano, e faça inveja
A Esmirna, que de Homero se engrandece.
Podeis fazer também que o mundo veja
Soar na ruda frauta o que a sonora
Cithara Mantuana só merece.
(Egloga 4.% est. i." e 2.*) (1).
(i) Como já fica dicto, esta egloga foi dirigida a D. Francisca de
Aragão. Na egloga 5.", escripta na mesma occasião, e bem assim no
soneto 190, allude também Camões á projectada epopea. Em Ceuta
ainda não pensava nella, como se infere da epistola i.% est. 23>a5, e se
vê do soneto 267, manifestamente contemporâneo desta epistola, e diri-
gido pelo poeta a um seu admirador, que também fazia versos :
Se a fortuna inquieta e mal olhada,
Que a justa lei do ceu comsigo infama,
A vida quieta, que ella mais desama,
Mc concedera, honesta e repousada.
Pudera ser que a Musa, alevantada
Com luz de mais ardente c viva flamma,
Fizera ao Tejo, lá «na pátria cama,
Adormecer ao som da lyra amada.
Porém, pois o destino trabalhoso,
Que me escurece a Musa fraca e lassa,
Louvor de tanto preço nSo sustenta,
A vossa, de louvar-mc pouco escassa,
Outro sogeito busque valeroso,
Tal qual cm vós ao mundo se apresenta.
86
Forçado a desistir dos seus altos pensamentos, não tendo
podido conseguir que a menina dos olhos perdes tornasse a
olhar para elle, ferido no coração e no amor próprio, o poeta
viu-se, com vergonha sua, fabula da gente, começou a servir
de assumpto á maledicência.
Vós, que escuitais em rimas derramado
Dos suspiros o som, que me alentava
Na juvenil idade, quando andava
Em outro em parte do que sou mudado,
Sabei que busca só, do já cantado
No tempo em que eu temia ou esperava,
De quem o mal provou, que eu tanto amava,
Piedade, e não perdão, o meu cuidado.
Pois vejo que tamanho sentimento
Só me rendeu ser fabula da gente
(Do que comigo mesmo me envergonho).
Sirva de exemplo claro meu tormento,
Com que todos conheçam claramente
Que quanto ao mundo apraz é breve sonho.
(Soneto loi) (i).
Como se não ririam dos desastres amorosos do apaixonado
poeta os seus inimigos litterarios, os que o apodavam de
(i) É certo que este soneto é, por assim dizer, uma tradução do
i.° soneto de Petrarca; mas não se segue d'ahi que nelle se não encon-
trem elementos autobiographicos do nosso poeta. Reproduzo o soneto
do poeta italiano, porque é um elemento de interpretação para o de
Camões.
Voi ch'ascoltate in rime sparse il suono
Di quei sospiri ond'io nudriva il core
In sul mio primo giovenile errore,
Quand'era in parte altr'uom da quel ch'i'sono ;
Del vario stile in ch'io piango e ragiono
Fra le vane speranze e'l van dolore.
Ove sia chi per prova intenda amore,
Spero trovar pietà, non che perdono.
.87
rústico Magalio, de pomposo Chérilo; os que o tratavam de
ignorante, de mau poeta, cujos versos não eram caballinos,
antes pareciam de cavallo (i)? Como não deviam irritar o
brioso e destemido mancebo, que tinha a consciência do que
valia como poeta e que nunca deixou ver as solas dos pés,
quando aggredia ou era aggredido, como não deviam irritá-lo,
digo, essas t más línguas, peores tenções, damnadas vontades,
nascidas de pura inveja de verem su amada yedra de si
arrancada y en otro muro asida (2)», essas «amizades mais
brandas que cera, que se accendiam em ódios que disparavam
lume que lhe deitava mais pingos na fama que nos couros
de um leitão»? (3).
E para acabar de lhe azedar a alma, não faltariam os
Ma ben veggi'or si come ai popol tutto
Favola fui gran tempo : onde sovente
Di me medesmo meço mi vergogno :
E dei mio vaneggiar vergogna è'l frutto,
E '1 pentirse, e '1 conoscer chiaramente
Che quanto piace ai mondo è breve sogno.
Direi de passagem que Leopardi explica assim o pietàf non che per-
dono do V. 8 : Non solamente perdono, ma anche compassionc.
(1) Toco este assumpto nas Fontes dos Lusíadas, pag. 237-247.
(2) No ay coraçon que baste,
aunque fuesse de piedra,
viendo mi amada yedra,
de mi arrancada, en otro muro asida.
(Garcilasso, egloga i.').
As palavras do lyrico castelhano applica-as Camões manifestamente
aos que lhe envejavam a gloria litteraria.
(3) (^rta /.' (cscripia da índia). Estou convencido de que entre as
amisades de que falia o poeta se contava a de Andrade (^iminlin. o mnl
succedido cortejador de D. Francisca de Aragão.
i88
boatos de que a infanta tinha todo o empenho em não pro-
trahir o seu casamento com o principe das Astúrias.
Foi talvez por pôr a bocca no mau successo dos amores
de Camões com a infanta, que Gonçalo Borges, encarregado
dos arreios do paço, foi gravemente ferido pelo poeta, na
rua de Santo Antão, em pleno dia, quando toda a Lisboa
andava na rua para assistir á procissão do Corpo de Deus
(i6 de junho de i552) (i).
Como se sabe, o poeta esteve preso até 7 de março de
i553 e foi solto por lhe ter perdoado a parte oftendida e por
ir servir aquelle anno na índia. E antes de findar o mês,
talvez no dia 26, lá saía elle da amada terra, em que lhe
ficava o magoado coração (2).
E tanto mais magoado, quanto ás saudades da infanta
accresciam também agora as da menina dos olhos verdes,
que, sinceramente compadecida da sorte d'aquelle a quem
tanto havia amado e esquecendo profundos aggravos, não
quis faltar ao amargurado poeta com o seu perdão nem com
as sinceras lagrimas da despedida, na manhã do dia de
embarque.
Aquella triste e leda madrugada,
Chei?i toda de mágoa e de piedade,
Emquanto houver no mundo saudade,
Quero que seja sempre celebrada.
Ella só, quando amena e marchetada
Saía, dando á terra claridade,
Viu apartar-se de uma outra vontade,
Que nunca poderá ver-se apartada.
(1) A narrativa do facto, contida na carta de perdão, auctoriza, a meu
ver, a conjectura de que não foi casual a intervenção do poeta na briga
travada entre Gonçalo Borges e os dous cavalleiros mascarados. A
immediata retirada destes faz suppôr que o poeta tinha contas a ajustar
com aquelle, mas não queria ser o provocador.
(2) Cf. Lusíadas, v, 3, 5-6.
Ella só viu as lagrimas em iiO)
Que, de uns e de outros olhos derivadas,
Juntando-se, formaram largo rio.
Ella ouviu as palavras maguadas,
Que poderão tornar o fogo frio
E dar descanso ás almas condemnadas.
»
(Soneto 20).
E já em pleno mar, é ainda esta doce imagem que o poeta
evoca, para arrostar os perigos que o esperavam :
Por cima destas aguas, forte e firme,
Irei aonde os fados o ordenaram,
Pois por cima de quantas derramaram
Aquelles claros olhos, pude vir-me.
Já chegado era o fim de despedir-me ;
Já mil impedimentos se acabaram.
Quando rios de amor se atravessaram
A me impedir o passo de partir-me.
Passei-os eu com animo obstinado.
Com que a morte forçada gloriosa
Faz o vencido já desesperado.
Em qual figura ou gesto desusado
Pôde já fazer medo a morte irosa
A quem (1) tem a seus pés, rendido e atado ?
Mas, como vamos ver, não era só na menina dos olhos
verdes que o poeta ia pensando durante a longa e acciden-
tada viagem para a índia.
No Oriente
Das poesias lyricas escriplas por Camões no Oriente, trcs
sobretudo constituem documentos importantes para a historia
( I ) Talvez o poeta escrevesse : A quetit o tem.
I ( >ô
da sua paixão pela infanta. São ellas, por ordem chronolo-
gica, a elegia 3.* (O poeta Simonides fallando), a canção lo.*
(Junto de um secco, duro, estéril monte) e a canção 6.* (Coín
força desusada).
A elegia 2>.^ foi composta, pelo menos em parte, no fim do
anno de i553 ou no começo de i554, para ser remettida ao
seu destino pelas naus que iam partir para o reino (i).
Para bem se comprehender o estado de espirito do poeta
ao escrever esta elegia, cumpre ter presente que, quando elle
embarcou para a índia, o casamento da infanta era cousa
definitivamente assente e não devia tardar muito a effectuar-se.
O futuro rei de Espanha havia mandado a Lisboa Ruy Gomez
da Silva, que sobre o assumpto se tinha intendido com
D. João III (2). Estava regularizada a questão da entrega do
(i) A elegia foi escripta ou pelo menos concluída talvez em Cochim,
depois da expedição contra o rei da Pimenta. E possivel, com eífeito,
que o poeta para alli acompanhasse o vice-rei D. Affonso de Noronha,
que ia dar pressa ás naus do reino. Estas, no dizer de Couto, partiram
até i5 de janeiro {Década vi, 1. 10, cap. 18). M. Perestrello, que voltava
na 5. Bento, em que fora o poeta, diz que partiram no dia i de fevereiro.
Historia tragico-?nariti?7ia, t. i, p. 49 (Lisboa, 1904).
(2) O pouco sincero irmão da infanta ficou preso em uma armadilha
que elle próprio tinha preparado, por conselho do activo e astuto Lou-
renço Pires de Távora, embaixador junto de Carlos V. Quando este, for-
mando novos planos políticos, resolveu casar o príncipe seu filho com
uma filha do rei dos romanos e destinou a infanta D. Maria para o archi-
duque Fernando, L. de Távora avisou logo D. João III do novo perigo
e aconselhou o alvitre de levar a infanta a não desistir do seu casamento
com o filho de Carlos V. Era o meio seguro de inutilizar o novo projecto
matrimonial. A infanta, que tanto desejava casar com o sobrinho,
accedeu de bom grado ás indicações que neste sentido lhe foram dadas.
Mallogrados, porém, dentro em pouco os planos de Carlos V, não res-
tava a D. João III senão mostrar rosto alegre. .. e arranjar novos pre-
textos para adiar o enlace da irmã com o futuro rei de Espanha. Ve-
jam-se as duas curiosas cartas de L. de Távora, escriptas em dezembro
«9í
dote e agora o único pretexto que restava ao monarca por-
tuguês era a expressa acquiescencia do imperador, acquies-
cencia que elle.. . tinha pejo de soUicitar, apesar das instan-
cias da já outras vezes ludibriada senhora (i). Do publico,
porém, não era conhecido qssq pejo, e quando Camões enviou
para o reino a elegia 3.*, estava convencido de que a sua
bem-amada já se achava em terras de Castella, casada com
o principe D. Philippe.
Que restava ao desolado poeta ? Varrer da memoria o seu
doce sonho, que já não servia senão para o entristecer e
magoar.
de i55o, uma a D. João III e outra á infanta, e publicadas na Historia
de varões illustres do appellido Távora de Ruy Lourenço de Távora,
p. 78 e segg. (Paris, 1648) e na Vida da Infanta D. Maria de Fr. M. Pa-
checo, fl. 40 e segg. A carta dirigida á infanta é um modelo de cynismo. . .
diplomático.
(1) Oiçamos o próprio D. João III historiando o caso, quando as
suas conveniências politicas lhe fizeram perder o pejo, embora já
fosse tarde : «Ruy guomcz se despedio de mim &, depoys de ser com o
Primcepe, me screueo o Primcepe muitos cõtentamentos da rresposta
que lhe mandara pelo dito Ruy guomez, da qual todauia comuinha auisar
o Emperador, por ele asy lho iher mãdado. Sabemdo a Imfanta minha
Irmaã os termos e que este neguocio estaua & como aymda se auia
desperar por rresposta do Emperador, me pedio que eu lhe quisese
despachar huQ correo, pelo qual lhe fizesc saber o comtentamento
q eu tinha de se este negocio fazer & dos termos em q estaua & do que
eu nele acerqua de seu dotte podia fazer. Porque emtemdia (|, em quanto
o Emperador ysto nam tiuesse sabido de mim, nam poderia o neguocio
deixar de pasar a gramde dilaçam ; & com quanto eu em toda cousa
deseje sempre dar todo comtentamento posiuel a Imfamte minha Irmãa,
nesta em q me falou tiue pejo para o nam fazer como lho aela parecia.
Porque deixar de o por em obra como mo rrequcria nam era causa de
se o negocio deixar de fazer estamdo elle tamto adiamte como estaua».
Carta a António de Saldanha, na Torre do Tombo, Mss. de S. Vicente
de Fora, t. 1.°, fl. 233 e segg. A carta não tem data, mas foi enviada no
fim de agosto de i353, como se infere de outra carta a fl. aSi,
I9'2
Vejamos como clle nos revela o estado da sua alma.
O poeta Simonides, fallando
Co capitão Themistocles um dia,
Em cousas de sciencia praticando,
Um'arte singular lhe promettia,
Que então compunha, com que lhe ensinasse
A lembrar-se de tudo o que fazia ;
Onde tão subtis regras lhe mostrasse,
Que nunca lhe passassem da memoria,
Em nenhum tempo, as cousas que passasse.
Bem merecia, certo, fama e gloria
Quem dava regra contra o esquecimento
Que sepulta (i) qualquer antiga historia.
Mas o capitão claro, cujo intento
Bem diíferente estava, porque havia
Do passado as lembranças por tormento,
— Oh illustre Simonides (dizia).
Pois tanto em teu engenho te confias.
Que mostras á memoria nova via :
Se me desses um'arte, que em meus dias
Me não lembrasse nada do passado,
Oh quanto melhor obra me farias ! —
Se este excellente dito ponderado
Fosse por quem se visse estar ausente.
Em longas esperanças degradado (2),
Oh como bradaria justamente :
— Simonides, inventa novas artes ;
Não midas (3) o passado co presente ! —
Que, se é forçado andar por varias partes
Buscando á vida algum descanso honesto,
Que tu. Fortuna injusta, mal repartes,
E se o duro trabalho, é manifesto
Que, por grave que seja, ha de passar-se
Com animoso esprito e ledo gesto :
(i) Nas primeiras edições e no Cancioneiro de L. Franco: enterra
em si.
(2) Escreveria o poeta : Bem longe de? , •
(3) Na I.' edição: meças.
>i>'
De que serve ás pessoas o lembrar-se
Do que se passou já (pois tudo passa),
Senão de entrisiecer-se e magoar-se ?
Se em outro corpo umalma se traspassa,
Não, como quis Pythagoras, na morte,
Mas, como quer Amor, na vida escassa ;
E se este Amor no mundo está de sorte.
Que na virtude só de um lindo objecto
Tem um corpo sem alma, vivo e forte ;
Onde este objecto falta, que (i) é defecto
Tamanho para a vida, que já nella
Me está chamando á pena a dura Alecto;
Porque me não criara a minha estrella «
Selvático no mundo, e habitante
Na dura Scyihia e no mais duro delia?
Ou no Cáucaso horrendo, fraco infante,
Criado ao peito de uma tigre hircana,
Homem fora formado de diamante ;
Porque a cerviz ferina e inhumana
Não submettera ao jugo e dura lei
Daquelle que dá vida quando engana.
Ou, em pago das aguas que estilei.
As que passei no mar foram do Lethe,
Para que me esquecera o que passei.
Porque o bem que a esperança vã promette,
Ou a morte o estorva ou a mudança.
Que é mal que um'alma em lagrimas derrete.
Já, Senhor, cahirá como a lembrança,
No mal, do bem passado é triste e dura,
Pois nasce aonde morre a esperança.
E com a esperança já morta, mas certo de que o destina-
tário da elegia avaliará bem quam triste e dura é para os
infcli/.es n lembrança do bem passado, o poeta conta-lhe
(i) Parece-me que deve eliminar-se o que e terminar o período em
Alecio.
i3 . R. 5a9»
91
como, durante a longa viagem, se viu alanceado de saudades,
que os perigos tornaram mais vivas, mais pungentes.
Soltava Eolo a redea e liberdade
Ao manso Favonio brandamente,
E eu a tinha já solta á saudade.
Neptuno tinha posto o seu tridente ;
A proa a branca escuma dividia,
Com a gente marítima contente.
Eu, trazendo lembranças por antolhos,
Trazia os olhos na agua sossegada
E a agua sem sossego nos meus olhos.
A bem-aventurança já passada
Diante de mi tinha tão presente.
Como se não mudasse o tempo nada.
E com o gesto immoto e descontente,
Cum suspiro profundo e mal ouvido,
Por não mostrar meu mal a toda a gente,
Dizia : Oh claras nymphas, se o sentido
Em puro amor tivestes e inda agora
Da memoria o não tendes esquecido.
Se por ventura fordes algum'hora
■ Adonde entra o grão Tejo a dar tributo
A Tethys, que vós tendes por senhora.
Ou já por ver o verde prado enxuto.
Ou já por colher ouro rutilante.
Das tagicas areias rico fruto :
Nellas, em verso erótico e elegante.
Escrevei c'uma concha o que em mi vistes ;
Pôde ser que algum peito se quebrante.
E, contando de mi memorias tristes,
Os pastores do Tejo, que me ouviam.
Ouçam de vós as maguas que me ouvistes.
Elias, que já no gesto me entendiam,
Nos meneios das ondas me mostravam
Que em quanto lhes pedia consentiam.
195
Estas lembranças, que me acompanhavam
Por a tranquillidade da bonança,
Nem na tormenta triste me deixavam,
Porque, chegando ao Cabo da Esperança,
Começo da saudade que (i) renova,
Lembrando a longa e áspera mudança.
ms a noiíc [Z) com nuvens se escurece j
Do ar subitamente foge o dia,
E todo o largo oceano se embravece.
E depois de descrever rapidamente, mas em soberbos
versos, a temerosa tempestade que no Cabo assaltou a nau
S. Bento, prosegue Camões :
Amor alli, mostrando-se possante
E que por algum medo não fugia.
Mas quanto mais trabalho, mais constante.
Vendo a morte presente, em mi dizia :
Se algum'hora, Senhora, vos lembrasse.
Nada do que passei me lembraria 1
E o poeta commenta assim este estado de espirito :
Emfim, nunca houve cousa que mudasse
O firme amor intrinseco daquelle
Em quem alguma vez de siso (3) entrasse.
Uma cousa, Senhor, por certa asselle :
Que nunca amor se afina nem so apura.
Em quanto está presente a causa delle.
Em seguida, o poeta dá noticia da sua chegada á índia,
faz um relatório da primeira expedição militar em que tomou
(i) Parece-mc que deve ler-se se.
{•à) NSo será : £75 que o ceu f
(3) Compare-sc, por exemplo, a expressão uma ve\ de vinho.
Iqí)
parte, declara invejável a sorte dos lavradores e pastores e
conclue :
Porém seja, Senhor, de qualquer arte ;
Pois, postoque a Fortuna possa tanto.
Que tão longe de todo o bem me aparte.
Não poderá apartar meu duro canto
Desta obrigação sua, emquanio a morte
Me não entrega ao duro Radamanto,
Se para tristes ha tão leda sorte.
Esquecer o passado, desejar que venha a morte libertá-lo
da sua profunda tristeza — eis agora o estado d'alnria do
amargurado poeta.
Passemos á canção lo.^, — uma das mais bellas poesias
lyricas que conheço — , começando por indicar as circum-
stancias em que ella foi escripta.
A 23 de setembro de i554 chegava a Goa a nau .S. Boa-
ventura, em que ia o novo vice-rei, D. Pedro de Mascare-
nhas (i). Comprchende-se bem o alvoroço com que o poeta
esperaria novas do reino, a pressa com que procuraria encon-
trar-se com os recem-chegados e ler as cartas que lhe eram
destinadas. E ainda estava longe de presumir o interesse que
para elle tinham algumas dessas novas.
Era uma o fallecimento, em 2 de janeiro daquelle anno,
do mallogrado príncipe herdeiro, D. João, e o nascimento,
(i) Couto, Década 7.', liv. i.°, cap. 3.°. Aí se lê que a armada partira
de Lisboa por fim de mi roo, e que nella iam dous mil homens d'armas,
em que entravam mais de quatro centos moradores da casa d'el-rei.
Um delles era o amigo e admirador de Camões, João Lopes Leitão, que
havia sido pagem da lança do fallecido principe herdeiro. Segundo Fi-
gueiredo Falcão (Livro em que se contém toda a fazenda e real patri-
ynonio dos reinos de Portugal ^ índia e Ilhas adjacentes^ Lisboa, iSSg,
p. i65), as cinco naus, de que se compunha a armada, partiram de. Lis-
boa a 2 de abril.
i')7
alguns dias depois, de D. Sebastião, que ficava sendo a única
esperança da independência da pátria.
A impressão que o poeta sentiu conhecemo-la pela egloga
1.*. O seu coração de patriota sobresaltou-se com o receio
de que o barhavo cultor viesse arar os campos da pátria:
E praza a Deus que o triste e duro fado
De tamanhos desastres se contente ;
Que sempre um grande mal inopinado 4
É mais do que o espera a incauta gente :
Que vejo este carvalho qi/e queimado
Tão gravemente foi do raio ardente ;
\ Não seja ora prodigio que declare
Que o bárbaro cultor meus campos are.
É verdade que Umbrano responde ao seu interlocutor
Frondelio:
Emquanto do seguro azambujeiro
Nos pastores de Luso houver cajados,
Com o valor antiguo, que primeiro
Os fez no mundo tão assinalados,
Não temas tu, Frondelio companheiro,
Que em algum tempo sejam subjugados,
Nem que a cerviz indómita obedeça
A outro jugo qualquer que se lhe offreça.
E, posto que a soberba se levante
De inimigos, a torto e a direito,
Não crêas tu que a força repugnante
Do fero e nunca já vencido peito.
Que desde quem possue o monte Atlante
Adondc bebe o Hydaspc tem sujeito,
O possa nunca ser de força alheia,
Emquanto o sol a terra c o ccu rodeia.
Frondelio, porém, não se mostra tão optimista c responde:
Umbrano, a temerária segurança,
Oue em força ou em razão não se assegura,
É faUa e vã, que a grande confiança
Não é sempre njihlndn iln vcnturn.
E, se altentares bem os grandes danos
Que se nos vão mostrando cada dia,
Porás freio também a esses enganos,
Que te está figurando a ousadia. t,
E, mais adeante, o próprio Umbrano reproduz assim os
queixumes que ouvia a uma das nymphas que, perto dum
tumulo, envolviam brandamente em ricos pannos um novo
infante ;
Uma, que dentre as outras se apartou,
Com gritos que a montanha entristeceram,
Diz que, despois que a morte a flor cortou,
Que as estrellas somente mereceram.
Este penhor carissimo ficou
Daquelle a cujo império obedeceram
Douro, Mondego, Tejo e Guadiana,
Até o remoto mar da Taprobana.
Diz mais que, se encontrar este menino
A noite intempestiva, amanhecendo,
O Tejo, agora claro e crystallino,
Tornará a fera Alecto em vulto horrendo.
Mas que, a ser conservado do destino.
As benignas estrellas promettendo
Lhe estão o largo pasto de Ampelusa,
Co monte que em mau passo viu Medusa,
E O triste presentimento do poeta realizou-se, embora cm
condições diíferentes das que elle receava. Quando desceu
ao tumulo (lo de junho de i58o), o maior de todos os por-
tugueses (i) já não tinha duvidas sobre os tristes destinos da
pátria (2).
(i) Cf. Storck, Vidà^de Camões, pag. 36, etc.
(2) É bem conhecida a passagem da carta que elle escreveu pouco
tempo antes de morrer : «Assi acabarei a vida e verão todos que fui
tão afeiçoado á minha pátria, que não só me contentei de morrer nella,
mas com ella».
199
Outra noticia, que profundamente feriu o coração do poeta:
o seu joven e querido amigo, D. António de Noronha, o apai-
xonado adorador de D. Margarida da Silva (i), havia sido
morto pelos mouros, em uma emboscada, nas immediações
de Ceuta, no dia 18 de abril do anno anterior, isto é, pouco
depois de o poeta haver embarcado.
Eis alguns dos bellos e sentidos versos em que Camões
manifestou a sua dor pelo infausto acontecimento:
Frondelio
... O grande curral, seguro e forte,
Do alto monte Atlas não ouviste
Que com sanguinolenta e fera morte
Despovoado foi por caso triste ?
Oh triste caso ! oh desastrada sorte,
Contra quem força humana não resiste !
Que alli também da vida foi privado
O meu Tionio, ainda em flor cortado !
Umbrano
Em lagrimas me banha rosto e peito
Desse caso terrivel a memoria,
Quando vejo quão sábio e quão perfeito
E quão merecedor de longa historia
Era esse teu pastor, que sem direito
Deu ás parcas a vida transitória.
Mas não ha hi quem de herva o gado farte.
Nem de juvenil sangue o fero Marte.
E depois de instado por Umbrano, Frondelio repete os
(1) Estes amores, contrariados pela familia de D. António, eram
lambem mal correspondidos pela formosa menina, a Silvana da egloga 4.*.
O joven fidalgo, ainda parente da família real, foi enviado para Ceuta,
onde cm breve encontrou morte gloriosa.
20O
brandos versos, que de véspera cantara a propósito do caso
desastrado :
Aquelle dia as aguas não gostaram
As mimosas ovelhas e os cordeiros
O campo encheram de amorosos gritos,
E não se penduraram dos salgueiros
As cabras, de tristeza, mas negaram
O pasto a si e o leite aos cabritos.
Prodígios infinitos
Mostrava aquelle dia,
Quando a parca queria
Principio dar ao fero caso triste.
E tu também, ó corvo, o descobriste,
Quando da mão direita, em voz escura,
Voando, repetiste
A tyrannica lei da morte dura.
Tionio meu, o Tejo crystallino
E as arvores que já desamparaste
Choram o mal de tua ausência eterna.
Não sei porque tão cedo nos deixaste I
Mas J^i consentimento do destino.
Por quem o mar e a terra se governa.
A noite sempiterna.
Que tu tão cedo viste.
Cruel, acerba e triste,
Se quer de tua idade não te dera
Que lograras a fresca primavera ?
Não (i) usara comnosco tal crueza,
Que nem nos montes fera
Nem pastor ha no campo sem tristeza.
(i) Presumo que deve ler se Porque, pondo-se uma interrogação no
fim do periodo.
201
•
Qual o mancebo turyalo, enredado
Entre o poder dos Rutulos, fartando
As iras da soberba e dura guerra,
Do crystallino rosto a cor mudando,
Cujo purpúreo sangue, derramado
Por as alvas espaldas, tinge a serra ;
y Que, como flor, que a terra
Lhe nega o mantimento.
Porque o tempo avarento
Também o largo humor lhe tem negado,
O collo inclina languido e cansado :
Tal te pinto, ó Tionio, dando o esprito
A quem to tinha dado.
Que este ú <;(')mente eterno e infinito.
(Egloga i.«)
Léa-se também o soneto 12, que o poeta escreveu antes
da egloga i.*:
Em flor vos arrancou, de então (1) crescida,
Ah senhor Dom António 1 a dura sorte.
Donde fazendo andava o braço forte
A fama dos antigos esquecida.
Uma só razão tenho conhecida,
Com que tamanha magua se conforte :
Que, se no mundo havia honrada morte,
Não podieis vós ter mais larga vida.
Se meus humildes versos podem tanto.
Que CO desejo meu se iguale a arte.
Especial matéria me sereis;
E, celebrado em triste e longo canto (2),
Se morrestes nas mãos do fero Marte,
Na memoria das gentes vivereis.
(1) i>cvcr.i icr-sc ao ciiãoi
(2) Alludc o poeta naturalmente k egloga i.% que elle reputava a
melhor de quantas hnvia feito. « Por agora não mais, senão que este sonetot
que aqui vai, que fiz á morte ' '* António de Noronha {decerto^ o so-
202
Houve, porém, uma novidade que encheu de alvoroço o
coração do poeta, que o deixou anciogo por voltar para Lis-
boa : a infanta continuava solteira ; já se não realizava o pro-
jectado casamento com o herdeiro da coroa de F^spanha,
que, ao partir da armada para a índia, ficava noivo da rainha
Maria de Inglaterra (i). j
neto acitna transcripto)^ vos mando em signal de quanto delia me pesou.
Uma egloga fiz sobre a mesma matéria, a qual também trata alguma
cousa da morte do príncipe, que me parece melhor que quantas fiz».
{Carta /.»). Ha outro soneto, referente á morte de D. António de Noro-
nha, que o poeta escreveu mais tarde, sob a impressão das noticias que
lhe deram de quanto essa morte havia sido lastimada pela inimiga e
excellente Mar/ida da egloga i.", noticias motivadas provavelmente pelas
allusões desta egloga á ingratidão da antiga namorada do gentil mancebo.
Nesse soneto, o poeta inveja a sorte do seu amigo, que, ao menos, moveu
a piedade um peito de diamante ou de serpente. EUe, embora morra mil
vezes, não poderá conseguir tal resultado !
Alma gentil, que á firme eternidade
Subiste clara e valerosamente,
Cá durará de ti perpetuamente
A fama, a gloria, o nome e a saudade.
Não sei se é mór espanto em tal idade
Deixar de teu valor inveja á gente.
Se um peito de diamante ou de serpente
Fazeres que se mova a piedade.
Invejosa da tua acho mil sortes,
E a minha mais que todas invejosa.
Pois ao teu mal o meu tanto igualaste.
Oh ditoso morrer ! ditosa sorte !
Pois o que não se alcança com mil mortes,
Tu com uma só morte o alcançaste !
(Soneto 229).
(i) Logo que teve noticia do fallecimento do rei de Inglaterra,
Eduardo VI, occorrido em 6 de julho de i553, D. João III apressou-se a
203
É fácil de imaginar como esta noticia melhoraria a can-
sada vida do poeta, «como lhe daria espiritas tiojH)s, para
vencer a fortuna e o trabalho. Podemos suppôr como elle,
se lhe fosse possível, desejaria embarcar em alguma das naus
que d'alli a poucos meses voltariam para o reino, afim de po-
der tornar a ver, servir e querer a bcm-amada, que tão rude
golpe acabava de soffrer.
... A vida cansada se melhora,
Toma espíritos novos, com que vença
A fortuna e trabalho.
Só por tornar a ver-vos,
Só por ir a servir-vos e querer-vos.
(Canção io.«).
tratar do casamento da irmã com o principe Philippe, não fosse Carlos V
lembrar-se de querer casar o filho com a succcssora de Eduardo VI,
tornando assim irrealizável o velho plano de lhe dar por marido o in-
fante D. Luís, plano formado quando ella ainda poucas probabilidades
tinha de subir ao throno e que agora tanto sorria ao monarca português.
Mas já era tarde. Lourenço de Távora, o homem de confiança de
D. João III, mandado a toda a pressa á corte de Inglaterra, com minu-
ciosas instrucções, foi ardilosamente detido em Bruxellas por Carlos V,
que, por fim, lhe fez saber que a rainha Maria de Inglaterra ia casar com
seu filho. Agora já se appcllava p;»ra a deplorável situação em que ficava
a infanta D. Maria ! Agora já se argumentava com a nobrigaçam em que
o Emperador e seu filho estavam, e penhores que tinham dado para se
nam poder tratar doutro cazamento». Tudo foi inútil. Carlos V respon-
dia que, por sua parte, a nada estava obrigado, pois não tinha havido
acceitação, c que a do príncipe, seu filho, fora condicional, ficara depen-
dente da sua. Veja-sc nos Manuscriptosde S. Vicente de Fora, liv. i.",fl. 233
e segg. (Torre do Tombo), a carta escripta por D. João 111 a António
de Saldanha em agosto de i553, e na Historia de varões illustres do
appellido Távora, pag. iii c segg., a corre ' i^ia entre D. João III
e Lourenço de Távora. Cf. Visconde de . i, Quadro etemerUar,
XV, 54 e segg.
204
Em vez, porem, de voltar para o reino, o poeta, obri-
gado ao serviço militar, teve de ir para o aborrecido e peri-
goso cruzeiro do estreito de Meca (golpho de Aden), na
armada do commando de Manuel de A^asconcellos (fevereiro
de i553).
Eis como Diogo do Couto dá noticia desse cruzeiro: «Par-
tido Manuel de Vasconcellos de Goa. . . c em sua companhia
Fernão Farto, que levava os padres para irem a Abassia,
foram seguindo sua derrota até haverem vista da costa de
Arábia, e Manuel de Vasconcellos se foi lançar com toda a
sua armada a Monte de Félix (i), como levava por regimento,
pêra alli esperar as nãos que haviam de vir do Achem e alli
esteve até se lhe gastar a monção, sem lhe vir cahir alguma
nas mãos. E sendo tempo de se recolher a invernar em Mas-
cate, pêra recolher as nãos de Ormuz, por* se recearem do
cossario Cafár, se fez á vela e foi surgir naquelle porto, onde
desapparelhou e esteve até setembro e entrada de outubro»
(Década vii, 1. i, c. viii).
(i) É o Ras (cabo) ai Fil, ou Filuk, situado algumas dezenas de mi-
lhas (38 em linha recta) para dentro do cabo de Guardafui, na costa
setentrional da Somália. Eis como elle vem descripto no roteiro inglês
do Mar Vermelho e golpho de Aden [The Red Sea and Gulf of Aden
Pilot, edição de 1900) : «Ras Filuk, ou mais propriamente Ras-al-Fil,. ..
o Mons Elephas dos romanos, assim chamado por causa da similhança
que tem com um elephante, é uma elevada collina de 800 pés d'altitude
acima do nivel do mar, a 8 milhas a oeste do Ras Aluía. Tem a appa-
rencia de uma ilha, quer se veja de leste, quer de oeste, pois são baixas
as terras que lhe ficam ao pé. Os indigenas chamam-lhe geralmente Ras
Belmúk. Com tempo claro pôde ser visto á distancia de 40 milhas...
No valle que fica a leste ha uma laguna de agua salgada. . . A oeste do
Ras Filuk ha uma pequena, mas profunda baía, abrigada dos levantes
e poentes, com um bom ancoradouro de 5 braças d'agua».
203
Ouçamos agora o poeta (i):
Junto d'um sêcco, duro (2), estéril monte,
Inútil e despido, calvo e (3) informe,
Da natureza em tudo aborrecido.
Onde nem ave voa ou fera dorme,
5 Nem corre claro rio ou ferve fonte,
Nem verde ramo faz doce ruido.
Cujo nome, do vulgo introduzido,
E Feliz (4), por aniiphrasi infelice,
O qual a natureza
10 Situou junto á parte
Aonde um braço d'alto mar reparte
A Abassia da Arábica aspereza.
Em que (5) fundada já foi Berenice (6),
Ficando á parte donde
i5 O sol que nella ferve se lhe esconde;
(i) Reproduzo o texto da edição de iS52, reservando para as notas
algumas variantes ou correcções.
(2) Nas primeiras edições \ê-se fero e. Faria e Sousa : duro.
(3) As primeiras edições omitiem a conjuncção.
(4) Primeira edição: Por aniiphrasi he/elix infelice. Creio que deve
manter-se esta lição, pronunciando Félix e fazendo seguir estn palavra
da preposição de.
(5) Primeira edição : Onde.
(6) Se a palavra relativa por que começa este verso se refere á Ará-
bia, trata-se da Berenice que ficava na Arábia Pétrea, no extremo norte
do Aelaniticus sinus. Neste caso, o Ficando do verso 14 refere-se a Bere-
nice tí este verso e o seguinte formam como que um parenthesis. Se,
porem, o antecedente do Em que é a parte do verso 10, trata-se de uma
das três ou quatro Berenices, que se achavam situadas na costa afrícana
do Mar Vermelho. E se no verso i5 se deve ler nelley como fez o pri-
meiro editor das Rimas, n§o pódc deixar de ser uma destas. NeUe seria
então o braço d'alto mar do verso 11, isto é, o Mar Vermelho, a que,
diga-5e de passagem, os nossos antigos escriptores davam como limites
extremos Suez e uma linha tirada do cabo de Guardafuí ao de Fartaque.
Vide, por exemplo, D. João de Castro, Roteiro. . . de Goa atee Soe^, p. 33.
20b
o cabo se descobre, com que a costa (i)
Africana, que do austro vem correndo,
Limite faz, Arómata chamado,
Arómata outro tempo, que volvendo
20 A rocia (2), a ruda lingua mal composta
Dos próprios outro nome lhe tem dado.
Aqui, no mar que quer, apressurado,
Entrar por a garganta deste braço (3),
Me trouxe um tempo e teve (4)
25 Minha fera ventura.
Aqui, nesta remota, áspera e dura
Parte do mundo, quis que a vida breve
Também de si deixasse um breve espaço.
Porque ficasse a vida
3o Por o mundo em pedaços repartida.
Aqui me achei gastando uns tristes dias,
Tristes, forçados, maus e solitários.
De trabalho (5), de dôr e de ira cheios.
Não tendo tão somente por contrários
(1) Na I.* edição o verso i5 termina erradamente por um ponto
e o verso 16 começa assim : Nelle apparece o cabo etc. A emenda do
texto é de F. e Sousa, que diz tê-la encontrado em um manuscripto.
Talvez o poeta escrevesse Onde ou Em que apparece etc, referindo-se
ao verso 10. Neste caso, o verso 21 terminaria por dous pontos e o Aqui
do verso 22 ligar-se-ia immediatamente com o começo da canção.
(2) Variantes: os céus; o tempo.
(3) «A monção de nordeste (foi durante ella que alli esteve o poeta)
impelle a agua para o golpho de Aden e deste. . . para o Mar Vermelho.
Na costa setentrional da Somália forma-se uma contra-corrente». Bo-
guslawski u. Krummel, Handbuch der O^eanographie, 11, 469 (Stuttgart,
1887).
(4) O facto de o poeta fallar no pretérito até o verso 67 mostra que
a canção foi escripta depois de terminado o cruzeiro. Foi-o provavel-
mente em Mascate, onde, como fica dicto, Manuel de Vasconcellos se
recolheu a invernar. Cf. os versos 67-69; 106 e segg. Faria e Sousa sup-
suppõe que a canção fosse escripta em Gôa. Para o dr. Storck, foi-o
no Ras-el-Fil.
(5) Primeiras edições : trabalhosos.
•IO-
35 A vida (O, o sol ardente, as aguas frias (2),
Os ares (3) grossos, férvidos e feios.
Mas os meus pensamentos, que são meios
Para enganar a própria )rta tu reza,
Também vi contra mi,
40 Trazendo-me á memoria
Alguma já passada e breve gloria,
Que eu já no mundo vi, quando vivi,
Por me dobrar dos males a aspereza.
Por mostrar-me que havia
45 No mundo muitas horas de alegria.
Aqui 'stive eu, com estes oepsamentos,
Gastando tempo e vida, os quaes tão alto
Me subiam nas asas, que caía
(Oh vede se seria leve o salto !)
5o De sonhados e vãos contentamentos
Em desesperação de ver (4) um dia.
O imaginar aqui se convertia
Em improvisos choros e em suspiros (5),
Que rompiam os ares.
(i) Talvez: o vento, os levantes que nessa occasião sopravam.
(2) «Na costa setentrional da Somália o período das chuvas vai de^
dezembro a maio, durante a monção de nordeste. Precede-o um tempo
secco e quente, vem depois o tempo fresco até meado de março. O
tempo secco, de junho a novembro, corresponde ao periodo da monção
de sudoeste e é muito quente». J. Hann, Handbuch der Klimaiologie,
II, 128 (Stullgart, 1897).
(3) Talvez : mares. Cf, por exemplo, esta passagem dos Commenta'
rios do grande Afonso Dalboquerque (parte 4.", cap. 2.*) : «Tomando ali
a costa na mão (falla-se da costa onde fica o monte de Félix), foram
sempre ao longo delia,. . . e porque as aguas corriam contra vento e o
mar era grosso, teve a nossa armada muito trabalho» etc.
(4) Escreveria o poeta : de os ver t
(5) Primeira edição: N'hum súbito chorar e n'hffs suspiros.
2oJS
55 Aqui, a alma captiva,
Chagada toda, estava em carne viva,
De dores rodeada e de pesares.
Desamparada e descoberta aos tiros
Da soberba Fortuna,
óo Soberba, inexorável e importuna !
Não tinha parte donde se deitasse.
Nem esperança alguma onde a cabeça
Um pouco reclinasse por descanso !
Tudo dôr lhe era e causa que padeça,
65 Mas que pereça não, porque passasse
O que quis o destino nunca manso.
Oh que este iraob mar, gemendo (i), amanso !
Estes ventos, da voz .importunados (2),
Parece que se enfrêam ;
70 Somente o ceu severo,
As estrellas e o fado, sempre fero,
Com meu perpétuo dano se recrêam,
Mostrando-se potentes e indignados
Contra um corpo terreno,
75 Bicho da terra, vil e tão pequeno !
Se, de tantos trabalhos, só tirasse
Saber inda, por certo, que algum'hora
Lembrava a uns claros olhos, que já vi,
E se esta triste voz, rompendo fora,
80 As orelhas angélicas tocasse
Daquella, em cuja vista já vivi,
A qual, tornando um pouco sobre si.
Revolvendo na mente pressurosa
Os tempos já passados
85 De meus doces errores.
(i) Primeira edição: gritando.
(2) Allusão, segundo creio, ao mar que banha a costa de Mascate,
agitado, na occasião em que o poeta ahi invernava, pelos ponentes, pela
monção de sudoeste.
De meus suaves males e furores,
Por ella padecidos e buscados,
E, posto que já tarde (i), piedosa.
Um pouco lhe pesasse,
oo K, lá entre si (2), por dura se julgasse :
Isto só que soubesse, me seria
Descanso para a vida que me íica 1
Com isto afagaria o soffrímento !
Ah Senhora ! Ah Senhora ! E que tão rica (3)
95 Estais^ que cá, tão longe de alegria.
Me sustentais com doce fingimento !
Logo que vos figura o pensamento (4),
Foge todo o trabalho e toda a pena.
Só com vossas lembranças,
100 Me acho seguro e forte
Contra o rosto feroz da fera morte !
E logo se me juntam esperanças,
Com que, a fronte tornada mais serena,
Torno os tormentos graves
io5 Em saudades brandas e suaves.
Aqui, com ellas, fico perguntando
Aos ventos amorosos (5), que respiram
Da parte donde estais, por vós. Senhora ;
Ás aves, que d'alli (6) voam, se vos viram,
1 10 Que fazieis, que estáveis praticando.
Onde, como, com quem, que dia e que hora ?
Alli (7) a vida cansada se melhora,
Toma espiritos novos, com que vença
A fortuna e trabalho.
(1) Primeira edição: Tornada finda que tjrdc).
(2) Primeira edição : E conisii.
(3) Primeira edição: i4/r, Senhorj. scMar»/.!, ^ii<- etc.
(4) Primeira edição : Em vos afigurando.
(5) Em outubro começam a soprar cm Mascate os noroestes, frescor
e chuvosos. Cf. Hann, ob. cit., 111, io<).
í^) Talvez : que d'hi.
(7) Não deverá ICt-sl- A.^m '
14 K. 5ay4
ii5 Só por tornar a ver-vos,
Só por ir a servir-vos e querer- vos.
Diz-me o tempo que a tudo dará talho;
Mas o desejo ardente, que detença
Nunca sofTreu, sem tento
120 Me abre as chagas de novo ao soílrimenio.
Assi vivo e se alguém te perguntasse,
Canção, porque não mouro,
Podes-lhe responder que porque mouro (i).
São, creio eu, contemporâneas da canção 10/'^ as seguintes
redondilhas :
Mote (alheio)
Trabalhos descansariam,
Se para vós trabalhasse.
Tempos tristes passariam,
Se algum'hora vos lembrasse.
Glosa
Nunca o prazer se conhece,
Senão depois da tormenta.
Tampouco o bem permanece.
Que, se o descanso fiorece.
Logo o trabalho arrebenta.
Sempre os bens se lograriam,
Mas os males tudo atalham.
Porém, já que assi porfiam.
Onde descansos trabalham,
Ti-abalhos descansariam.
Qualquer trabalho me fora.
Por vós, grão contentamento ;
Nada sentira. Senhora,
Se vira disto algum'hora
Em vós um conhecimento.
(1) Morro de saudades c comtudo são ellas que me dão vida.
2 l I
Por mal que o mal me tratasse,
Tudo por bem tomaria ;
Posto que o corpo cansasse,
A alma descansaria.
Se para vós trabalhasse.
Quem vossas cruezas já
SoflVeu, a tudo se pôs.
Costumado ficará
E muito melhor será.
Se trabalhar para vós.
Tristezas esqueceriam.
Posto que mal me trataram ;
Annos não me lembrariam,
Que, como est'outros passaram.
Tempos tristes passariam.
Se fosse galardoado
Este trabalho tão duro,
Não vivera maguado.
Mas não o foi o passado.
Como o será o futuro ?
De cansar não cansaria,
Se quiséreis que cansasse ;
Cavar (i), morrer, fa-lo-ía;
Tudo, emfim, esqueceria.
Se algum' hora vos lembrasse.
Parcce-me ter sido também escripto durante o cruzeiro o
seguinte soneto, conservado no Cancioneiro de Franco Cor-
reia (íl. I ib \.):
Ondas, que, por el mundo caminando,
Contino vais //evadas (2) por el viento,
L/evad embuelto cn vos mi pcnsamienio
Do está la que, do está, lo está causando.
(i) iJuvido que o poeta escrevesse aqui esta palavra. Talvez repe-
tisse o verbo cansar ou empreiíasse outro de <Í!Miifl. ;•. m<> in;.lf»«. i rr^n^n
penar.
(2) No Cancioneiro: IhcuaJas ; no verso .^ ///cw/jJ, no y ftal/iasta
f
Dezilde que os estoi acrecenta;ido (i);
Dezilde que de vida no hai momento ;
Dezilde que no muerc mi tormento ;
Dezilde que no vivo ia esperando.
Dezilde quã perdido me ha//astes;
Dezilde quã ganado me perdistes;
Dezilde quã sin vida me matastes.
Dezilde quã //agado me heristes ;
Dezilde quã sin mi que me dexastes ;
Dezilde quã con ella que me vistes.
Quando Camões voltou a Goa, ancioso por que findasse
o seu triennio de serviço militar, para poder embarcar para
o reino, governava a Índia Francisco Barreto, tio de D. Fran-
cisca d'Aragão, a musa invocada para os Lusíadas.
Ou por indicações que lhe foram de Lisboa ou mesmo
sem ellas, Francisco Barreto, recorrendo a amigáveis conse-
lhos ou chegando talvez mesmo a interpor a sua auctori-
dade (2), evitou que o apaixonado poeta satisfizesse o desejo
ardente, que lhe não soffria detença, de tornar a ver, servir
e querer a bem-amada (3). Que vinha elle fazer para o reino ?
e no 12 Ihagado. Notarei ainda pensamento no verso 3.°; acrecentado
no 4.*'; em no 3.°; da no 6." Juromenha mudou vais para vas, no verso 2.°;
estoi para estás no 5."; passou para o singular os verbos por que termi-
nam os versos 9 a i3; eliminou o que do ultimo verso e no primeiro
imprimiu camifiando. As correcções de W. Storck (Sãmmtliche Gedichte^
II, 433) são plenamente justificadas pelo texto do Cancioneiro.
(i) Com as minhas lagrimas.
(2) D'ahi talvez a tradição de que F. Barreto havia desterrado o poeta
para a China, embora fossem outros os motivos indicados.
(3) O governador da índia teve occasião de conhecer de visu a exal-
tação amorosa do poeta, quando em Gôa assistiu á representação do
Filodemo, posto em scena para festejar a sua elevação áquelle cargo.
Com que calor, com que enthusiasmo, saído do fundo do coração, não
desempenharia Camões o papel do protagonista, apaixonado pela filha
de seu amo ? Relêam-se as passagens que já ficam transcriptas.
2l3
Evidentemente praticar loucuras e compromctter quem, por
todos os motivos, devia ser respeitada e deixada em paz.
Não lhe era melhor ir para as Molucas ou para outras terras
orientaes angariar alguns meios de fortuna ?
Provido ou não d'um cargo, contra vontade ou meio con-
vencido, o poeta lá foi para o Extremo Oriente, não sem ver
em tudo isto o dedo da infanta, não sem lhe attribuir parte
no seu tão longo e ffiiscro desterro.
Ouçamo-lo:
Com força desusada
Aquenta o fogo eterno (i)
Uma ilha, nas partes do Oriente (2),
De estranhos habitada (3),
3 Aonde o duro inverno
Os campos reverdece alegremente (4).
A lusitana gente
Por armas sanguinosas
Tem delia o senhorio (5).
(i) Escreveria o poeta fogo interno, alludindo ao vulcão de Ternatc?
Cf. Lusíadas, x, i32 :
Temate, co fervente
Cume, que lança as flammas ondeadas.
(2) Segundo alguns, trata-se de Gôa, segundo .outros das ilhas de
Banda ; parecc-me, porém, indiscutivel a opinião, já apresentada por
Severim de FarÍ9, de que o poeta se refere á ilhn de Ternale, uma das
Moluca'^
(3) (^i. Inu i ws, L)l í aa.i .'. ', ;>, 3. « 1 wu' ■> ^.».> ii.iiMi.iiiit> das Molucas) con-
fessam serem estrangeiros e não próprios indigenas e naturaes da terra».
(4) Cf. Couto, Década 4.*, 7, 10. aNcstas ilhas todas não ha verSo nem
inverno».
(5) Vid. Lusíadas, x, i32. Em Tidor e Tcmalc
As arvorcs^verás do cravo ardente,
Co sangue português inda compradas.
Não foi sem commoção que li na obra de GuílIciDard, Australasia
_ ^4_
10 Cercada está cie um rio
De maritimas aguas saudosas (i).
Das hervas que aqui nascem
Os gados juntamente e os olhos pascem (2^
Aqui minha ventura
i5 Quis que uma grande parte
Da vida, que eu não tinha, se passasse (3),
Para que a sepultura
Nas mãos do fero Marte
De sangue e de lembranças matizasse.
20' Se Amor determinasse
Que, a troco desta vida,
De mi qualquer memoria
Ficasse como historia,
Que de uns formosos olhos fosse lida,
25 A vida e a alegria
Por tão doce memoria trocaria 1
(Londres, 1894), 11, 3i5, as seguintes linhas: «Em todas as cidades prin-
cipaes das Molucas vive um certo numero de descendentes dos antigos
colonos portugueses. São conhecidos pelo nome de Ormig Sirani ou
Nazarenos. Faliam malaio, misturado com um numero considerável de
palavras portuguesas, mas, pelo facto de viverem ha séculos sob o do-
mínio dos hollandêses, abraçaram o protestantismo e desconhecem com-
pletamente a sua procedência».
(i) Trata-se talvez do canal que separa Tidor de Ternate e esta de
Halmahera ou Gilolo. O epitheto saudosas é-nos explicado por estas pala-
vras de Guillemard, que reproduzo na própria lingua original : «As far as
regards magnificence of scenery, Ternate is perhaps the finest harbour
in the Dutch Indies, for it is formed by two volcanic islands whose
peaks are nearly 6000 feet in height, and of wonderfully graceful outline».
(Ob. cit., p. 319).
(2) «The vegetation of the Moluccas is exceedingly rich and varied. . .
Palms and padani are very abundant, dammar pines grow in the forests,
while ferns, creepersandfloweringshrubs in endless variety clothe the fo-
rest glades and lhe rocky beaches with exquisite drapery». (Ob. cit., p. 309).
(3) Escreveria o poeta gastasse f Cf. canção 10.% versos 25-3o e 46-47*
•2 I?
Mas este fingimento,
Por minha dura sorte,
Com falsas esperanças me convida.
3o Não cuide o pensamento
Que pôde achar na (i) morte
O que não pôde achar tão longa vida.
Está já tão perdida
A minha confiança,
35 Que, de desesperado
Em ver meu triste estado.
Também da morte perco a esperança.
Mas oh 1 que se algum dia
Desesperar pudesse, viveria (2).
40 De quanto tenho visto
Já agora não me espanto,
Que até desesperar se me defende (3).
Outrem foi causa disto,
Pois eu nunca fui tanto (4),
43 Que causasse este fogo que me incende.
Se cuidíim que me oíTende
Temor de esquecimento.
Oxalá meu perigo
Me fora tão amigo,
5o Que algum temor deixara ao pensamento !
Quem viu tamanho enleio,
Que houvesse ahi 'sperança sem receio (5;
(i) Talvez a. Não cuide o pensamento que a minha morte poderá
conseguir o que não conseguiu umn inn^n vid:i. --*- -. '•• ■ -i infnnin se
lembre de mim.
(2) Talvez o poeta escrevesse : morreria. Isto c : no dia em que per-
desse de todo a esperança, morreria.
(3) Sob pena de morrer.
(4) Primeira edição : Que eu nunqua pude Lmto.
(5) Não c para mim motivo de fllllicção o receio, o temor de me
esquecer da infanta, pois esse receio seria sígnal de que a esperança
linda não esiaviKdc todo morta em mim. Oxalá que neste perigo em
que estou de me esquecer il;i hfin ;itn;ul;i. cw \\\r\<.c ii^ccio ile ;i osiuiL*í.*fr.
■2\h
Quem tem que perder possa
Só pode recear.
35 Mas triste quem não pôde já perder !
Senhora, a culpa é vossa,
Que, para me matar,
Bastara uni'hora só de vos não ver (i).
Pusestes-me em poder
(>o De falsas esperanças,
E do que mais me espanto :
— Que nunca vali tanto,
Que visse tanto bem como esquivanças (2).
Valia tão pequena
65 Não pôde merecer tão doce (3) pena.
Houve-se Amor comigo
Tão brando ou pouco irado,
Quanto agora em meus males se conhece.
Que não ha mór castigo,
70 Para quem tem errado,
Que negar-lhe o castigo que merece.
Da sorte que acontece
Ao misero doente,
Da cura despedido,
75 Que o medico advertido
Tudo quanto deseja lhe consente,
O Amor me consentia
Esperanças, desejos e ousadia (4).
(i) Quanto mais tantos annos de ausência ! Não é de admirar que eu
já receie perder-vos.
(2) Primeira edição : Que viiiesse tãbem com esquiiiãças. Talvez :
Que visse maior bem do que esquivanças. Isto é : nunca de vós mereci
senão esquivanças.
(3) Não deverá ler-se grave? Cf. o verso 84.
(4) Lê-se na i." edição (versos 72-78) :
E bem como acontesce
Que, assi como ao doente.
Da cura despedido,
O medico sabido
Tudo quanto deseja lhe consente,
Assi me consentia
Esperança, desejo & ousadia.
E agora venho a dar
8o Conta do bem passado
A esta triste vida e longa ausência.
Quem pôde imaginai
Que houvesse em mi i-c^cuuo,
Digno duma tão grave penitencia (i)?
85 Olhai que é consciência,
Por tão pequeno erro,
Senhora, tanta pena!
Não vedes que é onzena ?
Mas, se tão longo e misero desterro
'»o Vos dá contentamento,
Nunca me acabe nelle meu tormento.
Rio formoso e claro
E vós, ó arvoredos.
Que os justos vencedores coroais
(j5 E ao cultor avaro,
Continuamente ledos.
De um tronco só diversos frutos dais (2),
Assim nunca sintais
Do tempo injuria algua,
100 Que em vós achem abrigo
As maguas que aqui digo,
Emquanto der o sol virtude á lua ;
Porque de gente em gente
Saibam que já não mata vida ausente.
io5 Canção, neste desterro viverás,
Voz nua e descoberta.
Até que o tempo em ecco te converta.
(Canção 6.*).
(1) Primeira •dição:
Qviv j-Uvic: liUvi ,-^^vado
Que meresça tão graue penitencia ?
(i) Segundo W. Storck, que suppõe esta canção escripta nas ilhas
de Banda, trata- se das moscadeiras. nEstes diversos fructoSf que nascem
de um tronco só, não podem ser senão a flor e a noz moscada, o dúplice
2l8
No soneto Quando cuido, contemporâneo da canção 6.^^
insiste o poeta no receio que tem de se esquecer da infanta (i).
Quando cuido no tempo que contente
Vi as pérolas, neve, rosa e ouro,
Como quem vê por sonhos um thesouro.
Parece tudo tenho aqui presente. '
Mas, tanto que se passa este accidente,
E vejo o quão distante de vós mouro,
Temo quantd>imagino por agouro
Porque (2) de imaginar também me ausente.
Já foram dias em que por ventura
Vos vi, Senhora, se, assi dizendo, posso (3)
Co coração seguro estar sem medo.
grão cheiroso da Myrijica aromática, tão bella na sua ramagem laurinea».
( Vida de Camões, p. 572). Não me resta, porém, duvida que o poeta falia
aqui das palmeiras, que os justos vencedores coroam, e que tanto abundam
nas Molucas. Os diversos fructos que provem d'um só tronco podem
significar os variados productos de certas palmeiras. [Veja-se, por cx.,
o que sobre o coqueiro escreveu o amigo de Gamões e illustre ho-
mem de sciencia, Garcia da Orta, nos Colóquios, t. i, p. 235 e segg.
(edição de Lisboa, 1891). Eis como ellc começa: «Ruano. Do arvore
dos coquos, chamado assim dos Portuguezes, me dizei; que sempre ouvi
dizer que era hum arvore que dava muitas cousas nesseçarias á vida
humana. Orta. Dá tantas e nesseçarias, que não sey arvore que dê a
sesta parte»]. Ou alludirá o poeta ao facto de terem o nome de palmei-
ras plantas que dão fructos tão differentes como o coco, a tâmara, a
areca, etc. ? A leitura de Barros, Década 3.', 5, 5, favorece a primeira
explicação.
(1) Este soneto foi publicado a primeira vez por Alvares da Gunha
em 1668 {Terceira parte das Ritnas de.. . Camões).
(2) Talvez : De que. O poeta receia que o imaginar quão longe se
acha da infanta, morrendo de saudades, seja agouro de que ha de deixar
de pensar nella.
(3) O verso tem uma syllaba a mais. Por causa disso propõe W. Storck
se elimine o assi (5. Gedichte, 11, 421). E possível que o poeta escrevesse :
se isto dizer posso
Co coração seguro, sem ter medo.
Agora, em tanto mal, não me assegura
A própria fantasia, e nojo vosso (i).
Eu não posso entender este segredo !
Qual a causa porque o poeta receava ausentar-se de ima-
ginar na infanta ? Seria effectivamente por ver quão distante
delia morria?
Mas não se lè na elegia 3.":
Uma cousa, Senhor, por certa asselle :
Que nunca amor se afina, nem se apura.
Em quanto está presente a causa delle ?
Seria porque estava convencido de que a infanta não era
estranha ao seu desterro para as Molucas e castigava com
tão gi^ave penitencia tão pequeno erro, como era o ter-Ihe
amor ?
Mas não diz elle na canção 6.* :
... Se tão longo c misero desterro
Vos dá contentamento,
Nunca me acabe nelle meu tormento ?
É que estas causas, quô, por si sós, lhe não arrancariam
(i) Não deverá eliminar-se a virgula e ler-se : do enojo vosso? Cf
Boscan, na canção Gentil SeHora mi.i :
Yo hallo en el mover de vuestros ojos
un no sè que, no sè como nombrallo,
que todos mis enojos
descarga de mi triste fantesia.
Veja-sc também o soneto 68, já citado :
Dai-mc uma lei, Senhora, de querer-vos,
Porque a guarde, sob pena de enojar-vos.
Agora a própria phantasia não assegura o poeta de que nSo venha a
aborrecer a infanta. É isso que cllc leme.
220
do coração o seu alto pensamento, começaram a avolumar-se,
pela acção do magico veneno, que uma Civce, de celeste for-
mosura, lhe ia ministrando.
E, sentindo os elíeitos desse veneno, Camões assustava-se
com a ideia de olvidar a. bem-amada. Como era possivel
que se lhe apagasse da alma aquelle gesto tão soberano, que
lhe havia mudado o ser, de humano em divino (i)? Como
era possivel que abandonasse aquelle seu pensamento, pelo
qual teria morrido contente (2) ?
Eu não posso entender este segredo !
exclama o angustiado poeta.
Mas o veneno foi produzindo os seus effeitos e operou a
receada transformação.
Eis como o poeta nos apresenta a estranha creatura, que
se lhe apoderou do coração e dos sentidos, a ponto de oblite-
rar a imagem da infanta:
Um mover d'olhos, brando e piedoso,
Sem ver de quê (3) ; um riso brando e honesto,
Quasi forçado ; um doce e humilde gesto,
De qualquer alegria duvidoso ;
(i) Relêam-se as bellas redondilhas :
Senhora, quando imagino
O divino
Vosso gesto, claro e bello. . .
(2) Eis como termina o soneto 282, já anteriormente transcripto :
Mas eu não deixarei meu pensamento.
Porque, inda que este mal me cause a morte,
Un bel inorir tutta la vita honora.
(3) Presumo que deve ler-se : Um não sei quê. Cf. o soneto i5 (Busque
Amor) :
. . . Dias ha que na alma me tem posto
Um não sei quê, que nasce não sei donde.
Veja-se também a passagem de Boscan, citada na pagina anterior.
Um despejo quieto e vergonhoso ;
Um repouso gravíssimo e modesto ;
Uma pura bondade, manifesto
Indicio da alma, limpo e gracioso ;
Um encolhido ousar, uma brandura;
Um medo sem ter culpa, um ar sereno ;
Um longo e obediente sofírimento :
— Esta foi a celeste formosura
Da minha Circe, e o magico veneno,
Que pôde transformar meu pensamento.
(Soneto 35).
De quem se iraia : Naturalmente de alguma estonteadora
formosura oriental, que, com a sua apparente impassibilidade,
tão profunda revolução produziu na alma do apaixonado
adorador da infanta.
Do que me não resta duvida é de que o poeta trazia com-
sigo a seductora Circe, quando naufragou na costa da Co-
cliinchina, e ahi a viu perecer afogada, sem lhe poder valer.
E foi então que elle, ao exprimir a sua dor, attingiu o
supremo grau na poesia lyrica.
Comecemos por estas redondilhas, escriptas naturalmente
antes do mando injusto, que o forçou a embarcar (i).
Mote '.?//""'"'
Se me desta terra lor,
Eu vos levarei, amor.
e ainda esta, da canção Qaros y frescos rios:
Tengo en el alma puesto
su gesto tan hermoso
y aquel saber estar adonde quiera,
el recoger honesto,
el alegre reposo,
..1 .,,, o.. <,.,.. .1.. .,,, ...-. q,,ç mnncrn
' (') '
Voltas
Se me fôr e vos deixar
(Ponho por caso que possa),
Esta alma minha, que é vossa,
Gomvosco me ha de ficar.
Assi que, só por levar
A minha alma, se me fôr,
Vos levarei, meu amor.
Que mal pódc maltratar-me,
Que comvosco seja mal ?
Ou que bem pôde ser tal.
Que sem vós possa alegrar-me ?
O mal não pode enojar-me,
O bem me será maior,
Se vos levar, meu amor.
Vejamos agora como, alludindo a uma predicção, o poeta
nos dá noticia das duas desgraças que lhe aconteceram cm
um só dia — a perda dos haveres que tinha agenciado no
Oriente e com que contava para a velhice, e a morte da sua
alegi^e e doce companheira :
Cantando estava um dia, bem seguro,
Quando passava Sylvio e me dizia
(Sylvio, pastor antigo, que sabia
Por o canto das aves o futuro) :
í.iso (i), quando quiser o fado escuro,
A opprimir-te virão em um só dia
Dous lobos ; logo a voz e melodia
Te fugirão, e o som suave e puro.
Bem foi assi, porque um me degolou
Quanto gado vaccum pastava e tinha,
De que grandes soldadas esperava ;
(i) Na i.** edição lê-se Meris, nome de um pastor da egloga 9.* de
Vergilio. Liso é emenda de Fiaria c Sousa.
2 23
E, por mais dano, o outro me matou
A cordeira gentil, que eu tanto amava,
Perpetua saudade da alma minha.
(Soneto 172).
E, vagueando pelos logares próximos da terrível catastrophe,
de que a custo salvara a vida e o Canto, em que celebrava
os feitos dos portugueses (1)*, o poeta exprime a sua dor pela
morte da cordeira gentil, em versos de incomparável bellcza.
O ceu, a terra, o vento sossegado. . .
As ondas, que se estendem por a área. . .
Os peixes, que no mar o somno enfreia. . .
O nocturno silencio repousado. . . (2)
O pescador Aonio, que, deitado
Onde CO vento a agua se meneia,
Chorando, o nome amado em vão nomeia,
Que não pôde ser mais que nomeado :
Ondas, dizia, antes que Amor me mate,
Tornai-me a minha nympha, que tão cedo
Me fizestes á morte estar sujeita 1
Ninguém responde. O mar de longe bate.
Move-se brandamente o arvoredo.
Leva-lhe o vento a voz, que ao vento deita. . .
(Soneto 173).
Ah minha Dynamene ! Assi debcaste
Quem nunca deixar pôde de querer-te ?
Que já, nympha gentil, não possa ver-te !
Que tão veloz a vida desprezaste !
Como por tanto tempo te apartaste
De quem tão longe andava de perder-te ?
Puderam essas aguas defender-te (3)
Que não visses quem tanto magoaste ?
(1) Vid. Lusíadas, x, 128.
(2) Para melhor indicar o estado de perturbação do seu espirito, o
poeta, na primeira quadra, deixa as orações incompletas.
(3) Prohibir-te, impedir-tc.
:1.\
Nem somente fallar-te a dura morte
Me deixou, que, apressada, o negro manto
Lançar sobre os teus olhos consentiste.
Oh mar ! ó ceu ! ó minha escura sorte !
Qual vida perderei que valha tanto,
Se inda tenho por pouco o viver triste ?
(Soneto 170).
Cara minha inimiga, em* cuja mão
Pôs meus contentamentos a ventura,
Faltou-te a ti na terra a sepultura.
Porque me falte a mi consolação.
Eternamente as aguas lograrão
A tua peregrina formosura,
Mas, emquanto me a mi a vida dura,
Sempre viva em minha alma te acharão.
E se meus rudos versos podem tanto.
Que possam prometter-te longa historia
D'aquelle amor tão puro e verdadeiro,
Celebrada serás sempre em meu canto,
Porque em quantc? no mundo houver memoria.
Será a minha escriptura o teu lettreiro.
(Soneto 23).
E, para que a sua promessa se convertesse em indestru-
ctivel realidade, o immortal poeta escreveu estes dous sonetos ;
Quaildo de minhas maguas a comprida
Maginação os olhos me adormece,
Em sonhos aquella alma me apparece,
Que para mi foi sonho nesta vida.
Lá numa soidade, onde estendida
A vista por o campo desfallece.
Corro após ella. . . E ella então parece
Que mais de mi se alonga, compellida.
Brado : Não me fujais, sombra benina !
Ella — os olhos em mi c'um brando pejo.
Como quem diz que já não pôde ser —
Torna a fugir-me. Torno a bradar : Dina. . .
E antes que diga mene, acordo e vejo
Que nem um breve engano posso ter !
(Soneto 72).
22D
Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida, descontente,
Repousa lá no ceu eternamente
E viva eu cá na terra sempre triste !
Se lá no assento etherio, onde subiste.
Memoria d'esta vida se consente.
Não te esqueças daquelle amor ardente,
Que já nos olhos meus tão puro viste.
E se vires que pôde merecer-te
Algúa cousa a dor que me fícou
Da magua, sem remédio, de perder-te,
Roga a Deus, que teus annos encurtou.
Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
Quão cedo de meus olhos te levou.
(Soneto 19).
A alma gentil que a morte levou dos olhos do poeta, que
arrebatou á sua vista, é também o assumpto da seguinte
elegia, que Juromenha publicou pela primeira vez (i):
Quem poderá passar tão triste vida.
Quem (2) não espera já contentamento.
Senão quando de todo fôr perdida.
Quem poderá soffrer tão grão tormento.
Tão áspero, cruel, tão duro e forte.
Quem, morta a esperança e soífrimcnto (3).
( 1 ) «Esta poesia, que encontramos em um manuscripto do século xvii,
está repassada de ternura e melancholia, e é escripta no mesmo cstylo
e até com expressões do inimitável soneto. .. que começa Alma minha
gentil» (iii, 3i5). É escusado observar que Juromenha pensa se trata de
D. Calharina de Ataíde.
O texto publicado por Juromenha está alterndo em certos pontos.
Proponho, por isso, algumas correções
(2) Talvez Que e uma interrogação no íim do terceto : Quem poderá
passar uma vida tão triste, ouc só espera eontentaniento quando de
todo fôr perdida ?
(3) Não me occorrc corrcção que satisfaça.
l5 K, ^:.i
226
Quem pôde imaginar tão dura sorte,
Que faz crecer o mal continuamente,
E, por não dar remédio, não dá a morte ?
Quem ha, emfim, tão triste e descontente,
Que sempre ande o passado imaginando,
E em aborrecimento do presente ?
Se lá onde tu estás vês qual ando (i),
Senhora, e o nosso amor inda lá dura,
Bem creio que meu mal estás chorando ;
Que, faltando-me a tua formosura
E a tua alegre e doce conipanhia.
Bem vês qual será (2) minha desventura.
Tudo já me entristece, a noite e o dia,
E o que mais me atormenta é a lembrança
Do bem que noutro tempo possuia.
Já perdi de cobrá-lo a confiança,
E com isto (3) perdi de ser contente.
Quamanho mal é a falta de esperança !
Se lá nessa outra vida se consente
Sentir-se o mal que cá se anda (4) passando,
Senhora minha, o meu não vos (5) atormente,
Porque, segundo me elle vai tratando,
E (6) o desejo de ver-te da (7) outra parte
Já para ti me vae encaminhando.
Perto me vejo já de ir a buscar-te ;
Entretanto te baste esta certeza.
Porque (8) a mim só me basta contemplar-te.
Allr se acabará nossa tristeza ;
Amor acabará de atormentar-nos ;
Não terá alli lugar sua crueza.
Mas tê-lo-hemos nós para alegrar-nos.
(Elegia 27. Juromenha, iii, 25 1).
(1) Talvez: Se lá onde tu 'sías, vês' qual eu ando.
(2) Proponho : qual é a minha, etc.
(3) Parece-me que deve ser: a perdi.
(4) Naturalmente : que se anda cá.
(5) Decerto : te.
(6) O E deve estar a mais.
(7) Provavelmente : em.
(8) Não será : De que ?
227
Mais tarde, numa hora de profundo desalento e quando
já se lhe ia desvanecendo do coração a imagem daquella que
lhe fora sonlio nesta vida, escrevia o poeta, lembrando-se do
alto logar em que anteriormente havia posto o seu pensa-
mento :
Em prisões baixas fui um tempo atado,
Vergonhoso castigo de meus erros;
Inda agora arrojando levo os ferros,
Que a morte, a meu pesar, tem já quebrado.
Sacrifiquei a vida a meu cuidado.
Que Amor não quer cordeiros nem bezerros ;
Vi maguas, vi misérias, vi desterros ;
Parece-me que estava assi ordenado.
Contentei-me com pouco, conhecendo
Que era o contentamento vergonhoso, ^
Só por ver que cousa era viver ledo.
Mas minha estrella, que eu já agora entendo,
A morte cega (i) e o caso duvidoso (2)
Me fizeram de gostos haver medo.
(Soneto 5).
Reduzido á pobreza pelo naufrágio triste e miserando,
com o coração ainda a sangrar pela morte desastrosa da
sua Dynamene, sem o estimulo da paixão pela infanta,
que, se por tantos annos lhe havia agitado a vida, também
lhe tinha dado forças para arrostar trabalhos (3), o poeta,
(i) Que tão cedo lhe levou dos olhos a pobre cordeira gentil.
(2) O caso que motivou o injustf^ •»•-"•/->. de que se queixa nos
Lusiadas.
(3) Lêa-se, por exemplo, o soneto 2\x^ escripto no Oriente :
Quem quiser ver de amor uma excellencia,
Onde sua fineza mais se apura,
Attente onde me põe minha ventura,
Porque de minha íé faça expriencía.
para cumulo de infortúnios, achava-se envolvido em um caso
duvidoso, que tinha de ser superiormente apreciado e de que
poderia sair mal ferida a sua probidade pessoal.
Mais uma vez a amarga experiência lhe fazia ver como é
verdadeiro o dictado
Perdigão perdeu a penna,
Não ha mal que lhe não venha !
Que se passou em Goa entre Gamões e D. Gonstantino
de Bragança, o vice-rei que havia succedido, em setembro
de i558, ao governador Francisco Barreto?
Vejamos o que se pôde concluir ou conjecturar do que
o poeta nos diz.
Ao dirigir ao vice-rei a epistola 2.% Gamões encontra-se
ainda sob a alçada do injusto mando, que nelle havia sido
executado (i).
Onde lembranças mata a larga ausência,
Em temeroso mar, em guerra dura,
A saudade alli 'stá mais segura,
Quando risco maior corre a paciência.
Mas ponha-me a fortuna e o duro fado
Em morte ou nojo ou damno ou perdição,
Ou em sublime e prospera ventura ;
Ponha-me emíim em baixo ou alto estado :
Que até na dura morte me acharão
Na lingua o nome e na alma a vista pura.
(i) Este receberá, plácido e brando,
No seu regaço o Canto, que molhado
Vem do naufrágio triste e miserando.
Dos procellosos baixos escapado.
Dás fomes, dos perigos grandes, quando
Será o injusto mando executado
Naquelle cuja lyra sonorosa
Será mais afamada que ditosa.
{Lusíadas, x, 128).
229
Apesar disso, não duvida sair em defesa de quem tão mal
visto era, por querer pôr cobro á desordem temerária do
ndgOy mal acostumado do governo anterior (i).
Como nos vossos hombros tão constantes,
Príncipe illustre e raro, sustenteis
Tantos negócios árduos e importantes,
Dignos do largo império que regeis ;
Como sempre nas armas rutilantes
Vestido, o mar e a terra segureis'
Do pirata insolente e do tyrano
Jugo do potentíssimo othomano ;
II
E como com virtude necessária,
Mal intendida do juizo alheio,
A desordem do vulgo temerária
Na santa paz ponhais o duro freio ;
(i) Diogo do Couto, que tinha conhecimento directo da administra-
ção deste vice-rei, explica-nos as causas por que elle era mal visto :
«O que o fez não ser do gosto destes homens e de outros da índia,
senão querer que quem devia que pagasse e que quem furtava e matava
que morresse ? Das quaes cousas achou a terra de muito tempo posta em
foro, que com o hyssopo de agua benta se absolvia.. . . O donde lhe veyo
o mal dil-o-hei : ser muito registado no dar e dispender a fazenda de
S. Alteza, ao menos aos primeiros annos, cousa que aos homens mal
parecia, pelo foro em que estavam postos ; a outra era ser muito inteiro
na justiça e pouco amigo de moderar sentenças ; . . . e juntamente o que a
todos custou em geral para escândalo foi tomar as drogas para S. Alteza,
fazel-as defesas, que era o mais certo pão de que viviam os homens da
índia e que parecco mau tiral-o.. . . Assim que de querer olhar pela fa-
zenda e justiça de S. Alteza, conforme ao que levava por seu regi-
mento,. . . lhe veio não ser muito amado». Dialogo do soldado pratico
portuguejy pag. 53-54 (Lisboa, 1790). Estas palavras do sensato amigo
de Camões minístram-nos um valioso subsi<'"^ »^ ^n w jnterprcT u-Ho Ao
certas passagens da epistola 2.*.
23o
Se com minha escriptura, longa e varia,
Vos occupasse o tempo, — certo creio
Que, com vagante e ociosa phantasia.
Contra o commum proveito peccaria ;
III
E não menos seria reputado
Por doce adulador, sagaz e agudo,
Que contra meu tão baixo e triste estado
Busco favor em vós, que podeis tudo,
Se, contra a opinião do vulgo errado.
Vos celebrasse em verso humilde e rudo.
Dirão que com lisonja ajuda peço
Contra a miséria injusta que padeço.
O poeta não quer, com seus versos, distrair a attenção do
vice-rei, preoccupado com tantos negócios ; não quer também
que o tenham por um adulador, que vem pedir a protecção
de quem lhe pôde valer contida o seu tão baixo e triste estado,
de quem o pôde livrat^ da miséria injusta que padece (i).
Mas nem porisso deixará de dizer a verdade desinteressada-
mente, sem a mira em qualquer premio.
IV
Porém, porque a verdade pôde tanto
No livre arbitrio,
Esta me obriga a que, em humilde canto,
Contra a tenção que a plebe ignara tem.
Vos faça claro a quem vos não alcança,
E não de premio algum vil esperança.
(i) Das expressões que o poeta emprega parece-me poder-se inferjr
que elle se achava preso, de certo por causa do caso duvidoso, que havia
motivado o mando injusto.
23
E, entrando no assumpto, o poeta estabelece e demonstra
com exemplos o principio geral de que neste mundo,
na vida,
Ninguém alcança a gloria merecida.
Não deve, porisso, estranhar-se
O vitupério vil das rudas gentes,
que, afinal,
É louvor dos reaes e sublimados.
Exalta em seguida o poeta os antepassados de D. Constan-
tino, destacando entre elles o gi'ão Nuno, pae da pátria sua :
VII
Quem no lume dos vossos ascendentes
Poderá pôr os olhos, que abalados
Lhes não fiquem da luz, vendo os maiores,
Vossos passados, reis e imperadores ?
VIII
Quem verá aquelle Pae da Pátria sua.
Açoute do soberbo castelhano.
Que o duro jugo só, co*a espada nua,
Removeu do pescoço lusitano.
Que não diga : Ó grão Nuno, a eterna tua
Memoria causará, se não me engano.
Que qualquer teu menor (i) tanto se estime,
Que nunca possa ser senão sublime ?
E, depois de dizer que não prosegue nesta matéria, por não
( I ) Descendente. Latinismo correspondente a maiores, antepassados.
232
possuir engenho adequado, o poeta entra na especificação e
louvor dos actos do vice-rei.
IX
Mas, pois a dizer tudo me offereço,
E dias ha que no desejo o tenho,
Sendo vós de tão alto e illustre preço,
A vida fostes pôr num fraco lenho,
Por largo mar e undosa tempestade.
Só por servir á regia majestade (i).
E depois de tomar a rédea dura
Na mão, do povo indómito, que estava
Costumado a larguezas e á soltura
Do pesado (2) governo que acabava.
Quem não terá por santa e justa cura.
Qual do vosso conceito se esperava,
A tão desenfreada enfermidade
Applicar-lhe contraria qualidade ?
(i) Cf. Couto, Década 7.*, 6, i, sobre as circumstancias em que
D. Constantino de Bragança foi nomeado vice-rei da índia.
(2) Como explicar este epitheto, applicado ao governo que permittia
larguezas e soltura ao povo indómito? Se o texto não está alterado,
talvez o poeta se refira ao procedimento que com elle teve Francisco
Barreto. Deixando ás soltas o povo indómito, este governador da índia
só para o poeta foi pesado. Seja, porém, esta ou outra a explicação do
epitheto, o que é certo é que o poeta quis, nesta epistola, ser desagra-
dável ao antecessor de D. Constantino de Bragança. Nem se diga que o
fazia apenas para ser lisongeiro com quem podia livrá-lo do seu tão baixo
e triste estado^ da miséria injusta que padecia. Oppõe-se a isto o caracter
do poeta e o próprio conteúdo da epistola* Se Camões sáe a campo, em
defesa do malquisto vice-rei, fá-lo em nome da verdade ; fá-lo até com
risco de ver malsinadas as suas intenções. Não podia, portanto, deixar
de ser escrupulosamente exacto, quer se referisse ao vice-rei, quer ao
seu antecessor.
23:
XI
Não é muito, Senhor, se o moderado
Governo se blasphema e se desama,
Porque o povo, á largueza costumado,
A lei serena c iusla. dura chama.
Pelos seus feitos bellicos — conquista de Damão e jornada
contra o rei de Jafanapatão — (i) tem D. Constantino asse-
gurada fama immorredoura.
(i) O vice-rei, voltando de Ceilão, depois de haver subxnetiido o rei
citado no texto, deu entrada em Goa em principios de março de i56i
(Couto, Década 7.", 9, lo), seis meses antes de findar o seu governo.
Foi neste periodo, como se vê, que o poeta escreveu a epistola 2/. Direi
de passagem que na estancia xvii desta epistola se encontram dous ver-
sos, dirigidos ao rei de Jafanapatão, que esclarecem um logar obscuro
dos Lusíadas.
Lê-se na epistola :
Deste bem a intender quSo grande gloria
É de tal vencedor o ser vencido.
E nos LusiadaSy vii, 56, 8 :
. será no mundo ouvido
C) vencedor, por gloria do vencido.
Nas Fontes dos Lusíadas^ pag. 160, nota, suppus que teria sido emen-
dado o texto deste ultimo verso, mudando-se sem em por. Baseava-me
para isso neste passo do Trionfo d^AmorCf em que Petrarca, rcferindo-sc
a César, preso por Cleópatra nos laços do amor, observa :
Or di lui si tríonfa : ed è ben driit<
Se vinse il mondo ed altri ha vinio lui,
Che dei suo vincilor si glorie il viito.
(C. I., V. 91^3).
234
XVII
Quem faz obras tão dignas de memoria,
Será sempre famoso e conhecido
Onde os altos juízos o estimarem,
Que estes sós têem poder de fama darem.
Que importa, pois, a opinião do povo ignaro ?
XVIII
Não vos temais. Senhor, do povo ignaro.
Tão ingrato a quem tanto faz por elle ;
Mas sabei que é signal de serdes claro
O ser agora tão malquisto delle (i).
O caso presente não é senão mais um a accrescentar a
tantos outros, de que a historia nos dá noticia. O poeta cita,
dentre os gregos, Themistocles, Cimon, Lycurgo, Aristides,
Pachitas e Demosthenes (2) e conclue:
Pois mil exemplos deixo dos romanos ;
E vós também sois um dos lusitanos.
(i) Lêa-se Couto, Década 7.% 9, 17: «Todo este inverno (i56i) gas-
tou (o viso-rei) em acabar huma náo, que fez defronte dos seus Paços,
pêra se ir nella pêra o Reyno por esperar em setembro por successor ;. . .
foi a causa (esta náo) que assim nà índia, como em Portugal lhe remor-
deram mais que todas. E tanto que lhe contrafizeram aquelle romance,
que diz : Mira Nero de Tarpeya a Roma como se ardia em Mira Nero
da janella la nave como se hapa». O veridico historiador justifica o
calumniado vice-rei e accrescenta que este veio pobre para o reino, o que
não obstou a que, chegando a Lisboa, fosse «mexericado que levava
grandes riquezas e thesouros e que roubara a índia».
(2) Observação de W. Storck {Vida de CatuÕes, pag. 612, n. 2.") :
«As vinte oitavas, tão viris e recheiadas de allusões a pessoas e datas da
2JD
De nada valeu, porém, ao poeta o fazer-se apologista do
malquisto vice-rei; de nada lhe serviu o ter encarecido as
proezas bellicas do descendente do gi^ão Nuno,
Quando D. Constantino entregou o poder ao seu successor,
chegado a Goa a 7 de setembro de i56i, Camões continuava
ainda no seu tão triste e baixo estado, padecia ainda a misé-
ria injusta, a que não tinha dado remédio quem tudo podia.
Se não estou em erro, o poeta desforçou-se nos Lusiadas,
talvez na própria altura em que então levava a epopea.
Lêam-se as estancias finaes do canto vii, em que elle nova-
mente invoca as nymphas do Tejo e do Mondego, para poder
continuar a cantar os feitos' dos portugueses.
LXXVI
Vosso favor invoco, que navego
Por alto mar, com vento tão contrario,
Que, se não me ajudais, hei grande medo
Que o meu fraco batel se alague cedo.
LXXIX
Olhai que ha tanto tempo que, cantando
O vosso Tejo e os vossos lusitanos,
A fortuna me traz peregrinando,
Novos trabalhos vendo e novos danos :
Agora o mar, agora expVimentando
Os perigos mavórcios inhumanos.
Qual Canace que á morte se condena.
Numa mão «-^m-ii->i-^> :, pcnri.l;» e noutr;i n penna.
antiguidade hebraica e.grega, provam uma memoria excepcional. O único
lapso está no nome Pachitas, por Paches ou Pachetes». A sr.' D. Caro-
lina Michaclis conjectura que o poeta cscrçvcu realmente Pachetes
(Ibid, pag. 61 3, nota «).
200
KXXX
Agora, com pobreza aborrecida,
Por hospícios alheios degradado ;
Agora da esperança já adquirida
De novo mais que nunca derribado (i) ;
Agora ás costas (2) escapando a vida,
Que dum fio pendia tão delgado.
LXXXI
E ainda, nymphas minhas,* não bastava
Que tamanhas misérias me cercassem,
Senão que aquelles que eu cantando andava
Tal premio de meus versos me tornassem :
A troco dos descansos que esperava.
Das capellas de louro que me honrassem,
Trabalhos nunca usados me inventaram.
Com que em tão duro estado me deitaram.
Vede, nymphas, que engenhos de senhores
O vosso Tejo cria valerosos.
Que assi sabem prezar com taes favores
A quem os faz cantando gloriosos !
Que exemplos a futuros escriptores,
Para espertar ingenhos curiosos.
Para porem as cousas em memoria.
Que merecerem ter eterna gloria (3) !
Se bem interpreto esta passagem da nossa epopea nacinal,
(1) Parece-me que ò poeta allude, embora em termos vagos, á espe-
rança, renascida no Oriente, de que a infanta se lembraria delle.
(2) Nas Fontes dos Lusíadas, pag. 256, nota i, proponho a lição
a custo.
(3) As estancias que se seguem (lxxxih-lxxxvii) foram, segundo creio,
escriptas ou pelo menos retocadas em Lisboa.
237
Camões atiribue a D. Constantino de Bragança o mando
injusto que contra si foi executado, ou, pelo menos, o tão
duro estado, os trabalhos nunca usados, que d'aí lhe pro-
vieram. E quem sabe se, no procedimento do vice-rei, elle não
veria o efteito de indicações vindas de mais alto, da Catha-
rina Real, que havia sido mettida a ridiculo no prologo do
Auto de El- Rei Seleuco, e que, agora mais que nunca, se
julgaria constituida na obrigação de evitar á sobrinha e cu-
nhada qualquer motivo de desgosto?
Seja como fôr, o que me parece fora de duvida é que
D. Constantino de Bragança devia estar bem informado das
antigas pretenções amorosas de Camões a respeito da infanta
D. Maria. Ora, estando a findar o seu governo, era natural
que clle quisesse deixar ao successor a solução do caso duvi-
doso do poeta. Evitava assim que este viesse na mesma occa-
sião para o reino e fosse mais um pretexto de que os seus
inimigos se aproveitariam para o mexericarem.
Felizmente para o poeta, o novo vice-rei era o 3.° conde
do Redondo, D. Francisco Coutinho. aFacil, alegre, bem
assombrado, muito avisado e grande cortesão, (tendo) ditos
muito galantes» (i), o illustre fidalgo era um velho conhecido
e talvez um amigo do poeta (2) e sabia a fundo a historia da
(1) Couto, Década 7.% 10, 17.
(2) Se o soneto 86 (Dos antigos illustres) — em que se celebram os
feitos do valente capitão de Arziiia, D. João Coutinho, pac do vice-rei —
foi escripto antes de o poeta ir para o Oriente, podemos conjecturar que
entre este e o filho do 2.* conde do' Redondo não havia apenas as rela-
ções banaes da sociedade.
Eis como termina o referido soneto :
Vós, honra portuguesa c dos Coutinhos,
Clnrissimo D. João, com melhor nome
A vós encheis de gloria, a nós de exemplo.
:38
sua paixão pela infanta. Basta dizer que era genro de Fran-
cisco de Gusmão, mordomo-mór da filha de D. Manuel, e de
D. Joanna de Blasfé, camareira-mòr e confidente da mesma
senhora.
Não tardou muito, por certo, que o poeta soubesse quaes
eram a seu respeito as disposições do novo vice-rei. E o meio
foi talvez este mote — o que bem condiz com a conhecida
Índole do successor de D. Constantino de Bragança — :
Muito sou meu inimigo,
Pois que não tiro de mi
Cuidados com que nasci,
Que põem a vida em perigo.
Oxalá que fora assi (i) !
Claro é que as voltas do poeta se não fizeram esperar.
Viver eu, sendo mortal,
De cuidados rodeado,
Parece meu natural ;
Que a peçonha não faz mal
A quem foi nella criado.
Tanto sou meu inimigo,
Que, por não tirar de mi
Cuidados com que nasci,
, Porei" a vida em perigo.
Oxalá que fora assi 1
Tanto vim a acrescentar
Cuidados, que nunca" amansam
Emquanto a vida durar.
Que canso já de cuidar
Como cuidados não cansam.
(i) Como se sabe, estes versos encontram-se entre as redondilhas
de Camões, sob a rubrica : Mote que lhe mandou o Viso-Rei. O ultimo
verso, que pelo sentido parece devia ser : Oxalá não Jôra assi, visava
naturalmente a diíficultar as voltas.
Se estes cuidados que digo
Dessem fim a mi e a si,
Fariam pazes comigo ;
Que, pôr a vida em perigo,
O bom (i) fora para mi.
Dentro em pouco o caso duvidoso, que tanto havia oppri-
mido o poeta, achava-se liquidado, sem desdouro para elle, e
o vice-rei servia-se de o occupar em determinados trabalhos (2).
Conde, cujo illustre peito
Merece nome de rei,
Do qual muito certo sei
Que lhe fica sendo estreito
O cargo de viso-rei ;
Servirdes-vos de occupar-me, ,
Tanto contra meu planeta,
Não foi senão asas dar-me,
Com as quaes vou a queimar-me.
Como faz a borboleta.
(i) Provavelmente : o bem.
(2) Que trabalhos seriam esses ? Permitta-se-me apresentar uma con-
jectura. O poeta leu ao vice-rei os Lusíadas^ que ainda não estavam
completos, e expôs-lhe o projecto de nelles incluir a descripção geogra-
phica das regiões orientaes, conquistadas ou visitadas pelos portugueses,
e bem assim a historia dos feitos por estes praticados nessas regiões.
O vice-rei encarregaria então Camões de procurar no archivo de Gôa
todos os elementos de que precisasse para escrever aquclla parte do
poema.
Fossem, porém, estes ou *,v,i.w. ^^ i.^ihalhos de que o poeta foi en-
carregado, o que me parece certo é que' eram remunerados e que elle
via assim assegurada a sua modesta subsistência.
Segundo W. Storck (Vida de Camões, pag. 621), o vice-rei ntalvcz se
servisse do talento estylistico e litterario (de Camões) para redigir actas
c cartas que precisavam de uma redacção mais esmerada e limada».
E se eu a penna tomar,
Que tão mal cortada tenho,
Será para celebrar
Vosso valor singular,
Dino de mais alto engenho.
A clemência que asserena
Coração tão singular,
Se eu nisso pusesse a penna,
Seria encerrar o mar
Em cova muito pequena.
Bem basta, Senhor, que agora
Vos sirvais de me occupar,
Que assi fareis aparar
A penna, com que algum'hora
Vos vereis ao ceu voar.
Assi vos irei louvando.
Vós a mi do chão erguendo.
Ambos o mundo espantando ;
Vós com a espada cortando,
Eu com a penna escrevendo.
Voltaram então para o poeta dias de desafogo e de ale-
gria (i), que elle tinha visto fugirem-lhe havia tantos annos.
(i) Lêa-se nas Redondilhas o Convite que fe^ na índia a certos fidal-
gos. É bem conhecida a engraçada lista áo p anta gruelico festim :
Tendes : nemigalha — assada;
Cousa nenhuma — de molho;
E nada feito em — empada;
E vento — de tigelada ;
Picar no dente — em remolho;
De fumo tendes — tassalhos;
Ave — da pena que sente
Quem da fome anda doente — ;
Bocejar — de vinho e d'alhos;
Manjar — em branco, excellente^
241
E o pobre coração adormentado, depois de um pequeno
repouso, tornou a dar signal de si. Era do programma :
No tempo que de amor viver soía,
Nem sempre andava ao remo ferrolhado ;
Antes, agora livre, agora atado,
Em varias flammas variamente ardia.
Que ardesse num só fogo não queria
O ceo, porque tivesse exprimentado
Que nem mudar as causas ao cuidado
Mudança na ventura me faria.
Ey SC algum pouco tempo andava isento.
Foi como quem co peso descansou,
Por tornar a cansar com mais alento.
Louvado seja Amor em meu tormento.
Pois para passatempo seu tomou
Este meu tão cansado soffrimento.
Agora, a Jlamma em que o poeta ardia, era a Barbara
escrava» a humilde creatura immortalizada em uns versos, que,
no género, competem com o melhor de que tenho noticia.
Aquella captiva,
Que me tem captivo,
Porque nella vivo,
Já não quer que viva.
Eu nunca vi rosa
Em suaves molhos,
Que, para meus olhos,
Fosse mais formosa.
f.sta c a caiHiNa
Que me tem captivo ;
E pois nella vivo,
Fr! força que 1 1.
(i) Segundo a ingenhosn interpretação da sr* D. Carolina MichaVlis,
10 K. 5ajH
1^1
Como ia longe o tempo em que o poeta, escrevendo o so-
neto 169, se declarava, em forma de duplo acróstico, captivo
de uma mui alta senhora — da infanta D. Maria!
Fencido está de amor mexi pensamento,
O mais que pôde ser; vencida a vida,
Sujeita a vos servir e nistituida,
Offerecendo tudo a vosso intento.
Contente deste bem, louva o momento
Ou hora, em que se viu /ao bem perdida,
Mil vezes desejando, assi ferida.
Outras mil renovar seu perdimento.
Com esta pretenção está segura
A causa que me guia nesta empresa,
7'ão sobrenatural, Vzonrosa e alta,
Jurando não querer outra ventura,
Fotando só por vós ^ rara firmeza,
Ou ser no vosso amor ízchado em falta.
Foi por certo para se desculpar, não tanto perante os amigos,
como aos seus próprios olhos, que o poeta escreveu a ode 10.^.
' Nella adduz o exemplo de Achilles, que
se viu captivo
Da captiva gentil, que serve e adora ;
O de Salomão,
Que mais que todos soube, mais amou ;
O do grão sábio Aristóteles, que a uma baixa concubina
Aras ergueu, que aos deuses só devia.
o poeta, no fim do jantar cuja lisla já conhecemos, brindou á Luisa
Barbara, recitando as endechas, e terminando-as por um viva /, encorpo-
rado no ultimo verso. (W, Storck, Vida de Camões, pag. G19, nota).
243
Mas que culpa tinha o poeta,
se, de pequeno, offerecido
Foi todo a seu cuidado,
No berço instituído
A não poder deixar de ser ferido ?
Dispondo das boas graças do vice-rei, a ponto de lhe re-
commendar homens como Heitor da Silveira e Garcia da
Orta (i), Camões tinha decerto assegurada a sua vinda
para o reino. Seria até naturalmente companheiro de viagem
do illustre fidalgo, que, segundo a praxe, lhe faria todas as
despesas. Tudo isto, é claro, depois da promessa formal —
que aliás já não seria muito custosa — , de não mais se lem-
brar da infanta D. Maria.
(i) Relativamente a Heitor da Silveira, veja-se nas Redondilhas a
graciosa ajuda á petição de um subsidio, que aquelle dirigiu ao vice-rei.
Emquanto a Garcia da Orta, é sabido que os celebres Colóquios, im-
pressos em Gôa em i5ó3, são precedidos de uma ode de Camões (a 8.")
ao conde do Redondo, na qual se exalta o mérito scientifico do grão
volume do velho medico e botânico português, e se sollicita para elle o
favor e amparo do generoso fidalgo.
Pois se o poeta, escudado na protecção do seu nobre amigo, até se
permittia o raro prazer de troçar de um terrível agiota — o capitão Mi-
guel Rodrigues Coutinho, o Fios Secos— ^ em cujas garras havia caído !
Que diabo ha tão danado,
Que não tema a cutilada
Dos fios secos da espada
Do fero Miqucl armado ?
Com razão lhe fugiria,
Se, contr'elIe e contra tudo,
^ão tivesse um forte escudo
Só cm vossa Senhor i,
È que o fero Afiguel era temível, quer exhíbisse uma confissSo de
dívida, quer arrancasse da bem afiada durindana.
#
244
Mas, infelizmente, alguns meses antes de chegar ao termo
do seu governo, «adoeceo o conde do Redondo e foi tão
abreviada sua enfermidade, que quasi se não sentio senão
quando se disse que era falecido. O que causou em todos
grande espanto e tristeza, porque estava muito bem quisto
de todos. Faleceu aos 19 dias de fevereiro do anno de i564,
em que andamos, ás 2 horas da tarde, tendo governado a
índia dous annos e meio» (i).
E fácil presumir como devia ter sido dolorosa para o poeta
a prematura perda do seu generoso amigo.
Privado de recursos e tão longe da pátria, sentindo já
naturalmente os primeiros rebates da decadência physica,
apressados por dez annos de peregrinação por diversas partes
do Oriente, com que sombrias cores se não lhe antolharia
por vezes o futuro ?
Oh 1 como se me alonga, de anno em anno,
A peregrinação cansada minha !
Como se encurta e como ao íím caminha
Este meu breve e vão discurso humano !
Minguando a idade vai, crescendo o dano.
Perdeu-se-me um remédio que inda tinha.
Se por experiência se adivinha,
Qualquer grande esperança é grande engano.
Corro após este bem, que não se alcança ;
No meio do caminho me fallece.
Mil vezes caio e perco a confiança.
Quando elle foge, eu tardo, e na tardança,
Se os olhos ergo, a ver se inda apparece.
Da vista se me perde e da esperança.
(Soneto 48).
Tudo leva a crer que foram estas as cogitações que domi-
(1) Couto, Década 7.% 10, 1;
245
naram no espirito do poeta, desde a morte do conde do
Redondo até o embarque para Moçambique (i).
Como elle lastima o seu irtsie estado e se queixa da /òr-
tima injusta!
Eu cantei já, e agora vou chorando
O tempo que cantei tão confiado.
Parece que no canto já passado
Se estavam minhas lagrimas criando.
Cantei ; mas se me alguém pergunta : quando ?
Não sei ; que também fui nisso enganado.
É tão triste este meu presente estado,
Que o passado por ledo estou julgando.
Fizeram-me cantar manhosamente
Contentamentos não, mas confianças ;
Cantava, mas já era ao som dos ferros.
De quem me queixarei, se tudo mente ?
Porém que culpas ponho ás esperanças.
Onde a fortuna injusta é mais que os erros ?
(Soneto 167).
Por fim, depois de três longos annos, Pedro Barreto trouxe
(i) nSobre o triennio (de 1564-1567) paira um denso nevoeiro, que
não nos é dado descortinar. Nesta situação devemos presumir que viveu
dos proventos grangeados durante o reinado do liberal e benévolo conde,
soccorrido de vez em quando por amigos sinceros e leaes, como era,
por exemplo, o velho dr. Garcia tia Orta, e que utilizou o ócio, cinze-
lando os últimos três ou quatro cantos dos Lusíadas j para cuja confecção
lhe eram indispensáveis os documentos e annuarios do Archivo Nacional
de Goa». (Storck, V7c/j de CamõeSy pag. 645).
A ode Fora conveniente, conservada no Cancioneiro de L. Franco,
ti. ^M, c publicada por Juromenha como sendo de Camões, não per-
tence ao poeta, como observa W. Storck {Vida, pag. 642). Não ; '
portanto, delia inferir-se que o succcssor do conde do Redondo, D. .\
ele Noronha, a quem se suppunha que o poeta a dirigira, fosse um pro-
tector deste. Na minha opinião, esta ode, cujo texto está bastante alte-
rado, não só não é de Camões, mas ate o tem a elle por assumpto. Foi
um admirador do poeta que a escreveu cm seu louvor.
246
o poeta comsigo para Moçambique (setembro de 1567). E, no
anno de iSóg, alguns amigos, que vinham da índia, paga-
ram-lhe a passagem para o reino (i).
VI
De volta do Oriente
A Satiia Clara, em que vinha o poeta, chegou a Cascaes
cm abril de iSyo, quando já se podia considerar cxtincta a
peste grande, que tantas victimas havia causado. Não houve,
portanto, muita demora na livre pratica (2).
Podemos suppôr que um dos primeiros cuidados do recém-
chegado, depois do desembarque, seria colher informações
a respeito da infanta, que decerto se achava então fora de
Lisboa, por causa da peste.
E o que o poeta logo soube — se é que disso ainda não
tinha noticia — foi que a illustre senhora, frustrado o seu
casamento com o filho de Carlos V, havia enérgica e altiva-
(i) «Em Moçambique achamos aquelle Príncipe dos Poetas do seu
tempo, meu matalote e amigo, Luis de Camões, tão pobre que comia
de amigos. E pera se embarcar pêra o Reyno lhe ajuntamos os amigos
toda a roupa que houve mister e não faltou quem lhe desse de comer».
Couto, Década 5.% i, 28.
(2) Eis as palavras de Couto : «Chegamos a Cascaes em abril e ahi
surgimos, por estar a cidade de peste. E tinha el Rey alli regimento que,
chegando as nãos, surgissem fora e lhe mandassem um criado seu com
cartas para saber novas da índia. E. . . me desembarcaram com as cartas
para ir dar novas (a el Rey). Em Almeirim o esperei, aonde veio ter,
d'ahi a dous dias. . . E por os fysicos assentarem estaria a cidade fora
do mal grande que teve, mandou el Rey que entrassem as nãos dentro».
Década 8.% i, 28. ,
-47
mente rejeitado todas as novas propostas matrimoniaes (i),
havia definitivamente morrido para o mundo. ^Dotada de
animo grande e espirito levantado, de accordo com a sua
alta posição, revelando a generosidade própria de nobres
caracteres, perdoa tantos e tão repelidos aggravos, o desva-
necimento das suas mais risonhas esperanças. Sem uma
queixa, sem um reparo, com discreta reserva, põe termo a
tudo. Renuncia a qualquer enlace; resolve ficar solteira e no
reino, no meio das suas amigas, dos seus livros e dos seus
pobres, entregue d ora avante ás sciencias e artes, a obras
(i) Quando em i556 e iSSy D. João III insistia manhosamente com
a irmã para que casasse, pois esperava assim evitar que a rainha D. Leonor
a levasse para junto de si (o casamento depois se desfaria), a illustre
senhora perdeu a paciência e deu esta altiva resposta ao dissimulado e
importuno irmão : aQuando huuo que tratar negócios que parccian
buenos, anduuo V. A. en dilaciones y de feria en feria, sin quererlos con-
cluir, y agora que no ay ninguno, me sale com esso ? Pues aunque fuesse
Monarca dei mundo, no lo harè, ni se ha de pensar ral cosa de mi».
(Pacheco, V. de Ia Infanta f fl 56). E o embaixador espanhol, D. Sancho
de Córdova, que nos transmittiu estas palavras, precede-as dos seguintes
dizeres : «El Rey trato con su hermana á que quando ella se determine
ir con su madre, que casasse con el senor Rey de Romanos, y ella se
altero tanto de oirío, y le respondi© de manera, que le peso de auerle
hablado, porque, entre las otras ásperas palabras que le dixo, fueron
estas» (seguem-se as palavras ha pouco transcriptas). E o enviado de
Carlos V, depois de elogiar a intelligencia, a cordura, a gravidade da
infanta, o costume que tinha de fallar pouco e com muito acerto, pro-
segue : «Temense sus determinaciones como de tal, que no son de muger
moça, que maííana se pueden esperar otras que las que oy tiene. . . Ella
quedo tan sentida dcl passado (allusão ao casamento com o príncipe dás
Astúrias, agora já rei de Espanha), que veo que aun para èl no daria
oidos, porque tiene otros fines muy santos y honrados^ y, sin hazer es-
trcmos en ello, ha mas de dos aRos que se ensaya en un vestido y reco-
gimienio muy bueno, y mucha oracion, y esto no como hipócrita, siito
como conuiene n su edad y persona ; y tiene el entcndímiento y valor
que digo». (Pacheco, fl. 58;.
248
de caridade e cuidados religiosos. Despede-se do mundo e
de seus enganos, preferindo a placidez da vida contempla-
tiva, o ideal de Rachel-Maria, aos cuidados e conflictos da
vida activa de Lea e Marta» (i).
Eis como Fr. M. Pacheco descreve a vida quotidiana da
filha de D. Manuel:
tPor las marianas, auiendo cumplido sus particulares de-
uociones, que suelen hazer las almas timoratas ai leuantarse
dei sueno, se iba a su capilla, y alli oia dos y três missas
con singularissima deuocion. Confessauase en los mas de los
dias, comulgaua en los que le disponia su confessor... Des-
pues de confessar, ò de comulgar en los dias permitidos, se
retiraua a oraciõ; y acabada ella, entraua en despacho de
memoriales que acudian a su palácio, de huerfanas, viudas
y otro género de gente necessitada... Cumplida esta santa
occupacion, el tiempo que restaua hasta la hora de comer
se despendia en estúdios que guia ai mayor conocimiento de
Dios; y a sus horas se ponia à la mesa, con la grandeza
deuida a su Real persona, mas en el comer cõ la teplança
de religiosa obseruantissima... Este tenor de vida igualaua
a la Religion mas reformada, viuiendo en el mundo como se
estuuiera fuera dei» (2).
É obvio que, nestas condições, não restava ao poeta outro
remédio senão recalcar no fundo do coração as perpetuas
saudades daquella que, por tantos annos, fora a ptda da sua
alma.
Qualquer tentativa que agora fizesse para que a infanta
se lembrasse delle, não só seria absolutamente inútil, mas não
deixaria de lhe acarretar graves desgostos.
Com eíFeito, o carinhoso interesse, a respeitosa sympathia,
(i) Sr.* D. Carolina Michaélis, A infanta D. Maria, pag. 22-23.
(•2) Folhas 97 v.-r)9.
249
em que o povo de Lisboa envolvera, desde pequenina, a
orphã do Rei Venturoso, e que mais de uma vez o havia
feito sair para a rua, afim de evitar que lh'a levassem para
fora do reino (i), esse interesse e sympathia, digo, acha-
(i) A primeira vez, como se sabe, foi quando a rainha víuvb, D. Leo-
nor, se viu forçada a retirar-se do reino. Contra o que aliás se achava
estipulado no contracto matrimonial, o povo não consentiu que a deso-
lada mãe levasse comsigo a infanlinha. «Tomada... la resolucion por
el Rey de entregar la Infanta, divulgòse por el pueblo, que tuuo tal sen-
timiento, de que huuiesse de desterrar-se dei Reino en edad tan tierna
una Princesa natural dèl, hija dei mas querido Uey que hasta entonces
le auia gouernado, que faltaua poço para passar a motin. Discurriasse
publicamente acerca desto, dizendose por los corrillos y conuersaciones
que era nouedad jamas vista en Portugal embiar sus Princesas a Reinos
esiranos, entregando la tutoria, que era propia dcl Rey, ai que por ven-
tura la pretendia, menos por amor que por codicia. . . Assi se platicaua
entre mayores y menores, q, quãdo se sueltan las lenguas populares,
nada dexan por dezir, y el vulgo... en esta ocasion hablaua tan libre-
mente en la matéria, que el Rey le pareciò digna de grande reparo,
instado tambien de lo que le escriuiò la ciudad díí Lisboa». (Pacheco,
ti. IO V.-12). E a cidade de Lisboa perguntava com intimativa a el-rei ;
«Onde mandaes a nossa infanta, nascida como em nossos braços, filha
legitima de nosso natural rey, successora e herdeira em seu grau, nossa
paz presente, alliança futura, riqueza certa?» (Andrade, Chronica de
D. João Illf parte i.", cap. 19). A segunda vez que o povo de Lisboa
teve de intervir foi quando em i557 a rainha D. Leonor — morta de sau-
dades pela filha querida e sabedora já de que mais de uma vez tinha
dado, na melhor das intenções, o seu apoio inconsciente a tortuosos
planos, tendentes a prejudicá-la — empregou desesperados esforços para
a levar para junto de si. «A sorte da Infanta e sua bondade impressiona-
ram profundamente o povo, cujos clamores a haviam arrancado em
tempo dos braços de sua mãe. Fazendo seu o querer do soberano, exacta-
mente como na primeira conjunctura, não quis deixar partir a que era
o amparo dos pobres, protectora dos poetas e dos sábios, e que havia
partilhado todas as dores c alegrias da nação durante 3(3 annos. Concc-
deu-se-lhc, porém, licença para uma entrevista na raia do reino, mas
só depois de a Infanta ter prestado juramento solemnc de voltar em
25o
vam-se no seu auge e haviam-se, por assim dizer, transfor-
mado em intractavel ciúme.
Mal iria, porisso, a quem se lembrasse de causar o menor
desgosto áquella a quem o povo da capital considerara, desde
sempre, a sua infanta, nascida como cm seus braços, áquella
que tão generosamente distribuía a sua enorme fortuna.
O caminho que o poeta tinha a seguir estava, pois, traçado.
Ouçamo-lo :
Que me quereis, perpetuas saudades ?
Com que esperanças inda me enganais ?
O tempo que se vai, não torna mais,
E se torna, não tornam as idades.
Razão é já, ó annos, que vos vades,
Porque estes tão ligeiros, que passais,
' Nem todos para um gosto sois iguaes.
Nem sempre são conformes as vontades (i).
breve para Lisboa e de não transigir com os desejos da mãe. D. Leonor,
anciosa e afflicta, estava em Badajoz, á espera, havia dois meses! Final-^
mente, em dezembro de líSy, a Infanta chega com séquito apparatoso,
brilhante não, porque ambas trajavam dó por morte de D. João III. Vinte
dias passaram juntas... Depois, D. Maria recolheu a Lisboa, fiel á sua pro-
messa, apesar das vivas instancias da mãe, que, além dos seus carinhos,
lhe ofFerecia todas as riquezas e estados que possuia. O povo da capital
recebeu-a com sinceras demonstrações de alegria. Gelebrou-se mesmo
um solemne Te Deiim laudamus, em acção de graças pela sua lealdade.
A mãe não pôde resistir á dor da partida. Passados dias succumbiu a
uma febre maligna, a três legoas de Badajoz».' (Sr.« D. Carolina de Mi-
chaélis, obr. cit., pag. 24).
(i) Manifestamente esta quadra sotireu alterações. Proponho a se-
guinte modificação, embora a não considere inteiramente satisfactoria :
Razão é já, esp'ranças, que vos vades.
Porque os bens tão ligeiros, que mostrais,
Nem todos para um gosto são iguais.
Nem sempre são conformes ás vontades.
2M
Aquillo a que já quis é tão mudado.
Que quasi é outra cousa ; porque os dias
Teem o primeiro gosto já damnado.
Esperanças de novas alegrias ^
Não mas deixa a fortuna e o tempo irado,
Que do contentamento são espias.
(Soneto 220).
Pensamentos, que agora novamente
Cuidados vãos em mi resuscitais,
Dizei-me ; E inda não vos contentais
De ter a quem vos tem tão descontente ?
Que phantasia é esta, que presente
Cada hora ante os meus olhos me mostrais ?
Com uns sonhos tão vãos inda tentais
Quem nem por sonhos pôde ser contente ?
Vejo-vos, pensamentos, alterados,
E não quereis, de esquivos, declarar-me
Que é isto que vos traz tão enleados ?
Não me negueis, se andais para negar-me ;
Porque, se contra mi 'stais levantados,
Eu vos ajudarei mesmo a matar-me.
(Soneto 93).
Creio que foi também nesta occasião que o poeta glosou
o mote attribuido á infanta:
Já não posso ser contente,
Tenho a esperança perdida ;
Ando perdida entre a gente,
Nem mouro, nem tenho vida (i).
(i) «Sei de um (cantar), não posterior ao anno de 1549, que encon-
trei consignado em uma Miscellanea, como desabafo mclancholico Da
Infanta D. Maria guc nunca teve dita para casar, sendo grande senhora.
E diz (segue-se a quadra citada no texto).... Sei também de diversos
lyricos de boa veia que paraphrasearam esta copla, juigando-se «vencidos
da vida», em momentos de tristeza. Dois são magnates coevos... Se-
guem poetas de profissão: I.uis de Camões e seu emulo, o suave
252
Apropriando a si mesmo a melancólica quadra, diz Camões
Depois que meu cruel fado
Destruiu uma esperança,
Em que me vi levantado,
No mal fiquei sem mudança
E do bem desesperado.
O coração, que isto sente,
A sua dor não resiste.
Porque vê mui claramente
Que, pois nasci para triste.
Já não posso ser contente.
Por isso, contentamentos, *
Fugi de quem vos despreza ;
Já fiz outros fundamentos,
Já fiz senhora a tristeza
De todos meus pensamentos. /
O menos que lhe entreguei
Foi esta cansada vida !
Cuido que nisto acertei.
Porque, de quanto esperei.
Tenho a esperança perdida.
Gostos, de mudanças cheios.
Não me busqueis, não vos quero ;
Tenho-vos por tão alheios.
Que, do bem que não espero,
Inda me ficam receios.
De vós desejo esconder-me,
E de mim principalmente.
Onde ninguém possa ver-me ;
Que, pois me ganho em perder-me.
Ando perdido entre a gente.
cantor do Lima, Diogo Bernardes». Sr.^ D. Carolina Michaelis, obr. cit.,
pag. 5y. Reproduzo o texto com as transposições introduzidas pela illus-
tre escriptora, reservando para outro logar a discussão da origem camo-
neana das glosas ao mote attribuido á infanta.
253
Acabar de me perder
Fora já muito melhor.
Tivera fim esta dor,
Que, não podendo mór ser,
Cada vez a sinto mór.
Em tormento tão esquivo,
Em pena tão sem medida,
Que moura ninguém duvida ;
Mas eu, se mouro ou se vivo,
Nem mouro nem tenho vida.
Entretanto cuidava o poeta da publicação dos Lusíadas, o
que, como era natural, o levou a dirigir-se a D. Francisca
de Aragão, a formosa dama que, uns vinte annos antes, elle
havia invocado como a musa inspiradora do poema que
estava preparando (i).
É certo que este, tanto pelo assumpto, como pela forma
e proporções que havia assumido, tinha de ser dedicado a
quem personificava a pátria — a el-rei D. Sebastião — ; ^nas
aquella cm quem o poeta, em tempos idos, declarara ter as
nove musas, aquella em quem Minerva deixara a sua valia,
não podia ficar esquecida.
D'aí a ode 6.*, a que pertencem estes versos:
Aqucllc não sei que.
Que aspira (2) não sei como,
Que, invisivel saindo, a vista o vê,
Mas, para o comprcnder, não lhe acha tomo (3),
E que toda a toscana poesia,
Que mais Phebo restaura,
Em Beatriz nem Laura nunca via,
(i) Veja-se a passagem da egloga 4.*, transcripta a pag. i85.
(2) Provavelmente expim, se cxhala.
(3) Cf. Boícán, na canção Yayo vivi:
Para curallos no les hallo tomo.
Em vós a nossa idade
Senhora, o pode ver,
Se engenho, se sciencia e habilidade,
Iguais á vossa formosura, der,
Qual a (i) vi no meu longo apartamento (2),
Qual em ausência (3) a vejo.
Tais asas dá o desejo ao pensamento !
(i) Talvez o, tanto neste verso, como no seguinte, referindo-se, como
o o do 2.<* verso, ao não sei que da estrophe anterior, c devendo os ver-
sos 3 e 4 desta estrophe incluir-se entre parcnthesis.
(2) Allusão á estada do poeta no Oriente, durante a qual diz ter con-
tinuado a sentir-se inspirado pela formosa dama.
(3) Cf. a estrophe 3.» :
Pois vós, ó claro exemplo
De viva formosura,
Que de tão longe cá noto e contemplo
Na alma, que este desejo sobe e apura. . .
Quando o poeta compôs esta ode, D. Francisca de Aragão estava
ausente de Lisboa, achava-se talvez nas suas propriedades do Algarve.
Foi também por uma occasião destas que o importuno e quasi sem-
pre insulso Caminha escreveu a cantiga publicada- pelo dr. Priebsch, sob
o n.^ 1 5 :
Com tantos ares em meo,
Com tanta terra e tanta agoa,
Que grandes males receo.
Pois me não mata esta magoa 1
Tendo muito que temer,
Já'gora que temerei ?
Que, pois vivo sem vos ver,
Com que*mal não poderei?
Mas, sobre quanto me veo.
Nada sinto como a magoa
De ver inda neste meo
Tantos ares, terra e agoa.
Cf. os n."' 222 e 223. Poesias iíieditas de P. de Andrade Caminha
(Halle, 1898), pag. 14, iSíj, 162. Como se sabe, a Filis cantada por Cami-
nha é D. Francisca de Aragão.
255
Pois se o desejo afína
Uma alma accesa tanto,
Que por vós use as partes de divina,
Por vós levantarei não visto canto.
Que o Beiis me ouça e o Tibre me levante,
Que o nosso claro Tejo
Envolto um pouco vejo e dissonante (i).
E no coração do poeta, que ainda pulsava com força (2),
mas se achava devoluto, surgiu um uopo pensamento (3).
Porque é que elle não havia de amar a formosa dama, que,
desde a época já afastada da mocidade, lhe dera mais de
uma prova de verdadeira estima, chegando até a receber- lhe
(i) Destaco dos que os precedem os três últimos versos desta estro-
phe. O poeta, que vai levantar não visto canto, que vai publicar os Lu-
síadas, recêa que estes não sejam devidamente apreciados em Portugal,
em vista das discórdias que ha na corte e que preoccupam todas as
attenções. Espera, porém, que na Espanha e na Itália haverá quem saiba
dar ao poema o devido merecimento.
(2) ^ja-se o soneto 268, transcripto a pag. 178, nota.
(3) Que, se possível fosse que tomasse
O tempo para trás, como a memoria.
Por os vestigios da primeira idade,
E de novo tecendo a antig(ia historia
De meus doces errores, me levasse
Por as flores que vi da mocidade,
E a lembrança da longa saudade
Então fosse maior contemamento.
Vendo a conversação leda e suave,
Onde uma e outra chave
Esteve de meu novo pensamento, , .
(Cnnçlío !!.•).
Direi de paSSagetn ^^uc 1 iit .u «,,1 i.uui uiuiu.-ni (.m Jffici- n i ní^tyi dvl . . .
cor (soneto 00 da a/ parte), nas chiavi de',,, dolci pcnsier (canção 3.*
da I.' pane).
as confidencias amorosas (i)? Náo estava elle em uma plana
incomparavelmente superior á dos outros poetas que inutil-
mente a haviam cortejado? E porque é que o seu amor havia
de ficar puramente platónico ? Porque é que não haviam os
dous de ligar os seus destinos, sobretudo quando a velhice
não poderia tardar muito a dar sinais de si ?
Ao escrever a canção i.* já o poeta está apaixonado pela
formosa e gentil dama, mas repelle os atrevidos e mos desejos
que o importunam. Ouçamo-lo:
Formosa e gentil dama, quando vejo
A testa d'ouro (2) e neve, o lindo aspeito,
A boca graciosa, o riso honesto,
O coUo de crystal, o branco peito,
De meu não quero mais que meu desejo,
Nem mais de vós, que ver tão lindo gesto.
Alli me manifesto
Por vosso a Deus e ao mundo ; alli me inflammo
Nas lagrimas que choro,
E de mi, que vos amo.
Em ver que soube amar-vos me namoro.
E fico por mi só perdido de arte,
Que hei ciúmes de mi por vossa parte.
(i) Veja-se a carta com que o poeta acompanhou a glosa ao mote
de D. Francisca de Aragão — Mas porém a que cuidados — , e sobretudo
a egloga 4.».
(2) Andrade Caminha também se extasiava perante
. . . aquelle fermoso ouro.
Ou solto ou recolhido,
De que o rayo do sol fica vencido.
(Ode io.«).
Nesta ode {Poesias, pag. 210-216), o importuno poeta convida os
bem nascidos espíritos a celebrarem
. . . uma Francisca,
Qual nunca o mundo teve.
Se por ventura vivo descontente
Por fraqueza de esprito, padecendo
A doce pena que entender não sei,
Fujo de mi e acolho-me correndo
A vossa vista ; e fico tão contente
Que zombo dos tormentos que passei.
De quem me queixarei,
Se vós me dais a vida deste geito
Nos males que padeço,
Senão de meu sugeito,
Que não cabe com bem de tanto preço ?
Mas inda isto de mi cuidar não posso.
De estar muito soberbo com ser vosso.
Se por algum acerto amor vos erra
Por parte do desejo, commeitendo
Algum nefando e torpe desatino,
E se inda mais que ver, emfim, pretendo,
Fraquezas são do corpo, que é de terra.
Mas não do pensamento, que é divino.
Se tão alto imagino,
Que de vista me perco ou pecco nisto,
Desculpa-me o que vejo.
Porém, como resisto
Contra um tão atrevido e vão desejo,
Faço-me forte em vossa vista pura,
Armando-me de vossa formosura
É escusado dizer que £f altiva dama não acceitou a corte
do enamorado poeta, antes com ella se deu por oííendida (i).
(i) Nem outra cousa era de esperar da parte de quem sempre fora
tão protegida e estimada pela rainha D. Catharina, pela Catharina Real,
que no auto á^Klrei Seleuco, como se annunciava no prologo, havia de
apparccer com uns poucos de parvos numa joeira e os ftjvi.i Jc st*mc.ir
ycla casa, de que nasceria muito mantimento ao riso.
17 i' -Vm
258
Quando, Senhora, quis Amor que amasse
Essa grã perfeição e gentileza,
Logo deu por sentença que a crueza
Em vosso peito amor accrescentasse (i).
Determinou que nada me apartasse,
Nem desfavor cruel, nem aspereza ;
Mas que em minha raríssima firmeza
Vossa isenção cruel se executasse.
E, pois tendes aqui oflerecida
Esta alma vossa a vosso sacrifício,
Acabai de fartar vossa vontade.
Não lhe alargueis. Senhora, mais a vida ;
Acabará morrendo em seu officio,
Sua fé defendendo e lealdade.
(Soneto 272).
A vida me aborrece, a morte quero ;
Será eterno o meu mal, segundo intendo.
Pois na mór esperança desespero.
Sem viver vivo, por morrer vivendo (2),
Por não verdes, Senhora, como eu vejo.
Quanto de mi por vós me ando esquecendo.
Seja-me agradecido este desejo ;
Ingrata não sejais a quem vos ama
Com puro e honestissimo despejo.
A culpa que me pondes, ponde-a á fama.
Que pregoa de vós celeste vida.
Que os corações de amor divino inflamma.
Se vos offendo, cuido que não vivo (3) ;
Olhai se muito mais que de ofFender-vos (4),
Das esperanças do viver me privo.
(i) Que a crueza em vosso peito, a vossa crueza, augmentasse o meu
amor.
(2) Talvez : por 7norrer morrendo, isto é, desejando a morte. Cf. os
versos 1 e 7.
(3) Que não continuarei a viver, que morrerei de desgosto.
(4) Verso, por certo, alterado. Talvez : Olhai que muito antes que
offender-vos. Isto é : antes quero perder as esperanças de viver, antes
quero morrer, do que offender-vos
2S9
Se vos aggrava quem por vós padece,
Se vos vem a offender quem vos quer tanto,
Quem desta sorte errou não desmerece.
(Elegia 9.").
Para melhor conseguir os seus intentos, lembrou o poeta
a D. F'rancisca de Aragão que os annos iam fugindo e pon-
derou-lhe que era tempo de gosar a vida.
Se as penas com que Amor tão mal me trata
Permittirem que eu tanto viva delias,
Que veja escuro o lume das estrellas,
Em cuja vista o meu se accendc e mata ;
E se o tempo, que tudo desbarata,
Secar as frescas rosas, sem colhe-las,
Deixando a linda côr das tranças bellas
Mudada de ouro fino em fina prata ;
Também, Senhora, então vereis mudado
O pensamento e a aspereza vossa,
Quando não sirva já sua mudança.
Ver-vos-eis suspirar por o passado.
Em tempo quando executar-se possa
No vosso arrepender minha vingança.
(Soneto 58).
Se te fez natureza tão preclara.
Se te dotou de graça e perfeição,
Com ella não assanhes a ventura.
Olha que estás agora em tua sasão ;
Não sejas para ti mesma avara (i),
Que (2) a fruita ha de colhcr-se, se é madura.
S« deixares murchar tua formosura.
(i) Talvez : Não sejas p'ra ti mesma tão avara.
(2) Juromenha, que encontrou esta poesia no Cancioneiro de Franco
Corrêa (fi. i32 v.) e a publicou pela primeira vez (11, 239), começa o verso
pelas palavras Vâ que. Nem a métrica nem o manuscripio auctorizam a
introducção do Vè. No manuscripto o que c precedido, é certo, por uns
traços, mas estes, segundo me parece, nfío representam nenhuma palavra.
200
Que agora mal despendes,
Depois, se te arrependes,
O tempo, como corre á rédea solta.
Não torna mais (i) a dar volta,
Nem nosso estado humano é ião felice,
Que se renove assim como a fenice.
(Canção Crecendo vai meu mal).
Olhai, Senhora, as horas apressadas,
Que vem cobrindo o ouro dos cabellos
De neve, e torna (2) as rosas descoradas.
Ireis ver ao crystal os olhos bellos
E já os não vereis quais d'antes eram.
Pois quais então serão, não queirais vê-los.
Usai dos bens que vão como nasceram ;
Olhai que tudo desce de alto estado.
Que também os prazeres meus desceram.
Mas não descerá nunca meu cuidado.
(Elegia Foi-me alegre o viver).
A avisada senhora achou sensatas as observações e conse-
lhos do poeta e... casou-se com o embaixador espanhol,
viuvo de pouco tempo (3), saindo depois com elle para fora
(i) A métrica exige se lea : Não mais torna.
(2) O poeta, supponho, escreveu tornam [as horas apressadas). O de-
sejo de melhorar a métrica faria mais tarde desapparecer o m.
(3) Veja-se a nota da pag. 178. Ao ouvir fallar no projectado casa-
mento, escrevia o poeta :
Quem pudera julgar de vós. Senhora,
Que uma tal fé pudesse assi perder-vos ?
Se, por amar-vos, chego a aborrecer-vos.
Deixar não posso o amar-vos algum'hora.
Deixais a quem vos ama, ou vos adora,
Por ver a quem quiçá não sabe vêr-vos ?
Mas eu sou quem não soube merecer-vos,
E esta minha ignorância intendo agora.
2bi
do reino (i). Deixemos, porém, este episodio — o ultimo —
da longa e tão accidentada vida amorosa do poeta, e volte-
mos a fallar da infanta.
Em 1672 appareceram os Lusíadas. Lê-los-ia ella? Tudo
auctoriza uma resposta affirmativa. O assumpto do poema
e sobretudo a fama do seu altissimo valor litterario fariam,
por certo, desapparecer quaesqucr escrúpulos, se os houvesse,
por parte da illustre senhora.
Mais. Se é fundada uma conjectura que me suggerem os
sonetos 260 e 285 (2), a filha de D. Manuel commoveu-se
profundamente com a leitura da nossa epopea nacional e o
fino lenço em que ainda se viam vestigios de uma lagrima foi
Nunca soube intender vossa vontade,
Nem a minha mostrar-vos verdadeira,
Inda que clara estava esta verdade.
Esta, emquanto eu viver, vereis inteira ;
E, se em vão meu querer vos persuade,
Mais vosso não querer faz que vos queira.
(Soneto io5).
(i) A rainha D. Catharina empenhou-se em conseguir para o marido
da sua dama predilecta um logar de mordomo, vago na corte de Ma-
drid, mas Philippe 2.* não desistiu de o mandar como seu embaixador
para a corte imperial. A razão allegnda pela viuva de D. João 3.« era que
a sua protegida nem o Tejo podia atravessar, sem sentir grande afflicçSo :
atodas las vezes q... comigo a atrauessado este rio p^ra ir a outras
partes,... es cosa piadosa lo que passa, y uá mas muerta q uiua», e
porisso pede ao sobrinho que busque outra pessoa que «pueda c6 el
trabajo de pasar la mar». (Carta de 8 de setembro de iSjô nas Repara-
ciones históricas do sr. dr. Sánchez Moguel, pag. 242). Mas os receios
de D. Catharina, de que o poeta lambem se fez eco no soneto 178, re-
produzido a pag. 179, não tinham razão de ser. D. Francisca de Aragão
embarcou para Gcnova em adcantado estado de gravidez c o mais que
lhe aconteceu parece que foi dar á luz durante a viagem o futuro vice-rei
do Peru, D. Francisco de Borja c Aragão.
(2) Um não passa de uma variante do outro.
202
mostrado ao poeta, dando-se-lhe a intender que se fazia isto
por ordem da infanta, o que, como era natural, não deixou
de suscitar duvidas no seu espirito. Eis os dous sonetos:
Pues siempre sin césar, mis ojos tristes,
En lágrimas tratais la noche, el dia,
Mirad si es lágrima esta que os envia
Aquel sol por quien vos tantas vertistes.
Si vos me asegurais, pues ya la vistes.
Que és lágrima, será ventura mia ;
Por empleadas bien desde hoy tendria
Las muchas que por ella sola distes.
Mas cualquier cosa mucho deseada,
Aunque viendo se este, nunca es creida,
Y menos esta nunca imaginada.
Pêro delia aseguro, si es fingida,
Que basta ser por lágrima enviada.
Para que seá por lágrima tenida.
Pues lágrimas tratais, mis ojos tristes,
Y en lágrimas pasais la noche y dia,
Mirad si es llanto este que os envia
Aquella por quien vos tantas vertistes.
Sentid, mis ojos, bien esta que vistes;
Y si ella lo es, oh gran ventura mia !
Por muy bien empleadas las habria,
Mil cuentos, que por esta sola distes.
Mas una cosa mucho deseada,
Aunque se vea cierta, no es creida,
Cuanto mas esta, que me es enviada.
Pêro digo que, aunque seia fingida.
Que basta que por lágrima sea dada.
Porque sea por lágrima tenida.
É natural que a meticulosa consciência da infanta mais
de uma vez se visse sobresaltada pela idêa de que a sua
defesa contra o apaixonado poeta talvez houvesse ultrapas-
sado os justos limites (i). E, sendo assim, é de crer que
(i) Podemos presumir que aos ouvidos da filha de D. Manuel hou-
263
destes escrúpulos tivessem conhecimento algumas pessoas
da sua maior intimidade. E porque é que uma delias se
não encarregaria, de motu-proprio, de fazer desapparecer o
resentimento que era de suppôr ainda houvesse no coração
do poeta, com o fim de tranquillizar depois a illustre senhora,
que tanto se preoccupava com a perfeição espiritual da sua
alma? O assumpto, porém, era extremamente delicado e
difficilmente se pôde conjecturar outro meio de obter, diga-
mos assim, o perdão do poeta, sem qualquer compromisso
para a infanta, a não ser o que fica indicado.
Bem sei que são muitas supposiçÔes juntas, mas não é
intenção minha attribuir-lhes mais valor do que ellas possam
ter. Pelo menos estão na mesma plana da de quem escreveu
ter sido o soneto 260 endereçado por Camões a una Dama,
que le embio una lagt^ima entre dós platos (i).
No anno seguinte áquelle em que D. Francisca de Aragão
se havia casado, falleccu a infanta D. Maria. «Hauiendo esta
vesse chegado o qc ^jcixas do poetu, qiu , ..\primiu
com grande energia.
Triste de mi ! Que alcanço por queixar-me,
Pois minhas queixas digo
A quem já ergueu a mão para matar-me,
Como a cruel imipo ?
(Ode I.').
Pois minn;i vKsvcniura
Como já não abranda um'alma humana,
Que é contra mi mais dura,
E inda mais dcshumana,
Que o furor de Callirrhoc profana ?
(Ode 3.«).
(1) É o que Faria e Sousa diz ter lido em um manuscripto {Rimas y
I, 357).
164
Princesa dispuesto en su vida todo lo que miraua a la otra,
poço despues cayo mala de una calentura lenta (i); juzgaron
los médicos ser mortal; encomendaron a su confessor el
desengano, 03^010 como nueba ordinária; no turba, antes
alegra ai que se halla por tantos caminos preuenido, como
se hallaua la Infanta. . . Murio. . . en 10 de octubre de 1677,
en edad de 56 anos, quatro mezes y dos dias (2)».
Que impressão sentiu o poeta, quando morreu aquella que
elle tanto amara e por causa de quem tantos trabalhos havia
passado? Diz-no-lo o soneto 277:
Chorai, nymphas, os fados poderosos
Daquella soberana formosura.
Onde foram parar ? na sepultura ?
Aquelles reais olhos graciosos ?
Oh bens do mundo, falsos e enganosos !
Que maguas para ouvir 1 Que tal figura
Jaza sem resplandor na terra dura,
Com tal rosto e cabellos tão formosos !
(i) No seu interessante e justiceiro trabalho — As tenças testamen-
tárias da Infanta D. Maria — , em publicação no Archivo histórico por-
tuguês, n.** 5i e segg., conjectura o sr. Gomes de Brito que talvez se tra-
tasse da tisica pulmonar. «Foi, provavelmente, aos primeiros rebates do
ultimo período da doença de que haveria de fallecer — a phtisica pulmo-
nar (?) — que a Sereníssima Infanta se dispoz a mandar escrever o seu
testamento, o qual, datado, assignou de -^eu punho». E em nota:
«(Fr. Miguel Pacheco), pouco entendido em medicina, dá como causa
mortis da Infanta o que pôde ter sido apenas o symptoma. Entre as
varias causas morbificas, de que a febre que minava e consumia a doente
podia ser o consectario, inclinamo-nos a presumir, por inducções de que
neste logar se tornava prolixa a exposição, que a indicada no texto seria
a actuante, sem contestar a existência de qualquer outra». {Archivo
cit., n." 5i e 52, pag. io5).
(2) Fr. M. Pacheco, Vida, etc, fl. 126 v.
265
Das outras que será, pois poder teve
A morte sobre cousa tanto bella,
Que ella eclipsava a luz do claro dia ? !
Mas o mundo não era digno delia,
Por isso mais na terra não esteve ;
Ao ceu subiu, que já se lhe devia.
Deante de uma sepultura que acabava de fcchar-se e com
o coração embotado pelo soffrimento e pelos desenganos —
um dos quais bem recente — , Camões evita qualquer allusão
aos seus passados amores por
. . . aquella soberana formosura,
que agora jazia
. . . sem resplandor na terra dura,
e curva-se, com respeitosa commoção, perante a memoria da
virtuosa senhora, de que o mundo não era digno e a quem
o ceu jd se devia.
No soneto 92, escripto posteriormente e em hora de pro-
fundo desalento (i), o poeta, apesar de só ter pisto desfavor
e desamor, considera a morte da infanta como a maior de
todas as dores que havia softVido. Agora já nada o prende á
vida; agora já não receia mal nenhum.
Que poderei do mundo já querer.
Pois no mesmo (2) em que pus tamanho amor
Não vi senão desgosto e desfavor
E morte emíim, — que mais não pode ser — ?
(i) Este soneto é\ para mim, um dos mais bellos entre os do immor-
tal poeta.
(2) Naquillo mesmo, prccisanvnt^. ni^Miilr. V"í >-c<», por exer-"^'",
a seguinte quadra do soneto 232 :
Quanta incerta esperança, quanto engano !
Quanto viver de falsos p« os !
Pois todos vão fazer seus ntos
Sá no mesmo em que 'stá seu próprio dano 1
20b
Pois me (i) não farta a vida de viver,
Pois já sei que não mata grande dor,
Se houver cousa que magua dê maior,
Eu a verei, que tudo posso ver !
A morte, a meu pesar, me assegurou
De quanto mal me vinha (2); já perdi
O que a perder o medo (3) me ensinou.
Na vida (4) desamor somente vi.
Na morte (5) a grande dor que me ficou.
Parece que para isto só nasci !
Quasi três annos depois da morte da infanta, fallecia o
genial poeta (10 de junho de i58o).
(i) Parece-me que se deve ler se: a minha vida não se farta de vi-
ver, não vem a morte !
(2) Provavelmente : venha. A dôr que o poeta sofíreu com a morte
da bem-amada assegura-o (torna-o insensivel) contra qualquer mal que
lhe venha.
(3) Creio que, em vez de o medo, se deve ler só ella (a morte).
O medo, a meu ver, era uma glosa explicativa do já perdi o que só a
morte (da infanta) me ensinou a perder, isto é, ]á perdi o medo a quanto
mal me pudesse vir. Depois a glosa, como tantas vezes aconteceu nos
manuscriptos dos melhores auctores, teria substituído o texto respectivo.
(4) Durante a vida da infanta.
(5) Da infanta.
ERRATAS E ADDITAMENTOS
Pag. 6, linha 7. — Escudeiro, se o pae ainda era vivo. Para não entrar
nesta questão, em vez de modesto escudeiro, direi com W.
Storck : o filho do pobre cavalleiro fidalgo ( Vida, etc, p. 284).
Pag. 10, nota (i). — No cancioneiro manuscripto do sr. Fernandes Tho-
más é attribuido a Camões o seguinte soneto, que corre im-
presso como de Soropita (cf. Dr. Th. Braga, Antologia portu-
gueja,p. 21-):
Claros olhos azuis, olhos fermosos,
Que o lume destes meus escurecestes,
Olhos, que ao mesmo Amor de amor vencestes,
Cos vivos raios, sempre victoriosos ;
Olhos serenos, olhos venturosos,
Que ser luz de tal gesto merecestes,
Ditosos em render quanto rendestes.
Em nunca ser rendidos mais ditosos:
Que morra eu por vos ver e que vos traga
Nas meninas dos meus perpetuamente,
Cousa é que justamente Amor ordena.
Mas que de vós não tenha mais que a pena,
Com que Amor tanta fé tão mal me paga,
Nem o diz a razão, nem o consente.
É possível que o soneto pertença a Camões ; mas, neste caso,
os versos 7 e 8 levam-me a conjecturar que a dama dos olhos
ajuis seria D. Francisca de Aragão, se c que os tinha dessa côr,
como SC pôde presumir.
268
Pag. 11, nota (2). — W. Storck duvida que o soneto i65 pertença a Ca-
mões: a) porque, dos três manuscriptos em que Faria e Sousa
o encontrou, só num lhe é attribuido (um dos manuscriptos dá-
Ihe como auctor D. Fernando de Acuna, e outro D. Diego de
Mendoza); b) por causa dos retorcidos concetti que nelle se
encontram (versos 3, 5 e 9). Liiis' de Camoeus Sanwitliche Ge-
dichte, II, p. 398.
Parece-me, comtudo, que o illustre camonista não interpretou
bem a primeira quadra do soneto, o que por certo contribuiu
para o juizo que deste ficou formando. Na sua opinião, com
effeito, o rayo dei sol do 3.° verso é «Selene, a deusa da lua»,
que ao longe se ia escondendo. Mas o pensamento fundamental
do soneto é este, segundo creio: «Endymião, enamorado da
Lua, ao ver que o sol nascente (el rayo dei sol, etc.) lhe per-
turbava a alegria, roubando-lhe o brilho da bem-amada (verso
11), pede-Ihe se retire e volte para onde estava». Pensamento
expresso com inexcedivel mimo e bem apropriado á situação
do apaixonado poeta ! E com esta interpretação o requinte do
primeiro terceto perde, pelo menos em grande parte, o que
nelle se poderia considerar como falto de bom gosto.
A propósito deste soneto, Storck cita com razão a ode i.«,
que fica transcripta a pag. 126-129.
Pag. 13, nota (i). — Soneto 314 (Juromenha). No verso 10: que aquelle
é só. O hiato do verso 8 evitar-se-ia facilmente, lendo : que so-
mente me dais a mim. O do i.° desappareceria com um vós
antes de tratais.
Pag. 14, soneto 3o3. — Verso 3.°: ante o seu. Verso i3: humana natu-
reza. Esta mesma correcção a pag, 16 e 35. No verso 3.° tal-
vez: tão benino. No verso 6 Juromenha mudou em constante
o contente do Cancioneiro de L. Franco Correia (fl. 41), e no
verso 12 imprimiu ha lii modo, errando o verso, quando no re-
ferido Cancioneiro se lê simplesmente ai modo, escripto mani-
festamente em vez de ha modo.
Pag. 15, soneto 3o. — Verso 1 1 : menos temia.
Pag. 23, nota (2). — Baseado em Juromenha (i, 84, 11, 386, iv, 436 e 444),
escrevi que D. Guiomar de Blasfé era filha de D. Francisco de
►69
Gusmão. Mas o que consta dos genealogistas é que ella era filha
do 3* conde do Redondo, D. Francisco Coutinho, e neta, por-
tanto, do mordomo-mór da infanta. Veja- se Ms. n.* 38o, H. 363»
da Collecçâo pombalina (Biblioiheca nacional). D. Guiomar de
Blasfé (Blaesvelt) foi também dama da infanta, como duas de
suas irmãs, a mãe e duas tias (Fr. M. Pacheco, Vida de la
seiiora Infanta, fl. 92 e 92 v.), mas, ou ainda não tinha nascido,
ou era uma creança, quando o poeta se enamorou da hlha de
D. Manuel, pois D. Francisco Coutinho casou com D. Maria de
Blaesvelt por volta de 1542 (Sr. Braamcamp Freire, Brasões da
sala de CitUra, 11, p. 462). Portanto, ou Camões escreveu as duas
poesias depois de ter voltado do Oriente, ou não merece con-
fiança — o que não é extraordinário — a indicação que precede
as redondilhas. É muito possivel que a dama que se queimou
no rosto fosse uma das tias de D. Guiomar, e que d*aqui nas-
cesse o equivoco de quem escreveu a nota, baseado talvez numa
vaga tradição.
Pag. 38, soneto 3o8. — No verso 8 deve naturalmente ler-se vai e não
vale, como imprimiu Juromenha.
Pag. 39 e 43. — As redondilhas No meu peito, etc, publicadas por Juro-
menha como inéditas, figuram, como observa W. Storck, entre
as de Diogo Bernardes (Sàmmíliche Gedichte, i, p. 384). No
mesmo caso estão as que começam Tal estoi (p. 43) {Sàm.
Gcd., I, p. 393).
Pag. 47, linha 34. — que a Amor. Talvez o verso anterior se deva ler:
Vede como em fogo ferve.
Pag. 56, soneto 280. — Verso 8 : Em graça e em etc.
Pag. 83, soneto 116. — Talvez este soneto se refira a D. Francisco de
Aragão.
Pag. 93, linhas 10-12 e nota (a). — W. Storck não suppÕc, é claro, que
se trata da infanta. A Gclibte a que elle se refere é natural-
mente ■' ''•■"''''""«l nnmoríuln do poeta.
Pag. 94, soneto J09. — Nu verso 3 c fácil de ver que deve ler^se Nereio,
No verso 6 falta provavelmente a palavra leda antes de armo-
nia. Na nota (8) lea-se v. i3, em logar de v. 1 1.
Pag. m, soneto Quando descansareis. — No verso lo, Juromenha im-
primiu Em qnCy mas no Cancioneiro lê-se ; E que. No verso 1 1
proponho a correcção : áquillo, em vez de ao. No verso 3 fjitn á)
e 14 (jne não)., Juromenha afastou-se do Cancioneiro sem razão.
No verso 4 lê-se neste : desaventuras, que o referido editor
emendou para disventuras, e no verso 12: clara esta a verdade,
que elle corrigiu: clara vejo esta verdade. W. Storck emenda
assim o verso 3.° e principio do 4.": Ou quando emfim vereis (?)
á despedida De tantas. No verso 1 1 substitue ao que por mais
do que {Scim. Ged., 11, p. 432).
Pag. 129, ode i.", estrophe i3, verso 6. — A leitura da Arcádia de Sanna-
zaro (edição de Scherillo, Torino, 1888, p. 29) suggere-me outra
conjectura para a correcção deste verso.
Eis o que, no dialogo entre Montano e Urânio, diz o pri-
meiro :
Phillida mia, piú che y ligustri bianca,
Piú vermiglia che'l prato ad mezzo aprile,
Piu fugace che cerva.
Et ad me piú proterva
Ch'ad Pan non fu collei ch'essendo stanca
Divenne cana tremula et soctile. . .
Nos dous últimos versos designa o poeta italiano a naiade
Syrinx, cuja transformação Ovidio conta nas Meiamorphoses,
1. I, V. 689 e segg. Ora, substituindo pelo nome próprio a peri-
phrase destes dous versos, Camões teria escripto :
Mais que Syrinx proterva.
E o final do verso seguinte :
. . . mais fugaz que cerva,
parece não deixar duvida de que o nosso poeta tinha presente
a passagem citada da Arcádia.
271
Pag. 146, linha 10. — No 2." verso do tttoíe talvez deva ler-se Quão alto.
Pag. 157, soneto SSg. — Creio que o poeta no ultimo verso escreveu
desaventuraJa.
Pag. 179, nota, soneto 168. — A correcção do i." verso, ími^j, por ami^j,
é de W. Storck {Sam. Ged., 11, p. 171 e 399).
Pag. 183 e 251. — Não me parece fácil precisar em qual das duas situa-
ções foi escripto o soneto q3.
Pag. 208, nota. — Os ventos que então sopravam em Mascate vinham do
sudeste. «Der SE. herscht, wUhrend in Indien der SW. Monsun
weht, von Mitie luni bis Ende September.» Hann, Handbuch
der Klimatolo£[ic. '". n 109.
Pag. 225, elegia 27. — Talvcz os dous primeiros tercetos se possam ler
assim :
Quem poderá passar tão triste vida,
Se não espera já contentamento.
Senão quando de todo for perdida ?
Quem poderá passar tão grão tormento.
Tão áspero e cruel, tão duro e forte.
Se, morta a espVança, é tudo soffrimento?
índice
Pag.
Introducção i
Em Lisboa 6
No Ribatejo loo
Em Ceuta 118
De volta de Ceuta 172
No Oriente 189
De volta do Oriente 246
Erratas e additamentos 267
A