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CAMILLO
H Sua Vida
O Seu Gemo
H Sua Obra
PBOPERTY OF
Mckigãn
A K f E S SCI E NTI A VEKITAS
'-"V.f"íKi:-
i
DO MESMO AUCTOR
i^guilhadas, opúsculos de critica, 1 vol. (1903-1904). Eêg^
Historia d'um morto, conto (2.^ edição, 1904).
Na casa de Garrett, opúsculo de critica (1905).
Camillo Castello Branco, esboço de critica (190ô).
A ultima ncite, novella (IDOõ).
Camillo Castello Branco e o sr. dr. Bombarda» arti-
gos de polemica (1905).
Notas á margem, chronicas (1905).
Criminosos loucos, estudo de luedicina-legal (1906).
Lisboa, chronicas (1908).
VariaçCes sobre um velho thema, contos (1908).
Por am£r d'ella, peça enri 1 acto. No prelo.
Histoíre d'un mort, trad. de Philéas Lebesgue (1904)..
IgquCo ggoi:io
CAMILLO
ft SUft VIDft
O SEU 6ENI0
ft SUft OBRft
MAGALHÃES ê, MONIZ, L."- Editore.
II — L»Iío doa Loyo> — M
1908
é5'J^^líSl
Ao Snr. Ramalho Ortigão
«... o prosador degantisaimo, u fi<Ial(;o
de raça senhoril, a revelação mais assigna-
lada que ainda tivemos do espirito francês ».
(Camillo : Noite* de Insçmnia).
c A historia pablioa e iatimfi dos homens
como elle uAo se escreve senão dopoid, assim
como a jastíça inteira e o elogio sem. restri*
cções não se concedem senfto á sna memoria.
Emqaanto não restituem á terra tudo que os
fez iguaes dos outros, a sua elevação opprime
os medíocres, a sua voz assusta oâ emulos e
o seu vulto assombra as vaidades invejosas
que suppoem que elle lhes toma todos os
passos e lhes fecha todas as estradas ».
L. A. Bebbllo da Silva.
€ Porventura virá um dia, quando Portu-
gal não for mais que uma província da na-
^ão invasora, e o grupo dos portuguezes nos-
tálgicos, retrocedendo a magiia ás raoordações
da pátria perdida, procure o symholo synthe-
tico da nossa antiga vida livre, porventura
virá um dia em que o espirito de CamiLlo se
levantará do passado, como em 1880 viram os
portuguezes levantar-se o espirito do Camões.
Então os livros d'elle serão martyrio e con-
solo para esses contempladores opprimidos
«em remédio; avaltarão os seus desesperos
como sentenças ; viverão os seus typos como
•abstracções ; e toda a memoria do meu ado-
rado paiz, saltando os annos, outra vez fará
verter as lagrimas que eu tanta vez chorei de
■o vêr tão pobre, tão indolentemente passivo»
« tão mal guiado. Ninguém se lembrará dos
histriões que ora o apedrejam, nem da caíila
liquidante que nos negoceia e nos esmaga ; e
o vulto de Camillo, sempre de pé no seu cerro
minhoto, visível para toda a roza do espaço»
parecerá dizer: — Fui eu o ultimo!»
Fialho d'Almbida.
PREFACIO.
PREFACIO
Em 1905, publiquei um livro intitulado Camillo
CastelU) Branco (esboço de critica) ^ Escrevi esse
livro precisamente dentro dos processos de apre-
ciação critica, que presidiram á feitura doeste. A
minha velha admiração por Camillo levou-me a
estudar attentaménte essa figura grande de artista
e desgraçado, fazedor de tragedias, e elle próprio
protagonista d'uma bem dolorosa e bem intensa : a
tragedia da sua vida inteira. A sciencia moderna
impunha-me um methodo de estudo a que èu não
poderia fagir, sob pena de fazer um trabalho este-
ril. O doente, que a dor engrandece e purifica e do
qual em Camillo a figura litteraria não representa
mais que um coroUario, era sem duvida digno de
Edição da Livraria Moderna, Lisboa.
12 PREFACIO
interesse. Estudei-o o melhor que pude, estudei-o
com amor, procurei não dar um passo sem ir soli-
damente apoiado em opiniões incontroversas ; n&o
formulei uma conclusão que nâo assentasse numa
base de factos ; quiz fazer um trabalho com todo o
rigor, probo e consciente, nâo pelo medo que me pu-
dessem inspirar os gládios dos pomposos ignorantões
da minha terra, mas pelo respeito que devo ao nomo
de Camillo e ao meu próprio nome. O trabalho que
apresentei — mesmo a meus olhos ainda incompleto
bastante para merecer o subtítulo de esboço — náo
tinha direito a esperar um unanime e enthusiasmado
coro de applausos. Expuz ali opiniões minhas que
me seria agradável vêr discutidas e, se d'essa dis-
cussão nascesse para o estudo da personalidade de
Camillo uma conclusão diversa d'aquella que tào
seguramente quanto possivel formulei, ficaria para
mim ainda a honra de ter chamado para a figura
tão interessante do maior escriptor português do
nosso tempo a attenção de quem quer que fòsse
mais competente do que eu para avalià-la.
Logicamente, eu não poderia esperar que o meu
trabalho provocasse um debate alevantado e útil.
Em Portugal sabe-se pouco de psychiatria, as doen-
ças mentaes não se ensinam nas escolas, um medico
concluo o seu curso sem ter posto os pés num
manicomio. E eu tinha ainda a contar com esse
sentimento de defèsa que impede um diplomado em
medicina de discutir com profanos assumptos que
mais ou menos se relacionam com o seu modo d%
PREFACIO 13
vida, — náo vá ás vezes no decorrer do pleito o obser-
vador ter o ensejo de cogitar na inutilidade dispen-
diosa que, em muitos casos, por si só, um curso
representa. Esperava o silencio, o desinteresse simu-
lado, a affectação do desdém : mas não esperava a
agress&o indocqmentada e violenta. E comtudo o
alienista sr. Miguel Bombarda veio, não discutir,
mas agredir-me. Disse-me que o meu livro tinha re-
duzidos méritos e limitou-se a contrapor a sua opi-
nião em questões de minúcia que não attingiam as
conclusões finaes que procurei. E disse-o tão d 'alto,
com um ar de despreso de tal modo lamentável,
que eu, replicando, tive de lhe fazer notar que o
trabalho dos outros é uma coisa que a mais elemen-
tar correcção manda que se respeite.
De então para cá, a minha maneira de vêr mo-
dificou-se, ulteriores observações levaram-me a
alterar um pouco as conclusões que formulei nesse
primeiro esboço ; mas quero desde já registar que
nenhuma d'essas alterações attingiu aquellas afir-
mativas que provocaram a sobranceira contradicta
do director de EilhafoUes.
A propósito doesse meu primeiro trabalho sobre
Camillo, o sr. Theophilo Braga dirigiu-me a se-
guinte carta, publicada depois, com.auctorização
sna, em jornaes do Porto e de Lisboa :
14 PREFACIO
« Lisboa, Í9 de junho de 1905.
Caro è ilhistre amigo.
Recebi honteni o seu livro — Camillo Cástello
Branco — Esboço de critica — e honteni mesmo puz
de lado todo o trabalho que me tinha destinado, e
li-o de uma assentada. Quer pelo interesse que a
individualidade de Camillo suscita, quer pelo pro-
cesso critico do seu julgamento, o livro attrahiu-me
e deixei tudo por elle.
Desde já lhe confesso que ê esse o verdadeiro
processo para estudar todas as individualidades
que se destacam no seu tempo ou no fieu meio só-
cia/: o estudo psYCHOLOGico traz uma nova luz para
a comprehensão do génio creador em qualquer
forma de actividade. Na historia litteraria tenho
reconhecido praticamente o valor doesse instru-
mento. Vou ainda mais longe, investigando a psy-
chologia collectiva, da nniltidâo anonyma, do Povo,
e è essa a luz que vivifica os factos concretos e mui-
tas vezes banaes da Ethnologia. E, juntando estas
duas psychologias, chega-se a uma comprehensão
philosophica, indispensável para todo o historiador
digno doesse titulo.
Mas, voltando ao seu livro : apparece alli o Ca-
millo fortemente explicado, com opulenta documen-
tação. O meu amigo está em dia com os trabalhos
de psychiaíria, e escolheu bem o Camillo como um
caso complexo bem digno de interpretar-se ; e a
sua conclusão, implícita em todo o livro, c que, tem-
peramento profundamente desgraçado, tudo em
Camillo, nas suas qualidades superiores e nos seus
de^temperos, desperta uma grande sympathia. Che-
guei tarde a esta conclusão e somente depois de ter
PREFACIO lÕ^
lido perto de quinhentas cartas de Camillo ao Vis-
conde de Ouguella (hoje perdidas?)
O Camillo merecia um estudo assim. Se o meu
amigo matizar o seu livro com trechos autohiogra-
phicos de Camillo, e referencias d'elle á origem ou
motivos da sua obra, faz uma obra definitiva que
ficará como o monumento levantado ao excelso es-
criptor. Deve fazel-o com vagar até ao momento
em que lhe appareça ensejo de publicação.
Parabéns pelo precioso livro; e pelas palavras
affectuosas que o acompanham, o reconhecimento
do
seu am.^ ohg.»'<^ e adm.^^
Theophilo Braga ».
Procurei seguir as indicações do sr. Theophilo
Braga, revi o meu eòboço^ procedi a novas investi-
gações, tentei novos estudos — e fiz, quer na essência
quer na forma, um livro novo. Mas não permittiram
03 modestos recursos do auctor que ficasse valendo
mais que um subsidio aquillo que o illustre signa-
tário d'essa carta generosamente quizera que fosse
um monumento.
^
<5ENEAL0âlA
«Heredity is the law»
Darwin.
Ha fundadas razões para pôr em duvida a rigo-:
rosa verdade histórica que se attribue á nobiliarchia
d'uma familia trasmontana, pelo epitheto d'um dos
seus varões mais recentes, conhecida por Os brocas.
Parece-me, de resto, dispensável para o inte-
resse pratico do meu intuito averiguar se tal linha-
gem trazia integra a progenitura d^aquelle Fruela,
irmào de Affonso i, genro de Palagio, fundador da.
monarchia de Oviedo e Leão, dos reis Vermudo ou
Bermudo, Eamiro i e Ordonho, ou então, por outras
vias, do fidalgo solarengo D. Payo Mogudo de
Sandim. Basta ter como elucidado mais ou menos
que, olhando em âmbito mais curto para essa pre-
tendida cadeia de transmissões de sangue azul, que
se perde por uma dynastia de Ordonhos, nuns
tempos vagos do rei Bermudo de Navarra, se nos
depara um Domingos Correia Botelho a quem o
mais illustre dos seus descendentes outhorgou a
qualidade de estudante *y quando ao certo, e con-
^ Gamilx.0 : Cousaè leves e pesadas.
20 CAMILLO
forme a afirmação de outros auctores, se sabe que,
durante uma existência vagabunda, andou de terra
em terra propagando as profecias do Bandarra e
exercendo o mister de picheleiro ^.
Espiolhando bem as costellas da creatura a quem
genealogistas diversos tão varias profissões attri-
buiram, vem-se a saber ainda que seu bisavô foi
Domingos Eodrigues Pinto, filho de um almocreve
e d "uma tendeira de mercearia, que prestou serviços
patrióticos na revolução de 1640, cooperou em pri-
sões do Santo Officio, e veio, segundo o testemunho
de coevos, a servir «os mais nobres e honrados
cargos da Republica»; que seu avô, filho de Isabel
Machado, a quem se attribue o apellido de Botelho,
foi Martinho Machado Pinto, cavalleiro de S. Thia-
go: e que seu pae, filho natural d 'esse Martinho e
de Isabel Mendes do Rocio, foi Lazaro da Costa,
primeiro representante d'uma dynastia de marchan-
tes que por muito tempo prosperou em Villa Real *.
A ebsa dynastia pertenceram todos os filhos de
Lazaro da Costa e de Francisca Mendes, salvante
Domingos Correia Botelho, que enjeitou a profissão
*.- ■
^ Alberto Pimentel: Os amores de CamillOy 1809.
* Pedro A. D*Azevedo : Os antepassados de Camillo. No
Archfvo Histórico Portuguez, Vol. v, 1907, n.os 5, 6, 9, 10 e 11
e Vol. VI, 1908, n.os 1 e 2. A esse estudo, o mais completo
e documentado que possuímos sobre a genealogia de Ca-
millo, pertence grande parte das informações de que me
sirvo neste capitulo do meu trabalho.
CAMILLO 21
e o appellido paternos preferindo-lhes uma onomás-
tica mais nobre e as commoções e os benefícios de
uma agitada carreira d'aventureiro errante. Mais
d'uma vez se pôs em duvida na sua ascendência
aquella pureza de sangue tão derimida nos prelúdios
inquisitoriaes de tantos autos de fé; e se essa cir-
cumstancia eu registo, náo é para fanaticamente
lançar sobre Domingos Pinto e Lazaro da Costa o
labéu de christãosnovos de que uma devassa bene-
volente depois os illibou. Mas a sciencia afirma que
a raça hebraica é, d'entre todas as raças, uma das
que maior contingente fornecem para o cadastro
da pathologia nervosa \
Domingos Correia Botelho casou duas vezes,
ambas ellas com filhas de pedreiros, a primeira
chamada Angela Fernandes, de quem teve, além de
duas filhas que recolheram a um mosteiro e outra
que casou, um filho. Frei José de S. Bernard*o, que
professou como Agostinho descalço e outro, Manuel
Correia Botelho, que foi escrivão em Villa Real, e
a segunda, Maria Mou tinha, que lhe deu, entre ou-
tros filhos e uma filha que também entrou para um
convento, José Luiz Correia Botelho. Diz-se que o
1 Servi : GU hraelUi di Europa, 1872 ; Verga : Ar-
chivio di siatistica, 1880 ; Bouveret : La Neurasthente, 1891 ;
LOMBROSO : Uhomme de génie (ed. francesa) 1903; Bulletins
de la Societé d^anthropologiey t. iv; RieOT : Uherédité psycho-
logique, 7.a ed. 1902 ; Fialho d*Almeida : Estudo sobre Ga-
millo, publicado na Bevista Illustrada, de Lisboa, em 1896.
22 CAMILLO
filho de Domingos Botelho que professou «viera
de longe propellido para uma grande catastrophe»
.e que «a profissão era o acto final d' um a tragedia» ^.
Certo é que esse religioso, que pertenceu ao con-
vento de Nossa Senhora da Piedade, em Santarém,
onde chegou a prior, nem sempre em documentos
públicos gosou uma impoUuida fama de virtude.
Numa certidão passada em 1780 por um frade da
sua ordem, diz-se que elle, em certo convento d'Ex-
tremoz, levava vida escandalosa «náo só para os do-
mésticos como para os Estranhos, por acçoens que
produzia indignos do habito e muito mais do cargo
e ministério que ocupava», a ponto de o Vigário
Geral, averiguando «serem verdadeiros os Enormes
delictos que lhe impunhão» ter mandado «fechar
de pedra e Cal a porta do Carro, por onde elle metia
na Clauzura pessoas de sexo prohibido, E que as
chaves da Clauzura não estivesse em seu poder».
Domingos Botelho cahiu na miséria e Frei José
, tomou conta da familia, instituindo-lhe umas rendas
que mais tarde originaram litigies e fizeram que-
brar as relações entre elle e o irmão José Luiz, de
cujo proceder ingrato ao depois amargamente se
queixava.
Manuel Correia Botelho, nascido e residente em
Villa Real, casou com D. Maria de Carvalho e Me-
nezes, filha de Francisco Martins Menezes, christão-
1 Gamillo : Bohemia do espirito.
OAMPLLO 23
noco. Ellé e a- mulher, pouco doces de tempera»-
tnento, por via de repetidas contendas, malquista-
Tam-se com a maioria da gente de Villa B»eal. Quatro
•annos antes de morrer, foi perdoado do assassinio
d'tim soldado numa questão em que entrou cora
«eus .filhos Domingos José Correia Botelho e José
Correia Botelho de Menezes.
Domingos José Correia Botelho era um homem
-extremamente feio. Formou-se em Coimbra. «Era
ttlcançadissimo de intelligencia, e grangeâra entre
os seus condiscipulos da Universidade o epitheto
•de brocãfi com que ainda hoje os seus descendentes
-em Villa Real são conhecidos. Bem ou mal derivado,
o epitheto brocas vem de hrôa. Entenderam os aca-
démicos que a rudeza do seu condiscípulo procedia
•de muito pão de milho que elle digerira na sua
terra» ^. Domingos Botelho foi nomeado juiz de
iora de Cascaes, logar que exerceu durante nove
meses e do qual foi suspenso, segundo informa sua
«ogra, nas allegações d 'um processo que mais tarde
lhe moveu em cau^a de partilhas, «pelo dezacato
que fizera a sua Filha D. Francisca Julianna, cazada
com José Joaquim de Proença e Sylva, Tenente do
Regimento da dita Villa; por lhe querer dar com
hiia faca; e pela escandaloso modo, cõ que injus-
tamente fizera prender ao Padre António do Valle
Capelláo do dito Regimento, e conduzir amarrado
em hum jumento para o Aljube desta Cidade, dô
1 Gamillo: Amor. de Perdição.
24 CAMILLO
donde por estar innocente, sahira solto, e livre» ^^
Esse Botelho era um excêntrico, com certo chiste
nas maneiras rudes que lhe mereceu a alcunha á&
doutor Bexiga, Se, coroo se pretende ', frequentou
o paço, insinuando-se, por ignoradas buUas, na es-
tima de D. Maria i e de D. Pedro, e aproveitando
o ensejo para tomar d^assalto o coração d'uma for-
mosa dama de nome Rita Thereza Margarida Cas-
tello Branco, náo o sei eu dizer com precisão. Ha
documentos comtudo que desfazem um pouco na
pretendida nobreza d'essa D. Rita, depois mu-
lher do bacharel, dizendo-a filha d^um capitão de
infantaria de Cascaes, de nome José Pereira da
Silva e de D. Thereza Ignacia Joaquina Castello
Branco, a sogra furibunda, neta paterna de Domin^
gos Pereira da Silva e Francisca dos Anjos, a
Benta, e bisneta d'um servente de pedreiro e sol-
dado de artilheria, neta materna de Diogo Luiz de
Mesquita Castello Branco, creado grave da condessa
de Aveiras e de Isabel de Mattos, aia ou ereada da
mesma titular. E a sogra D. Thereza, em documento
respeitante ao litigio judicial jâ referido, reduz a
proporções assas materialonas a historia do consor-
cio que se dizia derivado d'um galanteio palaciana
do modo sereno e limpido como deriva a agua de
um arroyo: «Este supplicado Domingos José Cor-
rêa Bottelho sendo natural de A'illa Real, filho de
1 Doe. transcriplo pelo sr. Pedro d'Azevedo.
2 Camillo : Amor de Perdição,
CAMILLO 25
hum nacimento escuro, e de baxa e pobro fortuna^
vendo-se condecorado com o honorifico emprego de
Juiz de Fora da Villa de Cascaes, e sabendo que a
caza da supplicante era das principaes, e das mais
ricas daquela Villa, e que tinha filhas Donzellas, to-
mou cazas para a sua habitação junto as da suppli-
cante com quintal místico ao seo que só lhe servia
de divizáo, hum pequeno muro, e por via de hua Es-
crava, que comrrompeo, se intruduzio fora de horas
na casa da supplicante deshonestando a dita sua
filha menor de 20 ânuos, com a qual se aoha cazado^
recebendo se em 30 de Outubro de 1771 vindo a
parir sua filha um filho, que naceo a 14 de Junho
de 1772, 8 mezes depois de cazados como mostráo
as certidoens do cazamento — n.® l.<* e Bauptismo
n." 2.® esta verdade he incontestável, porque os
filhos só nacem de 7 e 9 mezes, e raras vezes de
11 e 14 mezes». Aparte o devaneio gynecologico,^
tenho a allegaçáo como digna de fé.
. Anna Margarida Mourão, mulher de Lourenço-
da Costa, tio de Domingos, moveu contra este uma
acção por divida de quinhentos mil reis que o ba-
charel lhe pedira emprestados quando estudante,^
introduzindo-se com ella «como sobrinho de seu
deffunto marido e pella razão do dito parentesco e
cavilação de que é dotado > , ^ e que depois não quiz.
pagar. Nas suas allegações, a viuva credora disse
1 Esta transcripção e seguintes pertencem a doe. re-
produzidos ou citados pelo sr. Pedro d' Azevedo.
2t) CAMILLO
serem Domingos Botelho e seu irmáo José «valen-
toens, desemvoltos e absolutos, sem temor ou res-
peito aos Magestrados e oííeciaes de Justiça...
descompondo de palavras aos mesmos. . . e oufanos
por torem . . . feito híía morte as oras do dia a hum
soldado de que lhe não resultou castigo, e porisso
amiaoando os mesmos officiaes, e ainda paçando a
excesso mayor que até os Magestrados ameaçào»;
e mais (jiie «Tanto o dito Domingos Joze Corrêa
como sou irmão se asocião ambos e armados de
«orte (|ue nimguem se atreve a oporse a seos depra-
vados intentos». A isso respondeu Domingos Bote-
lho confessando se «homem cordato, prudente, civi-
lizadí^, retirado de communicações com officiaes de
Justit^ta tanto que os negócios os trata por Procu-
radores sem escandalizar pessoa algíía » e alegando
mais que sua tia afin nunca lhe emprestara dinheiro,
nem podia emprestar «porque hé híía pobre mere-
trix publica que de si nào tem couza alguma nem
para se sustentar mais que o que adquire pelo ilicito
trato que tem com muitos homens » e que essa
mesma sua tia «tem filhos de vários homens e pre-
mentemente d'hum José Manuel Teixeira de Novaes
híía filha natural por andar com ella amigado».
D 'onde se mostra que o doutor Bexiga não era
muito gentil para com os seus próprios parentes.
Nomeado em 1802 juiz de fora de Yizeu, Do-
mingos Botelho soflfreu, alguns annos mais tarde, a
accusação de venal. Arguiram-no de receber «por
^i, sua mulher e. filhos e amigos quantias avulta-
-CAMILLO '27
das » . Feita a devassa, em consulta de 1 de março
de 1806, a mesa do Desembargo do Paço conside-
rando-o «gravemente indiciado de crimes enormes
que pela lei do Reino tem pena de morte, ofere-
cendo tão bem a impunidade aos malfeitores a pre-
-ço de dinheiro e vendendo a justiça em publico
leilão: provandose ja quanto basta para ser sus-
penso, sequestrado e prezo, dando-se-lhe logo o le-
gar por acabado, e mandando-se tirar sua residên-
cia por Ministro exacto, a qual deverá ser julgada
no Juízo dos Feitos da Fazenda com a assistência
de Procuradores Régios». Assegurou-se que Do-
mingos José Correia Botelho morreu em 18r!5 na
-sua quinta de Montezellos, assassinado por saltea-
dores ^ Ha, pelo menos, ahi um erro de data pois
que a consulta referida é, como disse, de 1806. O
sr. Pedro d^A^zevedo suspeita que elle se suicidasse
para escapar a uma vergonha publica.
O primeiro filho de Domingos Botelho, nascido
oito mezes depois do seu casamento e que teve o no-
me de José, morreu creança. Mais tarde, nasceram
duas filhas e dois filhos, de nomes Simão e Manuel.
Da vida de Simão Botelho existem duas versões :
uma amplamente desenvolvida no Amor de Perdi-
ção e outra, mais recente e mais incompleta, mas
com o mérito da authenticidade garantida por do-
cumentos que o sr. Pedro d'Azevedo exhumou da
poeira dos archivos ^. Ambas, porém, são concordes
1 Ver NOTA B, no fim d'este volume.
28 CAMILLO
na descri pçáo do caracter do íilho segando de Do-
mingos Botelho. De Coimbra, conta-se no Amor de
Perdição que «o filho mais velho escreveu a sea
pae queixando-se de náo poder viver com seu ir-
máo, temeroso do génio sanguinário d'elle... por-
que Siraáo emprega em pistolas o dinheiro do»
livros, convive com os mais famosos perturbadores
da academia, e corre de noite as ruas insultando o»
habitantes e provocando-os á lucta com assuadas».
Sáo ainda do mesmo romance estas palavras: «Fi-
nalizavam as ferias, quando o corregedor teve uns
grave dissabor. Um dos seus creados tinha ido le-
var a beber os machos, e, por descuido ou propó-
sito, deixou quebrar algumas vazilhas que estavam
á vez no parapeito do chafariz. Os donos das va-
zilhas conjuraram contra o creado ; espancaram-no^
Simão passava nesse ensejo; e, armado d'um fueiro
que descravou d'um carro, partiu muitas cabeças,
e rematou o trágico espectáculo pela farça de que-
brar todos os cântaros. O povoléu intacto fugira
espavorido, que ninguém se atrevia ao filho do
corfegedor; os feridos, porém, incorporaram-se e fo-
ram clamar justiça â porta do magistrado». Em
face dos documentos, o sr. Pedro d^Azevedo infor-
ma que «em 3 de agosto de 1804, sendo um quarto
de hora depois da meia noite, na Rua Direita de
Vizeu foi ferido por um tiro de clavina Francisco
José Ferreira, natural de Moimenta da Beira, crea-
do de José Cardoso Cerqueira, de que lhe resultou
ficar sem parte dos dedos das mãos e^ com uma
CÀMILLO 29
coxa atravessada, recolhendo-se os criminosos a
casa do juiz de fora que morava no terreiro da Sé.
I^oram accusados d'este crime Simão António Bo-
telho e José Jeronymo, filho de Lourenço de An-
drade e Seixas, que tinham sido vistos andar ar-
mados por aquella rua e ameaçando o primeiro
Fernando de Almeida, filho do referido Cerqueira.
De Simão diz uma testemunha : sendo também pu-
blico que o mesmo filho do Juiz atirara mais três Tiros
a outras varias pessoas e que he verdade que sabe
pello ver e ouvir que toda esta cidade (de Vizeu) an-
dava com. temor e estavam em grande desasucego em
quanto o ditto filho do Juix de Fora se achava n' es-
ta Cidade pellos insultos que fazia e esperançado na
falta de castigo por seu Pai ser Juiz, A devassa que
se tirou, feita pelo vereador mais velho de Vizeu
e pelo meirinho geral em 6 de agosto, resultou pela
pressão exercida sobre as testemunhas como de
nenhum valor, pelo que o desembargo do Paço
ordenou em 21 de maio de 1805 se procedesse a
outra. Entretanto os dois criminosos homens va'-
dios costumados a commetter similhantes dei idos j e
a andarem de noute e de dia dando tiros em varias
pessoas tinham tirado cartas de seguro, sendo a de
Simão datada de 17 de «etembro de 1804, augmen-
tada por mais um anuo em 5 de setembro de 1805
e ainda pór mais outro em 12 de agosto de 180tí,
em consequência do seu livramento péla Relação ir
muito atrazado ; e a de José Jeronymo de Loureiro
6 Seixas também reformada por mais um anno por
30 CAMILLO
despacho de 11 de outubro de 1806». «Nos capi-,
tuloi apresentados contra o pae de Simão — infor-)
ma também o sr. Pedro d 'Azevedo — diz a teste-
munha o bacharel António Cardoso de Sousa e Liz,
Jie publico bem como que o referido filho (Simão)
asuciado com o referido Quintas derão hum tiro e
foram desafiar a porta hum irmão do Cappitam de
San Salvador^ em ocazião que se queixava de lhe
matarem as suas pombas; José Rodrigues Quinta»
do logar da Travanca, ladrão publico que rouba pe-
las Feiras e Mercados quanto pode, he da amisade
do dito Juiz de Fora, e um caçador que muitas vezes
acompanhava com seus filhos,»
São asáim as duas versões concordes em dat
Simão como um impulsivo, de maus instinctos, vio-
lento e desordeiro. O romance dà-o também como
um amoroso : « Amou, perdeu-se e morreu amando».
Não me repugna crer que o fosse. Por amor perdeu
também a carreira seu irmão Manuel ; culpas d'amôr
tivera, ao que parece, Frei José de S. Bernardo seu
tio-avô : fora, segundo alguns pretendem, o amor a
causa do crime de que soflFreram accusações seu
pae, seu tio paterno e seu avô. E, assente que da-»
dos positivos nos asseguram uma tara mórbida lu-
xuriante nessa suspeitissima linhagem, seria, sem
duvida, de interesse averiguar até que ponto essa
provável feição amorosa, ao manifestar-se ew^ suc-
cessivas gerações, foi a causa do exacerbamento
d'uma doença antiga ou apenas o resultado lógico
do proprix) mal.
CAMILLO 31
A analogia que existe entre alguns caracteres
objectivos do amor e aquelles que as obsessões con-
scientes d'uma origem mórbida nos apresentam, a
facto de os amorosos serem, em summa, seres de ex-
cepção, num restricto numero dos quaes se encontra
com frequência uma elevada proporção de crimino-
sos, têm levado alguns philosophos e scientistas a
attribuir ao amor uma origem puramente patholo-
gica. ^ Depois, os aspectos mórbidos com que a pai-
xão amorosa, em geral, se exterioriza vêm corro-
borar até certo ponto uma tal opinião, e physiolo-
gistas modernos * lembram a passagem de Plutar-
cho em que se conta como o medico Erasistrata
reconheceu pelos movimentos tumultuosos do pul-
so que Antiocho amava Estratonica. ^ Gaston Dan-
ville combate esta doutrina, e o seu argumento ca-
pital baseia-se num critério de utilidade applicado
à classificação das obsessões, separando as nocivas
ao individuo e á espécie como as únicas a que ri-
gorosamente compete a origem pathologica que se^
lhes attribue. Fincando nesse argumento todas as
suas deducções e attribuindo ao amor normal o mera
intuito da procreação da espécie, é claro que o phi-
losopho não encontrou grande difficuldade para o
1 GASTON DANVILLE : La Psychologie de Vamow\ 1894^
* DANVILX.E: Ob. ciL ; MOSSO : La peur (ed. francesa),
1886.
5 PLUTARCHO: Vida de Detnetrius^ xxvn ; gamões::
Auto d*El'Rei Sdeuco.
132 CAMILLO
pôr a salvo do seu capitulo de obsessões de origem
mórbida. Eu julgo haver razào em negar ao amor
uma origem pathologica : que a attracçáo «ntre dois
indivíduos de sexo diflferente, verificável de resto
em quasi toda a escala zoológica, não pôde por certo
interpretar-se fora das leis que regem o mecanismo
psychico no estado normal de cada um. O amor
virá, tào só, pôr em preeminência, resultante d'uma
intensa e quasi exclusiva actividade, o sentimento
affectivo e, se a creatura fôr um psycopatha, a
doença encaminliar-se-â irremediavelmente para o
ponto em destaque da sua entidade psychica. Im-
placável, a sciencia diz-nos que só é susceptível de
íicar doido d 'amor aquelle que tiver um amor de
doido. ^
Ora o amor dos Botelhos não foi decerto um
áraôr normal : surgindo em creaturas presas d'uma
nevrose herdada que a sequencia das suas vidas de-
pois nos aclara, a paixão amorosa dominou-os com
uns caracteres particulares, uma intensidade, um ex-
clusivismo que fazem saltar aos olhos a sua maneira
mórbida de ser. A vida romântica ou romantizada
de Simão Botelho vem contada com lagrimas nas
paginas dolorosas e intensas do Amor de Perdição.
Ahi, ella apparece como a simples historia d^ima
existência estúrdia que um certo dia se embaraçou
e prendeu irremediavelmente^ num fino cabello de
* FKANK : Traité de Pathologfe Interne, Irad. Bayle, t.
Ill, p. 143.
CAWILLO 36
mulher ; e como esss desgraçado rapaz viesse, tal-
vez por uma opportunidade mâ de nascimento, a
acarretar, num equilíbrio falso, com uma herança
mórbida que em seus maiores se foi accumulando,
de geração em geração, em dezoito annos tinha es-
gotada toda a razão de ser da sua vida de espirito,
morrendo quando lhe faltava já a coragem para
todo o esforço, mesmo atirado de golpe, nessa im-
pulsão de vesânia que outr'ora fizera d'elle um
desordeiro, depois um assassino, e o acompanhara
passo a passo nos momentos de lyrica paixão. Diz
o romance que Simão amava com loucura essa The-
reza que morreu d^amôr, agitando o lençosinho
branco no mirante de Monchique,, quando cortava
as aguas do Douro, á vista do convento, a nau
-que o conduzia ao degredo da índia. Os documentos
até hoje pesquizados, apenas nos dizem «que elle
foi criminado pelo estrupiamento que praticou com
um tiro da sua carabina ou clavina na pessoa do
criado de um individuo de Vizeu.» ^
Do irmão primogénito de Simão Botelho, Ma-
nuel, que ficou doido e morreu d'uma congestão ce-
rebral e de quem no Amor de Perdição se conta a
* Pensa o sr. Pedro d'Azevedo que alguns esclareci-
mentos sobre esse caso nos poderá dar o archivo da Re-
lação do Porto « no caso que este ainda exista ^. E excla-
rece: tO archivo da Relação conservava-se num subterrâ-
neo, estando os papeis respecUvos, devido á humidade,
-convertidos em pasta. Uma gloria para a magistratura!»
3
34 CAMILLO
historia romanesca do adultério com uma açoriana^
conhece-se, através de dados cheios de incerteza, a
accidentada uniào com D. Jacintha Kosa do Espi-
rito Santo, filha de uma doida. * Sabe-se que essa
mulher amou e soííreu —
Que o sangue, derramado sem seu caminlio,
Eu pude ainda vêr, como um vestígio
Da marlyr que passou. ^
— e o facto de uma vida assim, levada entre lagri-
mas, é natural que ficasse nitidamente marcado no
caracter dos fructos doesse amor.
A influencia do estado de espirito dos pães no
momento de concepção sobre a maneira de ser
psychica dos filhos, tinha sido observada já autes
dos médicos se occuparem do seu estudo: Hesiodo
prescrevia a abstinência do coito na volta das ceri-
monias fúnebres, para se náo gerarem filhos melancó-
licos. Erasmo punha na boca da sua Loucura estas^
palavras : «Eu não sou o fructo d'um aborrecido
amor conjugal». Tnstam Shandy attribue as enfa-
donhas particularidades do seu caracter a uma per-
gunta que sua mãe, em momento muito inopportuno^
^ t Meu pae, minha avó materna e duas minhas tiâs^
morreram doidas» (camillo: Cartas ao Visconde de Ou-
guella, publicadas pelo sr. Theophilo Braga na Revista Pof-^
tugueza^ 1895 p. 117).— Vêr a NOTa C.
* CAMILLO : (^m //rro.
CAMILLO 35
formulou ^. Um dos filhos adulterinos de Luiz xiv,
concebido durante uma crise de lagrimas de M.^®
de Montespan que as cerimonias do jubileu tinham
emocionado, conservou por toda a vida um caracter
que o fez chamar « o filho do jubileu» *. E' conhe-
cido o caso d^um pae, homem illustrado, que durante
a vida inteira teve sensíveis tendências para um es-
tado mental doentio, com períodos alternados de
excitação e abatimento; dos numerosos filhos que
teve, dois foram alienados : a época da sua conce-
pção coincidia com os momentos em que o pae tinha
manifestado em grau mais alto as suas tendências
malsâs '. De Candolle, citado por Lombroso, faz no-
tar a influencia d'um estado de paixão violenta dos
pães, no momento da copula e lembra o numero con-
siderável de bastardos de génio *. E' nas uniões illi-
citas, mais que no casamento, que se encontra, no
enthusiasmo da sua máxima intensidade, um amor
violento; mil razões ha nesse caso para excitar,
pela alegria, pelo medo, pela revolta ou pela an-
1 Fere : Ob. cit, p. 17.
* P. Lucas : Traité pratique et phyaiologique de Vherédité
naturelle, 18Õ0, t. II, p. 504.
* Este caso vem em Ribot (ob. cit. p. 255) como ten-
do sido communicado ao auctor por um medico, e figura
também, juntamente com o anterior, em Déjerine: Vheré-
dité dans les maladies du ^ysteme nerveux, 1886, d*onde LoM-
BROSO os tirou para o seu trabalho.
^ De Candolle: Hi$toire des Sciences, 1883 ; LombrOSO
OJb. Cit p. 217.
36 CAMILLO
gustia, o estado de espirito d^um dos progenitores
ou d 'ambos elles. Isaac Disraeli escreveu na Memoria
de Toland: «O nascimento fora do casamento cria
os caracteres fortes e resolutos» ^. Também nas
uniões illicitas, se o primeiro filho pôde sentir a
influencia d'um pleno amor, o segundo jâ geral-
mente nasce no doloroso período d^ima reacçào
expiadora, de ainda mais impressiva influencia.
M.^"® Roubinovitch communicou ao congresso de
Amsterdam, de 1907, que, num estudo de 74 bio-
grapliias de grandes homens, apenas encontrou 10
primogénitos *.
Da união de Manuel Botelho e de D. Jacintha
Hosa nasceu primeiro uma filha e depois um filho,
beijado talvez jà no seu berço pelas lagrimas do
arrependimento e do martyrio.
Ao descendente dos brocas e à sua companheira
de aventuras podia bem caber a sorte de darem
vida a uma creatura de caracter extranho, num
momento mais intenso da sua vida de amores e de
torturas. Mas um filho de D. Jacintha Rosa tinha
já, por banda paterna, os f^ymptomas reveladores .
d'uma nevrose herdada. Corremos a linha da sua
ascendência e encontramos uma longa tradição de
vesânia ^ D'ahi, porém, a concluir de rompante
1 LoMBROSo: Ob. cit. p. 217.
2 L'Encephale, 2.e année. N.° 10. Octobre 1907, p. 451.
^ « Ambos nevropathas hereditários, Camillo e Júlio
(Júlio César Machado) pois em ambas as familias havia a
CAMILLO 37
que o filho nascido d'essa união devesse forçosa-,
mente ser um doido ou um criminoso, ainda mesmo
sujeito à influencia mórbida hereditária, vae um
abysmo. Difficil, se não impossivel seria mesmo
prever qual a forma de psycose que quasi certo era
vir junta a essa creaturinha posta no mundo com
o carreto d'uma tào pesada herança. A variação da
hereditariedade é um facto. «As doenças do syste-r
ma nervoso, quer se manifestem por perturbações
psychicas, sensoriaes ou motoras, offerecem entre
si afinidades numerosas, pontos de contacto múlti-
plos ; e, se bem que, nestes últimos annos, os estu-
dos tanto clinicos como anatomo-physiologicos te-
nham multiplicado as espécies, póde-se dizer que
ellas constituem uma só familia, ligada indissolu-
velmente pelas leis da hereditariedade» ^. Mas não
ha uma regra precisa ; e o próprio schema que Morei
formulou para a marcha da degenerescência pro-
gressiva esbarra na pratica, a cada passo, por cir-
cumstancias que se explicam mas que nem por isso
se podem deixar sem nota, com casos que aberta-
mente o contradizem ^. «Os alienados, os crimino-
sos e os homens de génio trazem ingenitamente
uma constituição muito análoga; todos são dotados
dupla tradição da vesânia e do suicídio ». (Souza Martins:
Nosographia d^AntherOy no Jn Memoriam.
* FÉRÉ: Ob. cit., pag. 8.
* G. Weygandt: Atlas-Manuel de Pst/chiatrie, ed. fr.,
por RouBiNOviTCH, 190J:, p. 26.
38 CAMILLO
d'uma tal excitabilidade que reagem fora das regras
psycologicas ordinárias. Sào ás vezes as circum-
stancias que determinam a especialização» ^. Por
hereditariedade nào se entende exclusivamente a
doença transmittida á progénie com a identidade
de symptomas de ordem physica e moral observ^a-
dos nos ascendentes. Comprehende-se no termo
Jiereditariedade a transmissão de disposições orgâ-
nicas de pães a filhos ... *. «A fixidez das ideias
nos progenitores, pôde transforraar-se nos descen-
dentes em melancolia, amor à meditação, aptidão
para as sciencias exactas, energia de vontade. . • A
mania dos progenitores pôde vir a ser nos descen-
dentes aptidão para as artes, arrojo de imaginação,
vivacidade de espirito, inconstância dos desejos,
vontade brusca e sem tenacidade» '. «Assim como
a loucura real pôde reproduzir-se hereditariamente
sob a forma de excentricidade, não se transmittir
senão com meias tintas, tons mais ou menos adoça-
dos, assim um estado simples de excentricidade,
que não vá além de certas extravagâncias de cara-
cter, de certas singularidades de espirito, pôde ser
para os filhos a origem d^um verdadeiro delirio» *.
A historia nosologica das familias de homens ik)-
^ FÉRÉ: Ob. cit, p. 41.
* MOREL : Traité ães dégénérescences, 1857 ; RmOT : Ob
cit, p. 247.
3 RiBOT : Ob. cit., p. 249.
* MOREAU (de Tours): La pnychologie morhide dans ses
rapports avec la j^hilosophie de Vhistoire, 18Õ9, p. 187.
CAMILLO 39
taveis, traçada por alguns auctores, mostra- nos
-com frequência a associação de psyco-nevroses com
um alto desenvolvimento iatellectivo ^ Numa fa-
mília estudada por Berti, em quatro gerações de
-cerca de oitenta indivíduos, derivados de um doi-
do melancólico, observaram-se três homens de gé-
nio, trêá criminosos, dezenove nevroticos, e dez
doidos *. Da linhagem de Carlos v, que teve alie-
nados, lypemanos e excêntricos, nasceu um bas-
tardo de génio : Alexandre Farnese ^. Beethoven
era filho d'um alcoólico, Alexandre nasceu d 'um
bêbado e d' uma mulher perversa e dissoluta,
» mãe de Byron era desequilibrada e o pae um es-
tróina bizarro e impudente *. O próprio Baudelaire
* LÉi^UT : Le génie, la raison et la foWpy le dem^tn âe
Socrate^ \^f) \ Galton : Hereditart/ Genius, 18G3; MOREAU
(de Tours): Ob. Cit.; P. JacOBY : Étude snr la selection dans
868 rapports avec Vheredité chez Vhomme, 1S81 : LuMBROSO :
Ob. cit; Ribot: Ob. cit.; Mantegazza: De la nevrone des
grande hommes^ (ed. fr.), 1881; H. JOLLY : Psi/chologie des grande
hommes, 1883; E. Toulouse: Emile Zola, 1896; Grasset:
La superiorité intellectaelle et la nevrose^ 1903 ; Gaston
Loygue: Th'M. Dostoieivski, 190-1:; Marianxi: L. N. TolstoL
T. XXI v, fase. IV, p. 369 do Archhio di Psichiatria, Sclenze
penali e Antropologia criminale, 190i^; ArtURO Basano :
Tommaso Hohhes^T. XXíV, fase. IV, p. 419 do Archivio di Psi-
chiafria, etc, 1904.
2 LoMBflOSO: Ob. cit p. 210.
^ Ireland: The Blot npon ihe Brain, 1835, p. 147; DÈ-
jÉr.iNE: Oh. cit; Lombroso: Ob. cit
* Lombroso: Ob. cit; Emílio Gastelar: Vida de Lord
Byron (trad. de M. Fernandes Reis), 18T6.
10 CAMILXO
-a'-!
escreveu qne os seus antepassados, idiotas ou ma-
niacos. foram victimas de terríveis paixões ^. Pedro^
o Grande e os seus dão á sciencia salientes casos
de génio, imbecilidade, hábitos crapulosos, mortes
prematuras, ataques epileptiformes, e virtudes e
vicios levados aos últimos extremos *. Por ultimo^
Voisin cita o caso typico d'um pintor de talento,
filho d'uma hvsierica e irmão de dois idiotas e de
um alienado *. Xullum magnum ingenium niòi mis-
tura quadam denientice^ disse nm antigo: e a sciencia
moderna pôde concretamente concluir: o génio é uma
necrose *.
Na familia illustre cuja genealogia se perde no
sendal dos tempos que mal deixa ver os vultos im-
ponentes dos grandes senhores de Oviedo e de Leão^
o cadastro patliologico, já bem opulentado desde
aquelle Domingos Pinto que desposou uma Botelho^
enriqueceu-se nesta altura com o exemplar mórbido
mais nobre. De Manuel Botelho — um doido, des-
cendente d'uraa familia de desordeiros, assassinos^
loucos moraes, libertinos e excêntricos — e de D.
Jacintha do Espirito Santo — a filha d'uma doida —
nasceu um homem de génio : Camillo Castello
Branco.
* E. Grepkt : (Euvres jjosthumes et correspondance iné-
dite de Buuddaire.
2 MORKAU (de Tours) : Ob. clt.
3 Voisin: Ileredité^ no Dictionaire de medicine et ciiUU'
gie pratique, 1875. t. xvii, pag. 473.
* MoREAU (de Tours), Ob. cit
BIOâf^APHIí^
« Quand la nature crée un homme
de génie, elle lai secoae son ílambeau
sur la tête el lui dit: Ya, sois malbea-
reax! »
DlDKROT
I
1825-1844
Camillo Castello Branco nasceu em Lisboa, numa
casa d© largo do Carmo, em 16 de março de 1825
e foi baptizado na egreja dos Martyres em 14 de
abril do mesmo anno. A máe morreu pouco tempo
depois d'elle nascer e dos dez primeiros annos da
sua vida apenas se sabe que em 1834 com o vis-
conde de Ouguella e seu irmão Ricardo Sylles
Coutinho, frequentou uma escola de João Ignacio
Minas Júnior, na rua dos Calafates. «A meu lado
— escreveu Camillo — no banco da escola de pri-
meiras letras, em Lisboa, por 1834, sentavam-se
dois meninos, filhos d'um amigo de meu pae. Estou
vendo, além, para lá da cerração de trinta e oito
annos, aquellas duas creanças loiras e formosas,
pedindo comigo a Deus que nosso mestre João
Ignacio Luiz Minas Júnior fosse para a guerra.
Porque o nosso professor era guerreiro por aquelles
tempos. Com uma das mãos na palmatória e outra
44 CAMILLO
na espingarda, acudia pelo decoro do Lobato e pela
restauração da monarchia representativa. Nas bate-
rias de campo de Ourique devia de ser um bravo
Joáo Ignacio; e, no gyneceu modestíssimo da rua
dos Calafates, era um apaixonado fautor da religião
do participio, e das outras não menos respeitáveis
partes da oração. Isto vae ha muitíssimos annos:
era num tempo em que se aprendia syntaxe. Dos
dois meus condiscipulos um chamava-se Carlos, o
mais novo dos dois, que tinha seis annos. Caquella
creança estou bosquejando hoje um perfil de bio-
graphia. Vae nisto o que quer que seja para scismar
e entristecer. E' a poesia melancólica — o funesto
condão dos homens que vivem muito da vida intus-
pectiva. Naquelle anno de 1834 nos apartamos.
Meu pae morreu. E, como eu jâ não tivesse mãe
nem fosse inteiramente pobre, a desgraça deparou-
me parentes em Trâs-os-Montes onde vim a enten-
der que não ha lagrimas bastantes a deplorarem o
destino de um orphâo com oito annos de edade, e
as faces quentes e húmidas dos últimos beijos e das
ultimas lagrimas de seu pae» *.
Camillo não é sempre rigoroso em datas nas
suas evocações. Manuel Botelho Castello Branco
moçreu em 22 de dezembro de 1835; e o próprio
Camillo, no seu livro Duas horas de leitura, confessa
que foi efíectivamente aos dez annos que ficou or-
visconde de Ouguella.
CAMILLO 4Õ
phào de pae: «Aos meus dez aimos — conta — le-
vantou- se uma tempestade no seio da minha fami-
lia. Uma vaga levou meu pae á sepultura, outra ati-
rou comigo de Lisboa, minha pátria, para um torrão
agro e triste do norte; e a outra... Náo merece
chronica a outra: arrebatou-me um esperançoso
património. Foi bem pregada peça para que eu náo
tivesse a impudência de nascer, a despeito da moral
juridica, filho bastardo de não sei que nobre. Dis-
sera m-me que uma lei da Senhora D. Maria i me
desherdava. A boa da rainha, se tivesse amado mais
cedo um certo bispo, náo legislaria tão cruamente
para os filhos do peccado. Denominava-se — a pieda-
.va, pela mesma razão que um rei nosso, soprando a
fogueira de vinte mil hebreus, se chamou — o pie-
doso. A boa da historia é uma trapalhona».
Por deliberação do conselho de familia, Ca-
millo foi levado para Villa Real, entregue aos cui-
dados de D. Rita Emilia da Veiga Castello Branco,
irmã de seu pae. «Embarcamos no barco a vapor
chamado Jorge IV — conta elle no livro Ko Bom
Jesus do Monte — . Uma criada, que tinha ares de
mestra de minha irmá, veio comnosco, estipendiada
por conta do nosso património. A senhora Carlota
Joaquina não me esquece. Era uma mulher gorda,
façuda e frescalhona, que bolsava os figados do
beliche abaixo, e gritava á d'el-rei de afflicta com
o enjoo. Era immundo, sujo a mais não poder, o
Jorqe IV. A camará era commum dos dois sexos,
com menos resguardo que os mosteiros dúplices
46 CAMILLO
da edade media; mas os ânimos dos passageiros
pareceram-me a negação de toda a ideia monástica.
Os homens do beliche do segundo andar conversa-
vam com as mulheres do primeiro diálogos entre-
cortados de vómitos. A senhora Carlota, que ficou
á minha esquerda, praguejava contra o seu destino;
e o meu vizinho da direita, sujeito de grandes
barbas, sahia do beliche em menores para lhe ter
máo da testa. Esta caridade absolve a inconve-
niência da mistura. Dos passageiros nenhum fala-
va inglês, e o criado da camará, que também
era fogueiro, attenta a negrura encarvoada da ca-
misa e cara, quando lhe pediam chá, café, ou um
caldo de gallinha, dava sempre agua por um canudo
de lata. Carlota exclamava: — Eu morro! — Tenha
paciência^ menina!^ acudia o homem das barbas.
— Não ha-de morrer querendo os deuses. Devia de
ser pagão o monstro! — Eu morro/ rebramia ella.
Quero confessar-mef . . . — Não peça a confissão a
estes b)*utos, observava-lhe o meu vizinho, que além
de não terem Deus nenhum, se a menina lhes pede
um padre, trazemlhe agua na lata sun'ada. Havia
muito mar quando se avistou a barra do Porto : e
por isso arribamos á Galliza. A nossa Carlota, as-
sim que pôs os quatro pés e os dois estômagos na
hospedaria de Vigo engordou outra vez. O pagão
não sahia da beira d 'ella. No dia seguinte abalou
a caravana para Tuy por uns caminhos que Deus e
a civilização já fizeram desapparecer da face do
globo. Ao outro dia passamos a Valença; depois a
CAMILLO 47
Ponte do Lima, e de lá a Braga em romagem ao
Bom Jesus.»
«Tinha eu nove annos, e era orphâo — escreve
o romancista no capitulo que precede aquelle d'onde
transcrevi a narrativa da viagem. — Dois meses
depois doeste desamparo, com o tenro coração fis-
tulado de saudade, a desbordar de lagrimas, e os
ouvidos ainda resoando-me á alma o estertor da
agonia de meu pae, é que eu, pela primeira vez^
entrei no Santuário do Bom Jesus. As lembranças
gravadas pelas fugitivas impressões d^aquella edade,
são poucas; mas assim mesmo, em todas as épocas
ulteriores que ali fui, o tâo remoto passado, com as
suas quasi delidas memorias, vinha entre-luzir-me
nas commoções melancólicas do presente. Os grupos
piedosos das capellas que prendem a curiosidade
da creança, já enternecendo-a com o aspeito doce e
affligido de Jesus, já apavorando-a com o gesto
sanhudo e esgares ferozes dos soldados de Poncio,.
pouco me lembram, salvo um rapaz do meu tama-
nho de entáo, que chegava os pregos aos crucifica-
dores do martyr. O que ainda indelevelmente diviso
na tela do meu espirito dos nove annos, é as grandes
arvores, as sombras escuras, os penhascos musgosos,^
e, lá em baixo, um oceano de verdura ondulando
entre outeiros, e á volta dos presbyterios, casalejos,.
e edifícios de grande porte, que alvejavam d'entre
a espessura dos arvoredos. Que devanear seria o
meu naqnelle dia? Quando eu punha os olhos,.
oarregados de lagrimas, no azul do «eu, que tfix>
48 CAMILLO
outro se me figura hoje, que aza de anjo da angustia
levaria para lá a minha prece! Nella se me iria a
alma, em anceios de saudade, procurar meu pae
que, ao sahir do mundo, nem sequer me deixara
mãe, que me ensinasse a orar por elle. Devo ajuizar
da minha precoce sensibilidade, recordando que,
dois meses antes, entrei, por noite alta, na sala onde
meu pae estava amortalhado, sem mais companhia
que quatro cirios de chamma azulada. Ajoelhei,
sem orar. Afastei da fronte do cadáver o capuz do
habito, e beijei-lh'a. Puz também a boca nas mãos
glaciaes; senti um frio de que ainda o coração me
guarda a memoria: o frio do ambiente dos mortos.
Ao meu lado, ninguém. A irmá que eu tinha, alguns
annos mais velha, encerrâra-se com a sua dor e com
o seu terror de cadáveres. E eu estava ali, desteme-
roso das sombras que desciam dos ângulos do tecto
á penumbra do clarão oscillatorio das tochas. Largo
espaço contemplei a face de meu pae, aformoseada
pelo resplandor da aurora do dia eterno; e assim
ponderei as ultimas palavras que lhe ouvira, con-
fiadas ao frivolo espirito dos meus nove annos :
Que será de tij meu filho, sem ninguém que te ame! . . .
Poucas horas depois que m^as disse, fez-se noite
naquella alma: dez dias volvidos, as trevas desata-
ram-se ante o alvorecer da eternidade, E eu assis-
tira, dia e noite, a esta agonia.»
Na Bohemia do EspiHto vem, datada de 84, uma
impressão da primeira viagem de Camillo. «Eu
tinha dez annos quando, pela primeira vez, fui ao
CAMILLO 49
Bom Jesus do Monte — escreve o romancista — .
Eu, com outros romeiros, vinhamos de Vigo onde
nos aproara uma tormenta no alto mar. A minha
criada, muito amante da vida, fizera uma promessa
ao Bom Jesus; e, no cumprimento da sua palavra,
de passagem para Trâs-os-Montes, convidara alguns
companheiros de jornada a subirem ao alto da mata
para agradecerem ao miraculoso Senhor o seu sal-
vamento. Eu, como disse, tinha dez annos, e estava
também ajoelhado na capella onde se venera a im-
ponente esculptura. Emquanto os meus companhei-
ros agradeciam com fervorosa uncçáo o prazer da
vida, recordo-me que scismava, muito em deshar-
monia com a acção de graças d'aquella gente. Pen-
sava eu se me nâo teria sido muito mais benigno o
Senhor do Monte deixando-me resvalar ao abvsmo,
amortalhado em uma das suas ondas menos amargas
que as lagrimas que eu havia de derramar em nau-
frágios de maiores agonias. Porque eu, aos dez
annos, vinha de perder meu pae, quando já não
tinha mãe ; sahia do aconchego da casa pateríial
desfeita como um ninho espedaçado por um favacrio ;
e ia para uma terra desconhecida, enviado a parentes
que nunca me tinham visto. Era por isso que eu,
pensando na infelicidade da existência, scismava se
Deus me seria mais benigno deixando-me ir procurar
as almas de meu pae e de minha mãe. Ha cem
annos que este Senhor crucificado vê umas poucas
de gerações prostradas deante do seu altar— u^ns a
agradecer, outros a supplicar. Po-is, talvez no trans-
ÕO CAMILLO
curso de um século, nenhuma outra creança de dez
annos repetisse deante doesta sagrada imagem, as
palavras de Job: Quare de viilna eduxisti m^f —
Porque me deste o nascimento ? »
Em Villa Real, D. Rita Castello Branco come-
çou educando o sobrinho numa liberdade menos
ampla que aquella a que o pequeno vinha acostu-
mado da sua vida de Lisboa. EUe era o filho único
d'uma aventura de romance em que o tédio veio,
ao que parece, matar em breve o exaltado amor
que a provocou, e como quer que os dois ficassem
— pae e mãe — vivendo uma mesma vida, de rela-
ções cortadas com o passado, sem enthusiasmo de
amantes, unidos por uma ligação serena que veio
tarde para transmudar na tranquillidade feliz d'um
lar uma agitada existência de novella, percebe-se
como ambos elles consagrassem ao filho, apaixona-
damente, o affecto que d^um para o outro andava,
incomprehendido ou despresado. Cercavam-no de
mimos, faziam passar o primeiro período da sua
educação sem uma rudeza, sem um estorvo, e o
caso é que o futuro romancista, assim creado á
larga, no melhor meio para o amplo desenvolvi-
mento das tendências in natas do seu espirito, antes
da época em que ficou sem pae, já, em namoricos,
exhibia as tendências libertinas de pivete.
Náo é assim por certo que se faz d'uma creança
nm instrumento dócil, amoldavel pelas reprimendas
d'uma tia severa e rabujenta. Camillo era travesso,
irrequieto. «Quando eu tinha dez annos, e vivia
CAMILLO 51
em Villa Eeal — diz elle no primeiro volume das
Memmnas do Cárcere — morava defronte d'um pro-
curador de causas, que tinha um filho da minha
edade, menino muito sisudo e galante. Se eu o con-
vidava a apedrejar algum transeunte, Leonardo re-
cusava-se a esta camaradagem ignóbil, e escondia-se
para nâo dar suspeitas de cumplicidade nas minhas
travessuras de fundibulario . , . Vi entrar na Rela-
ção o meu vizinho de infância, e nào o conheci.
Ouvi-lhe pronunciar o nome, e as circumstancias
dos seus crimes: então vi a creança de 1836 e o
perpassar d'aquellas risonhas scenas em que elle me
apparecia com gestos de censura ás minhas trope-
lias, e com grandes applausos e bons agouros da
vizinhança, a quem eu era odioso » . A irmá do ro-
mântico degredado do Amor de Perdição não tinha
já edade nem paciência para supportar de boa som-
bra as « travessuras de fundibulario » do sobrinho
e, naturalmente revoltado contra uma rispidez bem
diversa dos carinhos dos seus primeiros annos,
num primeiro impulso d'aventura que bem ficava
em quem viria a ser um exemplar completo de fa-
talidade mórbida de herança, um bello dia, com um
par de piugas e duas camisas atadas num lenço,
Camillo abalou para Lisboa.
«Pedi ao conselho de familia que me vestisse
— diz elle no livro No Bom Jesus do Monte — e o
conselho de familia, em reunião de 10 de julho de
1837, deliberou que me vestissem num algibebe e
me reenviassem para qualquer parte. . .» Essa qual-
52 câmillo
quer parte foi a aldeia de Villarinho de Samardan,
«em Tràs-os-Montes, na comarca de Villa Real, so-
branceiro ao rio Córrego, no desfiiadeiro de uma ser-
ra sulcada de barrocaes » , ^ onde, em companhia de
uma irmá casada cora um medico, irmão do padre
António d 'Azevedo que o iniciou nos mysterios do
latim, Camillo, levando a vida do campo, fazendo-se
pastor do rebanho da casa, indo para o monte ar-
mado, prorapto ao combate com o lobo, simulta-
neamente aprendendo o cantochão e lendo Camões
e o Mendes Pinto, passou então, como elle conta,
o periodo mais feliz da sua vida. Ainda nas Duas
horas de leitura, vêm descriptos, com todo o pit-
toresco encanto d^uma prosa incomparável, esses
episódios interessantes dos seus primeiros tempos.
«Fui educado — diz elle — numa aldeia onde tenho
uma irmã casada com um medico, irmão d'um pa-
dre, que foi meu mestre. O mestre podia ensinar-
me muita coisa que me falta ; mas eu era refractá-
rio á luz da gorda sciencia do meu padre. Fugia
de casa para a serra, dava muitos tiros ás galli-
nholas e perdizes ; porém, louvado seja Deus, não
me doe o remorso de ter matado uma ! O meu
gosto era pascer o rebanho de casa por aquelles
saudosos valles. Todavia, minha irmã oppunha-se
a este humilde serviço. Dizia-me coisas que eu não
percebia acerca da rainha dignidade ; reprehendia
Camillo : Seroens de S. Miguel de Seide.
CAMILLO 53
OS meus baixos instinctos ; attrahia ao seu voto o
marido e o padre e cortava-me o rasteiro voo es-
condendo de mim a clavioa, o polvorinho, e os sal-
picões, e a broa, e a cabacinha da agua-ardente.
Não obstante eu pedia tudo de empréstimo, e' ia
com as ovelhas para o monte. Passava lá o dia in-
teiro, sentado nas espinhas d'aquelles alcantis fra-
gosos, sempre sósinho, scismaado sem saber em
quê, engolfada a vista nas gargantas dos despenha-
deiros». «Eu é que conheço a Samardaa, desde os
meus onze annos — diz ainda Camillo no prefacio
do Degredado, — Está situada na província trans-
montana entre as serras do Mesío e do Alvão. Nas
noites nevadas, as alcatéas dos lobos descem â al-
deia e sevam a sua fome nos rebanhos, se vingam
descancellar as portas dos curraes ; à mingua de
ovelhas, comem um burro vadio ou dois ; consoante
a necessidade. Se não topam alimária, uivam lugu-
bremente, e embrenham-se nas gargantas da serra,
illudindo a fome com rapozas ou gatos bravos ma-
rasmados pelo frio. Foi ali que eu me familiarizei
com as bestas-féras ; ainda assim, topei-as depois,
cá em baixo, nos matagaes das cidades, taes e tan-
tas que me irriçaram os cabellos. Na vertente da
montanha que dominava a Samardan, havia um
fojo — uma cerca de muro tosco de calhàos a esmo
onde se expunha á voracidade do lobo uma ovelha
tinhosa. O lobo engodado pelos balidos da ovelha,
vinha de longe, derreado, rente com os fragoedos,
de orelha fita e o focinho a farejar. Assim que dava.
54 CAMILLO
tento da preza, arrojava-se de um pincho para o
cerrado. A rez expedia os derradeiros berros fugin-
do e furtando as voltas ao lobo que, ao terceiro
pulo, lhe cravava os dentes no pescoço e atirava
com ella escabujando sobre o espinhaço ; porém,
transpor de salto o muro era-lhe impossível, por-
que a altura interior fazia o dobro da externa. A
fera provavelmente comprehendia então que fora
lograda; mas, em vez de largar a preza, e aliviar-se
da carga, para tentar mais escoteira o salto, a es-
túpida senta va-se sobre a ovelha e, depois de a es-
folar, comia-a. Presenciei duas vezes esta carnagem
em que eu, animal racional, levava vantagem ao
lobo tão somente em comer a ovelha assada no for-
no com arroz». * «Neste instante, vejo, palmo a
palmo, aquelles sitios. Se eu ali for, vou sentar-me
ao pé de uma rocha, no recosto de uma brenha,
justamente onde recebi, ha quinze annos, dois anneis
de missanga. Ora estes anneis ...» *
Estes anneis têm uma historia que merece ser
<3ontada, porque se relaciona com um dos mais in-
tensos episódios da existência melodramática do
romancista. Mas, antes de contá-la, eu tenho de re-
ferir outras aventuras que, em ordem chronologica,
antecederam essa. A historia dos seus primeiros
versos — uma Ode ingénua, com o seu Alcino e a
sua Elmena — anda ligada, como é natural, a uma
1 GâMILLO : Novellas do Minho,
^ Camillo : Duas horas de leitura.
GAMILLO 5q
treve historia de paixoneta infantil que Camillo
conta do seguinte modo no seu livro Ao anoitecer
da vida :
«... Por esse tempo (1842) * fui eu a uma
romaria da Senhora Apparecida *, duas léguas ao
sul da mesma serra, na quebrada d'outra serra da
mesma cordilheira. Jâ eu tinha dado algumas vol-
tas em roda da ermida, ao lado do rabequista que
era o mais atrevido imaginador de phantasias chu-
las. Chulas chamam lá ao complexo do instrumen-
tal que forma o essencial de taes festanças. Em
outras partes da província dizem ronda e estúrdia
noutras. Parara a ronda, como visse que outra lhe
sahia à frente, mais galharda, com maior séquito
de moças e sobre-excellencia de um clarinete que
guinchava umas deliciosas variações algum tanto
abafadas pelo retumbar do zabumba e grilharia
dos ferrinhos. A ronda a que eu ia associado não quiz
ceder o passo á outra que era de rópia e basofia.
Esta, um pouco desconcertada, deteve-se momentos
em conselho deliberativo; mandou as mulheres e
rapazio para a rectaguarda; recolheu os músicos
ao centro e cobriu a frente com quatro espadaúdos
1 Deve ser 184:1. Já ficou dito que os erros de datas
são frequentes nas evocações de Camillo.
« Segundo o sr. Alberto Pimentel ( Os amores de Ca-
millo) < a romaria não era da Senhora Apparecida, mas
da Senhora da Pena, em Mouçoz, nas cercanias de Villa
Real ».
56 CAMILLO
moços de pau ferrado. D'ahi a nada, as cabeças
amolgadas eram mais que os paus; as rabecas iam
soando pelos ares como harpas eólias ; os bombos
gemiam roucos ao arrebentarem ; o homem do cla-
rinete salva va-se no topo da serra com o inspirada
instrumento, e a cantadeira mais insigne d'aquelles
arredores, que sustentara desafio duas horas, amal-
diçoava o estro fatal que a fez quinhoeira d 'uma
bordoada que a deslombou. Parecia o dia de juizo!
Devo â minha presença de espirito sahir illeso d'esta
suprema provação. Estava ali perto uma pipa que
os gladiadores respeitaram por náo sei que prodi-
gioso instincto. Os paus travados desensarilhavam-
se, quando, ao roçarem pela pipa, o taverneiro lhes
gritava aos cegos da ira : — Ihipazes! não me hotéis
a perder! Olhae que me abvides o vinho! Parecia
coisa de milagre ! Desandavam logo como de logar
sagrado e nào respeitavam as opas dos irmãos da
confraria, muitos dos quaes sahiram moidos da fes-
ta, por se metterem a pregoar pazes. Salvei-me
pois, encostado à pipa, onde me acolhi depois de
raciocinar friamente sobre as evoluções da tremenda
batalha. D'aqui presenceei o triste espectáculo de
dezenas d'homens esmoucados e centenares de mu-
lheres, velhos e creanças, ajoelhados por aquellas la-
deiras, pedindo clamorosamente á Senhora Appa-
recida que tivesse mão d'aquelles homens que se
matavam. Entrelembro-me de que estas supplicas
aproveitaram, excepto a dois, que lá ficaram enter-
rados no adro da ermida: um d'estes era o zabum-
CAMILLO 67
beiro da ronda agressora, e o outro era o violista
da minha, engenhosissima creatura que tocava tudo
quanto havia em dois bordões e uma prima, prima
da viola, quero dizer. Deus os tenha a ambos noa
coros angélicos, jâ que o mundo não era digno
d'elles. Applacada a desordem, agradeci mental-
mente á pipa aquelle como inviolável protectorado
do pavilhão inglês (vem do ceu ao pintar todas as
comparações com ingleses, quando cheiram a vinho)
e fui procurar os destroços dos meus amigos. Um
sacerdote de boa presença andava providenciando
acerca dos mortos e dos feridos. Com este padre,
vigário da freguezia próxima, andavam duas sobri-
nhas, vestidas senhorilmente, com suas barretinas
de palha de Itália, plumas escarlates e vestidos
brancos de mangas perdidas. Eram umas tafulas !
No tocante a rosto, mais feiticeiras mulheres nunca
meus olhos tinham visto, nem a minha devaneadora
poesia as entre vira em sombra. Perguntou- me o
padre quem era eu; e succedeu ser eu irmão de
uma conhecida d'aquellas esbeltas senhoras. Feste-
jaram-me com muitos cuidados pela minha segu-
rança, e deram-me de merendar umas saborosas
talhadas de salpicão e fructa seca, tudo condimen-
tado pelos sorrisos supra-celestiaes de uma das duas
mocetonas, que a estas horas. . . santo Deus! como
isto é triste! devem ter netos e raros vestigios
d'aquellas lustrosíssimas pérolas que lhes divinisa-
vam o sorriso ! Ao lusco-fusco, o vigário sahiu da
romagem com as sobrinhas, e eu, com os meus.
68 CAlfILLO
conterrâneos, caminhamos em direcção opposta, para
os nossos sitios. Estive largo espaço no têzo d'am
oiteiro, emquanto os olhos alcançavam, por entre o
jâ carregado crepúsculo, as brancas visões que trans-
moutavam a coUina próxima. Depois que de todo
em todo desciam na quebrada invisivel do oiteiro,
ainda ali me fiquei, vendo-as no arrebol do hori-
zonte, e na estrella vesper. Depois, tomado em mim
pelas vozes dos meus companheiros, que já me não
enxergavam, dei tento então de estar chorando.
Eram as primeiras lagrimas do coração. E quer
agora ver o leitor o que fazem lagrimas aos quinze
ânuos? Veja nas seguintes linhas a face irrisória de
um primeiro amor. Olhem a ingenuidade com que
eu quiz metrificar as minhas primeiras e parvoinhas
innocencias e admirem-se da mais sandia ingenui-
dade com que as divulgo, sem corrigi-las sequer. . .»
«Riram-se? — escreve Camillo após a transcripçáo
dos versos. — Agora saibam que esta cataplasma
me foi um vesicatório no coração. Muita lagrima
chorei naquelles meus quatorze annos ! Subia eu á
<;rista d'um oiterio, d'onde se avistavam umas como
névoas de fumo, a duas grandes léguas de distancia.
Ali imaginava eu que devia ser a aldeia de Elmena,
« presbyterio do tio, e a guarida das avesinhas que
^ viam, e lhe annunciavam a madrugada. Do oiteiro
me descia ao entardecer, chorando e escogitando
na traça de lhe mandar a minha ode. De ninguém
fiava a remessa, ou ninguém se encarregava do
mandato. Uns riam de mim, outros escarneciam-me.
CÂMILLO 69
e os mais sizudos manda vam-me jogar o peáo ou
conjugar um verbo da arte do padre Pereira. Pou-
cas semanas volvidas, sahi d'aquella terra para outra,
onde vivia um mestre de latim, sujeito de náo vul-
gar liçào, pregador de fama, e bom velho sobretudo,
o padre Manuel da Lixa. . .»
A historia d'esses versos de Camillo lembra logo
a d^uns outros, seus também, documento d^outra
historia de castos amores da sua adolescência. São
os que elle próprio recorda quando no Discurso
Preliminar das Memorias do Cárcere conta a visita
que fez a Samardan num dos mais dolorosos perío-
dos da sua vida. «Ao seguinte dia da minha che-
gada — escreve — parti para a aldeia onde passara
alguns annos da minha infância na companhia de
minha irmã. Ali era que me levavam memorias, que
por ahi estão escriptas em livrinhos de que o leitor
se náo lembra. Ali estava aquella Luiza. . .
Ai! Luiza,
... a ílôr d*entre as fragas,
que eu cantei num poema, escripto com as minhas
ultimas lagrimas, adoçadas de esperanças ! Passei
por ella e não a conheci. Meu sobrinho ia murmu-
rando ao meu lado:
Luiza, ílôr d'entre as fragas
Donairosa camponeza,
Typo gentil de pureza,
Lindo esmalte das campinas,
Colhes, no prado, as boninas?
60 CAMILLO
Brincas, á tarde, na espalda,
Onde verdeja a alameda
Da viva côr da esmeralda?
Brincas, Luiza, afagando
O que mais amas no bando,
O teu alvo cordeirinho ?
Encarei, sorrindo tristemente, em meu sobri-
nho, e elle disse-me: — Não a vê? — Luiza? — Sim,
Aquella que tem os brados cinizados, Contemplei-a,
e vi uma velha. — Aquella que me está olhando ?/—
repliquei. — A mesma Luiza de ha quinze annos.
E eu disse comigo : Rstará ella dizendo ás outras:
— Elle é aquelle velho ? .' E passei avante. E meu
sobrinho ia recitando com sentimental ironia os
versos do meu poemeto, consagrado aquella Luiza,
que fora nova e linda :
E eu amei-a muito !. . .
A' tarde.
Quando o sol no occidente
De escarlate as selvas tinge,
Com o brilho refulgente
Da floresta incendiada,
Fui sentar-me pensativo,
Sobre a agulha dos rochedos.
Decifrando em minha alma
Indecifráveis segredos.
Além, nas várzeas do vai,
Tinha quanto o coração
Sonha de bello e immorlal
Na sua ardente ambição.
Nem mais formosa que ella.
CAMILLO 61
Nem mais pura o mundo a tinha !
Quizera vê-la, e não vê-la.. .
Antes fugir-lhe. . . ofTendê-la. . .
Mais valera não ser minha !
— E poisj aquella a Luiza ... — murmurei eu
tão de manso, que só a minha alma podia ouvir-se.
E na noite d^aquelle mesmo dia, quando a lua asso-
mou das montanhas, fugi â aldeia da minha infân-
cia e da infância de Luiza. . .»
Quem era Luiza, a musa inspiradora d'esse ro-
mântico amor de adolescente? «. . .Uma camponeza
de encantar. Distinguia-se por bonitas feições : bran-
ca, faces coradas, olhos castanhos muito vivos ; ca-
bello abundante, da cor dos olhos ; estatura meã ;
magra e flexível como se proviesse de raça fina.
Alegre e folgazã, tinha comtudo maneiras senhoris,
que completavam um conjuncto de perfeições raras
em mulher nascida na Samardan, entre serras».
« Estas informações — annota o sr. Alberto Pimen-
tel no seu livro Os amores de Camillo, d'onde tam-
bém as precedentes palavras são transcriptas — fo-
ram colhidas em Yillarinho de Samardan, a meu
pedido, pelo sr. conselheiro António d'Azevedo
Castello Branco, sobrinho de Camillo » .
Ora a aldeia para onde Camillo partiu, semanas
depois da batalha da romaria e consequente paixão
poética pela Elmena, sobrinha do presbytero, era
Priume, povoação da margem esquerda do Tâmega,
na freguezia de Salvador de Ribeira da Pena. Sua
tia, D. Rita Castello Branco, fora de Villa Real visi-
62 CAMILLO
tar o genro que ali morava e Camillo acompa-
nhou-a. ^ Na povoação havia a loja, a loja conhe-
cida de todas as nossas aldeias, simultaneamente
armazém de modas, mercearia e club, de que era
proprietário um tal Sebastião Martins dos Santos,
que, tendo nascido em S. Cosme de Gondomar e
exercido na terra natal a profissão de alfaiate, para
aquellas paragens trasmontanas depois se transfe-
rira. Ali chegou Camillo, alegre e estróina, com a
sua guitarra a tiracoUo e um arsenal bem sortido-
das mais sonoras rimas e, desde logo, conquistou as
boas graças de Luiz da Cunha Lemos, secretario
da camará e da administração do concelho de Ri-
beira da Pena, escrivão da fazenda e tabelliâo do
julgado, que lhe deu um logar de escrevente, e da
filha do tendeiro, Joaquina Pereira de França, que
lhe deu o coração. Era a moçoila uma lavradeirona
rija, de bella carnação sadia que excitava o tempe-
ramento sensual do futuro do romancista e, como
quer que o homem da loja logo ali farejasse um
bom partido e aproximasse com prazer os namo-
rados, Camillo, preso das graças da rapariga, não
sabendo resistir — casou com ella. Era ainda em
1841. Tinha elle então dezeseis annos. E Sebastião
dos Santos, que à viva força queria ter um doutor
na familia, mandou-o aprender mais latim para a
Granja Velha, logar próximo de lá, onde o padre
Manoel de Lixa residia. Foi ahi que diabruras me-
* Alberto Pimentel : Os amores de Camillo.
CAMILLO 63^
tricas fizeram com que, aconselhado pela prudência
do sogro, Camillo tivesse de partir para Lisboa.
Quaes essas diabruras foram elle o conta, embora se
não refira ao casamento, que, de resto, procurou sem-
pre occultar. «Naquella terra — diz o prefacio do
livro Ao anoitecer da vida — andavam ás más dois
irmãos de fidalga prosápia, á conta do casamento
desigual que um d'elles intentava fazer, contra a
vontade do mais velho. Por parte dos sequazes d'este
me foram pedidos uns versos, em que a noiva menos
fidalga e o apaixonado mancebo fossem chanceados
à coBta de m^ fiào l^x^bro que antecedeneias, mui
ãgeitadas á galhofa métrica. Deu-me soberbas uma
incumbência doeste género ! Poeta, e de mais a mais
requestado para intervir com a minha opinião em
casamento tão falado nas vinte aldeias circumpos-
tas ! Escrevi uma folha de almaço em quadras, que
os interessados na publicidade afixaram na porta
da egreja, momentos antes da missa das onze horas.
O boticário, que seguia as partes do morgado, lia a
satyra á populaça, que ria ás escancaras. E eu de
lado a rever-me na obra e a saborear-me nas alva-
res cascalhadas do gentio ! Por um cabello que não
fiii então martyr do génio ! A victima crucificada na
porta da egreja não era das que dizem : Senhor, per-
doae ao poeta, que não sabe as asneiras que diz! Ape-
fias lhe constou que era eu o instrumento da vin-
gança de seu irmão, preferiu quebrar o instrumento
^ deixou não só o fidalgo, que também o boticário
tim ipaz. Po«t& era eu só naquelle quadrado de de!^
^4 CAMILLO
léguas : avisadamente conjecturou o homem que,
esganando a musa que o verberara, abafaria aquelle
respiraculo de detracçào inimiga. O padre-mestre
avisou-me, horas antes, da espera e da sepultura.
Fugi com o magniim lexicon debaixo do braço e
com os ossos direitos que aquella terra ingrata me
queria comer».
De Lisboa, a breve praso, Camillo foi para o
Porto e, de lá, um bello dia, porque as recordações
dos tempos idos mais o incitassem, voltou para a
Samardan. E foi então que recebeu os taes anneis. . .
Romanticamente os recebeu d'uma máo de mulher.
O casamento fora para elle uma passageira aven-
tura. Se nos interrogarmos neste ponto sobre o
motivo que o levou a um acto em que a paixão,
dócil demais á vontade d'um sogro ambicioso, não
havia de ser muita, temos de fixar o seu tempera-
mento de sensual, um pouco grosseiro, sem uns
requintes de delicadeza que fossem bem com o sentir
d'um bardo que canta, um a um, os seus amores.
Havemos de vê-lo assim pela vida fora, amando
sempre, amando com a anciã soffrega da posse, o
crepitar d 'um desejo irreflectido, arrebatado, que,
satisfeito, nada deixa de si, e, por consequência, a
incapacidade para uma vida tranquilla, de amorosa
paz qiie não teria, mesmo que circumsfcancias outras
não interviessem a impedi-la, na intimidade do seu
primeiro lar.
Na vida de Camillo ha a pôr em destaque, para
um logar primeiro, a sua feição amorosa : elle foi
CAMILLO 65
ê
um sacrificado ao amor, como jà o haviam sido, em
linha de curta ascendência, os seus maiores, e como
A mais que qualquer d'esses, elle tivesse ainda o
amor ás letras, toda a pequenina paixão se engran-
decia, enriquecida pela sua imaginação exuberante,
romantizada pelo seu génio d'artista. Junte-se esse
vidro d'augmento que existe vulgarmente na con-
sciência do artista pelo que toca a assumptos de
coração a uma pronunciada tendência hereditária e
mais â anciã de procurar affectos fortes, natural
em quem, como elle, cedo tenha ficado quasi só no
inundo, e ter-se-á justificada a maneira preponde-
rante como o amor influiu na vida inteira de Camillo,
subindo a timoneiro das suas acções e arbitro supe-
rior do seu destino.
Emquanto Joaquina Pereira, em Friume, com
uma filha nos braços, chorava a ausência do marido,
Camillo, indo a Samardan matar saudades, deixa-
va-se prender pelos encantos da Maria do Adro,
camponeza do logar. A rapariga era triste, desde que
uma doença lhe levara as louçanias melhores da
niocidade, e como quer que ao romancista agradasse
essa melancolia de 'sempre, que a fazia contempla-
tiva, guardando-se com os seus pensamentos da
alegria bulhenta das mais, ahi começou um honesto
idyllio, conversas ao crepúsculo com extasis pan-
theistas, promessas, juramentos, na ingénua poesia
d'um singelo amor de adolescentes.
«Estes anneis, meu caro Barbosa — escreve Ca-
millo nas Duas horas de hitura — déramos a Maria
€6 CAMILl.O
do Adro. Spbes tu lá quem era a Maria do Adro?!
Desce da elevada esphera por onde voejam as tuas
preoccupações, cá abaixo, ao razo de uma mulher
do povo. Maria do Adro era filha de uma viuva
pobre. Tinha dezesete annos. Fora bonita até aos
quinze; depois, uma enfermidade grave emmagre-
ceu-lhe a face, amarelleceu-lhe a pelle, e sugou-lhe
a seiva que viçava em flores por todo aquelle rir e
olhar de descuidosa innocencia. A' mudança de
semblante correspondeu a da alma. Fez-se melan-
cólica e taciturna. Não arranchava para dançar de
roda, nem cantava nas espadeladas de linho. Cha-
mavam-lhe mona as azougadas companheiras, e ella
o que respondia ás provocações era : — Andae^ andoe^
raparigas; eu também me diverti assim, quando
tinha saúde, E muito divertida dizem que ella fora.
Cantava ao desafio com muita graça, e até, dizia- me
o padre- mestre, com versos certos e sentenciosos^
Minha irmã disse-me uma vez: — Esta Mana do
Adro distinguese entre todas as outras. Tem um ar
senhoril que não parece do seu tracto. Isto impres-
sionou-me e eu reparei na moça, que até ali me fora
índifferente.
«Reparar, quando o coração repara mais que o
juizo, é amar. Achei a tal distincção. Esqueci as
perdizes e as ovelhas, ia, sempre que Maria estava
em casa, sentar-me num toro de castanheiro à porta
d'ella; visita va-a na leira, cortinha ou horta onde
ella estivesse; dizia-lhe todos os dias a mesma coisa
e ella respondia-me sempre com o seu sorriso meigo^
CAMILLO 67
dando-me umas vezes uma flor do monte, outras um
abraço de videira. Maria, de madrugada, nào faltava
à primeira missa. A aldeia tinha cinco padres; e
eu, por causa d'ella (Deus me perdoe a intenção),
ajudava ás cinco missas, se Maria estava até à ulti-
ma; se não, não. Na quaresma era certa todos os
domingos â tardinha na. Via- Sacra, em redor do
presbyterio. Lá ia eu para a Via-Sacra, ouvir o
numero de gemidos que uma arithmetica piedosa
fez gemer ao Salvador do mundo. Minha irmã, que
devia á devoção a sua felicidade, era quasi sempre
a que entoava as Estações. Tudo poesia para mim !
Comecei a quinhoar da fé que a divina graça repar-
tia por ambos. Minha irmã Carolina, que eu vira em
Lisboa preparando-se para entrar no golfão das
delicias brilhantes, onde é necessário para haurir o
goso completo esquecer a Deus ! . . . ali, depois, entre
quatro montanhas, aos vinte e dois annos, com um
livro de Via-Sacra, ajoelhada, deante de uma cruz
tosca!. . . Entre nisto, meu amigo. . .
« Nos dias de calma, pela estação das segadas, eu
ia sentar-me debaixo d'um castanheiro vizinho da
leira, à hora da sesta, conversando com Maria, em-
quanto as outras dormiam, ou pulavam em redor
de uma viola. Nunca lhe disse que a amava. Pare-
ce- me até que não conhecia ainda este verbo, em
cuja conjugação depois me exercitei tanto que lhe
descobri um tempo novo : é o plusquam imperfeito.
Que lhe diria eu?! Perdi a lembrança do colorido;
retive, apenas, as imagens nuas d'aquelles quadros
68 CAMILLO
de imiocencia. Sei que encostava a cabeça ao regaço
d'ella, e este grupo faziamo-lo com tanta singeleza,
que a approximaçào d'alguem não nos assustava.
Dado o signal do trabalho, Maria tomava a sua
foucinha, e entrega va-me o ramo de boninas que
andava colhendo e atando com um fio de cabello.
Eu, depois, saudoso d*ella, subia ao cerro de uma
collina afastada, d'onde nos viamos. Os segadores,
se me enxergavam, faziam- me estridorosos apupos,
á sua moda; e Maria, sem erguer-se do seu trabalho,
entristecia-se por aquella falta de respeito a mim.
Eu náo volvia ao povoado, sem esconder-se o sol,
e os segadores sahirem do campo. Maria, por cami-
nhos travessios, sahia-me ao encontro, e vinha co-
migo, quasi sempre silenciosa ou recolhida em si.
Enfastia-te a simplicidade do conto? Era assim a
nossa vida. Quando eu inventar, arripiarei os cabellos
às minhas imagens.
«Três meses depois, mandaram-me sahir da
aldeia. O padre-mestre não me podia aturar. Tinha
razão . . . Minha irmã, boa para todo o mundo, me-
nos para mim, era indififerente á minha sahida.
Feriram-me todos o meu orgulho, e eu deliberei
sahir sem despedir-me, excepto de Maria, que rece-
beu o meu adeus num spasmo, que a não serem as
lagrimas, tomá-lo-ias por insensibilidade estúpida.
Demorei-me algumas léguas distante, em casa de um
parente, poucos dias. De lâ foi para Lisboa, onde
nunca recebi novas da aldeia. O meu conselho de
familia, passados sete meses dos ociosos quinze
OAMILLO 69
annos com loucuras dos trinta, intimou-me a sahida
de Lisboa, pena de considerarem o meu estômago
uma viscera inútil».
Voltou então Camillo para as aulas. Terminados
os preparatórios, matriculou-se na cadeira de chimica
da Polytechnica do Porto, em outubro de 43, e fez
acto em 12 de julho do anno seguinte. Simultanea-
mente, como o tempo lhe sobejasse, segundo elle
mesmo declara, estudou anatomia. «Eu morava na
rua Escura — diz, no opúsculo O general Carlos Ri-
beiro — no bairro mais pobre e lamacento do Por-
to, um beco fétido de coirama surrada em uma es-
quina que olha para a viella dos Pellâmes. Éramos
dois os estudantes que occupavamos o terceiro andar
com uma retorcida varanda de pau, esmadrigada,
num escalabro de incêndio, debruçada em ameaças
sobre os transeuntes como a varanda de Damocles
muito mais perigosa que a lendária espada, cujo
gume deve estar* muito rombo e poído da esgrima
dos eruditos em Damocles. No primeiro andar mo-
rava a proprietária, uma adela que nos cozinhava
certas iguarias dignas de ser expostas ao sevo das
aves de rapinas no peitoril d^aquella varanda. Quanto
a ratos era uma succursal de Montfaucon. O segundo
andar tinha escriptos desde muito, e não havia ho-
mem desesperado, cançado da vida, que ousasse ten-
tar o suicídio naquellas ruinas minacissimas. Quem
procurava casa olhava com terror, e seguia o seu ca-
minho, como se ali morassem os leprosos de Xavier
de Maistre». «De dois condiscipulos somente me re-
70 CAMTLLO
cordo bem —conta ainda Camillo no Cavar em Ruí-
nas — : Um era o melhor estudante; o outro, ultimo
da lista, seria o peor do curso se eu lá nâo estivesse.
O primeiro era pharmaceutico : chamava-se Fran-
cisco Pereira Amorim de Vasconcellos. O outro era
alferes de infanteria, filho de gente notável do Porto,
duellista, peralta, galã de muito boas tretas: cha-
mava-se António Augusto de Macedo Passos Pimen-
tel. O seu mais amigo condiscipulo devia ser o mais
inimigo da chimica : era eu. O nosso lente, o senhor
frei Joaquim de Santa Clara de Sousa Pinto, nunca
teve o gosto de nos ouvir. Quando nos chamava,
ou nâo nos via, ou nós não tinhamos visto o com-
pendio, que por signal se chamava o Lassagne,
parece-me que era; pela orthographia do nome não
fico. Fugiamos da aula de cócoras, quando o sol de
Deus nos estava incitando à rebellião. Com que
tristeza eu via o sol e invejava a minha vida lá das
serras d 'onde viera a estudar o sesquioxido de ferro
e o bicarbonato de soda naquellas frias salas do
convento da Graça! O meu condiscipulo Passos
abundava nas minhas ideias lyricas acerca do sol.
E por isso fugiamos ás recuadas, quando o nosso
condiscipulo pharmaceutico tinha absorvidas as
attenções com a sua eloquência recamada deprofos,
de deutos^ de his, de sesqui, de pilhas^ de 7*etortas^ e
varias coisas com que os homens entretém a vida
para não morrerem de tédio. Não me lembra já se
o alferes fez acto de chimica. Eu fiz. O meu ponto
era o Kermes mineral e não sei que mais. Tirei-o
CAMILLO 71
•
com outro infeliz da rainha tempera em chimica.
Fui para um quarto andar onde morava na rua dos
Pellámes. Do quarto andar subi ao telhado com o
compendio e uma viola. A mulher que eu amava
vivia numa trapeira da rua do Souto e estava là a
mondar mangericões. Vi-a, sentei-me na espinha do
telhado, e, ao arpejo da viola chuleira, cantei-lhe
umas trovas, que eram a negação de toda a chimica,
ou se pareciam .com as theorias da sciencia em for-
marem no telhado o polo positivo com que as cor-
rentes eléctricas se haviam de estabelecer, dado que
a vizinha se constituisse polo negativo: como de
facto. Assomou ao telhado o estudante emparelhado
comigo para a hecatombe do dia seguinte: ia estu-
dar, communicar-me os seus conhecimentos e parti-
cipar dos meus. Que chalaça! Traduziu pessima-
mente os prologomenos do compendio, e foi-se con-
victo da sua perdição e da minha. Ao anoitecer
ainda eu não sabia a que pagina do livro estava a
matéria do ponto. Deliberei âs nove horas da noite
não fazer acto, e fui ouvir musica á porta do quartel
general. Estava eu embevecido na ária da Norma ^
quando senti no hombro pousar-se-me amigável mão.
— O senhor por aqui? perguntou-me alguém. Voltei-
me e vi o meu sábio condiscipulo Amorim de Vaí?-
concellos, o estudante premiado, que, naquelle tem-
po, devia orçar pelos seus trinta annos, e já era
administrador da botica do hospital da Trindade, se
bem me lembro. —Por aqui em véspera de ponto ?! tor-
nou elle. — E' verdade. . . — Já estudou? — Nada,-^
72 CAMILLO
Então ? / — Não vou fazer acto, — Porque não saoe o-
ponto ? — Justamente, — Venha comigo^ que ensino-
Wo, Venha, que é uma desgraça perder um anrw!
E levou-me pelo braço. Escutei-o até ás duas horas^
da madrugada. Quando salii, sabia o ponto, sabia
os rudimentos da chimica, sabia a historia e a phi*
losophia da sciencia, conhecia Berzelius, Gay-Lus-
sac, Orphila e nào sei quem mais. Adormeci como
um justo e acordei com a cabeça mais pesada que
uma igual porção do Kermes do ponto. Soou a
hora do acto. Já de antemão os condiscípulos me
davam os pêsames : dizia-se que eu, além de ser um
parvo chimicamente falando, tinha quarenta e oito
faltas, afora vinte e duas abonadas, sete negas e
cinco fugidas, O senhor Santa Clara estava na
presidência com ar fúnebre. O meu consócio do
holocausto entrou como moribundo que não pudesse
morrer sem fazer acto de chimica. Eu ia alegre
com a minha sciencia e três cálices de licor de ca-
nella. Que acto eu fiz ! Desenruguei a fronte do
lente, enchi de jubilo os arguentes, espantei os
condiscípulos e fui approvado nemine discrepante.
E, o que mais é, salvei o meu condiscípulo, que
tinha sido menos boçal do que eu, e frequentara
exemplarmente... os bancos da aula. Se eu não
fui reprovado, fora escandalosa a reprovação do
outro. Deram-lhe um r, que elle agradeceu com o
coração nos lábios não maculados de uma só pala-
vra escorreita em matéria de chimica. Amorim
abraçou- me, levantou-me á altura da sua óptima
CAMILLO 7â
cabeça e disse-me : — Se não fossem as negas e as
fugidas, o premio devia ser seu ! Radiava de alegria
o bom homem ! Tinha razáo ; fizera-me elle o assom-
bro de todos; creara-me a reputação em quatro
horas, com a sua linguagem tersa, clara, insinuante
e amena, como devera ser o methodo de quem en-
sinasse chimiça a senhoras».
Emquanto, no Porto, Camillo ia levando uma
vida estúrdia de estudante, Joaquina Pereira, em
Friume, soffria toda a dor de um abandono quasi
sem esperança e a Maria do Adro, sem novas d'elle,
pensando talvez na inconstância do namorado, ia
consumindo a vida, moendo-se de saudades pelos
campos trasmontanos. Confessa Camillo que, no
Porto, sentiu «vivas saudades de Maria e também
remorsos de a ter esquecido quasi, em Lisboa» *.
Esquecimento esse, talvez provocado por uma certa
AmeHa lisboeta que mereceu o favor das suas ri-
mas...
Gomo aquelle amor nascera
Tenho uma vaga lembrança. . .
Da lua um raio descera,
E, d'improviso, illumina
As feições de jaspe, immoveis,
D'anjô. . . não. . . nem de mulher.
Moça, tão moça, e menina.
Os seus segredos, se os tinha,
Nem a arte os adivinha
Quando sondá-los quizer.
Camillo : J)ua9 hora» de leitura.
74 CAMILLO
A' noite, á beira do Tejo
No explendido crystal
D'aquellas ondas dormentes,
Parecia a vista encantada
Numa visão...
Amélia, a filha dos sonhos,
A rival dos anjos vinha
Povoando aquelles mundos
Para mim, que mundos tinha,
No coração, para dar-lh'os.
Como aquelle amor nascera.
Tenho uma vaga lembrança. . .
Amélia, recordas
Aquellas noites do Tejo,
Quando vinha dar-te um beijo,
A brisa que te dizia
O que não fazia o pejo?
Em redor de nós viviam
Vida diversa da nossa
Teus irmãos e mãe, que viam
Em nosso amor um gracejo. . .
E quem diria, meu anjo
Tutelar da minha infância,
Quem diria os mil poemas
D'aquella estática anciã?
Se nos vissem sós. . . recordas?. . .
Naquelles dias tão breves.
Em que te disse... que disse?...
Palavras, não, que não pude,
Por mais que á alma as pedisse.
CAMILLO 75
Dizia-te o que era 'este ardor
Este mysterio profundo,
Este elevar-me tão alto
Das coisas baixas do mundo !...»*
Camillo teve depois saudades da Maria do
Adro. Mas a pobresinha, lá longe, de cada vez mais
débil e mais triste, não podendo sequer receber
d'elle duas palavras d'amôr — porque não sabia lêr,
entrou de adoecer, e peorar, peorar sempre, a
ponto que, quando elle resolveu voltar, passados
meses, já a não encontrou : — tinha morrido. Como
elle soube a má noticia, vem contado ainda nas
Duas horas de leitura:
«Esperava com anciã as ferias-grandes, — escreve
Camillo — e a figura va-me o jubilo com que ella
me veria, depois de quinze meses. Quantas vezes
eu ia do átrio do Bomfim pasmar os olhos naquellas
«erras que ficam lá para o nascente ! Penso que fui
poeta um dia. . . Chegaram as ferias, fiz acto de
anatomia, e fui premiado com um indulgente R. De
ooa vontade acceitava eu três, comtanto que me
deixassem sahir mais cedo. Esperava-me o cavallo
eom a magra mala. O arrieiro perdeu-me de vista
em Vallongo, e encontrou a meio-caminho o cavallo
aberto dos peitos, com não sei quantas sobrecanas
<^e mais, e ferraduras de menos. Aluguei em Ama-
rante uma égua muito nervosa ao estimulo da espora,
^ Camillo : Um livro.
76 CAMILLO
e em dia e meio venci as oito léguas. Quando vi as
montanhas da minha terra adoptiva, alvoreceu-me
um arraiar de alegria n^alma, que náo sei dizer-te!
Era nào sei que parecia com o trinar dos passari-
nhos em aurora de estio. Tinha vontade de cantar,
de rir, de poetar, de beber a longos sorvos um
ambiente balsâmico em que o meu coração doude-
java embriagado! Já via os castanheiros seculares
a circumdarem a casa de minha irmã. Já tinha en-
contrado duas pessoas vizinhas d^ella. Estive quasi
a apear para abraçá-las! Náo sei que traços de pa-
recença eu achava entre Maria e as duas moças que
cegavam herva num lameiro contiguo á estrada. —
Já nào conhece a gente ? ! — disse uma d'ellas. —
Conheço, Luizinha, conheço, Anna ; pudera não co-
nhecer! Como estão vocês? rijas, hein? — Como um
ferro, graças a Deus. Então já sabe? — O quê? —
— Pois não sabe que a Maria do Adro ... — Que
tem? está doente? — Está com Deus. .. morreu faz
amanhã um mês.
«Meu caro Barbosa, tu crês nas lagrimas aos
dezesete annos? O que eu senti primeiro foi uma
como cegueira momentânea. Fugiu-me a rédea da
mão, e apertei instincti vãmente os joelhos ao selim.
Depois, saltaram-me dos olhos repentinamente as
lagrimas, e ouvi, e senti no coração alguma coisa
similhante a um estalo. Vi que as duas mulheres
me contemplavam consternadas, e uma d'ellas disse
á outra : — Eu não te disse que elle era muito amigo
d'ella?^
CAMILLO 77
Vinte e quatro horas depois, a convite de seu cu-
nhado e com o auxilio d'elle, Camillo abriu a sepultu-
ra de Maria, desenterrou-a, viu-a, e tal foi a impressão
sentida que, quando, ao outro dia, o medico, sósinho,
preparava o esqueleto da camponeza morta, o futuro
romancista sofiFria no leito os primeiros assaltos de
uma febre cerebral intensa que o prostrou. D 'esse
facto nos apparece a narrativa na sequencia do ca-
pitulo citado das Duas horas de leitura^ se bem que
o decorativo d'um anoitecer de tempestade, com
silvos de ventania e clarões trágicos de relâmpagos,
possa ser um devaneio phantasista do romântico que
se comprazia em pôr aquelle caso lúgubre num bello
quadro de horror e de tortura.
« Lembra-me — diz elle — que fuzilavam os re-
lâmpagos d'uma trovoada de Agosto quando entra-
mos na egreja, pela porta da sacristia. Já lá tinha-
inos uma alavanca e uma enxada. Entrei na egreja,
alumiada a espaços pelo lampejo azul dos trovões,
com religioso terror. Ajoelhei machinalmente, e
senti os sustos d'um sacrílego. Meu cunhado deu-
me animo com um riso desdenhoso. Abalamos a
pedra tumular com o ferro de monte. Sustentamo-la
no pendor com o peito. Revezamo-nos a cavar, até
encontrarmos as taboas lateraes do esquife. Não
consenti d'ahi em deante o uso da enxada. Tirei a
terra ás mâos-cheias, até sentir debaixo dos dedos,
que cravava na terra, as formas de um corpo mole.
Eu tinha a cabeça em lume : as pulsações do cora-
ção eram tão fortes que me agoniavam : não senti
78 CAMILLO
cheiro mau, senão o da terra impregnada de ossadas
em pó, de vértebras, e pedaços de hábitos mortuá-
rios, comtudo angustiava-me uma sensação de nau-
zea, mas toda moral, sensação que nunca mais
experimentei. Meu cunhado, vendo-me descorar,
offereceu-me um vidro de espirito que eu nàa
acceitei. Prosegui na exhumaçáo, até encontrar as
pontas do lenço que cobriam a face do cadáver.
Segurei as quatro pontas nas mãos tremulas ; tirei
devagar o panno, e vi Maria. Permaneci quieto
não sei que tempo, com os joelhos enterrados e a
face pendida sobre a face morta. Não sei dizer-te
o que pensei. Talvez nada ! A alma nesses lances
creio que se anniquila. Ha dores com que o homeni
não pôde, e Deus, quando as dâ assim, permitte a
lethargia, a morte passageira, a paralysia dos órgãos
conductores da impressão. Meu cunhado ergueu-me
pelos braços. Fitou-me com um sorriso ... de me-
dico, e aflPectou um ar de extranheza que eu antes
quizera não fosse fingida.
«O resto do trabalho fê-lo elle. Eu sentei-me
na cadeira parochial, procurando as minhas ideias^
que me fugiam aos turbilhões. Como privado d'al-
ma, o estrondo exterior azoava-me os ouvidos : era
o embate da saraiva nas vidraças da egreja, e o
ranger das arvores que açoitavam as cornijas. Eu
estava como tranzido de medo. Era no estio, e sen-
tia uma espécie de serpente glacial cingir-me das
costas para o peito. O cadáver foi lançado num
cesto. Esperamos que anoitecesse, e eu tomei uma
CAMILLO * 79
aza do cesto, ajudando a transportá-lo para uma mina
seca, na margem do rio. O dia seguinte fora o desi-
gnado para dissecarmos o cadáver. Prepararam-se
escalpellos, thesoiras e bisturis, durante a noite.
Meu cunhado foi chamar-me de madrugada á ca-
ma, e achou-me passeando no meu quarto. — Jd a
pé! disse elle, admirado. — Ainda me não deitei, —
Como?! E abriu uma janella para aclarar o quar-
to. Observou-me, tomou-me o pulso, e mandou-
me recolher ã cama. Quiz resistir á ordem : mas eu
mesmo senti a necessidade de cumpri-la. Não sei
que tempo estive doente. Quando me ergui, per-
guntei que remédios me tinham dado, e soube que
estivera oito dias com pannos ensopados em vina-
gre na cabeça, fiecordo-me vagamente de ouvir
dizer uma vez o padre-mestre a outros : — Diz mi-
nha cunhada que muitas pessoas doesta família en-
doideceram ...»
II
1845-1848
Camillo, depois do episodio da Maria do Adro,
findas as ferias, veio matricular- se no segundo anno
<ia Escola Medica do Porto e, passado pouco, per-
dido o anno por faltas, retirou para Villa Real, de-
certo mais leve sem o encargo estopante d'aquella
formatura.
Percebe-se que assim fosse. Camillo levava por
"^sse tempo umá vida alegre de bohemio, nessa al-
tura o humorista revelou-se nuns folhetos satyricos
hoje raros e no episodio espirituoso do duelo simu-
lado na Torre da Marca, e essa vida que mais po-
dia ser a d'um ocioso que procura divertir-se, passar
o tempo, — com as suas serenatas românticas, os
seus derriços, a tentação do botequim — não era
decerto a que convinha a quem pretendia, para sa-
tisfazer um sogro de Friume, estudar muito e ser
doutor. Depois os cursos, entre nós, mal organizados,
aterrando por uma complexidade toda materialona
6
82 CAMILLO
que solicita o esforço das memorias mais bem do-
tadas e nada quer das faculdades de intelligencia,
aptas a uma clara comprehensáo mais racional e
mais profícua, fizeramse de tal modo o privilegia
de vocações esporádicas de intelligentes eruditos
e da multidão dos menos lúcidos, cuja deficiência
se acommoda sem custo ao trabalho material mai*
torturante e os força a sinceramente encarar sem
um sorriso o pedantismo vulgar nos professores^
Aqui, só muito tarde, o legislador que organiza
e o mestre que ensina, percebem que não se trata
jà precisamente d^aquella aula de primeiras letras,
onde a disciplina é quasi tudo. Usando o metbedo
socrático no decorrer d' um curso inteiro, é evidente
que um desequilibrio se estabelece entre o que o
ensino superior é e aquillo que em boa razão devia
ser; e a pretenção de seleccionar naquelles cinca
ou sete annos os indivíduos aptos a seguir na vida
com proveito commum o seu mister, decerto falha ^
quando o acaso providencialmente a não ajuda.
Basta vêr um regimen de frequência que impõe
como uma obrigação, mal acceite como toda&y
aquillo que espontaneamente deveria nascer pela
consciência, mais cedo formada, do dever, ou da
comprehensáo evidente d^uma positiva utilidade ;
já para não falarmos da facilidade que sempre
teve a estupidez, quando a bafeja a importância
d'um nome ou a abjecção d'uma humildade, para
se guindar alto, gatanhando no caminho dos galar-
dõ3s escolares, ou pêlos degraus acima d'nma ca-
GAMILLO 83
thedra. Quando/ não ha muito, numa escola de me-
dicina, alguns professores quizeram seguir numa
orientação mais coherente com o caracter do curso
e as modernas conclusOes da sciencia do ensino,
baixou uma portaria, mettendo na ordem os discolos
perturbadores d'uma tão apreciável harmonia ; em
vista do que, se meámo assim os governos quizes-
sem, em questões de pedagogia, obedecer a um
plano lógico de orientação, melhor iriam outhor-
gando ao mestre, nos estabelecimentos de instrucção
superior, o direito de mandar pôr em cima do ban-
CO, exposto á troça dos condiscipulos, o alumno
irreverente (e, nesse caso, ter uma ideia seria irre*
verencia), espetar o chapéu de bicos, como um
estygma, pelas orelhas d'um cabula, ou lançar mão,
em caso extremo, do recurso salutar da palmatória.
Camillo Castello Branco, de indole avessa a
docilidades de coUegial, intelligente demais para
estar bem numa organização a tal ponto atrazada
e deprimente, pouco estável, ainda, numa reso-
lução ou num projecto, ficou sem o diploma d'um
curso, como de resto homens eminentes como Her-
culano e Oliveira Martins também ficaram, sem que
por isso a sua obra fosse menos grande ou a falta
da chancella official prejudicasse o seu saber. Era
o que ignorava o tendeiro de Friume, insensivel
aos rogos da filha, condemnada pela ambição d'um
papelucho sellado, a essa viuvez que começou dias
depois do casamento e havia de a acompanhar irre-
mediavelmente até morrer.
84 CAMILLO
Falei do duelo simulado na Torre da Marca.
Num artigo com a epigraphe Que saudade!.,.
inserto no n.® 7 das Noites de Insomnia, dâ-nos
Camillo a descripção d 'essa espirituosa scéna de
comedia: «Folheando acaso a Revista Universal
lÂsbonense de 1845 — escreve o romancista — li pela
primeira vez a seguinte noticia:
UM DUELLO DIGNO DE LOUVOR
Tcarta)
Porto, 10 de maio de íS4ô.
Snr, redactor, — Peza-me o não ter sido testemu-
nha ocular de um caso acontecido aqui, a 5, pelas 4
horas da tarde, e em que se ha-de falar por muitos
dias,
Tinha-se espalhado que dous estudantes da arte
ama,ndi, fortissimos no capittilo dos ciúmes e rivaes
por íima triste fatalidade (porque segundo os srs.
estatisticos ha mais mulheres do que homens, e por
isso os zelos masculinos quanto a mim deviam ser
prohibidos) ; estes dous meninos, digo, ambos com o
sangue na guelra^ tinha-se espalhado que a essa hora
combateriam em duello de morte (que sempre é obra
mais asseada), sendo o sitio da execução o campo da
Torre da Marca, padrinhos^ outros académicos, e as
armas, pistolas.
CAMILLO 85
Concorreu toda a gente que pôde (eu só faltei por
estar com um ataque de gotta, nos pés se entende) ;
e não só o povo, mas dous regedores^ cabos de policia^
um destacamento de tropa e muitas mulheres (não
admira^ a festa era em nome e louvor do sexo, nada
prova tanto os seus feitiços como umas tripas ao sol);
só faltojiíu a tumba da misericórdia^ diz hoje com
muita graça o «Periódico dos Pobres» . Sôa a hora ;
apparecem os dous Quixotes montados como dous
Sanchos em burros lazarentos de albarda rota e freio
de corda mas muito arrogantes na catadura (não os
burros, porém os campeões); um dos regedores^ aliás
bom homem, desapprovou com destempero que duas
figurai d'aquelle feitio brigassem d pistola; man-
doU'Os apear e aos soldados que os prendessem; o povo,
que não queria perder as passadas^ murmurava
contra o regedor, muitos estudantes jd começavam a
wciferar, um dos duellistas procurava convencel-o
em segredo; o magistrado via-se perplexo e creio que
assustado.
Apressou-se em passar por mão o negocio para
superior instancia: acompanhou os zelosos á presença
do administrador do bairro. Foi ahi que se descobriu
a chave do enigma: — os maganões declararam que
o seu único intuito fora fazer aos duellos a guerra
do ridículo : mostraram que as suas pistolas levavam,
pólvora mas não bala, e afjirmaram, o que era ver-
dade, que entre os dous não havia nenhuma Dulcinéa.
Afora o regedor^ todos riram muito; e o administra-
dor mostrou ter pena de que se não tivesse chegado a
86 CAMILLO
representar uma farça que poderia ter talvez preve-
nido algumas futuras tragedias.
Um tripeiro velho que nunca brioou
nem ha de brigar.
« Fala-se ahi em dous meninos, — commenta Ca-
millo — Ai! um d^esses meninos era o sr. Freitas
Barros, actual secretario da administração do con-
cellio de Coimbra. E o outro menino era ... eu !
Direi alguma cousa nos pontos em que o corres-
pondente do Porto foi omisso. Eu vestia casaca
preta de abas em triangulo isosceles com a gola em
promontório, convexa, redonda e algum tanto seba-
cea. Na lapela esfarpellada alvejava uma camélia,
symbolisando tenção amorosa à mingua da cliarpa
dos Amadis e Lancelotes, meus heróicos antecesso-
res. Os coUarinhos de papel almasso embeiçavam
com os arcos amarellos dos óculos. A gravata era
britannicamente branca, e absorvia-me o queixo de
baixo na circumspecta gravidade dos desembarga-
dores d'aquelle tempo. Eecordo-me das luvas que
eram de lá verde com um ante-braço que lhes dava
uns longes de manoplas. Em uma das botas duvi-
dosamente marialvas, luzia o espigão d'uma espora
sem roseta. O chapéu de castor, derribado por ge-
badas ad hoc, desformára-se nas formas caprichosas
àe barretina de lanceiro. Se bem me lembro, o
meu adversário Freitas Barros vestia o mesmo uni-
forme, tirante o chapéu que era de bicos, em arco,
CAMILLO 87
m
de alterosas badanas um pouco desengonçadas pelo
attrito de meio século. E neste feitio, depois de
presos, atravessamos a cidade, desde a Torre da
Marca até á rua do Almada, bifurcados nos burros
espavoridos pela grita do gentio que exultava na-
quelle intervallo de imprevisto carnaval. Claro é
que a minha postura e a plástica do trajar eram
bastantemente ingratas aos eíFeitos oratórios, posto
que a rhetorica náo fosse de todo parvoa. Dei ao
meu braço direito, durante o discurso, um movi-
mento pendular que depois vi perfeitamente arre-
medado no parlamento pelo sr. Martens Ferrão. E,
dado que, tanto nas posturas como nas expressões,
eu mantivesse a seriedade compativel, o magistrado,
que se chamava fulano Mendanha, náo sustentou a
gravidade consentânea ao acto, porque me interrom-
pia com espirros de riso assas funestos aos golfos
da eloquência de quem quer que seja. Náo obstante,
a authoridade compoz sisudamente o aspeito neste
lanço do meu discurso : Si\ administrador! O ri-
diculo, na questão sujeita, pôde contribuir para de-
fecar a humanidade de um crime que a lei não evita
nem pune, O duello, ill.*no sr., só deixa de ser ridi-
culo quando ha uma victima, quando ha sangue e
lagrimas; e, assim mesmo, ninguém sabe dizer qual
é o honrado, se o que morre, se o que mata, etc,
etc, etc, Lembra-me que me fiz forte com Voltaire,
como se o tivesse lido. Eu náo tinha ainda 19
annos; e, naquella edade, dou palavra d'honra
que era estudante sem compêndios, e o mais igno*
88 CAMILLO
rante que podia ser um rapaz que entranhadamente
execrava livros, e amava o sol e tudo quanto elle
cobria, exceptuados os livros e os sábios. Final-
mente, o jovialissimo Mendanha mandou-nos em-
bora ; e nós d 'ali sahimos com a consciência con-
victa de haver escripto um brilhante capitulo na
ethologia nacional, e com o estômago palpitante de
sorrisos para uma merenda condimentosa no Rainha
da Praça Nova. Eu não me considerei então ridículo
a despeito da hilaridade das multidões. Ridículo
me vi eu dez annos depois, quando sahia de um
duello com uma cutilada; e, olhando para ella, me
acudia á memoria o meu discurso ao administrador
Mendanha. . . Mas. . . que saudades ! »
Camillo era um cabula. Elle próprio no-lo afir-
ma sob a sua palavra d'honra. E, assim, fácil é com-
prehender como, perdido o anno, sem coragem para
apparecer ao sogro de Friume nem ao austero pa-
dre Azevedo, correu a acolher-se â protecção d' um
tio afim, residente em Villa Real e que elle próprio
depois chamou analphabeto. Esse tio, João Pinto
da Cunha, era miguelista ferrenho e tão conceituado :
entre as hostes agitadoras dos defensores do rei
proscripto, que o padre dr. Cândido Rodrigues Al-
vares de Figueiredo e Lima, logar- tenente do sr.
D. Miguel I, prometteu nomeá-lo corregedor da co-
marca logo que se desse o grito em Trás-os- Mon-
tes. ^
^ Camillo : Maria da Fonte.
CAMILLO 89
A politica, por esse tempo, era agitada e turbu-
lenta. Nessa lucta continuada e persistente entre a
idiosyncrasia d'um povo e um systema estrangeiro
a que à força querem adaptá-lo, nessa successào
de episódios inesperados e vários, com manchas de
sangue e lances de comedia, que tem sido e conti-
nuará sendo a campanha para a implantação per-
feita do constitucionalismo em Portugal, surgia,
nesse momento, um homem de qualidades extraor-
dinárias, espirito vivíssimo e arguto, resistência in-
quebrantável, imagem do cynismo insculpida numa
lamina d'aço, sem força, ainda assim, para romper
abertamente o despotismo das formulas, mas audaz
bastante para, encarando-as bem de frente, se rir
.d'ellas. Era Costa Cabral. E essas eleições de 45,
: que elle venceu, constituem de per si o mais sar-
cástico e esmagador libello contra um systema
bastardo, que só logra sustentar-se na iramobilidade
da impotência ou no cynismo da trapaça. « Vencer
por fas ou por nefas as eleições, nesse anno de 45
da decisiva batalha, era para Costa Cabral o mesmo
que viver ou morrer. Lançou, pois, mão de tudo,
e foi ás do cabo. Três camarás municipaes protes-
taram, vindo a Lisboa os vereadores implorar à
rainba: á de Évora voltou-lhe ella as costas, a de
Villa-Franca foi presa, e ambas, com a de Faro,
dissolvidas Nenhuma das conhecidas tricas
para levar a Urna a dizer o que se deseja — como
^08 velhos oráculos sagrados ! — fora esquecida
pelo governo. Os recenseamentos eram taes que-
í)0 CAMILLO
nfto incluíam nomes como os do marquês de Niza,
do Fonte-Arcada. do Telgueiras, juiz no supretno
tribunal, de Garrett, etc. Incltiiam, porém, mendi-
:g08 e lacaios, aguadeiros e defunctos ; incluíam no-
mes imaginários, e soldados e marinheiros. As listas
^ram marcadas : transparentes, pautadas, carimba-
-das, tarjadas, numeradas. Os indivíduos influentes
e perigosos eram presos arbitrariamente Os
governadores-civis distribuíam aos galopins man-
dados de captura em branco. E onde as tricas náo
bastavam, apparecia a força bruta Por toda
a parte houve prisões, mortes em muitos lega-
res ...... Para forjar um simulacro de parla-
rnento, para aguentar a sophis mação da doutrina.
<;hegava-se à máxima tyrannia, atacando-se as mais
necessárias garantias dos cidadãos». * As urnas
•cercavam- se de bayonetas; a tropa atirava — a ma
tar. E o rijo beirão, aprumado no primeiro degrar
do throno, junto á soberana que o cummulava de
honras, sorria, livido, com o seu amargo sorriso de
triumphador insatisfeito, e pensava que, não poden
do espatifar de prompto um regimen que insistia
em viver sobre um inane pedestal de tropos e men-
tiras, o melhor que tinha a fazer era empalmá-lo
Um anno antes, Torres Novas quizera reagir, e c
ministro, com alguns batalhões de vantagem, do-
minara- a. Mas os políticos moviam-se irrequietos,
Oliveira Martins : Portugal Contemporâneo, t ii.
CAMILLO 91
jporque aquelle homem, grande demais para um sys-
tema que só demanda autómatos, calcava sem
piedade os seus sonhos doutrinários ou destruía
indifferente os seus interesses de ambição. Era um
sceptico, vigoroso e rude, cahido numa sociedade
de idealistas ingénuos e vaidosos impacientes. Tor-
nava- se mister vencê-lo, annulá-lo, pô-lo fora da egre-
jinha constitucional como um intruso. Mas como,
se não havia soldados? como, se não havia sequer
o dinheiro preciso para mandar vir de fora, sem di-
reitos d'alfandega, nas cartucheiras de bandoleiros
bêbados, prompta a servir — uma revolução ? Res-
tava disponível, para explorar e torcer á mercê dos
intuitos d'uma opposição politica levada ao paro-
xismo, uma força formidável que o conde de Thomar
e seu irmão José não cuidaram nunca de chamar
a si : — o povo. O governo prohibira os enterra-
mentos nas egrejas, quiz tornar maximamente pro-
ductiva a colheita do imposto: e a população das
aldeias minhotas, fanática e analphabeta, açulada
pelos farrapos do legitimismo escasso, instigada
pelos padres, fazia ouvir por todo o norte do reino
esse surdo rumor que nos vulcões annuncia a ecclo-
sáo d'uma cratera.
Com as coisas neste pé, Camillo foi para Coim-
bra estudar preparatórios de direito, regressando a
Villa Eeal quando, por virtude da revolução popu-
lar, as aulas se fecharam. Foi nessa altura que, á
Cabida de Penafiel, Camillo e um seu companheiro
^e viagem receberam aviso de terem pela vanguar-
92 CAMILLO
da uma guerrilha de realistas, capitaneada pelo te
nente Milhundres. « Quiz o meu companheiro r^
troceder — conta o romancista nas Memonas do
Cárcere — ; mas eu convenci-o da desnecessidade
de fugirem aos realistas dois pobres académicos
que se presumiam politica e socialmente indefini-
dos neste mundo. Fomos avante. Exactissima-
mente : lâ estava, na quebrada de um serro, densa
mó de gente armada, com as armas embandeiradas
de escarlate. A tiro de bala, mandaram-nos fazer
alto, e nós paramos, fiados na lealdade dos parla-
mentarios, que vieram a nós com as clavinas no
braço. Eram dois, com o caudilho â frente. Milhun-
dres era homem mal encarado. Cincoenta annos
teria, e grisalhas as barbas. Vestia casaco de mili-
ciano com insignias de tenente, e dragonas de ca-
pitão mór. Trazia a banda a tiracolo, e uma longa
espada de misericórdia enfiada num boldrié de
coiro de anta. — Quem são, e d'onde vêm ? disse
elle. — Somos estudantes e vimos de Coimbra. —
Quem vive ? tornou elle. — O senhor U, Miguel 1
respondemos. — O senhor D. Miguel primeiro ! re
plicou o guerrilheiro, accentuando a palavra sup
plementar, como se a nossa profissão de fé, sem i
ad dição, ficasse equivoca. — O senhor Z>. Migue
primeiro/ repetimos, sacudindo os gorros. — í^ntôCJ
visto que são dos nossos, retrucou Milhundres, an
dem lá para a recta-guarda, que nós vamos entra^
em Penafiel. Precisamos de quem escreva proclama
ções ao povo, e os senhores, se são estudantes, hão d
CAMILLO 93
zer coisa que se veja. Consultei a mioha bossa das
roclamações, e disse: — Vamos lá! O meu compa-
heiro estava enfiado, porque receava que o gene-
Bil guerrilheiro o nomeasse chefe de estado maior.
Qu achava extrema graça a tudo aquillo. Entra-
nos em Penafiel. Quando surgimos no cruzeiro,
jue se ergue ao topo da primeira rua, os morado-
res da cidade começaram a fechar as portas. —
Que ovação! disse eu ao meu condiscipulo. — Dir-
He-hia que somos malta de salteadores que irrom-
pemos das brenhas ! — Se pudéssemos fugir / . . .
murmurou o meu amigo. — Cala-te, que isso é serio f
disse eu. Milhundres entoou os ^vivas aos quaes
respondemos enthusiasticamente. Ao fim da rua
engrossaram as nossas forças com três maltrapi-
lhas armados de foices, e defronte da cadêa fize-
mos juncçào coín um alferes de milicias montado,
► € alguns pedestres em tamancos. Eepetiram-se os
vivas. — Pnmeiro que tudo, disse o chefe, vamos d
^9^ya dar graças a Deus, Era um Te-Deum econó-
mico, com profusão de fervor religioso. Abriu-se
de par em par o templo. E os valentes prostraram-
se, e resaram o bemdito com grande estridor de
vozes. Evacuado o templo, disse eu a Milhundres:
— E necessário proclamar? — E, vá vocemecê es-
crecer um edital, e o seu companheiro outro, respon-
deu o caudilho. — Onde é o quartel general? per-
guntei. — Não sei por ora. Vocemecês onde se vão
aquartelar ? — Na estalagem do Mulato. — Pois en-
^ào é lá. Eu vou nomear authoridades, e lá vou ter.
94 CAMILLO
Amanhã vem aqui fazer juncção comnosco o brigi
deiro Bernardino. O Mac-DoneUjá está em camp
e o Cândido de Anêlhe é seu secretario. Diga lá isi
vocemecê na proclamação, — Muito bem, Gralopamc
para o quartel general. — Vamos proclamar? disí
eu ao meu companheiro. — Pois va£, que eu, «i
chegando ao cimo da rua, enterro as esporas m
ilhaes do macho, respondeu elle com as cores aind
quebradas. — Pois não achas isto bonito? Acaso ei
taras mais divertido na tua aldeia? Tiremos partia
de tudo, emquanto não cheira a pólvora. Vamo
coUaborar numa proclamação em estylo bíblico, -
Pois fica, se achas graça a isto: eu de certo fujo,-
Pois então também eu, que me parece estúpida <
farça se me deixai em monologo. Era fácil e seguri
a fuga, mas honrosa náo me pareceu muito. Eu i
envergonhado do meu procedimento, e compade
eido do cabecilha. Pareceu-me desgraçado aquell
homem, e d'ahi vem o desvaneio da simpathia qti
lhe ganhei. Além de que, de mim confesso set
pejo que me não seria difficil escrever uma proclí
maçáo sentida; grammatical náo direi. A minh
família era miguelista, e festejava, como em syní
goga recôndita, os dias solemnes da sua crençf
Milhundres seria o bera-vindo e honorificado ei
casa de minha familia. la-me por isso a conscienci
recriminando de mau coração, de covarde animo,
de apóstata villão. Tudo isto me esqueceu quand
cheguei a Amarante, e só me tornou á memori
OAMILLO 95
quando vi, em 1861, entrar Milhundres preso nas^
cadeias da Relação.»
Chegou Camillo a Villa Real hospedando-se em
casa do Uo realista. Là, como em todo o norte^
ouviam-se já vozes^ de guerrilheiros que acclamavam
D. Miguel. O general escossês Macdonell só meses.
depois appareceu á frente das suas forças, mas os^
elementos do partido legitimista, que ainda eram
importantes, de ha muito que vinham preparando a
revolução. « Se ainda o não tinham conseguido é
porque as desavenças e as rivalidades dos que esta-
vam de fora, e de longe jogavam com a vida dos
outros, creavam conflictos que não tinha sido fácil
resolver ». Em carta-regia datada do Paço em Roma
em 26 de maio de 1843, D. Miguel nomeia o es-
cossês «General em Chefe e Director Militar, no
Beyno » para que possa desde logo « tratar, inde-
pendentemente, da organização dos elementos de
huma força, que opere eífecti vãmente, como e
quando as circumstancias o permittam » . E feita a
nomeação, Macdonell não se conserva por muito
tempo inactivo. «Já doesse mês de Maio de- 184íi
apparecem cartas d'elle a um dos chefes miguelistas
do Porto, João Ferreira Rangel, recommendando,
mesmo de Londres, ser preciso trabalhar sem de-
Diora, para um movimento militar, e pedindo aon
directores da revolta dentro do paiz, que ajuntassem
<inalquer força, po^ pequena que fosse, dentro da
provincia do Minho, por modo a dar o exemplo m
outras provindas. Escrevia em hespanhol e lem-
1)6 CAMILLO
brava que a oifmdia, quando guiada pela experiên-
cia, tinha como resultado verdadeiras maravilhas,
Pergiintaram-lhe de cá se a cousa estava para breve.
EUe respondia : qtte seria jyara muito breve, porque
era sua opinião que, naquelle anno, se decidiria da
sorte de D. Miguel, Tan FIEME ESTOY EN ESTA
CREXCIA QUE SI NADA SE EFECTUAR EN EL CUBSO
DEL PRESENTE ANO, YO POR MI ABANDONO LA
CAUSA » . ^
Camillo, «de pé, sobre o balcão do Zé-da-Sola,
em Villa Real, um logista de cabedaes de bezerro
e vacca, muito legitimista, declamava emphatica-
mente e com os gestos mais violentos as procla-
mações do Padre Casimiro estampadas no Periódico
dos Pobres, e a carta, rica de conselhos em arte
de reinar, dignos de Fénelon, enviada pelo correio
á senhora D. Maria ir. Era — diz o romancista'
— uma carta convulsionada de profecias trágicas,
âs quaes eu dava toadas funéreas, expedições gut-
turaes como diz Renan, valha a verdade, que faziam
Ezequiel e Habacuc. A turba que me escutava, toda
orelhas, tro voava urros de um vandalismo que
sobrepujava as minhas cordas vocaes. Havia cabe-
ças de granito que choravam como os penedos bibli-
* Historia de Por(uf/al, popular e illustrada, de Manoel
Pinheiro Chagas, continuada desde a chegada de D. Pedro
IV á Europa até nossos dias por J. Barbosa Colen. Decimo
primeiro volume, mdccccvl
2 Camillo : Maria da Fonte.
CAMILLO 97
cos; e \celhos bacharéis formados, antigos juizes de
fora, com o simonte engatilhado aos narizes e as
ínandibulas num prolapso de espanto, diziam : —
grande homem é o padre! é o 2.*' José Agostinho de
Macedo! E en, na qualidade de declamador correcto,
prosodico e muito mimico, attribuia-me um quinhão
•d'aquellas ovações, muito menos explosivas quando
o leitor era António Tiburcio, o meu amigo de in-
fância que morreu ha muito, depois de ter gover-
nado o districto muitos annos, mantendo-se, com
JUin grande tino, na media, entre a Republica e o
Absolutismo. Havia senhoras realistas, filhas de
,capitães-mores, de desembargadores, de brigadeiros
e morgados em decomposição, as quaes eu lia as
peças do Oeneral das cinco chagas. Em algumas
casas brazonadas accendiam-se castiçaes com bo-
beches de papel verde nos oratórios de talha dou-
rada, e faziam-se; preces votivas, bastante caras, a
vários santos muito anteriores á formação do re-
gimen parlamentar, e por isso talvez indifferentes
i revolução de 1820 e á politica de Villa Eeal. De
permeio com as jaculatórias, bebia-se muita gerq-
piga capitosa para, por meio da etherizaçáo al-
<iOQlica, dar alôr aos voad ouros da esperança. Que
noites de alegria doida naquelle inverno de 1846 !»
Inverno?! Não. Camillo precipita aqui um pou-
<ío.., as estações. Por certo o seu melhor tempo
<^e Villa Real foi aquelle que consumiu, não somente
"empoleirado nos coiros do Zó-da-Sola a cantar a^
Joa^.do padrç.xninhoto com musica djO reichegou.,
7
98 CAMILLO
mas também gosando as noites de festa em casa de
D. Rita Moreira, onde os serões eram animados e
se fazia musica excellente. Por uma sobrinha d'essa
senhora, Patrícia Emilia, apaixonou-se o romancis-
ta. O drama Agosiinho de Ceuta, representado num.
theatro que o próprio auctor improvizou, foi es-
cripto para que ella o ouvisse e, como quer que, em
pleno romantismo, o rapto coroasse, numa aureola
de abnegação e heroismo, todo o devotado amor^
assim os dois fugiram, abandonando-se ao destina
para que elle os protegesse, na vehemencia d'uma
paixão que náo pensava : elle, pobre, seguindo a
sua senda de aventura ; ella, deixando-se conduzir^
vencida, com o seu vestido de chita escura e a sua
capinha cor de vinho, com riscas negras. . .
A agitação politica náo cessara ainda, nào havia
de cessar tão cedo. Os sinos minhotos tocaram a
rebate, ò povo revoltou-se. Contra os tyrannos que
sophismavam o systema representativo ? contra o»
déspotas que calcavam o seu direito de fazer as lei*
ou revogá-las ? Nào : importava-se elle bem com
essas coisas! Revoltava-se porque o governo orde-
nara um novo processo de cobrança do imposto e
prohibira que sob as lageas dos templos se con-
tinuassem a abrir as sepulturas. Revoltava-se, não*
em defesa da liberdade, mas em defesa da distri-
buição chaotica e iniqua dò imposto a que se pre-
tendia dàrremediò^ em defesa da usança tradicional
e fanática a que os principios da hygiene manda-
vam pôr um tertíio. Et^a um movimento^de reacção^
CAIIILLO 99
nâo de progresso. Mas a elle se prenderam, ávidos,
insoffridos, barulhentos, de envolta com os paladi-
nos d' ura passado morto, os apóstolos eloquentes
da ideia-nova. Ergue-se
a Maria da Fonte
com as pistolas na mão,
José Cabral, o Zé dos Cónegos, assusta-se, vacilla,
recua ; a revolução triurapha; mas o paiz fica ainda
e continua intranquillo, á mercê das paixões que se
desencadeiam e entrechocam, mais desordenadas e
violentas do que nunca. As guerrilhas continuara
em armas, os triumphadores da véspera não sabem
afinal o que pedir e, pelos cerros minhotos, ergue-se
e domina o chãos, ameaçador como um remorso, se-
reno como um escarneo, o espectro de D. Miguel. A
8 de Outubro, a rainha dà o golpe d^Estado. Sal-
danha é o chefe do governo. São os Cabraes que
voltam, escondidos subtilmente sob os crachás bri-
lhantes que coiraçam o arcaboiço valente d'um
guerreiro velho ...
Mas que importa a politica quando, a alguém
que só a cultiva em dilettante, por um interesse todo
de arte e pittoresco, domina violenta a paixão do
amor? Indifferente aos Cabraes e aos setembris-
tas, «em querer saber da Junta de Passos José
B«m da prisào do Duque da Terceira, deixando ao
Zé-d»^ola a defesa dos direitos do sr. D. Miguel
primeiro, Camillo seguia com Patricia Emilia a ca-
100 CAMILLO
rainhu de Coimbra, quando, ao chegarem ao PortOj
em 12 de outubro, a requerimento do tio. Pinto da
Cunha a policia os prendeu. A essa prisão se refere
Caraillo mais tarde, na Maria da Fonte :
«Eu tinha sido preso a requerimento de minha
familia — escreve elle — quando ia para Coimbra
continuar, no Pateo, as minhas explorações scien-
tificas, bebendo nos mananciaes latino e rhetorico
do padre Cardoso e do padre Simões, Deus lhes
fale nalma em latim ciceroniano. Os meus inimigos
em letras, dois annos depois, farejavam delictos
execrandos na causa mysteriosa d'aquella prisào de
sete dias. E eu que, amordaçado pelo pudor, não
podia esclarecer a opinião publica do botequim
Gítichard e da Águia e das Hortas, mandei pedir
â pessoa que requerera a minha captura, houvesse
por bem explicá-la. Pode ser que o divulgar-se
agora, na velhice extrema, este lance de uma ju-
ventude jâ esquecida, venha a ser estorvo á inau-
guração da minha estatua, uma coisa que eu havia
de ter por força, sobre um pedestal de adjectivos
plangentes com alto relevo de advérbios, nos oito
dias immediatos ao do meu trespasse, Lamento
pjuito e por antecipação esse dissabor que me hade
ponsternar na minha individualidade cósmica- de
iceniêlha de boi, de cauda de cometa ou de couve
laií,it)arda ; mas já agora não posso esquivar-me a
^€^' um pouco Santo Agostinho. . O bemfeitor que
lup tinha feito prender. respondeu assim, njos.jor-
iiao^i de 1849, á minha solieitaçàp ;
CAMILLO 101
Snr. Redactor^- Insto pelo favor de tranacreter
no seu jornal as seguintes linhas : Quem fez prender
na Relação d'essa cidade Camillo Castello Branco,
fui eu que sou seu tio, A causa porque eu o prendi
não é essa que os seus detractores lhe fulminam, E^
um rupto, não é um roubo. Para obstar a uma li-
gação que o fana desgraçado^ busquei um pretexto;
se é d'elle que se aproveitam os seus inimigos, de-
duro que é falso, e authorizo meu sobrinho a tirar
a desforra legal de qualquer lãtrage que se lhe faça
com allusão d sua captura, Villa Real, 27 de feve-
reiro de 1849 — João Pinho da Cunha, ^
« Este bom homem — continua Camillo — para
me salvar de um enlace indiscreto, ordenava ao
seu agente no Porto que me fizesse prender como
raptor de uma mulher sem pae nem mãe e de maior
edade, que me acompanhava expontaneamente para
Coimbra; e, a náo ser este delicto efficaz para a
prisão requerida por meu tio, como se eu fosse o
raptado, entáo authorizava o agente a queixar-se
de que eu o esbulhara de ricos valores em jóias e
baixella, 20:000 cruzados, calculava-se no botequim
do Guichard, Para que os genealogistas porvindou-
ros da minha linhagem se não vejam embaraçados
com esta vfergontea de Pintos e Cunhas na minha
arvore, devo esclarecer que este homem não me
era nada — era marido de uma tia minha. Prova-
Nacional de 10 de março (Nota de Camillo).
102 CAMILLO
velmente, se eu teimasse em matrimoniar-me ^ hon-
radamente com a raptada, seria pronunciado como
ladráo de jóias e baixella, 30:000 cruzados — com-
putava o botequim da Agida, Honrado e querido
tio da minha alma! Uma semana depois que sahi
do cárcere, era apertado nos braços carinhosos do
meu salvador, que pagou generosamente o aluguer
do macho que me conduziu sem difficuldade, por
que eu ia tão leve que náo levava um pataco —
nem a jóia d'um pataco, senhores, e logo saberão
porquê. Que saudades me fazem estas alegres e
explendidas misérias dos meus vinte annos ! Vejam
que nem tenho pejo de contar as misérias nem as
saudades, hoje que algumas centenas de contos
levantam entre mim e esse passado pelintra uma
alta muralha de ouro de lei ! Naquelle tempo, os
rapazes tinham desvarios trágicos até ao ridiculo,
e entravam muito cedo e depressa na previsão dos
escolhos infamados em que haviam de ir a pique,
sempre imperterritos e armados como Xerxes do
tagante para azorragar as ondas aparcelladas . . .
Mas que saudades eu tenho d'aquellas jóias e bai-
xella — 50:000 cruzados, para cima que náo para
baixo, conjecturava o botequim das Hortas/»
1 Revela-se aqui mais uma vez em Gamilio o propó-
sito de occultar o primeiro casamento. £Ue não poderia
teimar em matrimoniar-se pela simples mas poderosa razão
— de que era casado. Joaquina Pereira morreu em 47. A
filhinha d*eUa e de Gamilio morreu também poucos meses
-depois (Alberto Pimentel : Os amores de Camillo),
CAMILLO 103
Passados onze dias, Camillo e Patrícia Emilia
eram postos em liberdade. E, d'ahi a pouco, nova-
mente envolvido na contenda politica, então mais
accêsa de que nunca, o romancista encorporava-se
no séquito d'esse Reinaldo Macdonell, a quem mais
tarde havia de chamar «extraordinário patife* ^
No Romance do romancista o sr. Alberto Pimentel
publica uma carta que recebeu de Villa Real e cuja
transcripção nesta altura é elucidante. Diz o se-
guinte :
«Na revolução de 1846, não me consta que o
Camillo figurasse, nesta terra. Creio, até, que elle
iiào residia por aqui ; porém, em 1847, depois do
<lesastre de Valpassos, que esta villa ora estava
governada pela patuléa da Junta do Porto, ora
pelos cartistas e, até, alguns dias pela gente do
^íacdonell, lembro-me que o Camillo, uma noite,
^Di que esta villa estava sem auctoridades nem
governo algum, porque os cartistas fugiram para
C^haves, e os da Junta esta.vam na Amarante, o
^'^millo appareceu ao escurecer^ de chapéu armado,
^® espada á cinta, de esporas nas botas, fazendo
^^ande barulho com a espada a rasto, de forma que
^^da a villa ficou apavorada, todos os habitantes
^®<^haram as portas, e, elle só, fez a policia da terra.
■*^na seguida ao desastre que o Visconde de Sá da
l^^ndeira soíFreu em Valpassos, recolheu ao Porto
Maria da Fonie,
104 CAMILLO
O Governador Civil que aqui estava, António Au-
gusto Teixeira de Vasconcellos, e todas as forcas
populares d 'esta provinda e de quasi todo o reino.
Ali, no Porto, se organizou de novo o exercito dar
Junta, indo o mesmo Visconde de Sá da Bandeira
com uma expedição para o Algarve, e nós com o
General Guedes viemos para Villa Real. Foi nesse
período que o Caraillo esteve empregado no Governo
Civil como amanuense. O Governador Civil, se bem
me recordo, era de Vizeu e chamava-se Thoma^
Maria Paiva Barreto, excellente pessoa que era.
Depois do convénio de Gramito, veio para aqui o-
José Cabral Governador Civil, e foi então que o
Camillo escreveu alguns artigos poli ticos nos jornaes
contra o José Cabral, de que resultou o conflicto do
Olhos de Boi, de que o amigo já tem conhecimento-
Pouco tempo depois do despótico acontecimento
praticado pelo referido caceteiro. Olhos de Boi, ^^
ordens do Governador Civil, foi que o Camillo ^^
resolveu a ir para o Porto.»
O que foi esse episodio com o caceteiro cabi^'
Uno diz Camillo, num Commímicado de desaffroi^*'^
que então publicou, com data de 23 de agosto de ^* '
«Eu devia ter consultado os fastos do despotisrí* ^ '
para me convencer — diz elle — que, tarde ou cê^^
seria victima do sr. José Cabral, governador cí^*
tJe Villa Eeal. Devia recordar-me, que me tin^^
chegado á bandeira dos livres, para temer o £^
rête de escravo, e o maior peso da oppressáo, -^
Todavia não sei que presentimento me trahiu! "^
CAMILLO 105
ofiendidos^vile despoticamente os meus cúmplices
em opinião, e uma vez pungido pela magna d'ellès,
bradei ao oppressor Quousque tandem Catilina / . . .
Este pensamento que se achava traduzido em uma
única correspondência minha, impressa no Nacional^
bastante foi para que o dedo de s. ex.a me. apon-
tasse a sepultura, e os seus orgáos procurassem
um cadáver para ella ! Da porta do governador
civil no dia 17 do corrente, pelas 10 horas da manhã,
sahiu um homem armado de cacete: espancou-me,
<ieitou-me por -terra, e, recolhido outra vez á casa
<i'onde sahira, appareceu com uma espingarda, e
oom um desgarre insultuoso, á porta de sua ex.*.
Entregue ás mãos do assassino, ainda agora trema
<3a posição em que estive, quando sei evidentemente
que José Cabral tinha dito ao caceteiro: — mata-o!
— e porque? José Cabral confessa que á sua ordem
fui eu espancado^ e dá a razão d'este delicto, porque
eu não lhe tiram o chapéu^ tendo-o visto d sua janella.
— Risum teneatis, amici?.ÍIai casos, que o requinte
da desvergonha chega a tal ponto, que as conside-
rações sobre os seus actos se turvam, e confundem
iia intelligencia de quem as medita M! Pois s. ex.*
^anda espancar um homem, porque lhe não tira o
chapéu! José Cabral arroga-se o direito de senhorio
/lô Veneza, em terra que o conhece, e a um indivi-
duo, que jamais lhe explora os escaninhos dos seus
i^razões, inda no. chãos, e as phases da sua vida?
"or ventura devo culto ao déspota, porque vejo um
^^cete, qtte pôde. espancar-me? Como authoridade
106 CAMILLO
4)ue direito tem sobre o meu chapéu?! (Carta Consti-
tucional. Artigo 14Õ § l,^) Ningtiem é obrigado a fa-
zer ou deixar de fazer senão aquillo que a lei man-
da, E a lei não legisla sobre chapéus. Itespeito as
authoridades, e conheço que tenho cumprido esto
dever, quando negócios de estado me pedem este ou
aquelle acto; mas devo por isso descobrir-me, quau-
do, mau grado meu, encaro o homem que detesto?!
E assim vingada foi a susceptiblidade de s. ex.*;
assim os encarregados pela Soberana conciliam as
opiniões, e deslembram as injurias; assim novos cri-
mes preparam novas dissenções, se d'esta arte a li-
berdade se identifica com as disposições do proto-
-colo. Seria bom, porém, que o governador civil de
Villa Real, entrasse no conhecimento da seguinte
verdade : — Que as nossas injustiças quasi sempre
são julgadas pelos homens » .
A agressão do caceteiro fez crescer em Camillo
o ódio contra o despótico governador civil e seu
irmão o conde de Thomar. E — liquidemos desde já
a inglória passagem do romancista pelo jornalismo
politico — foi essa ruim paixão que o fez entrar
oom a sua penna nesse ultra-ridiculo debate do
mais que todos grotesco caso do Caleche, enxova-
lhando num folhetim a honra e o pudor d'uma mu-
lher, esposa e mãe exemplar, que, com o facto de
ser rainha, não perdeu nunca as qualidades mais
nobres e respeitáveis do seu sexo.
. . .Entretanto, em Villa Real, as relações entre
■Camillo e Patrícia Emilia continuavam. O romance
CAMILLO 107
^'amôr porém não durou muito ; d'elle ficou uma
:filha e, com ella, annos depois, apenas a recordação
carinhosa d'uma paixão antiga. O próprio Camillo
se encarregou de dizer um dia, ao traçar a biogra-
phia d'um amigo, tão desgraçado como elle: « João
Jacques, nas suas Confissões^ diz que vira os homens
€ os costumes do seu tempo. Eu vi mais que âlle
porque me estou vendo a mim. José Augusto, crê
J)or fé no apostolo da experiência. O anjo que foge
do seio de sua familia, deixa lá dentro as azas, e
fora da porta é mulher » *. Patricia Emilia teve uma
rival, exaltou-se ao presenti-lo, decerto fez lembrar
ao amante o direito que elle não tinha de lhe pagar
com o abandono o sacrifício da sorte e da honra
por amor d^elle, e foi então que dois amigos evita-
ram, por um acaso, que Camillo se matasse com
^Qs grãos d^opio, depois de escrever A harpa do
^cepticOj poesia hereje, como ultimo adeus a uma
vida que lhe fora de agitações e d^amarguras. Conta
^^ieira de Castro que, no lance, Camillo tinha sobre
a banca setenta libras, para que se não dissesse,
vendo-o morto, que a miséria tinha sido a causa que
o levara a tal extremo. Nas Horas de lucta, Freitas
í^ortuna assegura que, quando escreveu a poesia,
Camillo tinha já engulido quantas pastilhas de ópio
lhe haviam receitado para debellar a insomnia, e
<iue os amigos (Miguel Nicolau Esteves Negrão e
No Bom Jesus do Monte,
I
108 OAMILLO
J4i>âé Augusto Pinto de Magalhães) o s<
depois. A rival de Patrícia Emilia era, t
rece, uma senhora da melhor sociedade
cujo nome ainda hoje ali tem represeni
millo, ora em Villa Real, ora no Porto,
occultar de Patricia Emilia esses amôre
cojiflicto sentimental que o ia levando à
caminho romântico do suicídio. Numa
que precedem a publicação da Harpa
no jornal litterario A Semana, palavras t
pelo sr. Alberto Pimentel no Romance
cista, Camillo explica, com todo o orn
rhetorica sentimental, o seu estado d'ali
pôr essa poesia :
«Era em julho de 1847 — escreveu e
esses tempos que eu choro • . . de saudade
que eu choro porque me revivem as d<
e despedaçadoras das chagas da alma, qi
restam . . . por esses tempos luctavam-m
xões furiosas no espirito estreito, acai
para duas tamanhas paixões como essas
Eu devia sacrifícios tremendos a uma i
:me estremecia de adoração cega, descom
oaprichosa Não sei se a amava por es
como devera amá-la sempre ; é certo qu
1 a Nem artigo nem poesia vem assignac
o sr. Alberto Pimentel — mas Ganiillo íirm
poesia com o seu nome, e até se refere a ell
peio menos ».
k
CAMILLO 1C)9
■ lher havia abi no mundo tào fascinadorá, tão dés-
pota dos seus encantos e da sua posição social, que
«n, reptil orgulhoso, ouseji erguer-me.do rasto de
«eus pés, para guindar-me á aUura do seu voo de
l fl-njo. Essa mulher. . . otiviu-me. • . Deverei escre-
ver aqui uma verdade "amát-guradissi ma que a con-
sciência me diz?. . . Ámou-me E uma historia
de muitas misérias impossiveis numa vida só, e
«ssa apenas estreiada ! . . . Quem sabe se este livro
será todo d'ella e para eUa ? E' o meu segredo, sa-
crosanto como o mysterio da hóstia e do cálix.
Eojei-me aos pés d'essa mulher; acurvei-me, annu-
lei-me em toda a soberbia do falso oiro do meu or-
gulho — amei-a perdidamente! Mas a mulher dos
tremendos sacriflcios resentiu-se^ delirou, desman-
douse até ao incrível diurna vingança senhoril. . .
Era uma serpente de ferocidade como fora um anjo
de amor ! Foi augusto, solemne e grandioso de santa
i'esighação o aspecto com que supportei dissabores
incompréhensiveis ! A ancora maldita do suicidió
enéorajava-me de brios de infeliz por entre parceis
de quantos infortúnios résaltam de uma vida tem-
pestuosa. Determinei matar-me. . .» Parece que ao
principio pensou em suicidar-se com um tiro. « Mor-
rer â pistola — diz elle nesse mesmo artigo — pare-
tia-me a maia rióbre, a ínais èxcellente, e, deixairme
ôssim dizer, á mais significativa maneira de revelar
^ desesperação». Por fim, escolheu o ópio.', .mor-
rer sonhando, mergulhado num mundoinreal de
coisas bellas. .
lia.
Zil
Ali
110 CAMILLO
€ Vivera só neste mundo,
Só, na campa, vae cahir, 1*^
O seu gemer moribundo m^^^
Ninguém lh'o ha de carpir. . . §5^ a
Nem um Christo allumiado
Pela tocha do finado
Terá no leito a morrer!. . .
Nas visões do paroxismo |^ ^
Vê de nada o torvo abysmo
Sorver-Ihe o impio viver! 1 ^^
Um cadáver insepulto
Ahi jaz do que morreu !
Deixai-o ! — é a Deus um insulto
Dar sepultura ao alheu !
Deixai-o ! — ninguém o vele. . .
Que os corvos pairem sobre elle
Em voraz sofreguidão !
Não dobre fúnebre o sino !
Demónios ! rugi-lhe um hymno
Ao morto sem contricção ! *
Mas tudo isto que hoje nos faz sorrir, tem xt^
caracter que tão naturalmente deriva da época eJ^
que foi, tudo isto se nos apresenta d'um modo qií-^
a feição individual do escriptor, juntamente com»^
características tão salientes do meio, d'uma fórm^
tão perfeita nos explicam, que eu não saberia if
mais além no meu estudo, sem rapidamente lançar
os olhos para o aspecto da vida portuguesa — ou,
mais restrictamente, portuense — nesse tempo, que,
em tantos pontos e por vezes d'um modo ptttoresco,
Da Harpa do scéptico.
CAMILLO 111
se afasta profundamente da maneira de ser do»
nossos dias. Por esse tempo, para mais, Camillo vae
começar a ser perfeitamente um portuense. Aban-
dona a província. E na vida da cidade leva todo
o sen tempo, — menos aquelle em que, afastado em
Graya, cultiva, ao que parece, romanescos amores
com uma costureira, num ninho idyllico escondido-
i^as sombras discretas do CandaL ^
Quanto á romanesca tentativa de suicidio, ainda
é licito dizer que tal desvairam ento é susceptível
d'uma explicação, abstrahindo mesmo de tudo o que
iielle se possa encontrar de pathologíco, porquanto
Camillo era um homem, coUocado entre a mulher
que elle seduzira e que abandonou o futuro para o
seguir de olhos fechados, que lhe lembrava com
desespero o amor antigo e, na voz, ora supplicante,.
ora agreste, da dor e do ciúme, vinha gritar os seus^
direitos, — e essa outra á prestigiosa altura de cuja
Wleza se rendera o pobre martyr d 'um coração
que tinha de o tornar infeliz a vida toda. Porque
^ra ainda esse homem que^ annos depois, pensava
assim: «Ea de mim, se viesse da natureza privado
de todos os dotes que habilitam para o trabalho,.
sahiria de noite a pedir esmola para sustentar a
mulher que se houvesse despenhado dos afagos de
uma família ã deshonra dos meus braços » . *
' ÂLBBRTO Pimentel : Os amores de Camillo,
• Memorias do cárcere, t. I
112 CAMILLO
Um rápido escorço do meio dar-nos-â mar]
a uma meliior comprehensào da complexa fij
de Camillo, cuja historia, neste ponto do mer
lato, vae entrar no seu período de líiaior activic
como eseriptor, periodo dentro do qual se esb
desenrola e fenece sob o peso da desgraça, i
intenso e duradoiro que os outros, o derrad
episodio d'amôr da sua vida.
III
1849-1890
In illo temp(yi*e, a cidade da Virgem jâ não era
apenas o amontoado interessante de casas, tre-
pando sobre o Douro, num declive, até âs alturas
do severo Paço Episcopal. O Porto d'outros tempos,
tão característico no pittoresco dos seus aspectos,
de ha muito se alargara e, na altura em que o meu
estudo o encontra, jâ, com os seus theatros, o seu
passeio publico e a posse do coração do rei D. Pedro,
entrara, de par e passo, na civilização e na gloria.
Poço, pela historia adeante, das reivindicações
do terceiro estado, baluarte da^ liberdades pátrias
no nosso tempo, o Porto de ha quarenta e tantos
annos tinha, porém, mais o aspecto sombrio e so-
cegado de velho burgo que o bellicoso ar de tor-
rão fadado ao fermento de revoluções e â génese
de heroes. Atrás dos balcões da rua das Flores e
dos Clérigos havia uma sociedade pacata e laboriosa
^ue monotonamente levava a sua vida de trabalho,
114 CAMILLO
presando a sua honra, cuidando os seus callos, não
se importando de politica, arrecadando com usura,
gulosamente, as libras que o negocio lhe dava em
seu provento; e, comtudo, esses homens, curtos ({'as-
pirações, poupados no saber, correctamente metti-
dos nas suas longas sobrecasacas negras, trabalhan-
do o dia inteiro, deitando ao domingo, regrada-
mente, a sua merenda pelo rio ou o seu camarote
no theatro, longe a longe, — eram velhos comba-
tentes do cerco do Porto, que fizeram frente audaz
ás tropas miguelistas, ou dos que sustentaram depois,
nas inconstancias d'um regimen adaptado ã força
a uma terra que o não queria, as luctas varias que
por muito tempo seguiram, em contínuas rebelliões,
imposições armadas, um mal-estar constante, uma
maneira de ser instável, o advento do constitucio-
nalismo em Portugal.
€ Da politica propriamente dita? — escreveu o sr.
Eamalho, no jEstudo critico que precede a edição mo-
numental do Amor de perdição — tinham uma ideia
longinqua e nebulosa a que a palavra ladroagem
servia de vaga synthese » , mas dos seus deveres de
cidadãos — mesarios da Misericórdia, irmãos de
confrarias, juizes de paz, cotizando-se para festejar
08 santos padroeiros, comparecendo pontualmente,
como a bons catholicos cumpria, a procissões e ro-
marias, d'esses deveres tinham elles a consciência
mais nitida, como nitida tinham também, e intran-
sigente, a sua ideia de moral. A dissolvencia dos
costumes não entrara na pa catez honesta da rua das
> -í
u^i-
CA^nLLO 115
Flores, nem tampouco a arte corrompera os cândi-
dos espíritos, emquanto os amantes de boas-letras
v3%i soletravam em seus ócios as historias de cordel,
com cavalleiros e princezas, e A Virgem da Polónia
do conselheiro Bastos. Nem o palheiro da Assem-
bleia encontrava farto assumpto nas suas nocturnas
sessões de maldizer.
A sociedade portuense, sem pretensões afidal-
gadas, era quasi exclusivamente composta dos
Mercadores que já lembrei e da colónia inglesa
qne, vivendo á parte, espantava os burgueses com
a garridice dos seus trajos e a maneira, adeantada
ja, dos seus costumes. Isso quando uma mocidade
endiabrada veio, com todas as arrogâncias e todas
«8 infantilidades que o romantismo francês lhe en-
sinara, a pôr uma nota inédita, com a novidade do
escândalo e o pittoresco da aventura, num meio
em que os bons costumes eram norma e reinava
ainda o carroçáo. Começaram então a ser frequen-
tados os cafés, a correrem as ruas os trens e os ca-
valleiros, a sublevarem-se as plateias em manifesta-
ções nunca mais vistas, a dormirem em sobresalto
maridos de joanetes e pães com filhas novas ; a lit-
teratura romântica venceu, dos livros passou o rapto
para a historia de todos os amores contrariados e,
em frente da má-lingua do palheiro, ergueu-se, de
sangue na guelra, travessa, mais moça e mais cortan-
te, a mà-lingua do Guichard, Já menina em termos
nâo havia que desposasse o caixeiro lorpa do papá,
sem levar, a dentro d'alma, como folhas murchas
116 CAMILLO
pelo outomno das esperanças illudidas, as cinzas
d' uma paixão romanesca, com personagens de bi-
godes encerados e musas capazes de enternecer as
mais esquivas. Jà o casamento não era para os
bons mercadores do velho Porto o sacramento que
lhes dava a posse da mulher, por mais gentil, ex-
clusiva á face de Deus e dos homens, por deter-
minações respeitadas dos cânones, da moral e da
justiça. Era a edade de oiro dos Ma nfrêdos, jovens e
tristes, de longos cabellos negros, pallidez de cera,
olheiras fundas, com um diccionario de rimas no
bolso e a alma de Musset no coração. E essa mo-
cidade portuense, não desprezando as suas tradi-
ções de valentia, esmurrando-se em pugilatos, pu-
gnando a cacete e a tiro por uma tirada em folhetim
ou a voz d'uma cantora, era, no fim de contas, uma
legião de creaturas exaltadas, pelos modelos da épo-
ca, importados da França de Lamartine, e que, no
ardor das suas aventuras, pondo a mascara d'um
cynismo que triumpha, nem sempre deixavam de
ser, por seu mal, apenas uns sinceros.
A população da cidade ficava assim, na parte
que me interessa, dividida em duas facções : d'um
lado os homens de acção, trabalhando de manhã
até noite nos seus armazéns e nas suas lojas, do
outro, uns moços estróinas, desbaratando patrimó-
nios, aproveitando a seu modo a vida, fazendo gala
de aventuras, se bem que mettendo o coração em
todas ellas, e, por essas e por outras, conquistando
a granel as suas damas. Manda a verdade dizer que
CAMILLO 117
não comprehendiam uns aos outros, e que, apre-
ndo-se de tal modo, foram, por vezes, deplora-
imente injustos, — porque nem o mercante era
npre e em absoluto abjecto e desprezível, nem
rapazes eram tão maus nem tão perversos como
terror dos pães e consortes os pintava. Pelo que
speita a damas sensificadas e cavalheiros que lhes
tigavam com o alcide do amor a sua aplestia de
roaveis affeições, é de saber que estavam nesta
nação: Elias, se tinham certos dotes. li tterarios,
sreviam coisas d'estas :
« . ..Eu amei-o, oh meu Deus! era um anjo!
Era um anjo o mortal qu'eu amei ;
Mas que digo ? infeliz inda o amo
Só por morte de o amar deixarei.
Tem uns olhos castanhos escuros,
Quasi negros . . . que lindos que são !
Expressivos, tão ternos, tão meigos ! . . .
Iguaes olhos não ha — isso não. . .
Nunca amara— era livre e ditosa,
Esses olhos mal vi logo amei.
Feiticeiros!... fascinam e matam;
Doidejando por elles fiquei.
Fiquei doida por olhos divinos,
TILo divinos como eu nunca vi,
Longos tragos d'amor ineffavel,
N'aura taga por elles bebi.
118 CAMILLO
E O cabello ? tão negro. Ião negro,
Sua tez? Ião morena e tão pura,
E os dentes ? tão brancos, de neve,
E a gentil tão esbelta íigura?
He poeta o meu anjo !. .. no peito
Coração de poeta lhe bate :
Como nunca, ó poeta eu t'adoro
Pois tu hes cá na terra o meu vate.
Ai eu t'amo co' estremo e doçura!
Ai eu famo com idolatria I
A um mortal tanto amor consagrado
Tanto amor. . . só a Deus pertencia.
O bom Deus castigou-me por isso :
O meu anjo infiel se tornou I
Gosta d'outra. . . e a mim —malfadada —
Tão infliz e tão só me deixou.
Costa d'outra esse ingrato querido ?
Costa d'outra ! e agora ai de mim !
Que tormento me rala minh'alma,
Que tormento, meu Deus.. . e sem fim ! i> ^
E os homens iam dizendo magnas e amor
naquelle estylo, hoje morto, em que João de Lem
gemia os seus tormentos :
1 Pertencem estas quadras a uma extensa compo
ção que, com o titulo de O meu viver e assignada por 1/
portuense^ vem inserta no t V da Lista poética ou collec^
de poesias modernas de auctores portuguezes^ publicada p
José Ferreira Monteiro, em 1847, no lUo de Janeiro.
CAMILLO 119
« Ouves além no retumbar da serra,
O som do bronze, que nos causa horror ?
Foi mais um ente que voou da terra
Mais um poeta que morreu d'amôr. »
Porque nesse tempo morrria-se d^amôr, lyrica-
^ente, fora das imagens dos poetas e das paixões
de má ventura das chronicas medievaes. E morria-
se por vezes de modo tão extranhavel para a ma-
cieira de ver materialona dos nossos dias, que eu
terei de encarar sem um gracejo, d'entre o grupo
dos novos então em evidencia, alguns cuja sorte,
com certeza, merece, pelo que tem de doloroso, o
iiosso respeito, antes mesmo de, pelo seu interesse
como documento d^uma época e, de modo mais res-
tricto, como caso mórbido curioso, reclamar o nosso
estudo.
Assim esse Jorge Arthur, versejador e enamo-
i^ado, que ouvindo, da rua, cantar, entretendo as
visitas de casa, a creatura amada que, por elle ser
pobre, lhe não davam, se foi deitar da ponte abaixo,
Wando junto ao coração um boné de velludo, bor-
dado pela mulher por quem morria ^.
Assim esse D. João d'Azevedo, poeta e roman-
cista, que, amando uma mulher rebelde, fez impri-
Diir e mandou-lhe um só exemplar d^um livro a
descompô-la, o que lhe acarretou o ódio d'ella e um
maior motivo ás suas amarguras ^.
* Camillo : A mulher faial e Óbolo ás creanças,
* Camillo : No Bom Jesus do Monte,
BSSES
12 O CAMILLO
Assim Jacintho Navarro d'Andrade que, depois
de desbaratar o património, casou, e um dia, no
tempo da febre amarella, já doente, ao ver a mulher
morta, foi ao estabelecimento do Nilo, tomou um
banho frio e entrou em casa moribundo para expirar
horas depois ^.
E esse José Augusto que, sabendo, entre o rapto
e o casamento com Fanny Owen, que essa senhores -a
já depois de o conhecer, escrevera a um amigo, dí^^
zendo que não tinha achado ainda coração que
comprehendesse, deixou-a, passados meses, morre
virgem ^. Quando dias depois, uma febre cerebral
levou, dentro da única mala que conduzira para C^
hotel de Lisboa onde morreu, encontrou-se apena^
um vestido de noivado e uma coroa de flores de^
laranjeira *.
E, além d'estes, que Camillo nos mostra disper-
sos na sua longa galeria, ainda esse outro antigo
militar que, segundo o sr. Ramalho nos conta, «des-
enganado de todas as glorias, descrido de todas as
illusões com que se pode illuminar uma existência
de mundano, fazia periodicamente uma peregrina-
ção de nove léguas a pé, para ir a uma montanha
da provincia do Douro ver uma rapariga do campo
que tinha os olhos verdes e uma longa trança de
cabellos louros. As paredes do quarto em que per-
1 Camillo : 'No Bom Jesus do Monte.
2 Ramalho Ortigão: Log. cit
CAMILLO 121
noitava, por occasião d 'essas romagens, encheram-se
de versos á que denominava, A deusa dos olhos
garços». O original amante «morreu no Porto pros-
trado pelo abuso do álcool, em que tentava afogar
o seu longo e pesado tédio, num quarto de dormir
armado em barraca de campanha, tendo por deco-
ração duas múmias trazidas do Egypto, e uma jaula
em que se debatia e uivava um leão» ^.
E, a par d'isso, se corrermos, de passagem, as
causas da morte da maior parte dos que nesse tempo
figuravam na arte e no dandysmo e espantavam,
com os seus principios e as suas arrogâncias, a pa-
catez dos bons e honestos mercadores, iremos ver
preponderantes a tysica, o alcoolismo, a demência
e o suicidio.
Nasceram esses homens num periodo de agitação
politica, em que as tentativas de Napoleão ainda
não tinham esquecido e o liberalismo rompia por
toda a parte, berrando os seus direitos pela boca
dos tribunos ou pela intimação das bayonetas ; Por-
tugal vinha a ser, dentro em pouco, um reino sem
rei, sujeito ao mando de todos, á mercê do alvedrio
d'um bretão ou das ameaças d'um francês, ou das
represálias violentas d' um povo revoltado. Não vem
isto para demonstrar que nos invictos Saint-Preux
medrasse o fiiror d'esse constitucionalismo que, en-
tre nós, nunca foi mais que um inattingido ideal
Ramalho Ortigão : Log. cit.
122 OAMILLO
para meia dúzia e, sob o sendal de hypocrisia, um
suculento filão para a maior parte. A sciencia, po-
rém, ensina que os indivíduos concebidos em cer-
tas épocas agitadas apparecem muito vulgarmente
malformados ou soflfrendo perturbações nutritivas
e nervosas *; e, por esse lado, não espanta, mesmo
que circumstancias individuaes nos não convençam,
concluir que, afinal, com todo o seu ruido de escân-
dalo, as suas arremettidas de D. Juans e de Quixo-
tes, — a mocidade estúrdia de ha cincoenta annos
não passava de uma infeliz geração de nevropathas.
Para esses bons rapazes, se alguma coisa de alto e
respeitável havia na vida era o amor, esse amor
que os lançava sem medo nos braços da aventura,
esse amor que elles contavam e cantavam nas ingé-
nuas paginas dos seus livros. O amor era a re-
dempção, a fortuna, o destino, e a morte. . .
Um facto basta que o comprove : Quando foi à
scena, no Porto, pela primeira vez, a Dama das ca-
ineliasj a gente moça deu em procurar por toda a
parte, jà não pelos salões, mas nas ruelas da misé-
ria e do vicio, a Margarida Gauthier que o seu
amor redimiria. E o caso é que, na febre rehabi-
litadora, alguns d'esses homens desposaram, salvan-
do da tysica romântica no ultimo lance, garridas
damas que lá foram, no correr do tempo, envelhe-
cendo e encarquilhando, em charra prosa, como
qualquer matrona honesta.
1 Fere : Ob. cit., p. 18.
CAMILLO 123
E' opportuno agora recordar a interessantíssima
evocação que, em 1885, Camillo fez d^alguns episó-
dios da sua vida no Porto d'aquelle tempo. Vem
no segundo volume dos Serões de S, Miguel de Seide
e diz assim :
«A esta hora, na egreja de S. Ildefonso, no
Porto, uns presbyteros de larynge sadia garganteam
responsorios á beira do cadáver de um que ainda
hontera era Juiz da Relação, e se se chamava João
Roberto de Araújo Taveira. O concurso dos assis-
tentes, quer official quer espontâneo, deve ser lison-
jeiro para o benemérito defuncto. João Roberto,
diz o Diário que me trouxe a dolorosa noticia,
e?*a muito estimado pelas suas excellentes qualidades
e respeitado pela inquebrantabilidade do seu caracter
e rectidão de consciência. Entre tantos assistentes a
©ssa derradeira scena muda e cega que o corpo re-
presenta na crosta do planeta, nesse berrado lyris-
ncLo de cantochão que apenas tem para o morto a
V€i.ntagem de elle o não ouvir, posso jurar que
r^iiiguem se lembrou do que foi no Porto, ha 35
a.i:inos, aquelle velho que ali está na eça, rigido e
iriflexo, amortalhado na toga de desembargador.
Exn 1849 era João Roberto de Araújo Taveira um
^08 mais galhofeiros e satyricos rapazes da pha-
lange do Café Guichard — que eu chamaria uma
<^olmeia onde se emmelavam doces favos de espirito,
s^ aquelle botequim não fosse antes um vespereiro
4^6 desferia, às revoadas, ferretoando os bócios dos
gordos philistinos da Assembleia o as macias espa-
124 GAMILLO
daas lácteas das suas consortes no coração e nos
ádypos. Foi Joáo Roberto sempre magro e de
feições angulosas, typo cas telhado de raça musul-
mana, olhos phosphorescentes e umas risadas estri-
dulas quando tinha de castigar, rindo como Horácio,
um inepto desvanecido ao victoriar uma boa e lusi-
tana chalaça. A isso que hoje por ahi se inculca
subtil remoque, arranque de espirito, chamávamos
nós chalaçojí ; e às agudezas que actualmente cele-
brizam os Stemes e Pirons das Havanexas chamá-
vamos, nesse tempo, babuzeiras, provavelmente —
umas facécias aziumadas de velhice e expostas nos
trottoirs betuminosos das tabacarias. Na mocidade
de João Roberto e na minha, os estanques eram
sentinas delecterias, umas colónias de micróbios
virgulados ainda então inéditos, pestilenciaes escân-
dalos onde os viciosos, por medo da opinião publica,
não paravam. Os Contractadores do Tabaco eram
umas espécies peoradas de Mellos do Casacão (Deus
perdoe a todos!) que viviam medradamente das
agencias d'aquelles bordeis de nicotina. A tabacaria
ainda não tinha usurpado â botica a concorrência
de individues, pletóricos de anecdotas lúbricas, e
archivistas dos maus costumes das familias de suas
relações. A botica era o queimadeiro subalterno
dos créditos, uma espécie de patibulo succursal do
Palheiro, grande centro constituído em uma sala
especial da Assembleia da Trindade, Fazia-se ali a
Pall Mali Gazette verbal do Porto, e esboçava-se a
preexistência do Daily News, de Chicago. A male-
CAMILLO 125
dicencia do Café-Guicliard era a vingadora das
^ctimas do Palheiro em particular e da botica em
geral. Nós profligavamos a corrupção dos velhos, a
putrilagem purulenta que infeccionava, com a lingua,
t:oda a florescência das almas novas. Compunha-se
o Palheiro de veteranos estropiados^ um contuber-
iiaculo de argentarios inválidos com fêmeas espaven-
tosas muito communistas, egressos, causidicos, or-
laamentes da magistratura, e até desembargadores
^ bastantes cónegos, todos cabralistas e alguns,
salvo seja, catholicos. Contavam, â vez, historias
oantaridadas das Vénus au rábais da sua mocidade,
rapaziadas terríveis, particularizando miudezas ana-
t:omicas, musculaturas, curvas de carne, boleios de
c][uadris e maciezas de epiderme, como se do craneo
cie cada qual estivesse a explosir o futuro Zola.
Tal era o Palheiro^ hoje provavelmente substituído
-»tavicamente por uns calvos, com dentaduras pro-
blemáticas, que, ha 36 annos, encalamistravam os
l3Ígodes e naroisavam as cabelleiras frizadas nos
espelhos do Café-Gruichard. O certo é que o Palheiro
«ubsiste. As trombetas do progresso ainda não vin-
caram baquear aquelle pedaço da velha Jericó. E
"uma escrophula hereditária do burgo de D. Moninho.
cNo qual tempo, João Roberto escrevia chroni-
cas semanaes no Ecco Popular com um pseudo nymo.
lEstylo um pouco derramado, aziatico, mas adubado
de picantes especiarias levantinas. Mordacidade
felina, bastante delicada, mas com unhas sempre
desembainhadas para impor respeito nas brincadei-
126 CAMILLO
ras. Havia guerra de adjectivos percucientes i^ow:
causa das actrizes lyricas. Elle alistara-se no estan^
darte da Dabedeille, esvelta mulher. Um clássico,
sem medo do calembour, diria que toda a juventudes
portuense seguia as partes da cantora aphrodysiaca.
Morgados da provincia arrebanhavam-se, como cer-
dos, à volta d'aquella Circe. Eu e poucos mais jurá-
ramos levar pancada até morrer, sendo preciso, fiéis
à bandeira da Belloni, uma creatura enfesada, feia,
veletudinaria, casada e de mais a mais honesta.
Anastácio das Lombrigas^ um pseudonymo espiri-
tuoso que prognosticava a tenia, era o meu nome
de guerra no Jornal do Porto, João Roberto arcou
valentemente comigo e de modo tal que sahiu doeste
mundo com as contas bem saldadas em moeda de
epigramma, de insolência e de troça. Ninguém sa-
bia, nem o proprietário do jornal, o João Coelho,
que morreu ministro em Berlim, quem era o Anas-
tácio das Lombrigas, Quando eu tive, no momento
physiologico de pancadaria imminente, a lenidade
de o declarar em defesa de alguma supposta victima
sem culpa nem grammatica, Joáo Roberto applaudiu
a minha franca lealdade, modificando para melhor
a sua opinião impressa a respeito das minhas par-
voiçadas lyricas, muito accentuadas na estólida
pretensão de fazer-me mestre de esthetica portu-
guesa, o Véron da Rua das Flores. D'ahi em diante,
nos poucos meses que convivemos no Porto, terça-
mos ainda as pennas de pato no campo do folhetim
honrado, sem nos tratarmos de ptilhas, de patifes^
CAMILLO 127
e nem sequer de bestas — um caso my thologico nas
polemicas indígenas. E entretanto deu-se uma causa
irritante para voltarmos â cascalheira lamacenta em
que os fundibularios carregam as fundas. Ainda
hontem a li no Nacional d'aquelle anno: e, quando
cheguei ao fim, as lagrimas não me deixaram dele-
trear as ultimas linhas. Saudade de tantos amigos
mortos, e saudade de mim mesmo, da minha alegria,
das minhas doidices, dos meus 23 annos.
cFoi assim. Os paladinos da Dabedeille, em
numero passante de vinte e quatro, deram-lhe um
jantar na Ponte-de-Pedra. Concorreram damas da
primeira extracção com os seus pérfidos esposos.
Ditosa condição, ditosa gente
Que não são de ciúmes offendidos.
Casualmente passeava eu por aquelles sitios. Ia
comigo Aloysio Ferreira de Seabra, um hellonista^
fallecido ha muitos annos, conjurado também em
deixar-se bater e matar por ella, que era feia, doente,
casada e de mais a mais honesta. A fileira especta-
culosa dos trens á porta da taverna beliscou-me a
curiosidade. Quando soubemos que se festejava a
cantora, apeamos com a innocente cobiça de ouvir
08 brindes. O taverneiro serviu-nos um quarto e
amas enguias de caldeirada, ao pé da sala do ban-
quete. Um dos commensaes que ainda vive e nào
podia ser senão o festival João Guimarães, que
Deus conserve dilatados annos na recebedoria de
128 CAMTLLO
Belém, vira-nos curvados ugolinament^ sobre as
enguias rescendentes de colorào, e chamou, de lon-
ge, a nossa attençáo com uma palmatória que um
prospero acaso deparara ao seu espirito magistral;
e, daudo palmatoadas na sua mão esquerda, expri-
mia o symbolista imaginoso que o jantar dado pelos
dabedeillistas á sua dama eram ideaes palmatoadas
nos menestréis, a sêcco, da Belloni. Não soubemos
estheticamente apreciar a symbolica de Joáo Gui-
marães, sob aquella forma pedagoga — uma ratice
genial, com todas as irresponsabilidades de um or-
ganismo esquisito, como era o do nosso jovial amigo.
Capitulou-se pois de rept© o acto; e, sem prévio
debate, entramos, os dois, de copo em punho, na.
quadra do banquete, e brindámos á nossa dama, a
dessorada Belloni, feia, enfermiça, casada e de mais
a mais honesta. Entre aquelles vinte e tantos con-
vivas havia rapazes muito valentes. Estavam os
quatro famosos Guedes, da casa da Costa, o terror
dos caceteiros cabralistas; os Leites de Paço de
Sousa; bastantes morgados de Riba-Douro e Rib<»
Corgo e E/iba Tâmega — uma gente bravia com ares
de recem-vindos da Palestina, fartos de fluminar o
montante, espostejando mós de turcos. Conhecia-se
apenas que eram nossos contemporâneos, pelas mi-
rabolantes cores com que vestiam — pittorescos como
araras. Pois d^esses façanhosos nenhum se insurgiu
contra nós. Er^ueram-se apenas, floreando as facas
do talher, com^ cabo de osso sujo, os três ou quatro
únicos poltrões da companhia. Aloysio de Seabra
GAMILLO 129
retirara ferido em uma das mãos pela ponta de um
estoque de bengala; e eu, que entrara resoluto a
morrer, inutilizado o copo na cabeça do mais co-
barde, cruzei os braços esperando a morte numa
attitude romana ; e, se não cobri o rosto como César,
em vista de vários brutos sem maiúscula, foi por-
que a aba do frak náo me chegava à cabeça. Parece
que entre os três ou quatro carnifices havia hesita-
ções : se me rebentariam de encontro á parede, ou
se seria mais exemplar enforcarem-me em um galho
do pinhal. Uma senhora hysterica, com uns soluços,
dava-se geitos de querer desmaiar. Outra matrona
^nctuosa, frescalhona, de caracóes postiços, com ares
de muito emancipada de etiquetas, dardejava-me
olhos exophtalmicos furiosamente e vociferava : —
Pouca vergonha/ pouca vergonha/ EUa parecia do-
minada do cruel appetite de me dar meia dúzia de
facadas nas entranhas. — Que eu tinha-lhe pe7i;ur-
hado a digestão, dizia, muito azeda, com flatulências,
pondo as mãos espalmadas no alto ventre tympa-
nizado. João Roberto d'Araujo Taveira e António
Guedes Infante perfilaram-se comigo. O Guedes
ria-se — aquelle gentilissimo rapaz que, damas e ho-
mens, todos amávamos pela graça incomparável do
seu rosto e pelos encantos do seu riso sarcástico.
EUe tinha inventado o itálico na palestra oral ; era
pôr o dedo sob o lábio inferior quando a palavra
era expedida. — E^ preciso, disse-me elle então,
dar uma satisfação a madame Dahedeille, que éuma
virtuosa senhora^ q griphava com o dedo debaixo
9
130 OAMILLO
*
do beiço a virtuosa senhora. Entretanto, Joào Eo-
berto, voltado contra o grupo dos cannibaes, perorava
com gestos forenses e 5 razões: 1.* Qae era indeco-
roso atacarem um homem só e inerme. 2.* Que o
nosso brinde romanesco a mad. Belloni, se não era
uma expansão de corações sensiveis, também ná4
podia considerar-se explosão d efinitiva do vinho dá
Ponte-de-Pedra que não prestava para nada. 3.
Que mad. Dabedeille, com o seu rico, saluberrim*
sangue e marmóreas carnes, a rebentar de sadia
não poderia levar a mal que dois cytaredos da sua
rival anemica propusessem um brinde á saúde d-
mad. Belloni, uma dama que expedia dos gorgomi
los infelizes notas cacheticas a pedirem misericordis
e óleo de fígados de bacalhau. 4.*- Que o sangu
derramado per causa das duas primas-donas naquell
recinto, ou taberna, era uma orgia de sentimenta
lismo que envergonhará Portugal, um paiz serie
perante as nações da Europa culta e talvez na prc
pria Tartaria. 6.* e ultima razão, que me deixasser
ir em paz e incólume, a digerir a minha paix;à.o oi
o meu vinho, se elle fora o elixir que fizera retrc
ceder o meu espirito até á edade media, enchendc
me a cabeça de S/olandos, de Amadizes, de Clari
mundos e Cavalleiros da Triste figura, isto num.
época de prosa em que as Dulcineas se festeja var
a 3 pintos por cabeça numa estalagem de almocr€
ves. E, curvando-se ao meu ouvido : — ; Vá-se embor^
emquanto elles mastigam o meu discurso. Lembres
você qus a rhetorica de CUcero nem sempre salvoi
CAMILLO 131
08 seus clientes; nem elle próprio com toda a sua
eloquência se eximiu de o levar o diabo. Achei razáo
a João E/Oberto e fui-me embora. E no dia seguinte
inventei uma vingança estrondosa — uma corneta
de lata feita na Rua Escura que expedia berros
atroadores; e, no theatro de S. Joào, inaugurei pa-
teadas á Dabedeille com trompa. Nem inventei mais
nada em toda a minha vida, na região do lyrismo.
O martello já estava inventado pelo Diogo Maria,
conde de Casal, o príncipe dos elegantes, que hoje
esconde os destroços da sua vida atormentada nas
brenhas de uma quinta no Alto Minho, sem saudade
do que foi, porque entre as pompas da sua juven-
tude e a sua velhice obscura está a imagem de uma
fillia morta a nublar-lhe o passado com tamanha
paixão que todos os horizontes lhe fecha e aperta
st Tolta de uma sepultura. Quem são os que ainda
vi^em d'aquelle banquete ? seis ou sete dos vinte e
tatntos, quando muito. Ha seis meses acabou de
morrer um, nas angustias da ataxia: elle era o mais
irrequieto e alegre de todos nós — o António Duarte
Gluimarâes. Que desconto acerbo o dos seus últimos
^Tinos, confrontados com os júbilos imperturbáveis
da sua mocidade, e pela vida fora, sempre honrada,
*té que os cabellos lhe encaneceram, e a doença
entrou a esphacelá-lo por todas as fibras ! Um dos
restantes, era esse, o juiz da Relação João Roberto
í^e a esta horEj hirto na sua mortalha de tafetá, em
S. Ildefonso, inicia a putrefacçáo transformista do
seo quinhão de matéria que ali serve de pretexto ^
l
132 CAMILLO
algazarra latina fanhoseada por algumas dezenas de
presbyteros com mercenária uncçáo e grande apro-
veitamento.
«Restamos poucos d^aquelles genuínos de 1849,
sinceramente rapazes, pouco dinheirosos, nada con-
vencionalistas; mas desinfectantes e imputreciveií^
no seio das familias, porque eram românticos, cas-
tamente românticos. Guedes Infante ó cônsul
Gallisa. Quando nos encontramos, com interposta
ausências de annos, conversamos de uns sujeito
que tiveram o nosso nome. Se os nossos risos pu
dessem ser liquidados, davam uma lagrima. Cons
tantino de Souza Guedes, um dos restantes, segui
immaculadamente a magistratura. Antes de enve
Ihecer, quando o vulgar dos magistrados se arre
dondam e arrotam boas digestões, elle adelgaçava-s
e estorcia-se nas dilacerações da nevralgia. Do
outros, náo sei ; ou, se os encontro, não os conheço,
nem me reconhecem. Este que hontem morreu, en—
contrei-o, ha poucos meses, pelo braço da esposa^
que lhe era um anjo bom em paga de uma adoração
de muitos annos e sem intermittencia. Eu disse-lhe
que ia morrer; e elle, com um sorriso animador: —
você está a ir morrer ha tHnta annos,
«E as primas-donas o que efeito d'ellas? Onde
tiritam essas duas velhinhas que trouxeram ahi de
escantilhão, de asneira em asneira, a juventude
doesta cidade, medieval nos seus amores, e os cora-
ções dom-juanescos dos morgados de Riba-Douro,
Kiba-Corgo e Riba-Tamega ? A Belloni nunca mais
CAMILLO 133
cantou. Morreu logo. A Dabedeille poucos annos
sobreviveu à sua pobre rival no proscénio. Lâ fo-
ram ambas desafinar no coro dos anjos » .
Nesse mesmo theatro de S. João, ha pouco des-
truido por um incêndio, deu-se um episodio inte-
ressante que o sr. Ramalho Ortigão nos conta no
seu jâ citado Estudo critico. Foi assim :
« O jornalista Novaes Vieira, o Novaes dos óculos
ou Novaes da Pátria^ como variadamente lhe cha-
mavam, publicou um artigo de maledicência, em
que três homens, Camillo, Faustino Xavier de No-
-vaes e um outro cujo nome me esquece, viram
allusões pessoaes que resolveram punir. No dia
â'essa publicação malfadada, Faustino, chegando
fito theatro de S. João, onde o redactor da Pátria
ia todas as noites, encontrou no pateo da entrada
Camillo, rebuçado no plaid, com o casse-tête bam-
boleando pendente da sôga. — Quem lhe dá aqui
sou eu, que cheguei primeiro^ disse Camillo. Faus-
tino subiu á .primeira ordem, onde Novaes Vieira
assistia de um camarote ao espectáculo. Á porta
d'es8e camarote, sobraçando uma longa chibata de
picaria, paisseava o anonymo a que acima alludi.
Este personagem dirigiu-se attenciosamente a Faus-
tino Xavier de Novaes : — Se v, ex,^ vem também
pdra espancar o sr. Novaes Vieira, rogo4he o obse-
Çwio de esperar de preferencia lá em baixo ... — Lá
^wi haixo está-o esperando já com logar tomado o sr.
Camillo Castello Branco, — Nesse caso supplicar-
the-hei que me faça a fineza de ir para esse pnmeiro
134 CAMILLO
patamar. Eu encaminharei para lá os passos do sr,
Novaes Vieira, para cujo primeiro encontro sou eu
que tenho a vez. Ha dez minutos que aqui estou.
Assim, bem vê, , . O drama de expiação, em que o
pobre Novaes da Pátria estava destinado a figurar
nessa noite infausta, foi pungente mas breve. Den-
tro de poucos minutos, o desventurado sahia do
camarote em que se achava, era rapidamente es-
treiado com duas chibatadas, galgava como um
gamo o primeiro lanço de escada; d'ahi rechassado
a socco, vinha de um só pulo cahir sob o ca^se-tête
de Camillo, no esteiráo do fundo, e era conse-
cutivamente levado em braços á botica próxima,
com uma brecha na cabeça e duas costellas par-
tidas » .
Mas sempre esses doidivanas atiravam para um
regaço de mulher, entre as pétalas do galanteio, um
pedaço de coração, de forma que, se era aquella a
mulher fatal de que falam as chro nicas do tempo,
assim o namorado, num instante, iniciava a sua sina
de amor e de desgraça. Elles faziam versos, ellas
liam-n'os, e os bons papás mercantes, vivendo num
positivismo que não excluia, de vez em quando, a
sua historia de coração, não queriam saber de musas
e olhavam de soslaio para os endiabrados pertur-
badores da sua paz. De resto, a época, por qual-
quer lado que a encaremos, apparece-nos com um
certo ar de ingenuidade, toda de enthusiasmos
espontâneos, uma maneira sinceramente simples em
tudo, sem sombras d'uma preoccupaçáo pelo gro-
CAMILLO 136
tesco, que incommode, ou que constranja. Ia ser
ainda essa a geração do
t Senhor Rei, ac ceita o preito »
arroto lyrico-patriotico que um bardo enthusiasta
arrojou, no S. Joáo, ás regias faces do monarcha
D. Luiz, — quando aos reis se falava em oitava ri-
ma e a Carta não gemia ainda o fado da desillu-
são. Ao ver agora, já de longe, num meio tão di-
verso e, valha a verdade, táo menos interessante,
essa sociedade pittoresca, com as suas usanças cu-
riosas e a sua maneira, tão outra, de tomar a vida
a serio, — a gente sorri, como Camillo, nos últimos
annos da sua vida, sorria, doesse passado depressa
desfeito, com a estabilidade ephemera das épocas
de transição . . .
Foi comtudo nesse periodo, quando o feitio ro-
manesco triumphava em toda a linha, que, num
baile da Assembleia, Camillo deixou preso num
olhar de mulher o seu destino.
« £ra num baile. Ondulava
De ouro e sedas o salão :
O ar que ali se aspirava
Escaldava o coração.
Tinha fogo o olhar da virgem,
Fogo de amor, de vertigem
Desse que inflama o pudor ;
Tinha a mulher, anjo ou fada.
Uma existência encantada.
Um condão fascinador !
136 CAMILLO
Que líQda noute, que vida
No salão se não viveu !
Que existência tao florida
Nessa quadra rescendeu !
Que sorrisos tao mimosos
Se trocaram carinhosos
Nesse angélico festim !
Um galanteio era um hymno.
Que soava um som divino
Nos lábios d'um cherubim.
Era um folgar incessante,
Era um delirio febril !
Cada qual cinge da amante
Breve cintura gentil ;
V6a com ella, embebido
No lindo collo pendido.
No ebúrneo peito ao desdém. ..
Sente arfar tão junto d^ella
O coração que revela
Ventura... e magoas?... também !
E, depois, lá murmuravam
Brandas, doces expressões. . .
Cada palavra que davam
Besumia mil paixões . . .
Uma só, um só sorriso,
Um olhar terno indeciso.
Uma supplica. . . talvez !. . .
E, no fim do baile, a pena. . .
A saudade. . . Âi! tão pequena
Foi a noite desta vez ! » ^
V
^ Caxillo : Duas épocas na vida.
CAMILLO 137
« Quando entrei na sala, em que ella estava, ia
triste. A escuridade interior do espirito vinha fora
espessar em volta dos olhos da face uma zona, cor
das minhas imaginações, negra como a desespe-
rança, como os vinte e dois annos sem amor, como
o tédio das delicias da vida apenas provadas. Vi,
como se vê num sonho, sem conhecimento da alma
pensante, o quadro confuso de espectáculos agra-
dáveis. Giravam as valsas, sentia nas faces o hálito
das mulheres offegantes de cansaço, os vestidos em
rodopio agitavam o ar tépido, rossavam-me o braço
hombros nus, seios alvos e duros como alabastro,
6 náo sei se mais animados pela vida do coração
que o mármore das estatuas. Se eram Galatheas
náo o sabia eu ; Pigmaliões, no ardor do olhar pa-
reciam-me todos os que as levavam cingidas no
pular vertiginoso da dança. E ellas deixavam-se
apertar e elanguesciam, ageitando as feições de
modo que pareciam envergonhadas da lubricidade
d'elles. O espectáculo devia ser deleitoso para todo
o homem que estivesse em paz comsigo e com os
outros. Para mim era triste. Ali foi que eu conheci
o que é o doer da solidão moral. Cessaram as dan-
ças. Um homem deume o braço e disse-me : —
Venha ver as três mulheres mais lindas d'esta terra.
Da que primeiro vi mal me recordo. Se a procurar
hoje, depois de doze annos, para acordar as remi-
niscências d^então, não a encontro, que morreu.
Da segunda nunca poderei esquecer os olhos. A
luz que elles tinham, como o fogo das vestaes
138 CAMILLO
nunca se apaga: a terra da sepultura abafa o reci-
piente da alma que chammejava nelles, mas e^
flamma vive sempre na memoria do coração que os
contemplou um momento. Morreu também essa. A-
terceira eras tu. Vestias de branco, cahia-te da cin-
tura aos pés uma faxa de sedas em ondulações^
ennastravam-te os cabellos enfeites de fitas escar-
lates tão graciosos como singelos. Aqui tenho deante
de mim o teu retrato. Eras assim. Aqui me estás,
no estio da vida, florindo a primavera d'entáo.
Doze annos, e nem uma pétala murcha doestas flo-
res ! Frescura, graça, meiguice, o sorrir caricioso, o
olhar mórbido, a voluptuosidade innocenfe, os teus
dezeseis annos aqui neste retrato, que me está
dizendo : Se queres achar os estragos do tempo, pro-
cura-m'os no espirito, A formosura em mim é dura-
dou7'a como a dadiva funesta de um destino irrevo-
gável, Deixa-me recordar aquella noite. Eu contem-
plei-te. Viste-me; e, d'ahi a momentos, procuraste o
desconhecido que ouviras dizer-se em sua consciên-
cia : Com esta impressão alimenta-se uma longa vida.
Não me viste já. O restante d'aquella noite passei-a
lendo Werther e comprehendi-o. Imaginei- te amada,
imaginei- te esposa d'aquelle que disputava a tantos
um sorriso teu, comprehendi a paixão que nega o
dever, que acovarda a dignidade do homem, e o
desata das correntes da vida. A um relâmpago dos
teus olhos, vi todos os arcanos tenebrosos do cora-
ção humano. Ao outro dia, puderas vêr impressa
a historia de um cinerario que se abrira, para que
CAMILLO 139
s cinzas de um coração revivessem. Leste-a. Fa-
iva-se ahi de um anjo que puzera o dedo sobre
urna funérea. Os traços debuxados da creatura
3lestial eram os teus; mas nessa sala estavam três
lulheres bellas, e tu renunciavas o primor á mais
mbiciosa. Has-de crêr-me. Vêr, nos extasis scisma-
ores da juventude, uma imagem, um aggregado
e feições que raro se nos deparam complexas de-
ois, e que se vão encontrando separadas e acaso
3 amam do amor reflectido do typo imaginário,
áo é mentira nem mera visualidade de poeta, i *
Anna Plácido, senhora somaticamente dotada
e preclaros méritos e sua tendenciasinha mórbida
ara as letras, era, ao tempo em que, segundo
onta a historia, sentiu em si uma paixão intensa
or Camillo, a noiva promettida do brazileiro Al-
es. Casou, dizem que depois de chorar muito, e
e os annos que viveu com o marido, gosando em
rente ao mundo o aspecto d'uma vida de tranquilla
az, passaram sem um reparo para o chronista me-
iculoso de percalços do coração, não o sabe nem
quer saber quem estas linhas escreve com algum
.m mais alto que divulgar, em phrase limpa, as
Qais divertidas blandinas. Por esses annos andou
yamillo, embora trabalhando sempre, numa vida
Qcerta, em que o propósito de se afastar da crea-
ura que espiritualmente o prendera não conseguiu
vencer a tentação, mais forte, de ficar. Pensa em
^ C4AMILLO : Scenas innocentea de comedia humana.
140 CAMILLO
ir para o Brazil e não vae; retira-se para o Minho
e logo volta : matricula-se no Seminário e, no mo-
mento de tomar ordens, vem-se embora.
Esse impulso de romantismo ardente, que o
ia levando á vida de padre, influiu, durante iim
certo periodo, na sua obra. O mysticismo de Ca-
millo era aquelle de que tantas vezes se acompanha
a paixão amorosa. Na carta ao visconde d^Azevedo
que vem inserta no volume da edição, feita onze
annos depois, dos artigos sobre a Divindade de Jesm^
escriptos nessa época, o próprio romancista nos for-
nece elementos bastantes para ajuizar do seu estado
psycologico d'então. «Quando eu escrevi os arti-
gos, que me foram testemunho da minha ignorân-
cia ou hypocrisia nas praticas dos meus julgadores
imprudentes, — diz Camillo — me estava eu dando
a mim as razões da minha crença. Não sei se foi
algum ingente infortúnio que me fez ir alliviar o peso
de minha cruz ao pé da cruz do Homem-Deus:
devia de ser ; umas quasi delidas reminiscências do
coração d'aquella edade me dizem que foi. O aperto
da dor espertou-me na memoria as orações da in-
&ncia. A mãe, que eu não conhecera, devia falar-me
nessa hora. A luz que depois me guiou no rasto
dos grandes infelizes, caminho do Calvário, devia
de preluzir-m'a ella no animo conturbado e affligido,
antes que o estudo me volvesse á serenidade da fé
e ás fontes novas das aguas bemditas da esperança.
Vi então rasgarem-se-me os horizontes da vida em
annos de paz. Contava com a graça divina para
OAMILLO 141
ctar e vencer, vencer-me a mim, o mais inexora-
íl inimigo que ainda tive. Enganei-me : as paixões
>praram rijas do lado do inferno ; os vislumbres
j. graça deixei-os apagar no coração replecto de
laus sedimentos. Volvi ás angustias antigas, ás tre-
as d'uma cegueira em que, por vezes, umas visões
orno os lampejos dos amauroticos, me dav^m reba-
3s de saudade da luz perdida».
Sobre o modo como a opinião publica ajuizou a
ua conducta neste lance, também o depoimento de
5amillo nos não deixa duvidas. São ainda palavras
uas, da carta ao visconde d'Azevedo: «O fervoroso
esejo de entranhar a minha fé no animo de amigos
•em inclinados, que se dispensavam d^ella, emquanto
s miragens da vida, moça e enganada, lhes basta-
ram á lisonja d'olhos, e o coração, de grado, se en-
regava á cadeia doirada das esperanças : — aquelle
ervoroso desejo, digo, foi grande parte no publi-
iarem-se os argumentos com que eu respondia á
philosophia indócil dos espantados da minha con-
versão. Conversão chamaram alguns o que mera-
Biente devera chamar-se reflexão, A juizo d'outros
a minha religiosidade era hypocrisia. Os amigos
arguiam-me de inepto ; os inimigos de impostor. . . »
No Seminário, em 51, Camillo perdeu o anno
por faltas. E^ nos annos seguintes, a sua preoccupa-
;âo dominadora era fugir d'esse amor de mulher
[Ue o attrahia como um abysmo e assustava como
im peccado. Por algum tempo, isolou-se num arra-
alde de Vianna do Castello, em S. João de Agra.
142 CAMILLO
Depois voltou. E era tal o seu empenho em con-
vencer os outros, e porventura em convencer-se a si
próprio, do mj^^sticismo em que debalde procurava
repoisar o espirito, que uma noite, no theatro de
S. João, confuso deante do conselheiro Guilhermino
de Barros, pretendeu desculpar-se da sua estada ali:
— Venho ouvir o Moysós, que é uma opera de assum-
pto bíblico ^ Está dito que Camillo era um sensual;
a imagem d'aquella mulher, esculpturalmente per-
feita, que o attraia, náo esquecera nunca; nos seus
romances d^então apparece uma mulher idealmente
linda, que o destino sacrifica a um brutamontes, e,
nas entrelinhas, a cada figura, por maior diversidade
de caracteres que as scindam, a gente vê, bem *
claro, Anna Plácido — a creatura amada sempre -^
e o marido atirado para a galeria dos bobos que ^
romancista mostrava ao publico ridente, — coma
mais precioso exemplar e o mais grotesco.
Se me náo arreceasse da banalidade miserriocií
da imagem, eu diria que Anna Plácido attraia Ca-
millo como a luz attrae a borboleta. E foi afinal em
1858, no Bom Jesus do Monte, que a borboleta
irremediavelmente queimou as azas fugidias. EUe
viu-a, quando ella, junto ás arvores do Bom Jesus,
acompanhava uma irmã doente. Elle viu-a; correu
o lance do maior perigo e foi vencido. De volU
d'ali, Anna Plácido recebeu de Camillo a confissà<
do seu amor nestas quintilhas :
* Alberto Pimentel: 0$ amores de Camillo.
CAMILLO 143
Quem ha ahi que possa o cálix
Dos meus lábios apartar?
Quem, nesta vida de penas,
Poderá mudar as scenas
Que ninguém pôde mudar ?
Quem possne nalma o segredo
De salvar-me pelo amor?
Quem me dará gota d*agua
Nesta angustiosa fragua
D'um deserto abrazadôr?
Se alguém existe na terra
Que tanto possa, és tu só !
Tu só, mulher que eu adoro.
Quando a Deus piedade imploro,
E a ti pego amor e dó.
Se soubesses que tristeza
Enluta meu coragão.
Terias nobre vaidade
Em me dar felicidade,
Que eu busquei no mundo em vão.
Busquei-a em tudo na terra.
Tudo na terra mentiu !
Essa estrella carinhosa
Que luz á infância ditosa
Para mim nunca luziu.
Infeliz desde creança,
Nem me foi risonha a fé ;
Quando a terra nos maltrata,
Caprichosa, acerba e ingrata,
Ceu e esperança nada é.
144 CAMILLO
Pois a ventura busquei-a
No vivo anceio do amor,
Era ardente a minha alma ;
Conquistei mais d'uma palma
A' custa de muita dòr.
Mas estas palmas taes eram
Que, postas no coragão,
Fundas raizes lançavam,
E nas lagrimas medravam
Com fructos de maldição.
Em anciãs d'alma, a ventura
Nos dons da sciencia busquei.
Tudo mentira ! A sciencia
Era um signal de impotência
Da vã razão que invoquei. - .
Era um brado, um testemunho
Do nada que o mundo é.
Quanto a minha mente erguia
Tudo por terra cahia.
Só ficava Deus e a fé.
Lancei-me aos braços do Eterno
Com o fervor de infeliz ;
Senti mais fundas as dores,
Mais agros os dissabores. . .
O próprio Deus não me quiz !
Depois, no mundo, cercado
Só de angustias, divaguei
De um abysmo a outro abysmo
Pedindo ao louco cynismo
O prazer que não achei.
CAMILLO
Tristes correram meus annos
Na infância que em todos é
Bella de crenças e amôresv
Terna de risos e flores
Santa de esp'rança e de fé.
Assim negra me era a vida
Quando, oh luz d'alma, te vi
Baixar do ceu, onde outr'ora
Te busquei, mão redemptora,
Procurando amparo em ti.
Serás tu a mão piedosa,
Que se estende entre escarcéus
Ao perdido naufragado?
Serás tu, ser adorado.
Um premio vindo dos céus?
E eu mereço-te, que immenso
Tem já sido o meu quinhão
De torturas não sabidas.
Com resignação soffridas
Nos seios do coração.
Que ternura e amor e afagos
Toda a vida te darei !
Com que jubilo e delirio,
Nova dôr, novo martyrio
De ti vindo, acceitarei !
Se na terra um ceu desejas
Como ceu que eu tanto quiz,
^e d'um anjo a gloria queres.
Serás anjo, se fizeres,
■Contra o destino, um feliz.
145
10
um CAHILLO
Faz que eu veja nestas trevas
Um relâmpago de amor,
Que eu não morra sem que diga :
t Tive no mundo uma amiga,
t Que entendeu a minha dòr.
t Deu-me ella o estro grande
t Das memoráveis canções ;
t Accendeu-me a extincta chamma
c Da inspiração que inflamma
c Regelados corações.
t Os segredos dos afTcctos
« Que mais puros Deus nos deu^
< £nsinou-m'os ella um dia
a Que d'entre archanjos descia
c Com linguagem do ceu.
t Os mimosos pensamentos
a Que, de mim soberbo, leio,
€ Inspirou-m'os, deu-m'os ella,
• Recostando a fronte bel la
« Sobre o meu ardente seio.
« Morta estava a phantasia
«Que o gelo d'alma esfriou ;
t Tinha o espirito dormente,
« Só no peito um fogo ardente,
€ Quando o ceu m'a deparou.
« Agora morro no goso
a D'uma saudade immortal.
a Foi ditosa a minha sorte ;
« Amei, vivi ; venha a marte,
« Que morte ou vida é-me eguaK
CAMILLO 147
tEgnal sim, que o amôr profundo,
« Gomo foi na terra o meu,
« Nào expira, é sempre vivo,
« Sempre ardente e progressivo
« Em perpetuo amor do ceu ».
Asâim, querida, meus lábios,
Já moribundos, dirão,
Nas agonias supremas.
Essas palavras extremas.
Do meu ao teu coração.
Sabes quem é, neste mundo,
Quasi igual ao Redemptor?
É quem diz : « Sou adorada
c Pela alma resgatada,
c Por mim das anciãs da dôr i>,
« Estes versos chegaram ao seu destino, — diz o
^^. Alberto Pimentel no seu livro Os amores de Ca-
"^illOj depois de transcrevê-los — foram lidos, encon-
traram echo affectuoso num coração de mulher que
^s decorou». E assim, porque tal amôr sahisse da
reserva platónica em que confrangi da mente se em-
*^renhára, oito annos depois do primeiro encontro no
^Q-l baile, Anna Plácido abandonou o marido, se-
guindo, com Camillo, por esse Portugal fora, a
exhibir vaidosamente aos olhos de censores e mal-
dizentes o interesse picante da aventura. Pinheiro
A-lves, ferido pelo escândalo, processou por adultério
* mulher e o amante ; a consorte foi presa no justo
praso em que a justiça assim o quiz, e o romancista,
mcapaz, como em todas as épocas da vida, de tomar
14S CAMILLO
com firmeza uma resolução, deixou-se levar, ora por
conselhos precavidos de amigos, ora por instancias
da saudade, numa peregrinação pelas terras em que
logares ou creaturas estavam presos a um episodio
inolvidado da sua agitada vida de outros tempos.
Lá foi a essa Samardan e viu a*Luiza que em
novo amara, seguindo com os seus filhos e as suas
rugas o caminho da velhice, a Villa Beal, onde a
irmà de seu pae, decrépita e cadavérica, lhe disse
que era necessário ser desgraçado, para náo contra-
dizer os fados da familia, ^ e ainda ao Bom Jesus
do Monte, onde recentes recordações lhe traziam ao
espirito, num nimbo de doirado idealismo, o seu
amor de entáo. Até que, instável na própria posição
de fugitivo, nào podendo supportar por muito tempo
a mesma orientação, destituido de toda a equilibrada
força de vontade, passados quatro meses, Camillo
entregou-se ao carcereiro da Relação do Porto, ^
para que, sem entrave, a justiça resolvesse da incer-
teza do seu destino, porque se lhe não pedia já que
dissesse da boa ou má razão da sua causa.
Na véspera (30 de setembro de 1860), tinha es-
cripto a Vieira de Castro uma carta que principiava
assim: «Meu V. de C. — Amanhã entro na Relação,
Uma d'estas noites, impellido pela saudade, pela
paixão e pelo remorso de ter ofícndido a martyr,
1 Camillo : Ao anoitecer da vida»
* Camillo : Memorias do cárcere.
CAMILLO 149
entrei »a Kelaç&o, subi, abrirara-se três portas, fui
até a encontrar, abraçar, chorar, e salvar-me da de-
mência. No dia seguinte, era um inferno na Relaçáo :
Presidente, procurador régio, guarda-mór, carcerei-
ro, chaveiros, toda aquella cafraria endiabrada con-
tra o meu arrojo. Que importa ! eu tinha-me salvado,
salvando-a. . •» ^
O julgamento de Camillo e da sua cúmplice no
crime d'adulterio começou em 15 de outubro de
1861, um anno e quinze dias depois da entrada
d'elle na cadeia, e terminou, no dia immediato pela
absolvição dos accusados. Uma das testemunhas de
defesa, o medico Joaquim José Ferreira, declarou
que náo podia depor na presença do reu, em virtude
do que, com a acquiescencia do tribunal, Camillo
saiu da sala. « Meu pae, que ouviu este depoimentoj
— diz o sr. Alberto Pimentel num dos seus livros * —
contava que fora notável e causara profunda im-
pressão no jury. Ferreira entrara em minudencias
physiologicas, discursara sobre a fatalidade dos
temperamentos e os impulsos irreprimíveis da na-
tureza em certos organismos. O seu depoimento
foi o de um psychiatra. Surprehendeu então pela
novidade». E assim, a eloquência de um advogado, *
* J. C. Vieira de Castro : Camillo Castéllo Branco (No-
ticia da 8ua vida e obras), 1863.
* Oa amores de Camillo,
' Marcellino de Mattos, pae do illustre alienista sr.
dr. Júlio de Mattos.
150 GAMILLO
as razões de um medico e a consciência de uns jura-
dos, conseguiram que o tribunal perdoasse aos adúl-
teros e elles pudessem seguir, agora juntos para
sempre, numa vida que já náo tinha certamente o
encanto que lhe dera, esmaltando-a com aspectos
novos de mais brilho, a illusáo de um amor que
despontava.
A partir d'ahi, a historia da vida de Camillo ^
a historia da sua doença, que permenorizadament^
eu contarei reatando o fio da narração dos incider^'
tes curiosissimos da sua herança mórbida. Afóir^
isso e abstrahindo do trabalho insano, constante ^
infatigável do escriptor, essa vida decorre sem
ctos salientes sobre os quaes mereça deter, nesi
altura do meu estudo, a attenção dos que o lêei
Basta que se diga, embora escusado fosse dizê-l«
por estar em linha de lógica irrecusável, que esf
vida náo foi feliz, e a melancolia de um amor mort-
sem que, do lado do romancistaj ficasse arreigad
mente a estima ou o respeito, e depois o ciúme, ®
o remorso, e a doença — sobretudo a doença, co:
genita, fatal e irreparável — fizeram bem do decliní
da vida aventureira doesse homem de génio um p
riodo triste de tortura: Camillo foi um desgraçad
A hora em que morreu Pinheiro Alves, elle, r ^*
costado no leito, a lêr, sentiu que mão hercúlea ^
estrangulava^ e, depois, na solidão da casa de S^^'
Alberto Pimentel : Os amores de Camillo.
CAMILLO 151
e, rodeada de pinhaes, que pertencera ao brazilei-
o', os espectros, povoando-lhes as noites de ne-
rose, acabaram para todo o sempre a passageira
az da sua vida.
Quiz ser visconde e foi-o: ficou cego; aceitou
ímunerações dos cofres públicos; sentiu o azedu-
e dos que o malqueriam calcá-lo, quando o seu
Lcete formidável já náo tinha um pulso que o bran-
sse; casou, foi pae de um filho doido e, de dor
a dor, presa da fatalidade que parecia pesar, co-
o de chumbo, por sobre a tara que má herança
e deixou, nào podendo já trabalhar — o seu su-
perno consolo, — aos 75 annos, na tarde do primei-
* dia de junho, em S. Miguel de Seide, no seu ga-
nete de trabalho, já inútil, comprehendendo que
ira sempre o seu mal era sem cura: — matou-se.
^ Vôr NOTA I).
n0506RAPHl(^
«Pareoe-me, meu querido amigo,
que nfto fugi ás heranças de pae,
d' avó materna e duas tias».
(Carta de Camillo ao sr. Padre
Senna Freitas)
I
Os factos
lillo Castello Branco foi gorado no período
tenso d'um amor violento, e esse facto ó im-
e na determinação etiológica do seu genio-
la casa em que dois doentes revolviam com
ra as oinzas da paixão que os unira e be-
lente encaravam, através das lagrimas, as
IS infantis d^aquelle filho, Gamillo viveu até
e annos, sem uma educação que de co-
orientasse na vida ou corrigisse na ma-
e ser do seu espirito qualquer nativo mal,
9 o tinha. Nessa idade, começou a vida apo-
a, aos empurrões d'um conselho de familia
levou para Villa Real e foi a causa da sua
da terreola, quando a rispidez da tia que o
começou a asphixiar no sobrinho irrequieto
laturas tendências do homem livre. Homem
ise que aos dezeseis annos se julgou preso
ícajatos da filha do tendeiro que fez do rapaai
166 CAIIILLO
leviano um mau marido e marcou o primeiro passo
na sua accidentada carreira de aventuras.
Na vida de Camillo, que ahi começa, com os
seus dramas, os seus triumphos, os seus combates
e as suas amarguras, ha um symptoma mórbido que
salta aos olhos d'aquelles mesmos que não busquem
na figura do romancista todo o interesse novo e
elucidante d'um caso de doença. É a abulia, a falta
de energia moral que trouxe esse homem de geaio
pela vida fora numa hesitação de cada instante,
que o fez iniciar diversas carreiras abandonadas
logo, recorrer á vida de padre, cheio de fé, e, no
momento de tomar ordens, vir-se embora, e que,
•
alastrando para todas as faculdades do seu espi-
rito, foi mais tarde a origem diurna existência d®
vagabundo, de terra em terra, e d'uma mutabili-
dade constante na maneira de julgar as coisas e os
homens. As diversas tendências litterarias a que
elle a cada passo amoldava os recursos extraordi-
nários do seu génio, a variação dos géneros de
litteratura ao serviço dos quaes punha a sua phan-
tasia inexhaurivel e a sua erudição ampla e firnaô?
entram aqui propriamente como symptoma denuft*
ciador d'essa abulia. Era bem aquelle estado dolo-
roso de irresolução constante que Leopardi definii^
MiUe dtibbietà nel deliberare e mille ritegni nelVes^'
guire, como bem o comprova o periodo errante q^^
precedeu a entrada de Camillo na cadeia após *
aventura de Anna Plácido e as palavras que eU^
deixou espalhadas, como a mais preciosa^ documeí^"
CAMILLO 167
?ão, na sua obra. Em 1881 escrevia numa carta ao
Silva Pinto : «Recolhi antes de hontem de Vizella
resolvi ir para Ancora no dia 24. Ainda assim,
me escrever, faça-o para Seide, porque eu não
nto comigo». ^ Pode-se aqui presuppor, na mente
romancista, um receio de doença, esse receio
e o obsecou durante a maior parte da sua vida,
IS o facto é que o doente da vontade tem sem-
e essas e outras coisas a que recorrer para tor-
r explicáveis, aos olhos dos outros e aos seus
oprios, aquillo que não passa de uma malsani-
de que elle na maior parte dos casos desconhece.
3 modo que o symptoma da pathologia da von-
le que se observa nos nevropatas é, no nosso
so, d'uma nitidez absoluta.
Entrando por assim dizer no mecanismo d'esse
il, vemos que em todo o phenomeno volitivo
a distinguir a acção excitante, a percepção com
associação de ideias consequente e a determina-
à qual na normalidade se segue mecanicamente
execução ; mas, nos casos de abulia, o influxo ori-
aado numa dada excitação ou se dispersa num
'ande numero de direcções e dâ origem a outras
ntas determinações contradictorias, e irresolução
ortanto, ou conduz a uma resolução única que se
ào chega a executar. ^ Mas toda essa hesitação, que
* Cartas de Camillo Castello Branco^ com um prefacio
notas de Silva Pinto. 1895.
* Le Dantec: Traité de Biologie, 1903, p. 481-484.
168 CAMILLO
é torturante, enfileira bem, por suas origens e con-
sequências, ao lado da infinidade de terrores doen-
tios que JoUy, poupando-se ao passatempo de bus-
car palavras gregas para os baptizar um a um,
conglobou na designação geral caírophohia, A. abu-
lia poder-se-à mesmo chamar bouletienphobia (medo
de querer) entendendo-se neste caso por querer o
exercicio amplo e perfeito d'uma vontade sã. E
nem por essa concretização, que simplifica o estu-
do, o processo mórbido se altera.
Vamos assim seguindo, passo a passo, a noso-
genia de um estado neurasthenico, não perdendo
de vista que a neurasthenia é sempre o indicio de
uma tara nervosa profunda^ e que «ella constitue
o terreno mais próprio para o desenvolvimento das
nevroses, das vesânias e mesmo das affecções or-
gânicas cerebro-spinaes, a ponto de se poder con-
siderar como a origem commum da maior parte
das doenças nervosas. Em summa, a neurasthenia
cria a opportunidade mórbida do systema nervoso»-
Enunciando os symptomas da nevrose de CamillO)
eu tenho, em certa altura, de me afastar do quadro
neurasthenico ; a própria actividade prodigiosa de
romancista, contrastando com a fadiga e a mà dis
posição para todo o esforço, que é a caracteristicí
primeira do exgotamento, nos indica de comôÇ
1 Rémond: Précis des maladies mentales, 1904,
110.
« FÉRÉ : Ob. cit., p. 80.
CAMILLO 159
que o diagnostico se não pôde fazer aqui por um.
meio simples, grosseiramente, sem entrar no mais
delicado estudo d'essa mesma actividade. Se bem
que alguns symptomas, e entre elles a inaptidão
para o trabalho intellectual, communs quando a
neurasthenia é adquirida, muitas vezes faltem na
neurasthenia hereditária, embora nos doentes doeste
mal o trabalho sustentado e perseverante seja, as-
sim mesmo, superior ás suas forças. *
Camillo não tinha, realmente, esse methodo re-
gularissimo de trabalho que é apresentado como
exemplo em alguns escriptores de grande nome.;
elle não tinha as suas horas de labuta fixadas nem
tao pouco uma tarefa contada em cada dia ; escre-
via por assim dizer aos jactos, num impulsOj e ó
certo ainda que os seus períodos de intenso labor
correspondem sempre a crises mais ou menos gra-
ves numa vida de aventuras, com a excitação con-
sequente da sensibilidade malsana dos seus ner-
vos. Annos havia em que a producção litteraria de
Camillo se limitava a compilações de coisas feitas^
e nunca essa producção foi mais copiosa que após
a prisão por adultério, quando a consciência do
grande homem se impoz o dever de sustentar com
08 únicos recursos do seu trabalho uma familia que
o destino fizera chamar sua. São tempos de dispên-
dio d'ama energia nervosa meia exhausta, seguidos
-A^
Bouveret: Ob. cit, p. 204.
160 CAMILLO
<[uasi sempre d'iim período de abatimento, com
mais um passo andado para a liquidação final que
^e avizinha.
E' opportuno citar aqui uma observação curiosa
de Weygandt ^ que se adqua perfeitamente ao nosso
caso. Esse professor da Universidade de Wúrzbourg
procurou avaliar pelo methodo psycometrico a ca-
pacidade para o trabalho de intellecto na neuras-
thenia constitucional, e, para isso, os doentes de-
viam fazer, durante um tempo determinado, pe-
quenas addiçôes de números de um só algarismo,
marcando entre cada uma o espaço d' um minuto,
depois do que se podia, fixando © qtiantum de tra-
balho eífectuado na unidade de tempo, estabelecer
a chamada curva de trabalho, Constatou-se que,
ao passo que em creaturas normaes a producção
cresce ordinariamente durante os três ou quatro
primeiros quartos d'hora, por consequência do au-
gmento de exercício, para baixar em seguida, pouco
a pouco, à medida que a fadiga se manifesta, — nos
neurasthenicos constitucionaes se verificavam brus-
cos saltos no decorrer da producção, modificando-
se por vezes no intervallo de cinco minutos, de 5^
a 100 p. 100, e nos neurasthenicos por exgota-
mento a capacidade productiva desde o começo d»
experiência ia baixando.
Neurasthenico constitucional era Camillo e ^^^
Ob. cit., pag. 239.
CAMILLO 161
que o seu trabalho prodigioso, irregularmente
o, aos solavancos, longe de nos afastar do dia-
)Stico aventado, no-lo vem justificar por sua vez.
resto, mais d'uma vez, Camillo se sentiu e con-
30U incapaz de trabalhar. Cito dois exemplos,
rahidos das cartas a Vieira de Castro. « A minha
>nça — escreveu Camillo — tem tido algumas in-
oadencias de abatimento ; mas a cabeça peora
indo o restante parece melhorar. Eu náo tenho
leranças algumas de cura. Poderei viver alguns
los, mas sempre atormentado e incapaz de tra-
har ou pensar uma hora» . E noutra carta : « Pas-
a-se semanas sem que eu tenha sequer animo para
lir da cama. Não posso trabalhar ...» '
Entrando agora no estudo das phobias, cumpre
;istar perturbações profundas na sensibilidade
erna. Effectivamente, emquanto que, num indivi-
normal, a sedsibilidade não alcança as vias
ascientes de associação que residem na corticali-
de e neurones superiores, nos casos.de doença
tinge-as dolorosamente depois de, auma super-
:citação, passar os neurones inferiores, refl^exos e
itomaticos. A essas sensações cenesthesicas, que é
>88ivel considerar o pi^imum moiJen-s^ da neurasthe-
^a,.que chamam toda a sua attenção e unicamente
çreoccupam, o doente, capaz apenas d-uma reacçãjo
* QQrre&pondencia Epii^fQlar entre José Carçtúso Vieira de
'^iro e Camillo Castello Branco. 1874. T, ii, p.-73 ^'98^
11
1G2 CAMILLO
insufficiente e dolorosa, náo oppõe as suggesíões
solidas das acquisições sensitivas e sensoriaes ante-
riores, entra num estado de angustia, quer e nâo
quer, tem desequilibrios de sensibilidade e intelli-
gencia, e apenas as sensações cenesthesicas e as
ideias que ellas evocam occupam, em plena posse,
o campo da consciência *. E' a opportunidade de
todas as perturbações adstrictas ao estado neuras-
thenico ; vem entào, entre outras, a arithmomankf
tào vulgar nos grandes homens e denunciada em
Zola pelo medico Toulouse, a onomatomania^ possí-
vel de encontrar num estudo attento d^alguns dos
mais salientes mattoides da litteratura symbolista,
uma serie longa de obsessões e impulsões que po^
dem levar até ao crime, a loucura da duvida de
Legrand du SauUe e as phobias.
E digo obsessões e impulsões apesar dos reparos
que possa suscitar a propositada associação d'estes
dois termos. Porque realmente a coexistência do
dois syndromas em alguns estados mórbidos náo é
facto que tenha passado sem reparo por parte de
alguns auctores. Ainda náo ha mnito Soukhanov
publicou na Rousski Vralch * um estudo sobre a»
ideias obsidentes e actos impulsivos (Naviazt mysli
i impuUivnya deYstvia) pondo em contradicçáo çis
duas ordens de phenomenos e constatando, em caso
* J, ViRÉs : Maladies nerreusesj 1902, p. 404-410.
« T. 11, n.° 15, p. 561.
CAMILLO 163
excepcional de existência simultânea, uma fraqueza
congénita das inhibições moraes ou um enfraqueci-
mento de senso moral. Mas o facto irrecusável, se-
jam quaes forem as razões que o justifiquem, é que
obsessões e impulsões apparecem associadas em
alguns processos mórbidos, completando-se. Tal o
caso, vulgarissimo nos estados neurasthenicos, d'um
doente que, obsidiado pela ideia de não praticar um
certo acto, a meio da sua angustia e não podendo
resistir a uma impulsão^ o effectua. « Muitas vezes
a obsessão — diz Weygandt ^ — estende-se ao do-
mínio psycomotor e torna-se então uma. impulsão^ .
«Todos estes phenomenos, obsessão e impulsão —
observa Rémond * — são em realidade da mesma
natureza; comportam uma fraqueza de vontade».
«A questão está em saber — argumentam outros
illustres psychiatras * — se as obsessões caracteri-
zadas pela phobia d'um acto, isto é, por uma repul-
são anciosa por esse acto, se relacionam de qualquer
modo com as obsessões impulsivas, ás quaes, ao
primeiro aspecto, parecem oppôr-se inteiramente-
Em theoria, a questão não offerece duvidas e, pois
qne toda a ideia d'um acto é um movimento que
começa (Fébé), o medo de effectuar um acto deve
ser uma teadencia para esse acto ... Os próprios
* Ob. cit, p. 245.
« Ob. ciU p. 117.
' A. PlTRÉS et E. RÉGIS : Les ohsessions et les impidsions^
M\ p. ltl.113.
164 CAMILLO
doentes, que em geral se observam bem, dizem indif-
ferentemente : Tenho medo de ser obrigado a fazer
isto ou Sou impelUdo, sinto vontade de fazer isto-
Noutros ha a coexistência de phobia e propensão
impulsivas, e em alguns, finalmente, a phobia ter-
mina pela impulsão.» «A impulsão mórbida — con-
clue Dallemagne na sua Pathologie de la volonté—
não é mais que o ultimo acto de uma espécie de
drama cerebral que começa pela obsessão e continua
pela ideia fixa.
Assente pois a opportunidade das perturbações
nevrasthenicas, preparado o terreno, inutilizada de
vez a resistência, a nevrose pode, á larga, coin-
quinar o espirito. Na obra de Camillo, e nomeada-
mente nas suas cartas, preciosas como documentos
de analyse noologica, ha a revelação, mais ou menos
precisa, d'um numero avultado de phobias. As que
mais notavelmente predominam são a pathophobia
ou nosophobia (horror ã doença) que, tomando por
vezes o caracter obsessivo, nelle chegou quasi a
constituir uma verdadeira nosomania^ e a thanato-
phobia (horror â morte), consequência natural da-
quella, que actuou com uma intensidade se é pos-
sível superior ainda e correu a par d'essa mórbida
tendência para o suicidio que em Camillo se revelou
desde bem cedo. Assim, folheando a Correspondência
epistolar entre José Cardoso Vieira de Castro e Ca-
millo Castello Branco na parte qué contém as cartas
de Camillo, escriptas no periodo decorrido de 70 a
72, encontram-se phrases como estas : <r Bj-çito-me no
CAMILLO 165
cabo da vida Estou táo doente que á uma
hora da noite passada dei um beijo no meu Jorge
cuidando que ia morrer. Foi uma ameaça de con-
gestão cerebral que mais hoje mais amanha^ me
fulmina Esta noite passei peor ; mas ainda
assim conservei-me na cama. A grande desgraça é
quando lâ nâo posso estar. Parece que me faz horror
a posição horizontal da sepultura Não me
consideres encarecedor dos meus padecimentos. Eu
estou gravissimamente doente e decerto te não vejo
mais Agora, depois que estas creanças brin-
cam felizes na minha negra atmosphera e á respi-
ram com delicias, a morte apavora-me Esta
infelicidade de doença não me deixa ir vêr-te. Fi-
gura-se-me que me ha-de apanhar longe de casa
uma febre cerebral Comprehendo que as
moléstias te dobrassem mais cedo que as desgraças
moraes. Se eu ha doze annos, quando comecei a ser
tão infeliz, padecesse como hoje, ter-me-ia mata-
do. . . . . Se ainda a muito custo escrevo d'isso
que vês, antevejo a completa paralysia do cérebro,
e em seguida a morte A cura é impossivel.
Não se regenera o sangue em circumstancias de
vida táo deletérias A minha enfermidade
não cessa nem me deixa esperar melhoras » * « Te-
nho — dizia elle, em novembro de 79, numa carta
u— --»
> Corr. Epist. T. i, p. 32 ; T. n, p. 21, 51, 62, 109, 133^
144, 145, 173 e 177.
1G6 CAMILLO
ao sr. Silva Pinto * — a, não sei se triste se alegre
convicção de que vou emfim descançar brevemen-
te». * «A preocupação da morte — diz o sr. padre
Senna Freitas no seu estudo biographico* — é ain-
da mais familiar na sua penna. Chega a ser uma
obsessão, como o precipicio de Pascal». «A cada
passo — conta o sr. Alberto Pimentel num dos seus
livros ' — Camillo, imaginando os symptomas d'uma
doença grave, chamava afflicto por D. Anna
Uma vez, Camillo estava no periodo de se julgar
muito doente e não querer sahir de casa. D. Anna
Plácido pediu, instou, supplicou a Camillo que
fosse dar um passeio com um dos amigos que o
visitava. Camillo resistia, dizendo que não tinha
forças, que iria morrer de inanição no meio da rua,
porque havia muito que se alimentava mal. — Vou
dar-lhe o desgosto de mo)*rer na rua^ disse elle ao
amigo.» Quando, depois da morte do romancista,
o sr. Alberto Pimentel esteve em S. Miguel de
Seide, um vizinho de Camillo e seu dedicado ami-
go, o sr. Francisco Correia de Carvalho, observou
a alguém que rememorava as circumstancias em
que se deu o suicidio : « — Na véspera tinha an-
dado a passear pelo meu braço ali no largo, em
frente da egreja. Como começasse a soprar uma
» Ob. cit., p. 23.
2 Perfil de Camillo Castello Branco. Nova edição, 1888,
p. 29-30.
^ Os amores de Camillo.
CAMILLO 167
aragem fresca, o sr. visconde disse-me: Vamos em-
bora^ que tenho medo de uma pneumonia. Ainda na
véspera do suicidio temia tanto a morte!» *
Eu disse que a thanatophobia correu a par da
tendência para o suicidio, que em Camillo se re-
velou desde bem cedo. Essa circumstancia, appa-
rentemente paradoxal de o horror â morte condu-
zir com frequência ao suicidio, citada por alguns
auctores, mereceu a Nicolau um desenvolvido es-
tudo. * E um facto sem duvida interessante mas
para encontrar um paradoxo no qual nós teríamos
em boa razão de considerar o suicidio resultante
d'um raciocínio são, cahindo assim num paradoxo
tanto maior quanto elle aqui se dà num caso con-
fesso de desequilíbrio anterior que as phobias des-
cortinam.
Entre estas notarei mais a celaphohia (horror
aos ruidos), consequência natural da peresthesia
dos seus ouvidos hyperacusicos, que durante a vida
toda lhe fez um dos maiores dos seus tormentos.
« Cá tenho o ferro em braza na cabeça » — escreve
«lie em carta a Vieira de Castro. E ainda : « Es-
erevo-te com cabeça empanada em parches de vi-
nagre. O que eu sinto ha doze noites seguidas é um
«strondo infernal nos ouvidos, uma zoeira de cata-
1
Alberto Pimentel: Os netos de Camillo^ 1901.
* Thanatophohie et suicide. Annales méd. psychol. 18í)2,
T. XV.
168 CAMILLO
dupas que me náo deixa estar sequer cinco minutos
deitado. Tenho phrenesis que me despedaçam
O peor é este rolar de trovões que me estruge na
cabeça. Ora vê tu, meu caro José, que desesperação
náo poder eu um instante fazer calar estes estron-
dos, e tamanhos que me acordam em sobresaltolA
medicina náo tem nada para isto ! Tunào ima-
ginas os dolorosos caprichos doesta enfermidade
que me está despedaçando. Lá vejo no ceu a lua
serenissima. O estrondo que me reboa nos ouvidos
náo me deixa ouvir o mar. Assaltam-me ímpetos de
loucura quando penso que este inferno não ha-de
passar Escrevo devagar porque tenciono con-
centrar-me quanto possa e porque acho difficuldade
em escrever. Este incessante estrondo na cabeça
dia e noite, chega ao extremo de me pôr deante a
morte como único remédio Este tormento do»
ouvidos é d 'uns que eu d'antes imaginava que ine
endoideceriam se durassem uma hora. Como se nâo
bastassem vinte meses de ouvir incessantemente
uma zoeira de mar tempestuoso e um silvo de va-
por, accresceu agora a dor penetrante de lado ^
lado Hoje estou soflfrendo muito da zoeira ®
d'uns vagados que me assustam... Se me diss^^
«3m antes de eu adoecer que havia de estar assi^
dois annos, eu cuidaria que ao fim de poucos di^^
preferiria a morte». *
Corr. Episi. u p. 27, 33, 58-59, 62, 69, 97 e 133.
CAMTLLO 169
Poderei ainda citar a, antropophobia (horror á
multidão) e a monophobia (horror a estar só) oppos-
tas, alternando-se nos períodos de abulia mais inten-
sos. « Aquelle que escreve estas linhas — disse um re-
dactor d'0 Mundo, dando noticia do meu esboço de
crítica sobre o grande romancista ^ — viu, uma vez^
receber-se numa estação telegraphica de Lisboa um
telegramma lancinante de Camillo. Era dirigido a
Fernando Palha, com quem o illustre escriptor se
relacionara, cremos que em virtude de investiga-
ções históricas a que ambos se dedicavam. O tele-
gramma dizia pouco mais ou menos, isto : Estou
aqui, na Povoa (sería na Povoa? não temos a cer-
teza) só e abandonado. Venha v, ex,^ ver se me salva,,
levando-me para Lisboa, O resto é textual, de tal
forma se gravou no nosso cérebro, então de creança^
este gríto de mortal desamparo. Este telegramma
deve ser de 1888 ...»
Poderei citar a photophobia (horror á luz) coin-
cidiu com os primeiros assomos das perturbações
visuaes. «Basta dizer-te — confessa o próprio Ca-
millo nas Vinte horas de liteira — que escrevo sem-
pre àluz do crepúsculo. Os meus olhos não compor-
tam outra luz. Quando os dias estão lucidissimos do
brilhantismo do sol, eu tomo do favor de Deus a
frouxa claridade de um raio coado por transparen-
tes negros. O meu gabinete de trabalho, durante os
N.e de 26-6-1900.
170 CAMILLO
meses explendidos do anno, e um continuado co-
meço de noite » .
Poderei citar ainda a keronauphobia (horror á
obscuridade) manifestada, mais tarde, quando a
affecçào visual tomou caracter grave. Em 1885 —
conta o sr. Alberto Pimentel ^ — estive em casa de
Camillo, na Povoa de Varzim, e ahi lhe li o ori-
ginal dos IdylUos dos reis, Quatorze luzes, em duas
serpentinas de sete castiçaes cada uma, illumina-
vam a sala, que aliás era pequena. Era assim que
Camillo queria afugentar as trevas que avançavam».
Depois, ainda, a phóbophóbia (horror ao medo),
com os seus terrores mórbidos, c Esgotado de for-
<;as — diz ainda o sr. Alberto Pimentel * — exal-
tada a imaginação como fornalha accêsa, CamiUo
«ra dominado por tenebrosos pavores, visões tor-
turantes ...»
Por fim, a pantophobia (horror a tudo) e, restn-
ctamente a biophobia (horror â vida) antecedente
natural do suicidio.
Como signal d'um estado pathologico mais g^'
ve, as obsessões e as impulsões fizeram-se sentia
no romancista, mas d'uma forma velada, revela'^'
do-se apenas num ou noutro ponto mais salient®
da sua vida publica e não dando margem, poriss<^
'^ O romance do romancista.
* Os amores de Camillo,
CAMILLO 171
é
mesmo, a uma anályse perfeita. Talvez a manifes-
tação obsessiva mais perfeitamente caracterizada
fosse o amor, esse amor mórbido que corre de-
finido em livros como «a hypertrophia d^im sen-
timento verdadeiro e, por consequência, um caso
pathologico» ^ Camillo foi nitidamente um ne-
vropatha amoroso. Não teve perversões, é certo,
mas amou á doida, com um exclusivismo que em
certas épocas da sua vida punha de parte qual-
quer consideração d^uma outra ordem e bem se
pode, sem esforço, comparar, em quadro de noso-
logia, á ideia fixa. EUe não seguiu aquelle con-
selho d'um personagem de Musset: «Usae do amor
como um homem sóbrio usa do vinho ; não vos
embriagueis». * Embriagou-se, exagerou: e a ten-
dência para a exageração de todas as sensações
penosas ou agradáveis, nos doentes neurasthenicos,
procede da própria natureza da doença, d'essa dimi-
nuição de energia moral que é um dos seus cara-
<iteres mais salientes '. Violento e inconstante, ^
soffrendo todo o dispêndio nervoso d^essa violência
^ toda a dor moral d^essa inconstância, elle escreveu
íium romance * estas palavras, que são um precioso
documento para o estudo da maneira de ser do seu
amor:
^ Emile Laurent: Vamour morhide, 1896, p. 82.
* A. DE Musset: La confession d^un enfant du siècle*
^ BouvERET : Ob. cit, p. 74.
* Onde está a felicidade ?
172 CAMILLO
« Moralistas, dae-nos uma £gà de azeviche para
afugentar o demónio da tentação : traze-la-hemos
devotamente sobre o espirito fraco, o espirito ma-
leável, que se presta a todas as formas, esse cama-
leáo intimo que varia de cor a cada novo raio de
luz dos últimos olhos que o fixam. Corrigi os de-
feitos do sj^stema nervoso de Guilherme. Transfaa-
di-lhe um sangue mais sereno, menos irritável, nas
artérias. Dae-lhe o remanso da paz no regaço de
uma mulher, seja ella rainha, ou costureira. "Remi-o
da infelicidade que traz comsigo a inconstanci»»-
Fazei que elle não chegue aos trinta annos detes-
tando as vinte variedades de mulheres ^ que c^^'
•
nheceu, e detestando-se por ter abusado das fac^^^
regalias, que o oiro, a juventude, e a seducção Ifc»©
serviam em mesa de risos e venenos, como il^^^
festins dos Borgias. Arrancae-lhe do fundo do s^i^
o espirito inquieto, que principia por travessura^^y
e acaba em ciúmes rancorosos : insufflae-lhe lá urd^
alma nova, pacifica, fácil de nutrir-se, parca ^
susceptivel de adormecer na paz podre de um^
amisade burguesa, e estupidamente feliz . . . Mora-
listas, quando tiverdes descoberto o processo da
^ «D. JoãOf num momento de humor sotnbrio dizia-m,
em Thorn : Ha só vinte variedades de mulheres, e logo que se
conhecem duas ou três de cada variedade, começa o fastio, —
Stendhal, Physiologia do amor, cap. Lix. — O auctorconhec»
vinte e uma variedades ».
(Nota de Camillo).
CAMILLO 173
encadear o espirito, devereis erguer um cadafalso
para os iufames voluntários, que arremessarem a
mulher ao abysmo ...»
Nessa mesma paixão por Anna Plácido, a mais
violenta talvez, com ser a ultima, a saciedade veio
dentro em pouco, e a vida seguinte, com ciúmes,
recordações de tempos idos, insultos até, a essa
nulher em quem elle teve, ao que se diz, uma en-
fermeira dedicada, — foi toda ella uma expiação
truciantissima. Não é preciso recorrer ao relato mais
>u menos fiel de testemunhas para conhecer a his-
oria d^essa ligação com Anna Plácido, depois do
:>eriodo romanesco da prisão e do idyllio; basta
transcrever algumas paginas do livro de Camillo
!Vò Bom Jesus do Monte. Nesse livro, publicado pela
Drimeira vez em 64, e no qual o auctor evoca todos
Ds periodos da sua permanência no Bom Jesus, vêm
elementos bastantes para a reconstituição d^essa
historia maguada e melancólica de desillusão e des-
alento. São palavras d'elle, na parte relativa a 1858:
«Estava ella sentada num cômoro ta pecado de
relva. Ao seu lado, com a fronte pendida ao hombro
d' ella, estava a irmã, quinze formosos annos, um
<íoraçáo de Deus. Olhavam ambas contra as agulhas
do Gerez toucadas de névoas. E eu, que pedia ao
Senhor um sorriso d^aquella mulher, e depois o
somno do infinito esquecimento, abria uma letra
num tronco e dizia, no recesso de minha alma: EUa
hu de vê'la, Ouvi-lhaa voz: cantava no tom abafado
de quem quer ser somente ouvida em seu coração.
174 CAMILLO
Onde podia ir aquella toada saudosa? Eu estava
ali, eu, que Ibe daria o meu seio, a minha juventude,
a minha honra para escabello dos seus pés ! Onde
podia ir aquella toada saudosa? Oh Belleza eterna
e Verdade eterna! oh Suprema Inteliigencia, que
bafejaste á minha alma o calor das inextinguíveis
paixões, rompe essa represa de lagrimas, e lavem-
me ellas a nódoa do crime, se em amâ-la injurio as
vossas leis e postergo os deveres da humanidade!
Assim orou o meu espirito ao Espirito do Senhor.
E, adormecendo com a face encostada ao musgo
do rochedo, sonhei este sonho: Era num cárcere;
eram tresentas e noventa noites de cárcere. Eu
estalejava de frio e horror. As multidões premiam-
se ás rexas das minhas grades e cuspiam-me no
rosto, conclamando : Maldito! E eu, debulhado em
lagrimas, dizia : — Deixai-me a honra do coração, e
macerai-me as carnes, e triturai-me os ossos. E o
sonho continuou. Era no hospital. Eu inclrnava o
peito, crivado de dores, sobre uma banca para ga-
nhar, escrevendo e tressuando sangue, o pão diurna
familia. A luz dos olhos bruxuleava já nas vascas
precursoras da cegueira. E eu escrevia, escrevia
sempre. E das fadigas incomportáveis do lavor ia
a refrigerar-me a fronte ao espirar reanimador da
mulher amada, e servida com a immolação de todos
os desejos, das esperanças todas. E era esta mulher
a que eu vira sentada no cômoro tapeçado de ver-
dura no Bom Jesus do Monte. E ella repellia-me,
dizendo : — Tenho direitos d luz dos teus olhos, ao
CAMILLO 17&
sangue das tuas arteriaSy e ao ar dos teus pulmões.
Trabalha, escravo / E o sonho continuou : Cahia o
derradeiro bago da ampulheta do sexto anno de
martyrio. Era por noite horrenda... O anjo ré-
probo da perdiçào d^aquella mulher com um stylete
de fogo, avincou-lhe na fronte um lemma ignomi-
nioso! E o anjo da salvação, triste, ajoelhado, com
os olhos no ceu, chorava. E o réprobo, numa toada
de infernal escarneo, levantava este cantar:
E o anjo bemdito, num suspriar de gementes no-
tas, dizia:
Não és culpada ; és escrava
Da tua estreita funesta.
A sorte abysnws te cara
E tu pões o pé na aresta !
E o anjo precito :
E és cega ! e nessa lama.
Em que te vês immergida.
Ainda tua voz clama :
€ Gloria á mulher perdida ! »
Assim, no original.
176 CAMILLO
Acordei ! O ceu estava lindo e sereno como a
terra ! Gloria a Deus ! que estes horrores só pode
concebê-los a alma sonhando. Oh ! a mulher for-
mosa, a santa do meu amor, a immaculada que eu
manchei num sonho, aquella mulher. . . Morreu!»
E, na referencia a 1863 :
«Já outro coraçáo, outra alma e outra luz! Es-
tavam apagadas as lâmpadas eléctricas dos meus
arvoredos. As arvores... eram troncos e folhas. O
<jeu era o espaço interposto aos corpos luminosos e
opacos. A agua das fontinhas era a combinação de
88,91 partes de oxigénio com 11,09 de hydrogenio.
O sol era o centro do systema planetário. A noite
era um processo escuro de bronchites. E eu...
^ra o homem da natureza. E, por. isso, naturalmente
me constipei, assim que da calma do caminho pas^
sei á frescura das sombras. E eu d 'antes não me»
constipava. Era clima de Parãizo terreal para mim,
aquelle ! Bastava-me a lava interior para reagir
ás frialdades da periferia. A sombra dos meus
plátanos nunca me havia instillado aos bronchios
uma gota de peçonha. As almofads-S de relva,
quando me eu deitava por aquelles combros, nunca
me coaram aos ossos o rheumatismo. E agora, arra-
zado o viveiro d 'oiro d 'onde me sahiam as pombas
cândidas das minhas chimerás, todo o meu ser ali
era um gemer de entrevado, que se contorce em
angustia. Ao meu lado, á cabeceira do meu leito
de enfermo, com o cotovêllo appoiado ao traves-
seiro húmido de minhas lagrimas, estava, uma visão
CAMILLO 177
maldita do Senhor, o ministro da flagellação expia-
tória dos erros de minha vida. A sua boca extra-
vasava de sarcasmo ; dos olhos corusca vam-lhe as
faúlas, que resaltavam do coração feito braza in-
fernal; o bafo rescaldava, como lingua de fogo.
Era assim a visão maldita do Senhor. E eu, com o
peito arquejante de anciãs, punha aos lábios o tra-
vor d'aquelle cálix, e dizia: Amplius, amplitis,
Domine! Quando eu, através da vidraça, expraiava
os olhos por aquelle ceu, dizia abafando os soluços :
Oh ceu das minhas alegrias ! oh alva nuvem onde vos
zyejo ir amortalhadas ! oh cantoras das selvas, os vos-
sos regorgeios já me soam como o gemer da ave
7ii/be}*nal sobre um tumulo. E chorava sem vexames
dos meus cabellos brancos. E o Senhor, depois que
«XI chorei muito, mostrou à minha escuridade um
eomo lampejo de gladio na mão de um archanjo
de semblante formidável de pavor. Estremeci até
á medula dos meus ossos, e ouvi : — Expia ! E,
desde aquella hora^ as minhas agonias tem a do-
çura do escravo, que conta os dias do captiveirp
remissivel. Bemdito sejaes. Senhor Deus de Saulo,
que vos amerciaes do delinquente, afogando-o na
onda da agua amaríssima de expiaçãp ! »
E numa pagina das Scenas innocentes da comedia
humana:
*Eu pedira a Deus a paixão em que um dia de
prazer custa annos de agonia. Pedi-lhe o flagellp
do ciúme, e o Senhor pôs a meu lado o anjo mal-
dito que matara Desdemona,^ e anojara um cadáver
12
178 CAMILLO
aos pés de Carlota. Unia tortura para cada fibra,
um rugido de homicida para cada homem que a
contemplava, e, podia, no secreto da sua phantasia,
imaginar o sabor de um beijo dos lábios d'ella»
Tinha amigos, e injuriei-os e perdi-os para que m'a
náo vissem. Escutava-lhe anciado as palavras do
sonho, e contemplava-lhe o seio com o amor verti-
ginoso de um louco, e a insânia furiosa de quem qui-
zera na ponta de um punhal roubar-lhe o segredo
do coração. E, se ella balbuciava, num vagido in-
fantil, o meu nome, os meus lábios convulsivos res-
pondiam-se com um beijo em que me sahia da alma
o inferno incomportável da duvida. Ella dissera-me
um dia: Sou a tua mulher fatal! Eu fitei-a com o
assombro de homem, afíeito a vêr na mulher a
creatura frágil, a linda e quebradiça argila que náo
podia conter seis lagrimas sinceras de um coração
varonil. Sou a tua mulher fatal! Contemplei-a^
ouvi-me da voz da consciência que nunca invocara
para as chimeras do amor, e a consciência disse-me:
Será*,
Finalmente na Becapitulação, ainda do livro
No Bom Jesus do Monte:
«... circumvaguei um extremo olhar ás minha»
arvores. Depois, no cercado da ultima capella, en-
costei a face ao musgo de uma rocha, puz o meu
espirito no remoto ponto dos vinte e sete annos
passados, desde a primeira vez que ali viera, e
desci discorrendo até áquella hora derradeira. A
•cada passo tropeçava num tumulo
CAMILLO 179
« A mulher da paixão, que eu, no pavor da minha
soledade, pedira ao Senhor;
«A mulher que me acorrentou a um cadafalso
de supplicios ignominiosos ;
« A mulher que me levou as virtudes da alma e
o pudor do coração, quando eu já não tinha lagri-
mas, que me ella pedisse ;
«A mulher, a quem a Providencia divina, em
sua ira justiceira, atirara aos gryphos do dragão do
mundo, contra o qual eu puzera o peito, emquanto
o coração teve sangue que expedir;
« A mulher que me fez odiar a justiça de Deus,
e insultar a providencia dos homens ;
« Essa mulher morreu. »
Essa mulher morrera de facto, porque o amor de
Camillo por ella entrara para o numero d^aquellas que
elle mesmo chamava as «afifeições cahidasà voragem
infernal do desengano» *. Deixara-lhe a saudade, é
certo, a saudade d^uma paixão arrebatadora e ar-
dente, mas essa mesma envenenada pelo remorso,
um remorso doentio que imperou como uma obses-
são de terror nos derradeiros annos da vida de
Camillo. Em todas as suas amarguras elle via o
castigo de Deus e na tranquillidade que buscava para
o corpo e para a alma, longe dos ruidos das cida-
des, na serena quietidão d'um recanto minhoto,
ali mesmo, em Seide, * havia a atormentarem-n^o
Camillo: Atnôr de salvação.
180 CAMILLO
— diz um seu biographo ^ — espectros sinistros,
sombras, phantasmas, visões de remorso, e nos
pinhões gementes^ que rodeavam a casa, gritos de
maldição, clamores de vingança, que elle, desde a
morte de Pinheiro Alves, jamais deixara de ouvir».
Em 9 de março de 88, Camillo desposou finalmente
Anna Plácido. Cerimonia breve e muito intima
realizada de noite na casa da rua de Santa Catha-
rina, no Porto, onde, ao tempo, estava residindo.
Pensa o sr. Albert® Pimentel que o grande escri-
ptor casou a instancias de amigos seus e cita mesmo
os nomes dos srs. Joaquim Ferreira Moutinho e
cónego Alves Mendes ^. A mim me quer parecer
que ao remorso de Camillo e aos seus escrúpulos ao
aproximar da morte se deve attribuir essa reso-
lução. De facto, jâ em 1879, nove annos antes,
Camillo pensara em se casar com Anna Plácido
quando, sabendoa com uma angina-pectoris, a con-
siderou perdida. «Se ella morre —dizia elle então
numa carta ao sr. padre Senna Freitas ' — a sau-
dade ha de pungir-me com o remorso de a não ter
honrado aos olhos dos filhos e do mundo.» Em 88,
Camillo estava atravessando uma mais intensa crise
de desanimo atroz. O sr. Alberto Pimentel afirma
no Romance do romancista^ referindo-se a esse anno,
que Camillo « numa hora de maior desalento, resol-
^ Alberto Pimentel: Os amores de Camillo.
2 Os amores de Camillo,
3 Cartas inéditas. (Vôr nota è).
CAMILLO 181
veu partir para o Porto. Nào era entào Anna
Plácido que se podia considerar perdida ; era elle
que a si próprio, com a consciência perfeita do mal
que o perseguia, se considerava assim. De novo
apparecia o perigo de aquella ligação se quebrar
pela morte antes que elle houvesse «honrado aos
olhos dos filhos e do mundo» a mulher que por
amor d 'elle se perdera.
As transcripções que ha pouco fiz de trechos da
obra de Camillo, em que mais ou menos isoladamente
se allude ao seu caso d^amôr, dão-me o azado ensejo
de dizer que Camillo, como quasi todos os neuras-
thenicos, vivia muito do passado, comprazia-se em
Tecordar os mais gravativos incidentes da sua agi-
tada vida de aventuras, e por tal forma que d'esse
facto, junto com a qualidade, mórbida também, da
inconfidência, deriva o fundo de uma grande parte
das suas obras.
Tinha ainda Camillo, bem marcada, essa tendên-
cia pathologica para a auto- observação de que quasi
sempre a neurasthenia se acompanha, e pena foi
que a falta de conhecimentos de psycopathia, o tenha
iahibido de dar a esse inquérito de cada instante
uma orientação mais proveitosamente scientifica.
Se algum medico, amigo de Camillo e jâ versado
ua maneira moderna de considerar os males da
alma, colheu d'uma observação directa e minuciosa
os dados preciosíssimos que só uma observação
assim nos pode dar, o resultado do seu trabalho
ficou occulto ; de modo que quem hoje queira con-
182 OAMILLO
scienciosaraente fazer a critica, encontra a cada
passo lacunas insuperáveis, abertas a hypotheses
sempre vagas pela impossibilidade de as verificar
com segurança. Assim, se nem sempre o quadro
nosographico nos apparece mais ou menos integro,
náo é bem porque Camillo deixasse de ser aquillo
que em medicina se costuma chamar um bom caso,
mas porque a documentação de certos symptomas
não é tão completa, que por si só nos consinta, sem
escrúpulos, registá-los. De resto, para o estudo
perfeito d^um exemplar como Camillo, haveria a
pôr em pratica, durante a sua vida, um certo nu-
mero de methodos de observação cujos dados seriam
d'um valor indiscutível. Seria mister recorrer á
anthropologia, effectuando as mensurações cranea-
nas, á analyse das urinas, ao hydrophymographo e
ao myographo, para o exame do apparelho circula-
tório e da emotividade do doente, seria mister
estudar rigorosamente os phenomenos da sensibili-
dade geral e também os órgãos dos sentidos, espe-
cializando no nosso caso o campo visual, e, além de
tudo isso, fazer mil outras observações que se torna-
ria longo e fastidioso enumerar inutilmente. Mas o
facto de faltarem elementos de importância não po-
deria nem deveria impedir que eu dirigisse o meu es-
tudo com a única orientação compatível com o rigor
scientifico da critica moderna. Seria improductivo
fazer psycologia sã num homem como Camillo, em
quem os stygmas mórbidos se accentuam d'um modo
tal que fere mesmo aquelles menos versados em coi-
CAMILLO 183
sas d'essas, e a própria critica litteraria da obra gera-
da nos períodos exacerbados d'uma nevrose intensa
havia, por força, de sair falsa, convencional, posti-
ça, a debater-se em meio de adjectivos incolores e
de afirmações incom provadas.
Neste capitulo do meu trabalho, ficam jà regis-
tados vários symp tomas mórbidos que me auxiliarão
a fixar d'aqui a pouco um diagnostico provável : a
abulia, as phobias, as obsessões e as impulsões, a
irregularidade característica do trabalho, o exagero
de todas as sensações, a inconfidência, as tendências
para recordar o passado e para a auto-observaçáo,
os pavores nocturnos e os phenomenos peresthesl-
-cos. Citarei ainda as insomnias, as vertigens, os
estados hypocondricos, a vagabundagem, e também
as dores nevrálgicas, a atonia gastro-intestinal, a
dispepsia, a surdez, toda a serie longa das pertur-
bações visuaes, manias persecutória e das grandezas,
e ainda certos caracteres que Lombroso e outros
auctores attribuem aos homens de génio, taes como
a procura constante do termo raro, a perda de senso
moral, as desigualdades psychícas, a interpretação
mystica dos factos mais simples e o misoneismo.
Todos estes últimos são phenomenos complexos que
necessitam d^uma mais detida prova. Para a de-
monstração dos primeiros é fácil encontrar docu-
mentos na sua própria obra.
Para as insomnias, por exemplo, occorrem-me
algumas phrases de cartas a Vieira de Castro, in-
sertas no segundo tomo da Correspondência episto-
184 CAMILLO
lar^. «Só duas linhas — escreve Camillo ao seu
amigo — porque a minha doença me náo permitte
mais. Ha cinco dias e noites que apenas consegui
dormir a somma de seis horas A noite pas-
sada foi das taes medonhas. Náo consegui dormir.
Já náo descanso sem narcóticos que cada vez mais
me desafinam os nervos. As minhas cartas estão
sendo para ti, meu filho, um boletim sanitário. Eu
sei que em verdade te interessas na minha vida^
porque tenho de consciência que me julgas um dos
teus mais affligidos amigos Ha quatro noites
que apenas durmo instantes».
Para prova da vagabundagem, servem precisa-
mente estas palavras d'uma carta escripta ao sr.
padre Senna Freitas : ^ « Se vou para o Porto, com
intensão de lá estar 15 dias, apenas lá estou uma
noite cruel de insomnia e anciedade de me safar».
E ainda estes periodos de cartas ao Visconde de
Ouguella: «Amanhã volto para o Bom- Jesus ; mas
se me escreveres seja para Famalicáo. Náo paro.
Custa-me a immobilidade Já náo sei onde
hei de estar. Em 15 dias ensaiei quatro paradeiros^
uns nas montanhas, outros nas praias. Em toda a
parte o tédio, o asco das cousas e das pessoas
Vim de Vizella hontem, e náo sei para onde irei
amanha».
1 P. 32, 47 e 63.
« Ob. cit. p. 139.
CAMILLO 185
Sobre os outros aymptomas mencionados, posso
citar ainda alguns trechos das cartas de Camillo, náo
esquecendo também a sua phrase da Maria da Fonte:
«Eu vim d'ahi, de cólica em cólica intestinal, até
esta ruina gástrica que sou hoje ». «Eu ha dez dias
q^ue passo as horas a contorcer-me numa nevralgia
que jà me tem posto deante dos olhos o recurso
do suicídio — escreve elle a Vieira de Castro —
Os meus padecimentos voltaram. Estou escre-
vendo ás seis da manha. Passei toda a noite com
a cara nos vidros à espera do dia. Imagina, meu
íilho, um espasmo nervoso no esophago que só com
xnuito custo me deixa respirar e á força de anti-
Itistericos. Por cima d'isto, o estrondo de uma azenha
:11a cabeça, aquillo que Henry Heine sentia quando
escrevia no Livro de Lazaro: No fundo do meu
M^rébro vae um ruidoso desmancho. Depois a fra-
<iueza que me náo deixa ter em pé e a impossibili-
dade de estar quieto. Náo se pode viver assim
A noite passada deitei-me com esperanças de ador-
mecer. Ergui-me logo e vi romper o dia e esperei
que me deixasse uma dor nevrálgica que veio so-
bredourar a insomnia, o espasmo, a zoeira e toda
esta admirável cadeia de nevroses Antes de
hontem reuni aqui três médicos. Náo sei o que
pensam de mim. O de Braga chama gastralgia á
moléstia. O de Guimarães também. E o das Taypas^
que cura ha 60 annos, ainda não sabe o que é
A noite passada dormi regularmente. De oito em
oito dias tenho assim um remanso As noites
186 CAMILLO
«ão as mesmas e atribuladas. Hoje veio uma sobre-
carga de dores nervosas nas pernas que me pri-
vam de andar Estou de cama : perdi ambos
os ouvidos: ficaram-rae horrendas dores que me to-
mam toda a face Ha cinco dias que padeço
mais e muito. No dia quinze d'este mês faz um anno
que eu tive a primeira congestão. Náo creio que estes
ataques tenham prasos fataes ; mas ó certo que os
padecimentos se agravam com a aproximação do
calor A minha enfermidade até já me faz
angustias se me demoro segundos a escrever. Não
ha palavras para o que soffro ; é a anemia mais
desgraçada que pôde dar-se. O meu cérebro está
ralado e dissolvido em sangue Os meus pra-
zeres neste antro chamado o viver são as poucas
horas em que durmo se as não sobresaltam as ne-
vroses súbitas ou os sonhos horrendos que me
prostram a alma». ^ <yHontem estive de cama a
curtir um começo de bronchite e a cevar as dores
da perna com o Pain-Killer, uma mixordia ameri-
cana que me leva a epiderme e me deixa as dores
— escreve elle ao sr. Silva Pinto — Estou de
cama, com as mesmas dores de velhice. ..... Já vê
que lhe escrevo na cama, moido de dores, e ancioso
por isto acabado FaJcir soa como pobre nas
linguas semíticas. Escrevo-lhe desama com muitas
1 Corr, Epist, t. II p. 16-17, 40, 43, 44, 49, 64, 96, 158,
174 e 183.
CAMILLO 187
dores de olhos e de pernas, como um fakir da peor
raça estropiado». ^ «Estranhei pois — diz o roman-
cista numa carta á sr.* D. Maria AmaUa Vaz de Car-
valho publicada na Bohemia do espirito — que V. Ex.*
me nâo felicitasse por estar surdo, quasi cego, trô-
pego, com duas nevroses em cada nervo, com duas
atonias formadas, uma no estômago, outra no fígado,
e a terceira a principiar no cérebro » . « Estou cada
dia mais doente, mais triste e mais convencido de
que acabei — diz Camillo ao sr. padre Senna
Freitas * — Logo que me sinta com forças ahi estou,
3íáo imagina o meu estado de fraqueza. Qualquer
xnudança de ar, uma nuvem, um bocejo de vento,
Tima pequenina convulsão nas arvores despedaça-
:ine os nervos. Parece que se vae fazer noite na mi-
:iiha alma Esperava eu que a mudança de terra
:3ne suavisasse umas cruéis dores nervosas que me des-
-esperam. Vou procurar remédio noutra parte
Estou quasi paralytico, e quando a atrophia me
-subir á região peitoral, decerto, e felizmente, aca-
barei de penar Ainda vivo no ultimo acto da
decomposição. As pernas já estão na campa; mas
ainda as sinto nos estorcegões das nevralgias. Eu
esperava isto ha muitos annos, quando experi-
mentei os prodromos da ataxia. Agora jà diíficil-
1 Ob. cit. p. 48, 82, 85 e 114.
« Ob. cit. p. 126, 132, 133, 144, 147 e Cartas inéditas
<Vôr NOTA E).
188 CAMILLO
mente me arrasto d 'uma cadeira para outra; mas,
assim mesmo, vou até onde pôde levar-me uma
sege Afinal a seiencia descobriu que a minha
enfermidade inexorável é uma myelite. A paraJysia
por emquanto está nas extremidades inferiores. Se
a lesão da columna vertebral chegar âs vértebras
cervicaes, tenho de morrer asphixiado». c Estou
doente como uma enfermaria de S. José — diz ainda
Camillo ao visconde de Ouguella. — Cheguei à prosa
da dor de barriga Sinto-me vivo de nevral-
gias. Tenho andado por todas as praias do norte
sem tomar um banho; quando soíFro até cahir, venho
para a piedade inútil da familia». «Ha trinta dias
que não durmo com atrozissimas dores nas pernas »
— afirma elle a um amigo, em carta publicada
numa revista do Porto. ^
Nos seus delírios de megalómano e perseguido,
Camillo seguiu o typo clássico : é um caso perfeito,
posto que notavelmente attenuado. E nelle se po-
deria talvez encontrar aquella passagem raciocinada
do delirio de perseguições para o de grandezas que
alguns alienistas pretendem e outros, não menos
illustres, como entre nós o sr. dr. Júlio de Mattos, se
recusam, pelo resultado das suas observações, a
confirmar *. Quando Camillo foi para Lisboa com
Anna Plácido e a opinião publica os agredia, o
1 A Illustração Moderna, Porto, 1901, 2.o aono, n.os 8 e 9.
2 JuLio DE Mattos : A Loucura, 1902.
CAMILLO 189
romancista julgou-se victima de tenebrosos conci-
liábulos dos amigos de Pinheiro Alves, que contra
elle tramavam projectos de assassínio. « Assim foi
— diz o sr. Alberto Pimentel nos Amores de Camillo
— que de Lisboa escrevera para o Porto a seguinte
carta, que está junta ao processo e que reputamos
completamente infundada nas suspeitas que lhe
servem de assumpto:
niiistinssimo Senhor — F. S.<^ e eu reduzimos
sua sobrinha á extrema miséria. Ha no crime ainda
a possibilidade da virtude, A minha, se alguma me
concede, é trabalhar noite e dia para alimenta-la e
a seu filho. Os projectos de assassinio tramados por
V. >S.a contra mim, não vingaram no Porto, Se con-
.seguir que elles vinguem em Lisboa, glorie-se V, aS.»
de ter quebrado o ultimo esteio d^uma senhora des'
valida. Não se espante da liberdade que tomo de es-
crever-lhe. Espero que V, S.^ seja um dia o primeiro
a djzer que eu não era tão infame como a sociedade
me julga, — 20 de fevereiro de 1869, — De V, S,^
attento venerador e creado, — Camillo Castello
Branco. »
É claro que taes projectos não existiam. O ma-
rido atraiçoado vivia num meio em que essas reso-
luções violentas só com muito custo poderiam ger-
minar, e, mesmo que a sua dor fosse tamanha que
o allucinasse, os respeitabilissimos amigos que o
cercavam, gente conselheiral e ordeira, haviam de
190 CAMILLO
fazer-lhe escutar a voz da prudência e da razào.
Pinheiro Alves instaurou um processo, metteu os
amantes na cadeia e, embora o seu soflfrimento fosse
muito e lhe encurtasse uma vida amargurada, o
certo é que a isso se cifrou e a isso se deveria cifrar
logicamente a exteriorização do seu rancor.
Mais tarde, dizia o sr. António d'Azevedo Cas-
tello Branco, numa carta a seu primo Nuno, visconde
de S. Miguel de Seide, referindo-se a Camillo : < O
que eu lhe ouvi foi as palavras em que elle me
exorava para dar-lhe o revolver comprado, dizen-
do-se cercado de pessoas que o odiavam. . .» ^ E o
próprio Camillo, num opúsculo da questão da Se-
benta, escreveu : « Afinal, este doutor é mais um dos
ignorantes maus da quadrilha formidável que me
sahiu quando eu jà ia no fim da estrada, estropia-
do, amparado ao bordão do caminheiro que vem
de uma assas trabalhosa peregrinação» *, quando,
em verdade, se os ódios occultos contra ell© eram
bastantes, a quadrilha que sahiu em linha de ataque
estava longe de merecer o epitheto de formidável
que a nevrose de Camillo lhe assacou.
Sabe-se que o grande escriptor teve sempre em
grau altíssimo a preoccupaçâo nobiliarchica e, ave-
^ Nuno Castello Branco : (Visconde de S. Miguel
de Seide). Protesto contra a supposta filha de Camillo Cas'
tello Branco, 1890.
2 Notas á Sebenta do dr, Avelino César Callisto, 1883a
p. 15.
CAMILLO 191
riguado como parece estar que a sua ascendência
se nào enfeita com o sangue azul dos pergaminhos^
é de concluir uma accentuada megalomania. Essa
arvore genealógica, cheia de nomes vistosos, que
entra galhardamente e com solemne entono pelas
dynastias remotas de Oviedo e de Leáo, a que me
refiro no começo doeste livro, foi organizada pelo
próprio Oamillo e veio ter em manuscripto ás máos
do sr. Alberto Pimentel, que a publicou no Romance
do romancista. Mais tarde, este mesmo auctor^
mais bem informado, emittiu a opinião de que essa
illustre estirpe nada mais fosse que uma novella de
linhagens escripta por Camillo sob a influencia do
seu delirio dominante. ^ E foi ainda indubitavelmente
esse delirio que o levou a acceitar o titulo de vis-
conde que, sob o rotulo d'uma nobreza de brasileiro
minhoto, vinha encobrir todo o brilho do seu nome
de gloria. Dizem que era uma antiga aspiração sua,
satisfeita depois pela influencia d'uns amigos e é
ainda o sr. Alberto Pimentel que nos conta a tal
respeito este episodio. «Toda a gente estranhou
que elle quizesse trocar o seu nome por um titulo
de visconde ; só elle náo estranhou. Em Seide dis-
se-lhe eu : — 8e eu fôsae ministro^ teria introduzido
uma innovação no seu titulo, meu querido inestre.
— Q^alf perguntou Camillo. — Agraciá-lo-ia com
o titulo de — visconde Camillo Castello Branco, Assim ^
^ Oê 'Omàrtê âe Camillo,
192 CAMILLO
€1 mercê não eclipsaria um nome glorioso, antes lhe
^seria homenagem, Camillo náo gostou e respondeu
de prompto : — Coi*reia Botelho são appellidos nobres
da minha familia,f> ^
Planeando, nos últimos annos da sua vida, escre-
ver um romance sobre os seus antepassados, intitu-
lado Os Brocas^ Camillo dirigiu-se ao visconde de
Sanches de Baena solicitando-lhe algumas indica-
"Ções que o pudessem auxiliar no seu trabalho.
«Como V. Ex.* possue muitos conhecimentos ge-
nealógicos e dados infalliveis que lhe fornecem as
velhas inquirições do Santo Officio que Deus haja
em sua Santa guarda — escreveu Camillo numa
<;arta ao erudito investigador, datada de Seide, em
23 d'outubro de 1881 — tomo a liberdade de lhe
enviar um traslado de certidão baptismal, de familia
de Villa Real de Trás-os-Montes, a ver se porventura
V. Ex.* me pôde dar alguma informação dos ante-
passados do Dr. Domingos José Correia Botelho
-de Menezes, fallecido em 1805, desembargador apo-
sentado da Relação do Porto, e de José Luiz
Correia Botelho, cavalleiro professo da Ordem de
Christo, que me. parece ser tio paterno, irmão de
Manuel Correia Botelho, avô do baptizado. Tam-
bém desejaria saber se o capitão José Pereira da
Silva, casado com uma senhora Castello Branco, de
Cascaes, tem representante nesta yilla.» *
^ Os amores de Camillo,
* Alberto Pimentel: O romance do romancista.
CAMILLO 193
Noutra carta, posterior, também dirigida ao vis-
conde de Sanches de Baena, escreve Camillo: «Pelo
que respeita a Correias Botelhos, estou plenamente
satisfeito, graças às illucidações prestantissimas de
V. Ex.*. O que muito me interessava era saber
quem fosse D. Rita Castello Branco, senhora com
quem casou o dr. Domingos José Correia Botelho,
em Cascaes, sendo ahi juiz de fora. Os pães d'ella
constam da certidão do baptismo que enviei a
V. Ex.*, e o dr. Domingos José Correia Botelho,
segundo calculo, casou entre 1760 e 1765. Em Cas-
caes existe um indigena general reformado, de
appellido Castello Branco : pode ser que elle pro-
ceda d'essa familia. Conheci uma filha do dr. Do-
mingos José Correia Botelho que se assignou Cal-
deirão, Porque? Entre os meus papeis manuscriptos
ha umas trovas propheticas d'um physico Caldeirão
de Cascaes, espécie de Bandarra do século xvi. Po-
deremos espiolhar o Caldeirão nessa familia de Cas-
caes que ha 60 annos assignava Castello Branco ? »
Registei em Camillo a constante procura do
termo raro, e fácil se me torna justificar o asserto.
Não ha em toda a litteratura portuguesa linguagem
mais exuberante, mais fornida e ao mesmo tempo
mais pura que a d'elle. Mas a grande parte do seu
vastissimo vocabulário são termos por elle creados
ou feitos reviver d 'entre a prosa obsoleta dos car-
tapacios velhos, de modo que muitas são as pa-
ginas da sua obra em que para uma comprehensào
litteral o uso d 'um diccionario ou d'um elucidário
13
194 CAMILLO
se nào dispensa e rara será aquella em que não
encontremos uma palavra nova, derivada sempre se-
gundo a Índole e o mecanismo da lingua, para que
esta deforma alguma deixe de ser ainda e sempre o
mesmo instrumento autónomo, vivendo â custa dos
seus recursos próprios, vernáculo e purissimò. E'
claro que se não trata aqui apenas d 'uma neces-
sidade urgente de expressão, mas da exigência
d'um temperamento de colorista, num homem de
génio que possuia, como todos, a tendência para a
originalidade.
Mas, falemos do senso moral de Camillo, tão
discutido... e tão injuriado; falemos do seu cara-
cter que ainda ha pouco um articulista dizia não
ser « precisamente o de Smiles » * e vejamos até
que ponto esse modo de sêr moral se integra no
esboço de physio-psycologia malsá que estou tra-
çando.
Não houve infâmia que lhe não attribuissem,
monstruosidade moral que não servisse para, a olhos
de idiotas meticulosos, diminuir a grandeza do seu
génio e o valor colossal da sua obra. O certo é que
Camillo, como nevropata, tinha desigualdades de
caracter por vezes exteriorizadas d'ura modo sa-
liente e, assim, de envolta com um ou outro modo
de proceder pouco correcto, actos de bondade que
francamente o nobilitam. Numa carta a Silva Pinto
^ Pedro A. de Azevedo : Log. cit.
CAMILLO 19Õ
escreveu elle : « Os seus Realismos deviam ser bem
acolhidos ; agora com novo prefacio veja là o que
faz. Eu não lhe inculco a pujança dos seus inimi-
gos ; advirto-lhe simplesmente que ó melhor não
os ter, porque a gente de coração normal até mesmo
quando fere os adversários se magoa. Eu sou des-
graçado até me entristecer quando firo alguém :
prefiro que a retaliação seja cruel para me não fica-
rem escrúpulos». '
Tendo ardido a casa do editor de Um homem
de brios, Rodrigo d'01iveira Guimarães, dias depois
da publicação d'esse romance, Camillo, condoído
da miséria do livreiro, não só não acceitou o preço
da edição como ainda escreveu o drama Espinhos e
flôreSj fê-lo representar no S. João e cedeu todo o
producto da recita em favor d'elle. Annos depois,
Camillo era insultado no jornal d'esse mesmo ho-
mem que tão bizarramente soccorrera.
Em favor d'um velho soldado de D. Miguel,
Thomé Cabral, cedeu o romancista uma edição do
folheto O Clero e o sr. Alexandre Herculano. Tem-
pos depois, o homem foi levar-lhe 40$000 réis, me-
tade do producto liquido da publicação. Camillo
não os acceitou e Cabral, sahindo de casa d^elle,
comprou um bilhete de loteria que foi premiado
com vinte contos. •
Estava com Camillo no mesmo hotel, na Povoa
1 Silva Pinto : Ob. cit, p. 52.
* J. G. "Vieira de Castro: Ob. cit, p. 148-150.
196 CAMILLO
de Varzim, um medíocre pintor hespanhol, que
perdeu ao jogo tudo o que levava, deixando por fim
de pagar à dona da casa. Quando, semanas depois,
esta, que era uma tal D. Ernestina, despediu o
hospede, á hora do jantar, explicando o motivo
porque assim procedia, Camillo levantou-se do seu
logar e disse:
« — A D. Ernestina é injusta. Eu trouxe do Porto
cem mil réis que me mandaram entregar a esse
senhor e ainda o nâo tinha feito por esquecimento»
Desempenho-me agora da minha missão » .
E entregou ao pintor os cem mil réis. Mais
tarde, como o artista lhe declarasse que nào tinha
meios para pagar aquella divida, Camillo encarre-
gou-o, como saldo de contas, de pintar o retrato do
filho e do cão, o que o pobre homem fez com toda
a impericia notável que possuia. ^
Na sua Auto-biographia, publicada posthuma-
mente no Diário de Noticias, conta Trindade Coe-
lho, o illustre e mallogrado homem de letras:
< . . . vim a Lisboa a dois concursos : para con-
servador do registo predial e para delegado do
Procurador Eegio, mas regressei a Coimbra sem
esperança de ser despachado, porque não tinha
ninguém que me protegesse . . . Mas um dia de
manhã recebo uma carta de Camillo Castello Bran-
co, o grande escriptor, que eu nunca tinha visto.
^ Primeiro de Janeiro^ de 3 de junho de 1890 ; A. Pi-
mentel : O Romance do romancista^ p. 369.
CAMILLO 197
nem elle a mim : dizia-me que vira nos jomaes que
eu fôra a concurso e que escrevera ao ministro pe-
dindo-lhe que me despachasse ! Cahi das nuvens !
Mas d'ahi a poucos dias estava effecti vãmente des-
pachado delegado do Procurador Régio do Sabugal,
e eu ia ao Minho visitar o grande escriptor, vel-o
pela primeira vez (primeira e ultima!) e beijar-lhe
as mãos pelo seu tâo grande favor. Mais tarde eu
soube como as coisas se tinham passado : Camillo
estava casualmente numa livraria do Porto, quando
viu num jornal o meu nome, entre os dos outros
que tinham vindo também a Lisboa fazer concurso.
Constou- me que dissera : — Ora aqui está um rapaz
que provavelmente vae ser preterido por esses todos !
Perguntaram-lhe : — Quem é? — Um rapaz que es-
creve : Trindade Coelho, Disse-lhe o livreiro (que
era precisamente aquelle redactor do jornal onde
eu publicara o Scepticismo, o editor Costa Santos):
— Ninguém melhor do que V, Ex.^ para o despa-»
char f — Como? — Escrevendo ao Ministro. Camillo
calou-se ; e o resto jâ nós o sabemos. Sabugal era
a melhor comarca de 3." classe ; mas era quasi uma
aldeia, na Beira : e Camillo disse-me numa carta
que me escreveu para lâ que receava que eu me fi-
zesse ali um reinicola pavoroso; — e em menos de
um mez estava transferido para Portalegre, que era
jâ uma pequena mas linda cidade, capital de dis-
tricto, no Alemtejo. » ^
Diário de Noticias, de 18 de setembro de 1908.
198 CAMILIX)
O certo é que um homem normal que praticasse
acções doestas náo seria capaz de injuriar grossei-
ramente a mulher que por causa d^elle tinha per-
dido a consideração da grande parte, e o desafogo
de uma situação social invejável, fosse qual fosse,
perante a sua consciência, o valor moral d'essa mu-
lher, nem tampouco de ir viver para uma casa que
ella tinha conseguido á custa d'esse casamento que,
depois, para o seguir, repudiou.
Pouca gente conhece a razão por que o romance
Annos de Prosa appareceu abruptamente cortado
no mais emaranhado da acção, com estes periodos
íinaes que algumas edições posteriores eliminaram:
« Alguma vez verá o leitor que boleus deu toda
esta gente com as costumadas voltas do mundo. O
livro complementar doestas biographias ha-de deno-
minar-se Reacção da Poesia. E' o natural segui-
mento dos Annos de PIiosa.»
Ora tal Reacção não sahiu nunca e o motivo é
fácil de comprehender, contada a historia. O edi-
tor tinha contractado com Camillo a publicação
d'uma novella d\im certo numero de paginas e,
nessas condições, abriu a assignatura. Da quantia
do ajuste deveria entregar metade no começo da
impressão, tal como fez, e o resto no fim. Camillo,
em certa altura, suspendeu a remessa do original,
que ia em meio, e declarou que a não continuava
isem lhe darem o resto do dinheiro, pretenção com
CAMILLO 199
a qual, a muito custo, o editor se conformou, sem
que comtudo a remessa do original continuasse. E
foi após reiteradas instancias feitas pelo proprietá-
rio da edição em todos os termos, que Camillo man-
dou a metade que faltava. . . numa pagina. Ora tal
editor, fallecido ha annos e de quem eu ouvi a
narração de toda a historia, tendo-se compromettido
a dar um certo numero de paginas aos seus assi-
gnantes, resolveu dâ-las a todo o transe, fazendo
seguir os Annos de Prosa de dois outros romances
traduzidos livremente por um pharmaceutico de
Lisboa, ^ com o titulo de A Gratidão e O Arrepen-
dimento^ e a acção transportada para Portugal. O
frontespicio prestava-se a uma dúbia interpretação
que a escolha dos locaes da acção — S. Cosme e o
Candal — mais avolumava, e alguém, que desco-
briu o truc, não tardou em lançar sobre Camillo o
labéu de plagiário. Camillo exigiu do editor uma
declaração que elle, com effeito, fez inserir nosjor-
naes do Porto, redigida cautelosamente, em termos
<que encobriam a fraude do romancista. De bem com
€1 sua consciência e pensando de certo de si para si
f^ue a magnanimidade é virtude que pouco custa,
estava o bom do editor, quando Camillo lhe entrou
pela porta dentro barafustando que lhe exigira a
herdade para desfazer uma accusação falsa, mas não
* Henrique Marques : Bihliographia camilliana. Pri-
meira parte, mdcccxciv, p. 32.
2(X) CAMILLO
lhe pedira que contasse uma historia para desculpar
a incorrecção do seu procedimento:
« — U que o senhor deveria ter dito era o se-
guinte: o sr. Camillo tinha combinado comigo a
publicação d'um romance de tantas paginas, recebeu
o dinheiro e faltou á sua palavra; e eu então fiz
traduzir os outros contos para completar o volume.»
E' possível que estas palavras não sejam tex-
tuaes, mas o facto é authentico com certeza. O pró-
prio editor, que m'o contou, era um honrado homem
incapaz de mentir e que tinha por Camillo uma
grande admiração.
Entre os papeis soltos que durante annos esti-
veram a monte na Bibliotheca da Ajuda e que, sob
a gerência do sr. Ramalho Ortigão, se coordenaram,
existe uma carta de Camillo que pela primeira
vez appareceu publicada no trabalho do sr. Pedro
d'Azevedo sobre Os antepassados de Camillo a que,
por mais d'uma vez, no decorrer doeste trabalho, me
tenho referido. Ignora-se qual fosse o destinatário
d'essa carta ; o endereço deveria achar-se no en-
veloppe, que desappareceu. O sr. Azevedo, classi-
ficando-a de «lamuriante» e reveladora do caracter
do futuro romancista, o tal caracter que «não é
precisamente o de Smiles», pensa que ella tenha
sido dirigida a Herculano, que no mesmo anno da
sua data publicou o primeiro volume da Historia
de Portugal. Em todo o caso, a carta não é apo-
crypha. « Ninguém que conheça a letra de Camillo
— dÍ5se-me o illustre bibliotecário de Ajuda numas
CAMILLO 201
informações que teve a bondade de me prestar a
tal respeito — hesitará sobre esse ponto * . E, nesse
caso, é irrecusável a opportunidade da publicação
d'esse documento nesta altura do meu estudo em
que procuro dizer imparcialmente, arredando- o
muito embora da teia de lendas injuriosas que ca-
lumniosamente o conspurcam, o que foi o cara-
cter do grande romancista. Diz o seguinte :
« 111."™° Sr. — Os virtuosos sentimentos por V.
S.a proclamados em suas obras ; — essas obras que
eu julgo fieis reflexos da bondade, religião, e amor do
próximo, que dominam seu auctor, — me incitam
com arrojada confiança e temeridade, a dirigir á
presença de V. S.* esta minha carta, não mensa-
geira de talentosas frazes, antes pura copia da
magoa que inspira seu desconhecido escriptor. Um
licito desejo de fazer algum vulto nas letras, se
bem que incompativel com as minhas circumstan-
cias, me excitou a frequentar o curso de Direito
na Universidade de Coimbra. Encetei-o ; e, depoi&
que colhi victoriosas palmas das fadigas do meu
primeiro anno, a morte me roubou o protector
Xinico, que ali me mantinha com as suas parcas,^
toas para mim, filho das circumstancias, abundantes
posses. Absolutamente privado de meios para a
continuação do meu corriculo literário, olho para
o meu futuro, e prevejo um futuro calamitoso, qual
pode sobrevir a um moço de 20 annos, despido de
protecçoens. Em' meu abono, a resignação me tem
a
a
202 CAMILLO
conservado, até hoje, entre os limites da honra e
da prudência ; por que, no meio de minhas amar-
guras, lembra-me que ha um Deus, assiduo vigi-
lante por suas creaturas, e representado na terra
por alguns homens — honra da sublime idéa da
creaçáo. Não temo enganar-me, se disser, que V. &.
he um dos Apóstolos a cumprir a mais divina das
missoens : — valer aos afflictos — He pois a V. S.
que me dirijo: — serei eu feliz nesta minha atre-
vida inspiração? ! Meios de subsistir com honra —
única herança de meus pães — he, o que procuro,
« pelo que suspiro. N'esta Provincia, Senhor, não
vive o homem probo, por que a calumnia, de mãos
dadas com a politica, vão denegrir o homem que
ma^s lhes foge. N^esta Provincia, o homem, quer de
médio, quer de transcendente talento, senào segue
€L máxima geral — o vaivém das opinioens he ente
nuUo. Quizera, eu, Sr., fugir a este ar mefítico, e
procurar n'essa cidade, em paga do meu trabalho,
seis vinténs para o pão de cada dia, e viver tran-
quillo — ahi, onde ninguém conhece os meus prin-
cipies tão bellos, e tão esperançozos para admirar
a minha subjeiçáo de hoje — ahi, onde ninguém
motejará a minha casaca jâ velha, nem me apontará
dizendo por escarneo : Ali vae o filho d'um que foi
corregedor em Vizeu! Pode V. S.a valer-me ; pode-
rei eu ir a Lisboa esperançado na caridade de V.
S.*? Eis aqui, meu protector, cumprida a mensagem
doesta carta. Se ella he digna da resposta de V. S.»
^u a aguardo anciosamente — Favorável, Deus
CAMILLO 203
irmittirá que seja. Conceda-se-me a honra de me
fsignar de V. S.* — servo muito venerador Camillo
'erreira Botelho Castello Branco, V.a Real deTras-
s-Montes — 28 de agosto de 1846 » .
Quem desconhecer certos pormenores da biogra-
>hia de Camillo estranhará deveras o puritanismo de
[uem procura discutir o caracter d'um homem, num
entido pouco lisonjeiro, pelo facto de esse. homem
er pedido trabalho — seis vinténs para o pão de
íada dia — no estylo humilde que naturalmente se
napõe á epistolographia implora tiva d 'um homem
que náo possue esses 'seis vinténs. Ha porém, mais
alguma coisa. E' que Camillo afirma nessa carta que
colheu as victoriosas palmas das fadigas do seu pri-
meiro anno de Direito ua Universidade de Coim-
bra — e Camillo nunca frequentou a Universidade
de Coimbra. E' que Camillo afirma nessa carta de
1846 que a morte lhe roubou o protector único que
o mantinha nos estudos com as suas parcas posses
— 6 esse protector, um tio chamado João Pinto da
Cunha, em 1849 ainda vivia. E isso é facilmente
«omprovavel. No Romance do romancista, o sr. Al-
berto Pimentel conta que um amigo seu, a quem
pediu informações sobre a vida de Camillo em Coim-
bra, lhe respondeu o seguinte: «Percorrendo as
listas impressas ou Relações de estudantes matricu-
las na Universidade e lyceii de Coimbra^ desde o
anno lectivo de 1840-1841 até ao de 1860-1861 não
encontrei o nome de Camillo Castello Branco. Além
i
204 CAMILLO
d'isto, falando com varias pessoas que me pode-
riam informar a este respeito, todos me disseram
que elle não frequentou a Universidade nem o lyceu.»
Por meu lado, procurando informar-me ainda a tal
respeito, dirigi-me a um amigo residente em Coim-
bra, que me confirmou nestes termos as palavras do
informador do sr. Alberto Pimentel: «Tive occa&ião
de percorrer o archivo das matriculas desde 1839
até 1849, e nesse período de dez annos, posso ga-
rantir-lhe que absolutamente nada existe relati\'a-j
mente ao nosso Camillo, sendo portanto inexacto
que elle houvesse frequentado esse estabelecimento
de ensino superior . . . São estas pois as informações
officiaes e fidedignas que, com a mais absoluta cer-
teza, lhe posso fornecer». Quanto ao tal tio — em
casa de quem elle se hospedou em 45 quando re^
gressou a Villa Real depois de perdido o auno na
Escola Medica do Porto — a prova de que em 49
ainda vivia está no facto de, nesse mesmo anno, ter
escripto aos jornaes do Porto, por solicitação de
Camillo, uma carta explicativa da prisão do futuro^
romancista em 46.
Fica assente, pois, que, nesse anno de 46, ÇamillO"
deturpava a verdade, — romantizando a sua propri*
vida á custa d 'algum dos seus heroes de novella^
como, de resto, tantas vezes romantizou alguns dofl
seus heroes de novella á custa da sua própria vida,
— mas deturpava-a, não para se desculpar d'uma
mâ acção, não para prejudicar interesses d^outreiai
não para mendigar um empréstimo ou uma esmol»"
CAMILLO 205
nas para pedir trabalho. E a essa religião do tra-
balho foi elle sempre escrupulosamente fiel. Se a
sarta transcripta d'isso ó uma prova incontestável,
nutras que vou transcrever o sáo também e d'uma
Eorma mais nobre, mais eloquente e, de todo em
bodo, immaculada.
A primeira d 'essas cartas a que me refiro, fo^
eseripta em 61, das cadeias da Kelaçáo do Porto, e
publicada nos jornaes d'então. Camillo estava preso.
cDissera-se que eu recebera dois contos de réis>
dadiva do soberano (D. Pedro V) — conta elle pró-
prio nas Memorias do cárcere, — Os meus amigos
perguntavam-me se eu os recebera, como certíssimos
de que eu os enganava, respondendo negativamente.
Dei o boato como inventado no Porto, e ponderei-o
como todas as calumnias que por aqui me assaltam,
e eu esmago entre a sola e a lama. Quando, porém,
um respeitável cavalheiro e amigo, António Joaquim
Xavier Pacheco, me asseverou que vira uma carta
de Lisboa dizendo que o sr. Conde da Ponte me ia
enviar dois contos de réis por ordem do rei, apres-
sei-me a desmentir a calumnia, ou a rebater a esmola
sem mais vaidade que a do trabalho, que a si se
basta». A carta de desmentido era a seguinte:
« Sr. redactor. — Muita gente me tem pergun-
tado por dois contos de réis, que mandou dar-me
o Senhor D. Pedro v. Pessoas circumspectas aco-
lheram e divulgaram o boato, commentando-o de
diversos modos, mas nenhum lisonjeiro para mim.'
\
2C)G CAMILLO
Eu creio que o Senhor D. Pedro v é infinitamente
delicado, e só dâ esmolas a quem lh'as pede. Quando
S. M. me fez a honra de perguntar, na cadêa, em
que me occupava, respondi a S. M. : qiie trabalhava.
Ou o Senhor D. Pedro v entendesse que eu me
occupava em chapeiis de palha, ou em romances,
ou em caixinhas de banha, a minha posição ficava
definida para o intelligente Monarcha: o homem
que trabalha não pede nem acceita esmolas ; e, se
a pedisse ao Rei, julgar-me-hia tão humilhado como
se a pedisse ao Ínfimo dos homens. A cousa é
outra. Ha muita gente que se diverte comigo. E
bem feito, porque eu também me divirto com muita
gente. Eogo a v. a publicidade doestas linhas. De
V. etc. — Camillo Castello Branco. Porto, cadêas da
Relação, 11 de fevereiro de 1861.»
A outra carta foi escripta um mês antes da sua
morte. Um jornal de Famalicão disse que Camillo
contratara com um editor do Porto a publicação de
dois romances e de um livro referente â questão
com a Inglaterra. Dias depois, o Primeiro de Janeiro
publicava o seguinte :
« Meu presado Oliveira Ramos : Alguns jornaes
transcreveram de uma folha periódica de Famali-
cão, a meu respeito, uma noticia inexacta. Nào
contratei com algum editor a publicação de livros
novos. Em cousas de litteratura, deve falar-se de
mim como se fala de um escriptor morto. Logo
CAMILLO 207
jue eu acceitei do Estado uma pensão, é que eu
Qão podia trabalhar e manter a minha laboriosa
independência de 40 annos. Ceguei na lucta e fi-
quei vencido. Sirva isto de exemplo a futuros es-
criptores. De v. etc. Camillo Castello Branco. S. C.
— S. Miguel de Seide, 30-4-90».
Certo, nessa lucta de 40 annos, Camillo teve ho-
ras de desanimo — e largos motivos para as ter.
Em 28 de abril de 62, dizia elle a José Gomes
Monteiro, numa carta que vem em parte trans-
cripta no Romance do 7'omancista : «Escrevo ro-
mances, e que remédio senão escrevê-los sempre?»
Em Lisboa tenho editor que me paga o volume a
1441000 reis. Se dentro de um anno me não paga-
rem a propriedade de cada vol. a ÕO libras, creio
que abrirei uma tenda, e acabarei tranqTiillo, hon-
rado, e estúpido como convém». E, em lõ de
maio de 1868, em carta também a Gomes Monteiro,
que vejo ainda no Romance do romancista : « Di-
zem- me que vou ser não sei que na secretaria da
Marinha. Acceitarei, para mais facilmente poder
conseguir collocação no norte, Barcellos que seja » .
Em 16 de maio de 1904, Carlos Malheiro Dias
publicou no Século estas palavras :
. « Camillo foi sempre um calumniado e um per-
seguido. Teve, é certo, quem o reverenciasse. Mas
á maneira de quem reverenceia um tyrano : — te-
mendo-o. Esse grande infeliz gozou uma realeza^
208 CAMILLO
mas de onde só lhe derivaram amarguras. EUe foi,
<3om Garret e Herculano, o terceiro homem que
presidiu, sem contestação de poder, ao movimento
litterario do seu século. Camillo passou, com o seu
casacáo de gola de pelles, a luneta de aro de tar-
taruga, a fealdade de varioloso, como passam os
dominadores e os déspotas, numa tormenta de
impropérios e num clamor de applausos. Arreme-
^aram-lhe flores e escorias. Foi injuriado e accla-
mado. Mas eram acclamações de pardaes saudando
uma águia e injurias de mosquitos incommodando
o somno de um leào. Nem de umas lhe vieram,
durante a vida, os prazeres orgulhosos que consolam,
nem das outras as fúrias sagradas que exterminam.
A sua realeza acabou no suicidio, que é o tédio da
vida. As flores feneceram e as escorias deixaram
nódoas. A ingratidão humana procurou, depois da
«ua morte, abafar a sua obra. Mas a obra era im-
mensa e as mãos dos ingratos pequenas. Por ultimo,
€oncordou-se que elle era grande. Mas insinuou-se
que elle fora mau. Todos o admiram, mas poucos
o amam. Ninguém contesta que elle escreveu admi-
ráveis livros ; mas muitos afiançam que elle com-
metteu abomináveis acções. As almas cândidas
visionam-o como um espirito do Mal, desregrado e
satyro, mysto de Belzebuth e Casanova, violador
de ooaventos e perturbador dos lares, adulterino e
sceptico, usando de poderes infernaes de seducção,
com segredos de philtros conturbadores quando
falava nos livros ao coração ingénuo das mulheres.
CAMILLO 209
Os que, sem lhe negar o génio imperativo, lhe
obscurecem o caracter e disformam a memoria,
sabem que os escriptores só podem perdurar pelo
amor no coração dos que os lêem. Todo o seu ta-
lento não o rehabilitarà perante os que o não amem.
E hoje, que morreram quasi todos os homens que
com elle mais intimamente conviveram, não se
pôde apellar para os corações d'aquelles que o
estimaram. O corpo d'esse pobre desherdado está-se
consumindo num alheio jazigo, no pequeno e triste
cemitério da Lapa. Elle morreu longe de todos,
numa solidão que a cegueira tornava maior, onde
o não foram confortar os affectos de meia dúzia de
homens, com os nobres corações d'esses outros a
cujo culto piedoso de saudade Lisboa deve hoje o
monumento do Largo do Quintella. Esse grande
infeliz conheceu todos os soffri mentos. E para que
nenhuma voz o accusasse de ser injusto nas raras
horas em que a sua penna, molhada em lagrimas,
se transformou num flagício. Deus não lhe poupou
a mais cruciante, a mais intolerável, a dor mais
atroz que as fibras de um coração humano podem,
sem estalar, consumir e soffrer : a recusa affrontosa
d^, esmola, quando quem a rejeita ó uma mulher e
quem a s«pplica é. . . um Camillo ! Yive ainda a
uobré e arrogante senhora, que se divertiu com a
desgraça e a humilhação de um homem glorioso e
pobre, exercitado no desengano, que ainda conser-
vava a illusão mentirosa de que o coração da mu-
lher é . refugio da piedade. A velhice deve ter
14
210 CAWILLO
abrandado a antiga crueldade d'essa senhora, que
é hoje avó. Era fácil tornar transparentes os véos
que lhe occultam o nome. Mas nem é meu propó-
sito vhigar o pobre otfendido, nem reparar, com
o castigo, a tremenda falta de que a deve accusar
a consciência. A historia d'esta amargura é singela
como a de todas as grandes dores humanas e de-
pressa se conta. Era em 1872, no Porto. Camillo
vivia então na rua do Bomjardim, pobre como sem-
pre e mais do que nunca queimando as pestanas a
escrever. A exterminadora tarefa d'esse homem
durava havia meses, sem que elle houvesse até
essa hora conseguido assegurar para o inverno a
lenha e o prato do lar modesto. Foi numa hora de
afflicção e de fadiga, em que a penna se negava a
trabalhar pela gloria e pelo sustento, transformando
a tinta em radiosas idéas, que Camillo afastou de
si o manuscripto do romance incompleto e escreveu
a um amigo a carta que vae lêr-se :
Ulmo £ir.^"« Sr.
Classificam-se de confidenciaes umas cartas d^
natureza doesta; eu porém deixo a V. Ex.** detei''
minar o que nella deve haver de reservado.
Recebi ha annos, uma taça de prata, brinde d^
colónia portuguesa em Hong-Kong, Dizem sei' wtf^
trabalho primoroso^ que lá custou cem libras. Crei^
qiie materialmente não vale isto; e estimativamet^^^
poderia valer mais se eu pudesse ter baixela.
CAMILLO 211
Tem o meu nome e uma dedicatória em caracte'
^s chinezes. Isso que monta'? Vendo-a, porque taças
i prata em casa de esoiptores portugueses são como
ças de amargura, quando o vácuo d'ellas é como
da gloria em Portugal, Vendo-a por S00$000 réis,
^ote V, Ex.^ que ella não tem um terço d'aquelle
ilor em prata. Parece, porém, que os lavores são
iimaveis,
— Então que qtier você? — pergunta F. Ex.**
Pedir-lhe que apresente esta alfaia d Exj>ta Sr,**
)***. que tem riqueza e gosto superabundantes. Se
', Ex.^ a quizer, pôde aspar-lhe o meu nome; e se
ão lhe importar que a sua posteridade encontre esta
lemoria de um homem que passou um dia a querer
uzir nesta escuridão ahafadora de Portugal, 8,
?íc.« honrará a minha memoria conservando-a in-
icta,
V. Ex.a se dignará dizer-me para onde devo re-
letter-Wa, se me quizer obrigar fazendo-a enviar d
^peitavel senhora de quem V. Ex.ct é considerado
>mo merece.
De V, Ex.a
affectivo e obrigjno criado
Camillo Castello Branco,
Casa de V, Ex,"*
Rua do Bomjardim, 860,
20 de Novembro de 1872,
212 CAMILLO
A esta carta, cuja grandiosa e melancólica tristeza
oommove até às lagrimas, essa senhora, que era
poderosa e rica, respondeu com a recusa de com-
prar a taça, sob o pretexto irónico e especioso de
que entre a sua baixela aquelle primor de arte
avultaria demasiado. A taça de prata voltou ao lar
pobre, de onde sairá cheia de esperança na apre-
goada caridade d'essa mulher. Voltou transbor-
dando o fel que a pérfida máo feminina lhe entor-
nara. Camillo esvaseou até ao ultimo trago essa
peçonha. E de tào affeito ao veneno e ao infortú-
nio, não morreu ! »
Fechado este largo parenthesis a que a discussão
d'uma peça comprovativa deu logar, cumpre-me
proseguir no relato do que, nos phenomenos do
espirito e da matéria, se me afigura de molde a
comprovar na individualidade de Camillo a exis-
tência d'iima nevrose em que porventura se hajam
de integrar as qualidades summas do seu génio. Eu
citei já as desigualdades psychicas, a interpretação
mystica dos factos mais simples e o misoneísmo,
como caracteres que Lombroso e outros auctores
attribuem aos homens de génio e que ó possivel
encontrar em Camillo Castello Branco. Do primeiro
d'elles, eu penso que já no decurso doeste estudo
tenho feito uma prova eloquente. Da interpretação
mystica dos factos mais simples julgo também
que deve estar convencido todo o que tenha lido a
sua obra e muito principalmente aquella que foi
CAMILLO 213
escripta no tempo em que a descrença cedeu o passo
a um mysticismo que o ia levando á vida de padre
e o arrastou ainda â frequência do Seminário. Mas
depois mesmo : a loucura do filho (e é claro que
isto não entra nos factos mais simples, posto que
seja bem dos lílais explicáveis) a attribuiu elle a um
castigo de Deus, e, no decorrer das suas novellas,
essa mesma ideia da intervenção da Divindade no
destino dos homens se nota a cada passo. Deter-
me-ei pois apenas no misoneísmo, antes de entrar
no estudo das perturbações visuaes, que deixei para
o fim, porque seria immethodico separá-las do facto
capital de que ellas foram a causa immediata : o
suicidio. Já ficou dito que o misoneísmo é vulgar
nos grandes homens. « Os homens de génio, escreve
Lombroso, são : como a gente do povo, as creanças
e os idiotas, essencialmente misoneístas ; possuem
uma energia incrível para recusar as descobertas
d'outrem, seja porque a saturação, por assim dizer,
dos seus cérebros lhes não permitta novas acquisi-
ções, seja porquê, possuindo uma grande sensibili-
dade para as ideias próprias, se não possam impres-
sionar com as dos outros» ^ Camillo foi, sem duvi-
da, misoneísta. E, se a sua indifferença por coisas
de politica nos não deixa facilmente, por esse lado,
colher elementos demonstradores d'essa verdade^
os Ímpetos de reaccionário, evidentes nos seus es-
Ob. cit, p. 3õ.
*2lá CAMILLO
criptos de doutrina e a opposição, mais ou menos
franca, com que recebeu a escola de Coimbra e
mais tarde o realismo, sáo elementos que só de si
corroboram bastante a minha afirmação.
E, posto isto, chega o ensejo de, abandonando
por instantes o lado puramente ps/chico da doença
de Camillo, me referir ás perturbações visuaes que
nelle foram crescendo do simples enfraquecimento
neurasthenico a amaurose, que me arrasta a um
diagnostico mais grave. Foi na cadeia, em 1861,
que o grande escriptor começou a soflfrer da vista.
Nessa altura, como sempre aconteceu nas variadas
manifestações do seu mal, exaggerou, e assim, nas
Memorias do cárcere, contando a serie longa dos
trabalhos a que consagrou, durante a prisão, a sua
actividade, deixou escripto que tamanho esforço
«era de mais para quem não via nada.» E o seu
biographo Vieira de Castro, com todo o amor rhe-
torico ás hyperboles e phrases de pompa, apostro-
phavao no começo d'uma tirada romanesca: «Di-
zem-me que estás quasi cego. . .» Mas, volvidos três
annos, o incommodo, que até ahi não fora mais que
uma pouco pronunciada perturbação neurasthenica,
que o «horror á doença» de Camillo exaggerou,
mostrou progressos, a photophobia appareceu e
Camillo poderia então dizer como Daudet, numa
das suas Notes sur la vie : « Mes yeux, três affaiblis,
ont peur de la lumière éblouissante, fermés surtout ;
le dessus des paupières est d 'une sensibilité incroya-
ble. On sait que, dans le demi-sommeil, un coup de
CAMILLO 216
sonnette esfc comme un dechirement de Toreille, ou
se ramifient tous les nerfs. La trop vive lumière
nip cause une impression analogue, aíFectant les
yeux de la même manièrè » . Dez annos mais tarde,
as perturbações visuaes tomaram um aspecto alar-
mante e, desde então, a doença caminhou sempre, e,
successivamente, as crises de lagrimas, a nevrite
óptica, a diplopia e a amaurose vieram, em todo o
tempo que decorreu desde essa data até ao suicidio,
coUaborando com as nevralgias, os ruidos nos ou-
vidos e todos os males do espirito, na formidável
desventura que o prostrava. De todos esses males,
ou melhor dizendo, da marcha aterradora d'um
grande mal que uma sobrecarregada herança lhe
marcara, ha larga documentação nos seus escriptos.
Não citarei toda; seria difficil e fastidioso. Mas não
deixarei de mencionar um ou outro exemplo que,
sobretudo pela ordenação chronologica que procuro,
íse me afigure de mais vivo interesse.
Em 70 e 71, Gamillo escrevia, em cartas a Vieira
de Castro, coordenadas na Correspondência Episto-
lar: «. . .a felicidade é luz coruscante que oíFende as
almas quasi cegas de chorar. Esta comparação deu-
m'a o desgosto de mal poder hoje fitar a luz
Estou enfraquecidissimo da vista e da cabeça
Os olhos não me deixam escrever, filho. Estão afo-
gados em lagrimas, mas olha que são de ophtal-
mia.» Em 1878 (agosto) ao Visconde de Oiiguella:
«Não posso lêr nem escrever»; e ao mesmo, no
mesmo anno (novembro): «Estou com uma con~
216 CAMILLO
juntivite ha dois meses. Agora mal posso encarar
a luz artificial Continuo a padecer de tudoe
principalmente dos olhos. Tenho de volta de mitiv
14 luzes, para ver o que te escrevo. Desde que o
sol se esconde, estou cego; e não apresento synv^
ptomas de amaurose nem de cataratas!» Em j^'
neiro de 80, ao sr. Silva Pinto : « Eu, mal de tud
e principalmente dos olhos. Yejo só com um, par
não ver tudo duplicado. Absurdos da óptica. Ch
ma-se a isto uma coisa grega. » No mesmo anno a
sr. padre Senna Freitas : « Tenho os olhos razos d — ®
lagrimas». Em março de 81, ao sr. Silva Pinto •^••
«O peor é que lhe escrevo com um dos dois olh
fechado, para não vêr duplicado. Um inferno!...
Um mês depois, ao sr. padre Senna Freitas : «
meu padecimento de olhos promette demorar
como costuma quando vem com este préstito
perversões nervosas.» Em outubro d'esse mesm^i^^^^^
anno, ao sr. Silva Pinto: «Desconfio que vou fic d^s^ ^
cego. Ha muitos dias que nem lêr posso.» Er" ^^
julho de 82, também ao sr. Silva Pinto: «A lu-^'"^^
dos meus pobres olhos creio que se apaga. !E^^3-a
três meses que choram sempre.» Em setembrr -^rc
de 85, numa carta a Thomaz Ribeiro inserta n»
Amores de Camillo: « Se eu viver em novembro,
de vêr se posso ser apresentado por ti á sciencia
á caridade d'alguns médicos de Lisboa. O que
queria, meu querido amigo, era que me dessenr=a ^
vista que eu tinha ha 4 meses, para poder trabalhr:»^^
até morrer. Nào me podia ser inflingida maior t ^^^-
CAMILLO
217
tura que isto de não poder escrever sem grande
mortificação. » Em setembro de 86, ao sr. padre
Senna Freitas : « Estou quasi cego desde que o meu
Jorge, em delírio furioso, entrou no hospital do
Conde de Ferreira.» Nesse mesmo anno, ao sr. Al-
)erto Pimentel : « Ha dois meses que não escrevo
lem leio por falta de vista. O menor esforço pro-
!iiz-ine vertigens. Suspendi todos os meus trabalhos,
íoncorreu muito para esta perversão nervosa o es-
ado do meu pobre Jorge. » Em março de 87, ao
aesmo: «Depois veio um periodo de quasi ceguei-
a ; e agora com muita difficuldade e quasi em tre-
las lhe escrevo.» Em abril de 87, ao Visconde de
)uguella: «Estou quasi cego, porque algumas horas
le escripta me cegaram a circumferencia da iris, de
nodo que apenas vejo um circulo mais estreito que
iste papel. Todas as minhas infelicidades do corpo
5 da alma eram delicias antes de eu sentir esta su-
prema desgraça. Se isto progredir resolverei de-
pressa a crise.» Em outubro doesse mesmo anno, ao
3r. Francisco Martins Sarmento : « Dou-lhe a triste
nova de que estou quasi cego. E a anemia dos
olhos congénere da anemia geral. Faço ainda o sa-
crifício de ir a Lisboa e sem esperanças, ouvir os
especialistas. Se os de lá não souberem mais do que
os do Porto, estou prompto. » Ainda nesse mesma
anno (novembro) ao sr. padre Senna Freitas : « Es-
tou a escrever a trote, porque não vejo. Tenha
apenas algumas fibras contrateis em uma das reti-
nas. » Finalmente, em abril de 90, na carta, já tran-
218 CAMILLO
scripta, a Oliveira Ramos: «Ceguei na lucta e fiquei
vencido.» ^
O velho luctador, sentiu-se realmente vencido.
E a sua energia doente, a sua vontade oscillante
mas imperiosa ás vezes, os recursos do seu belissimo
espirito, nada podiam contra aquelle novo assomo
da desgraça, que lhe vinha roubar impiedosamente
o supremo bem de trabalhar. Queria ler, queria
escrever — sobretudo escrever! — e não podia. Uma
vez, num momento de desanimo, mandou leiloar a
preciosa bibliotheca que possuía, desistiu de todas
as investigações históricas a que se entregava nos
últimos tempos — e pôs-se a fazer versos. Num so-
neto ao filho doido, escreveu isto :
« Nem goso nem paixão te altera a vida!
Eu choro sem remédio a luz perdida. . .
hem mais feliz és tu, que vés o sol.»
E num outro :
«E eu que tanto carpia os condômnados,
Os cegos— os supremos desgraçados !
.lá lagrimas não tenho para mim ! »
^ Correspondência epistolar, t. if, p. 49,55 e 114; Cartas
ao Visconde d'Ouguella, log. cit. p. 116, 115 e 119 ; Cartas a
Silva Pinto, ob. cit. p. 28, 119, 71 e 115; Cartas a Senna
Freitas : Perfil de Cam. C. Branco, p. 136, 139 e 149 e Cartas
inéditas, Vôr nota e; Amores de Camillo, p. 418; Rom,^^
rom.y p. 289 e 290 ; Cartas de C, C, Branco a Francisco Ma^'
tins Sarmento^ com prefacio e notas de João de Meira. Se-
parata de A Revista^ Porto, 1905, p. 15.
CAMILLO 219
Augmentaram as impaciências da sua vida er-
rante. E começou a consultar médicos de toda a
parte. Voltava-se para a religião como para um
auxilio. Escrevia ao padre Sebastião de Vascon-
cellos (hoje bispo de Beja), íl pedir -lhe os Padre-
nossos dos seus educandos da Officina de S. José.
«Commovido até ás lagrimas, ouvi ler a sua carta
• — dizia, em setembro de 88, Camillo ao sacerdote
— Senti fazer-se a luz da esperança na minha alma
em trevas ; mas, considerando-me indigno das suas
preces e da Misericórdia Divina, a escuridão da
alma volveu ao estado em que se acham os meus
pobres olhos. Entretanto espero que as orações de
"V. Ex.* e dos seus innocentes protegidos consigam
aligeirar a minha agonia de modo que a morte me
«eja menos tormentosa. Deus Nosso Senhor lhe dê
^3aude para amparo de outros infelizes a quem V. Ex.*
ensina o caminho do trabalho e da virtude.» E
ainda de outra carta do mesmo mês e anno, tran-
scripta, como a precedente, no Romance do roman-
cista : « Cresce o meu agradecimento quando vejo
que V. Ex.* recorre ao poder divino para que se
opere o milagre que a sciencia não fez nem poderá
fazer. Eu tenho muita confiança nas suas preces,
acompanhadas da voz innocente dos seus filhos
adoptivos, cuja alma V. Ex.^ regenerou.» Sentia-se
perdido, queimava os últimos cartuxos, procurava
tacteante uma ultima esperança e recorria a tudo,
6 acreditava em tudo . . . até na medicina !
Dez dias antes de morrer, dirigiu ao medico
220 CAMILLO
especialista de doenças dos olhos dr. Edmundo Ma-
galhães Machado, esta carta, que é um dos mais
extraordinários documentos da dor que tenho visto
escriptos :
« 111.'"^ e Ex."^^ Sr. — Sou o cadáver represen-
tante de um nome que teve alguma reputação
gloriosa neste paiz, durante 40 annos de trabalho.
Chamo-me Camillo Castello Branco e estou cego.
Ainda ha quinze dias podia ver cingir-se a um
dedo das minhas máos uma flammula escarlate.
Depois, .sobreveio uma forte ophtalmia que me
alastrou as córneas de tarjas sanguíneas. Ha poucas
horas ouvi lêr no Commercio do Porto o nome de
V. Ex.^ Senti na alma uma extraordinária vibração
de esperança. Poderá V. Ex.* salvar-me ? Se eu pu-
desse, se uma quasi paralysia me não tivesse
acorrentado a uma cadeira, iria procural-o. Não
posso. Mas poderá Y. Ex.^ dizer-me o que devo
esperar d'esta irrupção sanguínea nuns olhos em
que não havia até ha pouco uma gotta de sangue ?
Digne-se V. Ex.^ perdoar á infelicidade estas per-
guntas feitas tão sem cerimonia por um homem
que não conhece».
E, em 26 de Maio, ainda esta outra carta a
Mello Freitas :
€ Ex."^^ Sr. Joaquim de Mello Freitas : Em
tempos relativamente felizes me deu V. Ex.® a honra
CAMILLO 221
das suas relações. Hoje que a minha desgraça e
enorme, recordo-me do seu nome, da sua intelli-
gencia e do seu coração para vir pedir-lhe um favor.
Escrevi ao Dr. Magalhães Machado, patrício de
V. Ex.'**, acerca da minha cegueira, na esperança de
que elle pudesse operar o milagre de me restituir
não a vista que tive, mas a bastante para me des-
condensar a treva que haverá dois meses se fez
completa nos meus olhos. O Dr. Magalhães Ma-
chado respondeu-me de modo que me deixou sentir
a delicadeza do seu espirito e a sua commiseração
pelos meus padecimentos. S. Ex.^ pedia-me um re-
latório da minha doença ; ella porém é tão compli-
cada e variada no transcurso de 40 annos, que eu
só interrogado por um medico, poderia responder
e esclarecer satisfatoriamente o exame. Disse-me
S. Ex.^ que, sendo curavel a minha enfermidade, eu
iria tratar-me para Aveiro. Seria para mim, nesta
conjunctura, suprema felicidade, ir para Aveiro na
esperança de ser curado ; isso porém só eu poderia
pratical-o, no estado de prostração em que me
encontro, se o senhor doutor depois de me visitar
em S. Miguel de Seide, achasse possivel a minha
cura. Elle fez-me sentir a impossibilidade actual
de abandonar os seus clientes para se encarregar
de um doente tão afastado e carecido da presença
do medico e tratamento vagaroso. Mas se a visita
que eu peço ao medico é só uma e decisiva, quer
para o tratamento, quer para o abandono da mo-
léstia incurável, essa visita poderá talvez o senhor
222 CAMILLO
doutor prestrar-m'a sacfificajdo-se ao mais infeliz
dos doentes que se teem soccorrido de S. Ex.^ No
caso feliz de que V. Ex.^ pudesse movel-o e com-
movel-o a vir a S. Miguel de Seide, teria V. Ex.*
a bondade de me prevenir do estipendio com que
me cumpre remunerar táo trabalhosa jornada em
que além do ' caminho de ferro ha uma légua de
mau caminho, comquanto se faça de carruagem
desde Famalicão até Seide. Estou certíssimo de
que V. Ex*^ dará toda a consideração a esta carta
dictada por um cego, e na volta do correio, se for
possivel, me dará a resposta que me levante d 'este
desalento que me vae levando ao suicidio, se a
Divina Providencia me não deixar morrer como
em geral morrem os felizes e os desgraçados. De
V. Ex.^ admirador aíFectivo e muito obrigado — Ca-
millo Castello Branco,
«Fui logo procurar o dr. Edmundo Magalhães,
— conta Mello Freitas no artigo d'onde transcrevi
as duas cartas * — pedindo-lhe com instancia que
fosse visitar Camillo Castello Branco, o que elle
me prometteu fazer dentro d'aquella semana. Res-
pondi ao grande romancista, dando-lhe parte do
que succedera. A impaciência de Camillo mani-
festa-se no telegramma que recebi a 28 do alludido
* Mello Frp:itas : Camillo Castello Branco, (Para a
historia dos seus últimos dias). No n.o 6 da Berista Illus-
trada — 30 de Junlio de 1890.
CAMILLO 223
mês : Peço favor avise chegada Dr, para mandar
carro estação, Enderecei-lhe segunda carta com-
municando-lhe a boa noticia de que no domingo,
às 11 horas da manhã, o dr. Edmundo Magalhães
estaria em Villa Nova de Tamalicáo, e reiterava-lhe
os meus votos de felicidade e profunda estima. No
dia 30 recebi outro telegramma, cujo texto é o se-
guinte : Bem haja pelas suas cartas » .
Afinal, em 1 de junho, a visita fez-se ; e como o
dr. Machado, depois de detido exame, puzesse de
parte a ideia primeiro aventada d^um tratamento
em Aveiro e aconselhasse o doente a ir algum tempo
para o Gerez, onde, em outros ares, colheria de
certo algum allivio, Camillo, comprehendendo nessas
meias palavras consoladoras a sua condemnaçáo
irrevogável, insistiu com a esposa para que acom-
panhasse o medico até ao pateo e, ficando só
matou-se.
E isso afinal não era mais que a realização, um
pouco tardia, d'um projecto que desde cedo começou
a germinar no seu espirito. E se tardia ella foi
como eu digo, lance-se isso em conta d'aquella
indecisão — mille ritegni neWeseguire — de que fala
Leopardi. O suicidio é vulgar nos nevropathas,
como de resto o é em todos os que soffrem de certas
moléstias sem cura. Mas, nos casos de perversão
nervosa, todo o raciecinio se torce numa feição
doentia, e quando as esperanças de melhora vão
morrendo de desillusão em desillusão e a psychialgia
tortura, a cada passo exacerbada, o doente resolve
ÍÍ2J: CAMILLO.
morrer. Se ó uin neurastheuiço, um doente da von-
tade, nem sempre consegue reunir o quantum de
energia necessário para executar a sua resolução e
ou não a executa nunca ou vae levando, entre uma
variedade de considerações dilatórias, meses e annos,
a encher-se de razão. ^ Passa esse tempo todo a
convencer-se, numa auto-catechese lenta, cheia de
minúcia, laboriosa, destruindo um a um todos os
argumentos que no seu espirito se vão oppondo à
ideia dominante. Se é um crente, procura justificar
a morte violenta dentro dos principios religiosos
que professa, se se lembra do que dirão os outros,
argumenta que o suicidio não é uma cobardia, mas
o recurso ultimo e legitimo dos que têm sobre os
hombros o peso da desgraça. Tal é o caso de Camillo.
Eu já falei da tentativa de suicidio romântico
«om os grãos d'opio, a poesia de despedida e as
libras em cima da mesa para afastar a razão mate-
rialona da falta de dinheiro, e a palavra suicidio
por vezes tem apparecido nas citações que até esta
altura tenho feito dos seus livros. A referencia de
resto é vulgarissima, a cada passo se encontra, e,
segundo a afirmação de Sousa Martins, as tentati-
vas de execução foram mais repetidas do que se
pensa: «...antes do tiro decisivo, no decurso de
annos, mais de cem vezes — 4 ou 6 á minha vista
1 A phrase é de Sousa Martins, na referencia a um
<;aso idêntico.
CAMILLO 225
— sacou do revolver, que, a meio da cabeça, pendia
da mão paralysada pelos instinctos conservadores.» ^
cO suicídio — escreveu Camillo nas Memorias do
iMi*cere — é uma ideia tao habitual que jâ nem poesia
nem grandeza tem para mim. No livro do sr. Al-
berto Pimentel Os netos de Camillo^ vem o seguinte
trecho de dialogo entre o auctor e a sr.* D. Anna
Rosa Correia, a mãe dos filhos de Nuno Castello
Branco, na visita, feita em agosto de 1901, a S.
Miguel de Seide: « — O sr. visconde (Camillo), per-
guntei eu, trazia sempre comsigo o revolver? —
Sempre; jâ o levara a Lisboa, onde um dia o expe-
rimentou, disparando para o tecto. Mas o filho (Nuno)
tinha substituído as balas por uns projecteis inof-
fensivos, não sei de quê. O sr. visconde percebeu
isto. Todavia não largara mais o revolver, nem
consentia que lh'o tirassem. — De tanto o apalpar,
observou o sr. Carvalho, já tinha a coronha poída.
A sr.* D. Anna Correia concluiu a sua dolorosa
narrativa, dizendo: — Estávamos longe de imaginar
que tivesse adquirido balas verdadeiras. Todos sup-
punhamos o revolver vazio. Foi uma surpreza ter-
rível. » Numa carta, já citada, a Martins Sarmento,
Camillo define precisamente com todos os antece-
dentes próximos e remotos, o estado de espirito
que o levou á morte : «Eu bem queria poupar-me
ao suicídio ; mas desde os 18 annos que presinto a
uecessidade d'essa evasiva, sem me lembrar que a
Sousa Martins, Ob. cit., p. 304. , .
15
226 CAMILLO
cegueira seria o impulso justificadissimo da catas-
trophe.»
São dò Livro de Consolação estas palavras:
«Aturdido pela apostrophe e coberto de lagri-
mas, Eduardo ajoelhou, 'referindo os infortúnios
que o levaram por necessidade e gratidão a servir
o seu libertador. Com o soccorro da mãe compa-
decida, conseguiu commover o velho até ao extre-
mo de prometter-lhe não o denunciar á justiça, com
a clausula de que iria sumir-se nas Alturas de
Barroso em casa de parentes. Foi; mas poucos dias
permaneceu na soledade agra de uma serrania onde
o desejo de morrer o debruçava sobre os despenha-
deiros, implorando â sua desgraça a coragem do
suicidio. A coragem ! Porque não hei de, acostado
a moralistas de grande tomo, charmar-lhe antes
cobardia? E' porque ha mister enorme coração
quem dentro d'elle se abre um tumulo. E' porque
vae esforçada valentia nisto de um infeliz se ani-
quilar com a certeza de que, em vez de lagrimas,
lhe pesará sobre a memoria a censura dos felizes,
o horror dos espiritualistas catholicos, e a nota da
demência — suprema injuria a essas pobres almas
que a divina justiça não mandaria ás penas eternas
sem lhes descontar os terribillissimos paroxismos,
aquelle tormentoso debaterem-se nas prezas da
desgraça, aquelle relance d'olhos ao céo e o grito
d'alma nesta dilacerante pergunta : « Quando te
pedi eu a vida, ó Creador?»
CAMILLO 227
Também^ num dos artigos publicados em folhas
tholicas, nos seus tempos de mysticismo,e reunidos
ais tarde nos vulumes das Horas de paz, Camillo
sse: «Não chamem ao suicídio o resultado d'uraa
>mencia, O homem que se mata é responsável da
a morte: é arbitro d'aquelle ferro que empunha,
aquelle braço que ergue e d'aquelle sangue que
srrama. »
Nunca se escreveu falsidade maior, e nesse
esmo artigo, vem um dos argumentos que, se
lesse a pena, lhe serviria de irrespondivel con-
adictat EV quando, depois de muitas citações, ten-
entes a demonstrar a sua afirmativa, Camillo quer
Imiuar os incrédulos com esta ultima prova : «Po-
?râ alguém suspeitar demência em Napoleão? E,
)mtudo, este seguro pensador três vezes attentou
mtra a sua existência». Mal pensava Camillo que,
inos volvidos, toda a gente saberia que o grande
aparador foi declarada e provadamente um epi-
ptico.
No livro Horas de lucta, colligido por Freitas
'ortuna, vêm alguns pensamentos de Camillo so-
re o suicídio, escríptos em Abril de 88. Trans-
revo-os :
«A vida dos desgraçados irremediáveis seria
^ pérfido escarneo do Creador se o suicídio lhe
>S8e defeso.
228 CAlfILLO
« Qaando confronto a minha covardia com as
tentações redemptoras do suicidio, então compre-
hendo a grandêsa d'animo dos qae se matam.
« Invectivar de covarde o suicida é escarrar na
fronte d'um morto. Não se pode ser mais cruel nem
mais infame.
€ Um dos cânticos do Inferno de Dante é um
poema de lagrimas. Sâo os suicidas que passam
gementes.
« Se a alma do suicida pudesse subir à presença
de Deus, a divina Magestade esconderia a face en-
vergonhada ou condoída da sua obra ; porque o
suicida lhe diria como Job : « Porque me tiraste do
ventre materno?» — Quare de vulva eduxisti mef,,.*
Numa carta a Freitas Fortuna, inserta nas notas
aos Delidos da Mocidade:
« Pergunta-me o meu amigo : Chegado a esse
extremo de extraordinário soffrimento, porque te
não matas ? — Respondo : — Não posso ; Deus não
quer».
E numa carta ao Visconde d'Ouguella:
« Passo mal, não paro. As noites são intolerá-
veis. Se eu fosse só, como devia ser se tivesse juizo,
já tinha resolvido isto summariamente » . *
Sempre um pretexto: uma vez a fé em Deus,
1 Log. cit. p. 116.
CAMILLO 229
outra os deveres da família e, em ambas ellas, fan-
damentalmente, a mesma indecisão do neurasthe-
nico que se prende á menor ideia, ao menor facto
que lhe forneça uma explicação plausivel. Mas a
preoccupaçáo de sempre, retrahindo-se um instante
para irromper depois mais violenta, vae caminhando
para a fatalidade d'um destino, creando forças novas
a cada passo andado, accelerando-se com um inci-
dente, por vezes fútil, mas caminhando sempre,
mas continuamente progredindo. «A premeditação
mede- se por dias, por meses, por annos até, escreveu
Sousa Martins ^ ; haja vista o por isso celebre H
Cousteux, que em 1863 se suicidou em Castellamare,
decepando a cabeça numa guilhotina por suas pró-
prias mãos construida, dia a dia, durante o longo
período de dois annos.»
No prologo da 3.* edição do Romance de um
homem rico, datado de 1 de* julho de 1889, Thomaz
Ribeiro descreve o estado de Camillo nessa época»
próxima do fim. «A medicina acode-lhe desvelada
■ — escreve elle — ; ensaia seus prodigiosos meios de
acção, mas pede-lhe paciência! e o homem que es-
creveu este livro, que soube dar tantos conselhos e
offerecer tantos exemplos de resignação, não pôde
xesignar-se. Como todas as casas lhe dão trevas,
foge de todas as casas, de todas as terras, e até de
todo o convivio, porque ouvir, somente, aquelles
Ob. cit., p. 300-301.
230 CAMILLO
que o procuram, é ter multiplicados testemunhos
da cegueira, que mais, dia a dia, vae julgando incu-
rável. Sabe que a sua anciedade o prejudica, mas o
irrequietismo da nevrose pôde mais que a sua razão;
e dilacera-se no ergástulo. Alguma vez, de longe
em longe, um raio de luz furtiva e ephemera dà-lhe
fugidia esperança; e elle pensa então e fala nas
Chronicas das duas rainhas que trazia em laboração
e tanto deseja concluir. A medicina promette-lhe,
com intima fé, a regeneração dos seus olhos, e elle
escuta, provoca a demonstração, comprehende-a,
espera ! Esperança fugidia como o relâmpago que
lhe cruzara pela retina ! A descrença volta inexorá-
vel e com ella o inferno e os tratos do sempiterno
horror. Então a anciã do suicídio toma-o de novo e
elle afaga o revolver, como seu ultimo recurso.
Tristíssimo. Assim vive, se é vida esta dilaceração
angustiosa mil vezes peor que a morte, o nosso
grande romancista, a hora em que escrevo estas
linhas. Muitas vezes suffoca-o a dor, e elle pede em
júbilos que a morte lhe venha num spasmo. Os seus
raros e curtos somnos trazem-lhe pezadellos afflicti-
vos; por isso pede muitas vezes que o não deixem
dormir. Acorda em gritos lancinantes, estendendo
convulsivamente os braços a procurar mão vale-
dora. . .»
E' um faoto^ conclusão natural do que está dito,
que o suicídio é vulgar nos grandes homens, mas
d'entre os grandes homens ó nos escriptores que
4Blle colhe em maior parte as suas viotimas. A lista
OAMILLO 231
> longa e seria ocioso transladà-la dos livros de
ciência que a divulgam, mas basta que se diga que
ima estatistica italiana informa que nesse paiz a
•roporçâo de suicidas litteratos por um milhão é
e 619, emquanto a dos professores primários, que
lais se lhe approxima é 355,3 apenas, a dos com-
lerciantes 272, a dos moços de fretes 36, dos in-
ustriaes 80 e dos padres 53 '". Geralmente os que
xercem profissões liberaes suicidam-se com armas
8 fogo, e os suicidas por armas de fogo visam na
laior parte dos casos a cabeça. Sempre o tempo
uente foi o mais propicio aos suicidas *.
Toi numa tarde de Junho que, depois d^uma
esillusão mais forte, Camillo Castello Branco, em-
unhando com a mão direita o revolver e segu-
Bindo-o com a esquerda para que a pontaria não
ilhasse no ultimo momento, perfurou o parietal
irei to com uma bala que, atravessando o encephalo,
3Í bater contra o parietal do lado opposto. Soffreu
inda duas horas, jâ sem fala. E, como não fosse
íossivel encontrar por ali perto um padre que lhe
desse prestar os últimos soccorros religiosos, sem
ílles acabou de morrer tragicamente esse homem
le génio que a desgraça acompanhou passo a passo
i vida inteira.
1 MossÉLLl : Del Suicídio, 1882 ; LéGOYT : Le Suicide.
1881 ; LoMBROSO : Ob. cit, p. 71.
« Sousa Martins: Ob. cit, p. 308.
II
Discussão
Até aqui, os factos. Cumpre, para que toda esta
longa exposição não fique estéril, classificá-los, fa-
zendo um trabalho de synthese que permitta che-
gar ás conclusões geraes que nos interessam. «As
disposições d'espirito que fazem que um homem se
distinga dos outros homens pela originalidade dos
seus pensamentos e das suas concepções, pela sua
excentricidade ou pela energia das suas faculdades
afiectivas, pela transcendência das suas faculdades
intellectuaes — afirmou Moreau (de Tours) no seu li-
vro sobre a Psycologia mórbida, publicado ha cin-
coenta annos e ainda hoje tâo moço como na primei-
ra hora — têm a sua origem nas mesmas condições
orgânicas que as diversas perturbações moraes, de
que a loucura e a idiotia são a expressão mais com-
pleta». Está sabido que Camillo foi um nevropatha
e por concluso se pode ter também que a ess^
234 OAMILLO
maneira de ser doentia anda adstricta toda a pri-
marcial grandêsa do seu génio.
Mas — occorre perguntar — adstricta de que mo-
do? Sobre as relações do génio com a pathologia
nervosa a sciencia náo disse ainda a sua ultima pa-
lavra. Nesse problema, como em tantos outros que
continuam irresolvidos no largo campo da sciencia
psychiatrica, os tratadistas vacillam, de hypothese
a hypothese, num terreno incerto e oscillante. É,
com effeito, o génio um resultado de nevrose e con-
sequentemente uma forma mórbida especial, cara-
cteristica ? E antes a nevrose a resultante do génio,
pelo uso excessivo de certas cellulas nervosas? Ou
€ntáo o génio e a nevrose são as confinantes paral-
lelas d^uma construcçáo mental anormalissima ?
Ainda náo ha muito a questão foi posta nesses ter-
mos, num interessante estudo medico-psycologico,
em que o auctor concluo com as seguintes pala-
vras, que resumem todo o seu modo de conside-
rar o problema: «Applicando ao espirito a lei
da evolução, vem-se a considerar o génio como
a realização antecipada d'um typo superior de hu-
manidade ou de intelligencia que náo apparecerà,
normal e adaptado a uma existência nova, senão
num estado ulterior de evolução. A doença resulta
da inadaptação do génio ás condições actuaes que
só permittem um imperfeito esboço d'esse typo
futuro de humanidade». * E' afinal o desenvolvi-
Gaston Loygue : Ob. cit p. 181.
GAMILLO 235
lento da conhecida phrase de Goethe : « O génio
ão é do seu tempo senão pelos defeitos».
Diga-se em verdade que o problema é complexo
quasi impossível de resolver satisfatoriamente no
stado actual dos conhecimentos scientificos. Moreau
e Tours considera o génio como uma nevrose sem
)rma determinada, Lombroso afirma-a de natureza
pileptica; e, depois de lermos um e outro, uma
bservação aflora ao nosso espirito : é que a duvida
asce da ignorância em que estamos d 'essas nevro-
es com que queremos relacionar o génio, levados
►or factos positivos que realmente impressionam,
intrar na destrinça das psyconevroses para vêr
m qual d'ellas o génio melhormente se integra, é
ranspôr os limites d'um campo vago de incerteza.
Jâo nos illudamos : depois de milhares de observa-
ões e centenas de volumes, a psychiatria está ainda
aetade por fazer, e náo é sem razáo que Sergi
«creve no seu livro sobre as JE moções : « Penso
[ue em psychiatria existe ainda a convenção e
íxistirá até que a psycologia normal faça um pro-
presso mais accentuado nas relações da base physica
íom os phenomenos mentaes.» * A expressão sine
nateria que pretende servir de rotulo a um certo
lumero de importantes e ainda quasi desconhecidas
loenças do espirito, tem, mais tarde ou mais cedo,
le desapparecer ; e só então, fazendo-se sobre as
1 S. Sergi: Les Émotiona, 1901, p. 282.
236 CAMILLO
jocalisações uma mais clara luz, será possível entrar
em caminho firme na investigação de certos ramos
da psychiatria até hoje obscuros.
Lombroso é um homem de sciencia notabilissimo
e o seu livro sobre o génio vale muito, mas eu julgo
nào errar afirmando que a poucos logrou convencer
a sua theoria. O seu trabalHo é uma coordenação
de anecdotas interessantes, n^ais ou menos compro-
vadas, mais ou menos deturpadas pela tradição que
as conduziu à sua banca de sábio ; e embora a essas
historias se procurasse appUcar com toda a boa-
vontade o melhor dos critérios, parece-me que ar-
rancar-lhes uma theoria é um arrojo que extravasa
um pouco dos methodos rigorosos que á sciencia
compete seguir sempre. Haverá realmente uma cor-
relação forçosamente mysteriosa entre a epilepsia e
o génio? Occorrem-me as palavras de um illustre
escriptor português, e medico, o sr. Júlio Dantas,
no seu lúcido trabalho sobre Pintm^es e poetas de
Rilha folies ; « O morhus sacer^ nevrose banalissima
a que se quiz vestir o pontifical do génio, nada de
valioso produz sob o ponto de vista d'arte. Entre
tantos epilépticos que tem Bilhafolles, nem um
génio só, sendo a epilepsia o ventre creador dos
génios ! E que admira, se todo o comicial o e aÍM)Wy
terreno maldito para toda a raça de educação, se a
grande massa dos «sagrados» são verdadeiros dé-
beis, e se a decadência intellectual, no morhus sacer,
é uma verdade clinica que fere todos os observado-
res? Recorrendo á documentação doeste trabalho
OAMILLO 237
encontramos a íina flor das obras d'arte que nos
tem dado, nos últimos tempos, a população epilé-
ptica de Rilhafolles: incoherencias, predilecção pela«
formas externas do culto, religiosidade excessiva e
hypocrita, symetria, cacochromia e abuso d^oiro nos
documentos picturaes, figuras desbragadas e escur-
rílidades torpes d'envolta com imagens devotas e
latins de ritual, tendências para a figuração de ani-
maes fabulosos, — nos documentos escriptos, os
offertorios de feitio bajulo e meloso, os diminuitivos
constantes, os característicos vossa excellentissu
ma, vossa reverendíssima, e, por derradeiro, ainda
nas menos toscas manifestações d'arte, a afirmação
d'uma inteira invalidade psychica. Se o mal sagrado
fosse realmente o grande seio creador do génio,
como Rilhafolles se desentranharia em luminosas
creações, em estupendas riquezas plásticas e imagi-
nativas, e como estaria deslocada, là em baixo, nos
muros fradescos de S. Francisco, a nossa beata
academia de Bellas Artes ! » *
Porventura seria mais defensável relacionar o
génio com a fievrose hysterica. Os homens superio-
res são, em geral, egoistas, irritáveis, de caracter um
tanto pueril e bizarro como os hj^-stericos, sugges-
tionaveis como elles, sujeitos a esses desvios de
senso moral que tão salientemente resaltam no
estudo das caracteristicas psychicas dos nevropathas
1 JULIO Dantas : Pintores e poetas de Rilhafolles y 1900
P..45.46.
238 CAMILLO
d 'essa cathegoria. O poder creador dos hystericos^
táo vivamente imaginativos, poderia mesmo servir
de argumento-base na defesa de tal hypothese. Mas
poder-se-ào relacionar com segurança dois estados
mórbidos só porque, em parte, e curvando um pouco
á mercê da nossa boa- vontade a realidade verificável
das coisas, o seu quadro de symptomas se confunde?
Será scientificamente correcto filiar o génio na
hysteria, ou vice-versa, se em verdade nós funda-
mentalmente ignoramos quer o que seja a hysteria,
quer o que seja o génio ? Desde os tempos remotos
em que se attribuia aos deslocamentos do útero
(S(TT£pa) todos os phenomenos hystericos, até aos
modernos continuadores da obra de Charcot, —
Gilles de la Tourette, Pitres, Babinsky, Strumpel,
Grasset, Eaymond, Fleury, SoUier e tantos outros
— quantas theorias, quantas hypotheses, quantas
observações, quantos estudos, para saber ao certo
a génese e a natureza d 'essa nevrose caprichosa e
esquiva ! . . . E, comtudo, ainda em agosto do anno
ultimo, o XVII Congresso dos médicos alienistas e
neurologistas de França e dos paizes de lingua
francesa, reunido em Genebra-Lausanne, gastou uma
longa sessão a discutir a definição e a natureza da
hysteria. O primeiro a usar da palavra nessa assem-
bleia a que presidiu Eaymond, foi o dr. Claude que,
num extenso relatório afirmou, entre muitas outras
coisas, que «na ausência de constatações anatómi-
cas ou biochimicas precisas, a interpretação dos
factos clinicos, mesmo esclarecida pela physiologia
CAMILLO 239
e pela psychologia, é uma base bem frágil» e que^
portanto « no estado actual da sciencia, convém
observar uma certa reserva na descripção da hyste-
ria, cujas definições conhecidas nos não permittem
desenhar o quadro ^ « A hysteria é uma diathese,
como avançou Bernheim ? — inquiriu ainda o mesmo
relator. — Se se dá a essa palavra o sentido que lhe
attribue o professor Bouchard, a hysteria pode ser
considerada como uma disposição mórbida para as
«loenças dependendo d'uma perturbação preliminar
da nutrição? Poderemos tentar-nos a estabelecer
um parallelo entre a diathese gottosa e a diathese
hysterica: esta apparece sobre o terreno mal defi-
nido do nervosismo como aquella sobre o do arthri-
tismo. . .» * Ao dr. Claude seguiu-se o medico siiisso
Jlí. Schnyder que começou logo por dizer que « todos
os esforços tentados até aqui para fazer entrar as
innumeras perturbações qualificadas como hystericas
Ho quadro d^uma entidade mórbida tem sido infru-
fstiferas » e que a « hysteria considerada de tal modo
«ipparece como um proteo gigantesco e escapa a
<jualquer definição.» ^ Na discussão tomaram parte
Haymond (de Paris), Bernheim (de Nancy), Pailhas
(d'Albi), Terrien (de Nantes), Babinsky (de Paris),.
Clarapède (de Genebra) e Mendicini Bono. Bernheim
* Congrés de Genève-Lausanne, Supplémént de VEncé^
phale. 2e Année. 1907. p. 208.
* Log. cit, p. 211.
' Log. cit , p. 215.
^40 CAMILLO
disse que « a entidade mórbida descripta sob o nome
de hys teria náo existe»; que ca designação de hys-
teria deve ser supprimida ou reservada para os
doentes apresentando crises de nervos» e que «essas
crises não são mais que uma reacção emotiva, des-
envolvendo-se em certos casos no seguimento de
emoções accidentaes ou de emoções enxertadas em
doenças psychicas, toxicas ou diversas.» ^ Babinsky
afirmou: «Um ponto sobre o qual os neurologistas
parecem d'accordo desde ha um certo tempo é que
a questão da hysteria necessita absolutamente de
ser revista e que se tem reunido sob essa denomi-
nação phenomenos discordantes.» ' SoUier concluiu:
« A hysteria não é uma entidade mórbida. Tenho-o
dito desde 1893. E um modo especial de reagir do
systema nervoso e particularmente da crosta cere-
bral que tende a fixar-se nos estados de menor acti-
vidade, em que se encontra em virtude de diversas
causas physicas ou moraes.» ' Ora uma questão que
«e apresenta nesse pé não parece aproximar-se d'uma
breve e concludente solução.
Moreau de Tours, no seu livro de ha meio sé-
culo que é ainda hoje o que de mais perfeito existe
sobre o assumpto, caminhou só até onde pôde pisar
terreno firme. Afirmou que «todas as vezes que
virmos as faculdades intellectuaes elevarem-se acima
1 Log. cit., p. 222.
2 Log. cit., p. 227.
3 Log. cit., p. 230.
CAMILLO 241
dp nivel commum, sobretudo nos casos em que
ellas attingirem um grau de energia absolutamente
excepcional, podemos estar certos de que o estado
nevropathico, sob uma forma qualquer, terá influen-
ciado o orgáo do pensamento, quer idiopaticamente,
quer por via de hereditariedade, isto é, umas vezes
em virtude da lei da ingenidade, outras em vir-
tude da lei de imitação; o que equivale a dizer
que 08 homens excepcionaes reconheceráo as mes-
mas condições d^origem ou de temperamento que
os alienados e os idiotas » . ^ E concluiu : < Em re-
sumo, parece-nos sufficientemente estabelecido que
a preeminência das faculdades intellectuaes tem
por condição orgânica um estado malsáo especial
do centro nervoso». *
Essa opinião, solidamente deduzida e nitida-
mente exposta ha tantos annos, vale bem mais que
a hypothese moderna de Gastão Loygue já atrás
condensada nos períodos transcriptos de sua obra,
aliás, por mais d'um titulo, digna de interesse. Com
effeito, esse auctor entende que a nevrose nos gé-
nios ó uma resultante da inadaptação ao meio de
typos moldados para a existência numa época fu-
tura da evolução da espécie humana. Por conse-
quência, segundo o seu modo de vêr, a crea,tura
que apparece dotada de génio realiza um typo mais
perfeito de humanid3.de e, como, nesse caso, se nào
^ MOREAU (de Tours): Ob. cit. p. 463.: ^
« MOREAU (de Tours) : Ob. cit. p. 481.
242 CAMJLLO
adapta às coadiçOes ambientes, toriia-se presa de
estados morbibos mais ou menos acceiítuados. E
iim uevropatha porque é um inadaptado, é um
inadaptado porque é um génio, ó consequentemente
um nevropatha porque é um génio. Mas se está?
por pormenores de interpretação, sujeito a contro-
vérsia o facto das relações da superioridade intel-
lectual com as nevroses, o mesmo não succede com
esse outro facto compro vadissimo da ancestralidade
nevropathica dos homens de génio ; e, de tal modo,
o individuo nessas condições é por via de regra,
mercê da fatalidade da herança, um nevropatha,-
antes ainda de ser um génio. Seria em qualquer
caso um tarado e poderia dar num neurasthenico,
num epiléptico, num histérico . < . mesmo usufruindo
um restricto desenvolvimento de intelligencia. Já
aqui a afirmação do medico francês claudica. Po-
derá o génio não derivar da doença nervosa, mas
o que é positivo é que a doença nervosa não re-
sulta do génio, pela razão comesinha de que, mesmo,
sem elle, existiria.
O génio anda adstricto, ou se quizerem mesmo,
na dependência de manifestações doentias do sys-
tema nervoso. Se essas manifestações revestem uma
feição própria e característica, ou entram no qua-
dro symptomatico d'alguma das nevroses ([ue co-
nhecemos, é que se torna difiScil afirmar^ pela razão
jà dita, de que essas nevroses, classificadas um
pouco arbitrariamente, não nos apresentam os li-
mites precisos para podermos isola-la^ e cotejar
CAMILLO 243
com ellas, uma a uma, as manifestações morbidaí»
do génio. Mesmo entre o estado que chamamos
normal e a loucura ha uma transição insensível.
Escreve um medico francês — Dubois: «E' impos-
sível &zer dos estados pathologicos de espirito,
entidades mórbidas, classificá-los, segundo a sua
symptomologia, em compartimentos nitidamente se-
parados uns dos outros. Ha ao contrario, uma fusa o
de tintas, como num esbatido photographico que
passa do branco brilhante ao negro mais retinto.
Nenhum de nós pode ter a pretençáo de tomar
logar nessa zona de branco que representa a saúde
ideal, inaccessivel ; estamos todos no branco apa-
gado, no cinzento claro. O nevrotico que nos con-
sulta póde-ôstar tranquillo : náo está tão longe de
nós como imagina. Estendamos-lhe a mão, a esse
pobre doente, não receiemos confessar-lhe sincera-
mente as nossas fraquezas, as nossas taras innatas:
aproximemo-nos d'elle». *
O que é a neurastenia de que tanto se fala en
de que tão pouco se entende? o facto é que nós,
os sãos, estamos juntos d'ella e ella vae até bem'
longe. De modo que ha quem a colloque nesse
branco sujo de que fala Dubois e ha também quem
a ponha ameaçadoramente nas fronteiras da lou-
cura. Depois, quando a nevrose é simples e quadra
mais ou menos rigorosamente num dos modelói?'
^ Dubois : Les Pa^ehonévroses et leur traitement moral,
1904, p. 184.
244 CAMILLO
conhecidos, ainda o caso se facilita; mas eu estou
em crer que essas formas simples são raras. A pró-
pria neurasthenia, estado mórbido tão vasto, d'uma
elasticidade tamanha, pau para toda a colher, doença
para todos os symptomas, tem de clinicamente accei-
tar fusões, já com a hysteria, já com outras nevro-
ses. E, assim por deante, ahi temos nós essas ne-
vroses a cruzarem-se, a fundirem-se, a mascarar
caracteres próprios acolhendo os alheios, acoitan-
do-se, náo já somente sob psycoses diversas, mas
ainda sob as doenças orgânicas do cérebro, do bolbo
e da meduUa, a formar um conjuncto de novos sym-
ptomas que, emancipando-se, nos definem a cada
passo estados mórbidos autónomos. E nem sempre
se trata nestes casos de adjuncções, como alguém
pretende, mas muito nitidamente de associações mor-
hidas,
Adjuncções ou associações, o certo é que esses
casos são frequentes. Abro, neste momento, ao acaso
uma revista scientifica francesa * e vejo, apresentado
pelos médicos Ernest Dupré e Leopold Levi, a
citação d'um caso de delirio hypocondriaco de zoo-
pathia interna, segundo a denominação por elles
escolhida, num débil tabetico, hysterico e gastro-
patha. E concebe-se que, embrulhadas frequente-
mente as coisas d^esta maneira, se clinicamente o
diagnostico é difficil, para especulações theoricas
Bevue neurologiqtie, 30 de setembro de 1903.
CAMILLO 245
d'uma outra ordem é pouco seguro contar com elle.
Mesmo uma estatística que, com toda a possível
certeza nos viesse dizer a nevrose especial de cada
homem de génio, correria ainda o risco de conduzir
a conclusões pouco exactas.
Nos homens de génio tem-se diagnosticado exem-
plares de quasi toda a serie da pathologia nervosa.
Ainda em 1907, no jâ citado Congresso de Genebra-
Lauzanne, o íllustre psychiatra belga Eégis apre- *
sentou uma interessante communicaçâo relativa à
phase de presenilidade de Jean-Jacques Rousseau,
e sáo doesse trabalho estas palavras : « Como já
mostrei numa publicação anterior, destinada a um
"volume próximo, mais pormenorizado e mais com-
pleto, o auctor do Emile foi, antes de tudo, um
neurasthenico arterioscléroso, no typo arthritico e
constitucional. Sobre este estado pathologico fun-
damental, que durou a sua vida inteira e se tradu-
ziu pelas mais variadas manifestações physícas e
psychicas, veio enxertar-se na edade madura, como
um episodio paroxystico, um delirio de perseguição
melancólica, isto é, com predominância de inquieta-
ção, de anciedade, de reacções tristes e amedronta-
das.» ' Mais recentemente ainda, no Congresso de
Amsterdam (27 de setembro de 1907) m.«^^« Pascal
(de Ville-Evrard) afirmou que Robert Schumann
soffreu, dos vinte e três aos quarenta annos, de
Log. cit., p. 247.
246 CAMILLO
Psychasthenia constitucional, e dos quarenta annos
até á morte, de Paralysia geral. ^ £ abstenho-me
de mencionar a longa serie dos homens de génio
citados por Moreau de Tours na documentação do
seu trabalho.
Em vista de tudo o que fica dito, parece-me
podei' considerar o génio como um symptoma, muito
POUCO VULGAB, QUE ACOMPANHA NO QUADRO NOSO-
OBAPHico UMA NEVROSE. Tal legitimamente o consi-
dero, sem comtudo dar a essa maneira de vêr, aUás
bem cautelosa e bem simples, a pretensão pedante
d'uma verdade scientifica. E tal o considerando, e
restringindo todo o raciocinio anticrior ao caso que
me interessa, resta averiguar qual a nevrose que
em Camillo se manifestou por toda a serie dos
phenomenos mórbidos já largamente enunciados —
€ peh génio.
Segundo Charcot, «as nevroses resultam de
«dois factores: um essencial e invariável: a heredi-
tariedade nevropathica; o outro contingente e po-
lymorpho: os agentes provocadores» havendo ainda
a juntar á hereditariedade nevropathica os factores
congenitaes, adquiridos na vida fetal, que a exces-
siva concisão d^aquella formula exclue. Quanto ao
primeiro factor, essencial e invariável, é notório
como em Camillo elle influiu. Eu penso que difi-
cilmente se encontrará estirpe mais opulenta para
VEwséphale, 2.e Année. N.o 10. Octobre 1907. p. 451.
CAMILLO 247
a gaarda avançada d'ain caso esplendido de génio.
E pelo que se refere aos factores adquiridos na vida
fetal, basta recordar as primeiras palavras doesta
nosogr^phia: «Camillo Castello Branco foi gerado
no período mais intenso d'um amor violento...»
Citar agora, um a um os agentes provocadores
seria repetir o que está dito, contar de novo toda
essa biographia accidentada, essa vida errante, de
paixão e de amargura, que num periodo d'uma
carta ao visconde de Ouguella, o próprio roman-
cista synthetizou precisamente: «Eu, que nào co-
nheci minha máe, e aos dez annos jâ não tinha
pae, vê tu que mocidade tive, e como toda a mi-
nha vida se havia de sentir da esterelidade de emc-
Ções, com que passei a juventude. :t *
Os symptomas mórbidos observados em Ca-
tdillo podem dividir-se methodicamente em três
ígrupos: Ao primeiro pertencem as nevralgias, a
impressão do ferro em braza na cabev^a, a insomnia,
^s phobias, a abulia, as obsessões e impulsões,
^ irregularidade no trabalho, a tendência para a
'U.u to- observação, a vagabundagem, e as primeiras
J>erturbações visuaes. Ao segundo, o spasmo ner-
"Voso no esophago, á versatilidade, a instabilidade,
■o egoismo, o grande poder imaginativo, a inter-
pretação mystica dos factos mais simples, as desi-
:gualdades psychicas, o exagero de todas as sensa-
Log. cit. p. 7.
248 CAMILLO
ções, as perturbações auditivas, ainda algumas
perturbações visuaes (como a diplopia), os assomos
de megalómano e perseguido, os sonhos, os payo-
res nocturnos, os pesadellos e a tendência para o
suicidio. Ao terceiro, finalmente, as dores fulgu-
rantes, os silvos nos ouvidos, a surdez, a ataxia, as
perturbações visuaes mais adeantadas (taes como a
epiphora, a amblyopia, a nevrite óptica, a immobi-
lidade da pupilla e a aínaurose). Esses grupos nào
são, como facilmente se verifica, perfeitamente autó-
nomos. Alguns symptomas que figuram no primeiro
poderiam citar-se entre os do segundo, e vice-
versa. E isso habilita-nos desde já a suppôr em
Camillo a existência d'uma associação mórbida como
as que referi.
Os symptomas que juntei no primeiro grupo
denunciam-nos claramente o neurasthenico ; os do
segundo afiguram-se-me como pertencendo ao qua-
dro de hysteria ; os do terceiro devem, a meu vêr,
attribuir-se a uma doença orgânica do systema
nervoso — o tabes, na sua forma clinica cerebro-
bulbar.
Pelo que respeita á neurasthenia, eu ponho de
parte a ideia d'um erro de diagnostico resultante
dos symptomas de formas neurasthenicas que mui*
tas vezes, na opinião de alguns auctores, acompa-
nham o tabes incipiente. Eu penso que, em taes^
circumstancias, é bem a neurasthenia que existe,^
como bom terreno acolhedor de todos os males do^
corpo e do espirito. Quando, ha annos, me referi pel
CAMILLO 249
primeira vez ã doença de Camillo, houve quem con-
testasse o diagnostico da neurasthenia, dizendo-me
illudido pelas perturbações cerebraes da ataxia que
«adquiriram uma intensidade descommunal e accen-
tuaram-se num sentido neurasthenoide » . * Mas — por
Deus ! — nâo será entrar num caminho de subtileza
demasiado. . . theorica, querer distinguir, sobretudo
a distancia, um symptoma neurasthenico d\im sym-
ptoma neurasthenoide? Eu comprehendo que um
medico fale afoitamente d^ima pseudo-tuberculose^
d'uma pseudo-dipliteria, d'um pseudo- tabes; nos dois
primeiros casos presuppõe-se a investigação negativa
dos bacillos caracteristicos, no ultimo considera-se
concludente o depoimento da anatomia pathologiça.
Mas na neurasthenia, doença — se doença é ! — tão
mal conhecida, tão mal limitada sobretudo, doença
que só se define pelos symptomas, como distinguir
os casos reaes d'aquelles que se pretende apresentar
como apparentes? Neurasthenoide?... Mas quem
afirma ao meu critico que não é a própria neuras-
thenia, só ou ainda acompanhada de outra nevrose,
q^ue se sobrepõe ou mesmo se associa ao tabes nos
<5asos em que elle julga descobrir «as perturbações
Cierebraes da ataxia»? quem lhe afirma que essas
J>erturbações que não são constantes, que não são
ftttaes, inevitáveis, nos ataxicos se podem integrar no
Quadro d'essa doença, independentemente de qual-
1 Vér NOTA F.
25() CAMILLO
quer associação ou adjuncçâo? Certamente, não é
Dupré que, no artigo Psyohopathies organiques do
tratado de Gilbert Ballet, escreve: «Os tabeticos
puros, aquelles em que se nâo pôde suspeitar a
existência de lesões paralyticas, só raramente apre-
sentam perturbações psychicas» nem sáo também
Déjerine e André Thomas que, no seu artigo Máln-
dies de la moelle, no tratado de Brouardel-Gilbert,
náo fazem a taes perturbações a mínima allusâo *. E
Dupré náo só considera raras as perturbações psy-
chicas nos tabeticos puros, como escreve mais o
•seguinte, que eu posso trazer em apoio da hypo-
these que suggeri : « . . . Entre as perturbações psy-
chicas observadas nos tabeticos é preciso conceder
íiqui uma breve menção aos accidentes hystéricos e
neurasthenicos. A hysteina associa-se muitas vezes
uo tabes, principalmente nas mulheres. Esta asso-^
•ciaçáo hystérotabetica, rica em perturbações sobre-
postas à da serie tabetica nos dominios da sensibi---
lidade e da motilidade, é notavelmente pobre em—
accidentes psycopaticos propriamente ditos. Apenas^
menciono a intervenção da hysteria por motivo d
natureza psychica doestes accidentes, que testemu
nham perturbações ainda mal conhecidas, e ale
d 'isso muitas vezes latentes, do automatismo psy -
cologico e dos elementos inconscientes da menta^-
1 Traité de Pathologie Mentale, publié sous la directií^n
de M. Gilbert Ballet, 1903, p. 1193.
GAMILLO 251
iade. A associação do tabes com a neurasthenia é
lais frequente, sobretudo nos homens e em parti-
liar nos doentes cultos: os artistas, os médicos,
uc. A reunião dos accidentes tabeticos e das per-
irbações neurasthenicas, sobre as quaes não insis-
), compõe um quadi*o clinico^ variável segundo
3 casos, e que pode simular muito de perto o da
aralysia geral post-tabeHca. A semelhança entre os
ois quadros clinicos é ainda levada mais longe
ciando o tabes se complica com a hystero-neuras-
\enia: em tal caso certos accidentes hystericos
mulam os signaes somáticos da paralysia geral,
specialmente a dysarthria ; e ó necessária uma
aalyse minuciosa dos elementos dos diversos syn-
romas tabetico, hysterico e neurasthenico para
vitar um erro de diagnostico e prognostico. Certos
ibeticos neurasthenicos tomam-se nosophobos e
ypochondriacos : entre estes doentes, sobretudo
08 médicos, desenvolve-se por vezes um estado
lelancolico durante o qual o tabetico pôde suici-
Registei entre os symp tomas de natureza hys-
erica a tendência para o suicidio. Hão-de sem du-
^da citar-me a descripção tão impressionante que
fhomaz Ribeiro fez da vida do romancista num
>erioclo vizinho da sua morte e perguntar-me se
©rè preciso recorrer á hys teria para justificar o
Ob. cit, p. 1195.
252 CAMILLO
desespero d^um homem que se vê torturado pela
doença, impossibilitado de continuar na sua labuta
indefensa de mais de quarenta annos. Mas eu lem-
brarei a espectaculosa tentativa de 49, com os ver*
SOS da Harpa do sceptico e as libras sobre a banca
para que ao suicidio romântico ninguém pudesse
dar a razão grosseiramente material da falta de di-
nheiro. Esse foi bem um esboço de suicidio à ma-
neira hysterica, com esse ar theatral das tentativas
de género táo espalhafatoso que faz com que Tar-
dieu, Huchard, Taguet e Legrand du Saulle, con-
tradictando as opiniões de Colin, Pitres, Ritti, Solier,
Gilles de la Tourette e tantos outros, insistam em
não vêr no suicidio hysterico mais que uma co- ■
media. *
« Um grande facto — diz Henri Colin no artigo
Etat mental des hysteriques no tratado de Gilbert
Ballet • — domina a historia da hysteria masculina,
qual é o da associação frequente, poderíamos quasi
dizer forçada, da neurasthenia com a grande ne-
vrose». ^ Charcot designou por hysterio-neurasth-
nia essa combinação * e os continuadores da sua
obra, entre os quaes posso mencionar Gilles de Ia
Tourette ^ põem a relevo a sua frequência. Bodeus-
1 Paul Courbon : Histérie et suicide. Na Bevue di
psychiatrie. Janeiro de 1907. p. 17.
« Ob. cit. p. 828.
3 Charcot: Leçons du mardi à la Salpatriere : poli di'
nique 1888-1889. Notes de cours de Blin, Charcot, II. Colin.
GAMILLO 253
], em 122 casos de hysteria masculina regista a
pressão melancólica da hysteria como caracter
minante '
Pelo que ao tabes de Camillo diz respeito, eu
o hesito em confessar que o quadro clinico está
age de ser completo. Mas a lição dos factos diz-nos
le o tabes cerebro-bulbar se manifesta quasi exclu-
iramente por perturbações visuaes e auditivas, *
le aos tabeticos cuja affecçáo começa por attingir
neurone óptico acontece parar o mal na evolução, '
le não ha tabetico que apresente todos os sym-
x)mas attribuidos a essa doença, * que nada mais
i&cto que a phrase de Marie, afirmando que cli-
Lcamente não existem dois tabeticos que se pare-
im. G dr. André Léri, no congresso de médicos
ienistas e neurologistas de França e dos paizes
elingua francesa, realizado em Pau, em agosto de
Í04, apresentou uma communi cação sobre as re-
ições da cegueira com a paralysia geral e o tabes.
latre outras afirmações que menos directamente
08 interessam, concluiu que a cegueira é rara no
abes confirmado, com grandes symptomas, e só
requente no tabes com symptomas minimos de
^ Bodeustein: Uysterie hei mannlichen Geschlecht
^úisertatio Wurzhurg. 1889.
* Maurice de Fleury : Manuel pour Vetiide des mala-
^'« du système nerveux, 1904, p. 325.
* VmÉs : Ob. cit., p. 3õ8.
' * Flisury : Ob. cit., p. 234.
254 CAMILLO
lesào dos cordões posteriores; que a cegueira, quan-
do vem, é geralmente antes da maior parte dos^
symptomas tabeticos; que a affecção a que se dâ o
nome de tahes com cegueira é caracterizada por uma
a trophia pupillar de evolução rápida, acompanhada
frequentemente, náo só de perturbações tabeticas
mínimas, mas também de perturbações mentaes
minimas, em tudo análogas ás do começo da para-
lysia geral; e que a cegueira dita tabetica, poderia
ser também considerada como uma cegueira para-
lytica, se as perturbações mentaes minimas da
meningo-encephalite diffusa ligeira tivessem na
nosographia a mesma importância que as pertur-
bações physicas e funccionaes minimas dà méningo-
my elite spinal posterior ligeira; e que o tabes,a
paralysia geral e a amaurose tabetica representam
simplesmente três localisações d'um mesmo pro-
cessus, talvez de origem syphilitica terciária, que
podem associar-se ou ficar mais ou menos com-
pletamente isoladas. Além d^isso, anatomicamente,
disse ainda o mesmo congressista, a atrophia optic»
do tabes, é semelhante á da paralj''sia geral : trata-se
da atrophia secundaria em lesões de meningite e
de nevrite intersticial com ponto de partida vas-
cular (endo e peri-arterite e phlebite). ^ Num livro
sem responsabilidades scientiíicas, P<e?i«ewr^ et sa-
vants, assignado pelo dr. Gélineau, afirma este
Journal de Neurologie, 5 de Outubro de 1904yp. 3^
CAMILLO 255
medico que só encontrou entre os pensadores um
exemplo de tabes, em Aubryet. * Mas jà Pierret,
na sua memoria Sia* la pathogenie du tabes, apre-
sentada ao congresso de Moscow, em 97, nos diz
que : c A sensibilidade é muito grande nos futuros
tabeticos. Romancistas, artistas, homens políticos,
artífices muito bem dotados, são sensitivos». De
resto é sabido que o grande pintor Manet e o gran-
de poeta Henri Heine, para mais não citar, eram
tabeticos.
Fournier pretende que o tabes é sempre de
origem syphilitica. Charcot inclina-se mais para a
perversão nervosa. Grasset relaciona-o com uma
doença mais geral que se pôde chamar a sclerose
múltipla disseminada. O que está fora de duvida é que
o tabes suppõe um terreno anteriormente preparado,
perturbado, diminuido nas suas reacções, viciado,
degenerado, sendo essa degenerescência funcçâo
da hereditariedade e traduzindo-se pela sensibili-
dade excessiva, doentia, anormal, que caracteriza
os predispostos. ^ Quanto ao papel etiológico da
syphilis, os homens de sciencia continuam em des-
accôrdo. E uma questão remota e debatida, que
contínua ainda e na qual eu não pretendo de nenhum
modo entrar. Segundo a maioria dos tratadistas, a
syphilis tem um logar importante, de evidente
preponderância, embora não exclusivo, n^ etiologia
^ GÈLINEAU: Penseurs et êavantê, 1904, p, 190.
s YiHÉs : Ob. cit, p. Õ41.
256 CAMILLO
tabetica. E esse mesmo logar primacial, mas não
excluisivo, ha ainda hoje quem appareça a contes-
tar-lh'o (Lancereaux). ^ Camillo era um syphilitico?
Não sei. Náo me repugna acreditar que o fôsse. Foi
um sensual, foi um estróina, e durante o seu pe-
riodo de estudante, um amoroso que decerto ho não
prendia demasiado em escrúpulos de escolha. Náo
tenho porém elementos que me habilitem a afirmar
a existência doesse importante factor etiológico.
Poderia citar outros, de somenos importância:
a variola, por exemplo, que atacando-o em creança
deixou no romancista vestigios que concorreram
para que elle pudesse ser considerado como sempre
realmente foi — um homem feio. Assim como poderia
citar também o descarrilam ento de que Camillo foi
victima em 81 na linha do Minho, próximo a S. Eo-
máo * e do qual, como elle próprio confessa no
prefacio do seu livro de versos, sahiu «com a cabeça
oito vezes fendida» . No inicio das uranifestações
hystero-neurasthenicas esse caso serviria para regis-
tar um dos traumatismos provocadores vulgarissi-
mos nas origens d 'essa doença. Mas naquella altura,
se podia influir no desenvolvimento do mal, já estava
livre de acarretar com as culpas de agente provo-
cador. Da syphilis é que, porém, se me náo depara
o minimo indicio. Camillo, tão useiro em contar e
em exagerar os seus males physicos, náo fala d'ella;
* Vêr NOTA F.
i
• Alberto Pimentel: O romance do romancista.
CAMILLO 255
medico que só encontrou entre os pensadores um
exemplo de tabes, ejn Aubryet. ^ Mas jà Pierret,
na sua memoria Su7^ la pathogenie du tabes, apre-
sentada ao congresso de Moscow, em 97, nos diz
que : « A sensibilidade é muito grande nos futuros
tabeticos. Romancistas, artistas, homens políticos,
artífices muito bem dotados, são sensitivos». De
resto é sabido que o grande pintor Manet e o gran-
de poeta Henri Heine, para mais não citar, eram
tabeticos.
Fournier pretende que o. tabes é sempre de
origem syphilitica. Charcot inclina-se mais para a
perversão nervosa. Grasset relaciona-o com uma
doença mais geral que se pode chamar a solerose
múltipla disseminada. O que está fora de duvida é que
o tabes suppõe um terreno anteriormente preparado,
perturbado, diminuído nas suas reacções, viciado,
degenerado, sendo essa degenerescência funcção
da hereditariedade e traduzindo-se pela sensibili-
dade excessiva, doentia, anormal, que caracteriza
os predispostos. ^ Quanto ao papel etiológico da
sypbilis, os homens de sciencia continuam em des-
accôrdo. Ê uma questão remota e debatida,* que
continua ainda e na qual eu não pretendo de nenhum
modo entrar. Segundo a maioria dos tratadistas, a
sjrpbilis tem um logar importante, d^ evidente
preponderância, embora não exclusivo, n^ etiologia
^ GÈL1NEAU : Penseurs et êavants, 1904, p< 190.
* YiH^s : Ob. cit, p. õ4l.
III
Conclusões
«o que dissemos nos capítulos precedentes, com
ipeito à influencia exercida pelos estados nevro-
bicos sobre as faculdades intellectuaes propria-
^nte ditas é applicavel, sob todos os pontos de
Jta, às faculdades affectivas, a esta virtualidade
alma humana que é a origem das nossas emoções^
s nossos instinctos, dos nossos desejos e em parte
libem da vontade, pela qual amamos ou odiamos,
>s inclinamos para o bem ou para o mal, somos
irados a ser úteis aos nossos semelhantes ou a*
ejudicâ-los, a cumprir ou transgredir o que pres-
eve o dever absoluto ou convencional, etc. O es-
rito humano, na sua parte sentimental, experi-
enta taes modificações, taes mudanças passagei-
L8 ou duradoiras, que em vão se procuraria fora da
-reditariedade a origem d'ellas. Em outros termos :
^h organização particular dos pães, e não fora
©Ha, que se encontra o principio ou a causa pri-
26U CAMILLO
meira de certos estados affectivos e moraes que
se observam em alguns indivíduos. Esse prin-
cipio náo poderia residir, como se pensou e escre-
veu, nas formas exteriores ou plásticas do organismo
(conformação, volume, peso) mas na própria vitali-
dade dos órgãos, na sua actividade funccional. A
accrescentar que, se elle se nos apresenta envolto
em obscuridade e completamente imperceptível nas
condições materiaes, jà o mesmo nào acontece en-
carando-o nas suas condições dynamicas. D'isto a
natureza inorgânica pôde fornecer-nos um exemplo.
Pela maneira como vemos funccionar duas machi-
nas quaesquer, podemos avaliar o que existe de
commum entre ellas, sem que nos seja necessário
inspeccionar-lhes as rodagens nem penetrar-Uies o
mecanismo interior. As paixões affectivas são as
mesmas em todos os homens. As differenças que
apresentam em cada individuo sob o ponto de vista
da energia e do desigual desenvolvimento de cada
rima d^ellas não conseguiriam romper a uniformi-
dade da natureza na espécie. Mas por vezes acou-
tece que, em virtude d 'uma sobreexcitação resen-
tida por todas igualmente ou de agitações parciaes
devidas a uma desigual distribuição de Sensibilidade,
ellas são a'rrastadas para uma esphera d'actividade
absoltitameiitè excepcional. D*ahi a extranha asso-
ciação, num mesmo individuo, das paixões mais
diversas e mais oppostas, um mixto inexplicável de
vicio e de virtude, de «levação e de baixeza, de
egoismo, de generosidade, de pusillanimidadej de
CAMILLO 261
oragem, de doçura e de ferocidade. Em circum-
tancias diversas, toda a energia vital parece con-
entrar-se num pequeno numero de paixões boas ou
aàs, d'onde dimanam os prodigios de virtude ou
le depravação. Ordinariamente, faculdades intelle-
tuaes pouco communs, uma imaginação viva, virão
m auxilio da actividade desordenada das paixões
-ffectivas. Mas noutros casos, ao contrario, esta
ctividade fará contraste com uma fraqueza intelle-
!tual que por vezes vae até á imbecilidade. E em
►utros emfim, é a essa mesma debilidade de espirito,
.0 mutismo da consciência, a uma espécie de atonia
la vontade que as paixões deverão o seu poder
tnpulsivo, mais que â sua violência natural. A que
utra causa, se não à acção da hereditariedade, nos
licito attribuir as disposições moraes d'excepção
que nos acabamos de referir?» ^
Essas palavras do auctor do melhor trabalho
ue possuimos sobre as relações da psycologia mor-
ida com a philosophia da historia, fazem uma per-
3Íta e clara luz sobre o caracter de Camillo, tão
omplexo e inexplicável aos olhos dos que preten-
iem vê-lo fora do critério que as observações da
)sycologia mórbida permittem.
Camillo Castello Branco, degenerado heredita-
io, soffreu na sua vida agitada, de trabalho e de
nartyrio, uma nevrose — a Jiystero-neuraMhenia e
MOREAU (de Tours): Oh. cit, p. 248-250.
262 CAMILU)
uma doença orgânica do systema nervoso — o tabe
Ao desvio patholog^co da soa Aincção nervosa d<
vem attribuir-se os sens males physicos, as sm
desigualdades de caracter e a sua superioridac
intellectoal eminentíssima.
Na saa descendência, indo até onde as natura<
reservas nos permittem, encontramos, na geraçí
immediata, além d'uma filha morta creança e d'uD
outra que vive ainda, o filho Nuno, estroinaço, n
vralgico e alcoólico, e o Jorge, passando a vida o:
bebendo e masturbando-se, ora em accessos de lo
cura extrema. Biographos, levados talvez por un
phantasia que força um pouco, à mercê dos sei
bons desejos optimistas as leis da herança morbid
descobrem já na descendência d^esses filhos a aui
de novos génios. . .
r~
A OBRA
« Ora, dos desequilíbrios da funcçao ner-
vosa de Camillo, nasceria tulvez para o tra-
cto intimo, o homem de brusquerias phre-
neticas, de vulcânicos amores physicos, do
reviravoltas de humor, intractavel, cruel
e caprichoso — demos que Camillo Castello
Branco fosse tudo isto — mas precisamente
esta mobilidade de caracter é que fex <>
artista genial dos t-ens romances, dos seus
estudos irónicos, das suas verrinas littera-
rias; deu-lhe o oondAo de forjar a obra prima
d*um jacto, com todos os symptomas d'um
retalho de vida palpitante ; de modelar almas
tão diversas e tantas, numa prosa plástica
como a cera e numa lingua rija como o
bronze; e espargiu na sua obra emfim, todii
essa porção de sangue insubmisso, d'inde-
pendência forte, e de sonho miguelangesoo,
que as litteraturas só de século a século re-
gistram, e que o cosmopolitismo hodierno
de todo está hoje sonegando ás nacionalida-
des mortas que invadiu».
Fialho d'Almeida.
I
Disse Armand Garrei que a vida de um grande
íiâptor é o melhor commentario das suas obras^
explicação e, por assim dizer, a historia do seu
eiito. ^ A ninguém melhor que a esse desgraçado
grande Camillo se pode, com justeza, applicar a
iceito, de tal modo os multiplices incidentes da.
' vida accidentada influiram na génese da sua
a, quer indirectamente originando os estados.
espirito que deram terreno ás suas creações,.
■r d'um modo directo suggerindo assumptos que
'lia phantasia exhuberante depois romantizou»
assim, essa obra sahiu irregular, desordenada,
igual, por vezes até incoherente, como irregular^
ordenada, desigual e incoherente foi a vida do
tide artista que a creou. E' o psycopatha a re-'
=ir-se a cada pagina: aqui, atirando para os olhos
* A. Carrel: Essai sur la vie e les ecrita de P. L. Cow^
'; Camillo: Maria da Fonte.
266 CAMILLO
do publico a sua própria vida, no que ella tem de
mais secreto e de mais intimo; além, repudiando
opiniões na véspera defendidas, com a mesma con-
vicção e o mesmo ardor; ora fazendo da penna
um instrumento de vindicta, numa arremettida in-
dómita de orgulho que se náo deixa impunemente
magoar ; ora procurando no leitor o confidente das
suas horas de desalento e extrema angustia; esgri-
mindo hoje contra a palha d'uns monos, na illusão
megalómana de que por trás d 'ella existe a cota
d^armas de luctadores dignos d'elle ; accumulando
amanhã provas contra uma dynastia, pela vaga
suspeição de que o representante da linhagem piil-
luida lhe náo quer dar um titulo ; umas vezes,
escalpellizando com o bisturi do sarcasmo, amo-
rosamente, cruelmente deliciado, como uma fera do
Santo Ofiicio a commandar uma tortura ; outras
vezes, arrancando da vida real os personagens dos
seus livros para os exalçar aos extremos românticos
<lo amor, da abnegação e da ventura, por onde se
librava, nas horas calmas, a phantasia alada do seu
sonho. E' a vaidade, o orgulho, o misoneismo, o des-
peito, a inconfidência, a impulsividade, a phantasia
romanesca, a imaginação febril e poderosa, a facul-
dade creadora soberba, admirável, succedendo-se,
fundindo-se, associando-se, formando no conjuncto
essa figura extraordinária de homem de génio e
desgraçado que a incomprehensáo hesitante de
ooevos e de pósteros nem sempre tem deixado
-serena e justiceiramente avaliar.
CAMILLO 267
«Na litteratiira portuguesa contemporânea —
jcreveu o sr. Theophilo Braga — Camillo Castello
ranço é a mais poderosa organização esthetica,
cercida em uma prolongada e continua idealização,
iflectindo na sua obra todo o estado moral de uma
30ca perturbada pela falta de uma doutrina.» ^
'as porventura não será a essa falta de doutrina,
-o claramente reflectida na sua obra, que nós deve-
os a expansão libérrima e admirável do seu génio?
o reler, pagina a pagina, essa obra desconnexa e
Jossal, imperfeita e assombrosa, eu pergunto a
im próprio se uma systematizaçào de toda ella,
>edecendo a um claro programma de doutrina,
ubaudo tudo que ali existe de admiravelmente
poiítaneo, por um acaso lhe augmentaria a gran-
za. Porque de sobra eu sei que subordinar uma
rga obra d'arte como essa a um corpo doutrina-
), alinhando-a d^antemáo, por uma ordem, como
capitules regrados, rigorosos, d^um trabalho de
iencia, é correr o risco de pôr em debandada
do o que á emotividade do artista tal obra d 'arte
m de pedir, para ser grande. A critica não pôde
mscientemente lamentar a descoordenação d'uma
)ra como a de Camillo : tem de explicá-la como
na consequência inevitável e lógica das caracte-
sticas dominantes do génio que a creou.
* Theophilo Braga : As modernas ideias na litteratura
ortugiiêsa, 1802, v. i, pag. 240.
268 CAMILLO
E certo que Camillo Castello Branco viveu, lit-
terariamente, numa época de transição, incerta e
vacillante. Quando começou, o romantismo, semi-
soito das màos de Garrett e prestes a cahir na
rhetorica vasia de Castilho, entrava rasgadamente
no caminho da decadência. A desorientação tomava
posse dos espirites mais cultos : já se não sabia ao
certo quaes as firmas litterarias, d'aqui e lá de fora,
dignas de admiração e de respeito. Os próprios mes-
tres, como Herculano, não hesitavam em reunir na
mesma citação Balzac e Kock e em falar, com todo o
seu empertigado desprezo cathedratico «das fabri-
cas parizienses de novellas, dramas, viagens, come-
dias, romances, folhetins, physiologias raoraes ou
immoraes, e não sei de que outros productos das
fabricas de Balzac, Sue, Sand, Arlincourt e C.*» ^
Porque para a opinião do solitário de Val-de-Lobos,
que já por esse tempo falava sempre em tom so-
lemne e era ouvido de joelhos como summo-ponti-
fice da sciencia e da litteratura lusitanas, a ComediO'
humana valia tanto como os productos do onanismo
de olhos em alvo do alambicado visconde d'Arlin-
court. Estavam as coisas, pouco mais ou menos,
nesse pé, quando Camillo começou. Quatorze annos
mais tarde, Theophilo e Anthero, rompendo fogo
contra o elogio-mutuo, inveterado vicio d 'essa litte-
1 Alexandre Herculano: Opúsculos, 1873, t. ii, ?• "^^
e 101.
CAMILLO 269^
bura official de que Castilho era o arbitro supre-
3, derribaram de vez o romantismo, rudemente,
Lm ataque violento em que a audácia e o irrespeito
m sempre infelizmente iam servindo um erguido
pirito de justiça^ Fundou-se assim a chamada es-
la de Coimbra, precursora do realismo, que dez
mos depois surgiu, exclusivista, intolerante, finca-
) nas suas apregoadas bases philosophicas e na irre-
tavel justeza dos seus principios, colhidos no ma-
incial da pura sciencia. Nesses modernos tempos,
doutrinas positivistas, pendão de revolta doá
;uerridos espiritos militantes — pendão que o sr.
leophilo Braga, ficando só em campo, tem galhar-
.mente segurado com as mãos ambas ha quasi meio
culo — nem sempre os impediam de discorrer erra-
mente. Assim, .por 1880, quando os recemvindos
' arraial das boas-letras julgaram que lhes era pre-
jo derribar o velho glorioso para conseguirem
de acoitar os seus talentos a abarrotar de Ideias-
)vas, um moço de real aptidão, que em mais se-
no ramo d^arte nos deixou algumas pequenas e
asi ignoradas obras-primas, envergou um pseu-
>nymo para dirigir a Camillo uma carta-aberta
1 que se lêem períodos assim : « V. Ex.a terá na
teratura portuguesa o papel de Hugo, Dumas,
iaubert. Sue, Feuillet, Zola, reydeau, Claretie,
acpherson, Klopstock, Schuchart, etc, etc, nas
.fferentes litteraturas dos diversos paizes? Cremos
lie não » . Elle sabia lá, o bom e ingénuo apostolo
e Comte, que diabo de papel tinham em França
270 CAMILLO
Feydeau e Claretie ou o arrevesado Macphersou
nas nevoentas terras da sua Escócia ! Era, afinal^
o mesmo facciosismo de escola que fizera a hosti-
lidade de Lopes de Mendonça e de Herculano quan-
do Camillo litterariamente ensaiou os seus primeiros
passos. Sempre o circulo de ferro de meia dúzia
de ideias talhadas pelo figurino era moda, a acor-
rentar a liberdade d'um juizo sem paixão, empa-
nando inconscientemente um equitativo critério de
justiça.
Ora o que ha de mais admirável na personali-
dade litteraria de Camillo é o modo como atraves-
sou tão diversos períodos de combate, sem lhes
soíFrer sensivelmente a influencia, firme sempre no»
seus processos d'arte, realizando insensivelmente
um meio termo que seria difficil conseguir d'outra
maneira. Realista demais para ser romântico, ro-
mântico demais para realista, mas camillesco sem-
pre, elle só, inconfundível, é assim que temos de
considerâ-lo, fora de todas as escolas, de que ape-
nas corticalmente, quando muito, soffreu influencia.
E a razão primeira d'esse isolamento, deve bus-
car-se na phase inicial da sua educação : o tempo
da Samardan em que viveu com esse padre Antó-
nio d'Azevedo, «nome que os pobres, seus irmãos,
reverenceiam, e os enfermos da alma abençoam;
ancião virtuoso ; operário infatigável em serviço de
Deus e da humanidade», como o próprio Camillo
escreveu mais tarde, na dedicatória de O bem e o
mal. Num dos volumes dos sSeròes de S, Miguel de
CAMILLO 271
Seide é assim que o romancista se refere a essa
época, que elle próprio confessa ter sido a melhor
da sua vida;
«Uma vidraça do nosso quarto náo tinha por-
tadas. Elle queria ver o repontar da aurora. Quan-
do a lua nascia por alta noite, eu acordava, ás.
vezes, e via-o sentado no seu leito banhado de
luar, rezando os doze mysterios, por umas contas
monásticas. Depois, chamava-me. Resavamos ma-
tinas com luz artificial. íamos para a egreja. Eu
tangia à missa e acolitava, pingando mais somno
que devotas lagrimas. De volta do Presbyterio, fa-
zíamos chá ; depois, lia-se a versão de Alexandre
Garrett, os Annaes da propagação da fé, as Xoite,^
de Joung, a Miscellanea curiosa e proveitosa, os
tnxiadct^, o- Theatro de los dioses, as Viagens de
Cyro^ as Perigrínaçôes de Fernão Mendes Pinto,
e a HistoHa de Portugal por uma sociedade de
inglezes » .
No Ao anoitecer da vida, fazendo a historia da
sua primeira poesia — uma ode ingénua, á maneira
árcade, com seu triste Alcino e sua doce Elemena.
enamorados — Camillo escreve :
« Creio que tinha eu então entre os quinze e os.
dezeseis annos. Scismava mais do que lia, e Ha.
mais poetas que compêndios escolares. Porém, c[ue
poetas eu conversei na minha infância ! O pecúlio
das riquezas rithmadas que enthesourava a pe-
quena bibliotheca da minha familia de aquelle tem-
po, bibliotheca de padies lá em cima na serra da
^72 CAMILLO
Mesío em Trás-os-montes, eram dois volumes de
Bocage, um Camões, e umas trovas de não sei quem,
dispersas nuns cinco tomos denominados Miscellanea
poética Já então e de muito antes, se liam e
tomavam para molde as poesias de Castilho, Garrett
-e Herculano ; avultavam os Lamartúiistas ; balbu-
ciavam os bardos novos aquellas meiguices e ama-
neirados dizeres, nunca ensaiados entre nós com
tanta louçania como, poucos annos depois, os admi-
ramos na plêiade de moços que, em Coimbra, es-
creveram o Trovado)', Ora, eu, em 1842, nâo
conhecia alguns d'aquelles nomes, nem aquellas
montanhas, onde u^e fiz homem, havia chegado
livro de poeta, que merecesse enfileirar-se entre
Bocage e um sermonario de José Agostinho de
Macedo, com o Theatro dos Deuses â esquerda e o
Fernão Mendes Pinto á direita, e as Viagem do
€yro por cima, e a theologia do Lugdonense por
baixo » .
Litterariamente, educou-se pois Camillo fora da
atmosphera do seu tempo, começou a ler român-
ticos na altura jà em que o seu espirito estava apto
^ recebê-los sem esse enthusiasmo vulgar na gente
nova pelos nomes aclamados; ao contrario de todos
os outros incipientes plumazes do seu tempo, elle
soube que existiu um Bocage, um José Agostinho
c um Fernão Mendes Pinto, antes de boquiabrirse
ao estyl(5 "floribundo do visconde de Castilho, ado-
rar o visconde Garrett na Lyrica de João Minimo,
^ em Herculano, humildemente, saudar o Mestre.
CAMILLO 273
Tahi o seu amor aos clássicos, que depois foi lendo
estudando com interesse e, mais tarde, a sua paixão
e papelista, proporcionando-lhe excellentes meios
e investigação de factos históricos deturpados ou
ontroversos; e ainda, como natural consequência
'essas leituras, a acquisiçáo d'um vocabulário vas-
ssimo que lhe permittiu levar a nossa liiigua, que
esde o século dezoito se viera depioravelmente
mpobrecendo e abastardando, a um grau de mal-
eabilidade e a um poder de expressão nunca attin-
idos. De tal modo, a orientação litteraria de
)amillo entra como elemento importante na justi-
ícação critica da sua obra. Orientado já com se-
[urança quando conheceu o romantismo, elle que
>ni outro caso amesquinharia talvez o seu talento
ia corriqueira reproducçáo de moldes feitos, soube
la escola que* o recebeu aproveitar apenas as vir-
tudes. Facciosismos de seita, exageros deploráveis,
exclusivismos deprimentes — no que respeita, não
ios seus pontos de vista criticos, mas aos proces-
sos da sua arte — não os tinha elle nem os podia
ter d'essa maneira, e eis porque, começando du-
rante a febre romântica, acabando no enthusiasmo
realista, os românticos achâ-lo-iam avançado de-
íaais nos seus principies e os realistas haviam de
vê-lo sempre, em seu trajar antigo, como velha reli-
<iuia de tempos já distantes.
Mas quaes eram esses processos da sua arte?
Será possivel concretizá-los numa definição? Ou
18
274 CAMILX.O
coordei)á-los em grupos, marcando a sua evolução
no largo percurso de mais de quarenta annos?
Em rigor, na evolucaoiitteraria.de Camillo não
é possível marcar phase;s distinctas, com caracteres
de diíferenciaçào perfeitamente definidos; antes, essa
evolução, um pouco sinuosa, é apenas a resultante
das contingências da vida aventureira do artista e
d^i transformação social do meio, durante o largo
periodo da sua actividade. Só um artificio pode
fazer a divisão do seu trabalho em periodos autó-
nomos; um. estudo completo de cada uma das suas
o\)ras explica-nos a sua razão de ser, a origem da
feição mais ou menos exiranha que porventura ella
revista, esclarece-nos suppostas contradicçòes, mas
não nos dà, nem pode dar, os elementos para uma
classificação que não redunde em passatempo mera-
mente ocioso. De resto, a obra de Camillo não
resultou, nem podia resultar, d^um trabalho metho-
dico, regular, ordenado; a sua actividade era aOíJ
altos e baixos, como geralmente acontece nos ne-
vropalhas como elle. E eu vou mesmo até ver na
lealização das suas obras todo o processo d'nm*
obsessão impulsiva, tanto mais que a sua psychoser
amplamente provada, me auctoriza""a pensar assim-
Pois do mesmo modo que, se fosse um kleptomanOy
num impulso irresistível nos roubaria a carteira, s®
fosse um py romã no nos lançaria fogo á casa, ^
fosse um dipsomano não resistiria aí>eber, seiôss^
um dumomano se veria força d o,, contra toda a séri^
de inhibições, apôr-se em fuga, e se fosse um coprolal^^
CAMILLO 27Õ
ião teria outro remédio senão proferir inconvenien-
ias lamentáveis, — sendo um homem de geniõ,
íamillo havia de irresistivelmente fazer-se admirar
m obras-primas. Teimo em considerar o processo
dentico, fundando-me nos factos que me elucidam
i sua maneira de trabalho. Cerlas obras suas, pla-
leadas muito tempo antes de serem escriptas, ira-
3uzeram-se talvez todo esse tempo ao seu espirito,
3omo uma obsessão : havia de por força hesitar mil
vezes em escrever um livro, antes de traçar a pri^
meira linha, esse homem que hesitou sempre em
todos os actos da sua vida. Em alguns casos porém,
essa hesitação se esclarece: alguns seus livros, inu-
tilizados depois de impressos, por escrúpulos de
varias ordens, appareciam mais tarde com altera-
ções que só muito superficialmente lhes tiravam o
mal que os tinha condemnado. Mas, vencidas todas
as resistências do doente da vontade, a obra, ro-
mance ou historia, escrevia-se com uma rapidez
prodigiosa, d'um só jacto, — num impulso: o Licro
Negro do Padre Diniz foi feito em vinte dias, ^ o
Amor de Perdição em quinze, «os mais atormenta-
dos da ^e^a vida». *
Nessas condições, a obra forçosamente havia de
ser irregular no género, na concepção e no processo,
e ao estylo teria de faltar essa perfeição regrada e
* H. Marques : Ob. cit.
• Gamillo: Memorias do cárcere.
^76 CAIIILLO
uniforme que é o privilegio dos que fazem do tra-
balho da forma uma tortura. E, não obstante, é
precisamente na forma que é possível marcar na
obra do romancista uma marcha regularmente evo-
lutiva. A cada passo, o estylo se torna mais dúctil,
mais harmónico, lucrando na sonoridade do período
e no corte moderno da phrase o que porventura,
até certo ponto, em espontaneidade e leveza ia
perdendo. A comparação do Anafhema^ dos Myste-
rios de Lisboa^ das Scenas contemporâneas e d'eutros
romances dos primeiros tempos com a BrazUeira
de Prazins ou com os capitules conhecidos da no-
vella incompleta Via-sacra, ó, sob esse aspecto»
elucidante.
No género, já essa evolução se complica. O
romance da actualidade, a novella histórica, os
bosquejos eruditos, as peças theatraes, os versos e
os volumes de compilação, apparecem-nos alternan-
do-se durante todo o período da sua cfcctividadô
litteraria. Nem sempre, porém, a elaboração d'essas
obras preside o acaso : os artigos religiosos reunidos
nos dois volumes Divindade de Jesus e Horas depa^
foram feitos durante a crise de mysticismo que o
levou ao Seminário ; os estudos históricos appare-
•
ceram quando elle, pela supposição de que o rei
D. Luiz se oppunha a que lhe dessem o viscondado,
coordenou um libello de tremer contra os Bragan-
ças ; as brochuras de fragmentos appareceram sem-
pre nos períodos da sua vida em que a obra original
não era monetariamente tão proveitosa que dispen-
CAMILLO 277
Basse o recurso d'uma exploração, mais ou menos
guarnecida, do seu nome glorioso, na capa de um
volume de coisas triviaes. Esse trabalho de coor-
denador de coisas minimas foi quasi exclusivamente
todo o emprego da sua actividade quando, no fim
da vida, a doença lhe embotou, pelo cansaço, pela
dor, pela cegueira, os derradeiros recursos do ar-
tista. Os livros de polemica violentíssima vêm quan-
do, mais que o ataque do adversário, a doença
nervosa o exaspera, e eis porque então da sua penna
espirram ódios e a sua prosa despedaça cruelmente,
como se esse homem soffredor quizesse provar aos
que gozavam a saúde que lhe faltava, o bem-estar
que nào tinha, a fortuna que o trabalho lhe não
dava, que, se não usufruia como elles esses bens, que
Deus sabe com que grande ambição desejaria!, tinha
o génio que os aniquilava, brincando, em meia dúzia
de paginas demolidoras.
Seria também inexacto, dizer que a obra de Ca-
xnillo vae, em successão chronologica, numa ordem
de mérito crescente. Não. A filha e A neta do
drcediago, publicados em 65 e 66, são jâ duas no-
vellas interessantíssimas, feitas com arte, archite-
ctadas sem esforço, d 'uma graça espontânea que as
faz lêr com agrado. Onde está a felicidade?, d'essa
época também, corre como sendo uma das sua»
obras-primas e foi aquella que fez desanuvear a
, Herculano a carranca duvidosa do talento prima-
cial do romancista. Esse livro foi, ate então, o maia
ftpplaudido, e Camillo, animado com o successo^
278 CAMILLO
fez-lhe a continuaçáo em Um homem de brios que o
iiáo vale, e ainda, annos depois, nas Memorias de
Guilherme do Amaral^ notavelmente inferior a am-
bos os outros. O Amor de salvação, publicado em
<>4, uào chega,, nem por sombras, ao Amor de per-
dição, publicado dois annos antes e cujo êxito re-
tumbante na semelhança de rotulo explora. O Litro
de consolação, feito a propósito do caso Vieira de
Castro e publicado em 72, As três irmãs, enco-
menda do Commercio do Porto, em 61, e as Coisas
espantosas, do anno seguinte, não figurariam, numa
ediçáo selecta, ao lado do Romance d'um homem
ricOj de 61, de O hem e o mal, de 63, do Esquekto,
de ()5, e d^essa maravilhosa collecçáo das Novellas
do Minho, impressa de 75 a 77. Depois da CorjOf
do Eusébio Macário, e da Brazileira de Prazins,
veio o romance mediocre Vulcões de lama. E eis
como a producçáo litteraria de Camillo, irregular
-em quasi todos os seus aspectos, artificializa, des-
valorizando-a, toda a tentativa para £xar rigorosa-
mente, adentro d'ella, os estádios de uma regular
evolução.
Mas a sua maneira de considerar o romance,
o seu processo? Fixar-se-ia esse processo em ter*
mos rigidos e intransigentes? seguiria, esse ao m®'
nos, as phases d^uma successão evolutiva? E bem
difficil responder a taes perguntas. A observação
do critico, procurando uma solução, a certa altura,
desorienta-se e hesita. Sente-se a tentação de fili*'"
os primeiros romances de Camillo na maneira ro-
CAMTLLO 279
intica de Sue; de passar depois à observação de
stumes e typos portugueses ; de registar a phase
' romance histórico, a do romance moralizador,
da transigência com os modelos naturalistas. Mas,
►s próprios Mystenos de Lisboa nào é já a indivi-
lalidade de Camillo que se destaca, superior a
dos os modelos, acima de todos os propósitos de
litaçáo? Acaso, nos chamados romances realistas
)s seus últimos tempos, essa mesma individualidade
ijante e victoriosa não amesquinha e inutiliza
da a convicta ou simulada intensáo de transigen-
a? Porventura os capítulos adoráveis da Via-
cra nào sâo tão românticos ou tão naturalistas
•mo os das Nonellas do Minho ou do Romance de
n homem rico ?
Vejamos então qual o juizo que ao próprio Ca-
illo mereceram algumas das suas obras e procu-
mos descobrir, por entre os traços enganadores
uma ironia subtil, como, falando dos seus proces-
s, mais d'uma vez contradictoriamente, o próprio
•mancista os definiu.
Era 18Õ6, no prefacio de Um Homem de Brios:
«...Eu desejo escrever o romance de modo
16 o meu leitor — se Deus me deparar um com
cperiencia do mundo, e alma capaz de crear, pela
íminiscencia de illusões extinctas, novas illusões
-possa dizer: a vida é isto. . . Se posso espalhar
Iguma flor sobre a chaga do vicio asqueroso, antes
uero que os experimentados me taxem de imper-
BÍto nos traços, e que os innocentes vejam asimper
280 CAMILLO
feições sem conhecê-las. Creio que me entenderam ; e
se não entenderam, ea não sei explicar-me melhor.
Desejo, outrosim, náo crear visões de virtude exagera-
da, porque dou tanto pela immoralidade de Vautrin,
como pela resignação da Angélica, como pela paixão
suicida da Dama das Camélias. Na natureza não ha
d'isto; e eu penso que a realidade é de si tão fortil,
que náo precisa pedir de empréstimo à imaginação.
E náo vejo outro modo de desmentir esta judiciosa
sentença de Boiste : Les romans ne peuvent être que
dangereux soit par les exhalaisons du vice et de la
comiption^ soit par les fantômes d'une perfection
idéale. Por consequência, verdade e mais verdade.-
Vivamos neste mundo com os nossos heroes e os
nossos leitores, para que o critico citado nos náo
venha dizer, que quem tem a cabeça cheia de ro-
mances não vive neste mundo*.
Em 1858, 110 Discurso proemial dos Annos de
prosa, publicado cinco annos depois:
« Ha cincoenta annos que as senhoras não liam
romances, por uma razão cujo descobrimento me
custou longas vigilias : — não sabiam lêr. Algumas,
rebeldes á vontade paternal, conseguiam soletrar e
escrever á tia uma carta em dia de annos, copiada
do Secretario português de Cândido Lusitano. Os
pães acceitavam com repugnância aquelle abuso de
intelligencia, e castigavam a filha, forçando-a a um
trabalho litterario semanal : escrever em cada se-
gunda feira o rol de roupa. Este systema penal
tinha só a vantagem de tirar ao vicio os enfeites
CAMILLO 281
da intelligeiícia, reduzindo-o ã essência bruta de sua
nudez primitiva. Já nào era pouco para exempla
e edificação das almas. O melhor moralista será
aquelle que despir o delicto do coração das galaa
que lhe veste o desejo e o cobrir de farrapos repulsi-
vos. Por esses tempos, e nos dez annos sequentes, os
prapagomtistas da corrupção tentaram exercitar a
seu maleficio, vertendo para péssima linguagem
portuguesa novellas francesas, que transpuzeram
as fronteiras no couce da bagagem do Junot. Em
1814, a immoralidade, até esse anno sopeada pela.
impertinente virtude das novellas, taes como A vir-
tude recompensada e o Escravo das paixões, quebrou
as ferropeas, e despejou do regaço dissoluto a versão
de Tom Jones, o Sophá, o Cândido, e quejandas,
faúlas incendiarias, que pegariam nos corações, se
a manteiga e o paio das tendas não esfriassem a
força comburente d^essa droga que acirrava os pa-
ladares antropóphagos d'aquelle festim de 1793.
Bemdita e louvada seja a ignorância ! Os romances
franceses, até 1830, encontraram as almas portu^
guêsas hermeticamente calafetadas. Até esse anno
infausto, a mulher era o anjo caseiro, a alma da
despensa,* a providencia da piuga, e sobre tudo, a.
fêmea do homem, qual Jehovah a fizera d'uma cos-
tella do mesmo. O salão era como trintario cerrado
onde, a espaços, uma gosmenta matrona espirrava,
e a sociedade, a cabecear de somno, surgia estre-
munhada, dizendo : Dominus tecum, A menina ca-
sadeira não se erguia de ao pé da mãe. O noiva
2H2 CAMILLO
mirava-a de longe em felina beatitude; e, no ange da
sua casquilha audácia, piscava-lhe a furto o olho,
onde reslumbrava a paixão. Náo havia então d'esses
homens molherengos, que alambicam a parlènda
assucarada, coando por ouvidos incautos o veneno
do ostylo, que é o mais corrosivo do quantos ha
na toxicologia do amor. A mulher actual é quasi
sempre victima da rhetorica requentada do ro-
mance, que estéril peralvilho lhe encampa como
-cousa de sua alma. Algumas conheço eu que resva-
laram ao abysmo da perdição pela rampa de um
adverbio euphonicamente intruso num período arre-
(>oiidado. Este sortilégio da linguagem que enfeitiça
e dá quebranto às mulheres, é apanhado no ro-
mance. O corarão de certos individuos acha-se,
muitas vezes, a paginas tantas da tal novella. Sem
figurinos e romances nào haveria corpos apresen-
táveis nem espíritos insinuantes. Muita gente se
espanta das gloriosas aventuras de alguns sujeitos
pyramidalmente tolos. Eu nâo. Tal ha que se- vos
afigura mazorro (Falma, e, náo obstante, ao lado de
mulheres, dispara descargas de phrases amorudas
ijue é um pasmar. Asneira, dita em nome do cora-
ção, não ha uma só que não seja laureada. Cada
Petrarcha lòrpa tem, a final, o seu capitólio. A mu-
lher, por via de regra, é de seu natural tão boa,
sensível e generosa que chega a recompensar a
pertinácia do homem que, primeiro, a nauseou : o
segredo d'este panidoxo está na influencia conta-
giosa da tolice. A mulher que fez chorar o tolo, e
CAMILLO 283-
TÍu rebentar lagrimas de uma cabeça de granito,
cuida que fez o milagre de Moysés na rocha de
Horeb. AUiciada pela serpente da vaidade, suc-
cumbe como Eva. Que mudanças! D'antes o caixeiro
principiava sempre a carta de namoro por : Meu
amado bem! Agora jâ diz: Anjo! ou Serafim!
Era d'antes a phrase sacramental do exórdio: Ver-te
e amarte foi obra de um momento. Agora não é raro
encontrar d'estes arrojos : Amar e morrer é meu
deMino ! E, depois, o malefício do romance não
está somente no plagiato irrisório; o peor é quando
as imaginações frivolas ou compassivas se entalham
nos lances da vida phantasiosa da novella, e crêem
que a norma geral de viver é essa. Emquanto a
mulher estuda somente a phrase que applica, bera
ou mal, quando a enlouquece a vaidade de parecer
ò que não ó, bem vae. Dá-se um exemplo: A apai-
xonada de um amigo meU, ao recebê-lo pela pri-
meira vez em sua casa, no patamar da escada, an-
tes de deixar-se beijar a mão, estendeu o braço di-
1'eito em magestosa attitude, deu â fronte a regia
altivez de uma Phedra de aguas-furtadas, e disse
em tom cavo e solemne : Juraes levar-me ds aras ?
O meu amigo, que balbuciara um prefacio de longo
estudo, soltou um frouxo de insolente riso, e desceu
as escadas por não poder com o espectáculo da
dama corrida do insulto. Eis aqui uma que os ro-
mances de Arlincourt salvaram ; quantas, porém,
perdidas por guardarem as phrases ridiculas para o
final?... Grande mal é o identificar-se o espirito
284 CAMILLO
às visualidades do romance. Quando a leitora se^
ri das crendices da sua infância e dos absurdos
principios que lhe apoucaram o imaginar e o voar
do espirito, vem-lhe os enfados, o escutar as men-
tiras do coração que se emancipa, o crer que a
vida passada foi apenas um vegetar do vulgo, e
que o viver da alma, assim^ será como o do arbusto
bravio que dá flores semaroma^ e fructos sem sa-
bor. Seja, outra vez, bemdita e louvada a igno-
rância de nossas mães, e nossas irmãs, e nossas
esposas ! A vida caseira, esta deliciosa monotonia,
que a poucas é já saborosa no viver intimo, requer
muita estupidez, muito somno a toda a hora, um es-
tômago exigente e forte, muita digestão soporosa de
substancias pesadas. Esta bemaventurança ha-de res-
taurá-la a ignorância supina, não háo-de ser as pa-
lavrosas theorias de Michelet ácêrca do amor e da
mulher. Comecem os pães de família por circum-
valarem*suas casas de um cordão sanitário contra
a peste do romance, que não se abonar com a pro-
mettida pudicícia d'este, e de outros com que o
auctor, coração aberto a todas as chimeras, e de
entranhas lavadas, tem querido enxertar no tronca
carcomido da humanidade toda a casta de virtude:>»
Em 1862, no prefacio da segunda edição dos
Doze casamentos felizes :
€ Cuidou o auctor que este livro, á custa da sua
muita simpleza e naturalidade, desagradaria ao má-
ximo numero de pessoas, que aferem, ou d'antes
aferiam o quilate d'uma obra de phantasia, con-
CAllILLO 285
soante os lances surprehendentes e extraordinários.
Não foi assim. A época é outra, e melhor. O mara*
vilhoso teve sua voga, seu tempo e sua catastrophe.
Também o auctor foi tributário da moda, quando,
mais que a arte, o seduzia e subornava a gloria de
ser lido. Ahi estão os Mysteríos de Lisboa e o Livro
negro e que taes volumes, cujas reimpressões são
o proporcionado castigo de quem os fez. Não ousa
o auctor dar-se algum dos seus livros como modelo
a si mesmo: sem-razão seria pensarem que elle dà
esta, ou outra obra, como pauta e exemplar a estra-
nhos. Pediria, isso sim, que se fizessem romances
como se pintam paisagens, de modo que o mereci-
mento de taes escríptos assentasse na fidelidade da
cópia, tal que cada leitor visse nella um seu modo
de sentir, ou a reminiscência d'algum quadro, mais
ou menos análogo, que, alguma vez, se lhe offereceu.
O auctor tem -se empenhado em averiguar se a lei-
tura dos Doze casamentos felizes daria azo a que elle
pudesse escrever mais um decimo terceiro. Vem a
propósito agora pedir-se ao leitor, prosperamente
casado, que, se este livro lhe melhorou o coração ou
a razão, se não peje de o revelar ao auctor, que
nenhum maior premio ambiciona. A revelação
seria coisa original; mas animadora para quem
escreve. Pois se dizem que alguns romances, inflo-
rando o crime, e aconselhando o divorcio, corrom-
peram as almas, será desatino esperar que o romance,
conselheiro e panegyrista das virtudes conjugaes,
produza salutares contentamentos?»
2S() CAMILLO
No prologo das Ksirellas fNiie^sfas, romance pu
blicado nesse mesmo anno de 1802:
«Esta historia è innocente. Podem lê la senhoras
de imagina(^*áo impressionavel, e os moços descon-
tentes da vida incolor e monótona que a sociedade
lhes prescreve. O auctor, quando era rapaz, não
enganou alguém escrevendo : ahi estão uns trinta
volumes a defendê-lo da calumnia, se alguém o argue
de romancista corruptor. Agora, que está velho,
dobrada obrigação lhe corre de desvanecer precon-
ceitos, que disparam em desordem da vida, e sacri-
ficam os thesouros da paz ao pobre do coração que
tào mal os paga, por não ter cousa boa que dar
por elles. Crê o auctor que ha, no caminho da vida,
muitas paragens alegres, se o caminheiro as sabe
ver com os olhosr já cançados de perseguir as fugi-
tivas visões. Nem podia deixar de ser assim, a menos
que a verdade, tilha do ceu, não fosse um mal. E a
verdade, para uns têmpora, e serôdea para outros,
a final, a todos alumia, como o sol do Senhor, que
primeiro doura a colmada choça do montanhez, e
depois desce os flancos da serra, doura e lustra os
zimbórios dos palácios, e verte do seu zenith nin
raio nas cavernas onde a formiga passeia por entre
as unhas do leão. Aquellas paragens verdadeiras do
caminho da vida, são hospedagem commum ; toda-
via, os mais dilectos do anjo bom, que ali recebe
os peregrinos, são os mais infelizes, os mais que-
brantados da jornada, os que subiram até lá o desfi-
ladeiro das illusões, e bem mereceram a graça do
CAM1.T.L0 2S7
njo, rebaptisados na agua de suas lagrimas. Sentado
uma d 'essas paragens é que eu conto esta historia
s pessoas que a quizerem ouvir por complacência
om a minha velhice, e porque eu lhes assevero que
ste e todos os meus romances olham a prevenir o
3Ítor contra os infortúnios procedentes da mentira
o coração.»
Em 1863, prefaciando a segunda edição do
tomance de um homem rico:
«Este foi o mais querido dos meus romances e,
3 o vaticinio, que aventuro sobre o meu futuro de
scriptor, me sae exacto, este romance prevalecerá
quantos a minha imaginação já desluzida, e como
força, der de si. Com tristeza sincera confesso
ue no que fui já mal me reconheço. As rn^as da
ronte empecem, ao coar d^aquella tlamma, que me
quentava a phantasia, e dentro me alumiava, como
m lâmpada magica, lances da vida exterior, uns de
iso, outros de lagrimas. E eu entrava em espirito
) em coração neste interior mundo, e lá me sentia
âver, soffrer e amar. A isto não ousaria eu chamar
nspiraçáo; mas sem modéstia de vaidade, podia
íhamar-Ihe feliz capacidade para engenhar obras
l'um dia, leituras de duas horas, recreio a ócios de
}uem os não sabia gastar melhor e mais aproveita-
los. Como se foi amortiçando a luz da minha
mocidade, e aquelle incansável amor ao trabalho,
languido a ponto de já agora deixar cahir a fronte
esfriada e dorida sobre o papel em que escrevo?
A.cabou-se como tudo t]ue principia, e mais depressa.
"288 CAMILLO
•que o deperecer commam das fÍEM^iildades inventivas.
Esta é a sorte immerecida d'aqaelles qne não pude-
ram ou nào qnizeram poupar o vigor do coração em
vantagem do vigor da intelligencia. A mais ardente
cabeça de homem empedrou debaixo da mão glacial
da desfortuna. Foi este romance escripto nas cadêas
da Relação do Porto em 1861 Viveram no
meu ergástulo da Itelação do Porto, comigo, noite
e dia, o padre Álvaro d'este romance, e Maria da
Oloria, e Leonor, e a santa de Vairão; e Thereza, e
Marianna, e meu tio desterrado do outro livro cha-
mado Amor de perdição. Viveram comigo aquelles
ditosos pares que eu casei, e o publico hospedou
alegremente, com o livro Doze casamentos felizes.
E eu tenho saudades d'elles, e das noites em que
ijs via sentados em volta do meu leito. Cá fora, á
luz em cheio do sol, não os encontro.»
Nesse mesmo anno de 1863, no prefacio da
Filha do Doutor Negro:
« . . . A historia de Albertina no trajecto de vinte
annos, muitas vezes me acudiu á lembrança, nas
horas em que eu combinava na palheta as cores
com (|ue bosquejei os quadros tristes e alegres da
humanidade, que m'os acceitou benignamente, não
porque fossem bons, mas porque eram fieis: das
deformidades da natureza seria injustiça irrogar*me
censura a mira. Desaproveitei o romance de Alber-
tina, em todas as vezes que me lembrou, porque
me alistara na laureada e gananciosa milicia dos
romancistas do terror gi^osso, como d'elles dizia JuUo
^
CAMILLO 289
Janin, o celebrado folhetinista, que escreveu O
burro morto, romance que começa a aterrar a gente
desde o titulo, e, lá pelo meio adeante, mette a
humanidade num banho de sangue, de muita gente
e do burro citado. A final, e muito a tempo, desertei
Ás bandeiras dos mestres franceses, e entendi no
melhor modo de descrever os usos e costumes da
minha terra, os sentimentos bons e maus como por
cã os tenho visto, as paixões como ellas são cá, e
como creio que ellas sâo em toda a parte, tirante
as composturas, artifícios e maravalhas de lingua-
gem, com que, para maior gloria do género pestilen-
cial, corruptor das almas, os pintores da sociedade
adulteram a verdade das coisas e pessoas. Cae a
propósito neste ponto declarar eu á critica bem
intencionada de alguns dos avaliadores dos meus
últimos livros, editados em folhetins do Coynmercio
do PoHo, que nem levemente me constrangem as
condições que me pauto e imponho, no desenvolvi-
mento da ideia moralizadora, ou, pelo menos, intuito
social e humanitário de cada um dos romances.
Taes são os publicados com os títulos : Três irmãs,
JEst relias funestas , Eit relias propicias, O bem e o
mal. E, afora estes, que a critica irreflectida cui-
dou me haviam sido assim prescripto? e agoren-
tados pela seriedade d'aquelle jornal, escrevi com
igual intento e desassombrada espontaneidade o
Amor de perdição, o Romance de um homem rica, e
outro, que está no prelo, chamado Amor de sjalva-
ção. De nenhuns outros me ficou tão cheio o animo
19
2yO CAMILLO
de contentamento, contentamento sem vaidade, sa-
tisfação de ter povoado a minha phantasia de ima-
gens, que seriam ainda sublimes e bellas, quando
nâo fossem imitáveis e verdadeiras. A esta serie
de romances pertence a Filha do Doutor Negro,
bem que o titulo prometta scenas escuras, e se dê
um geito de engodo á curiosidade. Não vem para
isso. Faço pouco finca-pé em títulos, e não dou nada
pela cousa que traz logo um rotulo de negocio, no
modo como se intitula. Chamei ao livro assim, por-
que a heroina do romance, como já se vae dizer,
tinha muita honra em ser assim conhecida. A razão
por que eu esperei vinte annos esta hora, hora de
infinita dor, em que principio a escrever tal roman-
ce, é que eu, nesse longo termo de meia existência,
cuidei que, sem intercalar de episódios imaginários
a historia de Albertina, mal ou de nenhuma maneira
lograria dar- lhe vida, interesse, variedade, e numero,
como diria um correcto juiz com o Quintiliano era
mente. Agora, revirou-se o meu entendimento em
cousas d'esta ordem, como em quasi todas as cousas
ordenadas ou desordenadas pela gente. Estou apto
para trasladar o que vi e vejo, sem pedir empres-
tado á imaginativa o que a natureza me não dá. Se,
alguma vez, falsifico as tintas, ou derramo a mãos
cheias fiôres sobre as ulceras, é is^o um excesso da
generosidade que uso com o mundo e comigo. Bas-,
tam as misérias vistas : poupemo-nos á estampa, qae
não corrige nem condemna. Para juiz lá está Deu^i
Para algoz, basta que cada um o seja de si próprio.»
CAMILLO 291
Ainda em 1863, no prefacio á segunda edição
do Amor de perdição:
«Este livro, cujo êxito se me antolhava mau,
quando eu o ia escrevendo, teve uma recepção de
primazia sobre todos os seus irmãos. Movia-me á
desconfiança o ser elle triste, sem interpolação de,
risos; sombrio, e rematado por catastrophe de
eonfrangir o animo dos leitores, que se interessam
na boa sorte de uns e no castigo d^outros persona-
gens. Em honra e louvor das pessoas que estima-
ram o meu livro, confessarei agradavelmente que
julguei mal d'ellas. Não aprovo a qualificação; mas
a critica escripta conformou-se com a opinião da
maioria que antepõe o Amôi' de pei*diqão ao Ro-
mance de um homem rico e ás Estrellas propicias^
E grande parte neste favorável, embora insusten-
tável juizo, a rapidez das peripecií^s, a derivação
concisa do dialogo para os pontos essenciaes do
enredo, a ausência de divagações philosophicas, a
lhaneza da linguagem e desartificio das locuções.
Isto, em quanto a mim, não pôde ser um mereci*-
mento absoluto. O romance que não estribar em
outras recommendações mais solidas, deve ter uma
voga mui pouco duradoura. Estou quasi convencido
de que o romance, tendendo a apellar da iniqua
sentença, que o condemna a fulgir e apagar-se, tem
de firmar sua duração em alguma espécie de utili-
dade, tal como o estudo da alma, ou a pureza do
dizer. E dou mais pelo segundo, merecimento : que
a alma está sobejamente estudada e desvelada nas
292 CAMILLO
Ittteraturas antigas, em nome e por amor das quaes
muita gente abomina o romance moderno, e jura
morrer sem ter lido o melhor do mais apregoado
auctor. Dou-me por suspeito nesta questão. Graças
a Deus, ainda nã.o escrevi duas linhas a meu favor,
nem sequer nas locaes do jornalismo. Até escrupu-
lizo em dizer que devem lêr-se romances : náo vâo
cuidar que eu recommendo os meus. E certo que
tenho querido imprimir em alguns dos meus livros
o cunho da utilidade com o valor da linguagem sã
e ageitada á expressão de ideias, que pareciam
estranhas, como de feito eram, e não se nos depa-
ram nos escriptos dos Sousas, Lucenas e Bernardes.
Em verdade foi isto mirar muito longe com vista
muito curta; assim mesmo, fiz o que pude; e neste
livro direi que fiz menos do que podia. Nos quinze
atormentados dias, em que o escrevi, falleceu-me o
vagar e contensáo que requer o acepilhar e brunir
períodos. O que eu queria era afogar as horas, e
afogar talvez a necessidade de vender o meu tempo,
as minhas meditações silenciosas, e o direito de me
espreguiçar como toda a gente, e o prazer ainda de
sertão lustroso na linguagem, quanto, em diversas
circumstancias, podia ser.»
Prefacio do Esqueleto, publicado em 1866, pela
primeira vez :
«Em quanto á influencia do romance nos cos-
tumes, estou mais que muito desconfiado de que o
romance não morigera nem desmoraliza. Porém,
admittida a ponderação que lhe alvidram os ex-
CAMILLO 293
hortadores dos pães de família, não sei decidir como
se ha de escrever o romance fautor da sã moral. São
dois os expedientes : levar os personagens viciosos
ao despenhadeiro ; ou crear anjos num paraizo sem
serpente. Na primeira espécie, mostra-se a lucta de
virtude e crime; natural e concludentemente trium-
pha a virtude. E o costume com sacrifício, âs vezes,
da verosimilhança. Na segunda forma de romancear,
a virtude recebe as ovações sem batalha. O roman-
cista põe peito á reformação das obras de Deus, e
corrige-as. Quando os seus personagens se avizinham
de algum sujo aguaçal, em que é de uso a gente
commum salpicar as botas, atam-lhe azas de sera-
fins, e largam-lhe trella por esse azul dos céus den-
tro até lhes vir a geito poisá-los em alegretes de
flores. São estes os romances que moralizam, ou os
outros? E' a minha duvida. Convém mostrar as
repulsões do crime lá em baixo, onde a providen-
cia social lhes cavou a paragem ; ou é melhor con-
duzir, por eofere hortos ameníssimos, os nossos
personagens engrinaldados, e mettê-los no ceu fi-
nalmente? Um homem de bem, proprietário de um
dos primeiros jornaes doeste pai?, costuma editar
os meus romances, com a previa clausula de não
serem historias de crimes, que toque directa ou
indirectamente com a probidade da vida conjugal,,
ou revelem desdouros da honra domestica. Ha
poucos dias, tivemos esta pratica : — Querem os pães
de famílias que suas filhas ignorem a corrupção y que
lavra nos pântanos da sociedade^ observou-me o meu
294 CÁUiLLO
amigo. — Os pães de famiUa, contestei, não conseguem
issOj em quanto não acharem o caminho da lua, onde
presumo que não ha costumes, nem romances, Eserá
preciso que se mudem para Id com as filhas, menores
de dez annos, e não levem as mães, porque as mãesj
maximamente virtuosas, sempre têm que contar ás
filhas a historia escandalosa das mães culpadas, —
Mas não se ganha moralizado para os espíritos
brandos e virginaes das leitoras, em dar-lhes noveUas
de adultérios, redarguia o cavalheiro. — Ganha,
quando se lhes mostram os infortúnios acapdlados
em volta da mulher ^ue se deshonra. Ganha, porque
íis filhas do pae acautelado sabem que as ha, conJie-
cem-nas, e apertam a mão das deshonradas; con-
correm aos salões com ellas; sabem o nome e a culpa
do homem que as requesta; óbservam-lhes uns exte-
riores de felicidade; e espantam*se de as verem
ostensivamente satisfeitas, e, de mais a mais, aca-
tadas com uma urbanidade, que as não estrema das
honestas. Então é que o romance ganha muito, le-
vando ao conhecimento das donzellas, até certo ponto
innocentes, que o desdouro, cujo horror não as apa-
vo7*ou nos salões, tem angustias secretas, e infâmias
estrondosas. Parece-me isto, meu amigo, — Acho-lhe
razão, obtemperou o honrado e illustrado editor
dos meus livros, mas que qtier, se os pães de familia
intendem que suas filhas desconhecem a ecdstenda
de certos cHmes? e desadoram romances que revoU
"vam essas sentinas hediondas? Aqui ficou a contenda
amigável. Não procurei pae de familias nenhum
CAMILLO 29Õ
para argumentarmas. Fíquei-íne a soismar se devia
queimar este volume que estava escrípto, no intuito
de mostrar o squalor de uma chaga social, sem a
minima pretençfto de lhe pôr o cauteôo. Náo quei-
mei; mas protesto extrahi-lo da circulação, se um
dia me persuadir de todo em todo que esta coisa
de roítiances, escriptos assim, peoram a humanida-
de, e alvorotam a quietação dos pães de familia».
Também em 1865, no prologo da Lucta de gi-
gantes:
«Farto estou eu, leitor, de lhe denunciar boas e
xaks paixões do tempo de agora. E já horas de lhe
iàlar de umas paixões do tempo que foi. Nem ellas
oiem elle podem tornar a ser. Eram paixões de uma
filasse, que por sua culpa envelheceu e morreu
intempestivamente. Este livro trata de frades. Não
lhe chamo romance, porque é historia authenticada
3)or documentos; não lhe chamo historia, porque
«eria presumpçâo imprópria de minha humildade
^forar-me em fidalguias tamanhas. Os catálogos das
livrarias dêem-lhe o nome que muito quizerem; e o
leitor, segutído a indigestão que lhe fizer o livro,
qualifique-o, e áte-o, se lhe parecer, á capa surrada
<ie alguma chronica de franciscanos. Será esse o
<íaiDÍnho da immortalidade do meu livro, porque,
<1© hoje a tresentos annos, será lida a Historia de
^' Domingos e ninguém lerá o Frei Luiz de Sousa,
^^ Almeida Garrett. Assim m'o faz pensar vêr eu
Pesados a onro os in-folios antigos, e o desdenhar-se
^oux abominável descortezia o livro amaneirado^
296 CAMILLO
correcto, lustroso e florido de fabrica moderna. Os
Miseráveis, de Victor Hugo, já esqueceram; um
exemplar do romance de Vasco de Lobeira, vendeu-
se um doestes dias por trinta libras. A Vida de
Christo, por Ernesto Ilenan, por Strauss, por Veuil-
lot, andam por ahi ao desbarato; ora a Vida de
Chrísto, insulsissimo poema de Manuel das Povoas,
é livro raro ; e a Vida de Chrísto, por frei Bernardo
de Alcobaça, vendida por 600$000 réis, será barata^
Qualquer doestas jóias de bibliotheca, tão encareci-
das, é bastante para matar d'enfado e aborrecimento
duas academias; ao passo que, na leituia dos livros
ménóspresados, se opulenta o entendimento ou agita
a alma vivamente curiosa de lances de phantasia e
movimentos do coração. Comprehendam lá esie
desconcerto do nosso capricho ! Isto me induz a
pensar que não será de todo engeitado um livro
que relembra cousas esquecidas, e vai entrajado de
velhas roupas um pouquinho sacudidas do pó de
duzentos annos.»
Na dedicatória «Ao 111.™° e Ex.mo Sr. Manoel
de Freitas Costa, Meritissimo Juiz da Relação do
Porto» do romance A Engeitada, de 1866:
«Neste romance encontra v. ex.» o desenvolvi-
mento da historia que me communicou. Se alguma^
cores do quadro substitui por outras, obedeci a uma*
regras d 'arte que prescrevem ao romancista a dura
lei de recompor o que parecia estar bem feito das
mãos da natureza. D'onde havemos de inferir q^^
o verdadeiro, erii romances, nem sempre é o bello»
CAMILLO 297
e raríssimas vezes é o bom. Noutro paiz, noutros
costumes e com mais hábil colorista, a historia^,
referida por v. ex.*, seria uma perfeita urdidura de
óptimo romance. Aqui na nossa terra, exceliente,.
mercê de Deus, em muitos sentidos, requer-se me-
lindroso geito nisto de contar vicios. Não discuto
se o contà-los ó fomentá-los, e se a ignorância d'elles
é fingimento. Seja o que for. Se ha innocencia, é
dever santo conservá-la. Se dissimulação, é obsequio
à historia das nossas virtudes dissimularmos tam-
bém.»
Prefacio da segunda edição da Doida do Candaly
datado de 1867:
«Reconhece o auctor que este livro seria deíi-
cientissimo, se assentasse em aJguma ideia funda*
mentalmente philosopbica. Não estamos em terra
onde se invista a novella de missão que não seja
espairecer o animo de estudos attentos, ou desen-
fastiá-lo dos enojos da ociosidade. Os lettrados,
que baixam até ao romance, querem-no, dizem
elles, philosophico, e apontado a discutir alguma,
transcendente questão social. Nada mais nem me-
nos que encommendarem ao romancista os ser-
viços que aos legisladores incumbe prestar á so-
ciedade. Fazem-lhe muita honra, dão-lhe grande
foro nas coisas da republica; mas o peor é que
os editores recommendam a menos philosophia que^
ser possa nestes livros, e queixam-se da mingua
de concorrência dos lettrados ao balcão, onde a
novella discreteadora e pedagógica não ousa me-
298 OAHILLO
dir-se com as facécias da soena-comica. E' vêr
i\uem leva mais os olhos na sala das mascaradas
— se Sócrates sobraçando a túnica e mesurando
os poderosos passos, se o palhaço tilintando os
guisos . . . Não obstante, os famintos de romances
com recheio de sucosas cabidelas, insistem que o
romancista deve immolar ao agrado e contente-
mento da critica o gosto destragado da maioria dos
leitores. Pensam e aconselham discretamente. Eu
por mim tenho querido contentá-los; e, se alguma
vez o consegui, foi pontualmente nos livros qne
esperam no limbo das estantes dos editores a re-
dempçáo do gosto fino, a segunda luz das intelligen-
cias esclarecidas. Por onde havemos de concluir
que o escrever para a posteridade é um sacratissimo
dever tão somente a uns bem-sorteados da fortuna
<}ue tem segura a vida presente, e se esmeram em
prolongar a futura pela eternidade fora até encon-
trar uma geração que lh'a perpetue no bronze da
estatua. Bonito destino, quando os contemporâneos^
•se não persuadem que o aparelho digestivo do es-
criptor é de bronze também, e como tal, descare-
cido da refeição das moléculas que dão calor vital
ao sangue, ao musculo, à massa que forma os ca-
marins de espirito, esta coisa chamado engenho.
Engenho de bem escrever! Palavra oca de que ri
galhofeiramente quem tiver um de fazer assucar ou
serrar madeira. Tornando ao ponto : estive inten-
tado a interpor nesta segunda edição da Doida do
Mandai uns discursos acerca do duelo, como quem
CAMILLO 299
c^ulca tendências a desbravar o género humano
\ tão bratal selvageria. Nesse campo de mortos
&mados e jà também chorados, acharia eu que
rte tristissimas flores com que aformosear trage-
as. Nfto o ha tão abundante para lagrimas e da-
.voso às menos inspiradas phantasias. Dei, todavia,
a mão ao intento, quando o meu editor e amigo
le disse que A Bruxa de Monte Córdova era menos
da que a Doida do Caudal. Entrei a comparar os
ois romances para entender a desigualdade dos
aeritos, e vim ao convencimento de que um pou-
ninho mais de philosophia estragara a Bruxa.
fada, pois, de tirar à novella a inutilidade que a
az preciosa. Seja cada um do seu tempo e do seu
)aiz. O melhor romancista em Portugal, por em-
luanto, ha de ser o que tiver mil leitores que lhe
comprem o livro e o applaudam, contra dez que o
eiam de graça e o critiquem em folhetins a dez
iostões.
No pre&cio do Cavar em ruínas, escripto em
1866:
<0s livros antigos pagam liberalmente a quem
58 atura. Não ha velhice mais dadivosa e agrade-
cida do que a d'elles. Sentam- se comnosco à sombra
le arvores, suas coevas, e contam-nos coisas que
Piram os plantadores das arvores O que ahi
i^ae por ohronicas de frades, por livros menos lidos
lo que as chronicas, bons para historia, óptimos
Mira philosophia, e, melhor de tudo, balsâmicos
^ vivificantes para corações despegados do hoje em
dia e do nebuloso amanhã que a sciencia a cidi
hora vae ennoitando mais, apagaado-lhe explendoni
que já uum tempo entreluziram á espiritualidade do
santo ou ã candideza do poeta! O Presente é
sincero dee^gosto de muitos e intermittente embiit-
guez da felicidade de poucos. O Futuro é um des-
cuido do maior numero e uma afBicçào de poncoí
e^pirítos que vieram s&os a um mundo cheio dl
aleijados. O Passado, o passado, é já agora o umco,
seguro e abençoado refiigio de quem pôde ir pa
trevas dentro a bater azas de luz e a poiser-ES li
sobre minas, onde n&o chega a pedra d'esses fot
dibularios que tâm seus arsenaes nos enxurdeirM
das cidades florentes Também tenho o
refugio do passado. Algumas dúzias de livros levio-
tados em cerco á volta de dez palmos de taboado
de pinho sem alcatifa nem xadresado, marcam H
fronteiras das minhas delicias. E o que tenho. E
dentro d'isto, nuns dias de saudade do ir.eu querido
Castilho, que ainda ali se me figura dizeudo-nx
como Virgílio teria poetado se houvesse nascido
Portugal, na ausência d'elle continuei a onvi-K
na locução diamantica de Fern&o Mendes e Bn-
nardes. . .1.
Aviso ds pessoas incautas, que precede os ilfi-
ieíios de Fafe, impresso em 1878 :
■ £sta novella contém adultérios, homicidiot)
. missionários e outros scirros sociaes. Almas em ã''
t d» innocencia e candura, n&o leiam isto que tresoil»
^e gafaria, em que forçadamente a leit«i*i
CAMILLO 301
iffeita ao ar puro das regiões vizinhas do ceii, ha-de
sentir nausear-se-lhe a alma. Nalgumas quintas do
Minho, ameaçadas de ladrões^ erguem-se uns postes
qae dizem : aqui ha ratoeiras. Os ladrões, graças á
instrucção, lêem e passam. Neste livro inverte- se o
estylo : os salteadores da pudicícia levantam bem
alto o letreiro que diz : aqui ha ladrões. Sem o qual
letreiro, este livro seria um abysmo. »
• Da Infroducçõo do romance A mulher fatal, que
appareceu em 1870:
«... A minha raiva ao planeta em que estou é
acerba; mas fica muito aquém da misanthrophia.
Em rapaz fiz de Heraclito, quando não conhecia
melhor do que hoje este grego que aforou as lagri-
mas com honras de escola de philosophia. De tal
philosopho, coisa que sirva só temos o boato de que
declamava e chorava em publico. Hoje em dia, um
homem com esta sensibilidade era levado ao com-
missario de policia. Por mim e pelos meus vizinhos
também eu chorei. Eis que desce a geada de muitos
invernos a nevar-me, o frio a filtrar, a temperatura
dos liquidos a descer, o sangue a coagular-se e logo
o crystalizar das lagrimas no coração como as con-
creções vitreas d'uma caverna. Principiei a rir, às
vezes. Rir é contrairem-se o diaphragma e os mús-
culos faciaes. Operação materialissima, muscular,
carnal, e que nenhum outro animal exercita. Claro
é que o rir é attributo do ser racional. A par e
passo que a razão se allumia e fecunda, as contra-
dições musculares amiudam-se. Eaciocinar é rir. O
302 CAMILLO
m
acume da sabedoria humana é vêr os reversos da»
tragedias sociaes; là está por força a comedia. A
ignorância que esteriliza, e mirra, e encalvece, ó &
que só deixa vêr uma face da medalha. Eu nào
.cheguei ainda aos pináculos da sabedoria. Vou
subindo, .... Era meu propósito dizer espalmada*
mente que, ha vinte annos, comecei a vêr as duas
faces dos lances tristes: uma que intende com as
glândulas lacrimaes, outra com o diaphragma. Pri-
meiramente, se não choro, condôo-me; depois, esga-
ravatando na raiz das dores humanas, encontro ahi
ou sedimento de perversidade ou ridicularias mise-
rabilissimas. Então é o rir. E, afim de que os pade-
centes me desculpem, rio primeiro de mim. D'alií"
se causou que os meus livros, entre muitos defeitos,
realçam em um que tem ferido a benevolência da
critica : o é que não conservo, sem intercadencias
desvanecidamente faceciosas, uma situação plan-
gente, e amarguro com o acerbo da ironia a dulcidáo
das lagrimas. E justo o reparo. E neste livro me
quer parecer que tal defeito subirá de ponto; por-
que vou intender em tragedias amorosas, nesta
edade de quarenta e três annos feitos, velhice em
que nenhum escriptor sincero, obediente a Horácio,
deu aos seus leitores o exemplo das lagrimas. Si
vis me flerej etc. ...»
Da dedicatória «A D. António da Costa», da
nooella do Minho — O commendador^ impressa cofl^
data de 1875 :
«. . .0 que D. António da Costa não teve temp<>
CAMILLO 303^
de vêr e apalpar foi o miolo, a medula, as entranhas,
românticas do Minho ; quero dizer — os costumes, a
viver que por aqui palpita no povoado d 'estes arvo-
redos onde assobia o melro e a philomella trilla*
Ah ! meu amigo ! Romances, tecidos de casos cân-
didos e innocentes, apenas os fazem por aqui os
pássaros em abril, quando urdem e afofam os seus
ninhos. O restante dos animaes não oviparos vista-
m'os V. ex.* no Catarro ou no estabelecimento da
&mosa senhora Cecilia Fernandes, da Travessa de
Santa Justa, que eu lh'os farei representaf ao vivo
no próprio coração do Minho, entre Fafiâo e S„
João do Kalendario, as scenas contemporâneas,
da fina Baixa e peores É neste meio que eu
me abalanço a esgaratujar novellas. Ha trêse annos
que apeguei por esse Minho, em cata do bálsamo
dos pinheiraes e das fragancias das almas innocen-
tes. Diziam-me que a rusticidade era o derradeiro
baluarte da pureza, e que os lavradores do Minho,
nivellados com os saloios da Extremadura, eram os
cândidos pastores da Arcádia comparados aos ma*,
landrins de Gomorrha. Um dos meus estudos, no in-
tuito de me habilitar para o confronto do saloio com
o minhoto — da raça sarracena com a gallega — é
esta historinha que lhe dedico, meu nobre amigo.»
De 1879: a Dedicatória e a Advertência do Eu^
sdrio Macário:
r
« Dedicatobia. — Minha querida amiga : Per-
g^taste-me se um velho escriptor de antigas no-
B04 CAMILLO
vellas poderia escrever, segando os processos novos,
um romance com todos os tics do estylo realista.
Respondi temerariamente que sim, e tu apostaste
que nôo. Venho depositar no teu regaço o romance,
e na tua mão o beijo da aposta que perdi. »
« Advertência. — A historia natural e social de
uma familia no tempo dos Cabraes dá fôlego para
•dezesete volumes, compactos, bons, d 'uma profunda
Kjomprehensão da sociedade decadente. Os capitulos
inclusos neste volume sào prelúdios, uma symphonia
offenbachiana, a gaita e birimbau, da abertura de
um grande charivari de trompões fortes bramindo
pelas suas guelas concavas, metálicas. Os processos
do auctor são, jâ se vê, os scientificos, o estudo
dos meios, a orientação das idéas pela fatalidade
geograpliica, as incoercíveis leis physiologicas e
climatéricas do temperamento e da temperatura, o
despotismo do sangue, a tyrannia dos nervos, a
questão das raças, a ethologia, a hereditariedade
inconsciente dos aleijões de familia, tudo, o diabo!
O auctor trabalha desde antes de hontem no enca-
deamento lógico e ideológico dos dezesete tomos da
sua obra de reconstrucçâo, e já t«m promptos dez
volumes para a publicidade. Mas é necessário a
quem reedifica a sociedade saber primeiro se ella
quer ser desabada a ponta-pés de estylo para depois
ser reedificada com adjectivos pomposos e advérbios
rutilantes. Para isso, o primeiro avanço é pô-la nua,
escrutar-lhe as lepras, lavrar grandes . actas das
CAMTLLO 305
chagas encontradas, esvurmar as bostellas que cica-
trizaram em falso, excoriá-las, muito cautério de
phrases em braza. E o que se faz nas folhas preli-
minares d'esta obra violenta, de combate, destinada
ã entrar pelos corações dentro e a sahir pelas mer-
cearias fora.»
Também em 1879, prefaciando a quinta edição
do Amor de perdição :
«Publiquei, ha vinte e dois annos, o romance
Onde está a felicidade f — Pouco depois, Alexandre
Herculano, republicando as Lendas e narrativas,
escrevia na Advertência: ...Nestes quinze ou vinte
annos, creou-se uma litteratura, e pôde dizer-se que
não ha anno que lhe não traga um progresso. Desde
as Lendas e narrativas até o livro Onde está a feli-
cidade? que vasto espaço transposto! — Se comparo
o Amor de perdição, cuja 5.* edição me parece um
êxito phenomenal e extra-lusitano, com O crime do
padre Amaro e O primo Basilio, confesso, volunta-
riamente resignado, que para o explendor d'estes
dois livros foi preciso que a Arte se ataviasse dos
primores lavrados no transcurso de dezeseis annos.
O Amor de perdição, visto á luz eléctrica do criti-
cismo moderno, é um romance romântico, declama-
tório, com bastantes aleijões ly ricos, e umas idéas
«celeradas que chegam a tocar no desaforo do sen-
timentalismo. Eu não cessarei de dizer mal d'esta
novella, que tem a boçal innocencia de não devassar
alcovas, a fim de que as senhoras a possam lêr nas
«alas, em presença de suas filhas ou de suas mães^
306 CAMILLO
e nâo precisem de esconder-se com o livro no seu
quarto de banho. Dizem, porém, que o Amor de
perdição fez chorar. Mau foi isso. Mas agora, como
indemnisaçâo, faz rir; tornou-se cómico pela serie-
dade antiga, pelo raposinho que lhe deixou o ranço
das velhas historias do Trancoso e do padre Theo-
doro d^Almeida. E por isso mesmo se reimprime.
O bom senso publico relê isto, compara com aquillo,
e vinga-se barrufando com frouxos de riso realista
as paginas que ha dez annos aljofarava com lagri-
mas românticas. Faz-me tristeza pensar eu que
floresci nesta futilidade da novella quando as dores
da alma podiam ser descriptas sem grande desaire
da grammatica e da decência. TJsava-se entáo a
rhetorica de preferencia ao caláo. O escriptor ante-
punha a frequência de Quintiliano á do Collête-en-
carnado. A gente imaginava que os alcouces náo
abriam gabinetes de leitura e artes correlativas.
Ai! quem me dera ter antes desabrochado hoje com
os punhos arregaçados para espremer o pus de
muitas escrófulas á face do leitor! Naquelle tempo,
enflora va-se a pústula; agora, a carne com vareja
pendura-se na escapula e vende-se bem, porque
muita gente nâo desgosta de se narcizar num espelho
fiel. Pois que estou a dobrar o cabo tormentório da
morte, já nào verei onde vae desaguar este enxurro,
que rola no bojo a Ideia Novíssima. Como a honesti-
dade é a alma da vida civil, e o decoro ó o nó dos lia-
mes que atam a sociedade, lembra-me se vergonha e
sociedade ruirão ao mesmo tempo por effeito de uma
OAMILLO 307
grande evolução rigolboche. A logioa diz isto ; mas a
Providencia, que usa mais da metaphysica que da
lógica, provavelmente fará outra coisa. Se, por vir-
tude da metempsycose, eu reapparecer na sociedade
do século XXI, talvez me regosije de vêr outra vez
as lagrimas em moda nos braços da rhetorica, e esta
5.? edição do Amor de perdição quasi exgotada. »
Num artigo A respeito da Caveira da Martyr,
publicado sem assignatura, ainda em 79, na Bíblio-
graphia portugueza e estrangeira, do editor Ernesto
Chardron :
«A Caveira da martyr foi tirada das livrarias
não por conter peçonha de impiedade que derran-
casse as profundas idéas religiosas que lavram no
espirito publico, nem tão pouco por ataque ao pu-
dor virginal, que é ainda uma coisa que conserva
a virgindade até muito tarde. O romance foi reti-
rado pelo seu proprietário, pessoa honrada mas es-
crupulosa até ao extremo de suspeitar que seria
irreligioso um livro onde se pintavam no mosteiro
de Odivellas algumas freiras frágeis em amor e
uma d'ellas amante d'el-rei D. João v, A historia
contara isto ; e o romancista cuidou que lhe não
corria o dever de guardar aos maus costumes das
bernardas de Odivellas acatamento mais reveren-
cioso que o dos historiadores. O editor expoz os
seus escrúpulos ao auctor, que lh'os respeitou e
consentiu que os três tomos * fossem queimados,
Em 1902, reimpressos, num só volume.
308 CAMILLO
tirando a salvo que o nâo queimassem a elle. O ro-
mance mereceu providencialmente o destino ar-
dente que teve, nào porque fôsse impio, mas porque
era uma composição ordinária, com alguns adjecti-
vos velhos dos antigos processos.»
Em 1880, no prefacio da segunda edição do
Eusébio Macário:
« Cumpre-me declarar que não intentei ridicula-
rizar a escola realista. Quando appareceram o Crime
do padre Amaro e o Primo Bazilio, e os romances
de Teixeira de Queiroz, admirei-os e escrevi inge-
nuamente o testemunho da minha admiração. Creio
que hoje em dia novella escripta d^outro feitio não
vinga. »
Dos artigos da polemica com Alexandre da Con-
ceição, a propósito da Corja, em 1881 : ^
«. . .Assevera o critico que eu, no Eusébio Ma-
cário, tive por intuito confessado a pretensão de
lançar o Hdicnlo sobre a escola realista, O sr. Con-
ceição de certo não pode citar phrase minha que o
justifique. Assevera que eu me deixei obsecar (queria
talvez dizer obcecar) por pequenas vaidades de seita
até ao ponto de ter do auctor do Primo Bazilio
somente esta estreita comprehensão : de que é apenas
um romancista ridículo. Não me conformo indiffe-
rentemente com esta aleivosia, porque admiro e
releio os romances do sr. Eça de Queiroz. No Can-
Golligiios na Bohemia do espirito»
OAMILLO 309
cioneiro alegre, pag. 11, digo do Primo Bazilio : O
romance mais doutrinal que ainda sàhiu dos p}'elos
portugueses. — Doutrinal, escrevi como synonymo
de moralizador. Em minha consciência entendo que
se já houve livro que pudesse e devesse salvar uma
mulher casada, na aresta do abysmo, é o Primo
Bazilio. O sr. Eça de Queiroz fez esse raro milagre,
porque pintou o vicio repulsivo e nojento. As mes-
mas delicias do delicto emporcalhou-as, pondo as
angustias parallelas com as torpezas O sr.
Conceição diz que a Co7*ja é uma banalidade. Pois
que outra coisa ha de ser a minha novella senão
uma frioleira? O meu romance náo tem o desva-
necimento de avantajar-se ás banalidades da sua
espécie. E com effeito uma bagatella risonha que
náo ha de augmentar o numero dos tolos; nem tão
pouco estorvar que a luz do sr. Conceição penetre
as camadas escuras que envolvem a ignorância
publica. Nem os futuros livros scientificos do sono-
roso poeta sr. Conceição, nem os meus romances
banaes hão de acrescer nem diminuir o numero dos
parvos — a incommensuravel maioria, como diz o
philosopho Schopenhauer. Acho de uma grande
Verdade aquillo de Voltaire: Nous laisserons ce
Tnonde-ci aussi sot et aussi mèchant que nous Vavons
trouvé en y arrivant ...»
«... Se escrevi Eusébio Macário em 1880, como
escrevera as Scenas da Foz e a Filha do Arcediago
em 1853, num estylo nú, de galhofa, mostrando
espáduas brunidas de mulheres sem ulceras, e feição
310 CAIIILIAÍ
por feiçáo, a psycologia de alguns argentarios, que
se deduz d'ahi na hermenêutica do sr. Conceição?
Que tenho uma rhetoríca atrazada, que sou um
velho catholico^ um litterato auctointmno e quinhen-
tista. Quer dizer que as diversas obras d'arte estão
todas subordinadas a um principio, ou náo quer
dizer nada? Taine, o legislador dos ideaes moder-
nos, nào me jarreta as pernas para eu me ageitar
ao leite procusteano de mestre Conceição. EUe diz
que toutes les oeuvres d'art sont de niveau et que h
champ est ouvert à Varbitraire. E accrescenta : En
effet, si Vóbjet devient ideal par cela seul qu'il est
conforme à Vidée, peu impoHe Vidée; elle est au choix
de Vartiste; il prendra celle-ci ou celle-lá, à sont gout:
nous n'auron8 point de reclamation à faire. Escrevi
a Corja, sem previamente alinhavar os personagens
consoante os moldes do sr. Eça de Queiroz, nem
saberia destrinçá-los entre os que servem á obra
evolutiva francesa desde Manou Lescaut até Nana;
e, se cotejo as novellas modernas com os praxistas
sociológicos em que se estriba a esthetica da ultima
hora, persuado-me que esses romances podem fazer-
se com observação e estylo, sem que aos auctores
urja a necessidade imprescindível de manusearem
a Biologia de Herbert Spencer, a Evolução humana
de Hseckel e o Positivismo de Comte. Para que se
ha de assoprar com tamanho empyrismo de scien-
cias pingues uma coisa tão oca e fútil como a no-
vella? O burguês sensato pode rir-se do nosso char-
latanismo. Sejamos francos. A gente faz romances
CAMILLO 311
sujos porque a sociedade nos pede a historia con-
temporânea : é ella que faz os nossos romances. Náo
partimos de uma renovação de Moral; emergimos
d'um lodaçal de inveterados vicios. Se algum de
nós, politico ou romancista, nutrir o desvanecimento
parvoinho de defecar o humor mórbido da sociedade
com o sudorifero dos artigos ou dos romances, deve
começar por si a cura com os sedenhos ; em vez de
consultar Augusto Comte e Hartmann, cinja-se âs
prescripções de Dagonet e de Maudsley. O sr. Con-
ceição sabe ...»
cAbro um parenthesis para uma pessoa discreta
que me vae ler e deplorar. Esta substanciosa con-
trovérsia com o sr. A. da Conceição originou-se da
injustiça com que fui accusado de hostilizar pela
irrisão dois escriptores que descrevem as cousas e
as pessoas como ellas são ou podem ser. Contestei
com provas escriptas que admirava os dois escri-
ptores realistas e outros da mesma phalange ; mas
nem me perfilei immodestamente ao seu lado, nem
me gabei de usar os modernos processos com conhe-
cimento de causa. Pareceu-me que o realismo se
podia exercitar sem estudos prévios, por ser fácil
tarefa com observação e estylo descrever a verdade
das cousas physicas e ter das moraes uma intusce-
pção mais ou menos aproximada da realidade.
Oflfereci esta opinião, e ouzei dizer que as minhas
ultimas novellas, tirante os vicios acintosos do estylo
•estragado pela imitação, não significavam apostasia
da minha velha escola ; mas sim a reincidência de
312 CAMILLO
um mau género que eu tinha ensaiado ha muitos
annos com desagrado do publico. Replicou o sr.
Conceição que eu náo entendia o realismo, que era
. um inepto se pretendia mudar de systema, alistan-
do-me com os positivistas, com os evolucionistas,
uns porque eram psycologos, outros porque eram
physiologistas, e eu náo podia ser isto nem aquillo,
porque era um velho romântico, catholico e qui-
nhentista. Refugadas as chocarrices e as toleimas,
a questão é isto. Ora eu não tinha o desvaneci-
mento de formar hombro a hombro de quem quer
que fosse. Fiz esses dois frívolos livrecos cuidando
que sociologicamente ninguém lhes dava mais im-
portância do que eu dou aos romances banaes dos
escriptores eminentes; porque eu não creio que as
novellas desde Lúcio de Patras até Emilio Zola
tenham feito bem nem mal ao género humano...»
II
Ao lêr a longa serie das novellas de Camillo^
íom suas paixões infelizes, suas meninas envelhe-
íidas penando peccados d'amôr na soledade dos
nosteiros, seus pães tyrannos e seus brasileiros
çrotescos de joanetes, apercebe-se o estudo inteiro
i'um meio e d'uma época e, dentro d'elle, a com-
)rehensão singularmente feliz do caracter de cada
ima das figuras que vivem intensamente através
ias paginas aventurosas dos seus livros. Completa
usteza de scenario, em cada personagem um estuda
3sycologico perfeito e, sobre tudo isto, um certo ar
lesartificioso, familiar, na narração inimitável e um
igor muito sóbrio no desenho d'um typo ou d'um
ogar. Ha personagens em Camillo que meia pagina
ó define e maravilhas de intuição no traço d'um
aracter que nos revelam desde logo no artista
minente um velho sabedor da sciencia das almas.
Camillo possuia no grau mais alto os dois po-
314 CAMILLO
deres supremos de evocar e comtnover. Certas sce-
nas dos seus livros — como essa, já celebre, da
morte do lobo, no Eusébio Macário^ a sabida do
Melro na Brasileira de Prazins e o incêndio no
Retrato de Ricardina, fixam-se para sempre como
se nós próprios as bouvessemos visto, e ba paginas
suas que se não lêem sem lagrimas, como essas
sublimes cartas finaes do Amor de perdição, E assim
como a evocação é sóbria, não distraindo a attenção
em ninharias, mas fazendo gravar indelevelmente o
aspecto geral que se pretende, assim também a
commoção ali se consegue com simplicidade, nas-
cendo da própria essência das coisas descriptas e
não dos mais ou menos plangentes termos em que
as lemos. . . Sob esse aspecto, sob todos os aspectos,
as Novellas do Minho são, fora de toda a duvida,
uma coUecção de preciosas e inimitáveis obras-pri-
mas. D'uma d'ellas, O commendador, eu traslado
uma pagina que é um modelo de sobriedade intensa,
conduzindo direito, sem uma palavra a mais, sem
uma virgula inútil, ao effeito emocional que se pre-
tende. E esta:
«Em março de 1852, fez-se à vela de Villa do
Conde a Barca Conceição, Entre os passageiros ia o
desertor. Chamava-se ahi Manuel José da Silva
Guimarães, e nunca mais ouviu proferir o seu nome.
Quando a policia deitava inculcas no concelho de
Famalicão procurando a paragem da tiá Bernabé,
rendia ella a alma ao seu Creador em Villa do
CAMILLO 315
Conde. Vira desapparecer as velas da barca Con-
ceição, ajoelhada no terraço do Castello. Depois,
quedára-se de bruços a chorar. Levaram-a nos bra-
<;o8 a casa do cunhado. As lagrimas seccaram-se.
Veio a febre e o delirio. Chamou, chamou por seu
filho, até que Deus a chamou a ella. Não foi con-
fessada nem ungida; mas morreu santa porque
vivera santamente. Achara aquelle engeitadinho,
creâra-o, amára-o, vendera um cordão para o vestir
geitosamente a fim de o mandar à escola, vendera
as arrecadas para lhe comprar fato novo quando foi
á primeira confissão, vendera a casa e o tear e o
leito onde morrera sua mãe para o remir de soldado.
Padeceu grandes angustias quando soube que o
filho do seu coração era culpado na desgraça de
uma rapariga honesta. Cuidou que o padre, o pre-
gador da caridade e da igualdade dos servos de
Jesus Christo, iria admoestar o lavrador abastado
a conceder a filha para esposa do pobre. Esta santa
cegueira da ohristà é de crer que Deus lh'a per-
doasse. Por fim, de virtude em virtude, e de dor
em dor, logo que aos setenta annos de edade viu
sumir-se para sempre o seu querido engeitado, pe-
diu a Deus por elle, por si, e. . . morreu. »
Dir-me-ão, eu sei, que esses typos predilectos
dos romances de Camillo, fogem, correndo, da ver-
dade, pelo atalho resvaladiço do romantismo idea-
lista. Não é precisamente assim. E, não obstante,
jà mais d' uma vez essa accusação se formulou.
316 CAMILLO
Lembra-me agora que, prefaciando o Brasileiro
SoareSj do sr. Luiz de Magalhães, — historia ingénua
d 'um Joaquim de suissas que, de volta do Brasil,
onde ganhou dinheiro, veio negociar em papel, casar
com uma linda rapariga, ser trahido por um admi-
nistrador de concelho e suicidar-se com um tiro
de pistola — Eça de Queiroz vestiu o libello com
toda a pompa gaulesa do seu estylo d'oiro. E, nesse
prefacio, interessante, como tudo quanto escreveu
esse grande homem de talento que salvou o natu-
ralismo português do grotesco d'uma morte inglória,
lese isto:
€,..8e ha um typo de que o Romance e o
Theatro, em Portugal, tenham usado immoderada-
mente é, decerto, esse lavrador Minhoto, enrique-
cido e vQstido de panno fino, a que nas aldeias se
chama o brasileiro! Ha mais de trinta annos, em
novella, em drama, em poemeto, o Romantismo (ou
antes o Maneirismo Sentimental que entre nós
representou o Romantismo) tem utilizado o brasi-
leiro como a encarnação mais engenhosa e mais
comprehensivel da sandice e da materialidade»
Sempre que o enredo, como se dizia nesáes tempos
vetustos em que as Musas viviam, necessitava um
^er de animalidade inferior, um boçal ou um gro-
tesco, o Romantismo lá tinha no seu poeirento
deposito de figuras de papeláo, recortadas pelos
Mestres, o brasileiro — já engonçado, jâ enfardelado,
com todos os seus joanetes e todos os seus diaman-
tes, crasso, glutão, manhoso, e revelando plácida-
OAMILLO 317
mente na linguagem mais bronca os sentimentos
mais sórdidos. Bastava só coUar-lhe na nuca um
Qome bem plebeu, arranjar-lhe uma aldeia d'origem
c^ue cheirasse bem a curral, atirá-lo para o meio de
paginas tremulas e regadas de lagrimas, — e elle
começava logo a ser bestialmente burlesco e a eno-
jar os delicados. Nisto, os Mestres do Romantismo
náo procederam, originariamente, por animosidade
contra uma classe cujos modos, gostos, interesses,
lhe repugnassem: obedeciam d'instincto a um Idea-
lismo nevoento, á theoria da Alma profundamente
separada do Corpo, e à consequente divisão dos
typos litterarios em Ideaes e Materiaes, segundo
elles personificavam o Sentimento, cousa nobre e
alta da Vida, ou representavam a Acção, que ao
Romantismo apparecera sempre como cousa subal-
terna e grosseira. Ora em Portugal o homem que
mais evidentemente symbolisava a Acção aos olhos
turvos do Romantismo era esse labrego, que,
largando a enxada, embarcava para o Brasil num
porão de galera, com um par de tamancos e uma
caixa de pinho, e annos depois voltava de lá, na
Mala Real, com botas novas de verniz, grisalho e
jocundo, a edificar um palacete, a dar jantares de
leitão ao abbade, a tramar eleições e a ser barão. . .
E note V. que este mesmo cavador endinheirado
commovia e Romantismo até á Elegia, quando elle
€ra ainda o triste emigrante, parando uma derradeira
Vfiz na estrada, para ouvir o ruido do açude entre
^s carvalheiras da sua aldeia; quando elle era o
318 CAIÍILLO
pobre embarcadiço, de noite, no mar gemente,
encostado á borda da escuna Amélia, erguendo os
olhos chorosos para a lua de Portugal . . . Apenas
voltava, porém, com o dinheiro que juntara carre-
gando todos os fardos da servidão, — o saudoso
emigrante passava logo a ser o brasileiro, o bruto,
o reles, o alvar. Desde que elle deixara de soluçar
e ser sensivel, para labutar duramente de m arcano
nos armazéns do Rio, o Romantismo repellia-o como
creatura baixa e soez. O trabalho despoetizára o
triste emigrante. E era entáo que o Romantismo
se apossava d'elle, já rico e irasileiro, ^ra o mos-
trar no livro e no palco, em caricatura, sempre
material, sempre rude, sempre risivel, — não por um
justo ódio social contra um inútil que engorda, mas
por aversão romanesca ao burguês positivo, videiro
e ordeiro, que não lê versos, que se occupa de câm-
bios, só olha a lua quando ella annuncia chuva, e
só repara em Beatriz e Elvira quando ellas são
roliças e fáceis. Em contraste com este mateina-
Ião estava o homem de poesia e de sonho, magro,
altivo, malfadado, eloquente, e trazendo (como di-
ziam a serio os estylos d^então) um inferno dentro
do peito. Este permanecia pobre, ou desdenhava
lyricamente o dinheiro : a sua occupaçâo especial e
única era a Paixão : por elle as mulheres pallidas,
tojdas de branco, iam chorar, agarradas às grades
dos mosteiros. Nos íinaes d 'actos, elle, só elle lan-
çava, num gesto sombrio, a^ palavras sublimes,
dolentemente sublinhadas pelos violoncellos, ao
OAMILLO 319
rumor dos prantos abafados. O h^asileiro, esse dizia
as sandices, que nas farças mais francas eram tam-
bém sublinhadas — com um estoiro sobre o tam-
bor. Estes dois typos, insipidamente falsos como
generalização, pareciam ainda mais postiços, niais/
distantes da vida e da realidade, como factura. O
homem ideal era invariavelmente um grande boneco
esguio, com longos e tristes bigodes de crepe, uma
agoada de amarellidão na mascara de cera sempre
contrahida de amargura, e umas luvas brancas que
elle torcia na tortura perpetua do seu atroz destino :
por dentro, para lhe dar uma apparencia d'alma^
mettia-se-lhe, ao acaso, como se machuca a palha
para dentro dos Judas d^Alleluia, um molho secco
de phrases lacrimosas e balofas. O homem material,,
o hrasileiro, esse consistia num outro boneco, acham-
boado, tosco, com um coUete amarello, pellos nas
orelhas, e joanetes — os immensos joanetes que a
Romantismo, de pé pequeno, nunca deixava de
accentuar, com um traço de sarcasmo e asco. Este
boneco por dentro nâo tinha nada, nem phrases,
nem palha. E o curioso, meu caro Luiz, é que, de
todos os typos habituaes do nosso romance român-
tico — só o brasileiro tem origem genuinamente
portuguesa, de raiz. O homem fatal e poético ; a
mulher de negros cabellos revoltos que perde ; a
mulher de pestanas baixas que salva ; o arrogante
fidalgo, com longos nomes e hostil ao século; a
padre risonho que bemdiz e afiaga — todos esses
vieram importados de França : e as suas dores, as.
320 CAMILIX)
«uas descrenças, os seus murmúrios d'amôr, tudo
chegou pelo paquete, e pagou direitos na Alfan-
dega, misturado aos couros ingleses e ás peças de
panno Sedan. O nosso Romantismo não ó respon-
sável por essas gentis creações d'além dos Pyrineos.
Elias já aportavam ao Tejo e ao Douro, assim falsas
e mal feitas, fora da natureza e da verdade. O
Romantismo acolhia-as com uma submissa reve-
rencia provinciana: e assim as mandava imprimir
á Casa More e á Casa Roland, taes como as recebia,
traduzindo-lhes apenas em vernáculo os martyrios
-e os júbilos. O brasileiro, porém, era só nosso, todo
nosso, doeste solo que pisamos, castiço e mais origi-
nalmente português que a chalaça e a louça das
Caldas. Mais que nacional, era local. Era do Minho,
como o vinho verde. Ora o Romantismo, que sendo
triste amou sempre essa provincia verde-triste,
encontrava lá o brasileiro constantemente, na feira,
na romaria, na egreja, na várzea, na villa. No mi-
rante caiado d^amarello, que elle avistava entre as
ramadas, estava tomando o fresco o brasileiro: na
caleche forrada de reps azul, que elle cruzava na
estrada e que o empoeirava, vinha o brasileiro, de
perna estendida. Muitas vezes o Romantismo (inco-
herencias inevitáveis da vida terrestre) jantava com
o brasileiro. Assim, profusamente, acotovellando
por essa provincia brasileiros innumeraveis, vira-os
de todos os feitios exteriores : seccos, obesos, de
barba, rapados, miudinhos, espadaúdos, calvos,
guedelhudos, fracos, e fortes como os bois de Bar-
CAMILLO 321
roso. Vira-08, homens vários, com as varias, múlti-
plas qualidades humanas : bons e velhacos, ridiculos
e veneráveis, generosos e torpes, finos e suinos. . .
Que importa ! O Romantismo deduzira uma vez do
seu ódio á Acçáo e ao homem que sua um typo
symbolico de brasileiro gordalhufo e abrutado — e
assim o apresentava invariavelmente, implacavel-
niente, em novella, em drama, em poema, como se
nào houvesse existido jamais senão aquelle brasi-
leiro, e fosse táo impossivel mostrá-lo sem os attri-
butos de materialidade que o individualizavam,
como é impossivel pintar Marte sem a sua arma-
dura, ou contar . Tibério sem esboçar Capreia ao
longe, nas brumas do mar. . . O brasileiro da rua a
cada passo desmentia o brasileiro do livro ? Que
importa ! O bom Romântico nào cuida da rua : se
é um Mestre, marcha altivamente, com os olhos
alçados ás nuvens; se é um discipulo, segue caute-
losamente, com os olhos attentos ás pegadas dos
Mestres. Extraordinários, estes Românticos ! E bem
sympathicos, os primeiros, os grandes, os que
tinham talento e uma veia soberba, com este
inspirado, magnifico desdém pela natureza, pelos
factos, pelo real e pelo exacto ! Os discipulos esses,
louvado seja Nosso Senhor, são bem pêcosinhos, e
bem chochinhos !
>
1
* Garta-prefacio ao romance de Luiz de Magalhães
O Brasileiro Soares, 1886, pag. v-XíU.
21
322 CAMILLO
Um «inspirado, magnifico desdém pela natureza,
pelos factos, pelo real e pelo exacto»?.. . E, com-
tudo, o maior d 'esses românticos era aquelle mesmo
que, já em 62, pedia «que se fizessem romances
como se pintam paysagens, de modo que o mere-
cimento de taes escriptos assentasse na fidelidade
da copia, tal que cada leitor visse nella um seu
modo de sentir ou a reminiscência d'algum quadro
mais ou menos análogo que alguma vez se lhe
offereceu » ! . . .
Não. Se o grande artista dos Maias quizesse
olhar, com olhos de vêr, para a sociedade portuense,
tal qual ella era no tempo dos brasileiros de Ca-
millo, teria de concordar em que nem essa vulgar
encarnação do grotesco, nem tão pouco os apaixo
nados românticos, eram «typos insipidamente fal-
sos como generalização » . Não eram tal. Toda a
gente recorda, ainda hoje, historias d'esse tempo,
com seus amores infelizes, suas meninas reclusas,
olhando o ceu através das grades dos mosteiros,
e o namorado, quasi sempre magro e pallido,
sabendo Musset de cór e trazendo «um inferno
dentro do peito» — segundo a phrase que o chro-
nista da sensação nova decerto não poderia escrever
sem se sorrir. Essa figura de namorado foi rareando
e não haveria quem a descortinasse, nesta enorme
confusão dos tempos d'hoje em que os poetas lyn-
cos são vinhateiros e os homens de sciencia se
fizeram sonhadores. O brasileiro é que ainda existe,
sem a preponderância d'outros tempos, mas sempr®
CAMTLLO 323
m a camada de grotesco que lhe deu afinal todo
interesse.
Diz Eça que o romantismo carpia o brasileiro
ando elle era apenas o triste emigrante e «e cu-
stado á borda da escuna Amélia^ erguia os olhos
orosos para a lua de Portugal», troçando-o sem
edade quando voltava com o dinheiro que, ã
sta de duros esforços, conquistara. Mas, por Deus !,
tão infantil o reparo que a maldosos olhos poderia
»recer sem boa-fé. O emigrante, que ia com uma
ca ao hombro, deixando a sua terra, deixando a
milia, buscar a fortuna na obscuridade d'um des-
10 incerto — era um humilde. Ignorante, alvar,
)rutado — tanto importa ! — nunca fazia rir. Na
a terra era um filho de lavrador, moirejando de
1 a sol na labuta áspera dos campos ; depois, a
obiçào arremessava-o desamparado, só, ao acaso
) seu destino, para a riqueza ou para a morte,
as, se resistiu âs inclemências do clima, e se luctou
)m tenacidade e se venceu, ei-lo então que entra
i sua aldeia entre repiques de sinos e musicas de
sta, com seu corpo de lavrador mettido numa
tio ta nova de mau gosto, as mãos callejadas dos
istéres grosseiros arrombando a pellica cor de
nario d'umas luvas, todo elle impando o grosso
,deado d'oiro com medalhão cravejado de bri-
antes. Depois ó commendador, mesario de todas
; confrarias, bemfeitor da Santa Casa e influente
3litico de vulto; passa o inverno no Porto ou em
isboa e tem assignatura no lyrico e relaciona-se
324 CAMILLO
com gente fina, viaja, toma uma mulher para mon-
tra de jóias e cabide de velludos, come lombo de
porco, bebe vinho verde, arrota abundantemente,
soífre do figado, e um bello dia estoira, quasi sem-
pre antes de velho, porque a conquista de todas
essas coisas magnificas lhe tem custado annos de
vida. E, de tal modo, uma figura notada nas cida-
des e um rei nos logarelhos, pertence á alta roda,
lida com gente rica, frequenta os salões, — sem que
comtudo, muitas vezes, em todo o seu tempo de
Brasil houvesse tido o ensejo de adquirir essa edu-
cação superior que não tinha quando os pães o
mandaram, num porão de navio, em busca da for-
tuna. E vulgarmente um inculto, um grosseiro,
com toda a rudeza do trabalhador de enxada do
seu Minho e do marçano do Brasil, socialmente
arrogante d^uma importância arranjada á custa dos
seus cobres, dizendo em salões plebeísmos torpes,
escrevendo com erros, e sem essa mesma cnltura
toda artificial que nas relações de cada dia permitte
a um imbecil fazer d^homem de espirito um quarto
d'hora. D'ahi o grotesco. E grotesco esse que, mes-
mo depois de Camillo, tem sido explorado, pelos
próprios que seria injusto acoimar de seus imitado-
res. Releio agora um precioso trecho, escripto por
um grande escriptor, que tem no lance uma viva
opportunidade e mereço por isso ser transcripto, se
não na integra, porque é bastante longo, pelo me-
nos na sua parte de mais incisiva e originalíssima
ironia. Diz elle assim :
CAMILLO 325
«De facto, o pobre hrasileírOy o rico torna via-
gem, é hoje para nós o grande fornecedor do nosso
riso. Pois bem ! E uma injustiça que assim seja. E
nós, os portugueses que cá ficamos, nào temos o
direito de nos rirmos dos brasileiros que de lá vol-
taram. — Por que, emfim, o que é o Brasileiro? E
simplesmente a expansão do Português. Existe
uma lei de retracção e dilatação para os corpos,
sob a influencia da temperatura. (Apprende-se isto
nos lyceus, quando vem o buço). Os corpos ao calor
dilatam, ao frio encolhem. A mesma lei para as
plantas, que ao sol alargam e florescem, ao frio
acanham e estiolam. A bananeira, nos nossos climas,
é uma pequena arvore timida, retrahida, estéril
no calor do Brasil é a grande arvore triumphante
de folhas palmares e reluzentes, tronco possante
seiva insolente, toda sonora do sabiás e outros, es
caudalosa de bananas. Mesma lei para os homens
O hespanhol das Astúrias, modesto, humano, dis
creto e grave — ^passando para o sol do Equador
nas Antilhas Hespanholas, torna-se o sul-americano
"vaidoso, ruidoso, ardente, palreiro e feroz. Pois
bem ! O Brasileiro é o Português — dilatado pelo
calor. O que elles são, expansivamente — nós so-
mo-lo, retrahidamente. As qualidades internadas
em nós, estão nelles florescentes. Onde nós somos
á sorrelfa ridiculitos, elles são â larga ridiculões.
Os nossos defeitos, aqui sob clima frio, estão retra-
hidos, nào apparecem, ficam por dentro : là, sob um
sol fecundante, abrem-se em grandes evidencias
326 CAMILLO
grotescas. Sob ceu do Brasil a bananeira abre em
fnicto d o português rebenta em brasileiro. Eis o
formidável principio ! O Brasileiro é o Português
desabrochado. E o sol de lâ que nos fecunda. O
Chiado sob os trópicos dá inteiramente a rua do
Ouvidor. Rirmo-nos do brasileiro é rirmo-nos de
nós sem piedade. Nós somos o gérmen, elles são o
fructo : é como que se a espiga se risse da semente.
Pelo contrario ! o brasileiro é bem mais respeitável,
porque é completo, attingiu o seu pleno desenvol-
vimento: nós permanecemos rudimentares. Elles
estão já acabados como a abóbora, nós embryona-
rios como a pevide. O Português é pevide de Bra-
sileiro. Que somos nós ? Brasileiros que o clima não
deixa desabrochar. Sementes a que falta o sol. Em
cada um de nós, no nosso fundo, existe em gérmen
um brasileiro entaipado, afogado — que para cres-
cer, brotar em diamantes de peitilho, callos e pré-
dios sarapintados de verde, só necessita embarcar
e ir receber o sol dos trópicos. Cada lisboeta, sa-
bei-o, traz em si a larva d'ura brasileiro. Nós aqui
vestimos cores escuras, lemos B»enan, repetimos
Paris, e no em tanto cá dentro, fatal e indestructi-
vel, está aboborando — um brasileiro. Quem o não
tem sentido agitar-se, como o feto no seio da mãe?
— Fita es ás vezes uma gravata verde com pintas
escarlates? E o Brasileiro a remecher por dentro.
— Desejaes inesperadamente uma boa feijoada co-
mida em mangas de camisa ? E o Brasileiro. —
Appetece-vos ir visitar a Memoria do Terreiro do
CAMILLO 327
Paço ? É o Brasileiro, là dentro. — Lembra-vos
reler uma ode de Vidal ou uma fala de Melicio ? E
o Brasileiro! EUe está dentro de vós lisboetas! Ah
sabei-o ! vós, estaes sempre no vosso estado interes-
sante — d'um Brasileiro ! E quereis uma prova ? E
o verão ! E o cruel verào ! Entào, sob a tempera-
tura germinadora, — o Brasileiro interior tende a
florir, a desabrochar, a alastrar em cachos. Então
começaes a deitar o chapéu para a nuca, a usar
quinzena de alpaca, a passear depois do jantar com
o palito na boca, a exigir dos vendedores a agua
do Arsenal, a freqentar a Deusa dos Mares ! Sabeis
o que é? E o Brasileiro, que là tendes dentro na
entranha, attrahido pelo sol, a querer romper ! Por-
tanto quando nos rimos d'elle — intentamos a nós
mesmo um processo amargo. No inverno a pevide
contém a abóbora : mas, quando a abóbora cresce no
verào, é ella que contém a pevide. Nós cá contemos
o brasileiro ; elle lá, chegado ao Brasil, germina,
brota em fructo, e nós ficamos-lhe dentro. Ora se
esmagarmos a abóbora a grandes golpes de chacota,
é sobre a nossa própria e rica pessoa que descarre-
gamos o riso fero. Tenhamos juizo ! B»econheçamo-
nos nelles como nós mesmos — ao sol ! »
Pensarão decerto os senhores que esta satyra
cheia de vivacidade, chispando espirito, d'uma
graça fina e adorável, ó obra d'algum d'esses ro-
mânticos a quem o espirito de justiça do auctor
da Reliquia não perdoa. Pensarão talvez que o ho-
328 CAMILLO
mensinho, numa hora de bom humor, se serviu
dos instrumentos habituaes de troçar os di U
para jogar por tabeliã a sua maliciosa bisca aos
de cá, tudo com aquelle facciosismo que contundia
os delicados nervos do brilhante auctor do Manda-
rim.,. Puro engano. Eça de Queiroz não podia
dizer mal d'esse pedíiço de prosa, porque ella nasceu
do seu próprio engenho ! Vem num numero das
Farpas e foi reproduzido depois na obra Uma
campanha alegre (ii vol. pag. 97-100), que reúne a
coUaboraçáo do grande escriptor no pamphleto seu
e de Ramalho. E, de tal modo, a sua Carta-prefacio
do Brasileiro Soares, escripta quatorze annos mais
tarde, é, não apenas um libello accusatorio, mas
ainda um sentido e eloquente acto de contricção.
Mas, na qualidade de regra, que lhe tem sido
attribuida, pode esse modelo de brasileiro que fixei
soífrer as suas excepções? Nada mais certo, e tanto
que o próprio Camillo assim pensava, traçando al-
gumas das suas figuras de torna-viagem nas Notei-
las do Alinho, cheias de acções nobres, de abnega-
ção, de amor e de bondade. Mas a lenda a que deu
curso a conhecida diatribe d 'uma princesa nympho-
maniaca, fez dos brasileiros de Camillo apenas ty-
pos toscos ; e Eça de Queiroz preferiu citar de ou-
vido, sem ter o incommodo de solidamente fazer
primeiro a prova. Se bem que elle falou de uin
modo vago de romantismo, sem sequer citar o no-
me do romântico de S. Miguel de Seide. Mas rp-
man ticos grandes que em novellas troçassem o bra-
CAMTLLO 329
sileiro e que fizessem duettos d'amôr entre jovens
pallidas e mancebos languiâos, de melena ao vento,
houve em Portugal apenas um. E nem o próprio
Eça iria gastar táo prolixamente as gemmas do seu
estylo numa longa referencia a meia dúzia de su-
balternos obscuros. A não ser que o illustre ironista
se lembrasse da carta de Jacaré-Paguà na charge
de Garrett O Brasileiro em Lisboa ou do Spiridião
Cáòsiáno di Mello i Mátoss, do incompleto romance
Helena do mesmo auctor, — o que ainda assim não
excluiria da referencia o nome de Camillo. De resto,
Eça de Queiroz não cuidou nunca de pôr a figura
do seu grande antecessor na gloria litteraria a co-
berto das ferroadas d 'uma ironia discreta e contun-
dente. Jà nos Azulejos, do sr. Bernardo Pindella,
hoje conde de Arnoso, outra referencia apparece
sem rebuços :
« Os discipulos do Idealismo, para não serem
de todo esquecidos, agacliam-se melancolicamente
e, com lagrimas represas, besuntam-se também de
lodo! Sim, amigo, estes homens puros, vestidos de
Unho puro, que táo indignadamente nos arguiram
de chafurdarmos num lameiro, vêm agora pé ante
pé enlabusar-se com a nossa lama ! Depois, erguen-
do bem alto as capas dos seus livros, onde escre-
veram em grossas letras este lettreiro — romance
realista, — parece dizerem ao Publico, com um sor-
riso triste na face mascarrada : — Olhem também
•para nós, leiam-nos também a nós. . . Acreditem que
330 CAMILLO
também somos muitissimo grosseiros, e que também
somos mtiifissimos síijos ! * ^
D'esta vez, o próprio Camillo acudiu â chamada,
tão clara era a referencia, e, no final de um artigo
ácêrca do pae do romancista da Eeliquia, depois de
citar as palavras impressas no livro do sr. Pindella,
respondeu assim :
« Ora aquillo é comigo. O sr. Eça de Queiroz
desembestou aquella frecha apontada ao meu peito
innocente ; mas alvejou com o seu olho mais myope,
ou sacrificou a verdade a umas pittorescas phrases
azedas e jà bastante puídas que não valiam a pena
do holocausto. Em primeiro logar, eu nunca censu-
rei a pouca limpeza dos livros do sr. Eça; e, sempre
que de passagem os indiquei, foi para os elogiar
incondicionalmente, porque para mim livros sujos
são somente os mal escriptos. Em segundo logar,
nenhuma novella minha se inculca na capa romance
realista. Alguém arguiu, com razão, um meu editor,
que nos annuncios da 4.* pagina dos jornaes espe-
cializava a factura realista da novella. D^ahi proce-
deu talvez o equivoco importuno e flagellador do
sr. Eça de Queiroz. Se s. ex.* me julgasse menos
irracional do que o seu modo de ler os frontispicios
dos meus livros sem os vêr (eu é que vejo tudo
* Carta-jirefacio aos Azulejos^ do sr. Bernardo Pinhei-
ro, Pindella. 1886, p. xx-xxi.
CAMILLO 331
uanto o insigne romancista imprime) duvidaria
ae eu fosse capaz d'essa parvoiçada para chamar
os meus romances a attençáo dos leitores de s. ex.».
!rédo! Pois eu precisaria, para ser visto, de me
ivelar com a espádua litteraria do sr. Eça? Mas,
3 o fizesse, era essa a maneira de me tornar invi-
vel, como diz a sentença d© nâo sei que grande
ibio . . . Talvez seja do grande sr. Eça de Queiroz
sabia sentença. ^ »
Camillo começava a ser irónico no fim d'esses
eriodos e é, com esforço, apparentemente calmo
cn todo o artigo. Era preciso que elle tivesse por
Iça uma consideração enorme para não responder
Dm a brutalidade de um ataque violento — elle,
ae não perdoava nunca. Não sei mesmo se Eça o
Dmprehendeu mais tarde quando, arrefecidos os
rdores de combatente, desfeitos facciosismos de
5cola, recordando os tempos moços, decerto pe-
)u, com magua, os desatinos da juventude, numa
ora calma de justiça.
^ Camillo : José Maria d^ Almeida Teixeira de Queiroz,
ío Ohulo ás Creanças. 1887, pag. 142.
l;
ÍT'
1 1 r
: ^
li
1
III
Português antes de tudo, encarando as coisas e
os acontecimentos com o modo de vêr da sua raça,
Oamillo nâo pôz nem seria capaz de pôr todas as suas
iminentes qualidades ao serviço d'uma causa -ou
l'uma doutrina; nos seus romances não ha aquillo
. que hoje se convencionou chamar — a these, mas
empre, na boca do auctor ou dos seus personagens,
►s considerandos d'uma philosophia um poucochi-
iho burguesa, brilhando de onde a onde pela novi-
lade do paradoxo e conduzindo as mais das vezes
. conclusões moraes de pouco arrojo. Mas essa
QBsma moralidade varia de livro para livro, é de
ynisino ou de crença, de bondade ou de sarcasmo,
, mercê da instabilidade do caracter do artista. Ha
lovellas de Camillo em que rara é a scena inven-
-ada : uma das suas características litterarias é,
íomo já disse, a inconfidência. E eis porque, em
;rande parte dos livros seus, nos apparecem, mais
334 CAMILLO
OU menos velados, episódios da sua própria vida.
Toda a gente sabe, por exemplo, que nos Annos de
prosa e no Ultimo acto figura Anna Plácido, que o
Amor de perdição e a Mulher fatal são verdadeiros
ou, pelo menos, assentam num fundo de verdade,
e que o episodio macabro da Maria do Adro arran-
cada do tumulo pelo romancista apaixonado, deu
assumpto para um trecho do livro Scenas contem-
porâneas e figura episodicamente em alguns outros.
Nos seus últimos annos, era com prazer que recor-
dava o passado, a sua mocidade, os seus amores,
toda a historia vivida de uma existência tumultuosa.
E assim, no General Carlos Ribeiro, na Maria da
Fonte, nos Serões de S, Miguel de Seide, na Bohemia
do espirito, nos derradeiros versos, apparecem a cada
passo reminiscências d^um passado distante; e o
romancista, escrevendo os seus últimos livros sob a
inspiração melancólica da saudade, lembra-nos Rous-
seau interrompendo a sua ultima obra incompleta,
as Réveries, quando, retrocedendo o seu espirito á
mais viva e mais cara recordação da sua juventude,
de novo contava o seu primeiro encontro, tão poé-
tico e tão fresco, com M me de Warens. ^
Mas, ainda mesmo nos casos em que o auctor nào
entra na própria acção da novella, nunca elle cede
o seu logar de espectador que commenta, elucida e
1 RÉGIS : La phase de presenilité ches J. J, Rousseau.
Log. cit.
CAMILLO 335
observa ; e essa posição, que dâ um certo pittoresco
ás suas narrativas, favorece a opportunidade das
largas divagações do psycologo. Toda a acuidade
do seu espirito de analysta apparece então nitida-
mente. Esses mesmos que lhe recusam os dotes de
observação noologica, não o fazem senão porque o
seu processo de analyse os desorienta. As grandes
crises dos romances de Camillo nunca se limitam a
violentos estados d^alma, exteriorizam-se sempre,
concretizando se, materializando-se em factos. De
modo que, como é natural d'essa maneira, o roman-
cista faz o estudo dos seus personagens de fora
para dentro: observa-lhes os actos e investiga de-
pois as razões intimas que os determinaram a agir
de forma tal. E, por esse processo, chega â reali-
zação de typos admiráveis. Apenas, em certa altura,
uma vez por outra, o sarcasta intervém, surprehende
a figura em meio, com uma gargalhada, arremessa-
Ihe o escopro em meia dúzia de traços diabólicos e
faz d'aquillo uma caricatura. Taes os personagens
do Morgado de Fafe^ tal o typo, aliás admirável, de
Calisto Eloy de Barbuda da Queda d'um anjo, ou,
nos Annos de prosa, o de José Francisco Andraens.
E pois que falei do seu sarcasmo, e pois que
consequentemente ia falar da sua graça, opportuno
será referir- me ao aspecto, se não o mais brilhante,
se não o mais valioso, pelo menos o mais inimitá-
vel e inconfundivel do seu alto espirito. E o traba-
lho de humorismo adstricto ás suas obras de critico
e de polemista, que constitue o mais admirável
336 CAMILLO
documento de génio em obras-primas de irreverên-
cia grosseira e rude crueldade.
Em Camillo existia a negação completa de todas
as qualidades que para o critico em geral se pre-
ceituam. Falta va-lhe a visão serena das coisas e dos
homens e o poder de serenamente julgar ; via tudo
através das sympathias ou dos ódios que favores
ou oflfensas enxertavam na sua natural bondade —
tamanha quanto o pôde ser a bondade num nevro-
patha da sua força — e via a mesma coisa contra-
dictoriamente, segundo a variabilidade habitual do
seu espirito.
«Uma tarde, em S. Miguel de Seide, — escreve
o sr. Silva Pinto —7 sahiramos a passeiar pela aldeia:
Camillo Castello Branco e eu. Num caminho de
atalho, um velho, sentado a uma porta, ergueu-se
respeitosamente e cortejou : — Tenham vossas se-
nhorias muito hoa tarde! Correspondemos, e Camillo,
interrompendo a palestra, informou-me : — E iim
homein venerável este ancião. Tem sido uma esponja
de amarguras. A filha deu em mulher perdiãúf o
filho em ladrão, e a mulher morreu-lhe de dor,,.
Mas, concluiu com movimento brusco, Detis lá
sabe o que faz. Um quarto d^hora depois, passáva-
mos novamente pelo velho. Este ergueu-se outra
vez. Tirei o chapéu ; e Camillo, attentando no caso,
perguntou-me: — Quem foi que V, cortejou ? — Foi o
velho de aÍ7ida agora. — Qual velho? — Aquelle des-
graçado de qiieííi V, Exs^ me contou a historia. O
,CAMILLO 337
• ■
ae do ladrão e da, . . — Ahf sim: um borrachãof,
ortou elle, encolhendo os hombros.» ^
« A deliberação da ida para Lisboa — assevera
lamillo numa das cartas a Vieira de Castro — só
►oderá desfazê-la a gravidade da doença. Eu vivi
empre mal ahi. . .» ^ E em cartas a Silva Pinto:
: Grita-se contra Lisboa ; eu quando ahi vou pare-
e-me que bebo saúde nessa atmosphera, tão boa
ue transforma esse oxy génio a gazes do Arro-
bas Estive no Porto com a familia uns dias.
lini doente, como se sahisse d'uma cloaca. O Porto
em m. . . por dentro e por fora. Lisboa é só por
lentro Invejo-lhe a vida de Lisboa. Tenho
nuitas saudades d 'isso tudo e sei que não torno a
^êr a minha querida Lisboa. » ' E em cartas colli-
çidas na Illtistração Moderna, do Porto, sem des-
gnaçáo de destinatário: « O Porto seria uma sentina
■étida a toda a Europa, se a notoriedade do Porto,
íom as suas bandeirolas coçadas e a sua limonada
le cavallinhoSj passasse além de Campanhã
Eu abomino essa Praça de D. Pedro, esses Clérigos,
boda essa algazarra a fingir terra civilizada com
ares de New-York. Acho tudo melhor que o Porto,
desde a O velhinha até Barcellos.» E, numa carta
ao auctor do^ Romance do romancista: «O Alberto
' Silva Pinto: Cartas de Lhhooy na Voz Publica de 20
3 21 de junho de 1902.
2 Correspondência epistolar^ t. n, p. 50.
3 Ob. cit., p. 115, 102 e 106.
23
*àí8 CAMILLO
Pimentel lambem foge do Porto? Essa terra é in-
taliibie paia iodos os que lespiíam pela alma; e
eu, a dizer a verdade, em r.enhuma outra me dou
tão bem, quer do corpo quer do espirito. > ^
Comprehende-se que uma volubilidade de opi-
niões de tal feitio náo pode ser qualidade que atteste
a excelleiícia d'um critério. Não: Camillo nunca
poderia ser um critico: nunca o foi. E elle mesmo
o reconhece, embora por outra espécie de motivos,
quando escreve nos seus Eò-hoços de apreciações lit-
terariati^ em 186B :. «Dei-^ne pouco a este género de
escriptos, temeroso das difficuldades. Poderia, por-
ventura, vencer algumas das vencíveis a todo o
escriptor applicado; mas a. minha safara era outra,
e o tempo escasso para me sahir acceitavelmente
diambas. A critica em Portugal é quasi impraticá-
vel por duas causas; a primeira é que somos poucos
a escrever, e nos apertamos cordialmente a mào
todos os dias; a segunda é que, por este theor de
vida, nenhum escriptor se faria um nome que o
compensasse dos dissabores e da pouquidade dos
lucros. »
Camillo nunca desprezava uma aggressáo — par-
tisse ella d'onde partisse. Elle próprio o confessou
a Silva Pinto :
« Sempre que um dos novos me aggride, ha quem
me acoiselhe a não fazer caso. Foi asbim quando V-
* Alberto Pimentel : O remai ce do rowancisiaf iSl"^
CAMILLO 339
me provocou. O Teixeira de Vasconcellos escreveu-
me de Lisboa : Não responda. Este sujeito não
guarda o decoro, E eu respondi ao Teixeira: Nem
eu. Quem melhor as tiver y melhor as joga! E claro
que os meus quarenta annos de serviços, ou quantos ,
são, concedem-me o direito de silencio quando um
rapaz faz negaças com muito phrenesi á minha
innocente pachorra. Mas que quer o meu amigo?
Eu vi o pobre Castilho e o pobre Herculano sahi-
rem d 'esta vida com muitas nódoas negras no corpo.
Não surgiu luctador novo que não fosse ali ensaiar-
se, applicando dois pontapés âquelles dois velhos. O
Herculano creio eu que á força de orgulho chegasse
a persuadir-se de que os não levara : mas o pobre
Castilho sentia-os bem, e tanto, que logo, pelo tele-
grapho e pelo correio, me avisava do sacrilégio —
para que eu o desaggrçivasse. Acudi pelo nome
d'aquelle sublime ingénuo duas vezes, que me lem-
bre : na questão coimbrã e na do Fausto, Mas pela
minha parte resolvi não me deixar contundir sem
usar de represálias. Os rapazes dão-me; mas eu
reajo, como se vê. . .» *
Os criticos do Cancioneiro, a Questão da sebenta
e a polemica com Alexandre da Conceição, a pro-
pósito da CQ)ja, são documentos admiráveis de
aggressâo, em que o humorismo se alliava â violen-
1 Silva Pinto : Cartas da Lisboa, Log. cit.
340 CAMILLO
cia, garantindo para o lado do romancista, ao pri-
meiro assalto, a absoluta certeza da victoria. O
adversário podia argumentar com erudição ou re-
correr ao mais despejado vocabulário do insulto.
Camillo pegava nas suas phrases uma a uma, ex-
punha-as numa gargalhada que fazia rir também
os que o liam, punha em cada argumento conside-
rável do adversário o barbicacho do sarcasmo e
depois fazia-o pular, em divertidas cabriolas, â custa
dos beliscões, com que, num cynismo cruel, o tor-
turava. De tal modo, a dois passos do começo,
já se via o adversário apopletico, debatendo-se,
vomitando injurias, descomposto, desconcertado,
perdido, © Camillo gozando o prazer de o aniquilar
de todo, de o arrazar, de lhe fazer pagar bem cara
a audácia de profanar, mesmo ao de leve, a intan-
gibilidade do seu nome e da sua obra. Era bem o
representante litterario d'essa geração de Botelhos,
violentos, provocadores, desordeiros, que espalhara
o terror em Villa Real ; era bem o sobrinho de Si-
mão António, derribando, de penna em punho, re-
putações litterarias, como outrora seu tio, com um
fueiro, punha em cacos os cântaros do chafariz.
Essa polemica da Corja é modelar e define bem
em absoluto a sua maneira de combate. No primeiro
artigo de resposta, Alexandre da Conceição escrevia:
«Uma ultima observação. O sr. Camillo Castello
Branco, pelos excessos da sua bilis palavrosa, adqui-
riu neste paiz a reputação lendária dé um polemista
CAMILLO 341
temeroso e intractavel. Nós queremos prevenir o sr.
Camillo de que emancipámos ha muito o nosso es-
pirito do terror sagrado de todas as lendas e do
temor pueril dos grandes homens, depois que nos
resolvemos a tocar-lhes com um dedo e reconhece-
mos que estavam cheios de palha, como os espan-
talhos. Em homenagem por isso ao glorioso nome
do romancista e á seriedade da imprensa, procura-
mos manter esta resposta nos limites que nos sáo
impostos pelos preceitos mais communs da decência
e da urbanidade. Se porém os assomos olympicos da
vaidade irritada do sr. Camillo o levarem a repli-
car-nos em tom e por forma que exceda as raias da
boa educação, nós não teremos duvida em o seguir
a esse terreno e em converter esta inoffensiva pole-
mica no mais divertido e decotado escândalo que
tem entretido ha muito a ociosidade indigena. Como
temos sobre s. ex.^, apesar de velhos, a vantagem
de menos vinte annos seguros, afiançamos-lhe que
havemos de ser o ultimo a falar, porque d'aqui a
vinte annos, escrevendo todos os dias, ainda tare-
mos muito que lhe dizer. Neste ponto, a nossa ima-
ginação ó d'uma fecundidade illimitada e o nosso
pulchro arminho d'uma pureza relativamente exce-
pcional. Agora. . . Tirez le premier, Monsieur rAn-
glais.» ^
1 Bibliographia portuguesa e estrangeira, terceiro anno^
1881, n.** 1, p. 6 e 7. (Transcripto do Século),
342 CAMILLO
Nunca combatente algum entrou em campo com
mais denodada decisão, e a muitos pareceu nesse
momento que Camillo ia ter emfim o contendor
digno d'elle. Pois bem : escriptos mais três artigos
contra outras tantas respostas de Camillo, obras-
primas de ironia insolente, o adversário que com
•tão altisonantes propósitos entrara, bate em retirada
sem serenidade, sem argumentos, níam ironia, nem
mesmo insultos que o salvem.
«Esta questão está terminada — escreve elle
então. — Não é possivel discutir com um insensato
num tal estado de allucinação. Quebramos aqui o
protesto de continuar indefinidamente esta pole-
mica. Contávamos com todas as torpêsas ; com o
que não contávamos, porém, foi com a tolerância
do nosso estômago para supportar a presença do
torpe. Vencem-nos o nojo da sua baixêsa e não o
receio do seu valor.» ^
E claro que isso teve resposta e, como ainda
depois, numa carta publicada, Conceição se lhe
referisse ligeiramente, Camillo, ao vêr que o adver-
^ Bibliographia portuguesa e estrangeira^ L® anno, n.o 5,
jp. 81 .
CAMTLLO 34â
sarlo derrotado ainda bulia, aniqmllou-o de vez num
ultimo artigo.
Nessas polemicas violentas, o grande escriptor
sentia-se sempre á-vontade. Tinha ao seu dispor os
elementos d'uma erudição que mais d'uma vez lhe
proporcionava sahidas livradoras nos lances de maior
perigo, tinha a verve soberba, extraordinária, mara-
vilhando pela naturalidade, pela vehemencia e pelo
imprevisto, tinha um estylo dúctil, elástico, soberbo
que a cada passo desabrochava em formas novas, de
uma mais vigorosa expressão e d^um mais brilhante
colorido. EUe só se indignava, por dentro ; por fora,
á vista do publico, era a personificação da sereni-
dade, confiada e omnipotente, que pára, sorrindo, os
golpes mais certeiros e responde com a impiedade
<íynica d'um executor.
O sr. dr. Manuel Maria Rodrigues, hoje lente da
Universidade e, apesar de tudo, esse mesmo Ale-
xandre da Conceição, foram os adversários de mais
valor que terçaram armas com o grande polemista.
EUe próprio o reconheceu quando, feitas as tréguas,
serenamente o seu espirito pôde avaliar os factos e os
homens. Mas afinal o ódio caía com a ultima pala-
vra dos seus artigos de combate. Atacou o sr. Theo-
philo Braga com extrema violência e quando este
•escriptor perdeu dois filhos e João de Deus orga-
nizou um álbum de homenagem, Camillo deu-lhe o
4soneto A maior dor humana^ que é a sua melhor
obra rimada. E, na morte de Alexandre da Concei-
ção, escreveu versos assim :
34:4 CAMCLLO
Bem me lembra que o vi, na juventude,
Rosado pela aurora d*essa edade.
Eram prismas d'amôr e d'amizade
Os carmes do seu myslico alahude.
Sendo fatal quo degenere e mude
A crença e o aíTecto e o bem da mocidade^
Sangram-lhe o peito espinhos de vaidade
Nos arranques da briga azeda e rude.
Mais tarde o encontrei. Já era o homem
Ralado por desgostos que consomem,
E põem na face um gesto acre e severo..
Se o seu bondoso riso era apagado,
Restava-lhe este honroso predicado:
Pregando o Socialismo, era sincero.
IV
Fazendo historia, Camillo foi um investigador
honesto, erudito e intelligente, com a faculdade
notável de dar ás narrativas todo o relevo da sua
prosa d'arte. Náo tinha talvez a sciencia das gran-
des generalizações, mas sabia como poucos acingir-
se á verdade, averiguando os factos com um minu-
cioso e paciente critério que bastava a garantir-nos
a sua probidade. Corrigiu velhos erros consagrados,
aclarou duvidas antigas e disse-nos trechos de his-
toria aos quaes a sua prosa suggestiva deu um so-
berbo poder de evocação. Tal, por exemplo, no
livro sobre o Marquês de Pombal, a scena da morte
dos Tavoras no supplicio.
Dos seus escriptos de theatro, salientarei as
comedias, algumas das quaes ainda hoje se ouvem
com agrado. Os dramas, que fizeram época, corres-
ponderam ao seu tempo, e passaram com elle, na
vida ephemera das obras a que o génio náo marca
546 CAMILLO
uma grandêsa imperecível. Camillo não foi um
grande dramaturgo, como também não foi um gran-
de poeta : dir-se-ia que as regras do palco e das
rimas comprimiam, suffocavam a inspiração do
artista, como um circulo de ferro dentro do qual
o seu engenho se não sentia bem.
Os seus versos. . . O próprio Camillo se definiu
como poeta no seu implacável Cancioneiro alegre:
« No cérebro d'este sujeito, — diz elle num artigo
•que tem por titulo o seu próprio nome — nunca
phosphoreou pyrilampo de poesia bem medida.
Não perpetrou grandes delictos de romantismo im-
presso, porque foi de uma roda de homens práti-
cos, scepticos, desconhecidos da lua, mais amigos
do theatro que das florestas rumorosas e mais dados
^o ponche queimado do que ao remugir das vagas
>e ás brisas fagueiras do mar, do qual principal-
mente apreciavam as ostras nà Águia d 'Ouro. Foi
muito parco em trovas aos objectos dos seus ais.
Poesia parturejada com dor e não contada syllabi-
camente pelos dedos fez uma só e foi a ultima. Nas
' outras inflammava-se a frio. Quando tinha saúde e
dinheiro, regrava elegias, debulhava-se em lagrimas
de consoantes. Se ás catarrhaes se ajuntavam as
angustias da fallencia, entrouxa va-se nos cobertores
re vingava-se da therapeutica e dos capitalistas, flu-
minando o lápis d'onde rutilavam coriscos de cha-
laças salobras. De certo tempo em deante começou
a dizer que morria e mandava adeante d'elle um
volume de versos á voragem do esquecimento. Isso
CAMTLLO 347
nelle era presuuipção ; porque aos funeraes do seu
EU de poeta já elle thilia assistido em pes.soa o de
saúde perfeita. Quando estava sinceramente velho,
acabou por onde começara. »
E já antes tinha escripto, na prosa que vem a
acompanhar o seu livro de rimas Ao anoitecer da
vida : « Os meus versos estão dizendo que eu nunca
estudei os rythmos variados e elegantissimos da
poesia moderna. A minha sede de ideal e de infi-
nito não se apagava com a sciencia das graças ca-
denciosas, em que funda a sublimidade do poema.
Achava eu mais consolação em poetar pelas velhas
artes, e consoante o arpejar chão e monótono dos
mestres, que eu tinha acceitado, ao sahlr da pro-
vinda, sem saber que havia outros melhores. Quan-
do, mais tarde, dei tento do atrazo e anachronismo
das minhas oitavas rimas, e superabundância de
hendecassylabos, era fora de tempo o reformar-me.
Continuei a versejar sem arte e a pensar que o
muito do coração suppria bem o desatavio, ou o
demasiado alinho da forma. Se alguma vez me
desci da minha pertinaz ignorância, tentando mo-
delar os meus versos pela accentuação métrica e
rythmica dos melhores poetas contemporâneos, sa-
hia-me o dizer tão amaneirado e contrafeito, que
acabava comigo em persuadir-me que não havia
corrigir o rachitismo da mocidade. . . Assim pois,
de boa mente e má vontade me apartei da escola
do meu tempo, e, por bem não saber qual havia de
■seguir, fiquei fora de todas. »
348 CAMILLO
Mas, ou porque as tentativas rimadas coincidis-
sem com os periodos de maior abatimento moral,
ou porque ao senso-critico do. grande escriptor não
escapasse a noção nitida da sua inferioridade, o
certo é que em alguns dos seus livros de versos
vem, em sub titulo, a promessa infantil de não tomar
a fazer outra. Em 1874, sob o titulo do livro Ao
anoitecer da vida, lê-se a designação — últimos ver-
sos. Em 1888, as Nostalgias apresentam-se como a
sua ultima prosa Hmada.
E de justiça comtudo mencionar que a melhor
parte da obra poética de Camillo se contêm no seu
ultimo livro — Nas trevas. O paroxysmo da des-
graça fazia o milagre de entremostrar -nos o génio
do grande escriptor num género litterario que tâo
avesso â aptidão d'elle se demonstrara no decorrer
da sua vida inteira.
E analysada succintamente, em todos os seus
aspectos, essa obra grande, soberba e inconfundivel,
é tempo de dizer como a pátria, que esse homem
extraordinário tanto honrou, soube corresponder ao
esforço monumental do seu trabalho.
Em 188Õ, foi Camillo Castello Branco agraciado
pelo rei D. Luiz com o titulo de visconde de Cor-
reia Botelho e, por deliberação das cortes, dispen-
sado do pagamento de emolumentos, direitos . e
CAMILLO 349
sello de que se constituía devedor, apeei tando essa
mercê.
Em 1889, como «reconhecimento publico dos
relevantissimos serviços prestados âs letras pátria»
pelo visconde de Correia Botelho» foi, com o voto
das camarás, concedida a seu filho Jorge Camillo
Castello Branco a pensão annual e vitalícia de um
conto de réis.
' Em 1907, o parlamento approvou uma pensão
annual de 400$000 réis, em favor dos netos de Ca-
millo, filhos de Nuno Castello Branco, que luctavam
cDm falta de recursos para a sua subsistência e edu-
cação.
Por mais d'uma vez, grupos de homens de letras,
grandes commissões com representação de todas as
classes, e associações litterarias, têm procurado in-
teressar o publico e o Estado na ideia de se levan-
tar um monumento em honra do grande escriptor.
E comtudo ainda hoje, por vergonha nossa, Camillo,
como Herculano, não tem uma estatua em Portugal.
Eu não quero neste momento investigar qual o
verdadeiro motivo do insuccesso de tão insistentes
tentativas, nem procurar as vergonhosas razões
occultas que fizeram com que não merecesse sequer
a sancção camarária, no município portuense, o pa-
dido que ha annos fez a Associação dos Jornalistas
d^aquélla cidade para que o nome do glorioso es-
criptor fosse dado a uma rua. Mas seria absurdo
contestar a existência d'uma má-vontade que vem
^Ê•
de longe e que nem- a morte de Camillo, nem o
350 CAMILLO
tempo decorrido depois d'ella, conseguiram ainda-
apagar inteiramente. Ódios semeados pelas suas
palavras d'azedume, ódio ainda d^ima sociedade a
que elle arrancou os seus melhores grotescos, o ódio
das vaidadesinhas feridas e do amor próprio que o
ridiculo fulmina, — tudo isso veio deitar raizes de
calumnia, intrigar na sombra, difamar, servindo-se
da arma covarde do desprezo, esquecendo-se do res-
peito que primeiro se deveu ao nome do maior ar-
tista da nossa terra, e depois ainda se deve em ho-
menagem â sua memoria altissima.
Camillo morreu, e morreu d'uma maneira trági-
ca. Era um homem cego que se matava, era o fim
cruel de um desgraçado. Pois quando o cadáver
d'esse homem chegou ao Porto, havia na gare ape-
nas um cento de pessoas que o esperavam, e, entre
essas, nem um único escriptor, nem um único ar-
tista! Estavam reporters por dever de officio, o
cónego Alves Mendes, o padre Sebastião e Freitas
Fortuna por amizade, estava o editor Costa San-
tos e mais um pequeno grupo anonymo que a
admiração humilde ou a curiosidade banal levou
ali. «O cortejo era composto apenas de 18 trens e
atravessou a cidade no meio da indiíFerença geral
e quasi despercebido», diz o telegramma do Porto
para um jornal da época. * Mas, aqui e além, o
mercante saltava o balcão e vinha âs per tas — rir.
Correio da Manhã, de 4-6-90.
CAMILLO 351
O Porto rancoroso, incivil, materialão e ignorante
— vinga va-se. E vingava-se cuspindo o fel do seu
ódio sobre a face de um morto. Ia ali, emmudecido-
para todo o sempre, o sarcasta que escreveu a Filha
e a Neta do ArcediagOy os Brilhantes do Brasileiro^
toda essa galeria em que os seus grotescos vivem
e a sua sociedade egoista, plebêa, utilitária, sem
intelligencia e sem nobreza, anima os bellos qua-
dros que a fixam, com o poder gravativo d'um
artista de génio, na parte mais deprimente e cari-
catural dos seus aspectos. Ia ali Camillo, esse en-
demoninhado que, pilhando-os bem ridiculos, com
as suas sobrecasacas do domingo e os seus cartolòes
velhos, lhes agarrava pelas suissas e os fazia ca^
briolar no ar, como fantoches; e toda a rua de S^
Joào vomitava injurias sobre o corpo morto que
aquelle féretro continha, que lhe fizera andar á roda
a cabeça das mulheres nos seus tempos gloriosos
de velho leão das salas, que lhe corrompera as fi-
lhas com as paixões romanescas dos seus livros..
E, atrás do cadáver d'esse homem de génio que-
fez na sua terra, durante quarenta annos de inde-
fesso trabalho, quasi toda a litteratura d'uma época^
d'esse supremo artista, dos maiores da sua pátria,.,
o maior decerto do seu tempo, — nem ao menos uni
único escriptor, nem sequer um único artista : um
editor, os amigos, reporters dos jornaes e curiosoá. .^
Maio e Junho de IIJOS.
f "I ' r'|l4?!llri
Í|ÍtfíM7"P|7T
Bí^íog ?fl
NOTA^
O «Amor de Perdição»
O que ha, afinal, de verdade na historia da
fauiilia de Camillo, tal como vem contada no mais
celebre e mais vulgarizado dos seus livros? Nào
tenho elementos que me permittam responder com
segurança. Estou porém em crer que o auctor doirou
ali, com o brilho romântico da sua phantasia, os
episódios fundamentaes alicerçados num irrecusável
fundo de verdade ; e que, mais de uma vez, deslo-
cou do seu logar chronologico distante factos com
que guarneceu, artisticamente valorizando-a, a tra-
ma essencial do seu romance. Nâo me detenho a
citar as inexactidões em tudo quanto diz respeito
aos antepassados do protagonista da sentimental
novella. O leitor, se conhece o livro e se leu este
trabalho, já está sufficientemente habilitado para
ajuizar d 'essas contradicçòes. Quanto a Simão Bo-
telho é que alguma coisa ainda ha que dizer.
«Folheando os livros de antigos assentamentos,
no cartório das cadeias da relação do Porto — es-
creve Camillo na Introdiicção do seu romance — lí^
CAMILLO 3ÒÕ
no das entradas dos presos desde 1803 a 1805, a
folhas 232, o seguinte:
<í Simão António Botelho, que assim disse chamar-
se, ser solteiro, e estudante na Universidade de Coim-
bra, natural da cidade de Lisboa, e assistente na
occasião da sua primo na cidade de Vizeu, edade de
IS annos, filho de Domingos José Corrêa Botelho e
de Z>. Rita Preciosa Caldeirão Castello Branco; es-
tatura ordinária, cara redonda, olhos castanhos, ca-
bello e barba preta, vestido com jaqueta de baetão
azul, collête de fustão pintado e calça de panno pe-
drez, E fiz este assento, que assignei. — Filippe Mo-
reira Dias.
«A' margem esquerda doeste assento está escripto:
«Foi para a índia em 17 de Março de 1807».
Esse é o documento official que figura no Amor
de perdição. O resto é a historia que me abstenho
neste momento de contar detidamente: o amor de
Simão por Thereza, a opposiçáo das familias, a
reclusão de Thereza num convento, as pretensões
do primo Baltjiazar, o assassinio d'este por Simão,
o auxilio do ferrador João da Cruz, a abnegação
apaixonada de Marianna, a morte de Thereza no
mirante de Monchique, a morte de Simão a bordo
da nau que o conduzia, a morte de Marianna nos
braços do cadáver do homicida arrojado ao mar
no caminho da índia.
A versão do caso, escudada em documentos, e
a que me referi com detença nas paginas 28 a 30
e 33 d'este trabalho, diz apenas que Simão Botelho
foi criminado pelo estrupiamento que praticou com
um tiro de clavina na pessoa do criado de um indi-
viduo de Vizeu, de parceria com um homem de
péssima reputação, de nome José Jeronymo de Lou-
reiro e Seixas. O criado ferido chamava-se Francisco
.tj»
356 CAMILLO
José Ferreira e o patrão José Cardoso Cerqueira.
Sabe-se também que Simão era useiro em acompa-
nhar com um ladrão publico e caçador, de nome
José Rodrigues Quintas, do logar de Travanca.
O sr. Pedro d' Azevedo, auctor do interessan-
tissimo trabalho sobre os Antepassados de Camíllo^
náo viu o processo de Simão, que suppõe estar
feito em pasta no archivo da Relação do Porto.
Eu também náo o vi. E, nessas condições, tenho
forçosamente, nesta altura, de quedar-rae no terreno
movediço das h3'potheses incomprovadas.
E' possivel que, exceptuando a scena do assas-
sinato do morgado de Castro Daire, o resto que
constitue o enredo do romance seja essencialmente
verdadeiro: que Simão amasse realmente uma me-
nina, que poderia ser filha d'esse Cardoso Cerqueira;
que, por amor d'ella, se visse na situação do en-
contro com os criados, narrado no romance ; que
fosse um dos seus companheiros o outro accusado
do processo, e que ou esse ou o tal Quintas da Tra-
vanca fosse o que Camillo designa pelo nome de
João da Cruz. E' possivel que tudo isso seja assim
e que Camillo modificasse a acção, attendendo a
que, fora de duvida, é muito mais romanesco assas-
sinar um rival que estrupiar um criado, e morrer
d'amôr pela filha de um fidalgo que pelo rebento
d'um tal Cerqueira que ninguém sabe quem é.
Mas isto tudo são hypotheses, meras hypotheses,
talvez inconsistentes e que, em todo o caso, eu não
saberia comprovar. O que eu quero deixar acceií-
tuado é que, dada embora provadamente como
falsa a versão que o romancista attribue ao crime
de Simão, nem por isso nos é licito concluir pela
falsidade da maioria dos episódios do romance.
Referindo:se a Thereza, seu pae, seu primo, o
ferrador João da Cruz e a filha doeste, figuras que lhe
CAMILLO 357
parecem ter sido creadas pela fantasia de Camillo,
o sr. Pedro d'Azevedo escreve que «não seria toda-
via muito improvável que o amor de Simão tivesse
sido consagrado a uma rapariga pobre e de tão
baixa condição, que ao juiz de fora sobreviesse
repugnância em a admittir por nora, a qual todavia,
praticado o crime pelo amante, o tivesse acompa-
nhado ate â morte, quer nas profundidades do
oceano, quer nas regiões do oriente.»
Sim, pôde ser. . . tudo pôde ser. Mas se não ha
documentos officiaes que comprovem a existência
real dos personagens a que o sr. Azevedo se refere,
também, pelo menos que eu saiba, ainda até hoje
não appareceram quaesquer que neguem essa exis-
tência. De resto, a averiguação, pelo que diz respeito
ao ferrador e á filha, seria, em qualquer caso, inútil,
porque nenhum d'elles tinha mesmo que figurar no
processo. A versão documentada que o illustre in-
vestigador nos apresenta, apenas inutiliza a pre-
sumpção de realidade de certos nomes de persona-
gens e d'um dos episódios do romance — a morte
do morgado. Nada mais.
Depois de escripta e composta esta nota, appa-
receu no Diário de Noticias (n." de 6-X-1908) o se-
guinte, que entendo dever archivar como valioso
subsidio :
« Simão Botelho — Suppunha-se com bom fun-
damento que o Amor de perdição era uma espécie
de memorial de familia, uma auto-biographia dos
ascendentes de Camillo Castello Branco. Tal sup-
posição vae-se desvanecendo em presença do resul-
tado das pesquizas archivistas, a que ultimamente
se tem procedido. Verifica- se que as tradições de
3Õ8 CAMILLO
familia, traiismittidas ao eminente escriptor, che-
garam muito obliteradas ou adulteradas. A parte
fundamental do Amor de perdição pôde affirmar-se
«té certo ponto que continua a manter-se, o quejà
não succede com alguns factos e episódios impor-
tantes e até com o caracter das personagens que
mais ou menos salientemente figurara no trama
urdido pelo eximio estylista. E' necessário applicar,
em mais de um incidente, em mais de um logar, os
devidos coefficientes de correcção, os embargos d
jphantasía, para nos servirmos de uma phrase do
próprio Camillo. Este diz que Simão Botelho, o
iieroe da sua epopeia amorosa, fora atirado ás ondas
na sua viagem de degredo para a índia. Ora o sr.
Ismael Gracias encontrou, no archivo do governo
d'aquelle estado, documentos pelos quaes se prova
que Simão Botelho, longe de fallecer no caminho,
chegara a Goa. O distincto investigador indiano
vae publicar no Oriente portuguez um artigo sobre
o assumpto. Ceste facto, que não é único, aliás
muito frequente, se deduz quanto cuidado, quanto
critério e discernimento deve haver na interpreta-
ção, como documento biographico, das obras de
certos auctores. Se não se tivesse procedido,* como
se está procedendo, a averiguações minuciosas acer-
ca da vida de Camillo Castello Branco é de seus
antepassados, quanto não se teria phantasiado a
seu respeito, nos séculos vindouros, como. tem sue-
cedido e está succedendo com Bernardim Ribeiro,
Camões, Gil Vicente e muitos outros. Quaesquer
que sejam as inexactidões históricas que se encon-
trem no Amor de perdição, este romance continuará
a ser a obra-prima de Camillo, uma das mais bellas
jóias da nossa litteratura, e um dos espelhos, onde
mais nitidamente se reflecte a sentimentalidade
portuguesa.»
NOTA C
 mãe de Camillo
No seu citado e valioso estudo sobre Os ante-
passados de Camillo, o sr. Pedro d'Azevedo diz,
referindo-se a Manuel Joaquim Botelho Castello
Branco :
«Uma senhora cora a qual não tinha impedi-
mento canónico, deu-lhe uma filha e o grande Ca-
millo. Aquella senhora, de quem ainda não estão
bem averiguados os nomes, pois umas vezes se lhe
■dá o nome de Jacintha Rosa d'Almeida do Espirito
Santo, outras de Jacintha Emilia Rosa do Espirito
Santo e ainda outras de Jacintha Rosa de Proença,
«uspeita-se que era açoreana e casada, formando as
relações d^ella com seu pae um episodio que Ca-
millo introduziu no Amor de perdiqão».
Devagar. . . Ainda se não sabe hoje ao certo
•quem foi a mãe do romancista. Tem-se procurado
relacionar com episódios prováveis da vida d'essa
senhora, algumas passagens da obra de Camillo, e
tem-se também procurado descobrir na historia do
B6() CAMILLO
adultério do Manuel Botelho com a açoreana, con-
tada no Atifôr de perdic^ão, a narração verídica do
episodio amoroso que deu origem ao auctor do
livro. Para mais complicar as coisas, em 1905 ap-
pareceu numa folha do Porto a citação d'um docu-
mento, da existência do qual era licito inferir que
D. Jacintha liosa do Espirito Santo chegou a casar
com o pae de Camillo. O auctor do artigo em que
apparece essa referencia é um velho condiscipulo
e amigo meu, João de Meyra, hoje lente da Escola
Medica do Porto, e a quem se devem algumas inte-
ressantissimas investigações sobre episódios da vida
do grande escriptor. A elle me dirigi recentemente,
pedindo-lhe que me dissesse tudo quanto soubesse
sobre o caso, e são da carta com que teve a ama-
bilidade de responder ao meu pedido estes periodos,
que vêm collocar a questão nos seus devidos termos:
«... O que sei sobre o assumpto em que me
fala a pouco se reduz. E' verdade que, em 1905,
criticando na Folha da Noite (n." 87, de 19 de abril)
a Auto-lnographia de Camillo colligida pelo sr. Ta-
vares Proença, escrevi que o pae do romancista
fallecera em 22 de dezembro de 1835 e que chegara
a casar com D. Jacintha Eosa do Espirito Santo.
Você deve recorda r-se d'isto porque, em nota á pag.
24 do seu Camillo Cadello Branco — Esboço de
critica, diz : João de Meira, num artigo publicado na
Folha da Noite, do FortOj em 19-4-09, oitavo de uma
serie intitulada Para a biographia de Camillo^
afirma o casamento dos pães do romancista, facto
que ainda nenhum outro biographo tinha mencionado.
Também, nesse mesmo artigo, vem a afirthação, que
se diz escudada com provas, de que o pae de Camillo
morreu em 1H35, ficando elle assim orphão aos dez
e não aos nove annos. . .»
CAMTLLO 361
«O documento em que me baseei para fazer
aquellas duas afirmativas nào é actualmente iné-
dito, pois o publiquei no 2.° numero da revista
lisbonense Cosmos, conjuiictamente com um pequeno
artigo sobre Camillo, que não era mais do que a
abreviação de outros já publicados no Independente,
de Guimarães (n.^ 19, de 16 de março de 1902), na
Germinal, do Porto (n.^^ 11 e 12, de julho de 1902),
6 na Alma nova^ também do Porto (n,^ 1, de maio
de 1903). O documento é o seguinte :
^^_ «Em os 22 dias do mez de Dezembro do anno de
l J^§^ falleceu com o Sacramento da Extrema- Uncção
Manoel Joaquim Botelho Castello Branco, vinco de
Jacintha Rosa do Espirito Santo, morador na rua
dos Douradores, e no mesmo dia foi sepultado no
Cemitério do Alto de S. João, do que fiz este assento
que assignei. O Prior José António Durães. (Livro
d' Óbitos da freguezia de Santa Justa, de ÍS*Uj ; fls.
20 V.)
«Não posso dizer que esse assento me desse
muito trabalho a obter, nem me custasse longas
pesquizas. Eu havia pedido para a freguezia dos
Martyres, onde Camillo nasceu, o assento d 'óbito
de Manuel Botelho ; mas as buscas feitas não tinham
dado resultado. Foi então que se me deparou, a pag.
207 do Romance do romancista , de A. Pimentel, a
transcripção de uma petição para que lhe fossem
concedidas ordens menores, onde Camillo se dizia
natural da freguezia de Santa Justa. Occorreu-me
logo que o engano só podia provir do facto de
Camillo residir nessa freguezia á data da morte do-
pae. Escrevi então para lá e veio-me o assento de
que você pode agora, se quizer, pedir uma certidão
com as formalidades legaes.
«Mas, já depois que escrevi aquellas duas afir-
mativas na Folha da Noite, entrei a pensar que, se a
^02 CAMILLO
•data da morte de Manuel Botelho ficava definitiva-
«lente assente, o mesmo não succedia com o seu
casamento. De facto podia ter havido erro de in-
formação, propositado ou casual, tanto mais que o
-assento de casamento, apesar de subsequentemente
procurado em Santa Justa, náo appareceu. E' bom
•todavia notar que não appareceu também o asseuto
<l'obito de D. Jacintha, e que os dois factos podiam
ter-se dado na área d^outra freguezia. Eu, como
vivia no Porto quando esses factos me preoccupa-
vam, estava mal collocado para continuar em ave-
riguações que difficilmente podem tratar-se por
-carta. Desisti por isso de pesquizas. Você que está
^lú em Lisboa é que as podia fazer »
As investigações a que até hoje procedi no fito
•de alcançar o assento d'obito da mãe de Camillo,
têm dado resultado negativo. Nas freguezias cen-
traes que percorri — Sacramento, Martyres, Santa
Justa — esse assento não existe. Mas é forçoso con-
vir em que ainda ha largo campo aberto para lon-
;gas inquirições. Quanto á relacionação possível do
nascimento de Camillo com o adultério narrado no
romance, diz a carta de João de Meyra:
«O adultério de Manuel Botelho com uma aço-
riana é narrado no fim do cap. ii e no cap. xvi do
Amor de perdição. Este episodio tanto pôde ser
verdadeiro como de pura invenção do escriptor;
mas dada a predilecção de Camillo para roman-
cear factos basilarmente veridicos e dada a pouca
relacionação d'essa narrativa com o seguimento do
enredo (a ponto que seria ocioso inventá-la se não
tivesse succedido), inclino-me para acceitar a sua
veracidade. O que me é impossivel admittir é que
d'essa ligação extra-matrimonial de Manuel Botelho,
CAMILLO 363
tal como é contada no Amor de perdição, nascesse
Camillo e sua irmã mais velha. O cadete Manuel
Botelho, no anuo lectivo de 1802 a 1803 (ou 1803
a 1804?, você verá já- porque tenho a duvida) e,
ao que parece, antes de fevereiro (Amor de perdi-
ção, cap. I e ]i) fugiu com a esposa de um estu-
dante de medicina, natural dos Açores, primeiro
para Lisboa e depois para a Curuiia, onde viveram
um anno e tanto (Amor de perdição, cap. xvi),
voltando ao Porto lõ dias depois da entrada de
Simào Botelho na Relação. Segundo Camillo, foi
^m fevereiro de 1803 que o de Castro Daire come-
çou a pretender a mão de Thereza d'Albuquerque,
em junho que Simão Botelho o matou (Amor de
perdiçãOy cap. x) e em março de 1805 que Simào
entrou na B/elação. Como o mesmo Camillo, em
mais de um logar, conta que medearam 7 mezes
entre o assassinato e a entrada na Relação, é claro
que ha um engano de um anno ou na data do as-
sassinato para menos, ou na data da entrada da
Relação para mais. De um modo ou de outro,
Manuel Botelho estava de volta a Portugal o mais
tardar em março de 1805. Do Porto, onde visitou
o irmão, seguiu para Vilia Real com a amante. Ahi,
foi logo denunciado ao pae, que chamou a açoriana
a casa do juiz de fora e lhe propôz reenviá-la para
a familia á sua custa, proposta que foi immediata-
mente acceita, partindo a adultera para Lisboa e
d' ali para a sua terra e para o abrigo de sua mãe,
que a julgara morta, e lhe deu annos de vida, se não
ditosa^ socegada e desilludida de chimeras. (Amor de
perdição, cap. xvi, in fine). Como pôde ser que esta
açoriana adultera, reenviada á familia em 1804 ou
180Õ, venha a ser justamente 20 annos depois a mãe
de Camillo? Só pode afirmá-lo quem não attentar
nos pormenores e na data do episodio inserto no
364 CAMILLO
Amor de perdição. Alberto Pimentel diz também
(Os amores de CamiUo, pag. 27, nota 3): A mãe de
CamillOj que hoje snpponho natural dos Açores, foi
raptada por Manuel Botelho Castello Branco, Ha
quem suspeite que era casada ao tempo do rapto.
Mas, perguntado por mim sobre as bases das suas
presumpções, em carta que náo tenho presente
agora, respondeu-me, se bem me recordo, que tinha
esses factos do conselheiro António d'Azevedo,
sobrinho do romancista. E' de crer que António
d 'Azevedo não saiba mais do que vem no Amor de
perdição.
«Quanto à veracidade da narrativa, independen-
temente de qualquer relação com o nascimento de
Camillo, sò lhe posso dizer que estudantes açoria-
nos frequentando medicina em Coimbra de 1801 a
1806 só houve dois: 1.°) Joaquim António de Paula
Medeiros, filho de Francisco de Paula Medeiros,
natural da ilha de S. Miguel, que de 1801 a 1802
frequentou o 2.° anno, de 1802 a 1803 o 3.o, de
1803 a 1804 o 4.^ e de 1804 a 1805 o 5.^—2.^) José
Ignacio da Silva, filho de José Rodrigues Concel-
las, natural da ilha do Fayal, que frequentou de
1801 a 1802 o 4.^ anno, de 1802 a 1803 outra vez
o 4." anno e de 1803 a 1804, o 5.^ Este José Igna-
cio é do Fayal, como a açoriana de Camillo, e re-
petiu o quarto anno de 1802 a 1803. Náo trazem
os annuarios da Universidade o estado civil dos
alumnos, nem o dizem os documentos precisos para
a matricula, como informou o secretario Silva Gayo
á pessoa que a meu pedido lh'o perguntou. . .»
Em virtude de informação posterior, João de
Mevra fez o favor de me informar em carta re-
cente que esse José Ignacio da Silva, único estu-
dante do Fayal que por aquelle tempo andou na
CAMTLLO 365
Universidade, que era o n."^ õ do curso e morava,
-em Coimbra, na rua da Alegria, teve por máe D.
Helena Rosa d^Oliveira e casou-se com D. Maria
de tal, irmã de um capitão António Manuel, da ilha
do Pico. Foi pessoa respeitável e, após uma vida
sem sobresaltos domésticos, morreu Physicomór
da ilha Terceira.
Ora, falso o episodio do romance na época em
que vem contado, sê-lo-ia menos vinte annos de-
pois, em data visinha do nascimento de Camillo?
Eis o problema. De resto essas transposições chro-
nologicas são, como jâ disse, muito vulgares na
obra do romancista.
E é talvez este o ensejo do reproduzir aqui um
documento que pó.de ser um bom auxiliar para
investigações que procurem illuminar esta questão
ainda obscura. Vem no trabalho do sr. Pedro de
Azevedo sobre os Antepassados de Camillo, e diz
assim :
« Carlos Augusto Scola, Notário da Comarca de
Lisboa, por Sua Magestade Fidelissima que Deus
Guarde
<< Certifico — Que em meu poder e cartório exis-
tem os livros de notas dd tabellião que foi d'esta
<;idade José Manoel d'Antas Barboza, o entre elles
encontra-se um com o numero duzentos quarenta e
cinco, com principio em dois de abril de mil oito-
centos vinte e nove e fim em vinte e quatro de
julho do mesmo anno; e n'elle a folhas cento e oito
verso está o instrumento do theor seguinte:
«Saibáo quantos este instrumento de Legitima-
çjão e Preflfilhação, qual em direito mais firme seja
c obrigação virem, que no Anno do Nascimento de
Nosso Senhor Jesus Christo de mil oitocentos vinte
e nove, aos vinte e sete dias do mez de Junho,
366 CAMILLO
nesta Cidade de Lisboa, no meu Escritório na rua
Bella da Kaynha, appareceo presente Manoel Joa-
quim Botelho Castel branco que vive dos seos B-en-
dimentos e morador na rua da Oliveira, numero
três, freguezia do Sacramento.
«E por elle Outorgante Manoel Joaquim Bote-
lho Castel branco foy dito a mim Tabelião perante
as testemunhas abaixo asignadas:
«Que elle tem dois filhos naturaes e de May
incógnita, por nomes Carolina Eita Botelho Castello
Branco e Camilo Ferreira Botelho Castelo branco,
os quaes forão baptisados o primeiro aos dois de
Abril do anno de mil oito centos vinte e hum, na
freguezia de Nossa Senhora do Soccorro, por filha
de pais incógnitos, cujo assento depois o fizera
declarar e averbar aos nove dias do mez de Junho
do anno de mil oito centos vinte e cinco, declaran-
do então ser a dita Carolina Rita Botelho Castello
branco sua filha e de May encognita; e o segundo
fora baptizado aos quatorze do mez de Março do
anno de mil oito centos vinte e cinco por seu filho
natural e de May incógnita ; e porque pertenda
ultimar este acto com todas as declaraçoens e
meios necessários para a sua validade afim de
que os ditos seus filhos a elle Outorgante sucer
dão em todos os seus bens, direito e acçoens, e
em tudo o mais que pelas Leis do Keyno em di-
reito devão de herdar, por isso dice que desde já
por esta Escritura reconhece a elles seos filhos
Carolina B/ita Botelho Castelo branco e Camilo
Ferreira Botelho Castelo branco por seos legitimos
filhos afim de que em tudo e por tudo lhe possào
suceder e herdar até em qualquer Grau que Sua
Magestade se digne pelos serviços delle Outorgante
atendelo por a«im ser a sua vontade e nào ser para
isto conitraiigldo por pessoa alguma podendo am-
CAMILLO 36r
bos elles oii qualquer deles requererem a Sua Ma-
p^estade pelo Eegio Tribunal do ÍDesembargo do
Paço a competente Provisão de confirmação para
cujo fim lhe presta toda a faculdade necessária e
pela sua validade promete responder aonde se re-
querer o seu cumprimento para o que renuncia o
Juízo do seu foro domecilio e previlegios presentes
e futuros que alegar possão.
«Assim o outorgou pedio e aceitou e eu Ta-
belliáo o aceito em nome de quem deva tocar au-
zente, sendo testemunhas presentes Thomaz Roiz
Anão o Fábio Camilio Reisi que rezidem no meu
cartório que todos afirmamos o ser elle Outorgante
o próprio que assignou e testemunhas depois de
lida. E eu José Manoel d 'Antas Barboza, TabelHãa
o escrevy.
«Manoel Joaquim Botelho Castelbranco — Tho-
maz Koiz Anão — Fábio Camilo Beisi. Está con-
forme ao original a que me reporto; e declaro que
no transcripto instrumento estão riscadas as seguin-
tes palavras : « Cal » — « ultima » — « Camilio » ,— o-
que não está resalvado. — Lisboa, seis de setembro
de mil novecentos e seis. — Kasa novecentos e ses-
senta réis, — Sello trezentos réis. — Total mil du-
zentos e sessenta réis. — Carlos Augnsfo ScoIa.i>
NOTA D
A casa de Seide
Em nota á Antohtographia, de Caraillo Castello
Branco, coordenada e annotada pelo sr. F. Tavares
Proen(,'a Júnior, (Coimbra, 19()5), apparece a afir-
mação de que «a casa de S. Miguei de Seide per-
tencia ao pae de D. Anna Plácido». Como essa afir-
mação brigasse com os informes que eu colhera
sobre o assumpto para escrever o meu esboço de
vritica, pretendi certificar-me com segurança e para
isso recorri ao sr. Alberto Pimentel, que preceden-
temente também a elle se referira por um modo
diiferente d'aquelle por que o fazia o sr. Tavares
Proença. Com uma amabilidade que muito me pe-
nhorou, apressou-se o sr. Alberto Pimentel a res-
ponder-me: «Estou convencido de que a quinta de
Seide era do marido de D. Anna, tanto mais que
elle nasceu ali perto, em S. Payo de Seide. Mas
vou escrever a pessoa que poderá fazer fé no as-
sumpto, e dentro de 3 ou 4 dias terá V. uma cer-
teza absoluta.» E, dias volvidos, essa certeza che-
^ou-me realmente nestas novas palavras do sr.
CAMILLO 369
Alberto Pimentel: «Não ha duvida nenhuma: a
casa 6 quinta de S. Miguel de Seide era do marido
de D. Anna, Manoel Pinheiro Alves, que já a havia
herdado dos pães. D. Anna, por sua vez herdou-a
do filho, Manuel Plácido. Este rapaz, como V. sabe,
viveu sempre affectuosamente com Camillo».
H
NOTA E
Cartas inéditas
O sr. cónego Seniia Freitas teve a extrema
geutileza de expontaneameiite tne facultar a pu-
blicação d'a]gunias cartas que recebeu de Camillo
e que até hoje tem conservado inéditas. Essas car-
tas a que mais d'uma vez faço referencia no decor-
rer do meu estudo, sào as seguintes :
Meu presado amigo
A urgência de o ver é grande; mas não tenho
forças que me levem; não durmo, náo como, estou
na prostração mais desgraçada d'alma e corpo que
dar-se pode. Anna Plácido tem uma angina pectoris.
Eu coufeidero-a perdida. Tenho dois filhos doesta
senhora. Um d'elles é adulterino, está privado de
Jhe succíder nos bens. Além d'isso, se ella morre,
CAMILLO . 371
a saudade hade pungir-me com o remorso de a não
ter honrado aos olhos dos f.®^ e do mundo.
Eu queria que V. Ex^ me obtivesse licença do
seu arcebispo para eu a poder receber. Isto é exe-
quivel sem os preparativos do costume? Dá-lhe isto
m*^° incommodo, meu am^? Ou por ser um acto
religioso nâo será m*<^ custoso alcançar-se a licença?
Será como poder. Escrevo-lhe às 2 da manhan ou-
vindo-a gemer nas agonias do coração.
Do de V. Ex^
tão grato como infeliz
am^
22/11/79
Camião Cast^ Branco
II
Meu m**' querido amigo
A nubente requereu hontem a convocação do
Cons.^ de fam.^ Espera-se que a decisão seja favo-
rável. Se o não for, o q V. Ex^ alcançou do Cardeal
não só é mt*^, mas tudo.
Principio a sentir a prostração sequente ás rijas
commoções que me abalaram os nervos com este,
com q}^ a mim, desgraçado episodio. O que eu pre-
cisava era socêgo e que á volta de mim não tuinul-
372 CAMILLO
tuássem as ambições dos que olham para a vida sem
verem d^ella mais que a lama estrellada de lante-
joulas. O q eu preciso — jâ Ih 'o disse, meu caro
am^ — é morrer. Envio-lhe uns livros. A Correspd,^
e 2 sobre Darwin.
De V. Ex*
C de V. Ex* m^ grato am^
13/5/81
Camillo Castello Branco
ni
Meu querido amigo.
Forçarei os olhos â escripta de poucas linhas
que representem a m* grande vaidade agradecida
pelo seu táo lisongeiro quanto magistral livrinho.
Ha n'elle lanços extremadamente verdadeiros. Sáo
uns em que V. Ex* faz publica a inalterável ami-
sade que lhe dedico, e que me parece jâ existir
antes de o conhecer. Depois da m* morte, é natural
que os estylistas se preoccupem com a m* vida e
os meus recursos de Artista. Nunca se escrevera um
livro como este de V. Ex*, e com táo rara destresa
e táo superior engenho escripto por um padre J
Quào melindroso era o asjsumpto! E, se o Perfil
chegasse a Portugal, quantos clérigos desejanam
OAMILLO 3.73
quebrar o perfil de V. Ex^, e a mim os dois
perfis !
Beijo-lhe as màos, sagradas pelo talento.
B,oe o livro do sr. Dr. Almeida. Ainda não o pude
ler, nem sei se já o lerei. Reservo os meus agrade-
cimentos áquelle cavalheiro para quando posssi
conscienciosam*® applaudir a sua obra que pelo
índice me parece proficuamente histórica.
A final, a sciencia descobriu que a m^ infermid®
inexorável é uma myelite. A paralysia por em q*^°
está nas extremid*^^ inferiores. Se a lesáo da columna
vertebral chegar ás vértebras cervicaes tenho de
morrer asphyxiado. Quod Deus avertat. No princi-
pio jle Agosto, se ainda viver, vou p^ a Povoa.
Melhorei ali um pouco ha 2 annos ; no anno passa-
do peorei. Vou ver agora. Ha 10 annos, 17 de 7tbr^
de 1877, (4 setes!) morreu o meu Manoel. Talvez
lá me esteja esperando.
Desculpe as m^^ faltas p^ commiseraçáo com as
m^s angustias.
Seu do c.
Camíllo,
IV
Meu querido amigo
Ainda pude ver o seu retrato que me alvoroçou
alegremente. Náo me podia restar outra esperança
374 CAMILLO
de o ver. Acho-o n'um hon point de saúde e socêgo
de corpo e alma. M*° lhe agradeço este novo favor,
por que desejo que os meus netos o conheçam.
No «Cancioneiro alegre» não ha referencia al-
guma a q. por nome não perca. Publicado que
foi o referido livro, esse homem promiscuam*® com
alguns litteratos brazileiros, jogou-me umas chalaças
que vão compendiadas no escripto impresso que
envio a Y. Ex^. Nada mais escrevi, depois da pro-
vocação, contra esse sujeito: Se alguma coisa esti-
vesse no « Cancioneiro » que o incommodasse, seria
aspada a pedido de V. Ex*.
Estou a escrever a trote, p^' que não vejo. Tenho
apenas algumas fibras contracteis em uma das reti-
nas. Quanto ao padre que lhe ladrou, não podia
deixar de ser. Se os de cá o não lapidaram é p^ que
o não leram, nem lerão. Enfream a má lingua com
a serrilha de burros.
Estou em preparativos p* voltar a Lisboa onde
estive ha dias em consultas de ophtalmologistas.
Não me fazem nada, mas tem a pied*^ de me illudir.
Inútil pied° !
Adeus, meu caro amigo. Heide enviar-lhe de
Lx^ o meu retrato — o ultimo, o mais convisinho
da podridão.
Do seu m*° grato
C. Cctstello Branco.
11/11/87.
CAMILLO 37Õ
Refere-se a segunda d'estas cartas aos episódios
<|ue precederam o casamento d'am dos filhos do
romancista. A historia d'esse casamento ó assim
contada pelo sr. Alberto Pimentel, no seu livro Cs
aniôres de Cu ni III o:
«Gosando de melhor saúde que o irmão, isto é,
sendo menor nelle a tara hereditária, Nuno Plácido
Castello Branco não tinha habituahnente o brilho
de intelligencia que o Jorge revelava nos momentos
lúcidos. Comtudo, também às vezes escrevia des-
leixadamente em prosa e verso, mas sem paixão
pelas letras, e sem possuir maior illustração do que
■o Jorge. Educara-se á guisa de marialva minhoto,
■e a sua paixão eram cavallos, trens, o jogo, as fei-
ras, as conquistas amorosas. Tinha, principalmente,
n mania da dissipação, de que já padecera o seu
irmão uterino, Manuel Plácido. Camillo não via
para este filho outro caminho a seguir senão o de
um casamento rico. Elle havia nascido para mor-
:gado, sem o ser. E Camillo bem sabia que na vida
dos antigos morgados o casamento vantajoso, sem
previa consulta do coração, era o salvaterio de
todas as dissipações e estroinices — era o único
emprego possível. Portanto, o romancista pediu á
43ua imaginação mais um capitulo de romance es-
sencialmente nacional; encarregou-a de descobrir
um bom casamento para o Nuno. Não lhe foi pre-
•ciso dar muitos tractos á imaginação, porque havia
ali perto, em Villa Nova, uma menina rica, a quem
o próprio Camillo chamava a tricentenária, pois sô
lhe calculava a riqueza em 300 contos de réis.
«Esta menina chamava-se D. Maria Isabel da
Oosta Macedo. Era filha de António Joaquim da
Costa Macedo, natural de Famalicão, que em tempo
tinha ido para o Brazil, onde casara com uma
fcrasileira, D- Thereza Martins Marques, que trou-
376 CAMILLO
xera um grande dote. Tendo-lhe morrido os pães
em Famalicão, D. Maria Isabel vivia naquella villa
em casa de um vogal do seu conselho de familia, o
sr. António Joaquim Ferreira Tinoco. Era muito
pretendida em casamento. Os pintalegretes de
muitas léguas ao redor disputavam-lhe os trezeiUos^
contos, e a difficuldade da conquista estava em
evidenciar qualidades que supplantassem a rivali-
dade dos concorrentes. Essas qualidades faltavam
ao Nuno, que náo era gentil nem doce de maneiras:
que nào era loquaz, nem insinuante; e que, apesar
de marialva, tinha, em cerimonia, uma timidez que
o embaraçava. Camillo traçou na sua phantasiaum
plano audacioso, uma novella, que não era para
lêr-se, mas para representar-se. Velho romântico de
acção, e conhecendo por experiência própria no
amor que a fortuna ajuda aos audazes, reconheceu
ser indispensável que o ultimo capitulo terminasse
por um rapto, como nos bons tempos das grandes
paixões românticas. Para chegar mais facilmente
ao epilogo, lembrou-se de ser elle próprio quem
escrevesse pelo filho as cartas d'amôr, e, molhando
a penna no tinteiro, promptamente encontrou o
opulento filão d'aquellas missivas exhuberantes de
apaixonado lyrismo, que ficaram na memoria de
quantos leram o Amor de perdição. Abalado o espi-
rito de Maria Isabel por a mais vehemente corres-
pondência que em tempo algum tinha estonteado-
a cabeça de uma menina minhota, isto é, depois de
Camillo ter estado em scena por detrás do filho, e
preparado convenientemente o terreno, chegara o
momento opportuno de pôr em acção o rapto. O
assumpto de uma das cartas era o convite e o plano
da fuga, que ambos foram acceitos. Na véspera do
dia que Maria Isabel julgasse ser o mais próprio
j)ara a evasão, devia dar signal panda uma flor uo
CAMILLO 37?
peitoril de uma janella, que deitava para a rua de
Santo António. Uma flor! Aqui se conheceu mais
uma vez o dedo romântico de Camillo. Qualquer
prosaico amante de Lisboa lembrar-se-ia de recom-
mendar um — trapo ; Camillo propôz uma flor. E a
flor appareceu no dia 3 de maio de 1881.
«Logo os emisísarios de Camillo, que andavam á
espreita, correram a Séide a annunciar a appariçàa
do signal combinado. O romancista deu a ultima
demâo ao plano do rapto. Preveniu a hypothese de
quaesquer contrariedades supervenientes. Uma d'es-
sas contrariedades seria a do raptor e os seus
auxiliares encontrarem uma mulher de mâ vida, de
nome Maria da Conceição, por alcunha a Marcada^
que andava de noite a embebedar-se pelas tabernas
de Famalicão e era capaz das ultimas torpezas.
Esta rameira chegou a merecer a confiança de
alguns administradores do concelho, pois que ella
valia por si mesma todo um corpo de policia civil
em serviço nocturno. Era, sobretudo, um espião
vigilante. Camillo acudiu logo com um alvitre: —
Se <ipparecer a Marcada, }evem-n'a papa o** ladoa de
S, Thiago de Antas, a pretexto de beber uma pinga; e
dêem lhe ali uma sova, de modo que ella grite bem alta
Aqui d'el-rei, afim da attenção dos habitantes da
villa se voltar para esse lado e vocês poderem fugir
a salvo pelo lado opposto. Retocado o plano do rapto^.
Camillo fez- se sahido para uma estação da linha
do Douro. Na noite de 4 de maio, os auxiliares de
Nuno estiveram comendo á tripa forra e bebendo a
rêgo cheio, numa taberna da villa. A hora aprazada
para o rapto era a meia noite, consoante o estylo
do romantismo. Ouvidas as doze badaladas, sahiram
os homens da taberna e, de bacamartes aperrados,
foram, cosidos com as paredes, postar-se nas em-
bocaduras das ruas que davam para a casa da bra-
878 CAMILLO
sileira. Nessa mesma occasiáo avançava lentamente
um carro, vindo do Porto, tirado por uma valente
parelha, com as patas çntrapadas, para evitar o
fazer tropel. O trem parou á barreira da villa, na
estrada de (luimaràes, e- ahi esperou ordens. Nano
Castello Branco, em trage disfarçado, foi coUocar-se
atrás da praça do peixe, e adormeceu. Essa infor-
mação é exactissima : pode ser confirmada por todas
as pessoas de Famalicão. Adormeceu ! Se Camillo
teria adormecido em lance idêntico! Era que entre
o filho e o pae estava o tumulo do romantismo.
Aquelles dos auxiliares do rapto que deviam rece-
ber nos braços a fugitiva, quando se deixasse es-
■corregar da janella, ficaram contrariados ao vêr
ainda luz nas janellas da Assembléa, fronteira á
casa de Tinoco. Era que nessa noite o voltarete se
tinha enremissado muito, e os parceiros da bisca
sueca foram remanchando a partida até que os do
voltarete acabassem. — Diabo/ praguejavam os
emissários de Camillo. Finalmente, ás duas horas
da noite, apagou-se a luz na Assembléa; os últimos
parceiros tinham sahido, a occasiáo era propicia. —
E' agora y D. Isabel inha, deixe-se escorregar pela
janella y que nós a receberemos nos braços, disseram
de baixo os auxiliares do rapto. A brasileirinha
assim fez. Escorregou, descalça, como se havia
^aproximado da janella. Colhida nos braços -des- ra-
ptores, foi ao coUo de um transportada ao trem.
-Outro dos auxiliares teve algum trabalho para des-
pertar o Nuno, que dormia a somno solto, Ah!
pobre Isabelinha dos trezentos contQs! se ella sou-
besse que fora preciso acordar o seu raptor, teria,
apesar de ingénua, voltado para casa num Ímpeto
de indignação, numa fúria de raiva. O carro latgou
-á desfilada até á Portella de Requiào, sem que nin-
CAMILLO 379
guem desse pelo acontecimento. A Marcada não
appareceu, felizmente para ella.
«Quando o raptor e a raptada chegaram a Seide,
Camillo, que nes.sa mesma tarde se dera como re-
gressado, sentiu-se decerto contente do snccesso
d'este romance em acção, que tão habilmente havia
planeado, e que era seguramente a mais productiva
das suas novellas. Imagine-se a sensação causada
no outro dia, em Villa Nova, por este estupendo
acontecimento, tão perturbador dos patriarchaes
hábitos da provincia do Minho. Nas casas, nas lojas,
na praça, não se falava de outra coisa. E toda a
gente attribuia a Camillo o plano e o êxito da
empresa.^ Os pretendentes fallidos ainda por cima
recebiam os chascos e os epigrammas dos commen-
tadores alegres. Não lhes bastava o julgarem-se
roubados em 300 contos, cada um ! A's seis horas
da manhã d'esse mesmo dia apparecia Camillo em
Santo Thyrso a procurar o filho, que, dizia, lhe
tinha fugido. O conselho de familia da hraslleínnha,
que era composto do dr. João Bernardo do Valle
Vessadas, Camillo de Lellis Ribeiro de Campos,
Silvério Ferreira de Macedo, Manuel Bento de
Sousa, além de Albino Joaquim Ferreira Tinoco,
já mencionado, reuniu a requerimento da menor
raptada e deliberou, por maioria, que ella casasse
cora o raptor. O tutor, que era o dr. Theotonio
José Rodrigues d'Abreu Fontes, de Braga, também
transigiu. Em Villa Nova causou impressão o facto
de alguns dos vogaes do conselho de familia se
terem opposto ao casamento, malquistando-se com
Camillo. D. Maria Isabel voltou de S. Miguel de ,
Seide para Famalicão, onde ficou depositada em
casa de Adriano Pinto Basto e de sua esposa D.
Florinda de Carvalho Sá Miranda. Conheci muito
bem Adriano Pinto Basto, fallecido ha annos. Era
380 CAMILLO
O maior influente regenerador d'aquelles sitios, e
intimo amigo de Lopo Vaz. O casamento realizou-se
em Braga, na egreja de S. Pedro de Maximinos^
no dia 2 de julho, sendo padrinhos Jeronymo da.
Cunha Pimentel, ao tempo governador civil do
districto, e D. Araelia Castello Branco de Carvalho,^
a filha de Camillo, cuja filiação o Nuno havia de
pôr em duvida alguns annos depois!»
Na terceira carta, Camillo allude ao seu Manuel.
Era o filho de Anna Plácido e de Pinheiro Alves,
morto d'uma pneumonia, na Povoa de Varzim, com
dezenove annos. Camillo estimava deveras esse
rapaz. «Adoptei-o no coração extremoso de pae —
disse elle ao sr. padre Senna Freitas — e senti então
que o sangue nada é e nada conclue.» Sào ainda de
Camillo, nas Scenas da hora final, os seguintes pe-
riodos:
«Nas horas mais cruéis que a Providencia me
ha dado, quando a saudade de um morto a quem
o meu coração chamava filho, me quebrava o res-
tante pulso com que tantas e grandes desgraças
dobrei, li, nessas horas, este opúsculo nas co-
lumnas de um periódico inglês, a Quàrterly Re-
víew. Eu tinha assistido aos paroxismos de Manuel
Plácido, aquelle moço gentil que, cinco dias antes,
era ainda a exhuberante alegria da felicidade sem
intercadencias de tristeza, a flor dos dezenove annos
com a raiz já ferida de morte e a corola cheia de
perfumes. A sua doença, e ao mesmo tempo agonia,,
durara quatro dias. Cheguei á beira do seu leito
cercado de amigos, quando a febre cerebral deixara
entrar em sua alma um raio de luz, uma intermit-
CAMILLO 381
tencia da razão. Manuel viu sua màe e cuidou que
«ella poderia dar-lhe segunda vez a existência. Mas
•elle não acreditava na morte. Quem tem dezenove
annos, e nunca chorou, nem duvidou dos contenta-
mentos infinitos da mocidade, não receia que um
súbito calafrio, uma dor de cabeça, uma convulsão
a espaços, e uma anciedade febril sejam a vanguarda
de moléstia mortal. Julguei- o salvo quando a scien-
cia o considerara perdido. Beijara-me com expan-
ííiva ternura, fitara-me com os seus bellos olhos
negros e brilhantes, conta va-me os descuidos da
sua saúde, mostrava-me a epiderme lacerada pelos
cáusticos, e pedia-me que o trouxesse para o seu
quarto de S. Miguel de Seide. Mas, uma vez,
amparei-o nas braços e senti na rigidez inflexa
d'aquelle corpo, que a vida se lhe despedaçava
nas convulsões do cérebro, e o restante corpo era
jâ algido como deve ser a sua mortalha nesta fria
noute de novembro. Dez horas antes de expirar,
vestiu-se em anciãs com umas fadigas apparen-
temente afflictivas. Queria vêr o sol, queria es-
friar-se no vento do mar, sentia-se forte; se era a
morte que o assaltava na escuridão de um quarto
infecto, queria affrontà-la, desafiá-la para a grande
luz d'aquelle bello dia de 17 de setembro. Tinha
dezenove annos, e via-me vivo, a mim, velho, co-
berto de cans e lagrimas, alanciado de dores, e
assim me vira sempre, desde creancinha, quando
os meus braços o erguiam até aos lábios, e o
meu coração lhe chamava filho. Vestiu-se pois, e foi,
amparado apenas, até á extrema de um corredor,
onde recebeu o ultimo beijo da luz. Aqui, obede-
cendo aos meus rogos, pediu-me agua, bebeu-a sof-
fregamente, arquejando, e disse-me: — Eu já sabia
que não me deixavam sahir. Contavam que eu cahisse
de fraco. Enganaram-se. Eu não caio. Queria dizer
382 CAMILLO
que aos dezenove annos não podia morrer. Deitei-o
lia minha cama e despi-o. Pediu-me que chamasse
sua mãe. EUa cahiu de joelhos deante d'elle, que a
contemplava com torvo spasmo, ou a chamava com
as meigas palavras da sua amimada infância, ou
retinha a respiração estortorosa para ouvi-la soluçar,
como se aquelles gemidos lhe soassem extranhos^
inexplicáveis. Quando ella o transportava, sósinha,
nos braços robustecidos pela angustia e pelo amor,
de uma cama para outra, o moribundo dizia-lhe
sorrindo : — A mama pode Id com este Hercules l E
olhava espavorido para o seu corpo escoriado, roxo
de pus e sangue. Depois, nas ultimas sete horas,
tartamudeava gemidos longos, oíFegantes. Parecia
debater-se em angustias enormes, íntimas, da alma,
da saudade da vida, como se, afinal, conhecesse
que era forçoso morrer aos dezenove annos. O res-
pirar arquejante abateu; enxuguei-lhe o rosto ba-
nhado de suor pegajoso e frio, curvei-me sobre os
seus olhos fixos embaciados, senti-lhe a derradeira
vibração de todo o corpo, e no dedo sobre o pulso
a ultima contracção da artéria. Voltaram-no morto,
com os olhos ainda abertos para mim. Havia nos
seus lábios uma expressão doce semelhante a um
sorriso de conformidade com a vontade da Morte
que, aos dezenove annos, o fulminara. Desde aquelle
instante, as minhas lagrimas só pode estancâ-las o
pejo de as mostrar. Houve para mim uma consola-
ção : a certeza que me deu a sciencia de que Manuel
não soube que morria, não teve consciência da sua
dilaceração, anciava sem dores, não sentiu as vibra-
ções que o convulsionavam quando os seios do cé-
rebro se iam esphacellando, queimados pela febre.
Este beneficio, que pouco vale â minha eterna sau-
dade, devo-o a este livrinho. Ha confortos aqui
para os que temem os transes iiltimos da vida, e
CAMILLO 883
confortos, ainda mais necessários, para os qne as-
sistem ás agonias inconscientes de um amigo, de-
um íilho ! Ah ! . , . ver morrer um filho ! Meu que-
rido Manuel, acabaste sem saber o qae são dores
da alma. Não chegaste a vêr morrer tua mãe. Pa-
rabéns ! oh minha santa saudade ! Se Deus fe pedisse
contas da tua vida, dir-lhe-ias : — Eu tinha deze-
nove annos! Se fosses condemnado e repulso da
presença do teu creador, as lagrimas que te choram
aqui moveriam o juiz das acções da tua infância a
uma piedade que, para ser misericordiosa, não pre-
cisaria ser divina. Adeus, Manuel! filho do meu
coração. »
Numa carta ao visconde de Ouguella, Camillo
escreveu ainda: «Mataram-me as saudades de Ma-
nuel Plácido, que pouco se lhe dava de mim».
Nes^a mesma terceira carta, as referencias amá-
veis do grande escriptor, são para o livro Perfil de '
Camilh CMtello Branco, pelo padre Senna Freitas,,
publicado, em S. Paulo, em 87 e, no Porto, um annc>
depois.
NOTA F
Camillo e o sr. dr. Bombarda
Reproduzo seguidamente os meus artigos de resposta á
digressão de que fui victima, por parte do sr. Miguel Bombarda,
quandOf ha três an nos, publiquei o meu primeiro livro sobre Ca-
millo, E reproduzo também, a titulo documental e com a de-
vida vénia, os termos da agressão.
Não abandonou o sr. Bombarda neste ligeiro pleito os pro-
cessos de critica que já alguns dissabores lhe têm valido. Para
esse psychiatra são questões decididas todas aquellas sobre as
quaes sua ex.<*^ fixou uma opinião. Rebatendo essa sua illuzão
teimosa, já um dia o sr. Júlio de Mattos lhe disse que em psy-
chiatria não ha nem pode haver questões decididas: € Nesta
sciencia ( em activo trabalho de remodelação^ como sua ex,<* su-
periormente sabe) tudo se discute^ tudo se examina^ tudo se
revê.> * O sr. Bombarda^ comtudo^ não se convenceu, cotno^ d'esta
feita, também por cei'to se não convencerá, E* tarde já para
mudar.
Seguem, pela ordem em que foram publicados, os artigos
■de sua ex,^ e os meus:
1 Estudo polemico do sr. dr. Júlio de Mattos ao Qpntoalo do sr.
4r. Mendes MartinH, Ju»ta d^eza^ 19J3. Pag. 10.
CAMTLLO 385
Fsychologia do soffrímento ... nos que não soffrem
o soflVimento, debaixo dos seus múltiplos aspectos, —
<jondiçÕes, modalidades, eíleilos, — tem sido objecto de
muitas e profundas analyses. Mas onde os psychoiogistas
teem parado é no estudo da acção que a dòr, qualquer que
seja a sna forma, vem a exercer sobre aquelíes que lhe são
meros espectadores. O logar commum de que a dòr alheia
move á própria dnr e a bondade d'um coração 6 aferida pelo
«eu compadecimenle é, nos parece, o extremo limite até
onde se tem ido n'este campo que se ofíerece hoje á nossa
consideração e que ante vemos fértil em observações illus-
trativas.
Uma ha que se pôde já marcar, não menos notável que
inesperada, e é que para o mesmo assistente, para o mesmo
« receptor », o compadecimento não depende tanto da inten-
sidade do sotlrimento alheio, como de elementos que lhe
são inteiramente accessorios. Quer se trate de soíTrimento
physico, quer de sotTrimento moral, ha uin dominante — é
a diuturnidade combinada com a persistência. Reflecte-se
aqui uma lei psychologica, que mostra a intensidade da
sensação ou da commoção decrescendo com a habituação.
Mas ao lado ha outro, que julgamos poder-se fixar nitida-
mente e nos parece digno de attenção.
Dores physicas e mesmo dores moraes de condiciona-
mento normalmente determinado movem á piedade. Mas
soíTrimentos ha, horrorosos acima de toda a expressão hu-
mana, que não encontram senão a inat tenção e a indifferença
e que, mesmo no meio o mais sympathico, apenas conduzem
ao tédio, quando não á irrisão. Taes são os softrimentos da
neurasthenia.
N'um neurasthenico constitucional, n'aquelle em que a
doença chega a ser uma alienação mental e em que ella ex-
prime tão somente uma defeituosa construcçao cerebral, o
que o espirito padece chega a ser pavoroso. A obsessão e a
phobia, a idéa fixa e a confusão mental, mesmo quando se
tomem em toda a sua terriflca significação, constituem pal-
Jidas expressões das tempestades que se passam num cra-
neo, como nunca Victor Hugo as pôde sonhar. É preciso
que junto de taes doentes tenha havido o interesse scienti-
25
c
386 CAMILLO
fico e que se tenha tentado analysar o tumultuar do seu cé-
rebro balido por todos os horrores, para que se consiga
medir em toda a sua grandeza a intensidade de um soflri-
mento que só á anciedade de um melancólico se deve equi-
parar. Tenho-os \islo endoidecer, por que elos, por que
encadeamentos, nrio sei, mas endoidecem apoz mezes e an-
nos de atroz soíTrimento, e endoidecem na mais furiosa das
loucuras. Também os tenho visto que terminam pelo suici-
dio, puramente movidos pela atrocidade da «dòr psychica»
e sem que um factor de occasião, moral ou outro, leve á
final determinação.
Ora, todo este medonho soflri mento 6 por assim dizer
sem echo. A insensibilidíido da íamilia corre parelhas com
a indiflerença do medico de clinica commum, que, tendo
consíigrado a sua vida aonllivio dos padecimentos physicos,
nunca tentou penetrar n'estes insondáveis arcanos, nem
mesmo para lhes avaliar os etVeilos. Para elie, por melhor
que tenha sido a libertação do seu pensamento, por mais
que saiba, de sciencia certa, que a mentalidade não resulta
senão do funccionamento cerebral, para elle ainda vigora
um residuo que figurativamenle se diria atávico e o leva a
adinittir um «medico da alma» que não é elle. Não o con-
fessa, é ceito, mas por tal modo se isola no dominio das
chamadas doenças physicas, por tal modo se separa de toda
a penetração psychologica, que é como se o corpo humano
se dividisse em duas partes — uma para o seu estudo e in-
terferência, a outra para o estudo e interferência de outrem.
E todavia a acção do medico em estados d'esses é tão alta-
mente poderosa que faz lastima andem ao abandono tantos
miseráveis, que uma psychotheiapia regrada, longe das
brutalidades da suggestão theatral e do hypnotismo, poderia
resuscitar á felicidade da vida.
Qual a razão d'essa inditíerença da familia e do medico?
Por que motivo aquella desdenhosamente encolhe os hom-
bjos e este trata os seus doentes de « enfermos de imagina-
ção »,e por isso niosmo mais lhes acirra o' soíTrimento?
É que não ha uma base physica que se possa apalpar,
nem ao menos uma base que se figure como representação
do espirito. Se alguma vez se tivesse penetrado n^estes do-
mínios, se estes factos do cérebro mórbido alguma vez ti-
vessem interessado, se se tivesse chegado a conquistar a
convicção de que neurasthenias d'essas vêem d'um cérebro
vicioso como architeclura, ahi se teria um elemento de fir-
me apoio e os médicos communs não se mancommunariam
com os não médicos no desprezo de doentes que só «de
CAMILLO 387
imaginação » padecem, mas que na verdade são tanto mais
interessantes quanto teem a plena consciência da extranhe-
za do seu mal.
Que é esta ausência de objectividade a origem do des-
prezo, a razão mesma do franco dominio do egoismo dò
entourage, tira-se d'este facto — que em muitos males phy-
sicos acompanhando-se de confusos soíTrimentos mentaes,
estes, que muitas vezes são incomparavelmente superiores
aos outros, vão desdenhados por aquelles mesmos que mais
lamentam o padecimento physico do doente.
Ha pouco appareceu um livro — e foi elle que veio sus-
citar estas considerações — em que, n'um esboço critico, se
procura aquilatar a individualidade de Camillo e principal-
mente se lhe ventila a nosologia ("Cowilío Ccslello Branco,
esboço de crilica, por Paulo Osório ; Lisboa 1905). O A. pro-
cura demonstrar que Camillo era um neurasthenico, e para
isso vale-se, valha a verdade, do avolumamento de muito
pormenor que não contém, longe d'isso, a significação que
se lhe quer conceder. E' assim que se faz um montão de
phobias onde nem uma talvez se possa apurar: porque a
verdade é que a phobia não é só o simples horror á doença
ou á morte, porque então seria neurasthenico, mais ou me-
nos, todo o ser humano, do mesmo modo que não é phono-
phobo quem não tem ouvido musical, como emfim se não
acha possuído do neurasthenico horror á luz aquelle que
d'ella foge, physicamente soílrendo dos órgãos visuaes. Isto
mesmo teria de ser dito para toda a symptomatologia arma-
da no livro com coisas verdadeiras, é facto, mas que só
muito pela rama se podem tomar á conta de pliobias, obses-
sões ou delirios (grandeza, perseguição).
CamiPo não era um neurasthenico.
Bastaria, para o pensar, esta phrase que elle escreveu :
« Ha quatro noites que apenas durmo instantes». Qual é o
neurasthenico que confessa que dormiu instantes?
Psychicamente era outra coisa, que se me antolha, mas
que não quero pronunciar, porque não possuo o conheci-
mento bastante do homem nem da sua obra. E physica-
mente, como doença que o levou ao desespero final, julgo
não poderá haver duvida para nenhum medico que Camillo
era um ataxico. A ataxia acorrentou-o á dôr nos últimos ân-
uos da vida, e foi ella que o conduziu ao suicídio. E a ataxia
não é, como pensa o sr. Paulo Osório, um mal neurasthe-
nico ou que por qualquer modo se ligue a este padecimento.
Citações, em que da letira se possam tirar quaesquer illações
contrarias, não teem valor algum por mais eminentes quo
*
388 CAMILLO
sejam os que as subscrevem. A verdade é que hoje, a bem
dizer para todos os médicos, a ataxia locomotora, ào mesmo
modo que a parai ysia geral, não é mais do que um derra-
deiro golpe da syphilis.
Apenas, em Camillo, as perturbações cerebraes da ata-
xia, de resto Iho communs, adquiriram uma intensidade
descommunal e accentuaram-se n'um sentido neurasthenoi-
de, que só pôde valer como neurasthenico para quem não
conheça a fundo o valor d'esta palavra. E digo-o bem de
certeza, não só pelo que elle descreveu e serve ao A. para
fundar as suas asserções, mas ainda pela observação de
casos similares, como o d'aquelle nosso pobre collega que
ainda ha pouco trepou o mesmo calvário de Camillo e como
elle veio a acabar.
Ora, a citação d'este livro, que medicamente tem um
valor diminuto, perdõe-nos o A. dizer-lh'o, veio para mos-
trar como nelle está o reflexo da demonstração que acima
inquirimos. É o A., e como elle outros que cita, o padre
Senna Freitas, por exemplo, a tratar a Camillo como um
doente de imaginação. Vê-se um homem a soíTrer coisas
temerosas e lançam-n'o á conta d'um nosomaniaco e d'um
thanatophobico. Que nosophobia é esta quando a doença é
muito real e muito grave! que phobico horror á morte é este
num doente certamente e irremediavelmente condemnado
á morte !
Bombarda.
(D'^i Medicina Contemporânea, de 9 de julho de 1905).
II
Camillo Castello Branco e o sr. dr. Bombarda
•
Em um dos números recentes da Medicina Contemporâ-
nea, num artigo intitulado Psychologia do soffrimento . , , nos
que não so/frem, o sr. dr. Miguel Bombarda, professor da
Escola Medica de Lisboa e director do Hospital de Rilha-
folles, refere-se ao meu livro (^amillo Castello Branco ("esboço
de criticaj em termos que não prescindem de uma resposta.
Alguém, um dia, em polemica com esse illustre psy-
chialra, lembrou a phrase de Barbey d'Aurevilly : «11 est
des renommées qui durent par leur vague même; en les
prccisant, oq les ruine » e nem eu sei que diatX)lica tentação
CAMILLO 389
me deu agora de pôr em epigraphe do meu artigo essas
palavras. Mas não; fugindo á analyse da sua bizarra prosa,
cheia de prelençÃo e de ridiculo, e não tentando imittergir
no denso emaranhado da sua philosophia abstrusa, ea limi-
tar-me-ei a demonstrar — e facilmente — que o artigo do
sr. Bombarda, afirmando coisas vagas que nAo prova, attrí-
buindo-me asserções que nunca fiz, desprezando os pontos
capitães do meu trabalho para limitar as suas referencias a
um ou outro pormenor de menos monta — longe de me con-
vencer^ longe de me dar uma lição que eu avidamente es-
cutaria, apenas veio apresentar em publico o inesperado
documento d'uma comprehensão pouco lúcida e d'uma scien-
cia pouco em dia.
O sr. Miguel Bombarda começa assim o seu libello ac-
cusatorio :
«O A. procura demonstrar que Camillo era um neuras-
thenico, e para isso vale-se, valha a verdade, do avoluma-
mento de muito pormenor que não contém, longe d'isso, a
significação que se lhe quer conceder. É assim que se faz
um montão de phobias onde nem uma talvez se possa apu-
rar : porque a verdade é que a phobia não é só o simples
horror á doença ou á morte, porque então seria neurasthe-
nico, mais ou menos, todo o ser humano, do mesmo modo
que não é phonophobo quem não tem ouvido musical, como
emfim se não acha possuído do neurasthenico horror á luz
aquelle que d'ella foge, physicamente soíTrendo dos órgãos
visuaes. Isto mesmo teria de ser dito para toda a sympto-
matologia armada no livro com coisas verdadeiras, é facto,
mas que só muito pela rama se podem tomar á conta de
phobias, obsessões ou delirios (grandeza, perseguição).»
E diz, mais adeanle, definindo a obra:
«É o A., e como elle outros que cita, o padre Senna
Freitas, por exemplo, a tratar a Camillo como um doente
de imaginação. Vê-se um homem a soíTrer coisas temerosas
e lançam-n'o á conta d'um nosomaniaco e d'um tanatopho-
bico. Que nosophobia é esta quando a doença é muito real
e muito grave! que phobico horror á morte é este num
doente certamente e irremediavelmente condemnado á
morte ! »
D'onde, o sr. Bombarda entende que toda a symptoma-
tologia do meu livro está armada em bases que sua ex.*
390 CAMILLO
poderia, se qiiizésse, deitar a terra, mas que não deita para
nSo assustar ninguém com o barulho ; atirma que eu trato
iMimiUo como um doente de imaginação, quando é certo
que lhe diagnostiquei duas doenças, pelo menos, e ambas
graves ; e dá a entender depois que a phobia nunca tem uma
razão de ser que essencialmente a justifique.
Se um alumno da Escola Medica apresentasse ao sr.
Bombarda uma these com conclusões do feitio d'essas e
d'oulras que se lêm no decorrer do seu artigo, sua ex.*
tinha um dever profissional a cumprir : reprová-lo.
No livro Leu Ohsessio^is e les Impuhions de que são au-
ctores A. Pilres e E. Régis, o primeiro professor de Clinica
medica e o segundo encarregado do curso dò Psychiatria na
faculdade de medicina da Universidade de Bordeaux, vem
mencionada uma phobia em que provavelmente sua ex.* já
ouviu falar : a psychopalhophohia. Se o doente em que tal
phobia se verifique fòr declaradamente um psychopata, o
sr. Bombarda exclamará: «Que psychopatophobia é esta
num doente em que a psychopathia é mais que demons-
trada!» E comtudo, se o doente não fôr um psychopatha,
como se ha-de explicar a existência da phobia que é, sem
duvida, um phenomeno de natureza palhologica?
O sr. Bombarda sabe decerto que a phobia (dando ao
termo a accopção scientifica) não é o horror normal, vulgar,
de toda a gente : é o horror mórbido, justificado ás vezes
fundamentalmente, mas nunca no seu exagero nem na sua
anciedade. O sr. Bombarda sabe decerto o parentesco que
a phobia tem com a obsessão e sabe que Magnan define a
obsessão: «um modo de actividade cerebral em que uma
palavra, um sentimento, uma imagem, se impõe ao espirito,
independentemente da vontade com uma angustia dolorosa
que a torna irresistível » e sabe decerto ainda que o mesmo
eminente professor do Asylo de SanfAnna marcou para as
phobias estes dois caracteres essenciaes : a impossibilidade
para o doente de vencer o sentimento de medo que experi-
menta em presença d'um phenomeno, d'um objecto ou de
uma substancia e o estado de consciência completa que
acompanha esse sentimento.
Assim, as observações do sr. Bombarda a respeito de
phobias, que, feitas por um seu alumno, seriam simples-
mente um disparate, dimanando de sua ex.* são um docu-
mento comprovativo do velho latim de Horácio : « Quando-
que bónus dormitai Homerus ». O sr. Bombarda por vezes
não se limita a dormitar : dorme — e resona de tal modo
que chega a incommodar os transeuntes.
CAMILLO 391
Mas, no seu artigo, que é mais um fructo d'esse resonar
impertinente, o illustre psychiatra lusitano atira uma afir-
ina(jão,solemnemente : «Camillo não eraumneuraslhenico».
E para deinonstrar essa asserção, sua ex.* oppõe a toda a
prova laboriosa e cuidadosamente feila do meu livro esta
phantastica razão:
« Bastaria para o pensar, esla phrase que elle escreveu :
« Ha quatro noites que apenas durmo instantes ». Qual é o
neurasttienico que confessa que dormiu instantes?»
> Se o sr. Bombarda não escreveu isso zombando, dever-
se-<á dizer-lhe que foi d'uma infi3licidade lamentável. Em
que se funda o illustre psychiatra para dizer que um neuras-
thenico nunca confessa que dormiu instantes? Se sua ex.*,
para ser original, quizesse provar o contrario, teria talvez
mais argumentos. O nenrasthenico, em consequência mes-
mo da abulia que geralmente o caracteriza, foge das afir-
mações cathegoricas, absolutas. É raro ouvi-lo dizer: « vou
amanha a tal parte ». prefere formas menos positivas: « ten-
•ciono ir», «vou se Deus quizer». Uma afirmativa formula-
da com a mais absoluta certeza, por vezes, perlurba-o como
uma obsessão e não é raro inutilizar uma carta, por exem-
plo, para pòr uma nota de duvida em qualquer coisa que
-cathegoricamente haja dito antes. Um nenrasthenico dirá
mais facilmente « dormi aoenas instantes » do que « não
dormi um só instante». Mas pode dizer d'uma forma ou
<i'outra, que isso nada influe para um diagnostico em ter-
mos. Afirmar o contrario, é uma subtileza do sr. Bombarda
-que só conseguirá èpater alguns incautos admiradores das
-apregoadas prendas de sua ex.*.
O sr. Bombarda diz — • e muito bem — que « não poderá
haver duvida para nenhum medico que Camillo era um ata-
xico». Eu não sou medico, mas também não tenho duvida.
Mas sua ex.* escreve ainda :
«... a alaxia não é, como pensa o sr. Paulo Osório, um
mal nenrasthenico ou que por qualquer modo se ligue a
-este padecimento. »
E, pouco depois:
392 CAMILLO
« A verdade é que hoje, a bem dizer para lodos os mé-
dicos, a ataxia locomotora, do mesnio modo que a paralysia
geral, nno é mais que um derradeiro golpe da sypiíilis. »
Em primeiro logar, eu nunca afirmei que a ataxia, ou^
mais propriamente, o tabes, fosse um mal neuraslhenico.
Admiti i a possibilidade da associarão das duas doenças e
adnjillo a neurasthenia como origem da predisposição que
é o primeiro elemento etiológico lanto da paralysia geral
como do tíites. Posso fazer ludo isso em boa companhia.
Ch. Fór(^, iliustre alienisfa francês, medico de Bicêtie, es-
creveu qre a neurasthenia pôde ser considerada como um
estado mórbido, constituindo o terreno mais próprio para o
desenvolvimento, não só das outras nevroses e vesânias,
como das atíecções orgânicas cerebro-espinaes, e Clavelier
e A. Rémorid, este ultimo professor de clinica das doenças
nervosas na Faculdade de Toulouse, escreveram, nas addi-
ções á traducção do Atlas áe Jacob: « A hysleiia é mais que
um estado, é uma doença, uma doença por vezes mal dis-
lincta, dissimulada, mas sempre uma doença. A neurasthe-
nia, ao contrario, é um fundo commum, um terreno, uma
predisposição mórbida no que ella tem de mais geral. »
Quanto ao papel etiológico da syphilis no [a\\es e na
paralysia geral, eu não me dispenso de dizer ao sr. Bombarda
o que actualmente se pensa a tal respeito e que sua ex.%
pelo visto, ignora ou finge ignorar.
J. Vires, professor na faculdade de medicina de Mont-
pellier, afirma a pioposito do tates, no seu livro sobre
doenças nervosas (1902) : « A syphillis n?o é a causa exclu-
siva: é anti-scientifico pretender que sem syphilis não ha
tates e inversamente». Lancereaux diz que a influenciada
syphilis na etiologia tabetica é i.uUa. Pieriet, na sua memo-
ria sobre a pathogenia do tabes, apresentada em 4897 ao
congresso de Moscou, afirma que os tabeticos sPo urs pre-
dispostos para a syphilis e não inversamente, como pensa
Fournier. Rémond, no seu livro AJaladies nientales, publica-
do em 1904, dá o primeiro loj^ar á syphilis entre as causas
da paralysia geral, não a admittindo porém num papel ex-
clusivo. Grassefattribue ao tabes uma etiologia muito com-
plexa, contrariando assim, é claro, a opinião de Fournier.
Charcot, Landouzy, Ballet e Plinchon sustentam que a he-
reditaiiedride nervosa é a causa primordial da ataxia loco-
motora e que a syphilis, excessos de todos os géneros, trau-
matismo, etc, apenas representam o papel de causas de-
terminantes. Féré faz notar quanto é fallivel a estatística
CAMILLO 393^
em que os partidários da etiologia syphilitica assentam as
suas asserções, por isso que, emquanto uns auclores têm
concluído, dos dados estatísticos, que a proporção de para-
lyticos geraes syphiliticos é de 0,7 ou 1,7, outros, em face
d'esses mesmos dados, sobem a percentagem a 93 por 100.
Em artigos publicados no Journal of mental pathologij, em
1903: Sobre a paralysia geral progressiva, segundo o$ esludos^
feitos no hospital Zemskoi de Kharholf durante um período de
doze annos, o dr. Greidenberg regista casos de paralysia
geral em que a syphilis não entra como factor etiológico.
Num Ensaio das investigações medico-eslatisticas cm 93fJ casos
de parahjsia geral publicado pelo dr. G.-A. DiedoíT em
agosto e novembro de 1904 na Obozrienie psijhhiairii iievro-
logii i experiyyientahwi psykhologii, esse medico afirma que
a paralysia geral é uma consequência da « surmenage » ce-
rebral, na lucla peia vida; que a syphilis, o alcoolismo, a
hereditariedade, nada mais são que factores da predisposi-
ção ; que cada um d'esses factores não dá origem a doença
senão combinado com outros ou graças á intervenção de
phenomenos provenientes quer d'um estado de fadiga, quer
d'outras causas occasionaes. Maurice Faure, no 13.® con-
gresso dos médicos alienistas e neurologistas de França e
dos paizes de lingua francesa, realisado em Bruxellas, em
agosto de 1903, disse que a syphilis não exerce na génese e
evolução do tabes uma influencia essencial e exclusiva. A
propósito da communicação de Fournier sobre a Parahjsia-
geral da syphiliá, apresentada á Academia de medicina de
Paris nas sessões de 13 e 28 de fevereiro d'este anno, tra-
vou-se, nas sessões de 7, 14 e 28 de março, uma grande
discussão em que tomaram parte, além de Fournier, JoíTroy,
Haymond, Pinard, Halopeau, Lancereaux, Gomil, etc. Nessa
discussão, JoíTroy chegou a afirmar que a paralysia geral e
a syphilis são duas attecções distinctas, tendo cada uma a
sua individualidade, a sua essência, e não podendo qualquer
d'ellas originar a outra, em virtude da sua difterente natu-
reza.
Ora é depois de tudo isto que um sr. Bombarda, psy-
chiatra lisboeta, nos declara no seu jornal que, « a bem di-
zer para todos os medicas, a ataxia locomotora (ou tabes), do
mesmo modo que a paralysia geral, não é mais do que unv
derradeiro golpe da syphilis».
Mas, depois de nos dizer que Camillo não era um neu-
rasthenico, o curioso alienista assim se exprime :
<r Psychicamente era outra coisa, que se me antolha^
394 OAMILLO
iiins (jue nno quero pronunciar, porque nSo possuo o conhe-
ciiueuto hastante do homem nem da sua obra. »
Não il(Mxando de notar que esle modo de considerar
lun doenttí psychica e physicamenle, em separado, contra-
diz os preceitos scientificos de que o próprio sr. Bombarda
se faz éco cm outros pontos do seu artigo, — eu sincera-
mente lamento que sua ex.* se não resolva a dizer o que, se-
gundo o seu modo de vêr, Camillo era. Ninguém mais do
que eu estimaria conhecer a opinião de tão sabia persona-
gem sobre um caso que muito me interessa, como de resto,
segundo creio, deve interessar a toda a gente. Se o sr.
Bombarda me demonstrar que estou em erro, curvar-me-ei
vencido e jubiloso ainda por ter feito surgir a opinião de
tamanha summidade medica sobre um dos maiores escri-
ptores do meu paiz.
Mas. diga o sr. Bombarda o que é essa tal coisa. Nâo se
faça rogaiio; não leve para o tumulo comsigo esse segredo.
Meio Portugal está de olhos postos em sua ex.*. E' um dever
de homem de sciencia tornar publica tal revelação. E esse
dever, não será sua ex.* tão mau què deixe de cumpri-lo.
Paulo Osório.
(DY) Priyneiro de Janeiro, do Porto, de 2 e 3 de agosto
de 1905).
m
OscillaçOes
Em 9 de julho appareceu na M. C. um artigo em que
tio de leve se apreciava um livro do sr. Paulo Osório, inti-
tulado Camillo Castello Braywo, Esboço de critica. Agora, em
2 e 3 do agosto, apparecem no Primeiro de Janeiro dois ar-
tigos em que o mesmo A. pensa rebater o que aqui foi es-
<3ripto. O sr. Paulo Osório evidentemente deseja polemica.
Ora nós temos simplesmente a dizer a s. ex.* que não temos
tempo para lhe ensinar, a elle que não é medico, nem o
que sejam phobias, nem qual o estado da sciencia na ques-
tão das relações da syphilis com a ataxia locomotora. Isto
mesmo, ha alguns mezes, antes da publicação do livro, tive-
mos de lhe dizer, quando s. ex.*, depois de nos ter cônsul-
CAMILLO 395
lado sobre a sua idêa da alaxia nascendo d'um fundo neu-
rasthenico, quiz abrir discussão por cartas, quando lhe
affirmámos que a suá idéa nSo estava na sciencia de hoje.
Se o sr. Paulo Osório tiver meios de nos arranjar algumas
horas mais para o nosso dia, muito lhe agradeceremos; ti-
rar-DGS minutos que sejam do nosso tempo para figurar em
discussões com médicos, é que está de todo fora do nosso
programma.
Por isso, apenas diremos que s. ex.* nem sempre pen-
sou assim quando teve a tentação de pôr eomo epigraphe
dos seus artigos alguma coisa que já nos tinha sido dirigida
em polemica, por que de todo não demos, e é a phrase de
Barbey d'Aurovilly : « II est des renommées qui durent par
leur vague même; en les précisant on les ruine». Com
eíTeilo, em 17 de junho ultimo, ainda o sr. Paulo Osório
hos fazia o favor de escrever em dedicatória do seu pu-
nho : « Ao Ex.^^ Sr. Miguel Bombarda com a mais alta admi-
ração pelo seu hrilhaníissimo espirito ...»
M. B.
{D' A Medicina contemporânea, de 13 de agosto de 1905.)
TV
A fuga d'um psychiatra
« II est des renomées qni dureut par
leur vHgue môme ; ea les précisant, on
les mine. »
(Palavras de Barbey d'Aurevilly, ci'
tadas pelo sr. Mendes Martins ein polemi-
ca com o sr. Miguel Bombarda) ^
Na secçSo de Variedades do ultimo numero da Medicina
Contemporânea, * o sr. dr. Miguel Bombarda fez inserir, sob
o titulo de «Oscillações», estas palavras:
(Segue a transcripção do artigo precedente)
1 N.o de 13 de agosto, ultimo publicado na data em que este artigo
Íòi escripto, data que dista 8 dias da de sna publicação, retardada por
alta de espaço, conforme foi dito em local do Primeiro de Janeiro do
dia 20.
396 CAMILLO
Precisemos os factos.
Eu apenas conhecia o sr. Bombarda de nome e como
auclor d'um livro de vulgarização scientifica intitulado A
consciência e o livre arhilrio, quando sua ex.* teve a amabili-
dade de desenvolver e applaudir idéas minhas, expostas
num dos números das AgiiiUuidas, em três longos artigos-
insertos na sua Medicina. Agradeci em carta a que sua ex.*
respondeu declarando que sempre lhe era a muito agradável
acompanhar e applaudir aquelles que trabalham em prol da
nossa terra, tSo. desamparada de todo o progresso » e que
eu fazia « um grande serviço tocando nestas questões capi-
tães para a nossa vida como sociedade civilizada». Tudo
isso disse sua ex.*, na sua prosa solemne de conselheiro
Accacio, terminando por se confessar « com a maior consi-
deração » meu admirador.
Tempos depois, tendo eu chegado ás conclusões, que
expuz no meu livro, sobre a nosographia de Camillo, in-
quiri do que d'ellas pensava a magna sciencia do sr. Bom-
barda e, como quer que s. ex.* me respondesse expondo
ideias com as quaes eu não podia concordar de forma
alguma, respeitosamente lhe expuz, numa carta amabilis-
sima, as minhas objecções. Sua ex.*, que, no fim da sua pri-
meira missiva, se declarara « sempre ao yneu dispor e muito
feliz por me ver encarar tão interessante assumpto » e se
confessava ainda meu « admirador obrigadissimo », num
simples cartão de visita me falou depois, doesta maneira:
« Só hoje posso responder á sua carta e tenho muita
pena de não o poder fazer como desejaria. Foi um esforça
ter 10 minutos para os esclarecimentos que me pediu ; agora
seria impossível enviar-lhe novos porque seriam precisos
largos desenvolvimentos. Apenas ihe digo que se quizer
pode publicar as suas affirmações».
No fim d'esse bilhete, o snr. Bombarda dizia-se apenas
« muito attento e venerador ». Desde que discordei das suas
opiniões, sua ex.* deixou de me admirar. O que eu perdi !
O sr. Miguel Bombarda, todo impando a sua magiste-
ratica magestade, vem agora de novo declarar que não tem
tempo, — expediente que sua ex.* usa, pelo visto, todas as
CAMILLO 397
vezes que se engasga. E diz mais que não sou medico e
que á custa de discussões com médicos como sua ex.* pre-
tendo figurar. E' uma esperteza saloia, que n^o collie.
Em primeiro logar, se q sr. director de nilliafolles
rebatesse triumphanlemente o que afirmei, a figura que
eu fazia era bem triste ; em segundo logar, notarei que, nos
meus artigos, me abstive de expor a descoberto ideias
minhas.
No seu primeiro artigo, o sr. Bombarda, depois de
varias calinadas de caloiro tobie phobias e neuratsthenia,
declarou que « hoje, a bem dizer para todos os médicos, a
ataxia locomotora, do mesmo modo que a paralysia geral,
não c mais que um derradeiro golpe da syphilis». Não lhe
disse se sim ou não realmente a ataxia, do mesmo modo
que a paralysia geral, é o tal ultimo golpe. Limitei-me a
provar-lhe irrefutavelmente que, ao contrario da afirmação
de sua ex.*, nem todos os médicos pensam de tal modo.
Se é certo que hoje se altribue á syphilis um papel
imporlante na etiologia do tabes e da paralysia geral, certo
é também qjie, no modo de vêr da maior parte dos psy-
chiatras, esse papel não é de forma alguma essencial^e
exclusivo .lá citei muito em comprovação do que afirmo,
e posso citar ainda mais. Depois de publicado o meu artigo,
tive occasião de lèr na integra os discursos de Fouinier,
pronunciados na Academia de Medicina de Paris em sessões
de fevereiro e março do anno corrente, e pude vêr que,
entre os muitos auctores que o oiador citou em abono das
suas opiniões, só um lhe deu a afirmação de qre a paralysia
geral é « uma aíTecção d'origem exclusivamente syphilitica ».
E sabem quem foi esse auctor? Um português que falou,
ha dois annos, no congresso de medicina de Madrid :— o
snr. dr. Bombarda.
O que Fournier não disse — porque llic não convinha —
foi que, nesse mesmo congresso de Madrid, um illustre psy-
chiatra, nosso compatriota também, o sr. dr. Magalhães
Lemos — se levantou rebatendo as afirmações do sábio lis-
boeta e declarando, apoiado em observações suas e do seu
eminente coUega sr. dr. Júlio de Mattos, que não podia
admittir a opinião de que todos os paralyticos geraes fossem
syphiliticos. De resto, já o illustre director do Hospital do
Conde de Ferreira, no seu livro A Loucura, fala de paraly-
sias geraes sem precedentes syphiliticos e menciona inci-
dentemente um caso publicado por Tuczek e em que laes
precedentes também se n?o observam.
A questão, porém, não merece mais detença, já que o
398 CAMILLO
sr. Bombarda não hesita em dar a publico dislates, mas
não tem lempo para responder a quem lh'os contraria.
* *
Diz o sr. Jlombarda que eu registei numa dedicatória
as qualidades fulgentes do seu espirito. Não o contesto. O
espirito de sua ex.* indubitavelmente brilha. Mas brilha como
os diamantes do « Bera» da esquina da rua Nova do Carmo
e do Chiado : á custa das lamparinas que em redor os alu-
miam. Oh diamantes da loja são de vidro e espelho, o espi-
rito de sua ex.* 6 de pechisbeque.
Tinha o sr. Bombarda agora um óptimo ensejo de fazer
obra útil e de demonstrar que tudo isto não passa d 'uma
aleivosia que só o meu azedume e a minha vaidade ferida
justificam. Sua ex.* disse que, a seu ver, Camillo, psychica-
mente, era unia coisa diversa d'aquillo que eu pensava.
Convidei-o a dizer qual é a coisa qual é ella que o grande e
infortunado Camillo foi em sna alma. Invoquei a bondade do
sr. Bombarda, os seus indeclináveis deveres de scientista ;
e sua ex.*, em vez de responder, pòs-se a fugir.
Sr. dr. Miguel : venha cá ; diga o que pensa ; diga sem
medo, que ninguém lhe faz mal, se fôr tolice ! Pois não vê
V. ex.*, que, se eu sei quão profunda e copiosa é a sua
sciencia, outro pode vir menos instruido e que, em frente
ao silencio de v. ex.*, desprezando os seus titules, os seus
cargos e as suas honrarias, se lembre de lhe chamar parla-
patão?
Paulo Osório.
(D'0 Primeiro de Janeiro, de 23 de agosto de 1905.)
NOTA G
lÂHta doH ohm» originaes de Camillo, pela ordem
ihronologica da xmi publicação, uegundo os
elementos fornecidos pelo snr Henrique Mar-
ques, na sua excellente « Bibliographia Cainil-
liaiia»:
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rlndc~se a eisa mis u.lyra
peemo, em que descrevia
a vida que vívíilki no iii-
rerao todaii aS aiasses da
Agi
Ceultt
sliotioJp
Esta primeira rompo-
si«fto dromatlcH de Cu-
Emilia. Paru i»e eUa J
Msria! yiio
pieilHile e Urniira íiliasa:
«uii Ifía mãe. Fnlnódo do
i^A(0 Tbt>TU&2 Bibeironár-
falEnmeDte jittrihaida à
íilha (Ia aBiAasinncU. Em
lodo <J <uiao Cmíllo «■
plo^n^«ntÍQy.ilnlmente
cobre o preijo do trabslto
e. como ao Br. Alberto
Pi mental, elle próprio
oonfea.oo, . fni grtoSe >
'J
s
Tllnio
■í=.
ObwrraçSea
o..a «omeçoo « d» el.r
a«a]gÍbeira8°atolha^ de
pntaoo...
B
ISIS
A Harraça
Poemeto sK-
tyrioo
CamUlo mette a rídi-
cQlo um <i!iiifli"to entro
(, piiJíii Jofto Bernardo,
toT^^Ò^ "
Drama
A primeira ediçAo
d'est« drnpia era offera-
olda -A ei."ar. D. Hn-
ria íolicidade de Coulo
Browne. • Conta Vieira
de Caatro qae a Ceiííit™
drnmaliea. que ao t«mpo
T^ÇB do Onmillo .Nfto
iiodiT* represe nlar-ao o
drama lUarq<.ti de Torrn
Novat emqnanto o seu
ouctor nio emendar com
letraamain^palMapala-
queno, .
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In.pi.aç5*.
Poe.ia» IjTÍ
Vtot. d'e»Ba« poeeia.
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Salve, Kei \
Poesia d*
«andaçio
mento de D. Uignel de
12
18»
OpOBCUlo
TCsU. truliiillio. pnbli-
i-nd.} sem nome do au-
o conde do BBlbaò e sua
mnlhar. Conta o ar. Ita-
malho Ortigio, no Ettaãa
critieo que precede a edi-
402
CAMILLO
Oenero
lilterarlo
Observações
18
U
15
1852
1854
16
»
17
»
18
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19
»
20
1855
nosanna !
Um livro
Dnas épocas
na vida
Poesias reli-
g^iosas
Poesias lyri-
cas
Poesias lyri-
cas
Folhas cabi-
das, apanbadas
na lama
Mysterios de
Lisboa (8 vol )
 Signora
Laara Geordano
Á Senhora
Laara Geordano
A filha do
Aroediiago
Poesias saty-
ricas
Homance
Poesia
saudMção
de
Poesia de
sandaçfto
Bomance
ção monumental do Amor
de Perdição: c Espancado
na raa de Santo António,
em reivindicaç&o de um
arti^ de jornal contra a
família de Constantini,
então em demanda com
a família Bolhflo, Camil*
lo, já por terra, com uma
larga ferida na cabeça,
antes de ser levado para
casa do alfaiate Augusto
de Moraes, desfechou ao
Seito do agressor um tiro,
e que elle escapou pela
circumstanoia de traser
em couraça um espesso
collete de pelles. >
Este opúsculo foi a
origem d' uma polemica
entre o auotor e o profes*
sor portuense Amorim
Yianna.
Este volume contem
as poesias do Hotaima e
outras divididas em doas
partes: Preceito* do cora-
ção e Pteeeitoi da eonêcien-
da, que um editor mais
tarde publicou em vola-
mes separados.
5 quadras distribui-
das no theatro de S. Jolo^
na noite do beneficio da
cantora.
Um soneto distribui-
do na mesma oocasiAo.
CAMILLO
403
s
Data da
ediçfto
•
Titulo
Género
litterario
Observações
21
18Õ5
Scenas con-
temporâneas
Miscellanea
Romances, poesias,
um drama, narrativas his-
tóricas, eto. Camillo publi-
cou vários livros doeste gé-
nero, que flgararao nesta
lista sob egual designa-
ção genérica. No romance
A caveira apparece a sce-
na de Maria do Adro.
22
»
Livro negro
do padre Diniz
Romance
Continnaçfto dos Myi-
terioi de LUboa,
2S
1856
A neta do
Arcediago
»
Continnaçfto da Filha
do Arcediago.
24
»
Onde está a
feUcidade?
>
25
»
Um homem
de brios
>
Continuação do pre-
cedente.
23
>
Justiça
Drama
27
1857
Duns horas
d» leitura
Miscellanea
28
»
Lagrim as
abençoadas
Bomance
29
>
Espinhos e
flores
Drama
80
»
Purgatório e
paraizo
>
31
»
Scenas da Foz
Komance
32
1858
Carlota An-
gela
»
33
»
Vingança
»
34
>
O que fazem
mulheres
»
No flm do romance
vêm a primeira poesia
offerecida por Camillo a
Anna Plácido, designada
ahi por Ludovina.
S5
1861
Abençoadas
Lagrimas !
Drama
36
»
O Morgado de
Fafe em Lisboa
Comedia
404
CAMILLO
Género
litterario
Observações
87
S8
1861
b9
40
41
1862
42
Doze Casa-
meditos Felizes
O romance
d'nm homem
rico
Poesia ou di-
nheiro ?
As três ir-
mãs
O ultimo
acto
Amor de per
diç&o
Bomanoes
Eomance
Drama
Romance
Drama
Eomance
Um dos personagens
d'est« romance de Camil-
lo à uma evooaç&o do pa-
dre António d' Azevedo,
que foi, na Samardan, o
primeiro educador do ro-
mancista.
Este drama já tinha
sido incluído em 55 no
volume das Seeruu eon-
i&mp&raneas, Menciono-o
aqui, porque elle desap-
pareceu das edições sub-
bequentes d' esse Uvro,
correndo depois impresso
em separado. Nesse dra-
ma reproduE-se, ao que
se diz, a historia do ca-
samento de Anna Pláci-
do, que lá appareoe sob o
nome de Henriqueta,
Diz-se que este dra-
ma reproduz uma das
scenns da -agitada vida
do romancista. £' natu-
ral; tanto mais que lá
appareoe Anna Plácido,
já sem o disfarce de qual-
quer pseudonymo, ma^
apenas designada pelos
seus nomes de baptismo:
Anna Augusta.
£' ocioso recordar
que este vuli^rarizadissimo
romance é todo baseado
em episódios era que íi-
ffuram pessoas da familia
de Camillo. Foi escripto
na cadeia. Este livro re-
presenta o maior sucops-
so de livraria que até
hoje se tem registado em
Portugal. Vae na líi.'
ediçflo o que> em cal-
culo aproximadoí nos au-
4
—
11
Tili.lo
li^-r^íTo
Olisi.rvi.iues
otoriza a aiipiHir qae
d'Bll8 JH H. hajam ooDan-
plarSB. £ iasD entre nãB
è extraordinário.
13
ite>
MemoriHe do
Tr«.'«3pL-
Bomance
Nos Amôru de Ca-
-míUo, o ar. AUioMo l'i-
mentel pcew.ul,> qnn no
primeiro cnpiti^lo d'esle
postos, a melhor biogra-
phia da mfte do roman-
Í5
Coraçlin. on-
beçB, e enlomsgo
ra dt CamUlo. o >r. Al-
berto Pimentel: .No
livro Curufrt.., caèífO «
ShIvm a edade, n c6r doa
oabnUns. o nílo saber 16r.
B algnma phantasia no
vestir, a Thnmairia do li-
vin A 11 .ronqiuuH da reo-
lid-de. ..
46i .
EsrrelUi tu-
H-
pi™»
Camin- "«""«nTo" Im
V-.JSO Vflnas
*«' .
des K»jterlBdo
49
b«m e o
mnl
—
M
TKnlo
luterano
OLMrfíÇiOe»
■»
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,„?,:i:*""
«•--•
Gl
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AmuAl
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GS
dia k!liiiiin>
Naate Urro encon-
tram -m mula Qm» vM
PUoido.
M
lifllhíSo ' ™
GB
UM
vsçno
H
Duutdr Nenro
«r.™. Marques" ««!•«
flsse fiiclo.
m
No Bom .le
BHa ao Monta
■"""--
Oa trecboi antobio-
livro. An^ fllicido p-
wt a cbamar-se nallt
Bg
Viole horiia
de l.teirn
U
IMÕ
EscriptoB ra-
]ig[0>OB
pSBir. esta volnmB haviam
sido piiUlicadoB em jol^
eo
EsboQos dii
Critic»
ei
BomanFe
Kesta livro, appanoa
do novo H t.»«,.íva do
Adro.
CAMILLO
407
a
Q *
Titulo
Género
littorario
Observações
&2
63
64
1865
Horas de pfus
65
»
66
»
C7
»
68
1866
69
»
70
»
71
»
72
»
73
»
Luota de gi-
gnntes
O Morgado
de Fafe amo-
roso
A sereia
Preceitos do
coração
Preceito da
consciência
A engeitada
O Judeu (2
vols.)
O Olho de vi-
dro
A queda
d'um anjo
O santo da
montanha
Vaidades ir-
ritadas e irri-
tantes
£soripto8 re-
ligiosos
Bomance
Comedia
Bomanoe
Poesias lari-
cas
Poesias lyri
cas
Bomance
Critica
A maior parte dos ar-
tigos inolaidos neste li-
vro tinham sido também
publicados em jomaes no
mesmo período dos a Di-
vindade de Jetui e tradir
ção apostólica.
É o 1.« võl. da 2.» ed.
das Duat epoeai da vida,
oonstitaindo também vol.
autónomo.
É o 2.0 vol., nas mes-
mas condições do prece-
dente.
O protagonista d*este
romance hist.orioo é o es-
criptor português do se-
oulo xviu, António José
da Silva, O Judeu^ morto
nas fogueiras do Santo
Officio.
O protagonista d'este
romance satyrico é, ao
que parece, um conhe-
cido personagem que oc*
cupa logar aistincto no
episcopado português.
Foi a contribuição
de Camillo para a celebre
Qaestfto Coimbrft.
4(J8
CAUILLO
C8
•c
«^ V- ^
SI
Q
Titulo
Género
litterario
Observações
74
7õ
70
77
78
79
1867 I A braxa do
! Monte Córdova
A doida do
Caatlal
Cavar em
raitias
I
1868
80
81
82
83
»
84
86
86
1869
1870
j Coadas leves
e pesadas
i
O Senhor do
paço de Niufies
Mosaicos e
sylva de curio-
sidades histori-
ca», litterarias
e biograpbioas
Mysterios de
Faíti
O retrato de
Ricardina
O sangue
As virtudes
Hutigas ou a
: freira que fazia
chagas e o fra-
de que fazia
reis. — Um poe-
ta portugu#!s...
rico !
Os brilhan-
teâ dobrazileiro
D.
Alves Martins,
Bispo de Vi/.eu
Romance
Miscellanea
Romance -
Miscellanea
A publicaç&o d'est«
livro den orisem a ama
Questfto judicial e, annos
depois, a uma escandalosa
polemica entre o auctor
e o editor Anselmo de
Moraes. Vôr KoUtê de In-
iomnia.
Romance
Miscellanea
Romance
António, Esboço
graphico
bio-
do
O condemna-
Drama
Este drama foi escri*
pto a propósito da trage-
dia em qae foi prota^-
tiista-José Cardoso Vieira
de Castro, « quem elle é
dedicado. tTantamente com
■4
Género
Obnervaçíe.
este ilrainn. igan tem trSa
p" hT cou-rum oTwo em
nm acto, (S.B.O c. <Ht)o< ••
■
Tinffom que, mais tarde,
foi pnaCo È. venda em as-
pargo.
87
1870
A mallier
'faUl
Bomanoe
Diu o ar. H. Marques
que. .aoquejmreceeste
phHntaaiii mBH aimples-
hisWrift verdadeira..
88
Theatro oo-
CoraediM
iltirgadinha ^ Vai d'Amo-
Víell ib/^n''dep^i8'"vln'í
dída. em .aparado.
S8
1871
Vollareis, ò
CbriBW?
Narrativa
™,ovie!«"drcKtrí:: *"'
«J
1872
capellisla
Eomsnoa
Escreve o ar. H. Mar-
que» ; . Está inl^<•mplet«
mula tAta de Camilla «
historia delis areio ÍM*
seguinte KsUva Cnirlllo
ee^reveudo-o quando foi
viíitadn pelo sr. D. V»-
úio 1, ao le.iipo Impera-
dor do Uruil ; esto «u-
^o'^8a''dr°uTò%Í^ií^
Camillo B«Qedeu. parti-
fnntilizar aa follias im-
presnaa, e cde carcegoa
com ellaa um» carroan
que n.ar.dou para ohbh liu
auotor; Ca mi Ho - oonta-
se — ofto sabendo o que
faier de taiiti pupolada.
den-a ao seu barbeiro.
Í4
Titulo
lltlanTio
qUB l«t"U logo do . Ç.^
■ftf a patacos, vanilenao-u
de Ssnlr. António. A qns
eittivn âH^tÍHNdo um li-
vro dB Camillo ! Emhro-
Undi, aa folhas d» InfaoU
qu6 algnmas lonini parar
t. mftoa de B«Dta eMla-
iBi-ids. quB tentou píf
oobro á prof,in»5tto. Foi
porím tatde, porqna «pi-
piares oonpletoB (ai 1^
psBinua publicadas) u
consBEain aponr. Pbbí-
doa meafia. Csmillo, ura-
Fe''B"io'qno tVbáEOmmBtó-
d", inutilizando s si.a
nletou.a um volnine, KU-
daodo-lhB os n«>ea d.
alguns psraoniàgBns, alte-
rna, arredondando CFTtoa
periodoa. e Jou-DO-la iu-
a..!)«JMÍJI«.,ouia pro-
tagonista, ne ..ao i pBF-
teruimente uma /ly-anla
caprttiila. é, como em al-
Palma,' em Lisboa. Eis,
rloi aiDlso* d» (JnmiUo, a
onrioaa hiaturia do maii
ml^ciiú^. " ^ """" ""
Sã
oarraaoo
<ÍB Victor Hago
JoBé Alvei
LLvtodBoen-
Romuice
ver «b: preF«dfliile.
Ainda a ptopoaiio do
caso Tieir. de Castro.
Parto d'o»e romaDoo aa-
hiQ no Pria-riTO ie Jawi-
™, oom o titnlo de f>pí-
4
M
„...
OaiMio
Obeerro^s
98
llj72
iaaòòT^^'"'''"
Mi<c.ellaiie&
SI
A eapadn
d' Alexandra
Opascnlo »»-
tyriuo
Boàímio do íipiTito.
es
1873
d,^„Bualu"'^
Perfil biogr*-
pLloo
S6
78.71
O Demónio
do Ouro f2 vol.)
Komaa»
87
,874
Ao anoite-
oer d(L vida
Poesias lyri.
m
entre Jr«é Cur-
doBo ViBira da
OastroACnmillo
Culello Brui«>
DiltHVÕBB
e»
som^Va^vola"'
Misnellanea
Publicação meiíMl
100
O regínidn
Roraonce
101
1875
A tilba do
rogii^idn
sedente
102
75T6
A CHVoir. d«
marljT ,3 vol».
CentinuaoRo dos pre-
cedentes.
lOÍ
75 77
XovolUs do
Miuho.iavols.
Raiuanctu
FabUcAtío meosal
IM
18T8
Cur-Q de iit-
Hislori. Ut
ContlDnacSo a com-
Ferrei n.
m
1B79
Cnnoioneiro
alagre Ua poe-
tas portoRueBeii
«legro
Folemio»
SeutimonU
lismo o hUlorlH
UiseellaiM»
Vem inaliiido neste
Tolmne o ronUDoe Eutt-
—
H
Titulo
fienero
UbaervsçCes .
Aio irocarCn, quennnoaa»
publicou eiu separado.
m
im
SnicidH
NamtiTik
J*].iibli^jiaanaaJfoi-
ttla:
'"
Luii de C«-
mães
NoUabiOfirH-
É o profaoio da 7,'
ed. do Camõrt de Oiu-fett.
Foi depois Ttunbem io-
Dloido na Bohimia do
cipirítB.
Historia «
Miecellnnea
Vem incluid-. nesíe
coctinuaçAn do EiiMíbio
lOB
Eohoe humo-
rislítofl do Mi-
nho {i opaaca-
los,
:;
lUttniii
Critica
Historia
mia da apiTÍtn.
IH
' !jo,';="«m""
Draoia
Vêr ob,. ao n.« 87
d-esta lísiu.
'"
ires
Como.lii.
d'eBt« Hatft.'
,u
. 1 Eutre H flan-
Vér ob,. ao D.» Sí
d'e5t;t lista.
115
. : SMoolÍPoa
Miar.6llBDDa
. 1 A b™«lleita
1,7
ma
D. Luiz de
Portugal
Hiatoria
118
QntstAo da
Bebanta
PolemicH
M4
Titulo
li«"Z
ObsMvnçSea-
■•is =
o'"ar"'3rr Juí^ÍI^Ó Ca^
drlgiiea. ao terapn ainda
aluDinD da faculdade de
TtieoloEÍa. Ai leplú-as da
Camillo fonm reprodo-
1
pirito.
11»
General
CirlM Klbeiro
Tinha do
Porto
Hiatoria
■ni
Maria da
FBBle
vro do pfáte Catiralro.
m
1885 1 SerwB lie S.
iMiBHíl de Seide
Hiecollanea
lESa
A L)rn Ueri.
Critica
d"»vedo''cl.BtoUÕ Bintico
I»
•
íipirLto
UluellBDea
12S
do * IW^eTíSÍ"
IÍ'r"B™r*Chilr*
druu
A propoilto d'uma
questão Jadlclul entra o
128
H»l«çodecri-
tk-a
Crilka
e ono detida analyM
da tradiicv»» <'" f """" ■!«
IST
Vulcue» de
Lama
"•"•«•
ISS
,m
rwiii» Ijri-
414
CÁUIUjO
â
i-4
Titalo
Género
litterario
Observações
•o
o •
120
1880
Delictot a a
Mocidade
Miscellanoa
£ a compilação, feita e
annotada por Freitas For*
tuna, das primeiras compo>
sições de Gamillo.
130
»
Vida do José
do Telhado
Narrativa
£ aro folheto reproda*
slndo as paginas que Ca»
roillo consagra nas Memo*
riai do cárcere ao celebre
salteador.
131
»
Kevista do
Porto
Folhetim
É a reprodncçSo, feita
por Freitas Fortuna, d'om
folhetim publicado no Xa-
cional, em 23 de fevereiro
de 1850.
132
1890
Nas trevas
Sonetos
O sr. H. Marques menciona mais^ com escrupuloso des-
envolvimento, ainda que advertindo de que não pretende
dar essas listas como completas :
— Livros traduzidos por Camillo .... 14
— Livros de diversos auctores, acompanha-
dos de advertência, analyse, annotHÇões,
apreciação, carta, introducção, juizo cri-
tico, nota, preambulo, proemio ou prefa-
cio de Camillo 87
— Outros livros illuslrados com escriptos de
Camiílo, inéditos ou reproducções ... 88
— Revistas litterarias, periódicos, jornaes e
publicações de género idêntico, redigidas
ou collaboradas por Camillo (inéditos ou
reproducções) 129
Mencionando nas obras originaes um livro de cartas
ao sr. Joaquim d'Araujo, dividindo os opúsculos da Questão
da sebenta e mencionando em separado as edições do Mnria
não me mates que sou tua mãe! que sahiram com os títulos
de Maria José e Matncidio sem exemplo, o sr. H. Marques
regista 456 números na sua Bibliographia,
índice
Pag.
Prefacio 9
Genealogia 17
Biographia : 41
I— 1825-1844 43
11 — 1845-1848 81
III — 1849- 189Ô . 113
Nosographia : 153
I — Os factos 155
II — Discussão 233
III — Conclusões 259
Aobra: 263
I 265
II 313
III 333
IV 345
Nol«is :
A — A fíenealogia de Camillo 353
B — O « Amor de Perdição » 354
c: — A mãe de Camillo 359
D — A casa de Seide 368
K — Cartas inéditas 370
F — Camillo e o sr. dr. Bombarda . » . . . 384
G — Lista das obras 399
ERRATA
Kíitro «íRuns tnpsfw de revido fticilmGiile coinprcbotl
Nâ [lagloa Is.'), tinlta 1 do primeiro pnrntfrnplin, onde™
1 m IA i«i(n«.j, (Jove lAr-sii iíoÍ4i-r)M. Nb 1 rnit«orlt>cAo do tiitíaini
k||ttnnUii, cm jm^. 317. Iinl;n fi, iltiv» fnzKi-MO jfiiul cniciija.
|«iiPl«»-'S67
1